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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS PERDIDOS / Hannah Howell
OS PERDIDOS / Hannah Howell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Gybbon MacNachton passa os dias procurando os Perdidos, demônios poderosos estão sendo perseguidos por aqueles que querem destruí-los. Quando Gybbon encontra Alice Boyd, vivendo como uma fera acuada na floresta, ela lhe desperta um intenso desejo, que só poderá ser saciado por uma união explosiva...

 

 

 

 

Escócia, primavera de 1513

O silêncio envolvia a floresta como uma mortalha. Era como se toda a natureza prendesse a respiração, temerosa. Mas por quê? Assim se perguntava Gybbon MacNachton, olhando para seus dois primos e percebendo que Lachann e Martyn também estavam tensos, apertando os punhos de suas espadas do mesmo modo como ele fazia.

— Caçadores? — questionou enquanto apeavam. Sua voz era um sussurro tão leve que apenas outro MacNachton escutaria.

Lachann abriu a boca, mas não teve oportunidade de responder. Um grito aterrorizante e feroz, como só um MacNachton poderia soltar, ecoou pelas matas, interrompendo o silêncio pesado. Alguns animais reagiram, emitindo seus sons também, enquanto outros revelavam pouca cautela e saíam correndo aos bandos, fugindo e enchendo o ar com seus ruídos.

— Creio que isso veio de um dos Caçados — resmungou Lachann. — Qual o caminho?

Gybbon sabia que os primos tinham conhecimento de onde viera o grito; mas desejavam uma confirmação. Um dos dons com o qual fora agraciado pela combinação dos sangues dos Callan e dos MacNachton era uma audição extraordinária, que poucos dos seus semelhantes podiam igualar. Um poder que muitas vezes podia ser uma maldição, refletiu, distraído, enquanto se concentrava no que era importante.

Lutou para se desvincular de todos os outros sons que invadiam seus ouvidos e, por fim, captou apenas os que desejava escutar: a respiração regular, porém pesada, de cavalos em corrida desabalada; o som forte de metais de armaduras; e até o claro e sonoro rumor de espadas sendo desembainhadas.

— Vamos em frente. Uma rápida corrida e alcançaremos uma clareira no sopé das colinas acima das árvores — respondeu.

— São pelo menos seis homens armados. Os cavalos fazem muito barulho e não tenho absoluta certeza do que ouço. — Em seguida acrescentou em tom de voz muito baixo, quase gutural: — Creio que acabamos de encontrar um dos Perdidos.

— Então é melhor nos apressarmos — recomendou Martyn, conduzindo seus cavalos mais para o meio das moitas. — Não tenho a menor intenção de perder o prêmio depois de termos chegado tão perto.

— Concordo — disse Gybbon. — Vou em frente. Martyn, pegue a direita, e, Lachann, vá pela esquerda. Pararemos ao encontrar nossa presa e, então, aguardem meu sinal.

Moveram-se com rapidez e em silêncio em meio ao arvoredo. Gybbon não se surpreendeu ao ouvir o som de animais que se afastavam à sua passagem. Os bichos sabiam reconhecer os predadores, e os mantidos em Cambrun deveriam ser criados com todo o cuidado desde seu nascimento para aceitar com naturalidade um MacNachton ou um Callan.

Os aliados humanos dos MacNachton cuidavam dos animais para abate e alimentação.

O odor de sangue invadia o ar enquanto se aproximavam de seu objetivo. Gybbon tratou de domar depressa a fera que se retorcia em seu íntimo, sua fome intensa aguçada pelo cheiro forte. Todos os seus instintos lhe diziam que haviam encontrado um dos Perdidos que seu clã procurava. Porém, se estivesse errado, a última coisa que ele e seus primos desejavam, todos eles MacNachton famintos por sangue, era se aproximar de um grupo de Proscritos.

Os murmúrios a respeito de seu clã já eram excessivos. Atacar Proscritos apenas faria crescer os comentários de que eram demônios, o que já causara sua perseguição. Gybbon sentiu a raiva aumentar no coração ao pensar no descuido de seus ancestrais. Os MacNachton do passado não apenas tinham feito pouco para esconder o lado sombrio de sua natureza, tornando-se os Invasores Noturnos dos piores pesadelos das pessoas, como também haviam procriado fora do clã, deixando o rastro de sua existência. E, o que era muito pior e imperdoável, tinham abandonado seus descendentes. Muitas crianças ficaram para trás crescendo com dons e poderes que não conseguiam compreender e que, com frequência, acabavam por matá-las.

No momento em que Cathal, senhor dos MacNachton, havia tomado conhecimento do problema, enviara em missão todos os homens que pudera. Dúzias de MacNachton tinham saído à caça daqueles que chamavam de Perdidos, seus descendentes.

Gybbon respirou fundo. Seu clã não apenas necessitava de sangue novo para Cambrun, como também existia o fato de que o maior inimigo dos MacNachton, agora também caçava os Perdidos. Um número cada vez maior de Caçadores seguia os rastros de qualquer um com sangue MacNachton, e tornara-se uma corrida exaustiva ver quem encontraria todos os Perdidos primeiro.

Assim que as árvores começaram a rarear, Gybbon fez um sinal para que os primos se abaixassem. Os três começaram a rastejar, quase sem levantar nem sequer uma folha do solo, até que alcançaram a beira de uma clareira.

Ele pensava, distraído, como eram bons para perseguir os Perdidos, quando, de repente, as nuvens se afastaram da lua cheia, e ele pôde dar uma boa olhada na criatura que, pouco adiante, enfrentava oito homens armados. Por um instante, só pôde pensar que, sem dúvida, haviam encontrado um Perdido. Era uma mulher pequena e parecia precisar urgentemente de alimento. Vestia trapos e necessitava também de um bom banho.

Agachada, como se preparada para saltar sobre os inimigos, ela mantinha erguidas as mãos minúsculas de dedos longos e unhas compridas, as quais, Gybbon bem sabia, podiam com facilidade rasgar a garganta de quem a ameaçasse. Um esgar de fera retorcia a boca carnuda, exibindo as presas. Um homem já estava atirado no chão perto dela, e seu vestido esfarrapado e o rosto pálido estavam salpicados pelo sangue do ferido.

Gybbon, em geral apreciador de mulheres bem tratadas e elegantes, sentiu um choque com a atração súbita e intensa que o invadiu. Era uma criatura feroz, diferente daquelas com que estava acostumado: um verdadeiro contraste, como um espinho entre rosas. Nem mesmo as mulheres Puros-Sangues de seu clã pareciam tão ferozes e perigosas.

Não conseguia ver muito bem os olhos da estranha à sua frente devido à massa de cabelos longos e espessos sobre seu rosto, mas isso não diminuiu a atração repentina que o dominou.

Sentiu as presas crescendo e invadindo a boca, e bem sabia que não era apenas por causa do odor forte de sangue. Desejava cravá-las na mulher coberta de poeira e lama, ali adiante.

Forçando-se a sair desse turbilhão de emoções, fez um sinal para os primos. Eles precisavam se esgueirar dentro da clareira, postando-se nos lados e atrás da mulher. Seria necessário mostrar aos Caçadores que eles não estavam apenas enfrentando um, mas vários MacNachton.

Gybbon esperava que isso fosse suficiente para fazer os homens bater em retirada. Embora ansiasse por livrar o mundo daquele bando de Caçadores, uma batalha naquele momento poderia fazer com que perdesse a moça. E conseguir que um Perdido retornasse ao ninho era da maior importância. Mulheres com o sangue dos Perdidos eram férteis, e seu clã necessitava desesperadamente disso.

Quando a ideia de a moça gerar um filho de outro MacNachton quase o fez rosnar de ódio, ele tratou de afastar todos os pensamentos da criatura. Tinha um inimigo a vencer.

— Você matou Donald! — gritou um homem baixo e atarracado.

— Ainda não. Porém o farei se derem mais um passo — rebateu a moça com voz clara e doce apesar da postura belicosa.

Gybbon balançou a cabeça, confuso, enquanto deixava que a noite o ajudasse a se aproximar o mais possível da mulher antes de ser visto. Não compreendia por que ela não saía correndo.

Por que enfrentava homens armados e ferozes quando poderia escapar e desaparecer nas sombras? Eles não a haviam encurralado, e, sem dúvida a mulher tinha meios de se salvar.

— Morrerá aqui, demônio em forma de mulher. Vamos encontrar aquele seu rebento insignificante e matá-lo também.

Gybbon praguejou baixinho. Agora sabia por que a moça não fugira. Havia uma criança por ali, que poderia também ter o sangue dos MacNachton.

Fez um sinal para os primos e, um a um, cada qual saiu das sombras. Martyn se aproximou pela direita da mulher, Lachann pela esquerda, e Gybbon se adiantou, ficando bem atrás dela. Queria ficar à sua frente, mas precisava garantir que ela não fugisse deles quando os Caçadores tivessem partido.

Quando ela se voltou depressa, Gybbon sorriu, revelando as presas; a maneira mais rápida de lhe dizer que eram aliados.

Alice Boyd fitou o homem que se esgueirara às suas costas. O fato de ter conseguido se aproximar tanto sem que ela ouvisse nenhum som a surpreendeu.

Fora um erro ter se voltado, expondo as costas para os homens que a caçavam havia tanto tempo, mas respondera de maneira instintiva à presença do estranho. O fato de os outros dois homens também terem presas não a confortava muito. Só porque pareciam ser amaldiçoados como ela, não significava que fossem aliados.

O homem às suas costas a agarrou pelo pulso e a puxou para o seu lado. Ainda surpresa por ver que existiam outros como ela, Alice não reagiu. Disse a si mesma que, se aquelas criaturas fizessem seus inimigos debandar, no final da batalha só haveria três com quem lutar. Isso lhe daria maior oportunidade de sair do confronto viva.

Forçou-se a não pensar que os três eram parecidos com ela e que, talvez, dessem mais trabalho para ser vencidos do que os Caçadores. Não podia permitir que o medo a dominasse naquele momento.

Por um instante, tudo o que os homens fizeram foi trocar olhares. Alice sentiu-se tentada a gritar que agissem de uma vez. Então, aquele que ela ferira rolou sobre o próprio ventre e começou a rastejar na direção dos companheiros.

Alice tratou de abafar a remorso por ter ferido alguém de modo tão grave. Afinal, ele tentara matá-la, lembrou-se com determinação.

Aguardou que os três recém-chegados à sua volta tomassem alguma atitude, mas eles apenas apertaram o cerco para protegê-la, embora ela não entendesse por que faziam isso. Não os conhecia. E tinha certeza de que a recíproca era verdadeira. Embora se parecessem com ela, Alice não tinha conhecimento de que existiam muitas pessoas da sua espécie.

— São apenas quatro com a mulher — disse o homem atarracado, enquanto dois dos Caçadores recolhiam o ferido e o colocavam na garupa de um cavalo. — Deveríamos enfrentá-los e lutar.

— Não desta vez — retrucou um homem alto e musculoso, montando em um cavalo sem tirar os olhos da mulher e dos homens que a cercavam.

— Monte, Geordie... Vamos embora.

— Eles voltarão — murmurou Alice, assim que o último de seus agressores desapareceu no meio da noite.

— Sim — concordou o que continuava segurando seu pulso. — Tentarão nos eliminar sorrateiramente, um a um.

Alice o fitou.

— Então talvez seja melhor que vocês voltem logo para o lugar de onde vieram.

— Não sem você.

O medo parecia uma garra no coração de Alice, que tentou disfarçar diante das criaturas que a fitavam com atenção.

— Por que eu deveria acompanhá-los? Não sei quem são.

— Sou Gybbon MacNachton — informou o que a segurava e acenou para o homem à esquerda. — Meu primo, Lachann... e meu primo Martyn. Estávamos à sua procura.

O nome MacNachton, pelo qual seus agressores também a haviam chamado, nada significava para Alice. No entanto, reforçavam o que seus instintos começavam a lhe dizer: aqueles que a cercavam eram como ela. Ou a maldição que a atormentava estava mais difundida do que imaginara, ou então todos pertenciam à mesma espécie.

Entretanto, se de fato existia um parentesco, por que seus pais nunca a tinham informado disso?

Alice analisou os três homens e depois se fixou naquele que ainda a segurava pelo pulso. Uma onda de vergonha e humilhação a possuiu por ter sido encontrada por três rapazes tão bonitos em estado tão deplorável.

Mas isso não tinha importância, disse a si mesma. Tudo o que importava era saber se poderia confiar neles. Afinal, não era apenas a sua vida que estava em perigo.

O homem que a retinha era muito belo, mais do que seus primos morenos; o que a fez se sentir ainda pior ao pensar nos trapos que vestia. Não precisava fazer uso de seu olfato apurado para saber que, ao contrário dela, o tal Gybbon estava limpo: sua pele e vestimentas proclamavam isso. Ele era alto, esbelto, e sem dúvida muito forte. Tinha feições bem traçadas, era claro e não apresentava marcas ou cicatrizes.

À distância em que se encontravam, com a noite enluarada e sua visão privilegiada, Alice conseguiu distinguir a cor de seus olhos. Eram de um verde brilhante e a fitavam, cautelosos. Olhos lindos sob sobrancelhas escuras, com cílios espessos e longos; belos demais para um guerreiro tão musculoso. Os cabelos compridos eram tão negros que pareciam emanar um tom azulado sob a luz do luar. Maldição. Monstros não podiam ser tão bonitos.

— Por que me procuravam? — indagou, desconfiada, ao mesmo tempo em que tentava se livrar do aperto em seu pulso. Quando não conseguiu, viu-se analisando os lábios benfeitos e tentadores de Gybbon, que não a soltou.

— Não estávamos procurando exatamente por você. Fomos enviados por nosso líder para encontrar pessoas que denominamos "os Perdidos".

— Os Perdidos? — repetiu Alice, confusa.

— Sim — confirmou o que se chamava Lachann. — Semelhantes nossos que nasceram fora de nossas terras e se perderam de nós.

Martyn aquiesceu com um gesto de cabeça.

— Nossos ancestrais não eram pessoas muito conscienciosas. Saqueavam vilarejos e cidades em um raio de muitos quilômetros. Eram chamados de Invasores Noturnos. Só nos últimos tempos percebemos que haviam deixado descendentes para trás, filhos resultantes de estupro ou sedução. Primeiro veio até nós um homem chamado Simon; depois, uma moça e seu irmão pequeno, os quais vinham sendo perseguidos pelos Caçadores; e agora você.

— Caçadores? — murmurou Alice, sentindo-se sufocada pela fúria contra os que a atormentavam. — É um apelido muito generoso para gente como aquela.

— É verdade — concordou Gybbon. — Porém, é isso que eles fazem: caçam os MacNachton.

— Sou uma Boyd. Alice Boyd.

— Tem o sangue dos MacNachton nas veias, moça. Isso a torna uma de nós. Como sabe agora, possuímos um inimigo comum que deseja ver todos os MacNachton mortos.

— Porque somos demônios amaldiçoados — concluiu Alice.

— Não. Porque somos apenas diferentes. — Gybbon ignorou o resmungo desdenhoso de Alice. — Poderemos conversar sobre isso mais tarde. Conte-me por que estava enfrentando aqueles homens e por que não usou seus dons. Sei que você os possui. Eles teriam lhe permitido fugir e se esconder.

Dons?

Alice teve vontade de rir, porém sabia que seria uma risada amarga e desagradável. Seus supostos dons não haviam livrado sua família do massacre. O fato de não ter sido abatida nem violentada não dependera de alguma dádiva divina, mas de oportunidade. Se, de fato, possuísse algum talento especial, não viveria imunda, maltrapilha, faminta e se escondendo em cavernas.

Lançando um rápido olhar para os três homens de novo, franziu a testa. Eles estavam limpos, bem-vestidos, e não pareciam famintos. Mesmo assim, sabiam quem ela era e, depois de verem suas presas, não podia negar que se pareciam.

Teriam um esconderijo seguro ou tinham escapado de grandes sofrimentos por ser fortes, bem armados e viajarem em bando?

Relembrou a conversa sobre os Perdidos, crianças geradas por seus ancestrais e deserdadas ou ignoradas porque os homens em geral nunca pensavam muito no fato de que seu sêmen espalhado poderia criar raízes em algum lugar.

Certa vez, recordou-se Alice, sua mãe lhe contara que, muitos anos antes, sua própria mãe tivera um amante: um homem moreno que só a visitava à noite. E que ela fora o resultado dessa união. A pobre tinha certeza de que a escuridão interior que as fazia sofrer adviera disso.

E sua avó também tinha lhe falado a respeito do amante. Ela o chamara de "meu cavaleiro negro".

Tudo o que aqueles homens lhe diziam agora se encaixava com o pouco que ela sabia. Mesmo assim, ainda não tinha certeza se podia confiar neles. Havia muito a proteger para poder confiar com tanta facilidade.

Mas, uma coisa era certa: aqueles cavaleiros sabiam como se manter a salvo, aquecidos e bem alimentados.

Alice desejava com desespero parar de fugir, de se abrigar em cavernas como um animal acuado. Não podia ignorar o fato de que estava mudando, tornando-se mais um animal do que uma mulher.

Porém, sabia que tudo o que fizera ou que poderia fazer não seria o suficiente para alcançar o que aqueles homens haviam alcançado. Havia tempos ela vinha enfrentando a derrota e a morte, e não era a única. Se partisse, aqueles que protegia, e por quem lutava com tanta energia, se perderiam.

Por outro lado, admitia: estava exausta por carregar tamanha carga sozinha.

— Não desejamos lhe fazer nenhum mal, menina — murmurou Gybbon, consciente de que ela tentava tomar uma decisão a respeito de poder ou não confiar neles. — Não está sozinha, não é mesmo? Existe uma criança, sabemos. Deixe-nos ajudá-los. Permita que os levemos para o nosso povo, em Cambrun. Lá estarão a salvo, muito mais do que aqui.

— Sim, tenho mesmo o meu "rebento insignificante" — ela murmurou, revoltada.

Surpresa, sentiu que ele apertava seu pulso com força, enquanto uma sombra de ódio transformava o rosto másculo.

E a raiva que pôde sentir em Gybbon diante do insulto ao filho dela a ajudou a se decidir:

— Preciso confiar em suas palavras. Não tenho outra escolha. Caso os patifes que me perseguem não tenham êxito, a fome, o frio e o cansaço me vencerão. É melhor vocês me seguirem.

 

Gybbon logo descobriu que ele e os primos precisavam correr para acompanhar os passos de Alice. Ela galgava rochas com facilidade, apesar dos pés descalços, e subia as colinas com uma velocidade e agilidade que Gybbon e seus companheiros mal conseguiam igualar. Isso o fez se perguntar se Alice Boyd nascera com tais qualidades ou se as desenvolvera devido à vida dura que levava.

Quando ela entrou em uma fenda entre duas rochas enormes, eles foram atrás. As pragas que seus primos murmuravam às suas costas, contudo, indicavam que estes estavam tendo a mesma dificuldade que ele em se esgueirar por ali.

Gybbon se deteve no interior de uma pequena caverna e estava para fazer um comentário quando viu a modesta fogueira no centro da gruta. E a visão que teve nesse instante sufocou qualquer forma de expressão: vários pares de olhos infantis se fixaram nele, que percebeu, chocado, que Alice Boyd não estava protegendo apenas uma criança, mas quatro. O menino mais velho se esgueirou para frente a fim de proteger com seu corpinho magro os outros menores e a própria Alice.

Gybbon analisou o garoto e calculou que devia ter nove ou dez anos de idade no máximo. As características dos MacNachton eram marcantes nele.

Duas meninas pequenas e de cabelos escuros se encolheram atrás do garoto, e Gybbon nem tentou adivinhar quantos anos tinham, embora duvidasse de que já tivessem saído de uma tenra idade. Um menino pequenino tentou se aproximar dos mais velhos, porém foi afastado com delicadeza.

