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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS PRETENDENTES / Horácio Nunes
OS PRETENDENTES / Horácio Nunes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Horácio Nunes

 

 

 

 

COMÉDIA ORIGINAL EM UM ATO
PERSONAGENS: ANSELMO (corcunda, 60 anos)  MALAQUIAS (caolho, 60 anos)  MACÁRIO (doente dos calos, 60 anos)  TIBÉRIO (30 anos)  JOÃO (25 anos)  LUÍZA (18 anos) 
Atualidade.  
ATO ÚNICO  Sala decente. Sofá, cadeiras de braços, cadeiras simples, aparadores, vasos com flores, lampiões. – Janela à direita alta. – Portas laterais e ao fundo. – É dia. – Ao subir o pano, Luíza, à janela, olha para fora.  


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CENA I   LUÍZA Já lá está o maldito a me fazer sinais com o lenço. (Descendo) Quando não é aquele que vai postar-se à esquina para namorar-me, é o outro... e o outro! Um sempre há de estar lá espetado para me incomodar e obrigar-me a sair da janela! Três estafermos, que antes cuidassem em pôr-se bem com Deus, do que estarem com pretensões a namorados!... (Indo à janela) Ainda! (Fazendo uma careta) Toma, toleirão! (Descendo) Antes de ontem fiz uma figa a um, ontem mostrei o sapato ao outro, e agora fiz uma careta ao terceiro! (Indo à janela) Lá vai outra careta!... (Faz caretas)    
 
CENA II Luíza e João.
  JOÃO (entrando da esquerda baixa) Oh! prima, a quem é que estás fazendo caretas?...   LUÍZA (descendo) Ora, a quem há de ser? A um dos três!...   JOÃO (à janela) Ah! lá está ele tomando uma pitada. É o taverneiro da outra rua.   LUÍZA É um idiota!   JOÃO (intencional) Dizem que tem dinheiro...   LUÍZA Não sei. Feio como um ouriço é que ele é. Fique o primo sabendo que eu não quero casar-me por dinheiro, quero casar-me por amor. Entende?   JOÃO Ah! sim? Mas o dinheiro?   LUÍZA O dinheiro... o dinheiro não dá felicidade, senhor meu primo.   JOÃO Lá isso é verdade. Aqui estou eu, que ando quase sempre à divina, e no entretanto considero-me o homem mais feliz do mundo.   LUÍZA E acredita que podias ser ainda mais, se visses um palmo adiante do nariz... um palmo só.
  JOÃO Ambições, não tenho...   LUÍZA Mesmo nenhuma?   JOÃO Nenhuma, absolutamente.   LUÍZA (intencionalmente)  Nem ao menos pensas em casar-te?   JOÃO Ora, casar-me! Para quê? Olha, prima, com franqueza: a maior tolice que um homem pode fazer é casar-se. Eu, felizmente, parece que fui vacinado contra o casamento, e creio que nunca hei de cair em tal asneira...   LUÍZA Oh! primo, asneira é o que estás aí a dizer!   JOÃO (sentando-se no sofá) Mas como?   LUÍZA O casamento! É a melhor coisa que se tem inventado!   JOÃO Para as mulheres, não duvido.   LUÍZA E para os homens também. (Com intenção, sentando-se ao lado de João) Unirem-se dois corações que se amam... Estarem sempre juntinhas assim duas almas que se adoram... (Tomando-lhe as mãos) Viverem sempre com as mãos enlaçadas assim como duas pessoas que se idolatram...   JOÃO (à parte) Oh! senhores, o que quererá ela comigo?   LUÍZA Pois tudo isto não é tão agradável... tão doce?...   JOÃO Oh! prima, e enquanto os dois corações estão juntinhos, enquanto as duas almas estão unidas, enquanto as duas mãos estão enlaçadas... o que é que se come?...   LUÍZA Ora! que pergunta!   JOÃO (erguendo-se) Enfim, tudo isso pode ser muito agradável e muito doce... mas para quem gosta dessas pieguices. Para mim não serve.   LUÍZA (à parte) Estúpido! Mas hei de vencê-lo!   JOÃO (à janela) Oh! prima, olha: lá está o outro agora.   LUÍZA É o sapateiro da esquina. Foi àquele que eu mostrei o sapato. (Outro tom) Mas por que é que o primo é tão inimigo do casamento?   JOÃO Sou inimigo do casamento, em primeiro lugar, por causa... do casamento, e em segundo, por causa da sogra.   LUÍZA E quando a mulher já não tem mãe... como eu?   JOÃO Ah! quando a mulher já não tem mãe... é porque a mãe morreu!   LUÍZA (à parte) Tolo!   JOÃO E depois, as despesas que se fazem!... E os filhos!... Um berreiro infernal! Este, a fungar para um lado, com o nariz a pingar; aquele, todo besuntado, a esfregar-se nas nossas calças; aquele outro, a espernear como um diabinho dentro de uma pia de água benta; a mulher a exigir um chapéu ou um vestido, quando o marido não tem muitas vezes dez tostões no bolso para ir ao mercado!... Um aborrecimento!... (À janela) Oh! prima, já lá está o outro.   LUÍZA (olhando) É o alfaiate. São três patetas que vivem a incomodar-me todo o dia!   JOÃO Por que é que a prima não casa com eles, já que é tão apologista do casamento?   LUÍZA Com todos os três?   JOÃO Não. Com um de cada vez...   LUÍZA Como?   JOÃO Eu me explico. Todos os três são velhos e pouco podem demorar-se cá pelo mundo. A prima casa primeiro com o alfaiate. O bruto, mais dia, apanha uma gastrite ou uma febre escarlatina, e bate a bota para o – aqui jaz – Casa em seguida com o sapateiro; mas o sapateiro é atacado de uma coqueluche, e lá se vai também para o – orai por ele. – Casa, finalmente, com o taverneiro, e o taverneiro apanha um ataque de bichas, indo descansar a ossada na – terra te seja leve.    LUÍZA E depois?   JOÃO Depois... depois, ficavas viúva de três maridos...   LUÍZA Só?   JOÃO E o que mais querias?   LUÍZA Queria mais alguma coisa...   JOÃO O quê?   LUÍZA Queria chamar-te tolo, idiota, simplório e bruto.   JOÃO Oh! prima!   LUÍZA E estúpido também!...   JOÃO Mas isso... é duro!  
 
