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OS PALHAÇOS DE DEUS / Morris West
OS PALHAÇOS DE DEUS / Morris West

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS PALHAÇOS DE DEUS

 

No sétimo ano do seu pontificado, dois dias antes de completar sessenta e cinco anos, na presença de todo o consistório dos cardeais, Jean Marie Barette, o papa Gregório XVII, assinou um documento de abdicação, retirou o anel do Pescador, entregou o selo ao cardeal camerlengo e fez um breve discurso de despedida.

- Pronto, meus irmãos! Está feito o que exigistes. Estou certo de que explicareis tudo adequadamente à Igreja e ao mundo. Espero que elejais um bom homem. Deus bem sabe como precisareis dele!

Três horas mais tarde, acompanhado por um coronel da Guarda Suíça, apresentou-se no Mosteiro de Monte Cassino e colocou-se sob as ordens do superior. O coronel regressou imediatamente a Roma e comunicou ao cardeal camerlengo o cumprimento da sua missão.

O camerlengo soltou um profundo suspiro de alívio e entregou-se às formalidades de proclamar que a Diocese de Pedro estava vaga e que a eleição se realizaria com toda a brevidade possível...

 

*                         *                         *

 

E fui arrebatado em espírito, no dia do Senhor, e ouvi atrás de mim uma grande voz, como de trombeta, que dizia: “O que vês, escreve-o num livro e envia-o às sete igrejas.”

Revelação de S. João, cap. I, vera. 10-11

 

TINHA o ar de uma mulher do campo, robusta, bochechuda, vestida de lã grosseira e com o cabeio ralo grisalho escorrendo sob o chapéu de palha. Estava rigidamente sentada na cadeira, com as mãos entrelaçadas sobre uma antiquada mala de mão de pele castanha. Comportava-se de maneira discreta mas destemida, como quem examinasse a mercadoria num mercado diferente do habitual.

Carl Mendelius, professor de Estudos Patrísticos no Wilhelmsstift, outrora chamado o Ilustre Colégio da Universidade de Tubinga, estendeu as pernas sob a secretária, fez uma ponte com as extremidades dos dedos e sorriu por sobre ela, animando-a brandamente:

- Queria falar comigo, minha senhora?

- Disseram-me que sabia francês - disse ela, com o forte sotaque do Midi.

- Pois sei.

- O meu nome é Thérèse Mathieu. Na religião chamam-me - chamavam-me - Irmã Mechtilda.

- Devo concluir que abandonou o convento?

- Fui dispensada dos votos. Mas ele disse que eu deveria usar sempre o anel dos meus tempos de religiosa, visto que continuava ao serviço do Senhor.

Ergueu uma grande mão estragada pelo trabalho e mostrou a simples aliança de prata no dedo anelar.

- Ele? Quem é Ele?

- Sua Santidade o papa Gregório. Eu pertencia às irmãs que tratam da residência dele. Cuidava da limpeza do gabinete de trabalho e dos aposentos particulares. Era eu que lhe servia o café. Por vezes, nos feriados, enquanto as outras irmãs descansavam, eu preparava-lhe uma refeição. Ele dizia que gostava da minha cozinha. Fazia-lhe lembrar a casa dele. Nessas alturas acontecia falar comigo. Conhecia muito bem a terra onde eu nasci. A família dele tinha sido proprietária de vinhedos no Var. Quando a minha sobrinha ficou viúva com cinco filhos pequenos e o restaurante para cuidar, eu contei-lhe. Ele foi muito compreensivo. Disse que talvez a minha sobrinha precisasse mais de mim do que o papa, que, em qualquer caso, tinha criados de mais. Ajudou-me a meditar livremente e a compreender que a caridade era a mais importante das virtudes. A minha decisão de regressar ao mundo foi tomada na altura em que as pessoas no Vaticano começaram a dizer todas aquelas coisas horríveis: que o santo padre estava doente da cabeça, que podia ser perigoso... tudo isso. No dia em que abandonei Roma, fui solicitar-lhe a bênção. Pediu-me, como um favor especial, que viesse a Tubinga e lhe entregasse esta carta em mão. Fez-me prometer não contar a ninguém o que ele me tinha dito ou o que eu trazia. Portanto, aqui estou.

Rebuscou dentro da mala de pele, retirou de lá um grosso sobrescrito e estendeu-lho por cima da secretária. Carl Mendelius tomou-o nas mãos, sopesando-o. Depois poisou-o ao lado e perguntou:

- Veio directamente de Roma para aqui?

- Não. Fui para casa da minha sobrinha e passei lá uma semana. Sua Santidade disse que devia fazê-lo. Era natural e correcto. Deu-me dinheiro para a viagem e uma oferta para ajudar a minha sobrinha.

- E deu-lhe mais algum recado para mim?

- Só que lhe mandava cumprimentos. Disse-me que caso o senhor me perguntasse alguma coisa, eu deveria responder-lhe.

- Arranjou um mensageiro fiel. - Carl Mendelius mostrava-se sério e brando. - Quer café?

- Não, obrigada.

Cruzou as mãos sobre a mala e aguardou, toda ela freira mesmo, envergando aquela roupa caseira. Mendelius fez a pergunta seguinte com despreocupado interesse:

- Esses problemas, esses rumores no Vaticano, quando começaram? Que foi que os originou?

- Quando começaram, isso sei. -Não houve hesitação na sua resposta. - Quando ele voltou da visita à América do Sul e aos Estados Unidos vinha com aspecto doente e cansado. Depois foram as visitas dos chineses e dos russos e das pessoas da África que pareceram deixá-lo muito preocupado. Depois da partida deles decidiu fazer um retiro de duas semanas em Monte Cassino. Foi depois do regresso dele que começaram as complicações.

- Que espécie de complicações?

- Nunca cheguei a perceber bem. Há-de compreender que eu era uma personagem muito insignificante, uma irmã encarregada dos trabalhos domésticos. Somos instruídas no sentido de não comentarmos assuntos que não nos dizem respeito. A madre superiora não gostava nada de mexeriquices. Mas reparei que o santo padre parecia doente, que passava longas horas na capela, que havia reuniões frequentes com os membros da Cúria, das quais saíam com ar irritado e resmungando entre si. Nem sequer me lembro das palavras... a não ser de ter ouvido certa vez o cardeal Arnaldo dizer: “Bom Deus do Céu! Estamos a lidar com um louco!”

- E o santo padre propriamente dito, como lhe pareceu a si?

- Para mim continuava a ser o mesmo, simpático e educado. Mas era evidente que andava muito preocupado. Um dia pediu-me que lhe fosse buscar aspirina para tomar com o café. Perguntei-lhe se devia chamar o médico. Dirigiu-me um sorrisinho estranho e disse: “Não é de um médico que eu preciso, irmã Mechtilda, mas sim do dom das línguas. Por vezes parece-me estar a ensinar música a surdos e pintura a cegos.” Finalmente, claro está, o médico dele acabou por aparecer, e a seguir muitos outros em dias diferentes. Mais tarde, o cardeal Drexel foi vê-lo: é o diácono do Sacro Colégio e um homem muito severo. Passou todo o dia nos aposentos do santo padre. Eu ajudei a servir-lhes o almoço. Depois, bom... sucedeu tudo aquilo.

- Percebeu alguma coisa do que estava a passar-se?

- Não. Tudo o que nos disseram foi que, por razões de saúde e para bem das almas, o santo padre tinha decidido abdicar e dedicar o resto dos seus dias a Deus num convento. Pediram-nos que rezássemos por ele e pela Igreja.

- E ele não lhe explicou nada a si?

- A mim? -Fitou-o com inocente surpresa.- Porquê a mim? Eu era uma pessoa sem qualquer importância. No entanto, depois de dar-me a bênção para a viagem, colocou as mãos nas minhas faces e disse: “Talvez ambos tenhamos tido sorte em nos conhecermos um ao outro, irmãzinha.” Foi a última vez que o vi.

- E agora que vai fazer?

- Regressar a casa da minha sobrinha, ajudá-la a cuidar dos filhos, cozinhar no restaurante. É um negócio pequeno, mas bom, se conseguirmos aguentá-lo.

- Estou certo de que conseguirão - disse Carl Mendelius respeitosamente. Levantou-se e estendeu a mão. -Obrigado, irmã Mechtilda. Obrigado por me ter procurado... e pelo que fez por ele.

- Não tem de quê. Ele era um bom homem. Compreendia o que sente a gente vulgar.

A pele da palma da sua mão estava seca e gretada, da água de lavar loiça e do balde de esfregar o chão. Ele sentiu vergonha das suas mãos macias de homem de gabinete, nas quais Gregório XVII, sucessor do Príncipe dos Apóstolos, tinha confiado a sua última e mais secreta crónica.

Nessa noite ficou de pé até tarde, no grande escritório do sótão, cujas janelas de moldura de chumbo davam para a mole cinzenta da Stiftskirche de S. Jorge. As únicas testemunhas da sua meditação eram os bustos de mármore de Melâncton e Hegel, o primeiro, lente e. o outro, aluno da velha universidade; mas ambos tinham morrido havia muito,, sendo poupados à perplexidade.

A carta de Jean Marie Bareíte, o décimo sétimo Gregório da linha papal, encontrava-se espalhada na sua frente: trinta páginas numa bela caligrafia, impecável no seu estilo gaulês, o registo de uma tragédia pessoal e de uma crise política de dimensão global.

Caro Carl:

No meio daquilo que é a longa e escura noite da minha alma, em que a razão vacila e a fé de toda uma vida parece quase perdida, recorro a si para obter a graça da compreensão.

Fomos amigos durante muito tempo. Os seus livros e as suas cartas viajaram sempre comigo, bagagem mais essencial do que as minhas camisas e os meus sapatos. Os seus conselhos confortaram-me em muitos momentos de ansiedade. A sua sabedoria foi uma luz a iluminar-me o caminho nos obscuros labirintos do poder. Embora as nossas vidas tenham seguido cursos divergentes, quero crer que a unidade dos nossos espíritos não se alterou.

Se me mantive silencioso durante estes últimos meses de purgação, foi porque não quis comprometê-lo. Desde há algum tempo que sou apertadamente vigiado e me vejo incapaz de garantir o secretismo mesmo dos meus papéis mais particulares. Aliás, devo dizer-lhe que, caso esta carta venha a cair em mãos indevidas, pode ver-se exposto a grandes riscos; mais ainda, se decidir levar a cabo a missão que lhe confio, o perigo redobrará de dia para dia.

Principio pelo fim da história. No mês passado, os cardeais do Sacro Colégio, entre eles alguns que julgava meus amigos, decidiram por larga maioria que eu estava, se não louco, pelo menos já mentalmente incapacitado de desempenhar as missões de sumo pontífice. Esta decisão, cujas razões explicarei pormenorizadamente, colocou-os num dilema simultaneamente cómico e trágico.

Havia apenas duas maneiras de se libertarem de mim: a destituição ou a abdicação. Para destituir-me teriam de justificá-lo, o que, na minha opinião, não se atreveriam a fazer. Haveria razões de sobra para desconfiar-se de uma conspiração, e o risco de um cisma seria demasiado grande. A abdicação, por outro lado, seria um acto legal que, caso estivesse louco, eu não poderia realizar validamente.

O meu dilema pessoal era diferente. Não pedira para ser eleito. Tinha-o aceitado temerosamente, mas confiando em que o Espírito Santo me iluminaria e daria forças, Acreditava - e ainda tento desesperadamente acreditar- que a luz me foi enviada de um modo muito especial e que é meu dever revelá-la a um mundo já prisioneiro da escuridão da última hora que antecede a meia-noite. Por outro lado, sem o apoio dos meus colaboradores de mais elevada categoria, os homens-chave da Igreja, via-me reduzido a impotência. As minhas declarações podiam ser deturpadas e as minhas directivas anuladas. Os Filhos de Deus podiam ser lançados na confusão ou indevidamente conduzidos à rebelião.

Foi então que Drexel veio avistar-se comigo. É conforme sabe, o diácono do Colégio dos Cardeais, e fui eu quem o nomeou prefeito da Sacra Congregação para a Doutrina da Fé. Trata-se de um formidável cão de guarda, conforme tem sobejas razões para saber. Em particular, contudo, trata-se de um homem compasivo e compreensivo. Não se poupou a esforços para ser claro. Vinha como emissário dos seus irmãos cardeais. Divergira da opinião deles, mas era encarregado de transmitir a sua decisão. Pediam-me que abdicasse e me retirasse para a obscuridade de um convento. Caso eu recusasse, tomariam previdências, mau grado todos os riscos, para que eu fosse declarado legalmente louco e sujeito a detenção sob vigilância médica.

Fiquei, conforme deve imaginar, profundamente abalado. Não julgava que se atrevessem a tanto. Por instantes. fui colhido pelo terror puro e simples. Conhecia o bastante da história deste lugar e dos seus ocupantes para ver que a ameaça era real. A cidade do Vaticano é um estado independente e não há qualquer investigação exterior do que se faz das suas paredes adentro.

Depois o terror passou e perguntei, com bastante calma, o que pensava o próprio Drexel da situação. Respondeu sem hesitar. Não tinha dúvidas de que os seus colegas eram capazes e estavam na disposição de concretizar a ameaça. O prejuízo, numa época crítica, seria grande, mas não irreparável. A Igreja tinha sobrevivido aos Teofilactos e aos Bórgias e às perversões de Avinhão. Sobreviveria à demência de Jean Marie Barette. A opinião pessoal de Drexel, por ele confiada em nome da nossa amizade, era de que eu devia vergar-me ao inevitável e abdicar alegando questões de saúde. Depois acrescentou uma apostila que vou citar-lhe literalmente: “Vossa Santidade faça o que eles querem... mas nada mais, nem uma partícula que seja. Retirar-se-á para a intimidade. Eu próprio contestarei todo e qualquer documento que tente obrigá-lo a algo mais. Quanto a essa luz que sustenta ter-lhe sido conferida, não posso ajuizar se ela provém de Deus ou se se trata da ilusão de um espírito sobrecarregado. Se é uma ilusão, espero que não a alimente por demasiado tempo. Se provém de Deus, então Ele lhe permitirá, no momento que Ele quiser, que a manifeste. No entanto, se for declarado louco, ficará totalmente desacreditado e a luz ficará extinta para sempre. A História, especialmente a História da Igreja, é sempre escrita de maneira a justificar os sobreviventes.”

Compreendi o que ele me dizia, mas ainda não era capaz de aceitar uma solução de tal modo drástica. Conversámos durante todo o dia, analisando todas as opções possíveis. Rezei a sós até altas horas da noite. Por fim, extremamente fatigado, cedi. As 9 horas da manhã seguinte chamei Drexel e disse-lhe que estava preparado para abdicar.

Isto, meu caro Carl, foi como as coisas aconteceram. O porquê levará muito mais tempo a contar; nessa altura, também você será obrigado a tomar lugar como meu juiz. Mesmo ao escrever estas palavras temo que o seu veredicto possa ser contra mim. Tamanha é a debilidade humana! Ainda não aprendi a confiar no Deus cujo evangelho prego!...

O pungente apelo comoveu profundamente Mendelius. O manuscrito tornou-se um borrão indistinto diante dos seus olhos doridos. Recostou-se na cadeira e entregou-se às recordações. Tinham-se conhecido em Roma havia mais de duas décadas, na altura em que Jean Marie Barette era cardeal-diácono, o membro mais jovem da Cúria, e o P.e Carl Mendelius, S. J., dava o seu primeiro curso de Elementos de Interpretação das Escrituras na Universidade Gregoriana. O jovem cardeal tinha assistido como convidado à sua palestra sobre Comunidades Judaicas na Igreja Primitiva. Depois, tinham jantado juntos e conversado até altas horas da noite. Ao separarem-se eram já amigos.

Nos tempos difíceis, depois de Mendelius ter sido denunciado sob suspeita de heresia à Congregação para a Doutrina da Fé, Jean Marie Barette tinha-o apoiado no decurso de longos meses de inquirição. Quando a vocação sacerdotal deixara de o satisfazer, pedira para passar à vida laica e solicitara dispensa para casar. Barette intercedera por ele junto de um sumo pontífice relutante e irascível. Quando concorrera à cátedra de Tubinga, a recomendação mais calorosa ostentara a assinatura “Gregorius XVII, Pont. Max.”.

Agora, as posições tinham-se invertido. Jean Marie Barette estava no exílio, ao passo que Carl Mendelius prosperava na zona libertada de um casamento feliz e de uma vida profissional preenchida. Fosse qual fosse o preço, tinha de liquidar a dívida de amizade. Inclinou-se novamente para estudar a carta.

Conhece as circunstâncias da minha eleição. O meu antecessor, o nosso papa populista, tinha cumprido a sua missão. Voltara a centralizar a Igreja. Reforçara a disciplina. Ressuscitara a tradicional linha dogmática. O seu imenso fascínio pessoal - o fascínio de um grande actor - mascarara durante muito tempo as suas atitudes essencialmente rigoristas. Com a idade tinha-se tornado mais intolerante, cada vez menos permeável à discussão. Considerava-se a marreta de Deus, abatendo-se sobre as forças ímpias. Era difícil convencê-lo de que, a menos que ocorresse um milagre, podiam nem sequer restar homens -piedosos ou ímpios. Estávamos na última década do século e a um passo apenas de uma guerra generalizada. Quando assumi o pontificado, numa eleição que representou um compromisso no final de um conclave de seis dias, sentia-me aterrorizado.

Não será preciso ler-lhe todo o apocalíptico texto: a situação do Terceiro Mundo, levado à beira da fome, o perigo diário de colapso económico no Ocidente, o aumento dos preços da energia, a desenfreada corrida aos armamentos, a tentação por parte dos militaristas de jogarem a sua última cartada louca enquanto eram ainda capazes de calcular as probabilidades atómicas. A meu ver, o fenómeno mais assustador era a atmosfera de desespero que crescia sub-repticiamente entre os líderes mundiais, a sensação de impotência oficial, a estranha regressão atávica a uma visão mágica do universo.

Eu e você discutimos muitas vezes a proliferação de novos cultos e a sua manipulação para alcançar lucros e poder. O fanatismo explodia igualmente nas religiões antigas. Alguns dos nossos próprios fanáticos queriam que eu proclamasse um Ano Mariano e convocasse amplas peregrinações a todos os santuários da Virgem espalhados pelo mundo. Disse-lhes que me recusava a isso. A última coisa de que precisávamos era um pânico de devotos.

Eu considerava que o melhor préstimo que a Igreja podia oferecer era o da mediação através da razão e da caridade para com todos. Tratava-se também da tarefa que eu, como pontífice, estava em melhores condições de levar a cabo. Fiz saber que me deslocaria onde quer que fosse, receberia quem quer que fosse, a bem da paz. Tentei esclarecer que não possuía fórmulas mágicas, nem tão-pouco ilusões de poder. Conhecia sobejamente a inércia mortal das instituições, a loucura matemática que leva os homens a lutar até à morte devido à mais simples equação de compromisso. Disse para comigo mesmo, e disso tentei convencer os Líderes das nações, que o simples adiamento de um ano do Armagedão já seria uma vitória. Apesar disso, o temor de um holocausto iminente perseguia-me dia e noite, sapando-me as reservas de coragem e confiança.

Finalmente decidi que, a fim de manter algum sentido de perspectiva, tinha de descansar por algum tempo e refazer as minhas capacidades espirituais. Assim, retirei-me por duas semanas para o Mosteiro de Monte Cassino. Você conhece bem o lugar. Foi fundado por S. Bento no século VI. Foi lá que Paulo, o Diácono, escreveu as suas histórias. Foi também lá que o meu homónimo Gregório IX firmou a paz com Frederico de Hohenstaufen. Acima de tudo, tratava-se de um local isolado e tranquilo. O abade Andrew era um homem de um discernimento e uma piedade muito especiais. Colocar-me-ia sob a sua orientação espiritual e dedicar-me-ia a um breve período de silêncio, meditação e renovação interior.

E assim projectei fazer, meu caro Carl. E assim comecei a fazer. Encontrava-me lá havia três dias quando o acontecimento se deu...

A frase terminava no fundo da página. Mendelius hesitou antes de voltá-la. Sentiu um ténue estremecimento de desagrado como se lhe estivessem a pedir que fosse testemunha de um acto físico íntimo. Teve de fazer um esforço para prosseguir a leitura.

(... Chamo-lhe acontecimento porque não quero influenciar o seu juízo relativamente a ele, e também porque, para mim, permanece um facto de dimensão física. Aconteceu. Não fui eu que o imaginei. A experiência foi tão real como o pequeno-almoço que tinha acabado de tomar no refeitório.

Eram nove da manhã, e estava um dia claro e soalheiro. Encontrava-me sentado num banco de pedra nos jardins do claustro. A uns metros de mim um dos frades sachava um canteiro de flores. Sentia-me muito sereno, muito repousado. Comecei a ler o capítulo XIV do Evangelho segundo S. João, que o superior me tinha proposto para a meditação diária. Decerto se lembrará da maneira como começa, com o discurso de Cristo na Última Ceia: “Não se turve o vosso coração. Credes em Deus, crede também em Mim.” O próprio texto, respirando conforto e tranquilização, quadrava-se ao meu estado de espírito. Quando cheguei ao versículo “E aquele que me ama será amado por Meu Pai”: fechei o livro e ergui os olhos.

Tudo em meu redor se tinha alterado. Não havia mosteiro, nem jardim, nem frade a trabalhar. Encontrava-me só, num cume elevado e árido. A toda a minha volta havia montes, negros, recortando-se num céu em fogo. O local estava tão tranquilo e silencioso como o túmulo. Não sentia medo, mas apenas um vazio terrível, gelado, como se o interior do meu ser tivesse sido esvaziado e só o invólucro restasse. Sabia o que estava a contemplar, o resultado da derradeira loucura do homem: um planeta morto. Para o que aconteceu a seguir não tenho palavras adequadas. Foi como se repentinamente eu tivesse sido invadido por uma chama, aprisionado num remoinho ardente, impelido para fora de qualquer dimensão humana, direito ao centro de uma luz. imensa, insuportável. A luz era uma voz e a voz era uma luz, e dir-se-ia que eu estava a ser impregnado da sua mensagem. Encontrava-me no final de tudo, no princípio de tudo; no ponto ómega do tempo, no ponto alfa da eternidade. Deixara de haver símbolos, para existir apenas a única, simples Realidade. A profecia concretizava-se. A ordem surgia do caos, a verdade última revelava-se. Num instante de intensa agonia, compreendi que devia anunciar aquele acontecimento, preparar o mundo para ele. Tinha sido chamado a proclamar que os Dias Derradeiros estavam próximos e que a humanidade devia preparar-se para a Parúsia: o Segundo Advento do Senhor Jesus.

O preciso instante em que se afigurava que a agonia me iria despedaçar, arrancando-me à vida, terminou. Encontrava-me de novo no jardim do claustro. O frade sachava as suas rosas. O Novo Testamento estava no meu regaço, agora, aberto no capítulo XXIV de S. Mateus: “Pois assim como o relâmpago sai do Oriente e brilha até ao Ocidente, assim será a vinda do Filho do Homem.” Acaso ou presságio? Pareceu-me que isso pouco importava já.

E aqui tem, Carl, tão fielmente quanto posso abordar este assunto através das palavras, com o mais íntimo amigo do meu coração. Quando tentei explicá-lo aos meus colegas em Roma, vi bem nos seus rostos quanto ficaram abalados: um papa com uma revelação particular, um precursor do Segundo Advento? Loucura! O derradeiro absurdo explosivo! Eu era uma bomba-relógio ambulante a despoletar o mais depressa possível. No entanto, estava tão pouco ao meu alcance ocultar o que me sucedera como alterar a cor dos meus olhos. Encontrava-se impresso em cada fibra do meu ser, tal como as características genéticas dos meus pais. Era compelido a falar disso, estava condenado a anunciá-lo a um mundo que se precipitava, estouvadamente, para a extinção.

Principiei a trabalhar numa encíclica, uma carta dirigida à Igreja Universal. Iniciava-se com as palavras: “In his ultimis annis fatalibus... Nestes últimos anos fatídicos do milénio...” O meu secretário descobriu o rascunho na minha mesa de trabalho, fotografou-o e distribuiu secretamente cópias a toda a Cúria. Ficaram horrorizados. Separadamente e de concerto, incitaram-me a cancelar o documento. Quando me recusei a fazê-lo, sitiaram virtualmente os meus aposentos e cortaram-me todas as comunicações com o mundo exterior. A seguir convocaram uma reunião de emergência do Sacro Colégio, chamaram uma junta médica constituída por clínicos e psiquiatras para se pronunciar sobre o meu estado mental, desencadeando assim os acontecimentos que levaram à minha abdicação.

Agora, chegado ao extremo, recorro a si, não só porque é meu amigo, como ainda porque esteve também sujeito a inquirição e sabe como a razão vacila sob a pressão impiedosa dos interrogatórios. Se julgar que estou louco, absolvo-o antecipadamente de qualquer culpa e agradeço-lhe a amizade que tivemos o privilégio de compartilhar.

Se conseguir chegar a meio caminho de acreditar que lhe contei uma verdade simples e terrível, nesse caso examine os dois documentos apensos a esta carta: uma cópia da encíclica à Igreja Universal que não cheguei a publicar e uma lista de pessoas de vários países com as quais estabeleci relações de amizade durante o pontificado e que podem estar ainda preparadas para confiar em mim ou num mensageiro meu. Tente contactar com elas e fazê-las tomar conhecimento do que podem fazer ainda nestes últimos anos fatídicos. Não creio que possamos afastar o cataclismo inevitável, mas estou encarregado de prosseguir até ao final a proclamação da boa-nova de amor e salvação.

Se aceitar desempenhar-se desta missão, correrá grandes riscos - talvez até o da vida. Recorde o Evangelho de S. Mateus: “Então submeter-vos-ão à tortura e à morte... Nessa altura muitos sucumbirão, e mutuamente se hão-de trair e odiar.”

Em breve trocarei este lugar pela solidão de Monte Cassino. Espero poder chegar lá em segurança. Se assim não suceder, recomendo-me, bem como a si e à sua família, ao devotado amor de Deus.

É muito tarde. Há muito que. me é negada a graça do sono: mas, agora que esta carta está escrita, talvez me seja concedida.

Sempre seu em Cristo, JEAN MARTE BARETTE

Sob a assinatura estava rabiscada uma curta adenda irónica: Feu de Pape... O papa que Deus tenha.

Carl Mendelius sentia-se entorpecido devido ao abalo e à fadiga. Não conseguia forçar-se a ler o texto apertado da encíclica. A longa lista de pessoas e países dir-se-ia escrita em sânscrito. Dobrou juntamente a carta e os documentos e a seguir fechou-os no velho cofre negro onde guardava os documentos relativos à casa, as apólices de seguros e os elementos mais valiosos do seu material de investigação.

Lotte devia estar à espera dele no andar inferior, triccotando placidamente à lareira. Não podia enfrentá-la antes de recobrar a compostura e inventar qualquer resposta para as inevitáveis perguntas dela: “Que dizia a carta, Carl? Que é que aconteceu realmente ao nosso caro Jean Marie?”

Que fora, afinal? Por muitas outras coisas que Carl Mendelius pudesse ser - padre falhado, marido extremoso, pai perplexo, crente céptico -, era um historiador de formação académica, rígido na aplicação das regras da investigação interna e externa. Era capaz de detectar uma interpolação de texto a um quilómetro de distância, e de segui-la com meticulosa precisão até à origem, gnóstica, maniqueia ou essénia.

Sabia que a doutrina da Parúsia - o Segundo Advento de Redentor,, que assinalaria o final de todas as coisas temporais - era a mais antiga e a mais autêntica na tradição. Estava registada nos Evangelhos Sinópticos, guardada no relicário do Credo, e todos os dias era recordada na liturgia: “Cristo morreu. Cristo ressuscitou. Cristo regressará.” Representava a mais profunda esperança ao crente na justificação final do plano divino, a -vitória última da ordem sobre o caos, de Bem sobre o Mal. Que Jean Marie Barette, ex-papa, acreditasse nela, a pregasse como artigo de fé; era tão natural e necessário como a respiração,

Mas o facto de ser reduzida à mais estreita e primitiva forma da crença - um cataclismo universal iminente, seguido de um julgamento universal, para o qual os eleitos deviam preparar-se – era, no mínimo, inquietante. A tradição do milénio assumia muitas formas, nem todas religiosas. Estava implícita na ideia de Hitler do Reich milenar, na promessa marxista de que o capitalismo definharia dando lugar à irmandade universal do socialismo. Jean Marie Barette não precisava de nenhuma visão para dar forma à sua versão do milénio. Podia tê-la ido buscar já feita a uma centena de fontes, do Livro de Daniel aos profetas de Cévenol do século XVII.

Até a sua suposta visão era um elemento familiar e perturbante no padrão. O ministro de uma religião organizada era chamado e mandado expor, obedecendo a uma autoridade, uma doutrina há muito fixada e acordada. Se excedesse o seu encargo poderia ser silenciado ou excomungado pela mesma autoridade que o chamara.

O profeta era um género de criatura totalmente diferente. Arrogava-se uma comunicação directa com o Todo-Poderoso. Portanto, o seu encargo não podia ser-Lhe retirado por qualquer agente humano. Podia desafiar o mais sagrado passado com a clássica frase, usada pelo próprio. Jesus: “Está escrito assim... mas eu digo assim e assin.” Desta maneira, o profeta era sempre o estranho, o arauto da mudança, o desafiador da ordem reinante.

O problema dos cardeais não era a loucura de Jean Marie Barette, mas o facto de ele ter aceitado a função oficial de sumo sacerdote e supremo mestre e depois ter assumido outro papel, possivelmente contraditório.

Teoricamente, claro está, não existia necessariamente contradição. A doutrina da revelação particular, de uma comunicação pessoal directa entre o Criador e a Criatura, era tão antiga como a da Parúsia: o Espírito descendo sobre os apóstolos no Pentecostes. Saul deslumbrado no caminho para Damasco, João surpreendido pela revelação apocalíptica em Patmos - qualquer destes acontecimentos era consagrado na tradição. Seria assim tão impensável que, nesta última década fatídica do milénio, em que a possibilidade da destruição planetária era um facto provado e um perigo nítido, Deus escolhesse um novo profeta para renovar o Seu apelo ao arrependimento e à salvação?

Em termos teológicos era, pelo menos, uma proposição ortodoxa. Para Carl Mendelius, o historiador, chamado a emitir o seu juízo sobre a sanidade mental de um amigo, tratava-se de uma especulação altamente perigosa. Contudo, estava demasiado fatigado naquele momento para confiar no seu julgamento acerca da mais simples das questões; assim sendo, fechou a porta do escritório e desceu ao andar inferior.

 

Loira, roliça, meiga e satisfeita como um gato no seu papel de mãe de dois filhos e de Frau Carl Mendelius, Lotte ergueu para ele um rosto sorridente e estendeu-lhe a face para ser beijada. Colhido por um súbito acesso de paixão, ele atraíu-a a si e estreitou-a por um longo momento. Ela dirigiu-lhe um olhar intrigado e perguntou:

- A que propósito vem isso?

- Amo-te.

- Eu também te amo.

- Vamos para a cama.

- Não posso ir já. O Johann telefonou a dizer que se tinha esquecido da chave, e eu disse que esperava a pé até ele chegar. Queres uma aguardente?

- Bom, é a melhor coisa que há logo a seguir.

Ao servir a bebida, ela fez exactamente as perguntas que ele temera. Sabia que não podia iludi-la. Era demasiado inteligente para meias respostas, e por isso disse-lhe frontalmente:

- Os cardeais obrigaram-no a abdicar, por considerarem que ele estava louco.

- Louco? Meu Deus! Eu diria que não havia ninguém mais são.

Estendeu-lhe a bebida e sentou-se no tapete ao lado dele, descansando a cabeça nos seus joelhos. Brindaram um ao outro. Mendelius acariciou-lhe a testa e os cabelos. Ela voltou a perguntar:

- Por que pensaram eles que ele estava louco?

- Porque ele sustentou perante eles, como perante mim, que tinha tido uma revelação particular da proximidade do fim do mundo e de ser ele o precursor do Segundo Advento!

- O quê? -Engasgou-se com o líquido, e Mendelius passou-lhe o lenço a fim de ela enxugar a blusa.

- É verdade, querida. Ele descreve a experiência na carta. Acredita piamente nela. Agora que foi silenciado, quer que eu ajude a propagar a notícia.

- Ainda não consigo acreditar. Ele sempre foi tão... tão francês, tão prático... Talvez tenha endoidecido.

- Um doido não poderia ter escrito a carta que ele me escreveu. Uma ilusão, uma ideia fixa, isso posso aceitar. É possível acontecer, em consequência de tensão, ou mesmo como resultado de um exercício deficiente de lógica. Houve homens mentalmente sãos que outrora acreditaram que o mundo era plano. Há pessoas sãs que orientam a sua vida com base nos horóscopos dos jornais da tarde. Milhões, como tu e eu, acreditam num deus que não podem provar.

- Mas não andamos por aí a dizer que o mundo vai acabar amanhã!

- Pois não. Mas sabemos que bem pode acabar, se os russos e os americanos carregarem no botão encarnado. Vivemos todos sob o espectro dessa realidade. Os nossos filhos têm tanta consciência disso como nós.

- Não digas isso, Carl, por favor!

- Desculpa.

Inclinou-se e beijou-a no cocuruto da cabeça, e ela comprimiu a mão dele contra a face.

Passados alguns instantes, ela perguntou, suavemente:

- Vais fazer o que o Jean Marie quer?

- Não sei, Lotte. Palavra que não sei. Tenho de pensar cuidadosamente. Preciso de falar com pessoas que foram íntimas dele. E depois quero avistar-me com ele. Devo-lhe isso. Ambos lho devemos.

- Isso quer dizer que terás de viajar.

- Apenas por pouco tempo.

- Detesto ter-te fora. Tenho imensas saudades tuas.

- Então vem comigo. Há séculos que não vais a Roma. Havias de gostar de ver montes de gente.

- Não posso, Carl. Bem sabes que não. As crianças precisam de mim. Este ano é muito importante para o Johann e quero vigiar a Katrin e o moço dela.

Tratava-se do pequeno pomo de discórdia familiar existente entre eles: Lotte assumindo continuamente o papel de galinha-mãe relativamente aos filhos já crescidos, e ele com o ciúme de homem de meia-idade relativamente a essas atenções. Nessa noite, porém, estava fatigado de mais para discutir, de modo que adiou a questão.

- Falaremos sobre isso noutra altura, querida. Preciso de um parecer profissional antes de dar um passo para fora de Tubinga.

 

Aos 53 anos de idade, Anneliese Meissner tinha conquistado uma série de distinções académicas - das quais a mais notória era a de obter a votação unânime como a mulher mais feia de todo o corpo docente da universidade. Era atarracada, gorda e amarela e tinha uma boca de sapo, mal se lhe vendo os olhos por detrás de umas grossas lentes de míope. O cabelo era uma melena de Medusa de um amarelo desmaiado e a voz um grasnido rouco. Usava roupas masculinas e sempre desastrosamente sujas. Juntando a tudo isto um espírito sardónico e uma aversão desapiedada pela mediocridade, obtinha-se, como dizia um colega, “o perfeito perfil de uma personagem fadada para o isolamento”.

Não obstante, devido a um milagre qualquer, ela escapara ao fado e constituíra-se como uma espécie de deusa tutelar na sombra do velho castelo de Hohentubinga. O seu apartamento na Burgsteige parecia mais um clube do que um local de residência, onde estudantes e lentes se empoleiravam em bancos e caixotes a beber vinho e travando ferozes discussões até altas horas. As suas lições de Psicologia Médica estavam sempre apinhadas e os seus trabalhos eram publicados em jornais especializados em doze línguas. A mitologia estudantil atribuía-lhe mesmo um amante, uma criatura semelhante a um duende que vivia nos montes Harz e ia visitá-la secretamente aos domingos e nas férias grandes do calendário universitário.

No dia seguinte à recepção da carta de Jean Marie, Carl Mendelius convidou-a para almoçar num compartimento particular na Weinstube Forelle. Anneliese Meissner comeu e bebeu copiosamente, conseguindo mesmo assim pronunciar mordentes monólogos sobre a administração dos fundos da universidade, a política local de Land Baden-Wúrttemberg, o trabalho de um colega sobre depressão endógena, que colocou de parte como “disparate infantil”, e a vida sexual dos operários turcos na indústria de papel local. Mendelius só achou sensato colocar a pergunta ao chegarem à altura do café.

- Se eu te mostrasse uma carta, serias capaz de me fornecer uma opinião clínica sobre a pessoa que a escreveu?

Ela fitou-o com um olhar míope e sorriu. O sorriso era aterrorizante. Dir-se-ia que estava prestes a devorá-lo juntamente com as migalhas do seu Strudel (1).

- Vais mostrar-me a carta, Carl?

- Desde que a aceites como uma comunicação confidencial e profissional.

- Da tua parte, Carl, com certeza. Mas, antes de ma dares, convém que percebas alguns axiomas da minha disciplina. Não quero que me comuniques um documento que é evidentemente importante para ti e depois te queixes de o meu comentário ser descabido. Entendido?

- Entendido.

- Então, primeiro: a caligrafia, em espécimes de série, é um indicador bastante digno de crédito dos estados cerebrais. Até a simples hipoxia - o insuficiente afluxo de oxigénio ao cérebro - produz uma rápida deterioração da escrita. Segundo: mesmo nas mais graves enfermidades psicóticas, o

 

(1) Bolo que é feito enrolando conjuntamente uma folha muito fina de massa .de pão com fruta ou queijo, que depois vão ao forno. (N. do T.)

 

sujeito pode ter períodos de lucidez durante os quais os seus escritos e falas são completamente racionais. Hõlderlin morreu nesta nossa cidade num estado desesperado de esquizofrenia. Mas poderias imaginar tal coisa através da leitura de Pão e Vinho ou Empédocles no Etna? Nietzsche morreu de paralisia geral dos loucos, provavelmente em consequência de uma infecção sifilítica. Serias capaz de diagnosticá-lo tendo por única base Assim Falou Zaratustra? Terceiro ponto: qualquer carta particular contém indicações de estados emocionais ou mesmo de propensões psíquicas; mas trata-se tão-somente de indicadores. Os estados podem ser superficiais, e as propensões situar-se bem dentro dos limites da normalidade. Faço entender-me?

- Admiravelmente, professora! - Carl Mendelius fez um gesto cómico de rendição. - Entrego a minha carta em mãos de confiança. - Passou-Lha por sobre a mesa. - Há também outros documentos, mas ainda não tive tempo de estudá-los. O autor é o papa Gregório XVII, que abdicou a semana passada.

Anneliese Meissner contraiu os grossos lábios num assobio de surpresa, mas não pronunciou palavra. Leu a carta lentamente, sem comentários, enquanto Mendelius sorvia o café e mastigava petits fours - o que era mau para a linha, mas preferível ao vício de fumar, que andava a tentar desesperadamente abandonar. Finalmente Anneliese terminou a leitura. Poisou a carta na mesa e cobriu-a com as grandes mãos sapudas. Procurou as palavras com minúcia clínica.

- Não sei bem, Carl, se serei a pessoa indicada para comentar isto. Não sou crente, nunca o fui. Qualquer que seja a faculdade que faz com que a pessoa salte da razão para a fé, nunca a tive. Há pessoas que não têm ouvido para a música e outras que não distinguem as cores; eu sou incuravelmente ateia. Muitas vezes o lamentei. Na minha profissão de médica, já me tenho sentido inferiorizada ao lidar com doentes que possuem uma forte crença religiosa. Sabes, Carl - disse, soltando uma longa gargalhada asmática -, do meu ponto de vista, tu e as pessoas como tu vivem num permanente estado de ilusão, que é, por definição, insanidade. Por outro lado, uma vez que não consigo provar a falsidade das vossas ilusões, sou obrigada a aceitar que a doente posso ser eu.

Mendelius dirigiu-lhe um esgar e enfiou-lhe na boca o último petit four.

- Já estabelecemos que as tuas conclusões ficarão sujeitas a sérias reservas. Comigo, a tua reputação nada tem a temer.

- Portanto, aqui vão os indícios tal como os vejo. - Ergueu a carta e começou a comentar. - Caligrafia: nenhum indício de perturbação. Trata-se de uma letra bonita e regular. A própria carta é precisa e lógica. Os trechos descritivos são classicamente simples. O autor mantém o domínio das emoções. Mesmo quando refere o facto de estar sob vigilância, não há exagero que indique um estado de paranóia. A parte que trata da experiência visionária é, dentro dos seus limites, clara. Não há imagens patológicas, com conotações violentas ou sexuais. À primeira vista, portanto, o homem que escreveu a carta estava mentalmente são quando a escreveu.

- Mas a verdade é que ele exprime dúvidas acerca da sua própria sanidade.

- Não exprime tal. Reconhece é que pode haver quem duvide dela. Está absolutamente convencido da realidade da sua experiência visionária.

- E que pensas tu dessa experiência?

- Estou convencida de que ele a teve. A maneira como eu a interpretaria é que já é coisa muito diferente. Do mesmo modo que estou convencida de que Martin Luther King acreditou ter visto o Diabo na cela e lhe atirou um tinteiro. Isto não quer dizer que eu acredite no Diabo, mas tão-pouco na realidade da experiência para Luther. - Voltou a rir-se, prosseguindo de maneira mais descontraída. - Tu és um antigo jesuíta, Carl. Sabes ao que me refiro. Passo a vida a lidar com pacientes vítimas de estados de ilusão. Tenho de partir da premissa de que essas ilusões são reais para eles.

- Queres dizer com isso que o Jean Marie é vítima de uma ilusão?

- Não me ponhas palavras na boca, Carl! -A repreensão foi imediata e cortante. Empurrou a carta para diante dele. - Dá outra vista de olhos à passagem sobre a visão e aos trechos imediatamente anterior e posterior. Encaixa-se perfeitamente na estrutura do devaneio. Ele está a ler e a meditar num jardim batido pelo sol. Toda a meditação envolve um certo grau de auto-hipnose. O sonho divide-se em duas partes: as sequelas do cataclismo num planeta vazio, e a seguir a passagem num turbilhão ígneo para o espaço exterior. Qualquer destas imagens é vivida, mas essencialmente banal. Poderiam ter sido tiradas de qualquer bom filme de ficção científica. Cerebralizou-as muitas vezes antes. Agora sonha-as acordado. Quando acorda, está de regresso ao jardim. Trata-se de um fenómeno comum.

- Mas ele acredita tratar-se de uma intervenção sobrenatural.

- Diz que acredita.

- Que diabo queres tu dizer com isso?

- Quero dizer - disse Anneliese Meissner sem rodeios - que ele poderia estar a mentir!

- Não! É impossível! Eu conheço este homem. Somos como irmãos.

- Uma analogia infeliz - disse Anneliese Meissner suavemente. - As relações fraternais podem ser infernalmente complicadas. Acalma-te, Carl! Querias uma opinião profissional: estou a dar-ta. Ao menos detém-te a examinar uma hipótese razoável.

- Esta é pura fantasia!

- Será? Tu és um historiador. Lembra-te do passado. Quantos milagres cómodos és capaz de citar? Quantas revelações mesmo oportunas? Todas as seitas do mundo têm de arranjá-los para os devotos. Os mórmones têm Joseph Smith e as suas fabulosas folhas de ouro; o reverendo Sun Myung Moon instituiu-se Senhor do Segundo Advento, e até Jesus se curvou à sua adoração. Portanto, supõe - supõe apenas - que o teu Gregório XVII considerou que a instituição estava numa época crítica e tinha chegado o momento de qualquer nova manifestação de interferência divina.

- Nesse caso estava a fazer uma jogada dos diabos.

- E perdeu-a. Não será possível que ele estivesse a tentar recuperar alguma coisa dos escombros, e a utilizar-se de ti para isso?

- É uma ideia monstruosa.

- Para mim, não. Por que razão ficas entupido com ela? Vou-to dizer. Porque, embora gostes de imaginar que és um pensador liberal, continuas a ser membro da família católica romana. Para teu próprio bem, tens de continuar a proteger os mitos. Reparei que nem sequer pestanejaste quando eu me referi aos mórmones e aos moonitas. Ora vamos, meu amigo! Que é feito do teu intelecto?

- Parece que se extraviou. - Carl Mendelius fez um ar lúgubre.

- Se queres um conselho, deixa todo esse assunto.

- Porquê?

- És um cientista de renome internacional. Não deves ter nada a ver com a loucura ou com a magia popular.

- O Jean Marie é meu amigo. Devo-lhe pelo menos uma investigação honesta.

- Nessa altura precisas de um Beisitzer: um assessor para te auxiliar a avaliar os indícios.

- Estás interessada no lugar, Anneliese? Era capaz de te proporcionar algumas perspectivas clínicas.

Disse-o de brincadeira, a fim de eliminar a agressividade da conversa. Mas a brincadeira não surtiu o efeito pretendido.

Anneliese considerou a proposta durante um longo instante e a seguir anunciou com firmeza:

- Muito bem. Fá-lo-ei. Será uma experiência nova para mim desempenhar o papel de inquisidor de um papa. Mas, caro colega - e estendeu o braço, poisando a grande mão no pulso dele -, estou muito mais interessada em manter-te honesto!

Terminada a sua última lição, ao fim da tarde, Carl Mendelius encaminhou-se para o rio e ali permaneceu sentado durante muito tempo, a contemplar o majestoso desfile dos cisnes sobre as águas cinzentas.

Anneliese Meissner tinha-o deixado profundamente perturbado. Para além de pôr em causa as relações que existiam entre ele e Jean Marie Barette, tinha igualmente questionado a sua integridade de cientista, a sua estatura moral como pesquisador da verdade. Sondara astutamente o ponto mais frágil da sua carapaça intelectual: a tendência para ser mais lisonjeiro nos juízos referentes a membros da sua própria família religiosa do que em relação a outros. Apesar de todo o seu pendor céptico, continuava a ser habitado por Deus, condicionado aos reflexos pavlovianos do seu passado de jesuíta. Preferia a conformidade entre as suas descobertas como historiador e a tradição ortodoxa a defrontar-se abertamente com a contradição entre elas. Agradava-lhe mais o conforto de um lar familiar do que a solidão do inovador. Até então, não se tinha atraiçoado. Ainda podia contemplar-se ao espelho e respeitar o homem que nele via. Mas o perigo estava lá, como o formigueiro de um desejozinho, pronto a inflamar-se no momento adequado com a mulher adequada.

No caso de Jean Marie Barette, o perigo de se atraiçoar podia ser mortal. O problema era claro e ele não podia iludi-lo ou jogar com um pau de dois bicos. Existiam três possibilidades, que se excluíam mutuamente. Ou Jean Marie era um louco, ou um mentiroso, ou um homem tocado por Deus, encarregado de transmitir uma importantíssima revelação.

Deparavam-se-lhe duas alternativas: recusar comprometer-se - o que constituía um direito de qualquer homem honesto que se sentisse incompetente -, ou submeter todo o caso ao mais rígido escrutínio, e agir sem medo e sem favor com base nos indícios. Com Anneliese Meissner, frontal e inflexível, como seu Beisitzer, dificilmente poderia fazer algo de diferente.

Mas que seria de Jean Marie, seu amigo dilecto de há tanto tempo? Como reagiria ele ao ser confrontado com a crueza do âmbito da investigação? Que sentiria ele quando o amigo que procurara como advogado se apresentasse como inquisidor-mor? Carl Mendelius viu-se uma vez mais a vacilar perante a confrontação.

Ao longe, na direcção da Klinikum, ouviu-se a sereia de uma ambulância, um longo e repetitivo gemido, fantasmagórico na escuridão que se ia adensando. Mendelius estremeceu sob o impacte de uma reminiscência da infância: o som das sereias de ataque aéreo e, a seguir, o zumbido dos aviões e as explosões destruidoras das bombas incendiárias que choviam sobre Dresda.

Ao chegar a casa, deparou-se-lhe a família apinhada em torno do televisor. O novo papa tinha sido eleito na sessão da tarde do conclave e estava nesse momento a ser proclamado como Leão XIV. Faltava magia à cerimónia. Os comentários careciam de entusiasmo. Até a multidão romana parecia apática e os tradicionais aplausos tinham uma ressonância falsa.

O sumo pontífice por eles escolhido, de 65 anos de idade, era um homem robusto, de rosto aquilino, olhar frio, um áspero sotaque da Emília e uma prática de vinte e cinco anos de assuntos da Cúria atrás de si. A sua eleição fora o resultado de uma cuidada mas dolorosamente evidente obra de arte política.

Após dois ocupantes estrangeiros, necessitavam de um italiano que compreendesse as regras do jogo papal. Depois de um actor convertido em beato e de um diplomata transformado em místico, a escolha mais segura era Roberto Arnaldo, um burocrata em cujas veias corria água gelada. Não despertaria paixões, nem proclamaria visões. Não faria quaisquer alocuções para além das estritamente necessárias; e mesmo estas seriam tão cautelosamente enredadas em retórica italiana que liberais e conservadores as digeririam com igual satisfação. Mas o mais importante de tudo era que sofria de gota e de colesterol elevado e, de acordo com as tabelas de mortalidade, não desfrutaria de um reinado demasiado curto nem demasiado longo.

As novidades monopolizaram a conversa à mesa de jantar de Mendelius. Ficou satisfeito com a diversão, pois Johann andava rabugento por causa de uma composição que não havia meio de lhe sair bem, Katrin impertinente e Lotte no ponto mais baixo de uma das suas depressões da menopausa. Era uma noite em que ele perguntava a si próprio com negra ironia se a vida de celibatário não teria grandes vantagens, e uma existência de solteiro não celibatário maiores ainda. No entanto, tinha suficiente experiência da vida marital para guardar esse género de pensamentos para si próprio.

Terminada a refeição, retirou-se para o escritório e fez um telefonema para Herman Frank, director da Academia Alemã de Belas-Artes em Roma.

- Herman? Aqui Carl Mendelius. Telefonei para te pedir um favor. Vou passar uma semana ou dez dias a Roma no fim do mês. Podes dar-me guarida?

- Com o maior prazer! - Frank era um delicado sujeito de cabelo prateado, um historiador dos pintores do Cinquecento (1), que tinha uma das melhores mesas de Roma. - A Lotte vem contigo? Temos montes de espaço.

- Talvez. Ainda não está decidido.

- Trá-la! A Hilde vai ficar encantada. Precisa de companhia feminina.

- Obrigado, Herman. És muito simpático.

- De maneira nenhuma. Talvez me possas fazer também um favor.

- É só dizeres.

- Durante a tua estada aqui, a Academia vai receber um grupo de pastores evangélicos. O costume: palestras diárias, debates à noite, passeios de autocarro à tarde. Seria para mim uma lança em África poder anunciar que o grande Mendelius nos viria fazer umas palestras, ou talvez servir de moderador de um debate...?

- Com todo o prazer, meu amigo.

- Estupendo! Estupendo! Diz-me quando chegas, que eu vou buscar-te ao aeroporto.

Mendelius poisou o auscultador e soltou uma risadinha de satisfação. O convite de Herman Frank para fazer umas palestras era um golpe de sorte. A Academia Alemã era uma das mais antigas e prestigiadas academias nacionais em Roma. Fundada em 1910, durante o reinado de Guilherme II da Prússia, tinha sobrevivido a duas guerras e aos vazios ideólogos do Terceiro Reich e ainda conseguia manter a fama

 

(1) Em italiano no original, tal como as demais palavras em italiano. (N. do T.)

 

de uma sólida erudição germânica. Assim, proporcionava a Mendelius uma base de operações e uma cobertura altamente respeitável para as suas delicadas investigações.

O contingente alemão no Vaticano corresponderia de bom grado a um convite para jantar de Herman Frank. O seu livro de convidados era um complicado volume ostentando títulos exóticos, tais como “magnífico reitor do Instituto Bíblico Pontifical” e “chanceler-mor do Instituto de Arqueologia Bíblica”. A reacção de Lotte à ideia era outra questão. Precisava de uma ocasião mais propícia para abrir aquela embalagem-surpresa.

O passo seguinte consistia em preparar uma lista de contactos aos quais escreveria a anunciar a visita. Tinha sido habitante da cidade durante tempo suficiente para reunir uma série de amigos e conhecidos, desde o rabugento e velho cardeal que discordava da sua defecção mas era ainda suficientemente generoso para apreciar a sua erudição, até ao custódio dos incunábulos da Biblioteca do Vaticano e à última viúva e herdeira do título dos Pierleoni, que, da sua cadeira de rodas, comandava a má-língua de Roma. Estava ainda a desenterrar nomes quando Lotte entrou, transportando um tabuleiro com café. Vinha com um ar arrependido e desamparado, incerta da recepção que lhe seria tributada.

- Os miúdos saíram. Está-se muito só lá em baixo. Importas-te se eu ficar aqui em cima sentada ao teu lado?

Ele tomou-lhe os braços e beijou-a.

- Aqui em cima também se está só, querida. Senta-te e repousa. Eu sirvo o café.

- Que estás a fazer?

- A combinar as nossas férias.

Contou-lhe do telefonema a Herman Frank. Referiu-se entusiasticamente aos prazeres da cidade no Verão, à oportunidade de encontrar velhos amigos e de fazer um pouco de turismo. Ela reagiu a tudo isso com uma calma surpreendente, e a seguir perguntou:

- A verdade é que é por causa do Jean Marie, não é?

- Sim, mas é também por nós próprios. Quero que estejas ao pé de mim, Lotte. Se os miúdos quiserem ir, trato de arranjar alojamento para eles.

- Eles têm outros planos, Carl. Estivemos a discutir acerca deles antes de chegares a casa. A Katrin quer ir a Paris com o namorado. O Johann vai fazer turismo a pé na Áustria. Só lhe faz bem; mas a Katrin...

- A Katrin já é uma mulher, querida. Há-de fazer o que entender, quer nós concordemos, quer não. No fim de contas... -Inclinou-se, tornando a beijá-la - só nos foram emprestados; e, quando saírem de casa, nós estaremos de regresso ao ponto de partida. O melhor que temos a fazer é praticar para voltarmos a ser um par amoroso.

- Acho que sim. - Fez um ligeiro encolher de ombos de derrota. - Mas, Carl... - Interrompeu-se, como se temesse traduzir a ideia por palavras.

Mendelius animou-a suavemente:

- Mas o quê, querida?

- Bem sei que os miúdos nos hão-de deixar. Estou a habituar-me à ideia, palavra que estou. Mas... e se o Jean Marie te afasta de mim? Isso... isso que ele quer de ti é muito estranho e assustador. - Sem qualquer aviso, desatou a soluçar convulsivamente.- Tenho medo, Carl... um medo terrível, terrível.

 “Nestes últimos anos fatídicos do milénio...” Assim rezava a frase inicial da encíclica de Jean Marie Barette, que não chegara a ser publicada. “Nesta época obscura de confusão, violência e terror, eu, Gregório, vosso irmão na carne, vosso servidor em Jesus Cristo, sou encarregado pelo Espírito Santo de escrever-vos estas palavras de aviso e de conforto.”

Mendelius mal podia acreditar no que os seus olhos lhe revelavam. As encíclicas papais, não obstante a sua portentosa autoridade, não passavam normalmente de documentos vulgaríssimos que se limitavam a afirmar posições tradicionais sobre questões de fé ou de moral. Qualquer bom teólogo era capaz de arquitectar o argumento. E qualquer bom lati-nista era capaz de torná-la eloquente.

O modelo era ainda o dos antigos retóricos. O argumento era estabelecido. As Escrituras e os patriarcas eram citados como pontos de apoio. Forneciam-se directrizes que obrigavam a consciência dos fiéis. Havia uma exortação final à fé, à esperança e à caridade continuada. Utilizava-se ao longo de todo o texto o cerimonioso “Nós”, não apenas para exprimir a dignidade do sumo pontífice, mas também para conotar uma comunidade e uma continuidade na cátedra e no ensino. O que estava implícito era claro: o papa nada ensinava de novo: expunha uma verdade antiga e imutável, limitando-se a aplicá-la às necessidades da época.

De uma penada, Jean Marie Barette quebrara a tradição deste modelo. Ab-rogara o papel de exegeta e assumira o manto do profeta. “Eu, Gregório, sou encarregado pelo Espírito Santo...” Mesmo em latim formal, o impacte destas palavras era perturbador. Não admirava que os homens da Cúria tivessem empalidecido ao lê-las pela primeira vez. O que se seguia era ainda mais tendencioso:

[...] O conforto que vos ofereço é a promessa constante de Nosso Senhor Jesus Cristo: “Não vos deixarei órfãos. Sabei que estou convosco todos os dias, mesmo até ao fim do mundo.” O aviso que vos faço é que o fim está muito próximo, que não passará esta geração sem que todas estas coisas se cumpram... Não vos digo isto por mim mesmo, ou porque o tenha profetizado com base no

raciocínio humano, mas porque me foi revelado numa visão, que não ouso ocultar e pelo contrário sou compelido a transmitir abertamente ao mundo. Mas mesmo essa revelação não foi coisa nova. Foi simplesmente uma afirmação, clara como o nascer do sol, do que é revelação nas Sagradas Escrituras...

Seguia-se uma longa exposição de textos dos Evangelhos Sinópticos, e uma série de eloquentes analogias entre os “sinais” bíblicos e as circunstâncias da última década do século XX: guerras e rumores de guerras, fomes e epidemias, falsos cristos e falsos profetas.

Para Carl Mendelius, profunda e profissionalmente versado sobre a literatura apocalíptica desde os tempos primitivos até ao presente, tratava-se de um documento perturbador e perigoso. Emanando de uma fonte tão elevada, não podia deixar de suscitar alarme e pânico. Entre os militantes, poderia facilmente servir de grito de agrupamento para uma última cruzada dos eleitos contra os iníquos. Para os fracos e os temerosos, podia mesmo ser um convite ao suicídio antes que os horrores dos últimos dias se abatessem sobre eles.

Perguntou a si próprio o que teria feito se, tal como o secretário, tivesse visto o texto, acabado de escrever, na mesa de trabalho do sumo pontífice. Sem dúvida teria insistido no sentido da sua supressão. E era exactamente o que os cardeais haviam feito: suprimido o documento e silenciado o autor.

Neste ponto, um novo pensamento ocorria. Não era essa a sorte de todos os profetas, o preço que pagavam por um dom terrível, o sangrento selo da verdade sobre o seu vaticínio? Do fervilhar da eloquência bíblica, outro texto lhe ressoou na mente: a última lamentação de Cristo sobre a Cidade Santa:

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados! Quantas vezes quis reunir os teus filhos como a galinha reúne os seus pintainhos sob as asas, e tu não quiseste!... Virão dias para ti em que os teus inimigos te hão-de cercar de trincheiras, sitiar-te-ão e estreitar-te-ão de todos os lados; hão-de esmagar-te contra o solo, bem como a teus filhos que estiverem dentro de ti, e não deixarão em ti pedra sobre pedra, por não teres conhecido O que te pode trazer a paz!

Tratava-se de um pensamento fantasmagórico para ter à meia-noite, com o luar a penetrar pelas janelas encaixilhadas a chumbo e o vento frio a varrer o vale do Nécar e a circundar as ruelas da velha cidade onde o pobre Hõlderlin morrera louco e Melâncton, o mais são dos homens, ensinara que “Deus elege; mas elege os solícitos”.

Toda a sua experiência assegurava que Jean Marie Barette era o mais solícito e o mais aberto dos homens, o menos predisposto a tornar-se vítima de uma ilusão própria de fanático.

É certo que escrevera um documento extremamente imprudente. Contudo, talvez fosse esse o âmago da questão: que, no momento extremo, só uma loucura assim lograsse captar a atenção do mundo.

Mas captá-la para quê? Se a catástrofe final estava iminente, com a data irrevogavelmente calculada no mecanismo da criação, para quê proclamá-la sequer? Que conselho poderia sobrepor-se a essa noção de pesadelo? Que oração teria poder contra um edicto promulgado da eternidade? Havia algo de profundamente patético na resposta de Jean Marie a tais questões:

Caríssimos irmãos e irmãs, meus filhos, todos nós tememos a morte e nos esquivamos ao sofrimento que pode antecedê-la. Vacilamos perante o mistério do salto derradeiro, que todos teremos de dar, para a eternidade. Mas nós somos adeptos do Senhor, o Filho de Deus, que sofreu e morreu feito homem. Somos os herdeiros da boa nova que ele nos deixou: que a morte é a porta de entrada na vida, que é um salto, não para as trevas, mas para as mãos da Misericórdia Eterna. É um acto de confiança, um acto de amor, por meio do qual, tal como os que se amam, abandonamos o nosso próprio ser para, com o Bem-Amado, nos transformarmos num só.

A batida na porta sobressaltou Mendelius. A filha, Katrin, entrou, tímida e hesitante. Vinha de roupão, com os cabelos loiros apanhados atrás e atados com um laço cor-de-rosa, o rosto completamente limpo da pintura e os olhos vermelhos de chorar. Perguntou-lhe:

- Posso falar contigo, papá?

- Com certeza, querida. - Tornou-se imediatamente solícito.- Que se passa? Estiveste a chorar. -Beijou-a meigamente e conduziu-a para uma cadeira. - Ora conta-me lá o que te preocupa.

- É a tal viagem a Paris. A mãe ainda está muito zangada por. causa disso. Diz que eu tenho de discutir o assunto contigo. Não compreende, papá... palavra que não. Eu tenho 19 anos. Já sou uma mulher, tal como ela, e...

- Calma, calma, minha pequena! Comecemos do princípio. Queres ir no Verão a Paris. Vais com quem?

- Com o Franz, claro! Bem sabes que há séculos que andamos um com o outro. Disseste que gostavas muito dele.

- E gosto. É um rapaz muito decente. E além disso um pintor prometedor. Estás apaixonada por ele?

- Estou, pois. - Houve uma nota de desafio na resposta. - E ele também está apaixonado por mim!

- Então fico muito satisfeito por um e outro de vocês, minha pequena! - Sorriu e deu-lhe palmadinha na mão. - É o melhor sentimento que há no mundo. Então que é que se segue? Já falaram em casamento? Querem ficar noivos? É isso?

- Não, papá. -Havia grande firmeza no que dizia.- Pelo menos ainda não. E a questão é essa: a mamã recusa-se a compreender.

- Tentaste explicar-lho?

- Uma porção de vezes! Mas ela não me dá ouvidos.

- Então experimenta comigo - disse meigamente Mendelius.

- Não é fácil. Eu não me sei exprimir bem como tu. A questão é que tenho medo; temos ambos medo.

- De quê?

- Do sempre... só isso. De casar e ter filhos e tentar constituir um lar, enquanto o mundo inteiro pode ruir à nossa volta de um dia para o outro. - De repente, ganhou entusiasmo e eloquência. - Vocês, os mais velhos, não compreendem. Sobreviveram a uma guerra. Abandonaram-nos!

As fronteiras estão todas cheias de plataformas de lançamento de foguetes e de silos de mísseis. O petróleo escasseia, de maneira que estamos a utilizar energia atómica e a enterrar os desperdícios que um dia hão-de envenenar os nossos filhos. Deram-nos tudo excepto o amanhã! Não quero que o meu bebé nasça num abrigo contra bombas e morra vítima de radiações! Tudo o que temos é o dia de hoje e amarmo-nos e pensamos que temos pelo menos direito a isso!

A veemência dela chocou-o como um borrifo de água na cara. A pequena Mädchen (1) loura que embalara nos joelhos desaparecera para sempre. No lugar dela estava uma jovem revoltada, cheia de ressentimentos contra ele e toda a sua geração. Assaltou-o a ideia lúgubre de que talvez fosse para ela e para todas as outras pessoas como ela que Jean Marie Barette escrevera a sua prescrição para a vida durante os dias derradeiros. Claro que não tinham sido os jovens quem a suprimira, mas sim os homens da sua geração, os mais velhos, os supostamente sensatos, os eternos pragmáticos, que viviam, fosse como fosse, de tempo cedido por empréstimo. Pronunciou uma prece silenciosa para que lhe fosse conferido o dom da palavra e principiou suave e meigamente a argumentar com ela.

- Acredita, minha pequena, que eu compreendo o que vocês ambos sentem. E a tua mãe também compreende, embora de maneira diferente, porque sabe quanto uma mulher pode ser ferida, e como as consequências podem ser mais duradouras para ela do que para os homens. Ela discute contigo porque te quer bem e receia por ti. Hás-de compreender que, por maior que seja a embrulhada em que o mundo se encontra - e eu tenho estado aqui a ler quanto mais horrível ela pode tornar-se! -, tiveste a experiência do que é amar e ser amada. Não toda a experiência, por enquanto, mas parte dela; sabes, portanto, que é o amor: é darmos e recebermos e cuidarmos da outra pessoa e nunca ficarmos com o bolo todo para nós. Agora estás a iniciar o capítulo seguinte com o teu Franz, e só vocês os dois, juntos, podem escrevê-lo. Se o atamancarem, o mais que a tua mãe e eu podemos fazer é enxugar-te as lágrimas e dar-te a mão até estares pronta para recomeçar a viver. Não podemos ensinar-vos a organizar a vossa vida emotiva, ou sequer a vossa vida sexual. A única coisa que podemos dizer-vos é que, se malbaratarem o vosso coração e malbaratarem essa alegria especial que torna o sexo tão maravilhoso, nunca conseguirão

 

(1) Em alemão no original: rapariga. (N. do T.)

 

renová-lo. Podem encontrar outras experiências, e também outras alegrias, mas nunca voltarão a encontrar esse primeiro êxtase, esse êxtase especial e todo singular que faz com que esta complicação de viver e morrer valha a pena. Que mais posso eu dizer-te, minha pequena? Vai lá a Paris com o teu Franz. Aprendam juntos a amar. E quanto ao dia de amanhã? Como vai o teu Latim?

Ela dirigiu-lhe um sorriso lacrimoso.

- Bem sabes que foi sempre uma lástima.

- Experimenta isto. “Quid sit futurum eras, fuge quae-rere.” Foi o velho Horácio quem o escreveu.

- Continua a não me dizer nada.

- É muito simples. “Guarda-te de perguntar o que trará o dia de amanhã.” Se passares toda a vida à espera da tempestade, nunca gozarás o sol a brilhar.

- Oh, papá! - Deitou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o.- Gosto tanto de ti! Fizeste-me muito feliz.

- Vai para a cama, minha pequena - disse suavemente Carl Mendelius. - Ainda tenho uma hora de trabalho à minha frente.

- Trabalhas de mais, papá.

Ele deu-lhe uma palmadinha de admoestação na face e citou alegremente:

- Um pai sem trabalho equivale a uma filha sem dote. Boa noite, meu amor. Sonhos cor-de-rosa!

Quando a porta se fechou atrás dela, sentiu o prurido de lágrimas importunas: lágrimas por toda a esperança juvenil que nela existia, e por toda a sua inocência ameaçada. Assoou-se violentamente, pegou nos óculos e entregou-se de novo à leitura do apocalipse de Jean Marie.

É evidente que, nos dias da calamidade universal, as estruturas tradicionais da sociedade não sobreviverão. Travar-se-á uma luta feroz pelas mais simples necessidades da vida: alimentos, água, combustível e abrigo. A autoridade será usurpada pelos fortes e pelos cruéis. As grandes sociedades urbanas fragmentar-se-ão em grupos tribais, hostis uns aos outros. As áreas rurais serão submetidas a pilhagens. A pessoa humana será tão objecto de caça como os animais ferozes que hoje chacina a fim de se alimentar. A razão estará tão obnubilada que o homem procurará como alívio as mais grosseiras e mais violentas formas de magia. Será difícil, mesmo aos mais fortemente armados da Promessa do Senhor, manter a fé e continuar a dar testemunho, como é seu dever, até ao final. Como, então, devem comportar-se os cristãos nesses dias de provação e terror? Uma vez que não conseguirão mais conservar-se como grupos amplos, devem dividir-se em pequenas comunidades, cada uma delas capaz de manter-se pelo exercício de uma fé comum e de uma verdadeira caridade mútua. O seu testemunho cristão deve ser dado alargando essa caridade àqueles que não comungam da mesma fé, ajudando os necessitados, compartilhando até mesmo os mais magros meios com os mais carentes. Quando a hierarquia sacerdotal já não puder funcionar, eles elegerão os seus próprios ministros e mestres que manterão o Verbo na sua integridade, e continuarão a celebrar a Eucaristia.

- Deus todo-poderoso! Com esta é que foi! - ouviu Men-delius a própria voz ressoar pelo compartimento do sótão. Quer fosse ficção, quer facto predestinado, aquilo, saído da pena do papa, era o indizível, o absolutamente impublicável. Se a imprensa mundial se apoderasse daquilo, faria Jean Marie Barette parecer o mais louco dos mullahs (1) o mais desvairado de todos os profetas de desgraça. Apesar disso, no contexto de uma calamidade atómica, era uma questão de simples lógica. Tratava-se de um cenário que, de uma maneira ou de outra, todos os dirigentes nacionais mantinham guardado nos seus arquivos mais secretos, o texto para a sequência do Armagedão.

E assim acabou Mendelius por chegar ao terceiro e último documento: a lista das pessoas que, na opinião de Jean Marie, estariam preparadas para acreditar na sua mensagem e no mensageiro. De todos os testemunhos, era este porventura o mais intrigante. Ao contrário da carta e da encíclica, estava dactilografado, como se em tempos tivesse feito parte de um arquivo oficial. Continha nomes, moradas, cargos, números de telefone, maneiras de contactar pessoalmente e anotações concisas, telegráficas, relativamente a cada uma das pessoas. Havia políticos, industriais, eclesiásticos, líderes de grupos dissidentes, directores de jornais conhecidos, perfazendo no conjunto mais de cem nomes. Dois exemplares de fichas davam o tom do registo.

 

(1) Título dado nos países islâmicos a pessoa versada em teologia e direito religioso, (N. do T.)

 

E. U. A.

Nome: Michael Grant Morrow

Cargo: Secretário de Estado

Morada particular: 593 Park Avenue, Nova Iorque

Telefone: (212) 689-7611

 

Religião: Episcopaliano

Conhecido num jantar presidencial. Convicções religiosas firmes. Fala russo, francês e alemão. Respeitado na Rússia mas poucas relações na Ásia. Profundamente consciente da situação .explosiva nas fronteiras europeias. Escreveu monografia particular sobre a função dos grupos religiosos numa estrutura social em desintegração.

 

U. R. S. S.

Nome: Sergei Andrevich Petrov

Cargo: Ministro da Produção Agrícola

Morada particular: Desconhecida

Telefone: Moscovo 53871

 

Visita particular ao Vaticano com sobrinho do primeiro-ministro. Consciente da necessidade de tolerância étnica e religiosa na U. R. S. S. e satélites, mas incapaz de ganhar terreno contra dogmáticos do partido. Receia que problemas da Rússia relativamente abastecimento víveres e petróleo possam precipitar conflito. Amigos íntimos entre militares elevada patente; inimigos no K. G. B. Vulnerável em caso más colheitas ou bloqueio económico.

Na última página havia uma anotação feita pelo próprio punho de Jean Marie:

Conheço pessoalmente todas as pessoas constantes desta lista. Qualquer delas, à sua maneira pessoal, demonstrou ter consciência da crise e vontade de enfrentá-la animada de compaixão humana, ainda que nem sempre do ponto de vista de um crente. Não sei se poderão modificar-se sob a pressão de futuros acontecimentos. Contudo, todas elas depositaram uma certa confiança em mim e eu tentei retribuir tal atitude. Como entidade individual, o Carl há-de ser encarado inicialmente com desconfiança, e serão muito mais reservadas para consigo. Os riscos para os quais o alertei principiarão ao seu primeiro contacto, dado que não disporá de protecção diplomática e a linguagem da política é concebida para a ocultação da verdade. J. M. B.

Carl Mendelius tirou os óculos e tentou libertar-se do sono que lhe pesava nas pálpebras. Lera as instruções do seu constituinte com a devoção de um amigo e o cuidado de um cientista honesto. Agora, na solidão da madrugada, tinha de ajuizar do texto, mesmo que não ajuizasse ainda do homem que o escrevera. Sentiu repentinos suores frios, como se as sombras do quarto estivessem habitadas por antigos espíritos acusadores: os espíritos de homens condenados à fogueira por heresia e de mulheres afogadas por bruxaria e de inúmeros mártires lamentando a inutilidade do seu sacrifício.

No cepticismo da meia-idade, a oração dificilmente lhe ocorria. Agora sentia necessidade dela, mas as palavras não lhe vinham à mente. Dir-se-ia um homem encerrado durante tanto tempo na escuridão que acabara por esquecer-se do som da voz humana.

- Agora, estamos mesmo em pleno reino dos chalados! - Anneliese Meissner mastigou um picle de pepino e empurrou-o com vinho tinto. - Esta suposta encíclica é um disparate... uma mexerufada de folclore e de falso misticismo!

Estavam sentados no seu apartamento atravancado, com os documentos espalhados na mesa à sua frente e uma garrafa de Assmanshausen para manter assente o pó que se via por todos os lados. Mendelius recusara-se a perder de vista os documentos, ao passo que Anneliese, com igual veemência, fizera fincapé no seu direito, como assessora, a ler integralmente o texto em análise. Mendelius protestou contra a maneira rápida como ela desprezava o documento:

- O melhor é pararmos por aqui! Se vamos discutir a questão, façamo-lo de maneira científica. Antes de mais nada, há todo um conjunto de literatura milenária desde o Livro de Daniel, no Antigo Testamento, passando por Jakob Boehme, no século XVII, até Teilhard de Chardin, no século XX. Parte dela é disparate... é verdade! Outra é poesia da melhor, como a do inglês William Blake. Outra ainda representa uma interpretação crítica de uma das mais antigas tradições do mundo. Segundo, qualquer cientista sério te dirá que pode muito bem haver um fim, quer por virtude de evolução, quer por catástrofe, para a existência humana tal como a conhecemos no planeta. O que o Jean Marie escreveu encaixa-se perfeitamente dentro dos limites mais sãos do códice. O cenário de uma catástrofe é já assunto de especulação conhecida por parte de cientistas e estrategas militares.

- De acordo. Mas, mesmo assim, o teu homem faz uma salgalhada completa! Fé, esperança e caridade quando as crias dos lobos uivam aos portões! Um deus de amor cismático com o caos que ele próprio arquitectou. Gaita, professor!

- Que sucederia se o texto fosse publicado?

- Metade do mundo pô-lo-ia de parte com uma gargalhada. A outra metade seria contagiada pela loucura da dança e iria a valsar ao encontro do redentor na sua “nuvem de glória”. Falando a sério, Carl, acho que devias era queimar o diabo dessa coisa e não pensar mais nela!

- Queimá-la, posso; mas não posso deixar de pensar nela.

- Porque és vítima da mesma loucura de deus!

- E este terceiro documento, esta lista de nomes?

- Não me parece que tenha qualquer relevância. Trata-se de um auxiliar de memória tirado do arquivo. Todos os políticos do mundo têm registos desses. Que espera ele que faças com isso? Que vás dar a volta ao mundo a visitar toda essa gente? E que lhes dirás? “Meu caro, Gregório XVII, o tal que correram do Vaticano, julga que o fim do mundo está próximo. Teve uma visão sobre isso. Achou que o senhor devia ser previamente avisado.” Ora vamos, Carl! Metiam-te numa camisa de forças logo a meio do primeiro encontro!

De súbito, ele apercebeu-se do lado cómico daquilo e riu-se, num grande rugido hílare que acabou por abrandar, convertendo-se num leve gargalhar irreprimível. Anneliese Meissner deitou mais vinho nos copos e levantou o seu num brinde.

- Ora assim é que é! Já julgava que tinha perdido um bom colega.

- Obrigado, Frau Beisitzer. - Mendelius ingeriu um abundante gole de vinho e poisou o copo. - Agora vamos voltar ao trabalho. Daqui a duas semanas vou a Roma.

- Vais mas é o diabo! -Fitou-o desconfiadamente.- E que esperas fazer lá que se veja?

- Passar umas férias, dar umas palestras na Academia Alemã, falar com o Jean Marie Barette e com pessoas que foram íntimas dele. Vou registar as entrevistas em fita magnética durante ou depois de as ter e mando-tas para cá. Depois decidirei se abandonarei a questão ou não. Pelo menos ter-me-ei desempenhado do meu dever como amigo... e terei conservado a minha assessora honesta, também!

- Espero que te apercebas, meu amigo, de que, mesmo depois de fazeres tudo isso, as provas de que dispões continuarão a ser insuficientes.

- Não vejo por que há-de ser necessariamente assim.

- Pensa nisso. - Anneliese Meissner arpoou outro picle de pepino e agitou-lho sob o nariz. - Como vais tu falar com Deus? Vais gravar também a conversa com Ele?

Era por natureza um homem metódico e preparou-se com meticuloso cuidado para a visita a Roma. Telefonou a amigos, escreveu a conhecidos, muniu-se de apresentações para funcionários do Vaticano, marcou com grande antecedência almoços, jantares e entrevistas formais. Teve o cuidado de realçar o objectivo manifesto da visita: procurar na Biblioteca do Vaticano e no Instituto Bíblico fragmentos de literatura hebionita e uma série de breves discursos na Academia sobre a Tradição Apocalíptica.

Tinha escolhido esse tema não apenas por lhe proporcionar uma deixa para iniciar as investigações acerca de Jean Marie, mas também porque poderia arrancar à sua assistência evangélica qualquer resposta emocional ao tema do milénio. Na juventude tinha sido profundamente agitado pela ideia de Jung do “grande sonho”, a persistência da experiência tribal no subconsciente e a sua influência perene no indivíduo e no grupo. Havia uma semelhança flagrante entre esta noção e aquilo a que os teólogos chamavam “influxo” e “habitação pelo espírito”. Levantava também a questão de Anneliese Meissner, o seu Beisitzer, e da sua obstinada rejeição de qualquer experiência transcendente. A piada que ela lançara acerca de ele conversar com Deus continuava a atormentá-lo - tanto mais que não descobrira resposta adequada para ela.

Perdeu muito tempo com uma carta para o abade de Monte Cassino, que era agora o superior religioso de Jean Marie. Tratava-se de uma delicadeza extremamente necessária. Jean Marie tinha-se colocado sob as suas ordens, e as exigências da autoridade podiam abranger a sua liberdade de movimentos e até a correspondência particular. Mendelius, antigo súbdito do sistema, tinha uma boa percepção do protocolo religioso. A sua carta referia a longa amizade entre ele e Jean Marie Barette e a hesitação que sentia em perturbar a sua actual intimidade. No entanto, se o abade não pusesse objecções e o ex-pontífice estivesse disposto a recebê-lo, o Prof. Carl Mendelius gostaria de visitar o Mosteiro em data que fosse conveniente para ambas as partes.

Incluiu um bilhete que solicitou ao abade entregasse em mão a Jean Marie Barette. Também este fora redigido com cuidadosa discrição:

Meu caro amigo:

Peço que me desculpe a sem-cerimónia, mas ignoro o protocolo da correspondência com um ex-papa, que se tornou um humilde filho de S. Benedito.

Sempre lamentei não me ter sido possível compartilhar consigo o fardo dos seus últimos dias no Vaticano; no entanto, os professores alemães são a dois marcos a dúzia e a sua esfera de influência raramente ultrapassa a da sala de aula.

Contudo, irei brevemente a Roma - ainda à procura dos hebionitas e para proferir umas palestras sobre a doutrina da Parúsia na Academia Alemã - e teria muito prazer em voltar a vê-lo, mesmo que fosse por pouco tempo.

Escrevi ao abade pedindo-lhe autorização para o visitar, desde que esteja na disposição de receber-me, claro está. Se pudermos encontrar-nos, ficarei muito grato e satisfeito. Se a ocasião não for oportuna, peço-lhe que não hesite em dizer-mo.

Espero que esteja bem. Com o mundo numa tal confusão, acho que foi sensato da sua parte afastar-se dele. A Lotte manda-lhe os mais afectuosos cumprimentos e os meus filhos saúdam-no respeitosamente. Quanto a mim, sou sempre

Seu irmão em Cristo, CARL MENDELIUS

A resposta chegou daí a dez dias, entregue por um mensageiro eclesiástico do cardeal-arcebispo de Munique: o reverendíssimo abade Andrew teria muito gosto em recebê-lo em Monte Cassino, e, caso a sua saúde o permitisse, o reverendíssimo Jean Marie Barette, O. S. B., gostaria imenso de voltar a ver o seu velho amigo. Devia telefonar ao abade mal chegasse a Roma, e marcar-se-ia a entrevista.

De Jean Marie não houve qualquer resposta.

Na noite anterior à partida para Roma com Lotte, convidou o filho, Johann, para tomar café com ele no escritório. Havia muito que as relações entre eles eram difíceis. O rapaz, aluno brilhante de Economia, sentia-se mal à sombra de um pai que era também do corpo docente da Faculdade. O pai, na ânsia de encorajar um talento tão evidente, caía frequentemente em faltas de tacto. O resultado era reserva de um lado e ressentimento do outro, apenas com raras demonstrações do afecto que existia ainda entre eles. Desta vez Mendelius estava decidido a ser diplomata. Habitualmente, a única coisa que conseguia era ser duro. Perguntou:

- Quando é que partes para a tua viagem, filho?

- Daqui a dois dias.

- Já planeaste o circuito?

- Mais ou menos. Vamos de comboio até Munique e começamos a caminhada a partir daí: passando pelo Ober-salzburg e atravessando o Tauern até Caríntia.

- A paisagem de lá é muito bonita. Quem me dera ir contigo. A propósito - esquadrinhou o bolso interior e retirou de lá um envelope fechado -, isto é uma contribuição para as despesas.

- Mas já me deste o dinheiro para as férias.

- É um extra. Trabalhaste muito este ano. A tua mãe e eu queríamos demonstrar o nosso apreço.

- Bem... obrigado. -Estava patentemente embaraçado. - Mas não era preciso. Sempre foste generoso para comigo.

- Há uma coisa que te quero dizer, filho. - Viu o rapaz inteiriçar-se de imediato e reaparecer-lhe no rosto o velho ar obstinado. - É um assunto pessoal. Preferia que não dissesses nada à mãe. Um dos motivos da minha deslocação a Roma é investigar o que foi que provocou a abdicação de Gregório XVII. Como sabes, era um bom amigo meu. -Fez um leve trejeito sorridente. - E teu também, quero crer, porque sem a ajuda dele eu e a tua mãe talvez nunca tivéssemos casado e não estarias aqui. Seja como for, as investigações podem levar muito tempo e implicar várias deslocações. Pode também haver certos riscos. Se me acontecer alguma coisa, quero que saibas que tenho os assuntos em dia. Quem tem a maioria dos documentos é o Dr. Mahler, o nosso advogado. Os outros estão ali no cofre. Já és um homem. Terias de ocupar o meu lugar e cuidar da tua mãe e da tua irmã.

- Não compreendo. A que género de riscos te referes? E por que razão tens de expor-te a eles?

- É difícil de explicar.

- Sou teu filho. - A voz dele tinha um tom de ressentimento. - Pelo menos dá-me uma oportunidade de compreender.

- Por favor! Tenta descontrair-te comigo. Agora preciso de ti, e muito.

- Desculpa, é que...

- Eu sei. Entramos sempre em atrito. Mas eu amo-te, filho. Quem me dera ser capaz de te explicar quanto! - A emoção submergiu-o e sentiu vontade de aproximar-se do jovem para o abraçar, mas teve medo de uma rejeição e prosseguiu calmamente: - Para te explicar, tenho de mostrar-te um assunto secreto e pedir a tua palavra de honra de que não o revelas a ninguém.

- Dou-te a minha palavra, pai.

- Obrigado. - Mendelius atravessou a sala até ao cofre e extraiu de lá os documentos de Barette, estendendo-os ao filho. - Lê isto, que explica tudo. Quando acabares, conversaremos. Ainda tenho de escrever uns apontamentos.

Instalou-se à secretária, enquanto Johann se sentava na poltrona, examinando os documentos. À luz suave do candeeiro de leitura, lembrava a Mendelius um dos jovens modelos de Rafael, obediente e imóvel, enquanto o mestre o imortalizava na tela. Sentiu uma punhalada de remorso pelos anos desperdiçados. Era assim que de há muito as coisas deveriam ter-se passado entre pai e filho, satisfeitos e camaradas, esquecidas bem lá para trás no tempo as discussões infantis.

Mendelius levantou-se e voltou a encher a chávena de café e o cálice de aguardente de Johann, que agradeceu com um aceno e prosseguiu a leitura. Passaram-se cerca de quarenta minutos até virar a última página, deixou-se ficar durante um longo instante em silêncio, após o que dobrou delibera-damente os documentos, levantou-se e poisou-os na secretária do pai. Calmamente, disse:

- Já compreendo, pai. Acho que é uma tolice perigosa e não me agrada nada ver-te envolvido nela, mas realmente compreendo.

- Obrigado, filho. Importas-te de me dizer por que razão achas que é uma tolice?

- Com certeza. - Falava com firmeza, mas respeitosamente. Mantinha-se muito direito, como um subalterno a dirigir-se ao seu comandante. -Há uma coisa que ando há muito tempo para te dizer. E esta ocasião parece-me ser oportuna.

- Talvez não te importes de me servir um pouco mais de aguardente antes - e Mendelius sorriu-lhe.

- Claro que não. - Voltou a encher o cálice e poisou-o na secretária. -A questão, pai, é que deixei de ser crente.

- Em Deus, ou especificamente na Igreja Católica Romana?

- Em ambos.

- Lamento sabê-lo, filho. - Mendelius estava estudadamente calmo. - Sempre me pareceu que o mundo devia ser um lugar bem triste sem uma esperança qualquer de uma outra vida. Mas ainda bem que mo contaste. A tua mãe sabe?

- Ainda não.

- Eu digo-lhe, se quiseres... mas mais tarde. Gostava que ela gozasse estas férias.

- Estás zangado comigo?

- Eu não, Deus do Céu! - Mendelius ergueu-se da cadeira e fincou as mãos nos ombros do rapaz. - Escuta! Passei toda a vida a ensinar e a escrever que o homem só pode pisar o caminho que vê aos seus pés. Se não te sentes capaz de aceitar honestamente uma crença, não deves tê-la. Mais valeria deixares-te queimar como Bruno no Campo das Flores. Quanto a mim e à tua mãe, não temos mais o direito de dar ordens à tua consciência... Mas lembra-te de uma coisa, meu filho. Mantém o espírito aberto de tal modo que a luz possa sempre entrar. Mantém o coração aberto de maneira que o amor nunca tenha a porta fechada.

- Eu... nunca pensei que aceitasses assim as coisas.

- Pela primeira vez o autodomínio lhe fraquejou e pareceu prestes a romper em pranto. Mendelius atraiu-o a si e abraçou-o.

- Amo-te, rapaz! Não há nada que altere isso. E depois... agora estás num país novo. Só o conhecerás bem depois de nele passar um Inverno. Vamos deixar de nos digladiar, valeu?

- Certo!-Johann libertou-se do abraço e estendeu a mão para o cálice. -Vou brindar a isso.

- Prosit (1) - disse Carl Mendelius.

- Sobre o outro assunto, pai.

- Sim?

- Imagino os riscos. Sei o que significa para ti a amizade do Jean Marie. Mas acho que deves estabelecer as prioridades certas. A mãe tem de estar primeiro; e, bom, a Katrin e eu também precisamos de ti.

- Estou a tentar manter as coisas na sua ordem própria, filho. - Mendelius deixou escapar um leve risinho triste.

- Pode ser que não acredites no “Segundo Advento”, mas,

 

(1) Em alemão no original, tal como as demais palavras em alemão. (N. do T.)

 

se ele ocorrer, há-de alterar um bocadinho as prioridades... não?

 

Vista do ar, a paisagem campestre italiana era um paraíso pastoril, com os pomares no auge do florescimento, os prados cobertos de flores selvagens, as plantações transbordando de um verde novo e as antigas cidades fortificadas plácidas como cenas de um conto de fadas.

Contrastando com aquilo, o Aeroporto de Fiumicino parecia um ensaio para o caos final. Os controladores de tráfego estavam em greve de zelo e os bagageiros paralisados. Havia longas bichas em cada barreira de controlo de passaportes. Uma babel de vozes gritando numa dúzia de línguas diferentes enchia o ar. Polícias com cães de pista movimentavam-se pelo meio da multidão incomodada à procura de portadores de drogas, ao mesmo tempo que jovens recrutas, armados de metralhadora, montavam guarda em todas as saídas, vigilantes e inquietos.

Lotte estava à beira das lágrimas e Mendelius transpirava de raiva e frustração. Levaram hora e meia a abrir caminho até ao compartimento da Alfândega e ao átrio, onde Herman Frank esperava, janota e solícito como sempre. Viera numa limusina, um enorme Mercedes emprestado pela Embaixada Alemã. Trazia flores para Lotte, um acolhimento efusivo para o Herr Professor e champanhe para beberem durante a longa viagem até à cidade. O trânsito, como sempre, seria infernal; mas ele queria proporcionar-lhes um pequeno aperitivo da paz celestial.

Encontraram finalmente a paz no apartamento dos Frank, situado no último andar de um palazzo do século XVII, de tectos altos ornados de frescos, soalhos de mármore, quartos de banho suficientemente espaçosos para comportar uma frota e uma vista espectacular por sobre os telhados da Roma antiga. Duas horas mais tarde, depois de terem tomado banho, mudado de roupa e recuperado o equilíbrio mental, estavam a tomar umas bebidas no terraço, ouvindo as últimas badaladas e observando os gaivões a voar em torno das cúpulas e terraços, castanho-avermelhados sob o brilho do ocaso.

- Ali em baixo é de morrer. - Hilde Frank apontou para as artérias em desordem, pejadas de automóveis e peões. - Às vezes há quem morra de verdade, porque os terroristas agora são atrevidíssimos e a casca da lei e da ordem está já bastante estalada. Os raptos constituem a maior empresa privada. Já não saímos à noite como costumávamos fazer porque há sempre o perigo dos carteiristas e dos bandos de motocicletas. Mas aqui em cima - e abrangeu com um gesto toda a antiga linha do horizonte- tudo continua conforme era há séculos: a roupa nos estendais, os pássaros, a música que vai e vem e os gritos das mulheres para as vizinhas. Se não fosse isso, não me parece que aguentássemos permanecer por mais tempo cá.

Era uma mulher baixa e morena, animadamente faladora, elegante como um manequim, vinte anos mais nova do que o marido, de cabelos brancos, o qual seguia com adoração todos os seus movimentos. Era também afectuosa, mimalha como uma gata. Mendelius surpreendeu um clarão de ciúme no olhar de Lotte, quando Hilde lhe pegou na mão e o conduziu ao canto do terraço para lhe apontar o distante domo de S. Pedro e o Castelo de Sant'Angelo, dizendo-lhe num sussurro bem audível de actriz:

- O Herman ficou satisfeitíssimo por teres aceitado proferir palestras para ele. Está à beira da reforma e detesta pensar nisso. Tem passado a vida inteira enfronhado na Academia... Aliás, tanto ele como eu, visto que nunca tivemos filhos. A Lotte está com muito bom aspecto. Espero que goste de ir às compras. Pensei levá-la às Condotti amanhã enquanto tu e o Herman estiverem na Academia. As pessoas que participam no seminário ainda não chegaram, mas ele está morto por mostrar-te aquilo.

- E este ano temos boas coisas para mostrar! - Herman Frank, dando o braço a Lotte, aproximou-se, juntando-se à conversa. - Vamos fazer a primeira exposição global de Van Wittel que alguma vez se fez neste país, e o Piero Falcone emprestou-nos a colecção dele de joalharia florentina antiga. Trata-se de uma empresa dispendiosa porque precisamos de guardas armados durante todo o tempo. Agora vou dizer-vos quem vem jantar hoje. Vem o Bill Utley e a mulher, Sônia. É o legado britânico junto da Santa Sé. O Bill é um chatarrão dos diabos, mas está realmente informado de tudo o que se passa. Além disso fala bem alemão, o que sempre é uma ajuda. A Sônia é uma divertida mexeriqueira sem inibições. Vais gostar dela, Lotte. Depois há o Georg Rainer, que é o correspondente do Die Welt em Roma. É um fulano descontraído que fala bem. A ideia de convidá-lo foi da Hilde, porque eíe tem uma namorada nova que nunca ninguém viu. Uma mexicana, penso eu, e com fama de ser rica! Vamos para a mesa por volta das nove e meia. A propósito. Carl, há um monte de correspondência para ti. Pedi à criada para ta deixar no quarto.

O acolhimento fora o mais caloroso possível e recordava tempos mais felizes, anteriores ao início da guerra do petróleo, do fracasso do milagre italiano e do embaciamento sem apelo nem agravo de todas as radiosas esperanças de unidade europeia. Quando os convidados para o jantar chegaram, Lotte já estava completamente descontraída e conversava alegremente com Hilde acerca de uma ida a Florença e outra a Ischia, ao mesmo tempo que Carl Mendelius fazia um esboço, perante um Herman entusiasmado, do esquema das suas palestras aos evangélicos.

O jantar foi agradável. A mulher de Utley era uma conversadora escandalosamente divertida. A rapariga de Georg Rainer, Pia Menendez, fez um sucesso imediato: tratava-se de uma beldade estonteante que sabia agradar gracilmente às matronas. Georg Rainer queria saber novidades; Utley gostava de recordar tempos passados; nestas condições, foi fácil a Mendelius encaminhar a conversa para os recentes acontecimentos do Vaticano. Utley, o inglês que na sua língua materna tinha elevado a obscuridade à condição de uma arte, era extremamente preciso em alemão.

- Mesmo para um estranho, era óbvio que Gregório XVII tinha posto toda a gente em pânico. A organização é grande de mais e portanto demasiado frágil para suportar um inovador ou mesmo um homem demasiado flexível na sua cúpula. É como os Russos com os seus satélites e os seus governos de camaradas na África e na América do Sul. Têm de manter, custe o que custar, a ilusão da unanimidade e estabilidade. Por isso, Gregório tinha de ir-se embora.

- Gostaria de saber exactamente - disse Carl Mendelius - de que maneira conseguiram levá-lo a abdicar.

- Ninguém está em condições de falar acerca disso - disse Utley. - Foi a primeira vez, em toda a minha experiência, que não houve quaisquer fugas de informação do monte Vaticano. É evidente que houve negociações muito complicadas; mas fica-se com a impressão de que houve quem ficasse a seguir com a consciência muito pouco tranquila.

- Exerceram chantagem sobre ele! - proferiu o homem do Die Welt sem rodeios. - Tive provas disso, mas não pude publicá-las.

- Por que não? - A pergunta veio de Utley.

- Por que as obtive através de um médico, um dos que chamaram para o examinar. É evidente que ele não estava em posição de fazer declarações públicas.

- Ele contou-lhe o que tinha descoberto?

- Disse-me o que a Cúria pretendia que ele descobrisse: que Gregório XVII estava mentalmente incapacitado.

- Eles puseram a questão com essa crueza toda?! -Men-delius estava surpreendido e dubitativo.

- Não.   Esse é que foi o problema.  A Cúria foi muito subtil. Pediram aos médicos (eram sete ao todo) que concluíssem, para além de qualquer dúvida razoável, se o sumo pontífice estava mental e fisicamente capaz de desempenhar as tarefas do seu lugar nesta época crítica.

- Essas instruções dão para tudo - disse Utley. - Como foi que Gregório se deixou enrolar?

- Foi apanhado numa armadilha.  Se recusasse, era suspeito.   Se concordasse, sujeitava-se ao consenso dos médicos.

- E qual foi o consenso?

- O meu informador não disse.   Não sei se está a ver, isso foi a outra coisa inteligente que eles fizeram.   Pediram uma   opinião   independente   por   escrito   a   cada   um   dos médicos.

- O que deixava a Cúria de mãos livres para depois escrever o seu próprio juízo. - Bil Utley soltou uma risadinha seca. - Parvos não são eles!   E então qual foi o veredicto do seu informador?

- Honesto, creio eu, mas não de grande ajuda para o paciente.   Ele sofria de grande fadiga, insónias constantes e tensão arterial elevada, conquanto não necessariamente crónica. Havia indícios claros de ansiedade e estados de espírito alternados de jovialidade e depressão.   É claro que, se estes sintomas persistissem num homem de 65 anos, haveria motivos para recear complicações mais graves.

- Se os outros relatórios fossem do mesmo teor...

- Ou - disse suavemente Mendelius - se fossem menos honestos e um tudo-nada mais retorcidos...

- Os   cardeais   impuseram-lhe   um   xeque-mate - disse Georg Rainer.   - Escolheram os melhores bocados dos relatórios, construíram o seu próprio veredicto final e apresentaram um ultimato a Gregório: ou se afasta ou empurramo-lo nós!

- Deus todo-poderoso! - blasfemou Mendelius baixinho. - Que alternativa tinha ele?

- No fundo, um belo exemplar de arte política - comentou  Bill  Utley,  com  um  risinho  perverso. - Não  se pode impugnar um papa.  Sem ser assassinando-o, como é que as pessoas se podem ver livres dele? Tem razão, Georg, foi pura e simples chantagem!   Pergunto a mim mesmo quem terá tido a ideia da empresa.

- O Arnaldo, evidentemente.   Sei realmente que foi ele quem transmitiu as instruções aos médicos.

- E agora é ele o papa - disse Carl Mendelius.

- E é capaz de dar um papa muito bom - disse Utley com um esgar. - Conhece as regras do jogo.

Relutantemente, Carl Mendelius, o ex-jesuíta, foi obrigado a concordar com ele. Achou além disso que Georg Rainer era um jornalista muito inteligente e que seria compensador cultivar relações com ele.

Nessa noite fez amor com Lotte num enorme leito barroco que. segundo Herman garantia, jurando pela própria alma, pertencera ao elegante cardeal Bernis. Tivesse ou não pertencido, era coisa de pouca monta. A união foi a mais feliz desde havia longo tempo. No final, Lotte enroscou-se no oco do braço dele e conversou com uma satisfação sonolenta:

- Foi uma noite encantadora, com toda a gente tão animada e acolhedora! Ainda bem que me trouxeste contigo. Tubinga é uma bela cidade, mas já tinha esquecido que havia um mundo tão vasto fora dela.

- Então vamos começar a vê-lo juntos.

- E havemos de fazê-lo, garanto-te. Agora sinto-me mais satisfeita com os miúdos. A Katrin foi maravilhosa. Contou-me o que lhe tinhas dito e a maneira como o Franz reagira.

- Não soube disso.

- Ao que parece, ele disse: “O teu pai é um grande homem. Gostaria de trazer-lhe uma boa tela de Paris.”

- Isso é agradável de ouvir.

- O Johann também me pareceu mais feliz, embora não tenha dito grande coisa. Teve alguns desabafos, incluindo o facto de já não ser crente.

- Ó querido! Que pena!

- É uma fase, Lotte. - Mendelius mostrou disfarçada despreocupação. - Ele quer descobrir o seu próprio caminho para a verdade.

- Espero que o tenhas feito compreender que respeitas a decisão.

- Com certeza! Não tens nada que te preocupar comigo e com o Johann. É apenas o touro velho e o novo a medirem forças.

- Dizes muito bem, o touro velho! - Lotte deu uma gargalhadinha de felicidade na escuridão. - A propósito, se apanho a Hilde a pegar-te na mãozinha muitas vezes, arranco-lhe os olhos!

- É bom saber que ainda sentes ciúmes.

- Amo-te, Carl. Amo-te mesmo muito.

- E eu também te amo, querida.

- É tudo o que preciso para terminar um dia perfeito. Boa noite, meu homem muito querido!

Rebolou na cama afastando-se dele, aninhou-se sob os cobertores e pegou rapidamente no sono. Carl Mendelius entrelaçou as mãos sob a cabeça e deixou-se ficar muito tempo naquela posição a olhar para o tecto, no qual ninfas amorosas e ávidos semideuses se divertiam na escuridão. Apesar do doce alívio do acto do amor, continuava obcecado pelo que ouvira ao jantar e pela última carta da pilha que a criada lhe deixara no toucador do quarto.

Estava escrita em italiano, à mão, em papel de carta grosso, timbrado com a insígnia oficial da Sacra Congregação para a Doutrina da Fé.

Caro Professor Mendelius:

Fui informado pelo nosso comum amigo reitor do Instituto Bíblico Pontifical de que visitará brevemente Roma, a fim de realizar investigações académicas, e que proferirá algumas palestras na Academia Alemã de Belas-Artes.

Consta-me também que tenciona visitar o recém-retirado sumo pontífice no Mosteiro de Monte Cassino.

Dado que sempre nutri a maior admiração pela sua obra académica, dar-me-ia grande prazer convidá-lo para o pequeno-almoço, uma manhã, no meu apartamento particular na Cidade do Vaticano.

Talvez queira ter a amabilidade de telefonar-me para a Congregação uma tarde qualquer, entre as 4 e as 7 horas, a fim de podermos combinar um dia que seja conveniente para ambos, preferivelmente antes da sua deslocação a Monte Cassino.

Envio-lhe os meus cumprimentos e os melhores desejos de uma agradável estada.

Seu em Jesus Cristo, ANTON DREXEL Cardeal-prefeito

Um trabalho magnífico, como sempre: um gesto cortês e uma rude chamada de atenção para o facto de que nada, mas mesmo nada, do que se passava no círculo sagrado escapava aos cães de guarda do Senhor. Nos velhos tempos dos Estados Papais, teriam enviado uma convocatória e um destacamento de guardas para fazê-la cumprir. Presentemente era café e biscoitos no apartamento do cardeal e a seguir conversa agradável e sedutora.

Bem, bem! Têmpora mutantur! (1l) Perguntou a si próprio o que desejaria mais o cardeal-prefeito: informações ou a garantia de discrição. Perguntou também de si para si quais as condições que poderiam ser postas antes de o autorizarem a visitar Jean Marie Barette.

Herman Frank tinha boas razões para se orgulhar da sua exposição. A imprensa tinha sido generosa em louvores, cumprimentos e, ilustrações. As galerias da Academia transbordavam de visitantes - romanos e turistas - e havia uma quantidade surpreendente de gente jovem.

As obras de Gaspar van Wittel, um holandês do século XVII, natural de Amersfoort, eram pouco conhecidas do público italiano. A maioria delas tinha sido ciosamente conservada nas colecções particulares dos Colonna, dos Sacchetti, dos Pallavicini e de outras famílias nobres. Reuni-las exigira dois anos de paciente busca e meses de delicadas negociações. A proveniência de muitas era ainda um segredo cuidadosamente mantido, conforme testemunhava o grande número delas que ostentava ainda a anotação “raccolta privata” (2). Constituíam no seu conjunto um vívido quadro pictórico e arquitectural da Itália do século XVII. O entusiasmo de Herman Frank tinha a rara e tocante inocência da infância.

- Olha só para isto! Tão delicado e ao mesmo tempo tão rigoroso! A cor tem quase uma característica japonesa. Um magnífico desenhador, um perfeito mestre da mais complicada perspectiva... Examina estes esboços. Repara como ele constrói pacientemente a composição. Estranho! Vivia numa pequena vivenda escura na Appia Antica. Tremendamente claustrofóbica. É preciso ver que nesse tempo era tudo campos, de modo que ele provavelmente tinha toda a luz de que precisava. - Interrompeu-se, subitamente embaraçado. - Desculpa, estou a falar de mais; mas é que adoro estas coisas!

 

(1) Locução latina: os tempos mudam. (N. do T.)

(2) Em italiano no original: colecção particular. (N. do T.)

 

Mendelius poisou-lhe levemente a mão no ombro.

- Meu amigo, é um prazer ouvir-te! Vê só toda esta gente nova! Arrancaste-os aos seus ressentimentos e confusões e colocaste-os noutro mundo, mais simples, mais belo, com toda a fealdade esquecida. Tens de sentir orgulho nisso!

- E sinto, Carl. Confesso que sim. Mas assusta-me também o dia em que todas estas telas hão-de ser apeadas e os transportadores apareçam para as levar de volta aos proprietários. Estou a ficar velho. Não sei ao certo se terei tempo, ou vigor (ou sorte, já agora), para voltar a fazer qualquer coisa deste género.

- Mas hás-de continuar a tentar. Isso é o que importa.

- Não por muito tempo, receio bem. Reformo-me para o ano, e nessa altura não sei o que hei-de fazer à vida. Não temos dinheiro que chegue para continuar a viver aqui, mas por outro lado detesto a ideia de voltar para a Alemanha.

- Podias passar a escrever como ocupação a tempo inteiro. Já criaste uma certa reputação como historiador de arte. Estou certo de que conseguirias melhores contratos com editores do que tens tido até agora. Que tal se me deixasses falar com o meu agente e ver o que podemos arranjar-te?

- És capaz de o fazer? - A gratidão dele era quase patética. - Não tenho grande jeito para os negócios e preocupo-me com a Hilde.

- Telefono-te assim que regressarmos. A propósito, dás-me licença que utilize o teu telefone? Tenho de fazer uma chamada antes do meio-dia.

- Vem ao meu gabinete, que eu peço para nos levarem café. Ah, antes de ir tens forçosamente de olhar para esta vista do Tibre. Há três versões dela: uma da colecção Pallavi-cini, outra da National Gallery, e esta veio de um velho engenheiro que a comprou numa feira da ladra por tuta e meia...

Passaram-se mais quinze minutos antes que Mendelius tivesse possibilidade de telefonar para o Mosteiro de Monte Cassino. Descobrir o abade e trazê-lo ao telefone demorou um tempo incrível. Mendelius estava já pior do que uma barata, mas de repente lembrou-se de que os conventos tinham por objectivo isolar os homens do mundo, e não mantê-los em contacto com ele.

O abade foi cordial, conquanto não propriamente efusivo.

- O Prof. Mendelius? Daqui é o abade Andrew. Foi muito amável em telefonar tão depressa. Poderá combinar a visita para a próxima quarta-feira? É feriado para nós, de modo que poderemos proporcionar-lhe uma hospitalidade um pouco mais generosa. Sugiro-lhe que venha por volta das três e meia e fique para jantar. O Mosteiro ainda fica longe de Roma, de maneira que, se quiser passar cá a noite, temos muito prazer em recolhê-lo.

- É muito amável. Nesse caso fico lá e regresso na quinta-feira de manhã. Como está o meu bom amigo Jean?

- Não tem estado muito bem, mas espero que melhore até à sua visita. Está ansioso por vê-lo.

- Peço que lhe transmita os meus mais afectuosos cumprimentos e lhe diga que a minha mulher lhe manda lembranças.

- Fá-lo-ei com prazer. Então até quarta-feira, professor.

- Obrigado, Sr. Abade.

