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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS PÁSSAROS DE SEDA / Rosa Lobato de Faria
OS PÁSSAROS DE SEDA / Rosa Lobato de Faria

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS PÁSSAROS DE SEDA

 

A morte do Mário deixava-a outra vez naquele vazio, perdida, sem ter onde se agarrar. Andou a vaguear pela casa, que conservava um alvoroço de chegada, com embrulhos diferentes, presentes sem destinatário, bagagens por resolver. Mantinha os olhos secos, passeava por salas e quartos com os polegares sob o queixo, os indicadores a segurar o nariz. O Mário. Que injustiça. O Mário não podia morrer.

E então, para continuá-lo, Diamantina pegou no volume que ele lhe levara dois meses atrás, quando fora à casa da vila desejar-lhe boas férias no Brasil: duzentas e quarenta e uma folhas A4, encapadas a verde, resultado de uma brincadeira. Tu escreves a tua vida e eu a minha. E depois comparamos. Vai ser divertido.

Ela não escrevera quase nada. Tinha apontamentos, uma espécie de diário casual e estava convencida de que com base nisso encontraria na memória o resto dos bocados que lhe compunham a biografia. Mas não. De algumas coisas não queria falar, outras preferia esquecer. Descobriu que é complicado olhar para trás e já estava arrependida da brincadeira quando o Mário lhe trouxe o volume. Está aqui. É tudo o que me lembro. Fiz o possível por não inventar nada. Quase nada.

Tio Zebra, conte a da carroça que o pintor pintou. Quem falou foi a Diamantina, a minha prima recém-chegada de cara miudinha, comida pelos olhos pretos e pelo cíeiro, os pés descalços, as mãos entrapadas por causa das frieiras. Os sapatos que te dei, Tininha? São para a rua, tia, aqui está quente.

Estávamos à lareira, o tio Zebra no cadeirão de verga, nós sentados no arquibanco a dar-a-dar com os calcanhares, todos metidos dentro da lareira que lá fora ia um frio de rachar. A minha mãe chegou-se ao fogo, baixou-se, molhou na língua dois dedos da mão esquerda para tirar de golpe a tampa à cafeteira que chiava, com a mão direita embrulhada na ponta do xaile pegou na asa, é para lavar a nódoa de azeite que aqui o menino Mário me derramou na pedra do poial. Eu lavo, mãe. Lavas nada, a tua idade é de sujar.

Durante um bom momento, ouviu-se a escova de arame a raspar a pedra, está a sair, ainda não entranhou e a Diamantina, tio Zebra, a da carroça.

Era um pintor que vendia os quadros à beira da estrada, ali como quem vai para a Amareleja e por lá passava todos os dias uma carroça com quatro pessoas. Um velho com as rédeas da mula, ao lado a velha, atrás um casal mais novo. Todos muito risonhos e cumprimentadores menos a moça que era assim a modos tímida, branca como um papel. Tanto passaram, sempre de boa catadura, que o pintor, para lhes fazer um agrado lhes pintou o retrato de cabeça. Era para o oferecer ao velho e até me disse, vê lá tu ó Zebra, pintei o quadro daquela gente que não sei quem são nem como se chamam, as caras saíram tal e qual e desde que o acabei nunca mais por mim passaram. E eu, põe-no ao teu lado na beira da estrada e não o vendas, qualquer dia há-de tilintar a mula e aí te aparecem.

O caso é que não apareceram e um dia, de automóvel, um senhor bem posto, parou e perguntou ao Severino, assim se chamava o pintor meu amigo, se lhe vendia o quadro e por quanto.

Este não vendo, que o fiz para oferecer ao velhote que aqui pintei, só que ele nunca mais passou por cá mas um dia há-de vir e lho hei-de ofertar.

Não há-de vir que esse aí é o meu sogro que já morreu há um ror de anos e a velha a minha sogra mulher dele e a moça minha noiva que morreu tísica e este aqui sou eu, já pouca parecença tenho do que fui e esta é a mula Mulata que também já lá está, esse passeio demos nós na véspera da minha noiva falecer, viemos-lhe a dar ar que se sufocava toda em casa, quando digo sogros é uma forma de falar, não cheguei a casar, morreu ao outro dia sem dizer água vai.

O Severino estava sem pinga de sangue, a sua história está mal contada, compadre, que ainda não há um mês que a carroça passava aí todas as tardes nesta estrada e tanto passou que lhes decorei as caras e de cabeça as pintei. Serão parecidos com a sua família que não chegou a ser e se finou, mas outros são, que dias a fio pelo São Miguel com estes que a terra e o quadro não lho vendo, tem dono e não é vocemecê.

Pois tem aqui o meu cartão, se lhe não aparecer o destinatário procure-me nesta morada que lhe pago o preço que por bem entender pedir-me.

E com esta se foi, era um Citroen arrastadeira, que isto passou-se nas calendas gregas, tinha eu chegado de África com o casaco de zebra que me valeu o apelido.

Tio Zebra, são horas, os gaiatos têm de ir dormir, se não amanhã fazem-se moles e não me saem debaixo das mantas.

Ai, tia Margarida, agora não, o finzinho é o melhor, se me vou deitar neste sufoco não durmo. O Tio Zebra acaba em menos de nada.

Era a Diamantina, aquilo por histórias era pior que macaco por banana, eu em antes dela chegar para morar com a gente, deixava-me dormir com as histórias do tio Zebra, mas agora ali aconchegadinho àquela prima quase da minha idade, a ver os seus olhos bonitos, as suas mãos entrapadas que faziam pena, a sentir o calor da sua coxa magrinha, a bater os pés na arca, desencontrados com as batidas secas dos seus calcanhares descalços, a história entrava por mim adentro como uma água de medo que é bom beber em golinhos pequenos, que arrepio, fantasmas à noite, primas bonitas e lareira acesa, não há melhor quando se tem dez anos.

Então um belo dia metemo-nos à estrada na motorizada e fomos à morada que o senhor bem posto deixara ao Severino, era uma casa de moradia com jardim, ladraram os cães, veio uma senhora de certa idade, olhou para o cartão, José Antunes regente agrícola, fez-se branca como a cal, os senhores vêm enganados, mas saiam debaixo da soalheira, ó Arminda sirva água fresquinha do pote a estes senhores que hão-de vir com sede.

Entrámos. Era uma casa linda, o Severino com o quadro debaixo do braço pegou-lhe a jeito para comparar a cara da moça com a fotografia em cima do piano, ao lado duma jarra cheia de lírios.

Trazia aqui este quadro pintado por mim que o senhor Antunes mostrou empenho, deu-me a morada, faço-lhe um preço de amigo, visto ser aqui a moça tão parecida com a defunta que ali vejo em retrato de fotógrafo.

A senhora mirou o quadro e teve que se sentar, bebeu ela a minha água que a Arminda trazia numa bandeja, valham-me os santos todos do céu, este aqui que o senhor pintou é o meu falecido irmão e a noiva e os pais dela, não sei como é que este quadro aparece na sua mão.

E o Severino vá de lhe explicar e a senhora, não diga isso, o meu irmão faleceu.

Faleceu? Foi de repente? É que ainda não há dois meses me quis comprar o quadro que eu de cabeça pintei destas pessoas que lá passavam todas as tardes de carroça pelo São Miguel, este São Miguel último, deu-me o cartão, por achar a moça parecida com a defunta noiva.

Não está a compreender, disse a senhora. O meu irmão tinha uma paixão funesta por essa menina que era tísica e se chamava Isadora como a bailarina, era uma adoração sem propósito, pois todos sabiam que ela ia morrer ainda antes do ano virar.

Isso percebi eu pela forma como ele ficou encantado com o quadro, via-se que tinha uma recordação muito funda da menina Isadora.

Não, repetiu a senhora. Não me percebeu. O meu irmão faleceu mas não foi agora.

Tirou um lencinho da manga e assoou-se das lágrimas que lhe saíam do nariz e dos olhos, o meu irmão suicidou-se assim que a noiva morreu, foram juntos a enterrar fez vinte anos ainda não há dois meses.

Ficámos tão gelados como a água na bandeja, subimos para a motorizada e fugimos dali até hoje, nunca encontrámos explicação para tal mistério, nem o Antunes era o Antunes, nem a carroça era a carroça.

E o quadro, tio Zebra., onde está o quadro, perguntou a Diamantina que já tinha desentrapado as frieiras com o nervoso.

O quadro ficou em cima do piano, ao lado dos lírios, dos copos de água e da menina tísica com nome de bailarina.

Como é possível o Mário lembrar-se de tudo com tanto pormenor, sorriu Diamantina. Que homem inacreditável, o Mário!

Ficou um momento a contemplar na memória aquele passado longínquo até que uma vaga de soluços a inundou e finalmente conseguiu chorar.

A Tiana pergunta se a dona Tininha quer um chá. Está quente e ela fez o bolo de passas.

Está bem, Júlia. Podes servir na salinha.

Não era a primeira vez que o bolo de passas ajudava a salvar situações, a apaziguar consciências, a repor realidades, a ordenar sentimentos.

Tiana tinha visto Diamantina vaguear pela casa, perder o apetite, ter insónia, esquecer o trabalho, tomar comprimidos, trocar as horas. Quando pressentiu o choro meteu o bolo no forno.

Os sapatos, Tininha? São duros, tia. Calça as meias de lã e os sapatos, que são de carneira, logo se fazem aos pés. Está bem, tia Margarida. Eu sei que lá na Beira andavas descalça, mas aqui vais ter que te habituar. Não somos ricos mas somos alentejanos, somos limpos, não pedimos esmola e não andamos descalços. Eu sei, tia.

A Diamantina calçou-se e ensaiou uns passos vagarosos. Chamei-a cá fora e fi-la esfregar as solas na terra saibrenta, para não escorregar. E não estraga? Não estraga. E se ainda ficarem escorregadios, pedes ao tio Zebra que lhes deite pneu.

O tio Zebra era tio da minha mãe. Tinha chegado de África no ano em que eu nasci, com o casaco de pele às riscas (era mais um colete com ombreiras que lhe chegavam acima do cotovelo), dinheiros grandes e histórias extraordinárias.

Mandou construir aquela casa da nossa infância, em baixo cozinha e fumeiro, em cima três quartos amplos e um sótão, por dentro madeiras, pedra e frescura, por fora cal e malvas ao redor.

Na frente acácias, olaias, cerejeiras, um pessegueiro que se cobria de flor sem mais nem outra, zínias, sécias e roseiras bravas até ao caminho, bordado, um sim, um não, de alfazema e alecrim. No Verão era ver as abelhas na lida, a minha mãe nem podia fazer calda de açúcar para os sonhos sem fechar a rede da janela e se o vento soprava de além, cheirava a mel.

Atrás era a horta, as couves, as cenouras, um bocadichinho para as batatas; e a salsa, os coentros, os poejos do tempero e à mão de semear os tomatinhos, atados com fio de esparto às gradinhas de cana.

No meio árvores de fruto, macieiras, figueiras, ameixoeiras e quatro laranjeiras que no tempo da flor cheiravam como deve cheirar o paraíso. Depois, até ao horizonte, um mar de trigo, que não era nosso, mas que monta, era lindo de ver, ainda mais quando para lá de Março lhe nasciam centáureas e papoilas.

Construída a casa, o tio Zebra investiu o dinheiro que sobrou em mantas, primeiro alentejanas, depois de várias proveniências e ia vendê-las pelas feiras e de porta em porta, pelas casas ricas. Foi quando começou a colocar a sua mercadoria também em lares mais modestos, que arrematou a um passarinheiro uma gaiola cheia de canários para oferecer, na compra de duas mantas, às donas de casa mais sozinhas, em quem adivinhava um fundo de tristeza.

Era uma vez uma mulher bonita que vivia numa casinha de janelas baixas, contava o tio Zebra. O marido tinha outra e batia-lhe, embora ela passasse os dias a cuidar da roupa dele, da comida dele, da casa dele. Um dia passou na rua um moço com uma gaiola e um canário e ouvindo-a chorar, ali lho ofereceu para que se alegrasse. O passarinho cantava tão bem, com tais escalas e requebros, que ela, por achá-lo tão capaz de fazer crescer uma alegria semeada, lhe chamou Sol Nascente e o pendurou numa trave do tecto, entre ramos de louro e réstias de cebola. Quando o marido chegou foi um cabo de trabalhos, quem é que te deu o pássaro, foi um moço, mas queres fazer de mim cabrão, posta à janela a aceitar oferendas de quem passa, não foi nada disso, o moço ouviu-me chorar e teve pena, mais nada, e choravas de quê, meu pedaço de puta, se não te falta aqui nada, agora hás-de fritar o sacana do pássaro para o meu jantar, que o quero de cebolada. E batatas cozidas cortadas em quartos e ao alto.

A mulher subiu-se num banco e ao abrir a porta da gaiola disse ao Sol Nascente, Arrepia já caminho direito à janela e ele assim fez, foi tão de repente que o marido acreditou que era um acaso, mas não, já se sabe que não se pode cozinhar um animal que tem nome.

Passaram meses e um dia o marido foi-se de vez com a amiga para outra terra e nesse mesmo dia o Sol Nascente entrou pela janela e foi de livre vontade meter-se na gaiola que lá continuava de porta aberta pendurada na trave, a mulher que estava triste alegrou-se e ele cantou para ela até ao fim dos seus dias.

Perguntaste-me tu, Márito e tu, Diamantina, porque é que eu, que tanto prezo a liberdade, sou capaz de meter canários em gaiolas. Pois eu entendo que, já que eles são das poucas avezinhas que cantam em cativeiro, certamente o Senhor as criou para alegrar o coração das mulheres solitárias.

Tiana, na juventude, tinha-se chamado Ana. Mas o seu temperamento maternal grangeara-lhe muito cedo o grau de tia e as duas palavras, fossilizadas juntas, tinham formado Tiana, a ponto de as criadas novas a tratarem por dona Tiana.

Diamantina sentou-se a tomar chá e pediu à Júlia que a chamasse. Tiana largou o tacho de cobre onde luzia a marmelada, tirou o avental de quadrados que atara à cintura, limpou-lhe as mãos e veio à salinha. A menina chamou?

- Tiana. Senta-te aí e toma chá comigo. Agora és a minha única amiga.

Margarida Narciso, minha mãe, nasceu numa família muito pobre. O pai era ganhão, a mãe remendava a roupa de outros pobres, que lhe pagavam com um enchido, um púcaro de azeite, um pão acabado de cozer, uma mão de azeitonas. Gente calada, fechada pela miséria, os meus avós não conheceram nem deram a conhecer a ternura e Margarida, a mais nova de três e única rapariga, cresceu a ajudar a mãe, a privar-se com ela dos melhores bocados, a dividir com ela os mais duros serviços.

Aos quinze anos puseram-na a servir na casa mais rica de Castelo de Vide, o doutor Bento Proença e a dona Joaninha que tinham pessoal para dar e vender: cozinheira, ajudanta, duas de fora, uma da mesa, uma de meninos quando o Simãozinho era pequeno, uma na costura, jardineiro e chofer.

Margarida começou de ajudanta de cozinheira e dois anos depois passou para os quartos, quando a Adelina casou. A criada de mesa chamava-se Joana, mas culpada do atrevimento de ter o nome da patroa, passou a chamar-se Dália, que era o nome da anterior, nem a senhora estava disposta a habituar-se com outro. Margarida costumava ajudá-la a servir jantares maiores, almoços de domingo, banquetes de visitas.

Logo da primeira vez o doutor Proença pôs o olho nela, era um jantar de vinte pessoas, sussurrou à Dália-Joana que lhe servia o Redondo tinto, a tua colega quem é? É a Margarida dos quartos, senhor doutor, pois diz-lhe que não segure a travessa do lombo pelas bordas, já sabes que a dona Joaninha é distraída, a mão é por baixo e se queimar queimou.

O senhor doutor já reparou em ti, estás feita, temos de ir todas ao castigo, a Dália foi-se embora por causa disso, eu até agora escapei porque tenho os dentes saídos graças a Deus, mas qualquer dia apanha-me no escuro e esquece-se, agora tu, bonita como és, não tens por onde fugir, há-de fazer serão e mandar-te ao escritório com uma fatia de bolo de mel e uma garrafa de peitoral Ferreirinha.

Estão a tocar para os doces, agora o que é que eu faço? Serves a encharcada e eu os papos de anjo e seja o que Deus quiser.

Nesse dia não aconteceu nada. Quase nada. Com vinte pessoas à mesa, o doutor Proença, um senhor tão fino, tinha que ter maneiras, só quando a Margarida lhe trocou o prato da fruta que estava todo lambuzado pela calda do doce, ele apalpou-lhe a coxa pelo lado de dentro, bem cá em cima, onde a meia de algodão enrolada na liga deixava aquele palminho de carne branca. Isto imaginou ele, porque a farda azul escura era de sarja e deixava pouco campo de manobra ao tacto.

Margarida passou a andar com o credo na boca, escondia-se à espera que ele saísse, só lhe arrumava o quarto quando tinha a certeza que ele ia longe no Studebaker ou no alazão, se ele pedia uma bebida ou um café ao escritório ia lá sempre a Dália, afinal ela é que era da mesa, à Margarida só competiam limpezas e arrumações. Mas o doutor Proença era de ideias fixas e um dia, estranhando nunca mais ver a Margarida, disse à mulher, Ó Joana, porque é que nós temos uma criada de mesa com os dentes de fora? Porque sabe servir bem à mesa, não entorna nada, não é escaldadiça, não troca os copos, é silenciosa e faz bom café de balão. Mas aqueles dentes não são agradáveis de ver, estou sempre à espera que ela dê uma dentada na minha perna de borrego. Ora, Bento! Sabe como é difícil treinar este pessoal! A outra Dália, quando estava no ponto, foi-se embora, nunca percebi porquê, umas ingratas, é o que elas são. Agora não me faça ensinar outra, que eu não tenho cabeça para tudo. Tu não tens mas é cabeça para nada, mas está bem. Manda-a lavar aquelas favolas antes de pôr o avental de renda e passar pó Avelar para branquear o esmalte. Mas isso faz cair os dentes, estraga-os todos! E eu ralado. Esfrega-os bem esfregados, estica a beiça por cima deles o mais que puder e quando eu precisar de qualquer coisa no escritório mandem-me outra que consiga fechar a boca sem ser preciso pendurar-lhe um peso na beiçola.

Quando a Joana-Dália lhe apareceu no escritório com a bandeja de prata do café e a garrafa do Napoleão, a Senhora não te disse nada?

De quê, senhor doutor? Leva isso para trás e manda-me outra depressa, antes que o café esfrie e o balão do conhaque arrefeça. Mas porquê, senhor doutor? Está tudo com o senhor dou... Xô; mula! Arreda, cabresto! E a Joana-Dália apareceu na copa a chorar, Aquilo é mesmo um bruto, que mal é que eu lhe fiz e a Tiana disse, Eu vou lá. Ah, agora vens tu? A conversa já chegou à cozinha? Serve-me o café e o Napoleão e se estás armada em fada madrinha para cá vens de carrinho.

Quem não o conhecer que o compre, doutor Bento. Olhe aqui o balãozinho aquecido e o cheirinho do café! Quer um charuto da caixa? Está aqui. E fica a saber que a Margarida não é para o seu dente, é só uma menina e se ela for embora eu vou com ela.

Margarida? Que Margarida? Não sei de quem é que estás a falar.

Com um filho de dez anos, que já percebe tudo, a sorte dele é estar no colégio interno, devia mas era ter vergonha.

E tu que idade tens, sabichona?

Tenho vinte e cinco mas podia ser sua mãe. E não se esqueça que estou cá desde os doze e se não fosse ter uma joelhada tão certeira já andava há que tempos desgraçada aí pelos caminhos com algum bastardo Proença pela mão. Mais café? Está bom pois, foi a Joana-Dália quem o fez. Ninguém faz café como ela, por isso trate-a bem que ela é competente e muito séria.

Se eu tivesse aquela dentuça também era sério. Podes levar. Quando é que vais à terra?

Nunca.

Mas o homem põe e Deus dispõe e Tiana foi chamada à terra por doença e por fim falecimento da mãe e abriu uma crise na cozinha que pôs dona Joana em completa histeria.

Esta gentinha passa a vida a ter ataques e a morrer e deixam aqui uma pessoa a braços com almoços e jantares, ainda se o Bento não fosse exigente, mas não me vai perdoar nem um molho, nem uma omelete, nem sequer um pâté. A menina, Teresinha, é que me podia emprestar a sua Conceição, Nem pense, tenho os anos do meu sogro e nós também almoçamos e jantamos, não é só o Bento, a menina tem seis criadas, não me diga que nenhuma sabe fazer uma açorda. Isso era preciso que o Bento comesse açorda, odeia, nem parece alentejano, não sei o que hei-de fazer, Bem, vou andando, que o Henrique está a chegar de Lisboa, foi vender a cortiça e tenho souflé de camarão de entrada, se descai a Conceição despede-se, saiu venenosa a Teresinha, escadaria abaixo.

Era bem feita e talvez a Conceição quisesse cá vir fazer quinze dias. E agora como é que eu explico à Dália, à Jacinta, à Margarida, à Joaquina, que não sei cozinhar?

Mas não foi preciso explicar. Elas já sabiam, a Joaquina e a Margarida puseram-se ao fogão, a Dália nos doces, a Jacinta na loiça, deram conta do recado enquanto o Diabo esfrega um olho.

O Bento não teria dado por nada se a Joana não aparecesse à mesa afogueada, ela que dizia sempre que o jantar era o repouso do guerreiro e a mulherzinha digna desse nome devia apresentar-se linda e fresca, como se a vida fosse um mar de rosas e nenhuma crise doméstica pudesse, nem de longe nem de perto, afectar o apetite e a disposição do seu amo e senhor.

Bem prega Frei Tomás, sentou-se na borda da cadeira desgrenhada e a limpar o resto das lágrimas, Agora a Tiana resolveu ir à terra e eu que me amanhe, se o jantar estiver um lixo não se admire, foram aquelas incapazes que o fizeram, nem faço ideia o que é que vai aparecer na mesa, não se espante se for chouriça assada e pão com azeitonas, deve ser tudo o que elas sabem fazer.

Joana-Dália trouxe a vichyssoise, ligada, geladinha, o gostinho do alho francês diluído nas natas, o Bento repetiu, o peixe era rolinhos de linguado com feijão verde cortado finíssimo, manteiga e limão, a Joaquina tinha extrapolado, a carne lombinhos de porco com molho de maçã e croquetes de batata, lindos, todos dourados por igual, a sobremesa fatias da China, já nem conseguiu provar a salada de frutas apresentada em cama de merengue.

Quem é que fez este jantar, perguntou o doutor Proença à Dália-Joana, fomos nós, nós quem, quero-as aqui todas e da cozinha vieram a Margarida e a Joaquina, acharam justo que viesse a Jacinta, tanta loiça tinha lavado, batatas descascado, claras separado e ela veio, toda envergonhada, a esconder o riso no avental. Pois a partir de hoje vão todas aumentadas no ordenado e tu do avental às riscas cor-de-rosa, leva-me ao escritório o café e a garrafa de Napoleão daí por mais ou menos dez minutos.

Margarida entrou no escritório com a pesada bandeja, tremia tanto que a xícara, mal apoiada no pires, batia contra a colher de prata, Estás nervosa? Não estou habituada a servir os senhores, o meu serviço é limpar e arrumar, o senhor doutor desculpe e se não precisa mais de mim...

Preciso. Preciso que me tragas aqui, às onze em ponto, uma fatia de bolo de mel, há bolo de mel? Há sim, senhor doutor, E um cálice de peitoral Ferreirinha que eu vou fazer serão.

Quando a Margarida apareceu grávida ainda a Tiana não tinha voltado da terra. Confiou-se à Joana, olha a minha desgraça, a Tiana se calhar sabe de alguma coisa que possas tomar, elas às vezes comem quinino, aquilo das sezões, também há umas ervas amargas, faz-se um chá mas não sei o nome, precisávamos de alguém mais velho e a Tiana que não volta.

Acho que não, Joana. Se calhar quero o meu filho, Deus tem-me dado tão pouca coisa, se calhar ia levar a mal que eu desprezasse este presente, porque um filho é uma bênção e parece que o meu corpo está a gostar desta novidade, sinto-me alegre no intervalo dos enjoos, não sei, tenho de pensar melhor.

Quando a Tiana voltou já a Margarida tinha resolvido ter o filho, andava a esconder a barriga para a dona Joaninha não dar por nada, o doutor Bento já se tinha fartado, era como se não conhecesse a rapariga nem das escadas, a Tiana ainda tentou falar com ele, mas o senhor doutor riu-se-lhe na cara, desde que o mundo é mundo que os patrões fazem filhos às criadas, a culpa é delas que se põem de gatas a limpar o chão, ou se debruçam a servir o café e mostram o rego dos peitos pelo decote, vê lá se ela fez queixa à dona Joaninha, era o que mais faltava eu ter que dar satisfações dos meus actos a uma serviçal.

Uma noite em que houve jantar de cerimónia, dona Joana reparou que a farda de cetim preto não servia à Margarida, não abotoava atrás o segundo botão, um peito que era uma vergonha, Não estás a pensar servir à mesa nesse propósito, ou estás? Estou mais gorda, a senhora desculpe, é do bom passadio cá de casa, eu em casa pouco ou nada comia, já cá estás há três anos e agora é que o passadio te faz efeito, eu acho é que o jardineiro te emprenhou, mas eu ponho os dois no olho da rua. Credo, minha senhora, coitado do rapaz, não tem nada a ver comigo, eu juro por tudo, estou mais gorda e pronto, se a senhora me quer despedir por eu estar mais gorda, despeça-me, paciência, mas deixe em paz o Agostinho que não é para aqui tido nem achado. Bom, vai lá pedir à Augusta que te mude os botões que as visitas estão a chegar e depois agente fala.

Tiana, senta aí um bocadichinho enquanto eu passajo estas meias pretas do senhor doutor, que já as levas para a gaveta, meteu a Augusta o ovo no calcanhar da meia. Aquilo ontem com as visitas foi até às tantas, não? Sim, deu para tarde, dobrou a Tiana dois panos da loiça recém-remendados, pô-los no cesto, procurou e encontrou uma toalha velha de mãos. Andava a ver desta toalhinha, não sabia que estava aqui. Já não merece conserto, passou a linha de lado a lado do buraco a Augusta. Com tanto dinheiro para que é que querem as coisas remendadas, começou a cruzar a linha pelas outras já estendidas paralelamente no ovo a Augusta. No poupar é que está o ganho, pegou numa agulha, procurou linha azul, lambeu-a e apertou a ponta entre os dentes a Tiana, dá-me aí a caixa dos botões. Toma lá, mexeu-se na cadeirinha baixa a Augusta, não escolhas os de madrepérola, para as nossas batas são os de massa. Já sei, enfiou a linha lambida no buraco da agulha, esticou-a pela ponta, rolou um pequeno nó, procurou um dedal com o médio da mão direita a Tiana. Ando aqui com este botão partido no punho, pregou a Tiana a agulha no peito do avental, cortou com a tesourinha a linha já encerada de sabão e ferro do resto do botão velho. Tu já viste a barriga da Margarida? desencontrou a linha preta perpendicularmente entre os fios, um sim um não, agora ao contrário, um não um sim a Augusta. Barriga? Está gordinha, isso sim, prendeu a linha azul na cicatriz do botão anterior a Tiana. Pois, como se a gente não soubesse o patrão que tem, cortou com os dentes a linha preta a Augusta. Vê lá se seguras essa língua, enfiou no buraco do botão a agulha, para baixo, agora para cima, agora em cruz a Tiana. Ela ontem veio aqui para eu lhe mudar os botões à bata preta de servir à mesa, tem duas mamas que parecem dois melões e a barriga empina-lhe a saia, tive de lhe baixar a bainha na frente, bateu com o dedal na passagem terminada, deliciou-se com o ruidinho do metal na madeira do ovo a Augusta. Está prenha, que te digo eu. Não te esqueças de ir contar à dona Joana, rematou, cortou a linha azul com a tesourinha, experimentou a resistência do botão a Tiana. Conte-lhe ou não conte, mais dia menos dia ela terá que saber, enrolou as meias pretas uma na outra, deu-lhes a volta, fê-las numa bola, entregou-as à Tiana a Augusta. Morres se não lhe deres a novidade, levantou-se, pegou nas meias enroladas, bateu-lhes com a palma da mão para as achatar a Tiana. Valha-te Deus, Augusta, meteu as meias no bolso do avental e foi-se da salinha da costura a Tiana.

Lanchei tanto, Tiana, que não vou querer jantar. Vou para o meu quarto ler o livro do Mário, não imaginas as coisas que ele aqui conta.

O doutor Marinho, nunca houve homem tão bom, que Deus o guarde na Sua santa glória. Lá para as nove, tenha paciência, menina, mando-lhe a Júlia com um copinho de leite.

Na sua estratégia de dizer mal dos patrões às criadas e mal das criadas aos patrões, a Augusta foi uma quinta-feira de empréstimo costurar aventais à dona Teresinha, coscuvilhou tudo o que pôde, aquela rapariga dos quartos, veja lá a senhora, a Margarida, está cheia como uma vaca. E o pai quem é? Vá lá a gente saber, são umas malucas, mas consta, que eu, Deus me a mim livre apontar o dedo a alguém, ninguém sabe o dia de amanhã. Consta o quê? Bom, dizem lá pela cozinha, não é, que o doutor Bentinho pôs olhos na rapariga assim que ela para lá entrou. Meu Deus! E a dona Joaninha sabe disso? Saber, o que se diz, saber, não sabe, mas se calhar desconfia. É que já se nota muito, aquilo aparenta uns quatro ou cinco meses, mais dia menos dia a mocinha vai ter que se explicar.

Está lá, Joana? Olhe lá. Então o seu marido nunca mais tem juízo ou é a menina que não toma conta dele? Sabe que isto de maridos só amarrados curto. Ai está a fazer-se de novas? Pois olhe, já toda a gente sabe que ele fez uma criança à sua rapariga dos quartos, aquela bonitinha de olho claro. É melhor mandá-la depressa embora, se não ainda levam metade da herança do Simão. Ah, ah, ah, Então? Morreu?

Um dia em cheio para a Teresinha.

Bento, Bentinho, meu amor. Não me quero comparar com uma criada, mas acho que você já não gosta de mim. Deixa-te de conversas parvas, mulher, que estou aqui na minha calma a beber o meu conhaque e a pensar naquele rebanho de mil trezentas e duas cabeças que o Zé Pastor levou lá para os lados da Alagoa, muita ovelha parida e outras a parir, E o que tem o rebanho? O que há-de um rebanho ter? Contas de cabeça, que não o ando a criar àquele e mais aos outros cinco para enfeitar os campos. E eu? Não valho mais que um monte de animais que fazem coco em feitio de azeitonas e dizem a tudo que sim ao cão? Ai, mulher, Deus deu-te a beleza, sim senhora e o nascimento, não duvides, mas esqueceu-se de meter qualquer coisinha que fosse dentro dessa cabeça.

É bem certo que as mulheres se querem boas e burras, mas tu exageras de burra e careces de boa. Ai é? Faço tudo o que você quer na cama, não pense que gosto, mas é para agradar, nunca reclamei de nada. Pois é disso que eu me queixo. Pões-te para ali meia morta, às vezes até vou olhar para ver se estás a fazer malha ou a telefonar à Teresinha, não sentes, não gozas, depois admiras-te. Ah, confessa! Então diga lá. O filho da Margarida é seu? Toda a gente diz que sim. E eu lá me lembro se me pus na Margarida, na Francisca ou na Conegundes? Põe-te no teu lugar, mulher, não dês ouvidos a mexericos. E manda a criatura embora, que eu não quero esses falatórios aqui em casa. Pois, Bentinho, eu também acho melhor. E você é muito injusto quando diz que eu sou desligada na hora de... daquilo. Até houve uma vez, antes do Simão nascer, que eu acho que senti uma impressãozinha.

O pai Narciso, a mulher muito menos e os filhos nem se fala, não aceitaram a Margarida de volta. Pobres mas honrados, fizeram o que sempre viram fazer, puseram fora a filha transviada, quem não sabe guardar a porta da vergonha não tem direito ao pão tão duramente esfolado, vá lá parir o bastardo para longe daqui, de hoje em diante não temos filha, nem nós irmã.

A Margarida meteu-se à estrada com a trouxa à cabeça, as lágrimas conforme corriam assim secavam, era o vento frio daquele Março, Marçagão, de manhã Inverno à tarde Verão, calhou de se lembrar que ali no caminho das oliveiras, num lugar chamado Pedra Moura havia um casebre abandonado, diziam que lá aparecia uma moura nas noites de solstício, ainda vinha longe, para lá caminhou com o passo ligeiro dos seus dezoito anos.

Era uma vez uma moura encantada que vivia numa figueira e quando rebentavam os figos ela comia-os todos, eram pingo de mel e nenhuns mais doces, mas ninguém a bem dizer os chegava a provar. Um dia andava à caça um príncipe cristão que viu a moura em cima da figueira, tão linda de vestido branco e véu na cabeça, dás-me um figo e ela deu e ao trincar o figo o príncipe quebrou-lhe o encanto e ela pôde descer da árvore e ali se apaixonaram e construíram a casinha de pedra para os seus amores de perdição. Um dia o rei, que não voltara a ter notícias do filho, calhou de passar por ali no solstício de Verão que é quando a natureza começa a morrer e os dias a encolher e ao encontrar o filho nos braços da moura, alçou do arco e espetou uma flecha no coração da mulher. O príncipe ficou louco e tiveram que o encerrar numa torre, donde só saía naquela data para se vir a deitar com o fantasma da moura, que até hoje, séculos volvidos, ali aparece à pergunta do seu perdido amor.

Eram quatro paredes, um tecto em ruínas, uma porta e uma janela sem vidraça, pendurou-lhe um xaile, fez uma cama de folhas de figueira, arrumou a trouxa a um canto e foi à procura de trabalho; ainda se mexia bem e tinha visto, a caminho da Pedra Moura, uma horta verdejante, quem sabe a precisar de ajuda.

Não se enganou. A troco de comida aceitou, das seis às cinco, semear abóbora, alface, beldroegas, cebolas, beringela, cebolinho, bróculos, pepinos e feijão, pimentos e tomates e, para os temperos, coentros, tomilho e segurelha. Custava-lhe dobrar-se mas sentia-se bem de cócoras, naquela intimidade com a terra, o sexo recebendo a sua energia, transmitindo-a ao feto e as mãos ocupadas, o coração ligeiro.

Quando chegou Abril gostava de regar de manhãzinha, mondar, prender-se no ruído encantatório do sacho, tchac, tchac, tchac, ecoando no silêncio do dia nascente, enfeitado apenas pelo correr manso do regato onde oscilavam agriões.

Os patrões eram boas pessoas. Dois velhinhos, Maria e José, cujo único filho morrera aos trinta e três anos dum corte na mão, era carpinteiro e chamava-se Jesus. Pusemos-lhe esse nome por parecer bem junto com os nossos, já eu sou Maria porque a minha mãe era Ana e o meu pai Joaquim, não há nomes mais corriqueirinhos, mas assim todos juntos parece uma história já contada.

O tio José, que era hortelão mas que se ajeitava com a serra, os pregos e a plaina que herdara do filho, fez para a Margarida uma cama, uma mesa e uma cadeira. A tia Maria encheu-lhe uns sacos velhos de palha, a servir de colchão, deu-lhe uma muda de lençóis, uma toalha, um jarro e uma bacia e a Pedra Moura tornou-se um verdadeiro palácio. O tio Zé ainda lhe prometeu que antes do Outono lhe faria uma porta e um batente de janela, para que a chuva o vento e o granizo não importunassem o menino, que já lhe arredondava o ventre até ao coração.

Como é que daqueles momentos de confusão e vergonha a debater-se nos braços brutais do Bento Proença, podia ter nascido esta alegria, Deus escreve direito por linhas tortas, fazia contas de cabeça para calcular em que data nasceria. Então. Tinha feito a vichyssoise naquela noite quente de Setembro e fora a primeira vez. Tanta dor e desgosto não podiam ter-lhe feito um filho, à segunda acho que também não, houve uma terceira para nunca mais, um mês depois do dia do jantar, já não sentiu nem dor nem nada, havia de ter sido dessa vez, Outubro, deixa ver, Novembro, Dezembro, nove dedos contados, nasceria para Julho. Ainda tinha tempo de ir à ceifa ganhar um dinheirito para o enxoval do menino.

Não tinha nada, só duas camisinhas e seis fraldas que a velha Maria desenterrara do fundo de uma arca. Havia de comprar lã para lhe crochetar um xaile, sorte dele nascer no Verão, com pouco se havia de remediar nos primeiros meses.

Falou com os velhotes, eles concordaram e lá por Junho foi para uma ceifa ali mesmo a meia légua de caminho, não fosse a barriga tão crescida, que bom meter a foice no trigo, enrolar as espigas, atá-las, Eu hei-de mandar fazer Altos castelos em Niza, Já que não vejo o meu bem Vejo a terra que ele pisa, Já que não vejo o meu bem, Vejo a terra que ele pisa, E eu hei-de mandar fazer, Altos castelos em Niza.

Uma manhã acordou preguiçosa, nem lhe acudiu que fosse o menino a mandá-la ficar deitada, com muito custo pôs as pernas ao caminho, levava uma moinha nos rins, não há-de ser nada, lá pelas nove horas uma dor que ia da barriga para as ancas, daí a nada outra, riu-se, Deolinda acho que me chegaram as dores, mas já tenho tido e não aconteceu nada, só que agora, ai, lá vem outra, a ver se me aguento até à hora da calma.

Aguentou. Não comeu o pão com azeitonas que a tia Maria lhe dera de farnel, estava assim meia leve, como se tudo por dentro se lhe despegasse, Deolinda, vou ali atrás do sobreiro e mal se levantou uma água quente escorreu-lhe de dentro, tanta, valha-te Deus mulher são as águas, vai já de caminho se não queres que te nasça aqui no meio do trigo.

Foi andando, à cabeça a cesta com a foice a merenda e o xaile, as mãos na barriga, Deus não permita, é só meia légua, nem chega, pôs-se a contar os mecos da estrada, menos um, menos um, e de repente uma dor tão grande, tão avassaladora de cima a baixo, era rins era costas era pernas, ai que eu morro, eram as ancas, os ossos do rabo a puxar para os lados, mas o que é isto, pensava que as dores eram na barriga, qual quê, isto é tudo, Nossa Senhora da Boa Hora me valha, mais outra dor, mais outra, já não despegam, ia-se encostando à beira da estrada, está quase, já além vejo o olival e depois a horta da tia Maria que me há-de acudir.

Conseguiu avançar um pouco mais, agarrou-se à primeira oliveira que lhe apareceu, depois à outra e à outra para que a não vissem da estrada e então as dores mudaram, já as percebia melhor, eram direitas de cima abaixo, uma ânsia, uma vontade de fazer força. Estendeu o xaile na terra, acocorou-se e puxou, duas, quatro, seis vezes. À sétima tocou e sentiu a cabeça de cabelinhos ralos, começou a rir com os nervos, era riso e choro e não sei que alvoroço, é o menino, Deus o traga perfeito, é agora, um grito de mulher rasgada, ele aí está resvalando-lhe pelas coxas ensanguentadas, pegou na foice, cuspiu-lhe, cortou o cordão, deu-lhe um nó, enrolou-o. O choro do filho coroou aquela tarde de glória, olhou em volta à procura de um poço ou regato, não viu, molhou as mãos na boca limpou o sangue do róstinho engelhado, levou-o junto à cara, beijou-o, era um rapaz.

