Biblio VT
O telefone tocou. Charles Lefferts contorceu-se, como se alguém o tivesse arrepiado com um pingente de gelo.
Ouviu-se uma voz por debaixo do lençol... abafada, furiosa:
- Não respondas.
Ele pegou no auscultador.
- Sim?
Um guincho gaguejado.
Ele agarrou na ponta do charuto.
- Quem é?
A mão debaixo do lençol cravou umas unhas afiadas na sua coxa, depois subiu lentamente, unha a unha.
-A Morte dos Mil Golpes-disse a voz por debaixo do lençol num tom cavo.
A voz ao telefone borbulhou.
- Bob! - rugiu ele. - Bob Cranshaw, por amor de Deus! Como estás?
Uma cabeça pequena, coberta de caracóis louros muito frisados, saltou de debaixo do lençol. Dois olhos azuis, inexpressivos como berlindes, fitaram-no através de óculos de aros de tartaruga.
- Desliga - rosnou ela.
O telefone fez ruídos ansiosos.
Uns dedos frios apertaram-se, sem remorsos. Ele mostrou os dentes, num sorriso de caveira. Ela continuou a agarrá-lo com força.
- Agora não posso falar, Bob - exclamou ele numa voz abafada. As apalpadelas, procurou o isqueiro. - Olha, meu velho, que tal eu telefonar-te amanhã? Talvez nos possamos encontrar. Bob, meu velho! - O telefone continuava a latir.
Ele encontrou o isqueiro. Não funcionava. Virou-o ao contrário e voltou a tentar. Uma pequena chama azul tremeluziu e apagou-se. Cuidadosamente, voltou a pôr a ponta do charuto no cinzeiro.
- Ouve, Bob - disse ele -, por volta do meio-dia. Eu telefono-te, meu velho.
Helen Miley inclinou-se sobre ele e pôs a boca junto ao auscultador. -Volta para a cama, meu branco bonitão - disse numa horrível voz arrastada com sotaque sulista.
O silêncio ao telefone foi ensurdecedor.
- Okay - disse ele rapidamente. - Telefono-te, Bob. Por volta do meio-dia. Adeus, meu velho.
Desligou. Olhou para ela.
- Muitíssimo obrigado - disse ele amargamente.
Ela largou-o, rolou e ficou deitada de costas, a olhar para o vazio.
- Era Bob - insistiu ele. - Bob Cranshaw.
- Olha, meu filho, deixa-te de tretas. Era uma das tuas mulheres ordinárias. Tu sabes e eu sei e Deus sabe.
Ele ergueu o queixo e olhou para ela severamente. Ele era mesmo um biltre, decidiu ela.
- De agora em diante - fungou ele -, quando eu estiver ao telefone, agradecia que não me mexesses dessa forma revoltante.
Ela sentou-se, encostou-se à cabeceira da cama, cruzou os braços sobre os seios atrevidos.
- Uma apalpa-tomates - disse ela, num tom inexpressivo. Meu Deus, acho que me estou a tornar uma apalpa-tomates.
- Oh, minha querida - gemeu ele. Abraçou-a. Levou a língua maravilhosamente astuta ao seu nariz, às suas orelhas, aos seus mamilos cor-de-rosa e ao seu umbigo sorridente.
- Filho-da-mãe - exclamou ela.
Ele saltou da cama, correu para a cómoda, olhou-se ao espelho e gritou:
- De pé, todos de pé! Todos a postos para a corrida da batata! Vamos! De pé!
Ela olhou para ele friamente.
- De pé, sem dúvida-assentiu ela. - E exactamente assim que o estou a pôr. De pé.
- vou fazer-te outra bebida - disse ele, esperançosamente. vou fazer de Chuck Mangione. Queres tomar um duche primeiro?
- Oh... talvez não me levante - disse ela numa voz sonhadora.
- Talvez decida tornar-me um problema. Posso ficar aqui deitada e deixar que tu tentes pôr-me a andar. Talvez venha viver contigo. Talvez guinche e grite, até alguém chamar a Polícia. Talvez te destrua a casa toda, despeje os teus frascos de especiarias e te parta as máscaras africanas. Ou talvez engula alguns comprimidos para dormir e fique inconsciente.
Ele olhou horrorizado para ela, a choramingar baixinho:
- Mas por que é que havias de querer despejar os meus frascos de especiarias?
- Oh, meu Deus - suspirou ela. - Onde é que estavas quando distribuíram a inteligência? Não me digas... eu sei. Estavas à espera na bicha, no barracão das ferramentas.
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- Oh, bacon com ovos - cantarolou ele. - Bacon e ovos e torradas e compota e litros e litros de café. Vamos! Vamos morfar!
Ela começou a chorar, com a cabeça inclinada, escondida nas mãos. Os seus ombros estremeciam. Uma tosse rouca saía dela. Subitamente, ela pensou numModel que o
avô tivera. AhOOOgah, fazia a buzina,AhÕOOgah. Ele sentou-se na cama. Abraçou-a. Tocou-lhe nas orelhas, a provocá-la, beijou-lhe os lábios timidamente, passou ao
de leve e carinhosamente uns dedos delicados pelas costas nuas.
- Querida, querida, querida - ronronou ele. - Não chores. Dói-me ver-te chorar.
- Quero morrer.
- Claro que queres, querida - disse ele, assentindo.
Ela endireitou-se e olhou fixamente para ele. Franziu a cara num sorriso meio idiota.
- O grande amante - disse ela, num tom azedo. - Por amor de Deus, vai pôr pó de talco nos sovacos.
Ela ouviu-o no duche, a cantar Mammys little baby loves shortniríbread!, e pensou quantas assinaturas seriam precisas numa petição para um homem ser dado como interdito.
Acendeu um cigarro, esparramada no lençol de cetim fúcsia. Pôs duas almofadas atrás da cabeça e olhou para baixo, para o seu corpo nu. Gracioso, esguio, de linhas puras.
- Tu tem-no, miúda - suspirou ela. - Agora, só precisas de encontrar um homem que o queira.
Quando foi a vez de ela de tomar duche, a casa de banho estava cheia de vapor e todas as toalhas estavam húmidas. Sujeitou-se e ainda pensou em despejar todas as águas-de-colónia, loções e pós no lavatório. Contentou-se em utilizar a ponta do alicate das unhas dos pés para abrir um buraquinho no fundo do tubo da pasta de dentes. Quando ele apertasse... uau!
Vestiu-se rapidamente. Vestiu um soutien insuflável que comprara por catálogo a uma empresa chamada Paris, France, Fashions, Inc. de Lobo, Arkansas. Tinha um pequeno furo na caixa esquerda, dando-lhe um ar depravado e assimétrico. Depois, vestiu os collants de malha larga que faziam que as pernas parecessem um mapa das estradas Rand McNally. E uma camisa Qiana brilhante, que se colava ao seu belo rabo. Rasgou a boca com bâton cor de ameixa e estalou os lábios. Tufou os caracóis louros e ficou pronta para o Destino.
Trinta minutos depois, estavam sentados num restaurante na Sexta Avenida. A empregada conhecia Charles Lefferts e pôs a conta à frente de Helen quando serviu o café.
- Oh, não! - disse Helen quando ele fez um gesto inconsequente na direcção da conta. - Deixa-me pagar. Recebi ontem. Além disso, tu deste-me duas bebidas e uma ameixa.
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- É verdade - assentiu ele satisfeito.
- Tenho de te voltar a telefonar um dia destes - disse ela, a forçar a sorte. Uma noite com ele equivalia a duas semanas na terra-do-nunca-mais.
- Oh, claro! Quando quiseres. Mesmo que não possa estar contigo, podemos dar dois dedos de conversa.
- Ao telefone? - perguntou ela. Mas ele não percebeu.
- bom, tu sabes...
- Charles, eu compreendo - disse ela a sorrir e dando-lhe umas palmadinhas na mão. - Compreendo de radículas e assadura de fraldas.
- Queres um táxi?
- Claro - disse ela alegremente.
Ele correu para o meio da Sexta Avenida e mandou parar um táxi. Tentou dar-lhe dinheiro para a corrida, mas descobriu que tinha deixado a carteira em casa.
Enfiou a cabeça pela janela.
- Telefona-me rapidinho - cantarolou ele. Ela assentiu. Ela não olhou para trás.
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O corpulento Spaniel branco-sujo estava a dormir à entrada do quarto. Respirava em arranques ásperos e asmáticos que lhe faziam estremecer os lábios. De vez em quando gemia, e o seu rabo cortado mexia.
Uma chave rodou na porta da rua. Rocco levantou a cabeça, bocejou, pôs-se de pé aos tropeções e foi ao hall, investigar.
Helen Miley entrou, bateu com a porta e foi logo à casa de banho.
- Meu querido Rocco, meu lindo - disse ela -, tenho os dentes de trás a flutuar.
Rocco foi a cambalear atrás dela para a casa de banho. Ficou parado a bocejar e a espirrar. Esperou até ela puxar o autoclismo, depois pôs as patas no assento e lambeu a água limpa que borbulhava na retrete.
- Precisas de fazer isso? - perguntou-lhe Helen. - Precisas? Foi para o quarto, despiu-se rapidamente, vestiu um robe de
turco branco. Tinha Killer Miley bordado nas costas, a linha vermelha. Preparou um uísque com água na cozinha e levou-o para a sala. Foi direita à gaiola do periquito
e puxou a coberta. O pássaro verde-azulado encolheu-se, fugindo dela.
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- Olha lá - rosnou Helen -, paguei quarenta e cinco e noventa e oito por ti e sessenta pela gaiola. Agora fala, maldito.
O pássaro encolheu-se num canto e virou-lhe a cabeça. Ela desistiu e atirou-se para cima do sofá. Rocco saltou para junto dela e tentou lamber-lhe a cara. Era muito velho e tinha mau hálito. Helen afastou-o e bebeu um grande golo de uísque.
- Seu patife malcheiroso - disse ela. - Gostas de mim?
Ele começou a arfar, mostrando uns dentes enferrujados e uma língua que era quase preta.
- Claro que sim! - Helen sorriu. - Como é que podias não gostar? Sou adorável.
Deitou um bocado do uísque num cinzeiro pouco fundo. Pô-lo debaixo do nariz de Rocco. Ele lambeu-o muito devagar, arrotando de vez em quando.
- O filho-da-mãe-disse ela. - O filho-da-puta daquele nojento apanhador de algodão. Sabes o que é que me apetecia fazer, Rocco? Pegar-lhe por um dos tornozelos, tu pelo outro, e arrastarmo-lo por cima de uma paliçada. - Deu uma risadinha maldosa. - A ele e ao seu maldito Bob Cranshaw - acrescentou amargamente.
Rocco acabou de beber e foi-se enroscar ao canto do sofá. Ficou deitado a arfar, a observá-la com olhos ramelosos.
- Por que é que eu lhe telefonei? - perguntou ela. - Por que é que os salmões sobem o rio para desovar? Telefonei-lhe porque estava aborrecida. Sentia-me só porque há muito tempo que não ia para a cama com um homem. Ele tem um belo corpo, verdadeiramente belo, e é um tigre na cama. Mas é tão despassarado. Oh, meu Deus, como fui horrível. Horrível. - Fez uma careta, abanou a cabeça. - Telefonei-lhe. Rocco, telefonei-lhe!
Bebeu outro golo.
,- Por que é que lhe telefonei? Porque estou farta até aos cabelos de passar as noites a ler livros de merda e a ver filmes pornográficos ou a ver o Incrível Hulk ou a ir a bares estranhos com Peggy. Foi por isso. Gosto de homens. Que raio, gosto de estar com homens. Oh, Rocco, que loucura, não fazes ideia. Mas tão despassarado!
Foi à cozinha reabastecer-se e trouxe um biscoito de cão para Rocco.
Ele cheirou-o, lambeu-o uma vez, deitou a cabeça nas patas e voltou a adormecer.
- Tenho a cabeça a rebentar-disse-lhe Helen. - Está a rebentar pelo meio. Juro por Deus, Rocco, está a abrir ao meio como uma cebola velha.
Encostou a cabeça para trás e fechou os olhos.
- Filho-da puta - resmungou. - De pé. Vamos. Todos prontos para a corrida da batata. Palhaço.
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Sentia o sono chegar. Bebeu rapidamente o resto do uísque. Dirigiu-se à gaiola do periquito.
- Mais um dia -jurou ela. - Amanhã ou falas ou é o teu fim. Ou me dizes qualquer coisa simpática ou dou-te a Rocco. Ele mastiga-te e cospe-te por cima da cerca esquerda do campo.
O periquito voltou a encolher-se a um canto da gaiola. Ela voltou a pôr a coberta. Foi à casa de banho e tomou quatro aspirinas e um Librium.
Rocco foi aos tropeções atrás dela para o quarto. Enroscou-se no seu cobertor, deitou a cabeça e começou a ressonar.
- Meu querido Rocco, meu lindo - murmurou Helen Miley. Boa noite, querido.
Tirou o robe e deslizou nua para dentro da cama. Era uma cama de casal com duas almofadas. Fechou os olhos. Recitou em silêncio a oração que começava com "Meu Anjo
da Guarda..." Terminou, pedindo a Deus para abençoar os irmãos e as suas famílias, Peggy Palmer, Rocco, todos os homens que ela tinha amado, o periquito, um estranho
que lhe tinha sorrido de um autocarro na Madison Avenue há dois anos e que ela nunca esquecera, os seus pais já falecidos e finalmente.. depois de alguma reflexão...
também pediu a Deus para abençoar Charles Lefferts e fazer que ele lhe telefonasse de vez em quando.
Deitou-se de costas, com um braço por cima da outra almofada. Passado um bocado, virou-se de lado, puxando a outra almofada contra os seios. Amachucou-a e abraçou-se a ela. Depois, puxou-a para baixo e entalou-a entre as pernas.
Mesmo antes de adormecer, disse:
- Por favor!
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O seu nome era Jo Rhodes. Era, na realidade, Joseph Rhodes, mas ele mudou-o para Jo, um dia, quando estava a ler um dicionário e descobriu que Jo era um termo carinhoso em escocês.
Quando Joseph Rhodes conhecia pessoas, estas perguntavam-lhe:
- Por que é que chamas a ti próprio Jo? Ele dizia:
- Um Rhodes, com qualquer outro nome, cheiraria igualmente bem. - E elas ficavam a olhar para ele.
Ele era um homenzinho enérgico que fumava Gauloises (azuis),
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ferozmente, uns atrás dos outros, e que dizia de vez em quando: "VaIha-me Deus!" Tinha uma franja de cabelo branco em volta de um crânio pontiagudo, usava umpince-nez
preso à lapela com uma fita preta e, num ano em que todos os homens de Nova Iorque se encharcavam em Stud, Brute, Stallion e King Kong, Jo Rhodes usava Lilac Vegetal
de Ed. Pinaud.
Helen Miley estava na galeria de retratos, no andar de cima da Historical Society de Nova Iorque, na Setenta e Sete e Central Park Oeste.
Parou à frente de um retrato com 150 anos, que parecia mesmo Don Ameche, e riu-se.
Uma voz ofegante junto ao seu cotovelo disse:
- Parece mesmo William Powell, não parece?
- Não - disse ela, sem se virar -, é Don Ameche.
- Ah, sim! - disse ele. - Don Ameche. Claro!
Ela virou-se, inclinando a cabeça para trás para olhar para o homem que estava a falar com ela. Depois, olhou em volta. Ele era alguns centímetros mais baixo do que ela e não podia, de certeza, pesar mais. Vestia um fato de flanela cinzenta de corte impecável, mas com algumas nódoas de comida e de vinho no colete assertoado, a estragar o efeito. Tinha uma minúscula rosa cor-de-rosa na lapela.
Uma hora depois, estavam sentados num restaurante italiano mal iluminado, na Rua Setenta e Dois Oeste, a beber vinho branco gelado que vinha numa garrafa verde com a forma de um peixe.
- Adoro a garrafa e adoro o vinho - disse Helen Miley -, mas é estranho beber vinho que sai da boca de um peixe...
Jo Rhodes sorriu misteriosamente e tocou-lhe na mão. Fez sinal ao dono, e seguiu-se uma longa conversa em staccato, em italiano, que Helen não entendeu. As suas vozes ergueram-se até estarem quase a gritar. Depois, Jo Rhodes levantou-se e os dois homens abraçaram-se e beijaram-se na face. Helen achou isto ligeiramente divertido.
Ele acendeu Gauloises para ambos e disse:
- Encomendei o seguinte: pedacinhos de filet mignon e pedacinhos de camarões cozinhados em vinho tinto. Além disso, para ambos, uma dose de esparguete alla õlla. E para cada um uma salada de alface romana e cogumelos de conserva, temperados com azeite e vinagre.
- Amo-te! - disse ela.
Para um homem tão pequeno, ele tinha um apetite enorme. Ela observou-o, fascinada, enquanto, com grande economia de movimentos, ele ia limpando todos os pratos (rapando o molho com pedaços de pão com crosta estaladiça) e consumia, pelo menos, dois terços da garrafa de Valpolicella. Depois, limpou delicadamente os lábios com
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o guardanapo, mas esfregou vigorosamente o seu bigode branco à Adolphe Menjou.
-Tira a cera-reconheceu ele -, mas tenho de me livrar do alho todo para o caso de mais tarde me quereres beijar.
Ela estava encantada com ele.
Ele pediu café expresso e conhaque para ambos, explicando que o seu médico lhe recomendara um ou dois brandes por dia, por causa do seu problema de coração. Depois bebeu quatro conhaques e disse:
-Assim, já não tenho de beber nenhum amanhã. - Mas ela não acreditou nele.
Ele vivia no último andar de uma casa com fachada de pedra de Murray Hill... mas que era mais um estúdio do que um apartamento. Ele era, explicou, fotógrafo de moda e de retratos, na "semi-reforma".
Havia uma grande sala caiada, um aquário de luz, que cheirava bem e a lavado. O soalho era antigo, de tábuas largas e muito bem enceradas e polidas. Biombos de bambu dividiam a sala ao meio. A parte da frente tinha a bênção de ter janelas do chão ao tecto. Era ali que tinha o seu material fotográfico, incluindo uma enorme máquina fotográfica de estúdio, num tripé massivo. Amáquina fotográfica, em si, era uma caixa de madeira com juntas em bronze. Havia lá máquinas mais modernas, luzes, reflectores, cenários, rolos de papel de cenário num arco-íris de tons que feria a vista.
A parte de trás desta enorme sala, a zona de habitação, estava surpreendentemente mobilada com peças modernas... aço e plástico, cromado e vidro. Até uma cadeira insuflável e uma otomana.
- Quando a minha mulher morreu - disse ele -, desfiz-me de tudo. Tínhamos algumas peças magníficas... hoje valeriam uma fortuna. Mas eu não quis ficar com nada. Vendi tudo. Agora, redecoro a casa de três em três ou de quatro em quatro anos. Tento manter-me actualizado.
- Quando é que a tua mulher morreu?
- Oh - disse ele num tom vago -, há anos!
Havia um pequeno quarto, uma casa de banho, ainda mais pequena, e uma cozinha surpreendentemente grande... suficientemente grande para ter uma mesa corrida e quatro cadeiras. Havia suportes de parede com tachos e panelas de cobre, um frigorífico-arca congeladora moderno, um forno eléctrico.
- Não gosto - disse ele, irritado. - Não cozinha tão bem como os de gás. Nunca se consegue regular bem esta coisa.
Ele tinha uma garrafa de champanhe da Califórnia a gelar, e beberam-na, sentados num sofá de couro e aço polido, pondo os copos numa placa de vidro que parecia estar
a flutuar no ar.
Ele mostrou-lhe uma gorda pasta com as suas fotografias, todas a preto e branco, todas caracterizadas por uma suavidade romântica,
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como se tivessem sido tiradas à luz da vela ou através de uma tela de gaze de algodão. A maioria era fotografias de moda que tinham aparecido na Vogue e naHarpers Bazaar, durante os anos 30. Ele também tinha feito bastantes trabalhos para uma revista já desaparecida chamada Stage, e havia muitas fotografias assinadas de Bert Lahr, Norma Shearer, W. C. Fields, Gertrude Lawrence e muitos outros. Pareciam todos incrivelmente jovens.
- Conheceste todas estas pessoas? - perguntou-lhe ela.
- Oh, sim - disse ele baixinho. - Sim, conheci-as.
- Deves ter tido momentos maravilhosos.
-Acho que sim - disse ele, intrigado -, mas as recordações são tão enganadoras... Lembramo-nos dos momentos bons e não nos conseguimos lembrar dos maus. Tenho a certeza de que passei muitos maus bocados nesse tempo, mas não me lembro de nenhum.
Ele guardou a pasta e voltou a encher-lhe o copo.
- Gostava muito de te fotografar, Helen - disse ele. "Ah-ha!" pensou ela.
- Nus? - perguntou.
- Valha-me Deus! - exclamou ele. - Claro que não! Retratos. Cabeça e ombros. Tens uma cabeça de rapaz grego. Mais ou menos século quarto. Esses caracóis louros são primorosos. Contra um fundo preto, creio. Um dia... quando tiveres tempo.
-Está bem-disse ela, contente.-Gostava muito. Há anos que não tiro um retrato.
O Sol tinha mudado de posição. O estúdio estava menos claro... ligeiramente. A luz era mais ténue, mais pálida. A luz suave acariciou Helen, envolveu as suas pernas nuas.
"Não é uma mulher bela", decidiu ele. "Talvez nem sequer bonita. O seu queixo é demasiado audacioso." A formosura do seu rosto era acentuada pela forma como usava o cabelo. Mas era um rosto forte, com uma expressão determinada. O tempo ajudaria. O tempo esculpiria rugas e golpes, cortes e marcas. Ele tinha a certeza de que aquele rosto envelheceria bem, que se tornaria doce, trocista, velho...
O corpo era bom. O corpo parecia tão flexível como turfa nova. Ela estava túrgida de seiva e mexia-se bem. Ele achou que ela teria uns
35 ou 36 anos. Por aí. A pele era fina, sem marcas.
Ele já tinha admirado a curva gorducha do seu rabo na Historial Society de Nova Iorque.
- Deves pesar quase tanto como eu - disse-lhe ele.
Ela virou-se e sorriu-lhe. Depois tirou os sapatos, sentou-se mais para trás no sofá e enfiou os pés debaixo do corpo. Ficaram ali sentados, lado a lado, com os braços quase a tocarem-se.
- Aposto que te bato por cinco quilos, querido - disse ela. Tinham de te arrancar do tecto.
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Ele riu baixinho e deu uma palmada no joelho.
- Pode bem ser - disse ele. - Pode bem ser.
Ergueram os copos para beber. Uma gota de champanhe gelado deslizou do copo de Helen, descendo pelo decote do seu vestido de linho, por entre os seios, descendo, descendo, descendo...
- JEE-rusalém! - exclamou ela, e ele sorriu-lhe. Ficaram sentados em silêncio durante alguns momentos, sem quererem mais nada.
- Não és casada? - perguntou ele... e depois teve vergonha de si próprio, quando viu o rosto dela gelar.
- Não.
- Não entendo isso.
- Tenho azar com os meus homens.
- Sim. - Ele assentiu tristemente.-Por exemplo, com velhos...
Ela virou-se e olhou para ele com um ar muito sério. Depois, inclinou-se para a frente e beijou-lhe os lábios e o seu bigode à Ádolphe Menjou. A boca dela era quente, molhada da bebida, e tão doce que ele fez um ruído na garganta: um pequeno gemido, um soluço.
Ela endireitou-se e piscou-lhe o olho.
- Este não foi por nada - disse ela -, portanto, tem lá cuidado, amigo.
Ela viu-o herdar o mundo. Ele alisou o bigode, primeiro com o nó de um dedo e, depois, num assomo de bravata, revirar as pontas.
- É importante não esperares demasiado - disse ele.
- Eu sei. - Ela assentiu. - Passo a vida a dizer isso a mim própria. Uma fatia do bolo. Não o bolo todo. Só uma fatia.
- Sim. Só uma fatia.
O pequeno quarto tinha uma clarabóia. Pareceu-lhe que a luz do entardecer era violeta, suave, talvez perfumada. Ela levou o copo e o resto do champanhe consigo e ele passou para um pequeno balão de conhaque.
Ele sentou-se na beira da cama de bronze brilhante, a beber o brande em pequenos golos, a observá-la com admiração, enquanto ela se despia.
Riu, encantado, quando a viu nua. Vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Tirou opince-nez e deixou-o ficar pendurado.
- Oh, oh, oh - tartamudeou ele. - Tão lindo.
Ela encostou-se à cabeceira fria da cama de bronze e puxou o lençol de cetim até à cintura. Bebericou o champanhe e não se ralou.
- Donde és, Helen-perguntou-lhe ele. - Pelo teu sotaque, diria que és do Middle West. Não de Nova Iorque. Diria Indiana.
- Perto - disse ela -, mas sem charuto. Oaio.
- Há quanto tempo vives cá? Quando é que vieste para Nova Iorque?
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- Oh, querido! - Ela suspirou. - Olhar para trás é coisa de burros. Quero dizer, a maneira mais segura de uma pessoa se chatear é pensar como as coisas eram e o que teria feito de forma diferente, se pudesse voltar atrás.
- Sim - disse ele com admiração -, é verdade.
Ele tirou o casaco e o colete e pendurou-os nos braços polidos do cabide de pé.
- Quando saí de Oaio e vim para Nova Iorque, conheci um homem que estava na tropa...
- Quando é que foi isso?
- Oh... não me lembro ao certo... por volta de 1971 ou 1972... por aí. Ele estava a fazer treinos para ser piloto na Força Aérea, quando o conheci. Depois, foi promovido a tenente. Eu estava apaixonada por ele, e sempre que ele vinha a Nova Iorque ficava comigo. Isto durou um ano. Ele era de Boston e eu só soube que ele era casado na noite em que o mandaram para o estrangeiro.
- Como é possível ser íntima de um homem durante um ano e não saber que ele é casado?
- bom, não acho bem fazer esse tipo de perguntas a um homem. Se eles quiserem que eu saiba, então deixo que mo digam. Além disso, não teria alterado nada. Eu amava mesmo o tipo, portanto, quando ele me disse que era casado, eu disse que estava bem, que eu é que tinha enfiado o barrete.
- Ou a mulher.
- Sim... ou a mulher. Ele disse que a mulher não o comprendia, e eu ri-me disso. Disse que queria que eu esperasse por ele e que, depois de regressar do estrangeiro, se divorciava da mulher e casava comigo.
Ele baixou-se para desapertar os sapatos, e a sua voz estava abafada.
- Acreditaste nele?
- Achei de gritos! Disse-lhe que tínhamos passado bons momentos juntos, muito bons, e que eu teria gostado de saber que ele era casado, mas que isso não alterava nada. Foi isso que lhe disse. Ele jurou-me que, se eu esperasse por ele, se divorciava da mulher e casava comigo. "Pois sim", disse eu.
- Então, depreendo que não esperaste por ele!?
- Depreendes bem. Nem sequer respondi às cartas dele. Para o Diabo. Depois, soube que tinha voltado e que se tinha divorciado da mulher para se casar com uma mulher que conhecera há uma ou duas semanas.
- Lamento, Helen.
- Lamentas o quê? Mas serve de lição. Acho que, se nessa altura eu soubesse o que sei agora, teria esperado por ele. Mas, como disse,
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de que é que adianta olhar para trás? Só serve para uma pessoa se chatear.
Ele meteu formas dentro dos sapatos e colocou-os muito direitos debaixo da cama.
- Vieste directamente de Oaio para Nova Iorque?
- Exacto. Estava a trabalhar como secretária de um gerente em Lower Hotchkiss. É a cidade onde nasci. Fica perto de Toledo. Ele não era mau tipo... médio, diria. Todos os dias de pagamento andava atrás de mim à volta da secretária e, mais ou menos uma vez por mês, eu deixava que ele me apanhasse. Eu estava farta de Lower Hotchkiss. Ele tinha mulher, uma boa casa e dois filhos. O filho dele era da minha idade, mas nunca o conheci. A mulher do tipo tinha um cancro. Morreu disso, e ele ficou destroçado. No dia em que a enterrou... nessa noite, isto é... pediu-me para passar toda a noite com ele num motel, e eu passei. Mas foi o fim para nós. Ele nunca mais quis dormir comigo. E eu vim para Nova Iorque logo a seguir.
Ele bebeu um golo de conhaque e, lentamente, muito lentamente, começou a desapertar as ligas.
- Que fazias antes de seres secretária?
- Antes disso, andei numa escola comercial a aprender dactilografia e estenografia. E fazia uma perninha numa tasca.
- Eras empregada de restaurante?
- Que raio, querido... estou a falar esquimó ou quê?
- Só quero ter a certeza de que te entendo, Helen.
- Sim, era empregada de restaurante. Se uma rapariga quiser aprender a lidar com homens, sugiro que trabalhe como empregada de mesa. Em primeiro lugar, uma pessoa
habitua-se de tal maneira a ver os homens a comer que isso deixa de enojar.
É muito importante para qualquer rapariga que um dia queira ter um casamento feliz. Segundo,
também se aprende a distinguir quando um homem está a fazer uma proposta a sério ou quando é só garganta. No Kitty Kat, a maioria era só conversa... noventa por cento.
- Achas que essa proporção é válida para os homens em Nova Iorque?
- Em Nova Iorque talvez seja noventa e cinco por cento. Mas vamos falar um pouco de ti, Jo. Que tipo de vida tiveste?
- Oh, não! - protestou ele. - Estou a achar isto fascinante. A minha vida tem sido monótona, comparada com a tua. Muito mais longa, mas não tão cheia. Por favor, conta-me mais.
Ele enrolou as meias de seda em pequenas bolas e meteu-as dentro dos sapatos.
- Está bem-disse ela, dobrando os joelhos e abraçando-os. vou confessar-te tudo. Há anos e anos que não penso nestas coisas. bom... conheci muitos tipos no Kitty Kat e diverti-me bastante.
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- Houve algum homem em particular?
-Houve alguns por quem me interessei por esta ou aquela razão. Joe Fossley... era dono de uma garagem. Era um homem mais velho, tinha quase idade para ser meu pai.
- Gostas de homens mais velhos?
- Homens mais velhos? Claro. E homens mais novos e todos os que estão no meio. Que é que a idade tem a ver com isso? Depois, houve Eddie Case, um rapaz com quem eu andei no liceu. Trabalhava na loja de móveis do pai e tinha um carro. Passámos bons momentos juntos, mas não foi nada sério. Eddie não pensava casar... estava à espera de ser chamado para a tropa. Depois, houve um caixeiro-viajante que aparecia ocasionalmente. O seu nome era Smith... John Smith. Sei que parece um nome falso, mas ele chamava-se mesmo John Smith. Mostrou-me a certidão de nascimento, carta de condução, tudo.
Ele tirou os botões-de-punho de ouro dos punhos da camisa às riscas e meteu-os cuidadosamente numa pequena caixa de couro que estava em cima da cómoda de carvalho. Começou a desapertar, lentamente, a gravata. Helen observou-o, confundida com o seu ballet.
- E que tipo de homem era esse John Smith?
- Estranho. Verdadeiramente estranho. Tinha uns quarenta anos, era um tipo gorducho, meio careca, com dentes postiços. Estava separado da mulher.
- Que tinha ele de estranho?
- bom, Johnny parecia mesmo um caixeiro-viajante. Quero dizer, estava sempre a trocar anedotas com os homens que iam ao restaurante e andava com canetas de tinta permanente e charutos no bolso da frente do casaco e era extrovertido e gostava de beber. Mas, depois, saí com ele e ele mudou por completo. Foi discreto e carinhoso
e muito terno. Foi apenas um tipo simpático... um tipo muito simpático. Metemos pela auto-estrada e passámos a noite num motel, e olha, filho, este tipo foi o maior. Aquele tipo gorducho, quase careca e com dentes postiços era realmente qualquer coisa. Ensinou-me o que podia ser o sexo.
Jo Rhodes fez uma pausa, com a camisa semidesabotoada.
-Não estás apenas a dizer isso para eu me sentir mais confiante?
- Um tipo que engata uma rapariga com metade da sua idade na Historical Society de Nova Iorque precisa de um empurrão? Não sejas tolo. Não, o que eu estou a dizer é que desde os meus nove anos que saio com rapazes. Quando conheci Johnny, já sabia qual era o resultado. Um a zero. Mas isso nunca significou nada. Era como coçar uma grande baba feita por um mosquito... sabes? Mas para Johnny tinha significado. Na realidade, era toda a sua vida... a única coisa para a qual ele vivia. Ele mostrou-me o que podia ser. Aprendi muito
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com ele, mas mais do que apenas sexo. Isso é apenas uma palavra. Johnny foi o primeiro homem a sério com quem dormi, que me fez sentir que eu era desejada, que eu
era precisa para completar um tipo. Não apenas uma mulher qualquer, mas eu. Percebes o que digo? Ele passou os braços por debaixo das tiras dos suspensórios de seda,
tirou a camisa e sacudiu-a. Depois, pendurou-a na maçaneta da porta do roupeiro. Tinha uma camisa interior de pano cru, leve, com mangas curtas e três botões à frente.
- E que fazias antes de te teres tornado empregada de mesa no KittyKat?
- Antes disso? bom, já tinha saído do liceu há cerca de um ano. Estava em casa a ajudar a minha mãe. Ela andava adoentada, desde a morte do meu pai. Tenho três irmãos,
todos mais velhos do que eu. Alfred era casado e vivia na Califórnia. Earl... é o do meio... está no Exército. É capitão. Lewis... o mais novo... acabou o liceu
um ano antes de mim. Estava no Banco. Era assim que vivíamos... com o que Lewis ganhava no Banco e com o dinheiro do seguro do meu pai. E, por vezes, Earl mandava-nos
dinheiro do seu vencimento do Exército.
- Tiveste uma infância feliz?
- Oh, sim! Tive. Muito feliz. Vivíamos numa quinta perto de Lower Hotchkiss. Antes de o meu pai morrer, ele e o meu tio... o irmão do meu pai... geriam a quinta, e os meus irmãos ajudavam. Sim, era bem divertido. O meu pai e o meu tio eram trabalhadores, mas também gostavam de se divertir. Gostavam de dar à língua. Estavam sempre a pregar partidas.
- Que tipo de partidas?
- Oh, Santo Deus, Jo! Devo estar a maçar-te com estas tretas.
- Não, não estás. A sério que me dá muito prazer... Quero saber tudo a teu respeito. Por favor, não pares.
- Está bem. Tu sabes o tipo de partida que os camponeses pregam. Um dia, o meu tio trouxe-me um coelhinho da cidade. Um coeIhinho branco. Eu não sabia, mas ele tinha comprado mais quatro coelhos brancos, cada um ligeiramente maior que o outro. Todas as manhãs, durante quatro dias, ele ia à cave às escondidas e tirava o meu coelhinho do caixote de laranjas e punha lá outro maior. Todos os dias o meu coelhinho ficava maior. Eu estava tão excitada por ele estar a crescer tanto que peguei nele e fui mostrá-lo aos vizinhos. Depois dele ter crescido até ao tamanho de um coelho adulto, em quatro dias, ele inverteu a manobra e o meu coelhinho começou a ficar cada vez mais pequeno. Jesus, eu não sabia o que estava a acontecer e estava com medo de que ele ficasse tão pequeno que desaparecesse. Depois, quando comecei a chorar, o meu tio abraçou-me e beijou-me e contou-me o que tinha feito e deu-me os coelhos todos. Eram partidas deste género.
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Ele puxou a camisa interior por cima da cabeça. O seu tronco era magro, branco e sem pêlos. Os seus mamilos pareciam duas pequenas rosas cor-de-rosa. Helen ficou
encantada.
Ele tirou um robe castanho de seda do armário, vestiu-o, apertou o cinto e começou a tirar as calças e as cuecas por debaixo do robe.
- Talvez eu não esteja a explicar-me bem, mas era um lar muito feliz. Muito feliz. Os meus pais gostavam de receber pessoas em casa. Todos os domingos à tarde, juntava-se
um grupo para jantar... na relva, se o tempo estivesse bom. As pessoas traziam coisas. Feijão cozido, salada de batata, salada de pepino, tartes de noz, um bolo de chocolate recheado, talvez um grande fiambre. Cada mulher trazia a sua especialidade. Sabes? O meu tio tocava bandolim e o meu irmão Earl tocava guitarra. Era muito divertido. Os meus irmãos convidavam as namoradas. Era agradável. Cantávamos canções. Ninguém sabia o que ia acontecer.
- Que aconteceu?
- bom, o meu pai e o meu tio foram à cidade fazer um pagamento ao Banco. Imagino que beberam uns copos. No caminho de volta, estamparam-se com a nossa carrinha Ford. Morreram ambos.
- Amavas o teu pai?
- Oh, meu Deus, sim! Muito. E o meu tio também. Eram ambos grandes homens. Homens a sério... sabes? Diferentes do tipo de homens que encontro em Nova Iorque.
- Sim. Posso imaginar.
- Não, não podes imaginar. Não podes, a menos que sejas mulher. Eles eram homens a sério. Nem sequer os meus irmãos são como eles. Um pouco, talvez, mas não são
como eles. Acho que já não há homens assim. Oh, merda, de que é que adianta estar a falar!?
Ele pousou o copo de brande na mesinha-de-cabeceira. Depois, num movimento rápido e hábil, tirou o robe, deixou-o cair no chão e deslizou, nu, para debaixo do lençol, junto dela, mas não lhe tocando. Aconteceu tudo tão depressa que ela nem sequer conseguiu olhar para ele. Ele era apenas um rápido fantasma branco. Ele acendeu um Gauloises, mas ela fumou um dos seus cigarros com filtro.
Já estava mais escuro. Através da clarabóia, ela pensou ver uma estrela. Sopraram grandes plumas de fumo na sua direcção. Algures, tenuamente, estava a tocar música. Era uma marcha de John Philip Sousa: The Stars and Stripes Forever.
- Que aconteceu depois de o teu pai e de o teu tio morrerem?
- Que aconteceu? Oh... desfez-se tudo. Alfred casou-se e foi viver para a Califórnia. Earl alistou-se no Exército. A mãe começou a decair, e vendemos a maior parte das nossas terras. Tudo à excepção da casa. Desfez-se tudo.
- Que tipo de mulher era a tua mãe?
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-A mãe? Tinha uns olhos muito bonitos. A mãe era porreira. Trabalhadora. Nunca se queixava. Jesus, trabalhava muito. Não se ria tanto como o pai, mas olhava para
nós e via-se que estava a rir por dentro, só que não queria mostrar. Era mais calada do que o meu pai e o tio Barney. Deixava que fossem eles a fazer barulho e a cantar as canções e a fazer palhaçadas. Foi isso que nos manteve unidos... até o meu pai morrer. Depois ela mudou. Deixou praticamente de falar e nunca sorria. Foi assim. Depois morreu. Talvez estejas a pensar que também já não há mulheres assim. Talvez tenhas razão.
- Que tipo de criança eras tu, Helen?
- Oh, raios, era toda pernas e dentes de coelho. Era selvagem. Usava o cabelo curto e calças e tentava ser como os meus irmãos. Não era nenhuma menina doce. Acho que fui uma decepção para a minha mãe. Ela tentou, mas depois desistiu e disse que achava que eu tinha nascido para ser maria-rapaz.
Ele virou-se para apagar o cigarro e depois rolou de forma a ficar um pouco mais para baixo na cama, até o lençol lhe chegar ao queixo. As costas da sua mão tocaram-lhe a coxa nua. Era uma mão fresca, macia. Ele acariciou-lhe a coxa ao de leve com as costas da mão.
- Eras boa aluna?
- Média. Se me interessava por qualquer coisa, era boa. História e Economia e coisas assim irritavam-me, portanto, não era lá muito boa aluna. Mas tive uma paixoneta pelo meu professor de Ciências, portanto era bastante boa a Ciências. Também pertencia ao grupo de teatro. Não tínhamos rapazes suficientes no grupo, portanto, quando encenámos Otelo, fiz de Iago. De que estás a rir?
- Oh... não sei. Eras popular na escola?
- Eu diria que era popular com os rapazes e que não era lá muito popular com as raparigas. Costumavam-me chamar Calcinhas Quentes, nas minhas costas. Pensavam que eu não sabia, mas sabia. Os meus irmãos andavam sempre à pancada por causa disso.
- Que queres dizer com Calcinhas Quentes?
- Donde é que tu és, rapaz?
- Nasci e fui criado em Nova Iorque. Porquê?
- com todas as coisas que não sabes, às vezes penso que deves vir do espaço sideral ou de qualquer outro lado. Se queres saber, chamavam-me Calcinhas Quentes porque achavam que eu estava sempre quente para namorar.
- E estavas?
- Claro!
- Valha-me Deus! Helen, quem foi o primeiro... o primeiro...?
- O primeiro com quem tive relações? Eddie Chase, na casa do gelo. Cristo, passei semanas a tirar serradura das minhas... das minhas orelhas.
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- Que idade tinhas nessa altura?
- Treze, e Eddie catorze.
As pontas dos dedos dele tocaram-lhe ao de leve, sem se moverem. Ela aproximou-se mais dele e beijou-lhe o ombro frio. Depois deitou-se de costas, a ver a noite entrar no quarto.
- Ouve, querido - disse ela num tom sonhador -, foi um dia maravilhoso e gostava de te dar um presente. Tenho um periquito encantador e aposto que o adorarias. Eu própria o adoro, mas não estou em casa tempo suficiente para lhe dar a atenção que ele deve ter.
- Oh, Helen, não posso.
- Até te dou a gaiola.
- O periquito fala?
- Só umas frases simples e sentidas. É muito inteligente. Tenho a certeza de que lhe poderias ensinar muitas coisas.
- Obrigado, Helen, mas não acho... Depois ficou calado.
- Jo? - disse ela.
Mas ele continuou calado.
Ela teve um momento de pânico, lembrando-se de que ele tinha dito que tinha um problema de coração. Mas encostou o ouvido ao peito dele e ouviu o coração bater com determinação. Inclinou-se junto dos lábios dele e cheirou vinho, champanhe, conhaque e um leve odor a alho. Sorriu.
- Boa noite, querido - disse ela em voz alta, beijando-lhe a cabeça calva.
Levantou-se e vestiu-se.
Deixou-lhe ficar um bilhete, a agradecer-lhe uma tarde maravilhosa, deixando-lhe ficar a sua morada de casa e do escritório e os números de telefone.
Tirou a pequena rosa que ele tinha na lapela do casaco e comeu-a, pensativamente, enquanto descia as escadas até à rua.
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Helen Miley entrou no escritório da Swanson Feltzig, Public Relations às nove e vinte e quatro, na segunda-feira de manhã. Susie Garrar estava à secretária da recepção, a chorar ruidosamente para dentro de um lenço todo enroaldo, como se fosse uma bola.
- Que se passa, querida? - perguntou Helen ansiosa. - Estás outra vez com um atraso?
Susie soluçou.
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Helen puxou a saia do seu fato Adolfo e assentou uma nádega na beira da secretária de Susie.
- Okay - disse ela -, pára de chorar. Não é o fim do mundo. Susie chorava.
- A primeira coisa que tens a fazer é ir a um médico para teres a certeza-aconselhou Helen.-Depois dou-te a morada de uma clínica maravilhosa em Brooklyn. Ele dá penicilina e até manda lá voltar para uma revisão. Quanto dinheiro tem o teu tipo?
- É empregado de uma companhia de navegação - disse Susie, pesarosa.
Helen assentiu com uma expressão sombria. "Lá se vai o vison", pensou ela.
- Olha, deixa-me ser eu a preocupar-me com o bago.
- Obrigada, Helen - disse Susie, com gratidão.
- Loeb e Leopold já chegaram, querida?
- O Sr. Swanson chegará às onze. Quer rever a sua agenda de almoços contigo. O Sr. Feltzig disse que vai almoçar com um cliente e que só voltará por volta das duas ou duas e meia.
- Está bem - assentiu Helen. - Houve algumas respostas ao nosso anúncio?
- Três telefonemas, até agora. Eu disse-lhes para virem às dez, dez e um quarto e dez e meia.
- Óptimo, querida. vou lá abaixo tomar um café. E não te preocupes. Já fiz mais abortos do que tu fizeste permanentes. Acredita em mim, não é pior do que ter uma colite. Até já.
A Sam-Al Luncheonette estava cheia. Os únicos bancos vazios ao balcão eram os que ficavam mesmo em frente à cozinheira de refeições rápidas, que trabalhava furiosamente junto à placa a escaldar. Helen deslizou para cima de um dos bancos e pôs a carteira de pele de crocodilo no outro. Passados instantes, Peggy Palmer tirou a carteira, sentou-se no banco e sorriu-lhe.
- Um bolinho de milho com manteiga - rugiu a cozinheira. Venham buscá-lo.
- Olá, cachopa - disse Peggy, fazendo covinhas nas faces ao sorrir. - Como foi o fim-de-semana?
-Teve os seus momentos-disse Helen.-E o teu? Sempre foste com Camel?
Peggy arregalou os olhos.
- Veio-me o chico. Imagina. Sábado à noite... e eu tinha, finalmente, decidido avançar.
- Que seca! - disse Helen, com pesar. - E depois de te teres preocupado tanto... Que é que ele disse?
- Não lhe disse - disse Peggy com uma risadinha. - Perguntei-lhe que tipo de rapariga é que ele pensava que eu era.
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- E que é que ele disse a isso?
- Disse que pensava que éramos dois adultos normais, com desejos normais e formas normais de encarar as coisas. Já pediste?
- Normais? - troçou Helen. - O Sr. Nariz, normal? Essa é para rir. Só quero um café. Não percebo como é que suportas esse tipo.
- Oh, Helen, ele não tão mau como isso. Levou-me um ramo de violetas. Acho que vou beber um café e comer uma torrada à inglesa. Não foi querido?
- Torrada à inglesa, são duas - gritou a cozinheira.
- Que fizeste? - perguntou Peggy. - Bob telefonou?
- Bob? Já não o vejo há quinze dias. Não te disse que isso acabou? Ontem conheci um velhote querido que é um ano mais novo do que Deus. Chama-se Jo Rhodes. Pensei
que me ia sair um velho lascivo, mas afinal é um querido, um verdadeiro querido. Tivemos um jantar magnífico, num restaurante italiano na Rua Setenta e Dois Oeste.
com muito vinho. Foi maravilhoso. Ele prende as meias com ligas.
- Estás a gozar?
- Não estou. Juro. E Charles telefonou-me na sexta-feira à noite.
- Charles?
- Sanduíche de centeio - gritou a cozinheira. - Ovos mexidos a sair.
-Tu sabes... Charlie Lefferts. Eu já estava despida e pronta para me meter na cama, com uma dor de cabeça das antigas, mas pensei: "Ora, que diabo!"
- Foram sair?
- Não - disse Helen, sorrindo -, não propriamente. Peggy deu uma risadinha.
- Ele voltou a chupar-te os dedos dos pés? Helen mostrou-se chocada.
- Meu Deus, eu contei-te isso? Por favor, passa as natas, querida. Olha, digo-te uma coisa, o homem não tem miolos na cabeça, mas, no que respeita a cama, o tipo sabe mais do que vem nos livros. É verdadeiramente incrível! Eu apresentava-to, mas não quero que fiques desiludida com Gamei.
- Não me parece que Camel me chupe os dedos dos pés - disse Peggy num tom sorumbático. - Querida, ele é muito conservador.
- Não me estás a dizer nada que eu não saiba. Ouve, Peg, achas realmente que estás a jogar com ele da maneira certa? Talvez devesses... sabes... deixá-lo um pouco pendurado!?
- OJ grande - guinchou a cozinheira. - Tosta de centeio com.
- Isso gostava eu de saber - disse Peggy, preocupada. - Se eu decidir ir até ao fim, ele pode decidir aproveitar e depois dar-me um
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pontapé. Se não for, talvez ele se aborreça e também me dê um pontapé. Que hei-de fazer, Helen?
- É uma coisa demasiado importante para outra pessoa decidir por ti. Mas acho que tens razão. Devias ir para a frente. Afinal de contas, se te casares com ele e
depois descobrires que ele é uma nódoa na cama... nessa altura qual é a tua posição? Acho que é melhor ir até ao fim agora e ficares a saber.
- Não sei - disse Peggy num tom de dúvida. - Detestava perdê-lo. Meu Deus, vou fazer trinta e quatro anos para o mês que vem. Que idade é que tu tens?
- Trinta e dois - disse Helen.
As duas mulheres beberam o café em silêncio, durante alguns momentos.
- Dois ovos mexidos com torradas - gritou a cozinheira.
- Almoçamos? - perguntou Peggy.
-Não posso, querida. Vem aí um mês mau para nós... duas novas apresentações de produtos... finalmente, convenci os Rover Boys a contratarem uma temporária por um mês. Pusemos ontem um anúncio no Times, e Susie Garrar disse-me que já tivemos três respostas e que vêm à entrevista esta manhã. Jesus, preciso de alguém que me ajude a fazer os comunicados de Imprensa e os mailings. Na sexta-feira, temos um almoço em grande no Bixby.
- No Bixby? A que propósito é que escolheram um sítio tão não chique?
- O velho Hot Hands tem comissão do gerente-explicou Helen.
- Além disso, as bebidas são grandes, apesar de a comida ser péssima. E os repórteres e os editores já estão tão bebidos quando se sentam que não dão pelo que estão a comer.
- Meu Deus - disse Peggy, invejosa -, todos esses homens...!
- Não dão hipótese. - Helen abanou a cabeça. - Talvez para passar uma noite, mas nunca nada sério. São todos do Nyack ou bêbados ou ambas as coisas. De qualquer forma, a função no Bixby é para um novo grelhador electrónico, portanto, também lá vão estar muitos editores de revistas femininas. Tu sabes... as cabras com os chapéus grandes.
- Mesmo assim - disse Peggy. - Meu Deus, todos esses homens. Eu nunca tenho oportunidade de conhecer nenhum. Sabes como é o meu escritório. Cinquenta raparigas e o Sr. Nussbaum. Achas que devia mudar de emprego? Sabes... ir para qualquer lado onde houvesse mais homens disponíveis?
- Disponíveis? - perguntou Helen. - Vivos, queres tu dizer? Por que não, querida? Consegues ganhar duzentos em qualquer lado. Eu também mudava, mas onde é que vou ganhar mais de duzentos e setenta e cinco?
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- Sanduíche de fiambre e ovo - berrou a cozinheira.
- És tu que diriges o escritório - disse Peggy.
- Tens toda a razão-disse Helen com firmeza -, mas quais são as minhas perspectivas? Daqui a meia dúzia de anos, estou a ganhar trezentos... talvez. E pronto. Isso é praticamente o topo para uma mulher, em qualquer lado.
- Não é justo - queixou-se Peggy.
- E o que é justo? - Helen encolheu os ombros. - O que é preciso é ser-se dura e brilhante e deixar andar. Oh, meu Deus, quase me esquecia de te dizer... Susie Garrar está metida em sarilhos.
- Oh, meu Deus - disse Peggy. - Ela já tem a certeza?
- Pancake e salsicha - guinchou a cozinheira. - Sai um ovo cozido.
- Voltou a ter uma falta - assentiu Helen. - Tem quase a certeza absoluta.
- Que vai ela fazer?
- Que é que ela pode fazer? Deitá-lo abaixo. É dum schnook, empregado de uma companhia de navegação. Está muito abaixo dela.
- Ele não podia estar demasiado abaixo dela - disse Peggy, dando uma risadinha.
- Podes dizê-lo - disse Helen, sorrindo. - Olha, deixa-me ser eu a pagar. Tu pagaste na quinta-feira.
- Mas tu deste a gorjeta ao almoço - disse Peggy.
- Mas tu pagaste o táxi à saída do bar - lembrou Helen. - Ora, que raio, deixa-me eu pagar. Tu pagas da próxima vez. Afinal, que é que vais fazer em relação a Camel, Peggy?
- O que me apetecia fazer sei eu bem, mas a cavalo dado não se olha o dente. Palavra de honra, querida, não faço sexo há tanto tempo que cada vez que espirro sai-me pó do nariz.
- Sei exactamente o que sentes - disse Helen, num tom compreensivo. - Se não fosse Charles telefonar-me de vez em quando, eu andava a trepar pelas paredes. Ele é maravilhoso para mim. Lembras-te daquela dor que eu tinha no pescoço e no ombro? Desapareceu por completo.
- Palas como se ele fosse médico - disse Peggy a rir.
- Pois - rosnou Helen. - Ele e as suas injecções.
- Ovo estrelado em tosta - resmungou a cozinheira.
-Telefona-me logo à noite, Peg-disse Helen.-Podemos falar mais sobre Camel. Francamente, acho que deves considerar cuidadosamente todos os ângulos. Ele é tão cretino!
- Eu sei... - suspirou Peggy. - Mas que havemos de fazer?
- Sim - disse Helen Miley com espanto na voz -, que havemos de fazer?
- Saem duas tostas - disse a cozinheira.
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O primeiro candidato estava à espera quando Helen chegou ao escritório. Ele era, viu ela, um jovem gorducho com suíças louras que lhe chegavam às mandíbulas. Princeton 77, pensou ela. Fez sinal com a cabeça a Susie e marchou para o seu gabinete privado.
Era uma pequena sala cheia de coisas, com paredes revestidas a cortiça. Presos compunaises à cortiça, estavam comunicados de Imprensa, planeamentos, recortes de jornais e histórias de revistas, fotografias publicitárias, cartas comerciais, memorandos, moradas, uma amostra de tweed, uma fotografia de John F. Kennedy e um cartão branco que tinha a palavra "AMOR" impressa no centro a Bodoni, negro, caixa alta, 24 pontos.
Mas a única coisa que Helen viu foi a comprida caixa de florista equilibrada sobre a tralha que ocultava a sua secretária. Rasgou-a, para a abrir. Duas dúzias de crisântemos amarelo-limão e um pequeno cartão escrito a letra inglesa. Jo RHODES. Na parte de trás do cartão, ele tinha escrito, numa caligrafia precisa de contabilista: "Agradeço-te. Jo."
Ela telefonou-lhe imediatamente.
-Não devias ter feito isto-disse-lhe ela -, mas estou contente por o teres feito. É a coisa mais querida, mais simpática, mais amorosa que me acontece há anos.
- Helen - disse ele -, tenho... é bastante embaraçante... mas tenho de te perguntar.
- Que é, querido?
- Eu não... bom, tu sabes... não fui demasiado bruto, pois não? Não te magoei de qualquer forma, pois não?
-Rapaz, foste maravilhoso!-tranquilizou ela.-Foste incrível.
- Valha-me Deus! - disse ele. - Ah! - disse ele. - Hah! disse ele. - Fui, é? Ora, ora, ora! Só mais uma pergunta: tu tomaste... não tomaste?... num, tomaste as devidas precauções?
- Claro. Não te preocupes com nada, Jo.
- Esplêndido - suspirou ele. - É claro que não quero que sofras, de forma alguma, por minha causa. Foi uma tarde maravilhosa e eu agradeço-te por ela. Posso telefonar-te no final da semana?
- Por favor, telefona, querido. Para aqui ou para casa. Quando quiseres.
Ela desligou, deixou-se cair na cadeira giratória e recostou-se. Puxou a saia para cima e pôs os pés em cima da secretária. Acendeu
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o seu quarto cigarro do dia. Olhou para os crisântemos amarelos, nos quais incidia a luz suave da manhã que entrava pela única janela.
- Valha-me Deus! - disse em voz alta.
O primeiro candidato era, como ela calculara, um recém-formado (Brown, não Princetori). Tinha bastante personalidade... talvez demasiada para a sua idade... borbulhava de ideias, uma das quais com valor. Mas não conhecia minimamente a Imprensa de Nova Iorque e nunca tinha trabalhado para uma empresa de relações públicas.
Helen explicou que, para aquele trabalho temporário, precisava de um homem experiente que conseguisse começar a trabalhar de imediato e dar conta do recado sem formação prévia. Imperturbável, ele pegou nos seus pequenos ensaios humorísticos, publicados em revistas das quais ela nunca tinha ouvido falar, e agradeceu-lhe educamente por ela o ter recebido. Depois, perguntou-lhe se ela aceitaria almoçar com ele... convite que ela recusou delicadamente.
O segundo candidato tinha trabalhado em vários sítios, em número igual de meses, e ela calculou porquê. Tentou não ficar especada a olhar para ele, enquanto ele se esforçava por controlar as mãos a tremer. Ainda esteve tentada a oferecer-lhe uma dose do uísque que tinha na última gaveta da secretária, mas depois achou melhor não.
O terceiro homem falava com um sotaque do sul de Londres, tão carregado que ela mal o conseguia perceber. O quarto era um cabeleireiro que queria fazer um "trabalho mais criativo". O quinto tinha um horrível sorriso trocista. O sexto recusou-se a trabalhar para uma mulher e saiu ofendido.
E assim continuou... Ao meio-dia e meia, Helen mandou Susie Garrar lá abaixo, ao restaurante chinês do lado, buscar uma dose grande de camarões fantan e umRob Roy duplo.
- Um Rob Roy e eu sinto-o - disse Helen. - Dois Rob Roys e qualquer pessoa o sente.
Susie fez um sorriso amarelo ao ouvir a piada, a qual já tinha ouvido várias vezes.
As entrevistas recomeçaram depois do almoço. Às três da tarde, Helen estava a começar a ficar cansada, não tanto de fazer as mesmas perguntas, desbravando caminho através das mais emaranhadas mentiras, semimentiras, exageros, mas de uma depressão provocada por aquele cortejo de homens obsoletos.
Chamou Susie pelo intercomunicador.
- O seguinte - disse ela.
Ele teve de baixar a cabeça para entrar pela porta. Era negro e com a constituição de um Eberhard-Faber 3. Tinha o cabelo cor de ferrugem, às ondas e com risco ao meio.
- Meu Deus - exclamou Helen -, tem de ser basquetebol.
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O sorriso dele aqueceu a sala.
- Só no liceu-disse ele. - Não era suficientemente rápido para a Universidade.
- Quanto é que mede? - perguntou ela, esticando-se para lhe apertar a mão.
- Quase um metro e noventa e cinco.
- E continua a encontrar pessoas que lhe dizem: "Como é que vai o tempo lá por cima?"
- Exacto - disse ele. - Continuo.
- Sou de Oaio - disse-lhe ela. - O basquetebol do liceu tem muito peso em Oaio. Não tanto como em Indiana, mas, mesmo assim, tem bastante. Sente-se e fume um desses
cigarros enquanto eu vejo o seu currículo.
Harry Tennant; 38 anos; solteiro; de boa saúde, etc.; etc.; Habilitações Académicas. Etc.; etc.; Licenciado por Colúmbia. Cursos nocturnos em Marketing na Universidade de Nova Iorque. Etc.. Seis meses aqui; dois anos ali; depois seis anos naAmsterdam Gazette, a cobrir novos produtos, investigação e desenvolvimento, marketing, publicidade. Coluna semanal durante quatro anos. Etc.; etc. Free-lancing para Advertising Age, Printers Ink, etc. etc.. Artigo principal naRolling Stone em 1976, etc.; etc..
- Olhe - disse Helen -, sabe que este emprego é apenas temporário? Só por um mês? Pagamos duzentos e cinquenta por semana, durante um mês, porque estamos num aperto. As coisas estão a acumular-se.
"Mas, se não entrarem novos trabalhos, não haverá emprego ao fim de um mês. Compreende isso?
- Compreendo.
Ela coçou a orelha, enquanto o fitava.
- Sabe-disse ela -, já tive muitos empregos. E, de cada vez que era entrevistada, um filho-da-mãe qualquer do pessoal dava-me um daqueles sorrisos perversos e dizia: "Agora conte-me tudo a seu respeito." E eu tinha vontade de dizer: "bom, fumo ópio nos elevadores, gosto de rapariguinhas, tenho uma tatuagem na barriga que diz: "AMÉRICA - AMA-A ou DEIXA-A"
- Eu sei, eu sei.
- Mas agora, que estou do outro lado, tenho de o dizer. Conte-me lá tudo a seu respeito.
- Que quer saber?
- Por que saiu da Gazette?
Sim, ele falou num tom comedido e majestoso, e, por instantes, ela teve a ideia louca de que ele tinha escrito e memorizado tudo aquilo... uma espécie de salmo privado.
- A Amsterdam Gazette - disse ele cuidadosamente - é um
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jornal diário publicado no Harlem, dedicado às actividades e aspirações dos negros. E muito justamente. Há cerca de um ano, Sr. Thomas Aguin, editor e proprietário da Gazette, decidiu que o jornal devia desempenhar um papel mais activo nas organizações negras dedicadas à melhoria da comunidade negra na América e particularmente em Nova Iorque. O Sr. Aguin convocou uma reunião com todos os empregados... executivos, editoriais, tipógrafos, jornalistas, angariadores de publicidade, varredores e assim por diante... e propôs que a Gazette se esforçasse por se tornar uma destacada força na vida do Harlem e na política da cidade de Nova Iorque. Especificamente, propôs que representantes da Gazette... os empregados... se ligassem mais estreitamente às associações do Harlem... organizações militantes e grupos de bloqueio e grupos anticrime e organizações de luta contra a tóxico-dependência e a igreja e as novas associações profissionais de negros. Coisas desse tipo. Queria que entrássemos para esses grupos e lhes abríssemos as páginas do jornal e falássemos deles nas nossas colunas. E queria que nos dirigíssemos a esses grupos, fizéssemos discursos e ajudássemos a organizar as coisas. Ou seja, tomar parte activa neles.
- E que é que os empregados da Gazette disseram a isso?
- Acharam óptimo.
- E que é que você pensou disso?
-Que é que eu pensei disso? bom... é claro que também achei que era óptimo. Mas o que aconteceu foi... o que aconteceu foi...
Baixou a cabeça, entrelaçou os dedos. O seu rosto tinha um brilho suave, tão suave que parecia que ele nunca se tinha barbeado na vida. Ele olhou para ela, um homem a tentar lançar um papagaio num túnel.
-Acho - disse ele - que não tenho merda de carisma nenhum.
Se ele tencionava chocá-la, não conseguiu. Mas ela estava com curiosidade em saber por que é que ele estava tão ansioso por levar um pontapé no rabo.
- Que é que isso quer dizer?
- Eu não era bom a fazer discursos. Nem sequer era bom a escrever... e é esse o meu ofício. Parecia que não me conseguia envolver. É esse o meu problema... não me consigo envolver.
Lançou uma mão ao ar. As suas pequenas orelhas estavam coladas ao seu crânio, e os seus gestos eram um encanto de se ver. Os seus olhos tinham a expressão triste e espantada de um jogador de xadrês.
- Conhece muita gente em Nova Iorque? Isto é, em jornais e revistas?
- A maioria no meu campo - assentiu ele. - Conheci-os em festas de Imprensa e encontros e entrevistas ao longo dos anos. Quer referências?
