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OS MISTÉRIOS DA FLORESTA NEGRA / Emílio Salgari
OS MISTÉRIOS DA FLORESTA NEGRA / Emílio Salgari

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

S A N D O K A N

OS MISTÉRIOS DA FLORESTA NEGRA

 

                                   Os mistérios das Sunderbunds

 

                         O assassínio

     O Ganges, esse famoso rio celebrado pelos indianos, antigos e modernos, cujas águas são por aquele povo consideradas sagradas, depois de ter sulcado as montanhas nevadas do Himalaia e as ricas províncias de Sirinagar, de Deli, de Odhe, de Bahare e de Bengala, a duzentas e vinte milhas do mar divide‑se em dois braços, formando um delta gigantesco, intrincado, maravilhoso e talvez único.

     A imponente massa das águas divide‑se e subdivide‑se num sem‑número de riachos, de canais grandes e pequenos, que sulcam de todas as formas possíveis a imensa extensão de terras entaladas entre o Hugly, o verdadeiro Ganges, e o Golfo de Bengala. Daí resulta a existência duma infinidade de ilhas e ilhéus e bancos, os quais, para o lado do mar, tomam o nome de Sunderbunds.

     Não há nada mais desolador, mais estranho e mais aterrador do que a visão destas Sunderbunds. Nem cidades, nem aldeias, nem cabanas se vislumbram de sul a norte, de leste a ocidente, não se vê mais nada senão imensas plantações de bambus espinhosos, apertados uns contra os outros, com as pontas a ondular ao sopro do vento, empestado pelas exalações insuportáveis de milhares e milhares de corpos humanos que apodrecem nas águas envenenadas dos canais.

     Raramente se vê um baniano elevar‑se acima daquelas gigantescas canas; e menos ainda se vê um grupo de colhedores de mangas, de pescadores ou de nagas surgirem entre os pântanos; nem ao olfacto nos chega o perfume suave do jasmim, do chambaçal da mussenda, que timidamente despontam naquele caos vegetal.

     De dia, reina soberanamente um silêncio gigantesco, fúnebre, que incute terror aos mais audazes; de noite, pelo contrário, é um alarido horrível de urros, rugidos, silvos e assobios, que gela o sangue.

     Dizei ao bengalês que ponha os pés nas Sunderbunds e ele recusar‑se‑á; prometei‑lhe cem, duzentas, quinhentas rúpias e não conseguireis demover a sua inabalável decisão. Dizei ao molango que vive nas Sunderbunds, desafiando a cólera e a peste, as febres e o veneno daqueles ares empestados, que entre naquelas selvas, e, tal como o bengalês, também ele se recusará. O bengalês e o molango têm razão; penetrar naquelas selvas é ir ao encontro da morte.

     De facto, é ali, entre aqueles amontoados de espinhos e de bambus, no meio daqueles pântanos e daquelas águas amarelas, que se ocultam os tigres, espiando a passagem das canoas, e até dos barcos, para se abaterem sobre o tombadilho e levar o barqueiro ou o marinheiro que ousa mostrar‑se; é ali que nadam e espiam a presa horríveis e gigantescos crocodilos, sempre ávidos de carne humana; é por ali que vagueia o formidável rinoceronte, a quem tudo faz sombra e irrita até à loucura; e é ali que vivem e morrem as numerosas variedades das serpentes indianas, entre as quais o rubdira mandali, cuja mordedura faz suar sangue, e a cobra que tritura um boi entre os seus anéis; e é ali, enfim, que às vezes se esconde o tugue indiano, esperando ansiosamente a chegada de um homem qualquer para o estrangular e oferecer a vida extinta à sua terrível divindade!

     Apesar disso, na noite de 16 de maio de 1855, uma gigantesca fogueira crepitava nas Sunderbunds meridionais, precisamente a trezentos ou quatrocentos passos das três bocas do Mangal, um rio lodoso que se separa do Ganges para lançar as suas águas no Golfo de Bengala.

     Aquele clarão, que se destacava vivamente sobre o fundo escuro do céu e dava um efeito fantástico, iluminava uma vasta e sólida cabana de bambu, junto da qual dormia, envolto num grande dootée de chites estampado, um indiano de estatura atlética, cujos membros, musculosos e bem desenvolvidos, denotavam uma força fora do comum e uma agilidade felina.

     Era um belo tipo de bengalês, dos seus trinta anos, de cor amarelada e extremamente reluzente, untado de fresco com óleo de coco; os traços do seu rosto eram belos, os lábios cheios, sem serem grossos, e deixando entrever uma admirável dentadura; o nariz bem torneado, a fronte alta, salpicada de linhas de cinza, sinal distintivo dos adeptos de Xiva.

     Todo o seu conjunto exprimia uma energia rara e uma coragem extraordinária, que em geral falta aos seus compatriotas.

     Como se disse, o homem dormia, mas o seu sono não era tranqüilo. Grandes gotas de suor perlavam a sua fronte, que por vezes se franzia e se ensombrava; o largo peito erguia‑se impetuosamente, descompondo o dootée que o envolvia; as suas mãos, pequenas como as duma mulher, cerravam‑se convulsamente e muitas vezes as levava à cabeça, tirando o turbante e pondo a descoberto o crânio, cuidadosamente rapado.

     Palavras truncadas, frases bizarras, saíam de quando em quando dos seus lábios, pronunciadas com um tom de voz doce e apaixonado.

     “Ei-la”, dizia ele, sorrindo. “O sol esconde‑se atrás dos bambus... o pavão cala‑se, levanta‑se o marabu e uiva o vento. Porque não se mostra?... Que fiz eu? Não é este o lugar?... Não é aquela a mussenda de folhas cor de sangue?... vem, vem, ó doce aparição... eu sofro, sabes, sofro e anseio pelo instante em que possa voltar a ver‑te.”

     “Ah! Ei‑la, ei-la!... os seus olhos azuis olham para mim, os seus lábios sorriem... Oh! Como é divino aquele sorriso! Minha celeste visão, porque permaneces muda, diante de mim? Porque me olhas assim?... Não tenhas medo de mim: sou Tremal‑Naik, o caçador de serpentes da floresta negra... Fala, fala, deixa que eu ouça a tua doce voz... O sol declina, as trevas descem como corvos sobre os bambus... Não desapareças, não quero, não!... Não!... Não!...”

     O indiano soltou um grito agudo e no seu rosto desenhou‑se uma viva angústia.

     Ao som daquele grito, saiu da cabana, a correr, um segundo indiano. Era magro e de estatura bastante mais baixa do que o homem adormecido; os seus braços e as suas pernas assemelhavam‑se a bastões nodosos cobertos de couro. O tipo altivo, o olhar turvo, o curto languti que lhe cobria os flancos, as argolas que pendiam das suas orelhas, tudo, em suma, o dava a conhecer como sendo um marata, povo belicoso da índia ocidental.

     “Pobre patrão”, murmurou ele, olhando para o adormecido. “Quem sabe que terrível sonho perturba o seu sono!”

     Reanimou o fogo, depois sentou‑se junto do patrão, agitando docemente um dubgah de belíssimas penas de pavão.

     “Que mistério”, recomeçou o adormecido, com voz sufocada. “Parece‑me ver manchas de sangue!... Doce visão, foge daí... enches‑te de sangue. Por que todo aquele vermelho?... Por que todos aqueles laços?... Querem então estrangular alguém? Que mistério é este?”

     “Que é que ele diz?”, perguntou a si próprio o marata, surpreendido. “Sangue, visões, laços!... Que sonho este!”

     De súbito, o adormecido estremeceu; arregalou os olhos, cintilantes como dois diamantes negros, e sentou‑se.

     “Não!... Não!...”, exclamou com voz rouca. “Não quero!”

     O marata olhou‑o compassivamente.

     ‑ Patrão ‑ murmurou ele. ‑ que tens?

     O indiano pareceu voltar a si. Fechou os olhos. Depois voltou a abri‑los, fixando o marata no rosto.

     ‑ Ah! És tu, Kammamuri! ‑ exclamou.

     ‑ Sim, patrão.

     ‑ Que fazes tu aqui?

     ‑ Velo por ti e enxoto os mosquitos.

     Tremal‑Naik aspirou com força o ar da noite, passando repetidas vezes as mãos pela fronte.

     ‑ Onde estão Hurti e Aghur? ‑ perguntou, após instantes de silêncio.

     ‑ Na selva. Ontem à noite descobriram os rastos de um grande tigre e esta manhã saíram a caçá-lo.

     ‑ Ah! ‑ exclamou surdamente Tremal‑Naik.

     A fronte enrugou‑se‑lhe e um profundo suspiro, que parecia um mugido sufocado, veio morrer‑lhe nos lábios secos.

     ‑ Que tens, patrão? ‑ perguntou Kammamuri. ‑ tu estás mal.

     ‑ Não estou.

     ‑ Mas, enquanto dormias, lamentavas-te.

     ‑ Eu?

     ‑ Sim, patrão, falavas de visões estranhas.

     Um sorriso amargo aflorou aos lábios do caçador de serpentes.

     ‑ Sofro, Kammamuri ‑ disse ele, com raiva. ‑ oh! Mas sofro muito!

     ‑ Eu sei, patrão.

     ‑ Como o sabes?

     ‑ Há quinze dias que te observo e vejo na tua fronte rugas profundas. Andas triste, taciturno. Antigamente não eras assim triste.

     ‑ É verdade, Kammamuri.

     ‑ Que dor pode afligir o meu patrão? Estás talvez cansado de viver na selva?

     ‑ Não digas isso, Kammamuri. Foi aqui, nestes desertos de espinheiros, nestes pântanos, na terra dos tigres e das serpentes, que eu nasci e cresci; é aqui, na minha querida selva, que hei‑de morrer.

     ‑ E então?

     ‑ É uma mulher, uma visão, um fantasma!

     ‑ Uma mulher ‑ exclamou Kammamuri, surpreendido. ‑ disseste “uma mulher”?

     Tremal‑Naik baixou a cabeça em sinal de assentimento e apertou fortemente a fronte entre as mãos, como se quisesse sufocar algum mau pensamento.

     Durante alguns minutos reinou entre ambos um silêncio fúnebre, apenas quebrado pelo murmúrio do rio, que se atirava contra as margens, e pelos gemidos do vento que acariciava a selva imensa.

     ‑ Mas onde viste essa mulher? ‑ perguntou finalmente Kammamuri. ‑ Onde, se a selva não tem senão tigres a habitá‑la?

     ‑ Vi‑a na selva, Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik, com voz surda. ‑ Era uma tarde, oh! Nunca esquecerei aquela tarde, Kammamuri! Eu procurava as serpentes nas margens dum regato, lá em baixo, justamente no sítio em que os bambus são mais espessos, quando a vinte passos de mim, no meio duma moita de mussendas de folhas cor de sangue, apareceu uma visão, uma mulher, bela, radiosa, soberba. Nunca pensei, Kammamuri, que existisse na terra criatura tão bela, nem que os deuses do céu fossem capazes de a criar.

     “Tinha os olhos negros e cintilantes, os dentes alvos, a pele morena e dos seus cabelos castanho‑escuros, a ondular sobre os ombros, vinha um perfume doce que inebriava os sentidos.”

     “Ela olhou para mim, soltou um gemido longo e pungente e, depois... desapareceu da minha vista. Senti‑me incapaz de me mover, fiquei ali, com os braços estendidos para a frente, extasiado. Quando voltei a mim e me pus a procurá‑la, já a noite tinha descido sobre a selva e não vi nem ouvi mais nada.”

     “Quem era aquela aparição? Uma mulher ou um espírito celeste? Ainda hoje o ignoro.”

     Tremal‑Naik calou‑se. Kammamuri notou que ele tremia como se tivesse febre.

     ‑ Aquela visão foi fatal para mim ‑ recomeçou Tremal‑Naik, com raiva. ‑ a partir daquela tarde, deu‑se em mim uma estranha mudança; pareceu‑me ter‑me tornado outro homem; e tive a impressão de que aqui, no meu coração, se desenvolvia uma terrível chama!

     “Dir‑se‑ia que aquela aparição me enfeitiçou. Se estou na selva, vejo‑a bailar‑me diante dos olhos; se estou no rio, vejo‑a nadar diante da proa do meu barco; penso, e o meu pensamento corre para ela; durmo e, em sonhos, é sempre ela que me aparece. Parece que estou louco.”

     ‑ Espantas‑me, patrão ‑ disse Kammamuri, lançando à sua volta um olhar atemorizado. ‑ quem era essa bela criatura?

     ‑ Não sei, Kammamuri. Mas era linda, oh, sim, muito linda!‑ exclamou Tremal‑Naik, com voz apaixonada.

     ‑ Talvez fosse um espírito?

     ‑ Talvez.

     ‑ Ou talvez uma divindade?

     ‑ Quem o pode dizer?

     ‑ E não voltaste a vê‑la?

     ‑ Sim, voltei a vê‑la ainda muitas e muitas vezes. Na tarde do dia seguinte, à mesma hora, sem saber como, encontrava‑me na margem do regato. Quando a lua se ergueu por detrás das florestas escuras do norte, aquela soberba criatura voltou a aparecer entre as moitas das mussendas.

     “Quem és?”, perguntei‑lhe.

     “Ada” ‑ respondeu‑me.

     “E desapareceu, soltando o mesmo gemido. Pareceu‑me que se enterrava pela terra adentro.”

     ‑ Ada! ‑ exclamou Kammamuri. ‑ que nome é esse?

      ‑ Um nome que não é indiano.

     ‑ E não acrescentou mais nenhuma palavra?

     ‑ Nenhuma.

     ‑ É estranho; eu não voltava mais àquele lugar.

     ‑ Mas eu voltei. Havia uma força irresistível e poderosa que me empurrava, contra a minha vontade, para aquele lugar; várias vezes tentei fugir e não tive forças para o fazer. Como te disse, parecia‑me estar enfeitiçado.

     ‑ E que sentiste na sua presença?

     ‑ Não sei, mas o coração batia‑me com toda a força.

     ‑ Nunca tinhas experimentado antes aquela sensação?

     ‑ Nunca ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ E agora, continuas a ver aquela criatura?

     ‑ Não, Kammamuri. Vi‑a durante dezesseis tardes seguidas; à mesma hora, aparecia‑me diante dos olhos, contemplava‑me, sem dizer palavra, e depois desaparecia, sem fazer barulho. Uma vez acenei‑lhe, mas não se moveu; outra vez abri os lábios para falar... E ela pôs um dedo sobre a boca, convidando‑me a ficar calado.

     ‑ E tu nunca a seguiste?

     ‑ Nunca, Kammamuri, porque aquela mulher metia‑me medo. Faz agora quinze dias, apareceu‑me, toda vestida de seda vermelha, e olhou‑me mais prolongadamente do que de costume. Na tarde seguinte, em vão esperei por ela, em vão a chamei: não voltei a vê‑la.

     ‑ É uma aventura estranha ‑ murmurou Kammamuri.

     ‑ É mas é terrível ‑ disse Tremal‑Naik, com voz surda. ‑ deixei de me sentir bem, já não sou o homem que era; sinto‑me arder em febre e tenho uma vontade louca de voltar a contemplar aquela visão, que me enfeitiçou!

     ‑ Quer dizer que tu amas aquela visão.

     ‑ Amo‑a! Não sei o que isso quer dizer.

     Naquele momento, a grande distância, para o lado dos pântanos imensos do sul, ecoaram algumas notas agudíssimas. O marata levantou‑se dum salto e fez‑se cor da cinza.

     ‑ O ramsinga! ‑ exclamou ele, aterrorizado.

     ‑ Que é que te atormenta? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Não ouves o ramsinga?

     ‑ E então? Que é que isso significa?

     ‑ É o sinal duma desgraça, patrão.

     ‑ Parvoíces, Kammamuri.

     ‑ Nunca ouvi tocar o ramsinga na selva, a não ser na noite em que foi assassinado o pobre Tamul.

     Àquela recordação, uma ruga profunda sulcou a fronte do caçador de serpentes.

     ‑ Não tenhas medo ‑ disse ele, esforçando‑se por aparentar calma. ‑ todos os indianos sabem tocar o ramsinga e tu sabes que, às vezes, há caçadores que ousam pôr os pés na terra dos tigres e das serpentes.

     Mal tinha acabado de falar quando se ouviu o uivo lamentoso de um cão e, pouco depois, um potente rosnar, que podia transformar‑se em verdadeiro rugido. Kammamuri tremeu da cabeça aos pés.

     ‑ Ah! Patrão - exclamou. ‑ até o cão e o tigre assinalam uma desgraça.

     ‑ Darma! Punthy! ‑ gritou Tremal‑Naik.

     Um soberbo tigre real, de alta estatura e formas vigorosas, com a pele alaranjada, sulcada de riscas negras, saiu da cabana e fixou o patrão com dois olhos que faiscavam. Atrás dele, compareceu, pouco depois, um canzarrão negro, de cauda longa e orelhas aguçadas, trazendo ao pescoço uma grossa coleira eriçada de pontas.

     ‑ Darma! Punthy! ‑ repetiu Tremal‑Naik.

     O tigre recolheu‑se sobre si próprio, emitiu um rugido surdo e, com um salto de quatro metros e meio, veio cair aos pés do homem.

     ‑ Que tens, Darma? ‑ perguntou ele, passando as mãos sobre o dorso robusto da fera. ‑ estás inquieto.

     O cão, em vez de ir ter com o dono, plantou‑se sobre as quatro patas, esticou a cabeça para sul, farejou por algum tempo o ar e ladrou lamentosamente, três vezes.

     ‑ Terá acontecido alguma desgraça a Hurti e Aghur? ‑ murmurou, inquieto, o caçador de serpentes.

     ‑ É o que receio, patrão ‑ disse Kammamuri, lançando à selva olhares espavoridos. ‑ a esta hora já cá deveriam estar, e não dão sinal de vida.

     ‑ Não ouviste nenhuma detonação durante o dia?

     ‑ Sim, ouvi uma por volta do meio‑dia, e depois mais nada.

     ‑ Donde vinha?

     ‑ Do sul, patrão.

     ‑ Viste alguma pessoa suspeita na selva?

     ‑ Não, mas Hurti disse‑me que tinha visto uma tarde umas sombras nas praias da ilha Rajmangal e Aghur disse que tinha ouvido rumores estranhos que vinham do baniano sagrado.

     ‑ Ah! Do baniano! - exclamou Tremal‑Naik ‑ também ouviste alguma coisa?

     ‑ Talvez. Que fazemos, patrão?

     ‑ Esperemos.

     - Mas podem...

     ‑ Cala‑te ‑ disse Tremal‑Naik, apertando‑lhe o braço com uma força tal que quase lhe paralisava o sangue.

     ‑ Que ouviste? ‑ murmurou o marata, batendo os dentes.

     ‑ Olha lá em baixo, não te parece que os bambus da selva estão a mexer?

     ‑ É verdade, patrão.

     Punthy fez ouvir pela terceira vez o seu uivo lamentoso, seguido pelas notas agudas do misterioso ramsinga. Tremal‑Naik tirou do cinto de pele de tigre uma comprida e rica pistola incrustada de prata e carregou‑a.

     Naquele instante, um indiano de alta estatura, seminu, armado apenas com um machado, lançou‑se para fora dos bambus, correndo a toda a brida em direcção à cabana.

     ‑ Aghur! ‑ exclamou ao mesmo tempo Tremal‑Naik e o marata.

     Punthy lançou‑se contra ele, uivando lugubremente.

     ‑ Patrão!... Patrão! ‑ murmurou o indiano.

     Chegou como um relâmpago diante da cabana, cambaleou, como se um súbito mal‑estar o tivesse acometido, arregalou os olhos, soltou um grito sufocado e abateu‑se sobre as ervas como uma árvore arrancada pelo vento.

     Tremal‑Naik precipitou‑se para ele. Uma exclamação de surpresa escapou‑se‑lhe da boca.

     O indiano parecia moribundo. Tinha nos lábios uma espuma sanguinolenta, o rosto estava rasgado e cheio de sangue, os olhos revirados e enormemente dilatados; ofegava, soltando suspiros roucos.

     ‑ Aghur! ‑ exclamou Tremal‑Naik. ‑ que te aconteceu? Onde está Hurti?

     Ao ouvir aquele nome, o rosto de Aghur contraiu‑se horrivelmente e com as unhas remexeu raivosamente a terra.

     ‑ Patrão... Pa... trão! ‑ balbuciou ele, com profundo terror. ‑ Estou su... focado. Corri... Ah! Patrão!

     ‑ Estará envenenado? ‑ murmurou Kammamuri.

     ‑ Não ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ o pobre diabo correu como um cavalo e está sufocado; dentro de alguns minutos estará refeito.

     De facto, Aghur começava a voltar a si e a respirar livremente.

     ‑ Fala, Aghur ‑ disse Tremal‑Naik, ao fim de alguns minutos. ‑ porque voltaste sozinho? Por que tanto terror? Que aconteceu ao teu companheiro?

     ‑ Ah! Patrão ‑ balbuciou o indiano, estremecendo ‑, que desgraça!

     ‑ O ramsinga tinha‑a anunciado ‑ murmurou Kammamuri, suspirando.

     ‑ Continua, Aghur ‑ insistiu o caçador de serpentes.

     ‑ Se o tivessem visto, ao desgraçado... Estava para ali, estendido por terra, inteiriçado, com os olhos a sair das órbitas.

     ‑ Quem?... Quem?

     ‑ Hurti!

     ‑ Hurti morreu? ‑ exclamou Tremal‑Naik.

     ‑ Sim, assassinaram‑no junto do baniano sagrado.

     ‑ Mas quem o assassinou? Dize‑mo, para que eu vá vingá‑lo.

     ‑ Não sei, patrão.

     ‑ Conta tudo.

     ‑ Tínhamos partido para caçar um grande tigre. A seis milhas daqui, descobrimos a fera, que, ferida pela carabina de Hurti, fugiu para sul. Seguimos a sua pista durante quatro horas e voltámos a encontrá‑la junto da margem, em frente da ilha Rajmangal, mas não conseguimos matá‑la, pois, apenas deu por nós, lançou‑se à água, indo aproar junto do grande baniano.

     ‑ Bem, e depois?

     ‑ Eu queria voltar para trás, mas Hurti recusava‑se, dizendo que o tigre estava ferido e era, portanto, uma presa fácil. Atravessámos o rio a nado e chegámos à ilha Rajmangal, onde nos separámos, para explorar os arredores.

     O indiano deteve‑se, batendo os dentes, aterrorizado e branco como a cal.

     ‑ Descia a noite ‑ recomeçou ele, com voz sombria. ‑ sob os bosques começava a estar escuro e reinava um silêncio fúnebre que metia medo. De repente, ribombou uma nota aguda, a do ramsinga. Olhei à minha volta e dei com os olhos nos de uma sombra que estava de pé, a vinte passos de mim, semi-escondida num tufo de verdura.

     ‑ Uma sombra! - exclamou Tremal‑Naik ‑ disseste uma sombra?

     ‑ Sim, patrão, uma sombra.

     ‑ Quem era? Diz‑mo, Aghur, diz‑mo!

     ‑ Pareceu‑me uma mulher.

     ‑ Uma mulher!

     ‑ Sim, estou certo de que era uma mulher.

     ‑ Bela?

     ‑ Estava escuro de mais para que eu pudesse vê‑la distintamente.

     Tremal‑Naik passou a mão pela testa.

     ‑ Uma sombra! ‑ repetiu ele várias vezes. - Uma sombra lá em baixo! E se fosse a minha visão?... Continua, Aghur.

     ‑ Aquela sombra olhou‑me por alguns instantes, depois estendeu um braço para mim, convidando‑me a afastar‑me imediatamente. Surpreendido e atemorizado, obedeci, mas ainda não andara cem passos quando um urro angustiante chegou aos meus ouvidos. Reconheci imediatamente aquele grito: era o grito de Hurti!

     ‑ E a sombra? - perguntou Tremal‑Naik possuído por extrema agitação.

     ‑ Nem sequer me voltei para trás. Para ver se lá tinha ficado ou se tinha desaparecido. Lancei‑me a correr através da selva, com a carabina na mão, e cheguei até junto do grande baniano, onde, deitado de costas, vi o pobre Hurti. Chamei-o, não me respondeu; toquei‑lhe estava ainda quente, mas o coração deixara de bater!

     ‑ Tens a certeza?

     ‑ Absoluta, patrão.

     ‑ Onde o tinham ferido?

     ‑ Não lhe vi no corpo ferida alguma.

      ‑ É impossível!

     - Juro!

     ‑ E não viste ninguém?

     ‑ Ninguém, nem ouvi qualquer rumor. Eu tive medo; atirei‑me ao rio, atravessei‑o, perdendo a carabina, e atingi a nossa selva. Julgo que fiz seis milhas sem respirar, tão grande era o meu terror. Pobre Hurti!

 

                         A ilha misteriosa

     À triste narração do indiano, seguiu‑se um profundo silêncio. Tremal-Naik, que de súbito ficara nervosíssimo e com o rosto ensombrado, pusera‑se a passear diante do fogo, com a cabeça curvada sobre o peito, a fronte enrugada e os braços cruzados. Kammamuri, esmagado pelo terror, meditava, enrolado sobre si próprio. Até o cão deixara de fazer ouvir o seu uivo lamentoso e deitara‑se ao lado de darma.

     As notas agudas do misterioso ramsinga arrancaram o caçador de serpentes às suas meditações. Levantou a cabeça, como um cavalo de batalha que ouve o sinal para a carga, lançou um olhar profundo para a selva deserta, sobre a qual pairava agora uma densa neblina carregada de exalações venenosas, girou sobre si próprio e, aproximando‑se bruscamente de Aghur, disse‑lhe:

     ‑ Já tinhas ouvido o ramsinga?

     ‑ Sim, patrão ‑ respondeu o indiano ‑, mas só uma vez.

     ‑ Quando?

     ‑ Na noite em que Tamul desapareceu, isto é, há seis meses.

     ‑ De modo que, também tu, tal como Kammamuri, acreditas que anuncia uma desgraça?

     ‑ Sim, patrão.

     ‑ E sabes quem o toca?

     ‑ Nunca o soube.

     ‑ E pensas que o tocador tem relações com os misteriosos habitantes de Rajmangal?

   ‑ Assim o julgo.

     ‑ Quem suspeitas que sejam aqueles homens?

     ‑ Mas serão homens?

     ‑ Não creio que sejam as almas dos mortos.

     ‑ Nesse caso, serão piratas ‑ disse Aghur.

     ‑ E que interesse podem ter em assassinar os meus homens?

     ‑ Quem sabe? Talvez seja para nos meter medo e assim nos manterem afastados.

     ‑ Onde supões que tenham as suas cabanas?

     ‑ Não sei, mas ousaria dizer que todas as noites se retirem à sombra do baniano sagrado.

     ‑ Está bem ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Kammamuri, pega nos remos.

     ‑ Que queres fazer, patrão? ‑ perguntou o marata.

     ‑ Dirigir‑me ao baniano

     ‑ Oh! Não faças isso, patrão! ‑ gritaram ao mesmo tempo os dois indianos.

     ‑ Por quê?

     ‑ Matam‑te, como mataram o pobre Hurti.

     Tremal‑Naik olhou para eles, com dois olhos que deitavam chamas.

     ‑ O caçador de serpentes nunca tremeu na sua vida e também não há‑de tremer esta noite. Para a canoa, Kammamuri! ‑ exclamou ele, com um tom de voz que não admitia réplica.

     ‑ Mas, patrão...

     ‑ Tens medo, talvez? ‑ perguntou desdenhosamente Tremal‑Naik.

     ‑ Sou marata! ‑ disse o indiano, com orgulho.

     ‑ Então, vai. Esta noite hei‑de saber quem são aqueles entes misteriosos que me declararam guerra e quem é aquela que me enfeitiçou.

     Kammamuri pegou num par de remos e dirigiu‑se para a margem. Tremal‑Naik entrou na cabana, tirou dum prego uma longa carabina com o cano cheio de arabescos, muniu‑se dum grande frasco de pólvora e entalou no cinto um comprido cutelo.

     - Aghur, tu ficas aqui ‑ disse ele, ao sair. ‑ se dentro de dois dias não tivermos voltado, irás ter connosco a Rajmangal, com o tigre e com Punthy.

     ‑ Ah! Patrão

     ‑ Não te sentes com coragem suficiente para lá ir?

     ‑ Coragem tenho eu, patrão. O que queria dizer é que fazes mal em ir àquela ilha maldita.

     ‑ Tremal‑Naik não se deixa assassinar impunemente, Aghur.

     ‑ Leva darma contigo. Pode ser-te útil.

     ‑ Denunciaria a minha presença e eu quero desembarcar sem ser visto nem ouvido. Adeus, Aghur.

     Lançou a carabina a tiracolo e juntou‑se a Kammamuri, que o esperava junto dum pequeno gonga, um barco tosco e pesado, cavado no tronco duma árvore.

     ‑ Partamos ‑ disse.

     Saltaram para o barco e fizeram‑se ao largo, remando lentamente e em silêncio.

     Uma profunda obscuridade, que a neblina pestilencial que pairava sobre os canais, as ilhas e os ilhéus tornava mais densa, cobria as Sunderbunds e a corrente do mangal.

     À esquerda e à direita estendiam‑se enormes massas de bambus espinhosos, formando moitas espessas, debaixo das quais se ouviam ronronar os tigres e silvar as serpentes, ervas compridas e cortantes, confusas, amalgamadas, apertadas umas contra as outras, de modo a impedir a passagem.

     Mais ao longe, na linha fosca do horizonte, despontavam, aqui e além, algumas árvores, mangueiras carregadas de frutos delicados, palmeiras, latânias e coqueiros de aspecto majestoso, com longas folhas dispostas em cúpula.

     Um silêncio fúnebre, misterioso, reinava por toda a parte, apenas quebrado pelo murmurar das águas amarelentas, que rasavam os ramos arqueados dos paletúvios e as folhas de lótus, e pelo rumor dos bambus sacudidos por um sopro de ar quente, sufocante, envenenado.

     Tremal‑Naik, estendido na popa, com o fuzil debaixo da mão, estava silencioso e mantinha abertos os olhos, fixando‑os ora numa ora na outra margem, onde se ouviam sempre um rosnar rouco e silvos lamentosos. Kammamuri, pelo contrário, sentado ao meio, fazia voar o pequeno gonga, que deixava atrás de si um rasto de admirável fosforescência, que quase faria acreditar estarem aquelas águas corruptas saturadas de fósforo. De vez em quando, porém, parava de remar, suspendia a respiração e ficava alguns instantes à escuta, perguntando depois ao caçador de serpentes se não tinha visto nem ouvido nada.

 

     Havia já meia hora que navegavam, quando o silêncio foi quebrado pelo som que se fez ouvir sobre a margem direita, mas tão perto que fez pensar que o tocador estivesse a uma centena de passos de distância.

     ‑ Alto! ‑ murmurou Tremal‑Naik.

     Ainda não tinha acabado de falar quando um segundo ramsinga respondeu ao primeiro. Mas a uma distância maior, entoando uma melodia que tinha tanto de melancólico quanto a outra tinha de alegre e de viva. A música indiana baseia‑se em quatro sistemas que têm uma intima relação com as quatro estações do ano e a cada um deles aplica‑se um tom e um modo particulares. É melancólica na estação fria, viva e alegre no rejuvenescer da estação, lânguida nos grandes calores do estio, brilhante no outono.

     Porque tocavam aqueles dois instrumentos de modo tão contrário? Seria um sinal? Kammamuri receava‑o.

     ‑ Patrão ‑ disse ele ‑, fomos descobertos.

     ‑ É provável ‑ respondeu Tremal‑Naik, que escutava atentamente.

     ‑ E se voltássemos atrás? Isto assim não é bom para nós.

     ‑ Tremal‑Naik nunca volta atrás. Arranca e deixa que os ramsinga toquem à vontade.

     O marata retomou os remos, fazendo avançar o gonga, que não tardou a chegar a um lugar onde o rio se apertava, à semelhança dum gargalo de garrafa. Uma baforada de ar tépido, sufocante, carregado de exalações pestilentas, chegou ao nariz dos dois indianos.

     Diante deles, a trezentos ou quatrocentos passos, apareceu uma multidão de pequenas chamas que vagueavam bizarramente sobre a superfície negra do rio. Algumas, como atraídas por uma força misteriosa, vieram dançar diante da proa do gonga, afastando‑se depois com fantástica rapidez.

     ‑ Eis‑nos no cemitério flutuante - disse Tremal‑Naik. ‑ dentro de dez minutos chegaremos ao baniano.

     ‑ Passaremos com o gonga? ‑ perguntou Kammamuri.

     ‑ Com um pouco de paciência, conseguiremos passar.

     ‑ Patrão, não é bom ofender os mortos.

     ‑ Brama e Vixnu hão‑de perdoar‑nos. Arranca, Kammamuri.

     Com algumas remadas, o gonga alcançou o estreito do rio e desembocou numa espécie de lago, sobre o qual se entrelaçavam os compridos ramos de colossais tamarindos, formando uma espessa abóbada de verdura.

     Ali flutuavam muitos cadáveres que os canais do Ganges tinham arrastado até ao mangal.

     ‑ Para a frente! ‑ disse o caçador de serpentes.

         Kammamuri estava para retomar os remos, quando a abóbada de verdura que cobria aquele cemitério flutuante se abriu, para dar passagem a um bando de estranhos seres de asas negras, pernas longuíssimas e bicos afiados e enormes.

     ‑ Que há de novo? ‑ exclamou Kammamuri, surpreendido.

     ‑ Os marabus ‑ disse Tremal‑Naik.

     De facto, uma centena daquelas fúnebres aves do rio sagrado desciam, batendo alegremente as asas e pousando sobre os cadáveres.

     ‑ Para a frente, Kammamuri ‑ repetiu Tremal‑Naik.

     Após uma boa meia hora, o gonga, impulsionado pelos remos, tinha atravessado o cemitério e encontrava‑se num lago bastante mais amplo. Completamente desimpedido, e dividido em dois braços por uma ponta de terra, sobre a qual se elevava uma enorme e singular árvore.

     ‑ O baniano! - disse Tremal‑Naik.

     Ao ouvir aquele nome, Kammamuri estremeceu.

     ‑ Patrão! ‑ murmurou ele, com os dentes cerrados.

     ‑ Não tenhas medo, marata. Larga os remos e deixa que o gongo aproe sozinho à ilha. Talvez haja alguém nos arredores.

 

     Estes cemitérios flutuantes encontram‑se com grande freqüência nas Sunderbunds do Ganges. Os indianos que consideram o Ganges um rio sagrado, costumam abandonar os cadáveres à corrente, convencidos de que vão direitos ao céu.

     O marata obedeceu, estendendo‑se no fundo da canoa, enquanto Tremal‑Naik, que, entretanto e à cautela, carregara a carabina, fazia o mesmo.

     O gonga, levado pela corrente, que se fazia sentir levemente, dirigiu‑se, girando sobre si próprio, para a ponta setentrional da ilha Rajmangal, sede dos seres misteriosos que tinham assassinado o pobre Hurti.

     Um silêncio profundo reinava naquele lugar. Não se ouvia sequer o ranger dos gigantescos bambus, já que a aragem nocturna tinha cessado, nem se ouviam as notas do ramsinga. O próprio rio parecia ter‑se tornado de óleo.

     No entanto, de quando em quando, Tremal‑Naik levantava cuidadosamente a cabeça e perscrutava atentamente as margens, nada tranqüilizado por aquele silêncio. O gonga tocou na areia com uma leve fricção, apenas a uma centena de passos do baniano, mas os dois indianos não se mexeram.

     Passaram dez minutos de angustiosa expectativa e só então Tremal‑Naik ousou levantar‑se. A primeira coisa que viu foi uma forma negra, confusa, estendida entre as ervas, a cerca de vinte metros da margem.

     ‑ Kammamuri ‑ murmurou ‑, levanta‑te e carrega as tuas pistolas.

     O marata não precisou de ouvir a ordem duas vezes.

     ‑ Que vês, patrão? ‑ perguntou ele, com um fio de voz.

     ‑ Olha para além.

     ‑ Eh!... ‑ exclamou o marata, arregalando os olhos. ‑ um homem!

     ‑ Cala-te!

     Tremal‑Naik levantou a carabina, apontando a mira para aquela massa negra, que parecia um ser humano estendido, mas baixou‑a sem disparar.

     ‑ Vamos ver o que é, Kammamuri ‑ disse ele. ‑ aquele homem não está vivo.

     ‑ E se estivesse a fingir que está morto?

     ‑ Tanto pior para ele.

     Os dois indianos desembarcaram, dirigindo‑se sorrateiramente para aquele indivíduo que não dava sinais de vida. Tinham chegado a uma dezena de passos dele, quando um marabu se levantou ruidosamente, voando em direcção ao rio.

     ‑ É um homem morto ‑ murmurou Tremal‑Naik. ‑ se fosse...

     Não terminou a frase. Em quatro saltos chegou junto do cadáver; uma surda exclamação soltou‑se‑lhe dos lábios, crispados pela ira.

     ‑ Hurti! ‑ exclamou.

     De facto, aquele era Hurti, o companheiro do indiano Aghur. O infeliz estava estendido de costas, com os braços e as pernas contraídos, provavelmente pelo espasmo, com o rosto terrivelmente decomposto, os olhos abertos, a saltar das órbitas. Os joelhos apresentavam‑se partidos e sangrentos, o mesmo acontecendo com os pés, sinal evidente de que tinha sido arrastado durante algum tempo por terra, talvez quando estava ainda agonizante, e da boca escancarada saía‑lhe um bom palmo de língua.

     Tremal‑Naik soergueu o desventurado indiano, para ver em que sítio fora atingido, mas não lhe encontrou no corpo ferida alguma. No entanto, examinando‑o melhor, viu à volta do pescoço uma linha roxa bastante marcada e atrás do crânio uma ferida que parecia produzida por uma grande bola ou por uma pedra arredondada.

     ‑ Primeiro fizeram‑no desmaiar e depois estrangularam‑no - disse ele, com voz surda.

     ‑ Pobre Hurti ‑ murmurou o marata. ‑ mas para quê assassiná‑lo deste modo?

     ‑ Havemos de o saber, Kammamuri, e juro-te que Tremal‑Naik não deixará impune o delito.

     ‑ Receio, patrão, que os assassinos sejam muito poderosos.

     ‑ Tremal‑Naik será mais poderoso do que eles. Vamos, regressa à canoa.

     ‑ E hurti? Vamos deixá‑lo aqui?

     ‑ Deitá‑lo‑ei às águas sagradas do Ganges amanhã de manhã.

     - Mas esta noite os tigres devoram‑no.

     ‑ Sobre o cadáver de Hurti vela o caçador de serpentes.

     ‑ Mas como? Tu não regressas?

     ‑ Não, Kammamuri, eu fico aqui. Quando tiver resolvido os meus problemas, abandonarei esta ilha.

     ‑ Queres que te assassinem?

     Um sorriso desdenhoso aflorou aos lábios do altivo indiano.

     ‑ Tremal‑Naik é um filho da selva! Regressa à canoa, Kammamuri.

     ‑ Nunca, patrão!

     ‑ Por quê?

     ‑ Se te acontece alguma desgraça, quem te ajudará? Deixa que eu te acompanhe e juro‑te que te seguirei para onde quer que vás.

     ‑ Mesmo se eu fosse à procura da visão?

     ‑ Sim, patrão.

     ‑ Fica comigo, valente marata, e verás que nós os dois havemos de valer por dez. Segue‑me!

     Tremal‑Naik dirigiu‑se para a margem, agarrou o gonga por estibordo e, com uma violenta sacudidela, virou‑o, metendo‑o a pique.

     ‑ Que estás a fazer? ‑ perguntou Kammamuri, surpreendido.

     ‑ Ninguém deve saber que chegámos aqui. E, agora, a nós compete desvendar o mistério.

     Mudaram a pólvora às carabinas e às pistolas, para estarem seguros de não falhar, e dirigiram‑se para o baniano, cuja mole imensa se recortava altivamente nas trevas profundas.

 

                         O vingador de Hurti

     Os banianos, também chamados aí mora ou figueiras dos pagodes, são as árvores mais estranhas e gigantescas que se possa imaginar.

     Têm a altura e o tronco dos nossos carvalhos maiores e mais grossos e dos seus inúmeros ramos, estendidos horizontalmente, descem finíssimas raízes aéreas, as quais, mal tocam em terra, afundam‑se nela e engrossam rapidamente, infundindo na planta novo alimento e mais vigorosa vida.

     Acontece, assim, que os ramos se vão alongando cada vez mais, gerando novas raízes e, portanto, novos troncos, cada vez mais distantes, de modo que uma só árvore cobre uma vastíssima extensão de terreno. Pode dizer‑se que forma uma floresta sustentada por centenas e centenas de bizarras colunatas, sob as quais os sacerdotes de Brama colocam os seus ídolos. Na província de Guzerate existe um baniano chamado Cobir Bor, muito venerado pelos indianos, que não hesitam em atribuir‑lhe três mil anos de idade; tem um diâmetro de seiscentos metros e nada menos de três mil colunas, ou raízes, se se preferir. Antigamente era ainda maior, mas parte dele foi destruído pelas águas do Nerbudda, que corroeram uma parte da ilha em que cresce.

     O baniano sob o qual os dois indianos estavam para passar a noite era um dos mais gigantescos; tinha mais de seiscentas colunas, que sustentavam enormes ramos carregados de pequenos frutos vermelhos e um tronco de enorme grossura, mas que, a certa altura, estava cortado.

     Tremal‑Naik e Kammamuri, depois de terem examinado escrupulosamente coluna por coluna, para se assegurarem de que atrás delas não se escondia ninguém, sentaram‑se junto ao tronco, um ao lado do outro, com a carabina carregada, pousada sobre os joelhos.

     ‑ Alguém há‑de vir aqui ‑ disse o caçador de serpentes a meia voz. ‑ desgraçado do primeiro que se puser ao alcance da minha carabina.

     ‑ Julgas então que os seres misteriosos que assassinaram Hurti vêm aqui? ‑ perguntou Kammamuri.

     ‑ Tenho a certeza absoluta disso. Verás, marata, que ainda antes de amanhã saberemos alguma coisa.

     ‑ Tomamos conta do primeiro que vier e damos cabo dele.

     ‑ É conforme as circunstâncias. E, agora, silêncio e olhos bem abertos.

     Tirou de um bolso uma folha semelhante à da hera, conhecida na índia pelo nome de bétele, de sabor um tanto amargo e picante, juntou‑lhe um pedacito de noz de areca e um pouco de cal e pôs‑se a mastigar aquela mistela, que, segundo se diz, conforta o estómago, fortifica o cérebro, conserva os dentes e refresca o hálito.

     Passaram duas horas, longas como séculos, durante as quais nenhum rumor perturbou o silêncio que reinava sob a densa sombra da gigantesca árvore. Devia ser meia‑noite, ou pouco menos, quando Tremal‑Naik, de ouvidos bem alerta, julgou ouvir um estranho rumor.

     Dir‑se‑ia um estrondo semelhante àqueles que às vezes precedem os terremotos, mas bastante mais surdo.

     Tremal‑Naik sentiu que uma vaga de inquietação o invadia.

     ‑ Kammamuri ‑ murmurou, com um fio de voz. ‑ está em guarda.

     ‑ Que viste? ‑ perguntou o marata, estremecendo.

     ‑ Nada, mas ouvi um rumor que é novo para mim.

     ‑ Onde?

     ‑ Pareceu‑me que vinha de debaixo da terra.

     ‑ É impossível, patrão!

     ‑ Tremal‑Naik tem os ouvidos bons de mais para se enganar.

     ‑ Que julgas que seja?

     ‑ Não o sei, mas havemos de sabê‑lo.

     ‑ Patrão, aqui há um terrível mistério.

     ‑ Tens medo?

     ‑ Não, sou marata.

     ‑ Então havemos de desvendar tudo.

     Naquele instante, debaixo da terra, ouviu‑se de novo, distintamente, o misterioso estrondo. Os dois indianos olharam‑se, surpreendidos.

     ‑ Dir‑se‑ia que, aqui em baixo, tocam um enorme tambor, o hauk, por exemplo ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Não pode ser de outro modo ‑ respondeu Kammamuri. ‑ mas como é que o som vem de debaixo da terra? Será que aqueles seres misteriosos têm o seu asilo debaixo da selva?

     ‑ Assim deve ser, Kammamuri.

     ‑ Que fazemos, patrão?

     ‑ Ficaremos aqui: alguém há‑de sair dalguma parte.

     ‑ Tykora! ‑ gritou uma voz.

     De um salto, os dois indianos puseram‑se de pé. Coisa estranha e incrível: aquela voz fizera‑se ouvir tão perto deles que parecia que a pessoa que a emitira estava mesmo atrás dos dois homens.

     ‑ Tykora! ‑ murmurou Tremal‑Naik. ‑ quem pronunciou este nome?

     Olhou à sua volta, mas não viu ninguém; olhou para cima, mas não viu nada, a não ser os ramos do baniano, confundidos com as trevas.

     ‑ Estará alguém escondido entre os ramos?

     ‑ Não ‑ disse Kammamuri, tremendo. ‑ a voz ouviu‑se atrás deles.

     ‑ É estranho.

     ‑ Tykora! ‑ exclamou a mesma voz misteriosa, os dois indianos voltaram a olhar à sua volta. Não era possível enganarem‑se; alguém estava perto deles, mas, para surpresa sua e, digamos também, para seu terror, não era visível.

     ‑ Patrão ‑ murmurou Kammamuri ‑, temos de nos haver com algum espírito.

     ‑ Eu não acredito nos espíritos ‑ respondeu Tremal‑Naik. ‑ havemos de descobrir este ser que se diverte a assustar‑nos.

     ‑ Oh!... ‑ exclamou o marata, dando três ou quatro passos para trás, como um bêbado. ‑ olha para cima... Patrão! Olha!

     Tremal‑Naik levantou os olhos para o baniano e vislumbrou um raio de luz que saía do tronco cortado. Apesar da sua extraordinária coragem, sentiu que o sangue se lhe gelava nas veias.

     ‑ Luz! ‑ balbuciou, angustiado.

     ‑ Fujamos, patrão! ‑ suplicou Kammamuri.

     Debaixo da terra ouviu‑se pela terceira vez o misterioso rugido e do tronco do baniano saiu a nota aguda do Ramsinga. Ao longe ecoaram outras notas semelhantes.

     ‑ Fujamos, patrão! ‑ repetiu Kammamuri, louco de terror.

     ‑ Nunca! ‑ exclamou Tremal‑Naik, resolutamente.

     Pusera o punhal entre os dentes e agarrara a carabina pelo cano, para servir‑se dela como de uma clava. De repente mudou de idéias.

     ‑ Vem, Kammamuri ‑ disse ele. ‑ antes de começar a luta, será melhor ver com que teremos de lutar.

     Arrastou o marata a cerca de duzentos passos do tronco do baniano e esconderam‑se atrás de três ou quatro colunas reunidas, que lhes permitiam ver sem ser vistos.

     ‑ Nem uma palavra, agora ‑ disse. ‑ no momento oportuno, agiremos.

     Do colossal tronco do baniano saiu uma última nota agudíssima, que despertou todos os ecos das Sunderbunds. O facho de luz que saía do cimo da árvore apagou‑se e, em vez dele, apareceu uma cabeça humana coberta por uma espécie de turbante amarelo.

     Por momentos olhou à volta, como que a assegurar‑se de que ninguém se encontrava por baixo da gigantesca árvore, depois levantou‑se... E um homem, indiano, a julgar pela cor da pele, saiu, agarrando‑se a um dos ramos. Atrás dele saíram mais quarenta indianos, que se deixaram escorregar pelas colunatas até à terra.

     Estavam, todos eles, quase nus. Só um dubgah, espécie de pequeno saio, dum amarelo sujo, lhes cobria as ancas e nos seus peitos viam‑se tatuagens estranhas, que pretendiam ser letras de sânscrito; justamente ao centro, desenhava‑se uma serpente com cabeça de mulher.

     Um fino cordão de seda, que parecia um laço, mas que tinha na extremidade uma bola de chumbo, dava várias voltas ao dubgah, enquanto um punhal pendia daquele estranho cinto.

     Aqueles seres misteriosos sentaram‑se silenciosamente por terra, formando um círculo à volta do velho indiano, de braços enormes e olhar brilhante como o dum gato.

     ‑ Meus filhos ‑ disse ele, com voz grave ‑, a nossa mão poderosa feriu o desgraçado que ousou pisar este solo consagrado dos tugues, que nenhum estranho pode violar. É uma vítima mais a acrescentar às outras caídas sob o nosso punhal, mas a deusa não está ainda satisfeita.

     ‑ Bem o sabemos ‑ responderam em coro os indianos.

     ‑ Sim, filhos livres da Índia, a nossa deusa pede outros sacrifícios.

     ‑ Que o nosso grande chefe ordene, e todos nós partiremos.

     ‑ Bem sei que sois filhos valentes ‑ disse o velho indiano. ‑ mas o tempo ainda não chegou.

     ‑ Que esperamos então?

     ‑ Um grande perigo nos ameaça, meus filhos.

     ‑ Qual?

     ‑ Um homem lançou os seus olhares sobre a "virgem" que vela o pagode da deusa.

     - Horror! ‑ exclamaram os indianos.

     ‑ Sim, filhos meus, um homem audaz ousou olhar no rosto a "virgem" errante; mas esse homem, se não cair abatido pelo fulgor da deusa, perecerá debaixo do nosso laço infalível.

     ‑ Quem é esse homem?

     ‑ A seu tempo o sabereis. Trazei‑me a vítima.

     Dois indianos levantaram‑se e dirigiram‑se para o lugar onde jazia o cadáver do pobre Hurti. Tremal‑Naik, que assistira sem pestanejar àquela estranha cena, ao ver aqueles dois homens que agarravam o morto pelos braços, arrastando‑o para o tronco do baniano, levantara‑se de um salto, com a carabina na mão.

     - Ah! Malditos! ‑ exclamou ele, com voz surda, apontando‑lhes a arma.

     ‑ Que fazes, patrão? ‑ murmurou Kammamuri, agarrando‑lhe na arma e baixando‑a.

     ‑ Deixa que os mate, Kammamuri ‑ disse o caçador de serpentes. - Foram eles que mataram Hurti, é justo que eu o vingue.

     ‑ Queres perder‑nos a nós dois. São quarenta.

     ‑ Tens razão, Kammamuri. Atacá-los‑emos a todos de uma vez.

     Baixou a carabina e voltou a agachar‑se, enquanto mordia os lábios, para dominar a cólera.

     Os dois indianos tinham então arrastado Hurti para o meio do círculo e tinham‑no deixado cair aos pés do velho.

     ‑ Cali! ‑ exclamou ele, erguendo os olhos ao céu.

     Tirou o punhal do cinto e enterrou‑o no peito de Hurti.

     ‑ Miserável ‑ gritou Tremal‑Naik. ‑ É demais!

     Atirara‑se para fora do esconderijo. Um relâmpago rasgou as trevas, seguido duma estrepitosa detonação, e o velho indiano, ferido em cheio no peito pela bala do caçador de serpentes, caiu sobre o corpo de Hurti.

 

                           Na selva

     Ao ouvir aquela súbita detonação, os indianos tinham‑se levantado dum salto, com o laço na mão direita e o punhal na esquerda. Vendo o seu chefe debater‑se por terra, cheio de sangue, esqueceram por momentos aquele que o matara, para correr em seu auxílio. Esses momentos bastaram para que Tremal‑Naik e Kammamuri fugissem sem ser vistos.

     A selva, coberta de espessas moitas espinhosas de bambus gigantescos, que prometiam refúgios inacessíveis, estava a poucos passos. Os dois indianos precipitaram‑se para ela, correndo desesperadamente durante cinco ou seis minutos; depois deixaram‑se cair debaixo duma moita bastante espessa de bambus que não deviam ter menos de dezoito metros de altura.

     ‑ Se tens amor à vida ‑ disse Tremal‑Naik a Kammamuri ‑, não te mexas!

     ‑ Ah! Patrão! Que fizeste! ‑ disse o pobre marata. ‑ vamos tê‑los todos atrás de nós e seremos estrangulados, como o desgraçado Hurti.

     ‑ Vinguei o meu companheiro. Aliás, não nos encontrarão.

     ‑ São espíritos, patrão.

     ‑ São homens. Cala‑te e olha bem à tua volta.

     Ao longe ouviam‑se os brados dos terríveis habitantes do baniano.

     ‑ Vingança! Vingança! ‑ gritavam.

     Três notas agudas, as notas do ramsinga, ecoaram pela selva e debaixo da terra ouviu‑se o ribombar sombrio que pouco antes se fizera ouvir. Os dois caçadores enovelaram‑se, encostando‑se um ao outro e suspendendo a respiração. Sabiam que, se fossem descobertos, seriam estrangulados sem remissão pelos laços de seda daqueles monstruosos indivíduos, que já tantas vítimas tinham sacrificado.

     Não tinham passado ainda três minutos quando ouviram os bambus abrir‑se violentamente e viram, entre as trevas, um daqueles homens, com o laço na mão direita e o punhal na esquerda, passar como uma flecha diante da moita e desaparecer no emaranhado da selva.

     ‑ Viste‑o, Kammamuri? ‑ perguntou em voz baixa Tremal‑Naik.

     ‑ Sim, patrão ‑ respondeu o marata.

     ‑ Julgam que estamos bastante longe e correm na esperança de nos apanharem. Dentro de poucos minutos não teremos um único homem atrás de nós.

     ‑ Desconfiemos, patrão, aqueles homens metem‑me medo.

     ‑ Não tenhas medo, que estou cá eu. Está calado e presta atenção.

     Um outro indiano, armado como o primeiro, passou correndo, instantes depois, e também ele desapareceu no emaranhado dos bambus.

     Ao longe ouviram‑se ainda alguns gritos e assobios, que pareciam, ou, antes, deviam, ser um sinal; depois tudo ficou silencioso.

     Meia hora passou. Tudo indicava que os indianos, lançados talvez numa falsa pista, estavam suficientemente longe. O momento não podia ser mais propício para dar meia volta e fugir em direcção à margem.

     ‑ Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik ‑, podemos pôr‑nos a caminho. Na minha opinião, os indianos devem estar todos à nossa frente no meio da selva.

     ‑ Tens mesmo a certeza, patrão?

     ‑ Não ouço qualquer rumor.

     ‑ E aonde vamos? Ao baniano?

     ‑ Sim, marata.

     ‑ Queres talvez entrar lá dentro?

     ‑ Por ora, não. Mas amanha à noite voltaremos e desvendaremos o mistério.

     ‑ Mas quem supões que sejam aqueles homens?

     ‑ Não o sei, mas hei-de sabê‑lo, Kammamuri, como hei-de saber quem é aquela mulher que vela no pagode da sua terrível deusa. Ouviste o que disse aquele velho?

     ‑ Sim, patrão.

     ‑ Não sei, mas tenho a impressão de que falava de mim e suspeito de que aquela "virgem" seja...

     ‑ Quem?

     ‑ A mulher que me enfeitiçou, Kammamuri. Quando o velho falou dela, senti que o meu coração batia com uma estranha veemência, e isso acontece‑me sempre que...

     ‑ Cala‑te, patrão!... ‑ murmurou Kammamuri, com voz sufocada.

     ‑ Ouviste alguma coisa?

     ‑ Um bambu mexeu‑se.

   ‑ Onde?

     ‑ Lá em baixo... A trinta passos de nós. Cala‑te!

     Tremal‑Naik levantou a cabeça e voltou‑se, perscrutando com atenção a massa negra dos bambus, mas não viu ninguém. Apurou os ouvidos, retendo a respiração, e estremeceu. Na direcção indicada pelo marata ouvia‑se um ténue murmúrio; dir‑se‑ia que uma mão afastava com suma precaução as largas folhas em forma de coração das gigantescas plantas.

     ‑ Alguém se aproxima ‑ murmurou ele. ‑ não te mexas, Kammamuri.

     O ruído aumentava, aproximando‑se, mas muito lentamente. Pouco depois viram um bambu dobrar‑se e aparecer um indiano, que se curvou para a terra, levando a mão à orelha. Ficou assim durante um minuto, depois levantou‑se e pareceu farejar o ar.

     ‑ Gary! ‑ murmurou ele.

     Um segundo indiano saiu dos bambus, a seis passos de distância do primeiro.

     ‑ Ouves alguma coisa? ‑ perguntou o recém‑chegado.

     ‑ Absolutamente nada.

     - E, no entanto, pareceu‑me que alguém falava.

     ‑ Talvez te tenhas enganado. Há cinco minutos que aqui estou, com os ouvidos bem abertos. Estamos numa pista falsa.

     ‑ Onde estão os outros?

     ‑ Estão à nossa frente, Gary. Receia‑se que os homens que ousaram desembarcar aqui tentem um golpe de mão sobre o pagode.

     ‑ Com que finalidade?

     ‑ Há quinze dias, a "virgem do pagode" encontrou um homem. Foram vistos por um dos nossos a fazer sinais um ao outro.

     ‑ E para quê?

     ‑ Julga‑se que o homem quer libertar a "virgem".

     ‑ Oh! Que horrível delito! ‑ exclamou o indiano chamado Gary.

     ‑ Esta noite, um indiano, companheiro do miserável que ousou levantar os olhos para a "virgem" da nossa venerável deusa, desembarcou. Sem dúvida vinha espiar.

     ‑ Mas esse indiano foi estrangulado.

     ‑ Sim, mas atrás dele desembarcaram outros homens, um dos quais assassinou o nosso sacerdote.

     ‑ E quem é esse homem que olhou no rosto a "virgem"?

     ‑ Um homem formidável, Gary, e capaz de tudo: é um caçador de serpentes da floresta negra.

     ‑ É preciso que morra.

     ‑ Morrerá, Gary; por muito que ele corra. Havemos de alcançá-lo e os nossos laços estrangulá‑lo‑ão. Agora, tu partes e caminhas a direito até chegares à margem do rio; eu vou para o pagode, a velar pela "virgem". Adeus, e que a deusa te proteja.

     Os dois indianos separaram‑se, tomando caminhos diferentes. Assim que o rumor cessou, Tremal‑Naik, que tinha ouvido tudo, levantou‑se.

     ‑ Kammamuri ‑ disse ele, vivamente emocionado ‑, é preciso que nos separemos. Tu ouviste‑os: eles sabem que eu desembarquei e procuram‑me.

     ‑ Ouvi tudo, patrão.

     ‑ Tu segues o indiano que se dirige para o rio e logo que possas passas para a outra margem. Eu sigo o outro.

     ‑ Tu escondes‑me qualquer coisa, patrão. Porque não vens também tu para a margem do rio?

     ‑ Tenho de ir ao pagode.

     ‑ Oh! Não faças isso, patrão!

     - É uma decisão irrevogável. No pagode está escondida a mulher que me enfeitiçou.

     ‑ E se te matam?

     ‑ Matar‑me‑ão ao lado dela e eu morrerei feliz. Parte, Kammamuri, parte, que a febre começa a apoderar‑se de mim.

     Kammamuri soltou um profundo suspiro, que mais parecia um gemido, e levantou‑se.

     ‑ Patrão ‑ disse, com voz comovida - onde voltaremos a ver‑nos?

     ‑ Na cabana, se eu escapar à morte. Vai.

     O marata meteu‑se pela selva dentro, seguindo o rasto do indiano, em direcção à margem. Tremal‑Naik ficou ali a olhá‑lo, com os braços cruzados sobre o peito e o rosto ensombrado.

     - “E agora”, - disse ele, levantando altivamente a cabeça, quando o marata desapareceu da sua vista, - “desafiemos a morte!”

     Pôs a carabina a tiracolo, lançou um último olhar à sua volta e afastou‑se, a passos rápidos e silenciosos, seguindo o rasto do segundo indiano, que não devia estar muito afastado.

     O caminho era difícil e muito confuso. O terreno encontrava‑se coberto, até onde a vista alcançava, por uma espessa rede de bambus, que se erguiam até uma altura verdadeiramente extraordinária.

     Havia os chamados bons tulda, cobertos de folhas enormes, os quais, em menos de trinta dias, sobem a uma altura que ultrapassa os vinte metros e atingem uma grossura de trinta centímetros.

     Os behar bons, com apenas um metro de altura, de tronco oco, mas resistente e armado de longos espinhos, e uma variedade inúmera de outros bambus, comummente conhecidos nas Sunderbunds pelo nome genérico de bons, eram tão bastos que se tornava necessário utilizar o cutelo para abrir passagem entre eles.

     Um homem que não tivesse prática daqueles lugares ter‑se‑ia, sem dúvida, perdido no meio daquela flora gigantesca e encontrar‑se‑ia na impossibilidade de dar um passo sem fazer barulho; mas Tremal‑Naik nascera e crescera na selva e movia‑se nela com surpreendente rapidez e segurança, sem fazer o mínimo ruído.

     Não caminhava, pois isso era absolutamente impossível. Mas rastejava como um réptil, deslizando entre as plantas sem nunca se deter, sem nunca hesitar sobre o caminho a seguir. De quando em quando colava a orelha ao solo e estava certo de não perder o rastro do indiano que o precedia, pois o terreno transmitia‑lhe os passos dele, por muito rápidos que fossem.

     Percorrera já mais de uma milha quando se apercebeu de que o indiano tinha subitamente parado. Apoiou três ou quatro vezes a orelha, mas o terreno não lhe transmitia qualquer rumor; levantou‑se, escutando com profunda atenção, mas nenhum murmúrio lhe chegou. Tremal‑Naik começou a ficar inquieto.

     “Que aconteceu?”, murmurou ele, olhando à sua volta. “Talvez tenha dado conta de que o sigo? Estejamos em guarda!”

     Percorreu ainda três ou quatro metros rastejando, depois levantou a cabeça, mas voltou logo a baixá‑la. Tinha batido num corpo mole que pendia do alto e que logo se retirara.

     “Oh!”, disse ele.

     Um pensamento terrível atravessou‑lhe a mente. Deitou‑se prontamente de lado, desembainhando o cutelo e olhando para cima.

     Não viu nada, ou, pelo menos, não lhe pareceu ver nada. E, no entanto, estava certo de ter chocado com qualquer coisa que não devia ser uma folha de bambu.

     Ficou durante alguns minutos imóvel como uma estátua.

     “Um pitão!”, exclamou de súbito, sem, no entanto, se assustar.

     No meio dos bambus ouvira‑se de repente um rumor; depois, um corpo escuro, longo, sinuoso, desceu, ondulando por uma daquelas plantas. Era uma monstruosa serpente pitão, de comprimento superior a sete metros, que se estendia para o caçador de serpentes, esperando apanhá‑lo entre as suas espirais viscosas e triturá‑lo com um daqueles terríveis apertões aos quais nada há que resista. Tinha a boca aberta, com o maxilar inferior dividido em duas garras, como os ferros duma tenaz, a língua em forquilha, estendida, e os olhos acesos, a brilharem sinistramente na escuridão profunda.

     Tremal‑Naik deixara‑se cair por terra, para não ser apanhado pelo réptil monstruoso e reduzido a um montão de ossos partidos e de carne sanguinolenta.

     “Se me mexo, estou perdido”, murmurou, com extraordinário sangue‑frio. “Se o indiano que vai à minha frente não dá conta de nada, estou salvo.”

     O réptil descera tanto que com a cabeça tocava o solo. Esticou‑se em direcção ao caçador de serpentes, que conservava uma rigidez de cadáver, ondulou um pouco sobre ele, lambendo‑o com a língua fria, e depois tentou meter‑se‑lhe por baixo, para o envolver. Três vezes voltou à carga, assobiando de raiva, e três vezes se retirou, contorcendo‑se de mil modos, subindo e voltando a descer pelo bambu, à volta do qual se agarrara.

     Tremal‑Naik, a tremer, horrorizado, continuava imóvel, fazendo esforços sobre‑humanos para se dominar; mas, assim que viu o réptil levantar‑se enrolando‑se em parte sobre si próprio, apressou‑se a rastejar cerca de cinco ou seis metros. Julgando‑se fora de perigo, voltara a levantar‑se, quando ouviu uma voz ameaçadora, que gritava:

     ‑ Que fazes aqui?

     Tremal‑Naik levantara‑se prontamente, com o punhal na mão. A sete ou oito metros de distância, bastante perto do lugar ocupado pelo réptil, surgira de repente um indiano de alta estatura, extremamente magro, armado dum punhal e duma espécie de laço que terminava numa bola de chumbo.

     Tatuada no peito, trazia a misteriosa serpente com cabeça de mulher, rodeada por alguns caracteres sânscritos.

     ‑ Que fazes aqui? ‑ repetiu o indiano, em tom ameaçador.

     ‑ E tu, que fazes tu? ‑ repetiu Tremal‑Naik, com uma calma glacial. ‑ és talvez um daqueles miseráveis que se divertem a assassinar as pessoas que aqui desembarcam?

     ‑ Sim, e fica a saber que farei o mesmo contigo.

     Tremal‑Naik pôs‑se a rir, olhando o réptil, que começava a desdobrar os seus anéis ondulantes quase sobre a cabeça do indiano.

     ‑ Tu julgas que me matas ‑ disse o caçador ‑, e, no entanto, a morte adeja sobre ti.

     ‑ Mas antes morrerás tu! ‑ gritou o indiano, fazendo assobiar a corda de seda à volta da cabeça.

     Um sibilar lamentoso emitido pelo réptil deteve-o no momento em que lançava a bola de chumbo.

     ‑ Oh! ‑ exclamou, manifestando um profundo terror.

     Tinha levantado a cabeça e encontrara‑se diante do réptil. Quis fugir e deu um salto para trás, mas tropeçou num bambu cortado e caiu nas ervas.

     ‑ Socorro, socorro! ‑ gritou ele, desesperadamente.

     O réptil enorme deixara‑se cair para terra e num abrir e fechar de olhos apanhara o indiano entre os seus anéis, apertando de tal forma que lhe impedia a respiração e lhe partia todos os ossos do corpo.

     ‑ Socorro! Socorro! ‑ repetiu o desgraçado, arregalando assustadoramente os olhos.

     Com um movimento espontâneo, Tremal‑Naik lançara‑se para o grupo. Com um terrível golpe de cutelo, cortou em dois o pitão, que silvava raivosamente, cobrindo de baba sangrenta a vítima. Estava para recomeçar, quando ouviu os bambus agitarem‑se furiosamente de várias partes.

     ‑ Ei-lo! ‑ gritou uma voz

     Eram outros indianos, que acorriam ao local, companheiros do infeliz que o réptil, embora cortado em dois, triturava, fazendo‑lhe jorrar o sangue. Tremal‑Naik compreendeu o perigo que corria, e, sem esperar mais, iniciou uma fuga precipitada através da selva.

     ‑ Ei‑lo! Ei‑lo! ‑ repetiu a mesma voz. ‑ fogo sobre ele! Fogo! ‑ um tiro de arcabuz ressoou, despertando todos os ecos da selva, depois um outro e ainda um terceiro. Tremal‑Naik, que miraculosamente escapara aos projécteis, tinha‑se voltado, rugindo como as feras que costumava caçar na selva.

     ‑ Ah, miseráveis! ‑ gritou ele, furioso.

     Tirara a carabina e apontara‑a contra os assaltantes que vinham à frente, com os punhais nos dentes e os laços na mão, prontos a estrangulá-lo.

     Do cano saiu um clarão, seguido duma detonação. Um indiano soltou um grito terrível, levou as mãos à cara e rolou entre as ervas.

     Tremal‑Naik retomou a sua corrida desenfreada, saltando à direita e à esquerda, de modo a impedir os inimigos de o tomarem como alvo.

     Atravessou uma moita de bambus, que abateu furiosamente, e meteu‑se na espessura da selva, fazendo perder o rasto aos seus perseguidores.

     Correu assim durante um quarto de hora; depois deteve‑se um momento, a tomar fôlego, na orla da plantação, lançando‑se a seguir como um louco nos terrenos pantanosos e descobertos, sulcados por inúmeros pequenos canais de águas estagnadas. Tinha os olhos injectados de sangue e espuma nos lábios, mas continuava a correr como se tivesse asas nos pés, saltando todos os obstáculos que lhe impediam o caminho, enterrando‑se nos pântanos, mergulhando nos charcos ou nos canais, obcecado por uma única idéia: colocar entre si e os seus perseguidores o maior espaço possível.

     Quanto terá corrido, não o pôde saber. Quando se deteve, encontrava‑se a cerca de duzentos passos dum soberbo pagode, que se erguia isolado sobre a margem dum amplo lago rodeado de colossais ruínas.

 

                           A “virgem do pagode”

     Aquele pagode, no mais puro estilo indiano, era o mais belo que Tremal‑Naik vira alguma vez nas Sunderbunds. Construído totalmente em granito cinzento, tinha uma altura de mais de dezoito metros, uma base que mediria cerca de dois terços da altura, e era contornado por estupendas colunas esculpidas com aquela ousadia que distingue a raça indiana.

     À medida que subia, o pagode ia estreitando pouco a pouco, até terminar numa espécie de cúpula, a que se sobrepunha uma gigantesca bola de metal com uma ponta bastante aguda, que sustentava a misteriosa serpente com cabeça de mulher.

     Nos ângulos do pagode viam‑se o trimúrti indiano, figurado por três cabeças sobre um só corpo, sustentado por três pernas, e, aqui e ali uma multidão de esculturas estranhas, curiosas, representando muitas figuras da história sagrada dos indianos, Brama, Xiva, Vixnu, Parvati, a sinistra deusa da morte, sentada sobre um leão, Darma‑Ragia, o plutão dos indianos, e muitas outras divindades, bem como um grande número de monstros horríveis e cabeças de elefante com as trombas estendidas.

     Como dissemos, Tremal‑Naik parara de repente, surpreendido por se encontrar diante dum pagode, quando julgava encontrar a selva.

     “Um pagode!”, exclamara. “Estou perdido!”

     Olhou rapidamente à sua volta. Encontrava‑se numa espécie de clareira com mais de meia milha de extensão, desprovida de moitas e bambus.

     “Estou perdido!”, repetiu ele, irado. “Se não encontro um esconderijo, dentro de cinco minutos chovem‑me em cima aqueles homens terríveis e estrangulam‑me.”

     Por instantes, pensou em voltar para trás e alcançar de novo a selva, para se esconder; mas tinha mais de oitocentos metros a percorrer, isto é, o tempo suficiente para que os seus perseguidores o descobrissem. Pensou nas ruínas que contornavam o lago, mas não apresentavam esconderijos seguros.

     “E se subisse lá para cima?”, murmurou ele, olhando para o cimo do pagode. “E porque não?”

     Um homem como ele, habituado a toda a espécie de exercícios e que possuía uma força hercúlea e uma agilidade extraordinária, que faria inveja a um macaco, era capaz de subir até à cúpula, agarrando‑se às colunatas e às esculturas, que se ligavam entre si, de modo a formar uma bizarra e escarpada escadaria.

     Lançou‑se em direcção ao pagode, depois de ter desarmado a carabina e de a ter posto às costas; ficou por instantes à escuta, e, tranqüilizado pelo profundo silêncio que ali reinava, empreendeu a ousada escalada.

     Com uma rapidez surpreendente, subiu para uma coluna e dali saltou para as paredes do templo, agarrando‑se às pernas duma divindade, içando‑se sobre os seus corpos, pousando os pés sobre as suas cabeças, segurando‑se às trombas dos elefantes e aos chifres dos bois do deus Xiva.

     Coisa estranha, incompreensível, misteriosa: à medida que subia, sentia o coração bater‑lhe, apressado, e os membros ganharem uma força extraordinária. Sentia‑se como que atraído por uma força irresistível para o cimo do pagode, e, ao contacto com aquelas pedras frias, experimentava sensações desconhecidas e inexplicáveis.

     Seriam duas horas da manhã quando, depois de ter executado vinte manobras aéreas que fariam gelar o sangue nas veias a um ginasta e de ter corrido outras tantas vezes o perigo de se estatelar cá em baixo e partir a cabeça, chegou à cúpula. Com um último impulso, agarrou‑se à gigantesca bola de metal, coroada pela ponta que sustentava a serpente com cabeça de mulher.

     Com surpresa sua, encontrou‑se a ondular por cima duma larga abertura, profunda e escura como um poço, atravessada por uma barra de bronze, em que conseguiu apoiar os pés.

     “Onde estou?”, perguntou de si para si. “Este poço deve levar, certamente, ao interior do pagode.”

     Abandonou a grande bola e agarrou‑se à barra, olhando para baixo, mas não viu senão trevas; apurou o ouvido, mas, abaixo dele, reinava o mais profundo silêncio, sinal evidente de que ninguém se encontrava no pagode. Uma coisa que o impressionou foi uma corda bastante grossa, formada por uma substância vegetal luzidia e muito flexível, presa à barra e que desaparecia lá em baixo, no fundo da abertura. Agarrou‑a e, reunindo as suas forças, puxou‑a para si; apercebeu‑se de que, na extremidade, estava um corpo um tanto pesado, o qual, com a tracção, ondulou, retinindo. “Deve ser uma lâmpada”, pensou Tremal‑Naik. De repente, bateu com a mão na testa. “Oh! Já me lembro!”, exclamou ele, vivamente emocionado. “Sim. Aqueles dois homens falavam dum pagode... duma ‘virgem’ que vela... Santo Vixnu, dar‑se‑á o caso...”

     Deteve‑se e levou ambas as mãos ao coração, que batia com extraordinária veemência. Experimentava então uma emoção análoga àquela que sentia nas tardes em que se encontrava diante da estranha visão.

     Num abrir e fechar de olhos, agarrou‑se àquela corda e pôs‑se a descer nas trevas, embora ignorasse onde iria acabar e aquilo que o esperava em baixo. Poucos minutos depois, os seus pés batiam num objecto arredondado, que desferiu um som metálico várias vezes repetido pelos ecos do templo.

     Estava para se curvar e ver o que era, quando um som semelhante ao ranger duma porta que gira sobre os gonzos chegou aos seus ouvidos. Olhou para baixo e pareceu‑lhe descobrir, entre as trevas, uma sombra que se movia, mas sem fazer qualquer barulho.

     “Quem será?”, perguntou para si próprio, arrepiado.

     Com uma das mãos, tirou a pistola e empunhou‑a, decidido a vender cara a vida, se fosse descoberto. E esperou, imóvel como uma estátua de granito.

     Um profundo suspiro chegou até ele; aquele suspiro impressionou‑o de um modo novo, misterioso. Foi como se lhe tivessem vibrado uma punhalada no coração.

     “Estou louco ou enfeitiçado”, murmurou ele.

     A sombra parara diante duma massa negra e enorme que se encontrava justamente por debaixo da corda.

     “Eis‑me aqui, horrível divindade!”, exclamou uma voz de mulher que fez estremecer Tremal‑Naik até ao fundo da alma.

     No auge da surpresa, Tremal‑Naik ouviu deitar para o chão uma matéria líquida e sentiu espalhar‑se no ar um perfume suave.

     “Monstruosa gente”, pensou ele. “E, no entanto, aquela sombra tem uma voz doce como as notas do sanguy... É estranha! Estou a tremer como se tivesse febre. Por quê?”

     “Odeio‑te”, exclamou a mesma voz, com profunda amargura. “Odeio‑te, aterradora divindade, que me condenaste a eterno martírio, depois de me teres destruído tudo o que tinha de mais caro na terra. Assassinos! Malditos sejais nesta vida e na outra!”

     Uma onda de pranto seguiu a maldição que aquele misterioso ser lançava sobre aqueles homens a quem chamara assassinos. Pela segunda vez, Tremal‑Naik tremeu da cabeça aos pés e ele, o homem inacessível, ele, o selvagem filho da floresta, ele, o caçador de serpentes, pela primeira vez sentiu‑se comovido.

     Por instantes, veio‑lhe a idéia de se deixar cair no vácuo, mas a desconfiança deteve‑o. Aliás, era tarde demais, pois a sombra tinha‑se afastado, desaparecendo nas trevas, e pouco depois ouviu o ranger da porta que se fechava.

     “Mas não serei então capaz de desvendar este mistério?”, murmurou Tremal‑Naik, quase com raiva. “Quem são estes monstros que têm necessidade de vítimas? Quem é esta horrível divindade? Quem é esta mulher que à meia‑noite, à hora dos delitos, dos fantasmas, das vinganças, vem aqui amaldiçoar? Quem é este ser que, enquanto os outros estrangulam, chora? Que, enquanto os outros me fazem arrepios, me comove? Que, enquanto os outros têm a voz sombria, tem a voz doce, suave como uma música celeste? Este ser, esta mulher, eu quero vê‑la, quero falar‑lhe, e tudo se esclarecerá. Não sei, mas uma voz interior me diz que esta mulher, eu já a vi outras vezes, já me fez palpitar o coração, esta mulher é...”

     Deteve‑se, ofegante, quase aterrado. Uma chama lhe subiu ao rosto e inundou‑o de suor.

     “E se fosse a minha visão!”, exclamou, com voz trémula de emoção. “Quando marinhava pelo templo, eu estava comovido quando desci cá abaixo, eu tremia. E se fosse verdade?... desçamos”.    

     Deixou‑se cair e pousou os pés sobre um objecto duro e áspero, que emitiu aquele som particular dos corpos metálicos, especialmente do bronze.

     Apercebeu‑se de que estava em cima da massa negra diante da qual a mulher tinha derramado o perfume. Tinha amaldiçoado, tinha chorado.

     “Que é isto?”, murmurou ele.

     Inclinou‑se, apoiou as mãos sobre aquela massa de bronze e deixou‑se escorregar para baixo, até tocar o solo. Os seus pés escorregaram sobre uma superfície lisa e úmida.

     “Foi aqui que ela espalhou o perfume”, disse ele, para consigo. “O odor que me chega às narinas o confirma. Amanhã saberei onde me encontro e com quem tenho de me haver.”

     Deu seis ou sete passos, cambaleando nas trevas, e enrolou‑se sobre si próprio, com as pistolas na mão, esperando que um raio de luz iluminasse aquele misterioso templo.

     Passaram algumas horas sem que qualquer rumor perturbasse o fúnebre silêncio que reinava naquele lugar; lá em cima, na abertura, o céu começava a clarear e os astros a empalidecer aos primeiros alvores da madrugada. Tremal‑Naik, imóvel, com os olhos bem abertos e os ouvidos à escuta, continuava a esperar, com aquela paciência que é própria das raças asiáticas.

     Por volta das quatro horas, o sol apareceu improvisamente no horizonte, iluminando a grande bola de bronze que se erguia no cimo do pagode e da ampla abertura desceu um raio de luz. Tremal‑Naik pôs‑se em pé, surpreendido, estonteado pelo espectáculo que se lhe oferecia à vista.

     Encontrava‑se numa espécie de imensa cúpula, cujas paredes estavam bizarramente pintadas. As primeiras dez encarnações de Vixnu, deus conservador dos indianos, que tem a sua residência no Vaicondu, ou mar de leite da serpente Adissescien, estavam pintadas a toda a volta, rodeadas pelos principais semideuses venerados pelos indianos, protectores dos oito ângulos do mundo, habitantes do Sorgon, isto é, do paraíso daqueles que não têm méritos suficientes para irem para o Kailesson, ou paraíso de Xiva. A meio da cúpula estavam esculpidos os gigantescos génios malfazejos, que, divididos em cinco tribos, erram pelo mundo, do qual não podem sair, nem merecer a felicidade prometida aos homens senão depois de terem recolhido um grande número de orações.

     No meio do pagode erguia‑se uma grande estátua de bronze, representando uma mulher com quatro braços, um dos quais brandia uma comprida adaga e outro segurava uma cabeça.

     Um grande colar de caveiras descia‑lhe até aos pés e um cinto de mãos e braços decepados cingia‑lhe a cintura.

     O rosto daquela horrível mulher era tatuado e as orelhas adornadas com argolas; a língua, de um vermelho cor de sangue, saía‑lhe um bom palmo para fora dos lábios, onde se espelhava um sorriso feroz; os pulsos ostentavam largas pulseiras e os pés pousavam sobre um gigante coberto de feridas.

     Aquela divindade ‑ era o que saltava de imediato aos olhos ‑, transportada pela embriaguez do sangue, dançava sobre o corpo duma vítima.

     Um outro objecto estranho era uma pequena pia de mármore branco, encastoada nas brilhantes pedras do pavimento. Estava cheia de água cristalina e dentro dela via‑se nadar um pequeno peixe muito belo, amarelo‑ouro, que se parecia muito com um mangu do Ganges.

     Tremal‑Naik não tinha visto antes nada de semelhante.

     Parara diante da monstruosa divindade e contemplava‑a com um misto de espanto e de medo.

     Quem seria aquela sinistra figura contornada de caveiras e ornada de mãos e braços decepados? Que significava aquele peixinho dourado a nadar na pia branca? Que relação tinham aqueles dois estranhos símbolos com os homens ferozes que perseguiam e estrangulavam os seus semelhantes?

     “Estarei a sonhar?”, murmurou Tremal‑Naik, esfregando várias vezes os olhos. “Não percebo nada.”

     Ainda não tinha acabado, quando um leve rumor chegou aos seus ouvidos. Voltou‑se, com a carabina na mão, e recuou imediatamente até à monstruosa divindade, sufocando, com grande dificuldade, um grito de espanto e de alegria.

     Diante dele, no limiar duma porta dourada, estava, de pé, uma menina de maravilhosa beleza, com o mais angustioso terror estampado no rosto.

     Devia ter os seus catorze anos. Era de estatura graciosa e de formas soberbamente elegantes

     Tinha as linhas duma pureza antiga, animadas pela cintilante expressão da mulher anglo‑indiana.

     A pele era cor‑de‑rosa, duma suavidade incomparável; os olhos grandes, negros e cintilantes como diamantes; um nariz direito, que não tinha nada de indiano; lábios finos, cor de coral, fechados num sorriso melancólico, que deixava ver duas filas de dentes de extraordinária brancura; uma opulenta cabeleira castanho-escura, separada na fronte por uma fiada de grossas pérolas, era apanhada em nós e entrançada com flores de cânhamo de suave perfume.

     Como dissemos, Tremal‑Naik recuara até à estátua de bronze.

     “Ada! Ada! A aparição da selva!”, exclamou ele, com voz sufocada.

    Não soube dizer mais nada e para ali ficou, mudo, ofegante, extasiado, a olhar aquela soberba criatura, que continuava a fixá‑lo com profundo terror.

     De súbito, a menina deu um passo em frente, deixando cair para o chão o amplo sari de seda, orlado por uma larga faixa azul, estampada com desenhos complicados, que a cobria como se fosse uma capa.

     Um feixe de luz ofuscante a envolveu, tirando‑a da vista do caçador de serpentes, que foi obrigado a fechar os olhos.