LUÍZA Tens olhos, e não vês; tens ouvidos, e não ouves; tens cabeça, e não compreendes!   JOÃO Mas ver, ouvir, compreender... o quê?   LUÍZA (subindo) Não sei! (Voltando-se da porta) Tolo! tolo! tolo! (Sai)     CENA III   JOÃO (um momento depois de ter Luíza saído) Oh! senhores!... esta minha prima, se não está com o juízo a arder, parece... (Descendo) Mas o que queria ela que eu compreendesse? Eu, para decifrar charadas, sempre fui tapado como uma porta! (Sentase) Perguntar-me se não penso no casamento!... Casar-me! Eu!... Não foi sem motivo que um rei inventou o adágio: — “Por muitas vezes a mulher varia, e nela é muito louco quem confia.” — Esse rei foi Francisco I; e um rei que pede a todo mundo que não se fie nas mulheres, não tem nada de tolo!... (Pausa, acendendo um cigarro) Na maior parte, são muito meigas, muito carinhosas, muito doces, muito cheias de apertinhos de mão e de olhares languidos, enquanto não pilham os pratinhos... Mas depois que os agarram... Jesus! Que gritarias!... que descomposturas! que inferneiras!... (Pausa) Algumas continuam a ser o que foram em solteiras... mas essas são poucas, e não trazem letreiro... (Pausa) Ora, dá-se maior tolice do que estarem um marmanjo e uma moça horas inteiras, defronte um do outro, a sorrirem-se, a olharem-se, a apertarem-se as mãos de um modo perigoso, a dizerem baixinho: — “Ai! querida da minha alma, tu és a minha vida!” — E ela: — “Ai! amado do meu coração, tu és a minha alma!” — E em seguida um olhar mais terno, um sorriso mais perigoso e um aperto de mão mais nervoso e atrevido!... Chamam a isto namoro, — mas eu chamo ofício de malandros! – Nada! Eu quero as coisas mais positivas, mais reais...
   
CENA IV João e Anselmo.
  ANSELMO (da porta) Dá licença, menina?   JOÃO (olhando em roda) Menina! Dar-se-á o caso que a menina seja eu?...   ANSELMO  Ah! queira desculpar... Eu pensava...   JOÃO (subindo) Oh! seu aquele, está desculpado. Deseja alguma coisa?   ANSELMO  Está em casa o Sr. Tibério?   JOÃO  O tio Tibério não está, não, senhor; mas está minha prima. Talvez o senhor prefira falar com minha prima, não é verdade?...   ANSELMO (vergonhoso) Parece que o senhor desconfia de alguma coisa...   JOÃO  Não desconfio, não. Tenho certeza.   ANSELMO (vergonhoso) Certeza?   JOÃO  Mas sente-se e conversemos. 
 
(Sentam-se)   ANSELMO  Ah! meu senhor, se vossa senhoria sabe do que ha, se conhece o estado atribulado do meu pobre coração!...   JOÃO  Uma paixão; hein?   ANSELMO  Estou doidinho pela filha do Tibério... Que moça, meu amigo! que pintura! que estampa! que olhos! que boca! que nariz! que braços! que mão! que pé!. O pé sobretudo... aquilo não é pé!   JOÃO É mão?   ANSELMO  Não; é pé mesmo. Mas que delicadeza! que mimo! que encanto! Um pezinho d'est’ tamanho!... (Mostra) Olhe: eu tenho uma sapataria que me dá uns cobres bem regulares... Pois venho pôr os cobres e a sapataria aos pé da Luizinha!   JOÃO  Mas veja o que faz...   ANSELMO  O demônio da rapariga pôs-me maluco de uma vez! Não durmo, não como, não bato sola, não prego uma tomba, que o diabinho não me esteja sempre diante dos olhos! Às vezes fico tão cego, que não vejo um dedo adiante do nariz...   JOÃO  Depois do jantar?   ANSELMO 
 
