Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS NOVOS SAMURAIS
Vocês vão encontrar-me na mesma. E por que haveria eu de mudar, se achei a felicidade que me convém? Aceitei a duplicidade, em vez de ficar aborrecido com ela.
Há ocasiões em que duvidamos dos fatos mesmo depois de descobrir o segredo da boa vida. A minha solução não ê certamente ideal. Mas quando você não gosta da sua própria vida, quando sabe que deve mudar de vida, já não há outra escolha.
Albert Camus — a queda
Como ousam? ...
O mundo tem a seguinte imagem do Japão: homens e mulheres de quimono, curvando-se cerimoniosamente uns para os outros à sombra de pagodes; gueixas sensuais que dedilham velhos instrumentos musicais de corda e só se interrompem para fazer um ou outro comentário pleno de sabedoria; homens e mulheres atarracados, voltando apressados de cerimônias florais para ir com um sorriso amarelo nos lábios a chás aristocráticos, enquanto ao fundo samurais desiludidos praticam o haraquiri.
As imagens estereotipadas custam a fenecer, e sempre há uma boa razão para que existam.
Afinal, os homens de negócios norte-americanos sempre são vistos em automóveis espetaculares, fumando charutos espalhafatosos e travando contra os gângsteres duelos de metralhadora, e, quando derrotados, cavalgando fogosos corcéis rumo a uma cidade perdida no faroeste, geralmente o infinito vazio de Los Angeles ou San Francisco. Os poucos ingleses que não pertencem aos Coldstream Guards — e não usam túnicas escarlate, barretes de pele ou carruagens pomposas para ir trabalhar (geralmente uma cerimônia real) — são banqueiros taciturnos, reservados e arrogantes, de cartola, indefectíveis guarda-chuvas, saindo de seus Rolls-Royce para jogar críquete ou tramar a reorganização do império, enquanto suas mulheres, com seus chapéus enormes, decorados de flores de um mau gosto ímpar, reúnem-se para debater acaloradamente a volta do enforcamento ou protestar contra os maus-tratos que os cachorros ingleses recebem no Japão.
Estas imagens podem ser caricatas, mas o problema com as caricaturas é o de elas se assemelharem ao original muito mais do que nós (se somos o original) podemos admitir. Além disso, estereotipia significa permanência, rigidez, algo fixo e inalterável a que nos apegamos porque somos todos — até mesmo os mais progressistas, os mais revolucionários — extremamente conservadores. Todos nos ressentimos das mudanças por sabermos que, onde há mudança, há vida. Porém mudança também significa morte, o que acarreta a nossa inevitável extinção. Assim, rebelamo-nos contra desvios no estereótipo japonês, opomo-nos ao fato de estar o Japão se transformando em uma potência industrial de primeira ordem; e assim também procedem os japoneses, que nostalgicamente tentam apegar-se aos seus quimonos e às reverências de cortesia nas quais se desdobram antes de fecharem negócios multimilionários de computadores ou de construção de fábricas automatizadas de equipamentos eletrônicos; e indo sempre às casas de gueixas para assinar os contratos.
Na verdade, o mundo sofreu o seu primeiro choque com relação ao Japão quando da Guerra Russo-Japonesa. Mas aquele evento, no começo do século, teve o seu aspecto legendário, romântico, de Davi contra Golias. Foi a vitória do pigmeu insignificante sobre o tirânico fanfarrão, o qual seria um prazer ver humilhado, e assim o êxito do Japão incendiou a imaginação dos povos em vez de intimidá-los (à exceção do cáiser, que desenvolveu a sua teoria do "perigo amarelo"). Além disso, o Japão expiou esta vitória de 1905 com a derrota, quarenta anos mais tarde.
Porém, a vitória japonesa do pnb (Produto Nacional Bruto) — uma frase muito mais mencionada no Japão de hoje do que o foi o bushido em outra época — é um assunto bem mais sério do que as vitórias de Port Arthur, Mukden e Tushima. O Japão transformou-se (conforme uma certa maneira de medir) na terceira potência industrial do mundo. E a raça ainda não se extinguiu.
Cada pessoa reage de maneira diversa a este espetacular fenômeno. Alguns mencionam, com desdém, os frutos da derrota. A derrota — como veremos em maiores detalhes — teve, por certo, seus benefícios; mas também significou fome, bombas atômicas, ocupação, humilhação, execução de dois primeiros-ministros como criminosos de guerra e longos anos de luta contra a miséria. E isto não foi brincadeira. Não é justo para com a história afirmar que esses espertos japoneses (bem como os alemães), reconhecendo os riscos da vitória, tenham engendrado a própria derrota para atingir os seus objetivos de guerra. Pode ser o que parece, hoje. Mas não ocorreu assim.
Outros se ressentem com a injustiça básica da coisa. Eles não só pensam em padrões, mas em categorias, também. Alguns devem usar quimonos, outros roupas ocidentais; uns constituiriam um país de samurais, outros uma nação de vice-presidentes. Do mesmo modo, há países vitoriosos e países derrotados, e ambas as categorias devem manter-se no seu devido lugar nesta era de pós-guerra. Mas a triste verdade — e muitos de nós devem sentir-se mais velhos ou mesmo bem mais maduros, como resultado disso — é que hoje terminou o período do pós-guerra. Pode ter durado uma geração, mas na década de 70 é claro que estamos na era do pós-pós-guerra (e, façamos votos, não num outro pré-guerra): uma época muito diferente em disposição, perspectivas, atitudes, venturas e desventuras. Temos de parar de pensar nos termos desgastados da Segunda Guerra Mundial.
Não é a vitória ou a derrota naquele confronto que determina o nosso destino e a nossa sorte, mas, sim, nosso comportamento político, esforço, sabedoria e sorte no último quarto de século. A Segunda Guerra Mundial pode ter sido a última; mas ela está agora no passado e, consequentemente, é parte integrante de nossas vidas, do nosso caráter, do nosso presente (como as guerras napoleônicas, as cruzadas, a conquista normanda, as Guerras do Peloponeso), e precisa assumir o seu lugar adequado — e reconhecidamente importante — na história.
Há ainda os que vão ao outro extremo. Sentem-se culpados (particularmente por causa das bombas A) e envergonhados por serem produto da civilização européia. Saúdam a emergência do Japão moderno e esperam pela emergência da África moderna, esfregam as mãos de alegria e aguardam com malicioso regozijo a sua própria destruição.
É fácil e confortante sentir-se um europeu culpado ("europeu", um tanto inadequadamente, significa americano, australiano, etc., também). É igualmente fácil permanecer um europeu sem arrependimentos e voltar do Extremo Oriente convencido da superioridade das nossas práticas e processos. Em muitos aspectos eles são verdadeiramente superiores, especialmente por serem melhor indicados para a sociedade deteriorada, automatizada e mesquinha que construímos, e em parte porque são mesmo bons. É fácil valorizar os outros e menosprezar a nós mesmos: admitir a nossa fraqueza não é mais que outra maneira de demonstrar a nossa superioridade moral. Para muitos é mais fácil dar do que receber; mais fácil admitir a própria culpa do que culpar os outros. Cerca de metade da humanidade é masoquista, e este modo de pensar se adapta perfeitamente a ela e a satisfaz. É mais difícil aceitar as nossas virtudes; bater — embora relutantemente — no peito, e fazê-lo sem presunção. Afinal de contas, nós, europeus, conseguimos muito e devemos curvar-nos a aceitar elogios — sem humildade, já que esta é uma das mais repulsivas virtudes, quase sempre falsa. Porém, embora admitindo a nossa inegável excelência, devemos também refletir sobre o fato de nossa atual preponderância em muitos campos dever-se principalmente a fatores históricos e climáticos, incluindo ainda elementos de pura sorte; e que, de qualquer modo, esta preponderância é apenas temporária, como o foi a hegemonia da Babilônia, Suméria, Egito ou Grécia. A nossa vitória na Batalha da Eletrônica pode acabar sendo tão efêmera e evanescente quanto a nossa vitória na Segunda Guerra Mundial, ou a vitória dos gregos em Maratona. Mas não há necessidade de pensar em termos de vencedores e vencidos; em termos de nós e eles. Se a humanidade — europeus, africanos, asiáticos e outros — fosse precisamente um pouco mais inteligente, todos nós poderíamos ser vencedores; todos poderíamos ser nós.
No Japão está acontecendo, agora, alguma coisa que ocorreu na índia há algum tempo: uma nova cultura, uma nova forma de vida está se superpondo ao anteriormente estabelecido. Uma cultura alienígena se sobrepõe à cultura natural.
"Não se pode sobrepor uma cultura a outra", diz-se constantemente. "O resultado é uma espécie de mestiçagem."
Certamente. Mas que há de errado com os mestiços? Decerto, um mestiço não é um lobo da Alsácia nem um fox-terrier, mas isto não é uma condenação final. Um cão mestiço é ainda cão — com os olhos, orelhas, sentidos, paixões, ciúmes, frustrações e brincadeiras próprias. Pode ser mais inteligente, mais sensível e, no todo, mais valioso do que qualquer dos seus aristocráticos ascendentes. O veredicto: "Ele não é de raça pura" significa que é inferior apenas aos olhos dos puros lobos da Alsácia, que acreditam firmemente que ser puro lobo da Alsácia é a virtude suprema, até aprenderem as realidades da vida, normalmente bastante duras.
Duas culturas sobrepostas fazem pouco sentido ao se conservarem separadas e desagregadas. Se podem integrar-se, produzem algo de novo. O conjunto, acima de tudo, é mais do que a soma total dos seus ingredientes, tal como um automóvel é mais do que um monte de peças separadas.
Os japoneses não obtiveram ainda esta integração, e o processo parece ser lento. Mas, se eles têm talento para alguma coisa, é para imitar os outros e aperfeiçoar os seus processos. E tal como para a nossa própria cultura de puro lobo da Alsácia... a nossa cultura mediterrânica-nórdica-européia-central-eslava-americana: não há nada de puro acerca disso. É como um prato preparado com muitos ingredientes — e tudo do bom e do melhor para completá-lo.
Estamos inclinados a pensar que os nossos métodos são os melhores. Muitas vezes são. Mas há exceções deveras singulares.
Em 12 de novembro de 1946, o Stars and Stripes, jornal diário do Exército Americano de Ocupação, preparou uma competição, em Tóquio, entre o ábaco — ainda em uso quase em escala universal na maioria das lojas e escritórios — e a máquina elétrica de calcular, mais perfeita e atual, como era então chamado o jovem computador.
"A idade da máquina deu ontem um passo para trás", noticiou o jornal no dia seguinte. "O ábaco, com séculos de existência, derrotou a mais perfeita e moderna máquina elétrica usada pelo governo dos Estados Unidos. A vitória do ábaco foi decisiva."
Também eu tenho uma experiência memorável, porém um tanto diferente. Fui comprar alguns artigos na loja do meu hotel, em Tóquio. A funcionária que me atendeu pegou no seu ábaco e eu me atirei ao meu pequeno calculador de bolso (sou muito ruim em números, por isso uso uma pequena máquina de somar, cujo reverso é uma régua de cálculo).
— Duzentos e trinta e cinco ienes — declarou ela, observando o ábaco.
— Não creio — disse eu delicadamente, estudando a minha máquina. — Enganou-se a meu favor. Gastei seiscentos e quarenta e cinco.
— Não. — Ela abanou a cabeça, sorrindo. — Não deve pagar-me a mais. São duzentos e trinta e cinco.
Então alguém que era capaz de fazer contas de cabeça aproximou-se e disse: — Em absoluto, o total correto é de quatrocentos e quinze ienes.
Uma historinha simples, mas que para mim tem um significado simbólico. Um choque — embora insignificante — entre os métodos do Oriente e os do Ocidente. Ambos sabemos que o nosso próprio método pode frequentemente estar certo; o mais sábio, entre nós, também sabe que os nossos métodos podem, algumas vezes, estar errados e os dos outros, certos. Esta pequena história deve lembrar-nos — útil recordação, na verdade — que ambos poderemos estar errados ao mesmo tempo.
A história do sucesso
Como encaram os japoneses tudo isto? São pessoas complicadas. E são também muito práticas — quase primitivas — num aspecto: idolatram o sucesso. O que dá certo é bom; o que falha é péssimo.
Talvez estejamos todos inclinados a pensar desta forma, mas a definição japonesa de sucesso parece ultra-simples: sucesso é aquilo que obtém resultados imediatos e palpáveis; o sucesso brilha e rebrilha, existe para que todos o vejam e o reconheçam num piscar de olhos. Sucesso é a realização de uma empresa sem a necessidade de exames psicológicos e filosóficos de valores, qualidades e intentos. Sucesso é fama, posição, riqueza.
Esta idolatria do sucesso tem-se feito presente na história do Japão através dos anos; forma o caráter japonês; faz a história do mundo.
Em 1637, após uma revolta sangrenta — a insurreição de Shimbara —, o Japão ficou hermeticamente fechado ao outro lado do mundo. Criou-se, assim, uma das muitas cortinas de ferro da história, muito mais selvagem e efetiva do que foi a de Stálin no apogeu da sua paranóia. A nenhum japonês era permitido, sob pena de morte, deixar o país; aquele que fosse suficientemente tolo para regressar do exterior era executado da forma mais desagradável possível. Os estrangeiros não podiam também entrar no país; se o fizessem seriam degolados.
Em 1640, um grupo de portugueses bravos e temerários surgiu ali transportando presentes que, esperavam, pudessem acalmar o xógum, Iemitsu. Não deu certo. Toda a tripulação do barco português — com exceção de treze homens — foi decapitada; a embarcação e a sua carga, incluindo todos os presentes destinados ao xógum, foram queimadas. "Os treze sobreviventes, depois de testemunharem as execuções, foram recambiados para Macau. Antes de partirem, um funcionário lhes disse: 'Vocês são testemunhas de que eu até mandei queimar as roupas dos que foram executados; deixem-nos (aos de Macau) fazer-nos o mesmo se tiverem oportunidade para isso; consentiremos sem demora. Façamos com que não pensem mais a nosso respeito, como se não estivéssemos mais no mundo'."1
1 Richard Storry. A history of modem Japan, Penguim Books. (N. do A.)
Os governadores do Japão tinham inúmeros motivos para tentar viver isolados do mundo, sendo a razão principal o medo que é característico aos tiranos: o receio de contaminação pelo espírito da liberdade. À medida que a tirania era.bem sucedida, os japoneses, como de hábito, aceitavam-na; o país mantinha-se isolado, afastado completamente das idéias, do progresso, da ciência ocidental.
Por meados do século XIX, o xogunato Tokugawa — essencialmente uma ditadura militar que governava o Japão há dois séculos, usando o imperador como um fantoche — começou a vacilar. Sua sorte foi selada quando o Comodoro Perry abriu o Japão aos estrangeiros. No Japão, nenhum regime — nem mesmo, aliás, uma ditadura forte — poderia sobreviver com tal perda de prestígio. Após essa reversão política, muitas outras nações teriam ficado desanimadas, voltadas para dentro, com um grande fardo sobre os ombros — como sucedeu com os chineses.
O mundo tratou abominavelmente os chineses, e até muitos dos resolutos opositores de Mao aplaudiram o seu êxito na completa restauração da soberania da China; no entanto, a tola e injustificada pretensão dos chineses tem-lhes causado mais prejuízos do que a voracidade e cobiça dos estrangeiros.
Os japoneses reagiram de maneira muito diferente. Eles diziam: "Se o gaijin (o estrangeiro) nos pode forçar a fazer coisas que nós não queremos fazer, então ele é mais forte e mais afortunado do que nós. O gaijin, na verdade, deve ser melhor. Por isso devemos aprender os seus processos, devemos aprender tudo o que nos pode ensinar. O gaijin tem barcos a vapor que nós nunca vimos antes — então devemos aprender como construir barcos a vapor. E desta forma poderemos competir com o gaijin na sua própria terra, com as suas próprias armas". E o fizeram, num tempo verdadeiramente recorde. É difícil acreditar que Perry tenha aberto as portas do Japão há pouco mais de um século.
Quando o fascismo parecia bem-sucedido, ele era bom e o Japão tornou-se fascista. Quando os líderes fascistas e militaristas foram enforcados no Japão, a sua execução criou menos problemas do que os processos de Nuremberg, na Alemanha. Não houve simpatia por eles — o povo estava enjoado de julgamento. Tinham falhado — não o mereciam, portanto? Não houve indignação no Japão. Os japoneses não tinham sido violentados por culpa dos seus comandantes nem pelo comportamento dos americanos que os enforcaram. Faltava ali um contexto moral: era uma questão de realização, não de moralidade.
Os americanos tinham plena justificativa — plena justificativa moral, se assim o desejarem — para fazer o que bem lhes aprouvesse: eram os vencedores. Os generais japoneses tinham perdido a guerra; eram, portanto, culpados. A derrota era uma experiência traumática; mas a execução dos chefes mais importantes da nação não fez parte do traumatismo.
A democracia estava vitoriosa, portanto ela era boa; experimentemos a democracia. Por isso agora os japoneses a estão experimentando com ardente devoção, como experimentariam, evidentemente, qualquer outra coisa. Se lhes dissessem que o sense of humour poderia beneficiá-los de algum modo, formariam grupos de trabalho para descobrir como adquiri-lo.
Não há hipocrisia em sua nova tendência democrática. A democracia não tem valor intrínseco aos seus olhos: democracia é um expediente, não uma religião sagrada. Na verdade, depois da guerra, eles mais ou menos se descartaram de sua religião sagrada, o xintoísmo¹: em parte responsabilizam-na pelo fracasso.
1 Religião nacional do Japão. (N. do T.)
Os japoneses vêem os sistemas do Ocidente como bons e decisivos até eles serem contestados. Os sistemas são pílulas mágicas: você as toma e todas as doenças são curadas. Para alguns deles, o marxismo é a pílula mágica. Seguem o dogma marxista com verdadeiro ardor. Nem os democratas nem os marxistas estão preparados para estudar — estamos apenas comentando.— a sua doutrina e tentar aperfeiçoá-la. Eles não se apercebem do que acontece diante dos seus olhos: acreditam simplesmente naquilo que se lhes ensinou. Criticar, tentar aperfeiçoar, e assim questionar a validade e sabedoria da doutrina aceita, iria contra o seu profundo e inato respeito pela autoridade — uma das pedras angulares da estrutura social japonesa. A doutrina é completa e totalmente válida até ser completa e totalmente desacreditada, e abandonada como desprezível.
Quererei eu dizer que, se a democracia falhar, os japoneses a deixarão de lado? Sim, é exatamente o que eu tento afirmar. Há poucas profecias para o futuro, mas esta é uma delas. Os japoneses estão perfeitamente certos, também. Não há valor intrínseco em qualquer sistema político: vários sistemas podem servir melhor para várias épocas, e houve um tempo em que mesmo a escravatura era progressista (ela foi, contudo, seguramente mais humana do que o indiscriminado massacre do inimigo capturado). Mas a escravatura, assim como o feudalismo, o comércio livre, o protecionismo, e diversos sistemas revolucionários, fascistas e monárquicos, tornou-se obsoleta e foi atirada na estrumeira da história. Alguns marxistas tentam atualmente um outro velho estratagema: remendar a sua própria bíblia, e, enquanto cultuam sem fé o velho gigante, Karl Marx, desviam-se dos seus caminhos, mas chamam ortodoxia à sua devoção. Assim, temos o leninismo, o stalinismo, o trotskismo, o maoísmo, o fidelismo, o titoísmo, a doutrina de Brejnev, etc., etc., todos se dizendo não apenas melhores que os outros, como também a única e verdadeira doutrina. A democracia não é a única e verdadeira doutrina. Sua maior virtude — como Churchill uma vez observou — não é tanto a de ser boa, mas simplesmente a de não haver nada melhor. Tão logo se encontre um sistema melhor, mais adequado às épocas vindouras, a democracia será rejeitada também. Os japoneses hão de fazê-lo sem pestanejar; nós o faremos pestanejando muitíssimo e dando imensas justificativas teóricas.
Advertimos aos japoneses em alto e bom som: desistam do militarismo e concentrem-se na economia. Eles seguiram o nosso conselho e achamos difícil perdoá-los por o terem feito. Os americanos tentam agora persuadi-los a voltarem ao militarismo
— pelo menos no sentido de gastarem mais com a sua própria defesa. Mas os japoneses balançam a cabeça, polidamente, e continuam a fazer como lhes disseram. Eles desistiram do militarismo porque isso era bom. Isso os tornou virtuosos. E também muito, muitíssimo prósperos.
Mas, certamente, não há motivo para receio. Se o sucesso é o símbolo oficial do poder e do mérito — como na verdade o é —, então a democracia momentaneamente está mais fora de perigo no Japão do que em qualquer outro lugar.
A gente
O penetrável impenetrável
O Japão — não deve haver dúvidas a respeito — é um país belo e fascinante, e os japoneses, pessoas amigas e amáveis. Amáveis e gentis; suaves e inteligentes; asseadas e meticulosas; disciplinadas, respeitosas e laboriosas; com uma curiosidade insaciável e grande fome de saber. São também orgulhosas, ambiciosas e nacionalistas. Cultuam um respeito profundo pela autoridade; a sua individualidade — com raras exceções — é subdividida em grupos. Há muitos grupos fortemente individualistas, como os estudantes, mas poucas pessoas individualistas. Podem pensar pelos outros; podem pensar pela comunidade; mas não são muito bons quando pensam por si mesmos.
Gostei dos japoneses mais do que esperava, embora já tivesse visitado o seu país antes e gostado deles também naquela ocasião. A fantástica fragrância oriental do lugar tocou-me muito, como acontece à maioria dos visitantes ocidentais. A principiar por esses deliciosamente complicados ideogramas, onipresentes nos cintilantes anúncios a néon. Lembro-me também das estranhas e encantadoras formalidades das reverências; a igualmente estranha, porém fastidiosa, mania de bufar; a veneração pelo passado, o hábito de trocar cartões de visita. "Muitos desses usos cerimoniosos", pensava eu no avião, voando para o País do Sol Nascente, "são herança do período Tokugawa." Não integralmente, pois as raízes vinham crescendo aos poucos desde muito tempo. As cerimônias foram instituídas e encorajadas pelos xóguns por boas razões: muita vaidade e obtusidade. Os xóguns (com raríssimas exceções) eram sujeitos espertos e sabiam que, quando o povo se ocupa de cerimônias sem sentido, tem pouco tempo para se dedicar à intriga política e à conspiração.
É verdade que a maioria das cerimônias sem sentido ocasionalmente conduziam a complicações inteiramente imprevistas. Uma das maiores obras literárias do Japão é Os quarenta e sete ronins, uma novela ou conto de amor e aventura do século XVIII1. Um membro da corte imperial, ansioso por humilhar um rival, aconselhou-o a usar um par de calças inadequadas em determinada cerimônia. A humilhação do enganado tornou-se intolerável, e ele jurou uma horrível vingança. A história, toda ela, é a descrição da vingança, a história de quarenta e sete bravos samurais. Todos são assassinados antes de o terrível conto terminar; há aldeias saqueadas e incendiadas; gente sem conta caindo em armadilhas, sendo sujeita a torturas, massacrada; esposas que se vendem nos bordéis para que os maridos prossigam na luta, etc. Tudo por causa de um par de calças trocadas. "Singulares, singulares orientais... ", pensei eu.
1 Veja-se também o meu livro mais antigo, East is East, André Deutsch, 1958. Tirei alguns parágrafos do livro, sem expressar meus agradecimentos a mim mesmo. (N. do A.)
E nesse instante ocorreu-me uma idéia horrível. Eles não são singulares. Nós somos singulares. Singulares, singulares ocidentais.
Lembrei-me de um humorista japonês (ele mesmo singular, do ponto de vista ocidental) quando voava em direção ao Ocidente — ou talvez ao leste, para o seu peculiar Extremo Oriente —, para Nova York, e que pensava assim:
"Gosto um bocado dos ocidentais, e a sua singularidade aumenta, por certo, o seu encanto. Gosto especialmente dessas bonitas e estranhas letras romanas que eles insistem em utilizar num vigoroso encadeamento de luzes de néon em Times Square e Piccadilly Circus. É bem exótico e transmite às pessoas uma forte e agradável sensação de estar no estrangeiro. E as suas maneiras... as suas estranhas cerimônias... Muitas delas foram introduzidas por Luís XIV, ou por outros reis da mesma época (embora as sementes tenham sido lançadas à terra muito mais cedo). Esses reis europeus (com numerosas exceções) eram inteligentes e espertos e sabiam que o povo ocupado com cerimônias sem sentido tem pouco tempo livre para se dedicar à intriga e à conspiração. Certamente, algumas dessas formalidades não eram assim tão inocentes e sem sentido. Pelo menos quarenta e sete mil pessoas morreram à ponta da espada, em duelos sangrentos. Eles têm um célebre trabalho literário — Cyrano de Bergerac —, no qual um cavaleiro é assassinado por ter feito uma observação acerca do nariz desse tal Cyrano. Não ficaria surpreso se ouvisse dizer que alguns deles morreram por lhes terem aconselhado a usar um par de calças erradas em determinada cerimônia. Será possível ser assim tão estúpido?... Oh, esses hábitos ocidentais tão singulares!... Na Europa central beija-se a mão às senhoras; os alemães batem ruidosamente os calcanhares; os ingleses dão vinte e cinco pulinhos quando a mesma mulher volta à mesma mesa onde estiveram sentados juntos algumas horas. E não possuem o elementar bom senso de trocar cartões quando se apresentam. O resultado é que o inglês nunca sabe o nome de ninguém e, quando o sabe, ignora a maneira de pronunciá-lo; e os americanos não estão longe da mais extrema grosseria ao perguntarem: 'Como é que você disse que era mesmo o seu nome?' E, meu Deus! como têm hábitos sujos! Usam sapatos — os mesmos sapatos sujos que usaram lá fora na rua, pisando sabe-se lá em quê — no interior de suas casas, em vez de os trocarem por chinelos. Não vestem uma confortável yukata; ficam mesmo com aquelas suas roupas idiotas; lavam-se na banheira — em vez de o fazerem primeiro na torneira — e então sentam-se na própria sujeira, sentindo orgulho da sua limpeza; e também tomam sopa no começo das refeições. Devem ser malucos". Antes de eu ir para o Japão, muita gente que conhecia bem o país advertiu-me de que lá uma pessoa nunca deve fazer uma pergunta direta: se o fizer, jamais obterá uma resposta direta. As perguntas de ordem pessoal são até mais proibidas do que na Grã-Bretanha. Uma pessoa não pode entrar cm intimidade, nem mesmo chegar-se muito a um japonês, e de forma alguma brincar com ele. Um diplomata que servira em muitos países do Oriente disse-me que as relações humanas eram quase impossíveis. "Quando jogava golfe com três outros homens, na Tailândia, éramos quatro pessoas jogando; no Japão sempre senti que isso não podia acontecer: seria sempre um europeu jogando golfe com três japoneses." Todos esses relatos me agradavam porque se adaptavam à imagem que eu fazia do "impenetrável Oriente". Imaginem, pois, o meu desapontamento quando descobri gente amável, interessada, que respondia a tudo, em qualquer lugar que eu fosse: homens e mulheres de coração e cérebro abertos, prontos a discutir qualquer problema, público ou privado — logo que notavam que as minhas perguntas eram feitas sob um franco e real interesse e não por indiscrição. A maioria se divertia e se tornava até mesmo expansiva. Descobri que os japoneses eram extremamente penetráveis.
Isto parece coincidir com o fato de os japoneses serem seres tão humanos como nós, embora eles fiquem profundamente magoados se isto lhes for insinuado. Querem ser diferentes. Estão determinados a constituir uma charada insondável e impenetrável; insistem em ser mais japoneses do que a maioria de nós. E nem sempre são bem sucedidos.
Pachinko é uma das manias do pós-guerra no Japão. Todas as grandes — e, na verdade, todas as pequenas — cidades têm várias salas de pachinko. Pachinko é um tipo de boliche ou sinuca: você aciona um botão que põe a bola em movimento. Se a bola cai no buraco, você ganha; se não cai, perde seu dinheiro. Um amigo inglês, em frente a uma sala de pachinko, em Tóquio, me disse:
"Um japonês explicou-me que o pachinko era uma engenhosa invenção japonesa do pós-guerra. E, um tanto entusiasmado, comunicou-me que os japoneses o tinham inventado porque os outros países seriam incapazes de jogá-lo. 'A verdade', prosseguiu ele, 'é que o polegar direito dos japoneses é especialmente construído, possui uma destreza nata, ingenuidade e sutileza, condições que faltam completamente aos outros mortais.' Ele estava tão orgulhoso de conhecer este segredo que não tive coragem de lhe contar que o meu avô — antes da Primeira Guerra Mundial — possuía setenta e sete dessas máquinas, conhecidas entre nós por pin tables verticais, máquinas em que se joga num lugar exótico chamado Southend. Meu avô levou uma vida rica graças ao pachinko inglês, apesar de todo mundo de Southend, para não mencionar os visitantes londrinos, parecer possuir polegares especialmente construídos, e habilidade, ingenuidade e sutileza, condições que faltavam completamente aos outros mortais".
Os japoneses ficariam seriamente ofendidos se eu desmentisse a sua impenetrabilidade. Uma senhora inglesa que ensinava em uma das suas universidades me disse:
"Eu ficava sempre irritada com essa história da impenetrabilidade oriental. Davam-me muitas vezes a resposta: 'Oh, você não vai conseguir isso...' Ou: 'Não é fácil encontrar urna explicação disso para você. E preciso ser japonês para compreender'. Eu replicava: 'Você me explicou o assunto tão clara, tão inteligentemente, que compreendi tudo'. Em certa oportunidade, um dos meus colegas japoneses sorriu e eu traduzi com exemplar lucidez o que percebera. 'Como vê', disse-lhe, 'entendi tudo muito bem.' Isso o transtornou: 'Verdade?', inquiriu, ansiosamente. 'Perfeitamente', retorqui eu. Ele balançou a cabeça, com tristeza: 'Então é porque expliquei mal o caso' ".
Okinawa e a bomba A
O Ocidente tem um pesado fardo na consciência com relação ao Japão: as bombas atômicas atiradas sobre Hiroxima e Nagasáqui; as duas únicas bombas nucleares até hoje lançadas sobre alvos vivos; duas bombas para nos recordar que, nas batalhas de vida ou morte, usam-se armas nucleares. Observadas sob o ponto de vista japonês, as bombas atômicas revestem-se de outros aspectos: não foram as bombas A que deixaram essa cruel e indelével impressão, mas a derrota. Os trágicos efeitos da derrota ressoam ainda, e as suas conseqüências na política moderna e prática manifestam-se mais claramente na questão de Okinawa.
A derrota, bem como a bomba A, constituiu uma novidade para os japoneses. O país não experimentara nem uma nem outra. Não estava preparado para a bomba, mas, julgando-se invencível, estava menos preparado ainda para a derrota. É verdade que o Comodoro Perry levantou os americanos — e os ocidentais — contra o país, mas aquilo não foi uma derrota militar. Foi, indubitavelmente, resultado de fraqueza; e não tinha havido guerra. Tudo o que Perry fez foi entregar uma carta do Presidente Fillmore ao xógum, no verão de 1853, pedindo a abertura das relações comerciais e algumas regalias sobre o carvão. Disse que pegaria a resposta no próximo ano. Antes de partir, fez uma demonstração de força subindo até a baía de Yedo (Tóquio), numa provocação ao governo japonês. Os japoneses nunca tinham visto antes um barco a vapor e ficaram profundamente impressionados. Quando Perry regressou, em fevereiro de 1854, eles capitularam, e poucas semanas mais tarde foi assinado um acordo de comércio de carvão na aldeia pesqueira de Yokohama.
O Japão beneficiou-se tanto com essa lição que, meio século mais tarde, estava apto a infligir estrondosamente a derrota, na terra e no mar, a uma das maiores e mais temíveis potências militares do mundo. Na Primeira Guerra Mundial, o Japão não foi um dos maiores beligerantes, mas com a sua armada tornou-se um extraordinário aliado e, uma vez mais, esteve do lado dos vencedores. A Segunda Guerra Mundial começou com o Japão soprando como Adamastor sobre a maior armada do mundo. (E fê-lo sem uma declaração de guerra. Está semi-esquecido que o Japão fez exatamente o mesmo na guerra contra os russos. As negociações com a Rússia tinham falhado, e, no dia 8 de fevereiro de 1904, os destróieres japoneses navegaram para Port Arthur, onde encontraram os navios de guerra russos iluminados. Lançaram os seus torpedos e atingiram dois couraçados e um cruzador sem sofrerem a mínima perda. No dia seguinte houve ainda um confronto menor e inconseqüente entre os navios de guerra russos e japoneses e só dois dias depois a guerra foi declarada. O Times comentou: "A armada japonesa iniciou a guerra com um ato de audácia que ficará em lugar de honra nos anais da história naval"¹. Quando, trinta e sete anos mais tarde, após a ruptura das negociações, os japoneses empregaram as mesmas táticas contra os americanos, o Times condenou-as como uma sujeira típica das hostilidades do Eixo, e, citando Cordell Hull na última nota japonesa, considerou-a "cheia de infames falsidades e distorções".)
1 Richard Storry, op. cit. (N. do A.)
De qualquer modo, o início da Segunda Guerra Mundial confirmou a lenda da invencibilidade japonesa. Tendo quase posto fora de combate a esquadra dos Estados Unidos em Pearl Harbour, o Japão avançou e ocupou o sudeste da Ásia, incluindo a inexpugnável fortaleza de Cingapura; afundou dois cruzadores ingleses; invadiu a Nova Guiné; bombardeou a Austrália; ameaçou a índia — e tudo isso com uma velocidade que fez a Blitzkrieg germânica parecer um grupo de escoteiros brincando de guerra. G povo japonês soube de tudo acerca das vitórias; soube pouco sobre as derrotas que se seguiram. Quando a derrota final chegou, pareceu-lhe ainda mais esmagadora, por absolutamente inesperada.
O Japão sofreu terrivelmente devido à bomba atômica, mas nunca adotou uma pose de superioridade moral concluindo: "Nós nunca teríamos feito aquilo!" Os japoneses sabem perfeitamente bem que teriam usado aquilo se tivessem aquilo. Aceitaram a idéia de que guerra é guerra; não pouparam nem aceitaram nada. A guerra total, admitiram, não compreende as Regras de Queensbcrry. Se você desenvolve uma nova arma devastadora durante uma guerra total, você a utiliza. Não a põe, nunca, num museu militar.
A devastação, horror e desumanidade da bomba foram indescritíveis, e não estou tentando diminuir-lhe os efeitos. Porém, tampouco quero ser frívolo quando digo que a bomba teve certos efeitos benéficos na psique dos japoneses. Livrou-os da culpa. Os japoneses não são dados à introspecção e nunca foram dominados por qualquer sentimento de culpa; os psicanalistas levam vida mais pobre em Tóquio do que na Viena de Freud ou, presentemente, em Nova York. Se a guerra envolveu os inimigos do Japão no lançamento de bombas sobre o país, também os japoneses estão desculpados pelos seus ataques, que, embora menores, foram igualmente brutais. Os julgamentos dos criminosos de guerra — mais ou menos importantes —, como eu disse, despertaram no Japão apenas um sentimento de enfado; se significaram alguma coisa, foi uma espécie de expiação para o povo japonês. Pagaram a pena com a vida de Tojo e de outros mais. (No total, cerca de novecentos criminosos de guerra asiáticos foram executados no Japão, Cingapura, Filipinas e outros territórios ocupados.) As contas foram liquidadas, os débitos foram pagos. Mas, se os julgamentos esclareceram o povo japonês, então é claro que as bombas atômicas puseram a seu favor o fiel da balança moral. Tinham sido lesados; tornaram-se vítimas; mereciam — sentiram-no — simpatia, nunca condenação.
Mas, como os japoneses são basicamente pouco afeitos a olhar a guerra como uma questão de moral, o segundo efeito da bomba A é ainda mais importante. A bomba atômica foi um invento puramente técnico, como o barco a vapor num período passado: Perry tinha então barcos a vapor; os japoneses, não. A bomba A mais uma vez sublinhou a superioridade técnica dos Estados Unidos. Isto foi reconhecido e até admirado. Mas não tinha nada que ver com a proeza militar. A bomba atômica foi lançada do lado de quem a tinha; não do lado mais provido de coragem, gênio e valor militar. Mas, no que diz respeito à bomba atômica, o Japão se manteve invencível: ela preserva e aumenta a crença da invencibilidade do Japão. A lenda pôde, assim, sobreviver gloriosamente a derrota mais devastadora.
A bomba A foi o mesmo que ter o Comodoro Perry novamente. Foi um Perry à maneira do moderno, diabólico e destruidor século XX. Não foi esse o único fator que derrotou o Japão, mas foi um fator decisivo. Abriu o país ao gaijin de modo ainda mais esmagador e irrevogável do que o Comodoro o fizera. A história, no fundo, nunca se repete. Move-se em forma de espiral, nunca noutra forma geométrica. Um século atrás, o Japão havia dito: "Muito bem, vamos aprender o engenho e a arte do demônio estrangeiro e batê-lo no seu próprio jogo". O Japão do século XX ainda quer batê-lo, ou pelo menos igualar-se a ele (ao gaijin), mas somente no mais importante, no campo econômico.
O terceiro e mais substancial efeito psicológico da bomba foi uma completa revolução. Esta revolução não se confunde com a indignação moral ou autopiedade, mas é profunda e sincera; é sagaz e de âmbito nacional. Os japoneses, tão engenhosos e ávidos de aprender, absorveram a lição enquanto a recebiam: as bombas nucleares não se fizeram para ser copiadas — como os cruzadores, os torpedos e os inventos militares o foram no último século —, mas para serem evitadas como um diabo. Eles perceberam que nenhuma nação terá jamais a possibilidade de optar entre ser quem lança a bomba ou o seu alvo, numa guerra nuclear: os participantes serão ambas as coisas. O Japão é o único país que sabe o que significa ser alvo numa guerra atômica. Acha que teve dela o bastante.
O Japão abandonou o agressivo chauvinismo militar para abraçar o nacionalismo substituto: a glória econômica. O nacionalismo antiquado sobrevive, sob um aspecto: Okinawa. É inevitável. Okinawa tange inúmeras cordas em inúmeros corações e apela para toda a gente, da extrema direita à extrema esquerda. Algumas pessoas falam de exploração comunista. Claro, os comunistas tentam fazê-lo, mas não criaram o problema, que, como objeto de exploração, é perfeito: trata-se do único ponto de união dos obsoletos chauvinistas com os anti-americanos esquerdistas.
A esquerda — tanto socialistas, como comunistas — quer ver os americanos no olho da rua e prejudicar os seus interesses. Mas também a extrema direita quer que os americanos se ponham ao fresco. O pós-guerra acabou, sentem-no, e, como o Japão se tornou agora uma importante potência econômica e sócio-igualitária, as áreas conquistadas c as bases militares do tempo da guerra devem ser abandonadas. Os americanos devem estar completamente de acordo com tais desejos: eles não querem reter a soberania política sobre Okinawa, desde que possam manter as bases — afinal, eles tem cerca de outras cento e cinqüenta bases em território japonês e ninguém protesta contra a sua existência. Mas existe uma grave complicação no caso de Okinawa: é a base nuclear mais importante nas ilhas Ryukyu, um elo vital da cadeia defensiva americana. Os americanos estariam prontos a devolver as Ryukyu ao Japão se lhes fosse permitido manter as bases nucleares; mas a Constituição japonesa proíbe bases nucleares em território japonês. O dilema é simples: se Okinawa se tornar território japonês deverá deixar de ser uma base nuclear; se se mantiver como base nuclear, não poderá constituir território japonês.
