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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS OCEANOS DE VÊNUS / Isaac Asimov
OS OCEANOS DE VÊNUS / Isaac Asimov

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS OCEANOS DE VÊNUS

 

A FORÇA BRUTA CONTRA O PODER DA MENTE

A civilização humana espalhando-se pelo espaço sideral. - Vênus transformado numa colônia populosa, com grandes oceanos.

Sob as águas, brilhando como uma esmeralda, a maior cidade de Vênus: Afrodite. No entanto, o inesperado sempre se esconde por detrás do cotidiano corriqueiro. O homem, dominando a matéria, esquece-se dos muitos universos infinitos da mente... e de seus incomensuráveis perigos.

Um oficial do Conselho de Ciências é destacado para localizar as raízes desse mal e arrancá-lo das mentes que estão sendo ameaçadas.

Mas... como um patrulheiro do espaço pode enfrentar um inimigo escondido em seu próprio cérebro?

 

As nuvens de Vênus

Lucky Starr e John Bigman Jones bateram os calcanhares na superfície da Estação Espacial Nº 2, isenta de gravidade, e flutuaram para o cruzador planetário que estava a esperá-los com a câmara de compressão aberta. Os movimentos de ambos ostentavam a harmonia adquirida com a prática, apesar dos macacões espaciais que lhes davam uma aparência grotesca.

Enquanto subia, Bigman arqueou as costas e ergueu a cabeça para olhar mais uma vez para Vênus. Sua voz ribombou no capacete de Lucky:

- Pelo espaço! Olhe para aquela pedra! - O corpo diminuto de Bigman vibrava de entusiasmo.

Bigman, nascido e criado em Marte, estava perto de Vênus pela primeira vez em sua vida. Estava acostumado a ver planetas avermelhados e asteróides pedregosos. Também conhecia a Terra verde e azul. Agora, porém, estava vendo algo que era apenas cinza e branco.

Vênus ocupava mais que a metade do céu. Estava a apenas duas mil milhas da estação espacial. Uma outra estação espacial se encontrava no lado oposto do planeta. Estas estações, que funcionavam como estacionamentos para naves espaciais que se dirigiam até ao planeta Vênus, revolviam ao redor dele completando uma revolução num período de três horas, e se perseguiam sem parar como dois cãezinhos brincalhões.

Apesar da proximidade, as estações espaciais não proporcionavam qualquer visão da superfície de Vênus. Não se viam continentes, oceanos, desertos, montanhas ou vales. Só uma alvura imensa e brilhante, interrompida por traços acinzentados que mudavam de posição.

Aquela alvura indicava a turbulenta camada de nuvens que envolvia eternamente todo o planeta e as linhas cinzentas eram os limites das massas de nuvens que se encontravam, entrechocando-se. Nestes pontos o vapor descia e, embaixo daquelas linhas cinzentas, a chuva caía sobre a superfície.

Lucky Starr falou:

- Não adianta olhar para Vênus, Bigman. Vai ver este planeta durante um bocado de tempo. Você deveria se despedir do Sol.

Bigman bufou. Seus olhos de marciano se ressentiam até do Sol da Terra e o achavam excessivamente grande e brilhante. O Sol, visto da órbita de Vênus, tinha uma aparência monstruosa. Parecia duas vezes mais brilhante que o Sol da Terra e quatro vezes mais brilhante que o Sol visto de Marte. Bigman estava satisfeito por saber que as nuvens de Vênus encobririam o Sol, e também que na estação espacial as persianas sempre estavam reguladas para desviar os raios solares.

Lucky Starr perguntou:

- Como é, seu marciano doido, não pretende entrar?

Bigman estava flutuando do lado de fora, com uma mão apoiada na beirada da abertura da câmara. Seus olhos ainda estavam fixos em Vênus. A metade visível era brilhantemente iluminada pelo Sol, mas a parte oriental era obscurecida pela noite que avançava rápida, enquanto a estação espacial percorria sua órbita.

Lucky, que ainda estava subindo, firmou uma mão na beirada da câmara e com a outra mão, espalmada na grande luva, ergueu Bigman pelo fundilho das calças. Devido à ausência de gravidade, o pequeno corpo de Bigman entrou revolvendo lentamente na câmara, enquanto o corpo de Lucky flutuava para fora.

Os músculos do braço de Lucky se retesaram enquanto ele voltava a flutuar para cima e para dentro, com um movimento elegante. Apesar de suas preocupações, não conseguiu evitar um sorriso quando viu Bigman parado à meia altura, de braços abertos, e com a ponta de um dedo apoiado na comporta interna. A comporta externa se fechou depois da passagem de Lucky.

Bigman disse:

- Escute bem, bicho-papão, um dia destes irei embora e você poderá procurar um outro...

O ar penetrou assobiando na pequena câmara e a comporta interna se abriu. Dois homens entraram flutuando e evitaram os pés de Bigman, ainda suspensos. O primeiro homem, um sujeito atarracado, de cabelos escuros, com um bigode extraordinariamente farto, perguntou:

- Tudo em ordem, cavalheiros?

O segundo homem, mais alto, mais magro, de cabelos mais claros, mas com um bigode igualmente farto, perguntou:

- Precisam de ajuda?

Bigman respondeu com altivez:

- Podem nos ajudar dando-nos espaço, para sairmos de nossos macacões. - Enquanto falava, desceu até o chão e começou a abrir o macacão. Lucky já havia se livrado do seu.

Os homens atravessaram a comporta interna que se fechou em seguida. Os macacões espaciais, cuja superfície externa tinha a mesma temperatura do espaço, estavam se cobrindo com uma camada de gelo no ar mais quente do cruzador. Bigman removeu-os do ar quente e úmido, jogando-os sobre cavaletes de cerâmica, onde a camada de gelo ia se desfazer.

O homem moreno disse:

- Vejamos. Vocês são William Williams e John Jones, não é?

Lucky respondeu:

- Eu sou Williams. - Lucky já estava acostumado a usar este nome de guerra em todas as circunstâncias. Os membros do Conselho de Ciências estavam acostumados a evitar qualquer publicidade. Esta atitude parecia ainda mais aconselhável no momento, devido à situação em Vênus, muito incerta e confusa. - Lucky continuou: - Acredito que todos os nossos documentos estão em ordem e que nossa bagagem já se encontra a bordo.

- Está tudo em ordem - confirmou o homem moreno. - Sou George Reval, o piloto, e este é meu co-piloto, Tor Johnson. Vamos sair logo. Avise-nos se precisarem de alguma coisa.

Os dois passageiros se acomodaram em sua reduzida cabine e Lucky disfarçou um suspiro. Quando estava no espaço nunca se sentia completamente à vontade a não ser a bordo de seu rápido cruzador, Shooting Starr, que agora estava estacionado no hangar da estação espacial.

Tor Johnson falou com sua voz grave:

- Quero avisá-los que depois de sairmos da órbita da estação espacial, não estaremos mais em queda livre. A gravidade aumentará. Em caso de enjôo do espaço...

Bigman estrilou:

- Enjôo do espaço! Fique sabendo, seu palerma interplanetário, que quando eu estava engatinhando aprendi a superar mudanças de gravidade que você não conseguiria agora! - Apoiou um dedo na parede, deu uma cambalhota vagarosa para trás, voltou a tocar na parede e se imobilizou com os pés a dois centímetros do chão. - Por que você não experimenta isto qualquer dia, quando sentir que é realmente macho?

- Quem diria? - observou o co-piloto com um sorriso. - Tem um bocado de lábia comprimida no tampinha.

Bigman corou:

- Tampinha! Seu caipira... Vou vê-lo em Vênus - resmungou o pequeno marciano.

Tor não deixou de sorrir enquanto seguia seu piloto até a sala de controle da nave.

Bigman esqueceu sua fúria e perguntou: - Lucky, por que eles usam bigodes deste tamanho? Nunca vi nada assim.

Lucky respondeu:

- É apenas um costume venusiano, Bigman. Acho que em Vênus todo mundo tem bigodes assim.

- É mesmo? - Bigman passou os dedos acima dos lábios lisos.

- Como acha que eu ficaria com bigodes daquele tamanho?

- Do mesmo tamanho? - perguntou Lucky, achando graça. - Esconderia seu rosto!

Evitou o soco de Bigman e sentiu o chão vibrar levemente: o cruzador Venus Marvel estava se afastando da estação espacial. Sua proa baixou, iniciando a trajetória espiral que devia levá-lo para Vênus.

Enquanto o cruzador aumentava sua velocidade, Lucky Starr começou a relaxar os músculos e se entregar a uma agradável sensação de repouso. Seus olhos estavam pensativos, mas os traços bem desenhados de seu rosto estavam tranqüilos. Era alto e parecia magro, mas sua magreza ocultava músculos de aço.

Lucky já tinha passado por muitas coisas, boas e más. Perdera os pais quando ainda era criança, durante um ataque de piratas perto do mesmo planeta do qual agora estava se aproximando. Tinha sido criado pelos dois melhores amigos de seu pai, Hector Conway, agora presidente do Conselho de Ciências, e Augustus Henree, diretor departamental da mesma organização.

A educação e o treinamento de Lucky foram orientados para um único objetivo: um dia teria que participar daquele mesmo Conselho de Ciências, cujos poderes e funções lhe conferiam a posição da mais importante e menos conhecida organização de toda a galáxia.

Lucky tornara-se membro do Conselho há apenas um ano, logo depois de sua formatura na universidade, e desde então se dedicava ao progresso da humanidade e à luta contra os inimigos da civilização. Era o mais jovem membro do Conselho, e provavelmente assim o devia ser por muitos anos ainda.

Entretanto, já tinha vencido suas primeiras batalhas. Conseguira triunfar contra criminosos nos desertos de Marte e entre as penumbras das rochas de cinturão de asteróides.

Mas a guerra contra o crime e o mal nunca é breve; Vênus era o mais novo palco para inquietações que pareciam especialmente perturbadoras porque suas origens pareciam confusas.

O presidente do Conselho, Hector Conway, tinha encrespado os lábios enquanto explicava:

- Não sei se se trata de uma conspiração dos sirianos contra a Confederação Solar ou se é apenas um começo de confusões sem importância. Nossos colegas locais parecem levar a coisa muito a sério.

Lucky perguntou:

- Você mandou para lá algum mediador? - Acabara de voltar dos asteróides e estava preocupado com as notícias.

Conway respondeu:

- Sim. Evans.

- Lou Evans? - perguntou Lucky. Seus olhos escuros brilharam pela satisfação. - Foi um dos rapazes que compartilhou meu quarto na universidade. Ele é ótimo!

- É mesmo? O escritório venusiano do Conselho pediu sua remoção e uma investigação. Foi acusado de corrupção.

- O quê! - Lucky se levantou de repente, horrorizado. - Tio Hector, isto é impossível.

- Você está disposto a ir até lá e investigar pessoalmente?

- Claro que sim! Pelas grandes estrelas e pelos asteróides! Bigman e eu sairemos logo que o Shooting Starr estiver pronto para voar!

O vôo estava terminando agora, e Lucky olhava pela vigia, preocupado. As sombras da noite estavam cobrindo Vênus, e durante uma hora só tinha visto escuridão. O volume do planeta encobria todas as estrelas.

Finalmente saíram mais uma vez para a luz, mas tudo parecia cinza e opaco. Estavam perto demais para ver o planeta ou mesmo as nuvens. De fato, estavam dentro das nuvens.

Bigman engoliu o último bocado de um grande sanduíche de frango, limpou a boca e falou:

- Pelo espaço, detestaria pilotar uma nave atrás deste algodão.

As asas do cruzador agora estavam completamente estendidas para melhor aproveitar a atmosfera, e o movimento da nave estava assumindo características completamente diferentes. Percebia-se o impacto das rajadas de vento e o cruzador corcoveava sobre as correntes de ar.

As naves espaciais não são adequadas para resistir às armadilhas da atmosfera mais densa. Por este motivo, os planetas como a Terra e Vênus, envolvidos em grandes camadas de ar, precisam de estações espaciais. As naves espaciais param nestas estações, e de lá saem os cruzadores planetários que possuem asas retrateis e que podem resistir às traiçoeiras correntes de ar até a superfície do planeta.

Bigman era capas de pilotar uma nave de Plutão até Mercúrio com os olhos vendados, mas sabia que estaria perdido entre os remoinhos sempre mais intensos daquela atmosfera. Até Lucky, que durante seu treinamento na academia tinha pilotado cruzadores planetários, não sentia qualquer vontade de ficar nos controles entre as camadas de nuvens que envolviam a nave.

- Antes da chegada dos primeiros exploradores - disse Lucky -, a humanidade apenas conhecia a camada externa destas nuvens de Vênus. Naquele tempo, as pessoas tinham idéias esquisitas a respeito deste planeta.

Bigman não respondeu. Estava observando com atenção o recipiente de celoplex para ver se descobria mais um sanduíche de frango. Lucky continuou:

- Naquele tempo ninguém conhecia a velocidade da rotação de Vênus, aliás nem sabia se existia uma rotação. Também ninguém conhecia a composição da atmosfera de Vênus. Apenas se sabia que continha dióxido de carbono. Até quase o fim do vigésimo século os astrônomos pensavam que Vênus era desprovido de água. Quando as naves espaciais chegaram, a humanidade descobriu que estava errada.

Calou-se e, involuntariamente, lembrou-se do espaçograma em código recebido durante o vôo, quando a Terra já estava a dez milhões de milhas. Era de Lou Evans, seu antigo colega, ao qual tinha anunciado sua chegada pelo sistema subetérico.

Era uma resposta brusca e concisa. Dizia apenas: "Fique longe!"

Apenas isto! Era muito diferente do que Lucky esperaria de Evans. Para Lucky, aquela mensagem indicava complicações muito graves e logo decidiu que não "ficaria longe". Imediatamente regulou a produção do micro-reator para o máximo e aumentou a aceleração.

Bigman estava falando:

- Quando penso que antigamente todo o mundo era obrigado a ficar na Terra, Lucky, tenho uma sensação esquisita. As pessoas não conseguiam sair de lá de jeito nenhum. Não sabiam nada a respeito de Marte ou da Lua ou de qualquer outra coisa. Quando penso nisto, fico todo arrepiado.

No mesmo momento saíram da camada de nuvens e até as preocupações de Lucky ficaram esquecidas diante do panorama que se desdobrava à sua frente.

Aconteceu de repente: a alvura leitosa que os cercava desapareceu e ficaram envolvidos pelo ar transparente. Embaixo, tudo parecia banhado por uma luz clara e perolada. Em cima, ainda podiam ver a superfície cinzenta da camada de nuvens.

Bigman disse:

- Olhe, Lucky!

O planeta Vênus, lá embaixo, se estendia em todas as direções, a perder de vista, e sua superfície parecia um enorme tapete de vegetação verde azulada. Não se viam elevações ou planícies. A superfície era completamente plana, como alisada por uma enorme máquina.

Também faltavam os detalhes que na Terra eram considerados normais. Não havia casas, cidades ou cursos de água. Apenas aquela cor verde azulada e ininterrupta.

Lucky observou:

- Isto é uma conseqüência do dióxido de carbono. As plantas se alimentam com este componente do ar. Na Terra a proporção é de apenas três centésimos de avós, mas aqui o dióxido de carbono representa quase dez por cento da atmosfera.

Bigman, que por muitos anos vivera nas fazendas de Marte, conhecia bem o dióxido de carbono. Perguntou:

- Como pode haver tanta luz, apesar das nuvens?

Lucky sorriu:

- Você se esqueceu, Bigman, mas aqui o Sol é duas vezes e meia mais brilhante do que na Terra. - Voltou a olhar pela vigia, e parou de sorrir. - Que esquisito - murmurou. - Afastou-se rápido da vigia. - Bigman, venha comigo até a cabine de comando.

Dois passos bastaram para que saísse da cabine de passageiros, e mais dois o levaram até a cabine de comando. A porta não estava trancada. Lucky puxou e ela se abriu. Ambos os pilotos, George Reval e Tor Johnson, estavam a postos, com os olhos fixos nos controles. Continuaram imóveis, na mesma posição.

Lucky disse:

- Rapazes...

Não houve resposta.

Tocou no ombro de Johnson, mas o co-piloto sacudiu o braço para afastar a mão de Lucky.

O jovem conselheiro agarrou ambos os ombros de Johnson e gritou:

- Ocupe-se do outro, Bigman!

O pequeno marciano já estava sacudindo o piloto, sem fazer perguntas, e tentava arrastá-lo com a fúria de um galo de briga.

Lucky conseguiu empurrar Johnson para trás; o co-piloto cambaleou e depois voltou para frente. Lucky se esquivou e o soco de Johnson se perdeu no ar enquanto o punho de Lucky se chocava com o maxilar do outro. Johnson caiu, inconsciente. Quase no mesmo instante, Bigman conseguiu torcer o braço de George Reval, que caiu, e Bigman deu-lhe um soco.

Em seguida Bigman arrastou os dois pilotos para fora e depois fechou a porta da cabine de comando. Viu que Lucky estava mexendo apressadamente nos controles. Achou que já estava na hora de pedir explicações.

- O que foi que aconteceu?

- A nave não estava em equilíbrio perfeito - explicou Lucky, preocupado. - Estava observando a superfície e percebi que estava se aproximando muito depressa. Continuamos em descida acelerada.

Procurava desesperadamente o controle dos ailerons, para modificar o ângulo de descida. A superfície azulada de Vênus estava muito próxima, sempre mais próxima.

Lucky observava o manômetro, que media o peso do ar sobre a nave. O indicador subia enquanto a nave se aproximava da superfície. Parecia se elevar menos depressa. A mão de Lucky se fechou com mais força para não prejudicar os ailerons, que poderiam ser arrancados pela corrente de ar ululante dos flancos da nave. Só faltavam mais ou menos duzentos metros até a superfície.

Lucky, com as narinas dilatadas e as veias do pescoço salientes, tentava controlar os ailerons na corrente de ar.

- Estamos nos equilibrando - murmurou Bigman. - Estamos...

Mas o espaço era reduzido para a manobra. A cor verde azulada subiu e tomou conta da vigia de bombordo. O Venus Marvel, que transportava Lucky Starr e Bigman Jones, estava descendo com velocidade excessiva e se chocou contra a superfície do planeta.

 

A abóbada submarina

Se a superfície venusiana fosse o que parecia à primeira vista, o Venus Marvel teria se esfacelado, explodindo a seguir. A carreira de Lucky Starr estaria encerrada.

Felizmente, a vegetação luxuriante que se estendia em todos os sentidos não era capim e nem mesmo cerrado: era de algas-marinhas. A superfície tão plana não era de terra e rochas, mas de água: era o oceano que cobria todo o planeta.

Mesmo assim, a nave chocou-se contra a água com um estrondo, rasgou o tapete de algas-marinhas e afundou num borbulhar de espuma. Lucky e Bigman foram arremessados contra a parede.

Um veículo espacial normal teria se espatifado, mas o cruzeiro Venus Marvel tinha sido construído para penetrar na água a grande velocidade. Suas junções eram firmes e estanques, suas formas eram aerodinâmicas. Lucky não tivera o tempo de retrair as asas, aliás nem sabia como fazê-lo. As asas foram arrancadas: toda a estrutura estremeceu, mas a nave não ficou danificada.

A descida continuou, entre as sombras verdes e enegrecidas do oceano venusiano. A luz difusa pela camada de nuvens não conseguia penetrar as algas-marinhas. As luzes internas da nave não se acenderam: provavelmente o impacto havia danificado os contatos.

Lucky estava confuso. Chamou:

- Bigman!

Não houve resposta. Esticou os braços, tateando. Sua mão encontrou o rosto de Bigman.

- Bigman! - voltou a chamar. Encontrou o peito do marciano: o coração estava batendo. Lucky sentiu-se aliviado.

Não sabia o que estava acontecendo com a nave, e não poderia controlá-la na escuridão total que estava envolvendo tudo. Apenas esperava que o atrito da água contribuísse para imobilizar a nave antes de chegar ao fundo.

Procurou a lanterna em forma de lapiseira no bolso da camisa -era uma fina vareta de plástico, de quinze centímetros. Uma leve pressão do polegar produzia um forte feixe de luz que se alargava na distância, sem perder sua intensidade.

Lucky se aproximou de Bigman, para examiná-lo. Viu que tinha um hematoma acima da têmpora, mas nenhuma fratura.

Bigman mexeu as pálpebras e gemeu.

Lucky murmurou:

- Calma, Bigman. Está tudo bem. - Entretanto, não sentia qualquer certeza neste sentido quando saiu pelo corredor. Os pilotos tinham que estar vivos e bem dispostos para levar a nave ao seu destino.

Encontrou-os sentados no chão, piscando os olhos no feixe brilhante da lanterna.

- O que foi que aconteceu? - gemeu Johnson. - Eu estava nos controles, e de repente...

Seus olhos não indicavam qualquer sentimento hostil, apenas confusão e sofrimento.

A nave Venus Marvel estava funcionando parcialmente. O choque tinha provocado graves danos mas os holofotes dianteiros e traseiros estavam em condições de funcionar e as baterias de emergência podiam providenciar a força necessária para as operações mais vitais. Podia-se ouvir o leve zunido do propulsor. O cruzador planetário parecia desempenhar, de maneira bastante adequada, sua terceira função. Era uma nave que se deslocava com igual facilidade no espaço, na atmosfera e também embaixo d'água.

George Reval entrou na cabine de comando. Tinha um ar deprimido. Numa das faces ostentava um ferimento que Lucky, depois de lavá-lo e desinfetá-lo, pulverizou. Reval disse:

- Existem algumas poucas infiltrações, mas consegui calafetá-las. As asas foram arrancadas e as baterias principais não funcionam. Vamos ter que consertar muitas coisas, mas no conjunto acho que tivemos bastante sorte. O senhor fez um bom trabalho, senhor Williams.

Lucky assentiu.

- Gostaria que você me explicasse o que aconteceu.

Reval corou.

- Não sei. É muito difícil admitir isto, mas não sei.

- E você? - perguntou Lucky, olhando para o co-piloto. Tor Johnson estava consertando o rádio e meneou a cabeça. Reval disse: - A última coisa que lembro é que ainda estávamos no interior das nuvens. Depois disto não lembro de nada, até que vi a luz da sua lanterna.

Lucky perguntou:

- Você ou o Johnson costumam tomar drogas?

Johnson ergueu os olhos, indignado.

- Não - respondeu com sua voz profunda.

- Então, como foi que ambos perderam os sentidos, e ao mesmo tempo?

Reval respondeu:

- Também gostaria de saber o que foi. Olhe, senhor Williams, não somos amadores. Nossas referências como pilotos são excelentes. - Suspirou. - Pelo menos, até agora éramos considerados pilotos de primeira classe. Imagino que depois desta estaremos suspensos.

- Vamos ver - falou Lucky.

- Escute - intrometeu-se Bigman. - De que vale falar do que passou? Onde é que estamos agora? Esta é a única coisa que me interessa. Para onde estamos indo?

Tor Johnson observou:

- Só sei que estamos bastante longe de nossa rota. Acho que chegaremos em Afrodite dentro de cinco ou seis horas.

- Por Júpiter e seus satélites! - exclamou Bigman, olhando para a vigia escura. - Cinco ou seis horas nestas trevas?

Afrodite é a maior das cidades venusianas, com uma população de mais de duzentos e cinqüenta mil habitantes.

A nave Venus Marvel ainda estava a uma milha de distância, mas as águas em sua volta brilhavam, esverdeadas, iluminadas pelas luzes de Afrodite. Naquela luminosidade opalescente era fácil entrever as silhuetas escuras das naves de socorro que tinham saído à procura da Venus Marvel, logo depois do primeiro contato pelo rádio. Estavam deslizando, silenciosas, de ambos os lados.

Lucky e Bigman estavam vendo pela primeira vez a abobada de uma cidade submarina venusiana. A vista era tão encantadora que quase esqueceram os perigos recentes.

À distância, parecia uma bolha verde-esmeralda, cintilante e trêmula pelo efeito da água. Podiam entrever prédios e as enormes vigas entrelaçadas que sustentavam a abóbada que protegia a cidade contra a pressão das águas.

Enquanto se aproximavam, os detalhes ficavam maiores e as luzes mais intensas. A cor verde começou a esmaecer conforme a distância diminuía. Afrodite parecia menos irreal, menos mágica, mas muito mais suntuosa.

Finalmente penetraram numa enorme câmara de ar, que podia acomodar uma pequena frota de cargueiros ou uma grande belonave, e esperaram que as bombas retirassem a água. Quando este trabalho terminou, a nave atravessou flutuando a comporta e penetrou na cidade.

Lucky e Bigman esperaram até que suas bagagens fossem descarregadas, apertaram as mãos de Reval e Johnson e tomaram um flutuador que os levou até o hotel Bellevue-Afrodite.

Bigman olhava pelas janelas curvas enquanto o flutuador se movimentava levemente, revolvendo as asas, ao longo das vigas da abóbada e por cima dos tetos dos prédios. Disse:

- Então, estamos em Vênus. Não sei se valeu a pena. Não vou conseguir esquecer a vista daquele oceano se aproximando...

Lucky comentou:

- Receio que isto tenha sido apenas o começo.

Bigman arregalou os olhos.

- Você acha?

Lucky encolheu os ombros.

- Depende. Vamos ver o que Evans tem a nos dizer.

O Salão Verde do hotel Bellevue-Afrodite era exatamente isto: um salão verde. A iluminação dava a impressão de que as mesas e as pessoas flutuavam entre as águas. Um enorme aquário, sustentado por vigas quase invisíveis, revolvia lentamente sob a abóbada do teto. Em seu interior se viam algas-marinhas venusianas e entre estas, as "fitas-marinhas", uma das mais lindas formas de vida animal do planeta, se movimentavam compondo graciosas manchas coloridas.

Bigman chegou primeiro, querendo jantar. Ficou aborrecido porque os alimentos não podiam ser escolhidos apertando botões, sentiu-se perturbado pela presença de garçons humanos e zangou-se ainda mais quando lhe disseram que os hóspedes do Salão Verde recebiam uma refeição escolhida pela gerência e que não havia alternativas. Acalmou-se um pouco quando descobriu que os petiscos eram saborosos e a sopa era excelente.

A seguir começou a ouvir música. A abóbada do teto começou a se iluminar e o aquário a girar.

Bigman ficou de boca aberta e esqueceu o jantar.

- Olhe só! - disse.

Lucky estava olhando. As fitas-marinhas tinham comprimentos diferentes, de cinco centímetros até um metro e mais. Eram finíssimas, como uma folha de papel, e de diferentes larguras. Movimentavam-se retorcendo os corpos como cobras.

Os animais eram fosforescentes, e brilhavam em várias cores. Era um espetáculo extraordinário. Os flancos das fitas-marinhas estavam enfeitados de minúsculas espirais luminosas, carmesim, rosa e laranja; havia algumas com espirais azuis e violetas. Movimentavam-se na luminosidade esverdeada que vinha do exterior do aquário e as linhas coloridas se cruzavam e se entrelaçavam, formando trilhas com as cores do arco-íris, que se desfaziam para reaparecer mais adiante.

A contragosto Bigman desviou o olhar e observou a sobremesa. O garçom tinha explicado que se tratava de "grãos de geléia", e o pequeno marciano observou o prato com manifesta desconfiança. Estava cheio de bolinhas ovaladas cor laranja que pareciam coladas entre si, mas que Bigman não teve dificuldade de apanhar com a colher. Num primeiro momento teve a impressão que eram grãos secos e sem gosto, mas de repente se dissolveram num líquido grosso e açucarado que Bigman achou uma delícia.

- Pela espaço! - exclamou, surpreso. - Você já experimentou a sobremesa?

- O que foi? - perguntou Lucky, distraído.

- Experimente a sobremesa, vamos. Parece suco de abacaxi, bem grosso, mas é muito melhor... O que há?

Lucky disse:

- Temos companhia.

- Deixe para lá. - Bigman esboçou um movimento para virar seu assento e ver quem estava perto.

Lucky murmurou:

- Fique quieto - e Bigman se imobilizou.

Logo ouviu passos se aproximando da mesa. Tentou girar os olhos. Seu desintegrador estava no quarto, mas tinha uma faca de força no bolso do cinto. A faca parecia um berloque de corrente de relógio, mas em caso de necessidade podia cortar um homem em dois pedaços. Colocou a mão sobre a faca.

Uma voz atrás de Bigman perguntou:

- Posso sentar, pessoal?

Bigman virou-se, com a faca na palma da mão, pronto para entrar em ação. O homem não parecia perigoso. Era gordo, mas suas roupas eram bem talhadas. Tinha o rosto redondo e seus cabelos grisalhos estavam escovados para cima, sem conseguir disfarçar a calvície. Os olhos eram azuis e pequenos, aparentemente amáveis. Como todos os venusianos, ostentava um enorme bigode grisalho.

Lucky respondeu calmo:

- Sente-se, faça o favor. - Parecia observar apenas a xícara de café que segurava com a mão direita.

O homem gordo se acomodou numa cadeira. Colocou as mãos sobre a mesa. Um dos pulsos estava saindo da manga, protegido pela palma da outra mão. Durante um instante uma mancha escura, ovalada, apareceu e ficou preta sobre o pulso. No interior da mancha negra pequenos pontos luminosos piscaram, formando o conhecido desenho da Ursa Maior e de Órion. Logo desapareceu. Era apenas o pulso rechonchudo de um homem gordo e sorridente.

Aquele sinal de identificação dos membros do Conselho de Ciências não podia ser imitado ou falsificado. O método para fazê-lo aparecer em qualquer circunstância, apenas através da força do pensamento, era um dos segredos mais bem guardados do Conselho.

O homem gordo se apresentou:

- Sou Mel Morriss.

Lucky disse:

- Logo pensei que devia ser mesmo você. Deram-me uma boa descrição.

Bigman sentiu-se mais calmo e guardou a faca magnética. Mel Morriss chefiava a secção venusiana do Conselho e Bigman já ouvira seu nome. Em parte sentia-se aliviado, mas em parte estava um pouco decepcionado. Esperava uma luta - quem sabe, o café jogado no rosto do homem, a mesa virada... e depois um vale-tudo.

Lucky observou:

- Vênus parece um lugar extraordinariamente belo e diferente.

- Você já viu nosso aquário fosforescente?

- Sim, é espetacular - concordou Lucky.