Depois do jantar? E antes também... (Mostrando um dedo) Olhe: vê esta mancha preta aqui na cabeça do dedo? A desgraça sucedeu-me à semana passada. Eu estava pregando um salto no sapato de um freguês. De repente lembrei-me dela... lembrei-me que ela podia estar naquele momento conversando com algum namorado. Senti o sangue subir-me à cabeça... descarrego uma martelada e quase esborracho o dedo! Calcule a dor!   JOÃO  Calculo, pois então! Estou certo que quando o senhor apresentar esse dedo à minha prima como uma prova do seu amor, ela é capaz de cair-lhe nos braços...   ANSELMO (erguendo-se) O que me diz?... Cair-me nos braços aquele corpinho de anjo!... Que paraíso!   JOÃO  Sim, hein?   ANSELMO  Olhe: aqui entre nós, que ninguém nos ouve... Eu já tenho a minha idadezinha... os meus sessenta, é verdade... Mas não estou muito sovado e posso casar-me sem fazer figura triste. Tenho ainda o sangue rijo, meu amigo!... E que vão rondar-me a porta os pintalegretes... que vão!   JOÃO  Mas por que é que o senhor não procura uma senhora de certa idade... ou menos de idade... incerta?...   ANSELMO  O quê?... Pois eu estou para isso!... Aturar uma velha que masque, que tome tabaco... um hipopótamo ganho que esteja noite e dia a seringar-me os ouvidos, a dizer-me... (Voz fanhosa) — “Oh! Anselmo, vai-te embora... não me incomodes... não te metas em cavalarias altas.”   JOÃO (à parte) Uma confissão completa!   ANSELMO  Além disso, a minha paixão é pela Luizinha... Se eu não casar-me com ela...   JOÃO  Pois, meu senhor, vou chamar a Luizinha.   ANSELMO  Chame... chame... Mas deixe-nos sós, sim?...   JOÃO  Não há dúvida. A Luizinha não corre o menor perigo ficando só com o senhor.   ANSELMO (apertando-lhe a mão) Obrigado meu amigo!   JOÃO (à parte, saindo) Espera aí, rinoceronte! (Sai)     CENA V   ANSELMO (esfregando as mãos) Só em pensar que vou vê-la, que vou falar-lhe, fico tão nervoso, que até tenho medo que me dê um ataque! Deus de minha alma!... Se ela quiser, mando deitar duas dúzias de rojões e tomo uma carraspana de ficar de papo ao sol!... (À porta por onde João saiu) Ai! Luizinha! Luizinha!... Se tu soubesses que aqui bem perto de ti há um coração que bate como uma aneurisma.. voarias logo aos braços deste namorado, que arde, que pega fogo, que é devorado pela chama ardente de uma paixão sem fim!. Luizinha da minha alma, vem a meus braços, anjo adorado, estrela da minha vida!...     CENA VI Anselmo e Tibério.   TIBÉRIO (que momentos antes tem aparecido ao fundo e parado, admirado, à parte) Que diabo é isto? Terei eu malucos em casa?...   ANSELMO (sem ver Tibério, continuando a declamação) Passarinho do meu coração, rolinha da minha alma, corre a meus braços, voa para mim...   TIBÉRIO (descendo sutilmente e pondo-lhe a mão no ombro) Oh! meu caro amigo, o que faz aqui?   ANSELMO (que tem os braços estendidos para a porta, como quem vai falar, voltando-se) Ai!   TIBÉRIO  Olha! O Anselmo!...   ANSELMO  Eu mesmo, com todos os ossos.   TIBÉRIO  Mas o que estás fazendo aqui? Que macaquices eram aquelas que fazias ali à porta?...   ANSELMO (levando-o para o sofá) Vem cá. Senta-te aqui e conversemos. 
 
(Sentam-se)   TIBÉRIO  Queres conversar? Pois conversemos.   ANSELMO  Tu me conheces, não?   TIBÉRIO Perfeitamente.   ANSELMO  Sabes se sou um homem arranjado, bem procedido e que não tenho notas...   TIBÉRIO  Na polícia? Não tens não. Sei isso muito bem.   ANSELMO  A minha corcunda é tão pequena, que nem nela se repara...   TIBÉRIO  É pequena, é; pode até passar por uma malinha de viagem que trazes aí às costas.   ANSELMO  Já vês que isto não constitui um defeito, e que posso julgar-me um homem perfeito...   TIBÉRIO  É bonito!   ANSELMO  Obrigado. Não me fazes favor dizendo isso... Tenho umas economias que podem andar por uns dez contos. Nunca quis casarme, porque, com franqueza, nunca encontrei uma moça que me agradasse e que compreendesse os meus sentimentos. Tive uma vez, uma namorada e estava, pelas duas, pelas três, a levá-la à igreja; mas, uma bela noite, a “tipa” fugiu com um pandilha, destruindo todos os meus projetos matrimoniais. Fiquei tão desnorteado com isso, que nunca mais olhei para mulher alguma, até que conheci... (Fica como que envergonhado e passa o lenço pelo rosto)   TIBÉRIO  Quem? quem?   ANSELMO  A tua filha.   TIBÉRIO (erguendo-se) A Luizinha!... Pois tu!...   ANSELMO (obrigando-o a sentar-se) Mas senta-te, homem, senta-te... Pois eu, sim. Por que não?... Vi a tua filha, e fiquei logo pelo beiço.   TIBÉRIO  E depois?   ANSELMO  Depois... venho pedir-te a sua mão...   TIBÉRIO (erguendo-se) Oh! Anselmo, tu estás idiotando?   ANSELMO (levantando-se) Oh! Tibério, idiotando por quê?   TIBÉRIO  Pois tu, um jarreta, que já tens o beiço caído!...   ANSELMO  Disseste há pouco que me conhecias, mas está provado que não me conheces. Fica sabendo que ainda tenho sangue nas veias!... Beiço caído! De beiço caído estás tu, que enviuvaste há dez anos e não tornaste a casar!   TIBÉRIO  Não te zangues, homem. Retiro a expressão.   ANSELMO  Então... retira também o jarreta.   TIBÉRIO  Fica também retirado o jarreta.   ANSELMO  Muito bem.   TIBÉRIO  E agora?...   ANSELMO  Dás-me ou não me dás a mão da tua filha?   TIBÉRIO  Anselmo, não posso dar-te uma resposta imediata. Bem sabes que não tenho o direito de violentar as inclinações da rapariga. Se fosse da minha mão que se tratasse...   ANSELMO  Ora! Podes guardar a tua mão no bolso!...   TIBÉRIO  É preciso consultá-la. Quem nos diz que ela já não tem o coração preso os bigodes de algum rapaz?...   ANSELMO (recuando)
 