Mendelius poisou o auscultador e permaneceu um instante imerso em pensamentos. Ei-la de novo: a resposta cortês, o aviso velado. Faltava uma semana para quarta-feira: era tempo mais do que suficiente para cancelar o convite, caso as circunstâncias se modificassem ou a autoridade interviesse. A doença de Jean Marie, real ou diplomática, forneceria uma desculpa apropriada.

- Passa-se alguma coisa, Carl? - Herman poisou a bandeja do café e começou a servi-lo.

- Não sei bem. Parece-me que o Vaticano está um pouco interessado de mais nas minhas actividades.

- Dir-se-ia que não há nada de mais natural. Já em tempos lhes provocaste algumas dores de cabeça, e cada novo livro é uma pedrada mais no charco. Leite e açúcar?

- Sem açúcar. Estou a tentar emagrecer.

- Já reparei. Também reparei que ontem à noite estavas a tentar sacar informações acerca de Gregório XVII.

- Notou-se assim tanto?

- Acho que só eu é que notei. Houve alguma razão especial?

- Ele era meu amigo, como sabes. Queria descobrir que foi que lhe aconteceu realmente.

- Ele não to disse pessoalmente?

- Há meses que nada sei dele. - Mendelius iludiu a pergunta. - Imagino que não tinha grande tempo para correspondência particular.

- Mas vais vê-lo durante a estada cá?

- Está combinado, sim.

A resposta era ligeiramente concisa de mais, mas Herman Frank tinha demasiado tacto para insistir na questão. Houve um embaraçoso momento de silêncio, após o qual disse calmamente:

- Há uma coisa que me anda a intrigar, Carl. Gostaria de saber a tua opinião.

- Diz, Herman.

- Há cerca de um mês fui chamado à nossa Embaixada. O embaixador queria falar comigo. Mostrou-me uma carta de Bona: uma circular dirigida a todas as academias e institutos no estrangeiro. Muitas delas, conforme sabes, têm material valioso emprestado pela República: esculturas, quadros, manuscritos históricos e coisas assim. Todos os directores receberam instruções no sentido de arranjar caixas-fortes secretas onde essas coisas pudessem ser guardadas em caso de desordem civil ou conflito internacional. Foi-nos atribuído a todos um orçamento, imediatamente disponível, para a compra ou aluguer de local de armazenamento adequado.

- Parece uma precaução razoável - disse Mendelius com moderação. - Tanto mais que não se fazem seguros contra guerras ou violência civil.

- Não estás a ver a questão - interveio enfaticamente Herman Frank.-O que me preocupou foi o tom do documento. Havia nele uma nota de urgência real, bem como uma ameaça de severas penas em caso de negligência. Fiquei com a impressão de que os nossos estão genuinamente receosos de que algo de terrível nos possa suceder muito em breve.

- Tens alguma cópia dessa circular?

- Não. O embaixador foi muito firme quanto à proibição de ela sair da Embaixada. Ah, e há outra coisa. Só os funcionários mais importantes deviam ter conhecimento do seu conteúdo. Achei aquilo bastante sinistro, e continuo a achar. Bem sei que me preocupo de mais, mas penso sempre na Hilde e no que poderia acontecer-lhe se em qualquer emergência tivéssemos de separar-nos. Gostaria de saber a tua opinião sincera. Carl.

Por instantes, Mendelius sentiu-se tentado a silenciá-lo com qualquer encorajamento fácil, mas depois decidiu-se em contrário. Herman Frank era um bom homem, demasiado brando para um mundo violento. Merecia uma resposta sóbria e honesta.

- As coisas estão más, Herman. Ainda não estamos numa situação de pânico, mas pode não tardar. Tudo aponta nesse sentido: desordens públicas, o ruir da confiança política, a tremenda recessão... e os loucos em lugares importantes que julgam poder resolver o problema por meio de uma guerra oportuna mas limitada. Tens razão em preocupar-te. O que podes fazer em relação a isso é já outra questão. Depois do lançamento dos primeiros mísseis, já não haverá esconderijo seguro em lugar algum. Já falaste com a Hilde a respeito disso?

- Já. Ela não quer voltar para a Alemanha, mas concorda que temos de colocar a hipótese de sair de Roma. Temos uma pequena casa de campo nas colinas toscanas. É isolada, mas cercada de terreno fértil. Creio que conseguiríamos sobreviver do que cultivássemos. Mas afigura-se um acto de desespero o simples facto de encarar tal possibilidade.

- Ou um acto de esperança - disse brandamente Mendelius. - Acho que a tua Hilde é uma rapariga muito sensata... e não devias preocupar-te assim tanto com ela. As mulheres têm muito mais talento para sobreviver do que nós.

- Também me parece. Nunca encarei as coisas dessa maneira. Nunca te acontece desejar que pudéssemos descobrir um grande homem que assumisse o comando e nos levasse para longe desta porcaria toda?

- Nunca! - disse Carl Mendelius, de cenho carregado. - Os grandes homens são perigosos. Quando os sonhos deles falham, sepultam-nos debaixo dos escombros das cidades, onde antes vivia gente simples em paz!

- Quero ser franco consigo, Mendelius. E quero que o senhor seja franco comigo.

- Franco até que ponto, Eminência? E acerca de que assunto?

As cortesias tinham já terminado. Os biscoitos haviam já sido comidos e o café estava frio. Sua Eminência, o cardeal Anton Drexel, de cabelo grisalho, direito como um granadeiro, estava em pé, de costas para o visitante, contemplando lá fora os jardins soalheiros do Vaticano. Voltou-se lentamente e permaneceu de pé mais um momento, transformado numa silhueta sem rosto, no contra-luz. Mendelius disse:

- Por favor, Eminência, por que não se senta? Gostaria de ver-lhe a cara ao falarmos.

- Desculpe. - Drexel soltou uma profunda risadinha que soava como um rosnido. -Trata-se de um velho truque... e não é lá muito delicado. Prefere que falemos alemão?

Apesar do nome, Drexel era italiano, natural de Bolzano, um território que durante muito tempo fora motivo de disputa entre a Áustria e a República Italiana. Mendelius encolheu os ombros:

- Como Vossa Eminência queira.

- Nesse caso, italiano. Falo alemão como um tirolês, e o senhor poderia achar isso cómico.

- Não há melhor do que a língua materna para se ser honesto - disse secamente Mendelius. - Se o meu italiano me falhar, falarei alemão.

Drexel afastou-se da janela e sentou-se de frente para Mendelius. Ajeitou cuidadosamente as dobras da sotaina sobre os joelhos. O rosto enrugado, ainda bem conservado, parecia esculpido em madeira. Apenas os olhos eram vivos, de um azul vibrante, divertidos e ao mesmo tempo apre-ciativos.

- O senhor foi sempre um fulano teso - disse, utilizando a frase coloquial: “un tipo robusto”. Mendelius sorriu ao ambíguo cumprimento. -Ora diga-me cá: até que ponto sabe o que se passou aqui recentemente?

- Antes de responder a isso, Eminência, gostaria de uma resposta sua. Tenciona levantar algum impedimento ao meu contacto com Jean Marie?

- Eu? Absolutamente nenhum.

- E há mais alguém que o queira, tanto quanto saiba?

- Tanto quanto sei, ninguém, embora haja obviamente interesse nesse encontro.

- Obrigado, Eminência. Agora, a resposta à sua pergunta: sei que o papa Gregório foi forçado a abdicar. Conheço o meio utilizado para lhe extorquir essa decisão.

- A saber?

- Uma série de relatórios médicos independentes, que foram depois reunidos pela Cúria num documento final destinado a lançar fortes dúvidas sobre a capacidade mental de Sua Santidade. É exacto?

Drexel hesitou um instante e a seguir acenou afirmativamente.

- É exacto, sim. Que sabe sobre o meu papel na questão?

- Ao que me consta, Eminência, apesar de discordar da decisão do Sacro Colégio, aceitou transmiti-la ao sumo pontífice.

- Sabe por que razão tomaram eles a decisão?

- Sei.

Houve um lampejo de dúvida no olhar de Drexel; no entanto, prosseguiu sem hesitação:

- Concorda com ela ou não?

- Acho que o meio de a concretizar foi vil: chantagem pura e simples. Quanto à decisão em si, encontro-me num dilema.

- E como exprimiria o meu amigo esse dilema?

- O papa é eleito como supremo pastor e guardião do penhor da Fé. Poderá essa missão conciliar-se com o papel de um profeta proclamando uma revelação particular, mesmo que essa revelação seja verdadeira?

- Com que então sabe mesmo! - exclamou suavemente o cardeal-prefeito. - E, felizmente, compreende.

- E então, em que ponto ficamos, eminência? - perguntou Mendelius.

- A enfrentar o segundo dilema: como é que provamos se a revelação é verdadeira ou falsa?

- Os seus colegas já resolveram esse - disse caustica-mente Mendelius. - Consideraram-no louco.

- Eu não - disse firmemente o cardeal Anton Drexel. - Considerei, e continuo a considerar, que a sua posição como sumo pontífice era insustentável. Não havia maneira de exercer as suas funções perante tamanha oposição. Mas louco? Nunca!

- Então, um profeta mentiroso?

Pela primeira vez, o rosto esfíngico de Drexel traiu a emoção:

- Isso é uma ideia terrível!

- Ele pediu-me que o julgasse, Eminência. Tive de considerar todos os veredictos possíveis.

- Não é um mentiroso.

- Acha que é vítima de uma ilusão?

- Gostaria de acreditar que sim. Tudo seria muito mais simples. Mas não posso; não posso, pura e simplesmente!

Subitamente, assumiu exactamente o aspecto daquilo que era: um leão velho cujas forças lhe fugiam. Mendelius sentiu um impulso de simpatia pela angústia que o rosto dele registava. No entanto, não podia ceder à compaixão na sua inquirição, e perguntou firmemente:

- Como foi que o avaliou, Eminência? Por que critérios?

- Pelos únicos que conheço: o discurso, a conduta, os escritos, o conteúdo da sua vida espiritual.

Mendelius soltou uma leve risada.

- Eis o cão de fila de Deus a falar. Drexel sorriu lugubremente:

- As feridas ainda doem, hem? Reconheço que o fizemos passar um mau bocado. Pelo menos ensinámo-lo a compreender o método. Que é que pretende saber primeiro?

- Foram os escritos que finalmente o condenaram. Tenho uma cópia da encíclica. Como foi que a interpretou, Eminência?

- Com grande apreensão, evidentemente. Não tive a menor dúvida de que tinha de ser suprimida. Mas concordo que não contém nada, absolutamente nada, que seja contrário à doutrina tradicional. Há interpretações que podem ser comsideradas extremas, mas em boa verdade não são heterodoxas. Até a questão de um sacerdócio electivo, quando se tornar completamente impossível a ordenação por bispos, é muito aberta..., se bem que bastante delicada para ouvidos romanos.

- O que nos conduz ao conteúdo da sua vida espiritual. - Houve uma ligeira sugestão de ironia no tom de Mendelius. - Como a julgou, Eminência?

Pela primeira vez, o rosto severo de Drexel se suavizou num sorriso.

- Mostrou-se superior ao seu, meu caro Mendelius. Ele manteve-se fiel à sua vocação como padre. Era um homem completamente desinteressado, que não tinha pensamentos que não se orientassem para o bem da Igreja e das almas humanas. Dominava as suas paixões. No seu elevado cargo foi humilde e bom. A sua ira era sempre contra a maldade e nunca contra a fragilidade. Nem sequer no final se virou contra os seus acusadores; pelo contrário, afastou-se com dignidade e aceitou o papel de súbdito sem queixas. Estou informado pelo abade de que a vida dele em Monte Cassino é um modelo de simplicidade religiosa.

- Além disso, mantém-se em silêncio. Como se coaduna isso com a obrigação, que ele diz ter, de propagar a notícia da Parúsia?

- Antes de responder a isso - disse Drexel -, acho que devemos esclarecer uma questão de facto. É evidente que ele lhe escreveu e enviou uma cópia da encíclica suprimida. É assim?

- É assim.

- Isso passou-se antes ou depois da abdicação?

- Escreveu-me antes, mas recebi a carta depois do acontecimento.

- Muito bem! Agora deixe que lhe diga uma coisa que não sabe. Quando os meus irmãos cardeais se asseguraram da aceitação de Gregório relativamente a abdicar, ficaram certos de que o tinham vergado, que ele faria o que quer que quisessem. Primeiro tentaram escrever no documento de abdicação uma promessa de silêncio eterno sobre qualquer matéria que afectasse a vida pública da Igreja. Eu disse-lhes que não tinham o direito moral nem legal de fazer tal coisa. Se insistissem, lutaria contra eles até à morte. Resignaria do meu cargo e faria uma declaração pública sobre toda a lamentável questão. Então eles procuraram outra solução. Sua Santidade tinha concordado em entrar para a Ordem de S. Benedito e viver a vida de um simples frade. Assim sendo, ficaria obrigado a obedecer ao seu superior religioso.

Nessas condições, disseram os meus argutos colegas, o abade receberia instruções para obrigá-lo ao silêncio sob os votos.

- Essa já eu conheço - disse Carl Mendelius com uma raiva fria. - Obediência do espírito. É a pior agonia que se pode impor a um homem honesto. Pregámo-lo a todas as tiranias do mundo.

- Por isso - disse calmamente Drexel -, estava determinado a não permitir que eles a impusessem ao nosso amigo. Fiz notar que era uma intolerável usurpação do direito de qualquer homem a agir livremente à luz da sua própria consciência, que nem o mais rigoroso voto poderia obrigá-lo a cometer um erro ou a abafar a sua consciência em nome do Bem. Ameacei uma vez mais denunciá-lo publicamente. Joguei com o meu voto no conclave seguinte e instruí o abade Andrew no sentido de que também ele era obrigado, sob sanção moral, a proteger a liberdade de consciência do seu novo subordinado.

- Alegra-me sabê-lo, Eminência - disse Mendelius, com ar grave e respeitoso. - É a primeira luz que vejo neste obscuro assunto. Mas ainda não responde à'minha pergunta. Por que razão continua Jean Marie em silêncio? Quer na carta que me escreveu, quer na encíclica, fala da sua obrigação de proclamar a notícia que sustenta ter-lhe sido revelada.

Drexel não respondeu imediatamente. Lenta e quase dolorosamente, ergueu-se da cadeira, encaminhou-se para a janela e ficou novamente de pé, contemplando o jardim lá fora. Quando finalmente se virou, tinha a cara oculta na sombra como antes; porém, Mendelius não protestou. A angústia do homem era por de mais evidente na voz.

- A razão, ao que penso, reside em ele estar agora a passar pela experiência de todos os grandes místicos a que se chama “a escura noite da alma”. É um período de extrema escuridão, de medonha confusão, de quase desespero, em que o espírito parece privado de todo o apoio, humano ou divino. É uma réplica daquele momento terrível em que o próprio Cristo exclamou: “Meu Deus! Por que me abandonaste?”... São as notícias que tenho da parte do abade Andrew. É por isso que ele e eu queríamos falar consigo antes de avistar-se com Jean Marie. O facto, Mendelius, é que eu penso que faltei para com ele, porque tentei um compromisso entre os incitamentos do espírito e as exigências do sistema ao qual me consagrei para toda a vida. Espero, e rezo para isso, que venha a revelar-se melhor amigo do que eu.

- Fala dele como um místico, Eminência. Isso parece pressupor uma crença na experiência mística dele – disse Carl Mendelius. - Eu ainda não estou preparado para isso, por muito que lhe queira.

- Espero que lhe diga isso primeiro e lhe faça as suas perguntas depois. Quererá ter a amabilidade de me telefonar depois de tê-lo visto?

- Prometo-lhe, Eminência. - Mendelius pôs-se de pé. - Obrigado por me ter convidado a vir aqui. Espero que me desculpe se ao princípio pareci grosseiro.

- Grosseiro não, apenas teso.

E o cardeal sorriu, estendendo-lhe a mão.

- Antigamente era muito menos razoável. O casamento deve ter-lhe feito bem.

Lotte e Hilde tinham ido almoçar a Tivoli, de modo que ele ia oferecer a si próprio uma refeição solitária na Piazza Navona. Quando deixou o Vaticano faltava um quarto para o meio-dia; assim, resolveu seguir a pé. A meio caminho da Vila della Conciliazione, deteve-se e voltou-se para trás a contemplar a grande Basílica de S. Pedro, com as suas colunas circundantes simbolizando a missão universal da Madre Igreja.

Para meio bilião de crentes, era o centro do mundo, a residência do vigário de Cristo, o túmulo de Pedro, o Pescador. Quando os ICBM (1) fossem lançados dos perímetros soviéticos, desapareceria à primeira explosão. O que sucederia ao meio bilião de crentes uma vez destruído aquele símbolo de unidade, autoridade e permanência?

Haviam sido condicionados durante imenso tempo para encararem aquele edifício carcomido pelo tempo como o centro do mundo, e o seu amo como o único e autêntico legado de Deus entre os homens; para quem se voltariam quando a casa e o homem não fossem mais do que um brilho no passeio?

Não se tratava de interrogações fúteis. Eram possibilidades terrivelmente iminentes: para Jean Marie Barette, para o cardeal Anton Drexel, para Carl Mendelius, que conheciam de cor a literatura apocalíptica e todos os dias a reviam em cada linha da imprensa. Sentiu pena de Drexel, velho, ainda poderoso, mas privado de todas as suas certezas. Sentiu pena de todos eles: cardeais, bispos, clérigos da Cúria, todos eles tentando aplicar o Codex Júris Canonicus a um planeta louco, rodopiando direito à extinção.

 

(1) Abreviatura de intercontinental balistic missile: míssil balístico intercontinental. (N. do T.)

 

Virou costas e continuou a caminhar, ociosamente, por entre a multidão de peregrinos, atravessando a Ponte Vittorio Emmanuelle e percorrendo o Corso. A meio da artéria, descobriu um bar, com mesas espalhadas pelo pavimento. Sentou-se, mandou vir um Campari e pôs-se a observar o espectáculo dos transeuntes.

Era a melhor época do ano em Roma: o ar ainda leve, as flores frescas nos quiosques dos vendedores, as raparigas saracoteando-se com os novos adornos de Verão e as lojas cheias de bugigangas vistosas para a estação turística. Uma jovem de pé na borda do passeio, uns passos à sua esquerda, despertou-lhe a atenção. Vestia calças justas azul-escuras e uma blusa branca de seda que revelava uns seios bem levantados. Tinha o cabelo preto preso atrás por um lenço vermelho. Parecia uma rapariga do Sul, esguia e de pele cor de azeitona, e possuía um rosto calmo, de Nossa Senhora, estranhamente belo em repouso. Levava um jornal dobrado numa das mãos e na outra uma pequena mala de mão de couro azul. Parecia estar à espera de alguém.

Enquanto ele observava, um pequeno Alfa vermelho recuou para o espaço próximo dela. O condutor arrumou-o desajeitadamente, com a frente espetada para fora, ocupando parte da via. Abriu a porta e esticou o corpo para falar com a rapariga. Por um instante, aquilo assemelhou-se a um “engate” de carro; no entanto, a rapariga correspondeu sem protestos. Passou a mala de mão ao condutor e, continuando a segurar no jornal, voltou-se para fitar o passeio. O condutor aguardou, com a porta aberta e o motor a trabalhar.

Momentos depois, um homem de meia-idade, elegantemente vestido e transportando uma mala de diplomata, de couro, atravessou rapidamente o Corso. A rapariga deu um passo em frente, sorriu e falou-lhe. Ele deteve-se. Pareceu surpreendido, mas depois fez um aceno e disse qualquer coisa que Mendelius não conseguiu ouvir. A rapariga alvejou-o três vezes na virilha, atirou o jornal para a valeta e saltou para o carro, que arrancou ruidosamente pelo Corso fora.

Por um breve instante de atordoamento, Mendelius permaneceu abalado e imóvel; depois precipitou-se para a vítima caída e enfiou o punho na virilha do homem para estancar o sangue que jorrava da artéria femural. Ainda ali estava quando a Polícia e os maqueiros afastaram a multidão para se encarregarem da vítima.

Um polícia dispersou os basbaques e os fotógrafos. Um varredor limpou o sangue do passeio. Um homem trajando civilmente empurrou Mendelius para o interior do bar. Um criado trouxe água quente e gardanapos lavados para lhe limpar a roupa ensanguentada. O proprietário ofereceu-lhe um uísque bem servido, com os cumprimentos da casa. Mendelius sorveu-o com gratidão enquanto fazia o depoimento inicial. O investigador, um jovem milanês de rosto impenetrável, ditou-o imediatamente para a esquadra pelo telefone. Depois voltou para a mesa de Mendelius e pediu um uísque.

- Foi extremamente útil, professor. A descrição da agressora, observada em pormenor e de perto, é uma grande ajuda para nós nesta fase inicial. No entanto, lamento ter de pedir-lhe que venha à esquadra observar umas fotografias e possivelmente ajudar um desenhador a fazer um retrato-robot.

- Certamente. Mas gostaria de fazê-lo esta tarde, se possível. Conforme lhe expliquei, tenho uns compromissos.

- Muito bem. Levo-o lá assim que acabarmos as bebidas.

- Quem era a vítima? - perguntou Mendelius.

- Chama-se Malagordo. É um dos nossos mais velhos senadores, socialista e judeu. Um caso feio, e cada semana nos aparecem mais destes.

- Parece tão despropositado... um acto selvagem gratuito.

- Gratuito, sim, mas despropositado não! Esta gente está apostada na anarquia, num derrubamento clássico e total do sistema por meio da destruição da confiança pública. E estamos a atingir um ponto muito próximo disso. Pode ser que tenha dificuldade em acreditar no que lhe vou dizer, professor. Houve pelo menos vinte outras pessoas que viram o tiroteio de hoje, mas aposto o meu ordenado em como o seu depoimento será o único a dizer-nos qualquer coisa de concreto... e o senhor é um estrangeiro! Os outros são obrigados a viver nesta sujeira, mas não levantam um dedo para a limpar. Sendo assim - e encolheu os ombos, numa resignação fatigada -, hão-de acabar por ter o país que merecem. A propósito, é melhor preparar-se para ver o seu nome escarrapachado em todos os jornais.

- Se havia coisa que não me viesse a calhar, era essa - disse Mendelius com expressão carrancuda.

- Até porque pode ser perigoso - disse o detective.

- Vai ser identificado como testemunha-chave.

- E portanto passarei a ser um alvo possível. É isso que me está a dizer?

- Receio bem que sim, professor. Trata-se de um jogo de propaganda, compreende? Teatro policial. Têm de alvejar o actor principal. A rapariga da bilheteira não tem valor em termos de publicidade. Se quer o meu conselho, saia de Roma, e preferivelmente da Itália.

- Não posso fazê-lo pelo menos antes de uma semana.

- Nesse caso, assim que possível. Entretanto, mude-se. Passe para um dos hotéis maiores onde se reúnem os turistas. Use outro nome. Eu trato da questão do passaporte com a gerência.

- Não serviria de grande coisa. Tenho umas palestras marcadas na Academia Alemã. Portanto, continuo exposto.

- Que hei-de então dizer-lhe? - O detective encolheu os ombros e sorriu contrafeito. - Só posso aconselhá-lo a vigiar todos os seus passos, a variar a rotina e a não dirigir a palavra a raparigas bonitas no Corso!

- Não há hipótese de protecção policial, pelo menos para a minha mulher?

- Nem pensar. Temos uma falta de pessoal desesperada. Posso dar-lhe o nome de uma agência que aluga guarda-costas; mas cobram tarifas de milionários.

- Então que se lixe! - exclamou Mendelius.-Vamos lá ver as suas fotografias.

Ao atravessarem o caos do meio-dia, sentia ainda o cheiro do sangue na roupa. Fazia votos para que Lotte estivesse a gozar um bom almoço em Tivoli. Queria que ela aproveitasse bem aquelas férias; poderia não haver muitas mais no futuro.

Lá para a tarde, enquanto esperava que Lotte e Hilde regressassem da excursão, sentou-se no terraço e gravou um memorando para Anneliese Meissner. Anotou os factos novos que tinha sabido por intermédio de Georg Rainer e do cardeal Drexel e só depois acrescentou os seus comentários pessoais.

Rainer é um repórter sóbrio e objectivo. Embora em segunda mão, o testemunho clínico que forneceu revelou-se digno de crédito. É evidente que Jean Marie Barette estava sob grande tensão mental e física. É também evidente que não se registou consenso sobre a sua incapacidade mental. Como diz Rainer: “Se quisessem mantê-lo, o mais que ele poderia precisar seria de um repouso decente e de uma redução da carga de trabalho.”

A opinião do cardeal Drexel surpreendeu-me. Não te esqueças de que eu também estive sob inquirição durante muito tempo, e conheci-o como temível e inexorável dialéctico. No entanto, mesmo nos nossos piores embates, nunca tive a menor dúvida acerca da sua honestidade intelectual. Adorava ver-te a ti e a ele marrando um contra o outro num debate público. Havia de ser uma enchente. Ele rejeita absolutamente qualquer ideia de insanidade ou fraude por parte de Jean Marie. Vai mais longe, erigindo-o à categoria de místico, como Teresa de Ávila, João da Cruz e Catarina de Siena. Por inferência, Drexel compromete-se com a crença - ainda não claramente catalogada- na autenticidade da experiência visionária de Jean Marie. Assim, agora sou eu o céptico ou, pelo menos, o agnóstico.

Devo estar com Jean Marie na quarta e quinta-feira próximas, após o que farei o relatório à minha assessora. Dou amanhã a primeira palestra na Academia. Aguardo o momento com expectativa. Os evangélicos são um grupo interessante. Admiro o modo como vivem. E, evidentemente, Tubinga foi sempre uma das zonas fulcrais da tradição pietista, que tamanha influência teve na Inglaterra e nos Estados Unidos. Mas já me esquecia: tu não tens ouvido para esta música. Seja como for, confio em ti e agrada-me ter-te como minha Beisitzer. As minhas mais afectuosas saudações desta maravilhosa mas presentemente muito sinistra cidade. Auf Wiedersehen (1).

A assistência estava já sentada quando ele entrou no auditório; vinte e tal pastores evangélicos, na sua maioria de trinta e poucos anos, uma dúzia de esposas, três diaconisas e meia dúzia de membros da comunidade waldensiana local de Roma, convidados por Herman Frank. Carl Mendelius sentiu-se bem com eles. A Faculdade Teológica de Tubinga tinha sido um dos primeiros locais de penetração do movimento pietista na Igreja Luterana; e Mendelius sentia uma certa atracção pela sua ênfase na devoção pessoal e nas obras de caridade pastoral. Uma vez escrevera um longo trabalho sobre a influência de Philipp Jakob Spener e do Colégio da Piedade, que este fundara em Francoforte no século XVII.

Terminada a apresentação feita por Herman Frank e silenciados os aplausos, Mendelius poisou as folhas na estante de leitura e começou a falar, numa atitude descontraída e informal.

- Não pretendo proferir uma palestra. Preferiria, caso estejam de acordo, explorar o nosso tema num diálogo socrá tico, para

 

(1) Em alemão no original: Até à vista. (N. do T.)

 

ver o que poderemos revelar uns aos outros e o que os factos históricos podem revelar-nos a todos. Em termos gerais, estamos a tratar da escatologia, a doutrina das últimas coisas: o destino último do homem, das organizações sociais e de toda a ordem cósmica. Queremos examinar estas coisas à luz dos textos quer do Antigo quer do Novo Testamento e das tradições cristãs primitivas.

“Há duas maneiras de encarar a doutrina das últimas coisas. Cada uma delas é radicalmente diferente da outra. A primeira é aquela a que chamamos a “visão consumatória”. A história humana terminará. Cristo virá uma segunda vez, em glória, para julgar os vivos e os mortos. A segunda é aquela a que chamo a “visão modificadora”. A criação continua, mas é modificada pelo homem agindo de concerto com o seu Criador, no sentido de uma realização ou perfeição, que só pode ser expressa por símbolo e analogia. Nesta visão, Cristo está sempre presente e a Parúsia exprime a revelação última da Sua presença criadora. Ora bem, gostaria de saber qual a vossa posição. Que dizem ao vosso povo acerca da doutrina das últimas coisas? Quem desejar responder, é favor levantar o braço e dizer o nome e a naturalidade. O senhor, na terceira fila...

- Alfred Kessler, de Colónia... - Tratava-se de um jovem baixo e robusto, com uma barba bem aparada. - Acredito na continuidade e não na consumação do cosmo. A consumação para o indivíduo é a morte e a união com o Criador.

- Nesse caso, pastor, como interpreta as Escrituras para os crentes? Ensina-as como a Palavra de Deus... Pelo menos, presumo que o faz. Como expõe a Palavra neste contexto?

- Como um mistério, Herr professor: um mistério que, sob a influência da graça divina, desvenda gradualmente o seu significado a cada alma individual.

- Poderá esclarecer melhor isso?... Talvez exprimi-lo como o faria para a sua congregação?

- Normalmente exponho-o da seguinte maneira. A língua é um instrumento feito pelo homem e, como tal, imperfeito. Onde a língua termina, a música, por exemplo, toma o seu lugar. É frequente o contacto de uma mão dizer mais do que uma quantidade de palavras. Sirvo-me do exemplo da consumação pessoal de cada homem. Instintivamente, tememos a morte. No entanto, conforme todos sabemos do trabalho pastoral, o homem familiariza-se com ela, prepara-se, subcons-cientemente, para ela, compreende-a por intermédio do universo que o rodeia: a queda de uma flor, a disseminação das suas sementes por acção do vento, o renascer da Primavera. Neste contexto, a doutrina das últimas coisas é, se não explicável, pelo menos conformável com a experiência física e psíquica.

- Obrigado, pastor. Quem se segue... ?

- Petrus Allmann, de Darmstadt. - Desta vez era um homem mais velho. -Estou em total desacordo com o meu colega. A linguagem humana é imperfeita, é certo, mas Cristo Nosso Senhor utilizou-a. Penso que laboramos em erro quando tentamos transformar as Suas afirmações numa espécie de linguagem ambígua. A Escritura é perfeitamente clara a este respeito. - E citou solenemente: - “Logo após a aflição daqueles dias, o Sol obscurecer-se-á, a Lua não dará ? sua luz, as estrelas cairão do céu e as forças dos céu; serão abaladas. Aparecerá, então, no céu o sinal do Filho do Homem...” Que pode isto querer dizer a não ser a consumação, o fim das coisas temporais?

Houve um surpreendente surto de aplausos por parte de um sector da assistência. Mendelius deixou-os manter-se por momentos e a seguir ergueu a mão pedindo silêncio. Dirigiu-lhes um sorriso bem-humorado.

- Ora então, minhas senhoras e meus senhores, alguém pretende decidir a questão entre estes dois homens de boa-vontade?

Desta vez foi uma mulher grisalha que levantou o braço.

- Sou Alicia Herschel, diaconisa, de Heidelberga. Não me parece que tenha importância qual dos dois colegas tem razão. Trabalhei como missionária em países muçulmanos e aprendi a dizer “Inshallah”. Será feita a vontade do Senhor, seja qual for e como quer que nós, humanos, interpretemos as Suas intenções. O pastor Allmann citou S. Mateus, XXIV; mas há outra afirmação nesse mesmo capítulo: “Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém o sabe, nem os anjos do Céu, nem o Filho; só o Pai.”

Era uma mulher que se impunha, e houve mais palmas quando ela se sentou. Seguiu-se-lhe um jovem de Francoforte. Desta vez, dirigiu a pergunta a Mendelius:

- Qual é a sua posição nesta questão, Herr professor? Agora estava encurralado, como esperara que viesse a acontecer; mas pelo menos isso obrigava-o a uma qualquer definição. Fez uma ligeira pausa, reunindo ideias, e depois esboçou a sua posição.

- Como sabem, fui ordenado padre pela Igreja Católica Romana. No entanto, abandonei o sacerdócio e dediquei-me ao trabalho académico. Durante muito tempo, portanto, estive absolvido da obrigação da interpretação pastoral das Escrituras. Agora sou historiador, ainda cristão praticante, mas dedicado a um estudo puramente histórico dos documentos bíblicos e patrísticos. Por outras palavras, estudo o que foi escrito no passado, à luz dos nossos conhecimentos sobre esse passado. Assim, profissionalmente falando, não devo fazer afirmações sobre a verdade ou não de escritos proféticos, mas apenas sobre a sua proveniência e autenticidade. Agora estavam silenciosos. Aceitavam a sua renúncia; no entanto, se iludisse a emissão de um testemunho pessoal, eles rejeitá-lo-iam de imediato. O conhecimento não lhes bastava. Verdadeiros evangélicos, exigiam que ele fosse frutífero na palavra e na acção. Mendelius prosseguiu.

- Por temperamento e educação, sempre tive tendência para interpretar o futuro em termos de continuidade, modificação, mudança. Nunca consegui reconciliar-me com a consumação. Hoje, porém, sinto-me impelido para a opinião de que a consumação é possível. É um facto decorrente da experiência que a humanidade dispõe de todos os meios para criar uma catástrofe global de dimensões tais que a vida humana tal como a conhecemos se extinguiria no planeta. Dado o outro facto decorrente da experiência da capacidade do homem para o pecado destruidor, somos confrontados com a temível perspectiva de que a consumação pode estar iminente.

Houve por parte da assistência uma suspensão do fôlego audível. Mendelius acrescentou uma observação à afirmação:

- No entanto, se seria assisado pregar tal mensagem, é uma questão totalmente diferente e confesso que, neste momento, não estou em condições de responder-lhes.

Houve um momento de silêncio e a seguir ergueu-se uma pequena floresta de braços. Antes de permitir mais perguntas, Mendelius estendeu a mão para o copo de água e bebeu um longo gole. Teve uma súbita visão incongruente de Anneliese Meissner a perscrutá-lo através dos grossos óculos e com o rosto feio todo aberto num sorriso. Quase ouvia o seu trocista veredicto:

“Eu bem te disse, não foi, Carl? Loucura de Deus! Nunca te curarás dela!”

O final da sessão estava previsto para o meio-dia, mas a discussão era de tal modo viva que só ao faltar um quarto para a uma Mendelius conseguiu libertar-se para tomar um aperitivo no gabinete de Herman Frank. Herman desfez-se em cumprimentos, mas Mendelius não estava nada satisfeito com os títulos nos jornais empilhados na secretária.

Iam do extravagante ao malicioso: “Herói do Corso”; “Distinto académico envolvido em tiroteio”; “Ex-jesuíta, principal testemunha contra brigadas terroristas”. As fotografias eram lúgubres: Mendelius salpicado de sangue a ajoelhar junto da vítima, Malagordo a ser erguido para dentro da ambulância, Mendelius e o detective embrenhados numa conversa diante do uísque. Havia também um retrato-robot da assassina, cuidadosamente legendado: “Aspecto da assassina segundo o Prof. Carl Mendelius, da Universidade de Tubinga.” O artigo estava orquestrado à maneira do estilo operático italiano: horror grandíloquo, grande ênfase e grande ironia. “Não deixará, porventura, de haver uma certa justiça poética no facto de um senador judeu dever a vida a um historiador alemão.”

- Deus todo-poderoso! - Mendelius estava lívido de raiva. - Expuseram-me como uma armadilha para patos!

Herman Frank acenou tristemente.

- É mau, Carl. Telefonaram da Embaixada para te avisar de que há fortes ligações entre os terroristas de cá e grupos similares da Alemanha.

- Eu sei. Não podemos ficar mais tempo em tua casa. Volta a telefonar para a Embaixada e arranja maneira de eles se servirem da influência que têm para nos reservar um quarto de casal num dos melhores hotéis, talvez o Hassler ou o Grand. Recuso-me absolutamente a expor-te a ti e à Hilde por minha causa.

- Não, Carl! Não vou vergar-me a este tipo de ameaça. E nem a Hilde o permitiria alguma vez.

- Por favor, Herman! Não é altura para heroísmos.

- Não são heroísmos, Carl. - Herman mostrava-se surpreendentemente resoluto. - É puro e simples bom-senso. Recuso-me a viver debaixo da terra como as toupeiras. Isso era o que esses filhos-da-mãe queriam! Além disso, é só por uma semana. As pequenas podem ir a Florença como planearam. Um par de velhos batidos como tu e eu tem obrigação de saber tomar conta de si próprio.

- Mas escuta!

- Não há mas nem meio mas, Carl. Vamos contar tudo às pequenas à hora do almoço e veremos o que elas dizem.

- Muito bem. Obrigado, Herman.

- Eu é que te agradeço, meu amigo. Esta manhã foi uma vitória muito especial para mim. Em todos os anos que estive na Academia, nunca vi um debate tão animado. Estão ansiosos pela tua próxima palestra. Ah, já me esquecia. Houve dois telefonemas para ti. Um foi do cardeal Drexel. Está no gabinete dele até à uma e meia. O outro foi da mulher do senador Malagordo. Gostaria que lhe telefonasses para o Hospital Salvator Mundi. Tens aqui os números.

Faz os telefonemas agora, para te libertares dessa preocupação. Gostaria que gozasses o almoço.

Ao marcar o número de Drexel, Mendelius sentia-se cheio de apreensão. O Vaticano dava grande importância à discrição. Drexel poderia muito bem encarar a ameaça contra Mendelius como uma ameaça à intimidade de Jean Marie Barette. Ficou surpreendido ao detectar o tom cordial e solícito do velho lutador.

- Mendelius? Suponho que tenha visto os jornais da manhã?

- Vi, sim, eminência. Estava precisamente a discutir isso com o meu anfitrião. Uma maçada, é o mínimo que se pode dizer.

- Tenho uma sugestão. Espero que a aceite.

- Terei muito prazer em tomá-la em consideração, eminência.

- Durante o resto da estada, gostaria que dispusesse do meu automóvel e do meu condutor. O nome dele é Francone. Pertencia aos carabinieri. Conhece o trabalho de segurança e é vivo e competente.

- É uma ideia simpática, eminência, mas realmente não posso aceitar.

- Pode, sim, e deve. Tenho direitos adquiridos sobre a sua segurança, meu amigo, e tenciono garanti-los. Onde se encontra agora?

- Na Academia. Vou regressar a casa de Frank para almoçar. A morada é...

- Eu tenho a morada. O Francone apresentar-se-lhe-á às quatro e ficará à sua disposição durante o resto da sua estada. E nada de discussões agora! Não podemos dar-nos ao luxo de perder o “herói do Corso”, pois não?

Muito mais aliviado, Mendelius telefonou para o Hospital Salvator Mundi e perguntou pela mulher do senador Mala-gordo. Puseram-no primeiramente em contacto com uma freira alemã muito seca e depois com um homem da segurança. Depois de um longo silêncio, a mulher do senador surgiu na linha. Queria expressar-lhe a sua gratidão por ter salvo a vida do senador. Tinha ficado gravemente ferido mas a sua situação era estável. Assim que estivesse em condições de receber visitas, queria ver o professor e exprimir-lhe pessoalmente os seus agradecimentos.

Mendelius prometeu telefonar mais para o final da semana, agradeceu-lhe a gentileza e desligou. Ao receber as notícias, Herman Frank recuperou a felicidade.

- Estás a ver, Carl? É o outro lado da medalha. As pessoas são simpáticas e gratas. E o cardeal é uma astuta raposa velha. Talvez não saibas, mas o Vaticano tem um corpo de homens da segurança muito duros. Não sentem inibições em partir umas cabeças ao serviço de Deus. Esse Francone é sem dúvida um deles. Já me sinto melhor... Muito melhor! Vamos para casa almoçar.

Durante a refeição, Lotte manteve-se muito calada; a seguir, porém, depois de os Frank se terem retirado para a sesta, afirmou a sua posição:

- Não vou a Florença, Carl, nem a Ischia nem a lado nenhum fora de Roma, a menos que vás comigo. Se corres perigo, tenho de compartilhá-lo; de outra maneira, não passo de uma peça de mobiliário na tua vida.

- Por favor, querida, sê sensata! Não precisas de provar-me nada.

- Nunca te ocorreu que poderia ter de prová-lo a mim mesma?

- Porquê, valha-me Deus?

- Porque, desde que casámos, ocupei o lado confortável da cama; primeiro a mulher de um estudioso notável, e depois a Frau professor em Tubinga. Nunca tive de pensar grande coisa sobre o que quer que fosse, a não ser em ter os meus bebés e cuidar da casa. Tu estavas sempre lá, uma parede robusta contra o vento. Nunca tive de pôr-me à prova sem ti. Nunca tive uma rival. Foi maravilhoso, tudo isso; mas agora, olhando para outras mulheres da minha idade, sinto-me muito insuficiente.

- Não sei porquê! Pensas que poderia ter feito a carreira que fiz sem ti, sem o lar que me proporcionaste e todo o amor existente dentro dele?

- Penso, sim. Talvez não exactamente da mesma maneira... mas sim, tê-la-ias feito sem mim. Tu não te limitas a ser um estudioso caturra. Há também em ti qualquer coisa de aventureiro. Oh, se há! Eu bem vi isso assomar uma vez ou outra... e fechei-lhe a porta na cara porque me atemorizava. Agora, quero ver mais desse aventureiro, conhecê-lo melhor, gozar-me dele antes que seja demasiado tarde.

Agora chorava, deixando tombar lágrimas silenciosas e ternas. Mendelius estendeu os braços e atraiu-a a si, consolando-a com suavidade.

- Não há razão para tristezas, querida. Estamos aqui um ao pé do outro. Não quero afastar-te. O problema é apenas que de súbito, ontem, vi o rosto do Mal... do mal verdadeiro! Aquela rapariga -não podia ser muito mais velha do que a Katrin - parecia uma das madonnas de Dolci.

No entanto alvejou um homem a sangue frio, não para o matar, mas para lhe mutilar a virilidade... Não te quero exposta a esse género de crueldade.

- Mas eu estou exposta a ele, Carl! Faço parte dele, tanto como tu. Quando a Katrin foi para Paris com o seu Franz, eu desejei ser outra vez nova e ir em lugar dela. Sentia ciúme, porque ela estava a desfrutar de algo que eu nunca tive. Quando tu e o Johann discutiam, uma parte de mim sentia-se feliz, porque ele no final se voltava sempre para mim. Era como um amante jovem com o qual eu podia fazer-te ciúmes. Pronto! Agora já deitei isso cá para fora e, se ficares a detestar-me, nada posso fazer.

- Eu não posso detestar-te, querida. Nunca fui capaz de estar zangado contigo por muito tempo.

- Suponho que isso faz parte do problema. Eu sabia disso e precisava que tu discutisses comigo.

- Mesmo assim não discutirei contigo, Lotte. - Subitamente, ficou sombrio e distante. -Sabes porquê? Porque, durante toda a minha antiga vida, estive preso (porque eu próprio quis, de acordo, mas de qualquer modo preso). Quando fiquei livre, apreciei tanto essa liberdade que não suportaria impor uma servidão a quem quer que fosse. Queria uma companheira, e não uma marioneta. Via o que estava a suceder mas, até tu o veres por ti, e quereres alterá-lo, eu não era capaz de te forçar nem te forçaria. Bem ou mal, era o que eu sentia.

- E agora, Carl? Que sentes agora?

- Medo!-exclamou Carl Mendelius. - Medo do que poderá esperar-nos lá fora nessas ruas; e mais medo ainda o que acontecerá quando me encontrar com o Jean Marie.

- A minha pergunta referia-se a nós: tu e eu.

- E é disso que eu estou a falar, minha querida. Para onde quer que nos viremos agora, estamos em perigo. Quero ter-te comigo; mas não para provares qualquer coisa a mim e a ti própria. É quase como ter relações sexuais apenas para mostrar que se é capaz. Pode ser magnífico mas está muito longe de ser amor. Em suma, fica ao teu critério, querida.

- De quantas maneiras terei de dizer-to, Carl? Amo-te. ; agora em diante, para onde fores tu, irei eu.

- Duvido muito de que os frades te ofereçam uma cama em Monte Cassino; mas, à parte isso, muito bem! Avançamos juntos.

- Óptimo! - exclamou Lotte com um largo sorriso. Então venha para a cama, Herr professor. É o lugar mais seguro que há em Roma!

Em princípio, era uma ideia excelente; porém, antes que pudessem pô-la em prática, a criada bateu à porta anunciando a Carl que estava ao telefone Georg Rainer, a telefonar do gabinete do Die Welt. A abordagem de Rainer foi bem-humorada, mas seca e funcional.

- Está transformado numa celebridade, Carl. Preciso de uma entrevista para o meu jornal.

- Quando?

- Agora mesmo, pelo telefone. Tenho um prazo a cumprir.

- Avance.

- Mais devagar, Carl. Somos amigos de um amigo comum, de modo que vou pô-lo a par das regras do jogo, de uma vez para sempre. Pode recusar-se a responder; mas não me diga nada que não seja para publicar. Tudo o que me disser, eu escrevo. Entendido?

- Entendido.

- Esta conversa está a ser gravada com o seu consentimento. De acordo?

- De acordo.

- Está a gravar. Prof. Mendelius, a sua pronta acção ontem salvou a vida do senador Malagordo. Qual é a sensação de ser uma celebridade internacional?

- Incómoda.

- Houve títulos um tanto provocatórios acerca do seu acto de misericórdia. Um chama-lhe o “herói do Corso”. Como se sente com isso?

- Embaraçado. Não fiz nada de heróico. Limitei-me a aplicar conceitos básicos de primeiros socorros.

- E o que me diz a este: “Ex-jesuíta, principal testemunha contra brigadas terroristas”?

- Um exagero. Fui testemunha do crime. Descrevi-o à Polícia. Suponho que ela registou depoimentos de muitas outras pessoas.

- Forneceu-lhe também a descrição da rapariga que disparou os tiros.

- Sim.

- Foi rigorosa e pormenorizada?

- Foi.

- Não sentiu que estava a correr um grande risco fornecendo essas provas?

- Correria um risco muito maior mantendo-me calado.

- Porquê?

- Porque a violência só pode florescer quando os homens têm medo de falar e agir contra ela.

- Teme alguma represália, professor?

- Temer, não temo. Estou preparado, isso sim.

- Como é que está preparado?

- Não tenho nada a declarar.

- Está armado? Tem protecção policial, um guarda-costas particular?

- Nada a declarar.

- Tem alguma coisa a declarar sobre o facto de ser alemão e o homem a quem salvou a vida ser judeu?

- Nosso Senhor Jesus Cristo era judeu. Estou satisfeito por ter sido útil a alguém do Seu povo.

- Outro assunto, Herr professor: consta-me que proferiu esta manhã uma palestra espectacular na Academia Alemã.

- Foi bem acolhida. Eu não lhe chamaria espectacular.

- O nosso relato diz o seguinte, passo a citar: “Interrogado por um interlocutor sobre se acreditava que o fim do mundo tal como está profetizado na Bíblia era um acontecimento real e possível, o Prof. Mendelius respondeu que o considerava não só uma possibilidade, mas uma possibilidade iminente.”

- Como raio obteve você isso?

- Temos boas fontes, professor. O relato é verdadeiro ou falso?

- É verdadeiro - disse Mendelius. - Mas prouvera a Deus que você não o publicasse.

- Eu disse-lhe quais eram as regras do jogo, meu amigo; no entanto, se quiser ampliar a afirmação, terei muito prazer em citá-la literalmente.

- Não posso, Georg. Pelo menos, por enquanto.

- E o que significa isso, Herr professor? Levou-se realmente assim tão a sério?

- Neste caso, sim.

- Mais razão ainda, nesse caso, para publicar o relato.

- Até que ponto é você um bom jornalista, Georg?

- Até ver, não me tenho portado nada mal, pois não? - E o riso de Rainer crepitou pelo fio.

- Estou a propor-lhe um negócio, Georg.

- Nunca faço negócios... Bem, quase nunca. Qual é a sua ideia?

- Desista da história do fim do mundo, que eu dou-lhe uma muito maior.

- Sobre o mesmo assunto?

- Não tenho nada a declarar.

- Quando?

- Daqui a uma semana.

- É uma sexta-feira. Que é que espera dar-me? A data do Segundo Advento?

- Ganha um almoço no Ernesto.

- E o exclusivo da história?

- Está prometido.

- Negócio fechado.

- Obrigado, Georg.

- E continuo a ter a gravação para nos avivar a memória. Auf Wiedersehen, Herr professor.

- Auf Wiedersehen, Georg.

Poisou o auscultador e ficou de pé, cismático e perplexo, sob o olhar indiferente dos faunos e pastoras do tecto. Inadvertidamente tinha pisado um campo de minas. Mais um movimento descuidado e ele explodiria sob os seus pés.

 

Domenico Giuliano Francone, motorista e homem de confiança de  Sua Eminência, era, quer no aspecto, quer no carácter, um indivíduo original. Tinha 1,83 m de altura, um corpo de atleta, uma sorridente cara caprina e uma grenha arruivada que pintava perseverantemente. Pretendia ter 42 anos, mas provavelmente tinha mais de 50. Falava um alemão que tinha aprendido com os homens da Guarda Suíça, um atroz francês de Génova, inglês com sotaque americano e italiano com uma cadência monótona de Sorrento.

A sua história pessoal era uma litania de variantes. Fora lutador amador, campeão de ciclismo, sargento dos carabi-nieri, mecânico da equipa de competições da Alfa, um amigo famoso de bebida e mulheres, até que, depois da morte prematura da esposa, descobrira a religião e empregara-se como sacristão na igreja titular de Sua Eminência.

Sua Eminência, impressionada pelo engenho e devoção de Francone - e possivelmente pelo seu libertino bom-humor-, tinha-o elevado à categoria de elemento do seu pessoal doméstico. Devido à sua experiência policial, à sua perícia como condutor, ao seu conhecimento de armas e à sua prática de corpo-a-corpo, assumira, quase por direito natural, as funções de guarda-costas. Nestes tempos difíceis e ímpios, nem um príncipe da Igreja estava livre de ameaças sacrílegas por parte dos terroristas. Enquanto um homem religioso não ousava mostrar medo, o governo italiano não fazia segredo dos seus temores e exigia cautelas ditadas pelo bom-senso.

Tudo isso, e mais, desenvolveu eloquentemente Domenico Francone, enquanto conduzia os Mendelius e os Frank, num passeio de sábado à tarde, aos túmulos etruscos de Tarquínia. Afirmada a sua autoridade, passou a promulgar as regras:

- Sou responsável pela vossa segurança perante Sua Eminência. Portanto, farão o favor de fazer aquilo que eu disser e sem discutir. Se eu lhes disser para mergulharem, baixam a cabeça depressa! Se eu guiar à maluca, seguram-se bem e não perguntam porquê. Num restaurante, deixam-me ser eu a escolher a mesa. Se o senhor professor quiser andar a pé em Roma, espera até eu arrumar o carro e estar pronto para segui-lo. Dessa maneira vocês mantêm-se a pensar lá nas vossas coisas e deixam que seja eu a preocupar-me. Eu conheço a maneira como esses mascalzoni (1) trabalham.

- Temos toda a confiança em si - disse amavelmente Mendelius-, mas vem alguém a seguir-nos?

- Não, professor.

- Então talvez possa conduzir um pouco mais devagar. As senhoras gostariam de ver a paisagem.

- Com certeza! As minhas desculpas!... Isto é uma zona cheia de história, muitos túmulos etruscos. Como sabem, são proibidas escavações sem autorização, mas mesmo assim continua a dar-se o saque de locais ocultos. Quando eu estava nos carabinieri...

A torrente da sua eloquência abateu-se de novo sobre eles. Encolheram os ombros e sorriram uns para os outros, dormitando durante o resto do trajecto até Tarquínia. Era um alívio deixá-lo a montar guarda junto do carro, enquanto eles seguiam um guarda de voz suave pelas encostas semeadas de trigo, para visitar o povo dos túmulos pintados.

Era um lugar tranquilo, cheio do cantar das cotovias e do sussurro grave do vento no trigo maduro. A perspectiva era arrebatadora: o declive dos campos verdes até às aldeias castanhas, com o mar azul ao longe, e os iates dispersos, de bujarronas enfunadas com a brisa de terra, dirigindo-se para oeste, aproados à Sardenha. Lotte estava extasiada, e Mendelius tentou recriar para ela a vida de um povo há muito desaparecido.

- Eram grandes comerciantes, grandes navegadores. Deram o seu nome, Tirreno, a esta parte do Mediterrâneo. Exploravam cobre e ferro e fundiam bronze. Cultivavam os férteis campos que se estendem desde aqui até ao vale do Pó e que, para sul, vão até Cápua. Gostavam imenso de música e da dança e faziam grandes festas; quando morriam, eram

 

(1) Em italiano no original: patifes. (N. do T.)

 

enterrados com comida e bebida, as melhores roupas e quadros da sua vida pintados nas paredes dos túmulos.

- E agora desapareceram todos - disse baixinho Lotte.

- Que foi que lhes aconteceu?

- Tornaram-se ricos e ociosos. Refugiaram-se nos rituais e entregaram-se a deuses que estavam já fora de moda. Os seus escravos e homens do povo revoltaram-se. Os ricos fugiram com a sua riqueza para comprarem a protecção dos Romanos. Os Gregos e os Fenícios apossaram-se das suas rotas comerciais. Até a sua língua morreu. - Citou suavemente o epitáfio: - “Ó antiga Veii! Em tempos foste um reino e havia um trono doirado no teu fórum. Agora o pastor ocioso toca flauta dentro dos teus muros; e, sobre os teus túmulos, ceifam-se os campos!”

- É bonito. Quem foi que escreveu isso?

- Um poeta latino, Propércio.

- Pergunto a mim própria o que escreverão sobre a nossa civilização.

- Pode não ficar ninguém para escrever uma única linha - disse Mendelius sombriamente -, e com certeza não haverá cenas campestres pintadas nas paredes dos nossos sepulcros. Pelo menos este povo esperava a continuidade. Nós ansiamos por um holocausto. Foi preciso um cristão para escrever o Dies Irae (1).

- Recuso-me a ter mais pensamentos lúgubres - disse firmemente Lotte. - Isto é muito bonito. Quero gozar este dia.

- As minhas desculpas. - Mendelius sorriu e beijou-a.

- Prepara-te para disfarçar o rubor. Os Etruscos também gostavam de sexo e pintaram algumas recordações disso bem bonitas.

- Óptimo! - exclamou Lotte. - Mostra-me primeiro as mais ousadas. E vê bem se é a mim que estás a dar a mão, e não à Hilde!

- Para uma mulher virtuosa, minha querida, tens um espírito bastante indecente!

- Considera-te grato por isso, meu amor - ripostou Lotte, com uma gargalhadinha feliz. - Mas, por amor de Deus, não digas nada aos miúdos!

Pegou-lhe na mão e fê-lo subir a passo ligeiro o declive que os separava do guarda a acenar. Era um homem novo de modos agradáveis, recentemente laureado em Arqueologia e cheio de entusiasmo pelo tema. Possuído de um temor

 

(1) Dia da Cólera: trata-se do título de uma das quatro prosas do missal romano, que se cantam nos ofícios fúnebres. (N. do T.)

 

respeitoso na presença de dois estudiosos, dedicou a sua atenção às mulheres, enquanto Mendelius e Herman Frank conversavam baixinho ao fundo. Herman estava virado para confidências.

- Já discuti as coisas com a Hilde. Decidimos seguir o seu conselho. Mudamo-nos para a quinta (gradualmente, claro está) e eu estabelecerei um programa de escrever. Se conseguisse arranjar um contrato para uma série de volumes, isso proporcionar-me-ia continuidade de trabalho e uma certa sensação de segurança financeira.

- É o que o meu agente recomenda - encorajou-o Mendelius. - Diz que os editores gostam desse tipo de projecto porque lhes dá tempo para criar um público leitor. Quando regressarmos a Roma, telefono-lhe para saber os progressos que fez. Passa sempre os fins-de-semana em casa.

- Há só uma coisa que me preocupa, Carl...

- Que é?

- Bem, é levemente embaraçador...

- Vamos! Somos velhos amigos. Qual é o problema?

- É a Hilde. Sou bastante mais velho do que ela. Já não sou tão bom na cama como era. Ela diz que não lhe faz diferença e eu acredito... provavelmente porque me convém acreditar, de qualquer maneira. Temos uma vida bastante boa em Roma: uma série de amigos e muitas visitas interessantes. Isso... bom, parece equilibrar as coisas. Quando sairmos daqui, terei o meu trabalho; mas ela ficará encafuada numa casa no meio das colinas como a mulher de um agricultor. Não sei bem como as coisas se passarão. Seria mais simples se tivéssemos filhos ou netos; mas, tal como as coisas são... se a perdesse, morria, Carl!

- E que é que te faz pensar que a vais perder?

- Aquilo! -Apontou para a frente, na direcção das duas mulheres e do guarda, que estava precisamente a abrir a fechadura do sepulcro seguinte. Hilde estava a gracejar com ele e o seu sonoro riso murmurante ecoava pelas colinas silenciosas. - Bem sei que sou um velho tonto, mas fico ciumento... e aterrorizado!

- Engole lá isso, homem! - Mendelius reagiu rispida-mente. - Engole isso e mantém a boca fechada. Vocês têm uma boa vida um com o outro. A Hilde ama-te. Gozem-na dia a dia! Ninguém dispõe de garantias eternas. Ninguém tem esse direito! Além disso, quanto mais te aterrorizares, pior serás na cama. Qualquer médico to dirá.

- Eu sei, Carl. Mas às vezes é difícil...

- É sempre difícil. - Mendelius recusou-se a ceder. - É duro quando a nossa mulher parece prestar mais atenção aos filhos do que a nós. É duro quando os filhos lutam pelo direito de crescerem de uma maneira diferente da nossa. É duro quando um homem como Malagordo sai para almoçar e uma rapariga bonita lhe enfia uma bala nos tomates! Ora vamos, Herman! De quanto açúcar precisas tu no café?

- Lamento muito.

- Não lamentes. Já desabafaste. Agora esquece o assunto. - Folheou o catálogo. - Este é o Túmulo dos Leopardos, com o flautista e o tocador de alaúde. Vamos entrar e juntar-nos às pequenas.

Enquanto estavam de pé no interior da antiga câmara, ouvindo o guarda expor o significado do fresco, Mendelius avaliou outra ideia dispersa. Jean Marie Barette, ex-papa, sentia-se impelido a proclamar a Parúsia; mas quereriam realmente as pessoas conhecê-la? Quereriam realmente escutar o profeta lúgubre a gritar do cimo da montanha? A natureza humana pouco tinha mudado desde 500 d. C., quando os Etruscos enterravam os mortos ao som de alaúdes e flautas e os encerravam num eterno presente, com comida e vinho e um leopardo amestrado por companhia, sob os ciprestes pintados.

Nessa noite Mendelius e Lotte jantaram fora numa trattoria na velha Via Apia. Quem os levou até lá foi o loquaz Francone e, quando eles protestaram contra o facto de ele trabalhar a hora tão tardia, ele silenciou-os com a frase já habitual: “Sou responsável perante Sua Eminência.” Mandou-os instalar-se de costas para a parede e depois retirou-se para comer na cozinha, de onde podia vigiar o pátio e certificar-se de que ninguém instalava uma bomba sob a limusina do cardeal.

O anfitrião daquela noite era Enrico Salamone, o editor das obras de Mendelius em Itália: um solteirão de meia-idade que apreciava mulheres exóticas e preferivelmente inteligentes. A sua companhia, dessa vez, era uma tal Madame Barakat, ex-mulher de um diplomata indonésio. Salamone era um editor astuto e bem sucedido, que admirava o academismo mas nunca desdenhava de um assunto corrente ou sensacional.

- Abdicação, Mendelius! Pense nisso. Um papa vigoroso e inteligente, apenas com sessenta e poucos anos, abandona a cátedra no sétimo ano do mandato. Tem de haver grossa história por detrás disso.

- E provavelmente há - retorquiu Mendelius, estudadamente casual. - Mas o seu autor havia de suar as estopinhas para a descobrir. Os melhores jornalistas do mundo não conseguiriam mais do que migalhas secas.

- Estava a pensar em si, Carl.

- Nem pense nisso, Enrico!-riu-se Mendelius. - Já tenho bastante com que me entreter.

- Eu bem tentei dizer-lho - disse Madame Barakat. - Ele devia procurar alguém de fora. O Ocidente é um mundo pequeno e incestuoso. Os editores deviam abrir novas janelas: para o Islão, para os budistas, para a índia. Todas as novas revoluções são religiosas no carácter.

Salamone fez um aceno relutante de concordância.

- Eu vejo. Eu sei. Mas onde estão os escritores que possam interpretar o Oriente para nós? O jornalismo não é suficiente; a propaganda é um tráfico de prostitutas. Precisamos de poetas e de narradores impregnados das tradições antigas.

- Parece-me - disse Lotte pesarosamente - que toda a gente grita alto de mais e com demasiada frequência. Não se podem contar histórias no meio de um tumulto. Nem se podem escrever poemas com a televisão aos berros.

- Bravo, querida! - Mendelius apertou-lhe a mão.

- É verdade! - Agora estava lançada e pronta a travar combate. - Não tenho uma grande cabeça, mas sei que o Carl fez sempre os seus melhores trabalhos num ambiente tranquilo, de província. Não me disseste sempre, Carl, que a maioria das pessoas concebe os seus livros fora da existência? E você também, Enrico! Uma vez disse que gostaria de fechar os seus escritores à chave até eles estarem em condições de sair de lá com um manuscrito terminado.

- Pois disse, Lotte. E é essa a minha opinião. Mas nem sequer aqui o seu marido é o eremita que finge ser. Que é que está realmente a fazer em Roma, Carl?

- Já lhe disse: trabalho de investigação, umas palestras e umas férias com a Lotte.

- Corre por aí - disse Madame Barakaí docemente - que foi encarregado de uma espécie de missão pelo anterior papa.

- Daí a minha sugestão para um livro - disse Enrico Salamone.

- Onde diabo foi você buscar esse disparate? - perguntou Mendelius, irritado.

- É uma longa história. - Salamone estava divertido, mas circunspecto. - Mas garanto-lhe que é autêntica. Como sabe, sou judeu. É lógico que o embaixador de Israel, bem como quaisquer visitantes que ele queira apresentar em Roma, sejam visitas de minha casa. E é igualmente lógico que falemos de assuntos de interesse mútuo. Ora bem... O Vaticano recusou-se sempre a reconhecer diplomaticamente o Estado de Israel. Esta recusa é puramente política. Não querem problemas com o mundo árabe. Gostariam, se pudessem, de garantir uma certa soberania sobre os Lugares Santos em Jerusalém. Reminiscências das Cruzadas! Havia esperanças de que essa posição pudesse alterar-se sob o reinado de Gregório XVII. Julgava-se que a sua reacção pessoal quanto às relações diplomáticas com Israel seria favorável. Assim, no início da Primavera, preparou-se um encontro particular entre o embaixador de Israel e o sumo pontífice. O papa foi franco relativamente aos seus problemas, quer no interior da sua própria Secretaria de Estado, quer no exterior, com os líderes árabes. Queria continuar a explorar a situação. Perguntou ao meu embaixador se um enviado pessoal e não oficial seria bem recebido em Israel. A resposta deles foi naturalmente afirmativa. O seu foi um dos nomes sugeridos pelo sumo pontífice.

- Meu Deus! - exclamou Mendelius, genuinamente abalado. - Tem de acreditar em mim, Enrico. Não sabia absolutamente nada disso.

- É verdade! - disse Lotte, apressando-se a apoiá-lo.

- Eu teria sabido. Isso nunca, mas nunca, foi referido... Nem sequer na última...

- Lotte, por favor!

- Desculpa, Carl.

- Portanto não houve missão nenhuma - interveio Madame Barakat, com melíflua brandura. - Mas houve comunicação?

- Particular, madame - retorquiu secamente Mendelius.

- Uma questão de velha amizade... E gostaria de mudar de assunto.

Salamone encolheu os ombros e ergueu as mãos em sinal de rendição.

- Óptimo! Mas não me queira mal por tentar. É isso que faz de mim um bom editor. Agora diga-me cá, como vai o novo livro?

- Devagar.

- Quando poderei contar com o manuscrito?

- Daqui a seis, sete meses.

- Esperemos que nessa altura ainda por cá andemos!

- Por que razão não haveria você de andar?

- Se lê os jornais, meu caro professor, deve saber que as grandes potências nos estão a preparar a todos para uma guerra.

- Precisam de mais doze meses - disse Madame Barakat. - Eu bem te digo sempre, Enrico. Nada antes de doze meses. Depois disso...

- Nada, nunca mais - disse Salamone. - Sirva-me o resto do vinho, Carl! Acho que vinha a calhar outra garrafa!

A noite já tinha perdido a graça; no entanto, tinham de suportá-la até ao fim. Ao regressarem a casa através da cidade adormecida, vinham muito juntos no automóvel e falavam baixinho, com receio de levarem Francone a lançar-se noutra tirada.

- Qual o significado de tudo aquilo, Carl? - perguntou Lotte.

- Não sei. O Salamone estava a tentar armar em esperto.

- E a Madame Barakat é uma boa peça!

- Ele sempre arranja cada uma, não arranja?

- As velhas amizades e as novas companhias de cama não ligam bem.

- Estou de acordo. O Enrico tinha obrigação de saber disso.

- Achas que aquilo do Jean Marie e dos Israelitas era verdade?

- Provavelmente, sim. Mas quem sabe? Roma sempre foi uma galeria de sussurros. O que é difícil é atribuir os nomes certos às vozes.

- Detesto esse tipo de criar mistérios.

- Também eu, minha querida.

Estava cansado de mais para dizer-lhe como se sentia realmente: um homem apanhado nas malhas de uma rede etérea, nas teias roçagantes de um pesadelo do qual não conseguia fugir nem acordar...

- Que fazemos amanhã? - perguntou sonolentamente Lotte.

- Se não te importas, tinha pensado em irmos à missa às Catacumbas; depois vamos almoçar ao Frascati. Só nós os dois.

- Não poderíamos alugar um automóvel e conduzirmos nós?

Mendelius soltou uma risadinha lamentosa e abanou a cabeça.

- Receio bem que não, querida. Há outra coisa que se aprende em Roma. Não há maneira de fugir aos cães de fila de Deus.

Domenico Francone poderia ser tagarela, mas era um cão de guarda muito bom. Contornou duas vezes o quarteirão antes de os deixar no apartamento dos Frank, e depois ficou a montar guarda até a velha porta se fechar atrás dele, isolando-os dos perigos da noite.

No Jardim de San Callisto, a buganvília flamejava, os roseirais começavam a florir e as pombas esvoaçavam ainda no pombal atrás da capela, tudo tal qual ele recordava da primeira visita, havia longos anos. Até os guias tinham ainda o mesmo aspecto: velhos devotos de uma dezena de países, que dedicavam os seus serviços de tradutores aos grupos de peregrinos que vinham render homenagem aos túmulos dos antigos mártires.

Não havia espectros na pequena capela, mas apenas uma extraordinária tranquilidade. Não havia horrores barrocos, nem grotescos medievais. Até os símbolos eram simples e cheios de graciosidade: a âncora da Fé, a pomba com o ramo de oliveira da Salvação, o peixe que trazia no dorso os pães da Eucaristia. As inscrições falavam todas elas de esperança e paz: “Vivos in Christo”, “In pace Christi”. A palavra “vale” - adeus - nunca era utilizada. Nem sequer os obscuros labirintos lá de baixo continham terrores. Os loculi, os nichos nas paredes onde os mortos eram sepultados, continham apenas cacos e fragmentos empoeirados.

Na capela dos papas, assistiram à missa dita por um padre alemão para um grupo de peregrinos da Baviera. A capela era uma ampla câmara abobadada onde, em 1854, o conde de Rossi descobrira os túmulos de cinco dos primeiros papas. Um deles tinha sido deportado como escravo das minas para a Sardenha e morrera no cativeiro. O seu corpo tinha sido recuperado e sepultado naquele local. Outro fora executado na perseguição de Décio, e outro ainda fora passado à espada à entrada da sepultura. Agora, a violência sob a qual tinham morrido estava quase esquecida. Dormiam ali em paz. A sua memória era celebrada numa língua que nunca haviam conhecido.

Enquanto ajoelhava com Lotte no pavimento de tufo calcário, correspondendo à bem conhecida liturgia, Mende-lius recordou o seu próprio sacerdócio e experimentou uma punhalada de ressentimento por estar hoje impedido do seu exercício. Não tinha sido assim na Igreja primitiva. Mesmo presentemente, os uniatas eram autorizados a casar, continuando sacerdotes, ao passo que os Romanos continuavam obstinadamente presos à sua regra do celibato, reforçando-a com o mito e a lenda histórica e com a legislação canónica. Ele escrevera abundante argumentação sobre o assunto, e continuava a combatê-lo em debates; no entanto, ele próprio, casado, era uma testemunha desacreditada, e os feitores da lei não queriam saber dele.

Mas que seria do futuro - do futuro próximo - quando se esgotasse a reserva de candidatos célibes e o rebanho exigisse ministros - homens ou mulheres, casados ou solteiros, tanto fazia, desde que ouvissem a Palavra e compartilhassem o Pão da Vida na caridade? Suas Eminências no Vaticano continuavam a iludir a questão, ocultando-se atrás de uma tradição cuidadosamente editada. Até Drexel a iludia, porque era velho de mais para combater e um soldado demasiado treinado para desafiar o alto comando. Jean Marie tinha enfrentado o problema na sua encíclica e isso era mais uma razão ainda para a suprimirem. Agora, os dias obscuros voltavam. O pastor seria abatido e o rebanho tresmalhado. Quem tornaria a reuni-lo e o acolheria em amor, enquanto as roseiras do mundo ruíam em torno deles?

Quando o celebrante ergueu a hóstia e o cálice após a Consagração, Mendelius curvou a cabeça e pronunciou uma muda e sentida oração: “Ó meu Deus, dá-me a luz bastante para que eu conheça a verdade, e coragem suficiente para fazer o que me for pedido!” Subitamente, deu por si a chorar, incontrolavelmente. Lotte estendeu o braço e pegou-lhe na mão. Ele agarrou-se a ela, mudo e desesperado, até a missa terminar e saírem ambos para o sol do caramanchão de rosas.

Na segunda-feira, de manhã cedo, enquanto Lotte tomava banho, Mendelius telefonou para o Hospital Salvator Mundi a informar-se dos progressos do senador Malagordo. Passaram-no, como da outra vez, da recepção para a irmã da enfermaria e desta para o homem da segurança. Finalmente disseram-lhe que o senador estava muito melhor e que gostaria de vê-lo o mais breve possível. Marcou o encontro para as 3 horas dessa mesma tarde.

Estava já a ficar inquieto, cada vez mais convencido de que o encontro de quarta-feira com Jean Marie constituiria uma espécie de reviravolta na sua vida. Se não conseguisse aceitar a revelação de Jean Marie, a relação que os unia modificar-se-ia irremediavelmente. Se a aceitasse, teria de aceitar igualmente a missão, qualquer que fosse a forma que ela assumisse. Em ambos os casos, teria de partir em breve e queria ter o mínimo de impedimentos sociais.

Tinha feito algum trabalho de investigação, mas estava demasiadamente preocupado para se concentrar na documentação nova, que, fosse como fosse, era fragmentária e de pouca importância. Na terça-feira terminaria as palestras aos evangélicos. Ainda estava irritado por causa da fuga de matérias de conferência para a imprensa, mas precisava de experimentar a reacção de uma assistência de protestantes a certas propostas de Jean Marie. Tinha ainda de cumprir a promessa de matéria para um artigo que fizera a Georg Rainer. Por enquanto, não fazia a mínima ideia do que lhe diria.

Lotte estava ainda no banho, de modo que recolheu os apontamentos e saiu para tomar o pequeno-almoço no terraço. Herman tinha saído cedo para a Academia, e Hilde estava sozinha à mesa. Serviu-lhe o café e a seguir anunciou com firmeza:

- Agora, eu e tu podemos ter uma pequena conversa. Há qualquer coisa que te anda a preocupar, Cario mio. Que é?

- Nada que eu não possa resolver.

- O Herman vê quadros; eu, por mim, interpreto as pessoas. E tudo na tua expressão indica a existência de problemas. Corre tudo bem entre ti e a Lotte?

- Claro que sim.

- Então que é que se passa?

- É uma longa história, Hilde.

- Eu sou uma boa ouvinte. Conta-me!

Contou-lhe, primeiro vacilante e depois numa torrente de palavras vivas, a história da amizade entre ele e Jean Marie Barette e a estranha conjuntura a que ele o havia conduzido. Ela escutou em silêncio; e ele achou um alívio exprimir-se sem a sobrecarga da argumentação ou da polémica. Quando terminou, disse apenas:

- E aí tens, minha linda. Só saberei mais alguma coisa quando me encontrar com o Jean Marie na quarta-feira.

Hilde Frank poisou-lhe a mão suavemente na face e disse com doçura:

- Isso é um peso dos diabos para alguém andar por aí com ele às costas... mesmo para o grande Mendelius! Além disso, ajuda a perceber outras coisas.

- Que coisas?

- A ideia romântica do Herman de viver de feijões e brócolos e queijo de cabra no cimo das montanhas.

- O Herman não tem conhecimento do que te contei agora sobre o Jean Marie.

- Então que diabo quer ele, que anda sempre a falar nisso?

- Tem medo que haja uma nova guerra. Todos nós temos. E preocupa-se contigo.

- Se se preocupa! Sabes qual foi a última ideia com que ele se saiu? Quer ir a correr a Zurique para fazer um enxerto de hormonas, no intuito de melhorar a nossa vida sexual. Eu já lhe disse que não valia a pena. Sinto-me perfeitamente feliz com as coisas tal como estão.

- E és mesmo feliz, Hilde?

- Por muito que te custe acreditar, sou! O Herman é uma jóia e eu amo-o. Quanto à questão do sexo, o facto é que eu também não sou lá grande coisa nesse campo... Nunca o fui. Ah, claro que gosto da parte carinhosa e aconchegadora... Não sou frígida, mas sou difícil e lenta de excitar, e o que obtenho em troca no final de tudo mal vale a maçada. Portanto, como vês, não há mesmo razão nenhuma para o Herman se preocupar.

- Então o melhor é dizeres-lho o mais frequentemente que possas - comentou Mendelius, tentando mostrar-se despreocupado. - Neste momento sente-se muito inseguro de si.

- Não te preocupes connosco, Carl. Nós cá nos arranjaremos. Sempre tenho conseguido entender-me com o Herman desde que casámos. Voltemos à tua história.

- Gostaria de ouvir a tua reacção a ela, Hilde.

- Bom, primeiro, vivi muito tempo em Itália, de modo que sou céptica relativamente a santos e milagres e virgens lacrimosas e frades que levitam durante a missa. Segundo, sou uma mulher bastante satisfeita, de modo que nunca senti atracção por videntes ou sessões de espiritismo ou grupos de encontros. Prefiro de longe fazer coisas divertidas. Por último, sou bastante egocêntrica. Desde que o meu cantinho do universo faça sentido, nem sequer penso no resto. De qualquer maneira, não há nada que eu possa fazer para modificá-lo.

- Nesse caso, vamos colocar a questão de outra maneira. Supõe que eu volto na quinta-feira de Monte Cassino e digo: “Acabo de estar com o Jean Marie, Hilde. Acredito que ele teve uma revelação verdadeira, que o mundo vai acabar e que vai ocorrer o Segundo Advento de Cristo.” Que farás tu?

- É difícil dizer. Com certeza não ia a correr à igreja, ou armazenar comida ou escalar ou Apeninos para esperar o Salvador ou assistir ao último pôr-do-sol. E tu, Carl? Como reagirás tu?

- Não sei, Hilde, minha linda. Tenho pensado nisso todos os dias e todas as noites, desde que li a carta do Jean Marie, mas ainda não sei.

- Claro que há uma maneira de encarar as coisas...

- Qual?

- Bem, se alguém vai realmente acabar com o diabo do mundo, tudo se torna insignificante. Em lugar de esperar pela última grande explosão, por que não comprar uma garrafa de uísque e um grande frasco de barbitúricos e pormo-nos a dormir? Acho que uma data de gente resolveria fazer isso mesmo.

- Tu fá-lo-ias? - perguntou Mendelius baixinho. - Serias capaz?

Ela voltou a encher ambas as chávenas e começou calmamente a barrar um croissant de manteiga.

- Podes ter a certezinha de que era capaz, Carl! E não quereria acordar e deparar com um deus que tinha incinerado os seus próprios filhos.

Disse-o com um sorriso; no entanto, Carl Mendelius sabia que ela queria dizer exactamente o que dissera.

Durante o trajecto para o Hospital Salvator Mundi, Dome-nico Francone, o tagarela, seguia taciturno e mal-humorado. Quando Mendelius fez notar que parecia estarem a seguir um percurso complicado, Francone ripostou-lhe rudemente:

- Eu sei o que faço, professor. Garanto-lhe que não vai chegar atrasado.

Mendelius digeriu a reprimenda em silêncio. Tão-pouco ele se sentia feliz, nem pouco mais ou menos. A conversa que mantivera com Hilde Frank suscitara mais e mais profundas questões sobre a veracidade de Jean Marie e a sensatez da sua encíclica. Lançara também uma nova luz sobre a atitude dos cardeais que o haviam deposto.

Em toda a literatura do Apocalipse, no Antigo e no Novo Testamento, nos documentos essénios e gnósticos, um tema especial persistia: os eleitos, os escolhidos, os filhos da Luz, a boa semente, as ovelhas amadas pelo Pastor que para sempre seriam apartadas das cabras. A salvação era exclusiva destes. Apenas eles resistiriam aos horrores dos últimos tempos e seriam considerados dignos de um julgamento misericordioso.

Tratava-se de uma doutrina perigosa, cheia de paradoxos e alçapões, de fácil apropriação por fanáticos e charlatães e pelos sectários mais extremistas. Um milhar de eleitos tinha cometido suicídio ritual na Guiana. Dez milhões de eleitos constituíram o Soka Gakkai do Japão. Outros três milhões tinham sido escolhidos para a salvação na Igreja da Unificação do reverendo Moon. Todos eles e outros milhões, em dez mil cultos exóticos, se consideravam os escolhidos e exerciam uma doutrinação intensa e uma servidão feroz, fechada e fanática.

Na eventualidade de um pânico universal, tal como aquele que a publicação da encíclica de Jean Marie poderia suscitar, como se comportariam esses sectários? A história de todas as grandes religiões apenas proporcionava as mais lúgubres previsões. Não fora há muito tempo que muçulmanos madistas tinham ocupado a Caba em Meca, feito reféns e derramado sangue no lugar mais sagrado do Islão. A possibilidade de a Parúsia poder ser antecedida de uma ampla e sangrenta cruzada dos do interior contra os forasteiros constituía um pesadelo. Contra tal horror, um suicídio rápido e indolor poderia afigurar-se a muitos a alternativa mais racional.

Era este o fulcro do problema que ele teria de liquidar com Jean Marie. Uma vez invocada a revelação particular, a razão ficava de fora. Ao que os racionalistas retorquiriam que, uma vez invocada qualquer espécie de revelação - por mais venerada pela tradição que ela fosse-, se estava condenado à mais extrema loucura.

Francone guinou para o acesso circular do Hospital Salvator Mundi e parou em frente da entrada. Não se apeou, limitando-se a dizer:

- Entre directamente, professor. Mexa-se depressa. Mendelius hesitou por uma fracção de segundo e a seguir abriu a porta do lado mais próximo e penetrou directamente no átrio de entrada. Quando olhou para o exterior, viu Francone arrumar o carro no espaço reservado ao pessoal médico, apear-se e caminhar rapidamente para a entrada. Mendelius aguardou que ele entrasse e depois perguntou:

- Para que foi tudo isso? Francone encolheu os ombros.

- Apenas uma precaução. Estamos num espaço fechado, sem nenhum lado para onde fugir. Suba lá acima e vá ver o senador. Eu tenho de fazer um telefonema.

Uma freira idosa com sotaque da Suábia acompanhou-o ao elevador. No quinto andar, um homem da segurança verificou-lhe os documentos e passou-o à irmã da enfermaria, uma mulher muito brusca que, pelos vistos, achava que os doentes se curavam melhor às mãos firmes da autoridade. Disse-lhe que podia estar um quarto de hora, não mais, com o paciente, que não devia, em caso algum, excitar-se. Mendelius curvou docilmente a cabeça. Também ele tinha padecido às mãos das servas do Senhor e sabia que era escusado discutir contra a sua resoluta virtude.

Encontrou Malagordo soerguido nas almofadas, com uma sonda de glicose amarrada ao braço esquerdo. O seu rosto magro e elegante iluminou-se de prazer à vista do visitante.

- Meu caro professor! Obrigado por ter vindo. Estava ansioso por vê-lo.

- Parece estar a recuperar bem. - Mendelius puxou uma cadeira para junto da cama. - Como se sente?

- Cada dia melhor, graças a Deus. Devo-lhe a vida. Consta-me que está em perigo por minha causa. Que posso eu dizer? Os jornais conseguem atingir uma irresponsabilidade...! Posso mandar vir café para si?

- Não, obrigado. Almocei tarde.

- Que acha do meu pobre país, professor?

- Foi meu, igualmente, durante uma data de anos, senador. Pelo menos percebo-o melhor do que a maioria dos estrangeiros.

- Recuámos quatro séculos, até ao tempo dos bandidos e dos condottieri! E vejo poucas perspectivas de melhoria. Tal como todos os outros mediterrânicos, somos tribos perdidas, brigando nas margens de um lago putrefacto.

A ode fúnebre tinha uma ressonância familiar para Mendelius. Os latinos choravam muito um passado que nunca existira. Tentou animar a conversa.

- Pode ser que tenha razão, senador, mas devo dizer-lhe que os vinhos ainda são bons no Castelli, e o spaghetti alla carbonara do Zia Rosa é magnífico como sempre. Minha mulher e eu almoçámos lá no domingo. O que foi agradável foi ela recordar-se de mim dos tempos de sacerdócio. Pareceu-me que aprovava a mudança.

O senador animou-se imediatamente.

- Dizem que ela era uma grande beldade.

- Agora já não. Mas é uma grande cozinheira e dirige aquela casa com pulso de ferro.

- Já foi ao Papagallo?

- Não.

- É outro sítio muito bom.

Houve um silêncio momentâneo, após o que Malagordo disse com forçada ironia:

- Estamos a falar de banalidades. Pergunto a mim próprio por que desperdiçamos tanto tempo de vida com elas.

- É uma precaução - disse Mendelius, com uma careta. - Vinho e mulheres são temas seguros. O dinheiro e a política levam a cabeças partidas.

- Vou retirar-me da política - disse Malagordo. - Assim que sair daqui, eu e a minha mulher vamos emigrar para a Austrália. Os nossos dois filhos estão lá, muito bem instalados nos negócios. Além disso, é a última paragem antes dos pinguins. Não quero estar na Europa na altura do grande colapso.

- Acha que ela vai atingir o colapso? - perguntou Mendelius.

- Tenho a certeza. Os armamentos estão quase todos prontos. Os mais recentes protótipos estarão operacionais dentro de um ano. Não há petróleo suficiente para toda a gente. Cada vez mais governos estão nas mãos de jogadores ou fanáticos. É a velha história: quando se é confrontado com tumultos no país, inicia-se uma cruzada no estrangeiro. O homem é um animal louco, e a loucura é incurável. Sabe aonde eu ia quando fui alvejado? Pedir a libertação de uma terrorista que está a morrer de cancro num cárcere de Palermo!

- Deus todo-poderoso!-blasfemou baixinho Mendelius.

- Penso que Ele ficará satisfeito ao ver esta raça de imbecis eliminar-se a si própria. - Malagordo fez um trejeito com a boca como se tivesse sido assaltado por uma repentina dor. - Já sei! Na boca de um judeu, isto é uma blasfémia. Mas eu já não acredito no Messias. Ele demorou demasiado tempo. E, seja como for, quem é que precisa desta porcaria de mundo para alguma coisa?

- Calma - disse Mendelius. - Se se excitar, põem-me fora. A irmã-enfermeira é um verdadeiro dragão.

- Uma vocação falhada - observou Malagordo, novamente bem-humorado. - Tem um corpo bem bonito debaixo daqueles trapos todos. Antes de se ir embora... - Procurou debaixo da almofada e extraiu de lá um pequeno volume embrulhado em papel brilhante e atado com um fio dourado. - Tenho um presente para si.

- Não havia necessidade disso - contrapôs Mendelius, embaraçado. - Mas obrigado. Posso abri-lo?

- Faça favor!

O presente era uma pequena caixa dourada com tampa de vidro. Dentro da caixa estava um fragmento de cerâmica com uma inscrição em caracteres hebraicos. Mendelius retirou-o e observou-o cuidadosamente.

- Sabe que é isso, professor?

- Parece um ostracon.

- Pois é. Consegue ler as palavras?

Mendelius percorreu-as lentamente com a ponta do dedo.

- Parece-me que dizem Aarão ben Ezra.

- Exactamente! Veio de Masada. Dizem que é provavelmente um dos fragmentos que foram utilizados para tirar as sortes quando os elementos da guarnição judaica preferiram matar-se uns aos outros a cair nas mãos dos Romanos.

Mendelius ficou profundamente emocionado. Abanou a cabeça.

- Não posso aceitar. Francamente, não posso.

- Tem de aceitar - disse Malagordo. - É o que consigo arranjar que se aproxime mais de um agradecimento como deve ser: tudo o que resta de um herói judeu, pela vida de um senador de meia-tigela, que já nem homem é sequer. Agora vá-se embora, professor, antes que eu faça uma figura triste!

Quando chegou ao piso térreo, deparou-se-lhe Francone à sua espera. Ao dirigir-se para a saída, Francone poisou-lhe uma mão no braço, detendo-o.

- Vamos aguardar aqui uns minutos, professor.

- Porquê?

Francone apontou para fora das portas de vidro. Havia dois carros da Polícia estacionados no acesso e mais quatro lá fora, na estrada. Dois enfermeiros transportavam uma maca para uma ambulância sob o olhar de uma multidão curiosa. Mendelius ficou embasbacado ante a cena. Francone explicou concisamente o que se passava.

- Fomos seguidos até aqui, professor. Por um automóvel. Depois chegou outro e estacionou mesmo à saída do portão. Tinham ambas as entradas cobertas. Felizmente, eu dei pela perseguição logo que saímos da cidade. Telefonei para a Squadra Mobile assim que chegámos. Eles bloquearam ambos os extremos da rua e apanharam quatro dos filhos da mãe. Um morreu.

- Por amor de Deus, Domenico! Por que não me avisou?

- Ter-lhe-ia estragado a visita. Além disso, que poderia ter feito? Como lhe disse, professor, eu sei como estes mas-calzoni trabalham.

- Obrigado! - exclamou Mendelius, estendendo uma mão húmida e pouco firme. - Espero que não conte nada à minha mulher.

- Quando uma pessoa trabalha para um cardeal - disse Francone com sisuda condescendência -, aprende a manter a boca fechada.

 

- Caros colegas - começou Carl Mendelius, sorridente e benigno, ajustando os óculos e examinando a assistência -, começo hoje por uma leve repreensão a uma pessoa ou pessoas desconhecidas...

[...]

- Sei que viajar sai caro. Sei que os ministros do Evangelho são muito mal pagos. Sei que é prática comum complementarmos os nossos rendimentos, ou o nosso orçamento para deslocações, recorrendo ao fornecimento de relatos das conferências à imprensa. Nada tenho a objectar a essa prática, desde que seja aberta e declarada; mas penso que passar relatos para a imprensa em segredo e sem informar os colegas é faltar às normas de cortesia académica. Um dos membros deste grupo criou-me consideráveis embaraços relatando a um jornalista importante que eu acreditava que o fim do mundo podia estar iminente. É verdade que eu disse isso nesta sala; porém, fora do contexto do nosso grupo e das suas discussões específicas, a afirmação poderia ser considerada frívola ou tendenciosa. Não peço uma confissão por parte do informador. No entanto, peço garantias de que aquilo que aqui se disser hoje apenas será comunicado com nosso pleno conhecimento. Quem concorda quer fazer o favor de levantar o braço? Obrigado. Alguém discorda? Ao que parece, estamos entendidos. Nesse caso, comecemos.

“Falámos sobre a doutrina das últimas coisas: consumação ou continuidade. Exprimimos opiniões divergentes acerca da questão. Aceitemos agora, por hipótese, que a consumação é possível e iminente: que o mundo vai acabar brevemente. Como deverá o cristão reagir'a essa ocorrência?... O senhor, na terceira fila.

- Wilhelm Adler, de Rosenheim. A resposta é que o cristão (ou qualquer outra pessoa, para o caso) não pode responder a uma hipótese, mas apenas a um acontecimento. Foi esse o erro dos escolásticos e dos casuísticos. Tentaram prescrever fórmulas morais para todas as situações. Impossível! O homem vive no aqui-e-agora, e não no talvez.

- Muito bem! Mas não é verdade que a prudência humana aconselha que ele se prepare para o talvez?

- Poderá dar um exemplo, Herr professor?

- Com certeza. Os primeiros seguidores de Cristo eram judeus. Continuaram a viver uma vida judaica. Praticavam a circuncisão. Observavam as regras dietéticas. Frequentavam as sinagogas e liam as Escrituras... Ora Paulo (aliás Saulo) de Tarso empreende a sua missão junto dos gentios, os não judeus, para os quais a circuncisão é inaceitável e as leis dietéticas inexplicáveis. Não vêem qualquer sentido na mutilação física. São obrigados a comer aquilo que conseguem arranjar. Subitamente, ei-los que passam da teoria à prática. A questão simplifica-se. É fora de dúvida que a salvação não está dependente do prepúcio de um homem; tão-pouco é determinada pelo facto de ele se matar à fome.

Riram-se do dito, aplaudindo o humor rabínico. Mendelius prosseguiu:

- Paulo estava preparado para o acontecimento. Pedro não. Na ausência de uma prescrição das Escrituras, tinha de descobrir a justificação da sua nova posição numa visão... “Toma e come”, lembram-se?

Lembravam-se, e soltaram um murmúrio de concordância.

- Ora, então, vamos ao nosso “talvez”. Os últimos dias estão próximos. De que maneira estamos preparados para eles?

Desta vez, hesitaram. Mendelius forneceu-lhes outro exemplo.

- Um pequeno número dos presentes tem idade suficiente para recordar os últimos dias do Terceiro Reich: um país em ruínas, a revelação de crimes monstruosos, uma geração de homens destruída, todo um etos corrompido, a sobrevivência como único objectivo visível! Para aqueles de nós que se lembram, não será pelo menos uma analogia razoável com a catástrofe do milénio? Mas estamos aqui hoje porque, algures, de algum modo, a fé, a esperança e a caridade sobreviveram e deram novamente frutos. Faço-me entender?

- Sim - foi a resposta, num coro em surdina.

- Nesse caso, como... - desafiou-os firmemente - como garantimos nós que a fé e a caridade sobreviverão, se e quando os últimos dias estiverem próximos? Se for preciso, esqueçam-se dos últimos dias. Suponham que, como muitos vaticinam, nos defrontamos com uma guerra atómica dentro de doze meses: que fariam?

- Morrer! - exclamou uma voz sepulcral lá do fundo, e toda a sala irrompeu numa gargalhada.

- Minhas senhoras e meus senhores! - exclamou Mendelius, soltando uma risada irreprimível. - Eis um verdadeiro profeta que fala! Quererá ele subir para aqui e tomar o meu lugar?

Ninguém se moveu. Passados instantes, o riso dissolveu-se no silêncio. Agora mais calmamente, Mendelius continuou.

- Gostaria agora de ler-lhes um excerto de um documento preparado por um grande amigo meu, cujo nome não posso revelar. Peço-lhes que aceitem que se trata de um homem de grande santidade e invulgar inteligência; além disso, alguém que compreende a utilização do poder no mundo moderno. Após a leitura pedir-vos-ia que o comentem.

Fez uma pausa para limpar os óculos e depois iniciou a leitura de parte da encíclica de Jean Marie:

É evidente que nos dias da calamidade universal as estruturas tradicionais da sociedade não sobreviverão. Travar-se-á uma luta feroz pelas mais simples necessidades da vida: alimentos, água, combustível e abrigo. A autoridade será usurpada pelos fortes e pelos cruéis. As grandes sociedades urbanas fragmentar-se-ão em grupos tribais.

Sentiu as palavras tomá-los e a tensão começar novamente a crescer. Terminada a leitura, o silêncio afigurava-se um muro diante dele.

Afastou-se para trás da estante de leitura e perguntou com simplicidade:

- Algum comentário?

Houve uma longa pausa, após a qual uma mulher se levantou.

- Sou Henni Borkheim, de Berlim. O meu marido é pastor. Temos dois filhos pequenos. Tenho uma pergunta. Como é que se mostra caridade a um homem que vem armado de uma pistola roubar-nos e apossar-se da última comida que temos para os filhos?

- E eu tenho outra! - exclamou o jovem que estava ao lado dela, levantando-se. - Como pode continuar a acreditar-se num deus que arquitecta ou autoriza uma calamidade tão universal... e depois julga as suas vítimas?

- Sendo assim - disse gravemente Mendelius -, talvez devêssemos todos colocar a nós próprios uma pergunta mais fundamental. Sabemos que o Mal existe, que o sofrimento e a crueldade existem, que podem facilmente propagar-se até ao extremo como o cancro no corpo. Poderemos realmente acreditar em Deus?

- O senhor acredita, professor? - perguntou Henni Borkheim, novamente de pé.

- Acredito, sim.

- Então queira fazer o favor de responder à minha pergunta!

- Já foi respondida há dois milénios. “Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem.”

- E é essa a resposta que o senhor daria?

- Não sei, cara amiga. - Ia acrescentar que ainda não fora crucificado, mas reconsiderou. Desceu do estrado e caminhou pelo meio da assistência até ao lugar onde a rapariga estava sentada com o marido. Falou calma e persuasivamente.

- Está a ver o problema que arranjamos quando exigimos um testemunho pessoal em todas as questões? Não sabemos, nem podemos saber, como agiremos. Sabemos, sim, como deveríamos agir! Mas não há processo de sabermos antecipadamente como o faremos numa situação imediata. Lembro-me de, quando era pequeno, a minha mãe estar a falar com a minha tia acerca da vinda dos Russos. Eu não devia estar a ouvir, mas ouvi. A minha mãe estendeu-lhe um boião de geleia lubrificante e disse: “É melhor a pessoa descontrair-se e sobreviver do que resistir e ser assassinada”... De qualquer das formas é violação, e não há milagre prometido para a evitar; nem legislação para abranger a ocasião do caos. - Sorriu e estendeu a mão à jovem. - Não vamos altercar, mas sim discutir pacificamente.

Houve um leve murmúrio de concordância quando apertaram as mãos; a seguir, Mendelius colocou outra questão:

- Num mundo plural, quem são os eleitos? Nós, os Romanos, vocês, os luteranos, os sunitas ou os chiitas do Islão, os mórmones de Salt Lake City, os animistas da Tailândia?

- Com respeito ao indivíduo, não nos cabe distinguir - disse um pastor grisalho, pondo-se esforçadamente de pé. Tinha as mãos nodosas de artrite. Falava entrecortadamente, mas com convicção. - Não nos foi confiada a missão de julgarmos outros homens segundo as nossas opiniões. Apenas nos é ordenado que amemos a imagem de Deus nos nossos companheiros de peregrinação.

- Mas também nos é ordenado que mantenhamos a pureza da fé, que propaguemos a boa nova de Cristo - disse o pastor Allmann, de Darmstadt.

- Quando o senhor se sentar à minha mesa - disse pacientemente o velho -, eu ofereço-lhe a comida que tenho. Se o senhor não puder digeri-la, que hei-de eu fazer? Enfiar-Iha pela boca abaixo?

- Ora bem, meus amigos! - disse Mendelius, readquirindo o comando da reunião. - Quando a noite escura cai no grande deserto, quando não há o esteio de uma nuvem nem uma centelha de lume para iluminar o caminho, quando a voz da autoridade se calou e nada ouvimos a não ser a confusão da velha discussão, quando Deus parece ausentar-se do seu próprio universo, para quem nos viramos? Em quem podemos lucidamente acreditar?

Regressou lentamente ao púlpito e, num longo silêncio, aguardou que alguém respondesse.

- Tenho medo, querida! Tenho tanto medo que me apetecia fugir daqui e embarcar no primeiro avião de regresso à Alemanha!

Era meio-dia e meia hora e estavam a tomar um almoço antecipado num restaurante sossegado próximo do Panteão, antes da partida de Mendelius para Monte Cassino. Separado deles por duas mesas, Francone enfiava espaguete na boca e mantinha a porta sob vigilância. Lotte inclinou-se para Mendelius por sobre a mesa e limpou-lhe um salpico de molho do canto da boca. Depois censurou-o com firmeza:

- Com franqueza, Carl, não sei a que propósito vem toda essa ralação! És um homem livre. Vais encontrar-te com um velho amigo. Não és obrigado a aceitar nenhum encargo, nenhuma obrigação, para além desta visita.

- Ele pediu-me que o julgasse.

- Não tinha o direito de exigir-to.

- Ele não exigiu... Pediu-mo, implorou-mo! Escuta, querida, estou farto de pensar e repensar nisto. Já o discuti por todos os lados, e nem mesmo assim estou mais perto de uma resposta. O Jean Marie está a pedir-me um acto de fé tão grande como... como acreditar na Ressurreição! Não sou capaz desse acto.

- Então diz-lhe isso!

- E digo-lhe porquê? “Jean, não és doido, não és um intrujão; não és vítima de uma ilusão, amo-te como a um irmão... mas Deus não sustenta diálogos em jardins da província sobre o fim do mundo; e eu não acreditaria nem que aparecesses com os estigmas e a coroa de espinhos e tudo!”

- Se é isso que pensas, diz-lho.

- O problema é que acho que penso uma coisa completamente diferente. Começo a acreditar que os cardeais tiveram razão em ver-se livres do Jean Marie.

- Por que razão dizes isso?

- Decorre dos meus diálogos na Academia... e até de uma conversa que tive com a Hilde Frank. O único fim que as pessoas conseguem enfrentar é o seu. A catástrofe total está para além da sua compreensão e provavelmente da sua capacidade de abordar. É um convite ao desespero. O Jean Marie encara-o como um apelo à caridade evangélica. Eu penso que conduziria ao desabamento quase total da comunicação social. Quem foi que disse “o véu que oculta o rosto do futuro foi tecido pela mão da Misericórdia”?

- Nesse caso, acho - disse firmemente Lotte - que deves ser tão honesto com o Jean Marie como estás a querer ser contigo próprio. Ele pediu-te um julgamento. Concede-lho!

- Quero fazer-te uma pergunta directa, querida. Achas que eu sou um homem honesto?

Ela não respondeu directamente. Apoiou o queixo nas mãos e olhou-o durante um longo instante sem falar. Depois, muito suavemente, disse-lhe:

- Lembro-me do dia em que te conheci, Carl. Estava com a Frederika Ullman. íamos a descer a escadaria espanhola, duas raparigas alemãs, na primeira visita a Roma. Estavas lá, sentado nos degraus ao lado de um rapaz que estava a pintar um quadro muito mau. Estavas de calças pretas e camisola de gola alta preta. Nós parámos para ver o quadro. Ouviste-nos falar alemão e dirigiste-te a nós. Sentámo-nos ao teu lado, todas satisfeitas por encontrarmos alguém com quem conversar. Convidaste-nos para tomar chá e bolos na English Tea Shop. Depois desafiaste-nos para um passeio de carrozza. E lá fomos nós, sempre a trotar até ao Campo del Fiori. Quando lá chegámos mostraste-nos aquela maravilhosa estátua pensativa de Giordano Bruno e contaste-nos do seu julgamento e condenação à fogueira, por heresia, naquele mesmo local. Nessa altura disseste: “Era o que eles gostariam de me fazer.” Eu pensei que estivesses bêbedo ou que fosses um tanto desaparafusado, até que explicaste que eras um padre sob suspeita de heresia. Tinhas um ar tão solitário, tão obcecado, que conquistaste imediatamente a minha simpatia. Depois citaste as últimas palavras de Bruno aos juízes: “Penso, senhores, que tendes mais medo de mim do que eu de vós.” Estou a olhar para o mesmo homem que vi nesse dia. O mesmo homem que disse: “Bruno era um falsário, um charlatão, um espírito confuso, mas há uma coisa de que estou certo: morreu como um homem honesto!” Amei-te nessa altura, Carl. E amo-te agora. Faças tu o que fizeres, certo ou errado, sei que morrerás como um homem honesto!

- Espero bem que sim, querida! - disse Carl Mendelius gravemente. - Espero em Deus conseguir ser honesto para com o homem que nos casou!

 

Às três e meia em ponto, Francone depositou-o nos portais do grande Mosteiro de Monte Cassino. O encarregado dos hóspedes deu-lhe as boas-vindas e conduziu-o ao quarto, uma sala simples pintada de branco, mobilada com uma cama, uma secretária e uma cadeira, um guarda-fatos e um oratório sobre o qual estava pendurado um crucifixo esculpido em madeira de oliveira. Abriu os postigos revelando uma vista impressionante sobre o vale Rápido até às ondulantes colinas do Lazio. Sorriu ante a surpresa de Mendelius e disse:

- Está a ver? Estamos já a meio caminho do Céu! Espero que lhe agrade a estada entre nós.

Aguardou enquanto Mendelius arrumava os seus poucos pertences e depois conduziu-o pelos corredores nus e ressonantes até ao gabinete do abade. O homem que se pôs de pé para o saudar era baixo e magro, de rosto seco e envelhecido, cabelos de cinzento-metálico e o sorriso de uma criança feliz.

- Prof. Mendelius! Muito prazer em conhecê-lo! Sente-se, por favor. Quer um café, ou porventura um cordial?

- Não, obrigado; parámos para tomar um café na auto-strada'. É muito amável da sua parte receber-me.

- Vem com as melhores recomendações, professor.

- Havia um leve indício de ironia no sorriso inocente. - Não quero roubá-lo por muito tempo à companhia do seu amigo, mas achei que devíamos conversar antes.

- Claro. Disse-me pelo telefone que ele tinha estado doente.

- Vai achá-lo mudado. - O abade escolheu cuidadosamente as palavras. - Sobreviveu a uma experiência que teria esmagado um homem menos forte. Agora está a passar por outra: mais difícil, mais intensa, porque se trata de uma luta interior. Eu aconselho-o o melhor que posso. O resto da irmandade apoia-o com as suas orações e as suas atenções; mas ele é como um homem consumido por um fogo que lavra dentro de si. Pode ser que se abra consigo. Se não o fizer, faça-lhe ver que o compreende. Não insista com ele. Sei que ele lhe escreveu. E sei o que lhe pediu. Sou confessor dele e não posso discutir o assunto consigo, porque ele não me autorizou a fazê-lo. Por outro lado, o senhor não está submetido às minhas ordens e não posso ter a pretensão tão-pouco de guiar a sua consciência.

- Nesse caso, talvez possamos dizer abertamente um ao outro o que pensamos.

- Talvez. - O sorriso do abade Andrew era enigmático.

- Mas antes acho que deve conversar com o nosso amigo Jean.

- Há certas questões que se levantam. Ele quer mesmo encontrar-se comigo?

 

(1) Em italiano no original. (N. do T.)

 

- Ah, sim, claro que sim.

- Nesse caso, por que razão, tendo eu escrito a um e outro, ele não me respondeu tal como o irmão? Quando telefonei, por que não o convidou para falar comigo?

- Não foi indelicadeza, garanto-lhe.

- Então que foi?

O abade manteve-se silencioso durante um longo instante, examinando as costas das compridas mãos. Finalmente disse, com lentidão:

- Há alturas em que lhe não é possível comunicar com ninguém.

- Há nessa frase qualquer coisa de ameaçador.

- Pelo contrário, professor. Estou convencido, com base na minha observação pessoal, de que o nosso amigo Jean atingiu um alto grau de contemplação, aliás o estado a que se dá o nome de “iluminativo”, no qual, durante certos períodos, o espírito está totalmente absorvido na comunicação com o Criador. Trata-se de um fenómeno raro, mas não invulgar nas vidas dos grandes místicos. Durante esses períodos de contemplação, o sujeito não reage a nenhum estímulo exterior. Terminada a experiência, regressa imediatamente à normalidade. Mas não lhe estou a dizer nada que não saiba das suas leituras.

- Sei igualmente - redarguiu secamente Carl Mendelius - que os estados catatónicos e catalépticos são bem conhecidos na medicina psiquiátrica.

- Também tenho conhecimento disso, professor. Nós aqui não estamos completamente na Idade Média. O nosso fundador, S. Bento, era um legislador sábio e tolerante. Talvez o surpreenda saber que um dos nossos padres é um médico bastante notável, com doutoramentos em Pádua, Zurique e Londres. Entrou para a Ordem há apenas dez anos, depois da morte da mulher. Examinou o nosso amigo. Por indicação minha, aconselhou-se com outros especialistas no assunto. Está convencido, tal como eu, de que estamos em presença de um místico e não de um psicótico.

- Informou disso as pessoas que o declararam louco?

- Informei o cardeal Drexel. Quanto aos outros... - soltou uma leve risada divertida. - Trata-se de homens muito ocupados. Prefiro não os incomodar nas suas questões importantes. Mais alguma pergunta?

- Apenas uma - disse gravemente Mendelius. - Acredita que o Jean Marie é um místico, iluminado por Deus. Acredita também que lhe foi feita uma revelação da Parúsia?

O abade franziu as sobrancelhas e abanou a cabeça.

- Mais tarde, meu amigo! Depois de ter falado com ele. Depois lhe direi no que acredito. Vamos! Ele está à espera no jardim. Eu levo-o até junto dele.

Estava de pé no meio do jardim do claustro, um vulto alto e magro, envergando o hábito negro dos beneditinos, a dar migalhas aos pombos que esvoaçavam aos seus pés. Ao ouvir o som dos passos de Mendelius voltou-se, fitou-o por um breve instante e depois apressou-se a ir ao seu encontro, de braços estendidos, enquanto os pombos rodopiavam em pânico por cima da sua cabeça. Mendelius travou-o a meio caminho e apertou-o num longo abraço, impressionado ao sentir, mesmo através do grosso tecido do hábito, como ele era magro e frágil. As suas primeiras palavras foram um grito abafado:

- Jean... Jean, meu amigo!

Jean Marie Barette apertou-o, dando-lhe palmadas nas costas e repetindo uma porção de vezes:

- Grâce à Dieu... Grâce à Dieu!

Depois ficaram agarrados, de braços esticados, observando o rosto um do outro.

- Jean! Jean! Que lhe fizeram eles? Está magro como um espeto.

