Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS MISTÉRIOS DE OSÍRIS / Christian Jacq
OS MISTÉRIOS DE OSÍRIS / Christian Jacq

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS MISTÉRIOS DE OSÍRIS

 

 

Iker abriu os olhos.

 

Não se podia mover.

Atado de pés e mãos, estava solidamente preso ao mastro principal de um grande barco que vogava a boa velocidade num mar calmo.

 

A margem onde passeava no fim de um dia de trabalho, os cinco homens que se precipitavam sobre ele batendo-lhe com paus, o vazio... Todo o corpo lhe doía e a cabeça estava em fogo.

 

Desatem-me! implorou.

 

Um corpulento barbudo aproximou-se dele.

 

Não estás satisfeito com a tua sorte, meu rapaz?

 

Por que me raptaram?

 

Porque tu nos vais ser muito útil. Belo barco, não? Chama-se Veloz mede cento e vinte côvados de comprimento e quarenta de largura. Precisava mesmo disto para cumprir a minha missão.

 

Que missão?

 

És muito curioso! Mas considerando o que te espera, posso confidenciar-te que nos dirigimos para o país de Punt.

 

A terra divina? Não passa de uma lenda para as crianças! O capitão sorriu.

 

Achas que cento e vinte marinheiros de coração mais valente do que o dos leões teriam embarcado para conquistar uma lenda? A minha tripulação não é composta por sonhadores mas por rudes marinheiros que vão ficar ricos, muito ricos.

 

- Não quero saber da riqueza! Só quero tornar-me escriba.

 

- Esquece as paletas, os pincéis e os papiros. Estás a ver, o mar é uma divindade tão perigosa e invencível como Set. Quando a próxima tempestade desabar sobre nós, saberei como acalmá-la. Será conveniente fazer-lhe uma soberba oferenda a fim de podermos assim atingir Punt. É por isso que te lançaremos vivo nas ondas. Ao morrer afogado, proteger-nos-ás.

 

- Porquê... Porquê eu?

 

O capitão poisou o indicador sobre os lábios.

 

- Segredo de Estado - murmurou. - Nem mesmo a um homem que vive as suas últimas horas o posso revelar.

 

Quando o capitão se afastou, Iker por pouco não rebentou em soluços. Morrer aos quinze anos, por uma razão desconhecida, não era o cúmulo da injustiça? Furioso, tentou em vão libertar-se das cordas que o prendiam.

 

- Não vale a pena, rapaz, são nós de profissional - observou um quadragenário tisnado que mastigava cebolas. - Foi eu que te atei e o que Olho-de-tartaruga faz é bem feito.

 

- Não te tornes um criminoso! Caso contrário, os deuses castigar-te-ão.

 

- Ouvir-te tira-me o apetite. Olho-de-tartaruga foi sentar-se à popa.

 

órfão, educado por um velho escriba que se afeiçoara a ele, Iker manifestava um intenso gosto pelos estudos. À força de perseverança, teria sem dúvida sido contratado pela administração de um templo onde os dias decorreriam felizes.

 

Mas havia apenas aquela imensa extensão de água que o ia engolir. Com um remo ao ombro, um jovem marinheiro passou perto do prisioneiro.

 

- Eh, ajuda-me! O homem parou.

- O que queres?

 

- Desamarra-me, por favor!

 

- Onde irias, imbecil? Seria estúpido afogares-te antes do momento certo. Pelo menos, ao morrer quando for necessário, serás útil.

 

Agora deixa-me em paz! Caso contrário, à fé de Faca-cortante que te corto a língua.

 

Iker parou de se agitar.

 

A sua sorte estava marcada.

 

Mas porquê ele? Antes de desaparecer, gostaria pelo menos de obter uma resposta àquela pergunta. Segredo de Estado... Em que podia um aprendiz de escriba sem fortuna ameaçar o poderoso Faraó Senuseret, terceiro do nome, que governava o Egipto com pulso forte? Era evidente que o capitão tinha feito troça dele. O seu bando de piratas apoderara-se do primeiro que aparecera.

 

Olho-de-tartaruga deu-lhe a beber um pouco de água.

 

Mais vale não comeres nada. Não és do género de ser bom marinheiro.

 

- O capitão sabe realmente prever uma tempestade?

- Quanto a isso, podes estar descansado!

 

- E se não se desencadeasse nenhum cataclismo? Então podiam libertar-me!

 

O capitão afastou Olho-de-tartaruga. Nem penses nisso, meu rapaz. O teu destino é tornares-me uma oferenda. Aceita isso e saboreia este magnífico espectáculo: o que há de mais belo do que o mar?

 

- Os meus pais mandar-me-ão procurar e sereis todos presos!

- Tu já não tens pais e ninguém dará pelo teu desaparecimento. já estás morto.

 

 

Não havia um sopro de vento e o calor tornava-se sufocante. Estendidos na ponte, a maior parte dos marinheiros dormitava. Até mesmo o capitão adormecera.

 

Iker atingira os limites do desespero. Aquela tripulação de bandidos estava decidida a suprimi-lo, acontecesse o que acontecesse, e não tinha qualquer possibilidade de fuga.

 

O jovem sentia-se aterrorizado com a ideia de ser engolido pelo mar, longe do Egipto, sem o mínimo ritual, sem sepultura. Para além da morte física, seria o aniquilamento, o castigo reservado aos criminosos. Que delito teria ele cometido para merecer tal sorte?

 

Iker não era nem um assassino nem um ladrão, não podia ser acusado nem de mentiras nem de preguiça. No entanto, estava ali, condenado ao pior.

 

Ao longe, a superfície da água cintilava. Iker julgou que se tratasse apenas de um jogo de reflexos, mas o fenómeno ganhou maior dimensão. Uma espécie de barra começou a crescer, tão depressa como uma fera lançando-se sobre a sua presa. No mesmo instante, centenas de pequenas nuvens, surgidas não se sabe de onde, invadiram o céu para formar uma massa negra e compacta.

 

Brutalmente arrancado ao seu torpor, o capitão, incrédulo, contemplava o desencadear daquelas forças.

 

- Nada fazia prever esta tempestade - murmurou, estupefacto.

- Acorda e dá as tuas ordens - exigiu Olho-de-tartaruga.

- As velas... Recolham as velas! Todos aos seus postos!

 

O trovão ribombou com tal violência que a maior parte dos marinheiros permaneceu estática.

 

- Há que sacrificar o rapaz - lembrou Faca-cortante.

- Trata disso - ordenou o capitão.

 

Logo que o desamarrassem, Iker bater-se-ia. É um facto que não tinha qualquer hipótese de vencer o seu adversário, mas morreria dignamente.

 

- Prefiro cortar-te primeiro o pescoço - anunciou o marinheiro.

- Vais estar ainda um pouco vivo quando te atirar pela borda fora e o deus do mar ficará satisfeito.

 

Iker não conseguiu afastar os olhos da lâmina de sílex que lhe ia tirar a vida.

 

No instante em que ela tocava na sua carne, um relâmpago atravessou as nuvens e transformou-se numa língua de fogo que queimou Faca-cortante. O marinheiro caiu, aos berros.

 

- A onda - gritou Olho-de-tartaruga - a onda é monstruosa! Uma parede de água precipitava-se em direcção ao barco. Nenhum dos marinheiros, apesar de todos experientes, vira jamais semelhante horror. Tetanizados, conscientes da inutilidade dos seus gestos, permaneceram inertes, de braços caídos, olhos cravados na onda que se abateu sobre o Veloz com um retumbar aterrador.

 

Os dedos da sua mão direita arranharam qualquer coisa mole e húmida.

 

Areia... Sim, devia ser areia.

 

Então o chão do outro mundo era um deserto inundado pelo mar insaciável, com certeza povoado por aterradoras criaturas que devoravam os condenados.

 

Se ainda tinha uma mão, Iker talvez possuísse também um pé, mesmo dois.

 

Os pés mexeram, a mão esquerda também.

 

E o jovem atreveu-se a abrir os olhos, depois levantar a cabeça. Uma praia.

 

Uma magnífica praia de areia branca. Perto, grande número de árvores.

 

Mas por que estava o seu corpo tão pesado?

 

Iker percebeu que ainda estava atado pela cintura a um fragmento do mastro. Libertou-se com dificuldade e pôs-se lentamente de pé, interrogando-se ainda se estaria morto ou vivo.

 

Ao largo andavam à deriva os restos destroçados do Veloz. A onda gigante tinha arrancado o mastro e Iker para os arrastar até àquela ilha inundada de sol, com luxuriante vegetação.

 

O rapaz tinha apenas alguns arranhões e contusões. Cambaleante, deu a volta à ilha. Talvez alguns marinheiros tivessem tido a mesma sorte que ele. Nesse caso, devia estar preparado para combater!

 

Mas a praia estava deserta. O barco e a sua tripulação tinham sido engolidos por um mar em fúria. único sobrevivente: Iker, a oferenda prometida à devoradora.

 

A fome torturava-o.

 

Aventurando-se até ao centro da ilha, descobriu palmeiras-tamareiras, figueiras, vinha e até mesmo uma horta onde cresciam pepinos, junto de uma nascente de água muito transparente.

 

Iker encheu a barriga de fruta antes de pensar que não era portanto único habitante daquele pedaço de terra perdido no meio das ondas. Por que razão o outro - ou os outros - se ocultava e qual seria seu comportamento perante o intruso?

 

Com o medo nas entranhas, Iker explorou a zona. Ninguém.

 

E nem o mínimo vestígio de um habitante. O seu único companheiro era o seu coração. Mas um rapaz de quinze anos em breve esgotaria a sua provisão de recordações.

 

Esgotado por tantas emoções, adormeceu à sombra de um sicômoro.

 

Quando acordou, Iker inspeccionou os seus domínios uma segunda vez sem melhores resultados. Notou que grandes peixes não hesitavam em vir até perto da praia e constituíam assim presas fáceis. Com um ramo e o resto das cordas, fabricou uma cana de pesca e usou uma minhoca como isca. Logo que o seu anzol rudimentar mergulhou na água, uma espécie de perca ficou enganchada nele.

 

Aqui, o náufrago não corria o perigo de morrer de fome.

 

Era agora necessário fazer uma fogueira sem dispor do material habitual no Egipto, cujo elemento principal era um arco ou uma verruma de arco. Por sorte, Iker descobriu um bocado de madeira macia e outro alongado e pontiagudo que enfiou no primeiro, bloqueado entre os joelhos. Imprimindo ao segundo o movimento de rotação mais rápido possível, conseguiu provocar um aquecimento tal que brotou uma chama. Alimentou-a depois com nervuras de palmeira bem secas e grelhou o peixe.

 

Antes de o saborear, tinha de cumprir um dever essencial: agradecer aos deuses por lhe terem salvo a vida.

 

No instante em que Iker erguia as mãos sobre a chama num gesto de oração, o trovão ecoou, as árvores abanaram e a terra tremeu. Aterrorizado, o rapaz quis fugir. Tropeçou e a cabeça bateu violentamente contra o tronco de uma figueira.

 

Relâmpagos, um céu em fogo, uma serpente gigantesca de pele dourada e olhos de lápis-lazúli! Desta vez é que Iker estava mesmo morto e um monstruoso génio do outro mundo avançava para ele a fim de o esmagar.

 

Mas o réptil imobilizou-se e contentou-se em observá-lo.

- Porque acendeste este fogo, homenzinho?

 

- Para... para te prestar homenagem!

- Quem te trouxe aqui?

 

- Ninguém, foi uma onda... O barco, os marinheiros... E depois...

- Diz toda a verdade e responde sem demora. Caso contrário, reduzo-te a cinzas.

 

- Os piratas raptaram-me, no Egipto, e tencionavam atirar-me vivo no mar a fim de o acalmar! Mas o capitão não soube prever uma violenta tempestade. O barco foi destruído, sou o único sobrevivente.

 

- Foi Deus que te salvou da morte - afirmou a serpente. - Esta ilha é a do ka, a força criadora, a seiva do universo. Nada existe sem ela. Mas este lugar foi atingido por uma estrela caída do alto do céu e tudo se incendiou. Eu, a senhora da terra divina, do maravilhoso país de Punt, não pude impedir o fim deste mundo. E tu, salvarás o teu? Uma queimadura despertou Iker.

 

O fogo transmitira-se aos arbustos e as chamas tocavam as barrigas das pernas do rapaz.

 

Afastando-se, constatou que nenhuma serpente gigante rondava por ali. Depois, dedicou-se a extinguir o começo de incêndio.

 

Que estranho sonho... Iker teria jurado que o réptil não era uma ilusão e que lhe falara realmente, com uma voz que não se assemelhava a nada conhecido e da qual se recordaria para sempre. Apagadas as últimas labaredas, o jovem dirigiu-se para a nascente.

 

No chão, duas caixas.

Iker esfregou os olhos.

 

As caixas continuavam lá. Aproximou-se lentamente, como se constituíssem uma ameaça.

 

Alguém andava a brincar com os seus nervos.

 

Alguém que se ocultava navegetação e acabava de retirar de lá aquele despojo proveniente do Veloz ou de outro barco. Alguém que não tardaria a desembaraçar-se do intruso para não ter de partilhar o seu tesouro.

 

- Não tens nada a recear de mim - gritou Iker. - A tua fortuna não me interessa! Em vez de nos enfrentarmos, cooperemos para sobreviver!

 

Ninguém respondeu.

 

Iker voltou a explorar a pequena ilha, mudando constantemente de direcção, voltando para trás, acelerando o andamento ou abrandando com brusquidão. Com todos os sentidos bem alerta, tentava detectar o mínimo sinal da presença de um eventual adversário.

 

Não conseguiu nada.

 

Teve portanto de render-se à evidência: era o único habitante da ilha. Mas aquelas caixas... Com certeza não reparara nelas. Deviam ser provenientes de um naufrágio anterior e fora uma onda que as trouxera para ali.

 

Restava abri-las.

 

Continham saquinhos de linho e frascos de faiança de onde se libertava um aroma agradável. Com certeza perfumes preciosos que valiam uma pequena fortuna.

 

Iker escapara realmente à morte? Na ilha, esta parecia menos brutal do que no barco dos piratas, mas no entanto o destino não parecia mais favorável. É verdade que poderia subsistir vários meses, talvez vários anos, mas a solidão não acabaria por enlouquecê-lo? E se a nascente secasse, e se a pesca se tornasse improdutiva? Para construir uma jangada sólida, precisaria de ferramentas. No entanto, vogar naquele mar desconhecido a bordo de uma frágil embarcação não seria um suicídio?

 

O rapaz não cessava de pensar nas revelações da serpente, senhora do maravilhoso país de Punt. Como podia aquela ilha minúscula ser a terra divina transbordante de fabulosas riquezas, tão cobiçadas? Absurdo!

 

O réptil dourado apenas existira na imaginação do sobrevivente. Mas por quê evocar a necessidade de salvar o seu mundo? Visto que reinava um Faraó, o Egipto não estava em perigo!

 

O Egipto, tão distante, tão inacessível! Iker pensava na sua cabana, próxima do santuário de Medamud, um lugar misterioso a norte de Tebas. Graças ao velho escriba que o recolhera, o jovem só raramente participava nos trabalhos dos campos e consagrava-se à leitura e à escrita. Esse privilégio atraía-lhe muitas invejas com que não se importava porque aprender, alimentava-lhe a alma.

 

Iker traçou na areia da praia os hieróglifos que dominava. Formavam uma frase gabando a profissão de escriba. Depois, assistiu ao pôr do Sol, contemplou demoradamente o céu estrelado e adormeceu com a esperança, misturada com o receio, de voltar a ver a gigantesca serpente.

 

Sentiu vontade de comer peixe grelhado.

 

Equipado com a sua cana de pesca, Iker dirigiu-se à praia. Estupefacto, constatou que fora coberta pelo mar. Fenómeno passageiro, sem dúvida.

 

Mesmo assim, lançou a linha por várias vezes, mas nenhum peixe mordeu. Espantado, mergulhou e nadou durante muito tempo sem descobrir um único.

 

Retomando pé, Iker notou que o mar continuava a subir. A menos que a ilha se estivesse a afundar...

 

Imóvel, o rapaz viu a água atingir-lhe as barrigas das pernas, depois os joelhos, depois o alto das coxas. Àquela velocidade, a ilha do ka não tardaria a desaparecer.

 

Dominado pelo pânico, Iker trepou ao cimo da palmeira mais alta, esfolando as mãos e os pés.

 

Trémulo, sem fôlego, julgou-se vítima de um novo sonho ao descobrir uma vela branca na imensidade azul.

 

Com todas as forças dos seus pulmões, Iker gritou por socorro agitando freneticamente a mão direita.

 

Esforço perdido e gestos inúteis... O barco passou ao largo, demasiado longe para o poder ver.

 

No entanto, o rapaz insistiu. Se o vigia tivesse um olhar penetrante, talvez o detectasse. E aquela ilha que se afundava não atrairia a curiosidade da tripulação?

 

Por instantes, Iker julgou que a embarcação mudava de rota e se aproximava. Mas teve de perder as ilusões e preferiu fechar os olhos. Desta vez, não haveria tempestade nem onda monstruosa para o salvar. A água atingir-lhe-ia o peito, o rosto, e deixar-se-ia envolver por aquela mortalha azul e tépida.

 

A vontade de viver continuava no entanto a ser tão forte que voltou a abrir os olhos,

 

Desta vez não havia dúvida! O barco dirigia-se para a ilha.

Iker gesticulou e gritou.

 

Era um barco de dimensões modestas, com cerca de vinte marinheiros a bordo. Como o mar batia já na base da palmeira, o rapaz efectuou uma descida rápida e nadou para os seus salvadores tão rapidamente quanto lhe foi possível.

 

Braços fortes içaram Iker, que se encontrou em frente de um homem entroncado, de aspecto hostil.

 

- Há caixas a flutuar além! Recuperem-nas. Tu, quem és tu?

- Chamo-me Iker, e sou o único sobrevivente de um naufrágio.

- O nome do barco?

 

- Velu. Cento e vinte côvados de comprimento, quarenta de largura, cento e vinte homens de tripulação.

 

- Nunca ouvi falar. O que é que se passou?

 

- Uma onda enorme engoliu-nos! E encontrei-me só, nesta ilha que está quase a desaparecer.

 

Estupefactos, os marinheiros viram o mar cobrir o topo das árvores.

 

- Se não visse isto com os meus próprios olhos, nunca teria acreditado - confessou o capitão. - De que porto partiste?

 

- Não sei.

 

- Estás a fazer troça de mim, rapaz?

 

- Não, fui raptado, puseram-me inconsciente e quando despertei estava atado ao mastro. O capitão explicou-me que eu devia ser lançado às ondas para acalmar a sua fúria.

 

- Porque não o fez?

 

- Porque a tempestade o apanhou desprevenido! Um marinheiro bem tentou sacrificar-me, mas a onda foi mais rápida. Constatando o cepticismo do seu interlocutor, Iker evitou falar-lhe da aparição da serpente e das suas revelações.

 

- Bastante estranha, a tua história... Não há nenhum sobrevivente, tens a certeza?

 

- Nenhum.

 

- E o que contêm aquelas caixas?

 

- Não sei - respondeu prudentemente Iker, constatando que se tinham tornado a fechar.

 

- Veremos isso mais tarde. Salvei-te a vida, não o esqueças. E a tua história não tem pés nem cabeça. Ninguém viu nunca uma embarcação chamada Veloz. Tinhas descoberto essas caixas há muito tempo, não é verdade? E desembaraçaste-te do seu proprietário. Mas a coisa correu mal, o barco afundou-se no mar e tu foste suficientemente astucioso para te safares com o teu saque.

 

- Disse-vos a verdade! Raptaram-me e...

 

- Basta, meu rapaz, eu não sou parvo. A mim não me enganas. Sobretudo, não tentes resistir.

 

A um sinal do capitão, dois marinheiros agarraram Iker, ataram-lhe as mãos atrás das costas e prenderam-lhe os pés à amurada.

 

O porto fervilhava de embarcações. Manobrando com habilidade, o capitão acostou suavemente. Iker não ousava ainda acreditar que estava são e salvo. Com certeza que a sorte que lhe reservavam não tinha nada de atraente.

 

O capitão aproximou-se.

 

- No teu lugar, rapaz, seria discreto, muito discreto. Náufrago, ladrão, talvez assassino... É muito para um bandido só, não?

 

- Estou inocente. A vítima sou eu!

 

- Claro, claro, mas os factos são evidentes e o juiz tirará rapidamente as suas conclusões. Faz-te esperto e não escaparás à pena de morte.

- Mas não tenho nada a censurar-me!

 

- Comigo não, garoto. Eis o que te proponho, é pegar ou largar: ou eu guardo as caixas e nunca nos vimos, ou levo-te ao posto da polícia e toda a minha tripulação testemunhará contra ti. Escolhe e depressa!

 

Escolher... Que ironia!

- Ficai com as caixas.

 

- Muito bem, meu amigo, és razoável! Perdes o teu saque mas salvas a vida. Da próxima vez que tentares um golpe como este, procura organizar-te um pouco melhor. Sobretudo, não esqueças: nunca nos encontrámos.

 

O capitão vendou os olhos de Iker. Dois marinheiros apenas lhe desataram os pés e fizeram-no descer a terra. Depois, obrigaram-no a andar depressa e durante muito tempo, muito tempo.

 

- Onde me levam?

 

- Cala-te ou matamos-te.

 

Encharcado em suor, Iker sentia cada vez mais dificuldade em acompanhar o ritmo. Os torcionários não estariam a afastá-lo do porto para o suprimirem numa zona deserta?

 

- Dêem-me de beber, por piedade! Nem sequer lhe responderam.

 

Iker nunca se teria julgado capaz de aguentar tanto. Dentro dele, uma força desconhecida recusava ceder ao esgotamento.

 

De repente, empurraram-no violentamente pelas costas. Resvalou por um talude e plantas espinhosas laceraram-lhe a carne. A queda terminou por fim em areia macia. Extenuado, com a língua seca, Iker ia morrer de sede.

 

Estavam a comer-lhe os cabelos.

 

A dor foi tal que Iker deu um salto. Assustada, a cabra recuou.

 

- Estás a tirar-lhe o pão da boca - lamentou um pastor hirsuto. Um belo animal como este! Podias ter esperado que ela estivesse saciada.

 

- Desata-me, suplico-te, e dá-me de beber!

 

- Dar-te de beber, talvez, mas desatar-te... De onde saíste tu? Nunca te vi por estes lados.

 

- Fui raptado por piratas.

 

- Piratas, aqui, em pleno deserto?

 

- Estava num barco, obrigaram-me a descer e a fazer uma longa caminhada.

 

O pastor coçou a cabeça.

 

- Já ouvi histórias mais fáceis de acreditar! Não serás um prisioneiro evadido?

 

Os nervos do jovem cederam e ele começou a soluçar. Então nunca ninguém o acreditaria?

 

- Repara - continuou o pastor - não tens um ar muito perigoso. Mas com todos esses bandidos que rondam por estas paragens, mais vale ser prudente. Toma, bebe um pouco.

 

A água da cabaça não estava fresca, mas Iker engoliu-a com avidez.

- Devagar, devagar! Dou-te mais daqui a bocado. Vou levar-te ao administrador da minha aldeia. Ele saberá o que haveremos de fazer de ti.

 

O rapaz seguiu docilmente o rebanho de cabras. De que serviria fugir, a não ser para provar a sua culpabilidade? Competia-lhe a ele convencer o governante da sua boa-fé.

 

Logo que viram o estranho, as crianças correram a seu lado.

 

- Com certeza é um bandido! - exclamou uma delas. - Olha, foi o pastor que o capturou, vai pedir uma boa recompensa!

 

O interpelado levantou o bastão para assustar a miudagem, mas esta não largou a sua presa. E foi no meio de um grande concerto de risos e guinchos que o cortejo chegou diante da casa do administrador.

- O que se passa aqui?

 

- Descobri este rapaz no deserto - explicou o pastor. - Como tinha as mãos atadas atrás das costas, fiquei desconfiado. Tenho direito a uma recompensa, não é verdade?

 

- Veremos isso mais tarde. Tu, entra.

Iker obedeceu.

 

Brutal, o administrador empurrou-o para uma pequena sala onde estava sentado um homem magro armado com um cacete.

 

- Calhas bem, patifório! Estou precisamente a conversar com um polícia. Como é o teu nome?

 

- Iker.

 

- Quem te atou as mãos?

 

- Marinheiros que me recolheram numa ilha deserta antes de me abandonarem não longe daqui para eu morrer de sede.

 

- Pára imediatamente de contar histórias! Não passas provavelmente de um ladrãozeco que julgava escapar ao castigo. Que crime cometeste?

 

- Nenhum, garanto-vos!

 

- Uma boa bastonada vai devolver-te a memória.

 

- Ouçamo-lo, apesar de tudo - recomendou o polícia.

 

- Se tendes tempo a perder... Está bem, resolvei este assunto. Eu tenho de me ocupar dos meus celeiros. Antes de levar este pequeno bandido, deixai-me um relatório, para o processo.

 

- Com certeza.

 

Iker preparava-se para receber cacetadas, mas que podia ele dizer a não ser a verdade?

 

- Dá-me mais pormenores - exigiu o polícia.

- Para quê, visto que não me acreditareis?

 

- Como é que sabes? Estou habituado a reconhecer os mentirosos. Se és sincero, não tens nada a temer.

 

Com voz pouco segura, Iker contou as suas desventuras, omitindo o sonho durante o qual vira aparecer a grande serpente.

 

O polícia escutou-o com atenção.

 

- Eras portanto o único sobrevivente e essa ilha desapareceu nas águas?

 

- Exacto.

 

- E os teus salvadores ficaram com as caixas?

- Com efeito.

 

- Como se chamava o barco?

- Não sei.

 

- E o capitão?

 

- Também não sei.

 

Ao responder, Iker tomou consciência que a sua história não tinha pés nem cabeça. Nenhuma pessoa sensata podia acreditar minimamente nela.

 

- De onde és originário?

- Da região de Medamud.

- Tens família lá?

 

- Não. Foi um velho escriba que me albergou e ensinou os rudimentos da profissão.

 

- Pretendes fazer-me crer que sabes ler e escrever... Prova-mo.

 

O polícia apresentou ao prisioneiro uma tabuinha de madeira e um pincel que ele molhou em tinta preta.

 

- Tenho as mãos atadas - lembrou-lhe Iker.

 

- Vou desatar-te, mas não te esqueças que sei manejar o cacete. Com uma escrita cuidadosa, o rapaz escreveu: "O meu nome é Iker e não cometi nenhum delito."

 

- Perfeito - considerou o polícia. - Portanto, não és um mentiroso.

 

- Vós... vós acreditais em mim?

 

- Porque havia de ser de outra forma? já te disse, estou habituado a distinguir as pessoas sinceras das mentirosas.

 

- Então... estou livre?

 

- Volta para tua casa e considera-te feliz por teres saído vivo de tais peripécias.

 

- Ides prender os piratas que queriam a minha morte?

- Vamos tratar deles, podes ter a certeza.

 

Iker não se atrevia a sair da sala. O polícia começava a redigir o seu relatório.

 

- Então, rapaz, que esperas tu?

 

- Tenho um pouco de medo dos aldeões.

 

O polícia interpelou um dos basbaques que se tinham amontoado em frente da casa do administrador.

 

- Tu aí, dá-lhe uma esteira e água.

 

Devidamente equipado para a viagem, Iker sentia-se tão perdido como na ilha do ka. Estava realmente livre, tinha realmente o direito de regressar à sua aldeia?

 

O polícia viu-o partir.

 

Sem esperar o regresso do administrador, abandonou precipitadamente a aldeia para se juntar aos seus camaradas que percorriam os arredores em busca de informações sobre a tripulação do Veloz.

Tal como ele, também não pertenciam à polícia do deserto.

 

Em pleno meio-dia, o Sol ardente do Verão transformava o deserto de Leste numa fornalha. As raras criaturas que conseguiam sobreviver naquele inferno, como serpentes e escorpiões, tinham-se enfiado debaixo da areia.

 

No entanto, o pequeno grupo de cinco homens continuava a avançar. A frente seguia uma personagem longilínea que ultrapassava os seus subordinados uma boa cabeça. Barbudo, de olhos profundamente enterrados nas órbitas, lábios carnudos, parecia insensível ao calor. Com a cabeça coberta por um turbante, envergando uma túnica de lã que lhe descia até aos tornozelos, avançava em passo certo.

 

- Não aguentamos mais - queixou-se um dos seguidores. Tal como os seus companheiros, era um cadastrado condenado por roubo. Incitado pelo grande barbudo, fugira da quinta onde cumpria o fim da sua pena sob a forma de diversas tarefas.

 

- Ainda não estamos no interior do deserto - declarou o condutor.

 

- O que queres mais?

 

- Contenta-te em obedecer e o teu futuro será radioso.

- Eu volto para trás.

 

- A polícia vai prender-te e meter-te outra vez na prisão - avisou um ruivo que se chamava Shab, o Torto.

 

- Será melhor do que este inferno! Na minha cela, dar-me-ão de comer e de beber e não terei de andar indefinidamente para ir a parte nenhuma!

 

O barbudo fitou o contestatário com desdém.

- Esqueces quem eu sou?

 

- Um louco que se julga investido de uma missão sagrada! -Todos os deuses me falaram, é verdade, e as suas vozes formam hoje apenas uma, porque só eu sou detentor da verdade. E todos os que se opuserem a mim, desaparecerão.

 

- Seguimos-te porque nos prometeste fortuna! E não vai ser aqui que a encontraremos.

 

- Sou o Anunciador. Os que tiverem fé em mim tornar-se-ão ricos e poderosos; os outros, morrerão.

 

- Os teus discursos fatigam-me. Enganaste-nos e recusas reconhecê-lo, eis tudo!

 

- Como ousas injuriar o Anunciador? Arrepende-te imediatamente!

- Adeus, pobre demente.

 

O homem voltou para trás.

 

- Shab, mata-o - ordenou calmamente o Anunciador. O ruivo pareceu perturbado.

 

- Ele veio connosco, ele...

 

- Estrangula-o e que o seu miserável cadáver sirva de alimento aos predadores. Depois, conduzir-vos-ei ao local onde tereis a revelação. Compreendereis então verdadeiramente quem eu sou.

 

Não era a primeira morte do Torto. Atacava sempre por trás e cravava no pescoço da sua vítima a lâmina afiada de uma faca de sílex. Subjugado pelo grande barbudo desde o seu primeiro encontro,

 

tinha a certeza de que aquele chefe de grupo, de palavra cortante como uma navalha, o levaria longe.

 

Sem se apressar, o ruivo alcançou o fugitivo, executou-o com rapidez e reuniu-se de novo ao pequeno grupo.

 

- Ainda teremos de andar muito tempo? - perguntou.

 

- Não receies - respondeu o Anunciador - e contenta-te em seguir-me.

 

Aterrorizados pela cena a que acabavam de assistir, os outros dois ladrões não ousaram emitir o mínimo protesto. Também eles estavam subjugados pelo seu guia.

 

Nem uma gota de suor perlava a testa do Anunciador, nem uma sensação de fadiga afectava o seu andar. E dava a impressão de saber perfeitamente onde ia.

 

A meio da tarde, no momento em que os seus companheiros estavam prestes a desfalecer, estacou.

 

- É aqui - declarou. - Olhem bem para o chão.

 

O deserto tinha mudado. Aqui e além, placas esbranquiçadas.

- Raspa e prova, Shab.

 

O ruivo ajoelhou-se.

- É sal.

 

- Não, é a espuma do deus Set que brotou da profundeza do solo. É-me destinada para que me torne mais forte e mais implacável do que o próprio Set. Esta chama destruirá os templos e as culturas, aniquilará a força do Faraó para que reine a verdadeira fé, a que eu vou espalhar por toda a terra.

 

- Temos sede - lembrou um dos ladrões - e não vai ser isso que a vai matar!

 

- Shab, dá-me uma grande quantidade.

 

Sob o olhar estupefacto dos seus três seguidores, o Anunciador absorveu tanto sal que a sua língua e a boca deviam estar em fogo!

- Não existe melhor bebida - afirmou.

 

O mais jovem dos meliantes arrancou um bocado de crosta e mastigou.

 

Deu um grito lancinante e rolou no chão na esperança de apagar a chama que o devorava.

 

- Ninguém a não ser eu, está habilitado a proclamar a vontade de Deus - precisou o Anunciador - e quem tentar rivalizar comigo terá a mesma sorte. É justo que esse ímpio pereça.

 

O infeliz teve ainda alguns sobressaltos e depois ficou rígido. Os dois discípulos sobreviventes prostraram-se diante do mestre.

- Senhor - implorou Shab, o Torto - não dispomos dos teus poderes e reconhecemos a tua grandeza... Mas estamos cheios de sede! Podes aliviar o nosso sofrimento?

 

- Deus elegeu-me para favorecer os verdadeiros crentes. Cavai e sereis satisfeitos.

 

O ruivo e o seu acólito escavaram com frenesim.

 

Em breve, encontraram o rebordo de um poço. Encorajados por aquela descoberta, atingiram uma camada de pedras secas que retiraram num tempo recorde.

 

E a água apareceu.

 

Do cinto das suas túnicas, fizeram uma corda à qual ataram uma cabaça.

 

Quando o Torto a retirou cheia, ofereceu-a ao Anunciador.

- Senhor, vós primeiro!

 

- Basta-me o fogo de Set.

 

Shab e o seu companheiro humedeceram os lábios e depois beberam em pequenos goles, antes de molharem os cabelos e a nuca.

 

- Quando tiverdes recuperado as forças - decretou o Anunciador

- começaremos a nossa conquista. A grande guerra acaba de começar.

 

Sobek, o Protector', chefe da guarda pessoal do Faraó Senuseret, revelava um nervosismo pouco habitual. Para garantir a segurança do monarca, apenas utilizava os serviços de seis polícias. Considerava-os muito mais eficazes do que um batalhão de soldados mais ou menos vigilantes, porque aqueles seis homens pareciam feras, constantemente alerta e prontos a saltar ao mínimo perigo. E Sobek, o Protector não se contentava em mandar: tão atlético, rápido e potente como os seus subordinados, participava nos treinos quotidianos no decurso dos quais ninguém aguentava os seus golpes.

 

Em Mênfis, a capital, proteger o monarca levantava já mil e um problemas. Aqui, em Abido, em terreno desconhecido, era necessário contar com perigos inéditos.

 

Durante a viagem de barco', nenhum incidente. No desembarcadouro, apenas alguns sacerdotes sem armas tinham recebido o Faraó, que se dirigira imediatamente ao templo de Osíris.

 

Com cinquenta e cinco anos e mais de dois metros de altura, o Rei era um colosso de rosto severo. Terceiro da linhagem dos Senuseret, tinha os nomes de Divino de transformações, Divino de nascimento, O que se transforma, A força da luZ divina surge em <glória e O homem de Useret'.

 

Nota: Em egípcio, Sobek-khu.

 

2 Abido fica a 485 quilómetros a sul do Cairo (perto da antiga Mênfis) e a 160 quilómetros a norte de Lucsor (a antiga Tebas).

 

Quatro côvados, três palmos e dois dedos, segundo Maneton. (N. da T.)

 

No decurso dos cinco primeiros anos do seu reinado, apesar de uma autoridade incontestável, Senuseret não conseguira ligar a si alguns governadores de província cuja riqueza lhes permitia manter forças armadas e comportar-se, no seu território, como verdadeiros soberanos.

 

Sobek, o Protector receava uma intervenção dos seus soldados da velha guarda. Senuseret não lhes surgiria como um perturbador que, mais cedo ou mais tarde, poria em causa a sua independência? A deslocação a Abido, território sagrado desprovido de importância económica, fora mantida em segredo. Mas poder-se-ia realmente guardar um segredo no palácio de Mênfis? Persuadido do contrário, o polícia tentara em vão convencer o Rei a renunciar àquela viagem.

- Nada a assinalar?

 

- Nada, chefe - responderam-lhe os seus homens, um após o outro.

 

O local está deserto e silencioso - acrescentou um deles.

 

É normal para o domínio de Osíris - observou Sobek, o Protector. - Coloquem-se nos lugares certos e interceptem sem contemplações quem tentar aproximar-se.

 

- Mesmo um sacerdote?

 

- Não há nenhuma excepção.

 

A Grande Terra era o nome tradicional do território reservado a Osíris, o deus que detinha o segredo da Ressurreição. Primeiro soberano do Egipto, fora ele que lançara as bases da civilização faraónica. Assassinado mas vencedor da morte, reinava actualmente sobre os "de voz justa" e apenas a celebração dos seus mistérios conferia ao seu herdeiro, o Faraó, a sua dimensão sobrenatural e a sua capacidade para manter os laços com as forças criadoras. Sem a realização dos rituais osíricos, o Egipto não sobreviveria.

 

Alguns campos férteis, onde cresciam as melhores cebolas do país, algumas casas modestas dispostas ao longo de um canal, o deserto fechado por uma longa falésia, um grande lago rodeado de árvores, um bosque de acácias, um pequeno templo, capelas, esteias, os túmulos dos primeiros Faraós e o de Osíris: assim se apresentava o sítio de Abido, fora do tempo, fora da História.

 

Aqui se encontrava a ilha dos justos e a porta do céu guardada pelas estrelas.

 

Senuseret penetrou na pequena sala onde o esperavam os sacerdotes residentes. Todos se levantaram e curvaram.

 

- Obrigado por ter vindo tão depressa, Majestade - disse o sumo sacerdote, um homem idoso, de voz pausada.

 

- A tua carta evocava uma grande desgraça.

- Ides poder constatar por vós próprio.

 

Quando o superior e o Faraó saíram do templo, Sobek, o Protector e um dos seus subordinados quiseram escoltá-lo.

 

- É impossível - objectou o sumo sacerdote. - O local onde nos dirigimos é interdito aos profanos.

 

É demasiado imprudente! Se por acaso...

 

Ninguém pode violar a Lei de Abido - cortou Senuseret. O Rei retirou as pulseiras de ouro que usava nos pulsos e confiou-as a Sobek. No território sagrado de Osíris era necessário despojar-se de todo o metal.

 

Roído de inquietação, o polícia viu afastar-se os dois homens, que contornaram o Lago da Vida rodeado de árvores e depois meteram por um caminho orlado de esteias e de capelas para atingirem o bosque sagrado de Peker, centro vital e secreto do país.

 

No seu centro, uma acácia.

 

A árvore que, ao crescer sobre o túmulo de Osíris, fizera compreender aos seus fiéis que o soberano dos de voz justa tinha ressuscitado. Senuseret detectou imediatamente a amplitude do desastre: a acácia definhava.

 

- Quando Osíris renasce - lembrou o sumo sacerdote - a acácia cobre-se de folhas e o país está próspero. Mas Set, o assassino e o perturbador, tenta sempre fazê-la secar. Então, a vida abandona os vivos. Se a acácia morrer, a violência, o ódio e a destruição reinarão sobre esta terra.

 

Pela sua presença naquela árvore, Osíris unia o céu, a terra e os espaços subterrâneos. Nele, a morte juntava-se à Vida, e outra vida, luminosa, os englobava.

 

- Tens regado o pé todos os dias com agua e leite?

 

- Não faltei aos meus deveres, Majestade.

 

- Então, um ser maléfico sabe manipular a força de Set e utiliza-a contra Osíris e contra o Egipto.

 

- Os textos precisam que esta acácia mergulhe as raízes no oceano primordial e nele absorva a energia que a anima. Apenas um certo ouro apropriado poderia curar a árvore.

 

É sabido onde se encontra? Não, Majestade.

 

Descobri-lo-ei. E conheço o meio de abrandar, talvez mesmo fazer parar, a degenerescência da acácia: construirei um templo e uma Morada de Eternidade em Abido. Produzirão uma magia eficaz que travará o processo e nos dará tempo, esperemos, para obter o remédio.

 

- Majestade, o colégio de sacerdotes será pouco numeroso demais para...

 

- Mandarei vir ritualistas e construtores que se consagrarão exclusivamente a essa tarefa. Ficarão todos submetidos ao segredo absoluto.

 

De repente, uma hipótese absurda atravessou o espírito do Rei.

- Terá alguém tentado apoderar-se do vaso sagrado?

 

O sumo sacerdote empalideceu.

 

- Majestade, sabeis perfeitamente que é impossível!

- Mesmo assim, verifiquemos.

 

Senuseret constatou que a porta do túmulo de Osíris estava hermeticamente fechada e o selo real intacto. Só ele podia dar ordem para o quebrarem e penetrarem naquele santuário.

 

- Mesmo se um insensato forçasse esta porta - lembrou o sumo sacerdote - não conseguiria aproximar-se do vaso e ainda menos pegar-lhe.

 

- Abido não está suficientemente protegido - considerou o monarca. - A partir de agora, haverá soldados a guardar o local.

 

- Majestade, nenhum profano pode...

 

- Conheço a Lei de Abido, visto que sou o seu depositário e garante. Nenhum profano manchará o domínio de Osíris, mas todos os caminhos que a ele conduzem estarão sob vigilância.

 

Do alto da colina sagrada, Senuseret contemplou o espaço sagrado onde se jogava a sorte do seu país, do seu povo e, mais ainda, de uma certa visão da última realidade.

 

Ao subir ao trono, sabia que a sua tarefa não seria fácil devido à vastidão das reformas necessárias. Mas não imaginava que o seu principal adversário seria a nova morte de Osíris.

 

Em passo determinado, Senuseret avançou pelo deserto em direcção a uma zona virgem situada entre dunas de areia e o limite dos campos cultivados.

 

Indiferente à mordedura do Sol, o Faraó via edificarem-se ali dois edifícios, o seu templo e a sua Morada de Eternidade, que atrasariam o prazo fatal desempenhando o papel de um dique contra as forças das trevas.

 

Quem seria o responsável por aquela agressão tão imprevisível como perigosa? Seria necessária ao Rei toda a firmeza de que um homem podia ser capaz para não ceder ao desespero e combater um adversário ainda invisível.

 

Depois de dois duros dias de caminhada, Iker tivera a sorte de ser recolhido por uma caravana que se dirigia a Tebas para entregar mercadorias. O patrão mostrara-se primeiro reticente em aceitar uma boca inútil mas, quando o rapaz lhe revelara que sabia ler, a sua atitude modificara-se.

 

- Tenho tabuinhas com promessas de compra. Poderias verificá-las?

 

- Mostrai-mas.

 

Impaciente, o patrão não pôde impedir-se de colocar a pergunta essencial:

 

- Isso refere os responsáveis do palácio que se comprometem a pagar-me, não é verdade?

 

- Com efeito, e haveis obtido bons preços.

 

- Experiência, meu rapaz, experiência! Onde vives?

- Em Medamud.

 

- Uma aldeiazita sem importância! O que fazias no deserto?

- Não conhecereis por acaso dois marinheiros que se chamam Olho-de-tartaruga e Faca-cortante?

 

O mercador coçou o queixo.

 

- Isso não me diz nada... Como é o nome do seu barco?

 

- Veloz Cento e vinte côvados de comprimento, quarenta de largura.

 

- Nunca ouvi falar dele. Não estarás a inventar uma história?

- Devo ter-me enganado.

 

- Com certeza! Veloz. Podes ter a certeza que, se esse barco existisse, saberíamos! O que dirias de pôr um pouco de ordem na minha papelada Nunca se é demasiado prudente com o fisco.

 

Iker pós-se ao trabalho, dando plena satisfação ao seu hospedeiro. E a viagem desenrolou-se ao ritmo dos burros e das paragens, no decurso das quais o rapaz saboreou o peixe seco e as cebolas que lhe davam em troca do seu trabalho.

 

Apesar das interrogações que o obcecavam constantemente, Iker apreciou o momento em que a caravana deixou por fim a pista árida para penetrar num campo verdejante animado por palmeirais. Esquecido ficava o mar perigoso, esquecidas as montanhas ameaçadoras! Nos campos bem irrigados, os camponeses colhiam legumes.

 

- Ouve lá, rapaz, não gostarias de trabalhar para mim? - perguntou o mercador.

 

- Não, quero reencontrar o meu professor para continuar a aprender a profissão de escriba.

 

- Ah, compreendo-te! Uma pessoa não ganha provavelmente muito, mas é respeitada. Então, meu rapaz, boa sorte.

 

Iker saboreou o perfume do ar e o doce calor da Primavera. Com pressa de alcançar a sua aldeia, avançou com rapidez metendo por atalhos que tantas vezes percorrera durante a sua infância a fim de se isolar e de mergulhar na serenidade da paisagem. Embora não desgostasse de brincar com os seus camaradas, Iker preferia meditar sobre os Mistérios do mundo e as forças invisíveis.

 

A aldeia de Medamud compunha-se de pequenas casas brancas construídas sobre uma elevação e abrigadas do Sol por acácias, palmeiras e tamargueiras. À entrada, um poço vigiado por um guarda que se julgou vítima da aparição de um fantasma.

 

- Tu não és... tu não és o Iker!

- Claro que sim, sou eu mesmo.

 

- Ora esta, Iker... O que te aconteceu?

- Nada de importante.

 

Conhecendo a propensão do guarda para a tagarelice, Iker preferiu reservar as suas confidências para o seu professor.

 

- Talvez devesses partir outra vez.

 

- Partir outra vez? Quero voltar para a minha casa e continuar os estudos!

 

Face à indignação do jovem, o guarda não insistiu.

 

Intrigado, Iker apressou-se em direcção a morada do velho escriba que lhe dava abrigo e o educava. À sua passagem, as miúúdas pararam de brincar com as bonecas de trapos e as mulheres que transportavam provisões imobilizaram-se com ar desconfiado.

 

A porta estava fechada. Havia tábuas tapando as janelas.

Iker bateu e tornou a bater.

 

- Não insistas - recomendou-lhe a vizinha. - O velho escriba morreu.

 

O céu desabou sobre a cabeça do rapaz.

- Morreu... Há quanto tempo?

 

- Uma semana. Depois da tua partida, foi devorado pela tristeza.

Iker sentou-se na soleira e chorou.

 

Ao raptá-lo, os piratas tinham morto o seu pai adoptivo.

 

- Vai ter com o administrador - aconselhou a vizinha. - Ele dir-te-á mais.

 

Apesar do seu desgosto, Iker notou a hostilidade da aldeia. Todos ali o consideravam responsável pela morte do seu mestre.

 

Pela primeira vez, o rapaz sentiu a queimadura insuportável da injustiça. Mas ele explicaria tudo e aquela queimadura desapareceria. Com a cabeça e o coração pesados, Iker avançou lentamente até à casa do chefe da aldeia, que dava instruções aos operários encarregados da manutenção dos canais.

 

- Ia jurar... o nosso aprendiz de escriba! És mesmo tu? Que surpresa! Estava no entanto certo de nunca mais te ver.

 

O tom do chefe, um robusto quinquagenário, era ao mesmo tempo irónico e mordaz. Com um gesto de desprezo, mandou embora os operários.

 

- Fizeste morrer de desgosto o teu protector, Iker. É um crime de que terás de responder perante os deuses. Se pudesse, metia-te na prisão.

 

- Estão enganados, estou inocente! Fui raptado por piratas, só lhes escapei por milagre.

 

O chefe da aldeia desatou a rir.

 

- Inventa qualquer coisa mais plausível! Ou melhor, cala-te e vai-te embora.

 

- Mas... Queria ficar em minha casa!

 

Falas da casa? O seu proprietário não fez testamento em teu favor. Por isso a requisitei. Os habitantes da aldeia desprezam-te, já não tens lugar entre nós.

 

- Têm de me acreditar, fui realmente raptado, eu...

 

- Basta! Espero que o remorso apodreça a tua alma. Se não partires imediatamente, ordenarei aos meus criados que te expulsem à cacetada. Ah... O teu protector desejava que eu te entregasse este cofre, se algum dia reaparecesses. Mais uma ingénua generosidade da sua parte, mas sou obrigado a executar as suas últimas vontades. Deixa Medamud, Iker, e nunca mais aqui voltes sob nenhum pretexto.

 

Apertando o cofre de encontro ao peito, Iker esperou estar longe da aldeia para o abrir. Verificou que o ferrolho de madeira tinha sido quebrado.

 

No interior, um pequeno papiro enrolado e selado.

 

O selo também fora partido e reconstituído desajeitadamente. Em poucas linhas, o velho escriba amaldiçoava o seu aluno e prometia-lhe mil castigos. Mas Iker conhecia suficientemente a escrita do seu professor para constatar que fora imitada de forma grosseira.

 

No fundo do cofre havia uma fina camada de gesso. À sombra de uma tamargueira, o jovem raspou com um pedaço de madeira. Surgiu uma mensagem que lhe dilatou o coração:

 

Sei que não fugiste como um ladrão. Oro para que estejas são e salvo. A minha existêncea chegou ao fim, faço votos de que te tornes um grande escriba. Se voltares a Medamud, espero que esse bandido do chefe da aldeia te entregue o testamento, no qual te deixo a minha casa, e este cofre que contém os meus mais belos cálamos. Mas veio aqui um estrangeiro. O chefe entende-se às maravilhas com ele. Sinto rondar forças obscuras e é por isso queprefiro ocultar esta mensagem com a técnica que te ensinei'. Não te demores na região, parte para aprovíncia de Dju-ka, "a Montanha elevada". Será a primeira etapa da tua viagem. Possam os deuses conduzir-te ao termo da tua Busca. Sejam quais forem as provações, não cedas ao desespero. Estarei sempre a teu lado, meu filho, para te ajudar a cumprir um destino que ainda ignoras.

 

Quando o tesoureiro DMedés entrou na sua sumptuosa moradia no centro da cidade de Mênfis, dois servidores apressaram-se a lavar-lhe os pés e as mãos, calçar-lhe sandálias de interior, perfumá-lo e servir-lhe vinho branco fresco proveniente dos oásis.

 

A imponente personagem, que era muitas vezes convidada a jantar no palácio e tinha mesmo comido à mesa do Rei, era um dos altos funcionários da capital. Vestido de linho fino de primeira qualidade, verificava os inventários dos templos que redistribuíam as riquezas depois de as terem sacralizado.

 

Desde que fora nomeado, Medés percebera todas as vantagens que podia obter da sua posição privilegiada. Utilizando da melhor forma os serviços de escribas contabilistas, intendentes e arquivistas, o tesoureiro roubava pouco, mas com frequência. Agindo com extrema prudência, não deixava qualquer vestígio das suas infracções e falsificava os documentos administrativos com tanta habilidade que nem mesmo um olhar experiente se aperceberia de qualquer coisa.

 

Ora Medés não estava nem satisfeito nem feliz.

 

Em primeiro lugar, sentia-se estagnar. É verdade que o Faraó Senuseret lhe concedera um posto importante, mas o tesoureiro desejava mais. NinguÉm era mais competente do que ele. Medés era o melhor e queria ser reconhecido como tal. Se aquele Rei teimoso persistisse em não compreender isso, seria necessário intervir, talvez de forma brutal. Senuseret tinha muitos inimigos, a começar por riquíssimos governadores de província com os quais Medés se entendia bem. Se o Faraó cometesse o erro de reduzir as suas prerrogativas, o seu reinado seria breve. Não se murmurava que um dos seus predecessores fora assassinado?

 

Em seguida, Medés interrogava-se sobre a verdadeira natureza do poder e a melhor forma de se apropriar dele. Para melhor desviar alguns fornecimentos destinados aos templos, tornara-se sacerdote temporário. Participando nos rituais, atingira o sagrado. Exibindo o seu entusiasmo pelas práticas espirituais, lisonjeando os seus superiores, apresentando-se como um doador generoso, Medés estava fascinado pelos mistérios a que não tinha acesso. Apenas ao Faraó e a alguns altos sacerdotes era permitido contemplá-los. O Rei não obteria aí o essencial do seu poder?

 

As portas do templo coberto permaneciam fechadas ao tesoureiro. Àquele domínio, que Medés considerava tão essencial como a actividade económica, ainda não tinha qualquer acesso. E não estava disposto a abandonar as suas funções profanas para viver uma existência de recluso.

 

A situação parecia bloqueada, até que a tagarelice de um dignitário do templo de Hathor, em Mênfis, lhe forneceu uma informação capital a propósito da Terra do Deus, o país de Punt. Como todos os que conheciam essa fábula, Medés troçava dela. O povo e as crianças tinham o gosto pelo maravilhoso e era preciso distraí-los com lendas. Ora, segundo o dignitário, Punt não era uma lenda.

 

A Terra do Deus existia realmente, transbordava de produtos extraordinários, entre os quais um ouro que não era semelhante a nenhum outro, outrora utilizado em grande segredo por alguns santuários. Em troca de uma mobília cara, o tagarela dera vagas indicações geográficas antes de morrer com uma crise cardíaca. Era pouco, mas suficiente para iniciar uma investigação.

 

- Senhor - anunciou o intendente de Medés - o vosso visitante chegou.

 

- Fá-lo esperar, preciso de repousar alguns minutos.

 

Medés engordara nos últimos tempos. Dotado de grande energia que os seus quarenta e dois anos não alteravam, tinha tendência para comer de mais e beber de mais a fim de acalmar as suas insatisfações. Tão enfartada como ele, a mulher tinha de mostrar-se inventiva e perversa quando tentavam atingir o prazer.

 

Com o cabelo preto empastado sobre o crânio redondo, um rosto lunar, torso largo, pernas curtas e pés gorduchos, Medés era maciço e atarracado.

 

Tinha por vezes a sensação de sufocar, sobretudo quando não conseguia suficientemente depressa aquilo que desejava. Mas a sua avidez era tal que se controlava para continuar o seu caminho em frente. E aquela entrevista com um dos seus emissários seria provavelmente uma etapa decisiva.

 

Do lado da rua, a casa estava bem protegida: janelas com gradeamento de madeira, pesada porta principal feita de fortes tábuas e fechada por um grande ferrolho, entrada de serviço vigiada permanentemente por um guarda. Dois andares, quinze divisões, um terraço, uma varanda aberta sobre o jardim onde fora feito um espelho de água.

 

Foi ao abrigo de um pavilhão que Medés recebeu o seu visitante, o falso polícia que interrogara Iker.

 

- Espero que me tragas excelentes notícias.

- Mais ou menos, senhor.

 

- Tens o ouro?

 

- Sim e não. Enfim, talvez... Medés sentiu a cólera subir.

 

- Em negócios, não aprecio a falta de precisão. Recapitulemos então os elementos uns a seguir aos outros. Quando regressou o Veloz ao porto?

 

- Não regressou, senhor, porque se afundou com homens e tudo.

- Afundado! Tens a certeza?

 

- Tenho um único testemunho, mas parece verdadeiro.

 

- Do capitão?

 

- Não, do rapaz que me haveis ordenado que raptasse em Medamud e que apanhei numa povoação perto de Copto. Sabeis quem era, aquele rapaz sem família que gostava tanto da solidão e do estudo.

 

- Eu sei, eu sei! A oferenda ideal para acalmar uma tempestade. O chefe de Medamud tinha-nos indicado esse jovem parvo e não o lamentou. Mas como pode ser a única testemunha a sobreviver?

 

- Não sei, mas é um facto. Contou-me que uma onda enorme submergira o Veloz que se encontrara por milagre numa ilha deserta e que fora recolhido por um barco cujo capitão não acreditara uma só palavra da sua história. No entanto, este apoderou-se de duas caixas provenientes da ilha antes de desembarcar o seu passageiro, que todos tomam por louco.

 

Teria o náufrago atingido Punt interrogou-se Medés.

- Seria capaz de reencontrar a ilha?

 

- Segundo ele, senhor, a ilha afundou-se nas águas e desapareceu.

- O que continham as caixas?

 

- Substâncias odoríferas.

- Nada mais?

 

- Não disse mais nada.

- E deixaste-o ir embora!

 

- Como poderia fazer de outra forma? Como polícia, fingi registar o seu depoimento, o chefe da povoação não notou nada de anormal e não tínhamos qualquer razão para reter esse fabulador de mente avariada.

 

- Não te passou pela cabeça que te estivesse a mentir?

- Acredito que é sincero.

 

- Eu estou céptico! Disse-te o nome do barco que o socorreu?

- Não sabe.

 

- Esse rapaz fez troça de ti! - berrou Medés. - Embrulhou-te com histórias de criança para melhor te esconder a verdade.

 

- Garanto-vos...

 

- Tens de o reencontrar e depressa! Com certeza regressou a Medamud. O chefe da aldeia deve tê-lo expulso de lá, mas talvez saiba a direcção que tomou. Quando o tiveres encontrado, fá-lo falar e depois desembaraça-te dele.

 

- Quereis dizer...

 

- Entendeste-me perfeitamente.

- Mas, senhor...

 

- Esse maltrapilho não tem família, ninguém se importará com esse novo e definitivo desaparecimento. Dissimula o seu cadáver e os abutres e roedores encarregar-se-ão dele. E serás bem remunerado. Parte imediatamente.

 

O tesoureiro dissimulava mal a sua fúria. Para armar um barco e reunir um bando de piratas capazes de navegar em direcção a Punt, gastara sem deitar contas evitando atrair a atenção das autoridades. Num futuro próximo, não estaria em condições de continuar aquela aventura.

 

Logo que o falso polícia abandonou a casa, Medés pensou que a tripulação que recolhera o náufrago com certeza não teria tento na língua. O incidente fora provavelmente falado nas tabernas dos portos e, além disso, o capitão procuraria negociar o conteúdo das duas caixas. Mesmo que se tratasse apenas de unguentos, conseguiria uma pequena fortuna. E se esse estranho carregamento comportasse produtos mais preciosos ainda, precisaria de encontrar um interlocutor competente e rico.

 

Era evidente que esse tal capitão, se existia realmente, não passaria desapercebido.

 

Medés convocou o seu alma danada, Gergu, estroina inveterado e temível colector de impostos. Agiria com toda a legalidade e havia de trazer o que lhe pertencia.

 

No barco que o reconduzia a Mènfis, Senuseret tomava plenamente consciência do terrível desafio que acabava de lhe ser lançado, no momento em que desejava encarregar-se dos governadores de província que recusavam ceder a mínima parcela das suas prerrogativas.

 

Desde que Osíris criara o Egipto, formado do Delta e do vale do Nilo, o Faraó reinava sobre as Duas Terras depois de as ter ligado solidamente, como O da Abelha, governava o Norte; como O do Junco, o Sul. A abelha produzia o mel, o ouro vegetal, indispensável para curar; o junco servia para cem usos diferentes e, sob a forma de papiros, tornava-se o suporte dos hieróglifos, "as palavras de Deus". Assim, na pessoa do Faraó, protegido por Hórus, senhor do céu e filho de Osíris, encarregado de velar pelo seu pai, todas as forças de criação se reuniam. E competia-lhe a ele reunir as partes dispersas do país.

 

Senuseret não contava menos de seis adversários temíveis, seis governadores de província que se consideravam autónomos e desdenhavam do monarca instalado em Mênfis. Por felicidade, não pensavam em federar-se, porque cada um defendia orgulhosamente a sua independência. Por causa dessa situação, o Egipto empobrecia. Manter as coisas como estavam evitava, como é evidente, graves conflitos, mas conduzia o reino à decadência.

 

Facto estranho, cinco dos seis notáveis hostis ao Faraó encontravam-se à frente de províncias próximas de Abido. Fora um deles a conseguir utilizar a capacidade de destruição de Set contra a acácia de Osíris? Se a hipótese se confirmasse, Senuseret travaria um combate impiedoso, simultaneamente para fazer reverdecer a árvore e salvar o Egipto.

 

Devia começar por recolher um máximo de informações sobre esses seis potentados a fim de identificar o culpado. Depois, seria necessário atacar com eficácia, sem deixar ao inimigo a possibilidade de se reerguer. Mas a quem confiar uma missão tão delicada? A corte de Mênfis estava povoada de lisonjeadores, intriguistas, ambiciosos, cobardes e mentirosos. Apenas Sobek, o Protector, se dedicava à tarefa de corpo e alma, sem se preocupar com benefícios pessoais.

 

Senuseret seria portanto obrigado a utilizar as fracas forças de que dispunha e, sobretudo, confiar na sua intuição. Quanto à procura do ouro susceptível de curar a acácia, seria ainda mais árdua. Pretendia a lenda que o ouro verde de Punt possuía excepcionais qualidades, mas ninguém conhecia a localização da Terra do Deus. E continuaria ela a produzir o precioso metal? Restavam as minas do deserto de Leste, sob o controlo de alguns governadores de província, e as da Núbia, fora do alcance.

 

Também aí a tarefa parecia impossível. Senuseret não tinha os meios para empreender semelhante investigação.

 

A solução impunha-se portanto: precisava de os criar, Primeira prioridade: dar nova energia à árvore da vida.

 

O Faraó começou então a traçar os planos de um templo e de uma Morada de Eternidade destinados a Abido.

 

Trabalhava-se duramente nos campos. As colheitas da Primavera eram abundantes e nada se devia perder.

 

A um dia de caminho de Medamud, Iker apresentara-se ao intendente de uma grande propriedade para lhe oferecer os seus serviços de aprendiz de escriba.

 

- Cais bem, meu rapaz. Tenho uma grande quantidade de sacos a contar e marcar. Depois, farás o inventário.

 

Uma semana de trabalho em perspectiva, com um salário conveniente: alimentação, uma esteira, uma cabaça e um par de sandálias. Enquanto trabalhava, o rapaz fervia contra o chefe de Medamud,

 

aquele bandido que destruíra o testamento do velho escriba para roubar a casa destinada ao seu discípulo! Espezinhara também as últimas vontades do defunto ao abrir o cofre, roubando os cálamos e redigindo um falso texto de imprecações contra Iker.

 

Como era possível ser tão vil? Iker descobria um mundo cruel, implacável, onde a mensagem e a perfídia triunfavam. Mas'uma imensa alegria apagava aqueles infortúnios: o seu professor sabia que ele não tinha fugido, mantivera a confiança nele. No entanto, que estranha mensagem! De que Busca, de que destino falava? De repente, aquele velho mestre surgia-lhe tão misterioso como a gigantesca serpente da ilha do ka.

 

Iker teria gostado de apresentar queixa contra o chefe da aldeia de Medamud e fazer com que fosse condenado. Mas quem o acreditaria? Na ausência de testamento, o rapaz não tinha qualquer direito à casa do seu professor. Em Medamud apenas encontraria acusadores que o censurariam por ter abandonado a aldeia sem dizer uma palavra.

 

Terminada a sua tarefa, Iker preparava-se para seguir o seu caminho.

- Pareces-me muito consciencioso, meu rapaz. Não desejarias um emprego mais estável?

 

- De momento, não.

 

- És jovem, mas não esqueças de te fixar. Tens aqui com que subsistir durante vários dias.

 

Pão, carne seca, alho e figos: o intendente mostrava-se generoso.

- Onde tencionas ir?

 

- Na direcção da Montanha elevada.

 

- Mais vale prevenir-te que o governador desse território não é considerado muito simpático.

 

Os murinhos que separavam as parcelas retinham a água o tempo necessário. Com uma ciência consumada, os camponeses irrigavam da melhor forma os seus campos. A prosperidade era construída sem cessar e não havia dia de descanso para os preguiçosos.

 

Penetrando na província da deusa serpente Uadjet, a Verdejante, Iker fez uma constatação surpreendente: no nome de Dju-ka, a Montanha elevada, havia a mesma palavra ka que na "ilha do ka", o domínio da serpente para sempre mergulhado num sonho. Seria um acaso ou um sinal daquele destino evocado pelo velho escriba?

 

Ka, "alto, elevado"... Para que objectivo misterioso devia o jovem subir? E o que era verdadeiramente o ka, essa energia secreta que, em hieróglifos, se escrevia com dois braços levantados?

 

Perdido nos seus pensamentos, Iker esbarrou com um homem armado com um cajado.

 

- Eh, lá, meu rapaz! Devias olhar para a frente!

 

- Perdoai, mas... sois o polícia que me interrogou perto de Copto!

- Sou eu mesmo. Tive alguma dificuldade em encontrar-te.

 

- O que me quereis?

 

- O teu depoimento estava incompleto, gostava de mais precisões.

 

- Já vos disse tudo. Quem devia ser preso era o chefe da aldeia de Medamud.

 

- Qual a razão?

 

- É um ladrão. Destruiu um testamento em meu favor.

- Podes prová-lo?

 

- Infelizmente, não.

 

- Voltemos ao teu depoimento e a essas duas caixas cheias de produtos preciosos. Com certeza inspeccionaste o seu conteúdo. Dá-me pormenores.

 

- Substâncias odoríferas, creio.

 

- Então, meu rapaz, isso não me basta. Deve saber mais.

- Garanto-vos que não.

 

- Se não te mostrares mais razoável, arriscas-te a ter graves aborrecimentos.

 

O falso polícia desferiu nas pernas de Iker uma violenta pancada com o cajado.

 

O rapaz caiu para a frente e o seu agressor segurou-o deitado no chão.

 

- Agora, a verdade! - Já vos disse!

 

- O nome do barco que te salvou;

- Não sei.

 

Uma dezena de pauladas nos ombros arrancaram gritos de dor a Iker.

 

- O nome do barco e o do seu capitão?

- Não sei!

 

Não és nada razoável, meu rapaz. Quero essas informações e tê-las-ei. Caso contrário, mato-te.

 

- Juro-vos que não sei nada!

 

O falso polícia tornou a bater, mas não obteve nenhuma outra resposta.

 

Era evidente que aquele rapazelho dizia a verdade e não tinha nada mais a contar-lhe.

 

A nuca, as costas e os rins estavam em sangue. Na sequência de uma nova série de pancadas, Iker desmaiou.

 

Quase não respirava.

 

O seu agressor arrastou o corpo para um maciço de papiros, na beira de um canal.

 

Agonizante, Iker não tardaríaa a expirar.

 

Visto, que sucumbiria aos ferimentos, o falso polícia não seria rresponsável pela sua morte. Face a eventuais juizes, tantoaqui com() no Além, era preferível assim.

 

Primeiro, foi uma dor intolerável. Depois esta acalmou, com uma sensação de frescura como Iker nunca sentira. De repente, as costas deixaram de lhe doer e entreabriu os olhos, tentando saber para que mundo o seu agressor o enviara.

 

- Acordou! - exclamou uma rapariga.

 

- Tens a certeza? - interrogou uma áspera voz de homem.

- Está a olhar para nós, pai!

 

- No estado em que estava, nunca deveria ter sobrevivido.

Iker tentou endireitar-se, mas uma queimadura fulgurante fê-lo voltar a cair na esteira.

 

- Não te mexas! - exigiu a rapariga. - Tens muita sorte, sabes? Fui eu que te descobri num maciço de papiros consagrado à deusa Hathor. Em geral, contento-me em depositar ali uma oferenda, mas como havia dezenas de aves a sobrevoá-lo, piando, ousei aventurar-me nele. O comportamento das aves era tão anormal que queria certificar-me do que se passava. Preveni o meu pai e os camponeses transPortaram-te. Há três dias que não paro de te untar com o mais eficaz dos nossos bálsamos. É composto por natrão, óleo branco, gordura de hipopótamo, de crocodilo, de siluro e de rainha, incenso e mel. O médico-chefe da província deu-me mesmo pastilhas de extracto de mirra para acalmar as tuas dores. Era a única a acreditar que os teus ferimentos não eram mortais.

 

Era morena, bonita, muito viva. O pai, um robusto camponês, parecia francamente hostil.

 

- O que te aconteceu, meu rapaz?

 

- Um homem atacou-me para me roubar.

- O que possuías tu de tão precioso?

 

- Uma esteira, uma cabaça, sandálias...

- Basta! E de onde vinhas?

 

- Sou órfão e alugo o meu trabalho como escriba principiante.

- Custas-me caro, meu rapaz, Muito caro.

 

O camponês afastou-se.

 

- Não te preocupes - recomendou a rapariga. - Embora seja rabugento e agreste, o meu pai é bom homem. Eu chamo-me Florzinha. E tu?

 

- Iker.

 

- Assim, não és nada bonito de se ver! Mas quando os teus ferimentos sararem, não deves ser um rapaz muito feio.

 

- Achas que poderei voltar a andar?

 

- Daqui a menos de uma semana havemos de passear juntos pelo campo.

 

Florzinha não exagerara. Graças aos efeitos do bálsamo, dos analgésicos e de numerosas massagens, Iker segurava-se nas pernas. Por milagre, não fora quebrado nenhum osso e os vestígios das pancadas começavam já a esbater-se.

 

No entanto, não houve passeios pelo campo porque o camponês tinha outros projectos.

 

- És mais forte do que pareces - constatou ele. - E, sobretudo, estás muito endividado, porque este tratamento custa uma fortuna.

- Como poderei reembolsar-te?

 

- Na minha quinta não preciso de escrevinhadores. Em contrapartida, preciso de um trabalhador agrícola.

 

- Receio ser muito ineficaz!

 

- Tu é que escolhes: ou me pagas a trabalhar, ou vais passar vários anos na prisão. O administrador da nossa província não gosta dos escroques. Posso fazer-te contratar num grupo de camponeses sob a direcção de um contramestre. Viverás numa pequena casa e disporás de um pedaço de terra onde cultivarás os teus legumes. Mas antes de distribuir as minhas benesses, exijo a verdade. Quem és tu realmente e porque te agrediram?

 

Interrogando-se se não caíra numa nova armadilha e se aquele agricultor não seria feito da mesma matéria que o chefe da aldeia de Medamud, Iker mostrou-se prudente.

 

- Repito-vos que sou um escriba principiante e que venho da região tebana. O meu objectivo era tornar-me escriba público e ir de aldeia em aldeia para redigir as cartas de protesto das vítimas da administração. O homem que me atacou roubou-me o meu material.

 

O agricultor pareceu convencido.

 

- Paga primeiro as tuas dívidas. Se a profissão te agradar, ficarás. Caso contrário, partirás.

 

O contramestre era bastante simpático, mas não poupou o recém-chegado. Iker teve primeiro de limpar o pátio da quinta, depois manter limpa a capoeira, um pórtico com o tecto sustido por colunas de madeira em forma de haste de lótus. Por ali evoluíam gansos cinzentos de cabeça branca, codornizes, patos e galinhas. O encarregado da alimentação trazia grandes alcofas cheias de grãos que esvaziava em gamelas, e os animais dispunham de um pequeno lago alimentado por valas. A partir do terceiro dia, Iker viu-se forçado a intervir.

 

- Creio que há um pequeno erro - disse ao transportador das alcofas, um trangalhadanças mal barbeado.

 

- Erro em quê?

 

- No primeiro dia, deitaste o conteúdo de seis alcofas. No segundo, apenas de cinco. E hoje estão muito mais vazias.

 

- Isso incomoda-te?

 

- Tomo conta desta capoeira. Os animais devem ser correctamente alimentados.

 

- Um pouco mais, um pouco menos... Queres partilhar comigo a diferença?

 

- Quero que tragas seis alcofas bem cheias.

 

O Trangalhadanças compreendeu que Iker não estava a brincar e que seria impossível qualquer negociação.

 

- Não vais falar disto ao patrão, pois não?

- Se rectificares o teu erro, claro que não.

 

Iker não conquistara um amigo, mas a capoeira testemunhou-lhe ruidosamente o seu afecto.

 

Estás satisfeito com o teu novo trabalho? - perguntou-lhe Florzinha enquanto Iker acariciava uma gansa magnífica, quase domesticada.

 

- Faço-o o melhor que posso. - Já não tens dores?

 

- Graças aos teus cuidados, estou restabelecido. Salvaste-me a vida. Ser-te-ei sempre reconhecido por isso.

 

- Ainda não estavas morto, e a deusa Hathor teria evitado que morresses. Eu apenas apressei a cura.

 

Florzinha fez um ar contrariado.

 

- O meu pai proíbe que conviva contigo.

- Estará descontente comigo?

 

- Pelo contrário, mas tu intriga-lo porque não és como os outros. Ordenou-me que casasse com um verdadeiro camponês para lhe dar belos filhos e nos encarregarmos da quinta.

 

- Quando temos a sorte de ter um pai honesto e corajoso, devemos dar-lhe ouvidos.

 

- Falas como um velho! Olha lá, Iker, não gostarias de te tornar um verdadeiro camponês?

 

- Ainda tenho muito a pagar, mas a minha verdadeira profissão é escriba.

 

- Tenho de me ir embora. Se o meu pai nos surpreendesse, bater-me-ia.

 

- Nunca vi tão bela capoeira, meu rapaz! - constatou o agricultor. - Gosto dos que põem o coração naquilo que fazem. Mas parece que tu não te misturas com os teus camaradas.

 

- Prefiro estar só com os animais.

 

- Pois bem, isso vai mudar! Há Muita cevada a cortar e vais aprender a manejar a foice.

 

Iker nem sequer pensou em protestar.

 

Fazia e tornava a fazer a si próprio constantemente as mesmas perguntas, sabendo que não seria ali que encontraria os elementos de resposta. Para continuar o seu caminho, devia primeiro satisfazer a dívida e portanto trabalhar sem descanso a fim de conseguir, o mais depressa possível, recuperar a liberdade.

 

O rapaz foi integrado numa equipa de ceifeiros rudes e experimentados que olharam o noviço divertidos.

 

- Não tenhas medo de te cansar, pequeno - disse um deles os campos são grandes! O ano foi bom, esta terra é rica, não nos falta nada, e a carne dos cordeiros é o melhor de tudo. Mas é preciso merecê-la. Vá, tem a mão firme e não nos atrases. Não conheço ninguém que tenha morrido por ter trabalhado demais.

 

Iker em breve ficou com a cara bronzeada. O que lhe permitia aguentar aquilo era a música tocada por um flautista. Variava o ritmo, mas acabava todas as melodias com gravidade.

 

- Tens a cara inchada - notou um dos camaradas. - Estiveste com a cabeça baixa demasiado tempo. Vai ter com o flautista, que ele refresca-te.

 

Sentindo-se mal, Iker obedeceu de boa vontade.

 

Água fresca no pescoço e nas têmporas e depois alguns goles devolveram o aprumo ao rapaz.

 

- O trabalho é duro - reconheceu o músico - e é por isso que toco kas para vocês. Assim, os teus camaradas e tu não têm falta de energia.

 

- O que é o ka? - perguntou Iker.

 

- O que nos permite viver, existir e sobreviver. Osíris inventou a música para que a harmonia dilate o nosso coração. Celebra o momento em que se corta a cevada e o trigo, esse acto sagrado que revela o seu espírito, o próprio Osíris.

 

Iker bebia as palavras do instrumentista.

- Onde aprendeste tudo isso?

 

- No templo principal da província. O mestre de música ensinou-me a tocar flauta e eu ensinarei o meu sucessor. Sem ela, sem a magia que ela transmite, as ceifas não passariam de um trabalho extenuante, e o espírito de Osíris abandonaria a espiga madura.

 

- Osíris... É ele o segredo da vida?

 

- Ao trabalho, Iker! - exigiu o chefe de equipa. O flautista tocava de novo.

 

Iker continuava a manejar a foice, mas teve a sensação de que cada gesto, em vez de o esgotar, lhe dava forças.

 

Era isso, o ka, a energia que vinha do trabalho bem-feito.

 

Ao contrário dos outros ceifeiros, que não estavam encarregados de apanhar as espigas, esta nova tarefa fora imposta a Iker. O rapaz atava os feixes e metia-os em sacos que lhe trazia um adolescente.

 

- Ainda teremos que nos esfalfar assim muito tempo? - lamentou-se este. - Já temos que chegue para a nossa aldeia!

 

- Há outras aldeias - lembrou-lhe Iker - e a colheita não será abundante em todo o lado. É por isso que não devemos pensar apenas em nós mesmos.

 

O colega olhou-o com expressão desconfiada.

- Não estarás do lado do patrão?

 

- Estou do lado do trabalho bem-feito.

 

O camponês encolheu os ombros e preparou um novo saco.

- Pausa para almoço - anunciou o contramestre.

 

À sombra de uma cabana de juncos, tinha sido disposta comida apetitosa sobre uma esteira: bolos quentes recheados de legumes, pães dourados e estaladiços, alho frito em azeite, iogurtes salgados à base de leite de cabra temperados com ervas aromáticas, leite coalhado, peixe seco, carne de vaca marinada, figos, romãs e cerveja fresca.

 

Iker estava a morrer de fome, mas o Trangalhadanças impediu-o de se sentar.

 

- Já não há lugar aqui. Vai ver noutro lado.

 

- Mas é a minha equipa! Não conheço os outros.

 

- Nós não queremos saber de ti! Detestamos os espiões.

 

- Espião, eu?

 

- Expliquei aos outros que tu me denunciaste ao patrão porque eu não trazia grãos suficientes para a capoeira.

 

É mentira!

 

Visto que te manténs sempre à parte, continua. Não nos incomodes enquanto comemos. Se insistires, não hesitaremos em bater-te.

Iker não tinha vontade de lutar.