Puxou de si a placenta e o resto, enrolou tudo no xaile sujo, pô-lo no cesto junto com a foice, tirou a merenda, agasalhou o menino no lenço que lhe caíra da cabeça mas estava limpo, encostou-o ao peito, já consolado a chupar o nó do polegar, comeu o pão duro, as azeitonas, cantou baixinho, o menino está dormindo no colo de sua mãe, os anjos o estão guardando no presépio de Belém, no colo de sua mãe, no colo de sua mãe.

Adormeceu. Quando acordou ouviu o piar dos pássaros, o chupar ruidoso do filho, tinha as mãos molhadas de tanto as lamber à procura de mama, riu deslumbrada, pensou chamar-lhe Jesus, beijou a oliveira que lhe dera encosto, agradeceu a Nossa Senhora da Boa Hora e partiu.

Passou à horta de José e Maria, mas só se deteve em casa, pousou o menino, enterrou o xaile, bebeu água, lavou-se, quis dar-lhe o peito, mas aquilo ainda não era nada, deitou-se a dormir, toda a noite no sobressalto que só as mães conhecem.

Estava uma noite linda, era Junho, vinte e um de Junho, deixa cá lembrar por causa do registo, que luar tão grande e no parapeito viu a Moura, escarranchada a abanar o pé descalço, arrepiou-se toda, pois claro é o solstício, segurou o filho com mais força e a Moura, não tenhas medo, sou mulher como tu e amanhã a tua vida vai mudar e com isto sumiu, Margarida não soube nunca se sonhou se tresviu, mas a figura da Moura gravou-se-lhe na alma para todo o sempre.

Longe, cantou um galo. Era o Aurélio, o galo preto do tio José, o mais madrugador do Alto Alentejo. Levantou-se, o filhinho dormia, quando estava a verter água na bacia de esmalte para se lavar, ouviu uma carroça, um guisalhar de mula.

Foi espreitar. Viu um homem alto, aparentava cinquenta e tal anos, trazia um colete de pele com riscas ao baixo, pretas e brancas, com este calor, como é que ele aguenta.

És a Margarida? Sou. Mas disseram-me que estavas grávida já no fim do tempo e não te vejo grande barriga. Tive ontem o menino e o senhor quem seja. Sou o teu tio Mário, irmão mais velho do teu pai, cheguei de África há duas semanas, fui a tua casa e lá me contaram o que era feito de ti, não vou consentir que a minha única sobrinha viva para aqui sozinha com o filho num casebre, tenho de meu o bastante para fazer uma casa e se assim o quiseres, nela e comigo viverás.

Aquilo parecia milagre, a Moura tinha dito amanhã a tua vida vai mudar, mudou.

E foram os dois oferecer o menino à tia Maria e ao tio José, que conheciam o Mário e ali o confirmaram como tio dela e comeram presunto do melhor com dois grandes pães centeios que ele trazia e com sinos no coração festejaram.

Passados dias, quando a Margarida já ajudava outra vez na horta, só trabalhinhos leves, o tio Mário, também chamado tio Zebra por causa do colete, levou-a a Castelo de Vide a registar o menino. Ponha-lhe Mário, que o meu tio Zebra há-de ser o padrinho.

Mário de quem a salvou, José de quem a ajudou, Narciso de quem a escorraçou, Oliveira de quem a abrigou na hora da aflição.

Mário José Narciso de Oliveira, um seu criado.

A Júlia levou-lhe ao quarto um copo de leite, bolachas caseiras e marmelada fresca, impossível resistir, estava Diamantina a pesar emoções e a ratear saudades.

Lá fora, grandes tabuleiros de madeira cheios de tigelas de marmelada esperavam o sol da manhã, que o Outono, já entrado, ia lindo e quente, capaz de secar o precioso doce, disputado por vespas e abelhas sob rodelas de papel vegetal.

Desde o tempo da dona Joaninha que Tiana cumpria infalivelmente este ritual, quando as salas e o andar de cima estavam praticamente vedados à sua condição de cozinheira. Foi preciso chegar uma patroa como a Tininha para lhe ser reconhecido o estatuto de mestra: da arte culinária, da sabedoria do tempero, das relações subtis entre alma e paladar.

Como está a menina, Júlia? Achei-a bem. Muito chorosa ainda? Não, quer-se dizer: tinha os olhos vermelhos, mas há-de ser da leitura. Não larga aquele cadernão verde que o doutor Marinho aí deixou faz tempo.

O tio Zebra descobriu que aquele lugar da Pedra Moura estava à venda há tanto tempo que até o dono já se esquecera dele.

Vendia barato porque tinha fantasmas e ninguém o queria nem dado, então o tio Zebra, mestre na arte do regateio, desdenhou quanto baste, louvou outro tanto e comprou por tuta e meia.

Pagou hospedagem à sobrinha em casa do velho casal enquanto deitava o casebre abaixo e construía no mesmo local a casa da minha infância.

Não faltou quem dissesse que a Margarida do Narciso se amigara com o tio, mas o Zebra era imune a mexericos, só um dia, em que à sua passagem saltou uma boca, deu uma tal carga de pau no coscuvilheiro, que nunca mais ninguém se atreveu a levantar-lhes a ponta de uma unha.

Era uma vez lá em África uma moça que os pais casaram com um jovem doente, a troco de muito gado. O rapaz estava tão fraco que nem foi capaz de a desflorar, mas ela cuidou-o ternamente até que ele morreu. Vivia com eles o sogro e a menina-viúva pediu-lhe que se deixasse estar, pois olhariam um pelo outro. O povo da aldeia começou então a murmurar que ela matara o marido de tanta cama e se preparava para fazer o mesmo ao sogro. Juntaram-se para castigá-la, mas como eram cobardes, à frente soltaram um leão. A moça saiu para ver que arruaça era aquela que vinha ali e o leão ao vê-la parou e ajoelhou no caminho, porque as virgens bondosas deitam uma luz da cabeça e dos braços que só os animais vêem. Avança leão! Não avança, não! Se ele avançar meus cabelos em correntes se farão! E o leão de joelhos. O povo, espantado com tal maravilha acreditou nas palavras dela e fugiu espavorido e então o leão levantou-se e perseguiu-os até à aldeia, onde se fecharam nas suas casas, a cuidar das suas vidas. Não temos leão, mas temos mãos.

Na pia baptismal foram meus padrinhos o tio Zebra e a ti Maria, depois de minha mãe ninguém tratou de mim com mais amor, nem me viu crescer com mais alvoroço. A horta era o meu recreio, ali brincava de manhã e de tarde até que o sol se punha e minha mãe me levava para casa, às vezes pela mão, às vezes nos braços, adormecido de tanto brincar.

Jantávamos cedo, se o tio Zebra não andasse pelas feiras contava-nos ao serão as suas histórias, depois era um sono de justo no meu quartinho bem arrumado e, para o menino que eu era, a Pedra Moura era o melhor dos lugares. Não conhecia outro, que faria se conhecesse.

Aos sete anos acabou-se a brincadeira, puseram-me na escola, ia a pé no Verão, no Inverno o tio Zebra levava-me na carroça, se ele estava fora o ti Zé montava-me com ele no burro e lá íamos com um grande guarda-chuva que eu segurava com as duas mãos.

Foi num dia de muito temporal em que minha mãe me acompanhou no carro do tio Zebra porque precisava de fazer compras na vila, que uma cunhada dela, que em princípio não lhe falava, se aproximou da carroça e disse, olha lá o teu filho, o que está de crescido! Pois está, e lá em casa? Vamos andando, quem morreu foi o teu primo. Primo, qual primo? O Sebastião, que casou com aquela da Idanha, morreu agora apanhado por um raio, numa trovoada seca, grossa e sem pinga de chuva. Ah, coitado do Sebastião e ouvi dizer que a mulher dele era doente. Muito. Fraca dos pulmões e têm dois meninos. Pequeninos? Um menino de dois anos e uma menina que há-de ter a idade do teu. Uma desgraça, ela não pode trabalhar, lembrou-se de nos mandar os filhos. Mas nós não os podemos receber, sabes bem que os teus irmãos de maneira nenhuma e os teus pais menos ainda. Credo, disse a minha mãe, o que vai ser deles. E então o tio Zebra, que tinha estado calado a aquietar a mula, disse com a sua voz risonha, Se tu quiseres, Margarida, manda-se vir a menina e a gente acaba de a criar. Faz companhia ao Marito e não lhe há-de faltar amor e uma tigela de açorda.

Foi assim que fez entrada em nossa casa uma bichinha do mato chamada Diamantina, magrinha e encardida, com as mãos numa chaga só, de tanta frieira infectada.

Depois de um grande banho quente na banheira de zinco, que ela primeiro não queria mas que depois adorou, surgiu o problema do quarto, dorme aonde e com quem. Enquanto a minha mãe descascava batatas para as sopas da panela, só o cheirinho dava vida a um morto, eu ofereci magnanimamente o meu quarto, mas a minha mãe foi firme, Não, o teu quarto é o teu quarto, mais vale a Diamantina dormir comigo. Ó mãe, mas eu ia dormir para o sótão, eu gosto. Nem penses. Disse, está dito. Há um sótão, perguntou a Diamantina com uns olhos tão lindos na cara miudinha que pareciam postiços, Se há um sótão deixem-me dormir lá. Por favor. E porque não, disse o tio Zebra. Assim cada um de nós fica tranquilo no seu próprio quarto e ela não fica com a ideia de que pode estar a incomodar, que não está, mas para que se sinta bem.

Enquanto a ceia não ia para a mesa fomos explorar o sótão, eu, a Diamantina e o tio Zebra. Era um lugar mágico como todos os sótãos, com uma janela rentinha ao chão, as mantas do tio Zebra amontoadas e um ninho de rolas que a Diamantina não deixou espantar.

O tio Zebra trouxe para cima a cama que em tempos o ti Zé da Horta tinha feito para a minha mãe, agora com um colchão de lã todo piroleiro, fez-lhe a cama, se tiveres frio é só puxar uma manta das minhas, tens aqui mais de sessenta. E vamos cear que a tua mãe já chamou.

Come devagar, Tininha, não te vás engasgar. Há muito naquela panela, toma uma folhinha de hortelã. Está bom? Olha caminha, batatas, um pedacinho de enchido. E caldo, para ires quentinha para a cama. Pega na colher. Isso. Dóiem-te as frieiras? Vamos tratar disso, tenho ali ligaduras de linho e uma pomada que é melhor que pós-de-Maio.

Antes de dormir e enquanto a minha mãe lavava a loiça, o tio Zebra sentou-se connosco à lareira e anunciou, Hoje vou contar a da Cara de Boi.

Vi logo que aquilo era em honra da Diamantina, ainda mal refeita de todas as novidades que lhe aconteciam. Ela empoleirou-se no banco, os joelhos à boca, as mãos, já ligadas com tiras de linho muito brancas, a envolverem as pernas nas saias, para as defender do lume esperto.

Eu estava encantado com aquela prima distante que me era enviada como um presente. Ela vai comigo para a escola? Vai pois. Ela vai para a minha classe? E que classe é a tua? É a quarta, tenho dez anos! Eu tenho nove e só fiz a segunda. Este ano não estudei. Fala-se com a mestra. Se souberes ler e escrever talvez ela te aceite na classe do Marito.

Era uma vez um rei que tinha três filhos e disse-lhes que o que escolhesse a noiva mais bonita, esse seria o herdeiro.

Os mais velhos logo acharam mulheres bonitas para casar, o mais novo por mais que procurasse, nenhuma lhe agradava. Até que um dia estava a dar descanso ao cavalo num descampado e estranhou ver uma torre com uma janela lá no alto e nenhuma porta.

Nisto chega uma velha e grita: Constança, Constança, manda abaixo a tua trança! E da janela saltou uma trança que tocava o chão e a velha por ela subiu. Daí a nada desceu e quando estava fora do alcance da vista do príncipe foi lá e gritou: Constança, Constança, manda abaixo a tua trança e logo a trança desceu da janela. O príncipe agarrou-se a ela e subiu e chegado à janela viu a menina mais linda que Deus ao mundo deitou. Vem comigo, disse o príncipe e serás rainha destas terras. Fuja fuja que a minha mãe é uma fada má, que tem artes de causar todos os males que há! Então o príncipe convenceu-a a fugir com ele, desceram pela parede e partiram a todo o galope no cavalo que estava folgado à sombra. Atrás deles ouviram uma voz, Filha cruel que assim te vais, nem sequer olhas para trás a receber a bênção de tua mãe. E ela olhou e a fada logo lhe pôs uma carantonha de boi. No palácio mangaram dela e do príncipe e a rainha, com pena, decidiu adiar a cerimónia de escolher a mais bonita e disse, quero primeiro saber qual é a mais prendada, por isso me bordarão um lenço todas as três. As outras não sabiam bordar e Constança ia começar o seu, quando a fada apareceu e lhe disse, Não te rales, que o lenço to trago eu! e entregou-lhe uma noz. Ela entregou a noz à rainha e ela abriu-a e quedou-se deslumbrada com o lenço que saiu de dentro, da mais fina cambraia, onde num bordado maravilhoso sobressaíam as mais belas flores da natura e uma ave do paraíso fugida dos bosques da imaginação. Hás-de ser tu a minha nora, ainda que tenhas cara de boi. Veremos o que diz a corte, disse o rei zangado. À noite fez-se o cortejo, iam de braço dado com os noivos para entrar na sala do trono, a menina e o príncipe no fim que eram os mais novos, ela trajando o vestido bordado com todos os matizes do sol que a fada lhe trouxera e quando já iam pelo corredor, ela a chorar com a sua medonhice e horrendez, ouviu a voz da fada, Filha ingrata que não te viras para trás a receber a bênção da tua mãe! E ela olhou e ali a fada lhe restituiu a sua beleza. Quando entrou na sala os cortesãos amandaram os gorros ao ar de tanta alegria e Constança foi rainha daqueles reinos que se tornaram cada vez mais férteis, cheios de pessoas felizes, porque a fada má fez-se boa e a todos abençoou.

 

Com os olhos cheios de estrelas, lá postas pelo lume da lareira e pela fantasia da história, com os pés encardidos metidos nas minhas sandálias velhas que não tinham fivelas e lhe caíam, com os cabelos pretos, lisos, atados com uma fita de nastro, a Diamantina manteve-se um momento imóvel a absorver o silêncio que se seguiu à última palavra. Depois riu e chorou com a testa encostada aos joelhos.

Confessou-me muito mais tarde que a partir daquela noite se viciara em maravilhas.

Quando o tio Zebra construiu a casa, achou por bem deixar de pé a parede do casebre que tinha a janela e que era perpendicular à que tinha a porta e lá está ainda, parece um muro de pedra arruinado com um buraco quadrado ao meio, já é mais buraco que parede, mas era ali que a Moura tinha aparecido à minha mãe e talvez lhe apetecesse voltar, não se pode negar poiso a uma alma penada, ficaria por todos os séculos à pergunta da sua pedra encantada. Nas noites do solstício, era fácil lembrar porque era a data do meu aniversário, a Diamantina e eu saíamos da cama e íamos nas pontas dos pés, para os adultos não nos sentirem, espreitar o aparecimento da Moura. Este ano não vem, dizia eu e logo a Diamantina, Se calhar atrasou-se, não tens paciência nenhuma, ou se calhar já nos viu e não se quer mostrar porque tu não paras quieto, sempre a apanhar ervas e a comê-las como os caracóis. E é preciso ter fé.

Isto porque naquele primeiro ano de todos os prodígios em que a Diamantina veio morar connosco, tínhamos julgado avistá-la, à meia-noite, sentada na janela de casa nenhuma, com os pés descalços, toda envolta em brancos véus. Vimos ou julgámos ver aquela forma enluarada, a Diamantina tinha a cabeça cheia das histórias do tio Zebra, na igreja via Nossa Senhora mexer-se, garantia que um melro lhe tinha dito bom-dia, e a Moura então, lá está ela, olha desapareceu, não viste? E eu, Vi, pois claro, alguma coisa era, era, o quê não sei.

A Diamantina sempre tinha sido admitida na quarta classe, lia e escrevia na perfeição, a letra é que era romba por causa das frieiras, de resto os problemas todos certos e os verbos na ponta da língua. Fizemos exame e passámos os dois com distinção, comentava-se, os filhos da Margarida Narciso são espertos que nem alhos, aquilo é o tio Zebra que lhes dá lições em casa. Mas o tio Zebra era analfabeto, isto é, analfabeto de ler e escrever, porque em tudo o resto era um homem instruído e sábio.

Depois do exame começaram as férias e foi num dia de muito calor que a minha mãe chamou Diamantina e lhe perguntou, Tininha, sabes coser? Ela olhou para os dedos, já secos, mas ainda grossos e marcados de cicatrizes, pensou um minuto, Sabes ou não? e respondeu, Sei. Então a minha mãe deu-lhe um avental inacabado, com a bainha alinhavada em toda a volta e em cima no peitilho e disse, Vê lá se és capaz de fazer essas bainhas.

Diamantina considerou o avental, que era de um tecido grosseiro, acho que se chamava riscado embora fosse axadrezado, em tons de azul, procurou linhas na caixinha, escolheu uma encarnada e antes de a enfiar, pegou na agulha e pôs-se a puxar e a tirar fios. Estávamos sentados à sombra do pessegueiro, eu a jogar às cinco pedrinhas, vi aquilo, Estás a dar cabo do avental à minha mãe, ou quê? e ela, Vê-se logo que és homem! Pegou na agulha enfiada em linha vermelha, apanhou três fios, rodeou-os e prendeu no lado inferior, e mais três e mais três e assim chegou ao final da bainha do peitilho, virou o trabalho ao contrário e fez o mesmo do outro lado. Dava um efeito lindo. Os fios apanhados a vermelho, de forma regular, faziam um desenho inesperado. Enganei-me, disse ela. Devia ter apanhado quatro fios em vez de três, para poder desencontrá-los, ficava mais bonito. Mas está lindo, nunca vi uma bainha tão bem cosida e tão bem enfeitada. Foi só para experimentar, disse ela. Agora vou fazer a de baixo que é maior. Trabalhou depressa, agora mais segura do que estava a fazer, e por fim disse, Acho que a tia Margarida ia gostar de ter a letra dela no peitilho, aqui no meio. Queres que escreva a letra com lápis? Não é preciso, escrevo-a com linha. E num instante, a partir do primeiro ponto, voltando sempre meio ponto atrás, fez um M perfeito. Como é que conseguiste? Está lindo! Está feio, disse ela. A letra devia ser grossa e não este risco fininho. Vou engrossá-la. Não faças mais nada que estragas! Faço, pois. Bordou outro M por dentro do primeiro, depois pontilhou com alinhavos todos iguais e paralelos o espaço entre os dois, para encher, disse ela e por fim fez o mesmo por cima em sentido contrário. Ficou deslumbrante. Fui a correr chamar a minha mãe, que pensou que alguém se tinha aleijado, tais eram os meus gritos. Tininha, minha filha! Mas onde é que tu aprendeste a bordar? Não sei, tia, acho que foi na história da Cara de Boi. Fiquei sempre a sonhar com aquele lenço que tinha todas as flores da natura e um passarinho fugido do bosque da imaginação.

Isto aqui é só uma bainha e uma letra, mas se a tia me der um pano que eu possa estragar, eu experimento outras coisas que trago na cabeça há muito tempo, desde aquele dia em que aqui cheguei e comi sopas da panela e ouvi a história e dormi no sótão e a minha vida mudou por dentro e por fora, e numa volta só, ganhei uma mãe um pai e um irmão. Ora, Tininha, disse a minha mãe a abraçá-la e a disfarçar as lágrimas, Tu já tinhas mãe e irmão e um pai que morreu, é certo, mas que gostava muito de ti. Pois, tia. Mas eram diferentes. Nunca ninguém me deu folhinhas de hortelã para o caldo, nem me falou de lenços bordados e aves do paraíso. Sabes que mais, Tininha? Acho que isto ou é milagre ou é prodígio. Vou guardar este avental embainhado a ajour, À quê? A ajour e bordado por uma menina de nove anos. Nove, não, dez! Já os faço para Agosto, no dia da Festa de Nossa Senhora da Assunção.

Um ano de prodígios também para mim que numa volta só ganhei uma prima, uma irmã, uma amiga e por que não dizê-lo, uma mulher que amei desde que a vi chegar, de pezinhos roxos e olhos de fome e que amarei até ao último dos meus dias.

Diamantina apagou a luz e tentou substituir na memória a vida que tivera pela que poderia ter tido. Em que momento pressentira e desprezara o amor do Mário? Devia certamente estar feliz, alvoroçada com qualquer novidade, convencida do seu grande futuro, a sonhar parvamente com um destino igual ao dos filmes cor-de-rosa que o Mário a levava a ver ao cinema de Portalegre.

Agora deitada na sua grande cama D. Maria, em lençóis de linho e edredon de penas, tentou imaginar-se nas distantes noites da Pedra Moura, quando saía do catre fabricado com quatro tábuas pelo tio Zé da Horta e ia deitar-se em cima das mantas, mesmo por debaixo de um desencontro de telhas por onde luzia uma nesga de céu ornado de uma estrela. Imaginava que essa estrela era a ponta luminosa do dedo de um anjo a assinalar o seu coraçãozinho de pássaro e a dizer-lhe, aí, está o segredo das mil coisas lindas que hão-de acontecer-te, serás uma princesa de conto de fadas, partirás num cavalo branco, verás o umbigo do mundo, terás um tapete voador, descobrirás um segredo e das tuas mãos vermelhas e gretadas hão-de nascer outras, brancas e longas e com elas abertas e acenando, poderás voar.

Sentia ainda nas costas as picadas saborosas da lã, amava aquelas mantas que cheiravam a ovelha e punha-se a olhá-las de perto, a ver como os fios nasciam uns dos outros para formar desenhos de cores diferentes e perguntava-se por que é que alguém se daria ao trabalho de as enfeitar assim e o anjo respondia, porque a manta serve para aquecer o corpo e o seu desenho para aquecer o coração.

O Mário era um irmão, como poderia amá-lo de outro modo, se tomavam banho juntos na mesma banheira de zinco, partilhavam uma queijada medida com a régua da escola para que nenhum ficasse a perder e tinham brigas feias por causa de um avião de papel ou de uma fisga.

Mas sabia, sempre soubera desde o tempo das frieiras, que ele era a pessoa mais especial da sua vida.

Depois daquelas bainhas de avental transformadas em arte, seguiram-se anos de desassossego e descobertas. A Diamantina começou por apanhar malmequeres e copiá-los à vista para os panos da loiça, sem fazer um risco, copiava-os directamente com agulha e linha e ficavam perfeitos, às vezes introduzia modificações, pétala sim pétala não com pormenores diferentes ou então simplificava a flor, só um recorte e menos duas pétalas, havia malmequeres murchos por todos os cantos e um dia eu disse-lhe, Deitas um pivete a peixe estragado de tanto mexeres nessas flores malcheirosas.

Ela deitou-me um olhar superior como só aqueles olhos são capazes e disse, não percebes nada, coitado de ti, não sei o que é que andas a fazer nesse famoso liceu de Portalegre.

Porque eu ia todos os dias na carreira, de Inverno era noite fechada, de Verão encontrava-me com as poupas e outras aves só visíveis ao amanhecer, para fazer os meus estudos que me levariam à respeitada carreira de professor primário. Era o sonho de todos os bons alunos, O que é que queres ser, Professor. A minha mãe estava pronta a todos os sacrifícios, até queria ir trabalhar a dias para a vila, o tio Zebra é que não deixou, mas levantava-se às cinco para passar as minhas camisas que lavara na véspera e preparar-me o farnel, a metade de um enorme pão recheado de queijo, umas rodelas de salpicão, azeitonas e conforme a estação, pêssegos, pêras, figos ou maçãs. Eu gostava de tangerinas, mas ela temia que eu não lavasse as mãos e que o perfume, maravilhoso, mas incómodo a quem as não comeu, pudesse ofender os professores. Eu roubava-as de véspera e metia-as nos bolsos com a cumplicidade da Diamantina, O que é que levas aí, o pião.

Foi pelo meu terceiro ano que a Diamantina pediu um lençol velho de estopa à minha mãe e se pôs a fazer um verdadeiro mostruário de flores, frutos, folhas, ervas, abelhas, joaninhas, gafanhotos e até moscas e louva-a-Deus. Copiáva-os a agulha e linha, começou num cantinho do lençol e foi-o cobrindo daquela fauna, daquela flora, repetia os motivos de frente, de lado, primeiro em formas simples, depois mais trabalhadas, recriava a própria natureza com simbioses delirantes, experimentando pontos, cores e efeitos.

Eu chegava das aulas e ia ver os progressos daquele lençol alucinado, encontrava-a a trabalhar no sótão, na grande mesa que o tio Zebra lá pusera, rodeada de plantas dissecadas e de frutos que ela abria ao meio para lhes estudar as entranhas.

Não era raro, nas nossas deslocações na carroça do tio Zebra, a Diamantina pedir-lhe que parasse, atraída por um matiz surpreendente, uma corola impudica, uns estames sedutores. Passava-lhes de leve o dedo, estudava-lhes a forma e o aroma, analisava as folhas e decidia se queria levá-las. Hesitava muitas vezes. Para mim uma flor é uma flor, mas para a Diamantina uma flor era um motivo, uma obra de arte geradora de mais arte e não as colhia indiscriminadamente, respeitava-as demasiado para se permitir uma abordagem leviana. Vi-a muitas vezes beijar as pétalas, as folhas, agradecer-lhes e sorrir-lhes com uma ternura que me fazia ciúmes. Mas ela tinha o dom, o condão, o duende, quem era eu para me pôr ao nível do seu diálogo com o inominável.

Afinal a Diamantina não era morena. O crescimento, o bom passadio e o amor tranquilo da nossa família foram aclarando aquela pele curtida que se transformou em pura seda, onde os olhos, negros, magníficos, encontraram o seu verdadeiro enquadramento. Era uma adolescente belíssima, mulher aos catorze anos, grande sem ser gorda, com uma serenidade altiva que a fazia parecer mais alta, mas isso era o pescoço de cisne, o colo admirável e os ombros que movimentava como se ouvisse música.

Os cabelos eram pretos e lisos, trazia-os quase sempre atados com uma fita, mas foi na noite de Verão em que ela desceu à cozinha, descalça, com uma camisa de noite branca e os cabelos caídos até à curva do braço, a dessedentar-se na água do pote, que compreendi que estava irremediavelmente apaixonado por aquela criatura de outra dimensão. Lembro-me de lhe ter dito, Pareces um cisne e ela respondeu a limpar a boca às costas da mão, Sou um cisne. Sou o cisne da história do tio Zebra, aquele que parecia um intruso no meio das aves do lago, um patinho feio cheio de sonhos à espera que lhe caíssem aquelas penas pardas e baças, curioso de saber o que estaria por debaixo. Ainda tenho muitas penas baças, disse ela e sentou-se na borda da mesa de madeira grossa com o pucarinho na mão, arredondou a anca ao inclinar-se para analisar os próprios tornozelos, sem perceber a minha perturbação deslumbrada. Não te vejo nenhuma pena baça, disse eu à falta de melhor, o que eu queria dizer-lhe era Amo-te, desejo-te, morro de cada vez que me olhas, as tuas mãos macias como asas de pena doce despertam em mim o som de mil cordas de violino, ou é o rumor branco do meu sangue a soluçar. Foi por esse tempo que a minha mãe começou a tomar muita conta de mim, evitando que eu e a Diamantina ficássemos sozinhos, mas não era preciso, à Diamantina nunca lhe ocorreu que eu era um homem, eu era só o Mário, nada parecido com os actores das fitas americanas e os príncipes das histórias, o Mário feiosinho, baixote e aos quinze anos com meia dúzia de borbulhas que haviam de transformar-se nas barbas que ainda hoje uso e de que a Diamantina não gosta. Mas de que outro estratagema poderia eu deitar mão para esconder-me dela, poupá-la ao rictus da paixão e por isso também os meus óculos de lentes fumadas, a pretexto de facilmente me encadear a luz. A sua luz, de que ela não tem a menor consciência. Nunca percebi, disse-me um dia, por que é que os meus pais me puseram, no meio de tanta pobreza, este nome pretensioso e brilhante: Diamantina! Ajustei os óculos e sorri.

De repente tudo se tornou claro. Quando escreveu isto, o Mário sabia que ia morrer, pensou Diamantina. De facto ele entregou-me o livro com o seu sorrisinho bizarro, despediu-se de mim, desejou-me boa viagem e partiu. Depois, à chegada do Brasil, tive a notícia da sua morte. Morreu de repente, disse a Tiana e eu tão egoísta que nem quis saber pormenores, muito ocupada com o meu desgosto. Não fui à Pedra Moura como devia ter ido, nem sequer li o livro dele a tempo de lhe dizer, ainda em vida... dizer o quê? Que não podia amá-lo? Que ele era o meu irmão muito querido, a melhor pessoa que conheci e que eu o não merecia por ser tão de carne e osso, tão cheia de fraquezas, um pobre cisne a quem nunca caíram as penas pardas e baças? Podia pedir-te perdão, Mário, mas tu já me perdoaste tanto, que posso adivinhar que me perdoaste tudo.

Que será feito do meu irmão, disse a Diamantina, e ficou naquela sua atitude tão característica, os olhos longe, a mão no ar segurando entre o polegar e o indicador a agulha com a linha esticada e os outros dedos da mão direita postos em redondo como três pétalas do seu bordado.

Estávamos a fazer serão, a minha mãe cosia a minha roupa, o tio Zebra afeiçoava com o canivete uma estatueta de madeira para o Presépio, o boi ou o burro, já não sei, eu fazia os trabalhos do liceu, a Diamantina, como sempre, bordava. Nesse tempo já o lençol das amostras, como lhe chamávamos, estava recamado até metade, de flores, folhas, insectos, borboletas, pontos de todo o género, pé-de-flor, ponto atrás, de cruz, de Assis, de cadeia, de grilhão, cortado, oriental, alinhavados, cheios, canutilhos, gradinhas, crivos e ajours. Era Verão, entravam as melgas pela porta aberta da cozinha, mas entrava também o cheiro doce das tílias e a claridade do luar.

Que será feito do meu irmão, que não soubemos mais nada dele desde que a minha mãe morreu há cinco anos e o entregaram à Misericórdia de Castelo Branco. E que idade terá, perguntou a minha mãe. Alguns nove, coitadinho, o que será não ter pai nem mãe.

O tio Zebra olhou a minha mãe e sorriram ambos, tão bons pais tinham sido que a Diamantina nem se lembrava que era órfã.

Digo-te o que fazemos, desbastou o tio Zebra a patinha traseira do animal, vamos todos na carroça até Castelo Branco e perguntamos. Se ainda por lá pára, se tem saúde, se alguma família o adaptou.

O tio Zebra sempre achou que se devia dizer adaptar uma criança, mesmo quando eu, já cheio de leis, lhe expliquei o sentido da palavra adopção. Pois, filho. Uma coisa é a lei, outra é a gente a falar e acredita que se a criança não se adaptar à família e a família à criança, não há lei que lhes valha.

A minha mãe não quis ir, estava calor, podíamos demorar, na sua ideia Castelo Branco era muito longe e quem daria de comer à criação e de beber ao plantio.

Assou-nos duas galinhas, juntou pão cozido em casa, fruta, uma tijela de marmelada que estava a dar as últimas, mas já os frutos começavam a arredondar no marmeleiro, vá de gastar o resto que qualquer dia há mais.

E lá fomos pela fresquinha, aquela alegria do passeio na manhã clara, o conforto da cesta do farnel arrumada aos meus pés, a Diamantina à frente, o tio Zebra com as rédeas descansadas, a mula Queijada guisalhando e a passo.

Esta mula, que o tio Zebra já comprou baptizada, tinha fama de ser perdida por queijadas de Évora. E proveito também, pois de cada vez que no seu negócio de mantas ele se deslocava à cidade branca, trazia meia dúzia de queijadas: uma para cada um de nós e duas para a mula que depois de as comer ficava a cheirar as mãos do dono, como a dizer-lhe que aquilo nem para a cova de um dente.

Lá seguimos estrada adiante, vimos acordar os pássaros e saírem os primeiros rebanhos, Niza, Vila Velha de Ródão, o sol já forte e de repente a Diamantina, Vira-se aqui à direita para Perães e depois é logo ali, num lugar chamado Canas Velhas. E tu como te lembras, se nunca mais aqui passaste? Há memórias que são na cabeça e outras que são no coração, disse ela.

Então fomos ao lugar da infância da Diamantina perguntar por seu irmão Sebastião, haveria algum primo ou familiar da mãe, vizinha ou comadre que pudesse dar notícias.

Havia.

Uma tia avó que tinha ido ela própria levar o menino à Misericórdia, Vejam como a gente aqui vive, há cinco anos não era melhor e um dia que o fomos a visitar lá nos disseram que tinha ido a adaptar para o Porto, o nome da família era segredo, mas o menino estava bem, gente rica, não lhe iam faltar com nada.

Jantar, fomos à tasca do Belmiro, era mais a cozinha de uma casa pobre, mas comeu-se uma perna de borrego guisada com batatas, Café não há mas se quiserem dormir, para a menina não, mas para os senhores tenho um quarto, agora no Verão aquece um bocado que é por cima da vaca.

A Diamantina dormiu com a tia avó, que não tinha dentes mas era toda risonha, só que não se percebia patavina do que dizia, uma dificuldade para nos contar a história do Sebastião, nós dormimos no quartinho do Belmiro, toda a noite rabiei com os percevejos, o tio Zebra só se ria, É bom que aprendas este lado da vida, rapaz, para que um dia saibas apreciar a metade de lá.

Foi na volta, a comer a galinha à sombra de um bonito carvalho, que o tio Zebra nos contou a história da Zebra milagrosa.

Uma vez em África andava eu no mato, quando vejo uma zebra maluca às cabeçadas às árvores e afligi-me todo porque o animal não era dali e ia espatifar-se fora do seu horizonte.

Alto, bicho bonito! Vem ao pé de mim que te levo para a tua savana, nem que nessa caminhada demore o resto da minha vida. Olhou-me com olhos tão meigos que vi logo que me tinha entendido, os animais entendem as palavras e as intenções por detrás delas, caminhou ao meu lado como burro doméstico, era uma fêmea, ao fim de três horas ajoelhou para que eu montasse. E assim andámos dois dias, dorme aqui, avança acolá, cheirávamos a água do rio mas não alcançávamos de lá chegar, ao terceiro dia, mais mortos que vivos, avistámos a margem e bebemos.

Do outro lado era a savana, a zebra havia de atravessar a nado, eu voltaria para trás, mas não sei porquê deu-me um nó na garganta e à Zebra também, que me rodeava, roçava a cabeça no meu peito e não partia.

Fui à caça de alguma coisa para comer, depenei o meu pássaro, fiz uma fogueira para assá-lo, pensei, Agora vai fugir com medo do lume, mas não, deitou-se ao meu lado como se esperasse alguém ou alguma coisa. Porque já sabia que me escutava falei-lhe de manso, Zebra minha amada, a tua vida não é deste lado do rio, tens que ir-te à procura dos teus, ninguém vive bem sozinho e uma zebra muito menos, tens a tua manada, todas às riscas bonitas como tu, pretas e brancas, a explicar aos homens que preto e branco se misturam na maior beleza, eu sei que és minha amiga e que me estás agradecida, mas chegou a hora de dizermos adeus. Correu um pouco pela margem, experimentou a água. Agora é que vai, qual quê, eu estava deitado com as mãos debaixo da nuca, voltou para trás, deitou-se, pousou a cabeça no meu peito e adormeceu.

Era um peso enorme, mas não quis enxotá-la, havia de parecer-lhe ingratidão, lá adormeci e à medida que dormia o peso fez-se mais leve e no meio da noite acordei de repente e tinha uma mulher nos meus braços e uma pele de zebra a cobrir-nos aos dois. Ela era negra, linda, macia e cheirosa, apertou contra o meu o seu corpo nu e ali nos amámos e nunca, nos dias da minha vida, amei nenhuma que se lhe comparasse.

Um ano inteiro vivemos juntos à beira do rio, nunca lhe pedi explicações porque o mistério é o mistério, da pele costurou o colete que nunca mais larguei, ensinou-me tudo sobre o amor, a terra, a floresta, a savana e o rio, ensinou-me, na verdade, tudo quanto sei e a paixão que tinha para viver, vivi-a toda naquele ano, naquela terra quente, à beira daquele rio.

Uma madrugada, que recordo como a mais triste de toda a minha vida, não senti a sua cabeça na cova do meu ombro, nem a sua coxa sobre a minha coxa, nem a sua mão pousada no meu peito. Abri os olhos sobressaltado, saí da cabana, chamei.

Mas apenas vi do outro lado do rio, uma zebra que se afastava na luz quieta da primeira manhã.

 

Nunca tinha visto chorar o tio Zebra. Mas ali, debaixo daquele carvalho, com uma perna de galinha na mão, vi-lhe correr duas grandes lágrimas que ele limpou desajeitado num grande lenço cor-de-tijolo.

Não tentámos esclarecer este enorme mistério. Antes nos vergámos perante o inexplicável e perante aquelas duas lágrimas, comoventes no rosto de um homem curtido pela vida.

Havíamos de voltar a ver-lhe os olhos marejados quando, três anos mais tarde, a Diamantina lhe ofereceu o seu primeiro pássaro de seda.

Quando Simão Proença estava a ser concebido, Deus chamou um dos seus colaboradores e disse-lhe:

- Põe umas asas naquela criatura, que vai precisar delas para pequenos voos.

O executivo, que era novo no cargo e estava pouco familiarizado com a linguagem metafórica de Deus, pespegou-lhe dois rudimentos de osso na sétima cervical, que toda a vida causaram ao pobre Simão incómodos de vária ordem: dores de cabeça, vertigens e até por vezes, já que a palavra de Deus é irreversível, alguns vislumbres da quarta dimensão.

Foi dessa vez que a dona Joana sentiu aquela impressãozinha, nunca saberemos se estimulada pelo Bento Proença, se pelo dedo inefável do anjo principiante.

Na primeira infância, no colo da criada contratada para o embalar, o Simãozinho ficava tão tonto, que em vez de adormecer, desmaiava. Na escola não podia dar cambalhotas, sem ficar estatelado a ver o tecto do ginásio a andar à roda.

Quando um dia, já calmeirão, se queixou ao pai que os saltos de cavalo lhe causavam dores insuportáveis na nuca, levou um caldo que o fez estar durante duas horas a ver estrelas de todas as cores.

Na sua primeira ida às meninas caiu da cama abaixo com um virar de pescoço mais violento que o deixou completamente à nora, a ver a janela do quarto a sair pela porta e as flores da alcatifa a passar pelo tecto. Aí aprendeu a ser moderado nos seus propósitos libidinosos, muito moderado mesmo, o trivial bem feitinho e olha lá.