- Eles? Nada. - Extraiu um lenço da manga do hábito e deu umas palmadinhas nas faces de Mendelius. - Toda a gente se tem desfeito em gentilezas. Como está toda a sua família?

- Bem, graças a Deus. A Lotte está cá em Roma. Encarregou-me de lhe transmitir a sua amizade.

- Agradeça-lhe por ma confiar. Rezei para que viesse depressa, Carl!

- Eu queria vir mais cedo, mas não podia sair de Tubinga antes do fim do período.

- Eu sei... eu sei! E agora li no jornal que está envolvido num tiroteio de terroristas em Roma. Isso preocupa-me.

- Por favor, Jean! Isso não tarda a ser esquecido. Conte-me coisas de si.

- Vamos passear um pouco? Isto aqui é muito agradável. Sente-se a brisa das montanhas, fresca e limpa, mesmo nos dias mais quentes.

Tomou o braço de Mendelius e começaram a caminhar lentamente os dois em torno dos claustros, entabulando uma conversa de circunstância, hesitante, enquanto o primeiro embate da emoção se esvaía e se apossava deles a calma de uma velha amizade.

- Sinto-me muito confortável aqui - disse Jean Marie. - O abade Andrew é muito atencioso. Agrada-me o ritmo do dia, as horas do ofício cantadas em coro, o trabalho tranquilo. Um dos irmãos é um excelente escultor de peças de madeira. Sento-me na oficina dele a observar. Odoro o cheiro das aparas da madeira! Hoje é feriado. Fui eu que fiz a sobremesa que vai comer ao jantar. É uma velha receita que a minha mãe utilizava. A fruta vem do nosso pomar. Na cozinha concluíram que eu era muito melhor como cozinheiro do que como papa. E como lhe corre a vida a si, Carl?

- Bem, Jean. Os miúdos estão a começar a seguir a sua própria vida. A Katrin está perdidamente apaixonada pelo seu pintor e o Johann é um brilhante aluno de Económicas. Descobriu que já não é crente. Esperemos que ele consiga tactear o caminho para regressar à fé; mas, seja como for, é um bom rapaz. A Lotte e eu, bom, estamos neste momento começando a gozar a meia-idade juntos. O novo livro vai andando. Pelo menos ia, até que o Jean me varreu tudo da cabeça. Não me parece que tenha havido uma hora sequer em que tenha estado ausente dos meus pensamentos.

- E você nunca esteve longe dos meus, Carl. Era como se fosse o último madeiro a que eu me podia agarrar depois do naufrágio. Não me atrevia a deixá-lo ir-se. Encaro aquelas últimas semanas no Vaticano com verdadeiro horror.

- E agora, Jean?

- Agora estou tranquilo... mesmo que ainda não em paz, porque continuo a lutar por despojar-me dos últimos entraves a uma completa conformidade com a vontade de Deus. Não pode imaginar como é difícil, quando devia ser tão simples, abandonarmo-nos inteiramente aos Seus desígnios, dizer e querer dizer isso mesmo: “Aqui estou, um instrumento nas Vossas mãos. Utilizai-me conforme Vos aprouver.” A confiança tem de ser absoluta; mas uma pessoa tenta sempre (mesmo sem o saber) criar uma barreira contra os riscos da aposta.

- E eu era parte dessa barreira? - perguntou Mendelius com um sorriso e um toque com a mão de modo a suavizar a questão.

- Era, Carl. Creio que ainda o é; mas creio também que é parte do desígnio de Deus a meu respeito. Caso não tivesse escrito, caso se tivesse recusado a vir, eu teria sido obrigado a pensar de outra maneira. Rezei desesperadamente, pedindo forças para enfrentar a possibilidade de uma recusa.

- Continua a ser uma possibilidade, Jean - disse Mendelius, com uma gravidade suave. - Pediu-me para o julgar.

- Já chegou a um veredicto?

- Não. Tinha de falar primeiro consigo.

- Vamos sentar-nos, Carl. Além, no banco de pedra. Era ali que eu estava sentado quando aquilo aconteceu. Mas, antes disso, há outras coisas a contar-lhe.

Instalaram-se no banco. Jean Marie apanhou uma mão-cheia de seixos do caminho e começou a atirá-los a um alvo imaginário. Começou a falar num tom despreocupado, num tom de reminiscência desagradável.

- Deixe que lhe diga com toda a franqueza, Carl, que, apesar de todos os rituais protestos em contrário e dos actos públicos de humildade, queria realmente ser papa. Durante toda a minha vida fui um carreirista dentro da Igreja. Estou a utilizar a palavra na acepção francesa. Formei-me à minha própria custa. Em jovem combati no maquis. Entrei para o seminário já homem, certo da minha vocação e dos meus motivos. Mais ainda, compreendi instintivamente como o sistema funciona. É como Saint-Cyr ou Oxford ou Harvard... Desde que se conheçam as regras do jogo, as probabilidades são a nosso favor. Não há nisto qualquer descrédito... não é isso o que estou a dizer. Estou simplesmente a fazer notar que há, que tem de haver, um elemento de ambição, um elemento de cálculo. Eu tinha ambição. E tinha igualmente um bom e metódico espírito francês.

“Portanto, fui um bom padre, um bom bispo de diocese. Sinceramente! Esforcei-me bem para isso. Consumi uma boa porção de amor. Mantive o povo junto, mesmo os jovens. Lancei experiências sociais. Atraía vocações para o sacerdócio, enquanto outros as perdiam. Os meus diocesanos diziam-me que experimentavam uma sensação de unidade, de objectivo religioso. Em suma, tinha de ser, mais tarde ou mais cedo, candidato ao barrete cardinalício. E por fim ele foi-me oferecido, sob a condição de eu ir para Roma e passar a pertencer à Cúria. Claro que aceitei. Fui nomeado prefeito do Secretariado para a Unidade Cristã e subprefeito do Secretariado para os Não-Crentes. Como sabe, tratava-se de cargos pouco importantes. O poder em si residia nas congregações importantes: doutrina da fé, episcopal e assuntos clericais.

“Apesar disso senti-me muito satisfeito. Tinha acesso ao sumo pontífice. Tinha carta branca, oportunidade de viajar e de estabelecer contactos muito para além do enclave romano. Foi nessa altura que nos conhecemos, Carl. Há-de lembrar-se dos entusiasmos que compartilhámos. Era como ter um camarote na ópera!... E havia boas e grandes coisas a fazer...

“A certa altura, porém, comecei a ver quão pouco tinha levado a cabo... ou alguma vez levaria, se vamos a isso.

Na minha terra, se eu fundasse uma escola ou um hospital, os resultados lá estavam, tangíveis e consequentes. Via os moribundos confortados pelas irmãs. Via as crianças ensinadas segundo a tradição religiosa. Mas como cardeal em Roma... o quê? Planos e projectos e discussões e uma nova impressora para imprimir os documentos, mas entre mim e o povo tinha sido erguida uma barreira. Eu deixara de ser um apóstolo. Era um diplomata, um político, um intermediário, e não me agradava a pessoa que via em mim. E ainda me agradava menos o sistema: pesado, arcaico, dispendioso e cheio de cantinhos confortáveis onde os preguiçosos podiam passar a vida a dormir e os intriguistas florescer como plantas exóticas numa estufa.

“No entanto, se quisesse modificar as coisas (e acredite que queria!), tinha de manter-me dentro da Cúria. Tinha de trabalhar dentro dos limites do meu próprio temperamento. Sou um persuasor, e não um ditador. Detesto a indelicadeza. Nunca dei um murro numa mesa em toda a vida!

“Assim, quando o meu antecessor morreu e o conclave se viu num beco sem saída, elegeram-me a mim, Jean Marie Barette, Gregório XVII, sucessor do Príncipe dos Apóstolos!

- Atirou para o caminho os seixos que restavam e colocou-se penosamente de pé. - Importa-se de ir até à oficina do irmão Edmund, Carl? Lá está mais quente e podemos continuar em privado. Quando anoitece sinto frio.

Dentro da oficina, no meio da animada desordem dos toros e das aparas e das ferramentas e um hirsuto S. João Baptista meio nascido de um bloco de carvalho, empoleiraram-se como meninos da escola no banco do carpinteiro, enquanto Jean Marie continuava a sua história.

- E eis-me subitamente, meu caro Carl, guindado ao lugar mais elevado a que um homem pode ascender na cidade de Deus. Os meus títulos testemunhavam a minha eminência e a minha autoridade: sumo pontífice da Igreja Universal, patriarca do Ocidente, primaz da Itália... et patati et patata! - Deu uma gargalhada de genuíno divertimento.

- Posso dizer-lhe. Carl, que, quando nos postamos pela primeira vez naquela varanda e lançamos os olhos pela Praça de S. Pedro e ouvimos as palmas da multidão, acreditamos realmente que somos alguém! É muito fácil esquecer que Cristo era um profeta errante que dormia em grutas, e Pedro um pescador num lago da Galileia e que João, o Precursor, foi assassinado numa cela de prisão.

“Depois disso, claro está, aprende-se muito depressa. Todo o sistema está concebido para nos cercar da aura da autoridade absoluta, bem como para obviar resolutamente a que façamos uso dela. As longas cerimónias litúrgicas e as aparições em público são peças de teatro em que somos dirigidos tal como os actores. As nossas audiências privadas são oportunidades diplomáticas. Dizemos banalidades. Benzemos medalhas. Somos fotografados para a posteridade dos nossos visitantes.

“Entretanto, a burocracia vai moendo, filtrando o que chega até à nossa secretária, limando e parafraseando o que sai das nossas mãos. Estamos cercados de conselheiros cujo único fito parece ser protelar a decisão. Não podemos agir a não ser por intermediários. Não há horas suficientes no dia para digerirmos um décimo da informação que nos é apresentada... e a sintaxe dos documentos da Cúria é concebida com tantos cuidados como a linguagem rebuscada dos funcionários americanos ou o palavreado ambíguo dos marxistas.

“Recordo-me de ter falado disto ao presidente dos Estados Unidos e, mais tarde, ao primeiro-ministro da República Popular da China. Ambos me disseram a mesma coisa por palavras diferentes. O presidente, um fulano com muita piada, disse: “Primeiro castram-nos e depois esperam que ganhemos o campeonato do Kentucky (1).” O primeiro-ministro disse-o de uma maneira bastante mais delicada: “O senhor tem quinhentos milhões de súbditos. Eu tenho quase o dobro. É por isso que o senhor precisa do fogo do Inferno e eu de campos de castigo... e a morte há-de levar-nos a ambos antes de o trabalho ter chegado a meio.” A outra coisa é essa, Carl: a nossa própria mortalidade torna-nos desesperados, e os líderes desesperados são muito vulneráveis. Ou nos rodeamos de sicofantas, ou nos consumimos numa batalha quotidiana com homens tão resolutos como nós.

- Ou somos tentados a criá-los.

Jean Marie lançou-lhe um rápido olhar astuto.

- Os políticos têm os seus instrumentos de propaganda. O papa tem os seus taumaturgos. É isso o que está realmente a dizer, não é, Carl?

- É um aspecto a ter em conta, Jean. Tinha de colocá-lo a si.

- A resposta é fácil. Sim, desejamos milagres. Rezamos a Deus para que mostre por vezes a Sua mão neste planeta cruel. Mas criá-los para nós próprios, ou descobrirmos em nós próprios um mago pronto a utilizar, ou adoptar um da colheita anual de soi-disant santos... não. Carl! Eu não! O que

 

(1) Corrida de cavalos que se realiza no dia 1 de Maio em Louisville, no estado de Kentucky, E. U. A. (N. do T.)

 

me aconteceu foi real, e não suscitado. Foi um tormento, e não uma graça.

- Mas tentou realmente explorá-lo?

- Acredita nisso, meu velho amigo?

- Pergunto-o, porque há quem acredite... e outros ainda podem vir a dizê-lo.

- E eu não posso proporcionar prova em contrário.

- Exactamente, Jean! Para utilizar os termos da análise bíblica, você pretende ter tido uma experiência de revelação particular, mas não pode pedir um acto de fé no seu testemunho insustentado. Por conseguinte, tem de haver um sinal legitimador. Os cardeais temiam que o obtivesse invocando o dogma da infalibilidade. Estavam desesperados por ver-se livres de si antes que pudesse fazê-lo.

Jean Marie franziu o cenho à ideia por momentos, mas depois acenou afirmativamente.

- Sim, aceito as suas definições. Pretendo ter tido uma experiência de revelação. E falta-me um sinal legitimador que me autorize a proclamá-la.

- Correcção - interveio Mendelius, franzindo o sobrolho perante a frase. - Que o autorize a proclamá-la como sumo pontífice da Igreja Universal.

- Mas olhe aqui para o nosso S. João Baptista - contrapôs Jean Marie, passando a mão pela escultura por acabar. - Saiu do deserto, pregando que o reino de Deus estava perto, que os homens deviam arrepender-se e baptizar-se. E qual era a sua patente de autoridade? Passo a citar: “A palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto.” - Sorriu e encolheu os ombros. - Pelo menos há precedentes, Carl! Mas deixe-me continuar. Estávamos a falar do poder e das suas limitações. Uma coisa que eu tive como papa foi sem dúvida o acesso a informações... e das mais altas fontes. Viajei. Falei com chefes de Estado. Eles mandaram-me emissários.

“Todos eles, sem excepção, enfrentavam o mesmo terrível dilema. Eram escolhidos para servir um interesse nacional. Se falhassem nessa tarefa, seriam depostos. Mas sabiam que em determinado ponto teriam de contrabalançar o interesse nacional com outros interesses, igualmente imperativos; e, se esse equilíbrio falhasse, o mundo seria lançado numa guerra atómica.

“Sabiam mais, Carl, mais do que alguma vez se atreveram a tornar público: que os meios de destruição são tão grandes, tão mortíferos, tão para além de qualquer antídoto, que podem varrer a humanidade e tornar o próprio planeta inadequado para a vida humana. O que esses homens importantes me disseram era uma coisa de pesadelo, e os pesadelos perseguiam-me, dia e noite. Tudo o resto se tornava mesquinho e irrelevante: discussões dogmáticas, algum pobre padre a saltar para a cama com uma criada, se as mulheres deveriam tomar a pílula ou andar com um cartãozinho para anotar os seus períodos menstruais a fim de evitar fornecer carne para canhão destinada ao dia de Armagedão. Compreende, meu amigo? Compreende realmente?

- Compreendo, Jean - disse Mendelius com sombria convicção. - Talvez mesmo melhor do que você, porque tenho filhos e você não. A este respeito, não estamos em igualdade de circunstâncias. Mas tenho de fazer-lhe notar que não precisava de nenhuma visão para lhe mostrar o desastre final. Ele estava já impresso a fogo no seu cérebro. Foi você próprio que lhe chamou coisa de pesadelo... e os pesadelos podem ter-se a dormir ou acordado!

- E o resto, Carl? A salvação final, a justificação última do plano redentor de Deus, a Parúsia? Foi também sonho meu?

- Pode ter sido. - Mendelius construiu lentamente a resposta. - Digo-lhe como historiador, digo-lhe como homem e como estudioso das crenças da humanidade, que o sonho das últimas coisas obceca a memória popular de todas as raças que existem debaixo do Sol. Está expresso em todas as literaturas, em todas as artes, em todos os rituais fúnebres conhecidos do homem. As formas são diferentes, mas o sonho persiste, agarrando-se às nossas almofadas na escuridão, formando-se durante o dia através das nuvens de tempestade e dos ralâmpagos da trovoada. Eu compartilho do sonho consigo; mas quando você diz, como na sua encíclica: “...sou encarregado pelo Espírito Santo de escrever-vos estas palavras”, tenho de perguntar, como os seus colegas, se está a falar simbolicamente ou no sentido real. Se é no sentido real, mostre-me o edicto e o selo; prove-me que a mensagem é autêntica!

- Bem sabe que não o posso fazer - disse Jean Marie Barette.

- Exactamente - tornou Carl Mendelius.

- Mas, se admite que o sonho das últimas coisas é um sonho autêntico de toda a humanidade (e uma evidente tradição da doutrina cristã), por que não havia eu de dizê-lo, quer tivesse havido visão ou não?

- Porque você a determina! - contrapôs implacavelmente Mendelius. - Determina-a pela circunstância, pela ocasião aproximada. Pede preparativos imediatos e específicos. Liquida toda e qualquer esperança de continuidade... e encerra-se numa doutrina de eleição tão restrita que será rejeitada pela maioria do mundo e também por metade da nossa Igreja. Para os que a aceitarem, as consequências podem ser desastrosas: pânico generalizado, desordens públicas e quase certamente uma onda de suicídios.

- Os meus parabéns, Carl! - disse Jean Marie, endereçando-lhe um sorriso de irónica aprovação. - Desenvolveu uma argumentação esplêndida, melhor ainda do que aquela que os meus cardeais apresentaram.

- Deixo-a por aqui - observou Carl Mendelius.

- E espera que eu lhe responda?

- Pediu-me na sua carta que propagasse a mensagem que você já não podia proclamar. Tem de provar-me que é autêntica.

- Como, Carl? Que prova o convenceria? Uma sarça ardente? Um bordão transformado numa serpente? Aqui o nosso S. João Baptista surgir para a vida deste bloco de madeira?

Antes que Mendelius tivesse tempo de arquitectar uma resposta, o sino do Mosteiro começou a tocar. Jean Marie escorregou do banco de carpinteiro e sacudiu a serradura da túnica.

- Hoje é feriado. As vésperas são meia hora mais cedo. Quer juntar-se a nós na capela?

- Se for permitido - disse baixinho Mendelius. - Já esgotei as respostas humanas.

- Não há nenhuma - comentou Jean Marie Barette, e citou baixinho: - ”Nisi dominus aedificaverit domum... Se não for o Senhor a edificar a casa, em vão trabalham os construtores!”

Na capela, ainda prevalecia a antiga ordem hierárquica. O superior sentava-se no lugar de honra, com os seus conselheiros em redor. Jean Marie, ex-papa, tomava lugar entre os frades menores. Carl Mendelius foi colocado entre os noviços, com um breviário emprestado nas mãos. Era uma experiência estranha e pungente, como se tivesse percorrido trinta anos para trás até à velha vida monástica na qual fora educado. Todas as cadências do canto gregoriano eram familiares. A letra dos salmos evocava vívidas cenas dos seus tempos de estudante; lições e debates e longas e dolorosas discussões com os superiores no período que antecedera a sua saída.

“Ad te domine, clamabo...”, entoava o coro. “A Vós suplico, Senhor, meu rochedo: não sejais surdo para mim! Não suceda que, perante o Vosso silêncio, eu seja semelhante àqueles que descem ao túmulo! Ouvi a voz da minha súplica quando clamo por Vós, quando levanto as mãos para o Vosso santo templo.”

As invocações tinham também um novo significado para ele. O silêncio que tombara entre ele e Jean Marie era sinistro. Subitamente tinham passado a ser dois estranhos, encontrando-se um com o outro numa terra de ninguém, cada um deles falando uma língua desconhecida do outro. O deus que fala a Jean Marie tinha-se mantido silencioso para Carl Mendelius.

“Retribuí-lhes segundo as obras das suas mãos”, ecoava o canto pela nave abobadada, “entregai-lhes o que merecem.” E a resposta surgiu, sombria e ameaçadora: “Porque não consideraram as obras do Senhor... Ele os destrua e não os restabeleça.”

Mas... mas - continuava Mendelius a debater teimosamente a questão no meio do contraponto da salmodia - qual a compreensão que estava certa? Se o salto da fé não fosse um acto racional, tornava-se uma demência, à qual ele não podia entregar-se, nem que essa recusa significasse a ruptura dos laços que o ligavam a Jean Marie. Era "uma hipótese triste de encarar decorridos tantos anos de vida, quando a mera erosão do tempo consumia tantas relações prezadas.

Ficou satisfeito quando a cerimónia terminou e se juntou à comunidade para a refeição de dia de festa no refeitório. Teve oportunidade de rir com as leves piadas da congregação, prestar homenagem à sobremesa de Jean Marie, discutir com o irmão arquivista os recursos da biblioteca e com o abade a qualidade dos vinhos dos Abruzos. Quando a refeição terminou e os frades passaram à sala comum para as diversões da noite, Jean Marie abeirou-se do abade e perguntou:

- Pode dispensar-nos, irmão superior? Eu e o Carl temos ainda coisas a discutir. Depois leremos as completas juntos, na minha cela.

- Claro... Mas não deixe que ele se mantenha acordado até muito tarde, professor! Estamos a ver se conseguimos que ele tenha cuidado consigo próprio.

A cela de Jean Marie era tão nua como o quarto dos hóspedes. Não havia ornamentos a não ser o crucifixo, e os únicos livros eram a Bíblia, um Livro de Horas e uma edição em francês da Imitação de Cristo. Jean Marie despiu o hábito, beijou-o e pendurou-o no roupeiro. Vestiu uma camisola de lã por cima da camisa e sentou-se na cama de frente .para Mendelius. A seguir disse, com uma ponta de ironia:

- Ora cá estamos, Carl! Nem papismos nem fradarias: apenas dois homens tentando ser honestos um para com o outro. Deixe-me fazer-lhe agora umas perguntas. Acha que eu estou são de espírito?

- Acho, sim, Jean.

- E sou um mentiroso?

- Não.

- E a visão?

- Acredito que a experiência que descreveu na carta foi real para si. Acredito que é absolutamente sincero na interpretação que tem dela.

- Mas não se compromete com essa interpretação.

- Não posso. O mais que posso fazer é não pôr a hipótese de parte.

- E o favor que lhe pedi?

- Propagar a notícia da catástrofe e do Advento? Não posso fazê-lo, Jean. Não o farei. Já lhe expliquei alguns dos motivos; mas há também outros. Você abdicou por causa disso! Usou o anel do Pescador. Possuiu o selo do supremo mestre. Cedeu-os! Se não podia proclamar como papa aquilo em que acredita, que quer de mim? Já não sou clérigo. Sou um estudioso laico. Estou privado da autoridade de ensinar dentro da Igreja. Que espera que eu faça? Que ande por aí a formar pequenas seitas de cristãos milenaristas? Isso já foi feito antes, lá para os tempos de Montano e Tertuliano... e as consequências foram sempre desastrosas.

- Não é isso que pretendo, Carl.

- É o que aconteceria! Queira ou não queira, teria a anarquia carismática.

- Há-de haver anarquia seja como for!

- Nesse caso, recuso-me a contribuir para ela.

- Vou dizer-lhe mais uma coisa, Carl! A missão que agora recusa, há-de aceitá-la um dia. A luz que não consegue ver há-de ser-lhe revelada. Um dia sentirá a mão de Deus no ombro, e caminhará para onde quer que ela o conduza.

- Por amor de Deus, Jean! Que é você? Algum oráculo? Não pode acumular profecia sobre profecia e tirar daí alguma coisa que não seja loucura. Agora, escute! Eu sou o Carl Mendelius, lembra-se? Pediu-me que fizesse um juízo. Pois vou fazê-lo! Julgo que nos conta coisas de mais e coisas de menos! Você era o papa. Diz que teve uma visão. Na visão Deus chamou-o a proclamar a iminência da Parúsia. Ora bem, enfrente este facto: você não a proclamou! Cedeu a um grupo de poder. Por que deixou que eles o silenciassem, Jean? Por que se mantém silencioso nesta altura? Você abdicou do único púlpito do qual poderia ter falado ao mundo! Por que razão espera que um professor de meia-idade da Suábia recupere aquilo que você deitou à rua? - A raiva e a frustração de Mendelius libertaram-se numa última tirada azeda. - O Drexel disse-me que você se tornou um místico. Isso é uma coisa óptima, tradicional... e poupa uma bela carga de trabalhos à instituição, porque até os jornais fogem dos possessos de Deus! Mas o que escreveu na sua encíclica significava a vida ou a morte para milhões de pessoas neste pequeno planeta. Era realidade ou ficção? Precisamos de um testemunho completo! Não podemos manter-nos à espera enquanto Jean Marie Barette joga às escondidas com Deus no jardim de um mosteiro!

Apenas pronunciara estas palavras, envergonhou-se da sua brutalidade. Jean Marie manteve-se calado durante um longo instante, fitando as costas das mãos. Finalmente respondeu, com um domínio glacial:

- Pergunta-me por que razão abdiquei. O conflito que me opunha à Cúria era mais desesperado do que possa imaginar. Se eu decidisse manter-me em funções, teria havido quase certamente um cisma. O Sacro Colégio ter-me-ia deposto e eleito um rival. Os nossos argumentos seriam motivo de disputa durante meio século. Papas e antipapas são uma velha história, que poderia repetir-se neste caso. Mas viver e morrer com isso a pesar-me na consciência... não! Você acabou de utilizar uma metáfora feroz: “Jean Marie a jogar às escondidas com Deus no jardim de um mosteiro.”

- Desculpe, Jean. Não era isso que eu queria...

- Pelo contrário, Carl, você queria dizer exactamente aquilo que disse; mas está enganado. Eu não estou a jogar às escondidas. Estou aqui muito quieto, à espera que Deus volte a falar comigo e me diga o que devo fazer. Sei da necessidade de um sinal legitimador... mas não posso ser eu próprio a dar esse sinal. Mais uma vez, espero. Falámos sobre milagres, Carl: sinais e maravilhas! erguntou-me se eu alguma vez tinha rezado por eles. Oh, claro que sim! Quando os cardeais vieram discutir comigo, dia após dia, quando apareceram os médicos, todos muito sérios e clínicos, eu rezei: “Dai-me qualquer coisa para lhes mostrar que não estou louco, que não sou um mentiroso.” Antes de você chegar, implorei uma e outra vez: “Pelo menos fazei com que o meu Carl me acredite.” Bem!... - Sorriu e encolheu os ombros muito à maneira francesa. - Parece-me que terei de esperar mais tempo para ser legitimado. Agora vamos ler as completas?

- Antes disso, Jean, deixe dizer-lhe uma coisa. Vim como amigo. Quero partir como amigo.

- Assim há-de ser. Por que vamos rezar?

- Pela última vontade de Goethe: Mehr Licht, mais luz!

- Amen!

Jean Marie puxou do breviário. Mendelius sentou-se ao lado dele na estreita cama e, juntos, recitaram os salmos da última hora canónica do dia.

Na manhã seguinte era mais fácil falar. As palavras mais duras tinham já sido ditas. Não havia assunto de discussão nem medo de mal-entendidos. No jardim da visão, o jardineiro manejava a enxada. O irmão-sacristão colhia novas rosas para as jarras do altar. Entretanto, Jean Marie Barette, ex-papa, atirava migalhas de pão aos pombos empertigados e Carl Mendelius expendia a sua opinião pessoal.

- Quanto à questão da sua revelação particular, Jean, sou agnóstico. Não sei. Por conseguinte, não posso agir. No entanto, quanto à questão da nossa relação (velhos amigos do peito!), por pouca fé que eu tenha, tenho ainda muito amor. Peço-lhe que acredite nisso!

- Acredito, sim.

- Não posso aceitar uma missão na qual não acredito... e para me encarregar da qual você não dispõe de autoridade. Mas posso fazer alguma coisa para verificar as suas ideias sobre uma audiência internacional.

- E como se proporia fazer tal coisa, Carl?

- De duas maneiras. Primeiro, poderia combinar com um tal Georg Rainer, um jornalista de renome, a publicação de um relato fiel da sua abdicação. Segundo, eu próprio escreveria para a imprensa internacional uma dissertação pessoal sobre o meu amigo que foi Gregório XVII. Nessa dissertação chamaria a atenção para as ideias expressas na sua encíclica. Finalmente, podia garantir que um e outro dos textos fossem levados ao conhecimento das pessoas que estão na sua lista diplomática. Compreenda o que eu estou a propor, Jean. Não é um apoio à causa, nem uma cruzada, mas sim uma história honesta, um retrato simpático, uma exposição clara das suas ideias tal como as entendi... com uma possibilidade de desmentido total se você não gostar do que quer que seja que for escrito.

- É uma oferta generosa, Carl - disse Jean Marie, tocado. Mendelius precatou-se:

- Está bem longe daquilo que pedia. Além disso exporá as lacunas e fragilidades da sua posição. Por exemplo, nem mesmo a mim, neste nosso encontro, explicou grande coisa do seu estado espiritual.

- Que posso eu dizer-lhe, Carl? - O desafio implícito pareceu surpreendê-lo. - Por vezes encontro-me numa escuridão tão profunda, tão ameaçadora, que me parece ter sido despido de toda a forma humana e condenado a uma solidão eterna. Outras vezes sou banhado por uma calma luminosa, ficando totalmente em paz, e no entanto harmoniosamente activo, como um instrumento nas mãos de um grande mestre. Não consigo ler a partitura, nem sinto ânsia de interpretá-la, mas apenas uma serena confiança de que o sonho do compositor seja realizado em mim a todo o momento. O problema, meu caro Carl, é que quer o terror quer a calma me colhem desprevenido. Desaparecem tão depressa como surgiram e deixam os meus dias tão cheios de buracos como um queijo suíço. Por vezes, dou por mim no jardim, ou na capela ou na biblioteca, sem fazer ideia de como fui ali parar. Se isto é misticismo, Carl, que Deus me ajude! Antes queria arrastar-me da maneira purificadora que é norma do comum dos mortais! Como vai explicar isto aos leitores, é problema seu.

- Então concorda mesmo com o tipo de publicação que eu sugiro?

- Sejamos muito precisos a esse respeito. - Havia nos seus olhos um ar travesso. - Sejamos muito romanos e diplomatas. Nenhum jornalista precisa da minha autorização para especular sobre a história actual. Se você, meu sábio amigo, quiser escrever sobre mim ou sobre as minhas opiniões, não posso impedi-lo. Deixemos as coisas assim, está bem?

- Com muito prazer! - exclamou Mendelius, rindo com genuíno divertimento. - Agora, uma pergunta mais. Poderia, estaria disposto, a encarar a possibilidade de vir comigo passar umas férias a Tubinga? A Lotte adoraria tê-lo como hóspede. Para mim, seria como ter um irmão em casa.

- Obrigado, meu caro amigo, mas não! Se eu pedisse, o irmão superior ficaria embaraçado. Os problemas diplomáticos seriam demasiado delicados. Além disso, nunca poderemos estar mais próximos do que neste momento. Sabe, Carl, quando eu estava no Vaticano, via o Mundo em perspectiva: um vasto planeta com os seus numerosos milhões, esforçados e temerosos, sob a ameaça da nuvem em forma de cogumelo. Aqui, percepciono tudo em ponto pequeno. Todo o amor e ternura e cuidados que possuo estão concentrados no rosto humano mais próximo. Neste instante é o seu rosto, Carl; você em todos e todos em si. Não é fácil de exprimir... mas foi essa a agonia por que eu passei na visão: a pura simplicidade das coisas e a esplêndida e terrível unicidade do Todo-Poderoso... e dos seus desígnios.

Mendelius franziu o sobrolho e abanou a cabeça.

- Quem me dera poder compartilhar dessa visão, Jean. Mas não posso. Acho que já temos horrores que cheguem sem o deus do holocausto final. Conheci muito boa gente que preferiria a escuridão eterna à visão de Xiva, o Destruidor.

- É assim que O vê, Carl?

- Em Roma - disse calmamente Mendelius - há assassinos que estão à minha espera para me matarem. Tenho menos medo deles que de um deus que é capaz de bater com a tampa do seu baú dos brinquedos e arremessá-lo ao fogo. É por isso que não posso pregar a sua catástrofe milenar, Jean... nem que ela seja inevitável, um horror decretado da eternidade.

- Não é Deus que é o assassino, Carl... nem é Deus que há-de carregar no botão vermelho.

Carl Mendelius manteve-se silencioso durante um longo intervalo de tempo. Tirou as migalhas da mão de Jean Marie e começou a atirá-las às aves. Quando, finalmente, voltou a falar, foi para proferir uma banalidade.

- O cardeal Drexel pediu que lhe telefonasse depois desta visita. Que quer que eu diga?

- Que estou satisfeito, que não tenho má-vontade contra ninguém, que todos os dias rezo por eles.

- Reze também por mim, Jean. Sou um homem sedento num deserto tenebroso.

- A escuridão há-de passar. Depois verá a aurora e o poço da doce água.

- Espero que sim. - Mendelius levantou-se e estendeu a mão para ajudar Jean Marie a pôr-se de pé. - Não prolonguemos as despedidas.

- Escreva-me de vez em quando, Carl.

- Todas as semanas. Prometo-lho.

- Deus o acompanhe, meu amigo.

Estreitaram-se num último abraço silencioso. A seguir Jean Marie afastou-se - um escuro vulto frágil cujos passos ressoavam cavamente no pavimento do claustro.

- Fez-me uma pergunta, professor. - O abade acompanhava-o até ao portão do Mosteiro. - Eu disse que lhe daria a resposta hoje.

- Estou curioso de saber qual é, irmão superior.

- Acredito realmente que o nosso amigo foi contemplado com uma visão da Parúsia.

- Então, outra pergunta. Sente-se obrigado a fazer alguma coisa relativamente a isso?

- Nada de especial - disse suavemente o abade. - No fim de contas, um convento é um lugar onde os homens se reconciliam com as últimas coisas. Contemplamos; oramos; mantemo-nos preparados, de acordo com o mandamento; somos caritativos para com a comunidade e o viandante.

- Na sua boca, parece muito simples - comentou Mendelius, sem se impressionar.

- Simples de mais, frouxo de mais. - O abade lançou-lhe um rápido olhar de soslaio. - É isso que quer realmente dizer, não é? Que é que sugeriria que eu fizesse, meu amigo? Mandar os meus frades pregar o apocalipse pelas aldeias da montanha? Quantas pessoas pensa que lhes dariam ouvidos? Continuarão a ver a equipa de futebol do Lazio quando soar a última trombeta! Que vai fazer agora?

- Terminar as férias com a minha mulher. Regressar e preparar-me para as lições do próximo ano... Cuide do Jean por mim.

- Prometo-lho.

- Com a sua licença, escrever-lhe-ei regularmente.

- Deixe-me garantir-lhe que a vossa correspondência se manterá privada.

- Obrigado. Posso deixar uma oferta ao encarregado dos hóspedes?

- Será bem recebida.

- Estou-lhe grato pela hospitalidade.

- Um pequeno conselho, meu amigo.

- Sim?

- Não pode lutar contra Deus. Ele é um adversário forte de mais. E tão-pouco pode dirigir o Seu universo, mas apenas o pequeno jardim que Ele lhe deu. Goze-o enquanto puder.

 

- Foi um episódio muito doloroso para si.

Drexel verteu as borras do café na chávena de Mendelius e estendeu-lhe o último biscoito.

- Pois foi, Eminência.

- E agora que terminou?

- O problema é esse - replicou Mendelius, erguendo-se da cadeira e dirigindo-se à janela. - Não terminou coisa nenhuma. Para o Jean Marie, sim! Realizou os últimos actos de um crente: um acto de submissão à sua própria mortalidade e um acto de fé na continuada intervenção benéfica do espírito nos assuntos humanos. Eu ainda não cheguei lá. E sabe Deus se alguma vez chegarei. Detestei regressar hoje ao Vaticano. Detestei a pompa e o poder, os impedimentos históricos de congregações e tribunais e secretariados, todos eles dedicados a quê? À mais esquiva das abstracções: a relação do homem com um Criador que não se pode conhecer! Ainda bem que o Jean está livre de tudo isso.

- E o meu amigo? - O tom do cardeal era muito suave. - Também quer ver-se livre disso?

- Oh, certamente! - retorquiu Mendelius, dando meia volta para o enfrentar. - Mas não consigo, da mesma maneira que não posso livrar-me da minha mãe ou do meu pai ou dos meus mais remotos antepassados. Não posso deitar fora as tradições que me enformaram. Não posso abandoná-las e não as caluniarei. Portanto, espero.

Fez um encolher de ombros de derrota, após o que se deteve, cabisbaixo e silencioso, a contemplar o plácido jardim lá de fora.

- Espera - incitou-o Drexel - o quê, Mendelius?

- Sabe Deus o quê! A última aurora antes do holocausto. O dedo ardente a escrever na parede. Espero, e nada mais! Cheguei a dizer-lhe (não, devo ter-me esquecido) que o Jean Marie fez também uma profecia a meu respeito?

- Que disse ele?

- Disse - Mendelius citou as palavras numa voz uniforme - “a missão que agora recusa, há-de aceitá-la um dia. A luz que não consegue ver há-de ser-lhe revelada. Um dia sentirá a mão de Deus no ombro e caminhará para onde quer que ela o conduza”.

- E acreditou nele?

- Quis acreditar, mas não fui capaz.

- Eu acredito - disse calmamente Drexel. Mendelius perdeu o domínio de si e desafiou rudemente

Drexel:

- Então, em nome de Deus, por que não acreditou no resto? Por que deixou que os outros o destruíssem?

- Porque não podia pô-lo em perigo. - Havia na sua voz qualquer coisa de infinitamente patético. - Como você, e talvez até mais do que você, precisava da segurança de ser aquilo que sou, um homem importante num sistema antigo que suportou a prova dos séculos. Tinha medo da escuridão. Precisava da luz tranquila e fresca da tradição. Não queria mistérios, mas apenas um deus que eu pudesse suportar, uma autoridade à qual, em boa consciência, pudesse curvar-me. Quando o momento chegou, não estava preparado. Não podia repelir o passado nem abdicar da minha função no presente. Não me julgue com demasiada severidade, Mendelius! Não julgue nenhum de nós. Você é mais livre e mais afortunado.

Mendelius inclinou-se ante a reprimenda e disse, com desconsolada humildade:

- Fui grosseiro e injusto, Eminência. Não tinha o direito de...

- Por favor! Nada de desculpas! - exclamou Drexel, detendo-o com um gesto. - Pelo menos conseguimos ser francos um com o outro. Deixe explicar-lhe mais uma coisa. Nos tempos antigos, quando o mundo estava cheio de mistérios, era fácil ser crente: nos espíritos que habitavam o bosque, no Deus que enviava os trovões. Nesta época estamos todos condicionados à ilusão visual. O que vemos é o que existe. Tirando-lhe os símbolos visíveis de uma organização estabelecida (as catedrais, a igreja paroquial, o bispo com a sua mitra), a assembleia cristã, para muitos, deixa de existir. Uma pessoa pode falar até ficar roxa no espírito duradouro e no corpo místico; mas até mesmo entre o clero estará a falar para surdos. Subconscientemente, as pessoas associam estas coisas aos cultistas e aos carismáticos. A palavra segura é disciplina: disciplina, autoridade doutrinal e a missa solene do cardeal no domingo! Já não há lugar para santos errantes. A maioria das pessoas prefere uma religião simples. Uma pessoa faz a sua oferenda no templo e sai com a salvação metida num embrulho. Acha que algum pároco no seu juízo perfeito vai pregar urna igreja carismática ou uma diáspora cristã?

- É provável que não - respondeu Mendelius, com um sorrisinho relutante. - Mas têm de capacitar-se de um facto.

- Qual?

- Que todos nós pertencemos a uma espécie ameaçada: o homem do milénio!

Drexel ponderou a frase por momentos e depois acenou em sinal de aprovação.

- Um pensamento pacificador, Mendelius. Merece uma meditação.

- Ainda bem que pensa assim, Eminência. Tenciono incluí-lo na minha dissertação sobre Gregório XVII.

Drexel não mostrou surpresa. Perguntou, quase como se se tratasse de uma questão académica:

- Acha que uma dissertação dessas é oportuna neste momento?

- Mesmo que o não fosse, Eminência, acho que é uma questão de mera justiça. Até o mais humilde funcionário é homenageado quando se reforma, quanto mais não seja com umas linhas na folha oficial. Espero poder consultar Vossa Eminência em questões de facto... Talvez até persuadi-lo a expressar a sua opinião sobre certos aspectos da história recente.

- Sobre questões de facto - disse calmamente Drexel - terei muito prazer em colaborar, encaminhando-o para as fontes adequadas. Quanto às minhas opiniões... lamento, mas não são para publicar. O meu actual patrão não devia concordar. Mas agradeço-lhe o convite. E felicidades para a sua dissertação.

- Ainda bem que lhe agrada a ideia - comentou Mendelius, doce como o mel.

- Eu não disse que me agradava - objectou Drexel, cujo rosto escalavrado se animou de um sorriso fugaz. - Reconheço-a como um acto de piedade que, moralmente, tenho de louvar.

- Obrigado, Eminência - disse Carl Mendelius. - E obrigado pela protecção que nos dispensou, a mim e à minha mulher, durante a nossa estada aqui.

- Gostaria de poder alargá-la - observou gravemente Drexel -, mas, para onde vai, o meu poder não alcança. Vá com Deus, professor!

Eram cinco da tarde quando Francone o deixou no apartamento. Lotte e Hilde estavam no cabeleireiro e Herman ainda não tinha voltado da Academia, de forma que dispunha de tempo e de privaticidade para tomar banho, descansar e pôr as ideias em ordem antes de relatar aos outros as suas experiências em Monte Cassino. Havia uma coisa que o alegrava: já não estava obrigado ao sigilo. Podia discutir as questões envolvidas, submeter as suas opiniões ao confronto quer dos beatos quer dos cínicos e exprimir as suas dúvidas na linguagem da gente simples, em lugar do maçudo dialecto dos teólogos.

Estava ainda longe de dar-se por satisfeito com as explicações que Jean Marie lhe dera. A descrição dos seus estados místicos, que evidentemente outras pessoas tinham testemunhado, parecia demasiado frouxa, demasiado familiar, demasiado - procurou hesitante a palavra - demasiado derivada da vasta quantidade de escritos devocionais. Jean Marie era preciso quanto às possibilidades de um conflito catastrófico. Era, mesmo em termos visionários, vago acerca da natureza da Parúsia propriamente dita. A maior parte dos escritos apocalípticos eram vívidos e pormenorizados. A revelação de Jean Marie Barette era demasiado lata e geral para merecer crédito.

Em termos psicológicos havia também uma contradição entre a opinião que Jean Marie tinha de si próprio, a de um carreirista nato, e a sua trágica incapacidade de exercer o poder numa crise. A sua disposição, para não dizer a sua ânsia, para aceitar uma defesa, mesmo que parcial, na imprensa popular era triste, se não levemente sinistra, num homem que sustentava ter tido um diálogo privado com o Omnipotente.

No entanto, no entanto... Ao sair para o esplendor do Sol no terraço, Mendelius foi obrigado a admitir que era mais fácil censurar Jean Marie Barette pelas costas do que humilhá-lo cara a cara. Ele não recuara um passo na sua pretensão de ter tido uma experiência de revelação ou relativamente à sua tranquila convicção de que o sinal legiti-mador havia de ser dado. Ao lado dele, Carl Mendelius era o homem mesquinho, que transportava segredos de Estado à cinta, mas não tinha convicções pessoais para além da qualidade das camas e do preço do vinho nas pousadas.

Sobre tudo isso e mais ainda, Mendelius conversou avidamente com Lotte e os Frank durante os aperitivos. Ficou surpreendido por todos eles o submeterem a um apertado interrogatório. Herman Frank foi o inquiridor mais ansioso.

- Não estarás na realidade a dizer, Carl, que até certo ponto, pelo menos, acreditas na história? Põe de parte a visão, põe de parte o Segundo Advento, que, seja como for, é um mito primitivo; mas a catástrofe da guerra global está bem próxima de nós.

- É mais ou menos isso, Herman.

- Não me parece que seja - objectou Hilde, em cujo sorriso havia mais do que um mero vislumbre de ironia. - Tu continuas a ser crente, Carl. Portanto, continuas a ser atormentado pela presença de Deus em toda e qualquer questão. Desde que te conheço que és assim: meio racionalista, meio poeta. É verdade, não é?

- Creio que sim - replicou Mendelius, indo buscar a bebida. - Mas o racionalista diz que ainda não se dispõe de todos os factos e o poeta diz que não há tempo para versejar quando os assassinos estão à porta.

- Há outra coisa - disse Lotte, estendendo a mão e afagando-lhe o pulso. - Tu amas o Jean Marie como um irmão. Mais depressa estás disposto a partir-te em dois do que a rejeitá-lo pura e simplesmente. Disseste-lhe que escreverias essa tal dissertação sobre ele. Tens a certeza de que podes fazê-lo encontrando-te tão dividido?

- Não, não posso, querida. Pela parte que lhe cabe, o Rainer fará um bom trabalho. É uma coisa em cheio para qualquer jornalista: um grande exclusivo que circulará no mundo inteiro. Quanto à minha parte, o retrato pessoal, a interpretação das ideias do Jean, não estou de modo nenhum certo de que possa fazê-lo como deve ser.

- Aonde vais trabalhar nela? - perguntou Hilde. - Temos muito prazer em que fiques connosco durante o tempo que quiseres.

- Temos de regressar a Tubinga - observou Lotte, levemente ansiosa de mais. - Os miúdos voltam no princípio da semana que vem.

- O Carl podia ficar mais uns tempos.

- Não vale a pena - replicou Mendelius com firmeza. - Obrigado pela oferta, Hilde, mas trabalharei melhor em casa. Vou falar com o Georg Rainer na sexta-feira. Partimos no domingo para Tubinga. Este sítio é demasiado sedutor... Estou a precisar de uma valente dose de bom-senso protestante.

- Fornecido com sotaque da Suábia! - comentou Her-man com um sorriso largo. - Logo a seguir ao Verão, eu e a Hilde vamos começar a preparar a nossa casa na Tos-cana.

- Tem calma, Herman - disse Hilde, com um tom de irritação. - Não vai acontecer nada assim tão depressa. Não é verdade, Carl?

Mendelius sorriu e recusou-se a deixar-se envolver:

- Eu também sou casado, pequena! Nós, os homens, de vez em quando temos de manter-nos juntos. Eu, por mim, arranjaria esse lugar o mais depressa possível. Se houver um surto de crise, as matérias-primas e a mão-de-obra duplicarão de preço de um dia para o outro. Além disso, precisam de plantar neste Inverno para colherem no Verão que vem.

- E que vais tu fazer, Carl? - perguntou acintosamente Hilde. - O teu amigo Jean Marie está em segurança no Mosteiro. Se acontecer alguma coisa, a Alemanha há-de ser o primeiro teatro de guerra. Que vais fazer relativamente à Lotte e às crianças?

- Realmente, ainda não pensei nisso.

- Tubinga fica apenas a 180 km da fronteira suíça - disse Herman. - Seria compensador para ti teres alguns direitos de autor acumulados lá.

- Recuso-me a falar mais sobre isto - protestou Lotte, subitamente perto de se zangar. - São os nossos últimos dias em Roma. Quero que sejam bem passados.

- E hão-de sê-lo! -exclamou Herman, prontamente arrependido. - Portanto, jantamos aqui. Depois vamos ouvir música folclórica ao Arciliuto. É um lugar curioso. Dizem que o Rafael tinha lá uma amante. Quem sabe? Pelo menos prova o talento dos Romanos para a sobrevivência.

Ainda havia algumas pontas soltas a atar antes de Lotte e ele poderem fazer as malas e partir. Passou toda a manhã de sexta-feira a preparar a gravação final para Anneliese Meissner: um relato da sua visita a Monte Cassino, uma confissão aberta das suas perplexidades e uma anotação algo seca:

Dispões neste momento da narrativa completa, feita com toda a honestidade que me é possível. Quero que a estudes cuidadosamente antes de voltarmos a ver-nos em Tubinga... Há muitas mais coisas a dizer, mas podem esperar... Estou farto desta cidade febril e de geração consanguínea. Carl.

Embalou cuidadosamente as gravações e disse a Francone para as entregar num serviço de correio que fazia a ligação diária entre Roma e várias cidades alemãs. Depois Francone conduziu-o ao encontro para almoçar com' Georg Rainer. À 1 hora, aconchegado num compartimento particular, no Ernesto, começou a ritual partida de esgrima. Georg Rainer era um atirador muito experiente.

- Tem andado muito atarefado, Mendelius. É difícil seguir-lhe os movimentos. Aquela história no Salvator Mundi, em que a polícia matou um homem e prendeu outros três: você estava no hospital?

- Sim. Tinha ido visitar o senador Malagordo.

- Cá me parecia. Não o publiquei porque achei que você não devia ser mais exposto do que já estava.

- Foi generoso da sua parte. Fico-lhe grato.

- Além disso não quis estragar a sua história de hoje... Sempre tem uma história para mim, não? Espero bem que sim.

- Tenho, Georg. Mas, antes de lha contar, quero ver se podemos assentar em determinadas regras de jogo.

Rainer abanou a cabeça.

- As regras já estão em vigor, meu amigo, Tudo o que me disser, verifico primeiro e depois meto no telex. Garanto um relato rigoroso dos factos e das citações e reservo-me o direito de fazer os comentários que quiser para orientação dos meus editores. Não posso garantir a sua imunidade relativamente à ênfase dos editores, títulos espectaculares ou enganadores ou versões destorcidas da mesma história por outras mãos. Mal comecemos esta entrevista, você está no banco das testemunhas e tudo o que disser fica nas actas da audiência.

- Nesse caso - disse Mendelius deliberadamente -, gostaria de ver se podemos chegar a acordo sobre a maneira como a história deverá ser apresentada.

- Não - disse terminantemente Georg Rainer. - Porque eu não posso fazer nenhum acordo sobre o que acontecerá depois de o artigo sair do meu gabinete. Terei muito prazer em mostrar-lhe o que registar e modificarei de bom grado qualquer relato que pareça infiel. Mas, se julga que há alguma maneira de controlar as consequências de um comunicado de imprensa, tire daí o sentido! É como a caixa de Pandora: uma vez aberta, todos os males se escapam de lá. No fim de contas, por que razão me vai fornecer essa história?

- Em primeiro lugar, você manteve a sua palavra para comigo; eu estou a tentar manter a minha para consigo. Em segundo lugar, quero a verdade sobre um amigo tornada pública antes que os construtores de mitos lancem mãos à obra. E, em terceiro lugar, quero acompanhar o seu artigo com um trabalho meu sob a forma de uma memória pessoal. E não posso fazê-lo se a sua versão sair escandalosamente das baias. Portanto, deixe-me colocar a pergunta de outra maneira. Como podemos combinar as coisas por forma a satisfazer as suas necessidades e as minhas?

- Primeiro diga-me o título da história.

- A abdicação de Gregório XVII.

Georg Rainer abriu a boca de indisfarçado espanto.

- A história verdadeira?

- Sim.

- E pode documentá-la?

- Desde que possamos chegar a acordo sobre a utilização ou não utilização adequadas dos documentos, posso... e, para lhe poupar mais trabalho, Georg, acabo de passar vinte e quatro horas com Gregório XVII no Mosteiro de Monte Cassino!

- E ele está de acordo com a revelação?

- Não põe entraves, e confia na minha discrição na escolha de um repórter para a história em exclusivo. Somos amigos íntimos há muito tempo. Portanto, como vê, Georg, tenho de me certificar bem sobre as regras do jogo antes de começarmos.

Um criado acorreu brandindo o bloco de apontamentos e o lápis.

- Vamos encomendar primeiro o almoço, está bem? Detesto ter empregados à minha volta quando estou a fazer uma entrevista.

Resolveram-se por uma pasta, sáltimbocca e uma garrafa de Bardolino. Depois Georg Rainer poisou o seu gravador-miniatura na mesa e empurrou-o para o pé de Mendelius, dizendo baixinho:

- Encarregue-se você da gravação. Fique com a fita até termos chegado a acordo sobre a versão final do texto. Trabalharemos juntos nele. Todos os cortes serão imediatamente destruídos. Está bem assim?

- Óptimo! - disse Mendelius. - Vamos começar por dois documentos, escritos pelo punho de Gregório XVII e que me foram entregues por um mensageiro pessoal. Um é uma carta dirigida a mim descrevendo os acontecimentos que levaram à sua abdicação. O outro é uma encíclica por publicar, que a Cúria suprimiu.

- Posso vê-los?

- Na altura indicada, sim. Claro que não ando com eles.

- Qual é a mensagem-chave?

- Gregório XVII foi obrigado a abdicar porque sustentava ter tido uma visão do fim do mundo: o holocausto e o Segundo Advento. Acreditou ter sido chamado para ser o precursor do acontecimento. - Torceu a boca num sorriso e acrescentou: -Agora já percebe por que razão ocultei a história sobre o fim do mundo. Estava a pôr o tema à prova perante uma assistência de sacerdotes evangélicos antes de me dirigir a Monte Cassino.

Georg Rainer bebericou o vinho e mastigou uma côdea de pão seco. Finalmente encolheu os ombros, como um jogador de póquer que tivesse perdido, e disse:

- Agora é claro que tudo faz sentido. A Cúria tinha pura e simplesmente de ver-se livre dele. O homem é um lunático.

- O problema é esse, Georg. - Mendelius serviu-se de mais vinho e fez sinal ao criado para levar os pratos de pasta. - É tão são como você e eu.

- Quem é que diz isso? - perguntou Rainer, espetando-lhe um dedo no peito. - Você, que é amigo dele?

- Sim, eu. E o cardeal Drexel e o abade Andrew, que é o seu director espiritual em Monte Cassino. Ambos aceitam que ele é um místico como João da Cruz. Drexel está a atravessar uma crise de consciência porque não o defendeu perante a Cúria e o Sacro Colégio.

- Falou com Drexel?

- Duas vezes. E duas vezes com o abade de Monte Cassino. O facto estranho é que os crentes são eles e eu o céptico.

- Que é precisamente o que eles querem - disse Rainer com cáustica ironia. - Libertaram-se de um papa que causava problemas... Agora já se podem dar ao luxo de louvar a sua dócil virtude. Sabe, Mendelius, que para um estudioso notável às vezes é muito ingénuo? Até aceita ser transportado por aí pelo motorista do cardeal, no automóvel do cardeal, de tal modo que Drexel fica ao corrente de todos os seus passos em Roma... incluindo este almoço comigo.

- A questão, Georg, é que eu me estou nas tintas para o que ele saiba.

- Ele sabe que você tem os documentos?

- Sim, eu disse-lho.

- E que mais?

- Mais nada.

- Não pensa que ele seja capaz de dar uma palavrinha para os recuperar... ou desviá-los para mãos mais ortodoxas?

- Francamente, não consigo ver Drexel com um mester de espionagem ou de receptador de manuscritos roubados.

- Nesse caso, é mais confiante do que eu - disse Rainer, encolhendo os ombros. - Eu também leio História, e os usos e costumes do Poder não mudam na Igreja nem em campo nenhum. No entanto... falemos acerca de Gregório XVII. Qual é o seu juízo acerca dele?

- Acredito que é são... e sincero nas suas convicções.

- Não há ninguém mais perigoso do que um visionário sincero.

- O Jean Marie reconheceu isso. Abdicou para evitar um cisma. Mantém-se silencioso porque não tem nenhum sinal legitimador para provar que a sua visão é autêntica.

- Um sinal legitimador? Não me recordo dessa expressão.

- É um termo que se tornou desusado na análise bíblica moderna. Basicamente, significa que, quando o profeta ou o reformador sustenta falar em nome de Deus, precisa de mostrar alguma patente de autoridade.

- Nem você nem eu podemos proporcionar-lhe isso.

- Pois não, mas entre nós temos obrigação de ser capazes de lhe garantir uma publicação honesta dos factos e uma interpretação esclarecida da sua mensagem. Podemos escrever os factos que levaram à abdicação. Os documentos demonstrarão o porquê da questão. Podemos relatar o que Jean Marie Barette me disse sobre a sua alegada visão.

- Até ver, tudo bem. Mas essa visão refere-se a questões imensas: o fim do mundo, o Segundo Advento, o Juízo Final. Que podemos eu e você dizer aos leitores sobre tais coisas?

- Eu posso dizer-lhes aquilo em que as pessoas no passado acreditavam e que escreviam acerca dessas coisas. Posso chamar a atenção deles para a existência de seitas milenares no mundo dos nossos dias.

- Mais nada?

- A seguir, Georg, é a sua vez. Você é que é o homem que escreve os boletins sobre o estado das nações. Até que ponto estamos próximos do Armagedão? O mundo está cheio de profetas. Poderá algum deles ser Aquele que há-de vir? Se a encarar em consonância com todos os loucos fenómenos sociais, a predição do Jean Marie está longe de ser irracional.

- Concordo - comentou pensativamente Rainer. - Mas há-de ser uma bela carga de trabalhos conseguir pôr esta história em condições de ser lida. Pode ficar mais tempo em Roma?

- Lamento, mas não. Tenho de me preparar para a abertura do ano lectivo na universidade. Que possibilidades tem você de ir passar uns dias a Tubinga? Teria muito prazer em alojá-lo em minha casa. Poderíamos trabalhar melhor lá, pois disponho de todos os textos e sistemas de arquivo.

- Preciso de trabalhar depressa. Estou habituado a apanhar a ideia, verificar se é lógica e escrevê-la para o telex no mesmo dia.

- Provavelmente eu sou muito mais lento - disse Mendelius -, mas pelo menos sou versado no assunto. De qualquer modo, saio daqui no domingo e começo a trabalhar no dia seguinte.

- Eu poderia ir ter consigo na quarta-feira. Vou arranjar um Stringer (1) para me substituir por cá. Mas não quero falar ao meu editor desta história a não ser depois de você e eu a termos escrito juntos e verificado frase por frase. Portanto, tenho de arranjar uma desculpa para uma ausência de uns dias.

- Há uma coisa que convém discutirmos - disse Mendelius. - Você e eu temos de agir em conjunto. Devíamos ter um contrato um com o outro. E eu gostaria de utilizar o meu agente em Nova Iorque para redigir os nossos contratos conjuntos com os editores.

- Está óptimo.

- Nesse caso telefono-lhe esta noite e peço-lhe para ir ter connosco a Tubinga.

- Posso dar-lhe um pequeno conselho, Mendelius? Por amor de Deus, tenha cuidado com esses documentos. Guarde-os no banco. Conheço pessoas que seriam capazes de matá-lo para se apoderarem deles.

- O Jean Marie alertou-me para isso na carta. Receio bem não o ter levado lá muito a sério.

- Então o melhor que tem a fazer é levá-lo muito a sério a partir de agora. Esta história vai torná-lo tão famoso ou

 

(1) Correspondente que trabalha em regime de tempo parcial. (N. do T.)

 

notável como o tiroteio no Corso. Mesmo quando regressar a Tubinga, tenha cautela. Continua a ser uma testemunha-chave contra a rapariga, e o aparelho clandestino deve-lhe a morte de quatro homens. Estes funcionários têm grandes armas e grande memória.

- A história dos terroristas, compreendo. - Mendelius estava genuinamente admirado. - Mas os documentos, uma carta particular para mim e uma encíclica que não chegou a ser publicada, estou a ver o seu valor como notícia, mas com certeza não valem a vida de um homem.

- Não? Encare as coisas por outro ângulo. A encíclica provocou a abdicação de um papa. Poderia igualmente ter provocado um cisma ou levar a que Gregório XVII fosse declarado louco.

- Certo, mas...

- Até aqui - continuou Rainer, silenciando-o bruscamente-, tudo aquilo em que pensou foi na sua reacção pessoal a este assunto e na sua preocupação com o seu amigo. Mas todos os milhares de outros com quem Gregório XVII contactou durante o pontificado? Como reagiram eles? Como poderiam reagir se conhecessem os factos verdadeiros? Alguns deles devem ter tido relações muito estreitas com ele.

- Pois tiveram. Ele mandou-me uma lista.

- Que espécie de lista? - perguntou Rainer, subitamente alerta.

- De pessoas em lugares importantes em todo o mundo, que ele acreditava serem receptivas à sua mensagem.

- Pode dizer-me alguns desses nomes?

Mendelius pensou por momentos e depois recitou meia dúzia de nomes, que Rainer assentou no bloco de apontamentos, após o que perguntou:

- Algum deles tentou contactá-lo em Monte Cassino?

- Não sei. Não perguntei. No entanto, passariam decerto por um crivo muito completo antes de conseguirem lá chegar. Foi o que aconteceu comigo. Aliás nunca cheguei a falar com o Jean Marie ao telefone. Havia ocasiões em que pensava que estava a ser cuidadosamente afastado dele; mas Drexel foi peremptório. Não havia qualquer impedimento à minha visita, mas apenas grande interesse oficial.

- Que dificilmente se dissipará, agora que sabem que falou comigo.

- Sejamos francos, Georg. Drexel não me perguntou o que tencionava eu fazer. Nunca mais se referiu aos documentos... e ouviu-me palavras bastante duras.

- E que é que isso prova? Nada, a não ser que ele é um homem paciente. E, não se esqueça, ele foi um dos cardeais escolhidos para servir de mensageiro deles. Pense nisso! Quanto a outros amigos e conhecidos de Gregório XVII, vou fazer algumas investigações por conta própria antes de partir para Tubinga... Não! Não! Quem paga a conta sou eu. Vou ganhar tanto dinheiro à sua custa que é quase obsceno!

- Há-de merecê-lo, meu amigo - observou Mendelius, rindo-se. - Há duas coisas que aprendi com os Jesuítas: as regras da evidência e o respeito pelo estilo literário. Quero que esta seja a melhor história que você alguma vez escreveu!

Mal chegou ao apartamento, Mendelius fez um circunspecto telefonema ao seu agente, Lars Larsen, para Nova Iorque. A reacção imediata de Larsen foi um assobio de entusiasmo e a seguir um gemido de angústia. A ideia era estupenda. Valia um dinheirão... mas por que diabo tinha Mendelius de compartilhá-la com um jornalista? Rainer em nada podia contribuir a não ser com a sua ligação a um grande império alemão da informação. Esta história deveria ser lançada da América.

E assim continuou sem parar, ao longo de dez minutos de exaltadas súplicas, findas as quais Mendelius explicou pacientemente que o objectivo total da empresa era apresentar um relato desapaixonado dos acontecimentos recentes e levar as pessoas a darem uma atenção séria ao âmago da última mensagem de Jean Marie. Portanto, poderia Lars fazer o favor de deslocar-se a Tubinga para discutirem o assunto com a seriedade que ele merecia?

Lotte, escutando a conversa unilateral, soltou uma desconsolada interjeição de censura.

- Eu bem te dizia, Carl! Toda essa gente tem preocupações pessoais que têm de chocar-se com as tuas. O agente sente o cheiro de muito dinheiro. A fama de Georg Rainer como jornalista aumentará imenso. Mas tu... Tu estás a escrever sobre um amigo. Estás a ocupar-te de um assunto que sabes ter sempre obcecado o homem ao longo da sua história. Não podes permitir que te tratem como uma estrela de cinema acabada de surgir. Dispões do trunfo: os documentos. Não os reveles a ninguém antes de teres todas as condições de que precisas para te protegeres a ti e ao Jean Marie.

Mais tarde, embalada nos braços dele no grande leito barroco, ela começou a devanear de modo sonolento:

- Realmente é irónico. Mau grado todo o teu cepticismo, deste ao Jean exactamente o que ele começou por pedir. Como és amigo dele, não podes deixar de te portar de maneira simpática para com ele. Como és um estudioso de renome mundial, os teus comentários protegê-lo-ão dos palhaços. Se a Anneliese Meissner está disposta a escrever alguma coisa contigo, pelo menos há-de ser clinicamente honesta. Bem vistas as coisas, meu amor, estás a pagar generosamente as nossas dívidas para com o Jean Marie... A propósito, comprei hoje um presente para o Herman e a Hilde. Foi bastante caro, mas eu sabia que não te importarias. Eles foram tão generosos para connosco...

- Que é, querida?

- Uma peça de velho capo di monte: Cupido e Psique. O vendedor disse que era bastante cara. Amanhã de manhã mostro-ta. Espero que eles gostem.

- Tenho a certeza de que gostarão. - Sentia-se grato pela conversa tranquila e frívola.

- Ah, e já me esquecia de te dizer. A Katrin mandou-nos um postal de Paris. Não diz grande coisa, a não ser isto: “O amor é maravilhoso. Obrigado a ambos da parte de ambos.” Chegou também uma longa carta e umas fotografias coloridas do Johann.

- Ora isso é que é uma surpresa! Sempre julguei que fosse ele a mandar um postal.

- Bem sei. Tem piada, não tem? Faz um relato bastante lírico das férias. No entanto, ainda não foram longe... Nem sequer chegaram ainda à Áustria. Ele e o amigo descobriram um pequeno vale lá no cimo dos Alpes bávaros. Tem um lago e umas cabanas arruinadas... e nem uma alma num raio de quilómetros. Têm lá estado acampados desde o princípio, limitando-se a ir à cidade para se abastecerem de víveres.

- Parece uma maravilha. Não me importava de trocar com ele. Não quero tornar a ver Roma durante muito, muito tempo. Escreverei ao Jean Marie assim que chegarmos a Tubinga. A propósito, temos de fazer qualquer coisa relativamente ao Francone. Acho que o melhor seria uma recordação em dinheiro. Não me parece que ele ganhe grande coisa. És capaz de me lembrar, querida?

- Está bem. Agora fecha os olhos e faz por dormir.

- Daqui a nada estou pegado. Ah, outra coisa. Tenho de mandar ao cardeal Drexel um cartão de agradecimento pelo empréstimo do automóvel e do Francone.

- Eu lembro-te. Agora dorme. Esta noite estavas com um ar completamente estafado. Quero que ainda andes por cá muito tempo.

- Estou óptimo, querida. Palavra! Não vale a pena preocupares-te comigo.

- Mas preocupo-me. Não posso evitá-lo. Carl, se o Jean Marie estiver certo, se houver uma última grande guerra, que faremos? Que será feito dos nossos filhos? Não estou a ser tonta. Apenas quero saber o que hei-de pensar.

Não havia maneira de adoçar a resposta, e ele sabia-o. Soergueu-se no cotovelo e baixou a vista para ela, agradecido pelo facto de a escuridão ocultar a dor que os seus olhos revelariam.

- Desta vez, meu amor, não vai haver bandeiras nem trombetas. A campanha há-de ser curta e terrível; e depois ninguém há-de preocupar-se com o sítio onde ficavam as fronteiras. Se sobrevivermos, tentaremos manter-nos uma família; mas tens de ter presente que não podemos mandar nas acções dos nossos filhos. Se ficarmos separados deles, juntaremos um punhado de boas almas e faremos o que pudermos no sentido de nos aguentarmos contra os assassinos das ruas! É tudo o que te posso dizer.

- É estranho! - observou Lotte, estendendo o braço para afagar-lhe o rosto. - Quando falámos sobre isto há tempos, antes de partirmos, enchia-me sempre de medo. Às vezes dava-me vontade de sentar-me a um canto e começar a chorar sem mais nem porquê. Depois, quando estiveste em Monte Cassino, fui buscar aquele pedaço de porcelana que o senador te deu e segurei-o nas mãos. Decifrei o nome que ele tinha escrito. Lembrei-me de como se tiravam as sortes para ver quem deveria morrer, e quem se encarregaria de proceder à execução, em Masada. De repente senti-me muito calma... de certa maneira, afortunada. Compreendi que, quando nos agarramos demasiadamente a qualquer coisa (até mesmo à vida), nos transformamos em prisioneiros. Portanto, como vês, também não deves preocupar-te por mim. Dá-me um beijo de boas-noites e vamos dormir.

Permanecendo acordado durante as horas frias da madrugada, ele interrogou-se sobre a alteração que nela ocorrera: aquele ar de nova confiança, a curiosa tranquilidade com que parecia aceitar aquela indizível perspectiva. Teria Aarão ben Ezra legado uma última porção mágica de coragem àquele caco que ostentava o seu nome? Ou seria porventura uma leve brisa de graça soprada do deserto, onde Jean Marie Barette comungava com o seu Criador?

 

Era bom estar em casa. No campo, a colheita estava armazenada em segurança; os melros debicavam alegremente por cima do restolho castanho. O Necar era um rio de prata sob um céu de Verão. Havia pouco trânsito na cidade, porque os veraneantes ainda não tinham regressado da sua estada a gozar o sol. Os corredores e os claustros da Universidade estavam quase desertos. As passadas raras de um porteiro ou colega soavam cavamente no silêncio. Chegava a acreditar-se - desde que a pessoa não lesse jornais e desligasse o rádio e a televisão - que nada se modificaria alguma vez naquele tranquilo lago estagnado, que os velhos duques de Wurttemberg dormiriam eternamente em paz sob as lages da Stiftskirche.

No entanto, aquela paz era uma ilusão, como o pano de fundo pintado de uma pastoral. De Pilsen a Rostock as tropas do Pacto de Varsóvia concentravam-se em profundidade: tropas de choque e pesadas formações de carros de combate e, atrás destas, os lançadores de mísseis com ogivas nucleares tácticas. Defronte delas estavam as estreitas linhas das forças da NATO, preparadas para uma retirada ao primeiro assalto, esperando, embora sem exagerada confiança, que as suas próprias ogivas tácticas sustivessem o avanço até à chegada dos grandes bombardeiros provenientes das Ilhas Britânicas e do lançamento dos ICBM a partir dos seus silos no continente americano.

Ainda não havia mobilização, nem chamada de reservistas às fileiras, pois a crise ainda não amadurecera a tal ponto que os governos pudessem esperar que as suas populações deprimidas e inquietas respondessem a um chamamento às armas, ou reagissem à retórica da máquina propagandística. A indústria alemã dependia ainda de trabalhadores imigrados, dos quais, destituídos de posses e de cidadania, não era de esperar que prestassem serviço de vassalagem numa causa perdida. Do outro lado do mundo, tinha-se formado um novo eixo: o Japão industrial estava a fornecer fábricas e técnicos à China, a troco de petróleo dos campos do Norte e dos novos poços nos Spratleys. O Islão estava em efervescência, de Marrocos aos desfiladeiros do Afeganistão. A África do Sul era um campo armado, cercado pelas repúblicas negras. Não havia dirigente, junta ou assembleia parlamentar que pudesse abarcar ou controlar o complexo geopolítico de um mundo perseguido pelo esgotamento e pelo aviltamento de todo o tipo de relações entre os homens. A razão soçobrava diante da barreira de contradições. O querer colectivo parecia paralisado numa síncope de impotência.

Passado o alívio inicial do regresso, Carl Mendelius deu por si sujeito à tentação desse mesmo desespero. Quem ouviria uma vozinha por sobre o grito babélico de milhões? De que valia propagar ideias que seriam imediatamente varridas como grãos de areia numa tempestade? Que proveito tinha expor um passado que não tardaria a ser tão irrelevante como os animais mágicos dos homens das cavernas?

Conforme percebia claramente, tratava-se da síndroma que dava origem a espiões, traidores, fanáticos e destruidores profissionais. A sociedade é uma pocilga mal-cheirosa; há que fazê-la ir pelos ares! O parlamento é um ninho de imbecis e hipócritas; há que destruir essa raça nojenta! Deus morreu; vamos limpar novamente o pó a Baal e Astarot, voltar a chamar a feiticeira de Endor, para fazermos as bruxarias de que precisamos.

O melhor remédio era a visão de Lotte, atarefada e jovial, a limpar o pó e a encerar, a tagarelar com amigas ao telefone, a fazer uma camisola de Inverno para Katrin. Ele não tinha o direito de perturbá-la com os seus sonhos negros. Assim, retirou-se para o escritório e entregou-se ao monte de trabalho que se acumulara durante a sua ausência.

Havia uma pilha de livros que lhe pediam encarecidamente para ler e recomendar. Havia provas dos alunos para classificar, revisões a fazer no texto das suas lições e as inevitáveis contas para pagar.

Havia uma nota do reitor da Universidade, convidando-o para uma reunião informal com uns colegas mais velhos na terça-feira de manhã. As “reuniões informais” do reitor eram por de mais conhecidas. Destinavam-se a resolver previamente quaisquer problemas antes de serem levantados na reunião geral dos docentes em meados de Agosto. Tinham também em vista persuadir os crédulos de que constituíam membros muito especiais de um gabinete muito particular. Mendelius gostava pouco, mas sentia uma admiração relutante pela aptidão do reitor para a intriga académica.

A carta que se seguia era uma comunicação do Bundeskriminalamt, o departamento criminal federal de Wiesbaden:

Fomos informados pelos nossos colegas italianos de que, em consequência de recentes incidentes em Roma, o senhor pode vir a ser alvo de ataque quer por parte de agentes terroristas estrangeiros, quer de grupos locais a eles pertencentes.

Aconselhamo-lo, pois, a tomar as precauções referidas no panfleto anexo, que enviamos normalmente a funcionários governamentais e quadros importantes da indústria. Além disso, aconselhamo-lo a estar particularmente vigilante dentro do recinto da Universidade, onde os activistas políticos podem facilmente ocultar-se no meio de uma numerosa comunidade estudantil.

Caso note alguma actividade suspeita, quer junto à sua residência, quer na Universidade, é favor contactar sem demora com o Landeskriminalamt de Tubinga, que foi já informado da sua situação.

Mendelius leu cuidadosamente o panfleto. Não lhe dizia nada de novo; o último parágrafo, porém, era uma gélida chamada de atenção para o facto de a violência ser tão contagiosa como a peste:

Estas precauções devem ser estritamente observadas não só pelo visado como por todos os membros da sua família. Também eles estão ameaçados, uma vez que o visado é vulnerável por intermédio deles. Uma vigilância comum e concertada diminuirá o risco.

Havia uma ironia brutal no facto de um acto de misericórdia numa rua de Roma expor toda uma família a invasão violenta numa cidade de província alemã. Havia ainda um corolário mais lúgubre: que um tiro disparado contra o rio Amur, na China, podia mergulhar todo o planeta numa guerra.

Entretanto, havia pensamentos mais agradáveis para o distrair. Os evangélicos tinham-lhe escrito uma carta conjunta expressando os seus agradecimentos pela “sua abertura na discussão e sua afirmação enfática da caridade cristã como elemento de ligação entre as nossas diferentes vidas”. Havia ainda uma segunda carta de Johann, que lhe era pessoalmente dirigida:

Antes de partir para estas férias, estava mergulhado numa profunda depressão. A suavidade com que reagiste ao meu problema religioso foi um grande auxílio; mas o resto não consegui explicar. Estava preocupado com a minha carreira. Não conseguia ver qualquer finalidade naquilo que fazia. Não queria entrar para uma grande empresa qualquer, a fim de planear a economia de um mundo que é capaz de nos estoirar nas barbas. Receava ser convocado para o serviço militar numa guerra que nada mais produziria que não fosse o desastre universal. O meu amigo Fritz sentia exactamente o mesmo. Estávamos zangados contigo e com a tua geração porque vocês tinham um passado para contemplar, ao passo que nós tínhamos apenas um ponto de interrogação à nossa frente. Foi então que descobrimos este lugar, o Fritz, eu e duas raparigas americanas que conhecemos numa Bierkeller: de Munique.

É um pequeno vale, cujo único acesso é um carreiro. Está rodeado de altas colinas a toda a volta, cobertas de pinheiros até à linha da neve. Há um velho pavilhão de caça e umas tantas cabanas agrupadas em torno de um lago, rodeado de prados luxuriantes. Há veados nas matas e o lago está cheio de peixe. Existe um velho túnel de mina que avança muito pela montanha dentro.

O Fritz, que é arqueólogo amador, diz que ela esteve em laboração na Idade Média para extracção de hematite. Descobrimos ferramentas quebradas e um justilho de couro, bem como uma caneca de estanho e uma ferrugenta faca de mato.

Da última vez que fomos à cidade, fiz algumas investigações e descobri que este lugar é propriedade particular de uma senhora muito velha, a Gráfin2 von Eckstein. O marido utilizava-a como coutada de caça. Localizámo-la em Tegernsee e fomos falar com ela. É uma velhota cheia de vida e, quando se refez da surpresa de ser invadida por quatro jovens que nunca tinha visto na vida, ofereceu-nos chá inglês e bolos e disse-nos que ficava satisfeita por nós gostarmos do lugar.

Depois, obedecendo a um mero impulso, perguntei-lhe se estaria disposta a vendê-lo. Perguntou porquê. Respondi-lhe que daria um local de férias estupendo para estudantes como nós. Ao princípio era apenas um motivo de conversa; mas ela levou-o a sério.

Seja como for, o desfecho de tudo é que ela mencionou um preço: um quarto de milhão de marcos alemães. Disse-lhe que não tínhamos maneira de juntar uma quantia dessas. Foi então que ela disse que, se estávamos decididos, encararia a hipótese de no-lo arrendar. Respondi-lhe que iríamos pensar no assunto e depois lhe diríamos qualquer coisa.

Eu gostaria imenso. É muito sossegado, muito distante do dia-a-dia, e seria possível amortizar o

 

(1) Em alemão no original: cervejaria. (N. do T.)

(2) Idem: condessa. (N. do T.)

 

investimento. É uma das coisas de que falámos muitas vezes nas aulas: a pequena economia, automaticamente limitada, na qual pode preservar-se a qualidade de vida. Quando regressarmos, gostaria de falar contigo sobre o assunto e saber o que pensas.

Passo as noites de lanterna acesa tentando estabelecer um plano. Acho isso um exercício muito mais satisfatório do que os problemas monetários da Comunidade Europeia ou as relações entre os produtores de petróleo e as economias industriais e os países agrícolas. Seja lá como for, conforme o Fritz diz, temos de voltar a trazer as coisas à escala humana, senão enlouquecemos ou tornamo-nos autómatos indiferentes num sistema que nunca conseguiremos controlar. Parece que tenho corda, bem sei, mas é a primeira vez que me sinto à vontade para abrir-me com o pai que amo. É uma sensação agradável.

Mais tarde, sentados à mesa do jantar, Mendelius leu a carta a Lotte. Ela sorriu e acenou aprovadoramente.

- Óptimo! Finalmente está a sair da floresta sombria. Não é fácil ser jovem nos tempos que correm. Eu, por mim, encorajaria a ideia. Carl, mesmo que venha a dar em nada. Não podemos gastar esse dinheiro todo, mas, mesmo assim...

- Talvez pudéssemos - disse Mendelius pensativamente.

- Até talvez pudéssemos. Devo receber uma boa quantia de direitos de autor em Setembro e, quando o novo livro for distribuído... Além disso, o Johann não é a única pessoa que tem o seu sonho particular.

Lotte lançou-lhe um rápido olhar de censura.

- E por acaso não estarias disposto a compartilhá-lo com a tua mulher?

- Ora vamos, querida! - protestou Mendelius, rindo.

- Bem sabes que detesto falar das coisas até ter as ideias bem claras sobre elas. E esta já anda a germinar há muito tempo. Que sucede aos professores velhos quando deixam a cátedra? Posso continuar a escrever, é certo; mas gostaria também de continuar a leccionar a grupos seleccionados de alunos avançados. Ainda pensei em fundar uma academia particular, proporcionando cursos anuais de especialistas para pós-graduados. Os músicos passam a vida a fazê-lo: violinistas, compositores, regentes. Um sítio como o que o Johann descreve poderia ser ideal.

- Pois poderia - observou Lotte, dubitativa. - Não me interpretes mal. Adoro a tua ideia, Carl; mas seria um erro misturá-la com o projecto do Johann. Mostra-lhe que estás interessado, mas não te imiscuas. Deixa-o seguir a sua própria estrela.

- Tens razão, claro. - Mendelius debruçou-se por cima da mesa e beijou-lhe a face. - Não te preocupes! Eu não meto as manápulas no prato do doce. Além disso, temos outro problema a enfrentar.

Falou-lhe da carta da polícia de Wiesbaden. Lotte franziu o sobrolho e suspirou desconsoladamente.

- Durante quanto tempo teremos de viver desta maneira, sempre a espreitar por cima do ombro?

- Só Deus sabe, querida! Mas não podemos entrar em pânico. Temos apenas de estabelecer uma rotina: tal como ter atenção aos sinais de trânsito e deixar a casa fechada à noite, ou conduzir dentro dos limites de velocidade. Passado pouco tempo torna-se automático. - Mudou abruptamente de assunto. - O Georg Rainer telefonou. Chega na quarta-feira à noite. O Lars Larsen chega nessa manhã de Francoforte. Assim temos possibilidades de falar antes da chegada do Rainer.

- Óptimo! -exclamou Lotte, com um vigoroso aceno de aprovação. - Tens de verificar se as condições são como devem ser, antes de avançar mais um passo que seja com o Rainer.

- Pois sim. Prometido. Precisas de mais alguém para ajudar à casa?

- Já tenho. A Gudrun Schild vem todos os dias.

- Óptimo. Pergunto a mim próprio que terá o nosso nobre reitor na ideia para a reunião de terça-feira.

- Esse dá-me que pensar - observou Lotte de modo conciso. - É um conspirador. Faz com que as pessoas pensem que está a tirar vinho do cotovelo. O que de lá sai realmente é...

- Eu sei que é que de lá sai, querida - disse Mendelius com um largo sorriso. - O segredo está em nunca beber a zurrapa.

A ideia que o reitor tinha de uma reunião informal era estritamente “novo império”. Todos os colegas recebiam um firme aperto de mão, uma pergunta solícita sobre a mulher e a família e uma chávena de café e uma fatia de bolo de maçã, acabados de fazer pela mulher do reitor e servidos por uma criada de avental engomado.

A cerimónia era uma meticulosa manigância. Com uma chávena na mão e um prato na outra, os convidados tinham de manter-se sentados. As cadeiras, cada uma delas com um tamborete ao lado, estavam dispostas em semicírculo virado para a secretária do reitor. Este não se sentava. Encostava-se à borda da secretária, numa pose destinada a sugerir à-vontade, intimidade e franqueza entre colegas. O facto de ele falar de uma altura de cerca de um metro acima das cabeças deles e de ter as mãos livres para gesticular e sublinhar o que dizia era apenas uma leve recordação da sua primazia. O seu discurso era melífluo e normalmente banal.

- Preciso da vossa opinião como especialistas. As... hmm... responsabilidades do meu cargo inibem-me do contacto quotidiano que gostaria de manter com os professores mais novos e os alunos. Recorro a vós, portanto, para serem meus intérpretes junto deles e vice-versa.

Brandi, da Língua Latina, inclinou-se para Mendelius e sussurrou:

- Ele é a fons et origo... (1) e nós os desgraçados dos aguadeiros.

Mendelius abafou uma risada com o guardanapo de papel. O reitor prosseguiu:

- Na semana passada fui convidado, juntamente com os reitores de outras universidades, para uma reunião particular com o ministro da Educação e o ministro do Interior, em Bona. A finalidade da reunião consistia em discutir as... hmm... incidências académicas da actual crise internacional.

Fez uma pausa para deixá-los ponderar a solenidade da cerimónia em Bona e sobre quais poderiam ser as... hmm... incidências académicas. Eram suficientemente alarmantes para dissipar qualquer tédio do seu auditório.

- Em Setembro deste ano o Bundestag vai autorizar a mobilização total de homens e mulheres para o serviço militar. Pedem-nos que preparemos recomendações para categorias de estudantes isentas, e que forneçamos listas dos que possuem qualificações especializadas nos campos da Física, Química, Engenharia, Medicina e disciplinas relacionadas. Solicitam-nos, ainda, que estudemos de que maneira poderiam ser acelerados cursos destas matérias Para satisfazer as necessidades da indústria das forças armadas- Teremos ainda de enfrentar uma carência de estudantes e docentes mais novos em consequência da mobilização.- Houve um murmúrio de surpresa na assistência. - Por favor, minhas senhoras e meus

 

(1) Em latim: fonte e origem. (N. do T.)

 

senhores, deixem-me terminar! A seguir teremos tempo para discussão. Quanto a esta questão, não nos é dado por onde escolher. Tal como todos os outros, teremos de obedecer aos regulamentos. Há, no entanto, um problema mais polémico. - Fez nova pausa, desta vez manifestamente embaraçado e procurando as palavras com dificuldade. - Foi levantado pelo ministro do Interior, instigado, ao que creio, por pressões dos nossos aliados na NATO. É a questão da segurança interna, da protecção contra a subversão, espionagem e... hmm... as actividades de elementos desafectos, no corpo estudantil... - A única reacção foi um silêncio hostil. Ele inspirou profundamente e apressou-se a continuar: - Em suma, pedem a nossa colaboração com o serviço de segurança, munindo-o de cópias dos processos dos estudantes e quaisquer outras informações que possam ser pedidas de quando em quando, no interesse da segurança pública.

- Não! - O som irrompeu do grupo. Alguém deixou cair uma chávena, que se escaqueirou no soalho.

- Por favor! Por favor! - O reitor afastou-se da secretária e ergueu os braços num gesto implorativo. - Transmiti o pedido do ministro. Vamos passar agora a discuti-lo.

O primeiro a pôr-se de pé foi Dahlmeyer, da Física Experimental, um fulano grande e desgrenhado, de queixo saliente. Com rispidez, desafiou o reitor:

- Acho, Sr. Reitor, que temos o direito de saber qual foi a sua resposta ao ministro.

Houve um coro de aprovação, e o reitor tergiversou, embaraçado:

- Disse ao ministro que, se é certo que todos tínhamos consciência da necessidade de... hmm... segurança adequada numa época crítica, estávamos... hmm... pelo menos igualmente preocupados com a preservação dos... hmm... princípios da liberdade académica.

- Oh, meu Deus!-explodiu Dahlmeyer.

Brandt emitiu um gemido audível. Mendelius levantou-se. Estava pálido de furor, mas falou com calmo formalismo.

- Quero fazer uma declaração pessoal, Sr. Reitor. O compromisso que tenho é o de leccionar nesta casa. Não tenho, nem aceitarei, comissão para investigar a vida privada dos meus alunos. Mais depressa pediria a demissão do que faria tal coisa.

- Desejaria fazer notar, professor - redarguiu friamente o reitor-, que transmiti um pedido e não uma ordem ministerial; ordem essa que, pelo menos nas circunstâncias actuais, seria ilegal. No entanto, deve compreender que, em condições de emergência nacional, a situação pode alterar-se radicalmente.

- Por outras palavras - disse Hellman, da Química Inorgânica, pondo-se de pé-, estamos tanto perante um pedido como diante de uma ameaça.

- Estamos todos ameaçados, Prof. Hellman: ameaçados de um conflito armado, situação em que as liberdades cívicas têm inevitavelmente de ser restringidas, no interesse nacional.

- Há também outra ameaça, que deve igualmente tomar em consideração - disse Anneliese Meissner. - A revolta estudantil, exprimindo total perda de confiança na integridade das autoridades académicas. Recordo-lhe o que sucedeu nas nossas universidades nos anos trinta e quarenta, quando os nazis dominaram o país. Quer voltar a ver isso?

- Acha que não o vai ver quando os Russos vierem?

- Ah! Com que então já se comprometeu, Sr. Reitor!

- Não comprometi nada. - Agora o reitor estava encolerizado. - Disse ao ministro que transmitiria o pedido aos meus catedráticos e lhe comunicaria a sua reacção.

- O que nos leva direitinhos ao teclado do computador do serviço de segurança. Pois bem, seja! Estou com o Mendelius. Se querem que eu espie os meus alunos, não contem comigo!

- Com toda a consideração pelo Sr. Reitor e pelos meus estimados colegas - quem estava de pé agora era um fulano pequeno e tímido: Kollwitz, o professor de Medicina Forense-, sugiro uma maneira muito simples de evitar tal situação. O Sr. Reitor comunica que os decanos do seu corpo docente estão unanimemente contra a medida proposta. Não tem de fornecer nomes.

- É uma boa ideia - disse Brandi. - Se o próprio reitor estiver firmemente do nosso lado, ficaremos numa posição de força: e outras universidades podem sentir-se encorajadas a seguir o nosso exemplo.

- Obrigado, minhas senhoras e meus senhores. - O reitor estava manifestamente aliviado. - Como de costume, foram extremamente úteis. Vou pensar numa... hmm... numa resposta adequada a dar ao ministro!

Depois disso ninguém tinha grande coisa a dizer, e o reitor apressou-se a libertar-se deles. Deixaram as borras do café e o resto do bolo de maçã e dispersaram para a luz do Sol. Anneliese Meissner foi colocar-se junto de Mendelius. Resfolegava de fúria.

- Deus todo-poderoso! Mas que velho aldrabão! Uma resposta adequada a dar ao ministro!... Os tomates!

- Eles é que têm os tomates dele num quebra-nozes - disse Mendelius com um sorriso amargo. - Faltam-lhe só dois anos para a reforma. Não podes censurá-lo por tentar um acordo. De qualquer maneira, tem os catedráticos todos unidos atrás dele. Isso tem de dar-lhe alguma coragem.

- Unidos? - Anneliese resfolegou novamente. - Meu Deus, Mendelius! Como é que se pode ser tão ingénuo? Aquilo não passou de um exercício de canto coral: todas as nossas almas nobres a entoarem “O nosso Deus é uma poderosa fortaleza”! Quantos permanecerão firmes quando os tipos da segurança começarem realmente a aumentar a pressão? “Não é verdade, Prof. Brandt, que o senhor tem andado a ir para a cama com a pequena Mary Toller? E o senhor, Dahlmeyer? A sua mulher tem conhecimento dos seus sábados no Love-Hotel de Francoforte? E quanto a vocês, Heinzl, ou Willi, ou Traudl, se não colaborarem, temos alguns trabalhos sujos encantadores... tais como cientista de saneamento ou encarregado do banho na casa dos malucos! Não tenhas ilusões, meu amigo. Se na contagem final pudermos contar com três em cada dez, estamos cheios de sorte.

- Estás a esquecer-te dos estudantes. Assim que ouvirem falar nisto, põem-se em pé de guerra.

- Alguns, sim! Mas quantos continuarão ainda de pé depois da primeira carga de bastonada e dos gases lacrimogéneos e do canhão de água? Não hão-de ser muitos, Carl! E ainda hão-de ser menos quando a polícia der livre curso às munições reais.

- Nunca farão tal coisa!

- Que têm eles a perder? Assim que a máquina da propaganda começar aos berros, quem é que ouvirá os tiros no beco? Além disso, basta uma bombinha atómica de nada em Tubinga para apagar o quadro inteiro. Queres vir almoçar comigo? Se comer sozinha, sou muito capaz de me embebedar.

- E não podemos correr esse risco, pois não? - Mendelius entrelaçou os braços nos dela e atraiu a si o corpo forte. - Só há uma consolação, rapariga: provavelmente todas as universidades do mundo estão a enfrentar neste momento a mesma pressão.

- Bem sei! Filisteus de todo o mundo, uni-vos! Os intelectuais serão finalmente esmagados! Meu Deus, Carl! O teu Jean Marie não andava lá muito longe da verdade!

- Ouviste as gravações que te mandei?

- Uma data de vezes. E além disso tenho andado a ler uma porção de coisas.

- E então?

- E então não direi uma palavra que seja antes de ter uma bebida bem servida no bucho. Sou um estafermo, Carl: cínica, velha e feia de mais para acreditar num deus que faz monstros como eu. Mas neste preciso momento estou tão cheia de medo que até tenho vontade de chorar.

- Onde é que queres comer?

- Em qualquer sítio! Na primeira Bierkeller que encontrarmos. Salsichas e Sauerkraut (1), cerveja e um Schnaps (2) duplo! Juntemo-nos ao alegre proletariado!

Ele nunca a vira tão perturbada. Comeu vorazmente e bebeu com desesperada determinação, mas, mesmo depois de um litro de cerveja e dois enormes Schnaps, continuava perfeitamente sóbria. Chamou a empregada para levar os pratos e trazer outra rodada de Schnaps, e a seguir anunciou que estava pronta para uma discussão racional.

- Primeiro sobre ti, Carl...

- Que é que há comigo?

- Agora percebo-te melhor. Gosto mais de ti.

- Obrigado - retorquiu Mendelius com um largo sorriso. - Eu também te amo!

- Não troces de mim. Não estou com disposição para isso. Essas gravações abalaram-me. Havia um tom de tremendo desespero na tua voz, ao quereres reconciliar-te com o impossível.

- E sobre o Jean Marie?

- Bem, isso foi outra surpresa. O retrato que fizeste dele era demasiado vívido para ser uma contrafacção. Tive de aceitar que era autêntico... Vi-o. Senti-o.

- Com que opinião ficaste dele?

- É um homem cheio de sorte.

- Cheio de sorte?

- Sim! Eu passei metade da vida a lidar com espíritos doentes. À parte deficiências orgânicas, a maioria dos casos resumem-se a fragmentação da personalidade, a perda da identidade. A vida (quer a interior, quer a exterior) é um puzzle cujas peças estão espalhadas pela mesa toda. O clínico passa o tempo a tentar criar uma situação de auto-reconhecimento: uma situação em que até a confusão faz sentido. O paciente tem de ver que o puzzle é concebido para nos obrigar a trabalhar para o montarmos. O que quer que aconteceu ao teu Jean Marie teve precisamente o mesmo efeito salvador. Fez com que tudo adquiri-se sentido: o conflito, o fracasso, a tua rejeição, até mesmo a sua escuridão

 

(1) Espécie de couve fermentada. (N. do T.)

(2) Tipo de aguardente alemã. (N. do T.)

 

actual. Meu Deus! Se eu pudesse fazer isso com os meus pacientes, seria a maior médica do mundo. Se o pudesse fazer comigo própria, seria um bom pedaço mais feliz do que sou.

- Eu diria que és uma personalidade bastante integrada.

- Ah, sim, Carl? Ora olha para mim neste momento: meio bêbeda com álcool ordinário, porque tenho medo do amanhã e odeio a rã gorda que a minha mãe trouxe ao mundo! Habituei-me a viver comigo, mas a gostar de mim, não... isso, nunca!

- Eu sinto-me orgulhoso de te conhecer, Anneliese - disse ternamente Carl Mendelius. - És uma boa amiga e uma grande mulher.

- Obrigadinha! - Voltou a fechar-se imediatamente. - Disse-te que tenho andado a ler uma porção de coisas: religião comparada, a base da experiência mística em diversos cultos. Ainda é terreno estranho para mim, mas a ideia da salvação começa a fazer sentido. Todos nós experimentamos a dor, o medo, a injustiça, a confusão, a morte. Lutamos por manter-nos inteiros durante essa experiência. Mesmo quando fracassamos, tentamos salvar o nosso eu do naufrágio. Não podemos fazê-lo sozinhos. Precisamos de apoio. Precisamos de mais: de um módulo ou exemplo para nos mostrar qual é o aspecto de um ser humano inteiro. Daí o profeta, o Messias, a figura de Cristo. E o mesmo se aplica às comunidades de crentes. A igreja (seja ela qual for) diz: “A verdade está aqui; a luz está aqui; nós somos os eleitos; junta-te a nós!” É assim ou não é, professor?

- É - disse Mendelius. - Mas a questão importante é qual o módulo que se escolhe e porquê.

- Ainda não sei - replicou Anneliese Meissner. - Mas sei que a concordância final é simples, como foi para o teu Jean Marie. O segredo está em que a pessoa tem de sentir-se completamente desesperada antes de se submeter. O paciente que eu consigo ajudar mais depressa é o desesperado que sabe que se encontra doente. O melhor candidato para os cultos é a pessoa que chegou ao extremo da corda.

- O que nos leva ao problema seguinte - disse Mendelius, estendendo o braço para tocar-lhe a mão. - Que vamos, tu e eu, fazer quanto à situação na Universidade? Se o reitor nos entregar aos politiqueiros, como é provável que aconteça, e se metade dos nossos colegas se rende aos caçadores de bruxas, que fazer então?

- Passaremos à clandestinidade. - Anneliese Meissner não tinha dúvidas a esse respeito. - Começamos agora a organizar-nos para isso.

- Estás a ver? - Mendelius deu uma risada e levantou o copo para um brinde. - Até tu, Frau Professora, estás disposta a enterrar os manuscritos sagrados e a fugir para as montanhas!

- Não contes muito com isso, Carl. Isto é a bebida a falar.

- In vino veritas (1) - observou Mendelius com um esgar.

- Oh, por amor de Deus! - protestou Anneliese Meissner, dirigindo-lhe um ar carrancudo. - Já hoje temos mais que a nossa conta de chavões! Vamos passear um bocado. Aqui dentro abafa-se.

Durante o caminho para casa, através das plácidas ruas da velha cidade, Mendelius deu por si a enfrentar outro dilema. Num conflito sem objectivo, uma guerra que se travasse até à extinção, a quem devia lealdade o homem? À terra queimada e estéril que outrora lhe servira de lar? Aos homens que conduziam o carro de Juggernaut, alheios às vítimas sob as suas rodas? À nação-estado, que não tardaria a ser tão insignificante para os vivos como para os mortos? À raça, ao sangue, à tribo, à tradição, Gott una Vaterland (2)? Se não a nada disso, a quê, então? E quando deveria Carl Mendelius começar a libertar-se do sistema do qual durante tanto tempo fora beneficiário?

Katrin e Johann seriam chamados às fileiras antes do final do ano. Como deveria aconselhá-los a responder? Sim, ao louco imperativo? Ou não, não serviremos, porque não há nenhum final possível a não ser a catástrofe? Uma vez mais, recordações da infância se ergueram, perseguindo-o: os corpos de jovens soldados suspensos de candeeiros em Dresda porque tinham abandonado uma causa perdida, nos últimos dias de um déspota louco.

Agora estava verdadeiramente prisioneiro do circuito fechado do cosmo predestinado de Jean Marie. Enquanto se podia ainda atirar uma moeda ao ar com 50 por cento de probabilidades, era possível viver-se, pelo menos, da esperança. Quando, porém, se descobria que ambas as faces da moeda eram caras e que o Criador não proporcionava nenhumas hipóteses, estava-se em pleno conto do vigário, e, quanto mais depressa se fugisse dele, melhor. Sendo assim, que é que pensa que será, Herr Professor? A continuidade ou o

 

(1) Em latim: a verdade está no vinho. (N. do T.)

(2) Em alemão: Deus e a Pátria. (N. do T.)

 

caos? E, se optar pelo caos iminente, em que planeta distante e com que criaturas sobreviventes edificará a sua nova utopia?

Era uma questão enfadonha, e não tardou cansar-se dela. Precisava de se distrair; assim, meteu por uma ruela estreita, empurrou uma porta roída do caruncho e galgou três lanços de escadas até ao estúdio de Alvin Dolman, ex-sargento-chefe do exército americano do Reno, ex-marido da filha do burgo-mestre e presentemente um feliz divorciado que trabalhava como desenhador para um editor local. Era um fulano grande e risonho, de mãos fortes e musculosas e com uma perna aleijada, resultado de um acidente na Autobahn (1). Tinha também olho para gravuras antigas, e Mendelius era um dos clientes habituais aos quais oferecia vinho do Reno, Knackwurst (2) e conselhos grátis acerca de mulheres, política e mercado de obras de arte.

- Chegou na altura própria, professor. É tão raro aparecer-me alguém neste raio de negócio que estou a pensar em dedicar-me ao da pornografia. Olhe só para estes! Descobri-os num ferro-velho de Manheim: dois desenhos à pena de Julius Schnorr von Carolsfeld... Veja! Têm a assinatura e a data, 1821. Um belo desenhador, não é? E os modelos também são bonitos. Que me diz a 500 marcos pela série?

- E que tal 300, Alvin? - propôs Mendelius, trincando alegremente o seu Knackwurst.

- 400... e é uma roubalheira!

- 350... No fim de contas, estão manchados.

- O senhor está a tirar-me o pão da boca, professor!

- Posso entrar com uma broa de centeio por fora.

- Negócio fechado. Quere-os emoldurados?

- O preço do costume?

- Acha que eu era capaz de roubar a um amigo?

- A mulher, talvez - retorquiu Mendelius com um sorriso. - Mas o relógio não. Que tal lhe corre a vida, Alvin?

- Nada mal, professor! Nada mal! - Verteu vinho no copo. - Como vai a família?

- Óptima! Óptima!

- Aquele rapazinho, o namorado da sua filha, tem pinta de bom artista. Tenho andado a dar-lhe lições de gravação a buril. Aprende depressa. No entanto, é uma pena o que vai acontecer a estes miúdos.

- Que é que lhes vai acontecer, Alvin?

 

(1) Em alemão no original: auto-estrada. (N. do T.)

(2) Género de salsicha alemã. (N. do T.)

 

- Eu só sei aquilo que oiço, professor. Mantenho-me em contacto com a nossa rapaziada da tropa que está em Francoforte, de vez em quando vendo-lhes uma ou outra gravura, quando estão suficientemente bêbedos. Fala-se imenso de guerra. Estão a mandar para cá tropas frescas e equipamento novo. Lá em Detroit estão a mudar para veículos militares. Ando a pensar em fazer a trouxa e regressar. É muito bonito ser artista-residente numa cidade universitária... mas que diabo!... Quem é que está na disposição de levar um tiro no canastro por amor das Frauleins? Se acontecer alguma coisa, Tubinga será zona de guerra no espaço de uma semana. Mas a verdade é que, se calhar, Detroit também. Sirva-se à vontade do vinho. Quero mostrar-lhe uma coisa.

Remexeu num armário e tirou de lá um pequeno embrulho quadrangular, envolvido em oleado. Abriu-o cautelosamente para revelar um pequeno retrato duplo de um nobre do século XVI e respectiva mulher. Poisou-o no cavalete e ajeitou a luz.

- Bem, professor, que me diz?

- Parece um Cranach.

- E é. Lucas Cranach, o Velho. Pintou-o em Wittenberg, em 1508.

- Onde diabo o arranjou?

Dolman sorriu e estendeu o indicador sobre o nariz.

- Farejei-o, professor... Num quarto de mulher, se quer saber. Ela ficou tão satisfeita com a minha companhia, que mo deu. Limpei-o e... hop, uma apólice de seguro pronta a usar! No entanto, não o vendo por nada, aqui na Alemanha. Levo-o comigo de volta.

- E a respeito da senhora? Não compartilha dos lucros?

- Não, com os diabos! É bonita mas estúpida; e o marido está cheio de dinheiro. Além disso, foi um negócio justo. Eu fi-la muito feliz.

- Você é um patife, Alvin - observou Mendelius com uma risada.

- Sou mesmo, não sou? Mas, com a inflação como está, uma pensão do exército mal dá para aperitivos!

- Se as coisas derem para o torto, talvez tornem a convocá-lo para o exército.

- Nem pensar, professor! - Dolman começou a embrulhar novamente o seu tesouro. - Saí e hei-de conservar-me de fora! Da próxima vez não vai ser uma guerra, mas apenas uma grande labareda e a seguir... pumba!, aí vai o rapaz pôr-se outra vez a pintar búfalos nas paredes de uma caverna!

 

Mendelius estava a escrever, sentado à secretária, enquanto Lotte se mantinha tranquilamente a tricotar a um canto, ouvindo um concerto de Brahms transmitido de Berlim.

[...] O medo está em toda a parte, Jean. É como uma névoa sombria erguendo-se dos pântanos, espalhando-se pelas ruas, infiltrando-se em todas as casas. Matiza a conversa mais casual. Entra no mais simples cálculo doméstico.

Os nossos catedráticos acabam de ser solicitados no sentido de comunicarem ao serviço de segurança as filiações políticas dos nossos alunos. Assim, até a mais elementar das relações está corrompida e pode ser inteiramente destruída. Dei já conhecimento de que resignarei se o pedido for convertido em ordem. Mas já pode ver quão subtilmente a corrupção opera: se confio na polícia para a minha protecção pessoal, como posso, logicamente, recusar-lhe a minha colaboração numa emergência nacional? A resposta é clara para mim. E será clara para muito poucos outros, quando os propagandistas erguerem aquilo a que Churchill chamava “a guarda pessoal de mentiras”.

Porém, se o medo é uma infecção, o desespero é uma epidemia. A sua visão do fim das coisas temporais obceca-nos a todos; mas o restante - o acto redentor final, a derradeira demonstração da justiça e da misericórdia divinas -, como havemos de exprimi-lo, em termos que mantenham viva a esperança humana? O seu cosmo fechado, meu querido amigo, será um lugar terrível sem isso.

O telefone tocou. Lotte poisou a malha para ir atender. Era Georg Rainer. Quando Mendelius ergueu o auscultador, Rainer lançou-se imediatamente num monólogo.

- Estou em Zurique. Meti-me num avião até aqui só para fazer este telefonema. Não podia confiar nos circuitos italianos. Agora, oiça com atenção e não faça qualquer comentário. Está recordado de, no nosso último encontro, termos falado de uma lista?

- Estou.

- Tem-na aí à mão?

- No andar de cima. Espere um bocadinho.

Mendelius subiu rapidamente ao escritório, abriu o velho cofre e extraiu de lá a lista de Jean Marie. Voltou a pegar no auscultador.

- Pronto. Tenho-a diante de mim.

- Está organizada por países?

- Está.

- Vou referir quatro nomes, de quatro países. Quero saber se esses nomes figuram na sua lista. Entendido?

- Força.

- URSS, Petrov?

- Sim.

- Grã-Bretanha, Pearson?

- Sim.

- EUA, Morrow?

- Sim.

- França, Duhamel?

- Sim.

- Óptimo. Isso quer dizer que o meu informador é fidedigno.

- Está a falar por enigmas, Georg.

- Mandei-lhe uma carta da estação central dos correios de Zurique. Ela explicará os enigmas.

- Mas estará aqui na quarta-feira.

- Bem sei. Mas sou um pessimista. Conto com o melhor e preparo-me para o pior. Há alguém que me anda a seguir desde sábado. A Pia julgou ver uma rendição de serviço no aeroporto, o que quer dizer que podemos estar a ser vigiados também em Zurique. Portanto, vamos tentar uma pequena acção evasiva e seguir por terra, em lugar de viajar de avião. Poderá alojar-nos a ambos? Não tenho maneira de deixar a Pia sozinha em Roma.

- Com certeza! Isso é tudo muito sinistro, Georg!

- Eu bem o avisei de que poderia sê-lo. Deixe-se estar muito quieto e acenda uma velinha por nós. Auf Wiedersehen.

Mendelius poisou o auscultador e começou a folhear distraidamente as páginas dactilografadas da lista de Jean Marie. Tinha aceitado desde o primeiro instante a depreciativa descrição de Anneliese Meissner segundo a qual eram “um auxiliar de memória tirado de um arquivo”. Nunca tinha pensado sequer na força e potencial da amizade entre homens que ocupavam postos elevados. Mas Rainer tinha compreendido a sua importância; Rainer tinha rasgado toda uma nova área de investigação e estava agora em perigo devido a isso.

Lotte enfiou a cabeça pela porta e perguntou:

- Que é que o Rainer queria?

- Foi bastante críptico. Queria que eu confirmasse que quatro nomes estavam na lista do Jean Marie. Queria também dizer-me que vinha por terra até Tubinga e que trazia a Pia com ele.

Esteve quase a dizer que Rainer se encontrava sob vigilância, mas pensou melhor e calou-se.

- Ai, valha-me Deus! -exclamou Lotte, instantaneamente na pele de dona de casa. - Isso provoca as suas complicações. Vou ter de mudar os quartos. Achas que podemos alojar o Lars Larsen aqui no escritório?