Como Alice, as quatro crianças estavam esfarrapadas, sujas e com aparência selvagem. Gybbon suspeitava de que nem todos fossem seus filhos, pois a moça não parecia ter mais de vinte anos e apenas um dos pequenos se parecia com ela.

— Fique tranquilo, Alyn — murmurou Alice, agachando-se ao lado do menino mais velho.

— Você trouxe os Caçadores até nós — ele replicou em um tom de voz surpreso e acusador.

— Não, eu jamais faria isso. Mesmo que você não acredite, eu morreria para mantê-los a salvo. Não duvida de que eu fosse capaz de fazer isso por Donn, meu próprio filho, ou pelas pequenas Jayne e Norma, não é?

— Não. — Alyn mordeu o lábio e balançou a cabeça. — Mas, se esses não são nossos inimigos, quem são?

— MacNachton — respondeu Gybbon enquanto se aproximava devagar com os primos. — Somos como vocês, e os homens que os perseguem fazem o mesmo conosco. Acreditamos que todos vocês tenham o sangue dos MacNachton.

— Não sei que sangue corre em minhas veias, apenas que é uma maldição.

A amargura envolvia as palavras de Alyn.

Gybbon sentou-se e permaneceu olhando para o menino além da pequena fogueira, o qual não piscou nem mesmo quando os primos acompanharam seu gesto e se acomodaram a seu lado.

— Sim, às vezes parece uma maldição que nos mantém nas sombras e nos faz sentir uma estranha fome. Mas não se trata de obra do demônio, e não somos seus discípulos. Apenas somos pessoas diferentes. — Ajeitou-se melhor no chão e prosseguiu: — Nossos ancestrais se aproveitaram dessas diferenças e agiram com arrogância e crueldade. O pai de meu líder pôs um fim nisso há muito tempo. O que desconhecíamos é que enquanto nossos ancestrais tomavam à força o que desejavam ou precisavam, também foram deixando para trás suas sementes. — Baixou os olhos, pensativo. — Eu gostaria de dizer que eles se importariam caso soubessem que haviam gerado filhos, mas não tenho certeza. Acredito, porém, que jamais lhes ocorreu que seu sêmen poderia procriar fora do clã.

— Qualquer homem em seu juízo perfeito sabe que se espalhar seu sêmen ele criará raízes e procriará.

Havia tanta raiva e dor por trás das palavras de Alyn que o coração de Gybbon ficou apertado. Era assustador ver uma criança tão pequena falar da vida com tanta crueza.

—- Tem razão, eles deviam saber. Mas acontece que a semente dos MacNachton quase nunca germina. Ficamos nas nossas terras, longe dos outros que chamamos de Proscritos, por muito tempo. Também dificilmente procriamos dentro de nosso clã. Certo dia, nosso líder olhou em volta e percebeu que, num espaço de quarenta anos, apenas um MacNachton, que chamamos de Puro-Sangue, gerara uma criança; e que a única outra nascida em Cambrun era fruto de um MacNachton e uma Proscrita: uma humana comum. Portanto, é fácil perceber como nunca nos ocorreu que outros com sangue MacNachton haviam nascido fora de nossos domínios. — Gybbon deu de ombros. — Já que não procriamos dentro de nosso clã, por que imaginaríamos que poderíamos procriar fora dele?

— Seu clã não tem crianças? — perguntou Alice.

De repente compreendera por que aqueles homens tinham fitado os pequeninos junto ao fogo como se fossem dádivas de Deus.

— Temos mais agora, pois nosso líder e meu pai se casaram com Proscritas. Foi um plano do líder. Ele mesmo é filho de um MacNachton e de uma Prescrita. — Gybbon mostrou suas presas de relance. — Poucos Proscritos nos toleram. Nosso líder espera que, aos poucos, os próximos MacNachton surjam sem as características que nos tornam tão temíveis. No momento, contudo, o melhor que podemos fazer é tentar diminuir as diferenças entre nós e os Proscritos para que possamos nos mover no meio deles com maior facilidade.

— E por que gostariam de fazer isso? — resmungou Alyn!

— Para sobreviver — sussurrou Alice, percebendo com clareza a estratégia do líder dos MacNachton.

— Isso mesmo — concordou Gybbon. — Podemos ser mais fortes e temíveis, porém os Proscritos são em número muito maior do que os MacNachton. Sempre será assim.

— Mesmo que reúnam todos os Perdidos — concluiu Alice.

O fato de ela ter percebido a razão de sua busca fez Gybbon concluir que era inteligente.

— Portanto, nosso objetivo é sobreviver. Procuramos os que têm sangue MacNachton nas veias, mas essa busca não começou por causa disso.

— Temos tempo. Pode contar sua história.

Atenta, Alice sentou-se ao lado de Alyn e do pequenino chamado Donn, que se aninhou junto a seu colo.

— Não acho que temos — Gybbon replicou. — Aqueles homens lá fora não voltaram para casa, e creio que sabe disso.

Alice suspirou.

— Sim, eu sei, mas irão fazer uma pausa para armar novos planos. É seu modo de agir. Estão com um ferido que precisa ser tratado.

Ou sepultado, concluiu em pensamento, sentindo uma ponta de horror e vergonha.

Mas logo afastou esse pensamento. Afinal, estivera lutando por sua vida.

— O tempo que temos deve ser utilizado para fugir daqui. — Gybbon olhou para Martyn. — Pode ir buscar os cavalos?

Martyn se levantou de imediato e fez um sinal para que Lachann o seguisse.

— Iremos trazê-los para mais perto, escondê-los, e arrumar algumas provisões. Creio que é melhor comermos antes de partir para Cambrun.

Gybbon olhou de relance para as crianças e concordou com o primo.

— Tomem cuidado.

Assim que os outros dois partiram, voltou-se para Alice.

— Viajaremos para Cambrun assim que comermos. É o máximo de tempo que ouso ficar por aqui. Vocês comem, não?

— Sim —- respondeu Alice, imaginando quais MacNachton não comiam, e esperando que essa não fosse mais uma maldição que a atingiria mais tarde na vida. — Embora a fome maldita não se sacie com alimentos comuns.

— Sei disso. Porém, ela pode ser domada. Vocês suportam a luz do sol?

— Um pouco. Logo cedo, pela manhã, e no final da tarde. Aguentamos mais se as nuvens estiverem pesadas. O meio-dia e as outras horas em que o sol é mais forte são perigosos para todos nós. — Fitou-o intensamente. — E, antes que pergunte, temos estas malditas presas, nossos sentidos são mais aguçados do que os das outras pessoas, e nos movemos com maior rapidez. Também nos curamos mais depressa e somos mais fortes do que a maioria. — Fez uma pausa e logo prosseguiu, sabendo que Gybbon lhe dava toda a atenção. — Além disso, se minha grand-mère, minha avó, não mentiu para minha maman, também não envelhecemos tão depressa. Minha mãe tinha cinquenta anos quando foi assassinada, mas não parecia nem um dia mais velha do que pareço hoje. — Sorriu de leve quando Gybbon ergueu as sobrancelhas em uma pergunta silenciosa. — Estou com vinte e dois anos.

— E esse é seu filho? — ele questionou, acenando para a criança sentada no colo de Alice.

— Sim, Donn é meu filho. Tem apenas quatro anos de idade e não conhece outra coisa em sua breve vida a não ser fugir e se esconder. Essa não é a existência que eu escolheria para uma criança, mas pelo menos ele continua vivo.

— E quanto a seu marido?

Alice sustentou o olhar, esperando que Gybbon entendesse o que não desejava dizer na frente das crianças.

— Nunca tive um, tampouco um amante ou um amor.

Gybbon podia ver a revolta e a mágoa nos olhos que pareciam dourados à luz do fogo, e compreendeu o que ela não dissera. Donn fora concebido sob violência e humilhação.

De repente, sentiu uma grande necessidade de encontrar o homem que violentara Alice para fazê-lo sofrer todas as dores do inferno. Disse a si mesmo que tal reação se devia ao fato de sempre ter odiado homens que abusavam de mulheres indefesas, mas uma voz, em seu íntimo, riu dessa desculpa. A verdade era que a moça à sua frente, mesmo esfarrapada e imunda, provocava nele uma emoção estranha que o deixava confuso e cheio de perguntas.

Tinha certeza apenas de uma coisa: com sua arrogância cega e grande indiferença, seus ancestrais haviam condenado aquelas crianças a uma existência infernal.

Alice dissera que a mãe fora assassinada e ele nem precisava perguntar por quê. O sangue dos MacNachton viera daquela mulher, e a tornara díspar em um mundo que tratava os diferentes com grande desconfiança e perigosa superstição.

Não queria pensar em quantos MacNachton tinham encontrado sorte igual, porém era um fato difícil de ignorar; em especial quando estava fitando uma mulher e quatro crianças sofridas. Isso fomentava a pressa que todos de seu clã tinham: a grande necessidade de juntar o mais rápido possível todos os Perdidos que pudessem encontrar.

Quando se acalmou e sentiu que o ódio em seu íntimo não iria aparecer em suas palavras, explicou:

— Seu menino será muito bem tratado em Cambrun, assim como as outras crianças. Já que aceitamos o fato de que somos um povo em extinção, qualquer criança com uma gota apenas de sangue MacNachton é considerada uma dádiva, um sinal de que, afinal, não estamos destinados a desaparecer nas brumas do tempo.

— Talvez fosse melhor desaparecer — murmurou Alice com tristeza.

— Não. Eu já lhe disse que não somos demônios nem amaldiçoados. Somos apenas um tipo diferente de seres humanos. Conhecendo o que dizem e o que fazem os Proscritos com todos que não se parecem com eles, procuramos com empenho por nossos semelhantes. E também não somos a única espécie humana diferente.

Falou-lhes um pouco sobre os Callan, o clã de sua mãe, que diziam ser descendentes de um ramo celta mutante.

— Quem pode dizer quantas pessoas diferentes estão lá fora? E que conseguem se ocultar entre os Proscritos melhor do que nós? Por isso buscamos nossos iguais: porque nosso líder acha que nos tornaremos mais fortes se todos os que são diferentes se unirem.

Enquanto Gybbon prosseguia, Alice começou a pensar que, afinal, talvez não fosse uma aberração demoníaca e amaldiçoada.

— Nem todas as características dos Callan desapareceram — ele continuou. —- Creio que será impossível descartar todas as nossas características, mas Cathal, nosso líder, considera que podemos suavizá-las. Isso já é muito bom. E se tivéssemos sabido há mais tempo sobre vocês, teríamos ajudado a esconder seus dons e lhes ensinado como poderiam se manter ocultos entre a multidão. — Suspirou, frustrado. — Tendo permitido que crescessem sem treinamento, sem saber quem são de verdade, meus ancestrais os condenaram. Mas levou algum tempo e muita discussão para que os Puros-Sangues compreendessem essa verdade.

— Os Puros-Sangues não queriam mudar? — Alice questionou.

— Não. Relutavam em abandonar o modo como vivemos por tantos séculos, mas acabaram por entender que Cathal tinha razão. A recente descoberta dos Perdidos ajudou a modificar seu ponto de vista. — Sorriu com brandura. — E o fato de minha mãe e sua irmã, que se casou com o líder, terem procriado também ajudou.

— Então agora vocês têm crianças — interrompeu Alyn.

— Algumas, porém não o suficiente. É difícil encontrar maridos e esposas fora do clã — explicou Gybbon. — Até porque muitos precisariam viver entre nós para sua própria segurança e de seus filhos.

— Como pode ter tanta certeza de que seremos bem-vindos no seu clã? — Alice relutou.

— Eu já lhe disse que somos um povo em extinção. É preciso mais de duas mulheres procriando para manter um clã vivo e forte. Precisamos de sangue novo. E minha gente adora crianças, talvez porque sempre tivemos tão poucas. Passamos muito tempo sem ouvir risadas e passos infantis. Nossos homens mais jovens, que querem se misturar aos Proscritos, nos abandonam para tentar encontrar esposas; e alguns até têm sucesso. Isso faz com que outros sejam tentados a proceder do mesmo modo. Nem todos regressam, e resolvem fazer a vida onde moram as esposas.

—- Mais uma perda que enfraquece seu clã — concluiu Alice com sabedoria.

— Sim.

Gybbon ficou tenso ao escutar o leve som de cascos de cavalo; então relaxou ao reconhecer que eram os primos.

— Meus companheiros retornaram — anunciou depressa ao ver que Alice e as crianças estremeciam de medo.

Quando os primos se sentaram junto ao fogo e começaram a tirar alimentos de uma sacola, os pequenos se agitaram, e Gybbon tomou as rédeas da situação de imediato. Já passara fome uma vez e sabia que não deveria dar comida demais às crianças. Suspeitava de que havia muito tempo não tinham a sensação de estômago cheio.

Comer demais naquele momento os deixaria doentes. Assim, deu a cada um uma pequena porção de pão, queijo e carne fria, além de um bolinho de aveia e mel. A seguir, serviu os adultos com a mesma quantidade e disse a Martyn que guardasse a comida restante.

De início, as crianças tentaram enfiar tudo dentro da boca, mas um olhar severo de Alice deteve sua voracidade. Gybbon concluiu que Alice devia ter recebido uma boa educação e que devia vir de família rica, pois comia com calma e delicadeza, acompanhada pelos pequenos.

— Há quanto tempo fogem e se escondem? — perguntou, enquanto Alice ajudava os menores a beber cidra do odre. Mais tarde ele lhes daria o vinho forte e encorpado que os MacNachton sempre levavam consigo, já que poderiam fazer bom uso da força que a bebida, oferecia.

— Há seis anos — ela respondeu. — Eu havia me afastado de casa, colhendo amoras, quando os homens atacaram minha família. Se não tivessem incendiado o estábulo, eu poderia ter caído em suas garras também; porém o cheiro de fumaça fez com que eu me aproximasse devagar. Quando vi... — respirou fundo e deixou o ar escapar devagar dos pulmões num esforço para manter a calma e dominar a dor que ainda a invadia em certos momentos — ficou claro que eu chegara tarde demais para ajudar meus pais. Então me escondi. Quando tive certeza de que os homens tinham ido embora, voltei para casa, juntei o pouco que sobrara e que poderia usar, e depois coloquei os corpos de meus familiares dentro de casa. Tornei-a seu túmulo.

— Quantos você perdeu?

— Minha, mãe, meu pai, minha avó e minha irmã.

— Mil vezes amaldiçoados sejam esses patifes — murmurou Lachann, ficando vermelho ao perceber que estava diante de uma moça e crianças. — Desculpem meu linguajar.

— Digo coisas muito piores às vezes. — Alice o confortou. — Costumo desejar as piores doenças para esses desgraçados.

— Mesmo assim, foi capturada uma vez —- disse Gybbon, olhando de maneira significativa para Donn, que saboreava seu bolinho bem devagar.

— Sim, uma vez. Esses bárbaros podem pensar que sou um demônio, porém ainda assim me vêem como mulher, fraca e fácil de intimidar. Consegui escapar, e não pretendo ser capturada viva outra vez. — Alice falava com suavidade, esperando poder manter essa promessa e sobreviver. — Enquanto fugia e me escondia, encontrei Alyn primeiro, depois Jayne e, a seguir, Norma. Todos órfãos.

— Eu não era órfão — protestou Alyn. — Fui escorraçado.

— Portanto, órfão por causa do medo de ignorantes que o julgaram culpado pela morte de outra criança. — Alice fez um carinho na face do menino. — Agora você é minha família. — Assim dizendo, devolveu o odre de cidra para Gybbon.

— Em breve terão uma família muito grande — disse ele, sorrindo. — Tão grande que às vezes desejarão se afastar para ter um pouco de privacidade.

— Será que mais cinco pessoas não será demais? — ela perguntou, preocupada.

— Não, pois Cambrun possui um castelo enorme, acima e abaixo do solo. Também há um grande vilarejo no vale. Os aliados Proscritos dos MacNachton, os MacMartin, moram ali. Os MacMartin são nossos aliados há séculos — acrescentou quando a viu franzir a testa. — Sua lealdade é inquestionável.

Alice não tinha certeza se acreditava nisso, mas, mesmo assim, seguiria os homens até Cambrun. A refeição que acabavam de fazer afastara seus últimos resquícios de hesitação. Apesar da quantidade racionada, a refeição fora maior do que ela e as crianças ingeriam fazia muito tempo.

Gybbon observou Alice e os pequenos. Sabia que os Caçadores que haviam afastado não iriam desistir. Lidava com os inimigos fazia tempo suficiente para saber disso. Levar consigo para Cambrun uma mulher, três crianças pequenas e um garoto indefeso seria uma missão árdua. Caso os Caçadores os alcançassem, as crianças poderiam ser feridas na batalha. Precisava pensar numa maneira de manter aqueles canalhas distantes dos pequenos.

Os inimigos estavam atrás de Alice, percebeu de repente. Era ela quem eles procuravam, e era seu rastro que seguiam. Também só tinham, mencionado uma criança: Donn. Havia uma boa chance de eles ignorarem a existência das outras três.

Se desejava garantir que as crianças chegassem a Cambrun sãs e salvas, ele precisaria manter os Caçadores afastados delas. Alice Boyd era a isca que seus inimigos seguiriam.

Agora que chegara àquela conclusão, no entanto, não tinha certeza se ela confiaria as crianças a outros.

— Os pequenos irão a Cambrun com meus primos — anunciou, sem ficar surpreso quando Alice enrijeceu o corpo e abriu a boca para argumentar. Ela já fizera muito para proteger aqueles meninos e meninas, quando apenas um era sangue do seu sangue. — Você e eu, Alice Boyd, iremos despistar os Caçadores.

Gybbon repetiu em voz alta todos os seus pensamentos sobre a questão e ficou contente quando Alice franziu a testa, pensativa. Após seis anos sendo caçada como um animal, sem dúvida ela precisava refletir até concluir que seu plano tinha chance de dar certo.

— Acha, então, que eles seguirão nossa pista e deixarão os outros em paz? — Alice perguntou por fim.

— Sim. Eles estão atrás de você, não das crianças. É você quem eles perseguem. Mas elas serão assassinadas se forem encontradas, não tenho a menor dúvida.

Os primos murmuraram seu apoio, porém Gybbon manteve o olhar fixo em Alice.

Ela olhou para as crianças: estavam cansadas e abatidas também. Ficava surpresa cada vez que pensava como haviam suportado a seu lado tantas necessidades.

Mas os dons que possuíam, e pelos quais eram condenadas, lhes davam forças e faziam com que sobrevivessem.

Aqueles homens estavam oferecendo aos pequenos a oportunidade de uma vida melhor e mais segura, raciocinou, já que as características que os tornavam párias no mundo comum os fariam ser aceitos em Cambrun. Seria um pecado negar-lhes tal benefício.

Tudo o que tinha a fazer era confiar neles por tempo suficiente para que as crianças partissem, e passar a responsabilidade por elas a outros... pela primeira vez em anos.

 

Alice olhou para as crianças que partiam com Lachann e Martyn até vê-las se perder na distância. Seu coração, alma e mente se revoltaram com isso; no entanto, ela lutou contra esse impulso. A cada vez que os Caçadores a encontravam, a vida dos pequenos ficava em perigo. E eram todos tão jovens... Se algo lhes acontecesse, sabia que iriam sofrer e mesmo morrer.

Alyn era um garoto inteligente, porém tinha apenas nove anos. Faria tudo o que pudesse para proteger os mais novos, caso ela fosse capturada ou assassinada. Porém, tinha certeza, o pobrezinho não teria sucesso. E a cada vez que os homens maus a encontravam, suas chances de escapar se tornavam menores.

Tratou de lembrar a si mesma que, no momento, as crianças estavam sendo conduzidas para um local seguro. Isso era algo que ficara remoendo desde o instante em que Gybbon anunciara que seu pequeno grupo precisava se separar.