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- Não, não quero. Sabe que as referências não querem dizer nada.
- É verdade - concordou ele.
Ela começou a bater com o lápis na secretária. Era um EberhardFaber 3. Bico. Borracha. Bico. Borracha.
"Que é que eu estou a fazer?", pensou ela. "Em nome de Deus, que é que eu estou a fazer?"
- Há muita pressão - avisou ela. - Por vezes, perco a cabeça e grito. Por vezes, os patrões gritam. Não tenho espaço para si no meu gabinete. Vai ter de trabalhar
numa secretária, lá fora, com a recepcionista. Provavelmente, vai ter de fazer recados... sabe, ir entregar fotografias e comunicados. Vai ficar a perder.
Eleassentiu.
- E só por um mês - disse ela, desesperada -, e depois fica pendurado.
Ele assentiu.
- Continua interessado?
- Sim, continuo.
- Pode começar amanhã de manhã?
- Posso.
Ela suspirou. Levantou-se e estendeu a mão.
- Okay, Harry - disse ela. - O lugar é seu. É melhor chamar-me Helen.
- Obrigado, Helen - disse ele.
- Esteja cá amanhã de manhã, às nove.
- Estarei.
Ele dirigiu-se para a porta.
- Harry, espere um instante... Precisa de um adiantamento? Posso adiantar-lhe o pagamento da primeira semana, se isso for importante. Quer recebê-lo já?
- Confia em mim?
- É claro que não confio em si - gritou ela, zangada. -Você vai pegar nos duzentos e cinquenta dólares e marcar imediatamente passagem no Queen Elizabeth e embarcar para a Europa. Que raio, quer o dinheiro ou não?
- Você é uma mulher dos diabos - disse ele com admiração. Sim, quero.
- Espere aqui um instante.
Helen foi à secretária de Susie Garrar, pegou no livro de cheques da empresa, passou um cheque em nome de Harry Tennant, no valor de duzentos e cinquenta dólares, dirigiu-se ao gabinete do Sr. Feltzig e entrou sem bater à porta. Ele estava ao telefone.
- Claro que te amo, querida - dizia ele. - Não comprei um violino ao teu irmão?
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Ela pespegou o cheque à frente dele e estendeu-lhe uma caneta. Ainda a falar ao telefone, ele olhou para ela, erguendo as sobrancelhas. Ela apontou para o cheque
com uma expressão sombria. Ele assinou-o.
Ela marchou de volta para o seu gabinete e deu o cheque a Harry Tennant.
- Tome - disse ela. - Deve-nos uma semana de trabalho.
-Vai tê-la - disse ele, olhando para o cheque. Por instantes, ela teve medo de que ele começasse a chorar.
- Ponha-se a andar - rosnou ela. - Tenho trabalho a fazer. Falamos amanhã de manhã.
Subitamente, ele inclinou-se e beijou-a na face. Depois saiu, baixando a cabeça ao passar pela porta.
-Jesus Cristo - disse Helen a Susie Garrar -, mas que dia! Que raio é que eu sou... um cruzamento entre Annie, a Pequena Órfã, e a Mãe Macree?
- De que estás a falar? - quis saber Susie.
6
O vestido de malha acentuava o seu rabo sólido e as suas mamas "O-Tio-Sam-Quer-TE". Ela avançou lentamente por entre a multidão, toda ela dentes, pernas e óculos
de aros de tartaruga. Seis .Roo Roys tocavam uma canção com refrão para sistro1 dentro do seu crânio, e ela mostrava os dentes num sorriso congelado.
Uma mão estendeu-se no meio da multidão e tocou ao de leve no ombro do vestido de malha.
- Cor de ameixa - disse ele. - Um tom divino. Ela deu-lhe o braço.
- Casa comigo - disse ela. - Imediatamente.
Ele olhou-a pensativamente. Era um homem grande e sensual, com um traseiro carnudo. Uns papos avermelhados pendiam-lhe por debaixo dos olhos. Ela ficou encantada
por ver que ele se tinha esquecido de fechar o fecho da braguilha. Trazia na mão um copo que, decidiu ela, continha a sua urina ou bourbon puro.
- Tenho um terraço no meu apartamento - disse-lhe ele -, e ontem encontrei lá um papel dobrado. Alguém que vive por cima tinha-o atirado lá para baixo. Dizia: "Odeio-o,
Mr. X." Que acha disso?
1 Espécie de xilofone de lâminas metálicas. (N. da T.)
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- Ouça - disse ela -, eu conheço essa mulher, e ela é casada. O marido tem relações com ela duas vezes por ano, no Dia de Acção de Graças e no Dia da Árvore. E, de cada vez, no fim, olha para ela e diz: "Se é tão bom, por que é que eu nego isto a mim próprio?" Que acha disso?
- Chamo-me Richard Paye - disse ele -, mas os amigos chamam-me Uck.
- Isso é muito engraçado - assentiu ela. - Estou perdida de riso. Gosta de mulheres, Uck?
- De algumas.
- É casado, Uck? Não tem de responder.
- Não. Traz alguma coisa por debaixo desse vestido?
- Pele. Chamo-me Helen Miley. Trabalho na Swanson and Feltzig. Nós é que oferecemos este almoço. Tenho trinta anos e o meu peso de combate é cinquenta e três. Uso um soutien que é preciso encher e gosto das minhas bebidas fracas e dos meus homens fortes.
- Quem é que não gosta? - Ele encolheu os olhos.
-Uck, eu não lhe devia dizer isto porque gosto de si como é... mas talvez lhe deva dizer.
- Diga - disse ele.
- Tem a braguilha aberta.
- Outra vez? - Ele suspirou e fechou-a.
Ela olhou vagamente em volta. O almoço tinha corrido bem. O cliente tinha feito um discurso eficaz. Depois de comerem, ele levantou-se e disse:
- Temos um novo grelhador electrónico. O bar já está aberto. Repórteres e editores aplaudiram. Do outro lado da sala, Helen viu a cabeça e os ombros de Harry Tennant. Estava rodeado por um círculo de harpias das revistas femininas. Ele viu-a e acenou-lhe. Ela retribuiu-lhe o aceno, com a mão na qual tinha o copo.
- Não faz mal - disse Richard Faye. - É um fato que não precisa de ser passado a ferro. Tenho dois gatos. Já lhe disse? Chamam-se Moishe e Pincus.
- Gatos-macho?
- Capados - disse ele delicadamente. - Gosta de gatos?
-Adoro gatos-disse ela.-Na realidade, odeio gatos, mas disse que adoro gatos porque o adoro a si. Tenho um cão chamadoRocco e um periquito que se recusa a falar, o malvado. Uck, vai casar comigo, não vai? Nem que seja por uma noite?
- Hum... - disse ele.
- Estou a ficar apanhada por si - disse ela. - Gosto desses sacos que tem por debaixo dos olhos e dos seus grandes dentes amarelos e da forma como o seu cabelo cresce por cima do seu colarinho. Adoro-o... honestamente.
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- Estou um bocadinho entornado - disse ele baixinho.
- Não - disse ela num tom sério -, se consegue dizer que está bêbado, então não pode estar bêbado, pois não? Quero dizer, se estivesse, não dava por isso, pois não?
- Acho que você é verdadeiramente brilhante - disse ele com admiração. - Mas devo dizer-lhe já uma coisa... ressono.
- Quero lá saber - disse ela. - Oh, meu Deus, estou tão feliz! Sabe de que é que eu gosto em si? Normalmente, existe uma guerra entre mim e os homens. Quero dizer, estamos sempre a esgrimir e eles fingem que são os maiores e eu que os estou a manter à distância, e é tudo fingimento... sabe o que quero dizer? É uma espécie de jogo. Mas, consigo, sinto-me à vontade. Não sei o que é, mas consigo estou descontraída. Não precisamos de fazer esse jogo estúpido, pois não?
- Não - disse ele tristemente -, não precisamos.
- Ouça - disse ela ansiosamente -, não colecciona máscaras africanas, pois não?
- Não.
- Não se considera o maior cozinheiro que Deus alguma vez deu ao mundo, pois não?
- Não.
- Não diz "cedinho" e "tardinho" e "oito e piquinhos", pois não?
- Nunquinha.
- E não está sempre a receber chamadas de mulheres, pois não?
- Telefonam-me muito poucas mulheres... se é que alguma me telefona.
- Quero que saiba tudo a meu respeito-disse ela ansiosamente.
- Todas as pequenas coisas. Quero que me passe a pente fino. Sabe que consigo tocar com a língua na ponta do nariz? Muito poucas pessoas o fazem e nenhum gorila consegue. Está a perceber?
Ele fitava-a, fascinado.
- É a rapariga para mim - disse ele roucamente.
- Consigo fazer outras coisas desse género, mas podem ficar para depois. Que é que você consegue fazer?
- Sei tocar My Country, Tis ofThee com um pente fino e papel higiénico. E conheço muitos poemas humorísticos divinos.
- Divinos - disse ela. - Eu preferia que não dissesse "divino". Mas, bolas... provavelmente chateava-o. Quero dizer, eu chateio-o?
- Não demasiado.
- Desculpe - disse ela, humildemente. - Desculpe ter referido isso... "divino", quero eu dizer. Não me chateia verdadeiramente. Você não me maça nada. Francamente
não, Uck.
Ele tocou-lhe no rosto com dedos macios.
- Não pressione - murmurou ele. - Tenha calma. Não apresse as coisas.
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- Tenho de apressar. Não entende. Eu menti-lhe. Não tenho trinta anos, tenho trinta e dois. Oh, que raio, tenho trinta e três. Ou será trinta e quatro? Nunca me lembro. Fico toda embrulhada por dentro. Não sei o que se está passar comigo. Só que nada se está a passar comigo. Nada. É por isso que pressiono. Quero que me aconteça qualquer coisa. Que será isto? Sabe?
Ele ficou intrigado.
O seu rosto descaiu. Os seus ombros carnudos descaíram. Os seus olhos de carpa fitaram-na, pensativamente.
- Todas as raparigas com quem cresci estão casadas e têm filhos e são infelizes. Eu também quero ser infeliz dessa forma. Tenho uma amiga que vai casar com um idiota. E quero mesmo dizer idiota. Mas que é que eu lhe posso dizer? Que não case? Não lhe posso dizer que não case. Ouça, Uck, isto não é apenas uma brincadeira de mau gosto, pois não?
- Talvez seja - disse ele, pensativo. - Pode muito bem ser.
- Não quero coisas de um homem... francamente, não quero. Só quero amar um tipo. Será isso assim tão mau? Talvez eu seja anormal!? Quero dizer, é isso que uma mulher deve fazer, não é? Mas todos os homens que eu conheço são esquisitos. Nenhum deles serve. A não ser você. O velho Uck Faye. Serve. Uck, eu sou uma mulher paciente, mas acho que agora deve dizer qualquer coisa. Sabe, qualquer coisa como "Tem algum compromisso no sábado à noite?"
- Podemos almoçar na sexta-feira? - perguntou ele.
- Aceito - disse ela imediatamente. - Está bem. Está a levar as coisas com calma. Tudo bem, não me importo. É do tipo "devagar e com calma". Óptimo. Sexta-feira. Almoço. Óptimo. Não vou pressionar. Não vou apressar as coisas.
Ele assentiu em aprovação.
- Ouça - disse ela, quase sem conseguir respirar -, acha que isto pode ser qualquer coisa?
- Que é que pode ser qualquer coisa?
- Isto. Você e eu.
- Oh... - disse ele lentamente. - Você e eu? bom. Como é que se pode saber?
- Claro-resmungou ela. - Está bem, Uck. Como é que se pode saber?
"Podia pregar-lhe os tomates a um toco de árvore", pensou ela, "e empurrá-lo para trás."
- Até sexta - disse ela, dando-lhe um sorriso tão corajoso como uma fogueira à chuva.
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7
Ela irrompeu no apartamento de Jo Rhodes, cheia de amor e de Rob Roys secos. Tinha ido a correr do escritório para casa e deixado Rocco dar uma volta ao quarteirão,
acenando desinspiradamente uma perna a algumas árvores e parquímetros.
Depois, Helen misturou o primeiro de três Rob Roys, bebeu-o rapidamente enquanto se despia, tomou duche e voltou a vestir-se. Vestiu a blusa de seda branca que Jo
sugerira quando a convidou para passar a tarde com ele, jantar e uma sessão de fotografias.
Ele estava com um casaco de veludo carmesim, com lapelas largas de cetim preto com um vivo branco. Empoleirado no seu pequeno crânio, tinha um fez preto enfeitado
com brocado e jóias.
- Era fez do Grande Eunuco do harém de um xeque de Meca disse-lhe ele. - Deu-mo em troca de uma fotografia que lhe tirei a ler a National Geographic.
- Quando foi isso, Jo?
- Oh... há anos! bom, minha querida, espero que tenhas fome.
- Estou esfomeada.
- Óptimo. Tenho uma enorme salada César, uma lagosta fria para cada um, pão de alho e, para a sobremesa, pus morangos, pêssegos, pedaços de ananás e uvas a marinar numa mistura de vinho branco e brande, durante dois dias. Que tal te parece?
- Delicioso.
- Vamos comer na cozinha, para facilitar as coisas.
Ele tinha posto uma toalha de damasco teso sobre a mesa de madeira.
Os talheres eram pesados e trabalhados. Duas esguias velas azuis tinham sido metidas em suportes de cristal.
- Tens coisas tão bonitas! - disse-lhe ela. - Foi a tua mulher que comprou estas coisas ou foste tu?
- Oh, fui eu! Não tenho nada que tenha sido da minha mulher. Agora, senta-te aqui, Helen, e vamos começar com um cocktail de champanhe.
Ele atarefou-se junto à bancada, com a cabeça inclinada, para evitar o fumo que se erguia da ponta do Gauloises que tinha a um canto da boca.
-Jo-disse ela, ansiosa -, não achas que fumas de mais? Quero dizer, com o teu coração e tudo...
- Que tem o meu coração?
- O teu problema de coração.
- Qual problema de coração?
- Disseste-me que tinhas um problema de coração.
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- Que disparate! - disse ele. - O meu coração está são como um pêro... o que quer que isso signifique. Toma, minha querida... experimenta isto. Está demasiado amargo?
- Hummm. Está mesmo bom.
-À nossa nova amizade. - Ele sorriu, tocando com o seu copo no dela. - Que seja longa.
- bom, por que é que me disseste que tinhas um problema de coração?
- Deves ter entendido mal, querida. Fiz um exame completo no outro dia e estou em óptima forma. Óptima. Estou okay, com tudo em ordem. As velas - gritou ele. -Valha-me Deus, quase me esquecia.
Ele acendeu as velas e apagou a luz do tecto. Subitamente, inclinou-se e fez-lhe cócegas na nuca com o bigode.
- Meu encanto! - exclamou ele. - Não me consigo esquecer do teu ar quando... bom, imagino que te lembres. Isto é agradável, não é? Estão tão contente por teres podido vir!
Beberam mais um cocktail de champanhee cada um. Depois, ele abriu uma grande garrafa de Muscadet. Deitou um pouco num copo limpo e bebeu cautelosamente um pequeno golo.
-Ah - suspirou ele, arregalando selvaticamente os olhos -, pó na língua. Agora...
Estava tudo preparado. Ele serviu a salada habilmente. Depois, colocou uma travessa com duas lagostas, cortadas ao meio e partidas, no centro da mesa. Encheu os copos de vinho, sentou-se à frente dela e desdobrou o guardanapo engomado com um floreado galante.
- Avança! - ordenou ele.
Comeram a salada toda, comeram a lagosta toda, comeram quase a fruta toda e recostaram-se, satisfeitos, a beber o vinho.
- Depois, há café - prometeu ele. - Talvez lá dentro, antes de começarmos a trabalhar. Queres brande? Um licor? Tenho algumas coisas engraçadas das quais penso que gostarias.
-Absolutamente mais nada. O vinho está óptimo. Oh, Jo, não me consigo mexer. Que cozinheiro maravilhoso tu és!
- Cozinheiro? - Ele riu-se. - As únicas coisas cozinhadas foram as lagostas, e isso não tem nada que saber.
- Mas sabes tanto acerca de comida e vinho e tudo!... Adoro a forma como gritaste com o dono daquele restaurante italiano. Suponho que tenhas tido de aprender tudo
isso depois de a tua mulher ter morrido.
- Morrido? - disse ele, intrigado. -A minha mulher não morreu. Está a viver em Palm Beach, na Florida. Estamos divorciados.
-Jo Rhodes - disse ela zangada -, disseste-me que ela morreu há anos e anos. Lembro-me distintamente disso e não percebi mal.
- Claro, claro.-Ele deu uma risadinha e umas palmadinhas na
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mão. - Mas o que eu queria dizer é que, para mim, ela está morta. Santo Deus, não a vejo nem falo com a mulher há mais de dez anos. Voltou a casar. Pensou que ele era um conde francês, mas, afinal, era jogador de futebol. Fez-me acreditar em Deus. A pensão de alimentos estava a matar-me. Vamos tomar café lá para dentro?
Ele serviu o expresso em pequenas chávenas de porcelana branca translúcida decorada com pequenas campainhas.
- Oh, meu Deus - suspirou Helen -, são tão bonitas. Se partir uma, nunca perdoarei a mim própria.
- Sim, são bonitas, não são? Carole Lombard deu-mas, mais ou menos um mês antes de ser morta. Fiz alguns retratos informais dela e a Life usou-as para uma capa. Naturalmente, ela ficou encantada.
- Isso foi antes ou depois de te divorciares?
- Oh, muito, muito antes.
- Deves ter estado casado muito tempo.
- Sim. Muito tempo...
- Tivestes alguns filhos, Jo?
- Tivemos um filho, um rapaz maravilhoso. Era muito parecido com Leslie Howard. Mas morreu na guerra.
- No Vietname?
- Oh, não, na segunda guerra mundial. Ele estava na Marinha, a comandar um contra-torpedeiro. Sacrificou-se. Virou o barco, direito a um torpedo japonês, e salvou um couraçado. Veio em todos os jornais. Tenho as medalhas dele num cofre, no Banco.
Ficaram sentados num silêncio solene, durante alguns momentos.
- Jo - disse ela, franzindo a testa -, deves ter casado muito novo, para teres um filho com idade para entrar na segunda guerra mundial.
- Oh, sim, eu era muito novo, mesmo muito novo. bom, acho que agora vou tomar um pequeno conhaque. Queres um?
- Acho que é melhor - assentiu Helen Miley.
Ele empoleirou-a num banco alto contra um fundo negro e aproximou a sua grande máquina fotográfica de estúdio. Foi tagarelando, enquanto tirava rolos de filme de um armário e acendia as luzes fortes.
- Primeiro, vamos tirar algumas poses convencionais e, depois, quero tentar em contra-luz para formar uma auréola com o teu cabelo. Tenta manter o queixo para baixo.
Não em cima do peito, mas ligeiramente recuado. Humedece os lábios, antes de eu disparar. Lábios ligeiramente entreabertos. Não abertos... só entreabertos.
Ele enfiou a cabeça por debaixo do pano preto, empurrou a pesada máquina para a frente e ligeiramente para a esquerda.
- Está bem - disse ele. A voz soou abafada e indistinta. - Vira
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o corpo para a esquerda. Não, para o outro lado. Exacto. Não, foi de mais. Vira-te um pouco mais para mim. Exacto. Óptimo. Agora, mantém os ombros e o corpo nessa posição e vira a cabeça na direcção da câmara. Olha para mim. Excelente.
Ele saiu de debaixo do pano, com o fez inclinado sobre uma orelha. Trotou para junto dela, ajeitou a gola aos folhos da sua blusa de seda branca.
- Posso desapertar o primeiro botão?
- Os que quiseres - tranquilizou-o ela.
Mas ele apenas desabotoou o primeiro, puxou-lhe ligeiramente o decote, correu para a câmara e voltou a desaparecer debaixo do pano.
- Magnífico - disse ele, emergindo. Tirou o pano, meteu a placa de filme e deu um passo para o lado, a segurar numa pêra de borracha ligada por um longo tubo ao disparador.
-Aqui vai. Humedece os lábios. Lábios ligeiramente entreabertos. Um pouco mais. Óptimo. Queixo ligeiramene para baixo. Endireita-te. Estás curvada. Ombros para trás. Arqueia as costas. Peito para fora. Exacto. Põe o braço direito ligeiramente para trás. Um pouco mais. Óptimo. Óptimo. Assim mesmo. Um sorriso. Um pequeno sorriso. Sim. Exacto... jáestá!
Ele trabalhou rápida e eficientemente, durante quase quarenta e cinco minutos. Depois, quando viu que Helen estava a começar a ficar cansada, com o rosto a brilhar de suor do calor dos focos, fez um intervalo. Apagou as luzes e foram para a zona de estar, para fumarem um cigarro e beberem outro brande.
- É um trabalho cansativo - disse Helen. - Sinto-me quase cozida. Conseguiste alguma coisa boa?
- Acho que sim. És muito bom modelo. Muito paciente. E estás descontraída. Veremos o que sai na película. Algumas pessoas têm impacte, mas outras não.
- Alguma vez fotografaste a tua mulher, Jo?
- Muito raramente. Ela não era fotogénica. De qualquer forma, rasguei todas as fotografias que tinha dela. Uma noite, numa fúria de bêbado, destruí tudo que me fazia lembrá-la. Fui brutal. Até parti o ramo de noiva que ela guardava numa redoma de vidro da qual o ar tinha sido todo retirado. E deitei fora os sapatinhos de bebé do nosso filho, que ela tinha mandado moldar em bronze e montar para fazer dois suportes para livros.
- Que tipo de mulher era ela?
-Terrível-disse ele imediatamente.-Simplesmente terrível. Podia contar-te histórias que não acreditarias.
- Tenho a certeza de que sim.
- Ela transformou a minha vida num inferno - disse ele num tom sorumbático. - Num verdadeiro inferno.
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- Que fez ela?
- bom, minha querida... é uma questão bastante delicada. Sabes, ela tinha um apetite sexual que era simplesmente insaciável. Pelo menos, eu não o conseguia satisfazer e duvido de que um único homem pudesse. Ela era-me constantemente infiel... constantemente. Imagino que talvez fosse um problema psicológico, sabes? De qualquer forma, ela simplesmente não se conseguia controlar. Era triste... aquela mulher bastante bonita e educada a atirar-se a actores, médicos, empregados de sapataria, o homem do gelo... nesse tempo tínhamos geladeiras... até estranhos que encontrava na rua.
- Ela bebia?
- Não em excesso. A sua loucura era diferente. Nunca me esquecerei da tarde em que John Barrymore veio ao meu estúdio tirar retratos para o teatro. A minha mulher estava presente, olhou para ele e perdeu imediatamente a cabeça. Ele era um homem extremamente encantador, sabes?, embora andasse frequentemente embriagado.
- Adorei vê-lo em A Yank at Oxford.
- Esse era Lionel - disse ele zangado. - De qualquer forma, a minha mulher foi com John Barrymore para o seu quarto de hotel e só voltou para mim passados três dias... e, mesmo assim, com estrelas nos olhos. A nossa vida foi uma sucessão de incidentes desagradáveis como esse. Uma vez, demos uma festa e fui dar com ela no armário das vassouras, em flagrante delito... verticalmente, entendes... com o marçano. Foi horrível.
- Que pena! Mas por que é que não a deixaste, Jo?
- Porquê? - disse ele numa voz cava. - vou dizer-te porquê. Porque estava apaixonado por ela. Oh, minha querida! - exclamou ele apaixonadamente, inclinando-se para a frente e agarrando-lhe nas mãos. - O amor é, de facto, cego. Damos as nossas maiores bênçãos às pessoas mais indignas, porque não conseguimos deixar de o fazer. Vivemos uma vida de dor e horror, por causa do nosso amor. Mas não podemos viver sem ele, porque é a única coisa que temos. Baixou a cabeça.-É a única coisa que temos-repetiu ele numa voz baixa e entrecortada.
- Oh, Jo! - murmurou ela, aproximando-se mais dele, pondo-lhe um braço por cima dos ombros. Sentiu-o tremer ligeiramente e vieram-lhe lágrimas aos olhos.
Ele olhou para ela, tirou o pince-nez e limpou lentamente as lentes com a manga,
- Portanto, estás a ver, minha querida, quando ela encontrou o homem que ela pensava ser um conde francês, mas que mais tarde se descobriu que era jogador de ténis, ela...
- Jogador de futebol.
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-Ah, sim, jogador de futebol. bom, ela disse que a felicidade dela era com outro e pediu-me que lhe desse a sua liberdade. Foi uma tortura deixá-la ir, mas, se isso
significava a felicidade dela, eu tinha de o fazer. É isso que é o amor, Helen... o sacrifício pela pessoa que amamos. De certa forma, foi um alívio, ficar livre
da dor das infidelidades dela, mas não tardei a descobrir que a vida sem ela não era nada. Fria e assustadora e solitária. Só anos depois recuperei da minha depressão. Pensei muitas vezes em suicidar-me e, uma vez, estive muito perto de o fazer. Mas hesitei de cada vez, talvez com a leve esperança de que um dia pudesse vir a conhecer uma mulher digna do meu amor. - Ele virou-se e olhou-a nos olhos. - Uma mulher como tu, Helen.
- Oh, Jo - murmurou ela -, és tão querido.
- bom - disse ele num tom decidido, pondo-se de pé num salto -, mais um brande, e voltamos ao trabalho.
Desta vez, usou uma câmara 120 montada num tripé de metal, com as lentes limpas com uma fina camada de vaselina. Um pequeno foco foi colocado no chão, atrás de Helen. Aluz foi apontada para cima e lançou uma auréola de luz em volta da sua cabeça e ombros.
Passaram meia hora a gastar três rolos de filme, de doze fotografias cada. Depois, Jo Rhodes apagou as luzes do estúdio e ligou o ar condicionado.
- Já chega para uma sessão - declarou ele, encostando o equipamento à parede. - Amanhã, levo os rolos ao laboratório e, na próxima semana, já devemos ter as provas. Nessa altura, telefono-te e encontramo-nos para decidirmos de quais queremos cópias. Que te parece?
- Óptimo. Espero que me deixes pagar...
- Que disparate, minha querida.-Ele sorriu e beijou-a na face.
- Foi para isso que puseram os homens na Terra... para comprar presentes às mulheres. Se te ofereceres para pagar, eles obrigar-te-ão a demitir do sexo feminino. bom, vamos decontrair-nos e descansar. Que vamos tomar... mais brande? Vinho? Licores?
- Talvez seja melhor não - disse Helen, duvidosa. - Sinto-me um bocadinho tonta.
- É do calor das luzes. Talvez um copo de vinho gelado te anime. Acho que vou beber um pequeno conhaque. Deixa-te ficar aí sentada e deixa-me servir-te.
Uma hora mais tarde, depois de quatro dos seus pequenos conhaques, ele pôs-se de pé, ligeiramente inseguro, e murmurou:
- Por favor, desculpa-me por alguns instantes. vou vestir qualquer coisa mais confortável.
Ele demorou tanto que ela ficou inquieta. Mas, finalmente, saiu do quarto, a sorrir serenamente. Vestia um robe comprido de seda
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preta, com um dragão carmesim bordado nas costas. Por debaixo do robe, trazia um pijama de seda amarelo-vivo. Calçava chinelos persas que terminavam em longas pontas, cada uma com um pequeno guizo de prata que tilintava quando ele andava. Tinha uma écharpe de seda branca ao pescoço, à moda de Ascot. O seu fez estava atrevidamente inclinado sobre um dos olhos. Estava a fumar o seu Gauloises numa comprida boquilha de mármore intricadamente trabalhada. O pince-nez era um mau substituto de um monóculo.
Pôs-se à frente dela, a oscilar ligeiramente, abrindo os braços.
- Olhai! - disse ele, com um sorriso idiota. - Uma visão de encanto!
Súbita e inesperadamente, os seus ossos dissolveram-se. Ele derreteu-se suavemente no chão, numa poça de seda preta e amarela. O fez saltou e rolou para longe. Os guizos tilintaram alegremente.
Helen correu para ele, ajoelhando-se. Aparentemente, não estava ferido. Estava a dormir, a respirar pesadamente, ainda a sorrir. Ela abanou a cabeça, espantada.
Foi ao quarto, trouxe uma almofada e um cobertor. Endireitou-o o melhor que pôde, meteu-lhe a almofada por debaixo da cabeça e aconchegou ternamente o cobertor à sua volta.
- Seu maluco - murmurou ela afectuosamente.
Quando chegou à rua, com a gabardina por cima dos ombros, ouviu o ribombar distante de trovoada. O ar estava espesso e não se viam estrelas.
Os poucos táxis que ela viu ou estavam ocupados ou iam com a luz "Fora de Serviço" acesa.
Ela começou a andar para leste, em direcção à Terceira Avenida. Entre Lexington e a Terceira, um comprido carro preto parou a par dela e uma voz roufenha gritou:
- Uma boleia em troca de uma queca!
- Vai levar no cu! - gritou ela em resposta. O carro afastou-se com os pneus a chiar.
Um novo trovão soou mais perto, e ela decidiu ir a pé para casa: ir pela Terceira Avenida até à Rua 51 e depois para leste, para o seu apartamento, perto da Segunda.
Caminhou energicamente, com as suas pernas boas a cintilar, embriagada com a noite, sorrindo ocasionalmente, arrotando uma vez, tropeçando duas vezes no lancil. Foi ao primeiro bar decente que encontrou, utilizou a casa de banho e depois retomou a sua caminhada.
Havia Jo Rhodes e Richard Faye e até Harry Tennant e Charles Lefferts. Aconteceria qualquer coisa. Sentia que podia viver para sempre. Mas tentou não ter esperança, para não agoirar o seu futuro.
Depois, trojevou mesmo por cima da sua cabeça. Ela estava na
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Rua 50 quando começou a chover. Foi a correr todo o caminho até casa. Quando entrou no prédio, estava encharcada e a tremer.
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O rádio-relógio começou a tocar alguns minutos antes das 8 da manhã, e Helen Miley acordou ao som da canhonada da Abertura
1812...
- Jesus, Deus! - exclamou ela numa voz abafada. Sentou-se bruscamente na cama, convencida de que os russos tinham desembarcado em Battery Park e estavam a avançar
para a cidade, pelo metropolitano da Avenida Lexington.
A música terminou, o locutor apareceu e ela pegou no primeiro cigarro do dia. Sentou-se com os braços em volta dos joelhos, a fumar, à espera do noticiário.
- Fontes oficiais israelitas informam que quatro guerrilheiros árabes foram mortos...
- Um negro foi morto e três foram feridos numa noite de violência que deixou...
- Forças rodesianas informam que mataram mais de cinquenta guerrilheiros numa emboscada perto de Salisbúria...
- Uma família de seis pessoas morreu quando o seu carro... Lembrando-se do filme Gunga Di, que tinha visto no The Late
Show, Helen Miley ergueu os braços para o céu e entoou numa voz trémula:
- Mata! Mata! Mata por Kali!
Satisfeito com isto, Rocco pôs-se de pé com alguma dificuldade. Bocejou, chupou a própria língua e estremeceu. Foi para junto da cama. Helen baixou-se para lhe torcer as orelhas com ternura.
- Querido Rocco, meu rapaz - disse ela. - Dormiste bem, querido?
Saltou da cama, nua, e trotou até ao hall de entrada. Espreitou pelo óculo para se assegurar de que não estava ninguém no corredor, destrancou e abriu a porta. Abriu-a apenas o suficiente para puxar rapidamente para dentro o jornal da manhã, que estava em cima do tapete.
Abriu-o imediatamente na secção "O Seu Horóscopo para Hoje" e procurou o parágrafo entitulado "Aquário".
"Socialmente muito activa, com um clímax possível para o próximo fim-de-semana. Os seus amigos vão agitar a sua vida."
- Caramba! - exultou ela.
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Deu a Rocco fígado de galinha moído (com cebola) e depois foi à gaiola e tirou a cobertura. O pássaro olhou para ela, amuado.
- Então? - perguntou ela. Silêncio.
- Idiota-resmungou ela. - Se há coisa que eu não suporto é um periquito idiota.
Deitou-lhe alpista no recipiente e depois foi para a casa de banho e pôs a touca. Era, na realidade, uma cobertura de prato, mas servia admiravelmente como touca de banho. Enquanto se ensaboava e passava por água, cantou dois versos de Sitting One Night in Murphys bar, uma balada obscena que Charlie lhe tinha ensinado.
Empoada e perfumada, voltou para o quarto e marcou WE 6-1212 para saber como ia estar o tempo. "Nublado durante a manhã, limpando para a tarde. Máxima quinze. Probabilidade de precipitação quarenta por cento. Esta noite..."
Encontrou finalmente duas meias que condiziam. Calçou-as e prendeu-as a um minicinto-liga que tinha comprado numa loja de Times Square chamada Stage Undies.
O seu soutien insuílável estava ligeiramente mole, mas bastou uma sopradela para lhe restaurar a rigidez. Depois, vestiu uma camisa Chloe de seda cor de marfim, uma saia à camponesa num padrão Saint-Laurent, um casaco curto e botas. Olhou-se ao espelho de corpo inteiro na porta do quarto do lado de dentro.
- A matar! - disse.
Passou um pente pelo cabelo e depois sacudiu violentamente a cabeça, para dar aos caracóis curtos um ar descuidado. Maquilhou-se rapidamente, estalou os lábios e estava pronta para lutar ou brincar.
Acendeu um cigarro, agarrou na carteira, no jornal e na gabardina e saiu rapidamente porta fora.
- Adeus, Rocco - gritou. - Porta-te bem.
- bom dia, Menina Miley - disse o porteiro.
- Olá, Marv. Novidades?
- Sandestone em terceiro - disse-lhe ele.
- Dois no primeiro - disse ela, remexendo na carteira. - Está aqui um dólar. Quando tiver oportunidade, leve o Rocco a dar uma volta, sim? Só até à esquina e voltar. Vá devagar... ele já não é o mesmo que era.
- Quem é? - perguntou o porteiro.
Tomou o pequeno-almoço na lanchunette da esquina.
- bom dia, Jer - disse ela. - Como vai a constipação?
- Melhor, querida. Estás com um aspecto fabuloso esta manhã. Se não estivessem cá mais clientes, eu atirava-me.
- Continua a tentar, Jer - aconselhou ela. - Um dia, um descobridor de talentos descobre-te a ti.
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- O habitual, querida?
Ela assentiu, pôs os óculos, abriu o jornal. Começou a ler a coluna dos anúncios. Quando estendeu a mão para o café e a torrada, estes já estavam no balcão à sua frente.
- bom dia, Menina Miley - disse o ascensorista. - Assim que o nevoeiro levante, vai estar um dia lindo.
- Exacto - concordou Helen, lembrando-se do seu horóscopo. Pensou por instantes... pensou nos quatro homens que tinha actualmente na sua vida.
- Prefiro o quatro-quatro-um, Joe. - disse ela. - Um dólar no quatro-quatro-um. - E pagou.
- Boa sorte, Menina Miley - disse ele, puxando do seu pequeno bloco de notas.
Susie Garrar e Harry Tennant estavam ao telefone quando ela entrou. Olharam para cima, retribuíram o seu aceno. Ela dirigiu-se, com passos enérgicos, para o seu gabinete, tirou a gabardina e atirou-a para cima de um estirador cheio de tralha.
Sentou-se à secretária, recostou-se na cadeira giratória, pôs os pés em cima do tampo, acendeu outro cigarro e começou a ler "Chegadas e Partidas de Navios", no jornal da manhã, repetindo as notícias em voz alta:
- Concórdia Faro. Kuweit, Manama e Basra. Parte da Avenida Hamilton, Brooklyn. Export Challenger. Haifa e Istambul. Parte do Cais B, Brooklyn. Lightning. Havree Felixstowe. Parte do Cais 13, Staten Island. Rotterdam. Cruzeiro das índias Ocidentais. Parte da Rua Houston Oeste. Michelangelo. Algeciras, Nápoles, Cannes e Génova. Parte da Rua 50 Oeste.
Ficou em silêncio por instantes, a sonhar. Depois acrescentou:
- E o bom navio Swanson and Feltzig, a navegar para nenhures da Rua 48 Leste.
Harry Tennant bateu à porta uma vez e depois baixou a cabeça para entrar. Helen tirou os pés de cima da secretária e endireitou- se.
- Raios - resmungou ela -, tenho de deixar de pôr os pés em cima da secretária ou então começar a usar calças... ou uma ou outra.
- Sim, de facto. - Ele sorriu. - Como é que está esta manhã, Helen?
- Cheia de energia. Que se passa?
- Os comunicados do Concord ainda não chegaram. Telefonei a Solly e ele disse que a máquina se tinha avariado.
- Sim, claro - disse ela amargamente, pegando no telefone -, avaria sempre com os nossos trabalhos, quando ele tem um trabalho urgente para outra pessoa que lhe pague mais... Solly?... Fala Helen... não me venhas com falinhas mansas, meu miserável... onde raio estão os meus comunicados?... Solly, juro que vou imediatamente
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aí e, se estiveres a trabalhar noutro material, telefono à tua mulher e digo-lhe que temos um caso e que quero que ela te dê o divórcio... Solly, juro que faço isso... arranjo-ta bonita... está bem... Está bem, Solly... Desde que os tenha até ao meio-dia.
Desligou.
Piscou o olho a Tennant.
- Aterrorizo-o. Ele acha que estou a brincar em relação à mulher, mas não tem a certeza.
- E está mesmo a brincar?
-Oh, claro! Não faria isso a tipo nenhum. O filho-da-mãe. Ganha uns vinte mil por ano connosco e, no Natal passado, deu-me um chapéu de chuva da Korvette. O Bucha e o Estica receberam cada um uma caixa de garrafas de uísque e eu levo um chapéu de chuva. A história da minha vida. Que mais é que há? Puxe uma cadeira.
Durante mais de uma hora, reviram comunicados de Imprensa, mailings, calendarizações, almoços...
- Ouça, Harry, tenho um compromisso de almoço ao meio-dia e meia, mas devo estar de volta, o mais tardar, às duas e meia. Quando chegarem os comunicados, importa-se de começar a fazer as colecções? vou dizer a Susie para o ajudar, se não tiver correspondência. Depois, quando eu voltar, também ajudo. Mas vamos ter de trabalhar até tarde. Há quase quinhentos desses malditos comunicados. Pode ficar até mais tarde?
- Claro.
-Obrigada. Você é um homem branco.-Ela sorriu-lhe, mas ele não sorriu. - vou encomendar comida para entregarem por volta das seis. Quer comida chinesa?
- Por mim, está óptimo.
Ela recostou-se na cadeira e fitou-o.
- Está arrependido de ter aceite o emprego?
- Oh, não. Gosto dele. Estou a aprender muito. Agora, estou do outro lado do muro. Quando estava no jornal, era inundado com comunicados de Imprensa e convites e mailings. A maioria ia para o caixote do lixo. Agora, estou a tentar arranjá-los... sabe?
- Claro. Ouça, talvez haja uma hipótese de o podermos manter cá. A Abbott and Costello está a atirar-se à conta Everbright. Se a conseguirmos, precisamos de si a tempo inteiro.
- Gostava muito.
- bom, não vá comprar uma piscina. É só uma hipótese. Tem lume?
Ele inclinou-se para a frente com um fósforo. Ela inclinou-se para a frente com o cigarro. As suas cabeças estavam ao mesmo nível e, inesperadamente, os seus olhares
fixaram-se um no outro.
Ele era, viu ela, um homem distante, bem-parecido, fechado em
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si próprio, com o fogo controlado. O seu olhar era pensativo, desconfiado, quase esquivo.
- Helen - disse ele numa voz áspera. - Estava a pensar... Calou-se. Respirou fundo, virou-se e ficou a olhar para a parede.
Pigarreou para limpar a garganta.
- Estava a pensar - disse ele em voz bem alta - se gostaria de almoçar comigo um dia em que esteja livre.
- Claro, querido. Adorava. Diga quando quiser. Ele virou-se para olhar de novo para ela.
-Alguma vez saiu com um negro? - perguntou ele baixinho. Isto é, em público? A um restaurante, um teatro... a um sítio desses?
- Não, nunca saí.
- bom... sabe, às vezes as pessoas falam. Sabe, vão ver-nos juntos e dirão coisas, suficientemente alto para nós ouvirmos.
- Que se lixem - disse ela, irada.
- bom, Helen, pense nisso. Se decidir que prefere não ir, eu...
- Que raio, Harry, já pensei nisso e disse que sim, que gostava de ir almoçar consigo. Por que está a complicar tanto a questão?
Ele pegou nos seus papéis, endireitou-se e olhou para baixo, para ela, a sorrir suavemente.
- Além disso - disse ela -, só existem duas raças neste mundo... homens e mulheres. Certo?
Ele pensou durante alguns instantes, com a cabeça inclinada para um lado.
- Sabe - disse ele -, pode muito bem ser que tenha razão.
Ela estava atrasada. Estava a chuviscar e não conseguiu arranjar um táxi. Feita idiota, tinha deixado a gabardina no escritório e, quando chegou ao restaurante, a sua saia de lã fina estava colada a si como uma mortalha molhada.
-Tiveste saudades minhas-perguntou ela, lançando-lhe um sorriso atrevido.
Richard Faye pôs-se de pé num salto, entornando um copo de água na toalha. Um empregado veio a correr estender umguardanapo seco.
- ... com isso - disse o empregado, mostrando os dentes.
- Olá! - disse Faye. - Eu não... não... pensei...
- Um Rob Roy seco-disse ela firmemente, sentando-se e aproximando a cadeira da dele. Ela pôs os óculos de aros de tartaruga e fitou-o. - Santo Deus! - disse ela.
Ele tinha, obviamente, feito um esforço para se aperaltar para o almoço, e ela ficou comovida. Comovida e ofuscada.
Um fato Lauren, com mais botões do que ela conseguia contar, fazia-lhe cintura.
- Muito bonito - assentiu ela. - O castanho-merda é a tua cor.
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Ele riu-se e tocaram com os copos.
- Estou a ganhar-te por um - disse ele.
- Um?
- Ah... dois. Pensei que me ias deixar pendurado.
- Nem por sombras! - Ela pôs a mão em cima da dele. - Como estás, querido?
- Agora, sinto-me óptimo. - Ele tirou a mão, atirou com uma colher para o chão, baixou-se para a apanhar e perdeu o guardanapo.
O empregado acorreu, substituiu o guardanapo, trouxe uma colher limpa.
- ... com isso - disse ele, olhando para Faye com ódio. - Encomendam já?
- Só um minuto - disse Helen. - Este homem acabou de me engatar e estamos a conhecer-nos.
O empregado sorriu enquanto se afastava às arrecuas até ir contra o mattre dhotel.
- Dois malucos - resmungou ele.
- Tudo sobre mim? - disse Faye. - bom... por onde devo começar?
"Não é assim tão mau", pensou ela, olhando fixamente para ele. Havia um rosto por detrás daquela mancha, um corpo debaixo daquela gordura. "vou tirar-lhe quinze quilos", jurou ela, "e deitar fora a água-de-colónia frutada. E, de cada vez que ele estalar os dedos para chamar um empregado, dou-lhe uma palmada na mão."
- Um investigador - dizia ele. - Não, um escritor. Apenas um investigador. Amerinews Syndicate. Recolho todos os factos e entrego-os a um dos escritores da nossa equipa. Ele escreve um artigo e mandamo-los aos nossos clientes aqui e no estrangeiro. Não é uma empresa muito grande, mas temos escritórios em Londres e em Roma. Estamos a fazer uma coisa sobre a cozinha da era espacial... sabes, micro-ondas e aparelhos electrónicos e coisas assim. O que explica o que eu estava a fazer no teu almoço.
- Sabias que - disse ela -, quando falas, a ponta do teu nariz anda para cima e para baixo?
Pediram melão, seguido de caranguejos com salada e uma garrafa pequena de vinho branco. Faye ia a pegar no cigarro, quando descobriu que este tinha caído da borda do cinzeiro e estava a queimar a toalha.
- Oh, que raio! - Franziu a testa. - Não sei o que é que tenho hoje.
- ... com isso. - O empregado suspirou, estendendo outro guardanapo sobre a ferida. Os olhos dele eram bons, decidiu ela. Grandes e castanhos e implorativos. Olhos de cocker spaniel.
- Aqui, rapaz - disse ela.
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- Quê? - perguntou ele.
Mas, nesse instante, uma colherada de melão saltou da sua colher e escondeu-se no seu colo.
- Tch! - exclamou ele, metendo a mão entre-pernas e olhando, irritado, para ela.
- Nem uma palavra! -jurou ela, erguendo a palma da mão.
- bom - disse ele, mordiscando uma pata de caranguejo -, estive numa companhia aérea como funcionário de reservas, vendi assinaturas de revistas ao telefone e fiz demonstrações de acessórios para casa de banho.
- Andaste um bocado aos saltos - disse ela, bebendo o vinho.
- Aos saltos. Sim.
- Mas que queres realmente fazer?
- Sim... é isso...
- Isso o quê?
- Que é que eu quero realmente fazer?
Ele partiu um bocado de pão francês, pôs manteiga, deixou-o cair no chão (com a manteiga para baixo, obviamente) e ficou a olhar para ele. O empregado ficou a olhar para ele.
- bom... - disse ele pesarosamente. - Francamente, não sei. Qualquer coisa.
Recostaram-se. Ele acendeu-lhe o cigarro e, depois, acendeu o seu, levando o fósforo à extremidade errada. O filtro começou a arder.
- Estou nervoso - disse ele.
- Eu nunca teria percebido - tranquilizou ela.
- Trabalhei noutra agência noticiosa. Não nesta onde estou agora. Fazia os "tapa-buracos". Sabes o que são? Informações com uma ou duas linhas. Os jornais chamam-lhes "chapas". Sabes, coisas como "O crocodilo africano, normalmente um animal feroz, fica indefeso quando virado de barriga para o ar". E "Todos os anos, na Grã-Bretanha, nascem em média três crianças com caudas rudimentares". Coisas assim.
Ela pediu um pequeno conhaque, a pensar em Jo Rhodes. Faye pediu um Gallianos com uma rodela de lima. Espremeu a lima, lançando-a habilmente por cima do ombro de Helen para uma mesa próxima. O empregado gemeu.
-De qualquer forma-disse ele -, passei muitas manhãs na biblioteca à procura de "tapa-buracos" na enciclopédia e em livros científicos. Depois do almoço, voltava para o escritório e escrevia-os. Tinha de entregar uns vinte cinco "tapa-buracos" por dia. Foi divertido, durante algum tempo. Aprendi muitos factos estranhos sobre coalas e sobre quanto valeriam os minerais no corpo humano se fossem vendidos.
- Quanto valho?
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- Cerca de três dólares. Um dia, eu estava tão chateado que não fui à biblioteca. Depois do almoço, fui para o escritório e escrevi vinte cinco "tapa-buracos". Inventei-os. Pareciam todos correctos. "Um em cada catorze ovos tem gema dupla." "O lemur é conhecido pelo seu apetite insaciável por chalotas." "O primeiro espartilho de mulher contendo barbas de baleia foi feito em Waltham, Massachussetts, em
1816." Coisas assim. Inventei-as.
- Que aconteceu?
- Não aconteceu nada. O editor lia-as e entregava-as, eram impressas e iam para os nossos clientes. Portanto, deixei de ir à biblioteca todas as manhãs e ficava a dormir até tarde. Ia para o escritório depois de almoço e inventava vinte cinco "tapa- buracos". Começaram a ficar cada vez mais loucos.
- Ninguém deu por nada?
- Ninguém. Um dia escrevi: "Os cientistas estão intrigados pela completa ausência de pé-de-atleta em Samoa." A empresa recebeu uma carta de um médico que estava a escrever um livro sobre doenças de pele. Pedia a fonte do "tapa-buracos" ao editor, que me mandou uma carta onde escrevinhou: "Diga-lhe qual foi a sua fonte."
- Que fizeste?
- Embebedei-me. Pensei que era o fim. Mas depois pensei: "Ora, vai em frente." Portanto, escrevi ao médico a dizer que a fonte era um livro chamado Samoan Doctor, escrito por J. C. Whitten, em 1937. Nunca mais ouvi falar do assunto. Cerca de um ano mais tarde, vi o livro que o dermatologista tinha escrito. Na parte sobre infecções por fungos, dizia: "Os cientistas estão intrigados pela completa ausência de pé-de-atleta em Samoa." Em nota de pé de página, referia o livro Samoan Doctor, de J. C. Whitten. Eu tinha-me tornado imortal.
- É de loucos. Deves ter-te rido muito.
- A princípio, sim. Mas depois incomodou-me. Os meus "tapa-buracos" estavam a ser publicados com tanta facilidade que comecei a duvidar de tudo o que lia. O que era verdade e o que era inventado por alguém como eu, que queria ficar a dormir até tarde? Portanto, deixei esse emprego e fui para uma revista de pesca.
- És pescador?
- Santo Deus, não! A única coisa que eu fazia era organizar o material e rever provas, coisas assim. bom, tínhamos um escritor, um tipo da Florida, que fazia história sobre lúcios e trutas. Peixes desses. As suas fotografias eram magníficas. Tinha sempre uma fotografia de um peixe a saltar para fora de água, a pingar e a brilhar. Um dia comentei com o editor que eram fotografias magníficas. O editor riu-se e disse que esse escritor comprava peixes embalsamados a um taxidermista. Depois, um amigo dele vestia um fato de mergulho e
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metia-se na água a um metro e oitenta ou dois metros de profundidade e levava o peixe embalsamado consigo. Depois, de pé, no fundo, atirava o peixe embalsamado para
cima, para fora de água, e o escritor fotografava-o.
- Lindo.
- Helen, por que te estou a contar tudo isto?
- Não faço a mínima, querido.
O rosto dele ficou sorumbático e baixou os olhos.
- Oh! - disse ele. - Eu sei... Isso afectou-me. Quero dizer, os "tapa-buracos" falsos que eu inventei e o peixe embalsamado a sair da água. Comecei a pensar no que era falso e no que era verdadeiro. Ainda não me recompus disso.
Ela pôs a mão sobre a dele. Desta vez, ele não a afastou.
- Eu sou verdadeira.
- Oh, sim, sem dúvida. - Ele sorriu. - És a pessoa mais verdadeira que conheci em toda a minha vida. Mas serei verdadeiro?
Se havia alguma resposta para isso, ela não a sabia.
- Quero dizer - disse ele numa voz entrecortada -, aquilo que eu sinto, a forma como reajo às-pessoas. Isso é verdadeiro? A conta, por favor.
Ele conferiu cuidadosamente a conta.
- Tem um dólar a mais - disse ele ao empregado. - Enganou-se. O empregado arrancou-lhe a conta da mão e voltou a somá-la.
- Está certa - disse ele entredentes, devolvendo-a.
- Helen, soma-a tu. Ela somou-a.
- Está certa, Uck.
- Se assim o dizes...
Ele parecia confuso, vulnerável.
Saíram para o sol. Os passeios ainda estavam molhados, mas o céu estava tão azul que parecia ter sido lavado, torcido e posto a secar.
- Quando volto a ver-te? - perguntou ela.
Mas ele estava perdido algures e ela teve de repetir a pergunta. Depois ficou espantado.
- Queres?
- Claro!
- Oh!-disse ele.-Bom... na próxima semana. Que tal quarta-feira?
- Está óptimo, Uck.
- Vamos almoçar ou jantar fora. Eu telefono-te.
- Óptimo. Obrigado pelos comes.
- Eu falei de mais - disse ele, baixando a cabeça, - Portei-me como um idiota.
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- Tu não és um idiota.
- Sabes?, não sou. Acho que estava um pouco enervado. Tu és a primeira mulher com quem saio... há bastante tempo. Já me esqueci de como me comportar.
- Foste óptimo.
-vou melhorar. - Ele sorriu, lançando os ombros para trás, endireitando a espinha. Ela ouviu o pequeno estalido. Ela beijou-o na face e ele encolheu-se ligeiramente. Despediram-se. Ele pôs o pequeno chapéu, que era, pelo menos, dois números abaixo do ideal, e foi-se. Ela ficou a vê-lo afastar-se pelo passeio cheio de gente, com o pequeno chapéu a andar para cima e para baixo, a sua figura a flutuar, indefeso e irreal.
- Muito bem - disse ela com as mãos nas ancas -, vamos organizar-nos.
Harry Tennant já tinha posto o estirador junto à secretária e colocara os montes de comunicados de Imprensa, resumos, fotografias e biografias dos executivos da empresa e dos cientistas que tinham desenvolvido o produto. Era um desodorizante em spray para gatos com cio.
As capas para a Imprensa estavam a ser organizadas para uma conferência com almoço, marcada para segunda-feira. De pé, junto da mesa, Helen, Susie Garrar e Harry tinham formado uma pequena linha de montagem e estavam a meter o material nas capas cor de laranja-vivo, enfeitadas com um gatinho a cheirar os órgãos genitais.
Trabalharam a bom ritmo e com pouca conversa, e o monte de pastas completas aumentou rapidamente. Interromperam às cinco e meia, e Susie telefonou para o restaurante chinês do lado e mandou vir camarões com arroz frito, chow mein de galinha, porco agridoce, kumquats e gelado de pistáchio. Além disso, mandou vir umRob Roy duplo para Helen, dois uísques com soda para Harry e uma garrafa de tónico de aipo para si.
Comeram tudo, acabaram com as sobremesas e beberam as bebidas até ao fim. Helen foi ao gabinete do Sr. Swanson e tirou uma garrafa de bourbon do bar. Beberam-no
em copos de plástico, com gelo tirado do frigorífico do escritório.
Susie Garrar foi-se embora pouco depois das sete. Helen e Harry continuaram a trabalhar durante mais uma hora, parando apenas para beber mais um bourbon. Depois acabaram, com as capas completas, no chão, em montes impressionantes.
- bom trabalho - disse Helen, satisfeita. - Na segunda-feira, chamamos um táxi e levamo-las ao hotel.
- Posso pedir um carro emprestado - ofereceu Harry Tennant.
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-Posso levá-las lá na segunda-feira de manhã. É melhor. Podemos não arranjar um táxi.
- Pode fazer isso? Óptimo, Harry. É uma grande ajuda. Meu Deus, estou morta!
Helen deixou-se cair na cadeira giratória, com a cabeça para trás. Harry Tennant pôs-se atrás dela e começou a massajar-lhe os músculos do pescoço e dos ombros. Os seus dedos compridos e macios beliscaram-na suavemente, fizeram pressão, acalmaram-na.
-Oh, oh, oh!-murmurou ela em êxtase, mexendo-se como uma boneca desconjuntada. - Quanto leva à hora?
Ele massajou-a até as dores e a tensão desaparecerem. Depois, parou abruptamente, foi para o outro lado do gabinete, acendeu um cigarro, dobrou-se pela cintura e ficou a olhar pela janela.
- E melhor ir andando - disse ele numa voz abafada. - Já acabámos tudo.
Apagaram as luzes e fecharam à chave a porta da rua. Ficaram parados no passeio, constrangidos. Havia qualquer coisa...
- vou a pé para casa - disse ela, por fim, numa voz demasiado alta. -Não é longe daqui. É na 51, ao pé da Segunda. Quer levar-me a casa?
- Sim - disse ele. - Claro.
Andaram devagar. O ar fresco da noite era um beijo. As pessoas ficavam a olhar para eles.
- Não se deixe levar pelo seu complexo de gueto - aconselhou ela. - Você mede o quê?, um metro e noventa e cinco? Eu tenho um metro e cinquenta e cinco. Provavelmente, acham que somos do circo.
Ele sorriu-lhe.
- Tudo bem.
Numa ocasião, ele pôs a mão no braço dela para a travar quando um táxi fez uma curva a alta velocidade, mas, de contrário, andaram sem se tocarem e sem falarem.
Pararam à porta do prédio de apartamentos de Helen. O porteiro de serviço, Mike, o que era mau... olhou para eles inexpressivamente.
- Quer subir para tomarmos uma bebida, Harry?
- Não - disse ele categoricamente. - Obrigado, mas não.
-Olhe lá-disse ela, desesperada -, não há qualquer problema. Que raio!, eu vivo aqui. Que importa o que ele possa pensar?
Tennant olhou para ela.
-Oh, Jesus! - suspirou ela.-Harry, há um bar na esquina com a Segunda. O Everest. Costumo lá ir. Conhecem-me. Não há problema.
Havia três velhotes sentados ao balcão do Everest, a ver o último jogo de basebol da época na televisão. Thack estava atrás do balcão, a limpar copos. Acenou com o pano-da-louça a Helen, quando eles entraram. Eles foram sentar-se num compartimento na sala das
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traseiras. Clara veio a arrastar os pés e exibiu a Helen, desafiadoramente, um olho negro.
- Meu Deus! - exclamou Helen. - Outra vez? Que animal! Clara, por que não pões esse tipo a andar?
Clara encolheu os ombros e fez uma careta.
- Não posso - disse ela. - Ele ama-me demasiado. Riram-se, e Clara perguntou:
- Quem é o namorado?
- Clara, este é Harry. Harry, esta é Clara.
Trocaram sorrisos. Clara anotou o pedido e foi a arrastar os pés até ao balcão.
- Ela tem um tipo - explicou Helen. - De vez em quando, ele arreia-lhe. Mas ela diz-me sempre: "Eu mereço, eu mereço!" Cada vez que lhe digo para o deixar, ela diz-me: "Quem mais é que eu tenho?" Acho que ela o ama.
- Claro - disse Harry. - São casados?
- Acho que não. Mas isso não parece preocupá-la. Clara voltou com as bebidas e um cesto com batatas fritas.
-Gritem quando acabarem.-Bocejou e voltou para o seu jornal da manhã, sentando-se a uma mesa ao fundo da sala. Helen virou-se.
- Clara - gritou -, que aconteceu a Sandestone na terceira? Clara passou o dedo pela coluna dos resultados.
- Qualificado - gritou. - Oito para um.
- Filho-da-mãe - disse Helen. - Perto... mas não paga. Harry riu-se.
- Aposta muito?
-Várias vezes por semana. Pouca coisa. Um ou dois dólares. Há cerca de um mês, ganhei quase cem dólares. Fui logo comprar uma peruca e nunca usei a maldita coisa.
- Óptimo. Gosto do seu cabelo assim.
Ela sorriu de prazer e passou os dedos pelos caracóis curtos. Ficaram ali sentados a beber, a sorrir, a sentirem-se bem.
- Sabe - disse ela, fazendo caras no tampo da mesa húmido -, não sei lá muito a seu respeito.
- Não há muito para saber.
- Quero dizer, donde é que você é e onde é que foi criado. Coisas assim.
- Oh... bom, nasci na Jórgia. Numa cidadezinha. Templeton. Os meus pais vieram para Nova Iorque quando eu tinha uns três ou quatro anos... por volta dessa altura. Viver no Harlem. O meu pai era porteiro e a minha mãe criada. Tenho uma irmã dois anos mais nova do que eu e um irmão quatro anos mais novo. Vivo com ele. Os nossos pais mandaram-nos a todos para a Universidade. bom... o meu
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irmão desistiu ao fim do primeiro ano. Sabe, também trabalhávamos, mas não teríamos conseguido sem a ajuda dos nossos pais.
- Ainda são vivos?
- Não. O meu pai morreu há cerca de cinco anos. A minha mãe morreu o ano passado.
- Os meus pais também já morreram. Vive com o seu irmão? Como é a vossa casa?
-Não é má. Um apartamento dos caminhos-de-ferro, num bairro razoável. Num quarto andar sem elevador. Cinco divisões. Todas pequenas, é claro, mas temos quartos separados. É de renda controlada, portanto, é bom. É habitável. Era onde vivíamos quando eram todos vivos. Cresci lá. Do lado de fora da cozinha, há um sítio. Não é um terraço nem nada parecido. É o telhado do quarto do andar de baixo. É um pequeno telhado plano. A minha mãe tinha lá gerânios. Apanha muito sol.
- Que faz o seu irmão?
-O meu irmão? Está numa organização. Pertence à câmara, mas também recebe fundos estatais e federais. Arranja empregos de Verão para miúdos e dá aulas nocturnas. O meu irmão é professor de uma classe de história negra. E muito activo neste tipo de coisas. Eu passo a vida a dizer-lhe que ele devia acabar o curso e obter o diploma, mas ele diz que não tem tempo.
- E parece que não tem.
- Oh, não há dúvida de que ele tem o tempo todo ocupado. Há dois anos, ficou com a cabeça aberta num motim. Neste momento, está em liberdade sob fiança.
- Porquê?
- Insultou um polícia durante uma manifestação.
- A sua irmã está em Nova Iorque?
-Não. Casou-se com um médico e foram viver para Los Angeles. Ele abriu um consultório em Watts.
- Watts? Não deve ganhar muito dinheiro.
-Tem toda a razão. Mas era isso que eles queriam fazer. A minha irmã trabalha com ele, como enfermeira-recepcionista. Tirou um curso de enfermagem para o poder ajudar.
- Têm fihos?
- Ainda não. Mas ela escreveu-me a dizer que estão a tentar.
- Clara! - gritou Helen.
As bebidas vieram com uma taça de amendoins salgados. Harry Tennant tirou uma mão-cheia e enfiou-os na boca. Helen olhou para ele, a sorrir.
- Quando as coisas o aborrecem, você come, não é?
- E isso mesmo - assentiu ele.
- Já foi casado, Harry?
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Ela sentiu que lhe tinha tocado no cabelo cor de ferrugem com uma varinha mágica do Walt Disney a lançar pequenas faíscas pela ponta. Ele tornou-se subitamente vivo, corajoso, com os olhos brilhantes, os dentes a brilhar, a tristeza vencida.
- Jesus Cristo! - disse ele excitado, inclinando-se por cima da mesa na direcção de Helen. - Não, nunca me casei. Mas já estive noivo. Durante seis meses. De íris Kane. Conhece-a?
- A cantora?
- Exacto. Ela agora é famosa. Sabe... o Plaza e o Americana, Las Vegas e todos os clubes de brancos. E já esteve na televisão. Ouvi dizer que, para o ano, vai ter o seu próprio espectáculo. E, neste momento, está a fazer um filme.
- Ela é linda.
- Linda? Uma Vénus! Mais escura do que eu, mas uma Vénus. Tem de a conhecer. É qualquer coisa. Toda a gente o diz. Oh, eu amo-a. Tanto!
Ele bebeu um grande trago de uísque, mas não conseguiu acalmar.
- Helen, aquilo que nós tínhamos... bom, querida, nem consigo explicar. Tínhamos o nosso próprio mundo. Eu trabalhava durante todo o dia e chegava a casa à noite e ela estava lá. Jesus, como nos ríamos! Não lhe consigo explicar. Eu ficava de tal forma que fazia parte dela e ela fazia parte de mim. Percebe? Quero dizer, discutíamos só para podermos fazer as pazes. Era lindo. Ela era a minha vida... eu podia contar-lhe tantas coisas, Helen! Como piqueniques e aniversários. Um relógio de pulso que ela me comprou... está a ver? É este... e uma pequena capa de pele que eu lhe comprei. Falávamos dos vizinhos e íamos fazer compras de mercearia e íamos ao Apollo e íamos dançar. Embebedávamo-nos juntos e ela cantava para mim. Só para mim. Fazíamos amor. Fazíamos amor. Sempre amor...