- Como queiras, querida... Por acaso não se arranjará um café?

- Chocolate - emendou firmemente Lotte. - Não estou para te ver a remexeres-te durante toda a noite. - Beijou-o e saiu da sala.

Mendelius regressou à sua carta. Sentiu tentações de referir-se ao telefonema de Rainer e pedir mais explicações sobre o significado da lista, mas depois reconsiderou. Os correios italianos nunca eram seguros e não queria ser demasiado específico.

[...] E assim dou comigo uma e outra vez de volta à sua carta e anexos e preocupo-me com o problema de apresentar as suas ideias num fórum aberto. Pergunto a mim próprio, por exemplo, como pretenderia que elas fossem apresentadas às pessoas que figuram na sua lista...

Em que termos discutimos a Parúsia com um auditório de crentes e não crentes do século XX? Pergunto, meu caro Jean, se não teremos corrompido o seu significado de tal modo que seja já impossível reconhecê-lo. Falamos de triunfo, de julgamento, de “o Filho do Homem vir sobre as nuvens do Céu, com grande poder e glória”.

Pergunto a mim próprio se o poder e a majestade e a glória não poderão manifestar-se de uma maneira muito diferente daquela que esperamos. Recordo a expressão da sua carta “um momento de singular agonia” e de tê-lo explicado como uma súbita percepção da unicidade de todas as coisas. Como Goethe à hora da morte, continuo a implorar mais luz. Sou um homem sensual, sobrecarregado por demasiados conhecimentos e demasiada falta de compreensão real. No final de um longo dia, sei que fico muito satisfeito com o chocolate quente da Lotte e os braços dela a rodearem-me na escuridão.

Lars Larsen, brusco, bem posto e volúvel, chegou uma hora antes do meio-dia, depois de um voo nocturno de Nova Iorque e uma vertiginosa viagem de automóvel a partir de Francoforte. Um quarto de hora depois estava já encerrado com Mendelius, lendo-lhe a cartilha da instituição literária.

- Representá-lo-ei a si e ao Rainer, sim senhor, mas só depois de ter conseguido um contrato satisfatório entre vocês os dois... e isso tem de ser pelo menos na razão sessenta-quarenta a seu favor. Antes de chegarmos sequer aí, o Rainer tem de revelar as suas condições com o Die Welt. Se ele pertence aos quadros deles, pura e simplesmente, o grupo Springer pode requerer propriedade total sobre tudo aquilo com que ele contribua para este projecto. Portanto, primeiro falarei a sós com o Rainer. Você mantém-se de fora até eu ter isso arrumado. Não, não me venha com discussões, Carl. Meio por meio não é aceitável, e pronto. Você tem de controlar esta coisa, e a única maneira de o fazer é ser dono dos votos. Além disso, o que os clientes querem comprar é você. Tenho três ofertas de direitos mundiais para a publicação em folhetins e em livro de um milhão e meio à cabeça... e isso é a sua conta, e a da sua associação com Gregório XVII, não à conta do Rainer! Depois de eu ver o que você tem, talvez possamos elevar a base de partida para dois milhões... mais uma porção de vantagens colaterais chorudas. Portanto, veja as coisas clarinhas. Carl! Está a fazer do Rainer um homem rico. Não tem nada que se desculpar pelas condições do contrato.

- Não era no Rainer que eu estava a pensar - objectou Mendelius, subitamente taciturno. - Estava a pensar era em mim. Quando esta história for publicada, há-de haver uma porção de gente a querer desacreditar-me tal como desacreditou o Jean Marie. Dois milhões de dólares poderiam fazer-me parecer um Judas muito caro.

- Se o fizer de graça - contrapôs Lars Larsen -, hão-de pensar que é um pobre diabo... louco de mais para que se possa dar-lhe crédito. O dinheiro cheira sempre bem. No entanto, se isso o incomoda, fale com o seu advogado, que talvez ele o aconselhe a fundar uma obra de beneficência para mulheres caídas! Esse problema não é meu. O dinheiro que eu lhe proporciono garante que os seus editores têm de conseguir-lhe uma audiência numerosa... e isso, no fim, é o que você quer. Agora, posso dar uma vista de olhos aos documentos, por favor?

 

Mendelius abriu o velho cofre e tirou o sobrescrito que continha a carta e a encíclica de Jean Marie. Larsen deitou-lhe uma olhadela e a seguir inquiriu sem rodeios:

- São genuínos?

- São.

- Pode garantir a autenticidade da caligrafia?

- Claro... e verifiquei-os através de discussão pessoal com o autor.

- Óptimo. Vou precisar de uma declaração notarial nesse sentido. Gostaria também de fotografar certas passagens como espécimes... não necessariamente as importantes. Quando a quantia em jogo é desta ordem, os clientes exigem uma protecção estanque. E a última coisa que querem é um desaguisado com o Vaticano a propósito de atribuirmos coisas apócrifas a alguém.

- Nunca o conheci tão cauteloso, Lars.

- E ainda a procissão vai no adro, Carl. - Lars não estava divertido. - Assim que a história for conhecida, o seu passado e o seu presente passam a estar sob observação microscópica. E os do Rainer idem... e profissionalmente, pelo menos, oxalá que ele esteja escrupulosamente limpo. Agora, acha que me pode arranjar outra chávena de café e deixar-me sozinho a examinar esta coisa?

- Já que está com as mãos na massa - disse Mendelius com um sorriso -, tome umas notas quanto à crítica interna: a caligrafia, o cuidado estilo francês, a qualidade da argumentação e a expressão da emoção pessoal.

- De crítica interna sei eu de sobra - retorquiu Larsen com azedume. - Um dos meus primeiros clientes era um mestre na arte do plagiato. Foi processado em um milhão e perdeu a acção. Eu fui obrigado a devolver a minha comissão. Ora bem, e então esse café?

Quando desceu para o almoço, à uma e meia, Larsen era outra pessoa, abalada e subjugada. Debicava a comida e falava incoerentemente.

- Normalmente leio desapaixonadamente. Não tenho outro remédio. Ninguém pode sustentar o impacte de todas aquelas personalidades eruditas a discursarem para nós sobre os manuscritos. Mas aquela carta, Lotte! Fez-me vir lágrimas aos olhos. Nunca vou à igreja a não ser por motivo de casamentos ou funerais. Mas o meu avô materno era um antiquado luterano sueco. Quando eu era pequeno, sentava-me nos joelhos e lia-me a Bíblia. Lá em cima, senti-me como se estivesse novamente a ouvi-lo.

- Compreendo o que quer dizer - interveio Lotte, agarrando avidamente a oportunidade de entrar na conversa. - É por isso que estou constantemente a dizer ao Carl que este trabalho sobre o Jean Marie tem de ser feito com amor e fidelidade. Não se pode permitir que quem quer que seja o torne reles ou vulgar.

- Como se sente, nesse caso, relativamente ao Georg Rainer?

- Não o conheço muito bem. É cativante e espirituoso. Acho que é muito versado sobre a Itália e o Vaticano. No entanto, sempre digo que o Carl deve manter o controlo do projecto.

- Vamos esclarecer uma coisa - interrompeu Mendelius, subitamente mal-humorado e irritadiço. - O Georg Rainer chega esta tarde como nosso hóspede. O que importa é que ele e eu trabalhemos satisfatória e produtivamente em conjunto. Não quero que nenhumas discussões sobre dinheiro estraguem isso. E tão-pouco quero proporcionar-lhe um acolhimento com reservas.

- Jawoh (1)!, Herr Professor! - disse Lotte, com um trejeito de troça perante a solenidade do marido.

- Confie em mim, Carl - disse Lars Larsen, endereçando-lhe um sorriso. - Sou um cirurgião muito bom. Corto tudo, e todos os meus pacientes recuperam! Agora quero monopolizar o seu telefone por um par de horas. Em Nova Iorque os negócios estão abertos; e, depois do que li, ena pá!, se temos negócio!

Mais tarde, na cozinha, Lotte não conseguiu reprimir o riso, ao comentar para Mendelius:

- O Lars é tão divertido! Mal começa a falar de dinheiro, sente-se logo a electricidade. Os olhos começam a soltar chispas e uma pessoa por pouco não espera ver-lhe os cabelos em pé. Tenho a certeza de que ficaria sentido se lho dissesses, mas parece o homem gordo à entrada do circo, a berrar com quanta força tem, vendendo bilhetes para o “dia do juízo”!

A campanha de vendas de Lars Larsen prolongou-se por toda a tarde. Às cinco e meia, com a parada em dois milhões e um quarto, fechou a bolsa. Conforme explicou a Mendelius, tinha já uma boa garantia em dinheiro com a qual iniciar as discussões com Georg Rainer. Mas Georg Rainer estava atrasado. Às 7 horas, telefonou de um restaurante à beira da estrada a 32 km para sul de Tubinga. Explicou que tinham sido seguidos à saída de Zurique, que havia despistado a equipa de vigilância, antes de chegar à fronteira, e depois percorrido metade das estradas de província da Suábia para

 

(1) Em alemão no original: sim. (N. do T.)

 

se certificar de que não tinham voltado a localizá-los. Às oito e meia chegou, acompanhado de Pia, desgrenhado pelo vento e cansado da viagem. Uma hora mais tarde, descontraído com o lauto jantar de Lotte, explicou o melodrama.

- A coisa mais extraordinária da abdicação foi o secretismo com que foi efectuada. Ninguém, mas mesmo ninguém, se dispunha a falar. O que levou a que nós, nas hostes da imprensa, concluíssemos que, para além de dever ter arranjado poderosos inimigos, Gregório XVII devia ter perdido muitos amigos, dentro e fora do Vaticano. Conhecíamo-lo, da mesma maneira que você, Carl, como sendo um homem de invulgar fascínio. Sendo assim, que seria feito dos seus amigos? Depois, você falou-me desta lista e pareceu-me que ela deveria ter uma importância especial. Disse-me que ela estava escrita à máquina. Portanto, tinha sido forçosamente tirada de um arquivo. Perguntei a mim próprio quem poderia estar ao corrente do arquivo particular de Gregório XVII, e quem me ocorreu foi o seu secretário particular. Nas minhas anotações, figurava como Bernard Logue, que, apesar do nome irlandês, é um francês, descendente de um dos patos bravos que voaram até França para combater os Ingleses. Fiz investigações sobre o que lhe teria acontecido após a abdicação.

- Foi inteligente da sua parte, Georg. O Logue foi o homem que denunciou à Cúria a existência da encíclica e deu origem a todo o caso. Nunca me ocorreu perguntar qual teria sido a paga que recebeu.

- Aparentemente, não recebeu grande paga. Foi afastado da residência papal para o secretariado para as comunicações públicas. Tinham-me dito que era um fulano bastante desconsolado, que poderia estar preparado para dar livre curso às suas queixas. Muito pelo contrário! Mostrou-se o perfeito funcionário eclesiástico: rigoroso, condescendente, absolutamente convencido de que o dedo de Deus guiava todo e qualquer escriba da Cidade do Vaticano. Era evidente que não estava a pontos de me entregar segredos de bandeja. Assim, disse-lhe que estava a trabalhar num artigo sobre os últimos dias de Gregório XVII, nos quais ele, monsenhor Logue, tinha desempenhado um papel-chave. Isto perturbou-o Pediu-me que especificasse o papel que alegadamente teria desempenhado. Respondi-lhe que ele tinha informado a Cúria da última encíclica de Gregório XVII, que não chegara a ser publicada. Isto abalou-o a sério. Negou ter feito semelhante coisa. Desmentiu ter conhecimento de qualquer encíclica. Nessa altura eu fiz referência à lista e citei dela os nomes que você me tinha confirmado. Ele exigiu saber onde vira eu esse documento. Respondi-lhe que tinha de proteger as minhas fontes, mas, evidentemente, poderia estar preparado para trocar algumas informações com ele. Respondeu-me que tinha conhecimento da lista mas nunca a vira. Passou a explicar que Gregório XVII acreditava firmemente na diplomacia pessoal. Em termos gerais, era demasiado vulnerável a gestos de amizade. O Secretariado de Estado via igualmente grandes perigos na sua posição relativamente a Lês Amis du Silence.

- Relativamente a quê? - quase gritou Mendelius. Rainer atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

- Já calculava que esta o arrumaria, Carl! A mim, pode crer que me arrumou. Perguntei quem eram os “amigos do silêncio”. Mas o nosso pequeno monsenhor apercebeu-se de que tinha tido um deslize dos grandes e insistiu comigo para que esquecesse ter alguma vez ouvido semelhante frase. Tentei tranquilizá-lo, mas ele recusou-se a ser consolado. A entrevista terminou. A única coisa com que fiquei foram os quatro nomes, Petrov e os outros, e qualquer coisa chamada Lês Amis du Silence. Nessa noite, sábado, levei a Pia a jantar ao Piccola Roma e depois a uma discoteca. Saímos de lá cerca das duas da manhã. As ruas estavam quase desertas. Foi nessa altura que nos apercebemos de que estávamos a ser seguidos. Desde então, temos estado sempre sob vigilância.

- Mas não houve nenhum ataque? - perguntou Larsen. - Nenhuma violência?

- Ainda não - disse dubitativamente Rainer. - Mas, mal eles saibam onde a lista está...

- Quem são “eles”? - perguntou Lotte.

- Não faço ideia. - O gesto de Rainer denunciava uma perplexidade fatigada. - Ao contrário aqui do Carl, nada do que o Vaticano faça me surpreende. Neste caso, porém, estamos a lidar com um único clérigo, um beato, um informador certo, que se dispôs a derrubar o seu próprio patrão. Pode servir outros interesses que não os do Vaticano. A Pia tem uma opinião pessoal sobre isso.

- Faça favor! - incitou-a Mendelius a participar na discussão. - Bem falta nos fazem ideias frescas.

Pia Menendez hesitou por instantes e depois explicou calmamente:

- O meu pai era diplomata. Costumava dizer que a diplomacia só era possível entre instituições estabelecidas, fossem elas boas ou más. Numa situação revolucionária, não se pode negociar, mas apenas jogar. Ora, por aquilo que o Georg me disse, Gregório XVII era de opinião que a uma catástrofe atómica se seguiria uma situação revolucionária a nível universal e ele ou outros teriam de jogar em homens de boa vontade dentro e fora da Igreja. Eles podem ser actualmente obscuros, mas estarem em condições de sobreviver ocupando posições de poder.

- Homens actualmente obscuros. - Larsen fixou-se na frase. - Ou talvez em desgraça, ou mesmo considerados perigosos para os regimes existentes. Isso forneceria outro motivo para destronar Gregório XVII.

- Mas não me diz quem nos anda a seguir - objectou Georg Rainer.

- Raciocinemos um pouco - voltou Mendelius a entrar na conversa. - Monsenhor Logue disse que nunca tinha visto a lista. É possível. Mal Jean Marie soubesse que ele era um informador, teria evidentemente tentado proteger os seus documentos. Mas Logue sabia que a lista existia. Assim que soubesse que você tinha acesso a ela, Georg, a quem iria contá-lo: aos actuais patrões do Vaticano... ou a esses outros interesses não especificados? A vigilância a toda a hora não parece lá muito uma táctica do Vaticano. Como observou a Pia, eles jogam principalmente o jogo institucional. Portanto, eu aposto no interesse exterior. Qual é a sua opinião sobre isso, Georg?

- Nenhuma antes de ler todos os seus documentos. Gostaria de levá-los comigo para a cama.

- Antes de ir para a cama - disse pressurosamente Lars Larsen -, gostaria de ter uma conversinha consigo acerca de contratos.

- Vou poupar-lhe esse trabalho - disse Georg Rainer, com um largo sorriso. - De nós os dois, o jesuíta é o Mendelius. Se os seus contratos satisfizerem o sentido de justiça dele, assiná-los-ei.

- Vou buscar o material que o Jean Marie me mandou - disse Mendelius. - Já o aviso de que é coisa para o manter acordado toda a noite.

- Alguma vez - disse Pia, filha de um diplomata - havia de me sentir satisfeita por dormir sozinha.

Nessa noite Mendelius permaneceu acordado ao longo das horas mortas e sinistras da madrugada, tentando, como cabia a qualquer bom historiador, imaginar-se no meio das antigas batalhas da cristandade: a batalha para estabelecer um códice de fé, uma constituição para a assembleia e para os manter firmes contra as invasões dos fantasistas e dos falsários.

As batalhas eram sempre amargas e algumas vezes violentas. Homens de boa vontade eram impiedosamente sacrificados. Aldrabões complacentes floresciam sob o guarda-chuva da ortodoxia. Faziam-se casamentos de conveniência entre a Igreja e o Estado. Havia cruéis divórcios de nações, comunidades, da união com os eleitos.

A batalha continuava ainda. Jean Marie Barette, ex-papa, era uma das suas vítimas. Tinha invocado o espírito; os cardeais tinham invocado a assembleia... e a assembleia tinha triunfado, como sempre, pelo peso dos números e a força da organização. Era esta a lição que os católicos romanos tinham dado aos marxistas: manter o códice puro e a hierarquia fechada. Com uma das coisas, desmascaram-se os heréticos; com a outra, esmagam-se.

Este raciocínio levou Mendelius, numa rápida reviravolta, à seguinte questão: quem eram os “amigos do silêncio”? Era tentador adoptar a teoria de Pia Menendez de homens aguardando na sombra que os fossem chamar para salvarem uma situação de revolução ou catástrofe. Por outro lado, recordava-se de uma carta muito antiga em que Jean Marie, ainda cardeal, atacara violentamente os movimentos elitistas dentro da Igreja:

[...7 Desconfio deles, Carl! Se fosse papa, desencorajaria activamente tudo aquilo que, por vagamente que fosse, se assemelhasse a uma sociedade secreta, a uma associação hermética, a um quadro privilegiado dentro da Igreja. De todas as sociedades, a mais aberta, a mais comunitária, deveria ser a assembleia do povo de Deus. Já há suficientes mistérios no universo sem nós fabricarmos mais. Mas os Romanos adoram os seus murmúrios, os seus mexericos de corredor e os seus arquivos secretos!

Custava a acreditar que o homem que escrevera aquelas palavras criasse o seu próprio clube de elite e lhe desse um nome tão revelador. Não seria mais provável que Lês Amis du Silence fosse um grupo externo cujo título francês tinha o objectivo de criar a impressão de aprovação por parte de um papa francês? Anos atrás, os Espanhóis tinham dado o exemplo ao criarem a sua própria elite autoritária, baptizando-a de Opus Dei (A Obra de Deus).

Ainda intranquilo, Mendelius começou a rebuscar na memória qualquer coisa susceptível de ter alguma ligação com os “amigos do silêncio”. A palavra “amigos” apresentava alguns correlativos singulares: da “sociedade dos amigos”, a amicus curiae e ao “amigo do homem” do marquês de Mirabeau. A palavra “silêncio” originava uma variedade mais extensa de associações. Na prisão Mamertine, em Roma, ardia uma lamparina poeirenta em memória da “igreja do silêncio”: os fiéis a quem era negada a liberdade de culto ou que eram perseguidos pela sua adesão à antiga fé. Havia o “silêncio de Amicla”, que proibia os cidadãos de Amicla de falarem da ameaça espartana, de tal modo que, quando as invasões viessem realmente, a cidade fosse presa fácil. E havia aquele sinistro provérbio italiano: “A vingança nobre é filha do silêncio profundo.”

Finalmente sonolento, Mendelius resolveu que poderia ser esta a oportunidade de pôr à prova a promessa de Drexel de proporcionar pontos de referência em questões de facto. Lotte agitou-se e estendeu o braço na escuridão para se tranquilizar. Ele aninhou-se no seu calor e mergulhou rapidamente no sono.

Havia problemas inesperados no contrato de Georg Rainer com o Die Welt, de modo que, imediatamente a seguir ao pequeno-almoço, Lars Larsen partiu para Bona e Berlim a fim de falar com funcionários superiores do grupo Springer. Estava desenvolto e confiante como sempre.

- Têm de se sujeitar. Se não houver acordo, não há notícia... e o Georg demite-se! Deixem isso comigo. Ponham-se a trabalhar e alinhavem a história. Quero levá-la em mão para Nova Iorque.

Mendelius e Rainer fecharam-se no escritório para porem a documentação em ordem: as fichas de Rainer sobre o pontificado de Gregório XVII, a correspondência particular entre ele e Mendelius, antes e durante o reinado, apontamentos de conferências e bibliografia sobre a tradição do milénio e, como pedra de fecho do edifício, os três documentos mais recentes: a carta, a encíclica e a lista de nomes. Sobre esta última, Georg Rainer emitiu um breve juízo:

- Quando não se é crente (e eu, na melhor das hipóteses, sou um luterano vestigial), a carta e a encíclica são uma espécie de poesia, para lá da discussão racional. Ou se sentem, ou não. Eu senti a agonia do homem. No entanto, para mim, ele estava a passear na lua, muito fora do alcance. Mas a lista dos nomes... isso foi outra coisa. Reconheci a maior parte deles. Sabia o suficiente sobre eles para observar certos factores comuns e pressupor que uma passagem pelo computador poderia revelar mais ainda. Quero estudar a lista outra vez esta manhã antes de assentar em quaisquer conclusões.

- Consegue visualizá-los como “amigos do silêncio”?

- De maneira nenhuma. Todos eles têm sido bastante faladores, e alguns sofreram paragens na carreira das quais podem recuperar ou não.

- Vou atirar o nome ao Drexel, para ver o que dá. Mendelius estendeu a mão para o telefone, discou o número da Cidade do Vaticano e pediu para ligarem ao cardeal Drexel. Sua Eminência pareceu surpreendido e um pouco fatigado.

- Mendelius? Começa cedo a mexer-se. Que posso fazer por si?

- Estou a trabalhar na minha memória. Vossa Eminência teve a amabilidade de oferecer a sua ajuda em questões de facto.

- Sim?

- Quem são lês “amis du silence”?

- Desculpe. - Drexel foi brusco. - Não posso fornecer-lhe qualquer informação sobre esse assunto.

- Pode encaminhar-me, tal como prometeu, para qualquer outra fonte?

- Não seria oportuno.

- Houve quem me informasse de que o assunto pode ser perigoso.

- Quanto a isso, não posso fornecer opinião.

- Obrigado, Eminência, pelo menos por ter atendido a minha chamada.

- O prazer foi meu, Mendelius. Bom dia! Rainer não ficou surpreendido.

- Pouca sorte?

Mendelius soltou um ronco de contrariedade.

- O assunto é inoportuno!

- Adoro essa palavra! Utilizam-na para enterrar toda a sorte de corpos. Porque não telefona para Monte Cassino pedindo esclarecimentos ao seu amigo?

- Porque não quero que ele tenha qualquer responsabilidade naquilo que escrevermos. O repórter é você. Fora isso, a que porta poderemos bater?

- Sugiro que esqueçamos isso de momento e estabeleçamos o argumento da peça. Tal como o vejo, começamos pela abdicação em si, um acto grande, consequente, cujo motivo é ainda um mistério. Acumulámos já elementos suficientes para afirmar que foram os membros do Sacro Colégio que engendraram toda a situação. Demonstramos como foi isso feito. Finalmente chegamos ao porquê, o qual depende do seu testemunho, dos três documentos finais e das suas entrevistas com o Drexel em Roma e com o ex-Gregório XVII em Monte Cassino. Relatarei tudo isso e referirei os elementos. Os nossos leitores começarão imediatamente a fazer juízos. Os cínicos dirão que o homem estava doido e os cardeais fizeram bem em livrar-se dele. Os devotos descansarão em paz na cantilena oficial segundo a qual, seja o que for que aconteceu, o Espírito Santo fará com que tudo acabe em bem. Os curiosos e os críticos hão-de querer saber mais. É aí que você pega na narrativa para fornecer o retrato do homem e uma análise do que ele disse e escreveu. Sei que você é um escritor muito lúcido, mas desta vez vai ter mesmo de dizer as coisas numa linguagem simples... até para os nossos redac-tores-adjuntos! Bem, concorda com a forma?

- Como ponto de partida, sim. Veremos o aspecto que tem dactilografado. Ponha-se à vontade. Eu vou dar um passeio antes de começar a trabalhar.

Enquanto atravessava o salão, o telefone tocou. O homem do outro lado da linha identificou-se como Dieter Lorenz, investigador principal do Landeskriminalamt. Tinha surgido uma questão de certa importância, e gostaria de discuti-la com o Herr Professor.

Chegou dez minutos depois: um fulano esgalgado e de aspecto andrajoso, de blue-jeans e blusão de couro. Enquanto Lotte preparava café, mostrou a Mendelius uma suja folha de papel stencil na qual estava desenhado um retrato em silhueta de Mendelius, com o seu nome, morada e número de telefone. O papel estava várias vezes dobrado como se tivesse andado dentro de uma carteira. Lorenz explicou a sua proveniência.

- Há uma cervejaria frequentada por operários turcos da fábrica de papel. É um dos centros de tráfico de droga na cidade e entre os estudantes. Ontem à noite houve uma rixa entre uns turcos e um grupo de jovens alemães. Um homem foi esfaqueado. Morreu antes de chegar ao hospital. Identificámo-lo como Albrecht Metzger, antigo empregado de escritório, despedido há seis meses por furto. Encontrámos este papel na carteira dele.

- Que significa isso?

- Em poucas palavras, professor, significa que o senhor está sob vigilância terrorista. O esboço é copiado a stencil, o que significa que foi passado a uma porção de pessoas. O papel é alemão. O desenho foi provavelmente feito em Roma, a partir de uma das suas fotografias publicadas na imprensa italiana. O resto da história está ainda por esclarecer. Sabemos realmente que alguns grupos clandestinos se autofinanciam traficando em drogas originárias da Turquia. Há 20 000 estudantes na Universidade, de modo que se trata de um mercado altamente significativo para os vendedores. O homem que morreu não figurava em nenhuma das nossas listas de procurados. No entanto, os grupos terroristas usam operadores marginais, pagos em dinheiro, a fim de protegerem a organização central. Da maneira como as coisas estão presentemente, com altos níveis de desemprego e agitação social, não é difícil arranjar mão-de-obra de recurso para trabalhos deste tipo.

Lotte trouxe o café e, enquanto ela o servia, Mendelius explicou a situação. Ela reagiu com bastante calma, mas ficou pálida e tremia-lhe a mão quando poisou a cafeteira. Lorenz continuou a sua exposição:

- Tem de compreender como funciona o sistema terrorista. Utilizando pessoas como o nosso falecido amigo Metzger (às quais chamamos “vigias”), elaboram um quadro dos hábitos e movimentos da vítima em vista. Numa grande cidade é mais difícil, mas numa pequena como Tubinga, e com uma pessoa que tem uma profissão como o senhor, é comparativamente fácil. O senhor desloca-se sempre para o mesmo local de trabalho. Faz compras nas mesmas lojas. Não introduz demasiadas variantes. Dessa maneira, torna-se desatento e descuidado. Então, um dia, eles deslocam uma equipa de assalto, três ou quatro pessoas, com um par de carros, e... zás!, fazem a coisa.

- Não é um quadro muito animador, pois não? - perguntou Lotte, com uma voz vacilante.

- Não, minha cara senhora, não é - replicou Lorenz, sem oferecer qualquer espécie de conforto. - Podemos dar uma autorização de porte de arma ao seu marido; mas, a menos que ele esteja preparado para receber instrução de armas portáteis, não lhe vale de muito. Podem contratar guarda-costas, mas levam autênticas fortunas... A não ser, claro está, que os seus alunos estejam na disposição de ajudar.

- Não! - recusou rotundamente Mendelius.

- Nesse caso, a única resposta é vigilância pessoal e contacto permanente connosco. Deve comunicar-nos mesmo o incidente mais trivial que lhe pareça estranho ou fora do vulgar. Eu deixo-lhe o meu cartão. Telefone para este número a qualquer hora, de dia ou de noite. Está lá sempre um homem de serviço.

- Há uma coisa que eu não consigo perceber - disse Lotte. - Por que é que eles perseguem o Carl desta maneira? Ele fez os seus depoimentos em Roma. A informação já está enfichada. Morto ou vivo, já não pode alterar isso.

- Não está a ver o problema, minha cara senhora - explicou pacientemente Lorenz. - O único objectivo do terror é criar medo e incerteza. Se o terrorista não reclamar o pagamento, perde a sua influência. É a velha ideia da vendetta, que nunca pára até um dos lados ser varrido da circulação. Numa sociedade consolidada, o nosso trabalho como polícias era mais fácil. Agora cada dia é mais difícil... e mais sujo, também!

- É isso que me preocupa - disse carrancudamente Mendelius. - Penso que sabe que há a possibilidade de pedirem aos professores informações de segurança acerca dos nossos alunos.

Lorenz deitou-lhe um rápido olhar dissimulado e acenou.

- Sei, sim. Depreendo que a ideia não lhe agrada.

- Repugna-me.

- É uma questão de prioridades, não é? Qual é o preço que está disposto a pagar pela segurança nas ruas?

- Esse é alto de mais - disse Carl Mendelius. - Obrigado pela ajuda. Manter-nos-emos em contacto.

Devolveu-lhe o esboço. Lorenz dobrou-o cuidadosamente e voltou a metê-lo na carteira. Deu um cartão seu a Mendelius e repetiu:

- Não se esqueça! A qualquer hora do dia ou da noite. Obrigado pelo café, minha senhora.

- Eu acompanho-o ao automóvel - disse Mendelius. - É só um minuto, querida. Quero passear um pouco antes de começar a trabalhar com o Georg.

- Quem é Georg? - inquiriu o polícia, subitamente alerta.

- Georg Rainer. É o correspondente em Roma do Die Welt. Estamos a escrever uma história juntos sobre o Vaticano.

- Então faça o favor de não o deixar publicar essa história. Já há demasiada atenção concentrada em si.

Enquanto subiam a pé o Kirchgasse, em direcção ao mercado antigo, Dieter Lorenz acrescentou uma brusca reflexão adicional à discussão:

- Não quis dizer isto diante da sua mulher. O senhor tem dois filhos. Do ponto de vista dos terroristas, o rapto é um negócio ainda melhor do que o assassínio. Dá-lhes imensa publicidade e aumenta-lhes os fundos. Quando os seus filhos regressarem das férias, o melhor é ensinar-lhes também a técnica.

- Estamos mesmo a regressar à selva, não estamos?

- Já vamos bem dentro dela - observou secamente Dieter Lorenz. - Isto era uma cidadezinha tranquila; mas, se visse algumas das coisas que me passam pela secretária, ficava com os cabelos em pé.

- Qual é a resposta?

- Só Deus sabe! Talvez precisemos de uma boa guerra para matar alguns desses filhos-da-mãe e permitir-nos recomeçar tudo do zero!

Tratava-se de uma reflexão azeda e triste proveniente de um homem sobrecarregado de trabalho. Não contribuiu de modo algum para mitigar o medo difuso que invadia Mendelius ao caminhar na direcção do quiosque dos jornais e que o fez saltar quando uma dona de casa o empurrou e um rapaz numa motoreta passou por ele, a roncar, de escape aberto. Agora não havia nenhum Francone para o guiar. Estava exposto por todos os lados a caçadores silenciosos que andavam com a imagem dele como um boneco de feitiço para onde quer que fossem.

 

Rainer trabalhava depressa, habituado que estava a cumprir prazos diários com rolhas dactilografadas limpas e rigorosas. Mendelius estava acostumado ao furta-passo do autor académico. Esmerava-se em pormenores de estilo e embrenhava-se no aperfeiçoamento de uma definição. Insistia em escrever tudo por extenso; as suas correcções exigiam duas ou três provas dactilografadas.

Apesar da sua aparente incompatibilidade, decorridos quatro dias produziram o primeiro e mais importante estádio do projecto: uma versão de 20000 palavras para imediata publicação em episódios em jornais e revistas. Antes de entregá-la ao tradutor - visto que os contratos obrigavam à existência de uma versão em inglês - deram-na a ler, à vez, a Lotte, Pia Menendez e Anneliese Meissner. As leituras deram origem a alguns comentários sinceros e inesperados.

Lotte fez quanto pôde para ser meiga, mas só conseguiu arrasar os escribas.

- Há qualquer coisa que não está bem. Não sou capaz de dizer exactamente o que é, ou talvez seja. Conheço o Jean Marie. É um homem simpático, complexo e sempre interessante para uma mulher. Não o sinto em nada do que vocês escreveram aí. É demasiado distante, demasiado... Não sei! Sinto-me bastante desinteressada da personagem que vocês descreveram! Não me importa realmente o que possa acontecer-lhe.

Pia Menendez contribuiu com uma concordância concreta e uma explicação:

- Acho que estou a ver o que sucedeu. Sei como funciona o espírito do Georg. Sempre disseste, querido, que estás a fornecer relatos de Roma tanto para crentes como para não crentes. Não podes ceder a uns por receio de afastares os outros. Sendo assim, tens de mostrar um toque de cinismo. Acho que o Prof. Mendelius caiu na mesma armadilha. Está a tentar tanto distanciar-se de um amigo sincero, que mais parece um censor de moral. E está a tentar tanto ser científico acerca da doutrina das “últimas coisas”, que mais parece um exercício de altas matemáticas. Não pretendo ser malcriada, mas...

- Não se desculpe! -Anneliese Meissner foi brusca como sempre. - Concordo consigo e com a Lotte. Vocês deixaram escapar o homem que é, no fim de contas, o ponto central, o fulcro de todo este episódio histórico. Na sua análise da figura de um profeta, o Carl abdicou da poesia em benefício do pedantismo. E tenho ainda outra reclamação, Carl! Penso que esta pode ser muito importante. Na tua dissertação sobre as “últimas coisas”, evitas duas questões importantes: a natureza do mal, a presença do mal num cataclismo provocado pelo homem, e a natureza da própria Parúsia. Que é que vamos ver? Ou, mais rigorosamente, que é que os profetas apocalípticos, incluindo o Jean Marie, prometem que veremos? O que distinguirá o Cristo do Anticristo? Neste momento sou uma leitora tua, mesmo não sendo crente! Desde o momento que abres a caixa, estou tão ansiosa como qualquer outra pessoa por ver o que está lá dentro.

Mendelius e Rainer olharam um para o outro, desalentados. Rainer sorriu e fez um gesto de derrota.

- Se os leitores não gostam de nós, Carl, estamos mortos. E se não conseguirmos despertar-lhes a piedade e o terror com este assunto, merecemos estar mortos.

- Voltemos para a secretária, nesse caso. - E Mendelius começou a empilhar novamente o manuscrito.

- Esta noite não! - protestou Lotte com grande firmeza. - Já marquei jantar para nós os cinco na Holderlinhaus. A comida lá é boa e o ambiente parece exercer um efeito favorável no Carl. É o único sítio onde o vi suficientemente alegre para recitar Empédocles no Etna durante o assado e cantar Schubert à sobremesa. E ambas as coisas muito bem, diga-se de passagem!

- Sou capaz de voltar a embriagar-me esta noite - alertou Mendelius. - Estou profundamente desanimado. A única coisa que me alegra é o Lars Larsen ter lido esta versão.

- Nesse caso, vou dar-te um conselho - disse Anneliese Meissner. - Deita fora a parte com que contribuíste para o artigo, Carl! Começa tudo do princípio. Deixa falar o coração como fizeste nas gravações que me mandaste de Roma!

- Bravo! - exclamou Lotte. - E, se um pouco de bebida ajuda o coração a falar, estou plenamente de acordo!

- E qual é a sua receita para mim? - perguntou Georg Rainer.

- Para si não é tão difícil - replicou Anneliese Meissner sem cerimónia. - Acho que o melhor que tem a fazer é cingir-se à história do acontecimento, deixar a interpretação para o Carl e depois voltar no final com uma pergunta directa que transforme os leitores em juiz e júri.

Georg Rainer pensou por instantes no assunto e depois acenou em concordância.

- Pode ser que tenha razão. Vou tentar... Mas diga-me uma coisa, Frau Doktor Meissner. A senhora não é crente. A senhora lida com os doentes e os alucinados. Por que razão tem tanto interesse neste pedaço de história religiosa?

- Porque estou com medo - retrucou sucintamente Anneliese Meissner. - Leio os presságios em todos os jornais. Oiço os tambores distantes e as trombetas loucas. Penso que teremos o nosso Armagedão. Todas as noites sonho com ele... e gostaria de descobrir uma fé que me confortasse na escuridão.

O ar tinha ainda a suavidade do Verão. O Necar corria tranquilo sob os salgueiros, enquanto os amantes se dedicavam ao preguiçoso tráfego de barcos à vara e a remos sob as janelas da Bursa e do velho Paço, onde outrora Melâncton ensinara e o grande Johannes Stõffler dera lições de Astronomia e Matemática... e desenhara o relógio da Câmara Municipal.

A Hõlderlinhaus era uma pequena moradia antiga com uma torre circular que ficava à beira-rio, defronte do jardim botânico. Ali morrera em 1843 Friedrich Hõlderlin, um génio triste e louco ofuscado pelo seu contemporâneo Uhland, no qual, conforme Goethe profetizara, o político engoliria o poeta.

As ruelas estavam presentemente tranquilas, visto que a Universidade se encontrava ainda em férias, mas no restaurante havia o bulício de um jantar dos professores do Instituto Evangélico e outro de um grupo de actores que se encontravam na cidade a fim de ensaiar no teatro da universidade. Mendelius apresentou Georg Rainer e Pia aos colegas e, enquanto a refeição prosseguia e o vinho corria, verificavam-se contínuas conversas entre as três mesas.

Na qualidade de conhecido correspondente de um jornal famoso, Rainer era o centro das atenções e Mendelius viu com admiração a maneira hábil como ele atraía os estudiosos para a conversa, lançando-lhes como isca fragmentos e excertos de informação sobre o cenário romano. Finalmente, num aparte estudadamente casual, perguntou:

- Algum dos senhores ouviu já falar de uma organização chamada Amigos do Silêncio? - Não empregou a designação original francesa, mas sim a alemã: Die Freunde dês Schweigens.

Estava a falar com os académicos; no entanto, a resposta veio, de um modo surpreendente, dos actores que estavam na outra mesa. Um jovem alto e cadavérico levantou-se e, numa proclamação cerimoniosa, apresentou-se a si e à sua companhia:

- Somos nós -disse-lhes - os “amigos do silêncio”. Para nos compreenderem, terão de manter-se também silenciosos. Na tranquilidade do silêncio, vamos contar-vos uma história de amor, medo e piedade.

E ali, na velha sala, onde o pobre Hõlderlin tinha tentado agarrar os últimos farrapos dos seus sonhos, representaram uma versão mimada do homem que perdeu a sombra e da mulher que lha devolveu.

Foi um daqueles estranhos e espontâneos encontros que transformam uma noite vulgar num acontecimento mágico, que prosseguiu entre o vinho e os cantares e a narração de histórias até o relógio do mestre Stõffler bater as 2 h da manhã na torre da Câmara Municipal. Quando estavam nas despedidas, um colega mais velho do instituto puxou Mendelius pela manga e deu-lhe uma sugestão:

- Afinal o seu amigo Rainer não obteve resposta à pergunta que fez. Distraímo-nos todos com aqueles talentosos jovens. Você recebe a Revista de Estudos Patrísticos, não recebe? Vem um artigo no número de Abril sobre a “disciplina do segredo”. Faz uma ou outra referência que pode contribuir para a investigação que ele está a fazer.

- Obrigado. Amanhã de manhã hei-de dar uma vista de olhos.

- Ah, é verdade, outra coisa, Mendelius...

- Sim? - Estava ansioso por ir-se embora. Lotte e os outros afastavam-se já.

- Soube da sua posição relativamente à questão da vigilância sobre os estudantes. Concordo com ela; mas acho que deve ficar a saber que o reitor não ficou lá muito satisfeito. Sustenta que você o afrontou. A minha ideia é que ele teme uma revolta do corpo docente... que é a última coisa que deseja antes de se reformar. Bem... Boa noite, meu caro colega. Siga com cuidado. Uma pessoa pode partir um pé no diabo destas pedras da calçada.

Às 3 h e às 4 h da manhã Mendelius agitava-se ainda sem sossego entre o sono e a vigília. Às 5 h levantou-se, fez café e sentou-se à secretária com o número de Abril da Revista de Estudos Patrísticos. A edição tinha sido publicada antes da abdicação e fora evidentemente preparada vários meses antes.

O artigo sobre a “disciplina do segredo” vinha datado de Paris e era assinado por um tal Jacques Mandei. Trutava de um costume das primitivas comunidades cristãs chariado disciplina arcani. A frase, em si, só fora criada no século XVII, mas a disciplina era uma das mais antigas na comunidade cristã: o encobrimento obrigatório dos ritos e doutrinas mais misteriosos da Igreja, que não deviam em caso algum ser mencionados ao não crente ou sequer aos aspirantes em fase de instrução. Qualquer referência necessária deveria ser feita em termos crípticos, enigmáticos ou mesmo ilusórios. O exemplo mais famoso desse tipo de linguagem era a inscrição descoberta no Outono de 1839: “Aceita a comida do Salvador, doce como mel, das mãos dos sagrados; come e bebe segurando o peixe nas mãos.” A palavra “peixe” era um anagrama correspondente a Jesus Cristo, Filho do Salvador. A “comida doce como mel” era a eucaristia.

A primeira parte do artigo de Mandei era uma análise académica dos dados sobre o costume e a resultante escassez de dados patrísticos acerca de questões doutrinárias e sacramentais. No entanto, nada havia nele de novo a não ser um ou dois curiosos esclarecimentos fortuitos acerca do sínodo de Antioquia, no qual os ortodoxos tinham condenado os arianos por admitirem que catecúmenos e mesmo pagãos participassem numa discussão de “os mistérios”. Mendelius deu por si a interrogar-se sobre a razão pela qual o autor se dera ao trabalho de publicar uma nova versão de documentação tão antiga. Nessa altura, repentinamente, o teor do escrito mudava. Jacques Mandei, fosse ele quem fosse, utilizava a “disciplina do segredo” como um texto ao qual se agarrar para defender um argumento muito moderno.

Sustentava que, dentro da hierarquia da Igreja Católica Romana, existia um poderoso grupo que pretendia abafar toda e qualquer discussão sobre questões doutrinárias e impor uma versão do século XX da “disciplina do segredo”. Chamava a atenção para a acção supressiva tomada contra certos teólogos católicos nos anos setenta e princípio dos anos oitenta e para as atitudes rigoristas de certos bispos contemporâneos em França e noutros países. Escrevia o seguinte:

Consta que existe uma fraternidade clandestina destes bispos, que têm amigos em posições importantes na Cúria, e estão em condições de exercer grandes pressões que chegam a atingir o sumo pontífice... Até agora, Gregório XVII, ele próprio francês, conseguiu navegar com êxito entre os rigoristas e os inovadores; no entanto, não faz segredo do seu desacordo relativamente àquilo a que chama “uma maçonaria de altas entidades eclesiásticas, os amigos do silêncio e da escuridão”. O autor viu uma cópia de uma carta do sumo pontífice para um decano-arcebispo em que são utilizados estes termos de censura.

Tratava-se de palavras bem directas para uma revista tão sóbria e especializada; mas Mendelius compreendeu o seu alcance. Jacques Mandei estava a lançar um papagaio a fim de ver quem dispararia contra ele ou quem lhe diria adeus. Era, porém, evidente que estava de posse de informações que explicavam grande parte do pano de fundo da abdicação.

Muito antes da visão e da abdicação, Jean Marie tinha estado submetido a uma enorme pressão. A possibilidade de cisma existira realmente. Os bispos eram homens poderosos, quer na esfera religiosa, quer no âmbito secular. Naquela eram chefes de amplas congregações. Neste eram uma força discreta mas potente, controlando um voto confessional em questões polémicas. No final - visto que os cardeais não se teriam mexido sem apoio maioritário por parte dos bispos-, tinham-se revelado suficientemente fortes para derrubarem um papa.

À luz destes novos elementos, a história de Georg Rainer estar sob vigilância e perseguição fazia um certo sentido, que tinha o seu quê de sinistro. Nem todos os eclesiásticos se encontravam divorciados da política. Nem todos eram alheios às suas práticas mais violentas. A História estava cheia de negócios sujos feitos por homens altamente colocados por motivos santos. E, ocupando o seu próprio lugar elevado, Jean Marie tinha conhecimento das maldades que podiam ser ocultadas ou perdoadas sob a “disciplina do segredo” ou dentro de uma confraria de silêncio.

Mendelius assinalou as passagens relevantes do artigo e rabiscou um memorando para Georg Rainer:

Isto não são factos; no entanto, se os juntarmos à indiscrição de monsenhor Logue, ficamos de posse de um forte indício da natureza dos “amigos do silêncio”. A minha ideia é incluir uma referência na nossa história, tal como Mandei fez, e ver as reacções que obtemos. Vou esboçar uma pequena parte sobre outro aspecto do fenómeno: que, em épocas de crise aguda, o público tem sempre tendência para ditadores e juntas, tal como a pessoa doente tende a recorrer ao médico tranquilizador, por mais incompetente que ele seja. Se eu não estiver cá quando você começar a trabalhar, encontrará o novo material na minha secretária.

Agrafou a nota ao manuscrito com o projecto de Rainer e a seguir puxou para si o seu próprio exemplar do manuscrito e, sob o título “O enquadramento no tempo de Gregório XVII”, começou a escrever:

As epidemias psíquicas não são fenómeno novo na história humana. Os germes que as causam mantêm-se em casulo, como o bacilo do antraz, até estarem maduras as condições para o seu renascimento. Estas condições são o medo, a incerteza, o desabamento de sistemas sociais demasiado frágeis para as sobrecargas que lhes são impostas. Os sintomas são tão diversos como as ilusões da humanidade: a automutilação dos flagelantes e dos padres castrados, a fúria assassina dos sicarii, a perversão sexual dos caçadores de bruxas, a loucura metódica dos inquisidores que pensam confinar a verdade a uma frase e queimam qualquer sujeito contumaz que se atreva a discordar da sua definição. Mas os efeitos da doença são sempre os mesmos. O paciente torna-se medroso e irracional, atreito a terrores nocturnos, dado a ilusões agradáveis: presa fácil de vendedores ambulantes de panaceias, de feitiços mágicos e das loucuras colectivas dos outros padecentes.

Traçar a origem e o curso da doença é uma coisa; curá-la, outra bem diferente. O remédio mais drástico é o extermínio. O único problema é que nunca se tem a certeza de quem emergirá do matadouro: se os lunáticos, se os sãos. A propaganda é outro tratamento poderoso. Enfiam-se para dentro dos pacientes, de manhã à noite, e mesmo durante o sono, pensamentos aliviadores. Diz-se-lhes continuamente que tudo corre pelo melhor nesta mais benigna de todas as criações. E eles acreditarão em nós, além de tudo, satisfeitos e agradecidos... até ao dia em que pela primeira vez sintam cheiro a fogo no vento e vejam sangue na pedra do altar. Nessa altura transformar-se-ão e despedaçar-nos-ão membro por membro, numa fúria maníaca de ressentimento.

Foi por esta razão que o Sacro Colégio decidiu silenciar Jean Marie Barette e suprimir o relato da sua visão. Sabiam que o ricochete de uma proclamação do milénio podia ser enorme. No entanto, era precisamente por essa razão que Jean Marie propunha na sua encíclica uma preparação do espírito para um inevitável período de insanidade social. Queria que se estabelecessem médicos e locais de asilo antes mesmo de a epidemia se declarar. E, pelo menos em princípio, acredito que ele tinha razão.

Mesmo nos tempos antigos, asilo era uma palavra mística. Significava um lugar sagrado, um templo, um santuário, uma mata na floresta onde um criminoso ou um escravo foragido podia encontrar abrigo dos seus perseguidores e dormir em segurança sob o nume do deus residente. Não era só a recolha que era importante. Era igualmente a retirada, a retirada do poder, a esperança, o impulso vital, que sustinha o arquejante fugitivo durante o último quilómetro, à medida que os cães de fila lhe ladravam cada vez mais perto dos calcanhares.

Uma nova ideia assaltou Mendelius. Poisou a caneta a fim de meditar nela. Tudo o que tinha acabado de escrever sobre as causas e sintomas da epidemia psíquica podia com igual justiça ser aplicado a Jean Marie. Tinha abdicado da razão devido à mais estranha das revelações. Tinha abdicado do único lugar a partir do qual podia exercer-se o poder. Não propunha esperança, mas apenas um cataclismo e um juízo final para os sobreviventes. Os seus adversários, fosse qual fosse o título que atribuíssem a si próprios, tinham pelo menos o pragmático senso comum pelo seu lado. As organizações tradicionais tinham resistido à prova do tempo e haviam sobrevivido às amplas tensões dos séculos. As interpretações tradicionais granjeavam respeito, quanto mais não fosse pela sua antiguidade e durabilidade. Quando o tecto estava a cair, o que era preciso era um telhador, e não um profeta.

E era precisamente nisso que residia a debilidade que tanto Lotte como Anneliese e Pia tinham encontrado no seu retrato de Jean Marie. Faltava-lhe convicção porque o autor não a tinha. Não suscitava paixão porque estava inundada da uniforme luz branca da razão pura. Ou talvez, conforme Anneliese o alertara havia muito, ele tivesse ainda demasiado de jesuíta para incomodar a família da fé com uma verdade impopular! Bastava, pois! Pegou num lápis vermelho e começou bárbara e metodicamente a cortar aos bocados o seu exemplar do manuscrito. Depois puxou para si um bloco limpo e começou de novo, abrindo com um testemunho puro e simples:

Escrevo acerca de um homem por quem tenho profunda amizade. Sou, portanto, uma testemunha suspeita. Por essa razão, se outra não houvesse, só contribuirei com o testemunho que possa ser aceite de acordo com as mais estritas regras de evidência. Quando apresentar uma opinião, assim a definirei. Exprimirei as minhas dúvidas tão honestamente como as minhas certezas. Porém, repito, escrevo sobre um homem ao qual me liga uma profunda amizade, ao qual devo algumas das melhores coisas da minha vida, que é mais próximo para mim <io que um irmão... e cujas actuais provações não logrei compartilhar totalmente.

Subitamente, foi como se tivesse sido bafejado pelo dom da eloquência. Sabia exactamente o que havia de dizer de Jean Marie e como devia dizê-lo para tocar o coração dos mais simples. Quando chegou à altura de expor a doutrina das “últimas coisas” e quão intimamente Jean Marie a ela aderira, foi lúcido e persuasivo. Jean Marie tinha sido silenciado sem ser ouvido. Agora, dizia Mendelius, o advogado involuntário, devia dispor de um julgamento aberto.

Quando, porém, chegou a altura de responder às perguntas que Anneliese Meissner fizera - a natureza do mal e o modo do “segundo advento”-, foi obrigado a uma comovente admissão:

[...] Sei que o mal existe. Estou já marcado como vítima do seu poder destruidor. Todos os dias rezo para ser liberto dele. Não sei por que razão existe mal e dor num mundo da autoria de um criador benévolo, à visão de Gregório XVII descrevia apenas os efeitos desse mal; não lançava luz sobre o mistério da sua existência. E a mesma coisa relativamente ao “segundo advento”. Nada nos diz sobre o como, o quando, o onde do acontecimento, que os cristãos acreditam estar implícito e irrevo-gavelmente garantido pela doutrina da Ressurreição. Seria, pois, absolutamente justo dizer que a visão de Gregório XVII não nos diz nada que não saibamos já. Porém, isto não desacredita a visão ou o visionário, como tão-pouco um pintor é desacreditado por nos mostrar a luz e a paisagem como nunca as vimos. Gostaria de poder interpretar o significado do instante de arrebatamento particular do meu amigo. Mas não posso. O mais que posso fazer é mostrar como, por bons ou maus motivos, Jean Marie Barette, o papa Gregório XVII, foi impedido de apresentar a sua própria interpretação ao mundo. Ficámos mais ricos ou mais pobres? Só o tempo o dirá.

Três dias depois, com a ajuda de quatro dactilógrafos e dois tradutores, o trabalho estava feito. As versões inglesa e alemã foram encaminhadas para os distribuidores. As declarações e as cópias fotográficas dos documentos foram todas autenticadas. Lars Larsen estava a fazer um brinde de despedida antes de partir de automóvel para Francoforte a fim de apanhar o seu voo para Nova Iorque.

- Fico sempre cheio de medo a seguir à venda de uma coisa grande como esta. Ponho a cabeça no cepo. Se a minha opinião for desacreditada, perco o emprego. Se o meu autor me entregar um barrete, que digo eu aos editores? Desta vez, porém, posso colocar um embrulho em cima da secretária do editor e jurar pela alma da minha mãe que ele obterá o valor do dinheiro que gastou. Temos o acordo de toda a gente. Publicação simultânea no próximo domingo. Depois, deixem-se ficar muito quietinhos à espera do ricochete. Mas vocês são fortes, hão-de aguentar-se no balanço. Quando as coisas se puserem feias, lembrem-se de que cada entrevista da televisão são dólares e marcos e ienes no banco. Georg, Carl, tiro o chapéu a ambos. Lotte, minha querida, obrigado pela hospitalidade. Pia, espero que o seu homem a possa levar a Nova Iorque. Quanto à senhora, Dr.a Meissner, foi um prazer conhecê-la. Quando eu acabar por me ir abaixo por esgotamento, espero que se encarregue do meu tratamento.

- O senhor nunca há-de ter nenhum esgotamento. - Anne-liese Meissner endereçou-lhe o seu sorriso mais cruel. – Pelo menos enquanto o dinheiro não for abolido, voltando-se à economia de troca.

- Até devia agradecer por eu ser assim! - exclamou jovialmente Lars Larsen. - Gosto do jogo, por isso jogo-o bem. Espero que vocês se divirtam tanto a gastar o dinheiro como eu a conseguir que vocês o ganhem. À vossa!

Era uma boa tirada final e Mendelius prestou-lhe as honras devidas. Até Anneiiese Meissner se apressou a reparar o que dissera e perguntou se Larsen estaria disposto a representar as suas obras no mercado americano. Georg Rainer reconheceu que a sensação de ser rico era uma experiência nova e agradável. Sentia relutância em concordar com Pia quando esta disse que não existia já qualquer impedimento a que ele se casasse... de preferência com ela, e mudou precipitadamente de assunto.

- Há uma ou outra questão que ainda me perturba, Carl. Você referiu-se aos “amigos do silêncio”. Apresentámos a lista de políticos favoráveis a Gregório XVII. Mas não avançámos conclusões sólidas sobre nenhum dos temas. Mais tarde ou mais cedo, vamos ser interrogados nesses campos. Sendo assim, vou continuar a escavar em Roma e, se obtiver mais alguma coisa, telefono.

- Estou mais interessado em saber se ainda está sob vigilância quando regressar a Roma.

- Também eu. O mais imbecil dos espiões teve mais que tempo para me localizar aqui. Mas, agora que a história está escrita e com tantos exemplares em circulação, não vejo o que possa alguém fazer contra isso. Vou levar a Pia comigo a Bona para entregar uma cópia de segurança. Mesmo que eles desviassem essa, a notícia sairia na mesma. Não estou preocupado... apenas com curiosidade. Detesto pontas soltas.

A seguir, houve uma chuva de despedidas e o inevitável anticlímace. Anneiiese saiu para ir dar consulta na clínica. Lotte estava impaciente por regressar à lida da casa, a fim de deixá-la num brinco para o regresso da filharada. Mendelius deitou um olhar ao escritório cheio de lixo e optou por um passeio pelo jardim botânico a dar de comer aos patos e aos cisnes.

No dia seguinte os filhos voltaram a casa. Katrin, efervescente de felicidade, regressou de manhã. Presenteou a mãe com um caro lenço de pescoço e Mendelius com o prometido quadro de Franz: uma tela completamente acabada da Place du Tertre. Depois inspirou profundamente e deu a grande novidade. Ela e Franz tinham decidido ir viver para Paris. Seriam independentes e governar-se-iam modestamente bem. Franz tinha sido contratado por um negociante de arte famoso. Quanto a ela, empregar-se-ia numa empresa de importações alemã de Paris. Sim, ela e Franz tinham discutido o problema do casamento. Tinham ambos concordado que seria mais sensato esperarem uns tempos... e... por favor! Por favor! A Mutti e o Papa seriam capazes de fazer um esforço para compreender?

Lotte ficou chocada, mas conseguiu manter a compostura. Foi Mendelius quem tentou convencer Katrin dos problemas de um casal solteiro, vivendo num país estrangeiro numa época em que reinava a desordem. Contudo, fosse lá pelo que fosse, os argumentos careciam de convicção. No fundo ele sentia-se satisfeito por vê-la livrar-se da ameaça que pesava sobre todos eles em Tubinga. Queria que ela gozasse toda a felicidade que pudesse antes da ocorrência dos tempos sombrios e do desmoronar do mundo.

No final, ficou assente que Lotte iria com ela a Paris para ajudá-la a arranjar apartamento e a instalar-se e que Mendelius proporcionaria um fundo particular que a sustentaria na eventualidade de o caso amoroso acabar mal. Qualquer dos três tinha consciência - embora nenhum deles ousasse exprimi-lo por palavras - de que no fundo se tratava de uma conversa insensível acerca da sobrevivência e das melhores condições que podiam arranjar-se para manter a família unida e deixar o fermento das velhas devoções continuar a actuar numa situação desfavorável.

Mais tarde, enquanto Katrin desfazia as malas, Lotte chorou silenciosamente e Mendelius tentou encontrar palavras de conforto.

- Bem sei que estás desapontada, querida, mas, pelo menos, desta maneira a família mantém-se unida e ela continuará a recorrer a nós quando as coisas correrem mal. Bem sei que adorarias um casamento de vestido de noiva e um neto no ano imediato. Lamento dizer-te que eu não. Alegra-me vê-la ainda livre. E alegra-me termos agora dinheiro suficiente para torná-la independente.

- Mas ela é tão nova, Carl... e Paris parece tão distante!

- Quanto mais distante, neste momento, melhor - disse Mendelius com azedume. - Tu e eu podemos olhar por nós próprios, mas a última coisa que eu desejaria era que os nossos filhos fossem tomados como reféns. Agora limpa os olhos. Vai lá acima conversar com ela. Ela precisa tanto de ti como tu dela.

Quando Johann voltou, já todos estavam novamente calmos e prontos para seguirem atentamente a sua descrição do retiro alpino. Ele mostrou-lhes as fotografias que tinha tirado e discorreu apaixonadamente sobre as possibilidades do empreendimento.

- A entrada fica oculta ao fim de um carreiro de lenhadores. Trata-se de um comprido e estreito desfiladeiro que se abre neste estranho vale, que se assemelha a um corte feito por um machado, mesmo pelo meio da cumeada. A toda a volta do lago há prados com um metro de fundura em solo fértil. Os bosques estão cheios de veados... mas precisam de ser seleccionados para reprodução. A queda de água fica aqui, e para o lado esquerdo fica a entrada para as velhas minas, que têm quase 800 m de extensão, com uma série de passagens naturais que não explorámos, porque não estamos habituados e não tínhamos equipamento adequado.

Mendelius deixou-o desabafar à vontade e depois disparou a pergunta seca:

- Ainda estás interessado em adquirir e desenvolver o lugar?

- Interessado? Claro! Mas desenvolvê-lo custaria um dinheirão. É preciso mão-de-obra para a agricultura e construção. É preciso dispor de pareceres de especialistas em engenharia, canalizações e mesmo em culturas alpinas. Consegui alguns números. Mesmo que alugássemos o sítio, ainda seria preciso qualquer coisa como 300 000 marcos para o transformar num empreendimento rendível. E eu sei que não podemos arranjar uma soma desse teor.

- Imagina que podíamos. E depois?

Johann considerou a pergunta e a seguir fez outra.

- Passou-se alguma coisa de especial durante a minha ausência?

- Muita coisa - respondeu Katrin com ar pesaroso. - Aqui os nossos pais embrulharam-se em problemas bastante explosivos. O melhor é contar-Lhe tudo desde o princípio, papá.

Mendelius contou-lhe. Johann escutou atentamente, fazendo poucas perguntas, ocultando o que sentia, como era seu hábito. Finalmente Mendelius chegou ao epílogo da narrativa.

- Em consequência do que escrevi sobre a abdicação de Gregório XVII, ganhei uma porção de dinheiro. Portanto, estamos em condições de pensar mais livremente sobre os nossos futuros próximos. Há, porém, certas coisas que estão fora do nosso controlo. Pode muito bem acontecer encontrarmo-nos em guerra dentro dos próximos doze meses. Tu e a Katrin atingem em Setembro a idade de convocação para o serviço militar.

- Se formos convocados - disse Johann lugubremente -, não haverá grande futuro a discutir.

- Pode haver - disse Mendelius com forçada ironia-, se estás interessado em tornar-te um agricultor alpino. Os trabalhadores e proprietários agrícolas são normalmente dispensados do serviço militar. Se ainda estás interessado em adquirir essa propriedade na Baviera, é a altura indicada. Começa imediatamente a desenvolvê-la. Pode ser tanto um refúgio como uma propriedade produtiva.

- É um preço diabólico para pagar por um abrigo contra bombardeamentos - observou pensativamente Johann. - Para já não falar dos custos de desenvolvimento. Mas, sim, vale a pena pensar nisso. A mãe podia vir para lá, e a Katrin e o Franz. De qualquer maneira, precisamos de mão-de-obra.

- Conta-lhe a outra coisa, Carl!-interrompeu Lotte.- Isto pode esperar.

- Que outra coisa, pai?

- Há pessoas que querem matar-me, filho. Enquanto estivermos juntos aqui em Tubinga estamos todos em perigo. É por isso que penso que nos devíamos dispersar por uns tempos. A tua mãe vai a Paris para ajudar a Katrin a instalar-se. Se aceitares a minha oferta para esta propriedade, ficas de fora.

- E tu, pai? Quem é que olha por ti?

- Eu - disse Lotte -, mudei de ideias acerca de Paris. Se a Katrin já tem idade suficiente para arranjar um amante em lugar de um marido, também tem idade que chegue para encontrar e mobilar um alojamento. Tu e eu ficaremos aqui, Carl... Q Johann que decida o que quiser.

- Francamente, filho, gostaria muito mais que estivesses fora da universidade. - De repente, Mendelius mostrava-se ansioso por convencê-lo. - As coisas vão pôr-se feias. Há uma tendência no sentido de abrir processos de segurança para cada aluno. O corpo docente vai ser abordado no sentido de contribuir com informações. Eu recusei-me a alinhar. Isso quer dizer que mais tarde ou mais cedo (se sobreviver aos assassinos) estarei sob a mira dos tipos da segurança.

- Parece-me - disse deliberadamente Johann - que tudo isto se baseia no pressuposto de que a guerra é inevitável... uma guerra generalizada!

- Pois baseia. É isso.

- E acredita realmente que a humanidade se condenará a semelhante monstruosidade?

- A humanidade pouco poderá dizer ou fazer acerca disso - replicou Mendelius. - De acordo com a visão do Jean Marie, a guerra está já inscrita no nosso futuro. Foi por isso que eu não consegui chegar a conclusões com ele em Roma. Por outro lado, tudo o que vejo e ouço me diz que os países estão inteiramente voltados para uma confrontação a propósito do combustível e dos recursos e que o risco de um conflito aumenta em cada dia. Portanto, que posso eu dizer aos meus filhos adultos? A vossa mãe e eu já vivemos a melhor parte das nossas vidas. Gostaríamos de proporcionar-vos liberdade de escolha quanto à maneira de disporem da vossa existência.

- Vocês fazem parte das nossas vidas. Não podemos pôr-nos pura e simplesmente a tratar das nossas coisas como se vocês não existissem. Fico muito grato pela tua oferta, pai, mas quero pensar muito bem sobre ela. Quero falar também contigo, irmãzinha. Tenho umas coisas a combinar com o teu Franz!

- O Franz é cá comigo - protestou Katrin, subitamente na defensiva. - Não quero lutas entre vocês.

- Não vai haver luta nenhuma - disse calmamente Johann. - Mas quero ficar seguro de que o Franz sabe no que se vai meter... e do que vai ter de compartilhar em termos de responsabilidade familiar. Seria bom, por exemplo, podermos recrutar uma espécie de guarda-costas para o pai e a mãe no corpo de alunos.

- De maneira nenhuma! - protestou enfaticamente Mendelius. - Isso é uma vantagem imediata para o terrorista. Interrompeu o curso normal das nossas vidas, obrigou-nos a tomar precauções públicas. Por conseguinte é importante, poderoso e temível. Não! Não! Não! A vossa mãe e eu (e vocês também, enquanto aqui estiverem) proteger-nos-emos a nós próprios. O manual que a polícia nos deu é muito bom. Quero que vocês os dois o leiam e...

A campainha da porta tocou, e Mendelius foi atender. Johann seguiu-lhe no encalço. Mendelius recitou a simples rotina:

- Espreita sempre pelo óculo da porta. Se não conseguires identificar o visitante, abre a porta sem retirar a corrente de segurança. Se receberes uma embalagem de que não estavas à espera, ou uma carta anormalmente volumosa, telefona para o Kriminalamt e manda vir um perito em explosivos para a examinar. Podes sentir que fizeste figura de parvo se as embalagens forem inofensivas, mas sempre é melhor do que abrir um pacote armadilhado que te rebente com a cara.

Dessa vez, quer o visitante quer a embalagem eram inofensivos. Era Elvin Dolman, que vinha entregar as gravuras emolduradas. Enquanto Mendelius lhe servia uma bebida, mostrou-as orgulhosamente a Lotte e ao resto da família.

- Têm bom aspecto, hem? Esteve ontem lá no escritório um fulano que me ofereceu o triplo do preço que o senhor pagou. Como vê, recebe mesmo o tratamento de nação mais favorecida, professor!

- Com esta família, bem preciso, Alvin.

- Dê-se por satisfeito com a família que tem, professor. Quem me dera ter uma assim. Estou a ficar demasiado velho para andar a caçar pela floresta! A propósito, ontem à noite estive numa festa em honra da companhia de mímica. O seu nome foi mencionado. O actor principal disse que tinham representado para si e para um jornalista seu amigo numa festa na Hõlderlinhaus.

- É verdade. Acabou por durar até às tantas.

- De qualquer modo, disse que o conhecia a si e à sua família. Toda a gente parecia estar ao corrente da sua aventura em Roma. Foi nessa altura que aquela rapariga se alapou a mim e começou a fazer-me perguntas.

- Que rapariga? - perguntou Mendelius, carrancudo.- Que espécie de perguntas?

- Chama-se Alicia Benedictus. Trabalha no Schwabisches Tageblatt. Disse-me que estava a escrever um perfil seu para o jornal.

- Mostrou alguma identificação?

- Por que havia de mostrar? Éramos ambos convidados numa mesma festa. Aceitei-a pelo valor facial... e esse valor não era nada de deitar fora, pode crer!

Apesar da sua preocupação, Mendelius riu-se. O brilho de luxúria no olhar de Alvin Dolman tinha a intensidade de um farol. Mendelius repetiu a pergunta:

- Que espécie de perguntas fez ela?

- Ah, o costume: que espécie de homem era o senhor; qual era a opinião que havia sobre si na cidade; quem eram os seus amigos mais importantes... coisas assim.

- Que estranho! Se ela trabalha no Tageblatt, há-de ter um arquivo cheio desse material. Acho que gostaria de verificar se ela é quem diz ser.

- Porquê? Valha-me Deus! - Dolman estava completamente desorientado. - Aquilo era conversa de recepção. Só pensei que teria interesse em saber que alguém estava a escrever um artigo a seu respeito.

- Estou muito interessado, Alvin. Vamos telefonar já para o jornal.

Folheou a lista telefónica e fez a chamada, enquanto Dolman e a família ficavam a observar. A chamada foi rápida e a informação negativa. Não havia lá Alicia Benedictus nenhuma. Ninguém tinha sido encarregado de fazer um trabalho sobre Carl Mendelius. Mendelius poisou o auscultador e deu-lhes a notícia. Dolman ficou a olhar para ele de boca aberta.

- E esta, hem?

- Esta não me agrada nada, Alvin. Vou telefonar ao inspector Dieter Lorenz, do Kriminalamt. Ele há-de querer falar com ambos nós.

- A polícia? Que diabo, professor! Eu tenho uma rica vida sossegada por cá. Gostaria de continuar assim até voltar ao meu país. Por que razão precisa da polícia?

- Porque a minha vida está em causa, Alvin. Fui a principal testemunha de um tiroteio em Roma. Sabemos que os terroristas têm vigias a cobrir-me, a mim e a família, aqui em Tubinga. Essa rapariga poderia sê-lo.

Alvin Dolman abanou a cabeça como se estivesse a tentar libertá-la de teias de aranha e praguejou baixinho:

- Meu Deus! Quem iria pensar? Agora andam a querer alvejar catedráticos... e ainda por cima em Tubinga! Está bem, professor, vamos lá chamar os xuis e acabar com isto.

Um quarto de hora mais tarde estavam no gabinete de Dieter Lorenz no Landeskriminalamt. Lorenz submeteu Dolman a um longo interrogatório, após o que o instalou numa sala de entrevistas com uma chávena de café, um bloco de desenho e instruções no sentido de produzir algo de parecido com a rapariga que dissera chamar-se Alicia Benedictus. Depois, regressando ao seu gabinete, perguntou a Mendelius:

- Qual é o seu grau de intimidade com este Dolman? Mendelius encolheu os ombros:

- Não somos lá muito íntimos; mas conheço-o há anos. Já o convidei muitas vezes para ir tomar umas bebidas lá a casa, mas raramente para jantar. Compro-lhe estampas. Por vezes passo pelo estúdio dele para beber um copo de vinho e conversar um bocado. Acho-o um ponto. Por que razão pergunta? Tem alguma coisa contra ele?

- Nada - respondeu Lorenz com franqueza. - Mas é uma daquelas personagens que dão sempre que pensar a um polícia numa cidade de província como esta. Com um criminoso, a gente sabe como lidar. Podemos repatriar um trabalhador imigrante que se meta em sarilhos. Mas este tipo é diferente. Não se consegue descortinar uma boa razão para ele se manter por cá. É americano, divorciado de uma rapariga daqui. Tem um emprego próspero mas não há qualquer hipótese de criar fama ou fortuna. Além disse, é do género libertino. Quando se aborrece, uma pessoa já sabe que o encontra nos bares de bêbedos e nos mais mal-afamados clubes nocturnos de estudantes. Quando dá festas em casa, faz uma barulheira tremenda, e recebemos reclamações dos vizinhos. Portanto, como ele é popular, um tanto turbulento e gastador, perguntamos para os nossos botões se não terá ocupações secundárias, tais como o haxixe ou a heroína ou trabalhos de receptador. Até ver, está limpo. Mas ainda tenho de perguntar se ele poderá ou não estar a trabalhar como vigia para o grupo que anda atrás de si, ou se não estará ligado àquela gente misteriosa que, conforme o senhor me disse, anda provavelmente a seguir o Sr. Rainer.

- Parece-me um tanto ou quanto rebuscado - disse Mendelius.

- Provavelmente é - concordou pacientemente Lorenz. - Mas, às vezes, nesta profissão apanham-se surpresas bem desagradáveis. O Dolman é um artista. Encontrámos um esboço da sua cara no bolso de um morto. Não seria intrigante que o seu autor fosse Alvin Dolman?

- Impossível! Conheço o fulano há anos! Lorenz encolheu os ombros à objecção.

- É o impossível que está todos os dias a acontecer. De qualquer maneira, ele está a fazer outro esboço neste momento. Será instrutivo comparar os dois.

Mendelius ficou repentinamente irritado e agastadiço.

- O senhor colocou-me numa posição intolerável, inspector! Não posso continuar a manter relações de amizade com o Dolman sem lhe contar o que o senhor acabou de dizer-me.

- Não me importa que lhe conte - replicou Lorenz, apenas levemente surpreendido. - Até me ajuda. Se ele está inocente, há-de esfarrapar-se todo para colaborar e dispõe de uma data de contactos úteis na cidade. Se é culpado, há-de ficar inquieto e começar a cometer erros.

- Nunca se enjoa deste jogo, inspector?

- Gosto do jogo, professor; do que não gosto é das pessoas com as quais tenho de jogá-lo. Desculpe, tenho de ver como vai a obra de arte do Dolman.

Ao saírem juntos da esquadra, caminhando em direcção a casa pelo quente ar de Verão, Dolman parecia encarar filosoficamente a sua situação. Rechaçou as desculpas de Mendelius com forçada ironia.

- Não se preocupe com isso, professor! Eu compreendo as pessoas da laia do Lorenz. Ando sempre com o pé à beira do risco, sempre andei, até no exército. A única coisa que me surpreende é ver alguém deitar uma moeda ao cego em vez de quebrar-lhe os dentes a pontapé. No entanto, aqui só para nós, não tenho interesse nenhum em dar-lhe cabo do canastro, nem ligações com qualquer grupo. Sou estritamente um fulano que trabalha sozinho... e tenho a certeza de que o Lorenz é suficientemente inteligente para o perceber. O que ele supõe é que, lá por eu andar por aí e dar-me com uma série de tipos esquisitos, posso obter por acaso qualquer informação útil. Como é o senhor que está em causa, estou na disposição de colaborar. Além disso, não gosto de ser comido por parvo... que foi o que a menina Alicia Benedictus tentou fazer. Bem vistas as coisas, professor, foi um dia de cão. Dantes esta cidade era sossegada e acolhedora. Dava vontade de a enrolarmos em volta de nós como se fosse Strudel. Agora? Já não me agrada. Acho que não tarda que comece a fazer as malas. Siga para casa, professor. Conheço uma rapariga que guarda uma garrafa de aguardente quentinha de propósito para o Alvin Dolman!

Fez meia volta e percorreu rapidamente a ponte, dando a imagem de um homem grande e agressivo furando impiedosamente por entre as pessoas que andavam às compras e as que passeavam. Mendelius meteu pelo caminho que conduzia ao jardim. Não queria ir já para casa. Precisava de tempo e sossego para pôr as ideias em ordem. A família precisava de estar a sós para discutir as propostas radicais que ele lhe tinha apresentado.

Estava um dia quente e soalheiro e os habitantes de Tubinga apanhavam sol estendidos na relva. Junto do lago tinha-se reunido uma pequena multidão a assistir ao trabalho de uma companhia teatral com um grupo de estudantes muito jovens. Era uma cena encantadora: as crianças de olhos muito abertos e maravilhadas, totalmente absortas na história do palhaço triste que fazia balões lindos mas que nunca conseguia que nenhum lhe poisasse na mão. O palhaço era o fulano cadavérico que tinha representado para eles na Hõlderlinhaus. O resto da companhia personificava os balões que zombavam dos esforços que ele fazia para os apanhar.

Mendelius sentou-se na relva e ficou a assistir àquela pequena e inocente ópera, fascinado pela maneira como as crianças, inicialmente tímidas, eram levadas a tomar parte na mímica. Depois das lúgubres e grandiosas discussões em que tinha estado envolvido, aquela experiência simples era motivo de singular alegria. Sem se aperceber, deu por si a macaquear-lhes os sorrisos, as vénias e os gestos trémulos. O palhaço deu pela presença dele e, instantes depois, começou a fazer a pantomima de outra história. Chamou os outros actores e a assistência infantil e transmitiu-lhes, por mímica, que estava no meio deles uma nova e estranha criatura. Seria um cão? Não. Um coelho? Não. Um tigre, um elefante, um porco? Não. Então era preciso inspeccionarem-na... mas com muito, muito cuidado. Com o dedo nos lábios, caminhando em bicos de pés, levou-os, em fila indiana, a examinar aquele extraordinário animal.

A assistência rompeu em risadas ao descobrir que o alvo da brincadeira era um fulano de meia-idade a atirar para o gordo. Mendelius, passado um momento de indecisão, resolveu associar-se à comédia. Quando os actores e as crianças o rodearam, representou igualmente para eles como outrora tinha representado enigmas para os seus filhos. Finalmente, revelou-se como uma grande cegonha assente numa pata e olhando para baixo ao longo do comprido bico. A assistência aplaudiu. As crianças riram entusiasmadas com o seu triunfo. O palhaço e a companhia agradeceram por mímica. Uma miudita puxou-lhe pela manga e disse-lhe:

- Eu descobri antes de todos. Sabia a sério que o senhor era uma cegonha!

- Tenho a certeza de que descobriste, Liebchen (1).

E, ao curvar-se para falar com a criancinha, Mendelius foi assaltado pela súbita ideia doentia de qual seria o aspecto dela depois do primeiro sopro de radiações ou de uma infecção mortal de antraz.

Nessa noite, ao jantar, Katrin e Johann dominaram a conversa, fazendo uma prelecção inesperada aos pais. O argumento de Katrin era muito simples.

- A mãe é que o disse. Se eu já tenho idade suficiente para partir com um homem, também a tenho para tratar dos meus assuntos. Eu e o Franz temos de aperfeiçoar as nossas relações antes de podermos pensar em casar. Apesar do êxito que teve com a galeria, ainda se sente muito pouco seguro de si... e eu também ainda tenho de descobrir uns bocados que me faltam. Tenho sorte. Graças ao papá, disponho de segurança financeira. Quanto ao resto, porém, obtenho sempre melhores resultados quando ninguém me está a segurar a mão.

- Mas o Franz quer casar contigo - objectou Lotte. - Disse-me que to tinha proposto várias vezes.

- Eu sei que quer; mas o que ele pretende é uma Hausfrau (2), alguém que o faça sentir seguro e bem alimentado... e lhe garanta que é um génio. Não quero esse papel...

 

(1) Em alemão no original: amor zinho. (N. do T.)

(2) Em alemão no original: dona de casa. (N. do T.)

 

e tão-pouco quero que ele fique agarrado à sua dependência. Tem de aprender que, além de amantes, somos sócios.

- E que é que acontecerá - perguntou Johann com um sorriso largo - se ele não aprender tão depressa como tu quererias, irmãzinha?

- Nessa altura, irmão grande, hei-de arranjar outro! Lotte e Mendelius trocaram entre si os olhares pesarosos de pais que verificam terem sido deixados muito para trás numa discussão. Mendelius perguntou:

- E tu, Johann? Pensaste alguma coisa na minha proposta?

- Pensei e não foi pouco, pai... e receio bem que a ideia não me diga nada.

- Por alguma razão especial?

- Por uma e só uma. Estás a propor-me resolver à custa de dinheiro uma situação que tenho de ser eu próprio a enfrentar. Odeio a ideia da guerra. Vejo-a como uma imensa e horrível futilidade. Não quero ser convocado para carne de canhão... mas nunca me senti suficientemente especial para... bem, para ser isento do destino do meu próprio grupo de iguais. Tenho de manter-me com ele, pelo menos durante o tempo suficiente para resolver se pertenço a ele ou à oposição. Não estou a explicar-me lá muito bem. Aprecio o teu interesse por mim, mas, neste caso, vai mais longe do que eu quero ou preciso.

- Agrada-me que possas ser honesto connosco, filho - replicou Mendelius, sentindo dificuldade em ocultar a emoção. - Não queremos governar a tua vida. O melhor presente que podemos dar-te é liberdade e consciência para a usares. Portanto, deixem que eu faça uma pergunta a toda a família. Alguém tem alguma coisa contra a ideia de eu comprar o vale?

- E para que o utilizarias? - inquiriu Johann, fitando-o surpreendido.

- O teu pai tem lá o seu sonho - disse Lotte, estendendo o braço para tocar a mão de Mendelius. - Depois da reforma, gostaria de fundar uma academia para estudos de pós-graduação: um lugar onde velhos estudiosos possam reunir-se e compartilhar os ensinamentos colhidos ao longo de uma vida. Se ele quiser tentar... eu apoiá-lo-ei.

- Acho que é uma ideia estupenda - comentou Katrin, cheia de entusiasmo. - Estou sempre a dizer ao Franz que toda a gente deve continuar permanentemente a tentar chegar mais além. Quando a pessoa fica demasiado segura, torna-se cediça e bolorenta.

- Tens o meu voto, pai. - Johann olhou para Mendelius com novo respeito. - Se eu puder ajudar a preparar o lugar, conta comigo. E, se as coisas se complicarem demasiado na universidade, podes sempre optar por reformares-te antes do tempo.

- Amanhã logo de manhã telefono aos advogados. Têm de começar a estabelecer negociações com a Grãfin. Para a semana vou lá dar uma vista de olhos à propriedade. Gostaria que viesses comigo, Johann.

- Com certeza.

- E tu, Lotte? Queres vir?

- Mais tarde, Carl. Desta vez tu e o Johann devem ir juntos. A Katrin e eu temos outras coisas a fazer.

- Estou sinceramente entusiasmado - disse Mendelius, expondo o seu plano. - Gostaria de falar a um bom arquitecto: uma pessoa especial, que dê importância ao ambiente em que se vive.

- Estamos todos a ser muito calmos e lógicos - disse abruptamente Lotte-, mas eu tenho o horrível pressentimento de que a vida não vai correr da maneira que esperam.

- Talvez não, querida; mas é preciso termos esperança e agir como se fosse. Apesar das profecias do Jean Marie, ainda acredito que podemos influenciar o curso dos acontecimentos humanos.

- O bastante e a tempo para evitar uma guerra? Havia uma nota de desespero oculto na pergunta de

Lotte. Era quase como se ela esperasse que as crianças fossem subitamente arrebatadas da mesa do jantar. Mendelius endereçou-lhe um fugaz olhar preocupado e disse, com maior confiança do que aquela que sentia:

- O bastante e a tempo, sim. Tenho mesmo a esperança de que a publicação do nosso artigo no domingo chame a atenção do mundo para a necessidade de novas iniciativas de paz.

- Mas - objectou Johann - metade do mundo nunca chegará a ler o que vocês escreveram, pai.

- Os governantes lê-lo-ão - insistiu Mendelius, quanto mais não fosse para sacudir Lotte daquele estado de espírito sombrio. - Todos os serviços de informações hão-de ler e classificar o material. Nunca subestimes a difusão da mais simples notícia que seja. Ora bem, e se saíssemos da mesa e tratássemos de lavar a loiça? A televisão está a dar A Flauta Mágica. Eu e a vossa mãe gostaríamos de ver.

A meio da transmissão o telefone tocou. Era Georg Rainer, a falar de Berlim.

- Carl? Acho que me apercebi dos nossos espiões amadores. É já evidente que monsenhor Logue passou palavra de que eu trabalharia consigo nesta história. Penso que a vigilância foi estabelecida apenas para se certificarem desse facto. Agora o Vaticano resolveu publicar a sua própria versão da abdicação. Vai ser publicada uma declaração formal de cerca de 3000 palavras na edição de terça-feira do Osservatore Romano. Isso significa que a nossa história aparecerá primeiro, e vai haver muita gente que dará por paus e por pedras devido a esse erro de oportunidade! Consta que o texto do comunicado do Vaticano vai ser posto à disposição da imprensa secular na tarde de segunda-feira. Telefono-lhe se houver nele alguma coisa que afecte a nossa posição.

- Qual é a reacção dos editores ao nosso trabalho, Georg?

- Estão todos entusiasmados com ele. Há, no entanto, um fenómeno interessante: um animado mercado de apostas acerca do tipo de reacção que suscitará por parte do público.

- Em que termos é feita a aposta?

- Quem sairá vencedor em termos de taxa de popularidade: o Vaticano ou o ex-papa? Depois de ouvir a conversa oficial, já não estou assim tão certo. Regresso a Roma na segunda de manhã. Telefono-lhe de lá. Saudades à Lotte.

- E minhas à Pia.

- Ah, quase me esquecia! Resolvemos ficar noivos. Ou, pelo menos, a Pia resolveu e eu dei o meu relutante consentimento.

- Parabéns!

- Preferia ser pobre e livre!

- O diabo, é que preferia! Obrigado por ter falado, Georg.

- Quer que eu faça uma aposta por si na lotaria papal?

- Dez marcos em Gregório XVII. Temos de apoiar o nosso próprio candidato!

Uma semana mais tarde o veredicto era conhecido. O relato de Rainer/Mendelius da abdicação foi recebido pelo público com vivo interesse, e pelos pânditas com reservado respeito. Houve uma relutante concordância de que “clarificava muitas questões diplomaticamente deixadas em claro pelo relatório do Vaticano”. Levantava-se a questão de saber se os autores “não teriam empolado uma crise na burocracia religiosa, fazendo-a adquirir as dimensões de uma tragédia generalizada”.

O Times de Londres fornecia o mais judicioso resumo, num artigo de fundo escrito pelo redactor católico romano:

[...] Os autores, cada qual na esfera da sua competência, escreveram um resumo honesto. A sua história está cuidadosamente documentada; as suas especulações baseiam-se numa sólida lógica. Iluminaram alguns dos obscuros atalhos da política do Vaticano. Se manifestam tendência para exagerar a importância de uma abdicação papal na história do século XX, deve dizer-se em sua causa que a majestade arruinada de Roma pode pregar partidas à mais moderada das imaginações. No que não exageram, porém, é quanto ao perene poder de uma ideia religiosa suscitar as paixões dos homens e incitá-los à acção mais revolucionária. Abona muito em favor da sabedoria colectiva dos homens que ocupam os postos cimeiros da Igreja Católica Romana o facto de estarem preparados para agir com prontidão e em unidade contra aquilo que consideravam uma ressurreição da antiga heresia gnóstica. E abona mais ainda em favor da profunda espiritualidade do papa Gregório XVII o facto de ter decidido resignar em vez de dividir a assembleia dos crentes.

O Prof. Carl Mendelius é um estudioso ponderado de reputação mundial. O tributo que presta ao seu patrono e amigo de longa data revela-o como um homem ardente e leal, com algo que é mais do que um simples toque de poeta. É suficientemente sensato para reconhecer que o governo humano não pode ser comandado pelas visões dos místicos. E é suficientemente humilde para saber que as visões podem conter verdades que ignoramos à nossa própria responsabilidade.

A infelicidade de Gregório XVII foi, na aparência, escrever prematuramente o epitáfio da humanidade. A sua felicidade foi o memorial do seu reinado ter sido escrito com eloquência e com amor.

Mendelius era demasiado inteligente para deixar passar a ironia da situação. Com o auxílio de Georg Rainer, tinha erguido um monumento a um velho amigo; mas o monumento era uma pedra tumular, sob a qual jaziam enterrados para sempre os últimos vestígios de influência e poder que Jean Marie pudesse ter exercido. Ninguém poderia ter prestado melhor serviço ao novo pontífice e à sua política do que Carl Mendelius. O facto de as suas fadigas o terem convertido num milionário e lhe terem proporcionado uma fama que ultrapassava de longe os seus méritos de estudioso vinha a calhar. Mas a mais amarga ironia era uma nota de agradecimento de Jean Marie, proveniente de Monte Cassino:

Agradeço-lhe do fundo do coração o que tentou fazer. Nenhum homem poderia ter encontrado melhores advogados ou mais corajosos amigos. A verdade foi revelada com compreensão e compaixão. Agora o capítulo pode ser encerrado e a obra da Igreja pode prosseguir.

Portanto, não deve falar como se tudo estivesse perdido. O fermento está a levedar na farinha; a semente, arremessada ao vento, há-de germinar na altura própria. Quanto ao dinheiro, não lhe invejo um cêntimo sequer. Confio em que saberá gastar alegremente parte dele com Lotte e as crianças.

Mantenha-se tranquilo, caro amigo, e aguarde a palavra e o sinal.

Sempre seu em Jesus Cristo, JEAN MARIE

Lotte, lendo a carta por sobre o ombro dele, despenteou-lhe o cabelo e disse em voz baixa:

- Deixa isso agora, meu amor! Fizeste o melhor que podias e o Jean sabe disso. As pessoas cá de casa também precisam de ti.

- E eu também preciso de ti, querida. - Pegou-lhe nas mãos e fê-la dar a volta para ficar de frente para si. - Já me imiscuí durante o tempo suficiente no grande mundo. Sou um estudioso, e não um jornalista que anda a beber informações aqui e além. Ainda bem que as aulas recomeçam amanhã.

- Já reuniste as coisas todas?

- A maior parte, sim. - Ergueu um maço de páginas dactilografadas e riu-se. - Isto é o primeiro tema para este período. Olha para o título: “A natureza da profecia”.

- Por falar em profecia - disse Lotte -, vou fazer uma. Vamos ter uma bela estação de má-língua na cidade quando a Katrin for para Paris com o seu Franz. Como vamos reagir a isso?

- Dizemos às velhotas que se deitem ao Necar! - ripostou Mendelius com um sorriso. - A maioria delas perdeu a virgindade numa barca sob os salgueiros!

Durante o tempo de aulas, todos os dias Carl Mendelius saía de casa às oito e meia da manhã, descia a Kirchgasse até ao mercado, onde comprava uma flor para a lapela à mais velha figura da praça: uma avó de língua afiada de Bebenhausen. Dali eram apenas dois breves quarteirões até ao Ilustre Colégio, no qual entrava sempre pelo portão sueste, sob as armas do duque Cristóvão e a sua divisa: “Nach Gottes Willen” (conforme a vontade de Deus). Uma vez lá dentro, ia direito ao seu gabinete e passava meia hora a rever os apontamentos e a pilha diária de notas internas da administração da Universidade. Às nove e meia em ponto estava diante do púlpito na aula, com os apontamentos metodicamente empilhados sobre a estante de leitura.

Antes de ele sair de casa na primeira segunda-feira de aulas, Lotte recordou-lhe o aviso da polícia no sentido de mudar de itinerário e de procedimentos. Mendelius encolheu impacientemente os ombros. Tinha três ruas por onde escolher, e as aulas começavam sempre às nove e meia. Não eram possíveis grandes variantes. Fosse como fosse, pelo menos na manhã do primeiro dia, queria mostrar uma flor na botoeira. Lotte beijou-o e empurrou-o para fora de casa.

O ritual da chegada cumpriu-se sem incidentes. Passou dez minutos a conversar no pátio com o reitor do colégio e a seguir subiu ao gabinete, o qual, graças aos cuidados da governanta, estava imaculadamente limpo e cheirava a cera de abelhas e verniz para móveis. A túnica estava pendurada atrás da porta; o correio empilhado na secretária; os horários do período estavam enfiados na estante de secretária destinada à correspondência interna. Experimentou uma súbita sensação de alívio, quase de libertação. Estava na sua terra natal. Podia caminhar de olhos vendados.

Extraiu o conteúdo da pasta, reviu os textos das lições do dia e depois dedicou-se à correspondência. Na sua maioria era material de rotina; no entanto havia um sobrescrito bastante volumoso com o selo do reitor. A inscrição era um tanto ou quanto aziaga: “Particular e confidencial - Urgente - Entregue por mensageiro”.

 

(1) Em latim no original. (N. do T.)

 

Desde a reunião do corpo docente, o reitor mantivera-se deliberadamente silencioso sobre toda e qualquer questão litigiosa, e não era de todo impossível que quisesse montar um cenário de guerra com todas as ordens por escrito. Men-delius hesitou em abrir a missiva. Se havia coisa que não lhe apetecesse, era ser distraído antes da primeira lição do período. Finalmente, envergonhado da sua timidez, enfiou uma faca de papel por sob a dobra do envelope.

Quando os estudantes acorreram precipitadamente depois da explosão, depararam com ele deitado no chão, com as mãos esfaceladas e a cara num bolo ensanguentado.

 

Uma voz grita: “Abri no deserto um caminho para o Senhor, aplanai na solidão as veredas para o nosso Deus.”

Isolas, cap. XL, vers. 3.

 

SUA SANTIDADE o papa Leão XIV afundou mais o volumoso corpo na cadeira, apoiou o pé gotoso num banco sob a secretária e examinou o visitante como uma velha e mal-humorada águia. Anunciou então, no seu forte sotaque da Emília:

- Francamente, meu amigo, é um grande aborrecimento para mim.

Jean Marie Barette permitiu-se um sorriso gélido e concordou.

- Infelizmente, santidade, é mais fácil libertar-se de reis redundantes que de papas supranumerários.

- Não me agrada a ideia da sua ida a Tubinga. E ainda gosto menos da ideia de andar a passear pelo mundo fora como qualquer intelectual jesuíta na moda. Fizemos um contrato relativamente à sua abdicação.

- Correcção-disse secamente Jean Marie. - Não houve contrato nenhum. Assinei o documento sob coacção. Coloquei-me voluntariamente sob as ordens do abade Andrew... e ele disse-me que eu devia em caridade visitar Carl Men-delius e a família. Mendelius está em estado crítico. Pode morrer de um momento para outro.

- Sim, está bem! - Sua Santidade era um burocrata suficientemente experimentado para correr o risco de uma confrontação. - Não interferirei com a decisão do seu abade; mas recordo-lhe que não tem qualquer missão canónica. Está expressamente impedido de pregar ou ensinar em público. A sua competência para ordenar clérigos está suspensa... mas claro que não está proibido de celebrar missa ou de conferir os sacramentos.

- Por que razão tem Vossa Santidade tanto medo de mim?

- Medo? Que disparate!

- Então por que razão nunca se prestou a restituir-me as funções do meu episcopado e do meu sacerdócio?

- Porque me pareceu conveniente para o bem da Igreja.

- Haveis de compreender que, pelo que toca à minha vocação apostólica, estou reduzido à impotência. Creio que tenho o direito de saber quando e em que circunstâncias me podem ser restituídas as faculdades e ser-me atribuída uma missão canónica.

- Não posso dizer-lho. Ainda não foi tomada qualquer decisão.

- Qual é o motivo da demora?

- Temos outras preocupações, mais urgentes.

- Com todo o respeito, sejam quais forem as vossas preocupações, nem Vossa Santidade está dispensada da justiça natural.

- Está a censurar-me? Aqui, na minha própria casa?

- Também eu já aqui vivi. Nunca me senti um proprietário, mas antes um inquilino... como, aliás, os acontecimentos provaram que era.

- Vamos ao assunto desta visita. Que pretende de mim?

- Dispensa para viver no estado laico, viajar livremente e exercer as minhas funções sacerdotais em privado.

- Impossível!

- Qual é a alternativa? Decerto embaraçaria mais Vossa Santidade manter-me prisioneiro da minha própria palavra em Monte Cassino.

- Toda esta situação é uma trapalhada! - Sua Santidade estremeceu ao mover o pé gotoso no banco.

- Proponho-vos uma maneira de sair dela. Reparai! O Rainer e o Mendelius publicaram um relato honesto da abdicação. Julgavam estar a defender-me, mas qual foi o resultado real? As coisas continuaram como de costume na Igreja, e Vossa Santidade instalada a título vitalício na cadeira de Pedro! Se eu tentasse modificar essa situação (o que, podeis crer, não tenho a mínima intenção de fazer), faria figura de parvo aos olhos de toda a gente. Por favor! Será que não vedes que, longe de ser uma ameaça ou um incómodo, posso até ser capaz de auxiliar-vos?

- Não pode auxiliar-me propagando essas ideias lunáticas sobre os “últimos dias” e o “segundo advento”!

- Parecem-vos assim tão lunáticas vistas do lugar onde agora estais?

Sua Santidade agitou-se desconfortavelmente na cadeira. Aclarou ruidosamente a garganta e enxugou as faces com um lenço de seda.

- Bem! Reconheço que nos aproximamos de uma situação altamente crítica, mas não estou para ter pesadelos com isso. Continuo a fazer o que está ao alcance da minha mão cada dia e...

Interrompeu-se, embaraçado pelo frio escrutínio do homem que tinha destituído. Jean Marie nada disse. Finalmente, Sua Santidade recuperou a voz.

- Ora deixe cá ver, onde íamos nós? Ah, esse seu pedido! Se a sua situação em Monte Cassino não é satisfatória, se quer mesmo regressar à vida privada, por que não fazemos uma combinação temporária, como que in petto, sem quaisquer documentos ou formalidades? Se não resultar, dispomos ambos de outro recurso. Não acha bem?

- Acho muitíssimo bem, santidade - replicou Jean Marie, estudadamente grato. - Garantirei que não tereis motivos para lamentá-lo. Presumo que a combinação entra em vigor neste momento.

- Claro.

- Então parto amanhã de manhã para Tubinga. Arranjei um passaporte francês e devolvi o documento do Vaticano à Secretaria de Estado.

- Não era preciso. - Sua Santidade sentia-se suficientemente aliviada para ser magnânima.

- Era desejável - disse mansamente Jean Marie Barette. - Sendo um homem sem missão canónica, não queria dar a impressão de possuí-la.

- Que tenciona fazer?

- Não estou bem certo, santidade. - O seu sorriso era tão límpido como o de uma criança. - Provavelmente acabarei a pregar a boa nova às crianças nas encruzilhadas. Mas primeiro tenho de ir ver o meu amigo Carl.

- Acha... - Sua Santidade parecia estranhamente embaraçada. - Acha que o Mendelius e a família gostariam que eu lhes enviasse uma bênção papal?

- O Mendelius ainda está em estado crítico, mas estou certo de que a mulher apreciaria esse gesto.

- Vou assinar o pergaminho e mando o meu secretário metê-lo no correio logo de manhã.

- Obrigado. Vossa Santidade permite-me que me retire?

- Tem a nossa permissão.

Inconscientemente, tinha-lhe fugido a língua para a fórmula antiga. Então, como se pretendesse desculpar-se por uma formalidade desnecessária, pôs-se dolorosamente de pé e estendeu a mão. Jean Marie curvou-se diante do anel que outrora usara por direito próprio. Pela primeira vez Leão XIV pareceu movido por uma pena genuína, e disse desajeitadamente:

- Talvez... talvez, se nos conhecêssemos melhor, nada disto tivesse de acontecer.

- Se isto não tivesse acontecido, santidade, se eu não tivesse estendido a mão pedindo apoio, o Carl Mendelius estaria neste momento inteiro e de boa saúde em sua casa!

 

Nessa mesma tarde, o cardeal Anton Drexel convidou-o para jantar e a conversa foi de teor bem diferente. Jean Marie explicou com ansiedade o que ocultara tão cautelosamente na entrevista com o sumo pontífice.

- Quando soube o que tinha acontecido ao Carl, compreendi para além de qualquer sombra de dúvida que era o sinal e o apelo por que esperava. É um pensamento terrível, Anton, mas o sinal é sempre uma contradição: o homem em agonia suplicando para ser liberto dela. Pobre Carl! Pobre Lotte! Foi o filho que me mandou o telegrama. Sentiu que o pai havia de querer-me perto e a mãe implorou-me que fosse. Estava aterrorizado perante a ideia de que o nosso pontífice pudesse recusar a autorização. Tendo ido tão longe em conformação, eu não queria uma disputa nesta altura.

- Teve sorte -disse secamente Drexel. - Ele ainda não viu isto. Georg Rainer mandou-o por mensageiro esta tarde.

Estendeu o braço para o aparador atrás dele e pegou num grande sobrescrito de papel contendo brilhantes fotografias de imprensa. Todas elas eram de Tubinga. Mostravam uma cidade colhida em pleno fervor medieval de pompa, piedade e tumulto puro e simples.

No hospital, via-se Mendelius enfaixado como uma múmia, distinguindo-se-lhe apenas a boca e as narinas, enquanto uma enfermeira se mantinha de vigília junto da cama e um polícia armado montava guarda à porta. Na Stiftskirche e na Jakobs-kirche, homens, mulheres e crianças ajoelhados rezavam. Estudantes desfilavam dentro do recinto da Universidade, transportando cartazes impiedosos: “Fora com os assassinos estrangeiros!” “Trabalhadores imigrados, assassinos imigrados!” “Quem silenciou Mendelius? Por que está também silenciosa a polícia?”

Nas áreas industriais dos subúrbios, jovens naturais combatiam com trabalhadores turcos. Na praça do mercado, um político falava a uma multidão na hora de almoço. Atrás dele um cartaz a quatro cores gritava a palavra de ordem: “Se querem segurança nas ruas, votem Múller.” Jean Marie Barette examinou as fotografias em silêncio.

- Incrível, não é? - comentou Drexel. - É quase como se estivessem à espera de um mártir! E está a haver as mesmas manifestações noutras cidades alemãs.

Jean Marie estremeceu como se tivesse sido tocado por uma criatura provida de escamas.

- Carl Mendelius no papel de Horst Wessel! É uma ideia horrível. Pergunto a mim próprio que pensará a família de tudo isto.

- Perguntei ao Georg Rainer. Disse-me que a mulher está profundamente abalada. Raramente se vê. A filha cuida dela em casa. O filho deu uma entrevista na qual dizia que o pai ficaria horrorizado se soubesse o que estava a fazer-se. Sustenta a opinião de que a tragédia estava a ser encenada para dar origem a uma vingança social.

- Encenada por quem?

- Extremistas de esquerda e de direita.

- Não é lá muito específico, pois não?

- Em compensação, estas - disse Drexel, dando palmadinhas nas fotografias espalhadas na mesa - são terrível e perigosamente específicas. Isto é a velha magia negra dos demagogos.

- É mais do que isso - disse Jean Marie, repentinamente carrancudo. - É como se o mal que se oculta no homem tivesse descoberto subitamente um foco nessa cidadezinha de província. O Mendelius é um bom homem. No entanto, na sua situação extrema, é transformado no herói deste... deste sabat. Trata-se de humor particular, Anton, e isso assusta-me.

Drexel endereçou-lhe um astuto olhar oblíquo e começou a arrumar novamente as fotografias no sobrescrito. Depois perguntou, num tom bastante despreocupado:

- Agora que está livre e tem a possibilidade de ficar anónimo, tem alguns planos?

- Visitar velhos amigos, ouvir o que eles dizem sobre o nosso lamentável mundo... mas continuar sempre à espera do toque da mão, à escuta da voz que me dirá onde me é ordenado que esteja. Bem sei que isto lhe parece estranho, mas a mim parece-me perfeitamente natural. Sou a cana pensante de Pascal, esperando que o vento me faça vergar ao passar por mim.

- Mas perante este mal - insistiu Drexel, atirando o maço das fotografias para a cómoda -, perante os outros males que se seguirão, que vai fazer? Não pode vergar-se a todo e qualquer vento ou deixar todo e qualquer grito sem resposta.

- Se Deus quiser servir-se da minha voz errante, há-de encontrar as palavras para eu utilizar.

- Você fala como um iluminista! - Drexel sorriu para adoçar a alusão. - Ainda bem que os nossos colegas da congregação não estão a ouvi-lo.

- Devia contá-lo aos nossos colegas. - Havia um tom cortante na resposta de Jean Marie. - Não tardará que eles ouçam o grito de guerra de S. Miguel Arcanjo. “Quis sicut Deus?” (“Quem é como Deus?”) Pese a todos os seus silogismos, pergunto a mim próprio quantos se erguerão para defrontar o Anticristo. Algum dos “amigos do silêncio” denunciou os excessos em Tubinga e noutros sítios?

- Se o fizeram - replicou Drexel, encolhendo os ombros-, não tivemos conhecimento. Mas a verdade é que eles são homens prudentes. Preferem deixar as paixões arrefecer antes de falarem. No entanto, você e eu somos velhos de mais para chorarmos sobre as loucuras dos nossos irmãos... e também demasiado velhos para os curarmos. Diga-me uma coisa, Jean. Pode parecer uma pergunta impertinente, mas a resposta é importante para mim.

- Então faça-a.

- Você tem 65 anos. Ascendeu ao lugar mais alto que um homem pode ocupar. Presentemente colocou-se de novo na estaca zero. Não tem vocação nem futuro visíveis. Que pretende realmente?

- A luz suficiente para ver um sentido divino neste mundo louco. A fé suficiente para seguir a luz. É o âmago de tudo, não é verdade? Fé capaz de mover montanhas, capaz de dizer ao aleijado: “Levanta-te e caminha!”

- Precisamos também de algum amor para tornar a escuridão tolerável.

- Amen! - disse baixinho Jean Marie. - Tenho de ir, Anton. Já o obriguei a ficar acordado até tarde.

- Antes de partir... como está de finanças?

- Tenho o suficiente, obrigado. Disponho de um património, administrado pelo meu irmão, que é banqueiro em Paris.

- Onde vai pernoitar hoje?

- Há uma hospedaria de peregrinos lá para os lados de Santa Cecília. Fiquei lá alojado quando vim pela primeira vez para Roma.

- Por que não fica aqui? Tenho um quarto disponível.

- Obrigado, Anton, mas não! Já não pertenço a este lugar. Tenho de aclimatar-me ao mundo. Pode ser que me apeteça sentar ao fim da tarde na piazza (1) e conversar com os solitários. - E acrescentou com um estranho “pathos” irónico: - Talvez, na última fria hora antes do nascer do dia, Ele queira falar comigo. Peço-lhe que compreenda e reze por mim.

- Gostaria de poder ir consigo, Jean.

 

(1) Em italiano no original: praça. (N. do T.)

 

- Você foi feito para melhor companhia, meu velho amigo. Eu nasci sob uma estrela cadente. Até quase me parece que vou para casa. - Fez um gesto na direcção das luzes que indicavam o apartamento papal. - Mantenha-se perto do nosso amigo lá em cima. Tem um nome de leão, mas na realidade é um gatinho domesticado. Quando vierem os tempos duros, há-de precisar de um homem forte ao seu lado.

Um aperto de mão, uma breve despedida, e partiu, uma silhueta esguia e débil engolida pelas sombras do vão da escada. O cardeal Anton Drexel serviu-se do resto do vinho e ponderou contra vontade no aforismo de outro iluminista, Louis Claude de Saint-Martin: “Todos os místicos falam a mesma língua porque vêm todos do mesmo país.”

A viagem até Tubinga serviu-lhe de ensinamento sobre a sua inadaptação. Era a primeira vez em quarenta anos que usava roupas seculares, e demorou meia hora a arranjar a gravata sob a camisa de Verão. No Mosteiro, uma rotina familiar tinha-lhe servido de amortecedor. No Vaticano todos os seus movimentos eram assistidos. Presentemente, não dispunha de qualquer privilégio que fosse. Teve de gritar para chamar um táxi a fim de conduzi-lo ao aeroporto e de discutir com o romano agitado que argumentava tê-lo chamado primeiro. Não dispunha de notas miúdas para a gorjeta e o motorista mandou-o embora com desdém. Não havia ninguém para encaminhá-lo até ao balcão onde devia levantar o bilhete para Estugarda. A rapariga não tinha troco para as notas grandes que ele levava, e Jean Marie, durante toda a sua vida sacerdotal, nunca usara cartões de crédito.

No Vaticano, as necessidades fisiológicas do papa eram satisfeitas numa intimidade sagrada. No mictório do aeroporto teve de colocar-se na bicha, ao mesmo tempo que o bêbedo ao seu lado lhe borrifava os sapatos e a perna da calça. No bar, foi empurrado e entornou café na manga; como afronta final, o avião tinha demasiados lugares marcados e viu-se obrigado a abrir caminho à força para conseguir um lugar sentado.