     Aquela menina estava literalmente coberta de ouro e pedras preciosas de inestimável valor. Uma couraça de ouro, marchetada dos mais belos diamantes de golconda e de guzerate, ornada pela misteriosa serpente com cabeça de mulher, cobria-lhe todo o seio e desaparecia num largo xale de caxemira, bordado a prata, que lhe cingia as ilhargas; pendiam‑lhe do pescoço vários colares de pérolas e de diamantes, grossos como nozes; várias pulseiras, também marchetadas de pedras preciosas, ornavam‑lhe os desnudados braços, e as calças largas, de seda branca, eram apertadas nos tornozelos, nus e pequeninos, por anéis de coral do mais belo vermelho. Um raio de sol, entrando por uma estreita abertura, batendo naquela profusão de ouro e de jóias, tinha, por assim dizer, imergido a jovenzinha num mar de luz de ofuscante fulgor.

     A visão!... A visão!... ‑ repetiu pela segunda vez Tremal‑Naik, estendendo os braços para ela. ‑ Oh, como é bela!

     A jovem olhou à sua volta, assustada, e levou um dedo aos lábios, como convidando-o a calar‑se, e depois caminhou a direito para ele.

     ‑ Desgraçado! ‑ disse ela, assustada. ‑ que vieste fazer aqui? Que loucura te trouxe a este horrível lugar?

     O caçador de serpentes, sem o querer, caíra de joelhos, estendendo as mãos para ela, que recuou, ainda mais assustada.

     ‑ Não me toques! ‑ disse ela, com um fio de voz.

     Tremal‑Naik soltara um suspiro:

     ‑ És bela! ‑ exclamou ele, com paixão.

     ‑ Cala‑te, Tremal‑Naik!

     ‑ És bela! ‑ repetiu o selvagem filho da floresta.

     Ela pós um dedo nos lábios.

     ‑ Se não me queres perder, não faças barulho ‑ disse a jovenzinha, censurando‑o docemente. ‑ tu ainda não sabes os tremendos perigos que nos ameaçam.

     ‑ Eu sou Tremal‑Naik! Quem é esse homem que te ameaça? Dize‑mo e eu, o caçador de serpentes, te juro que, amanhã, esse inimigo terá desaparecido da terra!

     ‑ Não fales assim, Tremal‑Naik.

     ‑ Por quê? Ouve, menina: nunca na minha selva, apenas povoada por tigres, vira um rosto de mulher. Quando te vi pela primeira vez, aos últimos raios do sol‑poente, lá, atrás da moita de mussenda, senti‑me tremer todo. Pareceu‑me que tu fosses uma divindade descida do céu e adorei‑te.

     - Cala‑te, cala-te!‑ repetiu, com voz trémula, a menina, escondendo o rosto entre as mãos.

   ‑ Não posso calar‑me, errante flor da selva! ‑ exclamou Tremal‑Naik, com maior paixão. ‑ quando tu desapareceste, pareceu‑me que algo se me desprendia do coração. Fiquei como embriagado, diante dos meus olhos bailava a tua visão, o sangue corria‑me com mais rapidez nas veias e línguas de fogo subiam‑me ao rosto e chegavam até ao meu cérebro. Dir‑se‑ia que me tinhas enfeitiçado!

     ‑ Tremal‑Naik! ‑ murmurou ansiosamente a menina.

     ‑ Aquela noite não dormi ‑ prosseguiu o caçador de serpentes. ‑ tinha febre e ardia no desejo de voltar a ver‑te. Por quê? Ignorava‑o, nem sabia tão‑pouco como isso poderia acontecer. Era a primeira vez na minha vida que experimentava uma emoção assim.

     “Passaram quinze dias. Todas as tardes, ao pôr do sol, te via atrás da mussenda e sentia‑me feliz diante de ti; parecia‑me que era transportado para um outro mundo, parecia‑me que me transformara num outro homem. Tu não me falavas, mas olhavas‑me, e, para mim, até isso era demasiado; aqueles teus olhares eram eloqüentes e diziam‑me que tu...”

     Deteve‑se, ofegante, olhando para a menina, que tinha o rosto escondido entre as mãos.

     ‑ Ah! ‑ exclamou ele, dolorosamente. ‑ então não queres que eu fale.

     A menina estremeceu e fixou‑o, com os olhos úmidos.

    ‑ Para quê falar ‑ balbuciou ela ‑, quando entre nós existe um abismo? Porque vieste aqui, desgraçado, a reacender no meu coração uma esperança vã? Então não sabes que este lugar é maldito, e proibido, sobretudo, àquele que eu amo?

     ‑ Que eu amo? ‑ exclamou Tremal‑Naik, cheio de alegria. ‑ repete, repete essa palavra, errante flor da selva! É então verdade que tu me amas? É então verdade que tu vinhas todas as tardes para trás da mussenda porque me amavas?

     ‑ Não me faças morrer, Tremal‑Naik ‑ exclamou a menina, com angústia.

     ‑ Morrer! Por quê? Que perigo te ameaça? Não estou aqui eu para te defender? Que importa se este lugar é maldito? Que importa se entre nós existe um abismo? Eu sou forte, tão forte que, por ti, faria cair este templo, partiria em pedaços aquele horrível monstro diante do qual derramas perfumes.

     ‑ Como, tu sabes isso? Quem to disse?

     ‑ Vi‑te esta noite.

     ‑ Então estavas aqui esta noite?

     ‑ Sim, estava aqui, ou, antes, lá em cima, agarrado àquela lâmpada, mesmo por cima da tua cabeça.

     ‑ Mas quem te trouxe a este templo?

     ‑ A sorte, ou, melhor, o laço dos homens que habitam esta terra maldita.

     ‑ Então eles viram-te?

     ‑ Deram‑me caça.

     ‑ Ah! Desgraçado, que estás perdido! ‑ exclamou a menina, com desespero.

     Tremal‑Naik lançou‑se para ela.

     ‑ Mas, dize‑me, que mistério é este? ‑ perguntou ele, com furor que a custo dominava. ‑ por que tanto terror? Que quer dizer aquela monstruosa figura que precisa de perfumes? Que é aquele peixe dourado que nada naquela pia? Que significa a serpente com cabeça de mulher que tens impressa na couraça? Quem são estes homens que estrangulam os seus semelhantes e que vivem debaixo da terra? Quero sabê‑lo, Ada, quero sabê‑lo!

     ‑ Não mo perguntes, Tremal‑Naik.

     ‑ Por quê?

     ‑ Ah! Se tu soubesses que terrível destino pesa sobre mim!

     ‑ Mas eu sou forte.

     ‑ Que vale a força contra estes homens?

     ‑ Far‑lhes‑ei guerra sem tréguas.

     ‑ Partir‑te‑ão como quem parte um bambu novo. Não desafiam eles a força da Inglaterra? São fortes, Tremal‑Naik, e tremendos! Nada lhes resiste: nem as armadas, nem os exércitos. Tudo tomba diante do seu sopro venenoso.

     ‑ Mas quem são eles, então?

     ‑ Não posso dizê-lo.

     ‑ E se eu to ordenasse?

     ‑ Recusaria.

     ‑ Quer dizer que tu... desconfias de mim! ‑ exclamou Tremal‑Naik, com raiva.

     ‑ Tremal‑Naik! Tremal‑Naik! ‑ murmurou a infeliz jovem, com voz angustiada

     O caçador de serpentes cruzou os braços.

     ‑ Tremal‑Naik ‑ prosseguiu a menina ‑, pesa sobre mim uma condenação, uma condenação terrível e espantosa, que só acabará com a minha morte. Amei-te, valente filho da selva, continuo a amar-te, mas...

     ‑ Ah! Tu amas‑me! ‑ exclamou o caçador de serpentes.

     ‑ Sim, amo-te, Tremal‑Naik.

     ‑ Jura‑o sobre aquele monstro que está junto de nós.

     ‑ Juro‑o! ‑ disse a jovem, estendendo a mão para a estátua de bronze.

     ‑ Jura que serás minha esposa!

     Um espasmo descompós os traços da jovenzinha.

     ‑ Tremal‑Naik ‑ murmurou ela, com voz sombria ‑, serei tua esposa, se isso for possível!

     ‑ Ah! Tenho talvez um rival?

     - Não, nem haverá ninguém tão audaz que fixe em mim os seus olhos. Pertenço à morte.

     Tremal‑Naik tinha dado dois passos para trás, com as mãos agarradas à cabeça.

     ‑ À morte! ‑ exclamou.

     - Sim, Tremal‑Naik, pertenço à morte. O dia em que um homem puser em mim as suas mãos, o laço dos vingadores dará cabo da minha vida.

     ‑ Mas estarei a sonhar?

     ‑ Não, estás acordado e aquela que te fala é a mulher que te ama.

     ‑ Ah! Que tremendo mistério!

     ‑ Sim, tremendo mistério, Tremal‑Naik. Entre nós existe um abismo que ninguém será capaz de encher... Fatalidade! Mas que fiz eu para ser tão desgraçada? Que crime cometi para ser maldita?

     Um pranto sufocado abafou‑lhe a voz e o rosto banhou‑se‑lhe de lágrimas. Tremal‑Naik emitiu um rugido surdo e cerrou os punhos com tal força que fez estalar os ossos.

     ‑ Que posso fazer por ti? ‑ perguntou ele, comovido até ao fundo da alma. ‑ essas tuas lágrimas doem‑me, errante flor da selva. Diz‑me o que devo fazer, ordena e eu obedecer-te‑ei melhor do que um escravo. Queres que eu te tire deste lugar? Fá‑lo‑ei, nem que tenha de perder a vida ao tentar fazê‑lo.

     ‑ Oh! Não, não! ‑ exclamou a jovenzinha assustada. ‑ seria a morte para nós dois.

     ‑ Queres que me vá embora daqui? Ouve, eu amo-te muito, mas, se a tua vida exigir a nossa separação eterna, eu dominarei o amor que nasceu no meu coração. Serei um condenado, será um martírio contínuo para mim, mas fá‑lo‑ei. Fala, que devo fazer?

     A menina permanecia calada e soluçava. Tremal‑Naik puxou‑a docemente para si e estava para abrir os lábios quando, vinda de fora, ecoou a nota aguda do ramsinga.

     ‑ Foge! Foge, Tremal‑Naik! ‑ exclamou a menina, fora de si pelo terror. ‑ foge, ou estamos perdidos!

     ‑ Ah! Maldita trombeta! ‑ rosnou Tremal‑Naik, rangendo os dentes.

     ‑ São eles que chegam ‑ prosseguiu a menina, com voz despedaçada. ‑ se nos encontram, imolar‑nos‑ão à sua terrível divindade. Foge!

     ‑ Oh! Isso nunca!

     ‑ Queres então fazer‑me morrer!

     ‑ Eu te defenderei!

     ‑ Mas foge, desgraçado! Foge!

     Por resposta, Tremal‑Naik recolheu a carabina, que estava no chão, e carregou‑a. A menina compreendeu que aquele homem era inabalável nas suas decisões.

     ‑ Tem piedade de mim! ‑ disse ela, angustiada. ‑ eles chegam.

     ‑ Pois bem, esperá‑los‑ei ‑ respondeu Tremal‑Naik. ‑ o primeiro homem que ousar levantar a mão para ti, juro pelo meu deus que o matarei como mato os tigres da selva.

     ‑ Pois bem, fica, já que és teimoso, valente filho da selva; eu te salvarei.

     Apanhou o sari e dirigiu‑se para a porta donde tinha saído. Tremal-Naik lançou‑se para ela, procurando detê‑la.

     ‑ Aonde vais? ‑ perguntou‑lhe.

     ‑ A receber o homem que está para chegar e a impedi‑lo de entrar aqui. Esta noite, à meia‑noite, voltarei para ti. Então se cumprirá a vontade dos deuses, e talvez... Consigamos fugir.

     ‑ O teu nome?

     ‑ Ada Corishant.

     ‑ Ada Corishant! Ah! Como esse nome é belo! Vai, nobre criatura, espero‑te à meia‑noite!

     A jovem envolveu‑se no sari, olhou uma última vez, com os olhos úmidos, Tremal‑Naik e saiu, sufocando um soluço.

 

                           A condenação à morte

     Tendo saído do pagode, Ada, ainda comovida, com o rosto banhado de lágrimas, mas com os olhos cintilantes de altivez, entrara num pequeno salão coberto de esteiras pintadas e decorado com monstruosas divindades, um pouco diferentes das que já descrevemos. Não faltavam ali a serpente com cabeça de mulher, a estátua de bronze de rosto horrível e a pia de mármore branco com o peixinho vermelho.

     Um homem tinha já entrado e passeava para trás e para diante com visível impaciência. Era um indiano de alta estatura, magro como um pau, rosto enérgico, olhar coruscante e feroz, queixo coberto por uma pequena barba desgrenhada. Trazia, enrolado à volta do corpo, um rico dootée, espécie de capa de seda amarela, bordado a ouro, tendo ao centro o misterioso emblema. Os seus braços nus estavam cobertos de cicatrizes brancas e de sinais tão bizarros que um indiano daria cabo da cabeça sem os conseguir decifrar.

     Ao ver Ada, o homem tinha parado subitamente, fixando nela um olhar de estranho brilho, e os lábios contraíram‑se num sorriso, ou, antes, num riso trocista que metia medo.

     ‑ Salve, “virgem do pagode” ‑ disse ele, ajoelhando diante da jovem.

     ‑ Salve, chefe predilecto da divindade ‑ respondeu Ada, com voz trémula.

     Ambos ficaram calados, olhando‑se fixamente. Parecia que ambos procuravam ler os pensamentos um do outro.

     ‑ “Virgem do pagode sagrado” ‑ disse, após algum tempo, o indiano ‑, tu corres um grande perigo.

     Ada estremeceu. A entoação do indiano era sombria e ameaçadora.

     ‑ Onde estiveste esta noite? Disseram‑me que entraste no pagode.

     ‑ É verdade. Tu mandaste‑me perfumes e eu derramei‑os aos pés da tua divindade.

     ‑ Diz: “da nossa divindade”.

     ‑ Sim, da nossa divindade ‑ disse a menina, com os dentes cerrados.

     ‑ Que viste no pagode?

     ‑ Nada.

     ‑ “Virgem do pagode”, tu corres um grande perigo ‑ repetiu o indiano, com voz ainda mais sombria. ‑ eu descobri tudo!

     Ada dera um salto para trás, soltando um grito de horror.

     - Sim ‑ prosseguiu o indiano com uma contida raiva ‑, descobri tudo! O teu coração, condenado a nunca bater sobre esta terra, palpitou de amor por um homem que tu viste na floresta negra. Esse homem desembarcou a noite passada nos nossos domínios e, depois de ter levantado a mão para nós, de ter cometido um horrendo delito, desapareceu, mas eu encontrei‑o. Esse homem entrou no pagode.

     ‑ Mentes! Mentes! ‑ exclamou a desventurada jovem, espavorida.

     ‑ Mas esse homem não sairá vivo daqui ‑ recomeçou o indiano, com feroz alegria. ‑ louco, ele queria desafiar‑nos, a nós, os poderosos, a nós, que fazemos tremer a Inglaterra. A serpente entrou na cova do leão e o leão dará cabo dela.

     ‑ Não faças isso!

     O indiano deu uma gargalhada trocista.

     ‑ Quem é que se opõe aos desejos da nossa divindade?

     ‑ Eu!

     ‑ Tu?

     ‑ Sim, eu, miserável. Olha!

     Com um movimento rápido, Ada deitara por terra o sari, armara‑se com um punhal de lâmina flamejante molhada num veneno sutil e apontara‑o à sua própria garganta. O indiano, de bronzeado que era, fez‑se escuro.

     ‑ Que queres fazer? ‑ disse ele, assustado.

     ‑ Suyodhana ‑ disse a jovem, com um tom de voz que não deixava dúvidas ‑, se tocas naquele homem, num cabelo que seja, juro‑te que a tua deusa perderá a sua “virgem”.

     ‑ Deita fora esse punhal!

     ‑ Suyodhana, jura pela cabeça da tua deusa que Tremal‑Naik sairá vivo daqui.

     ‑ É impossível. Esse homem está condenado: o seu sangue já está destinado à deusa.

     ‑ Jura‑o! ‑ disse Ada, com voz ameaçadora.

     Suyodhana recolheu‑se sobre si próprio, como para se lançar sobre ela, mas o medo de chegar tarde de mais deteve‑o.

     ‑ Escuta, “virgem do pagode” - disse ele, aparentando calma - esse homem será salvo, mas tu deves jurar que nunca mais o amarás!

     Ada soltou um gemido lancinante e contorceu desesperadamente as mãos.

     ‑ Tu matas‑me! ‑ exclamou ela, soluçando.

     ‑ És a eleita da nossa deusa.

     - Monstruosas criaturas, porque despedaçais tão depressa uma felicidade que acaba de nascer? Porque extinguis tão depressa o raio de sol que inundava este pobre coração fechado a toda a alegria? Não, não é possível que eu quebre esta paixão, que é já por demais grande.

     ‑ Jura‑o, e aquele homem está salvo.

     ‑ És assim inexorável? Não há então qualquer esperança? Mas eu renego a tua assustadora deusa, que me horroriza, que amaldiçoei desde o primeiro dia em que a fatalidade me lançou nos vossos braços.

     ‑ Somos inexoráveis ‑ retorquiu o indiano.

     ‑ Mas, então, tu nunca amaste? ‑ perguntou ela, chorando de raiva. ‑ não sabes o que é uma paixão desfeita?

     ‑ Não sei o que seja o amor ‑ disse o inflexível indiano. ‑ jura, “virgem do pagode”, porque, se não, eu mato aquele homem.

     ‑ Ah, malditos!

     ‑ Jura!

     ‑ Pois bem... ‑ exclamou a infeliz, com voz apagada. ‑ eu... eu juro... que nunca mais... amarei... aquele homem.

     Soltou um grito desesperado, dilacerante, levou as mãos ao coração e caiu sem sentidos na esteira. O indiano soltou uma gargalhada.

     ‑ Tu juraste que o não amarás - disse ele, com satánica alegria, recolhendo o punhal que a jovem deixara cair. ‑ mas eu não jurei que aquele homem sairá vivo daqui. Sorri, excelsa divindade, e alegra‑te: esta noite oferecer‑te‑emos uma nova vítima.

     Levou aos lábios um apito de ouro e deu um agudo assobio.

     Um indiano, com o laço atado à volta da cintura e o punhal na mão, entrou, ajoelhando‑se diante de Suyodhana.

     ‑ Filho das sagradas águas do Ganges, eis‑me aqui ‑ disse ele.

     ‑ Karna ‑ disse Suyodhana ‑, leva a “virgem do pagode” e vigia‑a.

     ‑ Conta comigo, filho das sagradas águas do Ganges.

     ‑ Essa “virgem” tentará talvez suicidar‑se, mas tu impedi‑la‑ás de o fazer, pois a nossa divindade, por ora, não a tem senão a ela. Se ela morrer, também tu morrerás.

     ‑ Impedi‑la‑ei.

     ‑ Depois, reunirás cinqüenta dos mais fanáticos e dispô‑los‑ás à volta do pagode. O homem não deve escapar‑nos.

     ‑ Está um homem no pagode?

     ‑ Sim: Tremal‑Naik, o caçador de serpentes da floresta negra. Vai, e à meia‑noite está aqui.

     O indiano saiu, levando a pobre Ada nos braços. Suyodhana, ou, melhor, o filho das sagradas águas do Ganges, esperou que o rumor dos passos tivesse terminado, depois ajoelhou diante da pia de mármore onde nadava o peixinho dourado.

     “Meu pai”, disse ele.

     O peixinho, que nadava no fundo da pia, àquela voz, veio à tona de água.

     “Meu pai”, prosseguiu o indiano, “um homem, um miserável, levantou os olhos para a ‘virgem do pagode’. Esse homem está nas nossas mãos; queres que viva ou que morra?”

     O peixinho mergulhou, nadando vivamente. Suyodhana levantou‑se num salto: um sinistro lampejo brilhou nos seus olhos.

     “A deusa condenou‑o”, disse ele, com voz sombria. “Esse homem morrerá!”

        

     Tremal‑Naik, que ficara só, deixara‑se cair aos pés da estátua, comprimindo o coração, que lhe batia furiosamente, como se quisesse saltar‑lhe do peito. Nunca uma emoção assim lhe sacudira as entranhas; nunca experimentara tanta alegria, na sua vida selvagem e solitária, entre as canas e os tigres.

     “Bela! Bela!”, exclamava ele, sem se lembrar de que se encontrava no pagode maldito e que talvez cem ouvidos estivessem a ouvi‑lo. “Está bem! Serás minha esposa, sim, errante flor da selva, nem que eu tivesse de por esta ilha a ferro e fogo; nem que eu tivesse de lutar sozinho contra os monstros que te condenaram. Sairei daqui, encontrarei os meus valentes companheiros e então hei‑de raptar‑te, salvar‑te‑ei. Eles são fortes, foste tu quem o disse, são terríveis, mas serei mais forte e mais terrível e far‑lhes‑ei pagar caro as lágrimas que tu, infeliz, derramaste diante de mim. O amor me dará a força para levar a cabo essa empresa.”

     Levantara‑se e pusera‑se a passear, agitadíssimo, com os punhos convulsamente cerrados e os traços do rosto alterados por uma raiva mal contida.

     “Pobre Ada!”, prosseguiu, com profunda ternura. “Mas que destino pesa sobre ti? Porque não podes amar‑me? A morte despedaçará a tua vida, disseste, no dia em que te tornasses minha esposa: mas eu detê‑la‑ei. A essa morte, eu a despedaçarei com as minhas próprias mãos. Oh! Desvendarei, sim, hei-de desvendar este tremendo mistério e, então, tremam os miseráveis que te condenaram!”

     Deteve‑se, ao ouvir as notas agudas do ramsinga.

     “Maldito instrumento!”, exclamou. “Continua a tocar!”

     Estremeceu, ao pensamento que lhe atravessou a mente.

     “Esta trombeta anuncia uma desgraça”, murmurou. “Ter‑me‑ão descoberto, ou terão matado Kammamuri?”

     Susteve a respiração e apurou os ouvidos, distinguindo então um murmúrio de vozes que pareciam vir de fora.

     “Que quer isto dizer? Há gente lá fora. Serão os indianos, os habitantes destes lugares fúnebres?”

     Olhou à sua volta, com supersticioso terror, mas estava efectivamente sozinho; olhou para a abertura do pagode e ela estava efectivamente livre.

     “Algo está para acontecer. Sinto‑o”, disse, em voz baixa, “Mas mostrar‑lhes‑ei quem é Tremal‑Naik quando se bate.”

     Examinou a carga das pistolas e da carabina, receando talvez que mão misteriosa a tivesse tirado; examinou mesmo a lâmina do seu fiel punhal, mais de cem vezes tingida no sangue das serpentes e dos tigres, e acocorou‑se atrás da monstruosa estátua, encolhendo‑se o mais que lhe era possível.

     O dia passou com uma lentidão espantosa para o indiano, condenado a uma imobilidade quase absoluta e a um jejum forçado.

     Pouco a pouco, as sombras da noite invadiram os recantos mais escuros do pagode e depois ergueram‑se gradualmente para a cúpula: às nove, a escuridão era tão completa que não se via um palmo à frente do nariz, embora a lua brilhasse no céu, reflectindo‑se na grande bola de bronze dourado e na serpente com cabeça de mulher.

     O ramsinga não voltara a fazer ouvir as suas notas fúnebres e o murmúrio cessara há muito. Um silêncio misterioso reinava por toda a parte.

     No entanto, Tremal‑Naik não ousava mexer‑se. O único movimento que fazia era o de apoiar a orelha nas frias pedras do pagode, para escutar com profunda atenção.

     Uma voz secreta dizia‑lhe que vigiasse e que desconfiasse, e bem depressa se apercebeu de que aquela voz não mentia, pois, por volta das onze, quando as trevas eram mais densas, um rumor estranho, ainda indefinível, chegou até ele.

     Era como se alguma coisa descesse lá de cima, seguindo a corda que sustentava a lâmpada. Embora fitasse com toda a atenção, Tremal‑Naik não foi, no entanto, capaz de distinguir o que fosse. Por precaução, empunhou as pistolas e levantou‑se silenciosamente, pondo‑se de joelhos.

     “Que será?”, perguntou de si para si. “Ada, não, pois a meia‑noite ainda vem longe. Serão aqueles homens terríveis?”

     Uma onda de ira subiu‑lhe ao rosto.

     “Desgraçado de quem entrar!”

     Um barulho metálico ressoou nas trevas. Era a lâmpada que se agitava, sacudida, sem dúvida, por aquele que descia lá do alto.

     Tremal‑Naik não se deteve mais.

     ‑ Quem vem lá? ‑ gritou ele.

     Ninguém respondeu à pergunta e o barulho cessou.

     “Ter‑me‑ei enganado?”, perguntou de si para consigo.

     Levantou‑se e olhou para cima. Lá no alto, sobre a cúpula, a lua continuava a reflectir‑se na bola dourada e via‑se uma parte da corda vegetal que sustentava a lâmpada, mas nenhum ser humano pendia dela.

     “É estranho”, disse Tremal‑Naik, que ficara inquieto.

     Voltou a aninhar‑se, continuando a olhar à sua volta.

     Passaram outros vinte minutos, e a lâmpada voltou a retinir.

     ‑ Quem está aí? ‑ repetiu ele, com voz estridente. ‑ se é alguém, avance, Tremal‑Naik espera‑o.

     Novo silêncio. Então agarrou‑se aos pés da gigantesca estátua, subiu a braços, elevou‑se até pôr os pés em cima da cabeça e agarrou a lâmpada, sacudindo‑a furiosamente.

     Uma gargalhada sonora ressoou pelo pagode.

     “Ah!”, exclamou Tremal‑Naik, que sentia a cólera invadi‑lo. “Há alguém a rir‑se lá em cima. Espera!”

     Reuniu as suas hercúleas forças, e depois, com um puxão irresistível, partiu a corda. A lâmpada caiu no chão com um barulho indescritível, que os ecos do templo repetiram várias vezes.

     Uma segunda gargalhada se fez ouvir. Tremal‑Naik saltou da estátua abaixo escondendo-se atrás dela.

     Era tempo. Uma porta se abriu e um indiano, alto e magro, ricamente vestido, com um punhal numa das mãos e uma tocha resinosa na outra, apareceu.

     Aquele homem era o cruel Suyodhana: o seu rosto bronzeado irradiava uma alegria satânica e nos olhos brilhava‑lhe um lampejo sinistro.

     Deteve‑se um momento a contemplar a monstruosa divindade, atrás da qual estava Tremal‑Naik, com o punhal entre os dentes e as pistolas na mão, e depois avançou alguns passos. Atrás dele avançaram vinte e quatro homens, que se colocaram doze à direita e doze à esquerda. Estavam todos armados de punhal e do cordão de seda com a bola de chumbo.

     ‑ Meus filhos ‑ disse Suyodhana, com uma entoação que fazia tremer ‑, é meia‑noite!

     Os indianos soltaram as cordas, brandiram os punhais e espetaram as tochas em buracos feitos na parede.

     ‑ Estamos prontos para a vingança! ‑ responderam em coro.

     ‑ Um ímpio ‑ prosseguiu Suyodhana ‑ profanou o pagode da nossa deusa. Que merece esse homem?

     ‑ A morte ‑ responderam os indianos.

     ‑ Um ímpio ousou falar de amor à “virgem do pagode”. Que merece esse homem?

     ‑ A morte ‑ responderam os indianos.

     ‑ Tremal‑Naik! ‑ gritou Suyodhana, com terrível tom de voz. ‑ mostra‑te!

     Respondeu‑lhe uma gargalhada, e, depois, o caçador de serpentes, que tinha ouvido tudo, apareceu, atirando‑se com um salto para a frente da monstruosa divindade.

     Já não era o mesmo homem; parecia um tigre que viesse da selva. Um sorriso feroz aflorava aos seus lábios, o rosto era feroz, alterado por uma cólera furiosa, e os olhos desferiam sinistros lampejos.

     O filho selvagem da floresta despertava, pronto a rugir e a morder.

     ‑ Ah! Ah! ‑ exclamou ele, rindo. ‑ sois vós que quereis matar Tremal‑Naik? Bem se vê que ainda não conheceis o caçador de serpentes. Vede, assassinos, quanto vos desprezo.

     Levantou para o ar as duas pistolas e descarregou‑as, atirando para longe de si as armas. Descarregou depois a carabina e empunhou‑a pelo cano para se servir dela como dum bastão.

     ‑ Agora ‑ disse ele ‑, quem se sentir com coragem para enfrentar Tremal‑Naik avance. Bato‑me pela mulher que vós, malditos, condenastes!

     Deu um salto para trás e pôs‑se à defesa, lançando o seu grito de guerra.

     ‑ Avancem! Avancem! ‑ gritou. ‑ eu bato‑me pela “virgem do pagode”!

     Um indiano, sem dúvida o mais fanático, foi‑se contra ele, fazendo assobiar o laço no ar. Ou porque tivesse tomado pouco balanço, ou porque escorregasse, veio cair quase aos pés de Tremal‑Naik.

     O terrível bastão levantou‑se e desceu com fulminante rapidez, ferindo o crânio do indiano. A morte foi instantânea.

     ‑ Avancem! Avancem! ‑ repetiu Tremal‑Naik. ‑ bato‑me pela minha Ada!

     Os vinte e três indianos atiraram‑se como um só homem sobre o caçador de serpentes, que fazia rodar, como um demente, a carabina.

     Um outro indiano caiu, mas a carabina não agüentou aquele segundo golpe e partiu‑se nas mãos daquele que a utilizava.

     ‑ A morte! A morte! ‑ gritaram os indianos, a espumar de raiva. Um laço caiu sobre Tremal‑Naik, apertando‑lhe o pescoço, mas ele tirou‑o das mãos ao estrangulador, depois empunhou o punhal e atirou‑se contra a estátua de bronze, subindo‑lhe para cima da cabeça.

     ‑ Ao largo! Ao largo! ‑ gritou ele, lançando olhares ferozes à sua volta.

     Recolheu‑se sobre si próprio, como um tigre, e, saltando por cima das cabeças dos indianos, procurou dirigir‑se para a porta, mas não teve tempo para tanto. Duas cordas prenderam‑lhe os braços, ferindo-o dolorosamente com as bolas de chumbo e deitando‑o por terra.

     Soltou um grito terrível. Num abrir e fechar de olhos, os indianos caíram‑lhe em cima, qual matilha de cães à volta do javali, e, apesar da sua forte resistência, foi solidamente ligado e reduzido à impotência.

     ‑ Socorro! Socorro! ‑ murmurou ele.

     ‑ A morte! A morte! ‑ gritaram os indianos.

     Com um esforço hercúleo, quebrou duas cordas, mas foi tudo o que conseguiu fazer. Novos laços o ligaram e com tanta força que a carne se fez negra.

     Suyodhana, que assistira, impassível, àquela luta desesperada de um homem contra vinte e dois, avizinhou‑se e contemplou‑o, por instantes, com satânica alegria.

     Tremal‑Naik, nada podendo fazer, cuspiu‑lhe em cima.

     ‑ Ímpio! ‑ exclamou o filho das sagradas águas do Ganges.

     Empunhou solidamente o seu punhal e levantou‑o sobre o prisioneiro, que o olhava desdenhosamente.

     ‑ Meus filhos ‑ disse o indiano ‑, que pena merece este homem?

     ‑ A morte! ‑ responderam os indianos.

     ‑ Seja a morte.

     Tremal‑Naik soltou um último grito.

     ‑ Ada! Pobre Ada!

     A lâmina do vingador, que lhe penetrava no peito, apagou‑lhe a voz. Abriu muito os olhos, fechou‑os, um espasmo violento agitou os seus membros, que se tornaram rígidos. Um rio de sangue quente corria‑lhe pelas vestes, perdendo‑se nas pedras.

     ‑ Cali ‑ disse Suyodhana, voltando‑se para a estátua de bronze ‑, escreve no teu livro negro o nome desta nova vitima.

     A um sinal seu, dois indianos levantaram o infeliz Tremal‑Naik.

     ‑ Atirai-o para a selva, para servir de pasto aos tigres ‑ concluiu o terrível homem. ‑ assim pereçam os ímpios!

 

                           Kammamuri

     Depois da separação, Kammamuri tomara o caminho que conduzia ao rio, procurando seguir as pegadas do indiano que ia à sua frente. No entanto, deve‑se dizer que o bravo marata se afastava do seu patrão contra sua vontade e quase com remorsos.

     Temia, com razão, que Tremal‑Naik cometesse alguma loucura, sabendo, como sabia, que ele desejava voltar a ver a misteriosa visão; por isso, a cada dez passos, detinha‑se, titubeante, mais disposto a voltar atrás, apesar da ordem em contrário do patrão, do que a andar para a frente.

     Como regressar à cabana, sabendo que o patrão se encontrava na selva maldita, onde os inimigos pululavam como os bambus? Parecia‑lhe isso uma enormidade, uma coisa absolutamente impossível, quase um crime.

     Ainda não percorrera meia milha, quando se decidiu a regressar sobre os seus próprios passos, arriscando‑se a fazer subir aos arames Tremal-Naik.

     “No fim de contas”, disse o bravo marata, “um companheiro poderá servir‑lhe para alguma coisa. Ânimo, Kammamuri, coragem e olhos abertos.”

     Rodou sobre os calcanhares e dirigiu‑se novamente para oeste, não pensando mais no indiano que até então o tinha precedido. Ainda não andara vinte passos, quando ouviu uma voz desesperada a gritar:

     ‑ Socorro! Socorro!

      Kammamuri deu um salto para trás.

     “Socorro!”, murmurou ele. “Quem pede socorro?”

     Ficou à escuta com a mão na orelha: a brisa nocturna que soprava de oeste trouxe‑lhe um assobio agudo.

     “Algo está a acontecer lá em baixo”, murmurou o marata, inquieto. “O vento transporta os sons; quem gritou deve estar a meia milha daqui, na direcção tomada pelo meu patrão. Estarão a assassinar alguém?”

     O medo de cair nas mãos dos indianos era grande, mas a curiosidade foi ainda maior.

     Pôs a carabina debaixo do braço e dirigiu‑se para oeste, arredando os bambus com precaução. Justamente naquele instante, ecoou uma detonação.

     Ao ouvi‑la, o marata sentiu o sangue gelar‑se‑lhe nas veias. A carabina de Tremal‑Naik, que tantas e tantas vezes ouvira ribombar na floresta negra, conhecia‑a ele demasiado bem para poder enganar‑se.

     “Grande xiva!”, murmurou com os dentes cerrados. “O patrão defende‑se.”

     A idéia de que Tremal‑Naik corresse perigo infundiu‑lhe uma coragem extraordinária. Desprezando todas as precauções esquecendo que os indianos podiam estar a espiá‑lo, pôs-se a correr para o lugar donde tinha partido a detonação.

     Um quarto de hora depois, chegava a uma espécie de clareira, no meio da qual se contorcia um objecto de grande comprimento, cheio de manchas. Aquele corpo emitia assobios agudos, característicos das serpentes quando estão irritadas.

     “Eh! Um pitão!”, exclamou Kammamuri. O qual, familiarizado com aqueles répteis, não sentia qualquer medo.

     Estava para se afastar, a fim de evitar o perigo de ser assaltado e triturado, quando deu conta de que o réptil já não estava inteiro e que junto dele jazia um corpo humano.

     Sentiu porem‑se‑lhe de pé os cabelos que lhe cresciam na nuca.

     “Será o patrão?”, murmurou.

     Pegou na carabina pelo cano, enfrentou o réptil, que se contorcia raivosamente, perdendo sangue, e esmagou‑lhe a cabeça.

     Tendo‑se libertado do monstro, correu para aquele corpo humano, que já não dava sinais de vida:

     “Vixnu seja bendito!”, exclamou com um suspiro de alívio. “Não é o patrão.”

     De facto, era um indiano, aquele mesmo que, para se lançar contra Tremal‑Naik, caíra nas espiras do pitão. O pobre diabo estava irreconhecível, depois do terrível abraço do pitão.

     Era uma massa de carne contorcida, triturada e inundada de sangue.

     Tinha a boca desmesuradamente aberta e dela saía uma espuma sangrenta, os olhos fora das órbitas, pontas de ossos partidos saíam‑lhe do peito, horrivelmente cavado, e os membros partidos em dez sítios diferentes.

     Kammamuri curvou‑se sobre ele, para ver se ainda respirava, mas aquelas carnes já estavam frias.

     “O pobre homem não pôde resistir ao abraço” disse. “Tanto pior para ele: este indiano não pode ser senão um daqueles que nos davam caça, pois lhe vejo no peito a misteriosa tatuagem. Vamos, aqui não há nada a fazer e corro o perigo de ser descoberto.”

     Um ligeiro rumor de bambus sacudidos pregou‑o ao chão. Dobrou‑se prontamente e estendeu‑se no meio das ervas, permanecendo imóvel, como o cadáver que estava perto dele.

     Se ainda não fora visto, podia escapar ao olhar daquele ou daqueles que tinham mexido nos bambus, pois as canas eram altas.

     O rumor tinha cessado, mas era preciso desconfiar. Os indianos são pacientes como os peles‑vermelhas da América e espiam a presa durante horas, ou mesmo durante dias inteiros, e Kammamuri, indiano ele também, não o ignorava.

     Esteve assim muito tempo, depois ousou levantar a cabeça e olhar à volta.

     Um silvo fendeu o ar e Kammamuri sentiu‑se apanhado por um laço, que mão hábil lhe lançara à volta do pescoço.

     Susteve o grito que estava para lhe sair dos lábios, agarrou solidamente a corda, impedindo assim que o estrangulasse, e voltou a cair entre as ervas, debatendo‑se como um agonizante. A astúcia deu pleno resultado. O estrangulador, que se mantinha emboscado atrás dum grupo de canas‑de‑açúcar selvagens, julgando que a vítima estivesse para expirar, saltou para fora, a fim de a acabar a golpes de punhal. Kammamuri agarrara uma das pistolas e carregara‑a, apontando‑a em sua direcção.

     ‑ Estás morto! ‑ gritou‑lhe.

     Um relâmpago rompeu as trevas, seguido duma detonação. O estrangulador vacilou, levou as mãos ao peito e caiu pesadamente entre as ervas.

     Kammamuri caiu‑lhe em cima com a segunda pistola.

     ‑ Onde está Tremal‑Naik? ‑ perguntou ele.

     O estrangulador tentou levantar‑se, mas voltou a cair. Um jacto de sangue saiu‑lhe da boca, arregalou os olhos, soltou um gemido e ficou rígido. Tinha morrido.

     “Fujamos”, murmurou o marata. “Não tarda muito que tenha os seus companheiros atrás de mim.”

     Pôs‑se de pé num salto e fugiu precipitadamente para o lado donde tinha vindo, convencido de que o morto era o indiano que o tinha precedido e de que Tremal‑Naik tivesse conseguido salvar‑se.

     Percorreu a correr mais de uma milha, internando‑se cada vez mais na selva, procurando manter uma via recta, para chegar à margem do rio e ali esperar o regresso do patrão, que não queria abandonar. Era meia‑noite quando se encontrou no limiar duma floresta de palmeiras de coco, soberbas plantas que superam em beleza as palmeiras de tâmaras, e das quais uma só basta para fornecer a uma família inteira o alimento, a bebida e até o vestuário.

     O marata não se atreveu a ir mais adiante; subiu para uma daquelas árvores e estabeleceu lá no cimo o seu domicílio, seguro de não ser assaltado pelos indianos e menos ainda pelos tigres, que deviam encontrar‑se em grande número naquela ilha.

     Acomodou‑se sobre o tronco, atou‑se com a corda tomada ao estrangulador e, serenado pelo profundo silêncio que reinava, fechou os olhos.

     Dormiu pouquíssimas horas, pois foi despertado por um barulho infernal.

     Um enorme bando de chacais, vindo sabe deus donde, tinha rodeado a árvore e fazia‑lhe as honras duma horrível serenata. Aqueles animais, pouco diferentes dos lobos, que pululam por toda ou quase toda a índia como formigas, e cuja mordedura é considerada venenosa, eram mais de cem e davam saltos desesperados, desafogando a sua raiva com uivos lamentosos, quase dilacerantes, capazes de incutir terror mesmo a quem está habituado a ouvi‑los.

     Kammamuri bem quisera afastá‑los com alguns tiros, mas o receio de atrair os indianos, bastante mais terríveis do que aqueles animais, dissuadiu‑o disso e resignou‑se a ouvir o seu concerto, que durou até ao alvorecer.

     Pôde então saborear o sono, que se prolongou mais do que teria desejado, pois, quando voltou a abrir os olhos, já o sol dera a sua volta completa e declinava a ocidente. Abriu uma noz de coco bem madura e grande como a cabeça dum homem, cuja polpa endurecida lembra o sabor das amêndoas, engoliu uma boa parte e pôs‑se valorosamente em marcha, desta feita não já com a intenção de regressar à margem, mas de encontrar Tremal‑Naik.

     Atravessou o bosque de coqueiros, perdendo várias horas, e, embora a noite fosse já alta, voltou a entrar na selva, inflectindo para sul, e continuou a andar assim até à meia‑noite, detendo‑se de quando em quando a examinar o terreno, com a esperança de encontrar algum vestígio do patrão. Já desesperado de descobrir qualquer indício, estava para procurar uma árvore em que passasse o resto daquela noite, quando dois disparos surdos, atirados a pouca distância um do outro, chegaram até ele.

     “Eh!”, exclamou, surpreendido.

     Um terceiro disparo se ouviu, mais forte do que os dois primeiros.

     “O patrão!”, gritou. “Desta vez não me escapa.”

     Suspendeu as suas investigações e correu para sul, com a velocidade dum cavalo, e meia hora depois chegava a uma ampla clareira, no meio da qual, iluminado por um luar esplêndido, se erguia um grandioso pagode. Deu alguns passos em frente, mas voltou rapidamente para trás, voltando para os bambus.

     Na clareira, dois homens se tinham mostrado, caminhando para a selva e transportando uma terceira pessoa, que parecia morta.

     “Que quer isto dizer?”, murmurou o marata, que ia caindo de surpresa em surpresa. “Irão sepultar aquele cadáver na selva?”

     Afastou‑se ainda mais, escondendo‑se numa densa moita, mas num lugar donde podia ver sem ser descoberto.

     Os dois homens, que reconheceu como sendo dois indianos, atravessaram rapidamente a clareira, detendo‑se junto dos bambus.

     ‑ Coragem, Sonephur ‑ disse um deles. ‑ façamo‑lo bambolear e atiremo‑lo ali para o meio. Estou certo de que amanhã de manhã só encontraremos os ossos se os tigres estiverem dispostos a deixá‑los.

     ‑ Estás certo disso? ‑ perguntou o outro.

     ‑ Sim, a nossa amada deusa se encarregará de lhe enviar meia dezena daqueles animais. Este indiano é um bom bocado de carne, e bastante jovem.

     Os dois miseráveis soltaram uma sonora gargalhada àquela graça atroz.

     ‑ Agarra‑o bem, Sonephur.

     ‑ Vamos, um, dois...

     Os dois indianos fizeram oscilar o cadáver e atiraram com ele para o meio da selva.

     ‑ Boa sorte! ‑ gritou um.

     ‑ Boa noite ‑ disse o outro. Amanhã de manhã viremos fazer‑te uma visita.

     E os dois indianos afastaram‑se, com uma risada de troça.

     Kammamuri assistira àquela cena. Esperou que os dois indianos estivessem muito longe, depois saiu do esconderijo e, impelido por uma forte curiosidade, aproximou‑se do cadáver.

     Um grito sufocado escapou‑se‑lhe dos lábios.

     “O patrão!”, exclamou, com voz dilacerante. “Oh! Os malditos!”

     De facto, aquele cadáver era Tremal‑Naik. Tinha os olhos fechados, o rosto horrivelmente alterado e no meio do peito, enterrado até ao punho, um cutelo. As vestes estavam pesadas de sangue, que continuava a jorrar da profunda ferida.

      “Patrão! Meu pobre patrão!”, soluçou o marata.

     Apoiou as duas mãos no corpo dele e estremeceu, como se tivesse sido tocado por uma corrente eléctrica. Parecia‑lhe ter sentido o coração a bater.

     Aproximou a orelha e escutou, sustendo a respiração. Não havia dúvida: Tremal‑Naik ainda não estava morto, pois o seu coração batia debilmente.

     “Talvez não esteja ferido de morte”, murmurou, tremendo de emoção. “Calma, Kammamuri, e vamos agir sem perder tempo.”

     Com precaução, tirou o kurty a Tremal‑Naik, pondo a descoberto o amplo peito. O punhal fora enterrado entre a sexta e a sétima costelas, em direcção ao coração, mas não o tinha tocado.

     A ferida era terrível, mas talvez não fosse mortal; Kammamuri, que naquelas coisas era mais entendido do que um médico, teve esperança de salvar o infeliz.

     Tomou delicadamente a arma e, lentamente, sem solavancos, extraiu‑a da ferida: um jacto de sangue quente e vermelho saiu dos lábios. Era um bom sinal.

     “Curar‑se‑á”, disse o marata.

     Rasgou um pedaço do kurty e susteve a hemorragia, que podia ser fatal para o ferido. Agora tratava‑se de ter um pouco de água e algumas folhas de youma, para espremer sobre a chaga, a fim de acelerar a cicatrização.

     “É preciso, a todo o custo, afastar‑se daqui, a fim de encontrar água”, murmurou depois. “Tremal‑Naik é forte, um verdadeiro homem de aço, e suportará o transporte sem agravar a ferida. Coragem, Kammamuri.”

     Reuniu todas as suas forças, agarrou entre os braços o mais delicadamente que lhe foi possível e afastou‑se cambaleando, dirigindo‑se para oeste, ou seja, em direcção ao rio.

      Descansando de cem em cem passos, para tomar fôlego e para ver se o patrão continuava a dar sinais de vida, alagado em suor e mal se agüentando nas pernas, percorreu mais de uma milha e deteve‑se à beira dum lago de água limpidíssima, rodeado por uma tripla fieira de bananeiras e coqueiros.

     Depôs o ferido numa densa camada de ervas e aplicou sobre a ferida sangrenta pedaços de pano molhados. Aquele contacto, um débil suspiro que parecia um gemido abafado saiu dos lábios de Tremal‑Naik.

     ‑ Patrão! Patrão! ‑ chamou o marata.

     O ferido agitou as mãos e abriu os olhos, que giravam num círculo sangrento, fixando‑os em Kammamuri.

     Um raio de alegria iluminou o seu rosto bronzeado.

     ‑ Reconheces‑me, patrão? ‑ perguntou o marata.

     O ferido fez com a cabeça um sinal afirmativo e mexeu os lábios, como para falar, mas apenas conseguiu articular um som confuso, incompreensível.

     ‑ Ainda não podes falar - disse Kammamuri ‑, mas depois hás‑de contar‑me tudo. Tem a certeza, patrão, de que nos vingaremos dos miseráveis que tão mal te trataram.

     O olhar de Tremal‑Naik brilhou com um lampejo sombrio e apertou os dedos, arrancando as ervas.

     Tinha‑o, sem dúvida, compreendido.

     ‑ Calma, calma, patrão. Agora vou arranjar algumas ervas que te farão muito bem e dentro de quatro ou cinco dias abandonaremos estes lugares e. levar‑te‑ei à cabana, para completar a cura.

     Recomendou-lhe mais uma vez silêncio e imobilidade absoluta, bateu as ervas num raio de trinta ou quarenta passos, para se assegurar de que não escondiam nenhuma daquelas terríveis serpentes chamadas rubdira mandali, cuja mordedura, segundo se diz, faz suar sangue, e afastou‑se rastejando.

     Não precisou de andar muito para encontrar algumas pequenas plantas de youma, vulgarmente chamadas “língua de serpente”, cuja seiva é um bálsamo precioso para as feridas.

     Fez delas uma boa colheita e dispunha‑se a regressar, mas poucos passos tinha andado quando se deteve, com as mãos na coronha das pistolas.

     Parecera‑lhe ver uma massa negra esconder‑se silenciosamente entre os bambus. Tinha mais forma de animal do que de ser humano. Aspirou repetidamente o ar e sentiu o odor marcadíssimo da fera.

     “Atenção, Kammamuri”, murmurou. “Temos tigre perto.”

     Meteu o punhal entre os dentes e avançou intrepidamente em direcção ao lago, olhando atentamente à sua volta. Esperava encontrar‑se de um momento para o outro diante do feroz carnívoro, mas isso não aconteceu e chegou ao meio das árvores sem sequer o ter visto.

     Tremal‑Naik estava no mesmo sítio e parecia adormecido, com o que o corajoso marata se alegrou; colocou junto de si a carabina e as pistolas, para estar pronto a servir‑se delas, mastigou as ervas, apesar de serem insuportavelmente amargas, e aplicou‑as sobre a chaga.

     “Ah, assim está bem”, disse ele, sacudindo alegremente as mãos. “Amanhã o patrão estará melhor e poderemos ir embora deste lugar, que não me parece muito seguro. Dentro de poucas horas, os indianos deverão ir à selva e, não encontrando o cadáver, pôr‑se‑ão em campo. Não podemos deixar‑nos apanhar assim...”

     Um rosnar de meter medo, habitual nos tigres, parecido com um rugido, cortou‑lhe a frase. Voltou rapidamente a cabeça, estendendo instintivamente as mãos para as armas.

     A quinze passos de distância, recolhido sobre si mesmo, como preparado para saltar, estava um enorme tigre real, que o fixava com dois olhos brilhantes que tinham os reflexos azulados do aço.

 

                           Uma noite terrível

     Ao rugido de guerra do felino, Tremal‑Naik despertara subitamente, fazendo um movimento brusco, como se procurasse o seu fiel punhal. O moribundo reanimara‑se, como o soldado ao ouvir a trombeta que dá o sinal da peleja.

     ‑ Kammamuri? ‑ articulou, com supremo esforço.

     ‑ Não te mexas, patrão! ‑ disse o marata, que fixava nos olhos a fera pronta a saltar.

     ‑ O ti... gre! O ti... gre! ‑repetiu o ferido.

     ‑ Eu trato dele. Volta a descansar e não te preocupes comigo.

     O marata empunhara uma pistola e apontara o cano sobre o tigre, mas não ousava atirar, receando, antes de mais, não o matar imediatamente e atrair, com o disparo, a atenção dos inimigos.

     Via‑se que o tigre hesitava em assaltar, mantido como estava em respeito pelo cano luzidio da pistola cujos mortais efeitos conhecia certamente. Bateu três ou quatro vezes os flancos com a cauda, como os gatos quando estão irados, emitiu um segundo rugido mais forte do que o primeiro, e depois começou a recuar levantando a terra com as garras poderosas, sem desviar os olhos do marata que, imperturbável, lhe sustentava o olhar.

     ‑ Kamma... muri..., o ti... gre! ‑ voltou a balbuciar Tremal‑Naik, esforçando‑se por se levantar sobre os braços.

     ‑ Vai‑se embora, patrão. Não se atreve a atacar o caçador de serpentes e o seu marata. Está sossegado e tudo há‑de correr bem.

     De repente, o tigre pôs‑se de pé, arrebitou as orelhas, como se procurasse recolher qualquer rumor, emitiu um terceiro rugido, desta vez mais baixo, deu meia volta rápida e desapareceu na selva, deixando atrás de si o conhecido odor de fera.

     Também Kammamuri se tinha levantado, tomado por forte inquietação.

     “Quem terá assustado o tigre?”, perguntou de si para si, ansiosamente. “decerto, alguém se aproxima.”

     Lançou‑se em direcção às árvores e examinou a selva, que distava uma centena de passos, mas não viu ninguém.

     Apressou‑se a regressar para junto de Tremal‑Naik, que voltara a tombar sobre o seu leito de folhas.

     ‑ O tigre? ‑ perguntou o ferido, com voz débil.

     ‑ Desapareceu, patrão ‑ respondeu o marata, dissimulando a sua inquietação. ‑ teve medo da minha pistola. Dorme e não penses em mais nada.

     O ferido soltou um gemido surdo.

     ‑ Ada! ‑ balbuciou.

     ‑ Que queres, patrão?

     ‑ Ah!, como... era bela... be... la!

     ‑ Que queres dizer? Quem era bela?

     ‑ Mal... ditos..., rapta... ram‑na..., mas...

     Rangeu os dentes com raiva e enterrou as unhas na terra.

     ‑ A... da!... A... da! ‑ repetiu.

     “Está a delirar”, pensou o marata.

     - Sim, rapta... ram‑na ‑ continuou o ferido. Mas... hei‑de... encontrá‑la. Oh! Sim, hei‑de... encontrá‑la!

     ‑ Não fales, patrão, que corremos um grave perigo.

     ‑ Perigo? ‑ balbuciou Tremal‑Naik, sem o compreender. ‑ quem fala de perigo? Voltarei aqui..., sim, voltarei, malditos..., com o meu darma... e far‑vos‑ei devorar a todos!

     Agitou os braços com ímpeto furioso, rolou os olhos, fechou‑os e ficou imóvel, como se estivesse morto.

     “Dorme”, disse Kammamuri. “Tanto melhor; pelo menos, os seus gritos não denunciarão a nossa presença. E agora, em guarda, que o tigre está talvez a espiar‑nos.”

     Sentou‑se, cruzando as pernas à maneira dos turcos, pôs a carabina sobre os joelhos, meteu na boca uma bolinha de bétele, para combater o sono que o assaltava, e esperou pacientemente a madrugada, com os olhos bem abertos e os ouvidos à escuta.

     Passaram uma, duas, três horas sem que nada acontecesse. Nenhum rugido de tigre, nenhum silvo de serpente, nenhum uivo de chacal, rompia o silêncio que reinava na selva misteriosa. Só, de quando em quando, um sopro de ar carregado de exalações pestilentas passava sobre as canas, curvando‑as com um doce murmúrio.

     Devia passar das três horas quando uma espécie de assobio, potente e bizarro, rompeu o silêncio. Era um som bastante agudo.

     Surpreendido e um tanto atemorizado, o marata levantou‑se e apurou os ouvidos, sustendo a respiração. Aquele misterioso som repetiu‑se e muito próximo dele.

     “Este não é um tigre”, murmurou Kammamuri. “Que perigo nos ameaça ainda?”

     Carregou a carabina, rastejou, sem fazer barulho, em direcção às árvores e olhou.

     A trinta passos dele movia‑se um grande animal, com um comprimento não inferior a três metros, de formas pesadas, maciças. Tinha a pele cheia de protuberâncias, a cabeça grande e um pouco triangular, as orelhas grandes e sobre a massa óssea das narinas um chifre agudo e muito comprido.

     Kammamuri reconheceu de imediato com que espécie de inimigo tinha de se haver, e sentiu o coração apertar‑se de terror.

     “Um rinoceronte!”, exclamou ele, com um fio de voz. “Estamos perdidos!”

     Nem sequer levantou a carabina, sabendo muito bem que a bala se teria esmagado contra aquela pele grossíssima, mais resistente do que uma couraça de aço. Podia, é claro, ferir o monstro num olho, o seu único ponto vulnerável, mas o medo de falhar o tiro e de ser esventrado pelo terrível chifre ou esmagado debaixo das monstruosas patas sugeriu‑lhe a idéia de ficar quieto, esperando não ser descoberto.

     O rinoceronte parecia possuído de viva irritação, o que acontece muitas vezes a este animal intratável, mal feito, brutal e pobre de inteligência. Atirava‑se, como se tivesse enlouquecido, com uma agilidade verdadeiramente surpreendente num animal da sua estatura, e divertia‑se a partir, esmigalhar e espalhar os bambus, fazendo amplas brechas na selva.

     De quando em quando, detinha‑se, respirando ruidosamente, rebolava‑se na terra como um chacal, agitando loucamente as pernas mal feitas e metendo o chifre no meio das ervas, para depois voltar a levantar‑se e recomeçar os seus assaltos contra os bambus.

     Kammamuri nem sequer respirava, para não atrair a atenção do bruto; suava como se estivesse em cima duma caldeira em ebulição e apertava convulsivamente a carabina, que se tornara inútil como um bastão de ferro. Tinha medo de que o animal se atirasse às árvores e se aproximasse do pequeno lago, descobrindo assim Tremal‑Naik.

     Ficou ali por algum tempo e depois regressou ao lugar onde jazia o patrão. O seu primeiro cuidado foi o de arrancar toda a erva que conseguiu, para esconder totalmente o ferido; depois escapuliu‑se para junto dum baniano bastante grosso, levando consigo as armas.

     “Mais não posso fazer”, disse. “De qualquer modo, receberei a fera com uma descarga geral das minhas armas.”

     O rinoceronte continuava aos saltos junto da selva. Ouvia‑se o terreno estremecer debaixo do seu peso, os bambus partir‑se, crepitando, e a formidável respiração da fera semelhante ao som duma trombeta rouca.

     De súbito, Kammamuri ouviu o rugido do tigre. Correu rapidamente para o lago, olhando à volta, assustado.

     Em cima da árvore que acabava de abandonar, descobriu o tigre, agarrado a um dos ramos; os seus olhos cintilavam como os de um gato e as garras arrancavam a casca da árvore.

     Apontou rapidamente o fuzil em direcção à fera, a qual, assustada, saltou para alcançar a selva, mas encontrou‑se diante do rinoceronte.

     Os dois formidáveis animais olharam um para o outro durante alguns instantes. O tigre, sabendo talvez que nada tinha a ganhar numa luta com o brutal colosso, procurou fugir, mas não teve tempo para tanto.

     O rinoceronte fizera ouvir o seu grito. Baixou a cabeça enorme, mostrando o agudo chifre, e atirou‑se furiosamente sobre a fera, abanando raivosamente a sua curta cauda.

     O choque foi terrível. O tigre dera um enorme salto, caindo sobre a garupa do colosso, o qual, tendo dado trinta ou quarenta passos, se atirou por terra, obrigando o tigre a largá‑lo.

     “Bravo, rinoceronte!”, murmurou Kammamuri.

     Os dois inimigos tinham‑se levantado com fulminante rapidez, precipitando‑se um contra o outro. O segundo assalto não foi feliz para o tigre. O chifre do rinoceronte rompeu‑lhe o peito, atirando com ele pelos ares, a uma distância de mais de vinte metros. Caiu, procurou levantar‑se, gemendo de dor e de raiva, e de novo voou, ainda mais alto, perdendo torrentes de sangue.

     O rinoceronte nem sequer esperou que voltasse a cair. Com um terceiro golpe da sua terrível arma, abriu‑lhe a barriga e, depois, atirando‑o ao chão, esmagou‑o com as patas, reduzindo‑o a um monte de carnes sanguinolentas e ossos partidos.

     Tudo isto sucedera em poucos segundos. O colosso, satisfeito, emitiu duas ou três vezes o seu assobio surdo, depois reentrou na selva, a devastar os bambus, sem, no entanto, se afastar do lago.

     A sua retirada chegava em boa altura, pois Tremal‑Naik, em delírio e com uma febre violentíssima acordara, chamando Kammamuri.

     Isso tornava a situação dos dois indianos extremamente perigosa, pois o intratável animal podia ouvir as suas vozes e aparecer de repente entre as árvores. O marata bem sabia que não se devia iludir sobre as probabilidades de salvar a vida, nem sequer com a fuga, pois todas as espécies de rinocerontes superam, em corrida, o homem mais veloz.

     Apressou‑se a ir para junto do patrão e a libertá‑lo das ervas que o cobriam.

     ‑ Silêncio ‑ disse ele, pondo‑lhe a mão sobre os lábios. ‑ se nos ouve, estamos irremediavelmente perdidos.

     Mas Tremal‑Naik, em delírio, agitava loucamente os braços e dos lábios saíam‑lhe palavras sem sentido:

     - “Ada” - gritava ele, abrindo assustadoramente os olhos. “Onde estás tu, ‘virgem do pagode’?... Ah! Ah! Já me lembro... Sim. Meia‑noite! Meia‑noite!... E eles vieram todos armados, muitos contra um. Mas eu não tenho medo, não. Eu não tremo, sabes, Ada, sou o caçador de serpentes... forte, muito forte! Vi aquele homem, aquele que te condenou. sabes? Era feio e queria estrangular‑me.”

     “Porque é que aqueles homens também têm a serpente no peito? Quantas serpentes, tantas cabeças de mulher. Mas não me metem medo. O quê? Eu ter medo deles? Eu, Tremal‑Naik?... Ah!... Ah!...”

     Tremal‑Naik deu uma gargalhada que fez tremer o marata até ao fundo da alma.

     ‑ Patrão, está calado! ‑ suplicou Kammamuri, que ouvia o maldito animal saltar furiosamente no limiar da selva.

     O delirante olhou‑o com os olhos semicerrados e prosseguiu, em voz mais alta:

     “Era de noite, uma noite muito escura, eu descia lá do alto e abaixo de mim vagueava a visão. Ouvi o perfume cair sobre as pedras. Por que, cruel, adorar aquela divindade? Então não me amas?... Tu sorris, mas eu tremo. Sabes como te ama o caçador de serpentes. Será que tenho um rival? Ai dele!... olha os malditos que se aproximam... riem, dão gargalhadas e ameaçam‑me... fora daqui, assassinos, fora, fora!... Ainda têm os laços, lançam‑nos... esperai aí, que eu já chego... vingá‑la‑ei, assassinos, eis‑me aqui... Kammamuri! Kammamuri! estão a estrangular‑me!”

     O delirante sentou‑se, com os olhos fora das órbitas e espuma nos lábios, e, estendendo o punho fechado para o marata, gritou:

     ‑ És tu que me queres estrangular? Kammamuri, dá‑me as pistolas que eu mato‑o.

     ‑ Patrão, patrão ‑ balbuciou o marata.

     ‑ Ah!, tu... não sabes quem são? Kammamuri, eles estrangulam‑me! Socorro!...

     O marata sufocou‑lhe os gritos, pondo‑lhe rapidamente uma das mãos sobre a boca e deitando‑o por terra. O ferido debatia‑se furiosamente, rugindo como uma fera.

     ‑ Socorro! ‑ tornou a gritar.

     Vindo do lado das árvores, ouviu‑se um poderoso rugido. O marata, a tremer de medo, viu o focinho triangular do rinoceronte aparecer entre as ramagens. Julgou‑se perdido.

     ‑ Grande Xiva! ‑ exclamou, recolhendo furiosamente a carabina.

     O rinoceronte olhou o grupo, com os seus olhinhos pequenos e brilhantes, mas mais com surpresa do que com cólera.

     Não havia um instante a perder. A surpresa não devia durar muito para aquele brutal colosso, que se irrita com tanta facilidade.

     O marata, a quem a iminência do perigo tornava ousado, apontou friamente a carabina, visou um dos olhos e deixou partir a descarga, mas a bala, com má direcção, esmagou‑se na testa do rinoceronte, que estendeu horizontalmente o chifre, preparando‑se para o assalto.

     A perda dos dois indianos era agora quase certa. Dentro de poucos minutos teriam a mesma sorte reservada ao tigre.

     Felizmente, Kammamuri não perdera o sangue-frio. Vendo o animal ainda de pé, deixou cair a arma, agora inútil, precipitou‑se sobre Termal-Naik, levantou‑o nos braços, correu para o lago e saltou para a água, afundando‑se até aos ombros.

     O rinoceronte carregava agora com fúria irresistível. Em quatro saltos venceu a distância e caiu pesadamente na água, levantando uma onda de lama e de espuma. Aterrado, Kammamuri procurou fugir, mas não conseguiu. As suas pernas tinham‑se afundado na areia, de tal modo que qualquer esforço resultava inútil. O desgraçado, meio asfixiado, a tremer, pálido, soltou um grito desesperado.

     ‑ Socorro! Que eu morro!

     Ouvindo atrás de si assobios surdos, voltou‑se e viu o rinoceronte a debater‑se furiosamente, atirando à esquerda e à direita tremendas cornadas; o colosso, arrastado pelo seu enorme peso, enterrara‑se até à barriga e continuava a afundar‑se nas areias movediças.

     ‑ Socorro!... ‑ repetiu o marata, esforçando‑se por manter o patrão fora da água.

     Um latido longínquo respondeu ao seu desesperado chamamento; Kammamuri estremeceu; aquele latido já ele o tinha ouvido, não uma, mas muitas vezes. Uma esperança louca iluminou‑lhe a mente.

     ‑ Punthy! ‑ gritou.

     Um cão negro, vigoroso, grande, saiu da massa espessa dos bambus e correu para o lago, ladrando furiosamente. Aquele cão, que em tão boa hora chegava, era mesmo o fiel Punthy, que se atirou ao rinoceronte, tentando agarrar‑lhe uma orelha.

     Quase no mesmo instante, ouviu‑se a voz de Aghur.

     ‑ Aguenta‑te, Kammamuri! ‑ gritava o valente rapaz. ‑ estou aqui.

     Com um salto, o bengalês atravessou um denso matagal, desapareceu entre os bambus e reapareceu na margem do lago. Carregou rapidamente o fuzil e disparou contra o rinoceronte, o qual, ferido no cérebro, caiu sobre um dos lados, ficando com mais de metade do corpo encoberto pela lama.

     ‑ Não te mexas, Kammamuri - prosseguiu o hábil caçador. ‑ agora vamos fazer o salvamento, mas... Que tem o patrão? Está ferido?

     ‑ Cala‑te e desembaraça-te, Aghur ‑ disse o marata, que ainda tremia ‑ há inimigos na selva.

     O bengalês desatou apressadamente a corda que lhe cingia o dubgah e atirou uma ponta a Kammamuri, que a agarrou solidamente.

     ‑ Agüenta ‑ disse Aghur.

     Reuniu todas as suas forças e começou a puxar. Kammamuri sentiu que era arrancado daquelas tenazes de areia e arrastado para a margem, para a qual trepou apressadamente.

     ‑ Então? ‑ perguntou Aghur, ansiosamente, olhando, aterrado, para o patrão. ‑ que aconteceu?

     - Apunhalaram‑no.

     ‑ Ah! E quem foi?

     ‑ Os mesmos que assassinaram Hurti.

     ‑ Quando? Como?

     ‑ Dir‑te‑ei mais tarde. Despacha‑te, constrói uma maca e partamos; somos seguidos.

     Aghur não quis saber mais nada. Tirou o cutelo, cortou seis ou sete ramos, ligou-os com sólidas cordas e sobre aquela tosca maca amontoou alguns braçados de folhas. Kammamuri levantou lentamente o patrão, que ainda não voltara a si, e estendeu‑o em cima da maca.

     ‑ Vamos embora e silêncio ‑ comandou Kammamuri. ‑ tens a canoa?

     ‑ Sim, está sobre a areia ‑ respondeu Aghur.

     ‑ Tens as pistolas carregadas?

     ‑ As duas.

     ‑ Vamos então, e abre‑me bem esses olhos.

     ‑ Estarão a espiar‑nos?

     ‑ Talvez sim.

     Os dois indianos levantaram a maca e puseram‑se em marcha, precedidos pelo cão, seguindo uma estreita vereda aberta na selva. Em quinze minutos chegaram ao rio, onde flutuava a canoa. No momento em que embarcavam, Punthy ladrou.

     ‑ Calado, Punthy ‑ disse Kammamuri, agarrando nos remos.

     O cão, em vez de obedecer, pôs as patas sobre a borda da canoa e redobrou os seus latidos. Parecia possuído de forte excitação.

     Os dois indianos olharam para a selva, mas não viram ninguém. No entanto, Punthy devia ter ouvido algum rumor.

     Puseram as pistolas nos bancos, agarraram os remos e fizeram‑se ao largo, remando contra a corrente. Ainda não tinham percorrido trezentas braças quando o cão recomeçou a ladrar raivosamente.

     ‑ Alto! ‑ gritou uma voz imperiosa.

     Kammamuri voltou‑se para trás, segurando na mão uma das pistolas. Na margem, no lugar que eles tinham abandonado, estava de pé um colossal indiano, com o laço na mão direita e o punhal na esquerda.

     ‑ Alto! ‑ repetiu ele.

     Kammamuri, em vez de obedecer, disparou. O indiano dobrou‑se sobre si mesmo, agitando os braços, e depois desapareceu entre as moitas.

     ‑ Arranca! Arranca, Aghur! ‑ gritou o marata.

     A canoa fendeu rapidamente as águas, dirigindo‑se para o cemitério flutuante, enquanto uma voz sonora, cheia de ameaças, gritava das costas da ilha maldita:

     ‑ Havemos de voltar a ver‑nos!

     Vendo o animal, correu para o lago e saltou para a água.

 

                           Manciadi

     A oriente, a aurora começava a raiar, quando a canoa chegou às praias da floresta negra.

     Nada de novo parecia ter acontecido. A cabana continuava erguida entre os canaviais, coroada por uma dezena de aves de grandes dimensões, semelhantes a cegonhas, mas muito feias, semipeladas e malcheirosas, imóveis nas suas longas pernas amareladas, e o tigre, o fiel Darma, girava à volta dela, sem nunca se afastar.

     ‑ Bom ‑ murmurou Kammamuri. ‑ os malditos não visitaram estes lugares. Darma!

     A este chamamento, o tigre deteve‑se, levantou a cabeça, fixou sobre a canoa os seus olhos esverdeados e lançou‑se para a margem, emitindo um rugido surdo.

     Kammamuri e Aghur apressaram‑se a desembarcar e levaram o patrão para a cabana, aconchegando‑o numa cômoda cama de lona. O tigre e o cão tinham ficado do lado de fora, a vigiar.

     ‑ Examina a ferida, Aghur ‑ disse Kammamuri.

     O bengalês tirou o penso e olhou atentamente para o peito do pobre Tremal‑Naik. Uma ruga desenhou‑se‑lhe na fronte.

     ‑ É grave ‑ disse. ‑ o punhal entrou bastante, provavelmente até ao punho.

     ‑ Sarará?

     ‑ Assim o espero. Mas porque o apunhalaram?

     - É difícil dizê‑lo. Sabes que o patrão queria voltar a ver a visão.

     ‑ Pelo menos, foi isso que ele disse.

     ‑ Chegado à ilha, meteu‑se‑lhe na cabeça que havia de descobrir aquela criatura. Parece que sabia onde ela se escondia, pois ordenou‑me que voltasse para a cabana e partiu sozinho. Vinte e quatro horas depois encontrei na selva num lago de sangue: tinham‑no apunhalado.

     ‑ Mas quem?

     ‑ Os homens que habitam a ilha e que velam talvez por aquela mulher.

     ‑ Mas com que finalidade?

     ‑ Certamente para o matarem.

     ‑ E tu viste esses seres?

     ‑ Com os meus próprios olhos.

     ‑ São homens ou espíritos?

     ‑ Creio que são homens. Até me atiraram um laço ao pescoço para me estrangular e eu matei dois ou três deles. Se fossem espíritos, não teriam morrido.

     ‑ É estranho ‑ murmurou Aghur, que ficara pensativo. ‑ e que fazem aqueles homens? Porque matam as pessoas que desembarcam na sua ilha?

     ‑ Não sei, Aghur. Sei que são homens terríveis e que adoram uma divindade que exige muitas vítimas.

     ‑ Tens medo, Kammamuri?

     ‑ Tenho boas razões para o ter.

     ‑ Julgas que se mostrarão na nossa floresta?

     ‑ Receio‑o, Aghur; aquele homem gritou‑nos: “havemos de voltar a ver‑nos.”

     ‑ Tanto pior para eles. O tigre é animal para não os deixar aproximarem‑se.

     ‑ Bem sei, mas devemos vigiar atentamente. Há nos ares nuvens que ameaçam tempestade.

     ‑ Deixa isso comigo, Kammamuri. Pensa tu em curar o patrão, que eu encarrego‑me deles.

     Kammamuri voltou para junto do patrão, a fim de aplicar sobre a ferida nova cataplasma de ervas, e Aghur sentou‑se diante da cabana, com o tigre e o cão agachados junto dele.

     O dia passou sem incidentes. Tremal‑Naik teve ainda alguns acessos de delírio, durante os quais lhe saiu várias vezes dos lábios dilacerados o nome de Ada, a desventurada jovem que deixara, indefesa, nas mãos daqueles terríveis fanáticos.

     Mas voltou a cair numa espécie de modorra, que se prolongou até ao cair do dia. Os dois indianos, embora ardessem no desejo de o interrogar, para saberem alguma coisa sobre aqueles que o tinham apunhalado, acharam por bem abster‑se de o fazer, para o não cansarem.

     Quando as trevas estenderam o seu negro véu sobre a floresta silenciosa, Aghur montou a guarda em primeiro lugar, fora da cabana, armado até aos dentes. O cão tinha‑se agachado aos seus pés, com os olhos fixos no sul.

     À meia‑noite, nenhum indiano tinha aparecido, nem no rio nem na floresta. No entanto, o cão levantara‑se por várias vezes, aspirando o ar, dando sinais evidentes de inquietação. Pressentia talvez algo de insólito; podia ser a proximidade de alguma pessoa ou de algum animal selvagem.

     Aghur estava para despertar Kammamuri, a fim de que o substituísse, quando Punthy se levantou, a ladrar.

     ‑ Bem! ‑ exclamou o indiano, surpreendido. ‑ que quer isto dizer?

     O cão ladrava com a cabeça virada para o rio, sinal evidente de que ali alguma coisa acontecia. Simultaneamente, o tigre apareceu no limiar da cabana, fazendo ouvir um rugido surdo.

    ‑ Kammamuri! ‑ chamou Aghur, preparando as armas.

     O marata, que dormia só com um dos olhos, chegou junto dele.

     ‑ Que aconteceu? ‑ perguntou ele.

     ‑ Os nossos animais ouviram qualquer coisa e estão inquietos.

     ‑ Ouviste algum rumor?

     ‑ Absolutamente nada.

     ‑ Segura o cão e escutemos.

     Aghur apressou‑se a obedecer.

     De súbito, para os lados do rio, ouviu‑se gritar:

     ‑ Socorro! Socorro!

     O cão pôs‑se a ladrar furiosamente.

     ‑ Socorro! ‑ repetiu a mesma voz.

     ‑ Kammamuri! ‑ exclamou Aghur. ‑ É alguém que se está a afogar.

     ‑ Com certeza.

     ‑ Não podemos deixá-lo afogar.

     ‑ Não sabemos quem seja.

     ‑ Não importa: à margem!

     ‑ Preparemos as armas e estejamos atentos. Nunca se sabe o que pode acontecer. Tu, Darma, fica aqui e despedaça sem piedade quem quer que se apresente.

     O tigre decerto percebeu, pois encolheu‑se com os olhos flamejantes, pronto a atirar‑se contra o primeiro que viesse. Os dois indianos correram para a margem, precedidos por Punthy, que continuava a ladrar furiosamente, e olharam para o rio, que parecia negro como se fosse de tinta.

     ‑ Vês alguma coisa? ‑ perguntou Kammamuri a Aghur, que se curvava sobre a corrente.

     ‑ Sim, parece‑me ver lá em baixo qualquer coisa que vai à deriva.

     ‑ Talvez um homem?

     ‑ Dir‑se‑ia antes o tronco duma árvore.

     ‑ Eh! ‑ gritou Kammamuri. ‑ Quem chama?

     ‑ Salvai‑me! ‑ respondeu uma voz débil.

   ‑ É um náufrago ‑ disse o marata.

     ‑ Podes chegar à margem? ‑ perguntou Aghur.

     Um gemido foi a resposta que obteve. Não havia que hesitar; aquele náufrago encontrava‑se no último extremo e podia afogar‑se de um momento para o outro. Os dois indianos saltaram para a canoa e dirigiram‑se rapidamente para ele.

     Bem depressa se aperceberam de que o objecto negro que andava à deriva era um tronco de árvore, ao qual estava agarrado um homem. Em poucos segundos chegaram junto dele, estendendo as mãos para o náufrago, que as agarrou com a força do desespero.

     ‑ Salvai‑me! ‑ balbuciou ele mais uma vez, deixando‑se depor no fundo da canoa.

     Os dois indianos inclinaram se sobre ele observando‑o com curiosidade. Era um homem da sua raça, de tipo bengalês de estatura inferior à média, de cor bastante escura, extremamente magro, mas com os músculos bastante pronunciados, indício seguro duma força fora do comum. Tinha algumas feridas no rosto e a túnica amarela estreitamente apertada ao corpo, manchada de sangue.

     ‑ Estás ferido? ‑ perguntou-lhe Kammamuri.

     O homem fixou‑o atentamente, com dois olhos onde brilhavam estranhos reflexos.

     ‑ Julgo que sim ‑ murmurou a seguir.

     ‑ Tens a roupa ensangüentada. Deixa‑me ver.

     ‑ Não é nada ‑ disse ele, pondo as mãos sobre o peito, como se receasse pô-lo a descoberto. ‑ Bati com a cabeça naquele tronco de árvore e sangrei do nariz.

     ‑ De onde vens?

     ‑ De Calcutá.

     ‑ Como te chamas?

     ‑ Manciadi.

     ‑ Mas como te encontras aqui?

     O bengalês estremeceu todo, batendo os dentes.

     ‑ Quem habita nestes lugares? ‑ perguntou ele, aterrorizado.

     ‑ Tremal‑Naik:, o caçador de serpentes - respondeu Kammamuri.

     Manciadi estremeceu de novo.

     ‑ Homem feroz ‑ balbuciou.

     Aghur e o marata olharam‑se, surpreendidos.

     ‑ Estás doido ‑ disse Aghur.

     ‑ Doido! Não sabes que os seus homens me deram caça, como se eu fosse um tigre?

     ‑ Os seus homens deram‑te caça! Mas nós é que somos os seus companheiros.

     O bengalês endireitou‑se, olhando‑o, espantado.

     ‑ Vós! Vós! ‑ repetiu. ‑ Estou perdido.

     Agarrou‑se à borda da canoa com a evidente intenção de se atirar ao rio, mas Kammamuri agarrou‑o pelo meio do corpo, obrigando‑o a sentar‑se.

     ‑ Explica‑me a causa deste medo ‑ disse‑lhe, em tom ameaçador. - Nós não fazemos mal a ninguém, mas previno‑te de que, se não falas claro, parto‑te a cabeça com a coronha da minha carabina.

     ‑ Quereis assassinar‑me! ‑ lamentou‑se Manciadi.

     ‑ Sim, se não te explicas. Que vieste fazer aqui?

     ‑ Sou um pobre indiano e ganho a vida caçando. Um sipaio prometeu‑me cem rúpias por uma pele de tigre, e vim para o satisfazer.

     ‑ Continua.

     ‑ Ontem à noite aproei à margem oposta do Mangal e internei‑me na selva; duas horas depois vieram atrás de mim alguns homens e senti que me estrangulavam o pescoço com um laço.

     ‑ Ah! ‑ exclamaram os dois indianos. ‑ Disseste “um laço?”

     ‑ Sim ‑ confirmou o bengalês.

     ‑ Viste esses homens? ‑ perguntou Aghur.

     ‑ Sim, como vos vejo a vós.

     ‑ Que tinham eles no peito?

     ‑ Parece‑me ter visto uma tatuagem.

     ‑ Eram os homens de Rajmangal - disse Kammamuri. ‑ Continua.

     ‑ Empunhei o meu punhal ‑ prosseguiu Manciadi, que ainda tremia de medo ‑ e cortei a corda. Corri durante muito tempo, seguido de perto por eles, e chegado ao rio atirei‑me de cabeça.

     ‑ Sabemos o resto ‑ disse o marata. ‑ Então, tu és caçador?

     ‑ Sim, e valente.

     ‑ Queres vir connosco?

     Um brilho estranho passou pelos olhos do bengalês.

     ‑ Não peço outra coisa ‑ apressou‑se a dizer. ‑ Estou sozinho no mundo.

     ‑ Está bem, nós adoptamos‑te. Amanhã de manhã apresentar‑te‑ei ao patrão.

     Os dois indianos mergulharam os remos no rio e conduziram a canoa ao pequeno porto. Mal tinham desembarcado quando Punthy se atirou contra o bengalês, ladrando raivosamente e mostrando‑lhe os dentes.

     ‑ Calado, Punthy ‑ disse Kammamuri, segurando‑o. ‑ É um dos nossos.

     O cão, em vez de obedecer, pôs‑se a rosnar ameaçadoramente.

     ‑ Este animal não me parece lá muito delicado ‑ disse Manciadi, esforçando‑se por sorrir.

     ‑ Não tenhas medo; há‑de ser teu amigo ‑ disse o marata.

   Prenderam a canoa e dirigiram‑se para a cabana, diante da qual o tigre estava vigilante. Coisa estranha, também este se pôs a rosnar de modo nada amigável, olhando de soslaio o recém‑chegado.

     ‑ Oh! ‑ exclamou este, assustado. ‑ Um tigre!

     ‑ Está domesticado. Fica aqui, que eu vou ter com o patrão.

     ‑ O patrão! É então aqui? ‑ perguntou o bengalês, atónito.

     ‑ Com certeza.

     ‑ Ainda vivo?!

     ‑ Essa agora! ‑ exclamou o marata, surpreendido. ‑ Por que essa pergunta?

     O bengalês estremeceu e pareceu confuso.

     ‑ Como é que tu sabes que está ferido, para me fazeres essa pergunta? ‑ replicou Kammamuri.

     ‑ Não me disseste que estava ferido?

     ‑ Eu!

     ‑ Parece‑me.

     ‑ Não me recordo.

     - No entanto, não posso tê‑lo ouvido senão de ti ou do teu companheiro.

     ‑ Deve ser isso.

     Kammamuri e Aghur entraram na cabana. Tremal‑Naik dormia profundamente e sonhava, pois dos seus lábios saiam palavras truncadas.

     ‑ Não vale a pena acordá‑lo ‑ murmurou Kammamuri, voltando‑se para Aghur.

     ‑ Apresentamos‑lho amanhã ‑ disse este. ‑ Que achas daquele Manciadi?

     ‑ Tem aspecto de homem bom e tenho todas as razões para acreditar que nos será de grande ajuda.

     ‑ É também o que eu penso.

     ‑ Pomo‑lo a ele a vigiar até amanhã.

     Aghur pegou numa terrina de cangi, espessa decocção de arroz, e levou‑a a Manciadi, que se pôs a comer com uma voracidade de lobo. Tendo‑lhe recomendado que fizesse boa guarda e que desse o alerta se se apercebesse de qualquer perigo, apressou‑se a voltar para a cabana, fechando a porta, para maior precaução.

     Mal ele tinha desaparecido e já Manciadi se levantava com surpreendente rapidez. Os seus olhos tinham‑se acendido subitamente e nos seus lábios errava um sorriso satânico.

     “Ah! Ah!”, exclamou ele, numa gargalhada.

     Encostou‑se à cabana e apoiou nela a orelha, ouvindo atentamente. Ficou assim um longo quarto de hora, depois partiu com a rapidez duma flecha, detendo‑se à distância de meia milha.

     Encostou os dedos aos lábios e emitiu um assobio agudo. Logo, ao sul, um ponto avermelhado se ergueu, rasgando as trevas, e rebentou, espalhando uma luz lívida, que logo se extinguiu com uma surda detonação.