No íntimo, ela sabia que ele estava com a razão e que seu plano era sólido; assim como que este daria uma oportunidade melhor para as crianças escapar. Precisava ignorar as dúvidas que lhe atormentavam o coração. Aqueles homens eram como ela e seus protegidos; e isso precisava ser o bastante para lhe infundir confiança.

Lembrou-se da expressão de alegria e surpresa dos cavaleiros quando estes haviam posto os olhos nos pequeninos pela primeira vez. Manter essa recordação a ajudava a afastar as hesitações e os medos.

— Meus primos protegerão as crianças com suas vidas — disse Gybbon, tomando-a pelo braço e conduzindo-a até os cavalos.

Ele a observara se despedir de seus protegidos e ficara atônito ao ver que Alice permitira que partissem com homens que de fato não conhecia. O vínculo entre ela e todas as crianças, não apenas seu filho de sangue, era muito grande e forjado no medo e no perigo que enfrentavam.

Então por que ela permitira que partissem? refletiu por um momento.

Gybbon sabia. Alice deixara as crianças ir embora com seus primos porque acreditava estar perdendo a batalha contra os Caçadores, e que em breve eles pereceriam. Era algo admirável, mas não podia permitir que ela continuasse com aquele ar de mártir. Se iriam viajar juntos nos dias seguintes, ela precisava acreditar nele, ter fé que iria vencer a batalha e, por fim, chegar a um lugar seguro, onde reencontraria suas crianças.

— Não é o que estamos fazendo também? Protegendo-os? — perguntou Alice, algo insegura, enquanto montava a égua negra e musculosa que Gybbon lhe destinara.

— Em muitos sentidos, sim.

Ele montou Resoluto, seu corcel, ainda se congratulando pelo fato de ele e os primos terem tido o bom-senso de trazer mais dois cavalos em sua viagem. Agora, com ambos montando, seria mais fácil despistar os Caçadores e ficar longe de seu alcance.

— Somos a isca que os inimigos seguirão. Quando eles já não forem um empecilho, viajaremos para Cambrun.

— Parece tão confiante! Os prognósticos são ruins para nós.

Fustigando a montaria para que emparelhasse com a de Gybbon, Alice ficou tranquila ao ver a submissão da égua. Havia muito tempo não montava, e era agradável saber que lhe fora dado um animal dócil.

— É melhor ir para a guerra com confiança e a certeza de que sairá vencedor — murmurou Gybbon.

— Ninguém sabe o que aguarda quando parte para a luta — contradisse ela. — Até as melhores estratégias podem dar errado, e os guerreiros mais audazes e habilidosos podem cair.

Gybbon aquiesceu com um gesto de cabeça.

— Tem razão, porém pensar assim e apenas assim, só aumenta as chances de esses infortúnios acontecerem.

Alice admitiu que devia haver algo de verdade naquele conceito. Se alguém esperava o pior, em geral o pior acontecia. Era como se o destino decidisse que a pessoa estava desejando o mal, e resolvesse conceder seu desejo.

Começara a esperar apenas desastres e sabia que isso era uma fraqueza, mas a cada dia se tornava mais difícil combater essa tendência. Precisava de esperança para se manter forte. Porém, para sua tristeza, depois de fugir e se esconder por tanto tempo, seus ossos doíam de cansaço, e estava muito desanimada.

Respirando fundo, perguntou:

— Qual é seu plano exatamente?

— Atrair os Caçadores para longe de meus primos e das crianças, fazendo-os diminuir em número um a um, até que não reste nenhum. Ou que os sobreviventes voltem para suas cabanas e se escondam debaixo das camas.

Alice arregalou os olhos.

— Quer dizer... Pretende matar todos?

— Pelo menos os que não quiserem desistir de nos perseguir. Isso a incomoda?

— Um pouco — murmurou ela.

— Por quê? Eles querem matá-la e às crianças também.

— É verdade — admitiu Alice, ciente de que só a morte afastaria a maioria dos Caçadores de sua pista, pois eles achavam que estavam fazendo o trabalho de Deus. — Não tenha medo: eu não me esquecerei disso.

— Um dos que a perseguem no momento é o pai de Donn, estou certo?

— Sim. Callum, o homem alto que ordenou que Geordie fosse embora. O fato de eu ter escapado dele e gerado um filho por conta de sua crueldade o perturba. Deseja me matar e a Donn também, a fim de enterrar para sempre sua vergonha.

Doía ter de proferir essas palavras e admitir que o pai de seu filho considerava a criança uma abominação. Um dia Donn entenderia isso, pensou Alice, e saberia de toda a horrenda verdade, mesmo que ela não lhe contasse. Ela temia a mágoa e o sofrimento que tal revelação poderia provocar no menino.

— Mesmo assim, você ama seu filho: uma criança nascida de um estupro — refletiu Gybbon, lendo seus pensamentos,

— O estupro só serviu para plantar a semente. Eu pari e criei Donn. Ele me pertence. O fato de Callum fitar esse pequeno e meigo ser, e ver apenas um mal que precisa ser extinguido, é algo que jamais entenderei.

— É um excelente motivo para matar Callum.

A voz de Gybbon soou tão fria que Alice estremeceu; no entanto, precisou concordar. Algo que sempre abominara era ser forçada a matar. Durante os seis anos em que fugira, vira a luz da vida desaparecer dos olhos de quatro homens, e a visão ainda assombrava seus sonhos.

Suspeitava de que alguns dos homens que ferira tinham perecido mais tarde, porém, conseguira afastar esses pensamentos com maior facilidade.

Ver a morte agarrar um homem enquanto o sangue deste aquecia suas mãos, contudo, não era fácil de ignorar. Nem quando pensava que tais homens haviam tentado matá-la e teriam matado seus meninos, sentia alívio diante do horror que fora obrigada a cometer para sobreviver.

O toque de uma mão cálida em seu braço a fez retornar ao momento presente, e ela fitou Gybbon. A compreensão em seus belos olhos aliviou a tortura de tais recordações. Era provável que Gybbon não sofresse como ela diante dos homens que eliminava, mas, de repente, soube que ele não se decidira por matar nem se comprazia com tal necessidade.

— Eles estão caçando você porque acham que é um demônio — murmurou Gybbon. — O pecado, entretanto, está em suas almas.

Alice apenas balançou a cabeça, concordando, sem saber, de fato, se acreditava nele. Seus pesadelos ainda a deixavam com remorso. Matara poucos homens para não morrer. Porém, o que Gybbon planejava era atacar em silêncio, sair das sombras, eliminar inúmeros de seus inimigos... e prosseguir. Era uma estratégia ousada, já que estavam em número tão menor, e ela não tinha certeza se conseguiria fazer isso.

 

O sol já nascera havia uma hora quando Gybbon fez sinal para que parassem. A única parada anterior fora para que Alice se refrescasse em um regato junto às escarpas e trocasse de roupa.

Ela estivera tão ansiosa por se lavar e mudar os farrapos que usava, apesar de suas outras vestes também estarem em péssimas condições, que nem se preocupara em ficar nua a poucos metros de distância de um homem.

Gybbon empregara esse tempo para patrulhar o inimigo, e depois também tomara um banho rápido nas águas frias do regato.

Alice ainda se surpreendia por ter aceitado a palavra daquele desconhecido, que prometera lhe dar privacidade para se banhar e cumprira a promessa.

Sentiu que ruborizava ao admitir para si mesma que quase arriscara uma olhadela na direção de Gybbon enquanto ele tomava banho.

Nesse momento, Gybbon desmontou, afastando-a de seus pensamentos confusos e perturbadores. Nos últimos seis anos, ela só pensara em ficar o mais longe possível dos membros do sexo masculino.

Tensa, Alice tratou de desmontar também, e bem depressa. Segurou a égua pelas rédeas e o seguiu por um caminho estreito, cheio de pedregulhos e muito escorregadio. Ficou espantada ao ver que, de repente, Gybbon e seu cavalo pareciam ter desaparecido junto à encosta, mas, ao se aproximar mais, percebeu que ele entrara por uma fenda na rocha.

Árvores contorcidas pelo vento, grandes pedras e uma curva na própria colina haviam ocultado a abertura, e ela precisou de um pequeno esforço para convencer sua égua a passar pela fenda estreita.

Uma vez tendo conseguido isso, viu-se em um espaço maior, e ficou muito quieta até que seus olhos se acostumaram com a escuridão reinante. Isso não demorou a acontecer, pois ela enxergava no escuro muito melhor do que qualquer pessoa comum.

Quando percebeu que começava a dar valor a esse "dom", como dizia Gybbon, balançou a cabeça, sorrindo, e examinou o esconderijo. Estava parada em uma caverna espaçosa, a lenha para a fogueira já preparada em uma cavidade no chão de pedra.

Viu mais lenha encostada em uma parede, à direita. Sem dúvida, aquele era um esconderijo dos MacNachton, um dos lugares que, segundo Gybbon, sua gente encontrara para se abrigar do sol quando viajava.

E os preparativos que aquele clã fazia para sobreviver eram tão pertinentes que afastaram seus medos.

As crianças estão em boas mãos, refletiu.

— Seu clã está muito bem preparado para todas as eventualidades — comentou enquanto conduzia a égua para os fundos da caverna onde Gybbon já cuidava de seu cavalo.

— Sim. Mas isso também significa que não podemos pegar os caminhos mais fáceis quando viajamos. — Ele fez uma careta. — Uma estalagem ou a hospitalidade de algum castelão não é para nós. Cavernas, lugares muito bem ocultos e até buracos no solo são mais indicados. Existem até algumas criptas.

Alice sorriu.

— Melhor descansar entre os mortos do que ser um deles.

Gybbon riu de leve.

— Tem razão. Trate de acender a fogueira, menina, e cuidarei de Brisa.

— Que lindo nome para uma égua. — murmurou .ela, dando um tapinha carinhoso no animal antes de voltar a atenção para a fogueira que faria.

Tratou de garantir que o fogo não se extinguiria e reuniu as roupas que ela e Gybbon haviam lavado no regato. Colocando as selas perto do fogo, esticou suas vestes, esperando que secassem antes de o sol se pôr.

Lutou contra a vergonha que sentia peta fato de estar tão malvestida diante dos trajes elegantes de Gybbon.

Seis anos de fuga constante e luta por sua vida e pelas vidas dos pequeninos não lhe tinham dado tempo para pensar em vaidades e na própria aparência.

Mas estava viva, assim como as crianças, e era isso que importava.

Quando Gybbon sentou-se junto ao fogo e começou a dividir a comida com cuidado, Alice tratou de se sentar a sua frente. Seu estômago ansiava pelo alimento que ele colocava em uma tigela de madeira, entretanto ela se forçou para dominar o apetite.

Uma parte de seu íntimo temia se acostumar com tais luxos e depois vê-los desaparecer, assim como sua linda e confortável vida desaparecera, de maneira brutal, já havia seis anos.

Enquanto comia, tomando cuidado para manter as boas maneiras que a mãe lhe ensinara, Alice estudou Gybbon. O que sentia sempre que estava a seu lado não parava de surpreendê-la.

Desde a noite em que Callum a surrara e violentara, chamando-a de demônio enquanto a brutalizava, ela se mantivera o mais afastada possível dos homens. Os repetidos confrontos com Callum e seus capangas só a haviam deixado mais forte, fazendo-a se embrenhar nos lugares mais afastados.

Nos últimos dois anos, as únicas vezes em que se aproximara de alguma casa, mesmo a mais pobre, fora sempre nas horas mais escuras da noite e apenas para roubar o que pudesse, a fim de alimentar as crianças ou mantê-las aquecidas. Porém, não sentia esse tipo de medo ao lado de Gybbon.

Com ele, sabia que estava a salvo; redimida de tudo o que antes a condenava.

E isso a assustava. Havia muito não confiava, dependia ou sentia-se tão segura como naquele momento, e não sabia se era prudente acreditar em tal sensação...

Mas adorava ficar olhando para Gybbon.

Mal tivera tempo de começar a se interessar pelos rapazes e sua vida fora abalada, pensou com um suspiro. O ataque cruel de Callum a fizera nunca mais sentir interesse por um homem.

Ou assim ela pensara até aquele momento.

Alice sabia que o calor que percorria seu corpo a cada vez que fitava Gybbon era o tipo de entusiasmo que uma mulher experimentava por alguém que desejava para si. Tudo nele mexia com ela, e tinha consciência de que deveria fugir dessas, sensações o mais depressa possível.

Porém, continuou sentada, fitando-o como uma tola.

Rezou para que ele não percebesse, pois isso seria uma vergonha. Não desejava ser pega em flagrante.

Nesse instante, porém, Gybbon virou-se, e seus olhares se encontraram.

A luz das labaredas dava um tom dourado aos olhos de Alice, ele percebeu. Pela manhã, quando a fitara, seus olhos eram castanho-claros. Depois que ela lavara os cabelos, havia lampejos avermelhados nas mechas sedosas. Seu pequeno rosto oval, agora limpo da sujeira, revelara uma pele branca e pálida. Suas feições delicadas estavam abaladas pela fome e pela tragédia, porém, mesmo assim, continuavam belas.

Gybbon percebeu, surpreso, que Alice era muito linda. Com algumas boas refeições, seu corpo magro iria adquirir formas mais femininas. Mesmo muito abatida ela era atraente.

Sentiu-se excitado só em olhar para as curvas delicadas, mal encobertas pelos farrapos. Tratou de dizer a si mesmo que isso era apenas resultado do instinto de proteção que sentia a seu respeito, até porque simpatizava com ela; mas, no íntimo sabia que não era verdade. Alice nada tinha das mulheres que costumavam entusiasmá-lo, mas algo era sua pessoa o atraía como um imã. E mesmo quando ela parecia desejar agredi-lo, concluiu com bom humor.

— Está arrependida por ter deixado as crianças com meus primos?

Até a voz profunda e doce de Gybbon a fazia se esquecer de seus propósitos de se afastar dos homens, refletiu Alice, um pouco aborrecida, mas lutou para manter a irritação longe das palavras.

— Não. Elas precisavam ir. Vocês são como nós... Se não posso confiar em meus semelhantes, em quem confiarei?

— Em ninguém. Gostaria de poder dizer o contrário, mas não posso. À medida que os Caçadores ficam mais fortes, torna-se mais perigoso para os MacNachton deixar que qualquer um fora do clã tome conhecimento de nossa natureza. Até hoje tivemos sorte, mas o perigo é real e não pode ser ignorado. Infelizmente, para os que são como você e sua família, a necessidade de ter cautela só aumenta o perigo.

—- Tem toda a razão. As pessoas ficam curiosas quando vêem alguém sempre afastado.

— Bem, é menos perigoso do que se misturar com muita liberdade aos Prescritos ou permitir que muitos conheçam nossos segredos. — Gybbon sorriu, agradecendo quando Alice pegou sua tigela para limpar. — Precisamos repousar agora. Posso suportar o sol do fim da tarde, então poderemos sair daqui quando este começar a se pôr.

— E iremos cavalgar na esperança de que os Caçadores nos deixem em paz?

Gybbon deu de ombros enquanto pegava duas mantas e entregava uma delas a Alice.

— Isso, ou, caso se aproximem demais, pretendo eliminar o maior número possível deles.

Alice se embrulhou na manta e se ajeitou no chão de pedra. Olhou para Gybbon em meio às chamas da fogueira enquanto ele fazia o mesmo. Logo começou a sentir saudades das crianças; em especial do modo como todas se encolhiam e se encostavam a ela quando dormiam.

Forçou-se a esquecer a saudade e se fixou no plano de Gybbon. Este poderia dar certo e, assim, libertá-los das perseguições. Então conseguiriam seguir os outros até Cambrun, e ela se reuniria aos pequenos.

Porém, isso não poria fim à ameaça representada por homens como Callum e seu exército.

— Quase acredito que venceremos essa batalha — murmurou, pensativa —, mas será apenas uma batalha.

Gybbon a fitou com curiosidade.

— Não pensou que vencer esses homens iria acabar com todas as perseguições, pensou?

— Não. E suspeito de que, para cada Caçador abatido, outro surgirá em seu lugar.

— E por que tem tanta certeza disso?

Gybbon pensava da mesma maneira, porém estava curioso para conhecer os motivos de Alice.

— Porque seja lá quem for que reúne esses homens faz com que eles acreditem estar cumprindo a vontade de Deus. É como se estivessem lutando contra demônios e pudessem ser abençoados por seu sacrifício.

Gybbon praguejou em silêncio. Alice tinha razão, e ele não sabia como argumentar contra isso. Os Proscritos faziam uma verdadeira cruzada contra os MacNachton. Havia muito seu clã debatia os motivos que os tinham levado a caçá-los, além do fato de cobiçarem sua longevidade. Mas Alice resumira toda a verdade.

Não havia como negar: alguém estava conduzindo uma guerra contra os MacNachton, e esta seria longa e sangrenta.

 

Gybbon usou a manga da roupa para limpar o sangue da boca e fitou o homem caído a seus pés. Em atenção ao horror que Alice demonstrava por matanças, mesmo que fossem dos inimigos, dera uma chance ao indivíduo: que lutasse e morresse; ou desistisse de sua missão, voltasse para casa e vivesse.

Mas o homem preferira morrer.

Alice tinha razão. Aqueles guerreiros acreditavam que lutavam contra o mal, por Deus e pelo bem. Talvez alguns, naquele vasto grupo, não fossem tão obcecados; mas homens como o que acabara de eliminar eram fanáticos. Tanto que ele até sentia-se mal por matar tais tolos.

Praguejou ao se agachar junto ao corpo e procurar por qualquer objeto de valor. Sempre sentia uma ponta de revolta ao fazer isso, mas não podia deixar nada de útil apodrecendo com o cadáver, tampouco permitir que outro tomasse posse deste. Ele e Alice, no momento, precisavam de tudo o que pudessem conseguir. Lamentava o fato de o cavalo do agressor ter fugido, pois percebia agora que era um dos poucos bens que este possuíra, além de mantas e alguma comida.

As marcas no pescoço do morto revelavam o modo como este havia morrido, então Gybbon o colocou em uma cova rasa e a cobriu com terra e folhas.

Não fora sua intenção se alimentar, porém o homem o atacara diversas vezes com a espada antes de sucumbir, e Gybbon não podia se permitir ficar ferido. Era impossível negar: o sangue que bebera tinha restaurado suas forças.

Dois dias, dois homens do grupo de Callum eliminados. Gybbon considerou um bom resultado. Duvidava de que o homem que Alice quase matara estivesse ainda participando da caçada; devia ter falecido ou estar convalescendo. Portanto, a quantidade de seus inimigos baixara bastante.

A não ser que os Caçadores daquelas bandas tivessem agregado novos membros, pensou, ao montar em Resoluto e se dirigir para onde deixara Alice. Sua conta se baseava no número de Caçadores que a perseguiam na clareira quando a conhecera, e seus instintos lhe diziam que estava certo.

Só esperava que os Caçadores restantes se acovardassem e partissem.

O brilho de fervor religioso que vira nos olhos dos dois que matara, no entanto, fazia essa esperança diminuir. Tais homens, em geral, estavam preparados para morrer, e esperavam uma grande recompensa divina já que pereciam a serviço de seu Deus. Gybbon suspirou. Começava a perceber que a maioria dos Caçadores acreditava de verdade estar em uma cruzada contra o mal, lutando contra os discípulos de Satanás. E isso não era bom para o futuro dos MacNachton.

Encontrou Alice sentada na frente da gruta onde a deixara. A expressão de alívio que passou depressa pelos olhos dourados revelou que ela estivera preocupada.

Gybbon não queria se emocionar com isso, mas foi o que aconteceu. E, embora dissesse a si mesmo que Alice só temia por sua própria segurança, não conseguiu apagar por completo o calor que tal olhar preocupado provocara em seu íntimo.

Cada hora que passava na companhia de Alice intensificava a atração que sentia. Ela não era tão selvagem como julgara a princípio. Apenas se tornara mais dura em seis anos de luta por sua vida e pela vida das crianças por quem zelava. Por baixo dos farrapos, existia uma mulher sensível e de boa educação. Ela era também inteligente, corajosa e forte. Não era de admirar que a desejasse com tanta intensidade.