 

- Toma um pouco de água e um pedaço de pão - concedeu o Trangalhadanças, triunfante. - Trata de não abrandar a cadência, depois de um festim desses. Caso contrário, seremos nós que te denunciaremos ao patrão.

 

O banido afastou-se e comeu algumas dentadas, que não chegaram para lhe dar a energia necessária a fim de continuar a sua tarefa. Enquanto se perdia nos seus pensamentos, gritos de susto fizeram-lhe voltar a cabeça.

 

Saindo do seu esconderijo, uma cobra real acabava de surgir no meio dos convivas.

 

Tinham-se levantado todos de um salto.

 

- Espantem-na na direcção do Iker! - berrou o Trangalhadanças. Batendo com os pés, atirando terra, os trabalhadores agrícolas conseguiram o seu objectivo.

 

Iker não se tinha movido.

 

Aquela cobra tinha olhos muito maiores do que o normal, as escamas eram douradas e movia-se com uma elegância fascinante. Hipnotizado, o jovem pensava na serpente da ilha de ka.

 

- É a deusa das ceifas! - exclamou um camponês. - Deixemo-la fazer o que quiser e não lhe façamos mal. Caso contrário, a colheita estraga-se.

 

Iker ajoelhou e depositou diante da cobra fêmea o resto do seu pedaço de pão. Depois, ergueu as mãos em sinal de veneração. Instalou-se um profundo silêncio.

 

Entre o jovem e a serpente, menos de três passos. Tanto um como outro estavam tão imóveis como estátuas, mas a cobra não tardaria a atacar.

 

O decurso do tempo tinha-se interrompido.

 

E o milagre aconteceu, como no tempo de Osíris, em que o espinho não picava, em que os animais ferozes não mordiam. Satisfazendo-se com o gesto de oferenda, o réptil desapareceu no campo vizinho.

 

Não havia melhor presságio para anunciar a qualidade e a quantidade das colheitas.

 

- Tanto os outros como eu te apresentamos as nossas desculpas - disse o Trangalhadanças, muito atrapalhado. - Não podíamos saber que eras um protegido da deusa. Esperamos que não estejas muito zangado connosco e que aceites partilhar a nossa refeição. E depois é normal que te tornes o nosso chefe de equipa. Assim, também nós ficaremos protegidos.

 

Com o estômago a dar horas, Iker não precisou que insistissem.

 

- Como chefe de equipa - disse o contramestre a Iker - estás autorizado a conduzir os burros até à eira. Descarrega os sacos em silêncio, deixa agir os ritualistas e não faças nenhuma pergunta.

 

- Então há uma cerimónia?

- Não faças perguntas.

 

À frente de cinco burros que conheciam o caminho melhor do que ele, Iker dirigiu-se para a eira situada perto de uma meda provisória feita de feixes. Os quadrúpedes imobilizaram-se por iniciativa própria, sem que o rapaz tivesse de utilizar o cajado.

 

Ali se encontravam dois escribas, que tomaram nota do número de sacos. Uma parte era destinada aos camponeses e às suas famílias, a outra à padaria da província. Terminado o seu trabalho, retiraram-se.

 

Restavam apenas nove chefes de equipa, sete joeiradoras e três ritualistas, entre os quais o flautista.

 

- A eira parece rectangular - declarou ele - mas na verdade é redonda. Nela se oculta o hieróglifo' que significa "a primeira vez", o instante em que a criação se manifestou. Que a deusa das ceifas seja louvada.

 

Os seus dois colegas prepararam um pequeno altar de madeira sobre o qual colocaram um vaso com leite, pão e bolos. k

- Lamentámo-nos quando ocorreu o enterro do bom pastor

 

Osíris - continuou o flautista. - O grão desapareceu na terra e julgamos que morrera para sempre! Como a ceifa foi abundante, podemos alegrar-nos! O trigo e a cevada crescem nas costas de Osíris, ele suporta as riquezas da natureza, nunca se cansa e não emite qualquer lamento. Que os chefes de equipa depositem na eira o conteúdo dos sacos.

 

Iker estava tão feliz por participar no ritual que nem sentiu o peso do seu fardo.

 

- Tragam os burros - ordenou o flautista - e façam-nos girar em volta.

 

- Que sejam afastados - protestou outro ritualista - que não afrontem o meu pai! Os burros de Set não devem pisar o trigo de Osíris.

 

- O mistério deve ser realizado até ao seu termo - afirmou o flautista.

 

Os burros giraram e tornaram a girar, tão recolhidos como os humanos que observavam a cena.

 

Sem compreender todo o significado daquilo, Iker sentia que estava a assistir a um acto essencial. De boa vontade faria cem perguntas, mas respeitou o silêncio.

 

- Que os grãos sejam purificados - exigiu o flautista.

 

Os dois outros ritualistas fizeram sair os burros da eira e foi a vez das joeiradoras entrarem em acção

 

Cumprida a sua missão, encheram os sacos e colocaram-nos no dorso dos burros.

 

- Que os seguidores de Set levem Osíris ao céu de onde espalhará as suas bênçãos sobre esta terra - ordenou o flautista. Organizou-se uma procissão que se orientou para os celeiros.

- Que os chefes de equipa descarreguem os burros, que subam ao cimo dos celeiros e aí despejem o seu conteúdo.

 

Portanto, constatou Iker, o celeiro é comparado ao céu onde vive o espírito de Osíris contido no grão.

 

Habitado pelo ritual extraordinário que acabava de viver, o rapaz desceu passo a passo a escada para gravar na memória cada segundo daquela aventura. O contacto dos pés nus com os degraus de calcário tornava mais intenso o ritual que lhe oferecia uma nova realidade.

 

O flautista, os dois outros ritualistas, os chefes de equipa e as sete joeiradoras estavam prostrados em frente de um gigante de olhos enterrados nas órbitas, pálpebras pesadas e pómulos salientes. O seu olhar era tão penetrante que tetanizou Iker. Aquele homem severo, de nariz direito e fino, boca bem desenhada e torso largo, tinha grandes orelhas, capazes de captar o mínimo som do universo.

 

Vestia uma camisa de linho com alça única passando sobre o ombro esquerdo e um avental rectangular sobre o qual estava representado um grifo esmagando os inimigos do Egipto.

 

O punho do flautista obrigou Iker a deitar-se no chão.

- Venera o Faraó, o ser que nos dá a vida.

 

Senuseret ergueu para o céu a oferenda de trigo e cevada que pertencia aos deuses. Depois, subiu a escada que conduzia ao topo do mais alto dos celeiros e, com um tição, acendeu uma braseira na qual tinham sido depositadas bolas de incenso.

 

Ao realizar esse ritual, o Rei pensou no olhar do rapaz que se cruzara com o seu. Não conhecia outro assim.

 

Sempre atento, Iker ouviu o Faraó.

 

- Osíris morre e revive, oferece-se para alimentar o nosso povo. Pai e mãe dos humanos, produz os grãos com a energia secreta que existe nele a fim de fazer subsistir os seres. Todos vivem da sua respiração e da sua carne, dele que veio da ilha da chama para incarnar nos cereais. Comemos o corpo de Osíris, continuamos a viver graças ao ouro vegetal.

 

Florzinha apresentou ao Rei uma boneca feita com espigas. Reproduzida em numerosos exemplares, essa noiva do trigo seria exposta na fachada de cada casa até à ceifa seguinte.

 

Depois, o flautista trouxe uma grande e bela corbelha fabricada com juncos flexíveis coloridos de amarelo, azul e vermelho. O fundo era reforçado por duas tiras de madeira colocadas em cruz.

 

- Eis a corbelha dos mistérios, Majestade. O que estava espalhado está aqui reunido.

 

- Que regresse ao templo - ordenou Senuseret.

 

Trémulo de emoção, o proprietário da quinta apareceu e prostrou-se.

- Majestade, a minha melhor vaca está prestes a parir! O milagre realiza-se uma vez mais!

 

Todos os participantes na cerimónia se deslocaram até ao estábulo. O flautista pronunciou fórmulas mágicas para favorecerem o parto, enquanto o chefe dos vaqueiros assistia ao animal, que lhe lambeu a mão.

 

Lutando contra o sofrimento, a vaca estendeu o pescoço e contraiu o traseiro. O vaqueiro acariciou-lhe os flancos para a acalmar.

 

- O Verbo encontra-se nos touros - recordou o Faraó - a intuição conhecedora nas vacas. Devem ser tratados com o maior respeito. A voz tranquilizadora do soberano acalmou a mãe.

 

E surgiu a cabeça do vitelinho que o parteiro puxou docemente, ao mesmo tempo que as patas anteriores. Malhado, com olhos castanhos, era uma maravilha.

 

O parteiro depositou-o diante da mãe, que o lambeu demoradamente. Todos esperavam a sua decisão.

 

Com um olhar profundo e determinado, a vaca fixou Iker.

 

- Aproxima-te e pega no vitelo malhado - exigiu o flautista. Um pouco desajeitado, Iker segurou com ternura no pequeno ser, que não manifestou qualquer inquietação.

 

- Apareceu o novo Sol - concluiu o Faraó. - Que a festa do fim das ceifas nos reúna em alegria.

 

Para Sobek, o Protector e os seus homens, não se tratava de deixar andar nem de tomar parte, por pouco que fosse, nos festejos. Devido ao seu estado de saúde, Uakha, o chefe de província da Cobra, não pudera assistir ao ritual em companhia do Rei. Mas não seria uma hábil estratégia que lhe permitiria declinar qualquer responsabilidade em caso de atentado?

 

Aventurar-se assim em território hostil parecia uma loucura. No entanto, Senuseret tomara essa decisão e o chefe da sua guarda pessoal devia adaptar-se a ela. Felizmente, a corte de Mênfis ignorava os projectos reais do monarca.

 

O que soubeste acerca de Uakha? - perguntou Senuseret. É considerado um bom administrador, amado pelos humildes, e nunca se pronunciou abertamente contra vós. A sua maior preocupação, tal como os seus predecessores, é a conclusão da sua Morada de Eternidade.

 

- Dispõe de uma milícia?

 

- Não, apenas de forças da ordem bastante reduzidas, sem contar os polícias do deserto que vigiam as pistas que vão dar aos oásis de Dakla e Kharga. Esta província conta com elas e garantem a segurança das caravanas.

 

- Investigaste sobre o rapaz que te indiquei?

 

- Chama-se Iker. É um trabalhador agrícola recentemente contratado.

 

- Não o percam de vista. Sobek insurgiu-se.

 

- Se o considerais perigoso, Majestade, porque não o prendemos?

- Não é uma ameaça.

 

- Mas então...

 

- Contenta-te em mandá-lo observar sem que ele saiba.

 

Roído pela artrose, o chefe de província Uakha recebeu o Faraó no limiar da sua incrível Morada de Eternidade, que fazia lembrar os conjuntos arquitectónicos do tempo das grandes pirâmides. O gigantesco túmulo subia em direcção ao topo da falésia, impregnando-se da força da Montanha elevada. As diversas Partes eram ligadas entre si por escadarias.

 

Ao templo de recepção sucedia-se uma longa calçada que ia dar ao primeiro pátio; depois a rampa atingia um pórtico de colunas que se abria para um segundo pátio fechado por altos muros. Vinha em seguida uma espécie de santuário que abrigava a câmara de ressurreição. No fim do percurso, no centro, um nicho para o ka, ponto de contacto entre o aqui e o além.

 

- Um esplêndido monumento, quase digno de um Rei- constatou Senuseret.

 

- Tenho consciência disso, Majestade, mas não vejais nisso qualquer provocação. Era esta a tradição local que se extinguirá comigo.

- Porquê?

 

- Porque o vosso reinado será um grande reinado e haveis decidido pôr termo à independência dos chefes de província.

 

- De onde vem essa convicção?

- Da vossa presença aqui.

 

- E se fosse verdade, como reagirias tu?

 

- Aprovando-vos sem reserva, porque esta anarquia já durou demasiado. Por agora, os prejuízos são mínimos, mas é altura de restabelecer firmemente a lei de Maet. Será reunindo as províncias e mantendo a sua união com punho inflexível que tornareis o Egipto próspero. Dais-me autorização para me sentar neste banquinho de pedra? Senuseret aquiesceu.

 

- Sinto-me feliz por ter vivido o tempo suficiente para conhecer este momento - confessou o velho Uakha. - Um Rei fraco teria dispersado o poder e destruído o país.

 

- Alguns chefes de província não partilham a tua opinião. -Não o ignoro, Majestade. Com cinco deles o confronto ameaça ser duro, mesmo violento. Sobretudo, não recueis. As grandes famílias fizeram mal em agarrar-se ao carácter hereditário das funções, esquecendo que a qualidade pessoal e as competências devem impor-se sobre o nascimento. O sistema tornou-se tão rígido que é necessário quebrá-lo de imediato. Sois vós que reinais, mais ninguém.

 

Indecifrável, o monarca não manifestou o mínimo indício de satisfação.

 

- Os vossos adversários são ricos, arrogantes e determinados continuou Uakha. - Podeis contar comigo, com os meus polícias e com a população da minha província para vos apoiar na vossa acção.

- Declarou-se outra guerra - revelou Senuseret.

 

- Quem vos ataca?

 

- Um ser capaz de manobrar a força de Set e decidido a fazer com que Osíris morra de novo.

 

O rosto de Uakha ensombrou-se.

 

- E estais convencido, Majestade, que se trata de um dos chefes de província que vos são hostis.

 

É uma hipótese que não posso pôr de parte.

 

Como engendraria a nossa terra semelhante monstro? Agindo assim, arruinaria os esforços realizados desde o tempo dos deuses e far-nos-ia mergulhar nas trevas!

 

- É por isso que preciso de o identificar, tornando o Egipto coerente e forte.

 

- Não disponho de qualquer informação sobre esse demónio afirmou Uakha.

 

O que sabes sobre o Punt?

 

É uma bela lenda, Majestade. Há muito tempo, os navegadores teriam descoberto a localização desse país maravilhoso e dele teriam trazido ouro.

 

- Neste território que controlas não há nenhum jazigo?

- Nenhum.

 

- Estás satisfeito com os teus talhadores de pedra, Uakha?

- As obras falam por eles, Majestade.

 

- Vou ter necessidade desses artesãos durante um longo período e ficarão sujeitos ao segredo.

 

Senuseret ia saber se o chefe de província Uakha era verdadeiramente um aliado.

 

- Estão à vossa disposição, Majestade.

 

Inspector dos impostos e colector de taxas, Gergu era um homem corpulento, alcoólico raramente embriagado e amador de mulheres, que considerava como objectos para darem prazer. Divorciado pela terceira vez, divertira-se a martirizar as esposas, tão assustadas pela sua violência que não se tinham atrevido a apresentar queixa. Quanto à sua filha única, refugiada em casa da mãe, jurava nunca mais rever aquele brutamontes.

 

Ao encontrar o tesoureiro Medés, Gergu optara por um novo destino. Tornar-se o homem de confiança daquela importante personagem, sob a capa das suas funções oficiais, permitia-lhe mais agitação. Podia agora, com toda a impunidade, exercer a sua crueldade natural sobre as vítimas que lhe indicavam e sobre as que ele escolhia.

 

Não apenas o trabalho era bem pago, como ainda se perspectivavam belas promoções. Como Medés subiria certamente na hierarquia, Gergu segui-lo-ia.

 

Marinheiro de formação, segurava pessoalmente o leme do barco fiscal. Menos à-vontade nas deslocações terrestres, suava muito. Supersticioso, não viajava sem uma boa dezena de amuletos.

 

Ao chegar a Copto, Gergu sentiu-se aliviado. O deserto oprimia-o e, tal como o seu patrão, suportava mal o calor. Mas seria ali, naquela cidade, que reencontraria a pista das duas caixas que Medés queria. O seu instinto de caçador raramente o enganava e fizera sair do covil suficientes animais selvagens para sentir que o bando de marinheiros desonestos não devia estar longe.

 

Com a sua equipa de polícias armados de cacetes, Gergu não se mostrou discreto. Deu a volta às tabernas e interrogou todos os patrões. O sexto foi o certo.

 

- É verdade - admitiu o taberneiro. - Alguns valdevinos gabaram-se de terem deitado a mão a um tesouro inesperado e embebedaram-se até de manhã.

 

- Precisaram a natureza desse tesouro? - perguntou Gergu.

- Perfumes e unguentos preciosos, segundo o que entendi.

- De que proveniência?

 

- Não falaram disso.

 

- E para onde foram esses valdevinos?

 

- O mais excitado, que os outros chamavam "capitão", referiu a quinta dos pais, no sul da cidade. Ali ficariam tranquilos esperando o resultado das transacções. Não sei realmente mais nada.

 

- Já é bom, taberneiro. Na condição, como é evidente, que não tenhas mentido.

 

- Claro que não! Isto não me vai provocar aborrecimentos, pelo menos?

 

- Antes pelo contrário - afirmou Gergu com um sorriso guloso. - Se aceitares fazer parte da minha rede de informadores, obterás com isso um belo lucro.

 

- Vou indicar-vos a localização dessa moradia a sul da cidade.

 

O capitão estava com os olhos fixos nas duas caixas de onde continuava a emanar um delicioso aroma.

 

De cada vez que tentava abri-las, tornavam-se tão quentes que era obrigado a desistir. Os seus cúmplices começavam a impacientar-se, mas nenhum queria correr o risco de ser vítima de um feitiço. Possuíam com certeza uma fortuna, mas como haviam de negociá-la da melhor maneira?

 

Seria necessário afastarem-se de Copto e tratar do caso numa cidade maior para poderem passar desapercebidos, e talvez irem até Mênfis. O mais aborrecido era ter de partilhar. De momento, o capitão precisava de carregadores. Depois, seria diferente.

 

Um ruído de luta alertou-o.

 

Batiam-se lá fora. Deveria sair, mas não podia abandonar as caixas.

Ouviram-se alguns gritos ferozes e depois, durante alguns segundos, fez-se silêncio.

 

Gergu irrompeu no compartimento.

 

- Ah! Aqui está sem dúvida o famoso capitão e chefe dos ladrões! E não está sozinho Com as duas caixas que o fisco procura!

 

- O fisco? Mas ...

 

- Declaraste estas riquezas à administração?

- Ainda não, mas...

 

- Um dos teus homens morreu, os outros foram presos. Tornando-se culpados de pancadas e ferimentos nos representantes da ordem, cometeram uma falta muito grave, passível de pesadas penas. Nem eles nem tu voltarão a ver o mar.

 

- Mas eu não lutei!

 

- Só os cobardes fogem às suas responsabilidades - acusou Gergu.

 

- Essas caixas não me pertencem! Levai-as e deixai-me ir embora.

- Como as obtiveste?

 

- Por acaso! Recolhi um náufrago numa ilha deserta.

- Qual é a sua localização?

 

- Vi-a desaparecer nas ondas. Gergu esbofeteou o capitão.

 

- Detesto que façam troça de mim. Vais falar, e depressa! Esmurrou o marinheiro com prazer. Com o nariz e várias costelas partidas, o rosto em sangue, o capitão relatou os acontecimentos tal como se tinham desenrolado. Convencido da sinceridade do seu interlocutor, Gergu estava abalado. - que há nessas caixas?

 

- Não consegui abri-las! Quando tento, queimam-me os dedos. Gergu nem tentou. A temeridade não era o seu forte e não lhe pagavam para correr riscos. Aquele caso parecia-lhe cada vez mais estranho e competia a Medés desembrulhar os fios da meada.

 

Um criado trouxe cerveja fresca a Medés e ao seu visitante.

 

- O palerma falou? - perguntou o tesoureiro com impaciência.

- Ele não sabia nada realmente, senhor - afirmou o falso polícia - e não fez mais do que repetir a sua absurda história. Creio que o rapaz ficou de tal forma aterrorizado com o naufrágio que perdeu a cabeça.

 

- Desembaraçaste-te dele?

 

- As vossas ordens foram executadas.

 

- É bom que te afastes da região. Arranjei-te um excelente posto longe daqui, no Faium. Pouco trabalho, bela casa, boa remuneração. O teu lugar está reservado num barco.

 

O falso polícia curvou-se e desapareceu.

 

Despeitado, Medés esvaziou de um gole duas taças de cerveja. Não duvidava que o interrogatório tivesse sido bem-feito e que o pequeno escriba tivesse perdido a razão. Restavam apenas as duas caixas, se elas existiam.

 

A resposta não tardou.

 

No dia seguinte à noite, um Gergu de cara congestionada e satisfeita apresentou-se ao porteiro da moradia de Medés, que o recebeu imediatamente.

 

- Missão cumprida, patrão!

- Onde estão as caixas?

 

- Num armazém abandonado, bem guardadas. Pareceram-me demasiado evidentes para serem entregues aqui.

 

- Excelente iniciativa! A tripulação?

 

- Não ouviremos falar mais deles. Esses criminosos apodrecerão nos trabalhos forçados.

 

- O que te disse o capitão?

 

- Não o poupei, podeis acreditar! Mas esse pobre homem enlouqueceu. Um rapaz e essas caixas recolhidas numa ilha deserta, o vosso barco que se afundou na sequência de uma tempestade, essa ilha que desapareceu no mar e o rapaz o único sobrevivente: eis tudo o que consegui obter.

 

Medés não ocultou o seu desapontamento.

 

- Parece que é essa a verdade, Gergu. Perdemos o Veloz e a sua tripulação, o mar não quis o pequeno escriba como oferenda. Esta expedição, à qual consagrei tantos esforços e paciência, salda-se por um fracasso.

 

- Esqueceis as caixas! Até agora, ninguém as abriu.

- Como podes ter a certeza?

 

- São protegidas por um feitiço.

 

- Quebrá-lo-emos!

 

Os dois homens dirigiram-se sem demora ao armazém abandonado, guardado pelos esbirros de Gergu.

 

Medés continuava persuadido que o país do Punt existia realmente, e aqueles acontecimentos surpreendentes mais reforçavam a sua convicção. A onda que destruíra o seu barco e matara a sua tripulação não provava que a Terra do Deus sabia defender-se para proteger as suas riquezas?

 

Considerando o seu tamanho, as duas caixas continham uma verdadeira fortuna.

 

- É curioso - observou Gergu - já não cheiram a nada. Até agora, libertava-se delas uma fragrância de incrível suavidade.

 

- Abre-as. Gergu recuou.

 

- Parece que queimam as mãos!

- Dá-me a tua faca.

 

Com raiva, Medés conseguiu cravar a lâmina na junção de duas tábuas.

 

- Como vês, não acontece nada.

 

Um pouco mais tranquilizado, Gergu continuou o trabalho.

 

No interior das caixas, não havia senão lama de onde emanava um odor fétido.

 

Depois de um dia abrasador, o entardecer era de uma doçura divina. Com o fim das ceifas, o ritmo de trabalho dos camponeses abrandava, as sestas alongavam-se e todos se alegravam pela abundância excepcional da colheita, provocada sem dúvida pela presença do Faraó. Tal como o seu chefe, os habitantes da província tinham-se tornado fervorosos partidários de Senuseret.

 

Os últimos clarões do crepúsculo esbateram-se rapidamente, dando lugar a uma noite aromática. Animais e humanos tinham fome e organizaram-se alegres jantares em torno das cozinhas ao ar livre.

 

Sozinho, à parte, sentado num marco que definia o limite de um campo, Iker não tinha apetite. Ninguém aqui conhecia Olho-de-tartaruga ou Faca-Cortante. Esperara que, ao descrever o falso polícia que tentara matá-lo, alguém o identificaria. Mas aquele assassino não devia habitar na região e, executado o seu crime, fugira.

 

Fazer perguntas não levava a nada. Portanto, o rapaz encerrava-se no seu mutismo. Precisava de deixar aquela região a fim de continuar o seu inquérito, mas ir para onde? E pagar a sua dívida demoraria ainda muito tempo.

 

O único momento de luz naquela desolação fora o ritual celebrado na presença do Faraó. Nunca o jovem teria podido supor que cruzaria o caminho do monarca. Tal como os outros, mal ousara olhá-lo.

 

- Se não comeres nada - murmurou a voz gentil de Florzinha vais enfraquecer.

 

- Que importância tem?

 

És muito jovem, Iker, e cheio de qualidades! Porque não aceitas a tua condição, convences o meu pai e lhe sucedes?

 

- Porque falta responder a muitas perguntas. Esquece-as!

 

É impossível.

 

- Complicas a vida por nada, garanto-te!

 

- O ritual celebrado na eira não era assim tão simples.

 

- São velhos costumes camponeses, não te atormentes por causa deles!

 

- Por que razão o Faraó honrou este mistério com a sua presença?

- Porque quer garantir o apoio do chefe da nossa província! Como constataste, o nosso Rei não é um qualquer que aceite partilhar o poder. Em breve enfrentará déspotas locais, decididos a desobedecer-lhe. Nós, pelo menos, estaremos em paz. Liberta-te do teu passado,

Iker, e pensa apenas no teu futuro. Eu existo; esta quinta, estes campos, estes celeiros existem também. Se desejares, tudo te pode pertencer.

 

- Lembra-te de que o teu pai te proibiu de conviver comigo. Florzinha sorriu.

 

- Desde que foste designado para segurar no vitelinho, símbolo do Sol nascente, é diferente. Mais ninguém aqui se atreverá a fazer a mínima crítica a teu respeito. Podíamos passar esta noite juntos.

 

Maquilhara-se um tanto excessivamente, mas o seu encanto nunca fora tão grande.

 

- Tenho de reflectir.

 

- E se reflectisses... depois?

 

- Desprezar-me-ias, Florzinha, e terias razão! As tuas palavras comoveram-me, confesso, e tenho realmente de reflectir.

 

Carrancudo como era habitual, o patrão interpelou Iker.

 

- O vaqueiro está doente. Conduz os bois ao canal para que possam beber e tomar banho.

 

- Na quinta preparavam o banquete que marcava o fim das ceifas.

 

Por todo o lado, no campo, haveria uma grande festa seguida de vários dias de repouso. Não seria essa felicidade serena a obra de Senuseret, que acabava de abandonar a província depois de ter celebrado o ritual no templo principal?

 

Com a ideia de se refrescar, os bois não se fizeram rogados. Eles próprios tomaram a decisão correcta, contentando-se o rapaz em acompanhá-los.

 

O seu local preferido era rodeado de velhos salgueiros que davam uma sombra agradável. Cada um por sua vez, plácidos, desceram o declive e beberam a água do canal com evidente prazer.

 

Iker sentou-se na margem.

 

Não dormira durante a noite, considerando a hipótese de passar uma vida tranquila junto de Florzinha. Mas as cenas que via, ele como bom pai de família e agricultor modelo, ela perfeita esposa e mãe atenta, belas colheitas, boas manadas, celeiros bem recheados, não lhe provocavam qualquer alegria.

 

Iker não devia mentir a si próprio: as provações que vivera não podiam ser apagadas. Compreender o seu significado continuava a ser o seu objectivo primordial.

 

Levantou-se um vento estranho, parecendo provir ao mesmo tempo de todas as direcções do espaço.

 

Os bois imobilizaram-se. E Iker víu-a.

 

Uma mulher de uma beleza sublime, com cabelos de ouro e pele muito sedosa, saiu das folhagens. Do seu longo vestido branco emanava uma luz deslumbrante.

 

Um instante, um só instante, os seus olhares cruzaram-se. Ela.

 

Era ela, nenhuma outra a poderia igualar.

 

- Estás com um ar estranho - disse o Trangalhadanças a Iker. De onde vens com os bois?

 

- Do canal orlado de salgueiros.

 

- Ah, compreendo! Também julgaste ver a deusa. Não és o primeiro, descansa! Os jogos de sombra e de luz desenham o corpo de uma mulher magnífica que os vaqueiros descrevem com entusiasmo. Infelizmente, não passa de uma ilusão.

 

O Trangalhadanças fez um ar malicioso.

 

Mas a Florzinha é bem real! Segundo os boatos, tem um fraquinho por ti. É sério, não?

 

- O boato é um veneno do qual ninguém se deveria alimentar.

- Mais uma afirmação inútil! Estás no bom caminho, Iker. Todos nós sonhamos com a Florzinha! A filha do patrão, estás a ver! Vamos preparar o banquete. Este ano anuncia-se fabuloso.

 

Tinham sido erguidos vários pavilhões de juncos a fim de protegerem os convivas do Sol e as crianças não paravam de importunar os cozinheiros, que acabavam por ceder, dando-lhes bocados de bolo.

 

Indiferente àquela agitação, Iker conduziu os bois ao estábulo. Quando saiu, esbarrou com Florzinha.

 

- Reflectiste?

 

- Considero que não sou capaz de te fazer feliz.

- Enganas-te, Iker!

 

- Concedes-me demasiada importância, Florzinha.

- Não te pareces com os outros e és tu que eu quero.

 

Irritada, ela voltou-lhe as costas e foi ter com o pai que vigiava a preparação das iguarias.

 

Antes de saciar os homens, era necessário honrar os deuses. Portanto, uma vintena de transportadoras de oferendas enfeitaram um altar com alimentos consagrados pelo templo e reservados à força invisível que presidia ao banquete. As sacerdotisas, com uma peruca preta e envergando vestidos que as moldavam, cobertos com uma rede de pérolas azuis, pulseiras nos pulsos e nos tornozelos, estavam todas encantadoras.

 

Mas a última eclipsou-as a todas.

 

A sua elegância era tal que cativou os mais indiferentes. Com um andar nobre, rosto com traços de uma delicadeza inigualável, ancas estreitas, parecia surgir de um mundo onde remasse a perfeição. O ourives divino moldara a sua beleza, traçara a curva das suas sobrancelhas e tornara os seus olhos brilhantes como a estrela da manhã.

 

Com calma e lentidão, como se se encontrasse só num templo, a jovem sacerdotisa depositou sobre o altar uma flor de lótus aberta. Assim, o perfume do Além reinaria sobre os prazeres dos humanos. Depois, retirou-se com uma graça que enfeitiçou a assistência. Quando passou perto dele, Iker teve de render-se à evidência: era a mulher sublime que lhe aparecera entre a folhagem dos salgueiros.

 

- Como te sentes? - perguntou Florzinha a Iker, estendido sobre a esteira, com um pano húmido na testa.

 

- Fecha a porta, é-me insuportável o mínimo raio de luz. A rapariga mudou o pano.

 

- Queres que te faça uma massagem?

- Não é necessário.

 

- Essa indigestão parece muito grave.

- É verdade...

 

- Não sabes mentir, Iker! Observei-te: quase não comeste. Não é uma indigestão que te prende ao leito.

 

- Não tem importância.

 

- Pelo contrário, é muito importante! Porque estás nesse estado?

- Não sei.

 

- Eu sei! julgas que não te vi olhar para ela com olhos febris?

- De quem estás a falar?

 

- Dessa sacerdotisa que todos os homens, e tu em particular, devoravam com os olhos! És bem capaz de ter ficado apaixonado e doente ao mesmo tempo.

 

- Não podes compreender, Florzinha.

 

- Pelo contrário, compreendo bem de mais! Farias mal em encerrar-te no mais inacessível dos sonhos. Essa rapariga é uma sacerdotisa que vive no templo e só sai para celebrar rituais. Nunca mais a verás.

Iker soergueu-se.

 

- Em que templo?

 

Além disso, ela não te interessa! Ninguém sabe, imagina, e é melhor assim. Vais acabar por despertar e perceber que eu não sou um sonho?

 

- Deixa-me, peço-te.

 

Iker queria gravar profundamente na sua memória esse instante mágico em que a jovem sacerdotisa lhe prestara atenção. Devia ter-lhe falado, perguntar-lhe o nome, fazer um gesto, mesmo irrisório, para a reter.

 

- Foi a primeira vez que ela veio aqui?

- A primeira e a última.

 

- Com certeza sabes o nome dela, Florzinha!

- Lamento desiludir-te.

 

- Com certeza que alguém a convidou, alguém que me poderia falar dela!

 

- Não contes com isso. Agora, levanta-te e vai trabalhar. Esta história de indigestão não se pode eternizar. Lembra-te que tens uma dívida a pagar.

 

Viver sem voltar a vê-la não fazia qualquer sentido. Infelizmente, como afirmara a filha do dono da quinta, ninguém conhecia o nome da bela sacerdotisa. Não passara de uma sublime aparição durante um ritual e não havia outra solução senão esquecê-la. Mas Iker amava-a e nenhuma outra mulher o atrairia. Fossem quais fossem as dificuldades, tinha de a reencontrar.

 

- Eis o momento mais difícil do ano - anunciou-lhe o Trangalhadanças. - Os escribas contabilistas vêm verificar o número exacto de animais que tem cada manada. Não se pode fazer batota, senão é uma sova de bastonada e uma forte multa. Além disso, temos de nos mostrar amáveis com esses cabeças de pau.

 

Os escribas sentaram-se ao abrigo de um baldaquim e o preceptor teve direito a uma almofada. Iker detestou a sua arrogância e cara satisfeita.

 

Bois, vacas, burros, carneiros e porcos começaram a desfilar sem grande barafunda.

 

Iker colocou-se discretamente atrás de um escriba para ver como ele trabalhava.

 

Por diversas vezes, o preceptor, que não tomava nenhumas notas e se contentava em observar, pediu cerveja fresca. Terminada a contagem, chamou o agricultor.

 

- Reexaminei os cálculos dos meus colegas - declarou com frieza. - De 700 bilhas de mel, deves 70 ao fisco; de 70 000 sacos de cereal, 7 000.

 

- O imposto aumentou e ninguém me preveniu!

- Acabo de fazê-lo.

 

- Vou apresentar queixa ao tribunal da província!

 

- Estás no teu direito, mas lembra-te de que faço parte dele como perito. O estado sanitário dos teus animais não me parece satisfatório. Se te recusares a pagar, os serviços veterinários aplicar-te-ão uma pesada multa.

 

- Não deis ouvidos a esse ladrão! - interveio Iker, brandindo o papiro que acabava de arrancar das mãos do escriba. - Vede antes este documento: por ordem desse bandido, os seus subordinados escrevem números falsos! Aumentam o número de cabeças de gado para fazer crescer o imposto.

 

Um tique repuxou o lábio superior do preceptor, apanhado desprevenido.

 

A cólera cresceu nas fileiras dos camponeses.

 

- Prendam este insolente! - ordenou o funcionário. - Não compreendem que mente para vos colocar contra as autoridades? Se ousardes atacar-me, ireis todos para a prisão.

 

Durante alguns instantes a situação permaneceu estática.

 

- Nada de disparates, rapazes - recomendou o Trangalhadanças. O preceptor tem razão. E depois, é um assunto entre o patrão e ele. Isso não nos diz respeito.

 

- Agarrem esse malandro! - ordenou o funcionário aos quatro polícias armados com cajados.

 

Iker fugiu a toda a velocidade.

 

Graças ao seu melhor conhecimento do local, tinha uma hipótese de lhes escapar.

 

Com o auxílio do Trangalhadanças, feliz por se desembaraçar de um rival incómodo, os polícias revistaram as cabanas, os abrigos de junco, os estábulos, percorreram os campos, exploraram os arvoredos.

 

O delinquente tinha desaparecido.

 

- Não irá longe - anunciou o preceptor.

 

- A menos que abandone a província - rectificou o agricultor.

- Tu não perdes nada por esperar!

 

- E o que é que tu fazes disto? - ironizou o camponês, brandindo o papiro.

 

- Mal sabes ler!

 

- O suficiente para constatar que és realmente um ladrão. E o meu pessoal não me abandonará.

 

- Admitamos, admitamos... Pronto, esqueçamos essa história. Trata-se de um simples erro de escrita que vou rectificar imediatamente.

- Esquece também o aumento injustificado dos meus impostos.

- Tens muita sorte, sou um homem compreensivo. Mas não me peças mais nada!

 

O polícia decidira percorrer os arredores da quinta durante mais dois dias, na esperança de recolher indícios ou testemunhos.

 

Ao regressar a casa, Florzinha pensava nesse belo jovem de testa grande e olhos verdes, tão intensos, que lhe escapara. Ardia na sua alma um fogo cuja intensidade lhe desagradava, mas acabaria por acalmá-lo. Iker, tão diferente dos outros rapazes que a cortejavam, tinha a atitude e a determinação de um chefe. A esposa levá-lo-ia a adquirir outras parcelas de terreno, a ampliar a sua propriedade e a contratar novos tarefeiros. O seu êxito teria sido deslumbrante.

 

Mas o seu favorito não passava de um delinquente em fuga. Florzinha fechou a porta do seu quarto, onde ninguém, nem mesmo o pai, estava autorizado a penetrar. Em amplas corbelhas, arrumava com cuidado os vestidos, perucas e abrigos. Boa parte dos lucros da exploração serviam para a tornar elegante. E na sala de água dispunha de dois cofres em alabastro onde estavam guardados os seus produtos de beleza.

 

Sufocou um grito quando o descobriu.

- Iker! Que fazes aqui?

 

- Não é o melhor esconderijo?

- A polícia procura-te...

 

- Não fiz nada de mal, antes pelo contrário.

 

- Não se pode lutar contra aquele preceptor.

 

- Claro que sim! Temos a prova que ele comete fraudes e será condenado.

 

- Não é assim tão simples, Iker.

 

- Chama o teu pai e preparemos a nossa estratégia. Serei a testemunha principal.

 

- Repito-te que não é assim tão simples.

- Explica-te, Florzinha!

 

- Tudo é possível, desde que aceites casar comigo.

 

- Já verificaste que não sei mentir. E não estou apaixonado por ti.

- Que importância tem? O essencial é que formemos um bom casal e que enriqueçamos.

 

- A desgraça abater-se-ia sobre nós, podes ter a certeza.

- A tua recusa é definitiva?

 

É, Florzinha.

 

Não sabes o que perdes.

 

Desculpa, mas tenho outras pretensões.

 

Aquela sacerdotisa pela qual te apaixonaste estupidamente! Quero fazer com que o preceptor seja condenado. Sem a justiça, seria impossível viver neste mundo. Aceitas ir buscar o teu pai? Florzinha reflectiu.

 

- Está bem.

 

Iker beijou-a ternamente na testa.

 

- Mais nenhum funcionário corrupto ousará importunar-vos, vais ver.

 

O rapaz não teve de esperar muito tempo.

- Podes vir, Iker - chamou Florzinha.

 

Ao sair do quarto, três polícias lançaram-se sobre ele e ataram-lhe as mãos atrás das costas.

 

Aninhada nos braços do pai, Florzinha olhava para outro lado.

- Por mim, está tudo resolvido - declarou o agricultor. - A minha filha fez bem ao prevenir a polícia que te escondias aqui e que a ameaçavas. Afinal, não passas de um vagabundo individado e insolente. Mereces um castigo exemplar e ninguém te lamentará.

 

- Adeus, Florzinha - disse Iker. - Agora já não te devo nada.

 

A condenação era sem apelo: um ano de trabalhos forçados por injúria a um dignitário no exercício das suas funções, violência contra a polícia e tentativa de fuga.

 

O magistrado, presidindo a um tribunal formado por governadores de província, não se interessara pelas explicações de Iker. Os testemunhos esmagadores de um preceptor, de escribas, do agricultor, da filha e do Trangalhadanças tinham formado a convicção do júri.

 

Durante a longa viagem que o conduzia às minas de cobre do Smiai,

Iker não foi alvo de nenhuma brutalidade, Não tinha falta de água nem de alimentos e gozou da simpatia dos polícias do deserto, que não lhe ocultaram a dureza da provação que o esperava.

 

- Felizmente para ti - disse-lhe o chefe dos polícias - és jovem e de boa saúde; um organismo desgastado não resistiria um ano.

- Não sou culpado de nada! Apenas denunciei um preceptor corrupto.

 

- Nós sabemos, meu rapaz. Mas obedecemos às ordens. Deixar-te fugir neste deserto trar-nos-ia graves aborrecimentos. E não terias nenhuma hipótese de te safar. Mais vale cumprir a pena, mesmo sendo injusta.

 

O comboio estava colocado sob a protecção de Sopdu, o Bicudo, um falcão de bico afiado que reinava sobre as solidões ardentes do Este, Oculto numa pedra sagrada em forma de triângulo, com a imagem de um raio de luz descendo do alto do céu, o deus preservava os seus fiéis das incursões feitas pelos salteadores das areias, ladrões sem fé nem lei que atacavam as caravanas e matavam os mercadores.

 

Fascinado pelo deserto, Iker esqueceu a quinta e os seus medíocres habitantes. Liberto de qualquer ressentimento, via muitas vezes aparecer o rosto da bela sacerdotisa. Quando ela abria os olhos e o olhava, tornava-se forte a ponto de mover montanhas e ignorar qualquer fadiga! Quando ela desaparecia, sentia-se vazio, abatido, quase incapaz de avançar. O desejo de a rever era tão forte que readquiria confiança. Sim, ultrapassaria aquele novo obstáculo e partiria em busca dessa mulher inacessível.

 

Em Timna', um circo desértico orlado de falésias com encostas abruptas, encontravam-se as minas de cobre exploradas desde as primeiras dinastias. Comboios de burros traziam regularmente aos mineiros víveres, roupas e ferramentas. Devido à dureza das condições de trabalho, os técnicos eram rendidos frequentemente. Quanto aos condenados, tinham de se adaptar ou morrer. Alguns criminosos, controlados por guardas vigilantes, não tinham tempo para preguiçar. Deviam escavar e consolidar poços e galerias a fim de facilitar a tarefa dos especialistas.

 

As construções - casas, armazéns, prisão - eram feitas de pedra em bruto. O único edifício em pedra talhada era o santuário dedicado a Min, senhor da vida, protector dos trabalhadores das pedreiras e dos mineiros, desencadeador da trovoada e das tempestades que enchiam as cisternas. Graças a ele, os operários encarregados de retirar o cobre do ventre da montanha não tinham falta de água.

 

À chegada do comboio, o responsável pela exploração, um moreno atarracado de voz rouca, pareceu muito surpreendido.

 

- Onde estão os condenados?

 

- Há só um - respondeu o oficial. - Este rapaz.

- É uma brincadeira?

 

- Para ele, não.

 

- Que crime cometeu?

 

- Revelou a desonestidade de um dos preceptores da província da Cobra.

 

- Mas... isso não é um delito!

 

- Um agricultor, a filha e os seus próximos depuseram contra ele. Veredicto: um ano aqui.

 

- É excessivo! Porque é que ele não apelou?

 

- Não teve tempo. Era evidente que toda a gente parecia ter pressa de se desembaraçar dele.

 

O atarracado coçou a cabeça.

 

-Não gosto disso... Mesmo nada! Tens os documentos oficiais?

- Estão aqui. Deixamos-te o rapaz e vamos embora. Para a próxima vez, tentaremos trazer-te melhor mão-de-obra.

 

Enquanto os polícias comiam, o atarracado encarou o condenado.

- O teu nome?

 

- Iker.

 

- A tua idade?

 

- Dezasseis anos.

- Camponês?

 

- Não, aprendiz de escriba. Atacaram-me, roubaram-me, depois... - A tua história não me interessa e tu não deverias estar aqui. Mas é assim e ninguém pode mudar isso.

 

O atarracado andou em volta de Iker.

 

- Vamos a ver... És demasiado grande para te meteres por um buraco e não tens músculos suficientes para seres integrado na extracção. Ponho-te na equipa que se encarrega dos fornos. Não posso fazer nada melhor, meu rapaz.

 

- Agradeço-vos.

 

- Tenta aguentar-te e não te deixes pisar.

 

Dois vigilantes levaram Iker para uma pequena cabana de pedras em bruto. No chão, duas esteiras.

 

- Espera aqui.

 

O local não era alegre e a montanha mostrava-se francamente hostil. As pessoas sentiam-se tão longe do Egipto que este parecia inacessível. Mas Iker recusou-se a ceder ao desespero. Sairia daquela prisão e reencontraria a jovem sacerdotisa.

 

Um homem de cerca de vinte anos, com o rosto quadrado, sobrancelhas grossas e ventre saliente entrou na cabana.

 

- És tu o novo?

- Chamo-me Iker.

 

- Eu, Sekari.

 

- Estamos na mesma equipa. Parece que estás inocente, é verdade?

 

- Assim é.

 

- Eu também. Mais vale não falar do passado e preocuparmo-nos com o presente. O nosso patrão é o Goela-Torcida. Um malvado e um tinhoso. Reincidente e já há dez anos aqui! Sobreviveu à mina e reina sobre os fornos do cobre. Nenhum vigilante ousa meter-se com ele. Toma cuidado em não lhe desagradares. Quanto às rações, previno-te: escassas e nada famosas. Mas caíste no lugar certo. Dou ajuda ao cozinheiro e recebo suplementos. Como tu me és simpático, vou-te associar ao arranjinho, mas com duas condições: primeiro, calas a boca; depois, fazes uma parte das minhas tarefas.

 

- De acordo.

 

Sekari ajoelhou e escavou o chão no canto mais escuro do comPartimento para tirar de lá um Pequeno vaso em alabastro ao qual retirou a tampa de tecido. Deitou na palma da mão pastilhas que ofereceu a Iker.

 

- Engole isto.

- O que é?

 

- Uma mistura de sementes de alfarroba e de funcho. Este remédio evitar-te-á diarreias e outras perturbações digestivas. Alguns morreram disso.

 

Iker engoliu. Sekari retirou outro tesouro.

 

- Não basta proteger o corpo, também é preciso tratar da alma. Caso contrário, serás dominado pela tristeza e perderás a tua vitalidade. Para estares calmo, usa isto ao Pescoço.

 

Sekari ofereceu a Iker um cordão com uma série de minúsculos amuletos em cornalina que representavam falcões, o pássaro de Hórus, e babuínos, o animal de Tot, senhor dos escribas.

 

O rapaz friccionou-os demoradamente entre os dedos.

- Bem, temos de ir. Caso contrário, seremos castigados.

 

Goela-Torcida era uma espécie de monstro peludo que não receava a temperatura dos fornos, variando de 700 a 1000 graus, onde eram fundidas as ligas de cobre.

 

Detestou o recém-chegado logo ao primeiro olhar.

 

Aqui, pequeno, ninguém é inocente. Anda direitinho, senão dou cabo de ti. E ninguém mo censurará. Uma boca a menos para alimentar seria uma boa notícia.

 

Iker susteve o olhar de Goela-Torcida.

 

- És mais forte do que eu, mas não me metes medo.

- Começa por arrumar os lingotes. Depois veremos. Enquanto a ganga permanecia à superfície, o cobre fundido depositava-se no fundo do forno e escoava-se para fossas de onde era retirado o metal em bruto, refundido num cadinho e depois deitado em moldes antes de ser endurecido por martelagem. O metal era depois transformado em lingotes, inventariados e numerados com vista ao seu transporte para o Egipto.

 

Um mês mais tarde, Iker continuava a armazenar os lingotes. Goela-Torcida não lhe dirigira qualquer censura.

 

- É estranho - observou Sekari, saboreando um figo. - Em geral, não se mostra tão conciliatório.

 

- Obedeço-lhe e calo-me: isso deve bastar-lhe. E depois, tu deste-me amuletos eficazes.

 

- Tanto melhor para ti, mas continua vigilante.

 

- Não ouviste falar de dois marinheiros chamados Olho-de-tartaruga e Faca-cortante?

 

Sekari reflectiu.

 

- Não, isso não me diz nada.

 

- Poderias interrogar os outros prisioneiros?

 

- Se quiseres. Esses dois fulanos são teus amigos?

 

- Perdi-os de vista e gostaria de saber de onde são naturais. E também gostaria de rever o falso polícia que tentou matar-me.

 

- Um falso polícia? Tens a certeza que...

Iker descreveu o seu agressor.

 

- Está bem, vou tratar disso. Mas não te prometo nada.

 

As diligências de Sekari tinham-se revelado infrutíferas. Nenhum dos condenados pudera fornecer-lhe qualquer informação.

 

Ultrapassando a decepção, Iker cumpria aplicadamente a sua tarefa, na verdade pouco penosa.

 

- Bom trabalho, pequeno - reconheceu Goela-Torcida, quase amável. - Mereces melhor do que isto. Pelo menos, que a tua estadia seja proveitosa para ti: deves saber tudo do cobre, a começar pelos fornos. Amanhã, limpá-los-emos juntos. É um grande privilégio, não sei se sabes. Concedo-to porque sabes manter-te no teu lugar. É uma qualidade rara que merece ser recompensada.

 

Em passo pesado, Goela-Torcida afastou-se. já não suportava aquele garoto que era evidente ser um espião enviado pela polícia para saber como funcionava a hierarquia dos presos.

 

E o principal Visado era ele, Goela-Torcida!

 

Aquele Iker ia denunciá-lo e ele seria reenviado para uma galeria da mina.

 

Só havia uma solução: torrar-lhe a cabeça num forno e fazer crer num acidente.

 

O Sol ergueu-se.

 

Sekari espreguiçou-se e bocejou.

 

- Hoje vou ajudar o cozinheiro. E tu?

 

- Vou limpar os fornos com o Goela-Torcida - respondeu Iker

- Engraçou realmente contigo! Parece que te quer formar para que lhe sucedas.

 

Ao saírem da cabana, Iker e Sekari esbarraram com o responsável pela exploração e uma patrulha de polícias do deserto.

 

- Vocês os dois, Goela-Torcida e mais três condenados, vão ser transferidos.

 

- Para onde? - perguntou Sekari.

 

- Para as minas de turquesas da deusa Hathor.

- Porquê?

 

- Ordens superiores.

 

- Mas comportámo-nos bem, não recebemos nenhuma censura, nós...

 

- As minas de turquesas têm uma necessidade urgente de pessoal. Sejam disciplinados e trabalhem duramente, caso contrário voltamos a trazê-los para aqui. Se o fizerdes, prometo-vos um regime especial.

 

Todas as vias terrestres de acesso a Abido estavam guardadas por soldados que não deixavam passar ninguém. Para penetrar no território sagrado de Osíris só restava o desembarcadouro, colocado sob alta vigilância. E foi lá que acostou uma flotilha guiada pelo barco do Faraó.

 

Sob o seu olhar, os marinheiros descarregaram blocos de pedra, bases de colunas e lajes de pavimento. Depois desceu a equipa de artesãos da província de Cobra, formada por um mestre-de-obras escultores e carpinteiros. Todos tinham prestado juramento de guardar segredo sobre o seu trabalho. Sabiam que não reveriam os seus familiares antes de o terem terminado.

 

O superior dos sacerdotes de Abido curvou-se diante do monarca.

- A acácia?

 

- O seu estado é estacionário, Majestade.

 

- Vim criar um templo, uma Morada de Eternidade e uma cidade - anunciou Senuseret. - A sul do local será construída a cidade de Uah-sut, a Resistente de localizações. Todos os dias disporá de abastecimento em carnes, peixes e legumes. Ali residirão talhantes e cozinheiros e nada faltará aos sacerdotes e artesãos.

 

- Como encarais o nosso papel, Majestade?

 

- De acordo com o meu último decreto, nenhum ritualista de Abido poderá ser transferido para outro lado. Nenhum deles será obrigado aos trabalhos agrícolas, nenhuma instituição terá o direito de retirar nem uma polegada do território de Osíris. Serão ali admitidos duas espécies de sacerdotes: os permanentes e os temporários.

 

Quando uma equipa de temporários se retirar para dar lugar a outra, deverá ter cumprido o seu trabalho na perfeição, sob pena de sanções. Os permanentes serão o Calvo, responsável pelos rituais da Casa de Vida; o Servidor do ka, que venerará e manterá a energia espiritual; Aquele que deita as libações nas mesas de oferendas; Aquele que vela pela integridade do grande corpo de Osíris; Aquele cuja acção é secreta e que vê os segredos; as sete músicas que encantam a alma divina e, por fim, Aquele que transporta a paleta de ouro sobre a qual estão inscritas as fórmulas do conhecimento. É a ti que a confio.

 

O Rei entregou o precioso objecto ao idoso sacerdote.

 

- Mostrar-me-ei digno da vossa confiança, Majestade. Quando nomeareis os titulares das outras funções?

 

- Escolhe os ritualistas mais competentes. Mas antes de ir mais longe, devo saber se o génio do lugar nos é favorável.

 

Senuseret partiu sozinho para o deserto.

 

Apesar dos seus avisos repetidos, Sobek, o Protector estava proibido de o seguir.

 

Desde a alvorada dos tempos velava sobre Abido uma misteriosa divindade, "O que está à frente dos Ocidentais". Tendo passado para o outro lado das trevas, percorria no entanto o domínio dos vivos quando se abriam as portas do invisível.

 

Sem a sua aprovação, o empreendimento do Faraó estava votado ao fracasso.

 

Imobilizou-se no local exacto onde seria edificado o santuário do seu templo. Ali, a terra entrava em ressonância de forma especial com o céu. Toda a natureza ficou em silêncio.

 

Nem um canto de pássaro, nem um murmúrio de vento. De repente, vindo não se sabe de onde, ele apareceu.

 

Um chacal preto, de patas altas, cauda imensa e grandes orelhas muito direitas.

 

Desconfiado, manteve-se a boa distância do intruso. Senuseret compreendeu de imediato as suas exigências. A incarnação do Senhor dos Ocidentais exigia-lhe que revelasse as suas intenções.

 

Tenho de interromper a degenerescência da acácia - declarou o soberano. - Para o conseguir, edificarei um templo onde, todos os dias, será celebrado um ritual que manterá a vitalidade deste lugar. Mas seria ineficaz sem a presença de uma Morada de Eternidade onde se realizarão os mistérios da morte e da ressurreição. Não é para a minha própria glória que os artesãos farão nascer esses edifícios, mas para que Osíris permaneça o culminar da abóbada da civilização egípcia. Lê os planos da obra no meu coração e marca-os com o selo da tua força. Sem ela, não chegarão a existir.

 

O chacal sentou-se nas patas traseiras, ergueu a cabeça para o Sol e entoou uma melopeia tão intensa e tão profunda que fez vibrar a alma de todos os seres vivos na Grande Terra de Abido.

 

O Anunciador e os seus seguidores acabavam de ultrapassar uma nova plataforma calcária que se seguia a uma série de colinas pedregosas entremeadas com picos. Aqui e além, uma ilhota de verdura inesperada onde repousavam algumas horas antes de voltarem a partir para o deserto.

 

Subjugados pelo chefe, que ignorava a fadiga e a hesitação, os homens mal conseguiam pôr um pé à frente do outro. Interrogavam-se mesmo durante quanto tempo mais sobreviveriam naquela fornalha.

 

- Não os encontraremos - afirmou Shab, O Torto.

 

- Melhor seria renunciar, senhor.

 

- Já te desiludi?

 

- Nunca, mas como é possível acreditar nessa lenda?

 

- Já haveis visto cadáveres despedaçados pelos monstros do deserto?

 

- Não.

 

- Eu, já. E nesse dia compreendi que essas criaturas possuíam a força de que temos necessidade. Com ela, seremos invencíveis.

- Uma boa milícia bem treinada não seria preferível?

 

- Mesmo que qualquer exército possa ser vencido, o que eu vou reunir será diferente.

 

- Salvo o devido respeito, de momento não passa de um bando de piolhosos!

 

- que estes simples piolhosos ainda estariam vivos se não tivessem ouvido as minhas palavras?

 

- Lá isso... É inacreditável que ainda se aguentem de pé!

 

Não eram mais de vinte, mas tinham aceitado seguir o Anunciador depois dele lhes ter prometido a fortuna ao cabo de duros combates. Delinquentes e cadastrados da justiça, alegravam-se por conseguirem assim escapar ao castigo.

 

De cada vez que um se preparava para desistir ou para se revoltar, o Anunciador aproximava-se dele e reconfortava-o com o olhar. Algumas palavras, pronunciadas num tom monótono e encantatório, devolviam o desesperado ao bom caminho. Um caminho que, no entanto, conduzia ao interior de um deserto sem fim.

 

Foi ao cair do dia que o que seguia à frente julgou detectar o sedja, um monstro com cabeça de serpente e corpo de leão.

 

- Rapazes, estou a ter uma alucinação! E se não for, vai ver o que eu faço àquele horror!

 

Correu em direcção ao animal para lhe esmagar a cabeça com uma paulada. No entanto, o pescoço da serpente esquivou-se e as garras do leão cravaram-se no peito do agressor.

 

- Então existe realmente - murmurou Shab, aterrorizado. Apareceram o seref, com cabeça de falcão e corpo de leão, e o abu, um enorme carneiro com um chifre de rinoceronte no focinho.

 

Dois membros da expedição tentaram fugir, mas os dois monstros apanharam-nos e massacraram-nos.

 

Numa claridade avermelhada que incendiou o deserto, manifestou-se o sha, o animal de Set, um quadrúpede dotado de uma cabeça semelhante à do ocapi. Mesmo parecendo menos temível do que os outros três, os seus olhos incandescentes tetanizaram os sobreviventes.

 

- O que fazemos? - perguntou Shab, com os dentes a bater. O Anunciador ergueu os braços.

 

- Todas as divindades me inspiram, tanto as do mal como as do bem - declamou. - A luz do dia e a força das trevas habitam o meu espírito. Só falam comigo e só eu sou o seu intérprete. Quem me desobedecer será aniquilado, quem me obedecer será recompensado. Dessas múltiplas forças farei uma só e serei o seu único propagador. A terra inteira se submeterá e haverá apenas uma só fé e um só senhor.

 

Apenas Shab, o Torto não se deitara na areia para evitar ser detectado pelos predadores. No entanto, não conseguiu acreditar no que os seus olhos lhe mostravam.

 

O Anunciador aproximou-se dos três monstros assassinos, passou lentamente as mãos sobre as garras, o bico e o chifre, e besuntou-se com o sangue das suas vítimas.

 

Depois, arrancou os olhos de brasa do animal de Set e colocou-os sobre os seus.

 

Levantou-se uma tempestade de areia, obrigando Shab a atirar-se ao chão. Tão breve como violenta, deu lugar a um vento glacial.

 

O Anunciador sentara-se sobre um rochedo. Não havia o mínimo sinal dos monstros.

- Senhor... Não passava de um pesadelo?

 

- Com certeza, meu amigo. Essas criaturas só existem na imaginação dos medrosos.

 

- Mas há mortos, esfacelados!

 

-Vítimas de uma fera que a nossa presença enfureceu. Agora sei o que queria saber e vamos realizar o nosso primeiro golpe.

 

Shab fora vítima de uma dessas miragens tão frequentes no deserto. Mas por que razão os olhos do Anunciador se tinham tornado de um vermelho-sangue?

 

Antes de partir para as minas de turquesas do Sinai, situadas a sudoeste das de cobre, Sekari preparara um remédio composto por cominhos, mel, cerveja doce, calcário e uma planta chamada "pêlo de babuíno". Depois de ter esmagado e filtrado os ingredientes, obtivera uma bebida indispensável para manter a vitalidade e repelir os inúmeros répteis que vagueavam pelo deserto. Precaução suplementar e necessária: untar todo o corpo com puré de cebola a fim de fazer fugir as serpentes e escorpiões. Tinha também a vantagem de desenvolver os cinco sentidos, vantagem que não era de negligenciar num meio hostil.

 

Apenas Goela-Torcida recusara essas precauções, mas cheirava tão mal que nem mesmo uma víbora-de-cornos se atreveria a mordê-lo.

- Conheces os segredos das plantas, Sekari? - espantou-se Iker.

- Antes de fazer grandes disparates, era jardineiro e passarinheiro.

 

Olha aqui, no meu pescoço: é a cicatriz de um abcesso que me fez a grande vara nas extremidades da qual estavam pendurados os potes cheios de água. Quantos milhares de vezes os transportei! A minha especialidade era a caça aos pássaros nos jardins. Gosto muito desses animaizinhos, mas há alguns que dão cabo de tudo! Se não interviéssemos, não comeríamos um único fruto. Então, com a minha armadilha de mola e a minha rede, capturava-os para os fazer compreender que se deviam ir alimentar a outro lado. Com excepção das codornizes, que acabavam na grelha ou num guisado, libertava os outros. Até tinha aprendido a falar com eles! Com alguns, bastava eu imitar o seu canto para eles evitarem o pomar.

 

- Em que consistiam os teus... grandes disparates? Sekari hesitou.

 

- Bem, nas nossas profissões, não podemos declarar tudo ao fisco, senão não nos safávamos. Houve um escriba controlador que se interessou por mim, um grande homem muito feio, com um nariz cheio de borbulhas. Um hipócrita que se fazia passar por incorruptível, enquanto mentia como respirava! Em suma, quando ele atacou o meu território, activei a armadilha. Devido à habilidade daquele imbecil, embrulhou-se na rede e ficou um pouco sufocado. Ninguém o lamentou, mas a justiça considerou que eu era culpado. Como havia um aspecto acidental, não fui condenado à morte mas só sairei das minas daqui a muito tempo.

 

- Decididamente, não temos sorte com os preceptores! Não esperas uma redução de pena por bom comportamento?

 

- É por essa razão que não me meto em confusões. Discreto e serviçal, é a minha divisa. Assim, estou bem-Visto pelos vigilantes.

- Conheces as minas de turquesas?

 

- Não, mas parece que lá o trabalho é menos duro do que nas de cobre.

 

- Porque nos mandam para lá?

 

- Não faço ideia. Se queres um conselho, desconfia de Goela-Torcida.

 

Mostra-se bastante amável comigo - objectou Iker.

 

É precisamente isso que não e'normaL Esse fulano é um assassino, mesmo tendo sido condenado apenas por roubo, espancamento e ferimentos. Estou convencido que te detesta e está a fingir.

 

Iker esfregou os seus amuletos e não deixou de tomar os avisos em consideração. De facto, esquecendo a sua primeira impressão, baixara a guarda.

 

Seria ele, o aprendiz de escriba, que transportaria a pedra triangular de Sopedu, coberta com um véu. Não tinham sido assinalados salteadores das areias na região, mas mais valia assegurar a protecção do deus.

- Estamos a chegar - preveniu um polícia.

 

O sítio era grandioso. Sucessões de montanhas, até ao infinito, e uadis cercavam um planalto isolado das depressões que dominava. Algumas plantas espinhosas, rochas recortadas, grés amarelo e preto, colinas vermelhas e um vento violento animavam aquela paisagem, simultaneamente hostil e atraente.

 

Composta por polícias, prisioneiros transferidos, burros transportadores de água e alimentos, a caravana seguiu por um carreiro inclinado que permitia chegar ao planalto.

 

Na beira de um caminho processional ladeado de esteias e que ia dar a um templo, esperava-os um sólido quinquagenário.

 

- Chamo-me Horure e sou o comandante do corpo expedicionário enviado aqui pelo Faraó Senuseret. Por motivo das condições climáticas, a minha missão é particularmente difícil e preciso de mais mineiros. Foi por isso que vocês foram requisitados. Estamos no quarto mês da estação quente, bastante desfavorável à extracção das turquesas, que não suportam esta temperatura. Perdem a sua cor azul-esverdeada, tão intensa. No entanto, o Faraó ordenou-me que lhe levasse a mais bela pedra jamais descoberta e temos portanto que o conseguir. Todos os dias veneramos Hathor, a soberana deste lugar, a fim de que ela guie os nossos braços. Hoje, repouso. Amanhã de madrugada, ao trabalho.

 

As habitações encontravam-se a este do templo. Os homens livres que trabalhavam naquele lugar em troca de um bom salário, observaram com olhos inquietos aqueles delinquentes que lhes impunham. E o aspecto de Goela-Torcida não tranquilizou ninguém.

 

Várias cabanas de pedra solta transformaram-se em celas cujas portas foram fechadas e guardadas.

 

Em cima das esteiras, pães recheados com grão-de-bico, tâmaras e água.

 

- Já conheci pior - confessou Sekari, precipitando-se sobre a comida.

 

Severamente enquadrada, a equipa dos detidos compareceu diante de Horure.

 

Sem dizer uma palavra, precedeu-os num templo composto por uma sucessão de pátios com colunas cujos altares estavam cobertos de oferendas. Recolhido, Iker teve a impressão de mudar de mundo ao penetrar naquele lugar sagrado onde reinavam o silêncio e perfumes de incenso.

 

Horure conduziu-os até um grande pátio flanqueado por cisternas e lagos de purificação.

 

Ergueu os olhos para a montanha.

 

Estais perante o santuário de Hathor, nossa protectora. Possa ela orientar as nossas pesquisas e oferecer-nos a pedra perfeita. Sobre um altar, Horure depositou uma taça em alabastro contendo vinho, um colar, dois sistros e uma estatueta de gata.

 

- Quando a deusa fica furiosa e quer castigar os humanos, toma a forma de uma leoa. No deserto, massacra os que se perdem. Quando a Senhora das Turquesas regressa à terra amada dos deuses, transforma-se em gata, meiga e afectuosa. É detentora da turquesa, símbolo da alegria e da renovação, capaz de triunfar da desgraça e da decrepitude. Essa pedra transmite a sua energia aos filhos da luz e faz nascer neles a satisfação. Hathor, és tu que permites ao Sol nascer e ressuscitas o nosso mundo todas as manhãs. Que o teu fulgor penetre nos nossos corações.

 

Iker viveu cada frase como uma revelação. E sentia-se tão bem naquele santuário que o rosto da bela sacerdotisa reapareceu. Estava ali, perto dele, e partilhava a sua emoção.

 

A breve cerimónia terminou rapidamente e saíram todos do templo. Horure levou os condenados até junto de uma falésia escarpada.

- O local é perigoso - revelou. - Por isso vos é reservado.

 

Quando lhe apresentámos a estátua de Min, esta recuou. Por outras palavras, a pedreira está grávida mas recusa entregar-nos o seu fruto. Tentar escavar uma galeria equivaleria portanto a ofendê-la e ela vingar-se-ia matando os mineiros. A prudência consistiria em esperar que a própria montanha nos concedesse a autorização para a explorar. Mas, como já vos disse, temos pressa.

 

- Porque não escavamos noutro lugar? - perguntou Sekari.

- Porque estou convencido que aqui está escondida uma turquesa única, inalterável. Compete-vos escolher: ou correis o risco ou sereis reenviados para as minas de cobre. Se conseguirdes, obtereis a liberdade.

 

 

Livre! o termo ressoou com intensidade na cabeça de Iker.

 

- Recuso - decretou Goela-Torcida. - Prefiro regressar aos meus fornos. Se os especialistas se recusam, é porque vai correr para o torto. Os outros prisioneiros aprovaram as suas palavras.

 

- Eu tento a aventura - cortou Iker.

 

- És louco! - protestou Sekari. - Não ouviste o patrão? O próprio deus Min recuou!

 

- Dêem-me as ferramentas necessárias.

 

- Iker, sê razoável, precipitas-te para a catástrofe! Um homem só nunca poderá vencer.

 

- Não vens comigo? Hesitas entre apodrecer numa mina de cobre, onde as tuas hipóteses de sobrevivência são poucas, e recuperar rapidamente a liberdade?

 

Perturbado, Sekari contemplou a parede rochosa.

- Visto assim... Mas tu vais à frente.

 

- Combinado.

 

- Não há mais voluntários? - perguntou Horure.

 

- Mais ninguém - respondeu Goela-Torcida, encantado por se desembaraçar do espião.

 

Horure pôs um joelho em terra e ergueu as mãos para a montanha em sinal de veneração.

 

- A galeria que ides escavar terá o nome de "A que torna prósperos os mineiros e permite ver a perfeição de Hathor". Que a pedra viva e acolha com benevolência o choque das ferramentas, que saiba que trabalhamos para a luz e não para nós mesmos.

 

O chefe da expedição entregou aos dois voluntários picaretas e percutores em sílex e dolerita.

 

- Onde começamos? - perguntou Sekari?

 

Horure designou um ponto exacto. E o canto das ferramentas quebrou o silêncio da montanha.

 

O Farejador podia estar satisfeito consigo próprio. Depois de ter assaltado durante dez anos as pistas do istmo de Suez e roubado um número incalculável de caravanas, acabava de vencer o seu principal rival sem combater. O chefe do bando adversário morrera estupidamente por causa de uma queda numa ravina e os seus homens tinham sido incapazes de se entender para designar o seu sucessor. Tinham portanto preferido colocar-se sob a autoridade do Farejador a fim de formarem o mais temível bando de salteadores das areias na região. A partir de agora, a sua eficácia seria muito maior e nem um mercador lhes escaparia.

 

Umas vezes roubavam tudo, outras contentavam-se em tirar uma parte dos bens, fazendo as suas vítimas jurar que não apresentavam queixa, sob pena de represálias. Não deixavam de violar as mulheres, também elas submetidas à lei do silêncio.

 

- Presas à vista - anunciou um vigia.

 

- Uma boa caravana? - perguntou o Farejador, entusiasmado.

- Não me parece.

 

- Então o que é?

 

- Uma vintena de homens.

- Polícias?

 

- Pelo ar não são de certeza! Estes tipos devem ter-se perdido por aqui. Um bando de miseráveis sem o mínimo interesse.

 

- Podíamos alistar uns e suprimir os outros.

- Vamos ver.

 

A atitude do chefe do desgraçado grupo impressionou os salteadores das areias. Seguindo alguns passos à frente deles, o seu olhar era o de uma fera de olhos agressivos.

 

Envergonhado por sentir medo, o Farejàdor apostrofou o homenzarrão.

 

- Quem és tu, amigo?

- O Anunciador.

 

- E o que anuncias tu?

 

- Que os inimigos do Faraó devem submeter-se à minha vontade a fim de esmagarmos esse tirano.

 

O Farejador apoiou os punhos nas ancas.

 

- Ora essa! E por que deveremos ajudar-te?

 

- Porque eu sou o único intérprete das forças. E só eu posso vencer.

- Perdeste o Juízo, amigo, mas divertes-me!

 

- Nesse caso, porque treme a tua voz?

- A tua insolência não me impressiona!

 

- Se desejas viver, submete-te imediatamente ao Anunciador. O Farejador rebentou a rir.

 

- Chega de palavreado! Vou examinar-vos um por um. Alisto os mais fortes e os outros vão secar no deserto.

 

O Anunciador estendeu o braço esquerdo.

- Uma última vez, submete-te.

 

Quando o Farejador se preparava para atacar, a mão do Anunciador transformou-se em garra e o nariz em bico de ave de rapina.

 

- É o falcão-homem! - exclamou um salteador das areias. - Vai matar-nos a todos!

 

Os seus acólitos deitaram-se na areia com as mãos sobre a cabeça. Permanecendo rigorosamente imóveis, talvez escapassem à fúria do monstro.

 

Um vento gelado fê-los estremecer.

 

Um deles atreveu-se no entanto a levantar a cabeça e olhar. Viu o cadáver do Farejador, com a garganta cortada.

 

- Quem recusa obedecer-me? - perguntou o Anunciador em voz doce.

 

Os salteadores das areias prostraram-se diante do seu novo senhor.

97 - Já está! - exclamou um Sekari alagado em suor. - Os pilares de apoio estão colocados! Agora temos uma pequena hipótese de conseguir.

 

Avançando pela galeria que acabava de descobrir, Iker não pensara que o tecto ameaçava desabar. Sem a intervenção do companheiro, os dois exploradores teriam morrido soterrados.

 

- Não deixamos de ter sorte - considerou Sekari. - Só estamos a escavar há poucos dias e encontramos esta passagem no coração da rocha! Parece que estava à nossa espera.

 

- Alguns pilares suplementares não me pareceriam supérfluos.

- Tens razão: antes de continuar, escoramos.

 

Horure ficou espantado por ver, uma vez mais, os dois insensatos saírem vivos.

 

- Bela descoberta, chefe! - proclamou Sekari.

- Turquesas?

 

- Ainda não, mas uma galeria que vai dar com certeza ao tesouro! A notícia deu rapidamente a volta ao domínio da deusa Hathor onde Goela-Torcida e os outros refractários estavam reduzidos a tarefas subalternas antes do seu regresso às minas de cobre. À sua raiva juntava-se o ciúme.

 

Desde o início da perigosa aventura, Iker e Sekari tinham deixado de se misturar com os seus ex-colegas. E beneficiavam de refeições muito melhores.

 

Enquanto o Sol se punha, Horure sentou-se em frente deles.

- Nem um nem outro têm falta de coragem.

 

- Eu - protestou Sekari - já quase esgotei a minha reserva! Não achais que fizemos bastante?

 

- Preciso da mais bela das turquesas. Enquanto não a tiverem descoberto, a vossa missão não estará terminada.

 

- Posso fazer-vos uma pergunta? - pediu Iker.

- Faz lá.

 

- Conhecereis por acaso dois marinheiros chamados Olho-de-tartaruga e Faca-cortante, tereis ouvido falar do seu barco, o Veloz?

- O meu domínio é o deserto, não a navegação. Procurem repousar; depois de amanhã regressarão ao ventre da montanha.

 

A caravana deteve-se na margem do único ued onde corria ainda um pouco de água. Sob a vigilância dos polícias, os mercadores descarregaram os burros que se apressaram a ir beber.

 

- Mais três dias de caminho - considerou o guia - e atingiremos a orla do Delta. Lá há canais, árvores e erva. Fico bem contente por sair de tais solidões ardentes! Desta vez a viagem pareceu-me muito longa.

 

- Dá-te por feliz por saíres daqui vivo - replicou o tenente de polícia. - Estas paragens são cada vez mais perigosas.

 

- Ataques dos salteadores das areias?

- O último foi um verdadeiro massacre.

 

- Porque não intervém o Faraó mais vigorosamente?

 

- Temos de pensar que deve ter outras preocupações. Mas, de qualquer maneira, estou aqui com uma dezena de soldados-patrulha experientes.

 

- Vamos buscar jarras de reserva. Merecemos uma refeição copiosa.

 

Todos os guias conheciam os lugares onde, sob a protecção mágica de pequenas esteias e amuletos, estavam dissimuladas provisões regularmente renovadas. Serviam de apoio aos viajantes fatigados que tinham calculado mal a quantidade de víveres indispensável para o seu percurso.

 

A esteia estava quebrada e os amuletos desfeitos.

 

- Quem ousou fazer isto? - indignou-se o tenente. - Estes bárbaros já não respeitam nada!

 

O guia notou que os alimentos tinham desaparecido.

 

- Vou redigir imediatamente um relatório que vai dar que falar! prometeu o oficial. - Desta vez, o exército limpará a região. Gritos alertaram os dois homens.

 

- Estão a atacar a caravana!

 

O guia tentou fugir, mas dois salteadores das areias apanharam-no e esmagaram-lhe a cabeça à paulada.

 

O tenente enfrentou o inimigo, mas em breve sucumbiu ao número. Surpreendido por não ter sido morto, foi conduzido diante de um homem anormalmente grande e magro, de olhos vermelhos.

 

- Há quantos anos percorres o deserto? - perguntou o Anunciador.

- Mais de dez anos.

 

Então, conheces toda a região. Se queres evitar a tortura, indica-me os sítios essenciais aos olhos do Faraó e descreve-os em pormenor.

 

- Porquê?

 

- Contenta-te em responder. Sobretudo, sê exacto.

 

O polícia evocou os fortins, as etapas obrigatórias das caravanas, as minas de cobre e de turquesas.

 

- Turquesas! - repetiu o Anunciador num tom estranho. - Há uma divindade que as protege?

 

- A deusa Hathor.

 

- Mostra-se sempre benévola?

 

- Não quando toma a forma de uma leoa aterradora, que percorre a Núbia e devora os rebeldes. Graças às turquesas, é possível acalmá-la. O local da exploração é vigiado?

 

É guardado permanentemente por polícias.

 

- Já não preciso de ti, bravo soldado, visto que não és homem para trair o teu país.

 

O Anunciador voltou as costas ao tenente, que Shab, o Torto se encarregou de executar.

 

Iker sentia-se sufocar, tossia, mas continuava a escavar a galeria que ia dar ao coração da montanha. Depois de ter consolidado os pilares de sustentação, Sekari, esgotado, contentava-se em observar o seu companheiro de infortúnio.

 

- Isto não vai dar a lugar nenhum, Iker. À força de forçar a sorte, vamos acabar esmagados.

 

- Aqui a rocha é muito sólida. Tenho muita dificuldade em avançar.

- E nem a mínima turquesa!

 

Enraivecido, Sekari deu na parede um golpe de picareta.

- Ali, olha... Quebraste uma ganga!

 

Um reflexo azul-esverdeado.

 

Sekari aproximou a mecha da lâmpada, cuidadosamente preparada para não fazer fumo.

 

- Turquesas... São turquesas!

 

A carranca do comandante Horure não pressagiava nada de bom.

- São pedras medíocres - considerou. - Têm uma cor baça, sem vida. É impossível enviá-las para a corte.

 

- Já havíeis referido que a estação era desfavorável à extracção lembrou-lhe Iker.

 

- Um dia de repouso e continuam. Sei que a rainha das turquesas se encontra nesta montanha e preciso dela. É esse o preço da vossa liberdade.

 

Vencendo a decepção, Iker e Sekari retomaram o trabalho. E o escriba aprendiz sentiu duplicar a coragem.