Os americanos estão perfeitamente cientes deste dilema. A amizade c a boa vontade japonesa são altamente importantes para eles, e, na verdade, Okinawa é a única nuvem cinzenta no horizonte. Nuvem que se vai tornando cada vez mais ameaçadora. A América também tem os seus próprios nacionalistas, o seu Pentágono e, também, os seus autênticos interesses nacionais. A conquista de Okinawa custou, em princípio, quarenta mil vidas americanas. Mas ainda que eles não argumentem em termos de sacrifício de guerra: hoje os Estados Unidos têm noventa e uma instalações militares e quarenta e cinco mil soldados na ilha. Okinawa está apenas a quinhentas milhas de Xangai — a sua importância militar é óbvia —, e nem Taiwan nem as Filipinas podem compensar a sua perda. Os Estados Unidos deveriam estar prontos a remover as bases nucleares de Okinawa e consultar o governo do Japão antes de iniciar operações contra outras nações asiáticas — isto é, aceitar as mesmas condições que regem as outras cento e quarenta e oito bases militares americanas no Japão, acerca das quais, repito, dificilmente se ouve qualquer palavra de crítica.
O governo conservador c pró-americano do Japão está na dúvida. Okinawa é, para o Japão, o que a reunificação é para a Alemanha Ocidental: nem todo mundo olha esse fato como coisa importante, mas ninguém ousa pronunciar-se. O governo gostaria de menosprezar a questão de Okinawa, mas não pode fazê-lo: é demasiado explosiva.
O governo estaria absolutamente preparado — percebe-se — para aceitar a sugestão americana de receber de volta Okinawa alterando a Constituição — pelo menos enquanto esta exceção fosse importante — para permitir a manutenção das bases nucleares americanas ali. Mas os sentimentos anti-nucleares e anticoloniais são fortes, e o povo japonês não concordaria em receber condicionalmente Okinawa ou em negociar a cláusula mais sagrada da Constituição. O descobrimento, em julho de 1969, após um acidente, de que os americanos estavam estocando em Okinawa gás neurológico (poderosa arma química e biológica) contribuiu ainda menos para acalmar as paixões.
Os habitantes de Okinawa, por sua vez, pressionam ainda mais: eles querem regressar à mãe-pátria. Um tanto tolo, consideram alguns. Okinawa, por um tempo, depois da guerra, foi melhor do que o resto do Japão: os Estados Unidos forçaram-lhe a prosperidade. Hoje está em atraso quanto ao desenvolvimento japonês, e a perda do Exército e da armada dos Estados Unidos significará um golpe profundo para sua economia. Mas as nações não vivem unicamente de pão, e os desejos dos habitantes de Okinawa, lógicos ou não, devem ser respeitados, como o são os desejos dos gibraltarinos, que se recusam a regressar à Espanha e querem manter-se ingleses.
Milhões de japoneses sentem que a vergonha e a humilhação da derrota não serão inteiramente expurgadas até que Okinawa lhes seja devolvida; a esquerda usa Okinawa como um estoque que serve adequadamente para fustigar os Estados Unidos; e até o "bom negócio", raramente arrebatado pela emoção ou queimado pela chama do patriotismo, constitui pressão sobre a devolução da ilha. Alguns economistas insistem em que o patriotismo do "bom negócio" não está desligado da situação econômica de Okinawa. A ilha não tem recursos naturais, nem indústria, e após a partida das forças americanas limitar-se-á a simples fonte de trabalho mal remunerado.
O Tratado de Segurança entre o Japão e os Estados Unidos voltou a ser revisto em 1970. Todos os interessados — americanos, governo japonês, habitantes de Okinawa, comunistas, estudantes — prepararam-se para uma batalha real. E as eleições surgiam no horizonte. Havia sinais de que os americanos estavam preparados para se curvar à intransigência japonesa neste caso e para olhar os japoneses com amizade (assim como o conforto e os interesses de um governo japonês amistoso), tendo em conta um valor muito maior do que a base. O ano de 1972 foi mencionado como data proposta de retirada — mas somente após alguns contratos poderosos. Na verdade, quando o Primeiro-Ministro Sato visitou os Estados Unidos em novembro de 1969, o Presidente Nixon prometeu-lhe a retirada de Okinawa em 1972. As ilhas — de acordo com os planos do presidente — seriam desnuclearizadas, mas permaneceriam como base dos Estados Unidos. Em certas circunstâncias, seriam utilizadas como bases para os B-52, e, noutras circunstâncias, devidamente definidas, os americanos teriam de consultar o governo japonês antes de agir — como no caso de outras bases. Essas concessões americanas acalmaram os ânimos até certa medida, e o governo japonês, indubitavelmente, saiu ganhando; porém, as reservas provocam ansiedade e insatisfação no Japão, e a questão de Okinawa está longe de ser resolvida.
Nesse meio tempo os americanos olham com cobiça na direção da ilha Sacalina. Essa ilha foi cedida à União Soviética depois da guerra e ninguém sabe se é ou não usada como base nuclear. Todavia, os comunistas japoneses (e outros partidos interessados na matéria) raramente pronunciam uma palavra acerca de Sacalina. Stálin expulsou todos os habitantes japoneses tão logo tomou posse da ilha, e, assim, não há qualquer movimento revisionista ou Questão de Sacalina, enquanto os americanos pagam por sua decência e tolerância. O que uma vez mais prova que a virtude não paga, e o crime compensa. (Foi noticiado que o ministro do Exterior japonês, durante a sua visita a Moscou em setembro de 1969, levantou o problema da ilha Sacalina com os seus anfitriões. Foi uma atitude extremamente inteligente: provou que o governo era mais patriota do que os seus críticos extremistas e que o problema poderia tornar-se muito embaraçoso para os comunistas. Eles não podiam pressionar para conseguir a evacuação americana de Okinawa e pedir, ao mesmo tempo, que Sacalina fosse esquecida.)
À parte Okinawa, o nacionalismo japonês tem algumas práticas inocentes. O povo japonês é competitivo e deseja brilhar; quer ser o primeiro em todos os campos; quer ser admirado — como os americanos, os franceses, os russos, para mencionar apenas alguns de uma longa lista. Os japoneses querem bater os americanos no beisebol — um jogo muito popular no Japão (nunca o conseguirão devido à sua pequena estatura). Querem produzir melhores carros, melhores câmaras fotográficas, melhores rádios transistores — e nisto têm obtido, certamente, bons e convincentes resultados. Querem ser vitoriosos no esporte, mas hoje raramente o conseguem. Os grandes nadadores japoneses do passado estão quase esquecidos e o pingue-pongue não é, de fato, um jogo mundialmente popular. Quando os atletas japoneses são derrotados — e frequentemente o são — muitos japoneses choram. Mas eles proclamam em alto e bom som que produzem mais variedades de sorvetes do que os Estados Unidos, país até agora geralmente considerado (e respeitado!) como o maior produtor de sorvetes na Terra — e, em breve, também na Lua. Mas é no reino da goma de mascar que reside uma solução feliz: os japoneses produziram um chicle com o paladar do saque, o seu vinho de arroz. Saboroso exemplo da combinação de duas culturas como eu jamais havia visto; uma gloriosa proeza da união do pior de dois mundos.
Um pensamento final: Okinawa é uma advertência de que o nacionalismo antiquado não está morto no Japão. Um grande e orgulhoso país deve encontrar uma saída própria para o seu talento e energia. Encontrará o Japão tal saída no substituto nacionalismo de automóveis, câmaras fotográficas, rádios transistores e sorvetes, ou no tipo de nacionalismo que se insinuou na questão de Okinawa? Esta é a verdadeira questão para o Japão e para o mundo.
Dois nacionalistas
A derrota exaspera; porém, o nacionalismo japonês não é agressivo. Mesmo em Okinawa, tudo o que eles querem é reaver uma ilha que é absolutamente japonesa. O nacionalismo japonês é muitas vezes amargo, desiludido e ambicioso; mas dificilmente agressivo. Neste capítulo gostaria de descrever dois tipos extremos de nacionalistas japoneses: o mais sofisticado e o mais ingênuo. O primeiro é membro do governo. (Para evitar problemas, não o nomearei, embora ele não faça segredo das suas opiniões.)
"Somos os verdadeiros isolacionistas deste mundo. Nosso desejo básico é — ou teria sido — que nos deixem sozinhos. Há pouco mais de cem anos, nosso país foi aberto à força e isto fortaleceu o nosso nacionalismo. Esta nação depende mais do comércio exterior do que qualquer outra, com exceção da Inglaterra. Temos de importar tanto petróleo que a nossa importação anual seria suficiente para cobrir todo o Japão com uma camada de quinze polegadas desse mesmo petróleo. Todavia ficaríamos muito felizes sem a influência do mundo exterior — e sem o seu petróleo. Nossa inclinação natural, como a inclinação natural dos ingleses, é para o isolamento. Os japoneses não são nem viajantes nem exploradores. De Kyushu você pode ver a Coréia. No entanto, nunca ocorreu ao japonês comum ir até lá. A nossa cultura vem da China. Fazemos esforços tremendos para aprender a escrita chinesa; o nosso povo (e nós tínhamos muito poucos analfabetos) escreveu em chinês durante muitos séculos e — essencialmente — ainda o faz hoje. No entanto, nunca tentamos realmente aprender a língua chinesa. Nem experimentamos sair daqui para visitar a China. Considere a nossa política internacional. Tornamo-nos uma das maiores e mais importantes potências industriais do mundo e não possuímos, veja bem, uma autêntica política internacional. Quando muito, existe uma política de não-envolvimento — uma política que visa a nos deixarem sozinhos. Isolamento. Nas Nações Unidas nada esvazia a sala de debates tão depressa quanto um delegado japonês que se levanta para falar e prepara seus óculos para ler uma longa lista de lugares-comuns e trivialidades. Ora, isto é política deliberada de nossa parte. Você pensa que não somos capazes de impor uma alta qualidade aos nossos discursos, equiparando-os aos da Bulgária ou do Alto-Volta? Somos nós que não o queremos. Esta torturante estupidez protege o nosso não-envolvimento. A única linha positiva traçada pela nossa política internacional é a de não ofender os Estados Unidos; em contraste flagrante com o agora finado General de Gaulle, cuja única idéia positiva era a de ofendê-los.
"Os japoneses têm fama de lingüistas pobres. Parecem ser até piores do que são, porque não desejam, realmente, aprender línguas estrangeiras — no nosso caso, sobretudo a língua inglesa. E nós queremos evitar que os estrangeiros aprendam japonês. Encaramos os estrangeiros que conhecem o nosso idioma como intrusos no nosso mundo privado. Uma pessoa não pode conhecer um país sem conhecer a sua língua — e nós não queremos ser conhecidos. Necessitamos do inglês, poderá você dizer. E é uma verdade. Eis o motivo por que encontramos uma solução excelente — uma verdadeira solução japonesa: compreendemos o inglês, mas recusamo-nos a falá-lo.
"A derrota na guerra foi sempre diferente na Europa. A França foi derrotada pelos alemães em 1871, mas venceu no encontro seguinte, cerca de meio século mais tarde; e depois de outro quarto de século venceu outro confronto. Nós não pudemos fazer isso. Acabamos de fato com o militarismo, estamos enjoados dele. Alguns países foram invadidos inúmeras vezes; uns poucos, nunca. Nós fomos invadidos uma vez. Talvez duas. Não serão de todo más recordações — em qualquer caso temos de viver com elas. Esperamos que o nosso país não seja invadido de novo, ou que venhamos a invadir o dos outros. Tampouco pretendemos nos tornar a potência econômica número 1. Apenas queremos preservar a nossa forma de vida.
"Quando Perry chegou, embora fôssemos uma nação altamente educada, o povo de Yedo (Tóquio), que era então uma das maiores cidades do mundo, nada sabia de concreto sobre a existência dos Estados Unidos. Isso poderia ter sido uma imperdoável ignorância, mas, para os nossos, era uma feliz, prazerosa e elegante forma de vida; olhando para trás, isso nos parece um paraíso perdido.
"Houve uma coisa em 1945 que nos abalou muito mais do que a derrota: a opulência — a espantosa, deslumbrante riqueza e superioridade técnica dos Estados Unidos. Prometemos nunca mais ser pobres. Mantivemos a nossa jura. Muita gente nos despreza porque pensa estarmos totalmente resignados com as diretrizes ocidentais. Estão enganados. Algumas pessoas — líderes da vida econômica e comercial — fizeram exatamente isso. Ou tencionaram fazê-lo. Mas para muitos de nós a acumulação de riquezas é simplesmente um meio de voltar aos bons dias do velho paraíso perdido, os dias pré-Perry, a sua liberdade, à sua distinção. Os dias em que nós ignorávamos que os Estados Unidos existiam.
"Ocidentalização? Em alguns pontos é inevitável. Trabalhamos usando roupas ocidentais, usamos computadores e métodos ocidentais; mas vamos para casa, vestimos as yukatas e os quimonos e mudamos a forma de viver. Nós somos como os moluscos. O molusco tem carne macia por dentro mas uma concha rija e protetora por fora. O acolhimento exterior aos hábitos ocidentais talvez ajude a preservar os nossos valores internos. Os chineses fizeram exatamente o contrário: procuraram rejeitar a ocidentalização in totum pensando intimamente que saber mais acerca de todas as coisas seria a doença nacional mais grave. O resultado foi fatal. Eu sou pela ocidentalização até um certo grau; um alto grau. A ocidentalização é o único meio de conservarmos os nossos próprios hábitos; hoje a ocidentalização é a nossa única oportunidade de nos mantermos japoneses."
Meu informante expôs mal alguns dos seus pontos de vista. Antes era proibido, sob pena de morte, abandonar o Japão. Assim, não se pode falar em falta de espírito de aventura. Quando podem viajar, os japoneses o fazem. Visitam tanto a Coréia como a China em número bastante considerável, até mesmo fora do âmbito das excursões turísticas. Na era do Meiji, inúmeros grupos de estudantes iam ao estrangeiro. Quando a emigração se tornou possível, milhões de japoneses partiram para diversos países dispostos a recebê-los durante algum tempo: os Estados Unidos, a Colúmbia Britânica, o Brasil e o Peru. Hoje, os japoneses são os maiores viajantes, seguindo-se em número apenas aos americanos, e seguramente mais curiosos, mais ávidos de conhecimentos e experiência do que o americano médio. Ele está evidentemente errado também acerca da má vontade do japonês em aprender inglês. Não sei o que acontece "lá no fundo", mas em certos círculos o desejo de falar inglês tornou-se mania.
Estes fatos refletem um choque, não só entre o Japão e o Ocidente, como também entre o mundo de negócios japonês e a ala direita, a intelliguêntsia anticomunista. Ultimamente sente-se que os homens de negócios desfrutam de todos os benefícios da produtividade japonesa, mas que contribuem pouco para a paz mundial, a cultura nacional, a justiça c os interesses espirituais de um Japão renascido. Embora fascinantes, esses fatos, se lhes prestarmos atenção, pouco mais são do que uma voz a pregar no deserto. Representam um desejo nostálgico, uma ação de retaguarda e um aviso de que, embora agite, ocupe e faça florescer, o "bom negócio" se torna impraticável. Mas é um murmúrio que persiste, e que no fim se extinguirá ou se tornará um brado de guerra.
Eu estava sentado ao balcão de um bar em Kyoto ainda não freqüentado pelo gaijin. Bebia cerveja quando percebi estar sendo atentamente observado por um homem sentado próximo de mim, num banco alto. Após uns momentos ele venceu a timidez e se dirigiu a mim. Falava num inglês arrevesado. Tinha-me visto beber a minha cerveja com grande satisfação. Perguntou: — Cerveja japonesa boa?
— Muito boa.
Um feliz sorriso.
— Cerveja japonesa melhor que inglesa?
— Muito melhor.
Um sorriso ainda mais feliz. Interpretei aquilo como ar de triunfo exagerado; então acrescentei: — Mas a cerveja alemã ainda é melhor.
— Sashimi inglês melhor que japonês?
— Não.
Ele olhou para mim com suspeita, esperando naturalmente por um buraco onde cair. Mas nem houve buraco nem ele caiu. Nem uma palavra acerca do sashimi escocês ou do sashimi israelita.
Não esperei pela sua tímida pergunta, e declarei eu próprio:
— Sashimi japonês melhor do mundo.
Até então ele não reparara em ninguém do bar, mas traduziu o meu veredicto sobre o sashimi para que todos o ouvissem. O orgulho nacional estava satisfeito. Ficamos amigos.
Meros imitadores
Imitadores, sim. Meros, não.
A necessidade de imitar o Ocidente nasceu do antigo isolamento do Japão. Um dia, os japoneses, depois da lição recebida de Perry, decidiram tornar-se uma nação moderna e industrial. Tinham apenas uma maneira de consegui-lo: aprendendo as técnicas do Ocidente.
Hoje a palavra "imitação" soa como pejorativa, algo quase que desdenhoso aos ouvidos ocidentais; para os japoneses, trata-se de um elogio.
A atitude do Ocidente é conseqüência dos anos 20 e 30, e decerto compreensível. Nessas épocas, os japoneses copiavam precisamente o que lhes chegava às mãos, inteiramente indiferentes às leis de patentes. As cópias eram frequentemente feitas com habilidade, algumas vezes com engenho, mas sempre inferiores ao original, em qualidade e acabamento. Valendo-se dos salários de fome pagos aos trabalhadores e de patentes roubadas, eles se habilitaram a derramar um bocado de artigos baratos e de qualidade inferior no mercado mundial. Não admira que o Ocidente tenha ficado apreensivo e irritado, desconfiado e desdenhoso.
A imitação — ou algum dos seus mais próximos sinônimos — tem um significado diferente no Japão. No período Meiji, inúmeros grupos de estudantes eram enviados à Europa com o único fito de aprender as técnicas ocidentais, e aprenderem-nas bem e depressa. Iam à Inglaterra, Alemanha, França, Bélgica, Itália e a umas tantas outras nações (como também aos Estados Unidos, através do Pacífico), para colher o melhor de cada uma delas, levá-lo para o seu país e desenvolvê-lo.
Vieram à Europa e, após inspeções relativamente breves, transplantaram as nossas instituições por atacado. Copiaram o nosso vestuário e os nossos métodos de construção; copiaram os nossos parlamentos, a nossa imprensa, os nossos trens, a navegação, os métodos mineiros, as cortes, os nossos códigos civis e criminais, o nosso Exército e a nossa Marinha, os nossos sistemas fiscais. Copiaram todas as coisas, deliberada, desavergonhada, impetuosamente, quase com orgulho. Muitas dessas instituições — o parlamentarismo europeu, por exemplo — estavam necessitadas de desenvolvimento; quem iria pensar que seria o próprio Japão a fazê-lo?
Durante algum tempo fomos condescendentes com a habilidade dos japoneses para imitar — e, de fato, nos sentimos lisonjeados também. Chegamos ao ponto de admitir que os seus engenhos de imitação ultrapassavam os originais de terceira categoria. Durante o período do dumping, sentimo-nos menos satisfeitos. Após a última guerra, vimos os seus modelos de carros e sorrimos com os seus nomes: Century, Debonair, Corona, Gloria, Skyline, Contessa, etc. Todos os nomes eram imitações dos ocidentais, assim como os próprios carros. Hoje mesmo, você pode ver o Fiat japonês, o Alfa Romeo japonês, os mini japoneses. Nós os íamos apoiando cada vez mais: "Vamos deixar que se distraiam, que produzam pequenos carros de segunda classe. Esta concentração industrial os manterá fora dos círculos importantes que nos poderiam prejudicar". Eles prosseguiram, mantendo os nomes das marcas dos produtos do Ocidente, mas — para nossa surpresa e, por que não? aborrecimento disfarçado — os seus produtos continuaram melhorando. Poucos anos após a guerra, comentava-se acerca das câmaras japonesas: "Bem, não são más para o preço". Tornou-se então mundialmente reconhecida a excelência das lentes, talvez as melhores do mundo, embora os obturadores, as células foto-elétricas, etc., fossem um tanto inferiores. Mas pouco depois as câmaras japonesas se aperfeiçoaram, ganharam fama mundial, conservando-se todavia competitivas em preço. Similarmente, experimentávamos os carros deles e observávamos com benevolência: "Não são maus", o que, neste caso excepcional, significava o que deveria significar: não são maus, mas não são absolutamente bons. Estávamos certos: há cinco ou seis anos, eles não eram nada de extraordinário. Hoje o são.
O Japan Times tem um slogan impresso na sua primeira página: "Todas as notícias são imparciais". Como bom ocidental, inicialmente eu achava graça. Era, na realidade, uma imitação infantil do slogan do New York Times: "Todas as notícias são dignas de publicar". Mera forma de expressão, repetida. E por que ter um slogan, em primeiro lugar? A esmagadora maioria dos jornais aparece sem slogans e (com lamentáveis exceções) sobrevive assim. Mas, após alguns dias, passei a olhar este slogan no Japan Times como um protótipo do tratamento que os japoneses dão às idéias e aos métodos importados. Imitação? Certamente. Mera infantilidade? Evidentemente que não. O New York Times é um dos maiores jornais do mundo, mas o seu slogan é arrogante. Dignas de publicar? Quem decidirá por si e por mim o que é "digno de publicar"? Quem vai censurar as notícias para nós, e em que bases, sob o pretexto de que não merecem ser vistas por nós? O que o New York Times quer dizer — e pratica — é exatamente o que o Japan Times proclama: "Todas as notícias são imparciais". Nem com boa vontade ou com espírito de admiração se pode chamar original ao slogan japonês; nenhuma malícia pode desmentir o seu aperfeiçoamento.
O que existe, pois, acerca da imitação? Devemos lembrar-nos, antes de tudo, de que todo conhecimento é imitação. O bebê aprende a andar e a falar por meio da imitação; o homem aprendeu a construir casas melhores e a melhorar seus métodos de agricultura porque imitou seu vizinho ou as tribos próximas — muitas vezes anteriormente conquistadas. Milhões de livros, do mais simples, tipo "faça-o você mesmo", até o mais complicado de todos, nos ensinam como imitar os outros. Em alguns casos, chamamos de imitação o conhecimento, e os japoneses, na sua sede de conhecimento, no seu insaciável desejo de aprender, tornam o aspecto imitativo do seu aprendizado mais lógico do que a maioria dos outros povos. Mas todos os que aprendem imitam.
Mesmo hoje, quando copiamos coisas americanas, seguimos a moda; se os japoneses fazem o mesmo, eles nos imitam.
Enquanto a imitação foi, algumas vezes, eufemismo para um inescrupuloso roubo de direitos e idéias, noutros casos — mais tarde — foi um termo pejorativo para aprendizado. Não há nada de errado na imitação em si, e penso que chegou a hora de começar a imitar os japoneses. Há umas poucas coisas, creiam, que deveríamos, para nosso benefício, aprender com eles.
O quê? podem perguntar. Muitas inovações e melhoramentos técnicos. Mas não é nada disso que eu tenho em mente. Devemos imitar a sua cortesia; o seu respeito pela intimidade (respeito pela privacidade, sim; acerca da falta de privacidade falaremos mais tarde); a sua veneração pelo passado; a sua lealdade — lealdade às famílias, às empresas, a todos os grupos a que pertencem; o seu orgulho pelo trabalho que executam; o seu senso de beleza e o cultivo dela no dia-a-dia, nas coisas triviais; e também a sua amabilidade.
A brutalidade de um povo gentil
A referência feita à gentileza deve ter causado espécie a muita gente boa. Como gentileza? Será que esse povo cuja brutalidade era notória tornou-se repentinamente gentil? E devemos nós imitar a sua gentileza?
Depois de algum tempo no Japão, a gente pode continuar intrigada, mas faz a mesma pergunta de outro modo: como pode este povo sorridente, delicado, gentil, ter-se comportado de modo tão terrivelmente brutal? Porque não há o que negar: foi isso mesmo.
Tudo se deve vagamente à sua devoção à imitação. Alguns tentam explicá-lo da seguinte maneira: cada ocorrência significativa na história do Japão parece indicar uma moral. Os estrangeiros conseguiram fazer com que o Japão se abrisse? Então — disseram eles — precisamos aprender os métodos estrangeiros; precisamos aprender como ser um estrangeiro de modo monumental, gigantesco, histórico. A vitória sobre a China em 1894 e a vitória sobre a Rússia em 1905 foram não apenas vitórias, mas também provas de que a força era algo em que se tinha de acreditar, um meio bem-sucedido de atingir objetivos pré-estabelecidos. A lição de 1945 foi amarga e assaz diferente, mas esta nova moral foi também absorvida com apreensão. Os fatos, todavia, se mantêm: na era fascista, o Japão imitou o nazismo; os nazistas foram bestiais e brutais, por isso o Japão imitou também a sua brutalidade.
Esta explicação contém um fundo de verdade, mas está bastante afastada da verdade global. A brutalidade dos soldados japoneses foi exercida contra os prisioneiros de guerra e a população civil das terras ocupadas por simples prazer, sem ter havido sequer necessidade de ordens superiores; não foi apenas um ato de copiar o original, frio e algo distante, da Europa: nasceu do coração; emergiu da verdade, das convicções mais profundas.
Como? E por quê?
Vamos pôr de lado, antes de tudo, a noção hostil — criada, a maioria das vezes, porém não exclusivamente, pela propaganda russa — de que a brutalidade era natural nos japoneses e esteve sempre de acordo com os seus desígnios; que os japoneses, embora sendo um povo doce e amável, são cruéis e bestiais, e a sua verdadeira natureza aflora sempre que surge uma oportunidade. São os russos, antes e acima de tudo, entre todos os povos, que têm melhor razão para recordar a dignidade japonesa. Perry teve um grande rival na sua tentativa de forçar as fronteiras do Japão: o almirante russo Putiátin. Diana, o navio do almirante, naufragou em águas japonesas após uma tempestade causada por um terremoto. Putiátin e a sua tripulação ficaram à mercê dos japoneses, cujo país eles tinham tentado humilhar e subjugar. No entanto, os náufragos foram tratados amavelmente e com toda a dignidade. O próprio Putiátin pagou tributo à generosidade japonesa relatando que ele e os seus homens receberam toda a assistência e suprimentos de que necessitaram e que foram construídos abrigos de inverno para todos eles, por ordem do governo japonês.¹ Novamente todos os relatórios afirmam que, durante a Guerra Russo-Japonesa, o tratamento dado aos prisioneiros russos foi exemplar e sobremaneira generoso.
1 Ver Dr. G. A. Lensen, Russia's Japan expedition 1852-5, Universidade da Flórida. (N. do A.)
Que aconteceu então aos japoneses que se conduziram com admirável disciplina e delicadeza em 1905? E que parece, uma vez mais, ser hoje um povo amável e generoso? Algo mais do que uma troca de aliados? (O Japão não tinha, realmente, aliados na Guerra Russo-Japonesa, mas possuía, à época, uma aliança com a Grã-Bretanha.)
Parte da explicação reside na absoluta disciplina à qual os soldados japoneses sempre estiveram sujeitos — mesmo durante o tempo do General Nogi. Eles tinham disciplina demais. O Japão, mesmo hoje (como veremos em detalhe no próximo capítulo), é uma sociedade autoritária sem um governo autoritário. As crianças têm que obedecer aos seus irmãos mais velhos e as moças até aos irmãos mais novos; as mulheres, aos seus maridos; os maridos, aos pais; os pais, aos seus patrões; e — antes da guerra — todos eles tinham que obedecer ao imperador, que era divino. Subitamente esses escravos de tantos patrões, esse povo que obedecera por toda a vida, ganhou verdadeira autoridade: poder sobre a vida e a morte. Não há pior patrão do que aquele que foi anteriormente escravo: não há opressor mais cruel e vingativo — embora se vingue em vítimas erradas. Pode-se compreendê-lo; mas ninguém pode absolvê-lo.
O General Nogi exigiu em 1904-05 disciplina às suas tropas, mas ensinou-lhes o que era dignidade; os oficiais da Segunda Guerra Mundial exigiram cega obediência, mas ensinaram ao seu povo o código moral dos nazis, exaltaram-lhes a brutalidade e chamaram o seu procedimento humano de brandura criminosa. Os oficiais trataram seus próprios homens com extrema crueldade e foram encorajados, doutrinados, para passar aos seus homens esse tratamento desumano. Lacaios oprimidos precisam pisotear alguém: basta-lhes poder dar pontapés em vítimas inocentes para que se sintam aliviados, e esse alívio protege os opressores. Alguma decência natural — pode-se questionar — deve ter existido. Não. Eles estavam muito longe de casa; estavam isentos de vergonha. O que eles fizeram tão longe não conta verdadeiramente. Os japoneses não foram os primeiros na história a aceitar um dúbio código de honra: um para o seu próprio povo e outro para os inferiores.
O procedimento mais selvagem e nefasto ficou reservado para os prisioneiros de guerra. Os soldados tinham aprendido durante a carreira militar, na verdade por toda a sua vida, que, uma vez envergado o uniforme e jurada obediência ao seu divino imperador, as suas vidas não lhes pertenciam, e sim ao imperador. Ensinaram-lhes que render-se como prisioneiros de guerra, em quaisquer circunstâncias, em vez de se deixarem matar de arma em punho, era covardia, algo muito pior do que a morte. Mas eles eram humanos e prefeririam cair prisioneiros e sobreviver do que sucumbir na refrega. Mas nunca disseram isso; poucos tiveram mesmo coragem para pensar nisso. O que, evidentemente, não muda nada. Aquela gente, então nas suas mãos — os prisioneiros aliados —, ao entregar-se, tinha feito exatamente o que todos eles tinham querido fazer, ou que gostariam de ser capazes de fazer quando prisioneiros, sem nunca o terem conseguido.
São os seus próprios vícios que você detesta com ardente ferocidade quando os vê nos outros. São os homossexuais disfarçados ou reprimidos que odeiam a homossexualidade com cega paixão; é a virgem indesejada, rejeitada e repelente a mais raivosa defensora da moralidade. Todos eles — o homossexual reprimido, a solteirona rejeitada e outros integrantes dessas lamentáveis classes — odeiam aqueles que desempenham o que gostariam de fazer e não podem. Você pode condenar o crime com forte desaprovação; mas você somente odiará o criminoso que cometer o seu pequeno crime. Eis o motivo por que a indignação moral é por vezes tão revoltante.
Foi o homem com um poderoso, mas energicamente reprimido, sonho de poder cair prisioneiro de guerra — e assim sobreviver — quem odiou aqueles que tinham a suprema coragem de ser covardes. Eles tiveram a coragem que lhe faltava. Daí a ferocidade das suas emoções, a aspereza da sua aversão, o veneno do seu rancor. Ele não foi forçado a ser bestial; gozou com isso.
Democratas autoritários
O Japão é uma democracia autoritária; uma sociedade autoritária sem um governo autoritário. Em muitos outros países o povo determinou-se a permanecer livre, mas os regimes autoritários se esforçam para oprimi-lo; ao contrário, um regime democrático tem sido imposto aos japoneses, que querem, que desejam, que necessitam de autoridade sobre si — porém preservam a democracia.
Na maioria dos outros países a democracia tem tendido para o igualitarismo. Nos Estados Unidos e na Austrália, a mentalidade do "Eu sou tão bom como o sujeito aqui ao lado" é uma força social importante. A mesma atitude — completamente justificada — das populações negras causa uma das mais graves crises nos Estados Unidos. Na Inglaterra, um débil movimento socialista apoiado por um movimento trabalhista reacionário defronta-se com um establishment igualmente reacionário, porém muito mais inteligente. A combinação trabalhista-socialista luta por benefícios substanciais mas insignificantes a longo prazo, e por ganhos imediatos, embora tolere um sistema educacional que, enquanto existir, dividirá a Inglaterra em duas partes desiguais. Na Escandinávia, com o seu regime socialista brando, há uma afluência crescente somada a um passado camponês, produzindo-se uma sociedade próxima da igualitária. Mas o Japão, embora viva sob um regime democrático, não constitui uma sociedade igualitária, porém hierárquica, e parece estar contente com essa condição. Talvez estejamos inclinados a pensar que uma sociedade industrial moderna necessite de ter um cunho mais igualitário para ter êxito. Mas o Japão tem tido muito mais sucesso do que a maioria dos nossos países; e uma das suas vocações, presume-se, é aproximar o Oriente ao Ocidente, e a tradição ao século XXI; combinar o inadequado ao impróprio.
Pode-se questionar que mesmo os Estados Unidos ou a Austrália, com toda a sua liberalidade e devoção ao informalismo, são muito menos igualitários do que pretendem ser ou estão dispostos a aceitar1.
1 Desculpando-me, indico ao leitor o capítulo do meu Boomerang (André Deutsch) sobre o igualitarismo australiano. (N. do A.)
Mas, pelo menos, uma pessoa pode subir e descer nesses países, como em outras modernas sociedades industriais do Ocidente. As portas podem não estar escancaradas; mas também não se encontram fechadas.
Até há pouco era impossível subir na sociedade japonesa; descer era igualmente difícil. Os hábitos de muitos anos custam a morrer. O Japão, durante longos séculos, foi uma sociedade hierárquica, e a idéia de ensinar o povo a aceitar o seu quinhão na vida foi estimulada e propagada com furiosa insistência durante o período Tokugawa. Muramatsu observou que, durante o xogunato Tokugawa, o status do cidadão era determinado ao nascer. "Era-se educado e treinado desde a infância para se ajustar ao modus vivendi prescrito, e apreciar uma forma de vida numa atmosfera autoritária. Entendia-se que o indivíduo que fosse obediente e fiel à posição que lhe fora destinada, e se sentisse satisfeito com o seu papel na família e na sociedade, poderia ter segurança pessoal."
Ajustamento é a palavra-chave. Os psicanalistas ocidentais têm tentado libertar sempre o indivíduo dos seus ambientes opressivos; a psicanálise japonesa (ganhando terreno devagarinho) tende a habilitar o povo a ajustar-se à ordem social existente. A sociedade ocidental torna-se, de ano para ano, mais absorvente e opressiva, e a idéia — justificadamente — gerada é a de que você não pode ser feliz se não for um hippie, se não se revoltar contra as convenções. O objetivo do Japão, pelo contrário, é produzir semi-escravos felizes, bem equilibrados e bem ajustados (em vez dos nossos infelizes e desequilibrados semi-escravos). Os psiquiatras ocidentais já têm conhecimento disso.
No Japão, nos velhos tempos, era o nascimento que determinava a vida inteira do cidadão, até mesmo a linguagem que poderia falar. O japonês mais humilde não poderia aprender o vernáculo mais burilado, ou o japonês do imperador. A violação dessas não-publicadas leis draconianas não só levava ao ridículo como também possivelmente ao exílio. Mas como o ridículo era considerado pior do que o exílio, bastava a ameaça do ridículo. Era vedado aos camponeses comer arroz branco ou usar seda. Os mercadores tinham de viver em casas sórdidas e pequeninas. Aos membros das classes mais baixas, aos sem casta, não era permitido cobrir o chão das suas residências com tatami; tinham de sentar-se no chão nu e sujo. Era uma sociedade de castas, cada um ajustado à sua gaiola. Os que obedeciam e os que davam ordens pertenciam a dois mundos diferentes: só e exclusivamente o nascimento determinava o mundo ao qual uma pessoa pertencia.
Tentar subir era tão difícil quanto cair. O status familiar pouco se alterou em dois mil e quinhentos anos. A família imperial — suprema e divina até 1945 — governou durante quase todo esse tempo, sendo o então imperador o centésimo vigésimo quarto governante da mesma dinastia.
Como são hoje as coisas? As condições tiveram de mudar em algum sentido, mas a herança do longo passado persiste. O nascimento ainda determina o destino, com a única diferença de que no Japão se nasce duas vezes.
Primeiro, à maneira antiga; a segunda oportunidade chega quando se entra numa universidade ou num emprego. Há uma disputa na qual vale tudo, menos arrancar os olhos, pelas vagas na universidade, particularmente nas mais importantes. Há gente que tenta entrar sete ou oito vezes — em sete ou oito anos consecutivos — e começa os estudos (ou perde a esperança) aos vinte e cinco anos, ou mesmo mais tarde. Conseguir entrar na Universidade de Tóquio ou em uma ou duas das outras instituições principais significa estar confortavelmente situado para o resto da vida. Gigantescas empresas disputarão os seus serviços e as portas para os empregos públicos mais importantes serão escancaradas. Se na Grã-Bretanha os vínculos da velha escola asseguram certos atávicos privilégios que mal dão para estufar o peito, no Japão o halo o envolverá inteiramente, para o resto da vida.
Eu disse que o grande passo era entrar na universidade; não sair, já formado. A frase foi cuidadosamente formulada. Quem entrar sairá formado de qualquer maneira. É sanguinariamente difícil entrar: o vestibular é o mais duro de tudo; o resto é brincadeira de criança. Uma vez lá dentro, você terá poucos problemas. O seu fracasso seria o fracasso dos professores, e isso nunca acontecerá. Dá-se o mesmo com os empregos. Uma vez que um japonês obtém um emprego, está garantido por toda a vida. Terá de dar um pontapé no patrão e atirá-lo pelas escadas abaixo para ser despedido. Será promovido automaticamente de acordo com os anos de serviço: não importa, de fato, se trabalha bem, mas sim há quanto tempo o faz. Muitos escritórios e ministérios estão cheios de funcionários idosos, homens ineficientes para ocupar altas posições aos sessenta e aos setenta anos. A idade limite da aposentadoria é aos cinqüenta e cinco, mas muita gente arranja novos empregos aos cinqüenta, ou coisa que o valha, trabalhando assim indefinidamente.
A disciplina se impõe. Impõe-se à família e à vida profissional de cada um. O respeito humilde e submisso pelo pai é inculcado desde o berço. A mãe não conta muito no que se refere ao respeito, mas é amada, e é ela quem despende mais tempo com as crianças. O pai, em muitas famílias, torna-se uma figura remota, dificilmente vista — nem mesmo após as horas de trabalho, quando o seu dever o leva a uma casa de gueixas ou a algum outro lugar de diversão. Mantém-se como a alta e silenciosa autoridade, como procedia o divino imperador. O Japão é mais ou menos uma sociedade de um pai. Até as cabeças das crianças são obrigadas a uma respeitosa curvatura quando o pai aparece. Obediência e retraimento são ensinados às crianças mal pisam a Terra.