— Temos agora menos homens no nosso rastro —: anunciou ao desmontar. Decidira que não iria ocultar o que havia feito. Fora necessário, e ela precisava aprender a aceitar isso.

O olhar duro de Gybbon não demorou a fazer Alice compreender que ele matara mais alguém. Ela suspirou, desanimada.

— Difícil é saber que isso não os deterá.

— Não, e sabe muito bem por quê.

— Sim. Acreditam que estão fazendo o trabalho de Deus... — completou Alice.

Gybbon balançou a cabeça, concordando.

— Pude ver o fervor e a fé nos olhos deste último.

— E eles não são os únicos que nos perseguem, não é verdade?

—-Não. — Gybbon começou a tirar a sela de Resoluto. — Existe um exército completo. Até hoje conseguimos escapar, porém eles continuam repondo as baixas com novos homens. — Aceitou a água que Alice lhe oferecia, e prosseguiu: — Quando começamos a tomar conhecimento de sua existência, eles eram poucos. Mas os rumores se espalharam, e seu número cresce; além de eles estarem se tornando cada vez mais bem armados e organizados. Precisamos encontrar seu líder e exterminá-lo.

Alice o fitou com preocupação.

— Acredita mesmo que exista um líder que comanda e mantém essa guerra?

—- Sim. E o meu líder também pensa assim. — Gybbon sorriu de leve. — Ele é meu tio. Não é fácil ser chefe e parente ao mesmo tempo. — Sentou-se ao lado dela e relanceou os olhos para o céu que se iluminava aos poucos. — Também existe um líder entre nossos inimigos e, talvez, alguns auxiliares próximos que instigam o fervor em seus comandados. Alguém descobriu a verdade a nosso respeito, ou parte dela, e começou a formar um exército. Isso requer dinheiro, portanto, trata-se de uma pessoa rica e com poder.

Alice franziu a testa.

— Tem razão. Os pobres sempre são os comandados. O fato de esses homens não hesitarem em matar mulheres e crianças prova como acreditam com firmeza que somos demônios. Só pensam em nos enviar para o inferno.

— Bem, existem os que querem outra coisa de nós — corrigiu Gybbon. — Nem tudo nesta cruzada tem a ver com fé religiosa.

— E o que mais poderiam desejar? — Alice quis saber.

Ele hesitou por um momento, mas depois contou:

— O segredo que nos torna tão fortes e longevos. Esse é um dos principais motivos que atraiu nossos inimigos e que quase custou a vida de dois de meus primos. Dois inimigos quase descobriram o mistério que está em nosso sangue.

Alice ajeitou-se no chão para prestar atenção enquanto Gybbon explicava:

— Há pouco tempo, apenas percebemos o que nosso sangue pode fazer para os Proscritos. Só esperamos que esses inimigos não tenham espalhado a notícia. Até onde temos conhecimento, nenhum outro MacNachton foi capturado e aprisionado como meus primos.

Alice sorriu.

— Suponho que seja um segredo que esses Caçadores não irão revelar para seus comandados.

Gybbon lhe passou o odre com vinho fortificado com sangue. A hesitação de Alice em aceitar ia diminuindo a cada vez que ele lhe oferecia a bebida, a qual a fazia recuperar as forças. Mesmo tomando apenas pequenos goles nos últimos dias, ela recuperara a cor rosada da face e engordara um pouco.

Gybbon sabia que a bebida também devia ter aguçado seus sentidos, e que ela precisaria daquela arma nos dias futuros. Suspirou profundamente. Talvez só restassem seis Caçadores, mas eram homens teimosos e determinados.

— Acha que Lachann e Martyn já chegaram a Cambrun? — perguntou ela, devolvendo o odre. Detestava o fato de precisar de sangue para sobreviver e permanecer forte, mas admitia que o vinho misturado a ajudava naquela batalha.

— Deverão chegar pela manhã caso não tenham tido problemas — respondeu Gybbon.

— As crianças não irão atrasá-los. Estão acostumadas a fazer longas e difíceis viagens na calada da noite, e sabem da importância de ficarem bem quietas.

— Sim, o que não deixa de ser um pouco triste. Mas meus primos irão apreciar essa disciplina, pois estão ansiosos por conduzir os pequenos à segurança de Cambrun. As crianças serão muito bem cuidadas lá.

Ele acrescentou as últimas palavras com bondade, tentando aplacar a preocupação da companheira.

—- Creio que estou ansiosa porque sinto saudades delas — explicou Alice sem necessidade. — Houve momentos em que me questionei se não estava louca ao arrastar essas crianças em minha jornada. Sinto vergonha em admitir, mas, às vezes, até desejei que fossem embora. — Baixou os olhos e confessou: — Pensava que já tinha trabalho demais para me manter viva com meu filho sem precisar cuidar de outros. Estava desesperada.

— Não deve se envergonhar disso. Era apenas um pensamento passageiro e normal, nascido de dias difíceis e noites em fuga, ou criado pela fome e exaustão — consolou Gybbon. — Não importa o que você pensava quando estava deprimida, mas o que fazia; e você os manteve a seu lado, os alimentou, escondeu e protegeu. — Gybbon arqueou as sobrancelhas ao se lembrar de algo. — As crianças nunca precisaram de sangue?

— Sim, porém todos nós só precisamos de algumas gotas de vez em quando. O suficiente para que as dores no estômago não se tornem muito fortes. O sangue faz a besta dentro de nós tentar escapar, não é verdade? Alyn é o que sofre mais.

Gybbon franziu a testa.

— Alyn me parece, mesmo, o que possui mais características dos MacNachton. Não me surpreenderia se descobrisse que seu pai era um Puro-Sangue ou quase isso. Detesto pensar que ainda existem MacNachton que violam mulheres sem arcar com as consequências... Procriar de modo tão leviano é errado. — Fitou-a com atenção. — E também pode ser que o pai de Alyn não tenha regressado porque foi morto. Vou descobrir; mas agora é melhor que entremos. Vá à frente e eu irei depois, assim que prender os cavalos às árvores.

Alice pegou a sela de Resoluto e entrou no novo esconderijo: era estreito, pequeno, e o teto, tão baixo que mal dava para Gybbon ficar de pé.

Porém, o que mais a incomodava, era que os dois teriam de dormir lado a lado durante o dia.

Disse a si mesma para não ser tão tola, enquanto se lavava às pressas. Gybbon não era como Callum. Viajavam juntos havia dois dias e duas noites, e ele mal a tocara.

E, no entanto, nas raras vezes em que isso acontecera, ela não sentira medo.

Sorriu, estendendo uma manta sobre o chão duro. A presença de Gybbon a fazia pensar que Callum não conseguira destruir nela o desejo de um dia ser tocada por mãos masculinas. E as mãos de Gybbon, embora suaves e respeitosas, provocavam-lhe um arrepio delicioso.

Chegara até a fantasiar em ser tocada sem tanta delicadeza e cavalheirismo. Tais pensamentos a amedrontavam; mas também a intrigavam e excitavam.

Gybbon entrou nesse momento, e ambos se sentaram sobre a manta a fim de compartilhar o que restara do queijo e do pão. Alice tentou ignorar o calor que emanava do corpo viril tão próximo ao seu.

Pela primeira vez, em muitos anos, sentia interesse por alguém. E isso a deixava nervosa e eufórica ao mesmo tempo. Chegava a ter esperança para o futuro! Sempre sonhara com um homem que a amasse, que lhe desse filhos e um lar.

Um sonho que Callum lhe roubara. Mas, naquele momento, na gruta estreitarão pensar em um futuro otimista, seus olhos se fixaram em Gybbon, fazendo-a se sentir uma idiota. Ele não era apenas rico e bem-nascido, como também não demonstrava o menor interesse nela além da preocupação em protegê-la por pertencerem à mesma estirpe.

Isso já era bom, tratou: de dizer a si mesma, como consolo.

O barulho da cabeça de Gybbon batendo no teto baixo do abrigo a fez retornar ao momento presente. Estivera mergulhada nos próprios pensamentos com tanta intensidade que nem p vira se mover.

Estendeu a mão instintivamente quando ele soltou um gemido e, caindo de joelhos, segurou-o pelos braços a fim de que não desabasse para frente.

Gybbon murmurou algumas imprecações bem interessantes, mas Alice fingiu não ouvir. Percebendo como ele mantinha a mão sobre a cabeça, afastou-a com delicadeza a fim de examinar o machucado. Seus dedos ágeis apalparam a parte que colidira com o teto do esconderijo sem saber que ele só tivera a intenção de colocar uma distância maior entre os dois e evitar o desejo que estava sentindo por ela...

...Um desejo que aumentava a cada momento e que o impedia de raciocinar com clareza.

Maldição. Agora sua cabeça doía tanto quanto suas partes íntimas.

Mas aliviar meu desejo seria muito mais agradável que aliviar minha cabeça., refletiu com embaraço.

Abriu os olhos e quase gemeu em voz alta. O modo como Alice se ajoelhava à sua frente colocava os seios fartos e firmes quase em contato com sua boca. Ele fixou o olhar na carne macia e branca, observando como os montes roliços subiam e desciam, suaves, a cada vez que ela respirava, e sentiu água na boca.

Exausto depois de uma noite de luta, de repente dormir era a última coisa que desejava.

Obrigou-se a não tocá-la, mas suas mãos circundaram a cintura fina.

Alice foi agachando devagar, até que ambos ficaram face a face. Ainda afagando os cabelos de Gybbon, ela disse a si mesma que ele só a enlaçara pela cintura para não perder o equilíbrio naquela posição desconfortável.

O olhar de Gybbon, porém, nada tinha de cavalheiro ou gentil, e isso a confundiu. Apesar de ter tido um filho, ela pouco sabia a respeito dos homens.

Tratou de falar para ocultar o desconforto:

— Havia um pequeno corte, mas... Que estranho! Já cicatrizou.

— Isso porque me alimentei à noite — ele explicou, vendo que ela recuava. — Dei uma escolha ao homem, Alice: fugir ou morrer. Ele preferiu morrer. Já que não dava valor à própria vida, não vi motivo para desperdiçar seu sangue.

— Deu-lhe força — murmurou ela.

— Sim. E duas mantas, além de um pouco de comida e algumas moedas.

— Também já roubei dos mortos — confessou Alice, tentando em vão não olhar para a boca tentadora de Gybbon, tão perto da sua. — Uma pequena parte em mim ficou horrorizada, mas meu cérebro me dizia que o cadáver já não precisava de coisas materiais, e as crianças e eu, sim.

— Se não fosse você a levar tudo, seria outra pessoa.

— Isso mesmo.

Gybbon a encarou com seriedade e um brilho intenso no olhar.

— Vou lhe dar uma escolha agora, então... Pode ficar aí onde está e me deixar beijá-la, ou pode se afastar. Resolva logo, pois já esperei muito.

Ela segurou a respiração.

— Mas, só nos conhecemos há poucos dias — protestou com ingenuidade. Sabia que deveria recuar, mas a curiosidade e a tentação a fizeram ficar imóvel.

— Como eu já disse, é muito tempo... — concluiu ele. E pressionou os lábios nos dela.

O calor suave do beijo a surpreendeu. Alice deslizou a mão pela nuca de Gybbon, detendo-a no pescoço. O calor percorreu seu corpo e, instintivamente, ela colou o corpo no dele.

Quando Gybbon deslizou a língua por seus lábios e a enfiou em sua boca, Alice gemeu de leve, surpresa. O desejo substituiu o embaraço, no entanto, enquanto o beijo se prolongava.

As carícias ritmadas em suas costas a fizeram estremecer de ansiedade, e logo algo pareceu voltar à vida em seu íntimo. A sensação era ao mesmo tempo hipnótica e assustadora.

Ela não ofereceu resistência quando Gybbon a fez se deitar sobre a manta, e ainda o enlaçou com os braços a fim de mantê-lo sobre seu corpo. O gemido rouco e ansioso que ele deixou escapar quando seus corpos se uniram a excitou mais do que qualquer outra carícia.

Então Alice tomou consciência do membro rijo e longo que a roçava, e lutou para sufocar o medo. Disse a si mesma que não deveria temer, que aquele homem jamais usaria sua virilidade como uma arma para feri-la... Porém, o terror foi se tornando mais forte, apagando o ardor do desejo e forçando sua mente a recordar os momentos terríveis que vivera com Callum.

De repente Gybbon percebeu, pela rigidez de Alice, que abraçava uma mulher aterrorizada. Em silêncio, repreendeu a si mesmo por ter sido um insensível, esquecendo-se do que ela sofrera no passado.

Afastou-se dela e se ajoelhou a seu lado.

— Sou eu, Gybbon, Alice —- murmurou com voz conciliadora enquanto seu corpo clamava por satisfação. — Está a salvo. Não sou Callum; não lhe farei mal.

— Sei disso... Desculpe. — Alice respirou fundo diversas vezes enquanto continuava tentando afastar o medo terrível que dominava seu cérebro e coração. Constrangida demais para fitá-lo, embrulhou-se na manta e virou o corpo para o outro lado, murmurando com grande frustração: — Pensei que minhas feridas já tivessem cicatrizado.

— Vão cicatrizar —- ele garantiu, enrolando-se na outra manta e se ajeitando sobre o solo. — Foi a primeira vez que testou suas reações depois que Callum...

— É verdade.

Gybbon passou um braço em volta do corpo delicado e a puxou para si, contente ao ver que ela não resistia.

— Fui precipitado. Da próxima vez, irei com mais calma.

Alice sabia que deveria responder com firmeza que não haveria uma próxima vez... mas apenas fechou os olhos.

 

— Ele está atrasado — Alice queixou-se com Brisa. Caminhava de um lado para o outro na frente da égua que, tranquila, escavava o solo em busca de algum quitute.

Era tolice se preocupar, Alice disse a si mesma. Gybbon era um homem grande e forte, com grande experiência em batalhas. E também era muito melhor caçador e matador do que seus inimigos. Mesmo que os Caçadores houvessem ficado mais cautelosos, nos últimos três dias Gybbon reduzira seu número a quatro. Era uma sombra mortal que os seguia sem descanso.

Mesmo assim, os malditos não desistiam.

Alice não conseguia entender. Se sabiam que Gybbon MacNachton conseguira eliminá-los pela metade, e se tinham a comprovação de que a mulher que perseguiam, Alice Boyd, podia derrubar um homem adulto apenas usando as mãos e os dentes, por que insistiam? Por que ao menos não voltavam para casa a fim de planejar e reunir mais guerreiros e armas?

Podia compreender os motivos de Callum para continuar, pois ele desejava eliminar o que considerava uma mancha em sua honra e alma. Deixara isso bastante claro a cada confronto que haviam mantido desde que ele a estuprara.

Porém, isso não explicava por que os outros continuavam a segui-lo enquanto viam seus companheiros desaparecer um a um dentro da noite para nunca mais retornar. Era loucura!

Alice sabia que aqueles homens acreditavam que suas tentativas eram para livrar o mundo de um grande mal; mas, será que não podiam descansar de vez em quando? Que estranha obsessão! Apaga o bom-senso.

Recebeu apenas um breve olhar de sua égua.

— Senhor, começo a pensar que Gybbon sucumbiu. — Cruzou os braços sobre o peito e olhou na direção que ele seguira. — Nós dois juntos poderíamos enfrentar e vencer os inimigos. Por que Gybbon continua a agir sozinho?

Olhou para Brisa que continuava a cheirar o solo, indiferente.

— Direi o motivo... Porque acha que não posso lutar, apesar de eu ter sobrevivido por tanto tempo sem a sua abençoada ajuda. É provável que pense que apenas tive sorte, ou então que aqueles que me perseguiam eram estúpidos. Posso não ser uma Puro-Sangue, mas tenho força e sei lutar. Aprendi nos últimos seis anos.

Alice ergueu os olhos para o céu e praguejou. Gybbon dissera que voltaria a tempo de alcançarem um refúgio antes que o sol se erguesse no horizonte. A menos que chegasse nos minutos seguintes, contudo, não cumpriria com sua promessa. Sem dúvida os dois não alcançariam outro esconderijo antes que o sol estivesse alto sobre suas cabeças.

Mesmo que empreendessem viagem naquele exato momento, e que o esconderijo estivesse perto, Gybbon ainda ficaria muito exposto ao sol, o que iria enfraquecê-lo.

— Gybbon nunca se atrasa — disse em voz alta, sentindo um frio na espinha que nada tinha a ver com a brisa da madrugada. — É verdade que o conheço há pouco tempo, mas ele está sempre onde diz estar e na hora que combinou. Em especial quando se trata de arranjar um esconderijo e evitar o sol forte. — Fitou a égua, procurando apoio. — Porém, a verdade é que agora estou aqui sozinha, conversando com um animal. Alguma coisa está errada, Brisa.

Cerrou os punhos ao longo do corpo e lutou contra a vontade de começar a gritar pelo nome dele. Gybbon era menos resistente do que ela à luz do dia, e estava sempre atento ao amanhecer e ao anoitecer. Era óbvio que não arriscaria a própria vida assim. E também não gostaria de vê-la sofrer os efeitos dos raios solares, mesmo que por pouco tempo.

Alice mordeu o lábio, temendo que, daquela vez, ele tivesse caído em uma cilada.

Isso a fez tremer de medo. Não podia afirmar que possuía o dom da premonição, embora ocasionalmente tivesse sonhos reveladores e de aviso. O que sabia era que seus instintos eram muito aguçados e lhe diziam, naquele momento, que Gybbon corria grande perigo.

Durante os anos em que vivera fugindo e se escondendo, aprendera a fazer uso desses instintos. Eles a haviam salvado incontáveis vezes.

Nervosa, decidiu que deveria sair à procura de Gybbon.

Pegando as rédeas de Brisa, começou a seguir o rastro de Resoluto. Gybbon tomara cuidado para não deixar muitos sinais de sua passagem, porém os olhos de Alice eram muito mais aguçados do que os de seus inimigos, e o sangue que ele a fazia beber misturado ao vinho tornara sua visão ainda mais apurada.

Sabia que Gybbon ficaria zangado se ela o seguisse, mas não se importava. Era melhor receber um sermão do que descobrir, tarde demais, que, se tivesse feito alguma coisa, poderia ter salvado sua vida. Não queria ser atormentada pela culpa no futuro.

E, quando se abrigassem outra vez, ela iria domar seu medo, jurou em silêncio. O medo que diminuía a cada novo beijo de Gybbon, a cada toque de suas mãos...

O que aconteceu com você? Por que não volta?

A ansiedade que a dominava deixava algo muito claro: não era apenas luxúria que a fazia desejar os beijos e afagos de Gybbon. Queria esquecer o trauma da violência de Callum se entregando a um homem bom.

Por isso não permitiria que Gybbon fosse assassinado. Queria fazer amor com ele e guardar essa lembrança doce pelo restante da vida.

Já que ele começara aquele jogo de sedução, que ficasse por perto até terminá-lo, refletiu Alice, aborrecida.

Gybbon repetia cada movimento que o Caçador fazia, enquanto aguardava que o homem atacasse. Este não seria fácil de matar. O Caçador não apenas se recusara a fugir, mas fora também arrogante em sua recusa.

Levando em consideração quantos de seus companheiros já haviam perecido, aquilo não fazia sentido para Gybbon. Duvidava de que o tolo fosse um guerreiro muito mais habilidoso do que seus amigos mortos a despeito de sua arrogância.

Além disso, o homem não parecia ter o mesmo brilho de fervor religioso em seus pequenos olhos negros.

Isca.

A palavra surgiu de súbito na mente de Gybbon, que praguejou. Não queria acreditar que fora enganado e caíra em uma armadilha, mas cada instinto lhe dizia, ou melhor, gritava que fora isso o que acontecera.

Aquele homem não fora encurralado; fora ele quem o encurralara. E, caso ele, Gybbon, não se livrasse logo daquela cilada, Alice ficaria sozinha.