Hein?... Ah! Tibério, se tal houver, acredita-me, juro por esta luz que nos alumia, que sou capaz de cortar em fatias o coração do pintalegrete e comê-lo cru...   TIBÉRIO  Sem pirão, Anselmo?   ANSELMO  Não zombes, Tibério! não zombes!...   TIBÉRIO  Modera-te, homem, modera-te. O que eu disse não é mais do que uma simples suposição. Consultarei minha filha e empregarei todos os esforços para conseguir dela uma resposta favorável...   ANSELMO  Ah! Tibério, se tu soubesses.   TIBÉRIO  Bem, bem... (Mostrando a porta da direita baixa) Entra para o meu gabinete e distrai-te vendo os bonecos de um livro que lá tenho, enquanto consulto a pequena. Anda, vai.   ANSELMO  Tibério, lembra-te que coloquei-me sob a tua proteção, e que só tu podes evitar uma enorme desgraça.   TIBÉRIO  Lembro-me, lembro-me... Mas vai...   ANSELMO (saindo) Ai! Luizinha! Luizinha!...     CENA VII   TIBÉRIO  O diabo, depois de velho, fez-se ermitão. O Anselmo, depois de velho, fez-se namorado. E isto é mal... Naquela idade, uma paixão recolhida, é morte certa!... Eu sei que a rapariga vai receber esta noticia com uma gargalhada... mas não quero que o Anselmo diga que não transmiti o seu pedido. Vou chamá-la. (Sobe, mas volta, pensativo) Mas isto é o demônio! Se ela aceitar a proposta do Anselmo, fica destruído o meu projeto de casá-la com o João, que, embora inimigo do casamento, conheço como as palmas das minhas mãos, e sei que – usurário como é – não deitará o meu rico dinheirinho pela janela fora... (Fica pensativo)     CENA VIII Tibério e Malaquias.   MALAQUIAS (da porta) Está em casa o Tibério Canela?   TIBÉRIO (voltando-se) O Malaquias! (Subindo) A esta hora, é novidade... Negocio grave, hein?   MALAQUIAS (apertando-lhe a mão, muito cansado) É. Negocio sério, tão sério.   TIBÉRIO  Que eu não me rio, descansa. Mas senta-te. Estás com a careca pingando... 
(Sentam-se)   MALAQUIAS Eu...   TIBÉRIO 
Mas toma fôlego!... Da maneira que estás, se eu te tapasse a boca, era uma vez um homem...   MALAQUIAS (sempre cansado) Estou cansado, estou. Apressei um pouco o passo, e o resultado foi este...   TIBÉRIO  Pois descansa, homem... Quando se cansa como um jumento como tu, o remédio é descansar.   MALAQUIAS (depois de descansar e de limpar a careca com o lenço) Pois, meu querido Tibério, vais saber o motivo que me traz aqui. Sabes que fui casado duas vezes. A primeira vez tive por mulher uma jararaca e por sogra uma surucucu... Quando uma gritava, já a outra queria torcer-me o pescoço! Dois diabos de saias! Se eu não tivesse olho vivo e não tratasse logo de pôr-me ao fresco, matavamme, esfolavam-me e punham-me ao fumeiro, como linguiça. Felizmente, morreram. Deu-lhes a bexiga de lixa, e lá se foram ambas para o inferno. No dia em que saíram os enterros, não deitei foguetes por causa da vizinhança.   TIBÉRIO  É exato, é. Mas nem sempre o teu olho vivo te serviu de muito, porque... sim... não sei se me entendes... (Faz o festo de quem dá pancadas) Os teus casacos que o digam...   MALAQUIAS (envergonhado, procurando disfarçar) Calúnias, meu amigo... calúnias... As coisas nunca chegaram a tanto... Somente duas vezes...   TIBÉRIO  Tira o petiço da chuva, Malaquias... Olha que foram mais de duas vezes...   MALAQUIAS.
Passados dois anos, casei-me outra vez...   TIBÉRIO  Tinhas sido tão feliz da primeira...   MALAQUIAS. Nada... A mesma coisa. Uma mulher que era uma surucucu e uma sogra...   TIBÉRIO  Que era uma jararaca.   MALAQUIAS. A-q-u-i. E a minha desgraça ainda foi maior do que da primeira vez, porque a minha segunda mulher, além de ser assanhada como uma cobra, era feia como uma minhoca e dez anos mais velha do que eu!   TIBÉRIO  Misericórdia!...   MALAQUIAS. Veio uma epidemia de febre amarela, e zás! a mulher foi a primeira vítima!   TIBÉRIO  Deitaste foguetes?   MALAQUIAS. Não, ainda por causa da vizinhança.   TIBÉRIO  E a sogra?   MALAQUIAS. Mandei-a plantar batatas. Não quis mais casar-me, e há quinze anos que me conservo no respeitável estado de viúvo sem filhos. (Pausa)