Também o jogo do casamento é da maior importância. Não há dúvida de que gente jovem cada vez mais se casa à maneira européia, isto é: escolhendo os seus próprios consortes. Isto, contudo, é muito mais exceção do que regra. O casamento pode ser, na verdade, o terceiro nascimento dado a um jovem de sorte: uma outra oportunidade de subir. Um jovem capaz, bem-parecido, que trabalhe para uma grande companhia, pode ser discretamente informado de que foi escolhido como possível candidato para casar com a filha do patrão. Isso significa que ele é um numa lista de seis ou oito. Sabe que está sendo incessantemente interrogado e vigiado sem clemência. O seu passado, a sua vida estritamente particular, a sua família, a história dos seus pais, a sua vida escolar, a sua virilidade e companhias femininas serão minuciosamente investigados, pesados e analisados — de uma forma que jamais seria tolerada em qualquer país livre. Tudo isto, compreenda-se bem, nada tem a ver com a polícia; no Japão, a intrometida Polícia Secreta é assunto estritamente privado. Se o candidato não bebe nem joga, não enceta aventuras com empregadinhas de bar e datilógrafas, não dá passos em falso, então pode chegar às semifinais, às finais e, no fim, até ganhar. Tem de ser fora de série e afortunado. O seu sucesso final dependerá de muitos fatores, à exceção de um: a preferência da noiva.
Se ele não está interessado em se casar com a filha do patrão, há muitos outros chefes na companhia. Mas, em qualquer caso, ele será advertido de que deverá casar-se com alguém ligado à firma. A sua vida pertence à empresa. Ele será cuidado e promovido, receberá inúmeros benefícios (tratarei disso mais adiante), mas terá de ser leal e devotado. Não deverá sequer utilizar todos os dias de férias a que tem direito. Terá — tão logo obtenha uma posição de responsabilidade e muitas vezes mesmo bem antes disso — de abrir mão de suas férias voluntariamente, exceto por um dia ou dois aqui, ou uma semana acolá. Majime ningen é o nome que se dá às pessoas seriamente predispostas a isso, e sua ambição deve ser interpretada como desejo de ser assim, de realmente querer sair-se bem. (Bem, repito eu, porque uma vez empregado, qualquer um subirá de qualquer forma.) O homem seriamente disposto vai para o escritório cedo, deixa-o bastante tarde, sai para tratar de negócios com vários clientes depois da hora de serviço, e, se acontece estar livre de clientes, não vai logo juntar-se à família, mas utiliza o seu tempo livre com os colegas e superiores imediatos. Eventualmente, casa-se com uma moça da companhia, vive para a companhia e morre lá dentro, quem sabe, pela companhia.
Mais um dever peculiar: ele terá de ir ao aeroporto ou à estação ferroviária em muitas ocasiões, quando o patrão ou o chefe viajarem. Você poderá ver diariamente na estação de Tóquio grandes grupos — vinte ou trinta pessoas — apresentando fervorosas despedidas a um homem que faz uma simples viagem de rotina a Osaka — três horas de percurso — para voltar no dia seguinte. As pessoas curvam-se profundamente e correm alguns metros atrás do trem. As lágrimas, essas, são facultativas!
Nos Estados Unidos ainda é possível trabalhar para um patrão durante vinte e cinco anos, receber o pagamento numa sexta-feira e ser avisado de que os seus serviços já não são necessários na próxima segunda. Tal tratamento a um empregado é incompreensível no Japão. As relações entre um patrão e um empregado assemelham-se às de um casamento na Europa, com a diferença de que é muito mais solene e muito mais duradouro. O emprego é sagrado, e para toda a vida. O vínculo é indissolúvel.
A lealdade é a suprema virtude. A companhia requer lealdade integral e a obtém. Sim, obtém-na porque as relações são mútuas e, ao contrário das firmas ocidentais, a companhia também dá a sua devotada — senão desinteressada — lealdade aos empregados. Eles são alojados (se ainda não casaram), recebem estupendas ajudas de custo, viajam muitas vezes gratuitamente para o trabalho e para casa — nos altos cargos, seus carros serão imensos, com motorista —, têm subsídio para almoço, facilidades para a prática de esportes, férias, longas viagens ao exterior (sem as esposas!) e abonos duas vezes ao ano. O diretor principal obtém uma casa — muitas vezes sem pagar aluguel — que fica para ele na aposentadoria. A inscrição em clubes luxuosos e exclusivos não é paga por eles; podem freqüentar as ruinosamente dispendiosas casas de gueixas e restaurantes. Os empregados japoneses, casados, com a mulher longe, são distraídos no tempo livre, cuidadosamente, sob diversos aspectos, socorridos em caso de doença, tratados ou enterrados, mas nunca despedidos.
O respeito à autoridade e ao retraimento tornam-se uma segunda natureza. Os japoneses são tão disciplinados que até os internados nos manicômios — que podem ter ido para lá por causa de tanta disciplina — só podem ser castigados com palavras. Um paciente pode se imaginar o imperador, mas terá de agir como lhe mandam. Os japoneses são seres humanos, e podem ficar tão loucos como o resto de nós. Mas os perigosos são extremamente raros. Em outros países, este respeito quase cego pela autoridade chama-se subserviência; no Japão é considerado virtude. É a virtude da lealdade primeiro dada, para mais tarde ser recebida. É também ajustamento; em termos universais e no seu lugar certo: eis como o japonês, individualmente, vê o caso; o Japão como uma sociedade insiste também na lealdade e obediência. Outros países podem deificar a mudança; o Japão quer — acima de tudo — estabilidade.
O horror à responsabilidade
Tempos atrás, li o lamento de um jornalista americano acerca da lenta desaparição dos produtos a varejo, do mercado dos eua — mais propriamente, dos supermercados. Você já não consegue comprar um tomate: tem que comprar três tomates envolvidos em celofane; não pode adquirir uma espiga de milho, tem que comprar um pacote com três. Não pode mesmo obter uma lata de cerveja (diz ele), e sim unicamente uma caixa com seis latas. Os anunciantes sugerem que é tudo para sua conveniência, porque é muito mais fácil transportar seis do que um.
Os japoneses adquiriram muitas idéias dos americanos; os americanos devem ter surrupiado esta aos japoneses. Os japoneses — como os tomates americanos — preferem ir em grupos de três.
O Japão é um país de grupos. É uma ilha abarrotada e os grupos formam-se naturalmente, por necessidade. A intimidade ou isolamento, como sabemos, é impossível. Não se pode ter um quarto só para si. E se miraculosamente você consegue um, toda a família ainda o ouvirá mover-se por detrás das finíssimas paredes, dará conta de todos os seus passos, de cada um dos seus espirros, lamentos ou suspiros. A vida japonesa extinguiu não apenas o isolamento, mas também o desejo de isolamento. A intimidade (o isolamento) equipara-se à solidão, e a solidão é o pináculo de todos os horrores.
O indivíduo tem sido lentamente absorvido pelos grupos, como o tomate americano, e é embrulhado em celofane protetor. Abrir caminho por si próprio, como indivíduo, é individualismo; ser ambicioso para o seu grupo (firma, regimento, universidade, colegas de estudo, pais) é digno de louvor. A um indivíduo é difícil subir, mas os grupos podem ascender e tombar. Os homens de negócios — mercadores — pertenciam habitualmente a uma das castas mais baixas; agora constituem uma das mais altas. O prestígio dos militares — os herdeiros dos samurais — não é o que costumava ser. A mentalidade de grupo é tão universal no Japão como o culto do indivíduo o é na Inglaterra. O seu esporte nacional é o ruidoso jogo das multidões — o judô: duas pessoas em combate, mas também encerradas num abraço; o solitário corredor de fundo não é o seu tipo.
Nós, ocidentais, chegamos à conclusão de que esta mentalidade de grupo produz, ou é produzida por uma fuga à responsabilidade. Estamos muito perto da verdade. Há no Japão um horror à responsabilidade individual, o que faz com que as pessoas inventem complicadas e sutis técnicas para fugir dela. Não é bom procurar o todo-poderoso presidente de uma companhia, mesmo com a mais válida das queixas, e pedir-lhe que se pronuncie. Ele não fará isso. Tomará, em qualquer caso, uma decisão final, mas só após se ter chegado a um consenso. Não basta serem ouvidas as várias versões. Tem-se de chegar a uma opinião geral e genuína. (O homem mais importante, o homem-chave, em muitas organizações japonesas, é muitas vezes um jovem que está a par das coisas e que sabe como obter as aprovações necessárias da maneira devida e na ordem mais conveniente.) A vida japonesa — social, política, comercial — pode ser uma oligarquia, mas tende a se tornar uma meritocracia e uma democracia. A persuasão gentil ou não-gentil pode apoiar-se na autoridade, pressão, argumentos de peso; ainda que isso se mantenha sob a forma de persuasão e não de ordem violenta, uma pessoa tem que obedecer. A pessoa sente que está obedecendo a uma ordem de alguém, mas também partilhando da responsabilidade. O presidente nunca dirá aos seus diretores
— ou ao conselho, ou aos vendedores ou escriturários — que foi decidido abrir uma nova instalação em Yokohama. Perguntará aos outros o que pensam da abertura de uma nova instalação cm Yokohama. Como a sugestão vem do patrão, como uma lei, todo mundo pensará tratar-se de uma idéia magnífica. Até o poderoso pater familias não anunciará que a família irá mudar-se para uma casa maior; perguntará a todos os membros da família como se sentiriam se mudassem para uma casa maior. Na política, muitas vezes a oposição queixa-se da "tirania da maioria", o que significa não somente que foi derrotada por votos, mas também que foi injusto ter submetido o assunto à votação. Não é justo, para eles, lançar mão do rolo compressor da maioria, e, na verdade, as minorias devem ser respeitadas; mas os japoneses odeiam a própria idéia de votar. Seu ideal é discutir as coisas até chegar a um compromisso formal, do qual todos possam participar. A maioria, como um todo, aceita isto. Esta atitude não só expressa um respeito pela democracia, como, por outro lado, é uma maneira prudente de repartir as responsabilidades. As coisas podem ir de mal a pior sob determinado aspecto, mas ninguém lançará a culpa sobre um único indivíduo, seja o presidente de uma companhia ou o primeiro-ministro. Nada é da responsabilidade de ninguém; tudo é um empreendimento conjunto.
Esta pode não ser a maneira ideal ou mais eficiente de fazer as coisas, porém, também não é a menos sábia. Nem mesmo os grupos arcam com a responsabilidade total, porque muitas vezes se ligam a outros. O imperador era onipotente por princípio. Mas na prática ele foi apenas a principal figura do período Tokugawa, e sempre — mesmo depois da restauração Meiji — teve de ouvir os vários grupos que, na realidade, dirigiam o país. O governo do Japão nunca foi tão todo-poderoso como alguns outros. O Japão, através dos séculos, nunca produziu um Hitler, um Mussolini ou outro ditador; na verdade, nem ao menos um político verdadeiramente proeminente. Os grupos, todavia, sempre foram inconfundivelmente destacados. Desde 1931 (com o "incidente" da Mandchúria) até o fim da guerra, eram os militares que davam as ordens num governo às vezes relutante, liderado por um imperador mais relutante ainda; hoje é o Zaibatsu (o poderoso colegiado empresarial — um grupo, uma vez mais, não controlado por qualquer indivíduo) que oferece os seus vigorosos conselhos e orientação ao governo. No Japão, um país onde a permanência é uma das maiores virtudes, o governo está em desvantagem, por não ser permanente; o Exército e o Zaibatsu são órgãos permanentes.
Essas idéias — os japoneses sentem-no — não colidem com as noções modernas; na verdade, elas criaram uma nova harmonia num mundo desarmônico. A harmonia — na concepção budista — é o bem supremo. Decisões de grupo, desejos coletivos, eliminam a discórdia, o ciúme, a inveja. É possível que não. Seria necessário muita ingenuidade para relacionar a harmonia budista às indústrias eletrônicas modernas. Mas tal idéia, mais uma vez, reflete a nossa presunção ocidental. Talvez não seja tão ridículo, depois de tudo, para os industriais da eletrônica moderna lembrar, embora de leve, que certos valores espirituais sempre se esconderam nos bastidores.
A "Gewalt Rosa" e o resto
A sociedade japonesa parece mais homogênea do que qualquer outra, mas é certo que nenhuma sociedade de cem milhões de pessoas — na verdade nenhuma sociedade de qualquer dimensão — é homogênea. Em conseqüência, quando é arranhada a superfície da rígida disciplina quase universal, quando os instintos reprimidos e as emoções explodem, fazem-no com força vulcânica, com a mais rubra fúria. A moderna sociedade japonesa tem duas válvulas de escape através das quais as tendências violentas podem aflorar à superfície. Uma delas é a violência estudantil.
As universidades japonesas estão mergulhadas em uma confusão ainda pior do que todas as outras. As célebres manifestações estudantis francesas de 1968 causaram vibrações muito violentas no sismógrafo político, mas só duraram uns quinze dias. As principais universidades do Japão estiveram fechadas durante meses, e, embora prosseguissem algumas atividades escolares isoladas — como, por exemplo, os seminários —, há pouca esperança de que algumas reabram tão cedo. Das três mil instituições chamadas um tanto liberalmente de escolas superiores, cento e dezesseis tiveram grandes prejuízos, dentre estas os principais e mais importantes estabelecimentos de ensino, como as universidades de Tóquio e de Kyoto.
Lendo relatos sobre a violência e a inquietação estudantis, frequentemente deparamo-nos com a palavra "Zengakuren", uma sigla — coisa que os japoneses adoram — da Federação Nacional das Associações Estudantis de Autogestão. Quase todos os estudantes se associam a ela automaticamente. Alguns, porém, preferem não se associar, ou aderir à organização da direita, como a Liga Japonesa de Estudantes, ou a uma facção socialista dissidente.
As manifestações começaram modestamente, em bases pacíficas, dentro do princípio de que "nós também devemos fazer alguma coisa". Foi então que os tumultos de Cohn-Bendit em Paris deram novo ímpeto aos militantes, e suas atividades se tornaram mais violentas e turbulentas. Inicialmente a polícia ficou surpresa, quase achou graça. Os manifestantes de capacete metálico receberam tratamento indulgente: "São apenas uns garotos", considerou a polícia. Ocasionalmente, porém, um dos garotos atirou uma pedra e acertou na cabeça de um guarda. A polícia ficou atônita e decidiu tornar-se mais dura. As sentenças decretadas pelos tribunais passaram a ser mais e mais severas — alguns estudantes estão presos há anos —, e esta injustiça, real ou imaginária, inflamou as paixões e inspirou ataques mais violentos ainda. Essas atividades culminaram com a ferocidade dos acontecimentos em Shinjuku, distrito de Tóquio, em outubro de 1968, e com o nudismo burlesco das manifestações anti-Expo em Kyoto, em julho de 1969.
Por alguma misteriosa razão, a Gewalt — força, em alemão — foi adotada, talvez diretamente de Marx, e tornou-se uma espécie de divindade no seu próprio direito; a Gewalt pelo amor à Gewalt foi aprovada pela maioria dos militantes, como se a Gewalt sempre tivesse sido boa. Mas foi também odiada e considerada incompreensível pelo establishment, como se a Gewalt sempre tivesse sido má.
Alguns estudantes lutam por metas nebulosas. Uns me disseram lutar contra a brutalidade policial. Quando lhes observei que aquilo não podia ter sido o seu projeto original, já que as demonstrações estudantis é que tinham originado a brutalidade policial, e não vice-versa, disseram-me que, fosse qual fosse a origem da brutalidade da polícia, era uma faceta da vida, agora, e havia que se lhe fazer oposição. Outros pediam uma maior e melhor Zengakuren, e eu não fui capaz de encontrar qualquer razão para tal. Seguramente, uma simples mudança na amplitude e na qualidade da Zengakuren só iria curar muito poucas doenças. Há uma notável e ardente lutadora entre a maioria dos estudantes militantes, apelidada "Gewalt Rosa" — Rosa, como referência a Rosa Luxemburgo —, o mais incongruente cognome para uma japonesa de vinte e cinco anos. Diversos professores clamam que Miss Gewalt os atacou a pontapés, quando ela declarou publicamente: "Os instrutores são os maiores criminosos". Presumivelmente, Gewalt Rosa luta para retirar das universidades os instrutores.
A confusão é grande, e muitos ainda contribuem para aumentá-la. É muito difícil ver-se o caso dos estudantes tratado com imparcialidade nos jornais. Os dirigentes estudantis raramente podem — se o podem alguma vez — falar por eles próprios ou colocar seus pontos de vista desapaixonadamente nas colunas da imprensa. As manifestações fazem vender jornais, mas são seguidas com pouca simpatia e compreensão, e a imprensa, consequentemente, escarnece dos estudantes e procura apresentá-los como tolos imaturos. Imaturos, talvez, mas tolos, jamais; na verdade, alguns dos dirigentes são brilhantemente inteligentes.
O Partido Socialista pronuncia as arengas piedosas de sempre, dizendo que, conquanto simpatize com muitas das exigências dos estudantes, condena-lhes a violência. Os grupos anarquistas declaram que, embora não simpatizem com quaisquer das exigências dos estudantes, aprovam-lhes a violência. Os professores olham para todo o fenômeno mais com tristeza do que com rancor. Fazem o possível para restabelecer a paz; falam aos jovens e tentam fazê-los ver a luz da mesma maneira que eles a vêem; ouvem-lhes os protestos, discutem-nos e abraçam as verdadeiras causas dos estudantes. Pensavam que eram respeitados e apreciados — e foram-no em muitos casos. Por isso, agora se sentem profundamente feridos, quando sua boa vontade e esforços são postos em causa e servem de motivo de escárnio e de repúdio.
A frase que mais se ouve é: "Eles não sabem sequer o que querem!" Os professores apontam para a confusão estabelecida com um triste sentimento de triunfo, como se a confusão fosse o argumento. Eles nunca tentaram penetrá-la, compreendê-la, desfazê-la. A confusão é muita, está certo; mas por trás de tudo isso existe algo de coerente, sintético e inteligível.
Repetidas vezes indicaram-me que os estudantes militantes são em número reduzido, e que uma pequena minoria torna os estudos impraticáveis à esmagadora maioria, que se ressente desse fato. Isto é verdade: o caso das minorias contestadoras e militantes é objeto de imensos estudos da ciência social. Algumas firmas importantes escolhem entre os mais promissores jovens de ambos os sexos, do interior e de origem proletária, empregam-nos em regime de meio expediente e enviam-nos para a universidade, pagando as despesas. Eles nunca teriam chegado à universidade sem tal ajuda; sua principal preocupação é progredir nos estudos. Estes, como muitos outros, ficam furiosos com os instigadores das manifestações. Diz-se que, dos quarenta mil estudantes da Universidade de Tóquio, há somente trezentos e cinqüenta ativistas, e uns tantos não são, de forma alguma, estudantes. Já têm sido presos alguns deles com a idade de trinta e oito a quarenta anos. Disseram-me muitas vezes também que grupos de direita lutam contra grupos de esquerda, maoístas combatem os grupos pró-soviéticos, várias facções socialistas lutam contra outras facções socialistas e que, na verdade, há tantas ligas e partidos, contendas sanguinárias e brigas de toda a ordem (e desordem!), que é impossível falar-se de um "movimento estudantil". Apenas os une o amor à violência.
É absolutamente certo que há entre eles muitos matizes de opinião política: pró-soviéticos, comunistas pró-Mao (a influência chinesa é, de fato, muito forte, e o exemplo chinês de antiamericanismo tem causado muita impressão); há várias espécies de nacionalistas, e a maioria deles, tal como os comunistas, maoístas e antimaoístas, fixa a devolução de Okinawa como primeira meta. Há alguns grupos freudianos-marxistas-leninistas e combinações ainda mais estranhas. Alguns queriam o fim da Guerra do Vietnam; outros revoltam-se contra a geração mais velha, embora não seja à maneira alemã. Mas não dizem: "Oh, como puderam vocês fazer aquilo?", como o fez a juventude alemã; sentem que, como a geração anterior falhou, é inútil e, portanto, desnecessário ensiná-la. A geração mais velha, por seu turno, se recusa a ouvir a juventude inexperiente. Nunca foi o forte dos mais antigos ouvir os mais novos; hoje não os querem compreender, ainda que os escutem. "Eles nunca viveram tão bem", é costume dizer no Japão, "então, o que é que eles querem?" Muitos estudantes querem se ver livres do atual governo, dos americanos, do establishment. Um número considerável quer a reforma da universidade, e o sistema, na verdade, não é apenas estúpido e obsoleto, como também corrupto. Muitas facções querem igualmente muitas coisas, não raro contraditórias, e essas coisas, na maneira de ver de muitos professores, anulam-se umas às outras, tornando as pretensões dos estudantes um autêntico nonsense. Outros clamam desesperadamente que muitas dessas pretensões em nada lhes compete. As autoridades universitárias podem, talvez, reformar o sistema de admissão; mas como poderiam ter acabado com a Guerra do Vietnam?
"Eles só querem destruir. Não têm nenhuma idéia acerca do que colocar no lugar das instituições destruídas." Ouvi estas palavras de professores inúmeras vezes. Repliquei: "Mas não concorda, professor, que, se uma pessoa está convicta de que alguma coisa está mal, fará tudo para destruí-la? Para ela, a destruição do mal será um passo positivo à frente. Não vê que, em tais circunstâncias, a destruição será para ela algo de construtivo?"
Destruição construtiva? Eles olharam para mim como se eu fosse um perigoso agitador anarquista e, ao mesmo tempo, um doido perigosíssimo.
Os estudantes japoneses — ou uma pequena, mas importante parte deles — estão revoltados contra um sistema, contra a sociedade, e, acima de tudo, contra um futuro que encaram como desolador e insípido.
Sua aspiração? Eles objetivam a eles próprios. Querem libertar-se da tirania da ordem estabelecida; procuram humanidade em uma sociedade mutante, eletrônica, que cruza o espaço na avidez de alcançar a repulsiva virgindade da Lua. Buscam beleza e bondade num mundo onde as pessoas talvez não sejam más, mas até indiferentes a essas idéias, demasiado ocupadas para se preocuparem com elas. Eles buscam liberdade: não necessariamente liberdade política de alguma forma específica; pura e simplesmente liberdade humana. Libertação das organizações que já estão a afiar as garras, prontas a apanhá-los na vida; libertação da eterna disciplina; libertação da raça-cobaia; libertação da opressão dos velhos mandões. O Japão é dominado realmente por uma gerontocracia, mais do que a maioria das sociedades. Os velhos presumem que há um mérito especial na idade — o que é ilusão geral; a reação da juventude mais experiente é a crença de que há mérito na juventude — o que é, igualmente, um equívoco.
É a polícia de choque que personifica a defesa dos odiados bastiões do poder, e por isso os rebeldes se armam e lutam contra ela. Não lutam pela segurança no emprego; por melhores condições; por um futuro materialmente mais próspero: lutam contra tudo aquilo. Eles, de qualquer forma, terão os melhores empregos gratuitamente. Uma vez posto o pé na escada rolante, subirão rápida e automaticamente às grandes alturas, tão alto quanto se conformem com isso. Mas eles se revoltam precisamente contra a vida conformista, rígida, igual, que os espera na escada rolante. Sabem ainda que não são necessários grandes esforços de sua parte na universidade. Eles nunca falharão: seu fracasso, como já indiquei, seria a falha dos professores, e isso nunca sucederá. Mas eles querem falhar ou, pelo menos, poder falhar; querem ser postos à prova. Querem responsabilidade — o fantasma da sociedade japonesa moderna — porque, sem responsabilidade, um homem nada pode alcançar; sem responsabilidade um homem torna-se um zero. Eles recusam-se a permanecer como simples integrantes de grupos honrados e respeitados: querem ser indivíduos. As revoltas de estudantes — no Japão, como em toda parte — são questões sociais deveras complexas que, por muito tempo, prenderão as atenções dos mais devotados estudiosos. Mas a revolta, no Japão — muito mais do que em qualquer outra parte —, é a revolta do indivíduo. Noutros países o indivíduo pode aspirar a mais direitos, à justiça social, a uma sociedade mais sã e mais humana; no Japão, ele almeja nascer.
Ouvi um importante reitor de uma faculdade perguntar a um dos seus alunos revoltados (a conversa manteve-se num tom de rara delicadeza) qual era a pretensão dos estudantes.
— A nossa pretensão? Queremos derrubar a sociedade. É tudo.
— E o que é que vocês pensam colocar no seu lugar?
— Nada.
É esta atitude que a sociedade japonesa não consegue compreender. Os poucos que o conseguem condenam-na como uma perversidade, mas ela não é mais do que um grito de desespero. A sociedade interpreta esta pequena minoria em termos de políticos da direita e da esquerda, tentando refutar as doutrinas de Mao, Lênin ou Castro, as quais aparentemente pouco têm que ver com os acontecimentos reais. Ou prometem à universidade as tão retardadas reformas, sem perceber que na verdade os estudantes estão de olhos voltados para o futuro da vida pós-universitária.
É legítimo perguntar: em que termos poderão eles resolver alguma coisa? Ainda que o compreendessem, seria a sua compreensão de alguma ajuda? Você não pode acabar com a Guerra do Vietnam; nem pode discutir com alguém em desespero, com a ânsia de destruição, com um homem que grita no meio de um pesadelo. A compreensão sempre ajuda. Mas são os próprios estudantes, não a geração mais velha, quem há de resolver os seus problemas, e não, temo eu, de maneira imponente ou heróica. Os problemas, geralmente, tendem a resolver-se por si mesmos. Uma porção de estudantes fala de "revolução permanente" — uma frase a que o Presidente Mao deu publicidade após tê-la posto em prática, como a grande parte das suas idéias, recebidas do seu maior predecessor, Karl Marx. Mas não há nenhuma revolução permanente. Logo que a revolução se torna permanente, deixa de ser revolução e se constitui ordem estabelecida. A velha revolução se desgasta por si própria. A revolução estudantil se desgastará, também, por si: logo os jovens revolucionários deixarão de ser tanto revolucionários como jovens.
A maioria há de se instalar, acomodar, e eles se tornarão pilares da mesma sociedade que agora parecem tão ansiosos por destruir. A sua revolução não será a primeira a ser atraiçoada pelos que a pregam. Napoleão não nasceu imperador; a União Soviética de Lênin e de Trótski não foi uma tirania nacionalista e burocrática de funcionários insignificantes; a Igreja legada por Cristo à humanidade seria a igreja dos pobres humildes e progressistas. O conflito entre a liberdade e a superorganização, o choque entre maior conforto para todos e menos privilégios para poucos, o crescimento paralelo da prosperidade e da miséria não são problemas somente dos estudantes; são problemas de todos nós, e não uma charada tola na qual o preto e o branco podem ser facilmente distinguidos. A sua revolução não será derrota nem vitória: ela murchará apenas para desabrochar de outras formas, noutros campos, sob diferentes bandeiras e slogans, conduzida por outros contestadores. E para somar ao insulto a injúria, algumas das maiores empresas já pescam nas águas turvas da universidade os dirigentes estudantis mais militantes. Esses jovens heróis, dizem eles, mostram iniciativa; e a iniciativa é a matéria de que é feito o bom homem de negócios.
No trânsito
O volante de um automóvel produz no homem moderno e civilizado o mesmo efeito do cheiro de sangue no tigre.
Mas o japonês não é um tigre qualquer. É um tigre reprimido, frustrado e superirritado, forçado por sádicos doma-dores a ficar sorrindo e rosnando, embora tudo o que quisesse fosse devorar o patrão. Sentado ao volante, ele não se sente feroz; não procura sangue: simplesmente solta aos ventos todas as restrições e disciplina. Não pretende fazer mal aos outros; seu objetivo é cuidar de si próprio; livrar-se dos seus aborrecimentos, recordações humilhantes, desejos reprimidos. Enquanto dirige, é livre e anônimo: logo que pára, torna-se de novo um dócil e conformado membro da sociedade.
Exteriormente, todos os carros japoneses são modelos de organização e asseio. Não vi um único carro sujo — ou mesmo empoeirado — durante toda a minha última visita ao Japão. Um carro limpo faz parte da aparência de uma pessoa, é tanto um sinal de respeito próprio e respeito pelos outros quanto as roupas limpas. Ocasionalmente um carro deve parar, e, como qualquer pessoa o vê, terá de estar limpo. Mas mal se ponha em movimento será anônimo, e um dos muitos bólidos no pan-demônio do tráfego complicado. Não é um meio de transporte, nem mesmo um símbolo de status; é uma cura para nervos tensos e desgastados. Comparados aos motoristas japoneses, os franceses são dóceis, supercautelosos e pacientes; os italianos, refreados e hiperdelicados. O Sião é o único lugar que segue a mesma escola de conduzir. Um funcionário da embaixada inglesa em Bangkok (poderia muito facilmente ter sido em Tóquio) disse-me uma vez: "De volta à Inglaterra, no meu primeiro dia de férias, fiz uma simples, decente manobra à maneira do leste asiático. Fui multado em dez guinéus, mais três guinéus de custas, e tive a carteira apreendida".
O tráfego em Tóquio, nas horas de rush, tem de ser visto para que se possa acreditar. Não há nada que não se faça em matéria de transgressão, desde surgir subitamente numa esquina, fazer manobras em espaços reduzidos, ultrapassar numa curva, mudar de mão sem avisar, até guiar da forma mais reprovável. Dirigindo assim, uma pessoa não sobreviveria mais de cinco minutos nem mesmo em Roma. Mas, em Tóquio, cada motorista, espera-se, fará exatamente o impossível; todos esperam que cada motorista guie como um lunático criminoso à solta sob palavra. A única coisa sensata que eles fazem (ou assim o parece a um britânico) é conduzir pela esquerda — embora isso também dependa de disposição momentânea. Você poderá pensar que eles não utilizam nunca o pisca-pisca, mas o certo é que o fazem até em demasia. O apagar ou acender do pisca-pisca poderá entender-se por: vou abrandar a marcha. Ou: vou acelerar. Ou: vou virar à esquerda. Ou: vou virar à direita. Ou: esqueci-me de desligar a luz. Ou: você será imprudente se prestar atenção ao pisca-pisca.
É uma velha piada — ouvi muitas vezes na minha primeira visita a Tóquio — dizer-se que os antigos camicases se tinham tornado motoristas de táxi, mas estavam querendo voltar à antiga ocupação, muito menos perigosa.
Isto já foi uma piada; hoje, é autêntica realidade.
Falaram-me de um tipo de acidente muito freqüente no Japão: dois homens encontram-se na rua, conversam um pouco e preparam-se para partir. Antes, porém, de o fazerem, começam a curvar-se, e no seu excesso de cortesia vão recuando, recuando, e — ainda nas reverências — descem a calçada. Logo que tocam o pavimento, um carro passa como uma flecha e os atropela.
Vítima e matador são verdadeiros símbolos do Japão. O homenzinho que recua em cerimoniosas curvaturas até a sua sepultura, e o motorista maníaco que não deseja matar, mas quer, de qualquer modo, acabar com a convenção das curvaturas cerimoniosas.
Uma ou duas palavras acerca de táxis. São — necessito dizê-lo? — os piores, os mais respeitados e temíveis de todos os veículos. Muitas vezes observei motoristas de táxi ziguezagueando pelo tráfego homicida como diabos saídos do inferno, apesar de sua timidez e nervosismo e de se mostrarem cheios de medo a cada torcidela do volante. Eles não podem guiar cautelosamente: há um esprit de corps. Todos, inclusive os outros motoristas de táxi, esperam que eles guiem como lobisomens — se é que é uma comparação apropriada —, e, assim, guiam como lobisomens.
Os táxis japoneses diferem dos outros por alguns aspectos notáveis:
1) Os motoristas não esperam pelo passageiro e, na maioria dos casos, nem mesmo aceitam gorjetas. São orgulhosos demais.
2) Os táxis são muito baratos — talvez a única coisa barata no Japão.
3) No Japão, não se pode abrir, pelo lado de fora, a porta de um táxi: somente o motorista pode fazê-lo, do seu lugar, pressionando um botão. Por outras palavras: você não pode entrar num táxi, a menos que o motorista permita. Se ele for com a sua cara, abrirá a porta; do contrário, não. Se não gostar mesmo, abri-la-á subitamente, só para dar-lhe uma pancada na barriga, fechá-la-á de novo e partirá com uma sonora gargalhada.
4) Em vários períodos do dia (depois do almoço e cerca de dez e meia ou onze horas da noite, quando fecha a Ginza¹) é completamente impossível arranjar um táxi. Mesmo que você acene para um carro vazio ele não parará; se parar por causa de um sinal de trânsito, você não poderá tomá-lo (veja o parágrafo anterior). A única maneira de arranjar um táxi, nessas horas, sem demoras consideráveis, é brandir uma nota de mil ienes (vinte cruzeiros ou dois dólares e setenta e cinco cents), indicando que está disposto a dá-la, independentemente da distância a percorrer. Então os táxis formarão fila para você. Os motoristas de táxi japoneses recusam um tostão de gorjeta; mas não se importam em ser pagos oito ou nove vezes mais.
1 Rua de movimento intenso, como a Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro. (N. do T.)
O orgulho tem os seus limites. (Se eu tivesse os rendimentos deles, o meu orgulho teria também os seus limites.)
5) Em Israel, se um táxi pára por um momento, o chofer pega um jornal ou um livro e começa a ler; o motorista de táxi japonês puxa um pedaço de papel, caneta, e escreve furiosamente. Todos parecem grafomaníacos. Escrevem, e deixam Lope de Vega, com suas muitas centenas de comédias e tragédias e os seus milhares de poemas e de contos, muito para trás.
Em Londres, vou de carro para quase toda parte. Sempre me senti ligeiramente culpado por isso: dirijo quase tanto quanto um profissional. Os motoristas de táxi japoneses têm aliviado a minha consciência e restabelecido o equilíbrio: eu dirijo mais do que eles; eles escrevem mais do que eu.
Maneiras
Um quarto de hora no Japão bastará para convencê-lo de estar em meio a um povo estranhamente bem-educado. Gente que vive numa ilha desesperadamente superlotada tem de respeitar a intimidade dos outros — ou antes, teria, se tivesse qualquer forma de privacidade. Mas eles não a têm. Por isso a cortesia tem uma função dupla: é cortesia e substituto da privacidade. Tome, por exemplo, os pequenos telefones vermelhos nas ruas, lojas, vestíbulos de hotéis. O aparelho está situado sobre uma mesa, ou num balcão — eles não têm espaço para cabinas. Você trata em público das transações comerciais mais confidenciais e dos assuntos mais íntimos. No entanto, estará em perfeito isolamento. Qualquer um pode ouvi-lo ao telefone, mas ninguém o faz. O telefone de um homem é o seu castelo.
Você, por certo, reparará imediatamente na mania que eles têm de reverências. Todo mundo se curva perante todo mundo, com a solene cerimônia de um nobre e mesmo com grande dose de uma inimitável graça natural. A reverência não é mais nem menos estúpida do que o aperto de mão ou o beijo na face, mas é mais estranha, mais formal, mais oriental; e é, também, contagiosa. Bastam algumas horas, e até você começará a fazê-las. Mas você se curvará demais ou não se curvará o bastante; você se curvará para o homem errado na hora errada; você não colocará as mãos à sua frente, o que é mau; ou o fará, o que é pior. Em breve descobrirá que os japoneses têm uma hierarquia complicada nas curvaturas: quem se curva a quem, com qual inclinação e por quanto tempo. Um dos Estados americanos tinha uma velha norma de tráfego segundo a qual se dois carros se encontrassem numa intersecção, nenhum se moveria antes de o outro partir. Do mesmo modo, se dois japoneses se curvam, nenhum deles parará antes do outro. Pode ser um pouco complicado para nós, mas eles praticam isso sem qualquer dificuldade, e a mínima diferença de postos, status, idade ou posição social será sutilmente observada na fração de segundo em que um homem se curva menos do que o outro. Em muitos casos há diferenças nítidas de posição e nenhuma dificuldade. Eis as regras básicas, no seio da família: "A esposa curva-se ao marido, a criança curva-se ao pai, os irmãos mais jovens aos irmãos mais velhos, a irmã curva-se a todos os irmãos, seja de que idade forem1". Vi bebês transportados ao estilo japonês, às costas das mães em pequenas selas; quando as mães se curvavam, eles se curvavam também, um tanto condescendentemente, do todo de sua majestosa altura. As lojas japonesas empregam moças-reverências que ficam junto às escadas rolantes e tudo o que têm a fazer é curvar-se profunda e reverentemente a todo mundo (o equivalente japonês ao rapaz que movimenta as portas giratórias para nós passarmos).
1 Ruth Benedict, The chrysanthemum and the sword, Secker and Warburg. (N. do A.)
Na famosa e rápida estrada de ferro Tokaido, entre Tóquio e Osaka, há dois condutores incumbidos de uma pequena cena teatral. Marcham para o meio do vagão, curvam-se cerimoniosamente em ambas as direções e começam então a cobrar os bilhetes.
Num dos parques de Nara encontrei um veado. Comprei-lhe um pacote de comida. Chegou-se a mim, mirou-me bem nos olhos e curvou-se profundamente. Não era um movimento ocasional: era uma curvatura autêntica e cortês. Talvez os veados sejam melhores imitadores do que eu supunha; talvez, de tanto verem as pessoas se curvando a todo o instante, tenham também adquirido o hábito; talvez haja algo de genético, e isso esteja no sangue dos veados japoneses. Não sei; mas sei que o veado se curvou na minha frente, depois saltou para mim e me tirou da mão o pacote com a comida.
Também nisto o veado foi um verdadeiro japonês. Vê-se muitas vezes as pessoas darem passagem umas às outras com cerimoniosa serenidade nas paradas de ônibus. Logo que o ônibus chega, os cavalheiros reverentes se transformam em selvagens, cada um empurra para um lado, pisoteando e acotovelando impiedosamente.
Você reparará também em muita gente transportando belos embrulhos. São presentes, uma outra encantadora cortesia japonesa que se fez hábito. Eles levam presentes em todas as ocasiões possíveis, vencendo quase o nosso frenesi do Natal. Mas isso não quer dizer que, além da permanente estação de presentes, eles não tenham as suas estações de presentes especiais. Têm, de fato, três estações: Ano Novo, meio de ano e fim de ano. Nessas épocas, chamamos os presentes de "presentes"; no Japão, usam um nome diferente para cada ocasião (otoshidama para o Ano Novo, chugen para o meio de ano c seibo para o presente do fim de ano). Pelo menos podemos enviar os nossos presentes; os japoneses mais pobres têm de levá-los aos presenteados pessoalmente e entregá-los com uma curvatura.
As regras acerca do papel de embrulho parecem à primeira vista um quebra-cabeça intrincado, mas não são. Para o estrangeiro basta saber que hosho, noriire, hanshi e noshigami são considerados os melhores papéis, e que, para ocasiões de menor importância, danshi, torinoko, sugiwaragami e nishinoushi são menos pretensiosos e mais apropriados. Lembrado isto, o gaijin não precisa se preocupar com detalhes. Mas ele tem de decorar isso, pois poderá embrulhar uma coisa em nishinoushi em vez de noshigami.
O método de embrulhar é, certamente, de importância decisiva. "As rugas devem ser evitadas e as dobras devem ser precisas. Ordinariamente o papel será utilizado de modo a que a última dobra fique no topo do embrulho, no extremo direito, com a ponta do papel horizontal no canto esquerdo do referido embrulho. É preciso ter cuidado ao dobrar, porque todos reparam muito nisso, e, na verdade, seria rude enviar um presente dobrado para a ocasião inadequada." Ninguém gosta de ser felicitado pela sua morte.
Entretanto, se você enviar peixe, aves, quaisquer víveres ou animais (pássaros, cães ou cavalos de corrida), não precisará embrulhar. Pode dispor os presentes "sobre folhas de carvalho da Mongólia, cipreste japonês, cedro japonês, pinheiro ou mandiroba, e colocá-los num tabuleiro ou num cesto".