Dona Joaninha, o Simãozinho está outra vez com a enxaqueca. Ai, Tiana! Não digas nada ao senhor doutor, se não leva-o para o campo e obriga-o a pegar um garraio de caras, como da outra vez, que até pensávamos que lhe tinha dado a meningite! O menino havia de ir ao médico, dona Joaninha! E tu não vês o que diz o senhor doutor? Que sendo ele médico de bestas, também pode tratar a besta do filho, que Deus lhe perdoe. Um menino tão inteligente, que se não fossem as tonturas não havia quem lhe chegasse aos calcanhares! E vê tu como ele fez bem o sétimo ano apesar das dores de cabeça, só com um chumbozito por causa daquela embirração do professor de matemática. Quer dizer que já não pode ir para veterinário como o pai? Poder, pode, mas acho que ele não quer. Tu vês como ele é artista: gosta de música, livros, às vezes até poesia, chama-lhe ele moderna, que são assim coisas curtinhas que nem rimam nem falam de nada a que se possa pôr feitio.

Foram dar com Simão sentado no quarto, deitado era pior, não havia almofada que lhe desse descanso, torce daqui achata dali, Ai mãe, alguma coisa eu tenho dentro desta cabeça, vai-se a ver é algum tumor nos miolos, Credo, cruzes meu filho, não diga isso, nem a brincar! Não me posso queixar porque o meu pai chama-me logo mariquinhas pé-de-salsa, vou ter que sofrer o resto da minha vida, a mãe vai ver. Já tomaste a aspirina, Já, não me fez nada ou ainda não tem tempo, não sei.

Mãe, se telefonar a Lurdinha Abrantes diga que eu saí, não lhe conte do meu problema, isto só me dá às vezes e ela não precisa de saber. Ah! Eu bem me parecia que a Lurdinha estava a gostar de si, oxalá o seu pai não seja contra, é uma menina de tão boa família, mas aquilo o Bento quando lhe dá para embirrar...

Deu.

O Simão andou a namorar a Lurdinha às escondidas, um pesadelo atravessado de excitação, o pai Bento a perguntar-lhe à mesa, O senhorito acha-se capaz de sustentar uma família? O senhorito tem emprego? O senhorito pensa que as filhas dos meus amigos são para o seu dente de leite? O senhorito sabe pegar numa enxada, num serrote, num tractor? O senhorito está à espera que eu morra para me tocar na fazenda? O senhorito já tirou o seu curso? O senhorito já é doutor ou engenheiro?

Simão tinha dezoito anos, estatura média, tendência para engordar, as feições regulares da mãe, o beiço guloso do pai e aquele projecto de asa que lhe dava cabo da existência. Entre outras coisas, tirava-lhe iniciativa e determinação: No final das férias grandes já tinha deixado cair a Lurdinha, com um tímido, Se quiseres esperar que eu tire um curso... A Lurdinha não quis esperar. Trocou aquele namorado pouco atrevido por um cavaleiro tauromáquico filho de pai rico, que volvidos anos se retirou com um balúrdio no banco e uma cornada na coxa.

Tiana, não sabes a sorte que tens em teres ficado solteira! Já viste a minha sina, o senhor doutor cada vez mais exigente com a idade, o Simãozinho com as tonturas e a matemática, pai e filho sempre às turras e eu no meio, quem me mandou sair de Flor-da-Rosa de casa dos meus pais, não éramos tão ricos, é verdade, mas eu sou filha única e não me faltava do bom e do melhor.

Vocês é que têm sorte, é só fazer o que lhes mandam, cama mesa e roupa lavada e ainda o ordenado ao fim do mês, gorjetas das visitas e sem ter onde o gastar, não têm família vossa e é como se tivessem, mas sem arrelias nem preocupações.

Pois, dona Joaninha, cada qual tem a sina que tem e o melhor é dar graças a Deus por aquilo que lhe coube em sorte, porque se a gente se vai pôr a pensar no destino dos outros... A dona Joaninha não disse se sempre quer os coelhos em vinha dalhos para amanhã ao almoço, agora no tempo da caça temos de ir variando, quando não às tantas sabe tudo à mesma coisa.

Pode ser, até nisso tens sorte, vais sempre cozinhando o que te apetece e já te previno que este mês não podes ir à terra, porque vamos ter hóspedes ainda não sei durante quantos dias.

Dona Joaninha, a minha sobrinha teve um bebé, uma menina, vai ser Ana Custódia que eu sou madrinha, agora ia só vê-la, eram dois dias, até o senhor doutor disse que sim.

Nem penses. Tu és Ana Custódia? Imagina! Há quantos anos estás cá em casa? Vai fazer vinte e dois... Vê lá tu, nem sabia o teu nome.

Está?... Imagine, Teresinha, o que isto vai ser. O Simão aqui um ano inteiro desocupado, só com a matemática, eu com duas criadas novinhas em casa, agora que ele acabou com a Lurdinha...

Acabou. O Bento tanto lhe deu cabo da cabeça que ele teve de acabar. Também não percebo o que é que o Bento quer. A Lurdinha é rica, bonita, de boa família, andou nas freiras, sabe tudo de casa... mas não. O Bento acha que ele não tem idade nem cabeça para compromissos.

E depois teimou que não o deixa ir ao médico. O pequeno sempre cheio de dores de cabeça, não acho normal, eu bem o atafulho de aspirina, melhora mas não se cura.

Ai Teresinha, pela sua saúde, venha tomar chá comigo, estou com uma neura horrível, só de pensar que o Simão possa sair ao pai e me desate para aí a apalpar as raparigas. A menina não sabe a sorte que tem em não ter filhos.

O quê? Adoptar? A menina está louca! Sabe-se lá quem são as crianças, vai arranjar um cabo de trabalhos, só para ter a quem deixar a fortuna não vale a pena. Olhe, deixe ao Simãozinho que ele é seu afilhado! Não lhe vá acontecer como a uma de Évora, que deixou a fortuna a uma adoptada e depois ela foi para freira e levou tudo para o convento...

Adoptar é péssimo. Têm pais alcoólicos e assim, depois eles herdam essas coisas e só dão desgostos. Venha mas é tomar chá, que a Tiana fez queques de manteiga e bolo de passas daquele que a menina gosta. Leva canela, sim. Acho que sim, fica assim cor de... sei lá, são truques, pergunte-lhe a ela.

Foi nesse ano de matemática e tempos livres, que o Simão Proença, um dia, tocou o cavalo para os lados da Pedra Moura. Caiu uma chuva cerrada, às quatro da tarde era noite e ele bateu-nos à porta a pedir agasalho e uma toalha para esfregar o animal, explicou que se o cavalo apanhasse pneumonia o pai lhe dava um tiro, Ao cavalo? Não, a mim...

Eu tinha oito anos, estava a fazer os deveres na mesa da cozinha e tomando aquilo à letra senti-me feliz por não ter pai.

Tinha-me intrigado a minha mãe, sempre tão fechada aos estranhos, recebê-lo com alvoroço, Entre Simãozinho, está todo molhado, capaz de se constipar! Foi buscar uma toalha de estopa a cheirar a maçãs, tão passada a ferro que parecia de pau, Enxugue-me essa cabeça, não lhe dê a tintura, enquanto o tio Zebra levava o cavalo para a cavalariça da Queijada, a dar-lhe um cobertor e um molho de palha.

Eu conheço-a, não conheço? perguntou o Simão à minha mãe. O menino decerto não se lembra, fui criada de quartos à da sua mãezinha, mas isto já vai para nove anos, estava o menino no colégio e só o via nas férias.

O Simão sentou-se na mesa à minha frente, a minha mãe arredou-me os livros, pousou duas canecas de leite acabado de ferver, cheio de espuma e olhos de gordura. Trouxe pão centeio às fatias, queijo de meia cura, uma tigela de marmelada, E agora é merendar, que a barriga quente espanta o resfriado.

Obrigado, ti... como é o seu nome? Margarida. Obrigado Ti Margarida. Há que tempos que não comia um lanche tão saboroso, este senhor que me tratou do cavalo é seu marido? Não senhor, menino. É meu tio. É o tio Zebra, há-de ter ouvido falar.

Tio Zebra, conheço, claro. Só que não lhe vi o colete. Contam muitas histórias do senhor, sabia?

O tio Zebra, fazendo jus à alcunha, vestiu calmamente o colete que estava dentro da lareira pendurado numa cavilha, sentou-se à mesa, tirou do bolso a navalha, cortou uma fatia de queijo e disse:

- Tio Zebra para o servir, senhor Simão Proença. Tio Zebra vendedor de mantas, contador de histórias e aprendiz da vida. E se também de mim contam histórias, isso é sinal que a minha existência não tem sido mirrada de alma, nem minguada de casos.

A minha mãe riu, talvez pensasse que aquela gente fina não entendia dessas coisas, mas via-se na cara dela que estava consolada de servir a merenda àquele visitante inesperado.

O Simão falou comigo, perguntou-me da escola, leu a redacção que era a vaca, o tio Zebra levantou-se e deixou cair o lenço à minha mãe com a festa que lhe fez na cabeça. A minha mãe ficou ali um pedaço a sorrir, sabe Deus o que estaria pensando.

Tudo isto aconteceu um ano antes da Diamantina nos chegar embrulhada em pobreza, durante esse ano o Simão apareceu várias vezes, merendava, dizia Que bem que se está nesta casa, ti Margarida, ajudava-me nos deveres, deixava-me montar no cavalo dele que se chamava Abú Segundo, um dia de Outono despediu-se e durante anos não voltei a vê-lo. Devo mesmo confessar que com a entrada da Diamantina na minha vida, acabei por esquecê-lo de vez.

E como uma flor a desabrochar na madrugada, o lençol das maravilhas (mais tarde chamado prosaicamente das amostras) foi desdobrado pela Diamantina sobre a mesa da cozinha, aliviada de louças e frutos da terra e ela disse, Acabei.

Nem um espacinho ficara por bordar. Tinha bainha em toda a volta, ora ajour ora recorte, de dez em dez centímetros mudava o desenho, havia para todos os gostos, como se provaria quando começaram a chover as encomendas e a Diamantina teve de arranjar três aprendizas das nove às cinco.

Tio Zebra, quero pedir-lhe um favor. Quando fosse a Portalegre se me trazia umas luvas, Luvas? espantámo-nos todos. Luvas, daquelas que usam as criadas dos filmes para servir à mesa, lá em casa da dona Joaninha também púnhamos quando a senhora nos achava as mãos encardidas das águas do balde, dos pós de arear e dos esfregões da loiça, disse a minha mãe. São brancas e têm um botãozinho no pulso.

É isso mesmo, tio Zebra. E onde é que vais de luvas, posso saber? Foi uma coisa que eu pensei, disse a Diamantina. Passava creme Nívea à noite e dormia com elas, para não ter peles que me peguem nos fios da seda, que a seguir quero bordar uma colcha.

Uma colcha, Tininha? Não serão cavalarias altas demais para começar?

Não sei, tia. Mas tenho sonhado com uma colcha que vai levar ao meio uma ave do paraíso, um grande pássaro de seda com as asas abertas.

Acho melhor vires comigo a Portalegre, disse o tio Zebra. Se vais comprar a seda da colcha, as linhas, as luvas e sei lá que mais, mais vale que seja tudo à tua vontade.

Deus lhe pague, tio Zebra. Eu sei que é muita despesa. Mas bordo duas colchas e vendo-as, tão certo como eu me chamar Diamantina.

Ai agora já são duas?

Vou saber preços de colchas parecidas com as que estou a pensar. Num instante pago tudo e ainda vai sobrar para os linhos das toalhas, panos de lençol, moirés e damascos como vi naquela revista que o tio Zebra me trouxe e tafetá branco porque vou bordar as colchas de todas as noivas das redondezas.

Parecia iluminada a dizer estas coisas no meio da cozinha, com o clarão da lareira no rosto, as mãos erguidas bem ao alto, os olhos assustadamente negros.

- Não se aflijam. Eu sei que sou capaz.

Ninguém duvidou. O tio Zebra veio do quarto a desenrolar as economias de um lenço tabaqueiro, ficou à lareira a contar as notas e disse à Diamantina que ao outro dia pelas sete e meia teria a mula aparelhada.

Foi numa exaltação quase febril que a Diamantina bordou a primeira colcha. Era cor-de-pérola, coberta de flores inventadas, beges, amarelas, todas as cores do pêssego, da ameixa e da laranja e ao centro um deslumbrante pássaro cor-de-fogo que arrepiava de tão improvável.

Está pronta, disse ela ao fim de três meses.

Tinha emagrecido, quase não comia, fazia serão, levantava-se de madrugada para bordar. Está pronta e já sei como vai ser a próxima.

Ah, não! disse a minha mãe. Nem que eu tenha de te amarrar as mãos, agora vais descansar durante uma semana, comer, dormir, apanhar ar, não quero que faças três cobertas e depois morras tísica. Quero que faças trinta, trezentas, três mil, com muita saúde e a gente que veja.

Assim se fez. A minha mãe abriu a sala para visitas imaginárias e na parede do fundo, donde tirou uma gravura com dois cães de caça e outra de Nossa Senhora com os três pastorinhos, tudo a cores, pendurou, lado a lado, o lençol das amostras e a colcha do pássaro cor-de-fogo.

Hão-de vir freguesas, disse ela. E aqui escolherão.

A sala de visitas era uma grande divisão rectangular, com uma porta do lado curto e três janelas, sempre fechadas do lado comprido.

Toda a volta, encostadas à parede, cadeiras desirmanadas; eram onze e só duas condiziam com a mesa alta arrumada a meio da casa, coberta com um xaile de seda com franjas posto em bico, a minha mãe dizia o xaile chinês, não sei porquê, nem ela sabia quando lhe perguntei. Em cima estava uma peça grande de loiça com frutas em relevo e de cada lado uma rola de barro pintado, com a sua risquinha negra no pescoço e bico vermelhão.

Na parede grande, fronteira às janelas, estava a fotografia dos pais do tio Zebra, portanto meus bisavós, numa moldura negra trabalhada, pendurada por um cordão de seda cor-de-vinho e toda inclinada como se fosse cair-nos em cima. O avô Narciso e a avó Jacinta Rosa apareciam numa mancha oval, a castanho, ela muito bonita, com os olhos visivelmente claros, séria, o cabelo ondulado puxado atrás em trança ou carrapito, só se via uma travessa com pedrinhas de um dos lados da cabeça formosa. O meu bisavô tinha um bigodão negro, olhos escuros, um belo nariz direito, o cabelo esticado, o colarinho branco cujas pontas arrebitavam, o semblante solene, como convinha num retrato de casamento.

É uma bela fotografia que ainda hoje lá está na Pedra Moura, só lhe estiquei um pouco o cordão para que os meus bisavós, em vez de encararem a mesa e o chão, possam olhar a terra, igual à que toda a vida conheceram, isto nas raras vezes em que a minha mãe afasta os reposteiros de filet e abre as portadas de madeira, sempre cerradas para o sol não estragar.

Às vezes íamos dar com a Diamantina sentada na sala a olhar para a colcha, era um diálogo que não podíamos decifrar. Um dia confessou-me que não sabia como tinha bordado aquela beleza toda, tinham sido três meses numa espécie de êxtase ou estado de graça e agora precisava de olhá-la para se inspirar.

A segunda era toda branca, destinava-a a uma noiva, por isso tinha dois pássaros em vez de um, num simbolismo romântico que a fazia rir quando tentava explicá-lo. A terceira corria dos cinzas-pálidos aos azuis, a quarta dos beges aos castanhos.

Depois foram as toalhas, os lençóis, os napperons, os lenços de linho e de cambraia e finalmente, quando o tio Zebra lhe disse que o dinheiro acabara, decidiu-se a vender.

Ainda me lembro da mala onde levou à vila aqueles tesouros: uma mala grande com o couro todo gasto, do tempo das andanças do tio Zebra por África. Um dos fechos não fechava e foi preciso improvisar uma correia, três furos feitos com uma sovela e uma fivela de cinto. A minha mãe forrou a mala com uma colcha velha adamascada para que nada se sujasse e nenhum fio sofresse dano. Arredada a mesa, as frutas de loiça e as rolas, estenderam as colchas no chão, escrupulosamente esfregado, da sala de visitas, cobriram-nas com lençóis e assim as dobraram sem fazer vinco, ao contrário das toalhas, vincadas ao ferro de carvão, depois de passadas do avesso, bem molhadas, sobre uma toalha turca dobrada em duas, para sobressair a polpa do bordado.

Diamantina estava silenciosa, com o nervoso próprio dos dias mais importantes da vida. Escolheu uma blusa branca, uma saia preta travada, a estrear, atou os cabelos brilhantes com uma fita encarnada para que não pensassem que trajava luto, os sapatos é que estavam um bocadinho cambados e as meias de algodão, supostamente cor-de-pele, pareciam quase amarelas. Cheirava a creme Nívea e às flores da laranjeira, que ela colhia e macerava em álcool e depois punha com a ponta do dedo atrás das orelhas, no decote e no macio dos pulsos, como tinha visto fazer no cinema. Não quis comer. Bebeu um gole de café e subiu para a carroça muito séria, confirmou com os olhos a mala arrumada atrás, acenou um adeus apressado e muito direita ao lado do tio Zebra., desapareceu na curva do caminho.

A minha mãe olhou-me, adivinhou que eu tinha o coração apertado, deu-me um beijo no pescoço e disse, Vai tudo correr bem, não tarda que as senhoras da vila venham aí de rojo encomendar os bragais.

- E começo por onde, tio Zebra?

- Ora, por onde há-de ser. Pela casa da dona Joana Proença que é a mais rica da vila e logo há-de querer passar palavra às outras todas. Deixo-te lá e depois espero por ti no café. Não entres, que aquilo não é lugar para mulheres. Está descansada que eu vejo-te chegar.

Mas a dona Joaninha tinha ido à missa, era mês de Maria, o doutor Proença saíra da vila para o parto de uma vaca e a Tiana deu uma espreitadela ao conteúdo da mala e ficou de boca aberta.

- Ó rapariga, és tu que bordas isto?

- Sou sim senhora. Como é a sua graça?

A Diamantina sentiu que devia começar com um gesto desinteressado, pegou nos lencinhos de cambraia, Ora diga lá? Sou Ana Custódia, e ela escolheu um A entre botões de rosa, tudo branco e estendeu-o à Tiana. É para si, por ter sido a primeira pessoa, fora da família, que viu os meus bordados.

- Que lindo, que perfeição! Acho que o Simãozinho há-de gostar de ver, Tomásia, vai lá avisar que está aqui a Diamantina e que sou eu que digo que o senhor engenheiro tem que apreciar. Queres comer alguma coisa? Beber?

Só se fosse uma pinguinha de água, que tinha a boca seca e o coração tumba-tumba, como em dia de exame.

- Senhor engenheiro, está aqui a Diamantina com os bordados, a Tiana diz que é para o senhor engenheiro ver.

Engenheiro era uma força de expressão. Simão não acabara o curso, ele e o seu projecto de asa teriam preferido as literaturas ou as artes. Mas para o pai Proença só havia doutores e engenheiros, o resto era para mulheres e para maricas. Não queres veterinário como eu? Não queres médico?

A tua mãe gosta de médico, mas está bem. Engenheiro serve. Engenheiro de quê, pai? Engenheiro da porra que tu quiseres, mas nada de francês nem de piano nem de teatro nem de paneleirices de merda e ala para Lisboa que eu não duro sempre.

Agrónomo, está claro. Mas não chegou ao fim. Quando, ao cabo do terceiro ano feito em cinco, regressou a penates desistente, o pai Proença chamou a mulher e as criadas e declarou:

- A partir de hoje o Simão é engenheiro e não se fala mais nisso.

A Diamantina o quê?

Traz bordados, senhor engenheiro.

Ia dizer, a minha mãe foi à missa, mas viu recortada na porta aquela beleza de mulher, a blusa branca decotada, o cabelo preto, liso, tão arrumado atrás, os olhos imensos, a pele de seda, Pois a moça queira exibir, se for coisa que valha a pena não vai daqui sem se estrear.

Diamantina estendeu os linhos, as cambraias, os veludos, os moirées das colchas, os panos de lençol. Os recamados preciosos amontoavam-se nas costas do cadeirão sob as exclamações da Tomásia e da Tiana, Simão pasmava, raça de mulher, dedinhos espertos, peitinhos de rola e as mãozinhas!... De seda à vista e como dois e dois serem quatro, doces e frescas ao paladar.

A menina permita-me que beije a mão que bordou tão belas rosas!

Rosas, pensou ela. Os meus narcisos, os meus miosótis, as minhas calêndulas, os meus capítulos, as minhas centáureas, as minhas borboletas, os meus pássaros de seda. Para ele são tudo rosas.

Estendeu, risonha, a mão direita, a parte mais mimada de todo o seu corpo, Simão segurou-a e depois de a considerar um momento entre as suas, beijou-a com o seu beiço sôfrego, tocou-lhe a pele com a língua para confirmar a doçura, Diamantina estranhou mas achou engraçado aquele beijo tão gorducho e húmido, levou a mão atrás, limpou-a no rabo da saia.

Fico com tudo, disse Simão. Será o meu presente de anos para minha mãe dona Joana, o melhor que ela já teve em toda a sua vida.

Quando Diamantina chegou à porta do café a fazer sinal ao tio Zebra., ele levantou-se de um pulo, já tinha as moedas da bica sobre a mesa, perguntou ansioso, Compraram? Compraram. E onde vais agora? Para casa, que me ficaram com tudo. E foi só nesse momento que soltou a sua gargalhada dos dias felizes e disse, tio Zebra, posso pagar-lhe tudo e ainda sobra para um monte de colchas.

O tio Zebra nem queria acreditar. Em pouco mais de uma hora ela tinha vendido o produto de três anos de trabalho. Foram ao banco rebater o cheque, a Diamantina não parava de rir, fizeram compras, chegaram a casa carregados com tudo o que é bom, armou-se um almoço de todo o tamanho, o apetite era voraz, bebemos ao talento e arte daquela fada que nos saíra na rifa, a nossa vida vai mudar, disse ela e a minha mãe Margarida lembrou-se da Moura e daquelas palavras tão iguais no dia do meu nascimento e rezámos um Pai Nosso, uma Avé-Maria e três Glórias e a Diamantina soltou os cabelos e descalçou-se e disse, Obrigada a todos. A obra não é só minha. Sem a ajuda do tio Zebra, primeiro com as histórias que me meteram isto na cabeça, depois com o dinheiro que tornou tudo possível, sem o amor da tia Margarida, que me dispensou de a ajudar em casa e aturou as flores murchas e os bichos mortos a infestarem a casa, sem a amizade do Mário, que discutiu comigo e me comprou revistas e compêndios de botânica e me levou ao cinema para eu ver coisas, caramba, estou a fazer um discurso, foi do vinho, e também quero dizer que a colcha dos amarelos, aquela primeira, não a vendi nem a vendo porque é vossa, que a ganharam com muito merecimento. Para mim, os pássaros de seda são assim as asas de quem tem um dom. E aquele cor-de-fogo, com as asas abertas e olhos que vêem muito para lá do horizonte, é o tio Zebra, com o seu condão das histórias e dos impossíveis. Pronto, era só isso e agora já disse.

O tio Zebra riu, abanou com força a cabeça, deixou cair o pranto e num soluço que parecia feito de riso, vaticinou:

Ah, rapariga! feliz do homem que venha a merecer o teu amor. Com essa beleza toda e essa nuvem dentro que te faz flutuar um metro acima dos outros mortais, nem precisa ajoelhar para beijar-te os pés.

Em casa dos Proença foi um desassossego. Dona Joaninha primeiro, O menino enlouqueceu? Acha que temos pouca roupa de casa? Mas quando começou a analisar as obras de arte que o Simão lhe oferecia, foi abrindo progressivamente a boca até não lhe sair nenhum som, nunca tinha visto, aquilo era diferente de tudo, pareciam quadros assinados (isto não saiu da cabeça dela, foi uma achega da asa do Simão, que ela depois usaria quando mostrasse às amigas).

O Bento Proença, que fazia gala num desprezo de macho por pentelhices de mulher, interessou-se pouco, mas ainda disse, Que porra, Simão! Andas a gastar o teu dinheiro com paramentos de igreja e panos de altar, que é o que isto a mim me parece! Solteiro aos vinte e oito anos como os rabetas, ainda me acabas padreca. Onde é que já se viu um homem a comprar enxoval? Eu bem te digo, Joana, que criaste o teu filho para mariquinhas pé-de-salsa.

Mas dona Joana agradeceu deslumbrada o presente do filho e não descansou enquanto não mostrou às amigas os seus recém-adquiridos tesouros. Todas começavam por achar que tanta maravilha só podia ter vindo do estrangeiro, mas quem é a mulher, onde é que está, também quero, pode-se encomendar?

Não sei, dizia a Joana escudada na sua superioridade, Eu nem a vi, foi o Simão que a atendeu e sabe como são os homens, nem o cartão lhe pediu, ó Tiana!

É claro que a Tiana sabia quem era e quem não era, onde morava e como se chamava e a que família pertencia, mas limitou-se a dizer, a cachopa chama-se Diamantina e mora aqui a menos de uma légua, no lugar que chamam Pedra Moura.

E como é que ela faz? Encomenda fora e vende cá?, a minha Maria Carlota vai casar, eu quero pelo menos uma colcha igual à branca, com aqueles dois cisnes ou lá que pássaros são, se calhar também lençóis, umas toalhas de mesa, ai, sei lá, é tudo tão bonito que o difícil é escolher.

E começou a romaria. A minha mãe abriu a sala para visitas agora reais, que mal entravam levavam logo com o pássaro de fogo na alma, todas sem excepção o queriam comprar, muita gente até hoje o cobiçou, contou-me a minha mãe que ainda há dias lhe ofereceram uns milhares de contos pela colcha, já é uma relíquia, a minha mãe riu-se, Para que é que eu quero o dinheiro, a colcha não sai dali, é de muita estimação.

Foi aí que a Diamantina teve que contratar as três aprendizas, a Sebastiana, a Conceição e a Bia.

Não aceitava todas as encomendas, só as que considerava exequíveis a três meses de vista. As senhoras escolhiam pontos e motivos no lençol das amostras, mas quanto aos desenhos, Diamantina tinha de explicar-lhes que não fazia dois iguais, dependia da inspiração do momento, algumas deixavam tudo ao gosto dela, outras pediam pássaros, borboletas, flores, tudo o que viam no lençol, era preciso moderar-lhes o ímpeto, mas fosse como fosse o resultado final era sempre aniquilador, elas ficavam paralisadas de espanto e nunca ninguém disse, Não foi isto que eu encomendei.

Logo de princípio, quando começou a avalanche de encomendas, o tio Zebra aconselhou Diamantina a assinar os trabalhos. Foi assim que nasceu o célebre Dê, bordado a fio de ouro, que viria a ser marca mundialmente disputada, mil vezes copiada e outras tantas desmentida pelos peritos, que se especializaram na dinâmica da letra e no lançamento do ponto, na espessura do fio e na sapiência do remate, que a tornavam única como uma impressão digital.

Estes primeiros tempos não foram fáceis. A tranquilidade da Pedra Moura desapareceu com tanto motor de automóvel, tanto motorista a beber copos de água na cozinha, tanta senhora a pairar na sala de visitas, as brigas das aprendizas e o ladrar permanente dos cães.

Eu agora estudava no meu quarto, estava a acabar o Magistério Primário, tinha saudades da grande mesa da cozinha onde podia espalhar à vontade as minhas tralhas e onde a Diamantina costumava sentar-se a bordar, apenas interrompida por aquele gesto de agulha no ar, com os olhos visionários e a boca entreaberta, a contemplar sabe-se lá que segredo.

O atelier era no sótão, porque a Diamantina não queria que umas coscuvilhassem as encomendas das outras e também porque a minha mãe entendeu que não se podia virar do avesso o equilíbrio da nossa casa de que a cozinha, onde o fogo ardia na lareira, era o símbolo e coração.

Nos primeiros tempos, Diamantina perdia a cabeça com as aprendizas, nunca lhes achava as mãos bastante lavadas nem os pontos suficientemente leves, ralhava-lhes a toda a hora, arrancava-lhes o trabalho das mãos, deixava-as em lágrimas com ameaças de contar aos pais que eram preguiçosas e desajeitadas. Era a minha mãe que punha água na fervura sem contudo a desautorizar.

Uma noite, nas únicas horas só nossas que eram as do serão, a Diamantina, toda nervosa, declarou que ia despedir as raparigas, que só a faziam perder tempo em vez de a ajudarem. A minha mãe pediu-lhe paciência, Roma e Pavia não se fez num dia, as gaiatas aprendem e depois vão ser o teu descanso, tu já tens dito que elas se ajeitam, tudo leva o seu tempo, em apanhando a mão fazem-se boas bordadeiras, que para as ensinar e para o resto aí estás tu com a tua arte, que Deus te deu só a ti e não podes exigir a mais ninguém.

 

Era uma vez um melro falante, disse o tio Zebra. Falava com voz de homem e empoleirava-se no ramito mais alto da floresta para dali pregar aos outros passarinhos. Dizia-lhes para louvarem a Deus, para lhe agradecerem a terra, as árvores e o vento, as asas e o canto. Dizia-lhes que se mostrassem gratos por cada grão de trigo e cada manhã de sol, pelo calor do ninho e a frescura da fonte.

Mas um dia pareceu ao melro falante que os gorjeios dos seus iguais não eram bastante claros para louvar a Deus e pôs-se a ensinar-lhes a língua dos homens, que ele próprio recebera como um dom. Por mais que abrissem os biquitos para piar não lhes saía bê nem bá nem tê nem tá, mê nem mi, nem vê nem vi. O melro falante vá de lhes chamar nomes, de estúpidos para baixo levaram uma roda de insultos, até que Deus lhe tirou o pio e lhe disse, a arrogância destrói o talento e agora nem bê nem bá nem tê nem tá, mê nem mi, nem vê nem vi. E me louvarás com voz de melro e todos os pássaros do mundo igualmente e cada um com a sua.

O tio Zebra calou-se e a Diamantina ficou muito tempo quieta, a olhar o fogo. Depois, sem encarar ninguém, sorriu e disse:

Pois é, parece que esta confusão toda me baralhou um bocado a cabeça.

Bebeu água do pote e foi dormir.

Na sua estada em Lisboa para engenharias de ficção, Simão Proença tinha feito radiografar o seu pescoço e o médico, pai de um colega da faculdade, explicou-lhe que ele tinha uma costela cervical, isto é, uma hipótese de costela onde já não devia haver costela. Simão analisou a radiografia e viu que a sua coluna vertebral era uma espécie de bengaleiro, com duas carrapetas de osso onde se poderia pendurar um chapéu e um colete. E isto tem cura? Bom, cura, o que se diz cura... Podemos operar, serrar os ossos, mas é uma operação melindrosa, eu se fosse você evitava movimentos bruscos, exercícios violentos, equitação nem pensar, nem remo, nem ginástica sueca, ande a pé para não engordar e durma sem almofada e de barriga para cima. Colchão duro e colarinho mole.

O que lhe custava mais era deixar o cavalo. De vez em quando dava uma voltinha, doía-lhe a cabeça, percebia perfeitamente o que o médico lhe tinha querido dizer, nunca explicou aos pais que conhecia o segredo das célebres enxaquecas, mas a verdade é que começou a passar melhor e a queixar-se menos, era um assunto seu e mais valia aprender a viver com ele.

Andava a pé, no Verão gostava de sair da vila de manhã, ouvir os próprios passos no asfalto, depois meter por azinhagas bordejadas de ervas e de aromas, arranhar-se nas silvas por umas amoras pretas, tropeçar num muro de pedras soltas por um figo maduro com o seu tentador pingo de mel.

Desde o dia em que a Diamantina lhe vendeu os bordados, andava a resistir à tentação de encaminhar os passos para a Pedra Moura. Sabia pela Tiana que a rapariga era sobrinha da Margarida, portanto prima daquele gaiato enfezado que em tempos se empoleirava na sela do seu saudoso Abú Segundo.

Tinha um pretexto para visitá-los. Como está, ti Margarida, há que tempos... E o tio Zebra, é vivo? E o cachopo, há-de estar um homem! E esta linda menina quem seja? E ela havia de dizer, O Senhor conhece-me, vendi-lhe aqueles bordados todos para oferecer à sua mãezinha... E ele havia de responder, Bruto que eu sou, como é que pude esquecer essa pele de rosas e esses olhos de lume...

Que grande mentira. Não só não a tinha esquecido, mas cada dia pensava mais nela, lembrava-a com a memória do corpo onde se gravara o cheiro, a voz levemente rouca, a seda da pele, a curva da cintura, começou a desejar aquela mulher como nunca desejara nada na vida, queria ouvi-la rir, queria vê-la movimentar-se num ambiente diferente do do seu escritório, queria saber se aquilo era um equívoco, uma partida dos sentidos ou uma rasteira do destino.

Chegou numa manhã de domingo, que era o dia em que Diamantina não recebia ninguém. Estava eu sozinho em casa a atravessar a minha fase socialista, que incluía não acompanhar a minha família à missa, elas tinham ido, como era costume, na carroça com o tio Zebra à missa das nove e como Simão apareceu pela fresquinha, ficámos os dois à conversa. Partilhou o meu pequeno-almoço de leite e pão com queijo com visível satisfação e foi só quando eu disse Há café, a minha mãe fez café, que ele percebeu que eu era eu e pôs-se a rir, Mas então tu és o Márito? Pensei que eras algum parente dela, sei lá, alguém que lhe tratasse dos negócios.

A forma como ele disse Ela, sem termos mencionado nem uma vez o nome da Diamantina, Ela, assim como se não existisse outra mulher sobre a terra, foi para mim de mau agoiro. Olhe, Senhor Simão, Simão, Pois seja Simão, acho melhor ir andando porque a minha prima ao domingo não aceita encomendas e além disso sempre se demoram depois da missa à conversa com umas e outras enquanto o meu tio vai ao café.

Gostava de ver a tua mãe, disse ele com o maior descaramento, senhora que muito respeito e que sempre me recebeu tão bem.

Era uma chazada para o malcriado do Márito, pôs-se a perguntar pela tropa, se já tinha ido ou se estava para ir, lá lhe expliquei que me faltava um ano, E depois é como dois e dois serem quatro, que não tenho padrinhos como vocemecê.

Tens razão, fiquei livre, mas é porque tenho um defeito de nascença aqui no pescoço que me causa vertigens e dores na nuca, jamais pensei que o meu pai desse um passo para me livrar, mas a minha mãe tanto chorou e tanto suplicou que ele lá escreveu ao general, que andou com ele nas putas quando o meu pai era estudante em Lisboa.

Estávamos assim fala-que-fala quando guisalhou a Queijada e os três se apearam, eu de olhos postos na Diamantina a ver a reacção dela, ia jurar que corou, a minha mãe toda alvoroçada, Simãozinho, bons olhos o vejam! e o tio Zebra, Ora viva o senhor Simão Proença, seja bem-vindo a esta sua casa.

A Diamantina já se esgueirara para o sótão a tirar a mantilha, a compor o cabelo, aquele sempre era um cliente especial e voltou radiosa, com a golinha branca de renda dos domingos por fora da camisola cor-de-vinho, saia da mesma cor mas de quadrados e sapatos novos que não trocou.

Ficou calada a maior parte do tempo, mas eu vigiava-lhe as mãos e os olhos, que mantinha de pestanas baixas, só erguidas quando o Simão lhe dirigia a palavra. Tem bordado muita coisa linda? As pestanas levantaram devagar e os olhos pousaram nele como duas brasas, eu sempre à espera que o homem caísse da cadeira com o choque, e ela, Só bordo coisas lindas ou então não bordo, acho que não vale a pena perder tempo. Modesta é que ela não é! riu-se o Simão todo atrapalhado. E já tem muitas freguesas? Muitas, graças à senhora sua mãe que tem gabado bastante o meu trabalho. Bom, disse o Simão com uma doçura inesperada na voz, Se não fosse eu, a minha mãe nem conhecia, não é? Sim senhor, hei-de lembrar-me disso, arremessou-lhe a Diamantina, utilizando os olhos e a voz como armas. Estás a ser ingrata, Tininha, disse a minha mãe. Não estou, não, e o Simãozinho sabe muito bem que não estou. Com licença.

Primeiro não percebi esta resposta. Depois, com o tempo vim a pensar que nas sinuosas cabeças das mulheres há uma escala de valores, desfraldada no confronto com o macho. Como por exemplo, Digo-te coisas desagradáveis para despertar a tua agressividade, mas digno-me olhar-te como raramente olho para alguém. Deixo-te embasbacado e confuso e retiro-me. É mais que certo que vais voltar. Finjo-me ingrata, altiva e superior, para que saibas que não sou oferecida, nem deslumbrada, nem fácil.

Era um jogo sexual e eu, eterno parvo, não sabia.

A verdade é que o Simão voltou e voltou e voltou. Fez da visita dominical um hábito mais regular que a missa, já chegava disposto para o almoço, a Diamantina mantinha-o à distância com os seus silêncios e as suas garridices, o Simão já dizia graçolas, Ao que um homem se sujeita por causa de uns olhos negros, até que ao fim daquele não-ata-nem-desata, a minha mãe decidiu pôr na mesa a carta longamente guardada da sua vingança e disse assim:

- Simãozinho. Até um cego vê que o menino está perdidinho de amores pela Tininha. Não sei quais são as suas intenções e as dela muito menos, mas uma coisa é certa, a Tininha é uma menina muito especial. Pura como uma santa e bafejada pelo céu. Se a quer namorar, terá de se entender com ela, mas o fim desse namoro é só um, há-de vir o seu pai doutor Bento Proença pedir a mão dela ao tio Zebra e a mim, que lhe fazemos as vezes de pais. E daqui para a Igreja, de véu e flor de laranjeira. Com a Tininha, ou casamento ou nada.

A palavra casamento deixou o Simão aparvalhado, toda a vida ouvira o pai comentar o que fazia e o que acontecia com as raparigas das aldeias, corriam uns dinheiros, umas prendas baratas, uns anéis de pechisbeque e as famílias até ficavam agradecidas, havia muitos senhores casados e com filhos que mantinham amigas de toda a vida, não deixavam que lhes faltasse nada, era confusamente o que Simão pretendia da Diamantina, agora a minha mãe punha-lhe a faca ao peito, não se desmanchou, era preciso ganhar tempo, fez logo de conta que nunca pensara comer o pitéu fora do prato, Pois que dúvida, tia Margarida, assim a Tininha queira, mas ela trata-me tão mal que nunca ganhei coragem nem para lhe pedir namoro.

Foi para casa pensar, a Diamantina a vê-lo ir do janelico do sótão com um risinho malvado, tinha ouvido tudo da escada e sabia, de certeza certa, que o Simão ia voltar.

Gostava daquele homem de coração manso, que se sentia em nossa casa melhor que na sua, que comia as nossas migas com indisfarçável prazer, que aos vinte e nove anos morria de medo do pai, que volta e meia quando menos se esperava se saía com um poema, e que mostrava, no beiço guloso e nas mãos de mulher, uma sensualidade que a tocava. Amor? Diamantina nem suspeitava o que isso era, não tinha termo de comparação, contentava-se com aquele arremedo, alguma atracção física e muita simpatia.

Também não era indiferente à sua determinação feroz a posição social do Simão. Esperava muito da vida, sentia-se com direito ao quinhão que o seu talento e a sua beleza lhe alcançariam, tinha visto nos filmes americanos como do dia para a noite uma mendiga se faz princesa e pensava que poderia compor a vida com a mesma mestria com que bordava as suas colchas.