há dias, estando parado ali à esquina, olhei casualmente para este lado e vi tua filha...   TIBÉRIO (à parte) Mais um namorado! Já tinha cá um corcunda, agora tenho um caolho! (Alto) Viste então a pequena, hein? E que tal a achas?   MALAQUIAS (com entusiasmo) Esplêndida! deliciosa!   TIBÉRIO  Mas com que entusiasmo dizes isso!...   MALAQUIAS. Esqueci tudo: as minhas duas mulheres, as minhas duas sogras, a vida de cachorro que as quatro me fizeram passar, e disse com os meus botões: — Feliz o mortal que obtiver aquele bom bocado! que vida! que paraíso! que céu aberto! — E vim procurar-te   TIBÉRIO  Então queres casar com a pequena, não?   MALAQUIAS. É o meu maior desejo, a minha única ambição...   TIBÉRIO (coçando a cabeça) Mas isto é o diabo!   MALAQUIAS. Por quê? Por acaso sou algum perdulário, algum libertino? Sou ainda rijo e tenho patacos... Se é por causa do meu olho... Olha que eu vejo mais por um olho só do que tu por dois...   TIBÉRIO  Não é isso... É que...  
MALAQUIAS. O quê?   TIBÉRIO  É que já tenho cá um pedido igual, e ainda não consultei a pequena...   MALAQUIAS (agitado) Outro pretendente!... Ah! malvado! bandido!   TIBÉRIO Calma, homem, calma...   MALAQUIAS Quem é ele?... Quero trincar-lhe os fígados!... (Passeia)   TIBÉRIO (à parte) Ai! Anselmo! se eu digo que és tu, ficas com a corcunda num pastel! (Alto) Vem cá, Malaquias...   MALAQUIAS Quero trincar-lhe os fígados, já disse!   TIBÉRIO Oh! homem, mete essa língua onde quiseres, mas atende-me...   MALAQUIAS Tibério, manda esse pretendente ao diabo, e promete-me que hás de defender a minha causa!   TIBÉRIO Prometo, prometo tudo; mas não te alteres.   MALAQUIAS Estou calmo. Tua filha há de fazer o que tu quiseres.  
TIBÉRIO Muito bem. Agora vai para o meu gabinete, enquanto consulto a pequena. Palestra com o Anselmo, que lá está vendo as figuras de um livro.   MALAQUIAS (irritado) Tibério, o outro pretendente será o Anselmo?   TIBÉRIO Qual, homem! O Anselmo não pensa nessas coisas. É bananeira que já deu cacho.   MALAQUIAS Garantes que não é ele?   TIBÉRIO Garanto. Que diabo! Vai, anda, e deixa a tua pretensão por minha conta.   MALAQUIAS Vê lá o que fazes...   TIBÉRIO Descansa em mim. Prometo advogar a tua causa da melhor forma possível. (Empurra-o para o gabinete)   MALAQUIAS Diz a pequena que eu, a minha taverna e os meus patacos, tudo será dela... Não te esqueças.   TIBÉRIO (empurrando-o) Vai sossegado.   MALAQUIAS Toma cuidado. (Sai, direita baixa)  
CENA IX  TIBÉRIO (descendo) E esta! Se isto não é uma praga que me caio em casa, parece! Ora! estas tartarugas ainda com ideias de casamento!... Pois eu vou dar a pequena a qualquer destes idiotas, para fazer a desgraça da rapariga!... (Pausa) Tudo tem os seus termos e as suas exigências. Os moços devem casar-se com as moças e os velhos com as velhas. É a ordem natural das coisas. (Outro tom) Um velho casa com uma moça. Que grande poesia, hein?... Estar a pobrezinha condenada a ver todos os dias a cara encarquilhada do marido, a mandá-lo a cada instante limpar os pingos do rapé que lhe caem do nariz, a ouvi-lo arrastar os pés e a fazer barulho com a sua bronquite crônica e ainda em cima sujeita à linguinha do povo, que olha para a mocidade da mulher, para a velhice do marido, ri-se à socapa e resmunga com os seus botões... (Pausa) Uma velha casa com um rapaz. O rapaz vive na rua para não ver a carranca da mulher, mete-se na pandega e engana a costela, que o ameaça de chinelo e passa-lhe descomposturas de arrepiar os cabelos!... (Outro tom) Nada! Velhos com velhas, moços com moças!     CENA X Tibério e Macário.   MACÁRIO (da porta) Pode-se entrar?   TIBÉRIO Oh! amigo Macário, sem cerimônia. Esta casa é nossa.   MACÁRIO (descendo, a manquejar) Ai! meus calos!”. Vamos ter vento sul. Quando está para cair vento sul, vivo num interno! Os calos dão-me fuziladas, que me fazem ver sol à meia noite!... É um inferno! (Gemendo) Ai! ai!
  TIBÉRIO Abanca-te e descansa os pés. Se tomar banho todas as noites, podes tirar os sapatos, que não me incomodas. Queres uns chinelos?   MACÁRIO (sentando-se) Nada, não... Ai! que fuziladas!...   TIBÉRIO Mas tira os sapatos, homem...   MACÁRIO (encolhendo-se) Jesus! Que martírio!   TIBÉRIO Pois descalça-te, Macário.   MACÁRIO Não, não... (Gemendo) Que fuziladas! que fuziladas!   TIBÉRIO Homem, com essa teima fazes acreditar que...   MACÁRIO O quê?   TIBÉRIO Que não lavas os pés!   MACÁRIO Tibério, eu sou um homem limpo! Mudo roupa todos os sábados e lavo-me...   TIBÉRIO Duas vezes por ano?  