Deve-se ser extremamente cuidadoso com este gênero de presentes. Uma vez cometi a gafe de mandar a uma senhora um cavalo de corridas sobre cipreste coreano em vez de cipreste japonês. Nunca mais voltei a ser recebido por ela.
"Presentes com fio vermelho e branco serão atados de forma a que o fio vermelho fique à direita; e quando se usar fio dourado e prateado, o dourado deverá ficar à direita." Mas à medida que os anos correm, são cada vez mais raras as pessoas que cometem o haraquiri por terem trocado as voltas e posto o fio dourado e prateado com o dourado à esquerda.
Esta informação tirei da Etiqueta japonesa, da Comissão Mundial de Camaradagem, da acm de Tóquio1, um pequeno livro indispensável, repleto de úteis ensinamentos, como seja a maneira de um mortal se curvar quando se senta no chão. ("Uma pessoa coloca as mãos no chão, as palmas para baixo, quatro ou seis polegadas separadas, e curva-se entre as mãos, levando a cabeça a quatro ou seis polegadas do chão.") Também ensina que, ao deixar uma casa japonesa, você terá sempre que declarar "Itte mairimasu" ("Agora vou-me embora"), e no regresso "Tadaima" ("Acabo de chegar"). Dizer à chegada que está partindo ou à partida que acaba de chegar é menosprezar os sentimentos da dona da casa.
1 Publicado por C. E. Tuttle. (N. do A.)
Há, decerto, outra forma. Tratar precisamente qualquer pessoa conforme os seus instintos o ditarem. Não olhe ninguém como estranho ou exótico — lembre-se de que você próprio é mais estranho e mais exótico. Acerque-se de toda a gente com a amabilidade e o respeito que lhes são devidos, e não se importe em saber de que lado fica o ouro nos embrulhos atados com fio de ouro e prata. Tudo correrá perfeitamente bem. (Se você sente que deve curvar-se sentado no chão — como eu evidentemente fiz — pratique-o quando estiver sozinho.)
As maneiras esquisitas dos japoneses podem ser exasperantes. Primeiro porque eles fazem tudo devagar. A princípio tive a maior admiração pelos homens que se recusam a se apressar: a nossa dependência do relógio é lamentável, e a noção de que "tempo é dinheiro", repulsiva; o tempo é muito mais precioso do que o dinheiro, por isso deve ser esbanjado. Gostemos ou não, nós, ocidentais, somos filhos de uma civilização urbana e ficamos às vezes irritados com o hábito japonês de se cercar de rodeios e cuidadosamente evitar uma resolução. Cada vez mais, os japoneses aceitam as fórmulas ocidentais e se resignam a fazer uma observação quando ela lhes parece inevitável. Mas não se apressam; isto é uma das coisas que você tem de aceitar, como aceita, aliás, o sol e a chuva. É de elementar cortesia gastar o tempo das outras pessoas tão bem como o seu próprio tempo.
O ar-condicionado no nosso quarto do hotel não está ajustado em hora alguma. Assim, no quarto, ora há um calor insuportável, ora um súbito frio de rachar, fazendo-nos ir do forno à geladeira. Levamos assim o dia todo a pedir ao empregado que está lá embaixo que mande reparar o ar-condicionado. Todos os dias o nosso pedido é registrado com rara amabilidade, parecendo, porém, ficar no papel. No entanto, todos os dias um homenzinho aparece com uma escada portátil e uma lâmpada. Entra, curva-se profundamente e sorri. Sobe então os degraus da escada, acende a lâmpada e projeta a luz na grade. Desce, sorri, curva-se, pega a escada e parte.
No dia seguinte vou à portaria queixar-me de novo, dizendo que, tão rápido quanto temos um calor dos diabos, temos um frio da Sibéria. Esta queixa estigmatiza-me como um desesperado, rude e mal-educado gaijin. Não tinha o homem estado lá? Era absolutamente insignificante — do ponto de vista da filosofia oriental — que ele tivesse consertado ou não o ar-condicionado. O seu aparecimento provou claramente que a minha primeira reclamação fora aceita, examinada, tratada com respeito — assim, o que mais queria eu?
A arte de dizer não não é uma das grandes artes japonesas. Eu próprio nunca a aprendi e, sob este aspecto, sou rigorosamente semelhante a eles. Na Inglaterra, dizer um pleno "sim" ou "não" é forma eficaz, para qualquer dos casos. No Japão, é muito mais bonito ser vago e incoerente; não saber qualquer coisa, não ser bastante decisivo. Não, no Japão, é uma palavra definitivamente rude. Deve ser evitada ou, no caso de extrema emergência, parafraseada.
A maioria das vezes eles usam simplesmente o sim por não. Bem, esta é uma maneira de resolver o problema. "Você não compreende isto?", pergunta você, e ele compreende exatamente o contrário. "Sim", retorquirá com delicadeza. "Ou você não compreendeu aquilo?" A resposta é de novo "sim". "Eu tenho duas cabeças?" "Sim." "Ou três?" "Sim." As guerras mundiais principiaram com mal-entendidos muito menores.
Se você fizer a um japonês uma pergunta que ele não compreende, ele sorrirá polidamente, porque, se indicasse que não era capaz de entender, demonstrar-lhe-ia a sua inépcia em se expressar; se você lhe fizer uma pergunta que ele compreende perfeitamente, mas que acontece ser embaraçosa, sorrirá polidamente também. Por outras palavras, se ele não o compreende, age como se o compreendesse; se ele entende, age como se não entendesse.
Todas as instruções são aceitas com uma curvatura delicada e um sim. "Se o Sr. Fulano de Tal telefonar, diga-lhe, por favor, para ir sem demora ao Departamento de Metrologia." Reverência e "sim". "Por favor envie esta carta, por um mensageiro especial, à embaixada da Guatemala." Aceno com a cabeça e "sim". Se a pessoa compreendeu ou não, ninguém sabe. Pelo menos por algum tempo.
É possível haver confusões baseadas nas diferenças lingüísticas: não é questão de entender mal as palavras, mas de frasear as mesmas idéias diferentemente. Nunca faça a um japonês uma pergunta negativa. Se você lhe inquire: "Não estou aborrecendo?", ele ou ela — a pessoa mais delicada sobre a Terra — responderá com um firme e resoluto sim. Significando não. O seu sim não quer dizer de forma alguma que ele esteja aborrecido ou mesmo preparado para admiti-lo. Isso apenas significa que ele concorda sempre com a sua pergunta, como se dissesse: "Sim, não está".
(Muitos europeus são iludidos pelo hábito britânico das perguntas negativas. A pergunta: "Você não se importa de vir dar um passeio?" obtém a resposta pronta: "Sim". Não significa que ele se importe de ir, mas que sim, ele irá com prazer.)
É já proverbial que os próprios jovens têm boas maneiras no Japão. Os rebeldes dirigentes estudantis agem como se fossem mal-educados quando a ocasião o requer; mas particularmente serão tão corteses como qualquer outra pessoa. E muitas vezes até demasiado polidos para o meu gosto. Encontrei-me mais do que uma vez na companhia de estudantes, todos com menos de vinte e cinco anos, e alguns deles agitadores notórios. Foram sempre embaraçosamente polidos para comigo. Repentinamente descobri a triste verdade: a reverência era devida à minha idade. "Meu Deus", pensei, "eles me veneram."
"Sim, eles são bastante amáveis, mas a sua delicadeza é apenas superficial."
Este é um comentário a meia voz dos europeus e americanos residentes no Japão. A observação é falsa sob diversos aspectos. A cortesia japonesa é uma velha tradição. São Francisco Xavier, o missionário cristão, um dos primeiros ocidentais a chegar ao Japão, escreveu, em meados do século XVI: "Eles são um povo de muito boas maneiras, bons em geral, e não maliciosos; são homens tão honrados que causam admiração, e prezam a honra acima de tudo¹".
1 Traduzido para o inglês por C. R. Boxer e citado por Richard Storry, op. cit. (N. do A.)
Assim, a cortesia japonesa tem uma longa tradição. Não é "superficial" no sentido de que é puramente formal e eles o fazem por hábito. Muitas vezes desviam-se do seu caminho para serem úteis. Isto acontece tanto num breve encontro de rua (eles acorrem a você se notam que vai meio perdido) como em ocasiões mais complicadas.
Os estrangeiros residentes cochicham que aquilo que eles pretendem é algo mais complicado. Os japoneses são, por natureza, temperamentais, um povo mesmo violento, e eles — muito mais do que outros povos — têm que se forçar à cortesia, na verdade ultracortesia, pois de outra forma procederiam como selvagens.
Eis um estranho argumento! Autodisciplina forçada é a verdadeira forma de cortesia e de civilização. Todos nós somos, no fundo, selvagens; a civilização é um verniz (veja-se a história do século atual); a civilização ensina-nos, não a proceder de acordo com a nossa inclinação — arrebatar, empurrar, dar pontapés, matar —, mas a nos curvarmos, guinchar e sorrir. Cortesia só na pele é um bocado de cortesia, se você se recordar particularmente de como é espessa a pele das pessoas. E a cortesia superficial é infinitamente melhor do que a rudeza espessa, pesada e não-disfarçada que você encontra em muitos outros países. A essência do cochicho crítico é simples: a cortesia japonesa é inútil porque eles seriam terrivelmente rudes se não fossem tão polidos.
Sopa e miúdos de carneiro
Apenas mais duas breves observações sobre as maneiras dos japoneses.
1) Tomar sopa oferece mais perigos do que tudo o mais. Ao tomar sopa, deve-se fazer um ruído horrível. É sinal de que se está apreciando. Não o fazendo, os donos da casa pensarão: "Que estúpido mal-educado". Mas se você o faz, pensarão: "Que motivo levara estes europeus a fazerem um ruído tão repugnante quando tomam sopa? Deve ser um estúpido mal-educado". Porque eles o analisarão como europeu.
2) Só uma vez senti-me fortemente aborrecido por a sua delicadeza ir além de todos os limites. Um dia, um industrial japonês disse-me que tinha estado na Escócia e gostado muito de lá. Assenti com a cabeça, concordando em que a Escócia era uma terra deliciosa.
— Eu adoro miúdos de carneiro — acrescentou ele. "Ele exagera um pouco", pensei, mas não disse nada.
— Desde pequeno que gosto de miúdos de carneiro — continuou.
Mantive-me calado, e um tanto sombrio.
— Gosto muito mesmo.
— Não sou escocês — disse-lhe, suavemente, afinal, É certo que eu apreciava o seu esforço em lisonjear-me com os miúdos de carneiro, mas há um limite para todas as coisas. E imaginei que, constatando que eu não era escocês, ele enveredaria então pelo bife ou pela empada de rim. Ou pelo goulash.
Ele, porém, prosseguiu: — Sinto uma falta tremenda de miúdos de carneiro. Uma grande falta, mesmo. — E, após uma curta pausa, romanticamente: — Sinto constantemente a sua falta.
Então a incrível verdade tombou-me em cima. Ele não tinha sido polido: ele dizia a pura verdade. E, ali, não passava de um cavalheiro japonês, de cinqüenta e três anos, fabricante de roupas íntimas de homem, proprietário de vários bens, embora um pouco infeliz por não poder arranjar miúdos de carneiro em Yokohama.
Beleza e feiúra
Quando eu estive no Japão, os japoneses sentiram-se gravemente ofendidos porque um dos seus compatriotas os chamara de o povo mais feio do mundo.
"Os japoneses", escreveu o Sr. Ichiro Kawasaki, "são fisicamente talvez o povo menos atraente, à exceção dos pigmeus e dos hotentotes. Membros da chamada raça mongólica, à qual os japoneses pertencem, têm rostos chatos e inexpressivos, os ossos da face altos e salientes, e olhos oblíquos. Os seus corpos estão também longe de ser perfeitos, com uma cabeça grande e desproporcionada, um tronco largo e curto, e muitas vezes com as pernas arqueadas." ¹
1 Japan Unmasked, C. E. Tuttle. (N. do A.)
Não sei como é a beleza para os hotentotes. Não me lembro de já ter visto algum. Talvez eles nem mesmo existam e tenham sido inventados apenas para servir de termos de comparação. Há cerca de duzentos anos Smollett já se queixava (a respeito dos italianos, não dos japoneses) de que "as suas hospedarias eram o bastante para revirar o estômago de um arrieiro" e que "as vitelas... eram cozinhadas de tal maneira que repugnavam até a um hotentote".
Os hotentotes tenham existido ou não, o que importa é o que foi escrito pelo Sr. Kawasaki. Ele era embaixador do Japão na Argentina quando o seu livro apareceu (primeiro em inglês), e o lançamento teve o efeito de uma bomba. Ele foi demitido, caiu em desgraça e foi informado de que seria em breve aposentado. O Ministério do Exterior desmentiu com ardor que a sua decisão tivesse alguma coisa a ver com o livro. Permanecera bastante tempo no cargo na Argentina e agora aproximava-se a idade da aposentadoria. Se um embaixador é um cavalheiro enviado ao estrangeiro para mentir no interesse do seu país, então o Ministério do Exterior é uma coleção de cavalheiros que permanece no seu país fazendo o mesmo. Kawasaki esteve menos de um ano na Argentina, e, além disso, o japonês é aposentado quando atinge, e não quando se aproxima da idade. Talvez Kawasaki fosse aposentado, depois de tudo, por ter visto menos beleza nos japoneses do que o então chanceler; talvez por que ele não conseguira licença para a publicação do seu livro, e este não devesse ser publicado. Quase houve um tumulto por causa do livro, e sempre pensei que o caso da autorização fosse o fulcro da matéria. Mas ninguém levou o problema até Kawasaki. Por isso lhe perguntei. Ele me respondeu que não, que ele não tinha' pedido autorização porque considerara este novo livro como uma versão revista de um outro mais antigo, chamado Os japoneses são assim. Mas no próprio prefácio de O Japão desmascarado ele chama o trabalho de "um livro completamente novo". (Isto seria um disparate literário ou diplomático?)
É como se fosse. O Sr. Kawasaki, em vez de ficar furioso com o ministério, deveria ficar-lhe grato pela imortalidade que ele lhe concedia. "Não sou um diplomata distinto; sou um diplomata acabado", protestou ele num almoço, e a sua extinção, recorda, transformou o livro num succès de scandale. Foi cercado de ofertas para desmascarar muitas coisas: a vida sexual japonesa, a política, os negócios; foi convidado a desmascarar a Coréia, a Tailândia, as Nações Unidas e os Estados Unidos; pediram-lhe que desmascarasse a vida diplomática; a última oferta foi para desmascarar a Lua. Se aceitasse metade dessas propostas ter-se-ia tornado o maior profissional do século em desmascaramento.
Diz-se muitas vezes que os japoneses são muito sensíveis, odeiam todas as críticas, ainda que suaves, e recusam ler ou escutar qualquer coisa desfavorável a seu respeito. Tenho-os encontrado muito mais razoáveis neste aspecto, enfiando menos carapuças do que os seus vizinhos, os australianos, e tenho muito prazer em comunicar que os seus instintos masoquistas estão tão alta e saudavelmente desenvolvidos como os da maioria das nações. O livro de Kawasaki foi publicado quando eu estava em Tóquio, e era vendido como água.
Kawasaki está certo ou errado acerca da fealdade dos japoneses? Na verdade, os japoneses são pequenos de estatura, mas os italianos, usualmente considerados um povo extremamente bem-parecido, também o são. Contudo, estão crescendo: tanto os italianos como os japoneses são muito maiores do que antes, e a pequena estatura está estritamente ligada à pobreza e à má nutrição.
Também é verdade — penso — que as pernas dos japoneses são mais curtas do que deveriam devido ao hábito de se acocorarem, ou mais precisamente de se sentarem sobre os calcanhares. Esta posição — praticada há longos séculos — impede o desenvolvimento das pernas. Agora, portanto, com a afluência das idéias modernas e revolucionárias, os japoneses começam a compreender que a função das pernas é ficarem esticadas, e não dobradas, pelo que este defeito pode ser remediado aos poucos. E, de qualquer forma, os japoneses usam muitas vezes quimonos (pelo contrário, os italianos nunca o fazem), e os quimonos têm evidentes vantagens: (a) parecem distintos e belos e (b) tapam tudo — barrigas, pernas, estômagos, traseiros.
Assim, se você insiste nas pernas, a narrativa do Sr. Kawasaki contém um grão de verdade. Mas não mais. Os japoneses certamente não são feios. Admito ter utilizado apenas breves momentos na contemplação da beleza masculina no Japão. Beleza masculina deixa-me frio se estou na Suécia, no Japão ou na terra dos hotentotes. Mas olhei para as mulheres japonesas quase que incessantemente com o que se chama — ou pelo menos se costuma chamar — olhos de gavião. Estou me aproximando da idade do consentimento1, mas sempre estive alerta para o fato de me encontrar numa terra de belas mulheres, usassem elas os seus quimonos ou não.
1 Linguagem jurídica, referente à idade na qual as mulheres consentem.
No Japão, você está cercado de beleza. Os japoneses criam beleza em toda parte. (Em Tóquio, qualquer um, ocasionalmente, sente que o seu talento para criar fealdade se iguala ao seu talento para criar beleza, mas isso é um problema local.)
Primeiro, nota-se sua meticulosidade e limpeza. Estas são virtudes que eu não respeito, ou, se puder ser um pouco mais explícito, que, como regra, detesto. São virtudes das gordas e néscias donas-de-casa burguesas, as virtudes dos polidores de móveis, as virtudes que tornam os seus possuidores presunçosos e vulgares. O que é pior: meticulosidade e limpeza não são apenas hábitos, são uma filosofia, uma tentativa desesperada para pôr todas as coisas no seu próprio lugar, numa gaveta. Todas as coisas devem pertencer a alguma parte. Meticulosidade excessiva — meticulosidade como uma religião, não simples meticulosidade e, meu Deus, meticulosidade inevitável — é uma tentativa para criar um sistema onde não haja sistema. Meticulosidade é ultra-simplificação. Meticulosidade é o desejo de domesticar- as coisas — mas as coisas são maliciosas e de difícil manejo, com vontade própria, muito mais indomáveis do que dóceis leões que sobem para o topo dos bancos e saltam através dos arcos. Meticulosidade é tirania. É o esforço de Goethe para adaptar cada coisa à Gestalt (forma) ou Gesetz (lei). Deus, você observará, está muitas vezes longe do que é ordenado e meticuloso (mas a Hausfrau e a sua contraparte filosófica, na sua infinita bondade, estão preparadas para esquecer Deus).
E quanto ao asseio, ele é bastante doentio e deveras perigoso. É anti-higiênico. Os americanos, que vivem num meio demasiado higiênico, perdem a resistência e a menor quantidade de sujeira os abate e os põe doentes. Eu sou pelo desmazelo; e por uma pequenina quantidade de porcaria.
Mas o Japão — uma das mais arrumadas e seguramente mais limpas nações no mundo — pode alegar infindáveis circunstâncias. O Japão é uma ilha superlotada e os japoneses não têm espaço para desarrumações. Numa casa japonesa, cada centímetro quadrado é inteligentemente utilizado e todas as coisas devem ser postas no seu próprio lugar, porque não há outro lugar para elas. Quando você entra num trem, vê, no local respectivo, as malas todas arrumadinhas, umas encostadas às outras e com as pegas para cima, como livros numa prateleira, de modo a ocuparem o mínimo espaço possível, embora metade do espaço reservado para as bagagens vá vazio.
A meticulosidade e a arrumação, no Japão, podem ser perdoadas, ou pelo menos compreendidas. Mas eu achei a sua limpeza um pouco desconcertante. Todos andam sempre primorosamente asseados. As camisas brancas dos homens são invariavelmente impecáveis — você tem a impressão de que eles não usaram a camisa mais do que uma hora. Muita gente usa luvas brancas: motoristas de táxis e de ônibus, até jardineiros e varredores. E quando eu digo brancas quero dizer brancas mesmo. Como os jardineiros e os varredores conseguem manter as luvas imaculadamente brancas, já não está ao meu alcance saber. Os carros — como mencionei antes — estão sempre impecáveis, os cromados brilhando. Você se senta num café ou num restaurante e a primeira coisa oferecida automaticamente é uma toalha quente para o rosto: você limpa o rosto e as mãos e se sente refrescado. As coisas não são apenas limpas como também novas, no Japão — pelo menos nos bairros das cidades maiores; mesas, cadeiras, estofamentos, jarrões, cinzeiros, almofadas. Logo que as coisas começam a danificar-se ou a perder a graça, são postas fora. O Japão, você o sentirá muitas vezes, é uma versão melhorada dos Estados Unidos.
As casas, é claro, são também imaculadas. Como as pessoas não usam sapatos dentro de casa, é muito mais fácil manter uma casa limpa no Japão do que em qualquer outro lugar onde haja pó, neve ou lama.
Os empregados domésticos japoneses, assalariados, são cuidadosos e conscienciosos: varrer o pó para debaixo do carpete não é uma das suas características nacionais. Mas aqui, como em toda parte, há limites. Um embaixador europeu disse-me que o homem que lhe limpava o gabinete era um velho empregado muito conceituado e querido, e, embora homem, era o paradigma de todas as virtudes de uma mulher. Mas ele se recusava a limpar o chão. Todo o resto, sim; o chão, não. "Ele devia pensar", explicou-me o patrão, "que se o gaijin ê tão estúpido que usa sapatos dentro de casa, então é porque obviamente não quer o chão limpo."
Diz-se muitas vezes que os japoneses são extremamente limpos no lar, ou dentro de qualquer casa ou escritório, mas sujos e desarrumados lá fora. "Vá e veja uma estação ferroviária", disseram-me, "e você ficará horrorizado." Fui e fiquei horrorizado; horrorizado pelo asseio do local. Embora já estivesse brilhando, tudo era constantemente limpo, encerado e escovado. O chão estava mais asseado do que muitas mesas de restaurante que tenho encontrado na Europa.
A única atenuante para esta desoladora limpeza e arrumação é que ela sempre é acompanhada por um sentido de beleza. Os japoneses têm um forte senso de estética: eles embelezam, adornam e decoram todas as coisas que utilizam. Um sanduíche, no Japão, não é apenas um sanduíche, é uma obra de arte. É cortado em formato artístico — pode ser circular, octogonal ou em forma de estrela — e decorado com tomate, couve, repolho e picles. E em geral é completado por uma bandeira hasteada no alto ou outra decoração qualquer. Cada prato é preparado tanto para os olhos como para o paladar. Cada pacote minúsculo, da mais humilde loja, irradia um fascínio original ou, pelo menos, tenta refletir orgulho: olhem como isto é bem-feito! Todos os motoristas de táxi têm uma pequena jarra na sua frente, com uma linda e fresca flor vermelho-escura ou branca como a neve. Uma vez observei um homem ao balcão de um restaurante de peixe. O sushi e o sashimi — o famoso peixe cru do Japão — vêm nas mais diversas formas e cortes; e leva cerca de dez anos para um homem poder trabalhar nos balcões dos estabelecimentos de primeira classe. O homem que eu observava não se aborrecia com o seu trabalho um tanto monótono: cada minuto o divertia mais, e ele se enchia de orgulho com aquilo. Michelangelo admiraria uma escultura fresca da Madonna com menos orgulho do que esse cozinheiro colocando uma peça escultural de peixe cru no seu prato.
Os japoneses são incapazes de tocar qualquer coisa sem a embelezarem, dando-lhe uma forma agradável à vista. Uma noite, caminhava eu por um dos bairros pobres dos subúrbios de Tóquio quando vi um montão de lixo fora do pátio de uma fábrica. Era uma imensa montanha de lixo, mas ele não tinha sido atirado ali para fora de qualquer maneira; todas as caixas estavam empilhadas numa graciosa e um tanto exótica pirâmide, enquanto o lixo solto fora colocado no alto como uma decoração artística e pitoresca. Alguém deve ter gasto um tempo considerável a converter aquele montão de lixo quase em obra de arte.
O esforço desmedido pela beleza explica uma série de coisas. Eu disse que, devagar, os psiquiatras estão ganhando terreno no Japão; mesmo assim, a neurose caminha mais lentamente. Os japoneses têm orgulho do seu trabalho; eles criam — não importa o quê, mas criam todo o tempo. Participam. Nada é aceito tal como vem; nada é atirado a você. A frase "Pouco me importa" não existe no Japão; eles estão sempre preocupados. Todas as empregadas chegam cedo, saem tarde e sentem orgulho da beleza e do conforto da casa que elas têm que cuidar. Se há qualquer assunto especial a tratar em horas de serviço, ela voltará, quando ninguém a espera, para compensar as horas que faltou, e você terá que pensar como recompensá-la, porque ela recusará categoricamente qualquer dinheiro extra e ficará profundamente ofendida pela sua oferta.
Um sanduíche, portanto, não é apenas um sanduíche: é um meio de auto-expressão. Um monturo de lixo não é apenas uma montanha de lixo: é uma escultura abstrata e modernista que pode ser chamada de A poesia do desperdício urbano. Tóquio não é somente a maior cidade do mundo; é a mais feia como também a mais bela. O sentido de beleza do seu povo é esmagador. Mesmo naquela imensa aglomeração de homens e concreto, este sentido de beleza faz com que um homem continue sendo um homem, transforma cada ocupação — até a mais ociosa — num trabalho valioso, tornando-o um pouco melhor. Este sentido de beleza faz da vida uma experiência agradável, afastando-a de uma imagem de escravatura conduzida por monótonos robôs. Transforma cada varredor num artista; faz com que cada japonês seja um criador. E isso deixa pouco campo para as neuroses.
O estilo do esnobismo japonês
O esnobismo à ocidental é uma terna flor no Japão, uma nova flora. Como se sabe, tudo o que é ocidental chegou tarde ao Japão. Eles tiveram que principiar do nada. Mas, até nisso, provaram de novo ser excelentes alunos, fazendo notáveis progressos.
O "milagre do esnobismo" é quase tão glorioso como o "milagre econômico"; não tão sutil, contudo. Teve seu período áureo em meados de 1950, e, consideradas as coisas, assemelha-se mais à forma americana não refinada do que à variedade britânica, levemente mais sofisticada.
Quando posta na sua perspectiva histórica e sociológica, a façanha do esnobismo japonês é notável. Há menos de cem anos, foi sufocada a última revolta dos samurais, que, como classe dominante, foi abatida. Metade dos membros dessa classe escapou-se apressadamente para o comércio e a indústria; o resto hesitou, vivendo do passado. A sua moral e a sua influência sobreviveram, contudo, à perda de poder. No mundo em que viviam, a espada era a única ferramenta nobre sob o sol, e tudo o que dissesse respeito ao comércio não merecia a mínima consideração. O verdadeiro samurai recusava aprender aritmética porque a aritmética cheirava a negócio; era orgulhoso da sua ignorância e estupidez, como muitas classes dominantes em todo o mundo. Saigo, o chefe da revolta e um esplêndido caráter, foi decapitado no campo de batalha a pedido próprio, mas a sua estátua (e a do seu cão) ainda continua ornamentando Tóquio. A introdução do recrutamento foi o último sopro que (com as suas implicações de um camponês poder tornar-se um soldado e lutar como um membro da antiga classe guerreira) ficou da revolução. Talvez fosse aceitável a idéia de que o camponês pudesse também morrer e ser feito em pedaços. Mas a idéia de ele poder usar uma espada era intolerável.
Foi esta a atitude dos samurais para com os camponeses. Os comerciantes pertenciam a uma classe inferior, abaixo dos camponeses. A idéia de que esta classe, a mais baixa entre as mais baixas, pudesse ascender um dia a uma posição dirigente, acima da dos camponeses — mais alta do que a dos samurais —, parecia ridícula. Que eles viessem um dia a brandir a nova espada do Japão — a arma econômica — significava virar tudo de cabeça para baixo.
Mas os japoneses aprenderam depressa. Enquanto as inundações ameaçavam as suas casas, eles não fugiam: mergulhavam de cabeça na corrente ameaçadora e aprendiam, primeiro do que tudo, a nadar.
Não há, no Japão, o name-dropping¹ dos ingleses.
1 Sem tradução: refere-se aos que, para se projetarem, citam celebridades. (N. do T.)
Os japoneses não querem ser orgulhosos dos seus amigos ou conhecidos: querem orgulhar-se de si próprios. Há pouca ostentação à maneira clássica do nouveau riche. Não há esnobismo aristocrático (os títulos têm sido abolidos; um beócio de alta linhagem é apenas um beócio vulgar). Nem mesmo o seu dinheiro os japoneses querem mostrar. Os magnatas mais influentes não têm tampouco grande fortuna pessoal no sentido americano da palavra. Terão todas as comodidades — casa, carro, motorista, viagens ao estrangeiro (como gente grande!), vida faustosa em caríssimos e ruinosos restaurantes e clubes noturnos —, mas não muito dinheiro próprio. O que os japoneses querem mostrar é a sua condição social; a sua posição, o seu poder.
O esnobismo japonês tem três saídas principais:
1) Na pré-história do novo estilo de esnobismo (isto é, há cerca de dez anos, no começo do boom), todas as coisas mudavam a um nível quase primitivo, precisamente como a classe média inglesa mais baixa fez no pós-guerra, quando as antenas de televisão eram um cobiçado símbolo de posição social. No Japão o povo falava dos três cês: carro, condicionador e cor. Carro significa carro; condicionador significa ar-condicionado; cor significa televisão em cores. Em outras palavras, é o que economistas sensatos chamam de artigos duráveis, fruição intoxicante desta idade tecnológica. Todos esses sonhos logo foram totalmente realizados, e — ainda durante esse período — os três velhos cês tiveram que ser substituídos pelos três novos cês: casa de campo, calor central e concubina.
Casa de campo significa uma cabana ou bangalô no campo — um esnobismo (ou necessidade?) no mundo anglo-saxônico, na Escandinávia (a stuga) e mesmo na União Soviética (a datcha), tal como no Japão. O aquecimento central chegou, surpreendentemente, após o ar-condicionado, mas não tardou muito. A concubina não é idéia nova no Japão, mas símbolo absoluto de posição social. As bases espirituais do esnobismo japonês — de todos os esnobismos — não são um protesto de "gozar isto", mas o grito de guerra: "Eu posso proporcionar isto". Se um homem pode proporcionar a si próprio ser dono e senhor de uma verdadeira gueixa moderna e mantê-la numa casa em grande estilo, ele então venceu. Assim, os velhos e decrépitos magnatas visitam as suas gueixas com espantosa freqüência. Tudo o que eles querem é que, uma vez na cama, as moças deixem-nos sozinhos e lhes permitam ler em paz as páginas financeiras do Mainichi Shimbum. Muitos deles preferem dormir em suas casas, nas suas próprias camas. Mas as mulheres sempre foram mais esnobes e mais ambiciosas do que os homens. Suas esposas pescam as gueixas e insistem para que os pobres maridos durmam com elas, já que são tão dispendiosas. Eles põem-se, pois, ao fresco e vão dormir (ou acordar) para outro lado.
2) A idade da pedra do esnobismo passou. A produção em série de carros para o mercado interno principiou apenas em 1965 (só em 1967 o negócio dos carros usados começou de verdade). Nos primeiros tempos houve a campanha do "Meu carro". O slogan "Meu carro" (em inglês) foi martelado no país com tanta ferocidade e insistência que se tornou parte integrante do idioma japonês. Agora todo mundo — o que compreende todos os que um dia poderão — tem o seu carro. Assim, qual é o próximo degrau? Como os japoneses não produzem carros grandes, pretos, com motorista, os magnatas têm mesmo de contentar-se com os veículos menores. Alguns, mas poucos, são transportados em grandes carros americanos, ou alemães, caríssimos, ou até nos modelos ingleses, mais dispendiosos ainda. Os carros estrangeiros têm imensa procura. Não precisam ser bons, mas caros.
Os automóveis têm um poder de fascínio em toda parte, mas, tão logo as pessoas podem adquirir um, ele deixa de ser tão esnobe. Os japoneses realizados agora almejam uma coisa única, que os outros não tenham. E isso pode ser um Rolls-Royce, um trinchante elétrico ou um descascador de batatas automático, de função duvidosa. Enquanto você for a única pessoa a possuir isso na vizinhança, pouco importa o que isso venha a ser ou para que deva prestar.
Mas a maior façanha é pertencer a um clube — especialmente um clube de golfe. É o pináculo da glória. Uma vez membro de um importante clube de golfe, você adquiriu — esnobisticamente falando — a salvação. Clubes da alta não apenas trazem um prestígio tremendo, como são ainda muito dispendiosos. Somente a admissão pode custar cinco mil libras (doze mil dólares). Consequentemente, será sempre a firma a pagar a taxa, e todo mundo sabe disso. A qualidade de associado apenas significa: "Olhe, eu sou suficientemente importante para estar no clube". Algumas vezes ele se torna um verdadeiro doente do golfe; outras, detesta tanto o jogo como a gueixa pescada pela sua cara-metade detesta fazer amor. Na verdade, ele pode ser um e o mesmo homem, e, nesse caso, a vida — com golfe e gueixas — deve representar um interminável sofrimento para ele. Mas cumprirá o seu dever: fará o estudo do jogo e praticará o golfe com a sincera devoção com que os japoneses se dedicam a uma tarefa. Ele sabe que a vida tem os seus lados maus.
Quando um jovem ambicioso é mandado, vamos dizer, para Rangum, dizem-lhe: "Bem, é quase o mesmo que você ir para o exílio, mas vamos inscrevê-lo lá no melhor clube de golfe. E, se fizer as coisas realmente bem, então, no seu regresso, podemos — sim: podemos — inscrevê-lo num dos nossos clubes de golfe".
Ao ouvir isto, ele ficará disposto não só a ir para Rangum, como também para o inferno.
Se lhe é permitido, no regresso, entrar para um clube de golfe, a firma escolherá o clube apropriado e pagará as despesas de inscrição, bem como as cotas. Há clubes especiais para empregados mais novos, com lugares médios, chefes de seção, gerentes, diretores de serviços, vice-presidentes e presidentes — e certamente também adequados à grandeza comercial das companhias. Na América, quando um homem marca passo na idade, lugar e salário, muda de casa e de vizinhança. No Japão isso é impossível; no Japão ele muda de clube de golfe.
3) O último progresso é o esnobismo ocidental. Tenho muito prazer em dizer que a Grã-Bretanha — sempre o mimo dos esnobes em todo o mundo — não tem perdido nada das suas virtudes. Todas as coisas inglesas são ambicionadas e dispendiosas. Os tecidos ingleses muitas vezes não são melhores do que os japoneses, mas, desde que custem duas vezes mais, é o que os japoneses querem. Perfumes e cosméticos devem vir da França, os vestidos das senhoras devem ser desenhados quer na França, quer na Itália. Acrescente-se, contudo, que o quimono mantém a sua posição com maior sucesso do que as outras tradições japonesas. Isso acontece menos por ser belo — como certamente é — do que pelo seu custo, muito mais elevado do que o dos vestidos ocidentais. Umas centenas de libras não são nada de extraordinário para um quimono de soirée, mas um costureiro ocidental tem que oferecer um trabalho extraordinário para obter preço correspondente.
Em geral, o esnobismo japonês trabalha contra os valores e os costumes tradicionais. Todos se vestem (para o trabalho) com roupas ocidentais; a juventude come menos arroz e mais batatas; menos peixe e mais carne. A pizza compete com o peixe cru, e o uísque está batendo o saque (catorze libras a garrafa); os coquetéis substituem as festas de gueixas. Os hambúrgueres vieram para ficar, e os cachorros-quentes há muito que sacodem as orelhas.
Você deve também ter um hobby. Não interessa qual. Apenas um hobby — de preferência com um toque ocidental. Ensinei um grupo de velhos vendedores de alimentos congelados a jogar o tiddlywinks (completamente desconhecido antes) e ganhei a sua gratidão eterna. Você deve tentar misturar no japonês tantas palavras estrangeiras quanto souber. E deve comer pão francês. O enorme pão francês tem um extraordinário valor esnobe; você vê mais pães franceses ali do que na própria França. E, certamente, queijo. O queijo foi uma descoberta do pós-guerra no Japão. A palavra nem sequer existia antes, e eles ainda lhe chamam cheesu.¹ Se você é alguém, se você realmente adora cheesu, notabiliza-se.
Comi bem no Japão. A minha posição social era considerável. Não tinha Rolls-Royce; nem descascador de batatas elétrico. Mas, meu Deus, como eu gosto de queijo!
1 Corruptela do inglês cheese. (N. do T.)
Senhoras e senhores
O homem não vive só por esnobismo, embora algumas vezes pareça ser assim. A influência britânica não consiste apenas na adoração dos japoneses pelo uísque escocês. Na verdade, nuns poucos casos a influência inglesa pode ser tomada por outra coisa. Ocasionalmente uma atitude pró-britânica nada tem a ver com o gosto pelas coisas britânicas; é simplesmente uma manifestação de desprezo pela tendência pró-americana. De um modo geral, o inglês da Inglaterra é preferido no Japão; não porque seja mais bonito, mas porque não é americano.
O caráter japonês tem fortes traços tradicionais, mas é também um mosaico. Os japoneses saíram para aprender, para absorver, para se embeberem de métodos estrangeiros, formas, técnicas, experiências. Assim, há uma pergunta a fazer: até onde os japoneses são britânicos? Até onde são americanos? Até onde são chineses? Até onde são franceses?
Até onde são britânicos?
São muito britânicos, na verdade. Há umas tantas semelhanças evidentes e que têm sido apontadas muitas vezes. O Japão é uma pequena ilha superpovoada do leste da Ásia; a Grã-Bretanha é uma pequena ilha superpovoada da Europa ocidental. Ambos são pedaços dos seus respectivos continentes em alguns aspectos; em outros, estão muito longe disso. A diligência do Japão para constituir um Mercado Comum Asiático podia facilmente ter sido rejeitada. São ambas as nações mais ricas e mais industrializadas das suas regiões (a posição do Japão foi confirmada ultimamente, enquanto a britânica se tornou mais dúbia). Ambos os povos foram além de suas fronteiras para dominar outras nações e ocupar-lhes as terras. (Enquanto o império britânico se vai reduzindo, o japonês não pode sequer encolher.) Ambos os povos primam pelas boas maneiras e veneram os seus antepassados; os ingleses fazem-no com maior sutileza, mas não menos devotadamente do que os japoneses1. Ambas as nações têm uma longa afinidade com o mar e ambas, falando em termos globais, têm levado a água ao seu moinho.
1 "O culto aos antepassados (na Grã-Bretanha) te/n tomado o aspecto de reverência pelas velhas casas e igrejas, pelas mais surpreendentes cunhagens, pelos mais estranhos pesos e medidas, regimentos da Guarda, carros antigos, críquete, acima de tudo a hereditariedade da monarquia, ele." The rise of the meritocracy, por Michael Young, 'Thames and Hudson. (N. do A.)
Ambos os países não são apenas monarquias, mas monarquistas devotos, quase religiosos. Quando o Rei Faruk do Egito sentiu o trono oscilar em 1950, observou: "Daqui a meio século, a partir de agora, haverá apenas cinco reis no mundo: os reis de paus, ouros, copas e espadas, e o rei da Inglaterra". Mas Faruk cometeu um erro: esqueceu-se do imperador do Japão. O imperador do Japão foi destituído da sua posição semi-divina em 1945; a rainha da Inglaterra conservou a sua.