     Mais duas vezes ainda o assobio ressoou; e depois, na floresta, tudo voltou a ser silêncio e mistério.

 

                           O estrangulador

     Tinham decorrido vinte dias. Tremal‑Naik, mercê da sua robusta constituição e dos cuidados dos seus companheiros, curava‑se rapidamente. A ferida encontrava‑se fechada e ele podia já levantar‑se.

     No entanto, à medida que readquiria forças, o indiano tornava‑se cada vez mais sombrio e inquieto. Os seus companheiros surpreendiam‑no por vezes com o rosto escondido entre as mãos e as faces úmidas, como se tivesse chorado. Falava raramente, não confessava a ninguém a terrível dor que o atormentava e por vezes era assaltado por súbitos acessos de raiva, durante os quais se arranhava com as unhas e tentava atirar‑se da cama abaixo gritando:

     ‑Ada! Ada!

     Kammamuri e Aghur esforçavam‑se em vão por o fazer falar; em vão procuravam a causa daqueles acessos de fúria, que ameaçavam reabrir a ferida, ainda não completamente cicatrizada, e perguntavam‑se quem poderia ser a mulher que dava por aquele nome que ele pronunciava nos seus delírios e nos seus sonhos, aquele nome que era o seu pesadelo e o seu tormento.

     Por vezes, Manciadi, o bengalês, associava‑se a eles, para fazer qualquer coisa, mas isso raramente acontecia.

     Aquele homem parecia antes evitar a presença do ferido, como se tivesse algo a temer.

     Só entrava no quarto dele quando o via dormir, mas quase com repugnância. Preferia percorrer a floresta à procura de caça, a apanhar lenha e a buscar água. Coisa estranha: sempre que ouvia o patrão invocar Ada, era assaltado por um tremor extraordinário e o seu rosto, habitualmente tranqüilo, alterava‑se de súbito, mudando mesmo de cor. Outro pormenor misterioso era este: à medida que Tremal‑Naik melhorava, em vez de se alegrar, ficava acabrunhado e de mau humor.

     Dir‑se‑ia que àquele homem não agradava que o patrão se curasse. Por quê? Ninguém poderia dizê‑lo.

     Na manhã do vigésimo primeiro dia verificou‑se na cabana um acontecimento que devia ter conseqüências funestas.

     Kammamuri levantara‑se com o primeiro raio de sol. Como Tremal-Naik dormia tranquilamente, dirigiu‑se para a porta, para acordar Manciadi, que repousava do lado de fora, debaixo dum pequeno manto coberto de canas de bambu. Levantou a tranca e empurrou a porta, mas, com grande surpresa sua, esta não se abriu. De lado de fora havia qualquer coisa que a impedia.

     ‑ Manciadi! ‑ gritou o marata.

     Ninguém respondeu à chamada. No espírito do marata surgiu a suspeita de que tivesse acontecido alguma desgraça ao pobre homem, que os inimigos o tivessem estrangulado ou que os tigres da selva o tivessem despedaçado.

     Encostou uma orelha à fresta da porta e apercebeu‑se de que o objecto que a impedia de se abrir era um corpo humano. Olhando com mais atenção, reconheceu nele o bengalês Manciadi.

     ‑ Oh! ‑ exclamou horrorizado. ‑ Aghur!

     O indiano acorreu imediatamente à chamada do seu companheiro.

     ‑ Aghur ‑ disse o marata, aterrorizado. ‑ Ouviste alguma coisa esta noite?

     ‑ Absolutamente nada.

     ‑ Nem sequer um gemido?

     ‑ Não, por quê?

     ‑ Mataram Manciadi!

     ‑ É impossível! ‑ exclamou Aghur.

     ‑ Está estendido aqui, diante da porta.

     ‑ Darma não deu sinal, nem sequer Punthy.

     ‑ No entanto, deve estar morto. Não responde nem se mexe.

     ‑ É preciso sair: empurra com força.

     O marata encostou um ombro à porta e fez força, afastando Manciadi. Tendo conseguido uma abertura, os dois indianos saíram para fora.

     O pobre bengalês estava estendido de bruços e parecia morto, embora não se lhe visse no corpo qualquer ferida. Kammamuri pôs‑lhe uma mão sobre o peito e sentiu que o coração batia ainda.

     ‑ Está desmaiado ‑ disse ele.

     Arrancou uma pena a um pavão que se encontrava perto, deitou-lhe fogo e encostou‑a às narinas do desmaiado. Bem depressa um suspiro lhe levantou o peito, depois os braços e as pernas mexeram‑se e, finalmente, abriram‑se os olhos, que se fixaram, cheios de confusão, sobre os dois indianos.

     ‑ Sois vós! ‑ exclamou afanosamente o bengalês. ‑ Ah! Que medo! Julguei que me tinham matado logo!

     ‑ Mas que é que tu viste? Quem procurou matar‑te? Foram homens?

     ‑ Homens? Quem fala de homens?

     ‑ Vamos, dize lá.

     ‑ Não foram homens ‑ disse o bengalês. ‑ Sim, sim, não me engano, era um elefante.

     - Um elefante! ‑ exclamaram os dois indianos. ‑ Um elefante aqui!

     - Sim, era um elefante enorme, com uma tromba monstruosa e dois dentes muito compridos.

     ‑ Aproximou‑se de ti? ‑ perguntou Aghur.

     ‑ Sim, e por pouco não me esmagou a cabeça. Estava eu a dormir regaladamente quando fui despertado por um sopro fortíssimo; abri os olhos e vi por cima de mim a cabeça gigantesca do monstro. Procurei levantar‑me, para fugir, mas a tromba caiu‑me em cima da cabeça, pregando‑me à terra.

     ‑ E depois? ‑ perguntou Kammamuri, ansiosamente.

     ‑ Depois não me lembro de mais nada. A pancada foi tão forte que desmaiei.

     ‑ Que horas eram?

     ‑ Não sei, porque tinha adormecido.

     ‑ É estranho ‑ disse o marata. ‑ E Punthy não deu conta de nada.

     ‑ Que fazemos? ‑ perguntou Aghur, lançando para a floresta um olhar ardente.

     ‑ Deixemos o colosso em paz ‑ respondeu Kammamuri.

     ‑ Ele voltará ‑ apressou‑se a dizer Manciadi ‑ e destruirá a cabana.

     ‑ É verdade ‑ disse Aghur. ‑ E se o perseguíssemos? Porque não? Temos duas boas carabinas.

     ‑ Eu estou pronto a ajudar‑vos ‑ respondeu Manciadi.

     ‑ Mas não podemos deixar o patrão sozinho, embora esteja completamente curado ‑ observou Kammamuri. ‑ Sabeis que há um perigo permanente que nos ameaça.

     ‑ Tu ficas e nós vamos à caça ‑ atalhou Aghur. ‑ Com um vizinho tão perigoso, não se pode viver tranqüilo.

     ‑ Se tendes coragem bastante, deixo‑vos campo livre.

     ‑ Está bem assim! ‑ exclamou Aghur. ‑ Deixa‑nos tratar do caso e verás que antes do meio‑dia o colosso será nosso.

     Foi buscar à cabana duas pesadas carabinas de grande calibre e estendeu uma ao bengalês, que a carregou com grande atenção, com uma vara de chumbo. Armados de pistolões e dum enorme cutelo, e bem assim de abundantes munições, entraram resolutamente na floresta, percorrendo uma larga vereda aberta entre os bambus.

     Aghur ia alegre e falava; o bengalês, pelo contrário, tornara‑se taciturno e parava muitas vezes, para olhar o companheiro, que o precedia de poucos passos. Por vezes inclinava‑se para o chão e escutava, fingindo procurar o rasto do elefante.

     Aquela súbita mudança, aqueles olhares, aquelas manobras, não escaparam a Aghur, que pensou que o bengalês tivesse medo.

     ‑ Coragem, Manciadi ‑ disse ele, alegremente. ‑ Não penses que é assim tão difícil abater um animal, mesmo dotado de tromba. Uma bala num olho, e está o caso arrumado.

     ‑ Eu não tenho medo ‑ respondeu bruscamente o bengalês, esforçando‑se em vão por simular um sorriso.

     ‑ Pareces‑me inquieto.

     ‑ Estou‑o, de facto, mas não é o elefante que me preocupa.

     ‑ Então o que é?

     ‑ Aghur ‑ disse Manciadi, com voz estranha ‑, tens medo da morte?

     ‑ Se tenho medo da morte? Porque me fazes essa pergunta? Nunca tive medo dela... eu!

     ‑ Tanto melhor para ti.

     ‑ Não te percebo.

     ‑ Compreenderás dentro de algumas horas. Silêncio, e para a frente.

     “Está maluco”, pensou Aghur, “ou então está meio morto de medo. Está bem, serei eu quem matará o colosso.”

     Os dois indianos estugaram o passo, não obstante o sol que os queimava e os obstáculos que encontravam na vereda, e uma hora depois chegavam a um pequeno bosque de jaqueiras, árvores cujos frutos, em vez de estarem suspensos na extremidade dos ramos, saem directamente do tronco, duma linda cor amarela, dum aroma extraordinário e que pesam mais de trinta libras.

     Chegados ali, Manciadi, com grande surpresa do companheiro, pôs‑se a assobiar uma ária melancólica, nunca ouvida antes na floresta negra.

     ‑ Que fazes? ‑ perguntou‑lhe Aghur.

     ‑ Assobio ‑ respondeu Manciadi tranquilamente.

     ‑ Farás fugir o elefante.

     ‑ Pelo contrário, estou a atrai-lo. Os elefantes gostam de música e quando a ouvem acorrem ao sítio donde ela vem.

     ‑ Essa agora! Nunca ouvi semelhante coisa.

     ‑ Caminha, Aghur, e olha bem à tua volta. Sabes onde há aqui um lago?

     ‑ Perto daqui.

     ‑ Vamos.

     Embora tudo isto lhe parecesse muito estranho, Aghur obedeceu. Meteu por uma pequena vereda que mal se via e conduziu o companheiro às margens dum pequeno lago rodeado de montes de pedras toscamente esculpidas, ruínas de um antigo pagode.

     ‑ Tu ficas aqui ‑ disse‑lhe o bengalês. ‑ Eu vou bater o bosque e faço sair o elefante, pois deve estar escondido aqui.

     Meteu a carabina debaixo do braço e afastou‑se, sem acrescentar palavra. Logo que teve a certeza de não ser visto nem ouvido, pôs‑se a correr rapidamente e parou ao pé duma palmeira em cujo tronco podia ver‑se, toscamente gravado, o emblema misterioso dos indianos de Rajmangal.

     ‑ É agora a minha vez ‑ disse ele. ‑ Este bosque será a tua sepultura.

     Ergueu‑se em bicos de pés e deu um assobio. Respondeu‑lhe o mesmo sinal, e, poucos minutos depois, na abertura entre duas moitas, apareceu a figura sinistra de Suyodhana.

     Cruzou os braços sobre o peito, ornado pela serpente com cabeça de mulher, e fitou Manciadi, com um olhar penetrante como a ponta duma agulha.

     ‑ Filho das sagradas águas do Ganges, sê bem‑vindo ‑ disse o bengalês, inclinando‑se até tocar com a cabeça no chão.

     ‑ Então? ‑ perguntou laconicamente Suyodhana.

     ‑ Fomos batidos.

     ‑ Que queres dizer?

     ‑ Tremal‑Naik está vivo.

     Suyodhana tornou‑se ainda mais sombrio e enterrou as unhas na carne.

     ‑ Terei falhado o golpe? ‑ resmungou ele. ‑ No entanto, o punhal vingador rasgou‑lhe o seio!

     Inclinou a cabeça para o peito e ficou imerso em pensamentos negros.

     ‑ Manciadi ‑ disse pouco depois ‑, aquele homem deve morrer.

     ‑ Ordena, filho das sagradas águas do Ganges.

     ‑ A “Virgem do Pagode” foi profundamente ferida pelo olhar venenoso daquele homem. A desgraçada ainda o ama, e não deixará de o amar enquanto viver.

     ‑ Acreditará na sua morte?

     ‑ Sim, porque eu dar‑lhe‑ei provas.

     ‑ Que devo fazer? Devo envenená‑lo?

     ‑ Não, o veneno nem sempre mata; há antídotos para o combater.

     ‑ Devo estrangulá‑lo? Tenho o meu laço.

     ‑ Vamos devagar. Fizeste o que te mandei?

     ‑ Sim, filho das sagradas águas do Ganges. Aghur espera‑me junto do lago.

     ‑ Bem, matá‑lo‑ás.

     ‑ E depois? ‑ perguntou o fanático, com terrível calma.

     ‑ Depois regressarás à cabana e contarás a Kammamuri que Aghur foi assassinado. Ele acreditar-te‑á e correrá a procurá‑lo; compreendes o resto.

     ‑ Tens mais alguma coisa a dizer‑me?

     ‑ Mais nada.

     ‑ E depois de ter estrangulado Tremal‑Naik, que devo fazer?

     ‑ Vir ter comigo a Rajmangal. Vai!

     Manciadi tocou uma segunda vez com a fonte no chão e afastou‑se rapidamente.

     ‑ Não há dúvida ‑ disse o bengalês ‑ de que o filho das sagradas águas do Ganges é um grande homem.

     O fanático nem sequer pensou no duplo assassinato que estava para cometer. Suyodhana assim o tinha ordenado e Suyodhana falava em nome da monstruosa divindade à qual todos eles tinham consagrado a sua força e a sua vida.

     Atravessou lentamente o bosque das jaqueiras e chegou ao lago, junto do qual estava estendida, com a carabina sobre os joelhos, a futura vítima.

     ‑ Viste o elefante? ‑ perguntou‑lhe Aghur.

     - Ainda não, mas descobri‑lhe o rasto ‑ disse o assassino, olhando‑o com dois olhos onde brilhavam reflexos sinistros.

     ‑ Porque me olhas assim? ‑ perguntou Aghur.

     O bengalês não respondeu e continuou a olhar para ele.

     ‑ Descobriste alguma coisa de anormal?

     ‑ Sim ‑ respondeu Manciadi. ‑ Aghur, lembras‑te do que te disse há uma hora?

     O indiano pareceu ficar surpreendido e inquieto. Pressentia talvez a catástrofe.

     ‑ Quando me falaste da morte?

     ‑ Sim.

     ‑ Lembro‑me ‑ respondeu Aghur.

     ‑ Não te parece cruel morrer aos vinte anos, quando o futuro te pode sorrir? Não te parece atroz abandonar esta terra dourada pelo Sol e perfumada pelo aroma de mil flores, para descer ao sepulcro, à escuridão, ao mistério?

     ‑ Estás maluco? ‑ perguntou Aghur.

     ‑ Não, Aghur, não estou maluco ‑ disse o assassino, aproximando‑se dele até o tocar. ‑ Olha!

     Abriu a túnica que o cobria e pôs a descoberto o peito tatuado com a serpente de cabeça de mulher.

     ‑ Que é isso? ‑ perguntou Aghur.

     ‑ O emblema da morte.

     ‑ Não percebo.

   ‑ Tanto pior para ti.

     O bengalês desatou o laço que trazia escondido debaixo da túnica e fê‑lo assobiar à volta da sua cabeça.

     ‑ Aghur - gritou ele ‑, Suyodhana condenou‑te e deves morrer!

     Foi então que o indiano compreendeu tudo. Pôs‑se de pé num salto, com a carabina na mão, mas não teve tempo de a apontar sobre o traidor.

     Um assobio cortou o ar e o desgraçado, sufocado na garganta pelo laço, cuja bola de chumbo lhe bateu fortemente na nuca, caiu por terra.

     ‑ Assassino! ‑ gritou, com voz estrangulada.

     ‑ Aghur ‑ disse o estrangulador, com voz fúnebre ‑, saúda pela última vez o Sol que te acaricia, respira pela última vez este ar que sopra nas Sunderbunds, manda um último adeus aos teus companheiros e desce ao túmulo.

     ‑ Kammamuri!... Patrão!... ‑ balbuciou Aghur, enquanto se debatia.

     O fanático agarrou solidamente o laço e sufocou a voz da vitima com um violento puxão, depois caiu‑lhe em cima com o punhal e trespassou‑o.

     ‑ Morre, porque a deusa o quer! ‑ gritou‑lhe ainda Manciadi.

     Aghur, com o rosto cor de cinza, com os olhos a saltar‑lhe das órbitas, soltou um gemido rouco e procurou levantar‑se, mas voltou a cair.

     “Um já está”, disse o fanático, lançando um olhar feroz sobre o assassinado. “Agora pensemos no outro.”

     E afastou‑se a passos rápidos, enquanto um bando de marabus caia sobre o cadáver ainda quente do infeliz Aghur.

 

                           O segundo golpe do estrangulador

     Kammamuri começava a ficar inquieto. O Sol descia rapidamente no horizonte e os dois caçadores ainda não tinham voltado, nem se ouvira reboar na floresta nenhum tiro.

     Não conseguia compreender aquela prolongada ausência e aquele absoluto silêncio. Entrava e saía da cabana, interrogava atentamente o horizonte, esperando vê‑los aparecer por entre a interminável plantação de bambus, obrigava Punthy a ladrar, mas sem resultados.

     Por várias vezes, juntamente com o tigre, foi até aos primeiros bambus e escutou atentamente os rumores longínquos; por várias vezes fez ressoar o tambor formado por duas peles, uma das quais é mais pequena, e que desfere sons muito agudos, pendurado à porta da cabana, por várias vezes queimou uma carga de pólvora. O silêncio que reinava nas planuras do Sul não se rompia.

     Desanimado, sentou‑se à porta da cabana, esperando ansiosamente o regresso deles. Estava ali havia poucos minutos, quando o tigre se levantou dum salto, fazendo ouvir um rugido surdo, a que fizeram eco os ladridos alegres de Punthy.

     Kammamuri levantou‑se, julgando que eram os caçadores que chegavam, mas não viu nenhum deles. Voltou‑se e, apoiado ao batente da porta, viu Tremal‑Naik.

     ‑ Tu, patrão! ‑ exclamou, cheio de admiração. ‑ Tu!

     ‑ Sim, Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik, com um sorriso amargo.

     ‑ Que imprudência!... Estás ainda convalescente e...

     ‑ Cala‑te, sou forte, mais do que tu julgas ‑ respondeu o caçador de serpentes, quase com raiva. ‑ Já sofri de mais naquela cama; é tempo de acabar.

     Deu alguns passos em frente, sem cambalear, sem mostrar fadiga, e sentou‑se nas ervas, agarrando a cabeça com as mãos e olhando fixamente para o Sol, que desaparecia a ocidente

     ‑ Patrão ‑ disse Kammamuri, após alguns instantes de silêncio.

     ‑ Que queres?

     ‑ Os caçadores ainda não voltaram. Receio que tenha acontecido alguma desgraça.

     ‑ E quem to disse?

     ‑ Ninguém, mas desconfio. Aqueles homens que assassinaram Hurti e te apunhalaram podem andar na selva.

     O rosto de Tremal‑Naik tornou‑se sombrio.

     ‑ Estarão talvez aqui? ‑ perguntou ele.

     ‑ Talvez.

         ‑ Depressa, Kammamuri, me hei‑de curar; voltaremos àquela ilha maldita e exterminá‑los‑emos a todos! A todos!

     ‑ O quê?... ‑ exclamou Kammamuri, cheio de espanto. ‑ Voltaremos àquela ilha, nós? Que estás a dizer, patrão?

     ‑ Tens medo, tu?

     - Não, mas voltar àquele lugar é uma loucura.

     ‑ Loucura!... Loucura, dizes tu?... Não sabes então quem deixei nesses lugares, nas mãos daqueles homens?

    ‑ Quem?

     ‑ A “Virgem do Pagode”.

     ‑ Quem é essa mulher?

     ‑ Uma criatura bela, Kammamuri, que eu amo loucamente e pela qual poria a Índia a ferro e fogo.

     ‑ Deixaste uma mulher nesses lugares?

     ‑ Sim, Kammamuri, aquela mesma que eu via ao pôr do Sol na minha floresta. Ada! Ada! Quanto me fizeste sofrer!

     ‑ É então a visão?

     ‑ Sim, a visão.

     ‑ Mas como foi ela parar a Rajmangal?

     ‑ Uma condenação pesa sobre a cabeça dessa desgraçada menina, Kammamuri. Aqueles monstros têm‑na nas mãos, não sei como nem por que. Eu vi‑a no pagode, a derramar perfumes aos pés de um monstro de bronze.

     ‑ De um monstro! Naturalmente aquela mulher é igual aos outros.

     ‑ Não repitas esse insulto, Kammamuri ‑ exclamou Tremal‑Naik, em tom ameaçador. ‑ São os homens que a condenaram que a fazem adorar aquele monstro de bronze! Feroz, ela? Ela!... Pobre menina!

     ‑ Desculpa, patrão ‑ balbuciou o marata.

     ‑ Tu desconhecias tudo e eu perdoo‑te. Mas aqueles homens que a condenaram, que a fazem morrer de pranto, aqueles homens que lhe dilaceram o coração e me impedem de a salvar das suas mãos, eu hei‑de exterminá‑los todos, Kammamuri, todos! Ainda tenho no peito a marca do seu punhal, que a toda a hora me lembra a vingança! Não, não ficarás nas suas mãos, ó infeliz Ada, porque Tremal‑Naik te há‑de tirar desses horríveis lugares, por mais bem guardados que estejam, por mais obstáculos que me impeçam de o fazer, nem que tenha de pagar com a sua vida a tua liberdade. Tremam então aqueles que te tiverem atormentado, aqueles que envenenarem a tua jovem existência. Darma e eu nos encarregaremos de os matar a todos nas suas horríveis cavernas!

     ‑ Metes‑me medo, patrão. E se te matassem?

     ‑ Morrerei por aquela que amo! ‑ exclamou apaixonadamente Tremal‑Naik.

     ‑ E quando partiremos?

     ‑ Assim que tiver forças para levantar a carabina. Já estou forte, mas não tanto que possa lutar contra eles todos.

     Naquele instante, ao sul, ribombou uma fuzilaria, seguida imediatamente de duas outras detonações. Darma deu um salto, rugindo.

     O marata e Tremal‑Naik puseram‑se de pé num salto, segurando Punthy, que ladrava furiosamente.

     ‑ Que é isto? ‑ perguntou o marata, tirando o punhal da cintura.

     ‑ Kammamuri! Kammamuri! ‑ gritou uma voz.

     ‑ Quem chama? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Grande Brama!... Manciadi! ‑ exclamou o marata.

     De facto, o bengalês atravessava a selva a grande velocidade, furando a densa cortina de bambus e agitando a carabina como um louco. Parecia preso de um grande terror.

     ‑ Kammamuri! Kammamuri! ‑ repetiu ele, com voz sufocada.

     ‑ Corre, Manciadi, corre! ‑ gritou o marata. ‑ Estará a ser seguido? Atenção, Darma!

     O tigre encolheu-se sobre si próprio, com as garras abertas, e abriu a boca, mostrando uma dupla fila de dentes aguçados.

     O bengalês, que corria velozmente, em poucos minutos chegou à cabana. O miserável tinha o rosto a sangrar duma ferida que a si próprio fizera na testa, para melhor encobrir a traição; também a sua túnica se apresentava manchada.

     ‑ Patrão! Kammamuri! ‑ exclamou ele, chorando desesperadamente.

     ‑ Que te aconteceu? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com angústia.

     ‑ Feriram de morte Aghur! Pobre Aghur! Pobre dele. Não tive culpa, patrão... Saltaram‑nos em cima... Aghur! Pobre Aghur!

     ‑ Feriram‑no! ‑ exclamou Tremal‑Naik, furioso. ‑ Quem? Quem?

     ‑ Os inimigos... Os indianos.

     ‑ Maldição!... Fala, conta, anda, diz, quero saber tudo!

     ‑ Estávamos sentados num bosque de jaqueiras ‑ disse o miserável, continuando a soluçar. ‑ Saltaram‑nos em cima antes de podermos agarrar nas armas e Aghur caiu. Eu tive medo e fugi.

     ‑ Quantos eram?

     ‑ Dez, doze, já não sei bem quantos. Escapei por milagre.

     ‑ E Aghur? Morreu?

     ‑ Não, patrão, não pode estar morto. Apunhalaram‑no e depois desapareceram. Enquanto fugia, ouvi o ferido gritar, mas não tive coragem de voltar atrás.

     ‑ És um patife, Manciadi!

     ‑ Patrão, se tivesse voltado, tinham‑me matado ‑ soluçou o bengalês.

     ‑ Quando acabarão com isto? ‑ gritou Tremal‑Naik. ‑ Kammamuri, talvez Aghur não esteja morto; é preciso ir a ver dele, encontrá‑lo e trazê-lo aqui.

     ‑ E se me assaltam? ‑ perguntou Kammamuri, aterrorizado.

     ‑ Levarás Darma e Punthy. Com estes animais podes fazer frente a cem homens.

     ‑ E quem me guiará?

     ‑ Manciadi.

     ‑ E tu queres ficar sozinho na cabana?

     ‑ Eu chego para me defender. Vai e não percas tempo, se queres salvar o pobre Aghur. Manciadi, guia este homem ao bosque.

     ‑ Patrão, tenho medo.

     ‑ Guia este homem ao bosque; se hesitas, mando o tigre fazer‑te em pedaços.

     Tremal‑Naik pronunciara aquelas palavras com um tal tom de voz que fizera compreender a Manciadi que não se tratava duma brincadeira. Fingindo o máximo terror, Manciadi juntou‑se ao marata, que se munira duma carabina e dum par de pistolas.

     ‑ Patrão ‑ disse Kammamuri ‑, se dentro de duas ou três horas não tivermos voltado, é porque fomos assassinados. A canoa está aproada na margem; põe‑te a salvo.

     ‑ Nunca ‑ exclamou Tremal‑Naik. ‑ Vingar‑te‑ei em Rajmangal; cala‑te e vai.

     O marata e Manciadi, precedidos pelo cão e pelo tigre, lançaram‑se a correr para a floresta.

     O Sol tinha já desaparecido do horizonte, mas a Lua surgia, espalhando uma luz avermelhada de infinita suavidade, bastante para guiar os dois indianos através da massa dos bambus.

     ‑ Caminhemos com precaução e em silêncio ‑ disse Kammamuri a Manciadi. ‑ Não devemos atrair a atenção dos inimigos, que talvez estejam escondidos a pouca distância de nós.

     ‑ Tens medo, Kammamuri? ‑ perguntou o bengalês, que agora já não tremia.

     ‑ Julgo que sim. Felizmente, temos connosco Darma, um animal valoroso, que não tem medo a cinqüenta homens armados.

     ‑ Previno‑te, Kammamuri, de que eu não entrarei no bosque.

     ‑ Esperas‑me onde mais te agradar, e, se quiseres, deixo-te Punthy, um cão valente, que sabe despedaçar meia dezena de pessoas. Para a frente e silêncio.

     Manciadi, que já traçara o seu plano, conduziu o marata pela vereda que tinha percorrido de manhã e seguiu‑a durante três quartos de hora. Deteve‑se à beira do bosque de jaqueiras.

     ‑ É aqui? ‑ perguntou Kammamuri, olhando ansiosamente por debaixo das árvores.

     ‑ Sim, é aqui ‑ respondeu Manciadi, com ar misterioso. ‑ Segue esta veredazinha que se mete pelo bosque dentro e chegarás ao lago em cujas margens tombou Aghur. Eu espero-te aqui, escondido naquela moita espessa.

     ‑ Queres o cão?

     ‑ Gosto mais de estar sozinho. Estou certo de que os indianos me não descobrirão.

     ‑ Dentro de meia hora estarei de volta. Darma, está atento e pronto a saltar sobre o primeiro homem que se apresentar à nossa frente, e tu, Punthy, prepara‑te para esganar o primeiro.

     O tigre fez ouvir um rugido surdo e pôs‑se à frente do marata, com as pequenas orelhas levantadas, e o cão pôs‑se atrás dele, mostrando os dentes.

         ‑ Muito bem ‑ disse Kammamuri, quando viu o bengalês escondido na moita. ‑ Ninguém se atreverá a aproximar‑se sem licença destes bons animais.

     Entraram no bosque, sob o qual reinava profunda escuridão e um silêncio fúnebre, e avançaram pela pequena vereda sem fazer qualquer barulho. Kammamuri deteve‑se várias vezes, esperando ouvir qualquer lamento ou qualquer chamamento que assinalasse a presença de Aghur, mas aos ouvidos nada lhe chegava.

     “É estranho”, murmurava ele, limpando o suor que lhe corria copiosamente da fronte. “Se ainda estivesse vivo, havia de se ouvir algum lamento, mas aqui reina um silêncio perfeito. Terá morrido?”

     Tinha percorrido trezentos ou quatrocentos passos, quando ouviu alguém que assobiava uma ária melancólica.

     Era a mesma música que Manciadi assobiara antes de assassinar Aghur. O tigre pôs-se a rosnar, voltando a cabeça para trás, e o cão deu sinais de inquietação, rosnando também.

     ‑ Atenção, meus pequeninos ‑ disse Kammamuri, que sentia o sangue gelar‑se‑lhe nas veias. ‑ Ficai ao pé de mim e deixai que aquele homem assobie à vontade. Creio que para Aghur tudo acabou.

     Uma nuvem ocultou a Lua e as trevas tornaram‑se mais espessas debaixo do bosque.

     Kammamuri deteve‑se, indeciso sobre se devia avançar ou voltar para trás; depois avançou, com as pistolas carregadas.

     ‑ Kammamuri! ‑ gritou uma voz.

     ‑ Kammamuri! ‑ repetiu uma segunda voz.

     ‑ Kammamuri! ‑ repetiu uma terceira.

     O tigre pôs‑se a rugir, fustigando os flancos com a cauda e saltando, como se estivesse em cima dum braseiro. Por duas ou três vezes procurou atirar‑se para o lado direito da vereda, mas o marata, com um assobio, chamava‑o ao seu posto.

     ‑ Calma, meus pequeninos, calma ‑ disse ele. ‑ Deixai‑os chamar. Não são espíritos, mas homens que se divertem a assustar‑me. Se conseguir regressar à cabana, posso agradecer a Vixnu por me ter protegido.

     Estugou o passo, com uma pistola apontada para a direita da vereda e a outra para a esquerda, e pouco depois chegava à vista do lago.

     Um raio de luz lunar caiu naquele lugar, iluminando como se fosse dia. Com indizível terror, Kammamuri descobriu, deitado por terra, um corpo humano, sobre o qual se agitava um grupo de marabus.

     Punthy atirou‑se para o cadáver uivando tristemente e pondo em fuga os vorazes pássaros.

     ‑ Aghur! ‑ exclamou Kammamuri, soluçando.

     Correu como um louco para o lago e atirou-se sobre o corpo do seu infeliz companheiro.

     Tinha ainda o laço à volta do pescoço e o corpo estava dilacerado pelos marabus.

     ‑ Aghur! Meu pobre Aghur! - repetiu Kammamuri, abraçando o cadáver. ‑ Ah, miseráveis!

     De súbito, soltou um grito terrível e os seus olhos fixaram‑se numa pedra sobre a qual estava apoiada a cabeça de Aghur.

      À luz pálida da Lua, acabava de ler, tremendo, as seguintes palavras escritas com letras de sangue:

     “Kammamuri, Manciadi assassinou-me.”

     O marata pôs‑se de pé num salto. Compreendeu toda a traição do bengalês e o perigo que o patrão corria.

     ‑ Darma! Punthy! Gritou ele, com voz estrangulada ‑ à cabana! À cabana! Matam o patrão.

     E lançou‑se em corrida através da floresta, precedido pelo tigre e seguido pelo cão, que ladrava furiosamente!

 

     Enquanto Kammamuri corria como um gamo sob a abóbada sombria das árvores, o bengalês não perdia o seu tempo.

     Tendo ficado sozinho, correra imediatamente para fora da moita, dirigindo‑se precipitadamente para a cabana, resolvido a estrangular a segunda vitima.

     Sabia que tinha um avanço dum bom quarto de hora sobre o marata, mas, não obstante, devorava o caminho com a velocidade duma bala de canhão, receando ser colhido em flagrante pelo tigre e pelo cão, animais de quem tinha tudo a temer.

     Atravessou a floresta em menos de meia hora e deteve‑se à beira da plantação, depois de ter preparado um segundo laço.

     ‑ O patrão deve estar em guarda - murmurou ele ‑ Se me vê voltar, julgará que eu abandonei Kammamuri e estoira‑me os miolos com uma bala de carabina. Aquele homem não brinca.

     Abriu cautelosamente os bambus e olhou para norte. A quatrocentos passos de distância viu a cabana e junto dela Tremal‑Naik, com a carabina na mão.

     “Ah!”, exclamou o miserável. “Matá‑lo não será coisa fácil, mas Manciadi é mais esperto do que um caçador de serpentes.”

     Retomou a corrida para leste, correndo furiosamente durante seis ou sete minutos, e depois lançou‑se na planura. A cabana estava à sua direita e Tremal‑Naik, nesta posição, dava‑lhe o flanco. Com um pouco de astúcia, podia aproximar‑se e apanhar a vítima de costas.

     A sua resolução foi prontamente tomada. Pôs‑se a rastejar entre as ervas como uma serpente, estendendo‑se o mais que podia, para não ser descoberto por Tremal‑Naik, e procurando não fazer barulho.

     Mas o vento que passava ao de leve pela plantação, curvando suavemente o cimo dos bambus, produzia um leve rumor suficiente para cobrir o rastejar dum homem.

     Assim, avançando e parando para escutar e olhar Tremal‑Naik, que parecia não se aperceber de nada, conseguiu chegar à cabana.

     Com um salto de tigre, levantou‑se. Um sorriso atroz aflorava aos seus lábios.

     “É meu”, murmurou, com um fio de voz. “Cali protege‑me.”

     Caminhou na ponta dos pés ao longo das paredes da cabana e parou a dez passos de Tremal‑Naik. Lançou um último olhar para a selva e não viu ninguém.

     Um segundo sorriso, mais cruel do que o primeiro, apareceu nos seus lábios e os seus olhos cintilaram como os de um gato.

     Ainda um segundo e a vítima cairia para nunca mais se levantar.

     Fez assobiar rapidamente o laço à sua volta e lançou‑o, dando um salto em frente.

     Tremal‑Naik caiu por terra como uma árvore arrancada pelo vento, mas, por mero acaso, uma das suas mãos ficara presa no laço.

     ‑ Kammamuri! ‑ gritou o desgraçado, agarrando a corda com a outra mão e puxando‑a com desesperada energia.

     ‑ Morre, morre! ‑ gritou o assassino, arrastando‑o por terra.

     Tremal‑Naik soltou um segundo grito:

     ‑ Kammamuri, socorro!

     ‑ Aí vou! ‑ gritou uma voz.

     Manciadi rangeu os dentes com furor. Na orla da plantação tinha aparecido de repente o marata; à sua frente, corria, dando saltos gigantescos, o tigre, acompanhado por Punthy.

     Um relâmpago rasgou a noite, seguido duma fragorosa detonação. Manciadi deu um salto de dez passos e lançou‑se com fúria de louco para a margem próxima.

     Ouviu‑se um segundo disparo e Manciadi caiu no rio, desaparecendo entre os remoinhos.

 

                          A emboscada

     Embora meio estrangulado e ferido, Tremal‑Naik, apenas sentiu o laço abrandar, levantou‑se e, pegando na carabina, correu resolutamente para o rio, esperando poder rebentar a cabeça do traidor. Mas, quando chegou à margem, Manciadi tinha desaparecido.

     Meteu‑se pela água dentro, mas ninguém aparecia à superfície do rio. Talvez a corrente tivesse levado consigo o assassino, que fora, sem dúvida, atingido pela carabina ou pela pistola do marata.

     ‑ Ah, miserável! ‑ exclamou Tremal‑Naik, furioso.

     ‑ Patrão! ‑ gritou Kammamuri, acorrendo em companhia do tigre e do cão. ‑ Onde está o bandido?

     ‑ Desapareceu, Kammamuri, mas havemos de o encontrar.

     ‑ Estás ferido?

     ‑ Tremal‑Naik não se deixa estrangular por homens daqueles.

     ‑ Tenho o sangue gelado nas veias, patrão. Receava não chegar a tempo de te salvar. Ah, canalha! Estrangular o meu patrão! Traidor! Se me cai nas mãos, não lhe deixo inteiro nada que tenha o tamanho duma rupia. Enganar‑nos assim, a nós, caçadores de serpentes! Sabes, patrão, que escapaste por milagre?

     ‑ Bem sei, Kammamuri. E Aghur?... Que aconteceu a Aghur?

     O marata emudeceu, deixando tombar os braços ao longo do corpo.

     ‑ Kammamuri, fala ‑ disse Tremal‑Naik, que já adivinhara tudo.

     ‑ Morreu, patrão ‑ balbuciou Kammamuri.

     Tremal‑Naik levou as mãos à cabeça, num gesto de desespero.

     ‑ Morto? Morto! ‑ soluçou ele. ‑ Morrem então todos à minha volta? Mas que fiz eu, Xiva, para ter de perder todos aqueles que amo? Sou então maldito dos deuses?

     Inclinou a cabeça sobre o peito e as lágrimas rolaram pelas suas faces bronzeadas. Kammamuri, ao ver aquele homem chorar, sentiu que a alma lhe estalava.

     ‑ Patrão... ‑ murmurou ele.

     Tremal‑Naik não o ouviu. Com o rosto entre as mãos, sentara‑se na margem do rio e contemplava, com os olhos úmidos, a selva, sobre a qual soprava uma leve aragem, embalsamada pelo perfume do jasmim e da mussenda. O seu peito atlético alteava‑se de quando em quando com os soluços.

     ‑ Meu patrão, oh, meu pobre patrão! ‑ exclamou Kammamuri - Não chores, sê forte; tens de ser forte.

     ‑ Sim, forte, para combater a fatalidade que pesa sobre nós ‑ disse Tremal‑Naik, com raiva. ‑ Pobre Aghur, tão jovem, tão valente, e morrer! Tens, ao menos, a certeza de que está mesmo morto?

     ‑ Sim, patrão, vi‑o com os meus próprios olhos e toquei‑lhe com as minhas próprias mãos. Estava lá, estendido à beira do lago, com o laço na garganta e um punhal no peito. O miserável Manciadi, depois de o ter deitado por terra, acabou com ele com aquela arma.

     ‑ Foi então Manciadi quem o assassinou?

     ‑ Sim, patrão, foi ele.

     ‑ Ah, malandro!

     ‑ Mas não assassinará mais ninguém, digo‑te eu. A minha bala deve tê‑lo ferido; talvez os peixes se estejam a banquetear com as suas carnes.

     ‑ Aquele monstro tinha então tramado um plano infernal?

     ‑ Sim, patrão. Tinha assassinado Aghur, para me afastar a mim e cair em cima de ti. Felizmente apercebi‑me a tempo e cheguei na altura própria.

     ‑ Mas não suspeitavas de nada?

     ‑ Não, patrão, não dei conta de nada, nem sequer desconfiei. Ele enganava‑nos muito bem. Que tinha ele em vista para nos assassinar?

     ‑ Receio que o tenham mandado aqui os indianos de Rajmangal.

     ‑ Pensas que é assim?

     ‑ Tenho a certeza disso. Viste o peito dele?

     ‑ Não, porque o tinha sempre coberto, e não sei por quê.

     ‑ Para esconder a misteriosa tatuagem.

     ‑ Agora percebo: deve ser isso; mas porque se encarniçam tanto contra nós?

     ‑ Porque eu amo Ada.

     ‑ Quer dizer que aqueles homens não querem que tu a ames?

     ‑ Não, e procuram assassinar‑me.

     ‑ Mas por quê?

     ‑ Porque sobre a cabeça daquela mulher pesa uma terrível condenação.

     ‑ Qual?

     ‑ Não o sei, mas um dia desvendarei o mistério.

     ‑ E julgas que aqueles miseráveis voltarão à carga?

     ‑ Creio que sim, Kammamuri.

     ‑ Eu tenho medo, patrão. E tu?

     Tremal‑Naik não respondeu. Voltara o seu olhar para sul.

     ‑ Viste alguma coisa? ‑ perguntou o marata, ansiosamente.

     ‑ Sim, Kammamuri. Pareceu‑me ter visto um clarão estranho brilhar no fundo da selva e depois extinguir‑se.

     ‑ Vamos para a cabana, patrão. Aqui não estamos seguros - Tremal‑Naik olhou uma última vez para a selva e para o rio e dirigiu‑se com passos lentos para a cabana, parando no limiar.

     ‑ Olha, Kammamuri ‑ disse ele com tristeza ‑, esta cabana, outrora tão alegre, tão ridente, parece‑me ter agora o aspecto fúnebre dum sepulcro. Pobre Aghur!

     Sufocou um soluço e estendeu‑se na cama de lona, escondendo o rosto entre as mãos. Kammamuri apoiou‑se à ombreira da porta, com os olhos fixos na selva, e murmurou repetidamente:

     ‑ Pobre patrão!

     Passaram três longas horas sem que o marata se mexesse.

     O som agudo do ramsinga arrancou‑o à sua imobilidade.

     ‑ Maldita trombeta ‑ murmurou ele, raivosamente ‑, é então mais alguma desgraça? Fazes bem em me avisar.

     Deu várias vezes volta à cabana, olhando atentamente para o meio das ervas, mas não descobriu nada de novo. Voltou a entrar, levando consigo Darma e Punthy, barricou a porta e estendeu‑se atrás dela, de modo a acordar ao mais pequeno choque.

     Passaram várias horas sem que nada acontecesse. Kammamuri, cada vez mais inquieto, não pregava olho e levantava‑se com freqüência, para espreitar, com grande precaução, pelas pequenas janelas.

     Por volta da meia‑noite, a Lua pôs‑se, deixando a selva na mais perfeita escuridão. Justamente nessa altura, Punthy ladrou três vezes.

     ‑ Alguém se aproxima ‑ murmurou Kammamuri. ‑ Punthy ouviu‑o.

     Entrou no quarto de Tremal‑Naik. Este dormia profundamente e no sonho falava da infeliz Ada.

     Punthy fez ouvir por três vezes uma rosnadela surda e atirou‑se para a porta, mostrando os dentes. Também o tigre ouviu qualquer coisa, pois fez ouvir um rugido surdo.

     Kammamuri, depois de se ter munido com um par de pistolas, foi espiar a todas as janelas, mas sem conseguir ver nem ouvir nada. Por instantes veio‑lhe à mente a idéia de disparar alguns tiros de pistola para assustar aquele ou aqueles que ousavam aproximar‑se da cabana, mas, para não acordar Tremal‑Naik e com receio de que este quisesse lançar‑se para fora da cabana, não o fez.

     Algumas horas depois, quando passava por uma abertura, pareceu‑lhe ver a sul um risco de fogo e ouvir um leve assobio, seguido duma surda detonação, mas não se apercebeu de mais nada.

     ‑ Que mistério este ‑ murmurou ele, tremendo de terror. ‑ Se esta noite não acontecer nenhuma desgraça, é sinal de que Xiva e Brama nos protegem.

     Ficou acordado várias horas, e depois, cedendo à fadiga e ao sono, adormeceu. Nem o cão nem o tigre deram mais nenhum sinal durante o resto da noite.

     De manhã, ansioso por saber alguma coisa, apressou‑se a sair. Aquilo que primeiro feriu o seu olhar foi um punhal enterrado na terra, a poucos passos da cabana, e que segurava um papel azulado.

     “Oh!”, exclamou ele, recuando. “Quer dizer que alguém ousou vir até aqui?”

     Aproximou‑se com precaução, quase com repugnância, daqueles objectos e apanhou‑os a tremer. O punhal era de aço polido, dum metal que deixava ver os veios, tinha uma forma especial e estranhas incisões na lâmina.

     Abriu o papel e viu nele desenhada uma serpente com cabeça de mulher, o emblema misterioso dos indianos de Rajmangal, e, por baixo, algumas linhas escritas a vermelho.

     - Que significam estas linhas? - perguntou a si mesmo o marata. - Aqui há mistério, que o patrão desvendará.

     Fez acocorar Darma e Punthy e correu para Tremal‑Naik. Encontrou‑o diante duma das janelas, sentado, com a cabeça entre as mãos e o olhar triste, voltado para os horizontes nebulosos do Sul.

      ‑ Patrão... ‑ disse o marata.

     ‑ Que queres? ‑ perguntou o indiano, com voz surda.

     ‑ Deixa os teus pensamentos e olha para estes objectos. Há aqui um mistério a decifrar.

     Tremal‑Naik voltou‑se com grande dificuldade. Uma contracção nervosa alterou os traços do seu rosto ao olhar o punhal que Kammamuri lhe mostrava.

     ‑ Que é? ‑ perguntou ele, estremecendo. ‑ Quem te deu essa arma?

     ‑ Encontrei‑a diante da cabana. Lê esta carta, patrão.

     Tremal‑Naik arrancou‑lha da mão, olhando‑a sofregamente. Eis o que nela leu:

 

               Tremal‑Naik:

 

     A misteriosa divindade que impera sobre toda a ilha envia-te o punhal da morte. Basta uma arranhadela da sua ponta envenenada, para que tu desças à sepultura.

     Tremal‑Naik, tu tens de desaparecer da face da Terra. É a divindade que assim o quer. Só por este preço poderás deter o raio que está para cair sobre a cabeça daquela que foi condenada. Esta tarde, ao pôr do sol, Manciadi espera o teu cadáver.

 

               Suyodhana

 

     Ao ler a carta, Tremal‑Naik empalidecera.

     ‑ O quê? ‑ exclamou ele. ‑ A minha vida! A minha vida para “deter o raio que está para cair sobre a cabeça daquela que foi condenada!”... Que significa esta ameaça? Morrer! Eu!

     ‑ Patrão ‑ murmurou Kammamuri, que tremia como varas verdes. - Corremos um grande risco. Sinto‑o.

     ‑ Não tenhas medo, Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Os miseráveis procuram assustar‑nos, mas eu desafio a misteriosa divindade que impera sobre toda a Índia. Ah! Eles querem a minha vida? A divindade deles manda‑me descer ao sepulcro e envia‑me o punhal! Tremal‑Naik não será tão parvo que se sirva dele, nem...

     Parou de repente. Um pensamento terrível lhe viera ao espírito.

     Tornou a olhar para a carta. Uma expressão de doloroso espanto estampou‑se‑lhe no rosto.

     ‑ Grande Xiva! ‑ exclamou, com voz sufocada. ‑ "Um raio está para cair sobre aquela que foi condenada!..." Kammamuri!

     ‑ Patrão?

     ‑ Uma mulher foi condenada...

     ‑ Quem? Patrão, quem?

     ‑ Têm‑na nas mãos

     ‑ Mas a quem?

     ‑ Ada! ‑ exclamou o indiano, com voz dilacerada. ‑ Oh, minha pobre Ada!... Kammamuri!... Kammamuri!

     Tremal‑Naik lançou‑se para fora da cabana, como um louco, e voltou a entrar, horrivelmente desfigurado.

     ‑ Patrão, é impossível que a matem ‑ disse Kammamuri.

     ‑ E se é verdade? E se aqueles monstros a matassem? Que horror! Que horror!... Xiva, ó meu deus, vela por ela! Vela pela minha pobre Ada!

     Um soluço dilacerou o peito do caçador de serpentes.

     ‑ Que fazer? ‑ balbuciou ele, fora de si. ‑ Sim, eu sinto‑o, os monstros condenaram‑na... Não querem que ame nenhum... Que morra um de nós. Mas não, não quero que ela morra, tão jovem, tão bela! Deverei morrer eu então? Nunca, nunca, é impossível, amo‑a demais para descer ao sepulcro sem a ter visto uma última vez, sem lhe dizer que morro por ela...

     Tremal‑Naik contorceu‑se como uma serpente, agarrando a cabeça entre as mãos. De súbito pôs‑se de pé, com um salto, como se fosse um tigre que está para se atirar sobre a sua presa. Nos seus olhos brilhava um sinistro fulgor.

     ‑ Soou a hora da vingança! ‑ disse ele, num tom de voz intraduzível. ‑ Ada, vou já!... Aqui, Darma!

     De um salto, o tigre postou‑se à porta da cabana, fazendo ouvir o seu formidável rugido. Tremal‑Naik, tendo retirado de um prego a carabina, estava para sair, quando Kammamuri o deteve.

     ‑ Aonde vais, patrão? ‑ perguntou‑lhe ele, agarrando‑o pela cintura.

     ‑ A Rajmangal, para a salvar, antes que a matem.

     ‑ Mas não sabes que nesse lugar está a morte? Não sabes que em Rajmangal estão talvez mil homens daqueles, que desejam o teu sangue? Perdes‑te tu e talvez mates aquela que amas, julgando salvá‑la.

     ‑ Eu!

     ‑ Mas, sim, patrão, tu mata‑la. Assim que tu apareças, o raio cairá e abaterá aquela mulher.

     ‑ Grande deus!

     ‑ Acalma‑te, patrão, e escuta‑me. Deixa o caso comigo e verás que saberemos tudo. Quem sabe se aqueles homens não quiseram apenas assustar-te.

     Tremal‑Naik olhou‑o, como em delírio. Talvez Kammamuri tivesse razão.

     ‑ Ainda não chegou a hora de irmos à ilha maldita, nem tu estás ainda suficientemente forte para lutar contra eles ‑ continuou o marata. - Escreveram a dizer que querem o teu cadáver; pois bem, tê‑lo‑ão, mas será um cadáver que ainda respirará e que se atirará à garganta do assassino do pobre Aghur. Deixa que eu te guie, patrão; bem sabes que os maratas são astutos.

     ‑ Que queres dizer? ‑ perguntou Tremal‑Naik, que se rendia pouco a pouco.

     ‑ Quero dizer que precisamos dum homem que confesse tudo, para sabermos o que havemos de fazer. Se for preciso, partiremos amanhã para Rajmangal.

     ‑ Precisamos dum homem?

     ‑ Sim, patrão, e esse homem será Manciadi. Escuta‑me com atenção. Esta tarde, ao pôr do Sol, eu levo‑te para a selva e tu finges que estás morto. Eu e Darma ficaremos escondidos a poucos passos de ti, para que não te aconteça alguma desgraça. Chega o bandido que assassinou Aghur; atiramo‑nos sobre ele e fazemo‑lo prisioneiro. Eu encarrego‑me de lhe fazer confessar o lugar onde escondem a mulher que tu amas e de o fazer falar sobre o número dos nossos inimigos e sobre os meios de que dispõem.

     Tremal‑Naik agarrou as mãos do marata e apertou‑as afectuosamente.

    ‑ Ficarás? ‑ perguntou Kammamuri, cheio de alegria.

     ‑ Sim, ficarei ‑ disse Tremal‑Naik, dando um profundo suspiro. Mas amanhã irei a Rajmangal, nem que seja sozinho. Sinto que um perigo ameaça Ada.

     ‑ Não irás sozinho ‑ disse Kammamuri. ‑ Eu e Darma iremos contigo. Agora, calma e olhos bem abertos: esta tarde teremos Manciadi nas nossas mãos.

     Kammamuri deixou o patrão, que se sentara na soleira da porta, assaltado por mil angústias e pensamentos tétricos, e dirigiu‑se ao rio, a preparar a canoa.

     Durante todo o dia, nada de novo aconteceu. Kammamuri foi várias vezes à floresta, armado até aos dentes, esperando ver alguém, talvez o próprio Manciadi, mas não viu vivalma nem ouviu qualquer sinal de rumor.

 

     Às sete horas, o Sol tocava o horizonte, a ocidente. Era o momento de agir.

     ‑ Patrão ‑ disse o marata, que esfregava alegremente as mãos ‑, não percamos tempo.

     Justamente naquele momento, a sul, ecoou o ramsinga.

     ‑ O canalha aproxima‑se ‑ disse Kammamuri. ‑ Coragem, patrão, eu levo‑te para a selva. Nem uma palavra, nem o mais pequeno movimento, se não queres estragar a emboscada. Assim que o assassino apareça, o tigre derrubá‑lo‑á.

     Agarrou o patrão, pô‑lo aos ombros, depois de lhe ter metido debaixo da ampla faixa um par de pistolas, e dirigiu‑se, cambaleando, para a selva.

     O Sol desaparecia atrás das gigantescas plantações do Ocidente, quando chegou junto dos primeiros bambus. Depôs Tremal‑Naik, que conservava uma imobilidade de cadáver, entre as ervas e depois debruçou‑se sobre ele:

     ‑ Patrão, nem um movimento ‑ disse‑lhe. ‑ Logo que o tigre se lance sobre Manciadi, levanta-te e tapa a boca do miserável. Talvez haja outros indianos nas proximidades.

     ‑ Deixa isso comigo ‑ murmurou Tremal‑Naik. ‑ Tudo correrá bem.

     Kammamuri afastou‑se, com a cabeça inclinada sobre o peito, fingindo uma grande dor. Quando chegou à cabana, um segundo toque de trombeta ecoava pelos bambus espinhosos da selva.

     ‑ Manciadi ainda está longe ‑ disse ele. ‑ Tudo corre bem

     Entrou na cabana, armou‑se de pistolas e dum facalhão, e depois saiu, olhando atentamente para o rio e para a selva.

     ‑ Darma, vem comigo ‑ disse ele.

     Com um salto, o tigre juntou‑se a ele e ambos se lançaram precipitadamente para sul, escondidos por uma pequena plantação de mussenda e de índigo. Em menos de cinco minutos alcançaram os bambus e esconderam‑se a sete ou oito passos de Tremal‑Naik.

     Um terceiro toque de trombeta, mas mais próximo, quebrou o profundo silencio que reinava nas Sunderbunds.

     ‑ Bom ‑ murmurou Kammamuri, empunhando uma das duas pistolas. ‑ O miserável está próximo.

     Olhou para o patrão. Parecia um autentico cadáver; estava estendido sobre um dos lados, com a cabeça escondida debaixo de um braço. Teria enganado mesmo um marabu ou um chacal.

     De súbito, um magnífico pavão levantou‑se de entre os bambus e desapareceu, voando rapidamente. Kammamuri passou uma mão sobre o tigre, que farejava o ar e agitava a cauda, como um gato.

     ‑ Não te mexas, Darma ‑ sussurrou‑lhe.

     Um segundo pavão se levantou, emitindo um grito assustado.

     Manciadi aproximava‑se, rastejando como uma serpente, sem fazer o mais pequeno ruído. Talvez temesse cair nalguma emboscada e avançava com mil cautelas.

     Kammamuri pôs‑se de joelhos, estendendo a mão, armada duma pistola.

     À sua frente, viu os bambus a mexer‑se imperceptivelmente, depois saíram duas mãos e, finalmente, uma cabeça amarela, brilhante.

     Kammamuri sentiu que a testa se lhe inundava de suor frio.

     Aquela cabeça era a cabeça de Manciadi, o assassino do pobre Aghur.

     ‑ Darma ‑ murmurou ele.

     O tigre levantara‑se, encolhendo‑se sobre si próprio; esperava apenas a ordem de saltar.

     Manciadi olhou para Tremal‑Naik, com dois olhos que luziam tenebrosamente, e fez ouvir uma gargalhada sarcástica. O caçador de serpentes não se mexeu.

     O indiano saiu então dos bambus, com o laço na mão, e deu alguns passos em direcção do cadáver fingido.

     - Darma agarra‑o! ‑ exclamou Kammamuri, pondo‑se de pé num salto.

     O tigre deu um salto de quinze passos e caiu como um raio sobre o assassino, que foi violentamente derrubado.

     Tremal‑Naik levantou‑se e atirou‑se a ele e, com um formidável soco, fez‑lhe perder os sentidos.

     ‑ Aguenta-te, patrão! ‑ gritou o marata, acorrendo. ‑ Parte‑lhe uma perna, para o impedir de se mexer.

     ‑ É inútil, Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik, segurando o tigre. - Está meio morto.

     De facto, o indiano, ferido na cabeça pelo punho de aço do caçador de serpentes, já não dava sinais de vida.

     ‑ Assim está bem ‑ disse Kammamuri. ‑ Agora fá‑lo‑emos falar. Não sairá vivo das nossas mãos, juro-te, patrão, e Aghur será vingado.

     ‑ Não fales tão alto, Kammamuri ‑ murmurou Tremal‑Naik, voltando a afastar o tigre, que queria despedaçar o prisioneiro.

     ‑ Achas que haverá outros indianos aqui perto?

     ‑ Pode ser que sim. Vamos, o céu está a ficar escuro e vamos ter um furacão. Levemo‑lo para a cabana.

     Kammamuri agarrou Manciadi pelas pernas, Tremal‑Naik agarrou‑o pelos pulsos e partiram a correr, enquanto gigantescas nuvens negras se levantavam do sul com velocidade vertiginosa.

     Poucos minutos depois, entravam na cabana, fechando a porta atrás de si.

 

                           A tortura

     O mais difícil estava feito. Só faltava agora fazer falar o prisioneiro, o que não seria muito fácil, pois os indianos são mais teimosos do que os Peles‑Vermelhas da América. No entanto, os dois caçadores de serpentes possuíam meios poderosos para desatar a língua, mesmo a um mudo.

     Estenderam o prisioneiro no meio da cabana, acenderam a pouca distância dos seus pés, uma grande fogueira e esperaram pacientemente que voltasse a si, para começarem a prova.

     Não passou muito tempo até o indiano dar sinais de estar ainda vivo. O peito alteou‑se‑lhe impetuosamente, dilatando‑se, agitou os membros, sacudiu‑se e, finalmente, abriu os olhos, fixando‑os no caçador de serpentes, que estava debruçado sobre ele.

     De súbito, uma expressão de deslumbramento desenhou‑se‑lhe no rosto, para logo depois os seus traços se alterarem, demonstrando despeito, terror e raiva. Os dedos contraíram‑se-lhe e as unhas enterraram‑se‑lhe no chão, ao mesmo tempo que um riso feroz e escarninho aflorou aos seus lábios, mostrando duas fileiras de dentes, aguçados como os de um tigre.

     ‑ Onde estou? ‑ perguntou, com voz surda.

     Tremal‑Naik aproximou o seu rosto do dele.

     ‑ Reconheces‑me? ‑ perguntou‑lhe, dominando com dificuldade a ira que lhe fervia no peito. ‑ Reconheces‑me?

     ‑ Se não me engano, tu és o homem que eu devia matar ‑ disse. - Que estúpido eu fui em me deixar apanhar.

     ‑ Não te parece que a emboscada deu bom resultado?

     ‑ Não o nego. Devia esperá‑la.

     ‑ Tremes diante de mim?

     ‑ Tremer, eu? ‑ exclamou o estrangulador, sorrindo. ‑ Manciadi só tem medo de Cali.

     ‑ Cali? Quem é essa Cali? Eu já ouvi esse nome.

     ‑ Sim, ouviste‑o na noite em que caíste sob o punhal de Suyodhana. Ah! Ah! Que belo golpe aquele!

     ‑ Tão belo que ainda estou vivo.

    ‑ É uma desgraça tu estares vivo.

     ‑ É verdade ‑ disse Tremal‑Naik, ironicamente. ‑ Se estivesse debaixo da terra, não voltaria a Rajmangal, a exterminar os assassinos.

     Um sorriso sarcástico contorceu os lábios do estrangulador.

     ‑ Tu não conheces Suyodhana ‑ disse ele.

     ‑ Hei‑de conhecê‑lo, Manciadi, prometo‑te, e talvez antes da tarde de amanhã.

     ‑ Falas a sério?

     ‑ Falo a sério; Tremal‑Naik é um homem de palavra.

     ‑ Ah! Ah! ‑ gargalhou Manciadi. ‑ Não darás um passo em direcção às costas de Rajmangal sem que tenhas cem laços ao pescoço.

     ‑ Deixemos Suyodhana e os laços por agora e falemos de coisas mais importantes.

     ‑ Como quiseres.

     ‑ Repara, Manciadi, que, se não disseres a verdade, far‑te‑ei sofrer mil torturas.

     ‑ Manciadi é forte.

     ‑ Mais tarde o dirás. Escuta‑me e responde; e tu, Kammamuri, atiça o fogo, que talvez precisemos dele.

     Um frémito passou pelo rosto amarelado de Manciadi; fitou, angustiado, as chamas que subiam e baixavam, iluminando bizarramente as paredes fumarentas da cabana.

     ‑ Manciadi ‑ prosseguiu Tremal‑Naik ‑, quem é essa divindade que tu chamas Cali, e que exige tantas vitimas?

     ‑ Não falarei.

     ‑ Começas mal, Manciadi. Obrigas‑me a torturar‑te.

     ‑ Manciadi é forte.

     ‑ Passemos a outra coisa. Preciso de saber quantos homens se encontram em Rajmangal.

     ‑ Eu próprio o ignoro. Sei que são muitos e que obedecem todos a Suyodhana, nosso chefe.

     ‑ Manciadi, tu conheces a “Virgem do Pagode”?

     ‑ E quem a não conhece?

     ‑ Bem, fala‑me de Ada Corishant.

     Um lampejo de alegria feroz passou pelos olhos de Manciadi.

     ‑ Falar‑te de Ada Corishant! ‑ exclamou ele, com um riso de troça. - Nunca!

     ‑ Manciadi ‑ disse Tremal‑Naik, furioso. ‑ Olha que te farei sofrer mil torturas se te obstinas em não falar. Onde está Ada Corishant?

     ‑ Quem sabe? Talvez em Rajmangal, talvez no norte de Bengala, talvez no mar. Talvez ainda esteja viva, talvez esteja a agonizar.

     Tremal‑Naik soltou um gemido de raiva.

     ‑ A agonizar! ‑ exclamou, mordendo as mãos. ‑ Tu sabes qualquer coisa. Oh! Hás‑de falar, sim, hás‑de falar, nem que tenha de te queimar as pernas.

     ‑ Queima‑me mesmo os braços, até aos ombros, que Manciadi não falará. Juro‑o pela minha deusa.

     ‑ Mas então, miserável, tu nunca amaste?

     ‑ Só amei a minha deusa e o meu fiel laço.

     ‑ Escuta‑me, Manciadi! ‑ gritou Tremal‑Naik, fora de si. ‑ Libertar‑te-ei, dar‑te‑ei tudo o que tenho, até à última rupia, dar‑te‑ei todas as minhas armas, serei mesmo teu escravo, mas dize‑me onde se encontra a infeliz Ada, se está viva ou morta, dize‑me se há alguma esperança de a salvar. Sofri atrozmente, Manciadi, não me faças sofrer mais, não me mates. Fala, ou faço‑te em pedaços com os meus dentes!

     Manciadi permaneceu mudo, olhando para ele com olhos sombrios.

     ‑ Fala, monstruosa criatura, fala! ‑ gritou Tremal‑Naik.

     ‑ Não! ‑ exclamou o indiano, com inabalável firmeza. ‑ Nem uma palavra sairá da minha boca.

     ‑ Tens então um coração de ferro, tu?

     ‑ Sim, um coração de ferro e a transbordar de ódio.

     ‑ Pela última vez, fala, Manciadi!

     ‑ Nunca! Nunca!

     Tremal‑Naik torceu‑lhe os pulsos.

     ‑ Miserável! ‑ gritou‑lhe aos ouvidos. ‑ Eu mato‑te.

     ‑ Mata‑me, mas não falarei.

     ‑Kammamuri, vem cá!

     Agarrou o prisioneiro pelos braços e atirou-o violentamente por terra. O marata pegou‑lhe nos pés e aproximou‑os da chama. A dura pele das plantas dos pés enegreceu ao contacto dos carvões ardentes e estalou. Um cheiro nauseabundo a queimado espalhou‑se pela cabana.

     Manciadi estremeceu, rugindo como um tigre, e os olhos ficaram injectados de sangue.

     - Agüenta, Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik.

     Um grito dilacerante irrompeu do peito do torturado.

     ‑ Basta... basta ‑ repetiu ele, com voz estrangulada.

     ‑ Falarás? ‑ perguntou‑lhe Tremal‑Naik.

     Manciadi rangeu os dentes, depois mordeu os lábios e, ferozmente, disse que não, embora o fogo continuasse a morder‑lhe e a calcinar‑lhe as carnes. Passaram ainda dois ou três segundos. Um segundo grito, ainda mais dilacerante do que o primeiro, saiu-lhe dos lábios.

     ‑ Basta! ‑ grunhiu. ‑ É demais...

     ‑ Falarás agora?

     ‑ Sim... falarei... basta... Socorro!

     Com um violento puxão, Tremal‑Naik afastou‑o do braseiro.

     ‑ Fala, miserável! ‑ gritou‑lhe.

     Manciadi olhou‑o no rosto, com dois olhos que metiam medo. Com um esforço desesperado, conseguiu sentar‑se, mas voltou a cair, soltando um gemido rouco, e ficou imóvel, com o rosto horrivelmente desfigurado num espasmo e com a boca torcida.

     ‑ Morreu? ‑ perguntou Kammamuri, assustado.

     ‑ Não, só desmaiou ‑ respondeu Tremal‑Naik.

     ‑ É preciso ter cautela, patrão. Se nos morre antes de ter confessado, é uma grande desgraça.

     ‑ Não morre assim tão depressa, garanto‑te.

     ‑ Falará?

     ‑ É preciso que fale. Ouviste que Ada talvez esteja agonizante? Tenho de saber tudo, nem que tenha de lhe tirar o sangue todo das veias, gota a gota.

     ‑ Não acredites, patrão. O miserável pode ter mentido.

     ‑ Xiva queira que assim seja. Se a minha Ada morre, sinto que não lhe sobreviverei. Vê a crueldade do meu destino! Amá‑la, ser amado por ela, e não poder fazer que seja minha. Oh! Mas há‑de sê‑lo, juro‑o por todas as divindades da índia.

     ‑ Calma, patrão. O nosso homem começa a dar sinais de vida.

     O estrangulador voltava a si. Um estremecimento percorreu os seus membros, que pareciam rígidos, levantou lentamente a cabeça, molhada por grande gotas de suor, os seus traços, pouco antes horrivelmente alterados, recompuseram‑se e, finalmente, abriu os olhos, fixando-os sobre o caçador de serpentes. Abriu a boca, como se quisesse falar, mas a língua não articulou qualquer som; apenas um grunhido surdo, espécie de gemido sufocado, lhe ressoou no fundo da garganta.

     ‑ Manciadi, fala! ‑ disse Tremal‑Naik.

     O torturado não respondeu.

     ‑ Vês aquele fogo? Se não soltas a língua, recomeço com as torturas.

     ‑ Falar? ‑ rugiu Manciadi. ‑ Dá cabo de mim... nunca mais... poderei... andar... Mata‑me, se queres... mas não falarei. Odeio‑te! Mas a tua Ada... A mulher que tu amas... morrerá! Que alegria, ao pensar... que ela sofrerá os mesmos tormentos que eu sofri... Parece‑me ouvir os seus gritos... Olha para ela... atada na pira em chamas... Suyodhana ri sarcasticamente... os tugues dançam à volta dela... Cali sorri... Eis as chamas a envolvê‑la... Ah! Ah! Ah!

     O miserável soltou uma gargalhada satânica, à qual fez eco o primeiro ribombar do trovão, que sacudiu a cabana até aos alicerces.

     Tremal‑Naik atirou‑se como um louco sobre o indiano.

     ‑ Tu mentes! ‑ gritou. ‑ Não é possível! Não é possível!

     ‑ É verdade... A tua Ada será queimada...

     ‑ Dize‑me tudo! Eu quero saber tudo e ordeno‑te que mo digas.

     ‑ Nunca!

     Tremal‑Naik, louco de furor e de desespero, voltou a agarrá‑lo, para o arrastar para junto do fogo.

     Kammamuri interveio.

     ‑ Patrão ‑ disse ele, detendo‑o ‑, este homem não pode sofrer uma segunda tortura do mesmo género, pois morrerá. O fogo não basta para o fazer falar; experimentemos o ferro.

     ‑ Que queres dizer?

     ‑ Deixa o caso comigo; há‑de falar, verás.

     O marata passou ao compartimento contíguo e pouco depois voltou a sair, trazendo uma espécie de broca, a cuja extremidade aplicara duas espirais opostas, de aço temperado, com duas pontas afastadas uma da outra um centímetro.

     ‑ Que é isso? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Um saca‑rolhas ‑ respondeu o marata. ‑ Vou usá‑lo e juro‑te que não há homem, por mais valente e teimoso que seja, que possa resistir a semelhante provação. Os maratas percebem disto.

     Agarrou o pé direito do prisioneiro e aplicou sobre o polegar as duas pontas da espiral.

     ‑ Atenção, Manciadi, vou começar. - As duas espirais enterraram‑se nas carnes. O marata olhou para a cara do torturado, que estava coberta dum suor gelado. ‑ Devo continuar? ‑ perguntou‑lhe.

     Manciadi teve um estremeção.

     Kammamuri retomou a tortura.

     O torturado, sacudido por um terrível estremecimento, soltou um grito desesperado.

     ‑ Confessa, ou continuo ‑ disse o marata.

     ‑ Não... não continues... Confesso tudo...

     ‑ Eu bem sabia que havias de falar. Despacha-te, se não queres que recomece no outro pé. Onde está a “Virgem do Pagode”?

      - Nos subterrâneos ‑ murmurou Manciadi, com voz apagada.

     ‑ Jura pela tua divindade que não nos enganas.

     ‑ Juro... por... Cali.

     ‑ Vamos então. Que perigo corre ela? Vamos, dize tudo.

     ‑ Tinham‑me ordenado... Ah! Cães...

     ‑ Continua.

     ‑ Pesa... sobre ela uma condenação... Cali condenou‑a a morrer... O teu patrão ama‑a... ela ama‑o a ele... Pois bem, um dos dois tem de morrer... Tinham‑me mandado aqui... para o assassinar... Falhei o golpe...

     ‑ Vamos! Vamos! ‑ exclamou Tremal‑Naik, que não perdia uma sílaba.

     ‑ Quando virem que não regresso... adivinharão a sorte que... me tocou... saberão que estás ainda vivo... Pois bem, um dos dois tem de morrer... Ada está nas suas mãos...

     ‑ Que horror! Mas eu salvá‑la‑ei!

     Um sorriso irónico agitou os lábios do torturado.

     ‑ Os tugues são... poderosos ‑ balbuciou ele.

     ‑ Mas Tremal‑Naik será mais poderoso do que eles. Escuta‑me, Manciadi. Eu sei que o baniano sagrado conduz aos subterrâneos; é absolutamente necessário que saiba o segredo para descer.

     ‑ Já falei... demais. Podes matar‑me, pois... estou agonizante... mas não... direi mais nada. Deixa‑me morrer...

     ‑ É preciso recomeçar? ‑ perguntou Kammamuri.

     ‑ Sei tudo o que é preciso ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Parto já!

     ‑ Nesta mesma noite?

     ‑ Pois não ouviste? Amanhã poderia ser tarde demais.

     ‑ A noite é escura e tempestuosa.

     ‑ Tanto melhor; arribarei sem ser visto.

     ‑ Patrão, ir a Rajmangal é ir ao encontro da morte.

     ‑ Esta noite, Kammamuri, nem os raios do céu me poderão deter. Darma!

     O tigre, que estava acocorado no compartimento ao lado, levantou‑se, rugindo, e veio para junto do patrão.

     ‑ Vamos para a canoa e prepara as tuas garras.

     ‑ E eu, patrão. Que devo fazer? ‑ perguntou Kammamuri. Tremal‑Naik ficou por instantes pensativo; depois disse:

     ‑ Aquele homem ainda está vivo e, provavelmente, não morrerá; velarás por ele. Quem sabe se não poderá ainda ser‑nos útil.

     ‑ E queres partir sem mim?

     ‑ Bem vês que não podes vir comigo. Se deixarmos aquele homem sozinho, amanhã estará morto. Espero‑te na canoa.

     Tremal‑Naik pegou na carabina, nas pistolas e no facalhão, muniu-se com abundante provisão de pólvora e balas e saiu, a passos rápidos. O tigre seguiu-o, saltando à direita e à esquerda, misturando os seus rugidos aos assobios do vento e ao ribombar do trovão.

     ‑ A noite não é boa ‑ disse Tremal‑Naik, olhando as nuvens da tempestade ‑ mas nada me deterá. Ah! Oxalá que eu chegue a tempo de a salvar. Pobre Ada!

     De súbito, uma detonação seca chegou aos seus ouvidos, seguida pelos latidos lúgubres de Punthy.

     ‑ Que é isto? ‑ perguntou a si mesmo Tremal‑Naik, surpreendido. Olhou em direcção da cabana e viu Kammamuri, que vinha ao seu encontro, a correr. Estava armado até aos dentes e trazia aos ombros os remos da canoa.

     ‑ Que aconteceu? ‑ perguntou o caçador de serpentes.

     - Kammamuri vingou Aghur ‑ respondeu o marata.

     ‑ Mataste Manciadi, não?

     ‑ Sim, patrão, com um tiro de pistola. Aquele homem era para nós um empecilho; assim, poderei ir contigo.

     ‑ Kammamuri, sabes que talvez nunca mais voltemos à floresta?

     ‑ Sim, patrão.

     ‑ Sabes que em Rajmangal nos espera a morte?

    ‑ Sim, patrão. Tu vais desafiá‑la, para salvar a mulher que amas, e eu vou contigo. É melhor morrer ao teu lado do que ficar sozinho na floresta.

     ‑ Pois bem, meu valente Kammamuri, segue‑me. Punthy velará pela nossa cabana.

 

                          A Caminho de Rajmangal

     Como dissera o marata, a noite era tempestuosa. Enormes massas de vapor tinham‑se levantado do Sul e corriam desordenadamente pela abóbada celeste, acavalando‑se como as ondas do mar.

     As rajadas de vento sucediam‑se com freqüência e lançavam‑se através das Sunderbunds desertas, curvando com mil gemidos as imensas plantações de bambus, arrancando as canas débeis, que voavam pelo ar juntamente com bandos de marabus e de pavões, que lançavam gritos desesperados.

     De quando em quando, um relâmpago lívido, ofuscante, rompia as trevas, mostrando aquele caos de plantas contorcidas e derrubadas, seguido pouco depois de um formidável ribombar, que se repercutia até às margens do golfo de Bengala.

     Não chovia, mas as cataratas do céu não deviam tardar a abrir‑se.

     Em poucos minutos, os dois indianos e o tigre alcançaram a margem do Mangal, cujas águas, engrossadas por algum aguaceiro, corriam com maior rapidez, arrastando destroços de bambus, arrancados provavelmente às Sunderbunds do Norte, e grande número de troncos de árvores.

     Ficaram alguns minutos escondidos entre os canaviais, esperando que um relâmpago iluminasse a margem oposta e, depois de se certificarem de que não eram espiados, apressaram‑se a descer à margem e a empurrar a canoa para dentro de água.

     - Patrão ‑ disse Kammamuri, enquanto Tremal‑Naik saltava para dentro do barco ‑, pensas que encontraremos indianos ao longo do rio ou nos arredores de Rajmangal?

     ‑ Estou certo disso, mas que importa? Esta noite sinto‑me tão forte que seria capaz de enfrentar um exército de mil homens. A paixão que me arde no peito dar‑me‑á a força necessária para vencer e ultrapassar todos os obstáculos.

     ‑ Bem sei, patrão, mas é preciso agir com prudência. Se nos descobrem, darão o alarme e impedir‑nos‑ão de desembarcar.

     ‑ E que queres fazer?

     ‑ Enganá‑los.

     ‑ Como?

     ‑ Deixa isso comigo; passaremos sem ser vistos.

     O marata voltou à margem, abateu um número considerável de bambus com não menos de quinze metros de comprimento e cobriu cuidadosamente a canoa, de modo a fazê‑la parecer um amontoado de canas levadas pela corrente.

     ‑ Está escuro ‑ disse ele, escondendo‑se debaixo delas com Tremal-Naik e Darma. ‑ Os indianos não desconfiarão de que debaixo das canas está uma canoa e que a canoa leva dois homens e uma fera.

     ‑ Depressa, Kammamuri, vamos para o largo ‑ disse Tremal‑Naik, impaciente. ‑ Cada minuto que passa é para mim um golpe de punhal no coração e eu tremo ao pensar no grande perigo que Ada corre. Julgas, marata, que chegaremos a tempo de a salvar?

     ‑ Julgo que sim, patrão ‑ respondeu Kammamuri, empurrando a canoa para o centro da corrente. ‑ Talvez aqueles homens esperem que o miserável tenha perpetrado o seu crime.

     ‑ E se chegássemos tarde? Grande Xiva, que terrível golpe! Sinto que não sobreviveria à catástrofe.

     ‑ Calma, patrão. Quem sabe se Manciadi exagerou.

     ‑ Oxalá que assim seja. Minha pobre Ada, se eu ainda pudesse voltar a ver‑te!

     ‑ Silêncio, patrão, falar é uma imprudência.

     ‑ Tens razão, Kammamuri: silêncio.

     Tremal‑Naik estendeu‑se à proa, ao lado do tigre, e Kammamuri à popa, com o remo na mão, procurando dirigir a canoa.

     O furacão redobrava então de violência e à noite escura sucedera uma noite de fogo.

     O vento uivava tremendamente na selva, curvando com mil gemidos e mil estalos as gigantescas plantas e torcendo de mil modos os cem troncos do baniano, os ramos das palmeiras, das latânias, dos pipais e das jaqueiras, e entre as nuvens crepitavam incessantemente os raios, que vinham por aí abaixo, descrevendo ofuscantes ziguezagues.

     A canoa, arrastada pelo vento e pela corrente, extraordinariamente engrossada, corria como uma flecha, balouçando assustadoramente entre os remoinhos, chocando e tornando a chocar contra as múltiplas ilhotas e contra as inúmeras árvores que boiavam desordenadamente à deriva.

     Em vão Kammamuri se esforçava por a manter no bom caminho e Tremal‑Naik procurava acalmar o tigre, o qual, assustado com todos aqueles barulhos e com aqueles ofuscantes clarões, rugia ferozmente, lançando‑se de um lado para outro da embarcação, com grande perigo de a fazer voltar‑se.

     Às dez da noite, Kammamuri descobriu uma grande fogueira, que ardia na margem do rio, a menos de trezentos passos da proa da canoa. Ainda não tinha acabado de falar, quando se ouviu o ramsinga tocar três vezes em três tons diversos.

     ‑ Alerta, patrão! ‑ gritou, dominando com a voz todos aqueles formidáveis fragores.

     ‑ Vês alguém? ‑ perguntou Tremal‑Naik, segurando o tigre pelo pescoço, com a mão esquerda, e empunhando, com a direita, a pistola.

     ‑ Não, patrão, mas o fogo com certeza que foi aceso para ver quem vai e quem vem. É preciso estarmos em guarda; o ramsinga assinalou qualquer coisa.

     ‑ Pega na carabina. Talvez tenhamos de lhes dar batalha.

     A canoa aproximava‑se rapidamente da fogueira; era um monte de bambus secos que ardiam, iluminando, como se fosse dia claro, as duas margens do rio.

     ‑ Patrão, olha! ‑ disse de repente Kammamuri.

     ‑ Calado! ‑ murmurou Tremal‑Naik, fechando a boca do tigre.

     Dois indianos tinham subitamente saído duma moita de mussenda. Traziam o laço à volta do corpo e seguravam na mão uma carabina. Sobre o peito, distinguia‑se perfeitamente a serpente azul com cabeça de mulher.

     ‑ Olha, ali! ‑ gritou um deles. ‑ Estás a ver?

     ‑ Sim ‑ respondeu o outro. ‑ É um monte de canas que vai à deriva.

     ‑ Achas que sim?

     ‑ E porque não?

     ‑ Receio que esconda qualquer coisa.

     ‑ Não vejo nada lá por baixo.

     ‑ Cala‑te! Parece‑me que ouvi...

     ‑ Um rugido, queres dizer?

     ‑ Precisamente. Estará algum tigre lá metido?

     ‑ Boa viagem.

     ‑ Calma, Huka. O homem que Manciadi deve estrangular tem um tigre.

     ‑ Isso não o sabia eu. E julgas que o nosso homem estará ali debaixo com o animal?

     ‑ É possível. Aquele homem é astuto e corajoso.

     ‑ Que pensas fazer?

     ‑ Fazê‑lo sair, com um tiro de carabina. Aponta muito baixo.

     Kammamuri e Tremal‑Naik tinham ouvido distintamente o diálogo. Vendo os dois indianos levantar as carabinas, atiraram‑se prontamente para o fundo da canoa.

     ‑ Não respondas, patrão ‑ disse o marata ‑, senão, estamos perdidos. Dois tiros de carabina ressoaram, furando os bambus. O tigre deu um salto, emitindo um rugido furioso.

     ‑ Quieto, Darma ‑ disse Tremal‑Naik, fazendo‑o cair.

     ‑ Que a deusa me fulmine! ‑ gritou um dos dois indianos. ‑ É ele.

      ‑ Dá o sinal, Huka!! ‑ ordenou o outro.

     Um relâmpago brilhou por cima da canoa, seguido dum formidável estrondo, que sufocou a nota aguda do ramsinga. Tremal‑Naik e Kammamuri, que se tinham levantado, foram violentamente atirados ao chão, enquanto o tigre lançava um segundo rugido, ainda mais furioso do que o primeiro.

     ‑ Patrão! ‑ exclamou Kammamuri. ‑ O relâmpago!

     Tremal‑Naik, ainda estonteado pela influência da descarga eléctrica, pôs‑se de joelhos e um grito de raiva escapou‑se‑lhe dos lábios.

     ‑ Maldição! Estamos a arder!

     De facto, os bambus, atingidos pelo relâmpago, tinham‑se ateado e ardiam rapidamente.

     ‑ Estamos perdidos!! ‑ exclamou Kammamuri. ‑ Ao rio! Ao rio!

     ‑ Não te mexas, se tens amor à vida.

     Tremal‑Naik tomou nos braços o monte de canas e, com um esforço desesperado, atirou‑as ao rio.

     ‑ É ele! ‑ gritou uma voz.

     ‑ Fogo! Huka!

     Ressoaram duas outras detonações e Tremal‑Naik ouviu as balas assobiar aos seus ouvidos.

     ‑ Dá o sinal, Huka!

     ‑ Estamos perdidos, patrão! ‑ gritou Kammamuri.

     ‑ Não te mexas ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Agarra o tigre.

     Atirou‑se para a popa e visou o indiano Huka, que encostava aos lábios o ramsinga. A detonação da carabina foi acompanhada por um baque e por um grito.

     Huka, ferido na cabeça pela bala infalível do caçador de serpentes, precipitara‑se no rio.

     O seu companheiro hesitou um momento e depois fugiu como louco pela selva, tocando furiosamente o ramsinga, que apanhara do chão.

     Tremal‑Naik disparou‑lhe alguns tiros, mas sem conseguir atingi‑lo.

     ‑ Falhei! ‑ gritou ele, atirando raivosamente com a arma. ‑ Fomos descobertos!