Tal pensamento o encheu de horror. Ele nem mesmo chegara a lhe dizer como alcançar Cambrun, recordou de repente. Em sua arrogância, presumira que seria o vencedor daquela nova batalha e que a levaria para sua terra quando tudo terminasse.

Gybbon tratou de abafar a sensação que se parecia muito com medo: o temor pela segurança de Alice. Não podia se permitir nenhuma distração. Naquele momento, precisava afastar os pensamentos de Alice e se preocupar consigo. Se a sorte continuasse do seu lado, poderia escapar daquela arapuca.

O fato de já estar recorrendo à sorte para se salvar não o fazia se sentir muito melhor.

Um segundo depois, Gybbon soube que não haveria escapatória, e que divagara demais: tempo suficiente para não perceber alguém se esgueirando às suas costas.

Sentiu uma forte pancada na cabeça e tentou se virar para encarar seu covarde agressor; mas apenas balbuciou algo incoerente e caiu de joelhos.

Uma segunda pancada o fez se estatelar no chão tão depressa que nem teve tempo de estender a mão para arrefecer a queda.

Seu último pensamento coerente antes de mergulhar na escuridão foi como fracassara com Alice.

Gybbon sufocou um gemido ao despertar, saindo devagar da escuridão onde se perdera. Sua cabeça latejava enquanto a luz suave da aurora feria seus olhos como um golpe, fazendo-o sofrer ainda mais.

Por um breve instante, pensou no que estaria errado com ele, é então a lembrança de dois golpes violentos em seu crânio voltou. E o fato de sua cabeça ainda doer significava que o ferimento fora sério.

Tentou erguer a mão para tocar o local machucado, mas não conseguiu. Estava amarrado!

Toda a sua relutância em abrir os olhos desapareceu. Ele ignorou a dor mais forte e olhou em volta: estava preso ao solo, dentro da mata que circundava uma pequena clareira, seus braços e pernas atados a quatro troncos grossos.

Um rápido puxão lhe assegurou que as cordas eram muito resistentes, e que os nós estavam apertados. Suas forças haviam diminuído por causa do ferimento na cabeça e de outros que começavam a se fazer sentir, e isso não lhe permitiria se livrar com facilidade.

Quatro homens ao seu redor o observavam de uma maneira que o fez perceber a dificuldade que teria em escapar. Se usasse de todas as suas forças para desatar os nós, atacando, antes que os tolos soubessem o que estava acontecendo, teria alguma chance. Porém, naquele momento, só pensar em pular sobre o inimigo o deixava zonzo.

O homem que sabia ser Callum parou muito perto, e um grunhido começou a crescer dentro de seu peito quando ele encontrou os olhos frios e cinzentos daquele que violentara Alice. O modo como os três homens que acompanhavam o canalha deram um passo atrás o teria feito sorrir se ele não estivesse tão concentrado no líder.

A besta que vivia dentro de todo MacNachton ansiava pelo sangue daquele vilão e se enraivecia pela desvantagem em que se encontrava, a qual o impedia de rasgar o pescoço do inimigo.

Não iria se alimentar dele, decidiu Gybbon com frieza; só tomaria um pouco de sua força. Assim, Callum temeria pela salvação da própria alma pouco antes de sucumbir.

Na opinião de Gybbon, a alma daquele monstro já estava condenada pelo que ele fizera a Alice e pelo que ainda pretendia fazer ao seu próprio filho.

Mas o bruto não via isso como um crime.

— Dizem que o sol mata demônios como você — murmurou Callum.

Sua voz era rouca e áspera, e Gybbon fez uma careta de desprezo. Esforçando-se para enxergar com clareza apesar da dor que sentia nos olhos, analisou Callum mais detidamente.

Verificou, então, por que a voz do Caçador era tão estranha. Uma grande cicatriz cruzava seu pescoço, marca que reconheceu como produzida por um animal... ou por um MacNachton.

O pensamento quase o fez sorrir. Alice quase matara Callum. Fosse com seus dentes ou com as unhas que poderiam se transformar em garras fatais, ela tentara dilacerar a garganta do homem.

Sua Alice era uma grande guerreira, pensou com orgulho.

Sua Alice?

Gybbon praguejou em silêncio. Sim, ela era isso e mais ainda. Perturbado, imaginou como o destino o fizera chegar àquela conclusão.

Mas não era hora para tais devaneios. Não tinha tempo de analisar ou questionar seus sentimentos. Isso poderia causar mais dor de cabeça, e as chances eram grandes de nunca mais ele poder revê-la.

Tratou de se confortar, pensando que Alice encontraria por conta própria o caminho para Cambrun e que seu clã a protegeria; mas isso não lhe trouxe grande conforto.

— Dizem muitas tolices por aí — replicou num desafio. Não se surpreendeu ao ver que seu tom calmo e um tanto desdenhoso fez Callum franzir a testa e semicerrar os olhos com raiva.

—- É preciso duvidar do juízo de quem dá ouvido a tais boatos idiotas — reforçou, determinado.

Mal acabou de falar, no entanto, foi brindado, por um chute de Callum. -

— Ah... Tentando me persuadir com educação — murmurou com ironia. — Logo não ficará tão saliente — retrucou Callum. — Apesar das árvores copadas, em breve o sol atravessará a rama e cairá sobre você.

— Sem dúvida. Visão rara nessas terras. Devemos apreciá-la quando somos abençoados por ela — comentou Gybbon com pouco caso.

— Talvez essa conversa de o sol matá-los não seja verdadeira, Callum — murmurou um homem baixo e atarracado. — E se tentássemos aprisionar um desses demônios?

— Já pegamos este, Duncan —- retorquiu o líder.

— Refiro-me a levá-lo conosco para que possa ser interrogado. Nosso líder anseia por colocar a mão em um desses demônios para poder examiná-los bem. Tem perguntas a fazer a essas bestas...

— "Essas bestas" mataram vários de nossos homens, e só teremos "algumas respostas quando virmos o que acontecerá a este monstro, uma vez que o forçarmos a enfrentar a luz do sol.

Duncan coçou o queixo, insistindo:

— Acho que o líder tem mais de uma pergunta a fazer e deseja muitas respostas.

— Então que vá procurar e caçar uma destas criaturas para si mesmo. Esta aqui é nossa. Existe mais um de seus semelhantes se esgueirando por aí. Talvez possamos levar a moça para o líder... Sim, é uma ideia. — Sorriu, satisfeito. —- Algo me diz que o chefe gostará de ver como é uma mulher-demônio.

Um dedo gelado pareceu percorrer a espinha de Gybbon. Não podia afastar as lembranças do que acontecera com seus primos Heming e Tearlach quando haviam sido capturados por Caçadores. As histórias sobre sua prisão tinham enfurecido todos os MacNachton vivos, fazendo com que muitos sentissem o calafrio que agora o sacudia.

A ideia de Alice suportar tais torturas fez seu coração se contrair de medo, porém ele tratou de ocultar seus temores diante de Callum e seus homens. Isso só os deixaria satisfeitos e poderia até aumentar o perigo que Alice enfrentaria sem ele a seu lado.

No entanto, recordar-se por quanto tempo ela conseguira escapar daquela gente, e carregando quatro crianças, fez com que seu terror diminuísse.

— Tem tentado aprisionar Alice Boyd durante seis anos e fracassou — disse em voz alta. — Por que acha que irá conseguir agora?

Tais palavras o fizeram receber outro chute, e Gybbon precisou se esforçar para não demonstrar a dor que sentia. Tinha certeza de que uma costela se quebrara.

— Porque vai nos contar onde essa vagabunda se escondeu — resmungou Callum.

— Creio que não — ele retrucou por entre os dentes. — Ela não ficou muito contente com seu último encontro, muito menos com sua hospitalidade.

— Ela e aquele monstrinho que gerou precisam morrer. Mas talvez isso tenha de esperar. Mais cedo ou mais tarde eles serão capturados e, então, eu os levarei ao meu líder.

— A qual líder pretende entregar seu filho? — perguntou Gybbon com toda a calma.

— Aquela cria do demônio não é meu filho! E não sou tolo para dar o nome do meu líder a você, a fim de que possa lançar alguma maldição sobre sua honrada cabeça. Pense nisso quando estiver morrendo, demônio. Em breve aquela mulher e seu bastardo estarão nas mãos de seu inimigo, e pode adivinhar o quanto ela irá apreciar a hospitalidade de nosso chefe.

Gybbon observou Callum voltar para o centro da clareira com os capangas logo atrás dele. Havia uma segurança nas palavras do canalha que atraía seus subordinados e o deixava confuso. Por que, após seis longos anos perseguindo Alice por toda a Escócia, aqueles homens acreditavam que em breve ela seria capturada? Não fazia sentido.

Então quase praguejou em voz alta, contorcendo-se para se libertar das cordas, enquanto o pânico tomava conta de seu coração.

A resposta era clara. Ele era a isca. Do mesmo modo como haviam usado um só homem para atraí-lo e capturá-lo, os patifes planejavam usá-lo para fazer Alice cair na armadilha.

Já era difícil pensar em Alice sozinha, desprotegida, porque ele se deixara prender como um idiota. Agora sentia também o medo de que ela fosse aprisionada.

Gybbon respirou fundo. Não podia imaginar nada mais terrível do que saber que Alice poderia morrer devido ao seu descuido; e Callum acabara de demonstrar que isso poderia acontecer.

Gybbon lutou para apagar as recordações de seus primos e do que tinham suportado quando presos, mas não conseguiu. Porém, não eram Tearlach e Heming que via acorrentados em sua mente agora. Era Alice, sua pele macia, cheia de marcas e vergões ensanguentados, o corpo coberto por hematomas provocados por repetidas surras.

Mais terrível ainda era o pensamento de que, se os homens que haviam rendido seus primos tivessem revelado suas ideias sobre o valor do sangue MacNachton, Alice passaria o restante da vida acorrentada, enquanto seu sangue seria empregado para dar àqueles monstros a força e a longevidade de seu clã.

E mesmo que eles não tivessem noção disso, fariam de sua existência um inferno na Terra, usando-a para tentar descobrir cada ponto forte e fraco dos MacNachton.

Tal pesquisa longa e dolorosa poderia com facilidade revelar o segredo que os próprios MacNachton não compreendiam plenamente, mas que não desejavam que nenhum Proscrito soubesse: que beber seu sangue podia curar, fortalecer e prolongar a vida por muitos e muitos anos.

Esse era o segredo que, ele esperava, nunca fosse revelado.

Ao pensar que Alice poderia ser mantida prisioneira para ser uma fonte de sangue por muito tempo, Gybbon quase gritou de desespero e ódio.

E, pela primeira vez, em muitos anos, viu-se rezando. Orou para que ocorresse um milagre e que ele recuperasse as forças necessárias para escapar e matar aqueles homens que se julgavam abençoados, a despeito de seus planos sinistros de prender uma mulher e uma criança, e torturá-las durante décadas.

Mas, em especial, rezou para que Alice tivesse o bom-senso de se manter longe deles.

 

O suor escorria pelas costas de Alice à medida que se aproximava de Gybbon. Quando o vira amarrado e sangrando sob o sol que surgia e drenava suas forças e existência, quase avançara sobre os Caçadores, todo o bom-senso apagado da mente. Precisara de vários minutos para aplacar tal urgência. Seria uma grande tolice agir sem cautela.

Ainda trêmula pelo desejo de matar os inimigos que a perseguiam havia tanto tempo, pegou o arco e flecha da sela, uma das poucas coisas que conseguira resgatar de sua casa antes de fugir. Seu pai fizera o arco especial para suas mãos pequenas e a ensinara a caçar com ele. Incapaz de comprar, roubar ou fabricar novas flechas, Alice tratava as que ainda tinha como se fossem jóias preciosas.

Porém, no momento, ansiava por fazê-las trespassar os corações daqueles monstros e salvar Gybbon.

Enquanto continuava a se esgueirar em sua direção, tentou formular um plano. Sabia que poderia abater pelo menos um homem, talvez dois, antes que os Caçadores percebessem sua presença ali. Mas os restantes a dominariam.

Libertar Gybbon era o essencial. Depois, só restaria rezar para que os inimigos capitulassem, com medo de suas flechas. Enquanto os mantivesse sob a mira, Gybbon poderia acabar de se livrar das cordas.

Isto é, se ele ainda tivesse forças, refletiu, erguendo o rosto para o sol, cujos raios já começavam a penetrar pelas copas das árvores. Em breve, estes iriam alcançá-lo em cheio. E, a julgar pela quantidade de sangue que podia ver em suas roupas já sujas e rasgadas, os ferimentos também iriam enfraquecê-lo.

Ela podia tolerar o sol muito melhor do que Gybbon, e era vital que pudesse levá-lo a um abrigo o mais depressa possível. Mas, para tanto, Gybbon precisaria montar um cavalo. Ela não teria força suficiente para arrastá-lo, inconsciente, por quilômetros.

Alice sentiu o estômago se contrair de medo enquanto vencia a distância até uma das cordas que o prendia à árvore. Manteve o olhar fixo nos Caçadores enquanto serrava a corda grossa com uma adaga. Cada raspão da lâmina fazia seu coração falhar uma batida com o medo de ser descoberta, porém não hesitou. Mesmo que conseguisse livrar apenas um braço de Gybbon antes que a vissem, teriam alguma chance de escapar. Poderia colocar a adaga em sua mão e manter os inimigos afastados enquanto ele acabava de se libertar.

— O sol já o atingiu, Callum, mas ele não parece sentir dor — comentou um dos Caçadores, um jovem alto e magro, e com a pele do rosto corroída por bexigas. — Pensei ter ouvido você dizer que esse demônio queimaria.

— Iremos descobrir isso em breve — garantiu Callum.

Alice lutou contra o pânico que a voz rouca e áspera lhe provocava; mas se concentrou no que fazia, pensando que fora por sua causa que Callum adquirira a cicatriz e aquela voz.

A lembrança de como escapara dele no passado deu-lhe forças. Ainda tensa de pavor, suspirou de alívio quando a lâmina da adaga por fim cortou a primeira corda.

Sempre mantendo a atenção nos homens junto ao fogo, começou a rastejar devagar para o outro tronco onde o outro braço de Gybbon se encontrava amarrado.

Enquanto isso, Gybbon pensava por que aqueles idiotas continuavam perseguindo os MacNachton à noite se acreditavam na história da luz do sol. Talvez fosse apenas porque não sabiam onde eles se escondiam, ou então aquela era uma regra de guerra. Atacar durante a noite, em geral, dava uma vantagem ao agressor.

Mas ele bem sabia que se aqueles homens resolvessem atacar os MacNachton durante um dia ensolarado, isso poderia custar a vida de seu clã.

Um leve puxão em seu pulso o assustou, porém Gybbon tratou de esconder a surpresa enquanto um fio de esperança surgia em seu coração. Podia não ser um salvamento; talvez um animal da floresta cheirando a corda.

Ao pensar nessa possibilidade, engoliu em seco e respirou fundo para recuperar a calma. Então seu olfato aguçado captou um leve aroma que conhecia muito bem. Alice estava perto dali!

Talvez suas preces tivessem sido atendidas, embora ele a houvesse proibido de deixar o esconderijo.

Quis gritar para que ela se afastasse, porém sabia que se os dois unissem forças, poderiam abater os quatro homens, mesmo não estando em sua melhor forma física. Ele tinha ferimentos, estava fraco por causa dos efeitos do sol, e Alice ainda não recuperara todo o vigor após seis anos passando necessidades e fugindo. Se fosse vista, poderia ser capturada.

Tal pensamento quase o enlouqueceu.

Quando a pressão da corda relaxou de repente, Gybbon fez força para não se mexer. Não cedeu à tentação nem mesmo de ver para onde Alice se dirigia agora. Ao contrário, concentrou-se no fato de ela se mover sem fazer ruído, esgueirando-se em silêncio. Nenhum dos inimigos parecia ter notado sua presença.

A fim de fazer com que eles continuassem a ignorá-la, gritou para chamar a atenção.

—- Pensavam que eu iria arder como uma fogueira? — perguntou com proposital ironia.

— Confesso que estou desapontado por isso não ter acontecido, porém, mais cedo ou mais tarde o sol o matará — declarou Callum — É claro que eu poderia salvar sua vida se nos dissesse o que queremos saber. Onde estão Alice e o menino?

É provável que ela esteja perto o suficiente para cuspir em seu olho, pensou Gybbon com profunda satisfação.

— Não os ajudarei — respondeu em vez disso. — Sei muito bem sob que tipo de torturas seu líder a colocaria, assim como a criança que você gerou também.

— Aquele verme não é meu filho! — bradou Callum, fitando Gybbon com ódio. — Alice tenta me culpar pela existência do demônio, mas ele não foi concebido por minha semente.

Gybbon sentiu que a corda no outro braço cedia. Um segundo depois percebeu uma fria adaga entre os dedos.

Foi a coisa mais difícil que precisou fazer na vida, mas resistiu ao impulso de arremessá-la contra Callum. E também se forçou a não se mover. Agora que tinha a adaga de Alice, sabia que ela não pretendia cortar por conta própria as cordas que prendiam suas pernas. Isso significava que tinha outro plano, algo que, ele esperava, manteria os Caçadores à distância enquanto ele acabava de se livrar.

Rezou para que a ideia não envolvesse nenhum sacrifício para ela. Jamais permitiria que trocasse de lugar com ele.

— Foi sua semente, patife — gritou Alice, levantando-se, o arco em riste e uma flecha apontada para o coração de Callum. Revoltada, ela lutou com todas as forças para não dispará-la.

Apesar da fraqueza, Gybbon agiu depressa para se livrar das cordas. Cada osso e músculo em seu corpo doíam muito; mesmo assim ele correu para o lado de Alice assim que se libertou.

Um homem desembainhou a espada e avançou em sua direção, porém, mal deu um passo e uma flecha o atingiu na perna, fazendo-o cair.

Gybbon olhou para Alice e viu que ela já colocara outra flecha no arco.

— É surpreendente com essa arma — murmurou em tom de elogio.

— Obrigada — ela replicou, sem afastar o ciliar da mira. — E agora, o que faremos?

— Quer dizer que seu plano acaba aqui? — Gybbon franziu a testa.

— Mais ou menos. Creio que precisei pensar depressa demais.

Gybbon tratou de recuperar as próprias armas, as quais estavam perto do lugar onde o haviam amarrado. Lançou um rápido olhar para o cavalo e viu que estava selado e preso com um nó frouxo a uma árvore, ali perto. Assobiou e leve e Resoluto se libertou do laço com facilidade, galopando em sua direção e na de Alice.

Um dos homens tentou detê-lo, mas foi atingido por outra flecha no ombro.

Alice era mesmo boa com seu arco, ele pensou, satisfeito, mas precisava vencer sua aversão à morte e atingir aqueles canalhas no coração ou na cabeça. Eles não estavam com a espada em seu pescoço, mas continuavam sendo uma ameaça.

— Mantenha seu arco em posição e venha até aqui — ordenou com voz calma, desembainhando a espada. — Onde está sua égua?

— Alguns metros atrás de nós — Alice respondeu, obedecendo.

— Monte Resoluto. Pegaremos a égua ao passar por ela.

Não foi fácil. Ela precisou baixar a guarda por um momento, porém logo se viu sobre a sela.

Voltou a fixar a atenção nos homens, então, enquanto Gybbon também montava, às suas costas.

Alice franziu a testa, sem saber o que ele pretendia, quando segurou as rédeas e o animal começou a recuar. Só percebeu sua intenção quando Gybbon desbaratou os cavalos dos inimigos, chicoteando-os nos flancos com a parte achatada da espada.

Com os Caçadores gritando impropérios, fez Resoluto se voltar na direção de onde Alice viera e iniciar um galope.

Sem perda de tempo, ela guardou as flechas restantes na aljava e passou o arco pelo ombro, de maneira que pudesse se segurar.