- Viviam juntos?
- Durante uns tempos. Só durante algum tempo...
Depois, ele voltou a ficar calado e o seu rosto congelou lentamente. Clara trouxe outra rodada de bebidas.
- Estas são por conta do Thack.
- Não sei o que vai acontecer-disse ele numa voz inexpressiva.
- Tento não pensar em mais do que no dia seguinte. Mas tenho de continuar a sonhar que ela vai voltar para mim. Tenho mesmo. Porque, sem ela, eu não sou absolutamente nada.
- Ela há-de voltar - disse Helen, confortando-o.
Ele recuou no banco corrido, encolhendo-se ao canto do compartimento, e sorriu-lhe. Começou a rodar o copo sobre o tampo húmido da mesa, como um jogador de xadrês que está confuso.
- Querida, uma pessoa faz coisas bem esquisitas quando quer muito alguma coisa. Eu não acredito em Deus. Certo? Mas prometi
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a Deus que não tocaria em nenhuma outra mulher se ela voltasse para mim. Prometi que nunca mais me embriagaria nem tomaria droga nem nada do género. Prometi que não iria dançar, que não praguejaria. Coisas assim.
Ela assentiu, acabrunhada, pensando em todas as vezes que ela própria tinha feito juras semelhantes na esperança de conseguir qualquer coisa que queria muito. Mas Deus nunca tinha respondido às suas preces... a menos que a resposta fosse não.
- Por que se separaram? Discutiram?
- Oh, não!-protestou ele. - Não foi nada disso. Afastámo-nos, simplesmente. Afastámo-nos...
Ele ficou em silêncio durante alguns instantes, a olhar para ela com uma expressão estranha.
- Sabe... há uma coisa que deve saber a meu respeito.
- Que é, Harry?
- Eu acho que sou branco.
- Quê?
- Sim, creio que é isso. Sei que é. Os meus pais eram trabalhadores e educaram-me para o ser. Trabalho desde que me lembro... a vender jornais e a entregar mercearias. Coisas assim. Tive sempre uma boa alimentação e uma cama quente. Andei na escola. Tenho um curso superior. Arranjei um bom emprego numa empresa de brancos... marketing e publicidade e relações públicas. Claro que fui menosprezado. Todos nós somos. Mas, depois de acabar o curso, passei a achar que era apenas má educação. Os meus pais ensinaram-me a ser educado. A falar baixo. Depois, quando comecei a trabalhar, foi aí que tudo aconteceu. Eu era exactamente igual a todos os tipos brancos que encontrava nas conferências de Imprensa e nos almoços e nesse tipo de funções. Tínhamos os mesmos problemas, as mesmas preocupações. Arranjar um emprego melhor, ganhar mais, encontrar uma mulher. Éramos iguais. Quando estas questões raciais começaram.. isto é, quando começaram a ferver... eu entendi-as racionalmente, mas não as conseguia sentir. Merda, eu sei que há gente a morrer de fome e que existe repressão e que os negros são desprezados. Eu sei, mas, por qualquer razão, não consigo sentir. Não consigo sentir. Sou um tar-baby Babbitt. Já leu?
- Tar-baby Babbitt?
- Não, só Babbitt. É um romance de Sinclair Lewis.
- Não, nunca li.
- bom... o que eu estou a dizer é que não posso ser contra o establishment. Só quero fazer parte dele.
- Isso não me parece mau.
- O meu irmão acha que é. A minha irmã acha que é. E íris Kane achou que era.
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- Foi por isso que se separaram?
- Sim. Ela era militante activa de todas estas causas. Ainda é. Canta de borla nos encontros. Dá todo o dinheiro que tem. Participa em marchas de protesto. Em manifestações.
Coisas assim. Eu não conseguia. Tentei tudo isso por ela, mas ela sabia. Não sentia nada. Olho ao espelho e não vejo um homem preto. Vejo um homem branco talvez com pele escura. Sou profissionalmente bom. Sou mesmo bom.
- Eu sei que é, querido.
- Mas não pertenço. Falta-me qualquer coisa. Não consigo pertencer. Quero dizer, à minha gente. Sinto esta... esta coisa... que não sou realmente negro.
- Caramba!
- bom - disse ele, olhando em volta da sala -, esta é a triste história da minha vida. Você quis conhecê-la.
É bastante maluca, não acha?
- Sim, bastante maluca.
Ele olhou para o relógio que íris Kane lhe tinha dado. Helen assentiu, acabando rapidamente a sua bebida.
Ele acompanhou-a a casa. Despediram-se rapidamente. Ainda era cedo, mas ela não estava com disposição para ir dar um passeio com .Rocco. Despiu-se devagar, lavou a cara, tomou um comprimido para dormir e meteu-se na cama.
Ficou a olhar para as paredes e pensou na cidade cruel, nas mulheres que queriam, nos homens que não eram. Pensou se se deveria desligar, ir para outro lado, começar uma vida nova, tudo novo.
Excepto ela. Ela continuaria a ser a mesma.
- Que se passa comigo? - perguntou em voz alta. Mas o comprimido para dormir fez efeito antes de ela conseguir descobrir a resposta. E, quando acordou, de manhã, já se esquecera da pergunta.
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O telefone estava a tocar quando ela abriu a porta. Ela correu para a sala, saltou por cima de Rocco e atendeu.
- Olá, querida - disse Peggy Palmer. - Tenho estado...
- Acabei de chegar neste instante - disse Helen. - Deixa-me tirar os sapatos, preparar uma bebida e já te telefono. Okay? Tenho muitas coisas para te contar. Telefono-te daqui a três minutos.
Desligou, sem esperar pela resposta de Peggy. Correu para a casa de banho. Quando descarregou o autoclismo, Rocco levantou as patas e começou a lamber a água limpa.
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- Nojento - disse ela. -Rocco, és nojento e porco.
Despiu-se na casa de banho, deixando cair a roupa no tapete felpudo manchado. Tinha vulcanizado o furo no soutien, mas o remendo tinha-se desprendido. Quando deixou cair o soutien para o chão, o ar que ainda restava na caixa esquerda expirou com um longo e pensativo suspiro.
Deitou uísque em cima de duas pedras de gelo e levou o copo para a sala. Nua, enrolou-se ao canto do sofá. Rocco aproximou-se para lhe lamber os dedos dos pés.
- Charles - disse ela. - Querido Charles, meu rapaz.
- Olá, querida - disse Peggy. - Que tal te saíste?
-Magnificamente-disse Helen, bebendo o uísque aos golinhos.
- Absolutamente sensacional. Está tudo preparado para logo à noite. Na casa dele. Disse que servia os cocktails por volta das nove... mas tu sabes o que isso quer dizer.
- E jantar? - quis saber Peggy.
- Querida, se eu tiver de jantar mais uma vez com aquele homem, vai ser o triângulo amoroso mais estranho da história... eu, ele e Howard Johnson. É só o que temos feito... ir almoçar ou jantar ou ver um filme. Por fim, eu disse: "Uck, que há com esta rotina da comida? Não tens de me alimentar todas as noites nem levares-me ao cinema nem nada disso. Por amor de Deus, não podemos ficar sozinhos ao menos uma vez?"
- Que disse ele?
-Ele disse: "Oh, claro, queria estar sozinho mas...", tu lembras-te, Peggy, como eu te disse que ele era esquisito. Juro por Deus que ele é o homem mais difícil que alguma vez conheci. Nunca fui a casa dele e ele nunca cá veio. Já o conheço há duas ou três semanas, mas, querida, honestamente, não sei nada a respeito dele. Pelo menos, nada de importante. Ele pode ter a coisa como um iô-iô que eu não sei.
- Não hás-de ter essa sorte - murmurou Peggy.
- bom, finalmente, pus os pontos nos is. "Olha, rapaz", disse-lhe eu, "vamos encontrar-nos na tua casa ou na minha para falarmos. Não é preciso fazermos mais nada... só falar. Não te vou violar, Uck", disse-lhe eu.
- Achas que ele pode ter medo do sexo?
-Peg, não sei que raio se passa com ele. Portanto, finalmente, ele disse: "bom, está bem, vem a minha casa logo por volta das nove e tomamos uma bebida e conversamos." Portanto, está marcado para logo à noite, e é claro que estou toda entusiasmada.
- bom, desejo-te toda a sorte e tudo isso - disse Peggy num tom triste. - Achas que vais lá ficar a dormir?
-Ouve, querida, estou preparada para lá passar o fim-de-semana. vou levar a minha carteira grande... sabes, aquela de lona que
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comprei por trinta e seis e noventa e oito porque o fecho estava um bocadinho ferrugento... e vou lá meter tudo dentro. Querida, detesto fazer isto, mas, se eu passar aí por casa quando sair, podes encontrar-te comigo na entrada e emprestares-me a tua raposa?
- Claro, Helen! Toca três vezes à campainha, para eu saber que és tu, e eu desço logo.
- És um amor, Peg. Eu não te pedia, mas, sabes?, quero aparecer com bom ar. Não vamos andar pelos pubs nem nada, portanto, não há o perigo de entornar qualquer coisa. Só a levo até casa dele, para fazer uma entrada em beleza, e depoispasso o resto da noite lá dentro. Ouve, tu sabes que quando quiseres usar o meu colar de pérolas é só dizeres. Camel telefonou?
- bom, telefonou e não telefonou - disse Peggy. - Disse que só tinha um minuto, mas que telefonava logo de seguida, o que ainda não fez. Ainda está a tentar arranjar uma reserva de hotel para amanhã. Acho que isso é idiota. Quero dizer, arranjar um hotel aqui em Nova Iorque em vez de num sítio qualquer simpático como Catskills ou assim. Mas vá lá saber-se o que um homem pensa!
- Olha, eu garanto-te que não sei - reconheceu Helen. - Olha para o meu tipo... quatro almoços, três jantares, sabe Deus quantos filmes!, e ele ainda nem sequer me beijou. Cada vez que lhe toco, até parece que está cheio de feridas. bom, ouve... então decidiste-te a ir com ele para a cama?
- Acho que mais vale ir - disse Peggy ponderadamente. - É como tu disseste: é melhor eu descobrir o pior, antes de pensar sequer em casamento.
- Estás a ser esperta - concordou Helen. - Tenho de me despachar, querida. Quero tomar um banho de espuma e preparar-me para a festa. Passo por tua casa por volta das oito e meia.
- Que vais levar vestido?
- Acho que o vestido preto de malha. O estúpido do soutien tem outro furo. Talvez tente remendá-lo com Band-Aid, mas, se não der resultado, não o visto. Afinal de contas, não vou usá-lo durante muito tempo.
- Olha, querida, vê lá, não te esqueças de me telefonar no domingo de manhã. Já devo estar em casa nessa altura e quero saber como é que as coisas correram.
Helen deu uma resposta adequada a isto, e as duas mulheres desligaram, a rir.
Ela olhou-se ao espelho na entrada do prédio de apartamentos dele e ficou satisfeita com o que viu. O vestido preto de malha assentava-lhe como uma luva. O casaco curto de raposa de Peggy e
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a carteira de lona davam-lhe um ar elegante e superior, decidiu ela. Os caracóis frisados ainda estavam húmidos do banho. Pareciam formar um capacete louro em volta do seu crânio.
Na carteira grande, levava óculos de aros de tartaruga, cigarros, fósforos, isqueiro, blush, brilho para os lábios, rlmmel, um par de cuecas de reserva, uma escova de rímmel, uma pinça, um pente, catorze dólares, em notas de sessenta, e sete cêntimos em moedas, um exemplar de Nana em livro de bolso, dois bilhetes de metro, um anúncio de saldos no Macys, uma medalha de S. Cristóvão, dois bilhetes usados de um espectáculo da Twentieth Century, uma touca de banho de plástico, uma lima de unhas, uma rolha de champanhe seca, uma escova de dentes de viagem, uma esferográfica, uma embalagem fechada de toalhetes faciais e três toalhetes separados, um pequeno boião de creme, cinco ganchos de cabelo, dois selos de dois cêntimos, uma fotografia de Walter Pidgeon cortada de um jornal, uma lata de aspirinas vazia, um frasco de aspirinas cheio, três Enovid, dois Darvan, quatro Valium, quatro Empirin, dois Dexamyl, duas embalagens duplas de Alka-Seltzer, um saco para duche, de viagem, uma conta da Lord Taylor, seis moedas com a cabeça de índio, um dólar de prata, dois meios dólares Kennedy, um frasquinho de Ciara e uma pequena fotografia enxovalhada de uma mulher a ter relações com um cavalo.
Foi no elevador de serviço até ao sexto andar, descobriu o 6-B e endireitou as costas. Respirou fundo, ergueu o queixo e tocou à campainha. Ouviu passos a aproximarem-se.
A porta abriu-se.
- Olá. - A mulher idosa sorriu. - Sou Edith Faye, a mãe de Richard. Você deve ser Helen Miley. Entre, entre. Dickie foi lá abaixo comprar ginger ale, mas deve estar
a chegar.
- Obrigada. - Helen sorriu. - Uck, hum, Uck, hum, Dick não me falou de si. Pensei...
- Acho que Dickie queria que fosse surpresa. - A Sr.- Faye sorriu. - Dê-me as suas coisas. Que casaco tão bonito!
- Que apartamento tão bonito! - disse Helen a sorrir. Suponho que...
- Na realidade, é demasiado grande só para nós dois. - A Sra. Faye sorriu. - E trate-me por Edith. Dickie e todos os seus amigos tratam-me assim. Sim, desde que
o Sr. Faye morreu, Dickie e eu temos falado em mudarmo-nos para um apartamento mais pequeno e mais moderno... mas é claro que sabe como são as rendas desses novos
prédios de apartamentos. Agora sente-se, Helen... posso tratá-la por Helen, não posso?... e vamos conversar as duas, enquanto Dickie não chega. Estou tão contente por ter vindo! Ainda no outro dia estava a dizer a Dickie, "Dickie", disse eu, "por que é que não convidas mais vezes os teus amigos a virem cá a casa? Não ajusto que
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eu fique para aqui dia após dia e noite após noite." Não que eu me sinta só, é claro, pois Dickie é um grande conforto para mim.
- Sim, Sra. Faye - disse Helen com um sorriso. - Tenho a certeza...
- Edith. - Ela sorriu. - Por favor, trate-me por Edith. Estive adoentada o ano passado... sabe, o meu coração... e não podia ter tido melhor enfermeiro. Digo-lhe que Dickie tratou de mim com desvelo. Digo sempre que um bom filho é uma bênção dos Céus. Sobretudo quando uma pessoa lê todos os dias notícias de filhos que assassinam os pais com machados e coisas assim. Os seus pais são vivos, Helen?
- Não. Já morreram ambos.
- Que pena já terem falecido. Mas, minha querida, tem de acreditar que a alma não morreu, que está numa forma diferente e mais feliz.
- Sim - disse Helen.
- Vive com parentes, querida? Ou amigos?
- Não, vivo sozinha.
- Oh, mas que perigoso! Li no outro dia sobre uma jovem mulher que vivia sozinha e uma noite um monstro seguiu-a do emprego para casa e na entrada do prédio... bom, é claro que o jornal não entrava em pormenores... nunca entram, sabe, sobretudo o Times, que era o único jornal que o Sr. Faye deixava que entrasse cá em casa... todos os outros eram lixo, dizia ele... e estou certa de que a pobre rapariga nunca mais será a mesma. A que Igreja pertence, Helen?
- bom... -Helen tossiu. - Eu não...
-As coisas antigas são as melhores... não acha, minha querida? A Igreja e o amor pela pátria e alguns velhos amigos. Ainda outro dia...
Ele entrou carregado de sacos de mercearia. Teve a decência de corar.
- Bom-disse ele com um sorriso tão ténue como um vinco num fato de tweed -, estou a ver que vocês as duas já se conheceram. Ora bem.
- Francamente, isso é demasiado pesado para tu trazeres disse a mãe num tom severo. - Devias tê-los mandado trazerem os sacos. Sabe Deus o que gastamos lá. Os homens não sabem fazer compras... não concorda, minha querida? O Sr. Faye era exactamente igual. Saía para comprar uma alface e voltava com uma peça de carne assada. São presa fácil de quem quer vender. Agora, leva os sacos para a cozinha, querido. Põe a manteiga no frigorífico e os ovos na prateleira. As latas são no armário da direita, e podes pôr aginger ale debaixo do lava-louças.
- Sim, Edith. Queres uma bebida? - perguntou ele a Helen.
- Sim, Dickie.
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- Para mim, só um pequeno cálice de Porto, querido. Sabes o que o médico disse. O meu coração - explicou ela a Helen. - Tenho de ter muito cuidado. Só posso comer legumes frescos e carne cozida e um cálice de Porto em ocasiões muito especiais. Mas que vestido tão bonito! Este ano usa-se a roupa bastante justa, não é?
- bom, não tanto como este vestido, Edith - disse Helen. - Tenho um alfaiate maravilhoso e quando compro um vestido levo-o a ele e visto-o. Depois, respiro fundo e ele aperta-o de forma a ficar como se fosse a minha segunda pele. É claro que, se eu engolisse uma azeitona que fosse, já ficava enrugado, mas assenta-me muito bem, não assenta?
- Mas que tempo! - disse a Sra. Faye num tom pesaroso. - Temos tido muita chuva ultimamente. Já não temos Outonos a sério, não concorda, minha querida? Ora, lembro-me
de dar longos passeios com o Sr. Faye em Outubro, quando as noites eram tão amenas que só era preciso usar um cachecol fino. Oh, Dickie, usaste os copos trabalhados. bom... deixa lá. E só por terem sido um presente de casamento, Helen, e já só temos quatro copos... e eu tenho tanto medo que lhes aconteça qualquer coisa.
- Edith - disse ele numa voz sombria.
- Eu tenho cuidado - prometeu Helen. - Obrigada, Uck, hum, Dickie. bom, vai acima, vai abaixo, vai ao centro, mete pra dentro.
- Ora bem - disse Edith -, como eu admiro uma mulher espirituosa!
Beberam alguns golos, olharam para cima, sorriram, beberam alguns golos, olharam para cima, sorriram.
- bom - disse Edith, com os olhos duros e brilhantes como pedras polidas -, isto é muito agradável, não é?
- Como vão as coisas no escritório? - perguntou ele numa voz rouca. - Como vai o negócio?
- Okay - disse ela. - Loeb e...
- Helen trabalha para uma empresa de relações públicas, Edith
- disse ele apressadamente. - Publicitam novos produtos e coisas assim.
- Mas que interessante - disse Edith. - Oh, não pouse aí o seu copo, minha querida, tenho medo de que deixe ficar marca. Dickie, vai buscar aquelas bases em crochet que eu fiz para ti. Nunca as queres usar. Estão na prateleira de cima do armário da roupa, ao lado dos naperons de renda. Os homens são tão desajeitados em casa... não concorda, minha querida? O Sr. Faye era igual. Passava a vida a deitar abaixo jarras e a dar pontapés nas pernas das mesas. Eu costumava dizer-lhe, "Sr. Faye", dizia eu, "podes ser o melhor comerciante de sassafrás, mas és o homem mais desajeitado que Deus criou". E sabe o que ele dizia?
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Não. Que é que o Sr. Faye dizia?
Dizia: "bom, minha querida, prometeste aceitar-me para o
bem e para o mal, e receio que isto faça parte do mal!"
- Ora bem - disse Helen. - Como eu admiro um homem espirituoso. Oh, obrigada, Dickie. Que base encantadora!
É feita em crochet com cordel. Mas que hábil, Edith.
- Obrigada, minha querida. Gostava de ter meia dúzia para a sua casa?
- Oh, não posso...
- Não levo muito tempo a fazê-las e tenho bastante cordel. Fi-las para todas as minhas amigas e devo dizer que dão jeito. vou começar as suas já amanhã. Gosta desse
padrão da folha, Helen?
- Sim, é...
- Ou talvez prefira um padrão em xadrês!?
- bom, qualquer um...
-Mas eu sempre disse que o xadrês é muito masculino. Creio que o padrão da folha fica melhor na casa de uma jovem.
- Posso tomar outro uísque, Dickie? - perguntou Helen.
- Ora bem - disse Sra. Faye -, alguém está com sede. Dickie, por que não trazes aquelas bolachinhas de queijo numa travessa? E fiz umas sanduíches de agrião. As
bolachas estão na lata, na prateleira de cima, e as sanduíches estão na prateleira de baixo do frigorífico. Usa a travessa de madeira... aquela que a tia Evelyn
nos mandou do Havai.
- Eu sei, Edith. - A voz dele era ténue. - Eu sei.
Ela era uma mulher frontal; sem pescoço, com cabelo azul num penteado elaborado. Veias inchadas formavam uma rede volumosa por debaixo das suas meias elásticas.
- bom. - Ela sorriu a Helen. - Isto não é agradável?
- Tem mais filhos? - perguntou Helen desesperada.
- Não. - Ela franziu a testa, sentando-se como se estivesse empalada numa estaca vertical. - Dickie é o meu único bebé. Havia uma menina, mas não falamos dela.
- Oh - disse Helen -, lamento...
- Ela teria mais um ano do que Dickie, mas, para esta família, ela morreu. Talvez seja duro, mas é justo. Nunca falamos dela.
- Lamento. Não era minha intenção...
- Ela escolheu o caminho dela - disse a Sr.- Faye, alisando as pregas do vestido de seda azul -, e agora tem de o seguir sozinha. Fizemos tudo o que podíamos, mas ela decidiu rejeitar o nosso amor e os nossos conselhos. E agora tem de sofrer. Tenho a certeza de que sofre. Por favor, não pense que somos cruéis, minha querida, mas o que tem de ser tem de ser. Prefiro não falar nisso.
- Claro.
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- Ela tinha tanto para dar! - suspirou Edith. - Tanto! E deitou tudo fora, deitou, simplesmente, tudo fora com ambas as mãos. Uma tragédia, minha querida. Uma verdadeira tragédia. Um dia, talvez eu lhe conte toda a história... e compreenderá. Mas é demasiado dolorosa para...
- Aqui está - disse ele. - Outra bebida e qualquer coisa para comer. Edith, queres outro cálice de Porto?
- Para já, não, querido. Sabes o que o médico disse. Agora, por que não te sentas para conversarmos? Mal disseste meia dúzia de palavras.
- Tenho estado ocupado - protestou ele. - Tenho estado a fazer..
- Dickie tem tão poucas amigas - disse a Sr.- Faye a Helen. Acho que um rapaz da idade dele devia ter uma vida social mais activa. Mas é claro que é tão difícil. Já não há classes, como havia quando eu era nova, e uma pessoa nunca pode ter a certeza, não é?
- Não - disse Helen. - Uma pessoa não pode.
- É claro que ele tem amigos e eles visitam-nos com frequência. Sabe jogar Hearts, minha querida?
- Não.
-Mas eu acho que uma mulher tem uma influência benéfica num homem. O Sr. Faye era um grande urso quando me casei com ele. Estava sempre a fumar cachimbo e a fazer buracos nas algibeiras do casaco e a atirar com coisas para todo o lado. Tenho a certeza de que tive uma influência benéfica sobre ele. "Edith", disse-me ele um dia, "Deus fez-me homem, mas tu fizeste de mim um cavalheiro." Nunca me esqueci disso.
- Importa-se que eu fume? - perguntou Helen.
- Claro que não, minha querida. Eu própria não fumo, mas sei como é o vício... Dickie, vai buscar um cinzeiro a Helen. O azul com a borda trabalhada. Acende-lhe o cigarro, Dickie. Esqueceste as boas-maneiras? Oh, deixou cair uma fotografia da carteira, minha querida. Os seus pais? Adorava ver.
- Oh, não - disse Helen, engolindo em seco. - Não são os meus pais. E uma amiga. Apenas uma amiga. Meu Deus, estas sanduíches de agrião estão deliciosas. Como as faz?
-Ora-disse Edith, intrigada -, basta cortar os agriões e pô-los no pão. Mas é preciso pôr bastante manteiga no pão.
É muito simples, minha querida.
-Não me vou esquecer-assentiu Helen. - São deliciosas. bom, foi uma noite muito agradável, mesmo muito agradável. Agora, lamento, mas tenho de me ir embora.
- Tão cedo-disse ele, com o rosto gorducho caído. - Só cá estiveste um bocadinho.
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- Decerto pode cá ficar um pouco mais, Helen!
- Não - disse ela firmemente. - Tenho mesmo de ir. Amanhã vou para fora. Amigos em Filadélfia. Um baptizado. O comboio é muito cedo. Tenho de me deitar cedo. Lamento, Edith. Obrigada por me terem convidado. Adorei ter vindo.
- bom... se tem mesmo de ir... Espero que nos visite outra vez. Dickie tem falado tanto de si que senti que tinha de a conhecer. Impressionou muito este meu bebé, Helen.
- Que simpática - disse Helen, a sorrir. - bom, uma vez mais, obrigada por tudo.
- Talvez da próxima vez que cá venha eu já tenha as suas bases feitas - disse a Sr.- Faye, examinando as manchas escuras nas costas das mãos.
- Óptimo. Estou ansiosa por isso. Boa noite, Edith. Foi muito agradável. Boa noite, Dickie. Não, não desças. Eu vou sozinha. vou apanhar um táxi.
Pegou no casaco de pele e foi a sorrir, resolutamente, até a porta do elevador os esconder da sua vista.
Depois, olhou para o metal brilhante e fez uma careta à sua imagem.
- Eu devia ter-lhe partido os malditos copos trabalhados - exclamou, irada.
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Charles Lefferts fez um barulho semelhante ao de seda rasgada. Mexeu-se convulsivamente na escuridão.
- Meu Deus - exclamou ele -, estás mesmo inspirada.
- Eu mato-te - disse ela.
- Helen...
- Cala-te - resmungou ela. - Esta noite vais morrer como um cão.
O riso cavo dele flutuou e transformou-se num gritinho manso.
- Os teus dentes. - Ele deu uma risadinha. - Tem calma.
- Não vou nada ter calma. Olha... isto é o meu padrão de folha. E isto... isto é o meu padrão de xadrês.
- De que diabo estás a falar? - perguntou ele sem perceber, e depois voltou a latir, tentando libertar-se.
- Deus fez-te homem - rosnou ela. - Eu estou a fazer de ti um cavalheiro.
Ele contorceu-se, virou-se, resfolegou, gemeu.
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- No bem e no mal - murmurou ela. - Isto faz parte do bem. Os naperons de renda estão no armário da roupa.
-Estás embriagada-perguntou ele.-Oh, meu Deus, querida.
- Legumes frescos e carne cozida - disse ela -, e um cálice de Porto, em ocasiões muito especiais. Excepto em Outubro, quando só é preciso um cachecol fino.
- Estás louca - decidiu ele.
- Relaciona-te-murmurou ela. - Relaciona-te, filho-da-mãe.
- Ora toma - disse ele, entrando no espírito festivo. - E toma.
- Sim - suspirou ela. - As coisas antigas são as melhores.
- E toma também esta - acrescentou ele.
- Sou presa fácil para quem queira vender qualquer coisa disse-lhe ela.-Manda-me comprar uma alface e eu trago uma peça de carne assada. Tem cuidado, rapaz. Foi um presente de casamento e eu não gostava que se partisse. Na prateleira de cima, querido. As bolachas estão na prateleira de cima.
- Que bom. Oh, oh, oh.
- Acho que uma mulher tem uma influência benéfica num homem.
Ela parou de falar.
Ele saltou da cama, tomou um duche rápido, pôs pó-de-talco nas axilas, acendeu um charuto e voltou a meter-se na cama ao lado dela. O charuto brilhava na escuridão. Ele estendeu-lho. Ela puxou uma longa fumaça.
- Jesus - disse ela. - Senti-o nos dedos dos pés.
Foram passando o charuto de um para o outro, enchendo lentamente a sala de um fumo pesado.
- O meu povo nunca fará guerra contra o teu povo-grunhiu ela.
- É bom. Viveremos em paz na terra de muitos pinheiros.
-Tiveste sorte em telefonar na altura em que telefonaste-disse ele. - Eu já ia a sair quando ouvi o telefone tocar.
- Pois é - disse ela amargamente -, não há dúvida de que sou uma mulher de sorte.
- Que é que tu tens-perguntou ele. - Estás naquela tua onda de todos-os-homens-deviam-desaparecer? Meu Deus, nunca cortas as unhas dos pés?
- Detesto-te-disse ela pensativamente. - Bem gostava de ter sabido que crias habituação.
-Vá lá... conta ao tio Charlie. Quem é que acendeu o rastilho do teu Tampax?
Ela inalou uma golfada de fumo, soprou e formou um círculo perfeito de fumo na escuridão. Pousou cuidadosamente a ponta do cigarro na borda do cinzeiro, no chão. Virou-se de lado, chegou-se a ele e fez-lhe festas no cabelo.
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- Estás a ficar careca - disse ela.
- Vai para o diabo! - gritou ele, e ela riu-se baixinho do terror na voz dele.
Depois, foi passando as pontas dos dedos pelo corpo dele, enquanto lhe falava de Richard Faye e da sua visita ao apartamento dos Faye. Ele escutou em silêncio, mexendo-se ligeiramente quando ela lhe enfiou um dedo frio no umbigo e lhe puxou suavemente os pêlos das coxas.
- E ponto final nessa história - concluiu ela.
- Não -disse ele, falando a sério. -Não creio. Creio que Dickie se vai atirar a ti ainda com mais força.
`É o menino de Edith, sem dúvida, mas agora encontrou uma
pessoa de quem Edith tem medo. Vai provar a sua virilidade andando contigo... que se lixe Edith. Além disso, Dickie apercebeu-se de que tu não gostas de Edith e
também gosta de ti por isso.
-Obrigada, Dr. Freud-disse ela. -Abre a boca e fecha os olhos e eu faço-te uma grande surpresa.
Ele fê-lo, e ela fê-lo.
Ele pôs os pés para cima, contra a parede, contorcendo-se até estar apoiado na nuca. Olhou para ela, de pés para o ar, com os lábios abertos na testa, com os olhos a piscar num enorme queixo.
- Dizes que ele tem uns quarenta anos? Pobre diabo. Acho que deves casar com ele.
- Para te veres livre de mim?
- Que diferença faria isso? Não, só para ele poder viver um pouco mais liberto de Edith. Ele tem um bom emprego? Parece um Frank perfeito. E tu podes ser uma Shirley perfeita.
Ela aninhou a cabeça entre o pescoço e o ombro dele.
- És um amor-disse ela. - Não pensei que fosses tão querido. Mas que raio!, querido... ando à procura de um homem, mas ele anda à procura de uma mãe. Não resultaria. Tenho uma ideia melhor.
Ele riu-se em silêncio, com a barriga a mexer para cima e para baixo.
- Não, obrigado - disse ele.
- Não te vais casar nunca?
- Na.
- Porquê?
- Por que havia de me casar? Qual é a vantagem? Dá-me uma boa razão.
-Vais dar num velho malcheiroso a viver num quarto mobilado, a beliscar o rabo às miúdas no parque.
- Todos me dizem isso - suspirou ele. - Por que não posso dar num velho perfumado a viver no Waldorf e a beliscar uma jovem modelo de vez em quando?
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- Não queres ter um filho para continuar a tua reputação de garanhão, meu filho-da-mãe? Não queres uma família?
- Raios, não! Se eles metessem todos os miúdos dentro de armários escuros até à idade dos dezoito... eu ficaria felicíssimo.
- Nunca te sentes só?
- Claro. Ocasionalmente. Quem é que não se sente? A mulher mais só que eu conheço tem um marido rico, três filhos e uma casa encantadora. Que é que isso prova?
-Sabes bem... sabias, boneco? Cheiras a cedro e a tua pele é doce. Tenho vontade de te comer todo.
- Come - disse ele.
- Tu gostas de mim, não gostas?
- Claro.
- À tua maneira suja e retorcida, acho que me amas.
- Achas?
- Não estavas aqui comigo se não me amasses.
- É um jogo - disse ele. - E tu és boa jogadora.
- Quanto tempo levaste a aprender a dizer todas as coisas erradas?
- Vamos discutir outra vez?
- Por que raio não havemos de discutir? - perguntou ela, zangada.
- Suborno. O grande suborno.
- Ora, que raio é que isso devia querer dizer?
- As mulheres deitam-se comigo de sua livre vontade. Mas têm de se convencer de que é um grande caso de amor e não apenas o velho engate. Portanto, quando eu me recuso a entrar na jogada, ficam zangadas comigo. Sou um sedutor nojento e, por lei, devia ser castrado. Roubei-lhes aquilo que é mais precioso para elas do que a própria vida. Depois, têm de chorar e discutir e insultar-me para recuperarem a auto-estima.
- Ouve lá, sabes tudo o que há a saber sobre as mulheres, não sabes?
- Sei muito pouco-reconheceu ele inesperadamente -, mas sei cem vezes mais do que o marido médio. Não tentes enrolar-me, querida. Tu gostas tanto deste jogo de luta-livre como eu.
- Mais - disse ela.
- Está bem... mais. Então, por que hás-de chatear-me quando acaba? Tu deste e eu dei. Tu tiveste e eu tive. E é só até aí que vai.
-Ahhh... merda-resmungou ela e pôs as pernas para cima, ao lado das dele.
Ele virou-se de lado, apoiou-se no cotovelo e olhou para o corpo dela.
Ela estava solta como uma fita de seda.
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-Aposto que, se eu tivesse as mamas maiores, te casavas comigo
- disse ela.
- Na. És mesmo boa para este tempo. No fim de Novembro ou Dezembro, tiro o sobretudo e mudo para fatos mais quentes. Deixo de beber gim e água tónica e passo para
bourbon. Nessa altura, largo-te e vou à procura de um porco mais gordo. Mas, neste momento, és perfeita. Peso de Outono... percebes o que quero dizer?
Ela tentou zangar-se, mas não conseguiu.
- Não te consigo levar a sério, querido - riu-se ela.
Ele encontrou o sinal ao fundo das costelas nuas e lambeu-o rapidamente com a sua língua experiente. Ela deu um salto na cama.
- Ninguém leva - suspirou ele.
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- Nada de significativo, miúda - murmurou Helen, entalando o telefone entre o queixo e o ombro enquanto procurava um cigarro.
- Contei as paredes duas vezes e mudei os atacadores dos meus sapatos de camurça.
"Além disso, tem sido uma tarde muito monótona. Diz-me lá tu... como foi com Camel?
Peggy Palmer deu uma risadinha nervosa.
- Querida, prepara-te para a grande surpresa da tua vida.
- Ele tem duas coisas?
- Melhor do que isso... vou casar-me.
- Peggy! Meu Deus! Peggy Palmer! Peggy, conta-me tudo! Conta-me absolutamente tudo! Em nome de Deus, que é que aconteceu!?
-bom, ouve, querida, estou a telefonar de uma cabina, portanto, vou ter de ser breve. Mas não aguentei esperar até chegar a casa, tinha de te contar já.
- Então conta!
- bom, fomos para o hotel ontem à noite, como eu te disse. Uma coisa tenho de dizer, ele não tem nada de forreta. Mandou o paquete levar uma garrafa de champanhe ao quarto. Era uma coisinha engraçada, com caracóis pretos e cheio de botões.
- Para o diabo com o paquete - rosnou Helen. - Que aconteceu?
- bom, bebemos uma taça de champanhe e ele deu uma risadinha e disse que achava que eu sabia para que estávamos ali e eu disse
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que sim e ele disse que ia à casa de banho para eu poder instalar-me.
- Instalares-te ?
- Foi o que ele disse. Meu Deus, Helen, ele deve lá ter estado dentro uma hora. Que raio, achei que tinha caído pela retrete.
- Os homens matam-me, querida. A sério. Que é que tu vestiste?
- O meu pijama curto novo... o azul que comprei nos saldos no Bloomingdale... sabes, o de chiffon com vivo de renda branca... e finalmente ele apareceu, nu como uma agulha... caramba, se ele é gordo... e apagou as luzes todas.
- E...? Peggy suspirou.
- Um coelho - disse ela baixinho. - Um maldito de um coelho. Rápido? Um campeão olímpico. E os grunhidos! Fiquei preocupada, querida. Quero dizer, pensei que ele tinha feito uma hérnia ou qualquer coisa. bom, depois ficámos ali deitados sem dizer nada e eu estava a pensar que era uma idiotice gastar vinte dólares com um quarto por tão pouco tempo.... mas é claro que tínhamos o quarto por vinte e quatro horas e não tínhamos de nos ir embora a correr nem nada. Era um quarto lindo, com duas camas e uma cómoda que...
- Que se lixe o quarto! - explodiu Helen. - E o pedido de casamento?
- bom, quando lá estávamos deitados sem dizer nada, ele começou a assobiar.
- A assobiar?
- Sim, estava a assobiar por entre os dentes. Eu achei que era deslocado e disse-lho, mas ele disse-me que gostava de assobiar na cama e que era melhor eu habituar-me porque ia passar a ouvi-lo muito a assobiar. bom, a princípio eu não percebi e disse-lhe para não contar com o ovo no cu da galinha e que uma andorinha não fazia
o Verão e como é que ele sabia que eu o ia ouvir outra vez a assobiar na cama. E ele disse que tinha ouvido dizer que marido e mulher passam muito tempo juntos na
cama e, digo-te, Helen, o meu coração parou. Simplesmente parou.
- Acredito - disse Helen ansiosamente. - Depois, que é que aconteceu?
- bom, naturalmente, quis comprometê-lo e perguntei-lhe se me estava a propor casamento e ele disse...
- O período terminou - disse uma voz. - Meta dez cêntimos para os próximos três minutos, por favor.
- Ouça, telefonista - disse Peggy desesperada. - Já não tenho mais moedas, e isto é importante.
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- Lamento - disse a telefonista. - O período terminou.
- Oh, que má! - disse Helen.
- Não sou nada má - disse a telefonista. - Mas, afinal de contas, temos certas mormas e regulamentos que temos mesmo de cumprir.
- Acontece que esta rapariga acabou de ficar noiva - disse Helen, irada -, e você interrompeu quando ela me estava a contar como foi.
- bom, desejo-lhe muitas felicidades - disse a telefonista -, mas mesmo assim... olhe, por que não dá à sua amiga o número do telefone onde está para ela lhe telefonar para aí?
- É boa ideia, Peg - disse Helen. - Qual é o número? Peggy disse-lhe.
- Não saias daí - disse Helen. - Desliga. Eu ligo já para aí. Muito obrigada, senhora telefonista.
- Chamo-me Francine - disse a telefonista num tom melancólico. -Não tem nada que agradecer. E quero desejar-lhe as maiores felicidades, Peggy.
- Igualmente - disse Peggy. - Telefona já, Helen.
- Depois, que é que aconteceu? - perguntou Helen num tom ofegante, depois de marcar o número de Peggy. - Estavas a comprometê-lo quando Francine interrompeu.
- Não achas que ela foi querida? - disse Peggy. - Gostava de saber a morada dela para lhe mandar um cartão ou qualquer coisa. bom, como estava a dizer, perguntei-lhe se ele me estava a propor casamento e ele disse que sim, que estava. Depois perguntou-me se me podia beijar e eu disse que sim, mas que só isso, porque não acho certo que duas pessoas que estão noivas tenham sexo antes do casamento, e ele concordou em absoluto e só me quis beijar outra vez. Portanto, beijou-me e rolou na cama e adormeceu de imediato, mas é claro que eu estava demasiado excitada para dormir. Ainda pensei em sair para te telefonar, mas, depois, achei melhor não, não fosse ele acordar e eu não estar lá e que é que ele iria pensar? Esta manhã, levantámo-nos tarde e saímos do hotel e fomos comer qualquer coisa. Depois, fomos a uma sessão dupla na Rua 42... Deep Throat e Hot Shot. Hot Shot não era lá grande coisa, mas não percas Deep Throat. Tem uma cena... francamente, querida, não sei como deixam exibi-la. Foi assim que tudo se passou, e agora estou noiva.
- Querida, desejo-te as maiores felicidades - disse Helen Miley calorosamente. - Quando é?
- Não falámos de datas. Quero dizer, achei que eleja tinha ido suficientemente longe numa noite e que não o devia pressionar. Ele disse qualquer coisa sobre noivados longos, mas vou ter de lhe falar disso. Não concordo com noivados longos... tu concordas?
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- Raios, não. Agarra-o depressa, querida.
- É exactamente isso que tenciono fazer-disse Peggy num tom contido, e Helen detectou já o tom superior de uma mulher com um homem só dela.-Bom, olha, é melhor eu desligar e ir para casa. Que tal almoçarmos amanhã? Quero que me contes tudo sobre o teu encontro com Uck e qual o resultado.
- Não há muito para contar, mas a ideia do almoço é óptima. Telefono-te amanhã de manhã. E felicidades, Peggy. Espero que sejas muito feliz.
-Muito obrigada. O meu único desejo é que tu também encontres um tipo. Não era maravilhoso se fizéssemos um casamento duplo?
- Magnífico - disse Helen, sem alento. - Boa noite, querida, e obrigada por teres telefonado.
Ela pousou o auscultador, lentamente. Olhou para Rocco, enroscado e sonolento ao fundo do sofá.
- Peggy vai casar-se, Rocco - disse ela. Ele levantou a cabeça e bocejou.
- Querido, Rocco, meu rapaz - murmurou Helen. - Gostas de mim, Rocco, meu rapaz?
Cansada, Helen pôs-se de pé e ficou imóvel por um momento. Subitamente, o apartamento era enorme, vazio, assustador. Andou pela casa, devagar, a fechar portas e janelas, a apagar as luzes.
Quando chegou ao pé da gaiola do periquito, com a coberta na mão, o pássaro saltou para o poleiro da frente e fitou-a corajosamente.
-Vai-te-foder-chilreou o pássaro.-Vai-te-foder-vai-te-foder.
- Muito obrigada - disse ela amargamente. - Estás muito orgulhoso de ti próprio, meu filho-da-mãe?
Foi à casa de banho, tirou o robe e sentou-se à frente da cómoda. Pôs rolos no cabelo, untou a cara com creme de noite, colocou uma tira No-Chin por ebaixo do queixo e por detrás das orelhas. Fitou a sua imagem no espelho.
- Darth Vader - disse numa voz cava.
Rocco olhou de relance para ela, rosnou, alarmado, e foi-se refugiar no seu cobertor, enrolando-se numa bola.
- Boa noite, Rocco, querido, meu rapaz - gritou ela. Apagou a luz, abriu a janela do quarto de par em par e meteu-se
na cama.
Sentia-se estoirada. Ficou ali deitada, a jurar que não tomaria um comprimido para dormir, com esperança de adormecer, tentando lembrar-se do nome daquele rapaz do liceu que tinha sido expulso por fazer um furo na parede do vestiário das raparigas. William, decidiu. William Jamieson.
Passado um bocadinho, caiu numa semi-sonolência, deitada de costas, nua e destapada. A princípio, pensou que o barulho da cam-
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painha fazia parte de um vago sonho que estava a ter... William Jamieson estava a fazer um furo na parede do seu quarto. Depois acordou, apercebeu-se de que era a campainha da porta da rua. Levantou-se aos tropeções na escuridão, praguejou, acendeu o candeeiro da mesinha-de-cabeceira, enfiou os chinelos e foi a chinelar até ao hall.
Parou junto à porta.
- Quem é? - perguntou ela.
- Uck. Uck Faye.
A tira No-Chin impediu que o queixo lhe caísse.
- É tarde - murmurou ela. - Vai-te embora.
- Não é nada tarde - disse ele. - Quero falar contigo, Helen.
- Não quero falar contigo. Põe-te a milhas.
- Por favor, Helen...
Subitamente, ela lembrou-se dos rolos no cabelo, do creme de noite, da tira para evitar o duplo queixo.
- Jesus! - disse em voz alta. Depois: - Está bem. vou abrir a porta. Mas dá-me um minuto para eu chegar ao quarto. Estou nua, em pêlo. Depois entra, fecha a porta à chave, põe a corrente e vai para a sala.
- Obrigado, Helen - disse ele humildemente.
- De nada, Dickie - disse ela num tom formal. Abriu a porta e deu uma corrida para o quarto.
Quando voltou a sair, dez minutos depois, tinha vestidas umas calças amarelas de seda e uma camisa de homem amarrada com um nó à frente. Tinha o umbigo à mostra. Tinha penteado o cabelo e o rosto estava desmaquilhado. Estava a fumar um cigarro numa boquilha que tremia.
Quando ela entrou, ele levantou-se do sofá da sala onde se tinha sentado e só voltou a sentar-se quando ela se enroscou num cadeirão. Rocco apareceu, inspeccionou-os com um ar sonolento e voltou para o quarto.
Faye estava de cabeça baixa, a massajar as mãos.
- Então? - perguntou ela rispidamente.
-O meu plano não era aquele-começou ele.-Juro que não era. Tentei que ela saísse de casa. Pensei que conseguia. Mas ela é esperta, Helen. É viva. Conseguiu que eu lhe dissesse que tu lá ias e, depois de saber isso, nem com uma grua era possível fazê-la sair de casa. Corri à rua para comprargingerale, pois pensei que te podia telefonar a avisar, mas já tinhas saído.
Ela ficou calada.
- Já aconteceu antes - disse ele acabrunhado. - Ela quer sempre lá estar.
Helen olhou para ele frontalmente.
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- Está bem-disse finalmente.-Acredito em ti. Não planeaste as coisas dessa maneira. Mas, se ela se porta sempre assim, por amor de Deus, por que não sugeriste que nos encontrássemos aqui em vez de ser na tua casa?
Ele recusava-se a olhar para ela. Não conseguia olhar para ela.
- Não sei - disse ele tão baixinho que ela mal o conseguiu ouvir.
- Acho que estava com medo.
- com medo? De quê?
- De ti.
Ela resfolegou.
- Olha lá, tu já és um rapaz crescido. Pesas mais do que eu, tens os braços mais compridos do que eu e tens mais força do que eu. De que podes ter medo?
Nessa altura, ele olhou para ela.
- Tu amas mais do que eu.
Ela ficou sentada por instantes, confundida. Depois, foi à cozinha e arranjou dois uísques com água. Levou-os para a sala e deu-lhe um.
- Toma - disse ela. - Pousa-o onde quiseres.
- Helen - disse ele, estremecendo. - Por favor, não faças isso. Tens de a compreender.
- Oh, eu compreendo-a - disse Helen, zangada, bebendo o uísque.-E uma velha só e má. Tem mais energia e mais tomates do que tu alguma vez terás. Cravou as garras em ti tão fundo que só te largará quando tu as arrancares. E isso que se passa, não é?
- Sim. Mas ela pensa que é para o meu próprio bem. Pensa, verdadeiramente, que faz isso por mim.
- A velha megera - troçou Helen.
- Claro - concordou ele. - Está bem... que hei-de fazer? Deixá-la? Ela é minha mãe. Não tenho mais ninguém. Viro-lhe costas? Diz-me tu.
- Eu não devia ter de te dizer nada. Afinal, que tipo de homem és tu?
- Que tipo de homem? - perguntou ele, surpreendido. - Não sei. É verdade, juro por Deus que é. Não sei que tipo de homem é que eu sou.
Ela olhou para ele com os olhos semicerrados.
- Já alguma vez dormiste com uma mulher, Uck? Ele olhou para o chão.
- Algumas vezes. Putas. Não prestou para nada.
- Queres cá ficar esta noite?
- Não sei.
- Não sei, não sei - imitou ela. - Há muitas coisas que tu não sabes, não há?
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- Helen - implorou ele. - Eu estou a tentar. Estou mesmo a tentar. Agora é que estou a começar a descobrir o que me está a acontecer. Vejo-o acontecer... e é terrível. Não quero que aconteça, mas não sei como hei-de impedi-lo.
- Que está a acontecer?
- Coisas - murmurou ele. - Estou a a ficar espapaçado. Fui sempre mole, mas agora estou a ficar espapaçado. ê meu corpo e aquilo que sou por dentro. Pudim. Estou a ficar sem força. Não posso ser o tipo de homem que quero ser. Estou a transformar-me noutra pessoa, numa pessoa de quem não gosto. Os próximos anos... meu Deus, Helen, tenho medo de pensar nisso. Helen. Helen...
Depois, subitamente, ele atravessou a sala, ajoelhou-se agarrado às pernas dela, com o rosto no seu colo, pronto para uma sessão de autocomiseração.
- Helen - murmurou ele. - Helen...
- Põe-te de pé, que raio!-exclamou ela furiosa, empurrando-o. -Eu não sou nenhuma Edith, meu rapaz. Vai já para o sofá. Vá, imediatamente.
Ele pôs-se de pé arrastadamente, esgueirou-se até ao sofá e sentou-se a olhar para o chão.
- Tu odeias-me - disse ele.
- Não, não te odeio - suspirou ela. - Só não gosto de ver um homem rastejar. Ouve, filho, sou o tipo de mulher que já passou por muito. Fiz muitas coisas e vivi muitas coisas. E sei que não há nada que não se possa mudar, quando se quer de verdade. Podes ser o tipo de homem que quiseres, se realmente quiseres. Mas será que queres?
Ele ficou calado.
- Conheci muitos homens como tu. Há cada vez mais. Não têm tomates. E isso não é para
mim. Quero um homem. Compreendes? Prefiro ter um tipo que me dá um pontapé
no rabo ou me dá no focinho de vez em quando do que um tipo que esconde a cara no meu colo e chora. Que raio está a acontecer aos homens?
Ele não disse nada.
- Tu não és do inimigo, pois não, Uck? Ele levantou a cabeça.
- Quê?
- Maricas!?
Ele ficou a olhar para ela.
- Não.
- Uck?
- Uma vez.
- Uck.
- Ou duas.
- Quando?
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- Há muito tempo.
- Quando?
- Anos. Há anos.
- Quem?
- Um tipo. Um amigo.
- Ainda o vês?
- Sim. Mas já acabou tudo.
- Uck.
- Juro que acabou, Helen. Juro por Deus.
- Edith sabe?
- Claro que não. Nem sequer imagina essas coisas.
- Pois sim. É um desses tipos com quem jogas aoHearts?
- Sim.
- Levezinho ou da pesada?
- Faz pesos e halteres.
- Oh.
- Juro que já acabou, Helen. Nunca penso nisso. Por que estás a fazer-me isto?
- A fazer o quê?
- A perguntar-me estas coisas? A obrigar-me a dizer estas coisas?
- Não te conheço - disse ela com certo espanto. - Ando contigo há semanas e, na realidade, não te conheço. Quero conhecer, é só.
- Essa é uma das coisas - disse ele. - Uma das coisas de estar a ficar espapaçado. Tenho medo. És a primeira mulher que conheço com quem consigo falar. Tens a coragem que eu gostava de ter. Nunca tens pena de ti própria, pois não?
- Claro que sim. Às vezes tenho.
- Mas não sempre. Não és como eu.
- Aceito as coisas à medida que vão surgindo. Vivo cada dia de uma vez.
- Meu Deus! - disse ele numa voz rouca, ainda mais acabrunhado.
- Que é?
- Sou tão infeliz!
- Não tens de ser.
- Não consigo fazê-lo sozinho.
- Que queres de mim?
- És dura.
- Oh, claro!
- Quero aprender isso. Quero ser duro.
- E brilhante e estar na crista da onda.
- E brilhante e estar na crista da onda - repetiu ele.
- Queres mesmo, Uck?
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- Sim.
- Mesmo?
- Sim. Sim.
- Podes ser.
- Como? - implorou ele. - Diz-me como,
- Fá-lo, simplesmente. És demasiado gordo. Comes de mais e bebes de mais. Corta isso. Livra-te dos teus gatos. Deixa de jogar ao Hearts. Diz ao Sr. Músculo para desaparecer. Diz a Edith. Não lhe peças... diz-lhe.
- Meu Deus.
- Não de repente. Pouco a pouco.
- Meu Deus... achas que consigo? Ela encolheu os ombros.
- Queres?
- Juro que quero. Quero.
- Eu ajudo-te.
- Oh, Helen, vai ser divino. Ela praguejou.
- Desculpa - disse logo ele. - Não volto a dizer "divino". Ela assentiu.
- É um bom começo.
- Posso cá ficar?
- Esta noite?
- Sim.
Ela reflectiu.
- Não, acho que não. Talvez no próximo fim-de-semana.
- Está bem.
- Está bem - imitou ela outra vez. - "Helen, posso cá ficar? Não? Está bem." É a isso que eu me referiro. Tens muito que aprender, rapaz.
- Sim - disse ele num tom zangado. - vou aprender. Ela abrandou.
- Vais sair-te bem, Uck. Almoço contigo uma vez, durante esta semana. Depois, vens cá na sexta-feira. Diz a Edith que vens cá.
- Direi.
- Come muitas algas.
- Está bem.
- E chili. Ele riu-se.
- Há muita grafite no velho Eversharp - explicou ela. - Bifes mal passados... coisas assim. vou ensinar-te muitas coisas.
- Sim - disse ele muito feliz. - Oh, sim!
- Mas promete-me uma coisa... o tipo dos pesos e halteres vai à vida.
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- vou dizer-lhe amanhã.
- Telefona-lhe. Não vás ter com ele.
- Obrigado, Helen.
- Por quê? Vamos esperar e ver. Meu Deus, estou morta. Põe-te a andar, Uck.
Ele levantou-se, endireitou a espinha, puxou os ombros para trás, encolheu a barriga e ergueu o queixo.
- Mas que saco de banhas! - Ela sorriu. - Que pipa! Mas tudo bem, querido. Não se pode martelar uma estaca com um martelo para pregos. Boa noite, querido.
Ele atravessou a sala, puxou-a para ela ficar de pé e beijou-a com força.
- Caramba - disse ela.
- Professora - disse ele.
- Repete.
Ele beijou-a outra vez.
- Caramba duplo - disse ela.
- Helen, eu amo-te.
- Humm. Outra vez.
- Eu amo-te.
- De trás para diante.
- Te amo eu.
- De ambos os lados para o meio.
- Amo eu te. Te eu amo.
A rir, de mãos dadas, dirigiram-se para a porta.
- Sexta-feira - disse ela.
- Trago-te as bases - brincou ele.
Ela disse-lhe duas palavras, que não foram "Feliz Aniversário".
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O rádio-despertador continuava a tocar, e, ela lembrar-se-ia mais tarde, acordou ao som de Every Day Is LadiesDay with Me, de The Red Mill. Ficou alguns minutos na sorna, a sentir o fresco lá fora e o calor doce por debaixo dos lençóis.
Virou a cabeça e olhou para Rocco, enroscado no seu cobertor.
- Querido Rocco, meu rapaz - chamou ela, deitando uma mão para fora da cama.
Mas ele não veio, nem sequer levantou a cabeça. Parecia amuado.
- Estás com sono? - perguntou-lhe Helen. - Olha, dorme... Vive um pouco.
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Deitou os pés para fora da cama e ficou ali sentada, a bocejar e a espreguiçar-se, a coçar a cabeça, a lamber os lábios.
Foi aos tropeções até à janela para a fechar e puxou a persiana, que caiu ruidosamente.
Pôs-se de pé à frente do espelho de corpo inteiro, na parte de dentro da porta do quarto. O peito estava ligeiramente descaído? A cintura ligeiramente grossa? O rabo ligeiramente caído? Ergueu os braços bem acima da cabeça, entrelaçou as mãos e começou a mexer o tronco de um lado para o outro enquanto respirava fundo.
Dez flexões do tronco. Depois dez flexões de joelho, agarrada ao puxador da porta do armário. Depois, contraiu os músculos da barriga até estes tremerem com o esforço, enquanto contava até seis. Depois, inclinou-se para tocar no chão, tentando manter os joelhos trémulos unidos e direitos.
Contou até dez.
Depois exclamou:
- Jesus! - E sentou-se na borda da cama e fumou um cigarro, enquanto o rádio tocavaln OldNew York. Rocco estava de olhos abertos. O seu olhar tinha seguido os seus exercícios, mas ele não se mexia. Ela aproximou-se e ajoelhou-se junto dele, o seu corpo num ponto de interrogação ao seu lado.
Pôs-lhe a mão na testa e apalpou o nariz em forma de botão. Parecia febril.
- Que se passa, querido? -perguntou ela. - Dores e achaques?
Ele mexeu ligeiramente o rabo. Subitamente, começou a respirar com dificuldade, em grandes arranques asmáticos.
- Ahhum, ah- hum, ah-hum... - com a boa completamente aberta e os olhos muito fechados.
- Pára já com isso - disse ela, subitamente assustada, - Pára com isso.
Pôs-lhe a mão ao de leve no peito. Passados alguns minutos, ele começou a respirar asmática e ofegantemente como de costume.
- vou buscar-te leite - prometeu-lhe ela. - Trago-to aqui. Nem sequer precisas de te mexer.
Foi à cozinha, deitou leite no prato dele, acrescentou um pouco de água quente, misturou um ovo cru e, no último instante, decidiu juntar algumas gotas de brande. Levou o prato para o quarto. Ele estava deitado no chão, com a cabeça entre as patas. Olhou para ela. Ela não gostou do barulho da respiração dele. Estava qualquer coisa mal lá dentro.
Ela pôs-lhe o prato junto do nariz, mas ele nem se deu ao trabalho de o cheirar.
Ela alisou-lhe o pelo hirsuto na parte de cima da cabeça.
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- Querido Rocco, meu rapaz - disse ela. - Tenho tanta pena de que não te estejas a sentir bem!
Helen tomou rapidamente duche, engoliu a pílula e voltou para o quarto.
Ele ainda lá estava, com a cabeça deitada. O seu olhar ia percorrendo o quarto. Estava a olhar para tudo. Não tinha tocado no pequeno-almoço.
- Melhor? - perguntou ela esperançada. - Sentes-te melhor?
Ela vestiu-se depressa. Estava a apertar o cinto, quando a respiração dele voltou a ficar arfante e dolorosa. Não conseguia parar. Todo o seu corpo estremecia enquanto tentava respirar.
Começando a sentir algum pânico, ela voltou a ajoelhar-se junto dele, pôs-lhe a mão ao de leve no focinho e tentou falar num tom tranquilizador.
- Vá lá, querido... - murmurou ela. - Vá lá.
Agora, todo o seu corpo tremia, sacudia, e as suas patas traseiras davam esticões. Ela tapou-o com o seu cobertor Black Watch de xadrês e aconchegou-lho junto do pescoço. Mas as tremuras não pararam. Ele tinha agora a boca completamente aberta, donde escorria uma espécie de líquido viscoso.
- Oh, meu Deus! - disse ela, mordendo o nó do polegar. Agarrou na lista telefónica, procurou o número do veterinário...
o que ficava na Rua 53. Ligou, mas ninguém atendeu. Ainda só passavam alguns minutos das nove.
Ficou ali sentada, com o telefone mudo nas mãos, a pensar. "E o que eu tenho de fazer, pensar. Tenho de pensar como vou resolver isto." Pensou e decidiu dar mais cinco minutos ao veterinário. Depois, se ninguém atendesse do consultório, telefonaria para a ASPCA. Levaria Rocco lá. Como? Ele era demasiado pesado para ela o levar ao colo. Não tinha um cesto para o transportar. O porteiro podia levá-lo até ao táxi. Como? Talvez ela pudesse arr anj ar uma caixa, uma caixa de cartão. Podia forrá-la com o cobertor dele. O porteiro podia... Ligou para a Swanson Feltzig. Susie Garrar respondeu alegremente.
- Oá, querida - disse Helen Miley. - Harry já chegou?
- bom dia, querida - disse ele na sua voz calma. - Como está esta manhã?
-Harry-disse ela ligeiramente -, aconteceu uma coisa idiota.
- Olhou para Rocco. A sua língua preta estava pendente. Via o seu peito a arfar pesadamente, debaixo do cobertor. -Rocco... é o meu cão, já lhe falei nele... não parece estar muito bem. Acho que pode estar a morrer. Não consegue respirar. Tenho de o levar ao veterinário ou talvez à ASPCA. Mas não sei como hei-de fazer. Não creio que ele consiga andar. Estava a pensar...
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Ele não hesitou um segundo.
- vou já para aí - disse ele. - Não há problema. Dez minutos, no máximo. Aguenta aí.
- Oh, sim! - disse ela, com os olhos cheios de lágrimas. Harry Tennant estava ali, ajoelhado ao lado de Rocco, a fazer-lhe
festas na cabeça, a limpar-lhe a boca com um pano molhado, quando Helen conseguiu finalmente falar com o veterinário.
- É uma emergência? - perguntou ele, o perfeito cirurgião, com água a, escorrer-lhe dos cotovelos. Bata! Luvas! Máscara!
- É sim. Ele não consegue respirar. Não se mexe. Parece...
- Traga-o para cá imediatamente. Disse que era um dálmata?
- Uma espécie de spaniel - disse ela numa voz fraca.
Ela não teria conseguido sem Harry. Ele foi buscar uma caixa de cartão à loja de bebidas na esquina. Dizia "HL: O Uísque das Agradáveis Recordações", de lado. Forraram-no de jornais e depois com o cobertor de Rocco. Puseram-no cuidadosamente lá dentro. Harry levou-o até à rua. Marv estava de serviço e quase se atirou para debaixo de um táxi para o obrigar a parar. Lê varam Rocco para o veterinário.
Havia uma velhota na sala de espera. Tinha um gatinho ao colo. O gatinho miava.
- Tu cala-te - dise a mulher.
Esperaram cinco minutos. Harry estava prestes a arrombar a porta do gabinete quando a enfermeira saiu displicentemente, engomada e sorridente.
- O doutor vai recebê-la agora - disse ela a Helen.
- Eu cheguei primeiro - exclamou a velhota.
- É uma urgência - disse a enfermeira a sorrir. - Por favor, tenha paciência.
O gatinho miava.
- Tu cala-te - disse a velhota.
Harry carregou com a caixa de cartão, com Rocco lá dentro, para dentro do gabinete e depositou-o cuidadosamente na marquesa de aço inoxidável.
Tocou no ombro de Helen, sorriu-lhe e voltou para a sala de espera, fechando a porta do gabinete atrás de si.
- Ora bom - disse o veterinário -, que temos aqui?
- Doutor, ele não consegue respirar e está a tremer. Recusou-se a comer esta manhã e está a ter uns ataques...
- Sim, sim - disse ele. - Sim, sim.
Meu Deus, como ele brilhava. Cabelo cinzento-aço, pele que parecia ter sido esfregada e polida com lixa. Enormes mãos com dedos que tinham sido espremidos de tubos. E vestido de um branco-imaculado.
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Um halo em torno da sua cabeça e, como música de fundo, muito baixinho, um diapasão e um grupo coral misto que cantava:
- Ooohh-aah-eee-aah-ooh-aah. Aleluia!