Também as índoles dos ingleses e dos japoneses têm muito em comum. Ambos são povos reservados e um tanto tímidos, envergonhados dos seus sentimentos, sempre cuidadosamente disfarçados.
A habilidade japonesa em criar confunde-se e rivaliza com a britânica. A confusão que os japoneses podem causar com a sua repulsa a ter endereços postais exatos é fenomenal. À exceção de Kyoto e Sapporo (em Hokkaido), eles não têm nomes nas ruas. Nomeiam os distritos, edifícios e interseções (como se em Londres tivéssemos Selfridges e Oxford Circus, mas não Oxford Street). Eles são absolutamente sentimentais acerca desta repulsa: é a sua maneira, é a sua tradição; os ingleses também se desfizeram em lágrimas quando pensaram, num momento horrível, que tinham que abandonar a escala Fahrenheit, facilmente aceita como o pior sistema do mundo, inventado por um prussiano oriental. Como resultado, há mais carteiros em manicômios no Japão do que em qualquer outra parte do mundo: a doença profissional dos carteiros japoneses é conhecida pelo desequilíbrio dos nervos e por ataques de gritaria. (Para acelerar o desequilíbrio, as cartas japonesas são dirigidas ao Fulano San, correspondendo a senhor, senhora e senhorita.) Disse-me alguém que, quando um americano protesta contra esta exasperante falta de nomes nas ruas, um cavalheiro japonês replica um tanto divertido e conservador: "Oh, vocês, americanos... vocês querem nomes para todas as coisas".
Mesmo uma declaração japonesa, em certas ocasiões, rivaliza com a britânica. Antes da guerra, tivemos notáveis "incidentes". Um incidente — de acordo com o Dicionário de Oxford — é um "acontecimento subordinado". O incidente da Mandchúria — aquele acontecimento subordinado, da Mandchúria — alterou a história do Japão. Ou o da famosa irradiação sobre a rendição. O Japão tinha sido derrotado na terra, no mar e no ar; o país havia sido mais devastado pelos bombardeios do que a Alemanha, mesmo antes de as bombas atômicas terem sido jogadas: eles estavam vencidos; então a União Soviética declarou guerra ao Japão. A notícia da rendição foi esta: "A situação bélica desenvolveu-se não necessariamente para vantagem do Japão".
(De certa maneira esta declaração foi mais ao reverso da inglesa. Eles sempre descreveram os seus próprios reveses, derrotas e desastres não somente com sinceridade, como ainda com prazer.)
As relações entre a Grã-Bretanha e o Japão são boas. A semana inglesa e a Exposição¹ ajudaram muito. Ambos querem negociar, e, embora as greves na Inglaterra e as demoras nos carregamentos causem admiração aos japoneses — eles simplesmente não compreendem esta espécie de coisas —, não há dúvidas maiores entre eles.
1 A Expo 70. (N. do E.)
Exceto quanto ao problema dos cães. Alguns ingleses lamentam que os cães sejam tão maltratados no Japão. Não houve, até agora, qualquer idéia de declarar guerra ao Japão com o fim de libertar os cães oprimidos, mas, considerando o espalhafato que os amantes de cães podem criar (só batido pelo da Sunday Observance Society), alguma coisa poderia ter acontecido. Não compreendo absolutamente a razão de tanto barulho. Vi que os cães japoneses eram tratados amavelmente, bem alimentados, e estragados com mimos. Soube então que as lamentações inglesas não eram acerca dos cães japoneses. Como os japoneses tratavam os seus próprios cães (britânicos) é que era o problema! A gritaria era acerca dos cães ingleses exportados para o Japão: eram súditos ingleses, protegidos pela Coroa, e, na verdade, a embaixada inglesa estava profundamente envolvida na crise dos cães. Um diplomata altamente colocado disse-me que as relações Inglaterra-Japão estavam muito piores do que na época da queda de Cingapura. Não somente esses cães ingleses tinham sido insuficientemente respeitados, como cruzados com vira-latas. Compreendi, então. Era o puritanismo britânico a falar: os cães — mesmo cães vendidos para procriação — não deveriam copular tão frequentemente: é imoral. A voz do puritanismo foi misturada com a voz do verdadeiro humanitarismo britânico. A Grã-Bretanha, o país onde a vida sexual foi praticamente desconhecida até 1955, tornou-se a capital mundial do sexo. Muito bem. Isso tem que ser aceito com resignação mesmo pelos amantes dos cães. Mas se os seres humanos são suficientemente tolos para ter mais relações sexuais do que a dignidade britânica permite, se alguns deles procuram relações sexuais por prazer, isso é assunto pessoal. Não faz sentido que os pobres e inocentes animais fiquem expostos aos mesmos horrores.
Até onde são americanos?
O resto do mundo tem uma imagem estereotipada dos americanos, com base nos anos 20: o homem de negócios muito alto, tragando enorme charuto, contratando e despedindo gente numa voz nasal, gritante, esbanjando dinheiro e usando sempre chapéu dentro de casa.
Mas os americanos que chegaram ao Japão em 1945 eram bem diferentes. Eram jovens, duros, modernos e eficientes; mestres em técnicas evoluídas e ótimos administradores. Foram recebidos por um homem que amava o Japão mas mantinha uma atitude imperiosa e avuncular a seu respeito. Sabia o que era melhor para o seu país e deu ordens para agirem adequadamente.
Um povo que invade um país geralmente não é amado depois da rendição incondicional. Os americanos esperam sempre amor e nunca o conseguem; neste caso particular eles esperaram ódio e hostilidades, mas dessa vez foram amados. E respeitados; respeitados como americanos; respeitados como conquistadores.
Os japoneses estavam ansiosos por aprender. Queriam conhecer, o mais depressa possível, a forma de ser vitoriosos e importantes.
O mundo ficou impressionado; os americanos, satisfeitos. A América é a primeira grande potência na história que deseja ser amada, e o foi, pela primeira vez desde Colombo.
Os americanos passaram então a tratar os japoneses generosamente, e esperaram gratidão. Mas se você dá motivo a qualquer homem — ou grupo — para gratidão, ele se ressentirá disso, e o seu ressentimento resultará em forte reação. Desta vez os japoneses não foram exceção à regra: o ressentimento cresceu proporcionalmente à nobreza de coração dos americanos, e, em 1952, no fim da ocupação, as relações entre americanos e japoneses estavam muito más. Atingiram a pior fase dois anos mais tarde, quando os americanos lançaram uma bomba nuclear em Biquini, contaminando dessa forma grande número de pescadores japoneses. Compreensivelmente, os japoneses foram até mais sensíveis nesse ponto do que outras nações — além disso, ninguém gosta muito de ter bombas nucleares lançadas sobre os seus pescadores e o peixe que vai comer. A chama do antiamericanismo foi atiçada pelos comunistas e nacionalistas, mas apagou-se depressa; e agora as relações entre os dois países são outra vez muito boas, apenas com ligeiros e inevitáveis probleminhas ocasionais.
Superficialmente o Japão parece estar totalmente americanizado: os automóveis, os coquetéis, o bourbon on the rocks, a goma de mascar e a Coca-Cola, os hambúrgueres e os cheeseburgers estão muito em evidência. O Japão — como disse — produz mais tipos de sorvete do que os Estados Unidos. Os japoneses aprenderam também coisas menos conspícuas e muito mais importantes, como a administração dos negócios, a eficiência e a técnica norte-americanas.
O reanimado amor comercial entre as duas nações é hoje mais sóbrio e criterioso do que nunca. É agora um casamento experimentado, após já terem vivido um bom bocado juntos. Têm algumas dificuldades com Okinawa e o Tratado de Segurança, mas mesmo esses problemas se assemelham a pequenas brigas de amor.
O Sr. Nixon zelava pelas boas relações com os japoneses, mas agora são os americanos que têm certa aversão pelos japoneses.
Isso se deve aos negócios — e negócios, afinal, são sempre um assunto muito mais sério do que soberania ou bases nucleares. Primeiro, os americanos lamentam que os japoneses invadam os seus mercados com tecidos baratos (ao que os japoneses replicam que, no ano da depressão, os lucros da indústria têxtil americana orçavam pelos vinte e um por cento, não sendo o problema assim tão exasperante). Outra reclamação é que o Japão tenta superproteger a sua moeda (uma das mais fortes do mundo, protegida como se fosse uma virgem de dezesseis anos), e, pior ainda, os seus mercados. Os automóveis japoneses, por exemplo, vendem-se em número colossal em todo o mundo, mas o seu mercado interno é tão fortemente protegido que os carros estrangeiros, embora muito cobiçados, contam-se pelos dedos. Os japoneses alegam que a sua indústria automobilística é nova e necessita de proteção. Considerando que é a segunda maior indústria de automóveis do mundo, esse ar de flor que necessita de proteção não leva muitos a regá-la. As verdadeiras razões são que (1) o Japão quer tornar-se o primeiro país do mundo na produção de automóveis e (2) que os seus fabricantes de automóveis são muito mais felizes sem a concorrência estrangeira. Os americanos pressionam e, pacientemente, pedem a libertação da política comercial japonesa; os japoneses fazem concessões quando devem, mas a sua indústria de automóveis não está disposta a cooperar. Está — uma verdade aterradora — na natureza de todas as indústrias, seja onde for, elas preferirem os grandes lucros aos pequenos. Qualquer político, diz o industrial, que cede a soberania sobre esta ou aquela parcela do país é um estadista sábio, amigo do compromisso inteligente; mas o político que tenta fazer baixar os lucros da indústria do seu próprio país é um autêntico antipatriota, ou, digamos a verdade nua e crua: um completo traidor.
A admiração pela América tornou-se muito maior desde a viagem à Lua. Ninguém mais poderia fazer o que os americanos fizeram: ninguém mais poderá ser o primeiro, de novo, a pisar a Lua. Esse prêmio já se foi! Mas os japoneses organizaram os primeiros jogos olímpicos na Ásia; organizaram a primeira exposição mundial na Ásia. Estou certo de que eles decidiram ser — na hora devida — os primeiros asiáticos na Lua.
Até onde são chineses?
As relações entre japoneses e chineses formam dois lados de um triângulo, sendo a América o terceiro. A América precisa de um protege oriental. A China de Mao parou de agir nessa área e o Japão teve de substituí-la. Os Estados Unidos são responsáveis pela defesa do Japão e há alguns pontos sobre os quais as grandes potências são mais sensíveis do que outros. Que o Japão — o enfant gâté do Oriente — deva reconhecer a China, o filho pródigo, um verdadeiro cabeça-dura, está fora de questão. Mas o Japão quer negociar com a China. Que dilema! Somente a ingenuidade japonesa poderia resolvê-lo: o Japão não reconhece a China (reconhece a Tailândia), mas negocia com todos: China, Tailândia e União Soviética.
O comércio com a China é um pouco menos intenso do que foi anteriormente. O desaparecimento de um jornalista fez com que as relações com a China ficassem tensas; os japoneses foram surpreendidos com espetáculos dos guardas vermelhos da revolução cultural. E, certamente, os chineses desconfiam do Japão: os crimes dos anos 30 não podem ser facilmente esquecidos. Os japoneses compreendem o pensamento oriental melhor do que qualquer de nós, mas eles estão ainda confundidos pela paranóia. Não conseguem compreender que a tão falada revolução cultural tivesse sido uma manobra de política interna. Na Holanda, e mesmo no Japão, a efervescência das coisas teria sido reduzida a novas eleições gerais. Na Alemanha nazista, teria havido um plebiscito com 99,8% de votos para o governo. Mas as técnicas se aperfeiçoam e Mao quis provar ao mundo que a China pode produzir uma ou duas novas invenções. A revolução cultural, a seus olhos, foi um plebiscito ao qual cem por cento responderam "sim".
Mas as relações dos chineses com os japoneses remontam, certamente, a muito tempo antes do descobrimento da América. No século VII, os japoneses, sob Fujiwara Kamatari, já imitavam o Império T'ang; absorveram da China os ideogramas, a maneira de viver, tudo o que puderam. Os chineses desdenham muito dos japoneses: "Eles aprenderam tudo de nós", dizem. Os japoneses desdenham igualmente dos chineses. "Eles não aprenderam nada depois do século VII." O fato de se desdenharem mutuamente sempre tem sido uma base boa e segura para a amizade, particularmente quando — como neste caso — envolve um bocado de admiração e inveja recíprocas. Os chineses admiram a prosperidade dos japoneses e as suas indústrias avançadas; por outro lado, os japoneses deitam olhares de cobiça através do mar e ficam desejosos de ter as coisas que a China tem em abundância, mas que lhes falta completamente: poder político e influência.
Até onde são franceses?
Um amigo meu dirigia um pequeno, mas excelente, restaurante perto de Knightsbridge. Uma noite, um casal muito distinto entrou e, antes de pedir a refeição, perguntou onde eram os banheiros. À senhora mandaram para trás de uma pequena cortina ao canto do restaurante; ao cavalheiro, para sua admiração, indicaram que a seguisse. Quando ele voltou, fez o seguinte comentário: "Se a sua comida é tão francesa como os seus banheiros, este restaurante deve ser o melhor de Londres".
A este respeito a influência francesa é mais acentuada ainda no Japão.
Num restaurante estilo japonês, em Tóquio, perguntei a um amigo onde ficava o "Cavalheiros". Ele apontou para uma pequena porta, por onde entrei. Encontrei outros dois homens sentados lado a lado, a tratar sabe-se lá de quê, como se fosse regra reuniões em tais lugares. Subitamente a porta se abriu e entrou uma jovem linda e elegante. Fiquei um pouco embaraçado, mas ela não. Sem olhar sequer para nós três, lavou as mãos e saiu com indiferença. Enquanto eu lavava as mãos, entrou uma outra senhora e, sem prestar atenção aos homens ocupados, dirigiu-se para o toalete.
No regresso reprovei a informação do meu amigo japonês: — Eu lhe tinha perguntado onde era o "Cavalheiros".
— Perguntou mesmo — confirmou ele —, e eu indiquei onde era.
— Não era "Cavalheiros". Era "Senhoras"!
— Bom... — disse ele com um sorriso superior, como se pensasse: "Como são estúpidos estes gaijin!" — era "Senhoras" e "Cavalheiros".
Presumo que san esteja escrito nas portas dos japoneses. San — como o leitor deve lembrar — compreende senhor, senhora e senhorita.
Á VIDA
"Kanji" e "kana"
O japonês, ao contrário de muitas línguas orientais (entre elas o chinês), não é uma língua tonal. Contam-se histórias curiosas acerca de uma senhora muito bela e bem-educada que, ao tentar falar numa língua tonal e pretendendo dizer "Morning dew", pronunciou uma frase tão ordinária que até um sargento-instrutor inglês não empregaria sem corar.
Fiquei deveras confuso com a significação da "tonalidade" enquanto investigava os segredos do japonês. Encontrei uma bonita jovem chinesa em Tóquio, uma tal Srta. Wong, que me disse: — Mas é a coisa mais fácil do mundo. Vou já lhe explicar.
Ela o fez. Não me lembro de todas as palavras, mas a explicação foi algo parecida com isto:
— Vamos usar a palavra "wong", por exemplo.
Como não podia sugerir qualquer outra palavra chinesa, acedi, dizendo: — Pois seja essa.
— Wong, pronunciado assim, desta maneira, significa tambor.
— Sim — concordei.
— E quer dizer também tímpano — acrescentou ela com um aflitivo amor pela precisão.
— Sim. Tambor. Ou tímpano.
— Mas, pronunciado desta maneira: wong — e ela pronunciou-o, ao meu ouvido, exatamente como o primeiro wong — significa borboleta.
— Estou vendo — disse eu vagamente.
— Se você disser wong — de novo exatamente o mesmo — significa: subir a montanha, ofegante. Wong, por outro lado, significa colheita de outono. Quem vai confundir isto com wong, que significa emissão do boletim meteorológico duas vezes ao dia?
— Quem, realmente? — perguntei, tentando dar um tom de ironia que contrabalançasse com tanta surpresa.
Como ela tivesse se detido nesse ponto, eu lhe disse: — E é também o seu nome.
— O meu nome? — gritou ela, espantada. — O que é que isso tem a ver com meu nome? O meu nome é Wong.
Não há problemas com o japonês! Para os ouvidos europeus é idioma normal, agradável e bem sonante, assemelhando-se vagamente ao espanhol ou português. Uma língua rica, ou difícil, mas não incompreensível.
A verdadeira confusão principia com a escrita. Os caracteres japoneses são belos, pitorescos e exóticos. E isso é tudo o que uma pessoa pode dizer a seu favor. Por outro lado, a sua escrita é a mais complicada, mais embaraçosa e mais pretensiosa já inventada pelo homem.
Foi no século VIII que os japoneses sentiram a necessidade de um alfabeto. Seguindo um velho hábito pediram-no emprestado a outros. Para seu infortúnio esses "outros" foram os seus vizinhos mais próximos, os chineses. A escrita chinesa é baseada num princípio simples e infantil, que data da Idade da Pedra: cada palavra é representada por um ideograma especial. A Antiguidade produziu duas engenhosas invenções que mudaram o destino da humanidade: uma foi o alfabeto — escrevendo sons em vez de palavras. Foi possível escrever cada palavra em qualquer língua com cerca de duas dúzias de sinais — e a outra a roda. Para uma civilização industrial avançada, como a japonesa, produzir sem o alfabeto é quase tão anômalo como viver sem roda.
O número preciso de ideogramas conseguidos é incalculável, mas deve andar à volta dos cinco mil. Alguns deles consistem em um traço; o mais complicado, em vinte e três traços. Se você escreve mal algum traço, o significado se perde ou se altera. Uma criança pode levar semanas para aprender apenas um dos complicados caracteres; ou — posto o caso de outro modo — muitas delas seguirão pela vida afora sem mesmo tê-lo conhecido.
Durante alguns séculos após o VIII, as duas línguas, chinesa e japonesa, foram idênticas na escrita. Os dois povos podiam ler os livros e as cartas uns dos outros, mas nenhum era capaz de entender uma simples palavra do idioma falado pelo outro. (As relações entre o urdu e o hindi foram exatamente o oposto. No seu caso, a língua falada era idêntica, e eles podiam conversar sem a menor dificuldade, mas não podiam ler uma só palavra dos outros, porque o urdu usava o árabe, e o hindi o sânscrito, na escrita.)
A ideografia do chinês original é o kanji. Os japoneses, contudo, foram-na desenvolvendo à sua própria maneira e, em pouco tempo, as diferenças entre os dois idiomas começaram a revelar deficiências no kanji, quando usado pelos japoneses. Novas palavras entraram em uso; novas idéias e novas noções tiveram que ser anotadas e não havia kanji para designá-las. Havia também dificuldades com os nomes estrangeiros. Obviamente não havia kanji para Shakespeare, Praxíteles ou Hindenburg. Que fazer, portanto? Os japoneses ajudaram-se inventando dois silabários. A língua japonesa é bastante melodiosa, não permite a acumulação de consoantes. Cada sílaba consiste ou numa vogal simples ou na combinação de uma vogal e de uma consoante. Nenhuma palavra (ou nome) pode terminar com uma consoante, com exceção do n (lembremo-nos de san, por exemplo). Em conseqüência, a língua tem cerca de quatro dúzias de sílabas. Os eruditos inventaram a kana: katakana e hiragana, sinais que indicam todas as sílabas do idioma. O katakana é usado para anotar palavras estrangeiras e nomes, e para imprimir palavras em itálico, enquanto o hiragana é usado para as palavras japonesas e alguns nomes japoneses que não podem ser anotados em kanji. Ambos os silabários são muito velhos: o katakana foi inventado no século VIII, o hiragana no século IX. Há uma história interessante ligada ao hiragana. Foi criado por um santo budista, chamado Kobo Daishi. Escreveu um pequeno e belo poema usando de uma vez só as sílabas hiragana — mas não repetindo nunca qualquer uma delas. A tradução do seu poema hiragana é esta: "Tudo é transitório neste mundo efêmero. Deixem-me fugir das suas ilusões e vaidades"¹.
1 Infant japanese, por Mashiro Watanabe e Kei Nagashima, Yohan Publications. (N. do A.)
Nos velhos tempos, podia-se usar qualquer quantidade de ideogramas kanji, e os grandes escritores, para mostrar a sua imensa sabedoria, utilizavam sempre os ideogramas mais complicados. O principal parecia ser não que os outros pudessem compreender, mas que ficassem impressionados pela erudição dos autores. Não obstante, logo os escritores reconsideraram isso e passaram a acrescentar, no mais complicado kanji, uma explicação do seu significado, em letra menor, e num quarto sistema chamado funigara. Um filólogo da geração passada observou: "Um sistema de escrita que é uma combinação de três sistemas e que necessita ainda de um quarto para explicá-los é, sem dúvida, o pior do mundo".
Quatro sistemas parecem já ser um bocado. Mas não o são. Há ideogramas antigos que só são compreendidos por especialistas. Enquanto caminhava pelo jardim de um templo de Kyoto, com um aluno extraordinariamente inteligente da universidade local, perguntei-lhe o significado de determinada inscrição. O moço olhou para ela e disse: "Não faço a mínima idéia. É escrita à moda antiga". A verdade é que os hieróglifos egípcios são uma forma simples de registrar os pensamentos de alguém, em comparação com a escrita japonesa, que tem quatro alfabetos, na teoria, e nenhum na prática.
Os japoneses não ignoraram essas desvantagens e, em 1948, instituíram reformas para simplificar a escrita. Optaram por dois grupos simplificados de ideogramas: foram escolhidos oitocentos e oitenta e um, não para os mais cultos, mas para a maior camada da população, que deixara de ir à escola aos dezesseis anos. Livros simples, contos, romances, revistas femininas, uma vasta literatura é impressa mais nesse kanji selecionado do que em kana.
Isto, contudo, não foi o suficiente para um vocabulário adequado, de modo que se pensou num segundo ajuste. Foi escolhido outro grupo de mil oitocentos e cinqüenta ideogramas (incluindo os oitocentos e oitenta e um) para os jornais, livros e literatura geral; e agora esses mil oitocentos e cinqüenta ideogramas são quase universalmente usados. Houve uma grande controvérsia lingüística: algumas pessoas diziam que as ideografias essenciais eram rejeitadas, enquanto as estúpidas e inúteis se mantinham. Mas é como uma antologia: a escolha feita por um homem é exclusivamente dele, e uma pessoa pode discutir até o dia do juízo final a razão de um poema ter sido incluído enquanto outro foi posto de lado. Quaisquer que tenham sido os méritos da seleção, somente esses mil oitocentos e cinqüenta kanji são usados nas publicações modernas. Isto, com o kana, significa muito mais do que mil oitocentas e cinqüenta palavras. Porque — para complicar o seu sistema um pouco mais — os japoneses têm combinações de dois ou de três ideogramas.
Um kanji pode significar uma coisa; outro, uma segunda coisa, mas os dois juntos significam uma terceira coisa. Por exemplo: um sinal significa estrada; um outro, linha de irem; os dois juntos, estratégia.
As terríveis conseqüências deste sistema são óbvias:
1) Uma criança japonesa de cerca de onze anos é obrigada, para aprender a ler e escrever bem, a um terrível dispêndio de energia e habilidade que, num mundo verdadeiramente competitivo, onde os cérebros se tornam o maior tesouro, o Japão não poderá esbanjar indefinidamente.
2) Ninguém, literalmente ninguém, conhece todos os ideogramas. Os mestres podem rondar bastante a perfeição, mas nunca poderão alcançá-la. Na outra extremidade da escala há milhões que se perdem na confusão dos ideogramas — mesmo os oitocentos e oitenta e um —, fazendo traços errados, escrevendo uma coisa quando querem expressar outra. É uma questão de sinais, não de entonações, donde se conclui que o mesmo gênero de enganos pode ser cometido: você pode querer escrever "Morning dew" e produzir alguma incrível vulgaridade (ou pior!) em vez de pôr alguns traços errados. Há milhões de pessoas que não podem consultar devidamente a lista telefônica. Todos os japoneses são inscritos em katakana — uma forma razoável, mas invulgar —, e há gente sem conta que recebe telegramas urgentes mas não os pode ler.
Devo deixar claro que aprender os oitocentos e oitenta e um ou os mil oitocentos e cinqüenta ideogramas não quer dizer entender o mesmo número de sinais desconexos e complicados. Há um sistema lógico e inteligente (a maioria das vezes baseado em raízes — os mesmos sinais básicos aparecem em muitas palavras que são sinônimos vagos ou pertencem ao mesmo grupo), e, deste modo, quanto mais ideogramas uma pessoa sabe, mais facilidade tem para continuar. As raízes ajudam; mas — como sempre na escrita japonesa — elas podem também confundir uma pessoa e tornar-lhe a vida um pouco mais difícil. Porém, embora o sistema esteja assente na lógica, seu manejo é de uma dificuldade quase insuperável. O número de pessoas alfabetizadas no Japão é o mais elevado do mundo, na verdade. Não há quem seja completamente analfabeto; mas também não há quem seja completamente alfabetizado. Até os grandes mestres, como disse, são vencidos pelo estranho kanji, ou, mais ainda, até os mais sábios encontram palavras, na sua própria língua, que eles não podem ler. O que é inconcebível no caso de uma criança sueca ou espanhola, de inteligência média, acima dos sete anos. 3) Por causa dessas dificuldades, muito poucos estrangeiros aprendem japonês, já que uma língua isolada é condenada, pela sua escrita, ao isolamento eterno. Os escritores japoneses raramente podem comunicar-se com o resto do mundo. Poucos japoneses sabem inglês ou francês o suficiente para traduzir para essas línguas; e, se eu disser que o número de tradutores de primeira classe (os japoneses e os nascidos no estrangeiro) é de uma dúzia, estarei exagerando largamente. Só escritores-japoneses afortunados ou excepcionais — contam-se pelos dedos — podem falar para o mundo; os demais são condenados ao silêncio fora do seu próprio país.
A pergunta surge: por que é que eles não mandam o sistema para o lixo e introduzem qualquer outra coisa? Deveriam, antes de tudo, pensar no alfabeto latino dos ocidentais. É claro que custa muito deixar de lado a tradição. Nenhuma outra nação, contudo, está mais habituada a despojar-se de algo, para principiar tudo de novo. Além disso, não é a introdução do alfabeto latino que se defende, mas o uso do kana. O kana está intimamente ligado à língua japonesa, está atualmente em uso e — ao contrário do kanji — é de sua própria invenção, a verdadeira escrita japonesa. Não há nenhuma grande luta pela alteração; nenhum movimento para uma mudança imediata. Mas o problema está escondido e, mais cedo ou mais tarde, virá à luz. Os opositores a qualquer alteração têm reunido imensos argumentos — sendo o principal uma fiel ligação ao passado e a objeção natural a qualquer reforma radical.
1) Eles dizem que, se usassem somente o kana, ninguém aprenderia o kanji, e toda a literatura anterior à reforma ficaria por ler e morreria. Teria de ser reeditada no kana, por amor às novas gerações. A verdade, porém, é que as reformas em 1948 condenaram a velha literatura à morte parcial. Poucas pessoas sabem suficientemente o kanji para ler os clássicos; os mil oitocentos e cinqüenta sinais não são o bastante para ler um autor que usou quatro mil. O único processo de trazer os clássicos à vida, em qualquer caso, seria readaptá-los, usando os mil oitocentos e cinqüenta sinais ou usando o kana. (Houve, há anos, na Grécia, uma situação semelhante. Os gregos pretenderam por muito tempo que o grego moderno fosse realmente o grego antigo, com ligeiras variações; assim Sófocles, Eurípedes, Aristófanes, Platão, etc., nunca foram traduzidos para o grego moderno. O resultado foi que os clássicos gregos eram menos lidos na Grécia do que em qualquer outro lado. Logo que os reformadores se acalmaram e foi reconhecido que, para um grego moderno, aprender grego clássico era o mesmo que aprender uma nova língua, os clássicos foram traduzidos para o grego moderno — o mesmo que acontece com o kana —, e voltaram novamente à vida.)
No Japão, os velhos clássicos não foram adaptados, e se mantêm ilegíveis, exceto para uma devotada e dedicada minoria.
2) Diz-se também que haveria pouca vantagem nisso. Posso apenas mencionar um ou dois fatos que provam o contrário. Dificilmente alguém usa máquina de escrever no Japão. Uma máquina de escrever japonesa é apenas pouco menor que a antena telescópica do Jodrell Bank: parece mistura de computador com arma automática, sendo, porém, um pouco mais complexa do que ambos. A datilografia é pouco popular e tão pouco prática que, na maioria dos escritórios, as cartas e os documentos são ainda escritos a mão e então passados em xérox: isto na segunda metade do século XX, numa das mais avançadas e industrializadas cidades do mundo.
As máquinas de linotipo, por outro lado, são surpreendentemente pequenas, mas necessitam de um quase génio para trabalhar com elas. Ele usa ambas as mãos e opera em três ou quatro pedais, para compor os mil oitocentos e cinqüenta kanji de que necessita (e ele tem também o kana). E as provas têm de ser revistas quatro ou cinco vezes.
3) Os conservadores dizem que o kana empobrecerá o idioma. Mas o fato é que o enriquecerá. É o uso dos mil oitocentos e cinqüenta kanji que empobrece o japonês — uma língua muito rica e expressiva. Onde há dez sinônimos, apenas dois podem ser usados; as palavras mais raras têm de ser abandonadas e retiradas do uso cotidiano. O kana acabará com os disparates: todas as coisas poderão ser registradas em kana (como nos telegramas todas as coisas são escritas em kana), e todos poderão usar as palavras como bem lhes aprouver.
4) O argumento final é que o japonês tem muitos homófonos. Peguem a frase: "Hashi de tabemasu". Hashi significa "Eu como", e a frase toda significa "Eu como com pauzinhos". Mas também pode significar "Eu como sobre a ponte" e ainda "Eu como no canto do prato" (ou de qualquer coisa). Quando a frase é escrita, todas as dúvidas desaparecem: o próprio kanji esclarece tudo.
Admito que certos estudiosos japoneses levem uma vantagem sobre mim: eles sabem japonês. As homófonas são muito mais freqüentes do que no inglês e, embora poucos desses estudiosos japoneses saibam inglês, curvo-me a isso. Todavia, os homófonos existem no inglês, também, por isso o problema não nos é estranho. Em qualquer dos casos, quando um japonês fala ninguém sabe que kanji ele empregaria se escrevesse as suas palavras. O significado deve ser esclarecido pelo contexto.
Kana é um bom silabário; é puramente japonês (enquanto o kanji não é); tem mais do que um milhar de anos. Os coreanos desistiram cedo do kanji e passaram apenas a usar a sua própria versão de kana muito cedo, e os japoneses tiveram também de dar o mergulho. Nenhuma nação — certamente nenhuma nação industrial — pode desperdiçar onze anos da vida das suas crianças precisamente para aprenderem os dois erres. Nenhuma nação moderna pode correr o risco de que, após esses onze anos, a maioria das crianças — exceto as mais brilhantes — esteja pronta a dizer: "Gastei onze anos para aprender os ideogramas, mas posso bradar orgulhosamente que, depois de todo esse tempo, não sou capaz de ler nem de escrever".
"Nonsensu"
Você ouve o japonês e não entende uma única palavra. Você pode não ser finlandês ou árabe, mas, escutando estes dois idiomas, apanhará uma palavra ocasional aqui, outra acolá, palavras como democracia, futebol ou terrorista, e poderá concluir que eles estão talvez discutindo sobre democracia, futebol ou terrorismo. Nada disto poderá ocorrer se você ouvir um japonês: não apanhará uma só palavra da conversa. Ainda que saiba que o japonês é uma língua predatória como a inglesa: apanha palavras onde pode. É verdade que os puristas japoneses estão de braços erguidos contra a invasão das palavras estrangeiras. Mas onde estão os invasores?
A resposta é que os japoneses pegam as palavras e então as alteram, adaptando-as para as usar depois.
Como nenhuma palavra japonesa pode terminar numa consoante — eles não podem pronunciá-la precisamente dessa forma —, juntam uma vogal ao final de todas as palavras emprestadas. Queijo, como já mencionei, torna-se cheesu; o meu nome, em pouco tempo, tornou-se Mikeshu; e nonsense — uma palavra completamente naturalizada japonesa — tornou-se nonsensu.
Como em nonsense as primeiras duas sílabas terminam em n, são pronunciáveis. Quando uma sílaba de uma palavra estrangeira termina numa consoante, é inserida uma vogal: desk¹ tornou-se desuku. Eles não podem pronunciar os ll (dizem rr em vez de ll). Londres, em japonês, tornou-se Rondres. (Os chineses fazem exatamente o contrário. Quando um chinês fala inglês, ele diz lice em vez de rice², um japonês falará de fright querendo dizer flight3. Hotel, em japonês, passou para hoteru. Eles não têm ll que soam e ee, por isso coffee4 se tornou kohi. É um pequeno milagre adivinhar as palavras inglesas do japonês quando restaurante se torna resutoran; high-class4 (um termo aceito e muito usado) tornou-se hai kurasu, e sanduíche, sando (uma abreviatura, antes de tudo); strike é sutodaiko e uma parada do motor (stall), um ensto. Todas estas palavras são inglesas.
1 Escrivaninha. (N. do T.)
2 Arroz. (N. do T.)
3 Fright, medo; flight, vão. (N. do T.)
4 Café. (N. do T.)
5 Classe alta. (N. do T.)
No Japão, como todas as pessoas lhe dão cartões de visita quando você as encontra pela primeira vez, juntei cerca de três dúzias de cartões. Como seria incorreto jogá-los fora, andava com um saco de viagem, de uma companhia de aviação, onde os enfiava; guardarei essa vasta coleção — mesmo que não olhe nunca mais para ela — até o fim dos meus dias. Mas talvez olhe, porque é sempre divertido estudá-los: de um lado está em inglês (nome, ocupação, residência), do outro em japonês. E certamente o lado japonês que vale a pena estudar. Você aponta para um nome e pergunta a um amigo japonês o que é aquilo. Ele dirá: — Mountain Rice Paddy.
— Campo de Arroz? — perguntará você, verdadeiramente surpreso. — Mas é o cartão do Sr. Yamada.
— Certo. Mas Yamada significa "campo de arroz".
Muitos dos nomes populares japoneses significam qualquer coisa: Ishibashi significa "pilar de ponte", Nakamura, "no interior da aldeia" e Mitsui, "três bens". É o mesmo que acontece com o inglês. Alguns nomes (Young, Barber, Winterbottom) significam qualquer coisa, outros (Bing, Shackleton, Cholmondeley) não significam nada. Tanto os nomes ingleses como os japoneses podem ter as suas complicações, só que é diferente. Em inglês existe o nome Cholmondeley ou Maugham; você diz às pessoas que a pronúncia é Chumley e Maum e elas se lembrarão ou não disso. Em japonês você pode escrever os nomes que tenham um significado em kana ou kanji. (Quero aqui fazer notar que a simplificação da escrita japonesa do pós-guerra começou com o voto sagrado: chega de novos kanji. Isto foi posto em prática com a introdução de cinqüenta novos kanji,* somente para os nomes.)
O mesmo ideograma, em muitos casos, pode ser lido à maneira japonesa ou chinesa. São precisos, é desnecessário dizer mais un para lê-los à maneira chinesa. Gente comum lê seus nomes da maneira japonesa, porque lê-los à chinesa seria pretensioso e "acima da sua condição"; mas, quando um homem se torna verdadeiramente eminente, logo começa a ler o seu nome à chinesa. A escrita mantém-se a mesma, mas a pronúncia se altera. Hirobumi Ito foi Hirobumi a maior parte da sua vida; quando se fez primeiro-ministro, em 1885, tornou-se subitamente Hakubun.
Que um homem mude o seu nome ao tornar-se primeiro-ministro passa a ser hilariante a nossos olhos. Logo que regressar a Londres, contarei esta história a Lorde Home — perdão, ele passou a ser Sir Alec Douglas-Home ao tornar-se primeiro-ministro — e havemos de rir um bocado juntos à custa desses estranhos japoneses.
O japonês é um idioma extremamente difícil. Há centenas de maneiras de dizer "eu". Há diferentes "eus" para homens e mulheres, jovens e velhos, à moda da cidade e à moda do campo, membros de boas famílias e de classe baixa; diferentes "eus" usados de acordo com as situações (tal como entre amigos, dirigindo-se a subordinados ou superiores); os "eus" especiais que uma pessoa usa na correspondência; e os "eus" usados nas diferentes épocas do passado1. Raisu significa arroz no prato, servido à maneira ocidental; gohan é arroz japonês, servido sempre numa tigela. Ferro é kane, mas as verdadeiras senhoras nunca devem dizer kane (nunca ouvi que kane fosse uma palavra feia em qualquer outra língua; mas é incontestavelmente um palavrão de quatro letras em japonês) — as verdadeiras senhoras deverão dizer okane. E assim por diante. Poderia gastar horas nisto. E o que é que um estrangeiro pode fazer?
1 Watanabe e Nagashima, op. cit. (N. do A.)
Pode escolher entre duas alternativas. Pode correr o risco de dizer garasu (vidraça) quando ele na realidade queria referir-se a gurasu (copo de bebida) — ambas as palavras vêem de glass¹; ele pode referir-se a si próprio com um "eu" denotando ser um homem de boa família, embora ele, como gaijin, seja um homem de origem humilde; pode cair numa variedade de outros erros absurdos, e esperar ser compreendido e perdoado. Ou ultrapassar essas dificuldades e aprender corretamente o japonês. Corretamente é talvez demasiado. Muitos japoneses e estrangeiros que falam o japonês disseram-me que noventa por cento de conhecimento é o máximo atribuído a um gaijin. (A maioria dos japoneses saberá menos a sua própria língua, mas as suas confusões serão de tipo diferente.)
1 Em inglês, vidro ou copo. (N. do E.)
Quando os raros estrangeiros atingem esses tais noventa por cento (ou mesmo uns tantos por cento menos) é que os verdadeiros enganos começam. Um americano amigo, estudioso brilhante do japonês, disse-me: "Eles estão absolutamente convencidos de que nenhum estrangeiro pode falar corretamente o japonês. Um japonês arrevesado, com algumas palavras erradas, é admissível. Mas a lenda diz que nenhum estrangeiro pode ir além disso. Assim, quando se lhes fala em perfeito japonês eles ficam incrédulos, Olham com espanto e pensam que ouviram inglês. Quando não sabem falar inglês, acham que não conseguiram compreender. Se eles falam inglês, respondem em inglês. Vou todos os dias à estação e peço a minha passagem em japonês. O funcionário — sempre um funcionário diferente — pode nem olhar para mim. Se não olha, não há problema. Eu peço a minha passagem em japonês, ele me dá, como faz com todos os outros passageiros, e eu parto. Mas se ele olha, responde em inglês — julgando que foi o idioma em que me dirigi a ele — ou fica simplesmente sem compreender o que eu quero, até que repita o meu pedido em inglês. Ao telefone não tenho qualquer espécie de dificuldade. Mas nas ruas, nas lojas, nos escritórios onde vou à procura de alguém, dirijo-me a quem me atende em perfeito japonês, e recebo a resposta delicada: 'Perdão, não falo inglês'. Nos restaurantes peço qualquer coisa em japonês e o garçom, espantado, volta-se para minha esposa japonesa: se ela o nota, e repete o meu pedido, este é atendido. Uma vez em Hokkaido houve uma reação diferente. Fui a um local onde talvez eles nunca tivessem visto um gaijin anteriormente. Falei a um homem em japonês e, surpreendentemente, ele compreendeu todas as palavras que lhe disse. Tomou-me por um japonês. Quando terminei, em vez de responder à minha pergunta, inquiriu, admirado: 'Mas por que é que você tinge o seu cabelo de louro?'