MACÁRIO Lavo-me todos os dias...   TIBÉRIO Pois então tira os sapatos, anda, tira os sapatos.   MACÁRIO Já te disse que não tiro! Oh! Tibério, olha que és teimoso como um burro!   TIBÉRIO E tu como um homem que se lava todos os dias. Enfim, não insisto mais. Faze o que quiseres.   MACÁRIO (estendendo o pé) Ah! que alívio... Quando ando um pedaço, fico numa desgraça; mas também sento-me, e no fim de cinco minutos nada sinto...   TIBÉRIO Já é uma consolação. E o que fazer para os calos?   MACÁRIO Nada. Não há nada que me faça bem.   TIBÉRIO Nem mesmo a água?   MACÁRIO Qual água! Água para quê?   TIBÉRIO (à parte) Confessou! (Alto) Mas então, que grande motivo te trouxe cá... Com este sol que está torrando a gente?   MACÁRIO Um grande motivo.
  TIBÉRIO (à parte) Ai! ai! ai! Será outro pretendente? (Alto) Um grande motivo, hein?... (Dando-lhe uma palmada na barriga) Ah! maganão!   MACÁRIO (dando um pulo e batendo com o pé na cadeira) Jesus!... (Começa a andar, manquejando e a torcer-se de dores) Ai! ai! ai!   TIBÉRIO (seguindo-o) Desculpa, homem... Olha que não foi por querer. Se eu soubesse que esborrachavas o teu melhor calo, não te teria dado a palmada! Oh! Macário, senta-te aqui, anda... Isso passa... Dói um bocado, mas passa... (Obrigado a sentar-se) Mas também, quem tem uns pés como os teus, quando sai, não os leva para a rua! Que diabo!   MACÁRIO Já vai passando... Pucha dor!... Uma facada não custa tanto!... (Limpando o suor) Uf!   TIBÉRIO Que alívio, hein?...   MACÁRIO É... é o diabo!   TIBÉRIO Tudo é assim: dói, mas passa. O diabo seria se doesse e não passasse. Queres tirar o sapato?   MACÁRIO Tratemos do meu negocio.   TIBÉRIO Do teu grande negocio. Vamos lá! (Senta-se)   MACÁRIO Meu amigo, tenho sessenta anos de idade, quinze contos em boa moeda, uma loja de alfaiate, duas casas, um filho natural, órfão de pai e mãe, e uma dúzia de calos que me trazem tonto... Amo tua filha, e quero casar-me com ela...   TIBÉRIO (erguendo-se) Pois tu também, Macário?   MACÁRIO Eu também? Então há outro pretendente?   TIBÉRIO Não há outro, meu amigo; há outros.   MACÁRIO (erguendo-se) O que me dizes?   TIBÉRIO Digo-te a verdade; mas não te aflijas. De todos eles, és tu o que mais me convém. Talvez não acredites, mas deves ser um marido às direitas. Influirei em teu favor no ânimo da pequena, e ela há de concordar comigo. Olha, Macário, quase que posso dizer-te: considera-te casado com a Luizinha!   MACÁRIO Ah! Tibério, já não sinto os malditos calos! Dá-me um abraço. (Abraça-o) As minhas casas, a minha loja, os meus quinze contos, os meus calos... tudo está à disposição de tua filha, tudo lhe pertence!   TIBÉRIO Ela aceitará tudo, descansa; menos os calos. Os calos é que ela não aceita, nem à mão de Deus Padre! Tenho certeza.   MACÁRIO (abraçando-o) Tibério, meu querido sogro!  
TIBÉRIO Bem. Agora vai para o meu gabinete esperar a resposta. Lá estão o Malaquias e o Anselmo vendo bonecos em um livro. Palestrem à vontade. Vou comunicar à pequena a tua proposta.   MACÁRIO (subindo) Jesus! Casado com a Luizinha! (Parando e erguendo o pé) Ai! que fuzilada!   TIBÉRIO O que é?   MACÁRIO (entrando no gabinete) Nada... Ai! ai!     CENA XI   TIBÉRIO Oh! senhores!... que mal fiz eu a Deus, para ser tão perseguido?... Parece que um bicho ruim mordeu esta velhada toda e a fez perder o juízo! Pois a Luizinha quer lá estes cagados para maridos! (Chamando) Luizinha! oh! Luizinha! (Descendo) Isto é tempo perdido. A pequena não quer, nem eu tão pouco. Assentei que ela havia de casar com o João, e há de casar... (Pausa) Mas vejam para o que estão dando os velhos agora! (Voltando-se para a porta do gabinete) Ah! súcia de bestas! O que vocês precisam bem sei eu! É uma sova de pau para criarem juízo!...     CENA XII Tibério e Luíza.   LUÍZA O papai chamou-me?   TIBÉRIO Chamei, sim, chamei... Senta-te aqui. (Mostra o sofá) Temos de conversar seriamente.   LUÍZA (sentando-se) Sou toda ouvidos.   TIBÉRIO (sentando-se) Menina, sabes para que vem a mulher ao mundo?   LUÍZA Sei.   TIBÉRIO Então dize lá para que é.   LUÍZA A mulher vem ao mundo, como o homem, para estar no mundo.   TIBÉRIO Sim, senhora... E para casar-se também.   LUÍZA Sem dúvida. Sobretudo para casar-se, porque a mulher que não se casa...   TIBÉRIO Fica solteira, é certo. E, vamos e venhamos, deve ser aborrecido para uma moça... aborrecido e incomodo...   LUÍZA Muito aborrecido. Eu, pelo menos, não tenho vocação para freira.   TIBÉRIO E fazes muito bem. Justamente por conhecer que o teu temperamento não dá para tia, foi que te chamei para apresentar-te três propostas.
 