Ele afastou o estetoscópio do peito arfante de Rocco e olhou para Helen.
- Um momento - disse ele. - Vamos verificar a sua história clínica.
Era lindo... as fichas num ficheiro rotativo, cada ficha com um número de série para identificação. Depois, marcou o número no ficheiro principal e saiu .Rocco: lombrigas, olhos infectados, diarreia, asma, extracção de sete dentes, etc. Lá está Rocco no ficheiro principal.
- Rocco - disse ele. - Sim, tem doze anos, não é? Ou treze?
- Vai fazer treze.
- Sim, receamos que ele não consiga passar desta.
- Não passa desta?
- Ele está bastante mal, Menina Miley. Não podemos fazer nada quanto à respiração. O tumor ulcerado que ele tem no estômago nunca chegou a sarar. Tem a bóia numa lástima. E olhe para este...
Levantou uma das patas traseiras de Rocco e deixou-a cair.
- Não faça isso - disse Helen, zangada.
- Não tem sensibilidade. Cremos que tem aqui uma paralisia.
- Paralisia? De quê?
-Menina Miley, ele está velho. Para a raça dele, é apenas um cão velho. Está a cair aos bocados. Não o podemos voltar a pôr bom. Neste momento, está em sofrimento. Mal consegue respirar.
- Não há nada que possa fazer?
- Não.
Ela pôs a mão no focinho de Rocco. Ele deitou a língua de fora, para lhe lamber um dos dedos.
- Nada? - perguntou ela.
- Não - disse o tipo magnífico. - Nada.
Um carro de bombeiros passou na rua. Ela ouvia a sirene.
- Como fazem?
- Quê? Desculpe? Não a ouvimos.
- Como fazem?
- Oh! com uma agulha. Uma injecção. Absolutamente indolor. Ele apenas adormece. Se quiser, pode ficar com ele ao colo. Garantimos-lhe que sentirá menos dores do que está a sentir neste momento.
- E depois?
- Depois?
- Não... sabe... não o cortam aos pedaços, pois não?
- Cortá-lo aos pedaços? - exclamou ele, indignado. - Evidentemente que não. Tratamos de tudo. Então?
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- Tem a certeza de que não pode fazer nada?
- Absoluta. E um caso terminal. Então?
- Sim. Está bem.
Ele tirou um impresso de uma gaveta do ficheiro.
- Por favor, assine aqui - disse ele.
Ela foi à sala de espera. Harry esperava, fumava um cigarro.
- Tu cala-te - disse a velhota ao gatinho.
- Olhe, Harry - disse Helen -, é melhor voltar para o escritório. Não há nada que possa fazer aqui. Eu vou depois. Talvez logo à tarde. Obrigada por tudo. Você foi espantoso. Não teria conseguido trazê-lo sem si.
- Como está ele?
- Rocco? bom... nada bem. Vão abatê-lo. O médico disse que devia ser abatido.
- OhJ? - disse ele. - Ah! - disse ele. - bom, então talvez eu espere. Fico aqui sentado à espera. Até você se querer ir embora.
- Não - disse ela, pondo-lhe a mão no braço e sorrindo-lhe. De qualquer forma, obrigada, mas eu consigo tratar disto. Volte para o escritório. Eu depois vou. Okay?
- Claro, querida - disse ele, inclinando-se para lhe fazer uma festa na face. - Tome cuidado consigo.
Virou-se e foi-se embora.
Havia uma pequena sala contígua à sala de observações. Ela ficou lá sentada numa cadeira idiota de tubos de aço e tiras de plástico preto, à espera. Esperou trinta minutos, mas talvez tivessem sido cinco.
O médico, brilhante, entrou com Rocco ao colo em cima de uma toalha de papel... o maitre d: "E aqui temos o porco assado acompanhado de..." Ia pôr Rocco no chão, mas Helen pegou na toalha de papel e no cão ao colo.
- Calculamos uns vinte minutos no máximo - disse ele a sorrir. Ela olhou para ele quase com ódio.
- Obrigada - disse.
Rocco parecia muito calmo, muito quieto. Ficou ali deitado, agora a respirar com menos dificuldade, a olhar fixamente em frente. Helen começou a fazer-lhe festas,
- Ri e o mundo ri contigo - disse-lhe ela. - Chora e chorarás sozinho.
Os olhos dele desviaram-se para o lado, para olharem para ela. O seu rabo abanou ligeiramente uma vez.
- O homem que vale é o homem que consegue sorrir quando tudo corre mal.
Rocco gostou dessa. Levantou ligeiramente a cabeça e ela inclinou-se para o beijar, sentindo aquele querido cheiro horrível.
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- Então, meu filho-da-mãe - disse ela. - Vais deixar-me sozinha, não é? Vais deixar-me sozinha?
Mas esteve a maior parte do tempo calada. Ficou ali sentada, com ele ao colo em cima da toalha de papel, a tocar-lhe.
- Cão estúpido - disse ela uma vez.
Ele portou-se muito bem. Virou os olhos para o lado, para olhar para ela. Finalmente, os seus velhos lábios arrepanharam-se e deixaram à mostra as suas horríveis gengivas e dentes, e ele começou a arfar ligeiramente, com a língua pendente. Ela fez-lhe festas mecanicamente, passando a mão pelo focinho, pescoço e dorso... festas prolongadas. Passado um bocadinho, começou a coçá-lo ao de leve junto ao rabo, coisa que ele adorava.
Ele estava a ir, a ir... Olhos a fechar. Respiração entrecortada. Ela inclinou-se para ficar mesmo junto dele.
- Ouve, meu querido - murmurou ela -, antes de ires, há uma coisa que tenho de te dizer. Uma coisa que nunca te disse...
Rocco tentou levantar a cabeça, mas não conseguiu.
- Tu não és o meu filho verdadeiro-murmurou ela. - Es adoptado. Mas eu quis-te. Quis-te á ti.
Passado um bocado, o homem brilhante entrou.
- Então - disse ele num tom despachado -, já acabámos?
- Sim - disse Helen Miley -, já acabámos.
Ela saiu para o sol e ali estava o esguio Harry Tennant encostado ao edifício, a fumar um cigarro e a ver o mundo passar. Ele olhou-a.
- Okay?
Ela assentiu. Ele deu-lhe o braço e começaram a andar vagarosamente.
- Para casa? - perguntou ele. - Ou para o escritório?
- Hoje talvez faça gazeta.
Ele não disse nada. Limitou-se a continuar a andar ao lado dela. Limitou-se a estar ali.
- Meu Deus, que dia lindo! - disse ela.
- Olha para o céu - disse ela.
-Adoro dias como este - disse ela. - Temos algumas semanas boas em Maio e talvez algumas semanas boas em Outubro. Sabe? Céu limpo. Ar que se pode respirar.
- Adoro mesmo este dia - disse ela.
Ele deixou-a ir falando, olhando ocasionalmente para baixo, para ela, sorrindo, o seu sorriso distante. Depois, viram-se no passeio à porta do prédio de apartamentos de Helen.
- É melhor eu voltar para o escritório - disse Harry.
Ela olhou para ele.
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- Está bem - disse ele, - Só por uns minutos...
Ele sentou-se no sofá da sala, dobrado sobre si próprio, com os antebraços sobre os joelhos, com as grandes mãos de jogador de basquetebol penduradas. Helen fez café e também serviu uns donuts polvilhados com açúcar. Ela deu uma dentada no seu donut e depois correu para a casa de banho, batendo com a porta.
Ele ficou ali sentado pacientemente, a olhar para as mãos, a pensar como as mãos eram coisas estranhas quando uma pessoa olha para elas tempo suficiente. Um pedaço quase quadrado de carne e osso com linhas malucas. Aquelas cinco coisas compridas a sair dele. Parecia não terem qualquer design. Pareciam ter sido montadas por um carpinteiro demente ou por um miúdo que desmonta o skate, prega as peças na parte da frente e de trás de um dois por quatro, acrescenta um caixote de fruta e coloca pedaços de paus de vassoura como pegas e fica com um Cadillac. Certo? É isso que uma mão parece.
Passado um bocadinho, Helen saiu da casa de banho. Tinha lavado a cara com água fria e estava a sentir-se um pouco melhor.
- vou beber um copo - anunciou ela. - Também quer?
- Faço-lhe companhia - assentiu ele.
Ela tinha uma garrafa de uísque e foi buscar copos, um prato de sopa cheio de pedras de gelo e um jarro com água da torneira. Ela bebeu o seu uísque com água, mas Harry tomou o seu puro, bebendo-o lentamente.
- Quanto tempo o teve? - perguntou ele.
- Toda a sua vida. Num Natal, recebi uma gratificação... cinquenta dólares. Ele estava numa montra em Lexington, com mais uma série deles que pareciam ser seus irmãos e irmãs. Quero dizer, pareciam ser todos da mesma ninhada. Estavam a correr uns atrás dos outros em cima do jornal rasgado, a mordiscarem-se e a rolarem e a fazerem chichi. Sabe...? Mas ele estava ali sentado, muito solene, a olhar pelo vidro. Parecia tão só! Como se ninguém o amasse. Depois é que percebi que era encenação. O tipo era um actor. Deviam tê-lo obrigado a ir para a Equity. Ele sabia exactamente como fazer para ser comprado. Ficar ali sentado a olhar pelo vidro, com os olhos muito abertos. com os olhos brilhantes. Talvez mesmo a deitar uma lágrima. E, depois, aparece um sentimental qualquer com coração de gelatina e compra-o e leva-o para casa, para um sítio quente onde ele até tem uma cama macia. O filho-da-mãe. Tinha planeado tudo.
Harry deu uma risadinha.
- Acho que sim.
- bom... que raio. Ele era só um cão. Harry assentiu.
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- É melhor arranjar outro.
-Talvez. Um dia. Já, não.-Ela olhou para a gaiola do periquito. O pássaro estava a catar as penas. - Acha que ele sabe? O pássaro? Harry encolheu os ombros.
- Pode ser.
-Não gosto nada daquele pássaro. Talvez não devesse dizer isto, mas é verdade. Não gosto dele. Não há nada entre nós.
- Por que é que o comprou?
- Estava em saldo no Gimbels. Olhe, achei que ele faria companhia a Rocco enquanto eu estivesse ausente durante o dia. Mas Rocco também não gostava dele. Acho que me vou desfazer dele. Quere-o?
- Não - disse Harry. - Obrigado.
-Presumo que ache que eu sou uma gaja maluca que ficou virada do avesso por causa de um cão.
- Não, querida, não acho.
- Ele tinha documentos, sabe? Era importante. O avô dele era campeão. Era de um canil qualquer no Nebraska. Posso mostrar-lhe os documentos dele.
- Não, não é preciso.
- bom, de qualquer forma, eu amava-o.
- Não há mal nenhum nisso.
- Acho que não. Filho-da-mãe malcheiroso...
Ela serviu-se apressadamente de outro uísque e sorveu uma grande golada.
- Todos nós temos problemas - disse ela.
- Claro. A vida é assim mesmo.
Ficaram ali sentados em silêncio, a mordiscar as suas bebidas, a sentir o efeito do uísque.
- Acha que há um céu para cães? - perguntou ela subitamente.
- Claro. Por que não? Para todos os seres vivos. Cães e animais e baratas e insectos de toda a espécie. Por que havia de existir só para pessoas?
- Sim - disse ela com uma expressão pensativa. - É isso mesmo.
E assim...
Ela levantou-se e foi sentar-se ao lado dele no sofá. Pôs-lhe um braço à volta do pescoço. Beijou-o.
- Sinto-me tão... - disse ela. - Sinto-me tão...
- Eu sei, querida - murmurou ele. - Eu sei.
Ele não devia ter dito a palavra "querida" naquele preciso momento porque isso arrasou-a. Fê-la soltar-se e desfazer-se. Ele viu-se atrapalhado, a abraçá-la, a fazer-lhe festas, a confortá-la, a dizer-lhe
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coisas até as lágrimas dela secarem, até ela se acalmar e parar de tremer.
- Jesus, desculpa - exclamou ela numa voz entrecortada. Desculpa. Não pensei que isto acontecesse. Pensei que me aguentaria.
Ela não compreendeu o que ele estava a dizer. Ele estava apenas a dizer coisas em voz baixa, numa espécie de murmúrio, enquanto lhe acariciava o cabelo. Tirou o lenço da algibeira da frente do casaco... era de seda e de um amarelo bonito com comucópias vermelhas... e limpou-lhe as lágrimas. Ele estava a fazer tudo bem, a abraçá-la, muito sério.
Ele abraçou-a até ela se recompor. Ela respirou fundo três vezes e depois afastou-se, levantou-se, começou a andar pela sala. Pegou em coisas. Pousou coisas.
- bom... que temos? - perguntou ela. - O mailing da conta Cantabile vai sair esta semana... Certo?
- Sim, certo.
- Ora vejamos... as cartas para a Parking Association?
- Confirmei com Solly esta manhã. Está a trabalhar nelas. Amanhã, dá-nos a prova.
- Sim. Óptimo. - Ela olhou pela janela. - Já estou bem, Harry. Ela telefonou a Susie Garrar. Estava tudo calmo no escritório. Os
gémeos Bobbsey não tinham aparecido e não havia nenhuma crise. Portanto, Helen e Harry podiam beber outro uísque.
- Isto é agradável - disse ela. - Gosto mesmo disto. É agradável fazer gazeta. Já alguma vez fizeste gazeta?
- Oh, claro, querida. Uma ou outra vez. E é agradável.
Ele desapertou a gravata e desabotoou o colarinho da camisa. Desapertou os atacadores.
Depois estiraçou-se, esticando-se no sofá, de forma que o seu corpo quase formava uma linha recta, desde a nuca até aos calcanhares.
- Estou a pôr-me à vontade - informou ele. Ela assentiu, feliz.
- Deves achar que eu sou bastante atrevido, chefe.
- Gosto de homens atrevidos - declarou ela. - Gosto que os homens se atirem a sério. Gosto de provocar os homens nos restaurantes. Sabes...? Olhar para eles. Gosto quando os homens me piscam o olho na rua ou os motoristas dos camiões assobiam e dizem coisas ordinárias. Uma vez, houve obras na Rua 46 e, durante uma semana, fiz um desvio de dois quarteirões só para os tipos das obras me assobiarem. Estavam à minha espera todas as manhãs. Era uma forma magnífica de começar o dia.
- Uuuuiiii - murmurou ele. - Há anos e anos que não bebo tanto antes do almoço.
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- Harry, tens fome? - perguntou ela ansiosamente. - Posso arranjar-te qualquer coisa. Uma sanduíche. Ou posso mandar vir da confeitaria.
- Não, não é preciso. Obrigado, querida.
- Ouve - disse ela, subitamente séria -, não te quero arranjar problemas.
- Problemas?
- bom. Tu sabes. Estou a referir-me àquelas coisas que me disseste. Disseste que não tocarias noutra mulher se íris Kane voltasse para ti. Juraste a Deus. Foi isso que me disseste.
- Certo. - Ele suspirou, de olhos fechados. - Foi o que eu disse. Jurei a Deus.
- Deus - troçou ela. - Não acho que Ele seja assim tão magnífico. Outro dia, vi na rua um miúdo todo aleijado. E vi uma rapariga muito bonita que era cega. Todos os tremores-de-terra e inundações e tudo o mais. Todas as pessoas que morrem. Bebés. Acho que Ele está a fazer um trabalho péssimo. Eu fazia melhor.
- Talvez devesses ser Deus.
- Eu continuo a achar que Ele é, sabes?, ineficiente. Ele abriu os olhos e olhou para ela solenemente.
-bom, tu sabes como hoje em dia é difícil obter uma ajuda capaz. Depois, não aguentaram.
Mal dando por isso, estavam abraçados, a rolar no sofá, a beijarem-se. Mas ainda não estavam bem. Helen descalçou-se.
- O que há a fazer - disse ela -, o que há a fazer...
- O que há a fazer?
- Sim. O que há a fazer... é bebermos outro uísque. Ele ponderou a questão.
- Sim - concordou ele por fim -, é isso que há a fazer.
Ela foi buscar mais gelo à cozinha, deitou mais uísque nos copos e entornou um bocado na mesinha.
- Achamos que há aqui uma paralisia - disse ela.
- Quê?
- Harry, pode levar algum tempo. Quero dizer, a adaptarmo-nos um ao outro. As pessoas casam-se e levam semanas. Meses. Estás a perceber?
- Acho que tens razão.
Ficaram calados. A beber. Naquele momento, não precisavam de falar. Ficaram em silêncio durante quase um quarto de hora. Mas, depois, voltaram a engatilhar...
- Calculo que, para nós, será uns três minutos - disse ela. Ele pensou.
- Talvez dois.
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Ela deu-lhe a mão, com a sua pequena coisa branca a agarrar aquele grande cacho de bananas demasiado maduras, e levou-o para o quarto. Ficaram lado a lado, a olhar
para a sua imagem no grande espelho na porta do lado de dentro.
- Santo Deus dos Céus - disse Harry numa voz impressionada -, nós somos o máximo.
E eram, de facto. O espelho nem sequer apanhava a parte de cima da cabeça dele. E ela mal lhe dava pela cintura. Ficaram ali, de mãos dadas, a olhar fixamente para
a sua imagem, a tentar perceber o que viam e o que estava a acontecer... ele tão alto e magro e preto e ela tão baixa e loura e branca, com um corpo magnífico.
- Podia meter-te na algibeira do casaco - disse-lhe ele.
- Faz isso - assentiu ela. - Faz exactamente isso.
Ela era uma mulher que se despia depressa. Vestido puxado pela cabeça, collants arrancados das pernas... e pronto: bing, bing, bing.
- Deixa ficar o relógio - disse-lhe ela.
- O meu relógio? Caramba, isso é esquisito. Helen, isso é mesmo esquisito. Já conheci algumas pessoas que gostam de coisas esquisitas... mas o meu relógio? Querida,
tens de reconhecer que isso é mesmo esquisito.
- Não é nada esquisito. - Ela bocejou, um bocejo daqueles de partir os maxilares. - Só quero que o tenhas posto. Adeus.
Ela raspou-se para a sala. Quando voltou com o uísque, o prato de sopa com as pedras de gelo e mais água, ele estava na cama. O lençol estava puxado para cima, entalado
por debaixo do seu queixo. Mas tinha os pés de fora... uns pés compridos, brilhantes, que pareciam instrumentos musicais antigos. Fuga em Lá Sustenido Menor, escrita
para os Pés de Harry.
Ela meteu-se debaixo do lençol e aconchegou-se a ele. Beijou-o. - Eu dou-te isto - disse ela.
- E eu dou-te isto - disse ele.
- E eu dou-te isto.
- E eu dou-te isto.
- E eu faço-te cócegas aqui.
- E eu faço-te cócegas aqui.
- E isto para ti.
- E isto para ti.
E assim continuou, interrompido ocasionalmente para servir mais uísque.
- E agora dou-te isto.
- E agora dou-te isto.
Deitaram-se a arfar. A pensar onde é que aquilo ia levar. A saber. -Agora, olha lá-disse ele finalmente -, vamos ser sensatos em relação a isto.
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- Sensatos.
- Vamos ser inteligentes e lógicos.
- Inteligentes e lógicos.
- Tu sabes... - disse ele. Uma longa pausa. - Tu sabes, porque és tão baixa e eu sou tão alto... bom, sabes que me ponho em cima de ti e tu vais ficar com a cara enfiada nos pêlos do meu peito e os teus pés vão ficar ao nível dos meus joelhos.
Ela pensou nisso. Parecia razoável.
- E verdade - reconheceu ela. - E depois?
- Assim, não consigo beijar-te. E quero beijar-te, querida. Ela deu-lhe um murro nas costelas.
- Harry.
- Olha, quero.
- Está bem - disse ela. - Deixa-me pensar um pouco. Ela pensou um pouco.
- Podias deitar-te de costas - sugeriu ela -, e eu podia sentar-me em cima de ti. Desporto? Que tal?
- Não dá - disse ele, abanando a cabeça. - Demasiado longe. Quero beijar-te, querida.
-Eu podia deitar-me de... não, não resulta. Talvez se nós... não. Ouve, Harry, e a mesinha da sala?
- Que é que tem?
- Não, é demasiado baixa. Mas tenho a mesa de jantar. Tem a altura certa. Mas tinhas de ficar de pé.
- Merda - disse ele. - A parte de trás do autocarro. Estaria bem, querida, mas, quando eu me inclinasse para te beijar, projectava o rabo e em que é que ficávamos?
- O tampo da sanita? - sugeriu ela.
- O cesto da roupa suja? - ofereceu ele.
- Do lado de fora da janela? - disse ela. - Pendurados pelos calcanhares?
- De cabeça para baixo no... - começou ele a dizer, mas já estavam ambos a rir tanto que ele não conseguiu acabar. Só conseguiam rir, e ela esqueceu Rocco.
Quando, finalmente, fizeram, foi com ele sentado na beira da cama com os pés assentes no chão. Ela escarranchada nele. Ele agarrou-a, a fazer pressão com as suas grandes mãos. Os pés dela estavam em cima da cama, um de cada lado dele. Estavam confortáveis. E podiam beijar-se.
Beijaram-se.
- Sabes, querida - disse ele. - Não sinto absolutamente nada.
- Muito obrigada.
- Não, não é isso que eu quero dizer. Tu sabes que não é. Adoro estar perto de ti, com as mãos no teu. rabinho fofo. Está tudo bem
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connosco, querida. Está óptimo. Mas o que eu queria dizer é que não sinto nada do que os livros dizem que devia sentir.
- Quais livros?
Ele pôs uma mão entre as omoplatas dela. Deslizou o outro braço e meteu a mão por debaixo do rabinho fofo dela. E, subitamente, pôs-se de pé sem qualquer esforço. Ela pôs os braços em volta do seu pescoço. Prendeu os calcanhares em volta das suas ancas.
Ele andou pelo quarto. Ali estava ela, empalada no seu pau esguio. Ele levou-a para todo o lado, uma pequena placa branca de aquecimento que aconchegava ao seu coração.
- Oh...-disse ele. - Tu sabes. - O seu rosto negro estava marcado pela tristeza. - Li uma data de livros escritos por pretos e brancos. Segundo eles, eu devia estar a penetrar-te porque quero vingar-me dos brancos ou porque estou a quebrar o tabu ou porque tenho vergonha de levar uma mulher negra para a cama. Como eu disse, não sinto nada disso.
- De que estás a falar, rapaz? - perguntou ela ansiosamente, É qualquer coisa que eu deva saber?
- Não. Deixa-me apenas falar. Ele andou às voltas, a sorrir-lhe.
Uma vez, deu um saltinho. Penetrou-a mais profundamente, e ela gemeu de prazer.
-Devia sentir-me culpado. Ou talvez vingativo. Ou com vontade de te magoar. Como dizem os livros. Mas sabes o que sinto?
Ela esfregou a face contra a dele.
- Espero que te sintas tão bem como eu.
- E sinto, querida, sinto. Sem culpa. Sem sofrimento. Tudo isso que escrevem... não passa de tretas de merda!
- Claro, Harry. Salta outra vez. Ele saltou. Ela deu uma risadinha.
- Caramba!
Ele continuou a andar pelo quarto durante mais alguns momentos, a apertá-la contra si. Depois depositou-a cuidadosamente na cama, rolando. Ficaram deitados de lado. Ele continuava dentro dela. Como ele previra, o rosto dela estava contra o seu peito e os pés à altura dos seus joelhos.
Deram as mãos. Olharam ambos de lado para o tecto com a tinta a pelar num canto.
- Põe um braço à minha volta - murmurou ela. - Abraça-me. Ele pôs o seu braço comprido em volta dela e apertou-a contra si.
Depois, fechou os olhos com tanta força que ficou com as pálpebras todas amarfanhadas.
- Harry? - perguntou ela. - Estás a adormecer? Não, ele não estava a adormecer.
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- Que foi tudo aquilo? De que estavas a falar quando fomos dar o passeio?
- Oh! - disse ele. - Isso!...
- Sim, isso. Que era?
Ele abriu os olhos, olhando para ela, maravilhado.
- Tu és qualquer coisa. És mesmo.
- Acho que não sou lá muito inteligente. Acho que sou burra.
- És inteligente - tranquilizou ele. - És uma tipa inteligente. És como uma mulher nova. Não significa nada para ti, pois não?
- O quê? De que estás a falar?
- De eu ser preto. Nem sequer pensas nisso.
- Por que havia de pensar nisso?
-Oh, Helen, Helen.-Ele riu-se, apertando-a contra si. -Juro.
- Ouve, rapaz - disse ela -, não achas que já falámos o suficiente?
Ele concordou.
Ele passou a ponta dos dedos pela coluna dela, movendo suavemente a pele sobre cada alto. Explorou-a lentamente com as suas mãos, fazendo-a rolar, abrindo-a, procurando-a.
Arranhou-a com as unhas na parte de dentro dos braços, na parte de dentro das coxas.
Ela começou a mexer-se. Os seus braços magros flutuaram no ar como antenas de borboletas. Depois começou a mexer as pernas, começou a enroscar-se nele, cordas macias.
Um leve zumbido saiu dela. Quase uma canção.
Ela tocou-lhe, acariciou-o, com as mãos e os pés, enfiando a agulha dentro de si e através de si, por si adentro. Mexeu-se languidamente, flutuando debaixo dele, uma nuvem.
- Oh! - disse ele, maravilhado.
Habilmente, ela fez todas as pequenas tarefas de casa: deslizou uma almofada para debaixo das suas nádegas, deu um pontapé para se libertar dos cobertores, meteu uma almofada debaixo da cabeça. Suspirou, pronta. Nem por uma única vez fechou os olhos.
Ela era tão sedosa, tão macia. A pele suave dele parecia deslizar em volta dela, sem encontrar qualquer fricção. Mas os seus braços agitados envolveram-no, as suas pernas ansiosas apertaram-no. Ele meteu as mãos debaixo dela. As suas mãos eram tão grandes (e ela era tão esbelta) que as pontas dos dedos se tocavam.
Mexeram-se, mexeram-se, a murmurar coisas. Foram muito lentos, muito deliberados, em punição e prazer. Ela puxou o peso dele para ela e agarrou-se a ele, um macaco num tronco. Mordeu-lhe os mamilos. Arranhou-lhe as costas.
Descobriram uma sincopação de que gostaram, um ritmo iâmbico que não era elegante mas que lhes servia bem. Lançaram a sua
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canção o mais que puderam. Helen a exibir a sua perícia. Harry a mostrar a sua força.
Até que, finalmente, os seus cérebros começaram a flutuar, libertos. Olhos vidrados, corpos envoltos num doce suor. O rosto febril de Helen fez pressão contra o bater do coração dele. Os dedos dele apertavam-na.
- Por favor - disse ela.
- Por favor - disse ele.
E lá foram eles, cavalo e cavaleiro. Trote. Meio galope. Galope. E por cima da cerca.
Foi, concordaram ambos depois, qualquer coisa.
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Ela entrou a correr, apenas alguns minutos atrasada. Mas, quando olhou em volta do restaurante, não viu nenhum Jo Rhodes. Várias mesas estavam ocupadas, todas por homens. As cabeças viraram-se rapidamente, dissimuladamente, para olharem para as suas pernas, para a forma como a seda se colava à sua femetta.
"Roam-se todos", pensou ela, satisfeita.
O homem que saiu de de trás do balcão parecia o Jean Gabin de
1948, com o rosto vincado por uma centena de casos amorosos infelizes. Vestia um fato cinzento de fazenda grossa. O seu cabelo, cortado en brosse, era branco. Ele lançou-lhe um olhar que demorou um décimo milionésimo de segundo e, durante esse tempo, avaliou o tamanho dos seus seios, a firmeza das suas coxas, o facto de ela ser solteira e de não levantar objecções ao facto de a luz ficar acesa.
- Posso ajudá-la?
- O Sr. Rhodes reservou uma mesa?
O rosto dele enrugou-se como um pedaço de filme aderente Reynolds.
- Jo? Mas é claro! Ele ainda não chegou. Permita-me...
Ele conduziu-a para uma mesa para quatro, no canto, e empurrou-lhe delicadamente a cadeira. Uma empregada veio a correr com tostas, manteiga, um prato com rabanetes e aipo gelado.
- Talvez queira alguma coisa? - perguntou o dono.
- Um Rob Roy muito, muito seco, por favor.
- Excelente. - Ele sorriu e afastou-se. "Caramba, se eu ia contigo!" pensou ela.
Chegou um grupo de quatro homens, depois um jovem casal, depois duas mulheres de meia-idade. uma das quais o dono cumprimentou
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com um entusiástico embrazo. Levou-as para uma mesa ao fundo da casa. Helen ficou a olhar para elas quando passaram. A mulher abraçada era alta, majestosa
e friamente elegante. Helen deteve o dono quando ele ia voltar para o bar.
- A mulher no fato de tweed... - murmurou ela. - Parece-me familiar. Sei que já a vi.
-Mas é claro! Uma grande senhora e uma grande actriz. Anise...
- McLean - terminou ela, excitada. - Meu Deus, vi-a em Six Bottles for Paddy. Foi maravilhosa.
- Sim. Agora está a fazer Kippers in Marakeech. Todas as quartas-feiras, antes da matiné, vem cá almoçar.
Helen virou-se, para voltar a olhar para ela.
- Que linda! - disse com inveja. - Parece uma rainha.
- Sim - disse ele a sorrir. - E verdade. É majestosa.
Jo Rhodes entrou apressadamente no restaurante, com o pince-nez torto, com o Gauloises a cair-lhe dos lábios. Trazia um boné de caça de xadrês e uma capa de cartão debaixo do braço, vestia um fato cinzento de cachemira e, na lapela, tinha um único malmequer aberto.
Dirigiu-se rapidamente para Helen, um boulevardier em miniatura, e ela pensou que a sua roupa interior de lã podia ter-lhe escorregado até aos sapatos, até se aperceber de que ele tazia polainas.
Ele parou junto à mesa, inclinou a cabeça para um lado e olhou para ela com uma expressão sonhadora.
- Helen - disse ele -, a tua beleza é para mim como aquelas barcas nicenas de outrora, que, suavemente, sobre mares perfumados, os cansados viajantes levavam para a sua terra-natal.
- Filho-da-mãe - disse ela, encantada. - É lindo. Fste tu que escreveste isso?
-Há muito tempo-murmurou ele modestamente, dando o boné ao dono do restaurante. - Obrigado, Irving. Fico com a capa. Sabe do que eu gostaria.
- O nome dele é mesmo Irving? - perguntou Helen, com o coração em torvelinho pela terceira vez, enquanto o dono do restaurante se afastava.
- Claro que não. É Henry, ou antes, Enrique. Eu chamo-lhe Irving. É uma piada pessoal que nos diverte a ambos. Sabes, um dia, ele...
- Jo Rhodes! - trombeteou uma maravilhosa voz de contralto junto à mesa. E ali estava a famosa actriz Anise McLean, de braços estendidos e olhos brilhantes.
- Valha-me Deus! - exclamou ele, pondo-se de pé num salto e abraçando-a o melhor que pôde, deixando cair o pince-nez pelo
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decote do casaco dela. Ela apanhou-o e depois agarrou-lhe as faces murchas e beijou-lhe a parte de cima do crânio.
Seu vilão! - cantou ela, e as paredes estremeceram. - Por que
não me telefonaste? Tenho suspirado por ti... suspirado!
bom... ah... sabes... Anise, Helen Miley, Helen, minha querida,
esta é Anise McLean, uma grande amiga de...
- Amiga um raio - gritou McLean. - Diz antes apaixonada abandonada e amante repudiada. - Inesperadamente, ela passou os dedos pelos pequenos caracóis louros de Helen. - Seu rapazinho! disse ela. - Encantadora - disse ela -, verdadeiramente encantadora. Terrífico. Magnifico. - Agarrou o bigode de Jo Rhodes com a ponta dos dedos e deu-lhe pequenos puxões. A cabeça dele abanou violentamente. - Tem cuidado com este patife - disse ela a Helen.
- É o homem mais perigoso de Nova Iorque. Nunca acredites numa palavra que ele diz.
- Não acreditarei - suspirou Helen.
Depois ela voltou para a sua mesa, e os copos de água pararam de vibrar.
- Meu Deus - disse Helen, maravilhada -, tu conheces toda a gente?
- bom... ah... tu sabes... fotografei-a há anos para uma revista que já desapareceu, chamada Flair. Tenho a certeza de que não te lembras dela. Mas foi o primeiro papel principal de Anise, a ingénua de Sex Comes a Cropper. Fi-la posar com uma cobra enroscada nos seios nus. Foi uma sensação.
- Acredito.
- Ela ficou-me comovedoramente grata. Ofereceu-me...
-Tiveste um caso com ela-perguntou Helen, verdadeiramente interessada.
Ele lançou a cabeça para trás e cruzou os braços sobre o peito. Uma lágrima solitária apareceu-lhe ao canto do olho esquerdo e escorreu-lhe pela face.
- Oh, oh, oh-exclamou ele.-Não, minha querida. Não tive um caso com ela. Mas continuamos bons amigos. Ocasionalmente, almoçamos, ocasionalmente, jantamos. Uma prenda maluca no Natal. É assim. Ah! Cá está o meu cassis. Obrigado, querida.
A empregada sorriu, deixou-lhes ficar as ementas e afastou-se discretamente. Eles tocaram com os copos um no outro, beberam um golo e depois Jo inclinou-se para o lado, abriu a capa e, um por um, foi mostrando os retratos ampliados de 11 por 14 que tinha tirado a Helen. A felicidade embargou-lhe a voz.
- Meu Deus - suspirou ela. - Sou tão bonita! - Mas é claro.
- Eu sou mesmo assim?
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- Para mim, és. É assim que eu te vejo.
Ele tinha captado a inocência. Estava ali, a preto e branco. A inocência. Ela fitou os retratos com uma expressão esfomeada.
- Obrigada, Jo.
Ele levou a mão dela aos lábios e mordiscou-lhe as pontas dos dedos.
- bom... vou encomendar. Um almoço muito simples. Scampi com manteiga e alho. Endives braisées. Uma garrafa de Muscadet gelado. Café filtre. Pequeno, curto, directo. Que te parece?
Ela assentiu, ainda a olhar para os retratos. Ali estava ela, a Estranha, a olhá-la, um espelho distorçante. Os seus lábios pareciam mais cheios, os maxilares mais suaves, os olhos mais novos. Ela cintilava, madura de esperança.
"vou conseguir", pensou ela subitamente.
Comeram, riram, conversaram, trocaram um beijo a saber a alho. Ela bebeu um único copo de vinho, mas a garrafa estava quase vazia quando ele tirou opince-nez e ficou a olhar fixamente para um ponto que ficava quinze centímetros por cima da cabeça dela. Os seus olhos estavam vidrados.
-Excelente comida-disse ele numa voz roufenha.-As melhores endives braisées de Nova Iorque. Talvez as melhores do mundo... à excepção de um pequeno bistro em Lês Grenouilles.
- Lês Grenouilles?
-É no Sul de França. Junto ao mar. Muito perto da fronteira com a Espanha. Creio que nunca te falei nisso, mas tenho lá uma casa. Uma pequena villa. Encantadora.
- Tens uma casa em França? Jo, mas que maravilha! Conta-me como é. Por que não vives lá?
Ele baixou o olhar, fitou-a nos olhos, sem conseguir focar bem. Encolheu os ombros.
- Na realidade, não é grande coisa. Lês Grenouilles é uma pequena aldeia adormecida. Quando se vai pela estrada da costa para Espanha, fica num desvio na direcção do mar. Ali, o tempo parou. Há cães a dormir no meio da rua principal. Velhos a fumar compridos cachimbos de barro. Mulheres a apanhar as pétalas dos lilases para dentro dos seus vestidos pretos. Os lilases são a maior produção da aldeia. As pétalas são mandadas para Paris. Para fazer perfume. Todas as mulheres andam de preto. Dizem que é um costume antigo, para comemorar a altura em que os homens da aldeia foram para as Cruzadas e nunca mais regressaram.
- E a aldeia não foi descoberta?
- Queres dizer por turistas? Oh, não! Ainda não. Alguns condutores enganam-se no caminho e vão até Lês Grenouilles, mas não há lá praticamente nada. Um café ao ar livre. Um bistro com um balcão
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com tampo de pedra. Uma vez por ano, há uma semana de touradas numa pequena praça de touros... Estamos muito perto da fronteira de Espanha. Mas o touro nunca é morto. Lei francesa, sabes? Mas, se o matador conseguir tocar nos testículos do touro com aquilo a que se chama um pau de ataque... na gíria local chama-se lê cucumber... é considerado o vencedor.
- Jo, isso é incrível.
- Oh, sim. Mas é um lugar sossegado. A maioria das pessoas achá-lo-ia monótono. É claro que eu só lá vou no princípio da Primavera ou no final de Outubro. No Verão, sopra um vento feroz, quente e seco, da baía de Biscaia. É conhecido por La Sonora. Causa uma doença chamada déjà v u.
- Que é isso?
- E parecido com sarna. Portanto, entendes por que é que a aldeia não vem anunciada nos folhetos das agências de viagens. Mas nós, que a conhecemos, adoramo-la. Lá está ela, a dormitar sob o sol mediterrânico. Mal se ouve um som, a não ser o ocasional latido de um cão ou os gritos dos vendedores de lotaria. Por vezes, bandos de ciganos passam a fronteira, vindos de Espanha, e montam lá as suas tendas. Fazem danças selvagens e vendem caracóis fritos em manteiga de búfalo e funcho.
- Oh, Jo, parece ser espectacular.
- E é espectacular. Lês Grenouilles. Como tenho saudades! Os reclames em metal de Pernod a balouçarem ao vento. As carroças pintadas puxadas a burros. Os barcos
de pesca.
- Que é que eles pescam?
-Anchovas. Chegam a estar no mar semanas afio, a maior parte dos homens e dos rapazes da aldeia. Depois, quando é altura de regressarem, ouve-se um grito por toda
a aldeia, em francês, é claro: Os barcos das anchovas vêm aí! Os barcos das anchovas vêm aí!" E todas as mulheres vestidas de preto correm para a praia, para receberem
os seus homens e verem se a pesca foi boa.
- Que maravilha!
- Sim, é encantador de se ver. Há lá muitas coisas de que ias gostar. Os rapazes da aldeia mergulham dos penhascos à luz de archotes, para provarem a sua virilidade. O vinho da região. Não produzem o suficiente para exportarem, e as vinhas são bastante pequenas. O vinho chama-se blanc de blanc de blanc. É um branco requintado. Muito seco. As praias arenosas. De um rio de lava ventriculado que foi desgastado pelo mar e queimado pelo sol durante séculos. A areia é fina como açúcar.
- Oh, Jo, eu dava tudo para te ter a escrever textos para nós. Estás a fazer-me vê-la.
- Sim. Talvez uma ou duas vezes por ano, um pequeno barco de
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recreio entra no seu encantador porto e os barcos levam os turistas para terra. Eles passeiam pela rua principal... na realidade, a única rua... e compram colares de dentes de tubarões e caroços de pêssego esculpidos. Se tiverem sorte, chegam durante o festival anual de cogumelos. Em Lês Grenouilles, os cogumelos são o principal produto.
- Pensei que tivesses dito que eram os lilases.
- Os cogumelos são o principal produto alimentar. São apanhados, postos em armações a secar e depois embalados e enviados para todo o mundo. Durante as colheitas, realiza-se o festival de cogumelos. Montam barracas na praça principal. Pode comprar-se vinho e pedacinhos de massa frita recheada de mirtilos, castanhas moídas e pedaços de carne de porco assada com espargos e beringelas em conserva. À noite, os rapazes e as raparigas dançam Ia mignonette. Formam dois círculos, com as raparigas a andarem na direcção dos ponteiros do relógio e os rapazes a andarem na direcção oposta no círculo de fora. Quando a música pára, agarram a rapariga que está mais perto deles e, se ela for aceitável, desaparecem nas sombras com as saias de camponesa a rodopiar e as gargalhadas a ecoar. Como tudo é alegre!
- Oh, meu Deus. Adorava conhecê-la. Como é a tua casa?
- A minha casa? bom, tem mais de duzentos anos. Era um moinho. Na realidade, a roda das velas ainda lá está, coberta de musgo.
É claro que não funciona. Tem um edifício
principal de pedra. É terrivelmente frio no Inverno e é por isso que eu só lá vou na Primavera e no Outono. Mandei instalar canalizações modernas... bom, relativamente
modernas, comparadas com as do resto de Lês Grenouilles. Mas ainda cozinhamos em fogões de lenha.
- Está fechada quando tu não estás lá?
- Oh, não. Vive lá um velho casal que trata da casa. Deixo-os lá viver sem pagarem renda. Pierre e Marie. Ele foipoilu na primeira guerra mundial. Perdeu um braço em Verdun. Ela tem a idade dele e o seu rosto parece uma maçã seca. Pessoas encantadoras. Ambos fumam cachimbos de barro. Tinham uma filha que se tornou estrela do Folies Bergères e, mais tarde, se casou com um lorde inglês. Mas nunca têm notícias dela. Na realidade, ela...
Mas a atenção de Helen tinha-se desviado.
Na mesa ao lado da deles, uma jovem mãe, com um sorriso gelado, estava a almoçar com o seu filho atrasado mental. Ele teria uns
12 anos, talvez 18, era difícil dizer. Tinha uma pequena tonsura, como um solidéu.
Ele tinha-se já apercebido, vagamente, da mãe a cortar a vitela do rapaz em pedacinhos e ficando depois a observá-lo ansiosamente, enquanto ele, com uma mão retorcida e aleijada, os metia um a um na boca, a sorrir e a mastigar. Ele conseguia comer o arroz e o feijão
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verde e levar o copo de leite aos lábios, enquanto a mãe lhe limpava a boca e o queixo de cada vez que ele bebia.
Depois, acabaram a refeição. Os pratos foram levantados. A mãe inclinou-se para a frente e pôs uma mão no braço do filho. Ele escutou, a sorrir e acenando afirmativamente com a cabeça. Ela levantou-se, deu alguns passos, olhou para trás, sorriu-lhe e dirigiu-se apressadamente à casa de banho das senhoras.
No instante em que ela desapareceu, o filho levantou-se e, a arrastar os pés, dirigiu-se para a mesa onde Jo Rhodes estava a dizer:
- A praia está completamente deserta ao nascer do Sol e se... Depois, apercebeu-se de que o rapaz estava de pé junto dele. Jo
olhou para cima e viu-o. Pôs-se de pé num salto.
- êlá - disse, sorrindo. - Queres juntar-te a nós? E puxou uma cadeira. O rapaz sentou-se a sorrir.
- O meu nome é Jo - disse Rhodes -, e esta é Helen. Como é o teu nome?
- Nome? - disse o rapaz.
- Sim. Como é o teu nome?
O dono do restaurante aproximou-se, mas Jo mandou-o embora com um gesto. As empregadas de mesa também se aproximaram.
- Bobby - disse o rapaz, olhando em volta da sala a sorrir, feliz.
- Um bonito nome... Bobby - assentiu Jo. - Gostaste do almoço?
O rapaz olhou para ele.
- Almoçaste bem?
Bobby assentiu, a sorrir. Um fio de leite escorreu-lhe pelo canto da boca.
Jo pegou no guardanapo, inclinou-se para a frente com um ar sério e limpou-o.
-Ah; sim - disse ele -, a comida aqui é excelente. Nós também almoçámos muito bem. Que vais fazer depois do almoço, Bobby?
O rosto do rapaz contorceu-se. As suas mãos contraíram-se, formando umas garras aleijadas, ele olhou para baixo e olhou fixamente para eles.
- Urso polar - disse ele finalmente.
-Valha-me Deus! - gritou Jo. - O urso polar. Vais ao Central Park Zoo ver o urso polar. Estou certo? Vais ver o urso polar e também o elefante.
Bobby riu-se, um riso de triunfo.
- Elefante também - assentiu ele.
- E o macaco - disse Jo a rir. - E o leão.
- O macaco - riu Bobby. - O leão.
Helen estava a fazer um esforço, um grande esforço. Mas teve de levar o guardanapo aos olhos e não conseguiu parar.
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A mãe voltou e viu o que estava a acontecer. O seu rosto ficou com uma expressão destroçada. Agarrou Bobby pelo braço e puxou-o para ele se levantar.
- Desculpem - disse ela numa voz entrecortada. - Peço-lhes muita desculpa.
- De quê-Jo sorriu ao rapaz.-Bobby e eu somos amigos. Não é verdade, Bobby?
- Amigos. - O rapaz sorriu com os seus bonitos olhos a arder. Jo estendeu a mão. O rapaz olhou para ela, intrigado. Depois,
lentamente, tentativamente, a sua mão macia, em forma de garra, também se estendeu. Jo agarrou e sacudiu-a entusiasticamente.
- Diverte-te no Jardim Zoológico, Bobby - disse ele, sorrindo.
- Urso polar - disse Bobby, deixando que a mãe o levasse. Depois, olhou para trás. - Amigos - disse ele.
Helen agarrou na mão de Jo e beijou-a, esfregando-a na sua face húmida.
- Foste maravilhoso-disse ela, a fungar -, absolutamente maravilhoso.
- Que disparate - disse ele, zangado. - De que raio é que estás a falar?
O dono do restaurante levou um conhaque para cada um.
- Permitam-me - disse ele.
- bom, o que estive a tentar dizer-te - disse finalmente Jo Rhodes, com um Gauloises colado ao lábio inferior-é que tenho uma casa encantadora no Sul de França. Tenho o dobro da tua idade. Mas tenho dinheiro. O que eu gostava... o que eu gostava... é que fosses a França comigo. Durante o tempo que quiseres. Um dia, um mês, um ano, para sempre. Sem condições. Sem exigências. Simplesmente, uma vida nova. Farei as disposições que tu quiseres. Naturalmente que pagarei tudo. Não me engano a mim próprio. Sei que não tenho muito tempo de vida. Creio que poderemos ter alguma felicidade... por um dia, um mês, um ano, para sempre. Como quiseres. Por favor, não respondas agora. Mas pensas nisso? Prometes-me que pensas nisso?
Helen olhou para ele, maravilhada.
- Pensarei nisso, Jo. E obrigada. Amo-te.
Ele acendeu outro Gauloises com um fósforo de cera.
- bom, agora tens de ir trabalhar - disse ele num tom decidido -, e eu tenho de ir ver uma exposição nova na Goldenstein Gallery. Guardar-te-ei estas fotografias, não te posso pedir que vás a pé com este volume. E, além disso, servirá como pretexto para te voltar a ver. Estou certo?
- Estás certo.
Ele rabiscou as suas iniciais na conta, enquanto Helen se dirigia
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para a porta. O dono do restaurante aproximou-se e murmurou ao ouvido de Jo:
- Encantadora, Jo. Está é boa.
Jo Rhodes olhou na direcção da porta, onde Helen o aguardava, com a sua sólida fanetta por debaixo da seda, os marmelos atrevidos, os seus maxilares, os seus óculos de armações de tartaruga.
- A inocência - murmurou ele. - A inocência!
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- Primeiro vamos comer - disse Richard Faye. -Vamos comer um bife mal passado, uma salada e café simples. Aquela é a bandeira italiana?
- Que interessa? É a nossa bandeira.
No fim, levantaram-se da mesa, trocando pequenos arrotos. Helen aproximou-se dele pelas costas, baixou a cabeça e beijou-lhe o pescoço.
- A louça - disse ele.
- Que tal um beijinho primeiro?
- Um beijinho? Oh, meu Deus!
Ele tentou dar-lhe um beijo na face, mas ela colou a sua boca aberta à dele. Ele afastou-se lentamente, a piscar os olhos. Tentou sorrir, distendendo o seu rosto macio.
- Já atingiste a Idade do Consentimento? - perguntou ele.
- Cristo - resmungou ela. - Já passei a Idade da Solicitação. Deixaram a louça de molho. Lentamente, dirigiram-se para o
quarto.
- A Última Milha - disse Helen solenemente. - Ouve, Uck, estás com óptimo ar. Juro que tens menos cinco centímetros de pneu.
- Perdi três quilos - assentiu ele, nervoso. - Apertei um furo no cinto. Acho que conseguia vencer uma fera do meu peso.
- Terás a tua oportunidade - prometeu ela. - Como é que está Edith?
- Muito bem, obrigado.
- Que é que ela disse quando lhe disseste que vinhas cá passar a noite?
- Opôs-se. Na realidade, fez uma cena.
- Já era de esperar. E o Músculo?
- Foram ditas muitas coisas desagradáveis. Não quero falar nisso.
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Ficaram calados, de pé, junto à cama.
- Como te sentes? - perguntou-lhe ela.
- Assustado... mas contente por cá estar. Vai correr tudo bem.
- Claro que vai - disse ela. - Não te sintas assustado, querido. Vamos dar-nos bem.
Ela sentou-se na cama. Ele meteu as mãos nas algibeiras e deu um pontapé numa marca de cigarro no tapete.
- Talvez seja melhor fazermos uma soneca - sugeriu ela, olhando para ele com uma expressão perspicaz.
- Se é isso que queres...
- Talvez seja melhor - concordou ela. - Só umas horas. Estou com sono.
Despiram-se rapidamente. Ele não olhou para ela. Meteram-se rapidamente debaixo do lençol e do cobertor.
- Edith devia ver-me agora. - Ele deu uma risadinha. Morria.
Ele virou-se de lado, longe dela. Ele sentiu os dedos dela no seu braço, a acariciá-lo. Os dedos acariciaram, pararam, acariciaram. Gradualmente, as carícias abrandaram. Depois, os dedos dela ficaram imóveis sobre o braço dele.
-Helen-murmurou ele na escuridão. Não houve resposta. Ele não tinha a certeza de ela estar a dormir. Mas era mais fácil assim... -Já percebi por que é que fiz uma borrada tão grande da minha vida -murmurou ele.-Provavelmente, foi por causa de uma série de pequenas coisas. Não por uma coisa grande... eu era uma criança gorda e nunca fiz brincadeiras violentas. E estava demasiado ligado a Edith. Tive caracóis compridos até aos sete anos... Depois, quando tinha onze ou doze anos, tivemos uma empregada interna. Uma rapariga magricela com calcanhares sujos. Fazia-me coisas e obrigava-me a fazer coisas a ela. Eu era muito novo e ela cheirava a naftalina. Ia às escondidas para o meu quarto, todas as noites. Disse-me que, se eu alguma vez contasse à mãe o que nós fazíamos, mo cortava e que eu ficava rapariga. Depois, arranjou outro emprego e foi-se embora. Senti a falta dela. Tive saudades de ela ir todas as noites ao meu quarto e de fazer aquelas coisas. Descobri onde ela estava a trabalhar e telefonei-lhe. Mas foi um homem que atendeu e eu tive medo de pedir para lhe falar... Querida, estás a dormir? Quando andava no liceu, uma rapariga mais velha quis que eu fosse até ao fim com ela. Na cave. Contei a Edith e ela telefonou à mãe da rapariga. A rapariga foi mandada para um colégio interno muito rígido. Tenho mais vergonha disso do que de qualquer outra coisa que alguma vez fiz na vida... foi tudo tão seco. A minha irmã não aguentou. Fugiu com um músico, quando tinha dezoito anos. O papá e Edith nunca tentaram fazer que ela voltasse. Nem sequer respondiam às cartas dela. Disseram
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que, para eles, ela estava morta. Não sei onde ela está agora. Algures no Sul, creio... Santo Deus, que família... Quando andava na Duke, um grupo foi a uma
casa de putas. Tinham um pano preto grosso na metade de baixo da cama porque a maioria dos clientes não tirava os sapatos. Era um sítio assim. Eu escolhi uma mulher mais velha. Tinha muitas rugas e estava flácida e gasta. Era uma coisa. Ficou ali deitada de olhos fechados. Eu tive vontade de a matar. Por que é que ela não me impediu de continuar? Ofereci-lhe um dólar a mais para ela cortar uma madeixa do seu cabelo grisalho para me dar. Ela cortou. E eu andei com a madeixa de cabelo na algibeira durante muito tempo, mas acabou por ficar emaranhada e suja e deitei-a fora. Costumava fazer todo o tipo de coisas horríveis com ela. Sentia-me só, Helen. Era apenas isso, sentia-me só... Estás a dormir? Quem sabe o que vai no espírito das pessoas? Se todos nós tivéssemos um dia de contar, em público, os nossos pensamentos e sonhos e desejos mais secretos, toda a gente se suicidaria, de tão horrível que seria. Somos todos tão nojentos...! Quando o papá morreu, Edith e eu vivemos juntos. Nessa altura, eu já estava a trabalhar e levava raparigas lá a casa para conhecerem Edith. Mas nenhuma delas era suficientemente boa para mim, dizia Edith. Uma falava mal, outra não tinha boas-maneiras à mesa, uma cheirava mal, outra não usava luvas... uma vez engatei uma mulher na rua e fui ao quarto dela. Quando começámos, ela chamou um homem que estava na sala ao lado. O seu chulo, imagino. Ele bateu-me e chamou-me maricas. Disse a Edith que tinha sido assaltado e roubado. Foi um sarilho para a impedir de ir à Polícia. Oh, meu Deus, o que significa estar vivo... Depois, no final da guerra, fui mobilizado para a Marinha. Fui colocado em Norfolk. Fica na Virgínia. Não imaginas como foi. Era por todo o lado... nos carros, nos parques, nos hotéis, até nos becos. Um jovem louro do Texas... bom, ele e eu saíamos de licença juntos. Foi assim que comecei, Helen. Ele era mais novo do que eu, mas ensinou-me. Ele também se sentia só. O nosso problema era apenas esse: sentíamo-nos sós. De cada vez, jurava a mim próprio que nunca mais faria aquilo... mas fazia. Eu não era feliz. Aquilo não me dava prazer. Mas não conseguia parar. Depois, a guerra terminou. O rapaz louro voltou para o Texas. Disse que me escreveria, mas nunca o fez. Eu não me importei. Tinha-me convencido a mim próprio de que não tinha acontecido nada entre nós, que nunca conhecera aquele rapaz... sempre consegui fazer isso... fingir que não fiz coisas que fiz... Depois, saí com mulheres durante algum tempo. Obriguei-me a sair com elas, mesmo quando não me agradavam. Aconteceu exactamente o mesmo que já tinha acontecido. Edith dizia-me que nenhuma delas servia para mim. Finalmente, deixei de sair com mulheres... Alguns homens que conheci em bares ou no emprego vão lá a casa uma ou
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duas vezes por semana jogar Hearts comigo e com Edith. Nenhum de nós é maricas... exactamente. Quero dizer, não somos bichas. Mas todos nós nos sentimos sós. Uma
noite um deles levou,o tal homem que faz pesos e halteres e eu envolvi-me com ele... É um homem muito grande, muito forte. Não tem um grama de gordura. Todo ele é músculos e pele bronzeada. Cabelo muito preto, brilhante. E é implacável. Não se rala. Não se rala com nada. Faz o que quer e não se rala com o que isso nos possa fazer ou com o que possamos sentir. É um homem muito forte e agressivo. Edith gosta dele. Será que ela sabe o que se passa entre nós? Talvez... não sei. Disse-te que só foram duas ou três vezes, Helen, mas durou quase dois anos. Não foi nada dramático. Os meus sentimentos para com ele não eram fortes, nem para um lado nem para o outro... mas, sempre que ele me telefonava, eu ia. Dava-lhe dinheiro. Acabou há cerca de um ano. Simplesmente parou, muito embora ele continue a lá ir a casa jogar Hearts. Acho que ele encontrou alguém com mais dinheiro. Não me importo. Talvez me importe um bocadinho, mas estou contente... Helen, estás a dormir?... Sabes, não compreendo. Não consigo entender como me tornei aquilo que sou. Achas que está tudo predestinado antes de nascermos? Sou Câncer, o Caranguejo. Passo a vida a sentir que não fiz as coisas que fiz, que era outra pessoa que as estava a fazer através de mim... que me estava a obrigar a fazê-las. Porque eu não queria viver assim. Queria que a minha vida fosse diferente. Mas não conseguia fazer que fosse. Tenho quase quarenta anos. Talvez me restem uns vinte ou trinta anos. Não entendo. A minha vida tem sido completamente errada e não consigo perceber como é que isso aconteceu. E blá-blá-blá. Por que não consegui ser o tipo de homem que queria ser? Por que não me casei e fui um deus... quero dizer, um bom marido e pai? Gosto de crianças. Tenho muito jeito para crianças. Mas o pior de tudo isto é que não tive qualquer possibilidade de escolha, foi-me tudo feito e eu não pude controlar nada... Estava prestes a desistir. Estava prestes a deixar de me ralar e a beber e a deixar andar. Helen, é por isso que ter-te conhecido foi tão importante. Tu tens força suficiente por ambos. Disseste que eu conseguia mudar, se realmente quisesse. Foi isso o que disseste... não foi, querida? Talvez, finalmente, as coisas sejam diferentes para mim. Talvez, finalmente, vá ser o homem que quero ser... Helen? Estás a dormir?
As carícias recomeçaram, com os dedos a deslizarem para cima e para baixo no seu braço. Depois, ela acariciou-lhe as costas gordas, a sua anca gorda e as suas pernas. Ele começou a tremer. Virou-se lentamente de frente para ela. Ela foi para os seus braços, torcendo-se ligeiramente para ficar mais chegada a ele.
- Querido - murmurou ela -, oh, querido.
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Ele tocou-lhe timidamente. Quase gritou. Ela fluía contra ele, curvando-se para ele, encostando-se a ele. Ele fechou os olhos com força. Estava a abraçar o seu eu sonhado. Engasgou-se com a estranheza de tudo aquilo, a tocar na sua própria beleza esguia, a sentir a sua própria suavidade, a acariciar a sua própria frescura sedosa.
- Que é? - disse ele. Ela estava imóvel.
- A porta - repetiu ela. - Está alguém a bater à porta da rua. Depois, ele ouviu o ruído. Ouviu a campainha e o pássaro louco a
gritar "Vai-te-foder-vai-te-foder".
- Talvez se vão embora - disse Paye, nervoso. - Quem é que pode ser?
- Não sei. - Ela deitou as pernas para fora da cama. - vou pô-los a andar. Merda. Merda para isto.
Helen vestiu o robe. Foi ao hall.
- Quem é? - perguntou.
- Dick Faye está aí? - perguntou uma voz de homem. - Tenho de falar com ele. A mãe dele teve um ataque... um ataque de coração.
Helen abriu a porta, deixando a corrente posta.
Ele era enorme, largo, com ombros com chumaços que faziam que parecessem ainda maiores. O seu cabelo preto, brilhante, estava penteado para trás, com uma popa. Ela sentia o cheiro da água-de-colónia. Ele estava com um ar divertido, com os lábios repuxados num dos cantos.
- O Músculo - disse ela.
- Cabra - disse ele num tom simpático -, diga a Dickie que a mãe teve um ataque de coração muito grave. O Dr. Franklin acha que Dickie deve ir para ao pé dela. Se me deixar entrar, eu próprio lhe digo isso.
- Eu digo-disse Helen. Olhou para ele fixamente pela nesga da porta, olhos nos olhos. - Por que não o deixa em paz? - perguntou ela.
- Por que não se vai catar? - disse ele a rir. - Ora, vá lá dizer-lhe. Se se portar bem, talvez eu cá volte e a deixe...
Ela fechou a porta devagarinho. Ficou parada durante alguns instantes, com a testa contra a porta. "A minha vontade é matá-lo", pensou desvairadamente.
Podia ir buscar a faca do pão à cozinha (a faca comprida de serrilha), abrir subitamente a porta, e cravar-lha mesmo nos kishkas. Passado um bocadinho, deixou de
tremer. Voltou para o quarto e disse a Faye o que tinha acontecido à mãe. Ele levantou-se imediatamente, sem a menor alteração na sua expressão. Começou a vestir-se.
- Aposto que é fita - disse Helen, numa voz amargurada. -
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Aposto que ela teve o ataque de propósito. Quero dizer, aposto que é tudo fingimento.
- Pode ser - disse ele tristemente. - Mas tenho de ir. Quando chegar a casa, já será bastante tarde. Creio que é melhor eu não voltar para cá esta noite, Helen.
- Como queiras.
- Telefono-te assim que souber.
- Faz isso.
Ele aproximou-se dela, agarrou-lhe o rosto com ambas as mãos e fez um leve sorriso.
- Foi por pouco, não foi?
- Sim - disse ela. - Por pouco.
- Lamento, querida. Mas haverá outras vezes.
- Oh, claro.
- É melhor eu ir.
- Está bem.
- Telefono-te de casa.
- Está bem.
O seu rosto ceroso descaiu ainda mais. Ela pensou que ele ia chorar.
- Boa noite, Helen. Obrigado pelo... obrigado por tudo.
Ela tirou a corrente para ele sair para o corredor. O tipo dos pesos e halteres estava encostado à parede, a fumar um cigarro. Ela fechou a porta rapidamente e trancou-a.
Foi lavar a louça, arrumou-a, deu um jeito na sala e tomou um Librium. Sentou-se na beira da cama a olhar pela janela de estores corridos. Finalmente, pegou no telefone e marcou o número de Charles Lefferts. Contou os toques. Tocou catorze vezes antes de ele atender.
- Está? - disse ele cautelosamente.
- Charles? Fala Helen Miley. Estava a pensar se...
- Bob! - rugiu ele. - Bob Cranshaw! Como é que estás, meu velho?
Devagarinho, ela desligou o telefone.
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-É claro que era fita-disse Helen, irada.-Tão falso como uma uva quadrada. Ela sabia que Uck queria passar a noite aqui e inventou o ataque de coração. É uma cabra bem esperta. Sabia que era a única coisa que o faria ir a correr, pobre querido. Ele telefonou-me
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na manhã seguinte, absolutamente doido. As coisas que ele me contou!
- Conta-nos - disse Peggy ansiosamente.
- Nunca. Foram-me contadas na mais estrita confidência. Não que ele me tivesse obrigado a prometer que nunca as repetiria ou qualquer coisa assim. Mas eu é que não quero, querida. Compreendes?
- Claro - disse Peggy, desapontada. - E uma vergonha ele ter de ir a correr sempre que ela estala os dedos.
- Os homens não prestam para nada - disse Carrie Edwards num tom sombrio. Era uma mulher pequena e gorducha, viúva e sem filhos, que trabalhava no escritório de
Peggy Palmer. O seu cabelo pintado estava cuidadosamente armado em ondas, de orelha a orelha. Tinha umas pernas magníficas e era suficientemente generosa para, de
vez em quando, usar calções dejogging curtos, de cetim, para compartilhar a sua sorte com o mundo.
A despedida de solteira surpresa tinha terminado e a maioria dos convidados já se tinha ido embora.
A sala tinha sido arrumada, os copos postos no lava-louças, os cinzeiros despejados. As prendas de Peggy estavam amarradas num embrulho, para ela as poder levar para casa. Peggy e Carrie tinham ficado a tomar um último café.