Pessoas mais educadas, por certo, admitem o fato de que um gaijin possa falar bem o japonês, mas eles não gostam disso. O gaijin deverá falar inglês. Falar qualquer outra língua é errado. Os japoneses falarão japonês; os estrangeiros, inglês. Um estrangeiro falar japonês é uma intromissão na privacidade deles- novamente os barcos a vapor do Comodoro Perry no horizonte da memória.
Por outro lado, milhões de japoneses aprendem inglês com dedicação e diligência. Encontrei várias pessoas que se levantavam às cinco da manhã para ouvir a lição de inglês pelo rádio. A procura de professores de inglês é tão grande que as pessoas que passam dois dias em Londres ou Nova York, e possuem uma noção mínima do inglês, podem conseguir emprego como professores. Encontrei professores de inglês que eu teria rejeitado como alunos — eram casos desesperadores. Qualquer pessoa que fale inglês pode conseguir hoje um bom ou razoável emprego no Japão, como professor, intérprete ou tradutor.
Há muitos anúncios e notícias em inglês, e os professores que realmente sabem inglês são utilizados para redigi-los. No alto de uma loja elegante vi o seguinte anúncio a néon: "LADIES OUTFATTERS1".
1 O correto deveria ser Ladies outfitter's, "Confecções para senhoras". Em inglês, no original. (N. do T.)
"Não é caso para rir", disse a mim mesmo. "Houve um engano quando fizeram o anúncio. A pessoa que redigiu o texto para o letrista sabia como escrever a palavra."
E naturalmente devia ter redigido certo. Aproximei-me e vi um outro letreiro menor, com uma seta:
"Ladies can have fits upstairs2".
2 "As senhoras podem desapertar lá em cima". Em inglês, no original. (N. do T.)
O frágil gigante
Façam qualquer pergunta a um japonês e o pnb — Produto Nacional Bruto — insinuar-se-á na resposta. Seja pergunta sobre golfe, o tempo ou o horário de trens entre Nagoya e Osaka, a resposta estará ligada ao pnb. Aquilo que bushido e a bandeira nacional representaram nos primeiros tempos foi agora substituído pelo pnb. Antes de ir para o Japão, eu nem mesmo sabia que existia esse tal de pnb; quando saí de lá, tinha chegado à conclusão de que não existia mais nada além disso.
Para um pobre britânico, é cansativo, e mesmo exasperante, ler dia a dia, na primeira página dos jornais japoneses, que as exportações alcançaram novas dimensões, que o balanço de pagamentos continua a melhorar, que afluem novas encomendas do estrangeiro, que a Bolsa de Tóquio (tendo estado em baixa durante oito anos) está a alturas nunca sonhadas — e ver então, numa página interior, que os construtores de navios Upper Clyde declararam um prejuízo de 10,3 milhões de libras; que os números relativos ao comércio são catastróficos na Grã-Bretanha, mas o governo explicou que esses números não significam que a economia esteja abalada; os números baixos devem-se simplesmente (1) ao acréscimo das importações; (2) à greve nas docas de Nova York; e (3) à desvalorização do peso argentino. Fui suficientemente louco para pedir folhetos econômicos, livrinhos, estatísticas e revistas de vários ministérios, universidades e instituições econômicas. O resultado foi uma inundação de documentos excelentes, toneladas deles, todos enaltecendo o "grande milagre" (para estrangeiro ver!) e louvando o pnb. Eis o mais breve sumário desta história asfixiante: o pnb (não, você não pode escapar disto) era de sete bilhões de libras em 1952, quando findou a ocupação, e é hoje de quarenta e oito bilhões de libras — um aumento de cerca de setecentos por cento. A produção japonesa de aço é a terceira do mundo, vindo depois dos Estados Unidos e da União Soviética; o Japão é a primeira nação do mundo na construção de navios e a segunda maior produtora de automóveis. Cada vez o povo se encontra em melhor situação; os locais mais freqüentados nas férias estão superlotados; dia a dia se torna mais difícil conseguir quartos nos hotéis estilo ocidental, assim como nos ryokans, estalagens japonesas; e as lojas fazem excelentes negócios. Um domingo antes do Natal de 1967, a Mitsukoshi, uma das maiores lojas populares, recebeu oitocentos e vinte mil libras, cerca de dois milhões de dólares. Quase toda família tem uma TV, e os aparelhos em cores ganham popularidade e força tremendas. Proporcionalmente há mais famílias com geladeiras e máquinas de lavar do que na Grã-Bretanha.
Como é que o "milagre japonês" foi alcançado? Houve três fatores principais: (1) trabalho árduo e ingenuidade; (2) sorte; e (3) uma peculiaridade que poderia ser delicadamente descrita como culto do interesse próprio, misticamente como egoísmo sacro, e, mais sinceramente, como egoísmo impiedoso.
(1) Não há dúvida de que os japoneses trabalharam mesmo arduamente; o seu sucesso fez-se, a maioria das vezes — embora não inteiramente —, em troca do seu suor, sangue e labor. A sua força de trabalho é educada, instruída e absolutamente ímpar em inteligência. A economia é o novo patriotismo dos japoneses, e eles são um povo muito patriota. Viva o pnb! Os trabalhadores orgulham-se tanto dele como os capitalistas. A força de trabalho é leal às suas firmas, e as relações no trabalho são boas. Há um verdadeiro espírito de equipe, os trabalhadores participam; quando ocasionalmente se ouve dizer que até os seus casamentos são tratados pelas firmas, tem-se a vaga impressão de que eles não só participam como simplesmente pertencem às firmas.
Isto não significa que os sindicatos não sejam poderosos. Há grandes lutas por salários todas as primaveras, conduzidas pelos dois grupos politicamente organizados: Sohyo, da esquerda, e Domei, uma organização mais ou menos. As greves-relâmpago (duram por norma cinco ou seis horas) são encomendadas, principalmente como tática, apenas para mostrar os dentes. Só ocasionalmente há questões amargas e desagradáveis com ligações políticas.
Tudo isto, contudo, está ao nível nacional. A vida dentro das firmas é auspiciosa, algumas vezes idílica. Os sindicatos são organizados dentro de cada firma: todos os operários e pessoal de escritório, incluindo diretores, pertencem a um sindicato. As greves contra um só patrão são raras. Não há demarcação de disputas: como cada firma só tem um sindicato, não pode haver disputa com outro sindicato. Como todos são membros da mesma organização, desde o moço do escritório até o diretor-geral, não há "administrador infame", nem "nós" e "eles". Trabalham todos para a companhia, para o mesmo objetivo. Como esse objetivo é aumentar a produção e não aumentar os lucros, o entusiasmo dos trabalhadores pode mais facilmente ser incitado. "Lucro" é palavra suja, enquanto "produção" é quase sagrada, subordinada ao pnb. Os trabalhadores podem tomar parte na glória da produção; não tomam parte — de forma alguma — diretamente nos lucros.
Os preços sobem, mas os salários sobem mais rápido. Isto, certamente, manteria todo mundo feliz; mas não mantém — por motivos a serem explicados.
(2) O Japão tem tido sorte. Primeiro, perdeu a guerra e, antes de perdê-la, teve a sua indústria, felizmente, destruída. Não se trata de uma observação irônica ou de uma brincadeira frívola, mas de uma sóbria determinação em que tomou parte a maioria dos economistas japoneses. Decerto, a perda da guerra significou muito sofrimento, humilhação e tragédia; mas também tornou muito mais fácil a reconstrução eficiente. O Japão tinha que partir da linha de saída e receber todo o auxílio de que necessitava. Sem a guerra e a destruição que se seguiu, a indústria japonesa possivelmente não teria atingido metade daquilo que já conseguiu.
Isso em relação à Segunda Guerra Mundial. Outras guerras significaram outros golpes de sorte. A Guerra da Coréia foi uma dádiva de Deus: veio no momento exato. Foi a luta às portas do Japão e o dinheiro afluiu em abundância. As bênçãos da Guerra da Coreia nem bem tinham sido compreendidas, e os americanos — os melhores amigos do Japão — lhes deram a Guerra do Vietnam, uma outra vasta fonte de receita.
(3) O terceiro fator é o egoísmo. Depois da Segunda Guerra Mundial, o Japão pagou voluntariamente os reparos — bilateralmente negociados — aos seus primeiros inimigos: as Filipinas, a Indonésia, Burma, etc. Isto foi mais decência do que egoísmo, podem objetar. É verdade; mas houve aí uma grande dose de previsão e calculismo inteligente. Essas reparações foram pagas em produtos. Posteriormente o Japão ajudou os países subdesenvolvidos da Ásia, mandando-lhes também produtos. A princípio os japoneses foram odiados, mas logo o povo se habituou. Os contatos permanentes na base de homem para homem convenceram os antigos inimigos de que os japoneses eram honestos, dignos de estima. Os australianos não os aceitavam; hoje os japoneses são totalmente aceitos na Austrália. Antes de saberem de onde vinham, os australianos se habituaram aos produtos japoneses; as firmas japonesas se entrincheiraram firmemente no seu solo; o Japão fez um intenso comércio com elas. Outra bênção econômica da guerra perdida. O comércio, neste caso, não seguiu o piedoso missionário; seguiu o penitente pacifista.
Os produtos japoneses são hoje competitivos porque os trabalhadores ainda são pagos a salários baixos. Os salários subiram, indubitavelmente, mas principiaram de um nível mínimo. Os salários japoneses, hoje, são metade dos salários europeus e um terço dos salários dos Estados Unidos. Os preços são vinte por cento mais baixos do que na Europa e trinta e cinco por cento mais baixos do que nos Estados Unidos; por isso o operário japonês está em pior situação do que os seus camaradas europeus e americanos. São em grande parte esses salários baixos que ajudam os produtos japoneses a ser internacionalmente competitivos. (A previdência social tem aumentado ultimamente, mas o sistema global é muito inferior ao Serviço de Saúde Britânico, e a situação dos operários japoneses é muito pior também sob este aspecto.)
O Japão é também um dos países mais protecionistas do mundo. A indústria japonesa ainda representa o papel do rapaz que partiu recentemente do nada e necessita de cuidados. Eles não podem permitir a entrada aos concorrentes estrangeiros porque a sua indústria é frágil. Se é assim, o Japão é um frágil gigante; uma escavadora delicada; um touro de louça de uma loja chinesa. A indústria de automóveis é a pior; mas os japoneses fazem concessões em todos os campos aos competidores estrangeiros se as suas exportações estão ameaçadas — mas ainda assim sempre são concessões mínimas. Todas as vantagens que eles nunca deixam de pedir para si — tais como direitos de pouso para a navegação aérea — têm que ser defendidas com unhas e dentes e são combatidas até à última. O Japão clama todos os direitos e facilidades para as suas próprias exportações, mas descobriu que é melhor vender do que comprar; melhor exportar do que importar; melhor ganhar dinheiro do que despendê-lo. Talvez os mesmos pensamentos tenham também ocorrido — pelo menos en passant — às outras nações, mas eles, neste meio tempo, sabiam mais. Esta é a primeira prova do Japão para a verdadeira prosperidade: o Japão habituou-se a ser um país pobre toda a sua vida. O Japão pode ainda escapar com a sua atitude de fraqueza, particularmente na América, onde a culpa da bomba atômica ainda pesa. Tão pobre, o pequeno Japão — a terceira maior potência industrial do mundo — tem que ser ajudado e amamentado por gigantes econômicos como a Grã-Bretanha e a França. Significará tudo isso que o Japão é um país feliz e despreocupado? Receio que não.
Os salários têm aumentado, mas o nível dos salários não é ainda maior que o da Venezuela. O nível de vida — não obstante o número de máquinas de lavar — está ainda muito abaixo do da Grã-Bretanha. Tóquio cresce de uma forma incontrolável e o tráfego — nas rodovias c nas estradas de ferro — tornou-se impossível. A vida dos passageiros de todo dia (e há milhões deles) é um inferno. (A ferrovia utiliza empurradores profissionais. Esses homens ficam nas plataformas, e, quando os trens chegam, a massa humana avança e eles a empurram com toda a força para dentro do vagão, havendo sempre espaço para mais uma ou duas dúzias extras de sardinha em lata. Talvez umas poucas dúzias saiam pelo outro lado, mas ninguém se aborrece com isso.) As estradas, mal você sai das rodovias principais, com seus trevos impressionantes e espetaculares, são terríveis. A escassez de casas é alarmante, e, à medida que os trabalhadores rurais afluem às cidades, as coisas vão se tornando ainda piores: não há privacidade, as multidões são terríveis. Somente cerca de vinte por cento das casas japonesas têm esgotos próprios, e carroças ainda passam ao longo das ruas, mesmo em Tóquio, à noite. O barulho é constante e ensurdecedor. A poluição do ar é venenosa.
A Agência de Planejamento Econômico preparou um white paper (relatório) para o governo e, entre outras coisas, anunciou (de acordo com o Times de 7 de julho de 1969) que, a julgar pelo número de parques nas cidades japonesas e o número de bibliotecas públicas, o Japão deve considerar-se muito atrasado com relação aos países avançados do Ocidente. Os Estados Unidos estão quinze vezes melhor sob esse aspecto.
Há uma grande dose de descontentamento acerca desses problemas. A agência subentendeu que o governo devia prestar mais atenção à sorte do homem comum e menos à glória econômica do Japão tão refletida no — adivinhem o quê — pnb.
Mais de um terço dos que trabalham se queixam de que os seus orçamentos são espremidos severamente. Embora os ordenados subam a cada ano, nem por isso o povo se sente melhor. O rico lamenta também as precárias condições de tráfego: eles não podem conduzir "os seus novos Toyotas e Nissans através do tráfego difícil das cidades".
O gabinete do primeiro-ministro publicou provas de que "os índices de frustração existiam num nível sem precedentes", "índice de frustração" é um jargão americano semi-científico, que no caso significa que há um sentimento de frustração disseminado entre os japoneses. Isto não prova, por certo, que o "milagre econômico" não existe ou não é milagre. Mas quanto mais um japonês ouve sobre esse milagre, mais ele espera para si próprio. A propaganda é contraproducente: quanto maior a glória do Japão, mais as esperanças individuais se tornam a pior das frustrações. Isto não deve nos levar a sorrir ironicamente à custa dos japoneses, não deveremos sentir schadenfreud. A sua obra é grandiosa. Frustração apenas significa que, embora muito já tenha sido alcançado, há ainda muito a ser feito. O que deve servir para que eles reconheçam que o homem não vive somente do "milagre econômico".
Não é apenas o Ocidente que vigia o Japão, mas também os novos países africanos. Um membro do governo japonês me disse:
"Eles vacilam. Sentem desprezo por nós e dizem que bastou uma derrota para nos rendermos por completo ao Ocidente. Que desistimos de todos os nossos propósitos e aspirações para conseguir unicamente o bem-estar material — avaramente, egoisticamente, pensando apenas em nós próprios. Mas outros africanos pestanejam e aconselham: 'Esperem e verão. Logo que o Japão estiver realmente forte, arrancará o véu e revelar-se-á um poderoso aliado e um campeão das nações não-ocidentais' ".
Meu informante deixou de acrescentar o seu próprio comentário ao do africano, mas o Japão, certamente, não arrancará o véu; o Japão não tem véu. Não é o campeão do Oriente, nem do Ocidente; dos não-alinhados, nem dos alinhados. É o campeão de si mesmo. E esta 6, talvez, a razão básica mais forte e poderosa para a frustração: os japoneses — operários, capitalistas e particularmente estudantes — sentem que os ricos têm unicamente um grande, nobre e sagrado objetivo: tornar-se ainda mais ricos.
E eles perguntam (em japonês é uma frase muito elegante, com um evidente sabor arcaico): "E daí?"
Paraíso
O Japão é o paraíso mundial da ajuda de custo. Os salários são ainda comparativamente baixos; mas na verdade eles têm subido consideravelmente menos do que os ganhos reais. O salário médio de um empregado de escritório é de quarenta mil ienes por mês, o que dá quinhentas e sessenta libras ou mil trezentos e cinqüenta dólares por ano. Mas as ajudas de custo, os benefícios marginais, mudam essa perspectiva. Polpudas gratificações são pagas duas vezes ao ano, aumentando consideravelmente os rendimentos do homem; o transporte para o trabalho usualmente lhes é pago, como também o almoço; os solteiros conseguem muitas vezes habitação gratuita; casados e solteiros têm férias com todas as despesas pagas; e há facilidade para o esporte c o lazer. E, finalmente, quando o homem atinge as alturas estratosféricas dos relatórios de despesas, ele chega ao céu. Sua vida se modifica. Pode convidar clientes, visitantes, consultores, para almoçar ou jantar fora, assinar a conta e ponto final.
Este "vá e divirta-se" é uma atitude tradicional dos patrões japoneses: é de um paternalismo que se reflete em quase todas as coisas no Japão. O mundo de deslumbramento e diversão da Ginza e de outros lugares é uma maravilhosa válvula de escape depois de um dia de trabalho árduo, mas até isso lhe é proporcionado pela companhia. Mesmo durante o lazer você continua a trabalhar para a companhia. Os lugares elegantes e da moda são ruinosamente dispendiosos. Só com o salário, ninguém se poderia aproximar deles; no entanto, são muito freqüentados. Esses lugares estão sempre cheios, mas nem uma única cédula sai do próprio bolso do cliente — a menos que o vice-presidente americano entre ali, pague a conta e a apresente depois à companhia dele.
Se você sair à noite com o seu anfitrião, ele o levará a diversos lugares. Após um jantar suntuoso, vocês irão a um fabuloso — embora escuro e muito barulhento — clube noturno, onde algumas beldades serão convidadas para a mesa. Essas senhoras bebem à beça (muitas vezes água tingida de amarelo, que passará — se a conta lhe for entregue — por uísque) e têm uma tabela bastante elevada. O seu anfitrião convidará provavelmente duas beldades para cada homem presente. A hospitalidade japonesa é fabulosa; mas há uma idéia que nunca lhes sai do cérebro, a fim de que o sujeito saia impressionado: "Podemos oferecer isto".
Tudo isso é inteiramente despesa dos contribuintes. Cada iene pode ser deduzido do imposto de renda. A conta das diversões japonesas é maior do que o orçamento de muitos países asiáticos; e é frequentemente apontado pelos americanos, responsáveis pela defesa do Japão, que o Tesouro japonês gasta mais dinheiro com jantares, clubes noturnos e gueixas do que na defesa.
Em junho, quando — dizem — os pirilampos ou os vaga-lumes brilham mais e dão sorte, realiza-se um festival. Mas Tóquio não tem vaga-lumes. Por isso a "sorte" é transportada de Hokkaido em aviões de carga. Um país onde os vaga-lumes viajam de avião deve ser, na verdade, próspero; e muitos dirão que um país onde eles viajam à custa do contribuinte é o verdadeiro paraíso.
Os ocidentais sugerem muitas vezes que há muito de corrupção nas diversões japonesas.
Talvez se trate apenas de uma interpretação diferente da idéia de corrupção. Todavia — isto deve ser enfatizado — tudo é feito abertamente e às claras. Um executivo pode ganhar um alto salário, numa grande companhia, unicamente para cultivar relações e distrair o banqueiro, do qual a firma depende muito mais no Japão do que na Grã-Bretanha ou nos Estados Unidos. Este funcionário terá que jogar golfe com o banqueiro, levá-lo a restaurantes, clubes noturnos, casas de gueixas, e passar fins de semana com ele. Isto não deve ser olhado como suborno, nem pela firma nem pelo banco: ambos estão discutindo negócios, e não há dúvida de que os negócios devem ser um dos muitos assuntos tratados.
É, de fato, habitual o chefe de um departamento do governo distrair o chefe de outro departamento convidando-o para uma festinha a fim de discutir assuntos de governo. Há, normalmente, uns tantos assessores em ambos os lados. E o convite é sempre pronta e generosamente retribuído.
As mulheres são, por norma, excluídas de tudo isso — mesmo nas ocasiões em que visitantes estrangeiros levam suas esposas. As japonesas parecem não ligar muito a isso, embora se possam ouvir mais protestos hoje do que há poucos anos. Mas, de modo geral, as japonesas esperam que os seus maridos fiquem fora até tarde, levem gente aqui e acolá, vão a casas de gueixas (e portem-se virtuosamente apesar de tudo, havendo poucas perguntas). As noites de negócios significam que o marido está subindo; se ele pode passar demasiadas noites no seio da família é porque fracassa no emprego.
Como todas as coisas no Japão, a distração é estritamente hierárquica. Quem entretém quem, onde e quanto lhe é permitido gastar são assuntos cuidadosamente pesados e muito bem medidos. A princípio fiquei um pouco embaraçado com a hospitalidade com que me distinguiam, até compreender que eu era para eles precisamente uma dádiva de Deus: uma desculpa para a sua escapadela noturna. Os convidados suficientemente importantes para justificar gastos da firma são poucos e raros; quando aparecem, há viva competição para agarrá-los.
Aprendi, também, que eu — como todo mundo — tinha sido classificado e avaliado anteriormente, e fiquei lisonjeado desde o momento em que prestei atenção aos lugares aonde íamos, e — quando o podia fazer discretamente — lançava uma olhadela à conta, ao ser assinada. Uma noite fiquei verdadeiramente lisonjeado quando, convidado pelo vice-presidente de uma companhia, vi que a conta para dois era de cinqüenta mil ienes (cerca de sessenta libras ou cento e quarenta dólares), o ordenado mensal aproximado do meu anfitrião. Mas no dia seguinte soube que na mesma noite o próprio presidente proporcionara igual distração a um magnata da Alemanha — um homem de negócios que realmente interessava, e não um mero escritor —, e a sua conta, incluindo uma casa de gueixas, à qual não me haviam levado, somou cento e cinqüenta mil ienes (cento e oitenta libras ou quatrocentos e vinte e cinco dólares). Não houve nada de extraordinário nisto. Foi apenas uma noite vulgar para o presidente. Nada é realmente demasiado para um contribuinte japonês.
As grandes firmas dão também as suas pródigas festas, várias vezes com milhares de convidados. No fim, todos recebem presentes. Vi somente dois deles. Um era um conjunto de enciclopédias — cerca de vinte e quatro volumes para cada convidado; outro, um gravador de fita magnética.
Uma grande firma japonesa não pensa duas vezes antes de convidá-lo para ir ao Japão discutir um assunto, fazer uma palestra ou desfrutar, simplesmente, um pouco do país. Passagem de avião em primeira classe, uma suíte, num hotel luxuoso, e todas as suas despesas pagas.
Um homem de negócios meu amigo, inteligente, cosmopolita e franco, disse-me uma vez que fora convidado para, muito em breve, fazer uma excitante viagem ao sudeste da Ásia, com despesas pagas. Ele ansiava por ir, principalmente, a Hong Kong e à Tailândia, porque era louco por chinesas e tailandesas. Mas estava preocupado por ter contrariado o presidente da sua companhia. Tinha sido um verdadeiro assunto japonês, sem discussões, sem aborrecimentos, sem discordâncias em aberto. Ocorrera apenas que o presidente sugerira algo como uma simples reunião e o meu amigo perguntara, muito delicadamente, se não se poderia considerar qualquer outra coisa... Isto era quase um princípio de rebelião, e o meu amigo receava que a sua ida fosse cancelada a um pretexto qualquer, de modo a dar-lhe uma lição para o futuro.
Uma noite encontrou-se comigo, meio divertido e meio amuado.
— O bastardo... — resmungou.
— O que aconteceu? — perguntei-lhe.
— A minha viagem, claro.
— Ele a cancelou?
— Oh, não. Eu vou, com certeza.
— Cortou-lhe as ajudas de custo?
— Não. O negócio é outro. Aquele velho sem-vergonha mandou-me levar a minha mulher!
Política
O Japão não foge à regra. Nos velhos tempos, acostumou-se ao caos político, conjugado com a prosperidade econômica. Hoje é mais próspero que nunca; e em vez de caos, é castigado — ou goza — pelo esquecimento político. Como potência militar, o Japão não existe; ele renunciou à guerra. Como força política internacional, o Japão não conta. Se Mao rosna, ou o premier indiano demite um dos seus ministros, é notícia de primeira página nos jornais de todo o mundo: se há lutas ou murros no Parlamento japonês, publica-se apenas um parágrafo curto a respeito, o suficiente para um bocejo e o virar da página. Mao Tsé-tung e a Sra. Gandhi são nomes familiares. Mas quem sabe o nome do premier japonês?
O nacionalismo do Japão é um nacionalismo econômico, e não há nada de novo a este respeito, exceto que militarmente é não-agressivo. No entanto, ressentimo-nos ligeiramente com isto, como se o Japão tivesse menos direito a negociar com êxito do que nós (exceto, claro, aquilo que nós não queremos). O Japão, por seu turno, ressente-se, indignado com a idéia de que este nacionalismo econômico existe, como se isso fosse uma acusação grave e não a única saída possível — e mais inocente — para uma nação grande e orgulhosa.
O Japão é uma democracia estabelecida segundo um padrão anglo-americano, por uma Constituição promulgada em 1947. A Dieta consiste de duas câmaras: a Câmara dos Representantes (a câmara mais baixa, com quatrocentos e oitenta e seis lugares) e a Câmara dos Conselheiros (a Câmara Alta, com duzentos e cinqüenta lugares). Os membros de ambas as câmaras são eleitos por diferentes sufrágios. Os membros da Câmara dos Representantes são eleitos por quatro anos, os da Câmara dos Conselheiros, por seis (com metade deles eleitos a cada três anos). A idade eleitoral começa aos vinte, e as mulheres — ao contrário de todas as expectativas — votam. Na verdade elas fazem bom uso dos seus votos; há sete mulheres na Câmara dos Representantes e dezesseis no "outro lugar". Desde o fim da guerra que não há tentativas para estabelecer uma ditadura pessoal ou de grupo. Sem qualquer dessas tentativas, contudo, é o Zaibatsu — os interesses comerciais — que gentilmente informa e conduz o governo. Num país onde a economia é o único interesse vital, muita gente considera isto como honesto e justo. Outros alegam que o Zaibatsu é uma panelinha anônima de eminências pardas, que não são responsabilizadas por nada e desconhecidas do público; por isso a coisa não é honesta nem justa. Qualquer lado está certo, nenhum observador imparcial pode dizer que há um homem de negócios ditador no Japão e que eminências pardas são mais abundantes do que em qualquer país democrático que se possa nomear.
Em 1885 o Príncipe Horobumi Ito formou o primeiro governo parlamentar; o Sr. Eisaku Sato formou o sexagésimo segundo na história parlamentar e o décimo sétimo desde a adoção da nova Constituição.
Esta nova Constituição, além de estabelecer a democracia no Japão, contém dois notáveis artigos especiais. Um deles estabeleceu um princípio que é lugar-comum em todo o mundo, e que, assim, passou quase despercebido; o outro introduziu um único princípio e, portanto, atraiu muitas atenções.
De acordo com a nova Constituição, o primeiro-ministro pode demitir todos os seus ministros — que haveria de mais natural do que isso? poderiam os leitores perguntar. O quê, na verdade? Mas, nas décadas de 20 e 30, houve um ministro que o premier não podia demitir:, era o ministro da Guerra. Foi sempre o Exército que "deu" um ministro da Guerra ao governo. Um só tivesse sido demitido, e o Exército ter-se-ia recusado a fornecer um novo ministro da Guerra, teria surgido uma grave crise constitucional, e a formação de um governo seria impossível. Foi esta regra que assegurou o domínio do Exército sobre o governo (um domínio muito mais sinistro do que é hoje o do Zaibatsu). Mas para a regra mencionada, o incidente da Mandchúria e a aventura chinesa — sempre impedida e desaprovada pelo governo, sempre planejada e sempre a ele imposta pelo Exército, através do ministro da Guerra — teriam sido impossíveis, e a história moderna do Japão teria sido muito diferente. O seu passado recente teria sido melhor; o seu presente seria pior.
O outro preceito é largamente conhecido. O artigo 9 da Constituição de 1947 declara que "o povo japonês renunciou para sempre à guerra como um direito soberano do povo", e as forças de terra, mar e ar estão proibidas. Os americanos regozijaram-se quando este parágrafo foi aceito. Dizem que este é um dos maiores triunfos pessoais do General Mac-Arthur. Os Estados Unidos tomaram inteira responsabilidade pela defesa do Japão. Hoje os americanos gostariam de persuadir o Japão a rearmar-se, pelo menos numa pequena dose. O Japão quer somente adaptar-se, tanto quanto possível: ele tem algumas forças de terra, mar e ar. Uma Constituição pode ser interpretada de muitas maneiras. Mas essas forças são muito pequenas e não podem proteger o Japão contra qualquer inimigo. Os americanos pensam que o Japão deveria ter forças muito maiores. Os alemães têm amavelmente concordado no rearmamento; por que não os japoneses? Mas o Japão não o favorece; move a cabeça e responde: "Tu l'as voulu, Georges Dandin"¹. (Foi a sua própria idéia, por que se queixam se os seus desejos foram cumpridos?) Deixar a defesa aos Estados Unidos é, na verdade, para o Japão uma promessa sagrada, e muito mais virtuoso. E muito mais barato.
1 Em francês, no original. (N. do T.)
É também muito mais sensível e lógico. Já que temos duas superpotências que detêm a balança do terror — ou a paz do mundo, se assim lhe quiserem chamar —, com forças militares preparadas para uma surpresa, com a "vingança dos mortos" — noutras palavras, através do medo que um tem de que o outro possa efetivamente pagar na mesma moeda, mesmo depois de um ataque bem-sucedido e devastador —, é mais realista confiar numa dessas superpotências do que falar dos "independentes da dissuasão nuclear". Não só mais realista, mas, repito, muito, muito mais barato. Você. não pode realmente comparar o preço dos dois.
A situação da Inglaterra e do Japão, tão similar em muitos aspectos, parece ser, neste, o reverso. Mas somente à primeira vista; o Japão é economicamente forte mas politicamente insignificante; a Grã-Bretanha é economicamente fraca mas tem ainda muita influência política em todo o mundo. Isto é verdade: o ponto em discussão é a defesa. A Grã-Bretanha (disse o Sr. Khruchov) pode ser completamente destruída por três bombas de hidrogênio e a França por quatro. O Japão necessitaria provavelmente de outras quatro. O Japão não se poderia desforrar depois de um ataque de bombas de hidrogênio, mas nem tampouco a Grã-Bretanha ou a França. Não é a nossa bomba que nos protege, mas a idéia de que, se formos atacados, os Estados Unidos poderão e desejarão desforrar-se — independentemente de terem sido ou não atacados. Por outras palavras, a Grã-Bretanha — quaisquer que sejam as nossas ilusões — está exata-mente na mesma posição do Japão: a nossa defesa está nas mãos dos Estados Unidos. O Japão cresce rico, mas não tem um efeito dissuasivo; nós crescemos pobres, arruinados pelos gastos com a defesa, e não temos tampouco um efeito dissuasivo. Como a Sra. Sophie Tucker, um dos mais brilhantes se não um dos maiores filósofos destas décadas, disse: "Tenho sido pobre, tenho sido rica. Rica é melhor".
Algumas palavras sobre os partidos políticos japoneses. O país é regido pelo Partido Liberal Democrático, fundado em 1955, de uma fusão de vários grupos conservadores. O partido dominante é conservador, um amigo e aliado dos americanos; é anticomunista, e tanto apóia como é apoiado pelo "grande negócio". Como os Estados Unidos são um bom amigo e protetor do Japão; como o país está indo bem e o nível de vida vai subindo aos solavancos; e como os comunistas, do outro lado do mar, não podem ser completamente ignorados, a maioria das pessoas é inclinada a acreditar que a política de Sato — embora contestada em certos pontos e detalhes — é a política razoável. "O que é que está errado com este governo?", pergunta o povo. Talvez o único incômodo seja a caturrice implacável. Os japoneses sentem-se frustrados e desejosos de uma excitação política. Os Estados Unidos são um excelente alvo. Você está sempre mais irritado com os seus verdadeiros amigos do que com os seus inimigos... E Okinawa, como temos visto, é um tema notável para a excitação, da extrema esquerda à extrema direita.
O Partido Socialista Japonês foi também fundado em 1955, sob a presidência do Sr. Mosaburo Suzuki. Embora o partido fosse a reunificação dos socialistas da esquerda com a direita, que tinham estado anos separados, hoje segue a linha da esquerda. É fortemente antiamericano e mantém-se fazendo tentativas para afastar o vento das velas comunistas. Tenta ganhar o apoio da gente jovem protestando contra o Tratado de Segurança, mas perde este apoio quase antes de ganhar algum, porque condena a violência.
O Partido Comunista Japonês experimentou manter a neutralidade entre a União Soviética e a China o tempo que foi possível. Quando isto se provou impraticável, dividiu-se em facções pró-chinesas e pró-soviéticas. Os seus habilidosos dirigentes têm feito tudo para remanejar as coisas e estabelecer algumas medidas de independência. Eles não se identificam com qualquer grande potência comunista, mas seguem os seus próprios interesses. Isto não os realça perante ninguém; não foram representados em Moscou. São uma força política importante mas não um grande partido numericamente. Têm cerca de trezentos mil membros e cinco lugares na Dieta. Setenta por cento dos membros do partido estão abaixo dos quarenta anos. O marxismo-leninismo, como todos os discutidos sistemas fortes e rigorosos, tem sido sempre de uma atração magnética para muitos japoneses; por outro lado, a brutal e traiçoeira ocupação da Tchecoslováquia foi uma fanfarronice amarga para a popularidade do partido.
O partido mais interessante em cena é o Komeito. É a arma política do Soka Gakkai, um grupo religioso da seita budista Nicheren. O partido advoga um clima de boa vontade, fala em termos vagos mas atraentes de humanidade e de um tipo de socialismo humano, da limpeza da vida política, de tornar a democracia realmente democrática e de outras generalidades. O seu apelo é grande; é uma soma desconhecida e uma força muito temida. Desde a sua fundação, em 1964, que tem mantido um objetivo próprio, e nas eleições parlamentares e municipais tem alcançado sempre o alvo. Na última Dieta tinha vinte e cinco membros; os socialistas, trinta e um. A coisa mais curiosa acerca do Komeito é que o seu programa é tão místico, semi-religioso e vago, que ninguém realmente sabe se é de direita ou de esquerda.
A política externa do Japão é conspícua pela sua não-existência. O Japão sempre apoiou a política externa pela força. Hoje não tem força: consequentemente, não tem política externa. Isso leva-o a uma neutralidade que na verdade é um desarmamento unilateral. O Japão está contente com isto e está pronto a continuar a fabricação de automóveis e rádios-transistores, a construção de navios e blocos para escritórios e deixar a glória política para Mao, Tito e Wilson.
É soprado frequentemente aos ouvidos dos visitantes que o Japão não é uma democracia autêntica porque a sua vida política é corrupta.
Isto é um non sequitur.
O país é uma autêntica democracia. O jogo democrático é praticado honesta e estritamente de acordo com as leis. As eleições decidem qual o partido que vai para o governo. Toda a gente pode dizer o que quer, a imprensa é livre, ninguém é perseguido pelas suas opiniões, e a oposição pode atacar o governo com a ferocidade que quiser.
Mas há certos fenômenos curiosos que intrigam os observadores ocidentais. Os votos são muitas vezes pagos. Para seu crédito, isto faz pouca diferença. O povo aceita o dinheiro e vota de acordo com a sua consciência — uma outra grande vantagem das votações secretas. Ser político é ter uma frutuosa carreira — na verdade, um bom negócio. Os políticos japoneses estão entre os mais bem pagos do mundo; podem manter duas secretárias a expensas públicas; são-lhes entregues casas luxuosas — muitas vezes com piscina — perto da Dieta; e o seu salário é aumentado com monótona regularidade. As firmas comerciais dão largas contribuições, não só para os fundos do partido, como também para os políticos, e essas contribuições são dedutíveis e não têm que ser declaradas pelos recebedores. Há uma certa e até excessiva influência dos grupos de pressão. Um outro modelo da vida política japonesa é que os funcionários públicos altamente colocados arranjam empregos, quando são aposentados, em companhias com que tiveram anteriormente contatos comerciais. Um homem pode ter sido durante muitos anos aquele que obtinha os contratos de construção e tornar-se diretor de uma dessas firmas de construção a quem ele não serviu lá muito mal. Pode não ser corrupção, mas parece. Não obstante, tudo é feito abertamente.
Fui um dia convidado para jantar com um funcionário público de grande categoria e cheguei alguns minutos atrasado.
Desculpando-me, mencionei o nome do cavalheiro que me havia retido. O meu anfitrião nunca tinha ouvido esse nome e perguntou-me quem era.
— Foi embaixador em X e é agora vice-presidente da Companhia de Petróleo Y.
Ele considerou seriamente o assunto, talvez com vistas ao seu próprio futuro, e observou então, cheio de entusiasmo:
— Não é uma promoção ruim.
Tolerância
Alguns japoneses observaram-me, com orgulho: "Não temos qualquer preconceito racial". Isto aconteceu, na maioria dos casos, depois de reuniões em que criticavam o seu país e eu o defendia. Eles desaprovavam quase todas as coisas à sua volta, e concluíam: "Mas devo dizer-lhe uma coisa. Não há em absoluto qualquer preconceito racial no Japão".
Em grande parte isto é verdade. Não há um sentimento antiarmênio porque não há armênios. Não há anti-semitismo porque não há japoneses judeus. Não há nenhum dos sentimentos anti-Grécia que você encontra em Istambul e em Alexandria porque não há gregos. Como não há negros. E não há um traço desse preconceito antibosniano que, disseram-me, era tão lamentavelmente predominante em Herzegovina antes de 1908.
Tudo isto é lançado a seu crédito. É um engano acreditar — como eu precisamente sugeri — que você necessita de minorias para se opor a elas, embora, como é apresentado na Grã-Bretanha, seja certamente mais fácil sentir antagonismo por uma minoria, se ela existe. A Inglaterra costuma ser muito orgulhosa por não ter preconceitos de cor, e um pouco paternalista vis-à-vis os Estados Unidos, porque eles não dividem esta virtude. Isto foi enquanto não havia na Grã-Bretanha gente de cor, mas hoje ouvimos falar pouco desta orgulhosa ostentação. Por outro lado, Hitler conseguiu excitar um considerável número de compatriotas até levá-los a uma fúria homicida contra os judeus, quando estes atingiam somente um por cento da população, e o governo polonês do pós-guerra fez ainda melhor: através de ameaças, o regime implantou um anti-semitismo mesmo sem judeu algum. Nada semelhante a isto aconteceu no Japão. Todos os bosnianos estão salvos.
Esta "ausência completa de preconceito racial" aborreceu-me um pouco. A minha tese principal fora de que os japoneses não são certamente piores do que nós; mas tampouco melhores. São apenas humanos. E ser completamente isento de preconceito racial nos dias que correm é tão virtuoso como ser desumano. No século XXIII, quem sabe? É provável que sim. Hoje, não.