Nos cinco quilómetros de regresso a casa em passo lento, Simão não conseguiu vislumbrar de que maneira havia de pôr aos pais esta situação inconcebível, Estou apaixonado pela rapariga dos bordados, que é sobrinha de uma antiga criada cá de casa, mas só ma consentem em frente ao altar, com a bênção do senhor padre Francisco. Achou que o melhor era esquecê-la, arrancar aquela mulher do coração e da pele.

Vou fazer o comerzinho aos velhotes, disse a minha mãe naquele primeiro domingo em que o Simão não apareceu. A Diamantina estava com um humor de cão, tinha posto a mesa a atirar com os talheres e nem a belíssima encomenda recebida na véspera lhe amaciava a catadura.

Mandava a tradição daquelas terras que as noivas tivessem sete colchas na cama nupcial e começava a ser considerado o cúmulo do chique pelas famílias ricas, encomendar todas sete à Diamantina. Poder mostrar às amigas o leito festivo, desfolhando aos pés da cama, sete Dês bordados a ouro, era para qualquer noiva uma marca de estilo e competência económica.

Mal as meninas faziam quinze anos, as mães iam encomendar as colchas, escolhê-las com minúcia e originalidade, ninguém queria nada igual a ninguém, a dificuldade era encontrar um crescendo de sete graus de beleza, riqueza e perfeição onde tudo era belo, rico e perfeito.

Naquele sábado tinham chegado três encomendas, vinte e uma colchas, com entrega em data indeterminada, as noivas ainda teriam que crescer, aparecer e arranjar marido.

Isto punha um travão à romaria de freguesas, Diamantina tinha trabalho para os três anos mais próximos, se arranjasse mais ajudantes e espevitasse as que já tinha, caso contrário nem cinco anos chegavam.

Vou dar o comerzinho aos velhotes. Queres vir, Tininha? A ti Maria não tem estado nada bem.

Entrados nos noventa, os nossos amigos da horta eram virtualmente os nossos avós. Tinham-se mantido rijos, só recentemente a ti Maria caíra à cama, queixava-se de frio e nada mais. A minha mãe ia todos os dias cozinhar-lhes o caldo, pouco mais comiam, encontrava o tio Zé ainda a bulir na horta, Vê se me alevantas a mulher que está feita mula metida na cama, aquilo é ranço, a morte quer é apanhar-nos deitados.

E assim foi. Passados dias a ti Maria finou-se devagarinho, Ai que frio, que frio, apesar de estar um dia quente, ficou-se como um passarinho e ao outro dia levámo-la a enterrar.

O tio Zé acompanhou-a a pé até ao cemitério sem uma palavra, lágrimas não tinha, voltou para casa na carroça do tio Zebra, E agora? afligia-se a minha mãe, O que vai ser dele, mais de setenta anos ao pé dela e agora sozinho, a gente passa cá o tempo que puder, mas que monta, ele sem ela não é triste nada, o tio Zé sentou-se na lareira apagada, com a sua camisa branca de ver a Deus, o colete preto, o cajado na mão e por fim falou, Margarida, diz à Maria que não esteja feita mula metida na cama, a morte quer é apanhar-nos deitados. Resmungou toda a noite até de madrugada e por fim disse que frio, ai que frio, e a morte, compassiva, nem esperou que ele se deitasse para levá-lo alvorada adiante, José e Maria finalmente ao encontro do seu filho Jesus.

No outro domingo Simão não aguentou. Veio tomar o pequeno-almoço à cozinha, muito festejado pela Tiana e pôs-se a falar com ela:

Esta Diamantina dos bordados deu-me a volta à cabeça. O que é que tu achas que acontecia se eu casasse com ela?

Haviam de ter uns filhos bem bonitos, disse a Tiana. A sua mãezinha já sabe que o menino está lá caído todos os domingos. O seu pai farta-se de praguejar por não o ver à mesa e ela desculpa-o com os seus amigos, a sua sorte é que ainda não lhe deu para confirmar. Outro dia disse Ali anda mulher e riu-se todo satisfeito, deve pensar que é amásia que o menino arranjou aí pelas redondezas.

Pois o problema é esse mesmo, Tiana. Não tenho amásia nenhuma e aquela só cá vem parar de aliança no dedo.

A Tiana riu com gosto.

Faz a Margarida muito bem. E olhe o menino que não ia nada mal servido com a Tininha.

A família é gente muito séria, ela ganha o dinheiro que quer e é uma lindeza de criatura. Só é pena o menino não arranjar um que-fazer, ela trabalha tanto, não há-de querer um marido que só dá lustro aos sofás e às cadeiras do café.

E onde queres tu que eu trabalhe se o meu canudo é de papelão?

Ora aonde? Na Câmara. Desde que morreu o velho Barriga ficaram lá com uma vaga. Habilite-se. Tratam-no por engenheiro, não faz nada e toda a gente o respeita. E o ordenado pode dá-lo aos pobres que não lhe faz falta nenhuma.

Simão acabou de engolir o café com leite e as torradas a pensar no pão cozido pela Margarida e nos pezinhos de coentrada que volta e meia ela fazia aos domingos, imaginou-se a sair da missa das onze com a Diamantina pelo braço e o povo a murmurar, A mulher do engenheiro da Câmara é um pedaço de mulher como não há outro, já estava a sonhar acordado, Pois é, mas tem dono! e a Tiana O quê? Vou vê-la agora mesmo, não é tarde nem é cedo, vou-lhe pedir namoro e enquanto o pau vai e vem hei-de arranjar maneira de convencer o meu pai.

Só por cima do meu cadáver! gritou Bento Proença quando o filho o informou das suas intenções.

Tinha vencido as duas primeiras dificuldades. O emprego na Câmara foi canja. O presidente, doutor Albano, lá para casa o Albaninho, abraçou o Simão com toda a força, Bravo, rapaz! Vai ser um prazer ter a trabalhar comigo o filho do meu maior amigo. Ficas isento de horário que eu sei que não tens muita saúde e é só assinar aí um papel a garantir que não és comunista, ou és?

Respondeu a si próprio com uma tremenda gargalhada, Logo já dou os parabéns ao teu pai, assim é que é, confesso que não esperava, mas ouve lá! Estás a pensar casar ou quê? Shiu. Não digas! É assunto teu. E não é com este ordenado que vais sustentar uma família, ou vais? mais mérito tens, trabalhar por amor à camisola, neste caso à tua terra, tem outro valor e outra competência.

Simão saiu de lá com tonturas por causa dos abraços, dificultados pelo barrigão do Albaninho, mas com um emprego para poder exibir à Diamantina: Sou engenheiro da Câmara (o que será que isto quer dizer), sou herdado do meu avô paterno que me acautelou um pé-de-meia, tenho cama, mesa e roupa lavada em casa do meu pai, tenho um Renault 16 a estrear e uma paixão por ti que me faz sentir capaz de fazer frente ao demónio quanto mais ao doutor Bento Proença!

A Diamantina ficou varada com esta declaração, feita diante de todos nós, sobre uma pratada de ensopado de borrego, as fatias de pão encharcadas no molho, as batatinhas em quartos, o borrego a desfazer-se de tenro, o colorau na conta, a hortelã a perfumar.

Não estou a pensar casar tão cedo, disse ela, toda comichosa, a pousar na borda do prato um ossinho que lhe trilhara a língua. Tenho só dezanove anos e não vou namorar um homem que tem medo de participar ao pai que arranjou noiva.

Eu não pude deixar de sorrir, mas ela atacou logo, Estás a rir de quê? Isto é assunto sério. O senhor engenheiro Simão Proença anda aí há um ano a fazer-me olhinhos, a sentar-se à nossa mesa, a saborear os petiscos da tia Margarida, vai-se a ver, precisa de licença do pai para namorar comigo. Mas fazemos já aqui um acordo, diante de testemunhas: leva-me a jantar a casa dos seus pais e nesse mesmo dia pode chamar-me sua noiva.

Só por cima do meu cadáver, disse o doutor Bento Proença.

Foi sobre a decepção da Diamantina por ter arranjado um pretendente tão pusilânime, que terminei o meu curso de Magistério Primário e fui chamado para a recruta.

Primeiro em Santarém a conhecer os limites da humilhação e do cansaço, depois em Angola a passar as fronteiras da aberração e do sofrimento.

E sempre, através do desespero e do caos, um terrível sentimento de perda, de ciúme e de saudade.

Nos dois piores anos da minha vida reflecti bastante sobre a cobardia da minha atitude em relação à Diamantina, perguntei-me mil vezes por que não mexera um dedo para lutar pelo meu amor, ou por que não tivera nunca a força de procurar outra mulher.

Nas cartas que recebia de casa nunca ninguém mencionou o nome de Simão Proença ou de qualquer outro. Diamantina mandava-me páginas cheias de ternura e de uma amizade quente que eu gostava de confundir com amor. Aos poucos, para conseguir suportar os piores dias, comecei a regar no meu coração a frágil ervinha da esperança, Talvez quando eu voltar, a Diamantina me aceite e como nos filmes de que ela gosta, seremos felizes para sempre.

Simão, meu filho, isto não é sistema, não come nada à mesa e depois anda a devorar biscoitos de areia o dia inteiro, que maluqueira a sua de se apaixonar por uma sopeira. Com tantas meninas como deve ser, a Rosarinho Seguro, aqui a dois passos, perdidinha por si, a Clara, a Nini Fazendeiro, em Portalegre nem se fala, tanta gente bem, mas quando se trata de disparate o menino é o rei. Como é que o seu pai não há-de andar desgostoso! Já viu o que era aquela gente sentada à nossa mesa? O tio, que parece um cigano, com aquele colete nojento que não tira nem no Verão, a tia dela que foi nossa criada, de carrapito e caxiné com aquele filho com ar de comunista, de barba, que horror! e fatinho castanho.

Eles não são nada assim, mãe, isso é a sua má vontade, mas o que é que interessa, eu caso-me é com ela não é com a família e não me vai dizer que a acha feia e ordinária, ou vai?

Feia não é. Realmente é bastante bonita. E habilidosa, sem dúvida, mas não me venha dizer que a acha fina, chique, capaz de ser apresentada aos nossos amigos! Você agora é engenheiro da Câmara, tem que aparecer, que conviver, precisa de uma mulher elegante que o ajude socialmente e não de uma bordadeira, de dedos picados e linhas na camisola.

Ai, mãe, que maçada esses preconceitos, não se poder gostar de quem se gosta e viver com quem se escolheu!

Ora, Simão. Ponha-a por conta, já que a mulherzinha lhe faz tanta falta. Ponha-a por conta e esconda-a bem escondida lá na Pedra Moura ou no seu monte da Atalaia, onde não há senão caseiros, cães e caganitas de ovelha.

A Tininha posta por conta? Bem se vê que a mãe não a conhece! É mais senhora que todas as Rosarinhos, as Claras e as Ninis, casadas por interesse e pegas dos maridos.

Agora chega! Cale essa boca malcriada antes que eu lhe dê um estalo, porque agora foi longe demais. Isto é que é uma cruz!

Olhe mãe, sabe que mais? Bolas para isto tudo! Fui eu arranjar uma bodega de um emprego para não ter o pai a perguntar-me à mesa O senhorito já tem modo de vida? e afinal de contas para quê? Continuo sozinho e chateado que nem um peru.

Sem ter sido brilhante, o desempenho de Simão Proença na Câmara Municipal foi devotado e correcto. Gostava mais do serviço do que queria admitir. Encarregou-se do pelouro da cultura, promoveu iniciativas, interessou-se pela história da vila, publicou monografias, conservou o museu. Engenheirar não engenheirou coisa nenhuma, nem podia. As penas do pescoço puxavam-no para as artes e as letras, pelas letras e as artes se quedou.

Estas tarefas ajudavam-no a disfarçar, mas não a esquecer, a paixão pela Diamantina. Aparecia um domingo por outro na Pedra Moura, só para a ver, espreitar o olhar dela, inteirar-se se haveria mouro na costa. Já lhe dizia abertamente, a coberto de um ruído de pratos ou de um chiar fritos, Estou louco por ti, mulher! Ela olhava-o por cima do ombro e perguntava impertinente, Já marcou o jantar em casa dos seus pais?

Tininha, não me mates! O meu pai é teimoso, responde-me a tudo Só por cima do meu cadáver, mate-me primeiro e case depois, mas não é nada contra ti, acredita, são coisas do feitio dele. Se tu quisesses, levava-te para o meu monte da Atalaia, tens lá mais que espaço para fazer um bonito atelier, metes lá à vontade cinquenta mulheres a bordar, eu pago tudo, a caseira cozinha para elas e a ti ponho criadas fardadas para te servirem chá e queques de manteiga.

Falou, disse alguma coisa? Então se me dá licença vou adiantar uma coberta para o enxoval da Rosarinho Seguro, que parece que tem ideias de se casar com o engenheiro da Câmara. Até outro dia e passe bem.

Subiu a escada devagar, com um leve menear das ancas, a roer uma maçã, com o cabelo numa larga trança caída nas costas até ao laço do avental.

Recém-chegado de África, assisti muitas vezes a cenas destas, todo atado dentro de mim mesmo, a desculpar-me com os traumas de guerra para não tomar uma iniciativa qualquer, à espera que ela um dia corresse com ele de vez. Mas a Diamantina parecia comprazer-se nesta guerrilha de trazer por casa, gostava de lhe manter a chama acesa, de o atiçar. E na hora em que ele por fim, derrotado, se despedia, ela arranjava maneira de não lhe apertar sequer a mão, deixava-o ali a morrer de sede de um pequeno contacto, Desculpe, tenho a mão molhada ou Magoei um dedo, depois não posso bordar.

Aprendi a conhecê-lo melhor. Era uma boa alma, simples, cordeal mas fraco, tão fraco como eu, tão triste como eu e por vezes quase tão apaixonado como eu. Criou-se entre nós uma estranha empatia e por mais que quisesse, nunca consegui não gostar dele.

Pois então dizem-me que o senhorito voltou outra vez aos seus amores com a costureira. E que por uma vez na vida teve bom gosto. Não me há-de esquecer aquela faquitelas da Lurdinha, mais osso que carninha, mas agora não senhor: material do melhor, boa perna e olhos de cigana. Pois salte-lhe para cima que os estragos pago eu. Já andam para aí a dizer que o engenheiro da Câmara é paneleiro, não tem mulher, nem puta nem honrada, pois o senhorito vá em frente e mostre-a ao povo para calar essas bocas.

E se não tem tesão que chegue, é só avisar que eu vou lá dar uma ajudinha.

Engoliu o Napoleão fazendo rodar o balão na mão aberta, pousou-o na bandeja de prata, acendeu um charuto. Não quer? Mais fica.

Quero lá eu saber das bocas do povo, pai. Gosto de uma menina séria, que nem namoro me aceita sem um compromisso. Já lhe expliquei isto mil vezes, pai, o pai continua a tratá-la como se ela fosse uma pega de beira de estrada, sem respeito nenhum, nem pela virtude dela, nem pelos meus sentimentos.

Sentimento era o caralho e sérias são elas todas, mas é quando não se riem. Já lhe disse o que tinha a dizer: essa vagabunda na minha casa, só por cima do meu cadáver.

Abriu o Notícias de Portalegre e nem mais tuz nem muz, como diria o tio Zebra.

Que também disse:

Era uma vez uma pombinha branca que vivia muito belamente no seu pombal e calhou de andarem por além duas centieiras-macho a fazer pela vida, que vendo tão linda avejã de pena leve se encantaram com ela e se avezaram de pousar por ali. Ficavam a vê-la arredondar o papo e na hora do sol se pôr lhe traziam, piando, piando, granitos do seu centeio.

Ela nem tuz nem muz, tinha milho no pombal e água no bebedouro e os pombos de roda dela a abrir o leque, cuqueterrú, cuqueterrú.

Até que veio a seca, uma centieira morreu de amor e de sede, a outra foi tentar a vida noutros centeios e gabar as pombas de outros pombais.

E o milho se acabou nas tulhas e a água se secou nas fontes e os pombos, abalaram os mais afoitos, morreram de fome num mar de cagadelas os mais acomodados e a pomba branca foi à pergunta daqueles dois, a ver se os achava piando piando, mas nem granitos de centeio, nem pios de centieira, nem milho no pombal, nem água no bebedouro, nem caudas de leque cuqueterrú, cuqueterrú. A pombinha acabou num poleiro onde a assustavam as crianças, com um muro caiado em lugar de horizonte.

Desta vez enganou-se, tio Zebra. A minha centieira-macho há-de vir comer aqui, aqui, na palma da minha mão.

Nunca vi como esta rapariga para enfiar carapuças, disse ele, manhoso.

Está bem, abelha.

Saiu da escola um bando de cachopos e enquanto as meninas correram para casa, já tinham as mães à porta de mãos nas ilhargas a ver se as viam, os rapazes soltaram-se pelos campos a roubar maçãs e a usar a fisga.

Anda Jerónimo, diziam para o mais novo que se deixava ficar para trás a espreitar os grilos, a meter uma palhinha ou a fazer chi-chi nas luras para obrigá-los a sair. Anda Jerónimo, apanha pedras para a fisga, vamos fazer pontaria às abóboras do tio Mane Monge.

Vou já. Deixou-os ir na frente, enquanto não saiu o grilo e o não meteu numa caixinha de fósforos, não abalou.

Os outros já lá iam adiante, a atacar as telhas da estrebaria do doutor João Alves Capelo pelas traseiras, que o tio Mane Monge cavalariço, de monge só tinha o nome e se os apanhava, chovia pau e pontapé.

Quem fala?

É o Mane Monge, doutor Bento Proença. O Mane Monge aqui das Devezas, o doutor Joãozinho está para Lisboa, mas ontem saiu na égua, não sei se foi cardo que ela comeu ou moscardo que a picou, está feita maluca, era para o senhor doutor ver se podia cá chegar, para mim foi veneno que lhe subiu à cabeça, está-me a olhar de esguelha e a caracolar.

Ora então vamos lá ver essa égua, chô, quietinha, como é que ela se chama? É a Menina Amélia, foi o Pedrinho que a baptizou, já sabe como é o doutor Joãozinho com aquele filho, faz-lhe as vontadinhas todas.

Isso é mau, Mane Monge, isso é mau. Também fiz as vontadinhas todas ao meu e agora nem queiras saber, quer-me trazer para dentro de casa uma marafona que encontrou a vender lençóis numa feira, está quieta Menina Amélia.

Não lhe encontro nada de mais, veio ele atrás a apanhar uma seringa à maleta. Vou-lhe preparar uma injecção, logo à noite já te dorme como uma princesa.

Que lindas abóboras que o tio Mane Monge ali tem a secar ao sol em cima do telhado da cavalariça. Quem não lhes acertar é um picha-mole! Mas nenhum acertou. Telhas partidas, três berros do tio Mane Monge e debandaram.

O Jerónimo vinha lá na sua calma, chegou quando os outros fugiam, pôs a pedra na fisga, fez pontaria à cabaça maior e acertou.

A abóbora rolou para o lado de dentro e apanhou em cheio a careca do Bento Proença que desmaiou e caiu desamparado com a cabeça rente aos cascos traseiros da Menina Amélia, que na sua maluqueira a confundiu com a abóbora e lhe acertou um formidável coice e o matou.

Já longe das traseiras da cavalariça, o Jerónimo agachou-se, tirou do bolso a caixa de fósforos para espreitar o grilinho que agitava as antenas a implorar liberdade. O Jerónimo falou com ele. Anda, que te arranjo um buraquinho melhor. Assim fez. Guardou a caixa vazia e assustado por se ver sozinho, correu à pergunta dos amigos.

Simão Proença deixou transcorrer um mês sobre o enterro do pai e à volta da missa de trigésimo dia sentou a mãe na sala, Ai, diga lá o que é, Simão, que me quero ir mudar, lavar a cara de tanto beijinho lambuzado que me deram as velhas.

É só um minuto mãe, vou falar curto e grosso que este assunto não carece de nenhum rodeio. Como a mãe sabe, tenciono casar com a Diamantina. Amanhã vou trazê-la para jantar. Peço-lhe que a receba com toda a pompa e circunstância porque é um jantar de noivado e é o dia mais importante da minha vida.

Joaninha afogou-se num mar de lágrimas. Você quer é matar-me de desgosto. Acha que não me basta a morte do seu pai, um acidente tão estúpido, assassinado por uma abóbora e um coice da Menina Amélia, agora, ainda ele está quente, quer fazer tudo o que ele proibiu? Não conte comigo e peça à Dália que me traga um lenço, valha-me Deus, Bento, tu vê isto aí donde estás, mete juízo nesta cabeça deste filho ingrato, ai, não me estou a sentir bem.

A Dália-Joana trouxe-lhe um lenço de cambraia dobrado em quadradinho numa salva de prata, Está aqui o lencinho, minha senhora, Traz-me água, faz-me um chá de tília, desaperta-me o colchete do soutien, o menino vire-se para lá. Só pode estar doido, Simão, é ela a entrar por aquela porta e eu a sair por esta, o seu pai não queria, a vontade dele tem que ser respeitada e compete-me a mim zelar por isso, já que você não faz caso da memória dele.

Mãe, agora eu sou o dono da casa, com todo o respeito que tenho por si, faço como eu entendo. Quero casar e para mim não há outra mulher no mundo, portanto preparem tudo que quanto mais depressa melhor.

Muito bem. Dê-me então uma semana que quero retirar-me para a minha casa da Flor-da-Rosa, disse a dona Joaninha convencida que o Simão não ia consentir em tal coisa e em oito dias havia de reconsiderar.

Mas o Simão só estava a pensar que Deus, na sua infinita sabedoria, lhe tinha levado o pai para ele poder cumprir o seu destino e se a mãe queria ir para a Flor-da-Rosa que fosse, talvez isso evitasse grandes problemas à Diamantina.

Foi à Pedra Moura no domingo, recebeu os pêsames, comeu umas riquíssimas sopas de cação, abriu duas garrafas de tinto de Reguengos colheita especial que tinha levado da adega de sua casa, nem a alegria nem o apetite eram de um homem de luto.

A minha mãe tinha feito doce de abóbora, podia ter sido uma gafe se alguém associasse, mas estava tão bom, coberto de canela e com pedacinhos de noz, que o Simão comeu e repetiu e no fim foi ao Renault 16 buscar uma garrafa de champagne que vinha num balde de cristofle cheio de gelo, já meio derretido, é certo, mas a intenção é que conta e solenemente pediu a Diamantina em casamento.

Estão todos convidados para jantar em minha casa no próximo sábado, Eu não posso ir, disse a minha mãe, Eu não estou cá, disse o tio Zebra.

Eu vou, disse a Diamantina e o Márito acompanha-me para que não pareça mal.

Nessa noite coube à minha mãe a vez de nos contar uma história. Sentados à roda da mesa da cozinha ficámos a saber da sua entrada para a casa dos Proença, do bolo de mel e do peitoral, da gravidez, de como a tinham escorraçado e de como eu nascera debaixo de uma oliveira.

Não entro mais nessa casa, disse ela. Entrei como criada e como criada saí. Agora não irei lá noutra qualidade, nem me sento àquela mesa armada em senhora, nem consinto a Joana-Dália a servir-me o consome. Mas gosto que o meu filho entre em casa do irmão pela porta grande e que a minha sobrinha, que já nasceu para princesa, se sente um dia à cabeceira da mesa da sala de jantar, abane com mãos de anéis a campainha de prata e mande servir aos convidados as fatias paridas em calda de açúcar.

Num relance veio-me à memória o sorriso enigmático da minha mãe, quando, nos meus oito anos, o Simão aparecia e me ajudava nas redacções e me ensinava a tabuada e me montava no Abú Segundo: para ela, ele foi sempre o meu irmão e como tal o recebeu.

O jantar de noivado foi um pouco triste. Por mais que fizéssemos não podíamos esquecer que aquele não era o jantar que a Diamantina tinha exigido, em que se sentaria à direita do doutor Bento Proença e eu, quem sabe, à direita da dona Joaninha. Era amargo pensar que nenhum deles a aceitara, um morrera, a outra retirara-se com indignação, mas não se pode ter tudo, então teve de contentar-se com um sumptuoso jantar em que a Tiana alegremente caprichara, sentindo que vingava toda a sua classe e reparava, com um toque das suas colheres de pau, muitas injustiças e desigualdades.

E assim, sobre o cadáver do doutor Bento Proença, se uniram pelos sagrados laços do matrimónio na Igreja de São João Baptista, aos vinte e dois de Maio de mil novecentos e setenta e dois, Simão Proença e Diamantina Flores.

Aquela primeira noite foi cheia de surpresas. Diamantina sentira muitas vezes vontade de beijar Simão, gostava daquela boca carnuda, assim à vista parecia-lhe agradável, mas tinha feito o possível por não pensar no mais que se seguiria.

A Margarida bem tentou falar com ela, mas a sua experiência de homens era fraca, apenas conhecera um, três vezes e à força. Por isso limitou-se a dizer-lhe:

- Olha, filha. Aquilo bom não é. É assim uma dor pela gente adentro. Mas que remédio, temos de nos sujeitar, é o destino das mulheres. E quando se trata de marido, recebido no altar, ainda de mais boa vontade terá a mulher de fazer o que ele manda e com o tempo, tu és forte, acabas por avezar o corpo.

Podia lá ser! No cinema parecia tudo tão delicioso! Beijos, gargalhadinhas, elas com camisa de seda e roupões de golas de plumas, apagavam a luz e não mostravam mais nada, mas um suspiro ou outro deixavam adivinhar prazeres incomparáveis.

Camisa de seda, ela tinha. Cor-de-rosa, decotada em quadrado, toda bordada a florinhas do campo. Sentiu-se uma estrela de Hollywood quando foi à casa de banho vesti-la. Mas não fez figura nenhuma.

Despe a camisa, disse o Simão. Despe a camisa depressa, que quero ver esse corpo que há dois anos me anda tirando o sono. Ela despiu e acendeu o quarto com a sua pele de luar, a brancura das ancas, o ímpeto dos seios, a maciez dos ombros e os cabelos pretos, lisos como chuva, a perfumar a noite a lúcia-lima.

Simão beijou-a na boca, um primeiro beijo tão sôfrego como desajeitado e foi directamente ao assunto, já sabemos que os rodeios lhe faziam tonturas, Diamantina ainda gritou Assim não, assim não, mas ele segurou-lhe as coxas com mãos de ferro, meteu-lhe um almofadão de penas debaixo do rabo e sem se deitar sobre ela desflorou-a ou violou-a, contente com a sua orgulhosa virilidade e deitou-se a dormir enquanto ela com os olhos arregalados no escuro, e sangrando, pensava, atordoada, que no cinema não era assim.

Estava perplexa com tudo aquilo e embaraçada com aquele inesperado líquido leitoso, a cheirar à flor do castanheiro, que lhe manchava os lençóis.

Acorda, Simão, não durmas ainda. Quero fazer a cama de lavado.

Mulheres, resmungou ele e meteu-se na casa de banho enquanto Diamantina ia ao armário do corredor e num instante mudava a cama.

Enrolou a roupa suja numa trouxa e foi lavar-se, pensando, Se isto é assim todas as noites, não duro muito.

Depois voltou para a cama e deitou-se imóvel no seu lugar, o Simão tinha dito, Na cama e na Igreja o homem é à direita.

Ainda não eram cinco e meia quando desceu as escadas da casa adormecida e foi lavar os lençóis no tanque grande do páteo. Cantou um galo desgarrado, depois outro, depois todos à uma, a adivinhar o sol. Sentiu prazer em meter os braços na água fria, lavou, ensaboou, esfregou, contente por ter salvo a camisa de seda cor-de-rosa, bordada pelas suas mãos.

Tinha vergonha de confiar às criadas os seus segredos de alcova, aquelas manchas eram a marca da sua enorme decepção, mas ao terceiro dia a Tiana estava à espera dela no páteo, tirou-lhe os lençóis da mão e disse com a maior doçura, Tininha, desde que há mundo e homem e mulheres que Deus manda que assim seja e há sempre alguém para lavar essas marcas de vida nos lençóis, para ensaboá-los e esfregá-los e torcê-los e estendê-los. Não te rales, filha, a Tiana trata de tudo. É só semente de gente, nada mais. Não há que envergonhar-se.

Daquele dia em diante Tiana trataria sempre a sua nova patroa por minha senhora, dona Tininha ou simplesmente menina. Mas o seu sábio coração sentiu que naquela hora ela precisava mais de uma mãe do que de uma criada.

Menina Tininha, tem uma visita na sala.

Era caso raro. Desde que dona Joana Proença tornara pública a sua indignação, todas as famílias bem pensantes da vila e arredores entenderam a mensagem e fecharam a porta ao jovem casal. A intrusa em minha casa, não, tinha dito a Teresinha. E esta foi a palavra de ordem que os livrou dum convívio hipócrita e provinciano.

Uma visita? Quem? O meu primo Mário?

Não, é a dona Teca, a menina sabe quem é?

Só de ouvir falar.

Teca era uma mulher de vinte e quatro anos, morena, risonha, filha de uma óptima família da terra, mas posta em banho-maria por causa do seu recente divórcio. Um escândalo.

Uma senhora bem nascida não se divorcia, tinha-lhe dito a mãe, embora soubesse que a filha era vítima de maus tratos. Uma mulher divorciada cai na boca do povo, garantira o pai e não se enganara, a Teca passou do dia para a noite a ser conversa de café, apreciavam os seus dotes físicos, deturpavam o seu comportamento, atribuíam-lhe aventuras secretas, ligações perigosas, esqueletos no armário. Num trocadilho barato chamavam-lhe Queca e iam ao ponto de gabar-se de contactos nocturnos do terceiro grau.

Teca, aliás Maria do Castelo, mantinha-se corajosamente indiferente a estes mexericos e recusou o conselho dos pais, sair dali, ir para Lisboa onde ninguém a conhecia. Não fujo, não fiz crime nenhum.

Teca? disse Diamantina admirada, à porta do salão.

Olha, Tina, sou eu mesma. Estás boa? Sabes o que é? Pensei um bocado e resolvi vir falar contigo. Dizem horrores de mim como deves saber e, noutro género, também és considerada indesejável. Acho que devíamos ser amigas.

Encheu de gargalhadas esta mensagem de fraternidade, a Diamantina mandou servir chá e bolo de passas e recebeu de braços abertos a iniciativa da Teca.

Acho fantástico! Que simpática que tu és!

Então e tu? Mil vezes mais bonita do que me tinham dito. Que bolo óptimo. É feito por ti?

Não, é obra da Tiana, que é uma verdadeira fada na cozinha. A minha especialidade não é essa.

Eu sei. E explicou-lhe que uma das razões que a levava a procurá-la prendia-se com os bordados. Ela própria tinha recebido como presente de casamento uma colcha com o Dê dourado, analisara aquela maravilha e sentira vontade de aprender a bordar assim. Oferecia-se como ajudanta sem remuneração, tinha jeito, mas pouca experiência.

Meu Deus, que bom ter uma pessoa como tu ao meu lado! Talvez as duas juntas possamos realizar o sonho que tenho há algum tempo, foi até o Simão quem me deu a ideia, de montar um atelier a sério no Monte da Atalaia, arranjar umas vinte mulheres, começar uma pequena indústria.

Não foi difícil convencer o Simão. Ainda pensou contestar a Teca, mas apercebeu-se da incongruência implícita, conhecia-a bem, sabia-a óptima pessoa e decidiu investir na iniciativa. Fez obras no monte, acrescentou lavabos para as mulheres que era coisa que ali não havia, mandou rasgar janelas e colocar aquecimento e telefone.

A casa do monte era formada por quatro grandes divisões corridas que comunicavam umas com as outras, dividiu a maior ao meio, fez aí uma saleta e um escritório, reservou as duas centrais para o atelier propriamente dito, na da ponta fez um belo quarto de dormir com casa de banho, aquilo era longe de tudo, podia dar-se o caso de a Diamantina ou a Teca precisarem alguma vez de lá ficar.

Ideias, diga-se de passagem, do arquitecto da Câmara, que se revelou competente, prestável e amigo.

A coisa resultou.

Ao princípio eram dezanove mulheres. Bordavam o chão das colchas (Diamantina tinha decidido dedicar-se apenas às colchas, cujo volume de encomendas inibia qualquer outro trabalho) e deixavam para a mão da artista o pássaro central e os acabamentos: um contorno, um contraste, um matiz. Ela trabalhava numa cadeira baixa, junto a um candeeiro da sua predilecção, enquanto a Teca dirigia e tirava dúvidas às bordadeiras. Era perfeitíssima e rápida a bordar, mas preferia as funções de supervisão para que de nenhum modo se pensasse que entrava em competição com a Diamantina.

O número de bordadeiras duplicou rapidamente e mais tarde chegámos a ter setenta e três mulheres, quando já éramos uma empresa chamada Diamant., nome tirado da abreviatura com que Diamantina assinava os talões de controlo. Mas estou a antecipar-me.

Às vezes tenho dificuldade em lembrar-me de que me propus escrever a minha história, como se as personagens secundárias tivessem história e não fossem apenas a sombra que os protagonistas projectam quando se movem na luz.

Estou a escrever no meu escritório de Lisboa, hoje foi um dia mau, sinto-me doente e tenho saudades da Diamantina.

Sobre a secretária está uma fotografia nossa tirada na Pedra Moura pouco tempo antes de ela casar, eu estou todo composto, a Diamantina, pelo contrário, franze os olhos numa careta, encosta a cabeça ao meu ombro, envolve-me, apanha-me o braço por detrás com a mão direita, com a esquerda faz um gesto de garra sobre o meu peito, como se quisesse arrancar-me o coração. Arrancar para quê, se lhe pertence.

Não sei por que é que anda aqui metido a toda a hora o comunista do teu primo. Desencaminha-te as mulheres e depois é que eu quero ver.

Simão tinha ido à Atalaia, o que acontecia raramente, mas de facto, nas poucas vezes que lá ia tropeçava em mim. Costumava eu, depois da escola, ajudá-las no escritório, havia um expediente a assegurar, papelada e eu trabalhava com a Teca, porque a Diamantina não gostava de papéis.

O comunista do meu primo?

Diamantina encarou o marido um momento com aquele olhar perdido que eu tão bem conhecia e depois, como se acordasse, pediu-lhe que a acompanhasse ao quarto.

Não devias chamar comunista ao Mário, que não é comunista, que nos ajuda desinteressadamente em tudo e além do mais, como tu muito bem sabes e finges que não sabes, é teu irmão.

Sempre pensei que isso fosse um mexerico de comadres, não lhe vejo parecença nenhuma comigo nem com o meu pai e não estou a perceber onde é que queres chegar com essa conversa.

Onde eu quero chegar é que o Márito tem cabeça para muito mais do que para mestre-escola, nunca te pediu nada, a tia Margarida nada pediu ao teu pai, nem nome nem fortuna, está na hora de fazer alguma justiça.

Enlouqueceste, Tininha? Queres agora que eu vá assumir um irmão que o meu pai nunca assumiu, queres que dê mais desgostos à minha mãe do que aqueles que já lhe dei?

Não quero nada disso, Simão. Quero apenas que lhe ponhas à disposição o teu apartamento de Lisboa que para lá está fechado desde que acabaste os estudos e lhe pagues, sem pestanejar, o curso de direito. Com casa e o curso pago, ele tem o bastante para se manter.

Tu às vezes deixas-me de boca aberta, mulher.

Vou chamá-lo e vamos dizer-lhe agora mesmo a decisão que tomámos. O sonho dele é ser advogado, pois vai ser ou eu não me chame Diamantina.

Era, já nesse tempo, uma grande mulher, mas temos que convir que Simão foi, sem sombra de dúvida, um homem de bem.

Assim vim para Lisboa e me formei em direito com os melhores resultados, assim me tornei advogado da Diamant., braço direito da Diamantina em todos os seus negócios e, cada vez mais, seu irmão e confidente.

Entre mim e Simão nunca foi nomeado o parentesco, mas sempre tentei expressar por actos a minha gratidão.

Recordo a minha partida para Lisboa, cheio de sonhos, confusão e esperança, as lágrimas de minha mãe com muita alegria misturada, Estuda bem, meu filho, não te percas naquela terra, vê lá as companhias, Toma a minha medalhinha da Nossa Senhora da Boa Hora, pu-la num fio de prata, um dia te hei-de dar um de ouro, vai com a minha bênção e não te esqueças de escrever, que eu mando recado à Diamantina e ela vem cá ler as tuas cartas.

O tio Zebra levou-me na carroça a apanhar o comboio a Vale do Peso, disse-me, Um dia destes também eu vou de viagem, não quero fazer-me tropeço e catracego diante dos vossos olhos, a Tininha disse que eu sou o pássaro da colcha, pois bem, usarei as minhas asas e irei por esse mundo, aonde a voz de Deus me chamar.

Abraçámo-nos e o comboio partiu. Com a cara encostada ao vidro ainda alcancei de avistar um trigal, que simbolicamente considerava a minha paisagem de alentejano: nem montanhas violetas, nem águas azuis nem campos verdes, embora me tivesse criado entre oliveiras, no sopé da serra. O meu emblema era o trigo da sobrevivência, o pão primordial, o mar dos pobres. E nunca Lisboa apagou essa imagem, nem esse estigma, nem esse amor.

Falarei brevemente dos meus anos de Lisboa como estudante, mas não posso deixar de mencionar que no meu segundo ano aconteceu a revolução dos cravos, que alegria, que festa, o meu sangue vibrava com tudo aquilo, não sei que ancestralidade do meu lado materno em mim gritava justiça e do lado paterno, quem sabe, que os ricos, antes de serem ricos, hão-de ter sido outra coisa qualquer.

Aderi ao Partido Socialista, organizei R.G.Ás, colei cartazes, possuí algumas mulheres, mais por camaradagem do que por afecto ou paixão e, numa época em que bastava frequentar a cantina da Universidade para obter passagem administrativa, fiz o meu curso trabalhosamente, com muita consciência da oportunidade que me proporcionavam a Diamantina e o Simão.

Cuja vida de casados tinha aparência absolutamente normal, calma, harmoniosa, com a Diamantina a impor estrategicamente a sua vontade porque ninguém e muito menos Simão, conseguiam dobrar aquele temperamento de leoa.

Do atelier continuavam a sair maravilhas, agora para todo o país, Diamantina parecia cada vez mais inspirada e se a sua vida íntima dava lugar a alguma frustração, isso não transparecia no seu trabalho.

Como a Margarida vaticinara, o corpo avezou-se aos modos do marido, que gostava sobretudo de sentir aquele corpo quente e brando adormecido na sua cama, que o usava, é o termo, com precisão, rapidez e pontualidade, sob a ameaça incerta das vertigens e se virava a dormir na sua almofadinha ridícula, cheia de poucas penas.

Diamantina não sentia nada e se acalentava algumas fantasias eróticas, fazia-o com a complacência devida ao seu lado eternamente adolescente, tal como sonhara aos quinze anos beijar o Peter OToole, de mini-saia e pestanas postiças.

O andamento da casa era assegurado pela Tiana, promovida a governanta, com a Tomásia na mesa e nos quartos e a Adelina a ajudar na cozinha.