- Olhem para ali - disse Helen, apontando para o parapeito da janela. - Era ali que Rocco se punha a olhar para a rua. Punha as patas ali em cima e ficava a olhar pela janela durante horas. Nos últimos dias da sua vida, tornou-se um voyeur. Há uma caniche nova no apartamento do outro lado do saguão, e ele estava sempre à espreita para a ver. O velho tarado. Ele já não conseguia fazer nada, mas tinha os seus sonhos.
- O meu falecido marido era assim - concordou Carrie. - comprou um pequeno telescópio e, no Verão, passava as noites no telhado. A ver a estrelas, dizia ele. "Estrelas o caraças", dizia eu, "e, se os chuis te apanharem, é bem feita." Não que fosse tarado sexual nem nada, compreendem? Só gostava de ver.
- Homens! - disse Helen, filosoficamente.
- E quanto a Uck? - perguntou-lhe Peggy.-Vais tentar outra vez?
-Na próxima sexta-feira-disse Helen.-E, desta vez, juro que nada nos vai estragar a noite. Uck estava mesmo chateado com Edith. Aquele rapaz está a melhorar. Como ele próprio disse, a Madre Inferior tem feito o que quer da vida dele. bom, eu sou tão forte como ela.
- Mais forte - disse Peggy com admiração.
-Tens toda a razão - concordou Helen. - Gosto daquele pateta
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e não vou deixá-lo escapar sem lutar. O café já deve estar pronto. vou buscá-lo.
- Eu tive o mesmo problema com o meu falecido marido - disse Carrie enquanto Peggy foi à cozinha. - A mãe dele não o largava. Queria que ele esperasse. "Esperar para quê?", perguntei-lhe eu. "Esperar até eu ser mais velho", disse ele. "Tens vinte e quatro anos, tens idade suficiente para tomar as tuas próprias decisões", disse eu.
- Então ele pediu-te em casamento?
-Não foi logo-reconheceu Carrie, ajeitando as ondas do cabelo. -Mas comecei a deixar que ele fizesse amor comigo na parte de trás de um dos carros funerários do meu pai. Ele era cangalheiro. Deixava Fred chegar até certo ponto e depois mais nada. Isso durou semanas. O rosto dele ficou cheio de borbulhas e dizia que se sentia tão mal que cada vez que via um funeral ficava excitado. Finalmente, uma noite, pediu-me em casamento. Casámos dezassete anos antes de a sua vesícula rebentar, paz à sua alma! Inchou e rebentou como um balão. O médico disse que nunca tinha visto nada igual. O caso dele veio referido num artigo numa revista médica. Ficou famoso, Fred... só que, é claro, não estava cá para ver. Por favor, Helen, não me dês mais bolo. Já não consigo comer mais.
- Só mais um bocadinho - incitou Helen. - Fazes dieta amanhã. Então, Peg, como te sentes? Pensa bem... daqui a mais ou menos um mês és uma velha mulher casada.
Peggy teve um arrepio.
- Eu não devia dizer isto, mas mal conheço o homem. Quero dizer, vamos casar-nos, e tudo isso, e é como se ele fosse um estranho. Há tanta coisa que eu não sei acerca dele!
- E muitas coisas que ele não sabe acerca de ti - disse Helen, piscando o olho. - Mas não te preocupes, querida... os meus lábios estão selados.
- E assim que deve ser - disse Carrie com convicção. - O que ele não sabe não o incomoda. Eu fui até ao fim duas vezes, com o tipo do lado, antes de me casar. Ia contar a Fred, mas nunca o fiz e ainda bem. Ele morreu convencido de que tinha casado com uma virgem, Deus o tenha em descanso.
- Ele não percebeu? - perguntou Peggy, nervosa. - Quero dizer... os lençóis e isso?
Carrie Edwards olhou para as duas outras mulheres com os olhos semicerrados.
- vou contar-lhes uma coisa que nunca contei a ninguém. Prometem-me que não dizem a ninguém?
- Prometo - disse Peggy.
- Prometo - disse Helen.
- bom... depois de Fred adormecer, na nossa noite de núpcias,
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levantei-me, piquei o polegar com um alfinete e sujei o lençol de sangue.
- Meu Deus! - disse Helen.
- Meu Deus! - disse Peggy.
- É claro que, nesse tempo, era mais importante ser-se virgem quando se casava. Hoje parece que os homens se importam menos. As coisas são mais flexíveis. Vive e deixa viver. Naquele tempo, era diferente. Por exemplo, Fred queria dormir nu, mas eu não o deixei. "Não sou uma das tuas mulheres de prazer, Fred", disse-lhe eu, "portanto, quando vais para a cama, vestes-te como um bom cristão deve fazer".
- Eu não me importaria que o meu marido dormisse nu - disse Helen.
-É brutal no tempo quente-disse Carrie.-Ficam os dois colados e acorda-se toda enrugada. - Peggy, acho que o deves obrigar a dormir com qualquer coisa.
-Ora, não sei-disse Peggy, preocupada-, nunca pensei nisso. Acho que vão surgir muitas coisas durante a vida de casada.
- Se tiveres sorte... - disse Helen.
-Refiro-me a problemas-acrescentou Peggy apressadamente.
- Como, por exemplo, que hei-de fazer em relação à casa de banho? Quero dizer, suponham que ele está a fazer a barba ou qualquer coisa e eu quero usar a retrete. Devo ir enquanto ele lá está?
As mulheres mais novas olharam com expectativa para Carrie.
-Depende-disse ela criteriosamente.-Talvez a princípio seja melhor não. Mas, depois de já estares casada há algum tempo e se for, olha, sabes, uma emergência, não faz mal nenhum. Uma pessoa nem pensa nisso.
- Queres dizer... ali mesmo à frente do outro? - perguntou Peggy, impressionada.
- bom, ele não vai ficar especado a olhar para ti. Vai estar no duche ou a fazer a barba e, se for uma emergência, ora, nem pensas. Afinal de contas, ele é um ser humano.
-Acho que tens razão-disse Peggy nervosamente.-As coisas são mais complicadas do que eu pensava. Quero dizer, não é fácil. E quanto ao sexo? E se ele quer e eu não ou vice-versa?
- Deves ser firme logo desde o início-aconselhou Carrie.-Não deixes que ele fique com a ideia de que estás disponível a qualquer minuto do dia ou da noite. Como quando ele estiver bêbado ou tu estiveres arranjada para sair ou quando não te apetecer. Sê inteligente em relação a isso. Como quando ele fizer qualquer coisa errada ou tu quiseres comprar qualquer coisa. Sabes o que eu quero dizer.
Helen protestou.
- Acho que uma mulher não deve usar o sexo como castigo ou
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suborno quando quer que o marido lhe compre qualquer coisa. Que raio de sentido faz estar casada se não se pode dar uma cambalhota sempre que se quer?
- Tu nunca foste casada - disse Carrie Edwards num tom frio.
- Não sabes de que estás a falar.
- Pensei que podíamos ter uma espécie de sinal - disse Peggy pensativamente. - Sabem, qualquer coisa divertida como ele atirar com o chapéu para cima da cama ou qualquer coisa assim.
- Ou atirar-te a ti para cima da cama - assentiu Helen. Qualquer coisa divertida.
- Não, estou a falar a sério, queridas. Quero dizer, como é que eu sei que ele quer e como é que ele sabe que eu quero?
- Os sinais são muito boa ideia-disse Carrie num tom de aprovação. -No entanto, descobrirão que, depois de estarem casadas há algum tempo, isso se torna rotina. À sexta-feira à noite, Fred costumava trazer para casa o salário e tomava um banho quente. Depois, comíamos salsichas e sauerkraut e uma cerveja. Depois, íamos para a cama. Assim, não havia problema.
-E se ele quisesse na terça ou na quinta-feira à noite-perguntou Helen.
- Não queria. Tínhamos os nossos dias certos e cumpríamo-los.
- Salsichas e sauerkraut - repetiu Peggy. - À sexta-feira à noite.
- Outra coisa-disse Carrie. - Por vezes, quando já estão casados há algum tempo, os homens pensam que podem fazer todo o tipo de fantasias connosco. Sabem... fantasias. Uma noite, quando já estávamos casados há cerca de um ano, Fred queria que eu... bom, não vos vou dizer o que foi.
- Que foi? - perguntaram Peggy e Helen em uníssono.
- bom... - Carrie olhou pensativamente para os seus pequenos pés e mexeu os dedos. - bom... não, é melhor eu não lhes contar. Podem ficar com ideias. Eu disse-lhe, "Fred", disse eu, "podes fazer que uma das tuas mulheres da rua te dê tudo o que queres, mas não esperes que eu te dê mais do que a lei exige, porque é só isso que eu te darei".
- Que é que ele disse?
-Caramba, ficou furioso. Saiu porta fora e só voltou à meia-noite, bêbado como um cacho e a cheirar a perfume barato. Só semanas depois é que o deixei aproximar-se de mim e ainda teve de me comprar um casaco novo. Um casaco de tweed cinzento, com gola de pele de coelho. Ele nunca mais voltou a tentar estrangeirices comigo, isso garanto-vos.
- bom, Carrie - Helen encolheu os ombros -, é como tu própria disseste, os tempos são outros. Hoje em dia, as pessoas fazem muitas
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coisas que talvez não fizessem há anos. Quem sabe... talvez Peg goste de algumas das fantasias. Gostas, Peg?
- bom - disse Peggy, examinando atentamente o anel de noivado -, eu não... ele podia... bom, sabem... Depende. Em primeiro lugar, ele não é um tipo de grandes fantasias. Quero dizer, é muito calado e isso. Essa é outra das coisas que me está a preocupar... de que é que vamos falar? Muitas vezes, quando saímos, ficamos sentados e calados. Mas todas as noites? Quero dizer, não vai ser embaraçante ficarmos sentados noite após noite, semana após semana, ano após ano?
- Vão ter muito sobre que falar - tranquilizou-a Carrie. - Ele vem para casa e conta-te o que aconteceu no escritório e tu contas-lhe que discutiste com o homem do talho. E, depois, há coisas que vão surgindo... contas e os vizinhos e os filhos, se os tiveres. Eu nunca tive essa bênção, sabem? E, é claro, há o rádio e a televisão e também vão ao cinema. Não te preocupes... vais ter muito que fazer.
-Acho que sim - disse Peggy numa voz triste. Olhou para Helen e os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas.-Bom, queridas, acho que os bons tempos terminaram. Nunca mais farei a ronda dos bares.
- Exacto - disse Helen, sorrindo.
- É como se a minha vida estivesse, de certa forma, a chegar ao fim. - Peggy suspirou e levou um lenço de papel aos olhos. - Sinto-me triste. Quero dizer, é como se as farras tivessem acabado.
- Tu queres casar, não queres? - perguntou Carrie.
- Oh, claro! Mas é como querer uma coisa durante toda a vida e, quando finalmente a temos, parece que, afinal, não é lá grande coisa. Acho que ele é bom tipo e tudo
isso e acho que vamos ser felizes, mas não sei...
Helen foi para o sofá, pôs um braço por cima do ombro de Peggy e beijou-a na face.
- Não te preocupes, querida-murmurou ela. - Vai correr tudo bem. Vai ser porreiro, exactamente como tu querias. Tens um homem e uma casa tua. Eu bem gostava de estar no teu lugar. Vais acordar todas as manhãs e não estarás sozinha. Vais ter o teu próprio marido ao teu lado, na cama, todas as manhãs.
- Mas obriga-o a vestir qualquer coisa - exclamou Carrie.
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Dormiram até tarde, no sábado de manhã.
Depois, um raio de sol, salpicado de grãos de poeira e cintilante,
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entrou pela janela e incidiu nos olhos de Harry Tennant. Ele mexeu-se, rolou na cama, piscou os olhos e virou a cabeça. O sol, cor de limão, de Outubro inundava o quarto. Aluz entrava a jorros pela janela lateral, espalhava-se pelo chão, submergia os móveis e envolvia a cama.
O sol fazia refulgir os pêlos cor de ferrugem do peito de Harry. Ele olhou para baixo e viu como a luz brunida de Outubro chapeava a sua pele, alisando-a.
Ronronou de prazer.
Virou-se de barriga, soergueu-se apoiando-se nos cotovelos e olhou para Helen. Ela estava a dormir de costas, com as mãos entrelaçadas e entaladas nas pernas. Estava com um pijama de homem. As mangas compridas chegavam-lhe às pontas dos dedos. Só as suas unhas cor-de-rosa espreitavam para fora dos punhos azuis. Um monograma elaborado, MG, estava bordado na algibeira.
Harry meteu a mão na almofada e puxou uma pequena pena de debaixo da fronha. Fez cócegas com a pena no pescoço de Helen, passando-a de trás para diante na pequena cova da sua garganta. Ela mexeu-se e os músculos do pescoço contraíram-se. Ela gemeu ligeiramente e virou-se, inquieta. Harry começou a fazer-lhe cócegas no queixo, no nariz, na orelha. Ela abriu os olhos e fitou, por instantes, o tecto. Depois, virou a cabeça e olhou para ele, desconfiada. Mas Harry tinha fechado os olhos e estava deitado de barriga para baixo, a respirar profunda e naturalmente.
Helen voltou a fechar os olhos, depois abriu-os subitamente. Apanhou-o a preparar-se para lhe voltar a fazer cócegas nos lábios com a pena. A sua expressão indignada fê-lo desatar a rir às gargalhadas. Abraçou-a, apertando-a com força contra si.
- Helen, Helen, Helen - exclamou a rir. - Oh, minha querida!
- Seu cão-gritou ela. - Seu cão maldito... acordares-me dessa maneira.
Ela puxou-o contra o peito e encostou com força a cara ao seu pescoço e ombro. Mordiscou-lhe o ombro. Ele sentiu a dor dos dentes dela na sua carne.
- Que sonho eu estava a ter! - disse ela, maravilhada. Caramba, mas que sonho. Mas isto também é bom. É mesmo bom, querido.
Ela passou as unhas ao longo das costas nuas de Harry. Ele estremeceu e aproximou-se mais dela. Ela arranhou-lhe a carne com as unhas a olhar para o rosto dele
e a sorrir.
- É difícil aguentar, não é? É realmente horrível, eu sei.
Ela dobrou-se para trás, tentou tirar o pijama azul. Enrodilhou-se por completo no pijama. Harry não ajudou. Harry não fez absolutamente nada para a ajudar.
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- Ora, pára lá com isso - disse-lhe ela. - Dá-me um minuto, sim? Pára, querido. Raios te partam.
Ela tirou o pijama e enrolou-os numa bola apertada.
- Estás a ver aquilo? - disse ela, apontando para um cabide de pé ao canto do quarto. -Agora vê isto...
Sentou-se na cama e atirou o pijama enrolado para o canto. As duas peças do pijama voaram pelo ar, desdobrando-se, indo cair em cima do cabide.
- Não consegues fazer isso outra vez - troçou ele. Ela aconchegou-se a ele, às risadinhas.
- Não sei, rapaz. Tenho treinado muito.
- Quem é MG? - perguntou ele casualmente. - As iniciais no pijama?
- MG? - murmurou ela. - Não me lembro. Já foi há muito tempo.
Ela encostou os lábios ao pescoço dele, aos seus ombros, à pele macia esticada sobre as costelas. Mordiscou-lhe a orelha.
- Oh, querido, querido, que bom isto é. Sabes o que eu queria ontem à noite?
- Que querias?
- Queria exactamente o que aconteceu. Queria que fumássemos um cigarro, conversássemos um bocadinho e depois adormecêssemos. Talvez dormíssemos uma ou duas horas ou talvez dormíssemos até de manhã.
- bom, dormimos até quase ao meio-dia - disse Harry, a bocejar. - Caímos redondos.
- Eu sabia como ia ser. Acordava a pensar: "Oh, Cristo, cá estou eu sozinha outra vez." Mas, depois, rolava na cama e tu estavas aqui e é sábado e não temos de ir trabalhar e podemos ficar na sorna até nos apetecer, não podemos? Oh, é absolutamente maravilhoso estar com alguém de manhã.
- Sim - assentiu ele. - Sei o que queres dizer.
- E só que estou muito tempo só. Sabes? Não me faz bem estar tanto tempo só. Faz-me mal. Fico toda embrulhada por dentro. Mas, quando tenho alguém comigo, quero que todos os minutos contem.
- Mas adormeceste primeiro, querida - censurou ele. - Meu Deus, num instante estavas a falar comigo e no instante seguinte estavas a dormir.
- Eu sei. Devia estar cansada. Dormi lindamente. Sinto-me óptima. Tenho fome.
- Está bem - disse Harry. - Vamos lá ver... comprámos leite e ovos e queijo e cogumelos e bolo bologna na Horn and Hardart. vou levantar-me e fazer o pequeno-almoço. - Daqui a bocadinho - murmurou ela. - Não te levantes já.
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Ele meteu-lhe os dedos pelos caracóis louros. Puxou-os, inclinando-lhe a cabeça para trás. Beijou-lhe os lábios. Beijou-a com força, com os seus lábios a pressionar os dela com força. Puxou-a contra si.
- Harry - exclamou ela numa voz abafada. - Francamente, querido...
Ele sentiu o seu corpo enérgico. Passou os dedos pelo seu corpo, beliscando-lhe os seios atrevidos, pressionando-lhe os ombros robustos, agarrando-lhe as coxas fortes. Pôs-lhe as mãos em cima.
Depois, fizeram amor. Fizeram amor enquanto riam, rolavam na cama e se mordiam, sentindo o sabor da carne. Fizeram amor sob o sol brunido. com toda a reverência.
Depois, ficaram quietos, a arfar suavemente. Depois, ficaram quietos, quentes e cansados.
- Helen - murmurou ele. - Querida, querida...
Ela esfregou a face contra o ombro dele. Passou-lhe a palma da mão em círculos sobre o fundo das costas, sem lhe tocar na carne, mas quase sentindo os pêlos curtos, sentindo o seu calor.
Ela afastou-se ligeiramente, a rir-se para ele.
- Achas que vai durar? -.perguntou ela. - Achas que está cá para ficar?
-Na - disse ele, abanando a cabeça. -Não vai durar. É só uma moda.
- Achas que vai ocupar o lugar do basquetebol?
- bom - reflectiu ele com uma expressão séria -, são precisos cinco homens...
Mas ela tapou-lhe os lábios com os dela. Assaltou-o com a sua boca. Depois, deixaram de se abraçar. Ficaram deitados de costas, em silêncio. Helen acendeu um cigarro e ficaram os dois a ver o fumo subir em plumas ao sol.
"Um novo tipo de cigarro", pensou ele subitamente. "com fumo preto."
- Querido, fui boa para ti? - perguntou Helen, ansiosa.
Ele virou-se ao contrário e encostou os lábios ao cabelo dela. Pôs-lhe um braço por cima dos seios. Sentiu-a respirar. Ajustou a sua própria respiração, de forma a respirarem em uníssono, com o peito a expandir ao mesmo tempo.
- Foste maravilhosa para mim - disse ele.
- Oh, tu és óptimo para mim-suspirou ela. - És mesmo. Nunca mo fitas abaixo.
- Tu estás muito à minha frente - disse-lhe ele. - Nuncn to conseguirei apanhar, querida. Estás sempre a dar e eu a receber. Sempre.
- Querido - disse ela a rir, esfregando os dedos no seu cabelo emaranhado -, não digas idiotices. Francamente, homem, fazes-me
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bem. Só por estar contigo. És amoroso e burro e tentas ser sofisticado e, na verdade, não fazes ideia do que se trata, querido. Mas que morcão tu és! Que quadrado!
- Lá isso é verdade que sou.
- Não, não és. Não és morcão. Quando estou contigo, sinto-me viva e continuo viva. É assim que me fazes sentir. Portanto, não te preocupes com isso.
- Tu dás demasiado - murmurou ele entre dentes. - Dás e continuas a dar. Um destes dias, dás-te toda e não restará nada de ti.
- Ora, que pena!-troçou Helen, apagando o cigarro. - Tens de compreender, meu querido Harry, que eu não passo de uma pobre tola sem educação, do Oaio, e que não consigo perceber de que raio estás a falar, meu querido.
Ele riu-se e abraçou-a pela cintura. Rolaram na cama a ranger, a rirem e a beijarem-se. Depois, pararam e beijaram-se. Beijaram-se. Beijaram-se.
- Amo-te, querida.
- Diz isso outra vez.
- Amo-te, querida - disse Harry Tennant.
Ela suspirou, encantada, e chegou-se mais a ele. Pôs um braço por cima dos ombros dele.
- Sabe bem ouvir isso. Sabe bem e parece verdade.
- É bom, Helen, e é verdade.
Ela ficou calada durante alguns instantes. Depois, sentou-se na cama.
Agarrou-lhe o rosto com ambas as mãos e fitou os seus olhos espantados. Aproximou-se tanto dele que os seus narizes quase se tocavam e ele sentia a respiração quente dela nos seus lábios.
- Ouve - disse ela -, quanto ao pijama... francamente já não me lembro quem era MG. Isso incomoda-te?
- Não - disse ele, surpreendido pelo facto de não incomodar. Não me incomoda absolutamente nada. Não me incomoda o que fizeste antes de eu te conhecer.
Ela suspirou, libertou-o e deixou-se cair em cima da cama.
- bom, não houve muitos homens e não houve poucos. Mas isso foi tudo ontem, e eu nunca penso duas vezes em ontem.
- Sim - assentiu ele. - Eu próprio sou a favor de hoje.
- Do que eu gosto é de amanhã - disse Helen baixinho.
- Que queres de amanhã? - perguntou ele, com a voz abafada pela almofada.
- Quero1? - Disse-o de tal forma que parecia um vício. - O que é que eu quero? - Ela esticou-se na cama, bocejou e abriu os braços. Ele olhou para os seus seios
atrevidos que apontaram para cima. Não quero muito. Acho que o que mais quero são manhãs assim...
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acordar e ver ao meu lado o tipo com quem fui para a cama na noite anterior... e saber o nome dele.
Ela rolou na cama, encostou os lábios à sua coluna nodosa, sentiu o seu sabor e esticou os braços. Ela conseguia tocar-lhe desde a nuca até à parte de trás dos joelhos, uma luxuriante oitava. Conseguia abarcá-lo quase todo com os seus braços. Encostou a face às suas costas.
A cabeça dela movia-se para cima e para baixo enquanto ele respirava.
- Oh, caramba, como isto é bom! - suspirou ela. - Dormir sozinho não presta para nada, para nada. Mas ouve, querido... é preciso amar-se o tipo com quem se dorme, nem que seja por uma noite. Se o amamos, está tudo bem. Se for só por prazer, é o pior que se pode fazer. Ou embriagada ou passada. Nesse caso, é uma merda. Querido, querido. É demasiado precioso.
- Amo-te, Helen.
- Claro, querido, claro. Sabes do que gosto? Fico com a ideia de que sou precisa, que o tipo me quer e precisa de mim. É a única coisa que conta para mim. Tudo o resto no mundo não é se não merda.
- Quero-te - murmurou ele, virando-se para lhe beijar os dedos. - Preciso de ti.
- Que bom, querido. Gosto de ouvir isso. Dá-me um beijo.
Ele virou a cabeça e ela beijou-lhe os lábios. Depois, voltou a deitar-se por cima dele, com o rosto encostado ao fundo da costas dele.
- bom, deixa-me levantar, querida - disse ele. - vou fazer o pequeno-almoço.
- Não - disse ela, sonolenta. - Não te vou deixar levantar.
- Trago-te o pequeno-almoço à cama - ofereceu ele. - vou fazer ovos mexidos. Talvez faça uma omeleta. Temos cogumelos. Ou queijo.
- Não te deixo levantar - recusou ela, fazendo peso com o corpo em cima dele. - vou manter-te prisioneiro.
- vou fazer café bem forte - implorou ele. - E também temos o bolo do Horn and Hardart.
- Não quero que te levantes - insistiu ela. - Não te deixo, não te deixo. Esqueço-me sempre como os homens são fortes - disse ela, observando-o a andar pelo quarto a apanhar a roupa. - Penso sempre que tenho bastante força até um homem usar realmente a sua força, e depois descubro que não tenho tanta como pensava. Tu és mesmo forte, querido.
- Claro que sou. - Ele piscou-lhe o olho. - Costas fortes, cérebro fraco.
- Para mim chega - disse-lhe ela. - Fazes tudo bem. Ouve, Harry, tens a certeza de que sabes fazer uma omeleta?
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- Confia em mim - tranquilizou ele. - Vai ser uma omeleta como tu nunca provaste. Vais adorar esta omeleta. Ele foi para a casa de banho e tomou um duche rápido. Havia três toalhas penduradas no toalheiro. Duas eram às flores. Uma era branca com uma risca azul que dizia US NAVY. Ele limpou-se com a toalha que dizia NAVY. Usou uma das suas duas escovas de dentes. Não encontrou nenhum pente e fez o melhor que pôde com os dedos. Olhou-se durante muito tempo ao espelho do armário de medicamentos. Aproximou o rosto até o nariz quase tocar no espelho.
- Homem branco e rosto preto - murmurou ele. - Que estás a fazer?
A omeleta estava um bocado desfeita, com os cogumelos a sair das duas pontas. Mas estava boa e comeram-na toda. O café estava forte e quente. Helen bebeu duas chávenas. O bolo do Horn Hardart também era bom.
Helen não comeu na cama. Levantou-se, vestiu o robe, e comeram ambos na pequena mesa da cozinha. Não falaram muito durante o pequeno-almoço. Fumaram um cigarro com o café. Harry pôs dois cigarros na boca e acendeu-os com o mesmo fósforo.
- Vi Humphrey Bogart fazer isso num filme - disse-lhe ele. Helen observou-o, a sorrir ligeiramente. Ele deu foi por detrás
dela, beijou-lhe o cabelo. Ela ergueu o rosto e esfregou a face ao longo dos seus lábios.
- Estou tão feliz, querido! - murmurou ela.-Tem sido óptimo. Tem sido uma manhã magnífica.
Ele hesitou por instantes e depois disse:
- Disseste-me que eu não sabia de que se tratava. Então, diz-me. De que se trata?
- De ti e de mim, querido - murmurou ela. - De ti e de mim.
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Ela sentia-se a sonhar.
- Sinto-me a sonhar - disse Helen Miley a Richard Faye.
- Sinto-me a sonhar - disse Richard Faye a Helen Miley. Estavam a snifar coca, e era assim que a sua conversa estava a decorrer. Não sabiam bem fazê-lo... snifar. Mas estavam a tentar.
- Ouve - disse ele, começando a desabrochar. -, li uma série de livros com cenas de sexo. E são sempre maravilhosas.
- Que é maravilhoso? Os livros?
- Não. As cenas de sexo. E a mulher dá sempre exclamações
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abafadas... é o que diz: "Ela deu uma exclamação abafada..." e diz, "Agora. Agora. Agora." Por que é que tu nunca exclamas "Agora. Agora. Agora."?
- Agora. Agora. Agora - exclamou ela.
- Não - disse ele tristemente -, não resulta.
- Filho-da-mãe - disse ela tristemente.
Desataram a rir, abraçaram-se, fumaram os seus cigarros, continuando a tentar...
- Uck, sabes o que me chateia?
- Eu?
- bom... às vezes. Mas o que realmente me chateia é tratar da roupa.
- Roupa?
- bom... tu sabes. Ponho a roupa suja naquele cesto na casa de banho. E todas as semanas enfio-a numa fronha e levo-a ao china da esquina da Segunda Avenida. Ele tem uma miúda... chama-se Susan... que se senta em cima do balcão a rir. Caramba, é mesmo querida. Dá-me vontade de comer a miúda. Às vezes, levo-lhe rebuçados. Todos os Natais ele dá-me um calendário e uma caixa de lichias. Não é simpático? De qualquer forma, levo lá todas as semanas a minha roupa suja. E depois levo a roupa para limpar a seco a outro sítio no fim do quarteirão.
- E depois?
- bom... tenho um dentista maravilhoso na Rua 57. Quase não faz doer. vou lá uma ou duas vezes por ano limpar os dentes e fazer uma revisão. Estás a ver?
- Claro.
- E tenho um médico. Ponho as pernas nas perneiras e ele olha lá para dentro. Diz que eu tenho músculos abdominais muito fortes e que estou em óptima condição. Sabes, tento sempre fazer uns exercícios de manhã.
- Sim.
- bom, e também tenho um seguro de vida e o beneficiário é... o beneficiário é... acho que são alguns dos meus sobrinhos e sobrinhas. Seja como for, tenho um seguro de vida. E o ano passado fiz uma coisa... uma apólice... que, se eu não deixar de pagar, quando tiver sessenta e cinco anos, recebo cem dólares por mês. E sensato... não achas?
- Sim. E sensato.
- E... deixa-me cá ver. Os meus sapatos não duram muito, mas às vezes mando pôr solas ou meias solas. Tomo a pílula e uso os cosmésticos que os anúncios dizem. Fui a St. Patricks no Natal passado. O espectáculo foi lindo. E faço tudo o que devo... quero dizer, sou limpa e tudo isso. Tenho mau hálito?
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- Oh, não! Não. Ela desatou a chorar.
- Então, por que me sinto tão infeliz? - soluçou ela.
- Infeliz - assentiu ele. - Infeliz.
Ele não sabia como a consolar, portanto, ligou o rádio. Era um pequeno modelo de mesa, numa caixa de plástico partida porque um diaRocco (que a sua alma descanse em paz) o tinha deitado ao chão. Apareceu uma estação - estavam a tocar aquela música de dança comprida de Donna Summer. Imediatamente, Helen Miley e Richard Faye puseram-se de pé, deram o braço e começaram a dançar de lado, muito elegantes, muito formais. Para a esquerda, para a direita, a fazer todos os passos.
A música acabou e eles voltaram a sentar-se, acenderam os cigarros, que, estranhamente, se tinham apagado.
- O meu problema... - disse ele.
- O teu problema?
- O meu problema-disse ele-é que fico com a sensação de que sou uma pessoa diferente para toda a gente que conheço. Estás a perceber? Sou uma pessoa para a minha mãe e uma pessoa para ti e uma pessoa para o meu patrão e...
E depois começaram a bater palmas ao ritmo, um grande espiritual, um cântico.
- E uma pessoa para o meu patrão e uma pessoa para o meu molho e uma pessoa para a minha perda e uma pessoa para o meu musgo...
Mas, finalmente, pararam. Ele disse:
- bom.. tu sabes.
- Então?
- Então quem sou eu?
- Ah! - gritou ela. - Vamos atacar esse bife. Era um bife do lombo, com osso e gordura incluídos.
- Tens uma faca boa? - perguntou ele.
- Não. Tenho esta. Mas tenho uma coisa com discos de metal para afiar facas. Sabes como é, Uck?
Ele olhou para ela, altivamente.
Ele afiou a faca, passando-a cuidadosamente por entre os discos interligados. Não se cortou uma única vez, nem sequer quando testou o fio no polegar. Helen observou-o com um sorriso radioso.
- Caramba - disse ela -, tu sabes mesmo afiar uma faca! Ele limpou a lâmina lentamente e depois cortou um pedacinho de
gordura.
- Agora, leva isto para a sala e dá-o ao teu pássaro - mandou ele.
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- Não. Que se lixe.
- Leva-lhe, Helen. Ele tem direito.
- Oh... merda-resmungou ela... mas levou o pedacinho de gordura e voltou, instantes depois. - Está a depenicar.
- Claro - assentiu ele. - Quem não depenicaria?
Ele fez um excelente trabalho, separando o osso e cortando a gordura, fazendo um belo círculo de carne crua que foi batida e esculpida.
-vou cortar um bocado de bife - disse ele - e vou comê-lo cru.
Ele olhou para ela.
- Tu também vais cortar um bocado de bife para mim - disse-lhe ela - e eu vou comê-lo cru.
Então, ele cortou dois pedaços finos. Era um bife envelhecido, cheio de sabor. Podia cortar-se com uma raquette de pingue-pongue. Comeram os pedaços de bife. Ele olhou para ela. Ela assentiu. Ele cortou o resto do bife em pedaços comestíveis e depois levaram o prato para a sala.
- Tenho batatas - disse ela numa voz fraca. - Salada. Espinafres congelados. Um tomate grande. Coisas assim. E massa folhada.
Ele nem sequer olhou para ela. Mastigaram o bife cru. Caramba, era bom!
- Amanhã estou com diarreia - suspirou ela. Ele assentiu, contente.
Ela olhou para o cigarro que estava a fumar.
- Apagou-se outra vez. Onde compras estas coisas?
- A uma miúda, no meu trabalho. Uma coisinha doce. Tem um rosto saído de umBotticelli. Isto é, de Sam Botticelli. É dono de uma confeitaria no Ho-Ho-Kus. Um dia, pôs todo o escritório excitado.
- Eia - disse ela, excitada -, olha para isto!
Ela pôs-se de pé num salto e atirou com uma almofada para um canto. Antes de se poder dizer Ivan Skavinsky-Skavar, já ela estava de pernas para o ar, assente sobre a cabeça, com as pernas contra as paredes do canto, com a saia a cair-lhe em volta da cabeça. Ele teve uma visão assustadora de umas coxas apetitosas e de um biquini azul com pequenas rosas ao longo das costuras.
- Oh, meu Deus - gemeu ele em verdadeira angústia. Depois, ela pôs-se de pé outra vez, com o rosto corado.
- Que tal? - perguntou ela. Ele aplaudiu educadamente.
- Ioga - explicou ela. - É tudo uma questão de autocontrole.
Continuaram a comer o bife cru.
-Achas... -perguntou ela -, achas... achas... que se bebermos um uísque com soda faz algum mal...? Tenho sede.
- bom...
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Ela foi a correr à cozinha e trouxe dois grandes uísques com soda, e então ficaram verdadeiramente atarefados... com as bebidas, o bife cru, o pó.
- Está tudo a juntar-se - disse alguém.
Richard Faye, o Rapaz Abandonado, que pensava de mais, estava ali sentado na beira da cadeira, inclinado para a frente. Tinha de facto perdido peso, exactamente como jurara. Agora, parecia flutuar dentro da roupa... um rapazinho abrincar às casinhas dentro do fato do pai. A certa altura, de alguma forma, ao longo da noite, ele tinha desabotoado o colete castanho e voltado a abotoá-lo. Mas saltara um botão. Tinha um botão a mais em cima e uma casa a mais em baixo.
Os papos ainda lá estavam, a balouçar por debaixo dos seus olhos, e parecia que a bariga assentava nas coxas. Mas estava inegavelmente mais magro.
Ele perguntou:
- Sabes qual foi a coisa mais triste que eu já vi?
- Qual foi a coisa mais triste que tu já viste?
- O ano passado, no dia de Acção de Graças, fui a um restaurante porto-riquenho que tinha na montra um letreiro que dizia "Jantar Especial do Dia de Acção de Graças. Peru e Todas as Guarneções". Foi assim que escreveram: Guarneções, G-U-A-R-N-E-Ç-Õ-E-S. Deu-me vontade de chorar.
- Olha - disse ela -, já te disse que consigo tocar com a língua na ponta do nariz?
- Sim, disseste e provaste-me que conseguias.
- Não me importo - disse ela. - vou fazer outra vez. - E fez.
Ele pôs-se de pé, a segurar elegantemente no cigarro entre o indicador e o polegar, com o copo de uísque na outra mão, com o cérebro mal lhe cabendo no crânio a pulsar.
- Agora, vamos fazer um filme - declamou ele. Helen Miley pôs-se de pé e fez continência.
- Senhor! E eu tiro a roupa?
- Minha querida, não é esse tipo de filme.
- De que tipo é?
- É uma história de amor.
- Sim-disse ela encantada, batendo palmas. -Adoro histórias de amor. Qual é o meu papel?
- Tu és a mulher e eu sou o marido.
-Vai ser um filme maravilhoso. Já gosto dele. Que é que eu tenho de fazer?
Ele puxou uma fumaça, bebeu um golo, puxou uma fumaça, bebeu um golo.
- Este filme - disse ele -, este filme passa-se em 1925. Estamos a viver num pequeno subúrbio de Filadélfia, na Pensilvânia. Eu
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trabalho numa grande e próspera empresa que fabrica a pequena rodela de cortiça que é posta nas cápsulas do Moxie.
- Moxie ?
-Moxie. Uma deliciosa bebida não alcoólica sem adoçantes artificiais. com sabor a chocolate. Eu sou... sou o director de produção que verifica se as rodelas de cortiça saem da linha de montagem a tempo.
- E quem sou eu? Que faço?
- Tu és a minha Esposa Querida. Neste filme. Vivemos nesta casa nos subúrbios. Está pintada de branco.
- com portadas verdes?
- com portadas verdes - assentiu ele -, e também com rosas no lado sul.
- Rosas trepadeiras - disse Helen, muito contente. - Gosto deste filme. Temos filhos?
- Sim, temos. Temos dois filhos. Fondue é o nosso filho mais velho. Tem dez anos e é muito precoce. A semana passada, vendeu catorze assinaturas da Liberty Magazine e ganhou uma bicicleta. A garotinha chama-se Tusk e é muito querida. É ciosa.
- E usa uma fita no cabelo?
- Certo - disse ele num tom de aprovação. - Cor-de-rosa.
- E é muito bonita e está sempre a meter-se em sarilhos e ontem , caiu e magoou o joelho e eu tive de lhe dar um beijinho para deixar de doer.
Ele olhou para ela com uma expressão sombria.
- Já viste este filme.
- Não, Uck, juro que não vi.
- bom... sim, ela caiu e magoou o joelho e tu tiveste de lhe dar um beijinho para deixar de doer. De qualquer forma, quando o filme começa, é sexta-feira à noite e eu vou a caminho de casa e da fábrica de rodelas de cortiça para o Moxie. vou no interurbano e...
- Interurbano?
- Investiguei isso a semana passada. Eram pequenos trolleys que iam das cidades para o campo. Vi umas fotografias maravilhosas. Passavam pelo meio de prados e quintas. Eram eléctricos. Carruagens únicas. Meu Deus, era tão lindo! De qualquer forma, eu vou a caminho de casa nesse interurbano e o meu companheiro de banco pergunta-me se vamos ao baile do country club nessa noite.
- Somos membros de um country club?
- Claro. Vivemos bem. Sabes, todas aquelas rodelas de cortiça... E eu digo que sim e que a nossa fiel criada da família fica com as crianças. Então, chegamos a uma estação algures no meio de um prado e...
- E eu estou à tua espera!
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- Exacto! Estás à minha espera com os miúdos. Vieste da nossa casa no John OHara de 1922 ou qualquer coisa assim, e os miúdos gritam "Papá! Papá!" e atiram-se para os meus braços. E eu beijo-os. Beijo Fondue e ele diz-me das assinaturas da Liberty Magazine e que ganhou uma bicicleta, e eu beijo Tusk e ela conta-me que caiu e magoou o joelho e que tu tiveste de lhe dar um beijinho para deixar de doer. E depois beijo-te a ti.
- Oh, Uck! Esta é a parte de que gosto.
- Está bem. Portanto, esta é a nossa primeira grande cena neste filme, e temos de estabelecer desde já que tipo de relação é que temos. Okay? Vamos lá. Tu falas primeiro.
HELEN: Olá. Oh, meu querido, tiveste um dia difícil no escritório?
RICHARD: Sim, meu amorzinho, tive um dia difícil no escritório, a virar as rodelas de cortiças que são postas dentro das cápsulas das garrafas de Moxie, em todo o mundo civilizado. No entanto, o que me fez aguentar foi pensar em voltar para casa, para ao pé da minha mulherzinha e dos meus filhos, para a minha casinha com rosas no lado sul. E como foi o teu dia, minha mulher?
HELEN: O homem do talho cobrou-me dois cêntimos a mais no quilo das costeletas de porco.
- Sim - disse ele, assentindo e num tom de aprovação -, foi muito bem e creio que será um excelente desaparecimento gradual dessa cena. Não é minha intenção criticar-te, Helen, mas creio que talvez possas dizer as tuas falas com um pouco mais de sentimento. Quero dizer, a fala sobre as costeletas de porco tinha grande significado e se tu a sentisses mais profundamente...
- vou tentar - disse ela humildemente.
Pararam, durante alguns instantes, para comer o bife cru, fumar os seus cigarros e fazer outra bebida.
- bom - disse ele num tom decidido -, já estabelecemos um ambiente de amor e compreensão mútuos. Certo?
- Certo, chefe.
- Agora, estamos dentro de casa. Já comemos as costeletas de porco. Tu e eu estamos no quarto principal, a vestir-nos para o baile de sexta-feira à noite no country club.
- Está óptimo! Mas que cena! Os críticos vão adorar-me nesta cena. vou vestir o meu vestido de renda branca com a bainha maluca aos bicos.
- E tu estás com um espartilho.
- Um espartilho?
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- Um espartilho. Era o que as mulheres usavam nesse tempo. Era como um soutien e cuecas numa só peça.
- Ah, já sei! Já os vi. Abotoam entre pernas.
- Sim, exacto. bom, agora a cena começa. Eu falo primeiro...
RICHARD: Já não preciso da casa de banho, minha muito querida, isto para o caso de lá quereres ir.
HELEN: Não. Oh, meu amor, já fiz as minha abluções. vou só sentar-me ao toucador que tem um grande espelho ao meio e dois espelhos mais pequenos dos lados, com dobradiças para se poderem ajustar, e terminarei a minha toalette.
RICHARD: Toilette.
HELEN: Terminarei a minha toilette. Estás absolutamente encantador esta noite, meu marido.
RICHARD: Sim, minha mulher. Utilizei como loção after-shave um pouco de álcool, ao qual foi acrescentada uma gota de óleo de gualtéria. Acha-la ofensiva?
HELEN: Au contraire, luz da minha vida, au contraire.
RICHARD: O baile de sexta-feira à noite no country club não começa antes das nove, portanto, não é preciso apressarmo-nos.
HELEN: (numa voz quente) Não. Não é preciso apressarmo-nos.
RICHARD: Estás muito bela sob este maldito luar, Amanda.
- Quê? - perguntou ela, intrigada. - Que disseste?
- Desculpa. Há aqui um certo plágio. Mas corto-o na versão final. bom... então eu digo:
RICHARD: Portanto, não é preciso apressarmo-nos. Será que tens de te vestir já, minha mulher?
HELEN: Oh, não, meu homem, não tenho de me vestir já. E as crianças estão no seu quarto, vigiadas pela nossa fiel criada da família. Temos pelo menos uma hora.
RICHARD: Na qual podemos folgar?
HELEN: Sim... e verdadeiramente.
RICHARD: Como estás bela, aí sentada no teu robe de marquisette, no pequeno banco à frente do grande espelho no meio e dos dois pequenos espelhos de lado, com dobradiças para poderem ser ajustados. Hoje já te disse que te amo?
HELEN: Disseste-me três vezes, o que não me parece suficiente. Primeiro, quando partiste para o escritório de manhã. Segundo, quando me deste uma apitadela depois de voltares do almoço, no You-Betcha Diner, e, terceiro, durante o caminho para casa da estação. No entanto, meu homem, nunca me canso de ouvir essas palavras.
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RICHARD: Essas duas palavrinhas? HELEN: Essas duas palavrinhas. RICHARD: Amo-te.
- Jesus! - disse ela.
RICHARD: Porque estamos aqui na nossa casinha, nos subúrbios de Filadélfia, na Pensilvânia, com rosas no lado sul, e eu tenho-te a ti e aos nossos dois pequeninos
e é isto que dá significado às rodelas de cortiça das cápsulas do Moxie. Compreendes?
HELEN: Creio...
RICHARD: Amar-te a ti e à família, e estamos em 1925 e não há guerra e toda a gente é rica e cada vez enriquece mais e bebe Moxie. Aqueles rabanetes na tua horta estão a medrar e Fondue vai ser um magnate de bicicletas e Tusk vai casar-se com o filho de um contra-almirante. Eu sei que vai. Oh, meu Deus, minha querida, amo-te tanto...
HELEN: E eu tenho o meu próprio homem. Acordo todas as manhãs e tu estás cá. E o meu próprio filho e a minha própria filha. A minha casa com as rosas. Os meu rabanetes...
-Agora, dirijo-me a ti-ordenou ele -, e tu levantas-te e abraçamo-nos. Parecemos aquele tipo com o violino e a mulher ao piano no anúncio do perfume... só que eu estou de roupa interior de uma só peça, com abertura no traseiro e com as pernas pelo joelho. Agora...
RICHARD: Madame, tem consciência de que um dos seus apêndices mamários está a projectar-se por uma abertura do seu peignoir?
HELEN: Queres dizer que tenho uma mama à mostra?
RICHARD: Madame, não tem puto de vergonha?
HELEN: Absolutamente nenhuma.
-Agora, começo a levar-te para a cama porque temos uma hora inteira para folgar antes do baile do country club. E aqui vem o grande momento... na realidade, o momento mais dramático do filme. Porque é agora que tu dizes...
- Eu sei, eu sei - gritou ela alegremente, a bater palmas. - É aqui que eu exclamo em voz abafada "Agora. Agora. Agora."
- Absolutamente certo. Achas que consegues?
HELEN(numa voz abafada): Agora. Agora. Agora.
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- Lindo - disse ele, dirigindo-se para o quarto. - És uma verdadeira musa.
- Uma musa? Uma dusa?
- Uma disa. Um dado. Queres ser uma mulherzinha dos subúrbios... uma dona de casa de Filadélfia e ir a correr à cozinha arranjar outra bebida para nós? E, entretanto, eu acendo o último cigarro, que compartilharemos, e também me despojarei da minha indumentária.
- Sim, oh, meu marido - murmurou ela obedientemente. Quando ela voltou com as bebidas, a porta do quarto estava semi-
fechada. As luzes estavam apagadas. As persianas estavam corridas, mas entrava suficiente luz pálida da sala para ela ver que ele estava nu. Nu e de pé, à frente do espelho de corpo inteiro preso ao lado de dentro da porta do quarto. Ela lembrou-se de que Harry Tennant tinha feito a mesma coisa e teve um momento de pânico... todos os seus homens a tentarem ver-se a si próprios, a examinarem o seu reflexo. Mas, porque Deus lhe tinha dado um coração alegre, um dom maravilhoso, ela afastou estes pensamentos sombrios e despiu o vestido e as cuecas. Instantes depois, estava nua, mesmo à sua frente. Ele pôs as mãos ao de leve sobre os seus ombros. Ficaram a olhar para a sua imagem vaga que parecia prateada e poética.
- É meia-noite - disse ele, com a voz entrecortada. - E agora transformo-me numa abóbora.
Ele olhou por cima da cabeça dela, através do halo dos seus caracóis louros. Ele via o seu próprio rosto. Ele. Richard Faye. Indiscutivelmente.
Mas do pescoço para baixo... do pescoço para baixo fluía uma carne límpida, tão graciosa e fascinante como uma coluna de água em movimento. Ele tocou-lhe nos ombros, passou-lhe suavemente as mãos pelos braços. Ela estremeceu sob o seu toque, murmurando...
E ali estava ele, a acariciar-se a si próprio. As suas mãos deslizaram suavemente sobre os seus seios atrevidos e pela sua barriga lisa, seguiram a curva das suas ancas, tocaram nas coxas vivas. A felicidade desabrochava dentro dele. O seu cérebro flutuou para qualquer Indo.
Ficaram ali muito tempo, um animal triste, a observar aquelas mãos grossas, esfomeadas, a passarem pelos seus corpos. O delírio inundou-os em ondas desejadas, e fizeram estranhos sons. Ela estendeu o braço por detrás dele, para o puxar mais para si, com o espírito em papas, e ele começou a comer-lhe o cabelo.
E foi isso que eles fizeram.
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Era manhã de domingo, fresca e carnuda como uma boa maçã, e Charles Lefferts telefonou-lhe! Lindo. Por um breve momento, ela sentiu-se tentada a dizer-lhe que estava ocupada. Muito breve.
Mas, depois, ele chegou, estacionou em dupla fila à frente do toldo do edifício no seu MG-A vermelho, carro de bombeiro. Levava um cesto de verga com comida, garrafas, uma máquina Polaroid... tudo isto enfiado por detrás dos bancos. Ela levou-se a si própria, a matar, nas suasjeans francesas de setenta e cinco dólares.
Ele levou o carro para a baixa, dirigindo-se para o túnel de Brooklyn. Iam para a praia Jacob Riis, na Island.
- Está deserta nesta altura do ano - disse-lhe ele. - Os idiotas deixam de ir a partir do
1.º de Maio. Os idiotas nunca vão antes do Memorial Day. Pensam que só
se pode ir à praia de Junho a Setembro. Idiotas.
Ela virou-se de lado no banco, para poder olhar para ele. Estava com um boné frenético com um padrão pied-de-poule pop-art. As suas luvas de guiar de pele macia tinham buracos caseados, no sítio onde saíam os nós dos dedos. Oh, sim... e um maravilhoso cronometro que fazia tudo excepto dizer as horas.
Ele era um condutor bruuuum, bruuuum, bruuuum, que acelerava nos sinais vermelhos, fazia muitas reduções nas curvas e depois acelerava... Mário Andretti... a virar ferozmente o volante sem mexer as mãos,poléposition no Grande Prémio de Manhattan, olhos de aço, nervos uma amálgama de titânio e uma qualquer cerâmica secreta, a uns cinquenta e cinco quilómetros por hora, quando parou no sinal vermelho, o seu perfil de Steinberg (pontiagudo com um charuto apagado) a cortar o vento. Aquilo é que era vida.
Ela enfiou-se pelo banco abaixo enquanto irrompiam pelo túnel revestido a azulejos brancos.
- Uiiiii! - gritou ele, e ela sorriu-lhe.
- A casa de banho de homens mais comprida do mundo - murmurou ela, mas ele não a ouviu.
Depois, voltaram a sair para o sol, o céu azul estendia-se até Plutão e ele estava histérico, com o seu cachecol comprido (cores de Princeton) desfraldado ao vento, com os nós dos dedos muito brancos através dos buracos nas luvas, enquanto ele metia as mudanças, pés a fundo nos pedais, o vento forte a arrancar-lhe lágrimas dos olhos. Ela encolheu-se no banco, com uma manta com franjas em volta dos ombros, e estava feliz pela alegria dele, feliz por ele ter aquela... qualquer coisa, alguma coisa... na sua existência sem história.
E depois chegaram à praia. Quilómetros e quilómetros de areia,
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ainda cheia de lixo do fim-de-semana do 1.º de Maio, com montes de detritos que tinham dado à costa cheios de nafta, peixes podres, uns troncos queimados pelo sol,
alguns pedaços de betão arrancados de um pontão ou de um cais algures e arrastados para terra.
Mas, mesmo assim, limpa e lavada... como o Sol e o mar fazem. Até o lixo parecia limpo... a cheirar a sal e a sol. No céu esfregado de limpo, um bando de gaivotas
a arrastar atrás de si as suas pernas idiotas que pareciam escovilhões para limpar cachimbos. Na praia, gaivotas de ar digno bicavam embalagens vazias de Fritus e maçaricos catavam-se uns aos outros à beira da água.
Algumas pessoas, não muitas, casais e famílias, todos embuçados, a maioria protegidos pela muralha, mas alguns junto ao mar... com fogueiras acesas e um quebra-vento de plástico de cores vivas com paus enfiados na areia.
O piquenique que ele tinha preparado não era nada modesto. Havia pernas de frango fritas, embrulhadas em papel de alumínio e ainda quentes. Havia fatias de carne assada fria, ovos cozidos, aipo e uma lata de sardinhas apetitosas. Pedaços de pão de alho, tomates, pepinos. Ele não se tinha esquecido do sal e da pimenta, de um abre-latas para a lata de sardinhas, de um saca-rolhas para as duas garrafas de rose gelado que levara. Também havia um termo de café. Copos de vinho de cristal e guardanapos de papel, o querido.
Estavam ambos com óculos de sol com grossas armações de tartaruga, sentados de costas para o betão delapidado da muralha. Fora do vento, estava deliciosamente agradável... calor mesmo. Ele tirou o boné, o casaco, o pulôver, a T-shirt. Ela tirou a manta, o casaco, o pulôver... e deixou que o mundo aplaudisse o seu pequeno soutien insuflável. O sol era uma bênção, e eles espraiaram-se a apanhá-lo, torcendo-se, virando-se na grande toalha de praia que ele estendera na areia.
Ocasionalmente, olhavam inexpressivamente um para o outro... ambos cegos. Mas, sobretudo, viravam os rostos e os troncos pálidos para o Sol. Ele abriu uma das garrafas e tocaram com os copos um no outro... beberam. Fitaram o céu, a luz, observaram as gaivotas malucas, grunhiram de contentamento. Não era mau.
- Sabias - disse ele preguiçosamente -, sabias que sou o melhor amante de Nova Iorque?
-A sério? - disse ela, num tom igualmente preguiçoso. - Onde foi a competição... no Yankee Stadium?
Ele mostrou os dentes.
- bom... é como a virilidade.
- Virilidade?
- Claro. Helen, tu não fazes ideia do número de maricas que há em Nova Iorque. E quantos tipos há que não o são, mas que não estão
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interessados em sexo. E quantos maridos há que se matam a trabalhar e que andam demasiado cansados para dar uma cambalhota. Nem acreditavas.
- Acreditava - suspirou ela.
- É isso que eu quero dizer. Todos esses tipos que não te conseguem pôr a trepar pelas paredes. É aí que entro eu. Virilidade. Eia! Vamos comer!
Abriram todos os pequenos embrulhos de papel de alumínio. Começaram a mordiscar, a mastigar, a engolir. Sabe sempre melhor num dia fresco de límpido de Outubro...
e de facto soube, de facto soube.
- Sabes? - disse ele a roer uma coxa assada -, é uma questão de oferta e procura.
Ela bebeu um grande golo de vinho. Depois, sentaram-se ambos muito direitos, a olhar para trás, para a muralha, ao ouvirem um ruído surdo. Era um carro-patrulha da Polícia que se aproximava lentamente e depois virou ao fundo da praia.
- Oferta e procura - repetiu ele, mastigando um pepino. - Tenho uma coisa que posso fornecer e que tem grande procura. Estás a ver?
Ela olhou para ele, maravilhada, mas isso não fez com que parasse de dar cabo de uma fatia de carne assada mal passada.
- É como uma profissão-disse ele, com a voz abafada pela comida. -Acho que sou um profissional. Sabes, como um médico dos pés.
- Um médico dos pés - assentiu ela.
- Olha, todos os anos há cada vez mais mulheres solteiras a virem para Nova Iorque. Certo? Arranjam emprego e ganham bom dinheiro. Mas estão longe de casa. Entendes? São do Kansas ou do Dacota do Sul ou de Indiana. De um sítio assim. Compartilham bons apartamentos, compram muita roupa, põem dinheiro no Banco. Mas não têm ninguém com quem falar. Tu compreendes. Todos aqueles maricas e meios maricas e velhos porcos. Certo?
- Certo.
- Sabes quantas é que vão ao psiquiatra? Centenas. Milhares. Milhões. Não porque precisem de psiquiatra, mas porque vale a pena gastar cento e cinquenta dólares por semana só para ter alguém com quem falar. Falar? Isto é vida? Tu sabes o que elas querem realmente? Um bocadinho da velha actividade.
Ela deu uma dentada num tomate gelado. bom. Pôs-lhe sal. Melhor.
- Aí - disse ele - é onde eu entro.
- Exactamente.
- Sim. É como te disse... uma profissão. É assim tão horrível?
- Não. Acho que não.
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- Sou um homem, um membro de uma raça em vias de extinção.
- Queres dizer que o consegues pôr em pé?
- bom... sim.
- E as mulheres pagam-te por isso, Charles?
- Oh, não em dinheiro. Nunca aceito dinheiro de mulheres. Mas, tu sabes... coisas. Como o meu carro. Esta máquina fotográfica Polaroid. As minhas máscaras africanas e os frascos de especiarias. A aparelhagem de alta fidelidade. Coisas assim.
Ela olhou para ele especulativamente.
- E que gostarias de receber de mim, Charles?
- Oh, minha querida! - Ele inclinou-se para a frente e pôs-lhe a mão no braço nu. Aproximou o seu rosto balofo do dela e ela via a gordura de galinha nos seus lábios.
- Meu Deus, Helen, ficaste com a ideia errada... absolutamente errada. Não te estou a pedir nada. Absolutamente nada. Tu és uma das poucas mulheres... uma das muito poucas... com quem gosto de estar. Não te estou a pedir nada. Apenas achei que isto te interessaria. Pensei que te divertisses se te contasse estas coisas. Jesus, não quero nada de ti. Basta-me estar contigo. Tu sabes isso.
- Claro - disse ela. - Come um ovo cozido.
Comeram em silêncio, durante algum tempo, enquanto outro carro da Polícia passou ruidosamente pela muralha acima das suas cabeças.
- Diz-me - disse Helen, mordiscando delicadamente um Popes Nose, que ela adorava-, como explicas esta tua capacidade de satisfazer tantas mulheres?
- Oh - disse ele, baixando os olhos modestamente e limpando os dedos a um guardanapo de papel -, acho que é um jeito especial que eu tenho.
- Um jeito especial?
-bom... tu sabes. Acontece que eu sou um pão. E nunca tive queixas. Tu nunca te queixaste.
- Isso é verdade. És muito bom na tua profissão.
- Claro. bom, sabes?, não tenho outra. Tenho um pequeno fundo de reserva, mas... há que encará-lo... as mulheres são a minha forma de ganhar a vida.
Ela assentiu. Nesta altura, já iam na segunda garrafa de vinho e ela teve a estranhíssima sensação de estar a ver um canal de televisão obsceno... um canal que ninguém
conhecia a não ser ela. E lá estavam eles... Helen e Charles... a representar aquela novela fascinante e absolutamente inesquecível.
- Mas, Charles - disse ela, pegando num aipo, determinada a continuar a representar até vir o anúncio. - Charles, que te vai acontecer? Não podes esperar que esse teu jeito especial dure toda a
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vida. Que te acontecerá quando envelheceres? A virilidade? Quero dizer, quando já não o conseguires pôr de pé trinta e sete vezes por
dia?
- Já pensei nisso - exclamou ele triunfante. - Tenho estado a trabalhar nisso. Uma viúva. Ou talvez uma divorciada. com muito papel. Uma casa na Califórnia. A praia.
Sol. Bronzeador. Linho branco, smoking. Tudo. Sabes? Bonzinho!
- Oh, claro. Muitas festas. Talvez um Alfa Romeo. E talvez duas ou três vezes por semana com ela. O suficiente. Certo?
- Certo! - exclamou ele jubilante, engolindo o vinho e a brisa. Duas ou três vezes por semana. Jesus, que solução! É esse o meu destino. Parece-te assim tão mau?
Francamente, Helen, parece-te assim tão mau?
- Não. Não me parece mau.
-Mas, entretanto, até encontrar o filão, tenho de continuar a dar no duro e a aceitar coisas das mulheres. Compreendes?
- Pela tua virilidade?
- Exactamente! Como eu já disse... oferta e procura. É uma profissão.
- E tu tens o jeito especial?
- Ora se tenho! Tenho um jeito especial. Mais?
- Oh, meu Deus, não. Não consigo comer mais nada.
- Então, é altura de tirar fotografias! Mas primeiro deixa-me limpar isto.
Ele era muito cuidadoso. Ossos, restos e guardanapos de papel foram apanhados e atirados para um caixote de lixo que havia ali perto. As garrafas vazias foram deitadas fora. A toalha de praia sacudida e dobrada. Tudo muito arrumado e em ordem.
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Que está húmida e tem substância. Algures, escondido naquele envelope de avião de pele, está uma bomba louca que não pára. Carrega-se com um dedo na carne e a carne carrega também. A substância é a própria pessoa, única. Oh, Deus, está-se vivo.
Então, ela posou, a pedido de Charles, de jeans francesas e pequeno soutien engraçado. Mas, alguns segundos depois, ali estava ela... em duas dimensões, a cores
um pouco carregadas. Segurou em si própria com as mãos, naquele pequeno pedaço de cartolina, tentou compreender, mas não conseguiu. Reflexo. Semicerrando os olhos
à luz do Sol. Aquela horrível imortalidade. A cartolina fria. Numa sequência contínua, a sua memória faiscou: bebé ao colo da mãe, fotografia de grupo na quarta classe na Theodore Roosevelt Public
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School, de pé debaixo da macieira, de fato-de-banho no lago, no alpendre com Eddie Chase, com John Smith quando aquela rapariga do nightclub apareceu, outras, outras,
e os retratos tirados por Jo Rhodes. E agora... aquilo. Mas, se uma pessoa pode ser apanhada numa cartolina, se pode ser reduzida a um papel frio a duas dimensões,
sem a bomba a trabalhar, então... então...
- Agora tiro-te eu a ti - disse ela alegremente.
Ele aceitou de boa vontade. Perfil sombrio. Rosto cheio, a sorrir. Imitação de homem-músculo com os bícepes contraídos. A espreitar por cima de um ombro, atrevido. E um rolo adicional de et caeteras... Ele guardou as fotografias na carteira. Ela nunca tinha ouvido nenhum homem dar uma risadinha. Ele deu uma risadinha.
- Eia - disse ele -, vamos dar um passeio à beira-mar. Vamos andar pela praia e depois voltamos e vamos para casa. Okay?
- Õh - disse ela, contente.
Vestiram-se e arrumaram as coisas... tudo arrumado no cesto de verga, e o cesto e a máquina fotográfica tapados com a toalha de praia. Ela pôs a manta com franjas pelos ombros, pois o vento castigava. De mãos dadas, dirigiram-se para o mar, a tropeçar, a saltitar, a rir das gaivotas, a dar um pontapé numa casca de caranguejo, a acenar às pessoas acachapadas junto das fogueiras.
Desviaram-se cuidadosamente dos pedaços de nafta que tinham dado à costa, caminharam aos ziguezagues pela areia, até esta ficar escura e começar a afundar-se sob os seus pés. Deram meia volta e serpentearam praia fora.
Ela deteve-o, por instantes, olhou para o céu, para o Sol que se afundava no céu. Alguém tinha deitado um Martini muito, muito seco (com casca de limão) por cima do mundo inteiro.
- Charles - disse ela, apertando-lhe a mão.
O mar estava tingido com a luz do fim de tarde, e pequenas ondas com cristas de espuma rebentavam com a maré que estava a encher. Ozono. Pescadores com botas pesadas, com grandes canas, a fazer lançamentos para bem longe. As suas mulheres sentadas na areia junto a pequenas fogueiras, a beber café quente e a sonhar. Por vezes, os gritos agudos de miúdos a correrem de pernas nuas para a água gelada e a saírem a correr. Há uma vida. Há uma vida para todos nós.
Eles foram andando, até uma parte da praia quase deserta. Era em frente do grande restaurante na muralha (fechado) de tijolo vermelho e caiado. O sol e o vento tinham-no marcado. Tinha uma superfície quente e pontilhada de branco que dava gosto ver e vontade de beijar.