Mas posso descansar. O preconceito racial não é, na verdade, um problema nacional — o Japão é, acima de tudo, uma das nações mais homogeneamente raciais do mundo —, e tenho o prazer de me referir às seguintes descobertas:
1) Já falei acerca de um sentimento de desprezo antiamericano que, no entanto, é marginalmente diferente do antiamericanismo dos franceses. (Ver "Senhoras e senhores".)
2) Há também um desprezo disfarçado por todos os europeus (europeu significa branco). Não é mais forte que os sentimentos antijaponeses na Grã-Bretanha. Ninguém pode dizer que há fortes correntes antijaponesas na Inglaterra. No entanto, um japonês é um estranho vindo de paragens distantes. Um estrangeiro é um estrangeiro. E um gaijin é um gaijin.
3) Eles olham os coreanos com desprezo.
4) Eles olham os chineses com desprezo. Mas também respeitam os chineses.
5) As pessoas que são meio japonesas e meio americanas (nascidas em grande número depois da guerra) têm uma vida muito difícil. Obter bons empregos é muito, muito difícil para elas.
6) Quando metade dos americanos eram negros, a sua sorte era muito pior. A maioria deles deixou o país.
Se você é meio negro, meio japonês, e nasceu na Coreia e foi criado na China por pais europeus, não emigre para o Japão.
Finalmente, há um traço de preconceito antijaponês no Japão. O desprezo antieuropeu acima mencionado combina-se com uma mania européia de desprezo. Se você ler o livro do Sr. Kawasaki1, verá que ele acredita que o amor aos caucasianos — como ele nos chama — é a doença principal do Japão e que os japoneses são quase perseguidos no seu próprio país. Eu próprio não vejo evidência de perseguição. Aconteceu, ocasionalmente, sentir-me perdido no meio de uma multidão, ou num restaurante, e ser delicadamente ajudado enquanto os japoneses ficavam no seu próprio lugar. Mas eu necessitara de ajuda, e eles não.
1 Op. cit. (N. do A.)
Notei que algumas cantoras pop japonesas e atrizes de televisão tinham feito uma operação plástica de olhos; também vi umas poucas moças — duas, para ser preciso — que pintaram os lindos cabelos negros, respectivamente, de louro e ruivo. E vi também muitos modelos de cera, em várias lojas, com rostos europeus em vez de japoneses.
Por outro lado, não há preconceito ou intolerância vis-à-vis japoneses-americanos — os japoneses que se tornaram americanos ou nasceram em algum dos Estados ocidentais, e que nunca mais falaram japonês, sentindo-se — e na verdade são — americanos. Tenho o prazer de relatar que esse povo melhorou a sua sorte e a sua posição — e fê-lo por mérito absoluto. Durante a guerra, os americanos suspeitaram de que eles houvessem formado uma quinta-coluna. De fato, eles provaram ser soldados valentes e leais e isto é recordado nos Estados Unidos. Também no Japão não há sombra de ressentimento contra eles. Como um novelista japonês me disse: "Eles agora são americanos. Nós queremos que sejam bons americanos".
Há apenas dois exemplos sérios de preconceito racial.
1) Os coreanos atravessam tempos difíceis. Há muitos deles no Japão — o seu país foi colonizado pelos japoneses. É extremamente difícil, quase impossível, naturalizar-se, embora uma das correntes de ressentimento contra eles seja a de não se tornarem súditos japoneses. É muito difícil, para eles, arranjar bons empregos; e impraticável serem tratados de igual para igual.
Como os coreanos, externamente, se parecem com os japoneses, muitos deles arranjaram nomes japoneses e tentam passar por nativos.
Um amigo japonês disse-me que um seu primo quis casar com uma moça. Houve investigações e soube-se que ela era coreana. A família opôs-se ao casamento, mas o rapaz manteve-se tão inflexível que, por fim, a família cedeu. Um casamento japonês é uma cerimônia esplêndida e dispendiosa: todos os amigos íntimos do noivo e da noiva devem estar presentes. Mas convidar uma família coreana está fora de questão. Por isso foi necessário alugar uns cem japoneses que, remunerados — tantos ienes por hora —, fizeram de família da noiva (os seus supostos pai e mãe cobraram o dobro). Hoje há famílias mantidas em segredo, como esqueletos horríveis que se escondem no jardim.
2) Os etas. O povo eta foi derrotado na Guerra Heike Genji e tornou-se um dos intocáveis do Japão, abaixo de quatro classes: os samurais, os fazendeiros, os fabricantes e os mercadores. (Note-se que os que têm profissões, artistas, mesmo padres, não têm classe própria.)
O eta — agora chamado o buraku-min — foi desprezado. Os nascimentos e mortes eram anotados em registros separados. A situação tolerou-se enquanto eles não saíam das suas aldeias, só se mantinham ali. Mas também eles principiaram a movimentar-se para as grandes cidades e aí se defrontaram com graves dificuldades. Não há discriminação oficial; o preconceito é puramente social. Uma vez, quando viajava de carro com um amigo japonês, quatro de nós, seus passageiros, sugerimos que seria bom parar numa estalagem à beira da estrada para tomarmos uma bebida gelada. Ele fingiu que não nos ouvia. Mais tarde descobri que a estalagem pertencia a um homem eta, o que explicava o motivo por que o meu amigo, um cosmopolita de espírito aberto noutro aspecto, não se permitia parar e entrar ali.
A resistência mais forte é quanto ao casamento. Os registros especiais não são mantidos por muito tempo, mas os volumes antigos ainda existem e os agentes de inquérito têm um acesso misterioso a eles — embora legalmente isto lhes seja vedado. Esta investigação privada é uma amostra desagradável da vida japonesa; como um amigo japonês, furioso, observou: "O último vestígio da polícia do pensamento do pós-guerra". Se se descobre que a moça é uma eta, o casamento é definitivamente anulado. Nem mesmo se podem cometer fraudes de parentesco num caso destes.
Um aspecto interessante: tanto os coreanos como os etas passaram para as posições inferiores porque ambos foram derrotados na guerra. Falharam, por isso devem ser inferiores.
Eu passeava por Roppongi, distrito de Tóquio, quando descobri um restaurante judeu, dirigido por uma senhora chamada Anne Dinken. Era, como soube mais tarde, o único restaurante Kosher¹ em Tóquio, e talvez no Japão.
1 Restaurante que serve segundo as leis cerimoniais da religião judaica. (N. do E.)
Fomos atendidos por uma linda moça japonesa chamada Reiko que falava um inglês fluente com sotaque iídiche. Assistimos então a uma invasão de tipos da Third Avenue e do Bronx, seis homens enormes que pareciam lutadores de categoria. A própria Sra. Dinken apareceu usando uma saia e umas meias um tanto espalhafatosas. Não pretendo ser indelicado, mas a Sra. Dinken é uma figura. Além de estar presente na vida real, ela olha os fregueses de um poster. Um tanto corpulenta, ela declara (no cartaz): "Eu não sou gueixa..." e depois recomenda o seu gefillte fisch, carne salgada e pastrami, assim como enaltece o verdadeiro ambiente do Bronx do seu estabelecimento. Um homem entrou e disse: "Há tempos que não a via". Veio-se a descobrir que ele a tinha deixado meia hora antes. "Não tinha notado, amor?" — e ele tentou beijar a Sra. Dinken, que o empurrou afetuosamente. Três mulheres procuravam persuadir uma quarta a juntar-se a elas, mas esta preferiu a companhia dos viris lutadores.
— Eu não a censuro, amor — soltou uma das três, através da sala.
— Obrigada — replicou ela venenosamente. Perguntei à Sra. Dinken se os judeus japoneses nunca iam à sua casa.
— Isso é um mito, amor — disse-me ela. — Não há judeus japoneses. Nem um só. Exceto o imperador1.
1 Uma piada. O imperador do Japão na verdade não é judeu. (N. do T.)
Saí do restaurante e uma vez mais fui rodeado de sérias e cerimoniosas reverências japonesas. Aquele primeiro passo cobriu mais do que dez mil milhas.
Quando falei a um amigo acerca da existência da tensão racial no Japão, ele protestou com veemência. Assegurou-me que estava enganado; não havia qualquer sinal disso.
— Veja o meu caso, que, seguramente, é o melhor exemplo — disse ele. — A minha família veio da China. O meu próprio nome é chinês, significa "ourives". Viemos para aprender o japonês. Não há qualquer espécie de preconceito contra nós; nem sombra de intolerância. Somos aceitos como se fôssemos japoneses.
— Há quantos anos é que estão aqui?
— Há mil e cem anos.
Cabúqui revisto
Principiarei por recordar como o cabúqui me fascinou quando o vi pela primeira vez.
Visitar o Japão sem ver cabúqui é o mesmo que ir a Paris e não ver o Louvre. O programa do cabúqui principiava às onze da manhã, com uma peça de amor do século VII que envolve o Príncipe Cama e a Princesa Nukada. Havia mais três peças de manhã; tínhamos então uma hora de intervalo para o almoço. À tarde começava de novo o espetáculo, com uma peça chamada Onna Shijin. A heroína era Gyo-Genki, uma mulher extremamente bela e grande poetisa, a filha de Goyo-Bo, "um louco numa casa de prazer". Um princípio bem promissor. A própria peça ultrapassava as nossas expectativas.
Chegou então a vez da minha peça favorita, A Aranha Terrestre. Quando a cortina sobe, vemos a orquestra agachada lá atrás do palco (como em todas as peças cabúqui), no meio de um cenário belo e expressivo. Vê-se um nobre cujo nome é Minamoto Yorimutsu. Ele tinha caído doente, e não se podia compreender o que se passava com ele. As pessoas, a propósito, não falam nas peças cabúqui: cantam artificialmente em voz muito alta e monótona; gemem, murmuram, roncam, guincham, lamuriam-se, soluçam, lamentam-se, choramingam e rugem. Trata-se de uma velha tradição, e, se você começa a ver as peças cabúqui aos dois anos, acaba se acostumando. Se principia mais tarde, espanta-se.
Yorimutsu é visitado por Kocho, uma dama de companhia da rainha, bela e arrebatadora, que dança para o homem doente. A dança não o cura. Kocho é acompanhada por outro visitante com o aspecto de padre em viagem. Mas ele não é padre em viagem nenhuma; muito longe disso: ele é a Aranha Terrestre. Pela sua máscara pode-se ver imediatamente que ele não é atraente. Caminha extremamente devagar, a um quarto de milha por hora. Um grupo de outras pessoas — criados de Yorimutsu — senta-se, ajoelha-se e agacha-se à volta. Alguns espectadores guincham de excitação. Por fim, o visitante arremessa uma aranha a Yorimutsu, que está, contudo, alerta; ele salta, pega a espada e fere o falso padre, que acaba por morrer. Este último desaparece sem deixar rasto; o "desaparecimento sem deixar rasto" é representado pela sua partida ainda mais lenta do que a chegada.
Os membros da família de Yorimutsu, agora todos juntos, decidem que deve ser tomada uma atitude rápida. A Aranha Terrestre deve ser procurada na sua caverna e destruída. Durante cerca de meia hora cantam e lamentam-se: "Vamos persegui-lo! Vamos procurá-lo ansiosamente! Não devemos dar-lhe oportunidade de escapar!" Há uma excitação tremenda, mas ninguém faz nada. Repetem: "Vamos depressa, vamos a galope! Não temos um momento a perder". E todos continuam sentados.
A tarde corre. Subitamente Yorimutsu grita:
— Aa...! — (Ênfase no segundo a.) Bate o pé duas vezes. O coro principia a cantar de novo.
— Ide, ide e vingai-vos vós mesmos de Aranha Terrestre. Yorimutsu fala muito baixinho: informa os seus familiares de que está louco de raiva, e que eles devem apressar-se, pois de outra forma o monstro fugirá. Uma pessoa não pode ser suficientemente rápida nesses assuntos. Então ele declara "Aa!" de novo, e bate o pé três vezes.
Quando acordo três quartos de hora mais tarde, a caça está no apogeu. Três homens movem-se à volta do palco para declarar uma dúzia de vezes que todas as coisas dependem da rapidez, pois de outra forma o monstro terá oportunidade de escapar. Então o ritmo da caça aumenta; os três homens — sem se moverem — tornam-se mais enfáticos neste ponto e sentam-se para debater: "Não vamos perder tempo! Quem pensa em si próprio numa hora como esta? Temos um dever sagrado a cumprir".
Chega agora um grupo de perseguidores, acompanhado por um espécie de canção de ninar. Concordam completamente com a opinião dos três. "Não podemos ter um momento de descanso antes de a Aranha Terrestre ser morta." Sentam-se. Um rapaz aparece, lamuriando: "Vamos persegui-la". Inicia-se uma dança com duas bandeiras. Depois da dança o rapaz diz: "Não desperdicemos um só momento", e baila uma outra dança com sete fadas. Os três perseguidores originais, ainda notavelmente frescos, embora tenham estado por tanto tempo de cócoras, gritam, à medida que o rapaz dança: "Depressa, depressa! Não há um instante a perder!" O ar está agora tão carregado de urgência e tensão que todos se sentam: o rapaz, as sete fadas e os outros.
Treze outras personagens entram ajoelhadas, de roldão. Deitam-se e agitam as pernas no ar. Erguem-se após um tempo considerável e primeiro dançam uma dança de bonecas, depois uma dança de marionetes e finalmente uma polca japonesa. Quando isto acaba, dois homens arrastam um pedestal e deixam-no do lado direito do palco.
Alguém começa a bater. O bater prossegue por vinte e três minutos. Uma outra personagem canta: "Oooooooh..." (ênfase no último o) com acompanhamento de guitarra, por trinta e quatro minutos. Então ele diz: "Oooooooh" sem a guitarra, em dezessete minutos. E a seguir a guitarra sem "Oooooooh" — dezoito minutos.
A caverna é empurrada com o monstro lá dentro. Os perseguidores reaparecem vestidos de amarelo (esqueci-me de mencionar que tinham saído todos durante os "Oooooooh... "). Um deles faz um breve (nove minutos) discurso cantado sobre o tema: "Não podemos perder um só minuto, caso contrário o monstro fugirá!" Todos eles se acocoram, depois levantam-se, saem e reaparecem de verdade. Desta vez falam-nos acerca do cruel, do horripilante destino que se prepara à Aranha Terrestre.
Cercam a caverna e olham para o monstro, mas nenhum deles o vê. O monstro solta um rugido tremendo: ninguém o ouve. Os perseguidores dizem: "Nunca o encontraremos. A nossa implacável perseguição resultou num fracasso. O monstro conseguiu fugir. Ai de nós! Perdemos toda a esperança".
Dançam à volta da caverna. (Agora estão de púrpura.) O próprio monstro se acha incapaz de deixá-los por mais tempo em tal desespero, e sai da caverna. Todos se sentam imediatamente. Ouvem-se inúmeros cânticos; o monstro prepara-se para a batalha final de vida ou de morte. Mas ninguém lhe oferece combate: de fato, ninguém se move. Subitamente o monstro, a Aranha Terrestre, tem um colapso e morre. Penso que tenha tido um ataque. Julgo que um ataque de enjôo.
Sinto desde então ligeiros remorsos por causa desse espetáculo. Teria eu sido muito severo? Não teria compreendido bem? Teria eu examinado uma antiga tradição oriental com olhos ocidentais e arrogantes?
Por isso fui ver as peças cabúqui uma vez mais, como uma pessoa que já corrigiu a sua sensibilidade, e achei que interiormente tinha sido indulgente em demasia. O cabúqui, é certo, significa um gosto adquirido, mas dia a dia os jovens japoneses o adquirem menos; também eles olham para aquilo com olhos ocidentalizados, ou com sorrisos condescendentes, e observam as peças como a moderna juventude britânica observa o desfile das bandeiras: espetáculo inofensivo e pouco importante, simples vestígio das épocas passadas.
Desta vez vi-o no Teatro Nacional, um edifício bonito que alia a graça da velha arquitetura japonesa às exigências do teatro moderno. A sala tinha meia lotação.
O cenário do cabúqui é belo ainda; os movimentos são muitas vezes grotescos, mas também graciosos; e os trajes, fabulosos. Mas isso é acessório: o que interessa é a peça — ou deveria interessar. Assisti, aborrecido e por muito tempo, tentando assimilar o fulcro e a clareza da Aranha Terrestre. Pelo menos pude seguir as peças, que eram divididas em sete partes principais e trinta e nove secundárias. Um velho ruim tentava seduzir uma jovem e linda donzela. Mas todos no palco pareciam homens de meia-idade, feios, e durante longo tempo não consegui descobrir qual deles era o sedutor ruim e qual era a jovem e linda donzela.
De fato, todos eles eram homens de meia-idade. Não há mulheres no cabúqui, todos os papéis são representados por homens. Um ator não pode decidir sob um impulso repentino: "Agora vou fazer uma temporada de cabúqui". A pessoa tem que ser treinada para aquilo durante uma vida inteira, e os filhos seguem muitas vezes os passos dos pais. Parece que um ator antes de ser realmente bastante bom para interpretar um papel importante — como esse de uma bela, inocente e jovem donzela — deve ser um homem de, pelo menos, cinqüenta e cinco anos.
O cabúqui atravessa uma crise, e as crises são típicas no Japão moderno. Eles procuram aceitar os hábitos ocidentais; tentam, contudo, salvar o mais possível as suas velhas tradições. Esta nova produção do Teatro Nacional foi consideravelmente destradicionalizada, modernizada e ocidentalizada. A orquestra atua fora do palco; há menos queixumes e guinchos — embora se tivessem mantido ainda bastantes. A maior façanha foi a mistura estranha do tradicional cabúqui com o music hall frívolo, eduardino, e o Grand Guignol parisiense dos anos 20. Certamente que falha por um lado e tem sucesso por outro; esta modernização é uma tentativa de autodefesa. Algumas tradições decepcionam a modernização; outras, pelo contrário. Muitas vezes pode-se dar novos significados a velhas idéias; pode-se frequentemente encher garrafas velhas de vinho novo; mas, quando a essência da velha tradição é simplesmente vinho velho e garrafas velhas, a tarefa é mais difícil. Se se desempenha o cabúqui, é melhor seguir o estilo da Aranha Terrestre e manter-se desafiadoramente antiquado, primitivo e arcaico. O velho cabúqui tem os seus devotados seguidores; o novo parece beber de duas fontes: uma oriental e outra ocidental. Uma pessoa pode usar um quimono ou andar de um lado para o outro com blue jeans; mas não pode usar um quimono como um blue jeans. Ela não pode tocar a hichiriki como se fosse uma guitarra elétrica.
"Tempura mutantur"
Há um outro assunto sobre o qual estou inteiramente arrependido: acerca da comida japonesa. Acho-a deliciosa. Não é somente a cozinha mais original, é realmente o contrário de qualquer coisa que se possa encontrar em qualquer parte — e também a mais subestimada.
No meu primeiro encontro com a comida japonesa, achei-a esplêndida, como a cozinha americana, mas precisamente sem gosto. O seu cheiro era mais apetitoso, o seu som — você deve comer ruidosamente para demonstrar o seu apreço — mais melodioso. Por outras palavras, a comida japonesa parece-me agradável aos olhos, nariz e ouvido. Foi somente contra o seu paladar que objetei.
A cozinha japonesa relaciona-se com a chinesa, como a inglesa com a francesa. Ambas são ofuscadas pelas de seus grandes vizinhos continentais. A oposição à comida inglesa e japonesa tornou-se tão proverbial que as pessoas se habituaram a ignorar que ambas melhoraram nas últimas décadas. Depois de pensar uma segunda vez, não foi a minha opinião que mudou: foi a comida japonesa. O meu aviso a todos os visitantes é: sejam ousados e experimentem os pratos mais exóticos. Vocês farão uma experiência completamente nova em gastronomia, agradável e excitante. O paladar da comida japonesa melhorou, e a sua beleza se mantém. Todas as coisas são servidas — habitualmente até nos lugares mais modestos — com grande cuidado estético. Cada almoço é uma refeição de cerimônia; cada prato é um arranjo de comida preparado com arte. Eles parecem empregar não só cozinheiros nas suas cozinhas, como também escultores e decoradores de pratos.
O único prato japonês que é bem conhecido em todo o mundo é o sukiyaki, e este não é sequer japonês: é de origem chinesa. Prepara-se com vários ingredientes e é cozido à mesa, num pequeno fogo, pelos próprios clientes. Tem poucas variações: shabu-shabu é uma; o churrasco Gengis Khan — uma variedade de carnes com vegetais deliciosos, grelhadas na sua mesa — é outra. Ora, tudo isto é muito divertido e mesmo espetacular, gastronomicamente falando, mas um pouco turístico e nada verdadeiro como comida japonesa.
A verdadeira alimentação nativa do Japão é o peixe. Nós detestamos a idéia do peixe cru e exclamamos: "Que bárbaro!" Mas saímos dali e vamos comer ostras, arenques com escabeche e bife ao molho tártaro. O peixe cru japonês — sempre fresco, maravilhosamente cortado na sua frente, servido com molho picante e acompanhado por picles celestiais — é uma comida muito delicada e eu me tornei apreciador do sashimi (simplesmente peixe cru) e do sushi (postas de peixe cru enroladas em pequenas bolas de arroz). Cheguei a converter-me à galinha crua; uma fatia fina de galinha ensopada em vinho é na verdade deliciosa. O yakitoriya — o restaurante de galinha — é outra glória do Japão: você encontra na sua frente galinha preparada de dúzias de maneiras diferentes.
O peixe frito, o tempura, está muito próximo das nossas idéias ocidentais. Num restaurante medíocre isto pode ser um desapontamento. Você deve escolhê-lo cuidadosamente e então encontrará excelentes variedades de tempura. Como um grande estudioso de literatura e cozinha clássica japonesa observou tão devidamente: "Tempura mutantur".
Uma palavra acerca do saque, o seu famoso vinho de arroz. Algumas pessoas dizem antipatizar com o saque e desdenhosamente afirmam que podem beber qualquer número desses pequeninos copos sem sentirem qualquer efeito. Mas há saques e saques, como há vinhos e vinhos: as variedades são muitas, a diferença entre saque bom e mau não é tão pequena como a diferença entre a retsina e um soberbo clarete francês. E a respeito de beber maiores ou menores quantidades... bem, algumas pessoas agüentam mais do que outras. Mas lembrem-se: o saque frio (1) não tem paladar e (2) pode ser tomado em largas doses — embora custe muito fazê-lo. O saque quente é incomparavelmente melhor e derruba incomparavelmente mais depressa.
Adoro comer com pauzinhos, e não me importa sentar no chão (como acontece se você escolhe um verdadeiro restaurante japonês; caso contrário, senta-se em cadeiras). Devo admitir que comer de cócoras é uma habilidade adquirida e eu sou pouco menos do que um principiante. Sou normalmente um tanto grosseiro com as mãos, mas tenho uma habilidade nata para comer com os pauzinhos. Posso usá-los com a facilidade e a segurança de um antigo samurai.
Sentado no chão, comendo pedaços disto e daquilo e montinhos de arroz com os paus, sinto-me compensado de certos pequenos fracassos. Nunca deixei cair um pouco de gordura que fosse na lapela do casaco ou na gravata. Deixo-a cair sempre nas calças.
Pode-se achar que isto é levar longe demais esta paixão. Certa vez, fui com um grupo de ingleses residentes em Tóquio a um verdadeiro restaurante japonês num recanto escondido da popular Asakusa — longe dos locais infestados pelos turistas. Fomos conduzidos a uma dessas pequenas salas especiais onde as refeições são servidas, e no caminho um dos meus companheiros descobriu um dos seus amigos — outro inglês — a jantar, acocorado no chão, com aparente facilidade.
— Invejo-o — disse ele. — A única coisa que não sou capaz de aprender é a ficar agachado.
— Bastante fácil, na realidade — respondeu o outro, um tanto paternalmente.
Prosseguimos na direção da outra sala. Comíamos a nossa refeição e ter-nos-íamos esquecido dele se não fosse o seu inesperado reaparecimento. Tinha querido estender um pouco as suas pernas cansadas — estar acocorado era fácil até certo ponto... —, perdera o equilíbrio, tombara contra o fino papel da parede, e terminara a viagem através dele — com as adequadas desculpas britânicas — na minha sopa.
Um cripto-matriarcado
"Se você quer ser um japonês, seja um homem." Este é o aviso mais superficial que os observadores lhe poderão dar. Mas não é seguido por cerca de metade da população do Japão, e ela sabe o que faz. "É um país de homens", diz o turista de pouco tempo. Quem permanecer por mais tempo não estará tão certo disso.
A maioria dos japoneses vive uma vida dupla: uma ocidental, no escritório e em público; outra, japonesa, em casa. A maioria usa roupas ocidentais no trabalho e quimono ou yukata — o roupão que é a versão do quimono — em casa. Isto pode não ser somente o resultado da devoção ao tradicional, mas também do bom senso. Tenho pouco sangue japonês nas veias, mas adquiri bastante cedo o hábito do yukata: é agradável, confortável e fresco. Sejam quais forem as razões e os motivos, logo que uma pessoa usa roupa japonesa adquire maneiras japonesas. Foi o que sucedeu comigo. O hábito faz o monge. Já reparei que alguns dos meus melhores amigos se portam como cortesãos do século XVIII ao vestirem fraques, como os cavalheiros dos clubes eduardinos quando usavam smoking, e como os estudantes itinerantes — mesmo aqueles que têm mais de cinqüenta anos — logo que vestem blue jeans nas ilhas gregas.
No Japão, entre as duas vidas das pessoas há o sapato. Creio que a barreira do sapato é uma importante linha divisória. Não estou simplesmente falando da regra que obriga a descalçar os sapatos quando se entra numa casa japonesa — isto é puramente físico. O problema é que a psicologia do sapato não tem sido devidamente explorada. Quando um ocidental residente no Japão principia a falar pormenorizadamente sobre a limpeza, a suscetibilidade dos japoneses ao ponto de não usarem sapatos dentro de casa, é porque apanhou o escaravelho oriental e está "caído" pelo Japão; quando um japonês subitamente declara: "Isso que vá para o diabo! Estou farto de tirar constantemente os sapatos. Não faço isso no escritório, por que deveria fazer em casa? ... " é porque está verdadeiramente ocidentalizado. (Todavia ele terá de continuar a tirar os sapatos em casa. As coberturas do chão japonesas — os famosos tatami — não são feitas para sapatos.)
O ponto a que eu quero chegar é este: as conseqüências de uma vida dupla são aparentemente desastrosas para as mulheres. Em casa, são tratadas como se estivessem nos velhos tempos, têm que obedecer aos seus senhores, aos seus donos, e são, acima de tudo, excluídas da vida ocidental dos seus maridos, os constantes divertimentos e a importante vida social que se segue às horas do escritório.
Em muitos lares, quando o senhor chega à casa, a esposa curva-se; se passeiam juntos nas ruas da vizinhança, a esposa caminha atrás do marido; se estão de novo em casa, o marido senta-se e não se levantará para ir buscar o jornal: dará um estalo com os dedos e a esposa irá buscá-lo; se a família tem unicamente uma banheira, não há dúvida sobre quem se lavará primeiro.
Mas tudo isto se altera por diversas razões. Cada vez as mulheres vão mais para o trabalho. Cada vez as mulheres — mesmo nos lugares mais remotos do país — vêem mais televisão (cerca de cem por cento das pessoas têm televisão e observam diariamente uma forma diferente de vida). Muitas delas, portanto, recusam-se agora a manter-se criadas obedientes e obsequiosas dos seus pais ou maridos. Não houve uma revolução violenta: houve — e continua a haver — uma lenta mudança de atitudes.
Em número crescente, as jovens — ainda em minoria — recusam-se a casar com quem os pais querem; e os jovens recusam-se também a aceitar silenciosamente a escolha dos seus pais. Hoje, muito provavelmente, obedecem, em vez disso, às ordens da firma: um grupo substitui o outro. A firma tem uma influência reacionária. Não tão reacionária como a família, que não só é uma entidade incestuosa e cerrada, uma das forças mais conservadoras, mas também, obviamente, o paradigma do princípio da hereditariedade.
As mulheres mais espertas e ousadas revoltam-se mais ou menos abertamente — e muitas delas nem mesmo têm que se revoltar, porque os seus maridos não aderem às velhas formas feudais como muitos outros. Mas, mesmo hoje, os revolucionários são uma exceção. As pessoas, na sua totalidade, não querem realmente liberdade: na verdade, elas fogem disso. Liberdade significa responsabilidade — uma das coisas mais terríveis do mundo, desde o sucesso das religiões, dos partidos comunistas e dos vários Hitlers das várias épocas. Habitualmente são alguns indivíduos mais destacados que forçam a liberdade sobre uma plebe sem vontade própria, que está sempre pronta a obedecer (aparentemente) à idéia, mas não a quer, na prática. As sufragistas inglesas e americanas encontraram muito mais oposição por parte das mulheres que dos homens; a maioria das mulheres suíças ainda não quer o voto (as mulheres japonesas, como disse anteriormente, têm-no); e há muitos negros que se opõem aos movimentos por direitos civis.
As mulheres japonesas têm, contudo, outros motivos mais poderosos para lutar do que o desejo de liberdade.
No Japão, o trabalho caseiro costuma ser mais pesado do que na Europa, e muito mais pesado do que nos Estados Unidos. É verdade que há menos mobiliário na casa, mas remover as pesadas esteiras todas as manhãs e arrastá-las todas as noites é trabalho mais pesado do que fazer a cama à nossa maneira. Cozinhar significa também uma trabalheira em cozinhas antiquadas, e os inúmeros pratos pequenos são muito mais difíceis de lavar. (Qualquer marido se riria às gargalhadas, à mera idéia de ter de ajudar.) Fazer compras é mais fácil porque todas as coisas são enviadas para casa sem se pagar mais por isso. Mas a vida da mulher mais pobre é por hábito penosa, enquanto a da mulher mais rica é recheada de tédio. A última tem criados, e todas as mulheres japonesas — ricas e pobres — estão isentas de um dever: divertir-se. As mulheres ficam sozinhas durante longas noites enquanto os maridos trabalham duramente para obter uma promoção... em restaurantes de primeira classe, clubes noturnos e casas de gueixas, frequentemente até altas horas da madrugada. Pobres criaturas!
Hoje, todavia, as mulheres estão fugindo cada vez mais a tal vida difícil. Os maridos, talvez para aliviarem a consciência, sentem-se felizes por adquirir máquinas de lavar roupa e lavar louça e toda a espécie de novas engenhocas. Mas em vez de a sua generosidade ser compreendida, o que sucede é que as esposas, pouco a pouco, se vão tornando mais rebeldes. O trabalho penoso que elas se habituaram a suportar faz parte das coisas inevitáveis; aumentar-lhe o tédio é algo que elas se recusam a aceitar. Elas sofrem intensamente por causa disso, e, embora os inúmeros canais de televisão possam atenuá-lo, não podem eliminá-lo de forma alguma. Um nobre desejo de liberdade fará com que se movimente um pouco; o desejo de escapar ao tédio está criando um movimento em massa.
As bravas rebelam-se, as briosas querem uma mudança, mas as mais astutas sabem que a sua situação não é cinqüenta por cento tão má como parece. É verdade que o homem recebe todas as reverências e desfruta de muitos sinais exteriores de respeito, mas ele é como um monarca constitucional: caminha por cima de tapetes vermelhos toda a sua vida, goza dos atavios do poder, mas tem pouco de substância. Reina, talvez, mas não rege. É a pequena, a oprimida, a obsequiosa fêmea quem exerce o poder real. Como um amigo japonês me disse, num tom de lamento: "Vou lhe contar um segredo: o Japão é, de fato, um matriarcado. Pior do que os Estados Unidos".
Essa mulher pobre e pequena agüenta o reino em segundo plano e é, frequentemente, uma personalidade formidável. É ela quem toma todas as decisões respeitantes ao lar e à casa, à educação das crianças, ao casamento dos filhos (logo que estejam aptos a isso) e — o mais importante de tudo — é o tesoureiro da família; os seus dedos apertam os cordões à bolsa e esta move a alavanca do poder real.
A extensão do poder feminino vai até o sustento de uma nova indústria, única no Japão. É a indústria do falso envelope do ordenado. Milhões de homens japoneses — a grande maioria deles — não têm acesso à confusão dos relatórios de despesas e gostariam de possuir mais um pouco de dinheiro para si. Mas têm ordens estritas das suas pobres e oprimidas esposas para levarem para casa, ainda por abrir, seus envelopes de pagamento, e eles não ousam desobedecer. É aí que surge a nova indústria. Há envelopes impressos e fornecidos a pedido, indicando necessariamente pequenas importâncias; réplicas dos envelopes das companhias, com o talão dos vencimentos mostrando os descontos. Um homem pode abrir o seu verdadeiro envelope de ordenado, tirar uns poucos milhares de ienes para seu gasto particular e entregar à autoridade máxima o envelope devidamente fechado, com toda a aparência de não ter sido aberto.
Se isto continua por muito tempo, a opressiva e fidalga mulher japonesa terá que obter a emancipação, com golpe de mestre, e iniciar um movimento de igualdade dos direitos do homem.
Anda já no ar algo semelhante a isto: por que é que certas ocupações deverão estar vedadas aos homens? Não ouvi falar ainda de gueixas masculinas, mas hospedeiros masculinos já fizeram a sua primeira aparição.
Uma encantadora senhora irlandesa, que trabalha como governanta em casa de uma família inglesa em Tóquio, falou-me da sua experiência acerca disto. Ela foi um dia a um café recentemente inaugurado e pediu uma bebida gelada. Um jovem bem-falante, agradável, elegante, convenientemente vestido, aproximou-se e pediu-lhe licença para se sentar na sua mesa. Tendo sido autorizado, sentou-se, encomendou uma limonada para ele, e pôs-se a conversar com ela muito animadamente durante uns vinte minutos. A senhora — bela e encantadora, mas já longe dos vinte e poucos anos — sentiu-se muito feliz com o seu sucesso: o jovem era pelo menos dez anos mais jovem do que ela. Ergueu-se, por fim, e despediu-se do seu companheiro.
— Muitíssimo obrigada — disse ela com calor.
— O que é que quer dizer com "muitíssimo obrigada?" — perguntou o rapaz, deveras surpreendido. — Você tem que pagar a minha bebida e me deve trezentos ienes.
Uma nota à margem para este notável progresso. O Sr. Michikhiro Kono, gerente do último e maior clube de hospedeiros de Tóquio, o Night Miyamasu, disse a um repórter do Asahi Evening News que o seu clube noturno já foi do tipo convencional, com anfitriãs em vez de "companheiros sociais"
— como ele prefere chamar aos seus jovens — e que depois da mudança o negócio melhorara. Acrescentou que publicara um anúncio e mais de seiscentos e vinte homens, entre os dezoito e os trinta e cinco anos, se apresentaram. O salário mensal era de duzentos mil ienes (duzentas e trinta e cinco libras ou quinhentos e sessenta dólares). Como o trabalho principia às cinco e meia da tarde, os homens podem ter esta ocupação como segundo emprego. Nos pretendentes estavam incluídos empregados de firmas famosas, professores do ensino secundário e pessoal de primeira, da Força de Defesa Japonesa. Dez por cento deles eram homens casados. Um dos candidatos levava uma autorização escrita pela esposa.
A gueixa
Em todas as discussões, a primeira regra é: esclarecer os termos em que você fala. Isto é importante na filosofia, na lingüística ou na política, nas ciências políticas e nas leis. Livros (na verdade todas as bibliotecas) inteiros têm sido escritos sobre a interpretação de um "e" ou "um" que figure num estatuto ou tratado internacional. A definição clara dos termos é importante em todos os campos, mas em nenhum como no que diz respeito às gueixas.
Os ocidentais de ambos os sexos têm muitas vezes a impressão de que uma gueixa é uma espécie superior de prostituta. Mas os maridos ocidentais, no seu regresso a Manchester, Los Angeles ou Melbourne, fazem um grande esforço para explicar às esposas que não são nada disso: nada pode estar mais longe da verdade, dizem eles, com uma gargalhada ligeiramente nervosa. As gueixas são jovens senhoras cultas, com maneiras exóticas, dançarinas, cantoras e entretenedoras de grande talento, e não é na sua habilidade na arte do amor, mas na sua habilidade de companheira que a sua reputação se assenta.
A verdade — pelo menos juma verdade, já chegarei à outra — é que a gueixa é uma jovem prostituta altamente culta e treinada, com espantosa facilidade de resposta.
E igualmente verdade, não obstante, que, enquanto as gueixas podem ser compradas para a noite (é uma questão de preço, e um preço muito alto), uma festa de gueixas, na maioria das vezes, consiste somente no jantar, no saque como bebida, numa dança cuidadosa, numa canção e numa conversa divertida (cheia de respostas prontas). Mamasan — a sábia e todo-poderosa supervisora e mentora das moças (seria horrivelmente rude chamá-la de dona de bordel) — não fica surpreendida se alguém deseja demorar-se até mais tarde numa das pequeníssimas casas onde as festas se realizam, mas, como regra, depois da meia-noite os convidados regressam ao seio das suas famílias.
Um jovem alemão que vivia em Tóquio há cerca de quatro anos e estava no bom caminho do sucesso comercial conversou comigo sobre este assunto.
— Estou falando de homem para homem — disse ele. — Por favor, não divulgue este segredo, far-me-ia parecer ridículo. Ficaria malvisto, e isso seria fatal. Promete?
Prometi.
Ele olhou cautelosamente à sua volta e então prosseguiu.
— Amo minha mulher. É uma moça japonesa. Nunca lhe fui infiel e não tento sê-lo. No entanto, tenho que andar pelo menos três noites por semana nos bordéis. Muito bem, chamam-lhes casas de gueixas. Saio à meia-noite, e assim faz a maioria dos meus amigos comerciantes japoneses. Não é tão mau quando você consegue sair de casa. Mas eu não posso sair senão para festas. Como poderia você ir aos bordéis três vezes por semana?
Achei esta pergunta desnecessariamente pessoal e deixei-a sem resposta.
— Minha mulher não suspeita de que eu só seja capaz de lhe ser fiel — prosseguiu ele. — Esse é o meu triste segredo. Ela pensaria o pior de mim se descobrisse. Você não conta? Você prometeu...
Disse-lhe que não se incomodasse. Escreveria acerca dele no meu livro, mas à parte isso eu não divulgaria uma palavra.
— Outro dia pensei que tinha enganado três japoneses — disse ele com um largo sorriso. — Tirei os contratos da gaveta e, inesperadamente, estendi-lhes uma caneta. Isto passou-se no meu escritório, entende? Eles ficaram tão surpresos e confusos que assinaram. Depois que foram embora, senti-me feliz. "Esta noite, para mim, não há gueixas", pensei, antecipando os prazeres de uma noite sem gueixas. Mas ri-me cedo demais. Nessa tarde, os três cavalheiros japoneses, todos sorrisos e reverências, reapareceram no meu escritório. Não explicaram para que vinham. Nem necessitavam. Saímos e fomos para o bar... Refiro-me a uma dessas tradicionais casas de gueixas para uma pessoa se distrair.
Os americanos conseguiram outro grande "primeiro" batendo todas as outras nações. A façanha é menos famosa do que os seus desembarques na Lua, mas não menos notável. Eles têm a primeira gueixa americana em Tóquio.