Uma vez a bordo, foi confrontado com o problema de uma identidade. A sua vizinha era uma mulher idosa da Renânia, nervosa e volúvel. Desde que caiu na tentação de falar alemão, foi submergido pela torrente da conversa dela. Por fim, ela perguntou-lhe qual era o seu modo de vida. Foram-lhe precisos uns bons dez segundos para arquitectar a resposta evidente.

- Sou reformado, minha cara senhora.

- O meu marido também é reformado. Tornou-se perfeitamente impossível. Como é que a sua mulher consegue aguentá-lo todo o tempo em casa?

- Sou solteiro.

- É estranho um homem bem-parecido como o senhor nunca ter casado.

- Receio bem ter-me casado com a minha profissão.

- E o que é que era? Médico? Advogado?

- Ambas as coisas - garantiu-lhe solenemente Jean Marie... e aliviou a consciência com uma lógica de casuísta. Na verdade tinha sido um médico de almas; e no Vaticano havia leis que chegariam para sufocar Justiniano.

Quando chegou a Estugarda, Johann Mendelius esperava-o, ansioso por dar-lhe as boas-vindas, mas algo sério e fatigado como um jovem oficial regressado do seu primeiro campo de batalha. Tratou Jean Marie por “senhor”, evitando qualquer título eclesiástico. Conduziu cuidadosamente pelas estradas acidentadas, metendo pelo caminho mais longo para Tubinga porque, conforme justificou, havia coisas a explicar antes de chegarem.

- O pai ainda está em estado desesperado. O explosivo da carta-armadilha estava comprimido entre folhas de alumínio e impregnado de pequenos rolamentos de esferas. Alguns deles alojaram-se-lhe numa órbita, muito perto do cérebro. Sabemos que perdeu a vista de um olho e pode perder a do outro. Ainda não lhe vimos a cara, mas é evidente que ficou muito mutilada e, claro, perdeu a mão esquerda. Hão-de ser necessárias outras operações, mas só quando ele estiver muito mais forte. Ainda há uma infecção perigosa no braço e na órbita, e o espectro de antibióticos que ele pode tolerar é muito limitado. Portanto, aguardamos. A mãe, a Katrin e eu vamos ao hospital por turnos. A mãe está a suportar tudo extraordinariamente bem. Tem coragem por todos nós, mas não se admire se ela ficar muito emocionada quando o vir. Não dissemos a ninguém que vinha, a não ser à Dr.a Meissner. É a amiga mais íntima que o pai tem entre o corpo docente. Da maneira como as coisas estão presentemente, toda a gente em Tubinga anda a espalhar um ou outro boato. Assim que o pai se restabelecer (se realmente chegar a restabelecer-se), vou deslocá-lo para longe daqui.

Não passou despercebido a Jean Marie Barette o tom surdo de rancor e amargura.

- Soube das manifestações - disse. - O Georg Rainer mandou fotografias para o Vaticano. Ao que parece, as emoções estão exaltadas.

- Demasiado exaltadas! -A réplica foi brusca. - O meu pai era conhecido e respeitado, é certo! Mas nunca foi um homem muito público. Estas marchas e manifestações não foram espontâneas; foram subtil e cuidadosamente organizadas.

- Em tão pouco tempo? - perguntou Jean Marie, dubitativo.- Por quem? E por que razões?

- Como elemento de propaganda para ocultar os verdadeiros autores do atentado contra a vida do meu pai.

- Se fizeres o favor de enfiar no próximo recesso de estacionamento - disse firmemente Jean Marie Barette-, discutiremos isto antes de chegarmos a Tubinga. Ao contrário do teu pai, fui um homem muito público .. e não quero ter surpresas!

Meia milha mais adiante, estacionaram entre um prado e um pinhal e Johann Mendelius expôs a sua interpretação da tentativa de assassínio.

- Comecemos por Roma. Por mero acaso, o pai é testemunha de um assassínio levado a cabo por terroristas. Grandes parangonas, grandes avisos: pode haver tentativas de silenciá-lo ou de exercer represálias sobre ele e a família. Tudo isto é claro, simples e lógico. O pai e a mãe regressam a Tubinga. A polícia criminal contacta-os com renovados avisos. Um esboço do meu pai é encontrado no bolso de um homem morto numa rixa de bar. Mais palavras de aviso. Entretanto, o reitor da Universidade diz aos catedráticos que devem estar preparados para uma convocação militar, para fornecer especialistas em ciências às forças armadas e para colaborar na vigilância do corpo estudantil para efeitos de segurança. O pai ameaça demitir-se se isso for posto em vigor. Ainda por cima escreve o relato da sua abdicação e passa repentinamente a ser conhecido em todo o mundo. Há em toda esta questão um cheiro a política que não se limita aos nossos ministérios alemães. O meu pai já não é meramente um académico: é uma figura internacional. Numa época em que os homens que ocupam as posições de topo estão a acelerar as coisas para convencerem o público incauto da necessidade de uma guerra, > meu pai podia ser considerado perigoso.

- E como ele está sob a ameaça de um grupo clandestino, existe uma esplêndida cobertura para um assassínio oficialmente sancionado!

- Exactamente - disse Johann Mendelius. - E, quando a tentativa é feita, toda a cidade é manipulada no sentido de um protesto. Além de tudo, há um bónus! As manifestações contra os trabalhadores imigrados apressam o dia em que eles poderão ser devolvidos à sua terra ou submetidos a trabalhos forçados numa situação de guerra!

- Acabaste de comunicar-me a hipótese - disse calmamente Jean Marie Barette. - Agora revela-me a prova!

- Não tenho prova nenhuma, mas apenas motivos para suspeitas muito profundas.

- Por exemplo?

- Disse que viu fotografias das manifestações estudantis. Eu vi os próprios manifestantes... e tenho a certeza de que a maioria deles nunca viu o interior de uma sala de aula. Os jornais publicaram um diagrama da carta explosiva, supostamente fornecido pelo departamento de medicina legal da polícia. A verdadeira bomba era algo de muito diferente: um dispositivo altamente sofisticado fabricado com precisão laboratorial.

- Quem te disse isso?

- Dieter Lorenz. Era o contacto do meu pai no Krimi-nalamt. Dois dias depois do sucedido, foi promovido e transferido para Estugarda... abandonando o caso!

- Mais alguma coisa?

- Uma série de pequenas coisas, mas que só fazem sentido no contexto desta nossa cidade especial. Não sou o único a pensar assim. A Dr.a Meissner concorda comigo... e é uma mulher inteligentíssima. Vai conhecê-la esta noite em nossa casa.

- Mais uma pergunta. Contaste alguma coisa disto à tua mãe?

- Não. Ela já tem bastante com que se preocupar; além disso, a simpatia da cidade ajuda-a.

- É claro que o teu pai não sabe de nada?

- Não fazemos ideia do que ele sabe. - O jovem fez um gesto cansado. - É capaz de fazer sinais de reconhecimento; aperta-nos a mão para mostrar que percebe o que lhe dizemos, mas mais nada. Às vezes penso que a morte seria uma obra de misericórdia para ele.

- Há-de sobreviver. O verdadeiro trabalho dele ainda não começou.

- Quem me dera poder acreditar nisso, senhor!

- Acreditas em Deus?

- Não.

- Isso torna realmente a vida complicada.

- Pelo contrário, simplifica-a muito. Por mais brutais que os factos sejam, não os complicamos com a ficção religiosa.

- Contaste-me uma história que, a ser verdadeira, é a coisa mais próxima possível do mal puro. O teu pai ficou mutilado, pode ainda morrer, por causa de uma tentativa de assassínio levada a cabo por agentes do teu próprio país. Qual é o teu remédio contra os que ameaçam matar como simples expediente político?

- Se realmente pretende uma resposta para isso, senhor, mostrar-lha-ei amanhã... Já podemos seguir?

- Antes disso, quero que me faças um favor, Johann.

- Faça o favor de pedir!

- És filho do meu querido amigo. Não me trates por senhor, peço-te. O meu nome é Jean Marie.

Pela primeira vez, o jovem descontraiu-se e os seus traços tensos contorceram-se num sorriso. Abanou a cabeça.

- Lamento, mas não pode ser. A mãe e o pai haviam de ficar chocados se eu usasse o seu nome próprio.

- Então que tal “tio Jean”? Poupará uma série de explicações desnecessárias quando me apresentares aos teus amigos.

- Tio Jean... -Tentou a frase uma e outra vez, após o que sorriu e acenou afirmativamente. - Portanto, tio Jean, deixe-me levá-lo a casa. Vamos almoçar cedo porque a mãe quer levá-lo ao hospital às 3 h da tarde. - Johann manobrou para voltar à auto-estrada e enfiou nela antes da passagem de um grande camião de reboque carregado de troncos de pinheiro. - Durante quanto tempo vai poder estar connosco?

- Apenas um ou dois dias; mas o tempo suficiente, espero, para ser de alguma utilidade ao teu pai e à tua mãe... e talvez também para travar conhecimento com esse espírito maligno que veio viver para a vossa cidade.

- Um espírito maligno!-exclamou Johann Mendelius, endereçando-lhe um meio-sorriso tolerante. - Desde a catequese que não ouvia semelhante coisa.

- Mas não tens medo dele?

- Tenho medo, sim. - A resposta foi pronta e simples. - Mas não de demónios e de espíritos adversos. Receio a nossa espécie, homens e mulheres, e a terrível loucura destruidora que nos domina a todos. Se soubesse ao certo quem fez isto ao meu pai, matava-o sem pensar duas vezes.

- Com que objectivo?

- Justiça... Para voltar a equilibrar a balança, dissuadir o futuro adversário.

- A vítima foi o teu pai. Achas que ele estaria de acordo?

- Engana-se, tio Jean! O pai não é a única vítima. E então a mãe, a Katrin e eu... e todas as pessoas da cidade que foram contagiadas por este simples acto? Nunca nada voltará a ser como era... para nenhum de nós.

- Parece-me - disse determinadamente Jean Marie - que tens uma noção muito nítida da natureza do Mal... e do mau como adversário. Mas e o Bem? Como se apresenta ele aos teus olhos?

- De uma maneira muito simples! - Subitamente, a voz dele tornou-se tensa e áspera. - A minha mãe é boa. É corajosa e não é uma mulher que ache fácil sê-lo. Pensa em nós e no pai antes de pensar em si própria. Na minha opinião isso é bondade. O pai também é bom. Olha-se para a cara dele e vê-se um Mensch (1), e há sempre amor suficiente para nos ajudar a passar os maus bocados. Mas há-de ver o que aconteceu a estas boas pessoas! E ainda bem que vem simplesmente como tio Jean, porque não me parece que gostasse de conhecê-lo como papa.

- Isso é o pior exemplo de lógica que alguma vez ouvi - observou Jean Marie com uma risada forçada. - Sentir-te-ias muito lisonjeado por me conhecer. Eu era um fulano muito mais agradável do que sou hoje. Quando fui eleito houve um jornalista que me chamou o mais atraente dos príncipes modernos! Lembra-te de que o que faz o mal nem sempre é o príncipe. Normalmente não é suficientemente esperto para ser um Satã. O verdadeiro adversário é aquele que murmura a maldade ao ouvido dele e se propõe ocupar-se do trabalho sujo e deixá-lo imune às censuras.

- No entanto, seja qual for o mau, temo-lo porque o merecemos. - Johann conduzia com deliberado cuidado, como se temesse que a discussão pudesse excitá-lo a ponto de fazer uma manobra perigosa. - Queremos ser sempre inocentes e estar fora do alcance da maldade. O pai tomou as precauções que lhe disseram para tomar, mas mais nenhuma: a dignidade não lhe permitia cuidados excessivos. Via-os como a vitória do terror. Eu não os vejo dessa maneira. Caminho muito devagar. Olho, escuto... e ando com uma pistola que não receio usar. Isto choca-o, tio Jean?

- Não, não choca. Faz-me é perguntar a mim próprio como te sentirás quando matares o primeiro ser humano.

- Espero nunca o fazer.

- No entanto andas sempre preparado exclusivamente para esse acto. O homem que tentou matar o teu pai fê-lo à distância, mecanicamente, como quem faz explodir rochas numa pedreira. Com uma pistola, porém, matarás cara a cara. Ouvirás o grito da vítima na agonia. Verás a morte nos seus olhos. Sentirás o cheiro do sangue. Estás preparado para isso?

 

(1) Em alemão no original: ser humano. (N. do T.)

 

- Como lhe disse - retorquiu Johann Mendelius com gélida simplicidade -, espero que esse momento nunca chegue; mas, sim, estou preparado para ele.

Jean Marie Barette calou-se. A questão estava para além de qualquer discussão. Esperava que não estivesse para além do poder redentor da graça. Lembrou-se da paisagem vazia e desolada da visão, do planeta do qual a humanidade tinha sido riscada, de tal modo que já não havia nada nem ninguém para amar.

O seu encontro com Lotte foi inicialmente estranho. Houve um instante de surpresa, quase de desapontamento, quando ela o viu em traje secular. Um súbito embaraço impediu-a de tocar-lhe sequer na mão. Ele teve de tomá-la nos braços e atraí-la a si. Durante uma fracção de segundo afigurou-se que ela repeliria o abraço; mas nessa altura recuperou prontamente o domínio de si própria e abraçou-se a ele, soluçando baixinho, ao mesmo tempo que ele a consolava como a uma criança, com palavras curtas e ternas.

Katrin chegou nesse momento a casa. Johann apresentou-a ao tio Jean e, passada a primeira torrente de frases embaraçadas, conseguiram comportar-se calmamente uns com os outros. Katrin trazia o relatório da manhã sobre o pai.

- Falei com o Dr. Pelzer. Não está lá muito satisfeito. A febre voltou a subir. O papá não reage tão bem à fala como ontem. Sabem como ele nos aperta a mão quando compreende qualquer coisa? Pois bem, hoje de manhã só consegui obter uma ou outra reacção. Durante o resto do tempo parecia estar inconsciente. O Dr. Pelzer disse que podia vir-me embora. Se houver qualquer alteração súbita, chamam-nos.

Lote acenou com a cabeça e virou costas para se dedicar aos preparativos do almoço. Katrin seguiu-a até à cozinha. Johann disse bruscamente:

- Aqui tem como as coisas são. Estamos todos numa montanha-russa: tão depressa nos encontramos em cima como em baixo. É por isso que eu não quero alimentar falsas esperanças na mãe ou na Katrin. Não quero que elas se agarrem a teias de aranha.

- Receias que eu possa tentar alimentar-Lhes falsas esperanças?

- Disse-me que o meu pai viveria.

- Tenho a certeza de que sim.

- Eu não estou assim tão certo; por isso, preferia que a mãe e a Katrin se habituassem a viver na incerteza. Há-de haver desgosto suficiente, quer o pai viva, quer morra.

- Sou teu hóspede. Claro que respeitarei os teus desejos. Nesse momento entrou Lotte trazendo uma toalha de linho e guardanapos. Deu-os a Johann e pediu-lhe que pusesse a mesa. Tomou Jean Marie pelo braço e conduziu-o à sala contígua.

- A Katrin está a fazer o almoço. Podemos estar sossegados por uns minutos. É engraçado, mas não consigo habituar-me à ideia de vê-lo vestido dessa maneira. Pareceu-me sempre tão majestoso em Roma! É estranho ouvir os miúdos chamarem-lhe tio Jean.

- Receio bem que o Johann não esteja inteiramente satisfeito comigo.

- Está a tentar tão desesperadamente ser o homem da casa que por vezes fica confuso. Não consegue tirar da cabeça que o Jean foi de algum modo responsável pelo que aconteceu ao pai.

- E tem razão. Sou responsável.

- Por outro lado, ele sabe como o Carl o estima e respeita, mas ele não pode pisar esse chão sagrado a não ser quando o Jean ou o Carl o convidarem. Isso é difícil. Eu compreendo, porque para mim também foi difícil, ao princípio. Acrescente a tudo isto o medo da guerra, o ressentimento de vir a ser chamado, como tantos milhões, a combater por uma causa já perdida. Seja paciente com ele, Jean! Seja paciente com todos nós. O nosso pequeno mundo desmorona-se à nossa volta e procuramos alguma coisa de sólido à qual possamos agarrar-nos.

- Olhe para mim, Lotte!

- Estou a olhar para si.

- Agora feche bem os olhos. Não os abra antes de eu dizer.

Meteu a mão ao bolso interior do casaco e tirou de lá um pequeno estojo de jóias de marroquim vermelho. Poisou-o aberto na pequena mesa ao lado de Lotte. Continha três objectos, lavrados em oiro ao estilo dos florentinos do século XVI. Eram uma pequena caixa circular, uma reduzida galheta e um cálice pouco maior do que um dedal.

- Abra os olhos.

- Que é que quer que eu veja? Ele apontou para o estojo.

- São lindos, Jean. De que se trata?

- Um dos privilégios do papa era poder trazer constantemente consigo a eucaristia. Era assim que o fazia.

A caixa destinava-se à hóstia consagrada. A garrafa e o cálice eram para o vinho. Há um pequeno lenço de damasco dobrado na tampa para a limpeza dos recipientes. Foram os meus primeiros paroquianos que me deram este conjunto como presente pessoal no dia da minha eleição. Quando parti de Roma para me dirigir aqui, senti-me envergonhado. Não tinha nada para vos trazer, e vocês estavam a sofrer imenso por minha causa. Assim, dirigi-me cedo a Fiumicino, disse uma missa particular na capela do aeroporto e trouxe a eucaristia comigo para si e para o Carl. Vou dar a comunhão a ambos no hospital, hoje.

Lotte estava profundamente comovida. Fechou o estojo e devolveu-o a Jean Marie.

- Isto diz tudo, Jean. Obrigada. Só espero que o Carl esteja suficientemente consciente para compreender.

- A dormir ou acordado, Deus tem-no na palma da mão.

- O almoço está na mesa - disse Katrin da sala de jantar.

Enquanto se sentavam, Lotte explicou aos filhos o gracioso presente que Jean Marie trouxera. Johann observou, aparentemente surpreendido:

- Julgava que o pai já tinha recebido os últimos sacramentos.

- Claro - retorquiu Lotte -, mas a eucaristia é uma coisa diária: uma partilha de comida; uma partilha de vida. É assim, não é, Jean?

- Exactamente - disse Jean Marie. - Uma partilha de vida com a fonte da vida.

- Obrigado - tornou Johann, recebendo a informação sem comentários e perguntando com estudada cortesia: - Quer dizer uma acção de graças por nós, tio Jean?

No hospital, Lotte apresentou-o ao Dr. Pelzer. Pediu ao bom do médico que explicasse a situação clínica àquele velho amigo da família. E tanto assim foi que Jean Marie Barette viu primeiro Carl Mendelius através de uma série de radiografias. A cabeça que outrora albergara a história de vinte séculos estava reduzida a uma caixa craniana com os maxilares fracturados, um septo esmagado e uma série de bolinhas opacas dispersas alojadas na estrutura óssea e na camada circundante de carne e tecido mucoso. O Dr. Pelzer, um indivíduo alto e forte, de cabelo cinzento-aço e ponderado olhar clínico, fez um comentário:

- Uma baralhada, como vê! Mas não podemos andar à procura de todos esses corpos estranhos enquanto o pobre diabo não estiver estabilizado. Há mais porcarias daquelas na caixa torácica e na parte superior da cavidade abdominal. Portanto, uma ou duas orações fariam o seu jeito... e não deixe a família alimentar demasiadas esperanças, hem? Mesmo que consigamos salvá-lo, há-de precisar de uma boa porção de terapia de apoio.

A visão seguinte que teve foi a do homem vivo, ligado aos frascos gotejantes, ao tubo de oxigénio e ao cardio-monitor. A cabeça estava enfaixada em ligaduras. Os olhos, atingidos, estavam misericordiosamente tapados. As cavidades nasal e oral estavam abertas e imóveis. O coto da mão amputada estava poisado como uma grande maça de trapos sobre a coberta. A mão em bom estado crispava-se debil-mente nas dobras dos lençóis.

Lotte ergueu-lha e beijou-a.

- Carl, meu querido, sou eu, a Lotte.

A mão fechou-se sobre a dela. Da máscara de ligaduras veio um som gorgolejante.

- O Jean Marie está aqui ao pé. Vai ficar contigo enquanto eu vou dar uma pequena lembrança de gratidão à irmã da enfermaria. Volto já.

Saiu do quarto em bicos de pés, fechando a porta atrás de si. Jean Marie pegou na mão de Mendelius. Era macia como cetim e tão fraca que se diria que, premindo-a com força, os ossos se partiriam.

- Carl, sou eu, o Jean. Ouve-me?

Houve uma pressão na palma da sua mão como resposta e uma vez mais um gorgolejar impotente quando Mendelius tentou em vão articular.

- Por favor, não tente falar. Eu e você não precisamos de palavras. Basta manter-se sossegado e segurar na minha mão. Rezarei por nós ambos.

Não pronunciou quaisquer palavras. Tão-pouco fez gestos rituais. Limitou-se a permanecer sentado junto do leito, apertando a mão de Mendelius entre as suas, de tal modo que se diriam um único organismo: o são e o mutilado, o cego e o que via. Fechou os olhos e abriu o espírito, um recipiente preparado para o influxo do espírito, um canal através do qual pudesse penetrar a percepção aliada de Carl Mendelius.

Era a única maneira que conhecia, agora, de exprimir a relação entre a criatura e o criador. Não podia fazer preces. Elas estavam todas resumidas no fiat original: “seja feita a Vossa vontade”. Não podia negociar - vida por vida, serviço por serviço - porque não havia vestígio de ser a que ele atribuísse qualquer importância. O importante era o corpo e o espírito torturado de Carl Mendelius, para o qual ele era agora o fio da vida.

Quando finalmente o influxo ocorreu, foi simples e extraordinariamente suave, como um odor de perfume num jardim de Verão. Houve luz e uma estranha consciência de harmonia, como se a música não fosse tocada, mas inscrita na textura do cérebro. Houve uma calma tão poderosa que ele podia sentir o pulso febril do doente acalmar-se como vagas após uma tempestade. Quando abriu os olhos, Lotte estava novamente no quarto, fitando-o com temor e espanto. Disse desajeitadamente:

- Não queria interromper, mas são quase 5 horas.

- Tão tarde, já? Quer receber agora a comunhão?

- Sim, por favor; mas não me parece que o Carl possa engolir a hóstia.

- Bem sei, mas pode tomar um gole do cálice. Está pronto, Carl?

Uma pressão na mão disse-lhe que Mendelius tinha ouvido e compreendido. Enquanto Lotte se sentava junto do leito, Jean Marie dispôs os pequenos recipientes de oiro e colocou uma estola ao pescoço. Depois de uma curta oração, estendeu a hóstia consagrada a Lotte e a seguir levou o pequeno cálice à boca de Mendelius. Quanto pronunciou as palavras rituais “Corpus Domini”, Lotte respondeu “Ámen” e Mendelius ergueu a mão numa débil saudação.

Jean Marie Barette limpou a píxide e o cálice com o lenço de damasco, dobrou a estola, meteu o estojo e a estola no bolso e saiu do quarto em bicos de pés.

Ao ultrapassar os guardas armados no corredor, foi abordado por uma mulher atarracada e feia, de idad indeterminada, que se apresentou abruptamente como a Dr.a Meissner.

- Vamos jantar juntos, logo, em casa do Mendelius; mas eu disse à Lotte que precisava de uma hora a sós com o senhor. Quer vir tomar uma bebida a minha casa?

- Com muito prazer.

- Óptimo. Há uma data de coisas sobre as quais temos de falar.

Tomou-lhe o braço, empurrou-o para o elevador, percorreu os três pisos em silêncio e depois impeliu-o para a luz do Sol do fim do dia. Só quando se encontraram fora dos limites da clínica é que afrouxou o passo e começou a passear ociosamente pela encosta abaixo em direcção à velha cidade. Agora estava mais descontraída, mas o seu tom de voz era ainda decidido e áspero.

- Sabe que o Carl pediu a minha opinião clínica sobre a sua carta e a encíclica?

- Ele não se exprimiu dessa maneira, mas, sim, sabia que a senhora estava envolvida.

- E leu as minhas frases citadas no artigo dele?

- Li.

- Houve uma que não citaram. Vou dizer-lha agora. Acho que o senhor é um homem muito perigoso. Os sarilhos hão-de segui-lo para onde quer que vá. E percebo por que razão os seus colegas da Igreja tinham de ver-se livres de si.

A grosseira brutalidade do ataque deixou-o mudo por instantes. Quando recuperou a voz, a única coisa que conseguiu dizer foi:

- Bem... Que hei-de eu responder a isso?

- Poderia dizer que eu sou um estafermo... e sou! Mas isso não me demoveria da asserção. O senhor é um homem muito perigoso!

- Já não é a primeira vez que oiço essa acusação - retorquiu calmamente Jean Marie. - Os meus irmãos do Vaticano diziam que eu era uma bomba de retardo ambulante. Mas gostaria de saber como vê o perigo que eu represento.

- Pensei muito tempo sobre isso. - Anneliese Meissner tornou-se mais amável. - Li muita coisa. Ouvi uma data de gravações de colegas que possuem experiência clínica de manias religiosas e influências cultistas. No final de tudo, sou obrigada a concluir que o senhor é um homem com uma percepção especial daquilo a que Jung chama o inconsciente colectivo. Por conseguinte, tem um efeito mágico sobre as pessoas. Tudo se passa como se tivesse conhecimento secreto dos seus mais íntimos pensamentos, desejos, terrores... como realmente tem nesta questão das “últimas coisas”. Este assunto tem raízes no mais profundo subsolo da memória da raça. Assim, quando fala ou escreve sobre ele, as pessoas sentem-no dentro delas, quase como uma função dos seus próprios eus. Consequentemente, tudo o que o senhor faz ou diz tem consequências profundas e por vezes terríveis. O senhor é o gigante que sonha sob o vulcão. Quando se vira durante o sono, a terra treme.

- E que pensa que eu deva fazer relativamente a essa perigosa potencialidade?

- Não pode fazer nada - disse cruamente Anneliese Meissner. - Aí é que os seus cardeais se enganaram. Se o tivessem deixado no poder, o próprio peso do cargo e os seus métodos tradicionais teriam atenuado as manifestações mágicas. Teria sido mantido a distância segura das pessoas comuns. Agora não existe nenhum efeito atenuador. Não há distância. O seu impacte é imediato... e pode tornar-se catastrófico.

- E não vê bem nenhum nesse poder ou em mim?

- Bem? Ah, com certeza! Mas é o bem que surge da desgraça, como o heroísmo no campo de batalha, ou a dedicação das enfermeiras no lazareto.

- A senhora chama-lhe magia. Não tem outro nome que possa dar-lhe?

- Use o nome que muito bem lhe apetecer - retorquiu Anneliese Meissner. - Seja como for que se intitule (padre, xamã, feiticeiro), qualquer que seja a entidade que pretenda servir (o espírito do bosque, o homem-deus ou a unidade eterna), estará sempre no epicentro de um terramoto... É aqui que eu moro.

Estavam quase no cimo do Burgsteige, no exterior de uma velha casa do século XVI, feita de vigas de carvalho e de tijolos feitos à mão. Anneliese Meissner abriu a porta e conduziu-o pelos dois lanços de escada acima até ao seu apartamento, cujas janelas estreitas davam para os torreões de Hohentiibingen e para os pinheiros fronteiriços das terras altas da Suábia. Afastou uma pilha de livros de cima de uma cadeira de braços e fez sinal a Jean Marie para se instalar.

- Que é que bebe? Vinho, Schnaps ou uísque?

- Vinho, se faz favor.

Ao vê-la limpar um par de copos cheios de pó, abrir uma garrafa de Mosela e abrir um boião de avelãs, sentiu-se comovido com o patético de tanta inteligência e tanta ternura oculta encerradas num corpo tão feio. Ela estendeu-lhe um copo e fez um brinde:

- Ao restabelecimento do Carl.

- Prosit.

Ela engoliu metade do vinho de um trago e poisou o copo. A seguir fez uma comunicação crua e aparentemente irrelevante:

- Na clínica temos um controlo centralizado de todos os pacientes submetidos a cuidados intensivos.

- Ah, sim? - perguntou Jean Marie, com um interesse cortês.

- Sim. Todos os sinais vitais são continuamente transmitidos à sala de controlo, onde uma enfermeira-chefe está de serviço a toda a hora. Enquanto o senhor estava com o Carl, eu estava na sala de controlo com o Dr. Pelzer.

Jean Marie Barette ficou à espera. Não tinha bem a certeza do que se passava com ela: se estava embaraçada ou relutante em prosseguir. Por fim, teve de incitá-la:

- Diga, por favor! Estava na sala de controlo. E então?

- Quando o senhor chegou, a temperatura do Carl era de 39°,4, o pulso 120 e havia uma nítida arritmia cardíaca. Esteve com ele cerca de duas horas. Durante todo esse tempo, excluindo algumas frases iniciais, não pronunciou uma única palavra a não ser quando a Lotte regressou ao quarto. Nessa altura, a temperatura do Carl tinha descido, o pulso era quase normal e o ritmo cardíaco tinha-se regularizado. Que fez o senhor?

- Rezei, de certo modo.

- De que modo?

- Suponho que se lhe pode chamar meditação. No entanto, se está a tentar atribuir-me qualquer espécie de milagre... não, por favor!

- Não acredito em milagres. No entanto, sinto curiosidade relativamente a fenómenos que saem do normal. Além disso... - Deitou-lhe um prolongado olhar oblíquo como se repentinamente temesse comprometer-se; depois, atirou-se para a frente: - Já agora, pode ficar a saber: tudo o que afecta o Carl, afecta-me a mim. Há dez anos que o amo. Ele não o sabe nem nunca o saberá. Mas neste preciso momento tenho de chorar no ombro de alguém... e a escolha recai em si, porque foi o senhor que o meteu neste assado! O Carl sempre disse que o senhor tinha o dom da compreensão. Nesse caso, talvez perceba que, para mim, o conto de fadas foi ao contrário. Não se tratava da bela princesa e do príncipe-sapo. Era a rapariga-sapo à espera de que o príncipe a beijasse e tornasse bela. Sei que não há nada a fazer e já aprendi a não me ralar muito com isso. Não sou uma ameaça para ninguém, e muito menos para a Lotte. Porém, quando vejo o pobre Carl agarrado a esses sistemas de vida assistida, quando sei a quantidade de coisas que estão a enfiar-lhe dentro, só para o manter num estado calmo e com o corpo a funcionar, quem me dera acreditar em milagres!

- Eu acredito - disse meigamente Jean Marie. - E todos eles começam por um acto de amor.

- Mas o amor é terrível... da mesma maneira que o senhor é terrível. Se o mantivermos rolhado durante demasiado tempo, pode fazer-nos saltar a tampa da cabeça. Ora bolas! Não o trouxe aqui para o chatear ou para lhe falar da minha vida sentimental. - Serviu mais vinho e depois disse: - O Johann Mendelius está metido num grande sarilho.

- Que espécie de sarilho?

- Está a formar um grupo clandestino de estudantes para resistir à convocação para o serviço militar, obstruir a vigilância por motivos de segurança e proporcionar vias de fuga para os desertores das forças armadas.

- Como sabe isso?

- Ele disse-mo. O pai tinha dito que eu estaria preparada para apoiar uma organização clandestina no seio do corpo docente. Mas estas crianças são de uma ingenuidade! Não têm consciência da apertada vigilância que se exerce sobre eles, de como é fácil infiltrar espiões e provocadores nas suas fileiras. Estão a comprar e a armazenar armas, o que constitui crime... É apenas uma questão de tempo a polícia tomar conhecimento do que se está a passar. Até pode ser que já saiba e esteja à espera de que a barulheira à volta do Carl abrande.

- O Johann prometeu que me mostraria a forma que o seu protesto estava a assumir. Talvez tenha pensado em levar-me a uma reunião desse grupo.

- É possível. É pelo facto de o senhor ser francês que puseram ao grupo o nome de Jacquerie, em memória da revolta dos camponeses durante a Guerra dos Cem Anos... Mas, se quiser um conselho, mantenha-se fora de tudo isso.

- Gostaria de manter uma certa abertura de espírito acerca disso. Pode ser que consiga convencer o Johann e os seus amigos.

- Não se esqueça do que eu lhe disse ao princípio. O senhor é um homem muito especial. Sem saber como nem porquê, exerce uma poderosa magia; e a juventude é particularmente susceptível à magia... Agora quero que escute uma gravação.

- Sobre quê?

- Parte de uma consulta a uma das minhas doentes. Estou a dar-lhe conhecimento dela sob sigilo profissional, tal como o Carl me deu conhecimento de matérias suas. Combinado?

- Combinado.

- A mulher tem 28 anos, é divorciada, sem filhos, e é a filha mais velha de uma família conhecida desta cidade. Esteve três anos casada. Está divorciada há um ano. Revela sintomas depressivos agudos, e houve alguns episódios alucinatórios que são provavelmente sequelas de algumas experiências com L. S. D. nas quais ela reconhece ter tomado parte durante a vida de casada. Esta gravação foi feita ontem. É parte de uma sessão que durou uma hora e vinte minutos.

- E que me dirá ela?

- É o que eu quero que descubra. A mim diz-me uma coisa. A si pode ser que lhe diga outra muito diferente.

- Minha querida doutora - retorquiu ele, com uma risada de genuíno bom humor. - Se quer realmente um perfil do meu carácter, por que não começa por qualquer coisa simples, como um borrão de Rorschach?

- Porque já tenho o seu perfil. - A resposta foi seca e irritada. - Há semanas que o tenho no meu livro de casos. O senhor é um fenómeno assustador: um homem resolutamente simples. Diz aquilo em que acredita. Acredita naquilo que diz. Vive num universo impregnado de um deus imanente com o qual tem uma relação directa e pessoal. Eu não vivo num universo assim, mas estamos ambos aqui nesta sala, com esta gravação. Quero saber qual será a sua reacção perante ela. Quer fazer-me a vontade?

- As suas ordens.

- O local é o meu consultório. Horas: 4 h da tarde. Esta passagem verifica-se passados quarenta minutos de conversa discursiva e defensiva por parte da paciente.

Ligou o aparelho. Uma voz feminina, grave e com um pronunciado sotaque da Suábia, enveredou por um assunto que era manifestamente novo na narrativa:

- Conheci-o uma manhã na Marktplatz. Eu estava a comprar uvas. Ele tirou uma do tabuleiro e meteu-ma na boca. Mesmo sabendo eu como ele podia ser horrível, deu-me vontade de rir. Ele perguntou-me se queria uma chávena de chá. Disse que sim, e ele levou-me àquela casa de chá próximo do lar das freiras... Sabe qual é?... Aquela casa onde se podem comprar chás de todo o mundo, até mate da Argentina. Foi muito simpático. Não me senti nada ameaçada. Pessoas durante todo o tempo entravam e saíam da loja. Concordei em tentar uma coisa que nunca tinha tomado: uma infusão de Ceilão.

“Achei que era agradável, mas nada do outro mundo. Falámos disto e daquilo: o trabalho dele, os meus pais, do facto de ele momentaneamente não andar com mulher nenhuma. Perguntei a mim própria se ele teria apanhado alguma coisa com a última, que era uma prostitutazita barata de Francoforte. Não disse uma palavra, mas percebi que ele me tinha lido os pensamentos. Pegou na chávena e atirou-me o chá à cara. O chá escorreu pela blusa abaixo. Ele arrancou-me a blusa, enquanto as pessoas que estavam na casa de chá assistiam, rindo. Depois demos todos as mãos uns aos outros e começámos a dançar na loja, cantando “Bum-Bum-Bum”, ao mesmo tempo que as grandes latas de chá de folha começavam a explodir por toda a parte. Mas não era chá; era fogo-de-artifício, azul, verde e montes e montes de vermelho!... Depois estávamos na rua. Eu estava nua e ele arrastava-me atrás de si, dizendo a toda a gente: “Vejam o que os turcos fizeram à minha mulher! Monstros! Violadores malditos!” Mas quando chegámos ao hospital havia polícias à porta e não me deixaram entrar porque diziam que eu tinha uma blenorragia e os serviços secretos nunca admitem ninguém com doenças venéreas. Disseram que ele até me podia matar se quisesse; mas ele disse que eu não era suficientemente importante e eu desatei a chorar.

“Depois levou-me para a minha casa e disse-me para me lavar. Tomei um demorado banho de água quente e a seguir empoei-me e perfumei-me e deitei-me na cama, nua, à espera dele. Só que não era a minha cama. Era uma bonita cama circular, macia e confortável e a cheirar a alfazema. Passados momentos ele entrou.

“Foi à casa de banho e quando saiu estava nu e lavado como eu. Beijou-me os seios e excitou-me com as mãos e depois penetrou-me e tivemos um grande orgasmo que foi como as latas de chá a explodir na loja. Eu fecho sempre os olhos quando atinjo o orgasmo. Desta vez, quando os abri, ele estava deitado ao meu lado, todo coberto de sangue. A mão dele estava no meu peito, mas era apenas uma mão, sem braço nem corpo. Tentei gritar mas não consegui. Foi então que lhe vi a cara, que era uma coisa vazia como um grande pires vermelho. Depois, a cama já não era cama nenhuma, mas sim uma grande caixa preta com ambos nós lá dentro.

Anneliese Meissner desligou o aparelho e disse:

- Pronto, acabou-se!

Jean Marie Barette manteve-se calado durante um longo instante, e a seguir perguntou:

- Quem é o homem que aparece no sonho?

- É o ex-marido. Ainda vive na cidade.

- E a senhora conhece-o?

- Não muito bem, mas, sim, conheço-o.

Jean Marie não disse nada. Ergueu o copo. Ela voltou a encher-lho. Depois perguntou cautelosamente:

- Algum comentário sobre o que acaba de ouvir?

- Não sou perito na decifração de sonhos, mas realmente a gravação disse-me qualquer coisa. A mulher vive perseguida por uma sensação de culpa. Sabe qualquer coisa que receia compartilhar com quem quer que seja. Portanto, sonha com ela, ou constrói um sonho sobre isso e conta-lho. O que quer que ela sabe está de algum modo relacionado com o caso Mendelius. Que tal até aqui, Frau Professora?

- Muito bem. Continue, por favor!

- Penso - disse Jean Marie com decisão -, penso que a senhora tem o mesmo problema que a sua paciente. Sabe qualquer coisa que não está disposta ou não é capaz de revelar.

- Não estou disposta porque não estou segura das minhas conclusões. Não sou capaz porque envolve a minha integridade profissional. O senhor teria o mesmo problema com um segredo de confissão.

- Qualquer delas é uma boa razão para reticência - disse secamente Jean Marie.

- Há outras. - Agora ela mostrava-se irritável e combativa.

- Por favor! Um momento! - exclamou Jean Marie erguendo a mão em sinal de aviso. - Não nos acaloremos. A senhora convidou-me para vir aqui. Eu dei-lhe a minha garantia de sigilo. Se quer contar-me o que a preocupa, ouvi-la-ei. Se não, então gozemos o vinho!

- Desculpe. - Era-lhe difícil exprimir qualquer tipo de penitência. - Estou tão habituada a fazer o papel de deus no consultório que me esqueço das boas maneiras. Tem razão. Estou desesperadamente preocupada. Não sei o que possa fazer relativamente a isso, sem abrir todo um novo ninho de víboras. De qualquer maneira, aqui vai o ponto número um. A mulher que está nessa gravação é simultaneamente vulnerável e possessiva. Sendo uma jovem divorciada, numa cidade universitária, teve mais casos amorosos do que aqueles que é capaz de enfrentar. Um dos seus romances mais sérios foi com o Johann Mendelius. Só terminou este Verão antes de ele partir para férias. Felizmente, nem o Carl nem a Lotte tiveram conhecimento disso. Mas eu soube porque ela era minha paciente e tive de ouvir todo o grande drama. Onde eu encalho é no ponto número dois. O ex-marido dela é um homem... como hei-de explicar-me?... Um homem tão improvável que não pode deixar de ser autêntico. Tenho toda uma série de gravações sobre a relação entre eles. É ele que está a vender armas ao Johann e ao grupo dele; e, se a gravação significa aquilo que eu penso, foi ele que mandou a carta armadilhada ao Carl. Bem sei que isto parece absurdo, mas...

- O mal é o último dos absurdos - disse Jean Marie Barette. - É a última das palhaçadas tristes: o homem está sentado sobre as ruínas do seu mundo, borrando-se com os seus próprios excrementos.

Eram quase seis e meia quando saiu do apartamento de Aneliese Meissner. Mal fechou atrás de si a porta da rua, chamou-lhe a atenção uma placa no edifício fronteiro, uma sólida estalagem construída na primeira metade do século XVI onde os cidadãos de Tubinga iam ainda comer e beber. A placa indicava, em caracteres góticos: “O velho Schloss Keller. Aqui viveu o Prof. Michael Maestlin, de Goppingen, mestre do astrónomo Johannes Kepler.”

A inscrição agradou-lhe, visto que celebrava o mestre, menos conhecido, antes do brilhante aluno. Recordava-lhe, além disso, o temor que obcecara o seu antecessor: que Tubinga pudesse tornar-se o centro de uma segunda revolta anti-romana. Quanto a ele próprio, nunca alimentara tais receios. Afastar um estudioso por heresia sempre lhe parecera um exercício tão infrutífero como pendurar à janela os lençóis ensanguentados após a noite de núpcias. Ocorreu-lhe ainda que tinha de arranjar o vinho para a refeição da noite. Por conseguinte, empurrou a pesada porta ornamentada de pregos e entrou.

Metade dos compartimentos estavam ocupados por estudantes que bebiam e uma dúzia de robustos camponeses encontravam-se encostados ao bar. Jean Marie Barette conseguia fazer-se entender perfeitamente em Hochdeutsch (1), mas ficou completamente confundido com os nomes de colheitas de vinhos que lhe não eram familiares, quando o homem do bar lhas enumerou em dialecto. Acabou decidindo-se por um branco agradavelmente seco do Ammertal, comprou duas garrafas e encaminhou-se para a saída. Um chamamento proveniente de um dos compartimentos do canto fê-lo deter-se.

- Tio Jean! Aqui! Venha juntar-se a nós! - Johann pegou nas garrafas e empurrou os companheiros pelos bancos fora a fim de abrirem espaço para Jean Marie. Fez rapidamente as apresentações:-O Franz, o Alexis, o Norbert, o Alvin Dolman. Apresento-lhes o meu tio Jean. O Franz é o namorado da minha irmã. O Alvin é americano e um grande amigo do pai.

- Muito prazer em conhecê-los, meus senhores - disse Jean Marie, a própria imagem da cordialidade. - Posso oferecer-lhes uma bebida?

Fez sinal à criada e mandou vir uma rodada para o grupo e um copo de água mineral para si.

- Que anda a fazer neste extremo da cidade, tio Jean? - perguntou Johann.

- Vim visitar a Dr.a Meissner. Conhecemo-nos no hospital, e vim acompanhá-la a casa.

- Como estava o pai hoje?

 

(1) Alto alemão. (N. do T.)

 

- O médico diz que melhorou. A temperatura baixou e o pulso está mais regular.

- Aí está uma magnífica notícia; magnífica! - Alvin Dolman parecia um tanto com os copos. - Diz-me quando eu o puder ver, Johann. Descobri uma coisa de que ele há-de gostar. É uma escultura de S. Cristóvão, gótico primitivo. Essa é de graça, assim que ele se levantar e puder alimentar-se.

Jean Marie ficou imediatamente intrigado.

- Com que então, o senhor é coleccionador, Sr. Dolman?

- Não, senhor, negociante! Mas tenho olho para o assunto. Uma pessoa tem de ter olho.

- Ah, com certeza que sim. Vive cá?

- Vivo cá e trabalho cá. Casei com uma rapariga de cá... Por sinal até fui genro do burgomestre! Mas foi sol de pouca dura. Os velhos caserneiros como eu não deviam casar. Somos assim uma espécie de porcelana de refugo. Aliás, essa sua Dr.a Meissner foi muito amiga para a minha mulher. Ajudou-a a recompor-se depois do divórcio.

- Ainda bem que assim é - disse Jean Marie. - E de que género é o seu trabalho, Sr. Dolman?

- Sou um artista... Um ilustrador técnico, para ser mais preciso. Trabalho para editores de obras didácticas, para um e outro lado do Reno. Ao mesmo tempo negoceio em antiguidades... em escala reduzida, evidentemente. Não tenho dinheiro para cavalarias altas.

- Julguei que a companhia fornecesse os fundos.

- Como diz?

Foi uma reacção ínfima, praticamente nem um pestanejar, mas Jean Marie tinha lidado com demasiados sacerdotes e demasiados outros indivíduos subtis para deixá-la passar. Alvin Dolman sorriu e abanou a cabeça.

- A companhia? Tenho a impressão de que não percebeu bem o que eu disse. Trabalho estritamente por conta própria. Aceito encomendas exactamente como um retratista. Não, senhor! A única companhia para a qual alguma vez trabalhei foi o bom do Tio Sam.

- Desculpe - redarguiu Jean Marie, com um sorriso penitente. - Por muito que uma pessoa fale línguas estrangeiras, comete sempre erros nas coisas mais simples. Johann, a que horas se janta lá em casa?

- Às 8 horas, o mais tardar. Vamos acabar as bebidas e eu vou a pé consigo. Estamos apenas a cinco minutos de caminho.

- Eu também tenho de ir andando - disse Alvin Dolman. - Tenho um encontro em Estugarda. Enquanto lá estiver verei o que posso fazer por vocês, rapazes. Mas não se esqueçam de que tem de ser com dinheiro à vista! Wze-dersehen a todos!

Içou-se desajeitadamente para pôr-se de pé e Jean Marie teve de erguer-se para o deixar sair do compartimento. Quando ele se encaminhou para a porta, Jean Marie seguiu-lhe no encalço. Uma vez chegados à rua quase deserta, dirigiu-se-lhe em inglês:

- Queria dar-lhe uma palavrinha, Sr. Dolman. Dolman fez meia volta para enfrentá-lo. Agora o sorriso desaparecera, para dar lugar a uma expressão hostil no olhar.

- Sim?

- Conheço-o - disse Jean Marie Barette. - Sei quem o senhor é, para que companhia trabalha e de quem é o espírito maligno que o habita. Se contar isso ali dentro, eles matam-no com as mesmas armas que lhes vendeu. Portanto, conserve a vida e desapareça deste lugar. Agora vá-se embora!

Dolman ficou a olhar para ele por instantes e depois riu-se.

- Quem é que o senhor se julga? Deus todo-poderoso?

- Você sabe quem eu sou, Alvin Dolman. Você sabe tudo o que se tem dito e escrito sobre mim. E sabe que é verdade. Agora, em nome de Deus, vá-se embora!

Dolman cuspiu-lhe no rosto, após o que girou nos calcanhares e seguiu coxeando apressadamente pela calçada abaixo. Jean Marie limpou a saliva das faces e regressou ao Schloss Keller.

- Livrem-se das armas! Todas elas estão marcadas para vos condenar. Dissolvam a Jacquerie. De qualquer modo, estão feitos. O Dolman fez-vos cair na armadilha clássica dos serviços de informações: concentrar todos os dissidentes num grupo e depois dar cabo deles com toda a calma. Entretanto utilizava-vos para ocultar os seus próprios vestígios como assassino.

Era 1 hora da manhã e estavam sozinhos no escritório de Mendelius, sob o telhado. Lá fora, o primeiro vento frio do começo do Outono soprava cortante em torno do campanário da Stiftskirche. No piso de baixo, Lotte e Katrin dormiam tranquilamente, alheias à peça de mistério que se desenrolava em seu redor. Johann, apesar de toda a vergonha e cansaço, não era ainda capaz de abandonar a discussão.

- Mas não faz sentido. O Dolman é um traficante capaz de vender seja o que for. É um palhaço que se ri quando uma senhora de idade cai de um autocarro e mostra as cuecas. Mas um assassino... isso não!

- O Dolman é o perfeito agente no local - repreendeu-o pacientemente Jean Marie. - Como diz a Dr.a Meissner, é tão improvável que não pode deixar de ser autêntico. Mais! Como agente de uma potência amiga, interessada na Alemanha como sua fronteira oriental, é o instrumento perfeito para trabalhos sujos como o rebentamento da bomba que vitimou o teu pai. Mas isso não é tudo! Conheci homens com uma elevada prática de violência, que não têm metade da maldade das suas acções. São condicionados, vergados como galhos a um ponto tal que já não é possível ficarem direitos. Em alguns perdeu-se uma componente fulcral, de modo que não podem ser outra coisa senão aquilo que são. Mas o Dolman é diferente. O Dolman sabe quem é e o que é e quer ser precisamente isso. É, verdadeiramente, na velha linguagem, uma habitação do mal.

- Como pode saber isso? Só o viu uma vez. Posso entender que a Dr.a Meissner tenha uma opinião acerca dele, porque ouviu todas as histórias contadas pela mulher. Eu ouvi-as também, muitas vezes, na cama dela; mas não acreditei nelas, porque o Dolman sabia que eu andava com ela, e encorajou-me a desfrutá-lo... e preparou-me para me retirar quando perdeu a piada. Mas o senhor? Um encontro? Desculpe, tio Jean. Não faz sentido, a não ser que saiba mais alguma coisa do que aquilo que me está a dizer.

- Sei menos do que tu acerca do Alvin Dolman... mas muito, muito mais, acerca do espírito maligno. - Entrelaçou as mãos atrás da nuca e inclinou-se bem para trás na cadeira de braços de Mendelius. - Nas altas esferas onde vivi, ele era uma visita muito frequente... e uma companhia bastante sedutora!

- Isso é demasiado fácil, tio Jean. Não o aceito.

- Muito bem. Deixa-me explicá-lo de outra maneira. Enquanto tu andavas a brincar aos amores com a mulher do Dolman, terias convidado uma criança para assistir a isso?

- Claro que não.

- Porquê?

- Bom, porque...

- Porque reconheces a inocência, mesmo que não sejas capaz de defini-la. Reconheces o mal, também; mas fechas os olhos a ele. Porquê?

- Suponho... suponho que .é porque tão-pouco quero reconhecer o mal em mim próprio.

- Ora até que enfim que lá chegámos. Agora serás capaz de aceitar um conselho do teu tio Jean?

- Vou tentar.

- Assim que o teu pai estiver em condições de viajar, mudem-se daqui. Se puderem concretizar a compra da propriedade dos Alpes e torná-la habitável, vão para lá. Tenta manter a família unida: os teus pais, a Katrin, o homem dela também, se ele for convosco. O Dolman foi-se embora. Não voltará; a companhia dele não tornará a utilizá-lo nesta região; no entanto, a companhia continua a funcionar... e sempre em colaboração com o espírito maligno!

- E para onde irá o tio Jean?

- Amanhã parto para Paris a fim de ver a família e tratar dos meus assuntos financeiros. Depois... Sabe-se lá! Estarei pronto para responder ao chamamento!

Johann estava ainda intranquilo e irritável, e objectou:

- Portanto, voltamos à revelação particular e à profecia e a tudo isso?

- E daí?

- Não acredito nisso. Mais nada!

- Mas acreditaste num homem que tentou matar o teu pai. Não acreditaste nas verdades que a mulher dele te contou na cama. Não sabes diferençar o mal do bem. Será que isso não te diz nada sobre a tua própria pessoa, Johann?

- O senhor vai mesmo direito ao ponto vital, não vai?

- Cresce, rapaz! - prosseguiu Jean Marie, implacável. - Estamos a falar sobre a vida, a morte e o que virá depois. A realidade não poupa ninguém!

Nessa noite Jean Marie Barette teve um sonho. Passeava pela Marktplatz de Tubinga. Parou junto de uma banca de fruta que vendia umas belas uvas pretas. Provou uma; era doce e agradável. Pediu à vendedeira para lhe pesar 1 kg. Ela olhou-o boquiaberta, aterrorizada, ergueu as mãos diante da cara e recuou. Toda a gente que estava na praça do mercado fez o mesmo, até que ele ficou isolado no meio de um círculo de seres humanos hostis, com um cacho de uvas na mão. Falou pacificamente, perguntando o que se passava. Ninguém respondeu. Avançou alguns passos na direcção da pessoa mais próxima. O caminho foi-lhe barrado por um indivíduo corpulento com uma faca de carniceiro. Ele deteve-se e gritou:

- Que é que se passa? Por que é que têm medo de mim? O indivíduo corpulento respondeu:

- Porque você é um Pe.sttra.ger (um portador de peste)! Desapareça antes que o matemos!

Depois a multidão começou a comprimir-se, empurrando-o inexoravelmente para a embocadura da viela pela qual, sabia-o, tinha de meter e correr para salvar a vida...

De manhã, com os olhos vermelhos e mal repousado, tomou um pequeno-almoço matutino com Lotte e depois dirigiu-se com ela ao hospital, a fim de despedir-se de Carl Mendelius. Ali, num momento final de tranquilidade, disse a ambos:

- Havemos de voltar a ver-nos, tenho a certeza; mas, onde e como, só Deus sabe! Lotte, minha querida, não se prenda a ninguém daqui. Quando o Carl estiver em condições, façam as malas e partam! Prometa-mo!

- Prometo, Jean! Não me vai ser difícil partir.

- Óptimo! Quando surgir o chamamento, Carl, há-de estar preparado para ele. Por enquanto, resigne-se a uma longa convalescença. Ajude a Lotte a ajudá-lo. Diga-lhe que o fará.

Carl Mendelius ergueu a mão sã e afagou-lhe a face. Ela levou a mão aos lábios e beijou a palma. Jean Marie pôs-se de pé. Desenhou o sinal da cruz com o polegar na testa de Mendelius e depois na de Lotte. Falou com voz vacilante:

- Detesto despedidas. Amo-vos a ambos. Rezem por mim. Mendelius agarrou-se ao pulso dele para o reter. Fez um esforço para falar. Desta vez, dolorosa mas claramente, conseguiu articular as palavras:

- A figueira, Jean. Agora já sei. A figueira! Lotte implorou:

- Por favor, querido, não tentes falar. Jean Marie disse apaziguadoramente:

- Caro Carl, lembre-se do que combinámos! Nada de palavras, nada de discussões. Deixe Deus fazer crescer as árvores no seu próprio tempo.

Mendelius acalmou-se lentamente. Lotte segurou-lhe na mão. Jean Marie beijou-a e, sem mais palavra, saiu do quarto.

Estava a meio da viagem para Paris, voando às cegas por entre nuvens de mau tempo, quando as palavras de Mendelius adquiriram sentido para ele. Eram um eco do texto do Evangelho segundo S. Mateus, que lhe tombara aberto nas mãos no dia da visão:

Aprendi a parábola tirada da figueira: Quando os seus ramos se tornam tenros e as folhas começam a despontar, sabeis que o Verão está próximo. Assim também, quando virdes tudo isto, ficai sabendo que Ele está próximo, à porta.

Sentiu-se invadido por uma estranha onda de alívio, quase de júbilo. Se Carl Mendelius acreditava finalmente na visão, Jean Marie Barette não estava já completamente sozinho.

 

Em Paris, o sonho do portador de peste converteu-se em realidade. O irmão, Alain Hubert Barette, de cabelo prateado e eloquente, um dos alicerces da instituição bancária no Boulevard Haussmann, ficou perturbado até à sola dos sapatos, feitos de encomenda. Estimava muito Jean Marie. Arranjaria um processo qualquer de conseguir meios financeiros adequados; mas mexer num depósito com quarenta anos e desmantelar as mais complicadas combinações internacionais... pás possible! Jean tinha chegado na pior das ocasiões. Seria dificílimo facultar-lhe alojamento na casa da família. Tinham lá os decoradores. A Odette andava num permanente estado de semi-histeria. E a criadagem... meu Deus! No entanto, o banco teria muito prazer em deixá-lo usar a suite do Lancaster até ele ter possibilidade de arranjar outra coisa.

Como estava a Odette... afora a histeria? Bastante bem, mas abalada... ou melhor, arrasada, pela abdicação! E, claro, quando o cardeal Sancerre, arcebispo de Paris, regressou do consistório e começou a espalhar todas aquelas estranhas histórias... foi realmente uma angústia íntima para toda a família.

Contactos políticos? Encontros diplomáticos? Normalmente Alain Hubert Barette teria muito prazer em servir de anfitrião para reuniões desse teor; mas, neste preciso momento... eh!, era aconselhável uma grande discrição. Uma pessoa não ia arriscar-se a sofrer uma reprimenda por causa de uma abordagem demasiado directa do presidente ou mesmo dos cavalheiros que ocupavam posições elevadas no Quai d'Orsay. Por que não aparecia amanhã para jantar com a Odette e as pequenas e nessa altura discutir-se-ia toda a questão?

Entretanto, a questão do dinheiro. O banco concederia um crédito substancial a Jean Marie, sob garantia do depósito, até que fosse possível reestruturar as coisas.

- Agora, vamos assinar uns documentos para poderes dispor imediatamente de fundos. Sugiro (estritamente entre irmãos que se querem bem!) como primeiro requisito um bom alfaiate e um camiseiro decente. No fim de contas, ainda és monsenhor e até mesmo as roupas laicas devem indicar a dignidade oculta.

Aquilo era imbecilidade a mais, e lançou Jean Marie numa raiva fria e francesa:

- És um tonto, Alain! Além disso és um ávido traficantezinho de dinheiro, snobe e insípido! Não vou para tua casa. E tão-pouco quero o apartamento no Lencaster. Vais proporcionar-me imediatamente o dinheiro de que necessito. Vais convocar uma reunião dos administradores para as 10 horas da manhã e discutiremos em pormenor a gestão passada e as suas actividades futuras. Tenho pouco tempo e muitas viagens a fazer. Não estou disposto a deixar-me enredar por causa dos disparates burocráticos do teu banco. Fui suficientemente claro?

- Não estás a compreender bem o que eu quero dizer, Jean. Eu não pretendia...

- Cala-te, Alain! Quanto menos se disser, melhor. Quais são os documentos que tenho de assinar para os fundos de que necessito imediatamente?

Um quarto de hora mais tarde, estava tudo feito. Um Alain muito submisso fez a última chamada telefónica para convocar o último dos administradores para a reunião da manhã seguinte. Enxugou as mãos com um lenço de seda e entregou-se a uma defesa cuidadosamente modificada.

- Por favor! Somos irmãos. Não devemos discutir. Tens de compreender que neste momento estamos todos sob tensão. Os mercados monetários estão a enlouquecer. Temos de nos defender como se fosse de bandidos. Sabemos que vai haver uma guerra. Por conseguinte, como vamos proteger os interesses do banco e os nossos? Como vamos organizar a nossa vida pessoal? Estiveste durante tanto tempo fora, protegido durante tanto tempo...

Apesar da fúria, Jean Marie riu-se: uma sonora gargalhada de genuíno divertimento.

- Ah, ah, ah, irmãozinho! O meu coração sangra por ti! Pela minha parte, não saberia que havia de fazer com todos esses baús e casas-fortes cheios de papel e moedas e barras de ouro. Mas tens razão. Já é muito tarde para discutir... e é também tarde de mais para esse snobismo pateta! E se tentasses conseguir pôr-me em comunicação telefónica com o Vauvenargues...

- Vauvenargues? O ministro dos Estrangeiros?

- Esse mesmo.

- Como queiras. - Alain encolheu resignadamente os ombros e consultou a lista encadernada de pele que tinha na secretária. Ligou o telefone para uma linha particular e discou um número. Jean Marie ficou a ouvir com descarado divertimento o diálogo unilateral.

- Está? Fala Alain Hubert Barette, director de Halévy Frères et Barette, Banquiers. Ligue-me ao senhor ministro, se faz favor... O motivo é o facto de um velho amigo dele ter chegado a Paris e manifestar interesse em falar com ele. O amigo é monsenhor Jean Marie Barette, anteriormente Sua Santidade o papa Gregório XVII. Ah, compreendo! Nesse caso, talvez possa ter a bondade de transmitir o recado e pedir ao senhor ministro que telefone para este número. Obrigado.

Poisou o auscultador e fez uma careta de desagrado.

- O ministro está em reunião. Dar-lhe-ão o recado. Tu já estiveste em lugares desses, Jean! Conheces os procedimentos. Quando uma pessoa tem de explicar quem é e a sua identidade actual, está diplomaticamente morta. Nota, tenho a certeza de que o ministro telefona depois; mas de que te serve um aperto de mão frouxo e umas palavras sobre o tempo?

- A próxima chamada faço-a eu próprio.

Jean Marie consultou a agenda e marcou o número particular do chefe dos conselheiros do presidente, um homem com o qual, durante o seu pontificado, tinha mantido relações permanentes e amigas. A resposta foi imediata:

- Fala Duhamel.

- É Jean Marie Barette, Pierre. Estou de passagem por Paris durante uns dias para tratar de assuntos pessoais. Gostaria de me encontrar consigo... e com o seu patrão!

- E eu consigo. Mas tem de ser em particular. Quanto ao patrão... lamento muito, mas não! Houve ordens oficiais. O senhor é intocável.

- Donde vêm essas ordens?

- Do seu chefe maior para o nosso chefe maior. E os “amigos do silêncio” têm desenvolvido actividade a todos os níveis mais baixos. Onde é que está alojado?

- Ainda não decidi.

- Fora da cidade é melhor. Meta-se num táxi e siga até à Hostellerie dês Chevaliers. Fica a cerca de três quilómetros para cá de Versalhes. Eu telefono previamente a reservar-lhe alojamento. Inscreva-se como monsieur Grégoire. Eles não lhe pedem documentos. Eu passo por lá a caminho de casa... aí pelas 8 horas. Agora tenho de ir embora. A bientôt.

Jean Marie poisou o auscultador. Era a sua vez de apresentar desculpas.

- Tens razão, irmãozinho. Diplomaticamente, estou morto e enterrado. Bem, tenho de ir andando. Dá saudades à Odette e às pequenas. Havemos de tentar combinar comer juntos antes de eu partir.

- Não queres mudar de ideias acerca do Lancaster?

- Obrigado, mas não. Se sou um portador de peste, o melhor é não pegar a infecção à minha família. Amanhã às 10, eh?

A Hostellerie dês Chevaliers constituiu uma agradável surpresa: tratava-se de um aglomerado de antigas casas de campo transformadas num agradável e discreto hotel. Havia relvados bem aparados e tranquilos caramanchões de roseiras, bem como um curso de água de um moinho que serpenteava sob uma tapeçaria de salgueiros.

A patronne era uma mulher elegante dos seus cinquenta e tal anos, que prescindiu de todas as formalidades de registo e o conduziu imediatamente a uma agradável suite com vista para um enclave particular com o seu próprio relvado e um tanque com nenúfares. Indicou que ele poderia fazer chamadas telefónicas com toda a segurança, que no frigorífico havia bebidas alcoólicas e que, como amigo de M. Duhamel, lhe bastaria erguer um dedo para dispor de todos os préstimos da Hostellerie.

Ao desfazer a sua única mala, divertiu-o e surpreendeu-o um pouco verificar com quão pouca bagagem viajava; um fato, uma gabardina, um blusão e umas calças desportivas, uma camisola de lã, dois pijamas e meia dúzia de camisas, roupa interior e peúgas constituíam todo o seu guarda-roupa. Os artigos de higiene, o estojo de missa, um breviário, um missal e um livro de bolso formavam o resto da bagagem. Como meios de subsistência tinha dinheiro em notas para um dia, um livro de cheques de viagem e uma carta-circular de crédito de Halévy Frères et Barette. Estes constituíam uma dívida sua para com o banco, até que os administradores libertassem alguns fundos do seu património. Pelo menos tinha a liberdade de se deslocar rapidamente assim que o chamamento viesse, tal como viera séculos antes para João, filho de Zacarias, no deserto.

O que o perturbava agora era uma crescente sensação de isolamento e da sua precária dependência da boa-vontade de amigos. Pouco importava que no centro de si próprio houvesse um grande lago de calma, um lugar, uma quinta, onde todos os opostos se reconciliavam; continuava a ser um homem, sujeito a toda a química da carne, a toda a instável física do espírito.

A arma do isolamento tinha sido usada contra ele nos obscuros e amargos dias anteriores à abdicação. Agora estava a ser usada novamente, para o tornar impotente na arena política. Pierre Duhamel, há muito conselheiro do presidente da República, não era dado a exageros. Se ele dizia que uma pessoa estava a morrer, é porque era mesmo altura de chamar o padre; se ele dizia que alguém estava morto, é porque os pedreiros estavam já a esculpir-lhe o epitáfio.

O próprio facto de Pierre Duhamel se ter prestado tão rapidamente a sugerir um encontro era um sintoma de crise. Duhamel observava um código singular e espartano: “Tenho uma esposa: a mulher com quem casei. Tenho uma amante: a República. Nunca me contem nada que não queiram que seja transmitido. Nunca tentem atemorizar-me. Nunca procurem subornar-me. Não dou protecção a ninguém e só dou conselhos àqueles a quem me pagam para aconselhar. Respeito todos os credos. Exijo que o meu seja mantido ao nível do meu foro íntimo. Se uma pessoa confiar em mim, nunca lhe mentirei. Se a pessoa me mentir, perceberei, mas nunca voltarei a confiar nela.”

Durante o seu pontificado, Jean Marie Barette tinha tido muitos contactos com aquele homem estranhamente atraente, que parecia um pugilista profissional, discorria com a eloquência de Montaigne e ia para casa devotar-se a uma mulher que outrora fora a beldade de Paris e hoje era uma vítima devastada por múltiplas escleroses.

Tinham um filho em Saint-Cyr e uma filha um tanto mais velha, que ganhara bastante fama como produtora de programas para a televisão. Quanto ao resto, Jean Marie não inquirira. Pierre Duhamel era o que o seu presidente sustentava que ele era: um bom homem para a longa caminhada.

Jean Marie pegou no breviário e saiu para o jardim a fim de ler as vésperas do dia. Era um hábito que cultivava com emoção: a oração do homem a andar, ao fim do dia, de mãos dadas com Deus num jardim. A recitação desse dia começava pelo cântico que ele sempre adorara: “Quam dilecta” - “Quão amável é a Vossa morada. Senhor dos exércitos! A minha alma desfalece e consome-se pelos átrios do Senhor. O meu coração e a minha carne gritam de alegria de encontro ao Deus vivo. Até os pássaros encontram casa, e as andorinhas, ninho onde põem os seus filhinhos [...]”

Era a oração perfeita para o final de uma tarde de Verão, em que as sombras se alongavam e o ar, tranquilo e lânguido, se enchia do odor das rosas. Ao meter por um caminho saibrado na direcção de outra extensão de relva, ouviu vozes de crianças e um instante depois viu um grupo de meninas, todas elas envergando vestidos semelhantes de guingão e bibes, a jogar às escondidas com um par de jovens professoras. Num banco próximo, uma mulher de idade dividia as suas atenções entre o grupo e um bordado.

Quando Jean Marie passou pelo caminho de saibro, uma das crianças separou-se do grupo e correu para ele. Escorregou na berma e quase caiu aos seus pés. Desatou a chorar. Ele ergueu-a e levou-a até à mulher do banco, que lhe cuidou do joelho ferido e lhe ofereceu um chupa-chupa para a consolar. Só nessa altura Jean Marie notou que a pequena era mongolóide... como aliás todas as outras do grupo. Como que pressentindo o choque que ele experimentara, a mulher virou a miúda para ele e disse com um sorriso:

- Somos todas do Instituto que fica do outro lado da rua. Esta está connosco há muito pouco tempo. Tem saudades de casa; por isso, julga que todos os homens são o papá dela.

- E onde está o papá? - Havia na pergunta um leve toque de censura.

A mulher abanou a cabeça.

- Oh, não, não é o que o senhor pensa. Ele enviuvou recentemente. Sente, e com bastante razão, que ela está mais segura connosco. Temos cerca de cem crianças no Instituto. A patronne (1) deixa-nos trazer as mais pequenas aqui para brincarem. O filho único dela era mongolóide, mas morreu cedo.

Jean Marie estendeu os braços. A miúda dirigiu-se a ele de boa vontade e beijou-o, após o que se sentou no seu colo e começou a brincar alegremente com os botões da camisa dele.

- É muito meiga - disse ele.

- A maioria são meigas - disse a mulher. - As pessoas que conseguem mantê-las dentro do grupo familiar acabam por descobrir que é como ter um novo bebé em casa durante todo o tempo. Mas claro que é quando os pais envelhecem e a criança atinge a adolescência e a maturidade que a tragédia começa. Os rapazes podem tornar-se muito duros e violentos. As raparigas são vítimas fáceis de ataques sexuais. O futuro é negro, quer para os pais, quer para as crianças. É triste. Eu gosto imenso delas.

- Como é que o Instituto se mantém?

- Temos um subsídio do governo. Pedimos mensalidades aos pais que podem pagar. Apelamos para a caridade particular. Felizmente temos alguns protectores ricos, como mon sieur Duhamel, que mora aqui perto.

 

(1) Em francês no original. (N. do T.)

 

Ele chama às crianças “lês petites bouffonnes du bon Dieu” (“os pequenos bobos de Deus”)...

- É uma ideia cheia de ternura.

- Talvez conheça monsieur Duhamel, não? É uma pessoa muito importante, o braço direito do presidente, ao que dizem.

- De nome - disse cautelosamente Jean Marie.

A miúda deslizou pelos joelhos dele e começou a puxar-lhe pela mão para que ele andasse com ela.

- Posso levá-la até ao regato a ver os peixes? - perguntou ele.

- Claro. Eu vou convosco.

Quando se moveu, o breviário caiu-lhe do bolso para o banco. A mulher apanhou-o, deu uma olhadela ao frontispício e a seguir pôs o bordado de parte e seguiu-o, com o livro na mão.

- Deixou ali o seu breviário, senhor padre.

- Ah, obrigado!

Voltou a enfiá-lo no bolso. A mulher pegou na outra mão da pequena e colocou-se de par com Jean Marie.

- Tenho a estranha sensação de já o ter visto em qualquer lado - disse.

- Tenho a certeza de que nunca nos vimos. Estive durante muito tempo fora de França.

- Missionário, é isso?

- De certo modo, sim.

- Onde foi que serviu?

- Oh, em vários países, mas sobretudo em Roma. Agora estou reformado. Vim passar umas férias à terra natal.

- Julgava que os padres nunca se reformavam.

- Digamos que me reformei por uns tempos. Anda, pequena! Vamos ver os peixes dourados.

Ergueu a rapariguinha, colocando-a sobre os ombros, e começou a cantar uma cantiga da sua infância enquanto se encaminhava para o lago. A mulher deixou-se ficar para trás, observando-os de longe. Ele parecia um homem muito simpático, e era evidente o seu amor pelas crianças... mas, quando um padre, ainda vigoroso, se reformava tão cedo, tinha de haver um motivo.

Às 8 horas em ponto, Pierre Duhamel batia à porta da suite. Tinha de ir-se embora às oito e quarenta e cinco, visto que nunca deixava de jantar em casa com a mulher. Entretanto tomaria um Campari com água tónica na companhia de Jean Marie, que parecia encarar, com humor negro, como um sobrevivente altamente memorável, do género do mamute peludo.

- Meu Deus! Não há dúvida de que lhe deram uma sapatada e lhe passaram com o cilindro compressor por cima. Estou admirado por vê-lo com um ar tão saudável. Que fez agora para eles se concentrarem de tal maneira na sua pessoa? É claro que aquele estardalhaço todo na imprensa não o tornou nem um bocadinho mais popular junto da hierarquia francesa. Os “amigos do silêncio” têm aqui muita força. Depois ouvi dizer que o seu amigo, Mendelius, tinha sido vítima de um ataque bombista por parte de uns terroristas.

- Um ataque bombista, é verdade. Mas não foi uma acção terrorista. A coisa foi planeada e executada por um agente da C. I. A., Alvin Dolman.

- Por que razão a C. I. A.?

- Porque não? O Dolman era o agente dela no local. Penso que foi um trabalhinho limpo dos americanos para a Bundesrepublik. Destinou-se a libertá-los de um académico influente capaz de armar sarilhos assim que entrasse em vigor a convocação para o serviço militar.

- Alguma prova?

- As suficientes para mim. Mas não para provocar a indignação geral.

- Não tardará muito - disse Pierre Duhamel, mexendo a bebida com o dedo-, não tardará muito que uma pessoa possa pôr a própria mãe a ferver em azeite no Pont Royal... e ninguém pestaneje. O que estão a fazer-lhe a si é apenas uma pálida sombra do que está na forja para a repressão das pessoas e supressão da discussão. Os novos chefes da propaganda farão com que o Goebbels ao lado deles pareça um colegial amador. O senhor ainda não está de regresso ao mundo há tempo suficiente para sentir o impacte dos seus métodos... mas, meu Deus, lá eficientes são eles.

- Isso quer dizer que concorda com eles?

- Lamento dizer que sim. Sabe, meu amigo, partindo do princípio de que é inevitável uma guerra atómica (e trata-se da nossa previsão militar e da sua própria profecia, não se esqueça), a única maneira que temos de controlar e proporcionar qualquer protecção a grandes massas de gente é através de um intenso programa de condicionamento. Não temos processo de proteger a população de Paris de uma explosão e das radiações, ou de gás dos nervos ou de um vírus letal. Se anunciarmos esse facto terrível, tout court, teremos o pânico imediato. Sendo assim, temos de manter as cidades em funcionamento durante tanto tempo quanto for possível, a todo o custo. Se isso implicar varrer as ruas com tanques duas vezes por dia, fá-lo-emos. Se implicar ataques de surpresa antes do romper do dia contra dissidentes ou idealistas demasiado barulhentos, iremos buscá-los de pijama e dispararemos sobre alguns para avisar os outros. Depois, se precisarmos de algumas diversões (pão e circo e orgias nos degraus do Sacré-Coeur), arranjá-las-emos também! E não haverá discussão sobre qualquer das coisas! Nessa altura seremos todos “amigos do silêncio”, e que Deus valha a quem quer que abra a boca na ocasião errada. É este o cenário, meu amigo. Gosto tão pouco dele como o senhor; mas, de qualquer modo, recomendo-o ao meu presidente.

- Nesse caso, por piedade - argumentou implorativa-mente Jean Marie-, não acha que deveria dar uma olhadela ao cenário que eu sugeri? Com certeza tudo seria preferível à brutalidade primitiva e às bacanais que se preparam para oferecer.

- Fizemos os nossos trabalhos de casa - redarguiu Pierre Duhamel com um humor gélido. - Temos a garantia por parte das maiores autoridades no campo da psiquiatria de que a oscilação da táctica entre a violência e a complacência báquica terá o efeito de manter o público simultaneamente surpreso e dócil perante a autoridade... especialmente uma vez que os factos apenas poderão ser testemunhados por ter ouvido dizer e não por relatos fidedignos na imprensa ou na televisão.

- Isso é monstruoso! - observou enfurecido Jean Marie.

- Claro que é monstruoso - admitiu Pierre Duhamel com um expressivo encolher de ombros. - Mas considere a sua alternativa. Trago-a comigo.

Puxou da carteira, tirou de lá um recorte de jornal cuidadosamente dobrado e abriu-o, alisando-o. Prosseguiu:

- Trata-se do que o senhor disse como Gregório XVII, citado no artigo de Mendelius. Sou obrigado a partir do princípio de que a citação corresponde à realidade. Eis o que diz:

[...] Torna-se claro que nos tempos de calamidade universal as estruturas tradicionais da sociedade não sobreviverão. Haverá uma luta feroz pelas mais simples necessidades da vida: comida, água, combustível e abrigo. A autoridade será usurpada pelos fortes e pelos cruéis. As grandes sociedades urbanas fragmentar-se-ão em grupos tribais, hostis uns aos outros. As áreas rurais serão submetidas a pilhagem. A pessoa humana constituirá uma presa tanto como os animais que hoje abatemos para comer. A razão será tão obnubilada que o homem recorrerá como forma de alívio às mais cruéis e violentas formas de magia. Mesmo os mais fortemente apoiados na “promessa do Senhor” terão dificuldade em manter a fé e continuar a dar testemunho, como é seu dever, até ao fim. Como devem então os cristãos comportar-se nesses dias de provação e terror?

Visto que não terão mais possibilidades de manter-se como grandes grupos, deverão dividir-se em pequenas comunidades, cada uma delas capaz de se manter através do exercício de uma fé comum e de uma verdadeira caridade mútua.

“Ora vejamos o que temos nesta receita. Desordem em larga escala e caos nas relações sociais, que serão compensados por quê? Pequenas comunidades de eleitos, fazendo experiências rudimentares no exercício da caridade e das outras virtudes cristãs. Não lhe parece um resumo adequado?

- Até ver, sim.

- Porém, seja qual for o governo ou chefia que então ainda exista, terá de tomar primeiramente em linha de conta os bárbaros. E como irá fazer semelhante coisa, a não ser por meio das medidas violentas que encaramos? No fim de contas, os seus eleitos (para não falar dos eleitos de todos os outros cultos) cuidarão de si próprios; se não eles, o Todo-Poderoso! Temos de reconhecer, meu amigo, que foi por isso que a sua própria gente o expulsou. Não podiam argumentar contra o princípio. É um belo pensamento: o povo de Deus plantando o seu jardim de graças, como os frades e as freiras de antigamente faziam na idade das trevas da Europa. No fundo, porém, os seus bispos são pragmáticos. Sabem que, quando se pretende a lei e a ordem, tem de mostrar-se como o caos pode ser mau. Quando se quer recuperar a moralidade, tem de soltar-se Satanás pelas ruas, em tamanho natural, de tal modo que se possa gritar contra ele bem à vista da populaça aterrorizada. Em todos os países do mundo é a mesma coisa, pois nenhum país pode prosseguir uma guerra sem um público disposto e concordante. A sua própria Igreja adoptou a mentalidade do cerco: nada de discussão, regresso à simples moralidade doméstica, e vamos meter toda a gente na missa ao domingo para podermos dar testemunho público contra o ímpio! Se há coisa em que nem sequer queiram ouvir falar, é num qualquer profeta teimoso a pregar o fim do mundo por entre os túmulos!

- Mesmo sabendo eles que o fim do mundo está próximo?

- Porque o sabem! Precisamente porque o sabem! Tal como nós, não podem enfrentar o insuportável antes de ele ocorrer. É aí que reside toda a justificação da existência dos “amigos do silêncio” e das suas contrapartidas no governo secular! - De repente, pôs-se a rir. - Não faça um ar tão escandalizado, meu amigo! Que é que esperava do Pierre Duhamel? Um calmante e uma colher de xarope para aliviar? Os católicos romanos são os únicos que estão a optar pela aceitação. Todos os outros grandes cultos que têm membros e propriedades na República asseguraram ao governo a sua lealdade em caso de emergência nacional. O motivo de se agarrarem aos velhos modelos de experiência e cultura é não terem já tempo para experimentar outros novos, ou habituar a sua gente a viver com eles.

Jean Marie manteve-se calado durante um longo instante. Por fim disse calmamente:

- Aceito o que me diz, Pierre. Agora responda-me a uma pergunta: Que preparativos fez, pessoalmente, para o dia em que os primeiros mísseis forem lançados?

Duhamel já não sorria. Demorou um certo tempo a construir a resposta.

- Trata-se de um dia do nosso cenário chamado dia R: o R quer dizer Rubicão. Se uma qualquer de meia dúzia de acções for tomada por qualquer das grandes potências, o desenvolvimento do conflito tornar-se-á irreversível. A guerra será declarada, e seguir-se-á um conflito generalizado. No dia R irei para casa. Darei banho à minha mulher. Prepararei o seu prato favorito, abrirei o melhor vinho da minha adega e bebê-lo-ei com todo o vagar. Depois levarei a minha mulher para a cama, deitar-me-ei ao lado dela e administrarei um comprimido de veneno a ambos. Já combinámos isso. Os nossos filhos sabem. Não lhes agrada a ideia. Têm outros planos e outras razões; no entanto, respeitam a nossa decisão. A minha mulher já sofreu o suficiente. Eu não desejaria que ela suportasse os horrores do depois... e enfrentá-los sem ela seria, para mim, um masoquismo sem sentido.

Estava a ser desafiado e sabia-o. Era o mesmo desafio que Carl Mendelius lhe fizera no jardim em Monte Cassino: “Conheci muito boa gente que preferiria a escuridão eterna à visão de Xiva, o Destruidor.” Pierre Duhamel era um inquisidor ainda mais temível, pois não tinha nenhuma das inibições de Mendelius. Estava ainda à espera da sua resposta.

Jean Marie Barette disse calmamente:

- Acredito no livre arbítrio, Pierre. Acredito que o homem é julgado pela luz que lhe foi dada. Se você optar por um fim estóico para uma situação intolerável, eu posso condenar a acção, mas não posso exprimir qualquer veredicto relativamente ao agente. Preferiria entregá-lo, como me entrego a mim, à misericórdia de Deus. No entanto, tenho uma pergunta.

- Faça-a - disse Pierre Duhamel.

- Para si e para a sua mulher, tudo termina no dia do Rubicão. Mas que será dos desamparados... dos seus pequenos “palhaços de Deus”, por exemplo? Sim, é verdade, vi-os esta tarde no jardim! Falei com a gouvernante deles, que me disse que você era um dos mais importantes protectores que tinham. Portanto, quando vierem os tempos ruins, que fará? Vai deixá-los morrer como frangos num incêndio da capoeira, ou atirá-los para o lado como brinquedos ao dispor dos bárbaros?

Pierre Duhamel terminou a bebida e poisou o copo. Puxou de um lenço e enxugou os lábios. Depois disse, com pesaroso formalismo:

- É um homem muito inteligente, monsenhor; mas nem o senhor vê todo o futuro. Os meus palhacinhos já estão arrumados. Obedecendo a uma série de directivas políticas ultra-secretas, pessoas que, por motivo de insanidade, enfermidade incurável ou qualquer outra grande deficiência, sejam uma sobrecarga em situação de guerra serão, mal se iniciem as hostilidades, discretamente eliminadas! O Hitler forneceu-nos os projectos para isso. Actualizámo-los de modo a incluírem um fim piedoso, em lugar de uma morte brutal. Estou a escandalizá-lo, sem dúvida.

- O que me escandaliza é que possa continuar a viver com esse segredo.

- Que hei-de fazer? Se tentar divulgá-lo, sou rotulado de louco... tal como o senhor com a sua visão do Armagedão e do “segundo advento”. Como vê, estamos ambos nas mesmas tristes galés.

- Então vejamos como poderemos sair delas, meu amigo.

- Primeiro - disse Duhamel -, vejamos o seu problema. O senhor é, conforme eu disse, oficialmente intocável. Vai verificar que se tornará cada vez mais difícil circular. Certos países hesitarão em conceder-lhe visto. Há-de ser perseguido em toda a parte. Hão-de esvaziar-lhe as malas. Há-de ter demoradas sessões com funcionários de fronteira. Admirar-se-á de quanto a vida pode ser incómoda. Assim, bem vistas as coisas, acho que temos de arranjar-lhe um passaporte com outro nome.

- Pode fazer isso?

- Passo a vida a fazê-lo para pessoas encarregadas de missões especiais. O senhor não está em missão mas é sem sombra de dúvida um caso especial. Tem fotografias recentes?

- Tenho uma dúzia delas iguais à que figura no meu passaporte actual. Disseram-me que alguns países as exigem" para efeitos de concessão de visto.

- Dê-me três. Mando entregar-lhe o passaporte aqui amanhã.

- É um bom amigo, Pierre. Obrigado.

- Por favor! - Pierre Duhamel endereçou-lhe um repentino sorriso agarotado. - O meu patrão, o presidente, pretende-o fora do país. Tenho instruções para fazer tudo o que seja possível no sentido de o pôr a andar.

- Por que há-de ele preocupar-se tanto comigo?

- Percebe de teatro - disse secamente Pierre Duhamel. - Um homem a caminhar sobre as águas é um milagre. Dois é bastante ridículo.

A imagem divertiu ambos. Riram-se, e a tensão quebrou-se. Pierre Duhamel abandonou a pose de ironia defensiva e começou a falar com mais à-vontade.

- Quando uma pessoa vê os planos de batalha estabelecidos, é como uma visão do Inferno. Não há horror que não esteja lá. Há bombas de neutrões, gás venenoso, doenças letais transmitidas por pulverização. Em teoria, claro, tudo se baseia em acção limitada, de maneira que os maiores horrores se mantêm como dissuasores de reserva. Mas na prática, assim que forem disparados os primeiros tiros, não haverá limites para a escalada. Cometido um assassínio, o resto é fácil, porque só temos uma vida em risco perante o carrasco.

- Basta! - Jean Marie Barette interrompeu abruptamente a conversa. - Convenceu-se a estabelecer um pacto de suicídio com a sua mulher com base numa superabundância de horrores! Eu recuso-me a ceder todo este planeta ao mal. Se conseguirmos manter um canto dele para a esperança e o amor, fá-lo-emos. Você detesta o que está a ser planeado, Pierre. Detesta a sua própria impotência diante da loucura generalizada. Por que não realiza um último acto de esperança cafcandb a íínha de fogo juntamente comigo?

- Para fazer o quê? - perguntou Pierre Duhamel.

- Vamos abalar o mundo de maneira que ele nos dê ouvidos. Vamos primeiro falar-lhes dos “palhacinhos de Deus” e do que lhes sucederá no dia do Rubicão. Apodere-se do documento. Eu entrarei em contacto com o Georg Rainer para organizar uma conferência de imprensa... e enfrentaremos tudo juntos.

- E depois?

- Meu Deus! Despertaremos a consciência do mundo! As pessoas erguem-se sempre contra o mal feito às crianças.

- Erguem? Estamos quase no final do século e ainda há exploração do trabalho infantil na Europa, para já não falar do resto do mundo. Ainda não há legislação eficiente contra os maus tratos infligidos às crianças, e as mulheres continuam a lutar entre si e contra os legisladores acerca da morte do feto com o tempo quase todo. Não, meu caro Jean! Confie em Deus, se tem de ser, mas nunca, nunca no homem. Se eu fizesse o que sugere, a imprensa votar-nos-ia ao silêncio e a polícia meter-nos-ia no mais fundo cacho (1) do país no espaço de meia hora. Lamento muito. Sou um funcionário daquilo que é. Quando aquilo que é se torna insuportável, faço a minha saída. La comédie est finie (2). Dê-me essas fotografias. Amanhã terá um novo passaporte e uma nova identidade.

Jean Marie tirou as fotografias da carteira e estendeu-lhas. Ao fazê-lo, agarrou na mão de Duhamel e segurou-a com firmeza, - Não vou deixá-lo ir-se embora assim! Está a fazer uma coisa horrível. Está a fechar os ouvidos e o coração a um claro apelo. Pode ser o último que receba.

Duhamel libertou-se da prisão.

- Está enganado, monsenhor... - Havia na sua voz uma vaga tristeza espectral. - Eu respondi ao meu apelo há muito tempo. Quando a minha mulher adoeceu e o médico me comunicou o diagnóstico, fui a Notre Dame e sentei-me sozinho diante do santuário. Não rezei. Lancei um ultimato ao Todo-Poderoso. Disse-lhe: “Eh bien! Já que ela tem de suportá-lo, eu suportá-lo-ei também. Enquanto ela for viva, fá-la-ei o mais feliz que puder. Mas que fique bem entendido: basta o que basta! Se nos provocares mais, devolvo as chaves da casa da vida e vamos ambos embora.” Pois bem, Ele fê-lo, não fez? Nem a si Ele disse: “Diz-lhes que reformem o mundo, senão...!” O senhor recebeu a mesma mensagem que eu recebo todos os dias nos despachos presidenciais. O “dia do juízo” está à porta. Não há esperança! Não há saída! Portanto, para mim, acabaram-se as apostas. Lamento pelos meus “palhacinhos”, mas não fui eu quem os gerou e não

 

(1) Em francês no original: cárcere. (N. do T.)

(2) Ideou: A comédia terminou. (N. do T.)

 

estava por cá no dia da criação. Não fui eu quem misturei toda a confusão explosiva do universo. Compreende, monsenhor?

- Tudo - replicou Jean Marie -, excepto um ponto. Por que razão se dá a todo este trabalho comigo?

- Só Deus sabe! Provavelmente porque admiro a coragem de um homem que é capaz de suportar a vida e toda a sua imundície sem condições nenhumas. Os meus “palhacinhos” são assim; mas só porque não têm cérebro para mais. Pelo menos morrerão felizes. - Rabiscou um número no bloco junto do telefone. - Isto é o meu número de casa. Se precisar de mim, telefone. Se eu não estiver disponível chame o Charlot. É o meu mordomo e muito competente a improvisar operações tácticas. No entanto, deve estar seguro aqui por um ou dois dias. Depois disso, tenha muito cuidado, por favor. As pessoas não os vêem, mas os homens das adagas já andam pelas ruas!

Depois da partida de Duhamel, sentiu-se preso de um temor glacial: o formigueiro de medo do viajante solitário que ouve os uivos dos lobos na orla da floresta. Não suportava a solidão do quarto; assim, desceu ao restaurante, onde a patronne lhe arranjou uma mesa num recanto tranquilo, do qual ele podia vigiar o resto dos presentes. Mandou vir uma talhada de melão, um pequeno entrecôte e meia garrafa do vinho da casa, após o que se instalou para gozar a refeição.

Pelo menos ali não havia qualquer ameaça. A iluminação era repousante e havia flores frescas em todas as mesas. As toalhas eram imaculadas e o serviço discreto. Os clientes, à primeira vista, eram abastados homens de negócios e burocratas com as suas variadas mulheres. No preciso instante em que fazia tal juízo, surpreendeu a sua imagem num espelho de parede e apercebeu-se de que ele, que outrora usara a cor púrpura de cardeal e o branco do papa, não passava agora de mais um fulano grisalho envergando o uniforme da burguesia.

A própria vulgaridade da sua imagem recordou-lhe uma das primeiras palestras de Carl Mendelius no Gregoriano. Estava a explicar a natureza das parábolas do evangelho. Muitas delas, dizia, eram relatos das conversas de Jesus à mesa. As suas metáforas de amos e criados e refeições eram suscitadas pelas coisas próximas e vulgares que havia em redor. Depois acrescentara um corolário à afirmação: “Contudo, as histórias familiares são como um campo de minas, cheias de armadilhas e fios detonadores. Todas elas contêm contradições, elementos alienantes que obrigam o ouvinte a deter-se e o fazem ver uma nova potência, para o bem ou para o mal, no mais banal dos acontecimentos.”

No próprio encontro que tivera com Pierre Duhamel, não estava de modo nenhum preparado para o extremo grau de desespero do homem. Era tanto mais terrível quanto se revelava completamente desapaixonado. Podia abranger, sem uma vacilação, as mais monstruosas perversidades; mas não encontraria lugar para a mais pequena esperança ou a mais simples alegria. Era uma loucura tão racional que não podia curar-se nem combater-se. E no entanto, no entanto... havia mais do que um fio detonador no campo de minas! Pierre Duhamel podia desesperar de si próprio; mas Jean Marie Barette não deveria nunca desesperar dele. Devia continuar a acreditar que, enquanto a vida durasse, Pierre Duhamel estava ainda ao alcance da misericórdia eterna. Jean Marie devia ainda orar pela alma dele, devia ainda estender as mãos quentes para degelar aquele coração obstinado.

A carne estava tenra e o vinho era macio; no entanto, mesmo enquanto os saboreava, Jean Marie preocupava-se com o novo desafio que se lhe deparava. Estava em jogo a sua credibilidade - não como visionário, mas como simples portador da boa nova de Deus aos homens. Tinha acusado Duhamel de rejeitar a boa nova; mas não seria antes Jean Marie Barette -que já fora papa e servo dos servos de Deus - que não lograra apresentá-la com suficiente fé e amor? Uma vez mais, era imperativamente compelido a abrir-se a um novo influxo de força e autoridade. O seu devaneio foi interrompido pela patronne, que se deteve junto da sua mesa para lhe perguntar se estava a gostar da comida. Ele cumprimentou-a com um sorriso.

- Comi como um príncipe, madame.

- Na Gasconha diríamos “como a mula do papa”. Houve um clarão de malícia no seu olhar, mas Jean Marie não estava com disposição para corresponder à ironia, e perguntou:

- Pode dizer-me se a casa de monsieur Duhamel fica muito longe daqui?

- Cerca de dez minutos de automóvel. Se quiser ir lá amanhã de manhã, posso mandar alguém do pessoal levá-lo. Mas é melhor telefonar primeiro. A casa é guardada como uma fortaleza por homens da segurança e cães.

- Tenho a certeza de que monsieur Duhamel me recebe. Gostaria de ir lá logo a seguir ao jantar.

- Nesse caso, posso chamar um táxi. O motorista pode ficar à espera e trazê-lo de volta.

- Obrigado, madame.

- Ora essa! Tenho o maior prazer. - Fingiu varrer umas migalhas da mesa com a mão e disse baixinho: - Claro que me agradaria muito mais dar de comer ao papa do que à sua mula.

- Estou certo de que ele terá muito prazer em visitá-la, madame... desde que eu possa garantir-lhe a sua absoluta discrição.

- Quanto a isso - disse madame docemente -, todos os nossos clientes confiam em nós. Aprendemos muito depressa com monsieur Duhamel que o silêncio é de ouro!... Para a sobremesa, permita que recomende framboesas. São mesmo do nosso jardim.

Terminou a refeição sem pressas. Era quase como se fosse um atleta, correndo com um regulador do andamento que, a dada altura, lhe daria o comando da prova. A sua atenção consciente começou a transferir-se de Duhamel para a sua mulher, inválida. Era como se ela estivesse a estender a mão para alcançá-lo. Terminou o café, dirigiu-se à cabina e ligou para o número particular de Duhamel. Respondeu uma voz masculina.

- Quem fala, por favor?

- Fala monsieur Grégoire. Gostaria de falar com monsieur Duhamel.

- Lamento, mas não é possível.

- Nesse caso, faça o favor de lhe dizer que estarei aí em casa dentro de um quarto de hora.

- Não será oportuno. A madame está muito doente. O médico está precisamente a vê-la, e monsieur Duhamel está em reunião com um visitante de outro continente.

- Como é que o senhor se chama, por favor?

- Charlot.

- Charlot, há duas horas monsieur Duhamel referiu-me o seu nome como um homem de confiança ao qual eu devia recorrer em caso de emergência. Trata-se de uma emergência; portanto, peço-lhe o favor de fazer exactamente o que lhe peço e deixar que seja monsieur Duhamel a decidir se a minha visita é oportuna ou não. Estou aí dentro de um quarto de hora.

O táxi chegou no meio de uma trovoada. O motorista era um fulano lacónico, que informou as suas condições para um serviço daquele tipo e, uma vez aceites estas, se fechou em silêncio. Jean Marie Barette fechou os olhos e preparou-se para o que lhe seria exigido nos encontros que se aproximavam.

A residência de Pierre Duhamel era uma grande mansão campestre ao estilo “segundo império”, situada num pequeno parque, por detrás de uma alta cerca de espigões de ferro. O portão da frente estava fechado e cá fora encontrava-se estacionado um carro da polícia com dois homens dentro. Um dilema imediato! Ao telefone tinha-se identificado como monsieur Grégoire. Se a polícia' lhe pedisse os documentos, revelar-se-ia como Jean Marie Barette, um visitante extremamente comprometedor. Decidiu fazer bluff. Baixou o vidro da janela e dirigiu-se ao agente mais próximo.

- Sou monsieur Grégoire. Tenho um encontro marcado com monsieur Duhamel.

- Espere um momento!-O agente pegou num inter-comunicador de bolso e entrou em comunicação com a casa. - Um tal Grégoire. Diz que tem encontro marcado.

Jean Marie não conseguiu distinguir a resposta, mas aparentemente ela satisfez o polícia, que acenou e disse:

- Estão à sua espera. Faça o favor de se identificar!

- Recebi instruções para não ser portador de documentos nesta ocasião. Pode verificar isso junto de monsieur Duhamel.

O polícia tornou a contactar a casa. Desta vez houve um intervalo um tanto ou quanto longo antes de lhe ser dada carta branca. Depois, os portões abriram-se electrica-mente, o polícia fez-lhe sinal para entrar e os portões voltaram a fechar-se. Ainda o táxi mal chegara à porta de entrada, quando esta foi aberta pelo próprio Pierre Duhamel. Tremia de raiva.

- Por amor de Deus, homem! Que vem a ser isto? A Pau-lette desmaiou. Tenho um homem de Moscovo na sala de visitas. Que diabo quer?

- Onde está a sua mulher?

- No andar de cima. O médico está com ela.

- Leve-me junto dela!

- Escute! Ela está num estado desesperado.

- Leve-me junto dela.

Pierre Duhamel ficou a olhar para ele como se se tratasse de um estranho, após o que encolheu ligeiramente os ombros em sinal de rendição.

- Muito bem! Siga-me, faça favor.

Conduziu-o ao andar superior e empurrou a porta do quarto. Paulette Duhamel, uma figura pálida e encolhida, jazia soerguida por almofadas no grande leito de quatro colunas. O médico estava de pé, segurando-lhe o pulso frouxo na mão, a contar as pulsações.

- Alguma alteração? - perguntou Duhamel. O médico abanou a cabeça.

- A paraplegia alastrou. Os reflexos estão mais fracos. Há líquido em ambos os pulmões, uma vez que os músculos do aparelho respiratório principiam a falhar. Podemos proporcionar-lhe um pouco mais de alívio no hospital, mas não muito. Quem é este cavalheiro?

- Um velho amigo. Um padre.

- Ah! - O médico estava manifestamente surpreendido, mas tinha tacto. - Nesse caso deixo-o com ela por instantes. Tão depressa recobra como perde a consciência. Se houver alguma alteração notável, faça o favor de me chamar imediatamente. Estou aqui mesmo à porta.

E saiu.

Pierre Duhamel disse com uma raiva fria:

- Não quero sacramentos nem ladainhas. Se ela pudesse falar, também os recusaria.

- Não haverá sacramentos - disse mansamente Jean Marie. - Sentar-me-ei pegando-lhe na mão. Se quiser, pode esperar... a não ser que o seu visitante esteja impaciente.

- Ele há-de ser paciente - disse Pierre Duhamel com dureza. - Precisa de mim. Este Inverno está a contas com a fome.

Jean Marie não falou. Puxou uma cadeira para junto do leito, sentou-se, pegou na mão mole e enfraquecida da mulher e segurou-a entre as suas. Pierre Duhamel, de pé ao fundo da cama, presenciou uma curiosa transformação. O corpo de Jean Marie ficou rígido: os músculos do rosto retesaram-se, de tal maneira que, na média luz do quarto da doente, os seus traços pareciam como que esculpidos em madeira. Estava também a suceder outra coisa que ele não podia explicar por palavras. Era como se toda a vida que havia dentro do homem estivesse a escoar-se da periferia do corpo para qualquer poço secreto no centro da sua pessoa. Entretanto Paulette permanecia ali deitada, como uma triste e encolhida boneca de cera, de olhos fechados, com uma respiração cava e cheia de ralas, de tal maneira que Duhamel fez os mais ardentes votos por que parasse e ela -aquela que especial e essencialmente amara durante toda a vida - pudesse libertar-se como uma ave canora da gaiola.

O desejo era tão pungente que parecia deter o tempo. Duhamel não soube se tinha estado ali de pé durante segundos, minutos ou horas. Voltou a olhar para Barette. Estava a modificar-se de novo: os músculos relaxavam-se, os traços tensos suavizavam-se num sorriso momentâneo. Nessa altura abriu os olhos e virou-se para a mulher deitada, dizendo com o ar mais natural:

- Já pode abrir os olhos, madame.

Paulette Duhamel abriu os olhos e focou-os imediatamente no marido, aos pés da cama. Falou distintamente, numa voz débil mas .sem vacilações:

- Olá, chéri. Parece que voltei a portar-me mal. Ergueu os braços para o abraçar e a primeira coisa que

Duhamel notou foi que os tremores contínuos que caracterizavam o estado avançado da doença tinham cessado. Inclinou-se para a beijar. Quando interrompeu o amplexo, Jean Marie Barette estava de pé junto da porta aberta, conversando baixinho com o médico. Este abeirou-se da cama, tomou o pulso de Paulette e voltou a auscultar-lhe o peito. Quando voltou a erguer-se, sorria de modo hesitante.

- Bem, bem! Parece que podemos todos sossegar um bocado, especialmente a madame. Para já, o mau bocado parece ter passado. No entanto, deve manter-se muito tranquila. Amanhã de manhã podemos pensar em resolver esse problema respiratório. Para já, porém (grâce à Dieu!), o perigo está passado.

Ao percorrer o corredor com Pierre Duhamel e Jean Marie, tornou-se mais expansivo e loquaz.

- Nesta doença, nunca se sabe. Não é muito vulgar haver colapsos, mas podem acontecer, como viram hoje. Depois, com o mesmo carácter súbito, surge uma recuperação. O paciente regressa a um estado eufórico e a degenerescência afrouxa. Notei diversas vezes que uma intervenção religiosa, como a sua desta noite, padre, ou a administração dos últimos sacramentos, pode produzir no paciente uma grande calma, que é só por si uma terapia. Há-de recordar que na antiga ilha de Cós...

Duhamel conduziu-o diplomaticamente para a saída e depois regressou para junto de Jean Marie. Parecia um sonâmbulo ao acordar numa paisagem estranha. Além disso, estava estranhamente humilde.

- Não sei o que fez ou como o fez, mas penso que lhe devo uma vida.

- A mim não me deve nada - disse Jean Marie com espartana autoridade. - Está em dívida para com Deus, mas, uma vez que está de más relações com Ele, por que não faz o pagamento aos seus “palhacinhos”?

- Que foi que o fez vir aqui esta noite?

- Às vezes, como todos os loucos, oiço vozes.

- Não faça troça de mim, monsenhor! Estou cansado, e a minha noite ainda nem a meio chegou.

- Vou andando.

- Espere! Gostaria que conhecesse o meu visitante.

- Tem a certeza de que ele me quer conhecer?

- Vamos perguntar-lhe - disse Pierre Duhamel, e fê-lo entrar na biblioteca para lhe apresentar Sergei Andrevich Petrov, ministro da Produção Agrícola da U. R. S. S.

Era um homem baixo, corpulento como uma barrica, meio georgiano, meio caucasiano, que nascera na economia de subsistência do Cáucaso, mas mesmo assim compreendia, como que por um instinto animal, o problema de alimentar um país que se estendia da Europa até à China. Saudou Jean Marie com um aperto de mão capaz de quebrar ossos e uma graçola pesada:

- Com que então Vossa Santidade está no desemprego. Que faz agora? Funciona como eminência parda do nosso amigo Duhamel?

O seu sorriso atenuava a mordacidade da piada, mas Duhamel atirou-se azedamente a ele:

- Está a passar das marcas, Sergei.

- Uma piada infeliz! Desculpe. Mas tenho de levar uma resposta para Moscovo. Vamos comer este Inverno, ou teremos de fazer racionamento? A nossa discussão foi interrompida; é por isso que estou mal disposto.

- A culpa foi minha - disse Jean Marie. - Apareci sem ser convidado.

- E fez-me um milagre pessoal - disse Pierre Duhamel. - A minha mulher venceu a crise.

- Talvez ele faça outro para mim. Sabe Deus como preciso! - Petrov rodou nos calcanhares, virando-se para Jean Marie Barette. - Para a Rússia, duas colheitas más são uma catástrofe. Quando não temos cereais para alimentar o gado, somos obrigados a abatê-lo. Sem reservas de cereais panificáveis, temos de submeter os civis a racionamento para alimentarmos as forças armadas. Agora os Americanos e os Canadianos estão a diminuir os fornecimentos. Os cereais são considerados material de guerra. Os Australianos estão a vender os excedentes à China. Por conseguinte, ando pelo mundo fora a oferecer barras de ouro em troca de cereais. E, por incrível que pareça, mal consigo um alqueire!

- E se nós lho vendermos - acrescentou Duhamel, à guisa de azeda reflexão-, somos a pérfida França a abrir uma brecha na solidariedade da Europa Ocidental e expomo-nos a sanções económicas por parte dos Americanos.

- Se eu não o arranjar em qualquer lado, o Exército tem a desculpa final de que precisa para precipitar uma guerra. - Deu uma risada sem humor e abriu os braços num gesto de desespero. - Portanto, eis um desafio para um fazedor de milagres!

- Já foi tempo - observou Jean Marie - em que os meus bons ofícios podiam significar qualquer coisa entre as nações. Agora, já não. Se hoje eu tentasse intervir em negócios de Estado, seria desacreditado como um excêntrico.

- Não estou assim tão certo disso - disse Sergei Petrov.

- Nos dias que correm, o mundo inteiro é uma casa de doidos. O senhor é suficientemente original para proporcionar uma diversão qualquer. Por que não me telefona amanhã para a Embaixada? Gostaria de conversar consigo antes de regressar a Moscovo.

- Ou, melhor ainda - disse Pierre Duhamel -, por que não lhe telefona você para a Hostellerie dês Chevaliers? Não confiaria na central telefónica da sua Embaixada nem para um rol da lavandaria... e estou a tentar proteger o mais possível o nosso amigo... Agora, se nos dá licença, Jean, temos uma longa noite à nossa frente.

Puxou o cordão da campainha junto da lareira e passado um instante Charlot estava à porta, pronto para conduzir o hóspede ao táxi. Jean Marie apertou a mão aos dois homens.

Petrov disse com um sorriso:

- Se for capaz de multiplicar os pães, dou-lhe o meu cargo amanhã!

- Meu caro camarada Petrov - disse Jean Marie Barette.

- Não me parece que se possa varrer Deus do manifesto comunista e depois esperar que ele apareça sempre que chega a altura das colheitas!

- Você estava mesmo a pedir esta, Sergei! - observou Pierre Duhamel rindo, acrescentando depois para Jean Marie:

- Apareço amanhã com os documentos. Talvez nessa altura já tenha encontrado palavras para lhe agradecer.

- Tenho uma reunião de manhã no banco do meu irmão. Espero estar de volta ao fim da tarde. Boa noite, meus senhores.

O impassível Charlot conduziu-o até à porta. O motorista estava a dormitar no táxi. O carro da polícia encontrava-se ainda parado junto do portão. Lá para o fundo do jardim, ouviu cães a latir quando os homens da segurança que inspeccionavam os limites da propriedade enxotaram uma raposa para fora do matagal.

Quando terminou as suas orações e os preparativos para se deitar era 1 hora da manhã. Estava desesperadamente fatigado; no entanto, uma vez deitado, deixou-se ficar acordado durante muito tempo, tentando compreender a estranha lógica de outro mundo dos acontecimentos dessa noite. Era a segunda vez -primeiro com Carl Mendelius e agora com Paulette Duhamel - que experimentava o influxo, a oferta de si próprio como condutor, através do qual o dom do alívio era tornado acessível a outrem.