Quando dona Joaninha se retirou indignada para a sua casa da Flor-da-Rosa, a Tiana recusou-se a acompanhá-la e este foi mais um duro golpe no seu orgulho. Levou a Dália-Joana, agora definitivamente Dália, com os seus dentes salientes e a sua fidelidade fatalista. Estava escrito, Tiana, disse ela, que eu havia de mudar de nome mas não havia de mudar de patroa. Vou sentir a tua falta, isso vou, mas se a senhora me deixar sair ao primeiro domingo do mês, venho ver-te e ao menino Simão e à Tininha. Ela há-de ser boazinha. Criada pela Margarida não pode ser má.

Era boazinha. Não trazia para casa as fúrias do atelier, nunca levantava a voz, pedia tudo por favor com um sorriso de quem não quer incomodar. E com o andar dos tempos, Tiana, tratada por Diamantina como uma amiga, louvada nos seus talentos e apreciada no seu carácter, viria a ser capaz de matar e morrer por ela.

O 25 de Abril havia de levar as colchas, marcadas com o Dê a fio de ouro, um pouco por todo o mundo.

Os novos emigrantes levaram-nas para Espanha, França, Suíça, Inglaterra, Canadá, Estados Unidos e Brasil. A fama de Diamantina, pintora da seda, feiticeira da agulha, espalhou-se pelos canais certos e no princípio dos anos oitenta já choviam encomendas dos mais variados países.

Apesar do PREC e das convulsões sentidas um pouco por toda a parte, não tivemos, na Atalaia, quaisquer problemas laborais. Empregávamos mulheres de toda a região, pagávamos bem e ao admitirmos cada vez mais gente, tornámo-nos um esteio importante da economia local.

Com as encomendas do estrangeiro a Diamant. tornou-se ainda maior e mais conhecida, havia contactos a alto nível, foi preciso começar a viajar.

A primeira deslocação foi a Paris e deixou-nos a todos numa excitação. Diamantina convidou Simão a acompanhá-la, mas ele recusou. Olha, filha, eu de bordados não percebo nada, o avião faz-me tonturas só de pensar, levas o teu primo para os negócios e a Teca para as compras, eu fico muito belamente a tratar das minhas coisinhas da Câmara, não mudo de colchão e não sei falar francês de jeito.

Fomos os três.

Diamantina tinha aprendido a vestir-se logo no primeiro ano de casada, graças ao marido que a levara a Lisboa e a entregara aos cuidados do Miguel da Candidinha, a melhor casa de costura do país. Ela aprendeu depressa. Quando essa casa acabou em 74, já Diamantina tinha a noção do certo e do errado, do que era adequado a qualquer ocasião.

Foi bom vê-la brilhar em Paris, na sua elegância discreta e na sua beleza que de pouco ou nada precisava para deixar os homens a seus pés. Tinha convites para tudo, fez amigos, conheceu os melhores restaurantes e não era raro ficarmos, eu e a Teca, tête-a-tête, na casa de jantar do hotel ou no bistrôsinho da esquina. Isto firmou, entre mim e a Teca, uma boa amizade, até ao dia em que a Teca virou tudo do avesso e decidiu que estava apaixonada por mim.

Voltámos de Paris com encomendas importantíssimas, que incluíam a Presidência da República e um pequeno museu de obras artesanais.

O trabalho redobrou e as viagens sucederam-se. A Conceição, uma das três primeiras aprendizas, era agora uma espécie de contra-mestra, tornara-se uma bordadeira exímia, tinha paciência para ensinar e autoridade para dirigir. Nas nossas ausências era ela que ficava à frente do atelier.

Por delicadeza, tornei-me amante da Teca. Sei que não gostas de mim, dizia-me ela. Sei que tens esse amor sem esperança pela Tina, mas eu acho que isso te destrói, te torna triste e amargo e eu prometo gostar pelos dois. Sabes que nunca tive homem nenhum desde o meu divórcio, mas tu és diferente de todos. És um homem bom, sensível, bonito, com esses olhos claros que herdaste da tua mãe e que tu escondes atrás dos óculos escuros para ninguém os ver, São graduados, Pois sim, mas têm que ser escuros? Não penses em mim, Teca, que não te mereço, até porque este amor é como uma doença fatal, não tem cura. Mário, não sejas fatalista, experimenta gostar um bocadinho de mim e talvez a tua doença melhore.

Foi em Milão.

A Diamantina vestiu-se com especial cuidado para jantar com um italiano que comprava para grandes costureiros e tentava convencê-la a produzir para ele trinta metros de seda bordada para um vestido de noiva de alta costura.

A Teca já tinha comentado, O raio do italiano é cá uma brasa! a Diamantina mordera o lábio num sorrisinho malicioso e tinha dito, Vou jantar com ele, não esperem por mim que venho tarde.

A Teca sentiu o meu ciúme, veio ao meu quarto tomar um aperitivo, a Diamantina bateu à porta para perguntar, Estou bem? era uma espécie de tortura, nunca a tínhamos visto tão deslumbrante, tinha trinta e dois anos, uma beleza serena, um corpo de deusa, metido num vestido de toilette preto muito decotado, diamantes nas orelhas que o cabelo composto atrás realçava e o seu sorriso de leoa pronta para a caçada.

Achei horrível este meu pensamento, mas sabia que não me enganava. Até logo, disse ela, espalhando o seu perfume no gesto de dizer adeus. Não esperem por mim, que venho tarde.

Saiu e ficou no quarto um silêncio incómodo. Eu estava sem óculos, tinha saído do banho e estava ainda de roupão, a Teca pôde ver tudo nos meus olhos, Veste-te Mário, vamos jantar a um sítio bonito, não há como a comida italiana para curar a depressão. Perdi o apetite, disse eu.

Mas a Teca não era mulher para acalentar birras. És parvo ou quê? Vais ficar de trombas porque a menina Tininha resolveu fazer um número de vamp com aquele Vitorio não sei das quantas? Vou-me arranjar e daqui a dez minutos encontro-me contigo no bar do hotel. Não te atrevas a deixar-me pendurada.

Comoveu-me o esforço que a Teca fez para me aparecer radiosa. E estava realmente muito bem, era uma mulher interessantíssima, morena, elegante, aristocrática, e ao vê-la avançar para mim no bar com um sorriso que lhe iluminava a cara toda, pensei,

És uma besta, Mário José Narciso de Oliveira, quem és tu para desprezares esta mulher linda, esta pessoa maravilhosa que te quer amar sem condições. Quem, és tu, brutamontes, para cometeres a indelicadeza de a rejeitar.

Foi um jantar alegre, com óptima comida, muito vinho italiano e alguns subentendidos.

Chegámos ao hotel abraçados, fizemos amor até de madrugada e tenho a certeza de que me senti quase feliz.

Este romance continuou indefinidamente. A Diamantina não só aprovava como aplaudia, achava que devíamos casar. Mas a Teca dizia com uma enorme doçura que eu não estava pronto, que só casava comigo quando eu tirasse o fumo das minhas lentes, ambos sabíamos o que isso significava, eu não podia mentir-lhe, abraçava-a com força, tirava os óculos por um momento, confiava-lhe o meu olhar indefeso e o meu coração inerme.

Por amor de mim, a Teca tornou-se amiga da minha mãe, visitava-a constantemente, gabava-lhe o tempero. O tio Zebra perguntava-me quando era o casamento, a minha mãe disfarçava, compreendia que havia ali algum equívoco, era impossível enganá-la, tinha visto nos meus olhos ainda adolescentes o dom do amor total, que é para sempre e sem retorno.

Era uma vez um cego que tinha uma viola de doze cordas, disse um dia o tio Zebra.

Tocava-a nas feiras e nos balhos, todo o povo gostava de repenicar ao som das suas modas. Andava este cego pelas terras além com a sua viola, o seu cajado e o seu cão, quando um dia adregou de topar com um tartamudo que lhe pediu que tocasse, por muitos gestos e sinais. O cego tocou, o mudo que também era surdo nada ouviu.

Por ali passava um coxo com fama de santo, apoiado no seu pupilo que era um menino iluminado, que lhe servia de guia e lhe traduzia os pensamentos, já que o santo falava por charadas e ninguém, a não ser o menino, o entendia. Corda partida, catarata caída, boca florida, cera derretida.

O cego não percebeu patavina, o surdo ainda menos, o menino vá de explicar que por cada corda da viola que se partisse, menos cego ficava o cego, menos mudo ficava o mudo e menos surdo o surdo.

E daí? disse o cego. Daí que a vida é feita de doze cordas como a tua viola, e por cada uma que se usa e parte, melhor se vê, melhor se ouve e melhor se fala.

E mal dos manetas que a não tanjam com os dentes, disse o santo.

E isto o que seja, perguntou o cego.

Isto quer dizer que quem não tiver unhas para usar e partir todas as cordas ou na falta de unhas não use, para tangê-las, todo o seu engenho, não terá vivido e morrerá cego, surdo e mudo.

Quer dizer que quando se partirem todas as doze cordas eu serei capaz de ver e o surdo-mudo de ouvir e falar?

O santo não respondeu. Não sei, disse o menino. Mas segue tangendo a tua viola, deixa que cada corda se parta de forma natural, umas na tristeza e outras na alegria, umas na fome e outras na fartura, umas no bulício, outras na solidão. E quem viver verá e quem tanger cantará.

E abalaram os dois.

O cego e o surdo-mudo juntaram-se na sua peregrinação pelo mundo, as cordas da viola lá se foram partindo uma a uma, eles foram ficando mais sábios e mais percebedores da vida e dos outros e da obra de Deus e um dia, quando à viola restava uma corda só, vieram num fim de feira, uns bêbedos que lha partiram e ao verem aqueles três, cego, surdo e cão sarnento, os encheram de pau e os mataram. Agora compreendo, disse o mudo, Já com a boca da alma sou capaz de falar, já oiço o coração dos outros a bater e tu? Eu vejo tudo, disse o cego. Mas vejo mais que tudo os meus erros e vejo que a vida é cheia deles e vejo que para emendá-los é tarde de mais.

Não será tarde de mais, disse o mudo, Porque outros aprenderão a tanger as suas violas, a usar a vista, o ouvido, a voz, as unhas e os dentes que o Senhor lhes deu, em vez de ficarem a tocar para os outros bailarem, de mão estendida, à espera duma esmola.

Que história complicada, tio Zebra! disse eu, a perceber tudo e a fazer-me de novas.

Complicada? Só se for para os surdos, disse o tio Zebra.

A Teca voltou a cair nas bocas do mundo. Agora era amásia do comuna e isto, está claro, matou os pais dela de desgosto, que só ressuscitaram para a expulsarem de vez.

Nunca nos encontrávamos na casa dela, ficávamos às vezes na Atalaia com a bênção da Diamantina, uma vez o Simão resmungou Não quero poucas vergonhas debaixo do meu tecto, ela saltou como uma leoa, Que poucas vergonhas, que tecto? Não dizes que o Monte da Atalaia é meu, que o vais pôr em meu nome e não sei que mais? E desde quando é pouca vergonha duas pessoas livres amarem-se?

A Teca olhou-me e pela primeira vez vi uma nuvem de tristeza passar nos seus olhos. Livres? disse ela baixinho.

Continuámos a viajar para os quatro cantos do mundo. Os negócios corriam de vento em popa, quem disse que a Diamantina tinha dado ao Proença o golpe do baú, teve de morder a língua e morrer envenenado.

A Teca fazia de cada viagem uma festa. Era a sua oportunidade de andar de mãos dadas comigo pela rua, de fazer jantares românticos onde ninguém nos conhecesse, de partilhar o meu quarto, de se sentir minha mulher.

Diamantina, bastante às claras, já que não fazia cerimónia com nenhum de nós, continuava com as suas escapadelas, as suas saídas com roupa de gala, os seus regressos ao hotel de madrugada, com os sapatos de salto alto na mão.

Um dia, num jantarinho a três, abordou o assunto.

- Bom, eu sei que sou um bocado leviana mas gostava de vos explicar que isto não belisca em nada o meu casamento. Tenho imenso respeito pelo Simão, que é óptima pessoa, a última coisa que eu quero no mundo é magoá-lo. Aliás, nada disto tem a menor importância, é como se eu precisasse de experimentar a vida, ou, como disse o Mário num dia em que não estava nada subtil, talvez haja em mim uma leoa que gosta de caçar.

Riu-se, felina. E após uma pausa, acrescentou:

Mas juro que não tem importância nenhuma, nenhuma. É só um capricho da pele.

Um capricho da pele.

Fiquei a pensar nisto, neste mistério para mim insondável: aquela mulher belíssima, talentosa, sobredotada, era afinal fria como uma estátua e incapaz de amar.

Talvez o tio Zebra soubesse explicar o plano labiríntico segundo o qual Deus distribui os seus dons às suas criaturas.

De regresso à Pedra Moura falei nisto à Teca. Ficámos perturbados como se tivéssemos tocado num tema proibido, o indecifrável enigma dos desencontros.

Era uma noite soberba de Verão, deitámo-nos na terra quente e ficámos ali de mãos dadas olhando o céu altíssimo, em busca de respostas. A Teca beijou-me devagarinho, rolámos no chão, fizemos amor. E finalmente apaziguados pudemos ouvir o silêncio das estrelas, o único capaz de calar o rumor dos nossos corações.

Em 1974 Simão comprou, em boas condições, uma das muitas casas vendidas à pressa por famílias que partiram de Portugal. A casa era em Cascais, uma linda moradia com piscina, pois pensava levar a mulher a banhos e oferecer à mãe, para de certo modo a compensar, estadia em lugar aprazível.

A casa da Flor-da-Rosa era quente no Verão e fria no Inverno, Joana estava habituada à de Castelo de Vide, Sintra do Alentejo, de temperatura mais amena e conforto mais moderno.

Simão chegou a sugerir à mãe que fosse viver para Cascais, avisando-a de que Diamantina e ele iriam lá passar o mês de Setembro e talvez levassem amigos.

Agora diz-me tu, Teresinha, se isto não é o mesmo que porem-me fora. Ele pensará que vou partilhar a casa com aquela lambe-linhas? E amigos, ainda por cima? Deve ser a Maria do Castelo, que até lhe chamam a Queca, com aquele comuna com quem elas andam sempre atreladas, o mestre-escola das Devezas. Ou então devem pensar que eu saio, para suas excelências entrarem. Ou então é ideia dela, que não deve saber arear uma prata, para eu ficar de sopeira o ano todo a pôr-lhe casa em ordem, aspirada, encerada e arejada, com congelados no frigorífico e biscoitos nas latas, para ela entrar no Verão, armada em madame e mandar a escrava para a terra!

Mas comigo não, estão muito enganados. Prefiro passar fome e frio na casa que foi dos meus pais.

Fome e frio, Joaninha? Também não exageremos! Tens duas criadas, não te falta nada, a casa está velha mas é estupenda, desculpa que te diga, mas é melhor que a de Castelo de Vide, mais desabrigada, com menos lareiras, é verdade, mas eu conheço um mestre-de-obras que te dava aqui um jeitinho, metia-te outra salamandra igual à do hall no andar de cima, vais a Arraiolos buscar mais tapetes, fazes uma casa de banho no quartinho ao lado do teu quarto e ouve! Ficas aqui como uma rainha!

A Teresinha fazia o seu discurso a rodopiar pela casa, a avaliar as paredes, a sentir a folga das portas e das janelas de guilhotina, a arredondar, chegando os maples, a zona de conversa do salão.

É uma casa óptima, Joaninha, vais para Cascais fazer o quê? Chatear-te de morte, não conheces lá ninguém!

Ah, nesse aspecto, não estou muito melhor aqui. Se não fosse tu vires cá uma vez por mês ou nem isso, podia morrer aqui de pasmo, que ninguém ia ficar a saber.

E o Simão, não vem?

Vem. Vem ao sábado, olha a grande coisa! Vem ao sábado almoçar comigo e é só porque a outra almoça no monte. Pedi-lhe para vir ao domingo, acompanhar-me à missa, almoçar e passar cá a tarde, disse logo que a costureira ao domingo não vai à Atalaia, portanto é com ela que ele vai à missa, com ela que ele almoça, com ela que ele passa a tarde!

Isto já foi dito entre lágrimas, com a Teresinha a consolá-la.

Joana, o teu filho é casado. Achas assim tão extraordinário que ele passe o domingo com a mulher?

O que eu acho extraordinário é que ele tenha casado com ela, isso é que acho extraordinário! E pensar que fui eu que tanta propaganda fiz daquela porcaria de bordados!

Bom... porcaria, não. Contam as mulheres que da Atalaia só saem maravilhas para todos os cantos do país. Agora menos, com a crise e tudo isso, mas parece que até já bordam para o estrangeiro.

Coitado do Simão! As vergonhas que ele deve passar ao lado daquela bordadeirazeca! Estrangeiros, anh? Devem pensar que ela é criada dele.

A Teresinha, já cansada da conversa que era sempre a mesma, arranjou um pretexto e foi andando.

Joaninha foi para cima, sentar-se no quarto com os pés de molho para amolecer os calos, pediu à Dália que lhe trouxesse um chá, visto a Teresinha não ter querido esperar.

Estava a cama feita com a colcha dos azuis e cinzas e aquele pássaro inquietante com olhos de príncipe encantado, Dália, pousa aí o tabuleiro em cima da cama, apoio-me ao colchão e vou comendo. Mas a colcha, dona Joaninha, quer que tire? Tira nada, quero eu lá saber da colcha!

Pegou na chávena e no solavanco entornou o chá nas flores alucinadas.

Ai, dona Joaninha, que tem açúcar e põe nódoa!

Bem-feita, disse a Joaninha. E entornou um pouco mais por birra e de propósito.

Resumindo e concluindo, dona Joana nunca pôs os pés na casa de Cascais. Simão contratou um casal da sua confiança, ele tinha sido Guarda Fiscal no tempo do Salazar, manejava a caçadeira com grande desembaraço e desde que meteu chumbo numa perna atrevida que viu pendurada no muro, nunca mais a casa foi assaltada, nem por larápios, nem por justiceiros sociais.

Diamantina, ao contrário da sogra, interessou-se desde logo pela casa, passou a fechar o atelier de meio de Agosto a meio de Setembro que eram as férias do Simão na Câmara e permitia-se um descanso total, a compensar tantos meses de trabalho duro.

Eu e a Teca éramos convidados permanentes. A Diamantina gostava de ter a piscina cheia de amigos, oferecia almoços frios e jantares requintados, mas lá para o fim das férias começava a ter saudades de casa e do atelier, punha-se a fazer esquissos de pássaros, chamava-lhes apontamentos e quando regressávamos ao Alentejo, ia direita à Pedra Moura, para carregar baterias de vida verdadeira, dizia ela, sentada em cima da grande mesa da cozinha com os pés descalços apoiados na cadeira de buinho, a bater claras em castelo para os bolos de minha mãe e a provar a massa crua, como na infância.

Ficavam as duas a conversar o dia inteiro, ouvíamos rir a minha mãe, coisa cada vez mais rara, não que a Margarida fosse triste, mas fizera-se silenciosa, sempre vestida de escuro e nem no Verão tirava o lenço da cabeça, traçado sob o queixo e atado atrás.

Com o tio Zebra quase sempre na estrada, ficava feliz quando tinha para quem cozinhar, por isso eu esforçava-me por ir jantar a casa e levava a Teca, que sabia elogiar os seus petiscos como ninguém. Aos domingos, a Diamantina e o Simão vinham almoçar, já era tradição, e se o tio Zebra estava, eram tardes de cavaqueira e felicidade, como se nada, no mundo lá de fora, pudesse atingir-nos. Guardo esses momentos na minha memória como relíquias, envolvidos naquela luz especial que só encontrei na Pedra Moura, entornada nas lajes da cozinha ao pôr do sol, reflectida nos tachos de cobre, irisada nos olhos claros de minha mãe.

Simão chamou-me um dia à Câmara para conversar comigo na minha qualidade de advogado e não de primo. Temi a princípio que quisesse retirar-me a administração da Diamant., mas ele não se metia nisso, era assunto da mulher e corria excepcionalmente bem.

Não. O que ele pretendia era pôr em nome da Diamantina a casa da vila, que o pai por sua vez já tinha posto em tempos no seu nome, o monte da Atalaia e a casa de Cascais. Tinha comprado a casa de Cascais para a mãe, é verdade, mas já que ela lhe fizera a desfeita de durante doze anos nunca lá pôr os pés, não ia sustentar burros a pão-de-ló.

Não era isto que eu queria dizer, mas a minha mãe, dona Joana, fez-se rezinza e maldosa, todos os sábados me despeja um rosário de insultos à Tininha, eu tenho aguentado caladinho, mas agora chega. A Tina nunca lhe fez mal nenhum, se algum bem lhe quis fazer ela não deixou, a minha mulher tem menos dez anos que eu, há viver e morrer, já ando com tonturas de pensar nisto, trata-me do assunto e não lhe digas nada, que eu não quero falatórios que cheguem ao salão da Flor-da-Rosa.

Assim se fez. Penso que a principal motivação do Simão Proença (para além de chatear academicamente a mãe, que pela lei natural devia morrer antes dele e sendo assim nunca viria a saber destas disposições) era um velho e confuso sentimento machista. Mais ou menos assim. A minha mulher ganha tanto dinheiro que não precisa do meu para nada.

Pois toda a gente há-de saber que ela não tem necessidade nenhuma de trabalhar, porque é rica de parte do marido.

Assim se fez. Diamantina tornou-se, sem saber, proprietária de duas casas e um monte, se já tinha de seu, era agora, sem sombra de dúvida, uma senhora de posses. Não que lhe interessasse. Sempre teve uma relação desapaixonada com o dinheiro, faz falta compra-se, não faz não se compra, se há para gastar gasta-se, não há não se gasta que eu não quero dívidas, passa-se na mesma, haja saúde.

Foi por essa época que as saídas do tio Zebra para a estrada se foram tornando cada vez mais prolongadas. Voltava de longe em longe com as mantas todas vendidas, sentava-se para lá das laranjeiras a alcançar o trigal com os olhos visionários, falava sozinho, assoava-se ao seu grande lenço vermelho, às vezes extraía do talego uma mancheínha de azeitonas, ficava a roê-las, a cuspir os caroços longe.

Um dia disse à minha mãe:

- Margarida, está na hora de me ir chegando por aqueles caminhos do mundo, que são mais feitos de alma que de terra. Foste a minha filha querida, a Tina e o Márito os meus netos, agora a Teca, também lhe quero muito, porque lhe vejo aquela vontade de fazer o Mário feliz, mas a minha missão aqui acabou. Sinto que alguém me chama doutro lugar, talvez outra mãe com outro menino ao colo, talvez a minha zebra milagrosa em feitio de nuvem e tenho que partir e não te entristeças porque a vida é assim mesmo.

Deixo-te a carroça, o macho Muchacho nunca se comparou com a Queijada, mas é bem mandado, come pouco, pode valer-te numa aflição.

Ah, e diz ao Márito que eu lhe comprei este olival aqui, que liga a nossa terra à horta que lhe deixaram os outros padrinhos, agora é tudo dele, que meta um caseiro que eu não te quero aí dobrada a mondar ervas e a sachar feijão.

São horas de abalar, fica com Deus Margarida, se as filhas se comprassem na feira era uma igualzinha a ti que eu escolhia, e não penses mais em mim, que estou sempre bem, com os pés na terra e a cabeça no céu e o coração em toda a parte e pernas ao caminho até algum comboio que me leve, ou barco de aventura ou caravana de ciganos, tudo serve a um homem que já não tem amarras com a vida das coisas e vai levezinho por esse mundo além.

Partiu. Com noventa e dois anos e o mais belo sorriso de todo o Alentejo.

No final dos anos oitenta Diamantina recebeu um convite para ir ao Brasil, eu estava preso com assuntos profissionais inadiáveis, foi a Teca com ela, o Simão temia que se não desembaraçassem, ainda pensou acompanhá-las, Mas pensando bem, sei lá que comidas comerá aquela gente, haverá míscaros, haverá coentros, o calor é húmido, ainda me obrigam a dançar o samba, o meu pescoço não ia aguentar.

Fomos acompanhá-las ao aeroporto, a Teca ainda largou a bagagem de mão e voltou atrás a correr para me dar mais um beijo, a Diamantina só virou o pescoço de cisne e disse Despacha-te, fiquei a vê-las ir com o coração apertado como um caroço de pêssego, guardando como ele a sua noz de veneno.

Correu tudo bem.

Um comendador português, milionário pelo inevitável negócio das padarias, levou-as para a sua casa de um luxo indescritível, convidou-as a ficar, queria montar-lhes uma fábrica, pô-las a dirigir, fazê-las ricas.

Mas a Diamantina riu-se, explicou-lhe que o seu era um trabalho artesanal elaborado ao ritmo do coração, tinha rituais próprios, ecos de uma cultura milenar, aromas de tomilho e vozes de regato.

O outro era português, entendeu, comoveu-se, evocou os atalhos da sua terra natal e fez-lhes encomendas regiamente pagas. Deixou porém em aberto a possibilidade de voltarem, ou quem sabe, ficarem para sempre e assimilarem ao desenho das colchas cânticos de aves exóticas e rumores de floresta tropical.

Houve um acréscimo de trabalho nos anos que se seguiram, até que em Maio de noventa e dois Diamantina disse, Faço este mês vinte anos de casada e quarenta de vida no dia 15 de Agosto, vou fazer umas férias completas e tranquilas, proponho que se feche o atelier e a casa da vila e vamos todos para Cascais durante quatro meses.

Simão, ao princípio, torceu o nariz, largar os hábitos era-lhe extremamente penoso, dezasseis sábados sem visitar a mãe ia ser o bom e o bonito, mas incapaz de contrariar a mulher, pediu na Câmara licença sem vencimento e lá partimos todos para Cascais em três carros, com a Tiana de lenço amarrado à boca por causa do enjoo e a Júlia em vez da Tomásia, que entretanto casara com um jornaleiro e era agora caseira da minha mãe.

Amigos de anos anteriores tornaram-se mais íntimos, o João Maria e a Constança, o Vasco e a Rita, a Belicha, que era solteira e tinha sempre casos sentimentais tempestuosos, está hoje casada com um egípcio e vive no Cairo coberta de véus fundamentalistas.

Foram umas férias inesquecíveis, as últimas férias felizes das nossas quatro vidas, lembro-me das gargalhadas da Diamantina que nunca mais teriam o mesmo som, do seu corpo magnífico preguiçando na borda da piscina, do seu sentido de humor rápido e incisivo que encantava os amigos. Pela primeira vez parecia não sentir saudades de casa nem do trabalho, era como se tivesse esquecido tudo e a sua vida fosse apenas aquela futilidade encantadora, ociosa e abastada.

O ponto alto do Verão foi a exposição de colchas que a Teca organizou para surpreender a Diamantina no dia dos seus anos, a quinze de Agosto.

Andámos praticamente de porta em porta a pedir às pessoas que tinham colchas Diamant. o favor de as emprestar, ninguém disse que não, conseguimos juntar catorze só na zona de Cascais, Sintra e Estoril, ao Alentejo fomos buscar mais doze, por mais que a Diamantina estranhasse estas viagens eu dizia sempre que ia ver a minha mãe e o Simão a mãe dele, Deu-vos a saudade toda ao mesmo tempo? Deu e entre risos partíamos.

A exposição abriu no Casino do Estoril na data certa. Em lugar de honra, isolada numa parede, pendia a colcha chamada do tio Zebra. O pássaro cor-de-fogo a dardejar olhares embruxados aos visitantes, na sua cama de flores imaginadas e insectos miríficos, com as grandes asas abertas, jurava levantar voo sobre as nossas cabeças.

Quando fui à Pedra Moura pedir a colcha à minha mãe, ela começou por dizer, A coberta não sai daqui. É esta avejona que me guarda a casa, que nos protege as vidas. Tenho um mau pressentimento: se ela sai, vai entrar a desgraça.

Ó mãe, por amor de Deus, vivemos felizes tantos anos sem a colcha, até aos meus dezoito ou vinte anos ela nem sequer existia e agora a colcha não pode sair daí! É a peça principal de exposição, tem um valor enorme, é tempo que toda a gente a veja.

Não gosto. Vou ficar desinquieta enquanto a não vir voltar e pela tua saúde não a vendas, nem que venha o rei ou o papa, não a vendas por dinheiro nenhum.

Prometi.

A exposição foi um verdadeiro sucesso, não houve quem a não visitasse, todos, portugueses e estrangeiros, queriam comprar as colchas, mas nenhuma estava à venda, todas tinham o seu cartãozinho, explicando a quem pertenciam. O mesmo constava no catálogo. E na peça principal lá estava: A primeira colcha bordada pela artista com a idade de dezassete anos. Cedida gentilmente por sua tia, a Exma. Senhora D. Margarida Narciso.

Havia de ficar vaidosa, a minha mãe. Mas não consegui arrancá-la da Pedra Moura, gabava-se de nunca ter viajado mais longe do que Castelo de Vide, não era agora, depois de velha, que ia experimentar, tinha a certeza que lhe haviam de vir as tripas à boca por essas estradas de Deus.

Não foi nada difícil levar a Diamantina à exposição, a Teca andou quinze dias a convencê-la que não se metesse a dar festas grandes em casa, era muito mais giro irem os quatro jantar ao Casino, podiam convidar os amigos mais íntimos, uma mesa de dez ficava bem e uma vez lá, Parece que há ali uma exposição interessante, vamos ver.

A Diamantina teve de se agarrar ao Simão para não cair, Vocês estão doidos, mas o que é isto e todos os amigos estavam lá a recebê-la com uma enorme salva de palmas, não posso dizer que lhe caíram as lágrimas, não era o estilo dela, mas os olhos ficaram-lhe brilhantes e o sorriso abriu-se como uma flor vermelha. Apareceu a fotografia dela nos jornais ao lado da colcha do tio Zebra e os leitores não sabiam que mais admirar, se a obra se a autora.

A exposição esteve patente até vinte de Setembro. Depois devolvemos as colchas, entregámos a casa de Cascais aos caseiros e regressámos ao Alentejo, a cumprir o resto dos nossos destinos.

Foi nesse final de Setembro que a minha mãe, talvez por causa da superstição do pássaro de fogo, teve um sonho em que viu o tio Zebra dormindo à beira de um caminho. Quando se aproximou, ele abriu os olhos, pegou-lhe nas mãos e disse-lhe, Estou morto para os homens, Margarida, mas mais vivo que nunca e tudo vejo e tudo alcanço. Vem comigo e verás. E sem lhe largar as mãos, sentou-se com ela numa rabanada de vento e levou-a a ver o mundo do ar para baixo e o que havia mais eram rebanhos que seguiam o pastor e os cães a darem-lhes marradas pela parte de trás para que ficassem unidos e nenhum se transviasse, Aquilo tudo que te parece ovelhame não é senão homens, todos direitinhos a fazer o que o chefe manda e quando saem da ordem têm logo quem lhes ladre às canelas, agora vê os bosques, as florestas, os rios e como andam livres as avezinhas até que vem um lá de baixo que lhes amanda um tiro e ali se acaba a beleza do mundo, num molho de penas ensopadas em sangue.

A minha mãe acordou assustada, em tudo aquilo só era pesadelo o passarinho morto, o tio Zebra no sonho estava mais vivo que nunca, desceu a beber uma pinguinha de água, estava um luar que a puxou cá fora, viu a Moura escarranchada na janela a dar ao pé, o teu tio Zebra está bem, ainda há bocado o vi sentado numa nuvem a contar histórias aos anjos, não te apoquentes Margarida, morrer é bom.

A minha mãe, quando me contou isto, já não sabia se tinha mesmo descido a beber água ou se tinha sonhado picada pela sede, de qualquer modo, mandou rezar uma missa, o Senhor Padre Francisco concordou com ela que quer o tio Zebra estivesse morto ou vivo, não era uma missa por sua intenção que lhe causaria moléstia.

Este sonho reforçou também a posição já antiga da minha mãe em relação à entrada de um televisor na Pedra Moura. Nunca tinha sido possível convencê-la e apesar dos nossos argumentos de que poderia fazer-lhe boa companhia, ela dizia que não tinha onde pôr o aparelho, que gastava muita luz, que não queria ficar em casa com aquilo a falar sozinho. Depois do sonho, interpretou a parábola dos carneiros a seguir obedientemente o pastor, como sendo o que as pessoas faziam diante da televisão, embasbacadas com o que de lá lhes diziam, seguindo todas as modas e gostos de quem lá estava a falar. Eu bem vi em casa da Maria Parracha umas mulheres com a cara grande, todas pintadas a dizerem como a gente havia de fazer isto e aquilo, não quero ter uns senhores que não conheço a dar-me sentenças do alto da minha cómoda. Na minha casa mando eu, não sou ovelha nem quero cães que me mordam as canelas.

A dona Joaninha, muito pelo contrário, viciou-se em telenovelas. A televisão passou a reger a sua vida, o horário de jantar e deitar, de dar ordens às criadas e de receber visitas.

Fez as obras em casa, com a Teresinha a pontificar, Flor-da-Rosa ficou uma beleza e lá encaixou um televisor grande na sala, disfarçado num armário de estilo e outro mais pequeno no quarto, entre dois incunábulos sobrepostos e um São Joaquim do Séc. XVIII.

Teresinha, só lhe digo que o Bruno e o Fábinho andaram à pancada, a menina não viu? e o Wanderlei assistiu mas não se meteu. Tudo por causa daquela mulher que eu odeio, aquela Jussara, como é que se pode ser tão intolerante, sempre a meter intrigas na cabeça do filho, só porque a nora não é rica, coitada, tão boa rapariga. Aqueles pobres da família dela até que são boas pessoas, sempre com aqueles problemas ao fim do mês, também não percebo por que é que não arranjam empregos melhores. Acho que lhes vai sair a lotaria, li não sei onde, é bem feito, a Jussara vai ver, ainda é a nora que lhe vai dar o dinheiro para salvar a empresa, veja lá. Em compensação, aquela outra feiasinha gorda de óculos vai ficar giríssima, disse-me a Dália e vai dar em cima do Wanderlei que não a reconhece. Ele por acaso é lindo e tão bom actor, não acha?

A Teresinha que só via as novelas uma vez por outra, ficava assim a par de todas as tramas enriquecidas com os comentários da Joana, que para as explicar achava apropriado utilizar expressões brasileiras apanhadas ao vivo.

Foi o que valeu ao Simão naquele Verão de noventa e dois em que, com alguns remorsos, negligenciou a mãe sábado atrás de sábado.

Quando finalmente voltaram de férias ele foi visitá-la, estranhou o jantar ser tão cedo e percebeu que estava a ser despachado quando a mãe levou o prato do doce para diante do televisor e lhe disse, agora esteja caladinho ou vá andando que eu tenho que ver a novela, hoje é importantíssimo, vai morrer a Das Dores.

Nunca mais lá voltou em dia de semana, de resto ela fez-lhe ver que o sábado é que era o dia dele, de semana havia as novelas e ela não podia perder. Uma maneira como qualquer outra de envelhecer, pensou ele, ao menos está entretida.

Novembro trouxe os primeiros frios, as primeiras geadas, as lareiras acesas e os capotes alentejanos.

Tiana, a senhora telefonou? Não, senhor engenheiro, ela está para lá cheia de trabalho, mas deve estar a chegar para jantar. Vou buscá-la, disse o Simão. Leve-lhe o xaile xadrez, senhor engenheiro, que ela foi pouco agasalhada e pôs-se um frio de rachar.

Simão meteu-se no carro e tentou analisar aquela pequena mágoa que sempre o acompanhava quando guiava sozinho pelo meio da noite.

Tenho dinheiro, saúde apesar de tudo, uma mulher bonita e trabalhadeira, será por me faltarem os filhos que ando sempre assim meio desconsolado?

Diamantina era estéril. Nos primeiros três ou quatro anos de casados tinham feito os possíveis e os impossíveis para ela engravidar, mas foi ela própria que quis desistir. É a vontade de Deus, disse. Talvez para ser fértil de um lado tenha que ser estéril do outro e eu tenho mais é que ser grata pelo que recebi, se não ainda se ma acaba o talento.

Não se falou mais nisso.

Dona Joaninha continuava a atazaná-lo com o assunto, Como é que você pôde arranjar uma mulher que além de tudo tem a barriga seca! A única virtude dessas criaturas do povo é serem uma espécie de vacas parideiras, mas o menino teve pontaria, foi buscar a única que nem essa serventia tem.

Naquela noite de Novembro, ali mesmo dentro daquele carro, com o aquecimento ligado, pensou que não amara a mulher como devia, que durante vinte anos, com a desculpa das vertigens, pensara apenas no seu prazer e nunca no dela e veio-lhe um desejo de se redimir, mas como fazer? Ela iria estranhar, certamente iria repeli-lo, talvez lhe repugnassem certas carícias, que ele próprio não estava certo de saber desenhar naquela pele de seda.

Quando chegou à Atalaia ela estava sozinha, bordava à luz do candeeiro baixo, a asa incipiente de Simão não pôde deixar de recordar Vermeer, a minha mulher é mesmo uma pintura, mas tomara o Vermeer ter um modelo como ela.

És a mulher mais linda do mundo, Tininha. Ora essa, disse ela e a mudar de assunto, Que horas são?

São quase oito e venho buscar-te para jantarmos cedo e irmos cedo para a cama, que vai uma friagem lá fora que nem tu imaginas.

Ia precisamente telefonar-te, vamos fazer serão, a Teca e o Mário foram à Pedra Moura jantar e trazem-me qualquer coisa para eu comer.

Saíram há muito tempo? Há dez minutos.

Vamos para a cama. O quê? Para a cama! Mas que disparate é este? Estás maluco? Estou a tra...

A colcha ficou nas costas da cadeira, o pássaro inacabado parecia ferido em pleno voo.

Diamantina estava em estado de choque. Mas o que é que lhe deu? O homem está maluco, depois de velho é que lhe dá para a meiguice? Mas já o Simão lhe beijava os ombros, o peito, o umbigo. Ela começou a ceder sob aquele fogo inusitado, retribuiu as carícias com um entusiasmo que o fez estremecer, Ela conhece outros homens, eu nunca lhe ensinei nada disto, deve deitar-se com o primo,

Diz-me que és só minha! Jura que és só minha! Simão, ama-me e cala-te, murmurou com voz rouca.

Pela primeira vez em vinte anos sentiu-a húmida, cálida, viu-a deitar, tremendo, a cabeça para trás, lançar fora a almofada, entreabrir a boca, acender um clarão nos olhos frios de leoa.

Ouviram chiar os pneus no saibro, Simão ergueu-se de repente e sentiu que o mundo inteiro andava à roda. O que foi? A tontura, passa já.

Ela vestiu-se, deixou-o a reencontrar o balanço, abriu-nos a porta com um sorriso de indisfarçável plenitude, O que é que aconteceu? Se lhes contasse não iam acreditar.

Mas quando Simão saiu da casa de banho com o cabelo molhado do duche, a abotoar os punhos da camisa, percebemos e acreditámos.

Vou-me embora, disse ele.

Fica. A Teca trouxe comida que chega para dois ou três. Sabes como é a tia Margarida.

Não quero. Vou para casa. A Tiana já deve ter o jantar a arrefecer.

Não te sentes bem, Simão? perguntou a Diamantina.

Não. Sinto-me mal. Sinto-me tonto. Sinto-me corno.

Meteu-se no carro e arrancou.

Ficámos perplexos.

A Diamantina explicou-nos então que no melhor da festa ele tinha tido um ataque de ciúmes, só porque pela primeira vez ela correspondera às suas carícias, carícias que aliás tinham sido também uma estreia absoluta na vida sexual dos dois.