 

- Tenho uma ideia - declarou.

 

- Eh, lá! Não será por acaso uma loucura?

 

- E se escavássemos de noite? Deixamos a luz da Lua entrar na galeria e vemos as paredes viver. Estou convencido de que a rocha não respira da mesma maneira que durante o dia.

 

- E quando é que dormimos?

- Tentemos.

 

Sekari encolheu os ombros.

 

De facto, a atmosfera era muito diferente. Os dois companheiros tiveram a impressão de penetrar num santuário onde trabalhavam forças misteriosas. Recolhidos, avançaram lentamente para atingirem o fundo da galeria.

 

A lâmpada de Sekari apagou-se.

 

- Só faltava isto! Vou buscar outra.

- Espera um pouco.

 

- Estamos às escuras!

 

- Não estamos, não. Ali... tens razão!

 

Da parede emanava uma claridade azul, simultaneamente intensa e suave.

 

- Talvez devêssemos sair o mais depressa possível - sugeriu Sekari.

 

- Dá-me a picareta pequena.

 

Com precaução, Iker escavou a rocha em volta da zona luminosa. Surgiu uma magnífica turquesa cujo fulgor deslumbrou os descobridores.

 

E o rapaz contemplou nela o seu rosto. No centro da pedra, a bela sacerdotisa olhava-o, sorridente.

 

- Excelente trabalho - reconheceu o comandante Horure. Nunca vi uma turquesa com tal qualidade.

 

- Então... estamos livres? - perguntou Iker.

 

- Não se volta atrás com a palavra dada. Partireis Para o vale do Nilo na próxima caravana.

 

- Precisamos de documentos destinados à administração.

- Aqui estão.

 

O rapaz apertou de encontro ao coração a tabuinha de madeira que lhe devolvia um futuro.

 

- Uma façanha como a nossa não merece vinho? - sugeriu Sekari. Horure pareceu reflectir.

 

- Pedes muito... Mas já tinha pensado nisso.

 

Sekari esvaziou três taças seguidas e depois apreciou então com vagar o vinho encorpado enquanto comia por quatro.

 

- É pena que este lugar não tenha mulheres! Se houvesse, seria a felicidade total. Em breve passaremos alegres noites. Tens uma amiguinha, Iker?

 

- Procuro uma mulher.

 

- Uma só! Onde a encontraste?

 

- Da primeira vez, junto do canal, por baixo de um salgueiro.

- Ah, a deusa que aparece aos vaqueiros! É uma velha lenda que não deixa de ter o seu encanto. Mas estou a falar de uma mulher verdadeira.

 

- Ela existe.

 

- O que queres dizer com isso?

- Encontrei-a uma segunda vez.

- Sempre debaixo de um salgueiro?

 

- Não, durante uma festa, no campo. E acabo de revê-la uma terceira vez, no coração da turquesa.

 

Sekari esvaziou mais uma taça de vinho.

 

-Trabalhaste muito, Iker, dormiste pouco e todas essas emoções te perturbaram. Algumas horas de sono pôr-te-ão como novo.

 

- Não sei o seu nome, mas sei que é sacerdotisa.

- Ah... Bonita ou austera?

 

- Não há mulher mais bela no mundo.

 

- Tens um ar realmente apaixonado! Espero que a tua sacerdotisa não pertença ao Círculo de Ouro de Abido.

 

O que é isso, Sekari?

 

É uma expressão que utilizávamos entre jardineiros para designar os iniciados que se retiram para um templo.

 

- Não é esse o seu caso, visto que participava na festa como transportadora de oferendas.

 

Tanto melhor para ti! Mas espero que não fosse a sua última aparição antes de se juntar às companheiras.

 

- Porquê o "Círculo de Ouro" e porquê Abido?

 

- Isso já é querer saber de mais! Abido é o lugar mais misterioso do Egipto, onde Osíris ressuscita a fim de que o país continue a viver em harmonia, como todos sabem. O resto não diz respeito a gente como nós.

 

- Achas que seja possível penetrar nesse Círculo?

 

- Para ser franco, estou-me a borrifar para isso! E tu também, no fundo.

 

- Como podes afirmar isso?

 

- Porque tens tarefas imperiosas a realizar! Não procuras o rasto desses dois marinheiros que são a causa das tuas desgraças?

 

- Dois marinheiros, um barco, um falso polícia que tentou assassinar-me - murmurou Iker. - E depois, o país de Punt...

 

- Ah, não, não mergulhes na lenda! Dás-te conta que te tornaste o maior descobridor de turquesas e que esse importante feito talvez seja relatado ao próprio Faraó?

 

- Esqueces que o comandante do corpo expedicionário é Horure. E será ele a ser considerado o autor desta façanha.

 

- Nisso tens com certeza razão - reconheceu Sekari. - Bem, mas estamos livres!

 

- Ajudas-me nas minhas buscas?

 

O jardineiro pareceu pouco à-vontade.

 

- Sabes, eu sou um rapaz calmo que apenas aspira a uma vida tranquila, longe de conflitos. A confusão não é o meu forte.

 

- Compreendo. Portanto, os nossos caminhos separam-se.

 

Embriagado, Sekari mergulhou num sono profundo logo que se estendeu na esteira. Sem conseguir adormecer, Iker saiu da cabana e contemplou as estrelas. Por que razão o destino o manipulava assim? Para onde o arrastava?

 

Pensar na jovem sacerdotisa acalmava-o e fazia-o sofrer ao mesmo tempo. Se fosse realmente inacessível, ele nunca encontraria a felicidade. Mas por que havia de desesperar, quando podia agora retomar a sua profissão e a sua Busca? Não seria a descoberta da turquesa um sinal encorajador? Correndo riscos, descobrindo o segredo da montanha, Iker atingira o seu objectivo. Se continuasse a agir assim, descobriria a pista dos seus agressores e acabaria por saber por que tinham escolhido como vítima. E convenceu-se de que a deusa Hathor guiaria até aquela que ele amava.

 

Iker julgou ouvir um grito sufocado proveniente do lugar onde ia dar o principal caminho de acesso ao planalto. Havia ali permanentemente uma sentinela.

 

O rapaz avançou naquela direcção, mas o instinto levou-o a não revelar a sua presença.

 

Diversos vultos se ocultaram atrás dos rochedos.

 

Tudo se passara tão rápida e silenciosamente que a situação parecia normal.

 

Mas Iker não se enganara: havia intrusos que violavam o território da deusa depois de terem suprimido a sentinela.

 

Com a testa repentinamente inundada de suor, tentou dirigir-se para casa de Horure.

 

Outros vultos barraram-lhe a passagem. E um grito quebrou a serenidade da noite.

 

- Ao ataque - berrou Shab, o Torto - e matem-nos todos!

 

Depois de terem suprimido todas as sentinelas destinadas à vigilância do planalto, os assaltantes avançaram como uma onda,

 

Sob o olhar tranquilo do Anunciador, que nem sequer teve necessidade de intervir, Shab, o Torto e os salteadores das areias massacraram polícias e mineiros.

 

Quando o comandante Horure tentava organizar um esboço de resistência, Goela-Torcida esmagou-lhe a nuca com uma pedra.

 

- Ataquem com força, meus amigos, estou convosco! - gritou, dirigindo-se aos agressores.

 

Desnorteado, Iker ia lançar-se na luta quando foi atirado ao chão.

- Finge-te morto - ordenou-lhe Sekari. - Eles vem para aqui. Com os cacetes ensanguentados na mão, vários assassinos passaram junto deles sem lhes darem a mínima atenção.

 

- Temos de fugir daqui depressa!

- És tu, Sekari?

 

- Mudei assim tanto? Despacha-te!

- Devemos lutar, devemos...

 

- Não temos qualquer hipótese.

 

Como que embriagado, Iker deixou-se arrastar por Sekari.

 

- Como te chamas? - exigiu o Anunciador.

- Goela-Torcida,

 

- Porque nos ajudaste?

 

- Estava condenado a prisão perpétua nas minas de cobre. Transferiram-me para aqui para descobrir a rainha das turquesas.

 

- Conseguiste?

 

- Eu, não. Mas um informador da polícia chamado Iker extraiu-a do ventre da montanha.

 

- Onde está essa maravilha?

 

- Provavelmente na casa do comandante Horure, que matei com as minhas próprias mãos! Foi um prazer desembaraçar-me dos meus carcereiros. E vou infligir-lhes o pior dos castigos, o que eles reservam aos criminosos: queimar os seus cadáveres.

 

O Anunciador aprovou com a cabeça.

 

Enquanto Goela-Torcida e Shab, o Torto acendiam as fogueiras, o chefe entrou na casa de Horure. Não precisou de muito tempo para se apoderar de um cofre em alabastro onde estava guardada a admirável turquesa.

 

Durante o decurso dos festejos do bando, orgulhoso com a primeira grande vitória, o Anunciador expôs a sua preciosa pedra à luz da Lua para que se carregasse de energia.

 

Aquela turquesa tornava-se assim uma arma decisiva no caminho da sua conquista.

 

- Quem sois vós, realmente? - interpelou-o Goela-Torcida, bastante embriagado.

 

- O que te vai permitir matar o máximo de egípcios.

- Então, sois um general!

 

- Muito mais do que isso. Sou o Anunciador, que estenderá o seu culto e a sua nova religião à terra inteira.

 

- E o que é que eu ganho com isso?

 

- Os meus discípulos conhecerão a glória e a fortuna.

 

- Da glória, não quero saber. Mas a fortuna interessa-me.

 

- Metade das turquesas conservadas no tesouro desta exploração pertencem-te.

 

Goela-Torcida sentiu água a crescer na boca.

 

- Sois um patrão fantástico! Eu cá não tenho cabeça para comandar. Por esse preço, sigo-vos. Mas nada de me enganar.

 

- Não te preocupes.

 

- O que me aborrece é não ter identificado o cadáver desse Iker. Mas estes cadáveres ardem tão bem que não se consegue identificar ninguém. Não bebeis connosco?

 

É preciso que alguém mantenha a cabeça fria.

 

Cambaleando, Goela-Torcida guiou-se pelo clarão das fogueiras onde se consumiam os corpos dos polícias e mineiros para se juntar à horda vociferante dos vencedores.

 

Nem Sekarí nem Iker se teriam alguma vez julgado capazes de correr durante tanto tempo. Sem fôlego, sentaram-se numas pedras lisas.

 

- Não podemos parar - recomendou Sekari. - Esses bandidos vão com certeza tentar apanhar-nos.

 

- Quem são eles, na tua opinião?

 

- Provavelmente, salteadores das areias. Em geral, atacam as caravanas.

 

- Goela-Torcida ajudou-os!

 

- É normal, Iker. Tem mau coração.

 

Recomeçaram a andar até ficarem esgotados. A sede secava-lhes a garganta.

 

- Como havemos de encontrar a localização dos pontos de água?

- perguntou Iker.

 

- Não faço a mínima ideia.

 

- Encaremos a verdade de frente, Sekari: vai ser difícil sobreviver.

- A tua verdade não me agrada nada.

 

- Se calhar mais nos valia termos morrido a combater.

 

- Não, visto que estamos ViVOs! Fricciona os teus amuletos uns contra os outros e aplica-os sobre a garganta.

 

Iker obedeceu e a sensação de sede atenuou-se.

- Agora a mim.

 

Menos aflitos, continuaram a afastar-se do local do massacre.

 

A meio do dia, a areia tornou-se de tal forma quente que lhes queimou os pés. Escavaram um buraco onde se refugiaram com o saiote sobre a cabeça a fim de se protegerem do Sol.

 

Quando a temperatura baixou, retomaram o caminho.

 

A sede era tão intensa que nem mesmo os amuletos a conseguiam já acalmar.

 

À frente deles, uma estranha montanha com reflexos dourados.

- Não teremos forças para ultrapassar este obstáculo - constatou Sekari.

 

- Ela move-se.

 

- O que estás tu a dizer?

 

- A montanha move-se, Sekari.

 

- Uma miragem... Uma simples miragem.

- Avança para nós.

 

Prestando melhor atenção, Sekari não podia desdizer o companheiro.

 

- Estamos a enlouquecer, meu pobre Iker!

 

Do cume destacaram-se rochedos que rolaram ao longo da encosta e caíram no chão com estrondo.

 

- É um tremor de terra! - exclamou Sekari, sem saber em que direcção fugir.

 

- Observa a cor da montanha - recomendou Iker, impassível. À medida que os rochedos se partiam, surgia uma coloração azul-esverdeada.

 

- É Hathor que nos protege. Não nos movamos daqui e veneremo-la.

 

Pouco convencido da justeza dos pontos de vista do seu companheiro, Sekari mesmo assim ajoelhou e invocou a deusa do céu.

 

A dois dedos do seu pé esquerdo abriu-se uma fenda.

- Este lugar não é seguro!

 

- Contempla a obra da deusa.

 

A montanha inteira tornara-se turquesa e os ruídos inquietantes atenuavam-se.

 

Quando a terra cessou de gemer, Sekari lançou um olhar à fenda. E o que nela descobriu deixou-o estupefacto.

 

- Parece... água!

 

Mergulhou o braço e retirou-o molhado.

- Água, Iker, estamos salvos!

 

- Bebamos em pequenos goles.

 

Pela primeira vez em toda a sua existência, aquele líquido pareceu a Sekari tão delicioso como vinho. Os dois companheiros aspergiram-se com ela, lavaram-se e mataram a sede.

 

- Não temos odre - lamentou Sekari. - Se nos afastarmos deste ponto de água, estamos arrumados. Além disso, começo realmente a ter fome.

 

- Hathor protege-nos - lembrou-lhe Iker. - Passemos a noite aqui e esperemos outro sinal.

 

Se beneficias dos favores de todas as deusas, tranquiliza-me já! - Tal como tu, não passo de um esfomeado perdido neste deserto. Mas este mundo não é mais misterioso do que parece? Se soubermos ler certas mensagens, talvez descubramos uma saída.

 

- Está bem, vamos dormir.

 

Quando Sekari sonhava com uma enorme costeleta de vaca grelhada com ervas aromáticas e um jarro de cerveja fresca, Iker abanou-o.

- O que se passa?... A montanha mexeu-se outra vez?

 

- O Sol acaba de surgir. A caminho, Sekari. Temos de andar antes que esteja muito calor.

 

- A caminho, como? Eu não me afasto deste ponto de água!

- Não façamos esperar o nosso guia.

 

O jardineiro levantou-se de um salto e olhou em volta.

- Não vejo ninguém!

 

- Lá em cima, no céu.

 

Um falcão descrevia largos círculos por cima dos dois homens.

- Estás a fazer troça de mim, Iker?

 

- O meu velho mestre ensinou-me que o nome de Hathor significa "Morada de Hórus'". E a incarnação de Hórus é precisamente esse falcão que a deusa nos envia para nos guiar.

 

- O deserto deu-te definitivamente volta à cabeça!

- Anda, sigamo-lo.

 

- Mas... o ponto de água?

- Indicar-nos-á outros.

- Prefiro ficar aqui.

 

- Também preferes ver chegar os salteadores das areias?

 

O argumento deu resultado. Embora protestando, Sekari seguiu atrás de Iker.

 

- O teu falcão não se importa connosco mas com a sua futura presa. Estás a ver, afasta-se e abandona-nos!

 

Mas o falcão regressou.

 

Ora avançava, ora dava voltas sobre os seus protegidos.

 

Hathor é uma transcrição do egípcio Hut-hor. Hut significa "morada, casa".

 

- Ao fim de algumas horas de marcha, sentiram de novo os ardores da sede.

 

- O falcão acaba de poisar! - exclamou Sekari,

tropeçando numa pedra.

 

- E tu acabas de esbarrar numa pequena esteia. Se escavássemos? junto do modesto monumento, duas jarras contendo frutos secos. Um pouco mais longe, um ponto de água.

 

- Não é um festim - considerou Sekari - mas contentar-nos-emos.

 

Há já muito tempo que os dois viajantes não contavam os dias. Seguiam o falcão que, depois de os ter guiado para Este, tomara a direcção do Sul, De cada vez que a ave de rapina poisava, Iker e Sekari encontravam ou água, ou alimentos, ou as duas coisas. E não se tinham cruzado no caminho com um único salteador das areias.

 

Depois o deserto tornou-se menos árido, adornando-se com plantas espinhosas e tamargueiras anãs.

 

Com um potente bater de asas, o falcão subiu em direcção ao Sol e desapareceu na deslumbrante luz do meio-dia.

 

- O nosso guia abandona-nos - lamentou Sekari.

- Olha, lá em baixo: outro lhe sucede.

 

No cimo de uma colina, uma linda gazela branca com chifres em forma de lira.

 

- Um contador disse-me que era o animal de ísis e que permitia a quem se perdia reencontrar o seu caminho - afirmou o jardineiro. A gazela partiu a galope.

 

- Infelizmente, não passava de uma lenda!

 

- Não estou assim tão certo - objectou Iker.

- Não a viste abalar?

 

- Sigamos o seu rasto na areia. Talvez nos espere mais longe.

Iker não se enganava.

 

O ágil quadrúpede divertia-se a desaparecer e a reaparecer, oferecendo-lhes o espectáculo de saltos prodigiosos e correrias loucas, sem deixar muito tempo angustiados os dois humanos de que estava encarregado.

 

A paisagem mudava, o deserto recuava, a vegetação tornava-se mais abundante.

 

- Se a minha intuição está certa - profetizou Sekari - aproximamo-nos dos planaltos que dominam o vale do Nilo. Como estes vales e estas elevações são encantadores! Aqui, as plantas surgem à mínima chuva. Em breve veremos balanites e acácias. Estás a ver: - sobrevivemos ao deserto!

 

- Graças a Hathor, ao falcão e à gazela - lembrou-lhe Iker.

- Vou regressar aos meus jardins. E tu, se esquecesses o passado?

- Não apenas não o esqueço como também não devo negligenciar uma nova tarefa: reencontrar a rainha das turquesas. Foi ela que me permitiu rever a mulher que amo. Essa pedra vai sem dúvida ajudar-me outra vez.

 

- Os salteadores das areias com certeza que a roubaram, Iker! Se, por infelicidade, te atravessares no seu caminho, matar-te-ão. Mulheres bonitas há aos milhares!

 

O aprendiz de escriba estacou e depois obrigou Sekari a agachar-se.

- Uma vintena de homens com arcos e cães... Vêm na nossa direcção.

 

- São com certeza caçadores.

 

Ainda inconsciente do perigo, a gazela tasquinhava a erva tenra. Iker levantou-se e fez grandes gestos.

 

- Vai-te embora, vai-te embora depressa! Mal o animal abalou, ressoaram latidos.

 

Uma flecha assobiou à orelha de Iker e uma ordem estalou, muito seca.

 

- Não te mexas ou abato-te!

 

Em posição, o archeiro não brincava.

 

Em breve se lhe juntaram os companheiros e uma matilha bastante nervosa. Sekari nem sequer tentara fugir.

 

- Somos pessoas de bem! - afirmou.

 

- Devem é ser salteadores das areias que caçam as nossas presas considerou um oficial mal barbeado e com o busto coberto de cicatrizes, recordações de uma fera recalcitrante. Na província da Gazela', trata-se de um delito severamente punido. E como nos haveis agredido, fomos obrigados a atirar. Legítima defesa. Mas dou-vos uma pequena hipótese: correi tão depressa quanto puderdes. Talvez falhemos.

 

- Não correremos - decidiu Iker. - Acabamos de escapar a assassinos que devastaram o domínio das turquesas e não podíamos imaginar cair sob os golpes de bárbaros ainda mais cruéis.

 

Vários caçadores pareceram pouco à-vontade.

 

- Não somos bárbaros - protestou um deles - mas soldados da milícia do deserto ao serviço do chefe de província Khriumhotep. A nossa missão consiste em proteger as rotas das caravanas e fornecer-lhe caça. E tu, quem és?

 

- Iker, aprendiz de escriba. E o meu companheiro é o jardineiro Sekari.

 

- Patranhas! - cortou o oficial. - São espiões e ladrões. Se recusardes afastar-vos, corto-vos aqui mesmo o pescoço e já.

 

- Os teus subordinados acusar-te-ão de crime.

 

O oficial tirou o punhal da bainha, mas um soldado imobilizou-lhe o braço.

 

- Não tendes o direito de agir assim. É ao chefe de província que compete decidir. Contentemo-nos em levar-lhe estes dois suspeitos.

 

Quando os quatro transportadores poisaram a cadeira de alto espaldar reclinável na qual estava instalado Khnumhotep, deram um suspiro de alívio. Corpulento, musculado e bom garfo, o chefe da rica província da Gazela era bem pesado. Como dispunha de três cadeiras de transportadores com os lados decorados com flores de lótus e se deslocava muito, o veículo não era uma sinecura.

 

Logo que pôs pé em terra, os seus três cães de caça, um macho muito vivo e duas fêmeas anafadas, precipitaram-se para ele.

 

- Há mais de uma manhã que não nos víamos, meus amores! O macho ergueu-se e poisou as patas da frente sobre os ombros do dono. Ciumentas, as fêmeas ladraram. Longas carícias acalmaram-nas.

 

- Foram bem alimentados? - perguntou Khriumhotep ao seu transportador de guarda-sol.

 

- Sim, senhor!

 

- Não mentes, espero.

 

- Claro que não! Aliás, não deixaram nada.

 

- Esta noite comerão lebre com molho, como eu. Não amimar os seus cães é insultar os deuses.

 

À ideia do festim, os três cães, que conheciam perfeitamente a expressão lebre com molho", lamberam os beiços. Depois, seguiram o dono quando este penetrou no luxuoso palácio da sua capital', local de nascimento de Khufu, o construtor da maior das pirâmides do planalto de Guiza.

 

Depois de ter inspeccionado uma das ricas propriedades agrícolas onde os camponeses trabalhavam duramente mas beneficiavam de excelentes ordenados, Khnumhotep gostava de se sentar num cadeirão de costas altas. Formado por duas grandes placas de madeira ligadas no topo e presas ao assento, suportava sem ranger o peso do mais afortunado dos chefes de província. Graças às suas qualidades de gestor, os seus súbditos gozavam de um notável bem-estar financeiro. E não havia de ser um Faraó, mesmo que se chamasse Senuseret, que havia de se imiscuir nos seus assuntos. No caso do monarca instalado em Mênfis desencadear um golpe de força, esbarraria com uma feroz oposição.

 

Um servidor trouxe uma bacia larga, outro um jarro em cobre de bico alongado. Este deitou água sobre as mãos de Khnumhotep, que as lavava demoradamente várias vezes por dia, com um sabão vegetal.

 

Depois foi-lhe trazido o seu unguento preferido, à base de gordura purificada, cozida em vinho aromatizado. Dele se evolava um aroma suave que afastava os insectos.

 

Sem que precisasse de dar qualquer ordem, o seu escanção apresentou-lhe uma esplêndida taça recoberta a folhas de ouro cuja decoração representava pétalas de lótus. Continha a bebida preferida do senhor do lugar, uma sábia mistura de três vinhos velhos que devolviam a energia.

 

- Lamento importunar-vos, senhor, mas o comandante de uma das patrulhas do deserto desejaria ver-vos o mais depressa possível.

- Ele que venha.

 

O oficial curvou-se profundamente.

 

- Prendi dois indivíduos perigosos. Estavam a caçar nas vossas terras e agrediram-nos. Sem a minha intervenção, os meus homens tê-los-iam abatido. Como desejais que os elimine, senhor?

 

- São salteadores das areias?

- É difícil de dizer, eu...

 

- Para um profissional com a tua experiência, eis um julgamento bem hesitante! Trá-los cá.

 

- Não é necessário, eles...

 

- Eu é que decido o que é necessário.

 

Com as mãos atadas atrás das costas, Iker e Sekari foram apresentados ao chefe de província da Gazela.

 

- Dou pão ao faminto, água ao sedento, vestuário ao que está nu, um barco ao que não o possui - afirmou a imponente personagem mas castigo duramente os criminosos.

 

- Senhor - declarou Iker com gravidade - não somos bandidos mas vítimas.

 

- Não é essa a opinião do oficial que vos interpelou.

 

- Fiz fugir uma gazela porque ela era a mensageira de uma deusa que nos salvou a vida.

 

- Este sujeito é um louco ou um mentiroso! - exclamou o comandante.

 

- Desata os prisioneiros e retira-te - ordenou Khnumhotep.

- Senhor, a vossa segurança...

 

- Eu próprio tratarei disso.

 

Sekari estava cheio de medo, mas Iker permanecia calmo.

 

- Agora, meus rapazes, a verdade! Estão no meu território e quero saber tudo.

 

- Éramos empregados nas minas de turquesas da deusa Hathor

- revelou Iker.

 

- Como especialistas ou como detidos?

 

- Como detidos transferidos das MInas de cobre.

 

- Então são realmente criminosos!

 

- Fui condenado a um ano de trabalhos forçados por me ter oposto a um escriba desonesto.

 

- E tu? - perguntou Khnumhotep a Sekari.

- Eu também, senhor - balbuciou o jardineiro.

- Fazem mal em considerar-me um ingénuo!

 

- O meu amigo e eu fomos encarregados de explorar a montanha para descobrir a rainha das turquesas - continuou Iker sem se perturbar. - Como cumprimos essa perigosa tarefa, fomos libertados.

 

- E tens a prova do que me contas, como é evidente, não?

- Ei-la, senhor.

 

Iker tirou do saiote a tabuinha de madeira assinada por Horure que fazia dele e de Sekari homens livres, lavados das suas faltas. Khnumhotep leu-a com atenção, mordeu-a, tentou arranhá-la.

- Tem ar de ser autêntica.

 

O chefe de província ouvira falar desse Horure, um fiel súbdito de Senuseret, especialista de nomeada das regiões desérticas. Era evidente que aquele jovem orgulhoso e decidido não mentia.

 

- O que aconteceu à rainha das turquesas?

 

- O domínio da deusa foi atacado por um bando armado que recebeu o apoio de um prisioneiro, Goela-Torcida. Assassinou Horure, os polícias e os mineiros foram massacrados e os seus cadáveres queimados. Somos com certeza os únicos sobreviventes.

 

- Iker queria lutar - interveio Sekari - mas teria sido um suicídio! Foi por isso que fugimos.

 

- E atravessaram o deserto sem água nem alimentos?

 

Iker não ocultou nada dos sucessivos milagres que lhes tinham permitido sobreviver.

 

A sinceridade do rapaz era tão evidente que Khnumhotep não pôs em dúvida o seu relato, tanto mais que as divindades intervinham frequentemente no deserto.

 

Pela primeira vez, os salteadores das areias tinham ousado atacar as minas de turquesas, que estavam no entanto colocadas sob a protecção do Faraó.

 

Mas não competia ao chefe de província da Gazela alertar Senuseret. Outros acabariam por preveni-lo de que a sua autoridade abrira uma brecha. Assim o monarca, enfraquecido, estaria ocupado com tarefas mais prementes do que um confronto com os grandes dignitários hostis à expansão do seu poder.

 

- O que sabem vocês fazer, um e outro?

- Eu sou jardineiro - respondeu Sekari.

- E eu, aprendiz de escriba.

 

- A minha província é rica porque aqui se trabalha muito afirmou Khnumhotep. - Um jardineiro a mais não me será inútil. Mas não preciso de um escriba suplementar.

 

- Em contrapartida - continuou Khnumhotep - preciso de mais soldados para que a minha milícia possa repelir qualquer agressor. Visto que és jovem e de boa saúde, o teu lugar está encontrado.

 

- Quero ser escriba, senhor, não soldado.

 

- Ouve bem, meu rapaz. Os deuses confiaram-me uma missão: fazer desta província a mais próspera do país. Aqui, nada falta às viúvas, as raparigas são respeitadas, cada um come o que tem vontade e ninguém mendiga. Os fracos não são prejudicados em relação aos grandes, não existe qualquer conflito entre os ricos e as pessoas modestas. Porquê? Porque eu sou o pilar desta região, sejam quais forem as dificuldades. Quando houve más cheias, eu próprio indemnizei os agricultores e anulei os impostos em atraso. Quanto maiores são as taxas, mais se suprime a iniciativa. Nem os fraudulentos nem os funcionários corruptos têm o direito de cidade no meu território. Mas nada é mais frágil do que esta felicidade! Actualmente, anuncia-se um perigo que tem por nome Senuseret. Mais cedo ou mais tarde, tentará apoderar-se da minha província. Ou estás comigo, ou estás contra mim. Se queres beneficiar do meu acolhimento, torna-te um dos meus soldados. Não lamentarás aquilo que vais aprender.

 

O próprio Khnumhotep estava admirado por ter exposto tantos argumentos para convencer aquele jovem desconhecido! Em geral, contentava-se em dar ordens e não suportava que o contradissessem.

- Confio em vós, senhor.

 

Uma vez mais, o tesoureiro Medés se fizera passar por um generoso doador. O grande sacerdote do templo de Ptah agradecera-lhe calorosamente, sem duvidar que a oferenda era proveniente de um desvio de bens alimentares. Mas Medés esbarrava sempre com a porta hermeticamente fechada do templo coberto. E era forçado a admitir que não conseguiria comprar os que possuíam a sua chave.

 

Que processo deveria utilizar para conhecer finalmente o segredo dos santuários? O alto dignitário adiou essa preocupação para mais tarde, pois a capital fervilhava de boatos não desprovidos de interesse. Senuseret decidira iniciar uma verdadeira reconquista das províncias, começando pela da Cobra, sobre a qual reinava o velho Uakha.

 

Aprion", o monarca não tinha qualquer hipótese de vencer; no entanto, aquela decisão não devia ser encarada de ânimo leve, porque a forte personalidade de Senuseret não recuaria diante do obstáculo.

 

Ora a fortuna de Medés dependia, em grande parte, das suas excelentes relações com os chefes de província que informava, por interpostas pessoas, do que se passava na corte. Com excepção da sua alma danada, Gergu, ninguém sabia quem era realmente Medés nem aquilo que não cessava de fomentar na sombra.

 

Há já algum tempo que tinha a maior dificuldade em verificar os rumores contraditórios. Era evidente que Senuseret retomara o controlo sobre boa parte dos seus cortesãos e mantinha ele próprio essa confusão para melhor avançar no caminho que a si mesmo traçara.

 

Se o monarca conseguisse desencadear uma verdadeira tempestade, Medés não seria arrastado?

 

Havia uma única solução para evitar esse desastre: suprimir o seu autor.

 

Mas o assassinato de um rei não se improvisava, sobretudo quando ele era protegido por um polícia tão eficaz como Sobek, que desconfiava de toda a gente, mesmo e sobretudo dos próximos do soberano. Medés não podia portanto cometer a mais pequena imprudência.

 

Era utópico contar com a sorte. Competia-lhe elaborar uma estratégia que lhe permitisse só atacar pelo seguro.

 

O instrutor bateu nas pernas de Iker e este caiu pesadamente de costas.

 

Falta de atenção, meu rapaz! Levanta-te e tenta bater-me na barriga.

 

A tentativa saldou-se por um rotundo fracasso e o rapaz deu consigo outra vez no chão, com algumas nódoas negras suplementares.

- Vou ter trabalho... Mas com boa vontade, acabarás por saber lutar.

 

Iker apertou os dentes e voltou ao assalto, sabendo que demoraria semanas, mesmo meses, antes de igualar os jovens recrutas que faziam troça dele.

 

Em primeiro lugar, não devia queixar-se do destino que o levara até ali mas sim tirar o máximo partido dos ensinamentos daquela situação; depois, observar constantemente os mais aguerridos e imitá-los.

 

Em vez de o enfraquecer, o facto de não ter nem amigo nem aliado decuplicou a sua energia. Podendo apenas contar consigo mesmo, Iker bebeu na solidão a força para se concentrar naquela nova aprendizagem e unicamente nela.

 

Do golpe de anca à passagem de perna, assimilou numerosas posições, rectificando os erros que cometia. Compreendeu que a rapidez era mais importante do que a brutalidade e que era possível voltar contra o agressor a sua própria violência.

 

O instrutor não era mais falador do que Iker. Avaro de explicações e de comentários, fazia-o repetir cem vezes o gesto correcto, fosse qual fosse o sofrimento ou a fadiga. E como o seu aluno nunca emitia o mínimo protesto, tratava-o ainda mais duramente do que aos seus camaradas.

 

- Amanhã - anunciou - eliminatórias para a prova de fundo. Bater-se-ão com mãos nuas. Só os que conseguirem duas vitórias serão apurados.

 

O primeiro adversário de Iker era maior e mais forte do que ele.

- Vem cá, rapaz, que dou cabo de ti!

 

Iker pôs um joelho em terra.

 

- Ah, declaras-te vencido sem combater! Não me espanta. Só os rapazes da nossa província são capazes de ser bons guerreiros.

 

- No entanto, não é esse o teu caso.

- O que te atreves a dizer?

 

O brutamontes precipitou-se, com os punhos cerrados à frente.

Iker desviou-se, estendeu a perna para o fazer tropeçar, deitou-o de costas e bloqueou-lhe o pescoço com o braço direito.

 

Quando o vencido bateu na terra com a mão esquerda, o instrutor ordenou a Iker que desfizesse a prisão.

 

O segundo adversário era menos estúpido. Atacou de improviso e conseguiu passar o braço direito por baixo da coxa direita de Iker para tentar levantá-la. Mas o rapaz aguentou, libertou-se, passou por trás do lutador com uma vivacidade inesperada e agarrou-o pelos tornozelos. O vencido caiu de cara no chão e o vencedor esborrachou-o contra o solo, estrangulando-o.

 

- Duas vitórias, muito bem. Vai beber e comer.

 

Partiram cerca de cinquenta jovens milicianos. Embora o instrutor tivesse falado de uma corrida de resistência, alguns partiram demasiado depressa, desejosos de ofuscar os camaradas. Iker pareceu ir a reboque, mas beneficiou da experiência adquirida durante a sua terrível marcha no deserto. Sem forçar o andamento, ultrapassou um a um os outros concorrentes, ele próprio surpreendido com a sua resistência.

 

No dia seguinte, a prova recomeçou, mais exigente ainda.

 

- Os melhores de vocês devem percorrer cem quilómetros em oito horas' - anunciou o instrutor. - A maior parte das mensagens seguem por barco, mas os correios militares serão por vezes obrigados a meter por caminhos de terra. Quero portanto homens bem preparados.

 

Correndo a um ritmo cada vez mais rápido, Iker não parava de pensar no rosto sublime que contemplara na rainha das turquesas. Como não lhe teria um sinal tão extraordinário dado confiança? Reencontrá-la-ia, a ela e aos que o tinham condenado à morte.

 

Quando notou, no último momento, os pedaços de sílex cortantes espalhados na pista, teve o reflexo de se atirar para o lado; resvalou Por um declive e terminou a queda de encontro ao tronco de uma tamargueira. Semi-inconsciente, acabava de evitar o pior, porque profundos ferimentos nos pés tê-lo-iam imobilizado por um longo período.

 

Depois de ter voltado completamente a si, Iker venceu pouco-a-pouco a distância que o separava do homem da frente, um filho de miliciano que o detestava e não cessava de denegri-lo junto dos camaradas.

 

No momento em que o ultrapassava, o outro tentou desequilibrá-lo com um golpe de ombro. Iker esquivou-se.

 

- Não direi nada dos sílex ao instrutor. Resolveremos o assunto entre nós, na caserna.

 

- Os melhores manobradores de cacete são os núbios - revelou o instrutor. - Foi com um deles que aprendi as técnicas que vos ensino. Vão pô-las em prática num combate durante o qual não pouparão os golpes. Preciso de dois voluntários.

 

- Eu - disse Iker, sabendo que provocaria a reacção do filho do miliciano.

 

De facto, este aproveitou logo a oportunidade.

 

Os dois adversários eram do mesmo tamanho e com a mesma força mas, como era seu hábito, Iker apostou na vivacidade. Deixou o outro acreditar, furibundo, que receava os seus assaltos e obrigou-o a cansar-se numa série de molinetes e ataques ineficazes.

 

Com o seu cacete rígido e ágil, Iker bateu-lhe uma única vez, no meio da testa.

 

O outro caiu como um bloco. O instrutor examinou-o.

 

- Quando acordar, vai ter uma valente dor de cabeça.

- Podia ter batido com mais força.

 

- Já não te reconheço, Iker.

- Não suporto cobardes.

 

O instrutor olhou o seu aluno de través.

- Não tens nada a acrescentar?

 

- O caso está resolvido.

 

- Gosto disso, Iker. O que se passa entre soldados não me interessa, desde que sejam disciplinados, competentes e corajosos. Ainda te falta a prática do salto.

 

A princípio, a corda estendida entre duas estacas não estava muito alta. Mas foi-se elevando de tal forma que pareceu impossível de franquear. Foram necessárias tanto técnica como força de vontade para se dominar e não estacar perante o obstáculo. Também nesse jogo Iker se revelou o melhor.

 

Uma linda morena de cerca de quarenta anos aproximou-se do instrutor.

 

- Dama Techat! O que nos trazeis de bom?

 

- Queijo e legumes. Diz-me, como se chama aquele rapaz?

- Iker.

 

É natural da nossa região?

 

Não, mas é um excelente recruta. Farei certamente dele um oficial.

 

A mulher de negócios, tesoureira da província, esboçou um sorriso enigmático. Do seu ponto de vista, aquele Iker merecia melhor.

 

Quando foi colocada a primeira pedra do santuário de Senuseret, no momento do ritual de fundação dirigido pessoalmente pelo monarca, um dos ramos da acácia reverdeceu.

 

Infelizmente, mais nenhum o imitou. No entanto, renascia a esperança e o caminho estava traçado: construir um novo templo e uma nova Morada de Eternidade a fim de lutar contra as trevas que ameaçavam invadir o domínio de Osíris.

 

Senuseret verificara a qualidade dos materiais e conversara com alguns dos artesãos. Era preciso trabalhar o mais depressa possível, é um facto, mas não em detrimento da força da obra.

 

E, desde o início do estaleiro, a nova equipa de ritualistas nomeada pelo transportador da paleta de ouro pusera-se também ao trabalho. O sacerdote calvo preservava os arquivos sagrados da Casa de Vida, onde ninguém podia penetrar sem o seu consentimento. O encarregado de velar pela integridade do grande corpo de Osíris não se mostrava menos vigilante e verificava várias vezes por dia os selos colocados na porta do túmulo divino. Quanto ao ritualista que via os segredos, celebrava, em nome do Faraó, os rituais quotidianos em companhia do transportador da paleta. Graças à magia do Verbo, era mantido o laço com o invisível. Venerando os antepassados e os seres de luz, o Servidor do ka contribuía eficazmente para o reforçar; e o que deitava quotidianamente a libação de água fresca sobre as mesas de oferenda tornava activas as substâncias subtis ocultas na matéria a fim de que as divindades delas se alimentassem e protegessem Abido.

 

Todos tinham plena consciência da importância da sua tarefa. Eles, os permanentes, organizavam o trabalho dos temporários, devidamente filtrados pelas forças da ordem. Cada um tinha sido interrogado e as suas declarações verificadas. À mínima falta, um sacerdote temporário seria excluído do domínio de Osíris. A gravidade da situação não autorizava qualquer laxismo. O mesmo rigor se aplicava às sete sacerdotisas cantoras, de origens diversas Visto que reuniam uma alta personalidade da corte e uma filha de camponês. Uma delas era tão bela e tão recolhida que nem mesmo o velho transportador da paleta ficava insensível ao seu encanto. Quem não teria desejado ser o pai de tal jovem, tão luminosa que o seu olhar dava alegria e esperança? Seria sem dúvida um dia inIciada nos grandes mistérios e não teria de desempenhar mais a função de transportadora de oferendas durante as festas celebradas no mundo exterior. Mas para atingir a condição de ritualista permanente, sobretudo em Abido, era necessário conhecer todos os degraus da hierarquia e percorrer todas as etapas que conduziam ao templo coberto. Era essa a Regra desde a origem, e assim continuaria a ser.

 

Inteiramente dedicado à sua função, rejuvenescido pela missão que lhe confiara o Faraó e decidido a lutar contra as trevas até à sua última hora, o velho sacerdote não detectava um perigo inesperado.

 

Um dos permanentes, um alto magricela de rosto ingrato e nariz proeminente, não estava satisfeito com a sua sorte. Passava por ser um ser imbuído de espiritualidade, ilusão que a ele próprio embalara enquanto não se revelou a sua verdadeira natureza: o gosto pelo poder. Não o de um rei exposto aos acontecimentos e a mil e uma imposições, mas o poder oculto exercido na sombra.

 

Com o passar dos anos, compreendera toda a importância de Abido e dos mistérios de Osíris. A própria existência da instituição faraónica dependia deles. Era sobre esse domínio que queria reinar, porque continha os segredos da vida e da morte.

 

Vindo de uma escola de geómetras e de matemáticos, gelado como um vento de Inverno, previra suceder ao decano e tornar-se o sumo sacerdote. No entanto, o aparecimento de Senuseret e a reorganização do colégio dos ritualistas tinham aniquilado os seus planos. Suprema decepção, o transportador da paleta de ouro apenas lhe confiara uma função que considerava subalterna, bem distante da que esperava. É verdade que pertencia ao topo da hierarquia, mas queria mais.

 

O maldito Senuseret era o responsável por aquela decepção e pelo seu rancor, cada dia mais intenso. Mas como havia de desembaraçar-se dele e obter o que lhe era devido?

 

Para o bando do Anunciador, que se contava já mais de duzentos homens, a travessia da zona pantanosa fora particularmente esgotante devido ao calor húmido e às incessantes agressões dos insectos. Tinham. morrido dois homens em consequência de mordeduras de serpentes e outro fora levado por um crocodilo. No entanto, nada ensombrava a determinação do guia supremo, que não hesitava nunca na direcção a seguir.

 

Foi necessário penetrar numa floresta de juncos seminundada e avançar na lama. Mas evitavam assim cruzar-se com soldados de Senuseret e festejavam todas as noites comendo peixe grelhado.

 

Apesar das veleidades de Shab, o Torto e de Goela-Torcida, o Anunciador proibiu-os de pilharem as raras aldeias de pescadores perto das quais passaram.

 

- Não demoraríamos muito - protestou Goela-Torcida.

 

- O saque seria irrisório e não devemos deixar qualquer rasto. O ataque do domínio de Hathor foi apenas um ensaio. Em breve atacaremos com mais força.

 

- Pode-se saber onde vamos?

 

- Para além das Muralhas do Rei. É a razão pela qual temos de tomar tantas precauções e aventurarmo-nos em zonas consideradas intransponíveis.

 

- Não tencionais por certo tomar de assalto os fortins egípcios! Todos tinham ouvido falar do sistema defensivo instalado pelo primeiro dos Senuseret para consolidar a fronteira nordeste do país e repelir qualquer tentativa de invasão. Ligados entre si por meio de sinais ópticos, os numerosos postos de guarda e de controlo tinham archeiros autorizados a atirar sobre quem corresse o risco de forçar a passagem.

 

- Ainda é muito cedo - reconheceu o Anunciador - mas a nossa hora chegará. As Muralhas do Rei dão ao Egipto uma ilusória sensação de segurança.

 

- Mesmo assim - objectou Shab, o Torto - são defendidas por verdadeiros soldados e...

 

- Continua a confiar em mim e tudo correrá bem. Primeiro objectivo: passar a fronteira sem sermos detectados. Depois, entraremos em contacto com os nossos novos aliados.

 

- De quem falais, senhor?

 

- Dos asiáticos e dos beduínos que vivem com dificuldades na região de Canaã e são perseguidos pela administração egípcia. Humilhados constantemente, só pensam em revoltar-se mas receiam uma repressão sangrenta. Apenas esperam um chefe: eu, o Anunciador.

 

Shab, O Torto estava fascinado. E mesmo se Goela-Torcida considerava o seu chefe um louco, acreditava que fosse capaz de organizar uma bela série de pilhagens que tornariam os seus partidários ricos. Com efeito, ainda era preciso ultrapassarem as Muralhas do Rei sem serem apanhados e nisso o sobrevivente das minas de cobre não acreditava. Goela-Torcida estava enganado.

 

Sem impaciência, o Anunciador enviou diversos batedores para localizarem o ponto de passagem menos vigiado. Realizada esta tarefa, observou durante vários dias o comportamento dos soldados e dos aduaneiros egípcios. A meio de uma noite sem lua, despertou os seus fiéis e ordenou-lhes que o seguissem.

 

Em perfeito silêncio, passaram por trás do fortim que nenhuma sentinela vigiava.

 

- O patrão - reconheceu Goela-Torcida - não é brincadeira!

- Quando se tem a sorte de encontrar um assim - aprovou Shab, o Torto - não o devemos abandonar.

 

- Não será demasiado ambicioso quanto ao saque?

 

- Não quer saber disso. Estás de acordo em guardarmos o máximo para os dois, como adjuntos directos do Anunciador, e dividirmos o resto?

 

- Convém-me. Se algum reclamar, quebro-lhe os rins. Não há nada melhor do que dar o exemplo! Mas diz lá... o que é que o patrão procura?

 

- A sua obsessão é o reino da verdade absoluta e definitiva da qual é o único depositário e que é necessário impor a toda a humanidade.

 

Ou se submetem ou morrem. E o seu principal adversário é o Faraó, porque recusa esse dogmatismo.

 

Sabes muito, Torto!

 

À força de ouvir o Anunciador, repito o que ele diz.

 

Eu não me ralo com essas coisas! O importante é que seja um bom chefe de guerra e que imponha a sua nova fé pela espada e pelo sangue. Quanto mais egípcios matarmos, mais ricos seremos.

 

Quando o Anunciador encontrou os primeiros asiáticos, proprietários de rebanhos, apresentou-se de imediato como o decidido adversário de Senuseret e conseguiu a atenção dos chefes de clã. Aceitou o jogo obrigatório das longas conversações que não conduziam a nada, mas obteve o que desejava: estabelecer contacto com o seu superior oculto, um velho beduíno cego, de barba branca, cujo ódio pelos Egípcios crescia cada vez mais. Coordenava os ataques às caravanas mal protegidas e mandava executar os cananeus suspeitos de se entenderem com o inimigo.

 

Logo que o Anunciador entrou no quarto austero Onde o velho permanecia preso a um cadeirão, o barbudo esboçou um sorriso extático.

- Eis-te, por fim! Esperava-te há muito tempo... Eu apenas sou capaz de picadas de insecto. Mas tu vais desencadear a tempestade e a carnificina! É preciso acabar com a lei de Maet e o reinado do seu filho, o Faraó.

 

- O que me recomendas?

 

- Uma guerra frontal estaria perdida de antemão. Com alguns fiéis prontos a dar a vida pela nossa causa, lança o terror no território egípcio. Que as operações pontuais façam o máximo de vítimas e espalhem o pânico entre a população. Senuseret será considerado responsável por elas e o seu trono desabará.

 

- Sou o Anunciador e exijo a obediência absoluta dos combatentes que puseres à minha disposição.

 

- Tê-la-ás! Mas precisarás de formar muitos outros. Deixa-me tocar nas tuas mãos.

 

O Anunciador aproximou-se.

 

- É estranho... Parecem garras de falcão! És tal como eu te imaginava, feroz, implacável, indestrutível!

 

- Se tivesses tido meios para isso, por onde terias começado a tua conquista?

 

- Sem hesitar, por Siquém. Só lá existe uma pequena guarnição egípcia. A população será fácil de inflamar e a vitória espectacular.

- Será então Siquém.

 

- Chama os meus servidores e pede-lhes que me transportem até ao limiar da minha casa. Que se reúnam todos os partidários da luta armada.

 

Com uma veemência espantosa para um homem da sua idade, o cego preconizou a guerra total contra o Egipto e apresentou o Anunciador simultaneamente como seu sucessor e como o único chefe capaz de conduzir os seus partidários à vitória.

 

Depois, num último espasmo de ódio, morreu.

 

Nota: Siquem, a actual Napluse. (N. da T.)

 

A pequena cidade de Siquém estava adormecida ao Sol e a guarnição egípcia ia realizando preguiçosamente as suas ocupações quotidianas, entre as quais o exercício ocupava apenas um pequeno lugar. Depois de uma dezena de anos passada naquele canto perdido, o comandante já não tentava opor-se aos tráfegos incessantes da população local. Roubavam-se, assassinavam-se um pouco, regulavam as suas contas atacando-se pelas costas, mas sem causar perturbações à ordem pública. Nesse ponto, o comandante mostrava-se intransigente: aceitando não saber nada, nada queria ver.

 

Também renunciara no terreno da fiscalidade. Os cananeus mentiam de tal maneira que ele já não conseguia distinguir o verdadeiro do falso. E não dispunha de um número suficiente de verificadores. Contentava-se portanto com uma percentagem mínima sobre as colheitas que acediam a mostrar-lhe. De todas as vezes, era sempre a mesma comédia: os seus administrados queixavam-se do calor, do frio, dos insectos, do vento, da seca, da tempestade e de outras cem calamidades que os reduziam à miséria. O oficial já nem sequer ouvia aquele discurso tão aborrecido que teria adormecido o mais recalcitrante doente de insónias.

 

Todos os dias rezava ao deus Afin, cuja capela fora construída a norte da caserna, para que lhe permitisse regressar o mais depressa possível ao Egipto. Sonhava rever a sua aldeia natal do Delta, fazer a sesta no palmeiral ao longo do canal onde tomavam banho na estação quente e poder ocupar-se da sua velha mãe que há muito tempo não via.

 

Com perseverança, escrevia para Mênfis a reclamar a sua transferência, mas a hierarquia militar parecia tê-lo esquecido. Encarando a provação com paciência, o oficial organizara uma existência tranquila onde a cerveja forte, muitas vezes de medíocre qualidade, ocupava o primeiro lugar.

 

- Chegou a caravana do Norte - avisou o seu adjunto.

- Não há nenhum incidente a assinalar?

 

- Ainda não procedi à inspecção.

- Esquece.

 

- Mas o regulamento...

 

- Os cananeus farão o trabalho por nós. Entendem-se bem com os caravaneiros sírios.

 

- Vão falsificar as notas de remessa, roubar na quantidade dos produtos e...

 

- Como de costume - lembrou o comandante. - Parece que te apaixonaste por uma indígena, não é?

 

- Andamos juntos, é verdade?

- É bonita?

 

- Atraente e muito dotada.

 

- Não te cases. As raparigas daqui obedecem mais ao seu clã do que ao marido, que acabam sempre por devorar.

 

- Um dos nossos vigias assinalou um começo de agitação na entrada sul da cidade.

 

O comandante saiu bruscamente do seu torpor.

- Estás a brincar?

 

- Também não verifiquei.

 

- Ocupa-te disso imediatamente! Um contrato é um contrato. Se os cananeus o esqueceram, vou lembrar-lhes.

 

Duas horas mais tarde, o adjunto ainda não regressara. Assaltado por um mau pressentimento, o comandante ordenou à guarnição que pegasse nas armas e o seguisse. De vez em quando, uma demonstração de força não deixava de ser útil. E se os autóctones tinham causado o mínimo aborrecimento ao seu subordinado, iam saber quem detinha a autoridade em Siquém.

 

Na entrada sul encontravam-se mais de trezentos homens reunidos numa massa compacta. O oficial egípcio ficou surpreendido: não conhecia a maior parte deles.

 

Não seria certamente com os seu escasso efectivo que poderia enfrentar semelhante multidão, tanto mais que os seus soldados, pouco preparados para um tal confronto, estavam já a bater os dentes.

 

- Chefe - sugeriu-lhe um deles - talvez fizéssemos bem em voltar para trás.

 

- Incarnamos a ordem e a lei em Siquém e não vai ser um ajuntamento de estranhos que as porá em risco.

 

Uma rapariga adiantou-se.

 

- Queres saber notícias do teu adjunto, comandante?

- Quem és tu?

 

- A mulher que ele desonrou e maculou. julgava que eu seria obrigada para sempre a calar-me, mas nem ele nem tu tinham previsto a chegada do Anunciador! Graças a ele, os cananeus esmagarão o Egipto. - liberta imediatamente o meu adjunto!

 

A rapariga esboçou um sorriso feroz.

- À vontade, comandante.

 

Goela-Torcida lançou três sacos aos pés do oficial egípcio.

- Eis o que resta desse torcionário.

 

Com as mãos trémulas, o comandante abriu os sacos. O primeiro continha a cabeça do seu adjunto, o segundo as mãos e o terceiro o sexo. Surgiu um homem de elevada estatura, com barba cuidadosamente cortada e estranhos olhos vermelhos.

 

- Depõe as armas e ordena aos teus homens que me obedeçam - ordenou com voz doce.

 

- Por quem te tomas?

 

- Sou o Anunciador e deves submeter-te, como todos os habitantes de Siquém.

 

- És tu que te deves submeter ao representante legal da autoridade! Se és o instigador deste crime, serás executado, tal como os seus autores.

 

- Não és razoável, comandante. Se eu desencadear as hostilidades, o teu punhado de medrosos não resistirá muito tempo.

 

- Segue-me sem hesitar, senão...

 

- Ofereço-te uma última hipótese, egípcio. Ou me obedeces, ou morres.

 

- Agarrem neste revoltado - ordenou o comandante aos seus homens.

 

Os fiéis do Anunciador precipitaram-se ao assalto.

 

Foi Goela-Torcida que trespassou o peito do oficial, antes de Shab, o Torto acabar com ele, dominado por uma crise de histeria e espezinhando-lhe o rosto. Nenhum dos soldados correu suficientemente depressa para escapar aos seus perseguidores.

 

A população de Siquém aclamou o seu novo senhor, que a converteu à religião de que era o único garante e intérprete. Como o seu programa consistia em derrubar o Faraó e ampliar o território dos Cananeus, as pessoas aderiram com entusiasmo à nova ideologia.

 

Num grande concerto de vociferações, a caserna e o templo de Min foram arrasados. A partir de agora, mais nenhum templo seria construído à glória de uma divindade, e mais nenhuma divindade seria representada fosse em que material fosse. Apenas seriam gravadas as palavras do A nunciador a fim de que todos delas se compenetrassem, repetindo-as incansavelmente.

 

O vencedor e os seus lugar-tenentes instalaram-se na casa do governador, lapidado por ter colaborado com os egípcios.

 

- Exijo metade das terras - declarou Goela-Torcida.

 

- Está bem, mas é muito pouco - considerou o Anunciador, deixando o interlocutor de boca aberta. - Depois de tantos sofrimentos nas minas de cobre, não mereces mais?

 

- Visto assim... O que quereis propor?

 

- Devemos formar jovens combatentes prontos para morrer pela nossa causa, infligindo profundos ferimentos ao Egipto. Queres ocupar-te disso?

 

-À fé de Goela-Torcida, isso agrada-me! Mas não se tratará de brincadeira. Mesmo no treino, não pouparei os golpes.

 

- Também é precisamente assim que entendo as coisas. Apenas uma elite perfeitamente aguerrida partirá em missão. Com Shab, prepararemos as que lhe serão confiadas. E todas as manhãs explicarei à totalidade dos meus fiéis as razões da nossa luta.

 

Shab, o Torto estava cada vez mais orgulhoso por estar associado tão de perto a semelhante conquista. As palavras simples do Anunciador encantavam-no e faziam dele o mais convicto dos propagandistas.

 

Era aqui, em Siquém, que a grande aventura começava a surgir.

 

A corte de Mênfis estava em ebulição. De acordo com insistentes rumores, Senuseret, de regresso à capital, não tardaria a reunir os altos dignitários que compunham a Casa do Rei, verdadeiro corpo simbólico do monarca. A sua função não se reduzia à de vulgares ministros; comparados aos raios do Sol, o seu papel consistia precisamente em transmitir e fazer viver os decretos do Faraó, como expressão terrestre da luz criadora.

 

Ora, tanto nesse domínio como em muitos outros, Senuseret acabava de efectuar uma profunda reforma, reduzindo o número de responsáveis pertencentes à Casa do Rei e obrigados ao segredo sobre as deliberações daquela corte suprema onde se elaboraria o futuro do país.

 

E cada um se interrogava com inquietação e ansiedade se seria um dos felizes eleitos. Alguns velhos cortesãos tinham refrescado os ardores dos ambiciosos lembrando-lhes o enorme peso que pesaria sobre os ombros dos titulares.

 

Enquanto esperava as nomeações, Medés sentia-se nervoso. Conservaria o seu lugar? Seria transferido ou, pior ainda, exilado para uma cidade de província? Tinha a certeza de não ter cometido nenhum erro e, portanto, de não merecer nenhuma censura. Mas saberia o Rei apreciar as suas qualidades. pelo seu justo valor?

 

Quando dois dos polícias de Sobek, o Protector, pediram para o ver, Medés sentiu-se desfalecer. Que indício poderia ter colocado na sua pista aquele maldito cão de guarda? Gergu... Gergu falara de mais!

 

Aquele miserável não sobreviveria à sua traição, porque Medés acusá-lo-ia de mil delitos.

 

Vamos conduzir-vos ao palácio - anunciou um deles. Porquê?

 

O nosso chefe vos dirá.

 

Era inútil resistir. Medés não devia deixar transparecer nada dos seus receios, porque talvez pudesse alegar inocência e convencer o monarca. Face a Sobek, faltou-lhe a coragem. Nenhuma das frases que preparara saiu dos seus lábios.

 

- Sua Majestade ordenou-me que vos anunciasse que haveis deixado de ser responsável pelo Tesouro.

 

Medés ouvia já bater a porta da sua cela.

 

- Actualmente, ficais encarregado do secretariado da Casa do Rei. Nessa qualidade, registareis os decretos reais e velareis pela sua execução em todo o território.

 

Durante um longo momento, Medés julgou-se mergulhado num sonho. Ele, associado ao coração do poder! É verdade que não penetrava no núcleo fundamental de que o Faraó era o centro, mas ficava na tangente. Situado logo abaixo das principais personagens do reino, seria o primeiro a tomar conhecimento das suas verdadeiras intenções.

 

Cabia-lhe agora aproveitar ao máximo aquela nova situação.

 

Eram apenas quatro na sala de audiências do palácio real de Mênfis: Sobek, o Protector, Se-hotep', Senankh e o general Nesmontu.

 

Silenciosos, não ousavam olhar-se nem pensar que tinham sido escolhidos pelo Rei para formar o seu conselho restrito. Nenhum pensava nas honrarias, mas todos se preocupavam com as dificuldades que os esperavam, sabendo que Senuseret não admitiria nem fracassos nem subterfúgios.

 

Quando o Faraó apareceu, símbolo do Um que mantinha o múltiplo em harmonia, levantaram-se e curvaram-se. Graças ao seu turbante, o pensamento do monarca atravessava o céu como um falcão divino, recolhia a energia solar e celebrava a mais misteriosa das comunhões, a de Ré e de Osíris; pelo saiote, que tinha um nome análogo ao da acácia, o Rei testemunhava o seu conhecimento dos grandes mistérios; pelos braceletes em ouro maciço, o facto de pertencer simbolicamente à esfera divina.

 

O Faraó sentou-se lentamente no trono.

 

- A nossa principal função consiste em fazer reinar Maet sobre esta terra - lembrou. - Sem rectidão e sem justiça, o homem torna-se uma fera para o homem e a nossa sociedade inabitável. O nosso coração deve mostrar-se vigilante, a nossa língua decidir, os nossos lábios formularem a verdade. Compete-nos prosseguir a obra de Deus e dos deuses, recomeçar todos os dias a criação, alicerçar de novo este país como um templo. Grande é o Grande cujos grandes são grandes. Nenhum de vós poderá comportar-se de forma medíocre, nenhum de vós deve enfraquecer a arte real.

 

O olhar do monarca poisou sobre Se-hotep, um homem de cerca de trinta anos, elegante e nobre, de rosto fino animado por olhos brilhantes de inteligência. Herdeiro de uma rica família, escriba experiente, espírito rápido a ponto de ser por vezes nervoso, não era apreciado pelos cortesãos.

 

- Nomeio-te Companheiro único, Portador do selo real e Superior de todos os trabalhos do Faraó. Velarás pelo respeito do segredo dos templos e pela prosperidade do gado. Sê justo e verdadeiro como Tot. Comprometes-te a cumprir as tuas funções sem fraquejar?

 

- Comprometo-me - jurou Se-hotep em voz comovida. Senuseret dirigiu-se em seguida a um homem quadragenário de faces cheias e ventre proeminente. Aquele aspecto de apreciador da boa vida, amador de cozinha requintada, dissimulava um especialista das finanças públicas de carácter rigoroso, além de um condutor de homens tão intransigente como temido. Possuindo um sentido muito limitado da diplomacia, chocava-se frequentemente com os lisonjeadores e os preguiçosos.

 

- A ti, Senankh, nomeio-te ministro da Economia, grande tesoureiro do reino, à frente da Dupla Casa branca. Velarás pela justa distribuição das riquezas a fim de que ninguém tenha fome.

 

- Comprometo-me, Majestade.

 

Considerado como demasiado austero e muito autoritário, o velho general Nesmontu já se tornara ilustre durante o reinado de Amenemhat. Indiferente às honrarias, vivendo na caserna principal de Mênfis com a simplicidade de um homem da tropa, apenas tinha um ideal: defender o território egípcio, custasse o que custasse.

 

- A ti, Nesmontu, nomeio-te para ficares à frente das nossas forças armadas.

 

Frequentemente posto em causa pela sua maneira franca de dizer as coisas, o velho oficial não traiu a sua reputação.

 

- É evidente, Majestade, que obedecerei escrupulosamente às vossas ordens, mas preciso de vos lembrar que as milícias dos chefes de província, uma vez reunidas, formarão um exército superior ao nosso? E não falo da insuficiência do nosso equipamento nem da vetustez dos nossos alojamentos.

 

- Acerca dos dois últimos pontos, elabora sem demora um relatório pormenorizado a fim de que possamos anular essas carências. Quanto ao resto, tenho consciência da gravidade da situação e não deixarei de agir.

 

- Podeis contar com a minha absoluta dedicação, Majestade prometeu o general Nesmontu.

 

Sobek, o Protector de boa vontade se retiraria daquela assembleia onde considerava não ter lugar, mas o soberano olhou-o com gravidade.

- A ti, Sobek, nomeio-te chefe de todas as polícias do reino. Compete-te fazer reinar a segurança sem fraqueza nem excesso, garantir a livre circulação das pessoas e bens, velar pelo cumprimento das regras de navegação e deter os causadores de perturbações.

 

- Comprometo-me - garantiu Sobek - mas posso pedir a Vossa Majestade o favor de não me confinar num gabinete? Gostaria de continuar a assegurar a vossa protecção pessoal com a minha equipa restrita.

 

- Arranja tu a forma de conciliar a totalidade dos teus deveres.

- Contai comigo, Majestade!

 

- A instituição faraónica é uma função vital - continuou Senuseret. - Embora não tenha filho nem irmão para a perpetuar, o que a exerce deve restaurar as construções do seu predecessor e cumprir o seu próprio nome de reinado. Só um fraco não tem inimigos, e a luta de Maet contra isefet, a violência, a mentira e a iniquidade, não se interromperá nunca. Mas hoje em dia assume um novo aspecto, porque alguns dos nossos adversários, e sobretudo os que estão decididos a destruir a monarquia e o próprio Egipto, não são visíveis.

 

- Receais pela vossa vida, Majestade? - inquietou-se Se-hotep.

- Isso não é o mais importante. Se eu desaparecer, os deuses designarão o meu sucessor. É Abido que está em perigo. Assaltada por forças obscuras, a acácia de Osíris desfalece. Graças a novos edifícios, que emitirão uma energia regeneradora, espero pelo menos deter esse processo. Mas ignoro o seu autor e, enquanto não for identificado, podemos recear o pior. Quem ousa manobrar a força de Set e colocar assim em perigo a ressurreição de Osíris?

 

- Quanto a mim - interveio o general Nesmontu - não tenho a mínima dúvida: é com certeza um dos chefes de província que se recusam a reconhecer a vossa plena e total autoridade. Em lugar de se submeter e perder os seus privilégios, um desses celerados decidiu praticar a política do pior.

 

- Poderia um egípcio ser tão louco que quisesse destruir o seu próprio país? - interrogou Senankh.

 

- Um potentado como Khnumhotep não recuará diante de nada para conservar o seu poder hereditário! E não é o único.

 

- Ponho as mãos no fogo por Ualcha, chefe de província da Cobra - afirmou Senuseret, para grande surpresa do velho general.

- Com o devido respeito, Majestade, não vos terá conseguido enganar?

 

- A sua sinceridade não pode ser posta em dúvida. Uakha deseja tornar-se um servidor fiel.

 

- Restam outros cinco revoltosos muito mais temíveis do que ele!

- Sobek fica encarregado de os investigar. Por meu lado, tentarei convencê-los.

 

- Sem querer ser pessimista, Majestade, o que haveis previsto em caso de fracasso?

 

- De boa vontade ou à força, o Egipto deve ser unificado.

 

- A partir de hoje, vou preparar os meus homens para o confronto.

- Nada é mais desastroso do que uma guerra civil - protestou Se-hotep.

 

- Só a desencadearei em última instância - garantiu o Rei. - Há outra missão que deve ser realizada: descobrir o ouro capaz de curar a acácia.

 

- Procurai-o entre os chefes de província! - afirmou o general Nesmontu. - Controlam as pistas do deserto que conduzem às minas e acumulam fortunas. Com essas riquezas podem pagar bem soldados e mercenários.

 

- Provavelmente tens razão - lamentou o monarca - mas confio no entanto a Senankh o cuidado de explorar o tesouro de cada templo. Talvez descubra aquilo de que temos necessidade.

 

O Faraó levantou-se.

 

Agora, cada um conhecia a dimensão da sua tarefa.

 

Sobek abriu a porta da sala de audiências e esbarrou com um dos seus homens, visivelmente aterrorizado.

 

- Más notícias, chefe. O polícia do deserto que acaba de me entregar este relatório é um homem sério.

 

Ao ler aquele texto curto e terrível, Sobek considerou que devia pedir ao Faraó para prolongar a reunião do seu conselho restrito.

 

- Segundo este relatório, Majestade - declarou um Sobek perturbado - as minas de turquesas da deusa Hathor foram atacadas e os mineiros exterminados. Os polícias do deserto que patrulhavam aquela região apenas encontraram cadáveres queimados.

 

Todos os membros da Casa do Rei estavam impressionados. Senuseret pareceu ainda mais severo do que era habitual.

 

Quem pode ter cometido um crime tão abominável? - interrogou Se-hotep.

 

- Os salteadores das areias - afirmou o general Nesmontu. Como cada chefe de província só se preocupa com a sua própria segurança, deixa-os prosperar!

 

- Em geral, só atacam as caravanas - objectou Sobek. - E são suficientemente cobardes para saberem que devastar um domínio real lhes causará os maiores problemas!

 

- Esqueces que é impossível apanhá-los? Esta estratégia é de extrema gravidade. Prova que houve clãs que se federaram tendo em vista uma revolta geral.

 

- Nesse caso - adiantou Senuseret - não ficarão por aqui. Tragam-me o mais depressa possível os relatórios referentes às Muralhas do Rei e às guarnições de Canal

 

Senankh confiou essa tarefa a Medés, que demonstrou notável eficácia.

 

Ao examinar os documentos, o monarca notou que uma única localidade permanecia silenciosa: Siquém.

 

- Pequena tropa medíocre comandada por um oficial descontente que não cessa de reclamar a sua transferência - referiu o general Nesmontu. - Em caso de ofensiva de beduínos suficientemente numerosos e determinados, não deve ter aguentado o choque. Segundo todas as probabilidades, há que recear um levantamento da região e a agressão dos nossos postos fronteiriços.

 

- Que sejam colocados em estado de alerta - ordenou Senuseret. -Tu, general, mobiliza imediatamente a totalidade dos nossos regimentos. Logo que estiverem em condições de marchar, partiremos para Siquém.

 

Goela-Torcida estava nas suas sete quintas. A sua nova ocupação de instrutor de futuros terroristas agradava-lhe de tal maneira que não deitava conta às horas de treino intensivo no decurso das quais nenhum combate era simulado. Todos os dias morriam vários jovens. Uns incapazes, aos olhos de Goela-Torcida, cada vez mais exigente e brutal. O Anunciador queria comandos que não recuassem diante de nenhum perigo.

 

A sua prelecção quotidiana, à qual todos os habitantes de Siquém eram obrigados a assistir, com excepção das mulheres encerradas em casa, inflamava os espíritos. O Anunciador não lhes ocultava a necessidade de uma luta violenta, mas era esse o preço da vitória total, Quanto aos bravos que sucumbiriam durante os combates, iriam directamente para o paraíso, onde magníficas mulheres satisfariam os seus caprichos, enquanto o vinho correria a rodos.

 

Shab, o Torto detectava os indecisos e entregava-os a Goela-Torcida, que se servia deles como alvo para os seus archeiros e lançadores de facas. Apesar de embriagado por essa existência inesperada, o braço direito do Anunciador não conseguia no entanto dissimular as suas inquietações.

 

- Senhor, receio que o nosso actual triunfo seja de curta duração. Não julgais que o Faraó acabará por reagir?

 

- Claro.

 

- Não deveríamos dar... menos nas vistas?

 

- De momento, não, porque é a natureza e a dimensão dessa reacção que me interessam. Permitir-me-ão conhecer o verdadeiro

 

carácter desse Senuseret e poderei então orientar a minha estratégia. Os Egípcios respeitam tanto a vida dos outros que se comportam como medrosos. Quanto aos meus fiéis, sabem que é necessário exterminar os ímpios e que o verdadeiro Deus se imporá pelas armas.

 

O Anunciador visitou as famílias mais pobres de Siquém a fim de lhes explicar que a única causa das suas desgraças era o Faraó. Era por isso que deviam confiar-lhe os seus filhos, mesmo de tenra idade, para serem transformados em militantes da verdadeira fé.

 

Durante uma última prova de luta com mãos nuas, Iker conseguira, graças à sua rapidez, vencer dois adversários bastante mais possantes do que ele. Com dez dos seus camaradas, tornara-se miliciano da província da Gazela, ao serviço de Khnumhotep.

 

- Estás encarregado da vigilância do estaleiro naval - anunciou-lhe o instrutor. - A dama Techat será a tua chefe. Não julgues no entanto que se mostrará benevolente por ser uma mulher. Se o chefe da nossa província a nomeou tesoureira e controladora dos armazéns, foi por causa da sua extrema firmeza. Confiou-lhe mesmo a gestão dos seus bens pessoais, contra a opinião dos conselheiros! Para ser franco, meu rapaz, não podias calhar pior. Desconfia dessa leoa que só pensa em devorar os homens.

 

O instrutor conduziu o seu aluno até ao estaleiro naval, onde foi recebido por um contramestre antipático.

 

- Não vai ser este garoto que vai garantir a nossa segurança, não é verdade? - ironizou.

 

- Não te fies nas aparências e, sobretudo, não arranjes atritos com ele.

 

O contramestre observou Iker com mais atenção.

 

- Se este aviso não viesse do instrutor da nossa milícia, far-me-ia rir. Segue-me, meu rapaz, vou indicar-te a tua posição. Uma única ordem: não deixas ninguém entrar no estaleiro sem me prevenir.

 

Iker descobriu um novo mundo onde os artesãos faziam as diferentes partes de um barco. Sob os seus olhos nasceram um mastro em pinho, um leme, uma roda de proa, um casco, uma amurada e bancos de remadores. Com uma arte extraordinária, os especialistas executavam uma verdadeira obra de marchetaria formada por pequenas tábuas enquanto os seus colegas fabricavam sólidos cordames e velas de linho.

 

Fascinado, o jovem seguia os gestos com extrema atenção e realizava-os mentalmente.

 

Foi brutalmente chamado à realidade quando um corpulento latagão o empurrou para forçar a passagem.

 

- Quem sois vós? - perguntou Iker, retendo-o pelo braço.

- Vou ver o meu irmão, um dos carpinteiros.

 

- Tenho de avisar o contramestre.

 

- Por quem me tomas? Não preciso de autorização!

- Tenho ordens.

 

- Queres lutar comigo?

- Se for necessário.

 

- Eu e toda a equipa vamos dar-te um correctivo!

 

O matulão levantou o braço para chamar os artesãos em sua ajuda, mas baixou-o quase imediatamente e recuou um passo como se acabasse de ver um monstro.

 

Iker voltou-se e descobriu a dama Techat, muito elegante com o seu vestido verde-claro.

 

- Vai-te embora - ordenou ela ao importuno, que desapareceu sem dizer nada.

 

Techat girou em volta do jovem miliciano, imóvel como uma estátua.

 

- Aprecio os que fazem passar a sua função à frente do seu interesse, ou mesmo da sua segurança. Parece que te comportaste de forma brilhante durante a tua formação militar. És acaso originário de uma família de oficiais?

 

- Sou órfão.

 

- E querias ser soldado?

 

- Desejo tornar-me escriba.

- Sabes ler, escrever e contar?

- Com efeito.

 

- Se queres que te ajude, deves dizer-me mais.

 

- Roubaram-me a minha vida e quero saber porquê. A dama Techat pareceu intrigada.

 

- Quem tenta prejudicar-te?

Iker tentou a sua sorte.

 

- Dois marinheiros, Olho-de-Tartaruga e Faca-Cortante. O barco deles chama-se Veloz.

 

Seguiu-se um longo silêncio.

 

- Descreve-me esse olho-de-tartaruga. O rapaz obedeceu.

 

- Tenho a impressão de que essa personagem não me é estranha, mas as minhas recordações são muito vagas. Preciso de mandar fazer investigações que demorarão com certeza muito tempo.

 

Iker julgou sonhar. Uma esperança, por fim! Mas foi dominado pela desconfiança.

 

- Porque me haveríeis de ajudar?

 

- Porque me agradas. Oh, não te iludas, meu rapaz! Só gosto de homens da minha idade, desde que não interfiram no meu trabalho pretendendo que são mais competentes do que eu. Tu, Iker, não te pareces com ninguém. Anima-te uma chama desconhecida, uma chama tão poderosa que os invejosos apenas sonham roubar-ta. Eis, provavelmente, a causa dos teus problemas.

 

Permanecendo desconfiado, o rapaz não se alargou em confidências.

 

- Vou-me encarregar de conseguir a tua transferência - declarou a dama Techat. - A partir de amanhã, tornar-te-ás o assistente do guarda dos arquivos da província. Há muitos documentos à espera de serem classificados e talvez descubras a tua felicidade.

 

Os familiares de Medés estavam em alvoroço. Segundo boatos pessimistas, o ex-tesoureiro do palácio teria sido demitido das suas funções e transferido para uma pequena cidade do Sul, onde acabaria a sua carreira no meio da indiferença geral. A bela moradia de Mênfis seria vendida e os criados despedidos.

 

Desde o princípio da manhã, a esposa de Medés, dominada por uma crise de angústia, fazia a cabeleireira e a maquilhadora andar numa roda-viva.

 

- Encontraste o boião das cinco gorduras?

- Ainda não - respondeu a cabeleireira.

- Essa negligência é insuportável!

 

- Não o tereis arrumado no vosso cofre de marfim? Sobreexcitada, a dona da casa teve de render-se à evidência. Sem apresentar qualquer desculpa, fez com que lhe untassem os cabelos com aquela pomada milagrosa composta por gordura de leão, de crocodilo, de serpente, de cabrito-montês e de hipopótamo.

 

- Faz com que penetre bem no meu coiro cabeludo - ordenou. A seguir, vais massajá-lo com óleo de rícino. Assim, nunca terei cabelos brancos.

 

Depois da queda de Medés, a sua mulher não poderia comprar os produtos de beleza caros mas indispensáveis. Divorciar-se? Impossível, era ele que possuía a fortuna. Acusando-o, de adultério, contudo, ficaria com metade. Precisava entretanto de provas sólidas, sob pena de ser condenada a não receber qualquer pensão alimentar.

 

Maquilha-me melhor do que isto! - arrotou ela. - Ainda se vêem manchas vermelhas nas faces e no pescoço.

 

A maquilhadora aplicou uma camada de pó à base de vagens e sementes de alforva, mel e alabastro, uma mistura especial que apagava as marcas da idade.

 

Quando Medés entrou no quarto da esposa, teve um movimento de recuo.

 

- Como te sentes, minha querida?

 

Ela levantou-se de um salto, afastando as criadas,

- Tu... Nós... Estamos demitidos?

 

- Demitido? Pelo contrário, recebi uma importante promoção! Na sua sabedoria, o Faraó reconheceu os meus méritos.

 

Medés teve dificuldade em acalmar a fúria que o cobria de beijos.

- Eu sentia, eu sabia, és o melhor, o maior, o mais...

 

- Esperam-me pesadas responsabilidades, minha querida.

- Seremos ainda mais ricos?

 

- Com certeza.

 

- Que tarefa te confiou o Rei?

 

- Secretário permanente do grande conselho.

- Então vais ficar a saber muitos segredos.

- Claro, mas sou obrigado ao silêncio.