Era uma sensação bem diferente da associada ao arrebatamento e às revelações da visão. Nessa altura tinha sido literalmente arrancado de si próprio, submetido a uma iluminação, dotado de um conhecimento que de modo nenhum pedira ou desejara. O efeito era imediato e permanente. A sua marca e o seu peso tinham ficado nele para sempre.

O influxo era um fenómeno transiente. Começava por um impulso de piedade ou amor, ou a simples compreensão de uma profunda necessidade de outrem. Havia uma empatia - uma espécie de identidade - entre ele e a pessoa carente. Era ele que implorava a misericórdia do Pai invisível, por virtude do Filho encarnado, e oferecia a sua pessoa como recipiente através do qual os dons do espírito pudessem passar. Não havia sentido de milagre, de magia ou de taumalurgia. Tratava-se de um acto de amor, instintivo e impensado, através do qual um dom era transmitido ou renovado.

Mas, conquanto o acto fosse uma doação livre de si próprio, o impulso que o suscitava vinha de fora. Ele não sabia dizer por que razão se tinha oferecido como mediador para Paulette e não para Sergei Petrov, do qual dependiam questões de vastas consequências: a fome e a pestilência da guerra. Petrov fazia ironia com os milagres... mas desejava desesperadamente um. Se lhe oferecessem meio pão para a ração de Inverno, ele cantaria de bom grado a doxologia com o patriarca de Moscovo.

Sendo assim, por que razão existiria a diferença? Porquê a disponibilidade para com o mais frágil, a fácil recusa relativamente ao outro? Não era um acto de julgamento, mas sim uma reacção impensada: o junco vergando-se ao vento, os patos migratórios correspondendo ao estranho impulso atávico que os incitava a partir antes do Inverno.

Uma vez, muito tempo atrás, quando era ainda um membro novato do Sacro Colégio, tinha dado um passeio a pé com Carl Mendelius no jardim de uma vivenda que dava sobre o lago Nemi. Estava um daqueles dias mágicos de ar vibrante com o zumbido das cigarras, as uvas túrgidas nas vinhas, o céu lavado de nuvens, os pinheiros marchando como lanceiros pelos montes fora. Mendelius surpreendera-o com uma estranha asserção:

Toda a idolatria surge de um desejo de ordem. Queremos ser asseados, como os animais. Delimitamos os nossos territórios com almíscar e fezes. Construímos hierarquias como as abelhas e ética como as formigas. E escolhemos deuses para apormos o carimbo da concordância nas nossas criações. O que não conseguimos defrontar é a desordem do universo, o aspecto lunático de um cosmo sem princípio conhecido, sem fim visível e sem significado aparente para toda a sua azafamada dinâmica. Não podemos tolerar a sua monstruosa indiferença perante todos os nossos temores e agonias. Os profetas proporcionam-nos esperança; mas só o deus-homem pode tornar o paradoxo tolerável. É por isso que a vinda de Jesus é um acontecimento confortante e salvador. Ele não é o que nós teríamos criado para nós próprios. Ele é verdadeiramente o símbolo da paz porque é o símbolo da contradição. A Sua carreira é um breve fracasso trágico. Morre desonrado; mas depois, coisa estranhíssima, vive. Ele não é apenas o ontem. É o hoje e o amanhã. Está igualmente acessível ao mais humilde e ao mais exaltado.

Mas veja o que nós, humanos, fizemos d'Ele. Empolámos a Sua linguagem simples, transformando-a num tagarelar de filosofias. Agigantámos a família dos Seus crentes, transformando-a numa burocracia imperial, justificada apenas porque existe e não pode ser desmantelada sem um cataclismo. O homem que se arroga a qualidade de guardião da Sua verdade vive num enorme palácio, rodeado de homens celibatários - como eu e você, Jean! - que nunca conquistaram uma côdea de pão pelo trabalho das suas mãos, nunca enxugaram as lágrimas de uma mulher ou velaram uma criança doente até ao nascer do Sol. Se alguma vez o fizerem papa, Jean, reserve uma parte de si próprio para um amor particular. Se não o fizer, transformá-lo-ão num faraó, mumificado e embalsamado antes de morrer.

A paisagem estival das colinas albanas misturou-se com os contornos do país do sonho. O som da voz de Mendelius desvaneceu-se atrás do pipilar dos rouxinóis no jardim da Hostellerie. Jean Marie Barette, distribuidor de mistérios que excediam a sua fraca compreensão, mergulhou no sono.

 

Acordou restaurado e lamentou imediatamente o seu envolvimento com os homens do dinheiro. Estendeu a mão para o telefone a fim de telefonar a Alain, que estava no banco, cancelando a reunião dos administradores; porém, a seguir, mudou de ideias. Sendo um novato no mundo, e já em quarentena como portador de peste, não podia dar-se ao luxo de perder qualquer canal de comunicação.

Durante aquela última década do século, os banqueiros estavam mais bem documentados do que qualquer outro grupo para registar os progressos da doença mortal da humanidade. No final de todos os dias, os seus computadores contavam a história, e não havia retórica capaz de modificar o lúgubre e desapaixonado texto: subida do oiro, descida do dólar, os metais raros a prosperar, transacções- de fornecimentos futuros de petróleo, cereais e soja a rebentar todas as escalas, as acções registando altos e baixos, a confiança a ser minada semana após semana, aproximando-se do ponto em que se atingiria o pânico.

Jean Marie Barette recordou as suas longas sessões com os financeiros do Vaticano e como era sombrio o quadro que surgia de todos os seus cálculos cabalísticos. Compravam oiro, mas vendiam acções em minas, porque, diziam, isso era aconselhável do ponto de vista do mercado. A verdadeira história era que os guerrilheiros negros da África do Sul eram fortes e estavam bem treinados e armados. Se podiam fazer explodir uma refinaria de petróleo, certamente seriam capazes de rebentar com os profundos túneis das minas. Assim, compravam o metal e libertavam-se da propriedade ameaçada. Um dos argumentos mais poderosos contra a publicação da sua encíclica tinha sido o de que ela provocaria o pânico em todos os mercados do mundo e exporia o próprio Vaticano a enormes prejuízos financeiros.

Jean Marie tinha saído de cada uma dessas reuniões debatendo-se intimamente, porque os seus peritos sacerdotes, como todos os outros do género, eram obrigados a especular, sem distinção, sobre as moralidades e as imoralidades da humanidade. Tratava-se de um domínio da vida da Igreja no qual ele concordava com o sigilo - quanto mais não fosse porque não tinha outra maneira de poder justificar ou mesmo explicar as ténues manchas de sangue em todas as folhas de balanço, proviessem elas de mão-de-obra explorada, de uma difícil negociação no mercado ou da compra, por parte de um patife reformado, de uma viagem em primeira classe para o Céu.

O depósito que o pai tinha constituído para preservar a fortuna que acumulara para a família era substancial. A parte que cabia a Jean Marie nos fundos era administrada de uma maneira especial. O capital permanecia intacto, ficando os juros à sua disposição. Como padre de paróquia e depois como bispo, tinha-os devotado a obras ligadas ao bem-estar do seu rebanho. Como papa, utilizara-os para fins de caridade e presentes para pessoas que atravessavam qualquer crise. Continuava a acreditar que, se era certo que a reforma social só podia levar-se a cabo por organizações eficientes com sólido apoio financeiro, ainda não havia substituto para o acto de compaixão, para a afirmação secreta de irmandade na desgraça. Agora, ele próprio tinha de garantir a subsistência. Tinha 65 anos de idade, o que o tornava estatisticamente velho de mais para arranjar emprego... e precisava de um mínimo de liberdade para espalhar pelo mundo a palavra que lhe tinha sido transmitida.

Havia quatro administradores com os quais tinha de tratar, cada um deles ocupando cargos de direcção num banco importante. Alain apresentou-os com o cerimonial adequado: Samson, do Barclays, Winter, do Chase, Lambert, do Crédit Lyonnais, e madame Saracini, do Banco Ambrogiano all'Estero.

Eram todos respeitáveis, e todos um tudo-nada circunspectos. O dinheiro vivia em casas estranhas; o poder era controlado por mãos inesperadas. Além disso, tinham sido convocados para prestar contas da sua administração... e perguntavam a si próprios até que ponto aquele que outrora fora papa perceberia uma folha de balanço e uma conta de ganhos e perdas.

Madame Saracini era o porta-voz: uma mulher alta e de tez olivácea, dos seus trinta e bastantes, envergando um saia-e-casaco de linho azul, com rendas na gola e nos punhos. As únicas jóias que ostentava eram uma aliança de casamento e um alfinete de gravata de oiro com uma água-marinha. Falava francês com um sotaque ligeiramente italianizado. Tinha também sentido de humor e estava manifestamente preparada para fazer uso dele. Perguntou inocentemente:

- Desculpe, mas como pretende ser tratado? Não pode ser por Santidade. Deve ser Eminência ou monsenhor? Père Jean é que não é, com toda a certeza.

Jean Marie riu-se.

- Duvido que haja protocolo estabelecido. Celestino V foi obrigado a abdicar e depois de morrer canonizaram-no. Eu ainda não morri, de modo que não é o caso aplicável. Sou sem dúvida menos do que Eminência. E sempre achei que monsenhor era uma desnecessária relíquia da monarquia. Portanto, uma vez que estou a viver como uma pessoa privada, sem missão canónica, por que não simplesmente monsieur?

- Não concordo, Jean. - Alain ficou incomodado com a sugestão. - No fim de contas...

- No fim de contas, caro irmão, tenho de viver na minha pele e gosto sinceramente de me sentir à vontade. Ora muito bem, madame, ia explicar-me os mistérios do dinheiro.

- Tenho a certeza - disse madame Saracini com um sorriso - de que compreende que não há quaisquer mistérios... mas tão-só os problemas inerentes à manutenção de uma base firme de capital e um rendimento que compense a inflação. Significa isto que se torna necessária uma administração activa e vigilante. Felizmente o senhor contou com ela, uma vez que o seu irmão é um belíssimo banqueiro. O capital, avaliado no final do passado ano financeiro, é de cerca de oito milhões de francos suíços. Este capital, conforme verá, encontra-se dividido em proporções bastante estáveis: 30% em propriedades, quer urbanas, quer rurais, 20% em acções, 20% em obrigações de primeira qualidade e 10% em obras de arte e antiguidades, sendo os restantes 20% líquidos em oiro e dinheiro a curto prazo. É um leque razoável. Pode variar-se bastante rapidamente. Se tem alguma observação a fazer, claro...

- Tenho uma pergunta - disse suavemente Jean Marie. - Estamos sob a ameaça de uma guerra. De que maneira protegemos as nossas posses?

- Pelo que diz respeito aos papéis comerciais - disse o homem do Chase-, temos todos os mais modernos sistemas de armazenamento e levantamento, triplicados e por vezes quadruplicados em áreas estrategicamente protegidas. Criámos um código comum de uso interbancário que nos permite proteger os nossos clientes da perda de documentos. O oiro, claro está, é objecto de guarda em casa-forte. A terra rural é eterna. Os empreendimentos urbanos serão reduzidos a escombros, mas por outro lado o seguro contra riscos de guerra favorece os grandes negociantes. As obras de arte e as antiguidades, tal como o oiro, são objecto de armazenamento. Talvez lhe interesse saber que desde há uns anos temos vindo a comprar explorações mineiras abandonadas e a convertê-las em cofres-fortes.

- Isso consola-me - disse Jean Marie Barette com um humor seco. - Pergunto a mim próprio por que razão não foi possível investir uma quantidade semelhante de dinheiro e de engenho na protecção dos cidadãos contra radiações e gás venenoso. Pergunto a mim próprio por que estamos tão preocupados com a recuperação de papéis comerciais e tão pouco com o projectado extermínio em massa dos enfermos e dos incapacitados.

Houve um momento de atordoado silêncio e a seguir, com uma raiva surda, Alain Hubert respondeu ao irmão.

- Eu te digo, irmão Jean! É porque nós, ao contrário de muitos outros, mantemos o contrato que fizemos com os nossos clientes... dos quais tu és um. Outros podem estar mal (monstruosamente mal!), mas tu não podes censurar-nos por estarmos bem! Acho que deves uma desculpa a mim e aos meus colegas!

- Tens razão, Alain - respondeu gravemente Jean Marie à admoestação. - Peço-te desculpa... e também a vós, madame e meus senhores!... Mas espero que me permitam dar-vos uma explicação. Ontem fiquei chocado, chocado até à medula, ao saber que na minha própria pátria há planos para a eliminação dos diminuídos mal a guerra deflagre. Algum dos senhores tem conhecimento disto?

O homem do Crédit Lyonnais apertou os lábios como se alguém lhe tivesse posto alúmen na língua:

- Uma pessoa ouve os mais desencontrados boatos. Alguns deles baseiam-se em factos, mas os factos não são totalmente entendidos. Quando se projecta matar um milhão de pessoas com uma única explosão atómica e contaminar uma enorme área periférica, tem de contar-se com alguma forma de morte misericordiosa para os sobreviventes sem esperança de cura. No caos generalizado, quem irá estabelecer as linhas de demarcação? Tem de deixar-se isso ao cuidado do oficial encarregado da área, quem quer que seja ele.

O homem do Barclays foi ligeiramente mais subtil e urbano:

- Não há dúvida, meu caro senhor, de que o cenário de caos que descreve nos seus escritos é quase o mesmo que o preparado pelos nossos governos laicos. A diferença reside em que estes são chamados a proporcionar remédios práticos e não podem dar-se ao luxo de fazer considerações morais sobre eles. Nem o senhor pode fazer considerações morais sobre a triagem num hospital da frente de batalha. O cirurgião, percorrendo a fileira de feridos, é o único árbitro da vida e da morte. “Operem este, vai sobreviver! Este fica em segundo lugar na lista, pode ser que sobreviva. Àquele, dêem-lhe um cigarro e uma injecção de morfina, vai morrer!” Ora bem, a menos que esteja sob a pressão imensa desse juízo, permito-me afirmar que não está em posição de tomar partido no caso em apreço.

Antes que Jean Marie tivesse tempo de refutar o argumento, madame Saracini acorreu em seu auxílio, dizendo com leve ironia:

- Há-de compreender, meu caro monsieur Barette, que, até este momento, viveu uma vida muito protegida. Deve ter em atenção que Deus deixou de fazer terra há milhões de anos. Portanto, quando uma pessoa tem uma propriedade, agarra-se a ela. O petróleo escasseia, como os outros combustíveis fósseis. Portanto, uma pessoa tem de lutar para obter a sua parte. Rembrandt já morreu, e Gaughin outro tanto. Portanto, já não há mais quadros deles. Os seres humanos, porém... Puf! Já somos demasiados. Um genocidio-zinho vinha mesmo a calhar; e, se o excesso de mortes for exagerado, poderemos começar outra vez a procriar... com uma ajudinha dos bancos de esperma que estão guardados nos nossos cofres.

Fez daquilo uma tal peça de humor negro, que todos tiveram de rir-se; a seguir, uma vez aliviada a tensão, ela passou imediatamente ao relatório dos administradores, o qual revelava que Jean Marie Barette podia viver dos seus rendimentos como um lorde. Agradeceu-lhes a amabilidade, desculpou-se pela incorrecção e disse-lhes que só recorreria a eles para satisfazer as suas necessidades pessoais, deixando o depósito acumular-se até ao “dia do juízo”.

Os homens do Barclays, do Crédit Lyonnais e do Chase despediram-se. Madame Saracini deixou-se ficar. Alain tinha-a convidado para serem quatro ao almoço com Odette, Jean Marie e ele próprio. Enquanto esperavam por Odette, Alain serviu xerez e depois deixou-os para atender um telefonema de Londres. Madame Saracini ergueu o copo num brinde silencioso e a seguir admoestou-o friamente:

- Realmente foi muito desagradável para connosco. Porquê?

- Não sei. De repente comecei a ver duas imagens numa tela dividida ao meio: uma série de computadores a zumbir nas suas grutas subterrâneas... e, por cima, corpos de crianças queimados defronte de uma casa de gelados.

- Os meus colegas não lhe perdoarão. O senhor fê-los sentir-se culpados.

- E a senhora?

- Eu, por acaso, concordo consigo - disse madame Sara-cini-, mas não posso fazer ataques frontais. Eu sou a rapariga que os faz rir primeiro e encarar as coisas sensatamente a seguir... quando a sua virilidade não é ameaçada.

- A minha informação é exacta ou inexacta?

- Acerca da eutanásia para os incapacitados? É exacta, claro, mas nunca o provará, porque, de uma estranha maneira inconsciente, toda a Europa está a pactuar com a conspiração. Queremos uma saída para nós próprios e para os que amamos quando as coisas se tornarem demasiado horríveis para as suportarmos.

- Tem filhos, madame?

- Não.

- E o seu marido?

- Morreu um ano depois de casarmos.

- Desculpe! Não era minha intenção ser indiscreto.

- Não se aflija. Ainda bem que se interessou o suficiente para perguntar. Aliás, acho que conhece o meu pai.

- Conheço?

- Chama-se Vittorio Malavolti. Está a cumprir vinte anos de prisão por fraude bancária. Tanto quanto me lembro, encarregou-se de muitíssimas transacções para o Vaticano... e além disso custou-vos uma data de dinheiro!

- Eu lembro-me. Espero que a madame tenha conseguido esquecer.

- Por favor! Não seja condescendente comigo! Eu não quero esquecer. Gosto muito do meu pai. É um génio financeiro, e foi manipulado por uma série de homens que ainda hoje protege. Trabalhei com ele. Foi ele que me ensinou tudo o que sei sobre a actividade bancária. Foi ele que me lançou, limpa, com dinheiro limpo. Comprei o Banco Ambrogiano all'Estero quando ele não passava de uma baiúca em Chiasso. Arranjei-o todo, fi-lo crescer e estabeleci algumas alianças poderosas e todos os anos pago 5% das dívidas pessoais do meu pai, de modo que quando ele sair - se alguma vez sair! - possa andar na rua de cabeça erguida, como um homem. A propósito: não se atreva a assumir poses paternalistas com o seu irmão! Ele ajudou-me a lançar-me. Foi ele que me conseguiu situações como esta administração. Se algumas vezes faz figura de parvo, é porque não casou com a mulher que devia. No entanto, fosse o senhor papa ou não, esta manhã meteu-o na ordem quando o senhor estava a precisar disso! E isso torna-o digno de respeito!

Ficou surpreendido com a veemência. A mão dela vacilou e um pequeno fio de líquido entornou-se do copo. Ele tirou o lenço do bolso superior do casaco e deu-lho para ela o enxugar, perguntando suavemente:

- Por que é que está tão zangada comigo?

- Porque o senhor não sabe como é importante... especialmente agora que deixou o cargo. Aqueles artigos nos jornais fizeram com que as pessoas o amem. Até mesmo os que não concordavam o respeitaram e lhe deram atenção. O Samson, o homem do Barclays, atirou-lhe à cara com citações suas esta manhã... e, pode acreditar, ele raramente lê outra coisa que não sejam as secções financeiras dos jornais!... Portanto, quando o senhor faz alguma coisa desagradável, desaponta uma porção de gente.

- Tentarei ter isso presente - disse Jean Marie, e acrescentou com um sorriso: - Há muito tempo que não me passavam um raspanete.

Ela corou como uma colegial e desculpou-se desajeitadamente:

- Eu também tenho a língua afiada... e uma espécie de interesse de proprietária.

- Palavra que tem?

- Há muito, muito tempo, no século XIV, quer a família do meu marido quer a minha eram amigas e correspondentes dos Benincasa e da própria Santa Catarina. Apoiaram-na nos esforços para conseguir fazer regressar o seu homónimo, Gregório XI, de Avinhão. Já lá vai muito tempo, mas nós, os naturais de Siena, somos muito ciosos da nossa história... e às vezes um tanto ou quanto místicos relativamente a ela. - Poisou o copo e rebuscou na mala, retirando de lá uma agenda. - Dê-me a sua morada e número de telefone. Quero voltar a falar consigo.

- Acerca de alguma coisa em especial?

- A minha alma imortal será suficientemente importante?

- Sem dúvida nenhuma. - Reconheceu a derrota com um sorriso e deu-lhe a informação.

De momento, foi aquele o fim da conversa entre eles. Alain entrou acompanhado por Odette, elegante e ricamente arranjada, pronunciando os nomes como se fossem gotas de chuva no Verão. Alain deitou uma piscadela conspirativa a Jean Marie e depois deixou-o a suportar sozinho a sobrecarga do monólogo de Odette até chegarem ao restaurante. O almoço foi incómodo. Odette monopolizava a conversa, enquanto Alain argumentava debilmente contra os seus snobismos mais evidentes. Madame Saracini saiu antes do café. Odette fungou e pronunciou uma despedida desdenhosa:

- Uma mulher extraordinária! Bastante atraente... para uma italiana. Resta saber que combinações domésticas terá feito desde que o marido morreu.

- Não é nada que te diga respeito - disse Alain. - Vamos aproveitar o facto de estarmos em família. Quais são os teus planos a partir daqui, Jean? Se tencionas permanecer em França, vais precisar de instalações permanentes: um apartamento, uma governanta...

- É muito cedo para isso. Ainda sou uma figura demasiado pública... e manifestamente embaraçadora para os velhos amigos. O melhor é continuar em movimento por uns tempos.

- Devias também manter-te calado por uns tempos - disse Alain com mau humor. - Estás habituado a fazer grandes declarações do alto do pedestal, mas agora já não podes fazê-lo. O que disseste na nossa reunião vai ser esta noite objecto de conversa em toda a cidade. Foi por isso que te ataquei. Não posso dar-me ao luxo de aparecer associado a linguagem subversiva... É muito mais perigoso do que pensas.

Odette concordou, terminante e omnisciente como sempre:

- O Alain tem razão! Uma destas noites estava eu a falar com o ministro da Defesa. É um homem muito atraente, se bem que a mulher seja absolutamente impossível. Ele disse-me que aquilo de que precisamos neste momento não é de controvérsias, mas de uma diplomacia firme e actuante e negociação sem barulho enquanto as forças armadas se preparam.

- Acho que devemos todos compreender uma coisa - disse firmemente Jean Marie Barette. - Eu fiz-me padre para pregar ao mundo, para transmitir a boa nova da salvação. Isso não é coisa acerca da qual eu possa ser prudente, cauteloso ou sequer simpático! E tenho de revelar-vos a mesma mensagem que prego ao resto do mundo. A batalha entre o bem e o mal começou já a travar-se, mas o homem bom parece um louco, ao passo que o mau mostra o rosto de um homem sensato e justifica o assassínio por meio de estatísticas impecáveis!

- Não é isso que o nosso cardeal diz. - Como sempre, Odette estava pronta para discutir. - No domingo passado o sermão que foi transmitido pela televisão era sobre o tributo. Ele disse que é uma questão de prioridades. Acatamos a lei como um meio de servir a Deus... e, mesmo que cometamos erros de boa-fé. Deus compreende.

- Tenho a certeza de que compreende, minha querida - disse Jean Marie. - E tenho a certeza de que o cardeal tem as suas razões para ser tão brando... mas não é suficiente! Não é sequer metade do suficiente!

- Temos de ir andando - disse Alain diplomaticamente.

- Tenho uma entrevista às duas e meia com o ministro das Finanças. Ele quer a nossa opinião sobre a melhor maneira de lançar uma emissão de títulos de Defesa!

Tinha prometido a si próprio uma tarde de prazeres simples e privados: uma hora à cata de livros ao longo dos quais e um passeio por entre os artistas na Place du Tertre. Havia muito tempo que estava fora, e tratava-se da sua terra. Mesmo que a família fosse difícil, havia de conseguir andar à sua vontade na própria terra natal.

A caça aos livros foi compensadora. Descobriu uma primeira edição das Fêtes Galantes, de Verlaine, com uma quadra autografada colada por detrás da capa. Verlaine sempre o obcecara: o bêbedo triste e abandonado que escrevia canções de anjo e vivia no inferno com Rimbaud, e que, se houvesse alguma justiça no universo, deveria estar a entoar cânticos de júbilo no escabelo do Todo-Poderoso.

A Place du Tertre foi inicialmente um desapontamento. Os pintores tinham de comer e os turistas tinham de levar consigo um pedaço de Paris, e as telas eram cinicamente vulgares. No entanto, no menos favorecido recanto da Place, deparou-se-lhe uma curiosidade: uma rapariga corcunda e meio anã, que não teria mais de 20 anos, vestindo camisola e jeans, a gravar nurna placa de vidro com uma ponta de diamante. Na mesa ao lado dela, havia exemplares do trabalho: uma taça, um espelho, uma poncheira. Jean Marie pegou na taça para a examinar. A rapariga alertou-o rudemente:

- Se a deixar cair, paga-a!

- Eu tenho cuidado. É bonita. Que é que o desenho representa?

Ela hesitou por instantes, como se receasse que troçassem dela, mas depois explicou:

- Eu chamo-lhe a taça do cosmo. O recipiente é um círculo, o símbolo da perfeição. A parte inferior é o mar, ondas e peixes. A parte superior é a terra, trigo e vinhas. É uma representação do cosmo.

- E onde estão os seres humanos no cosmo?

- Bebem pela taça.

Esta concepção agradou-lhe. Perguntou a si próprio se ela a adornaria mais. Voltou à carga:

- E Deus figura no desenho?

Ela deitou-lhe um olhar fugaz e desconfiado.

- É importante, isso?

- Pelo menos é interessante.

- É cristão?

Jean Marie deu uma risadinha.

- Sou, mesmo que não pareça.

- Nesse caso deve saber que o peixe, a vinha e o trigo são os símbolos de Cristo e da eucaristia.

- Quanto custa a peça?

- 600 francos. - A seguir acrescentou, defensiva: - Tem muito trabalho.

- Bem vejo. Vou levá-la. Pode embalar-ma de maneira que não lhe aconteça nada?

- Posso. Não fica lá muito elegante, mas vai segura.

Poisou o trabalho que estava a fazer e começou a embalar a taça numa caixa de cartão toda manchada e contendo bolas de plástico. Ao observá-la, Jean Marie reparou na sua extrema magreza e no facto de, só por aquele pequeno esforço, o suor lhe assomar à testa e as mãos tactearem vacilantes a frágil peça. Enquanto contava o dinheiro, disse:

- Sou um coleccionador sentimental. Gosto sempre de comemorar com o artista. Quer acompanhar-me numa bebida e numa sanduíche?

Ela voltou a endereçar-lhe o mesmo olhar oblíquo e circunspecto e disse secamente:

- Obrigado, mas acho que pagou o preço justo. Não precisa de me fazer favores.

- O que eu lhe estava a pedir era que me fizesse um a mim - disse Jean Marie Barettte. - Tive uma manhã agitada e um almoço tenso. Dar-me-ia prazer ter alguém com quem conversar. Além disso, o café fica aqui a dois passos apenas.

- Pronto, está bem.

Meteu-lhe a embalagem na mão, fez sinal a um pintor próximo para lhe ficar a olhar pela banca e a seguir dirigiu-se na companhia de Jean Marie ao café que ficava a um canto da Place. Tinha um estranho coxear saltitante que a fazia girar quase em semicírculo a cada passo. A curva da espinal-medula era grosseiramente pronunciada, e a cabeça, miniaturalmente bonita, era comicamente desproporcionada, como se tivesse sido colocada às três pancadas por um escultor embriagado.

Ela mandou vir café e conhaque, um croissant com fiambre e um ovo escalfado mal passado. Comeu vorazmente, enquanto Jean Marie se entretinha com um copo de água de Vichy e tentava manter a conversa animada:

- Esta tarde tive outra ocasião de sorte: uma primeira edição das Fêtes Galantes, de Verlaine.

- Também colecciona livros?

- Gosto de coisas belas; mas trata-se de presentes para outras pessoas. A sua taça vai para uma senhora que mora perto de Versalhes e tem uma esclerose múltipla. Vou escrever a explicar-lhe a simbologia.

- Posso poupar-lhe esse trabalho. Escrevi um pequeno texto à máquina sobre isso. Dou-lho antes de se ir embora. É estranho ter-me perguntado onde entrava Deus.

- Estranho porquê?

- A maioria das pessoas acha o tema embaraçador.

- E você?

- Eu já deixei de me embaraçar há muito tempo. Aceito o facto de ser um aborto. É mais fácil para mim e é mais fácil para as pessoas que tomam a minha peculiaridade por garantida. Às vezes, no entanto, é difícil. Aqui na Place não há ninguém que não apareça. Há uns maduros que querem ir para a cama com uma aleijada. Foi por isso que fui um tanto ríspida para consigo. Há uns tarados que até são mais velhos do que o senhor.

Jean Marie atirou a cabeça para trás e riu-se até lhe correrem lágrimas pela cara. Por fim, conseguiu pronunciar:

- Meu Deus! E pensar que foi preciso voltar a França para ouvir semelhante coisa!

- Por favor! Não faça troça de mim! As coisas por cá podem pôr-se muito feias, acredite!

- Acredito, pois - retorquiu Jean Marie, recompondo-se aos poucos. - Ora bem, importa-se de me dizer como se chama?

- O meu nome está na peça: Judith.

- Judith quê?

- Só. Na comunidade só usamos os nomes próprios.

- A comunidade? Não me diga que é freira?

- Não é bem isso. Somos cerca de doze mulheres que vivemos juntas. Todas nós somos diminuídas, de uma maneira ou de outra... e nem todas fisicamente! Compartilhamos aquilo que ganhamos. Cuidamos umas das outras. Somos também uma espécie de refúgio para as raparigas do bairro que se metem em sarilhos. Bem sei que isto tem um ar primitivo, e é; mas é muito satisfatório e sentimos que nos coloca muito próximo da primitiva ideia cristã. Depois daquilo que pagou pela taça do cosmo, merece ser recordado hoje à noite na oração do jantar! Como se chama? Gosto de fazer uma lista das pessoas que compram as minhas obras.

- Jean Marie Barette.

- É por acaso uma pessoa importante?

- Basta recordar-me na oração do jantar - disse Jean Marie Barette. - Mas diga-me uma coisa. Como foi que começou essa vossa... comunidade?

- Foi estranho. Há-de lembrar-se de que há uns meses o papa abdicou e foi eleito outro. Em condições normais isso não teria tido grande significado. Nunca conheci ninguém acima de um padre de paróquia. Mas foi uma época má para mim. Parecia que nada me corria bem. Dir-se-ia existir uma ligação entre esse acontecimento e a minha vida. Sabe como é?

- Sei muito bem - disse Jean Marie, com emoção.

- Passado pouco tempo, um dia, estava a trabalhar no meu estúdio. Tinha um pequeno apartamento numa mansarda ao fundo desta rua. Uma rapariga minha conhecida, que trabalha como modelo para alguns pintores, entrou a cambalear. Estava embriagada e tinha sido violada e esmurrada e a concierge (1) tinha-a expulsado. Eu acalmei-a e levei-a à clínica para a tratarem, e depois trouxe-a para minha casa. Nessa noite, ela ficou muito esquisita: distante, hostil e (como é que hei-de explicar?) alheada. Assustava-me estar ao pé dela, mas ao mesmo tempo não me atrevia a deixá-la. Por isso, só para conseguir que ela se interessasse por qualquer coisa, comecei a esculpir uma bonequinha a partir de um cabide para roupa. Acabei por fazer três; depois pusemo-nos a fazer vestidos para elas, como se eu fosse a mãe e ela a filha. Nessa noite ela dormiu tranquilamente na minha cama, segurando a minha mão. No dia seguinte consegui que duas amigas passassem o dia com ela; e assim se foram passando as coisas até ela regressar ao estado normal. Nessa altura tínhamos já um pequeno grupo e parecia mal empregado desfazê-lo. Concluímos que poderíamos poupar dinheiro e viver mais confortavelmente se habitássemos como uma família. A parte religiosa? Bem, aparentemente surgiu como a coisa mais natural deste mundo. Uma das raparigas tinha estado na Índia e aprendera técnicas de meditação. Eu tinha sido educada num convento e gosto bastante da ideia de as pessoas se reunirem para a oração em família. Depois uma das raparigas levou lá a casa um padre-operário que tinha conhecido

 

(1) Em francês no original: porteira. (N. do T.)

 

numa brasserie (1). Ele conversou connosco e emprestou-nos livros. Além disso, quando à noite estávamos preocupadas, telefonávamos-lhe e ele aparecia com um par de amigos da fábrica. Garanto-lhe que era uma boa ajuda! Bem, passados uns tempos conseguimos arranjar um padrão de vida que nos satisfizesse. Poucas éramos virgens. Nenhuma de nós tem a certeza de estar preparada para uma relação duradoira com um homem. Algumas, podemos casar. Mas somos todas crentes e tentamos viver de acordo com a Bíblia. E aqui tem! Estou certa de que não significa grande coisa para si, mas para nós é algo que nos proporciona paz.

- Estou muito satisfeito por tê-la conhecido - disse Jean Marie Barette. - E orgulha-me muito possuir a sua taça do cosmo. Seria capaz de aceitar um pequeno presente meu?

- Que espécie de presente? - E o velho olhar cauteloso voltou.

Ele apressou-se a dissipar-lhe os receios:

- O Verlaine que encontrei hoje. Há nele um verso que poderia ter sido escrito sobre si. Está na própria caligrafia do poeta. - Tirou o pequeno volume do bolso e leu-lhe a quadra colada no interior da capa: - “[...] Votre ame est un paysage choisi F...]” (2) - E perguntou com toda a humildade: - Aceita-o, por favor?

- Se me escrever uma dedicatória.

- Que espécie de dedicatória?

- Oh. o costume. Apenas umas palavrinhas e o seu autógrafo.

Ele pensou no problema durante uns momentos e depois escreveu:

Para a Judith, que me revelou o universo numa taça de vinho Jean Marie Barette Ex-papa Gregório XVII

A rapariga ficou a olhar, incrédula, para a caligrafia clássica. Ergueu os olhos, tentando descobrir qualquer zombaria no rosto sorridente de Jean Marie. Com voz trémula, disse:

- Não compreendo... Eu...

- Eu também não compreendo - disse Jean Marie Barette. - Mas penso que acabou de dar-me uma lição de fé.

 

(1) Em francês no original: cervejaria. (N. do T.)

(2) Idem: A sua alma é uma paisagem de eleição. (N. do T.)

 

 - Não sei que quer dizer - disse a pequena corcunda.

- Quer dizer que aquilo que eu tentava comunicar ao mundo do monte Vaticano conseguiu-o você numa mansarda em Paris. Deixe-me explicar...

...Quando acabou de contar-lhe a longa história, ela estendeu uma mão macilenta, áspera devido às ferramentas de gravador, e poisou-a sobre a dele, dizendo com um sorriso travesso:

- Espero poder contá-lo às raparigas da mesma maneira que mo explicou. Se conseguisse, seria uma ajuda. Muitas vezes elas aborrecem-se, por a nossa pequena família parecer tão inútil e desorganizada. Eu digo sempre que há pelo menos uma coisa boa no facto de se chegar ao ponto mais fundo: o único sentido em que se pode seguir é para cima! - O sorriso desvaneceu-se e acrescentou gravemente: - É onde o senhor está neste momento; portanto, já sabe. Quer vir jantar lá a casa?

- Obrigado, mas não! - Tomou a precaução de não a desapontar. - Compreenda, Judith, minha querida, vocês não precisam de mim. Os vossos próprios corações disseram-vos mais do que eu alguma vez conseguiria. Já têm Cristo entre vós.

 

O trânsito do fim da tarde era um horror; apesar disso, percorreu o trajecto de regresso à Hostellerie numa nuvem branca de serenidade. Se alguma vez na vida vira como o espírito se antecipava aos planos das pessoas importantes, fora nesse dia. Aquele pequeno grupo de mulheres, estropiadas e ameaçadas, tinham-se constituído numa família. Não haviam pedido patente nem certidão. Tinham amor para compartilhar e compartilhavam-no. Precisavam de pensar, e pensavam. Descobriam um impulso para rezar, e rezavam. Tinham encontrado um mestre numa bancada de operários; e raparigas em dificuldades recorriam a elas, porque sentiam o calor do fogo do lar.

O grupo podia não ser estável. Não tinha garantias de continuidade. Não havia constituição nem sancionamento que lhe proporcionasse personalidade jurídica. Mas que importava? Era como o fogo de um acampamento no deserto, aceso ao cair da noite, cintilando na madrugada; enquanto durasse, porém, era um testemunho da presença humana ao deus que visitava o homem em sonhos. Mais uma vez, a voz de Mendelius penetrou no seu devaneio:

“[...] O reino de Deus é uma residência para os homens. Que mais pode isso significar a não ser que a existência humana é não só tolerável como jubilosa - visto que está aberta ao infinito [...]”

De que melhor maneira se poderia expressar o fenómeno de uma pequena corcunda que gravava o cosmo numa taça de vinho e fundava uma família para mulheres magoadas sob os telhados de Paris?

Quando chegou à Hostellerie, a primeira coisa que fez foi telefonar para Tubinga. Lotte estava no hospital, mas Johann encontrava-se em casa. E tinha boas notícias:

- O estado do pai é estacionário. A infecção está controlada. Ainda não temos certezas sobre a visão; mas pelo menos sabemos que vai sobreviver. Ah, é verdade, tenho outra notícia: o vale é nosso. Os contratos vão ser assinados hoje. Vou lá para a semana falar com os agrimensores e os arquitectos e engenheiros. E a minha convocação para o serviço militar foi adiada por razões humanitárias! E ao tio Jean, como lhe correm as coisas?

- Bem, muito bem! Serás capaz de dar um recado ao teu pai? Sê bom rapaz e toma nota.

- Diga.

- Diz-lhe da minha parte: “Hoje voltei a receber um sinal. Veio de uma mulher que me mostrou o cosmo numa taça de vinho.” És capaz de repetir, se fazes favor?

- Hoje voltou a receber um sinal. Veio de uma mulher que lhe mostrou o cosmo numa taça de vinho.

- Se alguma vez receberes qualquer mensagem alegada-mente minha, deve incluir essa identificação.

- Entendido! Quais são os seus movimentos, tio Jean?

- Não sei... mas podem ser apressados. Lembra-te do que te disse. Leva a família para fora de Tubinga assim que puderes. Dá saudades a todos!

- Saudades nossas para si também. Como está o tempo em Paris?

- Ameaçador.

- Aqui também. Desmembrámos o nosso clube, conforme sugeriu.

- E libertaram-se do equipamento?

- Sim.

- Óptimo! Manter-me-ei em contacto sempre que puder. Dá os meus cumprimentos à Dr.a Meissner. Auf Wiedersehen.

Mal poisara o auscultador, apareceu Pierre Duhamel para entregar-lhe o passaporte novo, juntamente com um novo cartão de identidade, passado em nome de J. M. Grégoire, pasteur en retraite. Descreveu a Jean Marie as suas utilizações e limitações.

- É tudo autêntico, visto que já usou o nome Gregório. E é um ministro da religião. E foi reformado. Os números dos documentos pertencem a uma série utilizada para categorias especiais de funcionários governamentais... de modo que nenhum agente da imigração francês se sentirá tentado a fazer perguntas. Os consulados estrangeiros não levantarão grandes problemas para conceder visto a um sacerdote reformado que anda a viajar por questões de saúde. No entanto, tente não perder os documentos e procure não se meter em sarilhos de maneira a serem-lhe confiscados. Isso poderia criar-me problemas. A propósito, meu caro monsenhor, esta manhã deu demasiado com a língua nos dentes diante dos banqueiros. Assim que eles voltaram aos seus gabinetes, os telefones nunca mais paravam. Uma vez mais, está classificado como pessoa incómoda.

- E você, meu caro Pierre, tem a mesma opinião sobre mim?

Duhamel ignorou a pergunta, dizendo simplesmente:

- A minha mulher envia-lhe os seus agradecimentos. Está outra vez a melhorar e sente-se tão bem como há muito tempo não se sentia. O que é curioso é que, mesmo parecendo que estava inconsciente, lembra-se da sua visita e descreve o que o senhor fez, o mais vividamente possível, como uma “carícia de vida”. Noutras circunstâncias, teria ciúmes de si.

Jean Marie ignorou a leve farpa.

- Comprei um pequeno presente para ambos.

- Não havia necessidade nenhuma - disse Duhamel, comovido. - Já estamos em dívida para consigo.

Jean Marie estendeu-lhe a caixa de cartão e desculpou-se com um sorriso.

- Não consegui arranjar uma embalagem de oferta. Pode abri-la, se quiser.

Duhamel quebrou o cordel, abriu a caixa e retirou a taça, examinando-a com o cuidado de um conhecedor.

- É encantadora. Onde a descobriu?

Jean Marie contou o seu encontro com Judith, a aleijada, na Place du Tertre. Entregou-lhe o papel que explicava o simbolismo do desenho e falou-lhe da curiosa comunidade de mulheres.

Pierre Duhamel escutou em silêncio e limitou-se a fazer um único comentário conciso:

- Está a esforçar-se bastante por converter-me.

- Pelo contrário - disse firmemente Jean Marie. - A minha missão é dar testemunho, oferecer os dons da fé, da esperança e do amor. Àquilo que você fizer deles pertence ao seu foro íntimo. - O seu tom mudou, para assumir uma característica implorativa e de desesperada persuasão. - Pierre, meu amigo, você ajudou-me, e eu estou a tentar ajudá-lo. Aquilo a que a sua mulher chamou a “carícia de vida” é algo de muito real. Senti-o hoje quando essa rapariga, que parece uma caricatura da feminilidade, poisou a mão na minha e me convidou a penetrar no seu mundo especial. Essa sua grande coragem estóica é tão... tão estéril, tão desesperadamente triste!

- Estou metido num caso triste - disse Pierre Duhamel com um humor glacial. - Sou um encarregado de funeral, a preparar as exéquias da civilização. Isso exige um certo estilo grandioso... A propósito: amanhã vão pedir-me para assinar um documento exigindo vigilância de grau A sobre um certo Jean Marie Barette.

- Classificado como quê?

- Agitador antigovernamental.

- E vai assiná-lo?

- Claro. Mas retê-lo-ei por umas horas, para o senhor poder arranjar as coisas como deve ser.

- Parto de cá amanhã de manhã.

- Antes de partir - disse Duhamel, estendendo-lhe um pedaço de papel -, telefone para este número. O Petrov quer falar consigo.

- Sobre quê?

- Pão, política... e mais algumas fantasias dele.

- Quando nos conhecemos em Roma, simpatizei com ele. Ainda posso confiar nele?

- Não tanto como em mim. Mas há-de achá-lo muito mais agradável. - Pela primeira vez, descontraiu-se. Segurou a taça do cosmo nas mãos e girou-a uma e outra vez, examinando todos os pormenores da gravação. Por fim, disse: - A Paulette e eu havemos de beber por ela. Pensaremos em si e na pequena bossue da Place du Tertre. Quem sabe? É suficientemente bom teatro para suspender a nossa descrença. Mas, como compreenderá, a época não é boa: é o dia dos batalhões negros. Se cair nas mãos deles, não poderei fazer nada por si.

- Que pensa o seu presidente de tudo isto?

- O nosso presidente? Por amor de Deus! Não é mais nem menos do que qualquer outro presidente, primeiro-ministro, dirigente partidário, duce ou caudillo. Tem a bandeira tatuada nas costas e o manifesto do partido no peito. Se lhe perguntar por que razão temos de ir para a guerra, ele dir-lhe-á que a guerra é um fenómeno cíclico, ou que não se podem fazer omeletas sem partir ovos ou (que Deus o faça arder no fogo do Inferno!) que a guerra é o arquétipo do orgasmo: agonia, êxtase, e a seguir a longa, longa tranquilidade. Tenho perguntado muitas vezes a mim próprio por que não hei-de matá-lo antes de me matar.

- Nesse caso, por que razão fica?

- Porque, se eu lá não estivesse, quem é que lhe arranjaria o passaporte... e quem é que contaria o que se passa no manicómio? Agora tenho de ir andando! Veja se parte também antes do meio-dia de amanhã.

Jean Marie Barette estendeu os braços e apoiou as mãos firmes nos ombros largos de Duhamel.

- Pelo menos, meu amigo, dê-me tempo para lhe agradecer.

- Não me agradeça - disse Pierre Duhamel. - Limite-se a rezar por mim. Não sei bem quanto mais serei capaz de aguentar!

Depois da saída dele, Jean Marie marcou o número de Sergei Petrov. Atendeu uma voz feminina, expressando-se em francês. Um momento depois, Petrov estava em linha.

- Quem fala?

- O Duhamel transmitiu-me que devia telefonar-lhe.

- Ah, sim! Obrigado por ter sido tão rápido. Temos de nos encontrar para conversarmos. Possuímos interesses comuns.

- Acho que é natural que sim. Onde sugere que nos encontremos? Posso estar a ser vigiado. Isso incomoda-o?

- Nem por isso. - A notícia não pareceu surpreendê-lo demasiadamente. - Portanto, deixe-me pensar! Amanhã às 11 horas, convém-lhe?

- Sim.

- Então encontramo-nos no Hotel Meurice, quarto 580. Suba até lá, assim que chegar. Eu estarei à sua espera.

Mas, acerca do resto do dia seguinte e de todos os dias subsequentes, havia ainda um grande ponto de interrogação. Antes que a vigilância começasse, tinha de descobrir um buraco, um lugar onde pudesse dormir em segurança e do qual pudesse comunicar e deslocar-se rapidamente. Alain poderia ajudar, mas o parentesco era já de si incómodo e Odette não era nenhum modelo de discrição. Ainda estava a ruminar sobre o problema quando o telefone tocou. Madame Saracini estava em linha. O seu tom era jubiloso e abrupto:

- Já lhe tinha dito que queria falar consigo outra vez. Onde e quando podemos encontrar-nos?

Jean Marie hesitou por um momento e depois disse-lhe:

- Fui informado por uma fonte fidedigna de que a partir de amanhã estarei sob vigilância de grau A, como agitador antigovernamental.

- Isso é coisa de doidos!

- No entanto, é a realidade. Portanto, preciso de um lugar seguro por uns tempos. Pode ajudar-me?

A resposta veio sem um segundo de hesitação.

- Claro! Daqui a quanto tempo estará em condições de mudar-se?

- Dentro de dez minutos.

- Eu levo três quartos de hora a chegar aí. Faça a mala e pague a conta. Esteja à minha espera na entrada principal.

Antes que tivesse tempo de agradecer-lhe, já ela tinha desligado. Arrumou os seus poucos pertences, explicou à patronne que uma súbita alteração da sua situação particular implicava aquela brusca partida, pagou a conta e depois sentou-se a ler o breviário enquanto aguardava a chegada de madame Saracini. Sentia-se muito calmo, muito confiante. Passo a passo, ia sendo conduzido ao terreno da verdade. Por intermédio de um curioso jogo de associações - Saracini, Malavolti, Benincasa, nós os de Siena-, recordou-se das palavras que Catarina, com 25 anos de idade, tinha escrito a Gregório XI, em Avinhão: “Não é já tempo de dormir, pois o tempo nunca dorme, mas passa como o vento [...] Para reconstituir o todo, é necessário destruir o antigo, mesmo até aos alicerces [...]”

A mulher que o recolheu à entrada da Hostellerie parecia dez anos mais nova do que madame Saracini, presidente do Banco Ambrogiano all'Estero. Vestia calças e uma blusa de seda, tinha um lenço na cabeça e conduzia um descapotável, construído por encomenda pelo mais famoso desenhador italiano. Meteu a mala dele no porta-bagagens e afastou-o dali com um ranger de pneus, antes que algum hóspede curioso tivesse tempo de reparar no automóvel ou na sua proprietária. Uma vez na estrada, porém, passou a conduzir com deliberada precaução e mantendo-se alerta à existência de qualquer armadilha da polícia, enquanto o instruía concisamente sobre os seus planos.

- O lugar mais seguro de Paris para si é a minha casa.., precisamente pelo facto de ser uma casa. Não tem mais inquilinos nem concierge e posso garantir a lealdade do pessoal doméstico. Recebo muita gente, e por isso estão sempre a entrar e a sair pessoas. Quaisquer visitas que o senhor tenha passarão despercebidas. Terá um apartamento próprio: um quarto, um escritório e uma casa de banho. Dispõe de uma linha telefónica directa e de uma escadaria independente para o jardim. O meu pessoal doméstico é demasiado para o que há a fazer, de modo que pode facilmente velar pelas suas necessidades.

- É muita generosidade da sua parte, rnadame, mas...

- Não há mas nem meio mas. Se não lhe servir, vai-se embora. É simples! E faça o favor de me tratar pelo meu nome: Roberta.

Jean Marie sorriu de si para si na escuridão e disse:

- Nesse caso, Roberta, permita-me que faça notar que há certos riscos em dar-me guarida.

- Aceito-os de bom grado. É que eu sei que o senhor tem um trabalho a fazer. E quero contribuir para isso. Posso auxiliá-lo mais do que neste momento lhe parece.

- Por que razão quer auxiliar-me?

- Trata-se de uma pergunta à qual não estou preparada para responder enquanto guio, mas responder-lhe-ei quando chegarmos a casa.

- Então tente esta: acha que é conveniente para a sua reputação ter um homem em casa?

- Já tive outros, de longe mais escandalosos - disse ela sem rodeios. - O meu marido morreu há vinte anos. Não vivi todo esse tempo como uma freira. Mas aconteceram coisas que me fizeram mudar. O meu pai foi preso. Tive muito pouca sorte com uma pessoa que amei muito e uma noite enlouqueceu nos meus braços e por pouco não me matou. Depois foi o senhor. Quando era papa, senti o mesmo por si que o meu pai sentia em relação ao bom papa João. O senhor tinha estilo. E tinha compaixão. Não andava para aí a gritar pela disciplina ou pela condenação. Mesmo quando eu estava a viver uma vida bastante desregrada, sempre pensei que era possível voltar atrás, como acontecia com o meu pai quando em pequena me portava mal. Depois, quando o senhor abdicou e ouvi parte da história secreta da boca do seu irmão, o Alain, fiquei furiosa. Pensei que eles o tinham arrumado; até que o seu amigo (como é que se chama?) escreveu aquele artigo maravilhoso sobre o senhor.

- Mendelius?

- É isso!... Depois houve alguém que lhe mandou uma carta armadilhada! Foi nessa altura que comecei a ver como as coisas encaixavam umas nas outras. Principiei a ir novamente à igreja, a ler a Bíblia, a procurar de novo os amigos que tinha abandonado na época desregrada, porque me pareciam demasiado beatos ou enfadonhos. Mas já nos perdemos. Primeiro instalamo-lo no seu apartamento e depois alimentamo-lo. A seguir conversamos acerca do futuro e do que precisa de fazer.

Sentiu-se tentado a admoestá-la, a dizer-lhe que, sendo certo que precisava de auxílio, não estava preparado para ser controlado. Pensando melhor, porém, mudou de assunto.

- Forneceram-me um segundo passaporte e um cartão de identidade em nome de Jean Marie Grégoire. Se calhar é melhor utilizarmos esse nome diante do pessoal doméstico.

- De acordo. Ao todo, são três pessoas: um homem e a mulher e uma mulher-a-dias. Todos eles estão há muito tempo em minha casa. Estamos quase a chegar. A casa fica mesmo à saída do Quai d'Orsay.

Passados três minutos estacionou em frente de uma porte-cockère fechada por meio de um portão de aço que se abriu ao som de um sinal-rádio. A garagem era à esquerda da entrada e uma escada interior conduzia aos pisos superiores. A suite dele era constituída por duas divisões, uma delas um amplo escritório com filas de livros e a outra um quarto-sala de estar com uma casa de banho de permeio. Cá fora havia uma varanda da qual podia observar o átrio central, que havia sido convertido num jardim de rochas com uma fonte ao centro.

- Não é bem como o Vaticano - disse Roberta Saracini -, mas espero que se sinta à vontade. Jantamos dentro de meia hora. Eu mando alguém vir buscá-lo.

Foi ela em pessoa, envergando um vestido feito de um tecido qualquer que parecia brocado, teso como uma capa de asperges. Conduziu-o à sala de jantar, uma divisão pequena mas de agradáveis proporções, com tecto de painéis e mobília de mogno espanhol. A refeição era simples mas requintada-mente confeccionada: uma patê de aves, um filete de linguado e uma mousse de camarinhas. O vinho, disse-lhe ele, era demasiado bom para ser desperdiçado com monsieur Grégoire, pasteur en retraite. Ao que ela respondeu que o pastor já não estava reformado e que era tempo de discutir o que queria ele fazer.

- Sei o que devo fazer: propagar ao mundo que os últimos dias estão para breve e que todos os homens de boa vontade devem preparar-se para eles. E também sei o que não devo fazer: estabelecer confusões e dissensões entre os crentes sinceros, ou minar os princípios da autoridade legítima na comunidade cristã. Por conseguinte, primeira pergunta: como resolvo o problema?

- Parece-me que já encontrou a solução: uma nova identidade. No fim de contas, o que importa é a mensagem e não o homem que a proclamar.

- Não é tanto assim. Como estabelece o mensageiro a sua autoridade?

- Não deve tentá-lo - respondeu Roberta Saracini.- Deve semear a palavra, como os primeiros discípulos fizeram, e esperar que Deus a faça frutificar.

Havia mais do que piedade na maneira como ela disse aquilo. Havia uma confiança total, como se ela própria tivesse feito prova da proposta.

- Concordo com o princípio - redarguiu ele. - Mas como é que eu, um homem importuno no seu próprio país, privado de missão canónica, vou pregar ao mundo, sem quebra da obediência que devo à Igreja?

Roberta Saracini serviu o café e estendeu-lhe a chávena por sobre a mesa. Ofereceu-lhe aguardente, mas ele recusou. Depois explicou cuidadosamente:

- Como sabe, sou banqueira. Como banqueira, tenho participações numa série de diferentes empresas: exploração mineira, fábricas, viagens, publicidade, diversões, comunicações. Portanto, assim que o senhor tiver a certeza do que quer dizer...

- Disso tive sempre a certeza.

- Nessa altura, podemos arranjar um cento de maneiras, um milhar de vozes, para espalhar a notícia.

- Isso custará uma fortuna.

- E se custar? Quem é que vai fazer contas depois do “dia do Rubicão”?

- Como é que sabe do “dia do Rubicão”?

- Tenho as minhas fontes. Com certeza não pensa que eu jogue às cegas no mercado?

- Acho que não.

Ainda se sentia inquieto, embora a explicação fosse bastante lógica. Por ele, não revelaria as suas fontes, nem sequer a um amigo íntimo.

- Há largos fundos disponíveis para o que quer que pretenda fazer. Gostaria de apresentá-lo a algumas das pessoas que trabalham para mim nos campos editorial, da televisão e da publicidade. Considere-as como as suas vozes. Explique-lhes o que pretende dizer. Há-de ficar admirado com as ideias que surgirão. Parece indeciso. Porquê? Que seria do papado moderno sem a televisão... ou da presidência americana, que para o caso vem a dar no mesmo? Não será um dever moral utilizar todos os dons que sejam colocados ao seu dispor?

Mais uma vez, e com maior intensidade, se recordou daquela jovem natural de Siena, do século XVI, que escrevera a Pierre Roger de Beaufort-Turenne, Gregório XI: “[...] Sia-temi uomo, virile e non timoroso [...]” (“[...] Sede para mim um homem, viril e não timorato [...]”)

Manteve-se calado por um momento, ponderando a decisão.

- Dentro de quanto tempo posso encontrar-me com os seus especialistas?

- Amanhã à noite.

- E até que ponto posso confiar neles?

- Nos que se sentarem a esta mesa, pode confiar como confia em mim.

- Nesse caso, quererá responder à pergunta que fiz a caminho daqui? Por que razão quer auxiliar um homem que está a predizer o fim do mundo?

Ela não se enredou para responder; forneceu-lhe a resposta nua e crua, sem panos quentes:

- Porque ele é um homem, apenas isso! Passei toda a vida à espera de alguém que fosse capaz de sair a pé para o meio da tempestade e de gritar contra o vento. Estive a observá-lo esta manhã no banco. Estava tão irritado que o julguei capaz de rebentar; mas teve a clemência de dizer que lamentava ter sido incorrecto. Para mim, é razão suficiente.

- Para mim não - disse Jean Marie Barette. - Ninguém é assim tão forte durante todo o tempo. Ninguém aguenta tanto tempo. O homem a quem eu sucedi como papa... eu estava junto do seu leito de morte e vi-o vomitar o sangue, vital e gritar “Mamma, Mamma, Mamma!” Os jornais disseram que ele estava a apelar para a Virgem Maria. Não estava. Chamava pela mãe na escuridão. Não se apoie em mim, Roberta! Apoie-se em si própria! Você não é nenhuma triste devote em plena menopausa. E eu não sou nenhum padre perturbado interrogando-se sobre o motivo por que desperdiçou toda a sua vida consagrado ao celibato.

- Nesse caso diga-me quem é! - exclamou Roberta Sara-cini com súbita ira. - Sejamos bons jesuítas: vamos definir os termos!

- Recebi um chamamento para proclamar as “últimas coisas” e a “vinda do Senhor”. Correspondi a esse chamamento. Procuro o meio de fazer essa proclamação. Você ofereceu-me abrigo e fundos e especialistas para me ajudarem. Eu aceitei com gratidão, mas nada tenho para dar em troca.

- E eu pedi alguma coisa?

- Não, mas tenho de avisá-la (e acredite que se trata de um acto de amor!) de que não deverá esperar, nunca, possuir qualquer porção de mim... ou alimentar a esperança de me controlar seja de que modo for.

- Por amor de Deus! Por que razão acha que deve alertar-me?

- Porque, quando nos conhecemos, você se referiu ao facto de ser mística relativamente ao seu passado, à sua ligação familiar com Santa Catarina de Siena. Pareceu-me um prelúdio muito significativo. Estava a propor-me o mesmo género de apoio que ela tinha proposto a Gregório XI, para o fazer regressar de Avinhão a Roma. Mas não se pode repetir a história nem reproduzir exactamente relações. Esse Gregório era um homem pretensioso, um vacilante e um cobarde. Eu tenho muitos defeitos, mas não sou desses. Sou chamado a percorrer uma estrada deserta. - Ela começou a protestar, mas ele deteve-a com um gesto. - Há mais, portanto deixe-me dizê-lo. Não ignoro a vida e as obras da sua pequena santa. A minha tese de doutoramento foi sobre a vida das grandes místicas. Li o Dialogo e o Epistolaria. Catarina escreveu muito e muito belas coisas sobre o amor, quer humano, quer divino. No entanto, há passagens obscuras nas suas relações que nenhum dos seus biógrafos explicou completamente. É demasiado exótica para o meu gosto; talvez por eu ser francês e ela nunca ter gostado dos Franceses. Mas acho que por uma ou duas vezes ela provocou demasiado os jovens do seu cenacolo. Sonhava com o amor divino enquanto eles estavam ainda a esforçar-se por encontrar sentido para a variedade humana... e foi então que as tragédias se deram. Portanto... - Sorriu e encolheu os ombros. - Como bons jesuítas, definimos os termos e enunciámos as regras do jogo. Estou desculpado?

- Está. Mas não facilmente. - Ergueu o copo num brinde silencioso e bebeu de um trago o resto do vinho. - Já é tarde. Tenho de estar cedo no trabalho amanhã de manhã.

- Eu também tenho de sair. Tenho um encontro com o ministro russo da Produção Agrícola.

- O Petrov? Tenho tratado de assuntos bancários com ele. É duro, mas decente. No entanto, está numa posição desesperada. Se não conseguir arranjar cereais suficientes para o Inverno, é um homem arruinado.

- E o nosso mundo fica uma hora mais próximo da meia-noite.

Ele levantou-se e puxou a cadeira dela para trás. Quando ela se ergueu, voltou-se, pegou na mão dele e beijou-a à maneira antiga.

- Boa-noite, monsieur Grégoire.

Ele aceitou o gesto sem comentários.

- Boa noite, madame, e obrigado por ter-me dado guarida em sua casa!

 

No quarto 580 do Hotel Meurice, Jean Marie Barette, ex-papa, conversava com Sergei Andrevich Petrov, ministro da Produção Agrícola da U. R. S. S. Petrov estava com um ar fatigado e amarrotado, como se tivesse espalhado as roupas pelo chão do quarto e na manhã seguinte houvesse caminhado por cima delas. Tinha os olhos vermelhos e lacrimosos. A voz era rouca e da pele libertava-se um odor de bebida de má qualidade. Até o seu sentido de humor se tinha sumido.

- Acha que eu tenho um ar de náufrago? É o que sou. Durante doze, quinze horas por dia, desde há quatro semanas, que ando a viajar, conversando, pedindo, implorando cereais como um papagaio esfomeado! No entanto, ninguém mos quer vender. Por conseguinte, desço a escada até ao segundo estágio. Que peço eu agora? Intervenção, mediação... Aquilo que na gíria do meio se designa por “bons ofícios”. Ocorreu-me que talvez o senhor estivesse na disposição de ajudar.

- Disposto, estou - respondeu Jean Marie sem hesitação. - Quanto à utilidade de que eu possa ser, é outra questão. Nas democracias, o chefe da oposição ainda tem voz activa e uma boa porção de poder de negociação. Para mim é diferente. Não passo de um pasteur en retraite. Por outras palavras: como reagiria você se eu lhe fosse pedir favores a Moscovo?

- Melhor do que julga. O senhor é muito respeitado em toda a parte. Tentará ajudar? A situação é desesperada. A fome é um horror que ninguém compreende enquanto não acontece. Veja o caso da África! Há anos que os indícios existem, mas ninguém lhes ligou qualquer importância! Do Sara ao Sael e ao Corno de África, repentinamente, milhares de pessoas morriam. Agora essa ameaça pesa sobre nós... com a única diferença de que para nós é a penúria no Inverno! Ele já quase terminou; depois, assim que o degelo começar, garanto-lhe que os foguetes serão lançados e as nossas tropas se deslocarão para o sul em direcção aos campos de petróleo do Golfo, para oeste através da grande planície húngara, por mar até à índia, Filipinas e Austrália. É como um axioma matemático. A única maneira de esmagar a desordem no interior é marchar contra o inimigo no estrangeiro. As potências ocidentais estão a jogar esse arriscado jogo a que os Ingleses chamam brinkmanship (1). Pois bem, não é desporto de que uma pessoa goste com a barriga vazia. Por isso, mais uma vez, tentará ajudar?

- Sim, claro que tentarei; mas não posso trabalhar no vazio. Preciso de ser posto ao corrente das coisas. Preciso de uma lista das concessões comerciais que a sua gente está disposta a dar a troco de fornecimentos urgentes. Vocês também jogam o jogo na borda do precipício e são capazes de ser tão estúpidos como qualquer pessoa no Ocidente! Portanto, preciso de qualquer coisa por escrito, por mais elementar que seja, que me dê autoridade para agir como corretor no mercado.

- Isso pode ser difícil.

- Sem isso, o resto é impossível. Ora vamos, camarada Petrov! Eu posso fazer declarações à imprensa, sermões, apelos. Fi-lo todos os domingos na Praça de S. Pedro! Fiz discursos diplomáticos especiais em todas as minhas deslocações. Mas isso é o mesmo que vocês fazerem o discurso do 1º de Maio sobre a ideologia marxista-leninista e a solidariedade dos sovietes do povo! Não é isso que altera as coisas! Com uma procuração nas mãos, que vocês possam repudiar se eu meter os pés pelas mãos... Bien! Pelo menos seria recebido como um emissário respeitável.

- Estaria preparado para ir a Moscovo?

- Sim... desde que receba um convite cordial da parte dos dirigentes e a K. G. B. não me tolha todos os passos.

- Isso não acontecerá, garanto-lhe.

- Quando é que me quer lá?

- O mais depressa possível, mas tenho de enfiar o pé na água só para ver se não há caranguejos à espera para mo morderem. Como posso entrar em contacto consigo?

- Através do meu irmão, Alain, no banco, o Halévy Frères et Barette. - Rabiscou o endereço num bloco de notas e passou-o a Petrov. - O Alain não saberá onde me encontro, mas estarei em contacto com ele de vez em quando.

Petrov dobrou o papel e meteu-o na agenda, dizendo:

- Quer beber alguma coisa comigo?

- Obrigado, mas é um pouco cedo para mim.

- Eu preciso de uma bebida. Bem sei que tenho abusado um bocado delas nestas últimas semanas, mas que há-de um homem fazer no final de mais um dia desgraçado a estender a mão à caridade? Neste serviço não se ganham medalhas pelo esforço: o que se consegue são miradas de

 

(1) Prática que consiste em levar uma situação perigosa até ao limite de segurança antes de parar. (N. do T.)

 

olhos arregalados e “ora, ora, camarada, há-de haver algo de construtivo que possa fazer!”. Eu sei que não há e eles sabem que não há; mas eles estão repimpados no Kremlin enfronhados em papéis, ao passo que eu ando a gastar solas e paciência.

- Pensei que depositava algumas esperanças no Pierre Duhamel.

- Até ver, não passa disso mesmo: esperanças! Ele está a tentar imaginar um esquema complicado por meio do qual nós possamos comprar carregamentos enquanto estão em trânsito e desviá-los para portos do Báltico. O problema é a dimensão da operação... a não ser que o Duhamel esteja a fazer jogo sujo. Que pensa dele?

- Penso que ele está a tentar jogar de maneira limpa num jogo sujo.

- Pode ser. Então que me diz à tal bebida?

- Tenho uma sugestão - disse Jean Marie Barette.

- Venha ela.

- Não pense mais na bebida. Mande vir café para dois. Diga-me o seu tamanho, que eu vou lá abaixo comprar-lhe uma camisa e roupa interior nova. Depois você manda o fato para passar a ferro e toma um longo banho quente enquanto espera que lho tragam de volta.

Petrov ficou a olhar para ele, incrédulo.

- Está a dizer-me que estou sujo?

- Estou a dizer-lhe, caro camarada, que, se estivesse sob a mira das armas como você está, mudaria de roupa duas vezes por dia, nunca beberia antes do pôr do Sol... e faria constar que, se alguém pensasse que era capaz de desempenhar o cargo melhor do que eu, era bem-vindo.

- Essa receita tem apenas um senão.

- Qual é?

- Quem quer que fique com o meu cargo há-de querer igualmente a minha cabeça... e eu não quero separar-me dela assim tão depressa. Mas, quanto ao resto, tem razão. O meu tamanho é o 40. Vá lá comprar a roupa, que eu mando vir o café. De qualquer modo, leva sempre um certo tempo a obter o serviço de quartos.

- Julguei que estava alojado na Embaixada - disse Jean Marie Barette.

- E estou - confirmou Sergei Petrov. - Mantenho este quarto para... contactos particulares.

- E tem a certeza de que são particulares?

- Não podia estar mais certo. Sei que o quarto não tem microfones. Por outro lado, isso assusta-me mais do que qualquer outra coisa.

- Porquê?

- Porque pode querer dizer que ninguém quer saber do que eu faço para nada. Posso ser um alvo fácil, à espera apenas de alguém que me arrume. Não é que isso tivesse grande importância. De qualquer modo, toda a raça humana dispõe de uma duração bastante limitada.

- Quanto tempo lhe dá, exactamente?

- Vejamos. Estamos presentemente em Setembro. Se eu não conseguir obter cereais antes do Inverno, o Exército marchará imediatamente a seguir ao degelo da Primavera. Se eu o conseguir, haverá um intervalo para respirar, mas não muito longo, porque há ainda os problemas do combustível e da energia, e todas as grandes nações têm um plano de ataques antecipados se os campos de petróleo forem ameaçados. Na pior das hipóteses temos seis a oito meses, e na melhor dezoito. Não é uma ideia lá muito risonha, pois não?

- Vou comprar a roupa - disse Jean Marie. - Tem alguma preferência quanto à cor?

Sergei Andrevich Petrov soltou uma gargalhada homérica.

- Só queria que os velhos camaradas vissem isto! Desde a Revolução que o Vaticano tem sido para nós uma pedra no sapato. Agora tenho o papa a comprar-me a roupa interior!

- E que tem isso de estranho? - perguntou Jean Marie com suave inocência. - O primeiro foi vendedor ambulante de peixe em Israel.

Enquanto se entregava à tarefa simples de comprar peúgas e roupa interior, deu-se conta não só do cómico da situação como da macabra imprudência que nela havia. Nascido a meio dos anos vinte, era novo de mais para prestar serviço militar no Exército francês e fora obrigado a fugir para as montanhas a fim de evitar ser recrutado para trabalhos forçados ao mando alemão. Tinha combatido no maquis e começara o curso do seminário um ano após o final das hostilidades. Mas uma das suas mais vívidas recordações era o período de pesadelo em que os Alemães tinham começado a retirar e todo o edifício da ocupação principiara a desmoronar-se. Fora como que uma Walpurgisnacht' de embriaguez, crueldade, heroísmo e complicadas insanidades.

Agora assistia à mesma coisa: os tumultos de ópera em Tubinga, assassínios por ordem oficial, Pierre Duhamel, o fiel

 

(1) Noite de Santa Valpurga: véspera do 1º de Maio, em que, segundo a superstição medieval alemã, as bruxas se reúnem em Brocken no cume dos montes Hara) e noutros locais para confraternizar com o Diabo. (N. do T.)

 

servidor da República, conivente com horrores secretos, na esperança vã de evitar outros maiores, e agora Sergei Petrov a tentar furar um bloqueio do mercado cerealífero e a afogar o seu desespero em vodka. A loucura em pequena escala era a mais sinistra de todas. Fome no Corno de África? Eh! De que se tratava? De um expurgo da população em excesso de uma terra marginal... Isto é, até ao momento em que uma pessoa pegasse numa criança com uma barriga semelhante a um balão e braços como paus de fósforo e com uma pulsação cardíaca que mal chegava para levar ar aos pulmões. Nessa altura, a pessoa amaldiçoava Deus e amaldiçoava o homem, a sua criatura errante, e espoletava as bombas para, ao rebentar, remeterem toda aquela porcaria para o esquecimento!

Posto isto, e totalmente a despropósito, concluiu que o seu irmão Alain tinha razão. Precisava realmente de roupa nova. Já que ia fazer compras para Petrov, podia muito bem cuidar um pouco de si. Não fazia sentido uma pessoa ir mal vestida ao seu próprio funeral.

Nessa noite, Roberta Saracini tinha três convidados para jantar. Vinham com roupa de trabalho e traziam malas de diplomata, pastas de artista e um gravador de vídeo. Tinham o ar resoluto de profissionais que sabiam exactamente o que queriam e não precisavam de conselhos de leigos na matéria. O mais velho dos três era um fulano alto, de rosto corado, com um sorriso largo e um olhar astuto. Roberta apresentou-o como Adrian Hennessy.

- Não tem nada a ver com o conhaque. É americano, fala sete línguas e sabe muitíssimo bem o que diz em todas elas. Chegou esta manhã de Nova Iorque. Se o senhor e ele se entenderem, será ele quem dirigirá a nossa operação.

O segundo convidado era uma jovem de aspecto masculino cuja fisionomia parecia vagamente familiar. Era a embalagem-surpresa.

- Natalie Duhamel, a nossa especialista em filmes e televisão. Julgo que conhece o pai dela.

- Pois conheço.

Jean Marie ficou perplexo. A jovem endereçou-lhe um sorriso frio e contemplou-o com uma definição bem ensaiada:

- O meu pai e eu temos uma relação excelente. Ele não produz os meus programas e eu não escrevo os relatórios dele para o presidente. Em questões confidenciais, ele não faz perguntas e eu não conto nada... e vice-versa!

- Trata-se de um acordo muito preciso - comentou Jean Marie Barette.

- E este - disse Roberta Saracini, apresentando o seu terceiro hóspede, um adolescente que poderia ter servido de modelo para o cocheiro de Delfos -, este é o Florent de Basil. Desenha, pinta e compõe belas canções. Em suma, um génio.

Tinha o sorriso pronto e inocente de uma criança. Tomou a mão de Jean Marie e beijou-lha.

- É impossível dizer-lhe como desejava conhecê-lo. Espero que tenha possibilidades de dar-me tempo para fazer o seu retrato.

- Uma coisa de cada vez, meu amor - disse Roberta Saracini. - O jantar é daqui a meia hora. Que tal se começássemos a trabalhar enquanto tomamos um aperitivo?

Adrian Hennessy abriu a sua mala de diplomata e tirou de lá um gravador. Florent de Basil aprontou um caderno de esboços. Natalie Duhamel deixou-se ficar placidamente a observar. Hennessy sorveu um golo de álcool e afirmou categoricamente:

- Começamos por falar sem que fique nada registado. Se não concordarmos com as condições, gozamos o jantar e não se fala mais no assunto. Se concordarmos, começaremos a trabalhar imediatamente. Primeiro ponto: que nome vamos dar ao sujeito? Trata-se do senhor. Não se esqueça de que certos artigos, tais como apontamentos e gravadores, têm de andar de um lado para o outro e, portanto, podem perder-se. Por conseguinte, não queremos nomes verdadeiros.

- O meu nome é Jean Marie...

- Nesse caso passamo-lo para o americano: John Doe (1). A seguir, o objectivo do nosso projecto. De acordo com o que a Roberta explicou, o senhor tem uma mensagem que pretende revelar ao mundo. Contudo, quer assegurar-se de que não será encarado na propagação dessa mensagem como um doutrinador oficial da Igreja Católica Romana.

- É um resumo rigoroso. É isso.

- Mas está ainda incompleto. Ignora o âmago da questão: que, como ex-papa, o senhor tem ainda a aura do seu cargo. Não há meio de fazer declarações públicas sem entrar em conflito com o actual papa... o qual, diga-se de passagem, é o menos inspirado dos oradores. Portanto, a questão é esta: até onde está disposto a correr o risco desse conflito?

- Não dou o mais pequeno passo para isso - respondeu Jean Marie Barette.

 

(1) John Doe equivale, em português, a Zé Ninguém. (N. do T.)

 

- Gosto de homens que sabem o que querem - disse Hennessy com um sorriso. - Mas uma mensagem tem de ser transmitida por alguém; e esse alguém tem de ter alguma autoridade. No fim de contas, ninguém lê as cartas de John Doe na igreja... Lê-se S. Paulo, S. Pedro, S. Jaime...

- Não concordo - disse Jean Marie. - Desculpe, mas já discuti essa questão ad nauseam 1, e por pouco não acabei por acreditar que era assim. Mas já não! Nunca mais! Oiça. - Subitamente, passou a ser um homem inflamado. Os que o escutavam estavam suspensos de cada uma das suas palavras e gestos. Hennessy inclinou-se para diante e ligou o gravador. - Se cada um de nós estivesse fechado num quarto silencioso, privado de toda e qualquer referência sensorial, depressa ficaria desorientado e, finalmente, enlouqueceria. A pessoa que provavelmente tivesse maior resistência seria aquela que tivesse prática do recolhimento, da meditação, cuja vida tivesse uma referência exterior para Deus. Conheci diversas pessoas assim durante o meu pontificado: três homens e uma mulher que tinham sido confinados como agitadores religiosos e torturados por privação sensorial. O facto é que nós só vivemos em comunhão: não apenas com o nosso presente, mas igualmente com o passado e o futuro. Somos perseguidos por toda uma poesia de vida, por canções de embalar mal recordadas e por sons de apitos de comboios na noite e pelo cheiro da alfazema num jardim de Verão. Somos também perseguidos pelo desgosto, pelo medo, por imagens de terror infantil e pelas macabras dissoluções da idade. Mas tenho a certeza de que é no domínio do nosso sonhar quotidiano que o Espírito Santo estabelece a Sua própria comunhão connosco. É assim que é conferido o dom ao qual chamamos “graça”; a iluminação súbita, o arrependimento claro que leva à penitência ou ao perdão, a abertura do coração aos riscos do amor. A autoridade é irrelevante neste campo. A autoridade é o zarolho que, em terra de cegos, é rei! Ela pode ordenar-nos tudo, menos o amor e a compreensão. Ora, que estou eu a tentar dizer-vos? - Endereçou-lhes um sorriso de autocensura - S. Pedro morreu, S. Paulo morreu e S. Jaime, o irmão do Senhor, morreu também. As suas cinzas foram sopradas pelos ventos dos séculos. Eram altos, baixos, loiros ou morenos? Quem sabe? Quem se importa? O testemunho do espírito, dado por intermédio deles, continua vivo. - E citou baixinho: “Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se

 

(1) Em latim: até à náusea. (N. do T.)

 

não tiver caridade, sou como bronze que ressoa, ou como címbalo que tine.”

Houve um longo silêncio na sala. Jean Marie olhava ora para um ora para outro, procurando uma resposta. Os rostos permaneciam ilegíveis e os olhos baixos. Por fim, foi Hennessy quem falou. Desligou o gravador e não se dirigiu a Jean Marie, mas sim aos colegas:

- Eu não preciso de ver o homem que disse isto. Posso lê-lo, ouvi-lo e construir a minha própria imagem, Natalie.

- Concordo inteiramente. Imagine isso com luzes, maquilhagem, deixas de entrada... enfim, a mecânica toda. Havia de parecer uma prostituta a desempenhar o papel de virgem... com todo o respeito que lhe é devido, monsenhor! Que é que pensas, Florent?

O jovem estava estranhamente subjugado, e disse:

- Nada de imagens, sem dúvida. Dei por mim a ouvir música: qualquer coisa muito simples, como as velhas baladas que falavam de amor e de feitos de cavaleiros... Talvez eu devesse modificar isto. A imagem não deveria ser a do orador. Podia ser a do seu auditório. Será possível pensarmos um momento sobre isso?

- Eu sou banqueira - disse Roberta Saracini. - No entanto deste-me uma ideia, Adrian. Disseste que ninguém lê as cartas de John Doe na igreja. Serias capaz de ler uma carta deste John Doe? Ouvi-lo-ias se ele te mandasse uma mensagem gravada?

- Podes ter a certezinha de que sim!

Rabiscou um apontamento no bloco. Depois voltou-se para Jean Marie e desculpou-se com ar pesaroso:

- Bem sei que isto deve parecer muito impertinente, tratá-lo como uma espécie de fantoche que se manipula.

- Estou habituado a isso - disse Jean Marie, imperturbável. - Os nossos homens do Vaticano são peritos em alta comédia, e alguns dos nossos mestres de cerimónias foram verdadeiros tiranos. Não se preocupe! Quando me chegar a mostarda ao nariz, eu The direi!

- Cartas! - exclamou Natalie Duhamel. - Dantes eram uma forma de literatura muito em voga.

- E ainda são - disse Hennessy. - Cartas de Júnio, Lettres de mon Moulin, Cartas ao Times! O problema é descobrir editores com coragem suficiente para as publicarem a despeito da actual censura. Sem dúvida poderíamos arranjar livreiros suficientes para manter uma série. Seria capaz de escrevê-las, monsenhor?

- Tenho passado toda a minha vida sacerdotal a escrevê-las - disse Jean Marie. - Cartas pastorais, encíclicas, cartas ao clero e às freiras em clausura. Uma mudança de estilo viria a calhar.

- Seria também capaz de lê-las para serem gravadas?

- Claro.

- Tenho medo - disse Natalie Duhamel. - Quem é que irá escutar sermões?

- Aquilo foi um sermão? - perguntou o jovem, apontando teatralmente para a gravação.

- Não, mas será ele capaz de manter o estilo? Acha que sim, monsenhor?

- Eu não me apercebo do estilo - respondeu Jean Marie, seco e terminante. - Tenho coisas a dizer, sobre a vida e a morte. E essas coisas têm de ser ditas do coração ao coração.

- Quando se escrevem cartas - disse abruptamente Hennessy-, a quem são elas endereçadas? E lá vamos nós cair outra vez na questão da autoridade. O editor pergunta: “Quem é esse fulano?” E o público pergunta: “Que diabo sabe ele?”

- E pode ser que nem sequer se tenha de lidar com editores - disse Natalie Duhamel. - Podemos muito bem ter de voltar aos samizdat (1) e à imprensa clandestina ou mesmo aos jornais de parede da China! Mas o Adrian tem razão. As cartas começam por “Caro X”. Quem é X neste caso?

- Uma vez que se está a escrever sobre o fim de tudo - disse Florent de Basil -, parece uma atitude fútil e contraditória. Quem pode fazer seja o que for relativamente ao acontecimento final?

- Tem razão - concordou Jean Marie com aparente bom humor.

- Nesse caso com quem se corresponderá? Com Deus?

- Por que não? - perguntou Jean Marie, saboreando a ideia por um momento. - Para que outro lado nos havemos de voltar no fim do mundo? É aquilo que uma criança naturalmente faria: escrever cartas a Deus e metê-las no oco de um tronco de árvore. Poderiam chamar-lhes Últimas Cartas de Um Pequeno Planeta! - Pare aí mesmo! - A ordem de Hennessy mais pareceu o estalar de um chicote. Percorreu a pequena audiência com o olhar. - Que ninguém diga uma palavra antes de eu pedir. O título é lindo. Adoro-o. - Voltou-se para Jean Marie e perguntou:- Seria capaz de escrever essas cartas?

- Claro. Não é difícil. - Resolveu fazer um pouco de humor com a questão. - No fim de contas, eu falo todos os

 

(1) Publicação organizada de literatura clandestina por parte de dissidentes na U. R. S. S. (N. do T.)

 

dias com o Todo-Poderoso. Não preciso de aprender nenhuma língua nova.

- Quando é que pode começar a escrever alguma coisa?

- Hoje à noite, amanhã, quando for preciso.

- Nesse caso, por favor! Uma carta por dia (mil a mil e duzentas palavras) até nova ordem. Deixe a nosso cargo a procura da árvore oca... e uma distribuição a nível internacional.

- Uma pergunta elementar. - Quem a fazia era Natalie Duhamel. - Quem será o autor dessas cartas? Que personagem e sob que nome? Isso é básico para a nossa promoção.

Jean Marie contribuiu com uma sugestão meio a sério, meio a brincar:

- Não posso voltar a ser criança, mas já muitas vezes me senti pequeno. Que tal se assinasse Jeannot (Joãozinho)?

- Parece-me ligeiramente apalhaçado - disse Roberta Saracini.

- Então não nos fiquemos em meias-tintas! Admitamos que há uma coisa chamada loucura divina. Usarei o nome Jeannot lê Bouffon (o Palhaço Joãozinho)!

- Por que há-de rebaixar-se? - Roberta continuava insatisfeita. - Por que razão há-de sair tanto da própria pele que ninguém saiba quem o senhor é realmente?

- Porque nessa altura ninguém pode acusar-me de ambição ou de rebelião. Além disso, quem senão uma criança ou um palhaço escreveria cartas ao Todo-Poderoso?

- Concordo com o homem! - disse Hennessy. - E, se não conseguirmos transformar o Palhaço Joãozinho num nome em todas as bocas do mundo inteiro, dou um tiro na cabeça. Que dizes, Natalie?

- Vejo um processo de visualizar tudo, desde que o Florent consiga arranjar um logotipo.

- Um logotipo e a música, meu amor... e até um tema como contraponto: “O Palhaço Joãozinho é tão simples; por que razão somos todos nós tão complicados?”

- Vamos lá a não falar no ar - disse Hennessy. - E a não distrair o autor! O inspirado é ele. Nós somos os técnicos... Ainda falta muito para o jantar, Roberta? Estou morto de fome!

Não podia acreditar que fosse tão fácil escrever as cartas. Como sumo pontífice tinha sido obrigado a pesar cada palavra, não fosse desviar-se um milímetro das definições dos antigos concílios: Calcedónia, Niceia, Trento. Não podia desacreditar as decretais dos seus antecessores, por muito que discordasse delas. Não devia especular; podia apenas esperar esclarecer as tradicionais fórmulas de fé. Ele era a fonte da autoridade, o árbitro final da ortodoxia, o desvinculador e o vinculador - ele próprio mais rigorosamente vinculado do que qualquer outra pessoa, escravo até à morte do repositório da Fé.

Agora, subitamente, estava livre. Já não era doctor et magister (1), mas simplesmente o Palhaço Joãozinho, de olhos arregalados no meio dos mistérios. Agora podia sentar-se a cheirar as flores, a observar os repuxos e, o doido de Deus, seguro dentro do seu traje de bobo, discutir com o seu Criador.

Querido Deus:

Adoro este engraçado mundo, mas acabo de saber que vais destruí-lo, ou, o que é pior ainda, que vais ficar muito descansado no Céu a ver-nos destruí-lo, como actores cómicos a despedaçar um piano magnífico no qual grandes mestres interpretaram Beethoven.

Não posso discutir as Tuas acções. O universo é Teu. Tu fazes malabarismos com as estrelas e consegues mantê-las no espaço. Mas, por favor, antes da última grande explosão, poderás explicar-me algumas coisas? Eu sei que isto não passa de um pequeno planeta; mas é nele que vivo e, antes de o deixar, gostaria de compreendê-lo um pouco melhor. Gostaria de compreender-Te também a Ti - tanto quanto mo permitas-, mas, para o Palhaço Joãozinho, terás de explicar tudo de uma maneira muito simples. ...Nunca cheguei a esclarecer bem na minha cabeça onde é que Tu entras no meio de tudo isto. Sem desrespeito, palavra! Mas é que, no circo onde trabalho, existem os espectadores e existimos nós, as pessoas que fazem as habilidades, e há também os animais. Não podemos deixá-los de fora, porque dependemos deles e eles de nós.

Ora bem, os espectadores são maravilhosos. Na maior parte das vezes são tão alegres e inocentes que podemos sentir o contentamento a soltar-se deles; mas outras vezes somos também capazes de dar pela crueldade, como se quisessem que os tigres se

 

(1) Em latim: doutor e mestre. (N. do T.)

 

atirassem ao domador ou que o equilibrista caísse lá de cima do trapézio. Portanto, não consigo crer que sejas os espectadores!

Depois existimos nós, os artistas. Somos um grupo variado: palhaços como eu, acrobatas, lindas raparigas a cavalo, os equilibristas no arame, as mulheres com os cães e os elefantes e os leões e... oh, tudo isso! Realmente, somos uma estranha tropa: de bom fundo, é certo, mas por vezes suficientemente loucos para nos matarmos uns aos outros. Poderia contar-Te histórias... mas a verdade é que Tu as sabes, ou não? Conheces-nos tal como o oleiro conhece o vaso que afeiçoou no seu torno.

Há quem diga que és o dono do circo e que montas todo o espectáculo só para Te divertires. Eu era capaz de aceitar isso. Gosto de ser palhaço. Divirto-me tanto como divirto os outros. Mas o que não posso compreender é por que razão havia o proprietário de querer cortar os cabos da cúpula e enterrar-nos todos debaixo dela. Um louco, um patife vingativo, poderia fazer tal coisa. Não acredito que possas ser louco e fazer uma rosa, ou vingativo e criar um golfinho. Portanto, como vês, há muita coisa a explicar.

Quanto mais escrevia, mais vontade tinha de escrever. Não se tratava de um exercício literário. Não estava a ensinar ninguém. Estava entregue ao mais primitivo de todos os passatempos, a contemplação do paradoxo, a discussão de um homem simples com o “mistério último”. Exprimia-se num vocabulário de camponês, bem diferente do dos filósofos e dos teólogos. Não tinha de inventar novos símbolos ou novas cosmogonias como os marcionitas e os valentinianos. Era um homem apaixonado por coisas antigas e simples: cereal maduro esfregado entre as mãos, maçãs colhidas directamente da árvore, o primeiro doce sabor do amor primaveril. Eram as mais preciosas, porque em breve se perderiam no caos do “dia do juízo final”. Como papa tinha escrito peças destinadas às mulheres: rescritos, prescrições, conselhos. Porém, durante toda a sua vida sacerdotal, nunca escrevera com tanta ternura sobre elas.

[...] Contam-me os seus segredos porque eu sou um palhaço com umas grandes botas e calças largueironas e estou sempre com medo. Elas não têm vergonha de reconhecer que também têm medo.

E tão-pouco se sentem ridículas - nem mesmo quando fazem figura de parvas diante de um homem. Eu sou muito mais disparatado do que elas alguma vez serão, com a minha grande boca e os meus olhos de bebé chorão. Elas querem apenas amar e ser amadas, construir um ninho como as aves e fazer filhos bonitos. Mas ouvem os cavaleiros espectrais a cavalgar na noite - a guerra, a peste, a fome - e perguntam por que hão-de criar bebés para morrerem agarrados a um peito seco ou queimados pelo rebentamento de uma bomba. Não podem andar seguras na rua; por isso aprendem a lutar como os homens e munem-se de armas contra violadores. Observam os homens nas danças guerreiras e desprezam-nos. Quando os homens se zangam, desprezam-nos mais ainda; e o amor azeda ou torna-se estranho.

Elas querem saber o que foi que correu mal com o Teu mundo e por que razão não Te vêem de vez em quando à esquina da rua onde o Teu Filho costumava estar há séculos, a falar com os que passavam, a contar a verdade em contos de fadas. Que posso eu dizer-lhes? Sou apenas o Palhaço Joãozinho! O mais que posso é fazê-las rir, caindo de queixos no chão ou enfiando de repente os pés num bolo de creme!

Quererás pensar um pouco nisto e tentar dar-me uma resposta? Bem sei que já conversámos várias vezes. Em certas ocasiões compreendi-Te; noutras não. Mas neste preciso momento estou com medo e tropeço nas minhas grandes botas para fugir e esconder-me.

Vou meter esta carta no castanheiro oco ao fundo do prado: mesmo ao pé do sítio onde guardamos os cavalos do circo.

Hei-de continuar a escrever, porque tenho mais uma data de perguntas a fazer. Estas podem ser as últimas cartas que alguma vez receberás do nosso pequeno planeta; portanto, peço-Te que não feches o mundo antes de eu conseguir arranjar maneira de o perceber um bocadinho.

O teu intrigado amigo, Palhaço Joãozinho.

Ao fim da tarde tinha já escrito cinco cartas, perfazendo vinte páginas manuscritas, e era apenas o simples cansaço físico que o fazia parar. Era ainda cedo. Seria agradável dar um passeio ao longo dos quais. Nessa altura, com um pequeno arrepio de medo, lembrou-se de que agora era objecto de vigilância de grau A e que os pisteiros deviam estar à procura para lhe detectarem o cheiro. Não podia arriscar-se a comprometer Roberta Saracini devido a um acto frívolo de auto-satisfação. Em lugar disso, telefonou a Adrian Hennessy:

- Se tem tempo esta noite, gostaria que visse o que escrevi.

- Quanto é que já tem?

- Cinco cartas. Um pouco mais de seis mil palavras.

- Meu Deus! Chama-se a isso produzir! Dentro de vinte minutos estou aí.

- Será capaz de fazer-me um favor? De caminho, compre-me uma cesta de flores para a Roberta e um cartão para mandar junto. Eu próprio me encarregaria disso, mas não devo sair de casa.

- Melhor ainda: posso mandar a florista entregá-las directamente. Que quer dizer no cartão?

- Apenas isto: “Para exprimir a minha gratidão, Jeannot lê Bouffon.”

- Entendido! Vou a caminho.

Daí a dezoito minutos estava à porta, activo, brusco e prático. Antes de ler uma linha que fosse do manuscrito, recitou outro conjunto de regras:

- Isto é jogo a sério: nem cumprimentos, nem concessões. Se for bom, eu digo que é. Se for mau, queima-se tudo. Se estiver entre uma coisa e outra? Bom, logo se verá.

- Tudo perfeito - disse placidamente Jean Marie -, com a única diferença de que não pode queimar uma coisa que não lhe pertence!

Hennessy deitou uma rápida olhadela ao manuscrito.

- Óptimo! Para já é legível. Por que é que já não ensinam caligrafia assim? Quero ficar sozinho durante meia hora. Isso dar-lhe-á tempo para ler as vésperas no jardim. Pode recomendar-me quando chegar ao “Domine, exoudi”.

- Com muito prazer.

Mal saiu a porta, Hennessy estava já mergulhado na leitura. Jean Marie riu baixinho de si para si. Sentia-se uma espécie de encarregado da mudança dos cenários numa peça japonesa; estava vestido de preto e, portanto, de maneira a ser ignorado. No entanto, lembrou-se de Adrian Hennessy no “Domine, exaudi”, dizendo: “Por favor! Fazei com que eu seja capaz de confiar nele! Já não tenho a certeza dos meus juízos.”

O juízo que Hennessy fez do manuscrito foi conciso e terminante.

- Trata-se daquilo que prometeu. Comoveu-me... e eu tenho o coração revestido de chapa de ferro.

- Então e agora?

- Vou levar isto, mandar tirar cópias e enviar-lhe um par delas para arquivo. Conservarei os hológrafos originais, para o caso de termos de provar a sua autenticidade. A Natalie e o Florent vão lê-lo e hão-de imaginar ideias para tratamentos especiais no campo audiovisual. Entretanto, vou procurar jornais, revistas e livros dispostos a publicar... qualquer que seja a língua. O senhor vai continuar a escrever... e que Deus guie a sua caneta! Assim que dispusermos de condições concretas, apresentar-lhas-emos para aprovação. As suas flores foram encomendadas. Há mais alguma coisa que eu possa fazer por si?

- Estou sob vigilância de grau A, como agitador político... ou pelo menos passarei a estar, assim que o meu paradeiro for descoberto. Gostaria de sair e desenferrujar as pernas, ir comer a um restaurante, mas tenho uma cara demasiado conhecida. Tem alguma sugestão?

- Não há coisa mais simples neste mundo. - Hennessy consultou a agenda e fez um telefonema. - Rolf? Adrian Hennessy. Tenho um trabalho para si. Imediato. Pagamento segundo a tarifa máxima. Ora deixe cá ver... Vou descrever-lho. Idade: 65, cabelo grisalho razoavelmente abundante, pele clara, rosto magro mas de boa estrutura óssea, olhos azuis, muito esguio. Bem, a questão é que ele está amarrado a casa e não tarda que comece a bater com a cabeça nas paredes. Sim, é muito conhecido, de modo que é uma transformação muito radical... mas não o corcunda de Notre-Dame, por amor de Deus! Ele quer continuar a poder ir comer a sítios públicos. Tem aí um lápis? Vou dizer-lhe a morada. Quanto tempo leva a chegar cá?... Óptimo, eu espero. Isso mesmo. É um dos meus... e muito chegado! - Poisou o auscultador e voltou-se para Jean Marie. - Rolf Levandow, judeu-russo, o melhor maquilhador do mundo. Estará aqui dentro de meia hora com a sua caixinha mágica. Quando ele acabar, até a sua mãe precisaria de um registo magnético da sua voz para o conhecer.

- Você espanta-me, Adrian Hennessy.

- Sou aquilo que o senhor vê. Proporciono aquilo para que me pagam: serviço total! É essa a linha de demarcação.

Ninguém a pisa, a menos que eu o peça... Nem o senhor, Jeannot lê Bouffon!

- Por favor! - exclamou Jean Marie, erguendo as mãos num protesto. - Não estava a pedir para ouvi-lo em confissão!

- Seja como for, ouviu-a - replicou Adrian Hennessy, subitamente estranho e distante. - Sei como obter qualquer serviço que o senhor pretenda, desde a promoção de um bâton para. os lábios até à liquidação. Trilho caminhos bastante ínvios, mas não engano os meus clientes e ninguém me possui a tal ponto que eu não possa atirar outra vez com o contrato para cima da mesa e sair porta fora. Mas falemos um pouco de si. Há um par de meses, era um dos homens mais importantes, o chefe espiritual de meio bilião de pessoas, o monarca absoluto do enclave mais pequeno mas mais importante do Mundo. Trata-se de uma enorme base de poder. Com ela, possuía toda uma organização mundial de sacerdotes, frades, freiras e paroquianos laicos. No entanto, abriu mão de tudo isso!... Veja a situação em que se encontra agora! Não pode ir dar um passeio sem ser disfarçado. É hóspede de uma caçadora de leões. Depende dela para conseguir espaço na imprensa e tempo de antena que dantes podia obter de graça. Sou obrigado a perguntar a mim próprio que sentido faz tudo isto para si.

Jean Marie ponderou a pergunta por instantes e a seguir abanou a cabeça:

- Deixemo-nos de jogos dialécticos, Sr. Hennessy. Uma águia pode dizer coisas acertadas a um canário, mas um canário a um peixe dourado, nunca! Vivem de maneira diferente em elementos diferentes. Eu tive uma experiência que me modificou completamente... para melhor ou para pior, não interessa para o caso. Trata-se de que, pura e simplesmente, sou diferente.

- Como? Em que pormenores? - Hennessy, de olhar frio, insistia na pergunta. - Preciso de conhecer o homem para quem trabalho.

- Só lho posso dizer por similitude - disse tranquilamente Jean Marie. - Lembra-se da história do evangelho em que Jesus ressuscita dos mortos o seu amigo Lázaro?

- Lembro.

- Pense nos pormenores: as irmãs mergulhadas no desgosto, com medo do que poderia revelar-se-lhes quando o túmulo fosse aberto. “Iam foetet!” (“Já cheira mal!”), disseram elas. Nessa altura abriu-se o túmulo. Jesus chamou. Lázaro saiu do caixão, ainda envolto na mortalha. Já pensou como ele se deve ter sentido, de pé, a pestanejar diante da luz do Sol, contemplando de novo um mundo do qual se tinha despedido para sempre?... Depois do que me aconteceu no jardim de Monte Cassino, fiquei como Lázaro. Nada poderá voltar alguma vez a ser como era.

- Acho que compreendo - disse Hennessy, dubitativo -, mas, mesmo que o senhor tenha mudado, o mundo não mudou. Nunca se esqueça disso!

- Por que é que chama a Roberta Saracini uma caçadora de leões?

- Porque estou a tentar ser bem-educado - replicou Hennessy, subitamente irritado. - Na minha terra usa-se uma palavra mais ordinária para as mulheres que andam atrás de homens famosos. Não se iluda comigo! Ela é uma boa cliente e o senhor precisa dela! Mas há em mina uma costela de irlandês antiquado e detesto ver um padre agarrado às saias de uma mulher.

- O senhor tem más maneiras e uma língua suja! - observou Jean Marie, zangado e rude. - Imagino que disse tudo isso a madame Saracini antes de começar a aceitar o dinheiro dela?

- Disse - replicou Hennessy, sem se comover. - Porque a minha obrigação é apontar as minas antes de ambos vocês as pisarem. Desde que o pai foi afastado, a Roberta tornou-se religiosa. Esforça-se por isso, como se esforça por tudo o resto. Isso ajuda-a, e ainda bem. Mas antes disso - e eu sei-o bem!-, quando um homem tomava aperitivos com a Roberta, queria dizer que tomava também o pequeno-almoço na cama. Portanto, monsenhor, pode muito facilmente ser apanhado pelo turbilhão do passado dela. Está sob vigilância de grau A porque o governo procura pregos para lhe pôr no caixão. Se acha que eu tenho uma língua suja, espere até ouvir o género de pornografia do governo!... Um simples exemplo! O senhor encomendou flores para a Roberta. Um gesto cavalheiresco para com a sua anfitriã; uma coisa sem mal nenhum! Mas como se sentiria se alguém lançasse um boato maldoso: “Qual será o alto dignitário católico que anda a mandar flores a uma certa banqueira cujo pai em tempos lesou o Vaticano em quinze milhões, ao que se diz?” Este é apenas um dos perigos.

- Agradeço-lhe a preocupação - disse Jean Marie com uma ponta de ironia. - Mas deixe que lhe diga que, contra a maldade e a má-língua, não há nada a fazer.

- Não me trate dessa maneira paternalista! - exclamou Hennessy, subitamente furioso. - Acontece que me preocupo mesmo! Acredito no que o senhor diz! Quero que as pessoas o oiçam! Mas não quero a minha Igreja aviltada na praça pública.

- Desculpe! - disse Jean Marie, num tom pesaroso. - Eu avisei-o. Não me modifiquei para melhor.

- Pelo menos tem fogo nas entranhas - disse Hennessy com um sorriso amargo. - Da próxima vez terei mais cuidado com as palavras.

Chegou o maquilhador: um homem corpulento, escuro e barbado que parecia um profeta do Antigo Testamento e tinha a mesma eloquência e tom peremptório. O disfarce, explicou detidamente, era uma questão de ilusão. A maquilhagem complicada era para o palco ou para a tela. Muito poucas mulheres sabiam usar os cosméticos como deviam, apesar de os aplicarem todos os dias. Rolf Levandow não esperava certamente que um homem de 65 anos fizesse uma maquilhagem eficiente. Portanto, vejamos! Cabeça para este lado, e para aquele! Mal empregado modificar o cabelo. Seria como que uma mutilação. Era de presumir que Jean Marie não fosse inscrever-se em nenhum concurso de elegância. Por outro lado, não poderia passar por um operário, com aqueles ombros estreitos, a barriga lisa e as mãos macias. Pois bem! Um professor reformado, um crítico de revistas, alguém no campo das artes! Mais uma vez, a ideia era criar uma identidade local, de tal modo que o homem que estava do outro lado do balcão do bar e a rapariga do quiosque dos jornais e o criado da brasserie fossem capazes de jurar que ele era familiar e seguro. Por fim, Jean Marie deu por si a observar num espelho um académico ligeiramente gasto, que usava uma boina basca, um pince-nez de oiro com uma fita de moirée e um par de bochechas postiças que lhe davam uma certa cara de coelho. Conforme o maquilhador explicou, uma revista debaixo do braço ajudaria; poderia também usar ou não uma bengala barata; e era aconselhável um certo ar de parcimónia, como por exemplo contar as moedas de uma pequena bolsa de couro. O hábito se encarregaria de sugerir outros aperfeiçoamentos. Deveria tentar divertir-se com isso como se de um jogo se tratasse. Se quisesse mudar, por qualquer razão, também se podia arranjar. Era frequente a pessoa aborrecer-se de uma única identidade. Ele deixaria o cartão...

- Acabe com isso, Rolf! - disse Hennessy. - O meu amigo e eu temos muito que fazer. Eu acompanho-o até à paragem dos táxis.

Quando ele regressou, Jean Marie estava a examinar-se ao espelho. Hennessy riu-se.

- Resulta, não é verdade? Eu bem lhe disse que ele era o melhor. E o senhor não faria nada mal em manter-se em contacto com ele... por outras razões além da maquilhagem.

- Ah, sim?

- É um agente israelita, membro do Shin Beth. Este trabalho é uma cobertura útil. Viaja muito com gente do cinema e faz trabalhos regulares para a televisão francesa. Reconheceu-o imediatamente. Diz que os israelitas estão receptivos em relação a si. Eles compreendem os profetas no exílio! Quem sabe, pode ser que o ache útil. Tenho de ir andando.

- Quando é que volto a ter notícias suas?

- Assim que houver alguma coisa a comunicar. Continue a trabalhar nas cartas.

- Vou continuar. Posso pedir-lhe um pequeno favor?

- Com certeza!

- Deixe-me acompanhá-lo até ao quai. Tenho de acostumar-me a este tipo novo de boina e pince-nez!

Era o mais simples dos prazeres caminhar ao longo do rio, observando os esperançosos pescadores, os amantes de mão dada, os turistas nos bateaux mouches e os esplendores do ocaso a derramar-se no grande edifício cinzento que era Notre-Dame. Além disso, havia qualquer coisa de divertimento infantil naquele jogo do disfarce. Comprou, por um punhado de francos, um volume em mau estado de Lês Trophées e uma bengala com uma cabeça de cão no cabo. Assim protegido, como que por uma capa que lhe conferisse a invisibilidade, continuou a deambular, alegre como qualquer cavalheiro das letras que, mesmo apertado pela inflação, ainda assim retirava o melhor do outono da vida.

Era uma fantasia agradável e transportou-o até à última cerimónia da tarde, altura em que se instalou sob o toldo de uma esplanada, mandou vir café e um pastel e dividiu a atenção entre os transeuntes e a poesia lapidar de José Maria de Herédia. Descobriu que o velho parnasiano tinha resistido bem ao tempo e ele próprio ainda se comovia com o último momento pungente entre António e Cleópatra na véspera da batalha de Accio:

Et courbé sur elle, l'ardent impérator

Voyait, dans sés yeux clairs étoilés de points d’or,

Toute une mer immense ou fuyaient dês gdlères.

A beleza grave e fatídica da imagem quadrava bem com o seu próprio estado de espírito elegíaco. Afigurava-se uma blasfémia o simples acto de imaginar a ruína de Paris, aquela cidade tão humana, a extinção de todas as suas serenas belezas. E no entanto, quando chegasse o “dia do Rubicão”, a sentença seria irrevogável; e qualquer pessoa que tivesse vivido em Roma sabia quão frágil era a estrutura do maior dos impérios e quão silenciosos eram os mortos nas suas urnas e catacumbas. Foi então que ouviu a voz. Provinha de um ponto próximo, à sua esquerda, e tratava-se de um vigoroso barítono americano a expor a arte do bouquinage:

- Uma pessoa não se dedica a ela como se estivesse a revolver o sótão da casa da avó. Tem de decidir-se por uma série de obras impressas que realmente gostaria de possuir. Não importa que elas sejam tão raras como os dentes nas galinhas. Trata-se apenas do ponto de partida. O homem fica a saber que as nossas intenções são sérias, que temos dinheiro para gastar e que será compensador para ele perder tempo e mostrar-nos o que tem escondido por debaixo do balcão. Foi assim que agi na Alemanha e...

Enquanto o monólogo se arrastava, Jean Marie procurou dinheiro na carteira e voltou lentamente a cabeça como que para chamar um criado. Lembrou-se da máxima de Rolf Levandow. O disfarce era uma ilusão. Mesmo que alguém pensasse ter reconhecido a pessoa disfarçada, era, não obstante, despistado pela fisionomia pouco familiar. A pessoa tinha de fazer valer isso, fitá-lo fixamente até esse alguém baixar a vista, mostrar má cara no caso de ele cumprimentar.

Alvin Dolman estava sentado à mesa adjacente, embrenhado numa conversa com uma mulher jovem que envergava um vestido de Verão, de algodão, de cor viva. Quando Jean Marie ergueu a mão para pedir a conta, Dolman ergueu a vista. Os olhares de ambos encontraram-se. Jean Marie lembrou-se de que usava pince-nez e que, muito provavelmente, Dolman não conseguiria distinguir-lhe os olhos. Voltou-se lentamente noutra direcção; depois, como que impaciente por sair dali, enfiou uma nota de dez francos por debaixo do pires, recolheu o livro e a bengala e abriu caminho por entre as mesas, passando pela de Dolman, em direcção à rua. Misericordiosamente, Dolman não tinha cessado o monólogo.