     ‑ Que fazemos, patrão? ‑ perguntou Kammamuri. ‑ Parece‑me que perdemos todas as esperanças de arribar a Rajmangal; o ramsinga dará o alarme a todos os indianos. Maldito raio!

     ‑ Vamos para a frente, na mesma, Kammamuri. Esta noite nem todos os indianos das Sunderbunds nos deterão. Pega nos remos e arranca com quanta força tens; talvez cheguemos antes que os miseráveis se possam preparar para nos receber. Eu observarei as duas margens do rio e abaterei quantos se mostrarem ao alcance da minha carabina. Para a frente!

     Kammamuri quisera acrescentar qualquer coisa, talvez algum conselho, mas Tremal‑Naik não lhe deu tempo para isso.

     ‑ Se tens medo, desembarca ‑ disse ele. ‑ Eu e o tigre iremos para a frente.

     ‑ Eu vou contigo, patrão, e que Xiva nos proteja.

     Agarrou nos remos, sentou‑se no meio do barco e pôs‑se a remar com toda a força. Com aquele poderoso impulso, a canoa desceu o rio com vertiginosa rapidez, saltando sobre as ondas.

     Tremal‑Naik, depois de carregar a carabina, pôs‑se à popa, com os olhos fixos nas duas margens. O tigre aninhara‑se aos seus pés e rugia surdamente a cada clarão.

     Passaram dez minutos. As margens, que fugiam rapidamente diante dos olhos dos dois indianos, estavam cobertas de bambus que entravam pela corrente e por raras palmeiras, a maior parte das quais abatidas ou quebradas pela fúria do furacão.

     De súbito, Tremal‑Naik, que seguia atentamente o curso do rio, viu para os lados do sul um foguete elevar‑se a grande altura. Embora o vento continuasse a rugir e os raios a coriscar, ouviu distintamente o rebentamento.

      ‑ É talvez um sinal! ‑ murmurou ele. ‑ Arranca, Kammamuri, arranca!

     Da margem oposta elevou‑se um segundo foguete, que descreveu uma longa parábola.

     ‑ Patrão? ‑ interrogou Kammamuri.

     ‑ Para a frente, valente marata.

     ‑ A nossa presença foi assinalada.

     ‑ A minha Ada está em perigo: para a frente! Atenção, Darma: aproxima‑se a hora da peleja.

     O rio corria agora mais rápido, estreitando‑se como um gargalo de garrafa.

     Tremal‑Naik deu conta de que estavam perto do cemitério flutuante. Sem saber por que, teve um arrepio.

     ‑ Devagar, Kammamuri. Sinto que corremos perigo.

     O marata abrandou o bater dos remos. A canoa continuou a avançar e entrou na bacia coberta pela espessa abóbada dos tamarindos e das mangueiras. A escuridão tornou‑se profunda, de modo que os dois indianos não conseguiam ver nada para além de cinco passos à sua frente.

     A canoa chocou contra a massa dos cadáveres, e um baque, semelhante ao de um corpo que mergulha, respondeu ao primeiro choque.

     ‑ Patrão, ouviste? ‑ perguntou Kammamuri.

     ‑ Sim, alguém se atirou à água.

     Tremal‑Naik debruçou‑se sobre o rio para ver se alguém se aproximava da canoa, mas não viu nada.

     A canoa chocou uma segunda vez.

     ‑ Alguém passa ‑ disse uma voz que chegou até aos dois indianos.

     ‑ Serão eles?

     ‑ Ou serão dos nossos? O encontro está marcado para a meia‑noite.

     À palavra “meia‑noite”, Tremal‑Naik sentiu um baque no coração.

     ‑ Meia‑noite! ‑ murmurou, com voz trémula. ‑ O encontro está marcado para a meia‑noite! Que suspeita!

     ‑ Olá! ‑ gritou uma daquelas vozes. ‑ Quem vem lá?

     ‑ Não respondas, patrão ‑ apressou‑se a dizer Kammamuri.

     ‑ Pelo contrário, vou responder. Preciso de saber tudo.

     ‑ Olha que te desgraças.

     ‑ Quem fala? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Quem vem lá? ‑ perguntou, por sua vez, a voz.

     ‑ Indianos de Rajmangal.

     ‑ Aviem‑se, que a meia‑noite está próxima.

     ‑ E que acontecerá à meia‑noite?

     ‑ A “Virgem do Pagode” vai para a fogueira.

     Tremal‑Naik sufocou um grito que estava para lhe escapar dos lábios.

     ‑ Xiva, Xiva, tem piedade dela! ‑ murmurou.

     Depois, dominando a sua comoção, perguntou:

     ‑ Então Tremal‑Naik não morreu?

     ‑ Não, irmão; Manciadi ainda não voltou.

     ‑ E a “Virgem” será queimada?

     ‑ Sim, à meia‑noite. A fogueira está preparada e a menina subirá para o céu de Cali.

     ‑ Obrigado, irmão ‑ respondeu Tremal‑Naik, com voz sufocada.

     ‑ Mais uma coisa. Ouviste o ramsinga?

     ‑ Não.

     ‑ Viste Huka?

     ‑ Sim, ao pé da fogueira.

     ‑ Sabes onde é que a “Virgem” será queimada?

     ‑ Nos subterrâneos, penso eu.

     ‑ Sim, no grande pagode subterrâneo. Avia‑te, que a meia‑noite não deve estar longe. Adeus, irmão.

     ‑ Arranca, Kammamuri, arranca! ‑ rugiu Tremal‑Naik. ‑ Ada, minha pobre Ada!

     Um soluço dilacerou‑lhe o peito e sufocou‑lhe a voz.

     Kammamuri agarrou nos remos e arrancou, com desesperada energia. A canoa rompeu violentamente pela massa dos cadáveres e saiu do lado oposto.

     ‑ Depressa! Depressa! ‑ disse Tremal‑Naik, fora de si. - à meia‑noite irá para a fogueira... Arranca, Kammamuri!

     O marata não precisava de que o excitassem. Arrancava com tal fúria que os músculos ameaçavam fazer estalar‑lhe a pele.

     A canoa atravessou a bacia e entrou como um dardo no rio. Em breve apareceu a extremidade de Rajmangal, com o seu gigantesco baniano, cujos ramos desmesurados se contorciam de mil modos sob as rajadas sopradas pelo vendaval.

     Um relâmpago rompeu as trevas, mostrando a margem completamente deserta.

     ‑ Xiva está connosco! ‑ exclamou Kammamuri.

     ‑ Para a frente, marata, para a frente! ‑ disse Tremal‑Naik, que se lançara para a proa.

     A canoa, a toda a velocidade, aproou na areia, ficando com uma boa terça parte fora da água.

     Tremal‑Naik, levando furiosamente as munições, Kammamuri e o tigre atiraram‑se para terra, atingindo o tronco principal do baniano sagrado.

     ‑ Ouves alguma coisa? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Nada ‑ disse Kammamuri. ‑ Os indianos estão todos no subterrâneo.

     ‑ Tens medo de vir comigo?

     ‑ Não, patrão ‑ respondeu, com voz firme, o marata.

     ‑ Sendo assim, desçamos nós também. A minha Ada ou a morte.

     Agarraram‑se às colunatas e atingiram os ramos superiores, aproximando‑se do cimo do tronco cortado. O tigre, de um salto, pôs‑se junto deles.

     Tremal‑Naik olhou pela cavidade abaixo. À luz dos relâmpagos, descobriu entalhes que permitiam descer.

     ‑ Vamos, meu valente marata. Eu vou à frente.

     E meteu‑se pelo tronco abaixo, descendo silenciosamente. O marata e Darma seguiram‑no de perto.

      Cinco minutos depois, os dois indianos e o tigre encontravam‑se no subterrâneo, numa espécie de poço semicircular escavado na rocha viva, seis metros abaixo do nível das Sunderbunds.

 

                           No pagode subterrâneo

     Tendo descido aos subterrâneos sem provocar alarme, nada mais lhes restava do que procurar o grande templo da deusa Cali, tombar inesperadamente sobre a horda e raptar a vítima, aproveitando a confusão e o susto que o aparecimento do tigre não deixaria de produzir.

    Mas não era fácil orientar‑se naquela escuridão e entre os corredores do imenso subterrâneo. Nem Tremal‑Naik nem o marata conheciam o caminho ou sabiam em que lugar o templo fora escavado. Não eram, no entanto, homens para recuar nem para hesitar, por um momento que fosse, embora fossem inúmeros os perigos que os ameaçavam.

     Apoiando as mãos nas paredes começaram a avançar, um atrás do outro, apalpando o terreno com os pés, para não caírem em qualquer abertura, e prosseguindo no mais absoluto silêncio, sem saberem se estavam sós ou se alguma sentinela se encontrava próxima.

     Em breve encontraram uma ampla abertura, uma espécie de porta, em cujo limiar pararam, procurando escutar.

     ‑ Ouves algum rumor? ‑ perguntou Tremal‑Naik ao companheiro, com um fio de voz.

     ‑ Nenhum, patrão, a não ser o dos trovões.

     ‑ É sinal de que o suplício ainda não começou.

     ‑ Penso que sim, patrão. Os indianos fazem um grande barulho quando praticam o onugonum.

     ‑ No entanto, o meu coração bate como se quisesse despedaçar‑se.

     ‑ É a emoção, patrão.

     ‑ Achas que chegaremos ao pagode?

     ‑ E porque não?

     ‑ Receio perder‑me nestes corredores. Dir‑se‑ia que neste supremo instante tenho medo.

     ‑ É impossível. Medo, tu?

     ‑ E, no entanto, é mesmo assim. Não sei se é a febre, se a profunda emoção que se apoderou de mim.

     ‑ Coragem, patrão, e vamos para a frente, devagar, devagar. Se alguém nos ouve, pode dar o alarme e fazer cair sobre nós todos os misteriosos habitantes destas tenebrosas cavernas.

     ‑ Bem sei, Kammamuri; segura o tigre.

     Tremal‑Naik pousou os pés num degrau escorregadio e começou a descer, com as mãos estendidas para a frente, para não esbarrar em algum obstáculo, e com os olhos bem abertos. Depois de ter descido dez degraus, encontrou o plano duma galeria que descia suavemente.

     ‑ Vês alguma coisa? ‑ perguntou a Kammamuri.

     ‑ Nada; parece que fiquei cego. Será este o caminho que leva ao pagode?

     ‑ Não sei, Kammamuri. Daria metade do meu sangue para poder acender uma luz. Que situação desgraçada!

     ‑ Para a frente, patrão. Receio que a meia‑noite esteja próxima.

     Tremal‑Naik sentiu as carnes arrepiarem‑se e o coração bater com extraordinária violência.

     ‑ Que horror! ‑ exclamou, com voz sufocada. ‑ A meia‑noite!

     ‑ Silêncio, patrão, podem ouvir‑nos.

     Tremal‑Naik emudeceu, sufocando um gemido, e lançou‑se resolutamente para a frente, cambaleando como um homem embriagado, procurando as paredes com as mãos.

     À medida que avançava, apoderava‑se dele uma estranha perturbação. Sentia o sangue zumbir‑lhe nos ouvidos, o coração bater cada vez com mais força.

     Momentos havia em que lhe parecia ouvir vozes ao longe, gritos dilacerantes lançados por pessoas torturadas, e tinha a impressão de distinguir luzes, chamas, e até sombras, a moverem‑se à volta delas e a rodopiar nas trevas.

     Abandonara toda a prudência e caminhava rapidamente, aos saltos, com os punhos cerrados, tomado por uma espécie de delírio. Não ouvia sequer a voz de Kammamuri, que lhe pedia que refreasse a exaltação. Felizmente, o fragor dos raios repercutia‑se nas arcadas sombrias, sufocando o rumor dos passos.

     De súbito, o caçador de serpentes chocou com um objecto aguçado, que lhe rasgou o fato, tocando‑lhe na carne. Deteve‑se, recuando.

     ‑ Quem está aí? ‑ perguntou ele, com voz estrídula, empunhando o cutelo e levantando‑o.

     ‑ Que encontraste? ‑ perguntou o marata, que se preparava para lançar Darma para a frente.

     ‑ Está alguém junto de nós, Kammamuri. Em guarda!

     ‑ Viste alguma sombra?

     ‑ Não, mas choquei com uma lança. A ponta tocou‑me no peito e por pouco não me feri.

     ‑ Mas Darma não dá sinais de inquietação.

     ‑ Ter‑me‑ei enganado? Não é possível.

     ‑ Voltamos para trás?

     ‑ Nunca. Está talvez a dar a meia‑noite. Para a frente, Kammamuri.

     Tentou lançar‑se para a frente e sentiu a mesma ponta aguda, que, desta vez, se lhe enterrou nas carnes. Soltou uma imprecação surda e estendeu a mão direita, agarrando uma espécie de lança estendida horizontalmente à altura do seu peito.

     Experimentou puxá‑la para si, mas a lança resistiu; tentou torcê‑la, mas não o conseguiu. Tremal‑Naik deixou escapar uma exclamação de surpresa.

     ‑ Que significa isto? ‑ murmurou ele.

     ‑ Que é, patrão? ‑ perguntou Kammamuri. ‑ De que obstáculo se trata?

     ‑ Uma lança que não sou capaz de tirar, talvez espetada na parede. Façamos um desvio.

     Voltou à direita, e alguns passos adiante encontrou uma segunda lança, também fixa. A sua surpresa chegou ao cúmulo.

     “É talvez uma obra de defesa”, pensou, “ou talvez algum instrumento de tortura. Voltemos à esquerda. Hei‑de encontrar algum caminho para avançar.”

     Caminhou alguns passos e depois esbarrou com a cabeça numa abóbada bastante baixa e pôs os pés num degrau. Desceu quatro ou cinco deles, com precaução, e depois parou. A sua mão encontrou a de Kammamuri e apertou‑a com força.

     ‑ Ouves, patrão? ‑ perguntou o marata.

     ‑ Sim, ouço ‑ respondeu Tremal‑Naik, em voz baixa.

     ‑ Que é este murmúrio?

     ‑ Não sei, cala‑te e escuta.

     Apuraram o ouvido, sustendo a respiração. Coisa, de facto, estranha: sobre as suas cabeças ouvia‑se uma espécie de borbulhar, que o eco da galeria repetia.

     Um momento depois, debaixo da abóbada, apareceu um disco levemente iluminado, que quase logo se apagou. Atrás dele, ouviu‑se um estrondo surdo.

     Kammamuri e Tremal‑Naik sentiram‑se invadir por uma viva inquietação e aperraram as pistolas.

     Passaram alguns minutos e o disco reapareceu e voltou a desaparecer, seguido sempre do misterioso ribombar.

     ‑ Percebes alguma coisa? ‑ perguntou o marata.

     ‑ Julgo que sim ‑ respondeu Tremal‑Naik. ‑ Este gotejar e aquele murmúrio fazem suspeitar da presença da água. Sobre as nossas cabeças corre talvez um rio.

     ‑ E aquele disco que aparece e desaparece?

     ‑ É talvez uma lente de vidro ou de quartzo. O clarão provem dos relâmpagos e o ribombar é o trovão que crepita lá fora.

     ‑ Achas que sim, patrão?

     ‑ Seja verdade, seja mentira, não recuarei um passo. A meia‑noite está próxima.

     ‑ Estamos num lugar horrível, patrão. Estou a tremer como se tivesse frio. Este silêncio e estas trevas metem‑me medo.

     ‑ Darma está inquieto?

     ‑ Não, patrão, está tranqüilo.

     ‑ É sinal de que o inimigo ainda não está perto. Vamos para a frente.

     Retomaram a marcha por entre as trevas frias e úmidas, subindo e descendo, batendo muitas vezes com a cabeça nas abóbadas, caminhando desordenadamente, seguidos sempre pelo tigre, que ainda não dava qualquer sinal de inquietação.

     Passaram assim mais dez minutos que lhes pareceram horas. Os dois indianos já julgavam ter tomado por um caminho errado e estavam para voltar atrás, quando, ao chegarem a uma curva, viram uma grande fogueira a arder no meio da galeria. Ao pé dela, Tremal‑Naik viu um indiano seminu, apoiado numa espécie de azagaia, com a misteriosa serpente na extremidade. Um suspiro de alívio escapou‑se‑lhe dos lábios.

     ‑ Finalmente ‑ murmurou ele. ‑ Começava a recear que me tivesse metido numa caverna desabitada. Atenção, Kammamuri.

     ‑ Temos o inimigo à vista?

     - Sim, está ali um indiano.

     ‑ Oh! ‑ exclamou o marata, com um arrepio.

     ‑ Aquele homem barra‑nos o caminho; matá‑lo-emos.

     ‑ Não é possível evitá‑lo?

     ‑ Sim, voltando para trás, mas Tremal‑Naik nunca volta atrás.

     ‑ Farás barulho, ele gritará e cair‑nos‑ão todos em cima.

     ‑ Aquele homem está de costas para nós e Darma tem o passo silencioso.

     ‑ Está em guarda, patrão.

     ‑ Estou pronto para tudo, até para lutar contra mil homens.

     Inclinou‑se para o tigre, que fixava ferozmente o indiano, mostrando os dentes afiados e as longas garras.

     ‑ Vês aquele homem, Darma? ‑ disse Tremal‑Naik.

     O tigre emitiu um rugido surdo.

     ‑ Vai e despedaça‑o, meu amigo.

     Darma olhou para o patrão e depois para o indiano. Os seus olhos dilataram‑se e como que se incendiaram. Compreendera aquilo que o caçador de serpentes desejava.

     Baixou‑se, até tocar com o ventre na terra, olhou uma última vez para Tremal‑Naik, que lhe apontava o indiano, e afastou‑se com passos silenciosos, abanando levemente a cauda, como um gato encolerizado. O indiano não tinha visto nem ouvido coisa alguma, estando, como estava, de costas para o fogo. Quase se diria que tinha adormecido apoiado na lança.

     Tremal‑Naik e o marata, com as carabinas na mão, seguiam ansiosamente os movimentos de Darma, que fixava com olhos ardentes a vitima, e avançava com precaução. Os seus corações batiam com força, por causa do medo que sentiam. Bastava um grito do indiano para que o alarme se espalhasse nos subterrâneos e a audaz empresa se desfizesse como um castelo de cartas.

     ‑ Conseguirá? ‑ murmurou o marata ao ouvido de Tremal‑Naik.

     ‑ Darma é inteligente ‑ respondeu o caçador de serpentes.

     ‑ E se falha?

     Tremal‑Naik sentiu um arrepio.

     ‑ Dar‑lhes‑emos batalha ‑ disse depois, com voz firme. ‑ Cala‑te e olha.

     O indiano ainda não ouvira nada, tão silencioso era o passo do feroz animal; de súbito, este parou, recolhendo‑se sobre si próprio.

     Tremal‑Naik agarrou com força a mão de Kammamuri. O tigre estava apenas a dez passos do indiano.

     Passaram dois segundos, depois o tigre deu um salto tremendo. O homem e o animal caíram por terra e ouviu‑se um surdo ranger de ossos a quebrar‑se.

     Tremal‑Naik e Kammamuri lançaram‑se para o fogo, apontando as carabinas em direcção ao corredor.

     ‑ Bravo, Darma ‑ disse Tremal‑Naik, passando‑lhe uma mão pelo dorso forte.

     Aproximou‑se do indiano e levantou‑o. O desgraçado já não dava sinais de vida e estava alagado em sangue. O tigre esmagara‑lhe a cabeça com os dentes.

     ‑ Está mesmo morto ‑ disse Tremal‑Naik, deixando‑o cair de novo. ‑ Darma não podia dar o golpe com maior destreza. Verás, Kammamuri, que com este valente companheiro faremos grandes coisas. Parece‑me que a salvação daquela que amo será agora coisa fácil.

     ‑ É o que eu penso também, patrão. Será um belo golpe, quando Darma se atirar para o meio do bando: pô‑los‑emos todos em fuga.

     ‑ E nós aproveitaremos para raptar Ada.

     ‑ E para onde a levaremos?

     ‑ Para a cabana: depois veremos se será melhor conduzi‑la a Calcutá ou mais longe ainda.

     ‑ Silêncio, patrão!

     ‑ Que é?

     ‑ Escuta!

     Ao longe, ouviu‑se uma nota aguda. Os dois indianos logo a reconheceram.

     ‑ O ramsinga! ‑ exclamaram.

     Uma pancada surda e formidável ecoou pelos corredores, repercutindo‑se várias vezes. Era um estrondo semelhante ao que ouviram na noite em que aproaram a Rajmangal para procurar Hurti, e que tanto os tinha surpreendido.

     Tremal‑Naik estremeceu da cabeça aos pés e teve a impressão de que as suas forças centuplicavam. Deu um salto de tigre, levantando a carabina.

     ‑ Meia‑noite! ‑ exclamou ele, com um tom de voz que nada tinha de humano. - Oh, minha namorada!

     Não soube dizer mais nada. Deu um grito sufocado e avançou furiosamente pela galeria seguido por Kammamuri e pelo tigre.

     Mais parecia uma fera do que um homem. Tinha os olhos injectados de sangue, espuma nos lábios e na mão direita brandia o cutelo, pronto a romper todos os obstáculos. Não tinha medo de ninguém. Nem mil indianos o teriam detido na sua louca correria.

     O tambor continuava a rufar, despertando todos os ecos das cavernas e das galerias, tocando a reunir os sectários da misteriosa deusa, enquanto ao longe se ouviam as notas agudas do ramsinga e um confuso murmúrio de vozes. O momento terrível aproximava‑se; a meia‑noite estava para soar.

     Tremal‑Naik redobrava de velocidade, pouco lhe importando que os seus passos precipitados fossem ouvidos.

     ‑ Ada! ‑ ia murmurando, enquanto se atirava com a fúria dum touro pelas galerias, que se sucediam umas às outras.

     Um imenso clarão apareceu ao fundo e um vozear de gritos ressoou nos subterrâneos.

     ‑ Ei‑los! ‑ gritou Tremal‑Naik, com voz sufocada.

     Kammamuri lançou‑se sobre ele e, reunindo todas as suas forças, deteve‑o.

     ‑ Nem mais um passo! ‑ disse.

     Tremal‑Naik voltou‑se para ele, rangendo os dentes.

     ‑ Que queres dizer? ‑ perguntou‑lhe em tom feroz.

     ‑ Se tens amor à vida da tua Ada, nem mais um passo ‑ repetiu Kammamuri, agarrando‑se a ele.

     ‑ Deixa‑me, marata, deixa‑me! Tenho febre... assalta‑me o delírio!

     ‑ É justamente porque estás fora de ti que não quero que avances mais. Se irrompes naquela caverna antes do tempo, estamos perdidos. Domina‑te, patrão, e salvá‑la‑emos na mesma.

     ‑ Achas que sim? ‑ perguntou Tremal‑Naik. ‑ Tenho o coração aos pulos no meu peito e o sangue ferve‑me nas veias. Sinto‑me tão forte que seria capaz de derrubar estas paredes e de sepultar nos escombros todos aqueles monstros. Ouves? Não ouviste aquele grito dilacerante?

     ‑ Não ouvi nada; estás enganado.

     ‑ Pareceu‑me ouvir a sua voz.

     ‑ É o delírio. Está calmo, patrão, se queres salvá‑la.

     ‑ Estarei calmo, mas não fiquemos aqui, Kammamuri.

     ‑ Não, não ficaremos. Vem comigo, mas, se cometes alguma imprudência, eu abandono‑te. Dá‑me a tua mão.

     Kammamuri agarrou a mão esquerda de Tremal‑Naik e avançaram para a caverna. Pouco depois, paravam atrás duma coluna enorme, donde podiam ver sem ser vistos.

     Um estranho espectáculo se ofereceu aos seus olhos.

     Diante deles abria‑se uma vastíssima caverna, escavada no granito vermelho, como os famosos templos de Elora, sustentada por vinte e quatro colunas adornadas por esculturas mais ou menos bizarras, por cabeças de elefantes, por cabeças de leões e pelas imagens de vários deuses. Aos pés das colunas viam‑se Parvati, deusa da morte, sentada sobre um leão, e a deusa Ganesha, com os seus oito braços, sentada entre dois elefantes, que uniam as trombas por cima da sua cabeça.

     Nos quatro ângulos, estavam as estátuas de Xiva e ao meio uma deusa monstruosa com uma língua vermelha a sair‑lhe da boca, um cinto de mãos e um colar de crânios, uma deusa semelhante àquela que Tremal‑Naik vira no pagode.

     Da abóbada, coberta de altos‑relevos representando os combates de Rama com o tirano Ravana, raptor da bela Sita, e as guerras dos Curos e dos Pandus, que durante muito tempo se bateram pela posse da Varca, pendiam numerosas lâmpadas de bronze, que espalhavam à sua volta uma luz azulada, lívida e cadavérica.

     Quarenta indianos seminus, com a serpente tatuada sobre o peito, o laço de seda atado à volta dos rins e o punhal na mão, estavam sentados em círculo, à maneira dos muçulmanos, isto é, com as pernas cruzadas, olhando para a monstruosa divindade de bronze. Um deles tinha junto a si um enorme tambor, um hauk, ornado de plumas e crinas, e de quando em quando tocava‑o, fazendo ressoar as abóbadas da caverna.

     Tremal‑Naik, como se disse, parara atrás da colossal coluna, surpreendido e aterrado ao mesmo tempo, mas apertando convulsamente as armas.

     ‑ Ada! ‑ murmurou ele, percorrendo com um único olhar toda a caverna. ‑ Onde está a minha Ada?

     Um raio de alegria brilhou nos olhos do pobre indiano.

     ‑ O sacrifício ainda não começou! ‑ exclamou ele - Xiva seja louvado.

     ‑ Não fales tão alto, patrão ‑ disse Kammamuri, apertando o pescoço do tigre. ‑ Se todos os indianos que habitam os subterrâneos não são mais do que estes, não será impossível raptar a tua dama.

     ‑ Sim, sim, salvá‑la‑emos, Kammamuri ‑ exclamou Tremal‑Naik, com exaltação. ‑ Faremos um horrível massacre.

     ‑ Calado

     O hauk batia doze pancadas e os quarenta indianos tinham‑se levantado, como um só homem.

     Tremal‑Naik sentiu o coração apertar‑se‑lhe e agarrou‑se à coluna, como se receasse não ser capaz de se dominar.

     ‑ Meia‑noite! ‑ disse ele, com voz sufocada.

     ‑ Calma, patrão ‑ disse pela última vez Kammamuri, agarrando‑o pela cintura.

     Nisto, abriu‑se, com grande estrondo, uma porta e um indiano de alta estatura, muito magro e com o rosto ornado de uma negra barba comprida, com os olhos cintilantes e envolvido num rico dootée de seda amarela, entrou na caverna.

     ‑ Salve, Suyodhana, filho das sagradas águas do Ganges!! ‑ exclamaram em coro os quarenta indianos.

     ‑ Salve, Cali e todos os seus filhos ‑ respondeu o indiano, com voz sombria.

     Ao ver aquele homem, Tremal‑Naik soltou uma surda imprecação e tentou atirar‑se para a caverna. Kammamuri puxou‑o para trás.

     ‑ Não te mexas, patrão ‑ sussurrou‑lhe.

     ‑ Olha aquele homem! ‑ exclamou Tremal‑Naik, com os dentes cerrados.

     ‑ Sim, bem sei, é o chefe destes homens.

     ‑ É o homem que me apunhalou.

     ‑ Ah, miserável!

    Suyodhana entrou rapidamente no templo. Inclinou‑se diante da monstruosa divindade de bronze e, voltando‑se para os indianos, gritou, com voz forte:

     ‑ Irmãos, a hora extrema da “Virgem do Pagode” soou. Manciadi morreu.

     Um murmúrio ameaçador percorreu as filas dos indianos.

     ‑ Soprem nos taré ‑ ordenou o terrível chefe dos estranguladores. Dois indianos pegaram em longas trombetas e extraíram delas algumas notas tristes e lamentosas.

     Cem indianos carregados de lenha irromperam na caverna e levantaram, diante da deusa, ao pé da colunata, uma gigantesca pira, sobre a qual derramaram torrentes de óleo perfumado.

     Um grupo de devadassis irrompeu na sala, piruetando e fazendo soar pequenas campainhas e argolas de prata, e rodeou a deusa Cali.

     Os trajes destas bailarinas eram faustosos, cheios de graça, e revelavam‑se extremamente aptos para fazer realçar a sua beleza e a sua graça. Finíssimas couraças de ouro cravejadas de diamantes brilhavam‑lhes sobre o peito; da larga faixa de caxemira que lhes cingia a cintura pendiam pequenas saias, enquanto até aos pés lhes desciam calças brancas como a neve. Traziam nos braços e nas pernas anéis de prata e pequenas campainhas do mesmo metal; as suas cabeças encontravam‑se cobertas por ligeiros véus de cores vivíssimas.

     Ao som do hauk e dos fúnebres taré, iniciaram, à volta da deusa Cali, uma dança desenfreada, fazendo drapejar nos ares os seus véus de seda azul e cor‑de‑rosa e formando uma trama de surpreendente efeito, cheio de magia.

     De súbito, a dança parou. As devadassis desfilaram perante a deusa, tocando com a cabeça no chão, e retiraram‑se para um dos lados, unindo‑se num grupo soberbo e pitoresco.

     Os indianos, que tinham voltado a sentar‑se, a um sinal de Suyodhana, tornaram a pôr‑se de pé. Tremal‑Naik compreendeu que o suplício estava para começar.

     ‑ Kammamuri ‑ balbuciou o infeliz, apoiando‑se à coluna. ‑ Kammamuri!

     ‑ Calma e coragem, patrão ‑ disse o marata, que batia os dentes.

     ‑ Tenho a cabeça à roda e o meu coração estala... Ada!

     Ao longe, ecoou um rufar de tambores, Tremal‑Naik endireitou‑se, com os olhos em chamas e os punhos cerrados na coronha das pistolas.

     ‑ Ei‑los! ‑ rugiu ele, com um indefinível tom de voz que ressumava ódio.

     Os tambores aproximavam‑se e o seu rufar repercutia‑se indefinidamente sob as abóbadas negras da caverna e pelos corredores tenebrosos. Bem depressa se ouviram vozes dissonantes e selvagens, acompanhadas pelo som dos tantas.

     ‑ Ei‑los! ‑ exclamou, pela segunda vez, Tremal‑Naik.

     O tigre soltou um rugido surdo e agitou a cauda.

     Abriu‑se uma grande porta e entraram dez estranguladores, com grandes vasos de terracota cobertos de peles. Atrás daqueles dez entraram mais vinte, com grandes gautha, uma espécie de campainhas de bronze, e depois mais doze munidos de Ramsinga, de taré e de tam-tans.

     Finalmente, atrás daqueles homens, que, tocando os tam-tans, agitando os gautha e soprando nos ramsinga e taré, faziam um barulho ensurdecedor, apareceu a infeliz Ada, com a sua couraça de ouro cravejada de diamantes de inestimável valor, com a sotaina e os calções de seda branca e os cabelos caídos sobre os ombros.

     A vítima, que aqueles homens impiedosos se preparavam para atirar para o meio da fogueira, estava pálida como um cadáver, extenuada pelos longos jejuns e drogada pelas bebidas saturadas de ópio que antes lhe tinham feito engolir.

     Dois estranguladores cobertos por uma longa túnica de seda amarela amparavam‑na e outros dez vinham atrás dela, cantando elogios ao seu heroísmo e prometendo‑lhe infinitas felicidades no paraíso de Cali, em recompensa das suas virtudes.

     Aproximava‑se o momento terrível. Já Suyodhana deitara fogo à pira e as chamas se erguiam, como enormes serpentes, para a abóbada da caverna; já os estranguladores, ensurdecendo‑a com mil gritos, a arrastavam; já os tambores e os taré entoavam a marcha da morte.

     De súbito, a vitima voltou a si. Viu a pira flamejante diante dos olhos e apercebeu‑se do perigo que corria. Através da embriaguez do ópio, recordou‑se da condenação pronunciada pelo feroz Suyodhana. Um grito lancinante irrompeu‑lhe do peito.

     ‑ Tremal‑Naik.... Oh, Tremal‑Naik!

     Ao fundo do negro corredor, ribombou um grito feroz:

     ‑ Ataca, Ataca!

     O grande tigre de Bengala só esperava aquela ordem. Saiu do esconderijo com a boca aberta e as garras estendidas, esticou‑se, encolheu‑se, emitiu um rugido rouco, e depois deu um salto gigantesco, caindo no meio da multidão dos estranguladores.

     Um grito de terror escapou de todas as bocas, à vista do feroz carnívoro, que, com dois poderosos golpes, derrubara já dois homens.

     ‑ Ataca... Ataca! ‑ repetiu a mesma voz.

     Em seguida, ribombaram quatro detonações que fizeram tombar para sempre quatro indianos e fizeram cair de joelhos todos os outros. No meio da nuvem de fumo apareceu o caçador de serpentes da floresta negra, com o rosto desfigurado e o punhal na mão.

     Romper com fúria irresistível pelas fileiras dos indianos aterrados, agarrar a jovem, que caíra por terra sem sentidos, apertá‑la nos braços e desaparecer debaixo da galeria, com Kammamuri e o tigre atrás, foi obra de um momento.

 

                           O triunfo dos estranguladores

     Os subterrâneos de Rajmangal, habitados pelos sequazes de Cali, eram enormes, bastante mais talvez do que os famosos subterrâneos de Mavalipuran e de Elora.

     Galerias imensas sulcavam o subsolo em mil direcções, algumas delas tão baixas que, nelas, um homem não conseguia pôr‑se de pé, outras altas e vastas, umas direitas, outras tortuosas, subindo até tocar na superfície pantanosa da ilha ou descendo até às entranhas da terra.

     Aqui, antros horríveis, úmidos, frios, escuros, desabitados desde há séculos; ali, espeluncas, pagodes adornados de monstruosas e bizarras figuras da mitologia indiana e cheios de colunatas: mais além, poços que conduziam a subterrâneos ainda mais tenebrosos e talvez ainda ignorados dos estranguladores.

     Terminado o golpe, Tremal‑Naik lançara‑se por debaixo das negras abóbadas da primeira galeria que encontrou à sua frente, seguido por Kammamuri e pelo tigre.

     Não sabia onde ela iria dar, mas não se importava com isso. Não se via nada, mas ele nem por um momento pensava nesse pormenor.

     A ele bastava fugir, interpor entre si e os estranguladores o maior espaço possível, antes que se refizessem da surpresa e do terror causado pelo inesperado aparecimento do tigre, antes que organizassem a caça ao homem.

     Deitara fora uma parte das suas munições, para ficar mais leve, e corria com a máxima velocidade, sem se desviar.

     Apertava entre os braços a jovem desmaiada e, pondo o máximo cuidado em a preservar de qualquer choque, repetia de quando em quando:

     ‑ Salva! Salva! Eu endoideço!

     Na própria excitação ia encontrar as forças; aquele fardo parecia‑lhe mais leve e precipitava ainda mais a velocíssima fuga, receoso de ser alcançado pelos seus ferozes inimigos.

     Kammamuri seguia‑o a muito custo, cambaleando na escuridão, ladeado pelo fiel Darma, que fendia o espaço com saltos enormes, emitindo de quando em quando um rugido surdo.

     ‑ Mais devagar, patrão ‑ repetia o pobre marata. ‑ Eu perco‑me. Mas Tremal‑Naik duplicava ainda a velocidade e respondia invariavelmente:

     ‑ Para a frente! Mais para a frente!... Salva!... Salva!... Eu endoideço!

     Corria já há dez minutos, quando chocou furiosamente contra uma parede que lhe barrava a passagem. O choque foi tão violento que caiu pesadamente por terra, arrastando Ada consigo.

     Levantou‑se prontamente, mantendo sempre apertada nos seus braços a menina, e embateu em Kammamuri, o qual, arrastado pela embalagem que levava, estava para partir a cabeça contra a parede.

     - Patrão ‑ exclamou o marata, aterrado ‑, que aconteceu?

     ‑ O caminho está vedado! ‑ exclamou Tremal‑Naik, olhando ferozmente à sua volta.

     ‑ Detenhamo‑nos, patrão.

     Tremal‑Naik estava para responder quando ao longe se ouviram gritos assustadores. Deu um salto para trás, soltando um grito de raiva e de desespero.

     ‑ Os tugues!

     ‑ Patrão!

     ‑ Corre, Kammamuri, corre!

     Voltou à direita e retomou a corrida, mas, dez passos andados, voltou a esbarrar. Os cabelos puseram‑se‑lhe em pé.

     ‑ Maldição! ‑ exclamou. ‑ Estaremos entaipados?

     Precipitou‑se para a esquerda e chocou contra uma terceira parede.

     O tigre, que também se atirara contra as rochas, Soltou uma rosnadela, que depressa se transformou num formidável rugido.

     Tremal‑Naik voltou‑se para trás. Por instantes veio‑lhe a idéia de voltar atrás para procurar outra galeria, mas o receio de vir a encontrar‑se de caras com os sectários deteve‑o.

     Se estivesse sozinho não teria hesitado em se atirar para o meio da borda que se preparava para o encerrar no antro, embora estivesse certo de sair ferido dessa luta desigual. Mas arriscar‑se, agora, que arrancara à morte aquela que amava, arriscar‑se, agora, que atingira o seu objectivo, aterrorizava-o.

     No entanto, era preciso, a todo o custo, sair daquela caverna, que, dentro de instantes, bem podia transformar‑se num sepulcro.

     ‑ Pesará então sobre mim alguma maldição dos deuses? ‑ exclamou, furioso. ‑ Terei então de morrer, agora, que aperto nos meus braços aquela que devia fazer‑me feliz? Ah, não! Não, Ada, aqueles homens não te apanharão, nem que eu tenha de deixar a vida na batalha!

     Pôs‑se a recuar, com passos lentos, com os olhos fixos na galeria e os ouvidos à escuta; depois, curvou‑se e depôs suavemente por terra a menina. Com gesto rápido tirou do cinto as pistolas e carregou‑as.

     ‑ Darma ‑ disse.

     O tigre aproximou‑se.

     ‑ Fica ao pé desta mulher ‑ ordenou Tremal‑Naik. ‑ Não te mexas senão quando eu te chamar. Se alguém se aproximar, despedaça‑o sem dó nem piedade.

     ‑ Que queres fazer, patrão? ‑ perguntou Kammamuri.

     ‑ É preciso sair daqui ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Iremos procurar uma galeria que nos permita fugir para lugar seguro. Vem, Kammamuri.

     Depois de ter vagueado por algum tempo nas trevas, o marata chegou junto dele. Ouviu‑se o barulho que ele fazia a carregar as pistolas.

     ‑ Estou pronto, patrão ‑ disse.

     ‑ Vamos, meu valente amigo.

     ‑ E se encontramos os tugues?

     ‑ Voltaremos a enfrentá‑los e dar‑lhes‑emos luta.

     Os dois indianos voltaram à galeria e, não sem viva emoção, orientaram‑se. Tremal‑Naik voltou‑se e, na escuridão, viu os olhos verdes do tigre.

     ‑ Posso ir descansado ‑ murmurou. ‑ Não tenhas medo, Ada, nós te salvaremos.

     Abafou um suspiro e avançou, caminhando curvado e na ponta dos pés, tacteando com a mão a parede do lado esquerdo. Kammamuri seguia‑o à distância de cinco passos e tacteava a parede do lado direito. Avançaram durante alguns minutos e depois ambos pararam, sustendo a respiração. Ao fundo da galeria ouvia‑se um leve rumor, quase um murmúrio. Dir‑se‑ia que uma ou mais pessoas avançavam, rastejando como serpentes.

     Tremal‑Naik atravessou a galeria e foi chocar com Kammamuri, que estremeceu.

     ‑ Quem és? ‑ perguntou este em voz baixa, apontando‑lhe ao peito uma pistola.

     ‑ Ouviste? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Ah! És tu, patrão? Sim, ouvi um leve rumor. Alguém avança rastejando.

     ‑ São talvez os estranguladores?

     ‑ Julgo que serão eles, patrão.

     Tremal‑Naik estremeceu da cabeça aos pés e voltou‑se para a caverna. Os olhos do tigre tinham deixado de brilhar. Uma vaga inquietação se apoderou dele.

     ‑ Que acontecerá? ‑ murmurou.

     Deu alguns passos para trás, como se quisesse regressar, mas deteve‑se, ao ouvir a pouca distância uma leve respiração. Agarrou a mão de Kammamuri e apertou‑a com toda a força.

     ‑ Nada? ‑ murmurou uma voz.

     ‑ Nada ‑ respondeu outra voz que mal se ouvia. Perdemos o caminho?

     ‑ Receio que sim.

     ‑ Sabes para onde vamos?

     ‑ Julgo que sim.

     ‑ Há alguma passagem?

     ‑ Não me parece.

     ‑ E esconderijos?

     ‑ Um poço, se bem me lembro.

     ‑ Estarão lá no fundo?

     ‑ É impossível sabê‑lo.

     ‑ Queres continuar?

     ‑ Prefiro voltar atrás.

     ‑ Quem vem connosco?

     ‑ Ninguém. Mas a trezentos passos, parados na curva, estão os nossos irmãos.

     ‑ Então não podem sair daqui?

     ‑ Não, porque os nossos irmãos vigiam.

     ‑ Voltaremos mais tarde e revistaremos a caverna.

     Ouviu‑se um leve roçagar, que pouco a pouco se tornou mais subtil, até parar por completo.

     Tremal‑Naik voltou a agarrar a mão de Kammamuri.

     ‑ Ouviste?

     ‑ Tudo, patrão ‑ respondeu o marata.

     ‑ Temos as saídas todas fechadas.

     ‑ É melhor voltar atrás, patrão.

     ‑ Não sei que dizer.

     ‑ E se forçássemos a passagem? Trezentos passos bem se podem andar sem sermos ouvidos.

     ‑ E Ada?

     ‑ Levo‑a eu e ninguém se atreverá a tocar‑lhe.

     ‑ Mas ao primeiro tiro teremos atrás de nós todos os sectários. O eco propaga‑se rapidamente nestas galerias.

     Tremal‑Naik rasgou o peito com as unhas.

     ‑ Será possível que eu tenha de perder a minha Ada? ‑ murmurou ele, com o desespero na voz.

     ‑ E se descêssemos para o poço? ‑ disse Kammamuri.

     ‑ Para o poço?

     ‑ Sim, não os ouviste falar de um poço? Talvez dê para alguma galeria que nos leve para fora.

     ‑ Se fosse verdade!

     ‑ Voltemos atrás, patrão.

     Tremal‑Naik não esperou que o marata lho repetisse. Alcançou a parede e seguiu‑a até chegar ao antro. O tigre fez ouvir o seu surdo rugir.

     ‑ Cala‑te, Darma ‑ disse ele.

     Aproximou‑se e baixou‑se.

     ‑ Ada, Ada! ‑ repetiu, com viva ansiedade.

     Ninguém respondeu, mas, sob a sua mão, Tremal‑Naik sentiu o corpo gelado da menina. Tacteou até à zona do coração e sentiu‑o bater. Um profundo suspiro escapou‑se‑lhe dos lábios.

     ‑ Não há‑de ser nada ‑ disse ele. ‑ Voltará a si.

     ‑ Julgas que sim, patrão? ‑ perguntou Kammamuri.

     ‑ Sim, voltará a si e dentro de poucos minutos. A emoção por que passou deve ter sido muito forte. Vamos, procuremos o poço, Kammamuri.

     ‑ Deixa isso comigo, patrão. Tu trata da tua Ada e não deixes que ninguém entre no antro.

     Pôs‑se a procurar, andando sucessivamente para a direita e para a esquerda, tacteando, avançando, recuando e baixando‑se muitas vezes. Por quatro vezes foi chocar contra as paredes, sem ter encontrado nada, e outras tantas voltou para junto do patrão. Já desesperava de poder encontrar o poço, quando deu consigo junto de um parapeito, o qual, segundo os seus cálculos, devia erguer‑se quase no meio do antro.

     ‑ Este deve ser o poço ‑ murmurou.

     Levantou‑se e fez deslizar as mãos sobre o pequeno muro, sentindo que a alguns metros do solo se inclinava. Girou à volta dele, depois inclinou‑se sobre o parapeito e olhou para baixo. Só viu ervas.

     ‑ Bem, o poço não tem água e não deve ser muito fundo. Patrão! - chamou ele.

     Tremal‑Naik levantou com precaução a menina e foi ter com ele.

     - Então? ‑ perguntou.

     ‑ Temos sorte. Podemos descer.

     ‑ Há degraus?

     ‑ Não me parece. Desço eu primeiro.

     Atou ao corpo uma corda que trouxera consigo, colocou uma das extremidades nas mãos de Tremal‑Naik e meteu‑se corajosamente no poço, agitando as pernas no vácuo.

     A descida durou um quarto de minuto, quando muito. Kammamuri pousou os pés em terreno sólido, que ressoou como se fosse oco.

     ‑ Alto, patrão ‑ disse ele.

     ‑ Ouves alguma coisa? ‑ perguntou Tremal‑Naik, inclinando‑se sobre o parapeito.

     ‑ Não vejo nem ouço nada. Dá‑me a menina e depois deixa‑te cair cá para baixo. Não são mais de oito pés.

     Ada, ligada por baixo dos braços, passou para as mãos de Kammamuri e depois Tremal‑Naik deixou‑se cair, levando a corda consigo.

     ‑ Achas que nos encontrarão aqui? ‑ perguntou o marata.

     ‑ Talvez, mas suponho que a defesa será fácil.

     ‑ Haverá alguma passagem?

     ‑ Não penso, mas, de qualquer modo, veremos isso mais tarde. Tu ficas aqui com o tigre; eu acendo a tocha que trouxe e tentarei fazer voltar Ada a si.

     Voltou a pegar na menina e levou‑a para uma distância de cinqüenta passos, enquanto o tigre, com um grande salto, se precipitava no poço, estendendo‑se ao lado do marata.

     Tirou a larga faixa de caxemira, estendeu‑a por terra e sobre ela depôs a menina, ajoelhando‑se ao lado dela. Depois acendeu uma pequena tocha resinosa.

     Uma luz azulada iluminou o subterrâneo. Este era grande e tinha paredes de pedra, fendidas nalguns sítios e bizarramente esculpidas. Também a abóbada estava adornada de esculturas representando cabeças de elefantes e divindades indianas. Era mais alta no centro, junto à abertura do poço, formando uma espécie de funil invertido.

     Tremal‑Naik, extremamente comovido, pálido e a tremer, curvou‑se sobre a menina e desapertou‑lhe a couraça de ouro, cujos diamantes soltavam reflexos de luz. Aquela bela criatura estava fria como o mármore e branca como o alabastro. Tinha os olhos fechados e olheiras azuladas: os seus traços estavam alterados e os lábios semi-abertos deixavam ver os dentes, alvos de neve: dir‑se‑ia que estava morta. Tremal‑Naik levantou‑lhe delicadamente os cabelos negros e compridos, que lhe caíam sobre a nívea fronte, e contemplou‑a por instantes, sustendo a respiração.

     Depois tocou‑lhe levemente na testa, e aquele contacto arrancou à jovem um leve suspiro.

     ‑ Ada! Ada!... ‑ exclamou o indiano.

     A cabeça da jovem, inclinada para um dos ombros, levantou‑se lentamente, depois abriu as pálpebras e o seu olhar fixou‑se no rosto de Tremal‑Naik. Dos lábios escapou‑lhe um grito.

     ‑ Reconheces‑me, Ada? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Tu..., tu aqui, Tremal‑Naik!... ‑ exclamou ela, com voz fraca. - Não..., não é possível... O meu Deus, faz que não seja um sonho!

     Inclinou a cabeça sobre o peito e rompeu num pranto desfeito.

     - Ada! ‑ murmurou Tremal‑Naik, aterrado. ‑ Porque choras?... Já me não amas?

     ‑ Mas és tu, és mesmo tu, Tremal‑Naik?

     ‑ Sim, Ada, sou eu, eu que cheguei a tempo de te salvar.

     Ela voltou a erguer o rosto, banhado de lágrimas. As suas pequenas mãos apertaram afectuosamente as do valente indiano.

     ‑ Não, não é um sonho! ‑ exclamou ela, rindo e chorando ao mesmo tempo. ‑ Sim, és tu, és mesmo tu!... Mas onde estou?... Por que estas paredes úmidas?... Por que aquela tocha?... Tenho medo, Tremal‑Naik...

     ‑ Estás ao pé de mim, Ada, protegida dos golpes dos inimigos. Não tenhas medo, que eu defendo‑te.

     Ela olhou‑o fixamente por alguns instantes, depois tornou‑se mais pálida do que um cadáver e estremeceu toda.

     ‑ Terei sonhado? ‑ murmurou ela.

     ‑ Não sonhaste, não ‑ disse Tremal‑Naik, que lhe adivinhou os pensamentos. ‑ Estavam para te sacrificar à sua horrível divindade.

     ‑ Sacrificar‑me... Sim, sim, lembro‑me de tudo. Tinham‑me obnubilado a razão, tinham‑me prometido a felicidade no paraíso de Cali. Sim, sim, recordo que me arrastavam por debaixo das galerias, me atordoavam com os seus gritos, o fogo ardia diante de mim, estavam para me atirar às chamas... Que horror! Tenho medo! Tenho medo, Tremal‑Naik.

     O indiano respondeu‑lhe, com voz comovida:

     ‑ Não tremas, errante “Virgem do Pagode”, estás ao pé de mim, ao pé do caçador de serpentes, que nunca teve medo, estás defendida pelo braço forte de Kammamuri e pelas garras do meu fiel Darma.

     ‑ Não, não terei medo a teu lado, valoroso Tremal‑Naik. Mas como é que tu estás aqui? Como conseguiste chegar a tempo de me salvar? Que aconteceu depois daquela horrível noite em que fui tirada do pagode? Sofri tanto de então para cá, Tremal‑Naik. Quantas lágrimas, quantas angústias, quantos tormentos. Julgava que os miseráveis te tivessem assassinado e já tinha perdido toda a esperança de voltar a ver aquele que tinha prometido salvar‑me.

     ‑ E julgas que eu não sofri na minha floresta, longe de ti? Julgas que não passei tormentos indizíveis quando, ferido no peito pelo punhal dos assassinos, definhava, impotente, no fundo do meu leito?

     ‑ Oh! Tu, apunhalado?

     ‑ Sim, mas já só tenho a cicatriz.

     ‑ E voltaste outra vez a esta ilha maldita?

     ‑ Sim, Ada, e teria vindo, mesmo que soubesse que não voltaria vivo para a minha floresta. Um miserável confessou‑me que tu corrias o perigo de ser sacrificada à divindade destes homens. E podia eu ficar na floresta negra? Parti, ou, antes, voei, desci a estas cavernas, caí no meio do bando. Assim que te arranquei das garras deles, fugi e escondi‑me aqui com os meus companheiros.

     ‑ Então não estamos aqui sozinhos?

     ‑ Não, temos o valente Kammamuri e Darma.

     ‑ Oh! Eu quero vê‑los, a esses teus companheiros.

     ‑ Kammamuri! Darma!

     O marata e o tigre aproximaram‑se do patrão.

     ‑ Este é Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik ‑, um homem valente.

     O marata caiu aos pés da menina, beijando‑lhe a mão que ela estendia.

     ‑ Obrigada, meu bom amigo ‑ disse ela.

     ‑ Patroa ‑ respondeu Kammamuri ‑, minha boa patroa, eu sou teu escravo, Faze de mim aquilo que quiseres. Serei feliz se perder a minha vida pela tua liberdade e...

     Deteve‑se subitamente e, de um salto, pôs‑se de pé. Tremal‑Naik, apesar da sua extraordinária coragem, estremeceu. Um grande barulho ouvira‑se subitamente ao longe e aproximava‑se rapidamente.

     ‑ São eles que chegam? ‑ perguntou a si próprio Tremal‑Naik, apertando com a mão esquerda a mão da namorada e agarrando com a direita uma pistola.

     O tigre soltou um rugido surdo.

     O rumor aproximava‑se cada vez mais. Passou por cima das suas cabeças, fazendo estremecer as abóbadas do antro, e depois parou de repente.

     ‑ Patrão ‑ murmurou Kammamuri ‑, apaga o fogo.

     Tremal‑Naik obedeceu e todos ficaram sepultados nas trevas. O mesmo barulho voltou a repetir‑se, voltou a passar por cima das suas cabeças, e voltou a cessar, como antes, junto do poço.

     Ada tremeu com tanta força que o indiano se apercebeu disso.

     ‑ Estou eu aqui a defender‑te ‑ disse‑lhe. ‑ Ninguém virá cá abaixo.

     ‑ Mas que é? ‑ perguntou Kammamuri.

     ‑ Não sabes nada, Ada?

     ‑ Este rumor eu já o ouvi ‑ respondeu a menina, com um fio de voz. ‑ Nunca soube o que significasse nem o que pudesse produzi‑lo.

     O tigre emitiu uma segunda rosnadela e olhou fixamente para a abertura do poço.

     ‑ Kammamuri ‑ disse Tremal‑Naik ‑, alguém se aproxima.

     ‑ Sim, o tigre ouviu.

     ‑ Fica ao pé de Ada. Eu vou ver se eles descem.

     A menina agarrou‑se a ele, tremendo, cheia de medo.

     ‑ Tremal‑Naik! Tremal‑Naik! ‑ murmurou ela, em voz que mal se ouvia.

     ‑ Não tenhas medo, Ada ‑ respondeu o indiano, que naquele instante teria lutado contra mil homens.

     Desprendeu‑se dos braços da namorada e aproximou‑se da abertura do poço, com o punhal entre os dentes e a carabina carregada. O tigre seguia‑o, rosnando.

     Mal fizera dez passos quando ouviu um leve crepitar. Passou a mão pela cabeça de Darma, como para lhe recomendar silêncio, e aproximou‑se com mais precaução, parando sob a abertura do poço.

     Olhou para cima, mas a escuridão era demasiado densa para distinguir o que quer que fosse. Escutando bem, surpreendeu um murmúrio de vozes. Dir‑se‑ia que algumas pessoas falavam junto do parapeito.

     ‑ Ei‑los ‑ murmurou ele. ‑ Vamos ajustar contas, Suyodhana.

     Ainda não tinha acabado, quando um clarão iluminou a caverna que ficava por cima. A luz não durou mais de um momento, mas Tremal‑Naik viu, debruçados sobre o poço, seis ou sete indianos.

     Apontou rapidamente a carabina, levantando o cano para o parapeito que lhe ficava defronte.

     ‑ Estão aqui em baixo ‑ disse uma voz.

     ‑ Vi o nosso homem ‑ disse uma outra.

     Tremal‑Naik premiu o gatilho. A detonação foi coberta por um terrível clamor.

     Sobre o poço ribombou um estrépito e, de súbito, todo o barulho cessou. Tremal‑Naik descarregou uma das suas pistolas. Uma exclamação de raiva se lhe escapou dos lábios.

     ‑ Ah, miseráveis! ‑ gritou.

     Kammamuri e Ada correram simultaneamente para ele.

     ‑ Tremal‑Naik! ‑ exclamou a menina, tomando‑lhe a mão. ‑ Estás ferido?

   ‑ Não, Ada, não estou ferido ‑ respondeu o indiano, esforçando‑se por parecer calmo.

     ‑ E aquele barulho?

     ‑ Taparam o poço, mas sairemos daqui, ó minha Ada, prometo‑te.

     Acendeu a tocha e levou a namorada para longe, fazendo‑a sentar sobre a caxemira.

     ‑ Estás cansada ‑ disse‑lhe docemente. ‑ Procura repousar, enquanto nós procuramos uma passagem. Enquanto nós aqui estivermos, não correrás perigo algum.

     A jovem, esgotada por tantas emoções, obedeceu‑lhe, apesar do perigo iminente, e estendeu‑se sobre o xale. Tremal‑Naik e o marata dirigiram‑se para as paredes e puseram‑se a investigar, com profunda emoção, na esperança de encontrarem alguma passagem que lhes permitisse a fuga.

     Coisa estranha e incompreensível: para lá da parede, ouvia-se, de quando em quando, um surdo fragor, igual ao que tinham ouvido pouco antes, e que fazia rosnar o tigre.

     Havia meia hora que procuravam, batendo nas rochas com o punhal e procurando rompê‑las, quando se aperceberam de que a temperatura do antro subira e de que o ambiente estava muito quente. Tremal‑Naik e o marata suavam como se estivessem numa estufa.

     ‑ Que significa isto? ‑ perguntava a si próprio o caçador de serpentes, cheio de inquietação.

     Passou mais meia hora, durante a qual a temperatura continuou a subir. Parecia que das rochas saíam ondas de fogo. Bem depressa aquele calor se tornou insuportável.

     ‑ Quererão assar‑nos? ‑ perguntou o marata.

     ‑ Já não percebo nada ‑ respondeu Tremal‑Naik, libertando‑se do dubgah.

     ‑ Mas donde vem este calor? Se continua assim, ficaremos assados.

     ‑ Depressa.

     Retomaram as investigações, mas deram uma volta completa à caverna sem ter descoberto qualquer passagem. Todavia, num dos ângulos, a rocha soava a oco. Era possível fendê‑la com os punhais e escavar uma galeria.

     Os dois indianos voltaram para junto da jovem, mas esta dormia. Discutiram brevemente sobre o que deveriam fazer e decidiram proceder imediatamente à sua libertação.

     Empunharam os punhais e atacaram vigorosamente a rocha, mas depressa tiveram de parar. A temperatura tornara‑se ardente e estavam a morrer de sede. Procuraram, para ver se haveria alguma poça de água. Mas não encontraram nem gota. Tiveram medo.

     ‑ Teremos de morrer nesta espelunca? ‑ perguntou de si para si Tremal‑Naik, lançando um olhar desesperado para aquelas rochas que pouco a pouco iam ficando calcinadas.

     Naquele instante, um murmúrio misterioso fez‑se ouvir sobre as suas cabeças e um enorme pedaço de rocha desprendeu‑se da abóbada, caindo no chão com grande fragor. Logo a seguir, do buraco aberto jorrou água em abundância.

     ‑ Estamos salvos! ‑ gritou Kammamuri.

     ‑ Tremal‑Naik ‑ murmurou a menina, que o barulho da água a cair despertara.

    O indiano correu para junto dela.

     ‑ Que queres? ‑ perguntou ele.

     ‑ Estou a sufocar... Falta‑me o ar. Que calor é este que me abrasa? Um golo de água, Tremal‑Naik, dá‑me um golo de água.

     O caçador de serpentes tomou‑a nos seus braços robustos e levou‑a até junto da cascata, onde o marata e o tigre bebiam a largos tragos.

     Fez com as mãos uma espécie de concha, que encheu de água, e aproximou‑a dos lábios da menina, dizendo‑lhe:

     ‑ Bebe, Ada: há para todos.

     Deu‑lhe de beber por várias vezes e depois dessedentou‑se também.

     De súbito, o tigre emitiu um rugido rouco e caiu pesadamente no chão, debatendo‑se furiosamente. Kammamuri, assustado, lançou‑se para junto da fera, mas as forças faltaram‑lhe de repente e caiu de costas com os olhos em alvo, as mãos crispadas e os lábios cobertos duma baba sanguinolenta.

     - Patrão! ‑ balbuciou, com voz apagada.

     ‑ Kammamuri! ‑ gritou Tremal‑Naik. ‑ Grande Kammamuri! Oh, minha Ada!

     A menina, tal como o tigre e Kammamuri, tinha os olhos fora das órbitas, os lábios cheios de espuma e o rosto horrivelmente alterado. Agitou as mãos, procurando agarrar‑se ao pescoço do indiano, abriu a boca, como se quisesse falar, depois fechou os olhos e ficou rígida. Tremal‑Naik: amparou‑a e soltou um grito dilacerante.

     ‑ Socorro! Socorro! Socorro!

     Foi o seu último grito. A vista turvou‑se‑lhe, os músculos ficaram rígidos e um violento estremeção sacudiu‑o da cabeça aos pés; vacilou, ergueu‑se ainda, e depois caiu, como fulminado, sobre as pedras ardentes da caverna, arrastando consigo a namorada.

     Quase no mesmo instante, ouviu‑se um estrondo, e uma multidão de indianos precipitou‑se para o antro, lançando‑se sobre os quatro desgraçados.

 

                                                    A desforra de Tremal-Naik

 

                         O capitão Macpherson

     Era uma magnífica noite de Agosto, uma autêntica noite tropical.

     O ar estava tépido, doce, embalsamado pelo perfume suave dos jasmins, dos chambaçais, das mussendas e dos nagatampos.

     Lá em cima, num céu puríssimo de azul anilado cravejado de miríades de estrelas cintilantes, o astro das noites serenas seguia o seu curso, iluminando fantasticamente a corrente do Hugly, que se desenrolava como uma imensa fita de prata pelas planuras sem fim do delta do Ganges.

     Bandos de marabus volteavam sobre a corrente, pousando numa ou na outra margem, junto dos coqueiros, dos artocarpos, das bananeiras e dos tamarindos, que graciosamente se curvavam sobre as águas.

     Um silêncio fúnebre, misterioso, reinava por toda a parte, quebrado de quando em quando por um sopro de ar que fazia sussurrar as ramagens das árvores, pelo uivar agudo e melancólico do chacal, que vagueava pelas margens do rio, e pelo grasnar dos corvos e dos marabus.

     Embora a hora fosse tardia e mil perigos espreitassem por entre as sombras da noite, um homem estava estendido junto dum grande tamarindo.

     Teria entre trinta e cinco e quarenta anos e trazia farda de capitão dos sipaios, rica em ornatos de ouro e prata. Era alto, de compleição robusta, tinha a pele bronzeada, mas de um escuro bastante menos carregado do que a dos indianos. Adivinhava‑se nele o europeu exposto há longos anos aos calores do sol tropical.

     O seu rosto, ornado de grande barba negra, era altivo, mas a fronte estava sulcada por rugas precoces. Os seus olhos eram grandes, melancólicos, mas por vezes cintilavam de coragem.

     Não falava, mas de vez em quando levantava a cabeça, olhava fixamente a grande corrente do rio, e fazia um movimento de impaciência.

     Decorrera já meia hora, quando ao longe se ouviu ribombar uma detonação. O capitão estendeu a mão para uma carabina cheia de arabescos, com incrustações de prata e de madrepérola, levantou‑se rapidamente e desceu à margem, agarrando‑se às raízes do tamarindo, que saíam da terra como serpentes. Ao norte, aparecera um ponto negro que pouco a pouco se ia aproximando; à volta dele, a água cintilava, 'como se fosse fendida por remos.

     ‑ Ei‑los ‑ murmurou ele.

     Levantou a carabina acima da cabeça e disparou. Um clarão brilhou por cima do ponto negro e ouviu‑se uma terceira detonação.

     “Tudo corre bem”, disse consigo o capitão. “Desta vez espero saber alguma coisa.”

     Uma comoção dolorosa descompôs‑lhe momentaneamente os traços do rosto.

     Voltou a olhar para o ponto negro. Tinha aumentado muito e tomara o aspecto de uma barca que descia o rio apressadamente impulsionada por meia dezena de remos. A bordo viam‑se sete ou oito homens armados.

     Ao cabo de dez minutos, a barca, conduzida por seis indianos munidos de compridas pagaias comandados por um sargento de sipaios chegou a poucas braças da margem. Com alguns golpes de remo, encalhou profundamente entre as ervas.

     O sargento saltou para terra e fez a saudação militar.

     ‑ Levem o mur‑punky para o porto pequeno ‑ disse o capitão aos indianos. ‑ E tu, Bhârata, vem comigo.

     O mur‑punky fez‑se ao largo. O capitão conduziu o indiano para debaixo do tamarindo e ambos se estenderam nas ervas.

     ‑ Estamos sós, capitão Macpherson? ‑ perguntou o sargento.

     ‑ Absolutamente sós ‑ respondeu o capitão. ‑ Podes contar tudo sem receio de que possam ouvir‑nos.

     ‑ Dentro de uma hora, Negapatnan estará aqui.

     Um fluxo de sangue ruborizou o rosto do capitão.

     ‑ Então apanharam‑no? ‑ exclamou, vivamente emocionado ‑ Julgava que me tivessem enganado.

     ‑ É mesmo verdade, capitão. O miserável estava preso há uma semana nos subterrâneos do forte Williams.

     ‑ Têm a certeza de que é um estrangulador?

     ‑ Absoluta, é mesmo um dos chefes mais poderosos.

     ‑ Confessou alguma coisa?

     - Nada, capitão; e, no entanto, fizeram‑lhe passar fome e sede.

     ‑ Como foi apanhado?

     - O bandido tinha‑se escondido nos arredores do forte Williams e ali esperava a sua presa. Seis soldados tinham já caído sob o seu infalível laço e os cadáveres tinham sido encontrados nus e com a misteriosa tatuagem no peito.

     “Há sete dias, o capitão Hall pôs‑se em campo com alguns sipaios, resolvido a descobrir o assassino. Após duas horas de buscas sem resultado, parou à sombra dum borasso, para descansar um pouco.”

     “De repente, sentiu um laço cair-lhe sobre a cabeça e apertar‑lhe o pescoço. Levantou‑se, agarrando firmemente a corda, e atirou‑se sobre o estrangulador, pedindo socorro.”

     “Os sipaios não estavam longe. Caíram sobre o indiano, que se debatia furiosamente, rugindo como um leão, e deitaram‑no por terra.”

     ‑ E dentro de uma hora aquele homem estará aqui? ‑ perguntou o capitão Macpherson.

     ‑ Sim, capitão ‑ respondeu Bhârata.

     ‑ Finalmente!

     ‑ Quer saber algo acerca dele?

     ‑ Sim ‑ exclamou o capitão, que entretanto ficara muito triste.

     ‑ O senhor tem qualquer dor que procura esconder‑me, capitão Macpherson ‑ disse o sargento.

     ‑ É verdade, Bhârata ‑ respondeu Macpherson, com voz surda.

     ‑ Porque não me conta tudo? Talvez lhe possa ser útil.

     O capitão não respondeu. Ficara sombrio e os seus olhos estavam úmidos.

     Via‑se que uma dor atroz tinha esmagado naquele momento o seu ânimo valoroso.

     ‑ Capitão ‑ disse o sargento, comovido por aquela súbita transformação. ‑ Possivelmente, despertei no seu espírito recordações dolorosas? Desculpe, não era essa a minha intenção.

     ‑ Não tenho nada de que te desculpar, meu bom Bhârata ‑ respondeu Macpherson, apertando‑lhe fortemente a mão. ‑ É justo que saibas tudo.

     Levantou‑se, deu três ou quatro passos, com a cabeça inclinada sobre o peito, e depois voltou a sentar‑se ao lado do sargento. Uma lágrima rolou‑lhe silenciosamente pelas faces bronzeadas.

     ‑ Corria o ano de 1853 ‑ disse ele, com voz que em vão se esforçava por manter firme. ‑ Minha mulher morrera há muitos anos, vitimada pela cólera, e deixara‑me uma menina bela como um botão de rosa, com os cabelos negros, os olhos grandes, doces e cintilantes como diamantes.

      “Ainda me lembro de quando ela saltitava pelas aléias do jardim, correndo atrás das borboletas; recordo ainda aquelas tardes em que ela estava sentada a meu lado, à sombra dum grande tamarindo, tocando o sitar e cantando as canções da minha longínqua Escócia. Oh, como era feliz naqueles tempos!... Ada, minha pobre Ada!”

     O pranto sufocou‑lhe a voz. Escondeu a cabeça entre as mãos e, durante alguns minutos, Bhârata ouviu‑o soluçar como uma criança.

     ‑ Coragem, capitão ‑ disse o sargento.

     ‑ Sim, coragem ‑ murmurou o capitão, enxugando as lágrimas, quase com raiva. ‑ Há tanto tempo que eu não chorava. E faz‑me bem, por vezes.

     ‑ Continue, se assim lhe apraz.

     ‑ Tens razão ‑ disse Macpherson, com voz sufocada.

     Ficou por instantes silencioso, como se tivesse dificuldade em se refazer do golpe, e depois continuou:

     ‑ Uma manhã, a população de Calcutá estava vivamente aterrada. Os tugues, ou estranguladores, como se queira, tinham afixado nas paredes e nos troncos das árvores manifestos com os quais advertiam os habitantes de que a sua deusa exigia uma menina para o pagode.

     “Sem saber porquê, estremeci; pressenti que uma desgraça vinha ao meu encontro.”

     “Nessa mesma tarde, fiz embarcar a minha filha e encerrei-a em paredes dentro do forte Williams, seguro de que os tugues não lhe poderiam chegar.”

     “Três dias depois, por incrível que pareça, a minha Ada acordava com a tatuagem dos estranguladores nos braços.”

     ‑ Ah! ‑ exclamou Bhârata, empalidecendo. - E quem a tatuou?

     ‑ Nunca o soube.

     ‑ Quer dizer que um tugue tinha penetrado no forte?

     ‑ Assim deve ter acontecido.

     ‑ Terão filiados entre os nossos sipaios?

     ‑ A seita deles é imensa, Bhârata, e tem filiados em toda a índia, na Malásia e até na China.

     ‑ Continue, capitão.

     ‑ Eu, que até então não soubera o que é o medo, naquele dia comecei a experimentá‑lo. Compreendi que a minha filha fora escolhida pela monstruosa deusa e redobrei a vigilância.

     “Comíamos juntos, eu dormia no quarto ao lado do dela, tinha sentinelas que velavam dia e noite diante da sua porta. Tudo foi inútil; uma noite, a minha filha desapareceu.’

     ‑ A sua filha desapareceu! Mas como?

     ‑ Tinham arrombado uma janela, os estranguladores entraram e raptaram‑na. Os filiados tinham deitado um forte narcótico no nosso vinho e ninguém ouviu nada, nem deu conta fosse do que fosse.

     O capitão deteve‑se, tomado por profunda emoção.

     ‑ Procurei‑a durante longos anos ‑ prosseguiu, após alguns minutos de dolorosa trégua ‑, mas não consegui encontrar nem rasto dela. Os estranguladores tinham‑na levado para o seu inacessível covil.

     “Mudei de nome, tomando o de Macpherson, para Agir Mellior, e empreendi contra eles uma campanha terrível e impiedosa.”

     “Centenas daqueles homens caíram nas minhas mãos e fi‑los morrer entre os mais atrozes tormentos, esperando arrancar‑lhes uma confissão que me pusesse na pista da minha pobre Ada, mas tudo foi em Vão!”

     “Quatro longos anos passaram e a minha filha continua nas mãos daqueles homens.”

     O capitão não se conteve mais e pela segunda vez desatou a soluçar. Ao longe ouviu‑se um toque de trombeta. Ambos se levantaram precipitadamente e correram para o rio.

     ‑ Ei‑los! ‑ gritou Bhârata.

     Dos lábios do capitão Macpherson saiu um rugido surdo e nos seus olhos perpassou um lampejo de alegria feroz.

     Desceu a margem e descobriu, a quinhentos ou seiscentos metros de distância, uma grande canoa que descia a corrente com grande velocidade. A bordo dela viam‑se alguns sipaios, com as baionetas armadas sobre as carabinas.

     ‑ Estás a vê‑lo? ‑ perguntou ele, com os dentes cerrados.

     ‑ Sim, capitão ‑ respondeu Bhârata. ‑ Está sentado à popa, entre dois sipaios e bem algemado.

     ‑ Depressa! Depressa! ‑ gritou o capitão.

     A grande canoa redobrou de velocidade e veio aproar junto do capitão. Dela desembarcaram seis sipaios de rostos bronzeados e altivos, com o capacete, o colar e os punhos recamados de ouro e prata.

     Atrás deles desceram outros dois sipaios, segurando fortemente pelos braços o estrangulador Negapatnan.

     Este era um indiano com uma altura de quase um metro e oitenta, magro e ágil. O seu rosto cor de cobre era barbudo e feroz e os pequenos olhos brilhavam‑lhe como os de uma serpente encolerizada.

     No meio do peito, tatuada a azul, tinha a serpente com cabeça de mulher, rodeada de inúmeros sinais indecifráveis. Um pequeno dubgah de seda amarela cingia-lhe as ancas e uma espécie de turbante, também de seda amarela, terminando num diamante da grossura duma noz, cobria‑lhe a cabeça, perfeitamente rapada e untada com óleo de coco.

     Ao ver o capitão Macpherson estremeceu e uma ruga profunda desenhou‑se‑lhe na fronte.

     ‑ Conheces‑me? ‑ perguntou o capitão, a quem não escapara aquele estremecimento, que fora, aliás, muito rápido.

     ‑ Tu és o pai da “Virgem do Pagode” ‑ respondeu o indiano.

     Uma onda de calor subiu ao rosto do capitão.

     ‑ Ah! Tu sabes isso! ‑ exclamou.

     ‑ Sim, sei que tu és o capitão Harry Corishant.

     ‑ Não, o capitão Harry Macpherson.

     ‑ Sim, porque mudaste de nome.

     ‑ Sabes porque te fiz trazer aqui?

     ‑ Suponho que seja para me fazer falar, mas isso será uma tentativa vã.

     ‑ Isso é assunto que só a mim diz respeito. Para casa, meus valentes, e estai em guarda. Os tugues podem estar próximos.

     O capitão Macpherson recolheu a carabina, carregou‑a e pôs‑se à frente da pequena coluna, tomando por uma vereda aberta entre uma floresta de nagatampos, belíssimas árvores, com cujas flores se ornamentam as belezas de Bengala e cuja madeira é tão dura que lhe mereceu o nome de “pau-ferro”. Tinham já percorrido um quarto de milha sem encontrar ninguém, quando, no meio do bosque, se ouviu o uivo lamentoso do chacal.

     Ao ouvir aquele rumor, o estrangulador levantou vivamente a cabeça e lançou um rápido olhar para a floresta. Os sipaios que caminhavam a seu lado fizeram ouvir uma surda exclamação.

     ‑ Em guarda, capitão ‑ disse Bhârata. ‑ O tugue deu conta de qualquer coisa.

     ‑ Talvez a presença de amigos?

     ‑ Talvez.

     O mesmo grito se fez de novo ouvir, mas com maior força do que da primeira vez. O capitão Macpherson voltou‑se para a direita da vereda.

     ‑ Com mil raios! ‑ exclamou. ‑ Isto não é um chacal.

     ‑ Esteja em guarda ‑ repetiu o sargento. ‑ É um sinal.

     ‑ Apressemos o passo.

     O grupo retomou a marcha, com as carabinas voltadas para ambos os lados da vereda.

     Dez minutos mais tarde, chegava, sem mais incidentes, diante da quinta do capitão Macpherson.

 

                           Negapatnan

     A vivenda do capitão Harry Macpherson erguia‑se na margem esquerda do Hugly, diante dum pequeno porto onde flutuavam vários gonga e alguns mur‑punky.

     Era um daqueles palacetes a que na Índia se chama bangalô, elegante, muito cómodo, com um único andar, erguido sobre uma base de tijolos e com o telhado em forma de pirâmide. Uma galeria apoiada em colunas, chamada varanda, que terminava num amplo terraço, cingia‑a a toda a volta, protegido por espessas esteiras de coqueiro. À direita e à esquerda viam‑se edifícios mais baixos e telheiros destinados a cozinha, a armazém, a cavalariça, e casas para os sipaios, à sombra de taiobas, de latânias, de muitos pipais e nipas, árvores de tronco enorme e de folhagem densa e sombria, que hoje, em grande parte, desapareceram nas grandes planuras do delta do Ganges.

     O capitão Macpherson entrou no palacete, deixando os sipaios à porta, percorreu uma longa fila de salas elegantes, mas mobiliadas com simplicidade, onde se viam enormes cadeirões e mesinhas de acaju, e subiu para o terraço, coberto por um grande toldo. Bhârata não tardou a juntar‑se‑lhe, arrastando à força o estrangulador Negapatnan.

     ‑ Senta‑te e conversemos ‑ disse o capitão, indicando ao estrangulador uma cadeira de finos bambus entrançados.

     Negapatnan obedeceu, fazendo soar as algemas que lhe prendiam os pulsos. Bhârata pôs‑se ao seu lado, colocando à sua frente um par de pistolas.

     ‑ Disseste então que me conheces ‑ disse o capitão Macpherson, fixando sobre o indiano um olhar penetrante como a ponta duma agulha.

     ‑ Disse‑te que és o capitão Harry Corishant ‑ respondeu o estrangulador ‑ o pai da “Virgem do Pagode”.

     ‑ Como me conheces?

     ‑ Vi‑te muitas vezes em Calcutá. Uma noite até te segui, esperando estrangular‑te, mas o golpe falhou.

     ‑ Miserável! ‑ exclamou o capitão, empalidecendo de ira.

     ‑ Não te irrites por tão pouco ‑ disse o estrangulador, sorrindo.

     ‑ Lembras‑te da noite em que a minha filha foi raptada?

     ‑ Como se fosse ontem. Era a noite de 24 de Agosto de 1853. Negapatnan esteve sempre à frente de todas as empresas dos tugues ‑ disse o indiano, com orgulho. ‑ Fui eu que arrombei a janela e raptei a tua filha.

     ‑ Mas tu não tremes ao contar essas coisas ao pai daquela desgraçada?

     ‑ Negapatnan nunca tremeu.

     ‑ Mas eu partir‑te‑ei como uma cana.

     ‑ E os tugues partir‑te‑ão a ti como quem parte um bambu ainda tenro.

     ‑ Isso é o que havemos de ver.

     ‑ Capitão Corishant ‑ disse gravemente o estrangulador ‑, acima dos dominadores da Índia está uma potência oculta e terrível que nada teme. As cabeças dos reis curvam‑se ao sopro da deusa Cali, nossa senhora. Treme!

     ‑ Se é verdade que Negapatnan nunca tremeu, também é certo que o capitão Macpherson nunca teve medo.

     ‑ Dir‑mo‑ás no dia em que o laço de seda te apertar a garganta.

     ‑ E tu dir‑mo‑ás no dia em que o ferro em brasa calcinar a tua carne.

     ‑ Foi para me fazeres morrer na tortura que me fizeste conduzir aqui?

     ‑ Sim, se não revelares o segredo dos tugues. Só por esse preço podes salvar a vida.

     ‑ Ah! Queres fazer‑me falar? E sobre quê?

     ‑ Sou o pai de Ada Corishant.

     ‑ E então?

     ‑ Ainda não perdi a esperança de voltar a tê‑la nos meus braços.

     ‑ Continue.

     ‑ Negapatnan ‑ disse o capitão, com voz comovida ‑, nunca tiveste uma filha, tu?

     ‑ Oh, nunca! ‑ exclamou o estrangulador.

     ‑ Mas, pelo menos, já amaste alguma vez?

     ‑ Nunca, a não ser à minha deusa.

     ‑ Eu amo a minha pobre filha, a tal ponto que daria todo o meu sangue pela sua liberdade. Negapatnan, dize‑me onde ela está, dize‑me onde posso encontrá‑la.

     O indiano ficou impassível como uma estátua de bronze.

     ‑ Dar‑te‑ei a vida, Negapatnan.

     O indiano continuou calado.

     ‑ Dar‑te‑ei todo o ouro que quiseres e levar‑te-ei para a Europa, de modo a poderes escapar à vingança dos teus companheiros. Arranjar‑te‑ei um posto no exército inglês, abrir‑te‑ei o caminho para subires na vida, mas dize‑me onde está a minha Ada.

     ‑ Capitão Macpherson ‑ disse o estrangulador, com o rosto ensombrado ‑, o teu regimento não tem uma bandeira?

     ‑ Sim, mas porque perguntas isso?

     ‑ Não juraste fidelidade àquela bandeira?

     ‑Sim.

     ‑ Serias capaz de a atraiçoar?

     ‑ Oh, nunca!

     ‑ Pois bem, eu jurei fidelidade à minha deusa, que é a minha bandeira. Nem a liberdade que tu me prometes, nem o teu ouro, nem as honrarias abalarão a minha fidelidade. Eu não falarei.

     O capitão Macpherson levantara‑se, apanhando do chão um chicote. Ficara vermelho como uma brasa e os seus olhos brilhavam de raiva.

     ‑ Réptil monstruoso! ‑ exclamou, furioso.

     ‑ Não me toques com esse chicote, pois eu sou descendente dum rajá - gritou o estrangulador, contorcendo as cadeias.

     Em resposta, o capitão Macpherson levantou o chicote e traçou no rosto do prisioneiro um sulco sangrento.

     ‑ Mata‑me ‑ disse este, com um tom de voz que nada tinha de humano. ‑ Mata‑me, porque, se o não fizeres, arrancar‑te‑ei as carnes dos ossos aos bocados.

     ‑ Sim, monstro, matar‑te‑ei, não tenhas medo, mas lentamente, gota a gota. Bhârata, arrasta‑o para o subterrâneo.

     ‑ Devo torturá‑lo? ‑ perguntou o sargento.

     O capitão Macpherson hesitou.

     ‑ Ainda não ‑ disse depois. ‑ Deixá‑lo‑ás vinte e quatro horas sem comer nem beber, para começar.

     Bhârata agarrou o estrangulador pela cintura e levou-o, sem que este opusesse resistência.

     O capitão Macpherson, atirando para longe o chicote, pusera‑se a passear pelo terraço, excitado, sombrio e meditabundo.

     ‑ Paciência ‑ disse ele, com os dentes cerrados. ‑ Aquele homem há‑de confessar‑me tudo, nem que tenha de lhe arrancar cada palavra com um ferro em brasa.

     De súbito, deteve‑se e levantou a cabeça. De um dos recintos partira um formidável barrito, próprio do elefante quando sente aproximar‑se o inimigo.

     ‑ Oh! ‑ exclamou ele. ‑ O barrito de Bhagavadi.

     Debruçou‑se no parapeito do terraço. Os cães do bangalô fizeram ouvir os seus latidos e por cima de um dos recintos apareceu a gigantesca tromba dum elefante, que emitiu um segundo barrito, ainda mais forte.

     Quase ao mesmo tempo, a trezentos metros do bangalô, lançou‑se no ar uma massa negra dotada de extraordinária agilidade, que logo voltou a cair, escondendo‑se entre as ervas.

     Como a luz era pouca, o capitão não conseguiu distinguir o que fosse.

     ‑ Olá! ‑ gritou ele.

     O sipaio que vigiava debaixo do telheiro saiu, com a carabina debaixo do braço.

     ‑ Capitão ‑ disse ele, voltando a cara para cima.

     ‑ Viste alguma coisa?

     ‑ Sim, capitão.

     ‑ Era homem ou animal?

     ‑ Pareceu‑me um animal. Levantou‑se a trezentos metros daqui.

     A massa negra voltou a saltar. O sipaio soltou um grito de terror.

     ‑ O tigre!

     O capitão correu para a carabina, carregou‑a e disparou contra o animal, que fugia para a floresta, com saltos gigantescos.

     ‑ Maldição! ‑ exclamou, com raiva.

     Ao ouvir a detonação, o felino detivera‑se, fazendo ouvir um rugido surdo. Depois, meteu‑se por entre os bambus, com maior rapidez ainda.