 

- Mesmo comigo?

- Mesmo contigo.

 

Os assuntos de Estado não interessavam nada a esposa do grande dignitário, cuja fortuna lhe permitia realizar todos os caprichos. Não era isso o essencial?

 

Quando a excelente notícia se espalhou em todos os andares da casa e no bairro, Medés retirou-se para o seu gabinete onde, alguns minutos mais tarde, recebeu Gergu.

 

Este mastigava duas pastilhas compostas de junça odorífera e resina de terebintina. Desinfectavam a boca e davam bom hálito.

 

- As minhas felicitações pela vossa nomeação. Agora vamos ficar com as mãos um pouco mais livres, não?

 

Medés desenrolou um papiro. É uma queixa contra ti. Uma queixa? Mas de quem?

 

- De uma das tuas ex-esposas que espancaste em estado de embriaguez.

 

- É possível...

 

- É certo! Havia uma testemunha. Forçaste a porta dela, ameaçaste-a e esbofeteaste-a.

 

- Não é assim tão grave.

- No Egipto, é.

 

- Essa testemunha... quem é?

 

- A criada de quarto, uma rapariga da província.

- Talvez pudéssemos...

 

- Encarreguei-me disso - revelou Medés. - Voltou para o seu buraco perdido com uma forte indemnização e a tua esposa recebeu vários móveis novos, acompanhados por desculpas da tua parte que eu próprio redigi. A queixa foi anulada.

 

Gergu deixou-se cair num assento baixo.

 

- Devo-vos pelo menos um jarro de cerveja de luxo, patrão!

- Esquece as tuas antigas conquistas e contém o teu ódio às mulheres, Gergu. Um inspector principal dos celeiros deve ser respeitável.

- Eu, inspector principal...

 

- Senankh, o meu superior hierárquico, assinou a tua promoção. - A partir de amanhã. Vou à caça! Trar-vos-ei uma fortuna espremendo até à medula os meus queridos administrados.

 

- Nada disso.

 

Gergu ficou de boca aberta.

 

- Mas tenho o poder oficial, eu...

 

- Tu e eu temos de mudar de dimensão. Durante vários anos trabalhámos empenhada mas modestamente. O nosso novo estatuto permite-nos esperar melhor. No entanto, estaremos muito mais expostos e deveremos portanto redobrar de prudência.

 

- Não estou a perceber bem - confessou Gergu, tacteando os amuletos tanto para se tranquilizar como para iluminar o espírito. Medés andou nervosamente de um lado para outro do compartimento.

 

- Sou actualmente o primeiro a ser informado das decisões tomadas ao mais alto nível do Estado. Compete-me transcrever os decretos emitidos pelo Faraó e divulgá-los. Qualquer passo em falso, qualquer traição grosseira apontar-me-iam imediatamente como culpado.

 

Manobrar por minha própria conta pessoal apresenta-se como particularmente difícil, porque o Rei e os seus conselheiros examinarão de perto os meus gestos e atitudes.

 

- Então... esta promoção é uma catástrofe!

 

- Não se eu a souber utilizar como convém. Graças a ti, que continuas com os movimentos livres, continuarei a manter as nossas redes de amizades e influências. Criarei outras no seio da alta administração.

 

- E o nosso novo barco, indispensável para atingir Punt e trazer de lá o ouro?

 

- Não pensemos para já nisso. Senuseret deu uma ordem curiosa: fazer o inventário de todos os tesouros dos templos a fim de conhecer as suas riquezas reais.

 

- Curiosa, porquê?

 

- Porque o Rei já possui essas informações! Estou convencido de que procura outra coisa, mas o quê? Como vais estar associado a essa missão, procura saber mais dela. Na mesma ocasião, detectarás os santuários mais interessantes. E não é tudo... O Faraó decreta a mobilização geral.

 

- Vai decidir-se portanto a atacar os chefes de província!

 

- Não é isso, Gergu. Acabam de ocorrer incidentes na região de Canaã cuja amplitude e gravidade desconheço.

 

- Para desencadear semelhante reacção, não devem ser de pouca importância!

 

- Também é a minha opinião. Ignoro ainda se o general Nesmontu ocupará sozinho a cabeça das tropas ou se o Faraó em pessoa se encarregará disso.

 

- Por outras palavras, Senuseret poderia morrer no combate e verificar-se um golpe de Estado em Mênfis!

 

- para qualquer alteração desse género - reconheceu Medés. - Os quatro dignitários que compõem o conselho restrito do Faraó são considerados como incorruptíveis de uma fidelidade inabalável. Mas são apenas homens. Convivendo com eles, descobrirei os seus pontos fracos e saberei utilizá-los. Quanto ao próprio monarca, goza de uma protecção especial que lhe vem do seu conhecimento dos segredos do templo coberto. Sem ela, qualquer tomada de poder seria ilusória e condenada ao fracasso. E ignoro ainda como penetrar nessa muralha intransponível.

 

- Havemos de conseguir, podeis ter a certeza.

 

- Enquanto esperamos, Gergu, nem um único deslize! Deves tornar-te um homem respeitável e um modelo para os teus subordinados. O interpelado esboçou um sorriso trocista.

 

- Se um único deles tentar imitar-me, parto-lhe a cabeça!

 

Os dois aliados riram às gargalhadas. Depois Gergu ficou repentinamente sério.

 

- E se nos contentássemos com os resultados já obtidos? O nosso saldo não é nada para desprezar. O risco tem um aspecto excitante mas é sempre risco. O país de Punt afastou-se estranhamente.

 

- Não tanto como supões - objectou Medés. - Tu, um excelente marinheiro que só se diverte na tempestade, como serias capaz de renunciar? Estamos apenas no início da viagem, Gergu. E tu és parecido comigo: gostas do poder pelo poder, da força pela força.

 

O interpelado concordou.

 

- Os sábios do Egipto condenam a ganância e a ambição continuou Medés. - Fazem mal. São estimulantes inegáveis graças aos quais não existem limites. E os acontecimentos que pressinto fortalecem a minha convicção.

 

- Há uma questão que me incomoda. Antes de a formular, dai-me qualquer coisa forte para beber.

 

Gergu esvaziou de uma vez duas taças de álcool de tâmaras.

- Porque praticamos o mal, Medés?

 

- Porque nos fascina. E o que é o mal?

- Opor-se a Maet, à rectidão e à luz.

 

- Repetes as asneiras dos velhos sábios. Achas que te servirão para enriquecer e proporcionar-te o lugar que desejas?

 

- Ainda tenho sede.

 

Medés pensou que precisaria de tempos a tempos de levantar o moral vacilante do seu alma danada. Gergu estava enganado: não, ainda não praticavam o mal porque lhes faltava sempre um apoio ou uma ligação dentro de um templo.

 

Num dia Iker fizera mais trabalho do que dois funcionários numa semana e esta atitude valeu-lhe grandes ciúmes. Sem a protecção da dama Techat, o rapaz teria tido muitos aborrecimentos. O seu superior hierárquico decidiu complicar-lhe a tarefa ao máximo, mas Iker não se perturbou. Meticuloso e obstinado, classificava os documentos na esperança de encontrar neles os nomes de Olho-de-Tartaruga e Faca-Cortante e do Veloz.

 

Mas o seu esforço continuava estéril.

 

Ao ser convocado pela patroa, o assistente de arquivista não parecia no entanto desencorajado.

 

- Nenhum resultado ainda, Iker?

 

- Nenhum. Do vosso lado, também nada?

- Também não - lamentou a dama Techat.

 

- No entanto, eu não inventei esses homens e esse barco!

 

- Não ponho de forma alguma em dúvida a tua palavra, Iker, mas lembra-te do que te disse: as investigações arriscam-se a ser demoradas.

- As vossas recordações não se tornaram mais definidas?

 

- Infelizmente, não, mas tenho quase a certeza que esse Olho-de-tartaruga passou pela nossa província. Precisas de arejar as ideias, meu rapaz. Vamos celebrar a festa da deusa Palchet e servir-me-ás de porta-guarda-sol.

 

Pakb et, A Dilaceradora, era um leopardo fêmea e residia numa gruta venerada por sacerdotisas, na sua maior parte esposas de nobres da província.

 

No barco de Techat que os conduzia ao sítio sagrado da deusa', Iker saboreava a pureza do ar e a doçura de um vento inalterável. Vogar no Nilo continuava a ser um encantamento. Durante alguns instantes, o jovem pensou que poderia interromper a viagem e instalar-se naquela província para ali passar dias tranquilos. Mas as perguntas sem resposta assaltaram-no outra vez, deixando-o no estado de um sequioso para quem beber se tornava vital. Não, os acontecimentos que o tinham arrasado não eram sem significado. Competia-lhe a ele saber interpretar e decifrar o enigma do seu destino.

 

O barco acostou a boa distância de um magnífico ébano cujos ramos ocultavam a entrada da gruta sagrada.

 

- Não toques de maneira nenhuma nessa árvore - recomendou a dama Techat. - É lá que se esconde muitas vezes o leopardo fêmea onde incarna a deusa. Salta sobre qualquer profano que não conheça as fórmulas de apaziguamento.

 

- Como se pode aprendê-las?

- És Muito curioso!

 

- Dizei-me pelo menos qual é o papel de Pakhet. Decididamente, pensou a dama Techat, este rapaz não é feito da mesma madeira que a maior parte dos seres.

 

- Esta deusa controla os fogos destruidores e pode transformar-se em serpente que se lança sobre os inimigos do Sol a fim de os impedir de fazerem o mal. Quando a vêem, é tarde de mais. Mas a sua função não se reduz a lutar vitoriosamente a favor da Luz. Pela sua magia, favorece o regresso da cheia que proporciona prosperidade a todo o país.

- De que forma?

 

- Não achas que estás a ir longe de mais, Iker?

- Irei tão longe quanto me permitirdes.

 

- Digamos que é aliada de Osíris e não me perguntes mais nada. Contenta-te em observar e permanece silencioso.

 

Ou a dama Techat sabia e se calava, ou não sabia e estava a fingir; para Iker, tanto num caso como no outro, o resultado era idêntico.

 

Forçada, não forneceria mais nenhuma explicação. O rapaz protegeu a patroa com um guarda-sol composto por uma longa haste e um pano de linho rectangular.

 

Uma sacerdotisa idosa saiu da gruta.

 

- Que as portas do céu sejam abertas a fim de que a força divina surja em glória. Saíram em seguida outras quatro sacerdotisas, que se inclinaram diante da primeira. Tinham os cabelos puxados para trás, formando um estranho penteado que fazia lembrar a coroa branca do Faraó. Usavam um saiote curto seguro por alças que lhes cobriam os seios.

 

- Assim vêm os quatro ventos do céu - revelou a superiora. Que sejam controlados a fim de que a riqueza do país fique garantida. Eis o vento do norte, fresco e vivificante.

 

A primeira rapariga iniciou uma dança lenta e solene. A beleza dos seus gestos fascinou Iker.

 

- Eis o vento do leste, o que abre as portas celestes, o que cria um caminho perfeito para a luz divina e dá acesso aos paraísos do outro mundo.

 

A segunda dançarina não era menos graciosa do que a primeira. Nem uma hesitação, um ritmo envolvente.

 

- Eis o vento do oeste que provém do seio do único, antes da criação do Dois. Surge do Além da morte.

 

A terceira dançarina superava as colegas. Como se estivesse penetrada pela mensagem espiritual que simbolizava, desenvolveu uma coreografia mais dramática e mais exigente. Algumas figuras evocavam a luta contra a morte e a vontade de a vencer.

 

- Eis finalmente o vento do sul, que trazia a água regeneradora e faz crescer a vida.

 

Iker a princípio julgou estar enganado, iludido por uma espantosa semelhança.

 

Depois, toda a sua atenção se concentrou no rosto da jovem sacerdotisa cujos movimentos eram de uma graça extraordinária. Emanava do seu ser uma luz que traduzia a intensidade da vida ressuscitada oferecida pelo vento do sul.

 

Ela. Era realmente ela, reconhecia-a apesar da indumentária e do penteado diferentes.

 

- Segura o guarda-sol correctamente - queixou-se a dama Techat. - Estou ao sol!

 

Iker rectificou a posição, sem deixar de contemplar a mulher amada, cuja dança lhe pareceu terrivelmente curta.

 

Os quatro ventos estavam imóveis. A mestre-de-cerimónias adornou a fronte das sacerdotisas com uma flor de lótus.

 

- Assim são reveladas as palavras divinas ocultas na natureza. Que estas flores, cujo odor suave a luz anima, sejam garantes do milagre da ressurreição.

 

De cada um dos lótus brotou uma claridade deslumbrante. Depois, as cinco sacerdotisas entraram num barco que se afastou do território sagrado de Pakhet onde se organizava um banquete em honra das esposas dos dignitários. Iker e os outros servidores almoçariam à parte.

 

- Tens um ar perturbado - notou a dama Techat.

- Não, enfim, sim... Este ritual é tão impressionante!

- Terás sido sensível à beleza das dançarinas?

 

- Quem o não seria? A que incarnava o vento do sul atingia a perfeição. Sabeis quem é e como se chama?

 

- Não faço ideia. Estas sacerdotisas vieram de Abido para celebrar os rituais da deusa Pakhet e depois regressam ao seu templo.

- Nunca a havíeis Visto antes?

 

- Não, deve ser uma nova. Mas trata de a esquecer.

- Por que pertence ao Círculo de Ouro de Abido? A dama Techat franziu as sobrancelhas.

 

- Quem te falou disso?

- Um jardineiro.

 

- Trata-se apenas de uma expressão poética, Iker. Não lhe dês qualquer importância. E repito-te: esquece essa rapariga. Evolui num mundo que nunca conhecerás, Se aprecias as dançarinas, existem outras mais sedutoras que são acessíveis.

 

Num tempo recorde, Iker classificara os arquivos da província da Gazela, mas sem encontrar o mínimo vestígio dos dois marinheiros e do respectivo barco. Techat confiar-lhe-ia portanto outro posto a fim de que tivesse o espírito ocupado.

 

Do seu lado, a mesma decepção: nenhum informador pudera fornecer-lhe qualquer informação fiável. Precisava de arrancar do coração daquele rapaz excepcional a ideia da vingança e persuadi-lo a fixar-se naquela região onde se tornaria um escriba de elevada condição.

 

Reunia os seus argumentos ao mesmo tempo que contemplava, do alto do seu terraço, a Lua nova que marcava o triunfo de Osíris, quando uma voz a fez sobressaltar.

 

- Posso falar-vos, dama Techat? Tranquilizai-vos, não vos quero nenhum mal! Sobretudo, não vos volteis. Se tentardes ver-me, mato-vos.

- O que... o que queres?

 

- No que se refere aos dois marinheiros e ao seu barco, talvez eu tenha uma pista. Passa pela província dos grandes sacerdotes de Tot. Deixai Iker partir para essa região.

 

- Quem és tu para ousares dar-me ordens?

- Um aliado.

 

- Mentes! A verdade, ou mando-te prender.

- Se vos disser, meter-me-eis na prisão.

 

- Proponho-vos um acordo: a verdade pela liberdade.

- Tenho a vossa palavra?

 

- Tens.

 

- Ajo por ordem do Faraó Senuseret. Protegendo Iker, haveis-me ajudado muito. Actualmente, é necessário permitir-lhe prosseguir a sua Busca.

 

- Que Iker esqueça o seu passado e viva feliz.

 

- Se o conseguirdes convencer, porque não? Mas sede honesta com ele e falai-lhe desta pista.

 

- Devemos falar do teu futuro - disse a dama Techat a Iker.

 

O que pensarias tu de te estabeleceres aqui e continuares os teus estudos de escriba?

 

- A vossa oferta é generosa, mas devo recusá-la. Visto que não haveis obtido nenhuma informação, irei procurar noutro lado.

 

- E se esse vaguear não te conduzir a nenhum lado?

 

- Roubaram-me a minha vida, quero reencontrá-la e compreender o meu destino, custe o que custar.

 

- Podes perder definitivamente essa vida.

 

Permanecer inerte conduzir-me-ia à morte ainda mais depressa. Visto que é impossível convencer-te, vou ajudar-te uma última vez.

 

- Expulsais-me?

 

- Partes para a província da Lebre.

 

- Isso significa... que tendes um indício?

 

- Tão fraco que não te posso dizer mais nada. Vai lá e vê se descobres qualquer coisa.

 

- O senhor Khnumhotep deixar-me-á partir?

 

- Resolverei esse pormenor com ele. Serás portador de um documento oficial destinado ao senhor Djehuti. Apresento-te como um aprendiz de escriba desejoso de se aperfeiçoar. Como não temos lugar para ti aqui, solicito a sua benevolência. Esperemos que te aceite. Se tiveres essa sorte, sê o mais discreto possível ao efectuar as tuas investigações. Djehuti não é um homem simpático, não o deves provocar de maneira nenhuma.

 

- Como posso agradecer-vos, dama Techat?

 

- Teria gostado de te reter, Iker, mas a província da Gazela é demasiado pequena para ti. Aqui tens o meu último presente: proteger-te-á. Entregou ao rapaz um objecto em forma de crescente de lua.

- Este talismã foi talhado no canino de um hipopótamo. O meu pai, um grande mágico hoje desaparecido, gravou um grifo e uma inscrição hieroglífica. Consegues lê-la?

 

- "Sou o génio que corta a cabeça dos inimigos machos e fêmeas."

- Todas as noites, antes de adormeceres, coloca-o sobre o teu ventre. Afastará de ti as forças de destruição.

 

A prédica do Anunciador recebera ainda mais aclamações do que era habitual. Em nome do deus único cujas directivas ele transmitia, todas as cidades de Canaã se iam unir para partir ao assalto do Egipto, matar o Faraó, exterminar os opressores e tomar o poder. Depois, os vencedores imporiam a sua crença a todos os povos. Se necessário pela violência.

 

- Haveis despertado os adormecidos - constatou Shab, o Torto. - Em breve formarão um colossal exército que desabará sobre o mundo!

 

- Não tenho tanto a certeza disso - afirmou o Anunciador, quebrando o entusiasmo do seu braço direito.

 

- Mas essas pessoas acreditam em vós, seguir-vos-ão até à morte!

- Não duvido, mas não têm armas e não são verdadeiros soldados.

- Receareis... uma derrota?

 

- Tudo dependerá da intensidade da reacção egípcia.

- Até agora, é inexistente!

 

- Não sejas ingénuo, meu amigo. Se o Faraó não se apressa, é sem dúvida para atacar com mais força.

 

- Mas então... a população de Siquém será massacrada!

 

- Não é a previsível sorte de uma isca? Estes primeiros fiéis não têm outra função. Perecerão com dignidade, certos de atingirem o paraíso que lhes prometi. O importante são os especialistas que goela-Torcida forma. Esses devem escapar à repressão e ocultar-se na sombra para agirem no momento que eu escolher.

 

Os dois homens dirigiram-se ao campo de treino de onde retiravam o cadáver de um adolescente com o crânio demasiado frágil. Batendo sem contemplações, Goela-Torcida endurecia cada vez mais a preparação dos seus comandos.

 

- Satisfeito? - perguntou o Anunciador.

 

- Ainda não. A maior parte destes garotos são realmente demasiado tenros! Não desespero de formar alguns, mas Vai levar tempo.

- Receio que já não tenhamos muito.

 

- Em caso de ataque, veremos as suas capacidades no terreno!

- Não, Goela-Torcida. Tu e os teus melhores elementos vão abandonar a região e refugiar-se em lugar seguro, a dois dias de marcha a nordeste de Imet, no Delta. A zona é desabitada; esperar-me-ão aí.

- Que história é essa?

- Já alguma vez te desiludi, Goela-Torcida?

- Lá isso não.

 

- Então continua a confiar em mim.

 

Com os pulmões em fogo por vir a correr, um batedor imobilizou-se a respeitosa distância do Anunciador.

 

- Senhor, eles estão a chegar! Soldados egípcios, centenas de soldados!

 

- Acalma-te, meu valente. Eu não tinha já previsto isso? Alerta os nossos partidários a fim de que se mobilizem para defender Siquem. Deus estará a seu lado.

 

O Anunciador reuniu os chefes de secção na grande praça e lembrou-lhes a estratégia a seguir. Cada um se deveria bater até à morte. Vitoriosos ou vencidos, os seus fiéis alcançariam a felicidade eterna.

 

Os comandantes dos fortins que compunham as Muralhas do Rei agradeciam aos deuses por estarem ainda vivos. Reunidos pessoalmente pelo Faraó, tinham sido alvo das suas censuras e da sua cólera fria, mais aterradora do que os gritos explosivos. Qualificados de incapazes e de inúteis por não terem nem previsto nem impedido a revolta de Siquém, viam-se no mínimo condenados aos trabalhos forçados numa colónia penal dos oásis.

 

Senuseret tomara outra decisão: mantê-los nos seus postos sem tolerar o mínimo erro. E esse aguilhão, profundamente cravado na pele de militares de carreira adormecidos na sua ilusão de segurança, não deixara de ser eficaz. Saindo do seu torpor, os oficiais tinham-se comprometido a retomar os antigos controlos, a estimular os seus homens e a serem de novo a primeira barragem contra a invasão.

 

A firmeza e a autoridade de Senuseret tinham agido como bálsamos. Servir um Rei de tal estatura provocava o entusiasmo. Resolvida a situação da linha de fortificações, o monarca colocou-se à frente do seu exército em direcção a Siquém.

 

- Continua a não haver notícias dessa cidade? - perguntou ao general Nesmontu.

 

- Nenhuma, Majestade. Em contrapartida, estamos normalmente em correspondência com os outros povoados da região, o que pode provar que a rebelião está limitada.

 

- A aparência de um tumor nem sempre traduz a sua gravidade

- objectou o soberano. - Envia uma dezena de batedores para que observem a cidade por todos os lados.

 

Os relatórios eram concordantes: tinham sido dispostos vigias cananeus nos quatro pontos cardeais.

 

- A cidade está sublevada - concluiu o general Nesmontu.

 

A nossa pequena guarnição deve provavelmente ter sido exterminada. Mas por que razão os revoltosos não tentaram expandir o seu movimento?

 

- Por uma razão simples: queriam primeiro saber como reagiria o Faraó. Antes de reconquistar Siquém, vais bloquear todas as estradas, pistas e caminhos que lá conduzem. Exijo que ninguém escape. Quando o nosso dispositivo estiver montado, atacaremos.

 

Convencidos pelo Anunciador de que Deus lhes permitiria repelir o invasor, os habitantes de Siquém precipitaram-se ao assalto da infantaria de Senuseret. Inicialmente surpreendido pela agressividade do adversário, armado com ferramentas agrícolas, esta reagiu de imediato. Sob o comando do general Nesmontu, os cananeus foram rapidamente esmagados.

 

A vitória surgira tão depressa que Senuseret nem tivera de intervir pessoalmente. Mas a perda de cerca de trinta soldados provava a violência do confronto. Até mesmo as mulheres e os adolescentes tinham preferido morrer a render-se.

 

Reconquistada a cidade, as casas foram revistadas uma a uma. Nem vestígios de qualquer reserva de armas.

 

- Prendeste o chefe? - perguntou o Rei a Nesmontu.

- Ainda não, Majestade.

 

É preciso interrogar cuidadosamente os sobreviventes. Metade da população sucumbiu. Restam apenas velhos, doentes, crianças e mulheres. Estas afirmam que os maridos se quiseram libertar da opressão egípcia com o auxílio do deus único.

 

- Que nome lhe dão?

 

- O deus do Anunciador. Revelou a verdade aos habitantes de Siquém e todos o seguiram.

 

- Então é ele o inspirador deste desastre! Reúne o máximo de depoimentos a seu respeito.

 

- Devemos arrasar a cidade?

 

- Vou instalar o dispositivo mágico necessário para evitar o regresso desses vagabundos. Uma nova guarnição, mais forte, garantirão a segurança dos colonos que se instalarão aqui a partir do próximo mês. Além disso, general, vais fazer um giro de inspecção por todas as cidades de Canaã. Quero que os seus habitantes vejam o nosso exército e saibam que este intervirá sem hesitação contra os inimigos do Egipto.

 

Em diversos locais, principalmente próximo do templo saqueado, cuja reconstrução seria efectuada sem demora, Senuseret mandou enterrar cacos de barro vermelho nos quais estavam inscritos textos de exorcismo referentes às forças obscuras e aos cananeus. Se quebrassem mais uma vez a paz, seriam amaldiçoados.

 

E o Rei interrogou-se: esse Anunciador seria apenas um louco ávido de violência ou representava um perigo real?

 

Agora o Anunciador sabia.

 

Senuseret não era um daqueles monarcas fracos e indecisos que se deixam manipular pelos acontecimentos sem saber qual a decisão a tomar.

 

Aquele Faraó não recuava perante o uso da força e não se podia contar com nenhuma cobardia da sua parte.

 

A luta pelo triunfo final tornar-se-ia assim mais exaltante. Mas combater de maneira frontal revelava-se impossível. Mesmo reunidos, o que era muito improvável num futuro próximo, as tribos de cananeus e beduínos não formariam um contingente de soldados suficientemente numeroso para enfrentar os de Senuseret.

 

O único método eficaz seria portanto o terrorismo. Espalhando o medo na sociedade egípcia, reunindo contra ela contestatários, revoltados e destruidores de todos os lados, acabaria por envenená-la e fazê-la desagregar.

 

Goela-Torcida e os seus comandos tinham fugido para sul antes que o inimigo instalasse as suas barragens. O Anunciador, Shab, o Torto e três homens experientes tinham escolhido uma pista de leste, muito sinuosa, que serpenteava entre as colinas queimadas pelo sol.

 

- Onde vamos? - perguntou Shab, inquieto com a ideia de uma nova viagem pelo deserto.

 

- Converter as tribos beduínas. Depois, reunir-nos-emos a Goela-Torcida.

 

Ao cair do dia, o pequeno grupo deteve-se no fundo de uma ravina. O Anunciador subiu ao cume de uma colina a fim de decidir o próximo itinerário a seguir.

 

- Nem um movimento - ordenou uma voz áspera. - Se tentares fugir, abatemos-te.

 

Apareceram cerca de vinte polícias do deserto, com os respectivos cães.

 

Armados com arcos e cacetes, tinham surgido do nada.

 

Mesmo utilizando os seus poderes, o Anunciador não conseguiria abater todos aqueles profissionais aguerridos, sobretudo os molossos que não receavam os demónios do deserto.

 

- Estás só?

 

- Sim, estou só - gritou com voz suficientemente alta para que os seus companheiros o ouvissem. - E como estão a ver, não possuo qualquer arma. Sou um simples beduíno em busca das suas cabras que fugiram.

 

- Por acaso não virás de Siquém?

 

- Não, vivo aqui, longe da cidade, com o meu rebanho. Vou lá apenas para vender os meus queijos e leite.

 

- Está bem, vem connosco. Vamos verificar tudo isso.

 

Um polícia atou os pulsos do Anunciador com uma fina corda bem apertada. E passou-lhe outra em volta do pescoço para o puxar como um animal renitente.

 

- Não há mais ninguém à vista? - perguntou chefe do destacamento.

 

- Só encontrámos este - respondeu um dos seus homens.

 

A dama Techat oferecera a Iker o preço da viagem de barco até Khemenu, "a Cidade do Oito", capital da província da Lebre. Enquanto contemplava o rio, cuja majestade o fascinava, sentiu pesar sobre ele um olhar insistente.

 

Voltando-se, descobriu um homem de elevada estatura, bastante magro, de olhos autoritários.

 

- Páras em Khemenu - perguntou-lhe em voz seca - ou continuas para o sul?

 

- Porque deverei responder-vos?

 

- Porque te encontras no meu território.

- Sois o chefe desta província?

 

- Sou o seu braço direito, o general Sepi, e velo para que as nossas leis sejam respeitadas. Qualquer estrangeiro em situação irregular é imediatamente expulso. Ou revelas as tuas intenções, ou desapareces.

 

- O meu nome é Iker, venho da província da Gazela com uma recomendação da dama Techat para solicitar autorização de continuar entre vós os meus estudos de escriba.

 

- A dama Techat... Ainda não morreu?

- Garanto-vos que está bem viva!

 

- Descreve-ma.

 

Iker obedeceu. O rosto do general permaneceu carrancudo.

- Essa recomendação... Mostra-ma.

 

- É dirigida ao senhor Djehuti e a mais ninguém!

 

- És muito refilão, meu rapaz! Terás - a coisa de que te devas censurar?

 

- Aprendi a desconfiar dos desconhecidos. O que me prova que sois realmente um general?

 

- Refilão e desconfiado... Isso são qualidades. O barco estava a acostar.

 

Uns vinte soldados filtravam os viajantes, submetidos a um prolongado interrogatório. Um oficial avançou em direcção a Sepi e saudou-o.

- Sinto-me feliz por vos rever, meu general. Não me atrevo a perguntar-vos se...

 

- A minha mãe morreu. Tive a sorte de estar junto dela nos seus últimos momentos e de dirigir os seus funerais. Era uma mulher recta e sei que o julgamento de Osíris lhe será favorável.

 

Iker não ousava afastar-se.

 

- Este rapaz está convosco, meu general?

 

- Conduzo-o à capital. Põe as tuas coisas em cima de um dos burros, Iker.

 

O aprendiz de escriba obedeceu. O animal não ficaria sobrecarregado por causa disso.

 

O general Sepi avançava em passo rápido.

 

- Se és natural da província da Gazela, porque a abandonas?

- O senhor Khnumhotep não precisa de novos escribas. E eu nasci em Medamud.

 

- Em Medamud, de verdade?

- De verdade.

 

- Porque te afastaste da tua família?

 

- Sou órfão. O velho escriba que me ensinou os rudimentos da profissão morreu.

 

- E tentaste a tua sorte na província da Gazela... Porquê?

- Por acaso.

 

- Por acaso - repetiu o general, céptico. - Não andarás à procura de alguém, por acaso?

 

- Só venho aqui para me tornar um bom escriba.

 

- Pareces-me tão determinado que um fogo muito especial te deve animar. Compreendo que não me digas a verdade para já, mas se desejas fazer carreira nesta província, vais ter de te explicar.

 

- Quando poderei ver o senhor Djehuti?

 

- Falar-lhe-ei de ti e será ele a decidir. És capaz de ter paciência, Iker?

 

- Apenas quando é necessário.

 

Chefe da prestigiosa província da Lebre, Djehutil esquecera a sua idade. Superior dos mistérios de Tot, sacerdote da deusa Maet, pertencia a uma antiquíssima família cujas origens remontavam ao tempo das pirâmides. Depois de ter conhecido os reinados dos Faraós Amenemhat Il e Senuseret II, tinha agora de suportar o de Senuseret, terceiro do nome, de quem os seus conselheiros e informadores lhe diziam muito mal. Porque não permanecia o monarca fechado no seu palácio de Mênfis, onde os cortesãos o lisonjeavam constantemente? Se tinha na realidade o projecto de suprimir as prerrogativas dos chefes de província, a guerra civil seria inevitável.

 

Mas o que censurava afinal o Rei a administradores tão conscienciosos como Khnumhotep ou ele próprio? Os seus domínios eram bem geridos, os rebanhos numerosos e de boa saúde, as oficinas prósperas. É verdade que dispunham de milícias bem equipadas, mas não era um facto que o reduzido exército do Faraó era incapaz de garantir a segurança das províncias?

 

Não havia nada a mudar, pronto! E Djehuti tinha suficiente autoridade para convencer os seus colegas.

 

Um dos seus pequenos prazeres consistia em mudar todos os dias de cadeira de transportadores para as suas inúmeras deslocações. Possuía três, amplas e confortáveis, munidas de um guarda-sol, nas quais quase se podia deitar. Várias equipas de oito homens trabalhavam em alternância, cantando alegremente o antigo refrão: "Os transportadores estão contentes quando a cadeira está ocupada. Quando senhor está presente, a morte afasta-se, a vida é renovada por Sokaris, regente das profundidades, e os defuntos ressuscitam."

 

Djehuti, de cabeça rapada, considerava um ponto de honra não usar peruca, o que não o impedia de continuar a ser vaidoso. Vestia

 

Nota: O seu nome completo era Djehuti-hotep, "Tot está na plenitude". (N. da T.)

 

com frequência uma elegante capa tecida com grande cuidado e um longo saiote que lhe cobria as pernas. Permanecer bem cuidado retardava a velhice.

 

Depois de ter ouvido os relatórios positivos dos seus caseiros, o notável decidira conceder a si próprio um passeio pelo campo. Mas no momento em que ia a sair do palácio, viu o seu amigo de sempre, o general Sepi.

 

Uma simples troca de olhares bastou-lhe para compreender que este estava a viver uma dolorosa provação.

 

- Ninguém pode partilhar o teu desgosto. Sei que não esperas de mim palavras de consolo. Se queres repousar antes de me apresentares o teu relatório...

 

- Apesar da morte da minha mãe, desempenhei a minha missão. As notícias não são nada agradáveis.

 

- Senuseret decidiu-se a tentar a prova de força?

 

- Não sei, porque os meus contactos na corte tornaram-se bruscamente mudos.

 

- Por outras palavras, o Faraó retomou as rédeas da governação. Mau sinal, muito mau sinal... E que mais?

 

- A cidade de Siquém sublevou-se, a sua população massacrou a guarnição egípcia.

 

- O Rei reagiu?

 

- Da forma mais brutal: ordenou ao general Nesmontu que lançasse um ataque massivo. Siquém está de novo sob o controlo egípcio. Portanto, o monarca não hesitava em utilizar a força! Era uma clara mensagem para os chefes de província que recusassem obedecer-lhe. Djehuti voltou as costas à cadeira de transportadores.

 

- Vem, vamos beber vinho na minha pérgola. Siquém, dizias tu; Siquém, com a qual mantemos relações comerciais, não é verdade? Sepi concordou com um movimento de cabeça.

 

- Belicoso como é, esse Rei vai acusar-me de ser cúmplice dos revoltosos! Põe imediatamente a nossa milícia em estado de alerta.

- Egípcios mortos por outros egípcios... Que desastre em perspectiva!

 

- Eu sei, Sepi, mas Senuseret não nos deixa outra opção. Escreve a Khnumhotep e aos outros chefes de província que o conflito está iminente.

 

-Vão julgar que tentais manipulá-los para conseguir uma aliança que eles não querem de maneira nenhuma.

 

- Tens razão. Então, dispensa-te de escrever e cada um que trate de si!

 

O vinho era excelente, mas Djehuti achou-o medíocre.

 

Há um estrangeiro que desejaria ver-vos - disse o general. Espero que não seja um cananeu de Siquém!

 

Não, é um rapaz que vem da província da Gazela com uma carta de recomendação da dama Techat.

 

- Isso não está nos seus hábitos! Em geral, só se recomenda a si mesma. Manda-o embora, não recebo visitas hoje.

 

- Permito-me insistir. Djehuti ficou intrigado.

 

- O que tem de tão excepcional o teu protegido?

- Gostaria que o constatásseis por vós mesmo.

 

O general não era um fabulador e nunca solicitava favores.

- Traz-me esse rapaz.

 

Logo que viu Iker, Djehuti compreendeu o interesse que Sepi sentia por ele. Apesar da sua modesta aparência, o jovem visitante ardia com um fogo tão intenso que nem a própria cheia bastaria para o extinguir.

 

A carta de recomendação da dama Techat era elogiosa.

 

- Nas actuais circunstâncias - declarou Djehuti - tenho mais necessidade de milicianos do que de escribas.

 

- Mas eu, senhor, vim aqui para me tornar escriba. Onde melhor poderia aprender a profissão do que na província de Tot?

 

Qual o motivo dessa ambição?

 

É que estou convencido que o segredo da vida se oculta nas fórmulas de conhecimento. Ora apenas a prática aprofundada dos hieróglifos me permitirá ter acesso a elas.

 

- Não estarás a ser pretensioso?

 

- Estou pronto a trabalhar de dia e de noite.

 

- Prova-o começando sem demora. O meu intendente vai encarregar-se de ti e ficarás alojado no bairro dos aprendizes de escriba. Procura não te evidenciares, pois detesto os agitadores. Se não satisfizeres o teu professor, serás expulso do meu território.

 

Iker retirou-se.

 

- Obstinado, corajoso, independente. Não te enganaste, Sepi. Este rapaz nada tem de vulgar.

 

- Tal como eu, haveis detectado que não possui apenas um carácter forte.

 

- Considera-lo capaz de entrar num templo?

- Deixai-o prestar as suas provas.

 

Contando já com a cólera de Khnumhotep, a dama Techat deixou passar a tempestade.

 

- Porque haveis autorizado esse rapaz a partir?

- O que tinha ele de tão especial, senhor?

 

- Tínhamos feito dele um excelente miliciano e preciso de bons soldados para preservar a minha independência.

 

- Sem dúvida, mas Iker queria ser escriba.

 

- Não vão ser os escribas que se baterão contra os soldados de Senuseret!

 

- Ele sozinho não teria conseguido a vitória. Rabugento, Khnumhotep cruzou os braços.

 

- Repito a minha pergunta: porque o haveis autorizado a partir?

- Porque me parecia excepcionalmente dotado para a sua futura profissão e porque a província da Gazela não lhe podia garantir a formação adequada. A do deus Tot, pelo contrário, proporcionar-lhe-à o que deseja. Não fostes vós mesmo, senhor, que lhe haveis afirmado não ter necessidade de novos escribas?

 

- Talvez, talvez. Mas sou eu que tomo as decisões e mais ninguém! A dama Techat sorriu.

 

- Se eu não me encarregasse do pessoal menor, senhor, ficaríeis sobrecarregado de trabalho. E sabeis tão bem como eu que Iker devia seguir o seu destino.

 

- E vós sabíeis, por acaso, que esse destino passava pela província da Lebre?

 

- Uma simples intuição.

 

- Esse rapaz é estranho. Parece determinado a ponto de ninguém ser capaz de o desviar do seu objectivo. Teria gostado de o conhecer melhor.

 

- Talvez o voltemos a ver.

 

Depois de terem partilhado um sólido pequeno-almoço, enquanto Iker se mantivera de parte, os aprendizes de escriba tinham ido para a sala de aula onde se sentaram em esteiras.

 

Quando o professor entrou, Iker ficou ao mesmo tempo desiludido e magoado: o general Sepi! Portanto, o chefe de província da Lebre tinha-o enganado, enviando-o para uma caserna onde eram formados os milicianos.

 

O jovem levantou-se.

 

- Perdoai, mas não tenho nada a fazer aqui.

 

- Não desejas tornar-te escriba? - perguntou Sepi. É essa realmente a minha intenção.

 

Então, senta-te. Mas sois general e...

 

-- e responsável pela principal escola de escribas da província da Lebre. Ou me obedecem sem pestanejar, ou vão tentar a sorte noutro lado. Os que trabalham sob a minha direcção devem ser rigorosos e disciplinados. Exijo pontualidade e uma apresentação impecável. À mínima negligência, é a expulsão. Comecemos por prestar homenagem ao nosso divino senhor, Tot, e ao antepassado de todos os escribas, o sábio lmhotep.

 

Sepi prendeu um fio-de-prumo à trave principal do lugar.

 

- Olhai com atenção, aprendizes, porque é o símbolo de Tot, imutável no coração da balança. Repele o mal, pesa as palavras, oferece a paz ao conhecedor e faz ressurgir o que fora esquecido.

 

De um cesto em papiro forrado de tecido, o general Sepi tirou o material utilizado pelos escribas: uma paleta de sicômoro, um estojo cilíndrico cheio de cálamos e de pincéis, um saco contendo papiros, outro com pigmentos, uma pequena ferramenta em forma de maço que servia para polir, um brunidor indispensável nas correcções sobre papiro, godés para tinta, pães vermelhos e pretos, tabuinhas de madeira e um raspador.

 

- Como se chama a paleta?

 

- "Ver e OUVIR'" - respondeu um aprendiz.

 

- Exacto - aprovou Sepi. - Não esqueceis que a paleta é uma das incarnações de Tot. Só ele vos permitirá conhecer as palavras de Deus' e penetrar o seu significado. Graças à sua paleta, estão inscritas a duração da vida de Ré, a luz divina, e a realeza de Hórus, protector do Faraó. Manejar a paleta é um acto grave e sagrado. Deve portanto ser precedido de um ritual.

 

O general poisou no chão uma estatueta de babuíno sentado, de olhos profundos e meditativos. Incarnação de Tot, inspirava o escriba recolhido. Depois, o professor encheu um godé com água.

 

- Para ti, mestre da língua sagrada, lanço a energia que animará o espírito e a mão. Eis a água do tinteiro para o teu ka, Imhotep. Depois de um longo momento de silêncio, o professor rectificou a posição de diversos aprendizes que considerava demasiado indolente ou demasiado rígida. Depois, apresentou-lhes os cálamos e os pincéis finamente talhados, com o comprimento de vinte e cinco centímetros.

 

- Algum de vocês conhece o melhor material para os fabricar? - Junco que tenha crescido num pântano salgado - respondeu um aluno.

 

- O buplèvre' não seria preferível? - sugeriu Iker.

- Porquê? - interrogou Sepi.

 

- Porque essa planta é resistente e afasta os insectos.

 

- Não vão escrever já sobre papiro - continuou Sepi - mas sobre tabuinhas de madeira cobertas por uma fina camada de gesso endurecido. Podereis apagar os vossos erros e limpar facilmente a sua superfície. Quando essa camada estiver destruída, espalharão uma nova. Os vossos principais inimigos são a preguiça, a negligência e a indisciplina. Tornar-vos-ão estúpidos e impedir-vos-ão de progredir. Sabei ouvir os conselhos dos que sabem mais do que vós e trabalhai todos os dias com ardor. Se não estais prontos para isso, abandonai imediatamente esta escola.

 

Assustados pela severidade do instrutor, dois aprendizes saíram.

- Tot separou as línguas - prosseguiu Sepi. - Distinguindo as palavras pronunciadas de um país para outro, colocou ao contrário os pensamentos humanos que se desviaram da verdade e do bom caminho. Durante a idade do ouro viviam os deuses que falavam a mesma língua: hoje, confrontam-se os humanos que estão separados do divino e não se compreendem. Mas Tot transmitiu-nos também as palavras de força que aprendereis a decifrar e a inscrever na madeira, o cabedal, os papiros e a pedra. Deveis no entanto respeitar uma regra fundamental: não coloqueis uma palavra em lugar de outra, não confundeis uma coisa com outra. Aqui vos será ensinada a escrita da Casa de Vida, formada por sinais que são também elementos de conhecimento, símbolos carregados de magia e de mistério. Da escrita correcta depende o brilho do espírito. Se julgais que os hieróglifos não passam de desenhos e sons, nunca os compreendereis. Na verdade, contêm a natureza secreta dos seres e das coisas, as essências mais subtis. A linguagem sagrada é uma força cósmica, é ela que cria o mundo. Apenas o Faraó, o primeiro dos escribas, é capaz de a dominar. É por isso que o seu nome, per-aá, significa "a grande casa". Os Hieróglifos não precisam dos homens, agem por eles próprios. Por isso deveis respeitar os textos que descobrirdes e que transmitireis, porque são muito mais importantes do que a vossa minúscula pessoa.

 

Iker estava fascinado.

 

Tinha pressentido tudo aquilo, mas o general Sepi formulava as coisas com tal precisão que se abriam várias portas para múltiplos caminhos.

 

- Não é para a vossa própria glória que vos tornareis escribas precisou o professor - mas a fim de prolongar a obra de Tot. Ele calculou o céu, contou as estrelas, estabeleceu o tempo, os anos, as estações e os meses. O sopro de vida reside no seu punho, o seu côvado é a base de qualquer medida. Ele, que não é vítima nem da desordem nem da irregularidade, estabelece o plano dos templos. A ciência de Tot não consiste em especular em vão, porque demasiada técnica e saber são prejudiciais. Pelas suas palavras aprendereis tanto a construir um edifício como a distribuir com justeza os alimentos ou a calcular a superfície de um campo. O que está no alto é como o que está em baixo, o que está em baixo é como o que está no alto e Tot, o duas vezes grande, ensinar-vos-á a não dissociarem o céu da terra.

 

-Não teremos então senão que copiar fórmulas já feitas! - protestou um aprendiz. - Não é o reconhecimento da nossa fraqueza?

- Se desejas ser forte - respondeu Sepi - sê um artesão de palavras. A verdadeira força é a formulação, porque as palavras bem utilizadas são mais eficazes do que qualquer arma. Alguns escribas são apenas copistas, com efeito, mas não devem ser desprezados por isso. Outros, muito raros, penetram na esfera da criação.

 

- Que qualidades lhes são exigidas? - perguntou Iker.

 

- A escuta, a compreensão e o controlo dos fogos. Tu e os teus camaradas ainda estão muito longe disso! Pegai nas vossas tabuinhas e nos vossos cálamos. Vou ditar-vos o Livro de Kemit e corrigiremos os vossos erros. O que significa este termo?

 

- Kemit é uma palavra formada com a raiz kem - declarou Iker e significa quer "a terra negra", por outras palavras, a terra do Egipto fertilizada pelo lodo, quer "o que está terminado, completo".

 

- Os dois sentidos devem ser levados em consideração - acrescentou Sepi. - Este livro encerra, com efeito, um ensinamento completo destinado aos aprendizes de escribas e tem como finalidade tornar o seu espírito fértil. Preparai o vosso material de escrita.

 

Iker encheu de água duas conchas onde diluiu os seus pães de tinta. O professor ditou os capítulos do Livro de Kemit.

 

O princípio desejava vida, coerência e realização eternos ao Mestre. Depois, tratava da necessária "exactidão de voz", face às divindades e às almas de Heliópolis, a cidade santa de Ré. A Montu, o deus touro da província tebana, era pedida a sua força e o seu auxílio; a Ptah, a alegria e avançada idade.

 

"Que os escritos te tornem feliz", era o voto que era formulado para o escriba, desde que ele escutasse o mestre, respeitasse os mais velhos, não fosse tagarela, escolhesse a exactidão em todas as coisas e lesse os textos úteis, ou seja, os que continham a luz.

 

Uma frase fez sobressaltar Iker: "Possa o bom escriba ser salvo pelo perfume de Punt", e por pouco não perdeu o ritmo do ditado. Ao fim de duas horas de esforços e de atenção, os aprendizes estavam fatigados. Alguns tinham cãibras, outros dores nas costas.

 

O general Sepi passou lentamente pelas fileiras.

 

- Lamentável - concluiu. - Nenhum de vós conseguiu escrever correctamente a totalidade das minhas palavras. A vossa cabeça vacila, os vossos dedos são hesitantes. Amanhã de manhã, recomeçaremos. Os que tiverem cometido muitos erros serão transferidos para outra escola.

 

Iker arrumou lentamente as suas coisas. Quando a aula ficou vazia, o aluno aproximou-se do professor.

 

- Posso fazer-vos uma pergunta?

- Só uma, tenho pressa.

 

- Este livro fala do "perfume de Punt". É um país imaginário, não é verdade?

 

- Qual é a tua opinião?

 

- Por que razão um futuro escriba copiaria imaginações? E por que razão o perfume de um país imaginário o salvaria?

 

- Eu tinha dito uma só pergunta, Iker. Vai ter com os teus camaradas.

 

O seu acolhimento não teve nada de caloroso. Eram todos nativos da província da Lebre e a presença daquele estrangeiro na aula do general Sepi, de tão difícil acesso, irritava mais do que um.

 

Um moreno baixote de olhos agressivos abriu as hostilidades.

- De onde vens tu?

 

- Estou aqui, é o essencial - respondeu Iker.

- Quem te recomendou?

 

- Que importa? A cada um compete provar as suas capacidades. Estamos sós perante a prova.

 

- Visto que consideras assim as coisas, estarás ainda mais só do que os outros!

 

O grupo de aprendizes afastou-se do intruso lançando-lhe olhares rancorosos. De boa vontade lhe teriam batido para lhe dar uma boa lição, mas o general Sepi tê-los-ia punido severamente.

 

Iker almoçou à parte, realizando a sua cópia do Livro de Kemil. A palavra "Punt" não deixava de o atormentar. Fora por causa desse país misterioso que quase morrera.

 

- Preparem o vosso material - ordenou secamente o general Sepi.

Iker detectou imediatamente a extensão da catástrofe.

 

Tinham substituído a sua tabuinha por outra, de tal forma gasta que estava quase inutilizável. Os seus cálamos e pincéis tinham sido partidos. Dos seus pães de tinta, duros como pedras, não conseguiria nada de bom.

 

O rapaz levantou-se.

 

- O meu material foi deteriorado.

 

Divertidos e satisfeitos, os olhares convergiram para ele.

- Conheces o culpado? - perguntou Sepi.

 

- Conheço.

 

Houve murmúrios percorrendo as fileiras dos aprendizes de escribas.

 

- Fazer uma acusação é um acto grave - lembrou o general. Estás seguro de ti?

 

- Estou.

 

- Então indica-nos o seu nome.

 

- O culpado sou eu próprio. Mostrei-me demasiado ingénuo ao acreditar que ninguém ousaria cometer um gesto tão desprezível. Avalio a dimensão da minha estupidez, mas é tarde de mais.

 

Com a cabeça baixa e passo pesado, Iker dirigiu-se para a porta sob olhar trocista dos vencedores.

 

- É alguma vez demasiado tarde para se corrigir? - perguntou general. - Eis um saco que contém o material completo de um escriba profissional. Confio-to, Iker. Se a tua vigilância abrandar uma vez mais, é inútil que voltes a pôr os pés aqui.

 

O aprendiz recebeu aquele inestimável presente com veneração. Procurou em vão uma fórmula de agradecimento para exprimir a sua gratidão.

 

- Vai sentar-te no teu lugar - exigiu o professor - e prepara-te rapidamente.

 

Iker esqueceu os seus inimigos e concentrou-se nos objectos novos e de óptima qualidade que o general acabava de lhe oferecer. Sem tremer, conseguiu uma soberba tinta preta.

 

- Escrevam estas Máximas do sábio Ptah-hotep - disse o professor.

 

Que o teu coração não se torne vaidoso por causa daquilo que sabes. Aconselha-te tanto junto do ignorante como do sábio, Porque não se atingem os limites da arte,

 

E não existe artesão que tenha adquirido a perfeição.

 

Uma palavra perfeita está mais oculta do que apedra verde, Encontra-se no entanto junto das criadas que trabalham na mó'.

 

O texto não era fácil, as ocasiões para cometer erros eram numerosas, mas a mão de Iker corria com destreza. Agarrava-se a cada palavra mantendo presente no espírito o sentido de uma frase completa.

 

Quando Sepi se calou, Iker não sentiu qualquer sensação de fadiga. De boa vontade teria continuado ainda durante muito tempo.

 

O general examinou as tabuinhas. Todos retiveram a respiração.

- Metade de vocês não merece estudar na minha aula. Continuarão a sua aprendizagem com outros professores. Os outros têm ainda muitos progressos a fazer e com certeza que não ficarei com todos. Só um aluno cometeu apenas dois erros: Iker. Será portanto o responsável pela manutenção deste local, que limpará todos os dias. Confio-lhe a chave.

 

Os outros aprendizes não ficaram descontentes com aquela decisão: não era uma humilhação infligida ao estrangeiro? Eles nunca se tinham rebaixado a tarefas domésticas. Mas Iker considerou aquela função como uma honra e não como uma troça. E ficou também contente por ser encarregado do inventário das tabuinhas, ao qual se consagrou com o seu entusiasmo habitual.

 

Que felicidade estar em contacto com aqueles suportes de escrita! Classificou-os por material, atribuindo-lhes um número: tabuinhas de argila crua que necessitavam de uma ponta dura; tabuinhas de sicômoro e de jujubeira, de forma rectangular, constituídas por várias peças reunidas por cavilhas; tabuinhas de calcário cuja superfície era alisada com cuidado.

 

Não ver nenhum dos seus condiscípulos durante todo o dia era uma verdadeira sorte. Esperava que o general Sepi, bem diferente da ideia que Iker fazia de um militar, continuasse a impor-lhe o máximo de trabalho a fim de que esta situação perdurasse.

 

A noite tinha caído quando Iker saiu do armazém para se dirigir ao refeitório onde jantou um estufado de abóbora e queijo fresco. As Máximas de Ptah-hotep tinham-se gravado tão profundamente no seu espírito que não cessavam de o encantar, como uma música fascinante. Passava um raio de luz por baixo da porta do seu quarto.

 

No entanto, não deixara nenhuma lâmpada acesa! Inquieto, empurrou lentamente a porta e descobriu o vandalismo.

 

Esteira rasgada, saiote em farrapos, cofre da roupa em mil pedaços, material de higiene reduzido a migalhas, sandálias desfeitas, paredes sujas de tinta... Descoroçoado, à beira das lágrimas, como conseguiria o rapaz obter o mínimo para viver?

 

Visto que tinha de ali ficar, adormeceu, aniquilado.

 

Quando acordou, desanimado, Iker perguntou a si mesmo se valeria a pena perseverar em tal clima de ódio, onde os golpes baixos arriscavam multiplicar-se. O que mais iriam ainda inventar os seus condiscípulos a fim de o desencorajar? Só contra todos, era uma posição muito pouco confortável para ser mantida durante muito tempo.

 

O aprendiz de escriba varreria a sala antes da aula e depois apresentaria a sua demissão ao general Sepi.

 

Diante da porta estava um embrulho.

 

Mais um acto de maldade, pensou Iker, que hesitou em desatar o cordel.

 

Duas camisas e dois saiotes novos, um par de sandálias, produtos de higiene, uma esteira sólida... Ganhava com a troca! Um dos seus inimigos teria sentido remorsos? Ou gozaria do auxílio de um protector que permanecia na sombra?

 

Foi um Iker elegante que recebeu o professor numa sala limpa como um papiro virgem.

 

Os camaradas ficaram estupefactos: como se arranjara ele para conseguir aqueles fatos? Pelo seu rosto tranquilo, poder-se-ia mesmo jurar que não tinha sofrido nenhum prejuízo!

 

- Eis outras Máximas de Ptah-hotep - disse o general Sepi. Desta escola deverão em breve sair diversos papiros com a versão completa desta obra-prima:

 

Quando a escuta é boa, apalavra é boa.

 

O que escuta é o mestre do que é proveitoso, Escutar éproveitoso para o que escuta. Escutar é melhor do que tudo,

 

       (assim) nasce o amorperfeito'

 

De repente, Iker teve a sensação de já não copiar, mas sim de escrever. Não se contentava com transmitir frases já pronunciadas, participava no seu significado. Pela forma das suas grafias, pela especificidade do seu desenho, dava uma cor ainda desconhecida ao pensamento do sábio. Era um acto ínfimo, é certo; no entanto, pela primeira vez, o aprendiz sentia a força da escrita.

 

Terminada a aula, Iker varria o local. Ao sair, esbarrou com um grupo dos seus camaradas, para os quais discursava o moreno baixote de olhos agressivos.

 

- Renunciem a preparar outro golpe baixo - recomendou-lhes

Iker em voz calma. - Desta vez, não ficarei passivo.

 

- Julgas que nos fazes medo? Somos dez e tu és apenas um!

- Detesto a violência. Mas se persistirdes nas vossas intenções destruidoras, serei obrigado a dar-vos um correctivo.

 

- Tenta, para ver!

 

Furioso, o pequenote moreno tentou atacar Iker com o punho fechado.

 

Sem compreender o que lhe acontecia, foi atirado pelos ares e caiu pesadamente de costas. Ao acorrer a socorrê-lo, o seu fiel lugar-tenente sofreu a mesma sorte. E quando um terceiro, o mais corpulento do grupo, se lhes juntou na humilhação, os outros recuaram.

 

Pelo olhar que Iker lhes lançou, todos compreenderam que podia ser muito mais violento.

 

- Com certeza teve formação militar! - exclamou um magricela.

- Esse fulano é capaz de nos quebrar os ossos. Deixemo-lo em paz antes que ele fique realmente furioso.

 

Nem mesmo o pequenote moreno insistiu.

 

Enquanto o combalido grupo se afastava, Iker agradeceu a sorte que tivera. Se tivessem tido a ideia de o atacar todos juntos, teria sido derrotado. E agradeceu também ao chefe de província Khnumhotep por tê-lo obrigado a tornar-se um guerreiro razoável.

 

A caminho do refeitório, o aprendiz viu o voo de um íbis tão majestoso que se imobilizou para o contemplar.

 

A ave de Tot começou a descrever grandes círculos por cima de Iker, como se quisesse fazer-lhe compreender que se dirigia realmente a ele. Depois voou para o lado do Nilo, regressou ao rapaz e retomou a direcção do rio.

 

Iker seguiu-o. Por diversas vezes o ibis efectuou as mesmas idas e vindas. Beneficiando da sua experiência de corridas de fundo, o aprendiz de escriba percorreu num tempo recorde a distância que o separava do Nilo. A ave esperava-o por cima de um maciço de papiros, Inclinou-se uns instantes sobre a folhagem em umbela, que debicou com o bico pontiagudo, e depois partiu em direcção ao céu.

 

O mensageiro do deus dos escribas tinha-o trazido àquele lugar deserto com certeza para que fizesse alguma descoberta. Aventurar-se naquele maciço vegetal não deixava de apresentar os seus perigos. Podia dissimular-se ali um crocodilo ou uma serpente. O explorador bateu com o pé no chão antes de afastar as hastes e penetrar nos papiros.

 

O som de gemidos fê-lo estacar. Havia um bebé naquele maciço!

 

Esquecendo os perigos, Iker avançou tão depressa quanto pÔde e caiu sobre... um burrinho! Um pequeno burro ferido numa pata, enrolado sobre si mesmo esperando a morte.

 

Lentamente, para não o assustar, Iker libertou-o da lama de que estava prisioneiro. O infeliz já só tinha pele e osso, com as costelas bem evidentes.

 

- Vou pegar-te ao colo - anunciou-lhe Iker - e tratarei de ti. Com os grandes olhos castanhos cheios de terror, era evidente que o burrinho não guardava boas recordações dos seus primeiros contactos com a espécie humana.

 

A fim de o acalmar, Iker sentou-se junto dele e fez uma primeira tentativa para o acariciar. O ferido estremeceu de pavor, persuadido de que iam bater-lhe outra vez. O contacto de uma mão meiga e afectuosa surpreendeu-o e tranquilizou-o Pouco a pouco, o jovem escriba conquistou a sua confiança.

 

- Tenho de te fazer sair daqui e alimentar.

 

O burrinho não era muito pesado. Iker receava uma reacção violenta; pelo contrário, o seu protegido entregou-se, sentindo-se finalmente em segurança.

 

Bruscamente, quando o seu salvador metia pelo caminho que conduzia aos campos cultivados, o burrinho agitou-se e gemeu. A razão do seu medo não era difícil de adivinhar: um camponês armado com uma forquilha vinha na direcção deles em grandes passadas.

 

- Deita esse monstro para o pântano - arrotou ele - e que seja devorado pelos crocodilos!

 

- Onde vês um monstro? Não passa de um pequeno burro ferido e esfomeado.

 

- Não olhaste bem para ele!

 

- Acho que sim e constatei que tinha sido maltratado. Se a culpa é tua, serás condenado.

 

- Culpado por me ter desembaraçado de uma criatura maléfica? Pelo contrário, felicitar-me-ão!

 

- Porque o acusas assim?

- Vou-te mostrar.

 

- Não, não te aproximes!

 

- Vê a nuca dele! Olha a marca!

 

Iker notou a presença de alguns pêlos arruivados.

 

- Este animal é uma criatura de Set, traz desgraça!

 

- Foi o ibis de Tot que me conduziu ao lugar onde abandonaste este pequeno animal depois de lhe teres batido. Achas que o deus dos escribas é incapaz de distinguir o mal?

 

- Mas a mancha... Os ruivos são criaturas de Set!

 

- Talvez ele possua a sua força, tendo sido purificado pelo ibis de Tot.

 

- E tu, quem és?

 

- Um aprendiz de escriba da aula do general Sepi. O tom do camponês mudou.

 

- Bem, talvez pudéssemos chegar a um acordo. Esse burrico é meu, mas dou-to com a condição de não apresentares queixa contra mim.

 

- Pedes-me muito.

 

- Ouve, eu achei que estava a fazer bem e um tribunal com certeza que me absolveria! Como podia prever a intervenção de Tot?

- Negócio feito, amigo!

 

Feliz por se safar tão bem, o camponês desapareceu. Quase de imediato, o burrinho descontraiu-se de novo.

 

No momento em que a suave brisa vinda do norte se levantou, o pequeno animal farejou o ar com interesse. Surgiu finalmente nos seus olhos um relâmpago de curiosidade pelo mundo que o rodeava. Com o olhar cheio de um amor infinito pelo seu salvador, despertava para a vida.

 

- O teu nome está escolhido - considerou Iker. - Chamar-te-ás Vento do Norte.

 

Ocultos no Delta, a dois dias de marcha a nordeste da cidade de Imet, Goela-Torcida e os seus alunos viviam da caça e da pesca. Andavam todos os dias em paródias e o chefe aproveitava para endurecer ainda mais o treino. Em semelhante ambiente, era fácil organizar emboscadas e imaginar exibições. Dois recrutas tinham perdido nelas a vida, mas tratava-se de um mínimo bastante satisfatório. Provava que o trabalho dava os seus frutos e que os comandos em breve estariam prontos para agir.

 

O objectivo de Goela-Torcida era tornar-se o chefe do melhor bando de salteadores jamais visto em terras do Egipto. Infligiria tanto sofrimento aos seus inimigos que estes acabariam por pronunciar o seu nome com terror.

 

- O vigia assinala a presença de intrusos, chefe.

 

- Não é possível... Vamos divertir-nos! Todos em posição.

 

É evidente que aquela eventualidade tinha sido prevista. E a tropa de Goela-Torcida preparara-se para eliminar os que viessem incomodá-los.

- Quantos curiosos?

 

- Quatro homens.

 

- Fácil de mais! Bastamos dois para tratar deles.

 

Era um dia de sorte para Shab, o Torto, porque Goela-Torcida o reconheceu no momento em que ia lançar o seu punhal.

 

Com o seu acólito, saiu dos juncos como uma fera.

 

- Saudações, camarada! Boa viagem?

- Meteste-me medo, imbecil!

 

- Mas... onde está o patrão-mor?

 

- Uma patrulha de polícias do deserto prendeu-o e conduziu-o provavelmente para Siquém.

 

- Porque não a exterminaram?

 

- Eram demasiado numerosos. E depois, o Anunciador deu ordem para fugirmos.

 

- Para um fulano como ele - lamentou Goela-Torcida - triste fim de carreira.

 

- O que estás tu a dizer? Vamos dirigir-nos a Siquém e libertá-lo.

- Estás a delirar, Torto! Achas que os egípcios vão cometer o erro de deixar a cidade sem vigilância? Vai haver um verdadeiro regimento ali instalado e não chegamos para eles.

 

- Os teus alunos não estão bem treinados?

 

- Para operações pontuais, sim; não para um choque frontal.

- Não vamos atacar a caserna, mas a prisão.

 

- Em primeiro lugar, vai estar bem guardada, e nada prova que consigamos libertar o Anunciador, além disso, vamos chegar demasiado tarde com certeza.

 

- Porquê?

 

- Porque vai ser executado. Achas que o Faraó tratará com ternura o condutor dos revoltosos?

 

Shab fez uma careta.

 

- O teu Anunciador já está morto. Irmos a Siquém equivaleria a um suicídio, Torto.

 

- Então o que propões?

 

- Aceitemos a fatalidade e ocupemo-nos do nosso próprio futuro. Com esta equipa, faremos melhor do que os salteadores das areias.

- Com certeza, com certeza, mas o Anunciador...

 

- Esquece-o! Agora, está a assar nas fornalhas do inferno.

- E se lhe déssemos uma oportunidade?

 

- Que oportunidade? - espantou-se Goela-Torcida.

 

- A de se evadir. Sabes bem que não é um homem vulgar. Os seus poderes talvez lhe permitam escapar aos seus inimigos.

 

- Mesmo assim, foi preso!

 

- E se tivesse querido que assim fosse?

 

- Com que intenção?

 

- A de nos provar que ninguém o pode aprisionar!

- Tomas o teu Anunciador por um deus!

 

- Possui a força dos demónios do deserto e saberá utilizá-la.

- Tudo isso é conversa... Nós somos livres, bem vivos e prontos para roubar egípcios.

 

- Fiquemos aqui até à lua nova - propôs Shab, o Torto. - Se o Anunciador não tiver chegado até esse dia, partiremos.

 

- Está bem - concordou Goela-Torcida. - Aproveitaremos para comer bem e beber bem enquanto esperamos. Nas quintas e nas vivendas deve haver belas reservas de vinho e de cerveja. Deixaremos as raparigas para o fim.

 

Numa cela com chão de terra batida, uma dezena de homens, todos prostrados, com excepção do Anunciador. Dissimulada num pano da sua túnica, a rainha das turquesas afastava a má sorte. De facto, desde que fora lançado naquela enxovia malcheirosa, o futuro desanuviara-se porque um dos prisioneiros era parecido com ele como um irmão. Quase tão alto como ele, rosto cavado, a mesma constituição. Apenas a barba devia crescer ainda mais alguns dias. O Anunciador estava certo de obter esse prazo, pois os militares egípcios interrogavam de forma aprofundada os citadinos antes de se ocuparem dos pastores presos nos arredores da cidade e ali reunidos.

 

- Vocês não me conhecem - declarou - mas eu conheço-vos. Ergueram-se para ele olhares interrogativos.

 

- Vocês são trabalhadores corajosos, explorados por um ocupante tão cruel que haveis renunciado a lutar. Eu vim para vos ajudar.

- Achas-te capaz de deitar abaixo as paredes desta prisão? ironizou o proprietário de um rebanho de carneiros.

 

- Acho, mas não como tu imaginas.

- Como vais proceder?

 

- Haveis ouvido falar do Anunciador? Apenas um pastor reagiu.

 

- Não é um mágico aliado dos demónios do deserto?

- Com efeito.

 

- Por que havia de nos vir libertar?

 

- Não Virá.

 

- Então para que estás a falar nisso?

- Não virá, porque está aqui.

 

O Anunciadorpoisou a mão sobre o ombro do idiota que era seu sósia.

 

- Eis o vosso salvador.

- Ele? Mas mal sabe falar!

 

- Até agora não o havíeis reconhecido e foi o vosso erro mais grave. Dentro de menos de uma semana, estará pronto para vencer o adversário e nos libertar.

 

Os pastores encolheram os ombros e cada um se acocorou no seu canto. O Anunciador começou a formar o seu substituto, fazendo-o repetir algumas frases simples que os habitantes de Siquém tinham ouvido mil vezes. Demasiado feliz por lhe darem assim importância e poder escapar ao clima pesado da prisão, o idiota demonstrou a melhor boa vontade.

 

Passara uma semana.

 

A porta da cela abriu-se com estrondo.

 

- Saiam todos, vão ser interrogados - anunciou um polícia egípcio.

 

- Só obedecemos ao Anunciador - declarou um pastor que aceitara entrar no jogo.

 

O polícia engasgou-se.

- Repete!

 

- O Anunciador é o nosso guia. É ele, e só ele, que dita a nossa conduta.

 

- E onde está esse famoso gula?

- Aqui, entre nós.

 

Os prisioneiros afastaram-se para deixar à vista o substituto a quem o Anunciador pusera o seu turbante e vestira a sua túnica.

 

O polícia apoiou a ponta do cacete no peito da estranha personagem.

- Então és tu o Anunciador?

 

- Sou eu.

 

- E foste tu que desencadeaste a revolta de Siquém?

 

- Deus elegeu-me para combater os opressores do povo, e conduzi-lo-ei à vitória.

 

- Vejamos, então! Vamos apresentar-te ao general Nesmontu, meu valentão.

 

- Nenhum inimigo conseguirá vencer-me, porque sou o aliado dos demónios do deserto.

 

- Amarrem-no - ordenou o polícia aos seus colegas. O verdadeiro Anunciador aproximou-se.

 

- Nós somos pastores - murmurou - e não percebemos nada desta história. Temos os nossos animais à espera. Se não tratarmos rapidamente deles, perderemos tudo.

 

Filho de camponês, o polícia foi sensível àquele argumento.

- Está bem, vamos interrogar-vos. Depois veremos.

 

Seguindo o plano previsto, os pastores protestaram a sua total inocência. Um após outro foram libertados. A polícia estava demasiado contente por ter descoberto a caça grossa para se preocupar com o gado miúdo,

 

O general Nesmontu observou com desconfiança o homem do turbante.

 

- Então és o revoltoso que ordenou o massacre da guarnição egípcia de Siquém?

 

- Sou o Anunciador. Deus escolheu-me para combater os opressores do povo e...

 

-... E conduzi-lo-ás à vitória, eu sei. já repetiste isso vinte vezes. Quem está por trás de ti? Os Asiáticos, os líbios ou apenas os Cananeus?

- Deus escolheu-me para...

 

O general esbofeteou o prisioneiro.

 

- Por vezes lamento que o Faraó proíba a prática da tortura. Para pergunta clara, resposta clara: actuas só, ou tens um comanditário?

- Deus escolheu-me...

 

- Basta! Levem-no e continuem a interrogá-lo. Quando tiver muita sede, talvez acabe por falar.

 

Graças aos ensinamentos do Anunciador, o idiota estava convencido de poder fazer frente aos egípcios. Nenhum deles conseguiu arrancar-lhe outras palavras além das fórmulas feitas cuja repetição o mantinha imperturbável.

 

Deitámos realmente a mão a este criminoso louco - considerou o ajudante-de-campo do general.

 

- Parece-me necessária uma última verificação: passeiem-no pelas ruas da cidade.

 

Logo aos primeiros passos, a patrulha encarregada da missão julgou que o prisioneiro era um impostor, porque ninguém se manifestava à sua passagem.

 

De repente, uma mulher gritou.

- É ele, reconheço-o!

 

Um velho confirmou.

 

- O Anunciador está de regresso!

 

Em poucos segundos, foi o grande ajuntamento. Os polícias libertaram-se com brutalidade e reconduziram o seu prisioneiro à caserna.

- Não há dúvida, meu general - declarou um oficial. - Este louco é realmente o Anunciador. Se queremos evitar novas dificuldades, é necessário mostrar o seu cadáver à população o mais depressa possível.

 

- Fá-lo, beber veneno - ordenou Nesmontu.

 

Enquanto o general redigia um longo relatório dirigido ao Faraó, o idiota entrava na morte com uma perfeita despreocupação. Não lhe tinha o Anunciador prometido que seria recebido num palácio magnífico, cheio de soberbas mulheres nada esquivas que satisfariam todos os seus desejos ao mesmo tempo que escanções lhe serviriam os melhores vinhos?

 

Iker não estabelecera qualquer relação com os seus condiscípulos e consagrava-se exclusivamente ao seu trabalho. À noite, contentava-se com uma sopa de lentilhas e favas cozidas, temperadas com cebola, e com uma côdea de pão esfregada com alho, antes de acender diversas lâmpadas alimentadas a óleo de rícino. Barato, utilizado como unguento pelos mais pobres, servia sobretudo como combustível para a iluminação.

 

O aprendiz de escriba não se cansava de copiar os textos clássicos a fim de os gravar na memória, de adaptar a mão e de conseguir uma escrita tão rápida como legível. Ao desenhar o pensamento, tornava-o tão vivo que acompanhava os múltiplos contornos. Os hieróglifos eram muito mais do que uma sucessão de imagens; neles ressoavam os actos criadores das divindades para dar a cada palavra a sua plena eficácia.

 

Era possível prolongar a vida e torná-la cintilante ao escrever? À medida que o seu espírito assimilava os sinais, que se transformava neles e por eles, Iker estava cada vez mais convencido disso. Não lhe interessava permanecer um simples escriba confinado a tarefas administrativas; queria penetrar o mistério daquela linguagem, simultaneamente abstracta e concreta, que criara a civilização egípcia.

 

Trabalhando tão intensamente, o rapaz evitava pensar nela. Mas na volta de uma frase, o seu rosto reaparecia e arrastava-o numa esperança insensata. Nunca mais a voltaria a ver, a menos que as suas competências de escriba lhe abrissem as portas de Abido. Talvez houvesse outras festas e outros rituais que ela honrasse com a sua presença!

 

Não, não renunciaria. Era por ela que partia à conquista da gramática, do léxico, da correcta organização dos hieróglifos que, pela sua disposição na madeira, no papiro ou na pedra, emitiam uma harmonia que apenas os mestres da escrita conheciam.

 

Iker ia muitas vezes ver o seu burrinho, confortavelmente instalado numa cama de palha mudada todas as manhãs. Dotado de um sólido apetite, Vento do Norte engordava a olhos vistos e o seu ferimento não passaria em breve de uma má recordação.

 

Durante o seu primeiro passeio pelo campo, foi o animal que tomou a dianteira e reencontrou o caminho sem cometer o mínimo erro. Havia nos seus olhos uma intensa alegria.

 

- É bom ter um verdadeiro amigo - confessou-lhe Iker. - A ti posso dizer tudo.

 

O aprendiz de escriba contou a sua história a Vento do Norte sem omitir nada. As grandes orelhas endireitaram-se, atentas.

 

- Que aquele bando de escribalhaços pretensiosos não goste de mim, tanto me faz. Ainda me dão mais força! Ao ver aqueles cérebros tão imbuídos deles próprios que não respeitam nem os outros nem os símbolos sagrados, apenas desejo traçar o meu próprio destino sem ter a sua opinião em conta. O que caracteriza os imbecis é a sua esterilidade, que os torna invejosos e ciumentos. Tentam destruir os que não são parecidos com eles. Tu e eu somos realmente irmãos. Unidos, far-lhes-emos frente.

 

O burro lambeu a mão do seu salvador, que lhe retribuiu com longas carícias antes de regressar ao seu quarto. Como todas as noites, poisava sobre o ventre o marfim mágico que a dama Techat lhe oferecera para afastar os génios maus. De manhã, quando acordava, metia-o entre os seus dois pequenos amuletos, representando um falcão e um babuíno, para os recarregar de energia.

 

- Amanhã - anunciou o general Sepi aos dez alunos chamados a tornar-se escribas de elite - é dia de repouso.

 

Como era habitual, Iker foi o último a sair da aula.

 

- General, solicito um favor.

 

- Autorizo-te a não varrer a aula durante esse dia de descanso.

- Permiti que consulte os arquivos da província.

 

- Não preferes divertir-te ou descansar?

 

- Mais cedo ou mais tarde serei confrontado com esse tipo de documentos. Desejo começar o mais depressa possível.

 

- Que género de arquivos?

 

- Oh! Um pouco de tudo! Não desejo encerrar-me numa especialidade.

 

- Vou redigir-te um salvo-conduto. O rapaz dissimulou a sua excitação.

 

Munido do precioso sésamo, apresentou-se ao responsável.

- Que documentos desejas consultar?

 

- Tudo o que se refira aos barcos, às tripulações e às expedições comerciais.

 

- Desde que data?

 

- Digamos... nos últimos três anos.

 

O empregado conduziu-o a uma ampla sala de tijolos. Papiros e tabuinhas estavam cuidadosamente arrumados em prateleiras.

 

- Não tolero nenhuma desordem. À mínima negligência, pedirei ao teu professor que anule a autorização.

 

- Respeitarei à risca o regulamento - prometeu Iker.

 

Ele, tão impaciente, revelou-se metódico. O número de horas de pesquisa necessárias não o assustava, antes pelo contrário. No meio de uma tal massa de documentos, havia de descobrir com certeza um indício.

 

A província da Lebre possuía numerosos barcos, mas nenhum se chamava Veloz. Ultrapassada essa decepção, Iker esperou que os dois marinheiros cujo nome conhecia tivessem pertencido a outras tripulações recenseadas pela administração. Mas nem vestígio de Faca-Cortante ou Olho-de-Tartaruga. Quanto às diversas expedições comerciais, nenhuma tivera o país de Punt como destino.

 

Apenas a boa saúde de Vento do Norte, que crescia a olhos vistos, e a riqueza das aulas dadas pelo general Sepi, evitavam que cedesse ao pessimismo.

 

Quando ia a sair da sala de aula, que acabava de limpar nos mínimos recantos, Iker esbarrou com três raparigas tão elegantes como trocistas. Vestidos leves, pulseiras nos pulsos e nos tornozelos, colares de pérolas, diademas adornados com flores... Verdadeiras princesas orgulhosas por exibirem as suas riquezas!

 

- És tu o escriba Iker? - perguntou a mais alta, com voz sedutora.

- Sou apenas um aprendiz.

 

- Parece que trabalhas muito - sussurrou a mais nova, de olhar malicioso.

 

- Do meu ponto de vista, nunca se trabalha o suficiente. Há tantos textos importantes a estudar!

 

- Não acaba por ser um pouco aborrecido?

 

- Pelo contrário! Quanto mais se praticam os hieróglifos, mais maravilhas descobrimos.