- Se calhar Íamos começar a ser felizes, mas o machismo é mais do que uma cultura, é uma doença hereditária. Convenceu-se que eu lhe ponho os cornos, provavelmente contigo.

Deu uma gargalhada daquelas que lhe vinham do útero, a Teca olhou-me e adivinhou que eu me senti o mais desprezado de todos os homens. Mal eu sabia o que estava para vir.

Simão guiou a caminho de casa entre tonturas e perturbações da vista, com uma dor forte na nuca e uma mágoa inexplicável no coração a que se misturava uma ponta de remorso.

Sou uma besta, não percebo nada de mulheres, só conheci putas que fingiam que sim e se calhar a minha passou a vida a fingir que não. Talvez tanta sabedoria não seja aprendida, na volta é instintivo nelas quando a gente lhes toca no botão certo. Foi tudo tão bom e tão mau, será que não se pode ter prazer sem alguma coisa que o envenene, o remorso, o ciúme, a desconfiança, a raiva, a vertigem, que raio de coisa é o amor? Onde é que se aprende, como é que se faz? Tenho cinquenta anos e descobri agora que lixei tudo, as mulheres têm qualquer coisa de bruxas e a minha, com toda aquela arte, aquela carne até hoje tão fria e hoje tão quente, não é certamente excepção.

Na Atalaia acabámos por rir com as descrições impudicas da Diamantina, o Simão saiu um pouco metido a ridículo e ela adoçou essa impressão com um não me interpretem mal, eu adoro-o, mas é tão infantil...

E agora? disse ela. Já não me apetece fazer serão. Estou com uma fome de loba e uma inexplicável vontade de rir.

A Teca serviu-lhe o jantar, que era lombo de porco assado, vermelhinho do pimentão e migas estaladas no pingue. Regalou-se. Depois foi arrumar a colcha, dobrou-a, o pássaro inacabado, a que faltava uma asa, tinha um olhar estranho e dolorido. Parece o Simão, disse ela.

Simão chegou a casa e sentou-se melancolicamente a jantar. Comeu bem, bebeu um pouco mais do que era hábito.

Depois foi para o escritório onde a lareira arrefecia e pôs-se a espevitar o lume. Duas achas cruzadas sobre as brasas, o fole a atear a chama por debaixo, subiram labaredas felizes e ele deu-se por satisfeito. Ao erguer-se teve uma tremenda vertigem. Tentou agarrar-se a qualquer coisa, mas desmaiou e caiu desamparado na pedra da lareira. Sentiu-se bem. Ficou ali deitado com a cabeça aberta, sem nenhuma dor, nenhuma mágoa, nenhuma tontura, nenhum remorso. Do pescoço finalmente livre despontaram penas iguais à do bordado. E de posse da sua prometida envergadura, bateu asas. E voou.

Dona Joaninha começou a empreender nas mortes estranhas do marido e do filho, sempre à espera que lhe caísse alguma coisa na cabeça ou lhe caísse a cabeça em alguma coisa. Certamente alguém rogara uma praga à família, mas Tiana garantiu-lhe que aquilo eram acidentes da linha masculina, que as mulheres, ai delas, morrem na cama, de parto, de doenças más, ou de sufocos no coração.

Tiana tinha ido à Flor-da-Rosa com uma incumbência da Diamantina, que pedia à sogra que fosse à casa da vila escolher tudo o que quisesse, móveis, pratas, serviços, roupa de casa, quadros, tapetes, tudo.

A Tininha quer ficar apenas com o que a dona Joaninha não quiser. E se quiser a casa ela muda-se para a Atalaia.

Cínica, comentou a velha. Ela diz isso porque sabe perfeitamente que eu não quero nada, que sou uma senhora, que não a ponho no olho da rua como devia.

A senhora desculpe, mas está tão enganada com a Diamantina! Ela não é interesseira, esta oferta é feita do coração, ela nunca quis o vosso dinheiro e olhe que o Simãozinho sabia disso muito bem.

Pois então diz-lhe que meta tudo no... na... onde ela quiser, que a dona Joana Proença não precisa dos favores de uma sopeira. Mas ó Tiana, como quem não quer a coisa e sem ela ver, podias trazer-me aquela virgem de marfim que estava no meu quarto, é do século dezassete, vale uma fortuna e ela não aprecia...

No enterro tinham-se dado cenas desagradáveis, como por exemplo, Diamantina avançar para dar um beijo à sogra e esta dar meia volta, deixando-a pendurada a morder os beiços. Toda a gente viu, toda a gente comentou, mas a dona Joaninha achou-se digníssima, corajosa e aristocrática.

Diamantina mudou muito, depois da morte do marido. Trabalhava até à exaustão, horas e horas dobrada sobre as colchas, sempre taciturna, nunca mais lhe ouvimos aquela bênção de gargalhada e muitas vezes, na Atalaia, fechava-se no quarto para chorar.

Eu sentia-me impotente para lhe dizer fosse o que fosse, a Teca fazia tudo para distraí-la, mas ela fazia-se brusca e desagradável e um dia disse-nos, Não me chateiem, não? Dêem-me tempo, isto tudo há-de fazer algum sentido e enquanto não entender, não aceito. Porquê o Simão, uma pessoa óptima que nunca fez mal a uma mosca e eu, cheia de veneno, de mentiras, de ingratidão, de cegueira, de egoísmo, estou aqui cheia de saúde.

Isto passou-se num domingo na Pedra Moura, a minha mãe tinha-nos feito empadas de lebre com molho dentro, arroz de coentros e primores da horta, azevias para a sobremesa, que era quase Natal, veio por trás da Diamantina e abraçou-a, embalou-a nos braços durante muito tempo com o rosto colado ao dela, bebeu-lhe as lágrimas, quase a deixou adormecer. Depois começou a dizer-lhe baixinho que se o tio Zebra ali estivesse havia de explicar que o mundo é um grande mistério e a vida um jogo de xadrez que Deus joga com o Diabo e umas vezes ganha um e outras vezes ganha outro e o melhor que a gente faz, sendo os peões, é pôr muita beleza no nosso quadrado, ora preto ora branco e tentar entender com o coração o que não entendemos com a cabeça. Disse-me ele isto muitas vezes quando me julgava triste ou pensava que eu queria ter tido outro destino, mas eu não queria. Não é toda a gente que tem um tio como eu tive ou ainda tenho, um filho como o Márito, uma filha como tu, uma amiga como a Teca, uma coberta de maravilha pendurada na parede da sala. Pensa no que tens e não no que não tens, ama o teu marido no teu coração, mas outros dias hão-de vir, com as suas alegrias e as suas tristezas e de todos hás-de tirar uma lição, uma inspiração, um proveito, uma amargura ou um sorriso. Não andamos cá para compreender, mas para tentar sermos felizes.

Não me lembro de ouvir a minha mãe falar tanto de uma vez só. Talvez por isso as suas palavras, de que se fazia avara, tiveram um efeito calmante na Diamantina. Subiu ao sótão, foi-se deitar na sua cama de solteira. Era dia e não viu a estrela pela frincha das telhas. Saudosa de reencontrar a sua guia da infância, o dedo aceso do anjo que tantas vezes a iluminara, pediu à minha mãe para dormir na Pedra Moura.

A Teca também ficou. A Margarida estava feliz, foi buscar os lençóis de que sacudiu as sementinhas de alfazema, foi colher dálias ao quintal, meteu biscoitos no forno.

Tivemos um serão quase alegre, jogámos cartas, cantámos a vozes modas alentejanas. Já tarde, pensámos em dormir.

Bem, vou ver a minha velha estrela, disse a Diamantina.

Mas o céu estava enevoado, a compor uma pesada tempestade e a estrela faltou ao encontro.

Foi um Inverno triste. Entre outras coisas, comecei a ter cada vez mais assuntos profissionais a chamarem-me a Lisboa, acabei por montar um escritório no velho andar do Campo Pequeno. A maior parte das vezes a Teca acompanhava-me, apesar de eu insistir que ficasse a fazer companhia à Diamantina, agora muito só.

É só nela que pensas, Mário, nunca em nós. Deixa-a estar um bocado sozinha, faz-lhe bem, talvez perceba que lhe fazemos falta. Estou um pouco cansada, percebes? Não dela, mas da tua atitude. Bolas, Mário! cada um tem que viver a sua vida e não podemos viver a dos outros. Eu gosto muito da Tina, ela sabe que pode contar comigo para tudo, mas tens que concordar que ela é egoísta. Pois vamos dar-lhe tempo, não foi o que ela pediu? Fazer umas ausências um pouco mais prolongadas. Em vez de termos de ir sempre de escantilhão para a Atalaia, ficamos por Lisboa, jantamos fora, vamos ao teatro, a um concerto, porque também temos direito à vida. No atelier ela tem a Conceição que me substitui até com vantagem e quanto aos assuntos administrativos não há o menor perigo, que tu estás lá caído todas as semanas.

Compreendi perfeitamente a Teca. Não era a Diamantina que era egoísta, era eu. A Teca merecia bem melhor que um homem que vivia aos pés de outra mulher e a sujeitava àquela dependência.

Tens toda a razão, minha querida. Tens toda a razão. Temos que dar uma volta na nossa vida. Talvez devêssemos casar.

Isso é que é mais complicado, disse a Teca. Isso é muito, muito complicado. Vamos ficar como estamos. Não vale a pena tentar remediar o irremediável.

Corei por dentro e não insisti. Porque no fundo, no fundo, o que eu temia, era que a Diamantina perdesse a amizade da Teca por causa do meu maldito amor.

Na Primavera as coisas melhoraram um pouco. A Diamantina recuperou o sorriso, já lhe ouvíamos, aqui e ali uma crítica mordaz, os pássaros baços do Inverno começavam a ter cores mais vivas e olhares mais expressivos e no Verão, por insistência minha, fechámos a casa da vila e fomos para Cascais.

Numa tarde de Agosto, lembro-me que chuviscava, porque estávamos a lanchar dentro de casa uma mistura de sumos de fruta, especialidade da Tiana e travesseiros de Sintra, a Júlia veio dizer que estava ali um senhor para falar com a Diamantina. Um senhor? Que senhor? É um senhor, diz que se chama Sebastião Figueiredo Bruno. Não conheço, o que é que ele quer? Diz que quer falar pessoalmente com a senhora e a mim parece-me que ele tem muito bom aspecto. Bom, manda lá entrar.

Eu peço imensa desculpa de vir assim sem avisar, mas foi quase um impulso, queria muito...

Alguma coisa na sua fisionomia me era perfeitamente familiar, contudo não conseguia situar onde nem como...

Bom, acho melhor ir directo ao assunto. Tina, olhe bem para mim. Sou o seu irmão Sebastião.

Tal como nas telenovelas da D. Joaninha, o irmão desaparecido voltava para os braços da irmã.

Desculpe, se nem eu sei onde pára o meu irmão, se me disseram, lá na minha terra, que ele tinha sido adoptado e nem na Misericórdia de Castelo Branco...

Tina, olhe bem para mim, querida.

Olhámos todos com atenção. Ele era a cara da Diamantina, igualmente bonito e quase tão feminino como ela.

Contou então a sua história.

Tinha sido adoptado por gente rica do norte, a tal família Figueiredo Bruno, o pai era cheio de negócios, a mãe cheia de vida social.

Os meus pais deram-me tudo. Computadores, póneis, barcos, motos, automóvel antes da idade. Na infância, colégios caros e ama inglesa. Deram-me viagens e roupas de costureiro. Só se esqueceram de me amar.

Era como se me tivessem comprado para preencher uma função: tirar um curso de gestão de empresas no estrangeiro para dirigir os negócios do meu pai, herdar os milhões dele um dia mais tarde, para evitar que tudo fosse parar a um sobrinho que eles odiavam porque era homossexual.

Sorriu.

O sobrinho foi o meu primeiro namorado, acho que aquela gente não tinha sorte nenhuma.

Foi com esse primo indesejável que fumei o meu primeiro charro, que snifei a minha primeira coca. E foi também por causa dele que fiz uma desintoxicação em Inglaterra e deixei a droga de vez.

Por causa dele?

Sim. Ele morreu com sida, mas não se assustem: apanhou a doença no Rio de Janeiro, muitos anos depois dos nossos jogos adolescentes.

Era óbvio que eu não tinha vocação para gestor de empresas. Gostava de desenhar e dediquei-me à moda: criava e passava os meus próprios modelos.

Um dia o meu pai, talvez por eu não ter saído igual ao protótipo que encomendara ou porque as dívidas à segurança social lhe fizeram balançar a estrutura, perdeu a cabeça e suicidou-se. Fui eu que o encontrei pendurado numa trave da adega, onde guardava os seus mais preciosos vinhos.

A minha mãe concluiu que eu era culpado de tudo e expulsou-me de casa. Eu tinha vinte e seis anos e já era modelo internacional. Larguei o negócio das roupas, que não era grande coisa e fui viver para Milão.

No Verão do ano passado voltei a Portugal porque a minha mãe morreu. Vendi tudo e estou de partida para São Francisco da Califórnia onde tenciono morrer dos rendimentos.

Morrer?...

São Francisco é uma cidade perigosa e eu não tenciono voltar.

Meu Deus! Acho-te horrivelmente frio.

Não se iluda, mana. Isto é só fachada. Educação inglesa que me deu a minha nanny, que se chamava Kitty...

Riu-se. Kitty!...

Mas no fundo, no fundo, tal como a mana, eu sou um esteta, um artista em busca de respostas.

Que era um sujeito esquisito não havia dúvida nenhuma. Deixou-nos a todos um bocado gelados, até que a Teca se lembrou de perguntar, E como é que descobriu a Diamantina?

E ele, muito elegante, muito senhor de si, a comer com um garfinho de bolos o seu travesseiro de Sintra, explicou, Eu sempre soube que não era filho deles, que o meu apelido anterior era Flores... Flores! e que tinha uma irmã chamada Diamantina. Para mim Tina, não me lembrava dela, mas lembrava-me do nome. A minha tia avó que me criou em Canas Velhas não me deixou esquecê-lo.

Tinha cinco anos quando me adoptaram, quase seis. Era esperto e lembro-me de tudo. Do espanto de entrar naquela casa rica, dos banhos que me deram, dos vermicidas malcheirosos que me puseram na cabeça, dos exames médicos a que me sujeitaram. Eu, não sei porquê, chamava pela Tina, achava que a minha irmã devia morar naquela casa, a Kitty perguntava Who's Tina, love? e eu percebia Justina e emendava, não é Justina, é Diamantina, a minha mana.

Então, todos souberam desde sempre que eu tinha uma irmã chamada Diamantina.

Quando a mana se tornou célebre, aventou-se a hipótese de se tratar da minha irmã, porque era alentejana e como eu, artista. Mas era pouco! Só o ano passado, por ocasião da sua exposição, quando vi o seu retrato em vários jornais e revistas, soube, pela semelhança, que só podia ser a minha irmã.

Peguei e larguei várias vezes o projecto de a procurar. E foi quando tomei a decisão de partir para a Califórnia e não voltar, que me pus a pesquisar o seu paradeiro e a sua morada e vim ter aqui. Levei meses, mas tive sorte.

A Diamantina deve ter ficado tocada por esta fraternal persistência, porque perguntou, Estás hospedado aonde? No Hotel Palácio do Estoril. Muda-te cá para casa, vou dizer à Tiana que te prepare o quarto. Isto é... estás sozinho? Mais ou menos, disse ele.

Bom. Então vem almoçar amanhã.

Obrigado, mana. Posso trazer um amigo?

Amigo? Podes, mas só para almoçar. Venham por volta do meio-dia, se querem dar um mergulho na piscina.

Sebastião era um homem do mundo, percebeu que estava a ser despedido. Apertou a minha mão, beijou a da Teca, abraçou a irmã. Até amanhã, disse sobriamente. Ouvimos roncar o Ferrari, não foi preciso olhar para pôr um preço àquele ronco italiano.

Pode ser um impostor, disse a Teca. Acho a história dele demasiado bem contada.

Se fosse um impostor, disse eu, inventava de si próprio uma imagem mais favorável. Não precisava de dizer que era gay e ex-drogado.

Talvez seja esse raciocínio que ele quer que tu faças. E como se vê à légua que é gay, achou bonito assumir.

E o que é que tu fazes da parecença dele com a Diamantina, do pormenor da tia avó de Canas Velhas? E o que é que um tipo rico, com aquelas roupas e um carro de quarenta mil contos pode querer daqui?

Há muita vigarice, disse a Teca.

A Diamantina assistiu em silêncio à nossa discussão, ouviu os nossos argumentos, pensou um pouco a fazer desenhos no prato com as migalhas do travesseiro e por fim levantou-se e disse, Vou preparar o quarto do meu irmão.

Isto pôs um ponto final no assunto. Se não era irmão, naquele momento passou a ser.

Estas recordações daquele Verão de há dois anos fazem-me voltar atrás àquele outro Verão em que a Diamantina não se tirava de cima das árvores, a analisar as folhas.

As figueiras estavam-lhe interditas. A Minha mãe dizia que a sua sombra fazia sezões, os figos, comidos quentes, revolviam a barriga e os ramos partiam-se com facilidade. Mas a Diamantina não fazia caso. Não caí, não tenho sezões nem dores de barriga. Faço só como eu quero e não me acontece nada.

Era uma vez dois perdigotos, disse o tio Zebra, que a ouviu: O perdiz e a perdizia bem os acautelavam dos cães de caça e se um, ouvindo os latidos, se acagaçava no ninho, o outro saía a depenicar as beberas que a abebereira largava no chão.

Também gostava de se espanejar nas folhas e se o sol batia, ali dormitava como reizinho em seu brocatel. Não vás para longe que os perdigueiros comem-te, dizia-lhe o irmão. E quem são esses, dizia o perdigoto. Quero olhar bem para eles e ver se se atrevem comigo. O perdiz e a perdízia não sabiam que fazer com este filho insensato e viram que o destino dele estava traçado, há os que só aprendem quando já é tarde demais. E veio o perdigueiro e o abocanhou e o levou ao dono, que sem atender a seus pipilos o considerou pequena garfada para o seu prato e o deu ao cão que lhe chamou um figo.

Não sou nenhum perdigoto, disse a Diamantina. E correu a pendurar-se no ramo alto da figueira, que se quebrou e ela caiu e rachou a cabeça.

No dia seguinte vimo-los chegar, o Sebastião e o amigo, saídos da página de moda masculina da Vogue e a Teca disse, Meu Deus, que é isto! e a Diamantina, Não há como os maricas para se vestirem bem.

Aproximaram-se com um ar descontraído, a Diamantina levantou-se para pôr duas cadeiras de estender a jeito e o amigo do Sebastião apressou-se a ajudá-la.

Mana, este é o Chico Ruço.

Ruço devia ser alcunha porque ele era louríssimo, os olhos de um azul impossível, cor de cobalto, cor de azulejo, cor da camisola que trazia, realçados num bronze que devia ser conseguido com mil horas de exposição a lâmpadas ultravioletas.

Mana, este é o Chico Ruço.

Francesco Rossi, os portugueses corrompem tudo, até os nomes.

Quer dizer que não é português?

Mãe portuguesa e pai italiano. Residência em Milão, coração em Cascais.

Gosta muito de Cascais, é?

Não. O que eu quero dizer é coração aqui mesmo, aqui, em Cascais, aqui, aos seus pés.

Que audácia, disse a Diamantina. Deu meia volta e entrou em casa.

Mário Oliveira, disse eu.

Maria do Castelo, disse a Teca.

Encantado, disse o Rossi, ou Ruço, ou lá quem quer que ele fosse.

O Chico é muito engraçadinho, ironizou o Sebastião. Tem uma costela rasca napolitana que lhe torna os piropos compulsivos.

Desculpa, Sebastião, e com muito respeito pela senhora aqui presente, mas a tua irmã é uma mulher magnífica, se fosses homem havias de perceber isso, mesmo admitindo que ela seja tua irmã.

Pois, disse o Sebastião de trombas a despir a roupa e a mergulhar na piscina.

Coitado do Sebastião, tem por mim uma paixão sem esperança, mas o que hei-de fazer, eu gosto de mulheres.

Eu e a Teca teríamos dispensado esta conversa tão explícita. Para os provincianos que nós éramos, aqueles dois pareciam dois malucos. Percebemos o erro da Diamantina ao convidar o suposto irmão para dentro de casa. Mas ela, como o perdigoto, só aprenderia na boca do perdigueiro.

O Chico Ruço despiu-se por sua vez. Estava bronzeado todo por igual, via-se que cuidava muito do físico, que perdia com isso uma boa parte do seu tempo e quando não estava a dizer baboseiras às mulheres, devia estar num ginásio agarrado a aparelhos de toda a sorte. Mas apesar de tudo não era atlético. Só perfeito.

A Júlia veio chamar-nos, dizendo que o almoço estaria servido dentro de meia hora, dando tempo para o duche e para o aperitivo.

A Diamantina tinha desaparecido e só voltou quando nos sentámos à mesa. Tinha trocado os jeans e a T-Shirt por um vestido de linho cru. Estava levemente maquilhada e os cabelos que conservava negros embora um ou outro fio de prata ameaçasse espreitar, vinham apanhados atrás em rabo-de-cavalo.

Sentou-me à sua direita, o Sebastião à esquerda, a Teca à minha direita, o Chico Ruço à esquerda do Sebastião. Se isto era uma manobra para pôr o atrevido longe dela, não resultou, porque a mesa era redonda e ele ficou praticamente na sua frente. Eram ambos convidados educadíssimos e comiam com maneiras requintadas, mas havia uma respiração animal na forma como o Chico saboreava a comida, no olhar que pousava insistentemente na dona da casa. Aquilo incomodava-me, mas a Diamantina nem uma só vez se deu por achada. Conversava descontraidamente, sem nunca o fitar mais do que o necessário.

Ficaram quase toda a tarde e ela voltou a desaparecer nos confins da casa.

O Sebastião já lá ficava nessa noite. A sua bateria de malas e sacos de marca, todos iguais, cor de camelo com a inicial em crocodilo, já estava arrumada no quarto que lhe destinavam.

A Teca foi chamar a Diamantina quando o Chico fez menção de se despedir.

Queres ver o meu quarto, perguntou o Sebastião entretanto.

E por que é que eu havia de querer ver o teu quarto? Numa casa destas, com pessoas tão maravilhosas, só podes estar magnificamente instalado.

Diamantina entrou sobre estas palavras. O Chico Ruço beijou-lhe a mão, agradeceu polidamente o almoço e partiu no seu carro consideravelmente modesto em confronto com o bólide do Sebastião.

Não voltes a trazer este teu amigo cá a casa. Achei-o horrível e muito mal-educado.

Eu não trago, mana. Mas ele vai voltar.

É simples. Mando o caseiro pô-lo fora.

Mas o Chico Ruço voltou e ninguém o pôs fora. Chegou no dia seguinte ao fim da manhã com uma imensidão de flores para agradecer o almoço da véspera. Foi ficando, convidou-se, disse amabilidades à Júlia, discutiu pintura com a Teca, a situação política na Itália comigo, reservou para a Diamantina algumas banalidades sociais e não ligou nenhuma ao Sebastião.

Veio quatro ou cinco dias seguidos. Depois ficou uma semana sem aparecer.

O que é que aconteceu ao teu amigo, perguntou a Diamantina num tom casual.

Vá-se lá saber, disse o Sebastião. Deve ter arranjado uma ricaça qualquer, uma velha estrangeira, ou coisa assim.

Mas ele não é modelo?

Claro que é, claro que é, mas até ao Outono há pouco trabalho... E o Chico gosta de viver bem.

Estás a dizer que ele é chulo? E tu estás apaixonado por um chulo? Coitado de ti!

Olhe mana, é como diz a D. Madalena do Frei Luís de Sousa, Não está em nós dá-lo nem quitá-lo, amigo... Mas o Chico não presta, realmente não presta.

Não serás tu que estás um bocadinho despeitado?

Antes assim fosse, mana.

Quero lembrar-te que foste tu que o trouxeste cá a casa...

Tem razão. Não devia ter trazido. Mas vou no dia 16 de Setembro para a Califórnia e espero que ele vá comigo ou desapareça de vez.

E por que é que ele havia de ir contigo se está sempre a achincalhar-te?

Porque o Chico é mesmo assim. Finge que gosta, finge que não gosta... e de repente, quando menos se espera, dá-lhe um ataque de cio e faz das pessoas o que bem lhe apetece.

Estás a ser ordinário.

Desculpe, mana. Quem me dera que isto fosse mentira.

O Chico apareceu no dia seguinte, apressado, com o cabelo louro-branco superlavado caído nos olhos, que para variar rimavam com o pólo lilás. Vinha só dizer ao Sebastião que partia com ele para São Francisco, tinha apenas uns assuntos a tratar, vender o carro, ir a Itália terminar umas coisas, mas no dia 16 estaria no aeroporto à hora certa. Sobre isto despediu-se. Mas a Diamantina insistiu que bebesse um misto de sucos, ele não resistia às vitaminas, ficou mais um pouco. E inesperadamente o Sebastião, de novo seguro de si, de novo dono do mundo, disse assim,

Nunca perdoei ao meu pai ter-se enforcado na trave da adega.

Ficámos todos gelados.

Acho, continuou, que ele devia ter morrido a fazer pesca submarina nos mares do sul, electrocutado por um peixe eléctrico.

Enlouqueceu, disse o Chico.

Assim, eu podia dizer que o meu primeiro pai morreu fulminado por um raio e o segundo fulminado por uma raia.

Que horror, disse a Diamantina.

E de repente deu-lhes, à Diamantina e ao Sebastião, um enorme ataque de riso, desataram os dois a rir como doidos, a apertarem-se as mãos, a gostarem-se, eu e a Teca tivemos a certeza de que eles eram irmãos de sangue, a mesma excitação, a mesma sensualidade, a mesma gargalhada funda, o mesmo humor cruel.

O Chico resistiu à onda de riso contagioso e ficou a observar a Diamantina, com os seus olhos daquele dia, azul-lilás, a morder o dedo indicador, a outra mão apoiada no copo de sumo colorido e todo ele era a imagem da inocência.

Que idade tem o Sebastião, perguntou a Teca, a passar-lhe um atestado de menoridade mental. Trinta e cinco, disse o Chico enquanto os outros continuavam a rir como tontos, menos um ano certinho que eu. Curiosamente nascemos ambos no dia 1 de Junho. Duplamente gémeos, se não tivéssemos um ano de diferença.

Voltou a morder o dedo, voltou a fitar a Diamantina que limpava as lágrimas e pedia ao irmão que se calasse.

Depois o Chico despediu-se, agradeceu todas as atenções, lembrou que provavelmente não voltaríamos a ver-nos, apertou as duas mãos do amigo, deu-lhe um beijo na face e disse-lhe, até ao dia 16, tenho o voo, tenho a hora, conta comigo e porta-te bem.

Beijou a mão às senhoras, deu-me uma forte palmada nas costas e partiu.

Nos dias que se seguiram foi preciso explicar o Sebastião aos amigos, era um pouco complicado, mas de qualquer modo ele partia daí a dez dias e o mais certo era cair no esquecimento.

Adiámos a ida para o Alentejo, que costumava ser a 15 de Setembro para uma semana mais tarde, a Diamantina escreveu à Conceição pedindo-lhe que abrisse o ateliere que começassem a trabalhar, que nós não tardávamos, tinha havido apenas um pequeno imprevisto.

O Sebastião espalhava o seu charme aos quatro ventos, um dia a Tiana disse-me, doutor Marinho, o doutor Sebastião, não é doutor, pois, ele é muito simpático, não precisa de nos dar aquelas gorjetas que valha-me Deus, nós gostamos dele na mesma. Deixa estar, Tiana, ele está habituado assim, são meia dúzia de dias, dia 16 vai para os Estados Unidos, não precisas de te apoquentar. Ó doutor Marinho e o que seja isto dos homens gostarem uns dos outros, aquele namorado dele, ou lá o que é, benza-o Deus, que formosura de homem, mal empregadinho, que desperdício!

A Tiana ria-se do fundo da sua virgindade, já tinha o cabelo quase todo branco, faltavam-lhe dentes e tinham-lhe nascido alguns pêlos no queixo, mas era a mesma mulher desenxovalhada e sem papas na língua que fora capaz de meter na ordem o velho Bento Proença: o esteio da nossa pequena família, onde quer que estivéssemos.

A minha mãe tinha-me dito um dia, enquanto a Tiana estiver por perto da Tininha eu fico descansada, está bem entregue, aquilo é como se fosse um anjo da guarda.

Era uma vez um catraio, disse anos atrás o tio Zebra, que cegava a mãe com tanta tropelia e diabrura. Ia a banhar-se no rio e obrigava o seu anjo da guarda a molhar as saias para tirá-lo de lá, ia a empoleirar-se no mais alto das árvores e lá tinha o anjo de bater as asas para o pousar em terra firme, ia para a linha do comboio e lá ficava o anjo com os canudos em palmito para pescá-lo da ventania da máquina, ia a meter-se na toca do lobo e tinha o anjo de acender a auréola para assustar o bicho, até que um dia disse ao catraio, vê se me dás descanso que eu tenho vinte mil anos e estou esfalfado da correria em que me fazes andar, vê se cresces, moço, que um anjo não é de pau. O moço pouco melhorou, andou o anjo naquela estafadeira anos e anos até que o moço cresceu e deu de se apaixonar por uma feiticeira que atraía os homens e os comia e deitava os restos às suas hienas gargalhosas. Quando o moço ia a entrar na sua gruta o anjo perdeu a compostura e começou a dar-lhe carolos e a gritar, se entras aí não te posso valer, que essa mulher tem parte com o diabo e aqui à porta se acaba o meu poder. Mas ela saiu a esperá-lo, era tão linda que até o anjo estremeceu na sua alvura, levou o moço para dentro e o pobre guardião ficou à porta a arrepelar os caracóis em desespero. Passada a noite, a feiticeira deitou fora os pedaços do moço que lhe sobraram e antes que viessem as hienas gargalhosas o anjo ali o costurou, já não era o moço de antigamente, faltava-lhe a melhor parte da carne, mas ainda mexia e disse ao anjo:

- Bendito por me protegeres e me coseres os bocados, mas em verdade te digo, se não tivesse ido lá de rojo a conhecer o diabo em forma de mulher, não te conhecia agora a bondade em forma de anjo. E seguiram o seu caminho e nunca mais se desavieram.

Por sempre me acudirem as suas histórias ao pensamento é que eu penso que o Tio Zebra não morreu, sublimou-se e ficou imortal e mais vivo que nunca na nossa alma e na nossa memória.

No dia 16 de Setembro o Sebastião despediu-se, a mana acredite que foi maravilhoso conhecê-la, vocês também, obrigado por tudo, Então e o carro? Vendi-o, vai o novo dono apanhá-lo ao aeroporto, o Chico tratou de tudo, que ele sabe dessas coisas, É verdade, ele também vai, sejam felizes e escreve, se tiveres vontade.

Fomos para a piscina apanhar o último sol da tarde, a Diamantina não se despiu, ficou a passear de um lado para o outro, silenciosa e perturbada.

Estás triste, perguntou-lhe a Teca. Estou. Acho triste ganhar um irmão e perdê-lo logo a seguir. A verdade é que fiquei a gostar dele e vai fazer-me falta. É natural, também nós gostámos dele e queríamos tê-lo conhecido melhor. A vida tem coisas que me custam a perceber. Aliás a minha vida tem montes de coisas que me custam a perceber.

Anima-te, rapariga. Vem dar um mergulho e a seguir vamos lanchar.

Não me apetece.

Não insistimos. Nadámos, merendámos, ela folheava revistas sem as ler, pousava-as, ia a casa buscar mais.

E de repente ouvimos o ruído de um carro, os passos de alguém que vinha pisando a relva ao lado da piscina.

A Diamantina levantou-se, recuou dois passos e encostou-se ao muro numa atitude defensiva, como se estivesse prestes a ser assaltada.

Estava.

O Chico Ruço avançou para ela, segurando com as duas mãos, à altura do queixo, um raminho de violetas de que os olhos tomavam a cor.

Tentei partir, disse ele, mas não fui capaz. Acho que estou apaixonado por si.

Ela começou a levantar as pálpebras, fitou-lhe o tronco, as mãos, as flores, a boca, as pupilas azul-violeta daquele dia.

Olhou-o devagar, tão devagar que esse olhar me doeu como um bisturi que me rasgasse lentamente a carne, olhou-o com uma tristeza infinita, perdidamente, com os olhos cheios de trevas e a boca cheia de sol.

Foram para o Hotel Palácio, a Diamantina, como se estivesse hipnotizada não nos disse nem uma palavra, ele foi esperá-la para o carro, que era o do Sebastião, ela entrou em casa, saiu com um pequeno saco, a carteira, os cabelos soltos e desapareceram durante dias.

Muito mais tarde, num dia de lágrimas, soube que o Chico a levou directamente para a cama, a conduziu ao êxtase só de tocar-lhe o corpo nu, que os seus beijos eram como um filtro de ervas embruxadas que a fizeram passar para outra dimensão. Uma dimensão onde perdeu a noção do tempo e do espaço, onde se diluiu qualquer reminiscência de lógica ou ética, onde a leoa dentro dela ocupou toda a cama e atacou, lutou de igual para igual e se deixou vencer.

De madrugada dormiram um pouco e voltaram a amar-se como dementes, ele ensinou-lhe tudo o que podem as mãos, o que pode a boca, o que pode cada centímetro do corpo. Descobriu-se e descobriu-o, a beleza dele fazia-a chorar de prazer. E silenciosamente, de olhos fechados, deixava que sensações perturbadoras a possuíssem e lhe corrompessem o imaginário.

No segundo dia, depois de terem comido no quarto, às três da tarde, qualquer coisa parecida com um pequeno-almoço, ele disse-lhe, Agora quero-te de olhos abertos. Quero que me vejas sempre, como eu te vou ver a ti. Quero que te passes para o outro lado sem ser preciso fechares os olhos. Sou o teu homem, amo-te, vamos enfrentar este amor náufrago, esta cama desfeita, este fio da navalha, este arrepio.

E foi ainda melhor, entrou no âmbito da loucura e do abismo e já era paixão.

Ao terceiro dia decidiram descer para jantar. Não falharam nenhum dos jogos que o banho permite, tinham prazer em exibir-se um para o outro, pela primeira vez Diamantina assumia a beleza plena do seu corpo com um orgulho de fêmea, vestiram-se, perfumaram-se, jantaram, os sentidos alerta para todos os aromas e para todos os sabores.

Durante o jantar ele disse, Agora quando voltarmos para a cama, vamos usar as palavras. Vou dizer-te tudo o que me vier à cabeça e tu fazes o mesmo. Tudo, não importa o quê. Palavras, não importa quais.

A saborear lentamente a sobremesa, tonta do requinte da comida e da excelência do vinho, deu consigo a desejar palavras.

Simão era calado e brusco, nunca lhe dissera mais que toma ou e agora. Os seus amantes tinham-lhe pronunciado ao ouvido sílabas estrangeiras. Apeteciam-lhe sussurros em português, palavras inventadas, palavras-fonte, palavras-espuma, palavras-sombra, palavras veladas, palavras despidas, palavras apaixonadas umas pelas outras, palavras com todas as letras em estado de choque, palavras com todas as sílabas amotinadas, palavras de prece, palavras de amor.

Aceitou.

No primeiro dia, ainda tímida como uma noiva, não tinha olhado enquanto ele se despia. Agora, impudica, deitada na cama a palpitar de urgência, analisou cada um dos seus gestos.

Ele tirou a roupa com elegância e o seu corpo nu era bem a prova da existência do deus que criou o homem e ao sétimo dia descansou. Olhou-a sem a tocar e disse, Bicho bonito, bicho doido do fundo da gruta, quando é madrugada e as folhas têm colares de pérolas que lhes dá o orvalho. Mas tu não és uma folha, és um bicho vivo, quente; tira as pulseiras, os brincos, esse fio de ouro, quero-te nua e não estás nua, estás cheia de símbolos de classe social e estatuto económico e agora não és nada disso, és só um bicho, soberbo, felino, em pleno cio.

Ela obedeceu, sem tirar os olhos dos seus olhos azuis daquele dia, que sem roupa que lhes desse o tom, eram cinzentos com uma gota de mar.

Ele procurou a boca dela pelo caminho das coxas, do ventre, dos seios, dos olhos, das orelhas, purificou-se na humidade dos lábios, disse palavras tontas, cântaro, barco à vela, putana, fada, gueisha, camélia, tangerina, iniciou o caminho de volta, enquanto as mãos ensaiavam voos de gaivota na praia, pelos ombros, as costas, as nádegas. E os dedos festejavam e dizia palavras.

E o corpo dela de tocaia suspenso entre o céu e a terra, oferecendo o seu avesso àquela língua sábia, àquele pénis inventor de viagens, enquanto o coração, ai dele, se afogava em marés ilimitadas.

A sua branca, feminina garganta navegou em todos os cambiantes do murmúrio e do grito e na hora vermelha, solta de todas as amarras, ouviu-se dizer palavras espantosas, morde-me, inunda-me, mata-me, quero que todos saibam que sou a tua coisa, a tua fêmea, a tua égua, a tua puta, ai.

Ao quarto dia ele disse, Agora vamos ver se ainda há mundo lá fora, se rebentou uma guerra, se deitaram a bomba nuclear, se fomos invadidos pelos marcianos, se está sol.

Paga a conta, disse ela, ficas na minha casa, no meu quarto, na minha cama.

De momento não posso, disse ele. Estás à espera de alguém? Não é isso. Eu posso ir, o que não posso é pagar a conta, que não deve ser pequena. Adiantei parte do dinheiro do carro ao teu irmão e só quando vier o novo dono, lá para terça-feira, é que refaço a minha conta bancária. Não te preocupes, são uns milhares de contos que vão entrar.

Eu tenho de ir para casa e não posso ir sem ti. Estamos de partida para o Alentejo, há assuntos a resolver. Já devem pensar que eu morri.

Vejo que desceste à terra, disse ele com um sorriso mau. Deu-te com força, mas passou-te depressa.

És completamente doido. Se te digo que não posso ir sem ti, que te quero comigo! Faz as malas que eu vou pagar a conta, não tem a menor importância, dás-me depois.

Tens a certeza de que queres fazer isso, olha que é muita massa. Como deves calcular esta suite não é barata.

É indiferente, Chico. Quero lá saber da conta! O que eu quero é que venhas comigo, que não me deixes, que não me traias, que não me abandones.

Está bem, disse o Chico, pousando sobre a cómoda um necéssaire cor de camelo, com um S aplicado em crocodilo.

O Sebastião esqueceu-se disto, agora é meu.

Diamantina sentiu um ligeiro arrepio. Acabava de substituir o irmão na cama do Chico, tudo aquilo era sórdido, ela soubera sempre a verdade, mas tinha feito por não a consciencializar.

Agora era tarde. Mais valia esquecer os pormenores ambíguos. Estava contaminada pela amoralidade do Chico e perdidamente apaixonada por ele.

À hora do almoço o Chico deixou a Diamantina ao portão, disse-lhe, Guarda-me um lugarzinho à mesa que eu já venho, arrancou como se estivesse no autódromo, fez-nos esperar cerca de uma hora, voltou a pé.

Estávamos de malas aviadas para regressar ao Alentejo, era dia 20, a Teca perguntou, Tina, tu vens? Claro, não havia de ir porquê, o trabalho não se faz sozinho.