De qualquer forma, a maioria das pessoas que estava na praia tinha avançado pela areia, para a esquerda ou para a direita, para longe do edifício principal. Portanto, Helen Miley e Charles Lefferts
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ficaram ali durante alguns instantes, sozinhos, a olharem para o mar, a não quererem que nada acabasse.
- Olha - disse ela, apontando. - Que será aquilo...?
Ele olhou para onde ela estava a apontar. Era uma coisa. Escura e branca. A rolar nas ondas. Um grande pedaço de madeira lançada à costa. Um grande peixe morto. Qualquer coisa. Talvez...
- bom, vamos voltar - disse ele. - Estou a ficar com frio. Estou a ficar com os pés gelados.
- Espera um instante - disse ela.
Aquela massa estava a rolar no mar. Estava a vir para terra... sem a menor dúvida. Estava a vir para junto deles. Desaparecia, as ondas engoliam-na e depois voltava a aparecer à superfície. Qualquer coisa.
- Anda - disse ele -, estou mesmo com frio. Vamos buscar o cesto e vamos para o carro. Vamos para minha casa. É confortável e quente. Vamos... olha... fazer um belo jantar. Bife com batatas assadas e uma garrafa de vinho. Que tal?
Ela continuava a olhar fixamente para o mar e, lentamente, começou a ficar de boca aberta.
Cada onda trazia-a para mais perto da praia. Ela olhava para ela, enquanto boiava na água, submergia, dançava nas ondas, desaparecia e depois voltava a flutuar, liberta, virando a cara para o sol perdido.
- Olha - ordenou-lhe ela. - Olha...
Ele lançou-lhe um breve olhar e depois desviou os olhos.
- Que se passa contigo? - gritou ele. - Vens comigo ou não?
Ela virou-se para olhar para ele, estendeu uma mão para lhe tocar no braço, mas ele sacudiu-a. Afastou-se dela aos tropeções. Foi a correr pela areia. O seu aspecto era engraçado... não engraçado de ah áh ah... mas engraçado de estranho. Foi a correr, muito depressa, levantando a areia a cada passada. Uma vez, caiu de joelhos, a esgatanhar o ar.
Ela ficou a observá-lo, enquanto ele se tornava cada vez mais pequeno, a correr, a tropeçar, a agitar os braços no ar, uma curiosa criatura a abanar os braços como um louco. E ali, por cima dele, contra o céu que escurecia, três gaivotas com um ar rufia, em voo picado, todas a bombardear a praia, a dar-lhe vida.
Ela virou-se de novo para o mar. A coisa ainda lá estava, a rolar, a flutuar. Uma coisa macia e branca ergueu-se da água e acenou-lhe. Simpático.
Ela respirou fundo e jurou que não ia vomitar. Embrulhou-se com mais força na manta e começou a andar em direcção à muralha.
-Ithink thatIshall never see - recitou ela em voz alta-, apõem lovely as a tree. Isso pareceu ajudar, e ela continuou a recitar o poema
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até chegar às escadas de cimento que davam para a muralha. Os degraus estavam cobertos de areia, mas ela conseguiu lá chegar acima, encostou-se ao gradeamento, a respirar fundo. Entra o ar bom, sai o ar mau.
Esteve ali, oh, talvez uns cinco minutos, quando um carro da Polícia se aproximou, devagar, com as tábuas de madeira a chiar baixinho sob as rodas. Ela pôs-se à frente dele e fez sinal com os braços, agarrando a manta quando esta ia já a cair. Deu a volta ao carro, que parou.
O condutor teria uns 15 anos (que se passaria com ela para os polícias parecerem tão novos?), mas o seu parceiro tinha sido mandado vir do Departamento de Actores. Era grande, com um ar porcino, irlandês, de rosto vermelhusco, e tinha o botão do colarinho da camisa aberto. Estava a escarafunchar no ouvido com um palito.
- Sim, menina? - perguntou ele.
- Ouça - disse ela, um pouco desesperada -, está qualquer coisa lá em baixo na água. Está a boiar. Acho... acho...
Meu Deus, como ele foi bom. Não troçou dela nem nada. Limitou-se a deitar o palito fora e a sair do carro. Sorriu, pôs-lhe um braço à volta dos ombros e disse:
- Vamos dar uma vista de olhos.
Começaram a andar em direcção à praia. Ele parou e gritou para o carro:
- Bobby-gritou ele -, se precisarmos da lancha eu levanto um braço.
O rapaz de 15 anos assentiu.
E lá foram, a caminhar pesadamente pela areia até ao mar.
- Está cá sozinha? - perguntou ele.
- Não. Vim com um homem.
- E onde é que ele está?
- Voltou para trás.
O velho polícia abanou a cabeça num gesto entendido e pôs-lhe a mão no braço.
- Aponte para o sítio onde o viu. Não adianta ir até lá abaixo.
- Não faz mal - disse ela corajosamente. - Não me vou sentir mal.
- Não? Nós encontramos dois ou três por ano. Já estou na esquadra desta zona há vinte anos. Ao todo, foram uns cinquenta ou sessenta afogados. De todas as vezes, deito os bofes pela boca. Mas já aprendi a fazê-Io. Agora, já não sujo os sapatos.
Ele olhou para ela de lado, mas ela estava a olhar para o mar, com os dentes cerrados. Finalmente:
- Pode ser um peixe grande - murmurou ela. - Ou um pedaço de madeira ou qualquer coisa.
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Ele assentiu. Continuaram a andar para a beira da água até chegarem à areia molhada e os seus pés começarem a enterrar-se.
Ela apontou. E, fiel à sua palavra, ele vomitou, voltando-lhe as costas e tendo cuidado para não sujar os sapatos.
-Jesus, Maria, José-exclamou ele.-Que a sua alma descanse em paz.
- Ah - disse ela, começando a chorar. - Ah...
Ele limpou a boca com um lenço enxovalhado e depois abraçou-a. Ficaram ali durante alguns instantes, a tremer, os dois, dois estranhos.
- Olhe - disse ele finalmente -, faz-me um favor? Vai lá acima à muralha e diz a Bobby... o meu parceiro... que não precisamos da lancha. A maré está a encher. Mas diga a Bobby que precisamos de outro carro e da carroça da carne. Fixou?
- Sim.
- E dá o seu nome e morada a Bobby? E o nome e morada desse tal homem que se foi embora?
- Sim.
Ele olhou para ela com o rosto amarfanhado, com o seu rosto vermelhusco de irlandês destroçado.
- Merda - disse ele.
- Sim - assentiu ela.
Ela dirigiu-se à muralha, fez exactamente o que ele lhe tinha pedido. Perdido por cem, perdido por mil, portanto, ficou à espera alguns minutos, até chegarem mais carros da Polícia e uma ambulância e homens de botas e ganchos e uma espécie de maca. Era rotina.
Eles sabiam exactamente que fazer.
Finalmente, as poucas pessoas que se tinham juntado a ver aquela operação começaram a dispersar, indo para as suas casas quentes, e a coisa foi posta na ambulância, que se afastou com um barulho como se estivesse a rosnar. O velho polícia aproximou-se dela com passos pesados. O seu rosto estava manchado de óleo e dor. Viu-a ali de pé e não ficou surpreendido.
- Então - disse ele -, onde mora?
- Manhattan.
- Podemos levá-la a casa?
- Não, obrigada. Eu desenrasco-me.
- Sim - disse, olhando para ela atentamente. -Desenrasca-se.
Ele apertou-lhe a mão com força e afastou-se.
Ela dobrou a manta com franjas e dirigiu-se pesadamente para a paragem de autocarro, sem pensar em nada. Passaram muitos carros pela curva, a chiar, em direcção à ponte, rumando a alta velocidade para Brooklyn e Manhattan.
Estavam mais duas pessoas à espera do autocarro: um velhote
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com equipamento de pesca e um saco de lona, e uma velhota com uma Bíblia, que resmungava para si própria.
E depois apareceu Charles Leffert no seu MG-A vermelho, carro de bombeiro, que parou com um chiar de travões. Inclinou-se e abriu a porta. Ela entrou.
- Eu vi-os - disse ele. - Foi isso que aconteceu. Ela assentiu. Arrancaram em direcção a casa.
Ele conduziu devagar, sem olhar para ela uma única vez. Ao chegar ao túnel, não tinha troco certo e pediu-lhe emprestados dez cêntimos. Não pôde parar em frente do toldo, pois um grande Cadillac preto estava lá parado em dupla fila, com um motorista fardado encostado ao pára-choques.
Ela virou-se para olhar para ele, para o seu perfil de Steinberg, praticamente sem queixo, para as suas mãos com luvas a acariciarem o volante de madeira.
- Em que estás a pensar? - perguntou ele, olhando fixamente em frente.
bom... era curioso aquilo em que ela estava a pensar. Há alguns anos atrás, tinha passado por
uma loja de tabaco e cachimbos no quarteirão onde trabalhava. A loja tinha muitos cachimbos na montra, uns baratos, outros caros. Havia também na montra alguns cachimbos feitos à mão, com o rosto de homens famosos. Havia um cachimbo
Staine, um cachimbo Winston Churchill, um cachimbo Franklin Roosevelt, um cachimbo Beethoven. É claro que a parte de cima do crânio estava cortada e o tabaco era metido dentro da cabeça, e depois fumava-se. Ela imaginou que todas as lojas de tabaco do mundo tinham cachimbos daqueles, feitos à mão, e isso era verdade.
Mas aquela loja de cachimbos também tinha um cachimbo John Kennedy. A parte de cima da cabeça estava cortada. Metia-se o tabaco dentro do crânio em madeira de urze-branca.
Contou isto a Charles Leffert porque, afinal de contas, ele tinha-lhe perguntado em que é que ela estava a pensar.
Ele ficou intrigado, durante alguns instantes, e depois desviou os olhos, com o olhar projectado a mil metros de distância.
- bom - disse ele. - Não sei... eu fumo cigarros.
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1. O período devia vir-lhe na segunda-feira... uma data assinalada com um círculo no seu calendário de secretária. Ela tomava a pílula... mas quem se consegue lembrar?
Na quarta-
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-feira ela já estava... não propriamente preocupada: era certo que estava constipada. Mas aquilo aborrecia-a. Na quinta-feira de manhã acordou rabujenta e nauseada
e percebeu que estava para vir. Rosnou a Harry Tennant e à pobre Susie Garrar, que ainda mal se recompusera do aborto. Portanto, Helen foi para casa sozinha na quinta-feira
à noite, a resmungar. O período começou na quinta-feira ao fim da tarde. Ela pôs um Tampax, bebeu dois Rob Roys, tomou quatro aspirinas e um Librium e foi para a
cama cedo. O seu cérebro estava deliciosamente em branco. A cama soube-lhe bem: dois lençóis e dois cobertores num colchão duro de crina. Rolou para o lado direito
e pronto...
2. Eram nove da manhã... sexta-feira de manhã... quando abriu os olhos. Percebeu imediatamente que tinha estado a nevar. A cidade tinha aquele silêncio abafado.
Olhou, para ver Rocco, mas ele não estava lá. Depois, olhou para a janela. Uma luz cinzenta, brilhante como aço. Ás canalizações estavam a fazer barulho, as paredes rangiam à medida que o calor aumentava. Saltou da cama e foi a correr fechar a janela e voltou a meter-se dentro da cama. Rolou e aconchegou os cobertores à sua volta, até estar num casulo de lã. Tapou a cabeça, até o envelope onde estava metida estar quente com a sua respiração, e depois pôs a cabeça de fora, já sem fôlego. Para o diabo com o trabalho. Ia ficar em casa. Tinha direito.
3. Ficou ali deitada, a olhar para as fissuras no tecto, a pensar quando é que o maldito senhorio ia mandar pintar a casa. O quarto começou a aquecer. Puxou os cobertores para baixo, até à cintura. Estava a dormir nua. Estendeu a mão e deu um pequeno puxão ao Tampax. Estava lá. Apalpou a parte de dentro
das coxas. Na esquerda, tinha qualquer coisa que lhe fazia comichão... como uma pequena picada. Coçou-a.
4. O calor aumentou. Atirou os cobertores para trás e pôs os pés no chão. Sentou-se na beira da cama, a bocejar, a coçar a cabeça com os nós dos dedos. Parecia que estava com caspa, portanto, decidiu que ia lavar a cabeça. Acendeu o primeiro cigarro do dia e tossiu duas vezes. Esticou as pernas o mais que pôde, agarrada à beira
da cama, a olhar para as pernas, a virá-las. Nada mau. Mas precisavam de gilette. Talvez fizesse isso mesmo. Tomava um banho de imersão quente com óleo, rapava as
pernas e lavava a cabeça. Excepto que se cortava sempre quando rapava as pernas. Usava uma taça de barbear com sabão, pincel e gilette de segurança. Para não se
cortar, demorava muito tempo.
5. Sentou-se mais atrás na cama e levantou um pé à altura do
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joelho. Inclinou-se para a frente e cheirou-o. Cheirava bem. Olhou para ele, viu que o verniz estava a lascar. Também pintaria as unhas dos pés. Passaria o dia sossegada, a fazer coisas. Cruzou o outro pé e raspou suavemente um pequeno calo que tinha no dedo do meio. Também o cortaria com a gilette. O que ela gostava nos seus pés era de ter os segundos dedos mais compridos do que os dedos grandes. Tinha lido em qualquer lado que era sinal de elegância. De qualquer forma, tinha os pés bons. Ninguém o poderia negar.
6. Finalmente, pôs-se de pé. Pôs as mãos nas ancas nuas, inclinou-se para trás, arqueando a coluna, projectando a pélvis. A coluna deu um estalido modesto. Ela foi para a frente do grande espelho e olhou para si própria.
- Olá, cara bonita - disse.
7. Os seios pareceram-lhe inquietantemente flácidos, portanto, lambeu os polegares e os indicadores e rodou os mamilos como alguém que está a ligar para o WQXR. Os resultados foram imediatos e agradáveis.
8. Enfiou os pés nuns chinelos de ráfia. Foi nua até à sala, ainda a bocejar, a coçar a cintura, as ancas, a cicatriz da apendicite, o rabo. Tirou a coberta da gaiola do periquito. Ele saltitou para junto das grades e guinchou:
- Olá, cara bonita! - Ela riu-se, deliciada.
- Meu querido - disse ela, enfiando o nariz por entre as grades -, meu lindo! - Ele começou a bicar-lhe o nariz, e ela afastou a cara apressadamente.
9. Foi à janela... a neve a flutuar em grandes pedaços, como um Kleenex esfarrapado. Estava sem dúvida um dia cinzento-aço. Pensou no que podia acontecer, se não
fosse trabalhar. Não aconteceria nada. Absolutamente nada. Deixou a persiana cair ruidosamente. Voltou a bocejar.
10. Foi a arrastar os pés até à cozinha e abriu a porta do frigorifico. Não estava cheio, mas não passaria, de
forma nenhuma, fome. Decidiu fazer café, em vez de
usar o instantâneo. Mediu-o e deitou-o para dentro da cafeteira, acrescentou água,
ligou a ficha e ligou a cafeteira. Enquanto o estava a fazer, descobriu uma pequena
lata de sumo de tomate. E, oh, caramba, uma garrafa de vodca ainda com uma boa dose. Portanto, antes de pensar se seria sensato, fez um rápido Bloody Mary com tudo, incluindo rábano picante e algumas gotas de tabasco. Tudo muito bem misturado, muito gelado. Bebeu um golo cauteloso. Parecia plasma, e as suas pálpebras abriram-se
instantaneamente e as extremidades dos nervos começaram a tilintar. Quando acabou a bebida, o cheiro do café estava a fazê-la
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trepar pelas paredes. Levou a cafeteira, mais chávena e pires, para a sala e serviu a sua primeira chávena de café do dia, preto e fumegante. Acendeu outro cigarro.
11. Abriu cautelosamente a porta da rua, tirou o jornal e voltou a fechar a porta e pôr a corrente. Encontrou, finalmente, os óculos na prateleira da casa de banho, voltou para a sala e instalou-se com o café e o jornal.
12. "Um dia significativo para si", dizia o seu horóscopo. "Pode levar a uma vida absolutamente nova." Muito bem, assentiu ela em aprovação. Leu algumas das histórias, algumas das colunas, enquanto acabava de beber a primeira chávena de café. Olhou em volta, atentamente, e meteu o dedo no nariz... ligeira e rapidamente.
13. Encheu outra chávena de café e levou-a, juntamente com o jornal, para a casa de banho. Sentou-se na sanita, dobrada com os antebraços sobre os joelhos. Segurou na chávena e foi bebendo enquanto cumpria o seu dever. O jornal estava no chão de mosaico e ela folheou as páginas, lentamente, a ler alguns dos anúncios. A Cartier tinha um relógio por 75$00.
14. O papel higiénico era arroxeado, com malmequeres amarelos. Pareceu-lhe uma pena... Tinha acabado de beber o café. Pôs-se de pé à frente do armário dos medicamentos, abriu a boca e deitou a língua de fora o mais que pôde. Pegou no toalhete turco, molhou uma ponta e esfregou a língua para tirar aquela porcaria, engasgando-se algumas vezes ao enfiar demasiado a mão na boca. Depois, lavou os dentes vigorosamente, bochechou várias vezes, cuspindo no lavatório.
15. Afastou as pernas, curvou-se e examinou-se. Parecia estar tudo bem. Sentia-se bastante bem, agora que o período já lhe
tinha vindo. Uma chatice... mas que raio se podia fazer? Debateu se havia de tomar o banho de imersão quente agora ou se tomaria antes um duche... Finalmente, decidiu tomar um banho de puta... pondo sabão no toalhete turco, lavando cara, mãos, axilas, uma passagem rápida entre as pernas. Depois, passou com o toalhete apenas molhado. Depois limpou-se. Vestiu o robe turco que estava pendurado atrás da porta da casa de banho... o robe que tinhaKillerMiley bordado nas costas. Foi para a sala, voltou a pegar no jornal e começou a ler. Tinha sobrado cerca de meia chávena de café. Estava frio.
16. Acabou de ler o jornal, tirou os óculos e ligou o rádio. Ouviu "Pompa e Circunstância" durante alguns minutos, depois veio um homem que disse: "Vai continuar a nevar durante o dia e, possivelmente, até amanhã, alternando ocasionalmente com chuva e saraiva." Desligou o rádio, começou a bocejar e, subitamente,
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um enorme arroto saiu-lhe do estômago (o Bloody Màry, sem dúvida). Levou rapidamente a mão à boca e olhou em volta, apologeticamente.
17. Deitou-se no sofá, com os pés debaixo de si, meteu a mão dentro do robe e acariciou um seio.
18. Pensou em Harry Tennant. Meteu a mão por entre as pernas e começou a dar pancadinhas, como se estivesse a sacudir a cinza de um cigarro. Não o fez durante muito tempo, apenas algumas pancadinhas.
19. Acendeu outro cigarro, voltou para a cozinha, meteu a cafeteira i e a chávena no lava-louças e encheu-os de água quente. Voltou a abrir a porta do frigorífico e começou a pensar no que iria comer. No sábado anterior, Harry Tennant tinha lá ido jantar. Ela tinha servido carne à inglesa... mas que, na realidade, era vitela
(que é melhor), tão tenra que se desfazia. Tinha-a cozido com um pouco de óleo, especiarias, flocos de salsa. E cada um tinha comido uma batata assada com natas
e cebolinhas. E fez uma grande salada com endívias, tomate, pepino, cebola, com azeite e. vinagre. Foi a primeira salada que fez na vida e tentou que ficasse com
bom aspecto. Pô-la na velha saladeira de madeira que era da mãe. Pôs as endívias partidas em quatro no fundo, rodeadas de bocados de tomate, rodeados de fatias de
pepino, rodeadas de pequenas cebolas aos quartos. Tinha bom aspecto. Harry tinha dito que tudo aquilo constituía a melhor refeição que alguma vez tinha sido criada
no mundo de Deus. Ela também achou. Oh, outra coisa... tinha comprado uma lata de molho de cogumelos e acrescentado uma boa dose de vinho tinto, enquanto estava
a aquecer. Acompanharam a refeição com o resto do vinho. bom, o que ela tinha no frigorífico era mais ou menos metade da salada. Não estava estragada, mas as endívias
estavam a ficar castanhas. Além disso, tinha um bom pedaço de carne e um pouco de molho. Isso estava no congelador. E tinha uma batata para assar crua. Não era uma batata de Idaho, era uma daquelas batatas para assar da Califórnia com casca fina e sabor delicado. Considerou as várias opções... Tirou a carne do congelador e desembrulhou-a para descongelar. Pô-la no pequeno radiador da cozinha. Havia qualquer coisa de muito formal numa batata assada. Portanto, decidiu partir a batata e fritá-la em manteiga. Nunca ouvira falar em fritar pedaços de batata para assar, mas não via por que não se podia fazê-lo. Que podia acontecer? E comeria o resto da salada.
20. com a carne desembrulhada e a congelar, foi para a casa de banho e pôs o banho a correr, deitando óleo e espuma de banho
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na água a ferver. Cheirava bem. Voltou para a cozinha, escolheu o copo maior... na realidade, um copo de sumo... encheu-o de cubos de gelo e fez um grande highball de uísque. Pôs um disco de Frank Sinatra na aparelhagem, com o som suficientemente alto para ouvir na casa de banho. Depois, foi ver a água. Demasiado quente. Pôs a água fria a correr, pousou o copo do highball no chão de mosaico junto à banheira, tirou o robe e os chinelos. Entrou devagar na banheira, exclamando "An, ohh, An, ohh!", enquanto se metia lentamente na água, voltava a sair e, finalmente, se sentava na água quente cheia de espuma, apoiando-se nas mãos, assente nos lados da banheira, mergulhando o seu rabo rosado na água a ferver até a conseguir aguentar, sentando-se depois, lentamente, com a água a subir e a baixar, até ficar com a água pelo queixo, fechando as torneiras com os dedos dos pés, mas continuando a exclamar "An, ohhh, An, ohh" e começando a suar da cabeça, da testa e do lábio superior. Deitou a mão para fora da banheira, pegou no uísque gelado e deu um grande golo. Valia a pena viver.
21. Pôs sabão num toalhete turco, esfregou bem a cara, o pescoço, os ombros, as axilas, entre as pernas, ergueu os pés e lavou bem cada um dos dedos e, finalmente, escarafunchou o umbigo, inspeccionando-o com curiosidade. Inesperadamente, deu um pum: três bolhas de ar subiram por entre as pernas e rebentaram à superfície cheia de espuma, fazendo bloop, blip, bleep numa escala ascendente. Ela olhou em volta, envergonhada, e deu uma risadinha.
22. Recostou-se dentro de água, com a nuca assente na beira da banheira. Sentia-se tão bem que não lhe apetecia mexer-se. Todas as suas articulações se transformaram em sabão
derretido e as pontas dos dedos ficaram engelhadas. Mexeu lentamente nos caracóis louros entre as pernas, puxando-os suavemente, coçando-se ao de leve. Tocou suavemente em si própria, dando ligeiras exclamações abafadas. Sentia-se quente e macia e tumefacta. Tinha os olhos fechados. Fez isto durante algum tempo. Não muito... mas algum.
23. Sentou-se na banheira e puxou a alavanca para deixar sair a água. Ficou ali sentada, a observar a água a descer abaixo dos seus seios brilhantes, abaixo da barriga lisa, abaixo dos joelhos flectidos, coxas, ancas. Bebeu outro golo do highball. Depois, pôs-se de pé na banheira, sacudindo-se como um cão molhado. "Rocco, Rocco, onde estarás?"
24. Sem se secar na casa de banho cheia de vapor, pegou nagilette, no pincel, na taça de barbear. Pôs uma toalha em cima da tampa da sanita e sentou-se. Primeiro, cortou o calo com
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muito cuidado. Não sangrou. Depois, pôs sabão em espuma e começou a rapar as pernas, com a língua a sair pelo canto da boca. Rapou-se lenta e cuidadosamente e não se cortou uma única vez. Percebeu então que ia ser um bom dia. Depois, pôs-se à frente do espelho, pôs espuma nas axilas (fazia cócegas) e também as rapou. Sem cortes. Estava tudo a correr tão maravilhosamente bem que se baixou e olhou para entre as pernas, pensando se também se devia rapar ali. Por instantes, sentiu-se tentada
a isso, mas depois achou que devia fazer uma comichão dos diabos a crescer. Além disso, o seu triângulo í macio era louro, e era agradável mostrar aos homens que
o colarinho e os punhos condiziam.
25. Voltou a meter-se na banheira e ligou o chuveiro. Quente, mas não excessivamente. Lavou a espuma seca. Tinha falhado uma pequena zona na canela esquerda, mas
rapou-a no duche. Depois, ficou perfeita. Meteu a cabeça debaixo de água, molhou bem o cabelo e pôs champô, esfregando vigorosamente até a espuma lhe escorrer para os ombros e ela estar a arfar. Passou o cabelo por água, voltou a pôr champô, passou-o por água e depois esfregou-o entre osdedos. Este guinchou satisfatoriamente. Ela desligou o chuveiro e pegou numa toalha seca.
26. Enfiou os pés nos chinelos de ráíia, voltou para a sala e acendeu outro cigarro. Arranjou outra bebida e pô-la em cima da mesinha. Ligou a televisão portátil. Foi ao quarto buscar um pacote de bolas de algodão, o estojo de unhas e os frascos de que precisava. Sentiu-se molhada entre as pernas, olhou para baixo e apercebeu-se de que o pequeno fio que estava pendurado estava ensopado do banho, a pingar.
Torceu-o.
27. Era uma novela. Ouviu um homem dizer: "Mareia, não podemos continuar assim." Mas não se deu ao trabalho de olhar, apenas ouviu. O que fez foi pôr pequenas bolas de algodão entre os dedos dos pés, separando-os para poder pintar as unhas sem as esborratar. Depois, pintou todas as unhas dos pés de vermelho, com o pequeno pincel que vem com cada frasco, de novo com a língua de fora ao canto da boca. Fez um bom trabalho, recostou-se, com as pernas no ar, a abanar os pés para ajudar a secar o verniz. Ficou um trabalho tão bem feito que, por qualquer razão, ela não ficou satisfeita e ergueu o pé esquerdo no ar, cruzando-o sobre a coxa direita, e raspou uma pequena quadrícula de jogo do galo na unha do dedo grande do pé com a ponta da lima. Não soube por que o fez, mas ficou engraçado e giro.
28. "Mareia", dizia o homem, "temos de enfrentar a realidade".
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Helen Miley arrumou toda a panafernália e os instrumentos do ofício. Dirigiu-se à gaiola e disse:
- Olá, cara bonita. - Mas o pássaro fitou-a, impassível. Ainda tinha metade da bebida, mas sentiu-se subitamente sonolenta. Pôs a bebida no frigorífico, no cimo, perto do congelador, onde o gelo não derreteria muito. Desligou a televisão, apagou as luzes e voltou para a cama. Adormeceu quase de imediato. A neve tinha-se transformado numa chuva quase saraiva.
29. Dormiu durante quase uma hora. Acordou lentamente, flutuando para fora de um sono doce, quase sem sonhos, nua e aconchegada, como uma múmia desembrulhada. Apercebeu-se de que estava a tocar-se a si própria. Mas isso não tinha mal nenhum. Não estava a fazer nada, entenda-se... apenas a tocar-se. Bocejou... um grande bocejo de partir os queixos... e limpou as lágrimas dos olhos com a ponta do lençol. Tossiu, grunhiu algumas vezes e sentiu o sabor da língua. Depois, apalpou o cabelo. Praticamente seco.
30. Sentou-se na beira da cama e voltou a bocejar. Levantou-se um pouco trémula, depois inclinou-se e tocou com a ponta dos dedos no chão... quase. Fez isto três vezes, depois fez três flexões de joelhos com os braços estendidos à sua frente. Depois, uniu as palmas das mãos à frente do peito e comprimiu-as com toda a sua força enquanto contava até seis, até os braços ficarem a tremer do esforço. Tinha lido algures que aquilo aumentava o tamanho dos seios. Tentava fazer isto todos os dias, mas, normalmente, esquecia-se.
31. Foi para a frente do espelho por detrás da porta do quarto e olhou para si própria. Puxou as pálpebras inferiores para
baixo e olhou para os globos oculares. Estavam bem e fitaram-na de volta. Foi buscar o seu grande pente de tartaruga e penteou os caracóis. Foi à janela e olhou para a rua. Ainda estava a chover e viu algumas pessoas a andarem na rua, curvadas contra o vento. O tempo não estava nada bom. Dirigiu-se para a cómoda. Pousando os cotovelos no tampo, aplicou cuidadosamente bâton roxo... uma pequena amostra que o homem do drugstore lhe tinha dado. Olhou-se ao espelho de aumentar (num suporte de bronze), mas não gostou do seu aspecto, portanto, tirou-o todo com três lenços de papel. Deitou os lenços de papel e o bâton no cesto dos papéis.
32. Decidiu que estava com fome. Afinal de contas, não tinha comido nada sólido durante todo o dia. Vestiu o robe e foi à cozinha, abriu a porta do frigorífico... e lá estava a bebida que tinha guardado antes de se deitar. O gelo quase não tinha
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derretido e o copo estava completamente gelado. Caramba, que bom que era! Arranjou outra bebida logo de seguida, num outro copo, e pô-lo no frigorífico para o copo ficar bem gelado. Gostava assim.
33. Apalpou o pedaço de carne que estava a descongelar em cima do radiador da cozinha. Estava óptimo, já a começar a ficar macio por fora. Inclinou-se para o cheirar e também cheirava bem. Decidiu que ia fazer um nosh... não demasiado pesado para não lhe tirar o apetite para a refeição. Comeu uma sanduíche bologna em pão de centeio, uma romã, um aipo e um pouco de arenque em conserva. E três bolachas de chocolate.
34. Pôs os pratos no lava-louças e deixou a correr água quente. A mulher-a-dias ia todas as segundas-feiras e sábados-depois ela lavava-os. Então, Helen pegou na bebida e voltou para a sala. O pássaro viu-a e fez um som... um único piu muito digno, de protesto. Ela viu que o recipiente do alpista estava quase vazio e que também já não tinha água. Encheu os dois recipientes... duas idas à cozinha. Pôs os óculos de aros de tartaruga e sentou-se à escrivaninha. Antes disso, ligou a televisão e sintonizou uma "novela. Um homem estava a dizer: "Evelyn, quando me disseste que Mabel ia falar ao Dr. Hanson sobre aquela noite, não fazia ideia de que sabias que ela mencionaria o nome de Frank. Eu tinha prometido a Ralph que o incidente com Sarah seria confidencial e que só a
Sra. Bradley saberia o que tinha acontecido a Barbara."
35. Enquanto escutava as vozes, sem lhes prestar atenção, Helen Miley pegou no livro de cheques e num fino maço de contas preso com um elástico azul. Havia a conta
do telefone, a de Con Edison, o aviso do seguro de vida e também tinha de pagar a renda. Passou cuidadosamente os cheques, enquanto bebia o seu highball. Meteu-os todos nos respectivos envelopes. Segundo os seus registos, ainda tinha mais de dois mil dólares na sua conta à ordem. Decidiu que era demasiado... o dinheiro não estava a render juros... portanto, na segunda-feira, transferiria mil dólares para a sua conta a prazo, que rendia 5, % e faria essa conta chegar quase aos três mil dólares... a maior quantia de dinheiro que ela alguma vez tinha tido na vida. Queria chegar aos cinco mil dólares. Depois, ia meter um mês de licença sem vencimento e faria um cruzeiro de luxo a Pernambuco. Já tinha as brochuras da agência de viagens. Parecia ser uma viagem agradável.
36. Voltou a pôr o livro de cheques e a caderneta da conta-poupança em cima da secretária, para não se esquecer deles na segunda-feira de manhã. Depois, procurou selos para os
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cheques que queria mandar pelo correio. Encontrou três numa tira, mas não encontrou o quarto. Isso arreliou-a. Revistou a gaveta de cima, que estava toda desarrumada...
parando para ler (pela sexta vez) uma comovente carta que Uck Faye lhe tinha escrito depois de terem ido para a cama pela primeira vez. Tinha-a assinado: "Sempre...
Hamlet." Finalmente, encontrou o quarto selo. Era um selo antigo de avião. A cola estava suja, mas o selo servia para pôr na carta. Portanto, colou-o com fita-cola que tinha num suporte que tinha bifado do escritório. Lá estavam os quatro cheques, endereçados e selados, muito direitos, nos seus envelopes. Sentiu-se virtuosa.
37. Voltou para o quarto. Encostando-se de novo à cómoda, pôs um par de pestanas falsas. Já as tinha experimentado antes, mas tinha tido dificuldade em pô-las bem e tinham-na incomodado. Mas pô-las e olhou-se ao espelho de aumentar, batendo as pálpebras. Decidiu que não adiantavam rigorosamente nada. Tirou-as e colou-as à testa, por cima do olhos. Ficava engraçada. Voltou para a sala, para mostrar o seu estranho rosto ao pássaro. Ele encolheu-se de medo. Ela riu-se, voltou para o quarto e tirou as pestanas.
38. Tirou o robe, deixando-o cair no chão. Aplicou perfume, pondo-o na parte de dentro dos braços, um pouco nas axilas, no pescoço e nos ombros, e, finalmente, um leve toque na parte de dentro das coxas. Tinha um aroma leve e fresco... Moon Walk. Ela achava que cheirava muito bem. Vestiu o robe e apertou o cinto.
39. Voltou para a sala. Estava a dar uma novela diferente na televisão. Uma mulher estava a dizer: "Amor, Clarence? Que é que tu sabes acerca do amor?"
40. Helen Miley foi à casa de banho fazer chichi. Depois foi à cozinha, pensando se deveria preparar outra bebida. Se bem se lembrava, já tinha bebido três... sem contar com o Bloody Mary do pequeno-almoço, que, na realidade, era como beber sumo de tomate de manhã. Decidiu preparar mais uma, uma grande, mas que beberia muito devagar... aos golinhos... para a fazer durar até serem horas de comer. Para falar verdade, sentia-se tocada. Não embriagada... mas descontraidamente tocada.
41. Voltou ao quarto e levou a roupa para coser e a caixa de costura para a sala, para poder ouvir televisão enquanto trabalhava. Ficou satisfeita, por verificar que não tinha nenhuma dificuldade em enfiar a agulha: não picou o dedo uma única vez, muito embora não usasse dedal. Não tinha muito que coser umas minúsculas cuecas que tinham um buraquinho no rabo;
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um par de collants opacos com uma malha a começar numa coxa, que ela podia parar; o botão de cima do seu casaco de malha vermelho. Cosia bem, era perfeita e precisa.
Quando punha uma bainha para cima, os pontos eram bastante pequenos e a bainha ficava, toda ela, regular. Por vezes, era ambiciosa e fazia um vestido com molde.
Uma vez, tinha feito uma blusa de seda para Peggy Palmer.
42. Acabou de coser e olhou em volta. Ora então... Havia outras coisas que ela podia fazer, e fê-las. Juntou a roupa suja, tirou os lençóis da cama, fê-la de lavado
e pôs uma fronha com a roupa suja lá dentro junto da porta. Levá-la-ia amanhã. Para limpar a seco, havia o seu fato de tweed-tinha entornado um Rob Roy na saia.
Fez todas estas tarefas, andando decididamente de um lado para o outro, não indo contra uma ombreira uma única vez, mas bebendo um golo de uísque de vez em quando.
43. Pôs os óculos e voltou a sentar-se à secretária e fez uma lista de coisas que queria fazer no escritório na segunda-feira: tratar de mandar pintar a zona da
recepção; verificar os comunicados de Imprensa sobre a conta Turgo; encomendar mais marcadores; falar com os patrões sobre a ideia que tinha tido sobre distribuir
uma newsletter mensal a todos os media, que incluiria itens sobre todos os seus clientes.
44. Acabou todas estas tarefas e olhou de relance para a televisão.. e lá estava Robert Armstrong a dizer a Fay Wray que, se ela fosse com ele naquela misteriosa
expedição, ele torná-la-ia uma estrela de cinema famosa.
- Caramba! - exclamou Helen Miley, sentando-se no sofá, com os pés debaixo do rabo, a olhar ansiosamente (anúncios e tudo) até à última fala: "Não, não foram os
aviões que mataram o monstro. Foi a bela que matou o monstro." Helen suspirou de satisfação e desligou a televisão.
45. Sentia-se óptima... e com muita fome. O apartamento já estava a ficar escuro e ela acendeu mais luzes. Decidiu começar a preparar a sua grande refeição do dia
e também vestir-se. Já chegava daquele schlepping pela casa, nua ou de robe e chinelos de ráfia. Decidiu realmente vestir-se... qualquer coisa chique. Afinal de
contas, alguém podia bater à porta. Há cerca de um ano, ela e Peggy Palmer tinham ido a uma festa "só para solteiros" numa discoteca no East Side. Foi tão horrível,
tão deprimente que nunca mais lá voltaram. Mas, para essa ocasião, ela tinha comprado um vestido em saldo no Saks... um lamé prateado com franjas na bainha. Ficava-lhe
muito bem... ela sabia... e era isso que vestiria, com umas sandálias prateadas.
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E, além disso, um chapéu de abas largas cinzento-prateado, como um chapéu tipo "diplomata" de homem. Foi ao quarto, encostou-se à cómoda, maquilhou-se cuidadosamente e penteou os caracóis.
46. Depois, foi para a cozinha. E foi isto que ela fez. Derreteu um pouco de manteiga numa grande frigideira de esmalte. Depois, cortou a batata para assar em palitos e pô-los na frigideira. Tinha o gás no médio. Enquanto olhava, os palitos começaram a fazer barulho.
47. Voltou ao quarto e vestiu uns collants. Eram de fantasia, cinzento-prateados. Puxou-os para cima e enfiou os pés nas sandálias leves. Depois, voltou para a cozinha.
48. As batatas fritas não lhe pareceram lá muito boas. Portanto, tirou a salada gelada do frigorífico. Tirou resto dos quartos de cebola. Desfê-los em lascas com os dedos e deitou-os na frigideira com as batatas. Percebeu imediatamente que tinha feito bem: aquilo ia ficar bom. A cebola tinha estado mergulhada no azeite da salada, o que não fez mal absolutamente nenhum. Pegou na sua velha colher de pau queimada e começou a misturar as batatas e a cebola. Óptimo. Começou a cheirar bem e a fritar.
49. Voltou para o quarto e enfiou o vestido de lamé, puxando o fecho éclair de lado. Olhou-se ao espelho grande, ajeitou o cabelo algumas vezes e voltou para a cozinha. Olhou para o relógio que lá havia e achou que daria mais vinte minutos às batatas e cebolas de cada lado.
50. Foi ao armário do hall buscar o chapéu de abas largas. Utilizou o espelho do hall para o ajeitar, puxando-o por cima de um olho. Muito bonito. Fascinante. Marlene Dietrich no Cashbah.
51. Voltou para a cozinha e mexeu as batatas e as cebolas que estavam a alourar magnificamente. Se se pudesse meter aquele aroma num frasco, uma pessoa ficaria milionária.
52. Voltou à sala, ao canto onde estava a mesa de tampo plástico e as quatro cadeiras metálicas. Pôs uma toalha de mesa (vermelha) por cima do tampo e pôs um lugar para si própria. Pôs um prato raso, um prato para a salada, uma faca, um garfo, uma colher. Saleiro e moinho de pimenta. Guardanapo de papel. E depois, num impulso, dois pequenos suportes para velas em forma de estrela que tinha comprado no Woolworths. Pôs velas cor-de-rosa que descobriu na gaveta de cima do aparador. As velas já tinham sido usadas uma vez, mas ainda tinham bastante para arder. A mesa estava bonita.
53. De vestido de lamé prateado, sandálias, chapéu de abas caído cinzento-prateado, voltou para a cozinha. Espetou um garfo
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nas batatas aos palitos e calculou que precisariam de mais uns cinco minutos. Os palitos estavam a ficar com uma crosta dura e a cebola estava a alourar. Cheirava tudo muito bem. Foi buscar a pequena tábua de queijos e cortou a carne em três fatias irregulares. Pô-las em cima das batatas e da cebola que estavam a fritar para que aquecessem. Havia um pouco de sangue e molho na tigela onde a carne tinha sido guardada e também deitou isso na frigideira. Enxaguou a tigela com algumas gotas de água quente e deitou-a na frigideira. Estava tudo com muito bom aspecto.
54. Foi para a sala e apagou o candeeiro da escrivaninha, para a mesa ficar na penumbra. Acendeu as velas. Okay. Pensou no que iria beber. Descobriu no frigorífico uma lata de cerveja, a última de uma embalagem de seis que tinha comprado para Uck Faye. Abriu-a e deitou-a num copo alto.
55. Pôs as endívias e o que restava do tomate e do pepino numa tigela de esmalte e pô-la na mesa. Parecia estar tudo pronto. Pôs um disco na aparelhagem (A Selection of Great Overtures). Quando os acordes empolgantes da "Abertura da Cavalaria Ligeira" se ouviram, encheu o prato de carne, batatas, cebola, molho (a salada à parte), puxou a cadeira para junto da mesa e começou a comer à luz das velas.
56. Helen Miley acreditava que toda a música... e sobretudo aquilo que ela considerava boa música... tinha sido escrita para contar uma história. E gostava de ouvir boa música, enquanto imaginava a história que devia contar.
57. Pôs-se de pé num salto, enrolou o guardanapo de papel numa bola e atirou-o certeiramente para o cesto de papéis ao lado da secretária. Tirou um guardanapo cor-de-rosa de linho da gaveta de cima do aparador. Assim era melhor.
58. Tinha uma ideia muito concreta da história que a "Abertura da Cavalaria Ligeira" devia contar. Na realidade, era um sonho repetitivo que ela tinha, talvez uma vez por mês. Havia um grande prado banhado pelo sol. Erva alta. O prado estava rodeado por um bosque verde. No seu sonho, uma companhia de cavalaria saía das árvores de um dos lados, atravessava o prado a trote, dirigindo-se para o bosque do outro lado. Os cavalos estavam todos bem tratados e luzidios. E os soldados eram ainda mais bonitos. Jovens com uma espécie de farda alemã. Todos os homens eram germânicos, louros, cheios de vida. Muito novos. Depois, os soldados... talvez cinquenta ou cem homens louros, germânicos, de farda cinzenta com capacetes de bronze com plumas... bom, ao saírem do bosque, a um lado, montados nos seus belos cavalos castanhos, e ao atravessarem
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o prado, mudavam. Começavam a mudar. Os seus belos e fortes cavalos tropeçavam, baixavam a cabeça. Os arreios tornavam-se velhos e manchados. Os capacetes ficavam sem brilho. E os jovens... os jovens... tornavam-se inexplicavelmente velhos. De costas curvas. Rostos acabrunhados. Tinham fome. Estavam derrotados. Nesse curto percurso através do prado cheio de sol, de um bosque para o outro, os soldados dissolviam-se em qualquer coisa infinitamente triste. Homens e cavalos completamente desalentados. Todos de cabeça baixa. Fardas rasgadas e sujas. Absolutamente sem esperança. Saíam do bosque corajosos e brilhantes. Atravessavam o prado cheio de sol. Entravam no bosque oposto velhos e derrotados. Era isso que Helen Miley sonhava sempre acerca da "Abertura da Cavalaria Ligeira". Pelo menos, uma vez por mês.
59. Oh, que boa refeição! As batatas para assar aos palitos fritas com cebola que tinha ficado na salada temperada não tinham nada desagradável. A carne estava tenra e boa. Até as endívias já castanhas tinham conservado o seu sabor amargo. Ali sentada, toda prateada (chapéu, vestido, sandálias), a jantar à luz de velas, Helen comeu lentamente, com prazer.
60. Quando acabou... todos os pratos ficaram vazios... estava a ouvir Guilherme Tell, que também era qualquer coisa. Limpou delicadamente os lábios com o guardanapo cor-de-rosa de linho e olhou em volta vagamente. Depois, foi à cozinha e inspeccionou as possibilidades. Havia um frasco de café expresso instantâneo, uma maçã Golden Delicious no recipiente para legumes do frigorífico e, também, lembrou-se, ainda tinha uma boa dose do Grand Marnier que Jo Rhodes lhe levara quando lá fora jantar. Tudo aquilo se complementava.
91. Assim, fez café, serviu o Grand Marnier, partiu às fatias a maçã gelada, acendeu um cigarro e foi para o sofá da sala. Arrotou delicadamente e viveu.
62. Por fim, tudo acabou. Apagou as velas (lambendo primeiro os dedos), levou os pratos para a cozinha e meteu-os no lava-louças. Voltou a pôr a toalha dobrada dentro da gaveta do aparador, pôs o guardanapo usado na trouxa de roupa suja que estava encostada à parede junto da porta da rua.
63. E agora? Foi mudar o Tampax.
64. Depois, ainda de chapéu, vestido e sandálias prateadas, preparou outro highball de uísque, pois o Grand Marnier já tinha desaparecido. Ficou ali sentada no sofá, a fumar um cigarro, a beber o highball, preguiçosa, sorridente, sem se concentrar em nada. Até achar que era idiota estar ali sentada daquela maneira. Ninguém lhe ia tocar à porta. Tirou o chapéu, o vestido,
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as sandálias, os collants, e voltou a vestir o robe turco. Olhou pela janela. A vista não era agradável.
65. Pôs os óculos, começou a folhear o último número da Tomorrows Woman. Não leu nenhuma das histórias ou artigos, apenas folheou a revista, invejando aqueles modelos que nunca tinham tido prisão de ventre. Tinham o dobro da sua altura, eram seis vezes mais belas, doze vezes mais magras. Pensou se os fios dos seus Tampax ficariam a pingar depois do banho.
66. Na rua, passaram muitos carros de bombeiros com as sirenes a gritar. Pareciam ter parado ali perto. Pensou se havia de ir ver à janela. Decidiu não ir. Se a sua casa estivesse a arder, alguém a avisaria.
67. Ligou a televisão. Preparou uma bebida por hora. A idade ia, ia... Não estava embriagada. Os seus movimentos eram coordenados e seguros. Mas sentia-se pairar, a pairar... Por instantes, teve vontade de telefonar a Richard Faye ou a Harry Tennant ou a Jo Rhodes ou a Charles Lefferts. Não telefonou.
68. O tempo passou a correr. Subitamente, era tarde - ia dar o noticiário das onze. Ela ficou a ver, depois deu por si a bocejar. Dirigiu-se à gaiola e disse:
- Boa noite, cara bonita. - Mas o filho-da-mãe nem sequer olhou para ela.
69. Verificou a corrente e as fechaduras da porta da rua. Abriu ligeiramente a janela. Apagou as luzes.
70. Tirou o robe, sentou-se na beira da cama. Pensou se deveria fazer alguns exercícios, mas decidiu que não.
71. Meteu-se na cama, nua, dobrando o lençol e os cobertores pela cintura. Estava calor, calor... Estava cheia de sono. Durante algum tempo, ficou deitada, com as mãos debaixo da cabeça. Mas, depois, os braços começaram a ficar dormentes e ela virou-se de lado, com as mãos entaladas entre as pernas. Não estava a pensar.
72. Queria dormir, queria realmente dormir, mas o sono não vinha. Não queria tomar um comprimido, portanto, tentou contar lentamente... um, dois, três, quatro... Isso não resultou. Portanto, experimentou um truque seu... fez contas de somar: 115 mais 47 mais 83 mais 196 mais 33... Isso resultou: sentia a escuridão envolvê-la, em ondas. Sabia que o sono vinha aí: continuou a somar...
73. Não tinha falado com nenhum ser humano nem tinha saído das suas paredes durante quinze horas. E, no entanto... e, no entanto, as horas tinham tido uma doce sequência, a sua solidão tinha tido um ritmo. Se não estava feliz, estava, pelo menos, satisfeita.
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74. Não se lembrava de ter tido um dia melhor em toda a sua vida. Helen pensou no que lhe estaria a acontecer.
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Não havia luzes no quarto: a única claridade era a que entrava pela porta semiaberta que dava para a sala. O quarto estava na penumbra e mal se via o grande póster que dizia AMOR.
Helen Miley, completamente vestida, estava sentada aos pés da cama. Estava a fumar um cigarro, a sacudir a cinza para o chão. Tinha os seus óculos de aros de tartaruga postos. Estava constipada e, de vez em quando, fungava e carregava no nariz com os nós dos dedos.
Observou Harry Tennant a andar pelo quarto. Tinha as mãos enfiadas nas algibeiras. Os seus olhos tristes estavam baixos. Ia passando em frente ao feixe de luz que vinha da sala. Uma vez, parou à frente do póster do AMOR e ficou a olhar para ele. Depois, recomeçou a andar de um lado para o outro.
- Que se passa, Harry?
- Nada. Não é nada.
- Sei que há qualquer coisa que te está a incomodar, meu amigo.
- Eu sei que esta noite tenho sido má companhia, querida. Desculpa. E só que... Merda, não sei.
- Talvez tenhas apanhado a minha constipação. Anda por aí muita gripe. Como dizem os franceses, talvez tenhas o fígado constipado.
Ele olhou para ela, a sorrir docemente.
- E talvez tenha uma lasca na alma.
- Uma quê?
- Uma lasca na alma.
- Que quer isso dizer?
- Aah... nada. Estou a inventar.
- Que posso eu fazer? - perguntou ela ansiosamente. - Posso fazer alguma coisa?
Ele abanou a cabeça.
- Não, querida. Mas agradeço-te.
- Queres ir para a cama? Queres que eu me dispa? Ele tentou rir.
Aproximou-se da cama e sentou-se ao lado dela. Pegou-lhe na mão e beijou-lhe a ponta dos dedos.
- Querida, tu és mesmo uma querida. Achas que enfiar Cecil na gordura quente resolve todos os problemas?
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- Resolve os meus problemas - disse Helen com firmeza. - A maioria.
Harry pôs a mão nos seus joelhos nus.
- Estás a ver isto?
- O quê?
- Isto aqui.
- A minha rótula?
- Oh, sim - disse ele. - Quando andas na minha direcção, eu vejo este músculo aqui, mesmo por cima da tua pequena rótula cor-de-rosa... bom, este músculo contrai-se e mexe quando andas. É a coisa mais sexy que eu já vi em toda a minha vida.
- Estás passado - disse ela a rir.
-Acho que sim. Mas agora, na rua, dou por mim a tentar ver esse pequeno músculo por cima do joelho em todas as mulheres que vêm na minha direcção. Harry, o tarado sexual. Para o ano vão ser os cotovelos.
Ele desdobrou-se e pôs-se de pé, recomeçando a andar de um lado para o outro, no quarto. Passava muitas vezes à frente da luz que entrava pela porta aberta. O seu comprido corpo hirto parecia cintilar.. luz e escuridão.
- Tive uma grande discussão com o meu irmão ontem à noite disse-lhe ele. - E refiro-me a uma discussão a sério. Quase nos batemos. Ele vai sair lá de casa. Quando me levantei, esta manhã, ele estava a fazer as malas. Não dissemos nada um ao outro, mas acho que se vai mesmo embora.
- Sobre que é que foi a discussão?
- Ele não tem nada que se ir embora. A casa é suficientemente grande para ambos. Não precisamos de falar um com o outro. Meu Deus, querida, ele nasceu naquele apartamento, pois não tivemos tempo para levar a mãe para o hospital. Ele nasceu ali mesmo. É a casa dele. Agora, vai-se embora. Quando eu voltar, já não estará lá. Sei que não estará.
- Sobre que é que foi a discussão? - voltou ela a perguntar.
- Oh... o costume. Há anos que é a mesma coisa. Quando é que eu começo a fazer qualquer coisa pela nossa gente? E isso que ele passa a vida a perguntar... "a nossa gente".
- A fazer o quê, Harry?
- A trabalhar com ele, com todas essas organizações a que ele pertence. A escrever coisas.
- Que tipo de coisas? Queres um cigarro?
- Sim. Está bem. Obrigado.
Parou de andar para aceitar o cigarro que ela lhe estendia e para acender um fósforo para ambos. Ela ficou sobressaltada, com a forma como o seu rosto surgiu à chama do fósforo. Distorcido.
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Parecia ter partes soltas, a cair.
-bom... ele quer que eu escreva folhetos, cartas, artigos, proclamações, constituições, posters... todo o tipo de coisas.
- E tu não queres?
- Querida, eu quero. E quero voar e andar sobre a água. Alguma vez quiseste fazer qualquer coisa que, simplesmente, não conseguias?
- Não sei... - disse ela intrigada. - Talvez. Não me lembro. A maior parte das vezes faço o que quero fazer.
- Tens sorte.
- Acho que sim. Que disseste ao teu irmão?
-Disse-lhe a verdade. Que não tenho capacidade para isso. Essa história dos problemas raciais não mexe comigo. Não me consigo envolver. Sei que a culpa é minha. Mas é assim. E isso está a pôr-me louco.
- E que é que o teu irmão disse?
- Perdeu a cabeça. Eu disse-te que isto significa muito para ele. É toda a sua vida. Já te contei que lhe rebentaram a cabeça há alguns anos atrás? Sim, acho que contei. bom, de qualquer forma, quando ontem à noite tivemos a tal sessão de gritaria, ele começou a chamar-me nomes.
- Nomes? Queres dizer que disse palavrões?
- Não foram palavrões. Nomes, como Uncle tom e Little Black Sambo. Sabes... como se eu me tivesse vendido. Merda!
- Tem calma, Harry.
- Disse-me que eu pensava que era branco. Disse-me que eu estava a viver num sonho. Disse-me que era melhor eu acordar, porque, mais cedo ou mais tarde, me ia acontecer qualquer coisa má.
- Qualquer coisa má?
-Disse que eles me iam ensinar que eu era preto. Que me poriam no meu lugar. E o meu irmão disse que isso daria cabo de mim. Disse que era melhor eu esquecer a minha fantasia e aperceber-me de quem era. - Subitamente, ele inclinou-se e olhou pela janela. Ficou de olhos baixos, com as mãos de novo enfiadas nas algibeiras. Ainda está a nevar-disse ele,-Mas pouco. Está a levantar. Parece que está frio lá fora. Não é nada bom.
Helen tirou os sapatos com os dedos dos pés. Rodou as pernas para cima da cama e sentou-se com as costas apoiadas à tábua do fundo da cama. Flectiu os joelhos e abraçou-se a eles. Encostou a face aos joelhos nus, sentiu aquele pequeno músculo de que ele gostava.
- Harry, tenho de te dizer que sou a mulher errada para falares disto. Francamente, não sei nada acerca disso. Talvez devesse saber. Devia ler a primeira página dos jornais. Mas essas tretas raciais e a política e o Vietnam e ir à Lua... quero dizer, deixam-me absolutamente indiferente. Adorava o John F. Kennedy, era tão bonito. Meu
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Ieus, chorei quando ele foi morto. Mas tudo o resto... olha, não me interessa nada. Quero dizer, já tenho com que me preocupar: o meu emprego e a minha vida pessoal e o que me vai acontecer. Não me posso envolver em todas essas outras coisas. Sinto muita pena de toda a gente, mas apenas isso. Não é fácil. Estar vivo, isto é.
- Eu sei, querida. Se sei! Sinto-me muito frio. Olha as minhas mãos...
Voltou a ir para junto de Helen e ficou de pé à sua frente. Ela pegou-lhe nas mãos, aconchegando-as entre as suas. Tentou erguer as mãos dele à sua face.
- Meu Deus, querido, estás gelado. Anda, mete-te debaixo da roupa um bocadinho. Só para aqueceres.
- Sim. Está bem. Tenho frio. Não vamos tirar a roupa. Só nos metemos debaixo dos cobertores um bocadinho até eu aquecer. - Ele tirou os sapatos. Ela ajeitou as almofadas, estendeu o lençol como uma nuvem de Verão, acrescentou o cobertor. Meteram-se na cama. completamente vestidos, abraçaram-se. As suas vozes eram ténues, a flutuar na escuridão.
- Estás a tremer, querido? -.perguntou ela.
- Talvez um bocadinho. Não sei o que tenho. De repente, fiquei absolutamente gelado.
- Vais aquecer num instante. Chega-te mais a mim. Encosta os teus pés aos meus.
- Os meus pés parecem gelo, querida.
- Não faz mal. Encosta-os a mim. Ora pronto. Que tal? Estás melhor?
Ficaram os dois aconchegados nos braços um do outro. Escondidos do mundo. Ela chegou-se mais a ele.
- Harry.
- Que é?
- Queres?
- O quê? Eu...
- Deixa-me tentar.
- Oh, querida, querida... não te consigo dizer o que tens significado para mim.
- Chiu... Não digas nada. Ela pôs as mãos sobre ele.
Ele deslizou as mãos para baixo, mas ela afastou-as. Ela estava muito séria. Aquilo era importante para ela. Ele inclinou-se para a frente e plantou-lhe dois beijos húmidos nas lentes dos óculos de aros de tartaruga.
- Agora não consigo ver - murmurou ela.
- Óptimo. Isso é óptimo. Não me vejas.
Ele fechou os olhos, e assim só Deus é que via.
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Helen fez absolutamente tudo que podia, a tentar. Acreditando que eles eram absolutamente tudo no seu sítio secreto. Não fazia mal a ninguém.
Eles eram os únicos e nada era por mal.
Mas nada resultou.
- Não adianta - disse ele.
- Não penses em nada. Deixa-me...
Correu tudo mal... como às vezes acontece. O fecho éclair dele ficou preso à braguilha da roupa interior.
Ela teve uma terrível cãibra na canela esquerda. Um espirro que tentou abafar.
Subitamente, nele, uma enorme azia e uma terrível vontade de arrotar. Estava demasiado calor para o cobertor. Suor. Absolutamente nenhum ritmo. Nenhum crescendo. Apenas a tentativa. Os movimentos.
- Pára com isso-disse ele em voz alta. - Não adianta, querida. Não sirvo para nada.
Ele destapou as pernas aos pontapés, sentou-se e esfregou a cara com as palmas das duas mãos.
Helen Miley ficou ali deitada, ainda tapada. Tirou os óculos sujos e pô-los na mesinha-de-cabeceira.
Ficou ali deitada, a segui-lo com os olhos, enquanto ele recomeçava a andar de um lado para o outro. A sua sombra comprida projectava-se nas paredes em volta.
- Oh, é engraçado - disse ele. - É mesmo engraçado.
- Que é engraçado?
- Eu. Cada dia que passa estou a ficar mais parecido com um branco. Agora, não o consigo pôr de pé.
- Harry...
- Caramba - murmurou ele -, estou arrumado.
- Pode ser qualquer coisa. Uma constipação. Gripe. Um vírus. Como eu disse, uma constipação no fígado.
- E, como eu disse, uma lasca na alma.
- Que vais fazer?
-Fazer, querida? Oh, não sei. Qualquer coisa. Hei-de pensar em qualquer coisa.
Ela deitou as pernas para fora da roupa.
Sentou-se na beira da cama, com os dedos dos pés a tocar no chão. Tentou acender um cigarro, mas tinha as mãos a tremer tanto que não conseguiu.
O fósforo apagou-se. Ela partiu o cigarro ao meio e deixou-o cair no chão.
Curvou-se sobre si própria, de cabeça baixa. Tinha os braços cruzados, agarrada a si própria. Harry Tennant deu alguns passos
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rápidos para junto dela. Olhou para baixo, abalado. Pôs-lhe suavemente a mão na cabeça.
- Helen, que é que estás a fazer? Estás a chorar? Jesus Cristo, querida, estás a chorar por mim?
Ela soluçou.
- Por todos nós. Todos nós.
-Oh, querida, querida-murmurou ele.-Não é assim tão mau. Vá lá. Pára com isso. Pára de chorar, ouviste? Vamos ultrapassar isto. Sempre ultrapassámos. Vai ficar tudo bem. Eu hei-de pensar em qualquer coisa. Vai ficar tudo bem, querida.
- Harry, prometes? Que vai ficar tudo bem?
- Oh, claro. Agora vá...
Ele sentou-se na cama ao lado dela. Pôs-lhe um braço em volta dos ombros, aconchegando-a a si. Lentamente, os soluços dela abrandaram. Encostou a cabeça ao peito dele. Aconchegou-se a ele como uma criança nos braços do pai.
Ele tocou-lhe no rosto. Limpou-lhe as lágrimas com um dedo. Tocou-lhe no cabelo. Enrolou os dedos nos seus caracóis louros e depois soltou-os. Tocou-lhe nos lábios, no queixo, na garganta.
- Oh, meu Deus... - suspirou ela... -, é de mais.
- O que acontece - declarou ele -, o que acontece é que nunca se tem uma segunda oportunidade. Pois não? Isto é, tocamos a vida de ouvido. Sabes? Quando se envelhece, quando se é mesmo velho, abanamos a cabeça, sorrimos e dizemos: "Diabos me levem. Fiz tudo errado. Mas agora já sei. Da próxima vez, faço melhor." Mas não há próxima vez, pois não? Ou se acerta à primeira ou o azar é nosso. Estou certo? Oh, sim, estou certo...
Esconderam-se nos braços um do outro, sentados na beira da cama.
Ainda a tremer...
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- Miley - disse Richard Faye -, toda tu és uma enorme zona erógena.
O que inspirou este sincero elogio foi o facto de, enquanto Faye passava as pontas dos dedos pelas costas nuas de Helen e depois beliscava ligeiramente a pele distendida junto às suas costelas, ela parecia estar a tentar abrir caminho, à unhada, através do colchão, com as pernas a mexer, parecendo aos olhos do mundo uma mulher a correr para o autocarro.
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- Acontece que sou sensível - exclamou ela numa voz abafada. Acontece que toda eu sou sensível.
Ele riu-se e inclinou-se para lhe morder o rabo gorducho. Não com força. Apenas uma mordidela.
Ele levantou-se e andou nu pelo quarto. Tinha havido uma altura em que se teria tapado com mãos agitadas, um September
Mom forte e peludo. Mas agora...
- Olha para mim - pavoneou-se ele, dando palmadas na barriga. - Já perdi mais três quilos. A barriga está a ir. Tens de admitir, Helen, que a barriga está definitivamente a ir.
Ela virou-se na cama, sentou-se, puxou o lençol para cima, encolheu os joelhos, acendeu um cigarro, assentou os braços nos joelhos e inspeccionou-o, criticamente.
- Sim, senhor... - assentiu -, estás a ficar óptimo. Que é que a Edith disse?
-Diz que estou a ficar demasiado magro. Diz que não como o suficiente.
- Como é que vocês os dois se estão a dar?
- Bem. Tréguas armadas. Como te disse, ando à procura de um apartamento só para mim. Mas é difícil.
- Eu sei.
- A propósito, ela já não me chama Dickie. Chama-me Richard.
- Ainda bem, Uck. Devias tratar dessas varizes que tens nas pernas.
- E vou tratar, vou tratar... mas primeiro vou aranjar outra bebida para cada. Ok.