- Ora bem, uma pessoa tem de ter em mente o género de coisas que normalmente aparece nos livreiros. Conheci hoje um tipo (o que está ao lado do sítio onde você se encontra instalada) que é especializado em desenhos de bailado. Não é o meu campo, mas...

...Mas o espírito maligno estava em Paris e Jean Marie Barette era capaz de arriscar algumas interpretações perturbantes sobre a sua missão actual. A dez passos da esplanada, deixou cair o livro no passeio. Ao inclinar-se para o apanhar, olhou para trás. Alvin Dolman estava ainda em grande conversa com a rapariga. Parecia ter feito alguns progressos. Agora segurava-lhe a mão. Jean Marie Barette fez votos por que ela fosse suficientemente colaborante para mantê-lo interessado: pelo menos até ele próprio estar a salvo na sua toca.

Quando chegou, tinha um recado. A madame chegaria tarde a casa. Ele que encomendasse o que quisesse para o jantar. Decidiu-se por café e uma sanduíche de frango, que comeria no quarto. Depois tomou banho, vestiu o pijama e o roupão e começou a trabalhar noutra carta. Agora estava a tratar da mais polémica das questões: as divisões em questões de fé entre os homens e mulheres de boa vontade.

Querido Deus:

Se és o princípio e o fim de tudo, por que não nos deste a todos oportunidades iguais? Num circo - sabes? - as nossas vidas dependem disso. Se os que montam as armações cometerem um erro, o artista do trapézio morre. Se o homem do explosivo de artifício não o faz como deve ser, eu perco a vista.

Porém, parece que Tu não encaras as coisas assim. Um circo viaja, de modo que temos oportunidade de ver como as outras pessoas vivem; e refiro-me a boas pessoas, que se amam umas às outras e amam os seus filhos e merecem realmente que lhes faças um afago na testa.

Ora o que eu não consigo perceber é isto. Tu sabes tudo. Foste Tu que fizeste tudo. Mas toda a gente Te vê de maneira diferente. Chegas mesmo a permitir que os Teus filhos se matem uns aos outros, só porque têm uma visão diferente do Teu rosto na janela!... Por que razão usamos todos marcas diferentes para se dizer que somos Teus filhos? Eu fui borrifado com água porque os meus pais eram cristãos. Ao Louis, o domador de leões, tiraram-lhe um pedacinho do pénis porque é judeu. A Leila, a rapariga preta que faz o número das serpentes, usa amonita à volta do pescoço, porque é a pedra mágica das serpentes. E apesar disso, quando o espectáculo termina e nos sentamos todos à mesa da ceia, cansados e famintos, vês grandes diferenças entre nós?  Importas-Te com isso? Ficas realmente muito zangado quando o Louis, que está a ficar velho e medroso, se vai meter à sorrelfa na cama da Leila, para ter um pouco de consolo, e a Leila, que no fundo é bastante feia, fica contente com isso?

Julgo lembrar-me de que o Teu Filho gostava de comer e beber e conversar com gente como nós. Gostava de crianças. Parecia compreender as mulheres. É uma pena ninguém se ter dado ao trabalho de registar grande coisa das conversas que ele mantinha com elas: meia dúzia de palavras com a mãe, e o restante era principalmente com raparigas com as quais, de uma maneira ou de outra, tinha contacto directo.

O que estou a tentar dizer é que vais fechar o mundo sem realmente nos dares uma oportunidade de ultrapassarmos as limitações que nos deste. Tenho de dizer isto. Não seria honesto se deixasse a questão em claro. Algures lá para cima, perto do Pólo Norte, há uma velha sentada num bloco de gelo flutuante. Não sofre. Está a desaparecer lentamente. Foi a família que a pôs lá. Ela resigna-se, porque foi sempre assim que se preparou a morte para os velhos. Tu sabes que ela está lá. Tenho a certeza de que estás a tornar-lhe as coisas fáceis - mais fáceis, talvez, do que para qualquer outra pobre velhota numa clínica muito cara. Mas nunca nos disseste claramente qual é a situação que preferes. Quero acreditar que seja aquela onde há mais amor!

Por outro lado - tenho de dizer-Te isto -, estive hoje sentado num café. Junto de mim estava um homem que eu sei ser verdadeiramente habitado pelo espírito do mal. É traiçoeiro. É destruidor. É um assassino. Como o julgarás? Como darás a conhecer o julgamento a nós, os outros? É que temos o direito de o saber. Eu não tenho filhos, mas, se os tivesse, não seriam unicamente coisas com as quais brincar, pois não? A própria vida lhes conferiria direitos - pelo menos de acordo com os nossos mesquinhos padrões. Não gostaria nada de acreditar que os Teus fossem de algum modo mais baixos.

Portanto, peço-Te o favor - sei que esta noite estou a insistir demasiado, mas estou cansado e com medo do homem mau de voz alegre e sorriso doce -, peço-Te o favor de me dizeres como e quando vais assistir ao julgamento do Criador contra a Criatura - ou deverá ser o oposto? Ou quem sabe se não poderás cancelar tudo e transformá-lo num banquete de amor?

É estranho! Nunca me ocorreu perguntá-lo antes. Tu podes, ó Deus, mudar de ideias? Se não, por que não? E, se podes, por que não o fizeste antes de nos metermos todos nesta terrível embrulhada? Desculpa se pareço grosseiro. Não era essa a minha intenção.

Uma vez mais, sem aviso prévio, estava no alto do cume, entre os montes sombrios do planeta morto. Uma vez mais estava vazio, sozinho, preso de uma insuportável tristeza, uma pena, como se fosse ele e apenas ele o autor de toda a desolação que o rodeava. Não havia suspensão, apelo ou perdão. Não haveria arrebatamento, nem impetuoso turbilhão, nem requintada agonia de união com o Outro. Ele próprio era o centro morto de um cosmo morto. Não podia chorar. Não podia enraivecer-se. Podia apenas saber que aquilo era tudo o que havia para saber: ele próprio ancorado a um rochedo árido no deserto da eternidade.

Subitamente sentiu um toque na carne, um puxão nos dedos pendentes. Baixou os olhos. Era a rapariguinha do Instituto, o pequeno palhaço de Deus, com o seu sorriso inexpressivo e confiante. O coração dele fundiu-se no dela. Ergueu-a e apertou-a contra si. Ela era a sua centelha de vida; ele, a última protecção de contra o vácuo de um planeta frio.

Não podiam permanecer ali no cume. Devia haver grutas que lhes servissem de abrigo. Começou a caminhar, tropeçando pelo declive escuro e pedregoso. Sentia a face da criança contra a sua e a sua respiração morna, como um leve vento, agitar-lhe os cabelos. Enquanto caminhava, a nascente de emoção começou a fluir de novo. Deu-se conta de piedade, terror e ternura e de uma violenta raiva contra o Outro, que ousara abandonar aquela pequena criatura desamparada num lugar que era nenhures.

Chegou por fim à boca de uma caverna dentro da qual, por mais estranho que fosse, distinguiu uma ténue luz, como a de uma estrela reflectida na água escura de um pequeno lago da montanha. Apertou a criança cada vez mais a si, como se quisesse cobri-la com a couraça da sua própria pele, e encaminhou-se a passos largos para a luz. Esta foi-se tornando maior e mais brilhante, até que o deslumbrou, obrigando-o a fechar os olhos e a manter-se muito quieto, como um cego num lugar novo. Foi então que ouviu a voz, potente, tranquila e suave:

- Abre os olhos.

Assim fez, e viu, sentado numa saliência rochosa, ao lado de uma pequena fogueira, um jovem da mais extraordinária graciosidade. Afora uns calções e sandálias, estava nu. O cabelo, doirado e abundante, estava apanhado atrás com uma fita de linho. Ao lado dele, no rochedo, estava uma escudela de pão e uma malga de água. Estendeu os braços e disse:

- Eu fico com a criança.

- Não!

Jean Marie sentiu um súbito acesso de medo e recuou até ficar encostado à parede mais afastada. Deixou-se escorregar até ficar sentado e embalou a criança nos braços. O jovem ergueu-se e ofereceu o pão e a malga. Quando Jean Marie recusou, ele começou a dar à criança pedaços de pão e pequenos golos de líquido. De quando em quando afagava-lhe a face e afastava-lhe o cabelo dos olhos. Voltou a pedir:

- Por favor, deixa-me segurar nela.  Não lhe acontecerá mal nenhum.

Pegou na criança e executou uma pequena dança com ela, até ela se rir, afagar-lhe o rosto e beijá-lo. Nessa altura, repentinamente, deixou de ser mongolóide, adquirindo a perfeição e a beleza de uma princesinha.

O jovem ergueu-a para que a admirassem. Sorriu para Jean Marie e disse-lhe:

- Estás a ver?   Ponho todas as coisas como novas!

- Onde está todo o resto?   As flores, os animais, as pessoas?

- Aqui!

Ergueu a criança sobre a cabeça. Esta abriu os braços, estendendo as mãos. As paredes da caverna dissolveram-se numa paisagem de prados, pomares e ribeiras, prateados sob a luz do Sol.  O jovem disse em tom de censura:

- Tens de compreender.  O princípio e o fim são um só. O viver e o morrer são um único acto porque a vida se renova com a morte.

- Então por que razão há-de ser tão terrível morrer?

- É o homem que cria os seus terrores, e não eu.

- Quem és tu?

- Sou quem sou.

- Nunca compreendi isso.

- Não deves tentar. Acaso a flor argumenta com o sol, ou o peixe com o mar? É por isso que és um palhaço e partes coisas e eu tenho de voltar a pô-las inteiras.

- Desculpa. Eu sei que estrago tudo. Agora vou-me embora.

- Não queres beijar a tua filha?

- Sim, por favor! Posso?

No entanto, quando estendeu os braços para pegar na bela criança, ela não estava lá. O homem, a rapariga, a caverna e os prados mágicos, tudo tinha desaparecido. Regressara ao seu quarto. Roberta Saracini estava de pé junto à secretária, com um tabuleiro nas mãos.

- Vi luz por debaixo da porta e pensei que lhe agradaria um chocolate quente antes de ir para a cama. Quando entrei, estava a dormir à secretária.

- Tive um grande dia... por diversas razões. Que horas são?

- Passa pouco das dez.

- Obrigado pelo chocolate. Que tal foi a sua noite?

- Muito interessante! Fomos convidados para participar no financiamento de um novo projecto industrial em Xangai. A delegação financeira chinesa ofereceu-nos uma recepção na Embaixada. O nosso grupo é misto: britânico, suíço, americano e, claro, um consórcio de banqueiros da Comunidade Económica Europeia. Os chineses são muito espertos. Querem um leque de investimentos tão vasto quanto possível. Também julgam que a guerra é inevitável e têm programas de choque para empresas que possam fabricar material militar. Durante a conversa sobre a guerra o seu nome veio à baila.

- Como?

- Deixe-me ver se consigo recordar exactamente. Ah, já sei. Os americanos estavam a falar sobre períodos de risco e incidentes despoletadores que poderiam dar origem a uma guerra... O “dia do Rubicão”, no fim de contas! Não fazem segredo do facto de considerarem os Chineses seus aliados naturais. Efectivamente, tenho a certeza de que um ou dois da delegação deles eram indivíduos ligados às Informações. Seja como for, um homem chamado Morrow, que já foi secretário de Estado mas agora trabalha na Morgan Guarantv, referiu as suas profecias e os artigos acerca da sua abdicação. Perguntou aos chineses qual era a opinião deles sobre o seu grau de rigor. Um deles, um director do Banco da China, riu-se e disse: “Se ele é amigo dos Jesuítas, não tenho a menor dúvida de que é rigoroso.” Recordou-nos de que foi o jesuíta Matteo Ricci quem pela primeira vez introduziu na China o relógio de sol, o astrolábio e o método de extrair raízes quadradas e cúbicas de números inteiros e fraccionários. Ficou muito interessado quando eu disse que o conhecia e até era uma das pessoas que administrava as suas propriedades.

Jean Marie lamentou em silêncio a indiscrição. Queria dizer qualquer coisa mas estava cansado e, fosse como fosse, o mal estava feito.

Roberta Saracini continuou:

- O Morrow disse que gostaria de voltar a vê-lo. Ao que parece, tiveram contactos no Vaticano. Eu disse-lhe que o senhor contactava comigo de quando em quando e que lhe transmitiria o recado.

- Minha querida Roberta! -Agora tinha mesmo de falar e não conseguia moderar as palavras. - Estou-lhe profundamente grato por todo o seu auxílio, mas acaba de cometer uma monumental loucura. Os Franceses querem-me sob vigilância. Esta tarde estive a um passo do agente da C. I. A. que tentou matar o Mendelius. Ainda não sei se ele me reconheceu. Agora você, numa reunião diplomática, anuncia que é administradora dos meus bens e que eu (passo a citar) contacto consigo de quando em quando. A partir de amanhã o seu telefone estará sob escuta e a sua casa vigiada. Tenho de me mudar! Esta noite! Quanto tempo leva daqui até ao aeroporto?

- A esta hora... quarenta minutos. Mas para onde?

- Não sei e é melhor que você também não saiba. Amanhã logo de manhã comunique com o Hennessy e com o meu irmão Alain. Diga-lhes que entrarei em contacto com eles assim que puder. Tenho de fazer as malas.

- Mas as Cartas, todo o projecto...

- Depende de mim! Portanto preciso de um lugar seguro e de comunicações asseguradas. É capaz de levar-me ao aeroporto? Os telefonemas para táxis podem ser localizados.

- Pelo menos deixe-me pedir-lhe desculpa.

Estava à beira das lágrimas. Ele tomou-lhe o rosto nas mãos e beijou-a de leve na face.

- Eu sei que não o fez com intenção. Meti-a num jogo perigoso e não se pode esperar que conheça todas as regras. Quando estiver instalado havemos de descobrir uma maneira segura de comunicar. Ainda preciso do seu auxílio.

- Vou tirar o carro da garagem. Despache-se a fazer a mala; os últimos aviões partem à meia-noite.

A julgar pelas aparências, um voo da meia-noite para Londres era uma loucura de desespero, mas, se ele pudesse lá chegar sem ser detectado, poderia estar em segurança enquanto trabalhava nas Cartas e procurar entre as velhas amizades alguém que acreditasse na sua missão e estivesse pronto a colaborar nela.

Sempre admirara os Britânicos, embora nunca os tivesse compreendido completamente. As subtilezas do seu humor escapavam-lhe com frequência e os seus snobismos irritavam-no sempre. Os seus hábitos dilatórios em questões comerciais nunca deixavam de espantá-lo. No entanto, eram pessoas de amizades e inimizades duradoiras. Tinham sentido histórico e uma certa tolerância para com os doidos e os excêntricos. Podiam ser ávidos da posse de terras, mesquinhos no tocante a dinheiro e capazes de extraordinárias crueldades sociais, e não obstante apoiavam grandes obras de caridade, eram humanos para com os fugitivos e consideravam a vida privada como um direito, e não como um privilégio. Desde que se lhes apresentasse uma causa que eles compreendessem, desde que se pusessem em perigo liberdades a que eles dessem valor, sairiam para a rua aos milhares ou caminhariam com solitária dignidade para o cepo do carrasco.

Por outro lado - e ele admitia-o com forçada ironia -, como Gregório XVII nunca fora um grande êxito perante os Britânicos. Ao longo dos séculos, eles tinham desenvolvido uma relação de trabalho com os Italianos, cujas obras de arte compravam, cujas modas imitavam e cujo talento para a alta retórica e para o acordo impreciso era característica sua. Por outro lado, encaravam os Franceses como um bando de fulanos susceptíveis, teimosos, arrogantes e politicamente imorais, que viviam bastante mais perto do que seria agradável e tinham um gosto incómodo pela grandeza e uma habilidade cínica para a atingir.

Assim sendo, para sua singular pena e ocasional irritação, Jean Marie tinha feito boas amizades mas exercido pouca influência nas Ilhas Britânicas. Por fim, fora com satisfação que deixara a condução da Igreja local ao cardeal Matthew Hewlett, que, conforme dizia um dos seus colegas da Cúria, “é provavelmente o homem menos perigoso para o cargo. Tem devoção sem ardor, inteligência sem talento, nunca estabelece uma discussão desde que possa evitá-la e não possui quaisquer vícios redentores.” Hewlett nunca tinha entrado para Os Amigos do Silêncio; no entanto, no fatídico consistório, havia votado a favor da abdicação e justificara-o com um sofisma característico: “Se o nosso pontífice é um louco, ficamos bem livres dele. Se é um santo, não o perderemos. Não vejo qualquer problema. Quanto mais depressa ele se for, melhor!”

Bem vistas as coisas, o cardeal Matthew Hewlett não era a pessoa mais indicada a quem telefonar às duas da manhã pedindo cama e pequeno-almoço. Assim, com a ajuda de um motorista de táxi, Jean Marie Barette encontrou alojamento num hotel aceitável em Knightsbridge e dormiu sem sonhos até ao meio-dia.

 

Havia pavões no relvado, cisnes no lago e o tom doirado do princípio do Outono nos bosques quando Jean Marie Barette penetrou no jardim da mansão com um homem no qual muito confiara durante o seu pontificado, e que agora iria tornar-se o seu primeiro editor em língua inglesa: Waldo Pearson, católico de longa data, em tempos secretário dos Estrangeiros no gabinete conservador e hoje em dia presidente do conselho de administração da Greenwood Press.

Adrian Hennessy encontrava-se também presente, com a sua pasta de ilustrações, discos das Cartas em francês e inglês e gravações completamente orquestradas do tema para o Palhaço Joãozinho, composto por Florent de Basil. Trouxera igualmente um documento autenticado do Banco Ambrogiano all'Estero, garantindo a soma inicial de meio milhão de libras, a título de financiamento da promoção e exploração das Ultimas Cartas de Um Pequeno Planeta. Jean Marie arriscou o comentário irónico de que talvez o dinheiro fosse mais eloquente do que o autor. Waldo Pearson rejeitou-o glacialmente:

- Estamos muito próximos da época em que o dinheiro deixará de ter qualquer significado. Num conflito nuclear, arriscamo-nos a perder dois terços da população destas ilhas. Não há governo que possa estar à altura dessa catástrofe... nem Igreja, conforme descobriu! Portanto, por uma questão de política, preferem ignorá-la. Nas Cartas, o senhor descobriu uma maneira de falar do terror que se nos depara sem criar pânico ou contencioso. Será julgado como um profeta e não como um banqueiro.

- E bem me agrada ouvi-lo dizer isso, Waldo! - exclamou Hennessy com o seu mais cerrado sotaque irlandês. - Porque sou eu quem representa os banqueiros e você não vai ver nem um dólar enquanto não mostrar a qualidade da sua publicação e promoção!

- Já lho disse antes. - Pearson estava resolvido a deixar todas as suas reservas expressas. - Esperamos uma distribuição excepcional. O adiantamento que estamos a pagar demonstra-o bem. A publicação em folhetins pelos jornais também ajudará... bem como, evidentemente, os fundos para publicidade que você põe à disposição. Mas, ainda assim, continua a pedir-me que lute com uma das mãos amarrada atrás das costas! Nada de televisão, nem entrevistas, nem revelação da identidade do autor! Para mim, não faz sentido.

Antes que Hennessy tivesse oportunidade de responder, Jean Marie meteu-se na discussão:

- Por favor! Existem boas razões. Se a minha identidade for conhecida, poderá dar a ideia de colocar-me em conflito com o actual pontífice. Não pretendo tal coisa. Mais: estou a escrever correspondendo ao que penso ser uma ordem divina. Tenho de firmar-me nesse acto de fé e dar-me por satisfeito com o facto de a árvore ser reconhecida pelos seus frutos. Finalmente, a única coisa que posso controlar é a integridade do texto publicado. Não posso colocar-me à mercê de entrevistadores capazes de desvirtuar a minha mensagem através de relatos falsos, preconceituosos ou incompetentes.

- Em resumo, Waldo - disse Hennessy, sorrindo como um duende feliz-, nem pensar! Não há hipótese!

Waldo Pearson encolheu os ombros.

- Bem, não se perdeu nada por tentar! Quando é que podemos contar com o manuscrito pronto?

- Daqui a duas semanas.

- Óptimo! O autor está satisfeito com as traduções inglesas ?

- Estou, sim. São fluentes e rigorosas ao mesmo tempo. Poderemos mudar de assunto por um instante? Há outra coisa acerca da qual gostaria de ouvir a sua opinião.

- Com certeza!

- Há diversas pessoas em Inglaterra que eu recebi quando ocupei a cátedra. Poderá arranjar maneira de eu voltar a encontrar-me com elas... e permite que eu tenha os encontros aqui em sua casa? - Antes que Pearson tivesse tempo de responder, prosseguiu, explicando-se: - Estou a viver num hotel modesto sob um nome suposto. Não posso convidar personalidades conhecidas para semelhante lugar; no entanto, penso que ainda posso ser útil na crise que se nos depara a todos. Por exemplo, Sergei Petrov pediu-me para servir de mediador na questão do embargo cerealífero. Porém, não tenho maneira de saber se serei aceite por quaisquer outras partes. O senhor ocupou um cargo governamental, Mr. Pearson; qual seria a sua reacção à minha pessoa?

- É difícil de dizer. - O Pearson político era um animal com mais pruridos do que o Pearson editor. Começou a pensar em voz alta. - Vejamos os prós e os contras. O senhor é um chefe derrotado, um sacerdote católico romano, um francês, um profeta autodesignado... Tudo pontos fracos para um negociador político no mercado dos nossos dias! Jean Marie riu-se, mas não fez qualquer observação. Pearson prosseguiu a sua contabilidade:

- Quanto a argumentos pró, que temos nós? É um diplomata experiente. Não pode ter ambições pessoais; o seu bom comportamento após a abdicação não passou despercebido! É um agente livre. A dissertação que Rainer e Mendelius escreveram sobre o senhor contribuiu em parte para desmis-tificar o seu misticismo. - Deu uma risada com o seu próprio trocadilho de colegial. - Portanto, somemos tudo. Se eu fosse secretário dos Estrangeiros, recebê-lo-ia com toda a certeza. Se me dissesse que os Russos o tinham convidado para servir de mediador numa questão comigo, ficaria muito céptico. O meu raciocínio seria o seguinte. O senhor é, à primeira vista, um corretor honesto. De uma maneira ou de outra, perguntaria a mim próprio se os Russos não o teriam metido na algibeira ou por que razão não teriam escolhido alguém com mais força no mercado. A seguir pensaria que, se eles estavam desesperados ao ponto de usarem uma pessoa de fora como o senhor, haveríamos de ser capazes de conseguir uma boa contrapartida. Assim, vistas bem as coisas... sim! Recebê-lo-ia com interesse... e afastá-lo-ia do caminho o mais depressa possível!

- Faz sentido - disse Jean Marie. - Agora, voltemos à minha primeira pergunta. Estaria na disposição de me arranjar uns tantos encontros... aqui em sua casa?

- Com certeza! Diga-me quem quer, que eu convido-os a vir cá. Peço-lhe que não se esqueça de que o senhor tem também a porta sempre aberta.

- Há outra coisa de que não deve esquecer-se - disse Hennessy, embaraçado. - Se não quer revelar-se como autor das últimas Cartas, como é que vai explicar a sua presença em casa de um eminente editor britânico?

- Não explicamos coisa nenhuma - interrompeu vivamente Pearson. - Deixo escapar a informação de que estamos a discutir um possível livro. Não há dúvida de que eu gostaria de levantar a questão de uma autobiografia.

- Receio bem - disse Jean Marie - que se trate de um projecto para o qual não tenho inclinação nem tempo.

- Existem outros que poderão interessá-lo. Há anos que ando a tentar encontrar alguém que me possa escrever um livro claro e sem retórica acerca da natureza da experiência religiosa. Estamos a assistir em Inglaterra a um fenómeno que merece mais atenção do que aquela que lhe está a ser dada. Enquanto as igrejas tradicionais estão a perder sacerdotes e fiéis a um ritmo alarmante, os cultos florescem. Se me dão licença, vou mostrar-lhes uma coisa.

Fê-los dar a volta à esquina da casa até chegarem a um local em que uma clareira do bosque revelava uma colina de pastagens, ao fim da qual, empoleirada num pequeno monte arredondado, estava uma ampla mansão de estilo pseudoclássico do século XVI. A observação de Pearson foi viva, mas triste.

- Aquela casa, por exemplo! Pertencia a um bom amigo meu. Agora, é o quartel-general de um grupo que se intitula Família dos Sagrados. Trata-se de um culto como os moonitas, os Soka Gakkai, os Hare Krishna. São muito activos no recrutamento de adeptos. Têm um regime de condicionamento muito forte, baseado em trabalho excessivo e vigilância contínua sobre os neófitos. Muitos jovens sentem-se atraídos para eles. São muito ricos. Como alguns dos outros grupos, estão presentemente a prevenir-se, armazenando comida, medicamentos e armas, para o “dia do Arma-gedão”. Se sobreviverem, eles e outros como eles poderão vir a ser os barões beligerantes da era pós-nuclear. Foi disso que a Igreja Católica teve medo quando o senhor quis publicar a sua encíclica. O Matt Hewlett trouxe uma cópia de Roma. Veio aqui propositadamente para falar comigo a esse respeito. Colocou-se de pé nesse mesmo lugar onde o senhor está e disse: “É para onde Gregório XVII nos vai levar, mesmo que ele não o compreenda: a cristandade cromwelliana, com chuços, mosquetes e tudo isso!”

- E o senhor acreditou nele?

- Na altura, acreditei.

- E que foi que aconteceu para o fazer mudar de ideias ?

- Várias coisas. Tendo-me dedicado à política e visto como é difícil fazer com que a democracia funcione, senti-me muitas vezes tentado por ditaduras de um ou outro tipo. Como editor, tenho visto de que maneira as pessoas podem ser condicionadas no tocante a hábitos e pontos de vista. Muitas vezes, o que lamento, deixei-me seduzir por exercícios de manipulação na política e no comércio. Depois o Hennessy trouxe-me as suas primeiras cartas. Há uma passagem da quarta carta que decorei: “Quando um homem se torna palhaço, oferece-se gratuitamente aos espectadores. Para lhes conferir a graça redentora do riso, sujeita-se a ser escarnecido, ensopado, esbofeteado, enganado no amor. O Teu Filho sujeitou-se da mesma maneira quando foi coroado como rei fingido e os soldados lhe cuspiram vinho e água no rosto...

A minha esperança é que, quando ele vier de novo, seja ainda suficientemente humano para verter uma suave lágrima de palhaço sobre os brinquedos partidos... que outrora foram mulheres e crianças.”

Pearson interrompeu-se, como que embaraçado, e ficou durante um longo instante a olhar, por sobre as ondulações de terra cobertas de verdura, para a mansão. Por fim admitiu, estranhamente emocionado:

- Creio que se poderia dizer que foi o momento da minha conversão. Fui sempre um cristão praticante... mas só porque mantinha o espírito resolutamente fechado às mais horripilantes consequências da crença: como um universo em que os animais, para viver, se devoram uns aos outros, e os torturadores são funcionários públicos, e a melhor oferta à humanidade agonizante é “Ergue a tua Cruz!”... Porém, por qualquer razão, as suas palavras conseguiram libertar-me desse desespero de crença e puseram-me outra vez a interrogar-me, encarando com novos olhos um mundo de pernas para o ar!

Adrian Hennessy manteve-se calado. Puxou de um lenço e começou a limpar vigorosamente os óculos.

Jean Marie Barette disse com uma suavidade séria:

- Sei o que sente, mas trata-se de uma alegria bem frágil. Não se apoie muito nela, senão pode desfazer-se sob o seu peso.

Pearson deitou-lhe um rápido olhar de quem apalpa terreno:

- Surpreende-me! Sempre pensei que desejaria compartilhar da alegria, por mais frágil que ela seja.

Jean Marie ergueu uma das mãos, em sinal de desaprovação:

- Por favor, não me interprete mal! Fico sinceramente feliz quando alguém recebe o dom da compreensão que dá um novo significado à sua profissão de fé. Estava simplesmente a alertá-lo, com base na minha experiência, para o facto de o conforto que neste momento sente poder não ser duradouro. A fé não é uma questão de lógica; e o instante da intuição nem sempre se repete. Uma pessoa tem de estar preparada para longos períodos de escuridão e, muitas vezes, para uma destruidora confusão!

Waldo Pearson manteve-se silencioso por momentos; depois, com uma surpreendente franqueza, disse a Hennessy:

- Adrian, quero falar com o nosso amigo em particular. Por que não nos deixa sozinhos durante algum tempo?

- Não há qualquer problema! - replicou Hennessy, mostrando-se imperturbável. - Vou pegar no carro e beber um copo com a gente da terra na Cabeça de Pileca! Falem daquilo que vos apetecer, menos de contratos. Isso é comigo! Waldo Pearson conduziu Jean Marie até à orla do lago, onde um par de cisnes flutuava serenamente para dentro e para fora dos canaviais. Começou a explicar-se estrecortadamente:

- Estamos no começo de... bem... de uma relação bastante íntima. O autor e o editor nunca podem viver satisfatoriamente mantendo uma certa distância entre si; pelo menos quando se trata de um autor como o senhor e de um editor como eu. Ainda agora, senti, bem ou mal, que havia qualquer coisa de importante por dizer entre nós. Pareceu-me estranho que sentisse a necessidade de alertar-me acerca da minha... da minha saúde espiritual.

- Estava igualmente preocupado com a minha - disse Jean Marie. - Não seria preciso grande coisa, neste momento, para me convencer de que sou vítima de uma monstruosa alucinação.

- Acho difícil acreditar nisso. O senhor tem sido de uma grande inflexibilidade nas suas convicções. E cedeu tanta coisa! Além disso, escreve com tão profunda emoção!

- Apesar disso, é verdade. - Jean Marie arrancou um junco do lago e começou a desfiá-lo sem cessar enquanto falava. - Há três semanas que estou em Inglaterra. Vivo num hotel confortável que dá para uma praça antiquada, com um jardim no meio onde as crianças brincam e as jovens mães levam os bebés a passear. Trabalho durante a manhã. À tarde passeio. À noite rezo e deito-me cedo. Sinto-me muito livre, muito descontraído. Até fiz amizades. Há um cavalheiro de idade, judeu, que leva o neto a jogar à bola no jardim. É extraordinariamente versado na tradição rabínica. Quando descobriu que eu sabia hebraico, pouco faltou para que começasse a dançar de alegria. Na sexta-feira passada convidou-me para a ceia do sabat em casa dele. Depois há o concierge, que é italiano e falador e está sempre pronto para a mexeriquice. Portanto, como vê, a minha vida é agradável e estou quase convertido a esta extraordinária equanimidade dos Britânicos... alguns dos quais acreditam, na verdade, que Deus é um inglês de gosto impecável que nunca deixa nenhuma trapalhada fugir completamente ao seu controlo. Porém, subitamente, apercebi-me de que se trata de uma tentação bastante insidiosa. Eu posso ser silenciado, não por inimigos, nem pelas autoridades... mas pela minha própria confortável indiferença! Posso acreditar que, pelo simples facto de ter escrito umas tantas páginas que vão ser amplamente divulgadas, dei completo testemunho e conquistei o direito de sonhar durante o resto do tempo até ao “dia do juízo final”. Isso é um dos lados da medalha. O outro é igualmente sinistro, embora de maneira diferente. Ao escrever as Ultimas Cartas de Um Pequeno Planeta, estou a exprimir-me a mim próprio, bem como a minha relação com Deus e com a família humana. Não estou a ensinar um conjunto de doutrina. Não estou a propor uma discussão teológica. Não sou um pastor preocupado com o bem-estar do seu rebanho. Não tenho cargo algum, compreende? Estou semi-laicizado; até celebro a eucaristia apenas para mim, o que na realidade tira bastante sentido ao acto sacramental... Então, de repente, abre-se um fosso sob os meus pés. Até enquanto escrevia aquelas linhas que tanto o comoveram, estava a pensar: “Será verdade? É nisto que realmente creio?”... Quanto ao fim da civilização, esse vejo-o eu realmente como possível e próximo. Mas a Parúsia, o “segundo advento”, que tornará novas todas as coisas...? Não sei como reconciliar-me com o conceito de um deus-homem, ressuscitado e glorificado, presidindo em eterna tranquilidade à agonizante dissolução da nossa residência terrena. Sempre que, agora, tento raciocinar sobre isso, cheira-me a sangue e vejo rostos de demónios dos frescos de templos antigos. Por vezes, gostaria de ser capaz de esquecer tudo isso e conversar com o meu velho rabi enquanto observamos as crianças a brincar...

- E, no entanto - disse calmamente Waldo Pearson -, não é isso que o senhor escreve. O que aparece na folha de papel é a conversa de uma criança confiante com um pai extremoso.

- Então, o que sou eu? - perguntou Jean Mane com um estranho tom patético, semi-irónico. - O imperturbável inglês, o incrédulo S. Tomás, o profeta alucinado ou o palhaço que é, ele próprio, na alma, uma criança?... Ou, quem sabe, talvez eu não seja nenhuma das coisas, mas algo de muito diferente.

- O quê, por exemplo?

Jean Marie esmagou os últimos pedaços do junco no punho, atirou-os à água e ficou a vê-los baloiçando na esteira dos majestosos cisnes. Passou-se um longo instante antes que respondesse à pergunta:

- Devotei-me a transformar-me numa cana pensante, submissa ao vento do espírito; mas uma cana é também um tubo oco através do qual outros homens podem tocar uma música que me é estranha.

Waldo Pearson pegou-lhe no braço e afastou-o do lago na direcção de uma antiquada estufa que se erguia encostada ao escalavrado muro de tijolos do jardim.

- As nossas uvas já estão maduras. Tenho muito orgulho nelas. Gostaria que experimentasse um cacho.

- Faz o seu próprio vinho ?

- Não. Estas uvas são de mesa. - Com a mesma naturalidade com que tinha desviado o assunto, Pearson voltou a ele. - Parece-me que aquilo que o senhor está a tentar explicar são os sintomas de uma crise de identidade. Eu compreendo. Já passei por isso. Depois de doze anos na câmara, dos quais cinco no governo, sentia-me perdido, desorientado, vazio... e creio bem que aberto à manipulação. É um pouco atemorizador; mas não senti, como parece ser o seu caso, que se tratasse de uma situação contaminada pelo mal.

- Eu disse tal coisa? - perguntou Jean Marie, girando nos calcanhares para o encarar. Estava surpreendido e preocupado. Porém, Pearson não recuou.

- Com tantas palavras, não, mas pareceu-me que o deu a entender. Falou numa “música que me é estranha”.

- Pois falei, tem razão. É o âmago da questão. Toda a literatura apocalíptica se refere a falsos profetas que iludem os eleitos. Será capaz de sentir o horror da ideia?... E se eu fosse um deles?

- Recuso-me a acreditar nisso por um momento que seja - disse Waldo Pearson com firmeza. - Se assim não fosse, não publicaria o seu livro.

- Tão-pouco eu acredito - disse Jean Marie. - Mas efectivamente sinto-me um campo de batalha, ainda em luta. Sinto-me atraído para uma indiferença segura. Sinto-me tentado a perder toda e qualquer fé numa deidade amorosa. Receio que a minha identidade nova e muito frágil possa repentinamente explodir em pedaços.

- Pergunto a mim próprio - disse Waldo Pearson, ao mesmo tempo que abria a porta de vidro da estufa das laranjeiras -, pergunto a mim próprio se essa sua rigorosíssima obediência não será um erro. A discórdia é saudável e necessária, até na Igreja, e o silêncio auto-imposto pode ser muito desmoralizador. Descobri isso no conselho de ministros. Uma pessoa tinha de desabafar, senão morria.

- Há uma certa diferença - disse Jean Marie, descontraindo-se e recuperando o bom humor. - No conselho de ministros não tinham de tratar com Deus.

- O diabo é que não tínhamos! - ripostou Waldo Pearson. - Estava sentado ali mesmo na cadeira do primeiro-ministro.

Riram-se ambos. Pearson cortou à tesoura um cacho de grandes uvas pretas, dividiu-o e ofereceu um punhado a Jean Marie, que as provou e fez um aceno de aprovação.

- Tenho uma proposta a fazer-lhe. - Pearson era adepto de rápidas mudanças de assunto. - O senhor precisa de um fórum e de um certo acesso às pessoas que neste país tomam as decisões. Quanto a mim, preciso de um orador substituto para um jantar no Carlton Club. Realmente tinha o primeiro-ministro, mas ele tem uma cimeira em Washington. Preciso de alguém com peso e interesse. É daqui a três semanas. É provável que nessa altura já tenha terminado as Cartas. Trata-se de uma função privada. Nada do que se diz lá é objecto de difusão... e essa regra nunca foi violada. Todos os membros pertencem àquilo a que vocês em Franca chamam “Lê Pouvoir”... embora sejam bastante menos drásticos no seu exercício. Posso contar consigo? O senhor far-me-ia um favor, e certamente pode propagar a mensagem.

- E sobre que falaria eu?

- Sobre a sua abdicação. Os motivos e as consequências. Quero ver a cara dos meus colegas quando lhes disser que Deus falou consigo! Não estou a brincar. Todos eles O invocam. Mas o senhor é o único homem que eu conheço que sustenta ter tido uma revelação particular e que colocou a cabeça no cepo para o testemunhar. Eles hão-de estar à espera de um beato de olhos esbugalhados! Diga-me que o fará!

- Muito bem. Se vou falar em inglês, tenho de escrever um texto. Será capaz de mo rever?

- Com certeza! Nem sei dizer-lhe a alegria que me dá. E está combinado que a razão da sua presença é o facto de estarmos a discutir planos para um livro, possivelmente vários livros?

- Combinado.

- Esplêndido! Agora, deixe-me falar-lhe destas uvas. A vinha foi plantada com rebentos trazidos da Great Vine de Hampton Court...

Foi tudo tão caracteristicamente britânico e subentendido que Jean Marie não se deu conta do significado do convite. Como estava mais interessado no folclore da propriedade de Waldo Pearson, só se lembrou de falar do Carlton Club a Adrian Hennessy quando já estavam a meio caminho de regresso a Londres. Hennessy ficou tão surpreendido que por pouco não guinou para fora da estrada.

- Meu Deus! A inocência do homem! Será que não percebe o que lhe aconteceu?

- Fui convidado para falar ao jantar num clube masculino - disse Jean Marie com benevolência. - Garanto-lhe que me portarei à altura da ocasião. Não é nem de longe tão grandiosa como uma audiência pública em S. Pedro ou uma visita papal a Washington!

- Mas pode ser um bom pedaço mais importante para si - disse irritadamente Hennessy. - O Pearson é uma velha raposa matreira. Convida-o para o Carlton Club, o baluarte dos políticos do partido conservador. Designa-o orador substituto do primeiro-ministro num dos três mais importantes jantares políticos do ano. Nunca lhe poderia faltar menos para ser canonizado pelos Britânicos. Se fizer um bom discurso (e desde que não caia redondo de bêbedo ou atire ossos de frango ao presidente), está garantido! Pode pegar num telefone e falar com quem quer que seja, sempre que lhe der na gana, de Whitehall ou Westminster... e não será nem pouco mais ou menos tão vulnerável como agora! Há-de espalhar-se pelas chancelarias que na Grã-Bretanha o senhor é uma espécie protegida. Isso terá efeito imediato em França, uma vez que tudo o que se passa no Carlton Club é estudado com todo o cuidado do outro lado da Mancha. O Petrov vai também saber disso, bem como os Americanos. Os membros do Carlton convidam as pessoas que pretendem formar.

- Hennessy, meu amigo, se alguma vez eu for reeleito, será o senhor o meu cardeal camerlengo!

- Se não alterar a regra do celibato, nada feito! No Renascimento ter-me-ia saído bem; mas não nos tempos que correm!... A propósito: como é que se vai vestir para o jantar do Carlton Club?

A pergunta apanhou Jean Marie de surpresa.

- Como é que me vou vestir?

- Precisamente. Todos os outros cavalheiros irão de smoking e laço. Como é que o senhor se vai apresentar: como sacerdote ou como leigo? Se for como sacerdote, vai levar algum distintivo de categoria? Uma gola vermelha, uma cruz peitoral? Se for como laico, é evidente que não pode ir com coisas alugadas a um guarda-roupa. Vejo que se ri, monsenhor; no entanto, o problema é importante. O protocolo francês é claro e terminante: tiquetaque e fica-se logo a saber quem é quem por ordem de precedência! Mas os Ingleses (Deus abençoe os seus pezinhos de lã!) fazem as coisas de outra maneira. Uma pessoa pode estar elegante e ser desprezada, como pode vestir andrajosamente e ser admirada, ou ser excêntrica e respeitada. Tratando-se de um génio, até pode levar nódoas de sopa do ano passado na lapela! Hão-de observá-lo com olhos de falcão para ver como o senhor se comporta na representação de guarda-roupa! - Guinou para o meio da estrada a fim de ultrapassar um gigantesco camião.

- O destino das nações pode estar dependente do corte do seu smoking.

- Nesse caso, vamos dar-lhe a atenção que ele merece - disse jovialmente Jean Marie. - Será capaz de me arranjar um bom alfaiate italiano? Preciso de alguém que tenha o sentido do teatro.

- O melhor - disse Hennessy. - Angelo Vittucci. É capaz de fazer com que um baço gordo pareça um mercúrio de collants. Levo-o lá amanhã. Sabe, monsenhor... - Enfiou pela auto-estrada e carregou a fundo no acelerador. - Estou a começar a gostar muito de si! Para um homem de Deus, possui um sentido de humor muito mundano!

- Lembre-se do que Pascal dizia: “Diseur de bons mots, mauvais caractere!”

- Porquê? - perguntou Hennessy, com enorme seriedade.

- Porque será que os indivíduos de mau carácter são as melhores companhias?

- Somos a mostarda na carne! - disse Jean Marie com um sorriso. - O mundo seria bem aborrecido se nada precisasse de ser consertado e ninguém precisasse de ser salvo! Iríamos ambos para o desemprego!

- Se me permite a expressão - contrapôs Hennessy, que, com a estrada livre à sua frente, estava disposto a divertir-se -, quem está no desemprego é o senhor! Eu estou a tentar arranjar-lhe uma ocupação lucrativa. Agora recoste-se bem e ouça outra vez esta canção. Palavra que acredito que é capaz de vir a ser um êxito!-Meteu a cassette no leitor e daí a pouco estavam a ouvir o tema musical Johnny the Clown, de Florent de Basil. A gravação destinava-se a mostrar vários tratamentos diferentes da canção. Com qualquer deles, aguentava-se firme. A letra era simples, e o ritmo atraente; no entanto, a melodia tinha um estranho tom plangente que tocava o coração:

Big boots, floppy clothes, Painted face, button nose, That's Johnny the Clown. Johnny, Johnny, bounced and humbled, Johnny, Johnny, trounced and tumbled, Johnny kicked and Johnny clouted, Johnny chased and Johnny routed, Who says thanks -for ali the laughter, Gives you hugs and kisses after? Johnny, are you lonely too?

Comic smile, goggle eyes,

Who knows if he laughs or cries?

Jiíst Johnny - Johnny the Clown!!

Terminada a canção, Hennessy desligou o aparelho e perguntou:

- Bom, que lhe parece desta vez?

- Continua encantadora - disse Jean Marie. - Mas ao mesmo tempo obcecante. Como é que tenciona utilizá-la?

- Estamos agora a negociar um contrato com uma das maiores empresas discográficas. Vão fazer uma produção especial com um dos seus cantores famosos e lançá-la imediatamente antes da publicação do livro. Depois, se as minhas previsões estiverem certas, a canção há-de ser aproveitada por outros cantores e deve começar a trepar pela lista de êxitos acima. Isso proporcionará uma ligação áudio imediata com a publicidade visual acerca do livro.

- O nosso jovem amigo Florent tem um talento que conquista as pessoas; talvez, em lugar de ir eu falar no Carlton Club, devêssemos mandá-lo cantar lá.

- Primeira lição sobre o mundo do espectáculo - repreendeu-o Hennessy. - Nunca se recusa um bom convite. Pode acontecer que não apareça outro!

Dois dias depois, alertado pelo telefone da mudança de situação de Jean Marie, o irmão Alain chegou a Londres. Como de costume, regurgitava de solicitudes irrelevantes. Não seria o hotel de Jean ligeiramente modesto de mais? Não deveria ele receber alguns membros da velha nobreza católica, como os Howards of Arundel e Norfolk? Se fosse possível arranjar maneira de o embaixador francês ser convidado para o Carlton Club, o clima em Paris mudaria imediatamente.

Jean Marie escutou pacientemente e concordou em tomar essas momentosas questões em consideração. Ficou penalizado ao saber que Odette tinha apanhado a gripe e

 

1 Grandes botas, roupas largueironas / Cara pintada, nariz de carrapeta / Eis o Palhaço Joãozinho. / Joãozinho, Joãozinho, expulso e humilhado / Joãozinho, Joãozinho, espancado e derrubado  Joãozinho tratado a pontapé e a pancadas na cabeça / Joãozinho perseguido e Joãozinho derrotado / Quem agradece todo o riso / E no final te abraça e beija? / Joãozinho, também te sentes só? / Riso cómico, olhos esbugalhados / Quem sabe se ele está a rir ou a chorar? / Só o Joãozinho- o Palhaço Joãozinho! {N. do T.)

 

encantado com a notícia de que uma das sobrinhas anunciaria em breve o noivado e outra tinha começado a namorar com um jovem de futuro radioso que trabalhava no ministério da Defesa. Só quando iam já a meio do jantar no Sophie's - um pequeno retiro num cul-de-sac (1) para os lados da Sloane Street - é que Alain começou a falar livremente das suas preocupações pessoais.

- Só te digo, Jean, que os mercados monetários enlouqueceram. Há uma montanha de oiro nos cofres suíços e o preço disparou por aí acima. Estamos a deitar a mão a todos os negócios de mercadorias no mundo inteiro: metais vis, metais raros, óleos minerais, óleos vegetais, açúcar de beterraba, açúcar de cana, madeira e carvão de coque. Não há navios que cheguem para transportar o material, de modo que estamos a fretar cascos que já deveriam ter sido roídos pela ferrugem há anos, e as companhias de seguros estão a levar coiro e cabelo para segurar os navios e a carga. Mesmo assim, como é que se hão-de fazer os pagamentos, com as moedas a variarem 10% de dia para dia?... Deus não deve ouvir o que vou dizer, Jean, mas precisamos de uma guerra, só para acabar com este disparate todo.

- Não tenhas medo, irmãozinho! - disse Jean Marie, num inverno de descontentamento. - Vamos ter uma! Paris há-de ser um alvo prioritário. Já pensaste no que vais fazer relativamente à Odette e às raparigas?

Alain ficou chocado com a pergunta.

- Nada! Fazemos a nossa vida normal.

- Bravo!-exclamou Jean Marie. - Tenho a certeza de que acabarão de coração puro e espírito vazio, julgando ainda que a explosão que vos atingiu foi ar quente de um secador de cabelo. Sai de Paris, pela tua saúde, mesmo que tenhas de alugar uma cabana na Haute Savoie!

Alain era o retrato da dignidade ofendida.

- Nem todos podemos deixar-nos contagiar pelo pânico do porco de Gádara!

Jean Marie teve uma vez mais de autocensurar-se pela velha rivalidade entre irmãos.

- Eu sei! Eu sei! Mas gosto muito de ti, irmãozinho, e estou preocupado contigo e com a tua família.

- Então tens de tentar perceber onde residem as nossas preocupações. A Odette e eu tivemos os nossos anos maus. Em determinada altura chegámos a pensar a sério em separar-nos.

 

(1) Em francês no original: beco sem saída. (N. do T.)

 

- Não sabia disso.

- Eu tive o cuidado de não deixar que soubesses! Lá conseguimos ambos aguentar as coisas, e agora estamos firmes. As raparigas cresceram e arranjaram tipos decentes. É uma satisfação, mesmo que não seja uma vitória. Pelo que toca à Odette e a mim, não há nada que nos interesse por aí além numa vida de retiro nas montanhas! Preferimos gozar aquilo que temos e correr os nossos riscos juntamente com o resto de Paris.

Jean Marie concordou, encolhendo os ombros:

- Faz sentido. Eu não devia tentar dar conselhos sobre a vida dos outros.

- Acho que devias interessar-te pela Roberta.

Disse-o de uma maneira tão terminante e peremptória que Jean Marie ficou perplexo.

- Interessar-me em que sentido?

- No da compaixão, para começar. O pai dela morreu há três dias na prisão.

- Não sabia. Por que foi que ninguém me disse nada?

- Nem eu sabia; só o soube um par de horas antes de partir de Paris. Não quis atirar-te com a notícia à cara logo à chegada. O que é terrível é que foi assassinado, esfaqueado por outro prisioneiro. É crença geral que o assassínio foi preparado no exterior, provavelmente por cúmplices na fraude bancária.

- Meu Deus! E como está ela a reagir?

- De acordo com a adjunta dela, muito mal. Tinha assentado tudo no facto de estar a pagar as dívidas do pai e a dar-lhe uma oportunidade de mais tarde ter uma vida honrosa. Acho que devias telefonar-lhe e, caso possas, convencê-la a vir passar uns dias a Londres.

- Não me parece que isso fique lá muito bem!

- O que fica bem que vá para o diabo! - retorquiu Alain, zangado. - Deves-lhe isso! Ela ofereceu-te a casa, está a financiar o teu projecto com dinheiro do seu bolso, adora o chão que pisas!... Se não és capaz de levantá-la do chão, enxugar-lhe as lágrimas e fazer o papel de paizinho por uns dias, nesse caso, com toda a franqueza, irmão Jean, és uma decepção! Ouvi-te dizer centenas de vezes que a caridade não é colectiva. É uma coisa entre duas pessoas! E, se o que te preocupa é algum escândalo sexual aos 65 anos, nesse caso a única coisa que te posso dizer é que tens mais sorte do que eu!

Jean Marie ficou um instante a olhar para ele de boca aberta, na mais extrema incredulidade. A seguir, sem uma palavra, levantou-se e dirigiu-se à mesa da “caixa”. Poisou uma nota de dez libras no balcão e perguntou se poderia fazer um telefonema urgente para Paris. A rapariga passou-lhe o telefone, e ele marcou o número de Roberta. Passados alguns momentos, o criado dela atendeu. Lamentava profundamente, mas madame estava indisposta e não atendia chamadas.

- Por favor! - intercedeu Jean Marie. - Fala monsieur Grégoire. Estou a telefonar de Londres. Será capaz de interceder com ela para me atender?

Houve um longo silêncio, carregado de presságios, e finalmente Roberta Saracini surgiu em linha. A sua saudação foi deslavada e distante. Ele disse-lhe:

- O Alain está aqui comigo e acaba de contar-me o sucedido com o seu pai. Presumo que a sua linha é capaz de estar sob escuta. Não faz mal. Imagino como deve sentir-se. Quero que venha aqui a Londres. Imediatamente! Esta noite, se puder ser. Reservo-lhe um quarto no meu hotel. Sim, é o mesmo endereço que o Hennessy lhe deu. Não, não concordo! Não é altura para estar sozinha e comigo pelo menos não tem de estar a dizer tudo por boca. óptimo! Eu fico a pé até chegar!... A tout à l'heure!

Poisou o auscultador e a seguir telefonou para o seu hotel a fim de reservar um quarto. A “caixa” deu-lhe o troco. Regressou à mesa e respondeu à muda pergunta de Alaim:

- Vem esta noite. Reservei-lhe um quarto no meu hotel.

- Óptimo! - disse Alain bruscamente. - E não te ponhas a perder tempo com exéquias! Mostra-lhe a cidade. Ela gosta muito de cinema. Parece que há por aí boas salas de espectáculos.

- E que tal se me deixasses ser eu a planear o meu circuito turístico, irmãozinho?

Alain Barette pareceu de repente ter-se transformado numa pessoa de espírito. Ergueu o copo num brinde irónico.

- Bom, não se pode dizer que estejas muito habituado a andar por aí sem chaperon, pois não?

Jean Marie soltou uma gargalhada.

- Tu e eu temos uma data de coisas a aprender um sobre o outro!

- E não temos lá muito tempo para isso - observou Alain, novamente sorumbático. - Há outra coisa. O Petrov veio ter comigo. Quer ter uma conversa contigo. Eu disse-lhe que estavas fora do país e que qualquer encontro teria de ser fora das fronteiras. Ofereci-me para transmitir qualquer recado. E aqui tens o que ele me disse. O projecto da tua visita a Moscovo está a ser estudado ao mais alto nível. Até ver, as reacções são favoráveis. Assim que for tomada uma decisão, ele contacta-me e eu transmito-te o recado.

- Que tal o achaste?

- Desfeito! Anda sob uma tensão enorme.

- Pergunto a mim próprio durante quanto tempo resistirá - disse pensativamente Jean Marie. - Quando regressares, combina outro encontro a sós com ele. Fala-lhe do meu compromisso de falar no Carlton Club. Explica que isso pode dar-me uma oportunidade de explorar a situação do embargo cerealífero junto de pessoas em posições influentes. Pelo menos dir-me-ão se é possível reencetar o diálogo. Que êxito tem tido o Petrov com o Duhamel?

- Acha que talvez o Duhamel tenha possibilidades de desviar um carregamento canadiano de cerca de um quarto de milhão de alqueires de trigo rijo, inicialmente destinado à França. Isso é uma gota de água no oceano e o navio ainda está no meio do Atlântico. Portanto, sabe-se lá se não será apenas uma táctica dilatória. O Duhamel é um campeão nesse tipo de jogo.

- Falaste com o Duhamel?

- À pressa, para lhe dizer que vinha visitar-te. Ele mandou um recado que pediu para eu te entregar por mão.

Estendeu o braço por cima da mesa, entregando-lhe o sobrescrito. Jean Marie abriu-o. A mensagem estava escrita na caligrafia impaciente de Duhamel.

Meu amigo:

Cada dia estamos mais próximos do Rubicão. Os nossos planos para o dia da travessia mantêm-se inalterados, apesar de as melhoras da Paulette continuarem e termos a possibilidade de gozar mais coisas juntos. Não temos palavras para exprimir a nossa gratidão por esse privilégio. No entanto, não podemos aceitá-lo como suborno para um acto de submissão que não estamos ainda preparados para realizar.

Está ainda na lista de vigilância de grau A em França. Os Americanos começaram também a interessar-se por si. O nosso pessoal tem recebido pedidos de informações sobre um funcionário da C. I. A. chamado Alvin Dolman. Partiu na semana passada para o Reino Unido. A sua cobertura é a de assistente particular do ex-secretário de Estado Morrow, que agora trabalha na Morgan Guaranty.

Pedi a um amigo meu dos serviços de informações britânicos que fizesse uma investigação sobre o Dolman, visto que pensava poder tratar-se de um agente duplo. Sabemos que não o é, mas sempre ajuda a turvar as águas.

A Paulette manda os mais afectuosos cumprimentos. Cuide bem de si.

PIERRE

Jean Marie dobrou a mensagem e enfiou-a no bolso do peito. Alain observava-o com uma expressão sombria e taciturna no olhar.

- Más notícias?

- Receio bem que sim. O homem que tentou matar Mendelius está em Londres. É um homem da C. I. A. chamado Dolman. Colocaram-no com o Morrow, da Morgan Guaranty.

- Vou telefonar para a Morgan Guaranty e contar-lhes tudo.

Anunciou aquilo de uma maneira tão pomposa que pareceu uma tirada de uma comédia de má qualidade. Jean Marie descobriu, com certa surpresa, que o irmão Alain estava a ficar bêbedo e disse, com uma gargalhada:

- Francamente, irmãozinho, não to aconselho. A sensibilidade de Alain estava ferida:

- Não quero dar por mim sentado ao lado de um assassino num congresso de banqueiros.

- Pergunto a mim próprio quantas vezes isso não terá acontecido, sem tu saberes.

- Touché - reconheceu Alain a justeza da observação, com um brinde, após o que fez sinal ao empregado para trazer mais vinho. A seguir, perguntou: - E que vais tu fazer relativamente a esse tal Dolman, Jean?

- Contar ao Hennessy e ao Waldo Pearson... e depois não pensar mais nisso.

- Na esperança de que um ou outro possam proporcionar-te alguma protecção... ou retirar o Dolman da circulação.

- De certo modo, sim.

- Portanto, quando ele for encontrado morto no seu apartamento ou atropelado por um automóvel, quais serão as culpas com que terás de arcar? Ou vais virar as costas como Pilatos, lavando as mãos?

- Esta noite estás a jogar jogos muito duros.

- Estou a tentar ver de que és feito... No fim de contas, não passámos muito tempo juntos durante estes últimos trinta anos.

Uma vez mais, havia uma surpresa reservada para Jean Marie. O irmão Alain, com umas bebidas, era capaz de ficar rabugento e de pender para o sentimento.

- Tu foste sempre o importantão: padre de paróquia, bispo, cardeal, papa! Mesmo hoje em dia, as pessoas tratam-te com deferência devido àquilo que foste. Na minha profissão, passo a vida a ver disso. O príncipe Cul de Lapin, que nunca na vida teve um dia de trabalho, é mais bem tratado do que um negociante bem sucedido com uma conta de meio milhão de francos. - Agora começava a ter uma ligeira dificuldade em pronunciar as palavras. - O que eu quero dizer é que tudo se passa como a veneração dos antepassados. O bisavô é que era esperto, e morreu! Tu não morreste, mas (meu Deus!) não há dúvida de que te pronuncias sobre uma data de coisas que na realidade não percebes.

- Vou pronunciar-me sobre ti, irmão meu! T'es soul comme une grive! (Estás bêbedo como um tordo!) Vou levar-te outra vez para o hotel.

Alain estava quase a cair quando Jean Marie pagou a conta e se apressou a arrastá-lo lá para fora. Percorreram dois quarteirões antes que Alain conseguisse finalmente acertar o passo. De volta ao hotel, Jean Marie ajudou-o a entrar no quarto, despiuo, deixando-o em roupa interior, fê-lo rebolar para a cama e tapou-o com a colcha. Alain submeteu-se a todo aquele exercício sem uma palavra; no entanto, quando Jean Marie se preparava para sair, abriu os olhos e anunciou, a propósito de coisa nenhuma:

- Estou bêbedo, logo existo. A única altura em que posso provar isto é quando estou separado da Odette. Não achas isso curioso, Jean?

- Demasiadamente curioso para ser discutido à meia-noite. Vai dormir. Conversaremos amanhã.

- Só uma coisa...

- O quê?

- Tens de compreender o problema da Roberta.

- Eu compreendo.

- Não compreendes nada. Ela tinha de acreditar que o pai era uma espécie de santo, a fazer penitência pelos pecados dos outros. O facto é que ele era um verdadeiro filho-da-mãe. Nunca pensou em ninguém a não ser nele próprio. Arruinou uma porção de gente, Jean. Não deixes que ele te arruine do outro lado do túmulo.

- Não deixo. Boa noite, irmãozinho. Amanhã de manhã vais estar com uma bela ressaca.

Saiu do quarto em bicos de pés e dirigiu-se ao andar de baixo a fim de esperar por Roberta Saracini.

O aspecto dela impressionou-o. Tinha a pele seca e sem brilho. Trazia os olhos vermelhos e apresentava a tez do rosto repuxada sobre a estrutura óssea. Os seus movimentos eram espasmódicos, e a fala apressada e volúvel como se o silêncio fosse uma armadilha a evitar a todo o custo.

Tinha reservado uma pequena suite para ela no mesmo piso em que se encontrava instalado. Mandou vir café para dois e aguardou no salão enquanto ela se refrescava da viagem. Quando regressou, embrenhou-se noutra torrente de conversa:

- É claro que o senhor tinha razão. É uma estupidez uma pessoa ficar encafuada naquele casarão. É espantosa a quantidade de pessoas que viajam nestes voos a horas mortas. Onde é que está o Alain? Durante quanto tempo é que ele fica por cá? Como todos nós, está preocupado com as flutuações do mercado monetário. Imagino que ele lho tenha dito.

- Disse-me - replicou gravemente Jean Marie - que você estava muito deprimida. E verifico que está. Quero ajudá-la. Permite que o faça, por favor?

- O meu pai morreu... foi assassinado! O senhor não pode modificar isso. Nem o senhor nem ninguém. Tenho de habituar-me à ideia, e mais nada!

Disse-o com ar provocador, como se estivesse a desafiá-lo a ter pena dela. Estava tensa como uma corda de violino, pronta a saltar ao primeiro toque do arco. Jean Marie serviu o café e estendeu-lhe uma chávena. Continuou a falar, acalmando-a daquele estado agudo de semi-histeria.

- Fiquei muito grato quando concordou em vir. Isso deu-me a entender que estava preparada para confiar em mim. Deu-me a oportunidade de expressar os meus agradecimentos pelo que está a fazer, e também para compartilhar consigo algumas coisas entusiasmantes: as últimas fases das Cartas, o discurso que vou fazer no Carlton Club e novas amizades que fiz em Londres. Quero ir ao Ta te e à Royal Academy e à Torre de Londres, ao palácio do cardeal Wolsey em Hampton Court e... ah, tantos outros sítios! Iremos juntos.

Ela deitou-lhe um olhar estranho, desconfiado.

- Fala como se eu fosse uma rapariguinha. Pois não sou. Sou uma mulher adulta, cujo pai foi esfaqueado no corredor de uma cadeia. E isso faz de mim uma má companhia, seja para um homem ou para um animal.

- Você está ferida e sozinha - disse firmemente Jean Marie. - Não tenho prática de lidar com mulheres, de maneira que, provavelmente, vou abordar tudo isto da maneira errada. Não estou a tentar fazer-lhe uma festinha na cabeça como um bispo ou a dar-lhe uma bênção papal, o que, de qualquer modo, não tenho competência para fazer. Estou a oferecer-lhe um braço no qual pode apoiar-se para atravessar a rua e um ombro no qual pode chorar quando lhe apetecer.

- Não verti uma lágrima desde que recebi a notícia - disse Roberta Saracini. - Será que isso me transforma numa filha anormal?

- Não, não transforma.

- Mas alegra-me que ele tenha morrido! Faço votos por que esteja a arder no Inferno!

- Porque já o julgou - disse Jean Marie com seca autoridade. - E não tem o direito de fazer semelhante coisa! Quanto a arder no Inferno, isso sempre me incomodou, como uma pedra no sapato. Às vezes leio nos jornais casos de pais que maltratam crianças de tenra idade, que lhes quebram os ossos, que as queimam em fogões, por qualquer traquinice, real ou imaginada. Nunca fui capaz de imaginar Deus, o nosso Pai, ou o seu Filho tão humano, a condenar os seus filhos a arderem no fogo eterno. Se o seu pai estivesse aqui agora para ser julgado e o destino dele estivesse nas suas mãos, o que decidiria para ele, para todo o sempre?

Roberta Saracini não disse coisa nenhuma. Deixou-se ficar quieta, de lábios cerrados e olhos baixos, apertando as mãos para obrigá-las a parar de tremer. Jean Marie insistiu:

- Pense nos crimes que desde sempre foram cometidos: os massacres do holocausto, o genocídio no Campuchea e no Brasil. Poderão alguma vez ser expiados, mesmo que por uma infinidade de terrores semelhantes? Não podem. Nem todas as prisões deste mundo e do outro poderiam alojar os malfeitores. Creio (e apenas me foi mostrado um pequeníssimo vislumbre do que virá a ser) que o “advento final” e o “juízo final” serão eles próprios actos de amor. Se não o forem, nesse caso vivemos num caos criado por um espírito louco e, quanto mais cedo formos libertos dele para o nada, melhor.

Ela continuou a não responder. Ele foi sentar-se no chão junto dela. Pegou-lhe na mão, segurando-a firmemente na palma da sua, e perguntou:

- Não tem andado a dormir muito bem, pois não?

- Não tenho, não.

- Devia ir já para a cama. Encontramo-nos ao pequeno-almoço e começamos as nossas férias logo a seguir.

- Não tenho a certeza de querer ficar por cá.

- Será capaz de rezar uma pequena oração comigo?

- Vou tentar. - A resposta veio sumida e trémula. Jean Marie concentrou-se por instantes e depois, continuando a pegar-lhe na mão, entoou a oração pelos defuntos:

Senhor Deus, Nosso Pai,

Acreditamos que o Vosso Filho morreu e ressuscitou.

Oramos pelo nosso irmão Vittorio Malavolti,

Que morreu em Cristo.

Ressuscitai-o no último dia

Para que compartilhe da glória do Cristo ressuscitado.

Dai-lhe, Senhor, o repouso eterno,

E que nele resplandeça a luz perpétua.

- Amem - disse Roberta Saracini e começou a chorar, com lágrimas silenciosas e lenitivas.

Durante os cinco dias subsequentes armaram em turistas, saciando-se com os mais singelos prazeres de Londres. Passearam pela orla do Serpentine, assistiram ao render da guarda no Palácio de Buckingham, passaram uma manhã no Tate, uma tarde no Museu Britânico e uma noite num concerto de Shakespeare no Albert Hall. Fizeram uma excursão pelo rio até Greenwich e outra a Hampton Court. Andaram a ver montras na Bond Street e passaram uma manhã com Angelo Vitucci, que prometeu fazer a Jean Marie um fato “tão discreto que nem um querubim se escandalizaria, mas apesar disso de tão belo corte que há-de pensar que lhe nasceu uma pele nova!”.

A princípio, Roberta Saracini mostrava-se desesperada-mente instável: tão depressa estava alegre como uma criança, como logo a seguir mergulhava num profundo fosso de depressão. Ele não tardou a aprender que a oratória lógica não causava nela qualquer impressão e que o melhor remédio eram a amabilidade, a distracção e um breve ralhete de vez em quando. Fez igualmente descobertas sobre a sua própria pessoa: quão longe se tinha afastado do monte Vaticano, quantas pequenas alegrias tinha deixado passar quando era o perplexo pastor de um rebanho sem rosto. As Cartas, nas quais trabalhava até altas horas da noite, tornavam-se mais pungentes à medida que cada dia simples e tranquilo tornava mais preciosos o tempo, a ternura e os farrapos das coisas.

Roberta decidira ficar durante a semana toda, partindo de Londres ao fim da noite de domingo, de maneira a poder estar de regresso ao trabalho na segunda-feira de manhã. A previsão meteorológica referia bom tempo: um breve prolongamento do verão de S. Martinho antes do aparecimento das primeiras geadas. Roberta sugeriu um piquenique. Alugaria um automóvel e arrumaria a bagagem na mala do carro. Poderiam passar todo o dia no campo. Jean Marie poderia deixá-la no aeroporto no regresso a Londres. Assim ficou combinado.

No domingo, de manhã cedo, Jean Marie disse missa numa capela lateral na Igreja Oratória, onde o sacristão acabara por conhecê-lo apenas como père Grégoire, um velho padre francês que usava boina e mais parecia um coelho benévolo. Depois, com Roberta ao volante e um cesto de piquenique feito pelo hotel, seguiram na direcção de Oxford, Woodstock e do campo de Cotswold, mais para além.

Era ainda cedo e o trânsito de domingo não começara a adensar-se; assim, puderam sair da auto-estrada e vaguear por aldeolas que estavam ainda a esfregar os olhos de sono, e por terra arável ondulada, castanha do último restolho ou escura das primeiras lavras. O prazer de ambos residia nas pequenas maravilhas: a faixa de névoa que se estendia ao longo de uma colina, a torre cinzenta de uma igreja nor-manda, erguendo-se no amontoado de um lugarejo, uma macieira junto da estrada carregada de frutos vermelhos e maduros, à disposição de quem passava, uma criança empoleirada num antigo marco miliário, a embalar uma boneca.

De certo modo, era mais fácil falar enquanto seguiam no automóvel. Não tinham de olhar um para o outro. Havia sempre uma nova distracção para cobrir o silêncio traiçoeiro.

Roberta Saracini tocou-lhe o braço e disse:

- Sinto-me muitíssimo melhor do que quando cheguei. Agora as coisas fazem mais sentido. Já posso encará-las melhor. Tenho de agradecer-lhe isso.

- Você também foi boa para mim.

- Não sei de que maneira, mas, seja como for, ainda bem.

- Que é que sente agora relativamente ao seu pai?

- Não sei bem. É tudo uma confusão desgraçada, mas sei que não o odeio.

- Que é que a faz retrair-se? - incitou-a ele firmemente. - Você ama-o; fosse ele o que fosse, ou o que quer que tenha feito, pagou o seu preço... e deu-lhe também a si o suficiente para se lançar. Diga-o! Diga que o ama!

- Amo-o. - Resignou-se à afirmação com um sorriso e um suspiro que podia ser de alívio ou de pena. Depois, acrescentou, à guisa de post scriptum: - E também o amo a si, monsieur Grégoire.

- E eu amo-a a si - disse suavemente Jean Marie. - Isso é bom. O segredo está todo nisso. “Meus filhinhos, amai-vos uns aos outros.”

- Espero - disse Roberta Saracini - que não precisasse do mandamento para isso.

- Pelo contrário - disse Jean Marie... e deixou o resto por dizer.

- Que é que sente pelas mulheres... não necessariamente por mim, em particular? Quero dizer, manteve o celibato durante todos estes anos e...

- Tive uma grande prática nesse campo - respondeu Jean Marie com suavidade, mas muito firme. - E parte dessa prática consiste em que não se namorisca, nem se fazem jogos perigosos nem, o que é mais importante que tudo o resto, se mente a si próprio. Sinto por si o que qualquer homem sente por uma mulher atraente. Senti-me feliz na sua companhia e lisonjeado por me dar o braço. Poderia haver mais; mas, precisamente porque a amo, não haverá. Foram-nos destinados caminhos diferentes. Encontrámo-nos, e foi muito agradável, no cruzamento. Separar-nos-emos, cada um de nós um pouco mais rico.

- Isso é aquilo a que se chama um sermão, monsenhor - disse Roberta Saracini. - Quem me dera poder acreditar em metade que fosse!

Ele deitou-lhe um olhar. Ela guiava regularmente, com os olhos fixos na estrada, mas corriam-lhe lágrimas pelas faces. Voltou-se para ele e perguntou-lhe sem rodeios:

- Que foi que o fez ir para padre?

- Isso é uma longa história.

- Temos o dia todo.

- Bem!...-Tornou-se instantaneamente fechado e relutante. - A única pessoa a quem alguma vez contei isso foi ao meu confessor. É ainda um assunto doloroso.

- Foi falta de tacto da minha parte perguntar. Peço desculpa.

Percorreram o quilómetro seguinte em silêncio; depois, sem outro incitamento, Jean Marie começou a falar, lenta e sonhadoramente, como se estivesse a juntar em pensamento as peças de um puzzle.

- Quando aderi ao maquis era muito novo: tinha precisamente atingido a idade do serviço militar. Não era religioso. Era baptizado, comungara e fora crismado, mas ficara-me por aí. Havia uma guerra; a vida era um jogo do agarra. Com o maquis, tornei-me um homem de um dia para o outro.

Trazia uma espingarda, uma pistola e uma faca para matar. Ao contrário dos mais velhos, que podiam por vezes dar uma escapadela à cidade, era obrigado a permanecer nos montes e no campo, visto que, se fosse apanhado numa ronda da cidade, seria enviado para a Alemanha e submetido a trabalhos forçados. Desempenhava missões de mensageiro à noite, claro, porque era jovem e podia deslocar-me depressa, vencendo em velocidade as patrulhas do recolher. Antes disso, tinha tido namoradas e algumas experiências sexuais: apenas o bastante para me dar vontade de ter mais. Naquela altura estava sem mulher e os meus companheiros troçavam de mim, como os homens mais velhos fazem, chamando-me vir-genzinha e menino do coro. As velhas obscenidades do costume, que não tinham grande importância, mas muito difíceis para um jovem que sabia haver a possibilidade de não viver o suficiente para chegar a ser um homem feito.

“Bom, um dos meus percursos regulares de mensageiro levou-me a uma casa de campo próxima de uma estrada principal. Todos os movimentos de tropas naquela área tinham de passar por lá; sendo assim, a mulher do lavrador fazia uma lista, que era recolhida de três em três dias e passada ao serviço de informações dos Aliados. Eu nunca fui à casa. Havia uma choupana de pastor e um redil de ovelhas a cerca de um quilómetro, no topo de uma colina. Deitava-me lá e atava um trapo a uma pequena árvore para sinalizar a minha presença. Depois do anoitecer a mulher aparecia com as mensagens e comida para mim e para os rapazes dos montes. Chamava-se Adèle, andava pelos trinta e não tinha filhos; quanto ao marido, desaparecera desde os primeiros dias da Blitzkrieg... Dirigia a propriedade juntamente com dois velhos e um par de raparigas robustas de famílias vizinhas.

“Naquele dia específico cheguei tarde. Estava intimidado e abalado. Havia uma data de patrulhas alemãs nas redondezas, e por duas vezes pouco faltou para ser apanhado. Para piorar mais ainda as coisas, tinha rasgado uma perna num arame farpado qualquer e estava com medo de um tétano. Uma hora depois do sol-pôr, a Adèle apareceu. Nunca fiquei tão contente por ver fosse quem fosse na vida. Também ela tinha tido um dia mau, com nada menos de três surtidas de tropas que lhe tinham invadido a casa, revolvendo tudo. Lavou-me a perna com vinho e ligou-a com tiras arrancadas à saia. Depois bebemos o resto do vinho, jantámos juntos e a seguir fizemos amor no colchão de palha.

“Recordo essa como a experiência mais maravilhosa da minha vida: uma mulher madura e apaixonada e um jovem assustado, numa única hora de êxtase, num mundo povoado de monstros. Depois disso, sempre que falei de caridade, do amor de Deus pelo homem e do homem por Deus, fi-lo à luz daquela única hora. De cura até papa, recordei a Adèle na minha missa todas as manhãs. Sempre que me sentei no confessionário e ouvi pessoas tristes a contarem-me os pecados da sua vida amorosa, lembrei-me dela e tentei proporcionar aos meus penitentes o dom do conhecimento que ela me deu.

Calou-se. Roberta Saracini enfiou o carro num desvio para estacionamento, situado num alto que, ao longo de um declive gradual, deixava ver um panorama de terra cultivada e abrigos dispersos e paredes de silhar carcomidas pelo tempo. Abriu a janela e pôs-se a contemplar o tranquilo cenário. Não ousando fitar Jean Marie, perguntou com singular humildade:

- Quer contar o resto? Onde está agora a Adèle?

- Morta. Deixou-me antes da meia-noite. Quando chegou a casa, estavam lá novamente os alemães, que se tinham embebedado com o vinho dela. Violaram-na e pregaram-na à mesa com uma faca de cozinha. Foi assim que a encontrei quando, ansioso por repetir a união da noite, violei todas as regras e rastejei pela colina abaixo para a ver às 6 da manhã!

“Foi nesse dia que concluí ter uma dívida a saldar. Mais tarde, muito mais tarde, cheguei à conclusão de que o conjunto da missão sacerdotal era a melhor maneira de o fazer. A paixão de Cristo tornou-se muito real para mim como um drama de brutalidade, amor, morte e ressurreição. Nunca me arrependi da minha opção; apesar do horror que se lhe seguiu, tão-pouco fui alguma vez capaz de lamentar a maravilha que eu e a Adèle compartilhámos. O meu confessor, que era um homem sábio e bom, contribuiu para isso. Disse-me: “O verdadeiro pecado é ser avaro no amor. Dar demasiado é uma falta, fácil de perdoar. O que tu sabias, também a tua Adèle sabia: que tinham compartilhado um momento de estranha graça. Tenho a certeza de que ela o recordou no final.”... Olhe para mim, Roberta!

Ela abanou a cabeça. Estava sentada, com o queixo apoiado na mão, de olhos desviados, de olhar distante, fixo na paisagem campestre pintalgada pelo Sol. Ele estendeu o braço e virou-lhe o rosto, manchado de lágrimas, na sua direcção. Havia ternura nos seus olhos, e falou com uma voz repleta de compaixão, censurando-a suavemente:

- Já tenho idade para ser seu pai... de modo que pode aceitar-me como uma espécie de pai adoptivo, se quiser! Quanto ao resto, lembre-se do que lhe disse ao princípio.

On ne badine pás avec 1'amour. (Não se brinca com o amor.) É demasiado maravilhoso e demasiado terrível!

Estendeu-lhe o lenço para que ela enxugasse os olhos. Ela aceitou-o, mas atirou-lhe com uma última pergunta directa:

- Depois de tudo isso, como é possível que o seu melhor amigo, o Carl Mendelius, seja um alemão?

- Como é possível - perguntou Jean Marie - eu e você estarmos aqui sentados, quando o seu pai burlou o Vaticano em milhões e foi morto num corredor da prisão? O maior erro que todos temos cometido ao longo dos tempos é tentar explicar aos homens os caminhos de Deus. Não deveríamos fazê-lo. Deveríamos limitar-nos a anunciá-lo. Ele explica-Se muito bem!

No dia anterior à função no Carlton Club, foi com Adrian Hennessy entregar o manuscrito das Últimas Cartas de Um Pequeno Planeta. Poisou-o na secretária de Waldo Pearson e disse:

- Ora aí tem. Está feito. Bom ou mau, é um grito de alma. Espero que alguém o oiça.

Waldo Pearson tomou o peso ao volume que tinha nas mãos e disse que tinha a certeza, sim, toda a certeza, de que alguém ouviria o grito de alma. Depois estendeu a Jean Marie o original dactilografado da versão inglesa do seu discurso para o Carlton Club.

Jean Marie perguntou-lhe:

- Que é que pensa dele? Faz sentido?

- Faz um sentido assustador. Faz um sentido encantador. Não posso é dizer como vai reagir a assistência.

- Eu li-o - disse Adrian Hennessy. - Adorei. Mas também me assusta. Ainda há tempo para fazer alterações, se as autorizar.

Deitou uma olhadela a Jean Marie, que acenou afirmativamente.

- Sei que estou a falar com gente nova num idioma novo. Seja honesto comigo! Sou seu convidado no clube. Se estiver a pisar as marcas do que é apropriado para a ocasião, devo sabê-lo.

- Não há quebra da paz ou das conveniências - disse Waldo Pearson. - Cinja-se ao texto!

- Haverá perguntas a seguir?

- Pode haver. Normalmente, permitimos que se façam.

- Quer fazer o favor de certificar-se de que eu as compreendo antes de responder? Falo inglês fluentemente, mas de vez em quando, em alturas de tensão, penso em francês ou em italiano.

- Eu ajudá-lo-ei. As pessoas estão muito interessadas.

- Tem uma lista dos convidados? - Foi Hennessy quem fez a pergunta.

- Lamento, mas não tenho. Quando há grande concorrência, como será o caso desta vez, os membros têm de tirar à sorte os lugares de convidados. No entanto, convidei o embaixador soviético... e Sergei Petrov, se por acaso estiver em Londres. Se ele aparecer, é sinal de que ainda tem futuro político. Convidei também o Morrow, porque o conheci quando era o meu homólogo em Washington. Dei-lhe a entender que poderia gostar de trazer um colega... o que lhe deixa a possibilidade de levar o Dolman, se quiser. Quanto ao resto, é uma lista impressionante: membros do conselho de ministros, diplomatas, gerentes da indústria, barões da imprensa. Deste modo, terá um amplo leque de religiões, nacionalidades... e também moralidades.

Hennessy acrescentou um comentário irónico:

- Talvez o Espírito Santo lhe conceda o dom das línguas.

- Costumava falar disso com Mendelius - disse Jean Marie, pegando no gracejo e elaborando-o. - Ele costumava dizer que se tratava provavelmente do menos útil de todos os dons do espírito. Se um homem fosse um pateta numa língua, nunca se conseguiria fazê-lo inteligente em vinte.

Riram-se todos com aquilo. Waldo Pearson foi buscar champanhe. Fizeram um brinde às Últimas Cartas de Um Pequeno Planeta e a um ex-papa que estava prestes a ser atirado aos leões no Carlton Club.

Jean Marie Barette agarrou-se às bordas da estante de leitura e examinou a assistência, reunida na sala de jantar principal do Carlton Club. Conhecia apenas alguns: um grupo privilegiado ao qual Waldo Pearson oferecera xerez na sala da direcção. De acordo com as suas conclusões, Waldo dirigia o baluarte dos conservadores com pulso de ferro. Não estava disposto a submeter o seu convidado mais exótico a ser massacrado e maltratado nos ocos preâmbulos da hora dos aperitivos. Tinha-se declarado encantado com o traje escolhido por Jean Marie: um jaquetão preto abotoado até ao pescoço, que revelava uma ínfima porção do colarinho romano e uma simples cruz peitoral de prata. O traje exprimia o sentido das suas palavras de abertura:

- Estou diante de vós como entidade privada. Sou sacerdote ordenado no ministério da palavra da Igreja Católica Romana. No entanto, não tenho missão canónica; dessa maneira, o que vos disser nesta reunião é a minha opinião particular e não deve ser interpretado quer como a doutrina oficial da Igreja, quer como uma afirmação da política do Vaticano.

Dirigiu-lhes um sorriso e um gesto gaulês para atenuar o efeito das palavras.

- Estou certo de que não será preciso insistir neste aspecto. Todos os presentes são homens políticos; e (como é que se diz em inglês?) um pestanejar diz tanto como um aceno a uma mula cega '.

Eles deram uma pequena risada para o animar... e também para o tentar. Se ele caísse na asneira de confiar na assistência, na manhã seguinte não valeria a atenção de ninguém. As palavras seguintes sacudiram-nos do seu comprazimento.

- Por ser um homem, tenho experiência do que é o medo, o amor e a morte. Por ter sido, como vós, um político, compreendo as vantagens do poder e também as suas limitações! Por ser um ministro da palavra, sei que ando a vender uma loucura no mercado e que me arrisco a ser apedrejado por isso. Mas também vós, meus amigos, andais a vender loucuras, demências monstruosas, e todos nos arriscamos a perecer por causa delas!

Fez-se um silêncio mortal na sala. Durante aquele preciso instante, manteve-os hipnotizados. Todos eles eram entendidos na arte do fórum. Sabiam que aquele homem era um mestre; no entanto, se as suas ideias não se revelassem à altura dos seus dotes oratórios, vaiá-lo-iam como charlatão. Jean Marie avançou impetuosamente com a sua argumentação:

- A vossa loucura consiste em prometer uma possível perfeição nos assuntos dos homens: uma distribuição equitativa dos recursos, um acesso igual às vias marítimas, aéreas e terrestres de importância estratégica, em suma, um mundo no qual cada problema possa ser resolvido por um intermediário honesto, um líder inspirado, um aparelho partidário. Fazeis essa promessa como passo necessário para atingir o poder. Optais por ignorar que estais a brincar com dinamite.

“Alimentais esperanças ilusórias. Suscitais expectativas que não podeis satisfazer. Depois, quando vedes que o povo iludido se vira contra vós (zás!), há uma nova solução: uma guerra depuradora! Então, subitamente, deixais de ser

 

(1) O provérbio, aqui traduzido literalmente, encontra equivalência na expressão “é como se falasse para um surdo”. (N. do T.)

 

dadores de graças. Sois janízaros impondo os edictos do sultão. Se o povo não quer obedecer às ordens, nessa altura obrigai-lo a fazê-lo! Mutilai-lo, membro a membro, como Procustes, até caberem no leito onde se contorcem sob a tortura. Mas eles nunca hão-de caber lá. A era dourada que prometestes nunca chegará.

“Bem o sabeis! Num tremendíssimo acto de desespero, resignais-vos a isso! Já calculastes o custo: tantos milhões em Nova Iorque, em Moscovo, em Tóquio, na China, na Europa. Quanto às consequências, ao deserto a que se chamará paz, optastes por ignorá-las, pois quem restará para se preocupar com isso? Os bandidos que subjuguem a populaça. Os feridos que morram. Haverá uma nova idade das trevas... uma nova peste negra. Em algum futuro distante haverá, porventura, um renascimento; mas quem se preocupa com isso, já que nunca veremos essa maravilha?

“Pensais que exagero? Bem sabeis que não. Se o embargo cerealífero não for suspenso, a União Soviética ficará este Inverno à beira da fome... e as suas tropas marcharão aos primeiros degelos. Mesmo que o não façam, um movimento da parte de qualquer potência na direcção dos campos petrolíferos do Médio Oriente ou do Extremo Oriente precipitará um conflito generalizado. Não conheço a ordem de batalha, como é o caso de alguns de vós; mas reconhecereis que estou a tocar de perto o âmago da questão. Não vos imploro coisa alguma. Se o vosso próprio bom-senso, o aguilhão dos vossos próprios corações ao olhardes para os vossos filhos e netos, não vos incitar a agir no sentido de impedir o holocausto, nesse caso... ámen! Assim seja! Ruat caelum! (Que o céu se abata!)

“Procurei apenas descrever a vossa loucura, que consiste em acreditar que o homem pode construir para si próprio um habitat perfeito e que, sempre que fracassa, pode destruir o que fez como um castelo na areia e começar do princípio. No final o impulso construtivo acaba por ser subjugado pelo destrutivo. E durante todo esse tempo a maré vai subindo lenta e inexoravelmente para fazer desaparecer a pequena língua de areia onde brincamos!...

Não sabia dizer se eles concordavam ou discordavam. A única coisa que sabia era que o silêncio se mantinha ainda e que os ouvidos deles, mesmo que não fosse o caso dos seus corações, continuavam abertos às suas palavras. Prosseguiu, mais baixo e persuasivamente:

- Deixai-me agora falar-vos da minha loucura, que é o oposto da vossa, mas que apenas serviu para transigir com ela. Quando fui eleito papa, senti-me ao mesmo tempo humilhado e exaltado. Julgava que o poder tinha sido posto nas minhas mãos: o poder de modificar as vidas dos fiéis, de reformar a Igreja, porventura de servir de mediador nas disputas entre nações e ajudar a manter a precária paz de que desfrutamos. Todos vós conheceis a sensação. Experimentaste-a quando recebestes a vossa primeira nomeação para um cargo público, a vossa primeira embaixada, o vosso primeiro conselho de ministros, ou quando comprastes o vosso primeiro jornal ou estação de televisão. Um momento de arrebatamento, não é verdade? E as dores de cabeça pertencem todas ao futuro!

Houve uma breve risada de acordo. Sentiam-se satisfeitos com o escape. O homem era mais do que um retórico. Tinha o dom compensador da ironia.

- É claro que há um logro, uma armadilha em que todos caímos. Aquilo que temos não é poder, mas sim autoridade, que é uma coisa bem diferente. O poder pressupõe que podemos realizar o que planeamos. A autoridade significa apenas que podemos dar ordens para que se realize. Pronunciamos: Fiat! (Faça-se!) No entanto, quando a ordem chega ao camponês no arrozal, ao mineiro no fundo da jazida de carvão, ao padre dos pobres da favela (1), perdeu já a maior parte da sua força e significado. As definições que servem de relicário para os nossos dogmas e as nossas moralidades são pedras de toque de ortodoxia. Sejamos nós papas, aya-tollahs ou doutrinadores partidários, não ousamos ab-rogá-las. Que teologia posso eu ensinar a uma rapariga que está a morrer de uma infecção causada por um aborto? A única coisa que posso proporcionar-lhe é misericórdia, consolo e absolvição. Que digo eu ao rapaz revolucionário de Salvador cuja família foi fuzilada pelos soldados no largo da aldeia? Não posso oferecer-lhe mais do que amor, compaixão e a afirmação impossível de provar de que há um criador que transformará toda esta loucura em sanidade, todo este sofrimento em alegria eterna. Como vedes, a minha loucura foi acreditar que podia de algum modo exercer ao mesmo tempo a autoridade que aceitara e a beneficência para a qual o meu coração me impelia. Era uma impossibilidade, claro está; da mesma maneira que é impossível a um ministro dos Negócios Estrangeiros denunciar as obscenidades de um ditador que lhe fornece a matéria-prima essencial.

“É neste contexto que pretendo explicar a minha abdicação, que, por muito dolorosa que fosse na altura, não

 

(1) Em português no original. (N. do T.)

 

lamento nem verbero. Numa experiência que surgiu espontânea e inesperadamente, foi-me feita uma revelação das “últimas coisas”. Foi-me ordenado que anunciasse a sua proximidade. Eu próprio estava e estou absolutamente convencido da autenticidade dessa experiência; no entanto, não tive nem tenho meios de prová-lo. Assim, os meus irmãos-bispos decidiram que eu não podia legitimamente ocupar o cargo de sumo pontífice e, ao mesmo tempo, desempenhar o papel de profeta e proclamar uma revelação particular não autenticada. Não falarei sobre os meios de que se serviram para obter a minha abdicação. Eles são, quando muito, uma anotação numa história que pode nunca vir a ser escrita.

“Direi,contudo, uma coisa. Estou satisfeito, agora, por não ter autoridade; estou satisfeito por já não ser obrigado a defender as fórmulas da definição. De facto, a autoridade é demasiado limitada, e as fórmulas estreitas de mais para abarcarem a agonia da humanidade nos “últimos dias” e a magnitude da Parúsia: o advento prometido.

“Pode acontecer que haja entre vós quem, como eu, tenha tomado consciência das limitações do poder e da loucura do assassínio em massa. É para esses que eu d...

De repente, apercebeu-se de que as palavras que estava a pronunciar não eram palavras nenhumas, mas só um som infantil, repetido uma e outra vez: “Dê... dê... dê... dê...” Sentiu qualquer coisa a puxar-lhe pela perna da calça. Olhou para baixo e viu a sua mão esquerda a agitar-se desesperadamente contra a coxa. A vista toldou-se-lhe. Já não conseguia ver a assistência. Nessa altura a sala começou a andar à roda e ele caiu para a frente, por cima da mesa. Depois de uma certa confusão de movimento e de tempo, ouviu duas vozes muito perto dele. Uma delas era a de Waldo Pearson.

- Foi uma coisa fantasmagórica, para dizer a verdade. Parecia uma espécie de glossolalia. Ainda ontem tínhamos estado a falar do dom das línguas.

- É um sintoma típico de A. C. V.

- O que é isso de A. C. V.?

- Acidente cérebro-vascular. O pobre diabo teve um ataque!... Essa ambulância está a levar um tempo diabólico!

- É o trânsito do meio-dia - disse Waldo Pearson. - Que hipóteses tem ele?

- Pergunte-me daqui a três dias.

Aquelas palavras recordaram a Jean Marie a ressurreição. Em vez disso, mergulhou nas trevas.

 

Caríssimos, não deis fé a qualquer espírito, mas examinai se os espíritos são de Deus, porque muitos falsos profetas se levantaram no mundo.

Primeira Carta de S. João, cap. IV, vers. 1.

 

AGORA era outro homem num país estranho. O país era muito pequeno. Tinha quatro paredes brancas, duas portas e uma janela. Havia uma cama, na qual estava deitado, uma mesinha ao lado desta, uma cadeira e uma cómoda com um espelho por cima, no qual a imagem do homem que ocupava a cama se reflectia. Tinha um aspecto estranhamente enviesado, como um anúncio tipo “antes e depois” de extracto de fígado. Um dos lados do rosto estava móvel e virado para cima, e o outro ligeiramente repuxado para baixo numa expressão de dor ou desagrado. Uma das mãos jazia imóvel sobre a colcha branca. A outra vagueava sem parar, explorando contornos, texturas e distâncias.

Havia pelo menos outro habitante daquele novo país: uma mulher jovem, bastante simples, com um uniforme de enfermeira, que aparecia com frequência para medir-lhe o pulso e a tensão arterial e auscultá-lo. Fazia-lhe sempre as mesmas perguntas simples: “Como se sente? Como é que se chama? Quer beber qualquer coisa?” O facto estranho era que, enquanto ele a compreendia perfeitamente, ela não parecia perceber uma palavra do que ele dizia - embora realmente lhe desse de beber, soerguendo-o de maneira que ele pudesse sorver o líquido por uma palhinha plástica. Além disso segurava numa garrafa, encostando-a ao pénis dele a fim de que ele pudesse urinar. Quando tal sucedia, ela sorria, dizendo “Bem, muito bem.”, como se ele fosse um bebé a aprender a fazer chichi. Utilizava sempre a mesma frase ao sair: “O senhor doutor volta cá em breve para o ver.” Tentou lembrar-se de quem era o médico e de qual era o seu aspecto; no entanto, o esforço era demasiado, de modo que fechou os olhos e tentou descansar.

Estava perturbado de mais para dormir; não perturbado por motivo de alguma coisa em especial, mas ansioso, como quem tivesse perdido uma coisa preciosa e andasse a procurá-la às apalpadelas no nevoeiro. Muitas vezes sentia que estava lá perto e à beira de saber do que se tratava; mas o -momento da descoberta nunca chegava. Nessas ocasiões sentia-se como um homem numa adega com a portinhola fechada sobre a cabeça. Finalmente, chegou o médico, um fulano esguio e grisalho que mostrava uma espécie de preocupação improvisada.

- Sou o Dr. Raven. É capaz de repetir o meu nome? Jean Marie tentou por diversas vezes, mas apenas conseguiu dizer:

- Ra... Ra... Ra... O médico replicou:

- Não tem importância. Não tardará que consiga melhor. Limite-se a acenar com a cabeça se perceber o que eu digo. Estou a falar inglês. Sabe o que eu estou a dizer?

Jean Marie acenou.

- Consegue ver-me? Novo aceno.

- Sorria-me. Deixe-me vê-lo a sorrir.

Jean Marie tentou. Sentiu-se agradecido por não poder ver o resultado. O médico observou-lhe os olhos com um oftalmoscópio, verificou-lhe os reflexos com um pequeno martelo de borracha, mediu-lhe a tensão arterial e auscultou-lhe o peito. Depois sentou-se na borda da cama e fez-lhe uma pequena palestra. Jean Marie recordou-se do discurso com que o reitor do seu seminário costumava saudar cada lote de recém-chegados.

- ... O senhor tem muita sorte. Está vivo. Raciocina e tem algumas das faculdades intactas. É demasiado cedo para saber quais foram os estragos por dentro do crânio. Temos de aguardar dois ou três dias para sabermos se isto é um acontecimento isolado ou se podem ocorrer outros. Tem de confiar em nós e aceitar o facto de que, por uns tempos, não há nada a fazer. Está no Hospital Charing Cross. Os seus amigos e parentes sabem onde está. Mas sabem que não deve ter visitas nem ser incomodado de modo nenhum enquanto não o conseguirmos colocar numa situação estável. Percebeu isto?

- Me... me... me... muito - disse Jean Marie, e ficou absurdamente satisfeito consigo próprio.

O médico, igualmente, dirigiu-lhe um sorriso e deu-lhe uma palmadinha de aprovação.

- Óptimo! Isso é prometedor. Venho vê-lo novamente amanhã de manhã. Esta noite vão dar-lhe qualquer coisa para o ajudar a dormir.

Jean Marie tentou dizer obrigado. Descobriu que tinha esquecido as palavras em inglês. Em francês, o mais que conseguiu pronunciar foi “Mer...” Debateu-se com a palavra até chorar de frustração e a enfermeira entrar e injectar-lhe um opiáceo no braço.

 

Passados quatro dias, parecia ter progredido o suficiente para que eles o iniciassem nos jogos do novo país. Antes, porém, tiveram de arranjar-lhe um assistente que falasse francês a fim de ensinar-lhe as regras. Já assim tinha bastantes dificuldades com baralhadas fónicas e blocos de palavras, quanto mais se o precipitassem na baralhada de línguas misturadas!

O assistente era um fulano elegante de trinta e poucos anos, com um físico de atleta, a pele olivácea de um mediterrânico e uma incongruente cabeleira loira como se tivesse sido herdada de algum cruzado nórdico há muito desaparecido. Era oriundo daquilo a que vagamente chamava o Médio Oriente. Confessava falar fluentemente inglês, francês, árabe, hebraico e grego. Tinha conseguido fazer uma carreira modesta em círculos médicos londrinos, servindo de intérprete, de enfermeiro e de fisioterapeuta para os grupos poliglotas que residiam na metrópole. O neurologista apresentou-o como Mr. Atha. Começaram juntos a fazer uma série de jogos, todos eles destinados a localizar as lesões no sensório, a parte do cérebro que apreende as sensações. Para um homem que outrora fora, por definição dogmática, o intérprete infalível da mensagem de Deus aos homens, constituía um choque descobrir quão falível era, e em quantas questões simples.

Ao ser-lhe pedido que fechasse os olhos e erguesse ambos os braços na horizontal diante de si, ficou admirado por apenas um braço lhe obedecer totalmente, enquanto o outro permanecia como o ponteiro de um relógio parado nos vinte e cinco minutos para a hora certa.

Ao ser-lhe perguntado onde estava a ser picado com ambas as pontas de um compasso, descobriu que algumas das suas identificações estavam profundamente extraviadas. E, o que era pior, nem sequer conseguia chegar com a mão esquerda à ponta do nariz.

No entanto, havia alguns indícios esperançosos. Quando lhe faziam cócegas nos pés, os dedos curvavam-se para dentro. Isso, explicava Mr. Atha, revelava que o seu reflexo de Babinski ainda funcionava. Quando lhe faziam cócegas na face interna da coxa, o saco escrotal contraía-se. Isto, ao que lhe disseram, era também bom, porque o seu reflexo do cremáster estava em boas condições de funcionamento.

Foi então que surgiu um momento extremamente infeliz. Mr. Atha pediu-lhe para repetir ao neurologista a letra da velha cantiga: “Sur lê poní, sur le pont Sur lê pont d'Avignon.”

Com horror, verificou que tinha a boca cheia de melaço, e o que dela saiu foi um balbuciar cujo som não fazia qualquer sentido.

Começou novamente a chorar. O neurologista censurou-o com firmeza. Tinha muita sorte em estar vivo. E era duplamente feliz pelo facto de ter sofrido uma diminuição tão pequena das faculdades. O diagnóstico era risonho, desde que ele estivesse preparado para ser paciente, colaborante e corajoso - virtudes que ultrapassavam em muito a sua capacidade naquele momento.

Mr. Atha traduziu tudo aquilo para um francês mais sedativo e ofereceu-se para permanecer junto dele até recuperar a calma. O neurologista apoiou a ideia com um aceno de cabeça, deu uma palmadinha na mão boa de Jean Marie e foi tratar de outros assuntos, os quais, conforme Mr. Atha explicou, incluíam pacientes que estavam de longe em pior estado do que Jean Marie.

- Eu também trabalho com eles, de maneira que sei o que digo. O senhor pode engolir. E não vê a dobrar. Tem controlo sobre os intestinos e sobre as urinas. Eh! Pense só quanto não vale isso! A sua fala há-de melhorar, porque vamos os dois praticar juntos. É que, com o médico, o senhor está a tentar mostrar que não ficou afectado. Está decidido a prová-lo por meio de um súbito despejar de oratória. Quando isso não acontece, fica desesperado. Vamos partir do princípio de que ficou afectado. E vamos curar o trauma juntos.

Não se limitava a ser persuasivo; tinha também uma imensa serenidade. Jean Marie sentiu aliviar-se o peso que sentia sobre a cabeça e a bruma dentro do crânio dissipar-se. Mr. Atha continuou calmamente a falar:

- Disseram-me que o senhor já foi papa. Sendo assim, deve lembrar-se das Escrituras: “Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no reino dos Céus.” Pois bem, o senhor agora é como uma criancinha. Tem de aprender as coisas simples do princípio. Tem de reconhecer que ainda lhe falta um bom pedaço de tempo para poder estar à altura das complicadas. Mas no fim há-de crescer outra vez, tal qual como as crianças. Neste momento está no jardim infantil. À medida que as semanas forem passando, irá progredindo de uma classe para outra. Há-de aprender a vestir-se, a voltar a mexer o braço e a perna afectados... e, sobretudo, há-de falar. Até já pode falar, desde que o faça lentamente. Vamos escolher uma coisa muito simples: “O meu nome é Jean Marie.” Vamos lá, uma palavra de cada vez.

Algures durante as longas horas da noite, quando os únicos sons eram os passos da enfermeira de noite e a única luz o foco da sua lanterna apontada ao rosto dele, aprendeu outra lição. Se tentasse recordar coisas, elas fugiam-lhe sempre. No entanto, caso se deixasse estar deitado muito quieto, sem fazer qualquer esforço, trepavam até ele e sentavam-se em seu redor como animais do bosque num livro infantil ilustrado.

Nem sempre surgiam pela ordem certa: Drexel estava ao pé da criança mongolóide; Mendelius estava misturado com uma conferência episcopal qualquer no México; Roberta Saracini estava a beber pela taça do cosmo; quanto à anã corcunda, estava a vender estampas a Alvin Dolman. Mas pelo menos estavam todos ali. Não os perdera como um amnésico. Eram peças de uma figura num caleidoscópio. Um dia deslocar-se-iam para ocupar a ordem habitual.

Havia também outra coisa. Tal como relativamente à visão no jardim do Mosteiro, apercebia-se dela de uma maneira que escapava à definição verbal. Algures no mais íntimo do seu ser - essa lamentável fortaleza tão assaltada, bombardeada e desfeita - havia um lugar de luz onde residia a ordem e onde, quando podia retirar-se para ele, havia comunhão de amor, beatífica mas brevíssima. Era como - como era? - Beethoven surdo com a cabeça cheia de glórias, Ein-stein privado da Matemática para exprimir os mistérios que finalmente compreendia. Havia ainda outra maravilha. Não conseguia dominar a mão frouxa ou a perna dormente, e só ocasionalmente lograva controlar a língua titubeante; no entanto, naquele pequeno lugar de luz e paz, podia controlar-se, dispor livremente de si próprio, como um amante relativamente ao ser amado. Era aí que o pacto se fazia. “Seja o que for que me confiastes, aceito. Sem perguntas, sem condições! Mas, por favor, quando o 'dia do Rubicão' chegar, dai luz e um pouco de alegria ao meu amigo Duhamel e à mulher. Ele é um dos bons. Só foi avaro para consigo próprio!”

O primeiro ponto perigoso tinha sido ultrapassado, disse-lhe o neurologista. Faça-figas-e-reze-um-pouco, tratava-se de um acontecimento isolado e devia ter uma boa recuperação. Haveria sequelas, claro, limitações e inibições de um ou outro tipo; mas, genericamente, havia boas perspectivas de poder regressar a uma vida normal. Mas não para já! Nem tão depressa! Tinha de ser treinado, mais intensamente do que qualquer atleta. Para além de explicar, Mr. Atha acompanha-lo-ia ao longo dos exercícios, hora após hora, dia após dia. Visitas? Bem, não seria melhor esperar uns tempos, até lhes poder mostrar uma certa capacidade? Às vezes as visitas ficavam mais aflitas do que os pacientes.

- Além disso - acrescentou Mr. Atha as suas boas razões -, o senhor é um homem importante. Gostaria de sentir orgulho em si no primeiro -dia em que se expuser. Quero-o vestido como deve ser, a falar como deve ser, a mexer-se como deve ser... com panache, certo?

- Panache! - disse Jean Marie, e a palavra soou distinta como o tanger de um sino.

- Bravo! - exclamou Mr. Atha. - Agora vamos chamar a enfermeira. A primeira coisa que temos de fazer é ensiná-lo a sentar-se na borda da cama e depois a levantar-se pelo seu pé.

Parecia tão simples que mal podia acreditar no esforço e na humilhação em que redundavam. Uma e outra vez, abatia-se como um boneco de trapos nos braços de Mr. Atha e da enfermeira. Uma e outra vez, eles punham-no de pé e retiravam-lhe gradualmente o apoio até ele conseguir manter-se erecto por uns momentos. Quando se cansou, voltaram a sentá-lo na cama e mostraram-lhe como rebolar até ficar numa posição reclinada e aliviar os pontos de pressão nos quais poderiam surgir feridas por manter-se deitado.

Quando ele ficou senhor da abertura, começaram a ensinar-lhe a ópera: como caminhar com pequenos passos arrastados, como exercitar a mão esquerda com uma bola de borracha, toda uma série de operações com equipamento mecânico num amplo ginásio. Foi aí que ele compreendeu, como lhe havia dito Mr. Atha, toda a sorte que tinha. Notou também outra coisa: a paciência sem limites que Atha dispensava ao seu heterogéneo grupo, e como eles reagiam rapidamente ao seu sorriso e às suas palavras de encorajamento.

Atha fê-lo participar na pequena e desarticulada vida comunitária do ginásio: atirando uma bola a um, falando entrecortadamente com outro, demonstrando a um terceiro um movimento que ele próprio começara a dominar. Por muito breves que fossem, estes interlúdios sociais deixavam-no exausto; mas Atha mantinha-se inflexível.

- Só poderá renovar os seus recursos compartilhando-os. Não pode esperar passar todo este tempo de cura num mundo hermético para depois emergir dele como animal social. Se ficar cansado de falar, toque nas pessoas, sorria, compartilhe a sua consciência das coisas... como aquele par de pombos no rebordo da janela. Pode ser que isso não o preocupe, mas metade das pessoas que aqui estão vivem no terror de deixarem de ser atraentes para aqueles que as amam, de se tornarem sexualmente impotentes ou até, no final, um odioso peso para as famílias.

- Desculpe. - Jean Marie conseguiu que as palavras lhe saíssem. - Tentarei fazer melhor.

- Óptimo! - disse Mr. Atha com um sorriso. - Agora pode descontrair-se. Está na altura da massagem!

Havia um conjunto de jogos que lhe proporcionava verdadeiro prazer. O neurologista chamava-lhes “testes de sensibilidade gnóstica”. De facto, significavam o reconhecimento, apenas pelo tacto, de texturas e pesos, de formas planas e sólidas. O prazer deste jogo consistia em as sensibilidades se tornarem, na realidade, perceptivelmente mais agudas e as suas tentativas se aproximarem cada vez mais da identificação correcta dos objectos que davam origem à sensação.

O seu campo de atenção tornou-se também mais longo, e conseguiu gozar o volume de cartas e cartões que se tinham acumulado, sem ser lidos, na gaveta superior da secretária. Quando perdia a concentração, Mr. Atha lia-lhas e ajudava-o a estruturar uma resposta simples. No entanto, não a escrevia. Tinha de ser o próprio Jean Marie a fazê-lo. Mr. Atha contribuía com as palavras e frases que se perdiam momentaneamente do seu vocabulário ou que se embrulhavam com outras numa espécie de curto-circuito sináptico.

Agora distribuíam-lhe jornais - ingleses e franceses - e agradava-lhe percorrê-los, conquanto retivesse lamentavelmente pouco do que lia. Mr. Atha consoláva-o, com o seu jeito calmo:

- Que é que quer reter? As más notícias, que lhe dizem que o homem está a desmantelar a civilização tijolo a tijolo? As boas notícias estão aqui, mesmo diante do seu nariz! Os cegos vêem. Os coxos andam. Por vezes até os mortos são repentinamente devolvidos à vida... e, se escutar muito bem, pode ouvir os ecos da boa nova.