     ‑ Que se passa? ‑ perguntou Bhârata, precipitando‑se para o terraço.

     ‑ Temos um tigre nas redondezas ‑ respondeu o capitão.

     ‑ Um tigre! É impossível, capitão!

     ‑ Vi‑o com os meus olhos.

     ‑ Mas se os matámos todos!

     ‑ Parece que um escapou às nossas carabinas.

     ‑ Tê‑lo‑á ferido, pelo menos?

     ‑ Julgo que não.

     - Aquele animal pode trazer‑nos problemas, capitão.

     ‑ Por pouco tempo, prometo‑te. Não gosto desses vizinhos.

     ‑ Vamos então caçá‑lo?

     O capitão olhou para o relógio.

     ‑ São três horas. Dentro de uma hora conto montar‑me em cima de Bhagavadi e dentro de duas terei a pele do tigre.

 

                           O salvador

     A oriente começava a clarear, quando o capitão Macpherson e Bhârata desceram para o pátio do bangalô.

     Estavam ambos armados com carabinas de longo alcance e de grosso calibre, com pistolas e facalhões de lâmina larguíssima e de gume duplo. Seguia-os um sipaio, levando mais duas carabinas sobressalentes e alguns chuços.

     Em poucos minutos chegaram ao recinto onde Bahgavadi soltava os seus barritos, rodeado por meia dezena de mahuts, ou condutores de elefantes.

     Bhagavadi era um dos maiores e mais belos coomareah que se podiam encontrar nas margens do Ganges. Era menos alto do que um elefante merghee, mas mais vigoroso, dotado duma força extraordinária, com um corpo maciço, pernas curtas e grossas, tromba bastante desenvolvida e dois magníficos dentes aguçados, virados para cima.

     Tinham‑lhe posto no dorso a hauda, espécie de pequena navícula onde tomam lugar os caçadores, solidamente ligada com cordas e cadeias.

     ‑ Tudo pronto? ‑ perguntou o capitão Macpherson.

     ‑ Só falta partir ‑ respondeu o chefe dos mahuts.

     ‑ Os batedores?

     ‑ Estão já no limite da floresta, com os cães.

     Um dos hábeis mahuts montou em cima do pescoço de Bhagavadi, armado dum comprido gancho e dum largo chuço.

     O capitão Macpherson, Bhârata e os sipaios, tendo mandado pôr a escada, tomaram lugar na hauda, levando consigo as armas.

     O sinal da partida foi dado no momento em que o Sol se levantava por detrás do bosque de borassos, iluminando a corrente e as suas margens.

     O elefante caminhava com passo expedito, excitado pela voz do mahut, partindo e triturando sob as enormes patas as raízes e os arbustos e abatendo com um vigoroso golpe da tromba as árvores e os bambus que lhe barravam o caminho.

     O capitão Macpherson, na parte dianteira da hauda, com uma carabina na mão, espiava atentamente os grupos de plantas e as ervas altas, no meio das quais o tigre se podia esconder.

     Um quarto de hora depois, chegavam aos limites da floresta, eriçada de bambus e de moitas espinhosas. Seis sipaios, munidos de longas varas e armados de machados e espingardas, esperavam‑nos com uma matilha de pequenos cães, bem miseráveis na aparência, mas, na realidade, muito corajosos e indispensáveis para dar caça ao terrível felino.

     ‑ Novidades? ‑ perguntou o capitão, debruçando‑se da hauda.

     ‑ Descobrimos os rastos do tigre ‑ respondeu o chefe dos batedores.

     ‑ Frescos?

     ‑ Fresquíssimos; o tigre passou aqui há meia hora.

     - Então entremos na floresta. Larguem os cães.

     Os cachorros, libertos da trela, lançaram‑se animosamente para o meio dos bambus, seguindo os rastos do tigre e ladrando furiosamente. Bhagavadi, depois de ter farejado três ou quatro vezes o ar com a tromba, a várias alturas, internou‑se na floresta, destrocando com o peito a massa da verdura.

     ‑ Está com muita atenção, Bhârata ‑ disse Macpherson.

     ‑ Descobriu alguma coisa, capitão? ‑ perguntou o sargento.

     ‑ Não. Mas o tigre pode ter voltado atrás e ter‑se emboscado no meio dos bambus. Bem sabes que esses animais são astutos e não receiam atacar o elefante.

     ‑ Se assim for, terá de se haver com Bhagavadi. Não é o primeiro tigre que ele esmaga com as suas patorras ou que atira ao ar, para lhe quebrar os ossos de encontro a qualquer árvore. O senhor viu o animal?

     ‑ Sim, e posso dizer‑te que era enorme. Não me lembro de ter visto alguma vez um tigre tão grande nem tão ágil; dava saltos de dez metros.

     ‑ Oh! ‑ exclamou o indiano. ‑ Com um salto desses chega bem até à hauda.

     ‑ Se o deixarmos aproximar...

     ‑ Cale‑se, capitão.

     Ao longe ouviram‑se os cães ladrar furiosamente e alguns gemidos lamentosos. Bhârata sentiu um arrepio nos ossos.

     ‑ Os cães descobriram‑no ‑ disse ele.

     ‑ E algum deles ficou com as tripas de fora ‑ acrescentou o sipaio, que tomara as carabinas, pronto a passá‑las aos caçadores.

     Um bando de pavões levantou‑se a cerca de quinhentos metros e voou soltando gritos de terror.

     ‑ Uszaka! ‑ gritou o capitão, fazendo com as mãos uma espécie de megafone.

     ‑ Atenção, capitão! ‑ respondeu o chefe dos batedores. ‑ O tigre está a brigar com os cães.

     ‑ Toca a retirar.

     Uszaka encostou ao nariz o bairy, uma espécie de flauta, e tocou com força, emitindo uma nota aguda.

     Depressa se viram os sipaios regressar precipitadamente e correr a refugiar‑se atrás do elefante.

     ‑ Coragem ‑ disse o capitão ao mahut ‑, conduz o elefante para o sítio onde os cães ladram. E tu, Bhârata, olha bem para o lado esquerdo, enquanto eu olho para o direito. Pode acontecer que tenhamos de lutar contra mais de um adversário.

     O latir dos cães continuava cada vez mais furioso, sinal infalível de que o tigre fora descoberto. Bhagavadi apressou o passo, dirigindo‑se intrepidamente para uma grande moita de bambus, para onde se tinham precipitado os cachorros.

     A cem passos de distância foi encontrado um dos cães, horrivelmente estripado por um poderoso golpe de garra do tigre. O elefante começou a dar sinais de inquietação, agitando vivamente a tromba, de cima para baixo.

     ‑ Bhagavadi pressente ‑ disse Macpherson. ‑ Está com atenção, mahut, e vê lá se o elefante recua ou se expõe de mais a tromba. O tigre despedaçar‑lha-á, como no ano passado.

     ‑ Respondo por isso, patrão.

     De entre os bambus levantou‑se um formidável rugido, sem comparação com nenhum outro grito. Bhagavadi parou, tremendo e emitindo surdos barritos.

     ‑ Para a frente! ‑ gritou o capitão Macpherson, cujos dedos se crispavam sobre o gatilho da carabina.

     O mahut deu uma pancada de chuço no paquiderme, que se pôs a resfolegar de modo horrível, enrolando a tromba e apresentando os dentes aguçados.

     Deu ainda dez ou doze passos e depois voltou a parar. Como um foguete, saltou para fora dos bambus um tigre gigantesco, rugindo assustadoramente.

     O capitão Macpherson deixou partir o tiro.

     ‑ Com mil raios! ‑ gritou, irritado.

     O tigre voltara a cair entre os bambus, antes de ter sido atingido. Por duas vezes se atirou ao ar, dando saltos de doze metros, e depois desapareceu.

     Bhârata fez fogo para o meio da moita, mas a bala foi estoirar a cabeça dum cachorro meio despedaçado, que se arrastava penosamente no meio das ervas.

     ‑ Mas aquele tigre parece que tem o Diabo no corpo! ‑ disse o capitão, de mau humor. ‑ É a segunda vez que escapa às minhas balas. Como é isto?

     Bhagavadi voltou a pôr‑se em marcha, com muita precaução, arredando primeiro os obstáculos com a tromba, que logo se apressava a retirar. Andou outros cem metros, precedido pelos cães, que andavam num vaivém, procurando a pista do felino, depois parou, firmando‑se solidamente nas pernas. Voltara a tremer e a resfolegar ruidosamente.

     À sua frente, a menos de vinte metros, estava um grupo de canas‑de‑açúcar. Uma baforada de ar impregnado de forte odor de animal selvagem chegou até aos caçadores.

     ‑ Olha! Olha! ‑ gritou o capitão.

     O tigre atirara‑se para fora das canas, movendo‑se com fulminante rapidez em direcção ao paquiderme, que se apressara a apresentar os dentes.

     Quase chegou debaixo deles, escapando‑se às carabinas dos caçadores; recolheu‑se sobre si próprio e caiu sobre a fronte do elefante, procurando, com as garras, agarrar o mahut, que se atirara para trás, gritando aterrorizado.

      Estava prestes a atingi‑lo, quando ecoaram ao longe algumas notas agudas emitidas por um ramsinga.

     Fosse porque se espantou, fosse por qualquer outra razão, o tigre deu meia volta e precipitou‑se para baixo, procurando alcançar a moita.

     ‑ Fogo! ‑ gritou o capitão Macpherson, descarregando a carabina.

     O felino soltou um tremendo rugido, caiu, levantou‑se, atravessou a moita e voltou a cair do outro lado, permanecendo imóvel, como se tivesse sido fulminado.

     ‑ Urra! Urra! ‑ gritou Bhârata.

     ‑ Belo tiro! ‑ exclamou o capitão, depondo a carabina, ainda fumegante. ‑ Põe a escada.

     O mahut obedeceu. O capitão Macpherson, tendo empunhado o facalhão, desceu e dirigiu‑se para a moita.

     O tigre jazia inerte junto de um tufo de arbustos. O capitão, com grande surpresa sua, não viu naquele corpo qualquer ferida, nem manchas de sangue na terra.

     Sabendo muito bem que, por vezes, os tigres se fingem mortos para se atirarem de surpresa sobre o caçador, estava para voltar para trás, mas não teve tempo para tanto.

     O misterioso som do ramsinga voltou a ecoar. Ao ouvir aquela nota aguda, o tigre pôs‑se em pé, atirou‑se sobre o capitão e lançou‑o por terra. A sua enorme boca, eriçada de dentes, escancarou‑se por cima dele, pronta a triturá‑lo.

     O capitão Macpherson, pregado ao solo de modo que não podia mexer‑se nem servir‑se do facalhão, soltou um grito de angústia.

     ‑ Socorro! Estou perdido.

     ‑ Aguenta‑te, que estou aqui eu! ‑ gritou uma voz sonora.

     Um indiano saiu para fora da moita, agarrou o tigre pela cauda e com um violento puxão arremessou‑o para o lado.

     Ouviu‑se um rugido furioso. O animal, louco de cólera, levantara‑se prontamente, para se atirar sobre o seu novo inimigo, mas, coisa estranha, inaudita: assim que o viu, deu meia volta e afastou‑se com fantástica rapidez, desaparecendo no emaranhado da floresta.

     O capitão Macpherson, são e salvo, pusera‑se rapidamente de pé. Um espanto indescritível espelhou‑se no rosto.

     A cinco passos dele, estava um indiano de formas musculosas extraordinariamente desenvolvidas, com uma cabeça soberba, sobre dois ombros largos e robustos.

     Um pequeno turbante bordado a prata cobria‑lhe a cabeça e sobre as ancas trazia uma pequena sotaina de seda amarela, apertada por um belíssimo xale de caxemira. Aquele homem, que tão intrepidamente enfrentara o tigre, não trazia consigo qualquer arma.

     Com os braços cruzados e os olhos a cintilar, fixava curiosamente o capitão, conservando a imobilidade duma estátua de bronze.

     ‑ Se não me engano, devo‑te a vida ‑ disse o capitão.

     ‑ Talvez ‑ respondeu o indiano.

     ‑ Sem a tua coragem, a estas horas estaria morto.

     ‑ É possível.

     ‑ Dá‑me a tua mão, és um valente.

     O indiano estremeceu ao apertar a mão que Macpherson lhe estendia.

     ‑ Posso saber o teu nome?

     ‑ Saranguy ‑ respondeu o indiano.

     ‑ Nunca mais o esquecerei.

     Entre os dois fez‑se um breve silêncio.

     ‑ Que posso fazer por ti? ‑ recomeçou o capitão.

     ‑ Nada.

     Macpherson tirou uma bolsa cheia de libras e estendeu‑lha. O indiano rejeitou‑a, com gesto nobre.

       ‑ Não sei que fazer ao ouro.

     ‑ És rico?

     ‑ Menos do que o senhor julga. Sou um caçador de tigres das Sunderbunds.

     ‑ E porque estás aqui?

     ‑ A floresta negra já não tem tigres. Vim para o Norte, à procura de mais.

     ‑ E para onde vais agora?

        ‑ Não sei. Não tenho pátria nem família. Levo vida errante.

     ‑ Queres vir comigo?

     Os olhos do indiano cintilaram.

     ‑ Se tem necessidade de um homem forte e corajoso, que não tem medo nem das feras nem da ira dos deuses, sou seu.

     ‑ Vem, valente indiano, e não te arrependerás.

     O capitão deu meia volta, mas deteve‑se, subitamente.

     ‑ Para onde julgas que o tigre terá fugido?

     - Para muito longe.

     - Será possível encontrá‑lo?

     ‑ Não creio. Aliás, encarrego‑me eu de o matar, e dentro de pouco tempo.

     ‑ Voltemos para o bangalô.

     Bhârata, que assistira, espantado, àquela cena, esperava‑os junto do elefante. Quando os viu vir, dirigiu‑se ao capitão.

     ‑ Está ferido, patrão? ‑ perguntou‑lhe, ansiosamente.

     ‑ Não, meu bravo sargento ‑ respondeu Macpherson. ‑ Mas, se este indiano não chegasse a tempo, já não estaria vivo.

     ‑ És um grande homem ‑ disse Bhârata a Saranguy. ‑ Nunca vi um golpe assim: fazes jus à fama da nossa raça.

     Um sorriso foi a única resposta do indiano.

     Os três homens subiram para a hauda e em menos de meia hora chegaram ao bangalô, onde os aguardavam os sipaios.

     Ao ver aqueles soldados, Saranguy franziu a testa. Pareceu inquieto e a custo reprimiu um gesto de despeito. Felizmente, ninguém deu conta daquele movimento, que foi, aliás, rápido como um relâmpago.

     ‑ Saranguy ‑ disse o capitão quando entrava juntamente com Bhârata‑, se tens fome, vai à cozinha: se queres dormir, escolhe o quarto que mais te agradar: se queres caçar, pede a arma que mais te convier.

     ‑ Obrigado, patrão ‑ respondeu o indiano.

     O capitão não entrou no bangalô, pelo contrário, sentou‑se ao pé da porta. O rosto tornara‑se‑lhe sombrio e nos olhos brilhava um estranho fulgor. Por três ou quatro vezes se levantou, como se quisesse entrar no bangalô, mas de todas elas voltou a sentar‑se. Parecia tomado de grande agitação.

     “Quem sabe a sorte que estará reservada àquele homem”, murmurou ele, com voz surda. “Talvez a morte. É estranho, e, no entanto aquele homem interessa‑me, sinto que quase o amo! Assim que o vi, senti o meu coração palpitar de modo inexplicável: assim que ouvi a sua voz, senti‑me quase comovido. Não sei, mas aquela cara é parecida com... É melhor não dizer o nome...”

     Calou‑se, ficando ainda mais triste.

     “E ele, estará aqui?”, perguntou a si mesmo. “E se não estivesse?” Levantou‑se pela quinta vez e pôs‑se a passear, com a cabeça inclinada sobre o peito e com a fronte cheia de rugas.

     Ao passar em frente de um dos recintos, ouviu vozes que vinham lá de dentro. Parou, levantando bruscamente a cabeça. Pareceu indeciso, olhou à sua volta, como se quisesse assegurar‑se de que estava sozinho, depois deixou‑se cair ao pé da paliçada, pondo‑se à escuta com grande atenção.

     ‑ Digo‑te eu ‑ dizia uma voz. ‑ O bandido falou, depois de o capitão Macpherson o ameaçar de morte.

     ‑ Não é possível ‑ dizia outra voz. ‑ Aqueles cães dos tugues não se deixam intimidar pela morte. Vi com os meus próprios olhos dezenas de tugues deixarem‑se fuzilar sem dizer nada.

     ‑ Mas o capitão Macpherson tem meios aos quais nenhuma criatura humana resiste.

     ‑ Aquele homem é muito forte. Deixará que lhe tirem a pele, mas não dirá palavra.

     Saranguy pôs‑se a seguir a conversa com maior atenção e encostou ainda mais a orelha à paliçada.

     ‑ E onde julgas que o encerrou? ‑ perguntou a primeira voz

     ‑ No subterrâneo ‑ respondeu a outra.

     ‑ Aquele homem é capaz de fugir.

     ‑ É impossível, as paredes têm uma grossura enorme; além disso, um dos nossos faz sentinela.

     ‑ Não digo que fuja sozinho, mas ajudado pelos tugues.

     ‑ Julgas que eles andam por estes lados?

     - A noite passada ouvimos sinais e disseram‑me que um sipaio tinha visto sombras.

     ‑ Fazes‑me arrepios.

     ‑ Tens medo?

     ‑ Podes crer que sim. Aqueles malditos laços raramente falham.

       Já não terás medo por muito tempo.

     ‑ Porquê?

     ‑ Porque assaltaremos o seu covil. Negapatnan confessará tudo.

     Ao ouvir aquele nome, Saranguy pusera‑se de pé, tomado por viva excitação. Um sorriso sinistro aflorou aos seus lábios e ele olhou ferozmente para o bangalô.

     ‑ Ah! ‑ exclamou ele, com voz quase imperceptível. ‑ Negapatnan está aqui. Aqueles malditos ficarão contentes.

 

                               Matar para ser feliz

     Caíra a noite.

     Durante o dia, o capitão Macpherson não se deixara ver e nenhum incidente acontecera no bangalô.

     Saranguy, depois de ter errado à sua vontade por onde lhe apeteceu, junto aos telheiros e às paliçadas, escutando atentamente as conversas dos sipaios, estendera‑se atrás duma espessa moita, a cinqüenta passos da casa, como se procurasse adormecer.

     No entanto, de vez em quando levantava prudentemente a cabeça e o seu olhar percorria rapidamente o campo à sua volta. Dir-se‑ia que procurava alguma coisa ou que esperava alguém.

     Passou‑se uma longa hora. A Lua levantou‑se no horizonte, iluminando vagamente as florestas e o rio, que murmurava alegremente, beijando as margens.

     Um uivo agudo, o uivo do chacal, ressoou ao longe. Saranguy ergueu‑se bruscamente, olhando à sua volta, desconfiado.

     ‑ Finalmente ‑ murmurou ele, com um arrepio. ‑ Vou saber qual é a minha condenação.

     A duzentos passos, no meio dos arbustos, apareceram dois pontos luminosos com reflexos esverdeados; Saranguy meteu dois dedos entre os lábios e soltou um ligeiro assobio.

     Imediatamente os dois pontos luminosos se atiraram para a frente. Eram os olhos dum grande tigre, que fez ouvir uma rosnadela surda, familiar àquelas feras.

     ‑ Darma! ‑ chamou o indiano.

     O tigre baixou‑se, cosendo‑se com o terreno, e pôs‑se a rastejar silenciosamente. Parou em frente dele, emitindo um segundo rosnado.

     ‑ Estás ferido? ‑ perguntou‑lhe o indiano, com voz comovida.

     Em resposta, o tigre abriu a boca e lambeu as mãos e a cara do indiano.

     ‑ Desafiaste um grande perigo, pobre Darma! ‑ retomou o indiano, com voz afectuosa. ‑ Será a última provação.

     Passou a mão por debaixo do pescoço da fera e encontrou um pequeno papel vermelho, enrolado e preso a um fino fio de seda.

     Abriu‑o com as mãos a tremer e deu‑lhe uma vista de olhos. Continha sinais estranhos feitos a tinta azul e uma linha escrita em sánscrito.

     “Vem, pois o mensageiro chegou”, leu ele.

     Um novo arrepio agitou‑lhe os membros e algumas gotas de suor perlaram‑lhe a fronte.

     ‑ Vem, Darma ‑ disse ele.

     Olhou de fugida para o bangalô, percorreu trezentos ou quatrocentos passos, rastejando, seguido pelo tigre, e depois internou‑se no bosque de borassos.

     Caminhou apressadamente durante vinte minutos, seguindo uma pequena vereda que mal se distinguia, depois parou, chamando o tigre com um gesto.

     A vinte passos dele, erguera‑se subitamente da terra um indivíduo que apontou resolutamente para ele uma espingarda, gritando:

     ‑ Quem vive?

     ‑ Cali ‑ respondeu Saranguy.

     ‑ Avança.

     Saranguy aproximou‑se daquele indivíduo, que o examinou atentamente.

     ‑ És aquele que esperamos? ‑ perguntou‑lhe

     ‑ Sim.

     ‑ Sabes quem te espera?

     ‑ Kougli.

     ‑ És o nosso homem: segue‑me.

     O indiano pôs a carabina a tiracolo e meteu‑se a caminho com passo silencioso. Saranguy e Darma seguiram‑no.

     ‑ Viste o capitão Macpherson? ‑ perguntou, instantes depois, o guia.

     ‑ Sim.

     ‑ Que faz ele?

     ‑ Não sei dizer.

     ‑ Sabes alguma coisa de Negapatnan?

     ‑ Sim, sei que está prisioneiro do capitão.

     ‑ É verdade aquilo que dizes?

     ‑ Em absoluto.

     ‑ E sabes onde o esconderam?

     ‑ Nos subterrâneos do bangalô.

     ‑ Vê‑se bem que são prudentes, aqueles europeus.

     ‑ Assim parece.

     ‑ Mas tu libertá‑lo‑ás.

     ‑ Eu! ‑ exclamou Saranguy.

     ‑ Creio que sim.

     ‑ E quem to disse?

     ‑ Não sei nada; cala‑te e caminha.

     O indiano emudeceu e apressou o passo, internando‑se nas moitas de bambus e por entre os arbustos eriçados de espinhos. De vez em quando parava e examinava o tronco das palmeiras que encontrava à sua passagem.

     ‑ Que estás a ver? ‑ perguntou Saranguy, surpreendido.

     ‑ Os sinais que indicam o caminho.

     ‑ Kougli mudou de sítio?

     ‑ Sim, porque os ingleses apareceram junto da sua cabana.

     ‑ Já?

     ‑ O capitão Macpherson tem bons cães ao seu serviço. Está alerta, Saranguy; podem pregar‑te alguma partida de mau gosto quando menos o esperares.

     Deteve‑se, encostou as mãos aos lábios e emitiu um uivo semelhante ao do chacal.

   Em resposta, um segundo uivo se fez ouvir.

     ‑ O caminho está livre ‑ disse o indiano. ‑ Segue esta vereda e chegarás à cabana. Eu fico aqui de vigia.

     Saranguy obedeceu. Ao percorrer a vereda, apercebeu‑se de que atrás de cada árvore estava escondido um indiano com uma carabina na mão e o laço atado à volta do corpo.

     “Estamos bem guardados”, murmurou ele. “Poderemos conversar sem receio de ser surpreendidos pelos ingleses.”

     Depressa se encontrou diante duma grande cabana, construída com sólidos troncos de árvore, nos quais havia inúmeras fendas, para deixar passar as carabinas. O telhado estava coberto de folhas de latania e no alto estava uma tosca estátua da deusa Cali.

     ‑ Quem vive? ‑ perguntou um indiano que estava sentado na soleira da porta, armado de carabina, punhal e laço.

     ‑ Cali ‑ respondeu, pela segunda vez, Saranguy.

     ‑ Passa.

     O indiano entrou num pequeno compartimento iluminado por uma tocha feita com um ramo de árvore resinosa, que difundia à volta uma luz enfumarada.

     Estendido numa esteira, estava um indiano alto como o feroz Suyodhana, ungido com óleo de coco e com a misteriosa tatuagem no peito.

     O seu rosto era bronzeado, duro, feroz, ornado de espessa barba negra. Os olhos, profundamente encovados, tinham um brilho feroz.

     ‑ Salve, Kougli ‑ disse o indiano, ao entrar, mas pronunciando aquelas palavras com certa dificuldade.

     ‑ Ah! És tu, amigo! ‑ respondeu Kougli, levantando‑se prontamente. ‑ Começava a impacientar‑me.

     ‑ A culpa não é minha; o caminho é longo.

     ‑ Bem sei, meu amigo. Como correram as coisas?

     ‑ Muito bem; Darma desempenhou o seu papel na ponta da unha. Se me descuidava, esmagava a cabeça do capitão.

     ‑ Tinha‑o deitado por terra?

     ‑ Sim.

     ‑ Bravo animal, o teu tigre.

     ‑ Não digo que não.

     ‑ De modo que estás ao serviço do capitão.

     ‑ Sim.

     ‑ Em que qualidade?

     ‑ De caçador.

     ‑ Ele sabe que te afastaste do bangalô?

     ‑ Não sei. Aliás, deu‑me inteira liberdade para ir para os bosques ou para a selva, a caçar.

   ‑ Acautela‑te. Aquele homem tem cem olhos.

     ‑ Bem sei.

     ‑ Conta‑me alguma coisa acerca de Negapatnan.

     ‑ Chegou ontem à noite ao bangalô.

     ‑ Bem sei. Nada me escapa. Onde o esconderam?

     ‑ No subterrâneo.

     ‑ Conheces esse subterrâneo?

     ‑ Ainda não, mas hei‑de conhecé‑lo. Sei que as paredes têm uma grossura enorme e que um sipaio armado vigia noite e dia à porta dele.

     ‑ Sabes mais do que eu esperava. Deixa‑me dizer‑te que és um valente.

     ‑ O caçador de serpentes da floresta negra é mais forte e mais astuto do que tu julgas ‑ respondeu o indiano Saranguy.

     ‑ Sabes se Negapatnan falou?

     ‑ Não sei.

     ‑ Se aquele homem fala, estamos perdidos.

     ‑ Desconfias dele? ‑ perguntou Saranguy, com leve ironia.

     ‑ Não, porque Negapatnan é um grande chefe e é incapaz de nos atraiçoar. Mas o capitão Macpherson sabe torturar os seus prisioneiros. Vamos ao assunto.

     A fronte de Saranguy enrugou‑se e um ligeiro estremecimento percorreu‑lhe os membros.

     ‑ Fala ‑ disse ele, com voz estranha.

     ‑ Sabes porque te chamei?

     ‑ Suponho que se trata...

     ‑ De Ada Corishant.

     Ao ouvir aquele nome, o olhar de Saranguy apagou‑se; as lágrimas vieram‑lhe aos olhos e um profundo suspiro saiu dos seus lábios sem cor.

     ‑ Ada!... Oh, minha Ada!... ‑ exclamou ele, com voz sufocada. Fala, Kougli, fala. Eu sofro de mais!

     Kougli olhou para o indiano, que se agachara, apertando com força a cabeça. Um sorriso satânico aflorou‑lhe aos lábios.

     ‑ Tremal‑Naik ‑ disse com voz quase sepulcral ‑, lembras‑te daquela noite em que te refugiaste no poço com a tua Ada e o marata?

     ‑ Sim, lembro‑me ‑ respondeu com voz surda Saranguy, ou, antes, Tremal‑Naik, o caçador de serpentes da floresta negra.

     ‑ Tu estavas nas nossas mãos. Bastava que Suyodhana quisesse, e vocês três, a estas horas, estariam debaixo da terra.

     ‑ Bem sei. Mas porque me lembras aquela noite?

     ‑ É preciso que ta recorde.

     ‑ Pois então apressa‑te, não me faças sofrer tanto. Tenho o coração a sangrar.

     ‑ Serei breve. Os tugues tinham pronunciado a vossa sentença de morte; tu devias morrer estrangulado, a “Virgem do Pagode” seria queimada e Kammamuri morreria entre as serpentes.

     “Foi Suyodhana quem se opôs.”

     “Negapatnan caíra nas mãos dos Ingleses e era preciso salvá‑lo. Tu deras provas de ser um homem audaz e valente e ele agraciou‑te, para que servisses a nossa seita.”

     ‑ Avia-te.

     ‑ Mas tu amavas aquela mulher que se chama Ada. Era preciso dar‑ta, para termos em ti um aliado pronto e fiel. A nossa deusa Cali oferece-la.

     ‑ Ah! ‑ exclamou Tremal‑Naik, levantando‑se dum salto, completamente transfigurado. ‑ É verdade isso que dizes?

     ‑ Sim, é verdade ‑ disse Kougli, martelando cada uma das suas palavras.

     ‑ E será minha esposa?

     ‑ Sim, será tua esposa. Mas os tugues exigem de ti uma contrapartida.

     ‑ Seja o que for, aceito. Pela minha namorada, deitaria fogo a toda a Índia.

     ‑ Terás de matar.

     ‑ Matarei.

     ‑ Terás de salvar homens.

     ‑ Salvá‑los‑ei, nem que tenha de assaltar uma cidade cheia de homens armados.

     ‑ Bem, escuta‑me.

     Tirou do cinto um papel, desdobrou-o e olhou‑o por instantes com profunda atenção.

     ‑ Os tugues ‑ disse ‑, como sabes, prezam muito Negapatnan que é corajoso, dinâmico e forte. Queres a tua Ada? Liberta Negapatnan; mas também Suyodhana exige algo de ti.

     ‑ Fala ‑ disse Tremal‑Naik, que, sem saber porquê, teve um arrepio. ‑ Sou todo ouvidos.

     Kougli não abriu a boca. Olhava fixamente e de modo estranho para o caçador de serpentes.

     ‑ Então? ‑ balbuciou Tremal‑Naik.

     ‑ Suyodhana cede‑te a tua namorada com a condição de tu matares o capitão Macpherson!

     ‑ O capitão...

     ‑ Macpherson ‑ rematou Kougli, cerrando os lábios num sorriso cruel.

     ‑ E só por esse preço me cederá Ada...

     ‑ Só por esse preço.

     ‑ E se eu recusasse?

     ‑ É porque já não a amas.

     ‑ Eu? Que te disse há pouco? Pela minha namorada deitaria fogo à Índia.

     ‑ Tens razão. Mas, no caso de recusares, a “Virgem do Pagode” irá parar à fogueira e Kammamuri morrerá entre as serpentes. Estão ambos nas nossas mãos. Que decides?

     ‑ A minha vida pertence a Ada. Aceito.

     ‑ Tens já algum plano?

     ‑ Não, mas arranjá-lo‑ei.

     ‑ Faze o que te digo; primeiro, liberta Negapatnan.

     ‑ Libertá‑lo‑ei.

     ‑ Nós velaremos por ti. Se precisares de ajuda, vem ter comigo.

     ‑ O caçador de serpentes não precisará dos tugues.

     ‑ Como quiseres; podes sair.

     Tremal‑Naik não se moveu.

     ‑ Que queres? ‑ perguntou Kougli.

     ‑ Não poderei ver aquela que eu amo?

     ‑ Não.

     ‑ Sois mesmo inexoráveis?

     ‑ Cumpre a tua missão e depois... aquela mulher... será tua esposa. Vai, Tremal‑Naik, vai.

     O indiano levantou‑se, tomado pelo desespero, e dirigiu‑se para a saída.

     ‑ Tremal‑Naik ‑ disse o estrangulador, quando este passava a soleira da porta.

     ‑ Que queres?

     ‑ Não te esqueças de que a morte do capitão Macpherson é urgente para nós.

 

                             A fuga do tugue

     Os astros começavam a empalidecer, quando Tremal‑Naik, quase fora de si, e mal refeito ainda da conversa que tivera com o estrangulador, chegava ao bangalô do capitão Macpherson.

     Um homem estava apoiado aos umbrais da porta e bocejava, respirando ruidosamente o ar fresco da manhã. Esse homem era o sargento Bhârata.

     ‑ Olá, Saranguy! ‑ gritou‑lhe. ‑ Donde vens?

     Aquelas palavras arrancaram bruscamente Tremal‑Naik aos seus pensamentos. Voltou‑se para trás, julgando ter sido seguido pelo tigre, mas o inteligente animal detivera‑se no limite da floresta. Bastou um pequeno sinal do patrão para que ele desaparecesse entre os bambus.

     ‑ Donde vens, valente caçador? ‑ repetiu Bhârata, indo ao seu encontro.

     ‑ Da floresta ‑ respondeu Tremal‑Naik, recompondo‑se.

     ‑ De noite! E sozinho?

     ‑ E porque não?

     ‑ E os tigres?

     ‑ Não me metem medo.

     ‑ E as serpentes e os rinocerontes?

     ‑ Desprezo‑os.

     ‑ Sabes, meu rapaz? És um tipo corajoso.

     ‑ Assim o creio.

     ‑ Encontraste alguém?

     ‑ Tigres, mas não se atreveram a aproximar‑se.

     ‑ E homens?

     Tremal‑Naik estremeceu.

     ‑ Homens! ‑ exclamou ele, fingindo‑se surpreendido. ‑ Como queres que tenha encontrado homens de noite, no meio da floresta?

     ‑ Olha que os há, Saranguy, e mais do que um.

     ‑ Não acredito.

     ‑ Já ouviste falar dos tugues?

     ‑ Os estranguladores?

      ‑ Sim, os homens que usam um laço de seda.

     ‑ E tu dizes que eles estão aqui? ‑ perguntou Tremal‑Naik, fingindo‑se aterrorizado.

     ‑ Sim, e, se cais nas mãos deles, estrangulam‑te.

     ‑ Mas porque estão aqui?

     ‑ Sabes quem é o capitão Macpherson?

     ‑ Ainda não.

     ‑ É o pior inimigo dos tugues.

     ‑ Compreendo.

     ‑ Nós fazemos‑lhes guerra.

     ‑ Fá‑la‑ei também eu. Odeio esses miseráveis.

     ‑ Um homem corajoso como tu não é de rejeitar. Irás connosco quando formos bater a floresta, ou, antes, pôr‑te‑ei de guarda a um estrangulador que caiu nas nossas mãos.

     ‑ Ah! ‑ exclamou Tremal‑Naik, que não conseguiu impedir que um lampejo de alegria lhe brilhasse nos olhos. ‑ Tendes um tugue prisioneiro?

     ‑ Sim, e é um dos chefes.

     ‑ Como se chama?

     ‑ Negapatnan.

     ‑ E eu vou ficar a guardá‑lo?

     ‑ Sim, ficar‑lhe‑ás de guarda. És forte e corajoso e não te escapará.

     ‑ Estou convencido disso. Bastará um soco dos meus para o reduzir à impotência ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Vem comigo até ao terraço. Dentro de pouco, verás Negapatnan e talvez precisemos da tua coragem.

     ‑ Para quê? ‑ perguntou Tremal‑Naik, inquieto.

     ‑ O capitão vai recorrer a meios violentos para o fazer falar.

     ‑ Compreendo. Serei carcereiro e, se preciso, torcionário.

     ‑ És muito perspicaz. Vem, meu bravo Saranguy.

     Entraram no bangalô e subiram ao terraço. O capitão Macpherson já ali se encontrava, fumando um cigarro, indolentemente estendido numa pequena esteira de fibras de coqueiro.

     ‑ Trazes‑me alguma novidade, Bhârata? ‑ perguntou ele.

     ‑ Não, capitão. Mas trago‑lhe um inimigo acérrimo dos tugues.

     ‑ És tu, Saranguy, esse inimigo?

     ‑ Sim, capitão ‑ respondeu Tremal‑Naik, com um acento de ódio na voz.

     ‑ Então, sê bem‑vindo. Serás um dos nossos.

     ‑ Assim o espero.

     ‑ Previno‑te de que se arrisca a pele.

     ‑ Se a arrisco contra os tigres, posso arriscá‑la contra os homens.

     ‑ És um valente, Saranguy.

     ‑ Gabo‑me disso, capitão.

     ‑ Como é que Negapatnan passou a noite? ‑ perguntou Macpherson, dirigindo‑se ao sargento.

     ‑ Dormiu como alguém que tem a consciência tranqüila. Aquele diacho é de ferro.

     ‑ Mas há‑de falar. Vai buscá‑lo; começaremos o interrogatório imediatamente.

     O sargento deu meia volta, e pouco depois regressava trazendo Negapatnan solidamente acorrentado.

     O tugue estava extremamente tranqüilo e nos lábios desenhava‑se‑lhe mesmo um sorriso. Olhou curiosamente para Tremal‑Naik, que se pusera atrás do capitão.

     ‑ Então, meu caro ‑ disse Macpherson sarcasticamente ‑, como passaste a noite?

     ‑ Julgo que a passei melhor do que tu ‑ respondeu o estrangulador.

     ‑ E que decidiste?

     ‑ Que não falarei.

     O capitão levou a mão ao punho do sabre.

     ‑ Serão todos iguais, estes répteis?

     ‑ Assim parece ‑ disse o estrangulador.

     ‑ Não o afirmes com tanta pressa. Eu disse‑te que tenho meios terríveis.

     ‑ Mas não o suficiente para os tugues.

     ‑ Meios que martirizam um homem ao ponto de este pedir a morte.

     ‑ Meios que, apesar de tudo, não valem os nossos.

     - Havemos de ver, quando te contorceres entre os mais terríveis espasmos..

     ‑ Podes começar já.

     O capitão empalideceu. Depois, uma onda de sangue subiu‑lhe ao rosto.

     ‑ Não queres mesmo falar? ‑ perguntou, com voz destroçada pela ira.

     ‑ Não, não falarei.

     ‑ É a tua última palavra?

     - A última.

     ‑ Está bem. Vamos agir. Bhârata!

     O sargento aproximou‑se.

     ‑ Há uma coluna no subterrâneo?

     ‑ Sim, capitão.

     ‑ Prende‑o a ela solidamente.

     ‑ Está bem, capitão.

     ‑ Quando o sono o vencer, mantê-lo‑ás desperto com picadas de alfinete. Se dentro de três dias não falar, farás dilacerar a sua carne a golpes de chicote. Se continuar a obstinar‑se, deitarás óleo a ferver, gota a gota, nas suas feridas.

     ‑ Tenha confiança em mim, capitão. Ajuda‑me, Saranguy.

     O sargento e Tremal‑Naik levaram o estrangulador, que ouvira a sentença sem que um músculo do seu rosto se mexesse.

     Desceram uma escada em caracol e entraram numa espécie de cave muito grande, abobadada e iluminada por uma pequena fresta aberta à flor da terra e com sólidas barras de ferro.

     No centro, erguia‑se uma coluna, à qual o estrangulador foi atado. Bhârata colocou ali perto três ou quatro alfinetes compridos e de ponta bem afiada.

     ‑ Quem fica a vigiar? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Tu, até hoje à noite. Depois, virá um sipaio substituir-te.

     - Está bem.

     ‑ Se o nosso homem fechar os olhos, pica‑o com força.

     ‑ Obedecer‑te‑ei ‑ respondeu Tremal‑Naik, com uma calma glacial.

     O sargento voltou a subir a escada. Tremal‑Naik seguiu‑o com o olhar, enquanto lhe foi possível vê‑lo, e depois, quando o rumor deixou de se ouvir, sentou‑se em frente do estrangulador, que olhava para ele tranquilamente.

   ‑ Escuta‑me ‑ disse Tremal‑Naik, baixando a voz.

     ‑ Também tens alguma coisa a dizer? ‑ perguntou Negapatnan, com ar de troça.

     ‑ Conheces Kougli?

     O estrangulador, ao ouvir aquele nome, estremeceu.

     ‑ Kougli! ‑ exclamou. ‑ Não sei quem seja.

     ‑ És prudente, está bem. Conheces Suyodhana?

     ‑ Quem és tu? ‑ perguntou Negapatnan, com manifesto terror.

     - Um estrangulador como tu, como Kougli como Suyodhana.

     ‑ Mentes.

     ‑ Vou dar‑te uma prova de que falo verdade. A nossa sede não é na floresta, nem em Calcutá, nem nas margens do rio sagrado, mas nos subterrâneos de Rajmangal.

     O prisioneiro a custo reteve um grito que estava para lhe sair da garganta.

     ‑ Será verdade que és um dos nossos? ‑ perguntou ele.

     ‑ Não te dei as provas disso?

     ‑ É verdade. Mas porque vieste aqui?

     ‑ Para te salvar.

     ‑ Salvar‑me?

     ‑ Sim.

     ‑ Mas como? Com que meios?

     ‑ Deixa isso por minha conta, e antes da meia-noite.

     - Fugiremos juntos?

     ‑ Não, eu fico aqui. Tenho outra missão a cumprir.

     ‑ Alguma vingança?

     ‑ Talvez ‑ disse Tremal‑Naik com ar sombrio. ‑ Agora, silêncio e esperemos pelas trevas.

     Deixou o prisioneiro e foi sentar‑se junto da escada, esperando pacientemente pela noite.

     O dia passou lentamente. Quando o Sol desapareceu do horizonte, as trevas invadiram a cave.

     Era o momento oportuno para agir. Dentro de uma hora ou talvez menos, o sipaio iria descer.

     ‑ Mãos à obra ‑ disse Tremal‑Naik, levantando‑se bruscamente e tirando do cinto duas limas inglesas.

     ‑ Que devo fazer? ‑ perguntou Negapatnan, emocionado.

     ‑ Ajuda‑me ‑ respondeu Tremal‑Naik. ‑ Cortaremos as barras de ferro que tapam a fenda.

     ‑ Não darão conta de que tu me ajudas a fugir?

     ‑ Não darão conta de nada.

     Desatou as cordas que ligavam o corpo, os braços e os pés do prisioneiro, e ambos atacaram vigorosamente os ferros, procurando não fazer barulho.

     Três barras tinham já sido cortadas e apenas restava uma, quando Tremal‑Naik se apercebeu dum ruído de pés que vinha da escada.

     ‑ Pára! ‑ disse ele rapidamente. ‑ Alguém desce.

     ‑ É talvez o sipaio?

     ‑ É ele, de certeza.

     ‑ Então estamos perdidos.

     ‑ Ainda não. Sabes lançar o laço?

     ‑ Nunca falhei um golpe.

     Tremal-Naik desatou o laço que trazia atado à volta do corpo, escondido pelo dubgah, e deu‑lho.

     ‑ Põe‑te ao pé da porta ‑ disse‑lhe, tirando o punhal. ‑ O primeiro que aparecer, mata‑o. À meia‑noite estarás livre.

     Negapatnan obedeceu, pegando no laço com a mão direita. Tremal-Naik pôs‑se em frente dele atrás da ombreira da porta, com o punhal levantado.

     O rumor ia‑se aproximando. Uma luz iluminou a escada de repente e apareceu um sipaio com uma cimitarra desembainhada.

     ‑ Atenção, Negapatnan ‑ murmurou Tremal‑Naik.

     A face do tugue tomou um aspecto terrível. Os olhos tinham lampejos sinistros, os lábios deixavam a nu os dentes, as narinas dilatavam‑se. Parecia uma fera sedenta de sangue.

     O sipaio parou no último degrau.

     ‑ Saranguy! ‑ chamou ele.

     ‑ Desce ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Aqui já não se vê nada.

     ‑ Está bem ‑ respondeu ele, ultrapassando o limiar da cave.

     Negapatnan estava ali. O laço assobiou no ar e apertou com tal força o pescoço do sipaio que este caiu por terra sem um lamento.

     ‑ Mato‑o? ‑ perguntou o tugue, pondo um pé sobre o peito do homem caído.

     ‑ É preciso ‑ disse Tremal‑Naik, friamente.

     Negapatnan puxou o laço para si. A língua do sipaio saiu um palmo para fora da boca, os olhos saltaram‑lhe das órbitas e a pele bronzeada tornou‑se negra. Agitou os braços por momentos e depois ficou rígido. Estava morto.

     ‑ Que a deusa Cali receba o teu sangue ‑ disse o fanático, desatando o laço.

     ‑ Despachemo‑nos, antes que outro desça.

     A fresta foi novamente assaltada e a quarta barra de ferro cortada.

     ‑ Podes passar? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Passaria por uma fresta muito mais pequena.

     ‑ Está bem. Agora ata‑me e amordaça‑me.

     O tugue olhou‑o, surpreendido.

     ‑ Eu, atar‑te? E porquê? ‑ perguntou.

     ‑ Para que não suspeitem de que sou um dos teus.

     ‑ Percebo. És mais astuto do que eu.

     Tremal‑Naik deitou‑se por terra, junto do cadáver do sipaio, e Negapatnan ligou‑o e amordaçou‑o.

     ‑ És um valente ‑ disse o tugue. ‑ Se um dia precisares dum amigo fiel, lembra‑te de mim. Adeus.

     Correu em direcção à fresta, depois de se ter armado com as pistolas do sipaio, subiu para ela e desapareceu.

     Ainda não tinham passado dez segundos, quando se ouviu um tiro de espingarda e uma voz gritar.

     ‑ Às armas! Um homem foge!

 

                           A limonada que desata a língua

     Ao ouvir aquele grito, Tremal‑Naik levantara‑se sobre os joelhos, tomado de viva inquietação.

     Ao tiro de espingarda seguira‑se outra detonação, depois uma terceira e ainda uma quarta. No bangalô levantou‑se enorme gritaria, que fez tremer o caçador de serpentes.

     ‑ Olha para a floresta! ‑ gritava uma voz.

     ‑ Às armas! ‑ gritava outra.

     ‑ Ao elefante, ao elefante!

     ‑ Todos para fora!

     Ouviram‑se relinchos de cavalo, barulho de passos, um tropel e um barrito formidável que cobriu aqueles diversos rumores.

     Tremal‑Naik, com a fronte coberta por grossas gotas de suor, escutava, sustendo a respiração.

     “Corre, Negapatnan, corre!”, murmurou, como se o fugitivo estivesse ali perto a ouvi‑lo. “Se te apanham,. estamos ambos perdidos.”

     Com um esforço desesperado, levantou‑se e pôs‑se a saltitar tanto quanto as cordas lho permitiam, dirigindo‑se para a fresta. Um rumor de passos apressados vindo da escada fê‑lo parar.

     “Alguém desce”, murmurou ele, deitando‑se prontamente por terra. “É preciso ter sangue‑frio e audácia. Quem sabe, talvez Negapatnan consiga chegar até junto de Kougli.”

     Pôs‑se a debater‑se como se estivesse a tentar libertar‑se das cordas e a soltar gritos sufocados. Era tempo.

     Bhârata descia as escadas a quatro e quatro e precipitou‑se para dentro da cave, soltando um grito terrível.

     ‑ Fugiu? Fugiu? ‑ gritou ele, rasgando o peito com as unhas. Lançou‑se como um tigre para a fresta. Um segundo grito irrompeu-lhe dos lábios trementes.

     ‑ Ah! Miserável!

     Olhou à sua volta, desesperado. Viu Tremal‑Naik, que se contorcia por terra, soltando imprecações surdas. Num abrir e fechar de olhos chegou junto dele.

     ‑ Vivo! ‑ exclamou, tirando‑lhe a mordaça.

     ‑ Malditos tugues! ‑ gritou Tremal‑Naik com voz estrangulada. Onde está aquele cão que eu arranco‑lhe o coração?

     ‑ Que aconteceu? Como fugiu? Quem te ligou? Fala, Saranguy. Fala ‑ disse Bhârata fora de si.

     ‑ Fomos burlados. Poderoso Brama! Caí na emboscada como um estúpido.

     ‑ Explica‑te, homem, que estou sem pinga de sangue. Como conseguiu fugir? Quem cortou as barras da fresta?

     ‑ Eles.

     ‑ Eles, quem?

     ‑ Os tugues.

     ‑ Os tugues?

     ‑ Sim, estava tudo preparado para o fazerem fugir.

     ‑ Não percebo nada. É impossível que os tugues aqui tenham vindo.

     ‑ Mas vieram. Vi‑os eu, com os meus próprios olhos, e por pouco não me matavam, como mataram o pobre sipaio.

     ‑ Mataram um sipaio?

     ‑ Sim, o que devia render‑me na guarda.

     ‑ Conta depressa, Saranguy: como aconteceu tudo isso?

     - O Sol já se tinha posto ‑ disse Tremal‑Naik ‑, eu estava sentado em frente do prisioneiro, que não despregava os seus olhos dos meus.

     “Passaram três horas sem que fizéssemos o mais pequeno movimento. De repente, senti as pálpebras pesarem‑me e apoderou‑se de mim um torpor, uma sonolência irresistível.”

     “Negapatnan sofria da mesma sonolência e bocejava de tal modo que metia medo. Lutei por muito tempo contra o sono e depois, sem saber como, caí para trás e adormeci.”

     “Quando voltei a abrir os olhos, estava atado e amordaçado e as barras da fresta jaziam por terra. Entretanto, dois tugues estrangulavam o desgraçado sipaio.”

     “Procurei debater‑me, gritar, mas foi‑me impossível. Os tugues, uma vez perpetrado o assassinato, subiram até à fresta e desapareceram.”

     ‑ E Negapatnan?

     - Tinha fugido ainda antes dos outros;

     ‑ E não sabes a razão daquela irresistível sonolência?

     ‑ Não sei nada.

     ‑ Não meteram nada aqui na cave?

     ‑ Não vi nada.

     ‑ Adormeceram‑te com flores que libertam um poderoso narcótico.

     ‑ Assim deve ser.

     ‑ Mas havemos de o voltar a apanhar, àquele Negapatnan. Pus alguns homens valorosos a seguir os seus vestígios.

     ‑ Também eu sou um valente seguidor de pistas.

     ‑ Bem sei, e farás bem em te pôr já em campo. É preciso apanhá‑lo a todo o custo ou, pelo menos, trazer qualquer outro tugue.

     ‑ Eu me encarrego disso.

     Bhârata tinha‑lhe desatado as cordas. Subiram a escada e saíram do bangalô.

     - Que caminho tomou? ‑ perguntou Tremal‑Naik, que se munira duma espingarda de dois canos.

     Meteu‑se pela floresta dentro. Caminha em direcção àquela vereda e encontrarás vestígios dele. Vai e corre, porque o bandido não deve estar muito longe.

     Tremal‑Naik deitou a espingarda a tiracolo e partiu a correr, dirigindo‑se para a floresta. Bhârata seguiu‑o com o olhar, com a testa enrugada e dominado por profundas preocupações.

     “E se fosse verdade?”, perguntou de repente a si mesmo.

     Uma rápida contracção descompôs‑lhe o rosto, que assumira um aspecto sombrio.

     ‑ Nysa! Nysa! ‑ gritou.

     Um indiano que estava junto da floresta examinando atentamente os vestígios veio até junto dele.

     ‑ Pronto, sargento! ‑ respondeu.

     ‑ Examinaste bem os vestígios? ‑ perguntou‑lhe Bhârata.

     ‑ Sim, e com muita atenção.

     ‑ Pois bem, quantos homens saíram da cave?

     ‑ Apenas um.

     Bhârata teve um gesto de surpresa.

     ‑ Tens a certeza de não te teres enganado?

     ‑ Absoluta, sargento. Negapatnan foi o único que saiu.

     ‑ Está bem. Vês aquele homem que corre em direcção à floresta?

     ‑ Sim, é Saranguy.

     ‑ Segue‑o: preciso de saber onde ele vai.

     ‑ Tenha confiança em mim ‑ respondeu o indiano.

     Esperou que Tremal‑Naik desaparecesse atrás das árvores, depois partiu, correndo como um veado, procurando manter‑se escondido atrás das moitas de bambus.

     Bhârata, satisfeito, voltou para o bangalô e foi ter com o capitão, que passeava no terraço com passo agitado, desafogando a sua cólera em surdas imprecações.

     ‑ Então? ‑ perguntou, logo que viu o sargento.

     ‑ Fomos traídos, capitão.

     ‑ Traídos!... Por quem?

     ‑ Por Saranguy.

     ‑ Por Saranguy!... Por um homem que me salvou a vida!... É impossível!

     ‑ Tenho provas.

     ‑ Fala!

     Em poucas palavras, Bhârata informou‑o daquilo que acontecera e daquilo que vira. O capitão Macpherson nem estava em si, de tão surpreendido.

     ‑ Saranguy, traidor! Mas porque não fugiu com Negapatnan?

     ‑ Não sei, capitão, mas em breve o saberemos. Nysa trará de volta o bandido.

     ‑ Se o que dizes é verdade, mando‑o fuzilar.

     ‑ Não fará nada disso, capitão.

         ‑ Porquê?

     ‑ Porque é preciso que ele fale. Aquele homem há‑de saber tanto como Negapatnan.

     ‑ Tens razão.

     O capitão pôs‑se outra vez a olhar para a floresta. Bhârata dirigiu os seus olhos em direcção ao rio, procurando ouvir os rumores que vinham de longe.

     Passaram três longas horas. Ninguém regressara, não se ouvira qualquer grito, nem qualquer detonação.

     O capitão Macpherson, impaciente, estava para abandonar o terraço para também se dirigir à floresta, quando Bhârata soltou um grito de triunfo.

     ‑ Que é?

     ‑ Olhe além, capitão ‑ disse o sargento.

     ‑ É um dos nossos que regressa a correr.

     ‑ É Nysa.

     ‑ Mas vem sozinho. Saranguy terá fugido?

     ‑ Não creio; se assim fosse, Nysa não regressaria.

     O indiano vinha à frente com a velocidade duma flecha, voltando‑se frequentemente para trás, como se receasse que alguém o seguisse.

     ‑ Sobe, Nysa! ‑ gritou Bhârata.

     ‑ Depressa, depressa ‑ disse o capitão, que não conseguia estar quieto.

     Sem se deter, o indiano enfiou pela escada acima e chegou ao terraço ofegante e extenuado. Os seus olhos brilhavam de alegria.

     ‑ Então? ‑ perguntaram ao mesmo tempo o capitão e o sargento, indo ao seu encontro.

     ‑ Descobri tudo. Saranguy é um tugue!

     ‑ Ah! Não estás enganado? ‑ perguntou o capitão, com voz penetrante.

     ‑ Não, não estou enganado: tenho provas.

     ‑ Conta, Nysa, quero saber tudo. Aquele miserável há‑de pagar por si e por Negapatnan.

     ‑ Segui a sua pista até à floresta ‑ disse Nysa. ‑ Ali perdi‑a, mas não tardei a encontrá‑la cem metros mais adiante.

     “Apressei o passo e não tardei a vê‑lo. Caminhava rapidamente, mas com precaução, voltando‑se frequentemente para trás e apoiando por vezes a orelha na terra.”

     “Vinte minutos depois ouvi‑o soltar um grito e vi sair duma moita um indiano. Era um tugue, um verdadeiro estrangulador, com o peito tatuado e um laço à volta do tronco.”

     “Não consegui ouvir o diálogo que travaram, mas Saranguy, antes de se separarem, disse em voz alta ao companheiro: ‘Avisa Kougli de que eu regresso ao bangalô e dentro de poucos dias terá a cabeça’.”

     “Separaram-se, tomando caminhos diferentes. Eu já sabia o bastante e vim para aqui. Saranguy não deve estar muito longe.”

     ‑ Que é que eu lhe dizia, capitão? ‑ perguntou Bhârata.

     Macpherson não respondeu. Com os braços cruzados sobre o peito, o rosto sombrio, o olhar flamejante, pensava.

     ‑ Quem é este Kougli? ‑ perguntou ele, de repente.

     ‑ Não sei ‑ respondeu Nysa.

     ‑ É Sem dúvida um chefe dos tugues ‑ disse Bhârata.

     ‑ De que cabeça falava o miserável?

     ‑ Não sei, capitão. Ele não disse mais nada.

     ‑ Estaria a aludir a algum de nós?

     ‑ É provável ‑ disse o sargento.

     O capitão tornou‑se mais sombrio.

     ‑ Tenho um estranho pressentimento, Bhârata ‑ murmurou ele. ‑ Falava da minha cabeça.

     ‑ Mas seremos nós que mandaremos a dele ao Sr. Kougli.

     ‑ Assim o espero. Que faremos de Saranguy?

     ‑ É preciso fazê‑lo falar.

     ‑ E falará?

     ‑ Com o fogo consegue‑se tudo.

     ‑ Tu sabes que eles são mais fechados do que uma porta.

     ‑ Trata‑se de o fazer falar, capitão? ‑ perguntou Nysa. ‑ Eu encarrego‑me disso.

     ‑ Tu?...

     ‑ Bastará dar-lhe a beber uma limonada.

     ‑ Uma limonada!... Estás doido, Nysa.

     ‑ Não, capitão! ‑ exclamou Bhârata. ‑ Nysa não está doido.

     - Bem eu já ouvi falar duma limonada que faz desatar a língua.

     ‑ É verdade ‑ disse Nysa. ‑ Com algumas gotas de sumo de limão misturadas com o suco de jumbeba e uma bolinha de ópio, qualquer pessoa fala.

     ‑ Vai preparar essa limonada ‑ disse o capitão. ‑ Se conseguires, dou-te vinte rúpias.

     O indiano não esperou que lhe repetissem a ordem. Minutos depois regressava, com três grandes copos de limonada em cima duma grande bandeja de porcelana chinesa. Numa delas fizera já dissolver a bolinha de ópio e o suco da jumbeba.

     Era tempo. Tremal‑Naik: aparecera no limite da floresta, seguido de três ou quatro pisteiros.

     Pelo seu aspecto, o capitão compreendeu que Negapatnan não fora apanhado nem descoberto.

     ‑ Não importa ‑ murmurou ele. ‑ Saranguy há‑de falar. Está com atenção, Bhârata, de modo que o mariola não desconfie de nada, e tu, Nysa, começa a pôr imediatamente barras de ferro na fresta da cave. Precisaremos dentro de pouco tempo.

     Tremal‑Naik acabava de chegar em frente do bangalô.

     ‑ Eh! Saranguy! ‑ gritou Bhârata, debruçando‑se do parapeito. Como estás? Descobriram o bandido?

     Tremal‑Naik deixou cair os braços ao longo do corpo, com um gesto de desânimo.

     ‑ Nada, sargento ‑ disse ele. ‑ Perdemos a pista.

     ‑ Vem até aqui; precisamos de saber tudo.

     Tremal‑Naik, sem suspeitar de nada, não esperou que repetissem o convite e apresentou‑se ao capitão Macpherson, que se sentara junto duma mesinha com as limonadas à sua frente.

     ‑ Então, meu bravo caçador ‑ perguntou ele, com um sorriso bonacheirão ‑, o mariola não foi encontrado?

     ‑ Não, capitão. E procurámo‑lo por toda a parte.

     ‑ Nem sequer lhe descobriste o rasto?

     ‑ Sim, descobrimos e seguimo‑lo durante muito tempo; depois, não foi possível reencontrá‑lo. Parece que aquele maldito Negapatnan atravessou a floresta saltando de árvore em árvore.

     ‑ E não ficou ninguém no bosque?

     ‑ Sim, quatro sipaios.

     ‑ Até onde é que foste?

     ‑ Até ao outro extremo da floresta.

     ‑ Deves estar cansado. Bebe esta limonada, que te fará bem.

     Assim falando, estendeu‑lhe o copo. Tremal‑Naik esvaziou‑o de um trago.

     ‑ Dize‑me lá, Saranguy ‑ retomou o capitão ‑, acreditas que haja tugues na floresta?

     ‑ Não creio ‑ respondeu Tremal‑Naik.

     ‑ Tu não conheces nenhum daqueles homens?

     ‑ Eu, conhecer algum daqueles homens? ‑ exclamou Tremal‑Naik.

     ‑ E porque não? Tu viveste muito tempo na floresta.

     ‑ Não é verdade.

     ‑ No entanto, disseram‑me que te viram falar com um indiano suspeito.

     Tremal‑Naik olhou para ele sem responder. Pouco a pouco os seus olhos tinham‑se tornado brilhantes e resplandeciam como duas brasas; o seu rosto tornara‑se mais escuro e os traços da fisionomia tinham‑se alterado.

     ‑ Que tens a dizer? ‑ perguntou o capitão Macpherson, com ligeira ironia.

     ‑ Tugues! ‑ balbuciou o caçador de serpentes, agitando loucamente os braços e desatando à gargalhada. ‑ Eu, falar com um tugue?

     ‑ Atenção ‑ murmurou Bhârata, ao ouvido do capitão. ‑ A limonada está a fazer efeito.

     ‑ Vamos, fala ‑ insistiu o capitão.

     - Sim, já me lembro, falei com um tugue no limite da floresta. Ah! Ah!... E julgavam que eu andava à procura de Negapatnan. Que estúpidos... Ah!... Ah!... Eu a perseguir Negapatnan? Eu, que tanto tinha trabalhado para o fazer... Ah!... Ah!

     E Tremal‑Naik, tomado por uma espécie de alegria febril, irresistível, ria como um louco, sem saber o que dizia.

     ‑ Continue, capitão! ‑ exclamou Bhârata. ‑ Saberemos tudo.

     ‑ O miserável está perdido ‑ disse o capitão.

     ‑ Calma, capitão, e como ele está em maré de falar, é melhor espevitá‑lo.

     ‑ Tens razão. Olá, Saranguy...

     ‑ Saranguy! ‑ interrompeu bruscamente o pobre embriagado, sempre a rir. ‑ Eu não sou Saranguy... Que estúpido que tu és, amigo, em julgar que eu me chamo Saranguy. Eu sou Tremal‑Naik... Tremal‑Naik, da floresta negra, o caçador de serpentes. Nunca estiveste na floresta negra? Tanto pior para ti; nunca viste o que é bonito. Oh, que estúpido que tu és, que estúpido!

     ‑ Sou mesmo estúpido ‑ disse o capitão, dominando‑se com grande dificuldade. ‑ Ah! Tu és Tremal‑Naik! E porque mudaste de nome?

     ‑ Para afastar qualquer suspeita. Não sabes que eu queria entrar ao teu serviço?

     ‑ E porquê?

     ‑ Eram os tugues que assim o queriam. Concederam‑me a vida e hão‑de dar‑me a “Virgem do Pagode”. Conhece‑la, tu, à “Virgem do Pagode”? Não? Tanto pior para ti. É linda, sabes, muito linda. É de fazer endoidecer Brama, Xiva e até Vixnu.

     ‑ E onde está essa “Virgem do Pagode”?

     ‑ Longe daqui, muito longe.

     ‑ Mas onde?

     ‑ Não to digo, que ma podes roubar.

     ‑ E quem a tem?

     ‑ Os tugues. Mas eles hão‑de‑ma dar como esposa. Eu sou forte, corajoso. Farei tudo o que eles quiserem para a ter. Entretanto, Negapatnan já está livre.

     ‑ Deves talvez fazer...

     ‑ Fazer? Ah!... Ah!... Devo..., percebes? Levar uma cabeça, ah! Ah!... Fazes‑me rir como um maluco.

     - Porquê? ‑ perguntou Macpherson, que caía de surpresa em surpresa, ao ouvir aquelas revelações.

     ‑ Porque a cabeça que tenho de cortar..., ah!... Ah!... É a tua!...

     ‑ A minha! ‑ exclamou o capitão, pondo‑se de pé. ‑ A minha cabeça?

     ‑Mas... sim...

   ‑ E a quem a deves levar?

     ‑ A Suyodhana.

     ‑ Quem é esse Suyodhana?

     ‑ Como? Não o conheces? É o chefe dos tugues.

     ‑ E sabes onde tem o seu covil?

     ‑ Sei, pois.

     ‑ Onde?

     ‑Em... em...

     ‑ Fala, dize‑me ‑ gritou o capitão, saltando‑lhe em cima e apertando‑lhe furiosamente os pulsos.

     ‑ És assim tão curioso?

     ‑ Sim, tenho vontade de o saber.

     ‑ E se eu não quisesse dizer?

     O capitão, tomado por tremenda excitação, agarrou-o pela cintura e levantou‑o.

     ‑ Ali em baixo está o rio ‑ disse‑lhe. ‑ Se não me dizes, deito-te nele.

     ‑ Tu queres brincar comigo. Ah!... Ah!

     ‑ Sim, é verdade, quero brincar contigo. Dize‑me onde está Suyodhana.

     ‑ Que estúpido que tu és. Onde queres que esteja senão em Rajmangal?

     ‑ Ah!... Repete!... Repete...

     ‑ Em Rajmangal, já disse.

     O capitão Macpherson soltou um grito, e depois voltou a cadeira, murmurando:

     ‑ Ada!... Oh, minha Ada! Finalmente estás salva!

 

                           As flores que fazem dormir

     Quando voltou a si, Tremal‑Naik encontrou‑se encerrado num pequeno subterrâneo iluminado por um pequeno respiradouro defendido por uma dupla fila de grossas barras e solidamente preso a duas argolas de ferro, gravadas numa espécie de coluna.

     Inicialmente julgou‑se vítima dum mau sonho, mas bem depressa se convenceu de que estava realmente prisioneiro.

     Um vago receio se apoderou então daquele homem que tantas provas tinha dado de coragem sobre‑humana.

     Procurou ordenar as idéias, mas no seu cérebro reinava uma confusão que não conseguia penetrar. Recordava‑se vagamente de Negapatnan, da fuga dele, da limonada, mas de mais nada.

     ‑ Quem me terá atraiçoado? ‑ perguntou a si próprio, estremecendo. Que será de mim agora? Que névoa é esta que me ofusca o cérebro? Ter‑me‑ão embriagado com alguma bebida que desconheço?

     Fez um esforço para se levantar, mas voltou a cair; a porta abriu‑se.

     ‑ Quem vem lá? ‑ perguntou.

     ‑ Eu, Bhârata ‑ respondeu o sargento, aproximando‑se.

     ‑ Finalmente! ‑ exclamou Tremal‑Naik. ‑ És capaz de agora de me dizer a razão por que me encontro prisioneiro aqui?

     ‑ Porque agora sabemos que és um tugue.

     ‑ Eu!... Um tugue!

     ‑ Sim, Saranguy.

     - Mentes.

     ‑ Não, tu falaste e confessaste tudo.

     ‑ Quando?

     ‑ Há pouco.

     ‑ Estás doido, Bhârata.

     ‑ Não, Saranguy, demos‑te a beber a jumbeba e confessaste tudo. - Tremal‑Naik olhou‑o, com espanto. Recordava‑se da limonada que o capitão lhe fizera beber.

     ‑ Miseráveis! ‑ exclamou, desesperado.

     ‑ Queres salvar‑te? ‑ disse Bhârata, após um silêncio.

     ‑ Fala ‑ disse Tremal‑Naik, com voz sufocada.

     ‑ Confessa tudo e talvez o capitão te conceda a vida.

     ‑ Não posso: matariam a mulher que eu amo.

     ‑ Quem?

     ‑ Os tugues.

     ‑ Mas que história é essa? Fala.

     ‑ É impossível! ‑ exclamou Tremal‑Naik, com voz selvagem. ‑ Malditos sejam todos.

     ‑ Escuta‑me, Saranguy. Agora sabemos que os tugues têm a sua sede em Rajmangal, mas ignoramos quantos são e onde vivem. Se no‑lo disseres, pode ser que não morras.

     ‑ E que fareis de todos aqueles tugues? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com a voz cortada pela emoção.

     ‑ Fuzilá‑los‑emos a todos.

     ‑ Mesmo que haja mulheres entre eles?

     ‑ Essas serão as primeiras.

     ‑ Porquê?... Que culpa têm elas?

     ‑ São mais terríveis do que os homens. Representam a deusa Cali.

     ‑ Estás enganado, Bhârata! Estás enganado!

     ‑ Tanto pior.

     Tremal‑Naik agarrou a cabeça entre as mãos, enterrando as unhas na pele. Tinha o olhar perdido, o rosto extremamente pálido, quase cor de cinza, e o peito erguia‑se‑lhe impetuosamente.

     ‑ Se concedessem a vida a uma daquelas mulheres... talvez falasse.

     ‑ É impossível, porque apanhá‑los vivos custaria torrentes de sangue. Sufocá‑los‑emos a todos, como animais ferozes nos seus subterrâneos.

     ‑ Mas eu tenho uma dama, uma namorada! – exclamou Tremal-Naik, com desespero. ‑ E tu, tigre, queres fazê‑la morrer?... Não, não, não falarei. Matai‑me, atormentai‑me, entregai‑me às autoridades inglesas, fazei de mim o que quiserdes, mas não falarei. Os tugues são muitos e poderosos, defender‑se‑ão e talvez salvem aquela que eu tanto amei e amo ainda.

     ‑ Uma pergunta ainda. Quem é essa mulher?

     ‑ Não posso dizê‑lo.

     ‑ Saranguy ‑ disse, com voz alterada ‑, queres dizer‑me quem é essa mulher?

     ‑ Nunca.

     ‑ É branca ou bronzeada?

     ‑ Não to direi.

     ‑ Será uma fanática como as outras?

     Tremal‑Naik não respondeu.

     ‑ Está bem ‑ repetiu o sargento. ‑ Dentro de três ou quatro dias levar‑te‑emos a Calcutá.

     Uma viva comoção alterou a fisionomia do prisioneiro, que olhou para o sargento, que saía, e, depois, para a fresta.

     ‑ Tenho de fugir esta noite ‑ murmurou ‑, senão está tudo perdido.

     O dia passou sem que nada de novo acontecesse. Ao meio‑dia e ao pôr do Sol, foi levada ao prisioneiro uma grande escudela de arroz e carne e um copo de tody.

     Logo que o Sol se pôs e que a escuridão se tornou mais densa no subterrâneo, Tremal‑Naik suspirou.

     Ficou quieto durante três longas horas, receando que alguém entrasse de repente, depois pôs‑se rapidamente ao trabalho, para tentar a evasão.

     Os Indianos são famosos pela forma como prendem as pessoas, sendo precisa uma longa prática para conseguir desatar os seus complicadíssimos nós. Felizmente, Tremal‑Naik possuía uma força prodigiosa e bons dentes.

     Com um puxão, afrouxou uma corda que o impedia de curvar a cabeça; depois, pacientemente, sem olhar à dor, aproximou um dos pulsos da boca e pôs‑se a trabalhar com os dentes, cortando, serrando, desfiando.

     Tendo conseguido cortar a corda, não tardou a desembaraçar‑se dos outros laços que o prendiam.

     Levantou‑se, esticando os membros doloridos, aproximou‑se da fresta e olhou para fora.

     A Lua ainda não aparecera, mas o céu estava esplendidamente cravejado de estrelas. Ondas de ar fresco e embalsamado pelos perfumes de mil flores diferentes entravam pela fresta.

     Nenhum rumor vinha do lado de fora, e na linha do oriente não se via ninguém.

     O prisioneiro agarrou‑se a uma das barras e sacudiu‑a furiosamente; conseguiu curvá‑la, mas não parti‑la.

     “A fuga, por aqui, é impossível”, murmurou.

     Olhou à sua volta, à procura dum objecto qualquer que pudesse ajudá‑lo a tirar as barras, mas não encontrou nada.

     “Estou perdido”, murmurou, aterrado. “Mas eu não quero morrer, não quero descer à sepultura, agora, que a felicidade se avizinha.”

     Aproximou‑se da porta, mas parou, subitamente. Um surdo rosnado, que vinha de fora, chegara até ele.

     Voltou a cabeça para a fresta e viu‑a ocupada por uma massa escura, no meio da qual brilhavam dois pontos luminosos esverdeados.

     Um raio de esperança atravessou‑lhe a mente.

     ‑ Darma!... ‑ murmurou, com voz trémula de emoção.

     O tigre emitiu um segundo rosnado, sacudindo as barras de ferro. O prisioneiro dirigiu‑se para a fresta, agarrando as pernas do fiel animal.

     ‑ Estou salvo! ‑ exclamou ele. ‑ Valente Darma, bem sabia que virias ter com o teu patrão. Agora já não tenho medo do capitão nem do seu sargento.

     Deixou a fresta e correu para um ângulo onde vira um pedaço de papel. Limpou‑o cuidadosamente, mordeu um dedo, fazendo sair algumas gotas de sangue, e, com uma lasca de madeira, escreveu, rapidamente e como as trevas lho permitiam, as seguinte palavras:

    

     Fui traído e encerrado na prisão de Negapatnan. Socorrei‑me o mais depressa que puderdes, porque, aliás, tudo está perdido.

     Tremal‑Naik

 

     Enrolou o papel, voltou à fresta e atou-o com um fio ao pescoço do tigre.

     ‑ Corre, Darma, volta aos tugues ‑ disse ele ao animal. - O teu patrão corre um grande perigo.

     A fera sacudiu a cabeça e partiu, com a velocidade duma flecha.

     ‑ Vai ‑ dizia o indiano, seguindo‑a com os olhos. ‑ Eles hão‑de compreender o perigo que eu corro e virão salvar‑me e dar‑me algum meio para me evadir.

     Passou uma longa hora. Tremal‑Naik, agarrado às barras, esperava ansiosamente o regresso, tomado de mil temores.

     De repente, no fundo da planura, descobriu o tigre, que se aproximava a grandes saltos.

     ‑ E se o descobrissem? ‑ murmurou, a tremer.

     Felizmente, Darma pôde chegar até à fresta sem ter sido descoberto pelas sentinelas. Trazia ao pescoço um grande embrulho, que Tremal‑Naik, com grande dificuldade, conseguiu fazer passar por entre as barras.

     Abriu‑o. Continha uma carta, um pequeno revólver, um punhal, munições, um laço e dois macinhos de flores cuidadosamente encerradas em dois vasos de cristal.

     ‑ Que significam estas flores? ‑ perguntou a si próprio, surpreendido.

     Abriu a carta, expô‑la a um raio da Lua que penetrava pela fresta e leu:

 

     Estamos cercados por algumas companhias de sipaios, mas um dos nossos vai atrás de Darma. Grandes perigos nos ameaçam e a tua evasão é necessária.

     Junto às armas vão dois maços de flores. As flores brancas fazem adormecer; as flores vermelhas anulam o efeito das brancas.

     Faz adormecer a sentinela e conserva as flores vermelhas bem junto de ti. Uma vez liberto, ataca a casa e corta a cabeça ao capitão.

     Nagor dará sinal da sua presença com o assobio que conheces e ajudar‑te‑á. Apressa‑te.

     Kougli

 

     Qualquer outra pessoa ter‑se‑ia certamente assustado ao ler semelhante carta: mas isso não aconteceu a Tremal‑Naik. Naquele momento supremo sentia‑se tão forte que seria capaz de atacar a casa, mesmo sem o auxílio de Nagor.

     ‑ O amor me dará força e coragem para fazer o milagre ‑ dissera ele.

     Escondeu as armas e as munições debaixo dum monte de terra e voltou para junto da fresta.

     ‑ Vai‑te embora, Darma ‑ disse ele ao tigre. ‑ Corres um grande perigo.

     O tigre afastou‑se, mas não andara ainda vinte passos quando se ouviu uma das sentinelas gritar:

     ‑ O tigre!... O tigre!...

     Seguiu‑se um tiro de espingarda.

     Outra detonação se fez ouvir, mas o valente animal redobrara de velocidade e em breve ficou fora do alcance da vista.

     Ouviu‑se um rumor de passos apressados e alguns homens detiveram‑se em frente da fresta.

     ‑ Eh! ‑ exclamou uma voz, que Tremal‑Naik reconheceu como sendo a de Bhârata. ‑ Onde está o tigre?

     ‑ Fugiu ‑ respondeu a sentinela que estava na varanda.

     ‑ Onde estava?

     ‑ Junto da fresta.

     ‑ Aposto cem rúpias contra uma em como é um amigo de Saranguy. Depressa, dois homens para a cave, ou o bandido escapa‑se‑nos.

     Tremal‑Naik ouvira tudo. Pegou nos dois vasos, quebrou-os, atirou com as flores brancas para o canto mais escuro, escondeu as flores vermelhas debaixo da roupa e estendeu‑se junto do pau, ajeitando as cordas à volta do corpo e atando‑as o melhor que lhe foi possível.

     Era tempo! Dois sipaios armados e munidos duma tocha resinosa entraram.

     ‑ Ah! ‑ exclamou um. ‑ Ainda aqui estás‑. Saranguy?

     ‑ Cala o bico, que eu quero dormir ‑ disse Tremal‑Naik, fingindo‑se de mau humor.

     ‑ Podes dormir, meu caro, e com todo o sossego, porque nós vigiaremos.

     Tremal‑Naik encolheu os ombros, apoiou‑se ao pau e fechou os olhos. Os dois sipaios, tendo posto a tocha numa abertura feita na parede, sentaram‑se no chão, com as carabinas em cima dos joelhos.

     Tinham passado poucos minutos quando Tremal‑Naik se apercebeu dum perfume penetrante que lhe subia à cabeça, apesar das flores vermelhas, que tinham um cheiro não menos penetrante e realmente especial.

     Olhou para os dois sipaios: bocejavam de tal modo que era de recear que desarticulassem os maxilares.

     ‑ Não sentes nada? ‑ perguntou o soldado mais jovem, passado algum tempo.

     ‑ Sim ‑ respondeu o companheiro. ‑ Parece‑me que estou...

     ‑ Bêbado, queres dizer.

     ‑ Exactamente, e sinto‑me com uma vontade irresistível de fechar os olhos.

     ‑ Donde virá isso?

     ‑ Não sei.

     ‑ Haverá alguma mancenilheira junto de nós?

     ‑ Não as vi no jardim.

     A conversa ficou por ali. Tremal‑Naik, que estava com atenção, viu‑os fechar, pouco a pouco, os olhos, reabri‑los quatro vezes, e depois voltarem a fechá‑los. Lutaram contra o sono ainda por alguns minutos e depois caíram pesadamente para o chão, ressonando sonoramente.

     Era o momento de agir. Tremal‑Naik desatou as cordas que o prendiam e levantou‑se silenciosamente.

     ‑ A liberdade! ‑ exclamou.

     Foi buscar as armas, ligou solidamente os dois homens adormecidos e correu para a escada.

 

                           As revelações do sargento

     Nenhuma sentinela vigiava no patamar.

     Tremal‑Naik, ainda a tremer de emoção, mas decidido a tudo para reconquistar a liberdade, subiu silenciosamente os degraus e chegou a uma grande sala escura e deserta.

     Parou um momento, procurando escutar com a máxima atenção, empunhou o revólver e, muito devagar, empurrou a porta, espreitando cautelosamente com a cabeça.

     “Ninguém”, murmurou.

     Abriu uma segunda porta, percorreu um corredor comprido e muito escuro e entrou numa terceira sala.

     Era enorme. Ao fundo brilhava uma luz que espalhava uma débil claridade sobre uma dezena de pequenas camas, sobre as quais ressonavam ruidosamente outros tantos homens.

     ‑ Os sipaios! ‑ murmurou Tremal‑Naik, detendo‑se.

     Estava para voltar atrás, quando ouviu no corredor um passo cadenciado e um tintinar que parecia de esporas. Estremeceu e levantou o revólver em direcção à porta. O homem aproximava‑se; Tremal‑Naik ouviu‑o deter‑se por momentos e depois continuar a andar.

     ‑ E se fosse o capitão! ‑ exclamou.

     Deixou a sala e regressou ao corredor. Ao fundo viu uma sombra que mal se distinguia e que se ia esfumando e ouviu o tintinar das esporas. Voltou a pegar no revólver e foi atrás dela, disposto a alcançá‑la.

     Subiu uma escada e chegou a um segundo corredor, caminhando na ponta dos pés. O homem que o precedia parou; ouviu girar uma chave na fechadura e viu‑o abrir uma porta e desaparecer.

     Apressou o passo e parou diante da mesma porta, que não fora fechada.

     Uma lâmpada iluminava com a sua luz débil o enorme salão. Sentado a uma mesa, à sombra duma coluna, estava um homem que não conseguiu distinguir bem. Desconfiou que fosse o capitão Macpherson: sem saber porquê, aquela suspeita fê‑lo estremecer e sentiu‑se assaltado por uma vaga inquietação. Foi como se tivesse recebido uma punhalada no coração.

     “É estranho”, pensou ele. “Terei medo?”

     Empurrou levemente a porta, que se abriu sem fazer barulho, e entrou, movendo‑se com passos de tigre em direcção à mesa. Os seus passos, embora silenciosos, foram ouvidos por aquele homem, que se levantou bruscamente.

     ‑ Bhârata! ‑ exclamou Tremal‑Naik. ‑ Ah!

     Apontou rapidamente o revólver para ele.

     ‑ Nem um grito, nem um passo ‑ disse‑lhe ‑, senão és um homem morto!

     O indiano, ao ver‑se diante do prisioneiro com a arma apontada para ele, fizera um movimento em direcção às suas pistolas, que pousara numa cadeira. Ao ouvir a intimação brutal, feita num tom de voz que não deixava margem para dúvidas quanto à seriedade da ameaça, detivera‑se, rangendo os dentes como uma pantera apanhada no laço.

     ‑ Tu... Saranguy! ‑ exclamou, crispando as mãos sobre a mesa.

     ‑ Saranguy, não, mas sim Tremal‑Naik, o caçador de serpentes da floresta negra ‑ respondeu o indiano, sem baixar a arma.

     Bhârata olhou para ele, mais surpreendido do que assustado.

     ‑ Como é que estás aqui? ‑ perguntou.

     ‑ Esse é o meu segredo. Não se pode encarcerar um tugue.

     ‑ Então não me tinha enganado?

     ‑ Parece que não!

     ‑ E que vens fazer aqui?

     ‑ Matar‑te.

     ‑ Ah! ‑ exclamou, com os dentes cerrados. ‑ Vens para me assassinar.

     ‑ Talvez.

     ‑ Posso salvar a vida?

     ‑ Sim.

     ‑ Fala.

     ‑ Senta‑te e conversemos.

    Bhârata obedeceu. Tremal‑Naik apoderou‑se de todas as armas, fechou a porta à chave e sentou‑se diante do sargento, ao mesmo tempo que lhe dizia:

     ‑ Previno‑te de que o primeiro grito que deres custar-te‑á a vida. Tenho seis tiros para te mandar ao encontro de Brama e Vixnu.

     ‑ Fala ‑ repetiu o sargento, que ia reconquistando o sangue-frio.

     ‑ Tenho de levar a cabo uma missão terrível.

     ‑ Não percebo.

     ‑ Jurei aos tugues que mataria o capitão Macpherson.

     Tremal‑Naik olhou para Bhârata, a fim de ver a impressão que nele faziam aquelas palavras, mas o rosto do indiano permaneceu impassível.

     ‑ Percebeste, Bhârata? ‑ perguntou‑lhe.

     ‑ Perfeitamente.

     ‑ E então?

     ‑ Continua.

     ‑ Preciso de ter nas minhas mãos a cabeça do capitão Macpherson.

     O sargento desatou a rir.

     ‑ Tonto! Não sabes que o capitão já aqui não está?

     Tremal‑Naik levantou‑se.

     ‑ O capitão já cá não está? ‑ exclamou, desesperado. ‑ Para onde foi?