E aquilo que nós mais receávamos aconteceu, na hora da partida o Chico Ruço apresentou-se de armas e bagagens, Espero que tenhas lugar para as minhas tralhas, que eu, como já sabes, estou sem carro.

Passo por alto o escândalo da presença do Chico em Castelo de Vide, ele estava longe de ser discreto, ficava pelos cafés, andava de carro pelos arredores, quando aparecia na Atalaia era um desassossego entre as mulheres, é claro que ele não aguentou mais de um mês, apesar de utilizar a casa como se fosse o seu reino e a Diamantina como se fosse a sua escrava.

Eu andava doente com tudo aquilo, comecei a sentir-me mal fisicamente, a minha velha dor no peito voltou, sabia que devia pôr o cigarro de parte mas fumava cada vez mais.

Tens que ir ao médico, dizia a Teca. Mas eu desculpava-me, dizia que queria ir ao meu médico de Lisboa, ele tinha lá os exames todos que eu tinha feito ultimamente, isto é, há meses atrás e a cujo consequente tratamento não tinha ligado nenhuma. A minha mãe achava-me magro, dizia que os fatos me dançavam, mas já se sabe como são as mães.

O certo é que no princípio de Novembro a Diamantina nos pediu que tomássemos conta da Diamant., porque ela ia com o Chico para Cascais, ele não tinha feitio nenhum para viver na província e ela, nós compreendíamos, não é verdade, não podia separar-se dele, era o mesmo que morrer, estava apaixonada pela primeira vez na vida e nada no mundo era mais importante que aquele amor.

Desapareceram na curva da estrada, a uma velocidade que nos deixou petrificados, daí a bocado estava a Diamantina ao telefone a dizer à Teca que tinham chegado bem, já estavam em Cascais, o que nos deixou aliviados, tínhamos achado altamente improvável que eles chegassem vivos ao segundo quilómetro.

Nunca mais deram notícias.

Passadas três semanas a Tiana pediu-me que passasse lá em casa e declarou-me que ia para Cascais, porque alguma coisa estava muito errada em tudo aquilo. Ofereci-me para levá-la, nem pensar, ia de comboio, achava que eu não devia estar perto do que quer que se passasse e que fazia falta ali se não for o doutor Marinho e a menina Teca o que é que vai ser da gente.

Com que então eu era a má da fita e a costureira é que era uma maravilha de pessoa, rejubilou a D. Joaninha no intervalo da novela. Ora viste como eu tinha razão? Gente ordinária é gente ordinária, aqui, na China ou debaixo de água.

O Simão coitadinho deve estar a dar voltas na tumba! Aquela galdéria sem perdão, trazer o amante para a casa que o marido generosamente lhe ofereceu. Foi o que o Simão ganhou em me expoliar para dar àquela vaca cheia de linhas, um par de chifres depois de morto, o meu pobre filho não teve sorte nenhuma.

Ó Teresinha, não haverá uma maneira de eu ir a Tribunal para reaver tudo a que tenho direito?

Não sei, Joana. Quando o Simão morreu ela pôs a casa à sua disposição, a menina é que não a quis. Naquela altura é que era ter aproveitado, que ela dizia que só queria a Atalaia e a Casa de Cascais. Por outro lado ela é viúva, não me parece que seja crime ter um namorado.

Ai, porque você acha muito bem, já percebi! Estão todos contra mim.

Não, Joana, não acho nada bem. Viúva é viúva e essas coisas todas, já se sabe. Mas se você tivesse visto o homem... Coisa para enlouquecer qualquer uma! Joaninha, ouve querida, ele é de cair para o lado, como elas dizem, aí nas tuas novelas, lindo de morrer!

Acho essa conversa inqualificável, Teresinha. Vamos lá mas é ver se o Wanderlei sempre confessa tudo à Bruna, dizem que é hoje. Olhe, olhe a Regininha a vomitar! Eu não disse que ela estava grávida?

Tiana chegou a Cascais com a sua maleta e Diamantina, que estava sozinha em casa, abraçou-a admirada.

Aconteceu alguma coisa?

Não, menina. Fui eu que me pus a pensar que a Aurora caseira não é grande coisa para as limpezas e para cozinhar muito menos. E a verdade é que eu não estava lá a fazer nada. Para limpar uma casa desabitada, a Júlia chega muito bem. E a menina Tininha como está?

Estou óptima, Tiana. Nunca fui tão feliz na minha vida. O Chico ... O Senhor Chico é uma pessoa maravilhosa, tão alegre, tão meigo...

Ele não está?

Foi tratar de uns assuntos dele, mas vem jantar. Já que chegaste vamos fazer-lhe uma surpresa, uma comida especial. E um doce. Ele gosta de doces.

Mas o Chico não veio jantar. Ficou tudo a perder a graça no fogão e quando a Tiana se deitou ele ainda não tinha chegado.

Aconteceu qualquer coisa, disse a Diamantina. Ele nunca me fez isto. Quando não vem, avisa.

Mas esta foi só a primeira de muitas vezes. Chegava tarde, calava-lhe os protestos com beijos, levava-a para a cama, resolvia o assunto com os seus inexcedíveis talentos. Diamantina perdoava e ainda lhe ficava grata. Tinha tanto medo de o perder que preferia não perguntar nada, não fosse correr o risco de o fazer zangar.

Mas ele nunca se zangava, estava sempre alegre, brincalhão, sorridente, chamava-lhe bicho bonito, cisne, pantera, dava-lhe a volta com o seu sorriso irresistível, com os seus olhos da cor de cada dia: azul, cinzento, verde-água, violeta, cobalto, turquesa, indigo, lilás.

Um dia, excepcionalmente, veio jantar cedo e mostrou-se triste. Calado, o olhar distante, mal provou a carne e recusou o doce.

Estás doente, amor?

Estou chateado. Não é justo eu não ter um carro meu.

Ó Chico? Quantas vezes já te disse para comprares um carro?

Para comprar uma porcaria dum carro, prefiro andar no teu.

Mas então o dinheiro do Ferrari que adiantaste ao Sebastião? O outro não te pagou?

Não, vê lá tu! São uns milhares de contos e eu aqui a fazer figura de chulo!

Que disparate, Chico? Não digas isso que eu não gosto. Vê lá que carro queres, se eu não puder pagar a pronto compra-se a prestações.

A prestações? Estás maluca? Achas que eu sou um pacóvio da classe média para comprar coisas a prestações?

O que é que havemos de fazer, os carros de que tu gostas são todos caríssimos...

Detesto ouvir-te esse tipo de discurso mesquinho, Tina. Tu és uma rainha, tens que ter a grandeza correspondente à tua beleza, ao teu talento! És o tipo de mulher que se um dia ficares arruinada, vais de Rolls-Royce vender o teu último brilhante! Ela riu, é claro.

Amo-te, disse ele. És a mulher mais linda do mundo. Põe-te chiquérrima e provocante e vamos ao casino tentar a nossa sorte na roleta.

Será boa ideia? É só hoje, sem exemplo.

Beijou-a, meteu-lhe uma mão por dentro da blusa, outra pelo cós da saia, pões-me louco, não te sei resistir, vai-te arranjar, vai, antes que eu perca a cabeça aqui mesmo diante da Tiana, é só hoje, prometo, sinto-me com sorte.

Ganharam. Nada que se comparasse com o que ele pretendia, em todo o caso soube parar a tempo. Não era um jogador.

Quis dividir o dinheiro com ela mas a Diamantina não consentiu. Não, não. É todo teu. Foste tu que o ganhaste.

Ele soube agradecer com uma noite de amor inesquecível e uma pequena safira pendurada num fio. Depois desapareceu durante dois dias. Menina Tininha, este homem não é para si. Há qualquer coisa naqueles dentinhos de lobo que não me inspira confiança.

Veja lá se ele anda atrás do seu dinheiro e a menina ainda apanha mas é um grande desgosto.

Ó Tiana! Se ele quisesse dinheiro tinha ido com o meu irmão para a Califórnia. Lá é que há gente rica de verdade.

E há outra coisa que me apoquenta... Ele sai por aí... a vida que teve para trás sabe Deus como foi, a avaliar pelas vezes que se metia no quarto com o seu mano, com licença da menina, é capaz de trazer alguma doença má.

O que é que tu queres dizer? Que ele tem sida? Ó Tiana, que disparate, não tem nada, ele fez questão de me mostrar as análises. E mesmo, nós temos cuidado.

Não tinham. E se isso já lhe ocorrera mais de uma vez, Diamantina não se importava de morrer por aquele amor, numa atitude romântica como tinham as noivas dos tuberculosos do século dezanove, ama-me e deixa-me morrer contigo.

Também gostaria de explicar à Tiana que a sida não era mais uma doença de homossexuais, muito pelo contrário, eles eram mesmo o único grupo que se precavia, mas isso seria admitir a bissexualidade do Chico, circunstância que a magoava para além do suportável.

O Chico era só dela. Não precisava de lhe ser infiel, por que razão faria tal coisa? Não o satisfazia ela de todas as maneiras possíveis? Não ia começar a controlá-lo, essa seria a forma segura de o perder. Tinha a certeza de que ele a amava. Todos os dias, todas as noites, lhe dava pequenas e grandes provas de amor.

E beijou a safira que trazia ao pescoço, pensou que aquela pequena pedra era da cor dos olhos do Chico no delírio das madrugadas, antes do sol nascer.

Depois de uma semana de beatitude amorosa, o Chico voltou ao assunto do carro. Fez telefonemas para Itália, falou em voz baixa num italiano rápido, deixou escapar num tom mais agitado as palavras macchina e mascalzone, ficou de cara fechada a roer a unha do polegar e quando a Diamantina lhe veio fazer uma festa, sacudiu-a e disse-lhe com um sorriso mau, não finjas que eu já vi que não gostas de mim. Sirvo-te para a cama, nada mais. Diamantina ficou petrificada.

Como é que podes dizer isso, Chico? Eu deixei tudo por ti, a minha casa, os meus amigos, o meu trabalho...

Ai agora atiras-me à cara os teus belos sacrifícios? Não preciso. Volta para o Alentejo, se quiseres. E não me venhas falar de sacrifícios, não me obrigues a ser mesquinho e a dizer-te quem é que deixou o quê por causa de quem. Eu podia estar rico, percebes? Não precisava de andar numa porcaria de um BMW emprestado. Passo-o para o teu nome, se quiseres! Eu quero lá aquela lata para nada! Não acredito que não tenhas dinheiro para me emprestar. O outro vem cá passar o Natal, traz-me o dinheiro do Ferrari nessa altura, até lá, caramba, podias emprestar, mas não. És uma puta forreta, é o que tu és.

Chico, por amor de Deus diz-me o que é que eu posso fazer. Não queres o carro a prestações e eu já te expliquei que não tenho esse dinheiro no banco. Se quiseres mostro-te o extracto.

Quero lá saber da tua conta no banco. Deve ser uma micharia que só parece muito a pessoas como vocês, que são todos filhos das ervas.

Diamantina começou a chorar. Ó Chico tu não percebes até que ponto eu gosto de ti. Não percebes que eu dava tudo o que tenho para não te perder! Então prova!

Provo como? Quero fazer um cheque tu não aceitas, achas micharia!

Soluçava.

Ele começou a embalá-la nos braços, a beijar-lhe os cabelos, ela sentia-se capaz de tudo para não perder aquele calor, aquela ternura, aquele perfume, queria dar-lhe o mundo, a vida, para que ele acreditasse até que ponto o amava.

Quando estivemos no Alentejo, disse ele com doçura, fartei-me de passear pelos arredores de Castelo de Vide. Aconteceu-me visitar propriedades que são tuas e onde me disseram que nunca pões os pés. Para que é que queres aquilo? Podias vender uma delas, emprestavas-me o dinheiro, no Natal eu pagava-te e se quisesses compravas tudo de novo. Não chega a um mês, vá lá dois, em Janeiro pago-te tudo.

Vendo tudo o que for preciso, quero lá saber das propriedades! Vamos ao Alentejo e eu vendo tudo.

Nem precisas de sair daqui, dá muito nas vistas. Sabes que eu sou bom a vender e comprar, isto do carro foi um acidente, passas-me uma procuração, eu vou lá discretamente e vendo uma daquelas mais afastadas que só servem para teres lá caseiros que te roubam.

O Tremoçal, disse ela.

Que raio é isso?

É aquela propriedade na estrada que vai para o Gavião, grande, com um portal verde. Chama-se Tremoçal, mas não penses que é só tremoço, dá azeite e cortiça, alguém há-de querer comprá-la. Fala com o Mário, ele sabe dessas coisas.

Com o Mário? Estás maluca. Ia logo pensar que eu te estava a meter o golpe do baú, nunca vi gajo mais desconfiado que esse teu primo. Bom, está assente. Amanhã cedo vamos ao notário, fazes-me a procuração e resolvo tudo em dois dias. Isto, claro, se queres mesmo dar-me essa prova de amor.

Quando o Tomás Vaquinhas me procurou, dizendo que tinha um assunto muito grave para falar comigo, estava longe de imaginar o que se passava.

O Tomás, a quem chamavam o menino de ouro porque era uma das maiores fortunas da região, tinha andado comigo na escola e no liceu e era conhecido pelo seu excelente carácter.

Pedia para nos encontrarmos a almoçar no hotel de Portalegre, não queria falatórios ali na vila.

Intrigadíssimo, cheguei pontualmente ao encontro.

O Chico Ruço, instalado na Pousada de Marvão, tinha convidado o Tomás para jantar e propusera-lhe, em nome da Diamantina, a venda da casa de Castelo de Vide. O Tomás pediu-lhe vinte e quatro horas para pensar, ao jantar dar-lhe-ia a resposta.

Mas como, Tomás? Em nome da Diamantina? Ela está com ele?

Não a vi. Mas ele exibiu-me uma procuração passada por ela, perfeitamente legal. Achei melhor avisar-te, isto cheirou-me a esturro, aquele espanhol não me merece confiança nenhuma.

Fiquei aterrado. Estavam certamente a passar-se coisas gravíssimas, mas para já era necessário impedir esta venda, que sorte o Chico Ruço ter procurado o Tomás.

Faz-me mais um favor, Tomás. Compra a casa. Eu vou arranjar o dinheiro para te pagar. Quanto é que ele pede?

Quer o dinheiro hoje mesmo, por isso pede uma ninharia. Isto é, uma ninharia em relação ao valor da casa. É uma quantia redonda, parece ser o valor de uma dívida.

Deu-me um número.

Disse à Teca que tinha de ir a Lisboa para uma emergência. Vais vê-la, disse a Teca. Não aguentas mais. Ás vezes pergunto-me qual é o meu papel na tua vida.

Não vou vê-la, não, Teca. Vou tratar de um assunto urgentíssimo, depois te conto tudo. Não fiques zangada, sabes como és importante para mim.

Fui a Lisboa cobrar algumas dívidas e pedir um empréstimo ao banco, dando como hipoteca a Pedra Moura, o Olival e a Horta. Dava-me um arrepio pensar que estava a arriscar a casa onde vivia a minha mãe, mas tinha que ser. A Diamantina não podia ficar sem casa, à mercê daquele vigarista.

Quando contei à Teca ela não queria acreditar. Discordou totalmente da minha solução. Disse que não compreendia como é que eu punha a Diamantina acima da minha mãe, tentei explicar-lhe que não era a mesma coisa, que uma hipoteca era bem diferente de uma venda irreversível.

Não precisas de me explicar nada, disse ela. Não é só a Tina que está cega de paixão.

O Chico Ruço chegou a Cascais mais meigo que nunca, de camisa verde clara e olhos de turmalina, disse que estava tudo tratado, que ela era a mulher mais maravilhosa do mundo, que a amava como um louco e que no dia seguinte jurava que a ia surpreender.

Surpreendeu.

Tinha comprado um barco, propunha-lhe passeios românticos, a Ibisa, ao sul de Itália, os dois sozinhos, longe do mundo e dos homens, a amarem-se sobre as ondas, à luz das estrelas, em pleno mar.

E o carro?

Para quê um carro quando se tem um barco, em último caso, serve muito bem o teu.

Mas não foram viajar. O barco ficou melancolicamente atracado na marina de Cascais, balançando, nostálgico, naquele prenúncio de Inverno.

Era Dezembro e chovia.

Se a casa voltou para a Diamantina, o mesmo não podemos dizer das colchas, que perderam o inimitável Dê a fio de ouro.

A Teca decidiu mesmo que não se bordassem pássaros, era impossível dar-lhes o arrojo e a dimensão poética que a Diamantina lhes imprimia, diversificaram-se os desenhos, passaram a escrever no avesso Oficina de Diamantina Flores.

Na véspera de Natal, a Diamantina telefonou. Insistimos que viesse passar aqueles dias à Pedra Moura, a minha mãe tinha a ceia preparada na grande mesa da cozinha, coberta com a toalha de linho branco bordada por uma Tininha adolescente, rebrilhava a calda de açúcar, cheirava àquela mistura inconfundível de fritos, açúcar e canela e eram as filhós, os sonhos, as azevias e ainda o manjar branco e os bolos de festa.

Não podia deixar de pensar nos Natais da nossa infância, quando vinha o auto, intitulado presépio com uma Nossa Senhora de barba por fazer e um Menino de celulóide deitado num cestinho cheio de flores de papel. Os pastores batiam vigorosamente o cajado na tijoleira da cozinha, toda a vida fui pastor, toda a vida guardei gado, tenho uma chaga no peito de me encostar ao cajado. E mais olé, de me encostar ao cajado.

Mas a Diamantina não quis vir. O Chico tinha ido a Itália, ela esperava que ele chegasse de um momento para o outro, não lhe ia fazer uma desfeita dessas, logo no Natal, a Tiana tinha a ceia pronta, desejava que estivéssemos bem e mandava todo o seu amor.

O Chico não veio. Ceou com a Tiana que não conseguiu animar a festa, tinha recusado todos os convites para aparecer em casa de uns e outros, foi-se deitar de madrugada com um frio enorme na alma e uma saudade infinita no corpo.

Dormiu até tarde.

Foi acordada por uma buzina desconhecida, desceu em pijama, o Chico tinha entrado o portão ao volante de um Lamborghini branco com o seu sorriso mais feliz e os seus olhos mais azuis.

Recebeste do homem do Ferrari?

Mais ou menos. Queres vir dar uma volta?

Vou-me vestir.

Não vais nada, estás linda assim.

Tiana chegou-lhe o xaile xadrês, ela subiu descalça para o carro, beijou o Chico como doida, voltaste, pensei que já não gostavas de mim.

Foram até ao Guincho, Diamantina pensou que a alma lhe saía pela boca, o carro ia na sua versão descapotável, àquela velocidade era impossível falar, traçou o xaile pela cabeça e dispôs-se a morrer. Entregou-se à velocidade, se morrer, morri, morro com ele, não posso imaginar melhor destino.

Foi só em casa, ainda com o coração a bater e as pernas bambas que conseguiu dizer, vejo que te correu tudo bem.

Claro, Bicho. A mim corre-me sempre tudo bem. Riu-se, mostrou os dentes de lobo, estou a morrer de saudades tuas, vamos para a cama.

Mas hoje é dia de Natal, vêm visitas. Deixa-as vir, quero mostrar-lhes o presente de Natal que tu me deste.

Mas eu...

Foste tu que me deste o carro. Eu sabia que gostavas de mim!

Mas como? Sobrou dinheiro?

Mas já ele lhe devorava os ombros, lhe destruía a boca, lhe devolvia o caos.

Depois, meteu-se no carro novo e desapareceu.

 

O João Maria e a Constança, o Vasco e a Rita vieram ao fim da tarde desejar Boas-Festas, Diamantina achou-os constrangidos, talvez não quisessem encontrar o Chico, foi dizendo com um ar casual que o Chico não estava, já não devia vir naquele dia. Tinha chegado de Itália e...

De Itália? Quando?

Hoje de manhã.

Não, disse o Vasco. Ainda há dois dias esteve toda a tarde em casa do Bernardo Salles, a...

Há dois dias? Impossível. Esteve em Milão mais de uma semana. Até me ligou de lá e tudo...

Estou a ver que não estás a par...

A par de quê?

É melhor dizer-lhe, Vasco, disse o João Maria. É melhor dizer antes que ela tenha uma surpresa pior.

O Chico vendeu esta casa, disse o Vasco.

Fez-se um silêncio mortal. A Rita e a Constança pousaram o pratinho dos sonhos, embrenharam-se nas xícaras de chá.

Não acredito, disse a Diamantina.

Vais ter que sair até 15 de Janeiro, disse o Vasco.

Vendeu por um preço ridículo, disse o João Maria. Mas explicou ao Bernardo que tu estavas num grande aperto de dinheiro e te sentias constrangida, por isso lhe tinhas passado procuração.

Vão-se embora, por favor. Preciso de ficar sozinha.

Desculpa, Tina, mas achámos melhor. Pareceu-nos que havia alguma coisa errada e...

Vão-se embora, por favor.

Eles saíram. Ela ficou sozinha, de pé na sala, onde já escurecera porque ninguém acendera a luz.

Quando teve a certeza de que não a ouviam enrolou-se no chão, soltou um grito agudo de águia ferida em pleno peito, um uivo de loba a quem mataram o filhote, um estertor de leoa moribunda.

Tiana levou-a para a cama, deu-lhe um calmante, telefonou-me para que as fosse buscar. Traga a menina Teca, que ela não está em condições de guiar o carro.

Combinámos deixá-la dormir e ir buscá-la na manhã seguinte. Mas nessa noite o Chico voltou.

Já tinha entregado as suas chaves ao Bernardo Salles, por isso entrou pela porta da cozinha, onde Tiana acabava de guardar a loiça. Quando ela o viu, teve a certeza de que era capaz de o matar.

Não passa lá para dentro, seu sacana, seu paneleiro. A Tininha está a dormir.

Sempre me pareceu que me odiavas, que eras uma stregga, uma bruxa! É claro que vou passar.

Vai ter que me matar primeiro.

Deixa-te de merdas. Tenho que ver a Tina, é um assunto urgente.

Ela já sabe dos seus assuntos urgentes. Dei-lhe um calmante, está a dormir. E você desapareça antes que eu o cape com a faca do presunto.

Ele deitou-lhe as mãos ao pescoço, tentando desviá-la da porta a que se encostara. Ela aplicou-lhe a sua célebre joelhada, que em tempos dissuadira o Bento Proença, teve que levantar bem a perna porque o Chico era uns quinze centímetros mais alto que o outro mas acertou em cheio, ele foi-se embora a ganir, hás-de pagar-mas, grande puta, amanhã volto cá e prego-te um tiro.

De manhã, pouco antes de nós chegarmos o Chico telefonou. A Diamantina atendeu no quarto, ficou perdida quando ouviu a voz dele. Vou desligar, pensou, mas não teve coragem. Sou eu, meu amor, meu bicho adorado, isto é tudo um grande mal-entendido. O Bernardo tomou a casa de penhor por causa de uma dívida de jogo, mas num instante lhe pagamos, não é nada irremediável. Juro-te que te contaram tudo mal, já sei que foi o Vasco, ele não sabe de nada, mas entretanto aluguei para nós um ninho de amor, um apartamento mobilado, lindo, na Avenida João Crisóstomo em Lisboa. Espero lá por ti meu anjo. Adoro-te. Diz alguma coisa, não me deixes assim...

Diamantina juntou as forças todas, ultrapassou o perfume dele que pairava no quarto e com a mesma voz rouca do amor da véspera conseguiu articular:

- Desaparece da minha vida.

Quando chegámos a Cascais, tive logo um tremendo choque, a Diamantina tinha cortado o cabelo. Estava moderna, linda, elegante, mundana, mas tinha perdido aquele ar de mulher intemporal, mãe telúrica, figura de proa de galeão seiscentista.

Cortaste o cabelo, disse eu estupidamente.

O Chico achou que eu ficava melhor.

E eu pensei que, tal como Sansão, ela perdera a força.

Foi nesse dia que comecei a morrer.

Não voltámos logo para o Alentejo porque a Diamantina não se sentia bem. Decidimos adiar para a manhã seguinte. Mantivemos as portas e as janelas fechadas, ela imploráva-nos que não deixássemos entrar o Chico.

Não me digas que além de tudo estás com medo dele, perguntou a Teca.

Não, Teca. És mulher, pensei que percebesses. Estou com medo de mim. Acho que já lhe perdoei tudo, que já tenho saudades das mãos dele. Se ele aparecesse agora aqui, não sei do que seria capaz.

E achava o Mário que tu não eras capaz de amar...

Isto não é amor, Teca. É doença. É uma coisa incontrolável, maligna, que tomou conta do meu coração e da minha cabeça e como dizia o Sebastião não está em nós dá-lo nem quitá-lo, amiga...

De manhã, ao acordar, esperava-nos uma triste surpresa. A Diamantina desaparecera, deixara uma carta para mim:

Não me julguem, mas tenho de ir. Peço-lhes que levem para casa o meu carro, as malas que estão prontas no meu quarto, que fechem a casa e perguntem ao Bernardo Salles se quer manter os caseiros. Perdoem-me e esqueçam-me.

Perdoar era fácil, esquecer era impossível. A minha dor no peito agravou-se, a Teca pôs-me um comprimido debaixo da língua, achou que eu ia ter um ataque cardíaco. A Diamantina ainda há-de conseguir que eu a odeie, disse ela. Só pelo mal que te faz.

Às seis horas da manhã a Diamantina pegou num saco de viagem, chamou um táxi e mandou seguir para Lisboa, para a avenida João Crisóstomo.

Tocou a campainha com o coração apertado, sem saber o que ia encontrar.

Abriu-lhe uma mulher de meia-idade, ensonada, de roupão de flanela, cabelo amarelo e restos de pintura nos olhos, a cheirar a tabaco frio.

O que é que quer a esta hora?

É aqui que mora o senhor Rossi?

O Chico? Está a dormir. Ah, você é a tal! Ele avisou-me, mas pensou que viesse ontem. Eu sou a Virgínia, a dona da casa. Entre.

Dona da casa? Desculpe, não percebo. É parente dele?

Não, não sou parente. Alugo-lhe aqui um quarto há quase um ano, ele traz quem quer, eu não tenho nada com isso.

Ele... está sozinho?

Acho que sim, vou espreitar.

Está. Costuma trazer mulheres, às vezes mais velhas que você, às vezes rapazes, é o que calha, mas hoje está sozinho. Quer um café?

Aceito, disse a Diamantina com a cabeça a andar à roda. Eu venho morar aqui, por si está bem?

É como lhe disse, desde que ele pague o quarto não tenho nada com isso.

Mas se vem para ficar, vou ter que aumentar o aluguer.

Não faz mal. Obrigada pelo café.

Entrou no quarto, que tinha a porta entreaberta, pousou o saco a um canto, despiu o casaco, sentou-se ao pé da cama e embruxada, estática, vazia, ficou a vê-lo dormir.

A Teca lá me convenceu a ir ao médico e enquanto ela e a Tiana arrumavam tudo, fui a Lisboa e consegui uma consulta. O médico pediu novos exames, não me achou nada bem, eu telefonei para Cascais, disse-lhes que partissem sem mim no carro da Diamantina, eu ficava no Campo Pequeno, porque as análises estavam marcadas para muito cedo no dia seguinte.

Feitos os exames, cujos resultados só saberia duas semanas mais tarde, divaguei por Lisboa na esperança idiota de ver a Diamantina. Passei todo o dia a circular de carro, a ouvir insultos dos outros automobilistas que me pareceram mais que justos.

À noite telefonei para Castelo de Vide, menti, que alguns exames tinham de ser repetidos, fui a uma casa de fados, enchi-me de cerveja, deitei-me de madrugada.

Não queria sair de Lisboa sem ela, não podia deixá-la entregue àquele patife, sentia que ela corria perigo. Mas que fazer? Não ia ficar eternamente às voltas pela cidade, à procura de uma miragem, na esperança de chamar à razão quem não podia ser razoável.

Cheguei à Pedra Moura tão cansado, que me fui deitar, indiferente aos petiscos que a minha mãe pusera na mesa, ao seu olhar silencioso, cheio de interrogações.

Faltavam duas semanas para eu ter de voltar a Lisboa, para nova consulta, já com os resultados dos exames. Esperava esse dia com impaciência, talvez entretanto a Diamantina telefonasse, quanto mais não fosse a pedir dinheiro e eu tinha esperança de lhe arrancar uma morada.

Na segunda semana chegou uma carta do Brasil. O milionário das padarias convidava a Teca a montar a célebre oficina de bordados, desta vez estavam criadas todas as condições, já tinha escrito à Diamantina mas não obtivera resposta, esperava que dona Teca aceitasse a sua proposta irrecusável.

O que é que eu faço? perguntou a Teca.

Faz o que quiseres.

 

Tininha, filha, deixaste a torneira a pingar. Isto aqui não é hotel e a conta da água tenho que a pagar todos os meses, é ou não é? Não sei donde é que tu vens, de alguma barraca onde vão buscar água ao chafariz, mas aqui tens que ter cuidado. E olha, quando cozinhares, lavas-me o fogão. Que eu sou uma fraca, nunca deixei ninguém usar a cozinha, mas agora contigo, não sei o que é que me deu para autorizar. Eu só aqueci uma pinga de leite, dona Virgínia. É que não tinha almoçado e sabe-se lá a que horas é que o Chico me vem buscar para jantar. Pois, já sei. O mais certo é deixar-te aí pendurada. O que tu devias era mandá-lo àquela parte, já me constou que anda de cabeça perdida por uma da vida, dessas que põem anúncios no jornal, morena ardente, loira explosiva, massagens e carinhos e não sei que mais. E vê lá se ele me paga o quarto, que o dia oito já lá vai.

Chico, onde é que andaste, são dez da noite, não comi, não sabia o que pensar... O meu bicho não tem que pensar, tem só que se pôr lindo de morrer que hoje vamos cear ao Gambrinus. Pagaste o quarto, Chico? A dona Virgínia veio-me falar nisso...

A Virgínia? É uma aldrabona! Claro que paguei! Como ela sabe que és rica, estava a ver se recebia duas vezes. Vá, vai-te vestir! Chico não era melhor irmos aqui abaixo à Ideal, hoje o prato do dia é filetes com arroz e salada, que tu gostas, eles fazem-te um sumo de laranja natural, escusávamos de ir gastar uma fortuna ao Gambrinus... Minha pobre alentejana, és tão pequenininha! É por isso que nós não ligamos, que tu me obrigas a ir buscar outras pessoas com outro nível, com outra cabeça... A culpa é tua, só tua. Não és feia, podias fazer um vistão ao meu lado, com o carro que eu tenho era dinheiro em caixa, mas tu és da província, o que é que se há-de fazer... Não percebi. Dinheiro em caixa? O que é que isso quer dizer? Quer dizer que não gostas de mim, só isso. Tu vais comer os filetes e eu vou cear ao Gambrinus que estou doido por uma lagosta.

Eu não disse, Tininha? Vai sair com a outra, como dois e dois serem quatro. Se continuas assim vais morrer estúpida, filha. Tens que lhe fazer as vontades ou deixá-lo de vez. Isto assim é que não é nada. Se tens para onde ir, vai-te embora, antes que seja tarde, este homem é o diabo em forma de gente. Não vês os olhos dele, como mudam de cor? Coisas do inferno, minha filha, coisas do inferno. Quanto vai a aposta que ele hoje não aparece? Faz-me um favor filha. Vai à Ideal e traz filetes para a gente as duas, que eu só jantei sopa, está-me a dar a hipolicénia... Não há nada mais triste que entra mês, sai mês e a gente a comer sozinha...Tu pagas, sim? Que eu não tenho trocado e já lá tenho uma boca na Ideal que não é brincadeira. Olha, Tininha, traz-me um pundinzinho de flan, que se me estão a baixar os açucares... Não há como um docinho para as cadências efectivas, é ou não é?

Está lá, Tiana? Sou eu. Diz-me só se estão todos bem? O Mário? A Teca? A tia Margarida? O pessoal da Atalaia? A Júlia?

Então e tu? Ralada porquê Tiana, eu... quer dizer, estou bem. O Chico? Deve estar, não me aparece há uma semana... Não, não me posso ir embora, ele pode chegar de um momento para o outro... Mas olha, Tiana, fica prometido. Assim que ele aparecer vamos aí passar um fim-de-semana. Prepara tudo, sim. Não, não estou a chorar, que ideia, talvez um bocadinho constipada... Tenho que desligar que as chamadas agora são caríssimas. Beijinhos a todos, Tiana. E não se preocupem que eu estou bem.

Desligou e ficou a chorar baixinho com a cabeça encostada à porta da cozinha, a dona Virgínia até disse, Se a tua família gosta de ti, não devias ir lá com o Chico. Vão perceber a alhada em que estás metida e ao menos assim de longe... olhos não vêem, coração não sente, é ou não é?

A Tiana explicou que tinha de ir à terra, que diferença fazia naquela casa sem patroa, a Júlia ficou mais uma vez a tomar conta e ela foi apanhar a carreira das oito da manhã.

Apeou-se dois quilómetros antes da povoação, numa paragem à beira da estrada que servia pequenos lugares, casinhas brancas e respectivas cortes, que branquejavam entre oliveiras.

Chuviscava. Pôs o xaile pela cabeça, do lenço fez rodilha e equilibrou a cesta que levava, bem coberta com o plástico de uma loja de modas de Cascais.

Caminhou por azinhagas, ouvia os porcos a roncar nas pocilgas, um ou outro cão, choro de crianças pequenas. Ao fim de quase meia légua avistou a casa da Bruxa Quitéria, muito bem caiada, com a sua barra azul rente ao chão, interrompida de onde em onde por tufos de malvas encarnadas e encostada à parede, a roda de um carro onde se empoleirava uma galinha. Bateu.

Ouvi-te chegar, Ana Custódia, e sei que vens por bem e por mal. Entra, que está chovendo.

A Bruxa era velhíssima, baixinha, amável, estava vestida de castanho mas a blusa era florida, tinha brincos antigos nas orelhas e o cabelo grisalho estava bem esticado numa trança, enrolada com ganchos de tartaruga. Era curandeira, a Quitéria, mas outros dons que lhe atribuíam valeram-lhe o honorífico título de Bruxa.

Tiana explicou ao que vinha.

Tenho o que te faz falta, disse a Bruxa. Ligado na comida ou na bebida não deixa cor, nem gosto nem cheiro, mata do coração e mesmo que por dúvida abram o amaldiçoado, não lhe encontram rasto, nem no sangue nem nos fígados.

É o que me convém, disse a Tiana.

A Quitéria levantou do chão uma lata de tinta Dyrup com asa de arame cheia de flores brancas e pousou-a na mesa.

Que lindas flores!

Não lhes toques! Chamo-lhes Inocências, porque não sabem o que fazem. Espremidas, dão um sumo leitoso e o sumo de três enche uma garrafinha de amostra de vinho do Porto e uma garrafinha de amostra de vinho do Porto chega para um tacho de comida ou uma garrafa de bebida.

Não preciso tanto, disse a Tiana.

Não faço por menos, disse a Bruxa.

Está bem, aceito. Levo já?

São todas as mesmas. Passam a vida inteira a querer matar alguém e depois dão-lhes as pressas. Isto quer tempo, rapariga. Vou espremer as flores, passá-las por um funil que ali tenho e que só serve a venenos. Vou fervê-las duas horas. Vou destilar a fervura, gota a gota, durante mais quatro horas. E faço-te isto hoje, porque vieste de fora e está chovendo.

Se não estivesse chovendo não te atendia. A chuva é um sinal de justa causa. Neste Alentejo de má morte a maioria dos casos vêm com a seca e eu não os atendo porque são invejas, heranças ou adultérios. Tu vieste com a chuva, levas a flor da inocência.

Posso ajudar?

Toma uma sombrinha e vai esperar lá para fora. Ou vai à aldeia ver a tua família que tens tempo.

Prefiro esperar, disse a Tiana.

A chuva agora era mais uma poalha de humidade que se via no ar, molha-tolos, a Tiana trouxe da cesta um pão com queijo e comeu-o sentada numa pedra. As galinhas já vinham debicar.

Eles que apareçam no fim-de-semana, pensou. É tudo o que eu quero, a Tininha que traga o Chico que eu meto-o nas profundas dos infernos, nem que eu vá presa e perca a minha alma.

Depois tirou um terço do bolso do casaco preto que a Diamantina lhe dera e encomendou-se a Nossa Senhora da Conceição.

Começava a anoitecer quando a Quitéria a mandou entrar.

Está pronto. Se andares ligeira ainda apanhas a carreira das seis.

Entregou-lhe o frasquinho de vidro escuro, rolhado com cera, Está aí, pede ao céu, ao inferno ou a quem acreditares que te ajude a usá-lo sem pena nem paixão. O que é, é, e o que tem de ser tem muita força.

Quanto lhe devo, tia Quitéria?

Pagas-me em comida branca, para descontar no teu pecado. Um quilo de açúcar, um de arroz, um de farinha, toucinho, uma quarta de banha, um pacote de sal.

Tiana conhecia as regras. Destapou a cesta, tirou para fora o sal, a banha, o toucinho, a farinha, o arroz, o açúcar. E uma galinha branca, que a Bruxa Quitéria, por delicadeza, aceitou.

Quando voltei a Lisboa para nova consulta, fiz um esforço para não procurar a Diamantina. Ainda pensei ficar para o dia seguinte, fazer uma ronda pelas discotecas, pelos restaurantes, mas nem sabia que tipo de vida nocturna fazia aquele estupor do Chico, por que bordéis arrastaria a minha princesa.

Por isso voltei no mesmo dia para a Pedra Moura, queria estar junto da minha mãe, esquecer o que pudesse poluir as minhas doces recordações da infância, quando o mundo era a horta de José e Maria e tudo o que havia para saber sobre a vida estava nas meigas parábolas do tio Zebra.

Como não apareci na Atalaia no dia seguinte, a Teca veio jantar, saber de mim.

Está tudo bem, disse eu. Alguns problemas respiratórios, o médico acha que isto tem muito a ver com o sistema nervoso, não quer que eu fume, aconselhou-me a evitar emoções fortes.

Rimo-nos.

Foi por isso que eu vim a correr para a Pedra Moura. Aqui, a emoção mais forte que é possível imaginar, é aparecer-nos o fantasma da Moura Encantada, a balançar o pé descalço.

A minha mãe não gostou.

Respeitinho, disse ela. E vamos para a mesa que a açorda está escaldada.

A Teca voltou ao assunto do Brasil. Era o tipo de oportunidade que só se tem uma vez na vida.

Vejo que estás com vontade de aceitar, disse eu. Depende, respondeu a Teca.

Dependia e eu bem sabia de quê. De eu querer partir com ela, ou de eu insistir para que ficasse. Dependia da minha vontade, do meu empenho, do meu amor.

Devias vir comigo, disse ela. Estou tão cansada de te ver assim, a morrer de amor pelos cantos, a torturar o coração por uma pessoa que não se digna sequer reparar que tu existes! Que desperdício, a tua vida, Mário! Que deprimente, essa tua paixão!

Acho que nós dois temos sido felizes, Teca, disse eu cobardemente.

Temos sim. Eu e o bocado de ti que às vezes me dá um pouco de atenção. Eu e o que sobra no caixote do lixo da Diamantina.

Não te exaltes. Nunca te prometi nada. Sempre te disse que merecias melhor.

E mereço. Juro que mereço. Vou para o Brasil, vou ter uma vida minha. Boa ou má, mas minha.