  LUÍZA Logo três?   TIBÉRIO Mas eu não te constranjo. Podes aceitá-las ou não.   LUÍZA Muito bem. Vamos então por partes. A primeira proposta?   TIBÉRIO É o Anselmo. Sapateiro, bom partido; uma corcunda que parece uma mala de viagem. Serve-te?   LUÍZA Não. Não vou viajar e não preciso de malas. A segunda?   TIBÉRIO O Malaquias. Taverneiro, excelente partido; um olho de menos e uma canseira de mais. Serve-te?   LUÍZA Não. Não quero ouvir todas as noites um batalhão de pintos a me gritar ao lado nem ter um marido com um olho só. A terceira?   TIBÉRIO É o Macário... o Macarinho, sabes? Alfaiate, ótimo partido; sofre horrivelmente dos calos e tem horror à água. Serve-te?   LUÍZA Não. Não quero ter o lenço continuamente ensopado em desinfetantes.   TIBÉRIO E então?  
 
LUÍZA Quando o papai falou-me em três propostas, desconfiei logo desses três tolos, que revezam-se ali à esquina para me fazerem sinais telegráficos com os lenços de rapé e obrigarem-me a sair da janela. Quero casar-me, estou mesmo louca por isso, mas nunca com nenhum desses defuntos! há um rapaz de quem eu gosto, mas que não quer casar-se.   TIBÉRIO Já sei. É o João.   LUÍZA É o João, sim. Ainda há pouco declarou-me que nunca se casaria, porque o casamento é uma tolice. Têm sido em vão os meus esforços para chamá-lo a outras ideias.   TIBÉRIO Deixa isso por minha conta. Se for preciso, meto-me no meio de vocês dois e arranjo tudo. O João é teu marido... Podes desde já considerá-lo como tal... mas dentro de certos limites, bem entendido... Mas voltemos aos teus pretendentes. Estão todos três ali no gabinete, à espera da tua resposta.   MALAQUIAS (dentro) É impossível! O senhor é um tratante!   ANSELMO (dentro) E o senhor é um canalha!   MACÁRIO (dentro) São todos dois uns patifes!   LUÍZA (erguendo-se) O que é isto, papai?   TIBÉRIO Ai! ai! ai! São os teus pretendentes   ANSELMO (dentro) Desaforo!   MACÁRIO (dentro) Pouca vergonha!   MALAQUIAS (dentro) Eu levo tudo a murro! 
 