 

- E a nós, como nos achas?

Iker corou até às orelhas.

 

- Mas eu... Como posso avaliar...? Perdoai, tenho de tratar do meu burro.

 

- Não somos mais sedutoras do que esse animal? - perguntou a que ainda não tinha falado.

 

- As minhas maiores desculpas, mas estou realmente apressado. Fugindo, Iker conseguiu escapar àquelas três graças que se pareciam de forma surpreendente. A sua diferença de idade devia ser mínima e era difícil distingui-las ao primeiro olhar. Mas a sua beleza era demasiado artificial, a sua atitude demasiado afectada; e o aprendiz fazia apenas um voto: que elas deixassem de o importunar.

 

Esse desejo não foi realizado.

 

Nessa mesma noite, a mais nova batia à porta do seu quarto.

- Não te incomodo, Iker?

 

- Não... Enfim, sim... Não podeis entrar aqui, porque...

- Porque já há outra rapariga?

 

- Não, claro que não!

 

- Então, deixa-me oferecer-te o que preparei.

 

Estava excessivamente maquilhada: demasiado kbolverde em redor dos olhos, demasiado ocre vermelho nos lábios, demasiado perfume.

 

Poisou dois pratos no chão.

 

- O primeiro contém pastéis feitos de frutos da jujubeira - explicou. - A minha criada esmagou-os para obter uma farinha muito fina e eu própria acrescentei mel antes de levar os bolos a cozer ao forno. O segundo, um queijo com ervas preparado com o leite da nossa melhor vaca. Nunca deves ter comido alimentos tão delicados, não é verdade? Se fores gentil comigo, nunca mais te faltará nada.

 

- Não posso aceitar.

- Porquê?

 

- Sois certamente alguém muito importante e eu não passo de um aprendiz de escriba.

 

- Porque não te hás-de tornar também alguém importante? A minha ajuda será muito eficaz, podes crer!

 

- Prefiro desembaraçar-me só.

 

- Vamos, não te faças forte! Atreve-te a dizer que não te agrado...

Iker olhou-a a direito nos olhos.

 

- Não me agradais.

 

- Gostas de correr riscos, Iker. Ignoras realmente quem sou?

- Quem quer que sejais, recuso as vossas facilidades.

 

- Estará o teu coração já ocupado?

- Isso só a mim diz respeito.

 

- Esquece-a! Como ousaria ela comparar-se com a filha de Djehuti, o chefe de província da Lebre? As minhas irmãs e eu escolhemos os homens com os quais temos prazer. Tu és um desses felizes eleitos.

 

Começou a fazer deslizar lentamente do ombro uma das alças do vestido.

 

- Saí imediatamente! - exigiu Iker.

- Não me humilhes, vais pagar caro!

 

- Parai com esse jogo doentio e deixai-me em paz. É a tua última palavra?

 

Haveis-me compreendido perfeitamente.

 

Ela reajustou a alça lançando um olhar de ódio ao aprendiz de escriba, que pegou nos dois pratos.

 

- Não esqueçais o que vos pertence.

 

- Vives as tuas últimas horas nesta província, insolente!

 

Depois de ter alimentado o seu burro, Iker dirigira-se ao refeitório. Só na última colherada de sopa notou um gosto estranho. Bebeu muita água a fim de se libertar daquela impressão desagradável e só conseguiu o resultado inverso. A própria água lhe pareceu imprópria para beber.

 

O aprendiz de escriba quis falar com o cozinheiro, mas este tinha desaparecido.

 

E, de repente, a cabeça começou a andar à roda. Dominado pela vertigem, Iker caiu no chão e não se conseguiu levantar.

 

A vista turvou-se, mas ainda conseguiu ver os vultos das três filhas de Djehuti.

 

A mais nova debruçou-se sobre a sua vítima.

 

- Descansa, não vais morrer envenenado. Administrámos-te um simples sonífero para que fiques à nossa mercê. Agora vamos fazer-te beber álcool de tâmaras, Muito álcool. A tua pele e a tua roupa ficarão impregnadas dele. Será um aprendiz de escriba completamente embriagado que o pessoal do refeitório encontrará aqui. Divertido, não achas?

 

Iker tentou protestar, mas as suas palavras incoerentes embrulharam-se.

 

- Dorme bem, pequeno insolente que ousou repelir-nos! Quando acordares estaremos vingadas. E tu terás perdido tudo.

 

- Pareces um leme torcido - disse o general Sepi a Iker - uma capela sem o seu deus, uma casa vazia! Ensina-se um macaco a dançar, treina-se um cão, consegue-se mesmo agarrar um pássaro pelas asas, mas tu... como te hei-de educar? O teu coração é agitado, os ouvidos surdos! Tu, um aluno da minha aula, embebedaste-te e sujaste a tua roupa de escriba.

 

- Fui vítima de uma conspiração - declarou o acusado, cujo espírito estava ainda nublado.

 

A cólera do general pareceu acalmar.

 

- E quem terão sido os conspiradores?

 

- Pessoas que se aproveitaram da minha credulidade.

 

- O seu nome!

 

- Sou o único responsável, deveria ter desconfiado mais. Drogaram a minha comida e fizeram-me beber à força.

 

- Quem?

 

- Se vo-lo dissesse, não me acreditaríeis. E se me acreditardes, nada podereis fazer para castigar os culpados. O seu único objectivo era desconsiderar-me a vossos olhos. O que merece um aprendiz de escriba reconhecido como bêbedo senão ser expulso da vossa escola e mesmo da província que o acolhera?

 

- Factos são factos, Iker. E as tuas explicações são demasiado confusas para serem credíveis. Se queres provar a tua inocência, tens de indicar os teus adversários e organizar uma confrontação.

 

- Isso não conduziria a nada, general.

 

- Então, apenas um sinal do outro mundo poderia modificar a minha decisão.

 

Sepi chamou dois soldados para acompanharem Iker à fronteira sul da província da Lebre. O professor lamentava separar-se assim do seu melhor aluno, mas a falta era demasiado grave.

 

- Além, meu general, veja! - exclamou um militar, recuando. Um camaleão de ventre branco acabava de penetrar no compartimento. Ergueu os estranhos olhos para Sepi, que pronunciou de imediato uma fórmula de apaziguamento. Depois de uma breve hesitação, o animal retirou-se.

 

- O camaleão é uma das manifestações de Anúbis - explicou ele a Iker. - Pareces gozar de extraordinárias protecções.

 

- Vós... vós não ides expulsar-me?

 

- Quem seria suficientemente louco para ignorar a intervenção de Anúbis?

 

- Podereis acreditar, general, que um dia eu venha a pertencer ao Círculo de Ouro de Abido?

 

Sepi ficou rígido. Iker teve a sensação de contemplar uma estátua de olhos inquisidores.

 

- Quem te falou desse Círculo?

 

- É mais do que uma simples expressão poética, não é verdade?

- Responde à minha pergunta.

 

- Um jardineiro. Os nossos caminhos cruzaram-se e depois separaram-se.

 

- Os poetas sabem fazer-nos sonhar, meu rapaz. Mas tu trabalhas para te tornares escriba e te ocupares da realidade.

 

Em frente de Djehuti, enterrado no seu cadeirão de encosto alto, as três filhas agitavam-se de impaciência.

 

- Podemos finalmente falar? - perguntou a mais velha.

- Um momento, estou a acabar o estudo de uma pasta.

 

O chefe de província dobrou sem pressas um longo papiro.

- Então o que se passa com vocês, minhas doçuras?

 

- Pai, estamos indignadas e apelamos ao nosso juiz supremo!

- Referes-te à deusa Maet?

 

- Não, a ti! Acabam de ser cometidos no teu território actos abomináveis e o culpado ficou impune.

 

Djehuti pareceu impressionado.

 

- É muito grave, com efeito. Sabem mais alguma coisa? A mais nova interveio com veemência.

 

- O aprendiz de escriba Iker roubou álcool de tâmaras e embebedou-se. É uma atitude indigna e inqualificável! E esta manhã vimos esse malandro entrar outra vez na escola do general Sepi, como se nada se tivesse passado! Deves intervir imediatamente, pai, e expulsar esse Iker da nossa província.

 

Djehuti olhou as filhas com uma gravidade matizada de ironia.

- Descansem, minhas doçuras, já tirei esse assunto a limpo.

- O que... o que queres dizer?

 

- Esse infeliz rapaz foi vítima de uma perfídia, mas a protecção do deus Anúbis, que surgiu sob a forma de um camaleão, permitiu-nos compreender que dizia a verdade.

 

- Acusou alguém? - interrogou a mais velha, ansiosa.

 

- Não, é uma prova suplementar da sua generosidade. Tu e as tuas irmãs não terão qualquer suspeita?

 

- Nós? Mas como... Não, claro que não!

 

- Já desconfiava. Fiquem a saber que considero Iker como um futuro escriba de grande valor e que não admitirei mais nenhum ataque contra ele. Seja quem for o autor, será severamente castigado. Estamos entendidos, minhas doçuras?

 

As três filhas de Djehuti abanaram a cabeça afirmativamente e saíram da sala de audiências, na qual entrou um homenzinho muito magro, transportando uma sacola de cabedal que parecia demasiado pesado para a sua fraca constituição.

 

- Ah, médico Gua! Esperava-os já há algum tempo.

 

- Sois o chefe desta província - retorquiu o clínico com o seu habitual tom afectado - mas não sois o único a quem tenho de tratar. Entre as crises de reumatismo, as otites e as úlceras, não sei para onde me hei-de virar. Parece que todos os doentes passaram palavra uns aos outros esta manhã! Seria necessário que os meus jovens confrades fossem um pouco mais competentes e pusessem mais alma no que fazem. Bom... De que vos queixais hoje?

 

- Uma digestão difícil e...

 

- Já ouvi o suficiente. Comeis de mais, bebeis de mais, trabalhais muito e não dormis o suficiente. E tendes uma idade que vos recusais a aceitar. Face a essa obstinação, a medicina é impotente. É inútil esperar uma alteração dos vossos hábitos. Sois o pior dos meus pacientes, mas mesmo assim sou obrigado a tratar-vos.

 

Cada consulta começava pelo mesmo discurso. Djehuti evitava interromper o doutor Gua, cujo tratamento sempre se mostrara à altura do seu diagnóstico.

 

Da sacola tirou um boião com a forma de uma personagem de joelho em terra, transportando um vaso ao ombro e segurando-o com a mão esquerda. Traçada pela mão do terapeuta, a inscrição dizia: "Estou cansado de suportar tudo."

 

- Eis uma mistura laxativa composta por levedura de cerveja, óleo de rícino e alguns outros ingredientes que não tendes necessidade de conhecer. O vosso estômago deixar-vos-á em paz, esquecereis o vosso tubo digestivo e acreditareis que estais de boa saúde. Erro fatal, mas que posso eu fazer? Tornaremos a ver-nos depois de amanhã.

 

Formiga infatigável, Gua partiu para tratar outro paciente.

 

E foi a vez do general Sepi aparecer diante do chefe de província.

- A vossa saúde, senhor?

 

- Há pior, mas creio que chegou o tempo da regeneração.

 

- Os meus ritualistas estão prontos - declarou Sepi. - A água de Abido está à vossa disposição.

 

- Vais precisar de um escriba assistente: por que não Iker? O general estava hesitante.

 

- Não será um pouco cedo de mais?

 

- Alguma vez é cedo de mais para formar um ser cujo caminho foi traçado pelos deuses?

 

- Teria gostado de ter mais tempo para o preparar, o...

 

- Se ele é na realidade aquele que imaginamos - cortou Djehuti

- viver esse ritual despertá-lo-á mais para si próprio. Se nos enganámos, será apenas um fanfarrão a mais que quebrará os dentes nas suas próprias ilusões.

 

Sepi teria desejado proteger mais o seu melhor aluno, mas não podia fazer mais do que curvar-se.

 

Iker continuava a não ter o mínimo contacto com os seus camaradas, que tinham ciúmes dele por causa dos seus excelentes resultados. Nenhum duvidava que o estrangeiro era o aluno mais brilhante da aula, muito à frente do segundo. Não só detectava o sentido de textos difíceis com uma insolente facilidade, como ainda conseguia resolver qualquer exercício como se não tivesse nenhuma dificuldade. E o general Sepi acabava de lhe confiar a redacção de um decreto referente às modalidades de agrimensura depois da retirada da água da cheia.

 

Por outras palavras, Iker era nomeado escriba da província da Lebre e já não tardaria a deixar a escola para ocupar o seu primeiro posto. Depois da sua infeliz aventura, o rapaz não deixava nunca de interrogar o cozinheiro antes de cada refeição. Este, sabendo que seria considerado responsável por um novo incidente, provava todos os Pratos.

 

- Esta noite - avisou Sepi - vais jantar mais tarde. O teu material está pronto?

 

- Nunca me deixa.

- Então, segue-me,

 

Iker sentiu que não devia fazer qualquer pergunta. O general estava recolhido como um soldado prestes a travar um combate de incerto resultado.

 

Na margem oriental do Nilo, no topo de uma colina, tinham sido escavados os túmulos dos senhores da província da Lebre. De um dos lados dominavam o rio, do outro o deserto, no qual penetrava uma pista que serpenteava entre duas falésias.

 

 

Iluminada por numerosas tochas, guardada por dois soldados, a Morada de Eternidade preparada para Djehuti era impressionante, com o seu pórtico profundo suportado por duas colunas com capitéis de folhas de palmeira, a grande câmara rectangular e a pequena capela terminal.

 

Iker imobilizou-se no limiar.

 

- Ordenei-te que me seguisses - lembrou-lhe Sepi.

 

Com a garganta apertada e o andar hesitante, o rapaz penetrou no túmulo.

 

Djehuti estava em pé diante da capela do fundo. Envergando um simples saiote à antiga, parecia mais alto e mais corpulento do que o habitual.

 

De repente, ficou tudo na penumbra.

 

Dois ritualistas, transportando vasos, colocaram-se de um lado e outro do chefe de província. A última lâmpada acesa era a que o general Sepi segurava.

 

- Pronuncia estas fórmulas - pediu ele a Iker. - Pela tua voz, tornar-se-ão realidade.

 

O jovem escriba leu o papiro de um soberbo tom dourado.

 

- Que a água da vida purifique o Mestre, que reúna as suas energias e refresque o seu coração.

 

Os dois ritualistas ergueram os vasos por sobre a cabeça de Djehuti. Iker esperava ver sair água deles, mas ficou ofuscado pelos raios de luz que envolveram o corpo da idosa personagem.

 

Forçado a fechar os olhos, Iker julgou-se primeiro vítima de uma visão. No entanto, forçou-se a abri-los de novo, com risco de ficar cego.

 

Uma suave claridade envolvia agora Djehuti, que parecia ter rejuvenescido vários anos.

 

- Tu, que querias conhecer o Círculo de Ouro de Abido - disse o general Sepi - vê-o a funcionar.

 

Iker não fechara os olhos toda a noite.

 

Todos os pormenores da estranha cerimónia se tinham gravado na sua memória e procurava em vão compreender o significado das extraordinárias palavras pronunciadas pelo general Sepi.

 

É um facto que precisava de encontrar o rasto dos que tinham tentado suprimi-lo e descobrir a razão dos seus actos; mas também devia desvendar o mistério do Círculo de Ouro de Abido e tornar a ver a sublime sacerdotisa pela qual estava cada dia mais apaixonado.

 

Demasiadas tarefas, demasiadas tarefas pesadas e missões impossíveis para um jovem solitário e sem fortuna... Mas não para Iker! Com certeza que a dúvida, mesmo o desespero, tentariam mil e uma vezes submergi-lo. Competia-lhe rechaçar os seus assaltos e traçar um caminho onde ele não existia.

 

As provações e as dificuldades reforçavam-lhe a determinação. Se se mostrasse incapaz de as ultrapassar, seria a prova da sua indignidade. Então, a sua vida seria inútil.

 

- O escriba Iker é chamado ao palácio do chefe de província anunciou a voz de um arauto.

 

O interpelado vestiu-se à pressa, pegou no seu material e meteu-o num dos sacos que agora Vento do Norte podia transportar sem se fatigar.

 

Djehuti já estava instalado na mais confortável das suas cadeiras de transportadores.

 

- Vamos - ordenou.

 

Iker esperava ser incluído num grupo de escribas que seguiriam o seu senhor para registar as suas declarações.

 

Mas estava só e, durante alguns instantes, sentiu-se dominado pelo pânico. Como conseguiria ele, um principiante, substituir vários especialistas? Visto que não lhe deixavam escolha, não recuaria.

 

Djehuti seguiu ao longo do canal que atravessava a sua província, contemplou a zona verdejante e pantanosa reservada à caça e depois percorreu uma parte do solo agrícola, onde se encontrou com camponeses, jardineiros, vinhateiros e pastores. Visitou em seguida as oficinas de oleiros, de carpinteiros e de tecelões e depois conversou com padeiros e cervejeiros, aos quais recomendou que velassem pela qualidade da sua produção, em baixa nas últimas semanas.

 

A energia de Djehuti era surpreendente. Conhecendo cada um dos seus administrados, utilizava sempre a palavra justa e só formulava críticas construtivas. Em momento algum o chefe de província deu o mínimo sinal de fadiga.

 

O seu escriba mostrou-se à altura, embora o pulso lhe doesse à força de anotar as conversas.

 

Finalmente, Djehuti regressou ao seu palácio, onde matou a sede com cerveja leve, também oferecida a Iker, cujo trabalho estava já a consultar.

 

- Não te desembaraças nada mal - considerou. - Vais redigir um resumo que me servirá para verificar se as orientações propostas são na verdade seguidas. A discussão é importante, mas apenas os actos contam.

 

Um ritual é um acto?

 

É mesmo o acto supremo, visto que coloca no presente o que os deuses realizaram na primeira vez.

 

- O que vos aconteceu ontem à noite, senhor...

 

- Era uma espécie de regeneração, indispensável para um homem da minha idade sobrecarregado com pesadas responsabilidades. Tomaste consciência da riqueza desta província e da necessidade de trabalhar com afinco para a preservar? Ninguém aqui se insurge contra o seu trabalho. E se alguém faz batota, não demoro muito a identificá-lo. Há um homem que quer destruir este perfeito equilíbrio: o Faraó Senuseret. É nosso inimigo, Iker.

 

O jovem escriba ficou perturbado. O chefe de província não falava por acaso... Estaria a revelar-lhe assim o nome do que quisera a sua morte?

 

Djehuti podia mostrar-se satisfeito com a prosperidade da sua agricultura, mas a falta de informações provenientes da corte de Mênfis angustiava-o. Não demonstrava aquele isolamento que o Rei desconfiava da sua cumplicidade com os revoltosos de Siquém? Nesse caso, precisava de agarrar no seu bordão de peregrino e federar os outros chefes de província a fim de repelirem o inevitável ataque do Faraó.

 

Não era essa a opinião do general Sepi. Não acreditava naquela aliança circunstancial que, do seu ponto de vista, acabaria num rotundo fracasso, prejudicial ao conjunto dos confederados. Era preferível negociar directamente com Senuseret e tentar fazê-lo aceitar o ponto de vista de Djehuti.

 

Este hesitava.

 

E aqueles adiamentos, tão pouco conformes com o seu carácter, tornavam-no irritável.

 

Um ibis negro poisou perto de Iker e olhou-o fixamente. Depois, deu alguns passos antes de estacar e imprimir a marca das suas patas no chão. Com o bico, gravou o vértice de um triângulo assim formado, antes de levantar voo de novo.

 

- O que pensas disto? - perguntou Djehuti.

 

- Aprendi que se podia consumir com confiança a água que bebem os ibis, que nos transmitem a luz da origem traçando sinais. Eis um deles, senhor: o triângulo, primeira expressão do pensamento criador. Por outras palavras, criai em vosso redor algo de grande e as vossas preocupações desaparecerão.

 

- O teu professor formou-te bem. Podia ser essa a solução, com efeito.

 

Na mente de Djehuti acabava de surgir um incrível projecto. Se o conseguisse realizar, até mesmo Senuseret ficaria deslumbrado.

- O general Sepi falou-me do Círculo de Ouro de Abido - avançou Iker. - Gostaria...

 

- O general Sepi partiu em missão por tempo indeterminado. E tu vais ter muito trabalho. A partir desta noite, residirás no palácio onde tens um gabinete reservado. Reunirás o conjunto dos relatórios referentes aos pontos fortes e fracos da minha província e retirarás deles os elementos essenciais. Quero saber do que somos capazes em caso de conflito.

 

Instalado num assento de vime, Goela-Torcida acabava de devorar uma coxa de gazela, enquanto Shab, o Torto se consumia de inquietação contemplando as umbelas dos papiros que dançavam ao vento.

 

- Já esperámos o suficiente, Torto. Chegou o momento de nos pormos a caminho.

 

Shab não tinha mais argumentos. Desta vez, ele próprio sabia que o Anunciador já não viria. Privado daquele chefe, tornaria a ser um medíocre ladrão sem futuro.

 

- Formamos uma boa equipa - considerou Goela-Torcida - e ninguém nos resistirá. A nós as ricas moradias do Delta! Esquece o passado, amigo, e a caminho para a fortuna.

 

Um grito de dor encheu o ar húmido do pântano.

- O vigia... o vigia foi atacado!

 

Os guerreiros formados por Goela-Torcida agarraram nas armas e espalharam-se para caírem sobre o agressor, cercando-o.

 

O aparecimento do Anunciador fê-los estacar.

- Qual dos meus fiéis ousaria atacar-me?

 

- Vós... vós conseguistes escapar-lhes! - exclamou Shab, encantado.

 

- Ora esta - constatou Goela-Torcida.

 

- Ora esta... Haveis derrubado as paredes da prisão?

 

- Melhor ainda: os nossos adversários estão convencidos de que executaram o Anunciador. Para os Egípcios, eu já não existo. Dispomos portanto de uma vantagem considerável: poder agir na sombra sem que ninguém possa desconfiar de onde provêm os golpes.

 

Shab, o Torto bebia as palavras do seu guia.

 

- Não é necessário que continuemos a espalhar a revolta em Canaã, senhor?

 

- O Faraó Senuseret reagiu com o maior vigor e passou a controlar toda a região com o seu exército. A nova guarnição de Siquém é composta por verdadeiros soldados que reprimirão ferozmente qualquer tentativa de insurreição. Mas não é isso o mais grave. Ao atravessar povoados e aldeias, apercebi-me da cobardia dos seus habitantes.

 

São carneiros incapazes de se revoltarem contra o ocupante e de darem a sua vida para impor o remo do verdadeiro Deus. Apoiarmo-nos neles seria ilusório.

 

- Isso não me surpreende - declarou Goela-Torcida. - Nunca acreditei nesses parvalhões! Nós não temos medo.

 

- Tendes com certeza um novo plano - avançou Shab, inquieto.

- A aventura de Siquém foi muito útil - confirmou o Anunciador. - Então - interveio Goela-Torcida - começamos por uma quinta ou por uma moradia?

 

- Escolhe a melhor solução.

 

- Uma quinta isolada, com pouco pessoal. Temos de nos treinar. Quanto ao saque...

 

- Ficarás com tudo. Shab, cinco homens e eu iremos instalar-nos em Mênfis.

 

- Mênfis... Mas a cidade está cheia de polícias!

 

- Não cometeremos qualquer infracção. Pelo contrário, integrar-nos-emos na população como honestos comerciantes para recolhermos o máximo de informações. Preciso de conhecer muito melhor esse Faraó e os que o rodeiam para poder triunfar. Estabeleceremos como objectivo conseguir um aliado mesmo no interior do palácio.

- Impossível! - exclamou Goela-Torcida.

 

- Não há outra solução, meu amigo. Tu, graças às tuas expedições, enriquecerás e fornecer-me-ás a ajuda necessária quando eu a solicitar. E nunca te passará pela cabeça trair-me, não é verdade?

 

O olhar do Anunciador era mais terrível do que o de um demónio do deserto.

 

Goela-Torcida teve a certeza que o homem com o turbante detectava as suas intenções e que não tinha quaisquer hipóteses de o enganar. O Anunciador poisou-lhe a mão no ombro e ele teve a impressão que garras de ave de rapina se cravavam na sua carne.

 

- Tinhas um destinozeco de ratoneiro e ofereço-te uma estatura de assassino que aterrorizará um país inteiro. Pára de te comportar como um miserável salteador e compreende que o exercício do poder supremo repousa em duas bases: a violência e a corrupção. Serás o primeiro, Shab o segundo. A sorte recompensar-te-á, meu fiel amigo, e poderás ter o que desejares. Mas tens de ser paciente, só atacar com máscara e avançar a passos comedidos.

 

Pela primeira vez, Goela-Torcida ficou verdadeiramente convencido com o discurso do Anunciador. Aquele homem era um verdadeiro chefe militar que sabia conceber e impor uma estratégia. Obedecer-lhe era uma força, não uma fraqueza.

 

- Aceito - decidiu Goela-Torcida.

 

Sob o olhar crítico do grande tesoureiro Senankh, os especialistas distribuíam indicações ao pessoal encarregado de limpar os canais e consolidar os diques com Vista à próxima cheia. Considerando a vastidão da tarefa, tinham sido agregados camponeses ao trabalho que consistia em retirar para as bordas a terra que resvalara, raspar o fundo das vias de água e dos reservatórios e tapar as fendas. O forte calor dejunho tornava o trabalho penoso, mas todos tinham consciência da sua importância. Devia estar tudo preparado a fim de recolher o máximo de água que serviria, até à próxima cheia, para a irrigação dos campos e dos jardins. Outras equipas faziam reservas de madeira seca para o Inverno, outras ainda enchiam jarras com frutos secos, recurso alimentar indispensável durante os primeiros dias da inundação, no decurso dos quais o Nilo não seria navegável. Obrigados a viver em autarcia, algumas aldeias tinham de preocupar-se com a alimentação dos seus habitantes.

 

Aparentemente, tudo corria bem. Mas Senankh esperava uma informação capital proveniente do Sul.

 

Foi um correio do exército que lha proporcionou. O rosto daquele apreciador da boa vida alterou-se. Ele, que se preparava para saborear um suculento almoço, ficou sem o mínimo apetite.

 

Com um passo mais rápido do que o habitual, dirigiu-se ao ministério dos Trabalhos do Faraó, onde o seu colega Se-hotep interrompeu as consultas para o receber de imediato.

 

Senankh anunciou-lhe a má notícia.

 

Devemos prevenir Sua Majestade ou mais vale ocultar-lhe a verdade?

 

- Tens razão em fazer essa pergunta - considerou Se-hotep.

 

Se informarmos o Rei, não ficará inactivo e correrá provavelmente riscos imprudentes. Mas somos membros do seu conselho e calarmo-nos seria um erro grave.

 

- Também é a minha opinião.

 

Os dois ministros solicitaram portanto audiência. Senankh tomou a palavra.

 

- Diversas observações confirmam, Majestade, que os cíclames estendem até ao mais longe possível as raízes a fim de captarem água. Este fenómeno não deixa subsistir nenhuma dúvida: a cheia vai ser muito fraca. Por outras palavras, depois de três anos médios que não nos permitiram reconstituir as nossas reservas de cereais, arriscamo-nos a passar fome.

 

- Esse desastre não acontece por acaso - considerou Senuseret.

- A acácia de Osíris, em Abido, está a morrer; o senhor da cheia demonstra-nos assim o seu descontentamento. Devo ir a Elefantina para o venerar e restabelecer a harmonia.

 

Era essa precisamente a decisão que os dois ministros receavam.

- Majestade - lembrou Senankh - a região não é segura. O chefe dessa província é um opositor determinado que dispõe de uma milícia cuja ferocidade é conhecida. Além disso, para chegar a Elefantina, tereis de atravessar diversas regiões hostis. O vosso barco será com certeza atacado.

 

- Achas que subestimo esses perigos? Há outro, muito mais grave: a fome. Sejam quais forem os riscos, devo tentar evitá-la.

 

- Nesse caso, Majestade - propôs Se-hotep - é necessário mobilizar a totalidade das vossas tropas.

 

- Não podemos de forma alguma deixar desguarnecida a região de Canaã. Apenas uma forte presença militar manterá a paz que restabelecemos. Contentar-me-ei com uma flotilha formada por embarcações ligeiras. Que esteja pronta para partir o mais depressa possível.

 

O general Nesmontu seleccionara pessoalmente os vinte barcos e as respectivas tripulações, mas esta expedição desagradava-lhe muito e não se privou de o dizer ao soberano, que o ouviu com atenção.

 

- Acreditamos, Majestade, que o vosso novo aliado Uakha não seja um hipócrita e que permaneça neutral. Não é uma razão para esquecer os outros cinco! Em primeiro lugar, o grupo dos três: Khnumhotep, Djehuti e Ulch. Bem podem ter hotep, "a paz", no seu nome, mas só pensam em fazer engrossar as suas milícias. Por sorte, são de tal forma ligados aos seus privilégios familiares que se revelam incapazes de se unir. Supondo que passásseis esse obstáculo, esbarraríeis com Uepuauet, o chefe de província de Assitit. Um verdadeiro guerreiro, que não hesitará em lançar-se numa ofensiva assassina! Se, por milagre, chegássemos à Vista de Elefantina, faltaria o pior, Sarenput, com os seus fortes bandos armados de núbios mais ferozes do que feras. Espero ter sido claro, Majestade.

 

- Não terias podido ser mais, general. Os meus barcos estão prontos?

 

- Mas, Majestade...

 

- Na nossa existência há um instante em que um ser humano, seja qual for a sua posição, deve provar o seu verdadeiro valor. Para mim, chegou esse momento e todos o sentem. Ou eu salvo o Egipto da fome, ou não sou digno de o governar.

 

- Sabeis no entanto que não temos nenhuma hipótese e que esta expedição terminará num desastre.

 

- Se o vento do norte nos for favorável e os nossos marinheiros hábeis, beneficiaremos de uma vantagem que não é de desprezar: a rapidez.

 

- Escolhi os melhores. E o medo de morrer torná-los-á ainda mais eficazes.

 

Como ordens eram ordens, o velho general não hesitou mais. E sob o seu comando, ninguém recuava.

 

Medés sofria de diarreias que não eram devidas nem ao calor nem à alimentação, mas ao seu receio de ver surgir barcos animados de más intenções. À ideia de ser trespassado por uma flecha ou trucidado por uma espada, os seus intestinos soltavam-se. E não era a presença de Sobek, o Protector que o tranquilizava. Apesar das suas competências, o que poderia ele fazer face a um ataque massivo dos chefes de província?

 

Medés imaginara de outra forma a sua primeira participação oficial numa viagem real; precisava no entanto de fazer boa figura sem formular a mínima crítica a propósito daquela louca aventura onde pereceria a totalidade do governo do Egipto.

 

- Isso vai mal? - perguntou-lhe Se-hotep, o portador do selo real, com um sorriso malicioso.

 

- Sim, sim, mas este tempo pesado dá-me volta ao estômago.

- Na minha opinião, não deve tardar a estalar uma tempestade.

- Então vamos precisar de acostar. Os nossos barcos não são suficientemente robustos para suportar a cólera do Nilo.

 

- É verdade. Bebei um pouco de cerveja morna e comei pão seco, que acalmarão os vossos espasmos.

 

No momento em que a flotilha abordava a primeira zona perigosa, o céu desabou. Rasgaram-se relâmpagos, o trovão rugiu com uma violência pouco habitual.

 

A bordo da nave real preparava-se a manobra de acostagem.

- Continuemos - ordenou Senuseret.

 

- Majestade - objectou o general Nesmontu - seria demasiado arriscado!

 

- É a nossa melhor hipótese de passar o obstáculo. Os marinheiros que escolheste não são os melhores?

 

Aterrado, Medés notou que o barco da frente continuava no meio do rio e enfrentava a tempestade, imitado pelos que o seguiam. Quase a desmaiar, refugiou-se na sua cabina para não assistir ao naufrágio.

 

Ondas furiosas fizeram gemer os cascos, os mastros vergaram quase até ao ponto de ruptura, as amuradas foram arrancadas. Dois marinheiros caíram à água e ninguém os pôde socorrer.

 

Senuseret manobrava pessoalmente o leme. Muito direito, dotado de um excepcional poder de concentração, enfrentou sem fraquejar a cólera de Set.

 

Quando a luz atravessou as espessas nuvens negras, o Nilo começou a acalmar e o Rei confiou de novo a barra do leme ao capitão.

- Querendo destruir-nos - observou Senuseret - Set ajudou-nos. Que lhe seja feita uma oferenda.

 

O monarca acendeu uma braseira sobre a qual queimou uma figuinha de terracota representando um orix macho trespassado por uma faca. No coração do deserto, o espantoso quadrúpede era capaz de resistir aos mais fortes calores. Não comunicaria ao Rei um pouco dessa virtude?

 

- Passámos - constatou o general Nesmontu. - Três chefes de província já não têm possibilidade de intervir!

 

Aquele optimismo foi de curta duração.

 

- Agora - anunciou - há Assitit e esse belicista do Uepuauet. Há que prever um combate feroz.

 

Caía a noite quando a flotilha abordou a segunda zona perigosa. Depois de vários dias de navegação ininterrupta, os organismos estavam fatigados. E ninguém se teria arriscado a navegar na escuridão, sobretudo naquele período em que os caprichos do rio podiam ser tão temíveis como os hipopótamos.

 

- Proponho dois dias de repouso para preparar o confronto sugeriu Nesmontu.

 

- Continuamos - decidiu Senuseret. O velho general engasgou-se.

 

- Se nos iluminarmos com o número de tochas indispensável, a milícia de Assiut localizar-nos-á facilmente!

 

- Por isso as tochas permanecerão apagadas.

- Mas, Majestade...

 

- Eu sei, Nesmontu. Forçar o destino é a única solução.

 

À proa do primeiro barco, Senuseret deu as indicações de velocidade e direcção. Naquela noite de lua nova, a tarefa revelou-se particularmente difícil. O Faraó não cometeu nenhum erro, nenhuma actividade contrariou a sua acção, e a flotilha deslizou em águas serenas.

 

Nesmontu estava muito orgulhoso por servir um homem da têmpera de Senuseret. É certo que faltava fazer o mais difícil, mas a reputação do monarca não cessava de crescer entre os soldados e os marinheiros. Comandados por um tal chefe que participava pessoalmente na acção, que tinham a temer?

 

No entanto, o espectáculo que os viajantes contemplavam tornavam-os sombrios.

 

À aproximação de Elefantina, as margens estavam fendidas. Homens e animais sofriam com um calor sufocante, as culturas queimadas pelo sol clamavam pela cheia. Os burros continuavam a trabalhar, transportando sacos de cereais de uma aldeia para a outra, enquanto os camponeses terminavam a debulha. Cada passo, cada gesto exigiam pesados esforços.

 

- Majestade - constatou Nesmontu - fomos detectados.

 

O general apontou um núbio, empoleirado no alto de uma palmeira e fazendo grandes gestos dirigidos a um colega colocado um pouco mais longe. De árvore em árvore, o anúncio da chegada de barcos desconhecidos chegaria rapidamente ao chefe de província Sarenput.

 

- Não seria sensato pormo-nos de capa e afinarmos a nossa estratégia? - perguntou Nesmontu.

 

- Continuamos.

 

O vento tinha caído, os remadores avançavam com lentidão, o coração dos soldados batia com mais força. Um embate com a milícia local, numerosa e bem armada, não teria nada de agradável. Sem um milagre, o combate estava perdido de antemão.

 

Depois de um período de relativa tranquilidade, no decurso dos quais a sua saúde se restabelecera, Medés sentia de novo dolorosas contracções abdominais. A milícia de Sarenput: era conhecida pela sua crueldade.

 

E se a inevitável derrota de Senuseret, inconsciente da superioridade do seu adversário, se transformasse em vitória para Medés? Bastar-lhe-ia saltar para o cais no momento certo, render-se aos soldados de Sarenput, jurar-lhe fidelidade, revelar os segredos da corte de Mênfis e propor uma aliança.

 

Com os nervos à flor da pele, Sobek preparava-se para defender o seu Rei até ao sacrifício da própria vida. Antes de poder aproximar-se dele, o inimigo sofreria tais perdas que talvez acabasse por recuar. Em todo o caso, mais valia acreditar nisso.

 

Se-hotep parecia tão descontraído como um convidado para um banquete tão prodigioso a que não era possível faltar sob nenhum pretexto. Quem o observasse, como poderia imaginar que o medo o roía por dentro?

 

- Ei-los, Majestade - anunciou o general Nesmontu, com expressão grave.

 

O chefe de província Sarenput não encarara superficialmente a ameaça, visto que a totalidade dos seus barcos se distribuía no Nilo.

 

- Não pensava que tivesse tantos - lamentou o velho general.

- A sua província é a mais vasta do Alto Egipto. Não governa Saretiput as suas riquezas da melhor forma? Eis mais um excelente administrador que não percebeu o essencial: uma boa gestão não basta para manter o elo vital entre o céu e a terra de que o Faraó é o garante.

 

- Se for necessário, Majestade, combateremos. Mas será verdadeiramente necessário fazermo-nos massacrar?

 

O Faraó Senuseret viu aproximar-se o barco do chefe de província Sarenput, que se mantinha à proa. O rosto largo, a testa baixa, os olhos afastados, os pómulos salientes, a boca firme e o queixo saliente, o senhor do lugar tinha a musculatura de um homem de acção, implacável e enérgico. Sobre o peito, um amuleto em forma de nó mágico preso a um fio de pérolas.

 

Sem hesitar, subiu a bordo da nave real.

 

- Majestade - declarou em voz irritada - lamento não ter sido oficialmente informado da vossa visita. já que vos haveis deslocado pessoalmente, suponho que o motivo desta viagem seja de primordial importância. É por isso que vos convido a seguir-me até ao meu palácio, onde conversaremos ao abrigo de ouvidos indiscretos.

 

O Rei aquiesceu.

 

Sarenput regressou ao seu barco e o cortejo tomou a direcção do cais principal de Elefantina.

 

- Recusai - aconselhou o general Nesmontu. - Em terra será impossível defender-vos. Trata-se sem dúvida de uma cilada. Senuseret permaneceu silencioso até à acostagem.

 

- Que ninguém me siga - ordenou o Rei ao descer a passarela. Enquadrado por milicianos de Sarenput, que o monarca ultrapassava uma cabeça em altura, foi acolhido no limiar do palácio pelos dois cães do chefe de província, um macho negro, elegante, de cabeça esguia e longas patas, e uma fêmea muito mais pequena, bem gorducha, de mamilos proeminentes.

 

- Chama-se Gabela informou Sarenput e goza da protecção do Bom Companheiro, que olha por ela como se fosse sua mãe.

 

Bom Companheiro aproximou-se do Rei e lambeu-lhe a mão. Confiante, Gabela esfregou-se na perna do soberano.

 

- É raro que os meus dois cães se mostrem tão amáveis com um desconhecido - espantou-se Sarenput.

 

- Não sou um desconhecido, mas o Faraó do Alto e do Baixo Egipto.

 

Durante um breve instante, Sarenput sustentou o olhar do Rei.

- Entrai, Majestade.

 

Precedido pelos dois cães, que lhe mostraram o caminho, Senuseret penetrou num sumptuoso palácio e chegou à sala de audiências de duas colunas pintadas com motivos florais onde se encontrava já Uakha, o chefe da província da Cobra.

 

A idosa personagem levantou-se e curvou-se.

 

- Se não destruí a vossa flotilha - explicou Sarenput - foi por causa da intervenção do meu amigo aqui presente. Ele está convencido que quereis evitar um desastre. Também pediu que não me opusesse à vossa tentativa para fazer nascer uma boa cheia.

 

É essa a minha intenção, Sarenput.

 

Permiti que seja sincero, Majestade: esse argumento não passa de uma fábula! Na realidade, estais aqui para impor o vosso jugo sobre a minha província.

 

- Apenas com vinte barcos ligeiros? Sarenput ficou atrapalhado.

 

- Admito que é pouco, mas...

 

- Comecemos pelo essencial: Maet, a eterna Regra de vida. É ela que cria a ordem do mundo, a das estações, a exactidão e a justiça, o bom governo, uma economia harmoniosa. Graças a Maet, os nossos rituais permitem que as forças divinas permaneçam na nossa terra. Quem quer respeitar Maet deve seguir o caminho da rectidão em pensamento, em palavras e em actos. És desses, Sarenput?

 

- Como podeis duvidar, Majestade?

 

ei - Nesse caso, juras pela vida do Faraó que és inocente do crime cometido contra a acácia de Osíris, em Abido?

 

O espanto do chefe de província não parecia fingido.

- O quê... o que se passa lá?

 

Abateu-se uma maldição sobre este país e a acácia está a morrer. Também o líquido vital distribuído por Osíris se arrisca a faltar-nos e a condenar o país inteiro à fome. É aqui, em Elefantina, que nasce a nascente secreta do Nilo. É aqui que repousa uma das formas de Osíris. Foi inevitavelmente aqui que a sua paz foi perturbada para impedir a cheia de espalhar os seus benefícios.

 

O raciocínio do monarca abalou Sarenput, que no entanto se recusou a admiti-lo.

 

- É impossível, Majestade! Ninguém ousaria abordar o território de Biggeh, nenhuma presença humana ali é admitida. Os meus milicianos fazem uma boa guarda e a sua vigilância não foi iludida.

 

- Estou convencido do contrário e o meu dever consiste em restabelecer o circuito da energia que foi interrompido. Permite-me livre acesso à ilhota.

 

- Os guardiães do outro mundo fulminarvos-ão!

- Corro o risco.

 

Compreendendo que aquele Rei com físico de colosso não cederia, Sarenput aceitou partir com ele e Uakha para Biggeh. Depois de ter seguido ao longo da ilha de Sehel, em frente da qual se estendiam as vastas pedreiras de granito, o chefe de província imobilizou-se ao pé da primeira catarata, um caos rochoso impossível de franquear naquela época do ano. Dali partia uma estrada de portagem, protegida por um muro de tijolos. Ligava os embarcadouros situados nos extremos norte e sul da catarata.

 

- Nada mais eficaz do que esta barreira para controlar as mercadorias provenientes da Núbia - declarou Sarenput com orgulho. As taxas cobradas pelos meus agentes da alfândega contribuem para a riqueza da região.

 

Vendo que o soberano estava muito concentrado na sua tarefa para se interessar por pormenores militares, o volúvel notável, um pouco vexado, refugiou-se no mutismo.

 

Uma embarcação ligeira franqueou a curta distância que separava a margem da ilhota proibida.

 

- Majestade, posso uma última vez desaconselhar-vos esta aventura?

 

- Não vejo os teus soldados.

 

- Vigiam a estrada de portagem, os postos de alfândega, os...

- Mas não a própria Biggeh.

 

- Quem ousaria pôr o pé nesse território sagrado de Osíris?

- No entanto, atacaram a acácia de Abido.

 

A embarcação atracou.

 

Um estranho silêncio envolvia o lugar sagrado. Nem o canto de um pássaro, nem mesmo um sopro de vento. O Rei penetrou num dédalo vegetal formado por acácias, jujubeiras e tamargueiras.

 

- Se Senuseret conseguir oferecer-nos a cheia abundante de que necessitamos, torno-me seu fiel servidor - jurou Sarenput.

 

- Recordar-te-ei a tua promessa - disse Uakha.

 

Abrigadas pelas folhagens, trezentas e sessenta e cinco mesas de oferendas, tantas quantas os dias do ano, estavam dispostas em redor de um rochedo. No interior, uma caverna denominada "A que abriga o seu senhor", isto é, Osíris.

 

Sobre cada mesa de oferendas, um vaso contendo leite. Todos os dias, o precioso líquido, proveniente das estrelas, era regenerado pelas forças criadoras que agiam longe do olhar dos humanos.

 

Cinco desses vasos, correspondentes aos cinco últimos dias do ano, especialmente dedicados a ísis e a Osíris, tinham sido quebrados. Senuseret compreendia por que razão a cheia seria catastrófica.

 

Alguém tinha violado o lugar sagrado e a energia deixara de circular. Procurando uma indicação para identificar o culpado, o Rei descobriu um pedaço de lã, material rigorosamente interdito aos sacerdotes egípcios, que apenas usavam linho. Quem ali viera ignorava os costumes rituais ou não lhes dava importância.

 

Ruídos de asas perturbaram a serenidade do lugar. Um falcão e um abutre poisaram no cimo do rochedo e olharam o intruso.

 

- Sou vosso servidor. Iluminai-me no caminho a seguir. O falcão levantou voo, o abutre permaneceu imóvel.

 

- Graças te sejam dadas, mãe divina. O que deve ser feito, sê-lo-á.

 

Sarenput não queria acreditar nos seus olhos. O Faraó ainda estava vivo.

 

- Agora - declarou Senuseret - conheço a raiz do mal.

 

 

- Sois capaz de o extirpar, Majestade?

 

- Ousarias pensar que a deusa abandonou o Faraó? Olha ao longe, Sarenput, e está atento à sua voz.

 

Primeiro não foi mais do que um ponto luminoso no horizonte, como uma miragem. Depois, foi-se tornando mais denso até tomar a forma de uma barca. E a frágil embarcação avançou lentamente em direcção à ilhota sagrada.

 

A bordo, um remador fatigado e uma jovem de incomparável elegância. Até mesmo Sarenput, que tinha como amantes núbias de uma beleza sem igual, ficou deslumbrado.

 

De que mundo vinha aquela aparição de formas perfeitas, rosto sereno, olhar tão luminoso que elevava a alma?

 

A jovem sacerdotisa envergava um longo vestido branco preso por um cinto vermelho debruado, em cima e em baixo, com galões amarelos, verdes e vermelhos. Uma peruca longa deixava-lhe as orelhas a descoberto. Nos pulsos, pulseiras de ouro e lápis-lazúli. Ao pescoço, um escaravelho de cornalina engastada em ouro.

 

- Quem é ela? - perguntou Sarenput, cativado.

 

- Uma sacerdotisa de Abido cujo auxílio me é indispensável respondeu o monarca. - Num ritual destinado a captar as boas graças da cheia, incarnou o vento do sul,

 

À popa, uma harpa portátil, um papiro enrolado e selado e uma estatueta de Hapí, o génio andrógino do rio.

 

- Preparai as oferendas - ordenou Senuseret aos dois chefes de província, antes de desaparecer de novo no labirinto vegetal, desta vez em companhia da sacerdotisa.

 

Em frente da caverna do Nilo, imobilizaram-se. Sobre o rochedo, o abutre e o falcão observavam-nos.

 

- ísis reencontrou Osíris - afirmou o Faraó - Ergue-se o último obstáculo, os frutos do perséa atingiram a maturidade, os canais podem ser abertos e cheios com a água nova. Que as nascentes do Nilo sejam generosas, que o falcão proteja a instituição real e que o abutre seja a mãe que vence a morte.

 

A jovem tocou a harpa de quatro cordas. Entre a caixa e a varinha uma peça de sicômoro tinha a forma do nó mágico de ísis. Uma cabeça da deusa Maet adornava-lhe a parte superior, velando assim para que o instrumento, tão difícil de tocar, emitisse uma harmonia tranquilizadora.

 

- Que o Faraó coma o pão de Maet e beba o seu orvalho - cantou ela com voz doce e em ritmo lento.

 

Na caverna, o solo moveu-se.

 

Apareceu uma imensa serpente verde que formou um círculo e engoliu a cauda.

 

- O ciclo do ano passado terminou - disse o soberano - e faz nascer o novo ano. Devorando-se a si próprio, o tempo serve de suporte à eternidade. Que a serpente das nascentes do Nilo seja a ama das Duas Terras.

 

O falcão e o abutre levantaram voo e traçaram grandes círculos protectores em redor do monarca e da sacerdotisa, que quebrou o selo do papiro, o desenrolou e penetrou na caverna.

 

Mergulhou-o num vaso em ouro. Virgem de qualquer inscrição, o documento foi dissolvido em poucos instantes.

 

A jovem apresentou o vaso ao rei.

 

- Bebo as palavras de força, inscritas no segredo da cheia, a fim de que incarnem pela minha voz e espalhem a sua energia.

 

Na presença de Sarenput, de Uakha, dos notáveis da província e de uma multidão atenta e recolhida, Senuseret realizou a grande oferenda à cheia nascente.

 

Lançou ao rio a estatueta de Hapi, impregnada do poder das nascentes secretas, um papiro selado, flores, frutos, pães e bolos.

 

No alto do céu, Sothis brilhava. Em todos os templos do Egipto tinham sido acesas lâmpadas.

 

já não era possível ter dúvidas: vendo o dinamismo do Nilo, que subia a toda a velocidade, a cheia seria abundante.

 

- Hapi, tu cuja água é o reflexo do fluido celeste, sê de novo nosso pai e nossa mãe. Que apenas permaneçam emersas as colinas de terra, como na primeira manhã do mundo, quando tu saíste do Nun, o oceano de energia, para dar vida a este país.

 

Gritos de alegria saudaram esta última declaração de Senuseret, que se colocou à cabeça da procissão em direcção ao templo de Elefantina onde, durante vários dias, seriam pronunciadas as palavras de força destinadas a fortificar a cheia.

 

- Ele conseguiu - constatou Sarenput. - Este Rei é um verdadeiro Faraó.

 

- E tu - lembrou-lhe Uakha - deves manter a tua Promessa. Tal como a minha, a tua província está a partir de agora ao serviço de Senuseret.

 

Apesar das duras condições de trabalho, o jovem agricultor não se queixava. Com a ajuda da esposa e de três camponeses corajosos, mantinha uma pequena exploração suficientemente próspera para os alimentar, lhes permitir comprar móveis e roupas e até mesmo encarar uma ampliação. Dentro de um ano ou dois, contrataria pessoal e construiria uma nova casa. E se conseguisse valorizar o terreno pantanoso pegado ao seu campo, receberia uma ajuda do Estado.

 

Cheio de fome, o agricultor entrou na cabana de canas onde a mulher costumava depositar o cesto contendo o seu almoço.

 

Desta vez, nada.

 

Bem olhou para todos os lados, mas nada de cesto!

 

A princípio aborrecido, depois inquieto, saiu da cabana e esbarrou com um monstro peludo que o empurrou violentamente para trás.

- Nada de precipitações, meu amigo! Temos de falar.

 

O camponês tentou agarrar numa forquilha, mas um pontapé nas costelas fê-lo cair pesadamente. Sem fôlego, quis levantar-se. O punho de Goela-Torcida imobilizou-o.

 

- Calma, amigo. Se não, os meus homens matarão um dos teus empregados. Para começar, só para começar...

 

- A minha mulher... Onde está a minha mulher?

 

- Em boas mãos, podes ter a certeza! Mas enquanto eu não der ordem, ninguém lhe tocará.

 

- O que queres?

 

Um bom entendimento entre pessoas razoáveis - respondeu Goela-Torcida. - A tua quinta é muito isolada, precisa de protecção. Ofereço-te essa protecção. Nada mais terás a recear dos ladrões e trabalharás com toda a tranquilidade. Quando digo "ofereço-te", é quase verdade; como todo o esforço merece ser pago, receberei apenas dez por cento dos teus lucros.

 

O camponês revoltou-se.

 

- Isso duplicaria o peso dos meus impostos, que já é insuportável!

- A segurança não tem preço, meu amigo.

 

- Recuso.

 

- Como queiras, mas é um grave erro. Será cortada a garganta aos teus empregados e a tua mulher violada e queimada. E tu juntar-te-ás a ela na fogueira com os teus filhos. Compreenderás facilmente que a minha reputação assim o exige.

 

- Não façais isso, suplico-vos!

 

- Sabes, bom homem - disse-lhe Goela-Torcida, levantando-o, posso mostrar-me muito amável, mas a paciência não é a minha principal qualidade. Ou me obedeces sem hesitação, ou passo imediatamente à acção.

 

Vencido, o camponês concordou.

 

- Bem, eis-te finalmente razoável! Os meus homens e eu vamos residir durante alguns dias aqui para vermos como trabalhas e quais são os resultados exactos que devo esperar da nossa colaboração. Assim, não terás a tentação de me mentir. Depois da minha partida, a tua quinta será vigiada permanentemente. Se tiveres a infeliz iniciativa de te dirigires à polícia, nem tu nem os teus próximos sairão vivos dessa estúpida acção. A vossa agonia será longa, muito longa, e a da tua mulher particularmente atroz.

 

Goela-Torcida bateu no ombro do camponês.

 

- Agora, para selar o nosso contrato, vamos beber e comer! Depois de ter pensado em massacrar as suas vítimas e destruir-lhes as casas, Goela-Torcida tivera uma ideia muito melhor: a extorsão e a chantagem. Deixando atrás de si cadáveres e ruínas, acabaria por atrair a atenção das autoridades; mas extorquindo riquezas aos seus "protegidos", forçados ao silêncio, permaneceria na sombra ao mesmo tempo que multiplicava excelentes negócios.

 

Em breve o Anunciador estaria orgulhoso dele.

 

- Mênfis maravilhava Shab, o Torto. O porto, o mercado, as tendas de comércio, os bairros populares, as ruas fervilhantes de egípcios e de estrangeiros, tudo o fascinava! Os dias pareciam-lhe demasiado curtos, precisaria de meses, senão mesmo de anos, para descobrir os mil e um atractivos daquela capital agitada que nunca descansava.

 

O Anunciador parecia indiferente a esse tumulto. Deslizava pelo meio da população como um fantasma em que ninguém reparava. Graças ao seu poder de sedução, não tardara a arranjar um alojamento modesto ligado a uma loja fechada há várias semanas.

 

- Vamos tornar-nos honestos comerciantes - disse o Anunciador ao seu pequeno bando - e fazermo-nos estimar pela vizinhança. Misturem-se com os menfitas, arranjem amantes, frequentem as tabernas.

 

Esse programa estava longe de desagradar aos interessados, que limparam os compartimentos e os adornaram com esteiras, cestos e prateleiras.

 

O Anunciador levou Shab para o porto.

 

De repente, gritos de alegria brotaram por toda a cidade e as ruas encheram-se com uma multidão ruidosa que entoou cânticos à glória de Senuseret.

 

O Anunciador dirigiu-se a um homem idoso, um pouco mais calmo do que os seus concidadãos.

 

- O que se passa?

 

- Receávamos uma cheia insuficiente, mas o Faraó confraternizou com o génio do Nilo. O Egipto terá água em abundância, foi afastado o espectro da fome.

 

Trémulo de felicidade, o homem juntou-se aos foliões.

 

- Má notícia - reconheceu o Anunciador. - Não pensava que Senuseret ousasse pisar o território sagrado de Biggeh e aventurar-se até às nascentes ocultas do Nilo.

 

- Vós... vós haveis ido lá? - espantou-se o Torto.

 

- Como as cinco mesas de oferendas dos últimos dias do ano foram profanadas, a circulação da energia estava interrompida. Mas esse monarca teve a coragem de forçar as barragens e voltar a instalar a ordem no lugar da desordem. É um adversário duro que não será fácil vencer. A nossa vitória será assim mais bela.

 

Shab o Torto sentiu medo.

 

Medo daquele homem que não era realmente um, tendo em vista os seus múltiplos poderes. Nada, nem mesmo o mais sagrado, o deteria. Como se conhecesse perfeitamente Mênfis, o Anunciador penetrou sem hesitar numa sucessão de ruelas situadas por trás do porto e acabou por bater quatro pancadas espaçadas a uma pequena porta de uma casa arruinada.

 

Respondeu-lhe uma pancada. O Anunciador bateu outras duas, muito próximas.

 

A porta abriu-se.

 

Para entrar num amplo compartimento com chão de terra batida, o Anunciador e o seu discípulo tiveram de baixar a cabeça.

 

Três barbudos curvaram-se perante o seu mestre.

 

- Graças a Deus, senhor - disse um deles - estais são e salvo!

- Ninguém me impediria de cumprir a minha missão. Tenham confiança em mim e triunfaremos.

 

Sentaram-se todos e o Anunciador começou a pregar.

 

O seu discurso era repetitivo, martelava os mesmos temas com uma insistência lancinante: Deus falava-lhe, era o seu único intérprete, os descrentes seriam submetidos pela violência, os blasfemadores executados, as mulheres não deviam continuar a gozar as liberdades insuportáveis que lhes concedia o Egipto. Fontes de todos os males: o Faraó e a arte real de fazer viver Maet. Quando fossem finalmente aniquilados, a doutrina do Anunciador apagaria as fronteiras. A terra inteira seria apenas um único país regido pela verdadeira crença.

 

- Barbeiem-se - ordenou o Anunciador aos seus fiéis - vistam-se à maneira menfita, mergulhem nesta cidade. Seguir-se-ão outras instruções.

 

Fascinado pelo discurso do seu mestre, Shab, o Torto esperou que saíssem da casa para o interrogar.

 

- Senhor, estes homens não eram cananeus de Siquém?

- Eram, com efeito.

 

- Haveis decidido fazê-los vir a Mênfis?

- Estes, e depois muitos outros.

 

- Não haveis portanto renunciado a libertar Canaã!

 

- Nunca renuncio, mas precisamos de nos saber adaptar. Corroeremos a sociedade egípcia pelo interior sem que ela se aperceba. E será a própria Mênfis, a tolerante e colorida, que nos fornecerá o veneno destinado a matá-la. Precisaremos de muito tempo e paciência, meu fiel amigo, e deveremos também utilizar outras armas.

 

Shab, o Torto não chegara ainda ao fim das suas surpresas. Noutra ruela, no pórtico de uma bela moradia de um andar, o Anunciador dirigiu-se ao guarda numa língua desconhecida.

 

O guarda deu-lhe passagem, assim como a Shab.

 

Os dois visitantes foram recebidos por uma personagem calorosa e faladora, cujas formas rotundas traduziam o amor pela boa mesa.

- Eis-vos enfim, senhor! Começava a inquietar-me.

 

- Contratempos sem importância.

 

- Passemos à sala. O meu cozinheiro preparou bolos que deliciariam os palatos mais exigentes.

 

Shab, o Torto não se fez rogado, mas o Anunciador não tocou nas guloseimas.

 

- Como estão as coisas? - perguntou numa voz tão severa que a atmosfera se tornou imediatamente glacial.

 

- Vão avançando, senhor.

 

- Tens a certeza, meu amigo?

 

- Sabeis que não é fácil! Mas a primeira expedição partirá em breve.

 

- Não tolerarei nenhum incidente - precisou o Anunciador.

- Podeis contar comigo, senhor!

 

- Que ponto de chegada escolheste?

 

- A pequena cidade de Kahum. Tem muita importância aos olhos do Faraó Senuseret. Tenho lá bons contactos, os nossos homens instalar-se-ão ali sem grande dificuldade.

 

- Espero que não te enganes.

 

- Prefiro demorar mais tempo do que estava previsto, senhor, e não cometer nenhum erro. Vereis, Kahun é o lugar certo. Este Rei é um homem manhoso, que sabe rodear-se de precauções e não tem confiança nenhuma na corte de Mênfis.

 

O Anunciador esboçou um estranho sorriso.

 

Sim, aquela pista era boa. A sua rede trabalhara bem.

 

A tensão dissipou-se e o hospitaleiro indivíduo aproveitou Para engolir um enorme bolo embebido em sumo de alfarroba. Shab imitou-o.

 

- Suponho que o Faraó deve ter reduzido o número dos que o rodeiam - sugeriu o Anunciador.

 

- Infelizmente, sim, senhor. Segundo rumores que me parecem credíveis, a Casa do Rei engloba apenas um conselho restrito formado por fiéis.

 

- Sabes os seus nomes?

 

- Circulam muitos boatos... Diz-se mesmo que o Rei teria decidido quebrar o pescoço dos chefes de província que lhe são hostis, mas não acredito. Essa medida provocaria uma guerra civil.

 

- Não dispões de um contacto no palácio?

- Senhor, é muito delicado e...

 

- Preciso dele.

 

- Está bem, está bem... Vou tratar disso.

- Posso contar contigo, meu fiel amigo?

- Oh. sim, sem qualquer dúvida!

 

- Até breve.

 

Shab, o Torto devorou um último bolo. O pasteleiro do homem que os recebera era de qualidade inegável, mas este não o seduzira de forma nenhuma. A boa distância da bela moradia tão discreta, julgou-se obrigado a confiar as suas impressões ao mestre.

 

- Aquele homem não me agrada. Tendes a certeza que não vos mente?

 

- Este rico negociante é originário de Biblo, o grande porto do Líbano, e é um mentiroso nato. A sua profissão consiste em enganar os seus clientes, fazendo acusar os concorrentes, e em obter o máximo de benefícios da mínima transacção. Mas a mim, e só a mim, diz a verdade. Uma vez, uma única vez, tentou enganar-me e conserva disso a recordação na carne. Quando as garras do falcão se enterraram no seu peito para lhe arrancar o coração, arrependeu-se a tempo. As pessoas de Biblo ser-nos-ão muito úteis, meu bom amigo. Graças a elas, farei penetrar no Egipto numerosos partidários da nossa causa.

 

Shab, o Torto estava siderado.

 

Então o Anunciador manipulava várias redes e conhecia Mênfis como o bolso da sua túnica de lã!

 

Apesar do calor, nem vestígio de suor na sua testa. E enquanto Shab esvaziou um jarro de cerveja fresca, o Anunciador não bebeu uma gota e murmurou fórmulas que o Torto não compreendeu.

 

Iker dobrou a perna sobre a qual se sentou e levantou a outra à sua frente. Era uma das posições do escriba quando desejava consultar um papiro, e o rapaz tinha tanto trabalho que raramente abandonava o seu pequeno gabinete, situado na ala esquerda do palácio do chefe de província.

 

Iker queria verificar tudo pessoalmente. Não se contentava com os resumos preparados por outros escribas para lhe facilitar a tarefa e regressava sem cessar aos documentos originais.

 

Quase sempre se felicitava por isso! Tinham sido omitidos pormenores, havia números mal copiados, abordagens técnicas truncadas. Ao restabelecer a verdade sempre que possível, o investigador captava uma inquietante realidade: diversos funcionários tinham maquilhado os factos para fazer crer a Djehuti que a sua província era a mais rica e a mais poderosa do Egipto.

 

A realidade surgia menos brilhante. A milícia tinha demasiados mercenários, a polícia do deserto demasiados veteranos, algumas terras eram mal exploradas, várias quintas mal geridas. Em caso de conflito, Djehuti arriscava-se a ter falta de armas. Portanto o relatório de síntese que Iker tencionava redigir nos próximos dias seria bastante pessimista.

 

- Devias vir ver - aconselhou-lhe um colega.

- Não tenho tempo.

 

- Arranja. Um espectáculo como aquele não se pode perder. Intrigado, Iker saiu do palácio.

 

Os escribas, os guardas, os cozinheiros, as mulheres de limpeza e todos os outros membros do pessoal corriam para o Nilo.

 

Sobre uma ilhota coberta de erva, no meio do rio, uma centena de grous da Numidia, de plumagem cinzenta e patas finas, dançavam com graciosidade. Revoluteando, cadenciadamente, fingiam levantar voo e depois poisavam, ora girando sobre si próprios, ora formando uma espécie de ronda com os parceiros. Como todos, Iker admirou aquele bailado inesperado, saudado por gritos de alegria dos habitantes da província.

 

- Excelente presságio - comentou o seu vizinho, um escriba ligado à agrimensura. - Significa que o Faraó Senuseret conseguiu desencadear uma boa cheia. Não repitas isto, mas é a prova de que é um grande Rei.

 

Pensativo, Iker foi dar de comer ao seu burro, bem instalado à sombra de um telheiro.

 

- A situação está a ficar delicada - confiou a Vento do Norte.

 

Se a população toma partido pelo Faraó, a posição de Djehuti tornar-se-á insustentável. E o êxito de Senuseret é tão evidente que ninguém o pode ocultar.

 

O burro comeu placidamente, como se aquela notícia não o inquietasse.

 

Regressando ao seu gabinete, Iker reviu o rosto da jovem sacerdotisa. Várias vezes por dia, e em todos os seus sonhos, ela impunha-se-lhe com uma força crescente. Em vez de se esbaterem, os traços do seu rosto tornavam-se cada vez mais precisos, como se ela se encontrasse a seu lado.

 

Quando a encontraria de novo? Talvez durante uma cerimónia na qual ela participasse, mas como o saberia? E se ela pertencesse ao Círculo de Ouro de Abido, não precisaria de ir até à cidade santa, inacessível a um profano como ele? O seu amor parecia votado ao fracasso, mas não renunciaria antes de lhe ter falado. Ela tinha de conhecer os sentimentos que lhe inspirava, embora ele se sentisse incapaz de exprimir a sua intensidade.

 

Apesar da enigmática alusão do general Sepi, o Círculo de Ouro de Abido nada perdera do seu mistério. Era preciso compreender que a sua acção consistia em regenerar idosos como Djehuti inundando-os de luz? Havia seres que sabiam portanto manejar aquela energia em circunstâncias excepcionais.

 

O chefe de província sentara-se e lia o rascunho de Iker.

- Senhor, são apenas ainda algumas notas.

 

- No entanto, parecem-me muito claras: a minha administração não parou de me lisonjear e as Minhas forças armadas são incapazes de manter um conflito de envergadura.

 

Iker não se ocultou por trás dos seus pincéis.

- É verdade.

 

- Excelente trabalho, meu rapaz. No fundo, a dança dos grous ocorreu no momento próprio. Graças a ela, todos sabem que Senuseret fará reverdecer o país e o encherá de árvores de fruto. As Duas Terras alegram-se, anunciam-se tempos felizes visto que se manifestou um verdadeiro senhor. Por causa dele, a inundação verifica-se na hora certa, os dias são fecundos, a noite desfia horas felizes. O Faraó é a energia criadora, a sua boca exprime a abundância, cria o que deve ser, dá a vida ao seu povo. Hora após hora, sem repouso, realiza uma obra misteriosa que entretece simultaneamente a natureza e a sociedade. É o soberano da grandeza de coração; se agir com rectidão, o país será próspero.

 

- Tudo isso significa... que reconheceis a autoridade do Rei Senuseret e que a vossa província se torna sua fiel servidora?

 

- Não seria possível dizê-lo melhor, Iker.

- Quer dizer que não haverá guerra?

 

- Com efeito.

 

- Alegro-me, senhor, mas...

 

- Mas ficas surpreendido com uma decisão tão rápida, não é verdade? É porque não aprecias no seu justo valor o carácter sobrenatural do acto realizado por Senuseret. Como conseguiu ele controlar a inundação? Assumindo a função de Tot, o deus do conhecimento e o senhor dos escribas, o Rei provou que não ignorava nada dos sinais de força e que era capaz de proporcionar a água nova ao seu povo. Fica a saber que a torrente que alimenta a cheia é a efusão de Osíris. Brota do seu corpo misterioso, é o seu suor, as suas linfas, os seus humores. Quando a água da jovem cheia encher o primeiro vaso de oferenda, o Rei pode afirmar: "Osíris foi reencontrado". Mas teria fracassado sem o auxílio de ísis, que aparece no céu como a estrela Sothis, depois de setenta dias de invisibilidade. O casal primordial formou-se de novo, a primeira energia fecunda de novo as Duas Terras.

 

Sem ela, nada cresceria. A semente é uma matriz onde se reúnem os elementos fornecidos pelo Além. Fica a saber, Iker: a natureza inteira é revelação do sobrenatural. Visto que Senuseret pertence à linhagem dos Reis que transmitem este mistério, só me resta curvar-me diante dele e obedecer-lhe. Não, devo fazer melhor ainda!

 

Djehuti levantou-se.

 

- É a nossa vez de provar a Senuseret do que somos capazes. Sabes o que é verdadeiramente o ka, Iker?

 

- O génio protector que nasce com o homem e não o abandona, desde que ponha em prática os ensinamentos dos sábios.

 

- O ka é a energia que alimenta todas as formas de vida. Pela sua morte, um justo de voz' passa ao seu ka, herdado dos antepassados. Todas as oferendas são destinadas ao ka, nunca ao indivíduo. Um dos mais belos símbolos do ka é uma estátua viva, ritualmente animada. É por isso que vamos criar uma estátua colossal do ka real e oferecê-la ao Faraó. Encarrego-te da vigilância do estaleiro.

 

- O côvado de Deus mede as pedras - declarou o chefe escultor. - É ele que coloca o fio no solo, implanta os templos em rectidão, abriga à sua sombra qualquer construção sagrada onde o seu coração se desloca de acordo com o seu desejo. E o seu amor anima as oficinas.

 

O canto dos malhos e dos cinzéis elevou-se na pedreira onde iria ser talhado o colosso, suporte do ka.

 

Os carreiros tinham localizado os melhores leitos de pedra que cortariam sem a ferir; quanto aos escultores da província, trabalhariam sob a condução de um artesão iniciado nos mistérios. Devido ao tamanho impressionante do colosso - treze côvados de altura' e sessenta toneladas - a localização desta pedreira levantava um sério problema. Transportar a estátua gigante até ao Nilo exigiria pelo menos três horas, desde que a técnica adoptada fosse eficaz; depois, seria utilizado um barco de carga para a travessia e um novo transporte conduziria a obra-prima até ao seu destino, o templo de Tot. Um longo e difícil percurso que Iker estudara e voltara a estudar a fim de evitar qualquer surpresa desagradável. Escolher outra pedreira, mais próxima da capital, teria facilitado a tarefa mas Djehuti designara o material adequado e não aceitaria outro.

 

- Será a maior festa jamais organizada na minha província considerou Djehuti. - Correrão rios de vinho e de cerveja, a população estará em festa! Daqui a milhares de anos ainda se falará desse colosso. Os meus escultores criam uma verdadeira maravilha onde se aliam a força e a delicadeza. Quando Senuseret a vir, sentir-se-á subjugado.

 

- Não quero ser desmancha-prazeres - interveio Iker - mas as dificuldades do transporte encontram-se longe de estar resolvidas.

- Quantos homens previste?

 

- Vão ser precisos mais de quatrocentos. Dispô-los para formar uma equipa coerente é um verdadeiro quebra-cabeças.

 

- Menos de metade bastará - cortou Djehuti. - Cada um dos felizes eleitos terá a força de mil!

 

- Os vossos soldados não me facilitam a tarefa. Nenhum oficial aceita ceder-me o comando.

 

- Não escolhas apenas militares! Precisas também dos jovens mais robustos. E não esqueças os sacerdotes.

 

- Os sacerdotes, mas...

 

- O transporte desse colosso não é uma tarefa profana, Iker! Durante todo o percurso, os ritualistas deverão recitar fórmulas de protecção. Faz coabitar todo esse pequeno mundo e tornar-te-ás uma personagem respeitada. Deves ter uma única ideia em mente: fracasso proibido.

 

Iker felicitou-se por ter seguido um treino de corredor de fundo, pois não cessou de andar de um lado para outro dias inteiros a fim de seleccionar cento e setenta e dois homens' entre os inúmeros voluntários. Se o cálculo do jovem escriba estava correcto, era o número ideal para puxar cadenciadamente o grande colosso.

 

Quando a escultura gigante ficou terminada, Iker reuniu a equipa e dividiu-a em quatro filas. Uma das filas exteriores englobava os rapazes originários do oeste da região, a outra os do leste. As filas interiores eram formadas por soldados e sacerdotes.

 

Nota: Os pormenores referentes ao transporte do colosso são retirados das representações e dos textos do túmulo de Djehuti-hotep, em El-Bercheh. (N. da T.)

 

O colosso fora colocado sobre um trenó e solidamente preso por cordas que as quatro filas se preparavam para puxar, num ambiente de festa. Iker assegurou-se com os técnicos que estava tudo em ordem, mas não foi sem inquietação que deu o sinal de partida.

 

Os encarregados lançaram água na pista lamacenta.

- Puxem! - ordenou Iker.

 

Lentamente, o trenó arrancou. Bem humedecida, a pista de deslizamento facilitou o esforço dos cento e setenta e dois homens, orgulhosos por realizarem semelhante façanha. "O Ocidente está em festa, cantavam os jovens do oeste, os nossos corações ficam felizes quando vêem os monumentos do seu senhor."

 

Fora adoptado um bom ritmo, nem demasiado lento nem demasiado rápido. Havia soldados a agitar ramos de palmeira para refrescar os rebocadores.

 

Cem vezes examinado por Iker, o percurso fora aplanado ao máximo. Não havia qualquer má surpresa a recear.

 

O seu olhar ia de cada ponto de fixação das cordas a cada um dos membros do cortejo, depois regressava ao colosso, perfeitamente estável.

 

De repente, o escriba sentiu-se desfalecer.

 

Aquela bela harmonia parecia prestes a quebrar-se e ele não sabia porquê. Aparentemente, nada de anormaL Mas o seu instinto não o enganava.

 

Inquieto, correu em todas as direcções, em busca do perigo. Foi ao erguer a cabeça que compreendeu.

 

O olhar do colosso mudara! Os seus olhos de pedra exprimiam uma profunda insatisfação.

 

- Depressa - gritou - incenso!

 

Sem dúvida a estátua do ka exigia rituais.

 

Por sorte, um dos sacerdotes que seguiam a expedição trazia um incensório.

 

Iker saltou sobre os joelhos do colosso e estendeu as mãos em sinal de veneração. O sacerdote abriu o incensório de onde subiu um fumo odorífero que atingiu a boca, as orelhas e os olhos da estátua. A resina de terebintina, o senter, "o que torna diVino", perfumou a pedra enquanto o jovem escriba permanecia em oração, voltado para o caminho, pedindo-lhe que se abrisse.

 

O incensório continuou a lançar fumos até ao Nilo.

 

A travessia efectuou-se sem incidentes e o fim do percurso decorreu no meio de uma confusão indescritível. Nem um só habitante da província quisera faltar ao acontecimento e, como fora prometido por Djehuti, um gigantesco banquete ao ar livre coroaria aquele sucesso.

 

Quando o colosso ficou instalado em frente da fachada do templo, o chefe de província felicitou um Iker esgotado.

 

- Missão cumprida, meu jovem escriba! Mas não esqueças que cada hieróglifo, cada sinal e cada estátua, seja qual for o seu tamanho, ilumina um aspecto do mistério da criação. Hoje, é o ka real que está em lugar de honra. E tu repousarás mais tarde, porque deves agora redigir um relatório circunstanciado.

 

Aliadas às da cheia, as festividades do nascimento do colosso haviam-se traduzido, para a população, em duas semanas de férias durante as quais tinham bebido, comido, cantado, dançado e celebrado as divindades. Gozando de uma popularidade sem igual, o chefe de província Djehuti passava várias horas por dia na sua Morada de Eternidade, da qual uma das paredes, que em breve estaria terminada, seria consagrada a uma cena excepcional representando o transporte do colosso. Iker velava pela exactidão dos textos hieroglíficos.

 

O jovem escriba estava sem dúvida destinado às mais altas funções e era já alvo de intensos ciúmes. Instalados nos seus postos há já muito tempo, os funcionários experientes deploravam a inclinação do chefe de província por esse jovem solitário que não se ligava a ninguém e se encerrava num intenso trabalho. No entanto, ninguém ousava ainda atacá-lo, por um lado devido à protecção de Djehuti, e por outro tendo em conta as informações que Iker acumulara sobre todos eles. Fazendo o balanço das forças e das fraquezas da província, não se apercebera das insuficiências dos seus colegas? Uma palavra dele e choveriam as sanções. Portanto era melhor agradar-lhe, mas de que forma? Iker passava do gabinete ao quarto de dormir, do quarto de dormir ao gabinete, e não assistia a nenhuma recepção. E quando passeava com o burro, o seu ar rebarbativo dissuadia fosse quem fosse de o importunar.

 

Mesmo durante esses longos momentos de descontracção, o rapaz apenas pensava no seu trabalho. Nomeado para dirigir um grupo de técnicos muito mais velhos do que ele, sabia que o mínimo passo em falso lhe seria fatal. No entanto, a sua exigência de impecabilidade era apenas defensiva; alimentava-o como um fogo interior que iluminava o seu caminho.

 

De noite, sonhava com ela.

 

Era por ela que realizava todos aqueles esforços. Um dia havia de voltar a vê-la e não poderia comportar-se como um ignorante ou um incapaz. Se o destino lhe impunha aquela prova, não seria para que se confrontasse consigo mesmo e demonstrasse as suas capacidades, tornando-se um escriba de elite? Talvez não fosse suficiente aos olhos daquela que amava... Devia oferecer-lhe o melhor de si próprio a fim de lhe provar que só vivia por ela.

 

Havia também os pesadelos, com cabeças de assassinos, monstros, perguntas sem resposta e a necessidade de se vingar daqueles que tinham querido cortar o fio da sua existência. Permanecer na ignorância e na passividade era intolerável.

 

Surgiu uma hipótese louca no meio desses terríveis sonhos. Uma hipóteses tão odiosa que o jovem começou por repelí-la. Mas regressou, insistente, e Iker não conseguiu sufocá-la. Deixou-o de humor sombrio e taciturno, isolando-o ainda mais.