- Óptimo. Mas, desta vez, não ponhas tanta água. Quase não dava pelo sabor do uísque. Ele pegou nos copos e trotou para fora do quarto. Ela ficou ali sentada, a fumar o cigarro, com a cabeça apoiada nos braços. Estava verdadeiramente orgulhosa dele, do que ele tinha feito por ela e ainda mais orgulhosa do orgulho dele. Aqueles papos flácidos tinham-lhe desaparecido de debaixo dos olhos. O seu corpo tinha assumido proporções razoáveis. Por vezes, quase se conseguiam ver as costelas por debaixo da camada de gordura. Ela olhou para a cómoda onde tinha feito um arranjo com os malmequeres e as flores de acácia que ele lhe tinha trazido e sorriu.
Ele sentou-se na beira da cama e deu-lhe a bebida. Ficaram ali sentados, a beber devagar. Depois, ele meteu a mão debaixo do lençol e agarrou-lhe uma coxa ao de leve.
- Dá-me uma das tuas pernas - disse ele.
- Por que é que havia de dar?
- Tens duas e eu não tenho nenhuma.
- Tu tens duas pernas tuas.
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- Não gosto delas. Têm varizes. Quero uma das tuas.
- Não a podes ter.
- E ainda dizes que és minha amiga.
Ele levantou-se e começou a andar nu de um lado para o outro. Tinha a bebida na mão e roía-a, ocasionalmente.
- Miley - disse ele severamente -, temos de mudar a nossa forma de vida.
- Como é?
- Nunca fazemos nada. Nunca vamos a lado nenhum.
- Hoje, fomos jantar fora.
- Sim... mas depois o quê? Cama e beber, beber, beber. Nunca vamos ao cinema.
- Queres ir ao cinema, Uck? Eu levanto-me e visto-me.
- Não, não quero ir ao cinema. Mas nunca vamos a um concerto ou ao teatro ou ao ballet ou a museus e a essas merdas. Minha querida Helen, não temos uma vida cultural. Ou estamos a comer ou a beber ou na cama... por vezes, as três coisas em simultâneo. Há todo um mundo lá fora, Miss Miley - declamou ele, fazendo um gesto largo com o braço nu. - Há beleza e verdade e coisas para alargar o espírito.
- E que é que sugere, ó senhor da mansão?
- Calada! - ordenou ele. - O senhor vai ponderar.
O senhor ponderou, andando de um lado para o outro, com a sua pequena gaita idiota a bater contra a coxa. Subitamente, parou, virou-se e enfrentou-a.
- Tens alguma bagagem?
- Claro. Tenho três malas. Uma é uma mala grande, a outra é uma mala média e a outra é uma espécie de caixa de chapéus com um fecho éclair todo à volta. São todas azul-claras. De uma espécie de plástico azul que parece mesmo pele de porco.
- Lembras-te daquele robe de linho às riscas que me compraste e que eu nunca vesti? Ainda o tens?
- Claro. Está para aí. Que é que se passa?
Ela viu que ele tinha aquele brilho demoníaco nos olhos. Começou a ficar interessada.
-E tens algum anel... qualquer tipo de anel... que te sirva no terceiro dedo da mão esquerda, que mesmo que tenha pedras tu possas virar de forma a parecer uma aliança?
- Acho que sim - disse ela numa voz fraca. - Acho que tenho um anel.
Num movimento rápido, ele foi-se sentar na beira da cama, pegou-lhe na mão e começou a roer-lhe os nós dos dedos.
- Helen - murmurou ele -, tive uma ideia. E se não gostares da minha ideia, e se não concordares com ela, nunca mais te falarei
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em toda a minha vida. E devo avisar-te de que tenciono viver para sempre, pois sou demasiado mau para morrer.
- Ok. Uck, qual é a tua ideia?
- Tens dinheiro em casa?
- Sim.
- Quanto?
- Oitenta, noventa dólares. Qualquer coisa assim.
- Óptimo. Eu tenho uns cento e dez. O que nós vamos fazer é o seguinte... tenho todos os meus cartões de crédito comigo. vou ligar para uma companhia de aviação e marcar dois bilhetes para Washington DC. vou telefonar para um hotel em Washington DC... um hotel muito caro, luxuoso... e reservar a suite nupcial, se possível. Depois, vais fazer a tua mala média e a outra que parece uma caixa de chapéus com o fecho éclair todo à volta. Vais lá meter dentro tudo o que precisas para um dia glorioso na capital da nação. Depois, vamos de avião para Washington DC e ficamos a olhar para as flores de cerejeira.
- Uck, por amor de Deus, estamos em Novembro!
- bom, então ficamos a olhar para as árvores onde as flores de cerejeira irão aparecer quando nascerem. E vamos visitar a Casa Branca e o Capitol e a Smithsonian Institution (repara que digo Institution. A maioria das pessoas diz Institute, que é incorrecto). E vamos visitar todos os grandes edifícios públicos em Washington DC e absorver a herança do nosso país, as galerias de arte e as bibliotecas do Washington Monument e do Lincoln Memorial. Ficaremos adequadamente comovidos e impressionados e teremos um dia muito cultural. Voltaremos amanhã à noite. E é isso que vamos fazer. Vamos já de avião para Washington DC.
Ela não hesitou um único instante.
- Vamos embora! - gritou ela, saltando da cama.
Enquanto ele estava a tomar duche, ela pôs água e comida ao pássaro. Depois, tirou as duas malas da prateleira de cima do armário do hall e começou a meter coisas lá dentro. Que é que era preciso para um dia? Meteu os robes e roupa interior, uma camisola de malha e um fato de malha que podia enrolar e todas as coisas de maquilhagem. As malas ainda pareciam vazias e inquietantemente leves. Portanto, atirou lá para dentro uns livros e uma garrafa de uísque, para o paquete não desconfiar.
Faye saiu a correr da casa de banho e Miley entrou a correr. Quando saiu, eleja estava vestido e estava sentado à escrivaninha com a carteira dos cartões de crédito aberta à sua frente.
- Acabei de telefonar à Edith e disse-lhe que ia passar o fim-de-semana com uma amiga.
- Como é que ela reagiu?
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Ele mostrou os dentes num sorriso amarelo.
- Não gostou. ; Ele telefonou e soube que podiam apanhar o vaivém para Washing-
ton, DC, se conseguissem estar no Aeroporto de LaGuardia às dez. Depois, telefonou para uma cadeia de hotéis, ligaram-no a Washington e ele fez uma reserva para dois. A suite nupcial estava ocupada por um senador de oitenta e dois anos e pela sua noiva de vinte e três, mas o hotel prometeu-lhe uma suite muito boa que dava para a Casa Branca.
Desceram com a bagagem já passava um pouco das nove e meia. Helen calçava luvas por cima da aliança falsa. O porteiro foi ao meio da rua e começou a assobiar, com dois dedos entre os lábios. Um táxi parou.
- Aeroporto de LaGuardia - disse Faye ao motorista. - Depressa. Temos de apanhar um avião.
- Está bom da cabeça? - perguntou o motorista. - Quer que eu vá a LaGuardia a esta hora da noite? Como é que eu sei se arranjo uma corrida de volta? Se me ponho na bicha, os gajos de lá partem-me a cabeça. Pensa que eu vou...
- Vinte dólares - disse Faye.
- Ponha a bagagem aqui ao meu lado - disse o motorista. Assim, vão mais à vontade aí atrás.
bom, o que aconteceu durante a viagem para o aeroporto foi que o motorista tinha um filho de dezanove anos que, inexplicavelmente, se tinha apaixonado por uma avó viúva, de cinquenta e seis anos, que era dona de três talhos kocher e de uma pequena banca no Mercado da Essex Street, que vendiapickles. Ora a questão era... a questão era... Ninguém chegou a perceber qual era a questão, mas os três ofereceram explicações lógicas... e a viagem passou de forma agradável, com todos em animada conversa.
Tinham muito tempo.
Muito tempo. Até foram ao bar, onde Helen descalçou as luvas e Faye disse:
-A minha mulher gostaria de um uísque com água e eu também quero um.
O empregado do bar nem pestanejou. Nem sequer olhou para a mão que Helen pôs em cima do balcão, com as pedras do anel viradas para a palma da mão, de forma a só se ver o aro fino.
Faye ergueu o copo e tocou com ele no de Helen.
- Vai correr tudo bem - tranquilizou ele.
Não aconteceu nada de especial, durante o voo para Washington, DC, a não ser Richard Faye ter dito uma coisa muito bonita. Helen estava a olhar pela janela, a contar as estrelas. Ela disse:
- Adoro viajar. Adoro ir a outros sítios. Gostava de ir a todos os
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sítios do mundo. Uck, se pudesses escolher, onde é que gostarias de estar neste preciso momento?
- Neste preciso momento? - perguntou ele.
- Sim.
- Em qualquer sítio do mundo?
- Sim.
- Gostava de estar deitado nu entre as tuas coxas nuas. Ela sorriu secretamente e deu-lhe a mão.
Tiveram sorte com os táxis, facto que Helen interpretou como sendo bom augúrio. Foram levados para o hotel por um motorista de táxi cuja mulher sofria de pingo no nariz. Faye fez o registo no hotel em nome de Sr. e Sra. Richard Faye, de Nova Iorque, enquanto Helen punha casualmente a mão em cima do balcão, para mostrar o anel.
Foram conduzidos à sua suite por um paquete de 343 anos, que levou a bagagem, provou que as luzes funcionavam, mostrou-lhes como abrir e fechar as portas, abriu
e fechou as persianas e sorriu. Richard Faye deu-lhe cinco dólares.
- Gostaríamos-disse ele -, a minha mulher e eu, que nos trouxesse um balde de gelo, quatro copos de highball, quatro garrafas de água gasosa e quatro garrafas pequenas de ginger ale. Além disso, gostaríamos que nos trouxesse um guia turístico de Washington, com ilustrações das principais atracções, incluindo descrições de locais de interesse que a minha mulher e eu não devemos perder.
- Será um prazer - disse oguru do hotel.
Olharam em volta. Era uma suite de hotel maravilhosa. Tinha uma sala de estar, com um sofá e cadeirões, uma mesinha, uma televisão a cores, uma mesa de jantar com cadeiras para quatro e um pequeno bar, onde se podiam fazer bebidas. Havia aguarelas nas paredes, de homens a cavalo a saltar cercas.
O quarto tinha duas grandes camas, além de uma espécie de sofá e duas cómodas com espelho, mais outra televisão a cores. Havia um armário tão grande que se podia praticamente lá viver dentro, com cabides que não saíam do varão. Por cima de uma das camas, havia um desenho em metal de George Washington a atravessar o Delaware e por cima da outra cama um desenho em metal de George Washington, com a mão sobre uma Bíblia, a fazer o juramento de tomada de posse. O hotel chamava-se Franklin Pierce.
E depois havia uma casa de banho magnífica, com os copos embrulhados em papel fino e lenços de papel, pasta de dentes, aspirinas,
toneladas de sabonete, shampoo, tudo. O papel higiénico era perfumado. Havia mais toalhas do que eles conseguiam contar. Pensos higiénicos gratuitos.
- Caramba-disse Helen, levando as mãos às faces -, isto é um
espanto!
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O ancião voltou com o gelo, as garrafas e o guia turístico. Faye ofereceu-lhe outra gorjeta, mas ele recusou modestamente e saiu com uma vénia.
Faye pendurou o letreiro: "NÃO INCOMODAR" na maçaneta, do lado de fora da porta. Depois, prepararam os highballs, despiram-se e tomaram duche juntos. Não precisavam,
mas aquela suite de hotel era tão agradável que sentiram que deviam estar limpos e perfumados para irem para a cama.
E ali estavam eles, muito sérios e eficientes, a ensaboarem-se um ao outro no duche, sem brincadeiras (mas com um apalpão de vez em quando), limpando-se depois naquelas maravilhosas toalhas fofas, utilizando o dobro do que era necessário.
Depois, meteram-se na cama, usando os dois apenas uma cama: não adiantava enganarem-se. Helen tinha vestido uma camisa de noite curta. Richard estava com o robe de linho às riscas que Helen lhe tinha comprado. Ela beijou-o na face e rolou na cama, deitada de lado, longe dele. Ele pôs os óculos para ler, aqueles óculos engraçados de meias lentes que faziam com que todos... homens, mulheres, crianças e cocker spaniels... parecessem o Benjamin Franklin. Ele acendeu o candeeiro por cima da cama e começou a folhear o guia turístico de Washington DC.
- Ora então - disse ele -, Washington DC é a capital dos Estados Unidos da América.
- Mmmmm - disse ela, estendendo o braço para trás para lhe tocar, para sentir que ele estava ali.
- À sua herança - continuou ele -, estende-se ao passado, ao tempo em que os primeiros colonos...
Ele olhou para ela e apercebeu-se de que ela se tinha passado para o lado de lá. Já estava a ressonar. Não um RESSONAR profundo e ruidoso, mas um leve ressonar,
como um zumbido.
Pouco depois, ele apagou candeeiro e também adormeceu, chegando-se a ela e gemendo de satisfação.
Ela abriu os olhos primeiro, apenas uma espreitadela, depois abrindo muito os olhos e olhando para o quarto desconhecido, pensando onde é que estaria e com quem estaria a dormir. Depois, tudo se esclareceu: era domingo de manhã e estava na cama, num hotel de Washington DC, com o velho Uck Faye. Iam visitar monumentos, ver coisas e ter um dia cultural.
Sorriu e virou-se para ele. Ele estava deliciosamente enrolado numa bola, com as pernas encolhidas e as mãos entaladas entre as coxas. Ela inclinou-se sobre ele. Cheirava muito bem.
Ela levantou cuidadosamente a parte de trás do seu robe e encostou-se
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ao seu corpo nu, encolhendo as pernas e encaixando-se no seu corpo, chegando-se a ele até ficarem como duas colheres sobrepostas. Depois, estendeu a
mão e muito, muito lentamente, muito suavemente, fechou a mão quente sobre o seupiccolo.
- Olá! - disse.ele numa voz animada.
- Estás acordado, Richard?
- Não, estou a dormir. Estou a dormir e a sonhar que uma estranha criatura me está a acariciar o rabo e a fazer outras coisas que nunca foram referidas no Womans Home Companion.
Ela deu uma risadinha e chegou-se mais a ele, aconchegando-o mais a si. Aquilo era realmente o que ela mais gostava. Não tanto o sexo. Isso era óptimo. Mas melhor ainda era... estar perto, a nudez, os beijos e essas coisas. Adorava que os homens a lambessem e também os lambia a eles. Era maravilhoso... tão maravilhoso... O maldito mundo e ali estavam eles, apenas os dois... Isso era o melhor. Para o diabo. Um dia morremos todos. Certo?
bom, como podem imaginar, uma coisa levou a outra e não tardou a tudo se resumir a suor e grunhidos. Ficaram embrulhados no robe dele e na camisa de noite dela e nos lençóis cor-de-rosa. Finalmente, arrancaram tudo como loucos, a arfar, a dizer coisas que mais tarde não se lembrariam... o que era uma benção.
Depois, ela estava em cima dele, estavam na cama, estavam no chão, estavam a gritar de alegria, fizeram coisas muito pessoais um ao outro, às gargalhadas, com as mãos, os dedos, os dedos dos pés, as línguas, e ah, sim, até as pálpebras estavam ocupadas, até chegarem ao colapso envolto num rugido mútuo de prazer, a sentir os ossos derreter.
Passado algum tempo, Richard Faye levantou-se da carpete, nu, foi a, cambalear até à janela, olhou lá para fora, e ali estava a Casa Branca.
Faye tomou duche primeiro e voltou a vestir o robe. Não tinham levado chinelos para ele, mas ele andou pelo quarto descalço com os seus pés chatos - a carpete era fofa e espessa e macia. Depois, Helen foi tomar duche. As toalhas estavam a gastar-se rapidamente. Entretanto, Faye consultou o menu do pequeno-almoço e ligou para o serviço de quartos.
Quando o carrinho chegou, já Helen estava sentada à mesa de jantar, de robe, a passar os dedos da mão esquerda pela face, com o anel virado a faiscar à luz. Mas que pequeno-almoço aquele, mas-que-pequeno-almoço! Parecia construído em volta de uma espécie depaté de porco condimentado que nenhum deles comera antes. Havia ovos mexidos, batatas fritas caseiras, muffins e compota de amora. Começaram com melão gelado e acabaram com fatias de tarte de maçã quente coberta com fatias de queijo americano. O menu dizia
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que aquele pequeno-almoço se chamava Cockadoodle Special, um nome que Faye pessoalmente achava de mau gosto.
-Importas-te de me servir outra chávena de café, minha esposa? -perguntou ele, indo ao quarto buscar os óculos, esferográfica e guia ilustrado de Washington, DC.
-Imediatamente, meu marido-murmurou ela submissamente, deitando o café e pondo um pouco de natas a flutuar em cima, como ele gostava.
- Ora bem - disse ele, voltando a sentar-se -, acho que devemos planear a nossa visita cultural a Washington lógica e cuidadosamente. Afinal de contas, só temos cerca de dez horas e temos de fazer com que cada minuto conte.
Desdobrou o mapa preso à parte de dentro da capa do guia turístico. Ela inclinou-se para ele, a fumar um cigarro e a beber o café. Olhou para ele, enquanto ele espreitava pela metade inferior daqueles óculos malucos, atento ao mapa. Depois, pousou a chávena de café por instantes, para lhe poder tocar nas costas da mão.
-Ora bem-disse ele -, o nosso hotel é aqui. Estamos aqui. vou pôr um pequeno X.
- Põe dois pequenos X... um para ti e outro para mim.
- Está bem... dois pequenos X. Agora, Helen, parece-me lógico que o primeiro sítio a visitar seja a Casa Branca. E tão perto! Estás a ver... do outro lado do parque.
- bom - disse ela num tom de dúvida -, não sei. Quero dizer, não podemos cair-lhes assim em casa, pois não, Uck?
- Pensei nisso - assentiu ele.-Viste aquela loja de doces lá em baixo no átrio, quando entrámos, ontem à noite? bom, pensei que podíamos levar-lhes um frasco de rebuçados.
-Muito bem-aprovou ela.-Ou talvez uma caixa de caramelos.
- Levamos as duas coisas, rebuçados e caramelos - decidiu ele. -Afinal de contas, um deles pode gostar de rebuçados e o outro pode gostar de caramelos. Mas, Helen, não nos podemos demorar, temos de deixar isso bem claro logo à entrada. Não almoçamos nem nada. Eles são pessoas muito atarefadas. Damos só uma vista de olhos e damos-lhes os rebuçados e dizemos-lhes que estamos cheios de pressa. Não podemos, de todo, ficar para almoçar.
- E se eles... sabes, insistirem connosco? Não podemos ser mal educados.
- bom, teremos de ser muito firmes. Ora bem... vamos ver o que o guia turístico diz acerca da Casa Branca.
Leu em silêncio, enquanto ela mosdiscava um pedaço de queijo e fumava outro cigarro.
- Que guia fascinante - disse ele. - Alguns destes factos são invulgares. Ouve isto: "Uma das salas mais invulgares da Casa
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Branca é a chamada Parcheesi Room. Nenhum visitante deve deixar de ir a esta bela sala histórica no terceiro andar. Muitos turistas acreditam que o seu nome deriva do facto de, desde o início da República, as Primeiras Famílias jogarem parcheesi nesta sala, mas não é esse o caso. Na realidade, a sala recebeu o nome de Aldo Parcheesi, enviado especial do Duque da Tuscânia, que morreu engasgado com uma fatia de salame nesta sala, num jantar de gala dado em sua honra, durante a presidência de Millar Fillmore. Ver nota de rodapé 6." Ora vejamos o que diz a nota de rodapé 6. Isto é realmente interessante, não é, Helen?
- Incrível - disse ela, abanando a cabeça.
- Ah, cá está a nota de rodapé 6. Diz: "Um outro facto pouco conhecido sobre o jantar de gala em que o Signor Parcheesi morreu é que foi nele que James G. Elaine fez a sua primeira apresentação pública. Este tornou-se, mais tarde, senador dos Estados Unidos, apesar da famosa palavra de ordem que os seus opositores políticos inventaram para usar contra ele, que foi "Elaine, Elaine, o mentiroso de cara rapada do estado de Maine." De interesse particular para os historiadores é o facto de longe de ter a cara rapada, Elaine ostentava uma comprida barba ruiva e, na realidade, não era de Maine. Mas os seus opositores políticos referiam que era extremamente difícil entoar "Elaine, Elaine, o mentiroso homem das barbas do estado de Massachussetts". Helen, é maravilhoso saber estas pequenas anedotas sobre a História do nosso país, não é?
- Lindo. Mas aonde é que vamos, depois de sairmos da Casa Branca, Uck?
- Ora vejamos o mapa... Eu diria que a nossa próxima paragem devia ser o Washington Monument. vou fazer uma linha desde o nosso hotel até à Casa Branca e depois até ao Washington Monument, paf a sabermos qual é o caminho mais curto. vou ver o que o livro diz sobre o Washington Monument.
-Uck-disse ela, pensativamente -, enquanto estás a ver isso, talvez seja melhor eu preparar dois uísques com água. Sabes, uma coisa leve para acalmar o estômago.
-Excelente ideia-disse ele, folheando as páginas.-Para acalmar o estômago.
Ela recostou-se no sofá a bebericar o uísque, mexeu os dedos dos pés e escutou contente, enquanto ele lia alto o maravilhoso guia turístico de Washington, DC.
- Por exemplo - disse ele -, apesar de a maioria dos turistas pensar que o Washington Monument era revestido a mármore, na realidade o maior símbolo fálico do mundo civilizado estava revestido de folhas de linóleo num padrão marmoreado ("que tendem a abanar quando há ventos fortes"). O revestimento de mármore original
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tinha sido retirado numa noite sem luar para revestir as paredes de um complexo de sauna e bowling na cave do Capitol.
Cuidadosamente, ele riscou no mapa o caminho desde o hotel à Casa Branca, ao Washinton Monument, ao Lincoln Memorial, ao Fords Theatre ("onde os novos Fords são mostrados todos os anos"), ao Edifício do Supremo Tribunal. Parou, por instantes, para preparar outra bebida, desta vez um pouco mais forte, e depois regressou à sua tarefa. Deu imediatamente uma exclamação de espanto e levou o guia a Helen, para lhe mostrar uma fotografia de uma enorme sala de tecto alto com colunas de mármore e paredes revestidas a damasco, com belos retratos a óleo de cobradores de impostos já mortos.
- Sabes o que isto é, Helen?
- A casa de banho dos homens na Biblioteca do Congresso?
- Não, minha querida. Esta é a famosa Truss Room no Capitol. Ouve o que o livro diz: "No cimo da lista dos locais obrigatórios de quase todos os turistas que visitam Washington, DC, está a tradicional Truss Room, utilizada quer pelos senadores quer pelos representantes. A parede este desta imponente sala está equipada com ganchos suficientes para todos os membros do Congresso aí colocarem as suas fundas para hérnia, quando não se justifique a sua utilização. A sala está sob a supervisão de Robert E. Flannel-Mouth Ravenel, um homem que se tornou uma lenda viva e que detém este importante cargo há mais de cinquenta anos, durante a administração de oito presidentes. No seu famoso livro de memórias, Kiss my Truss, o Sr. Ravenel relata que os medalhões de cobre maciço distribuídos aos membros do Congresso que aí colocam as suas fundas se tornaram a recordação mais popular de uma visita à capital da nação (ostentam a famossa inscrição: In God We Truss) e têm de ser substituídos pelo menos duas vezes por ano." Helen, temos mesmo de visitar a Truss Room.
Mas, entretanto, ele tirou os óculos, levou a bebida consigo e deitou-se ao lado dela no sofá.
- Chega-te para lá-disse ele -, e dá um pouco de espaço ao teu marido.
Ela chegou-se para lá. Passado algum tempo, ela disse, num tom sonhador:
- Nós não vamos sair, pois não, Uck?
- Queres ir?
- Oh... na realidade, não. Mas faço o que tu queiras fazer.
- Mmmm - disse ele, assentando os lábios no lóbulo da orelha esquerda de Helen. - De qualquer
forma - disse ele -, saímos de casa, não foi?
Ela estendeu o braço, para pousar o copo no chão. Tirou o copo da mão dele e também o pousou no chão. Depois, com algum esforço,
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meteu o braço debaixo do pescoço dele. Puxou-o para si. Ele beijou-a, a sorrir.
- Ok. - murmurou ele.
Ela sabia o que ele queria dizer.
- Oh, sim - respondeu ela num murmúrio. - Como nunca estive.
- Por que é que não nos metemos outra vez na cama e dormimos uma soneca?
- É isso que queres, Uck?
- Uma pequena soneca.
- Está bem.
Acabaram as bebidas, durante o curto percurso até ao quarto. Puseram os copos de lado e tiraram o robe. Meteram-se dentro dos lençóis macios, atirando o edredão
para trás pois o quarto tinha, subitamente, ficado bastante quente.
Dormiram mais do que tencionavam e a luz já estava a desaparecer quando acordaram. Faye foi o primeiro a deslizar para fora da cama. Foi à sala buscar os cigarros e preparou outra bebida. Ergueu a garrafa de uísque à luz, calculando que ainda restavam três bebidas para cada.
Quando voltou para o quarto, Helen estava deitada de costas, com as mãos entrelaçadas atrás da cabeça, a olhar para o tecto. Mas mudou de posição, para pegar no copo.
- Beber, beber, beber - disse ela a sorrir, nada aborrecida. Ele meteu-se na cama ao lado dela. Foi invadido por uma ânsia
de lhe agradecer. Mas, como sabia como a gratidão a exasperava, contentou-se em beijar-lhe o ombro.
- Não sei se consigo outra vez, Helen.
- Claro que consegues, querido. Sei que consegues. Eu ajudo-te.
Passado algum tempo, puseram de lado os copos vazios e os cigarros e tentaram. Ela ajudou-o, mas não serviu de nada... o que foi uma pena.
Portanto, desistiram. Ficaram deitados nos braços um do outro. Não estavam embaraçados. Isso já tinha acontecido antes, mas era uma pena.
-Uck-disse ela, falando lenta e cuidadosamente -, o que é que vai acontecer contigo?
- Oh... não sei. Qualquer coisa de bom.
- Não te vais casar, pois não?
Passados alguns momentos, ele disse suavemente.
- Não, querida, não vou.
- Porquê?
Ele encolheu os ombros.
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- Francamente, não sei. Acho que é apenas uma coisa que não quero fazer.
- Mas por que não?
Ele soltou-se dos braços dela, virou-se de lado, apoiou a cabeça numa mão e mostrou os dentes. i
- Já alguma vez te disse o que o Oscar Wilde disse? Disse...
- Eu sei, Uck - disse ela tristemente. - Já me disseste. Várias vezes.
Ele ficou calado durante alguns instantes e depois resmungou:
- Só te disse duas vezes.
Houve um longo silêncio, antes de ela dizer com a voz ligeiramente entrecortada:
-Não tens medo de que... tu sabes... voltes ao mesmo... pois não, Uck?
O riso dele feriu-lhe os ouvidos.
- Olha - começou ele a dizer -, não existe nenhuma lei natural que diga que um homem tem de casar com uma mulher. Se alguma vez tivesses estudado a história do casamento, aperceber-te-ias de que era um imperativo histórico, isto é, para a sobrevivência da raça humana, um homem casava com uma mulher e tinha o maior número possível de filhos. As crianças morriam muito novas. Os adultos morriam aos vinte, trinta anos. Doenças, pobreza... tudo isso. A raça humana tinha de sobreviver. Era assim que tinham de fazer: casar e reproduzir-se. Resultava. Mas, agora, as coisas são diferentes. A maioria dos bebés sobrevivem. As pessoas vivem até aos oitenta, noventa anos. Vem nos livros. Medicina e melhores condições de vida. Portanto, talvez haja formas melhores. Talvez as pessoas devam viver sozinhas. Talvez devessem haver casamentos duplos... sabes, dois homens e duas mulheres ou duas mulheres e um homem ou comunas. Há muitas combinações. Os tempos são outros e precisamos de novas formas de vida. O casamento homem-mulher já não é a única resposta. Há muitas outras possibilidades. Podemos...
A voz dele começou a ficar sem força, o Mestre Ilusionista de Todos Eles tinha começado a esgotar-se. Ela mal o conseguia ouvir.
- Novas relações... em transição... um homem, uma mulher... obsoleto... novas formas para... significativas... podemos...
A voz dele deixou de se ouvir, parou, ele estava de olhos fechados. Até que, finalmente, ele murmurou (tão baixo que ela mal o ouvia):
- Sim. Tens razão, Helen. Tenho medo...
Ela amou-o tanto naquele momento que teria morrido, e alegremente, se isso o fizesse feliz.
Mas a única coisa que pôde fazer foi aconchegá-lo nos seus braços nus, murmurar-lhe, abraçá-lo, acariciá-lo. A princípio, ele estava a tremer. Passado algum tempo, ele murmurou:
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- Não é fácil...
- Eu sei, querido - murmurou ela. - Eu sei.
Ela estava com medo de que ele começasse a chorar, mas ele não o fez. Apenas ficou ali deitado, a tremer ligeiramente, a corresponder às carícias dela. Ela pensou na primeira noite em que tinham estado na cama juntos... na noite em que O Músculo tinha aparecido e dito que Edith Faye tinha tido um ataque de coração.
Mas, desta vez, era diferente. Ela acariciou-o, dando-lhe força, enquanto murmurava coisas que ele não ouvia. Isso prolongou-se durante muito tempo. O braço que estava debaixo do pescoço dele ficou dormente, mas ela não o tirou. Parecia-lhe que estavam mais nus ali, era uma coisa que ela já tinha sentido algumas vezes, uma coisa virada do avesso que era tão doce... ah, tão doce! Tinha vontade de chorar, de rir.
Começou a deslizar lentamente, cama abaixo, mas ele não a deixou. Apanhou-a, agarrou-a. com toda a solenidade, tentaram qualquer coisa... o que quer que fosse.
Mas eram pessoas razoáveis e ela só começou a rir baixinho quando ele lhe murmurou ao ouvido:
- Querida, está mais pequeno do que nós os dois.
Depois, desataram a rir ternamente, a tossir, a arfar, a suar nos braços um do outro, a tentar feitos idiotas e absolutamente impossíveis de ousadia.
Qualquer coisa aconteceu... nenhum deles soube exactamente o quê... mas, se não foi êxtase, pelo menos tiveram uma sensação de realização que não podia ser negada. Nem todos nós podemos baloiçar de lustres ou ficar de pé em redes.
Pelo menos, teve a vantagem de se prolongar durante aquilo que pareceu ser muito, muito tempo. A luz escureceu e a Casa Branca perdeu-se na noite.
No avião para Nova Iorque, pouco depois de terem levantado voo e irem a caminho do Aeroporto de LaGuardia, ele olhou fixamente para ela e apertou-lhe a mão. Num
tom de profundo espanto, ele disse:
- Sabes, acho que vou conseguir.
- Claro que vais - exclamou ela ferozmente.
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22
Terça-feira à noite
Minha muito querida Helen,
Uma das coisas mais queridas para mim, na nossa relação, é a nossa capacidade de falarmos um com o outro. A maioria das pessoas fala uma contra a outra. Tu sabes... uma diz "Ontem à noite fui ao cinema", e a outra pessoa responde, "Vi a Joan na quinta-feira". Mas, quando tu e eu falamos, parece-me tudo tão pessoal, tão consequente, e espero que consiga escrever esta carta com essa mesma intimidade e que tu compreendas e sintas compaixão por todas as coisas que digo e por todas as coisas que não ouso dizer.
No normal decurso dos acontecimentos, eu ter-te-ia dito tudo isto pessoalmente. Mas fui obrigado a sair inesperadamente da cidade e não sei quando regressarei. Portanto, achei melhor escrever-te. Aviso-te já que esta carta vai ser longa. Mas há tantas coisas que te quero dizer e não te censurarei minimamente se a leres por três ou quatro vezes.
Em primeiro lugar, querida Helen, deixa-me assegurar-te de que, quando, da última vez que nos encontrámos, me disseste que não podias vir comigo para a minha casa na Itália, eu compreendi. Fiquei desapontado, como é natural, mas apreciei o teu realismo. Tens metade da minha idade, tens a tua carreira e a tua própria vida e, apesar disso poder constituir um encanto temporário, tu, obviamente, não sentiste que pudesse ter a potencialidade de uma relação duradoura. Ora, quanto a essa questão, minha querida, tenho que discordar. Se alguma coisa sou é constante!
Aceito a tua decisão, dado que eras tu que a tinhas que tomar. Mas perdoar-me-ás se aindq me agarrar com força ao que resta do meu sonho: os dois a ir comprar dobrada e Provolone no mercado de manhã, os passeios de burro aos montes, a missa ao domingo na pequena igreja caiada, ver as mulheres de pernas nuas a apanhargnocchi selvagens nos campos... o seu produto com maior valor comercial. E aquelas loucas corridas de moto à sexta-feira à noite, com toda a gente a beber vinho sicilianopelos odres. Como é tudo tão alegre! Ah, bom...
Sim, é verdade que estou "do outro lado" dos setenta. E tenho a certeza de que me achas um "velho nojento". Mas haverá um tipo melhor de velho? (A minha única esperança é que as nossas relações mais pessoais não tenham sido demasiado
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exigentes para ti e não te tenham causado dor e angústia.) Mas há muitas coisas sobre o envelhecer que tu ainda não sabes (como é que podias saber se és tão eternamente jovem?) e das quais tenho de te falar.
Emprimeiro lugar, deixa-me assegurar-te de que alguns de nós que estão fadados a envelhecer (foi Maurice Chevalier que disse "Não é agradável... mas pensem na alternativa"), continuam eternamente jovens de espírito e alma. Isto é, tenho os mesmos sonhos e esperanças e amores que tinha quando era um rapaz de dezoito anos. O cérebro permanece jovem e a ferver, mas acontece qualquer coisa de terrível àquilo dentro do qual o espírito selvagem está selado.
Subitamente, torna-se importante estar-se quente e seco. Usam-se galochas quando chove, quando anos antes a possibilidade de estragar um par de sapatos de quarenta dólares parecia irrelevante. Usa-se colete e cachecol. Os cobertores multiplicam-se. A botija de água quente e o cobertor eléctrico deixam de ser uma piada. Isto é, o conforto físico começa a assumir uma importância maior, uma importância avassaladora, na nossa vida. Andar de cabeça ao léu à chuva é para caloiros da Vassar. Correr e deslizar alegremente nos passeios gelados é para jovens malucos.
Mas, repara, enquanto tudo isto está a acontecer, quase sem se dar por isso, o espírito... o espírito essencial... permanece jovem. Isto é, uma pessoa continua a ter fantasias sexuais, continua a reagir à beleza jovem, continua a ter esperança, continua a sonhar. Sim, é verdade que se têm calosidades e calos. É-se vítima de inexplicáveis achaques e dores. Acorda-se de manhã e a segunda articulação do dedo do meio dói como o r...
Sem qualquer razão.
Depois passa. Mas todo o corpo é presa dessas inexplicáveis e assustadoras agruras.
As canelas emagrecem. Os pêlos desaparecem das pernas, a pele das canelas fica com um aspecto estranho, luzidiu e branco. É claro que, nesta altura, provavelmente já se usa óculos e dentes postiços e talvez um aparelho auditivo e bengala. Os olhos começam a lacrimejar e acontecem-nos coisas estranhas... todo o tipo de coisas: nódulos, deformações, como líquenes e musgo num velho carvalho.
Sem dúvida que tudo no nosso ritmo físico abrandou. Damos por nós a hesitar na beira do passeio. É-se mais deliberado, movemo-nos com uma "velha dignidade", até estendemos a mão para uma bebida com um movimento cuidadosamente calculado, para não deitar o copo abaixo.
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Mas o espírito! Ainda jovem. Ainda sonhador e cheio de esperança.
E com estas alterações físicas vem uma estranha e triste vulgaridade. Uma pessoa passa a arrotar, a tossir, a espirrar, a ter soluços, a darpuns... abertamente. E, se isso ofender os outros, pouco nos importa. As anedotas obscenas perdem a sua capacidade de chocar, mas não de divertir. As coisas que pareciam inquietantes quando se era novo parecem agora ser uma parte natural da vida e afinal de contas não tão importantes como isso. O sexo...
Não é tão importante como dormir oito horas, nem como evacuar bem. Querida Helen, por que é que os jovens acham sempre que descobriram o sexo? Pensam que nunca foi assim para a raça humana. Que nunca ninguém tentou aquelas posições. Que ninguém sentiu tal prazer, tal êxtase em toda a história. Que embarcaram numa maravilhosa viagem de experimentação e revelação. Só quando já têm uma certa idade... como presuntos pendurados num fumeiro... é que se apercebem de que já foi tudo feito antes. E, provavelmente, melhor.
E deixa-se de ter medo da morte. Isso é uma consolação. Torna-se simplesmente uma necessidade. Como dormir.
A memória... Ora aí está uma coisa estranha e curiosa. Tenho uma teoria sobre a memória... mas também é certo que eu tenho teorias sobre tudo! Acredito que todos nós nascemos ao meio-dia no Relógio da Vida. Começamos no cimo e movemo-nos num círculo, na direcção dos ponteiros do relógio. Na idade, digamos, entre os quarenta e os sessenta anos, não nos conseguimos lembrar dos nomes de coisas que aconteceram ou de poemas ou de datas. bom, foi o que me aconteceu a mim. Depois, passa-se o fundo, passam-se as seis horas e começa-se a subir pelo outro lado. Subitamente, começamos a lembrar-nos de coisas. Do nome da professora da terceira classe. Da altura em que os nossos pais nos levaram a Atlanta. Quando tivemos varicela e tivemos de ficar em casa. Compreendes, Helen ? Uma pessoa começa a subir pelo círculo. Está de novo a chegar ao meio-dia. A meia-noite. E tudo o que houve no princípio está muito mais perto.
Por que é que achas que os velhos... pessoas na casa dos sessenta, setenta ou oitenta... lidam tão bem com crianças?Avós e netos. Conseguem falar ou brincar juntos durante horas. Porque estão a aproximar-se, neste círculo. Os velhos já deram a volta para o cimo e estão a aproximar-se dos jovens que começaram a descer pelo lado direito. Gostava de ter tido netos. Mas, como te disse, Helen, o meu único filho foi morto em África, na
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segunda guerra mundial. Encontraram-no morto junto à sua metralhadora, a rechaçar um ataque inimigo para permitir que a sua companhia se reagrupasse e lançasse um contra-ataque que esmagou as forças inimigas. Tenho os recortes dos jornais.
Mas basta do que acontece ao corpo e do que acontece à memória. O que é importante, à medida que envelhecemos, é que o espírito ainda irrompe em chamas. Os sonhos...
Lembro-me de teres dito... lembras-te? Foi naquela noite em que estivemos a descascar ervilhas juntos... como te desagradava que os homens te dissessem que se sentiam gratos pela tua companhia. E, especialmente, disseste que, depois de teres intimidade com um homem, não suportavas a sua gratidão, a qual, na tua opinião, "estragava" tudo.
Querida Helen, receio ter de te ofender agradecendo-te as tuas muitas gentilezas, teres aturado os meus disparates, o prazer e a felicidade que trouxeste à minha vida.
Acho melhor não nos voltarmos a ver. Sim, tens razão, é uma situação impossível.
Mas ver-te e saber o que foste, para mim, é a justificação absoluta de manter o espírito jovem e flamejante, por mais velho e decrépito que este triste saco do meu corpo se tenha tornado.
com todo o meu amor, sempre... com os mais sinceros desejos e esperança e orações pela tua felicidade futura... com todo o apreço pela tua inteligência e beleza e bondade... de todo o coração, sou,
com todo o amor,
s l J o Rhodes
l
P. S.: Na receita de galinha rock comish que me pediste, há que acrescentar duas colheres de chá de tomilho à manteiga derretida e ao sumo de limão. Regar frequentemente, enquanto assa.
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Está?
Helen? Fala Uck... Uck Faye. Que é que se passa? Há algum problema?
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- Não. Eu... eu... Helen, não estou... a interromper nada, pois não? Tu sabes...
- Oh... estás a interromper o meu sono. Que horas são, Uck?
- Já passa das três. São quase três e meia.
- Jesus. Estás bêbado, Uck?
-Oh, não. Não consigo dormir. Estou deitado desde a meia-noite. Viro-me para um lado, depois viro-me para o outro. Meu Deus, como eu quero dormir. Mas não consigo. Estou aqui deitado com o cérebro a trabalhar.
- Talvez estejas demasiado cansado.
-Talvez. Não sei. Quero tanto dormir e não consigo. E ouço barulhos. Como se estivesse alguém em casa. Tu sabes... como se fossem passos.
- Isso é tolice, querido.
- Eu sei, eu sei. Levantei-me por duas vezes e fui ver. Acendi as luzes todas. Não há cá ninguém. E todas as janelas e portas estão trancadas. Depois, voltei para a cama e volto a ouvir os barulhos. Parecem pequenas pancadas. Desculpa ter-te telefonado.
- Não faz mal, Uck. Olha, por que é que não tomas um daqueles comprimidos que te dei?
- Já não tenho nenhum. Já os tomei todos. Podes arranjar-me mais?
- Claro. Dou-tos amanhã.
- Helen, posso falar contigo? Só durante alguns minutos? Sinto-me tão... tão devastado. Tenho tanto medo. Tenho o coração a bater desordenadamente. Talvez esteja a ter uma trombose ou qualquer coisa assim. Estou todo suado. Está demasiado calor aqui. Atirei os cobertores para trás. Estou aqui deitado nu, a suar.
- Tem calma, querido. Espera um segundo, enquanto eu acendo a luz e procuro um cigarro. Pronto, já estou a postos. Trabalhaste muito hoje?
- Oh, sim. Sim, trabalhei. Talvez tenhas razão, talvez esteja demasiado cansado. Tenho estado a fazer investigação sobre a cegueira e sobre os problemas dos cegos.
- Que interessante. Jantaste bem?
- Razoavelmente. Carne assada. A Edith é péssima cozinheira. Quem inventou aquela idiotice sobre os "cozinhados da mãe" nunca provou os cozinhados da minha mãe. Não consegue cozer um ovo como deve ser. Ouve, Helen, desculpa ter-te acordado, mas tinha de falar Tinha de falar contigo.
- Não faz mal, querido... já te disse. Não te preocupes. Bebeste muito hoje?
- Não. Muito pouco. Dois martinis ao almoço e três uísques depois de jantar. Não é muito.
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- Não. É muito pouco. Aconteceu alguma coisa no escritório ou em casa? Sabes, uma discussão ou qualquer coisa? Qualquer coisa que te tenha incomodado?
- Não me lembro de nada. Mas estou aqui deitado a suar e a pensar em coisas.
- Em que é que estás a pensar, Uck?
- Em coisas de todo o género. Nos barulhos, na casa. Na investigação que fiz sobre a cegueira. Na Edith. Na forma como vivo. Jesus. Estou deprimido. Gostava de ter
um daqueles comprimidos, Helen. Cem daqueles comprimidos.
- Tem calma, querido. Respira fundo. Ainda ouves os barulhos?
- Espera um instante... Não, já não os ouço. Acho que era imaginação minha.
- Talvez fossem as janelas a vibrar. Tu sabes... o vento. Ou talvez seja do calor. A madeira a encolher e a ranger. Ouve, queridinho, queres-te vestir e apanhar um táxi e vir cá dormir?
- Oh, não. Não. Oh, meu Deus, sim, como eu adoraria ir. Como eu adoraria estar contigo neste momento... a salvo e cheio de sono. Mas não posso fazer isso. Não te posso fazer uma coisa dessas. Já não estou tão mal. vou passar desta noite. É só que queria ouvir a tua voz.
- Eu sei, querido, eu sei...
- Helen, sinto-me tão... tão...
- Eu sei, eu sei.
- Não consigo deixar de pensar na morte e no que é que me vai acontecer... nunca mais ser. Desaparecer. Compreendes? E a vida continua. O mundo. Como se eu nunca tivesse existido. Santo Jesus Cristo.
- Tem calma, Uck. Acalma-te. Acende um cigarro.
- Essa é outra. Estou sem cigarros.
- Talvez tenhas uma beata comprida por aí algures. Procura. Talvez consigas dar algumas fumaças.
- Sim. É boa ideia. Espera um instante, Helen. vou à procura... Ok. encontrei uma. Provavelmente, vou queimar os lábios. Caramba, isto ajuda. Estás aí, Helen?
- Estou aqui, querido.
- Ouve, em relação a essa coisa da cegueira que estou a fazer... como é que os cegos sonham? Tu sabes?
- Não entendo o que queres dizer.
- bom, tu sabes que todos nós sonhamos. E os sonhos são sob a forma de cenas. Lugares. Onde estivemos e com pessoas que conhecemos. Está tudo em cenas visuais... como um filme. Mas, se uma pessoa é cega de nascença e nunca viu nada, como é que pode sonhar?
- Não sei, Uck. Não consigo imaginar.
- Nem sequer a cores. Se uma pessoa é cega de nascença, nem
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sequer pode sonhar a cores, pois não sabe o que são as cores. Então, como é que os cegos sonham?
- Talvez não sonhem.
- Toda a gente sonha. Eu farto-me de sonhar. Só que, normalmente, sonho quando estou acordado. Mas essa é uma das coisas em que eu tenho estado a pensar... na morte e em como é que os cegos sonham. Meu Deus, que noite horrível.
- Já estás um pouco mais... calmo?
- Um pouco. Sim. Acho que estou a acalmar. A beata do meu cigarro está a apagar-se. Achas que fume o filtro?
-Agora, sei que já te estás a sentir melhor, Uck. Pelo menos, consegues dizer uma piada.
- Claro. Já me sinto melhor. Mas foi por ter falado contigo. Já te disse que te amo?
- Hoje ainda não disseste.
- Amo-te hoje.
- Querido. Agora apaga o filtro do cigarro, vira-te de lado e tapa-te com um cobertor. Não durmas destapado. É assim que se apanham as constipações.
- Sim, mãe.
- Não me chames isso, meu filho da puta. Agora, deixa-te ficar aí deitado a respirar fundo e não penses na morte nem em como é que os cegos sonham. Pensa só em mim. Ok.
- Ok. Sim. É isso que vou fazer. Vou-me tapar e aconchegar e pensar em ti. E vai correr tudo bem.
- Isso garanto-te eu. Boa noite, Uck.
- Boa noite, querida.
- Boa noite. Boa noite.
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- Peggy Palmer - disse Helen, com os olhos marejados de lágrimas -, já pensaste que, provavelmente, esta é a última vez que tu e eu estamos juntas sozinhas, antes de seres uma mulher casada?
- Oh, Helen - gemeu Peggy, a piscar os olhos com força, e as duas mulheres deram as mãos, no restaurante apinhado de gente.
- Dois cocktails de champanhe - pediu Helen numa voz autoritária ao empregado sonolento.-Peggy, este é o meu almoço especial para ti. Não quero ouvir essas tretas de pagar a conta a meias ou de seres tu a dar a gorjeta ou de dividirmos o táxi ou qualquer coisa assim. Este é o meu almoço de despedida para ti... só nós as duas.
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Agora, a doce Peggy estava a soluçar abertamente e a limpar os olhos com o guardanapo engomado.
- Nós vamo-nos ver - fungou ela. - Promete-me que vamos. Vais lá jantar a casa, pelo menos uma vez por semana. Podes levar o Uck ou eu peço ao Maurice para levar um colega do escritório. Não vais deixar de me ver, pois não, querida?
- Olha, meu amor - disse Helen, dando-lhe palmadinhas na mão -, sabes que é capaz de ser melhor termos calma, durante algum tempo. Só durante uns tempos, até tu e o Maurice estarem habituados a viver juntos. Eu não acho bem impor-me a recém-casados, querida. Acho que é preciso dar-lhes oportunidade para se cansarem um do outro. Portanto, vamos esperar uns tempos... talvez umas duas ou três semanas depois de voltarem.
- É muito boa ideia - disse Peggy, limpando os olhos. - Mas, assim que estivermos instalados, telefono-te. Primeiro, vamos almoçar... só nós as duas. Nessa altura, conto-te tudo. Depois, vais lá a casa jantar. Vamos a Porto Rico... já te disse?
- Porto Rico? Oh, querida, isso é maravilhoso! Pensa só, todas aquelas praias e sol! Tu vais andar a pavonear-te no teu biquini roxo, enquanto eu patinho nesta maldita neve. Onde é que vão ficar?
- Algures nos arredores de San Juan. É uma viagem com os bilhetes de avião e o quarto de hotel incluído. Tudo o que pudermos comer. O Maurice está a tratar de tudo. Já te disse que ele não quer que eu lhe chame "Morris"? Quer que eu diga "Mau-rii-ce".
- E depois? Que é que isso tem de mal?
-Nada. Só que não sabia seja te tinha dito. "Mau-rii-ce". Tenho de me lembrar disso.
Chegaram os cocktails de champanhe. Tocaram com o copo no da outra e sorriram, antes de beberem.
- Peggy, nunca terei uma amiga como tu.
- E eu nunca terei uma amiga, nunca, em todo o mundo, como tu, querida. Jesus, como nos divertimos!
-Sim-assentiu Helen.-Divertimo-nos muito. Ouve, Peggy... tenho de te dizer isto. Mandei-te um presente de casamento para o apartamento do Camel... oh, meu Deus, desculpa. Eu sei que já não lhe devo chamar assim. Desculpa, querida.
- Oh... não faz mal. Às vezes, eu própria tenho de ter cuidado. -De qualquer forma, mandei-te um presente de casamento para
o apartamento do Maurice. Está bem, não está?
- Oh, claro! É onde vamos viver até a casa de Forest Hills estar pronta. Vamos lá ficar cerca de um mês, depois de voltarmos de Porto Rico. Que é que mandaste?
- bom, achei que toda a gente te ia mandar torradeiras e fritadeiras eléctricas e tretas dessas. Portanto, descobri umas peças
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magníficas no Tiffanys. São de cristal puro. Seis copos de uísque, seis copos de highball, seis copos de cocktail e seis copos de cerveja. Têm todos o mesmo desenho, com fundos bem pesados.
- Oh, querida, que maravilha!
- Olha, quando os vi passei-me e achei que mais ninguém te ia dar copos.
- E tens toda a razão! Sabes que os meus estão todos lascados e o Maurice só tem frascos de queijo vazios e coisas assim. É uma prenda que nos vai ser extremamente útil.
- bom, olha, querida, se não gostares deles, se os quiseres trocar por qualquer outra coisa no Tiffanys, leva-os lá. O homem disse que os podias trocar sem problema nenhum. Caramba, era um tipo bem giro! Tenho o talão, portanto, se os quiseres trocar por qualquer outra coisa, não hesites. Quero dizer, não fico magoada nem nada disso.
- Nunca os devolverei - disse Peggy, com lealdade. - Nunca. Mas, olha, Helen, não devias ter feito isso. Quero dizer... da Tiffanys. Provavelmente, gastaste muito dinheiro.
- Não sejas idiota. Empregado! Mais dois destes, por favor. Acenderam um cigarro, sorriram uma para a outra, olharam em
volta do restaurante cheio e só falaram quando lhes levaram mais dois cocktails de champanhe.
- Sabes fazer destes? - perguntou Peggy. - São óptimos!
- bom, o que se faz é pôr um cubo de açúcar no fundo do copo. Depois, deitam-se quatro ou cinco gotas de bitter. Depois, junta-se o champanhe e põe-se uma rodela de laranja ou limão ou o que quiseres.
-É mesmo bom! - disse Peggy entusiasticamente. - Só vou beber disto em Porto Rico. Cocktails de champanhe. vou viver bem. -À boa vida-disse Helen, erguendo o copo -, e a ti e ao Morris.
- Mau-rii-cê.
- Mau-rii-ce. Desculpa, Peg.
- Não faz mal. Às vezes, também não me lembro e ele fica aborrecido.
- Olha, miúda, dás-me licença por um instante? Tenho de telefonar para o escritório. O Harry Tennant não apareceu esta manhã. Nem sequer telefonou. A Susie Garrar telefonou-lhe para casa, mas ninguém atendeu. Quero telefonar à Susie, para saber se ele apareceu ou se ela tem notícias dele. A Susie queria ir ao Gimbels... têm casacos em saldo... mas teve de almoçar no escritório e não pôde sair. Não demoro nada.
- Está à vontade. Não há pressa.
- Exacto - disse Helen a sorrir, deslizando para fora do banco.
- Já me tinha esquecido de que agora és uma senhora ociosa.
Voltou daí a minutos.
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- É estranho, A Susie não teve notícias dele e não o consegue encontrar em casa. É a primeira vez que faz uma coisa destas e isto não é nada dele. Olha, querida, queres outra bebida ou pedimos o almoço?
- Isso é contigo. Eu tenho todo o tempo do mundo, mas sei que tens de voltar para o escritório, sobretudo porque o Harry não está.
- bom, olha... vamos pedir mais uma bebida e, ao mesmo tempo, encomendamos o que queremos. O Especial do Dia parece bom. E Galinha Kiev. É peito de galinha sem osso com muita manteiga.
- Oh, meu Deus, estou a ficar tão gorda!
- Não estamos todas? bom, que tal?
- Está bem. com batatas fritas e espargos com molho de manteiga.
- Muito bem. Eu quero o mesmo. Empregado!
Tomaram cada uma mais duas bebidas e comeram o almoço, sem qualquer problema. Depois, pediram dois cafés expresso e... virtuosamente.. não quiseram sobremesa. Mas Helen insistiu que tinham de beber Strega com gelo e uma gota de lima e Peggy Palmer disse que estava bem.
Depois, Helen disse:
- Olha, querida, eu disse-te que te mandei um presente de casamento para o apartamento do teu tipo. Mas isso é oficial. Tenho outra coisa para ti. Isto é só de mim para ti.
Meteu a mão debaixo da cadeira e pegou num pequeno saco de compras. Dentro do caso estava uma caixa elegantemente embrulhada num papel com pequenos corações e voluptuosos cupidos. Helen estendeu-a por cima da mesa.
- Só de mim para ti, querida - disse a sorrir.
- Oh, Jesus - disse Peggy, com os olhos de novo marejados de lágrimas. - Não devias. És um amor.
- Tens toda a razão-concordou Helen. - Abre-a. Mas espreita só. Quero dizer, não pegues de forma a toda a gente ver.
Peggy tirou a fita, abriu cuidadosamente a caixa com dedos nervosos e espreitou. Era um conjunto de soutien e slip azul, enfeitado com renda branca, muito delicado, muito frágil, muito bonito.
- Oh, meu Deus! - exclamou Peggy. - Oh, meu Deus!
- Gostas?
- Oh, meu Deus!
- Uma coisa antiga, uma coisa nova, uma coisa emprestada, uma coisa azul. Esta é a tua coisa azul... de mim para ti.
- Filho da mãe! - soluçou Peggy. Inclinou-se sobre a mesa para encostar o rosto molhado à face de Helen. - Oh, é tão bonito!
- Comprei-o naquela loja francesa, na Avenida Madison. Tenho a certeza de que te serve. E sabes o que é que quero? Quero que os uses
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no teu dia de casamento e que o teu homem rosne e refolegue e tos arranque e os rasgue todos. Não me ralo. É isso que eu quero que ele faça.
-Estás a brincar-disse Peggy, indignada. - Se ele tocar neles com um só dedo, dou-lhe um estalo.
Inclinaram-se sobre a caixa, a examinar a renda e as costuras da lingerie, a chamar a atenção uma da outra para a forma hábil como as alças do soutien tinham sido cosidas, como o slip tinha um corte tão sedutor. Mas, depois, o empregado trouxe os cafés e os licores e elas guardaram a caixa, acenderam um cigarro, recostaram-se, beberam o café, respiraram fundo, olharam em volta, deram um golinho no Strega... e sonharam.
-Lembras-te-disse Helen Miley pensativamente -, lembras-te daquela noite em que fomos ao Palisades Park e conhecemos aquele maluco do Rolls-Royce?
- O tipo com o boné de xadrez?
- Esse mesmo. E fomos ao apartamento dele.
- Caramba! - suspirou Peggy Palmer. - Alguma vez viste quadros assim? Tivemos sorte em sairmos de lá vivas.
- Podes dizê-lo.
-Lembras-te-disse Peggy Palmer sonhadoramente -, daquele bar no Lex? Os dois tipos que nos disseram que eram irmãos?
- Se me lembro! - disse Helen num tom pesaroso. - O meu tipo roubou-me o relógio. E lembras-te daquela noite na Village, na discoteca, e de todas as pessoas que conhecemos?
- Quando fomos àquele sótão na Rua Houston?
- Exacto. Por qualquer razão, estavam a cozinhar erva numa frigideira em cima de um bico a gás. Foi a primeira vez que experimentei erva. Não me fez nada.
- Nem a mim. Lembras-te dos dois marines... quando fomos para o teu apartamento e tivemos aquela cena?
- Peggy Palmer! - exclamou Helen, levando as mãos ao rosto afogeado.-Nós dissemos..jurámos..jurámos, as duas, que nunca voltaríamos a falar nisso! Não me fales nisso!
- Foi assim tão mau? - perguntou Peggy brandamente.
- Não quero falar nisso. Nem sequer quero pensar nisso.
- Foi assim tão mau? - insistiu Peggy.
- Não é isso que está em causa - disse Helen, muito hirta. Empregado! Por favor, a nossa conta.
Ficaram paradas no passeio, debaixo do toldo do restaurante, encolhidas dentro dos seus casacos de pele. Estava a cair uma neve oleosa... não estava bem a cair, mas sim a ser lançada por rajadas de um vento zangado.
-Então, querida-sorriu Helen-, acho que da próxima vez que
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te vir vai ser no altar. Não é preciso dizer, "desejo-te as maiores felicidades". Sabes que eu quero o mundo inteiro para ti.
- Oh, querida-disse Peggy, recomeçando a chorar-, tens sido tão... tão fantástica! Obrigada pelo almoço e pelo presente de casamento oficial e por isto... - Ergueu o pequeno saco. - Foi tudo maravilhoso.
- Claro. Agora, tenho de voltar para o escritório. Lá estarei no casamento, querida.
Subitamente, Peggy Palmer abraçou-a com força, a tremer.
- Tenho medo - murmurou ela. - Juro por Deus, Helen, tenho medo. Não sei o que fazer. Estou toda... não sei... estou toda confusa. Diz-me, achas que estou a fazer bem?
- Tem calma, querida. Vai correr tudo bem. Vai correr tudo muito bem.
- Não me esqueces, pois não, Helen?
- Não, querida. Não te esquecerei.
Beijaram-se nos lábios e separaram-se. Ia conseguir apanhar um táxi. E ir a pé até à Quinta Avenida para apanhar um autocarro da baixa parecia-lhe idiota. Portanto, começou a andar em direcção ao escritório, com o queixo enterrado na gola de pele. Trazia as botas que Richard Faye tinha insistido que ela pusesse da última vez que tinham ido para a cama, ("Caramba, que maluco!") Apertavam a meio da canela e protegiam-na na lama e da neve, mas sentia os pés frios e molhados. Tinha a certeza de que o nariz lhe ia gelar e cair. Ficaria apenas com dois buracos... dois buracos no meio da cara e sem nariz.
Mas, apesar de todos estes achaques e desconfortos, tinha que reconhecer que não era mau. Abrir caminho pela neve. As pessoas iam de cabeça baixa, a resmungar. Ela estava quente de ter comido e bebido e riu baixinho, quando pensou nos receios de Peggy Palmer. Helen Miley lá ia, chafurdando, com neve nas sobrancelhas, a escorregar e a deslizar, com a carteira ao ombro, com as mãos enluvadas enfiadas no fundo das algibeiras. Não era assim tão mau. Gostava de neve. O sol e o calor eram óptimos... mas ela não os quereria sempre. Aquilo não era assim tão mau.
Foi a pé até ao escritório. Quando lá chegou, ia a bater os dentes e sentia os ossos gelados. Decidiu mandar vir um café. Daria uma golada do brande que o Swanson tinha na última gaveta da secretária. Talvez tomasse duas aspirinas. Que é que podia acontecer?
O rapaz do elevador abanou-lhe a cabeça tristemente e ela percebeu que o seu número do dia anterior tinha falhado. Ora! Tirou o casaco de peles e sacudiu a neve derretida. Quando entrou no escritório, levava-o no braço. Mais tarde, lembrou-se de todos estes pormenores.
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Que estranha visão! No sofá Grand Rapids Swedish Moderne da recepção... o que tinha braços e pernas de madeira e almofadas de plástico cor de laranja... estavam sentados dois homens, muito direitos. Um era preto e o outro era branco. Tinham ambos uns trinta e cinco ou quarenta e cinco anos, por aí. Estavam os dois bem vestidos, bem barbeados, ambos tinham sobretudo e tinham colocado as mãos nuas sobre os joelhos. Estavam ambos de galochas. Estavam ambos de chapéu... chapéus de feltro cinzentos semelhantes. Pareciam suportes de livros numa galeria de artepop. Quando Helen entrou, levantaram-se ambos e tiraram o chapéu.
Susie Garrar não ergueu os olhos. Estava sentada à secretária, com os dedos sobre o teclado da máquina de escrever. No entanto, não estava a escrever.
- Menina Miley - murmurou ela. - Hum... estes... hum... senhores. Estes... hum... senhores... querem falar consigo. Consigo.
O homem preto deu meio passo em frente e abriu a palma da mão rosada. Mostrou uma pequena carteira de pele... qualquer coisa escrita, um selo oficial, um crachat.
-Detective Samuel B. Johnson-exclamou ele.-Este é o detective Rollin H. Forsythe.
O homem branco deu um passo em frente e fez o mesmo movimento, abrindo a palma da mão e revelando a mesma pequena carteira de pele.
- Podemos falar consigo, Menina Miley? - perguntou ele. A sua voz era inesperadamente aguda... quase uma voz de mulher.
- Claro - disse ela, intrigada. - Venham por aqui. Conduziu-os para o seu gabinete e fechou a porta. Pendurou o
casaco. Eles ficaram de pé, de cabeça baixa, ambos com as mãos fechadas, a segurar nos chapéus, a tapar as suas partes privadas.
- Querem sentar-se? - Ela fez um gesto, mas eles não lhe prestaram atenção. Portanto, ela ficou de pé.
-Afinal, que é que se passa-Ela tentou sorrir. Mas não se sentia mais quente, sentia-se mais fria.
- Harry L. Tennant? - perguntou o detective branco na sua voz aguda. - Empregado desta empresa?
- Sim-disse Helen, nervosamente. - Claro. Sim, é empregado. Trabalha para nós. Hoje não apareceu, mas há meses que trabalha para nós. Que é que se passa? Há algum problema?