(Rumor, dentro, de cadeiras atiradas, tropel, etc. Macário, Anselmo e Malaquias entram furiosos, lutando Luíza, à vista do grupo, senta-se tranquilamente no sofá)     CENA XIII Tibério, Luíza, Macário, Anselmo, Malaquias e João.   TIBÉRIO Mas o que é isso, meus velhos?... Acalmem-se...   LUÍZA (rindo-se) Deixe-os, papai.   MACÁRIO Senhor Tibério, por que não me disse que estavam lá dentro estes dois bigorrilhas? (Levantando o pé) Ai! meus calos!   MALAQUIAS (muito cansado) Por que não me disse que era este jarreta que estava lá dentro? (Mostra Anselmo)   ANSELMO Por que não me disse que o gabinete estava vazio?  
 
TIBÉRIO Mas venham cá. O que é que vocês querem?... Casar com minha filha, não é verdade?   OS TRÊS (ao mesmo tempo) Sem dúvida!   TIBÉRIO Pois aí está. Ela que decida.   OS TRÊS (ao mesmo tempo) Menina...   LUÍZA (rindo) Decidam os senhores.   MACÁRIO Então é comigo!   ANSELMO (empurrando-o) Arreda, porco! É comigo!   MALAQUIAS (empurrando Anselmo) É comigo, suas bestas!   ANSELMO Pois veremos! 
 
(Atracam-se os três outra vez. – Tibério e Luíza riem-se)   JOÃO (que tem entrado no princípio da cena e ficado de parte a observar) Para que estes três velhotes estejam a esmurrar-se por causa de um casamento, é porque a coisa é boa. Quero também experimentar. (Indo a Luíza) Oh! prima, você quer casar comigo?   LUÍZA (contente)
 
Oh! primo, aqui está a minha mão.   JOÃO (beija-lhe a mão e volta-se para os três, que continuam a fazer gestos de ameaça uns aos outros) Eu também sou pretendente. Vamos lá, seus velhotes, juizinho e olho da rua!   OS TRÊS (avançando para João) Patife!   TIBÉRIO Meus amigos, contenham-se. Não há motivo para tamanho barulho.   OS TRÊS (a Luíza, ao mesmo tempo) A menina casa comigo?   LUÍZA Esperem, meus senhores. Meu pai transmitiu-me as suas propostas e eu ia dar a minha decisão, quando os senhores irromperam do gabinete, fazendo um barulho pouco próprio de homens de certa idade...   MACÁRIO Foi este corcunda que teve a sem vergonha de dizer que ia casar com a menina!   ANSELMO Disse, sim, porque pisei os calos deste estafermo, e ele chamou-me logo de burro!   MALAQUIAS E eu levei tudo a soco, porque entendo que é comigo que a menina deve casar!   LUÍZA Muito bem. Vou resolver a questão da melhor forma possível. O Sr. Anselmo não quer que eu case nem com o Sr. Macário nem com o Sr. Malaquias, não é verdade?   ANSELMO Não quero, e não quero!   LUÍZA O Sr. Macário não quer que eu case nem com o Sr. Malaquias nem com o Sr. Anselmo, não é certo?   MACÁRIO Boa dúvida! O preferido devo ser eu!   LUÍZA O Sr. Malaquias não quer que eu case nem com o Sr. Anselmo nem com o Sr. Macário, não é assim?   MALAQUIAS Por certo! Sou eu que...   LUÍZA Pois, como nenhum dos três quer que eu case, e não querendo eu ficar solteira, caso-me...   OS TRÊS (ao mesmo tempo) Com quem?...   LUÍZA (dando a mão a João) Com meu primo!   OS TRÊS Oh! (ficam a olhar uns para os outros)   JOÃO Aceito, priminha, aceito. Se me der mal, não casarei segunda vez!
 
  TIBÉRIO Bravo! Acredite, João, que te dou uma excelente mulher.   JOÃO E não me dá sogra, o que é melhor ainda. Obrigado, meu tio!   OS TRÊS (ao mesmo tempo) E nós o que fazemos aqui?   JOÃO Era justamente o que eu ia perguntar-lhes.   OS TRÊS (avançando para João) Bigorrilhas!   JOÃO Cuidado, meus velhos, cuidado!   LUÍZA Meus senhores, ficam convidados para tomar uma taça de champanhe no dia do meu casamento com meu primo, que não tem calos, nem corcunda e nem um olho furado.   TIBÉRIO Vão, meus amigos, e peçam a Deus que lhes dê juízo, que é coisa que vocês não têm. Casem-se com três velhas e deixam a pequena casar com o rapaz. Olhem: o casamento deve ser assim: — velhos com velhas, moços com moças... – para não ser ninguém enganado!   OS TRÊS (ao mesmo tempo) Mas, Tibério!...   TIBÉRIO Vão passear, vão... e não chorem.  
 
OS TRÊS (ao mesmo tempo, com os punhos cerrados, avançando, em linha, para João) O senhor é...   LUÍZA (rindo) O meu querido noivo!   OS TRÊS (subindo, ao mesmo tempo) Um canalha!   JOÃO Oh! hipopótamos!   TIBÉRIO Oh! Macário, quando te resolveres a tomar mais de um banho por ano, passa-me telegrama, ouviste?... Oh! amigo Anselmo, toma cuidado com a giga... não te vá ela passar de malinha de viagem a barril de quinto! E tu, Malaquias, toma um xarope qualquer para a canseira e manda fazer um olho de vidro!... E boa viagem!... 
 
(Os três, que têm parado à porta, voltam-se, ameaçam ainda com socos e saem aos empurrões. – Tibério cai em uma cadeira, às gargalhadas. João beija a mão de Luíza. – Desce o pano)

 

 

                                                                  Horácio Nunes

 

 

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