     ‑ Isso não to digo.

     ‑ Mas não sabes que jurei levar aos tugues a cabeça dele?

     ‑ Ficarão sem ela.

     ‑ Não, Bhârata, não!... Tenho de cumprir a minha missão! Onde está o capitão?... Quero sabê‑lo, nem que tenha de revistar toda a Índia, desde o Himalaia até ao cabo Comorim.

     ‑ Não serei eu quem te dirá onde ele está.

     ‑ Ah!... ‑ exclamou Tremal‑Naik. ‑ Tu sabes!

     ‑ Sei.

     Tremal‑Naik ergueu o revólver, visando o indiano na testa.

     ‑ Bhârata ‑ disse-lhe, com voz irada ‑, fala!

     ‑ Podes matar‑me, mas da minha boca não sairá nem uma sílaba. Sou um sipaio!

     ‑ Repara bem, Bhârata, que, uma vez na sepultura, não voltarás cá acima.

     ‑ Mata‑me, se quiseres.

     ‑ É a tua última palavra?

     ‑ A última.

     Tremal‑Naik estendera o braço armado. Já o cano se detivera a poucos passos da fronte do sargento, já estava para fazer partir o tiro, quando, lá fora, ecoou um assobio, que se repetiu três vezes.

     ‑ Nagor! ‑ exclamou Tremal‑Naik, que conhecera o sinal dos tugues.

      Meteu o revólver no cinto, agarrou Bhârata, tapando‑lhe a boca com uma das mãos, e atirou‑o ao chão.

     ‑ Nem um gesto ‑ disse‑lhe ‑, ou mato-te.

     Atou‑o solidamente com uma corda, amordaçou‑o, e depois correu para uma janela, levantou a persiana e respondeu ao sinal com três assobios diferentes.

     Atrás duma moita ergueu‑se uma forma humana que rastejou em direcção ao bangalô. Deteve‑se debaixo da janela, levantando a cabeça.

     ‑ Nagor! ‑ murmurou Tremal‑Naik.

     ‑ Quem és? ‑ perguntou o tugue após alguns instantes de hesitação.

     ‑ Tremal‑Naik.

     ‑ Devo subir?

     Tremal‑Naik olhou para a esquerda e para a direita com toda a atenção e escutou.

     ‑ Sobe ‑ disse depois.

     O tugue lançou o laço, que se fixou num gancho da janela, e num abrir e fechar de olhos chegou à varanda.

     Era um homem bastante novo, com pouco mais de vinte anos, alto, magro, dotado duma agilidade extraordinária e, ao que parecia, de uma coragem a toda a prova. Estava quase nu, recentemente ungido de óleo de coco tatuado como os outros tugues e armado de um punhal.

     ‑ Estás livre? ‑ perguntou ele.

     ‑ É como vês ‑ respondeu Tremal‑Naik.

     ‑ E os sipaios?

     ‑ Estão a dormir.

     ‑ E o capitão?

     ‑ Aquele indiano disse‑me que já aqui não está

     ‑ Terá desconfiado de alguma coisa? ‑ perguntou o tugue, com os dentes cerrados.

     - Não creio.

     ‑ É preciso saber para onde foi. O filho das sagradas águas do Ganges quer a sua cabeça.

     ‑ Mas o sargento não fala.

     - Verás que fala.

     ‑ Agora, que penso nisso, estes homens fizeram‑me engolir uma bebida que me embriagou e me fez falar.

     - Alguma limonada, com certeza ‑ disse o tugue sorrindo

     ‑ Sim, era uma limonada.

     ‑ Fá‑la‑emos beber ao sargento.

     Saltou para a sala, lançou um olhar a Bhârata, que esperava tranquilamente a sua sorte, pegou num copo cheio de água e preparou a mesma limonada que o capitão Macpherson fizera bebera Tremal‑Naik.

     ‑ Engole esta bebida ‑ disse ele ao sargento, depois de lhe tirar a mordaça.

     ‑ Nunca! ‑ respondeu Bhârata, que adivinhara o que se tratava.

     O tugue pegou‑lhe no nariz entre os dedos e apertou‑o com força. O sargento, para não morrer asfixiado foi obrigado a abrir os lábios. Bastou um momento para que a limonada lhe fosse deitada na boca.

     ‑ Agora saberás tudo - disse Nagor a Tremal-Naik.

     - Tens medo dos sipaios? - perguntou lhe o caçador de serpentes.

     - Eu! ‑ exclamou o tugue rindo

     ‑ Põe‑te em frente da porta e atira sobre o primeiro que tentar subir a escada.

     ‑ Conta comigo, Tremal‑Naik. Ninguém virá interromper o teu interrogatório.

     O tugue pegou num par de pistolas, verificou se estavam carregadas e saiu, pondo‑se de sentinela em frente da porta

     O sargento começava então a rir e a falar sem parar Tremal‑Naik, surpreendido, escutava aquela torrente de palavras, recolhendo entre elas o nome do capitão Macpherson.

     ‑ Bravo, sargento! ‑ disse ele. ‑ Onde está o capitão?

     Ao ouvir aquela voz, Bhârata parara. Olhou para Tremal‑Naik, com os olhos cintilantes e perguntou:

     ‑ Quem me fala?... Pareceu‑me ter ouvido a voz de um tugue... Ah. Ah?... Dentro em pouco, já não haverá tugues. Disse-o o capitão... E o capitão é um homem de palavra... Um grande homem que não tem medo. Vai assaltá‑los nos seus covis... Destrui‑los-á com as bombas... Há‑de ser bonito vê‑los a fugir com a água a correr atrás deles... Ah!... Ah!... Ah!

     ‑ E tu também vais ver? ‑ perguntou Tremal‑Naik, que não perdia uma palavra.

     ‑ Vou, pois! E tu também vens? Ah!... Ah? Será um lindo espectáculo.

     - E sabes onde é o covil deles?

     ‑ Claro que sei. Disse‑o Saranguy.

     ‑ Ah, miseráveis!... ‑ exclamou Tremal‑Naik. ‑ Mas eu também hei‑de saber alguma coisa de ti.

     ‑ Ele tinha bebido a limonada - recomeçou o sargento ‑ e contou tudo.

     ‑ E, quando Saranguy falou, o capitão estava lá? ‑ perguntou Tremal‑Naik, estremecendo.

     ‑ Claro que sim, e partiu logo, para os surpreender no seu covil.

     ‑ Para Rajmangal, não?

     ‑ Não, não! ‑ exclamou vivamente o sargento. ‑ Os tugues são fortes e são precisos muitos homens para os esmagar.

     ‑ Foi a Calcutá?

     ‑ Sim, a Calcutá, ao forte Williams!... Vai armar um navio... Embarcará muitos homens e muitos canhões... Ah!... Ah!... Que lindo espectáculo!

     O sargento calou‑se. Os seus olhos fechavam‑se e abriam‑se, mas voltavam a fechar‑se, embora ele se esforçasse por os manter abertos. Tremal‑Naik percebeu que, pouco a pouco, o ópio fazia o seu efeito.

     ‑ Sei tudo o que queria saber ‑ murmurou. ‑ E, agora, a caminho de Rajmangal!

    

                           Cercados

     Não tinha ainda acabado de falar quando ressoaram no corredor de baixo duas detonações, logo seguidas do grito dum homem moribundo.

     Sem pensar no perigo a que se expunha, precipitou‑se para fora da sala, saltando como um tigre e gritando:

     ‑ Nagor! Nagor!

     Ninguém respondeu ao seu apelo. O estrangulador, que poucos minutos antes vigiava diante da porta, já ali não estava. Para onde tinha ido? Que acontecera?

     Tremal‑Naik, inquieto, mas decidido a salvar o companheiro, lançou‑se para a escada. Um homem, um sipaio, jazia no meio do corredor, contorcendo-se nos últimos estertores da agonia. Do peito saia‑lhe um rio de sangue, que ia formando no chão uma poça que cada vez se tornava maior.

     ‑ Nagor! ‑ repetiu Tremal‑Naik.

     Três homens apareceram ao fundo do corredor, correndo em direcção à porta do salão. Quase no mesmo instante, ouviu‑se a voz de Nagor, que gritava:

     ‑ Socorro! Estão a arrombar a porta!

     Tremal‑Naik desceu precipitadamente a escada e descarregou sucessivamente dois tiros de revólver. Os três indianos que avançavam fugiram.

     ‑ Nagor, onde estás? - perguntou o caçador de serpentes.

     ‑ Aqui no salão ‑ respondeu o tugue. ‑ Deita a porta abaixo; fecharam‑me cá dentro.

     Com um empurrão furioso, Tremal‑Naik quebrou as tábuas. O estrangulador, todo ferido e cheio de sangue, precipitou‑se para fora da prisão.

     ‑ Que fizeste? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Foge! Foge! ‑ gritou Nagor. ‑ Os sipaios andam atrás de nós.

     Os dois indianos voltaram a subir a escada e correram a fechar‑se na sala onde estava o sargento. No corredor ressoaram três ou quatro tiros de espingarda.

     ‑ Saltemos pela janela - gritou Nagor.

     ‑ É tarde demais ‑ disse Tremal‑Naik, debruçando‑se da sacada.

     Dois sipaios estavam postados a duzentos metros do bangalô. Ao verem os dois indianos, apontaram as carabinas e fizeram fogo, mas as balas perderam‑se nas esteiras de coqueiro.

     ‑ Fomos apanhados ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Vamos barricar a porta.

     Esta, felizmente, era bastante grossa e munida de sólidos ferrolhos. Em poucos instantes, os dois indianos acumularam atrás dela os móveis da sala..

     ‑ Carrega as tuas pistolas ‑ disse Tremal‑Naik a Nagor. ‑ Dentro de pouco, seremos assaltados.

     ‑ Achas que sim?

     ‑ Os sipaios sabem que somos apenas dois. Mas que fizeste tu? Porquê todo aquele barulho?

     ‑ Eu obedeci às tuas instruções ‑ disse o estrangulador. ‑ Quando vi dois sipaios a avançar pelo corredor, disparei e atirei com um deles por terra; o outro fugiu para o salão e eu fui atrás dele, mas caí e quando me levantei encontrei as portas fechadas. Se não fosses tu, ainda estaria prisioneiro.

     ‑ Fizeste mal em disparar tão depressa. Agora não sei como é que isto vai acabar.

     ‑ Ficaremos aqui.

     ‑ E, entretanto, Rajmangal cairá.

     ‑ Que disseste?

     ‑ Que Rajmangal está ameaçada.

     ‑ Quem to disse?

     ‑ O sargento.

     ‑ Onde está o sargento?

     ‑ Está ali a dormir.

     ‑ E disse‑te que Rajmangal está ameaçada? Naturalmente estás a brincar.

     ‑ Estou a falar a sério. Os Ingleses descobriram o nosso covil.

     ‑ É impossível.

     ‑ O capitão Macpherson está no forte Williams e prepara uma expedição para assaltar Rajmangal.

     ‑ Mas então corremos um grave perigo.

     ‑ Com certeza.

     ‑ É preciso apanhar aquele maldito e matá‑lo.

     ‑ Bem sei.

     ‑ Mas isso é contigo.

     ‑ Também o sei.

     ‑ Se o não matares, a “Virgem do Pagode” nunca será tua esposa.

     ‑ Cala‑te, não fales nela ‑ disse Tremal‑Naik, com voz surda.

     ‑ Que queres fazer?

     ‑ Sair daqui e alcançar o forte Williams.

     ‑ Estamos cercados.

     ‑ Bem vejo.

     ‑ E então?

     ‑ Evadir‑nos‑emos.

     ‑ Quando?

     ‑ Esta noite.

     ‑ Como?

     ‑ Isso é comigo.

     ‑ Quantos homens estão no bangalô?

     ‑ Eram dezasseis ou dezoito. Mas...

     Agarrou uma das mãos do tugue e apertou‑a com força.

     ‑ Ouves? ‑ perguntou, apontando para a porta.

     ‑ Sim ‑ disse o tugue. ‑ Alguém caminha no corredor.

     ‑ São os sipaios.

     ‑ Irão tentar o assalto?

     As tábuas do corredor gemiam, sinal certo de que alguém caminhava. Pouco depois, bateram à porta.

     ‑ Quem vive? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Um tugue ‑ respondeu uma voz.

     ‑ Procuram enganar‑nos ‑ murmurou Tremal‑Naik ao ouvido de Nagor.

     ‑ Abre, que me estão a seguir ‑ recomeçou a mesma voz.

     ‑ Quem é o teu chefe? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Cali.

     ‑ És um sipaio. Temos cem tiros para disparar; se não te afastas, és um homem morto.

     As tábuas do corredor gemeram com mais força.

     ‑ Têm medo ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Não tentarão nada contra nós.

     ‑ Mas ficaremos prisioneiros deles ‑ respondeu Nagor, que se tornara inquieto.

     ‑ Já te disse que esta noite nos evadiremos.

     ‑ Calado!

     Um tiro de carabina ribombou lá fora, seguido pelo grito:

     ‑ O tigre!... O tigre!...

     Tremal‑Naik correu para a janela e olhou.

     Os dois sipaios que estavam emboscados atrás dos arbustos tinham‑se levantado, com as carabinas na mão, e soltavam gritos de terror.

     Diante deles, a cerca de duzentos passos, um grande tigre rugia.

     ‑ Darma! ‑ gritou Tremal‑Naik.

     O tigre deu um salto de vários metros, ameaçando os dois sipaios, que apontavam as armas para eles.

     ‑ Foge, Darma! ‑ ordenou o caçador de serpentes, vendo que outros sipaios acorriam em auxilio dos companheiros.

     A inteligente fera hesitou, como se compreendesse o perigo que o seu patrão corria, e depois afastou‑se com fulminante rapidez.

     ‑ Valente animal ‑ disse Nagor.

     ‑ Sim, valente e fiel ‑ acrescentou Tremal‑Naik ‑, e esta noite ajudar‑nos‑á a fugir.

     Voltaram para detrás da barricada e esperaram pacientemente que a noite descesse.

     Durante o dia, os sipaios aproximaram‑se várias vezes da porta, tentando forçá‑la, mas um tiro de revólver bastava para os pôr em fuga.

     Às oito pôs‑se o Sol. Seguiu‑se um breve crepúsculo e depois as trevas desceram rapidamente. A Lua só dentro de algumas horas devia surgir.

     Por volta das onze, Tremal‑Naik espreitou pela janela e viu confusamente os dois sipaios. Procurou o tigre, mas não o viu.

     ‑ Vamos embora? ‑ perguntou Nagor.

     ‑ Sim.

     ‑ Por onde?

     ‑ Pela janela. Não tem mais de quatro metros de altura e o chão não é duro.

     ‑ E os sipaios? ‑ disse ele. ‑ Assim que saltarmos, disparam contra nós.

     ‑ Primeiro fazemos‑lhes descarregar as armas.

     ‑ Como?

     ‑ Já vais ver.

     Tremal‑Naik pegou nos tapetes, em todas as roupas que conseguiu encontrar, nas almofadas da cama e fez um fantoche do tamanho dum homem.

     ‑ Estás pronto? ‑ perguntou a Nagor.

     ‑ Quando quiseres, salto da janela. E o sargento?

     ‑ Está a dormir, deixemo‑lo dormir. Agora, atenção: os dois sipaios estão a cinqüenta metros de nós.

     ‑ Bem sei.

     ‑ Eu desço o fantoche. Os dois sipaios vão torná‑lo por um de nós e descarregarão sobre ele as carabinas.

     ‑ Muito bem.

     ‑ Nós aproveitamos para saltar e fugir. Compreendes?

     ‑ És corajoso e astuto ‑ disse Nagor. ‑ Com um homem assim, tudo se pode fazer. Que pena que tu não sejas um tugue.

     ‑ Prepara‑te para saltar.

     Pegou no laço e desceu o fantoche pela janela, fazendo‑o ondular. Os dois sipaios fizeram fogo, gritando:

     ‑ Alerta!...

     Tremal‑Naik e Nagor saltaram da janela com os revólveres em punho. Caíram, levantaram‑se e partiram como duas setas.

     ‑ Segue‑me! ‑ disse Tremal‑Naik, redobrando de velocidade.

     Atrás deles ouviram‑se as sentinelas dar o alarme: foram disparados alguns tiros de espingarda, que não acertaram no alvo.

     Tremal‑Naik entrou como uma bomba numa paliçada. Um cavalo estava deitado no chão. Com um soco fê‑lo levantar.

     ‑ Sobe atrás de mim ‑ gritou para o tugue.

     Os dois fugitivos saltaram para a sela, apertaram os joelhos, agarraram‑se às crinas e lançaram o cavalo através da planura.

     ‑ Para onde vamos? ‑ perguntou Nagor.

     ‑ Vamos ter com Kougli ‑ respondeu Tremal‑Naik, martelando os flancos do cavalo com a coronha do revólver.

         ‑ Vamos cair mesmo no meio dos sipaios.

     ‑ Kougli está cercado?

     ‑ Quando o deixei, havia sipaios no bosque.

     ‑ Iremos com cautela. Tem as armas preparadas.

     O cavalo, um belo animal de pêlo negro, fendia o espaço, saltando fossos e arbustos, apesar da dupla carga que levava.

     Já o bangalô desaparecera entre as trevas e a floresta começava a aparecer quando, duma moita de bambus, uma voz gritou:

     ‑Eh!... Alto!...

     Os dois fugitivos voltaram‑se, erguendo as armas.

     A Lua, que então se erguia, mostrou‑lhes uma dezena de homens estendidos por terra, que apontavam as carabinas para o cavalo.

     ‑ Pica o cavalo! ‑ gritou Nagor.

     Um grande clarão rasgou as trevas, seguido de várias detonações, a que responderam alguns tiros secos dos revólveres.

     O cavalo deu um salto para a frente, soltou um relincho sufocado e caiu, arrastando na queda aqueles que o montavam.

     Os sipaios saíram do meio dos bambus, irrompendo em altos gritos de alegria, que, no entanto, em breve se transformaram em gritos de terror.

     Uma sombra gigantesca saltara de um grupo de bambus, emitindo um rugido surdo. O comandante dos sipaios foi deitado por terra com uma patada.

     ‑ Darma! ‑ gritou Tremal‑Naik, levantando‑se prontamente.

     ‑ O Tigre!... O tigre!... ‑ gritaram os sipaios, fugindo em todas as direcções.

     O inteligente animal em poucos saltos chegou junto do patrão.

     ‑ Valente Darma ‑ disse ele, acariciando afectuosamente a inteligente fera. ‑ Tu nunca me abandonas.

     ‑ Aqui não sopram bons ares para nós. Os sipaios não tardarão a regressar.

     Os dois indianos lançaram‑se para o meio do bosque, rompendo através dos arbustos que se lhe deparavam a barrar o caminho e olhando à volta, com receio de cair nalguma emboscada.

     Após meia hora de corrida desenfreada, chegaram à cabana habitada pelos tugues.

     Nagor ficou do lado de fora com o tigre e Tremal‑Naik entrou. Kougli estava estendido por terra, ocupado a decifrar algumas cartas em sânscrito. Assim que o viu, levantou‑se dum salto e veio ao seu encontro.

     ‑ Livre! ‑ exclamou, não escondendo a sua surpresa e a sua alegria.

     ‑ É como vês ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ E Nagor?

     ‑ Ficou lá fora.

     ‑ Dá‑me a cabeça.

     ‑ Qual cabeça?

     ‑ A cabeça do capitão Macpherson.

     ‑ Fomos batidos, Kougli.

     O indiano deu três passos para trás.

     ‑ Batidos! Batidos, nós! Que queres dizer? ‑ perguntou.

     ‑ Quero dizer que o capitão Macpherson ainda está vivo.

     ‑ Vivo!...

     ‑ Não me foi possível matá‑lo.

     ‑ Fala!

     ‑ Deixou o bangalô sem que eu o soubesse.

     ‑ E para onde foi?

     ‑ Para Calcutá.

     ‑ A fazer o quê?

     Tremal‑Naik não respondeu.

     ‑ Fala!

     ‑ O capitão prepara‑se para assaltar o covil dos tugues. Ele sabe que Rajmangal é a vossa sede.

     Kougli olhou‑o, aterrorizado.

     ‑ Enlouqueceste! ‑ exclamou.

     ‑ Tremal‑Naik não enlouqueceu.

     ‑ Mas quem nos atraiçoou?

     ‑ Eu.

     ‑ Tu!... Tu!...

     O estrangulador atirou‑se a Tremal‑Naik com o punhal na mão. O caçador de serpentes, com a rapidez do relâmpago, agarrou‑lhe a mão e torceu‑lhe o pulso com tal violência que os ossos rangeram.

     ‑ Não faças disparates, Kougli ‑ disse ele, com raiva mal contida.

     ‑ Mas fala, indiano maldito, fala! ‑ gritou o estrangulador. ‑ Porque nos traíste? Não sabes que a tua Ada continua nas nossas mãos? Não sabes que a esperam as chamas?

     ‑ Sei ‑ disse Tremal‑Naik, com ira.

     ‑ E então?

     ‑ Atraiçoei‑vos involuntariamente. Fizeram‑me beber a jumbeba.

     ‑ A jumbeba!

     ‑ Sim.

     ‑ E tu falaste?

     ‑ Quem resiste à jumbeba?

     ‑ Conta‑me tudo o que aconteceu.

     Em breves palavras, Tremal‑Naik contou‑lhe o que acontecera no bangalô.

     ‑ Fizeste muito ‑ disse Kougli ‑, mas a tua missão ainda não terminou.

     ‑ Bem sei ‑ disse Tremal‑Naik, suspirando.

     ‑ Porque suspiras?

     ‑ Porquê?... Ainda perguntas? Eu não nasci para assassinar vilmente as pessoas. É horrível, sabes, aquilo que eu tenho de fazer, é monstruoso!

     Kougli encolheu os ombros.

     ‑ Tu não sabes o que é o ódio ‑ disse.

     ‑ Sei, sei. Não tenhas medo, que eu sei! ‑ exclamou Tremal‑Naik. - Se soubesses quanto vos odeio!

     ‑ Repara, Tremal‑Naik, que a tua namorada continua nas nossas mãos.

     O infeliz baixou a cabeça e sufocou um soluço.

     ‑ Voltemos ao capitão ‑ disse o estrangulador.

     ‑ Fala, que devo fazer?

     ‑ Antes de mais nada, é preciso impedir que aquele maldito vá a Rajmangal. Se ele chega ao nosso covil, a tua Ada está perdida.

     ‑ Trata‑se então duma nova condenação para mim? ‑ disse Tremal-Naik, com amargura. ‑ Não tendes dó nem piedade, tigres?

     ‑ Não é uma condenação. Ai de nós se aquele homem desembarca em Rajmangal!

     ‑ Que devo fazer?

     Kougli não respondeu. Agarrara a cabeça entre as mãos e pensava.

     ‑ Descobri ‑ disse de repente.

     ‑ Encontraste um meio?

     ‑ Julgo que sim.

     ‑ Fala.

     ‑ O capitão escolherá certamente o rio para chegar a Rajmangal.

     ‑ É provável ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Em Calcutá e no forte Williams temos sequazes nossos no exército e nos barcos de guerra ingleses. Temos mesmo alguém que ocupa uma posição importante.

     ‑ E então?

     ‑ Dirigir‑te‑ás ao forte Williams e, ajudado pelos nossos filiados, embarcarás no navio do capitão.

     ‑ Eu?

     ‑ Tens medo?

     ‑ Tremal‑Naik ainda está para saber o que é o medo. Mas julgo que o capitão não me reconhecerá?

     Um sorriso aflorou aos lábios de Kougli.

     ‑ Um indiano pode transformar‑se em malaio ou em birmano.

     ‑ Basta. Quando devo partir?

     ‑ Imediatamente, aliás chegarás demasiado tarde.

     ‑ Está livre o caminho que leva ao rio?

     ‑ Os sipaios que nos cercavam foram expulsos do bosque.

     Kougli encostou os dedos aos lábios e assobiou.

     Um tugue apresentou‑se.

     ‑ Seis homens de boa vontade e de experimentada coragem que se preparem para partir. A baleeira continua na margem?

     ‑ Sim ‑ respondeu o tugue.

     ‑ Vai.

     Kougli tirou de um dedo um anel de ouro, de forma especial, com um pequeno escudo, sobre o qual se via gravada a misteriosa serpente, e estendeu‑o a Tremal‑Naik.

     ‑ Basta que o mostres a um dos nossos filiados ‑ disse‑lhe. ‑ Todos os tugues de Calcutá se porão à tua disposição.

     Tremal‑Naik meteu‑o num dedo da mão direita.

     ‑ Tens mais alguma coisa para me dizer? ‑ perguntou ao tugue.

     ‑ Que nós velamos pela tua Ada.

     ‑ E depois?

     ‑ Que, se nos traíres, a daremos em pasto às chamas.

     Tremal‑Naik lançou sobre ele um olhar sombrio.

     ‑ Adeus ‑ disse‑lhe bruscamente.

     Saiu e aproximou‑se de Darma, que o olhava com inquietação, como se já adivinhasse que o patrão voltava a abandoná‑lo.

     ‑ Pobre amigo ‑ disse ele, com voz triste e comovida. ‑ Voltaremos a ver‑nos, não tenhas medo, Darma. Nagor cuidará de ti.

     Voltou‑se para o outro lado e foi ter com os tugues.

     ‑ Levem‑me ao barco ‑ ordenou.

     Os sete homens puseram‑se em fila indiana e meteram pela floresta, segurando as espingardas debaixo dos braços, para estarem prontos a servir‑se delas ao primeiro alarme.

     Às duas da manhã chegavam à margem do rio, a um pequeno ancoradouro, onde, escondida sob um monte de bambus, se encontrava uma elegante embarcação, uma espécie de baleeira.

     Os remos estavam a postos e tinha mesmo um mastro com uma pequena vela. Só faltava embarcar.

     ‑ Vêem alguém? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Ninguém ‑ responderam os tugues.

     ‑ Para o barco.

     Os sete homens subiram a bordo e fizeram‑se ao largo.

 

                           A fragata

     O Hugly, cujas águas são consideradas sagradas pelas populações da alta Índia, que com freqüência fazem longas peregrinações, para lançarem nelas as cinzas dos seus mortos ou para se banharem, é um dos mais importantes rios da grande península asiática.

     O seu comprimento não supera as cinqüenta léguas, formado, como é, pela reunião dos rios Cossimbazar e Djellinghey, os dois ramos mais ocidentais do Ganges; mas a massa de água é considerável, pois vêm engrossá‑la, pela margem direita, o Dorumoudah, o Roupnaram, o Tingorilly e o Hidiely.

     Neste braço do Ganges reina uma actividade extraordinária e febril, que iguala a que se verifica nos rios gigantescos da América do Norte.

     Aproveitando a maré alta, que costuma ser muito forte, navios provenientes de todos os portos do globo sobem o rio, detendo‑se em Calcutá ou em Chandernagor ou em Hugly, as três mais importantes cidades situadas nas suas margens.

     Navios a vapor, barcaças, bergantins e goletas encontram‑se um pouco ao longo de todo o seu curso. Já não falamos das pinaças, dos poula, dos bangle, dos mur‑punky, dos fylt'sciarra, dos gonga e de todos os outros barcos, mais ou menos grandes, de construção indiana, que se contam por milhares e que se cruzam em todas as direcções.

    No entanto, no momento em que a baleeira deixava a margem, poucos barcos sulcavam a corrente, e quase todos provenientes do sul, que o mesmo é dizer, do mar. Do norte desciam, sim, montes de cadáveres, que iam caprichosamente à deriva, arribando sobre as numerosas ilhas e ilhéus ou sobre as margens, onde caíam debaixo do dente dos tigres e dos chacais, sempre prontos a tomar parte naqueles gigantescos banquetes que a superstição indiana gratuitamente lhes oferece.

     ‑ Coragem ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ É preciso chegar ao forte antes de a expedição se fazer ao largo. Se chegarmos tarde, perdeis Rajmangal.

     ‑ Deixa isso connosco ‑ respondeu aquele que parecia ser o chefe daqueles tugues. ‑ Chegaremos a tempo.

     ‑ Qual é a distância daqui até ao forte?

     ‑ Menos de dez léguas.

     ‑ Quando pensas que a expedição partirá?

     ‑ Na maré alta, sem dúvida. Dentro de meia hora começará a subir. correremos com mais velocidade do que um steamer.

     Os tugues, homens robustos, experimentados e habituados ao remo desde a infância, sentaram‑se nos bancos e puseram‑se a bater a água com os remos a golpes secos, vigorosos e bem compassados.

     A baleeira, uma bela e sólida embarcação, construída para andar depressa, não tardou a correr com notável velocidade, mal tocando na água, cuja corrente ameaçava deter‑se pela próxima chegada da maré, que sobe com tanta fúria que provoca muitas vezes em Calcutá uma subida de nível superior a um metro e meio.

     A noite era limpidíssima, iluminada por um luar soberbo e o ar doce, riscado de quando em quando pela brisa que descia do curso superior do rio.

     As margens, visíveis como se fosse dia, apresentavam de vez em quando belos panoramas, tão próprios dos rios indianos.

     Ora se viam magníficos bosques de palmeiras, de coqueiros com o tecto majestoso, com as longas folhas dispostas em cúpula, e abraçadas de mil maneiras por aqueles estranhos trepadores chamados cálamos, que atingem com freqüência um comprimento de cento e cinqüenta metros; ora eram campos intermináveis de mostardeiras, ou então plantações de índigo, de açafrão, de gergelim, de jalapas e menores extensões de bambus gigantescos, no meio das quais iam e vinham bandos de búfalos selvagens, animais realmente formidáveis, mais temidos do que os tigres e que não hesitam em atacar um regimento de homens.

     Por vezes apareciam aldeias miseráveis, sufocadas sob a vegetação densa, ou então rodeadas de arrozais, encerradas entre barreiras com a altura de vários pés, destinadas a segurar as águas, e o mais das vezes construídas à beira de pântanos sobre os quais se erguia uma névoa pestilenta, carregada de febre e de cólera.

     Também não faltavam os elegantes bangalôs, sobre cujos telhados em forma de pirâmide dormiam bandos de cegonhas negras, de íbis escuras e de devoradores de ossos, aves gigantescas e vorazes muito respeitadas pelos Indianos, os quais, segundo a sua estranha doutrina da transmigração das almas, julgam que nos seus corpos se encontram as almas dos sacerdotes de Brama.

     Decorrera meia hora depois que a baleeira deixara a pequena enseada, quando na margem direita se ouviu uma voz gritar:

     ‑ Eh!...

     Ao ouvir aquela brusca intimação, por que não esperava, pois o rio estava deserto, Tremal‑Naik levantou‑se prontamente.

     ‑ Quem é que nos intima a parar? ‑ perguntou ele, olhando à volta. - Algum irmão, talvez?

     ‑ Olha para além ‑ disse um dos remadores, apontando para a margem. ‑ Estamos a passar em frente do bangalô do capitão Macpherson.

     ‑ Ter‑nos‑ão descoberto?

     ‑ Assim deve ser. Os espertalhões desconfiaram de qualquer coisa e têm debaixo de olho os barcos que sobem o rio. Não vês homens no terraço?

     Tremal‑Naik dirigiu o seu olhar para o bangalô. Sobre o terraço que dominava o rio viu um grupo de pessoas. A Lua fazia brilhar os canos das espingardas.

     ‑ Eh!... Pára! ‑ repetiu a mesma voz.

     ‑ Vamos para a frente ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Se quiserem atacar‑nos, têm de nos dar caça.

     A baleeira, que afrouxara a marcha, continuou a subir. Uma gritaria ensurdecedora se levantou do terraço.

     ‑ Com mil diabos! ‑ gritou uma voz. ‑ Façam fogo!

     ‑ São eles! ‑ gritou outra voz.

     ‑ Fogo, amigos!

     Ouviram‑se quatro tiros de espingarda. Os tugues, embora já afastados oitocentos ou mil metros, ouviram as balas assobiar por cima da embarcação.

     ‑ Ah, bandidos! ‑ exclamou Tremal‑Naik, pegando na carabina.

     ‑ Olha! ‑ gritou um dos tugues. ‑ Preparam‑se para nos dar caça.

     ‑ Eu encarrego‑me de os manter à distância. Dirigi a embarcação para aquele grab que desce o rio; talvez venha de Calcutá e poderá dar‑nos notícias sobre a expedição.

     ‑ Atenção, Tremal‑Naik! ‑ gritou um dos remadores.

     O indiano olhou em direcção ao pequeno ancoradouro do bangalô e viu um mur‑punky com cinco ou seis sipaios e meia dezena de remadores.

     ‑ Avança! ‑ ordenou ele, levantando a carabina.

     A baleeira corria cada vez com mais velocidade; o mesmo acontecia com o mur‑punky, conduzido por homens hábeis; talvez por ser mais leve, ia ganhando rapidamente terreno.

     À proa tinham erguido um baluarte, atrás do qual se esconderam os sipaios, com as carabinas encostadas.

     ‑ Pára! ‑ gritou uma voz.

     ‑ Avança sempre! ‑ comandou Tremal‑Naik.

     Um sipaio levantou a cabeça. Aquele momento bastou: Tremal‑Naik apontou rapidamente a arma e deixou partir o tiro. O sipaio soltou um grito, agitou os braços e caiu para o fundo do barco.

     ‑ Quem se segue? ‑ gritou Tremal‑Naik, pegando noutra carabina.

     Respondeu‑lhe uma descarga geral. As balas zumbiram de um e de outro lado da baleeira.

     Um outro sipaio mostrou‑se também e caiu, como o primeiro.

     Aquela matemática precisão desanimou os sipaios, os quais, depois de brevemente terem discutido a situação, viraram de bordo, dirigindo‑se para a margem oposta.

     ‑ Está em guarda, Tremal‑Naik ‑ disse um dos tugues. ‑ Há bangalôs ingleses naquela margem.

     ‑ Que talvez lhes forneçam homens e barcos ‑ acrescentou um segundo.

     ‑ Não lhes daremos tempo para isso ‑ disse o indiano. ‑ Endireitai a proa em direcção ao grab.

     O barco que descia para o mar não estava a mais de meia milha de distância.

     Era um daqueles barcos indianos que se constroem em Bombaim, onde, ao que parece, a navegação conhece, desde os tempos mais remotos, uma perfeição maior do que nos outros lugares da Índia, e onde se encontram as árvores de teca, conhecidas pela sua extrema dureza, e salgueiros que resistem às águas durante séculos.

     A proa daquele grab, de arquitectura puramente indiana, era bastante elegante e aguçada, adornada com divindades e cabeças de elefante esculpidas com rara mestria. Os seus três mastros, com velas que iam da verga à ponte, curvavam‑se sob a fresca brisa do norte.

     Em quinze minutos a baleeira abordava‑o pelo flanco. O capitão do navio debruçou‑se da amurada, para saber o que queriam.

     ‑ Donde vindes? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Da “Cidade Branca”. ‑ respondeu o lobo do mar.

     ‑ Há quantas horas passastes em frente do forte Williams?

     ‑ Há cinco.

     ‑ Vistes navios de guerra?

     ‑ Sim, uma fragata: a Cornwall.

     ‑ Estava a carregar?

     ‑ Não, embarcava soldados.

     ‑ São esses que vão para Rajmangal ‑ disseram os tugues.

     ‑ Sabeis qual é o destino da Cornwall? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com os dentes cerrados.

     ‑ Não sei ‑ respondeu o capitão.

     ‑ A caldeira estava acesa?

     ‑ Sim.

     ‑ Obrigado, capitão.

     A baleeira afastou‑se do grab.

     ‑ Ouvistes? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com raiva.

     ‑ Sim ‑ responderam os tugues, curvando‑se sobre os remos.

     ‑ É preciso chegar antes de a fragata se fazer ao largo; senão, tudo estará perdido. Arrancai! Arrancai!

     Naquele instante, um dos tugues soltou um grito de triunfo.

     ‑ Ouvi! ‑ exclamou ele.

     Todos se puseram à escuta, sustendo a respiração. Ao sul, ouvia‑se um surdo mugido, semelhante ao aproximar‑se duma borrasca.

     ‑ A maré! ‑ gritaram os tugues.

     A corrente do Hugly parara subitamente. Ao sul apareceu uma onda de espuma, que avançava com a velocidade dum cavalo lançado a galope.

     Chegou com um rugido surdo, erguendo a baleeira, e passou subindo rapidamente em direcção a Calcutá, arrastando montes de detritos, de ervas e não poucos troncos de árvores.

     ‑ Para a margem direita! ‑ ordenou o chefe dos remadores. ‑ Dentro de uma hora estaremos no forte.

     A baleeira atingiu a margem direita, onde a maré se faz sentir com maior força do que na margem esquerda, e retomou a navegação, poderosamente ajudada pelos remos, manobrados com habilidade e vigor.

     Surgia então a aurora. A oriente, uma luz, primeiro esbranquiçada, depois amarela e depois arroxeada, ia invadindo rapidamente o céu. Os astros, que pouco antes cintilavam, iam empalidecendo pouco a pouco e desapareciam, ao mesmo tempo que o uivar das feras se ia tornando mais raro e mais fraco.

     As margens do soberbo rio perdiam o seu aspecto selvagem à medida que a baleeira se aproximava de Calcutá. As grandes florestas, povoadas de numerosos bandos de tigres, de búfalos selvagens, de chacais e de serpentes, e as imensas plantações de bambus desapareciam pouco a pouco, para darem lugar a campos fertilíssimos, cultivados com grande cuidado, a plantações de índigo, de algodão e de cinamomo, a belíssimas e variadas árvores carregadas de frutos de todas as espécies, a elegantes vivendas e a grandes aldeias.

     Bandos de unguaris, macacos com o peito saliente, o pêlo negro, escuro ou cinzento e o rosto quase humano, apareciam entre as moitas de árvores, balouçando entre os ramos, dando saltos prodigiosos de dez e até de quinze metros; viam‑se depois bandos de axis, elegantes animais semelhantes aos veados, com o pêlo louro, salpicado de branco; búfalos tranqüilos vinham dessedentar‑se e, no ar, empoleirados nos tectos das cabanas ou pousados sobre os ramos arqueados dos paletúvios, aves de todos os géneros e de todas as grandezas, milhafres, gipaetos, íbis escuros, mergulhões, pequenos patos de penas purpurinas e azuis, marrecos e gigantescos arghilah, alguns dos quais atarefados em fazer desaparecer algum corvo impertinente que ousara disputar‑lhes alguma presa.

     ‑ Estamos perto de Calcutá ‑ disse um remador, depois de ter observado atentamente as duas margens.

     Tremal‑Naik, que há algum tempo se encontrava possuído por uma febril impaciência, ao ouvir aquelas palavras, levantou‑se dum salto, dirigindo os seus olhares em direcção ao norte.

     ‑ Onde está? ‑ perguntou ele. ‑ Estás a vê‑la?

     ‑ Ainda não, mas vê‑la‑emos em breve.

     ‑ Arranca!... Arranca!

     A baleeira acelerou a corrida. Os tugues, não menos impacientes do que o seu chefe, arrancavam então com verdadeiro furor, dobrando as pagaias sob a potente tracção. Ninguém falava, para não perder um único impulso.

     Às oito horas, ouviu‑se um tiro de canhão para os lados do curso superior do rio.

     ‑ Que é isto? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com ansiedade.

     ‑ Estamos perto de Kiddepur. É algum navio de guerra que parte e faz a saudação.

     ‑ Depressa! Depressa!... Se pudéssemos chegar a tempo!

     O rio começava a animar‑se extraordinariamente. Barcas, bergantins, goletas, subiam e desciam a corrente em grande número. Grandes grab, grúndes partiam da costa do Coromandel, cuja pesada construção não permite que realizem mais de uma viagem por ano, na época da monção favorável; leves poular de Dacca, rapidíssimos, com mastros e uma vela quadrada; bangle cobertas de tectos de colmo e com mastros de bambu enormes e magníficos com um comprimento de quinze metros, e até mais, ricamente dourados e impulsionados por mais de trinta remadores, cruzavam‑se de mil modos ou estavam ancorados ao longo das margens diante dos bangalôs ou das aldeias.

     Tremal‑Naik tinha de usar toda a sua habilidade para não chocar contra aquela multidão de navios e barcaças, que aumentava enormemente, de modo a ocupar por vezes todo o rio.

     Os tugues continuavam a avançar com fúria crescente, esticando os músculos de modo que quase faziam estourar a pele.

     Às nove horas, a baleeira passava diante de Kiddepur, grande aldeia que se ergue na margem esquerda do rio e poucos minutos depois chegava à vista de Calcutá, a rainha de Bengala, a capital de todas as possessões inglesas das índias, com a sua imponente linha de palácios, os seus pagodes, as suas cúpulas, os seus bizarros campanários, os seus sinos.

     Tremal‑Naik pusera‑se de pé, como impelido por uma mola, e olhava, estupefacto, aquele aglomerado extraordinário de construções, de jardins e de barcos.

     ‑ Que maravilha!... ‑ murmurou. ‑ Nunca acreditei que a tão pouca distância do país dos tigres e das serpentes pudesse erguer‑se uma cidade tão grande.

     Voltou‑se para um dos tugues, o mais velho, e perguntou‑lhe:

     ‑ Conheces a cidade?

     ‑ Sim, Tremal‑Naik ‑ respondeu o indiano.

     ‑ Sabes qual é a minha missão?

     ‑ Kougli disse‑me: matar o capitão, de modo que ele não vá a Rajmangal.

     ‑ Onde estará aquele homem?

     ‑ Havemos de o saber, pelo menos assim o espero.

     ‑ Não terá partido?

     ‑ Não vimos nenhum barco de guerra descer o Ganges ‑ respondeu o velho. ‑ Podemos, pois, estar certos de que a expedição ainda não partiu.

     ‑ Sabes se o capitão tem algum palacete em Calcutá?

     ‑ Tem um nas vizinhanças do forte Williams.

     ‑ Conhece‑lo?

     ‑ Perfeitamente.

     ‑ Terá ficado alojado nele?

     ‑ Depressa o saberemos.

     ‑ De quem?

     ‑ De um dos nossos filiados que é quartel‑mestre a bordo da Devonshire.

     ‑ Que é essa Devonshire? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Olha ali, aquela canhoneira ancorada junto ao forte Williams.

     Tremal‑Naik olhou na direcção indicada e viu, a cinqüenta braças dos sólidos muros da fortaleza, um pequeno navio a vapor, de trezentas ou quatrocentas toneladas, de casco bastante baixo, e provavelmente de pequeno calado, para poder subir facilmente os afluentes do Ganges.

     Tinha apenas um mastro, situado para o lado da proa, e à popa tinha uma grande peça de artilharia, colocada sobre uma espécie de plataforma.

     Sob a orla superior da popa, numa grande placa de metal, podia ler‑se, escrito em letras douradas, um nome: Devonshire.

     ‑ Tendes um filiado a bordo daquele navio? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Sim, é o quartel‑mestre Hider.

     ‑ Vamos ter com ele.

     ‑ Devagar, Tremal‑Naik; é necessária a maior prudência.

     ‑ Não somos conhecidos aqui.

     ‑ Quem pode garanti‑lo? Deixa‑te guiar por mim, que sou um dos tugues mais velhos.

     ‑ Entrego‑me nas tuas mãos.

     O tugue abandonou o remo por um momento e subiu para o banco, olhando atentamente para o tombadilho da canhoneira.

     Havia muitos marinheiros sobre a coberta, ocupados a limpá‑la e a pôr em ordem as amarras e os vários utensílios que a enchiam. Entre eles, o velho tugue descobriu o quartel‑mestre, que estava a falar com um jovem cadete.

     ‑ É ele ‑ disse o estrangulador, voltando‑se para Tremal‑Naik.

     ‑ Ele, quem?

     ‑ Ele viu‑te?

     ‑ Espera um momento.

     Encostou as mãos aos lábios e, formando uma espécie de megafone, soltou três notas estridentes, que mais pareciam emitidas por um instrumento do que pela boca dum homem.

     O quartel‑mestre voltou‑se quase imediatamente para o rio e debruçou‑se da amurada. A chalupa passava então quase debaixo do casco da canhoneira.

     O olhar do quartel‑mestre cruzou‑se com o do velho tugue e depois voltou‑se para o outro lado, fingindo observar um grab que descia a corrente com as velas pandas.

     ‑ Dentro de pouco, Hider estará em terra ‑ disse o velho, voltando‑se para Tremal‑Naik. ‑ Ele compreendeu‑me.

     ‑ Onde o esperamos?

     ‑ Numa taberna dum filiado nosso.

     ‑ Ele sabe que nós iremos lá?

     ‑ As minhas três notas fizeram‑lho compreender.

 

     A baleeira retomou a corrida, mantendo‑se a pequena distância da margem e subindo para o centro da capital de Bengala.

     Os navios e as barcaças aumentavam, ocupando toda a largura dos Barcos pertencentes a todas as nações do globo, uns a vapor, outros à vela, e um número infinito de embarcações indianas e pinaças, enchiam os fundeadouros, enquanto legiões de carregadores carregavam e descarregavam as mercadorias, amontoando‑as debaixo de imensos telheiros.

     No meio daquela floresta de grandes navios, enxames de barcaças de todas as formas deslizavam sobre as águas do gigantesco rio. Eram na sua maior parte, bangle carregadas de arroz, com os tectos de colmo, para abrigar as mercadorias, ou pequenas gonghe escavadas num simples tronco de árvore ou chalupas pertencentes aos navios ancorados, mas viam‑se também passar, rápidas como setas, fulgurantes flyt'sciarra, com um comprimento de quinze metros, adornadas à proa com uma cabeça de elefante, carregadas de dourados e ornamentadas com tapetes e cadeiras de veludo transportando algum indiano rico.

     Nas margens, especialmente nos ghát, que são grandes escadarias de pedra que descem para o rio, viam‑se homens, mulheres e crianças que se preparavam para fazer as suas abluções nas sagradas águas do Ganges.

     Seja qual for a estação do ano, o Indiano nunca esquece o banho religioso; para ele, é um rito que se tornou absolutamente necessário e julgaria começar mal o dia se não mergulhasse nas águas do Ganges.

     Em todas as cidades da Índia que têm a sorte de ser banhadas por aquele imenso rio, todas as manhãs multidões de habitantes se juntam nas escadarias e, mal o sol desponta, mergulham. Quer a manhã esteja quente quer chova, nunca renunciam ao banho, sobretudo aqueles que pertencem à seita de Brama.

     Homens e mulheres, ricos e pobres, levando todos debaixo do braço roupas brancas, para poderem mudar, despem‑se nas escadarias, ao ar livre, sob os olhares de todos, sem reparar nos curiosos, e tomam o seu banho, com o rosto voltado para o sol, como manda a sua religião.

     Começam por enxaguar a boca, depois oferecem uma mancheia de água ao astro do dia. Em seguida lavam as roupas, sem usar sabão, pois este é considerado matéria impura, para depois voltarem a vestir‑se, sempre ao ar livre, homens e mulheres à mistura, e regressam a casa, levando também consigo um vaso de água, que servirá para as abluções do dia.

     A baleeira, depois de ter passado pelo meio daquele caos de árvores e de banhistas e de um número infinito de palacetes esplêndidos, de pagodes e de jardins, parou diante duma enorme escadaria, que naquele momento estava deserta.

     O velho tugue fez sinal aos seus companheiros para que ficassem de guarda à chalupa e depois disse a Tremal‑Naik:

     ‑ Segue‑me.

     Subiram a escadaria, passando diante de alguns vendedores de folhas de bétele, cuidadosamente embrulhadas e contendo uma mistura de noz de areca, de cal, de resina e de outras drogas indicadas para conservar os dentes e para purificar a boca dos espíritos impuros que infestam por toda a parte a crédula e supersticiosa fantasia dos Hindus, e, uma vez atravessada a rua, dirigiram‑se para as esplêndidas praças que embelezam as margens do rio.

     Embora o sol tivesse apenas acabado de nascer, já uma grande multidão se agitava entre as árvores, nas margens dos pequenos lagos, à volta das fontes e nos bangalôs, que se viam erguidos por toda a parte, com os seus telhados altos aguçados.

     Bengaleses, malabares, brâmanes, europeus, chineses e birinanos cruzavam‑se por toda a parte, enquanto nas ruas largas se viam passar cómodos palanquins, cintilantes de ouro e com cortinas de musselina azul ou amarela, ou elegantes ratt, coroados de leves cúpulas douradas e abrigados por panos de seda e puxados por quatro bois muito limpos e com cornos dourados.

     O velho tugue atravessou rapidamente as praças, passou diante dos esplêndidos palácios, com frontões de templos gregos, que se alinham para lá dos jardins e que confinam, sem transição, com sórdidos quarteirões compostos de cabanas de palha habitadas pelas castas mais baixas dos Hindus.

     Ao fim de um quarto de hora, o velho meteu por uma viela enlameada e muito estreita e parou diante dum casebre de aspecto miserável, sobre cuja porta pendia um horrível peixe embalsamado, de pele negra, cabeça quadrada como a das rãs e dotado de duas membranas paralelas de grande comprimento.

     ‑ É aqui ‑ disse o tugue. ‑ Dentro de pouco, Hider virá.

     Entraram num compartimento quase escuro, onde se viam algumas mesas e bancos de bambu, e sentaram‑se no ângulo mais iluminado. Um indiano, magro como um faquir e horrivelmente desfigurado pela varíola, trouxe‑lhes uma terrina de arroz cozido com cari, aquela terrível mistura feita de peixes cozinhados com diversas ervas e óleo de coco rançoso, e um vaso de tody, uma espécie de vinho extraído da palmeira vinífera, muito claro, agradável, ligeiramente inebriante.

     Estavam Tremal‑Naik e o seu companheiro a esvaziar a terrina, pois o ar da manhã e o longo passeio tinham‑lhes aberto o apetite, quando viram entrar um quartel‑mestre da marinha real. Aquele homem era um indiano vigoroso, dos seus quarenta anos, de estatura sobre o alto, membros musculosos, barba muito negra e dois olhos inteligentes.

     Trazia entre os lábios um pequeno cachimbo e fumava vigorosamente.

     Ao ver o velho tugue, aproximou‑se, estendendo‑lhe a mão e dizendo:

     ‑ Muito prazer em te encontrar, Moh.

     Depois olhou‑o fixamente, enquanto com um gesto rápido indicava Tremal‑Naik.

     ‑ Não tenhas medo, Hider ‑ respondeu o velho, que o compreendera. ‑ Este é um devoto filiado, um dos chefes.

     ‑ Que me dê a prova ‑ disse o mestre.

     Tremal‑Naik mostrou‑lhe o anel que trazia no dedo.

     O marinheiro curvou a cabeça, dizendo‑lhe:

     ‑ Estou às tuas ordens, enviado de Cali.

     ‑ Senta‑te e escuta‑me ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Tu conheces o capitão Macpherson?

     ‑ O pai da “Virgem do Pagode”?... Conheço talvez melhor do que todos os outros.

     ‑ Sabes onde está?

     ‑ Saiu talvez do seu bangalô? ‑ perguntou Hider, em vez de responder.

     ‑ Sim.

     ‑ Desde quando?

     ‑ Há três ou quatro dias.

     ‑ Não sabia; que veio ele fazer a Calcutá?

     ‑ A preparar uma expedição contra Rajmangal.

     O quartel‑mestre levantou‑se dum salto, atirando com o cachimbo que tinha entre os lábios.

     ‑ Contra Rajmangal, disseste? ‑ perguntou, com os dentes cerrados. ‑ Ah! Eu tinha desconfiado de qualquer coisa!

     ‑ E porquê?

     ‑ Há alguns dias que estão a armar a Cornwall.

     ‑ Um navio? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Uma velha fragata que o capitão Macpherson já tinha mandado pôr de lado.

     ‑ Onde está esse navio?

     ‑ Aqui, no arsenal. Sei que foram embarcadas muitas munições e viveres e que estão a pôr beliches nas coxias, como se devesse servir de transporte para um número considerável de soldados ou de marinheiros.

     ‑ Temos filiados entre os homens da equipagem daquele navio? - perguntou o velho tugue.

     ‑ Sim, dois: Palavan e Bindur.

     ‑ Conheço‑os; será preciso vê‑los e interrogá‑los.

     ‑ Não sabem nada acerca do destino da Cornwall. Falei ontem com eles, mas parece que o segredo quanto ao caminho que o navio deve seguir é guardado escrupulosamente.

     ‑ Então não temos dúvidas nenhumas ‑ disse Tremal‑Naik, como se falasse consigo. ‑ Aquela fragata destina‑se a embarcar a expedição.

     ‑ Também eu começo a desconfiar disso ‑ respondeu Hider.

     ‑ Aquele navio não deve partir!... ‑ exclamou o caçador de serpentes.

     ‑ E quem o impedirá?

     ‑ Eu!...

     ‑ Como?...

     ‑ Matando o capitão, antes de ele embarcar. Kougli o quer e Suyodhana também.

     ‑ Não será assim tão fácil ‑ disse Hider, que se tornara pensativo. O capitão estará em guarda, sobretudo agora.

     ‑ É preciso que eu o mate, já te disse.

     ‑ Disseram‑me que tem aqui um palacete.

     ‑ É verdade.

     ‑ Mandaremos alguém a verificar se está lá.

     ‑ Como?

     ‑ Ainda não sei, mas hei‑de encontrar o processo ‑ disse Tremal-Naik.

     Naquele instante, o velho tugue levantou a cabeça e, fazendo um gesto com a mão direita, disse lentamente:

     ‑ Depressa o saberemos.

     ‑ Explica‑te, Moh ‑ disse Hider.

     ‑ O homem vai lá.

     ‑ Quem? Qual homem?...

     ‑ Nimpor.

     ‑ O faquir?

     ‑ Esse mesmo: saiamos!

 

                           O faquir

     Os três indianos atiraram com uma rupia para cima da mesa e saíram da miserável taberna, voltando a atravessar as praças, que então começavam a despovoar‑se, por causa do calor, que se tornava excessivo, e puseram‑se a flanquear as margens do Ganges, mantendo‑se à sombra das grandes árvores, que formavam esplêndidas fileiras.

     Atravessaram a parte central e mais populosa de Calcutá, a chamada “Cidade Branca”, e subiram a margem em direcção ao norte, adentrando‑se na cidade indiana, a parte mais suja e miserável da cidade, mas também a mais pitoresca, pois ali se encontram os mais belos pagodes dedicados a Brama, Xiva, Vixnu, Crixna e Parvati e a tantas outras divindades adoradas pelos Hindus.

     Não se viam ali carruagens sumptuosas, nem liteiras com cobertas de seda, nem palácios, nem ruas largas e limpas: pelo contrário, o que se encontrava era um caos de detritos de casebres, de barracas erguidas à sombra de alguma planta, de ruelas lamacentas, malcheirosas, onde se rebolavam, como animais imundos centenas de garotos nus e onde passeavam gravemente os grandes arghilah: essas grandes aves sarnentas, de bico gigantesco, encarregadas de limpar as ruas.

     O velho tugue, depois deter percorrido algumas daquelas ruelas, deteve‑se num amplo largo, onde altivo no meio de tanta miséria, se erguia um grande pagode eriçado de cúpulas, de estátuas bizarras representando todas as encarnações de Vixnu, de cabeças de elefante com as monstruosas trombas estendidas, de arcadas magníficas adornadas de volutas e de rendilhados tão leves que pareciam renda verdadeira. Moh subiu a grande escadaria que levava à entrada do pagode e parou diante dum indiano que estava sentado no último degrau, dizendo a Tremal‑Naik e a Hider:

     ‑ É o faquir.

     Ao vê‑lo, Tremal‑Naik não conseguira evitar um gesto de repugnância.

     Aquele miserável indiano, aquela vítima do fanatismo religioso e da superstição indiana, tinha, de facto, um aspecto horroroso.

     Mais do que um homem, dir‑se‑ia um esqueleto. O seu rosto enrugado estava coberto por uma barba espessa, intonsa, que lhe chegava até abaixo da cintura, e apresentava tatuagens bizarras, vermelhas e negras, representando, na sua maioria, pequenas serpentes, ao mesmo tempo que a testa se apresentava coberta de cinza. Os seus cabelos, igualmente muito compridos e que talvez nunca tivessem conhecido o uso do pente e da tesoura, formavam uma espécie de juba, onde certamente os insectos pululavam.

     O corpo, espantosamente magro, estava quase nu, não tendo a cobri‑lo outra coisa que não fosse uma pequena faixa que não tinha mais de quatro dedos de largura.

     No entanto, o que nele mais repugnância provocava era o braço esquerdo. Aquele membro, reduzido à pele e aos ossos, permanecia constantemente erguido e não podia baixar‑se, pois se encontrava mirrado e ancilosado.

     Na mão, apertada com correias e fechada de modo a formar um vaso, o fanático pusera terra, plantando nela um pequeno mirto sagrado, que pouco a pouco crescera, como se se encontrasse num vaso.

     As unhas, não podendo encontrar saída, tinham‑se, primeiro, curvado e, depois, tinham atravessado a mão, saindo agora, como as garras dum animal, através da palma da mão.

     Mas aquele desgraçado não era um faquir comum, igual a tantos que se encontram na índia: os saniassi, que são autênticos bandidos, mais ladrões do que ascetas; os dondy, que vivem à custa dos indianos ricos, saqueando‑lhes os jardins; os nanek‑punthy, de índole pacifica, que, como distintivo da sua casta, usam apenas um sapato num dos pés e suiças só de um dos lados da cara, e os biscnub, que, mais ou menos, se podem comparar aos monges na nossa civilização.

     Aquele faquir era um porom‑hungse, homens que, segundo a superstição indiana, são de origem celeste, vivem mil anos sem nunca tomar o mais pequeno alimento, e que, mesmo quando deitados ao fogo ou à água, não lhes sofrem os efeitos, e que são, por isso, venerados e respeitados por todos como estes sobrenaturais.

     ‑ Nimpor ‑ disse o velho tugue, curvando‑se para o faquir, que conservava uma imobilidade absoluta, como se não tivesse dado conta da presença daqueles três homens. ‑ Cali precisa de ti.

     ‑ A minha vida pertence à deusa ‑ respondeu o faquir, sem levantar os olhos. ‑ Quem te envia?

     ‑ Suyodhana.

     ‑ O filho das sagradas águas do Ganges?

     ‑ Sim.

     ‑ Que desejas?

     ‑ Que tu nos ajudes.

     ‑ A fazer o quê?

     ‑ A descobrir e matar um homem que é nosso inimigo, porque, se o não fizermos, ele destruirá Rajmangal.

     O rosto impassível de Nimpor estremeceu.

     ‑ Quem ousa ir a Rajmangal?

     ‑ O capitão Macpherson.

     ‑ Ele!... A tanto se atreve aquele homem fatal?

     ‑ Sim, Nimpor.

     ‑ E tu queres saber onde está o capitão?

     ‑ Preciso de o saber.

     ‑ Quando?

     ‑ Esta noite.

     ‑ Não está no seu palacete?

     ‑ Ninguém o sabe ‑ disse Moh.

     ‑ Ah!... Se ele lá estiver, havemos de o ver.

     ‑ Como?

     ‑ Esta noite põe‑te em frente do palacete.

     ‑ E depois?

     ‑ O resto não te diz respeito. Nimpor dá ordem a todos, mesmo aos sapwa'Iah.

     ‑ Que têm os encantadores de serpentes a ver com isto?

     ‑ A seu tempo o saberás. Vixnu chama‑me à oração.

     O faquir levantou‑se com esforço, e depois, sem olhar para ninguém, entrou no pagode, conservando sempre erguido o seu braço.

     ‑ Onde vos encontrarei? ‑ perguntou Hider, quando o faquir desapareceu. ‑ Tenho de voltar ao barco.

     ‑ Iremos pedir hospitalidade a Vindhya ‑ disse o velho tugue. Enquanto permanecermos em Calcutá, estaremos em casa dele. Quando voltaremos a ver-te?

     ‑ Amanhã, depois do meio‑dia. Antes disso, será impossível, pois tenho muito que fazer a bordo. Sabes que partiremos dentro de dias?

     ‑ Para onde vai a Devonshire?

     ‑ A Ceilão.

     ‑ Tenho pena de não te ter como companheiro nesta difícil empresa.

     ‑ Não partiremos tão depressa. Adeus, até amanhã!

     Tendo ficado sós, Tremal‑Naik e o velho tugue regressaram à cidade européia, seguindo sempre pelas margens do Ganges, e foram ter com os companheiros que tinham ficado de guarda à baleeira.

     ‑ A casa de Vindhya ‑ disse simplesmente o velho tugue.

     Sentou‑se à popa, ao lado de Tremal‑Naik, e a leve embarcação fez‑se ao largo, subindo a corrente do Ganges.

     O caçador de serpentes, deixando o timão ao companheiro, olhava com viva curiosidade as duas margens do rio sagrado, que pareciam desfilar à direita e à esquerda da baleeira, com as suas esplêndidas escadarias de pedra e as árvores de folhagem densa.

     Palácios estupendos passavam diante dos olhos espantados do selvagem filho da floresta, bangalôs belíssimos, pagodes majestosos cheios de volutas, de colunas, de cabeças de elefante, de divindades monstruosas esculpidas em mármores de cores variadas; depois, sumptuosas vivendas de ricos hindus, brancas como se tivessem sido acabadas de construir e ornadas com rendilhados, com pequenas colunas muito delgadas, que pareciam dever partir‑se só com a pressão dos dedos, mas que desafiavam os séculos. Depois, atrás daquela primeira linha de palácios e templos, um caos de cúpulas cintilantes de ouro, de agulhas, de torres, de terraços, de altas muralhas verdejantes, sobre as quais se viam, adormecidas, longas fileiras de cegonhas, de corvos, de milhafres e, sobretudo, de arghilah da altura de um homem, com a cabeça sarnenta caída sobre as espáduas e o monstruoso bico meio escondido entre as penas do peito.

     No fundo das imensas escadarias e debaixo das árvores que se curvavam sobre as águas do rio, levantavam‑se nuvens de fumo, que o vento levava para o meio do rio, viam‑se arder grandes fogueiras e ouviam‑se ecoar, de quando em quando, os fúnebres taré, as longas trombetas de latão que se usam nos funerais.

     Pilhas de lenha gigantescas crepitavam, lançando no ar turbilhões de fagulhas, enquanto à volta dançavam e gritavam grupos de bailarinas e de rapazes, no meio dum barulho ensurdecedor, e no ar volteavam os milhafres vorazes, prontos a precipitar‑se sobre os despojos dos pobres mortos escapados às chamas.

     De quando em quando, caixinhas de madeira perfumada contendo os despojos dos cadáveres incinerados destacavam‑se da margem e começavam a navegar, descendo a corrente sagrada, o caminho do Paraíso, segundo a superstição indiana, enquanto os brámanes recitavam versículos dos Vedas e os parentes plantavam uma árvore em memória do morto ou içavam mastros embandeirados.

     Outras vezes viam‑se moribundos, cercados dos parentes, esperar a morte nas margens do rio sagrado. O indiano, quando não é acometido por morte súbita, não deixa de se fazer transportar para as proximidades do Ganges, a fim de estar em melhores condições de ir para o kailasson de Brama.

     Manda que o estendam à sombra dalguma árvore, sobre a erva tenra, à espera, resignadamente e com toda a tranqüilidade, que a alma se lhe escape do corpo, enquanto os parentes lhe molham o rosto com água do rio e o sujam com lama e o brâmane o cobre com folhinhas de manjericão e outros preparam a pira em que será queimado.

     A baleeira, depois de ter percorrido mais duas milhas, passando em frente de novos templos, de novas vivendas de ingleses ricos e dum número interminável de casebres da cidade indiana, deteve‑se sobre uma língua de terra baixa, coberta pela sombra dos coqueiros e das latânias, e que naquele momento se encontrava deserta.

     O velho tugue mandou prender a baleeira e depois saltou para terra, dizendo aos seus homens:

     ‑ Esperamos por vós em casa de Vindhya.

     Fez sinal a Tremal‑Naik, para que o seguisse, e dirigiu‑se para um grupo de casinhotas agrupadas à volta dum velho pagode meio em ruínas, se bem que de dimensões gigantescas.

     Depois de atravessar algumas ruelas lamacentas e sórdidas, ladeadas por hortas, deteve‑se diante dum casinhoto de pedra, com tecto de folhas de coqueiro, que se erguia, isolado, nas margens dum pântano.

     Um indiano já velho, cheio de rugas, estava sentado diante do casebre, tendo nas mãos um maço de folhas secas cobertas de cinza, como costumam fazer os faquires pertencentes à casta dos adoradores de Rane, a divindade criadora.

     À semelhança daqueles faquires, tinha os cabelos bastante compridos e sujos de lama avermelhada, mas enrolados à volta da cabeça de modo a formar uma massa enorme, semelhante a uma grande peruca. Não usava barba, mas debaixo do queixo deixara crescer uma pequena pêra, que crescera de tal modo que chegava ao chão. Mais do que uma pêra, parecia um rabo de porco, pois os pêlos eram ondulados.

     Tinha, além disso, três sinais na testa feitos com cinza e besta de vaca, outros três no peito, mais três nos braços e sobre os joelhos tinha um pano molhado, para se refrescar.

     O velho tugue aproximou‑se daquele ser horroroso e disse‑lhe bruscamente:

     ‑ Precisamos de ti, Vindhya.

     O ramanandy olhou para o indiano e respondeu:

     ‑ Seja bem‑vindo o enviado de Cali: estou pronto a obedecer.

     ‑ Preciso da tua casa.

     ‑ É tua.

     ‑ Dos teus conselhos.

     ‑ Estou pronto a dar‑tos.

     ‑ Temos fome.

     ‑ A minha comida é tua.

     ‑ Entremos.

     ‑ Eu vou à frente.

     O Ramanandy ergueu‑se com uma presteza que não era de supor num velho daquela idade, deitou fora o maço de folhas e entrou no casinhoto.

     O tugue e Tremal‑Naik encontraram‑se numa salinha térrea, com as paredes cobertas de folhas de bananeira, que mantinham uma deliciosa frescura, e com o chão coberto de esteiras de coqueiro.

     Não havia qualquer peça de mobiliário. Apenas grandes vasos de terra contendo, provavelmente, os viveres do faquir, algumas caixinhas de palha onde, ordinariamente, se conservam raízes odoríferas, e esteiras enroladas, que deviam servir de camas durante a noite e de cadeiras durante o dia.

     O tugue fez sinal a Tremal‑Naik para que se sentasse, e depois, tendo levado o faquir para um canto, falou longamente com ele em voz baixa.

     Quando acabou, levou‑o até junto de Tremal‑Naik, dizendo:

     ‑ Eis o homem que Suyodhana te recomenda.

     ‑ Estou pronto a obedecer‑lhe ‑ respondeu o ramanandy.

     ‑ Vindhya sabe tudo ‑ disse, depois, o tugue a Tremal‑Naik. É um homem prudente e sábio, astuto e decidido, e dar‑nos‑á preciosos conselhos.

     ‑ Está bem ‑ disse Tremal‑Naik, com um suspiro mal contido.

     O ramanandy foi fechar a porta e depois tirou de um dos vasos uma linda garrafa dourada e ofereceu aos seus hóspedes arak, delicado licor que os Indianos fabricam com açúcar e com a casca aromática duma árvore chamada jagra.

     ‑ Agora podes falar ‑ disse ao velho tugue.

     ‑ Já sabes de que se trata; esperamos os teus conselhos para conseguir o que desejamos. Julgas que Nimpor saberá descobrir o lugar onde se encontra o capitão?

     ‑ Sim ‑ disse o ramanandy. ‑ Nimpor tem relações em toda a parte e pode pôr em campo um exército de espiões.

     ‑ Descobri‑lo não quer dizer matá‑lo ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ E é a vida daquele homem que eu preciso, para salvar a rapariga que eu amo.

     ‑ Tu és corajoso e matá‑lo‑ás.

     ‑ Como?... O capitão Macpherson há‑de ter tomado as suas precauções para não se deixar surpreender.

     ‑ Far‑lhe‑emos uma armadilha.

     ‑ É demasiado prudente para se deixar apanhar.

     Um sorriso aflorou aos lábios do ramanandy.

     ‑ É o que veremos ‑ disse em seguida. ‑ Quando se trata de revelações, os Ingleses não se fazem rogados para acorrer.

     ‑ Que queres dizer?

     ‑ Estou a estudar um plano.

     ‑ Fala.

     ‑ Agora, não: esperemos até saber onde está o capitão.

     ‑ Percebi: esperas atraí-lo a uma emboscada.

     ‑ É provável.

     ‑ Ele não será tão imprudente como isso.

     ‑ Há‑de sê‑lo ‑ respondeu o ramanandy, com inabalável convicção. Não saberá, com certeza, onde se encontra a entrada dos subterrâneos de Rajmangal e tudo fará para tentar que o golpe tenha êxito.

     ‑ A entrada não a conhece, é verdade ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Sabe apenas que o covil dos tugues se encontra em Rajmangal, e nada mais.

     ‑ Que experimente descobri‑lo, se é capaz ‑ disse o velho tugue, com ironia. ‑ Pode percorrer a ilha um mês inteiro sem nada encontrar.

     ‑ Então virá aqui.

     ‑ Aqui?... ‑ exclamou Tremal‑Naik, olhando, espantado, para o faquir.

     ‑ Sim, aqui.

     ‑ E quem o fará vir?

     ‑ Eu.

     ‑ Como?

     ‑ Prometendo ‑lhe revelações.

     ‑ Não virá sozinho.

     ‑ Que importa?

     ‑ Trará consigo uma boa escolta.

     ‑ Pode trazer até dois regimentos de sipaios, se quiser, que a nós não nos incomodam.

     ‑ Não te percebo: se tenho de o matar, os sipaios apressar‑se‑ão a vingar a sua morte.

     ‑ Se forem capazes de nos encontrar ‑ disse o ramanandy, com um risinho misterioso. ‑ O pagode está perto e comunica com a minha casa.

     Depois, cruzando os braços sobre o peito, disse:

     ‑ Cali é grande e protege os seus fiéis e Vindhya é um dos seus mais ardentes adoradores. O capitão Macpherson fez‑nos um grande mal, agora quer destruir‑nos, mas há-de morrer antes do filho das sagradas águas do Ganges.

     ‑ Sim ‑ murmurou Tremal‑Naik, agarrando a cabeça entre as mãos e apertando‑a desesperadamente. ‑ Matá‑lo‑ei, porque só a morte dele fará que Ada seja minha.

 

                           A armadilha

     Quando o velho tugue e Tremal‑Naik abandonaram o casebre do Ramanandy, o Sol já se tinha posto e as trevas desciam rapidamente sobre as águas do rio sagrado.

     À breve distância seguiam‑nos os seis homens da baleeira, armados de pistolas e punhais, para os protegerem, no caso de serem descobertos pelo capitão ou pelos seus sipaios, o que não era improvável, pois deviam dirigir‑se para o encontro marcado com Nimpor. Chegados às margens do Ganges, os oito indianos embarcaram na baleeira e fizeram‑se ao largo, descendo o gigantesco rio.

     Estava uma noite esplêndida e calma. No céu, miríades de estrelas brilhavam, cintilando, reflectindo‑se no rio, enquanto a Lua começava a aparecer atrás dos altos cimos das florestas e das selvas de campanários, agulhas e cúpulas dos numerosos pagodes, fazendo cintilar o dourado daqueles majestosos monumentos da arte indiana.

     Bandos de arghilah, de milhafres, de marabus e de cegonhas negras, de íbis escuros, de patos selvagens e de mergulhões sulcavam o céu, indo pousar nos telhados do pagode ou das casas ou então entre as largas folhas de lótus, enquanto na água cintilavam as luzinhas confiadas às sagradas correntes pelas esposas dos marinheiros hindus para lhes dar sorte.

     Aquelas pequenas chamas, colocadas dentro de nozes de coco e lançadas às centenas, descreviam linhas caprichosas, ondulando ora aqui ora ali, atentamente seguidas pelas indianas que se juntavam nas margens do rio sagrado. Quando alguma daquelas luzinhas tocava na margem oposta, sinal de bom augúrio, de um regresso próximo do marinheiro que navegava no oceano índico, gritos de alegria elevavam‑se daqueles grupos e a feliz mulher que a tinha confiado às águas sagradas podia voltar tranqüila para sua casa, certa da protecção da sua divindade.

     Para os lados do curso inferior do rio, uma luz viva, projectada para o alto como neblina fosforescente pelas miríades de lâmpadas, indicava a cidade branca, enquanto, mais ao sul, duas intermináveis faixas de pontos luminosos, dispostos paralelamente uma à outra, assinalavam os navios e os barcos ancorados ao longo das margens do rio.

     A baleeira, que descia a corrente com a velocidade duma flecha, sob o impulso poderoso dos seis remos, ziguezagueou no meio das primeiras linhas de grab, dos podar, das bangle e dos barcos europeus, e depois dirigiu‑se bruscamente para a margem esquerda, aproando diante duma pequena escadaria já meio arruinada, que dava para um velho pagode.

     ‑ Segui‑me ‑ disse o velho tugue.

     A baleeira foi presa e todos desembarcaram, subindo a escadaria.

     Diante do pagode, Tremal‑Naik avistou o faquir do braço ancilosado. Estava sentado no último degrau e cobrira o magro corpo com um amplo dubgah de cor escura.

     ‑ Boa noite, Nimpor ‑ disse o velho tugue. ‑ Tinha a certeza de te encontrar aqui.

     ‑ E eu estava à vossa espera.

     ‑ Conseguiste saber alguma coisa? ..

     ‑ Não, mas tenho boas razões para acreditar que o capitão está no seu palacete.

     ‑ Não o viste?

     ‑ Não.

     ‑ E como poderemos ter a certeza de que está lá?

     ‑ Escuta!

     Ao longe ouviam‑se rufar, com ruído crescente, khole e hidok, espécie de tambores usados pelos Indianos.

     Parecia que os tocadores se aproximavam do pagode com certa rapidez.

     - Uma orquestra? ‑ perguntou o velho tugue. - Os sapwallah ‑ respondeu o faquir, com um sorriso.

     ‑ E que vêm fazer?

     ‑ Sabê‑lo‑ás mais tarde. Olha!

     O tugue e Tremal‑Naik tinham subido para o último degrau, para poderem abarcar um horizonte maior. Ao longo da margem viram avançar um grande número de luzes, que deixavam atrás de si miríades de centelhas.

     Era uma procissão que avançava por entre o tamborilar furioso dos hulok e dos khole, serpenteando ao longo do Ganges e dirigindo‑se para o pagode.

     ‑ Compreendo ‑ disse o tugue.

     ‑ Ide esperar‑nos no palacete ‑ disse o faquir.

     ‑ É lá que a festa tem lugar?

     ‑ Sim.

     ‑ Vem, Tremal‑Naik ‑ disse o tugue.

     Desceram a escadaria oposta e atravessaram uma pequena esplanada com alguns coqueiros e bananeiras de folhas gigantescas, pararam diante dum gracioso bangalô de pedra branca, coroado por um tecto de zinco em forma de pirâmide e rodeado por uma espaçosa varanda sustentada por grande número de pequenas colunas de madeira pintadas de azul que se erguiam a uma altura de doze a quinze metros e de formas elegantes, com grandes folhas, que mediam muitas vezes mais de um metro e meio, e dispostas como guarda-sóis, protegiam‑no contra os raios tórridos do Sol.

     As janelas daquela graciosa vivenda estavam abertas, mas não se via brilhar qualquer luz no interior. No entanto, aquele palacete devia ser habitado, pois à porta vigiava um sipaio armado de espingarda e baioneta.

     ‑ O bangalô do capitão? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com voz sufocada.

     ‑ Sim ‑ respondeu o tugue.

     ‑ Estará aqui o homem que eu devo matar?

     ‑ Talvez.

     ‑ Ah!... Se eu pudesse entrar!

     ‑ Serias logo apanhado. Julgas que há só um sipaio? O capitão é um homem prudente e ter‑se‑á, sem dúvida, rodeado de grande número de soldados de confiança.

     ‑ E então? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com ansiedade.

     ‑ Deixa pensar os dois faquires. Vamos sentar‑nos debaixo daquela bananeira que dá uma sombra densa e esperemos os encantadores de serpentes.

     Entretanto, a procissão, que parecia dever incluir bastante gente, a julgar pelo barulho que faziam os instrumentos musicais e os gritos que se ouviam, avançava com maior rapidez.

     Bem depressa se viram aparecer as primeiras luzes na escadaria do templo, projectando uma luz vivíssima sobre os monstros que ornavam as colunas altas e maciças. Não se tratava propriamente de lâmpadas, mas sim de hastes de ferro que terminavam numa espécie de gaiolas, dentro das quais ardiam rolos de algodão embebidos em óleo perfumado.

     O cortejo dos sapwallah deteve‑se alguns instantes na esplanada do templo, para prestar homenagem à divindade à qual ele era dedicado, e depois desceu a escadaria oposta, redobrando o barulho que fazia.

     Compunha‑se de mais de duzentas pessoas. Na primeira linha, capitaneados por Nimpor, vinham os sapwallah, isto é, os encantadores de serpentes, vestidos com um simples Janguti, que lhes cobria as ancas, e munidos de uma espécie de flauta feita de cana de bambu. Atrás deles vinham os transportadores de serpentes, que seguravam à cabeça cestos redondos, cuidadosamente fechados e cheios de serpentes de todos os géneros, e depois outros homens que traziam caldeiras cheias de leite, destinado a alimentar aqueles perigosos répteis.

     Seguiam‑se vinte tocadores, alguns munidos de khde, tambores considerados sagrados, feitos de terracota e cobertos de pele nas duas extremidades, que eram de tamanho diferente, para dar dois sons diversos; outros traziam hulok, tambores mais pequenos, que dão sons mais agudos, e de domp, muito maiores do que os dois primeiros, de forma octogonal e que se tocam com as mãos.

     Não faltavam, porém, os instrumentos de sopro e de corda; havia tocadores de bansuri, instrumento que se assemelha à cornamusa dos nossos pastores, de baiuy, espécie de flauta com bico, e também de um violino que se toca com um pequeno arco feito de cordas de algodão.

     Em último lugar vinham seis ou oito dezenas de faquires pertencentes a diversas castas, saqúassi, nanek‑pwithy, dondy e nagú, trazendo hastes de ferro em brasa ou vasos de terracota cheios de matérias inflamáveis.

     Depois de atravessar a esplanada, o cortejo deteve‑se diante do palacete do capitão, redobrando o barulho e formando um amplo círculo.

     A luz projectada por todas aquelas chamas era tão intensa que iluminava como se fosse de dia a fachada do palacete, de modo que se podia imediatamente distinguir qualquer pessoa que se mostrasse na varanda ou às janelas.

     Os encantadores de serpentes esperaram que os músicos acabassem de tocar, depois juntaram‑se no meio do círculo, fazendo colocar no chão as cestas contendo os répteis.

     Eram, todos eles, homens bem parecidos, de estatura bastante alta, músculos poderosos e rostos barbudos, que lhes davam um aspecto, simultaneamente, selvagem e altivo.

     Enquanto abriam os cestos, Nimpor deslizara por entre os faquires, mantendo sempre ao alto o seu braço mirrado, e dera volta ao palácio, detendo‑se em seguida debaixo da bananeira onde se encontravam Tremal-Naik e o velho tugue.

     ‑ Não percais de vista as janelas ‑ disse. ‑ Se o capitão cá estiver, decerto se vai mostrar.

     ‑ Não afastaremos os olhos delas um único instante ‑ respondeu o tugue.

     ‑ Eu farei o mesmo ‑ disse o faquir ‑ Sou velho, mas a vista continua boa. Quando os sapwallah tiverem partido, esperai por mim no pagode.

     Os encantadores de serpentes tinham, entretanto, preparado os seus instrumentos. Tendo formado um pequeno círculo no meio do dos espectadores, tinham‑se posto a tocar, extraindo daquelas flautas músicas suaves, melancólicas, com modulações estranhas, com notas agudas que subitamente se abafavam.

     Ao ouvirem aqueles sons, as cestas que continham os répteis tinham começado a agitar‑se, enquanto as coberturas se levantavam pouco a pouco. De repente, viu‑se aparecer um réptil de escamas amarelo‑escuras, com o pescoço inchado, o corpo da grossura de um punho e com cerca de dois metros de comprimento. Era uma cobra‑de‑capelo, ou serpente dos óculos, assim chamada porque, quando se encoleriza, forma duas estranhas saliências no sítio do pescoço, como se fossem as abas dum chapéu, e também porque tem na cabeça duas manchas que representam perfeitamente um par de óculos.

     O réptil, um dos mais perigosos do género, pois a sua mordedura é fatal, ergueu‑se, agitando a língua e mostrando os dentes, agudos e em forma de gancho, talvez cheios de veneno; mas, de súbito, um encantador pegou‑lhe pelo meio do corpo e, enquanto os seus companheiros continuavam a tocar, atirou‑o ao ar.

     O réptil, furibundo, caiu, sibilando e contorcendo‑se. O sapwallah, com a rapidez do relâmpago, agarrou-o pela cauda, antes de tocar no chão, e depois, apertando‑lhe o pescoço, obrigou‑o a abrir a boca. Sem se impressionar com os assobios da cobra, pediu uma pequena pinça, tirou‑lhe os dentes condutores de veneno e, em seguida, atirou‑o para o chão, próximo duma caldeira cheia de leite.

     Entretanto, dois outros répteis, atraídos por aquela música, que para eles devia ser irresistível, tinham‑se mostrado. Um deles era uma boa, uma serpente soberba, com cerca de quatro metros de comprimento, com a pele dum verde‑azulado e anéis irregulares; o outro era uma serpente‑minuto, ou minute‑snake, que não tinha mais de quinze centímetros de comprimento nem era mais grossa do que uma canela, de pele negra, com manchas amarelas; é a mais perigosa das serpentes, pois em noventa e seis segundos mata o homem mais robusto.

     Dois encantadores agarraram‑nos com toda a rapidez, tiraram‑lhes os dentes e atiraram com eles para junto da cobra‑capelo, que, esquecendo a sua cólera, se pusera a beber o leite do recipiente.

     Outros répteis continuavam a sair dos cestos: najas negras, pitões mosqueados e muitas outras espécies.

     Bem depressa os quatro grandes vasos ficaram rodeados de serpentes ávidas de leite.

     Então, as flautas calaram‑se e os tambores e os instrumentos de sopro e de corda recomeçaram a fazer barulho, enquanto os faquires se punham a dançar desordenadamente, correndo à volta dos répteis, agora tornados inofensivos, unindo os seus gritos selvagens ao ribombar da orquestra.

     Tremal‑Naik e o velho tugue tinham‑se levantado. Uma janela do palacete iluminara‑se e uma figura humana tinha‑se desenhado atrás dos vidros.

     ‑ Olha! ‑ exclamou o velho tugue.

     ‑ Não tiro os olhos de lá! ‑ respondera Tremal‑Naik, com voz sibilante.

     Aquela sombra curvara‑se do peitoral, expondo‑se à luz das tochas. Um grito sufocado escapou da boca de Tremal‑Naik.

     ‑ Ele!

     ‑ O capitão! ‑ exclamara o tugue.

     ‑ Uma espingarda! Dêem‑me uma espingarda!

     ‑ Estás louco! E depois, onde encontrar uma espingarda?

     ‑ Ele escapa‑se e eu perco Ada.

     ‑ Voltaremos a encontrá‑lo.

     ‑ Sim, encontrá‑lo‑emos ‑ repetiu uma voz atrás deles. Tremal‑Naik e o tugue voltaram‑se. Nimpor, o faquir do braço ancilosado, estava junto deles.

     ‑ Viste‑lo? ‑ perguntou.

     ‑ Sim ‑ responderam.

     ‑ Aquele homem nunca mais nos escapará, nem dará um passo sem ser espiado.

     ‑ E quem o espiará? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Dois faquires de confiança.

     ‑ E quando poderei eu matá‑lo?

     Em vez de responder, perguntou:

     ‑ Vistes Vindhya?

     ‑ Somos seus hóspedes ‑ disse o tugue.

     ‑ Tendes cá uma chalupa?

     ‑ Uma baleeira rápida.

     ‑ Levai‑me a casa dele. Os sapwallah já acabaram o seu trabalho, e, portanto, podemos ir embora.

     ‑ Queres combinar algum projecto para fazer cair o capitão numa armadilha?

     ‑ Sim ‑ respondeu o faquir ‑, vinde.

     Também os encantadores de serpentes estavam para regressar a suas casas. Meteram as serpentes nos cestos, apesar de elas se contorcerem e assobiarem, pois ainda havia leite para beber nas caldeiras, formaram em coluna e deixaram os arredores do palacete, precedidos pela orquestra.

     Enquanto o cortejo se dirigia para a cidade indiana, atravessando as hortas, o faquir, Tremal‑Naik e o velho tugue, seguidos pelos remadores, regressaram em direcção ao pagode, diante do qual, confundidos com as colunas, se encontravam dois dondy, espécie de faquires que têm como distintivo um pau cheio de nós, que trazem sempre consigo mesmo quando dormem, embelezado por um pequeno pano vermelho de forma quadrada.

     O porom‑himgse aproximou‑se deles e, indicando o palacete, disse:

     ‑ Vigiai atentamente e segui o capitão para onde quer que ele vá; amanhã, antes do pôr do Sol, levar‑me‑eis notícias dele à cabana de Vindhya.

     ‑ Não o deixaremos um só momento ‑ responderam os dois dondy.

     O pequeno grupo desceu a escadaria e, chegado à margem do Ganges, embarcou na baleeira, subindo rapidamente a corrente.

     O rio tornara‑se deserto, pois já tinha dado a meia‑noite. Só para sul brilhavam as luzes dos navios e das barcaças ancorados diante da “Cidade Branca”.

     Em menos de uma hora, a baleeira chegou diante do pequeno promontório deserto, em cuja extremidade oposta se via erguer‑se, à luz da Lua, o velho pagode.

     Tremal‑Naik e os seus companheiros estavam para desembarcar, quando do meio de uns arbustos viram sair uma forma humana.

     ‑ És tu, Vindhya? ‑ perguntou o velho tugue, carregando rapidamente a pistola.

     ‑ Não tenhas medo, sou eu ‑ respondeu o faquir. ‑ Volta a pôr a arma na cinta. Já acabou a naga pautciami (festa das serpentes)?

     ‑ Sim ‑ respondeu Nimpor, avançando.

     ‑ Tu também aqui estás? ‑ perguntou Vindhya, espantado.

     ‑ Tenho de falar contigo.

     ‑ Estou às tuas ordens.

     ‑ Vamos para a tua cabana?

     ‑ Este lugar está deserto e falaremos melhor aqui ‑ respondeu Vindhya.

     ‑ Como quiseres.

     ‑ O capitão?

     ‑ Vimo‑lo.

     ‑ Ah! Está no palacete?

     ‑ Sim.

     ‑ Então já cá canta.

     ‑ Vais depressa de mais, Vindhya.

     ‑ Não, Nimpor.

     ‑ Tens algum projecto?

     ‑ Sim, e julgo que não falha.

     ‑ Fala.

     ‑ Trata‑se de o fazer vir aqui.

     ‑ Hum! E virá?

     ‑ Tenho a certeza disso; e uma vez que entre na minha cabana, garanto‑te que não sai de lá com vida.

     ‑ Eu estou pronto para tudo ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Bem o sabemos; Suyodhana sabe escolher os seus homens. Escutai‑me ‑ disse Vindhya. ‑ O capitão é um homem corajoso, resoluto, e não hesitaria em expor‑se a qualquer perigo, contanto que possa ter uma revelação que lhe possa facilitar o ataque contra Rajmangal. Eu conheci‑o e sei aquilo de que é capaz.

     ‑ Continua, Vindhya ‑ ordenou o porom‑hungse.

     ‑ O meu projecto consiste em atrai-lo a uma armadilha.

     ‑ Como?

     ‑ Enviando‑lhe um homem da nossa confiança a dizer‑lhe que um traidor, tendo conhecido a notícia da expedição contra Rajmangal, está pronto a vender‑lhe o segredo da entrada nos subterrâneos.

     ‑ E julgas que ele cairá na armadilha? ‑ perguntou Nimpor, com entoação duvidosa.

     ‑ Digo‑te que virá. Pela traição pedir‑lhe‑emos um preço enorme e marcar‑lhe‑emos o encontro aqui, à meia‑noite.

     ‑ Virá acompanhado.

     ‑ Que importa? Tremal‑Naik estará emboscado com uma carabina e abatê‑lo‑á.

     ‑ E os outros assaltarão a cabana e matar‑nos‑ão a todos ‑ disse o porom‑hungse.

     ‑ Esqueceste os subterrâneos do pagode? ‑ disse Vindhya. ‑ Quem será capaz de nos encontrar dentro daquelas galerias escuras e intermináveis?

     ‑ Tu conhece‑las?

     ‑ Como aos meus dedos.

     ‑ Sendo assim, aprovo o teu projecto ‑ disse o porom‑hungse, depois de ter meditado alguns instantes. ‑ Sim, talvez o capitão caia na armadilha, precisando, como precisa, de conhecer a entrada para os subterrâneos de Rajmangal.

     “É claro que não virá sozinho, disso tenho a certeza, mas uma bala pode sempre atingi‑lo, nem que seja no meio de cem homens. Tu és um hábil atirador, Tremal‑Naik?”

     ‑ É infalível ‑ disse o velho tugue.

     ‑ Eu vou‑me embora.

     ‑ Só uma pergunta ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Uma vez morto o capitão, pensais que a expedição já não será tentada?

     ‑ Contra Rajmangal?

     ‑ Sim.

     ‑ Não haverá outro homem capaz de conduzir uma expedição através das Sunderbunds. Morto o capitão, nenhum perigo ameaçará Rajmangal.

     “Adeus, amigos: amanhã, um dos meus homens de confiança irá ter com o capitão e à noite aquele homem estará morto.”

     ‑ Queres a baleeira? ‑ perguntou o velho tugue.

     ‑ Não é preciso ‑ respondeu o porom‑hungse. ‑ Nimpor não pode servir‑se dos braços, mas as suas pernas desafiam as dos melhores corredores.

     Dito isto, pôs‑se a caminho, seguindo as curvas da margem, e em breve desapareceu na sombra dos borassos.

 

                           A emboscada

     Na noite do dia seguinte, Tremal‑Naik, Vindhya e o tugue deixavam silenciosamente a cabana, dirigindo‑se para o pequeno promontório.

     O primeiro ia armado de carabina, os outros dois levavam os laços e os punhais. Ao passarem junto do velho pagode subiram a escadaria, de cujo cimo se podia dominar um imenso trecho do rio sagrado, e sentaram‑se nos montes de escombros feitos pelos materiais caídos do alto daquela enorme construção.

     Um silêncio quase absoluto reinava nas margens do grande rio. Não se ouvia nada, a não ser o murmurar da corrente a embater contra os troncos dos lótus e contra as raízes das árvores aquáticas.

     No espelho da água, que uma Lua esplêndida tornava cintilante, não se via nenhum barco entre as duas margens; nenhum grito de barqueiro ou de pescador ecoava no ar. Dum lado e do outro do Ganges, todos dormiam.

     Vindhya subira para cima dum bocado de coluna e pusera‑se a observar, procurando discernir para os lados do sul qualquer ponto ou qualquer linha escura que indicasse o aproximar‑se de alguma chalupa, enquanto Tremal‑Naik, que parecia tomado de viva agitação, se pusera a passear no meio das ruínas, girando uma e outra vez à volta duma enorme estátua que representava Moyeni, filho de Vixnu, que depois se transformara em mulher, a fim de seduzir os gigantes que infestavam o mundo e lhes roubar o amurdon, o precioso licor que dava a imortalidade.

     ‑ Nada ‑ disse de súbito o faquir, voltando a descer do seu observatório. ‑ E, no entanto, a meia‑noite não deve estar longe.

     ‑ Será que o homem não virá? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com surda indignação. ‑ Neste momento tenho uma vontade louca de matar ou de ser morto.

     ‑ Há‑de vir ‑ disse o faquir, com voz tranqüila. ‑ O capitão não deixará escapar a ocasião de ter uma informação tão preciosa.

     ‑ O porom‑hungse nunca mais voltou e tenho medo de que o teu projecto vá por água abaixo. Onde estão os nossos homens?

     ‑ Escalonados no rio ‑ disse o velho tugue.

     ‑ Então também eles não viram ainda nada.

     ‑ Enganas‑te, Tremal‑Naik ‑ disse o faquir. ‑ Vejo um homem que se aproxima a correr.

     ‑ Um dos nossos?...

     ‑ Não sei.

     Tremal‑Naik tinha saltado para cima da coluna que servira de observatório a Vindhya e dirigira o seu olhar para a margem do rio.

     Um homem avançava, correndo com toda a força, como se fosse seguido por alguém ou tivesse alguma notícia urgente a comunicar. Devia ser um dondy, pois trazia na mão um pau ornado de um pano que esvoaçava.

     Aquele indiano, em vez de seguir as curvas da margem, passou pelo meio das moitas que cresciam a pequena distância do nó, deu a volta ao casebre de Vindhya e depois continuou a correr, dirigindo‑se para o templo.

     ‑ É um enviado de Nimpor ‑ disse o velho tugue. ‑ Traz‑nos, com certeza, alguma boa notícia.

   O dondy, pois era, na verdade um faquir pertencente àquela casta de santões muito venerados na índia, especialmente pelos indianos ricos, que lhes abrem os seus jardins e lhes permitem saqueá‑los, subiu rapidamente a escadaria e parou diante de Vindhya, dizendo‑lhe, com voz cansada:

     ‑ Vem aí!...

     ‑ Quem? ‑ perguntaram todos ao mesmo tempo.

     - O capitão.

     ‑ Morte de Xiva! - gritou Tremal‑Naik. ‑ Aquele homem é meu!

     ‑ Vem sozinho? ‑ perguntou o faquir.

     ‑ Não, vem acompanhado por seis homens.

     ‑ Nem que venha com mil sipaios, eu matá-lo‑ei!... ‑ exclamou o caçador de serpentes, exaltado

     ‑ Quem são os homens que o acompanham? ‑ perguntou o velho tugue.

     ‑ Seis sipaios.

     ‑ Armados?

     ‑ Assim parece.

     ‑ Então acreditou na delação?

     ‑ Se vem, é porque acreditou no homem que foi ter com ele.

     ‑ Vamos esperá‑lo na cabana ‑ disse o faquir. ‑ É lá que o mataremos.

     ‑ Vós, não; só eu ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Esperemos que o barco apareça ‑ sugeriu o velho tugue. ‑ A cabana está próxima e depressa prepararemos a emboscada.

     ‑ Olhai, ali vem ele! ‑ exclamou o dondy.

     Tremal‑Naik, o velho tugue e Vindhya desceram a correr a escadaria, olhando para o rio.

     À luz pálida da Lua uma subtil linha negra via‑se mover na superfície cintilante do Ganges. À volta, via‑se a espuma que fazia na água o bater dos remos.

     Olhando com maior atenção Tremal‑Naik pôde distinguir seis pessoas. Mas deviam estar todos armados de espingarda, pois se viam brilhar finas hastes que pareciam de prata.

     ‑ Vêm ‑ disse ele com terrível acento na voz. ‑ Brama, Xiva, Vixnu, dai‑me a força para cometer este último delito para salvar a infeliz Ada.

     ‑ Para a cabana ‑ disse o velho tugue.

     ‑ E os teus homens? ‑ perguntou o faquir.

     ‑ A esta hora devem ter começado a regressar. Não tarda que estejam connosco.

     Os quatro indianos deixaram a escadaria do pagode e em poucos minutos chegaram à cabana do faquir

   ‑ Vamos combinar as coisas - disse Vindhya. ‑ Serei eu que fingirei comunicar ao capitão as revelações prometidas.

     ‑ E nós? ‑ perguntaram Tremal‑Naik e os outros dois.

     ‑ Vós escondei‑vos ali, atrás daquelas esteiras, com os laços preparados. Quando me ouvirdes tossir, saltai para fora.

     Naquele instante, os seis tugues da baleeira entraram, dizendo:

     ‑ Estão quase a aproar.

     ‑ Muito bem ‑ disse Vindhya. ‑ Para os vossos lugares.

     Enquanto Tremal‑Naik, o velho tugue e o dondy se escondiam atrás das esteiras, o faquir voltou‑se para os homens da baleeira e disse‑lhes:

     ‑ Ide emboscar‑vos à volta da minha casa, entre as canas do pântano, e não vos mexais sem ouvirdes um tiro de pistola.

     Os seis tugues desapareceram rapidamente, espalhando‑se à volta da cabana.

     ‑ Agora a nós, capitão ‑ murmurou o faquir, enquanto um lampejo feroz lhe animava os olhos semi-apagados. ‑ Será um valente se desta vez conseguir escapar ao laço vingador dos sequazes de Cali.

     Fora até à soleira da porta e olhava atentamente para o pagode, pois era de lá que a vítima devia vir.

     Pondo‑se à escuta, ouviu um bater de remos, depois duas pancadas surdas, produzidas talvez pelos choques da chalupa contra a escadaria de pedra do templo; pouco depois, viu uma forma branca desenhar‑se no fundo da rua dos tamarindos. Parecia que o capitão, para não ser reconhecido, se vestira como os Indianos. De facto, Vindhya distinguiu, a envolver aquele homem, um amplo dubgah de pano branco e na cabeça uma espécie de turbante de grandes dimensões, que devia encobrir‑lhe boa parte do rosto.

     O capitão deteve‑se a cinqüenta passos do casebre, olhando à direita e à esquerda, como se receasse ser espiado ou cair nalguma emboscada; depois, tranqüilizado talvez pelo silêncio que reinava naquele lugar, avançou directamente para o faquir, que saíra de casa.

     A dez passos voltou a parar; depois, tirou da cintura uma pistola, que apontou para Vindhya, e perguntou‑lhe com voz ameaçadora:

     ‑ Quem és?

     ‑ O homem que deve falar ao capitão Macpherson.

     ‑ Como te chamas?

     ‑ Vindhya.

     ‑ Entra na tua cabana e repara bem que, se tiveste intenção de me atrair a uma armadilha, eu tenho duas pistolas comigo e a primeira bala será para ti.

     ‑ Eu não sou um traidor.

     ‑ De um delator tudo se pode esperar.

     ‑ Desconfia de mim?

     ‑ Talvez.

     - Então pode voltar para a sua chalupa, capitão. Eu sou um homem leal.

     ‑ É o que veremos.

      ‑ Trouxe o dinheiro?

     ‑ Tenho comigo as cinco mil rúpias que tu pedes pela tua delação.

     ‑ Entre sem receio.

     O capitão avançou, olhando uma última vez à direita, à esquerda e atrás de si, e em seguida entrou resolutamente na cabana.

    O faquir tinha entrado à frente dele e acendera uma lâmpada. Assim que a chama iluminou a sala, um grito de espanto e de raiva saiu‑lhe da garganta.

     O homem que até ali julgara que fosse o capitão era um bengalês robusto, de formas maciças, linhas ousadas e olhar altivo. Deixara cair por terra o amplo dubgah, mostrando a farda branca e vermelha dos sipaios indianos.

     ‑ Pareces espantado ‑ disse o bengalês, com um sorriso trocista. - Porquê?

     ‑ Ainda o perguntas? ‑ respondeu o faquir, que a custo refreava a raiva que lhe fervia no peito. ‑ Julguei que estava a falar com o capitão Macpherson e agora vejo diante de mim um sargento dos sipaios.

     O bengalês encolheu os ombros.

     ‑ Julgavas que o meu capitão era tão ingênuo que viesse aqui?

     ‑ Tem medo, não?

     - Não, não tem medo; é apenas prudente.

     ‑ Fez mal.

     ‑ Porquê?

     ‑ Porque já não falarei. Era só a ele que eu queria fazer a delação.

     ‑ Eu sou Bhârata, o homem de confiança do capitão, um inimigo impiedoso dos tugues; portanto, podes dizer‑me a mim aquilo que lhe querias dizer a ele. Não perdes nada, pois te pagarei e não direi a ninguém, a não ser, ao meu patrão, aquilo que me disseres.

     O faquir teve uma pequena hesitação, e depois, indicando ao sargento uma cadeira que se encontrava perto das esteiras que serviam de esconderijo a Tremal‑Naik e aos seus dois companheiros, disse:

     ‑ Senta-te e escuta‑me.

     Percorreu a sala, olhou para fora, como se receasse ser espiado, e em seguida fechou a porta pondo‑lhe uma tranca.

     ‑ Que estás a fazer? ‑ perguntou o sargento, com um tom de ligeira inquietação.

     ‑ Tomo as minhas precauções ‑ respondeu o faquir, com voz tranqüila.

     ‑ Então, também eu tomarei as minhas ‑ disse Bhârata, tirando da cintura as duas pistolas e colocando‑as em cima dos joelhos.

     ‑ Eu estou desarmado

     ‑ Um homem desarmado também pode ser um traidor ‑ respondeu o sargento. ‑ Agora podes falar.

     ‑ Quero fazer‑te primeiro uma pergunta.

     ‑ Fala.

     ‑ É verdade que o capitão está para fazer uma expedição contra Rajmangal?

     ‑ Sim, é verdade.

     ‑ Com um navio?

     ‑ Já se está a armar a CornwalI, uma boa fragata, que leva numerosos canhões e que pode embarcar meia companhia de sipaios.

     ‑ Partirá em breve?

     ‑ O mais depressa possível ‑ respondeu Bhârata. ‑ O capitão está impaciente por destruir o covil daqueles malditos.

     ‑ Mas ele não deve saber onde se encontra a entrada dos subterrâneos.

     - Se o soubesse, não teria eu vindo aqui com cinco mil rúpias. Sabe apenas que se encontram na ilha de Rajmangal.

     ‑ Mas eu guiá‑lo‑ei ‑ disse o faquir, afectando um sorriso feroz. Aqueles malditos fizeram‑me tanto mal que eu quero vingar‑me. Mas gostaria de falar com o capitão.

     ‑ Ele não está longe daqui e, se as tuas revelações forem importantes, eu levo-te onde ele está.

     ‑ E porque não vem ele aqui?

     ‑ Já te disse que ele é um homem prudente.

   ‑ Está acompanhado?

     ‑ Sim, por uma boa escolta.

     O faquir teve um imperceptível gesto de raiva, mas logo a sua fronte se tranqüilizou, como se tivesse tomado uma rápida decisão.

     ‑ Escuta‑me ‑ disse em seguida. ‑ Como te disse, eu odeio os tugues, e principalmente o seu chefe, o cruel Suyodhana. Até há não muitos dias, fiz parte da seita deles; agora estou decidido a romper a pesada cadeia que me ligava a eles, para me vingar de tantos maus tratos que me fizeram suportar.

     ‑ Que te fizeram eles?

     ‑ É inútil dizê‑lo, por ora. Estive muitos anos em Rajmangal e talvez ninguém conheça melhor as Sunderbunds e as imensas cavernas que servem de refúgio aos devotos da monstruosa divindade que nada em sangue humano. Agora, dir-te‑ei como deve fazer o capitão para os surpreender e...

     O faquir interrompera‑se bruscamente, enquanto uma viva inquietação se lhe estampara no rosto.

     Lá fora, para os lados do pântano, ouvira o uivo lamentoso e triste dum chacal. Sabendo que aqueles animais não freqüentavam aquelas paragens tão próximas da cidade indiana, ficara impressionado com aquele grito, que também podia ser um sinal dos homens da baleeira.

     “Há um perigo a pairar aqui”, pensou. “Temos de nos apressar e, por ora, contentar‑nos com este homem.”

     O sargento não parecia ter feito caso do uivo do chacal, julgando talvez que se tratasse realmente de um daqueles animais.

     ‑ Continua ‑ dissera ele ao ver que o faquir deixara de falar.

     ‑ Sim, continuo ‑ disse Vindhya. ‑ Se o capitão tenciona surpreender os tugues no seu covil deverá usar das maiores precauções para o não descobrirem e darem o alarme. Se desembarcasse de dia, é certo que não encontraria um único homem nos subterrâneos.

     Naquele momento, um segundo uivo, mais longo e mais triste do que o primeiro, ouviu‑se da parte de fora. Já não era possível enganar‑se, tratava‑se dum sinal de perigo. Vindhya fingiu não ligar importância e continuou:

     ‑ Dirás ao capitão que não aproe a Rajmangal, mas que se esconda no canal de Gona‑Souba. Aí não faltam ilhas e poderá estabelecer um acampamento para depois...

     Interrompeu‑se segunda vez tossindo ruidosamente.

     Quase imediatamente voltando lentamente a cabeça, viu as esteiras agitarem‑se imperceptivelmente e depois abrirem‑se. O sargento, de costas para aquele ângulo da sala, não se apercebera de nada. Ouvia atentamente as palavras do delator.

     ‑ Para depois cair de improviso sobre Rajmangal ‑ prosseguiu o faquir.

     Detrás do sargento gritou subitamente uma voz.

     Este fizera um gesto rápido para empunhar as pistolas que tinha sobre os joelhos, mas seis mãos robustas agarraram-no, desarmaram-no e atiraram‑no por terra, juntamente com a cadeira.

     Por cima de si, o desgraçado viu três punhais prontos a trespassá‑lo.

     ‑ Traidores! ‑ exclamou, tentando, sem o conseguir, libertar‑se daquele abraço.

     Escapou‑lhe depois um grito de espanto e de cólera.

     - Tu!... Tremal‑Naik!

    ‑ Eu, Bhârata ‑ respondeu o caçador de serpentes.

     ‑ Miserável!

     ‑ Eu tinha‑te dito que a minha missão ainda não terminara.

     ‑ Que o Inferno te engula!...

     ‑ Cala-te! Agora estás nas nossas mãos; é, pois, inútil desafogares em insolências.

     - És de mim? Se precisas da minha vida, toma‑a. O capitão me vingará mais tarde, ou, antes, bem depressa.

     ‑ Não tão depressa como tu julgas - disse Tremal‑Naik. ‑ Se tens amor à vida, em vez de nos ameaçares, responde às nossas perguntas.

     ‑ À minha pele já não tenho amor! Por isso, podes matar‑me.

     ‑ Mas eu quero poupar‑te; és um refém precioso demais para te sacrificar. Mas quero que me digas onde está o teu patrão.

     ‑ Para o matares, não é? ‑ perguntou Bhârata, com ironia.

     ‑ Isso não é contigo. Dize‑me onde está.

     ‑ Onde está? Abre aquela porta, que já o vês.

     ‑ Ele está aqui! ‑ exclamaram Tremal‑Naik, os dois faquires e o velho tugue.

     ‑ Sim, meus amigos, e só espera um sinal meu para entrar com os seus sipaios, prender‑vos e enforcar‑vos.

     ‑ Morte de Xiva! ‑ gritou Tremal‑Naik, empalidecendo.

     ‑ Ah!... Ah!... ‑ continuou o sargento rindo. ‑ Julgáveis-lo tão ingênuo que caísse numa armadilha!... Não, canalhas, foi ele que vos fez a armadilha, e dentro de poucos minutos há‑de prender‑vos.

     ‑ Mentes ‑ disse Vindhya. - Queres assustar‑nos.

     ‑ Abre aquela porta e verás!

     Tremal‑Naik empunhara as duas pistolas do prisioneiro e tentara lançar‑se em direcção à porta; Vindhya e o velho tugue prontamente o agarraram.

     ‑ Que loucura queres cometer? ‑ perguntou‑lhe o faquir.

     ‑ Talvez o capitão lá esteja ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ E quantos homens estão com ele?... Sabe‑lo, tu?

     ‑ Bhârata pode ter mentido.

     ‑ Mas também pode ter falado verdade. Não ouviste por duas vezes o uivar do chacal? Os nossos homens escondidos no pântano assinalaram‑nos um perigo.

     ‑ E que queres fazer agora?

     ‑ Resignar‑me e esperar uma ocasião melhor para voltar a tentar o golpe.

    ‑ E se estamos cercados?

     O faquir encolheu os ombros.

     ‑ Nem que fossem mil, conseguiríamos fugir na mesma. Espera.

     O indiano estava para se dirigir à sala contígua, quando se ouviu bater com força à porta, ao mesmo tempo que uma voz gritava, ameaçadora:

     ‑ Abri, ou deitamos fogo à casa!

     ‑ Os meus camaradas! ‑ exclamou Bhârata.

     ‑ Que ninguém responda ‑ disse o faquir. ‑ Amordaçai o prisioneiro e segui‑me em silêncio.

     ‑ Aonde vamos? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Fugimos.

     ‑ E o capitão?... Hei‑de perdê-lo mais uma vez?

     - Se tendes amor à vida, vinde ‑ respondeu o faquir. ‑ Mais tarde procuraremos de novo dar‑lhe caça; mas, por ora, só nos resta fugir.

     Bhârata fora prontamente amordaçado e atado. A um sinal do faquir, Tremal‑Naik tomou‑o nos braços e depois todos passaram à sala contígua, enquanto, do lado de fora, a mesma voz repetia, com mais força:

     ‑ Abri ou ficais todos assados.

     O faquir levantou uma esteira de fibras de coco que cobria o pavimento, tirou depois uma pedra e ainda uma placa de metal, aparecendo uma escada estreita e escura.

     ‑ Pegai em tochas ‑ disse ao velho tugue e ao dondy.

     Os dois indianos pegaram em dois ramos resinosos da grossura do braço dum homem e acenderam‑nos rapidamente.

     ‑ Para a frente ‑ exclamou Vindhya.

     Desceu a estreita escada e parou numa espécie de cave pequena e úmida, pois fora escavada a pouca distância do pântano.

     Olhou rapidamente à volta e depois disse ao dondy:

     ‑ Sobe àquele bocado de coluna que está no canto.

     O indiano obedeceu.

     ‑ Não está aí uma chapa de ferro incrustada na parede?

     O dondy bateu o punho com força e ouviu‑se um surdo ruído de metal.

     ‑ A chapa está aqui ‑ disse.

     ‑ Está lá um botão no meio, estás a vê‑lo?

     ‑ Sim, encontrei‑o.

     ‑ Calca com força.

     O dondy fez força e a chapa saltou de repente, deixando ver uma passagem extremamente escura.

     ‑ Ouves alguma coisa? ‑ perguntou Vindhya.

     ‑ Não, absolutamente nada.

     ‑ Subi todos.

     ‑ E tu? ‑ perguntou o velho tugue.

     ‑ Eu já vou ter convosco.

     Tremal‑Naik, o dondy e o tugue meteram‑se pela passagem, levando consigo Bhârata, o qual nem sequer procurava opor a mínima resistência, sabendo, aliás, que tal resistência seria vã.

     Vindhya esperou que os companheiros tivessem desaparecido, depois voltou a subir a escada que levava à sua cabana e pôs‑se à escuta.

     Lá fora ouviam‑se os sipaios a gritar, ameaçando atirar pelos ares a cabana. Cansados de esperar, começaram a dar pancadas na porta com as coronhas das espingardas, esperando assim abatê‑la.

     ‑ Ninguém se vos oporá ‑ murmurou o faquir, com um sorriso irónico. ‑ Veremos se sereis capazes de nos descobrir nos tenebrosos subterrâneos do velho pagode.

     Pegou numa terceira tocha, meteu no cinto um comprido e pesado facalhão e voltou a descer para a cave, detendo‑se diante da parede oposta à da placa de ferro.

   Ergueu a luz, observando‑a por alguns instantes, depois empunhou a faca e vibrou um golpe formidável.

     Uma grossa placa de vidro, enegrecida pelo tempo, pelo pó e pela umidade, despedaçou‑se com o choque e depois um enorme jacto de água irrompeu na cave.

     ‑ O pântano é capaz de ficar seco, mas que importa? ‑ murmurou o faquir. ‑ Fujamos, antes que a água chegue à galeria e nos afogue a todos.

     Enquanto por cima da sua cabeça ribombavam os pés dos sipaios e a água invadia a cave, subindo a olhos vistos, subiu para a coluna e meteu pelo corredor.

     Procurou por alguns instantes na ombreira da abertura e, tendo encontrado uma saliência, calcou com ambas as mãos. Logo a grossa placa de ferro se voltou a fechar violentamente.

     ‑ Agora agarrai‑nos ‑ disse o indiano, rindo. ‑ Entre nós e vós há‑de estar uma boa massa de água.

     E precipitou‑se no corredor, para alcançar os companheiros, que iam já muito longe.

 

                           Nos subterrâneos do pagode

     Aquela passagem subterrânea, ignorada certamente pelo capitão e pelos seus sipaios, era estreitíssima ‑ pois mal deixava passar um homem ‑, muito tortuosa e úmida.

     Em vez de descer, andados alguns passos, começava a subir, descrevendo, no entanto, numerosas curvas, como se girasse à volta do pântano ou do velho pagode, pois ambas se encontravam muito próximos da cabana do faquir. Insectos repugnantes tinham penetrado pelas fendas do solo e ocupavam a galeria, certos de gozar nela duma tranqüilidade absoluta. À luz das tochas viam‑se, de quando em quando, fugir, assustados com aquela imprevista e inesperada invasão, escorpiões de todos os tamanhos e cores, escolopendras, centopéias de mil e uma pontas venenosas, aranhas negro‑aveludadas, de extraordinária grandeza, e até algumas biscobras, espécie de lagartos horríveis, cheios de ferrões e com a língua dividida em dois dardos córneos, que destilam um veneno perigosíssimo.

     Tremal‑Naik, sempre com Bhârata agarrado por um braço, depois de ter percorrido cerca de quinhentos passos, detivera‑se numa pequena caverna que parecia não ter qualquer saída.

     ‑ Não se pode avançar mais ‑ disse ao dondy e ao velho tugue, que o tinha alcançado. ‑ Não descubro qualquer passagem.

     ‑ Esperemos por Vindhya ‑ respondeu o tugue. ‑ Só ele conhece estes subterrâneos.

     ‑ Ouvi falar no velho pagode ‑ disse o dondy. ‑ Não creio que a galeria termine aqui.

     ‑ Se terminasse, seria a morte para nós ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Os sipaios não tardariam a descobrir a passagem.

     Naquele momento viram Vindhya, que corria rapidamente para os alcançar.

     ‑ Já está ‑ disse, apagando a sua tocha. ‑ Agora temos a certeza de não sermos seguidos.

     ‑ Porquê? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ A cave está cheia de água e não é possível descobrir a chapa de ferro.

     ‑ E para onde vamos agora? ‑ perguntou o dondy. ‑ Aqui não há mais passagens.

     ‑ Sei onde se encontra ‑ respondeu Vindhya.

     Pegara numa luz e estava para examinar as paredes da caverna, quando uma tremenda explosão se ouviu ecoar ao longe. A vibração imprimida ao solo foi tal que uma considerável quantidade de destroços se destacou da abóbada e veio cair no chão com grande ruído.

     Felizmente, os quatro indianos tinham‑se dado conta a tempo daquele desprendimento e tinham recuado precipitadamente para a galeria, levando consigo o prisioneiro.

     ‑ Que aconteceu? - perguntou Tremal‑Naik ‑ Terão feito rebentar uma mina?

     ‑ Penso que fizeram ir pelos ares a minha casa ‑ disse Vindhya, que parecia ter ficado inquieto. ‑ Aí está um golpe por que não esperava.

     ‑ Terão feito desmoronar a galeria? ‑ perguntou o dondy.

     ‑ Não creio, mas... escutai! Não ouvis nada?

     Tremal‑Naik e os seus companheiros sustiveram a respiração e puseram‑se à escuta. Para os lados da escura galeria que tinham percorrido ouvia‑se avançar um ruído surdo, que, no entanto, se ia tornando rapidamente mais nítido.

     Os quatro indianos olharam uns para os outros com inquietação.

     ‑ Que rumor é este que se aproxima? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Não sei ‑ disse Vindhya.

     ‑ Dir‑se‑ia que uma corrente de água avança pela galeria.

     ‑ Água! ‑ exclamou Vindhya, aterrorizado. ‑ Então fizeram saltar também a chapa de ferro que nos protegia.

     ‑ Fujamos ‑ disse o velho tugue. ‑ Depressa, procura a passagem!

     Vindhya dirigira‑se para um ângulo da caverna onde sabia que se encontrava uma segunda chapa que comunicava com os subterrâneos do velho pagode. Já descobrira o botão que devia fazer saltar a mola quando da escura galeria se despenhou uma verdadeira tromba de água.

     O choque desta massa líquida foi tão violento que os quatro indianos e o prisioneiro foram atirados contra a parede do lado oposto. Duas tochas apagaram‑se, mas o velho tugue levantara prontamente a sua, para que a escuridão não se tornasse completa.

     Durante alguns segundos os desgraçados sentiram‑se arrastar ora para a frente ora para trás por aquela furiosa torrente que irrompia com ruído pavoroso na caverna, ameaçando enchê‑la até ao cimo e afogar a todos.

     A água não encontrava saída, arremetia contra as paredes, formando autênticas vagas, e crescia a olhos vistos, tornando extremamente penosa a situação daqueles cinco homens.

     ‑ Morte de Xiva! ‑ exclamou Tremal‑Naik, que deixara escapar Bhârata. ‑ Estamos a afogar‑nos! Que aconteceu?

     ‑ Despedaçaram a chapa de metal e a água da cave e do pântano invadiu a galeria ‑ disse Vindhya.

     ‑ Afogar‑nos‑emos?

     ‑ Não sei ‑ respondeu o faquir, angustiado.

     - É preciso abrir uma saída para as águas - disse o velho tugue.

     ‑ Há uma passagem, mas agora está submersa.

     - Procuremos abri‑la.

     ‑ Mas assim a galeria fica sem água e os sipaios dão‑nos caça.

     ‑ É melhor que nos persigam do que morrermos aqui ‑ disse Tremal-Naik.

     ‑ E depois, poderemos passar?

     ‑ Que queres dizer, Vindhya?

     ‑ Que a água entrará pelos subterrâneos e nos fechará a passagem.

     ‑ São grandes aqueles subterrâneos?

     ‑ Enormes.

     ‑ Onde terminam?

     ‑ No Ganges.

     ‑ Então a água tem saída.

     - Mas algumas galerias ficarão submersas.

     ‑ Procuraremos atravessá‑las a nado. Depressa, Vindhya, procura a chapa, senão afogamo‑nos dentro de poucos minutos.

     ‑ Põe a tocha ao alto ‑ disse o faquir para o velho tugue. ‑ Se se apaga, estamos perdidos.

     A água continuava a irromper com fúria na caverna, mas, como a galeria estava já submersa, as vagas tinham acalmado. Apesar disso, o nível da água continuava a subir e os cinco homens já estavam com a água pelo peito.

     Ainda alguns minutos, e a água dar‑lhes‑ia pelas barbas.

     O faquir, depois de ter olhado as paredes da caverna, dirigira‑se para um canto e, tendo respirado fundo, mergulhara resolutamente para fazer saltar a mola da chapa.

     Três vezes foi obrigado a voltar à tona, para respirar: à quarta imersão, encontrou finalmente o botão, que premiu com quanta força tinha.

     Quase de repente, naquele canto fez‑se uma pequena abertura e depois ouviram‑se mugidos surdos que se foram tornando mais nítidos.

     O faquir, agarrando‑se às saliências da rocha, afastara‑se precipitadamente, para não ser arrastado por aquela corrente de fundo e atirado para as galerias de saída.

    ‑ Estamos salvos! ‑ gritara, juntando‑se aos companheiros. - A água escoa‑se pelas galerias do pagode!

     ‑ Não era sem tempo ‑ murmurou Tremal‑Naik. ‑ O nosso prisioneiro, que é mais baixo do que nós, estava quase a afogar‑se.

     A água começava a descer, mas muito lentamente, pois continuava também a entrar pela galeria que comunicava com a casa do faquir.

     Antes que a caverna ficasse enxuta, era preciso esperar que o pântano tivesse esgotado as suas reservas de água, que não eram muito grandes, para falar verdade, mas que eram, apesar de tudo, consideráveis.

     ‑ Temos de esperar algumas horas ‑ disse Vindhya a Tremal‑Naik, que o interrogava.

     ‑ E depois, para onde fugiremos?

     ‑ Para os subterrâneos do pagode.

     ‑ E se os sipaios nos seguem?

     ‑ É o que eu receio. Ao verem enxugar‑se o pântano, adivinharão o caminho seguido pela água e procurarão a galeria.

     ‑ Achas que podemos escapar‑lhes?

     ‑ Assim o espero.

     ‑ E Bhârata, levamo‑lo connosco?... Receio que neste momento nos traga mais inconvenientes do que vantagens.

     ‑ É verdade ‑ respondeu Vindhya. ‑ Mas não podemos abandoná‑lo. Quem sabe? Pode ainda ser‑nos necessário para conhecermos melhor as intenções do capitão.

     ‑ Além disso, pode tornar‑se um refém precioso ‑ disse o velho tugue. ‑ Lembrem‑se de que, se o deixarmos aqui, pode ensinar aos sipaios o caminho que tomámos.

     ‑ Podemos matá‑lo ‑ disse o faquir.

     ‑ Seria um crime inútil ‑ respondeu Tremal‑Naik. ‑ Bhârata não é o capitão.

     ‑ Então, levá‑lo‑emos connosco ‑ concluiu o velho tugue.

     Enquanto trocavam entre si estas palavras, a água continuava a descer, encontrando talvez uma saída maior nos subterrâneos do velho pagode. Ao fim de meia hora, os cinco indianos já só tinham água pela cintura.

     O faquir, tomado de viva inquietação, receando a chegada inesperada dos sipaios, quis aproveitar para fazer uma rápida exploração na galeria que comunicava com a cave.

     Deu a tocha a Tremal‑Naik, convidou o dondy a segui‑lo e penetrou na passagem que agora ficara meio descoberta.

      A corrente tornara‑se menos impetuosa, sinal evidente de que as reservas de água do pequeno pântano se estavam a esgotar. Era, pois, provável que os sipaios, admirados com aquela fuga de água, lhe tivessem procurado a causa e tivessem conseguido descobrir a chapa de metal.

     Avançando lentamente por causa da corrente, que irrompia pelo meio das suas pernas e ameaçava por vezes derrubá‑los, e agarrando‑se às saliências das paredes, para melhor resistir àquele impulso, os dois faquires conseguiram percorrer mais de trezentos passos, chegando quase a metade do caminho.

     Pararam um momento, para tomar fôlego, e depois avançaram de novo, apoiando‑se mutuamente para conseguirem vencer a corrente, que se tornava mais forte, pois a galeria era a descer.

     Já tinham percorrido outros cinqüenta ou sessenta metros, quando, na extremidade das galerias, ouviram vozes humanas. Ambos pararam, apertando‑se mutuamente as mãos.

     ‑ Ouves? ‑ perguntou Vindhya.

     ‑ Sim ‑ respondeu o dondy.

     ‑ Descobriram a galeria.

     ‑ Achas que sim?

     ‑ Cala‑te e ouve!

     Uma voz, que a galeria transmitia distintamente, gritara com ar de triunfo:

     ‑ Está aqui a passagem!

     ‑ Fomos descobertos ‑ murmurou o dondy.

     ‑ Não tarda muito que tenhamos os sipaios atrás de nós ‑ respondeu Vindhya.

     - Fujamos.

     ‑ Espera um momento. Se já encontraram a chapa, veremos as tochas deles.

     Retomaram a marcha, procurando não fazer barulho, e, chegados a uma curva da galeria, viram, a cento e cinqüenta passos, um vivo clarão. Homens dos sipaios estavam para entrar na passagem que tinham descoberto.

     ‑ Para trás ‑ disse Vindhya, com voz sufocada. ‑ Se os subterrâneos do velho pagode não estão livres, dentro de poucos minutos seremos apanhados.

     Lançaram‑se ambos através da galeria, deixando‑se arrastar pela corrente, e em poucos instantes chegaram à caverna, onde os esperavam Tremal‑Naik e o velho tugue, segurando o prisioneiro.

     ‑ Fujamos ‑ disse Vindhya.

     ‑ Somos seguidos? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Os sipaios descobriram a passagem.

     ‑ Sim, não tarda que cheguem aqui.

     Tremal‑Naik tirou o punhal e, fazendo‑o brilhar diante dos olhos de Bhârata, disse:

     ‑ Caminha, ou mato‑te.

     A galeria de saída que conduzia aos subterrâneos do velho pagode ficara meia liberta, pois a água já em parte se escoara.

     Os cinco indianos meteram por ela, fecharam a chapa, para retardar um pouco o avanço dos sipaios, e avançaram resolutamente com a tocha ao alto.

     Aquela segunda passagem subterrânea era bastante mais espaçosa do que a primeira, permitindo a passagem a três e mesmo a quatro homens juntos, e a abóbada era tão alta que a luz da tocha não conseguia iluminá‑la.

     A água deixara de irromper, pois a chapa fora fechada, mas ouviam‑se mais para diante surdos rumores, que o eco das galerias repercutia incessantemente.

     Parecia que a corrente, seguindo a inclinação daqueles vastos subterrâneos, continuava a avançar, precedendo os fugitivos.

     Ouviam‑se estrépitos e depois baques surdos, como se a água se precipitasse duma certa altura, ouvia-se gorgolejos e murmúrios mais longínquos, que se perdiam naquelas negras cavernas e naquelas amplas galerias que se estendiam por debaixo do velho pagode.

     Vindhya, que conhecia aquelas tenebrosas passagens, indicava o caminho. Pegara na tocha e avançava sem hesitar, ora subindo ora descendo. Agora, a água desaparecera totalmente e caminhavam em chão enxuto, pois a porosidade da rocha absorvera instantaneamente as últimas gotas.

     Durante meia hora ele guiou os seus companheiros através daquelas galerias, que descreviam curvas e ângulos sem conta, e chegou depois a um amplo subterrâneo onde se erguiam alguns túmulos estranhos, talvez de antigos rajás.

     As paredes daquela caverna estavam cobertas de esculturas gigantescas de natureza sagrada. Viam‑se as vinte e uma encarnações de Vixnu, o deus conservador representado por tartarugas colossais, por gigantes, por monstros horríveis, por cavalos com as patas armadas de espada e escudo, por cabeças de elefante com as trombas levantadas, e no meio erguia‑se uma concha enorme de cor negra representando a famosa pedra salagrama, um símbolo precioso adorado pelos devotos daquela divindade.

     Vindhya parara, pois na extremidade oposta da caverna ainda se via uma grande quantidade de água.

     ‑ O caminho está fechado ‑ disse, com um estremecimento na voz. - A galeria que deve conduzir‑nos à segunda caverna ficou submersa.

     ‑ Teremos de voltar atrás? ‑ perguntou Tremal-Naik.

     ‑ Seria a nossa morte: os sipaios devem estar a seguir‑nos. Não há nenhuma outra passagem?

     ‑ Nenhuma ‑ respondeu o faquir, com ar aterrado.

     ‑ É comprida a galeria que leva ao segundo subterrâneo?...

     ‑ Cerca de sessenta metros.

     ‑ Eu sou um bom nadador.

     ‑ E nós também ‑ disseram o velho tugue e o dondy.

     ‑ E daí?

     ‑ Daí que tentaremos passar por debaixo de água ‑ respondeu resolutamente Tremal‑Naik.

     ‑ E o prisioneiro?

     ‑ Seguir‑nos‑á, se não se quiser afogar.

     Tirou a mordaça a Bhârata e disse-lhe:

     ‑ Se queres viver, vem connosco. Sabes nadar?

     ‑ Sim ‑ respondeu o sargento.

     ‑ Então segue‑nos.

     Naquele momento ouviu‑se ao longe uma detonação, que se repercutiu longamente pelas galerias e na ampla caverna.

     ‑ Fizeram rebentar algum explosivo ‑ disse Vindhya.

     ‑ Os sipaios? ‑ perguntou Tremal-Naik.

     ‑ Devem ter feito ir pelos ares a segunda chapa para continuarem a perseguição.

     ‑ Apressemo‑nos.

     Dirigiram‑se para a extremidade da caverna, voltando a galeria que devia comunicar com a água. Como o chão era bastante inclinado, a água juntara‑se inteiramente.

     ‑ A passagem está à vossa frente ‑ disse Vindhya.

     ‑ É grande?

     ‑ É grande e muito alta também. Eu passarei primeiro.

     ‑ Atenção a Bhârata ‑ disse Tremal‑Naik.

     Os cinco homens fizeram uma boa reserva de ar nos pulmões e depois mergulharam ao mesmo tempo.

     Após quatro braçadas, chegaram à passagem submersa e meteram por ela, nadando vigorosa e rapidamente.

     Durante aquela imersão, por duas vezes Tremal‑Naik tentou vir à superfície, julgando que tinha atravessado já a galeria e chegado à segunda caverna; mas bateu sempre na abóbada. Finalmente, à terceira tentativa, a sua cabeça ficou fora da água.

     Logo que encheu de ar os pulmões, gritou:

     ‑ Vindhya, onde estás?

     ‑ Ao pé de ti ‑ respondeu o faquir.

     ‑ E os outros?

     ‑ Estou aqui ‑ respondeu o velho tugue.

     ‑ E eu também ‑ disse o dondy.

     ‑ E Bhârata?

     Ninguém respondeu.

     ‑ Bhârata? ‑ repetiu Tremal‑Naik.

     Também aquela segunda chamada ficou sem qualquer resposta.

     ‑ Morte de Xiva!... ‑ gritou. ‑ O bandido desapareceu!

     ‑ Ou afogou‑se ‑ respondeu Vindhya. ‑ Deixemos os mortos e pensemos em nós. Se tendes amor à pele, segui‑me!

 

                           A perseguição

     Seguir o faquir não era fácil no meio da profunda escuridão que reinava na segunda caverna, sobretudo agora, que estavam sem tochas.

     Os companheiros de Vindhya encontravam‑se numa situação deveras embaraçosa, pois não sabiam para onde se deviam dirigir e viam‑se, além disso, obrigados a nadar para se manterem à tona de água, pois não tinham encontrado qualquer ponto de apoio.

     A água correra pela galeria e acumulara‑se naquela caverna, por causa da inclinação do terreno; estava ainda suficientemente alta para que os indianos não pudessem tocar o fundo.

     ‑ Para onde vamos? ‑ perguntou Tremal‑Naik, que começava a ficar inquieto. ‑ Eu estou perdido.

     ‑ Procurai seguir‑me ‑ disse Vindhya. ‑ Sei onde se encontra a galeria que nos conduzirá ao Ganges.

     ‑ E encontrá‑la‑ás com esta escuridão?

     ‑ Assim o espero.

     ‑ E essa galeria também estará alagada?

     ‑ Não, porque deve ser muito mais alta do que a caverna.

     ‑ E se a não descobrirmos?

     O faquir não respondeu.

     ‑ Fala ‑ insistiu Tremal‑Naik.

     ‑ Estaríamos perdidos ‑ disse Vindhya, com resignação.

     ‑ Os sipaios alcançar‑nos‑iam, não?

     ‑ Não é dos homens do capitão que eu tenho medo; a galeria cheia de água, que acabamos de atravessar, basta para nos proteger. O que me assusta é que se esgotem as nossas forças.

     ‑ Eu já começo a ficar cansado ‑ disse o dondy, que nadava com dificuldade. ‑ Se tivesse de flutuar ainda durante meia hora, iria ao fundo.

     ‑ Vai à procura da galeria ‑ disse Tremal‑Naik a Vindhya. ‑ Nós procuraremos seguir‑te.

     O faquir pôs‑se a nadar até que encontrou a parede da tenebrosa galeria; depois pôs‑se a segui‑la, para descobrir facilmente a passagem.

     Tremal‑Naik e os seus companheiros, guiados pelo barulho da água agitada pelas pernas do nadador, tinham‑se posto a segui‑lo, procurando manter‑se unidos, para não se perderem.

     Embora fossem todos corajosos e resolutos, o surdo rumorejar das águas agitadas pelos seus membros e aquela profundíssima escuridão provocavam-lhes enorme impressão. Até mesmo Tremal‑Naik se sentia invadir, pouco a pouco, por um vago sentimento de terror, que se ia agigantando no seu espírito.

     O faquir dera já por duas vezes volta à caverna sem nada ter encontrado. O desespero, acrescido pelas trevas e pelo medo de um perigo iminente, estava para o invadir, quando os seus pés chocaram com um obstáculo.

     Estendeu rapidamente uma perna e pareceu‑lhe que subia um degrau.

     ‑ Talvez estejamos salvos! ‑ exclamou, triunfante.

     ‑ Encontraste a abertura? ‑ perguntou-lhe o dondy, com voz angustiada. ‑ Eu não agüento mais; sinto as forças faltarem‑me.

     ‑ Encontrei um ponto de apoio ‑ respondeu Vindhya.

     ‑ Podemos ir para lá também nós? ‑ perguntou o tugue. ‑ Eu também estou nas últimas.

     ‑ Estamos perto da galeria, está um degrau debaixo de mim.

     ‑ Encosta-te a ele ‑ disse Tremal‑Naik.

     O faquir estendeu a mão e sentiu outros degraus junto de si. Agarrou‑se a eles gritando:

     ‑ Vinde: estamos salvos!

     Acima dele, outros degraus se encontravam. Começou a subir e em breve as suas mãos encontraram uma abertura. Com um último impulso levantou‑se e encontrou‑se diante da passagem.

     ‑ Cá estamos ‑ disse. ‑ Vinde e chegaremos às margens do Ganges.

     ‑ Vês a luz? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Ainda não; temos de atravessar outras galerias e outras cavernas.

     Os seus três companheiros, guiados pela sua voz, não tardaram a chegar ao pé da escada.

     Vindhya penetrara já na galeria e avançava às apalpadelas, sem saber muito bem onde se encontrava.

     Recordara‑se, naquele momento, de que nas cavernas havia outras passagens que nunca explorara e, portanto, não sabia se o caminho encontrado era o que conduzia às margens do Ganges.

     ‑ É uma pena termos perdido as tochas ‑ murmurava. ‑ Não sei se com esta escuridão conseguiremos safar‑nos.

     De repente chocou com um obstáculo que parecia fechar a galeria. Apesar dos arrepios que lhe provocava o frio que reinava naqueles subterrâneos e a longa imersão nas águas que tinham invadido as galerias, sentiu a fronte molhada de suor.

     ‑ Onde estamos nós? ‑ perguntou a si próprio, com angústia. ‑ Ter‑nos‑emos perdido nestes imensos subterrâneos do pagode?

     ‑ Que tens? ‑ perguntou‑lhe Tremal‑Naik, que lhe caíra em cima, pois não previra a inesperada paragem do faquir.

     ‑ O caminho está fechado ‑ respondeu Vindhya.

     ‑ Então enganaste-te?

     ‑ Receio que sim.

     Durante alguns instantes, um silêncio pavoroso reinou entre os quatro homens. Aquele inesperado obstáculo, que os impedia de continuar a fuga, tinha‑os aterrorizado.

     ‑ Começo a acreditar que nos perdemos ‑ disse depois Tremal-Naik, com raiva surda. ‑ Que queres fazer agora?

     Vindhya respondeu com um suspiro.

     ‑ Fala ‑ respondeu Tremal‑Naik. ‑ Eu não quero morrer, percebes?

     - Não sei que hei-de fazer ‑ disse o faquir. ‑ Sem uma tocha não sei para onde devo dirigir‑me.

     ‑ Qual é o obstáculo que fecha a galeria?

     ‑ Não sei se é uma pedra ou uma porta.

     Tremal‑Naik tirou do cinto uma pistola, deu alguns passos em frente e com a coronha da arma bateu repetidamente no obstáculo.

     Um som metálico ecoou na tenebrosa galeria.

     ‑ É uma porta de ferro ‑ disse o caçador de serpentes. ‑ Há‑de haver meio de abrir. Vamos ver se há algum botão.

     Fez deslizar as mãos sobre aquela grande chapa de metal, de cima para baixo, da direita para a esquerda, mas não encontrou nada. Aquela porta era perfeitamente lisa, sem a mais pequena saliência.

     ‑ Nada ‑ murmurou, com voz rouca.

     Apelou para todas as suas forças, experimentando empurrar; trabalho inútil. A porta, que devia ser maciça, não se mexeu.

     ‑ Para a deitar abaixo seria precisa uma mina ‑ disse.

     ‑ Terá esta passagem sido fechada há pouco tempo? ‑ perguntou o velho tugue.

     ‑ Não ‑ respondeu Vindhya. ‑ Talvez comunicasse com o velho pagode e vós sabeis que os subterrâneos dos templos têm portas de ferro.

     ‑ Quer dizer que esta não é a galeria que vai dar ao Ganges?

     ‑ Não é esta, não.

     ‑ Procuremos outra.

     ‑ Como?

     ‑ Voltando à caverna.

     ‑ Se a não encontrámos antes, duvido de que a encontremos agora.

     - Veremos ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Tens a certeza de que aquela passagem não deve estar submersa?

     ‑ Se estivesse cheia de água, já aqui não haveria ar para respirar.

     ‑ A observação é justa ‑ disse o dondy.

     ‑ Vamos ver se a encontramos ‑ aconselhou o velho tugue.

     ‑ E se esperássemos que as águas baixem? ‑ perguntou o dondy. ‑ O solo destas cavernas é poroso e não tardará a absorvê‑las...

     ‑ E os sipaios?... ‑ disse o tugue. ‑ Esqueceste-te de que somos seguidos?

     ‑ Há a galeria que nos protege.

     Como que a desmentir o dondy, ouviu‑se naquele momento, a pequena distância, um terrível estampido, e depois um relâmpago luminoso brilhou na caverna, iluminando‑a inteiramente.

     As águas, levantadas pelo rebentar dalguma mina de grande potência, bateram nas paredes com um ruído ensurdecedor, enquanto da abóbada se ouviam cair, com um baque surdo, pedaços de rocha.

     Tremal‑Naik, o dondy e o velho tugue tinham soltado um grito de terror, julgando que a caverna se desmoronasse inteiramente; Vindhya, pelo contrário, soltara um grito de triunfo.

     Durante aquela rápida invasão de luz, descobrira uma segunda escada, que subia para a abóbada, e reconhecera‑a.

     ‑ Descobri a passagem! ‑ gritou. ‑ Depressa, para a caverna! Em seguida, sem ver se era ou não seguido pelos companheiros, precipitou por entre as águas ainda agitadas, nadando vigorosamente.

     ‑ Vindhya! ‑ gritou Tremal‑Naik.

     ‑ Vinde! ‑ respondeu o faquir, com voz imperiosa. ‑ Os sipaios estão para irromper na caverna!

     Os três indianos, compreendendo que estavam para ser surpreendidos pelos soldados do capitão Macpherson; atiraram‑se à água, procurando segui‑lo.

     Do lado da galeria que comunicava com a primeira caverna, ouviram‑se vozes humanas. De quando em quando, fugazes clarões iluminavam as paredes e reflectiam‑se nas águas.

     Os sipaios, depois de derrubarem a passagem, de modo a desembaraçá‑la da massa de água que a obstruía, impedindo o seu avanço, preparavam‑se para invadir a caverna.

     Quando o faquir chegou à escada que devia conduzi‑lo ao corredor que comunicava com o rio, ouviu‑se uma voz gritar:

     ‑ Para a frente!

     Tremal‑Naik soltou um grito de raiva.

     ‑ A voz de Bhârata!

     ‑ Enganou‑nos e agora dá‑nos caça ‑ disse o velho tugue. - Se aquele tratante volta a cair nas nossas mãos, não o pouparei.

     À ordem dada pelo sargento, os sipaios tinham‑se lançado para a galeria com a fúria duma torrente. Eram quinze ou vinte, armados de espingardas e munidos de luzes.

     Quando chegaram à caverna, pararam, com a água pelo pescoço.

     ‑ Ei‑los! ‑ ouviu‑se gritar.

     Vindhya, Tremal‑Naik e o velho tinham chegado à galeria e nela se tinham já introduzido, mas o dondy, mais velho do que eles e já cansado com aquelas corridas e com os banhos contínuos, encontrava‑se ainda no último degrau.

     Ao vê‑lo, alguns sipaios apontaram rapidamente as armas e saudaram‑no com uma descarga.

     O desgraçado faquir, crivado de balas, caiu da escada e precipitou‑se na água, sem soltar um gemido.

     Ao ouvir o baque provocado pelo corpo na sua queda, Tremal‑Naik voltara‑se.

     ‑ O dondy morreu ‑ gritou.

     ‑ Para a frente! ‑ respondeu Vindhya. ‑ Não é altura de nos ocuparmos dos mortos.

     Os três indianos lançaram‑se pela galeria, enquanto os sipaios avançavam, nadando para chegarem à escada.

     Ao fim de duzentos metros, Vindhya parou um momento, para deixar passar os companheiros. Naquele lugar encontrava‑se uma grossa porta de ferro, que estava aberta.

     ‑ Este obstáculo bastará para os atrasar alguns minutos ‑ disse.

     E fechou a porta atrás de si, com grande estrondo.

     ‑ Para onde vamos? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Sempre em frente ‑ respondeu o faquir.

     ‑ Não há obstáculos? Não vejo nada.

     ‑ O rio não está longe.

     Os três retomaram a corrida, chocando uns com os outros, empurrando‑se, receando verem atrás de si os sipaios do capitão. Corriam loucamente, com as mãos estendidas, para não partirem a cara contra alguma parede ou obstáculo, impelidos pelo medo.

     De repente, ao fundo dum longo corredor, começaram a distinguir um pequeno clarão, enquanto aos seus ouvidos chegava um murmúrio que parecia produzido por um longínquo curso de água.

     ‑ Que barulho é este? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ É o Ganges ‑ respondeu Vindhya.

     Continuando a correr, chegaram pouco depois a uma terceira e mais ampla caverna, que recebia um pouco de luz duma estreita abertura situada no alto da abóbada.

     A sua chegada a esta última caverna foi saudada por uma chiadeira ensurdecedora vinda do alto. Tremal‑Naik e o tugue, não sabendo o que a provocava, pararam, olhando à sua volta, inquietos.

     Só então se aperceberam de que as paredes e a abóbada se encontravam atapetadas com grandes manchas negras, que se agitavam soltando um ruído semelhante ao de pessoas que falassem entre si.

     Eram milhares e milhares de badul, uma espécie de morcegos repugnantes com mais de trinta centímetros de comprimento, as asas muito grandes, medindo muitas vezes mais de um metro e com a cabeça e o corpo cobertos duma pelugem castanho‑escura atravessada por uma risca amarelada.

     Vendo os três homens, aqueles habitantes das trevas começavam a agitar‑se e a protestar contra aquela violação de domicílio. Primeiro reuniram‑se, apertando‑se uns contra os outros, formando uma grande cortina viva e ruidosa, e depois começaram a voar pela caverna, fugindo loucamente em todas as direcções, chocando contra os três homens e batendo contra o rosto deles com as suas asas gigantescas e frias.

     Tremal‑Naik e os seus companheiros passaram a correr por entre aquele caos de voadores assustados e chegaram a uma nova galeria, na extremidade da qual se ouvia um ribombar continuo, anunciando a proximidade do rio.

     ‑ Vinde!... ‑ disse Vindhya. ‑ Estamos salvos!

     Percorreram a última parte da galeria, cuja abóbada se abaixava rapidamente, e chegaram diante duma abertura, através da qual se via a água a correr.

     ‑ Passaremos? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Basta mergulhar ‑ respondeu Vindhya.

     Deu alguns passos em frente e ficou com água pelas coxas. O chão da galeria descia rapidamente, seguindo a inclinação da margem, e terminava um metro abaixo do nível do rio.

     O faquir, que continuava a mergulhar, estava para se atirar resolutamente ao Ganges quando retrocedeu rapidamente, fazendo um gesto de raiva.

     ‑ Que tens? ‑, perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ O rio está guardado pelos sipaios!

     ‑ Maldição!

     ‑ Olha!

 

                         A morte de Vindhya

     O faquir não se enganara.

     À luz dos primeiros raios da aurora, conseguira ver três chalupas com uma dezena de sipaios, paradas no meio do rio, como se estivessem a vigiar a saída da galeria.

     Provavelmente, os homens que nelas estavam deviam ignorar o ponto exacto onde vinham dar os grandes subterrâneos do velho pagode, pois, de outro modo, não teriam hesitado em entrar e apanhar os fugitivos entre dois fogos; mas deviam estar informados de que a galeria desembocava perto daquela margem.

     Ao ver aquelas três chalupas, Tremal‑Naik empalidecera. Recuou lentamente, até chegar junto do faquir, e, pondo nele dois olhos cheios de ameaças, disse‑lhe:

     ‑ Alguém nos atraiçoou!

     ‑ É como vês ‑ respondeu Vindhya.

     ‑ Quem terá sido?

     ‑ É a mim que o perguntas?

     ‑ Tu garantiste‑me que ninguém conhecia a existência destas galerias.

     ‑ Disse e repito.

     ‑ Mentiste.

     ‑ Não.

     ‑ Se assim fosse, aqueles homens não estariam ali.

     ‑ Esqueceste-te de Bhârata? ‑ perguntou o faquir. ‑ Foi esse homem que nos perdeu.

     ‑ Bhârata!...

     ‑ Sim, ele! Ouviu as nossas palavras, ouviu‑me falar duma saída para o Ganges e, uma vez liberto de nós, deu ordens para vigiarem as margens.

     - Deve ser isso ‑ confirmou o velho tugue. ‑ O sargento aproveitou‑se das nossas confidencias para nos impedir a fuga.

     ‑ E agora... Que havemos de fazer? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Tentemos um golpe desesperado ‑ respondeu Vindhya. ‑ Se aqui ficamos, caem‑nos em cima os sipaios que avançam pelos subterrâneos.

     ‑ E a porta de ferro?

     ‑ A esta hora já a devem ter feito ir pelos ares com alguma mina.

     ‑ E que queres tentar?

     ‑ Somos todos bons nadadores; só o dondy não era muito forte; mas o pobre diabo já não está connosco. Mergulhemos e tentemos alcançar a nado a outra margem.

     ‑ Se os homens das chalupas nos descobrem, atiram sobre nós.

     ‑ Bem sei, mas vou tentar a sorte. O rio arrasta sempre cadáveres consigo, troncos de árvore, urnas funerárias, e, portanto, não é fácil que nos descubram. Para a água! Já ouço os sipaios a avançar.

     Não havia que hesitar. Dentro de poucos instantes, os soldados que os perseguiam através das galerias, derrubando todos os obstáculos com minas, deviam chegar àquele último refúgio e aprisioná‑los. Encheram os pulmões de ar e mergulharam no rio, abandonando a galeria.

     Tremal‑Naik, em vez de atravessar o rio em linha recta, deixou‑se arrastar pela corrente, para não chocar contra as três chalupas que estavam ancoradas a trezentos passos da margem, nadando com todo o vigor e mantendo‑se debaixo de água pelo maior espaço de tempo que lhe era possível.

     Sustendo a respiração até sentir o sangue a sibilar nas orelhas, percorreu duzentas braças, depois veio à superfície, deixando emergir apenas a ponta do nariz. Renovada a sua provisão de ar, tornou a mergulhar, tentando cortar a corrente, para aproar entre as plantas aquáticas da margem oposta. Percorrera já mais cento e cinqüenta braças, quando, ao voltar à superfície, ouviu uma detonação, seguida de um grito.

     “Alguém foi atingido”, pensou.

     Embora se sentisse exausto, continuou a nadar debaixo de água, até se aperceber de que estava quase a perder os sentidos. Com risco de apanhar com uma bala na cabeça, voltou à superfície com um golpe de pés.

     Estava para emergir, quando chocou com uma massa arrastada pela corrente.

     “Algum cadáver ou algum tronco de árvore”, pensou. Agarrou‑o e depois, mantendo‑se escondido atrás daquela massa, deitou a cabeça de fora e abriu os olhos.

     Um grito mal sufocado lhe saiu dos lábios. Aquele cadáver com que chocara era o de Vindhya.

     O desgraçado faquir apanhara com uma bala na cabeça e seguia ao sabor da corrente, tingindo de vermelho a água à sua volta.

     Tremal‑Naik afastou com repugnância aquele corpo ainda tépido e voltou a mergulhar. Vira a margem a pequena distância, enquanto as chalupas já se encontravam a uma distância de meio quilómetro.

     Percorreu aquela distância em duas tiradas, nadando desesperadamente, com o receio de ser descoberto e morto como o pobre faquir, e chegou ao meio de um monte de folhas flutuantes, redondas e muito grandes; era ghil, uma espécie de lótus que produz raízes grossas, semelhantes a nabos, e que são avidamente procuradas pelos habitantes das margens do Ganges.

     Um bando de aves aquáticas, de íbis escuras, de patos bravos, de mergulhões e de outras aves de penas cor de índigo levantou‑se com grande algazarra e voou por cima do rio.

     Tremal‑Naik, receando que os sipaios das chalupas suspeitassem do verdadeiro motivo daquela fuga precipitada das aves, ficou por alguns minutos escondido entre as folhas flutuantes e depois veio acostar lentamente à margem, que naquele lugar descia suavemente, coberta de arbustos e de ervas altas, e com um último impulso saltou para fora da água.

     Rastejando entre as ervas, conseguiu chegar a um grupo de mangueiras, belíssimas plantas que crescem em grande número nas margens do rio sagrado e produzem frutos excelentes, com um comprimento de três ou quatro polegadas, cobertos por uma casca esverdeada e dura, que esconde a polpa, de bela cor amarelo‑dourada e de sabor muito aromático.

     Tendo‑se introduzido na espessura da moita, içou‑se para cima dum grosso ramo coberto de folhagem densa e olhou para o rio.

     Das três chalupas, duas tinham encostado à saída da galeria, donde se viam sair alguns sipaios, provavelmente aqueles que tinham atravessado os subterrâneos do velho pagode; a terceira, pelo contrário, descia o Ganges, como se procurasse alcançar qualquer coisa que a corrente arrastava.

     ‑ Procuram o cadáver do faquir ‑ murmurou Tremal‑Naik. ‑ E que é feito do velho tugue? Ter‑se-ia afogado ou terá sido apanhado?

     Mal acabara de pronunciar estas palavras quando se viram as folhas dos ghil que pouco antes atravessara agitar‑se, como se alguém se esforçasse por se meter entre os caules que as sustentavam.

     Primeiro pensou que se tratasse de algum peixe grande, mas, observando com mais atenção, apercebeu‑se de que uma cabeça humana, perfeitamente rapada, como é costume entre os Bengaleses, ia emergindo pouco a pouco.

     ‑ O tugue ‑ murmurou.

     Levou a mão aos lábios e imitou o uivar do chacal.

     O indiano levantou a cabeça e olhou para a margem. Compreendera que tinha um amigo ali perto, mas hesitava em deixar o seu esconderijo aquático.

     ‑ Vem ‑ gritou Tremal‑Naik. ‑ Agora já não temos nada a recear.

     O velho dirigiu‑se para a margem, atirou‑se para o meio das ervas e chegou ao pé da moita.

     ‑ Estamos salvos ‑ disse. ‑ Estou contente por também tu teres escapado à perseguição que nos moveram.

     ‑ Sabes que Vindhya foi morto?

     ‑ Sim, Tremal‑Naik ‑ respondeu. ‑ Quando os sipaios o atingiram encontrava‑se a dez passos de mim.

     ‑ E, agora, que faremos nós?

     ‑ Fugiremos para o Sul.

     ‑ E depois?

     ‑ Iremos procurar o porom‑hungse.

     ‑ E o capitão?

     ‑ Não é a altura de pensar nele, por enquanto.

   ‑ E se ele já tivesse partido?

     ‑ Não creio, Tremal‑Naik. Afastemo‑nos o mais depressa possível, antes que as chalupas se dirijam para estes lados; os sipaios vêm a patrulhar a margem.

     ‑ Conheces o caminho?

     ‑ Bastará seguir a margem, mantendo‑nos a uma certa distância - respondeu o tugue.

     Estavam para sair da moita, quando dum arrozal vizinho viram sair um sacerdote brâmane, um belo homem de estatura bastante elevada, com uma barba imponente, que começava já a encanecer, e vestido com um manto branco. Trazia na mão um vaso de metal reluzente, com capacidade para três ou quatro litros de água.

     ‑ Eis um importuno que se vem banhar mesmo aqui ‑ disse Tremal-Naik.

     ‑ Talvez seja a nossa sorte ‑ respondeu o tugue. ‑ Aquele homem pode proporcionar‑nos um refúgio e proteger‑nos contra os sipaios, que não ousariam violar a casa dum sacerdote de Brama. Deixemo‑lo realizar as suas funções e depois vamos ter com ele.

     O brâmane passou ao lado da moita sem dar conta da presença dos fugitivos, desceu lentamente a margem, mantendo os olhos fixos no Sol, que se levantava no horizonte, tirou o manto e lavou os pés e as mãos.

     Feito isto, recolheu um pouco de água na palma da mão direita,levantou‑a, fazendo escorrer o líquido para o pulso, e em seguida tocou no nariz, na boca, nas orelhas, nos lábios, nos olhos, no abdómen e nos ombros murmurando as orações respectivas.

     Terminada aquela cerimónia, sentou‑se sobre a margem, voltando o rosto para os quatro pontos cardeais, limpou os dentes, utilizando um pedacinho de madeira verde, operação que os brâmanes devem realizar ao nascer do Sol, para evitar que a sua alma, na encarnação futura, passe para o corpo dalgum insecto imundo, pois é isso que acreditam; em seguida, apanhando um pouco de lama, fez vários sinais na testa.

     Mas ainda não tinha acabado. Os brâmanes têm de fazer tantas cerimónias estranhas durante todo o dia que acabam por submeter a dura prova a própria paciência. Depois daquela primeira limpeza, os sacerdotes devem colher flores e fazer um raminho, que levam para casa, depois cobrir de lama todo o corpo, em seguida descer ao rio, até que a água lhes chegue ao peito e mantendo sempre a cabeça voltada para o Oriente, cruzar os dedos de várias maneiras, cobrir o rosto com os cabelos, tapar durante algum tempo os ouvidos com os dedos polegares, finalmente meter os dedos mínimos nas narinas e os outros dedos nos olhos e mergulhar três vezes na onda sagrada.

     Feitos estes vários movimentos, que fariam rir, um europeu, devem pôr as mãos, repetindo três invocações ao seu deus, lançar água sobre a própria cabeça, apanhar água nas mãos juntas e oferecê‑la por três vezes ao Sol e, finalmente, fazer uma última imersão, recitando algumas fórmulas, a fim de garantirem para si a felicidade nesta vida e na outra.

     O brâmane que descera ao Ganges terminada a sua longa e enfadonha limpeza, voltou a subir à margem sentando‑se a pequena distância da moita, e, tendo misturado um pouco de mínio com lama, traçou sobre si próprio os sinais especiais da sua casta: uma mancha no meio da fronte, uma no alto do nariz e várias sobre o corpo utilizando ora um dedo ora outro porque cada um dos sinais tem de ser feito com um dedo diferente. Estava para se levantar a fim de ir beber um gole de água ao rio sagrado, quando o velho tugue se aproximou dele e lhe deu os bons-dias.

     O brâmane olhou para o indiano e preparava‑se para atirar com o ramo de flores, julgando que o tugue pertencesse a alguma das castas mais baixas, pois devem fazer isso quando encontram um miserável pertencente a essas castas; mas o velho deteve‑o com um gesto, dizendo‑lhe, com altivez:

     ‑ Sou um sequaz da deusa Cali e pertenço à casta dos xátrias (guerreiros).

     ‑ Que queres de mim? ‑ perguntou o brâmane.

     ‑ Pedir‑te asilo até à noite.

     ‑ Não tens casa?

     ‑ Sim, mas está longe e, tanto eu como o meu companheiro, estamos expostos a um grave perigo.

     ‑ Quem te ameaça?

     ‑ Aqueles sipaios que tu vês a percorrer o rio.

     ‑ Roubaste?

     ‑ Não.

     ‑ Mataste homens que pertenciam à minha ou à tua casta?

     ‑ Também não.

     ‑ Então, segue‑me ‑ disse o brâmane.

     - Estarei seguro na tua casa?

     ‑ Um pagode é inviolável.

     ‑ Olha!... ‑ disse naquele momento Tremal‑Naik. ‑ Os sipaios vêm aí.

     O velho tugue olhou rapidamente para o rio. As duas chalupas que se tinham detido junto à saída dos subterrâneos do velho pagode, tendo embarcado os sipaios e Bhârata, estavam a atravessar o Ganges a grande velocidade.

     ‑ Aqueles cães continuam a caça!... ‑ exclamou, com raiva. ‑ Dentro de pouco tê‑los‑emos outra vez atrás de nós.

     ‑ E Bhârata estará à frente deles ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Vinde ‑ disse o brâmane.

     Enquanto os sipaios arrancavam a toda a força, para alcançarem a margem oposta, para a vasculharem, o brâmane e os dois fugitivos atravessaram rapidamente a moita das mangueiras e meteram pelo meio dum arrozal.

     Do outro lado, entre o verde‑escuro dos coqueiros e dos pipais, dos nipas e das palmeiras, que formavam um pequeno bosque, viam‑se as agulhas dum pagode, terminadas em bolas de metal que o sol fazia brilhar como se fossem de ouro fundido.

     O brâmane conduziu os seus hóspedes através dos arrozais e do pequeno bosque e parou em frente dum modesto pagode formado por uma grande e altíssima cúpula coroada por três agulhas e por uma haste de ferro sustentando uma grande serpente de metal; era, provavelmente, Adissescien, o gigantesco réptil que os gigantes da antiguidade, a conselho de Vixnu, trouxeram do mar para circundar a montanha Mandoraguire e conseguirem o amurdon, ou seja, o licor da imortalidade.

     O brâmane subiu rapidamente a escadaria, empurrou a grossa porta do pagode, coberta de chapas de bronze esverdeado, e introduziu‑os lá dentro, fechando depois a entrada com um enorme ferrolho.

     ‑ Estais no templo dedicado à quarta encarnação de Vixnu ‑ disse ele. ‑ Nenhum indiano ousará entrar aqui sem minha autorização.

     ‑ Os sipaios estão ao serviço do Governo inglês ‑ observou Tremal-Naik.

     ‑ Mas continuam a ser indianos ‑ respondeu o sacerdote.

     O templo quase não tinha adornos; mas no meio dele erguia‑se um monstruoso animal de metal dourado, metade homem, metade leão, e representava Vixnu na sua quarta encarnação, isto é, quando assumiu aquela forma para combater o gigante Ereniano, que obtivera de Brama o privilégio de não ser morto nem pelos deuses, nem pelos homens, nem pelos animais.

     O brâmane encostou‑se ao monstro, fez saltar uma mola que estava escondida no ventre do monstruoso animal, e que fazia abrir uma pequena porta por onde podia passar um homem. Aberta a porta, meteu lá dentro os dois indianos, dizendo‑lhes:

     ‑ Ali estareis em segurança, ninguém vos descobrirá.

     O interior daquele leão com cabeça de homem estava vazio e tinha espaço mais do que suficiente para conter comodamente seis pessoas. Pelos enormes olhos do monstro, feitos duma substância transparente, entrava luz suficiente para iluminar aquele esconderijo.

     Os dois indianos puseram‑se de pé, encostaram‑se àqueles olhos e puderam distinguir muito bem não apenas as paredes do pagode, mas também a porta que se abria sobre a escadaria.

     O velho tugue fez um gesto de satisfação.

     ‑ Poderemos observar o que acontecer no interior do pagode ‑ disse.

     ‑ Desconfias do brâmane? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Não ‑ respondeu o tugue. ‑ Os brâmanes odeiam os Ingleses porque são os opressores da Índia, e odeiam por igual os sipaios, que aceitaram esse jugo vergonhoso e até se tornaram aliados da maldita raça branca.

     “Ele prometeu salvar‑nos e, embora ignore os motivos da nossa fuga, cumprirá escrupulosamente a palavra dada.”

     ‑ E julgas que os sipaios nos vão deixar tranqüilos?

    ‑ Não espero isso. Se conseguiram descobrir o nosso rasto, cercarão o pagode e talvez ousem mesmo entrar nele, para nos procurar.

     ‑ Corremos o risco de ser apanhados.

     ‑ Hum!... Quem vai supor que estamos escondidos no corpo deste animal?

    ‑ Podem suspeitar e abrir a barriga à encarnação de Vixnu.

     ‑ Eles?!... Indianos?!... Oh!... Nunca poderiam cometer semelhante sacrilégio.

     ‑ Seja; mas, se cercam o pagode, impedir‑nos‑ão de sair ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Acabarão por se cansar.

     ‑ E, entretanto, o capitão partirá para Rajmangal.

     O tugue ficou impressionado com aquela observação.

     ‑ É verdade ‑ murmurou depois. ‑ E, se ele partir, todos os sequazes de Cali.

     ‑ É talvez a morte da mulher que eu amo ‑ disse Tremal‑Naik, com um suspiro sufocado. ‑ Não, aquele homem não pode partir: é preciso que eu o mate, para arrancar à morte a “Virgem do Pagode”.

     ‑ Talvez atrase a sua partida até ao regresso dos sipaios.

     ‑ Quem to garante?

     ‑ Ninguém, é uma suposição.

     ‑ E se partisse?

     O velho tugue ficara silencioso, sem saber que responder. De repente, porém, bateu com a mão na testa, exclamando, com voz triunfante:

     ‑ Esquecemo‑nos do porom‑hungse!

     ‑ O faquir do braço ancilosado?

   ‑ Sim, Tremal‑Naik.

     ‑ E que queres concluir daí?

     ‑ Que talvez aquele homem nos possa salvar.

     ‑ Como?

     ‑ Não sei, mas tenho uma grande confiança no velho Nimpor. É um faquir temido e respeitado, que sabe fazer‑se obedecer por todas as outras seitas de faquires e de encantadores de serpentes e a quem tudo é possível.

     “Avisemo‑lo da perigosa situação em que nos encontramos e verás que ele encontrará maneira de nos fazer sair daqui e de nos pôr a salvo.”

     ‑ E quem se encarregará de o avisar?

     ‑ O brâmane.

     ‑ Ah!

     Naquele instante, uma pancada sonora ressoou pelo pagode, despertando o eco da grande cúpula.

     ‑ Os sipaios!... ‑ exclamou o velho tugue, com um arrepio.

     ‑ Silêncio ‑ disse Tremal‑Naik.

 

                           A libertação

     O brâmane devia esperar aquela visita, pois, apenas a pancada se fez ouvir pelo pagode, saiu duma espécie de guarda-vento atrás do qual estava, talvez rezando diante de alguma das muitas encarnações de Vixnu, e dirigiu‑se com passo rápido para a porta.

     Tremal‑Naik e o velho tugue espiavam os seus movimentos por detrás dos olhos transparentes do monstro que lhes servia de esconderijo.

     O sacerdote tirou o grande ferrolho e abriu lentamente a porta, mantendo, no entanto, os braços abertos, de modo a impedir o acesso ao interior.

     Quatro sipaios armados e um sargento, que Tremal‑Naik conhecia como sendo Bhârata.

     ‑ Que desejais? ‑ perguntou o brâmane, aparentando a maior surpresa.

     O sargento, mais resoluto do que os seus companheiros disse:

     ‑ Perdoa‑me, sacerdote de Brama, por te ter importunado. Não contava encontrar-te a ti, mas a dois homens que desde ontem seguimos implacavelmente.

     - E vindes procurá‑los neste pagode? ‑ perguntou o brâmane, com assombro ainda maior.

     - Suspeitamos de que tinham-se refugiado aqui ‑ disse Bhârata ‑ Encontramos os seus vestígios, seguimos o seu rasto e não nos enganamos. Os indianos devem ter chegado à zona do pagode.

     ‑ Aqui não entrou ninguém.

     ‑ Tens a certeza disso?

     - Não vi ninguém: por isso podeis ir‑vos embora e procurar por outra parte esses dois homens.

     Bhârata preparava-se para entrar. Talvez não tivesse ficado convencido daquilo que ouvira, mas o brâmane impediu‑o de o fazer.

     O brâmane franziu o sobrolho.

     ‑ Tu atreves-te? ‑ disse.

     ‑ Eu não me atrevo nada ‑ respondeu o sargento, num tom de voz resoluto. ‑ Procuro aqueles dois homens e nada mais.

     ‑ E que queres tu?

     ‑ Visitar o pagode.

     ‑ Homens armados, num templo dedicado a Vixnu, o deus conservador que todos os indianos temem e adoram?

     ‑ Deporemos as armas de fogo, se isso te agrada, mas entraremos.

     ‑ Entrai, se assim o quereis ‑ respondeu o brâmane, receando que uma resistência maior agravasse as suspeitas do sargento.

     ‑ Obrigado ‑ respondeu simplesmente Bhârata.

     Mandou aos seus homens que depusessem as armas de fogo, e depois, voltando‑se para um segundo grupo de sipaios que parara ao fundo da escadaria, disse:

     ‑ Cercai o pagode e, se virdes alguém fugir, fazei fogo.

     Dito isto, entrou juntamente com outros quatro, mantendo a mão direita sobre o punho do sabre, pronto a desembainhá‑lo em caso de perigo.

     O pagode não tinha esconderijos para vasculhar, pois, anexo a ele, havia apenas um compartimento que servia de habitação ao brâmane. No entanto, os cinco sipaios percorreram cuidadosamente todos os cantos, bateram as pedras do pavimento, para terem a certeza de que por baixo não havia passagens subterrâneas, e em seguida pararam diante da estátua monstruosa do deus.

     Bhârata talvez tivesse querido certificar‑se de que estava vazia, mas não ousou cometer semelhante profanação. Também ele era um indiano e, embora se encontrasse há muitos anos ao serviço do capitão, não renunciava à sua religião.

     ‑ Garantes‑me que nenhum homem se refugiou neste pagode? ‑ perguntou de novo ao brâmane.

     ‑ Ninguém entrou ‑ respondeu tranquilamente o sacerdote.

     ‑ No entanto, aqueles dois indianos devem ter‑se. escondido por estes sítios.

     ‑ Procura‑os.

     ‑ Fá‑lo‑ei, podes ter a certeza. Adeus, sacerdote de Brama.

     Os cinco sipaios saíram lentamente do templo, lançando à volta um último olhar, e desceram a escadaria.

     O brâmane esperou que se tivessem afastado, e depois voltou a fechar a porta; tendo dado volta ao templo, pôs‑se a observar por detrás duma pequena abertura semi-escondida por uma cabeça de elefante esculpida num bloco de pedra negra.

     ‑ Ah! ‑ murmurou alguns instantes depois. ‑ Preparam‑se para cercar o pagode! Cercai à vontade; se vós sois pacientes, também nós o seremos, homens ruins vendidos à raça que oprime o nosso país.

     Deixou o seu ponto de observação e dirigiu‑se para a monstruosa divindade, fazendo saltar a mola. Através da pequena porta apareceram logo as cabeças de Tremal‑Naik e do velho tugue.

     ‑ Por ora, nada tendes a recear ‑disse o brâmane

     ‑ Foram‑se embora? ‑ perguntou Tremal‑Naik, que começava a respirar, aliviado.

     ‑ Não, têm o pagode cercado.

     ‑ Ainda suspeitam?

     ‑ Receio que sim.

     ‑ Pensas que partirão depressa?

     ‑ Duvido.

     ‑ E não tens maneira de nos fazer fugir?

     ‑ Nenhuma.

     ‑ Não há nenhum subterrâneo que comunique com a floresta? ‑ perguntou o velho tugue.

     ‑ Este pagode não tem subterrâneos.

     ‑ E, no entanto, nós precisamos de fugir ‑ disse Tremal‑Naik. - Estão à nossa espera noutro lugar.

     ‑ Se sais, aqueles renegados apanhar‑vos‑ão ‑ respondeu o brâmane.

     ‑ Escuta ‑ disse o velho tugue. ‑ Tens um homem em quem confies?

     ‑ Sim, um rapaz encarregado de me trazer os víveres.

     ‑ Quando é que ele vem?

     ‑ Dentro em pouco.

     ‑ Conhece a cidade indiana?

     ‑ Nasceu nela.

     ‑ É necessário que vá procurar um porom‑hungse chamado Nimpor. Aquele faquir é nosso amigo e salvar‑nos‑á.

     ‑ Onde é que ele está?

     ‑ No pagode dedicado a Crixna. Chamam‑lhe o faquir da flor, pois tem uma pequena planta na mão esquerda.

     ‑ Mandarei o rapaz procurá‑lo ‑ disse o brâmane. ‑ Que queres que lhe diga?

     ‑ Que os seus dois amigos, Tremal‑Naik e Moh, se encontram cercados pelos sipaios neste pagode.

     ‑ Nada mais?

     ‑ Acrescentarás que os sipaios são chefiados pelo sargento do capitão Macpherson.

     ‑ Prometo‑vos que antes da noite tereis notícias de porom‑hungse - disse o brâmane.

     Levou‑lhes um vaso cheio de arroz com peixe e uma garrafa de sumo de tody, ligeiramente fermentado, e grande quantidade de bananas daquela espécie pequena e muito saborosa que em todos os tempos foi o alimento preferido dos sábios e dos sacerdotes de Brama; por isso botânicos modernos chamam à árvore que a produz musa pientilun.

     Feito isto, fechou a portinhola, desejando aos prisioneiros que comessem com apetite e que repousassem sem receio.

     Tremal‑Naik e o velho tugue estavam esfomeados, pois desde a tarde do dia anterior nada tinham comido; apressaram‑se a fazer desaparecer os alimentos e em seguida estenderam‑se o melhor que lhes foi possível, colocando os punhais ao alcance da mão, e adormeceram placidamente.

     Havia várias horas que dormiam, quando foram acordados pelo estalar da mola. Temendo uma traição ou o regresso dos sipaios, levantaram-se rapidamente, com os punhais na mão.

     A escuridão tinha invadido o interior do monstruoso animal, mas pela portinhola aberta viram entrar um pouco de luz, que era suficiente para distinguir o rosto leal do sacerdote brâmane.

     ‑ O rapaz voltou mesmo agora ‑ disse este.

     ‑ Encontrou o porom‑hungse? ‑ perguntaram em uníssono os dois prisioneiros.

     ‑ Sim ‑ respondeu o sacerdote.

     ‑ E que lhe disse ele? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Que esta noite serieis libertados.

     ‑ Como?

     - Ainda o não sei, mas deu‑me ordem para iluminar o templo e para me preparar para receber uma procissão, pois se festeja o Pongal. Já ontem, em todas as casas da cidade indiana foi celebrado o Pongal.

     ‑ Então ele virá aqui?

     ‑ Sim, e julgo adivinhar o plano do porom-hungse ‑ disse o sacerdote.

     - Como será esse plano?

     ‑ Talvez levar‑vos para fora daqui juntamente com o deus para o banhar nas águas do Ganges.

     ‑ Nimpor sabe que estamos escondidos aqui dentro?

     ‑ Disse ao rapaz que lho dissesse.

     ‑ Deve ser tarde ‑ disse o velho tugue. - O Sol está a desaparecer.

     ‑ E os sipaios? ‑ perguntou Tremal-Naik.

     ‑ Continuam a vigiar lá fora ‑ respondeu o sacerdote. ‑ Mas nós enganá-los-emos.

     ‑ E não se oporão à festa?

     ‑ Que experimentem, se se atrevem. Ninguém, nem sequer as autoridades inglesas, pode impedir‑nos a celebração das nossas festas. Subo à cúpula para espiar a chegada do porom-hungse e dos seus sequazes.

     Fechou a portinhola, foi espiar os sipaios, que tinham acampado a pouca distância do pagode, pondo sentinelas em vários lugares, de modo a impedir qualquer evasão e, por meio duma escadinha que girava à volta da cúpula, subiu até ao cimo.

     Daquela altura, o olhar podia abranger uma vasta zona das terras em redor. À luz dos últimos raios do Sol moribundo, o brâmane pôde observar as esplêndidas margens do rio gigantesco, os campos que se estendiam por detrás do pagode, com Os seus bosques de coqueiros, as suas plantações de índigo e de algodão, os seus arrozais, e distinguir ainda na distância a cidade branca e negra que se estendia, preguiçosa, pela margem esquerda. O Sol descia no meio dum oceano de fogo, fazendo flamejar, com os seus últimos raios, as águas do rio sagrado e as cúpulas dos inúmeros pagodes que emergiam do verde‑escuro das palmeiras, dos tamarindos, dos coqueiros, das taiobas e dos banianos.

     Pelo ar, límpido como é raro ver‑se nos nossos climas, e cintilante pelo reflexo das águas e do sol‑poente, voavam, soltando gritos, nuvens de marabus, as aves fúnebres do Ganges, que se alimentam dos cadáveres que os indianos abandonam à corrente sagrada, de modo a irem mais directamente para o paraíso das suas divindades, e bandos de corvos, de cegonhas, de milhafres e de patos bravos.

     Na água deslizavam graciosamente barcos de todas as formas e ouviam‑se as monótonas cantilenas dos remadores.

     O brâmane, depois de ter olhado longamente o rio e os arrozais próximos, já cobertos de compridas hastes verdes, sustentando espigas gradas, fixou os olhos num grupo de cabanas meio sepultado entre as abóbadas sombrias das palmeiras e rodeado de densos arbustos.

     Uma comprida fita negra serpenteava entre os arrozais e avançava lentamente. Parecia, vista daquelas alturas, uma coluna de formigas, mas o olhar agudo do brâmane tinha adivinhado que se tratava duma multidão de pessoas.

     ‑ São eles ‑ murmurou.

     Observava‑a havia alguns minutos, quando no ar tranqüilo ouviu erguer‑se de improviso um longínquo clamor. Ouviam‑se gritos humanos confundidos com o som agudo e estridente dos tantas, com o rufar dos tambores, com o arrulhar dos hutok e com o clamor das trombetas.

     “Sim, vêm”, murmurou o brâmane.

     Debruçou‑se do gradeamento de ferro que protegia a cúpula e olhou para os sipaios.

     Os soldados do capitão Macpherson também tinham ouvido aqueles clamores longínquos e tinham abandonado os improvisados abrigos feitos de ramos e folhas que tinham erguido, como se receassem algum ataque imprevisto.

     “Vamos preparar o Pongal”, disse o brâmane.

     Subiu a uma das quatro agulhas e, pegando numa moca de madeira coberta de couro, pôs‑se a bater furiosamente num gigantesco disco metálico, um tanta.

     A chapa, excessivamente sonora, produziu um som estridente, agudíssimo, quebrando bruscamente o silêncio que reinava à volta do pagode, repercutindo‑se nos bosques vizinhos e nos arrozais.

     O brâmane continuou com aquela música ensurdecedora por uns bons dois minutos e depois, vendo acorrer muitos indianos que habitavam uma aldeia vizinha, semi-escondida pelas palmeiras, desceu ao pagode e foi abrir a porta.

     Bhârata, acompanhado de dois sipaios, encontrava‑se já na escadaria.

     - Que é isto? - perguntou ao brâmane.

     ‑ Preparamo‑nos para festejar o Vixnu ‑ respondeu o sacerdote. - Não ouves o mugido das vacas?

     - Entrará muita gente no pagode?

     ‑ Com certeza.

    ‑ Eu não o permitirei.

     O brâmane cruzou os braços sobre o peito e, olhando para o sargento com os olhos semicerrados, disse-lhe, com voz calma:

     - Desde quando é que os sipaios e o governo que lhes paga se permitem impedir as cerimónias dos Hindus?...

     - Há dois homens escondidos no teu pagode ‑ respondeu Bhârata. - Com uma multidão dessas, podem escapar.

     - Procura‑os antes que os fiéis sequazes de Vixnu aqui cheguem.

     ‑ Não sei onde se encontram.

     ‑ E eu também não.

     Depois, sem fazer caso do sargento, dirigiu‑se a dez ou doze camponeses que tinham acorrido trazidos pelos toques do tanta.

     ‑ Acendei o fogo do Pongal ‑ disse‑lhes.

     ‑ Eu não permitirei que aquela gente entre no pagode ‑ disse Bhârata.

      ‑ Experimenta ‑ respondeu-lhe o brâmane.

     Em seguida voltou‑lhe as costas e entrou no templo.

     Entretanto, os camponeses tinham acendido uma gigantesca fogueira na base da escadaria, depois tinham regressado às suas cabanas, para trazer panelas, arroz e leite, a fim de prepararem alguma coisa para o Surya Pongal.

     Esta cerimónia, que tem lugar no décimo mês de tai, que corresponde ao nosso mês de janeiro, é uma das que os Indianos cumprem com mais rigor. Destina‑se a celebrar o regresso do Sol ao hemisfério setentrional e tem a duração de dois dias.

     Durante esta cerimónia também os sacerdotes lançam as sortes, para conhecer os acontecimentos do ano seguinte, enquanto aqueles que tomaram parte na festa mutuamente se presenteiam e trocam votos de boas-festas e dum feliz ano.

 

                             Tarde demais

     Os grandes vasos de leite começavam a ferver, quando a procissão conduzida pelo astuto porom‑hungse chegou diante do pagode.

     Era composta por mais de meio milhar de pessoas, entre tocadores, bailarinas, encantadores de serpentes, faquires e sapuas, biscnub e abd‑hut, que são uma espécie de santões que procuram dar a si próprios um aspecto assustador pintando o corpo com sinais e manchas de todas as cores imagináveis.

     Primeiro vinham duas fileiras de nartachi, ou seja, bailarinas adidas aos pagodes, belíssimas raparigas carregadas de colares e pulseiras de ouro e prata e adornadas com flores, sobretudo nos cabelos; depois, tocadores, que sopravam desesperadamente nos bansy, espécie de flautas terminadas num bico e que os Indianos, em vez de as porem entre os lábios, metem no nariz extraindo delas notas agudíssimas.

     Mas não faltavam também os tocadores de tambores e nem sequer um monumental Dhol, um enorme bombo, adornado de crinas e penas, e que somente se toca durante as cerimónias religiosas.

     Aquela multidão ruidosa dirigiu‑se, quase correndo, para o pagode, levando à frente as vacas, para as quais se tinha reservado o arroz cozinhado no leite, e, uma vez chegada em frente da escadaria, formou um amplo semicírculo, obrigando os sipaios de Bhârata a fugir apressadamente.

     As nartachi, a um sinal do porom-hungse invadiram aquele espaço e enquanto a orquestra redobrava o barulho começaram a executar danças à luz das inúmeras luzes que tinham sido acendidas pelos faquires.

     Nimpor esperou que acabassem. Depois, enquanto os faquires conduziam as vacas para junto dos panelões para lhes dar o arroz cozinhado no leite, subiu a escadaria do templo e aproximou-se do sacerdote brâmane que estava muito direito diante da porta.

     ‑ Sacerdote de Brama - disse‑lhe, inclinando‑se - o humilde porom-hungse dirige‑se a ti, a fim de obter licença para conduzir em procissão a estátua de Vixnu, que tu adoras no teu pagode.

     “Todos os faquires que me seguiram desejam abençoá‑la na onda sagrada do Ganges.”

     - Os faquires são homens santos ‑ disse o brâmane. ‑ Se esse é o seu desejo, que entrem no pagode e levem às margens do rio a estátua do deus.

     ‑ Não ‑ disse uma voz junto deles. ‑ Ninguém entrará no pagode, a não ser o brâmane.

     O porom‑hungse voltou‑se e encontrou‑se diante de Bhârata.

     ‑ Quem és tu? - perguntou‑lhe.

     ‑ Bem o vês, sou um sargento dos sipaios

     ‑ Ah!... Sim. É verdade, um indiano que vendeu os seus serviços aos opressores da Índia ‑ disse Nimpor, com ironia.

     ‑ Repara, Porom‑hungse, que a tua língua é cortante de mais.

     Nimpor voltou‑se, indicando ao sargento a multidão que enchia o largo do pagode e disse, em tom ameaçador:

     ‑ Olha!... São quase todos faquires e tu sabes que eles não temem a morte!... Impede‑os de entrar no templo e vê‑los-ás tornarem‑se ferozes como os tigres da selva.

     “Ninguém tem o direito de impedir as nossas cerimónias religiosas, nem sequer os Ingleses, e não suportaremos impedimentos por parte dos teus sipaios.”

     “E depois, olha: conta‑os. São quinhentos e tu não tens mais do que uma dezena de homens.”

     Bhârata achou melhor não responder. Sabia que os faquires não recuariam diante de doze espingardas e que os seus homens não poderiam resistir muito tempo ao assalto de tantos fanáticos

     Fez um gesto de despeito e deixou‑lhes campo livre, retirando‑se para o outro lado da escadaria.

     O porom-hungse aproveitou logo aquela retirada. Levantou o braço que ainda funcionava e imediatamente vinte faquires subiram a escadaria, entrando no templo.

     Vinham todos munidos com hastes de ferro, barras grossas, que, de um momento para o outro, podiam converter‑se em terríveis armas e massacrar os sipaios do sargento, se tentassem opor‑se aos seus desígnios.

     A estátua do deus foi levantada e levada para fora. Os faquires que tinham ficado no largo saudaram o aparecimento da encarnação de Vixnu com gritos ensurdecedores, enquanto os tocadores sopravam com força crescente nos seus instrumentos ou batiam furiosamente os tambores e as nartachi retomavam as suas danças.

     ‑ Avante! ‑ ordenou o porom-hungse, com voz forte.

     Os vinte faquires, sustentando o enorme animal nas suas hastes de ferro, desceram a escadaria e puseram‑se a caminho para a margem do Ganges, precedidos pelas nartachi e pelos músicos e seguidos pelos encantadores de serpentes e por todos os outros fanáticos que se amontoavam em volta das vacas.

     Bhârata e os sipaios, não podendo supor que no ventre do animal se escondessem os dois tugues, não tinham abandonado os arredores do pagode, convencidos ainda de que o brâmane os tivesse escondido em algum subterrâneo.

     O porom-hungse, satisfeito com o êxito do estratagema, conduziu aquela numerosa multidão até à margem do Ganges, escolhendo o ponto que estava coberto de mais densa vegetação e rico, sobretudo, em canas.

     Com um gesto enérgico, ordenou às nartachi e aos tocadores que se detivessem a cinqüenta passos do rio sagrado, de modo a susterem os encantadores e os faquires das várias castas, e depois, com os vinte homens da sua confiança, que levavam o enorme animal, entrou pelo meio das canas e das largas folhas de lótus.

     O deus foi pousado num terreno baixo, de modo que a onda sagrada lhe banhasse apenas a base. Em seguida, o porom‑hungse procurou precipitadamente o botão que devia abrir a pequena porta.

     Os seus vinte homens tinham, entretanto, formado um amplo círculo em volta do animal, de modo a melhor esconderem o estratagema ‑ precaução, aliás, inútil, pois a escuridão era bastante cerrada naquele lugar, coberto de altíssimos tamarindos e de frondosos borassos.

     Alguns instantes volvidos, a mola saltava e a chapa de metal abria‑se.

     ‑ Depressa, saí ‑ disse Nimpor.

     Tremal‑Naik e o velho tugue, que começavam a ficar mais do que impacientes com aquela incómoda prisão, depressa saltaram cá para fora, para o meio das canas e das folhas de lótus.

     ‑ Voltai ao pagode ‑ disse o porom‑hungse aos faquires. ‑ O deus já foi beijado pelas ondas do sagrado rio.

     Os vinte homens retomaram as hastes de ferro, levantaram o monstruoso animal e regressaram em direcção aos músicos e às nartachi.

     O numeroso cortejo depressa se organizou e retomou o caminho do pagode, no meio dum barulho ensurdecedor.

     O porom‑hungse ficara acocorado no terreno baixo, como se estivesse a banhar‑se.

     Quando viu que o cortejo se afastava, levantou‑se, dizendo:

    ‑ Depressa, vinde!

     Tremal‑Naik e o velho tugue seguiram‑no e os três chegaram junto duma moita de densos arbustos.

     ‑ Obrigados pela tua intervenção ‑ disse‑lhe Tremal‑Naik. ‑ Se não fosses tu, ainda estaríamos encerrados no ventre de Vixnu.

     ‑ Deixemos os agradecimentos e ocupemo‑nos do capitão ‑ respondeu Nimpor.

     ‑ Tens notícias dele? ‑ perguntou o velho tugue.

     ‑ Sim, notícias más para vós e para Suyodhana.

     ‑ Fala ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Receio que amanhã de madrugada parta para as Sunderbunds.

     ‑ Morte de xiva! ‑ exclamou Tremal‑Naik, empalidecendo. - Parte!

     ‑ Já hoje, a Cornwall, que o deve conduzir às Sunderbunds, tem as caldeiras sob pressão.

     ‑ Quem to disse?

     ‑ Hider.

     ‑ Nesse caso, está tudo perdido!

     ‑ Ainda não sei. Será preciso correr à “Cidade Branca” e saber ao certo se parte ou não.

     ‑ Não percamos um único instante. Onde está ancorado esse navio?

     ‑ Junto do forte Williams.

     ‑ Temos de lá ir imediatamente.

     ‑ É longe ‑ observou o velho tugue.

     ‑ A pouca distância daqui, espera‑vos a vossa baleeira ‑ disse o porom‑hungse.

     ‑ Salvaram‑se os nossos homens?

     ‑ Sim.

     ‑ Vamos ‑ disse Tremal‑Naik. ‑ Se a Cornwall partir, eu perco a minha Ada, mas vós perdereis Suyodhana e todos os chefes da vossa seita.

     Os três homens lançaram‑se em corrida ao longo da margem do rio, enquanto ao longe se ouviam ecoar as trombetas e rufar ruidosamente os tambores da procissão.

     Andados trezentos metros, Tremal‑Naik e os seus dois companheiros encontraram a baleeira, escondida entre os canaviais e guardada pelos seis remadores.

     ‑ Vistes se havia alguém aqui nos arredores? ‑ perguntou‑lhes o velho tugue.

     ‑ Ninguém ‑ responderam os remadores.

     ‑ Poderemos chegar ao forte Williams antes do alvorecer? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Talvez, se forçarmos um pouco a corrida ‑ disse um dos seis indianos.

     ‑ Cinqüenta rúpias, se o conseguirdes ‑ disse o porom‑hungse.

     ‑ Obrigados: basta a vossa bênção ‑ responderam os tugues.

     A baleeira largou imediatamente e desceu a corrente do rio com a velocidade de um steam.

     O velho tugue pusera‑se ao timão e a seu lado sentaram‑se Tremal-Naik e o porom‑hungse.

     Como o rio estava deserto àquela hora bastante tardia, a baleeira podia correr livremente, sem receio de maus encontros. Mas como aquela parte do rio apresentava freqüentes bancos de areia, o timoneiro era obrigado a vigiar atentamente e também a descrever largas curvas.

     Enquanto os seis tugues arrancavam com força cada vez maior, esticando os músculos de tal modo que quase faziam rebentar a pele, Tremal-Naik e o porom‑hungse tinham retomado a sua conversa.

     ‑ Viste Hider? ‑ perguntara o caçador da floresta negra.

     ‑ Sim, vi‑o hoje antes de receber o emissário do brâmane.

     ‑ Ele tem mesmo a certeza de que o capitão partirá ao alvorecer.

     ‑ Tem todos os motivos para pensar que sim ‑ respondeu o porom-hungse. ‑ Viu embarcar ontem duas companhias de infantaria de Bengala, duas peças de artilharia e uma quantidade considerável de munições e de víveres. Além disso, ao meio‑dia a caldeira já estava acesa.

     ‑ O capitão estava a bordo?

     ‑ Não me soube dizer.

     ‑ Os dois filiados de Cali estão na fragata?

     ‑ Sim.

     ‑ Esses me ajudarão na empresa ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Que idéias tens?

     ‑ Embarcar na fragata.

     ‑ Queres matá‑lo no navio?

     ‑ Não vejo que haja outro meio, sobretudo agora.

     ‑ Não será fácil - disse o porom-hungse. ‑ Olha que os Ingleses não são para brincadeiras, sobretudo para com os Indianos.

     ‑ Bem sei.

     ‑ E julgas que, uma vez morto o capitão, a expedição já não se fará?

     ‑ Sim, porque ele é a alma desta empresa.

     ‑ E se o navio já tivesse partido?

     ‑ Vixnu me protegerá.

     ‑ Que queres dizer?

     ‑ Que irei para Rajmangal e esperarei o capitão.

     ‑ Chegarias demasiado tarde...

     ‑ Continua.

     ‑ Sabes que também a canhoneira na qual Hider está para sair?

     ‑ Para onde?

     ‑ Para Gelan.

     ‑ E então?

     ‑ Deve partir amanhã à tarde.

     ‑ Não te percebo.

     ‑ Digo que, no caso de a Cornwall já ter partido, poderias embarcar da Devonshire e desembarcar na foz do rio. Aquela canhoneira deve andar muito mais do que a fragata.

     ‑ Será possível eu embarcar?

     ‑ Hider ocupar‑se‑á do assunto, no caso de deveres servir‑te da Devonshire.

     Enquanto assim conversavam, a chalupa continuava a descer o Ganges com velocidade cada vez maior! Já ultrapassara a cidade negra e corria ao longo da margem da “Cidade Branca”, quando a madrugada começou a invadir quase bruscamente o céu, fazendo empalidecer rapidamente a luz dos astros.

     As equipagens dos numerosos navios ancorados ao longo das margens começavam então a despertar. No meio da confusão de mastros, cordames e velas, apareciam homens a espreguiçar‑se, enquanto no ar tranqüilo ecoava uma ou outra canção monótona.

     Tremal‑Naik levantara‑se. Os seus olhares tinham‑se fixado na imponente molhe do forte Williams, que se agigantava naquela meia escuridão.

     ‑ Onde está a fragata? ‑ perguntou ele, em tom selvagem.

     O porom‑hungse também se levantara e interrogava ansiosamente a margem com os seus olhinhos negros flamejantes.

     ‑ Além!... Olha!... Diante da segunda catarata do forte!... ‑ gritou ele de repente.

     Tremal‑Naik olhou na direcção indicada e viu, a pouca distância da catarata que comunicava com os fossos do forte, uma fragata de formas esbeltas com a popa muito caída e demasiado carregada.

     Um fumo denso, misturado com escórias, saía em turbilhões da chaminé, formando no ar uma espécie de guarda‑chuva de dimensões enormes.

     Aos primeiros clarões da aurora, viam‑se no convés numerosos soldados e marinheiros ocupados a rotular e a estivar caixas e barris e a recolher as amarras que já tinham sido desprendidas da margem, enquanto outros viravam o cabrestante de proa para espatilhar a âncora do fundo do rio.

     Compreendia-se, à primeira vista, que aquele navio se preparava para partir.

     Tremal-Naik dera um grito de fera ferida.

     ‑ Escapa‑me!... Depressa!... Depressa, ou está tudo perdido.

     O porom‑hungse fizera um gesto de cólera, e depois deixara‑se cair sobre o banco, murmurando:

     ‑ Tarde de mais! Suyodhana está perdido!

     Os seis tugues tinham redobrado de esforços e a baleeira, impulsionada por aqueles braços robustos, retomara a corrida. O cavername gemia sob os poderosos golpes dos remos e a água encapelava‑se pela proa.

     ‑ Depressa!... Depressa!... ‑ gritava, entretanto, Tremal‑Naik, completamente fora de si.

     ‑ É inútil ‑ disse então o velho tugue, abandonando o timão.

    A fragata deixara o molhe e descia majestosamente o rio, vomitando torrentes de fumo e apitando agudamente. Também os remadores da baleeira, completamente esgotados por aquela longa corrida, tinham abandonado os remos e olhavam, com olhos ferozes, o navio que passava a dois metros da baleeira.

     De repente, viram Tremal‑Naik precipitar‑se para uma espingarda que estava apoiada na bancada de proa, carregá-la precipitadamente e apontá‑la para o navio.

     Na ponte de comando aparecera um homem e o caçador da floresta negra tinha‑o reconhecido.

     ‑ É ele!... O capitão!... ‑ gritara, com voz destroçada.

     Estava para dar o tiro, quando o porom‑hungse lhe tirou bruscamente a arma.

     ‑ Não faças essa loucura ‑ disse‑lhe. ‑ Queres que nos matem a todos?

     Tremal‑Naik virara‑se para ele, com os punhos erguidos e os olhos em chamas.

     ‑ Não o viste? ‑ perguntou‑lhe.

     - Sim ‑ respondeu Nimpor, com voz tranqüila.

     ‑ Eu matá‑lo‑ia.

     ‑ E se falhasses? ‑ perguntou o porom‑hungse, cruzando os braços.

     ‑ É verdade ‑ murmurou Tremal‑Naik.

     ‑ Ainda não está tudo perdido e tu podes salvar os irmãos das Sunderbunds ‑ continuou o velho faquir. ‑ Esqueceste-te de Hider? Ele espera‑nos junto da Devonshir.

     Tremal‑Naik não respondeu: parecia aniquilado.

     ‑ Para a margem ‑ ordenou o porom‑hungse.

     A baleeira virou de bordo e subiu lentamente a corrente, dirigindo‑se para o molhe. Estava para aproar a um ponto indicado pelo porom-hungse, quando um marinheiro que parecia ter‑se mantido escondido atrás dum enorme monte de caixas e de barris, correu para a margem, dizendo:

     ‑ Depressa, desembarquem!

     Aquele homem era Hider, o quartel‑mestre da Devonshire.

     Ao ouvir aquela voz, Tremal‑Naik levantara‑se prontamente e, com um salto de tigre, atirara‑se para a escadaria da margem.

     ‑ Partiu! ‑ gritou, ao aproximar‑se do quartel‑mestre.

     ‑ Bem sei ‑ respondeu Hider.

     ‑ Mas a tua canhoneira também vai partir, não?

     ‑ Sim, esta noite, à meia‑noite.

     ‑ Então, nem tudo está perdido.

     ‑ Que queres dizer? ‑ perguntou o quartel‑mestre, espantado.

     ‑ Que podemos alcançar a Cornwall.

     ‑ Como?

     ‑ Com a Devonshire ‑ respondeu Tremal‑Naik, resolutamente.

     Hider olhou‑o, sem responder. Julgava que o indiano tinha enlouquecido.

     ‑ Percebeste‑me? ‑ perguntou o caçador da floresta negra, com uma espécie de exaltação.

     ‑ Não, juro que não.

     ‑ A tua canhoneira não é mais rápida do que a fragata?

     ‑ Sim, é verdade.

     ‑ Então alcançaremos o navio do capitão e afundá‑lo‑emos.

     ‑ Afundar a fragata!... Estás doido?

     ‑ Julgas que é impossível?

     ‑ É, pelo menos, muito difícil, e, depois, eu não sou o comandante da Devonshire. Se eu quisesse tentar qualquer coisa, o comandante mandar‑me‑ia pôr a ferros.

     ‑ Isso não acontecerá; tenho o meu plano. Quantos filiados há a bordo da canhoneira?

     ‑ Somos seis.

     ‑ E a equipagem completa, quantos homens são?

     ‑ Trinta e dois ‑ respondeu Hider.

     ‑ É necessário embarcar mais dez filiados.

     ‑ É impossível.

     ‑ Tudo é possível, quando se quer ‑ disse o porom‑hungse, que assistira à conversa. ‑ Tremal‑Naik é o enviado de Suyodhana e tu farás o que ele quiser.

     ‑ Que me diga como devo fazer para os embarcar e eu obedecerei ‑ disse o quartel‑mestre. ‑ Estou disposto a tentar tudo, contanto que salve os nossos irmãos das Sunderbunds.

     ‑ Que estão a embarcar agora na Devonshire? ‑ perguntou Tremal-Naik.

 

                          Ingleses e estranguladores

     Dava a meia‑noite nos relógios da cidade inglesa, quando a Devonshire, que desde a manhã tinha as máquinas acesas, abandonava a todo o vapor o molhe do forte Williams, descendo a corrente negra do Hugly.

    Não havia Lua nem estrelas e o céu estava coberto por uma negra faixa de vapores. De facto, poucas eram as luzes que se viam, e a maior parte delas estavam imóveis, acesas dentro das cabanas de Kiddepur ou na proa dos barcos ancorados na margem. Só para o norte se descortinava um estranho clarão, uma espécie de luz esbranquiçada, produzida pelos milhares de chamas que iluminam a cidade inglesa e a cidade negra que formam Calcutá.

     O capitão, de pé sobre a ponte de comando, dirigia a manobra com voz metálica, dominando o fragor das hélices, que mordiam furiosamente as águas, e o formidável arfar da máquina. No tombadilho, grumetes e marinheiros afanavam‑se, à luz incerta de poucas lanternas, a estivar os últimos barris e as últimas caixas que ainda atravancavam a coberta.

     Já Kiddepur desaparecera, engolida pelas trevas, já as últimas luzes dos barcos e dos navios tinham deixado de se ver, quando um homem, que até então segurara a roda do leme, atravessou sorrateiramente a ponte, chocando fortemente com o cotovelo num indiano que estava a fechar a escotilha mestra.

     ‑ Despacha‑te ‑ disse‑lhe ao passar.

     ‑ Pronto, Hider ‑ respondeu o outro.

     Poucos minutos depois, os dois indianos desciam a escada que conduzia á camarata, que naquele momento se encontrava deserta.

     ‑ E então? ‑ perguntou Hider.

     ‑ Ninguém desconfiou de nada.

     ‑ Contaste os barris assinalados?

     ‑ Sim, são dez.

     ‑ Onde os puseste?

     ‑ Debaixo da popa.

     ‑ Juntos?

     ‑ Todos ao pé uns dos outros ‑ disse o filiado.

     ‑ Avisaste os outros?

     ‑ Estão todos prontos. Ao primeiro sinal, cairão sobre os ingleses.

     ‑ É preciso agir com prudência. Esses homens são capazes de deitar fogo à pólvora e fazer ir pelos ares amigos e inimigos.

     ‑ Quando será o golpe?

     ‑ Esta noite, depois de termos dado um bom narcótico ao capitão.

     ‑ Que devemos fazer entretanto?

     ‑ Mandas dois homens apoderar‑se do armeiro e depois esperas junto da máquina com os outros dois fogueiros. Teremos necessidade da tua habilidade.

     ‑ Não é a primeira vez que trabalho nas caldeiras.

     ‑ Está bem. Eu começo a agir.

     Hider voltou a subir ao tombadilho e deitou os olhos para a ponte.

     O capitão passeava de um lado para o outro com os braços cruzados sobre o peito, fumando um cigarro.

     ‑ Pobre capitão ‑ murmurou o estrangulador ‑, não merecias um golpe destes. Mas, enfim, qualquer outro no meu lugar, em vez de te incapacitar de fazeres mal, mandava-te para o Inferno com uma boa dose de veneno.

     Dirigiu‑se para a popa e desceu para a coberta sem ser visto, detendo‑se diante da cabina do comandante. A porta estava semicerrada: abriu‑a e encontrou‑se numa pequena sala de seis metros quadrados, atapetada e mobilada com elegância. Encostou‑se a uma mesinha, sobre a qual estava uma garrafa de cristal cheia de limonada.

     Um sorriso diabólico aflorou‑lhe aos lábios.

     ‑ Todas as manhãs a garrafa sai vazia ‑ murmurou. ‑ O capitão, antes de adormecer, bebe sempre.

     Levou a mão ao peito e tirou uma ampola microscópica contendo um líquido avermelhado. Cheirou‑o várias vezes e depois deixou cair três gotas na garrafa.

     A limonada começou por ficar vermelha, mas depois voltou a adquirir a sua cor primitiva.

     Dormirá dois dias seguidos ‑ disse o tugue. ‑ Vamos ver dos amigos.

     Saiu e abriu uma pequena porta que dava para o porão. Ouviu‑se um leve rumor debaixo da popa, seguido dum leve crepitar, como duma arma de fogo que estivessem a carregar.

     ‑ Tremal‑Naik ‑ chamou o tugue.

     ‑ És tu, Hider? ‑ perguntou, com voz sufocada. ‑ Abre, que aqui dentro morremos asfixiados.

     O tugue tirou dum canto uma lanterna apagada, ali escondida anteriormente, acendeu‑a e aproximou‑se dos dez barris colocados uns juntos dos outros.

     Levantou as coberturas e os onze estranguladores, meio asfixiados, com os membros dormentes, alagados em suor pelo calor excessivo que reinava lá dentro, saíram. Tremal‑Naik correu para Hider.

     ‑ A Cornwall? ‑ perguntou‑lhe.

     ‑ Corre em direcção ao mar.

     ‑ Há esperanças de a alcançarmos?

     ‑ Sim, se a Devonshire acelerar a marcha.

     ‑ É preciso abordá‑la, ou perderei a minha Ada.

     ‑ Mas primeiro temos de nos apoderar da canhoneira.

     ‑ Bem sei. Tens algum plano, tu?

     ‑ Sim.

     ‑ Fala depressa, que eu estou em brasas. Ai de nós se não alcançarmos a Cornwall...

     ‑ Acalma‑te, Tremal‑Naik. Ainda não perdemos todas as esperanças.

     ‑ Dize‑me qual é o teu plano.

     ‑ Antes de mais, apoderar‑nos‑emos das máquinas.

     ‑ Há filiados nossos na casa das máquinas?

     ‑ Três, e todos eles são fogueiros. Nós quatro não teremos dificuldade em ligar o engenheiro.

     - E depois?

     ‑ Depois, irei ver se o capturo. Os ingleses, apanhados de surpresa, render‑se‑ão.

     ‑ Estão armados?

     ‑ Só têm os punhais.

     ‑ Vamos depressa.

     ‑ Estou pronto. Vou ligar o engenheiro.

     Apagou a lanterna, voltou ao painel de popa e subiu no momento em que o capitão deixava a ponte.

     ‑ Tudo caminha bem ‑ murmurou o tugue, vendo‑o dirigir‑se para a popa.

     Os três filiados estavam no seu posto, diante das fornalhas, conversando em voz baixa.

     O engenheiro fumava, sentado numa cadeira, e lendo um pequeno livro.

     Com o olhar, Hider avisou que estivessem preparados. E aproximou‑se da lanterna suspensa do engenheiro.

     ‑ Dá‑me licença, Sir Kuthingon, de que acenda o cachimbo? ‑ Perguntou-lhe o quartel-mestre. - Lá em cima está um vento que apaga a isca.

     ‑ Com todo o prazer ‑ respondeu o engenheiro.

     Levantou‑se para se chegar para trás. Quase no mesmo instante o estrangulador agarrou‑o fortemente pelo pescoço, com mão vigorosa de modo a não permitir o mais pequeno grito, e depois, com uma sacudidela, atirou‑o ao chão.

     ‑ Clemência sob o punho de ferro do quartel-mestre. - balbuciou o pobre homem, que começava a ficar negro.

     ‑ Cala-te e não te faremos mal ‑ respondeu Hider.

     A um sinal seu, os filiados ligaram‑no e amordaçaram‑no, arrastando‑o para trás dum grande monte de carvão.

     - E agora vamos ver se o capitão bebeu o narcótico.

     ‑ Que ninguém lhe toque ‑ disse Hider.

     - E nós? ‑ perguntaram os filiados.

     - Deixai‑vos ficar aqui.

     ‑ Está bem. - Hider acendeu o cachimbo e subiu a escada.

     A canhoneira corria agora por entre duas margens desertas e a sua quilha fendia grupos de plantas flutuantes.

     Os marinheiros estavam todos no tombadilho e olhavam distraidamente para a corrente, conversando ou fumando. O oficial de quarto passeava, conversando, com o artilheiro‑mestre.

     Hider, satisfeitíssimo, esfregou as mãos de contente e voltou à popa, descendo a escada em pontas de pés.

     Junto à cabina do comandante, encostou a orelha à porta e ouviu‑o ressonar ruidosamente.

     Rodou a maçaneta da porta, abriu e entrou. Depois de ter tirado do cinto um punhal, para se defender, se fosse preciso.

     O capitão bebera quase toda a limonada da garrafa e dormia profundamente.

     ‑ Nem um tiro de canhão o poderá acordar ‑ disse o indiano. Saiu da cabina e desceu ao porão. Tremal‑Naik e os seus companheiros esperavam‑no, com os revólveres na mão.

     ‑ E então? ‑ perguntou o caçador de serpentes, pondo‑se de pé.

     ‑ As máquinas estão nas nossas mãos e o capitão bebeu o narcótico ‑ respondeu Hider.

     ‑ E a equipagem?

     ‑ Está toda na coberta e sem armas.

     ‑ Subamos.

     ‑ Devagar, companheiros. É preciso apanhar os marinheiros entre dois fogos, para impedir que se barriquem sob o castelo de proa. Tu, Tremal-Naik, ficas aqui com cinco homens e eu com os outros vou para a camarata. Ao primeiro tiro, subi à ponte.

     ‑ Estamos de acordo.

     Hider empunhou um revólver na mão direita e um machado na esquerda e atravessou o porão, atravancado de canhões desmontados, de barris e ancoretas. Seguiram‑no cinco tugues.

     Do porão, o grupo passou à camarata e subiu a escada.

     ‑ Preparai as armas e preparai‑vos para atirar sem parar ‑ ordenou Hider.

     Os seis homens irromperam na ponte, soltando gritos selvagens.

     A equipagem fugiu para a proa, sem saber ainda de que se tratava.

     Um tiro de revólver ecoou, abatendo o artilheiro‑mestre.

     ‑ Cali!... Cali!... ‑ gritaram os tugues.

     Era o grito de guerra dos estranguladores, que foi apoiado por uma tremenda saraivada de balas.

     Alguns homens rolaram sobre o convés. Os outros, aterrados, surpreendidos por aquele inesperado ataque que não esperavam, precipitaram‑se para a popa, soltando gritos de terror.

     ‑ Cali!... Cali!... ‑ ouviu‑se também à popa.

     Tremal‑Naik e os seus homens tinham‑se lançado para o convés, com os revólveres na mão direita e os punhais na esquerda.

     Ressoaram algumas detonações.

     Uma confusão indescritível reinava a bordo da canhoneira, a qual, sem timoneiro, ia à deriva e começaram a perder a cabeça.

     Os ingleses, foram apanhados de surpresa. O oficial de quarto lançou-se da plataforma do canhão.

     ‑ A mim, companheiros! - gritou ele.

     Correram para a popa, empunhando facas, machados e outras ferramentas. Os ingleses juntaram‑se imediatamente à volta dele e foram rechaçados por aquela avalancha de homens. Mas a vitória durou pouco. O oficial de quarto apoderou‑se do canhão, disposto a dar ordem de fogo. Hider pusera‑se à frente dos seus e assaltava‑os pelas costas.

     ‑ Senhor tenente ‑ gritou apontando lhe o revólver.

     ‑ Que queres, miserável? - gritou o oficial.

     ‑ Renda‑se e juro‑lhe que nenhum mal será feito, nem a si nem aos seus marinheiros.

     ‑ Não!

     ‑ Aviso‑o de que cada um de nós tem cinqüenta balas para disparar. Qualquer resistência seria inútil.

     ‑ E que farás de nós?

     Fá‑los‑emos entregar as embarcações e deixar-lhes-emos liberdade para desembarcarem em qualquer das margens do rio.

     ‑ E que queres fazer da canhoneira?

     ‑ Não posso dizê‑lo. Vamos! Ou se rendem ou dou ordem para atirar.

    ‑ Rendamo‑nos, tenente ‑ gritaram os marinheiros, que se viam à mercê de Hider.

     O tenente, depois de algumas hesitações, partiu a espada e atirou‑a ao rio.

     Os estranguladores lançaram-se sobre os marinheiros, desarmaram‑nos e fizeram-nos descerem nas duas baleeiras, metendo lá dentro também o capitão, que continuava a dormir, bem como o engenheiro.

     ‑ Boa sorte! ‑ gritou o quartel-mestre.

     ‑ Se te apanho, mando‑te enforcar ‑ respondeu o tenente, erguendo o punho para ele.

     ‑ Como quiser.

     A canhoneira retomou a corrida, enquanto as embarcações se dirigiam para a margem do rio.

 

                           A bordo da Cornwall

     O mais difícil estava feito. Agora tratava‑se de seguir a todo o vapor a fragata que tinha a vantagem de quase quinze horas, alcançá‑la ou na foz do rio ou no mar e pôr em acção o segundo plano, não menos árduo, nem menos perigoso, engendrado pelo caçador de serpentes.

     Desembaraçado o tombadilho de cadáveres e tratados os feridos, que felizmente não eram muitos, Tremal‑Naik conservou‑se sobre a plataforma com Hider, enquanto um gajeiro se instalava na cruzeta do mastro, com um potente óculo.

     A uma ordem do novo comandante, Udaipur, que tomara o comando da máquina, deixou a casa das máquinas e subiu à ponte.

     ‑ É preciso voar, Udaipur ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ As fornalhas estão cheias de carvão, capitão. Temos a pressão no máximo.

     ‑ Não basta. É preciso apanhar a Cornwall.

     ‑ Carrega as válvulas a cinco atmosferas - disse Hider.

     ‑ Corremos o risco de ir pelos ares, quartel‑mestre.

     ‑ Não interessa, vai.

     O maquinista desceu precipitadamente para a casa das máquinas.

     A canhoneira voava como um pássaro. Torrentes de fumo negro misturado com escórias saiam furiosamente da estreita chaminé; o vapor assobiava, soprava, rugia, dentro do seu invólucro de ferro, e as rodas giravam com tal fúria que toda a carcaça estremecia da proa à popa e a água saltava, espumando até às amuradas.

     ‑ A que velocidade vamos? ‑ perguntou Hider.

     ‑ Quinze nós e cinco décimas ‑ gritou, alguns minutos depois, um marinheiro.

     ‑ Corremos como um dos mais velozes barcos do mundo ‑ disse o quartel‑mestre.

     ‑ Conseguiremos alcançar a fragata? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Assim o espero.

     ‑ No rio?

     ‑ No mar. Entre Calcutá e o golfo são apenas cento e vinte e cinco quilómetros.

     ‑ Qual é a velocidade da fragata?

     ‑ Seis nós à hora, com mar calmo. É velha demais e vai muito afogada de popa.

     ‑ Mas eu não queria que chegasse a Rajmangal.

     ‑ E, nesse caso, que farias?

     ‑ Assaltá‑la‑ia a golpes de esporão. Tenho de ser resoluto. Preciso da cabeça do capitão.

     ‑ Mas tu corres um grande risco.

     ‑ Bem sei, Hider.

     ‑ O capitão pode descobrir-te.

     ‑ Matá‑lo‑ei antes disso.

     ‑ E se falhares o golpe?

     ‑ Não falharei ‑ disse Tremal‑Naik, com inabalável firmeza.

     ‑ É um homem forte.

     ‑ Eu serei mais forte do que ele. Aqui, no coração, tenho um nome impresso: o nome de Ada!... Esse nome destrói‑me todo o medo; esse nome faz‑me transformar num tigre e num gigante. Sinto‑me capaz de agarrar a Cornwall com os meus braços e de a esmagar, com o capitão que a comanda e os homens que vão nela.

     ‑ Continuas então a amar a “Virgem do Pagode”?

     ‑ Amo‑a, e tanto que, se ela morresse, eu matar‑me‑ia também.

     ‑ Tenho pena de ti ‑ disse Hider, com voz ligeiramente comovida.

     Tremal‑Naik olhou‑o com ansiedade.

     ‑ Tens pena de mim? ‑ murmurou. ‑ Porquê?

     ‑ Não sei dizer porquê.

     ‑ Sabes alguma coisa?

     ‑ Não sei nada ‑ disse o tugue, em cuja voz havia uma sombra de tristeza.

     ‑ Enganei‑me?

     ‑ Sim, amigo.

     Hider olhou fixamente para Tremal‑Naik, que ficara meditabundo, soltou um profundo suspiro e abandonou a plataforma para se dirigir à proa.

     A canhoneira continuava a devorar a distância, fendendo as águas com a irresistível potência dum cetáceo. As duas margens fugiam com rapidez crescente, mostrando confusamente bosques, pântanos a perder de vista, cobertos de canas e de ervas amarelecidas, arrozais lamacentos, aldeias sem beleza, afogadas em águas pútridas ou sufocadas entre lianas e palmeiras de copa escura, debaixo das quais uma estada, por pequena que seja, é fatal para o europeu, não aclimatado a viver ali.

     Às quatro horas a canhoneira passava diante de Diamond‑Harbour, pequeno porto situado junto à foz do Hugly e onde os navios recebem as últimas mercadorias. Havia apenas uma pequena casa branca, rodeada por seis coqueiros. A frente erguia‑se um mastro, no cimo do qual tremulava a bandeira inglesa.

     De repente, as margens do rio alargaram‑se consideravelmente e começaram a tornar‑se mais baixas, quase ao nível da água. Ao longe desenhou‑se a grande ilha de Sangor, que assinala o local onde as águas do rio se juntam com as do mar.

     ‑ O mar! ‑ gritou o marinheiro instalado na cruzeta do mastro principal.

     Tremal‑Naik, bruscamente arrancado às suas meditações por aquele grito, correu à proa, enquanto os marinheiros trepavam pelo cordame e pelas enfrechaduras. Todos os olhares se voltaram para as sandheads (cabeças de areia), imensos bancos projectados pelo Gange no golfo de Bengala e perigosíssimos para a navegação.

     Nenhum barco aparecia sobre a linha do horizonte, nem aquém nem além da ilha Sangor; nenhuma luz brilhava na semi-escuridão.

     Um grito de raiva saiu dos lábios de Tremal‑Naik.

     ‑ Gajeiro! ‑ gritou ele para o indiano que se encontrava com o óculo apontado.

     ‑ Capitão!

     ‑ Vê‑se alguma coisa?

     ‑ Ainda não.

     ‑ Udaipur, aperta com as válvulas.

     ‑ Temos a pressão máxima ‑ observou o maquinista.

     ‑ A seis atmosferas! ‑ gritou Hider, que mordia a barba. ‑ Quatro homens de reforço para a máquina.

     - Vamos pelos ares ‑ murmurou Udaipur.

     Quatro indianos desceram para a casa das máquinas. As fornalhas foram cheias de carvão.

     A canhoneira já não corria; saltava sobre as ondas azuis do golfo, assobiando e estremecendo. Um calor tórrido subia do porão e a chaminé vomitava furiosamente um fumo negríssimo.

     ‑ Em direcção à ilha de Raimatla! ‑ gritou Hider para o timoneiro. A distância que os separava da ilha desaparecia rapidamente. Todos os indianos tinham subido para cima das embarcações suspensas das gruas ou para o cordame e as enfrechaduras do mastro e perscrutavam o horizonte.

     Um silêncio profundo reinava na ponte, apenas quebrado pelas febris pulsações da máquina e pelos assobios do vapor que saía pelas válvulas.

     ‑ Navio à proa! ‑ gritou subitamente o gajeiro.

     Tremal‑Naik estremeceu de novo, como se fosse tocado por uma corrente eléctrica.

     ‑ Estás a vê‑lo? ‑ gritou ele.

     ‑ Sim ‑ respondeu o gajeiro.

     ‑ Onde?

     ‑ A sul.

     ‑ E é?...

     O gajeiro não respondeu. Pusera‑se em pé sobre a cruzeta, para abarcar um horizonte maior, e olhava fixamente com o óculo.

     ‑ Navio a vapor! ‑ gritou depois.

     ‑ A fragata!... A fragata!... ‑ gritaram os indianos.

     ‑ Silêncio! ‑ gritou o quartel‑mestre. ‑ Eh! Gajeiro, para onde vai o navio?

     ‑ Para leste, rasando a ilha de Raimatla.

     ‑ Olha para a proa.

     ‑ Estou a vê‑la.

     ‑ Como é?

     ‑ Em ângulo recto.

     O quartel‑mestre dirigiu‑se para Tremal‑Naik, que estava na plataforma.

     ‑ É a fragata ‑ disse‑lhe. ‑ Na índia não há outro navio que tenha o esporão em ângulo recto senão a Cornwall.

     Tremal‑Naik, tomado de indizível emoção, soltou um grito de triunfo.

     ‑ Para onde vai? - perguntou, com voz estridente. ‑ Observa bem.

     ‑ Sempre para leste. Dá a volta à ilha pelo lado de fora, receando talvez não encontrar água suficiente no canal.

     ‑ Tens a certeza?

     ‑ Absoluta.

     ‑ De modo que a encontraremos?

     ‑ Do lado de lá da ilha, se penetrarmos no canal.

     ‑ Dirijam o barco de modo que a encontremos.

     ‑ Mas... ‑ disse Hider.

     ‑ Silêncio! Quem manda sou eu!

     Tremal‑Naik deixou a plataforma e desceu para o painel de popa. Hider pôs‑se à roda do leme.

     A canhoneira, que levava uma velocidade três vezes superior à da fragata, não levou muito tempo a contornar a ilha. Às dez da manhã saía do canal que separa Raimatla das terras vizinhas, escondendo‑se atrás da extremidade duma ilhota deserta que surge em frente de Jamera. Hider, com um olhar, certificou‑se de que o navio inimigo ainda estava longe.

     ‑ Tremal‑Naik! ‑ gritou.

     O caçador de serpentes apareceu na ponte, mas não era o mesmo. A sua cor bronzeada tornara‑se cor de azeitona, igual à de um malaio; os olhos pareciam agora maiores, por efeito de alguns sinais brancos bem traçados; os dentes, que pouco antes eram brancos como o marfim, tinham‑se tornado negros como o do mais raivoso mastigador de bétele. Assim desfigurado, com um chapelão de fibra na cabeça, um leve tecido de algodão vermelho a envolver‑lhe os rins, dois compridos punhais serpenteantes de ponta envenenada pendurados na cintura, estava de facto irreconhecível.

     ‑ Reconheces‑me? ‑ perguntou ao quartel‑mestre, que o olhava admirado.

      ‑ Reconheço‑te porque a bordo não há malaios.

     ‑ Pensas que o capitão me reconhecerá?

     ‑ Não, não é possível.

     ‑ Agora dize‑me como se chamam os dois filiados embarcados na Cornwall.

     ‑ Palavan e Bindur.

     ‑ Conservarei na memória esses nomes. Manda deitar uma embarcação ao mar.

     A um sinal do quartel‑mestre, foi arriada uma baleeira.

     ‑ Que pretendes fazer? ‑ perguntou depois.

     ‑ Esperar aqui a fragata e depois subir a bordo.

     ‑ E eu?

     ‑ Tu irás esconder-te no canal de Rajmangal. A primeira detonação que ouvires, sairás para o mar e irás recolher‑te.

     Agarrou uma corda e desceu para a baleeira, que balançava vivamente nas ondas.

     A canhoneira soltou um apito sonoro e afastou‑se rapidamente. Uma hora depois, não era mais do que um ponto negro que mal se via no horizonte.

     Quase no mesmo instante, aparecia, para os lados de sul, um outro ponto, donde saía um rolo de fumo.

     Tremal‑Naik olhou para ele.

     ‑ A fragata! ‑ exclamou. ‑ Ada, dá‑me força para levar a cabo a minha empresa. Depois, serás minha... e seremos finalmente felizes

     Agarrou nos remos e pôs‑se a remar furiosamente, afastando‑se da ilha, cujas costas começavam a confundir‑se com o azul do céu.

     A fragata avançava com toda a força da sua máquina e aumentava a olhos vistos. Tremal‑Naik continuava a remar, procurando cortar‑lhe o caminho.

     Ao meio‑dia, apenas quinhentos passos separavam a baleeira da Cornwall. Era o momento esperado pelo caçador de serpentes.

     Esperou que uma onda inclinasse a baleeira, depois lançou‑se violentamente para o lado de bombordo e voltou‑a, agarrando‑se à quilha.

     ‑ Socorro!... Socorro!... ‑ gritou, com voz forte.

     Alguns marinheiros correram para a proa da fragata e depois uma embarcação com quatro homens foi descida ao mar e dirigiu‑se para o náufrago.

     ‑ Socorro!... ‑ repetiu Tremal‑Naik.

     A embarcação voava sobre as águas, enquanto a fragata abrandava a velocidade. Em cinco minutos, a embarcação da Cornwall chegou junto da baleeira.

     O náufrago agarrou-se ás mãos que um marinheiro lhe estendia e subiu a bordo, murmurando:

     ‑ Obrigado, rapazes!

     Os marinheiros voltaram a agarrar nos remos e regressaram à Cornwall. Lançaram uma escada e o falso malaio, totalmente encharcado, com os olhos habilmente alterados, foi conduzido à presença do oficial de quarto.

     ‑ Quem és? ‑ perguntou este.

     ‑ Paranga, de Singapura ‑ respondeu Tremal‑Naik, olhando à sua volta com curiosidade.

     ‑ Pertencias a algum navio?

     ‑ Sim, ao Haimati, de Bombaim, que se afundou há quatro dias a cem milhas da costa.

     ‑ Com mar tranqüilo?

     ‑ Sim, abrira‑se um rombo na popa.

     ‑ E a equipagem?

     ‑ Afogou‑se. As embarcações estavam avariadas e, apenas lançadas à água, foram a pique.

     ‑ Tens fome?

     ‑ Há doze horas que comi o meu último biscoito.

     ‑ Olá, mestre Brown, leve este pobre diabo à cozinha.

     O mestre, um velho lobo do mar com uma barba cinzenta, tirou da boca a ponta do charuto que fumava, meteu‑a delicadamente no boné e, tomando pela mão o falso malaio, levou‑o à coberta da proa.

     Uma panela cheia de sopa fumegante foi posta diante de Tremal‑Naik, que a assaltou vigorosamente.

     ‑ Tens bom apetite, rapaz ‑ disse o mestre, procurando sorrir.

     ‑ Tenho o estômago vazio. A propósito, como se chama este navio?

     ‑ Cornwall.

     Tremal‑Naik olhou surpreendido para o lobo do mar.

     ‑ Cornwall ‑ exclamou.

     ‑ Não gostas do nome?

     ‑ Nada disso.

     ‑ Então?

     ‑ Estou‑me a lembrar de que numa fragata tinham embarcado dois indianos meus amigos.

     ‑ Que coincidência! E como se chamam?

     ‑ Um chama‑se Palavan e o outro Bindur.

     ‑ Esses dois indianos estão aqui, rapaz.

     ‑ Aqui, a bordo?

     - Sim, a bordo.

     ‑ Tenho de os ver. Que sorte!

     ‑ Já os mando chamar.

     O mestre subiu a escada e pouco depois dois indianos apresentavam‑se a Tremal‑Naik.

     Um era alto, magro, dotado duma agilidade de macaco; o outro de estatura mediana, membros fortes, mais parecia um malaio do que um indiano.

     Tremal‑Naik olhou à sua volta, para ver se estavam sozinhos, depois estendeu a mão direita, mostrando o anel. Os dois indianos caíram aos seus pés.

     ‑ Quem és? ‑ perguntaram, com voz sufocada.

     ‑ Um enviado de Suyodhana, o filho das sagradas águas do Ganges ‑ respondeu Tremal‑Naik, a meia voz.

     ‑ Fala, ordena, a nossa vida está nas tuas mãos.

     ‑ Há perigo de sermos ouvidos?

     ‑ Estão todos na ponte ‑ disse Palavan.

     ‑ Onde está o capitão Macpherson?

     ‑ Na cabina; ainda dorme.

     ‑ Sabeis para onde vai a fragata?

     ‑ Ninguém o sabe. O capitão Macpherson disse que só o dirá quando chegarmos ao nosso destino.

     ‑ Portanto, os oficiais também não sabem nada?

     ‑ Absolutamente nada.

     ‑ Quer dizer que, matando o capitão, o segredo morrerá com ele.

     ‑ Sem dúvida; mas nós receamos que a fragata se dirija a Rajmangal, para assaltar os irmãos.

     ‑ Não vos enganastes, mas a fragata não desembarcará os seus homens.

     ‑ Mas como?... Porquê?

     ‑ Fá‑la‑emos ir pelos ares antes de chegar à ilha.

     ‑ Quando tu quiseres deitamos fogo aos paióis.

     ‑ Quando chegaremos a Rajmangal, segundo os vossos cálculos, claro?

     ‑ Por volta da meia‑noite.

     ‑ Quantos homens há a bordo?

     ‑ Uma centena.

     ‑ Está bem. Às onze matarei o capitão, depois destruiremos o barco. Só mais uma palavra.

     ‑ Fala.

     ‑ É preciso que o capitão, às onze, durma profundamente.

     ‑ Deitarei um narcótico na sua garrafa de água ‑ disse Palavan.

     ‑ É possível chegar à sua cabina sem ser visto?

     ‑ A cabina comunica com a bateria. Esta noite a porta estará aberta.

     ‑ Está bem. Às onze vireis aqui buscar‑me.

     Tremal‑Naik recomeçou a comer. Devorou depois um bife capaz de alimentar três pessoas, esvaziou, um após outro, vários copos de excelente gim, pediu que lhe dessem um cachimbo e em seguida subiu para um beliche e estendeu‑se, murmurando:

     “Subir à ponte não é prudente. O capitão poderia reconhecer‑me.” Procurou adormecer, mas o seu espírito estava agitado. Mil pensamentos cruzavam‑se tumultuosamente no seu cérebro. Pensava nos acontecimentos passados, pensava na sua adorada Ada e no momento em que, finalmente, depois de tantos sofrimentos e de tantos perigos, a voltaria a ver e faria dela sua esposa; e pensava também no último golpe que estava para jogar. Coisa estranha, e que ele não conseguia compreender: sempre que pensava no assassínio que estava para cometer, sentia‑se invadir por um sentimento novo para ele. Dir‑se‑ia que aquele delito lhe causava horror.

     As horas iam passando lentamente. Ninguém descera à cabina e ele não ousava mostrar‑se na ponte. Nem mesmo os dois filiados tinham voltado a aparecer.

     Tremal‑Naik começava a experimentar um certo receio e perguntava a si próprio se teria acontecido alguma desgraça aos tugues.

     Às oito, o Sol desapareceu no horizonte e a noite caiu rapidamente sobre as ondas azuis do golfo de Bengala. Tremal‑Naik, tomado da mais viva ansiedade, subiu a escada e espreitou para a ponte.

     Soldados e marinheiros encontravam‑se no convés, alguns amontoados na proa, com os olhos fixos no oriente, e outros pendurados nas enfrechaduras, nos cestos de gávea, nas cruzetas e nos mastros.

     Na popa viu homens que preparavam algumas embarcações.

     Olhou para a plataforma. Quatro oficiais passeavam fumando e conversando animadamente. O capitão Macpherson não estava.

     Voltou à cabina e esperou.

     O relógio de bordo deu as nove horas, depois as dez e as onze. Não tinha dado ainda a última badalada, quando duas sombras desceram silenciosamente a escada.

     ‑ Depressa ‑ disse uma voz imperiosa. ‑ Não temos um minuto a perder. Rajmangal está à vista.

     Tremal‑Naik reconheceu os dois filiados.

     ‑ O capitão? ‑ perguntou, com um fio de voz.

     ‑ Dorme ‑ respondeu Bindur. ‑ Bebeu o narcótico.

     ‑ Vamos.

     Ao pronunciar esta palavra, a voz de Tremal‑Naik tremia. Um forte arrepio quase o desorientou,

     Palavan abriu uma portinhola e entraram na bateria, detendo‑se diante duma segunda porta, que dava para o painel de controle.

     ‑ Estais prontos? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Pusemos as nossas vidas nas mãos da deusa Cali.

     ‑ Tendes medo?

     ‑ Não sabemos o que seja o medo.

     ‑ Escutai‑me.

     Os dois tugues aproximaram‑se, com os olhos flamejantes.

     ‑ Eu vou matar o capitão ‑ disse ele, com voz triste. ‑ Tu, Bindur, descerás a santa‑bárbara e acenderás uma grande fogueira.

     ‑ E eu? ‑ perguntou Palavan. ‑ Também quero fazer alguma coisa.

     ‑ Tu apoderar‑te‑ás de três salva‑vidas e depois virás ter comigo. Ide. E que a vossa deusa vos proteja.

     Tremal‑Naik agarrou num machado, passou a soleira da porta e penetrou na cabina, iluminada por uma lanterna.

     A primeira coisa que viu foi um espelho, que reflectiu a sua imagem. Ao ver‑se, teve medo.

     O seu rosto estava horrivelmente alterado, grossas gotas de suor perlavam‑lhe a fronte e tinha os olhos flamejantes como as lâminas dos punhais.

     Baixou os olhos sobre uma cama coberta por um denso mosquiteiro. Um leve suspiro chegou até ele.

     “É estranho”, murmurou. “Nunca experimentei nada que se parecesse.”

     Deu três passos e, com as mãos a tremer, levantou o véu.

     O capitão Macpherson estava estendido na cama e sorria. Sem dúvida, aquele homem sonhava.

     “Os tugues o querem”, murmurou o indiano.

     Ergueu o machado sobre o homem adormecido, mas voltou a baixá‑lo como se, de repente, as forças lhe tivessem faltado. Passou uma das mãos pela fronte e retirou‑a toda molhada. Olhou à sua volta com profundo terror.

     “Que é isto?”, perguntou a si próprio, surpreendido e espantado. “Será que tenho medo?... Quem é este homem?... Que terrível emoção é esta que me invade?...”

     Voltou a levantar o machado e baixou‑o pela segunda vez. Nunca lhe acontecera nada de semelhante. Pareceu‑lhe que uma voz interior lhe murmurava que aquele homem era sagrado para ele, que aquele sangue que ele estava para derramar não era sangue estranho.

     ‑ Ada! Ada! ‑ exclamou, quase com raiva.

     De repente empalideceu e recuou vivamente.

     O capitão sentara‑se na cama e olhava para ele, com os olhos arregalados.

     ‑ Ada!... ‑ exclamou Macpherson, com viva emoção. ‑ Quem pronunciou o nome de minha filha?

     Tremal‑Naik, petrificado, assustado, ficara imóvel.

     ‑ Ada!... repetiu o capitão. ‑ O nome da minha filha!

     Depois apercebeu‑se da presença do indiano.

     ‑ Que fazes tu aqui na minha cabina? ‑ perguntou.

     Um lampejo atravessou o cérebro de Tremal‑Naik, um terrível pressentimento entrara no seu coração.

     ‑ Mas quem é o senhor? ‑ perguntou, com voz sufocada. ‑ De que Ada está a falar? Será da minha?

     ‑ Da tua!... ‑ exclamou o capitão, espantado. ‑ Falo da minha filha.

     ‑ Onde está ela?

     ‑ Onde....... Nas mãos dos tugues.

     ‑ Poderoso Brama!... Se fosse verdade!... Uma palavra, capitão, um nome, por favor!... Como se chamava a sua filha?

     ‑ Ada Corishant.

     Tremal‑Naik escondeu o rosto entre as mãos, soltando um grito de horror.

     ‑ A minha namorada!... E eu estava para lhe matar o pai!... Ah! Que trama horrorosa!

     Depois, caindo aos pés da cama, suplicou:

     ‑ Perdão!... Perdão!

     O capitão, siderado, olhava para Tremal‑Naik, perguntando a si próprio se sonhava ou se estava acordado.

     ‑ Explica‑te, homem!... ‑ exclamou.

     Tremal‑Naik, com a voz entrecortada de soluços, em poucas palavras explicou‑lhe a trama infernal urdida por Suyodhana.

     ‑ E tu sabes onde está a minha filha? ‑ perguntou o capitão, que se levantara, pálido de emoção.

     ‑ Sim, e conduzi‑lo‑ei ao lugar onde ela se encontra ‑ disse Tremal‑Naik.

     ‑ Entrega‑ma, e eu juro‑te que, se ela te ama, será tua.

     ‑ Ah! Obrigado, capitão! A minha vida é sua.

     ‑ Não percamos tempo; corramos a Rajmangal. Eu estava exactamente para ir assaltar os tugues no seu covil.

     ‑ Um momento: tenho dois cúmplices a bordo que talvez estejam para fazer ir o navio pelos ares.

     ‑ Enforcá‑los-emos.

     Saíram a correr e subiram à ponte.

     ‑ Quatro homens ao santa‑bárbara que prendam os traidores que estão para deitar fogo aos paióis.

     Em vez de quatro, vinte homens precipitaram‑se para o depósito das munições. Pouco depois, ouviram‑se dois mergulhos, seguidos de alguns disparos.

     ‑ Deitaram‑se ao mar ‑ disse um oficial, correndo para a ponte.

     ‑ Que se afoguem ‑ disse o capitão. ‑ Os paióis estão seguros?

     ‑ Os traidores não tiveram tempo de rebentar os barris.

     ‑ Deus está connosco!... A todo o vapor para o Mangal!

 

                           A vitória de Tremal‑Naik

     A Cornwall, escapada por milagre à explosão do depósito de munições, corria a toda a velocidade para as Sunderbunds.

     Tremal‑Naik contara tudo ao capitão e este queria cair em cima da canhoneira de Hider, antes que a equipagem pudesse aperceber‑se do ataque e avisar o temível Suyodhana do falhanço do golpe e da traição de Tremal-Naik.

     Os marinheiros e os soldados de infantaria marítima estavam junto das armas, a fim de estarem preparados ao primeiro sinal, enquanto os artilheiros se tinham colocado atrás das seis peças de artilharia, decididos a afundar a Devonshire antes que a deixá‑la fugir.

     O capitão, tomado de indizível ansiedade, de pé no castelo de proa, com um grande óculo, perscrutava avidamente as trevas e indicava a rota aos timoneiros, para evitar os numerosos bancos de areia. Tremal‑Naik, ao seu lado, aguçava os seus olhos de águia para descobrir a foz do Mangal.

     ‑ Depressa!... Depressa!... ‑ repetia ele. ‑ Se os tugues se apercebem do ataque, a minha Ada está perdida!

     ‑ Agora, que sei onde se encontra e que tu me guias, já não tenho medo, meu valente indiano ‑ respondia o capitão. ‑ Ah!... Finalmente, ao fim de tantos anos, voltarei a vê‑la!... Que alegria a minha!... O destino cruel devia‑me esta desforra.

     ‑ E dizer que eu estava para o matar a si e que a sua cabeça devia ser o presente de casamento!... Poderoso Xiva!... Que trama diabólica!

     ‑ E estavas mesmo decidido a matar‑me?

     ‑ Sim, capitão, pois só com esse crime poderia obter aquela que amo tão intensamente. Se o narcótico fosse mais forte...

     ‑ Qual narcótico? ‑ perguntou Corishant, espantado.

     ‑ Aquele que Bindur e Palavan deitaram na sua limonada.

     ‑ Mas quando?

     ‑ Ontem à noite.

    ‑ Mas eu não a bebi!... Ah!...

     ‑ Quê?

     ‑ Recordo‑me de que a provei, mas, achando‑a amarga demais, atirei com ela. Foi Deus que me inspirou para a não beber.

     ‑ E foi a sua salvação, capitão. Se não tivesse acordado, eu não teria hesitado em o matar.

     ‑ O Mangal!... ‑ gritou naquele momento o oficial de quarto.

     ‑ Onde está? ‑ perguntou o capitão.

     ‑ À nossa frente, senhor.

     ‑ Tem a certeza de não se enganar?

     ‑ Não, senhor: olhe lá em baixo aquelas duas luzes a brilhar.

     O oficial não se enganara. Diante da Cornwall, a meio quilómetro de distância, viam‑se dois pontos luminosos, um vermelho e outro verde, a cintilar nas trevas.

     ‑ A Devonshire!... ‑ exclamou Tremal‑Naik.

     ‑ Pára a máquina!... ‑ ordenou o capitão.

     O navio, levado pelo próprio impulso, prosseguiu a sua corrida durante cinqüenta ou sessenta metros e depois imobilizou‑se.

     ‑ Três chalupas ao mar, com quarenta homens armados com três espingardas ‑ disse depois o capitão.

     Depois, dirigindo‑se a Tremal‑Naik, continuou:

     ‑ Agora é a tua vez, se queres a mão de minha filha.

     ‑ Mande, que a minha vida pertence‑lhe ‑ respondeu o indiano.

     ‑ É necessário que prendas a equipagem da canhoneira.

     ‑ Prendê-la‑ei.

     ‑ Mas é preciso que nenhum escape.

     ‑ Nenhum escapará.

     - E que se evitem tiros, para não alarmar as sentinelas dos tugues.

     ‑ Não dispararemos um único tiro. Hider está à minha espera, surpreendê‑lo‑ei à traição.

     ‑ Vai então, meu valente.

     As três chalupas estavam prontas e os homens a postos. Tremal‑Naik desceu para a maior e deu ordem de se fazerem ao largo no mais profundo silêncio.

     O capitão ficara a bordo, apoiado ao balaústre da proa, tomado por mil inquietações. Por alguns instantes pôde ver as três chalupas, que se afastavam sem fazer ruído, e depois perdeu‑as de vista.

     Passaram alguns minutos de angustiosa expectativa, e depois ouviram‑se gritos, estrondos, para depois voltar a reinar o silêncio.

     ‑ Vedes alguma coisa? ‑ perguntou o capitão, com voz sufocada, aos oficiais que estavam à sua volta.

     ‑ Sim ‑ gritou um. ‑ As luzes viram de bordo.

     ‑ A canhoneira vem ao nosso encontro! ‑ gritaram os outros.

     Um hurra ecoou ao largo: era o grito da vitória.

     Corishant soltou um profundo suspiro.

     “Deus está connosco”, murmurou. “Ah! Minha pobre Ada, finalmente poderei voltar a ver‑te e abraçar‑te!”

     Pouco depois, a Devonshire vinha fundear junto da fragata e Tremal-Naik subia a bordo, dizendo ao capitão:

     ‑ Pronto: Hider e os seus homens foram feitos prisioneiros.

     - Obrigado, meu valente ‑ disse Corishant, apertando‑lhe vigorosamente a mão. ‑ Foram apanhados de surpresa?

     ‑ Sim, capitão. Estavam à espera que eu aparecesse com a sua cabeça e deixaram‑se abordar sem desconfiarem de nada. Quando se aperceberam do estratagema utilizado por mim, estavam todos cercados; depuseram as armas sem qualquer resistência.

     ‑ Vamos a Rajmangal.

     ‑ Mas a fragata não poderá subir o Mangal.

     ‑ Subi‑lo‑emos com a canhoneira. Outros vinte homens resolutos que venham comigo.

     Abandonaram a fragata e embarcaram na Devonshire, que retomou a sua corrida a todo o vapor, subindo o Mangal. Tremal‑Naik assumira o comando e fazia‑a voar sobre as águas lodosas do rio.

     Bem depressa a sua velocidade aumentou espantosamente. Toneladas de carvão desapareciam dentro das fornalhas, aquecidas ao rubro; o vapor saía das válvulas emitindo agudos assobios: o barco estremecia desde a quilha até ao cimo dos mastros, desde a proa até à popa. Bem depressa o manômetro marcou seis atmosferas e meia! Mas Tremal‑Naik e o capitão, tomados duma furiosa impaciência, duma espécie de delírio, ainda não estavam satisfeitos. A sua voz ressoava a cada instante, estimulando os maquinistas e os fogueiros, que assavam diante das fornalhas.

     Três horas tinham passado, três horas longas como séculos, para o indiano, que ansiava rever aquela mulher que tantos sacrifícios e tantas emoções lhe custara.

     O canal ia apertando pouco a pouco, ao mesmo tempo que iam surgindo ilhotas lamacentas no meio das quais a canhoneira se lançava, furando massas compactas de ervas apodrecidas. Tudo indicava que a viagem estava para terminar.

     De súbito, do alto do mastro, ouviu‑se um grito:

     ‑ O baniano!

     Ao norte aparecera a gigantesca árvore, com os seus trezentos troncos. Tremal‑Naik sentiu que uma estranha emoção o invadia da cabeça aos pés.

     ‑ Ada!... ‑ exclamou ele. ‑ Eis‑me no fim das minhas penas!

   De um salto atirou‑se para baixo da plataforma e correu para a proa.

     A margem estava deserta. Só havia marabus empoleirados nos ramos do baniano, soltando gritos lúgubres. A visão daquelas aves fúnebres provocou-lhe um arrepio.

     ‑ Máquina parada! ‑ gritou.

     A máquina parou. A canhoneira, levada pelo impulso que trazia, foi bater com a proa na costa da ilhota, encalhando profundamente.

     O capitão aproximou‑se de Tremal‑Naik, que se detivera, agarrando‑se com a mão convulsa à amurada.

     ‑ Ninguém? ‑ perguntou.

     ‑ Ninguém ‑ respondeu Tremal‑Naik.

     ‑ Então apanhá‑los-emos de surpresa no seu covil.

     ‑ Assim o espero.

     ‑ Conheces a entrada?

     ‑ Sim, capitão.

     ‑ Estará acessível?

     ‑ Julgo que sim.

     ‑ Então, para terra!

     ‑ Só uma coisa: deixe‑me entrar primeiro. Conhecem‑me e eu abrirei passagem. Quando ouvir um assobio, avance à vontade.

     Dito isto, pôs‑se a correr como um louco em direcção à árvore, agarrou‑se a ela, subiu ao cimo do tronco e deixou‑se cair para baixo.

     Aos pés da escada brilhava uma tocha e junto dela um tugue estava de vigia, com uma espingarda na mão.

     ‑ Vem ‑ disse ele.

     ‑ Que se passa nos subterrâneos? ‑ perguntou Tremal‑Naik.

     ‑ Nada.

     ‑ A minha Ada?

     ‑ Espera no pagode o seu presente de núpcias.

     Aproximou‑se dum tambor suspenso da abóbada e bateu três vezes.

     Ao longe ouviram‑se três pancadas iguais.

     ‑ Estão à tua espera ‑ disse o tugue, estendendo‑lhe a tocha.

    ‑ Então, morre!

     Tremal‑Naik, com a rapidez do relâmpago, lançara‑se sobre o tugue com o punhal na mão. Apertar‑lhe com força a garganta e enterrar‑lhe a arma no peito foi obra dum instante. O estrangulador caiu sem soltar um grito.

     Tremal‑Naik empurrou o cadáver para o lado, depois soltou um assobio. O capitão e os seus homens, que já tinham entrado, foram ter com ele.

     ‑ O caminho está livre ‑ disse o indiano.

     ‑ E a minha filha? ‑ perguntou Corishant, com voz sufocada.

     ‑ Espera‑nos na grande caverna.

     ‑ Para a frente!... Carreguem as espingardas!

     ‑ Não, deixai‑me ir à frente. Surpreendê‑los‑emos com mais facilidade.

     ‑ Vai, nós seguir‑te‑emos a breve distância.

     Tremal‑Naik pôs‑se a caminho, avançando rapidamente. Mil angústias o agitavam naquele momento supremo. Parecia‑lhe que um tremendo perigo o ameaçava, agora, que estava para alcançar a felicidade suprema.

     A sua corrida através daqueles longos corredores durou dez minutos. Doze pancadas sonoras ribombaram naqueles terríveis subterrâneos quando chegou ao pagode no meio do qual se erguia a sinistra figura de Cali, a monstruosa divindade dos tugues indianos.

     Um espectáculo nunca antes visto se lhe apresentou aos olhos.

     Penduradas do tecto, resplandeciam ricas lâmpadas de formas bizarras, derramando torrentes de luz azulada e lívida.

     Das paredes pendiam milhares e milhares de laços e milhares de punhais.

     Diante dum pequeno tanque com água onde nadava o peixinho sagrado das águas do Ganges, sentado numa almofada de seda carmesim, estava Suyodhana, envolvido num grande dubgah de seda amarela, e à sua volta, hirtos e imóveis como estátuas, estavam cem tugues, alguns com a pele negra, como os Africanos, outros cor de azeitona, como os Malaios, e outros ainda com um bronzeado vermelho ou amarelado, quase nus, untados com óleo de coco e com o peito tatuado.

     Tremal‑Naik, ofegante, estupefacto, parara no meio do pagode, trespassado por aqueles cem olhares, agudos como pontas de alfinetes.

     ‑ Sê bem‑vindo ‑ disse Suyodhana, com um estranho sorriso. ‑ Regressas vencido ou vencedor?

     ‑ Onde está a minha Ada? ‑ perguntou Tremal‑Naik, com angústia.

     Um murmúrio surdo percorreu o círculo dos tugues.

     ‑ Tem um pouco de paciência ‑ disse o chefe dos sectários. ‑ Onde está a cabeça do capitão?

     ‑ Hider vem atrás de mim e dentro de minutos apresentar‑ta‑ei.

     ‑ Então mataste‑o?

     ‑ Sim.

     ‑ Irmãos, o nosso amigo morreu! - gritou Suyodhana.

     Levantou‑se, ou, antes, saltou como um tigre. No seu rosto passou como que um estremecimento e ficou ali, imóvel, a olhar para Tremal‑Naik.

     ‑ Escuta‑me ‑ disse, alguns minutos depois. ‑ Vês aquela mulher de bronze que está diante de nós?

     ‑ Vejo ‑ respondeu Tremal‑Naik. - Mas aquela não é a minha.

     ‑ Bem sei, mas aquela mulher é poderosa, mais poderosa do que Brama, do que Vixnu, do que Xiva e do que todas as divindades adoradas pelos Hindus. Vive no reino das trevas, fala‑nos por intermédio daquele peixe que vês nadar naquele tanque, é justa e terrível. Despreza os incensos e as preces e só quer vítimas. Aquela mulher representa a liberdade indiana e a destruição dos nossos opressores de pele branca.

     Suyodhana deteve‑se, para ver o efeito que produziam aquelas palavras em Tremal‑Naik, mas este permaneceu frio, insensível ao entusiasmo do sectário. Não pensava senão na sua Ada, que para ele era a deusa, a pátria, a vida.

     ‑ Tremal‑Naik ‑ recomeçou Suyodhana. ‑ Tu és um daqueles homens que são raros na Índia; és forte, és audaz, és terrível, és um indiano que, como nós, sofre debaixo do jugo dos estrangeiros de pele branca. Serias capaz de abraçar a nossa religião?

     - Eu! ‑ exclamou Tremal‑Naik. ‑ Eu, tugue!

     ‑ Tens horror aos tugues? Talvez porque estrangulam? Os europeus esmagaram‑nos com o ferro dos seus canhões e nós esmagámo‑los com o laço, a arma da nossa poderosa deusa.

     ‑ E a minha Ada?...

     ‑ Ficará connosco, como Kammamuri, que se tornou um tugue.

     ‑ Mas será minha esposa?

     ‑ Nunca! Ela pertence à nossa deusa.

     ‑ E Tremal‑Naik não tem outra deusa senão Ada Corishant!

     Pela segunda vez um surdo murmúrio percorreu o círculo dos tugues. Tremal‑Naik olhou à sua volta, com furor.

     - Suyodhana ‑ exclamou ‑, serias capaz de me atraiçoar?!... Serias capaz de me negar aquela mulher, depois de tudo o que fiz pela vossa deusa?... És então um perjuro?

     - Aquela mulher pertence-me ‑ disse Suyodhana, com um tom de voz que provocava arrepios.

     Um indiano bateu doze vezes num tanta.

     No pagode reinou por instantes um profundo silêncio de morte. Dir‑se‑ia que os cem homens tinham deixado de respirar.

     De súbito, uma porta abriu‑se e Ada saiu, coberta de véus brancos, com o peito encerrado dentro duma couraça de ouro, da qual saíam reflexos ofuscantes.

     ‑ Tremal‑Naik!

     O indiano e a rapariga caíram nos braços um do outro. Quase a seguir, uma voz forte gritou:

     ‑ Fogo!...

     Uma descarga tremenda ressoou pelo subterrâneo, acordando todos os ecos das galerias: depois, sessenta homens, irrompendo dos corredores tenebrosos, lançaram‑se no pagode com as baionetas caladas.

     Os tugues, estupefactos, aterrados, lançaram‑se, no meio de grande confusão, para as galerias, deixando mortos vinte dos seus. Suyodhana, com um salto de tigre, correra para uma passagem estreita, fechando atrás de si uma pesada porta de madeira de teca.

     O capitão precipitara‑se para Ada, gritando:

     ‑ Minha filha!... Finalmente volto a ver-te!

     ‑ Meu pai!... ‑ gritara a jovem, que desmaiara nos braços dele.

     ‑ Retirar!... ‑ gritou Tremal‑Naik.

     Os soldados regressaram ao pagode, receando perder‑se nas tenebrosas galerias.

     ‑ Vamos embora! ‑ disse o capitão. ‑ Vem meu valente Tremal-Naik, a minha Ada é tua esposa!... Bem a mereceste.

     E começaram a retirar. Mas, antes de saírem do imenso subterrâneo, ouviram a voz do terrível Suyodhana gritando ameaçadoramente:

     ‑ Ide!... Voltaremos a encontrar‑nos na floresta.

 

                                                                                Emílio Salgari  

 

                      

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