Os dois homens trocaram um olhar rápido. Depois, pareceu que se dissolveram. Isto é, pareceu que se tornaram moles dentro dos seus sobretudos. Deixaram cair ligeiramente os ombros e os seus rostos caíram e deixaram de parecer suportes de livros. Pareciam seres humanos. O negro tinha uma borbulha no queixo. O branco tinha um penso rápido em volta do polegar.
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- Sente-se, Menina Miley-disse o negro suavemente. - Francamente, acho que se deve sentar.
Portanto, ela sentou-se, atrás da secretária. Mas eles continuaram de pé, a olhar fixamente para ela.
- O que aconteceu foi... - começou a dizer o branco - ... o que aconteceu foi...
-Ele suicidou-se-disse o negro.-Harry L. Tennant suicidou-se. Morreu.
Ouviu-se uma sirene lá fora... um carro-patrulha ou um carro dos bombeiros ou uma ambulância. Havia qualquer coisa a carpir no meio daquela neve.
- Morto? - disse Helen Miley, pensando o que o "L" quereria dizer. Ele nunca lhe tinha falado nisso, nunca lhe tinha dito.
Os dois detectives puxaram de pequenos blocos de notas idênticos.
- Descoberto às onze e dezoito esta manhã...
-Um frasco vazio daquilo que parecia serem barbitúricos na mesinha-de-cabeceira...
- Não foram vistas quaisquer visitas...
-Não há registo de quaisquer tentativas anteriores de suicídio...
- O corpo foi removido para a morgue da cidade de Nova Iorque às doze e vinte...
- Foi a mulher-a-dias - explicou o detective branco. - Era o dia dela ir fazer limpezas. Foi trabalhar e descobriu o corpo. Chamou a Polícia.
- Mas era demasiado tarde - explicou o detective negro. - Já estava morto há horas. bom, não sabemos isso ao certo. Será feita uma autópsia. Mas o ML acha que já estava morto há horas. Ele tomava drogas?
- O quê? - Tanto quanto sabe, o homem que conhece... conhecia... como Harry L. Tennant era tóxicodependente?
- Não, senhor - disse ela num tom formal. - Tanto quanto sei, o homem que eu conhecia como Harry L. Tennant não era de forma alguma tóxicodependente.
O branco virou-se para o negro.
- Sabes, Sam - disse ele num tom espantado -, é uma forma curiosa de um negro recorrer ao Dutch Act. Nunca soube de nenhum que tivesse usado
comprimidos... e tu?
- Rolly, tens razão - disse o negro, igualmente admirado. Acho que nunca ouvi falar num caso de suicídio com comprimidos relativamente a um negro. A maioria salta
da janela ou do telhado.
- Importam-se de parar? - gritou-lhes Helen Miley. - Importam-se de parar com isso?
- bom - disse o negro num tom decidido -, ele deixou um bilhete dirigido a si. Aqui está.
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Tirou-o do bolso do sobretudo. Estava dentro de um pequeno envelope da Swanson Feltzig.
Helen pegou nele com uma mão firme. Pôs os óculos e olhou para ele.
- Vocês abriram-no - exclamou ela, zangada. Ambos encolheram os ombros e desviaram o olhar.
- Minha senhora, tivemos de abrir - murmurou o detective negro. - É o que diz o regulamento. Se houver um bilhete, abrimo-lo, para termos a certeza de que foi suicídio. Sabe... temos de investigar. Para termos a certeza de que foi mesmo suicídio. Fizemos uma fotocópia, mas pode guardá-lo, se quiser. Pode dar-nos uma amostra da letra dele?
- O quê?
-Uma amostra da letra dele. Para termos a certeza de que foi ele que escreveu isto.
Ela não respondeu. Estava a ler. O bilhete dizia: "Querida. Não te culpes a ti própria. Não foste tu, fui eu. Agradeço-te. Tu tentaste. Harry."
- Que é quis dizer com isso? - perguntou o detective branco.
- Vocês abriram-no! - gritou ela outra vez.
- Tivemos de abrir - explicou ele pacientemente. - Temos de abrir os bilhetes dos suicidas e lê-los. Minha senhora, não gostamos de fazer isso, garanto-lhe.
- Garanto-lhe que não - assentiu o detective negro.
- Oh, não sei - disse ela numa voz baça. - Não sei o que é que que ele quis dizer.
Eles disseram que o irmão de Harry tinha sido avisado e que ele trataria de tudo. Helen abanou afirmativamente a cabeça. Descobriu algumas amostras da letra de Harry. Deu as notas aos detectives. Eles agradeceram-lhe.
Não parecia haver nada mais para dizer. Eles hesitaram durante alguns momentos e depois dirigiram-se para a porta. Pararam e olharam para trás, para ela.
- Isto não é nada agradável para nós - guinchou o detective branco.
Helen assentiu.
- bom... - disse o detective negro. Depois, foram-se embora.
Entre o gabinete privado de Swanson e o gabinete privado de Feltzig havia uma casa de banho revestida a azulejos. Tinha uma sanita e um lavatório, mas não tinha banheira ou duche. Era apenas um lavabo, onde se podia fazer chichi ou lavar a cara... um sítio assim.
Helen entrou, tirou os óculos, ajoelhou-se no chão de mosaico,
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mesmo à frente da sanita, inclinando-se como quem está numa fonte religiosa ou qualquer coisa assim. Vomitou, saindo-lhe tudo: os cocktails de champanhe e a Galinha Kiev e os espargos com manteiga e as batatas fritas e o café expresso e o Strega e, finalmente, uma coisa branca e fina como um cordel. Esvaziou-se, simplesmente, fazendo pequenos ruídos de animal, aos arranques e a tossir e a espirrar, saindo-lhe porcarias pelo nariz... sem conseguir parar.
Meu Deus, devia lá ter estado quase meia hora, aos arranques e a tossir, com todo o corpo aos estremeções, com aquela porcaria a sair de dentro dela... sem conseguir parar.
Mas, depois, ouviu Susie Garrar a bater na porta e conseguiu dizer:
- Está bem. Está bem. vou sair. Estou bem.
Ali ajoelhada. com a testa encostada à borda fresca da sanita. A respirar em grandes golfadas ásperas. "Querida. Não te culpes a ti própria." Foi o que ele disse. Ela suspirou. "Não foste tu, fui eu." Sentia a língua grossa e quente. "Agradeço-te. Tu tentaste." Queria vomitar mais, queria, mas não tinha mais nada para vomitar. Nada. "Tu tentaste, Harry."
Tentou pôr-se de pé, com dificuldade, agarrando-se ao toalheiro. Estava quase de pé, quando o toalheiro saiu da parede, simplesmente saindo da parede de azulejos. Ela cambaleou, mas não caiu. Depois endireitou-se, com o toalheiro na mão. Olhou para ele, abriu a mão e deixou-o cair.
Lavou a cara com água fria. Não tinha escova de dentes, mas passou um dedo pelos dentes e pelas gengivas, lavando-os com água fria. Olhou-se ao espelho. Não estava nada bem.
Passado algum tempo, saiu e olhou vagamente em volta. Vestiu o casaco, pôs o chapéu, calçou as luvas e saiu. Na recepção, Susie Caf rar estava inclinada sobre a secretária, com o rosto e os braços em cima da secretária, com os ombros a estremecer. Helen sabia que devia dizer qualquer coisa. Mas não conseguiu. Não conseguiu tocar nela, nem sequer lhe conseguiu dar uma palmadinha. Passou por ela, porta fora. bom...
Lá estava... o mundo. Pessoas curvadas contra o vento, a resfolegar na neve. Táxis e camiões. Discussões e gritos. Os edifícios continuavam lá. Anúncios. Saldos especiais. Descontos. Tudo. Continuava tudo lá.
Foi para casa a pé, quase como se fosse passear. Uma vez, virou a cara para o céu e deitou a língua de fora. Flocos de neve caíram-lhe na língua e derreteram. Há anos que não fazia aquilo. Uma mulher idosa que ia a passar olhou para ela, sorriu e abanou a cabeça.
Os táxis molharam-na. Um paquete com uma grande caixa deu-lhe um encontrão. Mas ela foi a pé para casa, a tentar não pensar
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em nada a não ser na neve que caía, no movimento de Manhattan no princípio do Inverno... tudo carregado de vida e de esperança.
Chegou ao seu apartamento. A porta com as duas fechaduras e com a corrente. Rocco não estava lá. Um pássaro louco a piar sem razão e a dizer obscenidades. Mas, sobretudo, Helen Miley no seu próprio apartamento, sozinha. Ela pensou: "Caramba, é agora! Se conseguir passar desta noite, estou safa." A primeira coisa em que pensou foi que não telefonaria a ninguém... nem à Peggy Palmer nem ao Richard Faye nem ao Jo Rhodes nem ao Charles Lefferts... a ninguém. Aquilo era dela. Só dela.
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Algumas semanas depois de Harry Tennant se ter suicidado, Helen Miley estava a passear pela Park Avenue, num sábado, a gozar a tarde cintilante e dura de Dezembro, e deu por si à porta da igreja de St. Bartholomew. Por instantes, sentiu-se tentada a entrar, a sentar-se na capela obsidiante e a dizer uma palavra pelo Harry.
Mas, desde que a mãe morrera, não ia regularmente à igreja. Normalmente, ia na Páscoa e no Natal, mas isso era para ver o espectáculo. Entrar numa igreja agora, quando queria uma coisa, pareceu-lhe indecente, ignóbil... como um soldado que nunca rezou quando adulto até que alguém dispara uma arma contra ele e então é que grita: "Oh, meu Deus!"
A relação de Helen Miley com Deus era distante - eram praticamente desconhecidos. Ela usava palavras e expressões como: "Deus me livre!" e "Por amor de Deus!" e "Oh, Jesus Cristo!" Mas eram apenas coisas que se diziam, como todos nós dizemos. Uma vez na sua vida, tinha dito "Deus o foda!", quando um atacador se partiu, mas nunca mais dissera isso.
Mas acreditava em Deus. Isto é, acreditava num Ser Supremo. Porque, se não se acreditasse, como diabo é que se podia entender o que é que toda a gente andava a fazer? Transformava-se tudo num nada e, com a roupa suja e a roupa para limpar a seco ao domingo, ela não tinha forças para enfrentar isso.
Assim como a maioria das pessoas, ela estava disposta a viver com a ideia de Alguém Lá em Cima... o tipo que se parecia com o Charlton Heston, com barba de algodão e que dava palmadinhas na cabeça às crianças. Esse tipo... que podia bem ter uma qualquer maluqueira divina, que ninguém entendia... fazia que as coisas acontecessem ou
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deixava que acontecessem, sem interferir. Deixou ou fez com que Harry L. Tennant se suicidasse. Mas, se se procurasse qualquer tipo de razão ou lógica, acabava-se no manicómio. Certo?
Era mais ou menos essa a extensão dos sentimentos religiosos de Helen Miley - era muito semelhante à da maioria das pessoas que ela conhecia. Mas não era muito importante. O que era importante era uma pessoa ter de trabalhar e ganhar a vida, sentir-se só, os empregados rosnarem e ser-se enganado na confeitaria. Mas, mesmo assim, quando acontecia qualquer coisa, como o Harry lá no seu apartamento no Harlem a engolir todos aqueles comprimidos com um copo de água tépida de um lava-louças ferrugento, uma pessoa pensava naquelas coisas. Durante algum tempo...
Helen pensou nelas durante algum tempo, sem se esquecer de virar para a Avenida Madison, para poder chegar à Grand Central Station. Parou uma vez num drugstore, para comprar um maço de cigarros e uma vez numa loja áelingerie, para ver uns biquinis de renda, mas não comprou nenhum.
Ia ligeiramente inclinada para a frente a subir Murray Hill e pensou em Jo Rhodes, que não vivia longe dali, na Rua 38. Depois de receber aquela carta, tinha-lhe telefonado duas vezes, mas ninguém atendeu. Tinha-lhe escrito uma vez, mas não recebeu resposta. Decidiu comprar uma pequena garrafa de Grand Marnier para Jo Rhodes, numa loja de bebidas. Depois, iria visitá-lo. Se ele não estivesse em casa, ficaria ela com o Grand Marnier; podia bebê-lo ou utilizá-lo para cozinhar, não seria um desperdício.
Quando tocou à campainha, foi uma mulher que veio à porta... velhota, não velha enrugada, mas também já não de meia-idade. Helen Miley não ficou chocada, sobressaltada ou sequer admirada. Percebeu imediatamente que era a mulher de Jo Rhodes. Helen sorriu, pensando que sempre soubera, muito embora não o admitisse a si própria. Fazia isso frequentemente... saber coisas e não as admitir.
- Sr.- Rhodes? - perguntou ela.
- Sim.
- Sou uma amiga do Jo. Chamo-me Helen Miley. Vim visitá-lo, mas...
- Oh, raios! - disse a mulher, abrindo a porta de par em par. Entre.
Ela era grande, muito mais alta que Jo, e robusta, de ombros largos. Tinha um buço preto... leve, mas perceptível. Tinha aquele tipo de pele que as mulheres mais velhas, por vezes, têm... de um veludo rosa-suave. Dava vontade de ter um exemplar de Against the Grain encadernado com pele dos seus ombros. Tinha na mão (o que não era brincadeira) um cigarro e um martini (puro). Vestia um... bom, parecia.. um pijama com um desenho persa qualquer, tudo muito largo.
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- Sente-se - disse ela a Helen numa voz grossa e áspera, quase masculina. - Estou a beber um martini. Quer?
-Trouxe isto - disse Helen, estendendo-lhe a pequena garrafa de Grand Marnier.
A Sr.s Rhodes pegou nela, inspeccionou-a e abanou a cabeça.
- Está outra vez no seu período Escoffier, é? - perguntou ela num tom divertido. - Decerto que não quer beber isto!
- Oh, não. É para si. Eu gostava de um uísque com soda, por favor.
- Muito bem - assentiu a velha mulher, num gesto de aprovação. - Chamo-me Martha.
Helen sentou-se, pôs os óculos e acendeu um cigarro. Sentia-se muito bem. Não estava embaraçada nem nada. Aquele encontro agradava-lhe, gostou da mulher logo à primeira vista e sentiu, instintivamente, que a mulher tinha gostado dela.
Martha trouxe o uísque... grande... e deu-o a Helen. Depois deixou-se cair num cadeirão, com as pernas gorduchas, com meias de seda, abertas à sua frente. ;
- Ele foi a uma exposição - disse ela. -A uma galeria de arte qualquer em Lexington. Provavelmente, só volta daqui a horas.
Helen assentiu e bebeu alguns golos do uísque. Estava forte.
- Eu estive em Kansas City - explicou a Sr.9 Rhodes. - A minha filha mais nova teve o segundo filho e eu fui dar-lhe uma
ajuda, Depois, Jo foi-nos visitar e voltámos os dois de avião.
- Quantas filhas é que tem, Sr.ê Rhodes?
- Martha.
- Martha.
- Tenho três filhas.
- Nenhum filho?
Martha inclinou a cabeça para trás e inspeccionou o tecto.
- Refere-se ao filho que morreu na segunda guerra mundial e que deu ordens à tripulação do bombardeiro, que estava a pilotar, para saltar e depois levou o avião carregado de bombas até uma importante fábrica de armas alemã e assim encurtou a guerra em, pelo menos, um ano? E o Jo tem os recortes.
- Sim - assentiu Helen. - E a esse filho que me estou a referir. Sorriram uma à outra.
- Lamento - disse Martha. - Nenhum filho. Três filhas. Ela abriu uma pequena lata e tirou um charuto holandês. Helen
levantou-se do sofá para dar lume à mulher mais velha.
- Obrigada. Diga-me uma coisa, Helen...
- Claro.
- Onde é que ia ser desta vez? Uma pequena casa de pedra na Irlanda? Podiam ver o mar a bater contra os penhascos. As mulheres
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com rostos como nozes levavam-lhes o uísque de contrabando, que faziam nas suas cozinhas cheias de fumo, e os pudins de shamrock. Os pescadores saíram para o mar nos seus barcos, que não passavam de cascas de nozes, a desafiar os elementos, para pescar os arenques schmaltz. Era assim?
- bom... não - disse Helen, pensativamente, a olhar para a ponta acesa do seu cigarro. -Aprincípio era em França. Na Riviera. Perto de Espanha. Mas, depois, passou a ser na Itália. Ele esqueceu-se.
Martha suspirou.
- Jesus! O ano passado apareceu cá uma rapariga tão novinha que tinha covinhas no rabo. com um cabelo ruivo que lhe chegava à cintura. Verdadeiramente bonita. Trazia uma braçada de peles. Estava pronta a ir passar um mês glorioso na suadacha às portas de Moscovo. Ele tinha-lhe dito que não fariam mais nada, se não beber vodka e ver os indígenas colher os blintzes selvagens... a sua produção mais importante.
- Martha, ele não... bom, sabe... não está senil, pois não?
- Senil? Oh, que tola! Não sabe que iodos os homens são senis... desde o dia em que nascem?
- Não sabia - murmurou Helen humildemente.
- Palhaços - disse Martha, abanando a cabeça massiva. - Devia haver uma lei que exigisse que todos os homens se vestissem de palhaço, com narizes postiços e chapéus engraçados e calças largas.
Pôs-se de pé pesadamente e espreguiçou-se, abrindo totalmente os braços. Uma velha mulher, é certo, mas ainda forte, ainda vigorosa. Aquele buço. Aqueles charutos.
Foi à cozinha e voltou com novas bebidas para si e para Helen. Beberam aos golinhos, esparramadas nos cadeirões. Estenderam à sua frente as pernas abertaa e voltaram a ficar a olhar para o tecto.
- Acho que tem razão, Martha - disse Helen, finalmente. Conheço um anormal que acha que é o Senhor Orgasmo em pessoa. Na realidade, é um acrobata bastante bom. Mas o tolo quer fazer carreira disso. Acha que vai passar a vida deitado na cama e a nadar em dinheiro.
- Claro, pequena. Fantasias. Todos eles as têm. E, na maioria, são fantasias sexuais.
-Fantasias sexuais-disse Helen sonhadoramente.-Sim, isso é verdade.
-Alguma vez conheceu uma prostituta? Quero dizer, alguma vez foi amiga de uma e ela alguma vez lhe disse como era a sua profissão e o que é que os palhaços lhe pediam para fazer?
- Não. Na verdade, nunca conheci nenhuma prostituta tão intimamente.
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-Pequena, nem dá para acreditar. Contar-lhe-ia cada história.. as cenas que têm de representar. Alguma vez ouviu falar de uma mulher que queria que o amante se
vestisse de Little Boy Blue e entrasse a correr no seu quarto a rolar um arco? Claro que não. Porque eles são os sonhadores e nós somos os realistas.
A luz estava a esvair-se da sala, mas Martha não se deu ao trabalho de acender as luzes. Helen não sugeriu que o fizesse. Ficaram ali sentadas, a mordiscar as bebidas,
a cortar nos homens e a sentirem-se lindamente.
- Quanto ao Jo - começou a dizer Martha -, ele pode mentir ocasionalmente, mas...
- Oh, não - protestou Helen -, a sério, não.
- A sério não - concordou Martha. - É só porque a realidade não está à altura das suas expectativas. Ele tem de a melhorar, aproximá-la do seu... do seu...
- Do seu sonho?
- bom... sim. Do seu sonho. Mas note, não há nele nenhuma maldade.
- Maldade? - gritou Helen Miley. - No Jo? Como é que pode dizer isso? Ele é o homem mais querido, mais amoroso que alguma vez viveu.
- Eu não disse que havia maldade nele. Disse que não havia nenhuma maldade nele. Helen, não me está a prestar atenção.
Helen aceitou esta admoestação com um sorriso. Na verdade, estava a começar a ficar um bocado tocada. As bebidas eram grandes. E fortes.
- Ele é muito simpático - assegurou ela à outra mulher.
- O Joe...
- É claro que ele é simpático - exclamou Sra. Rhodes numa voz áspera, acendendo outro charuto. - O meu Jo-Jo é um santo. Ele é exactamente o que você disse que era...
o homem mais querido, mais amoroso que alguma vez viveu. E também é um enormíssimo chato.
- Ama-o?
- Que é que disse, pequena? Não ouvi.
- Perguntei-lhe se o amava. Ama o Jo?
- Se o amo? Se o amo? E uma boa pergunta...
- bom, eu amo-o - disse Helen num tom de desafio. Martha Rhodes olhou para Helen, durante um longo momento.
- Você não o ama - disse ela suavemente. - Sente um grande afecto por ele. Isso é simpático e agrada-me. Mas isso é diferente de amar. Todas as coisinhas tenras que o Jo conhece têm um grande afecto por ele. O homem tem charme. Eu seria a última pessoa a negá-lo. Mas amá-lo? Helen, ele não a fornicou, pois não?
Helen piscou os olhos, duas vezes.
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- Não.
- Claro que não. Ele nunca faria uma coisa dessas. Isso estragaria tudo. Acordaria e teria problemas. Além disso, não consegue. Mas a mim... - Ela inspirou fundo, com os seus monumentais pulmões a inchar sob a seda persa - ... a mim fodeu-me ele. Portanto, tenho direito a amá-lo. Você não.
Ela dirigiu-se lentamente à cozinha, para ir buscar outra bebida. Moveu-se majestosamente, com a cabeça bem alta. Helen decidiu que, se tentasse acompanhar aquela mulher bebida a bebida, precisaria de uma bomba para o estômago.
Quando a Sr.- Rhodes voltou com as bebidas, trouxe também uma taça com pistachios e um prato de papel.
Começaram a roer, satisfeitas, a partir os frutos secos com os dentes e a cuspir as cascas para o prato de papel. Ficaram com as pontas dos dedos vermelhas.
- Sabe - disse Martha Rhodes a mastigar -, quando o Jo e eu nos conhecemos, há anos e anos, quando dormíamos juntos, quando éramos tão novos que achávamos que tínhamos inventado tudo aquilo, bom, nessa altura, eu amava o Jo, amava-o verdadeiramente. Gostava que você o tivesse conhecido nessa altura... o humor, o charme, e quase tão bem-parecido como o John Barrymore. Já alguma vez viu fotografias de Cole Porter ou de Noel Coward no sul de França, durante os anos 20? Era assim que Jo se vestia, no tempo quente. Um fato de linho branco. CasacoNorfolk. É daqueles que têm cinto. Andava com uma bengala de rotim. E um chapéu de abas largas com um lado para cima e o outro para baixo. Como o Jimmy Walker. Oh, meu Deus, os homens eram tão elegantes nesse tempo! Se tivessem dinheiro. E o Jo tinha dinheiro. Porque, por baixo da roupa, do humor, do charme, havia um homem muito inteligente, cheio de talento e muito trabalhador. Oh, sim, pequena, ele trabalhou muito e ganhou muito dinheiro. E esbanjava-o comigo. Roupa, perfume, viagens... o que eu quisesse. Numa noite de Inverno... acho que foi antes do Crash... fomos dar um passeio pelo Central Park numa berlinda fechada. A maioria das pessoas chama-lhes carruagens, mas, na realidade, são berlindas. E fodemos lá dentro, enquanto o cavalo ia trotando. Já alguma vez fez isso?
- Não - disse Helen, com inveja. - Nunca. - Mas depois animou-se.
- Mas esse homem que eu conheci... agora está morto... mas, quando estava vivo, levou-me a um pequeno restaurante italiano e ensinou-me a comer Tortoni. O que se faz é pedir Tortoni e uma chávena de café simples... talvez mesmo expresso. Depois, com a colher, tiram-se duas colheradas de Tortoni, incluindo as nozes partidas que tem por cima, e põem-se cuidadosamente a flutuar em cima do
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café. O gelado derrete e as nozes ficam lá. Caramba, se é bom! Foi o Harry L. Tennant que me ensinou a fazer isso.
- Ouça - disse Martha Rhodes. - Lembro-me quando o Jo e eu fomos a Paris. Oh... há anos. Fomos ao Folies Bergère. Depois, voltámos para o hotel e ele decidiu que queria beber champanhe do meu sapato. bom, ele tinha-me comprado um par de sapatos de noite encantadores, de seda cinzenta, com as biqueiras abertas. Deve ter sido o primeiro par de sapatos abertos a ser feito. De qualquer forma, eu disse-lhe que ele não podia beber champanhe do meu sapato porque as biqueiras eram abertas. Mas ele insistiu. Deitou-se no sofá e abriu a boca e eu deitei champanhe no calcanhar que escorreu pelo sapato e saiu pela parte da frente para dentro da sua boca.
- Ouça - disse Helen Miley -, um dia estava com um tipo do Oaio. Estávamos na cama e ele estava por cima. bom, era uma cama de campanha... sabe, uma daquelas que se dobra ao meio, com rodas, que se pode meter dentro de um armário ou a um canto. De qualquer forma, estávamos a dar em força, na tal cama maluca, e o fecho partiu-se e a maldita coisa começou a dobrar. Quero dizer, começou a dobrar ao meio. Fiquei com a cabeça e os ombros e as pernas no ar. E ele começou a dobrar-se para trás, com a espinha inclinada para, trás. Ele começou a gritar e eu comecei a rir. Jesus, foi qualquer coisa. Finalmente, conseguimos sair da maldita coisa. Parecia uma armadilha para ursos.
- Ouça - disse Martha Rhodes -, uma vez estava com um homem, muito famoso, e não lhe direi quem era, mas as suas iniciais eram JB. De qualquer forma, fui com ele para o seu quarto de hotel e ele quis saltar logo para cima de mim. Nem sequer quis que perdêssemos tempo a tirar roupa. Atirou-me para cima da cama e agarrou-me. Eu tinha um colar de pérolas e ele partiu-o à primeira investida. As pérolas espalharam-se pelo chão encerado. Cada vez que ele tentava pôr-se em cima de mim, escorregava nas pérolas. Parecia que estava a tentar correr a milha sem sair do mesmo sítio. Pedalou e pedalou, sem conseguir ir a lado nenhum, pois as pérolas rolavam-lhe debaixo dos pés. Eu desatei a rir e ele rugia como um louco. Finalmente, desistiu e deixou-se cair em cima de mim. Disse-me que o pai tinha sido morto no ataque a San Juan Hill.
- Ouça...-começou Helen Miley. Depois parou. As duas mulheres ficaram ali sentadas na penumbra, a sorrir, entristecidas.
Depois, sentaram-se direitas e beberam delicadamente como é suposto as senhoras fazerem.
- Diga-me lá - disse Helen -, depois de ter feito aquilo com o Jo na carruagem no Central Park, que é que aconteceu?
- bom, foi nessa altura que ele me pediu em casamento... durante o lanche no Plazza depois de me ter fornicado na berlinda.
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- Disse que sim de imediato-perguntou Helen ansiosamente.
- Não, não de imediato. Só daí a três meses. Nessa altura, já os meus sentimentos pelo Joe tinham mudado. Sabe, ainda tinha um grande amor por ele. Mas já o conhecia
melhor e sabia que ele inventava aquelas fantasias incríveis e como era incapaz... absolutamente incapaz... de amar apenas uma mulher. Para Jo, as mulheres são vitaminas. Não consegue existir sem elas. Precisa delas tanto quanto precisa de lagosta gelada e brande quente. Satisfazem-no. Portanto, eu já não estava apaixonada por ele, mas estava apaixonada pelo amor. com a ideia de amar. Parecia-me a coisa mais importante do mundo e não quis perder isso.
- Oh, sim, sim...
- Além disso, estava grávida. Portanto, disse ao Jo que casaria com ele. Ele ficou surpreendido. Acho que se tinha esquecido de que me tinha pedido em casamento. Mas, muito galantemente, casou comigo. Espero que nunca o tenha lamentado. Eu nunca lamentei. Outra bebida?
- bom... sim.
Helen Miley ficou ali sentada, sozinha, com a cabeça a abanar lentamente. Estava determinada a manter-se lúcida. Era uma tarde maravilhosa. Não queria que acabasse. Mas também não queria fazer nada de idiota, como dizer disparates ou vomitar ou qualquer coisa assim. Estava cheia de fome.
Martha Rhodes entrou com novas bebidas, sem trazer nada para comer. Deu o uísque a Helen e voltou a deixar-se cair no cadeirão, com as pernas grossas esticadas à sua frente. Acendeu outro charuto.
- E depois - disse ela, bebendo um golo do seu novo martini -, e depois, depois de se ter amado um homem, depois começa-se a amar a ideia de amar, depois avança-se e... e...
Parou. Rodou o copo. Olhou para ele, perplexa. Olhou para Helen, espreitando através da penumbra.
- bom, uma pessoa expande-se. E a única maneira que encontro para explicar. Começa-se por amar uma pessoa, um homem. Depois, começa-se a amar a ideia do amor. Depois, isso expande-se para abarcar toda a feia, bela, boa e má raça humana. Não há ninguém que não se possa amar. Uma pessoa quer que todos eles nos chupem as nossas mamas grandes para os podermos aconchegar a nós, aquelas tristes, tristes criaturas. Na nossa cabeça, sabemos exactamente o que eles são... tão terríveis, tão solitários. Mas isso não é importante. O que é importante é que, ao amar uma pessoa, e depois amando a ideia do amor, uma pessoa chega finalmente ao ponto em que, quando conhece alguém, quer que sejam duas almas nuas a esfregarem-se uma contra a outra.
- Oh, sim! - murmurou Helen.
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- Duas almas nuas a esfregarem-se uma contra a outra repetiu lentamente Martha Rhodes, olhando para ela. - É isso que eu penso - acrescentou em voz alta, embora ninguém lhe tivesse perguntado.
Um silêncio quente desceu sobre elas.
- Os filhos ajudam - sugeriu Martha. - Ajudam. Não tem filhos?
- Não.
- Casada? Alguma vez o foi?
- Não.
- Quer filhos?
- Sim - disse Helen, com as lágrimas a virem-lhe aos olhos. Muito.
- Ajudam - assentiu Martha. - Que idade tem, pequena?
- Que idade tenho? - perguntou Helen, confusa. - Oh, trinta e três ou trinta e seis. Por aí. Já menti tantas vezes acerca disso que eu própria já não sei. Ninguém me manda um cartão de parabéns.
- Sabe qual é o dia do seu aniversário?
- Sei, sim. Catorze de Maio.
-vou mandar-lhe um cartão - disse Martha Rhodes. - Todos
os anos.
Helen pôs-se de pé. Dirigiu-se à mulher e beijou-a na face.
- A Martha é óptima - disse ela. - Jesus, como é óptima! Martha agarrou Helen com os seus braços fortes. Apertou-a com ;
força.
- Aguente-se, pequena! - murmurou ela. Helen assentiu em silêncio.
Foi directa para casa, sem acabar a bebida. Foi para casa, tirou os sapatos e foi imediatamente para a cama. Adormeceu instantaneamente. Dormiu quase duas horas.
Quando acordou, correu ao frigorífico. Comeu dois aipos, um tomate inteiro, três fatias de salame (dobradas ao meio, cada fatia entre dois pedaços de Ry-Crisp), meio pepino (com sal), dois ovos cozidos, um pedaço de queijo Cheddar, bebeu uma lata inteira de sumo de ananás gelado, comeu uma perna de galinha fria, dois biscoitos de amêndoa e meia barra de chocolate (com amêndoas) que estava cinzento por estar gelado.
Comeu tudo isto de pé, junto ao lava-louças, sem se dar ao trabalho de tirar um prato ou pôr a mesa. Enfardou tudo, furiosa de fome.
Finalmente, foi até à sala, empanturrada, mas sentindo-se melhor. Sentou-se à secretária e latiu, enquanto dava algumas palmadinhas no estômago. Acendeu um cigarro e o fumo desapareceu algures dentro dela.
197
Passado algum tempo, acalmou, sorrindo ao pensar em Martha Rhodes.
Que velhota simpática e faladora. E Martha Rhodes ia-lhe mandar um cartão de parabéns. Helen tinha a certeza disso.
Pensou na vida de Martha com Jo. Depois, pensou na sua própria vida. Achou que Martha era feliz... ou pelo menos que era tão feliz como qualquer pessoa tinha o direito de esperar ser. E depois?
Helen pegou numa folha de papel amarelo e numa esferográfica. Ia fazer um balancete pessoal, listando os seus pontos fortes e pontos fracos. Tinha lido numa revista feminina que era isso que se devia fazer, quando se estava descontente com a vida, quando se queria mudar as coisas. Fazia-se um registo, sendo absolutamente honesta. Depois, eliminava-se o negativo e acentuava-se o positivo. E, assim, passava a ser-se feliz.
Fez um risco, sensivelmente a meio da folha de papel. Deu o título de Coisas Más à coluna da esquerda e de Coisas Boas à da direita.
Decidiu começar com as Coisas Más. Mais valia despachá-las logo. Escreveu:
- Bebo demasiado.
" Praguejo demasiado.
"vou para a cama com demasiados homens.
"Não escrevo aos meus irmãos e às suas famílias com regularidade.
"Tenho inveja de Peggy Palmer.
Esta última doeu um bocadinho, portanto, foi à cozinha e arranjou um grande uísque com água. Levou-o para a secretária, sentou-se e escreveu:
- Bebo demasiado.
Depois, apercebeu-se de que já tinha referido isto e alterou uma palavra, ficando:
- Fumo demasiado.
Depois, tornou-se ferozmente honesta e começou a escrever o mais depressa que podia:
- Devia ter ajudado o Harry, mas não ajudei. "Por vezes, sou má para Uck.
"Acho que Charles Lefferts é um idiota.
"Odeio o pássaro e não trato dele.
"Devia tomar mais banhos e usar desodorizante.
"Devia ir à igreja regularmente.
"Devia fazer donativos a instituições de caridade.
"Devia adoptar um miúdo de um país estrangeiro qualquer, através de uma dessas instituições de caridade. Não é muito caro e podia tirar o dinheiro do meu ordenado, se deixasse de beber. Ou se não for a Pernambuco.
198
"Tomo demasiados comprimidos.
"Não faço os meus exercícios de ginástica todos os dias. "Devia ler bons livros e cultivar o meu espírito. Parou durante instantes, para roer a ponta do lápis. Bebeu um grande golo deuísque. Depois, acrescentou:
- Bebo demasiado. Gemendo, riscou-o, mas escreveu:
- Visto-me de forma demasiado sexy para a minha idade. : "Minto acerca da minha idade. ; "Devia ir a mais museus.
Não se conseguia lembrar de mais Coisas Más, mas a lista parecia-lhe incompleta. Provavelmente, tinha-se esquecido de qualquer coisa. Finalmente, acrescentou:
- Devia rezar mais.
E deixouficar assim. Releu alista. Pareceu-lhe suficiente. Bebeu o uísque, enquanto voltava a ler a lista e contava. Havia vinte e uma Coisas Más. Antes de começar a escrever as Coisas Boas, preparou outra bebida. Depois, voltou para a secretária, suspirou, voltou a pegar na caneta... bom...
- Sou atraente.
"Os homens gostam de mim e eu gosto deles. "Sou generosa, de diversas formas. "Sou sempre limpa e aprumada.
Já ali estavam quatro Coisas Boas. E, num instante, bebeu um golo de uísque e recomeçou a escrever:
- Sou boa profissional e trabalho muito. "Tento ajudar as pessoas.
Mas aquele último ponto era demasiado parecido com o Número Três ("Sou generosa, de diversas formas"), portanto, riscou-o, triste. Mas depois escreveu:
- Gostava muito de Rocco e cuidava bem dele.
"Fiz realmente o que pude pelo Harry, apesar do que se passou.
"Tenho ajudado Uck. Sei que tenho.
"Não tenho sido má para o Charles Lefferts, muito embora ele seja um idiota.
"Fui muito simpática para com Jo Rhodes e gostei da mulher dele.
Tinha dez Coisas Boas. Mas estavam a ser cada vez mais difíceis de sair. Era importante para ela conseguir vinte e uma, para corresponderem à lista das Coisas Más. Subitamente, apercebeu-se de que aquela que tinha riscado ("Tento ajudar as pessoas") não era exactamente igual à Número Três ("Sou generosa, de diversas formas"),
portanto, voltou a escrever:
- Tento ajudar as pessoas.
Bebeu um golo do seu uísque e acrescentou:
199
- Adoro crianças e quero ter algumas. Isso fazia doze Coisas Boas.
Ficou ali sentada e acendeu um cigarro. Inclinou-se para a frente lentamente, escrevendo:
- Não desejo mal a ninguém.
Isso não parecia lá grande Coisa Boa, mas, mesmo assim, escreveu-a, pois precisava dela. Isso fazia treze. Encostou-se na cadeira, a beber. Não se lembrava de mais. Por instantes, sentiu-se tentada a escrever: "Sou boa na cama", mas teve vergonha.
Mas escreveu:
- Tenho sentido de humor e sei dizer piadas.
Essa era boa. Mas, mesmo assim, a lista de Coisas Más era inquietantemente mais comprida. Ela ficou a olhar para o seu balancete pessoal, sentindo-se pessimamente. Ela tinha de ter mais Coisas Boas, mas não se conseguia lembrar.
Finalmente, acrescentou:
- Tenho cabelo bonito.
Depois, rasgou lentamente a folha em tiras. Duas tiras, quatro tiras, oito tiras. Em pequenos quadrados. Depois, atirou com tudo para o cesto de papéis. Tudo aquilo era uma idiotice e uma estupidez. Ela devia ter mais senso.
Ligou a televisão, foi à cozinha arranjar outra bebida. Quando voltou, estava a dar na televisão um filme antigo com a Doris Day e o Cary Grant. Ele estava a tentar seduzi-la, mas ela ficou com uma erupção de pele. Helen Miley instalou-se no sofá, satisfeita. Sabia que o filme ia ter um final feliz.
26
- Helen - murmurou ele -, que é isto?
- O quê?
- Aqui. Esta cicatriz. Nunca dei por ela.
- Ultimamente, não tens andado por aí.
- Que é?
- Apendicite, querido.
- Doeu?
- Não. Foi bom.
- Tonta. Tonta Helen.
- Ah. Esta vai ser uma boa noite. Certo, Uck?
- Certo.
- Tenho um pressentimento de que vai ser uma óptima noite.
200
- Hum.
- Não vamos deixar que nada nem ninguém a estrague. Está certo?
- Mmm.
- Tens frio, querido?
- Um pouco.
- Chega-te mais. Melhor?
- Sim. O meu rabo está frio.
- Jesus, está mesmo frio. vou esfregar-to. Como é que ficaste com o rabo tão frio?
- Pu-lo de molho em água fria, antes de vir.
- Maluco.
- É tão bom sentir-te! Gostava de me meter dentro de ti.
- Por que não?
- Quero dizer todo eu. Gostava de me meter dentro de ti e sentar-me numa sofá de couro, de chinelos, a fumar cachimbo. Talvez a ler a revista Fortune.
- Orelha. Queixo. Nariz. Lábios.
- Helen. Helen.
- Ah, não! Deixa-me fazer eu o trabalho. Sê meu convidado.
- Ok.
- Ficas aí deitado.
- Posso respirar?
- Não. Oh, caramba, não é maravilhoso?!
- Meu Deus.
- Gostas disto, Uck?
- Adoro isso.
- Disto?
- Sim. Adoro isso.
- Isto?
- Sim. Tudo. Connosco é sempre a primeira vez.
- A sério? Honestamente?
- A sério e honestamente.
- Vai ser óptimo, querido.
- Eu sei, eu sei. E estamos sóbrios. Estou absolutamente sóbrio. Tu não estás sóbria?
-Estou completamente sóbria. Só bebemos aquele copo de vinho ao jantar, portanto, estou completamente sóbria.
- Vamos devagar.
- Sim. Devagar. vou devagar. Uck. Velho Uck Faye.
- Oh, oh, oh.
- Se eu te magoar, grita.
- An. Assim?
201
- Claro. Os meus dentes são muito afiados. O ano passado, o meu dentista teve de me limar os dentes um bocadinho.
- Onde é que... oh, meu Deus. Onde é que aprendeste a fazer
isso?
- A fazer o quê?
- Isso. O que estás a fazer.
- Sou perita neste jogo, querido.
- Eu sei, eu sei. Eu sou apenas uma criança. Uma criança.
- Chiu. Descontrai-te. Descontrai-te.
- Helen, vou espirrar.
- Então, espirra já.
- Ah... ah... não. Passou.
- Aperta o nariz.
- Não. Já passou.
- Estás com frio. Puxa a roupa para cima, Uck.
- Estou quente. Tu estás a aquecer-me.
- Assim?
- Sim.
- E assim?
- Jesus! Oh!
- Sabes bem, querido. E cheiras bem.
- Pulverizei as minhas partes com ambientador Lysol, antes de
vir.
- Idiota. Ei. Queres sentir uma coisa engraçada?
- Engraçada?
- Uma coisa que nunca sentiste.
- O quê?
- Isto. Assim.
- Uau! Onde é que aprendeste? Como é que aprendeste? - Estudei. E apliquei-me.
- Helen, isso é uma arte.
-Tens toda a razão. Sou uma artista. Uck, vira-te um bocadinho.
- Assim?
- Sim.
- Mmmm...
- Tens cócegas?
- Não, eu... sim! Aí. Quem é que não tem?
- Eu tenho cócegas em todo o lado.
- Deixa-me ver.
- Não, Uck. Não faças isso.
- Sim. Deixa-me. Aqui?
- Sim.
- E aqui?
- Oh, meu Deus! Sim.
202
- Aqui?
- Uck, estás a matar-me.
- Óptimo. E aqui. E aqui.
- Oh. Oh. Oh. Pára, Uck. Por favor.
- Não. É a minha vez. Orelha. Queixo. Nariz. Lábios.
- Mmmm.
- Helen, eu...
- Querido, vamos...
- Espera até eu... O telefone tocou.
- Devemos atender, Uck?
- Não sei. Não sei. O telefone tocou.
- vou responder, Uck. Se for para ti, digo que não estás cá. - Não adianta. Ela sabe que estou cá. O telefone tocou.
- Que é que fazemos, Uck? Deixamo-lo tocar?
- Não vai parar. Ela não desiste. O telefone tocou.
- É melhor eu atenter, Uck.
- O quê? Está bem. Se for para mim, eu atendo.
- Estou? Sim. Sim, está aqui. É o Músculo, Uck. Quer falar contigo.
- Está bem. Estou? Sim. Outra vez? Quando?
- Que é que se passa, Uck?
- Não. Não, não vou. Não quero saber. Não quero saber. Já te disse.
- Que é que aconteceu, Uck?
- Pela última vez, não. Diz-lhe isso. Ah... vai para o inferno.
- Que é que foi, Uck?
- Ele disse que a Edith tinha tido outro ataque de coração.
- Outra vez?
- Disse que estavam a jogar aos Hearts. Disse que eles chamaram o médico.
- Eles?
- São três. Disse que desta vez é grave. Mesmo grave.
- Acreditas nele?
- Ele disse que ela estava a chamar por mim.
- Queres ir?
- Eu...
- Queres ir para ao pé dela, Uck?
- bom.
- Acreditas nele? Queres ir para ao pé dela, Richard?
- O quê? Richard? Não. Não acredito nele.
- Tens a certeza?
203
- Claro que tenho a certeza! É o mesmo jogo de sempre.
- Queres mesmo cá ficar, querido?
- Claro que quero. Isto não vai fazer a menor diferença.
- Querido. Querido.
- Cabra. A usar o mesmo truque outra vez.
- Uck, tu tens de parar de ir a correr quando ela telefona. Pára agora.
- E paro. É o fim. A Old Marse Miley libertou o escravo.
- Menino bonito. Mmmm. Bonito homem.
- Não quero pensar em... nada.
- A não ser nisto?
- Sim.
- E nisto?
- Oh, sim.
- Uck! Que bom! Uma surpresa para mim!
- Espero que gostes. Não mandei embrulhar como prenda.
- Adoro. Espera um instante. Ok. Agora vem cá.
- Aqui?
- Sim. Assim. -Ali-kazam!
- E...?
- Sim. Sou demasiado pesado?
- Oh, não, homem. Homem.
- Gerónimo. Querido, velho Gerónimo.
- Queres-me, Uck?
- Onde estás agora, Thomas Alva Edison?
- Precisas de mim?
- Tibério Cláudio Nero César, amo-te.
- Diz! Diz!
- Quero-te. Precisade ti.
- Espera. Espera.
- Não.
- Está bem.
- Sim.
O balão subiu.
Algumas horas mais tarde, o Dr. Franklin telefonou para dizer a Richard Faye que a mãe tinha acabado de morrer, ainda a chamar por ele.
204
27
O Camel estava atordoado. Andava atrás de Peggy, no meio na multidão de convidados, sobressaltando-se quando os homens lhe apertavam a mão e as mulheres olhavam
para o seu nariz e se riam.
- Que é que se passa com o Maurice, querida? - murmurou Helen a Peggy. - Está a comportar-se como se tivesse vindo sob a ameaça de uma arma. Afinal de contas, a ideia foi dele.
- Isso passa-lhe, querida - suspirou Peggy. - Assim que eu o apanhar sozinho, endireito-o. Uck veio?
- Ainda não. Depois do que se passou a semana passada, nem sequer sei se vai aparecer. Pobre diabo. Estou farta de telefonar, mas não o consigo apanhar. E melhor eu ir buscar outra bebida.
Bebeu vários copos de champanhe rapidamente e comeu um camarão morto empalado num palito de plástico azul. A recepção tornou-se mais ruidosa. Uma mulher tirou os
sapatos. Um homem pôs a peruca ao contrário. Toda a gente se riu.
O noivo encurralou Helen junto ao bar.
- Tu que és a sua melhor amiga - disse ele acusadoramente -, fazes alguma ideia de quanto custa uma ponte nova?
Helen admitiu que não fazia.
-É caro-afirmou ele num tom sombrio. -Afinal de contas, não sou feito de dinheiro. Sabes, não sou nenhum milionário.
Helen disse-lhe que não acreditava que Peggy achasse que ele era milionário.
- Eu sei, eu sei - disse ele freneticamente. - Mas, mesmo assim, quero dizer, assim de repente? Saímos da igreja e PUMBA! Ela precisa de uma prótese dentária. Isso é justo? Pergunto-te, é justo?
Ela ficou a olhar para ele, encolhendo-se dentro do seu vestido de renda branca (o que tinha abainha aos bicos), subitamente entristecida, quase derrotada por aquilo que significava estar viva. Caralho, cona e sepultura. É praticamente tudo... não é? Mas, depois, Carrie Edwards veio ter com ela muito afobada para lhe dizer que Richard Faye estava lá fora a pedir para falar com ela.
Ela dirigiu-se apressadamente para a entrada. Faye virou-se. O seu rosto parecia um retrato esfaqueado e voltado a colar com lágrimas. Ela pensou no rapazito, na criada magricela com calcanhares sujos.
Helen exclamou:
- Que é que estás a fazer aqui fora, querido? Por que é que não entras?
- Tenho de f-f-falar contigo. Só por um instante.
205
Ela abraçou-o e deu por si a abraçar um poste. O seu olhar aguado deslizou e seguiu uma fenda no tecto.
- Estou passada - disse ela. - Tenho estado a beber muito, à espera de ter notícias tuas. Foi um casamento lindo. Chorei. A Peggy estava tão bonita. Pensei que me telefonasses. Quanto à tua mãe, Uck... olha, sabes o que eu sinto. Lamento. Por ela e por ti. Eu...
- Oh, não faz mal - disse ele vagamente. Os seus olhos de peixe encheram-se de lágrimas e transbordaram.-A mãe morreu a chamar por mim. E eu estava... eu estava...
- Eu sei. Eu sei. Mas não te deves culpar, querido. Não deves. -Não consigo não me culpar. Não consigo. Não consigo deixar de
pensar que, quando ele telefonou, se lhe tivesse dado ouvidos, se tivesse acreditado nele...
- Não podes...
-Tu não compreendes. Eu sei que não me devo culpar, mas culpo. Culpo. Está cá. Talvez não faça sentido, mas está cá. Que é que eu vou fazer, Helen? O quê?
Então, ela pensou em Harry. Talvez ele tivesse razão. Talvez Harry L. Tennant tivesse razão. Pela primeira vez na sua vida, Helen pensou seriamente em matar-se. Estava cansada, dos problemas de Faye, dos seus, da luta. Estava cansada da complexidade das coisas, das pessoas emaranhadas como cestos cheios de cobras... não das "almas nuas a esfregarem-se uma contra a outra" de que Martha Rhodes tinha falado, mas de almas húmidas a deslizar umas por cima das outras. Estava tão emaranhada!
O acordar, o lavar, o comer, o trabalhar, o dormir. E a madita roupa suja e a roupa para limpar a seco todos os sábados. Capas para os sapatos. A sanita que tinha de ser esfregada porque a mulher a dias se recusava a fazê-lo. Dores menstruais todos os meses. Todos os milhões de pormenores de nada, apenas de existir, mas que, se fossem ignorados, a submergiriam.
Aguentá-los, conquistar estas provações da existência... saídas de um espectáculo de teatro burlesco.. não bastava. Porque esgotavam a força e o espírito. Que é que restava para o amor e a paixão? Que é que restava para lutar contra uma velhota enclavinhada, um homem solitário e mole? Para o diabo com isso.
- É tudo uma merda! - disse ela admirada.
Ele não estava a escutá-la, mas repetiu exactamente o que ela tinha estado a pensar...
- É tudo de mais - disse ele.-Já não consigo combatê-lo mais. Talvez pudesse ter derrotado aquela outra coisa. Mas isto não. Não te culpo. A culpa é minha. Tenho estado a fazer investigação para um artigo sobre a Falha de St. André. A Califórnia vai cair no mar.
É assim que me sinto. Rachado. Cada vez que olho para ti, lembro-me.
206
Como é que podíamos voltar a ir para a cama? Como é que nos podíamos amar? Toda a lógica do mundo não alterará isso.
A Falha de St. André. A minha Falha. Helen quis
muito magoá-lo.
- Provavelmente, a Edith fê-lo de propósito - disse ela. Provavelmente, pensou que tinha de fazer isso para vencer. E fê-lo.
- Helen.
- Oh, sim - assentiu ela. - Acho que faria isso para te conservar.
- Helen.
- Mas o que é engraçado é que não precisava de o fazer. Essa é que é a parte engraçada. Tu terias voltado para ela, mais cedo ou mais tarde. Porque tu não queres mudar. Estavas a mentir. É esse o tipo de homem que és. Na verdade, não queres mudar em nada.
Ele ficou de boca aberta. Ela examinou-o, criticamente. Os papos inchados pelas lágrimas debaixo dos olhos. Os maxilares caídos. O corpo murcho.
-Mas tu nem sequer és um homem-disse ela, deliberadamente cruel. - Isso é que é engraçado.
És uma bocado de massa. Um trambolho.
- Não - disse ele lentamente. - Já não sou. Já não sou.
Ele recuou, afastando-se dela, com as mãos erguidas, as palmas viradas para a frente, afastando-se pelo átrio, a observá-la, desconfiado. Depois, virou-se e correu escadas abaixo.
- Prometeste que veríamos o eclipse juntos - gritou-lhe ela. Finalmente, voltou para a festa de casamento. Parou à porta, a
olhar para a multidão.
"Não há homens suficientes, pensou ela soturnamente. Nunca há homens suficientes."
Foi à casa de banho e chorou durante exactamente dez minutos, sentada em cima da retrete com a tampa posta, a balancear o corpo para a frente e para trás. Depois, lavou a cara com água fria e maquiíhou-se de novo. Foi ao quarto e chamou Charles Lefferts. Ninguém respondeu. Ela não gostava do apartamento de Maurice. Tinha cartazes de touradas nas paredes. Abriu caminho por entre a multidão que estava na sala e foi buscar uma bebida.
Carrie Edwards agarrou-lhe no braço.
- Lindo - soluçou ela.
- Sim - assentiu Helen. - Lindo.
Peggy e Maurice estavam lado a lado junto do bufete. Iam partir o bolo (de quatro andares). Um fotógrafo gritava:
- Mais perto, mais perto. Como se fossem amantes!
Helen voltou ao quarto e telefonou a Charles Lefferts. Ninguém respondeu. Voltou à sala, para ir buscar outra bebida.
207
- Lindo! - soluçou Carrie Edwards.
Aquilo era, decidiu Helen Miley, mais do que a carne humana pode suportar. Foi ao quarto e telefonou a Charles Lefferts. Ninguém respondeu. Acabou de beber o copo de champanhe em duas goladas de revirar o estômago. Pegou na carteira, casaco, luvas. Saiu do apartamento, sem se despedir de ninguém. Estava um jovem polícia com
ar de sueco na esquina da Avenida Lexington. Isto é, tinha o ar de quem vai fazer esqui todos os
fins-de-semana... ou talvez apenas esfregasse neve na cara. Qualquer
coisa assim. Tinha um cabelo louro lindo, rosetas vermelhas nas faces. Helen aproximou-se e parou mesmo à sua frente. Ele olhou para ela com uma expressão muito séria.
-Quando eu vim para Nova Iorque, era uma uva-disse-lhe ela.
- Agora, sou uma passa.
- Pronto, pronto - disse o polícia.
- Estive numa festa - disse ela. - Numa festa de casamento. Da minha amiga. Ela casou-se.
- Que bom - disse o polícia.
- Peggy Palmer-resmungou ela.-Rói as unhas e lava o cabelo com cerveja. Mas ela casou-se. Você é casado?
- Claro - disse o polícia. - Não é toda a gente?
- Engraçadinho - balbuciou Helen. - Não é toda a gente? Engraçadinho.
- Quer um táxi? - perguntou o polícia.
- Não, não quero um táxi.
- Eu saio de serviço à meia-noite - disse o polícia sem pestanejar.
-vou dar um grande, grande passeio - disse-lhe ela. - Talvez nunca mais volte.
- Então, então - disse o polícia.
- Acha que eu sou atraente? - perguntou-lhe ela. - Não digo bela, repare. Apenas razoavelmente atraente?
- Claro - disse o polícia.
- A minha figura não é má, pois não?
- Eu saio de serviço à meia-noite - disse o polícia.
- Talvez - disse ela, perspicazmente -, mas olha, meu filho, não vais entrar à meia-noite.
- Vamos circular - disse o polícia. - Está a impedir o trânsito.
Ela desceu a Lexington Avenue, a olhar para as montras das lojas de ferragens. Havia uma loja de equipamento médico que tinha arrastadeiras azul-céu e cor-de-rosa-vivo. Leves nuvens brilhavam à frente da Lua cintilante como óleo sobre a água.
Ela foi até Rua 53, dando por duas ou três vezes umas risadinhas.
208
Virou para a Segunda Avenida. E ali estava o ansiado letreiro do Everest, com tantas letras de néon mortas que dizia apenas rest ar & ril.
Ela entrou como uma duquesa, bastante segura. Era demasiado cedo para os clientes habituais. Só estava um homem novo ao balcão, perto da porta. Tirou o chapéu, quando
Helen entrou. Ela dirigiu-se, toda empertigada, para o outro extremo do balcão e alçou o rabo para cima de um banco.
Thack aproximou-se, com a barriga de cerveja a esconder-lhe o cinto. Limpou o balcão com um pano húmido e pôs uma pequena base de cocktail com o desenho de um galo.
- Helen - disse ele.
- Peggy Palmer casou-se - disse-lhe ela. - Era aquela rapariga com quem eu cá costumava vir. Casou-se hoje.
- Deus a abençoe! - disse Thack -, e que todos os seus problemas sejam pequenos.
-Thack, sinto péssima. Acho que vou morrer. Devia ir para casa. Mas não consigo ir para casa.
- Que é que estiveste a beber?
- Champanhe e uísque e uma coisa verde num copo pequeno. E comi um camarão.
Ele pensou durante instantes.
- Ora o que eu sugeria - disse ele, finalmente -, era uma garrafa de cerveja gelada. Servida num copo gelado. Para te voltar a pôr no trilho, por assim dizer.
- Oh, sim. Sim.
Ele meteu a mão bem no fundo da caixa frigorífica, para tirar uma garrafa e um copo bem gelado. Deitou a cerveja no copo e observou com aprovação, enquanto ela bebia meio copo, sem parar.
- Talvez viva! - exclamou ela.
- Calma - disse ele. - Há mais. Queres que ponha ajuke a tocar?
Ela procurou no porta-moedas e deu-lhe duas moedas de vinte cinco cêntimos.
- Mas não quero nenhum dos teus malditos reels irlandeses gritou-lhe ela, sentindo-se subitamente doce e triste. - Põe qualquer coisa para eu poder chorar.
A primeira música que ele pôs foi um velho disco de Bing Crosby a cantar Just a Gigolô.
Helen chorou.
O segundo disco foi a Marlene Dietrich a cantar Falling in Love Again em alemão. Helen voltou a chorar e acabou de beber a cerveja.
Thack tinha voltado para trás do balcão. Estava a falar com o homem que estava sentado perto da porta. O homem estava a pegar no copo com a mão esquerda. O braço direito estava caído junto ao corpo.
209
Na extremidade, havia uma coisa como uma mão semicerrada, coberta de pele preta.
Thack voltou para junto de Helen.
- O senhor ao fundo do balcão gostava de saber se te pode oferecer uma bebida?
Helen virou-se para olhar. Thack inclinou-se para a frente.
- Ele é sério, Helen - murmurou ele. - É aqui do bairro. Vem cá de vez em quando. Nunca houve problema.
Ela endireitou-se no banco.
- Transmite os meus agradecimentos ao senhor que está ao fundo do balcão e diz-lhe que terei todo o gosto em aceitar uma bebida e que eu consideraria uma gentileza...
se ele viesse para ao pé de mim.
Ele ali estava, sentado ao lado dela. Tinha um ar formal, secreto, como um médico, advogado ou costureiro de cintas. Tinha um bigode castanho bem aparado que parecia
uma daquelas pequenas escovas usadas para limpar sapatos de camurça.
- Perdeu um braço, não perdeu? - perguntou-lhe ela imediatamente.
-Ora, valha-me Deus-disse ele, olhando parabaixo, espantado.
- Perdi mesmo.
Ela riu-se e tocou-lhe na face.
Falaram de Bing Crosby e de Marlene Dietrich e de qual era o melhor sítio no bairro para comprar pizza de anchovas.
- Como é que se chama? - perguntou ela, num tom formal.
- Clark.
- É Clark Kent, um repórter pacato que entra nas cabinas telefónicas e se transforma no Super-homem?
- Não. Sou Clark Bannon, técnico de estatística de seguros mal-humorado. Como é que se chama?
- Chamo-me...
Durante um horrível momento de cortar o coração, ela esqueceu-se do seu nome. Depois, lembrou-se e disse:
- Chamo-me Helen Miley.
- Foi este rosto que lançou ao mar um milhar de barcos - perguntou ele -, e fez arder as torres de Ilium? Doce Helen, torna-me imortal com um beijo.
- Ok. - disse ela, satisfeita, beijando-lhe a orelha.
Isso sobressaltou-o. Olhou para ela com um novo respeito.
- E que é que tu fazes, Helen?
- Que é que eu faço? - Ela reflectiu. - Que é que eu faço? Rouo as unhas e cuspo pregos.
- Muito bem. - Ele assentiu com aprovação.
- E agora, Clark, gostava de te oferecer uma bebida. Posso?
210
- Podes.
- Thack, podemos repetir? Thack, eu também gostava de te oferecer uma bebida a ti, para comemorarmos o casamento de Peggy Palmer como deve ser.
- Sem dúvida! - disse Thack.
Ele serviu-lhes as bebidas e foi buscar uma cerveja para si. Ergueram os copos e gritaram:
- À Peggy!
- Quem é a Peggy? - perguntou Clark Bannon.
- Uma querida amiga minha - disse-lhe Helen. - Dão-me licença por alguns instantes, por favor?
Quando voltou da casa de banho, perguntou ao Thack:
- Onde é que está a Clara? Não está a trabalhar?
- Vem mais tarde. Mandei-a à Bowery comprar uma sanguessuga.
- Thack? Uma sanguessuga?
- Está com uma nódoa negra terrível. Não a posso ter cá assim e pôr um bife cru só serve para desperdiçar boa carne. Do que ela precisa é de uma sanguessuga gorda. Suga todo o sangue mau. compram-se num sítio na Bowery. Já não deve demorar.
- Que é que se passa? - perguntou Clark Bannon, perdido.
- Peggy Palmer, uma amiga minha, casou-se hoje - explicou Helen.
- com uma sanguessuga gorda?
-bom... mais ou menos. De qualquer forma, foi a essa Peggy que fizemos a saúde.
És casado?
- Não.
- Já foste?
- Não.
- Porquê?
- Nunca confies num homem solteiro que tem um gato e fuma cachimbo.
- Tens um gato e fumas cachimbo?
- Não - disse ele, entrando na brincadeira. - Tenho um gato que fuma cachimbo. Eu fumo uma sanguessuga gorda.
Beberam nova rodada. E outra. Ele pagava uma rodada e depois Helen pagava a outra rodada e depois Thack oferecia uma rodada. Era uma boa combinação.
Puseram música a tocar. Helen e Clark dançaram ao som de dois discos. Ele segurava na mão dela com a sua mão esquerda, mas a manga direita ficava a abanar. Ela não se importou. Passado um bocado, ela já estava colada a ele, com as mãos em volta do seu pescoço. Ele tinha a mão esquerda contra as suas costas. Era agradável.
Depois, voltaram para o balcão e a vida continuou. Os clientes
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habituais começaram a entrar. Thack tinha ligado a televisão. Um gato estava a perseguir um rato.
Helen mudou de banco. Teve o cuidado de se sentar à esquerda de Clark para, de vez em quando, lhe poder dar a mão. Quando ele não estava a pegar no copo.
- Sou de Oaio - disse-lhe ela, a sorrir.
.- Sou de Montana - disse-lhe ele.
- bom, não há dúvida de que isso faz com que tenhamos algo em comum, não é?
Ele assentiu contente elIa achou que ele estava a corresponder lindamente.
Thack deu-lhes batatas fritas e amendoins com sal. Tomaram outra bebida. Não queriam pôr ojuke a tocar porque isso irritaria os clientes habituais que estavam a
ver televisão - estava a dar um filme sobre a vida sexual dos leões marinhos. Era interessante.
Mas murmuraram um com o outro. As respectivas idades, os filmes de que gostavam, os sítios onde tinham ido, o que tinham feito. Coisas.
Ele tinha bom aspecto... alto, agradável, razoavelmente largo. Trazia sapatos castanho-claros com um fato azul-escuro... mas ora, que diabo.
Ele olhou para ela, sentada ali no banco ao balcão. A bainha do vestido de renda deixava os seus joelhos apetitosos à mostra. Ela estava ali empoleirada, a refulgir,
toda ela boca, pernas e óculos de aros de tartaruga.
- Ouve-disse-lhe ele, inclinando-se para ela -, ouve, Helen... posso fazer-te uma pergunta extremamente pessoal?
- Claro - disse ela, fazendo um gesto largo. - Pergunta.
- Queres jantar comigo amanhã?
- Raios, sim - disse Helen Miley, lançando-lhe um sorriso atrevido. - Por que não?
Lawrence Sanders
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