Quando alcançaram Brisa, impediu que Gybbon agarrasse as rédeas da égua, fazendo isso ela mesma, e passou para o outro animal com facilidade. Viajariam mais depressa assim, e chegar a um refúgio era tão importante quanto iludir seus inimigos.

Em breve o sol estaria alto e causaria problemas, lembrou-se Alice. Nem queria pensar no mal que os raios solares já deviam estar causando a Gybbon.

Mas ele não lhe deu chance de perguntar como se sentia, e ela tratou de fazer a égua acelerar o galope para se manter junto a Gybbon, que enveredava pela floresta em uma velocidade muito perigosa. Manteve a atenção no caminho que ele indicava por mais de uma hora, arqueando o corpo c rezando para que Brisa não tropeçasse.

O tempo passava em profundo silêncio. Alice pensou em perguntar a Gybbon se os Caçadores os seguiam. Caso ele achasse que não, talvez pudessem reduzir o passo, a fim de não atrair perigo para os animais.

Ao olhar para ele, porém, mal pôde conter um grito de choque. Gybbon oscilava sobre a sela e seu rosto estava sem cor.

Ele se sacudiu e voltou a se aprumar, mas ela duvidava de que conseguisse se manter assim por muito mais tempo.

— Pare! — ordenou. — Pare agora mesmo, Gybbon MacNachton.

Ele puxou as rédeas e se deteve de supetão, fitando-a e lutando para permanecer consciente.

— Por quê?— perguntou com voz fraca.

— Está prestes a cair da sela! O sol sugou toda a sua energia.

Alice desmontou e ficou ao lado do companheiro.

— Não — protestou ele -—, já estamos perto do esconderijo. Poderemos alcançá-lo se continuarmos o galope.

A facilidade com que Alice tirou as rédeas de suas mãos, a deixou ainda mais alarmada.

— Não avançará além da próxima árvore se não melhorar!

-— Estamos perto, eu já di... — De repente, Gybbon caiu do cavalo com o rosto no chão. Prostrado, ele disse a si mesmo que só precisava descansar uns minutos, mas sabia que não era verdade. Era como se seus ossos se dissolvessem.

Tentou se levantar, tomar as rédeas de volta e conduzir Alice em segurança, mas foi em vão. Foi ela quem o ajudou a montar de novo.

— O que está fazendo? — Gybbon perguntou num fio de voz ao sentir algo sobre os ombros. .

— Estou segurando você na sela e cobrindo-o com uma manta. — Alice passou a coberta pelo corpo forte e deu nós nas extremidades, por baixo da barriga de Resoluto. — E não discuta comigo. Sem estar preso à sela, voltará a cair, e eu não poderia erguê-lo de volta nem se quisesse, pois em breve estarei também sofrendo os efeitos dos raios do sol. — Ela levantou o rosto para o céu. — Por que, com tantos dias nublados, justamente hoje temos esse tempo aberto?!

Gybbon nem teve forças para suspirar de alívio quando ela terminou de cobri-lo, impedindo que o sol continuasse a atormentá-lo. Mas usou esse momento para reunir o pouco de força que lhe restava e dizer a Alice por onde seguir.

Relutava em admitir que estava zonzo, e já não tinha certeza do quanto ainda precisavam viajar. Por isso ficou feliz quando Alice não fez perguntas.

Enquanto Resoluto começava a se mover, Gybbon rezou para não ter-se. esforçado demais, do contrário, o sono em que estava prestes a cair poderia ser eterno.

Alice já começava também a perder as forças por completo quando encontrou o abrigo mencionado por Gybbon. Tratava-se de um velho casebre de pedras, do tipo que os antigos haviam deixado para trás. Estava tão bem escondido pelas árvores e trepadeiras que ela quase passara reto, sem vê-lo.

Conseguiu reanimar Gybbon o suficiente para não precisar arrastá-lo para o interior do abrigo, mas o largou assim que entrou, já sem forças para prosseguir.

Ele tornou a desabar no solo, ficando com o rosto voltado para o chão sujo.

Murmurando desculpas para os cavalos por não poder lhes dar muita atenção, ela atirou as selas e mantimentos para dentro do casebre, depois prendeu os animais à sombra do arvoredo.

Já sob o teto tosco, estendeu uma manta no chão e tornou a arrastar Gybbon para cima desta. Em seguida ela o despiu e lavou suas feridas, maldizendo os Caçadores por cada hematoma e corte que ele sofrera.

Quando, por fim, se inclinou sobre ele a fim de se certificar de que ainda respirava, Gybbon abriu os olhos e moveu os lábios.

Alice se esforçou, mas não entendeu as palavras que dizia. Nervosa, ela se inclinou mais para frente e encostou o ouvido em seus lábios.

— Sangue... Preciso de sangue.

Ela retrocedeu com rapidez e o fitou, satisfeita por ver que Gybbon tornara a fechar os olhos; assim não veria seu medo.

Não entendia por que sentira um frio na espinha diante do pedido.

Mas apesar do receio e da aversão, aprendera havia muito tempo a conviver e aceitar a fome que a afligia, e que herdara do clã dos MacNachton.

De início, não compreendeu por que recuara com medo. Deixara as crianças se alimentar dela, e vira isso apenas como uma necessidade para que continuassem fortes e saudáveis.

Então praguejou de leve ao perceber o que a atemorizava: Gybbon era um homem. Ela sabia que se o deixasse se alimentar dela, aquele seria muito mais que apenas um ato de cura: seria também um ato muito íntimo.

Com cautela, e se sentindo ridícula por isso, Alice o tocou no rosto; Gybbon estava tão frio que a fez sentir angústia. Era como tocar um cadáver.

Deslizou a mão para seu coração: este batia mais devagar e cansado e, em breve pararia.

Alice respirou fundo. Precisava permitir que Gybbon se alimentasse dela; não havia escolha. Mesmo que ele não estivesse próximo da morte, como ela tanto temia, necessitava de seu sangue para se curar. Devido à fraqueza causada pelo sol e dos ferimentos que sofrera, ele levaria muito tempo para ficar em condições de prosseguir viagem. E, um dos motivos para que os dois tivessem tido tanto sucesso até aquele momento era justamente o fato de nunca ficarem no mesmo lugar por muito tempo.

Alice sabia que iria sofrer muito se Gybbon morresse. E se isso acontecesse porque fora covarde demais para permitir que ele bebesse seu sangue, então o remorso iria consumi-la pelo restante de seus dias.

Praguejou baixinho e deu uma mordida no próprio pulso. Passando um braço por baixo da cabeça de Gybbon e erguendo-o o suficiente para que ele não engasgasse, posicionou o pulso que sangrava contra sua boca.

Por um instante, os lábios dele permaneceram frios e inertes sobre sua pele, fazendo com que o sangue escorresse pelo queixo forte.

Alice temeu ser tarde demais, e que Gybbon já não conseguisse sugar o líquido de que tanto precisava.

Mas então ele segurou seu braço com firmeza e enterrou as presas na pele macia. Um instante depois, começou a sugá-la para se alimentar.

Um calor sensual percorreu o corpo de Alice, que sentiu os seios pesados e os mamilos formigando. Alarmada, ela percebeu a sensação erótica atingir o meio de suas coxas. A cada nova pressão da boca de Gybbon em seu pulso, sentia o desejo aumentar. Suas partes íntimas latejaram, e ela fez menção de afastar o pulso. Como se pressentisse isso, porém, Gybbon gemeu de leve e a manteve bem presa.

Quando parou de sugar, acariciou com a língua a ferida que se formara no pulso de Alice, depois tornou a ficar inconsciente.

Àquela altura, ela já se contorcia de prazer não saciado, o que a chocou tanto que a fez se afastar de Gybbon com um repelão.

Era aquilo o que chamavam de desejo?

Fitou a ferida no próprio pulso, aturdida. Conhecera um homem intimamente apenas por meio de um ataque brutal, e não podia ter certeza. Nem mesmo beijara um homem antes daquela noite fatídica, quando a boca de Callum apenas a machucara.

Na verdade, Gybbon fora o primeiro que beijara de verdade. E só naquele momento soubera que um beijo não era perigoso, pelo contrário... embora tivesse se sentido um pouco tímida.

E, dentre todas as sensações que experimentava naquele momento, uma era bem fácil de reconhecer: a necessidade.

Fitou Gybbon e suspirou. O instinto lhe dizia que aquele desejo só poderia ser satisfeito por ele, Gybbon MacNachton, e não com sangue.

Se isso era verdade, então deveria tentar vencer o pavor que Callum lhe incutira, e aceitar Gybbon como seu amante.

Porém, embora ela estivesse certa de que ele jamais fosse machucar seu corpo, não tinha certeza se Gybbon não feriria seu coração.

 

Um calor doce e um leve perfume foram as primeiras coisas que Gybbon sentiu ao despertar. Olhou para a direita e viu Alice encolhida a seu lado, um braço macio sobre seu abdômen.

Então as lembranças voltaram com força, deixando-o tenso.

Levou um momento para se acalmar e permitir que sua mente entorpecida compreendesse que tais recordações não eram ruins. Acariciou os longos cabelos de Alice e, olhando em torno, percebeu que ela conseguira levá-los ao esconderijo, embora ele não se recordasse como. A escuridão tomara conta de sua mente depois que ela o cobrira com a manta sobre o cavalo.

Sentia-se constrangido por causa da franqueza que o acometera e pela incapacidade de se salvar sozinho, mas também estava orgulhoso pela coragem e força que Alice demonstrara. Ela lhe pertencia, embora não soubesse disso ainda. Precisaria conquistá-la, e estava disposto a enfrentar qualquer problema para isso.

Em meio a um sonho agradável e moroso sobre o futuro que teria com ela como esposa, Gybbon por fim percebeu como sentia-se bem. Até demais para um MacNachton que fora ferido e passara muito tempo sob o sol. Ainda sentia certo desconforto, mas sabia que poderia matar um boi para sua refeição seguinte, se assim desejasse.

Com todo o cuidado, ergueu a mão pequena de Alice e fitou seu pulso. As marcas eram leves, quase inexistentes, mas poderia reconhecê-las em qualquer lugar. Alice o alimentara.

De súbito, ele temeu ter sugado demais e a deixado sem forças, mas um rápido olhar para seu rosto o tranquilizou: havia cor nas faces de Alice, sua respiração era pesada, e o coração pulsava firme quando ele apertou de leve o pulso delicado. O alimento e o sangue que ela ingerira nos últimos dias tinham feito seu trabalho.

Sorriu. Ela não era apenas uma mulher forte, mas resistente o suficiente para lhe dar o que ele precisava para se curar, sem que isso a debilitasse.

Mexendo-se um pouco para livrar o braço que servia de travesseiro para ela, Gybbon deslizou os dedos por suas costas. Encostou o nariz em seus cabelos e aspirou o perfume de sua pele limpa. Depois franziu a testa, erguendo de leve a cabeça.

Respirou fundo, reconhecendo o odor de uma mulher excitada.

E sabia muito bem o que excitara Alice... Permitir que ele se alimentasse dela fora um ato afrodisíaco.

Gybbon deslizou a língua pelos lábios inconscientemente. Ainda podia sentir o gosto dela, usufruir o poder glorioso de seu sangue, agora dentro dele.

E estava ansioso por sentir esse gosto outra vez.

Acariciou a face delicada com os dedos. Até o momento, só a frustração o dominara; mas ele esperava que, depois de ela lhe ter dado seu sangue para beber, estivesse, por fim, vencendo o próprio medo. Quando havia atração entre um homem e uma mulher, o ato de compartilhar sangue era algo muito íntimo.

Alice poderia ter ficado assustada com a própria excitação, deduziu, a qual ainda enchia o ar com promessas tentadoras... Mas, não. Ali estava ela, enrodilhada a seu lado.

Erguendo seu rosto com delicadeza, Gybbon a beijou de leve nos lábios. Sentiu uma ponta de culpa por desejá-la tanto, mas tratou de ignorar tal sentimento. Alice já experimentara o desejo no momento em que lhe dera seu sangue e, para que dominasse seu medo de uma vez por todas sobre a intimidade entre um homem e uma mulher, precisava ser apresentada aos prazeres do sexo. Necessitava constatar que o ato sexual não era algo doloroso, e que a violência nada tinha a ver com ele. Era fundamental que se sentisse afagada e envolvida pela paixão para, por fim, começar a se curar das feridas morais que sofrera nas mãos cruéis de Callum.

Gybbon suspirou. Tinha certeza de que quando ele e Alice fizessem amor, um novo horizonte se abriria para ela. Não era arrogante nem tolo para achar que todos os fantasmas que a assombravam desapareceriam, mas estava seguro de que Alice se livraria da maioria deles.

Puxando-a sobre seu próprio corpo, num impulso, beijou-a até que ela despertasse. E o modo como Alice acordou depressa e correspondeu ao beijo o fez ficar ainda mais excitado. Ela vestia apenas uma roupa de baixo, de linho transparente, o que o fez ansiar por arrancá-la. A vontade de ter a pele sedosa contra a sua era imperiosa.

Mergulhando os dedos nos cabelos longos, Gybbon ousou explorar a boca carnuda com a língua. Alice não se opôs e estremeceu quando ele parou de beijá-la para roçar as presas em seu pescoço, onde pulsava uma veia. Estava esparramada sobre o corpo musculoso e nu de maneira sensual, mas não se movia, insegura.

Ela respirou fundo. Sentia o sangue ferver nas veias e o tal desejo voltando com assombrosa força. O órgão de Gybbon se dilatara e crescera entre suas coxas, porém já não sentia medo.

— Vejo que está curado e voltou a ser forte — murmurou, semicerrando os olhos ao sentir as mãos grandes acariciando suas pernas.

— Sim. — Gybbon ficou surpreso ao ver que a palavra saíra mais como um gemido, pois Alice, instintivamente, começara a se esfregar em seu corpo. — Ainda posso sentir em minha língua o gosto do seu sangue, que corre agora em minhas veias.

Foi a vez de ela se surpreender diante da excitação que a afirmação lhe provocava. Fizera o que fora preciso durante anos para sobreviver, mas a fome por sangue com a qual fora amaldiçoada sempre a deixara confusa.

Em vez de sentir nojo e vergonha, no entanto, ela se viu desejando provar o sangue de Gybbon.

O simples pensamento fez suas presas surgir. Quando roçou com elas o ombro musculoso, permitindo que ele sentisse a agudeza das pontas, o gemido de Gybbon veio carregado de tanto prazer que Alice se viu tonta.

— Tire a roupa — ele ordenou. — Preciso sentir sua carne contra a minha.

Sem hesitar, Alice sentou-se sobre o corpo rijo e tirou as vestes. Gybbon deslizou as mãos sobre seu ventre e cobriu com as mãos os seios macios. Quando apertou os mamilos com os polegares, ela fechou os olhos e segurou as mãos dele, incentivando a carícia.

Com um suspiro, Gybbon a fez se inclinar para frente e tomou um mamilo intumescido na boca.

Alice gritou diante do prazer que a percorreu. Em meio ao desejo que embaçava sua mente, viu-se dominada por uma forte necessidade: a de se esfregar com força contra o membro rijo. Havia um vazio dolorido em suas entranhas que rogava por ser preenchido.

Ela ficou chocada ao admitir isso, mas sabia muito bem o que seu corpo queria. Sua paixão sufocara o medo que a virilidade de Gybbon antes lhe causara. Precisava dar aquele último passo... naquele exato momento.

— Quero você dentro de mim — disse com voz rouca. — Entre em mim, Gybbon! — Começou a se afastar para deitar-se de costas no chão, porém ele a impediu.

— Fique assim, Alice.

— Mas... Não compreendo.

— Coloque-me dentro de você.

Ele a segurou pela cintura e posicionou o membro entre suas coxas, enquanto admirava com olhos embaciados de desejo os cabelos longos e molhados de suor, os seios que se erguiam, convidativos.

Instintivamente, Alice circundou seus quadris estreitos com as pernas. Ofegante, ele roçou o corpo no dela de modo a permitir que ela o sentisse.

Então a penetrou com firmeza, fazendo-a se retesar um pouco. Voltou a se afastar e investir de novo, deixando-se envolver por seu calor.

— Estou machucando você? — perguntou, preocupado.

— Arde um pouco... — ela admitiu, arfante. — Mas é tão bom!

Os movimentos foram se tornando ritmados, em um crescendo sensual. Gybbon sabia que precisava ir com calma, que não deveria assustá-la, mas o modo como Alice se movia jogou por terra sua boa vontade. Logo ambos se movimentavam livremente, dominados pela ânsia de possuir um ao outro.

O orgasmo de Alice chegou depressa. Gybbon sentiu seu corpo enrijecer e sorriu, satisfeito, quando ela gritou seu nome, cheia de surpresa e deleite. Depois desmoronou sobre ele, e enfiou os dentes em seu pescoço, fazendo-o gemer de prazer.

Ao senti-la sugando seu sangue, Gybbon estremeceu, sacudido pelo êxtase que o dominava. Não demorou a alcançar o clímax e gemeu alto, sem poder se conter.

A fome aumentou e ele ansiou por sentir também o gosto de Alice. Sem querer mudar a posição em que se encontravam, agarrou seu braço e levou o pulso delicado à boca de novo, perfurando a pele fina com as presas.

O sangue morno desceu por sua garganta, e ela tornou a estremecer. Ainda dentro dela, Gybbon se movimentou freneticamente e, dessa vez, ambos alcançaram o auge ao mesmo tempo.

Alice piscou diversas vezes ao perceber que continuava sobre ele, o queixo descansando no tórax amplo. Quando sua mente começou a clarear e ela recordou tudo o que acabara de acontecer, não soube se ficava envergonhada ou se saía dançando de felicidade.

Começou a erguer a cabeça e seu olhar incidiu sobre a marca que já começava a desaparecer. Toda a alegria que sentira por dominar seus medos e ter prazer com um homem desapareceu.

De repente, ela começou a sentir frio.

— Eu o mordi — murmurou, chocada, enquanto sentava-se devagar. — Eu me alimentei de você.

— Sem dúvida que sim — replicou Gybbon. — Eu também a mordi.

Sorriu, perguntando-se quando Alice se aperceberia de que estava tão nua como ele, e que ele se deliciava com as formas femininas e os seios magníficos à sua frente.

Ela franziu a testa.

— Por que parece tão satisfeito por ter se alimentado de mim?

— Porque estou satisfeito, ora. — Gybbon deslizou os dedos de leve sobre o ventre liso, sentindo prazer no modo como ela estremecia ao toque. Senhor, até seu umbigo era bonito!

Quase riu ao se dar conta de como estava encantado com Alice.

— Podemos não ser Puros-Sangues, mas somos MacNachton.

— Mas eu não precisava me alimentar. Nem estou ferida...

Alice parou de falar quando Gybbon colocou, um dedo sobre seus lábios.

— Até as pessoas que não são como nós trocam mordidas de amor no calor da paixão. Alice, para um MacNachton que ainda sente a fome, o que acabamos de fazer, compartilhar nosso sangue, aumenta o prazer do ato sexual. Pode torná-lo mais rico, selvagem, vigoroso... Entende?

— Sim. — Ela corou. — Mas creio que levará algum tempo até que me livre de todo o medo que sinto por ser diferente.

Quando Alice sentiu a mão de Gybbon se fechando sobre seu seio outra vez, suspirou de prazer. Só então percebeu que ambos estavam despidos.

Com um gritinho de constrangimento, tentou se livrar dele e pegar suas roupas, mas viu-se atirada no chão com Gybbon rindo sobre ela.

Alice mordeu o lábio, tímida. Não conseguia parar de admirar o físico bonito e viril. Gybbon era perfeito, e ela ansiava por tocar cada centímetro de sua pele.

— Temos pelo menos mais uma hora até que o sol se ponha... — ele lembrou, beijando a ponta do nariz benfeito. — Quer fazer de novo? — Mal perguntou, sentiu o membro enrijecer de novo — Vamos tentar esta posição? Acha que está pronta?