- O senhor... o senhor é um... homem diferente! - disse Jean Marie, à sua maneira titubeante.

- O que queria dizer era: “estranho”.

- Pois queria.

- Então diga-o agora.

- Estranho - disse cuidadosamente Jean Marie. - O senhor é um homem muito estranho.

- E também trago boas notícias - disse Mr. Atha. - Na próxima semana pode começar a receber visitas. Se me disser quem é que quer ver, eu faço uma lista e entro em contacto com elas.

O primeiro convidado foi o seu irmão Alain, visto que Jean Marie pensava deverem ser respeitados os laços familiares, e já não havia razões para inveja por parte do irmão. Abraçaram-se desajeitadamente, devido ao braço inútil de Jean Marie. Depois das primeiras trocas de palavras, Jean Marie esclareceu que preferia ouvir a falar; assim, Alain despachou rapidamente as notícias sobre a família até chegar ao ponto ao qual o coração estava preso: a Bolsa, com todas as suas transacções e os seus boatos.

- Neste momento estamos no negócio das trocas em larga escala. Petróleo por cereais, soja por carvão, tanques por lingotes de ferro, carne por minério de urânio, ouro por tudo e mais alguma coisa! Se uma pessoa tem mercadorias, podemos encontrar comprador para elas. Mas por que razão estou eu para aqui com isto? Durante quanto tempo tencionas ficar aqui?

- Não me dizem. - Jean Marie tinha já descoberto que se dava melhor com afirmações simples, previamente estruturadas. - Não pergunto. Espero.

- Quando saíres, temos muito gosto em que vás para nossa casa.

- Obrigado, Alain. Não! Há sítios para... para... - Procurou a palavra e quase a apanhou. - Reab... reab...

- Reabilitação?

- Isso. Mr. Atha há-de arranjar-me um.

- Quem é Mr. Atha?

- Trabalha cá com vítimas de ataques.

- Ah! - Não era insensível nem indiferente. Era simplesmente um estranho numa terra estranha. - A Roberta manda-te saudades. Daqui a uns dias vem cá.

- Óptimo. Vou gostar de a ver.

Era o máximo que conseguia. Alain também ficou satisfeito por a sua presença ser dispensada. Após mais algumas trocas de palavras, abraçaram-se novamente e separaram-se, ambos perguntando a si próprios por que razão teriam tão pouco que dizer um ao outro.

No dia seguinte apareceu Waldo Pearson. Vinha acompanhado de um criado, carregado de tesouros inesperados: fieis exemplares de autor das últimas Cartas de Um Pequeno Planeta, um volume com encadernação de pele para o autor em pessoa, um gravador e duas versões das mais vendidas de Johnny the Clown, uma cantada por um vocalista masculino e a outra por uma cançonetista muito conhecida, com um coro completo. Trazia também uma garrafa de Veuve Clicquot, um balde de gelo, um conjunto de taças de champanhe, um frasco de caviar fresco, tosta, manteiga e o texto integral do discurso de Jean Marie no Carlton Club, também encadernado a pele. Waldo estava na sua melhor disposição de “consoante tocares, assim eu danço”:

- O meu pai teve dois ataques (nesse tempo não lhes chamavam acidentes cérebro-vasculares!), de maneira que já conheço a receita. Converse quando quiser. Fique calado quando lhe apetecer. Gosta do livro?... Bonito, não é? As encomendas não param. É a coisa maior que tivemos nos últimos trinta anos. E já temos a certeza de que vai ser objecto de críticas delirantes, e das grandes! A única coisa que lamento é não podermos tê-lo presente na recepção de lançamento. O Hennessy telefonou. Diz que a reacção nas Américas e no continente é a mesma. Diz que o vem ver quando vier de regresso de Nova Iorque. Não há dúvida de que o senhor tocou num nervo sensível. E toda a gente anda a assobiar a canção. Eu até a canto no banho. Champanhe? Consegue entender-se com o caviar, também? Isso é óptimo! Não há dúvida de que domina a situação. Eu estava decidido a fazer com que tomasse champanhe e caviar, nem que tivesse de ser eu a alimentá-lo com um conta-gotas.

- Estou muito sensibilizado. Obrigado - disse Jean Marie, surpreendido com a sua própria fluência. - Lamento ter feito uma cena daquelas no Club.

- Foi extremamente curioso - disse Pearson, repentinamente grave. - Parte da assistência era hostil. Muitos ficaram profundamente comovidos. Ninguém conseguiu manter-se neutral. Mandei cópias do texto integral da sua palestra a todos os membros e aos seus convidados. As reacções, pró e contra, foram esclarecedoras. Algumas exprimiam medo; outras referiam-se a um impacte religioso; outras ainda falavam do contraste entre a força da sua mensagem e a modéstia da sua atitude pessoal. A propósito, teve notícias do Matt Hewlett? Disse que ia escrever. Pensou que o senhor poderia ficar embaraçado se viesse cá vê-lo.

- Escreveu. Disse-me que tinha oferecido nove dias de missas por mim. O sumo pontífice mandou um telegrama, bem como alguns membros da Cúria. O Drexel escreveu uma longa... longa... longa... Desculpe. Às vezes falham-me as palavras mais simples.

- Descontraia-se! - disse Waldo Pearson. - Vou pôr-lhe a canção a tocar. Prefiro a versão cantada pela voz feminina. Veja o que é que acha.

- É capaz de me arranjar um exemplar para Mr. Atha?

- Com certeza, mas quem é ele?

- É um ter... terapeuta. Não há palavras para dizer o que ele faz por todos nós. É um homem en... enviado por Deus! Tenho de oferecer-lhe um livro autografado. Agora tem alguma importância saber-se que o autor sou eu?

- Não me parece que tenha a mais pequena importância, agora - disse Waldo Pearson. - Os caridosos hão-de encontrar Deus no livro. Os fanáticos hão-de certificar-se de que o senhor será fulminado pelos seus pecados. Assim, toda a gente ficará satisfeita.

- O Pé... Petrov conseguiu o cereal?

- Conseguiu algum, mas não o suficiente.

- Perdi a conta do tempo. Não consigo lembrar-me dos acontecimentos...

- Console-se! O tempo perdeu as estribeiras, e os acontecimentos ultrapassam o nosso controlo.

Jean Marie estendeu o braço para agarrar-lhe a mão. Precisava da tranquilidade de um contacto humano. A ideia que havia semanas tentava apreender tornava-se finalmente clara. Começou a expressá-la com desesperada cautela:

- Ele mostrou-me as “últimas coisas”. Disse-me para anunciar a Parúsia. Eu larguei tudo para o fazer. Tentei. Tentei a valer. Antes de eu poder pronunciar as palavras, Ele emudeceu-me de um golpe!... Não sei o que é que Ele quer agora. Estou tão confuso...

Waldo Pearson tomou a mão débil entre as suas e disse meigamente:

- Também eu fiquei confuso. Fiquei zangado. Dei por mim a erguer um punho ameaçador para Ele e a exigir saber porquê, porquê? Depois li as Últimas Cartas de Um Pequeno Planeta e percebi que se tratava do seu testemunho. Estava tudo ali, preto no branco. Tudo aquilo que o senhor disse ou não conseguiu dizer no Carlton Club era um aditamento, dispensável. E lembrei-me também de outra coisa. O primeiro precursor, João, chamado o Baptista, teve um estranho fim. Enquanto o Messias, que ele anunciara, continuava a andar livremente pela Judeia, ele foi assassinado nas masmorras de Herodes e a sua cabeça foi oferecida numa bandeja a uma dançarina. Tudo o que ele obteve do seu Messias foi um louvor que se transformou num epitáfio: “Entre os nascidos de mulher, não apareceu ninguém maior do que João Baptista...”

- Tinha-me esquecido disso - disse Jean Marie Barrete. - Mas, também, esqueço-me de tantas coisas...

- Beba mais um copo de champanhe - retorquiu Waldo Pearson - e vamos ouvir a música.

No dia seguinte, novos tormentos o afligiram. Estava sentado na cadeira de rodas, passando os olhos pelos títulos do jornal da manhã, quando Mr. Atha entrou para lhe dizer que estaria ausente por uns tempos. Tinha de ir ao estrangeiro para tratar de uns assuntos do pai. A sessão de terapia de Jean Marie seria dirigida por uma assistente.

- E, quando voltar - disse Mr. Atha-, quero ver um homem cheio de vigor e a falar como deve ser.

Jean Marie foi assaltado por um repentino pânico:

- Onde... onde é que vai?

- Oh, a uma série de capitais. Os interesses do meu pai são muito vastos. Vou levar o seu livro para o ler no avião. Ora vamos! Não faça essa cara desolada!

- Tenho medo!

Deitou a frase cá para fora antes que se lhe escapasse. Mr. Atha não estava disposto a ceder ao apelo:

- Nesse caso tem de enfrentar o medo! Todo o trabalho que realizámos juntos tem um único objectivo: fazê-lo andar, falar, pensar e trabalhar por si. Agora, coragem!

Porém, no momento em que Mr. Atha saiu a porta, a coragem abandonou-o. A depressão, negra como a noite, abateu-se sobre ele. Até o lugar de luz se apagou. Não conseguia localizar o caminho de regresso a ele. Com o decurso do dia, deu por si a mergulhar cada vez mais profundamente num estado de desespero. Nunca se curaria. Nunca deixaria o hospital. E, mesmo que o fizesse, para onde iria? Que faria? Qual era o objectivo de todos aqueles esforços, se não conduziam a nada mais além de vestir um casaco, dizer frivolidades elementares, arrastar-se em linha recta num piso de cimento?

Começou pela primeira vez a meditar na morte, não apenas como uma libertação do sofrimento, mas como um acto pessoal de pôr fim a uma situação intolerável. A meditação deu origem a uma calma extraordinária e a uma lucidez comparável à longa e fria luz das latitudes setentrionais. Era uma questão de simples lógica passar da meditação sobre o acto a uma especulação sobre o meio pelo qual podia ser obtido. Só quando a enfermeira surgiu é que se apercebeu, com um sobressalto de culpa, de quão longe o devaneio mórbido o levara.

Ficou suficientemente assustado com a experiência para a referir ao médico quando este veio vê-lo na ronda vespertina. O médico empoleirou-se na borda da cama e abordou o assunto sem rodeios:

- Já começava a pensar que o senhor tinha sido feliz e escapado a esta crise específica. Era evidente para todos nós que a sua formação religiosa lhe tinha dado recursos que a maioria das pessoas não possui. No entanto, não é possível dizer como ou quando uma doença depressiva vai atacar.

- Quer dizer que eu tenho outra enfermidade?

- Quero dizer - explicou pacientemente o neurologista - que o senhor acaba de descrever os sintomas clássicos de uma depressão aguda. Se deixarmos passar esses sintomas sem tratamento, a depressão acabará por transformar-se numa situação crónica, constantemente agravada pelas suas limitações actuais. A partida de Mr. Atha foi somente um incidente que despoletou a questão. Portanto, vamos intervir antes que as coisas vão longe de mais. Vamos ver como reage a doses moderadas de uma droga que provoca euforia. Se resultar... óptimo! Se não, há outras medicações. No entanto, se conseguir derrotar o espectro das ideias negras sem demasiada intervenção de psicotrópicos, tanto melhor; mas não tente ser valente ou atrevido. Se sentir vontade de chorar, se se considerar incapaz de enfrentar as coisas, diga à enfermeira, diga-mo, imediatamente. Prometa-mo!

- Prometo - disse Jean Marie, firme e claramente. - Mas é difícil para mim sentir-me tão dependente.

- Esse é também o meu maior problema como médico. O paciente debate-se consigo próprio. - Hesitou e depois apresentou uma pergunta curiosa: - Acredita que o homem tem um corpo e uma alma, que se separam no momento da morte?

Jean Marie ponderou a questão por um instante, temendo que um novo turbilhão de névoa obscurecesse a resposta que procurava; no entanto - graças a Deus! - a luz resistiu. Com surpreendente fluência, respondeu:

- Era assim que os Gregos exprimiam o homem: espírito e matéria, duas coisas diferentes e divisíveis. Como módulo, serviu perfeitamente durante muito tempo. No entanto, depois desta experiência, não sei... Não tenho consciência de mim próprio como dois elementos: um músico a tocar um piano com falta de algumas notas ou, inversamente, um Stradivarius tocado deficientemente por um estudante. Eu sou eu: uno e indiviso! Uma parte de mim está meio morta; outra parte está totalmente morta e nunca voltará a funcionar. Estou... de... de...

- Defeituoso - disse o neurologista.

- Isso - confirmou Jean Marie. - Defeituoso.

O médico estendeu a mão para o registo pendurado aos pés da cama e rabiscou uma receita contra o espectro das ideias negras.

Num raro lampejo do seu velho humor, Jean Marie perguntou:

- Não fornece nenhum feitiço para acompanhar o remédio?

Contra o que lhe sucedeu a seguir, não havia remédio ou feitiço que valessem. Dois dias após a partida de Mr. Atha, uma hora antes do meio-dia, Waldo Pearson e Adrian Hennessy foram visitá-lo. As perguntas que fizeram acerca dos seus progressos foram solícitas, mas breves. Waldo Pearson apresentou uma desculpa:

- Esperava poupá-lo a isto, mas foi impossível. Temos de requerer embargos na Grã-Bretanha, no continente, nos Estados Unidos, enfim, onde quer que consigamos obtê-los. E precisamos da sua assinatura nos documentos de queixa.

Jean Marie olhou para um e outro, interdito, e perguntou:

- Mas de que é que nos vamos queixar? Adrian Hennessy abriu a pasta.

- Prepare-se para um choque, monsenhor!

Poisou na cama um grande álbum de recortes de imprensa e um livro brochado. O título era A Fraude. O autor era um tal Luigi Marco. A capa tinha o carimbo “Provas não corrigidas”. O editor era a Veritas, S. p. a., Panamá. Hennessy pegou no livro.

- Esta pequena guloseima foi distribuída a todas as agências internacionais de imprensa. Destina-se a ser editada em todo o mundo, em vinte línguas, no dia em que lançarmos as últimas Cartas em cada país. Queremos obter embargos para obstar à sua publicação. No entanto (e o mal é esse!) alguma baixa imprensa já conseguiu os direitos para edição em folhetins e está a publicar as partes mais suculentas da história. Os jornais sérios e as cadeias de televisão não podem ignorar o facto da publicação. Têm todo o direito de fazer comentários sobre a matéria. Temos de levantar processos por difamação para evitar que o escândalo se espalhe ainda mais.

- Mas qual é o escândalo?

Waldo Pearson arcou com o peso da explicação:

- O livro, apropriadamente intitulado A Fraude, pretende passar por ser a verdadeira história da sua carreira, desde a juventude até agora. É uma cuidadosa e muito hábil mistura de realidade, fantasia e insinuação torpe. O nome do autor é evidentemente um pseudónimo. Tudo isto é um trabalho de injúria altamente profissional, como aqueles chamados documentários sobre espiões e desertores ou escândalos políticos que os serviços de propaganda rivais fabricam para se desacreditarem uns aos outros. O editor é uma empresa fictícia registada no Panamá. A impressão foi feita na Formosa por uma das casas que produzem coisas dessas por contrato. Depois foram despachados por via aérea, para os principais países, exemplares brochados do livro. Houve alguém que gastou uma boa maquia em trabalho de investigação, redacção, tradução e manufactura. Algumas das fotografias foram tiradas com telobjectiva, o que indica que o senhor estava há muito sob vigilância profissional.

- Que espécie de fotografias? - Jean Marie teve novamente de explodir, ultrapassando o obstáculo fónico.

- Mostre-lhas!-disse Waldo Pearson.

Hennessy, com patente relutância, folheou rapidamente os recortes de imprensa do álbum. Havia um instantâneo de Jean Marie com a rapariga corcunda na Place du Tertre. O ângulo era tal que o rosto dele estava junto ao dela e era fácil supor que se tratava de um tête-à-tête entre um par amoroso. Havia várias fotografias de Roberta Saracini e dele de braço dado, no Hyde Park, no barco fluvial e passeando nos jardins em Hampton Court. Havia um instantâneo dele e de Alain a saírem do restaurante Sophie's, em que pareciam um par de velhos bêbedos. Foi acometido de uma fúria cega e quase sufocou ao perguntar:

- E... e o texto?

Waldo Pearson encolheu os ombros, num gesto de impotência.

- É o que seria de esperar. Fizeram um trabalho muito completo de pesquisa e um trabalho muito inteligente de denúncia de escândalos, de modo que o senhor aparece como um indivíduo completamente mau, que além disso é um tanto louco. Quanto a este aspecto, conseguiram obter dois relatórios de médicos que o examinaram antes da sua abdicação. Há também diversos outros pormenores exóticos.

- Por exemplo - disse Hennessy, folheando o livro -, descobriram alguém que esteve consigo no maquis. Houve uma história qualquer sobre o senhor e a mulher de um agricultor que mais tarde foi encontrada violada e assassinada. É claro que os habitantes atribuíram a culpa aos alemães, mas... Eles são muito bons nos “mas”. O seu melhor amigo é Carl Mendelius, de Tubinga, mas sugere-se que o senhor o ajudou a obter a dispensa das ordens devido a uma ligação homossexual. O facto de o senhor o ter defendido de acusações de heresia e de ter sido o celebrante no casamento dele apenas reforça a insinuação. É essa a parte horrível deste tipo de trabalho. O boateiro não tem de provar coisa nenhuma. Limita-se a instilar a ideia suja. Se o senhor beijar a sua mãe numa estação de caminho-de-ferro, tem de ser incesto.

- Que dizem eles acerca da Roberta? Hennessy franziu o sobrolho de desagrado.

- O pai dela burlou o Banco do Vaticano em milhões. Os fundos nunca foram localizados. Sabe-se que o senhor tem um património considerável, do qual Roberta Saracini é administradora. Os cargos de administrador, em França, são objecto de registo público. Quando o senhor foi para Paris, ficou alojado em casa dela. Depois disso foi fotografado em Londres de mão dada com ela no parque... e está a viver cá sob um nome falso. Quer mais?

- Não. Quem foi que fez tudo isso? De quem foi a ideia? Como foi que conseguiram todas essas informações? Porquê?

- Vamos raciocinar sobre isso - disse Waldo Pearson, tentando acalmá-lo. - O Adrian e eu falámos com uma série de pessoas bem informadas e julgamos ter encontrado uma explicação que condiz com todos os indícios de que se dispõe... Tem a certeza de que está preparado para isto?

- Estou!-Jean Marie estava obviamente sob tensão, mas fez um esforço para pronunciar as palavras. - Não façam caso de mim! Limitem-se a falar!

Waldo Pearson continuou a falar no tom monocórdico de um homem que vai dar más notícias.

- A partir do momento em que alegou ter tido uma revelação particular das “últimas coisas” e deu passos no sentido de a publicar numa carta aos crentes, passou a ser um homem perigoso. Sabe o que aconteceu na Igreja, e como os “amigos do silêncio” ficaram descontentes. No exterior, porém, onde as nações estavam a preparar-se activamente para uma guerra nuclear, foi muito pior. O senhor, com as suas visões de horror e de julgamento, tornou-se uma ameaça imediata para os criadores de mitos.

“Estavam a preparar o público para participar numa competição de destruição nuclear, num jogo, num jogo diabólico, em que cada um dos lados procede à mesma carnificina por causa da mesma insensatez!

“A sua visão, que o fez parecer um louco, constituía, efectivamente, a única sanidade de que era possível dispor-se. O senhor viu o horror. E revelou-o! Antes que o público apreendesse a ideia, era preciso que o senhor fosse silenciado.

“Mas isso não era assim tão simples. O senhor era um homem activo e combativo. Na Alemanha, tinha revelado a cobertura de um operacional da C. I. A., um importante agente local. Em França, no seu próprio país, foi imediatamente colocado na lista negra, sob vigilância de grau A. Na Inglaterra também foi vigiado; no entanto, eu era um protector bastante respeitável e servi de seu fiador perante o nosso governo.

“Durante todo esse tempo, porém, o senhor foi uma pedra no sapato dos poderosos, porque, no preciso momento em que os tambores de guerra ressoavam, era capaz de gritar que o rei ia nu... e, depois da primeira grande explosão, poderiam nem sequer restar-lhe súbditos.

“Chegou a estar em discussão, conforme tanto o Adrian como eu descobrimos, com base em diferentes fontes, mandá-lo liquidar. Tratava-se de uma recomendação mais ou menos unânime. Quando se soube que o seu livro estava no prelo, a decisão de o liquidar foi cancelada. E fizeram-se novos planos: desacreditá-lo completamente. Já vê a maneira como isso foi feito.

- Como foi que eles conseguiram obter todo este material tão depressa?

- Dinheiro! - ripostou bruscamente Adrian Hennessy. - Se uma pessoa puser vários funcionários em campo ao mesmo tempo e abrir suficientemente os cordões à bolsa, pode saber a vida secreta de quem quer que seja no prazo de um mês. Com a ajuda de uma situação hostil na Igreja e da cooperação de alto nível por parte dos governos, o trabalho é tão simples como beber um copo de água.

- Mas quem foi que o organizou?

- O Dolman foi o rapaz que juntou as peças e dispunha de um motivo especial para fazer com que a coisa resultasse. O senhor sabia que ele tinha tentado matar o Carl Mendelius.

- Tudo isso faz sentido.

- E além disso levanta um problema.

- Por favor! - exclamou Jean Marie com absoluta clareza. - Por favor, não me escondam coisa nenhuma.

- Mesmo que consigamos obter embargos - disse Adrian Hennessy-, o alívio será apenas temporário. Teremos de sustentar processos judiciais nos principais países. Isso vai custar uma porção de dinheiro, e o senhor vai ter de pagar a maior parte do seu bolso. E, visto que agora estamos na era das trevas e não tarda que estejamos a viver sob normas de emergência, não há garantias, nem mesmo em Inglaterra, de que disporá de um julgamento justo, quer da parte do júri, quer da parte dos magistrados!

Jean Marie pensou no assunto por momentos e depois disse lentamente:

- Tenho os fundos. Mesmo que gaste o meu último sou, temos de combater esta obscenidade em todos os campos que pudermos descobrir! Não sou tão ingénuo que acredite que podemos ganhar, mas as pessoas têm de ver que lutamos... e com o meu dinheiro, e de mais ninguém. Só espero, Waldo, que isto não afecte a sua publicação das Últimas Cartas.

- Não! - disse Waldo Pearson. - Quando muito, obteremos mais espaço na imprensa, uma discussão mais viva. Tudo há-de acabar por reduzir-se a um julgamento particular na mente de cada leitor: “Será possível que o autor das Cartas seja o mesmo patife que é retratado neste monte de lixo?”

- Entretanto, temos de ter os documentos assinados. Hennessy estava a extraí-los da pasta.

- A menos que queira ler uma pilha de palavreado jurídico, terá de aceitar a nossa palavra de que os papéis estão convenientemente preparados pelos mais talentosos advogados da Inglaterra, da França e dos Estados Unidos.

- Aceito a vossa palavra - disse Jean Maríe, que estava já a assinar as primeiras páginas. - Mas atenção! Para se obterem elementos para este libelo, muitas pessoas que me conheciam bem devem ter fornecido informações.

- É evidente! - retorquiu Waldo Pearson. - Mas o simples facto de terem dado informações a um entrevistador não as transforma em suas inimigas. O senhor não sabe que invenção foi utilizada para as levar a falar. Podem ter pensado que estavam a fazer-lhe um favor. Podem ter sido meras mexeriquices. O Vaticano está cheio disso! O Hennessy e eu somos seus aliados, e no entanto falamos de si! Tenho a certeza de que nos descaímos com frases e opiniões que acabaram por ir parar a este falso requisitório!... Receio bem que tenha de limitar-se a aceitar o que aconteceu, lutar o melhor que puder e depois dizer aos filhos-da-mãe que vão para o Inferno. Não pode dar-se ao luxo de ficar paranóico.

- Estou defeituoso - disse Jean Marie -, não estou paranóico. À escala da “última catástrofe”, sou uma quantidade insignificante. O que me acontecer é um não-evento. O que me preocupa são pessoas como a Roberta, que vão sofrer porque os seus nomes estão associados ao meu neste libelo. Quando eu era papa, toda a gente que eu tocava se considerava abençoada. Agora, sou efectivamente um portador de peste, contagiando até os meus amigos mais íntimos...

Nessa noite, pela primeira vez, pediu um medicamento para dormir. Na manhã seguinte acordou mais tarde do que o habitual, mas restaurado e lúcido. Durante a sessão de terapia verificou que estava a andar com mais confiança, que o braço afectado estava a responder bastante bem às mensagens dos centros motores. A sua maneira de falar era consistentemente clara e raramente tinha de andar à procura das palavras. A terapeuta encorajou-o:

- É assim que as coisas se passam em casos que têm um bom prognóstico. Melhoram rapidamente; parecem arrastar-se durante muito tempo, mas a seguir há outra melhoria importante que normalmente continua a consolidar-se a um ritmo regular. Vou fazer o relatório ao seu médico. Provavelmente ele vai pedir uma série de análises novas. Depois... Bem, não precipitemos as coisas! O segredo, agora, é gozar as melhoras, mas não se esforçar demasiado. Ainda não está pronto para jogar râguebi; no entanto... por falar nisso!... pode começar a fazer natação!

Jean Marie regressou pelo seu pé, e sem ajuda, ao quarto. Quando lá chegou, sentia-se fatigado mas triunfante. Quaisquer que fossem os terrores que doravante tivesse de enfrentar, podia pelo menos defrontá-los assente nos seus pés. Desejava que Mr. Atha ali estivesse para partilhar aquela primeira vitória propriamente dita. Deitou-se na cama e fez uma série de telefonemas para dar a boa notícia. Não conseguiu nada com qualquer deles. O telefone de Carl Men-delius estava desligado; Roberta Saracini estava em Milão; Hennessy tinha regressado a Nova Iorque; Waldo Pearson tinha ido passar uns dias ao campo. Apanhou o irmão Alain, mas preocupado. Ficou satisfeito com os progressos de Jean Marie. A família também ficaria contente. Por favor, por favor, que desse notícias!...

Isto levou Jean Marie, por um encadeamento de ideias, a enfrentar o seu próprio futuro. Por muito que tivesse melhorado, por menores que fossem as suas limitações residuais, continuava a ser um homem de 65 anos, quase 66, vítima de um acidente cerebral e sujeito a ter outro em qualquer momento.

Fosse qual fosse o resultado das causas judiciais, sairia desacreditado - mais do que se fosse culpado de todos os delitos e malfeitorias que lhe eram atribuídos. O mundo gostava de patifes; mas não tinha paciência para os deficientes. À primeira vista, portanto, Jean Marie Barette seria exactamente aquilo que o passaporte dizia dele: “pasteur en retraite”, um padre reformado, que poderia esperar, na melhor das hipóteses, uma capelania num hospital ou uma quinta no campo, onde poderia distrair-se com os livros e o jardim. Ao fim da tarde o espectro das ideias negras tornou a assaltá-lo e o médico teve de fazer-lhe uma prelecção acerca das oscilações maníaco-depressivas e da maneira de lidar com elas. A prelecção terminou com uma surpresa.

- Pedi um electrencefalograma para depois de amanhã. Se o resultado for aquele que espero, podemos pensar em dar-lhe alta dentro de poucos dias. Não há muito mais que possamos fazer por si. Vai precisar de fazer exames trimestrais, exercício regular e, pelo menos ao princípio, alguma ajuda razoável na sua situação doméstica. Pode começar a pensar nisso. Amanhã tornamos a conversar, eh?

Depois da saída do médico, verificou a data no calendário da agenda. Estava-se a 15 de Dezembro. Daí a dez dias seria Natal. Perguntou a si próprio onde o passaria e quantos mais Natais o mundo veria, visto que Petrov não conseguira o seu cereal e as tropas soviéticas marchariam aos primeiros degelos.

Censurou-se a si próprio. Ainda não havia cinco minutos que o médico lhe dissera que não devia pôr-se a cismar. Estava quase na hora das visitas. Arranjou-se com grandes cuidados, vestiu um pijama lavado -unicamente para verificar se as suas novas habilidades não eram uma ilusão -, enfiou um roupão e umas chinelas, pegou na bengala e iniciou um cuidadoso mas pomposo passeio pelo corredor fora, acenando aos seus companheiros das sessões de terapia.

Que era que Mr. Atha tinha dito? Que ele devia ter panache! Os Ingleses traduziam-na sempre por estilo, mas a palavra implicava muito mais garbo do que estilo, pura e simplesmente. Garbo! Assim, sim! Agora estava a coordenar as duas línguas. Devia tentar igualmente praticar um pouco o alemão, antes de voltar a encontrar-se com Carl Mendelius. A última carta de Lotte... de que data era? Que dissera ela acerca dos seus projectos e movimentos? Voltou pelo mesmo caminho, corredor fora, correspondendo ao cumprimento da enfermeira de noite: “E esta! Olhem só para o espertalhão!”, e à saudação do auxiliar jamaicano: um salto, um passo, um arrastar de pés e o convite “Venha daí dançar, homem!”.

Esquadrinhou na gaveta da secretária, encontrou a carta de Lotte - toda uma sequência de pequenos movimentos executada sem problemas!-e depois sentou-se na cadeira de rodas a lê-la. A data era 1 de Dezembro.

[...] O nosso querido Carl cada dia está mais forte. Tornou-se muito hábil com a prótese que lhe substitui a mão esquerda e há muito pouca coisa que não possa fazer por si. Infelizmente perdeu a visão de um olho e agora usa uma pala preta. Isto, juntamente com o estrago que sofreu aquele lado da cara, dá-lhe o ar de um pirata verdadeiramente sinistro. Temos até uma piada de família. Quando precisarmos de dinheiro, podemos pôr o papá numa série de televisão como “A ilha do tesouro” ou “O mar das Caraíbas”!

O Johann, a Katrin e um pequeno grupo de amigos foram para o vale faz agora um mês. Estão a tentar tornar os edifícios principais habitáveis e a armazenar víveres essenciais antes que o Inverno chegue. O Carl e eu vamos ter com eles para a semana. Vendemos a nossa casa daqui, completa-mente mobilada; por isso, a única coisa que temos para levar são os livros do Carl e algumas coisas pessoais que ainda significam alguma coisa nas nossas vidas. Pensei que me custasse imenso deixar Tubinga depois de todos estes anos, mas não. Vamos agora para onde formos - para a Baviera ou para os mares do Sul-, não faz grande diferença.

E como está o nosso querido amigo? Temos todos os seus cartões. Seguimos os seus progressos pela caligrafia... e, evidentemente, temos as mensagens daquele seu simpático amigo da Inglaterra, Waldo Pearson. Estamos ansiosos por receber um exemplar do seu livro. O Carl está morto por falar consigo, mas compreendemos a razão da sua timidez em utilizar o telefone. A mim acontece-me sempre o mesmo, especialmente quando do outro lado da linha está algum estrangeiro. Começo a gaguejar e a atabalhoar-me e chamo logo pelo Carl.

Quando é que lhe dão alta do hospital? O Carl insiste, e eu também, para que venha directamente ter connosco à Baviera. Somos a sua família... e a Anneliese Meissner diz que é muitíssimo importante que passe directamente do hospital para um ambiente seguro. Pode ser que ela também vá passar parte das férias de Inverno connosco à Baviera. Está muito ligada ao Carl. São bons um para o outro e eu habituei-me a não ter ciúmes dela, tal como aprendi a não ter ciúmes de si. Assim que souber quando vai ter alta, mande um telegrama para a morada na Baviera que lhe demos. Tome um avião directamente para Munique e nós iremos buscá-lo ao aeroporto para o trazermos até ao vale.

O Carl, por vezes, entra em ânsia. Receia que as fronteiras possam ser fechadas antes de o Jean Marie estar pronto para vir ter connosco. Há grande tensão em toda a parte. Estão a ser deslocadas cada vez mais tropas britânicas e americanas para a Renânia. Vêem-se muitos comboios militares. O tom da imprensa é francamente chauvinista e a atmosfera na universidade muito estranha. Há um recrutamento constante de especialistas e, evidentemente, toda a vigilância de segurança que o Carl e a Anneliese tanto temiam. O que é extraordinário é o facto de haver tão poucos estudantes objectares. Também eles estão afectados pela febre da guerra, de uma maneira que nunca ninguém esperaria. É um choque ouvir todos os velhos lugares-comuns e divisas! Todos os dias agradeço a Deus o facto de o Johann e a Katrin estarem bem longe disto. A loucura contagia-nos a todos. Até o Carl e eu damos connosco a utilizar frases que ouvimos na rádio ou na televisão. É como se todas as velhas obscuras divindades teutónicas fossem invocadas das suas cavernas; mas a verdade é que todos os países devem ter as suas galerias subterrâneas de deuses da guerra...

Uma voz rude e de além-Atlântico interrompeu-lhe a leitura:

- Boa noite, santidade!

Ergueu os olhos, deparando-se-lhe Alvin Dolman, encostado à ombreira da porta e sorrindo para ele. Também Dolman estava de pijama e roupão e trazia uma embalagem embrulhada em papel pardo.

Por um instante, Jean Marie ficou boquiaberto com a sardónica insolência do homem. Depois sentiu uma fúria selvagem crescer dentro de si. Repeliu-a com uma curta e desesperada oração para que a língua não lhe falhasse, deixando-o humilhado perante o inimigo. Dolman entrou no quarto e empoleirou-se desenvoltamente na borda da cama. Jean Marie não disse nada. Já estava controlado. Esperaria que Dolman se pronunciasse.

- Está com bom aspecto - disse amavelmente Dolman. - A enfermeira-chefe disse-me que vai ter alta muito em breve.

Jean Marie continuou calado.

- Vim trazer-lhe um exemplar encadernado de A Fraude - disse Dolman. - Há-de encontrar nas páginas do livro uma lista das pessoas que sentiram verdadeira satisfação em denunciá-lo. Achei que isso era capaz de lhe dar gozo. Não servirá de nada no tribunal, mas também a verdade é que, num caso destes, não há nada que sirva. Sejam quais forem os veredictos que obtenha, a lama não sairá. - Poisou a embalagem na mesa-de-cabeceira; depois, ergueu-a parcialmente e desembrulhou-a. - É só para Lhe mostrar que não está armadilhada, como a que mandei ao Mendelius. No seu caso não há necessidade disso, pois não? O senhor está fora de jogo de uma vez por todas.

- Por que foi que veio? - A voz de Jean Marie tinha a frieza da geada.

- Para compartilhar uma piada consigo - respondeu Al-vin Dolman. - Pensei que havia de gostar. O facto é este: vou ser operado amanhã de manhã. Este foi o único hospital de Londres que conseguiu admitir-me rapidamente. Tenho um cancro no intestino grosso; por isso, vão-me cortar parte da tripa e dar-me um saquinho para eu andar com ele atrás durante todo o resto da vida. Estou só a tentar resolver se realmente valerá a pena a chatice. Tenho a faca e o queijo na mão para uma saída rápida e indolor. Não acha divertido?

- Pergunto a mim próprio por que razão hesita - disse Jean Marie. - Que é que existe na sua vida ou em si que ache assim tão valioso?

- Pouca coisa - respondeu Dolman com um esgar -, mas estamos a aproximar-nos de um drama dos diabos: a grande explosão que apaga todo o nosso passado, e talvez também o futuro! Pode ser que valha a pena ir aguentando para arranjar um lugar na tribuna principal. Continuo a poder optar a seguir. Foi o senhor quem o profetizou. Que é que acha?

- Por pouco que a minha opinião valha - disse Jean Marie-, aqui tem o que penso. O senhor está com medo... Com tanto medo que precisa de jogar este jogo tonto de zombaria! Quer que eu tenha medo juntamente consigo... de si! Pois, não tenho! Em vez disso, estou triste: porque sei como o senhor se sente, como tudo parece vão... quão inútil um homem pode achar-se! Esta é apenas a segunda vez que nos vemos. Nada sei sobre o resto da sua vida ou do que fez a outras pessoas. Mas como se sente relativamente ao que fez ao Mendelius e a mim?

- Indiferente! - Foi a resposta imediata e definitiva.

- São ossos do ofício. Foi para isso que fui treinado; é isso que eu faço. Não discuto as ordens que recebo. Não faço juízos sobre elas, sejam boas ou más, sãs ou loucas. Se o fizesse, já estava num manicómio! A humanidade é uma cambada de doidos. Não há esperança para ela. Descobri uma profissão em que podia tirar proveito da loucura. Trabalho para aquilo que existe, com o que existe. Cumpro todos os contratos. As únicas coisas com que não me meto são o amor e a ressurreição! Mas, afinal de contas, estou pelo menos tão bem como o senhor. O senhor andou para aí a impingir a salvação por intermédio de Jesus Nosso Senhor durante dois mil anos... e veja aonde isso o levou!

- O senhor também está aqui - disse placidamente Jean Marie.- E veio por sua livre vontade. Isso revela qualquer coisa mais do que indiferença.

- Curiosidade - redarguiu Alvin Dolman. - Queria ver qual era o seu aspecto. Devo dizer que está bastante gasto!

- Mas ainda não o suficiente!

- Muito bem. Aqui vai! - Dolman inclinou a cabeça para um lado, como uma ave de rapina a vigiar a sua vítima. - Quando tudo começou, fui eu a pessoa que recomendou que o matassem. Apresentei uma dúzia de planos simples. Toda a gente se encolheu, excepto os Franceses. Esses sempre foram pelas soluções rápidas e indolores. Seja como for, o Duhamel interveio. Deu-lhe um passaporte especial e pôs a correr que daria cabo de quem quer que tentasse dar cabo de si. Uma vez em Inglaterra, a sua liquidação parecia uma solução menos lucrativa. Quando teve o ataque, tornou-se claramente desnecessária. O argumento era que seria melhor desacreditá-lo do que fazer de si um mártir.

“Nunca fui dessa opinião. Quando ontem soube que tinha de ser operado e que teria de andar com os meus excrementos atrás durante o resto da vida, pensei: Porque não matar dois coelhos de uma cajadada, o senhor primeiro e eu depois?

“Lembrei-me daquela noite em Tubinga quando o senhor me disse que me conhecia e também o espírito que habitava em mim. Não me parece que alguma vez tenha odiado tanto uma pessoa como o odiei a si naquele momento. - Meteu a mão no bolso do roupão e tirou de lá uma caneta de oiro, mostrando-a a Jean Marie. - Isto é a morte numa das suas roupagens mais elegantes: uma cápsula com a quantidade suficiente de gás letal para nos levar a ambos desta para melhor... a não ser que eu tape o nariz assim enquanto disparo a coisa contra si.

Tapou o nariz e a boca com um lenço e estendeu a caneta, com a ponta para diante, na direcção do rosto de Jean Marie.

Jean Marie manteve-se muito quieto, observando-o, e disse calmamente:

- Há muito tempo que me reconciliei com a morte. Está a fazer-me um favor, Alvin Dolman.

- Eu sei. - Dolman tornou a meter a caneta e o lenço no bolso e fez um gesto cómico de resignação. - Acho que apenas precisava de tirar a prova disso! - Estendeu a mão e tirou a embalagem meio aberta da mesa, dizendo com um encolher de ombros: - Seja como for, foi uma piada de mau gosto. Vou voltar ao meu quarto.

- Espere! -Jean Marie ergueu-se lentamente da cadeira de rodas e pôs-se de pé. - Eu acompanho-o ao elevador.

- Não se incomode! Eu descubro o caminho sozinho.

- Há muito tempo que perdeu o caminho - disse Jean Marie, com um tom melancólico. - Nunca o encontrará só por si.

O rosto de Dolman transformou-se subitamente numa pálida máscara de fúria.

- Já disse que era capaz de voltar sozinho!

- Por que é que ficou tão zangado com uma gentileza?

- O senhor tinha obrigação de o saber! - Dolman sorria agora, num ricto de alegria silenciosa que era mais terrível do que o riso. - O senhor disse-me em Tubinga que sabia o nome do espírito que me habitava!

- E sei mesmo. - Jean Marie falou com calma autoridade e um estranho humor subtil. - O nome dele é “legião”. Mas não exageremos, Mr. Dolman. O senhor não está possesso dos demónios. É residência de pecados... demasiados pecados para um homem a envelhecer conseguir transportar dentro de si!

A tensa máscara sorridente amarrotou-se para dar lugar a um rosto cansado de um homem de meia-idade: o rosto do clochard (1) envelhecido que havia dissipado todas as oportunidades e agora não tinha para onde ir.

- Sente-se, Mr. Dolman - disse suavemente Jean Marie. - Vamos entender-nos um com o outro como simples seres humanos.

- Não está a ver o problema - disse penosamente Alvin Dolman. - Somos nós que invocamos os nossos demónios porque não conseguimos viver connosco próprios.

- O senhor ainda está vivo. Está ainda em condições de mudar e de obter a misericórdia de Deus.

 

(1) Em francês no original: vagabundo. (N. do T.)

 

- O senhor não me está a ouvir! - O esgar tenso e contorcido voltara. - Eu posso ser parecido com os outros, mas não sou como eles. Sou de uma raça diferente. Nós somos cães assassinos. Se uma pessoa tentar modificar-nos, domesticar-nos, ficamos loucos e fazemo-la em pedaços. O senhor tem muita sorte em eu não o ter matado hoje.

Saiu sem uma palavra de despedida. Jean Marie foi até à porta e viu-o coxear pelo corredor fora com a embalagem de papel pardo debaixo do braço. Recordou-se da velha história do diabo coxo que à noite vagueava pela cidade, destelhando as casas para mostrar o pecado que nelas se albergava. Tanto quanto se conseguia lembrar, o diabo coxo nunca encontrava ninguém bom onde quer que fosse. Jean Marie perguntou tristemente a si próprio se o diabo coxo seria míope ou demasiado clarividente para ser feliz. A menos que uma pessoa acreditasse num criador benévolo e em alguma forma de graça compensadora, o mundo era um bom lugar para se deixar - especialmente quando se era um assassino de meia-idade com um cancro nos intestinos.

Nessa noite ofereceu as completas por intenção de Alvin Dolman. Ao meio-dia do dia seguinte telefonou à enfermeira do pavilhão de Alvin Dolman, tão-somente para receber a notícia de que Mr. Dolman tinha morrido durante a noite de uma inesperada paragem cardíaca e que estavam a tratar da autópsia para determinar a causa da morte. Os seus papéis e objectos pessoais tinham já sido recolhidos por um funcionário da Embaixada dos Estados Unidos.

Jean Marie não podia libertar-se tão depressa de um homem que - por mau que fosse - era um elemento da economia divina. Havia vidas que tinham sido cortadas, outras prejudicadas, outras porventura enriquecidas, mesmo que momentaneamente, devido à presença de Dolman no planeta. Não era suficiente submetê-lo ao desapaixonado juízo dos puritanos: “O perdão foi oferecido, o perdão foi rejeitado; ele tomou o caminho inevitável da árvore de Judas.”

Jean Marie Barette - ex-papa - tinha demasiada experiência do paradoxo para acreditar que o Todo-Poderoso fizesse justiça terminal. Fosse o que fosse que as Escrituras dissessem, não era possível dividir o mundo em chapéus brancos e chapéus pretos. Ele próprio tinha sido presenteado com uma revelação - e fora reduzido a uma fria contemplação do suicídio. Fora-lhe dada a missão de proclamar as “últimas coisas” e, no momento do anúncio, tinha sido emudecido. Assim, talvez não fosse demasiado estranho ver no suicídio de Dolman um acto de arrependimento e na sua visita uma vitória sobre o assassino que vivia no seu corpo.

Não havia aquelas histórias que o avô Barette costumava contar, de homens mordidos por cães loucos? Sabiam que a morte era inevitável; e assim, em lugar de contagiarem as famílias, rebentavam os miolos com uma caçadeira ou fechavam-se numa cabana da montanha e uivavam até morrer.

Jean Marie voltava uma vez mais ao obscuro e aterrador mistério da dor e do pecado, de quem era salvo e de quem não era, e de quem era em última instância responsável por toda aquela trapalhada dos diabos. Quem gerava o homem que ensinava o cão assassino? E que imperador cósmico baixava os olhos, com eterna indiferença, para o bebé que o cão despedaçava?

Ainda era só meio-dia, mas a escuridão da meia-noite voltou a envolvê-lo. Desejou que Mr. Atha estivesse ali para o levar ao ginásio e para, com as suas palavras, o arrancar à escuridão, conduzindo-o para o centro da luz.

 

Mr. Atha voltou a entrar na sua vida tão naturalmente como saíra dela. Nessa noite, quando Jean Marie jantava, ele entrou, observou Jean Marie de alto a baixo como se se tratasse de um exemplar numa exposição botânica e sorriu de modo aprovador.

- Vejo que fez magníficos progressos. - Poisou uma pequena embalagem no tabuleiro. - Aqui tem a sua recompensa.

- Senti a sua falta - disse Jean Marie, estendendo ambas as mãos para o cumprimentar. - Olhe! Ambas funcionam! Correu-lhe bem a viagem?

- Foi... trabalhosa. - Mr. Atha foi. tão evasivo como sempre acerca da sua própria pessoa. - Hoje em dia é muito difícil viajar. Há atrasos em todos os aeroportos e muita intervenção da polícia e dos militares. As pessoas andam desconfiadas e receosas. Veja o seu presente.

Jean Marie abriu o embrulho e descobriu uma bolsa de pele macia, dentro da qual havia uma pequena caixa de prata, com uma gravação muito trabalhada.

Mr. Atha explicou:

- O desenho é feito com base nas invocações a Alá. Há um velho em Alepo que costumava fazê-las. Agora cegou. Foi o filho que gravou esta. Abra-a.

Jean Marie abriu a caixa. Dentro dela, poisado numa cama de seda branca, estava um anel antigo. O engaste era de oiro, e a pedra uma esmeralda pálida com uma cabeça de homem gravada, à maneira de camafeu. A pedra estava gasta e riscada como um seixo sujeito à abrasão do mar. Mr. Atha contou-lhe a história.

- Foi-me dado por um amigo de Istambul. Diz ele que é com certeza do princípio do século I e que provavelmente vem da Macedónia. Há uma inscrição meio apagada, em grego, na parte de trás da pedra. É precisa uma vista de jovem ou uma lupa para a descortinar, mas o que diz é: “Timóteo a Silvano. Paz!” O meu amigo pensou que deve ter alguma ligação com o apóstolo S. Paulo e os seus dois companheiros Silvano e Timóteo. Quem sabe? Tive a extravagante ideia de que, visto ter cedido o anel do Pescador, talvez gostasse de possuir este em seu lugar.

Jean Marie ficou profundamente comovido. Por detrás da “extravagante ideia” de Mr. Atha havia uma preocupação muito grande e terna. Jean Marie enfiou o anel no dedo. Servia-lhe confortavelmente. Tirou-o e meteu-o na caixa de prata, dizendo:

- Obrigado, meu amigo. Se as minhas bênçãos têm algum valor, pode contar com todas elas. - Soltou uma pequena risada insegura. - Creio bem que é precisa uma boa porção de fé; mas não seria maravilhoso tratar-se realmente de um presente de Timóteo a Silvano? Eles estiveram juntos na Macedónia. Isso torna-se evidente da leitura da Carta de S. Paulo aos Tessalonicences. Deixe-me ver se sou capaz de recordá-la. “Paulo, Silvano e Timóteo à Igreja dos Tessalonicenses, que está em Deus Pai e no Senhor Jesus Cristo.” - Franziu o sobrolho, procurando as palavras seguintes. - Desculpe, mas passou-me completamente o resto.

-”[...] Graça e paz vos sejam dadas!” - completou Mr. Atha a citação. - “Damos constantemente graças a Deus por todos vós.”

Jean Marie fitou-o, surpreendido, e disse:

- Bem me parecia que o senhor era crente. Tinha de ser. Utilizou a palavra francesa croyant. Mr. Atha abanou a cabeça:

- Não, não sou crente. Acontece é que fui educado segundo a tradição judaica; no entanto, o acto de fé não é coisa que eu possa fazer pessoalmente. Quanto ao excerto dos Tessalonicenses, dei-lhe uma vista de olhos quando o meu amigo me contou a proveniência do anel. Pareceu-me extremamente adequado: “Graça e paz vos sejam dadas! [...]” Agora, falemos de si. Fez todos os testes e os resultados foram bons.

- Sim, graças a Deus! Os médicos dizem que poderiam dar-me alta imediatamente, mas que prefeririam que eu ficasse mais três ou quatro dias. Posso sair durante o dia e regressar à noite. Dessa maneira eles podem seguir as minhas primeiras reacções ao esforço físico e psíquico.

- E vai ficar admirado com a quantidade que terá de um e outro - disse Mr. Atha.

- Quer fazer-me companhia? Ficar comigo em Londres... e talvez ir também até Munique e entregar-me aos meus amigos? Quero passar o Natal com eles. Tenho a certeza de que teriam também muito gosto em recebê-lo. Não quero roubá-lo a outras pessoas que precisam de si, mas estou destreinado das mais pequeninas coisas.

- Basta! - disse Mr. Atha. - Pode contar comigo! Sempre fiz tenção de lhe fazer companhia até estar completamente restabelecido. O senhor é um cliente muito especial... apesar da sua má fama!

- Isso não pode deixar de significar...

- Sim, também li o outro livro - disse Mr. Atha. - Ao que me consta, foi embargado em alguns países; mas no local onde estive podia adquirir-se à vontade... e vendia-se bem! Trata-se de uma vergonhosa caricatura.

- Mesmo assim, vai causar prejuízos a uma data de pessoas - disse Jean Marie com ar carrancudo. - Especialmente à Roberta.

- Nada por aí além - objectou Mr. Atha. - Há-de cair no esquecimento antes do final do ano.

- Quem me dera sentir-me assim tão confiante!

- Não se trata de uma questão de confiança, mas de um simples facto. Antes do dia de Ano Novo estaremos em guerra.

Jean Marie olhou para ele, boquiaberto, totalmente espantado.

- Como pode dizer tal coisa? Todas as previsões de que tenho conhecimento nos davam uma margem até à próxima Primavera, provavelmente incluindo ainda uma boa parte do Verão.

- Porque - explicou pacientemente Mr. Atha - todas as previsões se baseavam em avaliações de manual: uma guerra convencional por terra, mar e ar, com uma escalada até ao uso limitado de armas nucleares tácticas... mantendo-se as de grande escala de reserva para efeitos de negociação. A lógica da história diz que não se começa uma guerra desse tipo no Inverno; pelo menos, com toda a certeza, entre a Rússia e a Europa ou a Rússia e a China! Mas receio bem, meu amigo, que a lógica da história já tenha dado o que tinha a dar. Desta vez vão começar pelos petardos dos grandes, na suposição de que aquele que acertar primeiro será o vencedor e que o resultado será decidido numa semana... Sabem tão pouco!

- E o senhor, sabe mais? - Jean Marie estava agora desconfiado. Havia na sua pergunta qualquer coisa de cortante. - Que prova pode apresentar?

- Nenhuma - disse calmamente Mr. Atha. - Mas, também, que prova pode o senhor apresentar da sua visão... ou mesmo daquilo que escreveu nas Últimas Cartas de Um Pequeno Planeta? Acredite no que lhe digo! Vai acontecer... e não haverá aviso. Aquilo a que o senhor está neste momento a assistir, movimentos de tropas, exercícios de defesa civil, reuniões ministeriais, é tudo ópera de gala. É a tradição: as pessoas esperam isso, de maneira que os governos proporcionam-lho. A realidade é muito diferente: homens em cavernas de cimento, muito abaixo da superfície da terra, homens em cápsulas muito acima dela, à espera da última ordem fatal. Ouviu as notícias da noite?

- Não, perdi-as.

- O presidente francês chega amanhã a Londres, para conversações de emergência em Downing Street. O seu amigo Duhamel vem com ele.

Jean Marie poisou o garfo com um tilintar.

- Como sabe que o Duhamel é meu amigo?

- Vem referido em A Fraude.

- Ah!-exclamou Jean Marie, embaraçado. - Nunca li o livro. Pergunto a mim próprio se o Duhamel concordaria com a sua interpretação dos acontecimentos mundiais.

- Não me parece que isso tenha grande importância.

- Tem para mim - disse irritadamente Jean Marie. Mas desculpou-se imediatamente: - Desculpe; foi uma má-criação. Entre mim e o Duhamel há uma longa história. Não quero aborrecê-lo com ela.

- Eu nunca me aborreço - disse Mr. Atha. - Amo demasiadamente este pequeno mundo. Fale-me do Duhamel.

Demorou-se muito na narrativa, desde o momento do seu primeiro telefonema, feito do gabinete do seu irmão Alain, até à resolução de Duhamel de acabar com tudo no “dia do Rubicão” e à taça do cosmo que era o símbolo do vínculo existente entre eles.

Quando a história terminou, Mr. Atha acrescentou a sua própria anotação à margem:

- Portanto, agora o senhor queria tudo perfeito e atado com uma fitinha cor-de-rosa: Duhamel e a mulher em segurança nas mãos da misericórdia eterna. Não é isso?

- É! - disse abertamente Jean Marie. - Seria bom saber que havia alguma coisa de perfeito na economia da salvação.

- Receio bem que nunca haja - observou Mr. Atha. - A matemática é demasiado complicada para o cálculo humano... Agora tenho de deixá-lo. Venho buscá-lo às dez e meia da manhã, vestido e de cabeça fresca!

Era extraordinário como, na esteira da predição de Mr. Atha, os mais simples prazeres se tornavam requintada-mente preciosos: a visão de crianças a brincar no parque, os rostos das mulheres que andavam a ver as montras, o brilho e a cintilação das decorações de Natal, até mesmo a chuva cinzenta que os obrigou a procurar refúgio no aconchego de um pub inglês.

Com Mr. Atha sentia o mesmo género de tranquilidade sociável que gozara durante os primeiros anos da sua amizade com Carl Mendelius. No entanto, havia uma diferença. Com Mendelius havia sempre momentos explosivos: de raiva em face de uma injustiça, de entusiasmo ante uma ideia acabada de apreender, de emoção à vista de um vislumbre de beleza oculta. Mr. Atha, pelo contrário, era inexoravelmente calmo, como um grande rochedo num mar turbulento. Não comunicava emoção. Compreendia-a. Absorvia-a. O que proporcionava em troca era uma sensação quase física de paz e tranquilidade.

Se Jean Marie sentisse surpresa, Mr. Atha arranjava maneira de ampliar a surpresa até à maravilha, e a maravilha até uma serena iluminação. Se Jean Marie ficasse triste - como por momentos acontecia - à vista de um vagabundo a dormir ao relento numa rua, de um jovem a pedir a uma esquina, de uma criança com os estigmas da crueldade ou da negligência, Mr. Atha transformava a tristeza numa esperança que, mesmo sob a ameaça do Armagedão, não se afigurava incongruente.

- Em países mais pobres e mais terra-a-terra respeitamos os pedintes e honramos os loucos. Os pedintes recordam-nos a nossa própria boa sorte e os loucos são abençoados por Deus com visões negadas a outros. Sofremos cataclismos mas encaramo-los em termos de continuidade, e não de fim. O que é estranho é que o homem, que desvendou os segredos do átomo e da espiral, utilize agora esses segredos para destruir o próprio homem...

- Que há em nós que nos conduz inevitavelmente ao precipício?

- Desde criança que lhe ensinaram isso. O homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. Isso quer dizer que é uma criatura de recursos quase inacreditáveis, de um potencial assustador.

- Que utiliza sempre mal.

- Porque não se reconcilia com a sua mortalidade. Julga sempre que pode levar o carrasco à certa.

- Julgava que me tinha dito que não era crente.

- E não sou - disse Mr. Atha. - A crença é-me impossível.

- Relativa ou absolutamente? - resolveu Jean Mane provocá-lo com uma pergunta de teólogo.

- Absolutamente - replicou Mr. Atha. - Agora, vamos apanhar um táxi. O Waldo Pearson quer que o senhor esteja no Carlton Club precisamente ao meio-dia e quarenta e cinco.

- O senhor também foi convidado.

- Bem sei. Sinto-me devidamente lisonjeado, mas tenho a certeza de que o Pearson e o Duhamel preferem tê-lo só para eles.

- Duhamel? Não sabia que ele também estaria presente.

- Fui eu que o sugeri - disse amavelmente Mr. Atha. - No fim de contas, é um almoço de despedida. Venho buscá-lo às duas e meia.

Tinha o seu quê de estranho estar de regresso àquela sala onde tinha tido o ataque, e era um tanto ou quanto embaraçante trocar acenos ou cumprimentos com as pessoas que o tinham presenciado. Aquele almoço era outro momento de testemunho, dado à comedida maneira inglesa, mas claro como um toque de trombeta para qualquer pessoa habituada aos rituais do reino. O que Waldo Pearson pretendia dizer era: “Este homem continua a ser meu amigo; o que ouviram dizer sobre ele é mentira e, se algum dos presentes não pensa assim, que se levante e mo diga!”

A presença de Pierre Duhamel era igualmente um poderoso depoimento em fé do seu bom carácter. O presidente da república estava a almoçar em Downing Street. O seu mais fiel conselheiro mostrava-se bem no Carlton Club, afiançando a falsidade do libelo contra Jean Marie Barette. No entanto, na altura da sopa, Duhamel repudiou a questão:

- Puf! Uma ninharia! Uma inscrição de parede nas ruínas, sem ninguém para a ler! Não concorda, Waldo?

- Lamentavelmente, concordo - disse Waldo Pearson. - Estamos a preparar-nos para um triste Natal e um Ano Novo muito duvidoso. O Jean podia ser tão malvado como os Bórgias, neste momento, que ninguém se ralava um bocadinho que fosse.

- Constou-me - disse cautelosamente Jean Marie - que podemos nem sequer assistir a um Ano Novo.

Pearson e Duhamel trocaram olhares ansiosos, e este último perguntou com seca ironia:

- Outra visão?

- Não - respondeu Jean Marie, com um encolher de ombros de censura. - Desta vez foi Mr. Atha, o meu terapeuta.

- Nesse caso - disse Waldo Pearson com alívio evidente -, podemos gozar o almoço. Recomendo o entrecosto de carneiro e uma garrafa de borgonha do clube. Fui eu próprio que escolhi, e não arranjarão melhor à mesa do presidente.

Jean Marie não estava disposto a deixar-se silenciar com tanta doçura, nem sequer por Waldo Pearson. Voltou-se para Pierre Duhamel e fez-lhe a pergunta incisiva:

- Quanto falta para o “dia do Rubicão”?

- Não falta lá muito - respondeu Duhamel sem hesitar. - Já há tropas do Pacto de Varsóvia mobilizadas na Europa. As tropas soviéticas estão também colocadas em profundidade ao longo das fronteiras com a China, o Irão, o Iraque e a Turquia. Os dispositivos e efectivos estão em conformidade com a ordem de batalha que conhecemos e com o segundo grau de prontidão para combate.

- E o que é o segundo grau? - perguntou Jean Marie.

- Basicamente, significa que estão preparados para enfrentar qualquer ataque durante o Inverno e que podem receber reforços rápidos para uma ofensiva no começo da Primavera. Que é aquilo com que todos contamos.

- Estão a seguir o manual - disse Waldo Pearson. - À risca, incluindo as notas em letra mais miudinha.

- Mas imaginem só que há um manual diferente - disse calmamente Jean Marie. - Que a ordem de batalha é invertida e a grande explosão surge primeiro...

- A maneira como os Russos estão posicionados indica que não o farão - disse Waldo Pearson, falando com a sólida convicção de John Buli.

- E se formos nós que temos o manual diferente?

- Nada a declarar - disse Pierre Duhamel.

O criado mostrou o vinho. Waldo Pearson cheirou-o, provou-o, anunciou que tinha orgulho nele e mandou servi-lo. Depois ergueu o copo para fazer um brinde a Jean Marie:

- À continuação da sua boa saúde e ao prolongamento do êxito do seu livro.

- Obrigado.

- Eu li-o - disse Pierre Duhamel, ardente na apreciação. - E a Paulette também! Riu e chorou com o seu palhacito. Eu, por mim, comecei por admirar a perspicácia da sua invenção e a elegância do seu estilo. Depois dei por mim a discutir com o seu Jeannot, uma vezes a favor dele e outras contra. No fim... bom... como é que se diz?... O livro não resolveu os problemas deste século XX desgraçado, mas deixou-me realmente um gosto agradável na boca... Como o seu vinho, Waldo!

- Os meus agradecimentos a ambos. - Jean Marie ergueu também o copo. - Fui abençoado com os meus amigos.

- O carneiro! - disse Waldo Pearson. - Vamos conseguir a primeira porção! É por isso que gosto de chegar aqui mesmo à hora.

Jean Marie ficou estupefacto. A insistência de Pearson nas frivolidades da mesa parecia estranha e desajustada num homem tão objectivo e inteligente. No entanto, quando Pearson se levantou da mesa para ir atender uma chamada telefónica, Duhamel explicou-lho com um aparte muito parisiense.

- É mesmo britânico! Ele sabe que isto é um adeus, mas não sabe como dizê-lo. Portanto, fala do entrecosto de carneiro! Bom Deus! Que raça!

- Sou um idiota - disse Jean Marie e, para ocultar o seu embaraço, perguntou rapidamente: - Sabe alguma coisa da Roberta?

- Nada. Ela está sempre para fora.

- Se a vir, mande-lhe saudades minhas.

- Certamente.

- E à Paulette também.

- Jean, meu amigo, deixe-me dar-lhe um último conselho.

- Diga!

- Pense em si! Não se preocupe comigo, com a Roberta, com a Paulette, com quem quer que seja! Todos nós temos uma linha telefónica para comunicar com o nosso deus particular... seja ele quem for! Se ele lá estiver, falar-nos-á. Se não, todo este jogo não passa de uma blague. Tome! Beba mais um pouco de vinho!...

- O almoço foi bom? - perguntou Mr. Atha.

- Foi um adeus - respondeu Jean Marie Barette. - Viemo-nos embora. Apertámos a mão uns aos outros. Eu disse: “Muito obrigado pelo agradável almoço.” O Waldo disse: “Tive muito prazer em tê-lo como convidado, meu velho.” O Duhamel disse: “Para tirada final, que frase horrível!” Rimo-nos e cada um seguiu o seu caminho.

- Afigura-se-me apropriado - disse Mr. Atha. - Já fui levantar os nossos bilhetes de avião e reservei um carro para nos levar ao aeroporto. O voo parte às 11 h. Considerando o atraso normal de uma hora, devemos chegar a Munique às 2 da tarde. Quando voltarmos, hoje à noite, vou pô-lo a assinar cheques para pagar as contas da clínica e as gorjetas para o pessoal. Dessa maneira, escusa de estar com maçadas amanhã de manhã.

- E, nessa altura, acabou-se! Mais um capítulo da minha vida que se encerra, assim, de um instante para o outro!

Mr. Atha encolheu os ombros.

- Partir é morrer um pouco, e morrer é muito simples. Há um ditado entre a gente do deserto: “Nunca faças adeus à caravana. Em breve a seguirás...” Agora, temos de ir comprar roupa quente para si, senão ainda fica congelado no tal vale dos Alpes.

Estava a nevar fortemente quando aterraram em Munique, no último voo de chegada antes do encerramento do aeroporto. Havia uma comprida bicha no controlo de passaportes. A polícia das fronteiras investigava metodicamente todos os estrangeiros. Jean Marie perguntou a si próprio se o seu nome não estaria na lista negra dos indesejáveis; finalmente, porém, fizeram-lhe sinal para passar a barreira e dirigir-se ao compartimento da alfândega, onde havia outro magote de viajantes incomodados. Mr. Atha conduziu-o na direcção da saída e depois regressou para ir levantar a bagagem. Um momento depois, Jean Marie viu-se envolvido num abraço de urso por Johann Mendelius.

- Tio Jean! Conseguiu! Está com um aspecto estupendo! A mãe e o pai queriam vir, mas as estradas estão más, de modo que tive de vir no jipe e meter correntes para conseguir passar o desfiladeiro.

Jean Marie reteve-o à distância de um braço e observou-o. Era um homem, todo ele músculos e vigor. Tinha o rosto marcado do clima e as mãos duras e calosas. Jean Marie acenou, mostrando a sua satisfação:

- Não há dúvida de que darás conta do recado! Pareces um verdadeiro camponês!

- E é que sou mesmo! Camponês até às solas das botas! Vimo-nos e desejámo-nos para tornar o local habitável para o Inverno, mas conseguimos! No entanto, não esteja a contar com nada de grandioso. A única coisa que podemos garantir é cozinha da província e um abrigo quente.

- Vão ver que eu sou fácil de contentar - disse Jean Marie.

- Toda a sua gente chegou bem.

- A minha gente?

- Sim, aqueles que enviou com a palavra de ordem “o cosmo numa taça de vinho”. Eram três grupos, nove pessoas ao todo. Adaptaram-se muito bem.

Houve qualquer instinto elementar que alertou Jean Marie de que não devia armar discussão acerca daquilo. O mistério explicar-se-ia logo que chegassem ao vale. Limitou-se a acenar afirmativamente e dizer:

- Folgo em saber que não causaram transtorno.

- Pelo contrário.

- Como estão o pai, a mãe e a Katrin?

- Oh, estão óptimos. A mãe está com muitas brancas, mas ficam-lhe bem. O pai anda sempre a vaguear por aí como um comandante de navio no tombadilho, a inspeccionar tudo com o olho são e a aprender a segurar as ferramentas com aquele gancho mecânico que lhe puseram. A Katrin está grávida de três meses. Ela e o Franz decidiram esperar e pedir ao tio que os case.

Mr. Atha abriu caminho por entre a multidão com um carrinho de bagagens. Johann fitou-o boquiaberto e a seguir soltou uma gargalhada:

- Eu conheço-o! O senhor foi a pessoa que... Isto é verdadeiramente extraordinário, tio Jean! Este homem...

- Não lho contes já! - disse Mr. Atha. - Guarda-o por mais um tempo. As surpresas fazem-lhe bem.

- Concordo! - Johann tornou a rir-se e enfiou o braço no de Jean Marie. - Realmente, vale a pena esperar.

Escoltaram ambos Jean Marie por entre a multidão até à zona de recolha dos passageiros. Quando Johann se afastou apressadamente para ir buscar o jipe ao parque de estacionamento, Jean Marie fitou Mr. Atha com velada reprovação.

- Acho, meu amigo, que há uma data de coisas a seu respeito que precisam de ser explicadas.

- Bem sei - replicou Mr. Atha com o seu à-vontade habitual. - Mas tenho a certeza de que arranjaremos melhor ocasião e local para o fazer... É um moço estupendo!

- O Johann? Sim. Está muito mais amadurecido, desde a última vez que o vi. - De súbito, foi assaltado por uma ideia, e gemeu alto. - É véspera de Natal! Tenho estado tão preocupado comigo próprio que me esqueci de comprar presentes para a família... e para si. Fico incomodadíssimo com isso.

- Eu não preciso de presentes, e o senhor paga-me para eu me lembrar! Comprei umas coisas antes de partirmos. Estão embrulhadas. A única coisa que tem a fazer é escrever os cartões. - Sorriu acrescentando: - Espero ter acertado nas escolhas.

- Tenho a certeza de que acertou, mas desta vez prefiro não ter surpresas nenhumas. Que foi que comprou?

- Para a Frau Mendelius, lenços de cabeça e lenços de assoar de renda; para o moço, uma camisola de esqui; para a rapariga, perfume; para o professor, um prisma de aumento para auxiliar a leitura. Fiz bem?

- Magnificamente. Tem a minha eterna gratidão. Mas nem isso o dispensa de explicações.

- Prometo que as terá. E espero que compreenda - disse Mr. Atha. - Aí está o Johann.

Ajudaram Jean Marie a entrar no jipe, agasalharam-no com um cobertor e uma pelica de pele de carneiro e meteram pela auto-estrada para Garmisch.

Johann falava avidamente da pequena comunidade no vale:

- As nossas intenções eram vagas. O papá tinha aquela sua ideia de uma academia para pós-graduados. Eu encarava-o como um lugar onde os meus amigos e eu podíamos esconder-nos, se arranjássemos problemas com as autoridades. Deve lembrar-se de que isso foi na altura em que andávamos a comprar armas ao Dolman e a constituir um movimento clandestino na universidade. Depois, é claro, tudo se modificou. Tínhamos de ajudar o papá a reconstituir a vida e este lugar parecia bom para isso.

“Viemos oito para cá, a fim de começar a tornar os edifícios habitáveis. Acampávamos no pavilhão de caça e trabalhávamos de sol a sol. O lugar fica bastante distante das vias principais, como verá. Por isso, não esperávamos ter muitas visitas. A verdade, porém, é que começaram a aparecer aos poucos: sobretudo gente nova, mas algumas pessoas mais velhas. Atribuímos isso ao facto de a Baviera estar cheia de turistas no Outono. Há a Bierfest e a Ópera e todas as exposições de modas. Assim, tivemos todo o género de visitas: italianos, gregos, jugoslavos, vietnamitas, polacos, americanos, japoneses. Diziam que gostariam de ficar por cá e ajudar. Isso era uma maravilha, porque nós tínhamos uma falta tremenda de mão-de-obra. Estabelecemos uma regra simples: trabalhar e dividir. É extraordinário! Até ver, mantivemo-nos unidos e, como verá, somos uma comunidade bastante heterogénea!

- E as pessoas apresentaram alguma razão especial para se juntarem a vocês? - perguntou Jean Marie.

- Não fazemos perguntas - respondeu Johann. - Se elas quiserem falar, escutamos. Creio que não faltaria à verdade se dissesse que a maioria delas tem certas cicatrizes ocultas.

- E gostariam de voltar a nascer sem elas - disse Mr. Atha.

- Sim, acho que é uma maneira de o descrever - disse pensativamente Johann.

Ao chegarem às primeiras faldas alpinas, Johann meteu para sul e começou uma longa e serpenteante ascensão por uma estrada de campo com uma altura de neve já grande. Precisamente antes de a estrada acabar e se transformar num trilho florestal cheio de sulcos por entre os pinheiros, havia um pequeno santuário à beira do caminho, o habitual crucifixo talhado em madeira com uma cobertura à guisa de pequeno telhado. Johann afrouxou a marcha do carro.

- Foi aqui que encontrámos Mr. Atha pela primeira vez, quando andávamos a fazer pedestrianismo turístico, a caminho da Áustria. Perguntámos-lhe se ele conhecia um sítio bom para acampar, e ele indicou-nos o carreiro por onde vamos enfiar agora. Segure-se bem, tio Jean, porque daqui para a frente é mau caminho!

Foram, de facto, vinte minutos de saltos e solavancos que ameaçavam fazer-lhes saltar os dentes da boca para fora; no entanto, quando saíram do bosque, viram uma alta parede negra de rocha, com montes de neve branca nas fendas, e através dela um desfiladeiro cortado tão a direito que se diria obra de um machado gigantesco. O desfiladeiro tinha talvez 100 m de comprimento. O extremo mais afastado estava fechado por uma paliçada de troncos lascados articulados em enormes gonzos de ferro forjado à mão. Johann saiu do jipe, abriu a paliçada e atravessou-a com o carro para desembocar numa grande depressão em forma de prato orlada de rochedos negros escarpados que davam lugar, de degrau em degrau, a pinhais e à vegetação mais cerrada do vale em redor do lago. Johann parou o jipe. Mr. Atha saiu para fechar a barreira, e Johann apontou para baixo, através dos turbilhões de neve:

- Com esta escuridão, pouco se consegue ver. O lago é maior do que parece visto daqui. As luzes que se vêem por entre as árvores vêm do pavilhão principal e das cabanas que se estendem para cada um dos lados dele. A queda de água fica no extremo mais afastado e a velha entrada da mina a uns 50 m para a esquerda. Há tanta coisa para lhe mostrar! Mas vamos pô-lo em casa. O pai e a mãe devem estar a roer as unhas!

Mr. Atha voltou a entrar no jipe e lá seguiram aos saltos por um trilho de veados, em direcção às esparsas luzes amarelas.

- Temo-lo por nossa conta até à hora de jantar - disse-lhe alegremente Lotte. - O Carl ditou-o como se fossem as leis dos Medos e dos Persas! Nada de comissão de recepção! Nada de visitas! Não queremos ser interrompidos enquanto não tivermos garantido o nosso próprio tempo com o nosso Jean Marie! O Johann prometeu que faria companhia ao seu Mr. Atha. Os outros estão ocupados a enfeitar a árvore de Natal e a cozinhar para o jantar. Tivemos todos de habituar-nos a menos espaço em casa e a menos intimidade, mas no Natal é bastante agradável e tribal.

Estavam sentados em redor de um velho fogão de porcelana naquilo que outrora fora a sala de estar dos criados no pavilhão de caça. A mobília consistia numa pequena mesa de pinho, empilhada de livros, um banco de madeira e três cadeiras de braços em mau estado. Estavam a beber café com aguardente misturada e a petiscar bolinhos ainda quentes do forno.

Lotte tinha envelhecido muito depressa em poucos meses. Os últimos vestígios da juventude haviam desaparecido e era agora uma matrona grisalha de feições doces e maternais e o sorriso pronto de uma mulher em paz consigo própria e com o seu mundo. Mendelius tinha emagrecido, mas era ainda um homem sólido e vigoroso. Tinha um dos lados do rosto devastado, com cicatrizes e manchas de pequenos fragmentos que tinham provocado ruptura de capilares; no entanto, a pala preta conferia-lhe um ar libertino e havia ainda humor no seu sorriso enviesado. Declarou que não estava nada descontente com Jean Marie Barette.

- O coxear é uma coisa de nada! Apenas o suficiente para lhe dar o aspecto de um distinto veterano de guerra! A cara? Bem, ninguém diria que teve um ataque. Tu eras capaz de dizer, Lotte? Seja como for, ao pé de mim, parece o David de Donatello!... Mesmo assim, ainda há muita vida dentro de nós ambos, meu velho amigo! Que acha deste sítio? É claro que, quando há tempestades de neve, não se vê um palmo adiante do nariz, mas é tudo muito entusiasmante. Agora temos cá quarenta pessoas, incluindo quatro crianças. Vai conhecê-los antes do jantar. E vai ser um rico jantar, garanto-lhe! O Johann e os rapazes dele meteram o mês passado cerca de cinquenta toneladas de mantimentos. A floresta está cheia de veados. Temos quatro vacas leiteiras nos estábulos. Esta noite há-de sentir o cheiro delas, porque o seu quarto fica mesmo ao pé da vacaria. É claro que vai dizer a “missa do galo” para nós. Nem todos são cristãos. Ultrapassamos isso por meio do que chamamos “uma comunhão de amigos” à refeição da noite. Quem quer que não se sinta bem nela pode evitá-lo chegando atrasado. Os restantes de nós sentam-se juntos e dão as mãos uns aos outros em silêncio. Se alguém tiver vontade de rezar uma oração pública, fá-lo, homem ou mulher. Se alguém quiser fazer um depoimento ou pedir um relato do nosso dia comum, é a altura de o fazer. Acabamos com a recitação do pai-nosso. A maioria das pessoas associa-se. Depois jantamos. Parece resultar. Há outra coisa que deve ficar a saber. - Men-delius endireitou a cadeira; o seu tom era um tudo-nada mais formal. - A escritura do vale está em meu nome e no da Lotte, revertendo para os filhos. No entanto, pareceu-nos, visto a maior parte da nossa gente ser constituída por jovens, que eu já não era um líder adequado; assim, por acordo mútuo, o chefe da comunidade é o Johann.

- Funciona muito bem - disse pressurosamente Lotte.

- Já não há rivalidade entre o Carl e o Johann. Respeitam-se um ao outro. O Johann está sempre a pedir conselho ao Carl e a mim. Ouve atentamente... mas no final é ele que toma as decisões. Apesar disso, todos gostaríamos de que o Jean Marie ocupasse o lugar de honra, que se sentasse à cabeceira da mesa, ou coisa assim!

- Não, minha querida Lotte! - exclamou Jean Marie, estendendo a mão para afagar-lhe o rosto. - Está enganada. Eu sou o servo dos servos de Deus. Sentar-me-ei ao pé de si e do Carl, meus velhos amigos, suficientemente sensatos para deixarem os jovens adquirir experiência à custa das dificuldades!

Subitamente, como se um fusível tivesse estoirado, a conversa afectuosa chegou ao fim. Mendelius estendeu a mão sã e apertou o pulso de Jean Marie, dizendo taciturnamente:

- Tudo isto é demasiado suave, Jean! Ambos o sabemos. Todos os dias ouço a mesma conversa entre a nossa gente aqui. Tudo é doçura e luz. Valha-nos Deus! Dir-se-ia que somos jovens apaixonados a construir as nossas casas de sonho!

- Isso não é justo, Carl! - protestou Lotte, indignada.

- Falamos de coisas simples para aliviarmos o espírito das coisas terríveis que não podemos controlar. E por que não havemos de gozar o que estamos a fazer aqui? Neste lugar está muito suor do rosto... e também muito amor. Só que às vezes és demasiado caprichoso para o veres!

- Desculpa, querida. Não era minha intenção ser mal-humorado. Mas o Jean percebe o que eu estou a tentar dizer.

- Percebo-os a ambos - disse Jean Marie. - A resposta concisa é que todas as notícias são más. O mais que podemos esperar é que as hostilidades não comecem antes da Primavera. A previsão mais pessimista, feita pelo meu amigo Mr. Atha e semiconfirmada por um “nada a declarar” de Pierre Duhamel, é que os Americanos podem tentar um ataque antecipado com os grandes mísseis, ainda antes do Ano Novo.

Houve um longo momento de silêncio. Lotte estendeu a mão para afagar o marido, e Carl Mendelius disse:

- Se isso acontecer, Jean, não haverá nada que não seja atirado para o caldeirão das bruxas: gás dos nervos, germes, lasers, os mais desvairados horrores dos arsenais deste mundo.

- Pois é - disse Jean Marie. - Mesmo assim, poderiam manter-se em segurança aqui durante muito tempo.

- Mas a questão não é essa, pois não, Jean? Não foi por isso que tudo isto começou, por um plano para garantir pura e simplesmente a sobrevivência. Se assim fosse, não me parece que a Lotte e eu nos tivéssemos dado a tanto trabalho. Nem o Jean. Já nos habituámos ambos à irmã Morte, e ela não é nem pouco mais ou menos a criatura aterradora que dizem ser. Tudo isto começou pela sua visão e pela mensagem que não o deixaram proclamar: centros de esperança, centros de caridade para o depois. Pois bem, agora que aqui está, que vamos fazer?

- Ele ainda agora chegou, Carl! - Era evidente que as frustrações de Carl Mendelius não eram coisa nova para Lotte. - Mas podemos dizer-lhe o que temos feito. Tu próprio o disseste: não se pode dar água de um balde vazio. Por conseguinte, estamos todos a preparar-nos para os serviços que melhor podemos proporcionar, em muito pequena escala que seja. A Anneliese Meissner está a instruir alguns jovens de ambos os sexos em medicina prática, e mesmo em remédios homeopáticos que podem ser obtidos através de plantas aqui existentes. Trá-los a arder de entusiasmo com o exemplo dos médicos de pé descalço das áreas rurais chinesas. Uma das pessoas que o Johann trouxe para cá é um jovem engenheiro que está a trabalhar num projecto de utilização da queda de água para gerar energia. Eu comecei a dar aulas às crianças e o Carl está a trabalhar numa ideia para conservar um registo do que aqui fazemos e dos problemas com que deparamos. Bem sei que é tudo muito curto e elementar, mas é... é partilhável! Mesmo que o mundo se desmorone, mais tarde ou mais cedo teremos de tentar estabelecer contacto com os sobreviventes que estiverem próximo de nós. Quando o fizermos, teremos de ter alguma coisa para oferecer; se não, a esperança morre e a caridade esvazia-se!

Era o discurso mais longo que Jean Marie alguma vez lhe ouvira, bem como a mais perfeita afirmação de tudo o que ela aprendera como mulher.

- Bravo, Lotte! Devia sentir-se orgulhoso desta rapariga, Carl!

- E sinto - replicou Carl Mendelius, novamente bem-humorado. - Só sinto inveja porque ela é muito mais útil do que eu. Palavra! Sou um fulano muito instruído, mas de que vale isso ao lado de uma mulher que é capaz de fazer remédios das ervas ou de um homem que é capaz de gerar electricidade a partir de uma queda de água?

- Oh, tenho a certeza de que havemos de descobrir qualquer coisa em que possas ser útil - disse Lotte, erguendo-se e beijando Mendelius na testa. - Vou ver os progressos que eles estão a fazer na cozinha.

Depois de ela sair, Jean Marie fez uma pergunta a Mendelius:

- De onde lhe parece que seja proveniente o nome Atha?

- Atha? - Mendelius repetiu várias vezes a palavra e a seguir abanou a cabeça. - Para dizer a verdade, não faço ideia. É o amigo que veio consigo?

- É. Ele é muito vago acerca da sua pessoa... e também acerca de uma porção de outras coisas. Diz que é originário do Médio Oriente. Foi educado na tradição judaica e não é crente. No entanto, é um homem único, Carl. É novo, como vê. Não pode ter mais que trinta e tal anos. Apesar disso, tem uma tal maturidade, uma tal resistência interior...! Quando eu estava na pior das situações, agarrava-me a ele como um náufrago, e sentia que ele me transportava às costas para lugar seguro. Era muito estranho. Entrou na minha vida de uma maneira tão suave que foi como se sempre o tivesse conhecido. Transmite a impressão de uma imensa sabedoria e de uma experiência variadíssima. No entanto, nunca mostra nada disso. Tenho muito interesse em ver como você vai reagir perante ele.

- Atha... Atha... - Carl Mendelius continuava às voltas com o nome. - Não há dúvida de que hebraico não é. Apesar disso, faz soar uma leve campainha em qualquer lado. Não sei porquê, mas, desde que estive no hospital, a minha memória não é nada do que era.

- Aconteceu o mesmo com a minha - disse Jean Marie. - A única consolação é que há montes de coisas que precisamos de esquecer!

Mendelius forçou-se a sair da cadeira e estendeu a mão para erguer Jean Marie da sua.

- Vamos dar um passeio e ver quem anda por aí, que assim já não vai ter de enfrentar uma fila enorme de caras novas ao jantar.

Naquilo que outrora fora a sala de jantar do pavilhão de caça, ardia uma grande lareira e nas janelas estavam velas de Natal com os seus ramos de verdura. A um canto via-se o tradicional quadro do presépio: figuras de madeira da Virgem, de S. José e do Menino Jesus, com os pastores e os animais em contemplação à volta da manjedoura. No extremo oposto encontrava-se uma grande árvore de Natal enfeitada de fios prateados e berloques. O resto da sala estava ocupado por bancos e mesas de armar onde atarefados jovens de ambos os sexos preparavam lugares para o jantar. Mendelius, procurando recordar os nomes, acabou decidindo-se por uma apresentação sem cerimónia:

- Meus amigos, este é o padre Jean Marie Barette. Mais tarde estará à disposição para quem pretender confessar-se, aconselhar-se... ou simplesmente uma companhia agradável! Terão muito tempo para o conhecer. - Como aparte dirigido a Jean Marie, acrescentou: - Bem sei que é uma despromoção, mas somos demasiado insignificantes para nos darmos ao luxo de ter um papa, ou sequer um bispo! Além disso, convém não afugentar a freguesia!

Jean Marie concluiu a velha piada clerical por ele:

- Pelo menos enquanto não fizermos a recolha das oferendas de Natal!

A cozinha ostentava um grande fogão a lenha antigo e meia dúzia de azafamados cozinheiros a prepararem aves de capoeira, vegetais e doces. Um deles era Katrin, coberta de farinha até aos cotovelos. Ergueu o rosto para receber o beijo e teve uma piada para o seu estado:

- Quem iria dizer! Acontecer uma destas a mim! Ao princípio fiquei em pânico, mas agora estou verdadeiramente feliz. E o Franz também. Logo há-de vê-lo. Está a cortar lenha no celeiro. Casa-nos, tio Jean?

- Há mais alguém que possa fazê-lo?

- Bem, se o tio não viesse, íamos fazer uma espécie de compromisso público.

- É a mesma coisa - disse Jean Marie -, excepto na medida em que o meu tem o beneplácito do clero.

No extremo mais afastado, Anneliese Meissner mexia uma mistura num grande recipiente de cobre. Jean Marie fez as suas saudações e a seguir enfiou os dedos no recipiente.

- Ponche! - anunciou-lhe ela. - Receita minha. Não deve ser servido a ninguém de menos de dezoito anos ou a pessoas que não estejam cobertas por um seguro de vida. - Ergueu a concha para ele provar. - Então? Que tal acha?

- Letal!-disse Jean Marie.

- Tem direito a um copo pequeno, e mais nada. Espero que esteja a fazer tudo o que lhe mandaram. - Fitou-o com um astuto olhar profissional. - Está com bastante bom aspecto. Só tem um vestígio de nada de paralisia facial. Dê-me a mão esquerda. Aperte com força!... Vai conseguir. Amanhã vou observá-lo, quando estiver curada da ressaca que indubitavelmente terei. Folgo muito em vê-lo!

Ainda nevava, mas Carl Mendelius estava ansioso por continuar a mexer-se. Estendeu a Jean Marie um casaco de pele de carneiro e um par de botas de neve e depois levou-o ao exterior para lhe dar uma rápida visão das cercanias do pequeno colonato: o lago gelado e coberto de neve, com um barco virado na margem, a queda de água ainda a correr, mas engrinaldada de pingentes de gelo, e a boca do antigo túnel da mina.

- Vai até muito longe - explicou Mendelius. - Ainda há grandes afloramentos de hematite. Temos lá todos os nossos mantimentos: enlatados, reservas de sementes e ferramentas. É a melhor protecção possível contra rebentamentos ou radiações directas. É claro que as poeiras radiactivas dependem do vento. Calculo que Munique seja o alvo importante mais próximo. Quer conhecer as crianças? Estão nesta cabana. Algumas das mulheres estão a tomar conta delas. Não queremos estragar a surpresa da árvore de Natal.

Porém, quando Mendelius abriu a porta e se afastou para o lado a fim de o deixar entrar na cabana, foi Jean Marie quem teve uma grande surpresa. Mr. Atha estava sentado numa cadeira, de costas para a porta, e tinha uma criança de tenra idade no colo. Três outras estavam sentadas no chão defronte deles e atrás das crianças estavam quatro mulheres, todas elas absorvidas pela história. Uma delas fez um gesto a impor silêncio. Mendelius e Jean Marie avançaram em bicos de pés e fecharam a porta sem fazer ruído. Mr. Atha continuou a narrativa:

- Vocês nunca lá estiveram, mas eu estive. O local onde os pastores se encontravam a guardar o gado é uma colina, muito árida e fria. Não tinha árvores como aqui há, mas apenas pedras e erva de má qualidade, que mal dava para alimentar as ovelhas. Os pastores sentiam-se sós. Eu passei muito tempo no deserto e posso dizer-vos que de noite mete muito medo. Por isso, um dos pastores começou a cantar um pouco, o que estava mais longe começou a acompanhar a canção, e depois outro, até cantarem todos em coro como se fossem vozes de anjos. Foi então que viram a estrela. Era grande, do tamanho de um melão, e pairava tão baixinho que eles quase conseguiam chegar-lhe e tirá-la do céu! Além disso era brilhante, mas de um brilho suave, de modo que não lhes feria a vista. E estava suspensa mesmo por cima da gruta onde o bebé tinha acabado de nascer. Por conseguinte, os pastores encaminharam-se na direcção da estrela, sempre a cantar, e foram as primeiras visitas que aquela família constituída por Jesus, Maria e José teve em Belém da Judeia.

Houve um sussurro momentâneo e um “Ah!...” das crianças quando a história acabou. Então, Mr. Atha ergueu-se para cumprimentar os recém-chegados. A criança que estava nos seus braços era a pequena mongolóide do Instituto de Versalhes. Uma das mulheres era a patronne da Hostellerie dês Chevaliers; outra era Judith, a pequena corcunda que fizera a taça do cosmo.

Jean Marie ficou aturdido com o choque. Começou a gaguejar e a balbuciar, como lhe acontecera a seguir à paralisia.

- Como... como é que vieram aqui parar?

- Foi o senhor que nos mandou vir - respondeu Judith. - Quem transmitiu o recado foi Mr. Atha.

Jean Marie virou-se para Mr. Atha.

- Como é que o senhor sabia a palavra de ordem? Eu não a disse a ninguém a não ser ao Johann.

- Tome a criança - disse Mr. Atha. - Ela quere-o. Estendeu a rapariguinha a Jean Marie e ela começou imediatamente a fazer-lhe festas, gorgolejando de prazer. Jean Marie recuperou a voz para lhe trautear: “Eh, meu palhacinho!”

Só então foi capaz de cumprimentar os outros, abraçando-os como um pai separado havia muito da família. À patronne disse:

- Agora sim, madame, tem a mula pateta em vez do papa! A voz de Mr. Atha arrancou-os do acesso de emoção:

- Esta gente é o meu presente de Natal para si. Convidei ainda outros, da mesma maneira. Há-de encontrá-los mais tarde, mas não os vai conhecer. Foram clientes meus que precisaram de um auxílio especial. Espero que não se zangue com o meu pequeno estratagema, professor Mendelius.

- É Natal - replicou Mendelius, que ria perante a atrapalhação feliz de Jean Marie. - Nesta altura, em nossa casa as portas sempre estiveram abertas!

- Obrigado, professor.

- O seu nome interessa-me, Mr. Atha. Não é hebraico. Qual é a sua origem?

- Síria - respondeu Mr. Atha.

- Ah! - fez Carl Mendelius, que era demasiado delicado para fazer mais perguntas a um hóspede tão lacónico.

O jantar começou com uma cerimónia infantil. Jean Marie levou a palhacinha ao colo para lhe mostrar a árvore de Natal e a mesa do presépio e as centelhas que se soltavam dos grandes toros de pinheiro. Ela não queria deixá-lo e, por isso, antes de poder dar-se início ao jantar, a sua cadeira alta teve de ser colocada ao lado dele.

Johann ocupava a cabeceira da mesa, com a mãe à direita e Anneliese Meissner à esquerda. Carl Mendelius estava ao lado de Lotte; Jean Marie ocupava o lugar ao lado de Anneliese, tendo a criança no outro. Em frente dele, do outro lado da mesa, ficava Mr. Atha, com Judith de um lado e Katrin Mendelius do outro. Johann deu início à função com um convite formal.

- Tio Jean, não se importa de abençoar a refeição? Jean Marie persignou-se e recitou a oração, notando, ao fazê-lo, que Mr. Atha não fazia o sinal da Cruz, como alguns faziam, embora se juntasse ao coro dos “améns” no final da oração.

Nessa altura iniciou-se o banquete, lauto, alegre e ruidoso, com todos os convivas aquecidos pelo ponche de Anneliese e animados pelo vinho do Reno. Estava combinado, dissera Johann a Jean Marie, irem tomar café às dez e meia, de forma que as crianças estivessem já na cama e os adultos tivessem ocasião de readquirir a sobriedade antes da missa da meia-noite. Às 10 tinha-se apoderado do grupo um estado de espírito sentimental. Johann Mendelius levantou-se e bateu no copo para chamar a atenção dos presentes. Mesmo sob os efeitos do vinho, tinha um ar de confiança e autoridade.

- Meus amigos, minha família - disse. - Não vou fazer um grande discurso. Quero começar por desejar-vos as maiores felicidades neste Natal e na vossa vida posterior neste vale. Agradeço a todos o muito trabalho que tiveram no sentido de nos prepararmos para o Inverno. Seguidamente, quero dar as boas-vindas ao tio Jean e dizer-lhe da nossa satisfação por termo-lo entre nós. Quando o vi da última vez, há meses, tinha reservas sobre tudo aquilo por que ele lutava. Neste momento, gostava que ele soubesse que tenho menos reservas e muito mais convicções sobre aquilo que faz com que um homem seja bom. Finalmente, gostaria de agradecer a Mr. Atha, que foi a primeira pessoa a indicar-me o caminho para este lugar e agora nos trouxe não só o mais distinto como também o nosso mais querido cidadão. - Fez um gesto na direcção de Jean Marie e da criança que ocupava a cadeira alta ao lado dele. Houve um pequeno surto de aplausos, e Johann prosseguiu: - Através de uma observação casual que fez enquanto conversávamos hoje à tarde, julgo que Mr. Atha é uma daquelas infelizes pessoas cujo aniversário calha no dia de Natal. Normalmente, recebe apenas um presente em lugar de dois. Pois bem, desta vez vamos fazer com que tenha dois presentes! - Ergueu uma garrafa de vinho tinto e outra de vinho branco e passou-as pela mesa fora com uma saudação: - Feliz aniversário, Mr. Atha!

Ouviram-se exclamações de satisfação, palmas e pedidos de um discurso. Mr. Atha pôs-se de pé. Sob o brilho das velas e o fulgor da fogueira, dir-se-ia uma figura de um mosaico antigo, revelado num súbito esplendor de bronze e oiro. Abruptamente, fez-se silêncio. Mr. Atha não falava de modo nenhum alto, mas a sua voz enchia a sala. Até a pequena palhacinha se mantinha calada, como se percebesse cada palavra.

- Antes de mais, cumpre-me agradecer. Amanhã é efectivamente o dia dos meus anos e sinto-me feliz por comemorá-lo esta noite aqui convosco. Prometi explicações ao meu amigo Jean Marie e considero que todos devem ouvi-las, visto que compartilham o mesmo mistério. Primeiro, devem saber que não se encontram aqui por vosso próprio arbítrio. Foram conduzidos a este lugar, passo a passo, por diferentes caminhos, através de muitas ocorrências aparentemente acidentais; no entanto, foi sempre o dedo de Deus que vos fez sinal.

“Não sois a única comunidade assim reunida. Há muitas outras, por todo o mundo: nas florestas da Rússia, nas selvas do Brasil, em locais que nunca imaginaríeis. Todas elas são diferentes: porque as necessidades e os hábitos dos homens são diferentes. Contudo, são todas a mesma: porque seguiram o mesmo dedo que lhes fazia sinal e se ligaram entre si pelo mesmo amor. Não o fizeram por si. Não podiam fazê-lo, como tão-pouco vós, sem um impulso especial de graça.

“Fostes impelidos por uma razão. No preciso momento em que vos falo, o inimigo começa a espreitar a Terra, a rugir destruição! Assim, nos tempos de mal que agora se aproximam, fostes escolhidos para manterdes viva a pequena chama do amor, para alimentar as sementes do bem neste pequeno lugar, até ao dia em que o espírito vos mande alumiar outras candeias numa terra escura e plantar novas sementes numa terra enegrecida.

“Agora estou convosco, mas amanhã terei partido. Sentir-vos-eis sozinhos e medrosos. Mas deixo-vos a minha paz e o meu amor. E amar-vos-eis uns aos outros como eu vos amei.

“Por favor! - exclamou, incutindo-lhes ânimo. - Não deveis entristecer-vos! O dom do Espírito Santo é a alegria do coração.

Sorriu e a sala pareceu iluminar-se. Gracejou com eles:

- O Prof. Mendelius e o meu amigo Jean Marie andam intrigados com o meu nome. Como vê, meu caro professor, de pouco vale ser-se estudioso! E com que rapidez até mesmo os papas esquecem as Escrituras! Andavam à procura de uma palavra. Há duas. Conhecê-las-ão quando eu vo-las recordar. Maran Atha... O Senhor vem!

Jean Marie pôs-se imediatamente de pé. A sua voz era um desafio agudo:

- Mentiu-me! Disse-me que não era crente!

- Não menti. Está esquecido. Perguntou-me se eu era crente, e eu respondi que não era. Noutra ocasião disse que o acto de fé me era impossível. Não foi assim?

- Exactamente.

- E ainda não compreende?

- Não.

- Basta! - exclamou iradamente Carl Mendelius em defesa de Jean Marie. - O homem está fatigado. Esteve doente. Ainda não está em condições de lidar com enigmas! -Voltou-se para Jean Marie. - O que ele está a dizer, Jean, é que não pode acreditar, porque sabe. Ensinaram-lhe isso no primeiro ano de

Teologia: Deus não pode acreditar em Si próprio. Conhece-Se como conhece toda a obra das Suas mãos.

- Obrigado, professor - disse Mr. Atha.

Jean Marie permaneceu silencioso e imóvel, como se o significado total daquelas palavras o penetrasse. Voltou a desafiar o homem que estava do lado oposto da mesa:

- Intitulou-se Mr. Atha. Qual é o seu verdadeiro nome? Terá de dizer-mo!

Mais uma vez, fez-se o estranho e abrupto silêncio. Foi Jean Marie quem o cortou:

- Sois o prometido?

- Sou, sim.

- Como podemos ter a certeza disso?

- Sente-se, por favor!

Mr. Atha sentou-se primeiro. Sem uma palavra, puxou para junto de si uma fatia de pão e verteu vinho num copo. Partiu um pedaço de pão e, segurando-o sobre o copo, disse:

- Abençoa, Pai, este pão, fruto da terra que criaste, fonte do nosso sustento. - Fez uma pausa e a seguir recomeçou: - Este é o meu corpo...

Jean Marie pôs-se de pé. A sua atitude era agora calma e respeitosa, mas ainda intrépida:

- Bem sabeis, senhor, que essas palavras são muito familiares e muito sagradas para todos nós. Conheceis o suficiente das nossas Escrituras para recordar que os primeiros discípulos reconheciam Jesus pelo partir do pão. Podeis estar a utilizar esse conhecimento para nos induzir em erro.

- Por que havia eu de fazer tal coisa? E por que razão é tão desconfiado?

- Porque foi o Senhor Jesus quem nos alertou: “Hão-de surgir falsos cristos e falsos profetas que farão grandes milagres e prodígios, a ponto de desencaminharem, se possível, até os eleitos.” Sou padre. As pessoas pedem-me para lhes mostrar Jesus Cristo. Se O sois realmente, deveis dar-me aquilo que destes aos primeiros discípulos: um sinal legitimador!

- Tudo isto não basta? - E o gesto abrangia toda a sala e o vale. - Isto não me legitima?

- Não!

- Porque não?

- Porque há comunidades que se intitulam devotas, mas que exploram o povo e o manipulam no sentido do ódio. Nós ainda não fomos postos à prova. Não sabemos se o dom é verdadeiro ou enganador.

Houve um longo silêncio; depois, o homem que se intitulava Jesus estendeu os braços.

- Dê-me a criança!

- Não! - Mesmo enquanto recuava de temor, Jean Marie sabia que se tratava do presságio do sonho.

- Deixe-me segurá-la, por favor. Não lhe acontecerá mal nenhum.

Jean Marie observou o grupo em redor. As caras nada lhe diziam. Ergueu a criança da cadeira alta e passou-a por sobre a mesa. Mr. Atha beijou-a e sentou-a sobre os joelhos. Mergulhou uma côdea de pão no vinho e deu-lho à boca, pedaço por pedaço. Enquanto assim fazia, falava baixo e persuasivamente.

- Sei o que está a pensar. Precisa de um sinal. Que melhor sinal poderia dar-lhe do que pôr esta criança como nova? Podia fazê-lo, mas não o farei. Sou o Senhor, e não um exorcista. Conferi a esta pequena um dom que vos neguei a todos: a inocência eterna. A vocês, ela parece imperfeita... mas para mim é imaculada, como o botão de flor que morre sem chegar a abrir ou o passarinho que cai do ninho para ser devorado pelas formigas. Nunca me ofenderá, como vocês todos fizeram. Nunca perverterá ou destruirá a obra das mãos do meu Pai. É-vos necessária. Ela evocará a bondade que vos manterá humanos. A sua enfermidade suscitar-vos-á a gratidão pela vossa boa sorte. Mais! Ela recordar-vos-á todos os dias que eu sou quem sou, que os meus caminhos não são os vossos e que nem o mais pequeno grão de poeira arremessado ao espaço mais escuro está fora do meu alcance. Escolhi-vos; vocês não me escolheram. Esta criança é o sinal que vos dou. Estimai-a bem!

Ergueu a criança do colo e voltou a passá-la, sobre a mesa, a Jean Marie, dizendo suavemente:

- É tempo de dar testemunho, meu amigo. Diga-me! Quem sou eu?

- Ainda não tenho a certeza.

- Porquê?

- Sou um pateta - disse Jean Marie Barette. - Sou um palhaço cuja cabeça foi tocada. Palavra! - Olhou em torno para o pequeno grupo e deu uma palmadinha no crânio. - Há aqui em cima uma pequena parte de mim que deixou de funcionar. Coxeio, como Jacob depois do combate com o anjo. Escapam-me coisas. Às vezes abro a boca e não sai nada. Persigo as palavras como uma criança persegue bor... bor... - No último momento agarrou a palavra: - borboletas! Portanto, tendes de ser simples para comigo. Dizei-me: podeis verdadeiramente mudar de ideias?

- Por que razão me pergunta isso?

- Abraão intercedeu junto de Deus por Sodoma e Go-morra. Disse: “Não perdoarás à cidade pelos cinquenta, ou vinte, ou dez justos?” E Deus, de acordo com as Escrituras, foi muito compreensivo em toda a questão. O nosso Jesus, que foi a semente de Abraão, disse que tudo o que pedirmos nos será concedido. Devemos bater à porta e clamar até sermos ouvidos. Mas isso de nada vale se não houver ninguém lá dentro... ou se quem lá está dentro for um espírito louco fazendo rodopiar descuidadamente as galáxias!

- Peça, então! - disse Mr. Atha. - Que quer?

- Tempo. - Jean Marie Barette apertou a criança contra si e implorou como nunca na vida havia implorado. - O suficiente para ter esperança, trabalhar, rezar, raciocinar durante mais uns tempos juntos. Por favor! Se sois o Senhor, quereis entrar solenemente no vosso mundo por cima de um tapete de cadáveres? Seria certamente uma vitória sem valor. Esta criança é um grande dom, mas nós precisamos de todas as crianças e de tempo suficiente para as merecermos. Por favor!

- E que pode oferecer-me em troca?

- Muito pouco - disse Jean Marie com sombria simplicidade. - Agora estou diminuído. Tenho de pensar aos poucos de cada vez; mas, tal como sou, podeis dispor de mim!

- Aceito - disse Mr. Atha.

- Quanto tempo nos concedeis?

- Não muito... mas o bastante!

- Obrigado. Obrigado em nome de todos nós.

- Agora, está pronto para dar testemunho?

- Sim, estou pronto.

- Espere! - Foi Carl Mendelius quem pronunciou o último desafio. Apesar de toda a devastação sofrida e de todas as feridas, continuava a ser o valente e velho céptico de Roma e Tubinga. - Ele não prometeu nada, Jean. Limitou-se a pronunciar palavras a que estamos habituados há séculos. Posso fazer-lhe uma lista das fontes de todas elas! Ele fala como se o tempo estivesse ao seu alcance. Você abdicou porque não possuía certificado de autoridade para a sua profecia. Por que razão aceita menos deste homem?

Houve um murmúrio de aprovação por parte do pequeno grupo. Olharam primeiro para Mr. Atha, sentado calma e compostamente no seu lugar, e depois para Jean Marie, apertando a criança contra si e balançando a cadeira para trás e para a frente. Lotte Mendelius levantou-se do lugar para lhe tirar a criança e disse-lhe, em voz baixa que só ele podia ouvir:

- Decida o que decidir, amamo-lo.

Jean Marie deu-lhe palmadinhas na mão e entregou-lhe a pequenita. Endereçou a Carl Mendelius o velho sorriso de esguelha que dava conta de tudo o que tinham compartilhado nos tempos difíceis em Roma. E disse:

- Carl, meu velho amigo, nunca há provas bastantes. Você bem o sabe. Passou toda a vida à procura delas. Temos de governar-nos com aquilo de que dispomos. Deste homem, não disponho de nada que não seja bom. Que mais posso pedir?

- A resposta, por favor - incitou-o firmemente Mr. Atha. - Quem sou eu?

- Creio - disse Jean Marie Barette, e rezou para que a fala lhe não vacilasse-, creio que sois o Ungido, o Filho do Deus vivo!... M... mas... - Hesitou e a seguir recompôs-se lentamente. - Não tenho missão, nem tenho autoridade. Não posso falar pelos meus amigos. Tereis de ensiná-los, como me ensinastes a mim.

- Não! -disse Mr. Atha. - Amanhã partirei para tratar de outros assuntos do meu Pai. Tens de ser tu a ensiná-los, Jean!

- Como... como hei-de fazê-lo, gaguejando desta maneira?

- És forte como um rochedo! - disse Mr. Atha. - Sobre ti posso edificar um pequeno lugar firme para o meu povo!

 

De pé junto à janela dos aposentos do presidente, Pierre Duhamel observava a neve caindo sobre Paris. Remexeu no bolso do casaco e os seus dedos fecharam-se em torno da pequena caixa esmaltada que continha as duas cápsulas gelatinosas: o passaporte dele e de Paulette para o esquecimento. A sensação proporcionou-lhe uma espécie de fatigada consolação. Pelo menos Paulette não precisaria de sofrer mais e ele próprio seria também poupado ao espectáculo de Paris depois da devastação. Queria ver-se liberto daquela longa e desesperante vela da morte e ir para casa deitar-se.

O homem a cujo serviço se encontrava, havia vinte anos, estava sentado atrás dele a uma grande secretária, com o queixo apoiado nas mãos, fitando, sem ver, os documentos que tinha diante de si.

Perguntou-lhe:

- Que horas tem?

- Faltam cinco minutos para a meia-noite - respondeu Pierre Duhamel. - Que raio de maneira de passar a véspera de Natal!

- O presidente prometeu que me telefonava da Casa Branca assim que tomassem uma decisão.

- Acho que já a tomou - replicou Pierre Duhamel. - Só no-la vai transmitir no momento em que estiverem a carregar no último botão.

- Não podemos fazer nada quanto a isso.

- Nada - concordou Pierre Duhamel.

Rompendo o silêncio que se sucedeu, a campainha do telefone retiniu. O homem que estava à secretária apoderou-se do auscultador. Duhamel regressou à janela. Não queria ouvir a leitura da sentença de morte. Ouviu o auscultador ser novamente poisado e a seguir o longo suspiro de alívio do seu chefe.

- Cancelaram! Acham que estão a ver uma aberta com Moscovo.

- Qual é a próxima data-limite?

- Ainda não a estabeleceram.

- Graças a Cristo! - exclamou Pierre Duhamel. - Graças a Cristo!

De certo modo, assemelhava-se a uma oração.

 

                                                                                            Morris West  

 

                      

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