O conselheiro venusiano sorriu e ergueu um dedo. Um garçom trouxe uma xícara de café quente. Morriss esperou que esfriasse um pouco e falou em voz baixa:

- Acho que você está um pouco decepcionado de me ver aqui. Acredito que esperava outra pessoa.

Lucky respondeu friamente.

- De fato, imaginava que poderia ter uma conversa informal com um amigo.

- Eu sei - disse Morriss. - Você mandou uma mensagem ao conselheiro Evans, marcando um encontro aqui.

- Estou vendo que você está bem informado.

- Obviamente. Há algum tempo Evans está sendo vigiado. Todas as comunicações são interceptadas.

Os dois homens conversavam em voz tão baixa que até Bigman tinha dificuldade em ouvi-los, enquanto tomavam goles de café e evitavam que seus rostos manifestassem qualquer expressão.

Lucky disse:

- Considero esta atitude completamente errada.

- Você diz isto porque é amigo dele?

- Sim.

- Suponho que, sendo amigo seu, ele mandou um aviso para que você ficasse longe de Vênus.

- Estou vendo que você conhece todos os detalhes.

- De fato. Parece-me que você esteve envolvido num acidente que quase resultou fatal, enquanto descia em direção de Vênus. Isto é correto?

- Absolutamente certo. Está sugerindo que Evans temia que isto pudesse acontecer?

- Temia? Pelo espaço, Starr! Foi seu amigo Evans quem planejou aquele acidente.

 

Levedura!

O rosto de Lucky continuou impassível, sem mostrar minimamente sua preocupação.

- Tenha a bondade de especificar - disse.

Morriss estava sorrindo. Metade de sua boca se escondia atrás do exagerado bigode venusiano.

- Sinto muito, mas aqui não posso.

- Neste caso, diga onde.

- Um minuto. - Morriss olhou para o relógio. - O show começará daqui a um minuto. Haverá danças com luz-marinha.

- Luz-marinha?

- O globo lá em cima emitirá luzes esverdeadas. Os hóspedes se levantarão para dançar. Poderemos nos levantar também e sair discretamente.

- Você fala como se estivéssemos em perigo.

Morriss disse:

- Você está em perigo. Posso lhe garantir que a partir do momento que você entrou em Afrodite, nossos homens nunca deixaram de vigiá-lo.

De repente, ouviu-se uma voz alegre. Parecia sair de um enfeite de cristal que se encontrava no centro da mesa. Era óbvio, pelos movimentos dos outros hóspedes do salão, que a voz saía do adorno central de todas as mesas.

- Senhoras e cavalheiros, bem-vindos ao Salão Verde. Esperamos que o jantar tenha sido satisfatório. A gerência deseja continuar a agradá-los e apresenta orgulhosamente os ritmos magnetônicos de Tobe Tobias e de seus...

Enquanto a voz continuava, as luzes começaram a enfraquecer e a voz quase desapareceu quando todos os hóspedes exclamaram pela surpresa: a maioria deles acabava de chegar da Terra. O aquário esférico do teto brilhava como uma esmeralda e as fitas-marinhas multicoloridas se agitavam. A esfera parecia ter facetas múltiplas e, enquanto revolvia, projetava sombras deslizantes no salão, produzindo um efeito quase hipnótico. A música, saindo das caixas acústicas de uma variedade de instrumentos magnetônicos, aumentou de volume. Os sons eram produzidos por varetas de formas diferentes que eram movidas através do campo magnético ao redor de cada instrumento.

Homens e mulheres se levantaram para dançar. Ouviu-se um farfalhar de movimentos, sussurros, gargalhadas. Lucky sentiu um toque na manga e se levantou, seguido por Bigman.

Lucky e Bigman seguiram Morriss silenciosamente. A intervalos regulares, vultos com rostos sérios começaram a segui-los. Pareciam surgir de trás dos cortinados. Ficavam a uma distância suficiente para não suscitar comentários, mas Lucky tinha certeza que todos estavam segurando a coronha do desintegrador. Não havia qualquer sombra de dúvida: Mel Morriss, da secção venusiana do Conselho, estava achando que a situação era muito séria.

Lucky observou o apartamento de Morriss com ar de aprovação. Não era luxuoso, mas muito confortável. Podia-se morar nele e esquecer que a cem metros mais acima existia uma abóbada translúcida que sustentava o peso de cem metros de água marítima, embaixo de cem milhas de atmosfera estranha e irrespirável.

Lucky apreciou sobretudo a grande coleção de microfilmes que enchia uma estante. Perguntou:

- Você é biofísico, não é mesmo, dr. Morriss? - Usou o título de maneira quase automática.

Morriss confirmou:

- Sim.

- Na universidade tive ocasião de trabalhar em biofísica - explicou Lucky.

- Sim, eu sei - confirmou Morriss. - Tive ocasião de ler sua tese, e achei-a muito interessante. Você não se importa se eu o chamar de David?

- Este é meu nome - disse o terrestre -, mas todos me chamam Lucky.

Bigman, que estava observando os filmes, apanhou um, abriu o estojo, puxou um pedaço de película e começou a observá-la erguendo-a contra a luz. Logo estremeceu e fechou o estojo.

Olhou para Morriss e falou com ar agressivo:

- Você absolutamente não parece um cientista.

- Acho que não - respondeu Morriss sem se ofender. - Aliás, isto ajuda bastante.

Lucky entendeu o sentido da resposta. Era uma época em que a ciência realmente permeava a sociedade e a cultura humanas e os cientistas não podiam mais permanecer trancados em seus laboratórios. Este era o motivo mais importante que levara à constituição do Conselho de Ciências. Originariamente, este deveria funcionar apenas como um organismo de assessoria do governo nos assuntos de interesse galáctico, para os quais apenas os cientistas possuíam informações suficientes para tomar decisões inteligentes. Entretanto, o Conselho transformara-se sempre mais numa agência para a luta contra o crime, num sistema de contra-espionagem. Os poderes do governo estavam sendo sempre mais transferidos para o Conselho. Através das atividades do Conselho, algum dia poderia surgir um grande Império da Via-láctea, no qual todos os homens poderiam viver em paz e em harmonia.

Por este motivo, os membros do Conselho freqüentemente tinham que se preocupar com responsabilidades muito afastadas da ciência pura, e era preferível, para conseguir sucesso, que não tivesse a aparência de cientistas - bastava que tivessem o cérebro de um cientista. Lucky disse:

- O senhor poderia agora me contar os pormenores das dificuldades que se verificam no planeta?

- O que foi que lhe disseram na Terra?

- Apenas me deram um resumo, muito esquemático. Prefiro que o senhor me diga o resto. Afinal, o senhor vive aqui. Confio na sua opinião.

- Você confia na minha opinião? - Morriss sorriu com ironia. - Esta não costuma ser a atitude do pessoal do escritório central. Eles sempre preferem mandar seus próprios mediadores, e aparecem homens como este Evans.

- E não se esqueça de mim - falou Lucky.

- Seu caso é um pouco diferente. Todos nós ouvimos a respeito de suas façanhas em Marte, há um ano, e também do bom trabalho que você fez nos asteróides1.

Bigman gargalhou:

- Você precisava estar lá para acreditar no que ele fez!

Lucky enrubesceu levemente:

- Deixe para lá, Bigman. Não está na hora de você contar histórias.

Estavam todos sentados em amplas poltronas de fabricação terrestre, macias e confortáveis. Pela refração do som das vozes, Lucky, cujos ouvidos eram educados, se convenceu que estavam num apartamento com isolamento acústico e bem protegido contra espiões. Morriss acendeu um cigarro e ofereceu a carteira aos outros, que recusaram.

- O que é que você sabe a respeito de Vênus, Lucky?

Lucky sorriu.

- Todas as coisas que se aprendem na escola. Vou resumir: trata-se do segundo planeta mais próximo do Sol, do qual dista aproximadamente sessenta e sete milhões de milhas. É o mundo mais próximo da Terra e pode chegar a uma distância de vinte e seis "milhões de milhas de meu planeta nativo. É um planeta um pouco menor do que a Terra e sua gravidade corresponde a cinco sextos da gravidade terrestre. Revolve ao redor do Sol em aproximadamente sete meses e meio e seu dia tem trinta e seis horas. A temperatura da superfície é um pouco mais elevada que a da Terra, mas a diferença é mínima por causa das nuvens. As estações aqui praticamente não existem, também por causa das nuvens. A superfície é coberta por um oceano, que por sua vez está coberto por algas-marinhas. A atmosfera é composta de dióxido de carbono e nitrogênio, e é irrespirável. Que tal, dr. Morriss?

- Nota dez - respondeu o biofísico. - Entretanto, minha pergunta se referia á sociedade e não aos aspectos físicos do planeta.

- Neste caso, a resposta é um pouco mais difícil. É claro, sei que a população humana habita cidades protegidas por abóbadas nas porções menos profundas do oceano, e tive ocasião de constatar que a vida urbana venusiana está muito adiantada - por exemplo, muito mais adiantada que a vida urbana em Marte.

Bigman protestou:

- Como assim?

Morriss observou o marciano com olhos risonhos:

- Você não concorda com a opinião de seu amigo?

Bigman hesitou:

- Eu posso até concordar, mas ele não precisava falar deste jeito!

Lucly sorriu e continuou:

- Vênus é um planeta bem desenvolvido. Acredito que existam umas cinqüenta cidades, e o total da população chega a cinco milhões. Vocês exportam algas-marinhas secas que, pele que me informaram, é um excelente fertilizante, e tijolos desidratados de leveduras, para rações animais.

- Uma resposta razoavelmente satisfatória - comentou Morriss. - Gostaria de saber se o jantar no Salão Verde foi de seu agrado.

Lucky ficou surpreso com esta mudança de assunto, mas respondeu:

- Foi ótimo. Qual é o motivo da pergunta?

- Espere para ver. O que foi que vocês comeram?

Lucky disse:

- Não sei, ao certo. Era o jantar da casa. Acho que comi uma espécie de picadinho de carne de vaca, com um molho muito saboroso e uma verdura que não reconheci. Acho que antes disto nos serviram uma salada de frutas e um creme de tomate muito bem temperado.

Bigman se intrometeu:

- E grãos de geléia como sobremesa.

Morriss desatou a rir.

- Pois não foi nada disto, sabiam? - explicou. - Vocês não comeram carne de vaca, nem frutas, e nem tomates. E não tomaram café. Vocês comeram apenas um produto, um só. Leveduras!

- O quê? - berrou Bigman.

Lucky também ficou surpreso. Apertou os olhos e perguntou:

- Você não está brincando?

0 Claro que não estou brincando. Trata-se de uma especialidade do Salão Verde. Eles jamais falam no assunto, porque sabem que os terráqueos recusariam os alimentos. De qualquer forma, costumam perguntar aos hóspedes qual dos pratos agrada mais, e pedem sugestões sobre os temperos. O Salão Verde é o mais valioso laboratório experimental de Vênus.

Bigman torceu o rosto diminuto e gritou:

- Pretendo dar queixa. Vou levar este caso perante o Conselho. Eles não podem me obrigar a comer leveduras sem me avisar, como se eu fosse um cavalo, ou uma vaca, ou um... um...

Parou porque estava se engasgando.

- Imagino - disse Lucky - que a levedura deve ter alguma relação com a onda de crimes em Vênus.

- Você imagina, não é? - comentou Morriss, secamente. - Pois você ainda não leu os relatórios oficiais. Isto não me surpreende. Na Terra todos pensam que estamos exagerando. Entretanto, posso garantir que não é assim. Finalmente, Lucky, não se trata apenas de uma onda de crimes. Leveduras, Lucky são leveduras! Elas são o núcleo central de qualquer coisa neste planeta.

Um carrinho automático apareceu, trazendo uma máquina para fazer café e três xícaras fumegantes. O carrinho parou primeiro perto de Lucky e depois ao lado de Bigman. Morriss tomou a terceira xícara, encostou-a nos lábios e depois limpou os bigodes com ar satisfeito.

- Se desejarem açúcar ou creme de leite, cavalheiros... Bigman olhou com atenção e depois cheirou. Olhou desconfiado para Morriss e perguntou: - Levedura?

- Não, este é café legítimo, palavra.

Beberam em silêncio. A seguir, Morriss disse:

- Lucky, Vênus é um mundo que requer um bocado de dinheiro para a sua manutenção. Nossas cidades devem produzir oxigênio, extraindo-o da água, e para isto precisam de enormes estações eletrolíticas. Cada cidade necessita de poderosas vigas de força para sustentar as abóbadas sob milhões de toneladas de água. A cidade de Afrodite gasta num ano uma quantidade de energia igual à de toda a América do Sul. Entretanto, tem apenas a milésima parte de sua população.

- É claro que precisamos obter esta energia. Precisamos exportar para a Terra, para conseguirmos usinas eletrotérmicas, maquinaria especializada, combustíveis atômicos, etc. O único produto de Vênus são as algas-marinhas em quantidades inesgotáveis. Conseguimos exportar uma parte, para servir como fertilizante, mas isto não resolve nossos problemas. Por outro lado, utilizamos a maioria de nossas algas-marinhas como meio de cultura para leveduras. Dez mil e uma variedades de leveduras.

Bigman torceu a boca:

- Transformar algas-marinhas em leveduras não me parece grande coisa.

- O jantar não lhe agradou? - perguntou Morriss.

- Por favor, dr. Morriss, continue - disse Lucky.

Morriss falou:

- Devo dizer que o senhor Jones está complet...

- Pode me chamar de Bigman!

Morriss lançou um olhar sério ao pequeno marciano e continuou:

- Como quiser. Bigman está completamente certo em sua opinião sobre leveduras. Nossas variedades mais importantes só podem ser utilizadas para rações animais. Mesmo assim, são muito úteis. A carne de um porco alimentado com leveduras é mais barata e também melhor que qualquer outra. A levedura tem um elevado teor de calorias, proteínas, minerais e vitaminas. Temos outras variedades de qualidade mais refinada, utilizadas quando precisamos armazenar alimentos durante um longo período e apenas dispomos de pouco espaço. Por exemplo, durante as longas jornadas espaciais, as rações L são utilizadas com muita freqüência. Finalmente, temos variedades finíssimas, cuja cultura é muito cara e delicada, e que são utilizadas nos cardápios do Salão Verde e que podem imitar perfeitamente outros alimentos comuns. Por enquanto a produção é reduzida, mas um dia será em grande escala. Acredito que você está percebendo onde pretendo chegar, Lucky.

- Acho que sim.

- Mas eu, não! - interferiu Bigman, agressivo.

Morriss explicou:

- Vênus terá o monopólio destas variedades de luxo. Nenhum outro mundo poderá tê-las. Sem a experiência de Vênus em zimoculturas...

- Em quê? - perguntou Bigman.

- Em culturas de leveduras. Sem a experiência de Vênus, nenhum outro mundo poderia desenvolver as mesmas leveduras, ou mesmo mantê-las depois de consegui-las. Vênus poderia então desenvolver um comércio muito lucrativo de variedades de leveduras de luxo com todo o resto da galáxia. Isto não seria apenas importante para Vênus, mas também para a Terra - para toda a Confederação Solar. Somos o sistema mais populoso da Galáxia, porque somos o sistema mais antigo. Se conseguíssemos trocar um quilo de levedura por uma tonelada de cereais, as coisas poderiam se tornar muito favoráveis para nós.

Lucky esperou pacientemente que Morriss terminasse a explicação e falou:

- Pelos mesmos motivos, poderia ser interessante para uma potência estrangeira acabar com o monopólio de Vênus, porque assim enfraqueceria a Terra.

- Fico satisfeito que você concorde comigo. Gostaria que o resto do Conselho se convencesse deste perigo constante. Se alguém conseguisse se apoderar de culturas de leveduras em desenvolvimento, junto com alguns de nossos conhecimentos, o resultado poderia ser trágico.

- Concordo - disse Lucky. - E agora chegamos ao ponto mais importante: já houve algum grande furto?

- Ainda não - respondeu Morriss, sério. - Entretanto, nestes últimos seis meses tivemos um número crescente de pequenos furtos, de acidentes estranhos e até de incidentes esquisitos. Alguns casos são apenas irritantes ou divertidos, como o caso de um velho que começou a jogar moedas de meio crédito para as crianças, e depois correu até a polícia e deu queixa de furto. Quando um bom número de testemunhas afirmou que ele tinha dado as moedas de presente, o velho ficou louco de raiva e afirmou que estavam todos mentindo. Tivemos também acidentes mais graves, como quando um operador de empilhadeira deixou cair um fardo de meia tonelada de algas e matou dois homens. Mais tarde ele declarou que tinha perdido os sentidos.

Bigman, excitadíssimo, estrilou:

- Lucky! Os pilotos do cruzador afirmaram também que tinham perdido os sentidos!

Morriss assentiu.

- Sim, e devo dizer que fico satisfeito que tenha acontecido e que vocês dois conseguiram sobreviver. Talvez agora o Conselho, lá na Terra, esteja disposto a acreditar que todos estes casos têm uma origem comum.

- Acho que você está pensando em hipnotismo - disse Lucky. Morriss esticou os lábios num sorriso sem alegria.

- Hipnotismo é uma expressão muito branda, Lucky. Você por acaso já ouviu falar em algum hipnotizador capaz de influenciar até este ponto, e à distância, sujeitos que não estão dispostos a colaborar? Acho que em Vênus existe uma pessoa, ou talvez várias pessoas, com a capacidade de exercer um domínio mental completo sobre outras. Estas pessoas estão usando este poder, estão praticando-o, e todos os dias conseguem aumentá-lo. A luta contra este inimigo torna-se mais difícil enquanto os dias estão passando. Pode ser tarde demais!

 

Conselheiro sob acusação

Os olhos de Bigman brilharam.

- Nunca é tarde demais quando Lucky entra em ação! Onde vamos começar, Lucky?

Lucky falou com calma:

- Vamos começar com Lou Evans. Estava esperando que o senhor o mencionasse, dr. Morriss.

Morriss contraiu as sobrancelhas e seu rosto gordo mostrou seu desagrado.

- Você é seu amigo. Você quer defendê-lo, eu sei. Os fatos são muito desagradáveis. O envolvimento de qualquer conselheiro seria desagradável. Em se tratando de um amigo, a coisa é quase dolorosa.

Lucky observou:

- Não estou agindo apenas por motivos sentimentais, dr. Morriss. Conheço Lou Evans tão bem quanto é possível conhecer um outro homem. Sei que é incapaz de fazer qualquer coisa para prejudicar o Conselho ou a Terra.

- Neste caso, ouça e depois forme sua própria opinião. Durante a maior parte de sua permanência aqui em Vênus, Evans não fez nada. Foi mandado aqui como um "mediador", mas esta é apenas uma bonita expressão sem qualquer significado.

- Não quero ofendê-lo, dr. Morris, mas o senhor ficou ressentido quando Evans chegou?

- Não, absolutamente. Apenas, achei sua vinda inútil. Nós envelhecemos aqui em Vênus. Temos toda a experiência necessária. O que é que o Conselho esperava de um rapaz recém-chegado da Terra?

- Às vezes um enfoque diferente pode ser útil.

- Tolices. O que é realmente grave, Lucky, é que o Conselho não acha que nossos problemas sejam importantes. Mandaram Evans para cá com o único intuito de fazer uma rápida vistoria, colocar alguns panos quentes e depois voltar, afirmando que estava tudo em ordem.

- Não são estes os princípios que norteiam o Conselho na Terra, e você também sabe disto.

O venusiano não desistiu de suas queixas.

- Há três semanas, este tal de Evans quis ver alguns dados reservados sobre culturas de leveduras. Os homens da indústria se opuseram.

- Como assim? - perguntou Lucky. - Afinal, era o pedido de um conselheiro.

- Sim, concordo, mas este pessoal das leveduras gosta de fazer mistério. Ninguém faz um pedido destes, nem mesmo um conselheiro. Perguntaram a Evans por que ele precisava daquelas informações. Ele recusou qualquer explicação. Eles se submeteram ao pedido de Evans e eu o vetei.

- Por quê?

- Ele não quis me dar satisfações. Enquanto eu for o deão dos Conselheiros em Vênus, não tolero segredos dentro de minha organização. Entretanto, seu amigo Lou Evans fez algo que eu não esperava. Ele roubou os dados. Valeu-se de sua posição como conselheiro para entrar numa área reservada no interior da usina experimental de leveduras, e saiu de lá levando os microfilmes no cano das botas.

- Devia existir um motivo muito válido para isto.

- Sem dúvida - concordou Morriss -, sem dúvida. Os microfilmes continham dados sobre as fórmulas de nutrientes necessários para alimentar uma variedade muito nova e extremamente delicada de leveduras. Dois dias depois um operário, enquanto misturava um dos componentes da mistura, acrescentou traços de sais de mercúrio. A levedura ficou inutilizada, significando o fracasso de seis meses de trabalho. O operário jurou que não tinha acrescentada nada à mistura, mas existiam provas. Nossos psiquiatras começaram a examiná-lo. Entenda, nesta altura dos acontecimentos já sabíamos aproximadamente qual seria o resultado. Ele ficara inconsciente durante um lapso de tempo. Nossos inimigos ainda não conseguiram roubar a variedade de levedura, mas estão chegando mais perto. Certo?

Os olhos castanhos de Lucky fuzilavam.

- Percebo a teoria, é muito óbvia. Lou Evans passou para o campo do inimigo, que não sei quem é.

- São os sirianos - falou Morriss de repente. - Estou convencido disto.

- Pode ser - admitiu Lucky. Os habitantes dos planetas de Sírio há séculos eram os mais exacerbados inimigos da Terra. Era fácil acusá-los de qualquer coisa. - Pode ser. Vamos supor que Lou Evans seja um desertor e passou para o lado dos sirianos. Vamos supor que concordou em conseguir os dados que permitam aos sirianos de provocar desordens nas usinas de leveduras. Primeiro, pequenas confusões, para chegar mais tarde a confusões maiores.

- Certo. Esta é minha teoria. Você pode me oferecer uma outra? Você não acha que o conselheiro Evans pode estar sob controle mental?

- Duvido muito, Lucky. Já temos um estudo de muitos casos. As pessoas que comprovadamente estiveram sob controle mental nunca perderam os sentidos por períodos superiores a meia hora, e todos os exames psiquiátricos indicaram claramente períodos de amnésia total. Para fazer o que fez, Evans deveria ter ficado sob controle mental durante dois dias, e nele não existe qualquer indício de amnésia.

- Ele foi examinado?

- Claro que sim. Quando uma pessoa é apanhada colhendo material reservado - e note bem, apanhada em flagrante - temos que recorrer a uma série de medidas. Não me interessa se esta pessoa é ou não um conselheiro. Foi examinado, sim senhor, e eu pessoalmente o suspendi de suas funções. Quando ele contrariou minhas ordens e mandou uma mensagem utilizando seu próprio equipamento, colocamos uma derivação em seu disruptor, para termos certeza de que não repetiria a façanha... ou, pelo menos, que interceptaríamos qualquer mensagem transmitida ou recebida. A mensagem que você recebeu foi a última que ele mandou. Estamos cansados destas brincadeiras e Evans está confinado. Estou preparando meu relatório para o quartel-general central, e já deveria ter feito isto há tempos. Vou requerer sua remoção do Conselho e que seja processado por corrupção, ou talvez por traição.

- Antes de fazê-lo... - disse Lucky.

- O quê?

- Gostaria de vê-lo.

Morriss levantou-se com um sorriso irônico.

- Quer vê-lo? À vontade. Vou acompanhá-los pessoalmente. Ele se encontra neste mesmo prédio. Francamente, gostaria que você ouvisse a defesa de Evans.

Subiram por uma rampa. Guardas silenciosos fizeram continência.

Bigman observava tudo com curiosidade.

- Isto é uma cadeia?

- Realmente, neste nível é uma espécie de cadeia - explicou Morriss. Em Vênus, os prédios servem para muitos usos.

Entraram numa pequena sala e de repente Bigman, sem qualquer motivo aparente, desatou a rir. Lucky não conseguiu evitar um sorriso e perguntou:

- O que foi que aconteceu, Bigman?

- Nada. Nada de importante - respondeu o baixinho entre gargalhadas. - É que você é muito engraçado, Lucky, assim sem bigode nenhum. Depois do desfile de bigodes que vimos em Vênus, você parece até aleijado. Como se alguém tivesse removido seu bigode à força.

Morriss sorriu e alisou o formidável bigode grisalho com o dorso da mão, com uma expressão entre tímida e orgulhosa.

Lucky achou graça e sorriu mais uma vez.

- Que coincidência - observou. - Tive o mesmo pensamento a seu respeito, Bigman.

Morriss disse:

- Vamos esperar aqui. Estão trazendo Evans para cá.

Sua mão soltou a pequena tecla de chamada.

Lucky examinou a sala. Era menor que a sala de Morriss, mais impessoal. Estava mobiliada com algumas poltronas, um sofá, uma mesinha no centro e duas mesas mais altas perto das janelas postiças. O vão das janelas postiças era preenchido por quadros de paisagens marinhas. Sobre uma das mesas maiores havia um aquário e, sobre a outra, dois pratinhos: um estava cheio de ervilhas secas e o segundo continha uma massa preta e gordurosa.

Bigman acompanhava com os olhos os movimentos de Lucky. De repente, perguntou:

- O que é isto, Lucky? - Aproximou-se do aquário e se inclinou para observar seu interior. - Venha ver isto, Lucky.

- É apenas um sapo venusiano, um bichinho de estimação dos homens - explicou Morriss. - Aliás, é um bom espécime. Vocês nunca viram um?

- Não, nunca vi um - respondeu Lucky. Aproximando-se de Bigman que observava o aquário. O recipiente media aproximadamente sessenta centímetros quadrados, e tinha uma profundidade de noventa centímetros. A água estava cheia de algas-marinhas leves como plumas.

Bigman perguntou:

- O bichinho não morde mesmo? - Agitava a água com o indicador e se inclinou para frente para ver melhor.

Lucky também inclinou a cabeça. O sapo venusiano ficou a olhá-los com uma expressão solene. Era um animalzinho com pouco mais de vinte centímetros, com uma cabeça triangular e olhos protuberantes. Estava sentado sobre suas seis patinhas que terminavam em patas acolchoadas. Cada pata era dotada de três dedos na frente e um atrás. Sua pele era esverdeada, como costuma ser a pele dos sapos, e possuía também barbatanas dorsais que pareciam vibrar. Em vez da boca tinha um bico, forte e curvo como o dos papagaios.

Enquanto Lucky e Bigman observavam, o sapo começou a subir na água. Seus pés continuaram no fundo do aquário, mas as pernas começaram a ficar mais longas, como se fossem telescópicas. Parou de subir quando a cabeça chegou perto da superfície.

Morriss juntou-se aos dois amigos e observou o bichinho com visível afeição. Disse:

- Eles não gostam de sair da água. O ar tem muito oxigênio. Gostam de oxigênio, mas em doses moderadas. São bichinhos dóceis e agradáveis.

Bigman estava entusiasmado. Em Marte não havia, praticamente, uma vida animal ativa, e um animalzinho deste tipo era uma novidade para ele.

- Onde vivem estes sapos? - perguntou.

Morriss mergulhou um dedo na água e acariciou a cabeça do animal. O sapo venusiano pareceu gostar disto, porque fechou os olhos escuros com movimentos espasmódicos que, talvez, fosse uma demonstração de agrado.

Morriss disse :

- Costumam ficar entre as algas-marinhas, em grupos bastante numerosos. Andam entre as algas como se estas fossem uma floresta. Seus artelhos compridos seguram as hastes das algas e aquele bico poderoso é capaz de arrancar mesmo as frondes mais resistentes. Provavelmente poderiam fazer um corte profundo num dedo humano, mas nunca ouvi dizer que os sapos mordem. Estou admirado que vocês nunca tivessem visto sapos venusianos. No hotel existe uma coleção enorme, dividida em grupos familiares. Vocês não repararam?

- Praticamente não tivemos ocasião de vê-los - observou Lucky. Bigman foi rápido até a outra mesa, apanhou uma ervilha seca e depois de untá-la com graxa preta, ofereceu-a ao sapo. Segurava a ervilha perto da superfície da água e o sapo ergueu o bico com muito cuidado e apanhou a ervilha. Bigman riu satisfeito.

- Vocês viram isto? - perguntou.

Morriss sorriu com ternura, como se o sapo fosse uma criança.

- Que diabinho. Se pudessem, os sapos comeriam isto o dia todo. Olhe só como aprecia a guloseima.

O sapo venusiano estava mastigando. Uma pequena gota negra apareceu num lado de seu bico, e suas pernas começaram a se dobrar enquanto mergulhava para o fundo. O bico se abriu um pouco e a gotinha desapareceu.

- O que é aquela substância escura? - perguntou Lucky.

- Graxa para engrenagens - disse Morriss. - Para os sapos a graxa é uma guloseima, como o açúcar o é para nós. Em seu habitat natural quase não há hidrocarbonetos puros. Eles gostam tanto de graxa que eu não ficaria surpreso se alguém me dissesse que os sapos se deixam capturar só porque querem comê-la.

- Como costumam capturar estes bichinhos?

- Quando as dragas apanham algas-marinhas, sempre se encontram sapos venusianos entre as frondes. Também se encontram outros animais.

Bigman exclamou:

- Escute, Lucky, por que você e eu não vamos...

Calou-se quando percebeu que dois guardas estavam entrando na sala. Entre os dois estava um moço alto e loiro.

Lucky se levantou com um pulo.

- Lou! Lou, meu velho! - Estendeu a mão com um sorriso.

Por um instante o moço loiro pareceu pronto a responder. Seus olhos se iluminaram pela alegria. Logo sua animação se apagou e seus braços ficaram imóveis. Falou sem qualquer inflexão.

- Alô, Lucky.

Lucky deixou cair sua mão, relutando. Disse:

- Não o vejo desde a formatura. - Calou-se. O que mais poderia dizer a um velho amigo?

O conselheiro loiro parecia perfeitamente consciente da situação. Acenou para os guardas que se mantinham ao seu lado e comentou com humor negro:

- Desde então houve algumas mudanças. - Apertou os lábios finos e continuou: - Por que você veio? Por que não ficou longe? Pedi para você não vir.

- Não consigo me manter afastado quando um amigo está em dificuldades, Lou.

- Você deve esperar até que alguém lhe peça ajuda.