— Acha que fico com medo porque está em cima de mim? — desafiou Alice com um brilho no olhar, fazendo-o rir.

O sol já desaparecera quando Alice abriu os olhos outra vez. Piscou algumas vezes antes de conseguir enxergar com clareza, depois analisou o homem que ressonava de leve, com a cabeça apoiada em seus seios.

Era tão belo que fazia seu coração doer. Isso e a consciência de que ele não era homem para ela a deixava atormentada. Gybbon MacNachton era muito refinado para a filha de um pastor.

Alice suspirou. Sua mãe descendera de uma linhagem melhor, viera de uma família próspera; mas isso não importava. Todos os objetos de classe que trouxera para a sua casa haviam desaparecido após o massacre. Já não lhe restavam terras nem dinheiro; nem mesmo lençóis de linho para seu enxoval, caso Gybbon fosse querer se casar com ela. Tudo o que tinha a oferecer era seu coração. E um homem como Gybbon MacNachton iria procurar mais do que isso quando desejasse uma esposa.

Tentou afastar esses pensamentos lúgubres, pois faziam seus olhos arder com lágrimas indesejadas. Tratou de pensar na paixão que tinham compartilhado e que poderiam voltar a compartilhar por pouco tempo. Não importava o que aconteceria entre os dois. Ela sabia que sempre seria grata pela cura que ele trouxera para sua alma. Gybbon não havia matado todos os seus dragões, porém rompera as cadeias do medo que a tinham dominado por tanto tempo.

Ele despertou de repente, ergueu-se num cotovelo e a beijou com ardor.

— Pensei que estivesse dormindo...

— Estava — Gybbon confirmou, esforçando-se para procurar as roupas. — Porém, infelizmente, não podemos mais ficar descansando e nos deleitando um como outro. É hora de rumar para Cambrun.

Alice se vestiu, lamentando o fim abrupto de sua intimidade, porém sabendo que era preciso.

— Sobraram poucos Caçadores — comentou, enquanto dava o laço no vestido. — Não matei aqueles dois, porém creio que os deixei fora de combate por algum tempo. Não acha que Callum irá desistir agora? — Virou-se para Gybbon e pôde ver, na expressão de seu rosto, que não iria gostar da resposta.

— Os feridos poderão desistir, mas não creio que Callum desista. — Ele a tomou nos braços e a beijou de leve na boca. — Acho que para ele é mais do que uma cruzada para livrar o mundo daqueles que considera demônios, minha doce Alice. Existe algo além.

— Callum deseja matar a mim e a meu filho. Somos a prova viva do que considera seu maior pecado e vergonha.

Gybbon balançou a cabeça, concordando, enquanto enrolava as mantas para guardá-las.

— Para ele a culpa foi toda sua, Alice, e você precisa pagar por ela. O que mais me preocupa é que ele falou em capturá-la e levá-la para o homem que comanda os Caçadores. Gostaria de ter a oportunidade de matá-lo só por pensar em tal abominação.

— Mas eu continuaria viva.

— Sim, e em breve desejaria estar morta. — Gybbon passou o braço por seus ombros ao vê-la empalidecer diante das palavras duras e cheias de rancor. — Acredite em mim, querida. Meus primos, Heming e Tearlach sofreram muito quando foram feitos prisioneiros. Despidos, enjaulados e acorrentados, receberam mil surras, cortes e ferimentos. Nossos inimigos procuram nossas fraquezas. Os que aprisionaram meus primos tinham um plano que, se compartilharam com outros, poderá causar mais problemas para os MacNachton do que já temos.

—- O que pode ser pior do que sermos tratados como demônios ou bestas humanas? — Eles concluíram que o segredo da força e da longevidade dos MacNachton está em nosso sangue... — Confirmou com um gesto de cabeça quando ela empalideceu. — Um pouco antes de Heming ser libertado, seus salvadores ouviram os captores falando sobre uma poção a ser feita com seu sangue. E que, caso isso os fizesse mais fortes, manteriam meu primo vivo, de modo que este continuasse a ser uma fonte de alimento.

A expressão de Alice era de sarcasmo e asco.

— E acham que nós somos os demônios!

Gybbon quase sorriu à menção da palavra "somos". Alice já se considerava uma MacNachton. Assim seria muito mais fácil fazer com que se sentisse à vontade em Cambrun.

Olhou para a marca que deixara no pescoço alvo, a qual ela ainda não percebera, e se viu dominado pelo orgulho e por um forte sentimento de posse. Aquela marca não cicatrizaria como as outras. Alice agora era sua, e a marca deixaria isso claro para qualquer outro homem MacNachton. Quando tivessem tempo e não estivessem mais fugindo do inimigo, contaria isso a Alice.

— Covardes!

Callum permanecia olhando para o acampamento deserto, os punhos cerrados e os braços abaixados. Seus homens haviam desertado.

Mas isso não o faria desistir, jurou. Não podia. Precisava limpar o pecado de sua alma. Enquanto Alice e seu bastardo vivessem, sua fraqueza e vergonha estariam presentes aos olhos de qualquer um. Jamais poderia se redimir enquanto ela e o filho respirassem.

Fitou o local onde MacNachton estivera preso, e viu as cordas que o tinham mantido imobilizado. Deveria ter matado o demônio no instante em que o vira submisso.

Assim pensando, Callum praguejou e afastou uma pedra com a ponta da bota. Agora era ele contra dois, mas não iria correr com o rabo entre as pernas como os outros haviam feito.

Não podia voltar para casa antes de comprovar que Alice Boyd e seu verme bastardo estavam liquidados. Não poderia permitir que o objeto que o tornara débil e o fizera sucumbir à tentação, gerando o mal, continuasse vivo e andando por toda parte. A mancha em sua honra e em sua alma necessitava ser apagada com o sangue daqueles que a tinham provocado.

— Farei com que ela morra — bradou. — E então... Vou procurar o bastardo que gerou e acabar com ele também. Juro!

 

Alice se afastou devagar do corpo quente de Gybbon que dormia e ignorava a profunda-sensação de perda que a dominava. Estava se acostumando muito com a presença dele... e a dormir enrodilhada nos braços fortes.

Pior ainda, estava ficando enfeitiçada demais pelo prazer que ele lhe dava.

Detestava pensar no quanto sofreria quando seu romance terminasse. Só esperava ter forças e dignidade para não fazer papel de tola quando o ardor de Gybbon começasse a diminuir e ele fosse procurar outra mulher para seu prazer.

Sentou-se e olhou em volta, fazendo uma careta. Haviam dormido circundados por mortos. Alice não tinha medo de fantasmas, porém, dormir em uma cripta causava certo frio na espinha.

Bastara um beijo de Gybbon, entretanto, para afastar o desconforto, lembrou-se com um sorriso. Em instantes, ela havia voltado toda a sua atenção para a paixão que os queimara como brasa ardente.

Naquele momento, fitando os esquifes de pedra e as figuras gravadas nas placas, sentiu certo constrangimento. Parecia desrespeitoso fazer amor em tal lugar. Rezou para que fantasmas não existissem, do contrário teriam se divertido observando-os nas mais variadas posições eróticas.

Levantou-se e se vestiu. Suspeitava de que o sol ainda dominasse o firmamento, o que representava um grande perigo para Gybbon. Mas, para ela, talvez fosse seguro sair.

Precisavam de alimento, seus suprimentos estavam no fim, e ela duvidava de que pudessem parar em algum lugar e conseguir mais antes de chegar a Cambrun. Uma refeição composta por coelho ou faisão lhes daria forças para cumprir o restante da viagem.

Pegou o arco e flecha, e desconsiderou a voz, em seu íntimo, que lhe dizia para ficar onde estava. Havia três dias não viam sinais dos Caçadores. Era óbvio que os homens que ela ferira haviam precisado de cuidados e da ajuda dos demais companheiros.

Não passou pela mente de Alice que Callum pudesse perseguir Gybbon sozinho, contudo, pois era louco e cheio de ódio por ela. Ignorando a voz de alerta, ela se esgueirou para fora da capelinha da cripta, olhou em volta a fim de se assegurar que não havia ninguém por perto, depois correu a se ocultar na floresta. Era outro dia ensolarado, e Alice começava a pensar que algum espírito mau mantinha o clima assim para dificultar sua vida e a de Gybbon.

Sorrindo diante de pensamento tão bobo, concentrou-se em conseguir alimento.

O sol estava quase se pondo quando ela finalmente conseguiu caçar um coelho e prepará-lo para o espeto. Sua caçada fora bem-sucedida, mas não tão rápida quanto imaginara.

Censurou-se por ter ficado fora tanto tempo. Em breve Gybbon despertaria, se é que ainda não o fizera, e ficaria preocupado com ela.

Alice podia não ter certeza sobre a profundidade dos sentimentos dele, mas sabia que ele ficaria preocupado com sua ausência.

Embrulhando o coelho morto em um pano, enfiou-o na bolsa de couro e se apressou a voltar para a cripta, surpresa por ver como se embrenhara na floresta.

Um leve rumor de folhas foi o único aviso que teve, tarde demais, para que tomasse cuidado. Estava para desembainhar a adaga, quando algo a atingiu por trás.

Alice caiu ao solo, o enorme peso sobre seu corpo impedindo-a de respirar. Nada pôde fazer quando suas armas foram arrancadas de suas mãos, e atiradas para longe.

— Afinal, mulher-demônio! — sussurrou uma voz rouca que a fez estremecer de medo. — Por fim a peguei. Onde está seu bastardo e aquele outro pobre-diabo que tomou como amante?

Ainda lutando para recuperar o fôlego, ela retrucou:

— Não sei de quem está falado.

Callum a fez se virar com as costas no chão, imobilizando-a pelos pulsos, e Alice concluiu que seu inimigo aprendera algumas coisas sobre ataque desde a última vez que a capturara. Voltou a sentir o antigo pavor, mas tratou de dominá-lo. Precisava manter a calma para ter alguma chance de sobreviver àquele confronto.

Fazendo uma rápida inspeção em volta, percebeu que Callum se encontrava sozinho, e censurou-se por não ter seguido seus instintos e ficado na cripta com Gybbon. Afinal, este discordara quando ela dissera que Callum não continuaria a perseguição sozinho.

Seus pensamentos foram interrompidos quando Callum deu-lhe um bofetão no rosto.

— Vagabunda mentirosa! Vai me dizer onde estão. Pouparei sua vida se o fizer.

— Para que possa matá-los? Não. Pode me bater quanto quiser. Eu não lhe entregarei mais inocentes para trucidar como fez com minha família. Não vou barganhar minha vida à custa do sangue dos outros. Além do mais, não sou ingênua para pensar que me deixaria viver.

— Sua família era de demônios! Uma afronta aos olhos de Deus!

— Só tentavam levar suas vidas com honestidade e paz. Nunca feriram ninguém.

Alice sabia que tentar fazer aquele homem raciocinar era inútil, porém, poderia ganhar tempo e pensar em uma forma de escapar...

Ou talvez Gybbon viesse procurá-la.

— Mas não pode dizer o mesmo de seu amante, não é verdade? — retrucou Callum com raiva. — Ele matou vários de meus homens, bebeu seu sangue e sugou suas almas. E você tentou matar o restante de meu grupo!

— Esperava que eu ficasse parada e me permitisse assassinar? — A voz de Alice soou tranquila apesar do medo que sentia. — Luto porque você não me deixa em paz. Quer acabar comigo e com meu filho, portanto me defendo como qualquer outra em meu lugar faria. — Ela o fitou com ardor. — Desejar viver não me torna um demônio, nem faz de Gybbon uma pessoa má.

Sentiu que Callum cerrava os dentes e sorriu com desdém.

— E essa história de sugar almas é uma grande mentira, seu tolo! — acrescentou com desprezo. — Alguém está enchendo seus ouvidos com tolices e você está manchando suas mãos de sangue por nada.

Callum pressionou a lâmina da adaga com mais força.

— Vocês todos são criações do demônio, que sempre obriga seus súditos a conquistar almas para seu reino infernal. Vocês precisam se ocultar nas sombras, e se alimentam de pessoas como feras. Nada do que possa dizer mudará isso ou sua natureza. — Ele respirou fundo. — Agora me diga onde ele está.

— Não.

Alice engoliu um grito de dor quando sentiu que a adaga perfurava seu ombro sem a menor piedade. Respirando de maneira compassada para afastar a agonia quando ele retirou a lâmina, fitou os olhos frios do inimigo. Mais feridas como aquela e não recuperaria as forças.

— Sei que você e seu filho têm muita força — disse Callum enquanto rasgava as vestes de Alice na altura do ombro para ver o estrago que fizera. :— E também que se recuperam depressa. Porém costumam sangrar, e com muitos ferimentos acabam por morrer. — Sorriu com crueldade e malícia. — Se você perecer, o que acontecerá com seu bastardo?

— Viverá porque está onde você jamais poderá alcançá-lo — bradou Alice.

— Mentira. Ele está perto porque você nunca o deixaria partir. Não depois de arrastá-lo a seu lado durante anos — rosnou Callum com voz áspera. — E mesmo que o tenha escondido em algum lugar, não abandonaria seu amante, não é verdade? Uma prostituta não dura muito sem um homem entre as pernas... Mas, desta vez, não serei fraco. Não permitirei que fique com minha semente e a corrompa para que se torne uma arma do demônio.

— Então a culpa é minha por você ser um estuprador cruel? É assim que se liberta da responsabilidade pelo que fez?

Os olhos de Callum a fulminaram.

— Você foi criada pelo demônio para tentar um homem, mas agora estou mais esperto.

— Eu diria mais louco — contrapôs Alice, tentando tirá-lo de cima dela e ficando furiosa ao não conseguir.

— Onde está seu amante? —tornou a perguntar Callum.

— Aqui, seu patife.

Callum foi arrastado de onde estava e pareceu voar pelos ares. Alice fitou Gybbon, que apenas lhe lançou um olhar zangado antes de voltar a atenção para o inimigo.

A fúria de Gybbon era tão intensa que Alice se surpreendeu por não atear fogo na floresta. Tratou de se apoiar nos joelhos e, com medo de desmaiar caso levantasse, rastejou para trás, até sair do caminho e dar espaço para a luta que viria.

Ficou surpresa quando Callum se ergueu sem parecer machucado após rodopiar no ar. Imaginou que talvez a loucura lhe desse uma força extraordinária. Ele desembainhou a espada e encarou seu opositor como se de fato esperasse vencer a luta.

Gybbon também empunhou a espada e ficou parado, sem dúvida desejando que Callum atacasse primeiro.

— Não irá se apossar de minha alma, demônio — avisou Callum.

— Eu jamais desejaria ter algo tão horrendo — replicou Gybbon.

— Você e sua amante estão condenados. Iremos persegui-los e matá-los, assim como a todos de sua espécie, até que não exista mais nenhum sobre a face da Terra: homem, mulher ou criança.

— Sei que é isso que deseja, e é por isso que não tenho remorso em matar tolos. É claro que, depois do que fez a Alice, sinto-me inclinado a tornar sua morte mais lenta e dolorosa.

Callum lançou um olhar para Alice.

— Ela é uma vagabunda; uma ferramenta do demônio enviada para tentar os homens honestos e fazê-los pecar.

— Não faz bem em me provocar, Callum. Torna o meu desejo de fazê-lo sofrer muito mais intenso — ameaçou Gybbon. — Agora, pretende lutar ou vai continuar conversando? Mas, espere... Talvez eu deva lhe oferecer a oportunidade de sobreviver. Diga-me o nome do líder que o enviou atrás de nós e lhe darei a chance de escapar.

Alice percebeu que Gybbon não prometera deixar Callum viver.

A luta começou tão abruptamente que, quando as espadas se chocaram pela primeira vez, ela se assustou. Callum provou que era forte e hábil, mas era fácil perceber a superioridade de Gybbon.

Só levou um momento para Alice se dar conta de que Gybbon provocava seu inimigo, permitindo que Callum pensasse ter alguma chance de vencer. Isso talvez devesse chocá-la, mas Callum a atormentara por tempo demais, e tinha muito sangue nas mãos para inspirar piedade.

— Quando você morrer, levarei sua prostituta para meu líder — ele dizia, sem afastar os olhos de Gybbon. — Ele irá mostrar como as pessoas de bem lidam com o demônio.

O modo como Gybbon se moveu, arrancando a espada da mão de Callum e segurando-o pelo pescoço, revelou a Alice que as provocações do inimigo haviam esgotado sua paciência.

Lembrando-se do que ele lhe dissera sobre todas as maldades feitas aos seus primos, não ficou muito surpresa. Enquanto esfregava a mão no ferimento do ombro que já começava a cicatrizar, observou Gybbon atirar Callum de encontro a uma árvore.

Naquele momento, o Callum que a violentara e surrara não existia, e em seu lugar via um homem pálido e trêmulo que olhava para a própria morte refletida nos olhos de Gybbon.

— É um tolo, Callum. — A voz de Gybbon era suave. — Se não tivesse violentado Alice, não tivesse procurado matá-la e renegado seu próprio filho, eu poderia sentir um pouco de piedade por você. — Fitou o homem caído que arfava aos seus pés. — Mas, admito... Teve coragem de continuar a perseguição sozinho, depois que seus companheiros foram covardes e desertaram. Agora que está para morrer, eu lhe direi algo sobre aqueles que persegue com tanta obsessão. — Inclinou-se e falou ao seu ouvido.

— Direi por que homens mentirosos continuam tentando capturar um de nós: eles acham que possuímos o segredo da imortalidade. Pouco se importam com demônios, pecados ou Deus; só desejam viver mais.

Gybbon pôde dizer, pelo olhar de Callum, que apenas no momento de sua morte ele percebera que fora usado. Então, não desejando sentir em sua boca o gosto do homem, apenas cortou sua garganta e deixou o corpo cair sobre o solo.

Suspirou. Sabia que matara um ser cruel e violento, e que não seria assombrado pelo rosto de Callum em seus sonhos.

Virou-se para ver Alice se pondo de pé, e limpou a adaga na camisa do inimigo morto. Depois se postou na frente dela. Uma parte de seu ser desejava abraçá-la e se assegurar de que ela continuava viva, mas a outra sentia ímpetos de sacudi-la até que seus dentes chacoalhassem por ter ousado assustá-lo tanto com sua ausência.

Seu coração batia, disparado dentro do peito, desde que havia acordado e se vira sozinho. Então correra pela floresta e deparara com Callum sobre Alice ainda viva.

A ferida que o canalha fizera em seu ombro já cicatrizara, e o medo em Gybbon começou a desaparecer por completo.

—Nunca deveria ter saído do esconderijo sozinha — murmurou com frieza.

— Sei disso, mas precisávamos de comida — ela se desculpou. — Admito que cheguei a pensar que Callum poderia me encurralar, mas logo afastei essa ideia. Parece estranho, mas nem o ouvi se aproximar. Só me dei conta de sua presença quando pulou sobre mim. Creio que estava ansiosa demais pensando em voltar para você. — Baixou os olhos. — Sem dúvida o coelho que cacei não valeu tanto trabalho.

— Não... Porém, se não ficou arruinado durante sua luta, podemos cozinhá-lo.

Era difícil passar um sermão em quem admitia a culpa com tanta simplicidade, pensou Gybbon, esboçando um sorriso.

Passou um braço pela cintura de Alice e a reconduziu para a cripta. Fariam uma refeição e depois partiriam para Cambrun. O último dos Caçadores que os perseguia já morrera, jazia no solo empoeirado, e só seria encontrado na manhã seguinte. Tinham chance de prosseguir viagem em paz.

Aprendera uma coisa com o medo que sentira ao se ver sem Alice: podia tentar se enganar, chamando o que sentia por ela de luxúria, sentimento de posse, necessidade ou qualquer outra coisa, mas a verdade era que a amava.

De algum modo, nos dias que haviam passado juntos, fugindo dos Caçadores, entregara-lhe seu coração. O medo que sentira ao ver que ela desaparecera de seu lado fora algo aterrador. Vira-se no futuro sem Alice, vivendo com tristeza e desesperança.