 

Por sorte, o burro percebia os seus mínimos estados de alma e ouvia as confidências do seu amigo sem se queixar. Quando Iker fazia uma pergunta, Vento do Norte respondia "não" levantando a orelha esquerda e "sim" a direita.

 

Nesse fiel companheiro o jovem escriba podia ter total confiança. Por isso formulou a hipótese que o roía.

 

Vento do Norte levantou a orelha direita.

 

médico Gua estava acabrunhado.

 

- Duas semanas de banquetes e o vosso fígado está mais inchado do que o de um ganso na engorda! Do ponto de vista médico, é um verdadeiro suicídio.

 

Djehuti encolheu os ombros.

- Sinto-me perfeitamente bem.

 

- Não tenho qualquer remédio para tratar a inconsciência. Se não tomardes uma vintena de pílulas por dia para tornar a pôr em ordem as vossas funções hepáticas, não respondo por nada.

 

O médico Gua fechou secamente a sacola de cabedal e abandonou a sala de audiências onde irromperam os responsáveis pelos diques e pela irrigação, cujos relatórios eram optimistas.

 

Sucedeu-lhes Iker, cuja gravidade surpreendeu os cortesãos que rodeavam Djehuti.

 

- Saí todos - ordenou o chefe de província. Imóvel, o jovem escriba fixava Djehuti.

 

- O que se passa, meu rapaz?

- Exijo a verdade.

 

O chefe de província enterrou-se no seu cadeirão e poisou as mãos nas coxas, dando um profundo suspiro.

 

- A verdade! Tens um coração suficientemente grande para a receber? Mas sabes sequer o que é um verdadeiro coração, o que serve de capela ao divino? Tudo é criado pelo coração, é ele que dá o conhecimento, que pensa e que concebe. É por isso que deve ser amplo, grande, deslocar-se livremente, mas também ser doce. E tu, Iker, mostras-te demasiado severo, tanto com os outros como contigo próprio! Se o teu coração está perturbado, torna-se pesado e deixa de poder acolher Maet. A energia espiritual já não circula e a tua consciência perde-se.

 

- Senhor, a minha aprendizagem de escriba ensinou-me a não confundir uma coisa com a outra e a tentar permanecer lúcido em todas as circunstâncias. Ora estou persuadido de que a vossa generosidade não é gratuita. Haveis uma dívida para comigo, não é verdade?

 

- A tua imaginação cega-te, meu rapaz. Reconheci o teu valor, e tudo. E foi o teu próprio mérito que te permitiu vencer.

 

- Não penso assim, senhor. Tenho a certeza que sabeis muito sobre os homens que me queriam matar e que procurais proteger-me fazendo de mim um dos escribas mais importantes da vossa província. Agora, quero saber tudo. Porque me escolheram como vítima expiatória, quem é o responsável, ainda sou o brinquedo de um demónio oculto nas trevas, onde fica o país de Punt cujo perfume salva o bom escriba?

 

- Fazes muitas perguntas, não achas?

- Não, não acho.

 

Exasperado, Djehuti agarrou-se aos braços do seu cadeirão.

- O que me obrigaria a responder-te?

 

- O amor pela verdade.

 

- E se essa verdade fosse mais perigosa do que a ignorância?

- Quase perdi a vida e quero saber porquê e por causa de quem. -Não preferes esquecer esses acontecimentos trágicos e apreciar uma existência tranquila no decurso da qual satisfarás os teus gostos pela escrita e pela leitura?

 

- Viver sem compreender, viver nas trevas, não será o pior dos castigos?

 

- Isso depende das pessoas, meu rapaz! A maior parte aprecia a ignorância e não deseja sobretudo sair dela.

 

- Não é esse o meu caso.

 

- Era a minha impressão! Uma última vez, Iker, não insistas em descobrir o que deve permanecer oculto.

 

Agora Iker sabia que a sua hipótese era correcta. O seu olhar insistente quebrou as últimas defesas do chefe de província.

 

- Como queiras, meu rapaz, mas arriscas-te a lamentá-lo. No que se refere ao país de Punt, não tenho qualquer informação a dar-te. Em contrapartida, ouvi falar de dois marinheiros chamados Olho-de-Tartaruga e Faca-Cortante.

 

Iker sobressaltou-se.

 

- Vós... vós haveis contratado esses dois?

 

- Não, passaram simplesmente pelo porto principal da minha província. O barco deles ficou no cais alguns dias.

 

- Nos arquivos não há qualquer vestígio da sua passagem! protestou o jovem.

 

- O documento foi destruído.

- Por que razão, senhor?

 

- Para evitar fantasmagorias.

 

- Fantasmagorias... Mas quais? Supor que seríeis o instigador dessa maquinação?

 

- Basta, Iker! - berrou Djehuti. - Não compreendes que sou teu protector? Era-me insuportável ver-te quebrar a cabeça contra teu próprio destino.

 

- Deveis dizer-me tudo, senhor.

- Ignoras a que te expões.

 

- Graças a vós, vou sabê-lo.

 

Djehuti deu um novo suspiro de exasperação.

 

Esses dois marinheiros pertenciam a uma tripulação que beneficiava de privilégios especiais. Desejas realmente conhecê-los?

 

- Tenho de vos arrancar as palavras uma a uma?

 

- Eu não era partidário de Senuseret. Ora, esse barco estava colocado sob a protecção do selo real e o capitão pediu-me que lhe concedesse uma breve estadia para reparação. Se lha recusasse, desencadearia um conflito. Proporcionando-lha, tornava-me vassalo de um monarca cuja soberania contestava. Decidi por isso que esse barco e a sua tripulação não existiam. E depois tu chegaste, com as tuas perguntas e a tua personalidade fora do vulgar. Não te pareces com os outros escribas, Iker. Arde em ti um fogo cuja natureza ainda desconheces. Por isso tentei arrancar-te ao teu passado.

 

- Para onde foram esses marinheiros?

 

- Partiram para a cidade de Kahun, à qual Senuseret dá uma importância especial. Ali são conservados os arquivos de Estado.

- Consultando-os, obterei respostas às minhas perguntas!

 

- Dirigires-te lá é desafiar o Faraó.

 

- Porque teria ele querido suprimir-me?

 

- Não sei, meu rapaz, mas sei que ninguém ataca um Rei autêntico sem correr para a sua perda.

 

- A verdade é mais importante do que a minha vida. Ajudai-me de novo enviando-me a Kahun. Em qualquer cidade do Egipto, um escriba vindo da província de Tot será bem acolhido.

 

- Pedes-me que te envie para a morte, Iker.

 

- A minha gratidão para convosco não tem limites. Se permanecer aqui tapando os olhos e os ouvidos, em breve me tornarei um mau servidor.

 

- Fazes cair uma pesada responsabilidade sobre os meus ombros.

- O único responsável sou eu. Convenci-vos a levantar o véu e a deixar-me prosseguir o meu caminho. Graças a vós, fiquei mais forte e sinto-me capaz de enfrentar essa nova provação.

 

Na ilha de Elefantina, o Faraó Senuseret e os seus próximos assistiam ao ritual celebrado pelo chefe de província Sarenput em honra de um sábio muito venerado, Hekaib. Uma nova estátua da augusta personagem, que vivera na VI dinastia, acabava de ser erguida na capela do seu túmulo. Permitiria ao seu ka permanecer presente na terra e inspirar o pensamento dos seus sucessores.

 

Nenhum incidente perturbara o bom entendimento que reinava entre o séquito do Rei e os milicianos de Sarenput. No entanto, Sobek, o Protector continuava nervoso e inquieto. Tal como o jovem Se-hotep, de olhos perpetuamente atentos, duvidava da sinceridade do seu hospedeiro e receava que ele preparasse uma cilada ao monarca. Quanto ao general Nesmontu, bater-se-ia até à morte para salvar a vida do seu soberano.

 

De acordo com o protocolo, Medés mantinha-se na retaguarda e tornava-se tão discreto quanto possível. Preparado para registar as declarações oficiais do Faraó, observava os dignitários da província e fazia-lhes perguntas sobre o seu funcionamento. Amável, conciliador, conquistava novas amizades.

 

- Majestade - declarou Sarenput - gostaria de vos mostrar a minha Morada de Eternidade. A vós e só a vós.

 

Sobek e Nesmontu morderam os lábios para não emitirem uma recusa baseada na mais elementar prudência. O que receavam acabava de acontecer: Sarenput revelava as suas verdadeiras intenções. Nas imediações do seu túmulo, homens contratados assassinariam Senuseret.

- Sigo-te - disse o Rei.

 

Impotentes, Sobek e Nesmontu interrogavam-se como poderiam intervir.

 

Posso servir-vos de remador? - propôs o elegante Se-hotep. É inútil - replicou Sarenput - eu próprio remarei. O exercício mantém-me em forma.

 

Insistir teria humilhado o chefe de província. Não esperaria uma provocação para dar aos seus milicianos a ordem de atacar?

 

Sobek compreendeu que Senuseret tencionava resolver sozinho aquele iMpasse. Apesar da sua força colossal, não se arriscava a sucumbir ao número?

 

Conduzido com vigor por Sarenput, uma bela barca em sicômoro tomou a direcção da falésia da margem oeste, na qual estavam escavados os túmulos dos chefes da província de Elefantina desde o tempo das pirâmides. Para os atingir, era necessário seguir por escadas e ladeiras bastante íngremes, ladeadas por muros.

 

A barca acostou com suavidade e os dois homens subiram lentamente, em silêncio. O poderoso Sol do sul não incomodava nem a um nem a outro.

 

Ao chegarem diante da Morada de Eternidade de Sarenput, voltaram-se para descobrir uma paisagem fascinante, composta pelo rio de um azul-cintilante, palmeirais de um verde-luminoso, areia ocre e casas brancas.

 

- Gosto deste lugar mais do que de qualquer outro - confessou Sarenput. - É aqui que espero vencer a morte e passar uma vida em eternidade. Um dos meus antepassados, que usava o mesmo nome que eu, mandou gravar estas frases: "Estava cheio de alegria ao conseguir atingir o céu, a minha cabeça tocava o firmamento, eu roçava o ventre das estrelas, sendo eu mesmo estrela, e dançava como os planetas." Não é o único destino invejável? Vinde, Majestade. Vinde ver o mais belo dos meus domínios.

 

Senuseret descobriu um túmulo talhado no grés cujo solo subia e o tecto descia para se reunirem num ponto invisível, para além da capela terminal. Na primeira sala, grandiosa e austera, seis pilares. Uma escada conduzia a uma passagem que ia dar à câmara de culto onde se abria um nicho contendo a estátua do ka de Sarenput.

 

Avançando naquele eixo que parecia um traço de luz, Senuseret admirou seis estátuas do chefe de província representado como Osíris.

 

- É esta a minha principal ambição, Majestade: tornar-me o fiel do deus da ressurreição. Precisais de uma prova mais evidente da minha inocência? Nunca teria tentado agredir a acácia de Osíris. E o que haveis realizado mostra que sois o depositário da sabedoria de que este país tem necessidade. Se me opusesse a isso, seria um criminoso. Podeis portanto considerar-me um servidor leal que nunca vos trairá.

 

Orgulhoso e determinado, Bom Companheiro avançava à cabeça do cortejo. À sua direita, tendo dificuldade em acompanhar o seu ritmo, Gabela arrastava a sua grande barriga e os mamilos pendentes. Mas por motivo nenhum a fêmea teria perdido aquela grande festa e, de cabeça erguida, não se deixava distanciar.

 

Os dois cães imobilizaram-se diante de uma esteia sobre a qual estavam gravados os nomes de Senuseret.

 

- Venerai o Faraó no mais profundo de vós mesmos - declarou Se-hotep. - Juntai o seu fulgor aos vossos pensamentos, propagai o respeito que lhe devemos testemunhar. É ele que dá a vida. Mostra-se generoso para com aqueles que seguem o seu caminho. Como Portador do selo real, confirmo que esta província pertence às duas Coroas.

 

Sarenput, cujo rosto estava iluminado por um largo sorriso, inclinou-se perante Senuseret.

 

Pela primeira vez desde há muito tempo, o general Nesmontu descontraiu-se. E o próprio Sobek, para seu grande espanto, sentiu uma impressão de segurança. O Rei acabava de conseguir uma nova vitória sem derramar uma gota de sangue.

 

- Devo regressar à ilhota de Biggeh para me assegurar de que a circulação da energia não volta a ser perturbada - disse o monarca a Sarenput. - Prepara a festa no decurso da qual anunciarei os trabalhos de embelezamento do grande templo de Elefantina.

 

Face à gruta das nascentes do Nilo, a jovem sacerdotisa viu sair de lá o Faraó.

 

- Para ti, chegou a hora de ir mais longe. Consentes?

- Estou pronta, Majestade.

 

Vais precisar de toda a coragem e firmeza de que um ser humano possa ser capaz. Tens a certeza que esta tarefa não excede as tuas forças?

 

- Farei o melhor que puder.

 

O monarca apresentou à jovem um uraeus em ouro maciço, incrustado de lápis-lazúli, turquesas e cornalinas. Esta cobra fêmea erguia-se na testa do Faraó para projectar uma chama tão poderosa que dissipava as trevas eliminando os inimigos de Maet.

 

- Toca neste símbolo, enche-te da sua magia e entrega-te à mão que te guia.

 

A cobra estava a queimar.

 

Ela sentiu que a sua energia passava no seu sangue e lhe proporcionava uma força nova.

 

O Rei penetrou na gruta e a jovem sacerdotisa encontrou-se só. Recolhida, saboreou o silêncio da ilhota sagrada sem recear o que aconteceria. Desde a infância desejara conhecer os Mistérios do templo e sabia que o percurso seria tão longo quanto difícil. Mas de cada prova ultrapassada nascera uma alegria imensa que conduzia os seus passos para mais longe, numa paisagem cada vez mais vasta. E nada perturbara esse percurso a não ser a aparição de um jovem escriba que ela soubera chamar-se Iker. Não deveria ter sido mais do que um simples encontro, mas não o conseguia esquecer, como se se tratasse de um próximo, quase de um íntimo, quando a verdade é que nunca mais voltaria a vê-lo.

 

Sete sacerdotisas envergando um longo vestido vermelho e segurando tamborins formaram um círculo em redor da jovem.

 

Depois avançou a superiora. Usava uma peruca em forma de abutre e o colar-menat, símbolo do nascimento em espírito.

 

A jovem sacerdotisa estremeceu.

 

Apenas a Rainha do Egipto, a soberana das Duas Terras, a que via Hórus e Set reunidos no ser do Faraó, podia usar aquele turbante ritual. O sinal hieroglífico do abutre significava ao mesmo tempo "mãe" e "morte", porque era preciso passar pela morte iniciática para reencontrar a mãe celeste de que a Rainha era a incarnação.

 

- Que as sete Hathor aprisionem a má sorte - ordenou ela. Os ritualistas desenrolaram uma faixa vermelha com a qual envolveram a jovem sacerdotisa.

 

- Chegou a hora de um novo nascimento - anunciou a Rainha. Foste iniciada na função de sacerdotisa pura', depois de música que faz brilhar o amor. Hoje, abordando novos mistérios, tornas-te uma Desperta'. As Veneráveis da morada do deus Ptah, as Velhas Mulheres da cidade de Cusae e as Hathor da morada de Atum, o princípio criador, são as tuas antepassadas. Vivem nas iniciadas aqui presentes e vão fazer-te ouvir a música do céu, das estrelas, do Sol e da Lua.

 

Elevou-se um cântico doce e profundo, ritmado pelos tamborins e os dois sistros manejados pela Rainha. Cada uma por sua vez, as ritualistas pronunciaram as sete palavras criadoras formuladas pela deusa Neith no momento do nascimento da luz, brotando por si própria da água primordial. Macho e fêmea, anterior a qualquer manifestação, inaugurara o processo de todos os nascimentos modelando as divindades.

 

- Sou tudo o que foi, tudo o que é e tudo o que será - disse a Rainha - e nenhum mortal levantou nunca o meu véu, a mortalha que protege o corpo de Osíris. É às iniciadas que compete tecê-la. Serás portanto conduzida à Morada da Acácia, onde as almas de Hathor e de Osíris se reunirão no teu coração. Sobre esta ilhota sagrada de Biggeh, toma a forma da caverna de Hapi, na qual a água celeste se junta à água terrestre. Atravessa esse espaço, que a tua vida seja alimentada da água fresca das estrelas e do fogo do conhecimento.

 

Depois de ter sido despida, a jovem penetrou na gruta onde contemplou a chama. Depois, percorreu o caminho das constelações, franqueou as portas do céu, banhou-se no lago de luz e nasceu de novo pela manhã com os primeiros raios do Sol nascente.

 

Uma sacerdotisa colocou-a sobre a base que simbolizava a deusa Maet e abanou-a com um leque de plumas de avestruz, outra expressão da mesma realidade, a fim de lhe proporcionar o bom vento que a conduziria até à cidade da felicidade.

 

Depois foi vestida com um vestido vermelho e adornaram-lhe o pescoço com um largo peitoral de pérolas simbolizando o seu re Uabet. Nascimento depois da travessia da região tenebrosa onde as forças de destruição não tinham conseguido retê-la.

 

A Rainha entregou-lhe uma paleta de escriba e o pincel para escrever; depois, poisou-lhe uma estrela de sete pontas sobre a cabeça.

- Tu, que és agora uma Hathor, deves tornar-te também uma Séchat, porque te foi atribuída uma função particular. Não poderás contentar-te em viver a tua iniciação em ti mesma e saborear a paz no interior do templo em companhia das tuas irmãs. Esperam-te terríveis provas e   vais precisar de conhecer as palavras de força a fim de enfrentar os inimigos visíveis e invisíveis. Ajudar-te-emos tanto quanto pudermos, mas só tu poderás obter a vitória.

 

Iker tinha partido antes da madrugada, tendo o cuidado de não despertar ninguém no palácio ainda adormecido. Na véspera entregara a Djehuti a totalidade das pastas de que se ocupara, permanecendo surdo aos seus últimos avisos.

 

O jovem escriba entrou no primeiro barco que se dirigia ao Norte. Levantou âncora ao nascer do Sol e aproveitou a corrente, tão rápida como caprichosa. O capitão, um bigodudo experiente, manobrava maravilhosamente o leme. A bordo, uma dezena de viajantes, um boi, gansos e Vento do Norte.

 

- Onde   vais, meu rapaz? - perguntou o capitão.

- A Kahun.

 

- Cerca de vinte horas de navegação, muitas paragens, uma noite de repouso se não houver incidentes... Quanto ofereces?

 

- Dois pares de sandálias de boa qualidade, uma peça de linho e um papiro de tamanho médio.

 

- Ena, pagas bem! Filho de família?

 

- Não, simples escriba da província da Lebre, ao serviço do senhor Djehuti.

 

- Um grande notável muito respeitado. Porque   vais a Kahun? As perguntas começavam a exasperar Iker, que tentou no entanto continuar a ser amável.

 

- Por motivos profissionais.

- Uma missão confidencial?

- Se quiserdes.

 

Kahun. é um lugar estranho. Não conheço, mas parece que está bem protegida e que é necessário ter autorizações para lá residir. Não deves ser um qualquer!

 

- Um simples escriba, já vos disse.

 

Não podendo suportar mais aquele interrogatório, Iker estendeu-se na sua esteira de viagem e fingiu adormecer.

 

O capitão discutiu com outro passageiro. Tornava-se evidente que era um incorrigível falador.

 

Tal como fora anunciado, as paragens foram numerosas. Um descia, outro entrava, iniciavam-se conversas, comiam-se bolinhos, cebolas e peixe seco, bebia-se cerveja doce e deixavam-se arrastar ao ritmo de um rio benevolente. Iker ouvia distraidamente as histórias de família, os relatos de processos e de querelas domésticas.

 

Uma nova paragem intrigou Vento do Norte, cujas orelhas se ergueram. Não era uma aldeia, mas um pequeno palmeiral atravessado por valas de irrigação. Entraram dois homens mal barbeados, de braços musculosos como remadores.

 

Remadores que se assemelhavam aos membros da tripulação que tinha querido suprimir Iker. Instalaram-se à popa.

 

Portanto, o capitão preparara-lhe uma armadilha! Troçara dele fazendo-lhe perguntas cujas respostas conhecia. Aqueles dois patifórios iam acabar o trabalho.

 

Iker aproximou-se do bigodudo que parecia ter adormecido.

- Não vigiais o rio?

 

- Um bom marinheiro dorme só com um olho.

 

- Deixai-me desembarcar o mais depressa possível.

- Ainda estamos longe de Kahun!

 

- Mudei de opinião.

 

- Não sabes o que queres, meu rapaz. Onde queres ir realmente?

- Deixai-me desembarcar.

 

- Não tenho qualquer paragem prevista de imediato. Se insistes, preciso de um suplemento.

 

- Já vos paguei bem, não?

- Sim, mas...

 

- Uma esteira nova bastará?

 

- Se for realmente nova...

 

Iker deu-lhe uma das suas duas esteiras de viagem. Satisfeito, o capitão iniciou a manobra de acostagem.

 

Quando foi colocada a passarela, Iker e Vento do Norte iniciaram a descida. O jovem escriba estava convencido que os dois remadores não deixariam de os imitar.

 

Enganava-se. O barco afastou-se.

 

- Vamos ter de andar mais do que estava previsto - disse Iker a Vento do Norte. - Pelo menos, ninguém nos perseguirá.

 

O burro aprovou, Iker sentiu-se tranquilizado.

 

- Aqueles dois fulanos tinham realmente um ar sinistro. Depois do que me aconteceu, como não hei-de ser desconfiado?

 

Iker verificou que não faltava nada no seu material de escriba, enquanto o burro se regalava com cardos. Continuaram depois para norte, metendo por um carreiro que seguia ao lado dos campos de cultura.

 

- Há tantas perguntas que me obcecam! Talvez em Kahun obtenha respostas. Mas porque recusam falar-me do país de Punt? Djehuti apenas me contou uma parte da verdade. A menos que ele próprio esteja menos bem informado do que eu imagino. E quem me queria suprimir era o próprio Faraó! Que mal lhe fiz? Não sou ninguém, não ameaço o seu poder de forma nenhuma. No entanto, foi a mim que ele atacou. Se eu fosse razoável, fugiria e deixaria que me esquecessem. Mas é impossível renunciar a verdade, sejam quais forem os riscos. E quero voltar a vê-la. Se tenho desejo de lutar é por causa dela.

 

Foi Vento do Norte que decidiu os períodos de repouso e escolheu os lugares com sombra para descansarem antes de retomarem o caminho. Os dois companheiros apenas se cruzaram com camponeses, uns antipáticos, outros amáveis. Numa quinta, Iker redigiu diversas cartas dirigidas à administração, com a qual o proprietário estava em conflito. Em troca, recebeu comida.

 

Quando se aproximaram da rica e luxuriante província do Faium, o burro começou a zurrar com insistência.

 

Detectava sem dúvida qualquer perigo.

 

No topo de uma colina, um chacal. De patas bem direitas, cabeça esguia, fixava os intrusos que ousavam aventurar-se no seu território.

 

Com o pescoço erguido na vertical, soltou gritos estranhos que Vento do Norte ouviu com atenção. Em passo firme, dirigiu-se para o predador.

 

Iker compreendeu que os dois animais tinham falado um com o outro. Não era o chacal a incarnação de Anúbis, que conhecia todos os caminhos, neste mundo e no outro?

 

Regulando-se pelo andar rápido do seu guia que, no entanto, tinha o cuidado de não os perder, os dois companheiros chegaram à vista de Ra-henti, "a boca do canal", lugar marcado por um grande dique e uma comporta que regulavam o caudal de água fornecido ao Faium por um braço do Nilo. Graças aos trabalhos dos engenheiros de Senuseret II, a superfície das terras cultivadas aumentara e a irrigação fora controlada.

 

Diversos polícias barraram a passagem aos viajantes.

 

Zona militar interdita declarou um oficial. Quem és e de onde vens?

 

O meu nome é Iker. Sou escriba da cidade de Tot. O oficial esboçou um sorriso maldoso.

 

Vejamos! Tendo em consideração a tua idade, é perfeitamente credível.

 

- eu sou o general-chefe do exército do Rei. Tenho uma especialidade: detectar os mentirosos. Aqui entre nós, podias ter arranjado melhor.

 

É a verdade. Vou mostrar-vos um documento que vos convencerá.

 

No momento em que Iker abria um dos sacos transportados pelo burro, os arcos dos polícias retesaram-se e a ponta da espada curta do oficial picou-lhe os rins.

 

Nem mais um gesto! Querias tirar uma arma, hem? Ninguém vem por esta pista, excepto forças de segurança. Quem ta indicou?

 

Não ides acreditar!

 

Diz, mesmo assim.

 

Um chacal.

 

Tinhas razão, não acredito. Provavelmente, és emissário de um grupo que tenciona cometer roubos na região.

 

Inspeccionai vós mesmo os meus sacos de viagem! Apenas contêm o meu material de escriba. Sobretudo, mexei-lhe com cuidado.

 

Desconfiado, o oficial revistou as bagagens do suspeito. Ficou decepcionado por não descobrir nenhuma arma.

 

- És muito manhoso! E esse famoso documento?

 

- É um papiro enrolado e selado, dirigido ao governador de Kahun. O selo é o de Djehuti, chefe da província da Lebre.

 

- Se o quebrar, o governador despedir-me-á por violação de correio oficial. E se o deixar intacto, sou obrigado a acreditar na tua palavra. Mais uma bela esperteza, meu rapaz! Aposto que esse documento é um logro. Mas a mim ninguém me engana! Conheço bem os fulanos do teu género.

 

- Acabemos com esta comédia e conduzi-me a casa do governador de Kahun.

 

- Pensas que ele   vai perder o seu tempo a receber os delinquentes?

- Bem vedes que sou um escriba!

 

- A quem roubaste este material?

 

- Foi-me oferecido pelo general Sepi.

 

- Não conheço. De qualquer maneira, inventavas um nome qualquer! Porque não o de um general?

 

- Enganais-vos. Tudo o que vos digo é verdade.

 

- O que eu quero saber é se tencionavas agir só ou com cúmplices.

Iker começava a perder a calma e o outro sentiu isso.

 

- Nada de gestos impulsivos, meu rapaz! Caso contrário, enterro-te a minha espada no corpo e todos os meus subordinados testemunharão a meu favor.

 

Eram demasiado numerosos para que Iker os vencesse e não corria suficientemente depressa para escapar às flechas dos archeiros.

 

- Que o governador de Kahun quebre esse selo e leia essa carta de recomendação. Compreendereis então o vosso erro.

 

- Agora, ameaças!   Vais passar muito tempo na prisão.

- Não tendes o direito de me encarcerar.

 

- julgas... Ponham-lhe as algemas de madeira.

 

Três polícias precipitaram-se sobre o jovem escriba e atiraram-no ao chão. Quando o levantaram, tinha as mãos presas atrás das costas.

- O que ides fazer do meu burro?

 

- Um belo animal, sadio e forte! Saberei como utilizá-lo.

- E o meu material?

 

- Trocá-lo-emos por roupa.

- Não passais de um ladrão!

 

Não invertas os papéis, meu rapaz! O ladrão és tu. E receberei felicitações por te ter interceptado a tempo. Quando tiveres passado alguns meses numa cela malcheirosa com patifes de toda a espécie, ficarás com a espinha mais flexível. Depois, vários anos de trabalhos forçados devolver-te-ão o gosto pelo esforço e pelo bom comportamento. Levem-no e que eu não o veja mais.

 

Iker não dirigiu a palavra aos esbirros que o conduziram à prisão situada fora da cidade. Atiraram-no para uma cela ocupada por três ladrões de aves, um jovem e dois velhos.

 

- O que é que tu fizeste? - perguntou-lhe o jovem.

- Nada.

 

- Eu também. E quantos gansos roubaste?

- Nenhum.

 

- Está descansado, podes falar. Estamos do teu lado.

- Há quanto tempo estás aqui?

 

- Há algumas semanas. Estamos à espera que o juiz resolva ocupar-se de nós. Infelizmente, não é nada meigo. Arriscamo-nos a apanhar bastante tempo, tendo em vista que não estamos aqui pela primeira vez. Quando passamos às confissões e fingimos estar arrependidos, mostra-se um pouco mais clemente. Se não estás habituado, vamos treinar-te.

 

- Sou um escriba e não roubei ninguém. Um dos velhos abriu um olho.

 

- Um escriba na prisão? Então deves ser um grande criminoso. Conta-nos.

 

Cansado, Iker sentou-se num canto da cela.

 

- Deixemo-lo tranquilo - recomendou o jovem.

 

Iker tinha perdido tudo, mas recusou-se a ceder ao desespero. Tinha caído numa nova cilada? Não, visto que fora guiado pelo chacal de Anúbis. Tratava-se apenas de um mal-entendido. Mesmo que fosse necessário tempo para o desfazer, o jovem escriba havia de conseguir.

 

A porta da cela abriu-se com estrondo.

 

- Tu - disse um polícia a Iker - levanta-te e segue-nos.

- Onde me levas?

 

- Já   vais ver.

 

Três guardas prisionais conduziram-no para fora da cadeia mas, para sua grande surpresa, não lhe colocaram as algemas de madeira.

- Estarei livre?

 

- A nossa missão é levar-te às autoridades. Se tentares fugir, abatemos-te.

 

A esperança de uma sorte melhor desfazia-se. Aquelas autoridades dar-lhe-iam uma pesada condenação, com certeza vários anos de trabalhos forçados nas minas de cobre ou num oásis do deserto do Oeste.

 

A um contra três, a jogada era possível. Seria necessário que os polícias se afastassem um pouco para que Iker tivesse uma oportunidade. Infelizmente, tratavam-se de bons profissionais que não lhe deram nenhuma hipótese.

 

Iker descobriu a cidade de Kahun, um quadrilátero de trezentos e noventa metros por quatrocentos e vinte, delimitada por uma muralha com 6 metros de altura e uma espessura de três. A porta de acesso principal encontrava-se no canto nordeste. Quatro militares ocupavam o posto de guarda.

 

- Trazemo-vos o prisioneiro.

 

- Encarregamo-nos dele - afirmou um oficial, que chamou dois dos seus homens.

 

Os soldados, mais corpulentos do que os polícias, estavam armados de lanças. Se as manejassem bem, o rapaz não iria longe. Iker resignou-se, portanto.

 

O quarteto seguiu por uma longa artéria de onde partiam ruas que iam dar aos dois bairros principais. Notava-se desde o primeiro olhar que o conjunto tinha sido traçado com cuidado e correspondia a um plano determinado. Naquele lugar estranho, onde reinava uma calma pouco habitual para uma cidade egípcia, Iker sentiu-se imediatamente à-vontade.

 

Poucas tendas, lindas casas brancas, uma limpeza exemplar: o rapaz teria gostado de descobrir os recantos de Kahun, mas os soldados obrigaram-no a apressar o passo.

 

- Vamos a despachar, o governador detesta esperar.

 

A imponente moradia do governador da cidade estava construída numa acrópole de onde dominava o aglomerado.

 

Mesmo se a imensa moradia de setenta divisões não ocupava menos de dois mil e setecentos metros quadrados, chegava-se lá por uma entrada estreita. De um lado e de outro, duas guaritas ocupadas por guardas.

 

- Aqui está o prisioneiro que o governador quer ver - anunciou o oficial.

 

- Um instante, vou prevenir o intendente.

 

À esquerda, um caminho lajeado ia dar às cozinhas, aos estábulos e as oficinas. O intendente, os soldados e Iker seguiram pelo da direita que terminava numa antecâmara. Dali partia um corredor que dava para um grande pátio fechado, ao sul, por um pórtico onde o dono da casa gostava de apanhar fresco. Ignorando a ala do domínio privado, que compreendia os quartos de dormir e as salas de água, o intendente guiou os seus hóspedes até à sala de recepções de duas colunas.

 

De cabeça baixa, o administrador do templo do vale do Rei Senuseret II ouvia uma severa reprimenda. Atrapalhado, o intendente deu meia volta.

 

- Aproxima-te - ordenou-lhe o patrão, um homem de baixa estatura, testa estreita e sobrancelhas espessas.

 

- Está aqui o prisioneiro que...

 

- Já sei - cortou secamente o governador. - Saiam todos daqui e deixem-me só com ele.

 

- Este patife pode ser perigoso - interveio o oficial - e...

- Cala-te e obedece.

 

Iker permaneceu sozinho em frente do notável, cujos olhos negros não prometiam nada de bom.

 

- Chamas-te Iker?

 

É esse o meu nome. De onde és originário? De Medamud.

 

E de onde vens? Da cidade de Tot. Reconheces isto?

 

O governador mostrou ao jovem o seu material de escriba espalhado sobre uma mesa baixa.

 

- Esses objectos pertencem-me.

- Onde os compraste?

 

- Foi o general Sepi que mos deu. Tive a sorte de ser seu aluno, depois de aceder à dignidade de escriba. O chefe de província atribuiu-me o meu primeiro posto.

 

O governador releu o papiro que lhe tinham trazido os polícias e cujo selo quebrara.

 

- A vigilância da minha cidade é satisfatória, mas a inteligência não é a primeira qualidade que exijo às forças da ordem. A polícia não compreendeu quem tu eras. Um escriba tão jovem e que goza de tais elogios da parte de um chefe de província bastante avaro de cumprimentos merece atenção. Então, porque desejas trabalhar em Kahun?

- Para tentar pertencer à elite dos escribas.

 

O olhar do governador tornou-se menos agressivo.

 

- Meu rapaz, não podias escolher melhor! Esta cidade foi construída por geómetras e ritualistas instruídos nos Mistérios. Também edificaram uma pirâmide, pois este lugar tornou-se um centro administrativo de primeiro plano. Devo gerir terras, pedreiras, celeiros, oficinas, proceder a recenseamentos, velar pelas deslocações de mão-de-obra no Faium, verificar as compras e os gastos do dia-a-dia, assegurar-me que os sacerdotes, os artesãos, os escribas, os jardineiros e os militares fazem correctamente o seu trabalho... Esta tarefa esgotante não me deixa tempo para me consagrar à minha paixão: a escrita. Repara, já tudo foi dito e ninguém, nem mesmo eu, é capaz de inventar nada novo. Ah, se eu pudesse pronunciar palavras surpreendentes, criar expressões inéditas! Cada ano pesa mais duramente do que o anterior, a justiça não é suficientemente justa e a acção das divindades permanece misteriosa. Nem mesmo a autoridade é suficientemente respeitada. Se queres a minha opinião, corre tudo mal. Quem se apercebe disso, quem toma as medidas necessárias, quem ousa expulsar o mal, quem ajuda verdadeiramente os pobres, quem luta contra a hipocrisia e a mentira?

 

- Não é esse o papel do Faraó? - avançou timidamente Iker. A exaltação do governador abrandou.

 

- Claro, claro... Lembra-te que o essencial é a escrita. Os escritores não constroem templos nem túmulos, não têm outros herdeiros senão os seus textos, que lhes sobrevivem e garantem a sua fama, século após século. Os teus filhos são os teus pincéis e as tuas tabuinhas. A tua pirâmide, o teu livro. Eu, gasto o meu talento em tarefas administrativas sem fim.

 

- Tencionais confiar-me um posto?

 

- Previno-te: estarás em companhia de escribas altamente qualificados que detestam o amadorismo. Não toleram qualquer erro e reclamarão que te despeça se os teus conhecimentos técnicos forem insuficientes. Quero crer que o chefe de província Djehuti não tenha feito de ti um retrato demasiado lisonjeiro. Bom... Está bem, preciso de alguém na administração dos celeiros.

 

Iker ocultou a sua decepção. Não era certamente o emprego que esperava.

 

- Trabalhei muito nos arquivos e...

 

- O pessoal dos arquivos está completo e dá-me inteira satisfação. O general Sepi não te ensinou a gerir um celeiro?

 

- Essa disciplina não foi omitida e agradeço-vos por me concederdes a vossa confiança.

 

- Apenas a realidade conta, meu rapaz! Ou és competente, ou não és. No primeiro caso, Kahun será para ti um paraíso; no segundo, regressarás rapidamente para de onde vieste.

 

- Desejo corresponder à vossa expectativa, mas existe um ponto sobre o qual não transigirei.

 

- Qual?

 

- O meu burro. É o meu companheiro e quero reencontrá-lo.

 

- Com o teu salário comprarás outro!

 

- Não haveis compreendido. Vento do -Norte é único. Salvei-o e ele aconselha-me.

 

- Um burro... que te aconselha?

 

- Sabe responder às minhas perguntas. Com ele, vencerei. Sem ele, fracassarei.

 

- Sabes pelo menos onde está?

 

- Provavelmente, perto da prisão onde estive encarcerado.

 

- Eis um bilhete que te permitirá recuperá-lo com toda a legalidade. O meu intendente indicar-te-á a localização do teu alojamento oficial.

 

Iker curvou-se com respeito.

 

- O general Sepi falou-te dos grandes escribas que penetraram no segredo da criação?

 

- A escuta, a compreensão e o controlo dos fogos não são as qualidades indispensáveis para o conseguir?

 

- Tiveste um excelente professor! Mas é necessário também pensar no teu equipamento.

 

- Não me devolvereis o meu material?

 

- Claro que sim! Falo de outro equipamento, aquele que é composto pelas fórmulas necessárias para passar as portas, conseguir a barca da parte do passador ou escapar à grande rede que captura as almas dos maus viajantes. Sem essa ciência, não passarás de um escriba vulgar.

- Onde posso adquiri-lo?

 

- Compete-te a ti descobrir, meu rapaz! O tempo da escola é uma coisa, o da profissão outra. Não se diz que os melhores artesãos fabricam eles próprios as suas ferramentas?

 

Perturbado, Iker saiu de Kahun para se dirigir à prisão. Porque tinha o governador pronunciado palavras tão enigmáticas? Porque lhe revelava a existência de um saber inacessível? Tal como o general Sepi e o chefe de província, ocultava-se atrás de uma máscara. O facto de ser novamente posto à prova não desencorajava o rapaz, antes pelo contrário: se lhe estendiam realmente varas, agarrá-las-ia a fim de não se afogar no rio. E se apenas se tratavam de ilusões, dissipá-las-ia.

 

No limiar da prisão, um guarda adormecido com o braço em volta do pescoço.

 

Iker bateu-lhe no ombro e o polícia sobressaltou-se.

- O que queres?

 

- Venho buscar o meu burro.

 

- Não será um colosso com a cabeça mais dura do que o granito e olhar indomável?

 

- A descrição parece-me boa.

 

- Pois bem, olha o que ele me fez! E feriu três outros polícias atacando, escoiceando e mordendo!

 

É normal, só me obedece a mim. Solta-o. Tarde de mais.

 

Como tarde de mais? - interrogou Iker com a garganta apertada.

 

- O chefe decidiu abater esse animal feroz. Foram precisos dez homens para o atar.

 

- Para onde o levaram?

 

- Para o terreno vago, atrás da prisão.

Iker correu tão depressa quanto podia.

 

Vento do Norte estava deitado sobre o flanco, com as patas embrulhadas em cordas presas a estacas. Um ritualista erguia a faca do sacrifício.

 

- Parai! - berrou o jovem escriba.

 

Todos se voltaram e o animal deu um zurro de esperança.

 

- Este animal é perigoso - afirmou o ritualista. É necessário extirpar dele a força temível.

 

- Esse burro pertence-me.

 

- Possuis um documento que o prove? - ironizou o oficial.

- O que foi assinado pelo governador de Kahun bastar-vos-á? O polícia foi obrigado a ceder.

 

Iker arrancou a faca da mão do ritualista e libertou o seu companheiro.

 

Consciente de que o rapaz acabava de lhe salvar a vida pela segunda vez, Vento do Norte lambeu-lhe as mãos.

 

- Vem, Vento do Norte. Tenho muitas coisas para te contar.

 

O centro espiritual do Egipto, Abido, mergulhava na melancolia. Isolado do resto do país por guardas vigilantes que filtravam com extrema severidade os sacerdotes temporários, o território de Osíris parecia privado para sempre da doce luz que, outrora, dava vida aos seus edifícios sagrados.

 

No entanto, o colégio de sacerdotes permanentes nomeados pelo Faraó não se poupava a esforços e realizava os seus deveres sem fraquejar. Apesar do peso dos anos e de um coração cuja voz se tornava cada vez mais fraca, o velho superior, portador da paleta de ouro, deslocava-se todas as manhãs até junto da acácia doente.

 

O processo de degradação tinha sido interrompido, mas não se manifestava qualquer sinal de melhoria. Osíris residiria ainda durante muito tempo na árvore? Esta continuaria a unir o céu, a terra e o mundo subterrâneo? Mergulharia ainda as suas raízes no oceano de energia primordial?

 

O velho era incapaz de responder a todas estas perguntas. Até àquele drama, a sua existência fora a de um tranquilo ritualista, unicamente preocupado em celebrar os mistérios e transmiti-los. Nada o preparara para aquela tragédia perante a qual se sentia desarmado.

 

É certo que desde a abertura de um grande estaleiro por Senuseret, um ramo da árvore reverdecera e não secara. Agarrando-se a essa frágil esperança, o portador da paleta de ouro deitava todos os dias água e leite no pé da acácia. Depois, no seu andar cada vez mais hesitante, dirigia-se ao sítio onde os construtores, sujeitos ao segredo, edificavam o templo e a Morada de Eternidade de Senuseret.

 

Naquele dia, o percurso pareceu-lhe ainda mais penoso do que era habitual, Um vento fresco gelou-lhe os ossos e a areia queimou-lhe os olhos. O mestre-de-obras veio ao seu encontro e ofereceu-lhe o braço.

- Não deveríeis repousar?

 

- Nestes tempos difíceis, ninguém deve pensar em si próprio. Haveis recebido carne, peixe e legumes?

 

- Nada falta aos artesãos, os abastecimentos chegam a tempo e a horas. Os cozinheiros postos à nossa disposição preparam excelentes pratos.

 

- A vossa voz está menos serena do que as vossas afirmações. Com que dificuldades esbarrais?

 

- Uma série de incidentes - revelou o mestre-de-obras. - Ferramentas que se quebram, uma pedra mal talhada na pedreira, ferimentos superficiais, doenças... Poder-se-ia jurar que uma força maléfica tenta travar o nosso ritmo de trabalho.

 

- Como lutais contra essas contrariedades?

 

- Pelo ritual da manhã e a coesão da equipa. Face a esta situação, cada um sabe que deve contar com os outros. Seria injusto acusar este ou aquele de dissimulação ou incompetência. Pelo contrário, devemos permanecer unidos sob a protecção do Rei, porque este estaleiro exige dez vezes mais esforços do que estava previsto. Tranquilizai-vos: havemos de nos aguentar.

 

- Se cedêsseis, Abido estaria condenada à morte. O seu desaparecimento arrastaria o do Egipto.

 

- A obra será realizada até ao fim.

 

O portador da paleta de ouro regressou lentamente ao templo e verificou que o ritualista cuja acção permanecia secreta pusera em ordem a morada divina. Assegurou-se igualmente que aquele que deitava todos os dias a libação sobre as tábuas de oferenda realizara a sua tarefa, tal como o servidor do ka, encarregado de celebrar o culto dos antepassados cujo auxílio era mais necessário do que nunca.

 

Julgou por um instante que o seu coração ia deixar de bater e foi obrigado a sentar-se. Quando retomou um pouco o fôlego, continuou a sua inspecção dirigindo-se ao túmulo de Osíris, guardado pelo sacerdote que velava pela integridade do corpo divino.

 

- Os selos estão no seu lugar?

 

- Estão.

 

- Mostra-mos.

 

O superior examinou-os de perto e não constatou nada de anormal.

- Alguém tentou aproximar-se do túmulo?

 

- Ninguém.

 

- Nenhum incidente, mesmo mínimo, a assinalar?

- Nenhum.

 

Com semelhante guarda, o portador da paleta de ouro não sentia qualquer inquietação. Intransigente, rigoroso, não abriria a porta daquele lugar sagrado entre todos a não ser por ordem daquele que dirigia o ritual dos mistérios de Abido.

 

Faltava ao velho interrogar o Calvo, que consultava os arquivos na biblioteca da Casa de Vida. Explorando permanentemente os rituais antigos, extraía deles palavras cheias de força, integradas no ritual do ano.

 

O sumo sacerdote gostava daquele lugar, percorrido por vibrações harmoniosas criadas pelos pensamentos dos sábios lançados sobre os papiros. Pairava ali um odor agradável que cheirava bem ao passado e aos tempos felizes.

 

- É inútil suplicar-vos para reduzirdes as vossas actividades resmungou o Calvo, cuja irascibilidade não se atenuava com a idade. É inútil, com efeito. Recebeste visitantes nestes últimos dias? Nenhum. À parte vós, não teria deixado entrar ninguém.

 

Quando trabalho, sobretudo sobre temas tão difíceis como a navegação da barca sagrada, não gosto de ser importunado. Creio que o resultado das minhas investigações não será inútil, porque alguns pontos obscuros poderão ser esclarecidos,

 

Refazer constantemente os rituais, ferramentas principais da percepção do invisível, era a preocupação constante da confraria de Abido. Era também o melhor meio de lutar contra os malefícios.

 

A última etapa do périplo do superior era o santuário das sete sacerdotisas encarregadas de encantar a alma divina. Pela música, pelo canto e pela dança, perpetuavam a harmonia que ligava as forças celestes às suas manifestações terrestres. Pela celebração dos rituais femininos, mantinham Osíris fora da morte. Sem elas, Abido nunca teria existido.

 

A mais jovem das sete veio ao encontro do portador da paleta de ouro. Era a alegria aliada à gravidade. Desde o seu regresso de Elefantina, onde fora elevada ao grau de Desperta pela Rainha do Egipto em pessoa, parecia mais deslumbrante ainda.

 

- Precisas de alguma coisa? - perguntou-lhe ele.

 

- De incenso fresco e de uma mesa de oferenda suplementar, sumo sacerdote. Aceitai o meu braço, peço-vos, e vinde sentar-vos à sombra.

 

O idoso sacerdote não recusou. A pesada fadiga que o oprimia desde que acordara não se dissipava.

 

- Como sentes o ritual que viveste recentemente?

 

- Como uma porta aberta para um novo mundo. Surgiram outras realidades e outras cores. As paisagens estavam ali, bem perto, e eu não as via. Nós, os humanos, não somos obstáculos à luz? Sei também que deverei fazer frutificar presentes tão extraordinários. A Rainha não me ocultou a dificuldade das provas que me esperavam no caminho da iniciação.

 

- As divindades assim o quiseram, Deus aprovou-as. Nunca serás uma sacerdotisa como as outras. Por vezes desejarás parecer-te com elas, mas não te encerres nessa ilusão.

 

- Aceitais dar-me mais explicações?

 

Uma dor fulgurante trespassou o peito do sumo sacerdote. Os seus olhos transtornaram-se e caiu para o lado.

 

Sem se atrapalhar, a jovem sacerdotisa ajudou-o a estender-se. Durante a sua aprendizagem, adquirira suficientes conhecimentos médicos para reconhecer uma crise cardíaca.

 

- Vou buscar água e uma almofada.

 

- Não, fica, são os últimos momentos... É o teu rosto que quero guardar na memória a fim de enfrentar os guardas do outro mundo. A tua missão... a tua missão é maior e mais perigosa do que tudo o que possas imaginar. Tenho confiança em ti, tanta confiança...

 

O velho apertou as mãos da jovem e soltou um longo suspiro.

 

O Calvo deixou dissolverem-se os grãos de natrão numa água magnetizada e depois ajoelhou-se diante de uma pedra talhada. O ritualista deitou-lhe sobre as mãos um pouco dessa água. Purificado, o Calvo purificou por sua vez o servidor do ka, que ofereceu ao busto do superior defunto leite, vinho, pão e tâmaras.

 

Mumificado e inumado na véspera, o portador da paleta de ouro pertencia agora ao círculo dos antepassados justificados. A confraria sabia que ele não a abandonaria, desde que a sua memória fosse celebrada.

 

O servidor do ka trouxe um incensório em forma de braço e ergueu a tampa a fim de que o fumo de incenso subisse até aos paraísos onde os ressuscitados se alimentavam dos perfumes mais subtis. Depois, elevou a pata anterior do touro, um objecto em alabastro simbolizando a força vitoriosa. Em seguida, as sacerdotisas enumeraram em voz alta os alimentos gravados na mesa de oferenda e apresentaram ao antepassado tiras de tecido. A cerimónia terminou pela leitura das fórmulas de transformação em luz que tornava a alma capaz de viajar em todos os universos.

 

Entre os cinco sacerdotes permanentes que formavam a cúpula da hierarquia de Abido, só um não conseguira concentrar-se durante o ritual. Não era no defunto que pensava, mas em si próprio e na inevitável promoção de que, desta vez, seria o feliz beneficiário. O posto de portador da paleta de ouro e de sumo sacerdote não podia caber a nenhum outro. Como desempenhara o seu papel na perfeição, ninguém se apercebera que os seus pensamentos não se orientavam para o velho cujo desaparecimento não o entristecia nada. Finalmente, o lugar estava livre!

 

Os seus colegas sentiam tanto respeito pelo seu carácter austero e admiração pela sua ciência que seria designado sem a mínima discussão. Como agiria, à cabeça da mais ilustre comunidade iniciática do Egipto? Curiosamente, ainda não tinha pensado nisso! O importante era ocupá-la, essa cabeça, com as numerosas vantagens que lhe proporcionaria.

 

- Chegou o senhor dos grandes mistérios - anunciou a jovem sacerdotisa.

 

Essa visita inesperada não perturbava o futuro sumo sacerdote. A poderosa personagem participava na celebração dos mistérios osíricos mas não residia em Abido. Certamente que viera, avisado pelos permanentes, para a escolha do seu novo sumo sacerdote.

 

O Faraó Senuseret recolheu-se longamente junto do sarcófago do defunto. Leu as fórmulas de ressurreição, retiradas dos Textos das Pirâmides, dos Textos dos Sarcófagos e do ritual secreto de Abido. Depois, reuniu no templo os cinco sacerdotes e as sete sacerdotisas.

 

- Não há necessidade de insistir na importância do vosso papel. Em tempos normais, já é essencial; nas circunstâncias actuais, torna-se vital. Tenho muitos combates a travar e a minha força repousa sobre os rituais que vós celebrais aqui a fim de manter com vida Osíris e a sua acácia. Se falhardes, a instituição faraónica desaparecerá e com ela as Duas Terras. A barbárie, a corrupção, o fanatismo e a violência impor-se-ão. Os laços entre o céu e a terra serão quebrados, as divindades abandonarão este país e talvez mesmo o mundo dos humanos. Sois pouco numerosos a viver no segredo, pelo segredo e para o segredo. O vosso dever consiste em preservá-lo fora do alcance do mal, da infâmia e das lágrimas corrosivas de uma humanidade que chora sobre a sua própria mediocridade. Não temos a certeza de sairmos vencedores do terrível combate em que estamos empenhados, mas lutaremos até ao fim, sem qualquer concessão ao adversário. Que Maet seja a nossa regra, que nos guie e nos proteja.

 

As palavras do Rei abalaram um pouco o futuro sumo sacerdote, mas esperava demasiado a decisão principal para se interessar verdadeiramente por elas.

 

- O sacerdote que transportava a paleta de ouro e dirigia esta confraria por minha ordem era um homem direito. Antes que compareça diante do tribunal divino, devemos fazer o seu julgamento. O meu é favorável. Um ou uma de entre vós ser-lhe-á desfavorável? O silêncio reinou sobre a assembleia.

 

- Visto que assim é, os rituais serão celebrados até ao seu termo. Possa este justo de voz sobre esta terra ser reconhecido como tal nos céus e viajar para sempre na eternidade.

 

O futuro sumo sacerdote tinha cada vez mais dificuldade em controlar a sua impaciência. Por fim, o monarca abordou a questão principal.

- A hierarquia actual continuará o seu trabalho com o mesmo rigor. Quanto à paleta de ouro, sobre a qual estão inscritas as fórmulas de conhecimento, decidi conservá-la no ser do Faraó.

 

O candidato à função suprema julgou ter compreendido mal. Senuseret não perguntava a opinião aos membros da confraria, não nomeava ninguém... Um verdadeiro pesadelo!

 

- Quero ficar ligado de forma permanente a Abido - acrescentou o rei. - O Calvo será o meu representante, regerá a vossa comunidade na minha ausência mas não tomará qualquer iniciativa sem o meu acordo explícito. Receberá regularmente as minhas instruções e manter-me-á ao corrente dos mínimos acontecimentos. À primeira falta, por multo venial que seja, o culpado será excluído da confraria. Estamos em guerra e o inimigo é muito mais temível do que milhares de soldados. O erro, a falta de atenção ou qualquer outra forma de fraqueza representarão traição e serão sancionados como tal. Agora, celebremos um banquete em honra do nosso irmão que a bela deusa do Ocidente acaba de receber no seu seio.

 

Apesar do estômago apertado, o frustrado comeu os alimentos consagrados e mostrou boa cara. Ninguém devia perceber o seu rancor, ao mesmo tempo contra Senuseret, Abido, os outros sacerdotes e sacerdotisas que nem sequer tinham usado da palavra para elogiar os seus méritos.

 

A vingança não lhe bastaria, precisava também de atingir o seu objectivo. Para o conseguir havia um imperativo: tornar-se rico. Iria ter necessidade de comprar consciências e de se impor como a personagem central da cidade santa, tecendo a sua teia nas trevas. Mas como fazer fortuna sem se desmascarar?

 

A dificuldade parecia ínultrapassável.

 

- Pareces deprimido - observou uma das sacerdotisas.

 

- Quem não estaria? Perder um sumo sacerdote desta qualidade é uma dura provação.

 

- Ultrapassá-la-emos juntos. E teremos necessidade da tua sabedoria e da tua experiência.

 

- Podem contar comigo. - o inspector principal dos celeiros Gergu, mandatado pelo grande tesoureiro Senankh. Mostra-me as tuas instalações.

 

O responsável pelos celeiros da pequena aldeia da Colina florida estava surpreendido com a visita de uma personagem tão importante.

- Estamos em pleno trabalho e...

 

- Ou obedeces imediatamente, ou faço intervir a polícia.

- Vinde, peço-vos!

 

Com Senankh, Gergu já tinha inspeccionado os celeiros de várias grandes cidades. Sabia colocar-se no seu lugar, revelava-se discreto e respeitoso, observava à letra as ordens dadas pelo patrão, que o considerava um funcionário perfeito.

 

Quando Senankh estava retido no palácio, Gergu aproveitava a ocasião para se mostrar zeloso, interessando-se pelas pequenas explorações. Ali, exorbitava, aproveitando as prerrogativas do seu cargo.

 

O responsável conduziu-o até ao pátio dos celeiros da aldeia, rodeado por um muro de cerca.

 

- Este muro não é suficientemente alto - observou Gergu. Os ladrões passá-lo-iam facilmente.

 

- Aqui conhecemo-nos todos, não há nenhum ladrão! Empurrou a porta que dava para o pátio.

 

- Não tem ferrolho?

- Não é necessário.

 

- As reservas de cereais devem estar em segurança. Não é o caso desta.

 

- Garanto-vos que...

 

- O regulamento é o regulamento.

 

Atrapalhado, o responsável entrou no pátio de onde partia uma escada que ia dar a um terraço sobre o qual se encontravam as aberturas de três cofres para grãos instalados de encontro à parede do fundo. Quase ao nível do solo, alçapões verticais que eram manobrados para recolher os cereais.

 

- A escada não é regulamentar - considerou Gergu. - Número de degraus insuficiente, trabalho de má qualidade.

 

- Ignorava esse regulamento!

- Agora já sabes.

 

Gergu abriu um alçapão.

 

- A madeira está gasta. Esta peça devia ter sido substituída há muito tempo.

 

- Garanto-vos que funciona perfeitamente!

 

- Os nomes dos proprietários dos campos deveriam estar gravados na parede.

 

- Vede, ali!

 

- Estão quase apagados. Não se tratará de uma tentativa de fraude fiscal?

 

- Claro que não, inspector! Os agentes da administração conhecem perfeitamente esses proprietários e nunca ninguém teve aborrecimentos.

 

Gergu subiu a escada com precaução como se fosse perigosa.

- Este terraço é demasiado estreito. Os riscos de acidente de trabalho são consideráveis. Fazes pouco caso da saúde dos trabalhadores agrícolas.

 

- Pelo contrário, inspector! Nesta aldeia são muito bem tratados. Gergu olhou para o interior de um celeiro.

 

- Seria necessária uma profunda reparação. O estado sanitário do conjunto parece-me deplorável.

 

- Fumiguei e pintei antes do enchimento...

 

- O teu caso é particularmente grave. Nunca tinha detectado tantas infracções num só lugar. Na minha opinião, impõe-se uma detenção imediata.

 

O homem empalideceu.

 

- Não compreendo, inspector, eu...

 

Existe uma alternativa. Se concordas em pagar imediatamente uma pesada multa, poderei eventualmente evitar-te a prisão.

 

- Muito pesada?

 

- Sem dúvida que não é a melhor solução, porque teria mesmo assim que fazer um relatório ao meu superior. Talvez haja outra possibilidade, mas nem me atrevo a pensar nela.

 

- Dizei.

 

- Reduzo a multa a metade, não faço relatório, desde que me dês directamente o que eu exijo e mantenhas a boca fechada.

 

O período de reflexão foi breve.

 

- Estou de acordo... desde que o caso fique arquivado.

 

- Sê-lo-á. Mas se deres com a língua nos dentes, será a minha palavra contra a tua. Acusar-te-ei de tentativa de corrupção, irás para a prisão e perderás tudo.

 

- Calar-me-ei.

 

- És um homem inteligente. Graças a mim, escapas ao pior.

 

Gergu nunca agradeceria o suficiente ao seu protector, Medés, por lhe ter arranjado aquele posto. Cada controlo de celeiros de modestas dimensões permitia-lhe enriquecer sem receio da mínima queixa dos responsáveis que explorava. Além disso, mostrava-se perfeitamente zeloso na redacção de relatórios pormenorizados dirigidos ao seu superior.

 

Perante Senankh, Gergu mostrava-se virtuoso, de tal forma preOcupado com o interesse geral que mal tinha tempo para se ocupar de si mesmo.

 

- Vamos partir de novo em missão - anunciou-lhe o grande tesoureiro.

 

- Para que região?

- Abido.

 

- É um lugar interdito aos profanos!

- Ordem do Faraó.

 

- Sua Majestade desconfiará de fraudes?

 

- Devemos inspeccionar todos os lugares maiores sem qualquer excepção, este como os outros. As tuas bagagens devem estar prontas amanhã de manhã.

 

Gergu interrogava-se. O Faraó não dispunha do inventário pormenorizado das riquezas de cada templo? Pensando bem, era pouco provável. Várias províncias permaneciam independentes e Senuseret só controlava realmente o Delta, a região de Mênfis e o norte do Alto Egipto. Ordenando estas viagens de inspecção, queria portanto assegurar-se da verdadeira quantidade de bens que utilizaria para assentar o seu poder.

 

Porque como era possível duvidar do objectivo real de Senuseret? Atacar as províncias rebeldes, suprimir os seus chefes e reinar sobre todo o país!

 

Permanecendo na sombra de Senankh, Gergu recolheria o máximo de informações úteis, tanto para Medés como para a sua própria carreira, E se as intenções de Senuseret eram diferentes das que ele imaginava, acabaria por sabê-lo.

 

Embora Senankh tivesse declinado o seu nome e os seus títulos, o oficial encarregado de vigiar o desembarcadouro revistou-o todo, assim como a Gergu. As regras de segurança eram tão rigorosas que mesmo os mais altos dignitários se tinham de conformar com elas.

 

- Ides ser acompanhados pelos guardas. Nunca devereis deslocar-vos sós. Em caso de infracção, os archeiros têm ordem para disparar.

- Devo dirigir-me ao templo para me encontrar com o sumo sacerdote - declarou Senankh. - O meu adjunto, Gergu, falará com o intendente da cidade do Faraó Senuseret.

 

- Vou mandá-lo prevenir. Esperai aqui.

 

Senankh e Gergu sentaram-se em tamboretes, à sombra do sicômoro. Um soldado trouxe-lhes água.

 

- O local não é muito acolhedor - considerou Gergu. - Os tesouros e os segredos de Abido estão realmente bem protegidos! Em que trabalham estes sacerdotes?

 

- Estudam o céu, a medicina, a magia e todas as ciências que o deus Tot revelou. O seu principal dever, pelo menos no que diz respeito à cúpula da hierarquia, consiste em celebrar os mistérios de Osíris. Se o ritual não fosse correctamente realizado, reinaria a desordem.

 

- Não achais estranha este aparato de forças e esta vigilância tão minuciosa?

 

Abido é o lugar mais sagrado do Egipto, Gergu. Merece bem alguns cuidados especiais.

 

- A divindade não é capaz de se defender a ela própria? E depois, quem ousaria profanar o domínio de Osíris?

 

- Não são os humanos capazes do pior?

 

- Eu, em todo o caso, alegro-me por ir ver o templo.

 

- Desilude-te, apenas terás acesso aos edifícios administrativos. Contenta-te em perguntar se as reservas de alimentos são satisfatórias, recolhe as queixas e promete que o necessário será feito no mais breve espaço de tempo.

 

- E vós, ides ver esse templo?

 

- A minha missão é secreta, Gergu,

 

O Calvo recebeu o grande tesoureiro Senankh num anexo do templo de Osíris onde os sacerdotes vinham desabafar, expondo as dificuldades quotidianas com que esbarravam e que era necessário resolver da melhor maneira a fim de que nada contrariasse a boa evolução dos rituais.

 

Senankh não descobrira quase nada de Abido, onde reinava uma atmosfera pesada, quase dolorosa. E não seria o rosto do Calvo que a tornaria mais alegre.

 

- O Faraó Senuseret confiou-me uma tarefa delicada mas indispensável.

 

- Porque não veio pessoalmente?

 

- Porque assuntos urgentes exigem a sua presença noutro lugar. Como membro da Casa do Rei, estou habilitado a agir em seu nome.

- Tendes uma carta oficial assinada pela sua mão?

 

- Não tendes confiança em mim?

- Nenhuma confiança, com efeito.

- Eis o documento.

 

O Calvo examinou-o demoradamente.

 

É de facto o selo real e a escrita de Sua Majestade. O que quereis? Saber de que é composto precisamente o tesouro do templo. Segredo de Estado.

 

Sou o representante do Estado e deveis dar-me portanto essa informação, que transmitirei directamente ao Rei e só a ele.

 

- Que venha ele próprio inspeccionar o tesouro. Assim, não será possível qualquer fuga.

 

- Não nos compreendemos. Recebi uma ordem, devo executá-la. Não tendes escolha: deveis obedecer-me.

 

- Apenas obedecerei a Sua Majestade.

- Lembro-vos que é ela que me envia.

- Exijo uma confirmação.

 

Senankh mudou de tom.

 

- Insultais-me e insultais a Casa do Rei!

 

- Prefiro isso à imprudência. Por muito grande tesoureiro que sejais, não tendes nada a fazer aqui. Nenhuma intriga palaciana deve perturbar a paz deste lugar. Apenas o Faraó tem a capacidade de esclarecer esta situação. Agora, desculpai-me. Não tenho tempo a perder em discussões vãs.

 

Ao ficar só, Senankh sorriu.

 

Senuseret pretendera pôr o Calvo à prova ao enviá-lo a Abido. O novo sumo sacerdote comportar-se-ia como um fiel servidor do Faraó ou o poder embriagá-lo-ia a ponto de o fazer acreditar que podia resolver tudo sem recorrer ao Rei?

 

Só havia uma resposta clara para esta pergunta: o Calvo não cederia a qualquer pressão, viesse de onde viesse. Tal como tinha prometido ao monarca, apenas este tomaria as decisões principais.

 

Por sorte, esta missão terminava da melhor forma. Restava a de Gergu.

 

Gergu fora conduzido a um edifício administrativo onde um pequeno número de funcionários, escolhidos com cuidado pelo próprio Rei, velava pelo bem-estar dos residentes de Uah-sut, "a Resistente de localizações", a cidade criada pelos construtores do templo e da morada de eternidade de Senuseret.

 

Naqueles lugares austeros em que ninguém elevava a voz, Gergu sentia-se pouco à-vontade. Como estava longe a animação de Mênfis! O intendente geral não tinha ar de brincalhão.

 

- O que desejais?

 

- Sou o assistente do grande tesoureiro Senankh.

- Eu sei.

 

- Estou encarregado dos celeiros.

 

- Os de Abido estão bem cheios.

 

- Tanto melhor, tanto melhor... Mas a minha missão vai além disso.

 

- Oiço-vos.

 

- É muito simples e um pouco delicado: devo verificar que, neste lugar, ninguém tem falta de nada.

 

- No que se refere a Uah-sut e à confraria dos construtores, não há qualquer problema. Se os fornecimentos se atrasarem, avisar-vos-ei imediatamente. Quanto ao colégio dos sacerdotes permanentes e temporários, não me posso manifestar. Vou portanto pedir a um responsável para falar convosco.

 

Curiosamente, Gergu começava a apreciar a serenidade daquele lugar. Nunca antes sentira sensações tão bizarras, como se se distanciasse de si próprio, como se a violência e a corrupção não fossem as melhores soluções em todas as circunstâncias. Gergu surpreendeu-se a sonhar com um mundo menos brutal onde alguns seres não seriam nem assassinos, nem ladrões, nem ambiciosos.

 

Irritado por se deixar envolver naqueles bons pensamentos, sacudiu-se como um cão molhado. Poderosos mágicos deviam ter residido ali para impregnar o local do seu ideal lenificante! A partir de agora, Gergu desconfiaria de Abido. No entanto, não deixaria de se interessar pelos seus segredos, mesmo sem grande esperança de os decifrar.

 

O sacerdote que entrou no compartimento tinha um aspecto estranho. Era verdadeiramente feio e bastante glacial.

 

Ao primeiro olhar, Gergu sentiu que aquela lâmina de faca era desprovida de qualquer sensibilidade. Mas ao mesmo tempo, e apesar da inverosimilhança de tal hipótese, detectou que tinham qualquer coisa em comum.

 

- Disseram-me que vos chamais Gergu e que haveis sido enviado pelo ministério da Economia para verificar se não nos falta nada.

- Não era possível resumir melhor a minha missão. Com a vossa ajuda, tenciono levá-la a bom termo.

 

Ao descobrir aquela personagem grosseira, visivelmente apreciadora dos prazeres da carne, o sacerdote tivera vontade de a despachar secamente e exigir outro interlocutor.

 

Mas acabava de estabelecer-se um estranho contacto. Sem dúvida este Gergu tinha feito da corrupção e da infâmia a sua regra de vida.

 

Na altura em que o sacerdote formava o projecto de se vingar da afronta que acabavam de lhe infligir procurando a forma de enriquecer, não seria aquele encontro um sinal da providência?

 

É certo que era conveniente desconfiar e, sobretudo, não ceder a um impulso perigoso. Precisaria de tempo e de várias visitas antes de encarar um início de aliança.

 

- Defrontamo-nos efectivamente com algumas dificuldades materiais - revelou o sacerdote. - Poderão perturbar a realização das nossas tarefas sagradas.

 

- Estou aqui para as resolver e garantir-vos uma perfeita tranquilidade de espírito - afirmou Gergu, solene.

 

Depois de algum tempo de reflexão que em nada alterara a sua primeira impressão, o Calvo optou por transmitir ao Rei a sua decisão, de acordo com o pedido do monarca.

 

Na verdade, tornava-se necessário voltar a dar força e vigor ao Círculo de Ouro de Abido. De facto, o grande tesoureiro Senankh era digno de lhe pertencer.

 

Iker esfregou os olhos.

 

- É realmente aqui? - perguntou ao intendente do governador, que acabava de o conduzir até uma soberba casa do bairro este de Kahun onde se encontravam as maiores moradias.

 

- Heremsaf, o teu superior hierárquico, aceita alojar-te em sua casa. Tem cuidado, porque não tem um feitio fácil.

 

Esta cidade não se assemelhava a nenhuma outra. Espalhada por uma dezena de hectares, o bairro este estava separado por um muro de tijolos crus do bairro oeste, que ocupava apenas quatro, percorridos por uma dezena de ruas paralelas. Uma grande artéria com a largura de nove metros atravessava a cidade de norte a sul. Era evidente que o plano fora concebido e executado por um arquitecto que detestava a confusão.

 

O intendente bateu à porta.

 

O homem que abriu não tinha efectivamente o ar de uma pessoa divertida. O rosto quadrado era adornado por um elegante bigode perfeitamente talhado.

 

- Este é o Iker, o escriba ligado aos celeiros. Ele...

 

- Sei o que ele vai ter de fazer e o que eu tenho que fazer, intendente.

 

Este eclipsou-se enquanto Heremsaf apontava o indicador para Vento do Norte.

 

- O que é isto?

 

- O meu burro, ele...

 

- Ainda consigo distinguir um burro de um ser humano, mesmo que essa diferença seja às vezes muito pequena. Para que serve?

 

- Vento do Norte transporta o meu material de escrita.

- Proveniência?

 

- Foi-me dado pelo general Sepi, o meu professor da província de...

- Sei quem é o general Sepi e em que província ensina. Quando te expulsou da sua aula e por que motivo?

 

- Não fui expulso! Como era o seu melhor aluno, o senhor Djehuti confiou-me um trabalho difícil.

 

- Até mesmo os mais vigilantes cometem erros. Em que consistia?

- Fazer o inventário das forças e das fraquezas da província. Examinei em pormenor os relatórios dos outros escribas e entreguei um balanço crítico a Djehuti.

 

Heremsaf encolheu os ombros.

 

- És demasiado jovem para que te tenham entregue uma tarefa tão delicada.

 

- Garanto-vos que...

 

- Conheço a profissão, tu não. Na realidade, entregaram-te velhos arquivos para classificar. Deverás aprender a escutar, porque escutar é melhor do que tudo. Quando a escuta é boa, a palavra é boa.

- O que Deus ama - completou Iker - é o que escuta,

 

- Possuis as máximas de Ptah-hotep! Tanto melhor. Não esqueças sobretudo esta: o ignorante não escuta, considera o conhecimento como a ignorância e vive do que faz morrer. Agora, a verdade: por que queres trabalhar em Kahun?

 

- Porque é aqui que são formados os melhores escribas do reino.

- E desejas tornar-te um deles! Ignoras sem dúvida que a ambição é o pior dos defeitos, um mal incurável, fonte de todos os males.

- Desejar ser excelente na sua profissão será ambição?

 

- Veremos no terreno. Tens a certeza de me ter dito tudo?

- De momento, sim.

 

- Tens sorte, tenho um lugar no meu estábulo. Mas só lá aceito burros trabalhadores e disciplinados. A mesma exigência se aplica a ti. A minha cozinheira preparará as tuas refeições. Em contrapartida, a minha empregada da limpeza não se encarregará do teu quarto nem do teu gabinete de toalete. Limpa-os cuidadosamente, senão mando-te embora. Esta casa deve permanecer um modelo de limpeza. Em caso de problema, nada de iniciativas intempestivas. Consultas-me e segues as minhas instruções. Instala-te rapidamente, partimos daqui a uma hora.

 

Quando descobriu o seu novo alojamento, Iker esqueceu a acidez do seu hospedeiro. O quarto era amplo, claro, equipado com duas esteiras de primeira qualidade, uma cama baixa com cabeceira e almofada, lençóis de linho fino para o Verão, grossos para o Inverno, baús de arrumação e duas lâmpadas a óleo!

 

Ainda deslumbrado, Iker levou o burro ao estábulo situado atrás da casa, não longe da cozinha ao ar livre. Também ali não ficou desiludido. Vento do Norte dispunha de um espaço imenso só para ele, forragem abundante e uma tina de água bem cheia.

 

- Tenho a impressão de que vamos ter de merecer esta sorte. O burro levantou a orelha direita.

 

- Bebe à-vontade e come o que te apetecer, Vento do Norte, mas não te demores muito. Tenho a certeza que o nosso patrão não tolera o mínimo atraso.

 

Iker não se enganava. Herernsaf esperava-o já na soleira da casa.

- Este burro suportará o peso do meu próprio material?

 

- O que achas, Vento do Norte? - perguntou Iker. O animal aquiesceu.

 

- Se bem compreendo - espantou-se Heremsaf - é ele que decide!

 

- É o meu único amigo.

 

Com os lábios apertados, Heremsaf enfiou a paleta, as tabuinhas de escrita e os pincéis numa das sacolas.

 

- A caminho.

 

Toda a cidade estava dominada por uma atmosfera estudiosa. Nem mesmo os varredores que tratavam da via principal e das ruas secundárias se apostrofavam.

 

- Que a situação fique bem clara - precisou Heremsaf - O Faraó nomeou-me intendente da pirâmide de Senuseret II e do templo de Artúbis. Tenho portanto de me encarregar das entregas de jarros de cerveja, pães, carnes, cereais, gorduras, perfumes, verificar as contas, o trabalho dos empregados, a distribuição dos alimentos, sem esquecer a manutenção de um relatório diário. Esta tarefa esmagadora não me deixa nenhum tempo livre. Portanto, quem trabalha sob as minhas ordens deve provar a sua competência. Aqui, os amadores não têm lugar.

 

A zona dos silos impressionou o jovem escriba. A avaliar pelo seu número e tamanho, os habitantes de Kahun não receavam a fome! Decididamente, a pequena cidade gozava de facto dos favores reais.

- É a tua vez de trabalhar - disse Heremsaf, ácido.

 

Iker retirou o seu material de escrita. Sobre uma tabuinha, anotou o número de silos isolados, depois interessou-se por aqueles que estavam montados em bateria e cujo tamanho variava de dois a oito metros de altura. Em seguida, inspeccionou o interior, controlou a qualidade dos tijolos, a solidez das cúpulas e se eram estanques, factor indispensável para evitar a nigela.

 

Quando o Sol começou a declinar, Iker foi ter com o seu superior.

- Vou precisar de vários dias para saber se estes silos não apresentam nenhum defeito. Tenho de pôr as minhas notas em ordem e aprofundar as investigações.

 

Herernsaf não fez qualquer comentário.

 

- Vou ao templo de Anúbis. Volta para casa onde te será servido o jantar. Está aqui amanhã às primeiras horas do dia.

 

Os tampões que serviam para fechar os orifícios de carga no topo dos silos eram correctos, mas algumas portas de descarga, na fachada, corriam mal nas ranhuras. Iker fez esboços e, num relatório meticuloso, assinalou os perigos. Tratavam-se no entanto apenas de pormenores em relação à principal anomalia. Mergulhado nos seus pensamentos, o rapaz perguntava a si mesmo como haveria de descrevê-la com a máxima exactidão quando lhe bateram no ombro.

 

- És tu o novo escriba dos celeiros? - perguntou-lhe um quinquagenário grande e flácido.

 

- Sou apenas o assistente de Heremsaf

 

- Heremsaf é um chato. Detesta a humanidade inteira e só está bem a criar aborrecimentos aos seus semelhantes.

 

- Não tenho razão de queixa do meu patrão.

- Em breve terás! O que fazes tu?

 

- Verifico o bom estado dos silos.

 

- Perdes o teu tempo. Não há nenhum problema.

 

- Como podes ter a certeza?

 

- Porque eu próprio fiz essa verificação o ano passado. Nenhum problema, digo-te eu.

 

- Não tenho tanto a certeza como tu.

 

- O que estás tu a dizer, amigo? Sou um escriba experiente e reconhecido. Ninguém põe a minha palavra em dúvida.

 

Nesse caso, porque deixaste o teu posto?

 

Olha lá, tu és insolente! Quero ver o teu relatório.

 

Está fora de questão. É destinado a Herernsaf e só a ele, Vamos, vamos! Entre colegas não deve haver segredos. Lamento, mas é impossível.

 

Diz-me pelo menos se constataste alguma coisa de anormal! Essa constatação apenas interessa ao meu superior. Deixemo-nos de rodeios! Em Kahun vivemos tranquilamente e não gostamos de espiões. Faço-me compreender?

- Mais ou menos.

 

- Andas realmente à procura de aborrecimentos?

- Apenas procuro trabalhar em paz.

 

- Se continuares assim, não tens qualquer hipótese de a encontrar! Ouve-me bem: estes silos estão em perfeito estado e não apresentam nenhuma anomalia, visto que eu tratei disso. Está claro?

 

- Límpido.

 

- Ora bem, aí está! Entre profissionais de boa vontade tudo acaba por se resolver.

 

- O único pormenor que me falta é o teu nome. Mas descobri-lo-ei facilmente e saberei então quem é o responsável pelas graves imperfeições que descrevi no meu relatório.

 

- Estás a cometer um erro estúpido e...

 

- Ninguém me impedirá de cumprir o meu dever.

 

Herernsaf enrolou o papiro que acabava de reler.