Esta senhora americana usa um lindo quimono e o seu cabelo louro foi penteado para o alto, no estilo das verdadeiras gueixas. Ela canta canções japonesas e acompanha a si mesma à guitarra; quando esgota as canções japonesas, umas tantas canções americanas, um pouco atrevidas, salvam a situação. Consideram-na menos raffinée do que as verdadeiras gueixas, embora tenha sempre respostas muito rápidas. Americanos que vivem em Tóquio não a tocariam nem com uma flor; eles dizem — muito incorretamente — que ela é uma prostituta sofisticada. Os americanos — e outros brancos — mantêm-se fiéis às gueixas japonesas. Mas os homens de negócios japoneses são atraídos por ela e costumavam formar fila em frente à porta do seu quarto: o fascínio de uma loura americana é prova irresistível para muitos. Eu digo "costumavam" formar fila — não porque a sua atração tenha decrescido. Ela tem feito bom negócio e tem enriquecido; hoje pode escolher à vontade os seus clientes. Não obstante, os seus inimigos asseguram que o negócio dela é controlado pela alcoviteira a quem chama Papasan.
Mas, como observei atrás, o esclarecimento dos termos é muito necessário. Essas moças que acabo de descrever fazem-se, na verdade, hoje, chamar de gueixas; outras pessoas também chamam-lhes gueixas. Mas isso é um abuso do termo. A demanda de gueixas e dos seus serviços tornou-se tão grande que essas moças — realmente sem qualquer treinamento — fazem o melhor que podem num mercado vendedor. Os admiradores das autênticas gueixas referem-se a elas, muito altivamente, como gueixas-travesseiro, que podem ser alugadas para a noite.
A verdadeira gueixa é um pássaro de diferente plumagem. Não que ela não seja uma prostituta: ela é. Mas é a prostituta mais bela, mais preciosa e mais culta que você pode encontrar em qualquer lugar; e a única prostituta que é genuinamente respeitada, e procede de igual maneira, respeitando os outros.
Quando uma gueixa termina o aprendizado da sua muito difícil arte de conversar, responder, cantar, dançar, tocar guitarra, proceder às cerimônias do chá, das flores, dos adornos, etc. (e principalmente a sua educação em Kyoto, que é a grande universidade das gueixas, a sua Cambridge ou Harvard), ela será, o que é muito natural, uma virgem. Estará então com vinte e um anos, pronta para o seu primeiro cliente. A Mamasan da casa de chá conhecerá bem a moça e apreciará o seu real valor; e conhecerá também o mercado. A moça deve ser escolhida por um pretendente, que lhe pedirá então o seu consentimento. Ela é absolutamente livre para se negar. Se diz que sim, entra na casa que o cliente lhe comprou. A casa é dela e manter-se-á dela aconteça o que acontecer.
— A esposa do cliente saberá? — perguntei eu a um cavalheiro, que era um verdadeiro expert na matéria. Ele encolheu os ombros.
— Algumas vezes ela sabe e aprova: ter uma gueixa confere posição. Outras vezes ela sabe e desaprova, mas pouca diferença faz. Uma mulher pode divorciar-se de um homem no Japão, mas o adultério dele não é uma das razões para o divórcio. Algumas vezes ela prefere não saber — e então não se importa.
Os detalhes do acordo financeiro são sempre tratados muito discretamente e nunca revelados a ninguém. Como norma, o cliente paga simplesmente todas as contas da gueixa; quando o acordo original é feito, ele paga ainda uma generosa comissão à Mamasan.
A ligação entre a gueixa c o seu primeiro cliente dura muitas vezes a vida toda. Ela é, de fato, uma segunda esposa, em certos casos mais fiel, mais leal e companheira do que a primeira. O casamento, em muitos casos, não é mais do que uma prostituição legalizada; as relações gueixa-cliente, por outro lado, são muitas vezes um casamento não-legalizado. Em alguns casos, a ligação só dura uns poucos anos e a gueixa é tão livre para terminá-la como o seu senhor. Mesmo que seja ela a fazê-lo, a casa continuará a pertencer-lhe. As gueixas são moças orgulhosas, guardam fidelidade aos seus senhores e poucas têm mais que dois ou três durante toda a sua vida. As suas casas são habitualmente belas e elegantes, e elas, pessoas respeitáveis da sociedade. Mas também estão em extinção.
Tendo encontrado os seus senhores, elas prosseguem o seu trabalho como gueixas, isto é: vão às festas cantar e dançar e divertir outros homens, mas são estritamente monógamas — se esta é a palavra exata — e mantêm-se fiéis aos seus senhores. Uma pessoa não pode fazer, nem faz, uma proposta indecente a uma verdadeira gueixa, da mesma forma que não faz à esposa de um amigo.
O que significa que ocasionalmente o faz. E isso significa também — como as gueixas são apenas virtuosos seres humanos, e não anjos — que tais propostas só são aceitas ocasionalmente. A moça dirá então adeus ao seu senhor e aceitará um novo; ou poderá continuar em segredo o caso de amor com o escolhido pelo seu coração, partilhando esse amor com outro.
— O freguês, o dono e senhor, em regra descobre? — perguntei.
— Algumas vezes sim, outras vezes não — replicou filosoficamente o meu amigo. — Algumas vezes ele pretende não saber, outras não ligar, e, em alguns casos, apoquenta-se e corta as relações. Ele procede ou louca ou sabiamente, como outros maridos procedem em todo o mundo. Afinal, isso é um casamento. No Ocidente, geralmente os homens têm duas esposas consecutivamente, uma após outra; no Japão — na classe que pode ter gueixas — ele tem duas esposas, simultaneamente. E a única diferença. A superioridade de um sistema sobre o outro está aberta ao debate.
Tóquio
Muitos japoneses lhe dirão que Tóquio é uma cidade feia. Você não deve discordar deles, porque isso seria indelicado; mas também não deve concordar com eles, porque seria ainda mais indelicado. Diga: "A beleza está nos olhos do observador", ou cite Wilde ou Kant sobre beleza, em geral. Enquanto você diz isso e faz citações, Tóquio mantém-se uma cidade feia. Há edifícios feios e bonitos ou mesmo bons (um dos que eu gostava, o velho Hotel Imperial de Frank Lloyd Wright, foi demolido entre as minhas duas visitas); há poucos parques; não há montanhas ou mesmo morros dentro ou fora da cidade; não há áreas verdes; há poucos monumentos que valham ver; a poluição do ar é terrível; o ruído, perpétuo, ensurdecedor; o tráfego, mortífero. Vá ao Rio de Janeiro, a Hong Kong ou a Istambul se quiser admirar a beleza natural de uma cidade; ou, se quer ver edifícios, vá a Paris, Roma ou Veneza.
Algumas pessoas comparam a vastidão de Tóquio à de Londres. As duas cidades são muito diferentes, e, apesar da sua vastidão, não podem ser comparadas: Londres é uma galáxia de vilas sem conta; Tóquio é uma pequena cidade ultra povoada. Tóquio lembra, talvez, Los Angeles, uma aglomeração triste de casas sem um verdadeiro centro, mas, uma vez mais, com uma grande diferença: Los Angeles tem uma população rica que vive em casas excelentes e espaçosas; a população de Tóquio está acumulando cada vez mais riqueza, mas as condições de habitação são aterradoras.
Os estrangeiros lamentam com freqüência que os seus amigos japoneses nunca os convidem para ir às suas casas. Não podem. Mesmo os ricos vivem em condições de tal superlotação que nenhum trabalhador inglês ou sueco se sujeitaria a suportá-las um dia que fosse. Em Londres o espaço médio para viver (que uma pessoa ocupa) é de 9,2 metros quadrados; em Nova York, 11,9 metros quadrados; em Tóquio, somente 0,4 metro quadrado. Em outras palavras, o habitante de Tóquio vive numa sala imaginária cujas dimensões são de vinte centímetros por vinte. Mas o problema não é só a falta de espaço. Quarenta e sete por cento das casas seriam condenadas por esta ou aquela razão. Só vinte e cinco por cento delas têm esgotos próprios, e as condições sanitárias — para usar o eufemismo do século — são antiquadas. A situação na cidade é pior. As rendas são exorbitantes. Não é invulgar pagar-se cinco ou seis mil libras por um apartamento realmente bom, embora não grande, em Tóquio, e uma sala razoável (chamada sofá-cama) custa dez mil ienes (doze libras ou cinqüenta dólares) por semana.
Os japoneses não sentem o mínimo desejo de convidar as pessoas para irem às suas casas. A idéia genericamente aceita é a de que o melhor lugar para proporcionar distração é um restaurante luxuoso, e que seria de pouca delicadeza convidar um amigo a visitar uma espelunca.
As condições de habitação não se desenvolveram o suficiente. São construídos inúmeros blocos para escritórios, ao passo que rareia a construção de casas para morar; surgem também imensas garagens. Um japonês não pode obter licença para comprar um carro se não provar que tem onde guardá-lo. Por isso, os carros muitas vezes são acomodados antes das pessoas.
Tendo dito tudo isto, devo acrescentar uma palavra de qualificação. Enquanto as condições de habitação são más, normalmente chocantes, muita gente afortunada vive confortavelmente. E, bem mais importante, não pense que as casas mais pobres — mesmo as paupérrimas — sejam locais de degradante imundície. Com o seu congênito sentido de limpeza e de estética, eles aproveitam da melhor forma as suas oportunidades. A mobília é escassa mesmo nas casas japonesas mais ricas — as casas japonesas não necessitam de móveis —, e é espantoso o que o bom gosto, um pequeno cuidado, uma nota de frescura aqui, um arranjo de flores acolá, podem fazer. Todos os apartamentos ou casas que vi eram pequenos; todos limpos, atraentes e elegantes. Mesmo os lugares mais pobres e modestos têm um encanto e uma dignidade próprios.
Devido à falta de espaço, as pessoas saem de casa logo que lhes é possível. Este hábito adiciona ainda outra injustiça à posição da mulher. O japonês antiquado associa encanto, felicidade e beleza da vida com o fato de se achar longe de casa; c associa pobreza, monotonia e aborrecimento com sua esposa.
Só em Tóquio há oitenta mil bares para as pessoas que fogem; um bar para cada cento c cinqüenta pessoas, incluindo bebês, crianças, doentes e pessoas idosas.
Há hotéis muito bons. Os quartos são bonitos, muitas vezes espaçosos, e equipados com toda a sorte de conforto moderno: campainha, telefone, rádio e televisão. Os lençóis são mudados diariamente e uma yukata — como sem dúvida o leitor se lembrará — é também fornecida todos os dias. Além disso, a pessoa recebe, também todos os dias, uma escova de dentes, pasta c gilete novas. O único problema com os excelentes hotéis de Tóquio é que não existem cm número suficiente. Cheguei lá cerca de três semanas mais cedo do que tinha planejado — por outras palavras, ingênua e desafortunadamente, sem reserva de hotel. Mas, se não fosse a minha companhia de aviação, a Lufthansa, eu teria de dormir debaixo de uma árvore num dos poucos parques de Tóquio.
Sinto que o mínimo que posso fazer para compensar os desgostos e atribulações que causei à Lufthansa é pagar-lhe aqui um pequeno tributo. Que ela é uma excelente companhia de aviação, no que diz respeito a vôos, não restam dúvidas. Encontram-se nela todas as gentilezas habitualmente anunciadas. (O que não é sempre o caso com todas as famosas companhias de aviação.) No entanto, o seu serviço principiou muito antes da partida e prosseguiu muito depois do pouso. Olhavam-me como se eu fosse sua responsabilidade. Eu era isso, suponho — e eles cuidavam de mim com afeição. Não tendo acabado o meu trabalho a tempo num lugar, ou tendo-o acabado mais cedo do que esperava noutro, tive que alterar os meus registros de bagagem com bastante freqüência, contrariando semanas de cuidadosos planos. Cheguei a Tóquio — Tóquio! — sem reserva de hotel. Toda a minha correspondência tinha sido enviada para os seus vários escritórios e as cartas muitas vezes tinham de ser enviadas para novos destinos. Tive que fazer viagens de trem e de carro para cidades onde as suas linhas aéreas não chegavam, necessitando de informações de toda a espécie. E finalmente eles, na época mais difícil, encontraram-me uma deliciosa ilha grega e um quarto de hotel onde eu pude instalar-me e escrever este livro. Cortês e sorridente, o pessoal sempre esteve disposto a fazer-me todas as vontades, como se ficasse satisfeito por me ver voltar uma vez mais, embora com outras tantas impossíveis solicitações. Penso neles não só com gratidão, mas também com uma piedade quase filial.
Falei candidamente acerca da fealdade e dos pequenos defeitos de Tóquio. Mas há o reverso da medalha.
A velha Tóquio está desaparecendo lentamente. A cidade sofreu muito com os tremores de terra e os bombardeios aéreos, e muitas casas foram destruídas. Novos, grandes blocos de escritórios surgem em lugar das pequenas casas, e o horizonte de Tóquio muda rapidamente. Com receio dos tremores de terra — Tóquio tem cerca de vinte por dia, a maioria só percebida pelos sismógrafos —, a construção de edifícios altos costumava ser proibida; agora, novos métodos de usar aço e a obrigação de construir dois, três ou quatro subsolos tornaram possível fazer blocos altos. Como resultado dos novos prédios de escritórios ou da mania de arranha-céus, Tóquio está perdendo sua fealdade peculiar e adquirindo a fealdade internacional que encontramos em todo o mundo e à qual já nos resignamos. Mas nem tudo é feio em Tóquio. Há uns tantos — repito, uns tantos — belos edifícios e templos e santuários impressionantes; há uns tantos — eu devo repetir de novo, uns tantos — parques que interessa visitar. E a superlotação, a falta de espaço, tem uma vantagem agradável à vista. Tudo tem que ser pequeno em Tóquio: casas, salas, lojas — e até as pessoas, sente-se, são talhadas à medida das casas. As ruas consistem apenas de pequeninas casas que muitas vezes lembram casas de bonecas com pequeninas mulheres de quimono andando nas pontas dos pés, e homens igualmente pequenos sentados imóveis nas suas diminutas lojas.
Tóquio à noite é um lugar muito diferente de Tóquio visto de dia. Depois de os escritórios fecharem e as pessoas que vivem fora deixarem a cidade, Tóquio adquire uma nova face. Milhões de letreiros a néon acendem-se subitamente, e em nenhuma parte do mundo há mais atração, mais fascínio, mais movimento do que aqui. Os cafés, bares e clubes noturnos, lojas de sushi, yakitoriya, restaurantes chineses e churrascarias coreanas, teatros, cinemas, cineramas, salões de striptease, e muitos outros estabelecimentos abrem as suas portas, e um novo tipo de lazer, de busca de prazer, surge com a multidão na Ginza e outros centros de diversão. A vida noturna nesta selva mundana continua, continua e continua até às dez e meia da noite! ... As pessoas então pulam para os táxis e voam a velocidades espantosas para casa, enfrentando milhares de perigos. Alguns clubes noturnos ficam abertos até mais tarde, mas são exceções. Às onze horas todo o divertimento e pecado terminam (mais cedo aos domingos). Até as moças desobedientes — a maioria delas — vão para casa e, sozinhas, para a cama. Uma cidade não é apenas edifícios; é a sua atmosfera, o seu ambiente, o seu sentido, os seus prazeres, a sua tristeza, a sua loucura, os seus desapontamentos e acima de tudo o seu povo. A Tóquio pode faltar beleza arquitetônica, mas nas personalidades a excitação está viva. Acho-a uma cidade misteriosa e adorável.
Kyoto
"Se Tóquio é feia, Kyoto é linda", muita gente dirá. Esta declaração, posta neste pé, não é verdadeira. Tóquio é feia, mas com reservas; e o mesmo acontece com a beleza de Kyoto. Para ser exato, Kyoto está repleta de templos maravilhosos, jardins e santuários de uma beleza, graça e majestade fora do vulgar; pode-se ver comovidamente — algumas vezes quase oprimidamente — belíssimas obras de arte; e as montanhas à volta são luxuriantes e de sereno encanto; convidativas, embora proibitivas. Pode-se encontrar em Kyoto mais beleza, natural ou artificial, do que em qualquer outro lugar, mas a cidade em si, com os seus três milhões de pessoas, o seu tráfego louco, o seu calor e o seu ruído, não pode ser linda; de certa maneira — como veremos — é mais feia do que a maioria das cidades japonesas.
Kyoto foi chamada Heiankyo nos velhos tempos; tornou-se a capital do Japão em 794 e manteve-se capital por mais de um milênio. E mais sossegada, mais reservada, mais formal de maneiras, mais bem vestida e mais elegante do que a Tóquio comercial e industrial moderna, e está bem atenta à sua real ou imaginária distinção. Há uma dignidade nostálgica e patética, levemente cômica, embora afetuosa, nas capitais de primeira grandeza, de Winchester a Toledo, de Berlim a Kyoto — um pouco similar aos sentimentos feridos que você encontra nos aristocratas depostos. Ambos (tanto as ex-capitais como aqueles aristocratas) se sentem profundamente ofendidos porque os tempos mudaram. Eles estão certos em afirmar que nos velhos tempos — os seus próprios dias de grandeza — havia menos barulho e vulgaridade do que nos dias de hoje; contudo, sabe-se que a real virtude desses velhos tempos residia no fato de eles serem então grandes e importantes, enquanto agora não são nada — ou, na melhor das hipóteses, são de segunda categoria. São rabugentos e conscienciosos, mas também gentis, mais calmos, mais distintos, mais respeitáveis do que os seus rivais parvenus. Tudo o que lhes restou foi um sentimento de superioridade e uma grande dose de nostalgia pelos dias passados. Kyoto — mesmo hoje mais uma ex-capital do que um centro turístico comercial — olha para o mundo com desprezo. Somente perto de Nara isso tende a melhorar. Nara pode olhar Kyoto com desprezo: ela deixou de ser a capital do Japão em 794.
Em Kyoto, particularmente no distrito de Gion, você volta para trás no tempo. Cinqüenta anos? Ou um século? Kyoto está cheia de obras de arte; é a única grande cidade do Japão que escapou aos bombardeios da última guerra, e isso preservou o seu velho encanto, e também a sua antiga sordidez. É por causa disso que Kyoto é não só incomparavelmente a mais linda das cidades japonesas, mas também a mais feia.
Mas é agradável viajar para trás no tempo. Você vê filas de casas, pequeninas estalagens, antiquados restaurantes empilhados uns sobre os outros. Os velhos caminhos convidam-no; as escuras e graciosas arcadas acenam-lhe; as pequeninas casas de papel com salas infinitesimais abrem-lhe os seus segredos e você vê que oito ou dez pessoas vivem num só quarto com a arrumação e o asseio comuns a todos os japoneses. Você passa pelos caixotes de lixo, por um grande número de caixotes de lixo, como se estivessem expostos numa coleção; todos de um vermelho-brilhante e azul-púrpura, polidos e resplandecendo mais do que os puxadores das portas suíças. Você caminha com dificuldade nas passagens escuras e estreitas. Você, ocidental incorrigível, espera que uns tantos delinqüentes juvenis lhe saltem das sombras, pedindo-lhe dinheiro — mas tudo o que encontra são olhares assustados, mas amigos, rostos agradáveis, expressões de boas-vindas. Há relicários em miniatura por todo o lado, nesta cidade de um milhar de templos. Você examina o interior das casas através das portas de cortinas entreabertas e vê uma mulher velha ali agachada, mirando a distância infinita com um olhar vazio, ou uma jovem ocupada na preparação de picles para o marido que, atrás dela, come o seu arroz em uma tigela, mergulhado em pensamentos profundos. A própria Gion, a Ginza de Kyoto, é alegre, florida, alvoroçada e barulhenta.
Os aparentes antros de iniqüidade fecham às nove e meia da noite. Você tem saudades da despreocupada alegria da Ginza de Tóquio, onde tudo se mantém aberto até as dez e meia. Para ser mais preciso: aqui em Kyoto só há cafés, restaurantes bares e semiclubes noturnos que fecham às nove e meia; as lojas estão abertas até às dez e meia. Você não pode tomar uma bebida, nem sequer uma limonada, depois das dez; mas pode comprar um par de sapatos ou uma panela de pressão.
Após alguns minutos nas cercanias da Gion de Kyoto você repara nas jovens senhoras primorosas e trabalhosamente vestidas, caminhando ao longo das ruas e tomando táxis ou carros particulares. Usam quimonos cerimoniosos, feitos de brocado e de seda, e os cabelos são arranjados artisticamente; os penteados ficam no estilo de torres, ajudando a aumentar-lhes a altura, enquanto os rostos são pintados de branco como se fossem de porcelana. São as moças maiko, gueixas estudantes, quase as únicas estudantes no Japão que não se encontram em greve. (Mas hão de estar em breve.) Quando você as apanha momentaneamente voando nas ruas, o que elas fazem é correr de uma festa para outra.
"São todas virgens", ser-lhe-á inevitavelmente assegurado pelos seus amigos e cicerones. Você sorri ironicamente e diz para consigo: "Certamente. Porque, logo que deixem de ser virgens, sem dúvida que toda a gente será informada do fato!" Mas você está enganado e o seu guia está certo: as moças são virgens. Primeiramente, elas não têm oportunidade, vivendo sob estrita vigilância, como acontece, de perder a virgindade; e, em segundo lugar, elas não o desejam. Todas têm entre dezesseis e vinte e dois anos. Na idade dos vinte e dois elas se tornarão gueixas prontas a voar e a viver com os seus senhores, que insistirão sobre o seu estado de virgindade: a virgindade é uma comodidade preciosa e vendável; é verdade, certamente, que isso pode ser comprado e refeito, mas é mais simples e mais barato manter o artigo original.
As moças maiko sairão para distrair as pessoas, cantar e dançar para elas, fazendo a mesma coisa que as gueixas fazem, mas elas não tiveram ainda um senhor. A maiko inicia o seu treinamento para se tornar gueixa aos seis anos de idade; ela continuará a intensificar e a especializar mais o treino, dos dezesseis aos vinte e dois, outros seis anos — que perfazem dezesseis anos completos. Que diabo aprendem elas durante todo esse tempo? — pensará você. A arte de arranjar flores com os seus três estilos principais, seika, moribana e nageira, assim como regras complicadas para ocasiões especiais, mas — tenham paciência — três anos seriam o suficiente para aprender tudo isso; o tea-ism, como se chama a arte da cerimônia do chá, não é muito menos complicado, mas, seguramente, durante igual período de três anos uma pessoa poderia assimilá-la. As moças aprendem a dançar, mas as suas danças consistem em passos pequeninos e tímidos para a esquerda e para a direita, para trás e para diante, que até eu — que não sou bailarino de nascença — poderia aprender em três dias. E elas na verdade não tocam guitarra. A sua conversação e as suas réplicas podem ser devastadoras, embora eu duvide disso; mas todos esses anos de treino não são suficientes para aprender uma simples palavra de qualquer língua estrangeira. Você cansa de parecer pouco caridoso e pouco galante, mas continua a pensar: como é que, se um médico leva seis anos para se formar, uma prostituta só pode obter o doutorado — mesmo que ela seja a mais realizada e deliciosa prostituta do mundo — após dezesseis anos?
Para os nativos se verem livres do dinheiro e impressionar seus amigos estrangeiros ou mesmo japoneses ("eu posso permitir-me isso"), o sistema da moça maiko é insuperável. Uma hora e meia na companhia de duas moças maiko, com poucas bebidas e sem qualquer comida, custa trinta mil ienes (trinta e cinco libras ou oitenta e cinco dólares). É o gasto mínimo, e dispender menos faz com que uma pessoa passe por mesquinha. E isto é apenas o começo de um divertimento noturno. Por esta quantia você é distraído por duas bonecas pintadas de branco que não sabem tocar guitarra devidamente, não dançam, e com quem não se pode trocar uma simples palavra. As gueixas devidamente qualificadas custam duas vezes mais; e, como um amigo japonês — grande autoridade no assunto — observou, são duas vezes mais enfadonhas.
Este enfado é uma grave ameaça para a indústria. As moças maiko estão cansando, c poucas jovens estão preparadas para se tornar maiko. Aqui é que a porca torce o rabo. Nos velhos tempos os pais esfomeados tinham de vender as suas jovens filhas para as casas de chá a fim de obter uns poucos ienes e na esperança de que as moças tivessem uma vida melhor do que na sua casa miserável. Todavia esses dias já passaram: o Japão é um dos países mais prósperos do mundo e ninguém precisa vender a própria filha. Por isso são as filhas das donas das casas de chá e as filhas das gueixas que são persuadidas — não sem dificuldade — a tornar-se maiko e a manter a tradição da família e — o mais importante — o comércio da família. E, uma vez persuadidas a dar o mergulho, as moças têm que trabalhar como colegiais estudiosas e viver como freiras.
Os clientes ricos mostram também sinais de aborrecimento com o sistema em si. As moças da sua própria classe tornam-se mais emancipadas, tornam-se cada vez mais acessíveis, e são melhor companhia do que as maiko e as gueixas.
Por isso o sistema vai murchando lentamente.
Nenhuma moça maiko pode se tornar gueixa antes dos vinte e dois anos. Mas por quanto tempo pode ela manter-se uma gueixa? Não há idade limite. É como fazer o papel de Romeu ou de uma linda e tímida donzela no cabúqui: você deve atingir uma certa idade antes de poder fazê-lo devidamente. Um amigo inglês, que tinha freqüentado durante anos as festas de gueixas, disse-me que nunca tinha encontrado uma gueixa com menos de quarenta anos que valesse a pena.
A gueixa mais popular de Kyoto — a cidade das moças maiko, todas com menos de vinte e dois anos — é uma senhora de setenta e tantos anos. É adorada, muito procurada e cobra honorários exorbitantes. Teve cerca de cinco senhores diferentes nos dias da sua juventude e não tem nenhum hoje; mas ela é arguta, muito lida, rápida no raciocínio e possui um inesgotável repertório de canções traquinas — novas e velhas —, que ela canta com entusiasmo e piscando os olhos.
— Algumas das ruínas de Kyoto podem ser mais velhas mas nunca mais atraentes — observou o meu amigo inglês referindo-se a essa senhora.
Não creio que esteja certo.
Alguns dos templos, tesouros de arte e jardins são fabulosos. O meu favorito — não pela sua beleza, mas como local de interesse — é o Castelo Nijo, no Palácio Nikomura. Tem uma sala de espera especial para os senhores feudais, uma outra para os senhores feudais não-herdeiros, uma para os filhos dos senhores feudais, uma para os filhos dos senhores feudais não-herdeiros, uma para os cunhados dos senhores feudais não-herdeiros, etc. Temos então a câmara de audiência do xógum para os senhores feudais, para os senhores feudais não-herdeiros, etc., por baixo da câmara de audiência para os cunhados dos senhores feudais não-herdeiros. Pareceu-me que a vida dos xóguns devia ter sido particularmente luxuosa, mas foi-me explicado que eles eram simples e austeros. Porque — disseram-me — o primeiro xógum que construiu aquele palácio foi um homem simples e austero. Tinha um quarto de dormir só para si, e uns poucos mais para as suas concubinas. Deixava sempre a esposa em Tóquio — Edo — quando ia para lá, mas fora sempre olhado como um asceta, homem admiravelmente retraído, pois, não tendo tempo para nada, teve mais de duzentas concubinas.
As outras salas tinham nomes poéticos e amorosos. A Sala Salgueiro (onde os senhores feudais eram identificados); Sala Rósea Alvorada (onde eram examinados); a Sala do Jacinto (onde eram torturados) e, acredito, a Câmara do Prazer Celestial, onde eram executados.
Tinham também no palácio o Soalho do Rouxinol. Haviam posto este nome romântico porque, ao andar nele, ouvia-se um som triste e pesaroso, como o de um rouxinol infeliz no amor. A razão deste arranjo romântico nada teve que ver com o amor dos rouxinóis, mas com o desejo de detectar o ruído daqueles que passassem pelo corredor, dispostos a assassinar o xógum.
Mas onde o meu amigo esteve realmente errado na sua comparação entre a velha gueixa e as ruínas de Kyoto foi em dizer que algumas das ruínas poderiam ser mais velhas do que ela. A minha suspeita é de que não há ninguém que o seja. Não porque essa encantadora e ilustre senhora seja tão velha — o que representam, hoje em dia, sessenta anos ou mesmo setenta e cinco? —, mas porque todas as ruínas de Kyoto são incrivelmente jovens.
Vá onde for, você lê descrições dos velhos templos e monumentos, tais como esta:
"Construído no século VIII. Queimou-se e foi completamente reconstruído cm 893, 12 17, 1526, 1.718 e 1933. A estrutura deste templo do século VIII foi erguida em 1965".
Será esta a imagem do Japão renovado? A terra da mais atualizada, da mais recente antiguidade; a terra da marca nova de qualidade antiga?
Osaka
Osaka é a terceira cidade do Japão que o turista estrangeiro mais gosta de visitar, particularmente se tem espírito indomável.
Há a mesma e inevitável rivalidade entre Osaka e Tóquio, como entre muitas primeiras e segundas cidades: entre Rio de Janeiro e São Paulo, entre Sydney e Melbourne, entre Roma e Florença, entre Estocolmo e Gotemburgo. Como no caso das cidades brasileiras e suecas mencionadas, uma é a real, a outra, a capital comercial do país. Osaka foi chamada Manchester do Japão, um título do qual — disseram-me — os habitantes ficam extremamente orgulhosos.
— Osaka é uma aldeia — dirá o povo de Tóquio.
— Há de fato gente demais em Tóquio — observarão os seus amigos de Osaka.
— Bem, Osaka não é realmente uma aldeia — acrescentará você aos naturais de Osaka. — Três milhões de pessoas. Está precisamente certo. — (Algumas semanas mais tarde ouvi a mesma observação acerca da pequena cidade austríaca, Kufstein. "Tem doze mil pessoas. Está precisamente certo." Três milhões está certo, doze mil está precisamente certo.)
Osaka é uma grande cidade industrial, comercial e bancária com "nenhuma cultura", como os naturais de Tóquio se fartam de repetir, e os naturais de Osaka estão sempre prontos a concordar; eles tomam isto quase como um cumprimento. Preferem dinheiro contado a orquestras sinfônicas. Uma das mais antigas piadas japonesas (não há muitas) refere-se a que o povo de Osaka gasta todo o seu dinheiro em comida; o povo de Kyoto, em roupas; e o povo de Tóquio, em política. (Como indiquei atrás, parece que eles fazem mais dinheiro com a política do que gastam com eles, mas eu reproduzo a mofa tal como a ouvi.) È outra graça dizer-se que o povo de Osaka não se cumprimenta com o habitual "Bom dia" ou "Boa tarde", mas com a pergunta: "Como vão os negócios?", e a resposta é o japonês equivalente a "assim-assim".
Quando visitei Osaka andavam todos malucos com a febre da Exposição. Tinham sido construídos hotéis, auto-estradas urbanas e estradas principais; o lugar da Exposição fervilhava. Foi treinada uma polícia especial para ajudar os visitantes; pobres e inocentes condutores de táxis tiveram que assistir a aulas de inglês, e um grande relógio, perto da porta da Estação Centra] dos Trens, em vez de indicar as horas, mostrava quantos dias faltavam para a abertura da Exposição 70. Osaka aguardava-a com imenso orgulho e com medo também: o congestionamento do tráfego acabaria ficando pior que o normal e a falta de quartos de hotel seria angustiante. Já não havia um simples quarto de hotel, para os quatro meses agradáveis da Exposição, não só em Osaka, como também em Kyoto, Nara, Kobe e Tóquio: tinham sido todos reservados .pelas companhias aéreas ou agências de viagens. (Havia alguns quartos para julho e agosto; e era esta a situação, oito meses antes da abertura.) Mas os olhos do mundo estavam postos em Osaka e isto compensava um bocado. A única coisa que a cidade lamentava era que Tóquio se beneficiasse também, quase igualmente, do boom originado pelos visitantes estrangeiros. Eu não sou um homem de exposições e não voltaria atrás para ver o grande espetáculo, mas a maioria das pessoas é mais venturosa, muitos hão de vê-la, e não há dúvida de que a Expo 70 será sensacional nos seus próprios termos e baterá todas as exposições anteriores. E será — como eles dizem com freqüência — a primeira exposição mundial na Ásia.
Mas as exposições vêm e vão. O momento glorioso de Osaka passará, e a cidade terá que confiar uma vez mais, não nas suas momentâneas e atraentes luzes da ribalta, mas na sua fama intrínseca.
E esse tema está crescendo a uma velocidade alarmante. Um cavalheiro japonês, funcionário da Exposição, perguntou-me: — É verdade que eles chamam Manchester de "a Osaka da Inglaterra"?
— Bem — respondi —, eles devem chamar, certamente, mas eles foram sempre um pouco lentos lá em cima no norte.
"Ryokan"
Você permanecerá — ou, de qualquer forma, deveria permanecer — uns poucos dias num ryokan, uma estalagem japonesa. Elas são habitualmente lindas e bem dirigidas, e ali você pode estabelecer um contato com a autêntica vida japonesa melhor do que em qualquer outro lado — exceto, evidentemente, se vai para uma aldeia pesqueira.
Você chega, digamos, às cinco da tarde, e pede o seu primeiro jantar mais cedo. Criadas belas e sorridentes, com os seus quimonos, trazem-lhe a refeição num tabuleiro. Você se senta no tatami, a primorosa esteira de palha sobre o chão, usa a sua yukata, e fica até parecendo um burocrata do período Tokugawa.
Deleita-se com a comida, que é saborosa, ainda que complicada. Não faz a mínima idéia da ordem em que deve comer e engana-se louca e ridiculamente, ao principiar pela sopa.
Acaba o seu jantar e a encantadora senhora — mais uma hospedeira do que uma criada — entrará e, no espaço de cinco minutos, transformar-lhe-á o quarto. Será uma mudança completa de cenário — e cenário é a palavra certa, porque toda a instalação é leve e teatralmente agradável. A pequena mesa baixa desaparecerá na varanda, serão estendidos dois colchões sobre o tatami, um coberto com um edredão vermelho, o outro com um edredão azul. Próximo do seu travesseiro é colocado um jarro com água gelada, e um pequeno candeeiro de luz fraca ficará perto da porta. Nos velhos tempos, seis ou oito pessoas tinham que ocupar um quarto (isto não é absolutamente desconhecido mesmo hoje em alguns distritos mais remotos do país), e o pequeno candeeiro (outra peça do equipamento do palco) servia para evitar que os retardatários, e os que se levantavam mais cedo, pisassem nos outros. Em alguns ryokans não se pode mesmo apagar aquela luz diminuta.
Na manhã seguinte a cena muda de novo: o colchão desaparece e você fica deliciado com o seu belo quarto até compreender, após o almoço, que não pode se deitar nem que seja por dez minutos. Os seus colchões ficam primorosamente guardados no armário e não há nada em que se possa deitar, a menos que durma desconfortavelmente em cima do tatami — o equivalente em inglês a levar a faca à boca e coçar a cabeça com o garfo.
O tatami é sagrado. Você será iniciado na cerimônia do sapato. Ao chegar em casa, descalça os sapatos e o porteiro toma conta deles; guarda-os no seu pequeno cubículo. Calça então um par de encantadoras e confortáveis pantufas, sempre colocadas de tal forma que você enfia o pé diretamente, sem tocá-la com as mãos. Você usa essas pantufas em toda a casa, exceto... exceto que também deve aprender a cerimônia do banheiro. Quando você vai ao banheiro tira as pantufas vulgares e calça outras especiais, e, ao sair, deixa as pantufas-banheiro em frente da entrada, de modo a que o próximo visitante — provavelmente você mesmo — possa calçá-las sem tocá-las com as mãos. Isto é olhado como elementar cortesia para consigo mesmo. Tem que aprender também a cerimonia-tatami: antes de pisar o tatami deve tirar as pantufas. Não há pantufas especiais para o tatami: você deve andar por cima dele em meias. O crime mais odioso, por certo, é andar pelo tatami com as pantufas do banheiro; um crime que — sendo cabalmente confundido por todas estas trocas de pantufas — você comete frequentemente.
Realmente você se sente em casa num ryokan. São acolhedores e cheios de encanto. Mal você chega — e deve sair e voltar umas dez vezes por dia — a sua própria criada lhe dá toalhas quentes — um hábito civilizado muito refrescante — e um púcaro de chá verde de que a maioria das pessoas gosta e eu detesto. Os japoneses são tão sensíveis acerca do seu chá como os ingleses, por isso eu, invariavelmente, despejo o meu chá no banheiro (usando habitualmente as minhas pantufas não-banheiro), pois eles ficariam sentidos se o deixasse. O próprio banheiro no meu ryokan era ocidental com desenhos e instruções escritas em japonês, explicando como usar todas aquelas coisas. (Os desenhos eram primorosos, mostrando um cavalheiro de pé e na posição sentada, e o texto, disseram-me, era conciso e instrutivo, e da autoria de um professor de escatologia da Universidade de Tóquio.)
A grande dificuldade no ryokan é a comunicação. Somente a senhora que está na recepção fala inglês. Um amigo meu de Tóquio, um Sr. Shirato, prometeu-me que viria visitar-me em Kyoto e ficaria — se pudesse — na minha estalagem. Por isso fui à recepção tentar descobrir se o Sr. Shirato tinha reservado um quarto. Fiz a minha pergunta. A senhora sorriu. Repeti a pergunta. A senhora desta vez sorriu de uma forma mais encantadora ainda e então repetiu: "Sr. Shirato". Concordei. Ela pegou na lista telefônica e ligou para três Sr. Shirato diferentes, em Kyoto, e abanou tristemente a cabeça. Tentei toda a mímica, apontando para os quartos com camas e imitando um homem a dormir. Ela se riu perdidamente. Apontei para a sua própria lista de reservas e perguntei: "Sr. Shirato?" Ela olhou para ver se tinha recebido uma mensagem do Sr. Shirato e ligou de novo para um quarto Sr. Shirato em Kyoto, e finalmente moveu a cabeça com mais tristeza ainda do que da primeira vez. De súbito, porém, teve um vislumbre. Deu-me um lápis e um papel e indicou-me que eu desenhasse a minha pergunta. Mas como é que você desenha "O Sr. Shirato reservou um quarto?"
Em breve descobri uma instituição admirável, comum a todos os ryokans. A nossa criada entrou com um folheto feito em duplicador, com frases japonesas, e a tradução em inglês escrita a seguir. Ela apontou para a pergunta em inglês: "O que é que deseja para o café da manhã?" Eu apontei para a resposta em japonês: "Café, torrada e ovo cozido". Ela perguntou-me com os dedos: "A que horas?" "Oito e meia", indiquei eu, em fluente japonês.
O pequeno folheto causou-me um dos desapontamentos mais amargos da minha vida. Um dia a minha bela criada, usando o seu fascinante quimono, entrou e apontou para a pergunta: "Quer ver a minha frente?"
Acenei que sim. Claro que teria muito prazer em lhe ver a frente.
E ela acrescentou: "Siga-me, por favor".
Segui-a, não sem uma pequena surpresa e com um ar de expectativa. Mas tudo o que ela queria era que eu visse a frente do seu balcão de recepção.
O ryokan fechava as suas portas à meia-noite, e havia um grande e conspícuo letreiro à entrada, em inglês:
"PEDE-SE A TODOS OS HÓSPEDES QUE ESTEJAM
UNIDOS NAS CAMAS ANTES DA MEIA-NOITE".
Esta instrução foi a mais clara e lúcida que eu encontrei no Japão.
George Mikes
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