Isso explicava o fato de ter querido marcá-la como companheira logo de início, concluiu. Seus instintos haviam falado mais alto. Algo em seu íntimo lhe dissera que Alice era sua mulher.

Seu coração tentara lhe explicar que a amava, e que aquilo não era apenas desejo físico, porém ele não aceitara isso de imediato.

Fitou-a com adoração. Desejava dizer o que sentia, o que ela significava em sua vida, mas decidiu esperar até que chegassem a Cambrun. Talvez não houvesse mais Caçadores em seu encalço, entretanto a viagem ainda seria difícil. Era melhor proferir palavras de amor mais tarde.

Com relutância, Gybbon admitiu que não sabia ainda o que Alice sentia a seu respeito. Ela não percebera a marca deixada em seu pescoço que a tornava sua companheira, e era possível que ignorasse seu significado. Entregara-se com doçura e calor e, levando em consideração o que ela sofrera na vida, isso já era muito.

Ele não podia considerar essa entrega como um sinal de amor, contudo. Precisava de mais provas antes de confessar seu amor, embora ignorasse que provas eram essas.

Enquanto cozinhavam e comiam o coelho, Gybbon falou a Alice sobre Cambrun e sua gente. Queria lhe dar uma ideia do lugar e das pessoas antes de transpor os portões da cidade.

Entretanto, quando chegassem a Cambrun, precisaria lhe falar sobre o futuro. O clã veria a marca no pescoço de Alice e saberia... Não podia ter certeza de que todos seriam discretos e não mencionariam o fato a ela.

Antes que alguém revelasse a Alice que ela fora escolhida para ser sua companheira e marcada como tal por toda a vida, ele teria de dizer alguma coisa.

Respirou fundo. Tomara proferisse as palavras certas.

 

Cambrun surgiu em meio à névoa de modo tão repentino que Alice quase gritou. Mas bastou um olhar para sentir a força que emanava do castelo: era enorme, sombrio, e, sem dúvida, pareceria ameaçador para um inimigo.

Esboçou um sorriso. Aquele lugar poderia fazer um homem adulto tremer de medo. Ela, porém, o via como um paraíso e quase chorou ao constatar que as crianças poderiam, por fim, viver sem se preocupar sempre com inimigos e com a refeição seguinte.

— É tão grande! — murmurou, impressionada.

— Sim — concordou Gybbon que, ao ver que não havia medo em seus olhos, sorriu. — E também não é fácil entrar nele.

— Pensei que estivesse me levando para outra caverna e, de repente, a névoa se desfez... — Ela contou, aturdida. — Seus ancestrais escolheram bem o lugar para morar.

— Sim, e Cambrun nunca foi tão necessário como agora.

Enquanto se aproximavam dos portões, Gybbon se esforçou para revelar a Alice sobre o significado da marca que ela agora levava no pescoço, mas as palavras não saíam. Tentara cumulá-la de zelo e carinho nos últimos cinco dias, porém percebia agora não ter confiança suficiente em si mesmo quando se tratava de adivinhar ,o que Alice sentia a seu respeito.

Ignorar se podia ou não entregar o coração a uma mulher que talvez não o amasse o fazia se sentir covarde pela primeira vez na vida.

Mas em breve saberia, refletiu, enquanto seu povo corria a saudá-lo.

Alice ficou atônita com a quantidade de homens bonitos que havia em Cambrun. Desmontou e se acercou de Gybbon, um tanto intimidada, enquanto mulheres também muito bonitas iam se aproximando devagar e se uniam ao grupo das boas-vindas. Todos sorriam e a cumprimentavam com calor, porém Alice só conseguia pensar que nunca poderia reter â seu lado um homem como Gybbon, acostumado com moças tão lindas e refinadas.

— Mamãe!

O som claro da voz infantil pareceu música aos ouvidos de Alice. Olhou em volta e viu Donn, que corria ao seu encontro. Quando ele pulou e se aninhou junto a seus braços abertos, Alice quase desmaiou diante da felicidade intensa que a possuiu. Logo em seguida, as outras crianças estavam a seu lado, agarrando suas saias e falando ao mesmo tempo.

Tudo o que Alice pôde ver em meio às lágrimas que toldavam seu olhar era como estavam todas saudáveis e limpas. Usavam roupas quentes e pareciam nunca ter sentido fome na vida.

Porém, o que mais a emocionou foi que todas sorriam, contentes e ansiosas por lhe contar o que andavam fazendo; até mesmo o compenetrado Alyn.

Após esse início, tudo pareceu acontecer em um turbilhão que a deixou tonta. Só depois que se banhou, vestiu um lindo traje azul, e que a esposa do líder, Bridget, a penteou, Alice conseguiu dizer alguma coisa.

Fitou a mulher, que não parecia ter mais do que vinte e poucos anos, embora soubesse que esta devia ter a idade que sua mãe teria se fosse viva; talvez um pouco mais.

— Milady, Gybbon me contou que a senhora não tem o sangue dos MacNachton. Mesmo assim, não parece nem um dia mais velha do que eu.

Alice esperava que a curiosidade não a estivesse fazendo dizer as palavras erradas, porém não conseguira se calar.

Bridget sorriu com complacência, fazendo-a se sentir mais segura para perguntar:

— É verdade que o sangue dos MacNachton os deixa mais fortes e longevos? E que esse dom pode ser passado aos outros por meio do sangue?

— Sim, e isso nos faz rezar todos os dias e pedir que nenhum Proscrito mau saiba desse segredo — respondeu Bridget.

Alice estremeceu ao pensar nessa possibilidade.

— Vou me unir a essas preces. Se pudéssemos ter certeza de que tal segredo poderia ser compartilhado sem nos causar danos nem colocar nossas vidas em perigo, então seria uma dádiva; porém creio que isso nunca acontecerá.

Bridget sorriu.

— Nunca pensei no problema dessa maneira. Sim, seria maravilhoso se pudéssemos usar esse dom para o bem, porém também acho que nunca será possível. E caso nossos inimigos o descobrissem, correríamos sério perigo. — Seu rosto brilhou de alegria. —- Mas agora que você está aqui e é a companheira de Gybbon, não precisa temer por sua segurança.

Alice engoliu em seco.

— Milady, não sou casada com Gybbon.

Bridget lançou-lhe um olhar de esguelha.

— Talvez não sob as leis da Igreja, mas poderemos resolver isso a seu tempo. De qualquer modo, vocês dois são companheiros. Você carrega a marca feita por Gybbon, e um MacNachton não marca ninguém a não ser sua mulher.

— A marca feita por Gybbon? — repetiu Alice em um sussurro.

— Claro! Por acaso não percebeu?

Bridget ergueu os cabelos de Alice para um lado e tocou a cicatriz em seu pescoço.

— Veja no espelho... Bem aqui. Está vendo?

— Sim, é uma mordida.

Alice não pôde impedir o rosto de ficar corado ao se lembrar do que ela e Gybbon tinham feito. Ele a mordera várias vezes, mas...

Observou a marca com mais atenção.

— Estranho que não tenha desaparecido como as outras.

Bridget suspirou.

— Então ele não lhe contou.

— Contou o que, milady?

Bridget balançou a cabeça.

— Não serei eu a fazer isso, minha querida. É melhor conversar com aquele tolo e resolver isso. Aliás, creio que vou procurar meu sobrinho e trazê-lo até aqui agora mesmo. — Pousou a escova na penteadeira e se dirigiu à porta. — E, Alice, todos nós agradecemos por ter enviado as crianças e por confiar que cuidaríamos bem delas.

Antes que ela pudesse responder, a esposa do líder desapareceu.

Dando de ombros, Alice sacudiu os cabelos para trás e fitou no espelho a marca no pescoço. Deveria ter desaparecido. Gybbon se alimentara dela mais de uma vez, porém apenas aquela marca continuava. Era fraca, mas bem visível para qualquer um. Também não doía, portanto não estava infeccionada.

Então aquela marca a tornava a mulher de Gybbon.

Tal pensamento encheu seu corpo de um agradável calor, já que desejava que isso fosse verdade.

Mas, se fora essa sua intenção, por que ele não lhe contara?

As respostas que a assaltaram sugaram toda a sua alegria. Fora por engano, só podia ser isso. Gybbon não tivera a intenção. Ou fizera a marca, porém se arrependera.

Nesse instante, ele irrompeu pelo quarto e estacou. Alice olhava para a marca em seu pescoço, e o olhar que lhe lançou do espelho era de boas-vindas.

Gybbon suspirou e, fechando a porta, aproximou-se dela com cuidado.

Sua tia o recriminara e com razão. Deveria ter dominado a covardia e dito a Alice o que fizera, oferecendo tudo o que era possível oferecer e esperando não ficar decepcionado.

— Bridget afirma que esta é uma marca de companheira — começou Alice, desencorajada pelo ar culpado que via no semblante de Gybbon. — Ela pensa que estamos unidos.

— E estamos. Essa marca a torna minha.

Alice piscou, aturdida.

Se me marcou, por que não me explicou o significado desse gesto ou me perguntou antes se eu queria ser sua companheira?

Ser a mulher de Gybbon era tudo o que ela desejava na vida, mas não permitiria que apenas luxúria e sentimento de posse o conduzissem a um casamento. Desejava o que seus pais haviam tido: amor. Amava Gybbon e queria que ele a amasse.

Porém, até que tivesse certeza disso, não se deixaria iludir.

— Fiquei surpreso quando notei que a tinha marcado. — Gybbon se ajoelhou diante dela e tomou-lhe as mãos nas suas. — Então pensei que estava feito, que era a vontade do destino, e que iríamos esclarecer tudo quando não estivéssemos tão pressionados, lutando por nossas vidas no caminho para Cambrun.

Ela o fitou em dúvida.

— Mesmo assim... deveria ter me contado.

— Sei disso, e acho que fui covarde.

— Se não queria me contar a verdade, não me venha com essa desculpa esfarrapada de covardia.

Gybbon sorriu sem poder se conter.

— Agradeço por me considerar tão corajoso. Mas sei que nada, além disso, me tornaria um covarde, minha doce Alice. — Fitou-a com seriedade. — Dei vários nomes ao que compartilhamos nos esconderijos, menos o nome certo. — Beijou-lhe as mãos com carinho. -— Paixão, entusiasmo... — Ergueu-se e a beijou no pescoço, sobre a marca.

Apesar dos beijos, Alice sentiu medo. Sabia que quando Gybbon a abraçava, ela perdia o controle e o desejo a envolvia.

Tomou coragem e perguntou:

— E do que deveria chamar o que acontece entre nós?

— Amor.

Gybbon não soube o que pensar quando ela o fitou de olhos arregalados. Os minutos foram passando e, quando já começava a se sentir constrangido e ia exigir que Alice dissesse alguma coisa, uma lágrima rolou pela face macia, e o coração dele pareceu parar no peito.

— Alice? — Limpou a lágrima com o dedo, mas outra, surgiu. — Por que está chorando? É tão terrível assim saber que amo você?

Gemeu quando ela se atirou em seus braços.

— Desejei tanto que viesse a me amar! — disse Alice, as palavras sufocadas, pois pressionava o rosto de encontro ao tórax musculoso. — Amo-o tanto que estava disposta a aceitar menos só para ficar perto de você. Mas saber que me ama também é um milagre.

— Você nunca disse que me amava — ele murmurou. Tremia diante do alívio que sentia. Alice correspondia ao seu amor; era sua companheira em todos os sentidos.

Só sabia de uma maneira de celebrar tamanho milagre, e começou a despi-la.

— É claro que eu não disse — replicou ela. — Não queria que ficasse comigo por piedade ou algo pior.

— O que poderia ser pior? — Enquanto falava, Gybbon ia tirando seu vestido e começava a desamarrar os laços da roupa de baixo.

— Que me mandasse embora se ouvisse de meus lábios que eu o amava.

Gybbon a tomou nos braços e a levou para a cama. Enquanto começava a tirar as próprias roupas, observou-a deitada sobre a coberta, a blusa entreaberta revelando parte dos seios. O desejo o possuiu de maneira avassaladora, e ele tratou de tirar o restante das vestes o mais depressa possível.

Alice relutava em se entregar ao desejo, pois ainda sentia-se uma estranha no castelo suntuoso.

— Gybbon, sua tia avisou que haverá um excelente jantar para nós dentro de uma hora.

Ele não a escutou.

— Creio que a amei desde o primeiro momento, sabia? Foi por isso que a marquei. — Estirou-se a seu lado e começou a beijar os mamilos rosados. — Mas não pensei muito nisso, satisfeito que o destino tivesse me trazido uma mulher que fazia meu sangue ferver. Então... — Deslizou a língua pelos seios arfantes. — Quando fui feito prisioneiro, percebi que era mais do que paixão e sentimento de posse o que sentia a seu respeito. — Com um suspiro, ele começou a distribuir beijos pelo ventre e pernas de Alice. — Quando foi atacada por Callum, e eu acordei e percebi que não estava a meu lado, percebi, por fim, que o que eu sentia era amor. E agora que ouvi a mulher que amo dizer que me ama também, só existe uma coisa que desejo fazer mais do que tudo...

Ela estremeceu com o desejo de tê-lo dentro de si.

— O quê?

Suas palavras terminaram em um gemido enquanto sentia o beijo escaldante entre as pernas. Ficou tão surpresa com a intimidade do ato que não conseguiu se mover. A paixão assumiu proporções gigantescas, impedindo-a de falar com coerência.

Entontecida, mergulhou os dedos nos cabelos de Gybbon e se entregou ao prazer que ele lhe dava até não suportar mais a tensão.

— Gybbon! — gritou, enquanto ele deslizava a boca de novo para seus seios. — Quero ser sua. De corpo e alma.

— Sim, querida, sempre!

Ela voltou a gritar quando ele a penetrou ao mesmo tempo em que cravava as presas em seu pescoço. Quando colocou o pulso de encontro a seus lábios, ela não hesitou e segurou-lhe a mão enquanto se alimentava também, com delicadeza.

No instante em que o gosto do sangue de Gybbon chegou à sua boca, todos os pensamentos desapareceram de sua mente, fazendo-a mergulhar na paixão que só ele podia satisfazer.

Sentindo-se exangue, como se tivesse estado sob o sol por muito tempo, Gybbon por fim rolou o corpo para o lado e a segurou nos braços. Alice também parecia exausta, o que o fez sorrir com orgulho.

Ela lhe pertencia de corpo, alma e mente. Não tinha palavras para descrever o quanto sentia-se realizado e abençoado, e faria de tudo, durante suas longas vidas, para deixá-la ciente do quanto necessitava de seu amor.

— Iremos nos casar assim que minha mãe e minha tia puderem fazer os preparativos — afirmou quando, por fim, teve forças para falar.

— Pode conseguir um padre aqui em Cambrun? — perguntou Alice, imaginando se conseguiria se vestir para o jantar dentro de poucos minutos.

— Sim, é um dos nossos. Pode passar bastante tempo sob o sol e fez seus votos na Igreja. — Beijou-a na testa. — Espero já ter gerado nosso primeiro filho.

Alice sorriu.

— Mesmo já sendo mãe de quatro, assim espero.

Gybbon se lembrou de algo importante e também sorriu.

— Minha mãe descobriu quem são os pais de Alyn. Morreram no caminho de volta para casa, mas o menino possui vários tios e tias, e parece que já estão todos loucos por ele. Agora ela está procurando a família das outras crianças.

Alice se ergueu no cotovelo e o beijou.

— Não sei explicar como me sinto abençoada. E também não entendo como posso estar pensando em comida agora... mas é isso o que acontece.

Gybbon riu e a fez se levantar. Vestiram-se, apesar da vontade de permanecer na cama e nos braços um do outro. Seus estômagos venceram a batalha contudo, e logo Gybbon a conduzia para o grande salão.

Satisfeita após um lauto jantar, Alice bebericou o vinho e analisou os MacNachton à sua volta. Alyn sentava-se junto à sua recém-encontrada família, e ela podia ver como o carinho que os mais velhos lhe dispensavam começava a dissipar a mágoa e dureza nos olhos do menino após tantos anos de privações.

Mesmo que Jayne e Norma ainda não soubessem quem eram seus parentes entre aquelas pessoas bonitas e morenas, estavam sendo recebidas com tanto carinho e afeto que Alice duvidava de que sentissem muita falta de pai e mãe.

O fato de serem meninas que cresceriam para se casar com rapazes MacNachton lhes dava muito valor ali em Cambrun, embora Alice pudesse ver que, apenas por serem crianças, elas já traziam muita felicidade para o clã.

Até Donn, já considerado por todos como filho adotivo de Gybbon, estava sendo acarinhado. Alice sabia que teria de se esforçar para garantir que todos os seus quatro queridos não ficassem mimados demais.

Por seu lado, sabia que ainda precisava vencer certa timidez em relação àquelas pessoas. Mas, a cada momento, sentia-se mais segura e confortável ali. Era difícil conter as lágrimas a cada vez que pensava que agora estava a salvo junto às suas crianças.

Por um instante, a saudade toldou sua grande felicidade: quando pensou que sua própria família poderia estar ali.

Mas tratou de esquecer. Tinha certeza de que seus pais estavam felizes por ela, e isso bastava.

O líder do clã se levantou, e todos fizeram silêncio. Gybbon tomou a mão de Alice na sua e sorriu para ela, a qual, por sua vez, fitou o tio do amado, imaginando como ele conseguira permanecer tão viril e bonito por tantos anos.

— Fomos abençoados esta noite — ele começou a falar e fez uma pausa para sorrir para Alice e as quatro crianças resgatadas. — Trouxemos para nossa casa cinco Perdidos. E o número de pássaros que voltarão ao ninho sem dúvida crescerá. — Passeou o olhar pela audiência. — E já que meu sobrinho teve o bom-senso de tomar como companheira esta moça corajosa, que manteve estas crianças vivas até que pudessem vir a Cambrun, em breve iremos realizar um casamento.

Todos aplaudiram e soltaram exclamações de júbilo, enquanto Alice enrubescia, sentindo as faces pegar fogo. Gybbon a beijou no rosto, porém isso não diminuiu seu embaraço.

Só alguns minutos depois que todos retornaram à conversação normal e à comida e bebida, ela conseguiu se acalmar um pouco.

— Tudo bem agora, meu amor? — Gybbon perguntou com uma ponta de preocupação na voz.

— Fiquei um pouco encabulada ao ver como todos aplaudiram.

— Você é uma heroína para nosso clã — murmurou ele, embora Alice balançasse a cabeça em protesto. — Como disse meu tio, você manteve estas crianças vivas. Uma tarefa e tanto. E todos no clã estão radiantes por terem acolhido tantos Perdidos.

— Estou me sentindo em casa agora — confessou Alice.

— Sim, minha querida, sem dúvida. É isso que estamos celebrando: algo digno do maior regozijo. — Inclinou-se ao seu ouvido, e sussurrou com voz rouca: — Mas estou louco para voltar para a nossa cama e celebrar de um modo mais íntimo.

Alice começou a sentir de novo o desejo invadindo cada centímetro de seu corpo diante das palavras sensuais, e tratou de brincar:

— Pensei que já tivesse celebrado o suficiente.

— Ter você em meus braços nunca será demais.

Ela sorriu diante da simplicidade da declaração e resolveu ser mais ousada:

— Lembra-se de que parte do meu corpo beijou há pouco?

— Claro que me lembro. Foi delicioso!

— Posso beijá-lo assim também?

Gybbon quase engasgou com o vinho.

Alice ainda gargalhava quando ele a tomou pela mão e a arrastou para o quarto. Ela não cabia em si de contentamento. Passara seis longos anos em um verdadeiro inferno na Terra, fugindo, se escondendo e lutando para se manter viva...

Mas agora estava em casa, com um homem que a amava e um clã que a acolhera.

 

 

                                                                  Hannah Howell

 

 

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