Morriss falou:

- Acho que você está perdendo tempo, Lucky. Você ainda o considera um conselheiro. Aconselho que você comece a pensar nele como um renegado.

O gordo venusiano pronunciou a palavra entre dentes cerrados, como uma chicotada. Evans enrubesceu mas ficou em silêncio. Lucky disse:

- Preciso de provas antes de admitir que se fale assim sobre o conselheiro Evans. - Pronunciou "conselheiro" vagarosamente e com força.

Deixou-se cair sobre uma poltrona e observou demoradamente seu amigo. Evans desviou o olhar. Lucky disse:

- Dr. Morriss, afaste os guardas, por favor. Eu me responsabilizo por Evans.

Morriss ergueu uma sobrancelha e, depois de refletir um pouco, afastou os guardas com um aceno da mão. Lucky continuou:

- Bigman, não leve a mal, por favor. Quer ir para a sala ao lado?

Bigman assentiu e saiu. Lucky olhou para o amigo:

- Lou, agora estamos a sós, nós três. Apenas você, o dr. Morriss e eu. Três homens do Conselho de Ciências. Vamos começar do começo. Quero que você me diga se removeu do arquivo dados reservados sobre as culturas de leveduras.

Lou Evans respondeu:

- Sim, eu fiz isso.

- Neste caso, você devia ter um motivo. Quer dizê-lo?

- Ora, veja só. Eu roubei os dados. Ouviu bem? Eu roubei. Estou admitindo o fato, não é mesmo? O que mais você quer? Não tinha qualquer motivo para fazê-lo, mas roubei os dados. Agora pare com isto. Afaste-se de mim. Deixe-me em paz. - Seus lábios tremiam.

Morriss comentou:

- Você queria ouvir a defesa de Evans. Pois ele não tem nenhuma.

Lucky insistiu:

- Acho que você sabe que aconteceu um acidente na usina de leveduras, logo depois que você se apoderou daqueles documentos, e que o acidente aconteceu exatamente com a variedade de leveduras à qual se referiam os documentos.

- Sim, eu sei - confirmou Evans.

- Você pode explicar isto?

- Não posso lhe dar qualquer explicação.

Lucky estava observando Evans com atenção concentrada, procurando algum vestígio do rapaz alegre, brincalhão e corajoso que conhecera na academia. Mas, a não ser pelos bigodes à moda venusiana, o homem que estava em sua frente se assemelhava ao rapaz apenas pelos traços físicos. Tinha o mesmo corpo esguio, os cabelos loiros e curtos, o queixo pontudo, a ausência de qualquer gordura. Mas não tinha a mesma atitude. Os olhos de Evans se moviam incessantemente, indo de um ponto para outro; seus lábios secos tremiam; as unhas estavam roídas.

Lucky teve que fazer um esforço para poder formular a pergunta seguinte. Estava falando com um amigo, um homem que conhecia bem, cuja lealdade sempre considerara acima de qualquer suspeita. Perguntou:

- Lou, você se vendeu?

Evans respondeu com a mesma apatia:

- Sem comentário.

- Lou, vou perguntar mais uma vez. Antes, porém, quero que você saiba que estou do seu lado, não importa o que você fez. Se você fez algo que prejudica o Conselho, deve haver uma razão. Diga qual é. Se você foi drogado, se você sofreu alguma violência física ou moral, se você é vítima de uma chantagem ou se alguém que você estima foi ameaçado, você deve falar. Pelo amor da Terra, Lou! Mesmo se você cedeu à tentação de possuir dinheiro ou conseguir poder... mesmo se o motivo é tão grosseiro, você deve falar. Qualquer erro cometido pode ser, pelo menos parcialmente, corrigido, se você for franco. Então, fale!

Durante um breve momento Evans mostrou-se emocionado. Seus olhos azuis fitaram o amigo, mostrando toda sua mágoa.

- Lucky - disse - eu... - Recuperou-se logo e gritou: - Sem comentário, Starr, sem comentário!

Morriss cruzou os braços:

- Pois é, Lucky. Veja só que atitude. Entretanto, ele tem informações e conseguiremos extraí-las. Existem meios.

Lucky insistiu:

- Espere um pouco...

Morriss interrompeu:

- Não podemos esperar. Procure entender. Não temos tempo, nem um pouco de tempo. Estes chamados acidentes estão ficando sempre mais sérios, o que significa que o inimigo está se aproximando de seu objetivo. Precisamos interromper toda a trama já, sem perder um minuto. - Bateu o punho fechado sobre o braço da poltrona. No mesmo instante o comunicador deu um sinal estridente.

Morriss franziu a testa:

- Sinal de emergência. O que pode ter acontecido?

Abriu o circuito e encostou o fone no ouvido.

- Aqui é Morriss. O que foi?... O quê!... O QUÊ?

Deixou cair os fones e virou a cabeça, olhando para Lucky. Seu rosto estava muito pálido.

- Um homem hipnotizado se encontra peito da comporta número vinte e três - disse com evidente esforço.

O corpo de Lucky se retesou.

- Que comporta é esta? Você está se referindo à abóbada?

Morriss meneou a cabeça. Gaguejou:

- Eu estava dizendo que os acidentes estavam se tornando sempre mais graves. Sim, estou falando da abóbada marinha. Aquele homem pode... a qualquer minuto... abrir a comporta e... submergir Afrodite!

 

O perigo da água!

O autogiro corria em alta velocidade e Lucky conseguia ver, de vez em quando, a grande abóbada. Refletiu que uma cidade construída sob a água exigia milagres de engenharia que também fossem práticos.

No sistema solar existiam muitas cidades cobertas com abóbadas. As mais antigas e mais conhecidas estavam em Marte. Mas em Marte a gravidade correspondia a apenas dois quintos da gravidade da Terra, e as abóbadas em Marte apenas precisavam proteger a cidade contra uma atmosfera rarefeita.

Aqui em Vênus a gravidade correspondia a cinco sextos da gravidade terrestre, e as abóbadas venusianas eram submarinas. Mesmo situadas em águas rasas, de maneira que quando a maré era baixa, as abóbadas quase apareciam na superfície, elas eram obrigadas a sustentar milhões de toneladas de água.

Como a maioria dos terrestres (e também dos venusianos), Lucky costumava considerar estes progressos da humanidade como normais. Agora porém afastou da mente Lou Evans e todos os problemas que se relacionavam com o amigo e começou a se preocupar com o novo acontecimento, sentindo a necessidade de aprofundar seus conhecimentos a respeito do fato.

Perguntou:

- Qual é o sistema utilizado para sustentar a abóbada, dr. Morriss?

O gordo parecia ter recuperado em parte sua costumeira compostura. Estava dirigindo o autogiro em alta velocidade, para se aproximar o mais rápido possível do setor ameaçado. Falou com voz enérgica, pronunciando claramente as palavras:

- Campos de força diamagnéticos em armações de aço. À primeira vista, parece que são vigas de aço que sustentam a abóbada, mas é apenas uma impressão. O aço não é bastante forte. São os campos de força que servem de apoio.

Lucky olhou para baixo, para as ruas da cidade cheias de gente em movimento. Disse:

- Já aconteceu algum acidente deste gênero?

- Morriss gemeu:

- Pelo espaço, não, nada como isto... Chegaremos dentro de cinco minutos.

- Existem medidas de segurança contra acidentes? - perguntou Lucky.

- Sim, sem dúvida. Existe um sistema de alerta e também temos ajustes automáticos de campo de força, quase perfeitos. A cidade está construída em segmentos. Qualquer falha local aciona um mecanismo que fecha os segmentos com partições de transite, sustentadas por campos auxiliares.

- Isto significa que a cidade não será destruída, mesmo com a água do oceano entrando. Estou certo? E a população está instruída?

- Sim, o povo sabe que existe esta proteção. Entretanto, uma parte da cidade pode ficar submersa. Sem dúvida haverá vítimas, e os prejuízos serão enormes. Pior ainda: se as pessoas podem ser controladas até este ponto, haverá outras ocasiões, outros acidentes.

Bigman olhou para Lucky, preocupado. Mas o terrestre parecia distraído, preocupado, com as sobrancelhas franzidas.

Morriss anunciou de repente:

- Pronto, chegamos! - O auto-gjro desacelerou e parou.

O relógio de Bigman indicava que eram duas e meia, mas isto não significava nada. A noite de Vênus durava dezoito horas, e embaixo da abóbada não era possível distinguir o dia da noite.

A iluminação artificial continuava ligada. Os prédios podiam ser vistos claramente, como sempre. A única diferença estava na atitude dos moradores. Estavam saindo das várias secções da cidade. A notícia da emergência tinha se espalhado rapidamente, passando de boca em boca, e todos estavam se aglomerando, curiosos, para ver o que ia acontecer: parecia que todos estavam indo para o circo ou, talvez, para assistir a um concerto.

A polícia segurava a multidão e conseguiu abrir um caminho para Morriss e seus dois acompanhantes. Uma espessa parede de transite já estava fechando a secção da cidade ameaçada pelas águas.

Morris indicou a Lucky e Bigman onde se encontrava uma passagem. O burburinho da multidão diminuiu e desapareceu quando a porta se fechou. No interior do prédio um homem se aproximou rapidamente de Morriss.

- Dr. Morriss...

Morriss ergueu os olhos e apresentou o homem:

- Este é Lyman Turner, engenheiro chefe. David Starr, do Conselho. Bigman Jones. - Percebeu alguém que acenava do outro lado da sala. Afastou-se depressa e gritou: - Turner vai cuidar de vocês.

Turner berrou:

- Um minuto, dr. Morriss! - mas foi inútil.

Lucky olhou para Bigman e o pequeno marciano saiu atrás do conselheiro venusiano.

- Ele foi chamar o dr. Morriss? - perguntou Turner preocupado, passando uma mão sobre uma caixa que levava a tiracolo. Tinha o rosto magro e cabelos avermelhados, um nariz proeminente, algumas sardas e a boca larga. Parecia preocupado.

- Não - respondeu Lucky. - Provavelmente Morriss estará ocupado. Apenas avisei meu amigo para não perdê-lo de vista.

- Não sei se isto vai adiantar alguma coisa - murmurou o engenheiro. - Aliás, não sei o que poderia adiantar. - Colocou um cigarro na boca e ofereceu o maço a Lucky. Lucky recusou mas o engenheiro não tomou conhecimento e ficou durante alguns minutos segurando o maço de plástico, obviamente pensando em alguma coisa. Lucky perguntou:

- Suponho que estão evacuando a seção ameaçada?

Turner guardou os cigarros, acendeu o que segurava entre os lábios. Em seguida jogou o cigarro ao chão, esmagando-o com a sola do sapato.

- Sim, estão evacuando o local - disse. - Mas não sei se vai adiantar...

- A partição já desceu em toda a cidade? - perguntou Lucky.

- Sim, sim - murmurou o engenheiro.

Lucky esperou um pouco e depois insistiu:

- Mas você não está satisfeito, não é? O que é que você queria dizer a Morriss?

O engenheiro lançou um olhar ansioso para Lucky, ajeitou sua caixa preta e respondeu:

- Nada, não foi nada.

Estavam sozinhos num canto da sala. Viram homens entrando, metidos em macacões pressurizados, que removiam seus capacetes e enxugavam os rostos. Ouviram rasgos de conversa:

- ... pouco mais de três mil pessoas. Agora estamos utilizando as comportas intermediárias...

- ... não consegui. Tentei de todas as maneiras. A esposa está falando pelo subetérico...

- ... e está segurando a alavanca. Basta puxá-la e...

- Se ao menos pudéssemos chegar perto e alcançá-lo com um desintegrador. Se pudéssemos ter certeza de chegar sem sermos vistos...

Turner estava escutando, fascinado, mas não saía do seu canto. Acendeu mais um cigarro que depois jogou fora. De repente exclamou:

- Olhe só para a multidão lá fora! Estão se divertindo! Para eles é apenas uma novidade! Não sei o que fazer, realmente não sei. Ajeitou a tira que sustentava a caixa.

- O que é isto? - perguntou Lucky.

Turner olhou para a caixa como se estivesse vendo-a pela primeira vez, depois falou:

- É meu computador. É um modelo especial, portátil, que eu mesmo desenhei. - Sua vaidade sobrepujou suas preocupações: - Não existe outro computador igual em toda a galáxia. Costumo levá-lo sempre comigo. É por isto que eu sei que...

Lucky insistiu, com a voz dura:

- Diga logo o que sabe, Turner! Comece a falar, homem. Agora mesmo!

O jovem conselheiro colocou a mão no ombro do engenheiro, apertando-o. Turner arregalou os olhos, surpreso.

- Como é seu nome? - perguntou.

- Sou David Starr.

Os olhos de Turner brilharam.

- Você é o homem que chamam de Lucky Starr?

- Sou eu.

- Está bem, vou falar, mas não posso falar muito alto. É perigoso.

Lucky inclinou a cabeça e Turner começou a murmurar. Ninguém estava se preocupando com eles.

Turner parecia feliz por esta ocasião e as palavras fluíam de sua boca como se ele quisesse se livrar delas. Disse:

- As paredes da abóbada são duplas, sabia? Cada parede é feita de transite, que é o silicone mais forte e mais resistente de todos. A mais, existem as vigas diamagnéticas. Podem resistir a pressões enormes. As vigas são insolúveis, não se oxidam. Nenhuma forma de vida pode crescer sobre elas. Nenhum elemento químico do oceano venusiano pode afetá-las. Entre as duas partes da abóbada temos dióxido de carbono comprimido. Serve para diminuir o impacto se a parede externa tiver que ceder, e a parede interna é suficientemente forte para resistir à água. A mais, entre as duas paredes existem divisões em forma de favos. Em caso de acidentes, apenas uma parte entre as duas paredes será invadida pelas águas.

- Parece um sistema bastante complicado - disse Lucky.

- Excessivamente complicado - queixou-se Turner. - Um sismo poderia rachar a abóbada, só um sismo. E nesta parte do planeta não se verificam sismos. - Acendeu mais um cigarro. Suas mãos tremiam. - Finalmente, cada metro quadrado da abóbada está ligado a instrumentos que medem constantemente a umidade entre as paredes. Mesmo uma fissura mínima, microscópica, invisível, provocaria um alerta: cigarras, sirenes... Todo mundo começaria a gritar: Olhe o perigo! Olhe as águas! - Seu sorriso era maroto: - O perigo das águas! Não me faça rir! Estou neste emprego há dez anos, e durante todo este tempo os instrumentos só indicaram infiltrações cinco vezes. Em cada caso os consertos não levaram mais do que uma hora. Basta colocar um sino de mergulhador sobre o ponto da abóbada afetado, retirar a água, fundir o transite, acrescentar mais uma camada do mesmo material e deixá-lo esfriar. O resultado é que a abóbada é mais forte do que antes. Perigo das águas, pois sim! Jamais tivemos uma gota da água deste lado da abóbada.

- Está bem - disse Lucky. - Entendi. Agora diga-me o resto.

- O resto? É apenas excesso de confiança, senhor Starr. Isolamos o setor ameaçado, mas qual é a resistência da parede divisória? Sempre pensamos que a parede externa ficaria danificada, que começaria aos poucos, indicando uma pequena fissura. A água poderia penetrar um pouco, e sabíamos que teríamos o tempo suficiente para fazer o conserto. Ninguém jamais considerou o que poderia acontecer se alguém abrisse uma comporta de uma só vez. A água pode entrar como uma barra de ferro impulsionada a uma velocidade de uma milha por minuto. O impacto contra a parede divisória de transite será como o de uma nave espacial em aceleração.

- Você acha que a parede não poderá resistir?

- Acho apenas que ninguém considerou o problema sob este ângulo. Ninguém jamais calculou as forças envolvidas - até há meia hora. Há meia hora eu mesmo comecei a calcular, só para passar o tempo, enquanto tudo isto estava acontecendo. Sempre carrego meu computador. Daí, fiz algumas suposições e comecei a calcular.

- E você acha que a parede não poderia resistir?

- Não estou certo. Não sei se todas as minhas suposições são exatas, mas penso que ela não poderá resistir. O que resta a fazer? Se a barreira não pode resistir, Afrodite está perdida. A cidade inteira. Você e eu e mais duzentos e cinqüenta mil pessoas. Todo mundo. Aquela multidão lá fora, tão excitada e curiosa, estará perdida se aquele homem lá em cima baixar a alavanca que está segurando.

Lucky observou o homem com horror:

- Há quanto tempo você chegou a estas conclusões?

O engenheiro tratou de se defender:

- Há meia hora. Mas o que é que eu poderia fazer? Não podemos mandar que duzentos e cinqüenta mil pessoas coloquem roupas de mergulho! Queria falar com Morriss, para que avisasse as pessoas mais importantes da cidade, ou tomasse providências para proteger pelo menos uma parte das mulheres e das crianças. Eu não sei quem escolher, não sei quem deve ser salvo, porém dever-se-ia fazer uma coisa qualquer. O que é que você acha?

- Não estou certo.

O engenheiro continuou, preocupado:

- Penso que talvez eu deveria vestir minhas roupas de mergulho e sair daqui. Deveria sair da cidade. Acho que, devido às circunstâncias, as saídas não estão mais guardadas.

Lucky deu um passo para trás e se afastou do engenheiro, agitado:

- Pela galáxia! Como é que não percebi isto?

Virou as costas e saiu da sala correndo, com a mente tomada por um único pensamento.

 

Tarde demais!

No meio da confusão, Bigman sentia-se completamente indefeso. Procurava não perder de vista Morriss e percebeu que estava indo de um grupo para outro, ouvindo rasgos de conversas agitadas e que nem sempre compreendia, porque não conhecia as condições peculiares de Vênus.

Morriss não tinha tempo para parar. A cada minuto aparecia mais um homem, com mais um relatório, e Morriss via-se obrigado a tomar decisões. Bigman o estava seguindo há vinte minutos, e Morris já tinha tomado uma dúzia de decisões, descartando-as em seguida.

Um homem, vindo do setor ameaçado, estava dizendo com a voz entrecortada:

- Ele está na mira dos raios detectores e podemos vê-lo. Está sentado, segurando a alavanca. Dirigimos a voz da esposa até lá, primeiro pelo subetérico, depois através dos alto-falantes normais e finalmente pelos alto-falantes externos, mas acho que ele não está ouvindo. Pelo menos, até agora não se mexeu.

Bigman mordeu os lábios. O que Lucky faria numa circunstância destas? Bigman já tinha pensado em se aproximar do homem pelas costas - seu nome era Poppnoe - e matá-lo. Por outro lado, todos já tinham pensado na mesma possibilidade e percebido que ninguém conseguiria fazê-lo. O homem que segurava a alavanca tinha fechado todos os acessos, e as câmaras que controlavam as comportas da abóbada tinham sido projetadas com cuidado, para evitar qualquer interferência. Toda a entrada possuía controles eletrônicos e os alarmes eram acionados internamente. Estas precauções estavam agora tendo o efeito contrário - em prejuízo de Afrodite, e não para sua proteção.

Bigman tinha certeza que ao primeiro sinal das cigarras, ou com a primeira luz vermelha, a alavanca seria baixada e o oceano de Vênus se precipitaria para o interior, afogando Afrodite. Ninguém podia se arriscar até que a cidade não fosse completamente evacuada.

Alguém sugeriu gases tóxicos, mas Morriss sacudiu a cabeça, sem dar qualquer explicação. Bigman achou que compreendia o pensamento do venusiano. O homem que segurava a alavanca não estava doente, não estava louco, não era movido por más intenções: estava apenas sob controle mental de alguém. Isto significava que existiam dois inimigos. O homem que segurava a alavanca poderia perder as forças por efeito dos gases e, por conseguinte, se tornar incapaz de baixar a alavanca, mas a perda das forças se refletiria em sua mente, e quem controlava esta mente tomaria logo as medidas necessárias para acionar os músculos.

- Não entendo por que estão esperando - rosnou Morriss, enquanto o suor escorria pelo seu rosto. - Se ao mesmo eu pudesse apontar um canhão atômico!

Bigman entendeu por que isto era impossível. Um canhão atômico dirigido contra o homem teria também força suficiente para atravessar um quarto de milha de estruturas de transite, e portanto danificaria a abóbada, provocando o desastre que todos tentavam evitar.

Pensou em Lucky. Onde estava? Olhou para Morriss e perguntou:

- Se vocês não conseguem imobilizar o homem, por que pelo menos vocês não cuidam dos controles?

- O que é que você quer dizer?

- Quero dizer, por que vocês não imobilizam a alavanca? Para abrir a comporta vocês precisam de energia, não é? Pois então, cortem a energia.

- Um raciocínio válido, Bigman. Acontece que cada comporta é dotada de um gerador de emergência.

- Este gerador não pode ser controlado do exterior?

- Não. E não podemos chegar até lá porque o homem está protegido por uma série de alarmes.

Bigman olhou para cima e pensou no oceano que se encontrava além da abóbada. Disse:

- Esta é uma cidade completamente fechada, como em Marte, onde precisamos bombear ar para todos os cantos. Aqui acontece o mesmo, não é?

Morriss levou o lenço até a testa para enxugar o suor. Não tirou os olhos do pequeno marciano.

- Está pensando nos condutos de ventilação?

- Sim. Deve haver um conduto que leve até lá.

- Sim, este conduto existe.

- E não existe também um lugar qualquer onde todos os circuitos podem ser interrompidos, algum fio pode ser cortado?

- Espere um minuto. Poderíamos empurrar uma microbomba pelo conduto, e usá-la em vez do gás tóxico...

- Isto não oferece qualquer segurança - protestou Bigman. - Você tem que mandar um homem. Uma cidade submarina deve ter condutos mais largos, não é? Não permitem a passagem de um homem?

- Estes condutos não são tão largos - explicou Morriss.

Bigman engoliu em seco. Precisou fazer um esforço para pronunciar a sentença seguinte.

- Eu não sou muito grande. Talvez consiga passar.

Morriss observou o diminuto marciano e arregalou os olhos. Falou:

- Por Vênus! É possível, você talvez consiga passar! Venha comigo.

 

As ruas de Afrodite estavam apinhadas e pela quantidade de gente podia-se avaliar que naquela noite nenhum homem, nenhuma mulher e nenhuma criança estava dormindo. Rente à parede divisória de transite e ao redor do "quartel-general de emergência", o povo se comprimia em todas as ruas e avenidas, transformando-as numa massa enorme de humanidade barulhenta. Para conter a massa, tinham sido colocadas correntes e atrás delas os policiais armados de cassetetes elétricos patrulhavam as entradas.

Lucky saiu do quartel-general correndo, mas teve que parar por causa das correntes. Olhou em volta. Um luminoso de lucite revolvia alto no céu de Vênus, sem qualquer apoio visível. A escrita cintilante proclamava: AFRODITE, A MARAVILHA DE VÊNUS, DÁ-LHES AS BOAS-VINDAS.

Logo em sua frente uma fila de homens estava avançando aos poucos. Todos estavam carregando objetos - pastas cheias de papéis, caixas de jóias, roupas dobradas sobre os braços. Aos poucos, entravam em autogiros. Não era difícil adivinhar quem eram: refugiados do setor ameaçado que atravessavam a única passagem, trazendo tudo que podiam carregar. A evacuação estava evidentemente bem adiantada. Não se viam mulheres ou crianças.

Lucky gritou para um policial:

- Você pode me arranjar um autogiro?

O policial respondeu:

- Não senhor, estão todos ocupados.

Lucky retrucou:

- A serviço do Conselho.

- Não adianta, senhor. Todos os autogiros disponíveis da cidade estão sendo usados por este pessoal.

- É muito importante. Preciso sair daqui.

- Neste caso o senhor terá que andar - disse o policial.

Lucky cerrou os dentes. Era impossível atravessar aquela multidão a pé ou com um veículo de rodas. Precisava ser pelo ar, e sem perder tempo.

- Não existe nada que eu poderia utilizar? Nada mesmo? - Não estava falando com o policial, estava mais pensando em voz alta, furioso por ter sido enganado por uma astúcia tão simples do inimigo.

O policial respondeu, brincando:

- A não ser que o senhor use um pulador.

- Um pulador? Onde? - Os olhos de Lucky brilharam.

- Eu estava apenas brincando.

- Mas eu não estou brincando. Onde há um pulador?

Havia um bom número no porão do prédio e estavam todos desmontados. Conseguiu a ajuda de quatro homens, e a máquina de melhor aparência foi montada na rua. As pessoas mais próximas observavam com curiosidade e algumas começaram a gritar:

- Pula, pula, pulador!

Era o velho grito de guerra das corridas. Os puladores eram uma moda que tinha tomado conta do sistema solar cinco anos antes: as corridas eram feitas em pistas cheias de obstáculos. Durante todo aquele período os venusianos eram os puladores mais arrojados. Provavelmente quase todos os prédios da cidade tinham os porões cheios de puladores desmontados.

Lucky controlou o microgerador. Estava funcionando. Ligou o motor e o giroscópio começou a revolver. O pulador se endireitou e ficou parado sobre sua única perna.

Os puladores são, sem dúvida, o meio de transporte mais cômico entre os muitos que foram inventados. Tem um corpo curvo, de tamanho apenas suficiente para sustentar um homem nos controles. Em cima tem um rotor de quatro pás e embaixo uma única perna metálica com a ponta de borracha. Parecia uma ave gigantesca, dormindo sobre uma perna só.

Lucky comprimiu o botão e a perna do pulador se retraiu. O corpo desceu até ficar a apenas dois metros do chão, enquanto a perna se encolhia no tubo que passava logo atrás do painel de controle. A perna alcançou a retração máxima acionando automaticamente o desengate com um barulho seco: o pulador subiu dez metros no ar.

As pás giravam rápidas, mantendo o pulador no ar durante alguns segundos. Durante aquele tempo, Lucky pôde ver as pessoas que estavam logo embaixo. A multidão se aglomerava por uma extensão de meia milha e Lucky apertou os lábios. Isto significava que precisaria de vários pulos para chegar até o espaço aberto. Significava uma perda de tempo precioso.

O pulador desceu, com sua longa perna esticada. As pessoas mais próximas fizeram o impossível para se afastar, mas isto não era necessário. Na parte inferior do corpo havia quatro sopradores de ar comprimido para afastar as pessoas, e a perna tocou no chão sem machucar ninguém.

A perna voltou a se contrair no contato com o concreto. Lucky teve o tempo de ver os rostos estarrecidos de algumas pessoas e logo o pulador subiu de novo.

Lucky podia entender o entusiasmo que tinha se apoderado das pessoas depois da invenção do pulador. Quando garoto, costumava participar de corridas. Um "piloto de pulador" bem treinado conseguia dar pulos inacreditáveis, encontrando apoio para onde parecia não haver nenhum. As corridas nas cidades submarinas de Vênus deviam ter sido bastante tranqüilas quando comparadas às corridas nos grandes espaços rochosos da Terra.

Lucky conseguiu alcançar espaço livre em quatro pulos. Desligou os motores e o pulador parou depois de uma série de pulinhos.

Lucky desceu. Mesmo que não conseguisse um autogiro, pelo menos poderia tentar com um veículo de rodas. Apenas perderia mais um pouco de tempo.

 

Bigman estava arfando e parou um pouco para respirar. Tudo tinha acontecido muito depressa e ele continuava a prosseguir como empurrado por uma maré.

Apenas vinte minutos tinham se passado desde sua sugestão a Morriss. Agora estava no interior de um tubo, comprimido por todos os lados e na mais total escuridão.

Avançou mais um pouco, arrastou-se sobre os cotovelos. Só parava de vez em quando para usar a pequena lanterna que iluminava as paredes internas do tubo. Sobre uma das mangas estava o diagrama desenhado apressadamente. Os condutos se prolongavam a perder de vista.

Morris apertara sua mão antes de Bigman se adentrar pelo tubo, por uma abertura da estação de bombeamento. As pás do enorme ventilador já estavam paradas. O ar não estava mais circulando. Morriss murmurou preocupado:

- Espero que o homem não perceba nada do que está acontecendo. - Depois apertou a mão de Bigman.

Bigman só conseguiu mostrar um sorriso que mais parecia uma careta. Os outros se afastaram enquanto ele prosseguia na escuridão. Ninguém tinha mencionado um detalhe que era óbvio: Bigman teria que ficar do lado oposto da barreira de transite. Se o homem que segurava a alavanca chegasse a abaixá-la num momento qualquer, a água destruiria o conduto junto com a parede, como se fosse de cartolina.

Bigman estava pensando nisto enquanto avançava, e tentava imaginar se ouviria a água antes que esta o destruísse. Esperava não ouvir nada, não perceber qualquer sinal. Se seu fim estava próximo, preferia morrer sem nada saber.

Percebeu que a parede do tubo começava a se curvar. Parou para acender a lanterna e examinar onde estava. Era a segunda curva marcada no diagrama. Logo o tubo começaria a subir.

Bigman virou-se com dificuldade, ajeitando-se à curva. Sua paciência estava se esgotando.

- Pelas areias de Marte! - rosnou. Os músculos das coxas doíam, porque precisava forçar os joelhos contra as paredes para evitar deslizar de novo para baixo. Subiu com grande esforço pela pista inclinada.

Bigman alcançou uma das escoras de reforço que atravessavam o conduto. Ficou satisfeito por encontrar alguma coisa que podia agarrar e que poderia usar para aliviar a pressão que exercia com seus cotovelos e joelhos. Segurou a escora com a mão esquerda e com a direita virou a lanterna, colocando o fundo desta em contato com a escora.

A energia do micro-reator da lanterna e que servia para produzir a força para acender a lâmpada, podia também produzir um campo de força na extremidade oposta, mediante um controle especial. Este campo de força, apesar de reduzido, era capaz de cortar qualquer matéria. Bigman ajustou o controle e logo percebeu que uma das extremidades da escora estava solta.

Mudou de mão e aplicou o campo de força na outra extremidade. Um leve toque e a barra de escora ficou solta em sua mão. Bigman colocou-a rente à parede e percebeu que deslizava para baixo.

A água ainda não estava chegando. Bigman arfava e se arrastava. Passou por mais duas escoras, mais uma curva e finalmente chegou a um trecho plano e viu um grupo de defletores que apareciam claramente indicados no mapa. Ao todo, tinha percorrido menos que duzentos metros, mas em quanto tempo?

A água ainda não estava chegando.