- Fazes sérias acusações, Iker.

 

- São fundamentadas. Dois silos foram construídos com tijolos de qualidade inferior e deverão portanto ser demolidos. O meu antecessor deu cobertura a uma operação fraudulenta em detrimento da segurança e do interesse geral.

 

- Tens a certeza?

 

- Foram feitas as verificações. E não falo das ameaças proferidas por esse bandido! De qualquer maneira, não me ralo com elas. Mas existe um lugar, nesta terra, onde reinem a verdade e a justiça, um só lugar onde se possa ter confiança nos outros?

 

- Má pergunta e falso problema - considerou Heremsaf. Conheces os segredos do livro divino, a arte do ritualista, as fórmulas que permitem às almas dos justos circular no universo? Não, claro! Então, em vez de te revoltares como um ignorante, equipa-te.

 

- Equipar-me... O governador já me incitou a fazê-lo! Como devo proceder ocupando-me dos celeiros?

 

- Todas as vias conduzem ao centro se o coração for justo. Só uma pergunta merece ser feita: és um homem vulgar ou um investigador de espírito?

 

Senuseret e o seu conselho restrito acabavam de ouvir a proposta de decretos redigida por Medés, que se sentia receoso. Tentara respeitar o mais possível o pensamento do monarca, evitando ao mesmo tempo irritar os chefes de província Uakha e Sarenput, agora servidores declarados do Faraó.

 

- Alguém deseja fazer comentários ou sugerir correcções? Nenhum dos membros da Casa do Rei pediu a palavra.

 

- Estes decretos estão portanto aprovados. Que sejam difundidos por todo o país.

 

- De que forma devemos proceder, Majestade?

- Regressa a Mênfis e utiliza o serviço do correio. O medo contraiu as entranhas de Medés.

 

- Se o meu barco for interceptado pelos chefes de província, eu...

- Viajarás numa embarcação comercial fretada por Sarenput e chegarás à capital sem problemas.

 

Durante a maior parte do trajecto, Medés comeu apenas pão e só bebeu água. Receava a todo o instante a agressão de milícias hostis ou um controlo minucioso dos seus representantes.

 

Mas o destino mostrou-se favorável, de acordo com a predição de Senuseret.

 

Medés apressou-se a regressar ao seu gabinete, onde reuniu os principais colaboradores para lhes ordenar que agissem com rapidez.

 

O mínimo atraso seria castigado. Ser funcionário do Estado não garantia um emprego vitalício. Era necessário mostrar-se digno desse privilégio e estar permanentemente atento aos seus deveres.

 

Trabalhador activo, Medés detectava rapidamente os preguiçosos e despedia-os de imediato. Naquela tarde, como de costume, foi o último a sair da administração e aproveitou para lançar uma vista de olhos aos trabalhos em curso. Detectou assim um papiro mal enrolado e manchas de tinta em tabuinhas novas. A partir do dia seguinte, os culpados teriam de encontrar outra profissão. Dentro de alguns meses, o secretário da Casa do Rei teria reunido a melhor equipa de escribas de Mênfis, provando a Senuseret a dimensão do seu valor. Como desconfiaria o Faraó de um dignitário tão zeloso?

 

Medés não voltou para casa.

 

Assegurando-se que não era seguido, dirigiu-se para o porto e mergulhou num dédalo de ruelas onde era fácil detectar um eventual curioso.

 

Por causa da sua nomeação e do inventário dos templos exigido por Senuseret, a margem de manobra de Medés estava quase reduzida a nada. Privada de fornecimentos ilícitos, a sua fortuna oculta estagnava. Graças ao seu instinto, não tardara a descobrir outra pista, sem dúvida mais lucrativa, mas também mais arriscada, pois dependia de um intermediário manhoso e desonesto. Medés teria de o meter na ordem sem afectar a sua boa vontade.

 

A rica moradia de um andar ocultava-se num bairro modesto. Sob o pórtico de entrada havia um guarda.

 

- Quero ver o teu patrão imediatamente.

- Não está.

 

- Para mim, está. Vai mostrar-lhe isto.

 

Medés confiou ao guarda um pequeno bocado de cedro sobre o qual tinha sido gravado o hieróglifo da árvore.

 

A sua espera foi de curta duração. Cheio de salamaleques, o porteiro deu-lhe acesso à moradia.

 

Envergando um longo vestido cheio de enfeites, excessivamente perfumado, assemelhando-se a uma pesada ânfora, o proprietário veio ao encontro do seu visitante.

 

- Meu querido amigo, que imensa alegria receber-vos na minha modesta habitação! Entrai, entrai, peço-vos!

 

O negociante libanês precedeu Medés num salão sobrecarregado de móveis exóticos. Sobre mesas baixas, bolos e bebidas açucaradas.

- Tomava uma merenda antes de jantar. Desejais juntar-vos a mim?

 

- Tenho pressa.

 

- Bom, bom... Desejais falar de negócios?

- Exactamente.

 

O libanês não apreciava nada aquela precipitação, mas, para se implantar no Egipto, tinha de passar por aquilo.

 

- Quando será efectuada a entrega? - perguntou Medés.

 

- O nosso barco chegará na próxima semana. Espero que tenham sido obtidas todas as autorizações necessárias.

 

- Eu trato disso. O carregamento?

- Cedro de primeira qualidade.

 

O Egipto tinha falta de algumas madeiras, que era Portanto necessário importar. As melhores eram negociadas por um preço elevado. Há muito tempo que Medés estudava o filão, com a esperança de obter o máximo de lucro. Era preciso no entanto descobrir o negociante que partilhasse o seu ponto de vista e fosse suficientemente hábil para levar o empreendimento a bom termo.

 

- Como é organizado o teu circuito de venda?

 

- Da melhor forma, senhor, da melhor forma! Tenho alguns contactos seguros na região e ofereço madeira por metade do preço oficial, pagamento adiantado. Como ela nunca existiu e não aparece em nenhum registo, nem o vendedor nem o comprador podem ser incomodados. Os vossos compatriotas gostam de bons materiais e não hesitam em procurar obtê-los, mesmo de maneira oculta, para os utilizarem na construção das suas moradias ou confiarem a um marceneiro que cria móveis requintados.

 

- Se este primeiro negócio for um êxito, será seguido por muitos outros.

 

- Podeis ter a certeza! Disponho da melhor equipa de profissionais, tão dedicados como discretos.

 

- Tens consciência que, sem mim, o sucesso era impossível?

- Sois o arquitecto desta empresa, bem sei. Mereceis toda a minha gratidão e...

 

- Três quartos dos lucros para mim, o outro quarto para ti.

 

O coração do libanês quase cessou de bater. Só os longos anos de experiência lhe permitiram conservar um sorriso de fachada, quando tinha vontade de estrangular o ladrão.

 

- Em geral, senhor, eu...

 

- Esta situação é excepcional e deves-me tudo. Graças a mim, o mercado egípcio abriu-se para ti e vais tornar-te muito rico. Como me és simpático, mostro-me mais do que razoável.

 

- Estou-vos muito grato - declarou o libanês com calor.

 

- Não fales nunca de mim a ninguém. Se desses um passo em falso, mandar-te-ia prender por fraude. E a tua palavra não pesaria nada contra a minha.

 

- Contai com o meu mutismo.

 

- Gosto de lidar com um homem inteligente. Até breve, para festejarmos o nosso primeiro êxito.

 

Medés não sentia a mínima confiança naquele libanês e vigiaria cada fase da operação, que mandaria bloquear ao primeiro incidente. No entanto, o negociante estava de tal forma dominado pela mira do lucro que talvez fosse um parceiro sério.

 

Gergu estava bêbedo.

 

Enquanto esperava Medés, não parara de esvaziar taças de cerveja forte que reclamava a um escanção desaprovador mas obrigado a satisfazer as exigências daquele brutamontes, tão apreciado pelo seu patrão.

 

Quando ele chegou, Gergu levantou-se e tentou manter-se direito. - Talvez tenha bebido um pouco, mas tenho o espírito claro.

- Senta-te,

 

Gergu visou um cadeirão e conseguiu não falhar.

 

- Tenho boas notícias. O grande tesoureiro Senankh está satisfeito comigo, apesar de não ser um homem fácil, ao contrário das aparênCias. Acho-o mesmo particularmente desconfiado e mantenho-me no meu lugar a fim de não despertar as suas suspeitas.

 

- Quanto a mulheres?

 

- Já só recorro a profissionais - afirmou o inspector principal dos celeiros. - Assim, não há qualquer queixa a recear.

 

- Continua. Não quero nenhum escândalo implicando uma dama da boa sociedade. Quais são as fraquezas de Senankh, na tua opinião?

 

A gastronomia. Não suporta pratos banais nem vinhos medíocres.

 

- Não é suficiente para o corromper. Preocupas-te demasiado contigo mesmo e pouco com os outros, Gergu. Preciso de mais informações. E essas boas notícias?

 

Gergu esboçou um sorriso guloso.

 

- Senankh levou-me a Abido. Ele encarregou-se do tesouro do templo, eu das condições de vida dos sacerdotes.

 

Medés entusiasmou-se.

 

- Permitiram-te o acesso ao templo?

 

- Não, apenas a um edifício administrativo. Contudo, não perdi o meu tempo. Em primeiro lugar, constatei que o lugar estava guardado pelo exército.

 

- Porquê?

 

- Não faço ideia, mas é estranho. Fazer perguntas ter-me-ia inevitavelmente causado aborrecimentos.

 

Medés espumava.

 

- Penetrar no território sagrado de Abido e não descobrir nada de essencial! Por momentos, Gergu, interrogo-me se serás digno da minha amizade.

 

- Ainda não acabei! Em seguida, encontrei um sacerdote com o qual espero permanecer em contacto. Um tipo estranho que vos poderia interessar.

 

- De que forma?

 

- Os nossos olhares cruzaram-se de forma estranha. Esse fulano talvez seja um grande sábio, mas tenho a impressão que não está satisfeito com a sua sorte e que gostaria de a melhorar.

 

- Não estás a criar ilusões?

 

- Farejo os corruptíveis à légua.

 

- Um sacerdote de Abido... Impossível!

 

- Logo veremos. Se for chamado para falar com ele de novo, saberei mais.

 

Medés pôs-se a sonhar: ter um aliado no interior de Abido, o centro espiritual do Egipto, poder manipulá-lo, conhecer os segredos do templo coberto, utilizá-los em seu proveito! Não, era uma miragem!

- Sabes o nome e a função desse sacerdote?

 

- Ainda não, mas apresentou-se como o meu interlocutor privilegiado para garantir o bem-estar dos seus colegas. A nossa conversa deveria ter sido banal. No entanto, senti que as coisas corriam de forma diferente.

 

- Pronunciou palavras que confirmassem essa impressão?

- Não, mas...

 

- A tua imaginação engana-te, Gergu. Abido não é um lugar como os outros. Não esperes encontrar lá homens vulgares.

 

- O meu faro raramente me engana, garanto-vos!

- Desta vez, estás enganado.

 

- E se eu tivesse razão?

- Repito-te: é impossível.

 

Se-hotep despiu muito lentamente a jovem que tinha encontrado, na véspera à noite, durante um jantar oficial. Não tinham deixado de se olhar e, no fim da refeição, prometeram reencontrar-se a sós. Como o portador do selo real e a linda morena tinham exactamente as mesmas intenções, não se dispersaram com palavras inúteis.

 

É verdade que ela estava mais ou menos noiva, mas como resistir ao encanto daquele dignitário cheio de classe, com olhos cintilantes de inteligência e de desejo? Nenhuma norma obrigava as raparigas a casarem virgens e mais valia ter um pouco de experiência para satisfazer um futuro esposo.

 

Quanto a Se-hotep, não podia passar vários dias sem uma mulher. Era-lhe insuportável viver sem a sua magia, os seus perfumes, a sua sensualidade, esses gestos que só a elas pertenciam. Nunca se casaria porque tinha demasiadas almas fascinantes a descobrir e corpos deliciosos a conquistar. Apesar das censuras de Sobek, o Protector, extremamente moralista, continuava a ser o homem de todas as mulheres.

 

Como era evidente que a atmosfera se descontraíra em Elefantina desde a ligação do chefe de província Sarenput a Senuseret, o portador do selo real pensava de novo no prazer, tanto para dar como para receber. Como superior de todos os trabalhos do Faraó, acabava de supervisionar o plano de ampliação do templo de Khnum na ilha de Elefantina e, a partir do dia seguinte, verificaria o bom estado sanitário dos rebanhos de Sarenput que, como fiel vassalo, aceitava sem protestar essa verificação.

 

Se-hotep receava que qualquer importuno lhe estragasse a noite, mas nenhum oficial apareceu. Ocupou-se portanto, com tanta delicadeza como entusiasmo, da magnífica paisagem a explorar. As concavidades, os vales e as colinas da sua nova conquista proporcionavam motivos de alegria ao aventureiro mais desencantado.

 

O seu secretário teve o bom gosto de esperar que acabasse a sua viagem antes de o incomodar. Trouxe-lhe uma carta redigida em escrita codificada que só ele e o Faraó sabiam decifrar.

 

O conteúdo justificava a reunião imediata de um conselho restrito.

 

- Mantém-se a calma, Majestade - declarou Sobek, o Protectormas não levantei nenhuma das medidas de segurança.

 

- Sem cair num excessivo optimismo - acrescentou o general Nesmontu - devo reconhecer que o comportamento de Sarenput não apresenta qualquer anomalia. A sua milícia está agora sob as minhas ordens e não tenho nenhum incidente a deplorar. Esta aliança parece-me decisiva.

 

- Infelizmente não é - respondeu Senuseret. - O texto dos decretos chegou a todos os chefes de província e temos agora as suas respostas.

 

Se-hotep tomou a palavra.

 

- Uepuauet, chefe de uma das partes da província da Romãzeira e da Víbora de cornos, pronunciou um discurso agressivo a fim de reafirmar a sua independência. Ukh, que reina na outra parte da mesma província, imitou-o. Djehuti, à frente da província da Lebre, anuncia uma grande surpresa que espantará Sua Majestade.

 

- Por outras palavras, um ataque imprevisto - comentou o general Nesmontu.

 

- Quanto a Khnumhotep, o chefe da província da Gazela, afirma alto e bom som a força da sua família, que continuará a governar seu território inalienável.

 

- Portanto esses quatro potentados querem a guerra - concluiu general. - Com as milícias de Sarenput e de Uakha, temos uma pequena hipótese de os vencer.

 

- É cedo de mais para envolver essas tropas numa batalha considerou Senuseret. - O seu juramento de fidelidade é demasiado recente. Mas também não podemos ficar parados.

 

Nesmontu receava uma nova decisão impulsiva que, desta vez, seria fatal ao Rei.

 

- Majestade, recomendo-vos a maior prudência. Os chefes de província que vos são hostis acabam de endurecer a sua posição. Enfrentá-los com forças inferiores às deles conduzir-nos-ia a um desastre.

 

- O responsável pelo enfraquecimento da acácia é um dos quatro: Uepuauet, Ukh, Djehuti ou Khnumhotep! - lembrou Se-hotep. Seja qual for o método utilizado, há que eliminá-lo.

 

- Ao reunirmos as províncias - declarou Senuseret - juntamos o que estava disperso e participamos no mistério osírico. Quando o Egipto está dividido, Osíris deixa de reinar e o processo de ressurreição interrompe-se. A morte invade o céu e a terra. É por isso que vamos deixar Assuão e partir para o norte.

 

- Com que exército? - inquietou-se Nesmontu.

 

- Com a flotilha que nos permitiu conquistar Assuão sem derramamento de sangue.

 

- Majestade, a situação é muito diferente! Sarenput estava isolado, enquanto que os nossos quatro adversários coabitam na mesma região. A sua reacção tende aliás a provar que se uniram. Uepuauet é conhecido pelo seu carácter agressivo e indomável. Não hesitará um instante em lançar a sua milícia contra vós.

 

- Partida amanhã de manhã - ordenou o Rei.

 

Na moradia dos cananeus que vinham da cidade de Siquém, o Anunciador pregara longamente a revolta contra o Faraó e a destruição do Egipto. Fascinados, os discípulos bebiam as palavras que tanto desejavam ouvir. Os futuros terroristas tinham muita necessidade dos encorajamentos do seu chefe, pois a sua integração na sociedade egípcia não se desenrolava tão facilmente como fora previsto. Encontrar trabalho não se revelava muito difícil, mas os contactos com a população, sobretudo com as mulheres, desagradavam-lhes. Detestavam a sua liberdade, o seu modo de falar descontraído e a sua influência. Aquelas fêmeas deveriam fechar-se em casa e obedecer aos maridos. E depois, a figura do Faraó continuava a ser muito popular. Dele esperavam justiça e prosperidade, Ora Senuseret acabava de desencadear uma cheia perfeita que afastava durante muito tempo o espectro da fome e a sua nova administração gozava de uma reputação de honestidade e rigor.

 

Caso para ceder ao desencorajamento, um estado de espírito que o Anunciador parecia ignorar.

 

- Não seria melhor regressarmos a casa - propôs um dos cananeus no fim do sermão - sublevar a nossa região e atacar o Delta? O Anunciador falou-lhe docemente, como se se dirigisse a um pobre de espírito.

 

- Eu próprio teria preferido essa solução. Mas obter uma vitória militar rápida e total é impossível. O exército de ocupação egípcio sufocaria no ovo qualquer tentativa de revolta. Precisamos portanto de lutar do interior, aprender a viver aqui, a conhecer o adversário, os seus costumes e pontos fracos. Será demorado e difícil, mas ajudar-vos-ei, a ti e aos teus companheiros.

 

A casa do libanês não era muito afastada da dos cananeus, mas o Anunciador seguiu um itinerário tortuoso que o afastava dela.

 

- Separemo-nos - disse a Shab, o Torto. - Deixa-me ir à frente e esconde-te.

 

- Se fomos seguidos, não notei nada!

- O seguidor é hábil.

 

- Devo suprimi-lo?

 

- Contenta-te em observá-lo e assegura-te que está só.

 

Shab estava perplexo. Quem teria podido detectá-los? Existiam separações estanques entre as diferentes redes do Anunciador, que ele era o único a conhecer na sua totalidade. Quanto aos seus membros, eram, sem excepção, ferozes opositores do Egipto. Nenhum traidor teria podido infiltrar-se no meio deles.

 

O Torto acocorou-se por baixo de um alpendre e fingiu dormitar. Viu surgir de uma ruela o cananeu que queria regressar a casa, o mesmo que o Anunciador reconfortara!

 

O homem correu, voltou para trás, depois seguiu pela ruela mais estreita. Ninguém o acompanhava.

 

Shab seguiu-o.

 

Era visível que o cananeu perdera o rasto do Anunciador. Hesitante, não sabia qual a direcção a tomar.

 

Despeitado, virou para a esquerda.

 

Shab ouviu um ruído curioso, semelhante à passagem do ar sobre a plumagem de um falcão ao abater-se sobre a sua presa. Saindo sem se saber de onde, o Anunciador acabava de poisar a mão sobre o crânio do cananeu, que soltou um grito de dor, como se garras de ave de rapina se tivessem cravado na sua carne.

 

- Era a mim que procuravas?

 

- Não, não, senhor... Andava a passear! É inútil mentir. Porque me seguias? Garanto-vos que...

 

Se recusares falar, furo-te um olho. O sofrimento é insuportável. A seguir, provocarei outro ainda mais atroz.

 

Aterrorizado, o cananeu confessou.

 

- Queria saber onde íeis e com quem vos encontraríeis.

- Por ordem de quem?

 

- De ninguém, senhor, de ninguém! Não compreendo porque não quereis formar um exército cananeu. Suspeitei portanto que estivésseis ao serviço do Egipto com a intenção de destruir o nosso movimento de resistência.

 

- Não serás antes tu que estás ao serviço do Faraó? - Juro-vos que não!

 

- É a tua última hipótese de dizer a verdade. A garra atacou o olho, o berro foi insuportável.

 

- Não, do Faraó não, mas do meu chefe de clã, em Siquém, que se queria desembaraçar de vós!

 

Um último grito, breve e intenso, gelou o sangue de Shab, o Torto. O cananeu caiu no chão. Não tinha olhos nem língua.

 

O libanês subiu lentamente a escada que ia dar ao terraço da moradia onde flutuavam perfumes capitosos. Era seguido pelo Anunciador e Shab. Desconfiado, este fizera questão de visitar todos os compartimentos.

 

- Gosto de me instalar aqui ao pôr do Sol - revelou o libanês.

- A vista é magnífica, temos a impressão de reinar sobre Mênfis. De facto, o olhar dominava as casas brancas e chegava até aos templos, essas moradas dos falsos deuses que o Anunciador faria arrasar.

 

Não restaria uma única pedra, as estátuas seriam esfaceladas e queimadas. Nenhum sacerdote escaparia ao castigo. Não devia subsistir nenhum vestígio da antiga espiritualidade.

 

- Não estamos aqui para admirar a capital do inimigo - declarou o Anunciador. - Tens notícias de Senuseret?

 

- Rumores contraditórios. Uns pretendem que está prisioneiro do chefe de província Saremput em Elefantina, outros que se apoderou do sul do Egipto depois de uma terrível batalha. Mas ninguém sabe os projectos do Rei, admitindo que ainda esteja vivo.

 

- Está - afirmou o Anunciador. - Porque não é mais eficaz a tua rede de informadores?

 

O libanês devorou um bolo para acalmar o medo.

 

- Porque está ainda pouco desenvolvida, sobretudo no Sul. Vou precisar de muito tempo e prometo-vos que...

 

- Demora esse tempo, mas não me desiludas.

 

Vagamente tranquilizado pelo tom conciliador do Anunciador, o libanês não lhe ocultou nada das dificuldades que encontrava, explicou-lhe a forma como recrutava os seus informadores e como os implantava na população. O principal obstáculo era a lentidão, por vezes mesmo a ausência de meios de comunicação devido ao conflito larvar entre certos chefes de província e o Faraó Senuseret. Não era raro que Khnumhotep bloqueasse os barcos e requisitasse o seu conteúdo. Além disso, e não se tratava apenas de um pormenor, os agentes do libanês tinham de se familiarizar com os costumes locais e falar perfeitamente a língua antes de se aproximarem dos militares e dos funcionários que lhes forneceriam preciosas informações.

 

O Anunciador ouvira com atenção.

 

- Trabalhas bem, meu amigo. Continua assim. A paciência é uma arma capital.

 

- Estou em negociações com um tipo estranho - acrescentou o libanês. - Sei apenas que é um alto funcionário influente que deseja ganhar muito dinheiro. Tenho de saber mais acerca dele e espero, por seu intermédio, estabelecer um contacto com um dignitário do palácio real.

 

- É um dos degraus mais difíceis de subir - afirmou o Anunciador. - Sê extremamente prudente. Qual é o nome desse... desse homem de negócios?

 

Não mo disse. E se o tivesse feito, ter-me-ia mentido.

 

O Anunciador fechou os olhos e tentou ver o rosto desse estranho negociante penetrando na memória do libanês.

 

- A pista parece-me interessante - concluiu. - Identifica-o sem correres riscos. Em que consiste o vosso contacto?

 

-Tráfico de madeiras preciosas. Abre-me o mercado de Mênfis, mas as suas condições estão no limite do aceitável. Não ganharei quase nada.

 

- Sobre esse "quase nada", não te esqueças de entregar à minha rede a parte de que tem necessidade.

 

- Era essa a minha intenção, senhor!

 

- Organiza-se a expedição prevista para Kahun?

 

- Isso também vai demorar algum tempo, muito tempo. O êxito exige numerosas cumplicidades e nem um elo da cadeia pode ceder. No entanto, há uma excelente notícia: o meu primeiro agente chegou a Kahun e arranjou um emprego e começa a observar a forma como funcionam os serviços de segurança.

 

É alguém competente?

 

Competente e indetectável, senhor! Não se pode exigir o impossível, mas é um bom começo.

 

Iker assistia à demolição do celeiro construído à pressa com materiais não adequados. O responsável por aquele acto delituoso não o ameaçaria mais, porque acabava de ser julgado e condenado a uma longa pena de prisão. A construção do novo silo começaria no dia seguinte, de acordo com os planos do jovem escriba que o governador aprovara.

 

No pequeno mundo dos dignitários de Kahun, a reputação de Iker acabava de dar um salto considerável. Inicialmente desprezado pelos seus colegas, tornava-se agora um concorrente perigoso, capaz de se apresentar como candidato a um posto mais elevado. Ter conseguido resolver tão depressa o obscuro assunto dos celeiros implicava excelentes conhecimentos técnicos e esse estrangeiro formado na cidade de Tot mostrava-se digno da sua reputação. No entanto, esse êxito demasiado rápido tinha um aspecto chocante e arriscava-se a abalar a hierarquia.

 

Indiferente aos mexericos e aos conciliábulos, Iker não se ligava a ninguém. Bastava-lhe a amizade de Vento do Norte e não sentia qualquer necessidade de se perder em conversas com os seus colegas, tanto mais que Heremsaf acabava de lhe confiar uma nova tarefa, particularmente delicada: lutar contra os roedores cuja proliferação causava um insuportável prejuízo.

 

O jovem escriba decidira utilizar os grandes meios: fumigação das casas, obstrução das galerias e intervenção de gatos experientes, sem esquecer algumas cobras domésticas que se regalavam com ratos.

 

Iker ocupara-se do conjunto dos edifícios e das moradias de Kahun, desde as grandes casas do bairro este até às modestas habitações do bairro oeste. As mais pequenas tinham três compartimentos e não ultrapassavam sessenta metros quadrados, mas era agradável lá viver.

 

Quando estava a terminar a sua inspecção no bairro menos rico da cidade, Iker viu uma linda morena ajoelhada que, com o auxílio de uma pedra, moía grãos de trigo que saíam de um saco que segurava entre os joelhos. Os seus gestos eram tão regulares como eficazes.

 

- Tens um ar fatigado - disse-lhe ela. - Desejas beber um pouco de cerveja fresca?

 

- Não quero interromper o teu trabalho. - Já acabei.

 

De seios nus, pequenos e redondos, usava apenas um saiote curto. Erguendo-se com graça, entrou na cozinha e voltou a sair com uma taça bem cheia.

 

- És muito amável.

 

- Chamo-me Bina. E tu?

- Sou o escriba Iker.

 

Ela dirigiu-lhe um olhar admirativo.

- Eu não sei ler nem escrever.

 

- Porque não aprendes?

 

- Tenho de trabalhar para viver. E depois, não me admitiriam numa escola, tanto mais que não sou daqui.

 

- De onde és originária?

 

- Da Ásia. A minha mãe morreu lá e o meu pai estava empregado numa caravana. Morreu o ano passado, perto desta cidade. Eu tive a sorte de conseguir um emprego de cozinheira. Como sei fazer pão e cerveja, e até mesmo bolos, ficaram comigo. Não é muito mal pago e como à-vontade.

 

Era espontânea, risonha e sabia usar os seus encantos.

 

- Hás-de encontrar com certeza um bom marido e fundarás um lar.

- Oh, desconfio dos rapazes! Muitos só estão interessados em... Enfim, compreendes. Tu, pelo menos, tens um ar sério.

 

- Mesmo que fiques solteira, deves saber ler e escrever.

- É impossível para uma rapariga da minha condição.

- De maneira nenhuma! Queres aprender?

 

- Não me desagradaria, é claro.

 

- Vou falar nisso ao teu patrão.

 

- És realmente gentil... muito gentil. Bina beijou o escriba nas duas faces.

 

- Desculpa - disse Iker - mas o meu dia de trabalho está longe de estar terminado.

 

Até breve - murmurou ela com um sorriso feiticeiro.

 

Excelente trabalho - reconheceu Heremsaf - Os habitantes de Kahun estão encantados. Para ser franco, não pensava que obtivesses resultados tão rápidos.

 

- É preciso sobretudo agradecer aos gatos: verdadeiros profissionais.

 

- És demasiado modesto! Sem um estudo cuidadoso de terreno, não terias conseguido.

 

- A propósito, fiz uma observação que gostaria que me confirmásseis se está correcta. O módulo de construção de Kahun não são oito côvados, um dos números sagrados de Tot? A própria cidade está subdividida em quadrados de dez côvados e o seu plano, tal como o das casas, nada deve ao acaso'. Advém, com efeito, de regras de proporções baseadas num triângulo isósceles onde a relação da base com a altura é o Oito dividido pelo Cinco.

 

Heremsaf olhou o rapaz com interesse.

 

- É mais ou menos isso, com efeito. Quem te disse isso?

- Ninguém. Tentei simplesmente compreender o que via.

 

- Então és realmente um investigador de espírito. Terminou o tempo dos celeiros, confio-te uma nova missão: o inventário dos antigos armazéns. Farás a lista dos objectos que lá se encontram e depois procederemos a uma distribuição dos que ainda são utilizáveis antes de reabilitar esses lugares.

 

- Deverei trabalhar só?

- Não é esse o teu hábito?

 

- Agirei tão depressa quanto possível, mas os edifícios são grandes.

 

Kahun estava efectivamente construída de acordo com a Divina Proporção ou Número de Ouro.

 

Preciso de alguém tão meticuloso como tu e que saiba usar o seu tempo sem o perder. Nada deve escapar à tua vigilância. Ouves bem: nada.

 

- Compreendo. Posso pedir-vos um favor? o olhar de Heremsaf tornou-se desconfiado.

- Estás descontente com quê?

 

- Não se trata de mim nem do Vento do Norte. Encontrei uma rapariga e...

 

Heremsaf ergueu os braços ao céu.

 

- Ah, não, isso não! Estás em plena ascensão, descobres as múltiplas facetas da profissão e já te queres casar!

 

- De maneira nenhuma.

 

- Não me digas... cometeste uma grande asneira?

 

- Falei com uma criada que gostaria de aprender a ler e a escrever. Heremsaf franziu as sobrancelhas.

 

- Onde está o problema?

 

- É uma estrangeira, bastante tímida, que teria necessidade de uma recomendação.

 

- Como se chama?

- Bina.

 

Heremsaf explodiu.

 

- Ah, não, essa não! Desconfia dessa mulher que ninguém conhece verdadeiramente. É uma espécie de água profunda que oculta mil e um perigos. Não te aproximes dela!

 

- Ela trabalha aqui...

 

- Foi por preocupação humanitária que o governador não a reenviou para a sua Ásia natal. Ordeno-te que não voltes a aproximar-te dela. A alma é da mesma natureza que o pássaro, o corpo assemelha-se ao peixe'. Apodrece pela cabeça e a tua está doente, meu rapaz! Um dos teus objectivos não é escrever? Esqueceste que a única literatura digna de estima é a que ajuda a conceber Maet, justeza do universo e rectidão do ser? Dizer Maet, fazer Maet, é excluir as paixões estúpidas e os entusiasmos levianos. As tuas qualidades, a tua vida interior, a tua profissão e o teu comportamento devem formar uma harmonia. Se julgas que podes ser um bom escriba e um ignóbil indivíduo, sairás do domínio de Maet, porque a coerência é o caminho obrigatório para o conhecimento. Não o confundas sobretudo com o saber! Podes aprender durante anos sem nunca conhecer. Porque só há conhecimento luminoso e o seu verdadeiro objectivo é a prática dos mistérios, Mas quem ousaria pretender obtê-lo sem iniciação? Agora, deixa-me. Ainda tenho uma boa dezena de relatórios para ler.

 

Iker não compreendia a razão da cólera de Heremsaf O que teria de tão ameaçador aquela rapariga que apenas desejava instruir-se? Não ser rica nem de boa família, ser órfã e estrangeira já eram desvantagens suficientes! Para quê agravá-las recusando-lhe qualquer possibilidade de melhorar a sua condição?

 

Mesmo que Heremsaf se enganasse a respeito de Bina, tinha no entanto pronunciado palavras essenciais.

 

Iker estendeu-se na sua esteira e poisou sobre o ventre o marfim mágico que protegia o seu sono.

 

O lindo rosto da asiática desapareceu para deixar surgir o da jovem sacerdotisa.

 

Iker esqueceu a fadiga, Bina, Heremsaf Aquela que ele amava era tão bela que apagava as provações e os sofrimentos.

 

A seu lado, a sedutora asiática não tinha nenhum encanto.

 

Iker sabia que ela era a felicidade, mas inacessível. Inacessível como os assassinos a soldo do Faraó de que não encontrara ainda o rasto. Mas era ali, bem o sentia, que se ocultava a chave principal.

 

Deixando-se deslizar para o sono, o rapaz sonhou que ela lhe segurava ternamente na mão e que avançavam por um campo cheio de sol.

 

De momento, era impossível aproximar-se dos arquivos. Iker teria de pedir uma autorização especial a Heremsaf, que haveria forçosamente de exigir tomar conhecimento dos motivos daquela curiosidade. O escriba contentou-se portanto em desempenhar a nova missão, mas sem perder de vista o seu objectivo. Se os seus adversários contavam com o tempo para desgastarem a sua determinação, estavam enganados. Iker queria provas indiscutíveis. E quando as tivesse obtido, agiria.

 

No caminho para os antigos armazéns, encontrou Bina que levava à cabeça um cesto cheio de bolos.

 

- Intervieste em meu favor?

 

- Falei ao meu superior. Mostrou-se decididamente hostil à minha proposta.

 

- Deve ser um homem muito duro. Dizem que és o escriba mais trabalhador de Kahun.

 

Iker sorriu.

 

- Procuro simplesmente aprender bem a minha profissão.

 

- Então - constatou ela com expressão desolada - nunca saberei ler nem escrever.

 

- Não acredites nisso! Heremsaf não será sempre o meu superior, hei-de encontrar alguém mais conciliador. Dá-me mais algum tempo.

 

Ela poisou o cesto e girou lentamente em redor de Iker.

- E se tu me ensinasses às escondidas?

 

- Recebi ordem para não conviver contigo. Em qualquer momento seríamos surpreendidos e denunciados.

 

- Corramos o risco!

 

- Para ti, as consequências seriam catastróficas. O governador expulsar-te-ia de Kahun e talvez fosses mesmo obrigada a abandonar o Egipto.

 

- Gostava muito de te voltar a ver. Tu não?

- Sim, claro, mas...

 

- Tens o direito de passar diante da casa onde eu trabalho! Descobrirei um lugar tranquilo onde ninguém nos incomodará e arranjarei maneira de te informar. Até breve, Iker.

 

Decidida, afastou-se depois de ter voltado a colocar à cabeça o cesto de bolos.

 

Inventariar a multiplicidade de objectos armazenados em vastos edifícios ao abandono não era uma sinecura. Iker começara por mandar abrir as janelas a fim de dispor de luz suficiente. Depois, uma demorada fumigação desinfectara o local e, armado com o seu material que Vento do Norte transportava, o escriba começara a escolher, a anotar e a descrever.

 

Ferramentas agrícolas como enxadas, ancinhos, foices ou pás, instrumentos de pedreiro, formas para tijolos, machados de marceneiro, objectos de bronze, de pedra e de cerâmica, facas, cinzéis, cestos, vasos e mesmo brinquedos de madeira... Era uma grande parte da vida quotidiana de Kahun que estava ali representada. Grande número de objectos mereciam ser reparados e seriam de novo utilizáveis.

 

Foi ao verificar a última escolha do dia que Iker descobriu uma faca de lâmina quebrada. Gravados profundamente na madeira do cabo, sinais grosseiros mas ainda legíveis.

 

Formavam uma palavra: Veloz.

 

Durante longos segundos, o jovem escriba permaneceu interdito. Quer tivesse pertencido ou não a Faca-Cortante, aquele testemunho só podia ser proveniente do barco que levara Iker para o país de Punt.

 

- Majestade, estamos a chegar à vista da cidade de Assiut anunciou o general Nesmontu com gravidade. - Ainda estamos a tempo de bater em retirada.

 

A décima terceira província do Alto Egipto, cujo emblema era uma romãzeira encimada por uma víbora de cornos, colocava-se sob a protecção do chacal que guiava o viajante nas perigosas extensões do deserto, que avançavam sobre as terras cultivadas. Aqui, o vale apertava-se, formando um verdadeiro ferrolho. Quem quisesse reinar sobre o Egipto teria de controlar aquela posição estratégica, dominada pelos túmulos de nobres escavados na falésia. Assiut: era também um centro comercial, um ponto de chegada das pistas de caravanas provenientes dos oásis de Dakleh e de Khargeh. Sobrecarregando-as com impostos para além do razoável, o senhor local Uepuauet podia pagar aos seus milicianos.

 

- A pessoa do Faraó deve ser mantida em segurança - considerou o portador do selo, Se-hotep. - Solicito portanto a sua autorizaÇão para entabular sozinho a negociação.

 

Numerosos barcos enquadraram a flotilha real. Uns barraram-lhe a passagem, outros impediram-na de retroceder, outros ainda obrigaram-na a acostar.

 

À proa da sua embarcação, Senuseret tinha na cabeça o nemés, antigo ornamento que permitia ao pensamento do Faraó ultrapassar os espaços. Sobre o peito, um peitoral com estranhas figuras.

 

Sobek, o Protector aproximou-se.

 

- Isto parece uma detenção, Majestade!

 

- Se esse revoltado Uepuauet poisar a sua mão sobre o Rei prometeu Nesmontu. - rebento-lhe o crânio!

 

- Vou sozinho a terra - decidiu Senuseret. - Se não regressar e vos atacarem, procurem sair desta ratoeira.

 

Os millicianos dispostos no cais observaram com espanto o colosso que descia a passarela.

 

Por instinto, alguns curvaram-se. As fileiras afastaram-se para lhe abrir caminho. Nenhum dos oficiais que tinham recebido ordens para interpelar Senuseret e conduzi-lo ao palácio do chefe de província ousou intervir.

 

Uepuauet exibira a totalidade das suas forças. O Rei constatou que um exército poderoso e determinado não poderia ter a certeza de conseguir a vitória.

 

Curiosamente, dir-se-ia que Senuseret encabeçara aquela milícia bem alimentada e bem equipada, cujos membros o seguiam numa certa confusão. A população da província assistia ao estranho espectáculo e não perdia de vista o hóspede indesejável cuja cabeça emergia de um oceano de soldados.

 

De repente, Senuseret parou,

- Tu, aí, vem cá.

 

O Rei apontava um boieiro esquelético, de tal forma magro que se lhe viam as costelas. De cabelos hirsutos, envergando um saiote coçado, apoiava-se a um cajado nodoso,

 

O infeliz olhou para trás de si. Um soldado bateu-lhe no ombro.

- É a ti que estão a chamar, homem! Vai lá, anda.

 

Hesitante, o boieiro avançou.

 

- Regula o teu passo pelo meu - ordenou-lhe o Rei.

 

O boieiro tinha vivido tantos momentos difíceis nos pântanos que aquela prova não lhe pareceu impossível de superar. Com certeza que aquele gigante era uma grande personagem, mas quando não se comia o que se queria e todas as manhãs eram um sofrimento suplementar, que importância tinha isso?

 

No limiar do palácio, um homem de nariz pontiagudo, muito hirto, segurava um ceptro na mão direita e um longo bastão na esquerda. Atrás dele, um sacerdote elevava uma insígnia sobre a qual se erguia uma estátua em madeira de ébano do chacal Uepuauet, "o Abridor de caminhos", do qual o chefe de província tomara o nome.

 

Não estou encantado por vos ver - disse ele a Senuseret. Soube da submissão de dois cobardes, mas não julgueis nem por um instante que isso provocará a minha. O deus que me protege conhece os segredos dos caminhos do céu e da terra. Graças a ele, a minha região é poderosa. Quem a atacar sofrerá uma pesada derrota. Reinai sobre o Norte, mas não me importuneis no meu território.

 

- Não és digno de comandar - declarou o Faraó.

- Como ousais...

 

O Rei empurrou para a sua frente o boieiro esquelético.

 

- Como ousas tolerar que um único habitante da tua província definhe numa tal miséria? Nada falta aos teus milicianos, mas os teus camponeses morrem de fome. Tu, que te pretendes tão forte a ponto de desafiar o Faraó, trais Maet e desprezas a população cuja prosperidade deverias assegurar. Quem aceitaria combater e morrer por um chefe tão deplorável? Resta-te apenas uma solução: reparar o mal que cometeste, com o acordo do Senhor das Duas Terras.

 

- Que o meu chacal protector destrua o agressor! - clamou o chefe de província.

 

A insígnia avançou para Senuseret.

 

Todos julgaram ver abrir-se a goela do predador. O monarca tocou no seu peitoral sobre o qual estava representado um grifo vencendo as forças do caos e os inimigos do Egipto. Usando a dupla coroa, simbolizava a soberania do Faraó sobre os dois países, o do Norte e o do SuL

 

Para estupefacção geral, a cabeça do chacal curvou-se. Uepuauet, o Abridor de caminhos, acabava de reconhecer Senuseret como seu senhor.

 

Os milicianos deixaram cair as armas no chão.

 

Compreendendo que nem um único dos seus soldados lhe obedeceria, o chefe de província largou o ceptro e o bastão de comando.

- É verdade que utilizei as riquezas da minha província para equipar a milícia, mas receava uma invasão.

 

- Como invadiria o Faraó a sua própria terra? Sou ao mesmo tempo a unidade e a multiplicidade. A primeira não impede a segunda, a segunda não poderia existir sem a primeira. Quando se estabelece esta comunhão, nenhum boieiro sucumbe na miséria.

 

- Poupai-me a vergonha de um julgamento e matai-me já.

 

- Porque suprimiria um fiel servidor do reino?

 

Uepuauet ajoelhou diante do Rei e depois elevou as mãos em sinal de veneração.

 

- Diante dos habitantes da tua província - constatou Senuseret juraste-me fidelidade e a palavra dada não volta atrás. Mantenho-te à frente desta região que farás prosperar, de acordo com as directivas do grande tesoureiro Senankh. Quanto aos teus milicianos, serão colocados sob o comando do general Nesmontu. A partir de agora, a tua única preocupação será o bem-estar dos teus administrados. Levanta-te e retoma os símbolos da tua dignidade.

 

- Longa vida a Senuseret! - gritou um miliciano, imitado em breve pelos seus colegas.

 

E foi no meio de um concerto de aclamações que o Rei e o chefe de província penetraram no palácio.

 

- Majestade, nunca teria pensado que exerceces o vosso poder sobre o chacal Uepuauet!

 

- Ignoras que faz parte das forças que participam nos mistérios de Osíris celebrados pelo Faraó. Tu, que te tinhas colocado sob a sua protecção sem conhecer a sua verdadeira natureza, és tu o criminoso que tenta destruir a acácia do grande deus?

 

O chefe de província ficou tão estupefacto que Senuseret não duvidou da sua sinceridade.

 

- Majestade, quem cometesse uma tal patifaria veria o seu nome aniquilado! Ora eu desejo que o meu perdure na minha Morada de Eternidade onde, graças aos rituais, me tornarei um Osíris. Sei que a sua acácia simboliza a ressurreição à qual aspiram os justos. Sobre o vosso nome e sobre o dos meus antepassados, que me amaldiçoariam em caso de mentira, juro que não sou culpado!

 

Durante o grande banquete organizado para festejar o regresso da província de Uepuauet ao âmbito do Egipto de Senuseret, a atmosfera foi tanto mais descontraída quanto muitos tinham receado um conflito sangrento. Convidado juntamente com vários camponeses pobres, o boieiro esquelético saboreava pratos com os quais nem sequer tinha ousado sonhar.

 

Quais são as tuas relações com o teu vizinho, o chefe de província Ukh? - perguntou o Faraó ao seu novo servidor.

 

- Execráveis, Majestade. Partilhamos um território que tem o mesmo nome, "O da romãzeira e da víbora de cornos", mas não conseguimos entender-nos para reunirmos as nossas administrações e as nossas milícias. Cada um de nós vela ciosamente pelo seu domínio e muitas vezes estivemos prestes a entrar em confronto.

 

- Ele é capaz de compreender o que tu compreendeste?

 

- De certeza que não, Majestade! Ukh é orgulhoso e casmurro. Para ser sincero, não gostaria que os meus milicianos fossem envolvidos num conflito contra os dele. Haveria mortos, muitos mortos!

 

- Tentarei evitá-lo, mas devo continuar a reunificar o país. Foi a nossa desunião que permitiu a uma força maléfica atacar a acácia de Osíris. Quando todas as províncias viverem de novo em harmonia, as nossas hipóteses de vencer as trevas aumentarão de forma considerável.

 

Uepuauet baixou a cabeça.

 

- Nenhum discurso teria podido convencer-me dos bons fundamentos da vossa iniciativa, Majestade. É porque conheceis os caminhos misteriosos revelados pelo chacal que me haveis convencido. Tal como eu, Ukh julga-se o mais forte e está muito agarrado às suas conquistas.

 

- Um dos nomes do Faraó é "O da abelha" - lembrou Senuseret. - Deve ter em consideração que cada indivíduo conta e desempenha o seu papel na fabricação do ouro vegetal, mas também que a colmeia é mais importante do que a abelha. Sem ela, sem a Grande Morada' onde cada egípcio encontra o seu lugar, nem o espírito nem o corpo poderiam viver.

 

O general Nesmontu estava deslumbrado. Os milicianos de Uepuauet obedeciam-lhe à mínima ordem, como se sempre tivesse sido o seu chefe. Nem um gesto de indisciplina, nem um protesto. Bons profissionais, desejosos de ser bem comandados e corresponder.

 

Nota: Da expressão egípcia, per-aa, "a Grande Casa", vem a palavra Faraó. (N. da T.)

 

Ao juntar-se de novo ao conselho restrito que se mantinha no barco do Rei, o velho soldado interrogava-se se a peregrinação insensata pretendida pelo soberano iria até ao fim.

 

- Não seria conveniente propagar a notícia da submissão de Uepuauet? - sugeriu Se-hotep. - Tenho consciência que essa é a tarefa de Medés e que ele regressou a Mênfis, mas podemos enviar-lhe mensagens esperando que pelo menos uma delas chegue a bom porto.

 

- É inútil - considerou Senuseret. - Nenhum dos três chefes de província que teremos ainda de enfrentar terá essa ocorrência em conta.

 

- Partilho a opinião do Rei - aprovou Nesmontu. - Ukh é um bruto, Djehuti um granito e Khnumhotep um pretensioso que não renunciará a nenhuma das suas prerrogativas! É impossível discutir com esses três.

 

- Mesmo assim, sem dúvida vão ficar abalados com os êxitos do Rei - objectou Se-hotep. - A negociação não está inevitavelmente votada ao fracasso.

 

- A nossa próxima etapa está muito próxima - lembrou Senuseret - visto que se trata da outra metade da província da Romãzeira e da Víbora de cornos. Não percamos tempo em conversas vãs.

 

- Desejais um ataque massivo? - interrogou Nesmontu.

 

- Continuaremos a aplicar o meu método - decidiu o Faraó.

 

Com a cabeça encimada por uma estrela de sete pontas, envergando um vestido que imitava uma pele de pantera constelada de estrelas de cinco pontas inscritas no interior de um círculo, a jovem sacerdotisa escrevia as palavras de força pronunciadas pela Rainha do Egipto, que viera presidir à confraria das sete Hathor.

 

A sua escrita era fina e precisa e o seu texto foi considerado digno de entrar no tesouro da comunidade feminina. Aquela "outra maneira de dizer", segundo a expressão consagrada, seria transmitida às gerações futuras para enriquecer a sua reflexão. Assim a tradição esotérica permanecia viva para além das que a tinham formulado num momento de graça.

 

Quando as iniciadas abandonaram o templo no séquito da Rainha, agitaram-se confusos pensamentos no espírito da jovem sacerdotisa. Por que razão a soberana lhe predissera que deveria abandonar aquele santuário a fim de travar uma perigosa batalha? Por que razão o sumo sacerdote defunto da confraria masculina falara também de inimigos aterradores que teria de enfrentar?

 

Desde a sua adolescência, apenas se sentia fascinada pelo universo do templo. Ao lado dos mistérios que ele guardava, o mundo exterior parecia-lhe insípido. E durante a aprendizagem dos hieróglifos que lhe ensinara uma sacerdotisa erudita, imergira com deslumbramento no jogo das forças criadoras que revelavam as letras mães. Ao escrever o nome das divindades, descobrira a sua natureza secreta, como o da deusa Hathor que significava "a Casa de Hórus", o local sagrado onde brilhava a luz fulgurante da iniciação. Além disso, na primeira parte do nome, Hat, estava incluída a noção de Verbo criador e substancial. As sete Hathor alimentavam precisamente a luz pelo Verbo sob todas as suas formas, da palavra ritual à música.

 

Cada passagem de grau fora uma rude prova, tanto física como espiritual, mas a jovem sacerdotisa não receava nem os esforços nem o trabalho intenso necessários para avançar naquela via. Não eram inesgotáveis fontes de alegria?

 

Pela primeira vez, estava perturbada. E essa perturbação não se dissipava nem no sono nem nas suas actividades quotidianas. Todas as manhãs e todas as noites a confraria feminina tocava música a fim de manter a seiva da acácia de Osíris, cujo estado não evoluíra. Por vezes, a jovem sentia dificuldade em se concentrar devido àquele sentimento desconhecido que não conseguia sufocar.

 

Dirigiu-se ao estaleiro da Morada de Eternidade de Senuseret, onde um talhador de pedra acabava de se ferir por causa de uma ferramenta defeituosa. Incidente menor, é um facto, mas que tornava o clima ainda mais pesado, porque o artesão era um perito e sentia-se humilhado.

 

Desinfectou a ferida com a tintura mãe-de-calêndula, depois aplicou uma compressa de mel que segurou com uma ligadura de linho.

- Os acidentes multiplicam-se - lamentou o mestre-de-obras. Tomo cada vez mais precauções, mas sem grande êxito. Os trabalhos atrasam-se e alguns afirmam que o estaleiro está enfeitiçado. Não poderíeis intervir para os tranquilizar?

 

- Falarei hoje mesmo ao superior.

 

Como a jovem tinha de entregar uma cópia do seu texto ao Calvo, que a classificaria nos arquivos da Casa de Vida, solicitou a sua ajuda.

- Aquele estaleiro também me inquieta - confessou. - A melhor solução consiste em repetir o ritual da faixa vermelha que aprisiona as forças nocivas.

 

- E se não for suficiente?

 

- Temos outras armas de reserva e bater-nos-emos até ao fim. Acompanha-me até à acácia.

 

Ele levou o vaso com água, ela o vaso com leite. Um a seguir ao outro, deitaram lentamente os líquidos no pé da árvore doente. O único ramo que reverdecera parecia de boa saúde, mas emanava daquele local, onde outrora reinava a serenidade, uma profunda tristeza.

 

- Intensifiquemos as nossas investigações - preconizou o Calvo. - A partir de amanhã, vai ter comigo à biblioteca. Explorando os textos antigos, talvez descubramos indicações úteis.

 

A sacerdotisa alegrou-se com aquela missão que lhe ocuparia o espírito. Mas ao regressar ao local de habitação da confraria feminina sentiu-se de novo oprimida pelas mesmas inquietações.

 

- A Rainha deseja ver-te - avisou-a uma das suas irmãs.

 

A soberana e a jovem sacerdotisa avançavam pela álea ladeada de capelas e esteias dedicadas a Osíris.

 

- De que sofres tu?

 

- Não estou doente, Majestade. Apenas um pouco de fadiga e...

- A mim, nada podes dissimular. Qual é a pergunta que te obceca?

- Interrogo-me se sou suficientemente forte para continuar por esta via.

 

- Não é o teu mais caro desejo?

 

- Claro que sim, Majestade, mas as minhas fraquezas são tais que podem tornar-se entraves,

 

- Essas fraquezas fazem parte dos obstáculos a vencer e não devem, em caso algum, servir-te de álibi.

 

- Tudo o que me afasta do templo não constitui um perigo?

- A nossa Regra não te obriga a viver em reclusão. A maior parte das sacerdotisas e dos sacerdotes são casados, outros escolhem o celibato.

 

- Um casamento com uma pessoa afastada do templo não seria um erro?

 

- Não existe lei rígida. Compete-te a ti escolher o que alimenta o fogo do conhecimento e evitar o que o enfraquece. Sobretudo, nunca faças batota contigo própria e não tentes mentir a ti mesma. Caso contrário, perder-te-ias num deserto sem fim e a porta do templo voltaria a fechar-se.

 

Quando a Rainha deixou Abido, a jovem sacerdotisa pensou de novo no rapaz que encontrara tão brevemente e que, com certeza, não voltaria a ver. Longe de lhe ser indiferente, fizera nascer nela um sentimento estranho que, lentamente, ganhava dimensão. Não deveria pensar nele, mas não conseguia afastá-lo do seu espírito. Talvez, com O tempo, o rosto do rapaz se esbatesse.

 

Ao chegar a Abido, Gergu constatou que a vigilância não abrandara. Vários soldados subiram a bordo do seu barco, exigiram a ordem de missão e verificaram o carregamento com extremo cuidado.

 

- Unguentos, peças de linho, sandálias: tudo isso é destinado ao colégio dos sacerdotes permanentes - informou Gergu. - Eis a lista pormenorizada que tem o selo do grande tesoureiro Senankh.

 

- Temos de ter a certeza que os produtos correspondem a esta lista - declarou secamente um oficial.

 

- Não confiam no grande tesoureiro e no seu representante oficial?

 

- Ordens são ordens.

 

Não épassandopor este desembarcadouro que poderei fazer entrar de contrabando umproduto, constatou Gergu. Havia demasiados soldados e polícias para poder comprá-los a todos.

 

Teve de esperar pacientemente o fim da inspecção e, como na sua primeira visita, também foi revistado.

 

- Voltais a partir imediatamente? - perguntou o oficial.

 

- Não, tenho de visitar um sacerdote para lhe mostrar esta lista, saber se ela o satisfaz e receber a encomenda das suas novas exigências.

 

- Esperai no posto de guarda. Virão buscar-vos.

 

Não seria ainda desta vez que Gergu descobriria Abido. Vigiado por dois guardas das galés com os quais nem sequer tentou meter conversa, passou pelo sono.

 

Se não encontrasse o mesmo sacerdote, aquela viagem teria sido inútil. Como Gergu ignorava tudo do funcionamento da confraria, receava que esta lhe enviasse outro responsável muito diferente do primeiro.

 

Nesse caso, não teria nada mais a esperar e a decepção seria amarga. Porque, para que um sítio fosse tão bem guardado, era preciso que guardasse prodigiosos tesouros! Gergu censurou-se por não ter pensado nisso mais cedo: Abido não era o centro espiritual do Egipto, o lugar sagrado entre todos, onde o Faraó absorvia o essencial da sua força? Senuseret não exigira uma tal concentração de forças sem uma razão fundamental. Passava-se ali qualquer coisa de importante e o alma danada de Medés tencionava descobrir o que era, desde que a sorte continuasse a bafejá-lo.

 

- Segui-nos - ordenou outro oficial, acompanhado de quatro archeiros.

 

Conduziram Gergu ao mesmo gabinete da sua visita precedente. Nervoso, andou de um lado para outro. Por fim, a porta abriu-se. Era o mesmo sacerdote!

 

- Sinto-me feliz por voltar a ver-vos - disse Gergu, sorrindo.

- Eu também.

 

- Eis a lista dos produtos que me haveis pedido. Convém-vos? O sacerdote leu-a com atenção.

 

- Sois um homem meticuloso com quem se pode contar.

 

- De acordo com as ordens, nada deve faltar a Abido. De que precisareis nas próximas semanas?

 

- Tenho uma nova lista a entregar-vos.

 

O sacerdote deu uma tabuinha ao seu interlocutor. No seu olhar, havia o mesmo brilho que tanto agradava a Gergu.

 

- Podemos falar tranquilamente neste compartimento? - interrogou em voz baixa.

 

- Quereis dizer... ao abrigo de ouvidos indiscretos? Penso que sim. Qual a razão dessa pergunta?

 

Tenso, Gergu devia evitar o passo em falso que faria fugir a sua presa.

 

- A par das nossas relações comerciais, poderia haver outras.

- De que natureza?

 

Primeira vitória! O sacerdote parecia interessado.

 

- O meu cargo de inspector principal dos celeiros permite-me ultrapassar um pouco as minhas atribuições legais e completar o meu salário. É preciso ser discreto e prudente, como é óbvio, mas seria pena revelar falta de ambição. Abido não é apenas um centro espiritual, é também uma pequena cidade que deve permanecer próspera para permitir às confrarias agir com toda a tranquilidade. Porque havia de ser excluída a noção de lucro? Por que razão um sacerdote, por muito dedicado que fosse ao culto de Osíris, não teria o direito de se tornar rico?

 

Um longo silêncio seguiu-se a estas declarações e a estas perguntas. O sacerdote observou Gergu com extrema atenção.

 

- No que diz respeito aos temporários - declarou por fim não há qualquer interdição. A situação dos permanentes, como eu, é diferente visto que não saímos de Abido.

 

- Eu, pelo contrário, posso ir e vir. Se nos tornássemos amigos, as vossas perspectivas de futuro seriam radicalmente alteradas.

 

- O que propondes exactamente?

 

- Estou convencido de que Abido encerra tesouros.

- Todos o sabem.

 

- Claro, mas quais são eles? Vós conhecei-los.

- Estou obrigado ao segredo.

 

- Um segredo, compra-se, E estou igualmente persuadido que tendes muito a vender.

 

- Como haveis podido imaginar que eu trairia a minha hierarqia?

- Quem vos fala de traição? Abido interessa-me muito e vós desejais enriquecer. Trata-se portanto de uma bela conjugação de interesses. Ajudai-me e eu vos ajudarei. O que há de mais simples?

 

- O que há de mais complicado e perigoso! Em primeiro lugar, para quem e com quem trabalhais? Duvido que o vosso verdadeiro patrão seja o grande tesoureiro Senankh, um dos fiéis do Faraó Senuseret.

 

- As vossas dúvidas são justificadas.

- Então, quem é?

 

- É um pouco cedo de mais para vo-lo revelar. Devemos aprender a conhecermo-nos, a prestarmos ambos as nossas provas, a alcançarmos uma confiança mútua. Voltarei portanto a rever-vos oficialmente e continuaremos o pequeno jogo das entregas de produtos. Reflecti nos meios de enriquecerdes sem sair de Abido e veremos se os nossos projectos são realizáveis.

 

Iker limpava o seu quarto quando teve uma visita. Ela.

 

Ela falava-lhe, mas ele não ouvia as palavras que ela pronunciava. Depois desapareceu tão bruscamente como tinha aparecido. Aquela fulgurância deixou o jovem atónito durante longos minutos. O que podia significar a não ser que ela se lembrava da sua existência e que os seus pensamentos eram capazes de se unir? No entanto, não passava sem dúvida de um sonho acordado, e a voz autoritária de Heremsaf encarregou-se de chamar Iker à realidade.

 

- Quando tiveres terminado os teus trabalhos domésticos, vai ter comigo ao meu gabinete.

 

O rapaz terminou escrupulosamente de fazer as suas limpezas. Como não tinha recebido nenhuma censura desde a sua chegada, tinha de acreditar que satisfazia o dono da casa.

 

Iker seguiu por um corredor de um branco imaculado e bateu à porta em sicômoro.

 

- Entra e fecha atrás de ti.

 

O compartimento era espaçoso, as janelas deixavam passar apenas a luz suficiente para trabalhar e reinava uma ordem impecável nas prateleiras. O rosto de Heremsaf continuava tão carrancudo como era habitual.

- Prepara-te para te mudares, meu rapaz.

 

- Vós... vós não achais que eu seja suficientemente cuidadoso?

- Pelo contrário, és uma espécie de modelo. A tua maturidade e a tua seriedade não param de me surpreender.

 

- Nesse caso...

 

- Trata-se de uma promoção. O governador está particularmente satisfeito com o teu trabalho e concede-te um lugar na elite dos escribas. É por isso que terás direito a um alojamento oficial e a um criado. Em contrapartida, as tuas responsabilidades e a tua sobrecarga de trabalho aumentarão.

 

- Em que posto vou ser colocado?

 

- De momento, terminas o inventário que tão brilhantemente começaste. Depois, tu próprio procederás à redistribuição dos objectos utilizáveis. Em seguida, encarregar-te-ás da reabilitação dos lugares. Será posta à tua disposição uma equipa de operários e organizarás os trabalhos como quiseres. É evidente que o governador exige resultados rápidos. Entretanto, concedo-te um dia de repouso.

 

Iker e Vento do Norte deambularam por Kahun a fim de descobrirem todos os aspectos daquela cidade construída de acordo com as proporções divinas. O muro da cerca dava uma impressão de segurança, ainda mais confirmada pelas rondas regulares da polícia municipal. Graças a eficazes serviços de limpeza, a artéria principal e as ruas eram de um asseio exemplar. Desde a maior das moradias, a do governador, à mais modesta das duzentas casas do bairro oeste, Kahun podia gabar-se da sua garridice: nem uma fachada decrépita, nem uma persiana com a pintura estalada, nem uma porta estragada, jardins bem tratados, canalizações em perfeito estado. Ninguém tinha falta de água e o respeito pelas regras de higiene era rigoroso. A cidade orgulhava-se do seu nome sagrado, "Senuseret está satisfeito".

 

A organização do trabalho não era menos notável. O pessoal dos templos mostrava-se pontual na realização das suas tarefas rituais, padeiros e cervejeiros recebiam as quantidades de cereais necessárias ao fabrico do pão e da cerveja, os talhantes a carne reconhecida como pura pelo veterinário, o cabeleireiro ambulante trabalhava ao ar livre, os fabricantes de sandálias e de cestos expunham-nos no mercado, ao lado dos vendedores de fruta e legumes. Em Kahun, ninguém tinha falta de nada.

 

Iker parou diante do escaparate de um fabricante de brinquedos em madeira. Bonecas com peruca e membros articulados, hipopótamos, crocodilos, macacos, porcos... Todos muito bem feitos! Um objecto reteve a sua atenção: um barco de notável qualidade. Dír-se-ia uma maqueta do Veloz!

 

- Os vossos brinquedos são soberbos - disse ele ao artesão.

- Os pais apreciam-nos tanto como as crianças. já és pai de família?

- Ainda não, mas gostaria de oferecer este barco.

 

- Foi o único que não fui eu a fazer e é também o mais caro. Uma pequena obra-prima!

 

- Quem é o autor?

 

- Um carpinteiro reformado. O melhor de Kahun, segundo os seus colegas. Deram-lhe o apelido de Plaina, de tal forma se identifica com essa ferramenta.

 

- Se ainda cá vive, gostaria de o felicitar.

 

- É fácil, reside numa pequena casa do bairro oeste. O vendedor deu a Iker indicações precisas.

 

- Como desejas que te pague: em géneros ou em horas de trabalho? Sou escriba e posso redigir qualquer género de documento.

 

- Cai bem: tenho precisamente necessidade de escrever aos membros da minha família que vivem no Delta. Dez cartas, convém-te?

- Este barco é tão perfeito que te faço doze.

 

Uma criada varria o limiar da casa com grande vigor.

- Poderei ver o Plaina? - perguntou Iker.

 

- O Plaina está doente.

 

- Mas é muito importante para mim.

 

- Pelo menos, não lhe vais causar aborrecimentos, pois não?

- Sou escriba e gostava de o felicitar pelo seu talento de artesão. A criada encolheu os ombros.

 

- Está bem, tira as sandálias, lava os pés, limpa-os e não sujes nada. Não vou fazer aqui as limpezas duas vezes por dia.

 

Iker seguiu as instruções e penetrou na casa, cujo primeiro compartimento era reservado ao culto dos antepassados.

 

Plaina estava no segundo, que se assemelhava muito a uma oficina, com toros de madeira, ferramentas e um banco de carpinteiro. Mas o velho homem já não trabalhava. Com os cabelos hirsutos, as costas curvadas e o ventre inchado, estava sentado numa cadeira de espaldar alto e segurava uma bengala no punho da qual apoiava o queixo. Olhava fixamente uma serra e uma enxó de cabo curto, indispensável para aplainar as tábuas.

 

- Sou o escriba Iker e desejo falar-vos.

 

- Mais vale esquecer o passado, meu rapaz. Eu, que era o mais ágil e o mais infatigável nos estaleiros, olha no que me tornei! já nem sequer me atrevo a sair. A velhice é uma grande infelicidade.

 

- Ainda fabricais maquetas, como a deste barco. Plaina lançou-lhe um olhar distraído.

 

- Um trabalho de impotente. Quase tenho vergonha dela.

- Fazeis mal, é magnífica.

 

- Onde a encontraste?

 

- No vendedor de brinquedos.

 

- Estou reduzido a isso. A minha reforma basta para me manter, mas nem a minha cabeça nem as minhas mãos aceitam essa degradação.

- Haveis trabalhado num estaleiro naval?

 

A pergunta de Iker enfureceu o velho.

 

- Como ousas duvidar? Para qualquer carpinteiro de valor, é uma passagem obrigatória!

 

- Haveis então participado na construção de muitos barcos.

- Pequenos, grandes, de carga... Quando surgia uma dificuldade inultrapassável, era a mim que chamavam.

 

Iker mostrou-lhe a maqueta.

 

- Este modelo reduzido é inspirado num barco que haveis visto nascer?

 

Plaina apalpou o objecto.

 

- Claro! Uma soberba embarcação destinada ao mar, não apenas ao Nilo. Era tão sólido que podia resistir a várias tempestades.

 

- Lembrais-vos do seu nome? Veloz.

 

O jovem escriba disfarçou a satisfação. Por fim, uma pista séria!

- Veloz! - repetiu Plaina. - Foi o meu último trabalho de importância.

 

- Haveis-vos encontrado com o capitão e a tripulação? O velho abanou a cabeça negativamente.

 

- Sabeis pelo menos os seus nomes?

 

De maneira nenhuma, nem isso me interessava. O que eu queria era um casco de uma robustez a toda a prova.

 

- Sabeis o que aconteceu a esse barco?

- Ignoro-o.

 

- Não vos falaram do seu destino, o país de Punt?

 

- Isso só existe na imaginação dos contadores, meu rapaz! Até mesmo o Veloz teria sido incapaz de o alcançar.

 

- Quem era o seu proprietário? O velho ficou espantado.

 

- O Faraó, é evidente! A quem queres tu que pertencesse um barco desses?

 

- Os nomes de Olho-de-Tartaruga e Faca-Cortante são-te familiares?

- Nunca encontrei esses fulanos. Não vivem nem em Kahun nem nos arredores. Mas diz-me lá, meu rapaz, porquê essas perguntas?

 

- Conhecia os marinheiros do Veloz e gostaria de saber o que lhes aconteceu.

 

- Bastar-te-á consultar os arquivos. Vem-me à memória um Pormenor: não realizei o meu último trabalho no estaleiro naval, mas aqui mesmo. Tratava-se de um cofre em acácia, tão belo como robusto. O comprador fizera uma encomenda muito precisa e eu empenhara-me em respeitar as suas exigências. Um objecto daquela qualidade não podia ser destinado senão a um templo! No entanto, quando o homem o veio buscar, revelou-me que precisava desse cofre para uma longa viagem. Pensei no Veloz, mas com certeza me enganei.

 

- Quem era esse homem?

 

- Um desconhecido de passagem. Como pagara antecipada e generosamente, não procurei informar-me.

 

- Reconhecê-lo-íeis?

 

- Não, a minha vista diminui de dia para dia. Era alto, parece-me.

- Era preferível não falar da nossa conversa a ninguém - sugeriu Iker.

 

- Porquê?

 

- Imaginai que o Veloz, tenha estado metido num...

 

- Não quero imaginar nada e não quero ouvir mais nada! Bem desconfiava que as tuas perguntas não eram inocentes. Sou velho e desejo morrer tranquilo. Sai da minha casa e nunca mais voltes. A partir de agora, encontrarás a porta fechada.

 

Iker não insistiu, mas prometeu a si próprio interrogar de novo o carpinteiro. Ele tinha ainda muito a contar-lhe.

 

O agente do libanês espiara Iker para saber se ele tentava contactar um velho artesão demasiado falador. Apriori não havia qualquer perigo, porque quem teria colocado o jovem escriba naquela pista?

 

Mas teve de se render à evidência: Iker não ia a casa do Plaina para uma simples visita de cortesia!

 

Embora muito improvável, aquela eventualidade fora no entanto considerada.

 

O agente do libanês sabia portanto como agir.

 

- O Nilo está vazio - constatou o general Nesmontu, incrédulo. À aproximação de Kis, a capital da décima quarta província do Alto Egipto, a flotilha de Senuseret esperava uma recepção beligerante. Mas os navios de combate do chefe local, Ulch, tinham ficado no cais e o Faraó desembarcou sem encontrar a mínima oposição.

 

- Deve ser com certeza uma armadilha - considerou Se-hotep.

- Deixai-me ir como batedor, Majestade.

 

Nem um único miliciano no cais. O local parecia deserto.

 

- A ideia do portador do selo é excelente - aprovou Sobek, o Protector - Dou-lhe uma escolta.

 

- Quem respeitaria um Rei cobarde? Sigam-me.

 

Senuseret avançou à frente. Sobek não cessava de perscrutar os arredores, tentando adivinhar de onde viria o ataque.

 

Até à entrada da cidade nada aconteceu.

 

Nas ruas, nem vivalma. As portas e as persianas estavam fechadas.

- Que desgraça se abateu sobre esta cidade? - perguntou Se-hotep, angustiado.

 

Por fim o Rei viu os primeiros habitantes.

 

Prostrados, com a cabeça sobre os joelhos, pareciam dominados pelo desespero, incapazes de reagir.

 

Quando se aproximaram do palácio, o solo estava juncado de armas. Os milicianos tinham abandonado arcos, flechas, lanças e espadas.

 

Sentado diante da porta principal, um oficial estava prostrado.

- O que se passa aqui? - interrogou Sobek.

 

O militar ergueu os olhos vermelhos de tanto ter chorado.

- O nosso chefe acaba de morrer.

 

- Uma revolta contra ele?

 

- Não, claro que não! Quem teria ousado revoltar-se contra o senhor Ukh? Morreu porque a serpente sagrada da sua província morreu, porque o seu vaso sagrado foi quebrado, porque os campos estão secos, porque os rebanhos estão doentes... E tudo isso porque o nosso símbolo protector já não cumpre a sua função.

 

Senuseret dirigiu-se para o templo, dedicado a Hathor. Civis e militares tinham-se reunido no exterior, ansiando por um sinal de esperança.

 

- Venerai o Faraó! - clamou Nesmontu. - Só ele porá fim às vossas desgraças.

 

Todos se voltaram para o colosso. Um sacerdote correu para ele e curvou-se.

 

- Majestade, a nossa rebelião acaba de ser severamente castigada! Poupai as nossas vidas, suplico-vos.

 

- Ninguém tem nada a recear.

 

O sorriso regressou aos lábios de alguns habitantes de Kis. Se o Faraó aceitava protegê-los, o mal seria afastado.

 

- Devo mostrar-vos o desastre, Majestade.

 

Senuseret seguiu o sacerdote até ao interior do templo. Numa capela estava conservado o objecto mais sagrado da província, um papiro de onde emergiam duas plumas enquadrando um disco solar flanqueado por dois uraeus.

 

Bastou um olhar para detectar a dimensão da catástrofe.

 

O papiro estava murcho, o disco perdera todo o seu fulgor, o olho das cobras já não brilhava. Naquele símbolo que tinha o nome de ukh, o mesmo do chefe de província, a energia estava quase esgotada.

 

- Vamos perecer todos - profetizou o sacerdote. - Este lugar está amaldiçoado!

 

- Acalma-te - ordenou o Rei.

 

Apenas as duas plumas mantinham ainda uma aparência de vigor. Incarnação do ar luminoso que circula no universo e fecunda os germes de vida, ofereciam uma última possibilidade de sobrevivência.

 

O cancro corrói a acácia e eis uma das suas metástases - constatou o Rei. - Concentrai os vossos pensamentos no disco solar, vivei cada uma das palavras que eu vou pronunciar, fazei reviver a força comunicando com o Verbo.

 

Se-hotep, Nesmontu e Sobek juntaram-se à palavra real para formar um ser de conhecimento.

 

A voz de Senuseret elevou-se, recitando um hino ao Sol nascente.

- Aparece na região da luz, ilumina de turquesa as Duas Terras. Expulsa as trevas, renasce todos os dias, acode à voz daquele que pronuncia o teu nome. único que permanece único, une-te ao teu símbolo. Ele revela a tua natureza sem a trair. Cria o que está em baixo como o que está em cima. Chama viva no interior do seu olho, sê o construtor, penetra no teu santuário.

 

Pouco a pouco, o papiro reverdeceu. Depois os olhos das cobras brilharam, vermelhos como brasas. Por fim, o disco recuperou o seu fulgor, iluminando a capela.

 

- Vai buscar os sacerdotes - ordenou o monarca ao general Nesmontu.

 

Quando viram o seu símbolo ressuscitado, os ritualistas curvaram-se diante do Rei e começaram a cantar os seus louvores.

 

- Nada de palavreado - cortou Senuseret. - Os rituais não foram correctamente celebrados e por pouco não haveis pago um preço elevado. Em vez de vos apiedar-vos sobre vós próprios, realizai com rigor os serviços da madrugada, do meio-dia e do poente. Ao mínimo alerta, preveni-me. A partir de agora, esta província pertence ao ser do Faraó.

 

À sua saída do templo, Senuseret foi aclamado pela população. De repente, a barafunda foi interrompida e as pessoas afastaram-se. Apareceram cerca de trinta polícias trazendo molossos pela trela.

 

Formavam o corpo de elite da milícia do defunto Ukh e o seu comandante não parecia animado pelas melhores intenções.

 

- Nós não estamos decididos a baixar a cabeça! Esta província era independente e assim continuará.

 

- Pára de dizer coisas estúpidas - interveio Nesmontu. - Sua Majestade acaba de a salvar da destruição. A partir de agora, obedecer-lhe-á.

 

- Não precisamos de autoridade exterior - teimou o comandante. - Proclamo-me o novo chefe de província e expulso todos os intrusos para fora do meu território.

 

- Rebelar-se contra o Faraó conduz à morte - lembrou Senuseret. - Quero esquecer a tua loucura passageira, mas agora submete-te.

- Se derdes um único passo em frente, largo os cães.

 

- Não deveis correr riscos - recomendou Se-hotep ao monarca. - Não somos suficientemente numerosos para lhes resistir. Reentremos no templo.

 

Senuseret avançou.

 

O comandante e os seus milicianos largaram os molossos, que se precipitaram para o Rei.

 

Sobek quis colocar-se diante do soberano mas, com um gesto seco, este impediu-o.

 

A menos de um metro da sua presa, os cães empurraram-se uns aos outros, andaram à volta, mostraram as presas, lançaram latidos furiosos, e depois acalmaram-se. Formavam apenas uma matilha calma cujo cão dominante veio pedir uma carícia antes de se deitar aos pés do Rei.

 

- Estes animais sabem quem eu sou. Tu, comandante indigno, não mereces dar-lhes ordens.

 

Assustado, o oficial tentou fugir. Dois dos seus subordinados esmagaram-lhe o crânio com uma pancada de cacete.

 

Enquanto recomeçavam as aclamações, Senuseret pensava na continuação do seu combate. Da sorte da acácia dependia a do Egipto inteiro e era preciso contar com novas catástrofes.

 

Uma certeza: não fora Ukh que lançara um malefício sobre a árvore de Osíris. Restavam apenas dois suspeitos: Djehuti, o chefe da província da Lebre, e Khnumhotep, o da da Gazela.

 

Um pequeno compartimento para o culto dos antepassados, uma modesta sala de recepção, um quarto de dormir, lavabos, uma sala de água, uma cozinha, uma cave e um terraço: a moradia oficial atribuída a Iker não tinha nada de palácio, mas seria agradável viver nela. Branqueada a cal há pouco tempo, estava sumariamente mobilada. Por sorte, uma escudaria bastante próxima apenas guardava uma velha burra com a qual Vento do Norte se entendeu de imediato.

 

Tendo em vista os poucos bens que possuía, o escriba não demorou muito tempo a instalar-se. No momento em que terminava as arrumações, um pobre diabo apresentou-se à sua porta.

 

De cabelos compridos, mal barbeado, um pouco curvado, magro, fazia pena.

 

- Sou o criado que vos foi destinado oficialmente, duas horas, duas vezes por semana.

 

No momento, Iker teve vontade de o mandar embora e de se desembaraçar sozinho. Mas aquela personagem não lhe era desconhecida.

- Não, é incrível... És tu, Sekari?

 

- Hem... Sim, sou eu.

- Não me reconheces?

 

O miserável atreveu-se a olhar o patrão.

- Iker... Estás tão bem-vestido!

 

- O que te aconteceu?

 

- Aborrecimentos vulgares. Agora as coisas vão melhor. Aceitas empregar-me?

 

- Para ser franco, isso deixa-me pouco à-vontade!