Acho que deves ir.

É a tua última palavra?

É.

A minha mãe olhou-me, com uma súplica nas pupilas claras, incrédula. Tanta frieza, tanta maldade não condiziam com o carácter doce do seu amado filho.

A Teca, sem uma palavra, levantou-se da mesa, abraçou a Margarida, deu-me um beijo rápido e saiu.

Ficámos a ouvir o motor do carro dela até que o ruído se perdeu ao longe.

Era preciso tratá-la assim, Mário?

Era. Para que se desengane de mim. Para que me esqueça. A Teca merece melhor sorte.

Beijei a minha mãe e calei o resto.

Nessa tarde o médico tinha-me diagnosticado cancro do pulmão.

Tininha, filha, diz lá ao Chico que me pague o quarto, que isto aqui não é instituição de caridade. Mas eu já lhe dei o dinheiro, ele não pagou? Ó filha! Tu devias dar-me o dinheiro mas era na minha mão. Ele não quer, dona Virgínia. Não sabe que ele não quer? Mas eu estou com vontade de ir à minha terra, porque tenho uma conta conjunta com um primo meu e vou transferir uma boa quantia a ver se nos aguentamos sem este sufoco constante. Já fui pobre, já fui rica, agora nem sei o que sou. És uma desgraçada, filha, é o que tu és. Enquanto não largares do Chico nunca mais vais ser gente, que homens assim só servem para atormentar a vida das mulheres. Ele agora tem andado melhor, dona Virgínia. Dorme quase sempre em casa, há quase um mês que não me desaparece, se não fosse isto de eu estar sem dinheiro na conta, tenho a certeza que ele se portava bem. Se a dona Virgínia desse licença eu ligava para casa, a ver se o meu primo deposita alguma coisa em meu nome e assim que eu tiver, pago-lhe a conta do telefone. Bom, liga lá rápido, tiveste sorte, deste com um coração de manteiga como o meu, é ou não é?

Não posso acreditar. A minha sócia foi viver para o Brasil. A minha oficina de bordados vai fechar.

Então e o primo? Esse que tem a massa?

Parece que veio para Lisboa. Eu...

Quem é que veio para Lisboa? perguntou o Chico a entrar e a meter as chaves no bolso. O querido Marinho? Deixa-o vir, que a gente não precisa dele para nada. Se é por causa do dinheiro, não te preocupes, que eu arranjo. E tu, se gostasses de mim fazias o mesmo.

Tenho uma profissão, Chico. Vem comigo para o Alentejo, podemos viver bem, se eu não voltar depressa eles fecham o atelier da Atalaia, tenho a casa da vila praticamente fechada, que necessidade temos nós de viver aqui?

Vem cá, minha pobre coitada.

Fechou-se com ela no quarto, começou a despi-la, a calá-la com beijos, a acariciá-la demoradamente, com aquela entrega total de que ele era capaz como ninguém, como se não houvesse outra mulher à superfície da terra.

Diamantina mergulhou naquela dimensão em que todos os problemas perdiam contorno e importância, constatou mais uma vez que amava aquele homem muito para lá do razoável, sentiu-se perdida e gostou da sua perdição.

De que é que estavas a falar, bicho? Da casa da vila?

O Chico Ruço riu-se, os dentes de lobo morderam o beiço numa expressão traquina.

A casa da vila já não há...

O quê?

Lembras-te quando me disseste para vender o arrozal ou o caniçal ou lá o que é?

O Tremoçal.

Pois, davam-me uma porcaria, não chegava para o barco. Foi por isso que vendi a casa da vila, com aquela tua procuraçãozinha...

Isso é mentira, Chico. Mesmo agora liguei para lá e falei com a Tiana...

Ah, isso é porque eu vendi a casa com o recheio e a Tiana faz parte da mobília, riu-se o Chico. Vais ver, os novos donos ficaram com ela.

Não é verdade, não é verdade, não é verdade...

Está bem, então não acredites. Por que é que tu pensas que eu nunca quis ir lá passar o tal fim-de-semana?

Não é verdade, não é verdade...

Diamantina saiu do quarto de roupão enquanto o Chico, a rir-se baixinho, fazia estalar a abertura metálica de um sumo de pêssego.

Dona Virgínia, pela sua saúde, deixe-me ligar outra vez para o Alentejo!

Ai, não filha, já chega. O que é demais é moléstia, é ou não é? Diz ao Chico que me pague o quarto e depois podes ligar para onde quiseres. O cadeado não sai daí. E queriam eles pôr-me um telefone moderno desses de botões. Nem pensar. A bondade também tem limites, é ou não é?

Diamantina bebeu um copo de água, sentou-se na cozinha a tentar raciocinar. O que é que eu fiz da minha vida? Estarei louca? Vou procurar o Mário à casa do Campo Pequeno. Vou-lhe pedir que não fechem o atelier, que esperem por mim, o Chico há-de acabar por perceber até que ponto eu o adoro, que pode ser feliz só comigo e se vendeu a casa..., não sei por que é que duvido, ele não fez o mesmo com a casa de Cascais? Já que vendeu a casa, podemos viver na Atalaia, que pelos vistos é tudo o que me resta... E se ele vendeu a Atalaia? meu Deus, o que é que me está a acontecer? Então, vamos lá ver: procurar o Mário. Tenho que lá ir, a dona Virgínia não me deixa telefonar. Falar com o Mário e descobrir se...

Bicho! Venha cá ao seu dono.

Ela foi. Ele despiu-lhe o roupão, amou-a de novo. O que é que tu fazias por mim, bicho? Diz. O que é que fazias por mim? Tudo. Tudo o que tu quiseres.

Não telefonou ao Mário e não foi procurá-lo. Parecia-lhe uma traição ao Chico, uma manobra nas costas dele.

O Chico prometeu que ia arranjar dinheiro, cobrar umas dívidas, passar uns modelos. Ia também fazer uma campanha publicitária super bem paga. Iam poder alugar uma casa e mandar bugiar a Virgínia. Sobre isto, desapareceu.

Diamantina voltou a viver ao lado do telefone, esperando que ele desse sinal de vida. Levantava o auscultador, se calhar está cortado, não. Ele vai ligar, já lá vão dez dias...

Olha Tininha, filha. Eu se fosse a ti ia ver dele. Anda por aí com umas e outras, nos bares, nos restaurantes caros, faz-lhe uma espera e ele que se explique por uma vez. Ou quer ou não quer.

Eu ia, dona Virgínia, mas se ele telefona?

Ai, filha. Estás apanhadinha de todo! Há quantos meses vives aqui? Ele alguma vez telefonou? Vai-te embora! Se ele ligar eu dou-te o recado, é ou não é? Trato de saber onde é que ele anda, coisa que tu não és capaz de perguntar. Disse-me a Fernanda, sabes, aquela que vem aqui ao prédio com aquele sujeito da tropa, que o vê muitas vezes no Estar. Onde? Ah! no Star, já lá fui com ele. Dantes, quando...

Pois. Tu é que sabes. Mas isto assim é que não é nada. Nem o pai morre nem a gente almoça, é ou não é? Talvez o encontres com outra e se expliquem duma vez por todas. Olha que não era pior para ti.

Não tinha coragem. Era descer demais. Que vexame, encontrá-lo com outra...

Empurrou a tremer a porta de saloon do Star e viu-o sentado ao balcão a beber um enorme sumo de frutas. Estava sozinho. Ela nem queria acreditar. A fulana foi ao toilette, pensou. Aproximou-se, sentou-se ao lado dele no banco alto e pediu uma água. Era uma e dez no relógio de cuco por cima das garrafas.

Mas que milagre! O meu bicho saiu da toca! Viva! Isto merece uma festa!

O Chico ria-se com os olhos azuis-escuros da cor da camisola, o blusão de ganga pendurado no ombro.

Eu ia ali a um sítio... Mas tu podes vir comigo, porque não...

Pagou, passou-lhe o braço pelos ombros, virou a esquina à procura do carro, fê-la entrar, pôr o cinto, arrancou na rua deserta à sua maneira de corredor. Ela estremeceu de medo, há meses que não andava com ele de carro. E de repente, à desfilada na noite com as luzes a passarem tão rápidas como se estivessem dentro de um filme de ficção científica, sentiu-se finalmente feliz.

O Chico Ruço parou o carro à porta de um prédio baixo, de azulejos, numa rua desconhecida. Desapertou os dois cintos, virou-se para ela, beijou-lhe as pálpebras, alisou-lhe o cabelo para trás da orelha direita e perguntou com uma doçura infinita, Gostas de mim? Ela fechou os olhos e sorriu, palavras para quê, estava ali pronta para tudo, à sua mercê, só o calor daquela mão seca e perfumada era o bastante para fazê-la morrer se fosse esse o desejo dele. Ainda precisas de provas? murmurou. Preciso. Hoje vais ter que passar a prova final. Depois disto não há mais omissões, nem ausências, nem mentiras: vamos formar uma equipa imbatível. Depois de quê? arriscou ela.

Isto é assim, meu bicho. Mora aqui uma miúda, tem vinte anos, chama-se Brenda... Riu-se. A mãe dela é inglesa, ela chama-se Brenda.

Sim?... É a tua namorada?...

Bom. Um bocadinho mais do que isso. É a minha maluqueira deste momento... Mas passa-me, claro, ela é, digamos, profissional, isto é tudo muito efémero, muito volátil...

Riu outra vez. Diamantina tentava compreender. Ou melhor, não queria acreditar que já tinha compreendido. Mas ele não tardou a tornar tudo claro.

Eu sonhei juntar-vos às duas, acho que ias gostar de fazer isso por mim. Tu és uma pantera, és muito melhor que ela, tens outro fogo, outra paixão... Vais ver que é bom e fazias-me muito, muito feliz... vens?

Vou.

Era uma náufraga, a agarrar o remo que lhe estendiam.

Saiu do carro com as pernas bambas, não sentiu os degraus, viu-se numa sala de estar agradável, florida, em frente daquela rapariga bonita, ruiva, completamente diferente da ideia que ela fazia de uma prostituta na intimidade. A Brenda estava de jeans e T-shirt branca, de cara lavada, era invulgarmente bonita, levemente sardenta, de olhos verdes e uma cabeleira toda ondulada, cor de fogo.

Olá, disse ela. O Chico já me falou de ti. Queres tomar alguma coisa?

Como é que daqui se passa para a cama, pensou a Diamantina. Ela parece uma menina de Cascais, é impossível, não sou capaz.

Sumo? Café?

O Chico deve ter respondido por ela, durante um momento perdeu a noção da realidade, só ouviu um trovão, uma rajada de chuva nas vidraças.

Vamos? disse o Chico. A Brenda coitadinha, está gelada na cama, à nossa espera...

Até onde conseguiria descer? Ele ajudou-a a despir, ela pensou confusamente que o desejava tanto, que não podia perder esta oportunidade de o ter, a Brenda ia ficar ali de espectadora, paciência, Diamantina ia fechar os olhos e esquecê-la, o Chico sucumbiria mais uma vez à sua vibração, à sua dádiva, ao seu amor.

Com efeito o Chico começou por se deitar sobre o seu corpo apaixonado, bicho bonito, amor da minha vida, beijou-a, acariciou-a, aqueceu-a e sem transição passou para o corpo da outra, esqueceu-a naquela cama desconhecida, a soluçar de desejo e de vergonha.

Viu de fora a sua miséria, a sua desgraça, a solidão sem par da sua vida, levantou-se, começou a vestir-se, a Brenda ainda lhe atirou, Onde é que vais, pá? Com a idade que tens, deves andar nisto há um século, tens obrigação de saber que se ele quer estar com as duas não te podes baldar.

Deixa-a lá, disse o Chico. Ela é da província e riram-se entre gemidos.

Diamantina saiu para a rua a soluçar do mais fundo da humilhação e da desgraça, chovia a cântaros, chamou um táxi.

Não tinha a chave. No patamar reconheceu o seu saco de viagem, na porta estava um papel pregado com fita cola: Tininha não me acordes que eu tomei comprimidos para dormir. Como o Chico não paga o quarto, já cá tenho outras pessoas. Podes ficar com os dois contos que te emprestei. Temos que ser umas para as outras, é ou não é? Desejo-te sorte, Virgínia.

A casa do Mário não era longe. Arrastou o saco pela rua debaixo de um temporal de fim do mundo, a cara tão molhada que não sentia as lágrimas. Se o Mário não estiver em casa, atiro-me para baixo do metropolitano, ali mesmo, na avenida da República.

Nessa noite eu tinha decidido afogar as mágoas numas cervejas, na casa de fados onde já me guardavam a mesa e a sopa do jantar do pessoal.

A Teca tinha ido para o Brasil dez dias antes, a Diamantina nunca mais dera sinal de vida, a minha saúde piorava todos os dias.

Só me sentia bem quando o Chaínho dedilhava a guitarra. Fechava os olhos e via uma chuva de pequenas flores brancas, provavelmente caídas das laranjeiras da Pedra Moura, gotas de música que se podiam ver desabar sobre um espelho, uma melodia obsidiante, feita de angústias, de soluços, de mágoas. Com uma cerveja a mais, a minha piegas alma portuguesa comprazia-se na doçura de chorar, uma por uma, as sete letras da palavra saudade.

Fui-me deixando ficar. Uma mulher vestida de preto aproveitou a ausência do companheiro para me sorrir, passando a língua no lábio superior. Chamei o empregado, Zé Manel, diz àquela senhora que eu sou homossexual e que estou bêbedo.

Vá para casa, doutor Mário. Já bebeu demais e olhe o que para aqui vai de beatas! Não faço outra vida se não despejar-lhe o cinzeiro. Vou buscar uma sopinha que lá fora vai uma tempestade que nem queira saber. Assim vai quente para a cama.

Está bem Zé Manel. És bom rapaz.

Pus-me a pensar em que momento é que a podridão do mundo entrara nas nossas vidas. Tínhamos vivido ao abrigo de tudo, com os nossos desgostos e as nossas pequenas mágoas, é certo, mas tudo era límpido, sereno, romântico, quase antigo. A dimensão mágica que o tio Zebra conferira aos nossos sonhos fora quebrada, aqui e ali por uma realidade às vezes cruel, mas nunca sórdida. Era como se morássemos dentro de uma redoma, parados no tempo, ao abrigo da vida. E um dia, na pessoa do Sebastião, entrou em nossa casa alguma coisa de preverso, de maligno. O Sebastião fora apenas o veículo, o agente, o mensageiro dessa gota de veneno, que se avolumou e corroeu a nossa vida limpa e vagarosa.

Agora estava tudo perdido.

O único e último reduto das nossas felizes memórias era a lareira, sempre acesa, da Pedra Moura, o impoluto coração da minha mãe.

Comi a sopa que o Zé Manel me trouxe, devagar, de olhos fechados, tentando sentir-me em casa. Mas não resultou, a sopa não estava bastante quente.

Meti-me no carro debaixo de uma chuva grossa, não arranjei lugar perto da porta, cheguei todo molhado ao meu apartamento. Entrei e peguei numa toalha para enxugar o cabelo, quando a campainha tocou.

Que estranho, pensei. Mas levado não sei por que alvoroço, sem perguntar quem era, abri.

Na minha frente estava a Diamantina, encharcada, com um saco de viagem aos pés. Caiu-me nos braços a soluçar, parecia uma criança perdida na noite e na chuva. Ficou um longo momento apertada ao meu peito e por fim pronunciou as palavras que eu desejava ouvir e que me soaram como música, me afagaram como um bálsamo, me redimiram como uma prece, Mário, vamos para casa.

Quando, no dia seguinte parámos à porta de casa da vila, a Diamantina segurou a minha mão e disse, é impossível que não saibas, que não saiba o quê, o Chico Ruço diz que vendeu a casa... Não te preocupes, Diamantina, ele de facto tentou, mas a casa continua a ser tua. Aqui no Alentejo não tocou em nada do que te pertence. Então onde é que ele foi buscar o dinheiro do barco, vá-se lá saber, o certo é que a casa, como vais ver, é toda tua.

A Tiana abraçou-a com tanta força, fez-se tão vermelha de choro e alegria, que pensámos que lhe ia dar uma coisa. Também na Atalaia se fez uma pequena festa e embora tenham sido precisos alguns meses para recuperar um ritmo de produção razoável, a simples presença da Diamantina deu àquelas mulheres o estímulo que ultimamente lhes faltara.

Mas foram meses difíceis. A convalescença da Diamantina foi lenta, com repetidas recaídas de lágrimas onde faltava vontade de reagir, onde faltava a esperança.

A minha saúde não me permitia dar-lhe todo o apoio que desejaria, a última coisa que me parecia conveniente àquele difícil emergir das trevas, era o feio espectáculo da minha doença, os cansaços, os vómitos, as sufocações, as dores.

Na Primavera melhorei. Uma manhã entrei na Atalaia e ouvi a gargalhada da Diamantina. Quase não queria acreditar. Ela dizia à Conceição e às outras mulheres que o pássaro que terminara na véspera parecia embalsamado, tinha cara de morto, não podia assiná-lo. Não conseguia olhar para ele sem desatar a rir.

Mário, anda ver a cara de estúpido deste peteridáctilo enxertado de lagarto. Do quê, dona Tininha, dizia a Conceição já contagiada pelo riso. Desta rã voadora, deste...

Veio-me à memória aquela cena em Cascais em que ela tinha rido à gargalhada com o Sebastião por causa de um trocadilho idiota sobre a morte do pai. Ocorreu-me que nesse momento teria começado a corrupção das nossas almas e dos nossos corpos e agora tivesse chegado a hora de fechar o ciclo e ela estivesse salva e eu curado.

Mário, não fiques aí com esse ar de mestre-escola, anda ver bem a minha obra-prima antes de começarmos a desmanchá-la. Acho que perdi a mão. Esta foi a minha primeira tentativa depois de, desde... mas não resultou. Acho que não vou bordar mais pássaros de seda. Qualquer outra coisa, galinhas, patos marrecos...

Riu de novo. As mulheres meteram as tesouras na seda, limparam o centro da colcha, ainda a enxugar os olhos da risota.

Vamos bordar flores, disse ela. Flores e borboletas, raminhos de mimosa, amores-perfeitos. Para que nos não aconteça como ao aprendiz de feiticeiro.

Era uma vez um moço que foi trabalhar de aprendiz para a gruta de um bruxo, tinha dito o tio Zebra trinta anos atrás. Pouco sabia ler, mas levava a ambição de aprender mais que o mestre e ser alguém. Mas a sua função era modesta, só tinha de limpar almofarizes e retortas, baldear o chão, fazer despejos. Ele bem via como o bruxo consultava os livros e, frasquinho daqui, pós de acolá, ervas do fundo de um caixão, misturava, fervia e temperava com olhos de lagarto e pêlos de gato preto. De uma vez fez uma bebida cor de vento que engoliu e saiu a voar pela noite como um morcego gigante. De outra vez fez uma papa cor de terra e formou-se em pantera e saiu a caçar e trouxe para a gruta uma vitela.

Durante dias comeram bifes e a cada pedacinho que mastigava o aprendiz dizia para consigo, Se eu me fizer leão, devoro o meu mestre e fico-lhe com os feitiços.

Um dia o feiticeiro foi à vila comprar um fogareiro novo para melhores cozeduras e o rapaz vá de se pôr a ler do pouco que sabia, leão leão leão, adregou de acertar porque viu o desenho.

Misturou o que lhe pareceu, pôs ao lume, disse as palavras mágicas que já sabia de cor de tanto as ouvir ao bruxo e aquilo alteou da retorta como um mar de lava, ribombou como um trovão, fez um tornado de vento, levou o aprendiz pelos ares até cair transformado em lavagem na gamela de um porco.

Estás a comer o meu aprendiz, disse ao porco o bruxo que ia passando com o fogareiro. Que te faça bom proveito, pois quem faz o que não sabe, diz o que não pensa ou ousa o que não pode, acaba em salpicão, morcela e cacholeira.

 

E não se bordaram mais pássaros de seda na oficina de Diamantina Flores.

Em Maio a Teca escreveu. Não escreveu à Diamantina, que julgava perdida, não escreveu ao Mário que voluntariamente a perdera.

Escreveu à Margarida, única referência estável da vida de todos nós. Era um envelope bonito, com risquinhas verdes e amarelas à volta, uns selos lindos com bichos da Amazónia, a carta vinha pesada e apetecível, mas a minha mãe não ma deu a ler, temendo que alguma notícia, apesar de tudo, magoasse o seu menino. Meteu pés ao caminho, foi à casa da vila num sábado de manhã, sentou-se na cozinha, disse à Tiana, A ver se a Tininha me vem ler a carta da Teca que chegou do Brasil, Entra para a sala, Já se sabe que não.

A Teca estava bem. Feliz, ao que nos pareceu. Contava do sucesso da fábrica de bordados, tinham um desenhador italiano e dois portugueses de muito talento, prometia mandar à Margarida uma toalha de mesa, logo que tivessem alguma digna da Pedra Moura, isto é, com a qualidade, a portugalidade e o despojamento indispensáveis.

Perguntava por todos, sem ressentimento nem mágoa. Dizia como gostava que a fôssemos visitar, tinha uma linda casa para nos receber no Estado de São Paulo. Gabava as faxineiras, a carne, a flora. Dizia que por enquanto estava sozinha, mas tinha muitos amigos, que o patrão era óptimo e o trabalho empolgante.

Vou-lhe escrever, disse a Diamantina. Vou dizer-lhe que ressuscitei.

No dia seguinte o telefone tocou na Atalaia. É para a senhora, dona Tininha, disse a Conceição com os olhos assustados. Diamantina atendeu.

Bicho, é o teu dono. Estou a falar-te da estrada, vou a caminho aí do atelier. Estou a morrer de saudades tuas. Está lá? Ainda está zangado, bicho? Aquilo foi uma maluqueira, a sério, eu só gosto de ti.

Espera por mim. Vamos passar a melhor noite das nossas vidas.

Não venhas, conseguiu articular a Diamantina.

Deu ordens à Conceição, que dissesse que não sabia para onde ela tinha ido e foi para casa, raciocinando confusamente que o Chico pensava que a casa da vila não era dela. Mas era uma questão de tempo. Havia de ir procurá-la, de deitar a casa abaixo aos murros à porta, fazer um escândalo, mais valia recebê-lo civilizadamente e por fim, se ele não fosse a bem, chamar os empregados e pô-lo na rua.

Deliberou esta estratégia com a Tiana e com a Júlia, que se entreolhavam na certeza de que não era isso que iria passar-se. O que mais temiam estava para acontecer: ele havia de chegar com os olhos da cor da camisa turquesa, havia de chamar-lhe bicho, levá-la para a cama, aniquilá-la. Ia começar tudo de novo.

Quando cheguei à Atalaia e me puseram a par da situação, corri para a vila, entrei pela cozinha, o Chico ainda não tinha chegado.

Sabes que ele vem aí, perguntei à Tiana. Sei, pois. E o doutor Marinho não quer lanchar, disse ela calmamente a segurar um jarro de sumo de laranja. Não, disse eu, eu estou nervoso demais para comer, mas está bem, aceito um copo de sumo.

A Tiana cingiu o jarro ao peito. Este não, doutor Marinho. Este tem veneno.

Durante um momento não acreditei que tinha ouvido bem. Mas a Tiana repetiu, Este é o sumozinho do Chico Ruço. Assim que ele chegar, cheio de calor, hei-de-lho servir pela minha mão.

Não podes fazer isso, Tiana. Enlouqueceste?

Posso e o senhor bem sabe que posso. É o único remédio. Ele vai morrer do coração. Mas se descobrirem, eu entrego-me à polícia e passo o resto dos meus dias na cadeia. Já resolvi tudo há muito tempo e não me importo nada. Alguém tem de salvar a Tininha.

Era como se aquela conversa se passasse noutro mundo, onde as minhas leis não tivessem qualquer valor.

Tiana, eu não sei... Mas sei eu, atalhou a Tiana. Vá para o pé dela, que ainda antes de amanhã há-de estar tudo resolvido. Morre o bicho, acaba-se a peçonha.

Fui à casa de banho e vomitei. Depois fui para o pé da Diamantina que esperava na sala, imóvel, com os olhos perdidos e as mãos esquecidas no colo.

O Chico tardava. Não sabíamos de onde teria telefonado, se já estaria a fazer um escândalo na Atalaia. Ou se estaria com a outra, a beber sumos no bar do hotel. Só para provocar.

Eram dez da noite quando a campainha tocou com insistência.

É ele, disse a Diamantina. Valha-me Deus, é ele.

Mas não era. Um guarda republicano vinha pedir à Diamantina que fosse à morgue de Portalegre reconhecer o corpo do senhor Francesco Rossi.

Parece que o carro dele, um Lamborghini branco, se teria tomado de amores por uma azinheira da beira da estrada e se teria enrodilhado nela, apaixonadamente, a duzentos e trinta quilómetros à hora.

Fui eu que o matei, disse a Tiana a despejar o sumo pela pia abaixo. A Bruxa Quitéria tinha-a prevenido sobre o poder do veneno, que toma conta do espírito do matador e cria aí uma força que só por si pode matar.

Fui eu que o matei quando despejei o veneno no jarro do sumo. Foi o meu ódio, a minha vontade de o limpar da face da terra. Fui eu.

Tentei em vão persuadi-la da sua inocência, dizer-lhe que o Chico, aquele maluco, estava escrito que morreria na estrada, e que sabia ela do veneno da Bruxa Quitéria? Provavelmente não era mais que uma ilusão.

Mas eu próprio me sentia, me sinto até hoje, culpado daquela morte, de tanto desejá-la, de tanto considerá-la remédio e solução e à dúvida persistente, se o crime está na intenção ou no gesto, a resposta é só uma-, a Tiana matou e eu matei.

O meu livro acabou. Quero apenas contar que a Diamantina escreveu à Teca uma longa carta em que narrava os acontecimentos dos últimos meses e ficou assente, depois da troca de mais cartas e alguns telefonemas, que nas próximas férias se veriam em São Paulo.

Diamantina pareceu ganhar algum brilho com esta perspectiva e decidiu que ficaria no Brasil dois meses, de 15 de Agosto a 15 de Outubro, de onde esperava regressar com nova inspiração e novo ímpeto.

Ia longe o dia em que ela me desafiara a escrever as recordações da minha vida, ainda antes da morte do Simão, naquele Verão de 92 em que pairávamos numa doce beatitude ao abrigo de todos os temporais.

Tu escreves a tua vida e eu escrevo a minha e depois comparamos. .. vai ser divertido e aqui, Diamantina, deixa-me ser melodramático para dizer-te que obviamente eu escrevi a história da tua vida porque, que novidade, a minha vida és tu.

Estou muito doente. Quero entregar-te este manuscrito antes de partires para o Brasil e quero que partas sem fazeres ideia do meu estado de saúde.

Já estranhaste as minhas ausências prolongadas aqui em Lisboa, a minha magreza, a minha progressiva queda de cabelo, falei-te de um tumor já extraído, benigno, mas em todo o caso, algumas sessões de quimioterapia como medida preventiva, a situação completamente sob controlo. Não sei se acreditaste, mas quero ser a última das tuas preocupações.

Vou acabar o manuscrito, assiná-lo, pô-lo em tua casa pedindo-te que não tenhas pressa de o ler, quando voltares tens muito tempo de saber até que ponto a pessoa que esteve perto de ti desde os dez anos é afinal um homem cobarde, moribundo e sem préstimo.

Depois volto para a Pedra Moura. Vou recordar o que vivemos juntos, vou contemplar a colcha do pássaro de fogo, vou deitar-me no sótão à procura da tua boa estrela.

Graças à qualidade eterna do carácter de minha mãe e ao consequente travão que ela pôs à entrada do progresso naquela casa, a Pedra Moura guardou para sempre a sua transcendência de lugar mágico. O reino dos contos de fadas e dos autos de Natal, o mundo dos antigos aromas e sabores, o sítio da infância, o refúgio ideal para nascer e para morrer.

 

O livro do Mário acabava aqui. A Diamantina ficou absorta em sentimentos desencontrados, perplexa na tentativa de destrinçar a realidade da ficção. O Mário pregou-me uma partida, pensou. A Tiana a pôr veneno no sumo de laranja do Chico? Ficção. A Tiana não faz mal a uma mosca.

E como é que ele fala de cancro do pulmão se só me contou uma vez que tinha tirado um tumor benigno e minúsculo do esófago? A Tiana não disse que ele morreu do coração? E esta paixão por mim, assim tão avassaladora, meu Deus, eu teria dado por isso e não teria feito metade das asneiras que fiz na vida...

Mas alguma coisa dentro dela lhe dizia que não estava a ser digna daquela herança, daquele livro escrito sobretudo com o coração e o que havia a fazer era não o questionar, como costumam fazer com as histórias do tio Zebra, aliás, obviamente o professor de literatura do Mário.

Vou à Pedra Moura, disse ela.

A tia Margarida confirmou-lhe tudo acerca da doença do filho. Sim, o Mário pedira-lhe segredo até que a Diamantina lesse o livro que ele andava a escrever e onde, por fim, teria a coragem de dizer toda a verdade.

Ele sempre gostou de ti mais do que a conta, Tininha. Um amor tão grande que até a mim me doía, mas tinha medo de ser um estorvo à tua felicidade. Preferiu andar à tua volta como um anjo da guarda, como um amigo, como um irmão.

Ficaram caladas, com o chá de cidreira a arrefecer sobre a mesa, os biscoitos de azeite, mel e canela em forma de S no prato de florão.

Posso ir à sala, tia? Gostava de olhar para o lençol das amostras. Agora que já não bordo pássaros, preciso de tirar ideias.

E não bordas pássaros porquê?

Ora, perdi a inspiração, é como se qualquer coisa se tivesse quebrado dentro de mim.

Margarida correu as cortinas de filet, abriu as portadas de madeira, levantou as guilhotinas e varreu aquela noite eterna com uma luz linda, dourada, carregada dos odores do mosto das videiras, já que as uvas, que ninguém cortara, se retraíam em açúcar no pé.

Diamantina sofreu um choque. Ao lado do lençol das amostras a parede caiada fazia, em outro tom de branco, a moldura de um quadro vazio.

A colcha? perguntou.

Margarida pôs a mão na boca, a segurar o choro, os seus olhos claros encheram-se de água, mas afinou a voz e respondeu seguríssima,

Amortalhei-o com ela.

Quando viu o filho agonizante, Margarida foi à sala de visitas buscar a colcha do pássaro de fogo a bater asas e penosamente arrastou-a até à cama do Mário, para cobri-lo com ela. Com as suas mãos nas minhas e a colcha dela a envolver-me o corpo já posso morrer, disse ele. E ela, com as lágrimas a ensopar-lhe o sorriso, tantas que teve de desandar a saia para enxugar os joelhos, Pois, Márito, meu menino, já podes morrer... A esta hora estão eles a preparar no céu a festa com que hão-de receber-te. Puseram colchas como as da Tininha à janela das nuvens, está o céu cheio de aves do paraíso e acenderam todas as estrelas que há e estão os anjos a ensaiar os cânticos para a tua chegada, com muito cuidado e compostura para que lhes não aches desafinação. E numa cadeira feita de flores à direita de Deus Pai te hás-de assentar para a tua primeira refeição no paraíso. E há-de vir Nossa Senhora e te há-de beijar como eu te beijo que sou tua mãe e te dirá, aqui a saudade não mata e o amor não dói.

Margarida ficou assim, a falar-lhe baixinho, a moer uma litania de palavras, a cantar-lhe canções de embalar, o Menino está dormindo no colo de sua mãe, no colo de sua mãe, no colo de sua mãe, até que a noite se fez tão negra e as mãos dele tão frias, que já não conseguia largá-las nem para enxotar as lágrimas, horas e horas naquela grande pergunta sem resposta, porquê, meu menino, porquê, até que o sol nasceu e lhe entregou, na primeira luz de Outubro, o filho morto.

O Outono foi triste, o Inverno ainda mais. Diamantina, doente de solidão e de saudade, trabalhava sem gosto e sem inspiração.

Ainda tentou abordar dois ou três pássaros, mas saíram-lhe, como ela dizia, empalhados. Fê-los desmanchar, recomeçou.

Esticou o fio de seda cor-de-malva que começava a irisar novas penas para um voo nascente e parou com os olhos longe, fulminada por uma súbita evidência.

O que foi, dona Tininha, acorreu a Conceição. Alguma coisa

que eu saiba?

Não devia ter bordado os meus pássaros com as asas abertas. É como se cada um daqueles mais deslumbrantes fosse cada homem da minha vida. E vê como todos voaram, morreram, partiram, me deixaram sozinha. Talvez porque ao bordá-los lhes pus a minha maldade e o meu egoísmo.

Não diga isso, dona Tininha. A gente acha que os pássaros lhe saem do coração, por isso não podem ser maus.

Do coração, disse ela. Então pega, desmancha, que o meu coração está seco.

Mas está tão lindo...

Desmancha.

Puxou a linha, espetou a agulha, fez cantar o tafetá no bastidor.

Numa tarde de Fevereiro, já depois do sol posto, a Sebastiana pôs o trabalho de lado, puxou para a cara a ponta do xaile e desatou a chorar.

A Sebastiana era, juntamente com a Conceição, uma das primeiras aprendizas ainda do tempo da Pedra Moura. Das três, só a Bia tinha saído, porque casara com um vendeiro e tinha de ajudá-lo na loja.

O que foi, Sebastiana?

Ora, dona Tininha, a senhora nem sabe como eu ando ralada. A minha Maria Celeste, a senhora sabe...

Então não sei, a tua sobrinha, costumavas trazê-la para aqui quando lhe morreu a mãe... a tua irmã...

O pai é uma grande besta e a cachopa ai, valha-me Deus, a cachopa... ele emprenhou-a.

O que é que me estás a dizer? O pai emprenhou a catraia? Que idade tem ela?

Catorze anos, veja a senhora que crime... E a coitadinha não tem passado bem...

Porque é que não metes esse monstro na cadeia? Ai, se o Mário fosse vivo!

Impossível, dona Tininha. Sabe como os homens se tapam uns aos outros. Ia dizer que estava bêbedo, que é desculpa em vez de ser defeito, que a cachopa o provocou... Apanhava três meses, se apanhasse...

Meu Deus! Mas não há nada que se possa fazer?

Ela nem quer ir ao médico, com a vergonha... Meteu-se em minha casa, está toda inchada, passa mal...

Vou levá-la ao médico a Lisboa. Lá ninguém sabe quem ela é, não tem que ter vergonha. E o bebé nasce quando?

Maio ou Junho, ela nem sabe, isto é mais um suponhamos...

Vou marcar consulta e saímos de carro aqui da Atalaia, para que não dê nas vistas.

Deus lhe pague, dona Tininha. Há-de pagar, não te preocupes.

Mas todos os cuidados da Diamantina de nada valeram à pobre Maria Celeste. Morreu no parto, sem chegar a ver o filho.

Tudo se passou em casa da Sebastiana porque a rapariga aguentou em silêncio, até poder, as dores desesperadas da dilatação, e a expulsão apanhou-as de surpresa, já não havia forma de a levar para Lisboa. Diamantina, chamada à pressa, não chegou a tempo. A curiosa declarou, a lavar as mãos e a responsabilidade na bacia de esmalte, Estava atravessado, era ele ou ela. E ela pediu que lhe salvasse o filho. Ponham esta tetina na boca de um frasco, é metade leite de vaca e metade água, ele é forte, há-de fazer pela vida.

Foi-se embora e deixou as duas mulheres em pânico, com um cadáver lavado em sangue e um recém-nascido sem mãe.

A Sebastiana virou-se do avesso para cuidar da criança, levava-a para a Atalaia na alcofa das compras, todas as mulheres o cobriam de mimos. O pai da Celeste, que sempre negara tudo, não quis tomar conhecimento, nem a bebedeira crónica lho consentiria, destas tristes e ledas ocorrências.

E uma noite a Diamantina acordou com uma certeza absoluta, como já não lhe acontecia desde o tempo em que dormia no sótão da Pedra Moura e um anjo lhe dizia que das mãos lhe nasceriam asas e com elas havia de voar.

Decidiu tomar conta do bebé da Maria Celeste, fazer dele seu filho, criá-lo com todo o amor que trazia enquistado no coração. Se a Sebastiana consentisse.

Consentiu.

Tudo ficou resolvido no dia 21 de Junho. Com uma sensação de felicidade que já nem se lembrava de lembrar, pegou no bebé ao colo, chamou o motorista, mandou seguir para a Pedra Moura.

Não me esqueço que são os anos do Mário, tia Margarida, e olhe o que lhe trago! Faz hoje um mês e é o meu primeiro filho!

Contou a situação da criança e de como decidira adoptá-lo, adaptá-lo, como diria o tio Zebra, adaptá-lo primeiro aos seus braços, depois à sua nova vida. E talvez, com o tempo, pensasse numa menina para fazer-lhe companhia...

Há-de chamar-se Mário, há-de encher-nos a casa de risos, hei-de contar-lhe as histórias do tio Zebra, hei-de dizer-lhe que os pássaros de seda são os voos da imaginação, as asas da alma, o dom da viagem e as zebras milagrosas são o amor infinito para além da nossa humanidade. E vamos falar-lhe do padrinho dele, o homem mais doce que existiu, que nos ama e está no céu.

Margarida chorava e ria, Diamantina sentiu subitamente um infinito amor por aquela mulher forte, passiva e eterna como as pedras, que soubera conservar-lhes a infância mítica entre aquelas quatro paredes, sem nunca lhes atraiçoar a memória.

Tal como eles, aquele menino conheceria o fumo da carqueja na lareira, a grande mesa da cozinha, as cadeiras de buinho, o lajedo do chão. Colheria ervas de cheiro, trincaria maçãs verdes, ouviria a cega-rega dos ralos, lançaria cascas de laranja ao regato para ver a água tomar todas as cores do arco-íris.

Abraçou a tia com força, disse-lhe adeus, até muito breve, não deixou que viesse fora, estava fresco e a noite caíra.

Quando se dirigia para o carro viu a Moura, escarranchada no buracão da janela, com o calcanhar a dar-a-dar.

Diamantina estacou, com o Márito a dormir-lhe nos braços, a sorrir aos anjos. Não sabia o que pensar. Vieram-lhe à memória os solstícios da infância, quando se lhe afigurava ver a Moura em qualquer forma branca que a lua fizesse e acusava o primo de não ter fé.

E agora ela estava ali.

Vinda do fundo do mistério, feita com farrapos da sua própria alma, encharcada de luar e eternidade, a Moura disse, a tua vida vai mudar.

Depois desapareceu.

Diamantina soube então que nada estava perdido. Sou eu que vou mudar, afirmou em voz alta, e entrou no carro a chorar baixinho um derradeiro remorso, com a criança bem apertada ao peito.

O carro curvou no caminho, ganhou o asfalto e ela limpou as lágrimas e viu claramente, erguendo-se na estrada, de asas em voo e olhos de profeta, o seu próximo pássaro de seda.

Vou bordar esta colcha em tons de lua, azuis e prateados. Vou bordá-la sozinha, em estado de paixão e quando estiver pronta virei à Pedra Moura e hei-de pendurá-la na sala para visitas imaginárias, naquele lugar vazio, ao lado do lençol das amostras. Para que o sortilégio que foi a minha vida, que é a vida, tenha o sabor do eterno retorno.

 

                                                                                Rosa Lobato de Faria  

 

                      

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