Os defletores eram lâminas alternadas, colocadas em ambos os lados do tubo e serviam para provocar uma determinada turbulência na corrente de ar. A mais, representavam seu último ponto de referência. Bigman cortou as lâminas com uma rápida passada do campo de força. Agora precisava medir três metros além do último defletor. A lanterna tinha um comprimento de quinze centímetros. Resolveu usá-la para medir a distância colocando-a contra a parede e fazendo vinte marcas.

A lanterna escapou-lhe das mãos duas vezes e teve que voltar atrás, para recontar as marcas, suando e xingando.

Finalmente mediu os três metros. Bigman manteve a mão sobre a marca. Morriss tinha explicado que o local mais favorável seria quase em cima da cabeça. Bigman acendeu a lanterna e passou os dedos sobre a superfície interna do tubo. Finalmente deitou-se de costas.

Aplicou o campo de força no escuro, mantendo-o a uma distância de dois centímetros da parede - porque o corte não devia ser muito profundo - e desenhou um círculo. O metal cortado caiu.

Virou a lanterna e iluminou os fios agora visíveis. Observou tudo com atenção concentrada. Poucos centímetros mais além estava uma sala, a menos de trinta metros do ponto onde o homem estava sentado, segurando a alavanca da comporta. Ainda estaria sentado na mesma posição? Obviamente não tinha baixado a alavanca (por que estava esperando?), caso contrário Bigman já estaria morto, já estaria afogado. Ou o homem talvez já estivesse preso...

Bigman fez uma careta quando lhe ocorreu que talvez estivesse se arrastando no interior de um tubo metálico sem qualquer necessidade.

Continuou a estudar a fiação. Em algum ponto estava um relê. Puxou delicadamente um fio, e depois um outro. Apareceu um pequeno cone duplo, preto. Bigman suspirou aliviado. Segurou a lanterna com os dentes para poder usar ambas as mãos.

Com extremo cuidado torceu os dois cones em sentidos opostos. As presilhas magnéticas cederam e as duas metades se separaram, aparecendo o interior. Tratava-se de um relê interruptor: havia dois contatos reluzentes, um embutido num seletor de campo e separado do outro mediante um intervalo quase imperceptível. Por meio de um estímulo apropriado, como por exemplo puxar uma pequena alavanca, o seletor de campo produzia uma energia suficiente para baixar o outro contato. A energia então atravessava os dois contatos fechados e podia abrir uma comporta na abóbada. Tudo poderia acontecer num milionésimo de segundo.

Bigman começou a suar, angustiado, como esperando que a hora fatal estivesse para se completar logo agora, enquanto faltava apenas um segundo para terminar a tarefa. Remexeu no bolso do colete e encontrou a massa isolante, já amolecida pelo calor de seu corpo. Ficou a amassá-la entre os dedos e depois colocou-a muito delicadamente no ponto entre os dois contatos. Apertou-a com o dedo, contando até três e suspirou.

Agora, mesmo que alguém acionasse a alavanca, os contatos não poderiam mais se fechar, porque entre eles havia uma leve camada de plástico. A energia já não poderia atravessá-los. Mesmo baixando a alavanca, a comporta não se abriria mais.

Bigman começou a gargalhar, deslizando para trás, atravessando os restos dos defletores, escorregando pela parte inclinada...

Bigman estava procurando ansiosamente Lucky no meio da confusão que tomava conta de toda a cidade. O homem que antes segurava a alavanca estava preso, a barreira de transite já estava eliminada, o povo estava voltando para casa (em sua maioria, indignado contra a administração da cidade que devia ter tomado cuidados para impedir tudo aquilo), entrando nos apartamentos abandonados às pressas. Para a multidão que tinha ficado parada esperando pelo desastre, o fim do medo significava o começo de uma enorme festa. De repente, Morriss apareceu e colocou uma mão no braço de Bigman:

- Lucky está à sua procura. Quer falar com você.

Bigman ficou surpreso.

- Onde está ele?

- Está na minha sala, no escritório do Conselho. Eu já contei o que você fez.

Bigman enrubesceu. Lucky devia estar orgulhoso! Disse:

- Quero falar com ele.

Entretanto, o rosto de Lucky na tela estava contrafeito. Falou:

- Meus parabéns, Bigman. Soube que você fez uma coisa formidável.

- Não foi nada - respondeu Bigman, sorrindo. - Mas onde você esteve?

Lucky perguntou:

- O dr. Morriss está perto? Não consigo vê-lo.

Morriss aproximou o rosto ao de Bigman.

- Estou aqui.

- Pelo que ouvi dizer, vocês capturaram o homem que estava segurando a alavanca.

- Correto. Conseguimos, graças a Bigman - respondeu Morriss.

- Neste caso, deixe-me adivinhar. Quando vocês se aproximaram, o homem não fez qualquer tentativa de abaixar a alavanca. Ele se rendeu sem qualquer protesto.

- Sim - disse Morriss. - Mas como foi que você imaginou isto?

- Porque todo o barulho ao redor da comporta era apenas uma diversão. A verdadeira ação devia se desenrolar aqui, onde estou. Quando percebi a manobra, tentei vir aqui. Utilizei um pulador e depois um veículo de rodas.

- E o que foi que aconteceu? - perguntou Morriss, angustiado.

- Aconteceu que cheguei aqui tarde demais - respondeu Lucky.

 

Perguntas

O dia terminara. A multidão já havia desaparecido. A cidade estava assumindo uma aparência quieta, quase sonolenta. Só restavam poucos grupos que ainda discutiam os acontecimentos das últimas horas.

Bigman estava contrariado.

Saíra com Morriss da zona do quase desastre, para ir até o quartel-general do Conselho. Ali, Morriss e Lucky tinham conferenciado longamente, deixando Bigman a esperar numa outra sala. Depois da reunião, o venusiano estava furioso. Lucky estava calmo, mas não falava.

Mesmo quando tinham ficado a sós, Lucky apenas dissera:

- Vamos voltar para o hotel. Preciso dormir, e você também precisa de descanso depois de suas aventuras.

Lucky cantarolava a Marcha do Conselho, como sempre fazia quando estava muito preocupado. Deu um sinal para chamar um carro de aluguel. O carro parou automaticamente quando seus sensores fotoelétricos registraram o braço estendido.

Lucky empurrou Bigman para o interior do veículo, depois ajustou os controles para as coordenadas que se referiam ao hotel Belle-vue-Afrodite, colocou na abertura o numero necessário de moedas e deixou que o computador do veículo fizesse o resto. Com o pé empurrou a alavanca de aceleração para a posição de marcha lenta.

O veículo começou a se movimentar suavemente e Bigman teria achado a viagem cômoda e repousante se não estivesse curioso como estava.

O pequeno marciano olhou para o amigo, mas Lucky parecia querer apenas descanso e a possibilidade de refletir. Mantinha a cabeça apoiada no encosto, com os olhos fechados, enquanto o veículo prosseguia lentamente. O hotel apareceu e o veículo encontrou a entrada para a garagem.

Quando os dois amigos chegaram em seu quarto, Bigman estava a ponto de explodir. Gritou:

- Afinal, o que está acontecendo, Lucky? Não consigo adivinhar e estou morrendo de curiosidade.

Lucky tirou a camisa e disse:

- É apenas uma questão de lógica. Que tipo de acidentes aconteceram antes de hoje, devido ao fato de que alguém controlava mentalmente algumas pessoas? O que foi que Morriss contou? Um homem distribuiu dinheiro. Um homem deixou cair um fardo de algas-marinhas. Um homem colocou veneno na mistura nutriente destinada às leveduras. Em cada caso se tratava de uma ação sem muita importância, mas era uma ação. Alguém fazia alguma coisa.

- Certo. E depois? - perguntou Bigman.

- O que foi que aconteceu hoje? Não foi uma coisa sem importância, mas algo de grande envergadura. Entretanto, não era uma ação. Foi exatamente o contrário. Um homem colocou sua mão sobre a alavanca de uma comporta da abóbada, e depois não fez mais nada. Nada!

Lucky desapareceu no banheiro e Bigman ouviu a água saindo da ducha e as exclamações abafadas de Lucky. Finalmente Bigman não agüentou e também entrou no banheiro.

- Ehi! - gritou.

Lucky abriu o secador de ar quente e perguntou:

- Você não chegou a uma conclusão?

- Pare com estes mistérios, Lucky. Você sabe que detesto isso.

- Não há nenhum mistério. A pessoa ou as pessoas que conseguem exercer o controle mental apenas mudaram totalmente de estilo. Isto me fez pensar que devia haver algum motivo. Você não está vendo por que mandaram um homem se colocar ao lado de uma alavanca de comporta, sem fazer mais nada?

- Eu já disse que não entendi.

- Pense, Bigman. O que foi que aconteceu?

- Não aconteceu nada.

- Nada? Pela grande galáxia! Você disse, nada? O resultado foi que metade da população de Afrodite e todas as autoridades, e mais os policiais, foram correndo para o setor ameaçado da cidade. Eu fui para lá, você foi, e Morriss também. A maior parte da cidade ficou despovoada, inclusive o quartel-general do Conselho. E eu estava tão embotado que não percebi nada até que Turner, o engenheiro-chefe, mencionou que seria fácil para ele sair da cidade, porque toda a força policial estava desorganizada.

- Ainda não estou entendendo. Lucky, se você não falar logo, eu vou...

- Calma, rapaz! - Lucky segurou os punhos fechados de Bigman com uma mão. - Então, escute: voltei ao quartel-general do Conselho o mais rápido possível, e quando cheguei, Evans já tinha saído.

- Para onde é que o levaram?

- O Conselho não deu qualquer ordem para que fosse removido. Ele fugiu. Deu um soco num guarda, apanhou uma arma e usou o código do Conselho para conseguir um submarino. Fugiu para o oceano.

- Quer dizer, era isto que eles queriam?

- É claro que sim! A cidade nunca esteve ameaçada, era apenas uma manobra para distrair. Logo que Evans saiu para o oceano, o homem na comporta deixou de ser controlado, e naturalmente se rendeu.

A boca de Bigman tremeu.

- Pelas areias de Marte! Todo aquele trabalho no conduto de ventilação foi inútil! Eu sou mesmo um idiota!

- Não, Bigman, você fez um bom trabalho - respondeu Lucky, sério. - Foi um trabalho extraordinário e vou mencioná-lo em meu relatório ao Conselho.

O pequeno marciano corou e durante um momento sentiu-se tão orgulhoso que esqueceu o resto. Lucky aproveitou para se enfiar na cama. Mas Bigman não estava satisfeito.

- Escute, Lucky, isto significa... Quero dizer, se o conselheiro Evans fugiu graças a um truque de quem controla as mentes, quer dizer que ele é culpado, não é?

- Não - afirmou Lucky. - Ele não é culpado.

Bigman esperou um pouco, mas Lucky não acrescentou nada, e Bigman achou melhor não insistir. Tirou a roupa, foi tomar um chuveiro e só depois de se enfiar entre os macios lençóis de plastex.

Bigman fez uma última tentativa.

- Lucky?

- Sim, Bigman?

- O que é que vamos fazer agora?

- Iremos atrás de Lou Evans.

- Nós iremos?  E Morriss?

- A partir de agora, eu estou chefiando a operação. O conselheiro Conway transmitiu a ordem da Terra.

Bigman meneou a cabeça na escuridão. Isto explicava por que ele tinha ficado fora da reunião. Era reconhecidamente o melhor amigo de Lucky Starr, mas não era membro do Conselho de Ciências. Era claro que um amigo que não era conselheiro não podia assistir a uma reunião na qual Lucky ignorava outro conselheiro, pedindo o apoio do quartel-general central da Terra.

Sentiu-se animado pelo gosto da aventura. Desta vez iriam para um oceano, o maior e o mais estranho oceano dos planetas internos. Perguntou, excitado:

- Quando vamos começar?

- Logo que a nave que estão preparando estiver pronta. Só que antes vamos ver o Turner.

- O engenheiro? Para quê?

- Sei tudo a respeito dos outros homens que se envolveram em acidentes até hoje. Quero saber tudo também a respeito do homem da comporta. Turner deve conhecê-lo bem. Mas antes de vermos o Turner...

- Sim?

- Antes disto, seu amendoim marciano, vamos, dormir. Vê se cala a boca!

 

Turner morava num grande prédio de apartamentos, que parecia mais apropriado para funcionários do mais alto escalão. Bigman assobiou quando atravessaram o saguão com suas paredes de painéis e suas paisagens marinhas tridimensionais. Lucky foi em frente, até uma zorra. Entrou e apertou o número do apartamento de Turner.

A zorra subiu cinco andares e depois começou a se movimentar em sentido horizontal, sobre raios de força direcionais, até que parou em frente da entrada de serviço do apartamento de Turner. Os dois amigos desceram da zorra que logo saiu com um zunido, desaparecendo no fim do corredor. Bigman estava impressionado:

- Que beleza, nunca havia visto uma geringonça destas antes.

- Foi inventada aqui em Vênus - explicou Lucky. - Agora estão adotando estas zorras também nos novos prédios de apartamentos na Terra. Nos prédios mais antigos é impossível, a não ser que façam reformas para dotar cada apartamento de mais uma entrada servida pela zorra.

Lucky tocou o botão que acendeu com uma luz vermelha. A porta se abriu e apareceu uma mulher. Era moça, esbelta e muito bonita, com olhos azuis e cabelos loiros, penteados para trás sobre as orelhas, segundo a moda venusiana.

- Senhor Starr?

- Sou eu, senhora Turner - respondeu Lucky; hesitou um pouco, porque a moça parecia muito nova para ser a dona da casa.

Entretanto, ela sorriu amavelmente:

- Não querem entrar? Meu marido está à sua espera, mas só conseguiu dormir duas horas e não está completamente...

Ambos entraram e a porta se fechou.

Lucky disse: - Sinto por ter vindo tão cedo, mas se trata de uma emergência, e não pretendo tomar muito de seu tempo.

- Não se preocupe, eu entendo. - A moça começou a se movimentar pela sala, arrumando móveis e objetos que não precisavam ser arrumados.

Bigman estava observando tudo com curiosidade. O apartamento era muito feminino - cheio de cores, de enfeites, de coisas frágeis. Ficou confuso quando percebeu que a dona da casa estava a observá-lo. Disse, sem jeito:

- Este é um apartamento muito bonito, senhorita... quero dizer, senhora Turner.

Ela sorriu e observou:

- Obrigada, mas não acho que Lyman goste muito da decoração que escolhi. Por outro lado, ele nunca me nega nada e eu adoro ter uma porção de bibelôs. Você também gosta?

Lucky se intrometeu, evitando que Bigman respondesse:

- Vocês moram aqui há muito tempo?

- Desde o nosso casamento, quero dizer, há menos de um ano. É um prédio delicioso, acho que é o mais bonitinho de toda Afrodite. Tem serviços completamente independentes, sua própria garagem para autogiros, e um sistema central de comunicações. Imagine que tem até câmaras subterrâneas. Já pensou? Câmaras! Naturalmente ninguém utiliza estas câmaras, nem mesmo as utilizaram ontem à noite. Pelo menos acho que ninguém foi até lá, mas não tenho certeza, porque dormi durante toda a confusão. Imagine só! Não soube de nada até quando Lyman voltou.

- Talvez foi melhor assim - comentou Lucky. - Evitou um susto.

- O senhor quer dizer que eu evitei de ver uma coisa excitante - ela protestou. - Todo mundo que mora aqui no prédio saiu para ver, e eu fiquei dormindo. Imagine só, dormi o tempo todo. Ninguém me acordou. Acho que isto é horrível.

- O que é que é horrível? - perguntou Lyman Turner, entrando na sala. Seus cabelos estavam despenteados, piscava os olhos e seu rosto estava marcado por rugas profundas. Segurava seu precioso computador embaixo do braço e quando se sentou, colocou a caixa embaixo da cadeira.

- Foi horrível eu não ter visto tudo o que aconteceu - explicou sua jovem esposa. - Como se sente, Lyman?

- Considerando tudo, até que me sinto bem. Não se preocupe por ter perdido o espetáculo... Foi melhor assim. Olá, Starr. Desculpe o atraso.

- Acabamos de chegar - disse Lucky.

A jovem senhora Turner correu para perto do marido, beijou seu rosto e falou: - Vou deixar vocês homens sozinhos para conversar mais à vontade.

Turner acariciou o ombro da mulher e ficou a olhá-la embevecido enquanto ela se afastava. Disse:

- Cavalheiros, sinto muito de me apresentar no estado em que estou, mas as últimas horas foram realmente fatigantes.

- Compreendemos perfeitamente. Qual é a situação da abóbada agora?

Turner esfregou os olhos.

- Dobramos a vigilância em cada comporta, e estamos tomando medidas para que os controles não possam ser fechados de maneira tão estanque. Isto significa que estamos praticamente contrariando todos os princípios de engenharia deste último século. Estamos colocando linhas de força em vários pontos da cidade, para poder cortar a energia à distância, no caso da repetição de um incidente deste gênero. E, sobretudo, vamos reforçar as barreiras de transite que devem dividir os vários setores da cidade... Vocês fumam?

- Não - respondeu Lucky. Bigman sacudiu a cabeça.

Turner continuou:

- Neste caso, você se importa de apanhar um cigarro para mim naquele distribuidor, aquela caixa que parece um peixe? Sim, esta. Trata-se de um dos achados de minha mulher. Ninguém consegue segurá-la quando ela descobre uma destas maquininhas ridículas, ela adora estas coisas. - Corou um pouco: - Estamos casados há pouco tempo e receio que eu ainda a esteja mimando muito.

Lucky observou com curiosidade o estranho peixe moldado num material esverdeado, semelhante a pedra; quando comprimiu a nadadeira dorsal, um cigarro já aceso apareceu em sua boca.

Turner pareceu ficar mais calmo enquanto fumava. Cruzou as pernas e um pé começou a balançar ritmicamente acima da caixa do computador. Lucky falou:

- Existe alguma novidade a respeito do homem que provocou a confusão? O homem da comporta?

- Está em observação. Evidentemente, trata-se de um louco.

- Ele já deu sinais de desequilíbrio mental?

- Não, nunca. Fiz questão de investigar. Você sabe que, como engenheiro-chefe, o pessoal da abóbada está às minhas ordens.

- Sim, eu sei. Este é o motivo de minha vinda.

- Bom, gostaria poder ajudar... mas o homem é apenas um empregado sem qualificações. Esteve no emprego durante sete meses e nunca deu qualquer motivo de preocupação. Aliás, tem uma ficha excelente. É um sujeito calmo, esforçado e trabalhador.

- Apenas sete meses?

- Certo.

- Ele é engenheiro?

- Foi classificado engenheiro, mas na verdade seu trabalho era apenas o de vigiar a comporta. Afinal, existe muito tráfego para fora e para dentro da cidade. Precisa abrir e fechar a comporta, fiscalizar a mercadoria das cargas, manter os registros em dia. A administração da abóbada não requer apenas engenharia.

- Mas o homem tinha conhecimentos de engenharia?

- Apenas o curso básico da faculdade. Este é seu primeiro emprego. De fato, é muito moço.

Lucky assentiu. Falou com indiferença:

- Parece que ultimamente houve uma série de estranhos incidentes na cidade.

- É mesmo? - Turner fitou Lucky com seus olhos cansados, e este encolheu os ombros. - Não tenho muito tempo para assistir ao noticiário subetérico.

O comunicador zuniu. Turner apanhou o fone, ficou ouvindo e disse:

- É para você, Starr.

Lucky assentiu:

- Deixei recado que estaria aqui. - Apanhou o fone mas não ligou a tela e não aumentou o volume. Disse: - Starr falando.

Quando desligou, levantou-se da cadeira:

- Está na hora de irmos, Turner.

Turner também se levantou:

- Está bem. Se no futuro eu puder ser de ajuda, não hesite. Estou às ordens.

- Muito obrigado. Dê lembranças à sua esposa, está bem? Quando saíram do prédio, Bigman perguntou:

- O que aconteceu?

- Nossa nave está pronta - disse Lucky e fez um sinal para um veículo.

Quando entraram, Bigman voltou a perguntar:

- Afinal, você descobriu alguma coisa durante a conversa com Turner?

- Várias coisas - confirmou Lucky, secamente.

Bigman se mexeu, pouco à vontade, e mudou de assunto:

- Espero que possamos encontrar Evans.

- Eu também faço votos.

- Pelas areias de Marte, o homem está numa enrascada. Mais penso no assunto e pior me parece. Culpado ou não, é duro agüentar um requerimento de remoção por causa de corrupção, feito por um superior.

Lucky virou a cabeça e encarou Bigman:

- Morriss nunca mandou relatório nenhum sobre Evans para o quartel-general. Pensei que você tivesse entendido isto depois de nossa conversinha de ontem.

- Ele não mandou o relatório? - perguntou Bigman, incrédulo. - Mas então quem foi que mandou o relatório?

- Pela grande galáxia! - exclamou Lucky. - É tão óbvio: Lou Evans pessoalmente mandou aquela mensagem e assinou o nome de Morriss.

 

Conselheiro perseguido

Lucky estava manobrando a ágil embarcação submarina com habilidade crescente enquanto se familiarizava com os controles e começava a entender e sentir o oceano ao seu redor.

Os homens que estavam esperando Lucky e Bigman para lhes entregar a embarcação tinham sugerido um rápido curso de instruções. Lucky se limitou a sorrir e a fazer algumas poucas perguntas, enquanto Bigman proclamava em altos brados, com a costumeira petulância:

- Não existe veículo que o Lucky não consiga dirigir, e eu também! - Não era propriamente petulância, porque isto correspondia (quase) à verdade.

A embarcação, chamada Hilda, estava agora deslizando com os motores desligados. Penetrou na escuridão profunda das águas venusianas com agilidade. Estavam navegando às cegas. Tinham evitado, até aquele momento, ligar os poderosos holofotes. O radar explorava os abismos com maior delicadeza e exatidão do que poderia ser feito com o auxílio da luz.

Junto com o radar funcionavam as microondas seletivas, cuja função era conseguir a reflexão máxima da liga metálica que formava a carcaça externa de uma nave submarina. As microondas possuíam um alcance de centenas de milhas e lançavam em todas as direções os impulsos de energia, à procura de uma determinada liga metálica que os faria voltar rapidamente à origem.

Até agora não se tinha verificado nenhum impulso de retorno e Hilda parou, acomodando-se no lodo a uma profundidade de oitocentos metros, completamente imóvel a não ser por um leve balanço, provocado pelas poderosas correntes do oceano de Vênus.

Durante a primeira hora Bigman quase não tomou conhecimento das microondas e do que elas procuravam. Ficou fascinado pelo espetáculo que podia ser visto pelas vigias.

A vida submarina venusiana é fosforescente: as profundezas negras estavam salpicadas de luzes coloridas, muito mais numerosas que as estrelas do espaço; também eram maiores, mais luminosas e, sobretudo, se mexiam. Bigman amassou o nariz contra a grossa parede de vidro e ficou imóvel, encantado.

Algumas formas de vida pareciam pequenas manchas arredondadas que se movimentavam encrespando-se. Outras eram linhas que apareciam e desapareciam. Também distinguiu fitas-marinhas, do mesmo tipo já visto no Salão Verde.

A um certo ponto Lucky se juntou a Bigman. Disse:

- Se ainda me lembro de minhas aulas de xenozoologia...

- Aulas do quê.

- A xenozoologia, Bigman, é o estudo das formas de vida extraterrestres. Acabo de folhear um manual sobre formas de vida venusianas. Deixei-o sobre seu beliche, caso você queira estudá-lo.

- Deixe para lá. Pode me dizer o que leu?

- Está bem. Vamos começar com aqueles pequenos objetos. Acho que aquilo é um cardume de botões.

- Botões? - perguntou Bigman. Depois concordou: - Sim, entendo o que você quer dizer.

Havia um grande número de ovais amarelos luminosos atravessando as águas negras que se viam pela vigia. Cada oval amarelo estava marcado com duas curtas linhas paralelas pretas. Moviam-se aos trancos, paravam durante algum tempo e depois voltavam a se mover. As muitas dúzias que se viam se movimentavam todas ao mesmo tempo e Bigman começou a ter a curiosa sensação de que os botões não estavam nadando, mas que a cada trinta segundos o submarino dava um sobressalto. Lucky observou:

- Acho que estão desovando. - Ficou calado por um pouco, depois disse: - Não sei o que são a maioria destes animais. Espere! Está vendo, ali? Deve ser uma fanca escarlate. Ali, aquela coisa vermelha escura, de contorno irregular, está vendo? Ela se alimenta de botões. Preste atenção.

As manchas luminosas amarelas reagiram desordenadamente quando perceberam a presença do predador, e mesmo assim a fanca deu cabo de uma dúzia de botões. Logo depois a fanca era o único objeto luminoso visível da vigia. Os botões tinham fugido em todas as direções.

- A fanca tem a forma de uma grande panqueca com as bordas dobradas para baixo. - explicou Lucky. - Esta é a definição do livro. Parece que consiste sobretudo de pele, com um minúsculo cérebro no centro. Sua espessura máxima chega a dois centímetros e meio. É possível rasgá-la de ponta a ponta em vários lugares sem que isto a incomode. Está vendo como esta fanca tem uma forma irregular? Provavelmente foi abocanhada por um peixe-dardo.

A fanca escarlate começou a se afastar e desapareceu. Em frente da vigia sobravam apenas alguns pontinhos amarelos prestes a se apagar. Os botões começaram a voltar, aos poucos. Lucky disse:

- A fanca escarlate costuma descer ao fundo e se manter sobre o lodo com suas bordas. Absorve e digere qualquer coisa que estiver embaixo dela. Existe uma outra espécie, chamada fanca alaranjada, que é bastante mais agressiva. Pode lançar um jato d*água com força suficiente para desequilibrar um homem, apesar de ter apenas a largura de trinta e cinco centímetros e ser um pouco mais espessa que uma folha de papel. Os peixes grandes são muito piores.

- Qual é o tamanho deles? - perguntou Bigman.

- Não consigo imaginar. O livro afirma que existem relatos ocasionais a respeito de verdadeiros monstros - peixes-dardos com o comprimento de uma milha, e fancas que poderiam encobrir a cidade de Afrodite. Mas não existe um caso comprovado.

- Ora, do comprimento de uma milha! Aposto que não existem casos autênticos!

Lucky ergueu as sobrancelhas:

- Isto não é de todo impossível. O que vemos aqui são apenas espécimes de águas rasas. Em alguns pontos o oceano venusiano chega a profundidades de dez milhas. Em tanta água há espaço suficiente para uma porção de coisas.

Bigman lançou-lhe um olhar desconfiado:

- Acho que você está querendo me pregar uma peça. - Virou as costas e se afastou da vigia: - Vou dar uma olhadinha naquele livro.

O Hilda mudou de lugar e se acomodou numa nova posição, enquanto as microondas continuavam a investigação. Depois voltou a mudar de lugar. Finalmente se acomodou numa terceira posição. Lucky estava esquadrinhando aos poucos toda a plataforma submarina ao redor de Afrodite.

Ficou a esperar pacientemente, observando os instrumentos. Seu amigo Lou Evans devia estar em algum lugar por perto. A nave de Evans não era apropriada para navegar no ar ou no espaço, e não podia descer a profundezas superiores a duas milhas, portanto devia se limitar à navegação nas águas relativamente baixas da plataforma de Afrodite.

O primeiro lampejo de resposta aconteceu enquanto Lucky repetia mentalmente a palavra devia pela segunda vez. O feedback das microondas imobilizou o indicador de direção, e o bip de retorno iluminava todo o campo de recepção.

A mão de Bigman apertou o ombro de Lucky:

- Está ali! Está ali!

- Pode ser - murmurou Lucky. - Mas talvez seja uma outra nave ou, quem sabe, alguns destroços.

- Defina a posição, Lucky! Pelas areias de Marte, defina a posição!

- É o que estou fazendo, rapaz, e já estamos nos movimentando.

Bigman percebeu a aceleração e ouviu as hélices girando.

Lucky aproximou o rosto do transmissor e seu decodificador e falou insistentemente:

- Lou! Lou Evans! Aqui é Lucky Starr! Confirme o recebimento dos sinais! Lou! Lou Evans!

As palavras saíam sem parar pelo éter. O bip das microondas de retorno estava ficando sempre mis claro enquanto a distância diminuía. Mas não havia resposta.

Bigman observou:

- A embarcação que está devolvendo os bips não se mexeu até agora, Lucky. Podem ser apenas destroços. Se o conselheiro estivesse lá, já teria respondido ou teria tentado se afastar, você não acha?

- Ssst! - fez Lucky. Falou no transmissor com voz calma e vibrante: - Lou! Não adianta se esconder. Já conheço a verdade. Sei por que você mandou aquela mensagem em nome de Morriss, pedindo para ser destituído. Também sei quem você pensa ser o inimigo, Lou Evans! Responda...

O receptor estalou pela estática. O decodificador recebeu alguns sons e os traduziu em palavras compreensíveis:

- Afaste-se. Se você realmente sabe, afaste-se. Fique longe.

Lucky sorriu, aliviado. Bigman gritou de alegria.

- Você o encontrou! - berrou o marciano.

- Estamos nos aproximando para buscá-lo - falou Lucky no transmissor. - Fique firme. Vamos deslindar esta história, você e eu.

A resposta chegou devagar:

- Você não... entende...estou... tentando... - Finalmente chegou um grito: - Pelo amor da Terra, Lucky. Afaste-se. Não procure se aproximar.

A seguir, o silêncio. O Hilda se dirigia para o submarino de Evans sem parar. Lucky estava pensativo. Disse:

- Se ele está tão assustado, por que não foge?

Bigman não ouviu. Estava transbordando de entusiasmo:

- Você é formidável, Lucky! Foi realmente formidável seu blefe para induzi-lo a responder.

- Mas eu não estava blefando, Bigman - retrucou Lucky, muito sério - Conheço o fator-chave de toda esta confusão. Você também perceberia logo o que é, se você parasse para pensar.

Bigman ficou impressionado:

- O que é que você quer dizer?

- Você se lembra de quando o dr. Morriss, você e eu entramos naquela saleta para esperar por Lou Evans? Você se lembra da primeira coisa que aconteceu?

- Não.

- Você começou a rir. Você disse que eu tinha uma aparência engraçada sem um bigode. E eu pensei exatamente a mesma coisa a seu respeito. Até falei. Você está lembrado?

- Sim, agora me lembro.

- Você não estranhou e não refletiu acerca do que estava acontecendo? Durante muitas horas vimos homens com bigodes enormes. Por que você e eu, de repente, tivemos aquele mesmo pensamento?

- Não sei.

- Vamos supor que fosse o pensamento de alguém dotado de poderes de telepatia. E vamos supor que aquela sensação de surpresa tenha sido transmitida daquela mente para as nossas mentes.

- Você acha então que a pessoa que controla os cérebros estava conosco, na mesma sala?

- Você não acredita que esta é uma explicação válida?

- Lucky, isto é impossível. O dr. Morriss era a única pessoa... Lucky! Você não pensa que era o dr. Morriss?

- Estávamos conversando com Morriss há muito tempo. Por que de repente ele ficaria surpreso vendo que você e eu não tínhamos bigodes?

- Pois então, você pensa que havia alguém escondido?

- Não, não havia ninguém escondido - respondeu Lucky. - Mas havia uma outra criatura viva naquela sala, bem à vista de todos.

- Não - gritou Bigman -, esta não! - Desatou a rir: - Pelas areias de Marte, você não pensa seriamente que o sapo venusiano...

- Por que não? - perguntou Lucky, calmo. - É provável que fomos os primeiros homens sem bigode vistos por aquele sapo. Daí, ficou surpreso.

- Mas isto é impossível!

- Por quê? Há sapos em todas as partes da cidade. As pessoas recolhem os sapos, cuidam deles, dão-lhes alimentos. Será que as pessoas realmente gostam de sapos venusianos? Ou são os sapos venusianos que inspiram todo este carinho por controle mental, para que alguém cuide deles e lhes dê alimentos?

- Pelo espaço, Lucky! - exclamou Bigman. - Não há nada de esquisito em gostar de sapos. São bonitinhos. Ninguém precisa ser hipnotizado para percebê-lo.

- Bigman, você gostou do sapo venusiano assim, espontaneamente? Não houve uma razão qualquer?

- Tenho certeza que nada me obrigou a gostar do sapo. Apenas gostei.

- Você apenas gostou? E dois minutos depois de ver um sapo venusiano pela primeira vez em sua vida, você o alimentou. Você se lembra?

- O que há de errado nisto?

- Nada. Agora me diga, com que você aumentou o sapo?

- Eu lhe dei sua comida preferida. Ervilhas com graxa para... - Bigman parou de falar e arregalou os olhos.

- Pois é. Aquela graxa para máquinas cheirava a graxa para máquinas. Não havia possibilidade de erro. Como é que você pegou uma ervilha e a passou na graxa? Quer dizer que você sempre alimenta bichinhos de estimação com graxa para máquinas? Por acaso você conhece algum animal que come graxa?

- Pelas areias de Marte! - murmurou Bigman.

- Você não acha que é óbvio que o sapo venusiano queria comer graxa, e como você estava perto dele, ele transmitiu o desejo para você - e que você agiu coagido?

Bigman resmungou:

- Eu não podia imaginar... Mas agora que você está falando, tudo está mais claro. Que coisa horrível.

- Por quê?

- Porque é repelente que os pensamentos de um animal penetrem no cérebro da gente. Isto me dá uma impressão tão anti-higiênica! - Seu rosto expressava o nojo.

Lucky comentou:

- Infelizmente, isto é muito pior do que anti-higiênico.

Voltou a consultar os instrumentos.

O intervalo entre os bips e o retorno indicava que a distância entre as duas embarcações era menos de uma milha, quando de repente a tela do radar mostrou uma silhueta que só podia ser a sombra do submarino de Evans.

A voz de Lucky saiu pelo rádio:

- Evans, já o avistamos. Você está em condições de navegar? Sua nave está avariada?

A resposta chegou imediatamente. A voz de Evans estava tremendo pela emoção:

- Que a Terra me ajude, Lucky. Fiz o impossível para você não se aproximar. Agora está na armadilha! Está fisgado, como eu estou fisgado!

As palavras do amigo de Lucky foram confirmadas na mesma hora: uma força terrível sacudiu o submarino Hilda, jogando-o para um lado. O impacto foi tão violento que os motores principais ficaram inutilizados.

 

Das profundezas

Mais tarde, Bigman só conseguia se lembrar dos acontecimentos das horas seguintes como vendo-as pelo lado errado de um telescópio: um pesadelo longínquo cheio de acontecimentos confusos.

Lucky conseguiu permanecer perto dos controles. Gritou:

- Os geradores principais pararam de funcionar.

Bigman começou a se mexer com esforço, tentando manter o equilíbrio sobre o piso inclinado.

- O que foi que aconteceu?

- Fomos alvejados, sem qualquer dúvida. Mas não sei até que ponto fomos prejudicados.

Bigman observou:

- As luzes estão acesas.

- Eu sei. Os geradores de emergência estão funcionando.

- E a propulsão central?

- Não sei. Estou tentando.

Os motores emitiam um som rouco e intermitente. O zunido suave estava se transformando num chacoalhamento metálico que obrigou Bigman a tampar os ouvidos.

O Hilda estremeceu como um animal ferido e conseguiu se endireitar. Os motores pararam de novo.

O receptor ecoava sons esmaecidos e Bigman tentou aumentar o volume.

- Starr - repetia a voz - Lucky Starr! Evans chamando. Responda.

Lucky se aproximou.

- Lucky falando. O que foi que nos atingiu?

- Não importa - respondeu a voz cansada. - Não vai atacar mais. Ficará contente por saber que você terá que ficar aqui e morrer. Por que você se aproximou? Eu avisei.

- Sua nave está avariada, Evans?

- Está parada há doze horas. Estou sem luzes e sem energia. Só consigo um mínimo de força para o rádio, mas está diminuindo. Os purificadores de ar estão quebrados, e só me sobra um pouco de ar. Adeus, Lucky.

- Você não consegue sair?

- O mecanismo da comporta não está funcionando. Tenho um escafandro, mas se tentar cortar uma saída, vou ficar esmagado.

Bigman entendeu o que Evans estava dizendo e estremeceu. As comportas dos submarinos eram projetadas para deixar penetrar a água nas câmaras de compressão aos poucos. Cortar uma abertura no flanco de um submarino no fundo do mar, para conseguir uma saída, significava deixar a água entrar com uma pressão de centenas de toneladas. Uma criatura humana, mesmo dentro de um escafandro de aço, ficaria comprimida como uma lata vazia sob um martelo. Lucky disse:

- Ainda conseguimos navegar. Vou buscá-lo. Vamos unir nossas comportas.

- Obrigado, mas por quê? Se você fizer um movimento, será atingido de novo e mesmo que não for atingido, qual é a diferença entre morrer logo aqui ou um pouco mais tarde em sua nave?

Lucky se zangou:

- Se temos que morrer, vamos morrer, mas não antes da hora. Todo mundo deve morrer um dia, ninguém pode evitá-lo; por outro lado, não podemos desistir de viver.

Olhou para Bigman:

- Vá para a casa das máquinas e veja o que aconteceu. Quero saber se existe uma possibilidade de consertar os danos.

Enquanto manipulava o microreator "quente" com os utensílios a longa distância que, felizmente, ainda funcionavam, Bigman podia perceber, na casa das máquinas, que o submarino se arrastava penosamente sobre o fundo do oceano e ouvia as batidas dissonantes dos motores. A certo ponto ouviu um choque abafado, seguido por um chacoalhamento que repercutiu em toda a carcaça metálica do Hilda, como se um enorme peso metálico tivesse caído sobre o fundo do mar, a pouca distância.

Percebeu que o submarino estava parando enquanto o barulho dos motores se fazia mais rouco. Imaginou a extensão da comporta do Hilda se alongando, até alcançar o outro caso. Ouviu as bombas trabalhando, esvaziando o tubo que agora unia as duas naves. As luzes da casa das máquinas se enfraqueceram devido ao enorme consumo da energia produzido pelos geradores de emergência. Lou Evans agora poderia sair de seu submarino e chegar até o Hilda sem necessidade de um escafandro.

Quando Bigman subiu da casa das máquinas encontrou Lou Evans com Lucky. O rosto coberto de pêlos loiros e curtos estava abatido e cansado. Esboçou um sorriso ao ver Bigman.

Lucky disse:

- Continue, Lou.

Evans falou:

- No começo foi apenas uma espécie de intuição meio louca. Investiguei todos os homens envolvidos com aqueles esquisitos incidentes. O único ponto de contato comum era que todos gostavam de sapos venusianos. Isto é muito comum, aqui em Vênus, mas cada um destes homens tinha a casa praticamente apinhada de bichinhos. Não tive coragem de expressar minhas teorias, antes de colher provas. Se ao menos eu tivesse falado... Decidi então provocar os sapos venusianos até eles exibirem o conhecimento de algo que houvesse apenas em minha mente e em algumas poucas outras.

- Foi por isto que você recorreu aos dados sobre leveduras? -perguntou Lucky.

- Achei que era a maneira mais simples. Precisava de algo que não fosse de conhecimento comum, caso contrário, como poderia ter certeza que receberiam seus conhecimentos de mim? Os dados sobre leveduras eram ideais. Quando não consegui nenhum por vias oficiais, resolvi roubá-los. Apanhei um sapo venusiano no quartel-general, deixei-o perto de minha escrivaninha e comecei a olhar os dados. Cheguei a ler alguns em voz alta. Dois dias depois se verificou o acidente na usina, envolvendo exatamente os detalhes que se encontravam nos dados. Isto me convenceu de que os sapos venusianos realmente eram os responsáveis. Entretanto...

- O quê? - perguntou Lucky.

- Quero dizer que não fui muito precavido - explicou Evans.

- Deixei que penetrassem na minha mente. Praticamente, distribuí convites para que entrassem e depois não consegui mais me livrar deles. A segurança estava procurando os papéis. Todo mundo sabia que eu estivera na usina. Mandaram um investigador muito amável me fazer perguntas. Devolvi os papéis voluntariamente e tentei explicar. Mas não consegui.

- Você não conseguiu? Como assim?

- Não consegui Senti-me fisicamente incapaz de falar. As palavras não conseguiam sair de minha boca. Não pude mencionar os sapos venusianos. Cheguei a receber impulsos para me suicidar, mas resisti. Eles não conseguiram me obrigar a fazer algo que contrariava minha disposição natural. Então pensei: se ao menos eu pudesse sair de Vênus, se pudesse chegar bem longe, conseguiria me livrar do poder dos sapos venusianos. Então fiz a única coisa que provocaria uma chamada imediata da Terra: mandei um relatório que me acusava de corrupção e assinei o nome de Morriss.

- Sim - murmurou Lucky -, adivinhei que devia ser assim.

- Mas como? - perguntou Evans, surpreso.

- Morriss deu-nos sua própria versão do acontecido, logo depois de nossa chegada em Vênus. Terminou explicando que estava preparando um relatório para o quartel-general central. Não disse que tinha feito um relatório, apenas que estava preparando um. Entretanto, a mensagem já havia sido transmitida, e o fato era de meu conhecimento. Quem, além de Morriss, conhecia o código do Conselho e as circunstâncias dos acontecimentos? Só você.

Evans assentiu e falou com amargura:

- Por conseguinte, em vez de ordenar minha volta à Terra, mandaram você, não é mesmo?

- Lou, eu insisti. Não podia acreditar em qualquer acusação contra você.

Evans cobriu o rosto com as mãos.

- Esta foi a pior decisão que você poderia tomar, Lucky. Quando você anunciou sua chegada através do subetérico, pedi para você se afastar, mas não podia explicar os motivos. Eu estava fisicamente incapacitado de me explicar. Por outro lado, através dos meus pensamentos os sapos venusianos devem ter compreendido que você era um sujeito formidável. Podiam recolher minha opinião sobre suas capacidades e decidiram que você tinha que morrer.

- Quase conseguiram - murmurou Lucky.

- Desta vez conseguirão. Acredite, Lucky, sinto muito mas não consegui resistir. Quando eles paralisaram o homem da comporta, não tive capacidade de lutar contra o impulso de fugir e de ir para o oceano. E você me seguiu. Eu era a isca e você é a vítima. Mais uma vez tentei avisar você para não se aproximar, mas não podia explicar, não podia... - Respirou profundamente e com esforço. - Agora posso falar a respeito. Parece que minha mente não está mais bloqueada. Imagino que agora não somos mais suficientemente importantes e eles não precisam mais gastar energia mental, porque estamos imobilizados aqui, estamos praticamente mortos e eles não se sentem mais ameaçados.

Bigman ouviu quieto, mas se sentia sempre mais confuso e não agüentou:

- Pelas areias de Marte, o que está acontecendo? Por que estamos praticamente mortos?

Evans ficou calado, com o rosto coberto pelas mãos.

Lucky falou, franzindo a testa:

- Estamos embaixo de uma fanca alaranjada, uma fanca gigantesca que surgiu das profundezas.

- Esta fanca tem tamanho suficiente para cobrir o submarino?

- A fanca tem um diâmetro de duas milhas - explicou Lucky. - Duas milhas! Quer saber o que foi que quase destruiu a nave e que quase nos alcançou uma segunda vez quando estávamos nos aproximando de Evans? Foi um jato de água! Só isto: um jato de água com a força de uma carga explosiva.

- Como foi que nos enfiamos debaixo do animal sem vê-lo?

Lucky respondeu:

- Evans acredita que a fanca está sob controle mental, e eu concordo. Provavelmente abafou sua fosforescência contraindo as células luminosas da epiderme. Pode ter erguido uma parte de suas bordas para deixar-nos entrar e agora estamos aqui.

- Quer dizer que se tentarmos um movimento qualquer ou se atirarmos nela, a fanca vai lançar mais um jato e ela não costuma errar a pontaria.

Lucky refletiu um pouco e logo exclamou:

- Pode errar a pontaria, como não! Não conseguiu nos alcançar quando estávamos nos aproximando de Evans, e nossa velocidade era um quarto do normal. - Encarou Bigman, apertando os olhos: - Bigman, você acha que os geradores principais podem ser consertados?

Bigman quase não se lembrava mais dos motores. Disse:

- Ah, sim... o alinhamento do microreator não foi atingido. Pode ser consertado se eu encontrar todo o equipamento necessário.

- Quanto vai demorar?

- Algumas horas.

- Então, comece a trabalhar. Eu vou sair para o oceano. Evans arregalou os olhos: - Para quê?

- Vou caçar aquela fanca. - Lucky abriu o armário dos escafandros. Queria ter certeza que o forro de campos de força estava em ordem e que os cilindros de oxigênio estavam abastecidos.

A escuridão absoluta proporcionava uma falsa sensação de repouso. Os perigos pareciam estar muito longe. Lucky sabia muito bem que embaixo estava o fundo do oceano e que em todas as outras direções, em cima e ao redor, havia uma espécie de tigela invertida, com um diâmetro de duas milhas e formada de carne elástica.

A bomba do escafandro lançou o jato de água para baixo e Lucky começou a subir devagar, segurando a arma engatilhada. O desintegrador submarino era uma arma admirável. A capacidade inventiva do homem terrestre parecia se desdobrar quando precisava se adaptar ao cruel ambiente de um planeta estranho.

Antigamente o novo continente americano alcançara um brilho que os países do antigo continente europeu nunca conseguiram imitar, e agora Vênus estava mostrando suas maravilhas à Terra. Por exemplo, as cidades sob abóbadas. Em nenhuma região da Terra os campos de força poderiam ter reforçado o aço de maneira tão genial. O escafandro que o cobria não teria a capacidade de resistir às toneladas de pressão da água sem os microcampos que reforçavam as escoras internas. Aquele escafandro era uma maravilha da engenharia sob muitos outros aspectos. Sua aparelhagem a jato para a locomoção submarina, seus eficientes tanques de oxigênio, seus controles compactos eram admiráveis.

E sobretudo, a arma que estava em suas mãos!

Logo se lembrou do monstro que estava em cima. Também era uma invenção venusiana, uma invenção da evolução doplaneta. Uma coisa destas poderia existir na Terra? Não, pelo menos sobre os continentes. Os tecidos vivos não poderiam agüentar um peso de mais de quarenta toneladas, considerando a gravidade terrestre. Os enormes brontossauros da Idade Mesozóica possuíam pernas do tamanho de troncos de árvores, e mesmo assim ficavam confinados nos pântanos, para aproveitar a força de sustentação das águas.

Isto explicava tudo: a força de sustentação das águas. Criaturas de qualquer tamanho conseguiam sobreviver nos oceanos. Na Terra havia baleias, muito maiores que qualquer dinossauro. Calculou que a fanca monstruosa lá em cima devia pesar perto de duzentos milhões de toneladas. Dois milhões de baleias não chegariam a pesar tanto. Lucky pensou na idade do monstro. Quanto tempo teria levado para crescer até ter o tamanho de dois milhões de baleias? Cem anos? Mil anos? Quem poderia fazer este cálculo? Por outro lado, este tamanho excessivo poderia pôr o monstro a perder, mesmo no oceano. O aumento do tamanho só poderia provocar reações muito mais lentas. Os impulsos nervosos precisavam de mais tempo.

Evans pensava que o monstro não estava mais tentando atingi-los com um outro jado d'água porque, depois de danificar os cascos, não se preocupava mais com eles. Ou, talvez, os sapos venusianos que manipulavam a enorme fanca pensavam assim. Por outro lado, podia ser uma suposição errada! Talvez o monstro precisasse de tempo para preencher seus enormes reservatórios de água. Precisava de tempo para acertar a pontaria.

Precisava também levar em consideração que o monstro, muito provavelmente, não se sentia muito à vontade. Estava acostumado a viver nas grandes profundezas, sob camadas de seis milhas de água ou mais. Em águas menos profundas sua eficiência devia estar diminuída. Na segunda tentativa não conseguira atingir o Hilda - talvez porque ainda não estava completamente recuperado depois da primeira.

Agora, porém, estava à espreita: seus reservatórios de água estavam se enchendo vagarosamente; estava concentrando todas as suas forças, até o limite admitido naquelas águas mais baixas. Lucky, um homem de apenas 95 quilos, teria que enfrentar o monstro de duzentos milhões de toneladas e aniquilá-lo.

Olhou para cima. Não conseguia ver nada. Comprimiu um contato no forro interno do dedo médio da luva esquerda reforçada com campos de força, e um feixe de luz branca e brilhante surgiu da ponta do dedo. Penetrou a escuridão que encobria tudo em cima e se perdeu ao longe. O que era aquilo? Era a carne do monstro ou apenas o último reflexo da luz que se dissolvia nas águas?

O monstro já tinha atacado três vezes. Uma vez conseguira desmantelar o submarino de Evans. Na segunda vez, prejudicara o submarino de Lucky (mas apenas levemente: era possível que o monstro estivesse enfraquecendo?). Na terceira vez lançara um jato sem força e sem atingir o alvo.

Lucky ergueu a arma. Era volumosa, com uma coronha muito grossa. No interior daquela coronha havia cem milhas de arame e um microgerador de alta voltagem. Apontou para cima e apertou.

Não aconteceu nada de espetacular - mas Lucky sabia que o arame, fino como um cabelo, estava surgindo para fora e para o alto, através das águas saturadas de dióxido de carbono...

Finalmente atingiu o alvo e Lucky viu o resultado. No instante em que o arame estabeleceu o contato, uma corrente elétrica intensa passou em todo seu comprimento com a velocidade da luz, provocando um impacto como o de um raio. O arame finíssimo brilhou vaporizando a água em sua volta e produzindo uma espuma escura. A água daquele oceano estranho borbulhava enquanto o dióxido de carbono dissolvido provocava correntes violentas que sacudiram Lucky.

Além do vapor e das borbulhas, além do movimento das águas e da fina linha afogueada, viu-se uma bola de fogo explodindo. No ponto de contato do arame com a carne houve um lampejo de energia que produziu uma perfuração com três metros de largura e a mesma profundidade na montanha viva que se encontrava em cima.

Lucky sorriu. Comparada com o tamanho do monstro, aquela chaga representava apenas uma alfinetada e a fanca levaria pelo menos dez minutos para senti-la. Os impulsos nervosos teriam primeiro que percorrer toda a curva daquela extensão carnosa. Quando a dor chegasse ao cérebro do animal, este esqueceria o submarino parado no fundo, sobre o lodo, para se preocupar apenas com o novo inimigo.

Mas o monstro não o encontraria, pensou Lucky. Dentro de dez minutos estaria numa posição diferente. Em dez minutos...

Lucky não chegou a concluir o raciocínio. Um minuto apenas depois de receber o impacto, o monstro reagiu.

De repente Lucky, surpreso e assustado, percebeu que estava sendo impulsionado para baixo, sempre mais para baixo, por um jato violento de águas turbulentas...

 

A montanha de carne

Os sentidos de Lucky ficaram embotados pelo impacto. Qualquer escafandro de metal comum não teria resistido. Qualquer homem normal ficaria inconsciente e acabaria no fundo do oceano, para ali morrer.

Lucky, porém, lutou desesperadamente. Tentou reagir contra aquela corrente poderosa e levantou o braço esquerdo à altura do peito, para controlar as condições da aparelhagem do escafandro através dos indicadores.

Soltou um gemido. Os indicadores estavam inutilizados, imóveis depois do choque. Percebeu que a reserva de oxigênio parecia intacta (caso contrário seus pulmões se ressentiriam com qualquer queda de pressão), e que seu escafandro continuava estanque. Também restava a esperança que seus jatos ainda estivessem em condições de funcionar.

Era inútil tentar sair às cegas da turbulência das águas. Provavelmente não dispunha de forças suficientes para fazê-lo. Precisava esperar e confiar nas leis da natureza: a corrente de água estava perdendo velocidade enquanto penetrava nas camadas inferiores. Era a conseqüência do atrito da água contra a água. Na margem do jato a turbulência devia estar aumentando e se encurvando para dentro. Um jato d'água com uma largura de cento e cinqüenta metros no ponto em que saía da tromba do animal devia, assim, reduzir-se a apenas quinze metros de largura chegando perto do fundo, dependendo da velocidade original e da distância do fundo do oceano.

Ao mesmo tempo, a velocidade original também devia estar se reduzindo. Mesmo assim, a velocidade final não era desprezível. Lucky se lembrou de sua força contra os flancos do submarino.

Tudo dependia de sua posição, se estava perto ou longe do centro do jato e da capacidade de pontaria da criatura.

Quanto mais esperava, melhores seriam suas probabilidades - mas não devia esperar demais. Com a mão sobre os controles de jato, Lucky deixou-se empurrar para baixo, tentando manter a calma, tentando adivinhar a que distância se encontrava da realidade concreta do fundo, esperando de um minuto para o outro o derradeiro impacto.

Acabou de contar até dez e abriu os controles do escafandro. As pequenas hélices de alta rotação, colocadas atrás das espáduas, começara a funcionar vibrando, enquanto cortavam a água em ângulo reto em relação à corrente principal. Lucky percebeu que sua descida estava tomando um rumo diferente.

Se estivesse bem no centro, aquela manobra seria inútil. A energia de propulsão do escafandro seria insuficiente para vencer a força que o impulsionava para baixo. Mas estando fora do centro, a velocidade da corrente principal já seria bastante menor e a zona de turbulência devia estar próxima.

Enquanto refletia, seu corpo foi violentamente sacudido e compreendeu que estava a salvo.

Manteve seus próprios jatos funcionando e se dirigiu para baixo: ao mesmo tempo ligou o feixe de luz embutida na luva e iluminou o fundo. Teve o tempo de ver o lodo ser remexido vinte metros mais embaixo, produzindo uma nuvem que começou a surgir encobrindo tudo.

Compreendeu que conseguira sair da corrente alguns segundos antes do fim.

Começou a subir com o máximo de velocidade permitido pelos jatos do escafandro. Não podia perder nem um minuto. Na escuridão do interior do capacete (escuridão dentro da escuridão dentro da escuridão), seus lábios ficaram comprimidos e sua testa franzida. Estava se esforçando para não pensar. Durante os poucos segundos passados na corrente pensara demais. Subestimara seu inimigo. Seu inimigo não era a monstruosa fanca que tentava destruí-lo. Seus inimigos eram os sapos venusianos na superfície, que controlavam os movimentos da fanca porque dominavam seu cérebro. Os sapos venusianos queriam seu fim. Não precisavam esperar que o corpo da fanca reagisse para ela saber que fora atingida. Os sapos apenas precisavam ler a mente de Lucky e dirigir o ataque da fanca para a fonte dos pensamentos de Lucky.

Portanto, não se tratava mais de apenas induzir o monstro a se afastar do Hilda aplicando-lhe alfinetadas, que o levaria de volta para as profundezas nativas. Devia destruir o mostro, sem demora.

O Hilda não poderia resistir a um outro embate, e o mesmo podia-se dizer do escafandro de Lucky. Os indicadores estavam parados, inutilizados; os controles estavam em perigo. E mesmo os recipientes de oxigênio líquido poderiam ficar prejudicados.

Lucky continuava a subir, a subir, para chegar ao único ponto que poderia considerar seguro. Nunca tinha visto a tromba do monstro, mas era lógico supor que devia ser um tubo extensível e flexível, para poder apontar para uma ou outra direção. Entretanto, seria absurdo pensar que o monstro tivesse a capacidade de apontar para seu próprio ventre. Em primeiro lugar, porque poderia se prejudicar. Em segundo lugar, porque a força do jato expelido devia impedir a tromba de se curvar.

Portanto, Lucky precisava subir mais, - ficar junto da superfície inferior daquela criatura, lá onde sua arma não poderia atingi-lo - e precisava chegar depressa, antes que os reservatórios do animal voltassem a ficar cheios para um novo ataque.

Lucky dirigiu sua luz para cima, sentindo um certo receio: seu instinto sugeria que a luz poderia indicar sua presença e provocar um ataque. Mas seu raciocínio desmentia os instintos. Lucky sabia que não era a vista do monstro que provocava os ataques.

Quinze metros mais acima a luz revelou uma superfície rugosa e cinzenta, marcada por profundos sulcos. Lucky não tentou frear sua subida. A epiderme do monstro era elástica e seu próprio escafandro era duro. Enquanto refletia sobre isto, colidiu com a superfície e percebeu que a carne da criatura cedia.

Durante alguns minutos Lucky ficou a respirar profundamente, aliviado. Sentia-se relativamente seguro pela primeira vez depois de sair do submarino. Mas não podia perder tempo: o monstro podia recomeçar seus ataques contra o Hilda a qualquer minuto. Não podia deixar que isto acontecesse.

Lucky dirigiu seu feixe de luz ao redor, sentindo ao mesmo tempo admiração e nojo.

Em vários pontos da superfície inferior do monstro havia cavidades com dois metros de diâmetro. Devido às partículas sólidas e à direção das bolhas, Lucky viu que as aberturas aspiravam a água. Havia também fendas a intervalos maiores, e destas saíam jatos de água borbulhantes.

Aparentemente, era assim que o monstro se alimentava. Injetava no oceano uma quantidade de sucos digestivos e depois aspirava metros cúbicos de líquido, para extrair todo o alimento que continham e finalmente expelia a água, os restos e seus próprios dejetos.

Lucky compreendeu que o animal não podia ficar parado por muito tempo no mesmo ponto do oceano, porque a quantidade de seus próprios dejetos eliminaria suas probabilidades de alimentação. Não tinha permanecido ali espontaneamente, era apenas por causa dos sapos venusianos...

Lucky se movimentava aos trancos contra sua própria vontade. Surpreso, iluminou um ponto próximo. Ficou horrorizado quando entendeu a finalidade dos profundos sulcos observados. Um destes sulcos estava se formando agora ao seu lado e estava se aproximando para dentro, para o interior do animal. As duas bordas do sulco se movimentavam constantemente produzindo um atrito: era assim que o monstro amassava e triturava os alimentos cujo tamanho era grande demais para os poros aspirantes.

Lucky não esperou. Não podia arriscar ser apanhado e triturado: seu escafandro não podia resistir contra a força fantástica daqueles músculos. Talvez a superfície do escafandro resistisse, mas os delicados mecanismos que o completavam poderiam ser destruídos.

Virou as costas, de maneira que os jatos em suas espáduas estivessem em linha reta contra a epiderme do monstro e acionou os controles. Conseguiu se afastar e logo se virou.

Evitou o contato com a epiderme e começou a se movimentar em sua proximidade, subindo e afastando-se das margens externas da coisa, indo para o centro.

De repente se defrontou com uma parede de carne tão extensa que o feixe de luz não conseguiu alcançar seus limites em ambos os lados. A parede de carne descia e era percorrida por uma vibração: os tecidos pareciam mais finos.

Era a tromba.

Lucky sentiu-se convencido de que era mesmo a tromba - uma enorme caverna com um diâmetro de centenas de metros, e da qual surgia a fúria das águas. Com muito cuidado decidiu inspecioná-la em toda a sua extensão. Sabia que todo o cuidado era supérfluo, porque se encontrava na posição mais protegida, bem na base da tromba. Mesmo assim não conseguiu evitá-lo.

Sabia também o que estava procurando e se afastou da tromba. Foi subindo mais ainda, rente ao corpo do monstro, até que chegou ao vértice interno e descobriu o que estava procurando.

Num primeiro momento, Lucky apenas percebeu um trovejar baixo, uma espécie de vibração. Então viu o entumescimento daquela massa que vibrava e batia; o volume era enorme, com uma protuberância de talvez dez metros e uma largura igual à da tromba.

Aquilo devia ser o centro do organismo: o coração, ou qualquer coisa que funcionava como um coração, devia estar ali. O coração tinha batidas poderosas e Lucky sentiu-se tonto enquanto procurava imaginá-lo. Cada pulsação daquele coração devia durar cinco minutos, enquanto milhares de metros cúbicos de sangue (ou qualquer outro líquido utilizado pelo monstro) passavam através de vasos bastante largos para acomodar o submarino Hilda. A batida daquele coração devia ser suficiente para lançar o sangue à distância de uma milha e aspirá-lo de volta. Que mecanismo extraordinário, pensou Lucky, e sentiu-se frustrado porque não podia capturar o animal vivo e estudar sua fisiologia.

Num ponto qualquer daquela protuberância devia também estar o cérebro. Um cérebro? Talvez fosse apenas um pequeno centro de células nervosas que não eram inteiramente indispensáveis para a vida do animal.

Talvez... Entretanto, o animal não poderia viver sem seu coração. A protuberância central estava se achatando. O coração estava se preparando para uma outra pulsação dentro de cinco minutos ou mais, e a protuberância estava crescendo e crescendo, enchendo-se de sangue.

Lucky levantou a arma e, enquanto iluminava aquele coração gigante, desceu um pouco. Era mais prudente não ficar muito perto... mas também não podia arriscar-se errar o alvo.

Sentiu um breve constrangimento. Do ponto de vista científico, a matança desta criatura, a mais poderosa de toda a natureza, era um verdadeiro crime.

Este pensamento era seu, ou era um pensamento transmitido pelos sapos venusianos na superfície do oceano?

Não podia mais esperar. Apertou o gatilho da arma. O arame finíssimo surgiu e penetrou no alvo. Os olhos de Lucky ficaram ofuscados pelo lampejo que incinerou a parede do coração do monstro.

Durante longos minutos a água ferveu por causa da agonia da montanha de carne. Toda aquela massa gigantesca estava em convulsão. Lucky sentia-se jogado para todos os lados como uma folha na tempestade.

Tentou chamar o Hilda, mas a resposta que recebeu foi de gemidos entrecortados: era claro que também o submarino estava sendo sacudido pelas águas. Entretanto, com a chegada da morte tudo pára, mesmo uma forma de vida de cem milhões de toneladas. E as águas pararam.

Lucky foi descendo e descendo: seu cansaço era quase mortal.

Voltou a chamar o Hilda:

- A fanca morreu - disse. - Transmitam um impulso direcional para que possa me orientar.

Lucky deixou que Bigman abrisse e removesse o escafandro e conseguiu sorrir quando viu a expressão preocupada do pequeno marciano.

- Pensei que nunca mais ia vê-lo, Lucky - falou Bigman e fungou.

- Se você pretende chorar - protestou Lucky -, vire o rosto para o outro lado. Acabo de chegar do oceano e não pretendo me molhar aqui. Em que ponto está o conserto dos geradores principais?

- Vamos conseguir - respondeu Evans -, mas precisamos de mais tempo. Fomos sacudidos com tamanha violência que uma das soldas abriu-se.

- Está bem - suspirou Lucky -, vamos refazê-la. - Sentou-se com mais um suspiro. - As coisas não se passaram como eu queria.

- Qual era sua intenção? - perguntou Evans.

- Eu pensava que bastaria aplicar algumas pontadas no monstro para encorajá-lo a procurar um outro lugar - disse Lucky. - Infelizmente, meu plano não funcionou e tive que matá-lo. Por conseguinte, o corpo da fanca morta está ao redor do Hilda, como uma tenda desabada.

 

Para a superfície?

- Quer dizer que não podemos sair? - perguntou Bigman horrorizado.

- Por enquanto - disse Lucky, calmo. - E podemos também dizer que por enquanto estamos a salvo. Estamos mais seguros aqui do que em qualquer outra parte de Vênus. Ninguém pode nos alcançar através daquela montanha de carne morta a nos encobrir. Quando os geradores estiverem normais, vamos conseguir atravessar toda aquela massa. Bigman, mãos à obra: os geradores em primeiro lugar. Evans, vamos tomar uma xícara de café e analisar toda esta situação. Não vamos perder esta ocasião de conversar: é possível que não tenhamos uma outra.

Lucky sentia-se feliz por esta trégua, por esta possibilidade de apenas pensar e falar.

Mas Evans estava inquieto. Ele apertava os cantos de seus olhos azuis. Lucky disse:

- Você me parece preocupado.

- Estou preocupado! O que vamos fazer?

Lucky respondeu:

- Já pensei a respeito. Acho que nossa única saída é transmitir todo este caso dos sapos venusianos para alguém que não esteja sob o controle mental.

- Quem?

- Não sei, mas não pode ser alguém de Vênus.

Evans arregalou os olhos:

- Você quer dizer que em Vênus todo mundo está sob controle mental?

- Não, mas qualquer um poderia ser controlado. Afinal, estas criaturas conseguem manipular um cérebro humano de várias maneiras. - Lucky procurou uma posição mais confortável e cruzou as pernas: - Em primeiro lugar, existe o controle total que pode ser exercido sobre uma mente humana durante um breve lapso de tempo. Eu disse controle total. Durante este tempo a criatura humana pode ser obrigada a fazer até coisas que contrariam sua própria natureza, coisas que ameaçam sua própria vida e a vida dos outros. Tivemos um exemplo com os pilotos do cruzador planetário, quando Bigman e eu estávamos para chegar em Vênus.

Evans protestou:

- Isto não aconteceu comigo.

- Eu sei. Morriss não percebeu isto. Ele estava convencido de que você não estava sendo controlado apenas porque em você não havia traços de amnésia. Quer dizer, existe um segundo tipo de controle, e foi este o seu caso. E menos intenso e as pessoas não perdem a memória. Sendo menos intenso, uma pessoa não pode ser obrigada a fazer qualquer coisa contra sua própria natureza: por exemplo, eles não conseguiram forçar você a se suicidar. Por outro lado, este tipo de controle é mais demorado - dura dias, e não apenas horas. É claro que os sapos venusianos compensam a perda de intensidade com uma maior extensão de tempo. E deve também existir um terceiro tipo de controle.

- Qual é?

- Um controle ainda menos intenso que o do segundo tipo. Um controle tão suave que a vítima não o percebe, e ao mesmo tempo tão forte que a mente da vítima pode ser analisada e vasculhada, para a obtenção de informações. Por exemplo, temos o caso de Lyman Turner.

- O engenheiro-chefe de Afrodite?

- Ele mesmo. Aliás, é um caso característico, está percebendo? Lembre-se que ontem tivemos um homem sentado perto da comporta da abóbada, com a mão sobre a alavanca, ameaçando a cidade inteira... e que estava tão bem protegido por todos os lados, tão isolado por causa dos alarmes, que ninguém podia se aproximar dele sem que ele percebesse, até que Bigman conseguiu se espremer através de um conduto de ventilação. Você não acha isto esquisito?

- Não. O que há de esquisito?

- Apenas o fato de que este homem era novo no emprego. Ele não é um engenheiro de fato. Seu trabalho é mais o trabalho de um escriturado ou de um auxiliar de contabilidade. Onde foi que este homem arranjou as informações para se proteger? Como podia conhecer o sistema de energia e de força naquela secção da abóbada?

Evans soltou um assovio.

- Ehi, você descobriu um detalhe muito importante!

- Pois é, mas Turner não percebeu a incongruidade da coisa. Falei com ele a este respeito antes de embarcar no Hilda. Não expliquei o que eu queria saber. Ele me falou espontaneamente sobre a experiência do homem, mas não viu o óbvio. Por outro lado, quem pode ter todas as informações necessárias? Quem, a não ser o engenheiro-chefe?

- Certo. Você está certo!

- Agora imagine Turner submetido a um controle muito sutil. A informação pode ter sido extraída de seu próprio cérebro. Ele poderia ser acalmado a ponto de não perceber nada de anormal. Você está vendo o que eu quero dizer? E também há o caso de Morriss...

- Morriss? - perguntou Evans, estarrecido.

- É possível. Ele acredita piamente que os sirianos querem se apoderar das fórmulas das leveduras. Não consegue ver qualquer outra possibilidade. No seu caso, trata-se de um mal-entendido legítimo ou é o resultado de uma forma muito sutil de sugestão? Achei que estava sendo um pouco precipitado em suspeitar de você, Lou - realmente, muito precipitado. Um conselheiro devia ser um pouco mais cuidadoso antes de começar a suspeitar de outro conselheiro.

- Pelo espaço, Lucky! E quem está a salvo disto?

Lucky olhou para sua xícara vazia e disse:

- Não existe ninguém em Vênus. Esta é exatamente a conclusão à qual cheguei. É imperativo que todo o relato e a verdade sejam transmitidos para fora.

- Mas como?

- Boa pergunta. Como? - Lucky estava pensando intensamente. Evans disse: - Não podemos nos afastar fisicamente. O Hilda foi construído apenas para navegar sob o oceano. Não pode navegar no ar, e menos ainda no espaço. Por outro lado, se voltarmos para Afrodite para conseguir uma nave mais apropriada, não poderemos mais sair.

- Acho que você está certo - concordou Lucky. - Acontece que não precisamos nos afastar fisicamente de Vênus. Basta que nossas informações saiam daqui.

- Se você está pensando no rádio do submarino, pode desistir - disse Evans. - O rádio que temos aqui é estritamente limitado a Vênus. Não é subetérico, portanto não pode alcançar a Terra. Aqui, onde estamos, não temos nem mesmo a possibilidade de transmitir acima da superfície do oceano. O transmissor produz ondas que de fato são defletidas para baixo pela superfície do oceano, para aumentar seu alcance. E mesmo que fosse possível transmitir acima da superfície, não conseguiríamos alcançar a Terra.

- Não há qualquer necessidade de alcançar a Terra - disse Lucky. - Entre Vênus e a Terra existe ainda alguma coisa no espaço.

Evans não entendeu logo, mas depois perguntou:

- Está pensando na estação espacial?

- Pois é. Duas estações espaciais se encontram constantemente em órbita. A Terra pode se encontrar a uma distância entre trinta e cinqüenta milhões de milhas, mas as estações podem estar a uma distância de duas mil milhas. Tenho certeza que na estação espacial não existem sapos venusianos. Morriss explicou que os sapos detestam o excesso de oxigênio, e nas estações não poderiam preparar câmaras de dióxido de carbono só para os sapos, considerando que as estações são administradas com o máximo de economia. Acho que se conseguíssemos mandar uma mensagem à estação, para ser retransmitida à Terra, poderíamos ficar tranqüilos.

- É isto, Lucky! - exclamou Evans, excitado. - É o único meio. Os poderes mentais dos sapos não podem se projetar por duas mil milhas no espaço... - Seu rosto se anuviou: - Não, não pode ser feito. O transmissor do submarino não pode alcançar nada além da superfície.

- Eu sei, não pode daqui. Por outro lado, se transmitirmos da superfície, poderemos alcançar as estações espaciais.

- Você quer ir até à superfície?

- Por que não?

- Mas eles estão lá. Os sapos!

- Eu sei.

- Seríamos controlados.

- Você acha? - perguntou Lucky. - Até agora eles nunca tentaram com alguém que sabe a respeito, que sabe o que esperar e que está decidido a resistir. A maioria das vítimas não suspeitava de nada. E quanto a você, você mesmo disse que praticamente os convidou a entrar em sua mente. Meu caso é diferente: eu sei, e não pretendo convidá-los.

- Escute, você não pode fazer nada. Você não sabe como isto acontece.

- Pode me sugerir uma alternativa?

Antes que Evans pudesse responder, Bigman entrou, abaixando as mangas.

- Tudo está pronto - disse. - Posso garantir que os geradores estão em ordem.

Lucky acenou com a cabeça e foi até os controles. Evans ficou sentado, com os olhos cheios de dúvidas.

Os motores começaram a zunir e aquele zunido profundo e modulado parecia uma melodia. Os pés percebiam a estranha sensação do movimento em suspensão, totalmente ausente numa nave espacial.

O Hilda atravessou a água que se encontrava sob o corpo desabado da fanca e aumentou a velocidade.

Bigman perguntou, preocupado:

- Quanto espaço temos?

- Mais ou menos meia milha - disse Lucky.

- E se você não conseguir? - murmurou Bigman. - O que acontece se esta nave apenas consegue um impacto de penetração e depois fica presa, como um machado num tronco?

- Neste caso, voltaremos para trás e tentaremos outra vez - explicou Lucky.

Ficaram em silêncio até que Evans murmurou:

- Ficar aqui, embaixo da fanca... é como estar trancado numa câmara.

- Trancado em quê? - perguntou Lucky.

- Numa câmara - repetiu Evans, meio ausente. - Aquelas câmaras de Vênus. São pequenas abóbadas em transite, embaixo do nível do fundo do oceano como uma espécie de abrigo contra tufões ou contra bombas da Terra. Estas câmaras deveriam servir de abrigo contra a água na eventualidade de inundação, provocada pela destruição de uma abóbada, ou durante um sismo. Nunca ouvi dizer que uma destas câmaras foi efetivamente utilizada, mas os prédios de apartamentos mais luxuosos costumam anunciar estas câmaras, como pontos de venda.

Lucky ouvia sem nada dizer.

O zumbido do motor aumentou.

- Cuidado, todo mundo!

- gritou Lucky.

O Hilda estava vibrando de ponta a ponta e a desaceleração súbita empurrou Lucky contra o painel de controles. Bigman e Evans tiveram que se segurar com força nos corrimãos.

O submarino diminuiu a marcha, mas não parou. Com os motores a velocidade máxima e os geradores uivando pelo esforço, o Hilda atravessou a pele, a carne, os tendões, os vasos sangüíneos vazios e os nervos inertes. Lucky, com os dentes cerrados, mantinha a alavanca de aceleração no ponto máximo, para superar todas as resistências.

Os longos minutos se passaram e de repente o submarino avançou para frente - estavam do outro lado: em sua frente se expandia um oceano vazio.

O Hilda subiu suave e silenciosamente através das águas opacas e saturadas de dióxido de carbono do oceano de Vênus. Os três se mantinham em silêncio, um silêncio que parecia causado pela ousadia que os levava a conquistar a fortaleza dos animais inimigos daquele planeta. Evans estava silencioso desde a saída do outro lado da fanca morta. Lucky, depois de ajustar os controles automáticos, continuava sentado na poltrona do piloto, tamborilando os dedos sobre o joelho. Até o irreprimível Bigman estava encostado, com expressão sombria, na grande vigia de popa que, por ser semi-esférica, proporcionava um amplo ângulo visual.

De repente, Bigman chamou:

- Lucky, veja isto!

Lucky se aproximou. Ambos ficaram a observar em silêncio. Por um lado da vigia só se viam numerosos pontos fosforescentes e coloridos, mas no outro lado via-se uma parede, uma parede monstruosa onde as cores variavam formando desenhos luminosos e evanescentes.

- Você acha que pode ser a fanca, Lucky? - perguntou Bigman.

- Não brilhava assim quando descemos, e agora que está morta, não poderia estar brilhando assim, você não acha?

Lucky ficou a observar e depois disse:

- Num certo sentido, é a fanca, Bigman. Acho que o oceano inteiro está se reunindo para o banquete.

Bigman olhou mais uma vez e sentiu um pouco de enjôo. Havia centenas de milhões de toneladas de carne à disposição, e toda aquela luminosidade era provocada por todas as pequenas criaturas dos baixios que estavam devorando o monstro morto.

Outras criaturas passaram ao lado da vigia, indo apressadas na mesma direção. Todas iam para a enorme carcaça que o Hilda estava deixando para trás.

O que mais se via eram os peixes-dardo de todos os tamanhos. Cada um tinha uma linha branca fosforescente e reta que marcava sua espinha (que, de fato, não era uma espinha mas apenas um segmento córneo sem qualquer articulação). Numa extremidade daquela linha branca, um V amarelo claro indicava a cabeça. Bigman tinha a impressão que inúmeros dardos animados estavam passando ao lado do submarino, e conseguia imaginar suas bocas guarnecidas de dentes pontiagudos e famintos.

- Pela grande galáxia! - exclamou Lucky.

- Areias de Marte! - murmurou Bigman. - O oceano deve estar vazio. Acho que até o último alevino deste oceano está indo para o mesmo lugar.

Lucky observou:

- Do jeito que os peixes-dardo estão se refestelando, a carcaça desaparecerá em menos de doze horas.

Atrás deles Evans falou:

- Lucky, preciso conversar com você.

Lucky se virou.

- Certo, o que há, Lou?

- Quando você mencionou pela primeira vez a possibilidade de irmos para a superfície, você me perguntou se eu sabia de outra alternativa.

- Sim, mas você não me respondeu.

- Posso responder agora. A alternativa está em minha mão, e a resposta é que vamos voltar para a cidade.

Bigman gritou:

- Você está louco? Que tolice é esta?

Lucky achou desnecessário fazer perguntas. Dilatou as narinas e mentalmente se acusou de desleixo: não deveria ter ficado admirando o espetáculo pela vigia, mas deveria ter ficado com o coração, a mente e o espírito cuidando dos assuntos mais importantes.

Evans ergueu a mão, segurando o desintegrador de Lucky. Os olhos de Evans só mostravam uma fria determinação.

- Vamos voltar para a cidade - declarou Evans.

 

Para a cidade?

Lucky perguntou:

- O que há de errado, Lou?

Evans acenou, impaciente, com o desintegrador.

- Coloque os motores em marcha à ré, comece a descer e depois vire a proa em direção da cidade. Não, não você, Lucky. Deixe que Bigman fique nos controles. Depois coloque-se perto dele, assim posso vigiar a ambos e também os controles.

Bigman levantou as mãos a meia atura, depois olhou para Lucky. Lucky ainda estava com as mãos ao lado das coxas.

Perguntou com menosprezo:

- Que tal se você me contasse o que deu em você?

- Nada deu em mim - respondeu Evans. - Nada de nada. Estou preocupado com o que deu em você. Você saiu e matou o monstro, e quando voltou, começou a dizer que pretendia subir até à superfície. Por quê?

- Expliquei por que.

- Suas explicações não me convencem. Sei que se formos até à superfície, os sapos venusianos vão se apoderar de nossas mentes. Eu já passei por isto, e sei que agora os sapos venusianos estão controlando a sua mente.

- O quê! - explodiu Bigman. - Você está louco?

- Sei o que estou fazendo - continuou Evans, observando Lucky com total desconfiança. - Procure raciocinar friamente, Bigman: vai chegar à conclusão de que Lucky está sendo influenciado pelos sapos. Não se esqueça de que Lucky é também amigo meu. Eu o conheço há mais tempo que você, Bigman, e sinto-me constrangido por ter que agir como estou agindo, mas não há outra saída. Preciso fazê-lo.

Bigman observou ambos os homens e, sem saber o que pensar, perguntou a Lucky, num murmúrio:

- Lucky, os sapos estão controlando sua mente?

- Não - respondeu Lucky.

- O que mais ele poderia responder? - desabafou Evans. - É claro que ele está sendo controlado. Teve que subir muito, antes de matar o monstro. Deve ter chegado muito perto da superfície, onde os sapos venusianos estavam à espreita: e foi então que eles o pegaram. Deixaram que matasse a fanca. Por que não? Para eles, era muito mais vantajoso controlar Lucky. Então Lucky voltou e começou a delirar, a insistir na necessidade de irmos para a superfície, e lá estaremos entre os sapos, estaremos cercados - somos os únicos a conhecer a verdade, e ficaremos indefesos e inutilizados.

- Lucky? - chamou Bigman com a voz trêmula, pedindo por uma palavra que lhe devolvesse a certeza.

Lucky Starr falou com muita calma:

- Você está completamente errado, Lou. O que você está fazendo é apenas uma conseqüência de tudo o que você sofreu. Você já esteve sob o controle dos sapos e os sapos venusianos conhecem sua mente. Podem penetrar nela à vontade. Talvez você nunca esteve completamente livre de sua influência. Você está agindo sob coação.

Evans segurou o desintegrador com mais força.

- Sinto muito, Lucky, este papo-furado não me convence. Vamos colocar a nave na rota da cidade.

Lucky insistiu:

- Se você está livre do controle, Lou... se sua mente está livre... você vai me desintegrar se eu insistir em ir para a superfície, não é?

Evans não respondeu. Lucky continuou:

- Você não tem escolha. Você terá que fazê-lo, porque é sua obrigação diante do Conselho e da Humanidade. Por outro lado, se você está agindo por causa do controle, você está sendo coagido a me ameaçar, para tentar uma mudança de rota, mas eu duvido que você possa ser forçado a me matar. Assassinar um amigo e um colega do Conselho não seria próprio de você... contraria totalmente todos os seus princípios. Passe este desintegrador para cá!

Lucky deu dois passos para a frente, a mão estendida.

Bigman observava, fascinado e horrorizado.

Evans se afastou. Sua voz estava rouca:

- Lucky, estou avisando. Vou apertar o gatilho.

- Pois eu digo que você não vai atirar. Dê-me o desintegrador.

Evans deu mais um passo para trás e parou rente à parede. Sua voz saiu em falsete:

- Vou atirar. Vou atirar!

Bigman berrou:

- Lucky! Pare!

Lucky já estava parado e deu um passo para trás. E depois um outro. Devagar. Muito devagar.

Os olhos de Evans pareciam vazios, sem vida. Estava parado como uma estátua de pedra, com o dedo no gatilho. Sua voz, fria como gelo, intimou:

- Para a cidade!

Lucky falou:

- Tome a rota da cidade, Bigman.

Bigman começou a manipular os controles. Murmurou:

- Ele está realmente dominado, não está?

Lucky respondeu:

- Estava receando isto. Ele está sob controle intensivo, porque eles querem que ele atire. Ele vai atirar, se for preciso, não duvide. Neste instante está em estado amnésico. Em seguida, não conseguirá se lembrar de nada.

- Você acha que ele pode ouvir o que falamos? - Bigman estava pensando nos pilotos do cruzador planetário, e que aparentemente não ouviam nada do que se passava em seu redor.

- Não, acho que não está ouvindo - confirmou Lucky. - Apenas está vigiando os controles, e se desviarmos da rota para a cidade, vai atirar. Não se iluda.

- E o que vamos fazer?

Os lábios pálidos de Evans voltaram a se abrir:

- Voltem para a cidade, rápido!

Lucky ficou imóvel, sem tirar os olhos da boca do desintegrador, e começou a falar em voz baixa, instruindo Bigman.

Bigman concordou com um movimento imperceptível da cabeça.

O Hilda estava voltando pelo mesmo caminho, dirigindo-se para a cidade.

O conselheiro Lou Evans, pálido e austero, estava parado contra a parede e seus olhos frios passavam de Lucky para Bigman, e de Bigman para os controles. Seu corpo parecia rígido, totalmente à mercê dos que controlavam sua mente, e não sentia sequer a necessidade de passar o desintegrador de uma mão para a outra.

Lucky se esforçava para ouvir o som distante do rádiomonitor de Afrodite que ecoava constantemente no rádiogoniômetro do Hilda. A onda era irradiada em todas as direções e numa freqüência definida do ponto mais elevado da abóbada de Afrodite. A rota de retomo até à cidade era tão óbvia como se Afrodite estivesse no campo visual e a cem metros de distância.

Pelo som, Lucky sabia que não estavam se aproximando da cidade pela rota direta. Era uma pequena diferença de tom, e que ouvidos menos experimentados poderiam não perceber. Os ouvidos de Evans, controlados por vontades alheias, não podiam notar a diferença. Ou, pelo menos, assim Lucky esperava.

Lucky tentou especular a direção certa dos olhos brilhantes de Evans quando iam até os controles. Tinha certeza que os olhos apenas se preocupavam com o indicador de profundidade. Era um indicador bastante grande, do tipo mais simples, que media a pressão da água. De onde Evans se encontrava era fácil ver que o Hilda não estava subindo.

Lucky também tinha certeza que se o indicador de profundidade tomasse o rumo errado, Evans apertaria o gatilho sem qualquer hesitação.

Mesmo evitando formular pensamentos, na medida do possível, para não dar aos sapos venusianos a possibilidade de captá-los, Lucky não conseguia compreender por que Evans não acionava o desintegrador. Já estavam condenados quando se encontravam embaixo da fanca gigante, e agora estavam apenas sendo levados de volta para a cidade.

Ou talvez Evans acabaria dando ao gatilho quando os sapos venusianos acabassem de superar os últimos obstáculos da mente que já estavam dominando?

A onda do monitor ficou um pouco mais fraca. Lucky mais uma vez observou o olhar de Evans. Era apenas imaginação, ou realmente algo (não emoção, mas algo diferente) estava aparecendo nos olhos de Evans?

Logo depois convenceu-se que era imaginação mesmo, porque os músculos do braço de Evans se retesaram, o braço se ergueu um pouco.

Estava se preparando para atirar.

Enquanto este pensamento atravessava rapidamente a mente de Lucky e seus próprios músculos se contraíam involuntariamente e inutilmente, à espera do raio desintegrador, a nave chocou-se contra alguma coisa. Evans, que não estava preparado, caiu para trás. O desintegrador saltou de sua mão e deslizou pelo chão.

Lucky não perdeu tempo. O impacto que fizera Evans cair para trás deu-lhe impulso para frente. Caiu sobre o outro, agarrando seus pulsos com mãos de aço.

Evans, porém, era de seu mesmo tamanho e lutou com a fúria imposta pelos outros. Dobrou os joelhos e, empurrando as coxas de Lucky, tentou arremessá-lo para o alto. O submarino ainda balançava e Evans se aproveitou do movimento para rolar sobre Lucky. Evans tentou um soco mas Lucky se desviou. Ao mesmo tempo ergueu os joelhos e conseguiu agarrar Evans com uma tesoura um pouco acima dos quadris.

A dor marcou o rosto de Evans que se torceu. Lucky não largou a presa e aumentou a pressão. Disse:

- Não sei se você pode me ouvir e me compreender, Lou...

Evans não prestou atenção. Com um último esforço conseguiu um sobressalto e se livrou de Lucky, jogando-o para o alto. Quando Lucky caiu ao chão, rolou com o impacto e logo se levantou. Conseguiu segurar o braço de Evans quando este se levantava e puxou-o por cima do ombro. Evans se ergueu e caiu de costas. Ficou imóvel.

- Bigman! - chamou Lucky, arfando e alisando os cabelos para trás.

- Estou aqui - respondeu o baixinho com um sorriso, balançando levemente o desintegrador de Lucky. - Estava pronto para qualquer eventualidade.

- Está bem. Agora guarde a arma, Bigman, e veja como está Lou. Certifique-se que não tem fraturas. Depois, amarre-o.

Lucky tomou os controles e, invertendo os motores, conseguiu se afastar dos restos da fanca gigante, morta há algumas horas.

O plano de Lucky se fundava em sua certeza de que os sapos venusianos estavam excessivamente preocupados, controlando a mente de Evans e, como careciam de qualquer experiência de navegação submarina, não se importariam com a rota levemente errada de Bigman. E para concretizar o plano, Lucky só tinha murmurado uma única frase para Bigman, quando este virava o leme, fingindo ir para a cidade sob a ameaça do desintegrador de Evans. A frase era breve e concisa: - Choque-se com a fanca.

O Hilda voltou a mudar de rota. Sua proa se ergueu. Evans estava amarrado sobre o beliche. Olhou para Lucky e murmurou:

- Desculpe.

- Já compreendemos, Lou. Não se preocupe - respondeu Lucky. - Terá que ficar assim por um pouco. Você entende por que, não é mesmo?

- Entendo, sim. Pode me amarrar com mais cordas. Eu mereço. Mas acredite, Lucky: eu quase não me lembro de nada.

- Tente dormir um pouco, amigo. - Lucky bateu levemente em seu ombro. - Vamos acordá-lo quando chegarmos à superfície, se for preciso.

Alguns minutos mais tarde, falou em voz baixa com Bigman:

- Procure todos os desintegradores que estiverem na nave, Bigman, e qualquer arma que você possa encontrar. Olhe no armazém, nas gavetas dos beliches, em qualquer lugar.

- O que você pretende fazer?

- Quero jogá-las fora.

- Por quê?

- Ouviu o que eu falei. Você pode ser dominado. Eu posso ser dominado. Se isto acontecer, não quero ter à mão qualquer coisa que possa levar a uma repetição da cena de Evans. E contra os sapos venusianos as armas não têm qualquer eficácia.

Dois desintegradores e duas armas dos escafandros foram colocados no ejetor.

- Sinto-me nu - disse Bigman. Olhou pela vigia, mas não viu mais as armas. Apenas o lampejo de um peixe-dardo.

O manômetro continuava a baixar. No começo estavam a uma profundidade de novecentos metros. Agora estavam a menos de setecentos. Bigman perguntou:

- O que você está procurando, afinal?

- Eu imaginava que a água ia ficar mais clara enquanto subíamos.

- Duvido - respondeu Lucky. - As algas-marinhas cobrem completamente a superfície do oceano. Tudo continuará escuro até sairmos na superfície.

- Você acha que encontraremos algum pesqueiro, Lucky?

- Espero que não.

O manômetro marcava quinhentos metros.

Bigman fez um esforço consciente para mudar o assunto de seus próprios pensamentos: - Lucky, explique-me por que a atmosfera de Vênus está tão saturada de dióxido de carbono. Quero dizer, aqui tem um bocado de vegetação. Afinal, as plantas deveriam transformar o dióxido de carbono em oxigênio!

- Isto acontece na Terra. Entretanto, se eu ainda lembro corretamente minhas aulas de xenobotânica, as plantas de Vênus têm um comportamento um pouco diferente. As plantas terrestres soltam o oxigênio no ar, enquanto as plantas venusianas costumam armazenar o oxigênio em seus próprios tecidos. - Falava distraidamente, como se a conversa pudesse evitar outros pensamentos, mais profundos. - É por isto que nenhum animal venusiano respira. Costumam absorver o oxigênio com os alimentos.

- Que coisa esquisita - comentou Bigman.

- Aliás, os alimentos provavelmente estão saturados de oxigênio, caso contrário não gostariam tanto de materiais com baixo teor de oxigênio, como por exemplo aquela graxa para engrenagens que você deu ao sapo. Pelo menos, esta é a minha teoria.

Estavam a duzentos e cinqüenta metros da superfície. Lucky comentou:

- Você é um bom navegador, Bigman. Estou me lembrando de como você conseguiu se chocar com a fanca.

- Não foi nada - resmungou Bigman, mas enrubesceu pela emoção de ouvir o elogio.

Só faltavam mais cento e oitenta metros até a superfície.

Ficaram em silêncio.

Logo ouviram o barulho de algo que raspava sobre o casco. Os motores começaram a trabalhar com esforço e de repente a vigia se iluminou, proporcionando a vista do céu nublado e da água da superfície se movimentando entre os restos de algas-marinhas estraçalhadas. Mil respingos marcavam a superfície do oceano.

- Está chovendo - observou Lucky. - Agora só resta esperar até que os sapos venusianos venham para nos controlar.

Bigman falou devagar:

- Pois bem... aqui estão eles.

Logo atrás da vigia, com as perninhas firmemente agarradas a uma fronde de alga-marinha, um sapo venusiano estava observando o interior da nave, com seus olhos escuros e brilhantes.

 

Encontro mental

O Hilda flutuava nas águas agitadas do oceano de Vênus. A chuva forte batia insistentemente sobre o casco externo, com um ritmo quase terrestre. Bigman, que era de Marte, estranhava o oceano e a chuva, mas Lucky começou a sentir vagamente saudades de casa.

Bigman disse:

- Olhe para o sapo, Lucky. Olhe só!

- Estou vendo - respondeu Lucky, calmo.

Bigman limpou o vidro com a manga e depois encostou o nariz.

É melhor não se aproximar demais, pensou de repente.

Deu um passo para trás. Em seguida enfiou um dedo de cada mão nos cantos da boca, alargando-a. Botou a língua para fora, cruzou os olhos e começou a abanar as mãos.

O sapo venusiano continuou a observá-lo com sua expressão solene. Não se mexeu durante todo o tempo que Bigman o observava. Apenas balançava com o vento, agarrado na haste da alga-marinha. Não parecia se importar com a chuva que caía insistentemente em suas costas e em sua volta. Bigman contorceu o rosto de maneira ainda mais horrível e gargarejou:

- Ah-h-h! - olhando para o bichinho.

Atrás de suas costas Lucky perguntou:

- O que está acontecendo, Bigman?

Bigman deixou cair as mãos, recompondo o rosto. Explicou com um largo sorriso:

- Estava apenas mostrando ao sapo o que penso dele.

- E o sapo estava lhe mostrando o que pensa de você!

O coração de Bigman bateu com mais força. Percebeu que Lucky não aprovava que naquele momento de crise, enquanto todos estavam em perigo, ele, Bigman, estivesse fazendo caretas como um palhaço. Sentiu-se envergonhado. Gaguejou:

- Não sei o que aconteceu comigo!

- Eles sabem - retrucou Lucky com voz dura. - Procure entender, Bigman: os sapos venusianos estão procurando seus pontos fracos. Se conseguirem encontrar algum, se insinuarão em sua mente e talvez fiquem ali, sem que você possa fazer qualquer coisa para se livrar. É melhor você não se deixar levar por qualquer impulso, a não ser que saiba o que está fazendo.

- Sim, Lucky - murmurou Bigman.

- O que vamos fazer agora? - perguntou Lucky, olhando ao redor. Evans estava dormindo: agitava-se muito e respirava com dificuldade. Lucky ficou a observá-lo por um pouco e depois desviou o olhar. Bigman perguntou, um pouco tímido:

- Lucky?

- Diga.

- Você não vai chamar a estação espacial?

Lucky ficou a observar seu pequeno parceiro com expressão ausente. Em seguida, ergueu as sobrancelhas que estavam franzidas e murmurou:

- Pela galáxia! Eu tinha esquecido, Bigman. Não me lembrava mais! Não estava mais pensando nisto!

Bigman acenou com o polegar para a vigia atrás de suas costas, por onde o sapo venusiano continuava a observar o interior da nave:

- Você acha que...

- Sim, acho que é por causa deles. Lá fora deve haver milhares.

Meio sem jeito, Bigman reconheceu os motivos de seu próprio alívio: sentia-se quase satisfeito que Lucky também sentisse a influência das criaturas. 0 fato reduzia muito suas razões de se sentir envergonhado. Pensando melhor, Lucky não tinha qualquer direito de...

Bigman ficou perplexo. Estava começando a procurar motivos para se ressentir com Lucky. Isto não era de seu feitio. Isto era deles!

Com um grande esforço afastou qualquer pensamento e se concentrou em Lucky, cujos dedos manipulavam os controles do transmissor, sintonizando a freqüência que levaria suas palavras até o espaço externo.

De repente, Bigman estremeceu ao ouvir uma outra voz, uma voz estranha, fanhosa. A voz dizia:

- Não mexa naquela máquina para transmitir sons. Ordenamos que pare.

Bigman se virou, boquiaberto. Depois perguntou:

- Quem falou? Quem está aqui?

Lucky respondeu:

- Não é nada, Bigman. As palavras apenas surgiram em sua mente.

- Não podem ser os sapos! - exclamou Bigman, desesperado.

- Pela galáxia! Quem mais poderia ser?

Bigman se virou para a vigia, observando as nuvens, a chuva e o sapo venusiano balançando no vento.

Numa outra ocasião Lucky já tinha experimentado a sensação de mentes alheias transmitindo seus pensamentos para sua própria mente. Foi no dia do encontro com as entidades de energia imaterial que ocupavam as cavernas no interior de Marte. Naquela oportunidade a penetração dos pensamentos foi fácil, indolor, até agradável. Sabia que estava à mercê deles, mas não sentia medo.

Agora era diferente. A força mental alheia estava forçando a entrada, e Lucky sentia dor, ódio e ressentimento. Afastou a mão do transmissor e não teve vontade de tocá-lo de novo. Estava se esquecendo de novo. A voz falou de novo: -

- Faça o ar vibrar com sua boca.

Lucky perguntou:

- Você quer que eu fale? Você não ouve os pensamentos quando não falamos?

- Só muito pouco. É difícil entender apenas os pensamentos quando não conhecemos profundamente a mente que os formula. Quando você fala, seus pensamentos são mais claros e podemos ouvir.

- Podemos ouvir vocês sem qualquer dificuldade - disse Lucky.

- Sim. Conseguimos transmitir nossos pensamentos com muita força. Vocês não conseguem.

- Você ouviu tudo o que eu disse até agora?

- Sim.

- O que é que você quer que eu faça?

- Em seus pensamentos descobrimos a existência de uma organização de criaturas iguais a você, em algum ponto muito distante, do outro lado do céu. Você chama esta organização o Conselho. Queremos saber mais a respeito.

Lucky sentiu-se vagamente satisfeito. Pelo menos uma pergunta tinha recebido resposta. Enquanto o inimigo o considerava apenas um indivíduo isolado, o inimigo só queria eliminá-lo. Recentemente, porém, o inimigo percebera os esforços de Lucky de penetrar o mistério e que já conhecia boa parte da verdade. O inimigo estava preocupado.

Os outros membros do Conselho também poderia aprender tudo com a mesma facilidade? Como era este Conselho?

Lucky entendia esta curiosidade do inimigo, sua prudência, seu desejo de apreender o mais possível de Lucky, antes de eliminá-lo. Era por isto que tinham impedido, no último instante, que Evans o matasse, quando seu dedo quase apertara o gatilho.

Lucky parou de fazer conjecturas. Era possível que os sapos não conseguissem ler claramente os pensamentos, como diziam; mas também podia ser uma mentira. Perguntou, brusco:

- Por que vocês odeiam meu povo?

A voz fanhosa e monótona respondeu:

- Não podemos dizer o que não sentimos.

Lucky cerrou os dentes. Era possível que tivessem lido seu último pensamento sobre as mentiras? Precisava tomar cuidado, muito cuidado. A voz continuou:

- Não gostamos de seu povo. Seu povo não respeita a vida. Seu povo come carne. Os seres inteligentes não deveriam comer carne. Quem come carne precisa matar para comer, e um comedor de carne inteligente é mais prejudicial que um comedor de carne irracional, porque o inteligente conhece muitos meios para matar. Vocês têm pequenos tubos que podem matar muitos ao mesmo tempo.

- Nunca matamos sapos venusianos.

- Fariam isto se nós deixássemos. Vocês costumam até se matar uns aos outros, em grupos pequenos ou maiores.

Lucky não fez qualquer comentário, mas perguntou:

- O que é que vocês querem de meu povo?

- Vocês estão ficando sempre mais numerosos em Vênus - disse a voz. - Vocês se espalham muito, tomam muito espaço.

- Não podemos tomar muito espaço - retrucou Lucky. - Só podemos construir nossas cidades em águas baixas. As águas profundas serão suas, e as águas profundas representam nove décimos do oceano. E podemos ajudá-los. Vocês têm o conhecimento das mentes, e nós temos o conhecimento da matéria. Vocês viram nossas cidades e as máquinas que atravessam o ar e as águas e chegam até os mundos do outro lado do céu. Somos poderosos e podemos ajudá-los.

- Não precisamos de nada. Vivemos e pensamos. Não temos medo e não odiamos. O que mais podemos precisar? O que faríamos com suas cidades, seus metais, suas naves? Nada disto poderia melhorar nossas vidas.

- Neste caso, vocês pretendem matar todos nós?

- Não queremos encerrar qualquer vida. Basta dominar seus pensamentos e termos certeza de que vocês não podem nos prejudicar.

Lucky teve uma rápida visão (própria ou alheia?) do povo em Vênus, vivendo dirigido pelos sapos, sempre mais afastado de qualquer contato com a Terra, de gerações mais novas transformadas em escravos mentais. Falou com segurança exagerada:

- Os metais não podem viver sob controle mental.

- Este é nosso único meio e você tem que nos ajudar.

- Não vamos ajudar.

- Vocês não têm escolha. Você deve dizer tudo a respeito das terras além do céu, da organização de seu povo, o que eles pretendem fazer contra nós e como podemos nos defender.

- Vocês não podem me forçar.

- Tem certeza? - perguntou a voz. - Pense bem: se você não fizer o que queremos, vamos obrigá-lo a voltar para as profundezas do oceano com esta sua máquina de metal reluzente, e lá no fundo você abrirá sua máquina, deixando a água entrar.

- E vamos morrer - comentou Lucky, soturno.

- É necessário encerrar suas vidas. Você sabe demais e seria perigoso para nós se você pudesse se comunicar com seu povo. Seu povo poderia querer vingança. Não queremos isto.

- Neste caso, não tenho nada a perder. Não vou falar.

- Você tem muito a perder. Se você se recusar, teremos que analisar sua mente à força. Não é um sistema eficiente. Poderíamos perder conhecimentos valiosos. Para evitar este perigo, teríamos que dissecar sua mente aos poucos, e este processo seria muito desagradável para você. Seria melhor para você e para nós se ajudasse espontaneamente.

- Não - disse Lucky.

Depois de um breve intervalo a voz continuou:

- Seu povo costuma matar, mas todos vocês têm medo de encerrar suas próprias vidas. Você será poupado, se ajudar. Quando você estiver descendo para o fundo do oceano, vamos retirar o medo de sua mente e sua vida terminará de forma agradável. Mas se você se recusar a nos ajudar, vamos obrigá-lo de qualquer maneira a encerrar sua vida, mas sem retirar o medo. Vamos intensificá-lo.

- Não - gritou Lucky.

O intervalo foi mais longo. Finalmente a voz disse:

- Não estamos pedindo informações porque tememos pela nossa própria segurança, mas porque queremos evitar a necessidade de tomar medidas desagradáveis. Se ficarmos apenas com conhecimentos incompletos sobre como zelar pela nossa segurança contra o seu povo, que vem do outro lado do céu, teremos que eliminar a ameaça, encerrando todas as vidas de seu povo neste mundo. Vamos deixar o oceano penetrar em suas cidades, como quase fizemos numa delas. A vida de seu povo terminará assim, como uma chama se apaga. Será abafada e não poderá mais arder.

Lucky riu baixinho:

- Pois veja se pode! - disse.

- O que precisamos ver?

- Veja se pode me obrigar a falar. Veja se pode me obrigar a submergir. Veja se pode me obrigar a fazer qualquer coisa.

- Você acha que não podemos?

- Eu sei que não podem.

- Neste caso, olhe bem: veja o que já fizemos. A criatura que é sua companheira está em nossas mãos. Está à nossa mercê.

Lucky se virou. Durante todo o diálogo, Bigman não se manifestara nem uma vez. E Lucky teve a impressão de ter esquecido de Bigman. Agora o pequeno marciano estava estendido no chão, imóvel. Lucky se ajoelhou, com um nó na garganta.

- Vocês mataram meu amigo?

- Não, está vivo. Não está machucado. Mas você pode ver que agora está sozinho. Ninguém poderá ajudá-lo. Seus amigos não conseguiram resistir, e você também não poderá.

Lucky estava pálido. Respondeu:

- Não. Mesmo assim vocês não podem me obrigar a fazer qualquer coisa.

- Vamos lhe dar mais uma última oportunidade. Faça sua escolha. Vai colaborar conosco, e depois encerrar sua vida de forma tranqüila e agradável? Ou vai se recusar, e enfrentar o fim com medo e sofrimento? Sabendo, também, que todo seu povo terá o mesmo fim? Como vai ser? O que você vai fazer? Vamos, responda!

As palavras continuavam a ecoar na mente de Lucky enquanto se preparava para resistir, sozinho e sem amigos, contra as investidas de um poder mental que ele não sabia como combater, a não ser com a teimosia inflexível de sua própria força de vontade.

 

Batalha mental

Como é possível estabelecer uma barreira contra um ataque mental? Lucky queria resistir, mas não era uma questão de flexionar músculos, ou de tomar uma atitude defensiva, e não havia maneira de reagir de forma violenta. Precisava ficar como estava, e resistir a todos os impulsos que se manifestavam em sua mente e que ele podia reconhecer como alheios.

Por outro lado, como poderia saber quais eram seus próprios impulsos? O que era o que ele próprio desejava fazer? Qual era a coisa que ele mais desejava fazer?

Nenhuma idéia se apresentou à sua mente. Sua mente era como uma tela vazia. Mas devia haver algo que precisava fazer. Era impossível que ele tivesse subido até ali sem um motivo.

Estava em cima?

Para estar em cima, deve ter subido. Portanto, antes estava embaixo. Provavelmente, no fundo da memória, pensou Lucky. Devia ser isto.

Mas estava numa embarcação. Tinha subido, vindo do fundo do oceano. Portanto, agora estava na superfície da água. Muito bem. E o que mais?

Por que estava na superfície? Obscuramente conseguiu se lembrar que embaixo estava mais seguro.

Inclinou a cabeça com muita dificuldade, fechou os olhos e voltou a abri-los. Seu raciocínio era muito lento. Precisava avisar alguém... em algum lugar... sobre um assunto qualquer.

Precisava avisar.

Avisar.

E conseguiu pensar! Teve a impressão de que em algum lugar, no fundo de seu íntimo, a uma distância enorme, tinha encostado o ombro numa porta trancada e a porta agora estava aberta! Reconheceu claramente qual era seu propósito e se lembrou de uma coisa esquecida.

O rádio do submarino e a estação espacial. Era isto!

Falou asperamente:

- Vocês não me controlam. Ouviram isto? Estou me lembrando e vou continuar me lembrando!

Não houve qualquer resposta.

Começou a gritar confusamente. Tinha a impressão de estar lutando contra os efeitos de uma dose excessiva de sonífero. Preciso manter os meus músculos em movimento, pensou. Preciso andar, sem parar. Sem parar.

Mas, neste caso, precisava manter a mente funcionando, precisava manter o cérebro funcionando. Faça alguma coisa, faça alguma coisa, pensou. Não pare. Se você parar, será apanhado.

Ainda gritava coisas desconexas, e os gritos se transformaram em palavras:

- Vou fazê-lo! Vou fazê-lo!

Ia fazer o quê? Percebeu que o propósito estava mais uma vez se afastando.

Repetiu, como em delírio:

- Transmitir para a estação... transmitir para a estação... - mas as palavras começavam a perder seu sentido.

Começou a se movimentar. Seu corpo dava voltas desengonçadas, como se tivesse articulações de madeira emperradas ou pregadas. Mas conseguia se virar. Olhou para o rádio. Conseguiu vê-lo claramente por um momento, depois a imagem começou a tremer e a desaparecer na névoa. Obrigou sua mente a lembrar o propósito, e tudo voltou claro. Podia ver o transmissor, podia ver a chave para o ajuste de freqüência, podia ver os condensadores. Conseguia lembrar e entender seu funcionamento.

Deu um passo incerto naquela direção e logo teve a impressão que pontas em brasa estavam penetrando em suas têmporas.

Cambaleou e caiu de joelhos. Apesar da dor insuportável, conseguiu se levantar. Com os olhos embaçados pela dor ainda podia ver o rádio. Mexeu uma perna, depois a outra.

O rádio parecia estar a cem metros de distância, indistinto, no meio de uma névoa avermelhada. A dor que latejava em suas têmporas aumentava de intensidade a cada passo.

Esforçou-se para ignorar a dor, para ver apenas o rádio, para pensar apenas no rádio. Forçou suas pernas a prosseguir contra a resistência que as envolvia, que puxava para baixo.

Finalmente esticou um braço. Quando seus dedos ainda se encontravam a quinze centímetros do controle, Lucky percebeu que sua resistência tinha chegado ao fim. Apesar de todos os esforços, não conseguia levar seu corpo esgotado mais perto do aparelho. Estava tudo acabado. Isto era o fim.

O Hilda era um cenário de imobilidade. Evans, inconsciente, estava sobre o beliche; Bigman estava caído ao chão, e Lucky, apesar de continuar de pé, estava imóvel: o tremor de seus dedos era o único sinal de vida.

Mais uma vez a voz fria se manifestou na mente de Lucky, enfileirando palavras de forma monótona e inexorável:

- Você está indefeso, mas não perderá os sentidos, como aconteceu com seus companheiros. Terá que sofrer até tomar a decisão de submergir sua nave, até dizer tudo que queremos saber e até morrer. Podemos esperar. Você não tem meios para resistir à nossa vontade. Você não pode lutar contra nós. Não existe possibilidade de suborno! Não pode nos ameaçar!

Torturado pela dor, Lucky percebeu algo surgindo em sua mente embotada, sentiu nascer algo diferente, novo.

Propina? Ameaças?

Nenhuma propina?

Apesar da semi-inconsciência, sua mente produziu uma pequena faísca, e logo se transformou num clarão.

Dispersou o pensamento do rádio, virou as costas e logo a dor que o envolvia diminuiu um pouco. Lucky ensaiou um passo, afastando-se do rádio, e o alívio aumentou. Afastou-se completamente.

Lucky não queria pensar. Queria agir automaticamente e sem planejar nada. Eles estavam se concentrando em não deixá-lo se aproximar do rádio. Não deviam perceber que havia um outro perigo a ameaçá-los. Seu inimigo inexorável não devia adivinhar suas intenções, não devia obstaculá-lo. Precisava agir depressa. Não podia deixar que eles o impedissem.

Isto não podia acontecer!

Chegou ao armário embutido com os remédios para pronto-socorro e abriu a porta. Não conseguia enxergar muito bem, e perdeu tempo procurando a esmo.

Mais uma vez a voz perguntou:

- O que foi que você decidiu? - e a dor voltou a latejar em suas têmporas.

Mas Lucky já segurava na mão o objeto que queria - um pote largo de silicone azulado. Seus dedos procuraram desajeitamente a minúscula alavanca que desligava o microcampo paramagnético que mantinha a tampa sobre o pote.

Quase não sentiu quando sua unha encontrou a alavanca minúscula e empurrou. Quase não viu a tampa deslizar para um lado e cair. Quase não ouviu o som metálico da tampa sobre o chão. Só percebeu vagamente que o pote estava aberto, e levantou o braço desajeitadamente aproximando o pote à tampa do ejetor de lixo.

A dor voltou redobrada.

Com o braço esquerdo levantou a tampa do ejetor. O braço direito subiu trêmulo, e a mão segurava o pote precioso junto da abertura.

Seu braço levou uma eternidade até chegar à altura necessária. Não conseguia mais enxergar nada. Tudo estava envolvido numa névoa sangrenta.

Percebeu que o braço e o pote batiam na parede. Empurrou o braço, mas o braço não conseguia se mexer. Os dedos da mão esquerda desceram levemente do ponto onde seguravam a tampa e tocaram o pote.

Não podia deixá-lo cair agora. Se o pote caísse, ele não teria forças para poder levantá-lo mais uma vez.

Segurava o pote com ambas as mãos, e as duas mãos levantaram o pote vagarosamente, centímetro por centímetro, enquanto Lucky percebia que sua consciência estava sumindo.

E de repente o pote desapareceu!

Ouviu o ar comprimido assobiando a mil milhas de distância e soube que o pote tinha sido ejetado para o morno oceano venusiano.

A dor cedeu um pouco, voltou e finalmente desapareceu de vez.

Lucky se endireitou cuidadosamente e se afastou da parede. Seu rosto e seu corpo estavam encharcados de suor e sua mente ainda estava confusa.

Aproximou-se do rádio com pressa consentida pelas suas pernas ainda bambas, e desta vez não encontrou obstáculos.

 

Evans estava sentado numa cadeira, com a cabeça apoiada sobre os braços. Tinha bebido uma grande quantidade de água e repetia sem parar:

- Não consigo lembrar-me de nada. Não consigo lembrar-me de nada.

Bigman, com o dorso nu, estava passando uma toalha molhada pelo rosto e pelo peito. Sorriu, trêmulo:

- Mas eu me lembro de tudo. Estava parado, ouvindo você conversar com a voz, e de repente, sem qualquer sinal, me encontrei deitado no chão. Não sentia nada. Não conseguia virar a cabeça ou piscar os olhos, mas conseguia ouvir tudo o que estava acontecendo. Ouvi a voz e também ouvi suas palavras, Lucky. Vi quando você se aproximou do rádio...

Bufou e sacudiu a cabeça.

- Naquela primeira tentativa não consegui fazer nada - disse Lucky.

- Isto eu não vi. Você desapareceu do meu campo visual e fiquei deitado, sem poder me mexer, a esperar que você começasse a transmitir. Não aconteceu nada e comecei a temer que eles tivessem dominado você. Com os olhos de minha mente podia ver como todos os três estávamos como mortos vivos. Pensei que tudo tivesse acabado, mas não podia mexer um dedo. Apenas conseguia respirar. Quando vi que você estava voltando, tive vontade de rir, de chorar, de gritar, mas continuei deitado, sem poder me mexer. E podia observar você, Lucky, com muita dificuldade, enquanto você arranhava aquela parede, e não entendia o que você queria fazer. E depois, tudo acabou. Que beleza!

Evans perguntou, com a voz sumida:

- Agora estamos realmente voltando para Afrodite, Lucky? De verdade?

- Estamos voltando para lá, a não ser que os instrumentos estejam mentindo, mas acho que não - disse Lucky. - E depois da chegada, se tivermos um pouco de tempo, vamos todos receber alguns cuidados médicos.

- Quero dormir - disse Bigman. - Apenas quero dormir. Quero dormir dois dias seguidos.

- Vai poder dormir também - disse Lucky.

Evans estava muito mais abalado pelos acontecimentos do que os outros dois. Era evidente pela maneira em que segurava seu próprio corpo com os braços e ficava encolhido na cadeira. Disse:

- Eles não estão mais interferindo conosco? Você tem certeza? - Pronunciou eles com uma leve ênfase.

- Não posso garanti-lo - respondeu Lucky -, mas acredito que o pior já passou. Consegui falar com a estação espacial.

- Você tem certeza? Você não se enganou?

- De jeito nenhum. Eles fizeram contato com a Terra e falei pessoalmente com Conway. Esta parte está concluída.

- Então tudo está concluído! - exclamou Bigman, satisfeito.

- A Terra está avisada. A verdade sobre os sapos já é conhecida. - Lucky sorriu, mas não fez qualquer comentário. Bigman disse:

- Mais uma coisa, Lucky. Diga-me o que aconteceu. Como foi que você conseguiu se livrar do controle. Pelas areias de Marte! O que foi que você fez?

Lucky respondeu:

- Apenas fiz algo que eu deveria ter pensado há tempo e que poderia nos poupar um bocado de experiências desagradáveis. A voz declarou que o que eles precisavam era apenas viver e pensar. Você se lembra disto, Bigman? Depois disse que não tínhamos meios para suborná-los... e foi então que percebi que você e eu conhecíamos a resposta.

- Eu conheço a resposta?

- Sim, senhor. Você descobriu a resposta dois minutos depois de ver seu primeiro sapo venusiano: quero dizer que apenas viver e pensar não é tudo que eles querem. Quando estávamos subindo, eu lhe expliquei que as plantas venusianas armazenavam o oxigênio e que os animais assimilavam o oxigênio com o alimento, e não precisavam respirar. Eu disse também que provavelmente assimilavam um excesso de oxigênio e que por isto gostavam de alimentos com pouco oxigênio, como os hidrocarbonetos. Por exemplo, graxa.

Bigman arregalou os olhos:

- É claro.

- Pense um pouco: eles gostam de hidrocarbonetos como as crianças gostam de doces.

Bigman repetiu:

- É claro.

- Os sapos venusianos estavam nos controlando, mas para isto precisavam se concentrar. Então, só restava distraí-los, ou pelo menos distrair os sapos que estavam mais próximos da nave, e cujo controle mental era mais forte. Por conseguinte, joguei fora a coisa mais óbvia.

- O quê? Pare de se fazer de rogado, Lucky!

- Joguei fora um pote aberto de vaselina que estava no armário de remédios. É hidrocarboneto puro, de quantidade muito superior à graxa. Eles não conseguiram resistir à tentação, e os que estavam mais perto, mergulharam atrás do pote. Os outros, que estavam mais longe, estavam em contato mental e logo pensaram em hidrocarbonetos. Perderam o controle sobre nossas mentes e eu consegui contato com o rádio. E foi só.

- Então - disse Evans -, não precisamos mais temê-los.

- Ainda não estou convencido disto - respondeu Lucky. - Existem alguns pormenores que...

Virou as costas e se calou, preocupado.

 

Pela vigia podia ver o brilho feérico da abóbada, e Bigman sentiu o coração bater pela felicidade. Tinha comido e cochilado um pouco e sentia-se cheio da costumeira alegria. Lou Evans parecia estar se recuperando aos poucos. Apenas Lucky parecia ainda preocupado. Bigman disse:

- Acredite, os sapos estão desmoralizados, Lucky. Conseguimos voltar, atravessando centenas de milhas de oceano, e eles não fizeram qualquer tentativa. Que tal?

Lucky disse:

- Estão tentando agora. Por que será que não recebemos qualquer resposta da abóbada?

Evans franziu a testa:

- Estão demorando demais.

Bigman olhou de um para o outro:

- Vocês não pensam que algo pode ter acontecido na cidade?

Lucky ergueu a mão, pedindo silêncio. Uma voz saiu do receptor, falando baixo e depressa.

- Sua identificação, por favor.

Lucky disse:

- Este é o submarino Hilda, registrado em Afrodite, a serviço do Conselho, e voltando para Afrodite. Comandante David Starr falando.

- Terá que esperar.

- Qual é o motivo?

- Todas as comportas estão ocupadas.

Evans franziu as sobrancelhas e murmurou:

- Isto é impossível, Lucky.

Lucky perguntou:

- Qual é a primeira comporta que ficará disponível? Indique-me a localização e guie-me até lá pelo ultra-som.

- Terá que esperar.

A comunicação não foi interrompida, mas a voz se calou.

Bigman estava indignado. Disse:

- Peça para falar com Morriss, Lucky. Assim terão que se mexer.

Evans observou, incerto:

- Morriss pensa que eu sou um traidor. Será que agora pensa que você passou para o meu lado, Lucky?

- Se isto é assim - respondeu Lucky -, ele deve estar ansioso para nos ver no interior da cidade. Estou mais disposto a acreditar que o homem que falou conosco está sob controle mental.

- Você acha que eles não querem nos deixar entrar? Isto é sério? - perguntou Evans.

- Estou falando sério.

- Mas não existe qualquer possibilidade de nos impedir de entrar, mais cedo ou mais tarde, a não ser que... - Evans empalideceu e se aproximou da vigia. - Lucky, você está certo! Estão ajustando a mira de um canhão desintegrador! Pretendem desintegrar-nos aqui na água!

Bigman também estava comprimindo o rosto contra a vigia. Não havia possibilidade de engano. Uma secção da abóbada estava aberta e um tubo curto estava apontando para eles, meio distorcido pela óptica submarina.

Bigman viu a boca do canhão descer mais um pouco e apontar diretamente para ele. Sentia-se paralisado pelo horror. O Hilda estava sem armas. Não tinha qualquer possibilidade de acelerar e fugir. Não havia qualquer meio para evitar uma morte instantânea.

 

Quem é o inimigo?

Enquanto o estômago de Bigman se contraía na contemplação da morte súbita, ouviu a voz enérgica de Lucky chamando pelo transmissor:

- Submarino Hilda chegando com um carregamento de petróleo... Submarino Hilda chegando com um carregamento de petróleo... Submarino Hilda chegando com um carregamento de petr...

Uma voz agitada interrompeu a chamada:

- Aqui é Clement Heber da comporta. O que está acontecendo? Repito: o que está acontecendo? Aqui é Clement Heber...

Bigman gritou:

- Estão recolhendo o canhão, Lucky!

Lucky deixou escapar o ar que estava segurando, e foi o único sinal de sua tensão. Voltou a falar pelo transmissor:

- Submarino Hilda requer entrada em Afrodite. Indique-me a comporta. Repito: indique-me a comporta.

- Entre pela comporta quinze. Siga o sinal direcional. Parece que aqui temos um pouco de confusão.

Lucky se levantou e falou:

- Lou, fique nos controles e leve a nave para dentro o mais depressa possível. - Acenou para Bigman, indicando que o seguisse para o outro aposento.

- O que... o que... - gaguejou Bigman.

Lucky suspirou:

- Imaginei que os sapos venusianos tentariam impedir nossa entrada, e já tinha pensado no truque do petróleo. Nunca imaginei que as coisas pudessem chegar a este ponto. Um canhão apontado - isto é muito grave. Fiquei até duvidando se bastava falar em petróleo.

- Serviu. Mas por quê?

- Mais uma vez, hidrocarbonetos. Minhas palavras foram transmitidas em claro através do rádio, e os sapos que controlavam os guardas das comportas se distraíram.

- Como podiam saber o que é petróleo?

- Mentalizei a imagem do petróleo enquanto falava. Eles conseguem ler o pensamento quando a imagem é reforçada com a palavra. Mas tudo isto não tem importância. - Abaixou a voz e sussurrou:

- Se eles estavam prontos para nos desintegrar, prontos a recorrer a meios tão grosseiros, devem estar desesperados e nós também estamos. Precisamos acabar com isto já, e precisamos agir da forma certa. Um único engano poderia ser fatal.

Apanhou uma caneta no bolso e começou a escrever sobre uma folha metálica.

- Você terá que fazer isto quando eu der o sinal - disse entregando a folha a Bigman.

Bigman arregalou os olhos:

- Mas, Lucky...

- Quieto! Não faça qualquer referência ao assunto.

Bigman assentiu.

- Você tem certeza?

- Espero que sim. - As feições de Lucky indicavam sua angústia.

- A Terra agora sabe a respeito dos sapos venusianos, portanto está a salvo, mas eles ainda podem prejudicar o povo aqui em Vênus. Precisamos evitá-lo. Você entendeu direitinho o que deve fazer?

- Sim.

- Neste caso... - Lucky enrolou a folha metálica, amassando-a em seguida. Guardou a bolinha em seu bolso.

Lou Evans gritou:

- Lucky, estamos na comporta. Em alguns minutos estaremos na cidade.

Lucky respondeu:

- Ótimo. Chame Morriss pelo rádio.

 

Estavam mais uma vez na mesma sala do quartel-general do Conselho, em Afrodite. Era a mesma sala onde tinham visto Lou Evans, pensou Bigman; a mesma sala onde tinha visto pela primeira vez um sapo venusiano. Estremeceu, lembrando que na mesma ocasião e sem que pudesse percebê-lo, tinha obedecido pela primeira vez ao controle mental dos sapos.

Agora, porém, havia algo diferente. O aquário e os pratinhos com ervilhas e graxa tinham desaparecido. As mesas sob as janelas postiças estavam vazias.

Ao entrar na sala, Morriss tinha apontado, sem falar, para as mesas. Suas gordas bochechas estavam frouxas e seus olhos estavam cercados por profundas rugas. Seu aperto de mão parecia hesitante. Bigman colocou com cuidado um objeto sobre uma das mesas.

- Vaselina - explicou.

Lou Evans e Lucky se sentaram.

Morriss ficou de pé. Falou:

- Eliminei os sapos venusianos neste prédio. Foi só o que pude fazer. Não posso pedir às pessoas para matarem seus bichinhos de estimação sem explicar por que. Obviamente, não podia dar explicações.

- Já é o suficiente - disse Lucky. - Entretanto, enquanto falamos, quero que você olhe para aquele hidrocarboneto. Quero que você mantenha esta imagem firme em sua mente.

- Você acha que adianta? - perguntou Morriss.

- Penso que sim.

Morriss parou de andar a esmo e encarou Lucky. Sua voz indicava indignação:

- Starr, não consigo acreditar. Os sapos venusianos estão nesta cidade há anos. Praticamente estão aqui desde a fundação da cidade.

- O senhor tem que se lembrar... - começou Lucky.

- Que eu estou sendo controlado por eles? - Morriss corou. - Nego isto. É falso.

- Não há por que se envergonhar, dr. Morriss - respondeu Lucky, secamente. - Evans ficou muitos dias sob controle, Bigman e eu também fomos controlados. É perfeitamente possível que o senhor desconheça completamente que sua mente esteve sob análise prolongada.

- Você não pode prová-lo, mas deixe para lá - protestou Morriss com violência. - Vamos supor que você esteja certo. Neste caso, o que podemos fazer? Como podemos combatê-los? Não podemos utilizar homens contra eles. Se pedirmos uma frota para bombardear Vênus do espaço, eles poderiam conseguir a abertura das comportas e afogar todas as cidades do planeta. Seria impossível destruir todos os sapos venusianos. Temos oitocentos milhões de milhas cúbicas de oceano onde podem se esconder, e quando querem, conseguem se multiplicar muito depressa. Admito que sua comunicação com a Terra foi essencial, mas aqui ainda temos que resolver um bom número de problemas importantes.

- O senhor está certo - confirmou Lucky -, mas acontece que não dei à Terra todos os detalhes. Não podia fazê-lo até que não soubesse que eu conhecia toda a verdade. Eu...

O sinal do comunicador brilhou e Morriss berrou:

- O que há? Uma voz respondeu: - Lyman Turner está aqui para ser recebido - respondeu a voz.

- Um minuto. - O venusiano olhou para Lucky e perguntou em voz baixa: - Você acha mesmo que é necessário vê-lo?

- O senhor marcou este encontro para discutir o reforço das paredes divisórias de transite, não é isto?

- Sim, mas...

- E Turner é uma vítima. Acho que as provas falam por si. Além de nós, ele é o único funcionário de alto escalão que pode ser uma vítima. Acho que é necessário vê-lo.

Morriss apanhou o comunicador:

- Mande-o subir.

O rosto magro e o nariz curvo de Turner acentuavam sua expressão de curiosidade. O silêncio e a expressão dos outros, enquanto o observavam, teriam despertado uma expectativa qualquer mesmo num homem menos sensível.

Colocou a caixa de seu computador no chão e perguntou:

- Aconteceu alguma coisa, cavalheiros?

Lucky explicou apenas os pontos altos do problema, com muito cuidado. Turner abriu a boca. Murmurou, espantado:

- Então você acha que minha mente...

- De que forma o homem da comporta poderia saber como evitar intrusões? Não estava treinado, não conhecia os detalhes, e mesmo assim conseguiu se trancar com perfeição eletrônica!

- Isto nem me ocorreu. Não pensei nisto. - As palavras de Turner saíam num murmúrio incoerente. - Como foi que eu não percebi isto?

- Eles queriam que você não percebesse.

- Estou envergonhado.

- Está bem acompanhado, Turner. Eu, o dr. Morriss, o conselheiro Evans...

- O que vamos fazer a respeito?

Lucky disse:

- O dr. Morriss estava perguntando a mesma coisa quando você chegou. Vamos ter que nos concentrar no assunto. Sugeri que você tomasse parte nesta reunião porque acho que precisamos de seu computador.

- Pelos oceanos de Vênus, espero poder ajudar! - exclamou Turner. - Se eu pudesse fazer alguma coisa para reparar... - Colocou a mão na testa, como para ter certeza que ainda estava com sua própria cabeça. - Perguntou: - E agora, estamos a sós?

Evans explicou:

- Vamos continuar a sós, sem interferências, até que todo mundo fique pensando naquela vaselina.

- Acho que não entendi. Como é que aquela vaselina pode nos ajudar?

- Isto ajuda, acredite. Não peça explicações, por enquanto - disse Lucky. - Quero continuar o raciocínio que eu estava desenvolvendo quando você chegou.

Bigman foi até a parede e se sentou sobre a mesa que, antes, servia para o aquário. Ficou a observar distraidamente a caixa de vaselina sobre a outra mesa, enquanto ouvia a conversa. Lucky perguntou:

- Temos certeza absoluta que os sapos venusianos representam a verdadeira ameaça?

- Não é esta a sua própria teoria? - perguntou Morriss.

- Pela verdade, admito que os sapos são o meio direto para o controle de mentes humanas; o que eu pergunto é se os sapos são o verdadeiro inimigo. Suas mentes se lançam contra as mentes humanas e devo admitir que parecem adversários formidáveis. Entretanto, os sapos venusianos, vistos de perto, parecem muito pouco inteligentes.

- Como assim?

- O sapo venusiano que estava nesta sala não era muito esperto. Não teve o bom senso de ficar fora de nossas mentes. Logo transmitiu-nos sua surpresa ao ver que não tínhamos bigodes. Em seguida mandou que Bigman lhe desse ervilhas molhadas em graxa. Vocês acham que isto indica inteligência? Desta forma ele se revelou imediatamente.

Morriss encolheu os ombros:

- Pode ser que nem todos os sapos venusianos sejam inteligentes.

- Tem mais. Na superfície do oceano estávamos completamente indefesos, sob seu controle mental. Eu já estava duvidando de determinados detalhes, e experimentei um truque: joguei fora um pote de vaselina. Funcionou. Sua concentração mental entrou em colapso. E lembrem-se que eles estavam arriscando o sucesso de todo o plano. Eles precisavam impedir que a Terra fosse informada sobre eles. E fracassaram por causa de um único pote de vaselina. Mais ainda: estavam a ponto de nos destruir quando tentávamos voltar para Afrodite. O canhão já estava apontado para nós, quando mencionei o petróleo, e mais uma vez tudo se perdeu.

Turner se mexeu em sua poltrona:

- Agora entendo o motivo da vaselina, Starr. Todo o mundo sabe que os sapos venusianos adoram gorduras de toda espécie. Esta vontade de comer gorduras deve ser irresistível.

- Irresistível? Para criaturas bastante inteligentes para lutar contra os Terrestres? Diga-me uma coisa, Turner: você desistiria de uma vitória importante em troca de um bife ou de uma fatia de bolo de chocolate?

- Claro que não, mas isto não prova que um sapo venusiano agiria da mesma maneira.

- Pois age de forma diferente, isto eu garanto. A mente dos sapos venusianos é estranha para nós, e não podemos afirmar que o que é válido para nós também é, necessariamente, válido para eles. De qualquer forma, o fato deles terem se distraído com a vaselina parece-me bastante peculiar. Leva-me a crer que os sapos venusianos devem ser comparados com cães, e não com homens.

- Por quê? - perguntou Morriss.

- Vamos examinar os fatos - disse Lucky. - Um cachorro pode ser treinado para executar uma série de atos aparentemente inteligentes. Alguém que nunca viu ou conheceu um cachorro, ao ver um destes animais servir de guia para um cego, nos dias antes da invenção do Son-O-Taps, poderia ter ficado na dúvida de quem era mais inteligente: o cachorro ou o amo. Entretanto, se passasse por perto com um osso na mão, logo chamaria a si a atenção do cachorro, e saberia a resposta.

Os olhos pálidos de Turner estavam quase saindo das órbitas quando perguntou:

- Você quer dizer que os sapos venusianos são apenas instrumentos de criaturas humanas?

- Você não acha que isto parece muito possível, Turner? Como o dr. Morriss declarou há pouco, os sapos venusianos já se encontram na cidade há muitíssimo tempo; entretanto, apenas nestes últimos meses eles começaram a criar confusões. Mais: as confusões começaram com fatos de pouca importância, como o caso do homem que estava distribuindo dinheiro na rua. Os fatos parecem indicar que os homens estavam fazendo experiências, para aprender a utilizar a capacidade natural de telepatia dos sapos venusianos, treinando-os para serem os instrumentos pelos quais poderiam impor seus pensamentos e suas vontades às mentes dos outros homens. É como se estivessem praticando, para aprender a natureza e as limitações de seus instrumentos e para desenvolver seu controle, prevendo que chegaria um tempo quando poderiam utilizá-los em tarefas mais importantes. Não acredito que estivessem realmente interessados em leveduras, o alvo deve ser muito mais importante: talvez o controle de toda a Confederação Solar, ou, quem sabe, até de toda a Galáxia.

- Simplesmente, não consigo acreditar - falou Morriss.

- Neste caso vou apresentar ao senhor mais uma prova. Quando estávamos no oceano, uma voz mental - que devia pertencer a um sapo venusiano - conversou demoradamente conosco. Tentou nos pressionar para conseguir informações e nos convencer para que nos suicidássemos.

- O que significa isto?

- A voz estava chegando através de um sapo venusiano, mas não era esta sua origem. A origem era uma criatura humana.

Lou Evans se endireitou na cadeira e observou Lucky com ar incrédulo. Lucky sorriu:

- Parece que nem Lou acredita nisto, mas é a pura verdade. Aquela voz falava utilizando imagens esquisitas, como "máquina de metal reluzente" em vez de "nave". Isto aconteceu porque, assim, acreditaríamos que os sapos venusianos desconheciam determinados conceitos, e aquela voz deveria nos levar a acreditar que estávamos ouvindo expressões que significavam as mesmas coisas. Entretanto, a voz cometeu um deplorável engano. Lembro exatamente as palavras que foram ditas, e foram as seguintes: "A vida de seu povo terminará assim, como uma chama se apaga. Será abafada e não poderá mais arder".

Morriss não estava entendendo e voltou a perguntar:

- O que significa isto?

- O senhor não está vendo? Explique-me como um sapo venusiano poderia se valer de um conceito como "apagar uma chama" e "não poder mais arder"? Aquela voz estava fazendo de conta que pertencia a um sapo venusiano, que não sabia o que é uma nave. Como é que um sapo venusiano poderia então conhecer o conceito de fogo?

Todos já estavam entendendo, mas Lucky continuou com a mesma fúria:

- A atmosfera de Vênus é composta de nitrogênio e de dióxido de carbono. Não há oxigênio como todos sabemos. Logo, uma chama não poderia queimar na atmosfera de Vênus. Não existe a possibilidade de se acender uma chama. Portanto, os sapos venusianos nunca viram fogo em Vênus e não sabem o que é. Mesmo que alguns tivessem visto chamas e fogos no interior das abóbadas urbanas, não podiam entender o que era, como não podiam conhecer a natureza de nossas naves. Isto me convenceu de que os pensamentos que recebemos não eram produzidos por um sapo venusiano, mas por um homem que estava se valendo de um sapo venusiano para transmiti-los à nossa mente.

- E como pode acontecer uma coisa destas? - perguntou Turner.

- Não sei - disse Lucky. - Mas gostaria de saber. Só um cérebro realmente brilhante pode ter encontrado este meio, alguém que conhece a fundo o sistema nervoso e os fenômenos elétricos relativos. - Lucky olhou friamente para Morriss: - Por exemplo, poderia ser um homem especializado em biofísica.

Todos olharam para o conselheiro venusiano, cujo rosto estava se tornando sempre mais pálido. Seus bigodes grisalhos quase não ressaltavam mais sobre a epiderme esbranquiçada.

 

Eis o inimigo!

Morriss tentou falar.

- Você está tentando diz... - conseguiu pronunciar com voz rouca, mas logo se calou.

- Esta não é uma declaração definitiva - interferiu Lucky em tom brando. - Apenas fiz uma sugestão.

Morriss olhou espantado para os outros, examinando cada rosto, perscrutando seus olhos. Todos o observavam fascinados. Com grande esforço conseguiu falar:

- Isto é uma loucura, é uma aberração. Fui o primeiro a chamar a atenção para estas... confusões em Vênus. Procure meu primeiro relatório no arquivo do Conselho. Está assinado por mim. Por que iria pedir a ajuda do Conselho, se fosse eu o... e sobretudo, qual seria meu motivo? Diga-me o motivo!

Evans parecia não estar à vontade. Bigman viu o rápido olhar que lançou para Turner e imaginou que Evans desaprovava esta rixa entre conselheiros, na presença de alguém que não era do Conselho. Mesmo assim, Evans disse:

- Isto poderia explicar os esforços do dr. Morriss para me desacreditar. Não sou venusiano e poderia eventualmente descobrir a verdade. De qualquer maneira, descobri a metade, não há qualquer dúvida.

Morriss parecia estar respirando com dificuldade:

- Nego tudo isto. É uma mentira. Esta é uma conspiração contra minha pessoa, e quem estiver metido nisto vai se dar muito mal. Exijo justiça.

- O senhor quer dizer que deseja ser processado pelo Conselho? - perguntou Lucky. - O senhor quer que o caso seja discutido numa reunião e pretende se defender perante a Comissão Central do Conselho?

O processo que Lucky estava mencionando era, obviamente, aquele reservado para os conselheiros acusados de alta traição contra o Conselho e contra a Confederação Solar. Em toda a história do Conselho ninguém jamais fora processado desta forma.

Quando Lucky terminou de falar, Morriss perdeu o pouco controle que lhe sobrava. Não se conteve, e se jogou contra Lucky, gritando palavras desconexas.

Lucky se levantou agilmente da cadeira, se esquivou e ao mesmo tempo acenou para Bigman.

Bigman estava esperando pelo sinal. Executou as instruções recebidas de Lucky, escritas sobre a folha metálica a bordo do Hilda, enquanto o submarino estava passando pela comporta, para entrar em Afrodite.

O desintegrador disparou o dardo. Era de baixa intensidade, mas suas radiações difundiram no ar o cheiro pungente de ozônio.

Durante alguns segundos ninguém se mexeu. Tudo ficou imóvel. Morriss estava no chão, com a cabeça apoiada numa cadeira virada. Não fez qualquer tentativa para se levantar. Bigman ficou parado, como uma pequena estátua, com o desintegrador ainda apoiado ao quadril, como congelado no ato de disparar.

O alvo atingido pelo dardo do desintegrador estava totalmente destruído. Lou Evans foi o primeiro a falar, e exclamou indignado:

- Pelo espaço, afinal o que...

Lyman Turner sussurrou:

- O que foi que você fez?

Morriss ainda estava respirando com dificuldade por causa do esforço feito e não conseguia falar. Apenas olhou para Bigman com espanto. Lucky disse:

- Um belo tiro, Bigman - e Bigman sorriu.

A caixa preta do computador de Lyman Turner estava reduzida a fragmentos, e a maior parte deles estava desintegrada. Turner gritou:

- Meu computador! Você é um débil mental! O que foi que você fez?

Lucky respondeu com severidade:

- Bigman apenas fez o que devia ser feito. Agora, por favor, fiquem todos em silêncio.

Aproximou-se de Morriss e ajudou o rechonchudo conselheiro a se levantar. Disse:

- Peço desculpas, dr. Morriss, mas eu queria ter certeza que Turner não compreenderia minhas intenções. Tive que desviar sua atenção, acusando o senhor.

Morriss falou:

- Quer dizer que você não desconfia de... de...

- De jeito nenhum - declarou Lucky. - Nunca desconfiei do senhor.

Morriss se afastou um pouco. Estava muito zangado:

- Neste caso, Starr, faça o favor de se explicar.

- Antes desta reunião - disse Lucky -, nunca tive a coragem de dizer a qualquer pessoa que desconfiava que os sapos venusianos eram dirigidos por um homem. Achei prudente não mencionar isso nem mesmo em minha mensagem para a Terra. Eu temia que se o fizesse, o verdadeiro inimigo pudesse ficar desesperado e realmente cometer um crime... por exemplo, inundar uma cidade. Em seguida poderia fazer chantagens, exigindo o que quisesse das outras. Pensei que se continuasse a ignorar que minhas suspeitas iam além dos sapos venusianos, ele ficaria esperando alguma oportunidade, ou pelo menos tentaria matar apenas meus amigos e também a mim.

- Achei que poderia falar no assunto durante esta reunião, porque o homem em questão estaria presente. Por outro lado, achei que não podia fazê-lo diretamente, sem salvaguardas, porque ele poderia fazer uma tentativa de nos controlar, apesar da presença de toda aquela vaselina, e a partir deste ponto ele tomaria medidas drásticas. Em primeiro lugar, precisava distraí-lo para que ficasse interessado em nossas discussões pelo menos durante algum tempo, para não descobrir através dos sapos venusianos o que Bigman e eu tínhamos intenção de fazer. É verdade que neste prédio não há mais sapos venusianos, mas ele poderia utilizar outros animais em algum outro ponto da cidade, da mesma forma que utilizou os sapos que se encontravam longe daqui, na superfície do oceano. Portanto, acusei o dr. Morriss apenas para distraí-lo. Não podia avisar o dr. Morriss do que iria fazer, porque queria que suas reações fossem autênticas - e devo dizer que foram admiráveis. O senhor tentou me agredir, e foi perfeito.

Morriss tirou um grande lenço do bolso e enxugou o suor da testa.

- Realmente, você foi muito drástico, Lucky, mas eu compreendo. Quer dizer que Turner é o homem em questão?

- Sim, é ele - confirmou Lucky.

Turner estava ajoelhado, remexendo os destroços e estilhaços que tinham sobrado. Olhou para Lucky com expressão de ódio:

- Você mandou destruir meu computador.

- Não acredito que aquilo era um computador - respondeu Lucky. - Aquela caixa era sua companheira inseparável. Quando encontrei você pela primeira vez, você estava com a caixa. Você afirmou que estava usando-a para calcular a resistência das barreiras internas da cidade contra a pressão da possível inundação. E agora você trouxe a mesma caixa, provavelmente para tê-la à mão caso fosse necessário fazer novos cálculos em suas discussões com o dr. Morriss, sobre a resistência daquelas mesmas barreiras. - Lucky calou-se e depois continuou com voz calma e dura: - Acontece que eu fui até seu apartamento na manhã depois da ameaça de inundação. Estava apenas querendo lhe fazer algumas perguntas que não requeriam qualquer cálculo, como você bem sabia. Mesmo assim, você não quis largar sua caixa, não quis ficar longe dela. Ficou com você, ao lado de seus pés. Por quê?

Turner estava desesperado. Tentou se defender:

- Eu mesmo construí meu computador. Para mim, era um objeto de estimação. Estava sempre comigo.

- Pela aparência e pelo tamanho, acho que devia pesar entre doze e quatorze quilos. É um bocado de peso para carregar, mesmo em se tratando de um objeto de estimação. Será que aquela caixa era o instrumento que você utilizava para se manter constantemente em contato com os sapos venusianos?

- Como é que você vai provar isto agora? - perguntou Turner, furioso. - Você mesmo disse que eu era uma das vítimas. Todo mundo aqui é testemunha que você declarou isto.

- Sim - disse Lucky -, o homem que conseguiu se trancar de maneira tão segura na comporta da abóbada, apesar de ser completamente inexperiente, recebeu as informações necessárias de você. Entretanto, estas informações foram furtadas de sua mente, ou você decidiu dá-las espontaneamente?

Morriss estava muito zangado.

- Deixe que eu formule esta pergunta da maneira mais direta, Lucky. Responda, Turner: você é ou não é responsável por esta epidemia de controle mental?

- É óbvio que não sou responsável - respondeu Turner aos berros. - O senhor não pode tomar estas atitudes apenas por causa das acusações infundadas de um rapaz desmiolado que acha que pode dizer qualquer coisa, e validá-las apenas porque é do Conselho!

Lucky disse:

- Responda esta, Turner. Está se lembrando daquela noite em que um homem ficou sentado na câmara da comporta da abóbada, segurando a alavanca? Lembra-se bem daquela noite?

- Lembro-me muito bem.

- Pois então, lembra-se que se aproximou de mim e me explicou que se as comportas fossem abertas, a barreira interna de transite não poderia resistir, e que toda a cidade de Afrodite ficaria coberta pelas águas? Você parecia muito assustado. Eu diria que você estava quase em pânico.

- E verdade. Eu estava em pânico. Aliás, confesso que ainda estou. Esta perspectiva deixaria qualquer pessoa em pânico. - Acrescentou ironicamente, torcendo a boca: - A não ser que seja o muito corajoso Lucky Starr.

Lucky não tomou conhecimento:

- E quer dizer que você não fez tudo aquilo para aumentar mais um pouco a confusão que já estava tomando conta da cidade, e para ter certeza que estávamos todos suficientemente desnorteados para que você pudesse ter o tempo de manobrar Lou Evans e fazê-lo sair da cidade mandando-o para o fundo do oceano, onde poderia ser morto com tranqüilidade? Você já sabia que era difícil controlar Evans, e sobretudo que ele já sabia muitas coisas sobre os sapos venusianos. Acredito até que você estava tentando me assustar o bastante para que eu saísse de Afrodite e me afastasse de Vênus.

Turner disse:

- Tudo isto é extremamente ridículo. As barreiras internas são realmente ineficientes. Pergunte a Morriss. Ele já viu todos os meus cálculos.

Morriss confirmou com manifesta relutância:

- Infelizmente, acho que Turner está certo a respeito deste pormenor.

- Isto não importa - disse Lucky. - Vamos considerar encerrado o assunto das barreiras insuficientes. Vamos dizer que o perigo realmente existiu e que Turner, aqui, estava realmente à beira do pânico... Por outro lado, Turner, eu sei que você está casado.

Turner lançou um rápido olhar a Lucky e todos viram que não se sentia à vontade. Perguntou:

- E daí?

- Sua esposa é muito bonita, Turner, e também é muito mais moça que você. Você mesmo disse que seu casamento era recente, de poucos meses.

- O que é que você quer provar com isto?

- Quero dizer apenas que muito provavelmente você está muito apaixonado pela sua mulher. Vocês se casaram e logo depois se mudaram para aquele prédio de apartamentos realmente luxuoso, só porque isto agradava a ela. Você não se opõe que sua mulher decore o apartamento segundo os gostos dela, apesar de seus gostos pessoais serem completamente diferentes. Considerando todos estes fatos, não parece lógico que você não ficasse preocupado com a segurança de sua própria mulher, não é mesmo?

- Não entendo o que você quer dizer. Onde pretende chegar com este raciocínio?

- Acho que você sabe o que eu quero dizer. Na única vez que conversei com sua esposa ela me disse que estava aborrecida por ter dormido na noite anterior, exatamente quando estava se dando toda aquela confusão. Estava decepcionada por não ter acordado. Em seguida, ela elogiou muito as vantagens daquele belo apartamento. Explicou-me que no prédio existiam as "câmaras". Infelizmente, naquela oportunidade eu ignorava por completo o que eram as tais "câmaras", caso contrário eu provavelmente teria percebido a verdade. Só muito mais tarde, e quando eu me encontrava no fundo do oceano, Lou Evans mencionou muito por acaso as tais câmaras e explicou o que eram. "Câmaras" é a expressão utilizada aqui em Vênus para indicar um tipo especial de abrigo, projetado e construído para resistir de maneira satisfatória à pressão das águas do oceano, na eventualidade da ruptura da abóbada, como poderia acontecer por exemplo por causa de um maremoto venusiano. Será que você ainda não sabe o que eu quero dizer?

Turner ficou em silêncio. Lucky continuou:

- Parece incompreensível que, naquela noite, quando você estava profundamente apavorado pela possibilidade de uma catástrofe que poderia envolver toda a cidade, você tivesse se esquecido de sua esposa. Você falou em pessoas que queria salvar, e mencionou até que pretendia fugir da cidade. Será que nunca pensou na segurança de sua própria mulher? Já sabemos que seu prédio de apartamentos é dotado de câmaras situadas no porão. Bastariam dois minutos para que ela pudesse se colocar a salvo. Bastava que você a chamasse, que você a avisasse do perigo. Mas você não fez nada. Você deixou que ela continuasse a dormir.

Turner se limitou a um murmúrio. Lucky continuou:

- Agora não me diga que você não pensou em avisá-la. Isto seria absolutamente inacreditável. Você poderia se esquecer de qualquer coisa, mas nunca poderia se esquecer da segurança de sua mulher. Acontece que posso oferecer uma boa justificativa para sua conduta. Você não estava minimamente preocupado a respeito da segurança de sua esposa porque sabia que ela não estava correndo qualquer risco. E sabia que ela não estava correndo qualquer risco porque tinha certeza absoluta que aquela comporta da abóbada nunca seria aberta. - A voz de Lucky vibrava de raiva contida: - Você sabia que a comporta da abóbada nunca seria aberta porque era você, pessoalmente, que controlava a mente do homem que estava sentado segurando aquela alavanca. Foi sua grande paixão pela sua mulher que me deu a prova de sua culpa. Você não quis perturbar o sono da sua mulher apenas para acrescentar um toque de credibilidade a toda sua encenação.

Turner disse, de repente:

- Não pretendo dizer mais nada sem ser assistido por um advogado. O que você disse até agora ainda não prova nada.

Lucky respondeu:

- O que eu disse já é suficiente para que você seja investigado pelo Conselho... Dr. Morriss, o senhor poderia providenciar a prisão de Turner, enquanto aguardamos a conclusão dos preparativos para o vôo no qual Turner irá, escoltado, até a Terra? Bigman e eu o acompanharemos. Cuidaremos para que chegue na Terra em segurança.

Quando voltaram para o hotel, Bigman falou, preocupado:

- Pelas areias de Marte, Lucky! Realmente não vejo como conseguiremos provas contra Turner. Todas as suas deduções parecem bastante convincentes e tudo o mais, mas legalmente não podem ser consideradas provas.

Lucky estava satisfeito depois de uma gostosa refeição quente à base de leveduras e, pela primeira vez, depois de atravessar com Bigman o cinturão de nuvens que cerca Vênus, conseguiu se sentir realmente aliviado. Disse:

- Não acredito que o Conselho estará interessado em recolher provas legalmente válidas, ou em condenar Turner à morte.

- Lucky! Como pode dizer isto? Aquele bugre...

- Eu sei. Sem dúvida é um criminoso e também é responsável por várias mortes. Está definitivamente claro que o homem tinha ambições ditatoriais, portanto temos também que considerá-lo um traidor. Entretanto, o mais importante de tudo é o fato dele ter inventado uma coisa genial.

Bigman perguntou:

- Você quer dizer aquela máquina?

- Exatamente. Acredito que provavelmente destruímos o único exemplar, e vamos precisar dele para construir uma nova máquina. Gostaríamos de encontrar respostas para muitas perguntas. Como Turner conseguia controlar os sapos venusianos? Quando decidiu que Lou Evans devia morrer? Ele transmitiu informações aos sapos venusianos, explicando o que deveriam fazer, passo a passo, ou apenas mandou que fizessem subir a fanca gigante das profundezas? Ou será que ele apenas disse: Matem Evans, deixando que os sapos venusianos completassem a tarefa como cães amestrados, da melhor maneira possível? Você é capaz de imaginar todas as múltiplas aplicações de uma máquina igual àquela? Pode nos oferecer um método completamente novo para tratar as doenças mentais, ou até um novo sistema de reprimir impulsos criminosos. Acredito que, no futuro, poderia ser até utilizada para evitar guerras, ou para derrotar rápida e eficientemente os inimigos da Terra, sem derramamento de sangue, se alguém quisesse nos forçar a uma guerra. Aquela máquina era muito perigosa nas mãos de um homem dominado pela ambição desmedida, mas pode ser muito útil e benéfica quando utilizada pelo Conselho.

Bigman perguntou:

- Você acha que o Conselho poderá convencê-lo a construir uma nova máquina?

- Acho que sim, e com as necessárias salvaguardas. Se o Conselho lhe oferecer o indulto e a reabilitação, e a outra alternativa for uma condenação à prisão perpétua sem nenhuma possibilidade de rever a mulher, acho que Turner concordará em nos ajudar. Evidentemente, a primeira aplicação da máquina seria na investigação profunda da mente do próprio Turner, para ajudá-lo a se livrar de sua desmedida ambição de poder, e assim conservar um cérebro de qualidade excelente para o bem da humanidade.

No dia seguinte Bigman e Lucky pretendiam sair de Vênus e voltar à Terra. Lucky pensou no extraordinário céu azul de seu planeta nativo, pensou no ar aberto e livre, nos alimentos naturais, nos espaços e nos objetivos da vida agreste. Disse:

- Lembre-se, Bigman, que é fácil "proteger a sociedade" mandando executar um criminoso, mas isto não poderá reviver suas vítimas. Curá-lo e utilizá-lo para melhorar e facilitar a vida desta mesma sociedade é sempre um feito muito mais importante.

 

                                                                                            Isaac Asimov

 

 

                      

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