 

- É o governador que paga. Com uma dezena de casas para limpar, as compras para fazer e uns arranjos aqui e ali, não me safo muito maL

- Onde vives?

 

- Numa cabana de jardim. Trato dele e tenho o direito de apanhar legumes.

 

- Entra e vem beber uma taça,

 

Os dois antigos companheiros evocaram as suas aventuras nas minas do Sinai, mas Iker não deu pormenores sobre o que lhe acontecera desde a sua separação.

 

- Eis-te portanto na elite dos escribas - constatou Sekari com uma bela carreira em perspectiva.

 

- Não te fies nas aparências.

- Tens aborrecimentos?

 

- Talvez falemos disso mais tarde. Organiza-te à tua vontade, esta casa passa a ser também tua. Desculpa, mas tenho muita coisa a fazer.

 

Foi trabalhando afincadamente: que Iker conseguiu acalmar. Tinha agora a prova de que o seu pesadelo era bem real, que o Veloz fora construído por uma equipa de artesãos de Kahun e que aquele barco só podia pertencer ao Faraó Senuseret.

 

Ninguém queria acreditar na existência do misterioso país de Punt, mas o rapaz sabia bem que era esse o destino da embarcação a bordo da qual por pouco não morrera.

 

Iker dirigiu-se de novo a casa do Plaina. Desta vez, ele havia de lhe dizer tudo.

 

A porta da casa estava fechada.

 

O escriba bateu, ninguém respondeu. Uma vizinha interpelou-o.

- O que queres?

 

- Gostava de ver o Plaina.

 

-Não tens sorte, meu pobre rapaz. Morreu na noite passada. És da família?

 

- Não, mas éramos conhecidos e tinha informações a pedir-lhe.

- Esse velho sovina não conversará mais com ninguém! Para o fim, contava tudo o que lhe vinha à cabeça.

 

- De que morreu?

 

- De velhice, claro! Sofria do coração, dos pulmões, dos rins... Estava tudo gasto. Ele que não se queixe, não sofreu.

 

- Convivias com ele?

 

- O menos possível, como os outros vizinhos. Cansava-nos com as suas histórias de carpinteiro e perdia a cabeça. Quando não o ouvíamos com atenção, tornava-se mesmo irascível.

 

- A polícia não o terá vindo visitar antes da sua morte?

- A polícia? Mas o que é que ele tinha feito?

 

- Nada, nada... era só uma pergunta. A vizinha fez um olhar entendido.

 

- Então, afinal, o velho estava metido num tráfico qualquer! Não serás tu da polícia?

 

- Não, era apenas um amigo.

 

- És um pouco jovem de mais para seres amigo do Plaina!

Iker bateu em retirada. Teria gostado de entrar na casa e fazer uma busca, mas para quê? O escriba não acreditava numa morte natural. E os assassinos do velho tinham com certeza feito desaparecer qualquer indício comprometedor.

 

Quem podia agir com toda a impunidade senão polícias obedecendo a ordens superiores e certos de não serem nunca incomodados? O governador devia estar ao corrente. Acima do governador, um ministro. Acima do ministro, o protector de Kahun, o Rei Senuseret.

 

Iker queria a verdade e a justiça. Graças ao cabo da faca, possuía a prova da existência do Veloz. A sua principal testemunha tinha desaparecido e as autoridades responder-lhe-iam que aquele modesto objecto não bastava para abrir um inquérito.

 

os arquivos de Kahun: ali, e só ali, se encontravam os documentos decisivos.

 

À entrada do edifício estavam dois guardas pertencentes à polícia municipal.

 

- Nome e função?

- Iker, escriba.

 

- Autorização escrita para entrar no local?

- Apenas quero ver o conservador.

 

- Um instante.

 

A alta personagem aceitou receber Iker, cuja reputação continuava a crescer. Reservado e meticuloso, o conservador mostrou-se no entanto afável.

 

- O que desejas, Iker?

 

- É bastante delicado. Trata-se de uma missão... digamos, discreta.

- Posso compreender, mas preciso de mais informações.

 

- O meu superior, Heremsaf, mandou-me consultar os arquivos relacionados com os estaleiros navais. Gostava muito de verificar um pormenor.

 

- Porque não vem pessoalmente?

 

- Precisamente, por discrição. A minha presença aqui não intrigará ninguém, enquanto que a sua...

 

O conservador pareceu convencido. Não era com certeza a primeira vez que era confrontado com um caso em que era importante não deixar qualquer vestígio.

 

- Compreendo, compreendo... Mas preferiria ter umas palavras assinadas por Heremsaf.

 

- Talvez não seja indispensável e...

 

- Para os meus arquivos pessoais, é. Volta com essas palavras e facilitarei a tua tarefa.

 

- De quem fazes troça, Iker, e o que é que isso oculta? - interrogou Heremsaf, dominado por uma cólera fria. - O conservador dos Arquivos de Estado acaba de me prevenir que te atreveste a utilizar o meu nome para uma consulta ilegal! Tu, tu em quem eu tinha toda a confiança!

 

- Ter-me-íeis concedido uma autorização como deve ser? O olhar de Heremsaf tornou-se penetrante.

 

- Não achas que já é tempo de me contares finalmente a verdade?

 

 

- Faço-vos a mesma pergunta.

 

- Vais longe de mais, Iker! Não fui eu que tentei introduzir-me nos arquivos!

 

- Não haveis sido vós que me ordenastes que escolhesse os objectos acumulados nos antigos armazéns, insistindo bem para que nenhum escapasse à minha vigilância?

 

É verdade, e então?

 

Não pensaríeis num cabo de faca no qual está gravado o nome de um barco?

 

Heremsaf pareceu surpreendido.

 

- O principal estaleiro naval da região não está colocado sob a vossa responsabilidade? - continuou Iker.

 

- Aí é que te enganas! É o mestre-de-obras do Faium que está encarregado dele.

 

- Mas quanto ao cabo da faca, não me engano?

- O que procuras exactamente?

 

- Maet, claro.

 

- Não é mentindo ao conservador que a encontrarás!

 

- Se não tendes nada a censurar a vós mesmo, autorizai-me a consultar os arquivos.

 

- Não é assim tão simples e não detenho os poderes todos! Existem diversos departamentos e só o governador dá acesso ao conjunto. Ouve, Iker, estás em plena ascensão mas não tens muitos amigos. O teu rigor e as tuas competências falam em teu favor, mas a excelência do trabalho não basta, por si só, para garantir uma brilhante carreira. O meu apoio é-te indispensável e concedo-to porque acredito no teu futuro. Admito esquecer este momento de perturbação, desde que não se repita. Estamos entendidos?

 

- Não, não estamos entendidos. Não é uma brilhante carreira que eu desejo, apenas a verdade e a justiça. Custe-me o que me custar, não renunciarei a esta Busca. Recuso-me a pensar que está tudo podre neste país. Senão, isso significaria que Maet o abandonou. Nesse caso, para quê continuar a viver?

 

Sem ser convidado, Iker saiu do gabinete de Heremsaf. Remetendo-o para o governador, com certeza cúmplice dos assassinos do carpinteiro, o seu superior demonstrava a sua própria culpabilidade. Mas por que razão o colocara Heremsaf na pista do cabo da faca? Comportando-se assim, ajudara-o. Recusando-lhe a autorização para consultar os arquivos, impedia-o de avançar. Como explicar atitudes tão contraditórias? Sem dúvida Heremsaf, fiel aliado do governador, ignorava a existência do modesto objecto que revelava o nome do Veloz.

 

Iker seria demitido das suas funções e expulso de Kahun.

 

No entanto, havia de regressar e conseguir obter os documentos de que tinha necessidade. Consciente que a sua tarefa se anunciava impossível, foi andando ao acaso.

 

- Tens um ar contrariado - murmurou a voz frutada de Bina.

- Dificuldades no meu trabalho.

 

- Nem sequer me tinhas visto! Não deveria distrair-te um pouco?

- Não tenho disposição para me distrair.

 

- Então, conversemos! Encontrei um lugar tranquilo, uma casa vazia atrás daquela onde trabalho. Vai ter comigo esta tarde, depois do pôr do Sol. Far-te-á bem conversar.

 

Quando se aproximava a capital da província da Lebre, as paisagens tornavam-se suaves e encantadoras. Tudo aqui apelava à paz, ao repouso e à meditação.

 

A bordo do navio do Rei, só se pensava no confronto com o temível Djehuti. As notícias que o general Nesmontu acabava de receber nada tinham de agradável.

 

- O chefe de província dispõe de um pequeno exército bem pago e formado por profissionais aguerridos - revelou ele ao Faraó. Além disso, Djehuti tem fama de ser um arguto estrategista.

 

- Nesse caso - considerou Se-hotep - não será hostil à negociação! Quando Djehuti souber a coligação de províncias consideradas intransigentes, compreenderá que a luta armada é inútil. Ofereço-me então como embaixador.

 

- Continuaremos a aplicar o meu método - cortou Senuseret. Os três membros presentes da Casa do Rei, o general Nesmontu, o portador do selo Se-hotep e Sobek, o Protector, tiveram o mesmo pensamento: o monarca não avaliava o perigo. Djehuti não era um medíocre e não deporia as armas sem travar um combate arrasador.

 

No entanto, a serenidade do Faraó parecia inabalável. Não se assemelhava a um desses artesãos de génio capazes de executar o gesto certo no momento certo? Como era possível não conceder a sua confiança àquele gigante que, desde a sua subida ao trono dos vivos, não dera um único passo em falso?

 

Khemenu, "a cidade da Ogdóade", confraria de oito forças criadoras, era simultaneamente a capital da província da Lebre e o sítio privilegiado do deus Tot. Senhora dos hieróglifos, "as palavras de Deus", oferecia aos iniciados a possibilidade de atingir o conhecimento. Revelando-se pela faca da lua, o símbolo mais visível da morte e da ressurreição, insistia na necessidade do acto cortante, fora da indecisão e do compromisso. O bico de ibis, a ave de Tot, não procurava: encontrava.

 

Conseguir um governo justo do país sem o controlo desta província seria ilusório. Hoje, Senuseret estava pronto a agir.

 

- Majestade - interveio Sobek, o Protector - permiti que vos acompanhe.

 

- Não será necessário.

 

Não havia no rio nenhum barco de guerra. No cais, nenhum soldado.

 

- Incrível - murmurou Se-hotep. - O chefe de província Djehuti ter-nos-á feito também o favor de morrer?

 

As manobras de acostagem decorreram com toda a tranquilidade, como se nada opusesse os que chegavam aos responsáveis pelo porto de Khemenu.

 

Ao fundo da passarela estava um homem magro, de rosto grave. Desenrolou um papiro coberto de hieróglifos dispostos em colunas. Uma simples figura, mas raramente representada: um Osíris sentado, toucado com a sua coroa de ressurreição, segurando o ceptro Força' e a chave da vida'. Sobre o seu trono, o símbolo dos milhões de anos. Em redor, círculos de fogo que impediam os profanos de se aproximar'.

 

- General Sepi... Felizmente regressaste da Ásia são e salvo. - A tarefa não foi fácil, Majestade, mas aproveitei a desorganização crónica das tribos e dos clãs.

 

- Logo a seguir à tua entrada no Círculo de Ouro de Abido, teria sido lamentável perder-te.

 

- Graças a essa iniciação, a vida e a morte são tão diferentes que não se enfrentam as provações da mesma maneira.

 

Sob o olhar estupefacto dos marinheiros da flotilha real, o Faraó e seu irmão espiritual abraçaram-se.

 

- As tuas conclusões, Sepi?

 

- A Ásia está sob controlo. As nossas tropas instaladas em Siquém sufocaram o desejo de revolta dos cananeus. São tratados com justiça e não passam fome. Alguns têm a nostalgia de uma estranha personagem, o Anunciador, mas o seu desaparecimento parece ter Provocado o dos seus fiéis. No entanto, não sejamos ingénuos e não baixemos as guardas. Toda aquela zona deve permanecer sob uma vigilância rigorosa. Sobretudo, que a nossa presença militar seja mantida, mesmo reforçada. Receio a proliferação de uma resistência urbana, capaz de fomentar perturbações pontuais.

 

- A tua opinião é preciosa para mim, Sepi. O que se passa com esta província?

 

- Só regressei ontem. Djehuti pareceu-me muito modificado! Está alegre, descontraído, feliz de viver.

 

- Deu ordem para me atacarem?

 

- Não exactamente. Confiou-me que vos reservava uma surpresa e pediu para vos receber, sozinho, sem armas e sem soldados. - Terás conseguido convencê-lo a evitar um conflito sangrento?

- Não estou certo disso, Majestade. Desde que Djehuti me contratou, não deixei, em pequenos toques, de tentar fazê-lo perceber o absurdo da sua posição. Vaidade seria acreditar que o consegui.

- A quem obedecerão os milicianos?

 

- A ele, não a mim.

 

- Pois bem, vamos ver essa surpresa.

 

Pelo caminho que ia dar ao palácio de Djehuti, os milicianos e os jovens da província formavam uma ala de honra agitando palmas. Tão espantado como Senuseret, o general Sepi guiou o monarca até à sala de audiências.

 

Luxuosamente vestidas e maquilhadas com arte, as três filhas de Djehuti arvoraram o seu mais belo sorriso, inclinando-se perante o Faraó.

 

Envolto num manto que lhe descia até aos tornozelos, o pai levantou-se com dificuldade.

 

- Que Vossa Majestade me perdoe, sou vítima de um doloroso reumatismo e tenho sempre frio. Mas resta-me a saúde necessária para apresentar a homenagem da minha província ao Rei do Alto e do Baixo Egipto.

 

Três cadeiras de transportadores levaram o Faraó, o chefe de província e o general Sepi até ao grande templo de Tot. Na fachada, erguia-se o colosso.

 

- Eis a incarnação do vosso ka, Majestade - declarou Djehuti. Compete-vos conceder-lhe a última luz que o tornará vivo para sempre.

 

Sepi ofereceu a Senuseret uma maça proveniente de Abido e consagrada durante a celebração dos mistérios de Osíris. O Rei ergueu-a, visando os olhos, o nariz, as orelhas e a boca do colosso. A cada um desses gestos, um raio luminoso brotou da extremidade da maça. A pedra foi percorrida por vibrações e todos sentiram que uma parcela do ka real estava a partir daquele momento presente na cidade de Tot.

 

O banquete era faustoso: pratos de uma delicadeza excepcional, serviço sem falhas, orquestra digna da corte de Mênfis, jovens dançarinas capazes de executar as figuras mais acrobáticas. A mais bonita trocava olhares cúmplices com o portador do selo Se-hotep, muito sensível aos seus encantos. Como única indumentária, a artista usava apenas um cinto de pérolas.

 

Mas Djehuti percebeu que o Faraó não se descontraía.

 

- Gosto muito de viver, Majestade, e estou orgulhoso da prosperidade desta província. Isso não me impede de ser lúcido. Concedendo-nos uma cheia perfeita, haveis demonstrado que sois digno de reinar sobre um Egipto reunificado. A minha fidelidade pertence-vos, sou vosso servidor. Ordenai e obedecerei.

 

- Estás informado da desgraça que nos fere?

- Não, Majestade.

 

Um olhar do general Sepi confirmou que Djehuti não mentia.

- A árvore sagrada de Osíris está gravemente doente - revelou o Rei.

 

- A Árvore da Vida?

- Essa mesma, Djehuti.

 

Perdido o apetite, o chefe de província afastou o prato de alabastro.

- O que se passa?

 

- UM Malefício.

 

- Sabereis esconjurá-lo?

 

- Travo esse combate a cada instante. À hora a que falamos, a degradação está erradicada. Mas durante quanto tempo? A edificação de um templo e de uma Morada de Eternidade produzirá uma energia que não é de negligenciar e estou convencido que um Egipto de novo coerente nos ajudará a lutar. Podes jurar-me que estás inocente e que não participaste em nenhuma conjura visando destruir a acácia?

 

Como se morresse de frio, Djehuti envolveu-se mais no seu manto.

- Se sou culpado, que o meu nome seja destruído, a minha família aniquilada, o meu túmulo demolido, o meu cadáver queimado! Estas palavras são pronunciadas na presença do Faraó, o garante de Maet. A voz de Djehuti tremia de emoção.

 

- Sei que não mentes - disse Senuseret.

 

- Esta província pertence-vos, tal como as suas riquezas e a sua Milícia. Salvai o Egipto, Majestade, salvai o seu povo, preservai o mistério da ressurreição!

 

Pela atitude do soberano, Djehuti soube que entregara bem a sua confiança. Se havia um homem, um único, capaz de curar a árvore da vida, era aquele.

 

Um conviva pediu a palavra.

 

- Sou o ritualista que auxiliou um jovem escriba durante o reboque do colosso, e não foi uma tarefa fácil! Chama-se Iker e abandonou a província. Não é razão para esquecer a sua coragem e proponho que bebamos à sua saúde. Sem ele, não teríamos conseguido transportar esta estátua gigante até ao grande templo.

 

Djehuti aprovou e a assistência fez um brinde a Iker. No meio da alegria geral, este foi seguido de muitos outros.

 

Senuseret convidara Djehuti e o general Sepi para o seu conselho restrito.

 

- A vossa presença nada tem de honorífico - precisou o Rei. Aqui, decidimos e agimos. Desde Elefantina, reconquistei as províncias que me eram hostis sem derramar uma única gota de sangue. Só falta uma e devo tirar uma conclusão: Khnumhotep, o chefe da província da Gazela, é o criminoso que ataca a árvore da vida.

 

A Gazela é um animal de Set, o assassino de Osíris - lembrou Se-hotep. - Segundo o que sabemos de Khnumhotep, este não recuará perante nada para conservar o seu território.

 

- Pertence a uma família muito antiga - afirmou Djehuti

 

e defende orgulhosamente a sua independência. Por princípio, não está aberto a qualquer negociação. Além disso, a sua milícia é seguramente a melhor do país. Segue um treino intensivo e regular, dispõe de um armamento de primeira qualidade e obedece apenas ao seu senhor, sobre o qual ninguém exerce qualquer influência. Devo ser franco: nem mesmo os êxitos que Sua Majestade acaba de obter o impressionarão. Sentir-se só contra todos reforçará ainda mais a sua determinação. E como é um condutor de homens, os seus bater-se-ão por ele com uma energia decuplicada.

 

- Nessas condições - considerou o general Nesmontu. - preconizo um ataque massivo.

 

- Celebrar a unidade sobre montes de cadáveres de egípcios não é a melhor solução - objectou Djehuti.

 

- Receio que não exista outra - insistiu Nesmontu. - O Faraó não pode deixar Khnumhotep escarnecer dele e comprometer a solidez do edifício que está a construir.

 

Com o coração pesado, todos compreenderam que era necessário preparar-se para um conflito cuja violência deixaria marcas indeléveis.

- Como não se trata de um confronto com um país estrangeiro - analisou Nesmontu - não temos de enviar uma declaração de guerra a Khnumhotep. Do meu ponto de vista, é uma operação de polícia destinada a restabelecer a ordem no território egípcio. Seria portanto lógico atacar de surpresa.

 

Nem o general Sepi nem ou outros participantes no conselho emitiram qualquer objecção.

 

- Que sejam tomadas as disposições necessárias - ordenou o soberano. - No decurso do banquete foi citado o nome de um escriba, Iker. Foi formado aqui?

 

- Efectivamente, foi meu aluno - reconheceu Sepi. - O melhor da minha aula, e de longe.

 

- Foi por isso que muito cedo lhe confiei responsabilidades acrescentou Djehuti. - Organizou de forma notável o transporte do colosso e não teria tardado a ocupar a primeira posição da administração regional.

 

- Porque partiu? - perguntou Senuseret. Djehuti levantou-se.

 

- Não sou digno de assistir a este conselho, Majestade, porque cometi um grave erro contra vós.

 

- Explica-te e deixa-me julgar.

 

Acabrunhado, o chefe de província voltou a sentar-se.

 

- Iker é um rapaz atormentado que não cessava de fazer perguntas, na sequência de rudes provações de que o seu espírito não saiu indemne. Procurava dois marinheiros, Olho-de-Tartaruga e Faca-Cortante, que tinham feito escala em Khemenu. Um episódio riscado dos meus arquivos, porque o seu barco se afirmava possuir o selo real que eu me recusava a reconhecer. Para mim, Majestade, aqueles homens não podiam pertencer senão à vossa marinha e não ocultei os meus pensamentos a Iker.

 

- Por vossa causa - fez notar Se-hotep - esse escriba considera portanto Sua Majestade como um inimigo!

 

- É verdade.

 

- Está animado por desejo de vingança?

 

- Também é verdade. Tentei persuadi-lo a esquecer o passado e a permanecer ao meu serviço, mas a sua determinação é inabalável. Esse rapaz é tão inteligente como corajoso e poderá tornar-se um temível adversário porque está convencido, por minha causa, que o Faraó é responsável pelas suas desgraças.

 

- O que lhe aconteceu exactamente?

 

- Ignoro. Sem dúvida atentaram contra a sua vida.

- Onde tencionava dirigir-se Iker?

 

- A Kahun, a fim de encontrar indícios e provas que lhe permitissem fazer brilhar a verdade.

 

- Interessa-se também pelo Círculo de Ouro de Abido - precisou o general Sepi - e constatou a sua eficácia, sem compreender a sua natureza, durante um ritual de regeneração praticado sobre a pessoa de Djehuti.

 

- Esse rapaz é provavelmente o cúmplice do criminoso que ataca a acácia de Osíris - sugeriu Sobek. - Tinha alguns laços com Khnumhotep?

 

- Vinha da sua província, onde trabalhara para ele - revelou Djehuti.

 

As magras bagagens de Iker estavam prontas. Depois da sua violenta altercação com Heremsaf, esperava ser despedido de um momento Para o outro.

 

Não ficou portanto surpreendido por ver aparecer um escriba cabeludo, reputado por trazer más notícias. Seria seguido dentro de pouco por polícias que conduziriam Iker para fora de Kahun, com proibição de regressar.

 

- Estou pronto - disse o Cabeludo.

- Eu também. Vens só?

 

- Hoje sim, devido a uma sobrecarga de trabalho na câmara. Amanhã, outro colega ajudar-me-á.

 

- Concedem-me então até amanhã! O Cabeludo franziu as sobrancelhas.

 

-Mesmo se fôssemos dez, não terminaríamos numa semana! Não te podem impor um prazo tão curto, deve ser um erro. Considerando o trabalho a fazer, precisaremos pelo menos de um mês, e sem divagar!

- De que trabalho estás a falar?

 

- Mas... do que te confiaram: o inventário do mobiliário destinado aos armazéns e a descrição de cada objecto.

 

- Não vieste... para me expulsar?

 

- Expulsar-te a ti, Iker! Mas onde foste buscar isso? Ah, estou a ver! Um dos adjuntos do governador pregou-te uma partida de mau gosto. Há que admitir que os que rodeiam o grande patrão te receiam um pouco, e mesmo muito. Desconfia dessa clique: sabe mostrar-se terrível. Felizmente, gozas do apoio de Heremsaf.

 

Iker sentiu-se perdido.

 

Nem o governador nem Heremsaf tinham portanto decidido expulsá-lo. Qual era o jogo deles, tanto de um como de outro, ou de um contra o outro?

 

Incapaz de responder àquela pergunta, Iker concentrou-se no seu trabalho, com a ajuda do Cabeludo, pouco habituado a um ritmo intenso. Parava várias vezes por hora para beber água, trincar uma cebola fresca, limpar a testa ou satisfazer uma necessidade natural. E não parava de falar.

 

Iker ouviu distraidamente as suas histórias de família, de uma terrível banalidade. Depois foi a ladainha dos mexericos sobre os empregados municipais, a partir de boatos incertos e vagos rumores.

 

Quando o Sol começou a declinar, o Cabeludo arrumou o seu material.

 

- Já está, o dia termina por fim! Um bom conselho, Iker: trabalha muito menos, senão vais ter a nossa corporação a cair-te em cima. Alguns, e não dos menos importantes, ficarão vexados, mesmo humilhados. Sê mais lento e subirás rapidamente na hierarquia.

 

Iker regressou a casa. Sekari não estava lá, mas arrumara tudo. O jovem escriba deu de comer a Vento do Norte e depois dirigiu-se ao encontro marcado por Bina. Mesmo não esperando nada de concreto, convinha na sua situação actual não afastar a sua única aliada. Ninguém por perto.

 

Entrou sem ruído na casa abandonada.

- Bina, estás aqui?

 

- No compartimento do fundo - respondeu a voz frutada da jovem asiática.

 

Iker avançou sobre pedaços de gesso. Adivinhou-a no escuro e sentou-se ao lado dela.

 

- Então, os teus aborrecimentos?

 

- Divergências de ponto de vista com o meu superior.

- Tenho a certeza de que é mais grave do que isso.

 

- Porque julgas isso?

 

- Porque mudaste. A tua perturbação é tão profunda que mesmo o ser mais insensível a detectaria. Um simples problema profissional não te teria perturbado dessa maneira.

 

- Não te enganas, Bina.

 

Também tu és vítima de uma injustiça, não é verdade? A tirania não poupa ninguém neste país, nem mesmo os que imaginam estar protegidos.

 

- A tirania! Quem estás a acusar?

 

- Eu sou apenas uma criada vinda da Ásia. Desprezam-me, recusam-me o acesso à leitura e à escrita. Tu, és instruído e ocupas já um posto importante. Mas somos tão infelizes um como o outro, porque o futuro está fechado por causa desse Senuseret que sufoca o país com seu punho. Esse Rei é um homem malvado. Ao meu povo, que solicitava um pouco de liberdade e de justiça, respondeu com o envio do seu exército. Mortos, feridos, mulheres violadas, crianças espancadas, aldeias inteiras reduzidas à miséria, enquanto os soldados do Faraó se divertem e embebedam. Senuseret despreza os humanos, apenas conhece a força e a violência. Segundo rumores que correm, trava actualmente uma atroz guerra civil contra as províncias que ousaram contestar o seu poder absoluto. Esta fera selvagem não hesita em derramar o sangue dos Egípcios.

 

Iker pensou em Khnumhotep e em Djehuti, dois chefes de província que o tinham ajudado. A guerra civil e a reconquista do Egipto inteiro por um monarca capaz de tudo para impor a sua supremacia: não seria essa a chave do mistério? No entanto, o rapaz não representava um obstáculo no caminho de Senuseret!

 

- Se esse Rei é teu inimigo, também é meu - confiou a Bina. Ordenou a minha morte.

 

- Por que razão?

 

- Ainda não sei e hei-de descobri-lo. Quero provas da sua culpabilidade e reclamarei justiça.

 

- Sonhas acordado, meu pobre Iker! A única forma de agir é reunir os oprimidos e lutar contra esse déspota.

 

- Esqueces o seu exército e a sua polícia?

 

- Claro que não, mas existem outros meios para o combater sem ser um choque frontal.

 

- Em que estás a pensar?

- Em ti, Iker.

 

- Explica-te, Bina!

 

- És um escriba brilhante, apreciado pelo governador de Kahun, a cidade preferida do tirano. Deixa de te comportar como um adolescente revoltado perseguindo uma quimera. Retrata-te publicamente, reentra na linha e sobe de categoria.

 

- Uma bela carreira não substituirá a verdade!

 

- Já conheces essa verdade: Senuseret quer a tua morte. É um destruidor e um assassino que esmagará milhares de vidas. Só há uma solução: torna-te um escriba de elevada posição a fim de lhe seres apresentado.

 

- Com que objectivo?

 

- Matá-lo - murmurou Bina. Chocado, Iker imaginou a cena.

 

- Impossível! Estará protegido e não terei tempo de agir.

 

- Uma façanha dessa dimensão prepara-se com minúcia. Está fora de questão que corras riscos imprudentes e que fracasses. Vai ser necessário suprimir as protecções de que goza esse monstro, a fim de que só ataques pelo seguro.

 

- Estás-nos a ver, tu e eu, reunidos nesse empreendimento insensato?

 

- Tu estás só, eu tenho aliados.

- Quais?

 

- Oprimidos, como nós, desejosos de liberdade e prontos a sacrificar a sua vida para se desembaraçarem do tirano e devolverem a felicidade ao povo. Não há destino mais belo, Iker, e tu serás o instrumento privilegiado.

 

Aproximou-se dele mas depois, sentindo que estava dominado por uma tempestade interior, não esboçou mais nenhum gesto.

 

- É uma loucura, Bina!

 

- Sem dúvida, mas como se comportam as pessoas razoáveis? Curvam a cabeça, fecham os olhos, a boca e os ouvidos, na esperança de que apenas os seus Vizinhos sejam atingidos! Senuseret compreendeu isso bem: como é fácil dominar os cobardes! Se pertences a essa raça, Iker, é inútil que voltemos a ver-nos.

 

De regresso a casa, Iker sentia a garganta tão seca que bebeu pelo menos um litro de água. Incapaz de recuperar a calma, agarrou no cabo da faca marcada com o nome do Veloz. Se estivesse dotada de uma lâmina longa e afiada, seria uma arma temível!

 

Vingar-se era legítimo, libertar o Egipto de um implacável opressor tornava-se o mais nobre dos ideais. Iker esquecia o seu próprio destino para se preocupar com o do seu país e dos infelizes que sofriam o jugo de Senuseret.

 

Se conseguisse suprimi-lo, abrir-se-ia uma era nova. No entanto, matar não estaria acima das suas forças? Tornando-se escriba, o jovem queria escapar à violência e à arbitrariedade. Matar horrorizava-o.

 

A melhor solução era abandonar o Egipto.

 

Exilando-se, Iker esqueceria os demónios que o atormentavam. Graças aos seus conhecimentos, conseguiria com facilidade um emprego de gerente numa exploração agrícola e construiria uma nova existência.

 

A fim de partir logo de madrugada, o rapaz preparou as bagagens. No momento em que metia os pincéis num estojo, ela apareceu-lhe. O seu rosto era tão luminoso como severo. Nos seus olhos Iker leu a sua mensagem: Não fujas. Permanece no Egipto e luta afim de que Maet se cumpra.

 

A bela sacerdotisa esfumou-se na claridade vacilante da lâmpada de óleo.

 

Com os nervos em franja, o escriba foi deitar-se. Antes de se estender na cama, procurou o seu talismã para o depositar sobre o ventre e gozar de um sono tranquilo.

 

O marfim mágico não aparecia.

 

Sem êxito, Iker revistou a casa do terraço à cave. Tinham roubado o precioso objecto.

 

Torturado por um último pesadelo, o escriba acordou sobressaltado, sem saber onde estava. Retomou pouco a pouco posse do seu espaço e iniciou uma nova busca, sem maior êxito.

 

Ficou intrigado com uns roncos.

 

Na soleira da porta, com as pernas dobradas e os braços servindo de almofada, Sekari dormia a sono solto.

 

Iker sacudíu-o.

 

- O que é?... Ah, és tu!

 

- Estás aqui há muito tempo?

 

- Nem por isso... A minha tarde e a minha noite foram muito ocupadas, se percebes o que quero dizer. Uma verdadeira harpia que não me queria largar! Como sabia a localização da minha cabana, era impossível refugiar-me lá. A minha única hipótese de lhe escapar era aqui. Se exiges que me vá embora...

 

- Não, entra. Dormes melhor cá dentro. Sekari bocejou e espreguiçou-se.

 

- Conta lá, não tens um ar mais fresco do que eu!

- Fui vítima de um roubo.

 

- O que te tiraram?

 

- Um marfim protector que era muito importante para mim.

- Os apreciadores são numerosos, isso vende-se caro.

 

- Desculpa, Sekari, dormi mal e...

 

- Hesitas em perguntar-me se sou eu o ladrão? Não, não teria ousado voltar a aparecer à tua frente. Mas tens razão em desconfiar de toda a gente. Na minha opinião, esta casa devia estar mais bem protegida. Um bom ferrolho não seria de mais. E vou tratar de me informar para saber se esse marfim aparece no mercado. Que forma tem?

Iker forneceu uma descrição exacta.

 

- Tens alguma suspeita? - perguntou Sekari.

 

- Nenhuma.

 

- Esperemos que as minhas grandes orelhas recolham uma informação. Tens a certeza que ninguém quer prejudicar-te?

 

- E se tomássemos um pequeno-almoço copioso?

 

- Receio que a tua cozinha continue ainda vazia. Vou buscar o necessário.

 

Enquanto Sekari se afastava, Iker reflectia no seu conselho: não ter confiança em ninguém.

 

A calma e a descontracção do libanês eram apenas aparentes. A fim de as manter, devorava duas vezes mais bolos do que era habitual. Um dia ia ter de se preocupar em emagrecer um pouco.

 

Chegava de Kahun uma boa notícia: tal como previsto em caso de necessidade, o seu agente eliminara um velho carpinteiro demasiado tagarela. Em contrapartida, a operação comercial que devia dar-lhe uma posição chave na alta sociedade menfita estava atrasada, muito atrasada, por causa de intermediários medíocres que iria substituir sem demora.

 

Chegara ao porto de Mênfis um soberbo carregamento de madeira de cedro, proveniente do Líbano. Faltava saber se os agentes da alfândega se encarregariam dele ou não.

 

O libanês perfumou-se pela terceira vez naquela manhã. Dentro de pouco tempo, saberia se o seu interlocutor egípcio era um aliado ou um inimigo.

 

Se se tratasse de uma cilada, a sua sorte estaria marcada: trabalhos forçados perpétuos. Esta perspectiva aterrorizou-o. Acabavam-se o luxo, a bela moradia, a boa comida! Não suportaria semelhante provação.

 

O libanês tranquilizou-se pensando que o seu faro nunca o enganara. Aquele egípcio era corrupto até à medula e só sonhava enriquecer! Inquietou-se de novo ao constatar que as investigações para descobrir a sua identidade tardavam em dar resultados. O porteiro anunciou-lhe uma visita.

 

O libanês engoliu um bolo de tâmaras a escorrer mel e desceu do seu terraço.

 

O homem era um dos seus melhores sabujos. Como vendedor de água, deslocava-se constantemente nos belos bairros de Mênfis. Afável, estabelecia relações com facilidade e sabia fazer falar as pessoas. Excelente fisionomista, observara, por ordem do libanês, o egípcio que saíra da sua moradia depois da entrevista comercial.

 

- Conseguiste identificá-lo?

- Creio que sim, senhor.

 

Pelo ar acabrunhado do seu agente, o libanês receou uma catástrofe.

 

É um peixe graúdo, um peixe muito graúdo. Tens a certeza?

 

Absoluta. Conheço um correio que trabalha para o palácio e encho-lhe muitas vezes a cabaça. Ontem, foi encarregado de levar um decreto real aos arrabaldes. No momento em que eu acabava o enchimento, saíram três homens de um edifício oficial. "Olha, disse-me ele, o do meio é o meu patrão! É ele que redige os decretos e os textos administrativos por ordem do Rei." Reconheci sem dificuldade a personagem. É aquele que me haveis pedido para seguir.

 

O libanês sentiu-se mal.

 

Um peixe demasiado graúdo, com efeito! Ele, o pescador, caíra nas redes de um próximo de Senuseret. Não lhe restava senão fugir antes da chegada da polícia.

 

- Sabes... o nome dele?

 

- Chama-se Medés. Dizem que é trabalhador, ambicioso, sem coração e implacável com o seu pessoal. Casado, dois filhos. Fez carreira nas finanças antes de ser nomeado para aquele posto de primeira linha. Vou esgravatar mais, mas com prudência. Não nos podemos aproximar com ligeireza de um dignitário daquela dimensão.

 

O porteiro interveio de novo.

 

- Outro visitante, senhor. Urgente e importante, segundo ele.

- Um polícia?

 

- De certeza que não! Um homem tisnado, com cabelos em desordem, que se exprime com dificuldade.

 

O libanês sentiu-se tranquilizado. Aquele fulano só podia ser o capitão do barco que transportava o carregamento de madeira preciosa.

- Ele que entre. Tu - ordenou ao vendedor de agua - saí pelas traseiras.

 

A separação entre os membros da sua rede era um imperativo de sobrevivência.

 

Impunha-se uma taça de suco de alfarroba, açucarado e suave. Dentro de alguns instantes, saberia.

 

O capitão tinha o ar daquilo que era: um marinheiro experiente, pouco à-vontade em terra firme e de palavra difícil.

 

- Já está.

 

- O que significa isso, capitão?

- Bem... que já está.

 

- O carregamento foi descarregado ou apanhado pela alfândega.

- Bem... sim e não.

 

O libanês sentia vontade de estrangular o marinheiro.

- Sim o quê e não o quê?

 

- Não, a alfândega, não a vimos. Sim, o carregamento foi descarregado e armazenado no lugar previsto.

 

Medés apresentou ao porteiro o pequeno bocado de cedro sobre o qual estava gravado o hieróglifo da árvore. O criado curvou-se e introduziu o visitante no salão sobrecarregado de móveis exóticos. Sobre as mesas baixas, uma verdadeira exposição de bolos e ânforas de vinho. Flutuava no ar um perfume inebriante.

 

De faces rosadas e cabelos brilhantes, o libanês mostrou-se entusiasta.

 

- Caro amigo, muito caro amigo! Tenho uma notícia fabulosa!

- Era o nosso último encontro previsto - retorquiu Medés.

 

Se o negócio não estiver concluído, não voltaremos a ver-nos.

- Precisamente, já está

 

- Parcial ou - completamente?

 

- Completamente. Haveis cumprido a vossa parte do contrato e eu a minha. O material está em segurança.

 

- Onde?

 

- E se saboreásseis as obras-primas preparadas pelo meu pasteleiro? E quase nem me atrevo a apresentar-vos os vinhos que tenho o prazer de vos oferecer: São os melhores do Delta.

 

- Estou aqui para falar de negócios.

- Fazeis mal, garanto-vos.

 

- Não me façais perder o meu tempo. Onde fica esse armazém? O libanês sentou-se e serviu-se de uma taça de vinho branco de Imau, cujo aroma encantava as papilas.

 

- Há já muito tempo que deixámos de ser crianças. A primeira etapa da nossa colaboração foi atingida, felicito-me por termos feito jogo franco um com o outro. Tendes a lista dos compradores, eu a localização do armazém. Ela por ela, não vos parece?

 

- Não estás em posição de força. Com um pouco de tempo, descobri-lo-ei!

 

- É verdade. Mas sem mim, nunca tereis ao vosso dispor o eixo que liga o Líbano a Mênfis. Então porque havemos de enfrentar-nos em vez de continuarmos uma colaboração tão bem iniciada? E, além disso, tenho uma nova proposta a fazer-vos. Sou um comerciante e vós não. Ignoro a vossa função exacta, mas pertenceis inevitavelmente à alta administração, visto que me haveis evitado um controlo alfandegário. Vender esta madeira a particulares ricos, negociar passo-a-passo, conseguir os melhores preços... Essa tarefa não vos deve apaixonar. Arrisca-se mesmo a comprometer-vos. Eu estou habituado a esse género de actividade. Assim, permanecereis na sombra.

 

- A ideia não me desagrada. Suponho que não é gratuita. O libanês ergueu os olhos ao céu.

 

- Ora! Infelizmente nada o é neste baixo mundo.

 

- Exiges uma nova repartição dos lucros, não é verdade?

- Solícito-a.

 

- A saber?

 

- Meio a meio. Para mim ficam as preocupações, para vós a tranquilidade.

 

- Esqueces as minhas intervenções junto das autoridades!

- Nem por um instante! Sem vós, eu não existo.

 

Medés reflectiu.

 

- Dois terços para mim, um terço para ti.

 

- Não esqueçais as minhas despesas. Não imaginais o número de intermediários que me são indispensáveis! Com toda a sinceridade, o meu lucro não tem nada de mirabolante. Mas tenho muito prazer em lidar convosco e estou convencido que não ficaremos por aqui.

 

- Outros projectos?

- Não é impossível.

 

De acordo com os seus observadores, Medés sabia que as equipas do libanês se tinham comportado de forma notável. Tinha portanto a oportunidade de trabalhar com um grande profissional e uma hipótese como aquela pagava-se.

 

- Combinado: meio a meio.

 

- Não ficareis desiludido. Um pouco de vinho?

- Selemos o nosso acordo.

 

Amador de grandes vinhos, Medés teve de reconhecer que o seu anfitrião não se gabava.

 

- Continuais a fazer questão de manter o anonimato? - perguntou o libanês, untuoso.

 

- Tanto para ti como para mim, é preferível. Quanto tempo precisarás para escoar o material?

 

- Logo que me entregueis a lista dos compradores, os meus vendedores partirão para o terreno.

 

- Tens com que tomar nota?

 

O libanês apreciou: Medés não deixava atrás de si nenhum documento redigido pela sua mão. Enquanto ele ditava, o negociante anotou os nomes e os endereços de quinze notáveis de Mênfis.

 

- Dentro de cerca de um mês - anunciou o libanês - poderemos encarar outra entrega.

 

- Encontro daqui a cinco semanas, na Lua cheia. Trarei uma nova lista.

 

O libanês deixou-se cair sobre as fofas almofadas. Acabava de concluir um dos negócios mais rentáveis da sua carreira e era apenas um começo! A existência à egípcia começava a agradar-lhe.

 

- Não te descuides - recomendou uma voz grave. O libanês levantou-se de um salto.

 

- Vós! Mas... Como haveis entrado?

 

- Acreditas que uma simples porta poderia deter-me? - perguntou o Anunciador, cujo irónico sorriso provocava calafrios. - Obtiveste os resultados que esperávamos?

 

- Além das nossas esperanças, senhor, muito além!

- Nada de gabarolices, meu amigo.

 

- O homem que acaba de sair de minha casa chama-se Medés. Está encarregado pelo Faraó Senuseret de redigir os decretos oficiais. É portanto uma das personagens mais importantes da corte e tenho-a na mão! A sua posição, no entanto eminente, não lhe basta. Quer também enriquecer. E é ele o meu parceiro no tráfico do cedro e do pinheiro.

 

- Excelente trabalho - reconheceu o Anunciador.

 

- Medés não sabe que o identifiquei - continuou o libanês. Como é evidente, fez sobre mim uma investigação aprofundada e concluiu com certeza que as minhas redes comerciais não tinham equivalente. Deu-me portanto uma primeira lista de clientes que me comprometi a satisfazer.

 

- De passagem, não te deves ter esquecido de aumentar a tua remuneração.

 

- Não é mais ou menos normal, senhor?

 

- Não poderei censurar-te. A tua contribuição para a nossa causa aumentará portanto.

 

- Sem sombra de dúvida!

 

- Deves conquistar a confiança desse Medés - preconizou o Anunciador. - Consegui-lo implica vários bons negócios que o deixem satisfeito.

 

- Contai comigo, conheço a minha profissão. Medés vai enriquecer, e depressa.

 

- E o incidente de Kahun?

 

- O tagarela não voltará a falar.

- A polícia interrogou-o?

 

- Não, senhor. Mas o marceneiro Plaina começava a tagarelar de mais com a vizinhança e visitantes. O nosso agente considerou que as suas tagarelices se tornavam perigosas e aplicou as medidas de segurança.

 

- Perfeito, meu amigo. Continua a implantar a tua rede e prossegue os teus esforços.

 

- Podeis ter a certeza, senhor!

 

- Vigia a tua linha. Comer de mais prejudica a reflexão, beber de mais a prudência.

 

- O inventário está terminado - declarou Iker.

 

- Numa semana? Trabalhaste dia e noite! - espantou-se Heremsaf.

 

Examinando o rolo de papiros coberto de uma escrita rápida mas muito legível, não demorou muito tempo a constatar a excepcional qualidade do trabalho realizado.

 

- O Cabeludo queixa-se de ter adoecido por causa de um excesso de horas suplementares - atirou Heremsaf.

 

- Lamento. Foi por isso que lhe aconselhei a ficar no quarto enquanto eu próprio regularizava os últimos pormenores. O governador não tinha pressa?

 

- Claro, claro, mas nem ele nem eu te tínhamos fixado um prazo tão curto!

 

- Julguei compreender que...

 

- Parabéns, meu rapaz. Acabas de prestar um grande serviço à administração. Devemos agora pensar em nova tarefa. Quais são as tuas preferências?

 

Heremsaf conhecia a resposta: "os arquivos". Muito calmo, Iker fingiu reflectir.

 

- Gostaria de ficar adjunto ao templo de Anúbis.

- Aquele de que eu sou intendente?

 

- Considerando as vossas múltiplas obrigações, poderia tornar-me útil.

 

Por um instante, Heremsaf perguntou a si mesmo se o rapaz não estaria a troçar dele. Mas o tom era humilde, a palavra pausada e o comportamento respeitoso.

 

- Ter-te-ás finalmente tornado razoável, Iker? Repito-te: desde que esqueças o passado e as suas miragens, tens à tua frente uma brilhante carreira. Pelo meu lado, já não me lembro da nossa recente altercação.

 

- Estou-vos reconhecido por isso.

 

Heremsaf ainda duvidava da sinceridade de Iker, mas o seu subordinado parecia bastante convincente.

 

- O templo de Anúbis, não é má ideia... tanto mais que a biblioteca exige uma séria reorganização. O bibliotecário morreu no mês passado e o estagiário que ocupa actualmente o lugar não tem os conhecimentos necessários para escolher e arrumar os antigos manuscritos de acordo com a sua importância.

 

- O meu amor pelos livros ficará satisfeito - afirmou o escriba.

 

Construído a sul de Kahun, perto do muro da cerca, o templo de Anúbis era de modestas dimensões. O mesmo não se passava com a sua biblioteca, venerável instituição frequentada pelos eruditos da cidade. O estagiário não se ofendeu com a nomeação de Iker, antes pelo contrário; aliviado por ver finalmente colocado um escriba de elevada condição, contentou-se com as tarefas que lhe confiava o seu novo patrão.

 

Iker ficou maravilhado pela qualidade e quantidade dos papiros: textos literários, livros de direito, tratados de medicina e de matemática, compêndios veterinários. A maior parte desses escritos remontava ao tempo das pirâmides. Muito poucos estavam copiados em diversos exemplares e foi essa a primeira decisão de Iker.

 

Passar horas a fazer reviver aqueles hieróglifos a fim de os transmitir às gerações futuras proporcionou-lhe uma verdadeira felicidade. Atenta e precisa, a sua mão corria sobre o papiro de primeira qualidade, do qual lhe tinham sido entregues vários rolos. Com certeza o governador e Heremsaf, supondo que fossem cúmplices, deviam estar encantados por vê-lo tão ocupado.

 

Junto da biblioteca havia um oleiro, com o seu torno e o seu forno. Não se contentava, como a maior parte dos seus colegas, em produzir loiça ordinária, mas fabricava vasos e taças de grande beleza.

- A quem são destinados? - perguntou-lhe Iker.

 

- Aos templos de Kahun e da região.

- Porque estás aqui instalado?

 

- Porque Anúbis é o senhor do forno de oleiro. Ele, que preside aos kas de todos os vivos, é detentor da verdadeira força, incarnada no ceptro de Abido. De noite, esmaga a Lua cheia para que o iniciado, como ela, não cesse de se renovar. Com o seu disco de prata, ilumina os justos. E é também Anúbis que modela o Sol, essa pedra de ouro cujos raios fazem circular a energia. Os seus segredos são preservados num cofre de acácia que nenhum profano pode abrir.

 

- Também está em Abido?

 

- Abido é a terra sagrada por excelência.

 

- Já lá foste?

 

- Anúbis revelou-me o que eu devia saber. Só ele é o guia e a sua decisão não tem apelo.

 

- Portanto, viste-o!

 

- Vejo o Sol e a Lua, a obra das suas mãos, e prolongo-a. É essa a minha função. Compete a cada um descobrir a sua.

 

O oleiro voltou as costas a Iker e ocupou-se da limpeza do forno antes de voltar a acendê-lo.

 

Pensativo, o jovem escriba regressou para almoçar a casa, onde Sekari assava codornizes.

 

- Pus um sólido ferrolho em sicômoro e reforcei a porta de entrada anunciou. - Comecei a falar do teu marfim no mercado, mas não tive qualquer eco. O ladrão é prudente, vai esperar antes de o vender.

- E se o guardar para ele?

 

- Acabará por se gabar de possuir semelhante tesouro! E se comêssemos?

 

Iker debicou.

 

- Não está bom?

 

- Excelente, mas não tenho muita fome.

 

- Porque te atormentas assim? Do que oiço a teu respeito, por aqui e por ali, tens já uma reputação famosa! Uma bela carreira de escriba em Kahun leva longe.

 

- Não tenho tanta certeza.

 

- Cada um tem mais ou menos contas a regular, mas não se deve passar um traço sobre os dias maus a fim de saborear melhor os bons?

- Há um ponto de não-regresso, Sekari, e eu ultrapassei-o.

 

- Se te posso ajudar...

- Não creio.

 

- Em todo o caso, tenho de melhorar a minha maneira de preparar as codornizes. Estão um pouco secas. Ainda não sou um perito na cozinha. E se queres realmente enfrentar a adversidade, mais vale estares bem alimentado.

 

Ao regressar à biblioteca do templo de Anúbis para copiar um tratado de oftalmologia, Iker pensava nas palavras pronunciadas pelo oleiro. Abriam-lhe outra porta para a realidade que tantos seres se contentavam em aceitar sem procurar o seu significado oculto. Decifrar os hieróglifos não bastava, o sentido literal não constituía senão uma primeira etapa. Naqueles sinais, portadores de força, ocultavam-se as funções de criação. Seguir aquele caminho até à sua origem não implicava a viagem a Abido?

 

No entanto, o papel destinado a Iker parecia muito diferente. Para que servia Abido se o país era dirigido por um tirano? Visto que estava consciente disso, o jovem escriba não podia esconder a cabeça na areia e continuar a viver como um hipócrita.

 

Um homem discutia com o oleiro.

 

A princípio, Iker olhou-o sem o ver e por pouco não seguiu o seu caminho.

 

Depois, a memória fez o seu trabalho. Céptico, Iker voltou para trás e, desta vez, encarou o indivíduo.

 

Era impossível enganar-se: era mesmo o falso polícia que o interrogara, perto de Coptos, e o deixara como morto no meio de um massiço de papiros, na província da Cobra, depois de o ter espancado!

- Hei, tu! Quem és tu?

 

O assassino voltou-se.

 

Nos seus olhos reflectiu-se uma total incredulidade, em breve misturada com um pânico que o fez desatar a correr. Iker lançou-se em sua perseguição, apostando na sua resistência. Não previra que o fugitivo escalasse a fachada de uma casa como um gato. Do terraço, tentou matá-lo atirando-lhe tijolos. O tempo que demorou a trepar por sua vez, permitiu que o malfeitor desaparecesse.

 

A casa estava vazia. Sekari passava provavelmente a noite com uma das suas conquistas, mas deixara pão fresco, uma salada de pepino e puré de favas.

 

Ainda sob a acção do choque, Iker comeu sem fome.

 

A presença daquele assassino em Kahun significaria que o seguira durante meses? Não, visto que tinha ficado estupefacto por revê-lo! Com certeza o julgava morto. Mas o que tramaria naquela cidade? Talvez o oleiro soubesse alguma coisa.

 

Iker regressou de imediato ao bairro do templo de Anúbis. Como o artesão abandonara a sua oficina, o escriba interrogou os vizinhos para saber onde ele vivia: no campo, nos arrabaldes de Kahun. Graças a indicações precisas, Iker não se perdeu.

 

O oleiro grelhava uma costeleta de porco.

 

- Conheces o homem com quem conversavas e que eu persegui?

- Vi-o pela primeira vez.

 

- O que te pediu?

 

- Queria que lhe falasse da cidade, dos seus costumes, das pessoas influentes.

 

- O que lhe respondeste?

 

- Que por aqui não gostávamos muito dos curiosos. Expandiu-se depois em explicações embrulhadas. E tu chegaste. Agora gostava de comer em paz.

 

Iker regressou à cidade, metendo por uma vereda que seguia ao longo de um canal orlado de salgueiros. O ar estava suave e o campo tranquilo.

 

O ataque do falso polícia apanhou-o completamente de surpresa. O agressor passou-lhe um laço de cabedal em redor do pescoço e apertou com ferocidade.

 

Era impossível meter os dedos entre o laço e a pele. Iker tentou desequilibrar o assassino com um pontapé, mas o outro esquivou-se. Habituado ao corpo-a-corpo, travou o último gesto da sua vítima, que tentava agarrá-lo pelos cabelos.

 

Sem fôlego, com o pescoço em fogo, Iker estava a morrer. O seu último pensamento foi para a jovem sacerdotisa.

 

De repente, a dor tornou-se menos intensa. Julgou respirar de novo e caiu de joelhos. Lentamente, levou as mãos ao pescoço tumefacto. Um ruído. O ruído provocado por um mergulho ou um objecto lançado à água.

 

Com a vista ainda turvada, Iker tinha dificuldade em compreender que estava bem vivo. Foram necessários longos minutos antes de voltar a pôr-se em pé e distinguir os arredores.

 

A vereda... Sim, era a vereda pela qual viera. A seus pés, o laço de cabedal.

 

Nem rasto do falso polícia que o salvador do escriba devia ter suprimido e depois lançado ao canal.

 

Mas quem o protegia assim? Sem aquela intervenção, Iker não teria sobrevivido.

 

Cambaleante, regressou a casa.

 

Sekari dormia na soleira da porta. A seu lado, um jarro de cerveja vazio. Querendo passar por cima dele, Iker tocou-lhe no ombro.

 

- Ah, és tu! Estás com um aspecto estranho. Mas olha lá, o teu pescoço... Parece sangue! Como é que arranjaste isso?

 

- Um acidente.

 

Iker aplicou a si próprio uma compressa impregnada de óleo e de mel.

 

- E como te aconteceu esse acidente?

 

- Como qualquer acidente. Desculpa, estou com sono.

 

Para Iker, não havia dúvida: o assassino fora enviado pelo Faraó para se desembaraçar dele com discrição e com toda a impunidade. Informado da presença do jovem escriba em Kahun, quer pelo governador, quer por Heremsaf, o monarca não podia tolerar a existência daquele acusador decidido a provar a sua infâmia.

 

Sekari ofereceu-lhe leite fresco e um bolo quente recheado de favas.

- Antes de acordares tive tempo de vaguear pelo bairro. Parece que encontraram o cadáver de um desconhecido na parte de fora das muralhas, num canal onde os animais já tinham começado a comê-lo.

 

Iker não reagiu.

 

- Seria preferível dissimulares o teu ferimento com um lenço, não achas? Pretexta uma angina.

 

O escriba seguiu o conselho de Sekari e partiu para a biblioteca. O oleiro não estava a trabalhar no seu torno, o forno estava apagado.

 

Iker interrogou a vizinhança. Um padeiro disse-lhe que o artesão regressara a casa, no Norte, e que um novo oleiro em breve ocuparia o seu lugar.

 

Este incidente suplementar confirmou Iker nas suas convicções.

 

- Tens a certeza de não ter sido seguida?

 

- Tomei precauções - afirmou Bina. - E tu, Iker

- Sei que não devo confiar em ninguém.

 

- Nem mesmo em mim?

 

- Tu, é diferente: és a minha aliada.

 

A jovem asiática sentiu vontade de saltar de alegria.

- Então aceitas ajudar-me?

 

- O tirano não me deixa opção. Um dos seus esbirros acaba de tentar suprimir-me. E foi um dos teus amigos que me salvou, não é verdade?

 

- Sim, claro - respondeu Bina apressadamente. - Como vês, velamos por ti.

 

A asiática estava perturbada. Não sabia quem agredira Iker nem tão-pouco quem o tinha defendido.

 

- Tomei a minha decisão - declarou o jovem - e tenho uma surpresa para ti.

 

Mostrou-lhe o cabo do punhal marcado com o nome do Veloz. Desta vez, estava provido de uma longa lâmina de corte duplo.

 

- Eis a arma com a qual matarei o Faraó Senuseret, o monstro sanguinário que oprime o meu país.

 

- Estou pronto - anunciou ao Rei o general Nesmontu. Logo que me derdes ordem, atacaremos pelo rio e pelo deserto. Os milicianos de Khnumhotep serão apanhados numa tenaz e o efeito de surpresa garantir-nos-á uma vitória rápida.

 

- Não sejamos demasiado optimistas - recomendou Se-hotep.

- Segundo sabemos, lutarão como feras. Se se verificar a mínima fuga, saberão receber-nos! Em caso de perdas elevadas, teremos de bater em retirada.

 

- É por isso que se torna necessário lançar o assalto sem demora - insistiu Nesmontu. - Cada dia que passa põe a operação em perigo.

 

- Tenho consciência disso - reconheceu Senuseret - mas devo no entanto esperar a chegada do grande tesoureiro Senankh. As informações de que será portador podem alterar o curso dos acontecimentos.

 

O monarca levantou-se, significando assim o fim do conselho restrito. Ninguém teria tido a impertinência de tomar a palavra depois dele e o velho general regressou ao seu quartel resmungando. Na primeira ocasião, tentaria persuadir Senuseret a voltar atrás na sua decisão e intervir o mais depressa possível.

 

Conforme era seu hábito, Nesmontu instalara-se num quarto da caserna a fim de estar em contacto com os seus homens. Sempre de orelha à escuta, gostava de ouvir críticas e protestos mais ou menos atenuados, de forma a remediar as insuficiências. Segundo ele, a vida militar não devia sofrer qualquer falta susceptível de alterar o moral das tropas. Um soldado bem alimentado, bem alojado, bem pago e respeitador da sua hierarquia era um vencedor em potência.

 

Ao entrar na sala de refeições dos oficiais, Nesmontu sentiu de imediato que o clima estava tenso. O seu ajudante-de-campo abordou-o.

- Meu general, falta a cerveja e o peixe seco não foi entregue.

- Convocaste o intendente?

 

É esse o problema: desapareceu.

 

Não é um responsável nomeado pelo chefe de província Djehuti?

 

- Afirmativo.

 

- Previne imediatamente Djehuti e que ele o mande procurar. Pede-lhe também que nos faça chegar sem demora os produtos que nos faltam. Ah... uma última ordem: os oficiais não devem comer nada dos alimentos fornecidos por esse intendente.

 

- Receais que...

 

- De um desertor pode-se recear tudo.

 

Depois de uma refeição no decurso da qual saboreara uma perca grelhada, uma costeleta de vaca, beringelas com azeite, queijo de cabra e algumas guloseimas, tudo regado com um vinho tinto datado do ano um de Senuseret III, Khnumhotep dirigiu-se à sua grandiosa Morada de Eternidade da qual verificava cada pormenor.

 

Um pintor de talento terminava um pássaro multicor empoleirado numa acácia. Em frente dessa obra-prima, o corpulento chefe de província ficou comovido até às lágrimas., A elegância do desenho, o calor deslumbrante das tintas, a alegria que emanava daquela visão paradisíaca fascinavam-no. Tão encantados como ele, os seus três cães tinham-se sentado sobre as patas traseiras para contemplar a última maravilha criada pelo pintor.

 

Khnumhotep de boa vontade teria passado a tarde a ver trabalhar aquele génio; no entanto, o chefe da sua milícia, depois de uma longa hesitação, atreveu-se a íncomodá-lo.

 

- Senhor, creio que deveríeis ouvir um viajante que acabamos de prender.

 

- Não me importunes, interroga-o tu.

 

- Já o fiz, mas as suas declarações dizem-vos directamente respeito. Intrigado, Khnumhotep seguiu o militar até um posto de guarda onde estava detido o suspeito.

 

- Quem és tu e de onde vens?

 

- Era intendente da caserna principal da província da Lebre e vim para vos avisar.

 

Os olhos de Khnumhotep brilharam de cólera.

- Tomas-me por um idiota?

 

- Deveis acreditar-me, senhor! O Faraó Senuseret reconquistou todas as províncias que lhe eram hostis, com excepção da vossa. Até mesmo Djehuti se curvou.

 

- Djehuti? Estás a brincar! - Juro-vos que não.

 

Khnumhotep sentou-se num tamborete que por pouco não cedeu sob o seu peso e olhou o intendente a direito nos olhos.

 

- Não me contes patranhas ou esborracho-te a cabeça com as minhas próprias mãos.

 

- Não vos minto, senhor! Senuseret está em Khemenu com o seu estado-maior e Djehuti tornou-se seu vassalo.

 

- Quem é o general-chefe? Nesmontu.

 

- Esse velho tratante... temível como uma cobra! E a milícia de Djehuti?

 

- Obedece-lhe, como as das outras províncias agora aliadas ao Faraó. O mais importante é que Senuseret decidiu atacar-vos.

 

- Atacar-me, a mim?

 

- É a verdade, garanto-vos!

 

Khnumhotep levantou-se, agarrou no tamborete e quebrou-o em vários pedaços. Os soldados encostaram-se às paredes, receando servir de bodes expiatórios. Espumando como um touro furioso, o chefe de província regressou a pé até ao palácio, ignorando a cadeira de transportadores.

 

Constatando que o patrão estava dominado pelo acesso de fúria do decênio, a dama Techat deixou para mais tarde a apresentação das pastas administrativas que tencionava mostrar-lhe.

 

- Fazer-me isso a mim! Querer invadir o meu território! Esse Rei perdeu a cabeça, vou trazê-lo à razão.

 

Na minha opinião, Senuseret segue um plano preciso com uma determinação inabalável.

 

Apenas a dama Techat ousava dirigir-se assim a Khnumhotep, que fingiu ignorar aquele comentário e se dirigiu para uma sala de recepções onde reinava uma agradável frescura.

 

O seu escanção trouxe-lhe de imediato cerveja e eclipsou-se sem ruído. Techat permaneceu de pé, num canto do compartimento. Enterrado num cadeirão apropriado às suas dimensões, o chefe de província acariciava as suas duas cadelas instaladas sobre os seus joelhos, enquanto o macho velava, deitado aos pés.

 

- Um plano preciso, dizíeis vós. E onde o conduz?

 

- A reinar sobre a totalidade do Egipto, suprimindo o último rebelde que, actualmente, já não tem nenhum aliado. Senuseret eliminou um a um os seus adversários, sabendo que seriam incapazes de se unir.

 

- Se ele julga que me vou prostrar diante dele, engana-se redondamente!

 

- No entanto, seria a melhor solução - considerou a dama Techat. - O Rei está em posição de força.

 

- Teria estado, se me tivesse atacado de surpresa! Ser informado coloca-me em igualdade e o meu combate não está de antemão perdido.

- Pensais no número de mortos?

 

- Esta província pertence à minha família desde ha muitas gerações e nunca a cederei seja a quem for! Chega de tagarelices, dama Techat. Vou preparar uma bela recepção ao invasor. Mortos, haverá muitos, sobretudo do lado dele. E esse Faraó reagirá como todos aqueles que tentaram apoderar-se dos meus bens: recuará.

 

Embora tivesse ouvido os argumentos de Nesmontu com atenção, o Faraó permanecia inflexível. Despeitado, o general continuava no entanto a treinar o seu regimento de assalto. Quando lhe chegou a má notícia, comunicou-a de imediato a Senuseret.

 

- O desertor foi detectado quando atravessou a fronteira desta província para penetrar na da Gazela. A situação é clara: preveniu Khnumhotep das nossas intenções. já não podemos portanto contar com o efeito de surpresa. Quanto mais tardarmos a atacar, mais o inimigo reforça as suas defesas, mais dura e incerta será a batalha. Em caso de derrota, o vosso prestígio ficaria aniquilado e os chefes de província tornariam a ser independentes. Perdoai a minha franqueza, Majestade, mas a ideia de um desastre é-me insuportável!

 

- Que tipo de cilada prepara Khnumhotep?

- Clássica e ardilosa.

 

- Então, general, adapta-te e anula essas armadilhas.

 

Aquela missão entusiasmou Nesmontu. Em vez de um ataque brutal, seria um confronto táctico. Naquelas circunstâncias, a sua experiência seria decisiva.

 

Foi um Senankh esgotado que chegou a Khemenu com a sua escolta. O grande tesoureiro tinha emagrecido, mas só iria restaurar-se depois de ter comunicado ao Rei os resultados do seu périplo.

 

Pela expressão sombria, tão rara naquele grande trabalhador de aparência jovial, Senuseret compreendeu que aqueles eram desastrosos.

- Mandei entregar ao Calvo amostras de ouro retirado dos tesouros dos templos, Majestade. Nenhum curou a acácia.

 

Senuseret já sabia que o ouro utilizado durante a última e distante celebração dos mistérios de Osíris, em Abido, se revelara também ineficaz. Desmagnetizado, esvaziado da sua energia, atingido pelo malefício, não passava de um metal inerte.

 

O ser demoníaco que atacava o coração espiritual do Egipto desencadeara a mais terrível das ofensivas.

 

O Rei esperara que Senankh encontrasse o ouro salvador e que poderia anunciar aos seus novos vassalos a cura da acácia. Ter-se-iam então colocado a seu lado sem reticências e, face a um exército tão poderoso, Khnumhotep talvez tivesse cedido.

 

- Acrescento - continuou o grande tesoureiro - que as reservas de ouro dos nossos templos estão muito por baixo. Alguns já nem sequer possuem uma onça. Por causa dos chefes de província, as minas deixaram de ser exploradas. É possível que um deles tenha acumulado reservas consideráveis para o seu uso pessoal.

 

- Khnumhotep?

 

- É o nome que surge frequentemente nas acusações, mas não tenho nenhuma prova.

 

O Faraó reuniu o seu conselho, para o qual foram de novo convidados Djehuti e o general Sepi.

 

Nesmontu esperava uma declaração de guerra, feita em devida forma, ao rebelde Khnumhotep.

 

- O nosso futuro imediato repousa na qualidade da tua palavra, Djehuti.

 

- Só tenho uma, Majestade. Reconheci-vos como Rei do Alto e do Baixo Egipto, a província da Lebre está a partir de agora colocada sob a vossa autoridade.

 

- O confronto com Khnumhotep parece inevitável. Antes que comece, tenho uma tarefa sagrada a cumprir e os generais Sepi e Nesmontu devem acompanhar-me. Por isso te encarrego do comando das tropas que estão na caserna de Khemenu.

 

Nesmontu teve dificuldade em conter-se. Confiar os seus homens a um antigo opositor? Uma verdadeira loucura!

 

- Quais são as vossas ordens? - perguntou Djehuti.

 

- Enquanto esperas o meu regresso, disporás as tropas na fronteira da província para repelir um eventual ataque, no qual não acredito. Em caso de agressão, contenta-te em repelir Khnumhotep.

- Será feito como desejais.

 

O olhar do monarca poisou sobre os outros membros do conselho.

- Partimos imediatamente para Abido.

 

O Calvo e o Faraó dirigiram-se para a acácia.

 

- As vossas instruções foram seguidas à letra, Majestade.

- O que propuseram os teus colegas?

 

- Estão tão desencorajados que se limitam a cumprir as suas obrigações. Apenas trocamos banalidades, cada um se fecha no seu silêncio.

 

Reunindo no seu mistério o céu, a terra e o mundo subterrâneo, a grande árvore continuava a lutar contra o enfraquecimento. Nela, Osíris continuava presente, mas quanto tempo ainda conseguiria a acácia mergulhar as suas raízes no oceano primordial a fim de absorver a energia necessária à sua sobrevivência?

 

- Descobriste remédios nos antigos textos?

 

- Infelizmente não, Majestade. Sou hoje auxiliado nas minhas investigações e não desespero.

 

Um vento fresco soprava sobre a madeira sagrada. Pouco a pouco, a porta do além ia-se fechando.

 

Acompanhado por Sobek, o Protector, Senuseret visitou o estaleiro que, apesar de numerosos imprevistos, continuava a avançar. Graças à intervenção das sacerdotisas de Hathor, os acidentes tornavam-se mais raros e as ferramentas já não se quebravam. O mestre-de-obras confessou passar dias difíceis, mas a sua determinação e a dos seus artesãos continuavam intactas. Tinham consciência de participar numa verdadeira guerra contra forças obscuras e cada pedra colocada surgia-lhes como uma vitória.

 

A presença do Faraó devolveu-lhes coragem para o trabalho. Seguros do seu indefectível apoio, os construtores juraram a si próprios não ceder perante a adversidade.

 

- Prepara o Círculo de Ouro de Abido - ordenou Senuseret ao Calvo.

 

Numa das salas do templo de Osíris, quatro mesas de oferenda tinham sido dispostas em função dos pontos cardeais. O sinal hieroglífico da mesa de oferenda lia-se hotep que significava "paz, plenitude, serenidade", noções que caracterizavam a missão do Círculo de Ouro de Abido cujos membros, naqueles tempos angustiosos, se interrogavam sobre a sua capacidade para a cumprir.

 

O Faraó e a Rainha ficavam a oriente. Em frente deles, a ocidente, o Calvo e o general Sepi. A setentrião, o Portador do selo Se-hotep e o general Nesmontu. Ao meio-dia, o grande tesoureiro Senankh.

 

- Devido à tarefa que lhe foi confiada, um de entre nós está ausente - declarou o monarca. - É evidente que será informado das nossas decisões.

 

Todos os membros do Círculo de Ouro tinham sido iniciados nos grandes mistérios de Osíris. Entre eles haviam-se criado laços indestrutíveis. Obrigados ao segredo absoluto, como os seus predecessores, devotavam a sua vida à grandeza e à felicidade do Egipto que repousavam precisamente na justa transmissão da iniciação osirica.

 

Aqui, a morte era encarada de frente. Aqui, como afirmava um texto gravado nas pirâmides reais do Antigo Império, fazia-se morrer a morte. O Círculo de Ouro de Abido mantinha a dimensão sobrenatural das Duas Terras onde vivia o povo do Conhecimento'.

 

- Se a acácia se extinguir - lembrou Senuseret - os mistérios não serão mais celebrados. A seiva que circula no grande corpo do Egipto secará, o casamento entre o céu e a terra quebrar-se-á. É por isso que devemos procurar sem descanso a causa deste malefício cujo autor é provavelmente o chefe de província Khnumhotep.

 

- Ainda duvidais, Majestade? - interrogou o general Nesmontu. Tendo sido estabelecida a inocência dos outros, só resta ele!

 

- Quero ouvir da sua boca os motivos pelos quais cometeu este abominável crime. Temos de travar batalha e apanhá-lo vivo. Neste período tão trágico e tão perigoso, a unidade do país é mais do que nunca necessária. A nossa divisão enfraqueceu-nos muito e foi uma das razões que permitiram a uma força maléfica atingir a árvore de Osíris, ele, cujo corpo cósmico se compõe do conjunto das províncias celestes e terrestres reunidas.

 

- As palavras de força pronunciadas em Abido recebem ainda um eco favorável da parte das divindades - afirmou o Calvo - e o colégio dos sacerdotes permanentes assume as suas funções com o rigor indispensável.

 

E se um desses sacerdotes fosse cúmplice? - avançou Senankh. É uma hipótese que não podemos excluir - lamentou o Calvo

- mas nenhum indício ma confirma.

 

- Perdoai esta pergunta, Majestade - disse Se-hotep com gravidade - mas deve ser feita: se morrerdes durante o confronto com Khnumhotep, quem vos sucederá?

 

- A Rainha assegurará a regência e aqueles de vós que escaparem designarão um novo monarca. O essencial é encontrar o meio de curar a acácia. Até ao presente, a busca do ouro fracassou. Intensificaremos portanto as nossas pesquisas.

 

- Explorar o deserto, alcançar as pedreiras e trazer delas o metal salvador demorará muito tempo - considerou o general Sepi. E não falo dos perigos da viagem.

 

- Cada um de nós terá uma tarefa sobre-humana a realizar precisou Senuseret. - Sejam quais forem os riscos, sejam quais forem as dificuldades, juremos não desistir.

 

Todos prestaram juramento.

 

- Chegou a hora de fazer avançar a nossa discípula pelo caminho dos mistérios - decretou a Rainha. - É certo que não está ainda pronta para franquear a última porta e seria tão perigoso como inútil precipitar a sua formação. No entanto, deve tentar ultrapassar uma nova etapa em direcção ao Círculo de Ouro.

 

A jovem sacerdotisa inclinou-se diante do Faraó.

 

- Segue-me.

 

No seio da noite, penetraram numa capela iluminada por tochas. No centro, um relicário formado por quatro leões colocados costas com costas. Encaixada no pequeno monumento oco, uma haste cujo topo estava oculto por um relicário.

 

- Eis o pilar venerável que surgiu nas origens da vida - revelou o monarca. - Nele se ergueu Osíris, vencedor do nada. Ele, Verbo e espírito, foi agredido, assassinado e desmembrado. Mas ao transmitir a iniciação a alguns seres, permitiu-lhes reunir as partes esparsas da realidade e ressuscitar o ser cósmico de onde, todas as manhãs, renasce o Egipto. Não há ciência mais importante do que esta e deverás controlar os seus múltiplos aspectos. Serás capaz de ver o que está oculto?

 

A sacerdotisa contemplou o relicário, sabendo que não podia permanecer passiva. Por momentos, pensou retirar o véu para descobrir o cimo da haste, mas o seu instinto impediu-a de realizar semelhante profanação.

 

Era aos leões que convinha dirigir-se, àqueles quatro guardiães de olhar incandescente.

 

Encarou as feras, uma após outra. Abriram-lhe as portas do espaço e do tempo, e fizeram-na viajar por regiões imensas, povoadas de capelas, de colinas, de campos cobertos de trigo de ouro, de canais e de jardins feéricos. Depois, apareceram-lhe dois caminhos, um de água, outro de terra. No seu extremo, um círculo de fogo no centro do qual se encontrava um vaso selado.

 

As paisagens esfumaram-se e a jovem distinguiu de novo o relicário.

- Viste o segredo - constatou o Rei. - Desejas continuar por esta via?

 

- Desejo, Majestade.

 

- Se os deuses te permitirem um dia atingir o vaso selado e descobrir o seu conteúdo, conhecerás uma alegria que não é deste mundo. Antes, espreitam-te terríveis provas. Serão mais exigentes e mais cruéis do que as que são impostas aos iniciados que te precederam porque nunca estivemos ameaçados por um tal perigo. Ainda é tempo, podes renunciar. Toma bem consciência da tua decisão. Apesar da tua juventude, comporta-te com maturidade e não presumas além das tuas forças. O caminho de água aniquila o ser, o caminho de terra devora-o, o círculo de fogo é inultrapassável. Se te meteres nesta aventura, estarás só nos piores momentos, roída pela angústia e pela dúvida.

 

- As felicidades humanas não são efémeras, Majestade? Haveis falado de uma alegria que não é deste mundo. É ela que eu procuro. Se os meus defeitos me impedirem de a viver, serei a única responsável.

 

- Eis a arma com a qual conseguirás vencer alguns ataques da má sorte.

 

Senuseret entregou à jovem sacerdotisa um pequeno ceptro em marfim.

 

- Chama-se beka, a magia nascida da luz. Nele está inscrito o Verbo que produz a energia. Por si só, é uma palavra fulgurante que não deverás utilizar senão em última instância. Esse ceptro pertencia a um Faraó da primeira dinastia, o Escorpião. Repousa aqui, depois de ter ligado o seu destino ao de Osíris. Desde que o Egipto é a terra amada pelos deuses, o Círculo de Ouro de Abido provou que a morte não era irreversível, Mas hoje a acácia murcha e a porta do Além fecha-se. Se não conseguirmos mantê-la aberta, será a própria vida que nos abandonará.

 

Poisando o ceptro sobre o coração, a sacerdotisa soube que não recuaría. De forma surpreendente, o seu pensamento levou-a para o jovem escriba que, cada vez mais frequentemente, povoava as suas noites. Num momento tão solene, censurou-se por essa fraqueza. Não era um sinal que lhe mostrava a que ponto o seu caminho seria perigoso?

 

Pouco importavam as suas imperfeições e os seus inimigos interiores, mais valia identificá-los e combatê-los sem fraquejar. No entanto, o que sentia por Iker não parecia nem enfraquecê-la nem desviá-la do seu objectivo. Mas não ensinavam os sábios que as paixões humanas terminavam em perturbação e desespero, bem longe da alegria celeste?

 

Demasiadas emoções tinham abalado a sacerdotisa para que ela fosse capaz de uma lucidez absoluta. Apertando o ceptro como um leme, acompanhou o Faraó que saía da capela do relicário.

 

- Vou celebrar os rituais da madrugada - anunciou ele - e oferecer Maet a Maet. Que a rectidão seja o teu guia.

 

Só no vestíbulo interior do templo de Osíris, a jovem assistiu ao nascer do novo sol. Uma vez mais, o Faraó vencera as trevas.

 

Se a acácia se extinguisse, o astro do dia seria apenas um disco árido que queimaria a natureza inteira.

 

Fruiu no entanto o fim daquela noite que vira a sua existência mudar de dimensão e saboreou a luminosidade de uma madrugada da qual a esperança não estava ausente.

 

Em breve, com o Calvo, deitaria a água e o leite no pé da árvore da vida, enquanto a terra sagrada de Abido se cobria de luz.

 

                                                                                Christian Jacq  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor