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OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE / Silva Mendes Leal
OS PRIMEIROS AMORES DE BOCAGE / Silva Mendes Leal

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Silva Mendes Leal

 

 

 

 

Representada pela primeira vez no Teatro de D. Maria II, em 7 de junho de 1865.
Tentando traçar os primeiros lineamentos característicos de um grande poeta, esboço a que serve de moldura uma época ainda pouco estudada, desejou ao mesmo tempo o autor compendiar nesta peça os três principais gêneros de comédia — a comédia de enredo, a comédia de caracteres, a comédia de costumes.
Dizendo-se que é uma comédia, bem se depreende que não se coadunam com as suas condições os lances violentos, que só pertencem ao drama. Desejando-se que em tudo saísse de feição portuguesa, evidente se torna que não podia entrar no seu quadro o expediente de inverossímeis situações, que o teatro francês oferece com trivial abundância.
Não é porém a comédia uma biografia. Não podia aparecer nela inteira a vida do poeta, com todas as modificações que os anos sucessivamente exercem nos espíritos. Por isso não tem por título Bocage, senão “Os primeiros amores de Bocage”; como para dizer — a aurora desse homem — um homem igualmente singular pela índole e pelo engenho.
Aquele homem, com efeito, encheu do seu nome o fim de um século e o princípio de outro. Era ele essencialmente o homem do futuro. A mórbida inquietação, progressivamente agravada até ao desvario, vinha-lhe naturalmente do estreito âmbito de ideias em que o seu talento se asfixiava!
Para bem o compreender cumpre ler-lhe atentamente a ansiosa poesia, e logo depois fixar a meditação e os olhos nas paredes negras da Inquisição, em seu tempo erguidas ainda, e ainda ameaçadoras!
Surgindo entre duas sociedades, uma que o instinto lhe adivinhava, outra que em torno dele se aluía, foi a sua existência um indeciso protesto e uma túrbida agonia. Os desvios dos anos ulteriores, precipitando-o tão cedo na sepultura, fizeram-se o triste refúgio de uma atividade intelectual, convulsa de febre, comprimida de fora, não bem cônscia de si. Os seus últimos desregramentos aparecemnos hoje como as válvulas perigosas por onde se derramou, e brevemente se exauriu, a exuberância daquela alma
“... — que sedenta em si não coube!”
A comédia, tomando o poeta nos primeiros anos e nas generosas paixões da mocidade, mede-lhe a grandeza do vulto pela grandeza dos impulsos, dá aos seus mesmos defeitos a explicação elevada e nobre que só se pode ter por verdadeira em tão alto e claro espírito, mas deixa sempre entrever o germe fatal das futuras aberrações.
Equivocar-se-ia de todo quem unicamente o quisesse ver segundo a tradição que ficou do derradeiro período da sua vida, transmitindose pela boca dos que só então o conheceram e chegaram aos nossos dias. O versista das trovas ao Crispiniano, à Estanqueira do Loreto, e ao Antão Broega, o vate plebeu dos sonetos ao Galina e aos novos árcades, não exclui o admirável poeta de Leandro e Hero, de Areneu e Argira, do Tritão e das Epístolas. A própria mobilidade do seu talento duplica, multiplica as variantes de um caráter, cujo principal distintivo era a excessiva impressionabilidade.
Na comédia, Bocage mostra-se pelas duas faces essenciais. Está nisso a verdade: o contrário seria grave erro de observação. Ninguém se apresenta nas salas como na rua. Quando não houvesse esta distinção natural, que é de todos os tempos, bastaria o que a respeito dele escreveu o viajante Beckford, (que o tratou no tempo em que frequentava a casa dos Marialvas) para tornar evidente como o fogoso mancebo, apesar das suas singularidades, não podia ter ao despontar da vida desaprendido o que recebera da educação paterna, que recordava com desvanecimento da origem como provam alguns dos seus versos.
Releu cuidadosamente o autor os preciosos trabalhos dos srs. Castilhos, Rebelo da Silva, e Inocêncio acerca de Bocage; compulsou os documentos respectivos ao poeta com tanta miudeza, que teve a fortuna de poder retificar a data da sua nomeação de guarda marinha para Goa, que não é a de 1782 como se lê na biografia que precede a última edição, mas a de 31 de janeiro de 1786, como autenticamente se vê no próprio documento oficial conservado nos arquivos do ministério da marinha; procurou sobre tudo o segredo daquele complexo caráter nos seis volumes que encerram a coleção completa dos seus poemas, coleção inteirada pela ilustrada solicitude e zelo incansável do nosso primeiro bibliografo, o já citado Sr. Inocêncio.
A variada feição da índole e talento de Bocage, o seu advento, e os lances principais da sua vida, ali com efeito se retratam.
Aos 8 anos improvisava uma quadra, que não poderia ter chegado até nós se não fosse logo repetida por apreciada, concluindo-se daí que não pode parecer prematura reputação a que ele goza já aos 19:
Fui ver a procissão a São Francisco, A quem o vulgo chama da cidade, E suposto o apertão, foi raridade Que indo eu em carne não viesse em cisco.
Logo no primeiro soneto da coleção exclama:
Incultas produções da mocidade Exponho a vossos olhos, oh leitores; Vede-as com mágoa, vede-as com piedade, Que elas buscam piedade e não louvores;
Ponderai da Fortuna a variedade Nos meus suspiros, lágrimas e amores;
Notai dos males seus a imensidade, A curta duração dos seus favores;
E se entre versos mil de sentimento Encontrardes alguns, cuja aparência Indique festival contentamento,
Crede, oh mortais, que foram com violência Escritos pela mão do Fingimento, Cantados pela voz da Dependência.
Ninguém dirá, em presença desta dolorosa confissão, que lhe eram estranhos os grandes afetos e os grandes pesares expressos na mais alta e culta língua; ninguém poderá persistir em considerá-lo exclusivamente homem de botequins e outeiros, incapaz de outras aspirações e outras práticas; ninguém em suma presumirá conhecêlo melhor do que ele a si se conhecia.
O soneto 99º do Livro I atesta como nesse privilegiado engenho se revelou cedo a vocação, que cedo também o fez presado:
Das faixas infantis despido apenas Sentia o sacro fogo arder na mente.
Se o testemunho dele não bastasse, removeria quaisquer dúvidas o de Filinto quando lhe escrevia:
Lendo os teus versos, numeroso Elmano, E o não vulgar conceito, e a feliz frase, Disse entre mim: “Depõe, Filinto, a lira Já velha, já cansada, Que este mancebo vem tomar-te os louros.”
Manifesto é pois que a fama não esperou muito para apregoar o nome de Bocage, e apregoá-lo por voz tão autorizada como esta, a que o moço poeta respondia num rapto de entusiasmo em que se está revelando quanto o lisonjeava tal sufrágio:
Fadou-me o grã Filinto, um vate, um nume! Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!
O retrato físico de Bocage acha-se, além de outro inferior, no soneto 22º do Livro IV:
Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura.
O nome que mais frequentemente aparece nas suas queixas amorosas, indicando uma preocupação e predileção pouco vulgar em homem tão variável, e consequentemente certificando que fora aquele o seu mais intenso afeto, é justamente o nome de Gertrúria. Enlevos, desconfiança, zelos, saudades, presságios, alternam-se em impetuosos arrebatamentos e sentidos desafogos nos sonetos 13º, 18º, 23º, 37º e 57º do Livro I, e Gertrúria é o objeto destas persistentes recordações. Os sonetos 17º e 20º provam que, indo em viagem, é ainda esta a memória que lhe enche o espírito. O soneto 58º é uma despedida a Gertrúria na ocasião de partir para a Índia. O soneto 47º chora a ausência da pátria e de Gertrúria. Finalmente o 83º, com o respectivo mote, é o que o Bocage da comédia no segundo ato improvisa sem mudança de uma virgula, e serve nas mãos astutas do comendador, por intermédio do oficioso mestre Amâncio, para dar no 3º ato motivo aos temporários arrufos entre a suposta afilhada de D. Filícia e o filho de Manuel Simões.
Já portanto se vê que, só desconhecendo-se totalmente as obras do poeta, se poderiam julgar destoantes do seu caráter estes amores, estes versos, e a feição deles, pois que aí se encontra, naquele período da sua vida, uma parte da sua própria individualidade com o que é mais dela, ou antes no que é mais ela!
Seria fácil multiplicar infinitamente as citações das poesias que autenticam, digamos assim, o caráter e a expressão que lhe deu o autor. Para que? Seria um estudo demasiadamente longo e prolixo; seria pior, seria pôr em dúvida a lição e critério dos leitores.
Poderia crer-se apenas um freguês do Izidro e do Nicola o poeta que ao partir para Goa soltava esta enternecida e magnifica despedida?
Amigos, pátria minha, e lar paterno Penates a quem rendo um culto interno! Lacrimosos parentes Qu'inda na ausência me estareis presentes, Adeus! Um vivo ardor de nome e fama A nova região me atrai, me chama.
Não diz ele as suas arrojadas esperanças e secretas penas neste quarteto tão cheio?
Camões! grande Camões! quão semelhante Acho teu fado ao meu quando os cotejo! Igual sorte nos fez, perdido o Tejo, Arrostar co'o sacrílego gigante!
Não deixa entrever, neste outro mavioso trecho, a par daqueles grandiosos sonhos, a dor misteriosa que o impele e o acompanha?
Eu parto; e vou teu nome repetindo  Por que dê desafogo à mágoa dura;  Meus tristes ais, suspiros de amargura  Aquém dos mares ficarás ouvindo!
De tudo isto se compõe o Bocage da comédia!
Em torno dele, concorrendo a uma ação fundada nos costumes do país e da época, grupam-se os tipos que mais visivelmente representam os sentimentos e tendências coevas. De um lado as antigas tradições, ainda na sua grave pureza. De outro lado a degeneração variada, já misturando os elementos de onde surgirá a necessária transformação. De um lado o marquês de Marialva, D. Maria Joana, Gonçalo Mendo; do outro D. Felícia, o Comendador, o Morgado. Ao fundo a burguesia nascente, isto é, Manuel Simões e seu filho, — o próprio Manuel Simões concebido e desenhado por Garret na Sobrinha do Marquês — quanto possível guardado e acatado como se guardam e acatam as telas dos mestres — e só passageiramente retocado com uma leve tintura de ambição, indispensável para indicar a progressão dos tempos, e os futuros destinos de tal classe. Ao redor do todo, o povo em algumas fisionomias rapidamente esboçadas. Ao longe, como horizonte melancólico, uma ideia do são e austero lar provinciano, com seus longes dos costumes patriarcais e fragueiros que lhe eram usual apanágio.
Eis aqui resumido todo o pensamento e toda a economia da composição, que depois de experimentar a fortuna do palco, vai agora experimentar a fortuna da imprensa — duas temerosas experiências.
Expondo assim o conjunto do desígnio, cujas multiplicadas dificuldades calculou, não procura o autor antecipar as desculpas, mas unicamente assentar as responsabilidades.
Se logrou o seu propósito não o dirá ele; decidi-lo-á o público!
O singular favor com que foi acolhido este ensaio num gênero pouco cultivado no nosso teatro, impõe ao autor o gratíssimo dever de exprimir aqui (vedando-lhe o respeito outra menção) o seu profundo reconhecimento para com o público, indulgente e atento, que em todos os seus tentames o tem acompanhado como um amigo fiel, ora animando-o com o estímulo do aplauso, ora advertindo-o com a benevolência do conselho, e que, de certo apreciando a obra mais pela intenção que pela valia, recompensou os seus esforços por modo tal que lhe ficará indelével memória.
À imprensa agradece também a benignidade com que até aqui o tem honrado.
À direção do teatro normal testemunha quanto o penhorou a solicita cooperação que nela encontrou.
Seja-lhe finalmente permitido certificar à graciosa atriz, que fez com a estreia da peça o seu benefício, a sua inteira satisfação pela maneira verdadeiramente distinta com que interpretou o seu variado papel e lhe venceu as numerosas dificuldades, sendo a maior ter ao lado uma artista tão conscienciosa e completa como a Sra. Delfina, que do esboço senhorilmente cômico de D. Felícia tirou uma das suas mais acabadas criações.
Se a estas, pela primazia devida ao sexo, menciona o autor em primeiro lugar, nem por isso esquece que deve igual agradecimento aos mais atores, do primeiro até ao último, tendo achado neles tamanho zelo, que, mesmo graduando-os pela ordem dos méritos bem conhecidos, não poderia especializar um sem ofender a boa vontade de todos.
A comédia Os primeiros amores de Bocage, se Deus der vida ao autor, será o introito de uma trilogia, que se destina a abranger o mais notável da vida do poeta, e dos curiosos períodos coetâneos da história pátria, até aos últimos momentos dele em dezembro de 1805.
Junho 12 — 1865.

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PERSONAGENS: O MARQUÊS DE MARIALVA (72 anos) MANUEL SIMÕES (mercador, 69 anos) GONÇALO MENDO DE SENDIM (da casa de Mendel, tenente de dragões de Campo Maior, 33 anos) MANUEL MARIA BARBOSA HEDOIS DE BOCAGE (cadete do regimento de Setúbal, 19 anos) BARTOLOMEU TOJO (morgado da Gesteira, 44 anos) SEBASTIÃO DE BRITO LOUZELOS (comendador de São Marcos de Monsarás, 52 anos) FRANCISCO PEDRO SIMÕES (filho do Manuel Simões, 26 anos) UM TRANSEUNTE ZÉ DA MOITA (guarda de montado, 30 anos) LUIZ MANUEL (escudeiro, 65 anos) D. MARIA JOANA GALVÃO LOBO (morgada de Valmoreno, Fresnos e Carregueiros, 23 anos) D. FELÍCIA MOUTOSO DE CERQUEIRA (morgada da Torre da Palma, 48 anos) MARIA GERTRUDES, SUA AFILHADA (20 anos) TIA PÁSCOA DO ESPÍRITO SANTO 
TIA VIGÊNCIA DA PURIFICAÇÃO UMA PALMILHADEIRA COMPADRE TEOTÔNIO ALVES COMPADRE AMÂNCIO PIRES  POETAS MANCEBOS O ALCAIDE DO BAIRRO DO ROGIO O TABELIÃO UM CAVALHEIRO O ALMEIRÃO O GAETA UM CEGO, PREGOEIRO DE IMPRESSOS  UM VOLANTIM UM PENITENTE UM ESCUDEIRO DO MARQUÊS O MOURO DO MARQUÊS O ESCUDEIRO DE D. FELÍCIA Povo, convidados, damas, ronda do Alcaide, criados, etc. 
Ano: 1785 a 1786.
 
 
ATO I
 
CENA I
 
COMENDADOR (atrás de D. Maria Joana, do mesmo modo) Bem... bem diz Xenofonte!... Nem eu sei o que diz! (Deixa-se ir meio desfalecido sobre outra cadeira)
 
(Silêncio geral. Cada um dos três personagens procura resfolegar e reanimar-se)
 
D. MARIA JOANA (como tornando a si) (Para os dois) Que foi isto?... Como foi isto?...
 
MORGADO Pois não sentiu? — Um tiro... tropel de cavalos...
 
D. MARIA JOANA E desapareceu tudo!... E deixaram-me só!... (Meio repreensiva) E o primo a fugir!
 
MORGADO (levantando-se) Fugir eu, minha prima!... (Formalizado) Fugir!... Seria a primeira vez.
 
D. MARIA JOANA (recobrando gradualmente o bom humor) Pois para a primeira não o fazia mal.
 
MORGADO Avistei esta casaria... Corria para aqui... para me fazer forte... para nos fazermos fortes!
 
D. MARIA JOANA Mas corria diante... E eu corri também... corri que nem eu sei... corri deveras para o poder seguir... E até o comendador correu... Não correu, comendador?
 
COMENDADOR (gravemente) Afirmam boas autoridades que muitas vezes é prudência o correr... Pedibus celer, diz Virgílio com louvor.
 
D. MARIA JOANA (sorrindo) Já está mais em si, o comendador... Já não fala como toda a gente.
 
MORGADO (com extrema volubilidade, que é o seu natural) Mas, prima, que havia de fazer um homem só, naquele descampado, contra tanta gente!... Agora que venham. Dez, doze, vinte que sejam...
 
D. MARIA JOANA (erguendo-se como escutando) Espere...
 
MORGADO (assustado) Que é?
 
COMENDADOR (idem, levantando-se) Que é?
 
D. MARIA JOANA (aplicando o ouvido aos dois que se lhe reúnem em grupo turbado) Não ouvem?
 
COMENDADOR Tropear de cavalos!...
 
MORGADO (inquieto e interrogando as saídas com os olhos) Não ter aqui a minha espada!...
 
D. MARIA JOANA (com leve ironia) Perdeu-a?
 
MORGADO (mais inquieto) Não sei como foi... (Dirigindo-se apressadamente a uma porta lateral) Vou procurar uma arma.
 
D. MARIA JOANA (com terror dirigindo-se a outra) Chame gente, primo.
 
COMENDADOR (que ficara escutando) Vem subindo alguém! (Encaminhando-se desorientado à outra)
 
(No momento em que os três aterrados procuram debalde atinar com os fechos das portas a que se dirigem, aparece ao fundo Gonçalo Mendo)
 
 
CENA II Os mesmos e Gonçalo Mendo.
 
GONÇALO Da parte del-rei... nem mais um passo.
 
COMENDADOR (apegando-se à umbreira) Ai!
 
MORGADO (idem) Jesus!
 
D. MARIA JOANA Desmaiava... se tivesse onde.
 
GONÇALO Ninguém tente fugir ou esconder-se. Da parte del-rei está preso tudo.
 
MORGADO (esperançado, consigo, e ainda voltado para a porta) Da parte del-rei!
 
D. MARIA JOANA (do mesmo modo) Havia de jurar que me não é desconhecida esta voz.
 
COMENDADOR (voltando dissimuladamente o rosto, e procurando reconhecer) Da parte del-rei!... Então...
 
GONÇALO (adiantando-se) Vamos... Toda a resistência seria inútil...
 
D. MARIA JOANA, MORGADO e COMENDADOR (voltando-se simultaneamente) O Sr. Gonçalo Mendo!
 
GONÇALO (atônito) Que é isto! (Afirmando-se e reconhecendo-os) Na verdade não sei se acredite... A Sra. D. Maria Joana Galvão!... O Sr. morgado da Gesteira!... O Sr. comendador Louzelos!... E eu que pensava colher um bando de salteadores!... (A D. Maria Joana sorrindo) Não são os salteadores?
 
D. MARIA JOANA (recobrando a jovialidade) Somos os assaltados. Respondo-lhe por eles. — Agora diga-me antes de tudo. Que aventura é esta? Como veio aqui? Onde estamos? Diga. Foi terrível o susto, mas ainda é maior a curiosidade.
 
GONÇALO Responderei logo; perguntarei primeiro. Estes senhores podem auxiliar as explicações, e eu completo o meu dever. Vinham de jornada e foram atacados ali em baixo, na estrada, ao fundo do vale, entre a ribeira de Aviz e o azinhal grande?
 
COMENDADOR (no seu caráter habitual de prolixa gravidade) Fomos. Tínhamos jantado em Portalegre, onde mais nos detivemos do que devíamos. E não foi por eu não repetir ao morgado, com a autoridade de Cicero: “nos negócios graves são perigosas as demoras.” Jornadas, em boa razão, são graves negócios.
 
MORGADO (no seu caráter de costumada loquacidade) A que propósito vinha o tal Cicero, ou o que é, quando eu tinha conseguido pôr na mesa à prima, em Portalegre... em Portalegre, como se estivéssemos na corte!... tudo por diligências minhas, tudo com receitas minhas!... uma olha à castelhana, um prato de galinhas de alfitete, outro de coelho à Fernão de Sousa, outro de arteletes de vitela, outro de coroa real de folhado francês, sem contar as miudezas... Em jornada nem princesas teriam melhor, há de confessar, Sr. Gonçalo Mendo... Não, que se não fora a minha consumada prática nestas coisas...
 
D. MARIA JOANA Estávamos há uma hora em Monforte... e provavelmente não nos tinha sucedido o que nos sucedeu.
 
MORGADO (desconsolado) Ah! prima!
 
GONÇALO (a D. Maria Joana) Não me queixarei eu do sucedido. (Aos homens) Vamos ao caso...
 
COMENDADOR Era já ao pôr do sol e estávamos quase ao meio do azinhal, a Sra. D. Maria Joana com a sua aia numa liteira, nós dois e dois criados, todos a cavalo, um pouco atrás uma azêmola com as bagagens mais leves, e um moço de pé...
 
MORGADO Bagagens leves!... Leves serão, mas preciosas!... Mil coisas necessárias!... Uma bateria de cozinha de viagem como não há outra ainda em Lisboa... completa... completa... Fôrmas, facas, espátulas, agulhas, passadores... Nem na ucharia de Salvaterra!... E tudo precaução minha para comodidade da prima, tudo...
 
GONÇALO (interrompendo) Vamos ao caso... vamos ao caso, comendador.
 
COMENDADOR A meio do azinhal, pouco mais ou menos, onde a estrada faz um cotovelo e se aperta entre os montes, damos de rosto com uns poucos de homens armados...
 
MORGADO Poucos!... Quinze eram pelo menos... vinte talvez... vinte de certo, se não eram mais...
 
GONÇALO (atalhando impaciente) O número pouco importa.
 
MORGADO (protestando) Importa pouco! Para o valor o número...
 
COMENDADOR O número não é indiferente... Por não ser indiferente se distinguiu em singular e plural... Basta ver o que a respeito do número escreveu Prisciano Cesariense... mas neste caso...
 
D. MARIA JOANA Neste caso, continuo eu... ou não se acaba. — Paramos. O morgado e o comendador vinham ainda um pouco distantes, penso. Os homens fazem menção de nos cercar a liteira. A minha aia desmaia. Os liteireiros fogem pelo azinhal, e creio que os criados também. Enfim achei-me não sei como a pé na estrada. Nisto o comendador caiu...
 
COMENDADOR Dei de esporas para acudir, e tropeçou-me o cavalo...
 
D. MARIA JOANA Muito a tempo.
 
MORGADO (que espreitava a ocasião, apoderando-se da palavra) No meio destes apuros, conservo toda a presença de espírito... deito à carreira, faço parada firme, ponho pé em terra num relance, com todos os preceitos... os três tempos velozes em meio círculo seguido... levanto o comendador que estava tolhido pela sela... não indago mais... a pé mesmo levo da espada, e caio como um raio sobre a malta... Ah! que se tenho tempo! Duas voltas, um cambiamento, treta sobre treta, talho e revés, e ensinava-lhes o que é o morgado da Gesteira com a espada na mão!... A prima veria... Por seu respeito!... Veria... Não digo mais!
 
D. MARIA JOANA Veria... estou certa. Mas não vi. Foi pena. Apagou-se o raio antes de fulminar!
 
GONÇALO (a D. Maria Joana) Depois?
 
D. MARIA JOANA Depois... nem eu sei bem... ouviu-se um galope... um tiro, creio... O morgado diz que foi um tiro...
 
MORGADO Foi... Por sinal, com o estrondo os nossos cavalos, que tínhamos deixado soltos na estrada, fugiram à desfilada...
 
D. MARIA JOANA Dando exemplo aos cavaleiros. Fugiram os cavalos, fugiram os salteadores... se eram salteadores... já tinha fugido o comendador, fugiu o primo, e eu, que estava desatinada, confesso, vendo-o fugir... segui-o. Debandada geral... Não se ria, Sr. Gonçalo Mendo... Segui-o, é verdade, a correr, a bom correr, eu mesma, por essas ladeiras acima, por entre o mato... E tive fôlego!... Veja que forças dá o terror, e como iguala as condições!... Por fim viemos dar todos aqui. Pode explicar-me o enigma?
 
MORGADO Tive a imprudência de não trazer armas de fogo. Estava apeado, não esperava dois ataques ao mesmo tempo... Metido assim entre os salteadores que nos esperavam, e o outro bando que atirou sobre nós... Senti assobiar a bala aos ouvidos.
 
GONÇALO Admira. Disparei para o ar.
 
MORGADO (surpreso) Disparou!
 
D. MARIA JOANA Então o outro bando era o Sr. Gonçalo Mendo!
 
GONÇALO Eu mesmo. Voltava de Marvão, com duas ordenanças do meu regimento, em direção a Monforte. Ao descer a encosta avistei um ajuntamento na estrada... Não podia distinguir bem, porque estava distante ainda, e já começava a escurecer o vale com a sombra do arvoredo... Meti a galope, e desconfiei que era ataque a passageiros. Disparei então uma das pistolas para dar aviso de socorro, e prevenir alguma ousadia maior. Não esperava tão grande resultado. Num instante desapareceu tudo... menos a liteira e a sua aia, minha senhora!
 
D. MARIA JOANA Jesus! é verdade! A minha pobre Ana Maria! Que é feito dela?... Com o sobressalto, com tudo isto, quase me tinha já esquecido.
 
GONÇALO Tornou a si... Acompanha-a um dos meus dragões... Vem aí já. Nem pode acreditar ainda, que esteja viva.
 
D. MARIA JOANA E os ladrões, os criados, os liteireiros...
 
GONÇALO Dos ladrões, nem vestígios... Parece que se abriu a terra com eles...
 
MORGADO (que escutava atentamente, consigo) Ainda bem!
 
GONÇALO (fitando-o) Como?
 
MORGADO Nada, nada... Explica-se tudo perfeitamente. Ainda bem, dizia eu. Ainda bem que se explica, está visto.
 
GONÇALO Os liteireiros e os criados... deixei a outra ordenança incumbida de procurá-los, e esses de certo não hão de estar longe.
 
D. MARIA JOANA E como veio aqui ter, tanto a propósito?
 
(Vai carregando a noite)
 
GONÇALO Porque vi que se acoitavam nesta casaria alguns vultos... e por... (mais baixo) por destino talvez!
 
D. MARIA JOANA (idem, motejando) Como há dois anos?
 
GONÇALO (gravemente e com ardor) Como sempre!
 
D. MARIA JOANA (afastando a conversação) Mas afinal, onde estamos? Que havemos de fazer?
 
GONÇALO Em primeiro lugar... procurar luz. É noite quase. Sr. Morgado da Gesteira, a casa tem ares de habitada. Se quisesse...
 
MORGADO Pois não. Eu chamo. (Sucessivamente e a intervalos, às portas) Olé! Oh!... ó de casa. Venha alguém? Está aqui o morgado da Gesteira!... Está uma senhora!... Gente de bem, tudo!... (Silêncio absoluto) Nem viv'alma!
 
GONÇALO Estarão longe...
 
COMENDADOR É singular!
 
D. MARIA JOANA (inquieta) Será a própria guarida dos salteadores!
 
GONÇALO Tem-se visto, mas não é provável... Vamos, Sr. morgado. Veja se acha uma luz. Bem reconhece que não posso ir eu. Está aqui uma dama, e agora, como militar, respondo pela sua segurança.
 
MORGADO (irresoluto) Assim é, mas... (Sem se atrever a ir) Comendador, mais veem dois do que um.
 
COMENDADOR “Não é a luz dos olhos a que mais vê”, como diz...
 
GONÇALO (instando) Então! Cada vez se faz mais escuro, e não sabemos onde estamos.
 
MORGADO (resolvendo-se) Vamos, comendador, antes que seja noite de todo! Por aqui... (Indo à esquerda) Uma varanda... (indo à direita) deste lado um corredor... Vamos a ver.
 
(Saem os dois)
 
 
CENA III Gonçalo e D. Maria Joana.
 
(Longo silêncio como se receassem quebrá-lo)
 
D. MARIA JOANA Senhor Gonçalo Mendo, é ainda submisso como dantes jurava?
 
GONÇALO Nunca faltei a nenhum juramento.
 
D. MARIA JOANA Tornamos a ver-nos em circunstâncias extraordinárias... num ermo a bem dizer... entre sombras e mistérios... Não lhe permito uma palavra de galanteio às escuras... Estão entre nós...
 
GONÇALO (gravemente) Estão três séculos de honra... está a espada de um soldado. — Fazme a injuria de supor necessário advertir-me?
 
D. MARIA JOANA Não. Desculpe. É ainda do sobressalto! Desculpe. Conversemos. — Estava bem longe de me encontrar, não? E assim, e aqui muito menos?
 
GONÇALO Só adivinhando. Supunha-a ainda em Paris.
 
D. MARIA JOANA Volto de lá. Um mês de jornada, faça ideia! Se não posso aturar o mar!
 
GONÇALO Um mês!... Entre o comendador e o morgado?
 
D. MARIA JOANA O comendador...
 
GONÇALO Uma reminiscência das academias do Sr. D. João V... a quem Deus perdoe...
 
D. MARIA JOANA Ao Sr. D. João V?
 
GONÇALO Não, minha senhora, às academias.
 
D. MARIA JOANA O morgado...
 
GONÇALO A casca dos antepassados... que não teve.
 
D. MARIA JOANA Já vejo que os conhece a fundo.
 
GONÇALO (ponderando dolorosamente) Um mês em tal companhia!... A fadiga do caminho é nada ao pé disso.
 
D. MARIA JOANA Um mês com o comendador, que o meu contraparente D. Vicente de Sousa Coutinho incumbiu de acompanhar-me, atendendo à sua idade, e que empreendeu render-me à força de erudições... um dia com o morgado, que encontrei em Porto de Espada, e que foi esperar-me à raia, não sei se por sua conta, se por ordem de minha tia D. Felícia, a quem escrevi de Paris.
 
GONÇALO Ao menos foi só meio suplício no mês!
 
D. MARIA JOANA Ai! o dia do morgado tem valido bem o mês do comendador. Imagine. É um nunca acabar de proezas em cavalaria, em... esgrima, em altanaria, em montaria e em... gastronomia, como se diz em França. Com o pretexto de um parentesco... de que eu não tinha notícia... quer-me cativar pelas artes como o comendador pela ciência.
 
GONÇALO Concluo daí que tenho neles dois... dois... Como direi?...
 
D. MARIA JOANA Rivais. Pode dizer. Não tem risco.
 
GONÇALO Em suma, requestam-na ambos!
 
D. MARIA JOANA O comendador dês que partimos de Paris... O morgado dês que nos saiu ao encontro na fronteira...
 
GONÇALO Complicando o galanteio... ambulante.
 
D. MARIA JOANA Pelo contrário: simplificando-o. Distraem-se mutuamente, e deixamme respirar. Dois são menos perigosos que um.
 
GONÇALO E três? D. MARIA JOANA
 
Menos perigosos que dois. Já lhe esqueceu o prometido? (Pausa) Ambos pretendem a minha mão, é verdade... porque nesta mão, com ser pequena, cabe a herança de três casas.
 
GONÇALO (simplesmente) Não me lembrava!
 
O MORGADO (fora) Prima! Prima!
 
D. MARIA JOANA Ouve? Temos temporal de palavras.
 
 
CENA IV Os ditos, Morgado e Comendador.
 
(Ambos com luzes. — Clareia de novo a cena)
 
MORGADO Prima. Achamos luz.
 
GONÇALO Não é difícil verificá-lo.
 
MORGADO E não só achamos luz, fizemos um grande descobrimento. 
 
(Vão pôr as luzes no bufete)
 
D. MARIA JOANA Não foi o novo mundo?
 
MORGADO Não foi o novo mundo. Foi um mundo antigo... um canto dele... muito seu conhecido... A prima mal se podia lembrar. Não o vê de pequenina... E eu mesmo... Se não venho por aqui há bons quinze anos!...
 
D. MARIA JOANA Vamos, acabe. Encontrou gente?
 
MORGADO Gente! Ninguém. Um deserto. — Quer saber onde estamos?
 
D. MARIA JOANA Por que não começou por aí? Não vê que estou morta de impaciência?
 
MORGADO Deus me livre de a molestar na mínima coisa, prima. Quisera antes... brigar comigo! Bem sabe que para lhe evitar um dissabor... uma sombra dele, um... (Gesto de impaciência de D. Maria Joana) Já vou, prima. Lá vai. — Quer saber onde estamos? Estamos no paço da Torre da Palma!
 
D. MARIA JOANA Em casa de minha tia D. Felícia?
 
MORGADO No seu próprio solar. Não ignorava que era para estes sítios, mas deram nova direção à estrada, e lá em baixo não me ocorreu... Depois, quando entramos, com o lusco-fusco...
 
D. MARIA JOANA (maliciosa) Com a perturbação...
 
MORGADO Nem reparei sequer. Agora, entrando por aí dentro, quis-me parecer que me não era estranho o corredor... topo uma escada, e dá-me ares de conhecida... desço, entro numa casa lajeada, e cada vez se me afigura mais familiar o piso... Procuro, acho velas, acendo, olho em redor... Era a cozinha... foi um raio de luz...
 
GONÇALO (sorrindo) Pudera! Na cozinha!
 
MORGADO Tantas vezes jantei nesta casa!... Fui eu que dei as receitas de fartes e de manjar real à Doroteia!... Foi ali que ensinei o Fernandes velho a fazer perdizes de gígote, quando vinha caçar com seu tio capitãomor...
 
D. MARIA JOANA Memoráveis recordações!... Admira como não reconheceu logo a casa.
 
MORGADO (maquinalmente) Com a perturbação... (emendando-se) com o escuro, quero dizer... E era tão novo ainda naquele tempo! — Não se lembra de seu tio João, de Carregueiros? Parece-me estar vendo ainda o Sr. Capitão-mor, João Alvares Lobo, sempre sisudo, e sempre triste... triste como a noite!... Tudo por quê? Por não deixar filho varão para herdeiro, (a D. Maria Joana) e por causa da paixão de sua tia D. Felícia pelos donaires... Nunca se viram dois gênios mais opostos... Ele todo monteador e fragueiro; ela toda corte e mimos!... Teimava o capitãomor em eternizar, na Torre da Palma, os costumes do tempo em que era castelo fronteiro a casa. A Sra. morgada D. Felícia não tinha senão um fito... ser açafata no Paço.
 
D. MARIA JOANA E já é?
 
GONÇALO Espera ainda ser. Há treze anos que espera.
 
MORGADO Na filha única via o capitão-mor a continuação provável da índole de sua mulher, e a ruína dos próprios intentos.
 
D. MARIA JOANA Tenho ideia de ouvir dizer que por isso se apartaram.
 
MORGADO Por isso, certamente. Foi ela viver na corte como desejava. Ele deixou-se ficar, não consentindo que sua tia levasse a filha... provavelmente para a criar a seu modo... Ficou pois... Mas como ficou!... Esta casa um ermo, ele uma sombra. — Levou-o mais cedo à sepultura aquele desgosto!
 
D. MARIA JOANA E a pequenina?
 
MORGADO Tinha dezoito meses apenas. Tratava dela aqui a Joaquina Simoa, filha de um mateiro de Carregueiros, que havia dois anos casara com o Luiz Manuel, o escudeiro da Torre da Palma... A criança morreu, e seu tio pouco mais durou... Há bons quinze anos isto... dezesseis talvez!
 
D. MARIA JOANA E dezessete por que não? Apesar de mais moço, meu pai havia casado muito antes de meu tio João. Tinha eu os meus seis anos feitos por esse tempo, e lembra-me bem de ouvir contar. Foi por morte do tio João e da filha herdeira, que as casas de Fresnos e Carregueiros passaram para meu pai, na qualidade de imediato sucessor. Não é isto?
 
MORGADO É. Vivia ainda seu irmão Nuno Alvares, quando morreu o capitãomor. Ao menos acabou persuadido de que as terras dos seus iam a herdeiro varão, como tanto desejava.
 
D. MARIA JOANA Deus tinha disposto de outro modo. Meu irmão Nuno morreu ainda menino também. — O morgado não é menos forte em genealogias... patrimoniais... do que em esgrima, e no resto. — Minha tia D. Felícia nunca mais voltou aqui? Fui cedo para Lisboa, casei aos quinze anos, e parti logo com meu marido para a embaixada de Viena de Áustria, onde ele era secretário. Desejo informações.
 
MORGADO Sua prima? Não voltou. A corte é o seu encanto, e esta casa só lhe lembrava desgostos. Haverá dez anos mandou ir para a sua companhia a pequena da Simoa, que é sua afilhada. Tem o mesmo nome que tinha a filha, e nasceu pelo mesmo tempo... Recordações... saudades provavelmente.
 
D. MARIA JOANA E a Joaquina Simoa? E o Luiz Manuel? Tenho ainda uns longes deles.
 
MORGADO Ficaram por feitores da casa.
 
D. MARIA JOANA E não aparecem, essas relíquias de outro tempo?... Procure-mas, comendador... procure-as morgado... Ah!... (Como achando uma ideia) Estarão elas encantadas? Querem ver que estão!... Desencantemmas.
 
MORGADO Se não mudaram os costumes, foram ao terço a Vaiamonte, e não tardam.
 
D. MARIA JOANA Sabemos onde estamos, e estamos em morada da família... Não é pouco, mas não é tudo. Agora que fazemos? Monforte fica ainda longe?
 
GONÇALO Meia légua, o muito.
 
D. MARIA JOANA Não me fio nestas meias léguas. — Visto que nos podemos julgar a salvo... (A Gonçalo) Podemos?
 
GONÇALO Sempre o julguei.
 
D. MARIA JOANA Acho-me um pouco moída das carreiras que dei atrás do morgado; e não sei se é do susto, se do ar, se da jornada, sinto uma fraqueza que... que está solicitando com empenho a intervenção e o socorro da famosa ucharia... (Para o morgado) Não seria ocasião de experimentar alguma das receitas?... Qualquer coisa.
 
MORGADO Preveni tudo... Vem tudo nas bagagens, muito bem acondicionado... Servir-lhe-ei duas ades estiladas, frias, que são um primor, e um queijo de presunto, que verá... sem contar um prato de broas de ovos que tinha de reserva.
 
D. MARIA JOANA Ouviu já falar no suplício de Tântalo, morgado?
 
COMENDADOR Tântalo, rei da Lídia, filho de Júpiter e de Plótis.
 
MORGADO (seriamente) Não conheço o sujeito, mas tratarei de fazer o seu conhecimento, se é pessoa de bem.
 
D. MARIA JOANA Não é preciso. — Tântalo ardia em sede, e fugia-lhe a água que via próxima; devorava-o a fome, e retiravam-se dele os frutos que tinha à vista... Assim estamos nós... Tão boas coisas nas bagagens, e as bagagens por montes e vales!
 
GONÇALO (que parecia escutar) Perdoe! (Continua a aplicar o ouvido)
 
D. MARIA JOANA Novidade?
 
GONÇALO (saindo precipitadamente) Volto já.
 
 
CENA V Os ditos menos Gonçalo.
 
D. MARIA JOANA Mais inquietações ainda!
 
COMENDADOR (turbado) Não agouro nada bom... Ouço rumor se me não engano...
 
MORGADO Não tem a gente um momento de sossego. (Consigo) Dar-se-á caso que deveras... (Alto) Isto está como nunca... Anda tudo minado de malfeitores!
 
COMENDADOR (com o ouvido atento)
 
Que há rumor lá fora, há!
 
D. MARIA JOANA Assim é que me tranquilizam!
 
 
CENA VI Os ditos e Gonçalo.
 
D. MARIA JOANA (assustada) Que foi?
 
GONÇALO São as suas bagagens. Não é caso de consternar, creio.
 
D. MARIA JOANA (meio enleada ainda) De certo não.
 
GONÇALO Teve alguma coisa?
 
D. MARIA JOANA Não tive... — Tive... tive os terrores crônicos do morgado e do comendador.
 
MORGADO (protestando) Terrores! Cuidados pela prima.
 
D. MARIA JOANA (aos dois) Hão de acabar por me tornar convulsa.
 
GONÇALO Chegou a sua aia, voltaram os liteireiros, e apareceu o criado do Sr. morgado. Não falta senão o do Sr. comendador.
 
COMENDADOR Esse não me dá cuidado. É dos sítios.
 
GONÇALO Tântalo tem férias?
 
D. MARIA JOANA Tem. — A minha Ana Maria?
 
GONÇALO Entrou para os quartos inferiores.
 
D. MARIA JOANA Já agora aqui pernoitamos, comendador!
 
COMENDADOR É o mais prudente, se o Sr. Gonçalo Mendo nos assegura...
 
GONÇALO Basta que esteja em Monforte de madrugada. Eu e as minhas ordenanças ficamos de guarda a esta casa.
 
D. MARIA JOANA O Luiz Manuel não pode tardar. Sempre há de haver modo de não ficarmos pior do que em Monforte.
 
MORGADO Há, pois não... Há de haver onde a prima se acomode como cumpre. Nós...
 
GONÇALO Nós em qualquer parte e de qualquer maneira.
 
MORGADO Como homens de guerra.
 
D. MARIA JOANA Que poeira trago... reparo agora! — Comendador... minha prima havia de ter um quarto de toucar... Quer dizer à Ana Maria que suba e procure.
 
COMENDADOR Procurarei eu mesmo. (Galanteando) Pretende Tíbulo...
 
D. MARIA JOANA (atalhando) Ai! o morgado que faz que não vai acudir às ades... às ades... Como é?
 
MORGADO Estiladas, prima, estiladas... Vou. Já vou. Deus me livre de entregar coisas destas a lacaios nem mochilas... Vou no mesmo instante.
 
COMENDADOR (indo para sai, e mirando desconfiado Gonçalo Mendo) Dar-se-á caso que... — Pode lá ser... — Um soldado!
 
MORGADO (idem, à porta do fundo) Querem ver que... — Ora... um filho segundo!
 
 
CENA VII D. Maria Joana e Gonçalo.
 
D. MARIA JOANA (que tem ido sentar se na cadeira junto ao bufete, acompanhada de Gonçalo, que fica de pé) Não está cansado, Sr. Gonçalo Mendo?
 
GONÇALO De quê?
 
D. MARIA JOANA Estou eu... creio que estou.
 
GONÇALO Com um mês de jornadas!...
 
D. MARIA JOANA Não é das jornadas.
 
GONÇALO Será dos companheiros?
 
D. MARIA JOANA Será. — Continuemos a conversar em quanto eles não veem, os companheiros.
 
GONÇALO A respeito de quê?
 
D. MARIA JOANA Do que lhe parecer.
 
GONÇALO Sem restrição?
 
D. MARIA JOANA (indicando) Agora temos luzes. — Diga-me alguma coisa de Lisboa. Há de estar informado.
 
GONÇALO Saí de lá há quinze dias, e volto antes de oito. Vim à província em comissão apenas. Estou às ordens do conde de Aveiras.
 
D. MARIA JOANA (distraidamente) Que se faz? que se diz?
 
GONÇALO (encostando-se-lhe ao espaldar da cadeira) Há de se dizer em breve que possui Lisboa a pérola das formosas e discretas... que já Paris admirava, e agora fica invejando.
 
D. MARIA JOANA Cumprimentos!
 
GONÇALO Bem sei que a enfadam já por continuados. — Cumprimentos não, profecias.
 
D. MARIA JOANA É moço para profeta... e ninguém o é na sua terra.
 
GONÇALO O que se faz?... Deixe-me ver... (Como recordando-se) Não se faz nada.
 
D. MARIA JOANA Pois nada?
 
GONÇALO O mesmo sempre. — A rainha, minha senhora, vai a Salvaterra, e sai às suas devoções. De tempos em tempos opera em Queluz. Fora disso a nau de viagem de ano a ano, e... e acabou-se. É assim depois que morreu o marquês de Pombal. Ao princípio ainda se entretinham em ter medo dele, mesmo depois de desterrado. Agora até essa distração falta.
 
D. MARIA JOANA Ai! Sr. Gonçalo Mendo, desculpe. Está ali uma cadeira convidandoo... e aí um lugar a esperá-lo. (Indica o lado oposto do bufete. Gonçalo vai buscar a cadeira, e senta-se no ponto designado) Não lhe parece que estaremos melhor? — São ainda moda os abadessados?
 
GONÇALO Uma vez por outra. Agora estão em voga as assembleias. — Como lhe há de parecer tudo isto sensabor!
 
D. MARIA JOANA (seriamente) Engana-se. Sempre são ares nossos. Não sabe que me trazem saudades?
 
GONÇALO (com intenção) De?...
 
D. MARIA JOANA (acentuando) Da pátria.
 
GONÇALO E sentimento digno de tal dama. Mas depois sempre se há de lembrar desse Paris, que era já tão seu.
 
D. MARIA JOANA O Paris que viu há dois anos vai de dia para dia degenerando... Os requebros são curtidos em filosofia... as canções tem um sabor de finanças... Que distração para damas!...
 
GONÇALO Amortalharam então a galanteria francesa com a Dubarri?
 
D. MARIA JOANA Que está dizendo! Seria levá-la de caixão à cova. A galanteria sobrevive; mas agora tem por figurino a sensibilidade... e anda de braço dado com uma coisa nova, que veio há pouco de Inglaterra, e que se chama... (recordando-se) chama-se?... (ocorrendo-lhe) filantropia. Sabe o que é?
 
GONÇALO Um nome que trescala a grego. Há de sabê-lo o comendador. — Acredita na sensibilidade de figurino?
 
D. MARIA JOANA Não; nem na filantropia de aparato.
 
GONÇALO Nisso se ocupam agora os franceses!... Substituíram isso aos madrigais?... Pois não ganharam na troca. Estou tentado a preferir lhes as nossas formalidades ronceiras... a nossa rustiquês e lhaneza... Por fim de contas, são coisas de casa... e muito de bom tem algumas.
 
D. MARIA JOANA Prefiro-as eu. Por isso vim.
 
GONÇALO E bem haja que veio! (Admirando-a) Vem, ainda mais formosa do que era há dois anos, quando fui levar ofícios de gabinete à embaixada de Paris... Lembra-se?
 
D. MARIA JOANA Tinha-se levantado o cerco de Gibraltar!
 
GONÇALO Só isso lhe lembra?... Vem prendada de todos os primores do espírito, de todas as graças da beleza, e não consente...
 
D. MARIA JOANA (detendo-lhe a palavra com o gesto) Escute! Cuidei que era já o comendador... Quer ver se o comendador com efeito achou o quarto?...
 
GONÇALO (Ergue-se vivamente. Pausa. Contemplando-a) É cruel! (Nova pausa. Com visível despeito) Vou procurar o comendador. (Encaminha-se)
 
D. MARIA JOANA (levantando-se como por efeito de reflexão) Não. Espere. O comendador era capaz de pensar que não posso passar cinco minutos sem a sua presença.
 
GONÇALO (voltando esperançado) Dispensa-a então... por hora?
 
D. MARIA JOANA Por mais um instante. (Vai sentar-se no canapé)
 
GONÇALO (defronte, de costas para o bufete, fitando-a)
 
Por que me obriga a dissimular comigo mesmo? Por que me força a estes colóquios frívolos? É isto para nós? Não sabe que só a boca lhe responde, por que tenho a alma e o sentido em outra coisa?
 
D. MARIA JOANA (depois de pausa) Tem razão. É-lhe absolutamente indispensável falar-me do que já me disse há dois anos em Paris? Pois falemos... Falemos. — Dei-lhe então esperanças?
 
GONÇALO Nenhumas, é verdade.
 
D. MARIA JOANA Dei-as a alguém?
 
GONÇALO Rodeiam-na as homenagens como a soberana... é agradável. Sorri a todos... mas fica a todos insensível... também sei!
 
D. MARIA JOANA Insensível!... Uma pedra, por que não?... Um gelo dos Alpes, vamos... Diga, diga... Se não o diz, pensa-o. — Somos insensíveis para estes senhores, nós outras, quando não nos declaramos humildemente rendidas apenas se dignam dar-nos um sinal de preferência... Nascemos para seu desenfado... “Sorri a todos”!... Vejam! Uma causa crime, completa só nesta frase: “sorri a todos”! Olhem o atentado! Queriam que chorássemos sempre? Queriam que os chorássemos!... E quando choramos... Nem eu digo! — Sentenciado a pena última, o nosso sorriso. Sentenciado por quê?... Não sabem que nas mulheres o sorriso anda perto das lágrimas!... Deixem-nos ao menos esse raio de luz entre chuveiros... como o sol de inverno.
 
GONÇALO Poderia responder-lhe que mais cômodo do que ter amor é deixar-se amar... Mas não digo... não me queixo... nada peço. Está na sua mão não preferir ninguém?... Não o está impedir que lhe queiram... mesmo sem esperança. Por que não serei eu desses?
 
D. MARIA JOANA O Sr. Gonçalo Mendo!... — Sente-se aí. Vamos, sente-se. Quero confessá-lo.
 
GONÇALO E dá-me a penitência antecipada!
 
D. MARIA JOANA Verei depois a que merece... segundo o arrependimento.
 
GONÇALO (com esperança, fazendo menção de ajoelhar) As culpas dizem-se de joelhos.
 
D. MARIA JOANA (vivamente) Sente-se. Os culpados começam por obedecer. Isso. Vamos a saber: (solenemente) é verdade que por ocasião da sua ida a Paris desafiou em Versailles um capitão dos guardas franceses, e o deixou três meses de cama com uma estocada?
 
GONÇALO É verdade. Foi para lhe provar que as parisienses não eram as primeiras entre todas as damas, como ele pretendia.
 
D. MARIA JOANA E por que não seriam?
 
GONÇALO Tinha cá as minhas razões.
 
D. MARIA JOANA Boas razões haviam de ser. Como se estivéramos ainda no tempo dos Magriços!
 
GONÇALO Os Magriços em Portugal são de todos os tempos.
 
D. MARIA JOANA É verdade que o ano passado, quando se festejou o casamento do Sr. infante D. João com a Sra. infanta D. Carlota, numa corrida de touros no paço da Murteira, saiu ao terreiro de espada na mão, e a pé, sem mais capa nem defesa, chamou a si o animal furioso, e matou-o de um golpe, só para que ele não pusesse os pés num lenço, que da varanda havia caído a uma dama?
 
GONÇALO É verdade. A dama tinha sessenta anos.
 
D. MARIA JOANA (incrédula e motejando) Sessenta anos!
 
GONÇALO Mas chamava-se D. Mência Jorge, e o lenço tinha bordado um M e um J... as suas iniciais.
 
D. MARIA JOANA (lisonjeada) Ah! (Pausa) Mais...
 
GONÇALO Mais ainda? Devo agradecer a curiosidade, que se informou... ou a informou... com tanta miudeza a meu respeito?
 
D. MARIA JOANA Deve responder. — É verdade que um dia, amotinando-se o regimento de Meklemburgo... servia então lá... o tenente-coronel... um alemão, creio... ficou só, ameaçado dos soldados enfurecidos? É verdade que unicamente um alferes se atreveu a colocar-se ao lado do comandante, com tal resolução e bizarria, que o exemplo envergonhou os sublevados, e a firmeza do oficial salvou a vida ao tenente-coronel?
 
GONÇALO É verdade. O alferes cumpriu o seu dever, nada mais.
 
D. MARIA JOANA Mas dizem que nesse dever lhe serviram de estímulo os olhos azuis da irmã do tenente-coronel. Será assim?
 
GONÇALO É. Foi. Há quantos anos?
 
D. MARIA JOANA Eu sei!...
 
GONÇALO Há seis. (A D Maria Joana) Não a conhecia ainda.
 
D. MARIA JOANA Aí está... “Não a conhecia ainda!” O estribilho costumado. É como todos.
 
GONÇALO Pouco mais ou menos. Se imagina uma espécie diferente... Sou um simples mortal, confesso humildemente.
 
D. MARIA JOANA É... é todo verduras e temeridades... Por uns olhos afrontar um regimento!... Por uma palavra provocar os melhores espadas de França!... Por um lenço arriscar-se a ficar nas armas de uma fera!... Pode lá dispor da sua mão, um homem assim?... Para trazer sempre a mulher em vésperas de viuvez!
 
GONÇALO (encantado) Oh! se isso fosse uma esperança!
 
D. MARIA JOANA Deus me defenda. — Quando me começavam a florir os anos, casaram-me com um homem... que já ia desfolhando os seus. Deixei pátria e família aos dezoito. Achei-me viúva aos vinte. Acolhendome a casa de minha prima, na nossa embaixada em Paris, senti sinceramente a falta do companheiro e protetor. Mas desta aliança... da primavera com o inverno... podem ter-me ficado memorias que me façam desejar novo cativeiro?
 
GONÇALO Não o cativeiro, mas a compensação.
 
D. MARIA JOANA Quem me assegura?
 
GONÇALO Quem? A constância.
 
D. MARIA JOANA Que diria a isso a alemã?
 
GONÇALO Ama-se deveras uma só vez. Quer-me crer? Amo-a assim eu. Digolho singelamente, chãmente, cá de dentro, à moda da minha província, como um verdadeiro transmontano.... Deixe-me desabafar. Esta vez, e acabou-se. — Não sei que pense, não sei se espere... Unicamente sei que não posso deixar de...
 
D. MARIA JOANA Ia repetir.
 
GONÇALO Tem razão. Para quê?
 
D. MARIA JOANA Interrompe a confissão?
 
GONÇALO Visto que me não absolve... (Interrogando D. Maria com os olhos; silêncio desta) Vou ter com o comendador.
 
D. MARIA JOANA (que deitara os olhos para dentro debruçando-se no canapé) Não é preciso; ele aí vem.
 
 
CENA VIII Os ditos e o Comendador.
 
D. MARIA JOANA Então achou?
 
COMENDADOR Está remediado. Não é um boudoir, como lá dizíamos em França, mas pode passar. Eu mesmo ajudei a pôr tudo em ordem.
 
D. MARIA JOANA O Sr. Gonçalo Mendo permite?
 
GONÇALO (inclinando-se) Minha senhora!
 
D. MARIA JOANA Escuso dizer-lhe que ceia conosco... Desculpa de certo o incomodo que lhe tenho dado, e preciso agradecer-lhe a companhia que me tem feito. (Ao comendador) Há luzes no corredor?
 
COMENDADOR (galanteando) Tudo prevenido, como quem sabe o que nestes pontos convém. Marcial, que tão bem conheceu os gineceus de Roma, dá a respeito dos adornos femininos informações preciosas. — Acompanho-a?
 
D. MARIA JOANA (relanceando os olhos a Gonçalo) Obrigada. (Ao comendador) Quer ir ver se descarregaram as bagagens, e mandar-me ao quarto as minhas malas?
 
GONÇALO (vendo o comendador hesitar)
 
Aproveito a ocasião para fazer acomodar as ordenanças.
 
(Gonçalo dirige-se ao fundo. D. Maria Joana à direita. O morgado aparece à porta de entrada do fundo)
 
 
CENA IX Os ditos e o Morgado.
 
MORGADO (ainda fora da porta, mas à vista do espectador, como reparando e falando para dentro) Levantem o animal... Puxa-lhe a arreata, Jacinto... Tirem-lhe o resto da carga... Fortes alarves!... (Entra)
 
D. MARIA JOANA (que parou à porta) Que mais temos, Sr. morgado?
 
GONÇALO Deixaram deitar-se a azêmola... Um instante que eu falte!... Mas não tem dúvida já... Arrecadaram-se os comestíveis. (Voltando a observar) Lá está a mula a espojar-se... Levantem-na, levantem-na.
 
D. MARIA JOANA Comendador, as minhas malas! Acuda às minhas malas! Cá as vou esperar, e não tardo. (Sai)
 
 
CENA X Os ditos menos D. Maria Joana.
 
COMENDADOR (ao morgado) Senhor morgado, as malas?
 
MORGADO (a Gonçalo) Senhor tenente, as malas?
 
GONÇALO Cada qual no seu ofício! (Sai)
 
 
CENA XI Os ditos menos Gonçalo.
 
MORGADO Então, comendador, as malas da prima. Eu não posso servir para tudo!
 
COMENDADOR (tomando o seu partido) Bem dizia Sócrates, ateniense, “que a mulher é como o altar”: nunca está bastante ornada. (Para sair) E com razão a definia o famoso Júlio Cesar Scalígero, de Verona... (Sai)
 
MORGADO (seguindo-o) Muito melhor canta o nosso rifão “com a mulher e o dinheiro, não zombes companheiro.”
 
 
CENA XII
 
MORGADO (só, voltando) Bem te percebo, meu feixe de máximas velhas e sentenças ocas!... Bom sinal é que de mim te receies... Pressentes que te foge a presa... E não há 48 horas ainda!... O que fará daqui a dias... Pudera! semelhante depósito de latins e de catarros, ao pé de um homem da minha tempera, moço ainda, bem posto, prendado e cavaleiro!... (Esfregando as mãos) Está certa, Bartolomeu Tojo, morgado da Gesteira... está caída. Podes ir encomendando sege à boleia... Sege de corte e sege de campo!... A falar a verdade vem a tempo... era tempo. Iam-se já os últimos torrões! (Esfregando as mãos) O que é ter artes e astúcias!...
 
 
CENA XIII Morgado e Zé da Moita.
 
ZÉ (deitando a cabeça pela porta em voz baixa e cauteloso) Senhor morgado... Psiu!... eh! Sr. morgado!
 
MORGADO (assustado) Que é? (Voltando-se e dando por ele) Tu, homem! (Inquieto) Que queres?
 
ZÉ (entrando) Está só?
 
MORGADO Não vês? Vai-te, que pode vir gente. Como vieste aqui parar?
 
ZÉ Ê sê as trilhas de cor e salteado. Vinha em sua précura.
 
MORGADO Por quê? Para quê?
 
ZÉ Ê que lá a rapaziada está levada de quantos demos há. O Manuel da Brazia, o Domingos Picanço, o Chico de Alter, o João Galego, o Timóteo de Alcaraviça... aquilo é todos à uma.
 
MORGADO Deixou-se apanhar algum?
 
ZÉ Q'al! Bem alma tinham para isso os cavalarias, que não sabem caminho nem carrêra. A gente metemo-nos pelo azinhal dentro... pés para que te quero... Fossem lá pôr mais a vista em cima a nenhum. Dali a um credo estava tudo junto no barranco de baixo, ao fundo da Fonte da Fornalha, aí ao pé da azinhaga da herdade.
 
MORGADO (inquieto) Pois sim, mas que me queres?
 
ZÉ Como eu é que les falê por conta do Sr. morgado...
 
MORGADO Avia-te. Não te dei já o que ajustamos? Quantos eram?
 
ZÉ Eram sete... comigo oito.
 
MORGADO Dei-te uma moeda. Um cruzado novo para cada um, e dois para ti. O resto para beberem.
 
ZÉ Ai! senhor!... Se os ouvisse!
 
MORGADO Não estão contentes?
 
ZÉ Contentes! Ficaram derramados!... Andam na mente que os enganê... que não era uma brincadêra, como o Sr. morgado me disse... que foi uma fidalga que nós fizemos cara de assaltar na estrada... que dá brado o caso e que se metem nisso as justiças... que o Sr. morgado o que queria era fazer de pimpão sem perigo, à custa dos rapazes... que podem ficar agora todos metidos em trabalhos... e que torna e que deixa... Ih! Jesus!... um dia de juízo!
 
MORGADO Por esta não esperava eu!
 
ZÉ Pra mais ajuda, um dos criados foi-se direito a Vaiamonte, e achou lá o Sr. juiz ouvidor com uma escolta do regimento de Setúbal... Contou-le tudo pelos modos... e os rapazes dizem que o melhor é ir pedir perdão, porque afinal eles não têm culpa, e o Sr. morgado há de contar a verdade.
 
MORGADO (aterrado) Pelo amor de Deus, homem. Vai ter com eles... Anda, depressa, vai. (Consigo) Que não diria minha prima!... (A Zé) Para que haviam de fazer tal? Ninguém os conheceu.
 
ZÉ Pois sim! Não há quem os acomode. Como pesquê que os senhores tinham botado para aqui, lá assoceguê a gente dizendo-le que esperassem todos um nada, que vinha falar com o Sr. morgado.
 
MORGADO Mas se te veem aqui!...
 
ZÉ Não tem dúveda. Ê conheço o feitor, e já fui guarda cá da casa. O Timóteo de Alcaraviça é que está mais perro. Tem lá a sua aquela que ninguém le põe o pé adiante, (elevando a voz) e como o Sr. morgado quis assim fazer pouco da rapaziada...
 
MORGADO (aflito) Mais baixo. Que precisão tens tu de gritar?
 
ZÉ Bem sê que não era a valer... Se fosse... ai... se fosse!... Mas um home é um home, e...
 
MORGADO (inquieto) Está bom, está bom... Se lhes desse mais?...
 
ZÉ (coçando a orelha) Ê sê!... tão bravos como estão!... Talvez se acomodassem pedindo eu... talvez. — Mais quanto?
 
MORGADO (com esforço)
 
Uma peça.
 
ZÉ Uma peça! Quanto faz uma peça?
 
MORGADO (ponderando) Quinze cruzados novos menos oito tostões.
 
ZÉ Quinze?... (consigo, contando pelos dedos) menos... (Resolutamente) Tem-na aí?...
 
MORGADO (mostrando-lha) Aqui está.
 
ZÉ (fazendo-lhe cara) Em ouro?
 
MORGADO Se não tenho troco!
 
ZÉ Tem a gente de ir trocá-la a Évora, que lá na vila, se nos veem com isto, são capazes de pegar logo a desconfiar...
 
MORGADO (perdendo a cabeça) Então como há de ser?
 
ZÉ (tocando-lhe familiarmente com o cotovelo) Ó Sr. morgado, a fidalga tem uns olhos!... Ela sempre vale as duas loiras! (Elevando a voz) Se vem a saber que foi tudo fingido... hein?...
 
MORGADO Cala-te! (Fitando-o) Com que então... (Consigo) Afinal o assaltado sou eu. (Alto) Aqui tens duas peças. (Dá-lhe as duas)
 
ZÉ (respeitosamente)
 
Não manda mais nada o Sr. morgado?
 
MORGADO A casa do feitor é para esse lado. Olha não te encontre.
 
ZÉ É o mesmo. Não desconfia, já le disse. Até mais ver! (Sai)
 
MORGADO Vai com Deus! (Depois de o ver sair) Os demônios te levem, tratante!
 
ZÉ (tornando a deitar a cabeça) Chamou?
 
MORGADO (impaciente) Vai com Deus! vai com Deus! 
 
(Zé sai definitivamente)
 
 
CENA XIV
 
MORGADO Que tal é a lição! O susto que me pregaram os cavalarias... cuidar que andava tudo por aí cheio de salteadores deveras... e ainda mais esta!... Calam-se, agora calam-se: é o seu interesse... O que o desalmado quis foi... E gabem-me a singeleza dos rústicos!... Tomara que sucedesse uma destas aos senhores poetas de Lisboa, que não fazem senão deitar loas à inocência pastoril... Que remédio! O que lá vai lá vae... E foram-se as peças!... E o que não rirão à minha custa, os malandrins, quando as beberem!... — Por fim de contas vale a pena... Se vale... Vale a pena de tudo...
 
 
CENA XV Morgado e Luiz Manuel.
 
MORGADO (vendo-o) Outro!... (Reparando) Um retrato do tempo del-rei D. Pedro!... (Conhecendo-o) Ai! o Luiz Manuel.
 
LUIZ MANUEL (trajo do tempo de D. João V, tristeza profunda, sisudez inalterável) Bem vindo seja à casa da Torre da Palma, o Sr. morgado da Gesteira. Que estava aqui me disse um guarda do monte, que topei agora como nos tornávamos do terço. Já não é isto o que era, porque a Sra. morgada... “gota a gota o mar se esgota”, e quem em maio relva, fica sem pão nem erva.” Mas... ela é senhora do que é seu!... E eu venho só a dizer a Sua Mercê que, se bem “onde senhores empobrecem, criados padecem”, tudo o que há na casa e na quinta está às ordens do Sr. morgado, e mais da fidalga companhia que traz, a julgar pelo arruído que por aí vai.
 
MORGADO Boa companhia trago com efeito. Como no tempo do Sr. capitãomor! LUIZ MANUEL Como no tempo do Sr. capitão-mor, que Deus haja!... Isso já lá vai, e não volta... Não volta... Nem conhecia o Sr. morgado, se me não avisam... Que anos há! E como assim nos enterramos neste ermo!... Tanto faz. Como o outro que diz: “ainda que nos não falemos, bem nos queremos.” — O Sr. morgado precisa alguma coisa?
 
MORGADO Já por aí procuramos e dispusemos do que encontramos... São ainda necessárias roupas, talheres...
 
LUIZ MANUEL Há de aparecer tudo... Tudo?... tudo o que resta. Fizeram bem em se ir logo servindo... Haviam de achar as chaves nas portas... Era o costume antigo, bem sabe.
 
MORGADO Achamos. Estranhei até... Estando aqui sós...
 
LUIZ MANUEL Não tem perigo. Pouco há já que fechar e arrecadar. Vazios quase, os taleigos que andavam de cogulo... a bem dizer no fundo, as arcas dantes a arrebentar de fartas. Não será como então, que melhor se podia dizer: “em casa cheia depressa se faz a ceia.” Mas o que há, o que houver... É a vontade da Sra. morgada... decerto há de ser. Com ir aí tudo por água baixo... que nem sei já se virei a cerrar os olhos nesta casa onde nasci... ela afinal sempre é quem é... (Como para atravessar para a direita) Vou dar ordem a... (Parando de repente e com tom consternado) Queria, Sr. morgado, mas não posso... Queria pôr a alma e a vida no que me cumpre, já que a Torre da Palma está sem amos... Eu bem conheço que “hóspedes em casa dia santo é”... mas... mas... Estou velho, faltam-me as forças! “Uma coisa se deseja e outra é bem que seja.”
 
MORGADO Tem alguma coisa, Luiz Manuel?
 
LUIZ MANUEL Eu não, Sr. morgado. É a minha Simoa... Isto de viver assim vinte anos juntos, deita raízes cá dentro!...
 
MORGADO Pois... que lhe sucedeu?
 
LUIZ MANUEL Mal acabou o terço, a minha Simoa foi à sacristia buscar um papel, que pelos modos tinha encomendado ao nosso padre cura do Vaiamonte... Eu estava à porta à espera... Mal vinha a sair, entra-me a tremer, a tremer toda, a torcer-se como um vime, e a revirar os olhos, e a sumir-se-lhe a fala, e sem se poder ter!... Aquilo não é senão olhado que lhe deram!... Foi preciso trazê-la em braços, e lá ficou em baixo na cama... (Lembrando-se de súbito) Ai! Jesus! esta cabeça como está com tanta coisa de repente!... Então não me esquecia?... Quando o moço passou por nós, e nos advertiu que estava cá o Sr. morgado da Gesteira, tornou assim mais a si a minha Simoa, e disse... (Como recordando) Queira Deus que me lembre... Foi isto: “É parente da Sra. morgada... pede-lhe que venha ver-me, pede-lhe Luiz... Trá-lo hoje aqui a Providência!” Foi isto, foi!
 
MORGADO E não me dizia? Vamos já. (Consigo) Por que será?
 
LUIZ MANUEL Pois o Sr. morgado quer?... Aquilo é tresvario do mal!
 
MORGADO Sua mulher assim!... Vamos. (Consigo) Para que será?
 
LUIZ MANUEL Como o outro que diz: “o pequeno mal espanta, o grande amansa.” Deixei gente com ela. A obrigação primeiro. E a obrigação era...
 
MORGADO Dispenso-o eu dela... Vamos, vamos. Depois se tratará do mais.
 
LUIZ MANUEL Agora é o Sr. morgado quem manda. 
 
(Sai. O morgado vai a segui-lo, entra Gonçalo e Bocage)
 
GONÇALO (da porta) Senhor morgado.
 
MORGADO (saindo vivamente) Já volto. Volto já!
 
 
CENA XVI Gonçalo e Bocage.
 
BOCAGE Quem é?
 
GONÇALO Uma singularidade, emparelhada com outra que há de ver logo. — Não o esperava aqui, Sr. Bocage. Vem mesmo por ordem do Ouvidor?
 
BOCAGE Mesmo por ordem do Ouvidor. Faz três semanas que me aquartelei em Monforte, num destacamento do meu regimento. Esta manhã o Sr. Juiz Ouvidor de Vila Viçosa, que está em correição na vila, saiu a Vaiamonte, e trouxe consigo uma escolta em que eu vim. Há pouco chega lá um homem todo esbaforido... Um criado ouvi que era... Daí a um instante o Sr. Ouvidor manda-me chamar em pessoa, e enviame com quatro soldados aqui, para proteger não sei que fidalga que vem de jornada... O encargo pode ser lisonjeiro, mas confesso que o dava a todos os demônios quando deitei por esses fraguedos abaixo. Agora, encontrando-o, meu tenente, dou-me por pago de tudo... Informei-me, e disseram-me que se tinham recolhido nesta casa os viajantes. (Reparando) Que casa santo Deus!... Dá-me ares de ter escapado ao dilúvio... Pois a mobília!... Da arca de Noé a trouxeram para aqui, certamente!... E aquele canapé... Que canapé!... Um canapé? Um monumento!... “Quando a velha antiguidade Dentro nesta sala entrou, Disse àquele canapé: Sua benção, meu avô!”
 
GONÇALO Bravo, Sr. Bocage. Não se lhe estanca a veia por estes desertos do Alentejo. O mesmo sempre!
 
BOCAGE O mesmo diz? Estou a ponto de cair em melancolia... britânica. Mulher que se alberga numa habitação destas é por força como ela. Uma múmia, não? Uma curiosidade arqueológica... uma contemporânea das pirâmides... Não me diga quantos anos tem.
 
GONÇALO Vinte e três anos, viúva, todos os dotes do espírito, todas as graças da formosura, todos os primores de duas cortes.
 
BOCAGE Tudo isso! Aqui?... Aqui!...
 
GONÇALO De passagem.
 
BOCAGE Não diga mais, meu tenente. Quer-me fazer apaixonar, ou está já apaixonado.
 
GONÇALO Isso estão quantos a veem.
 
BOCAGE Severa ou jovial?
 
GONÇALO Um porte que infunde respeito, uma afabilidade esmaltada de sorrisos. Não há temeridade que se lhe atreva, nem isenção que lhe resista.
 
BOCAGE Esse entusiasmo faz-me tremer! Uma perfeição!
 
GONÇALO Um enigma.
 
BOCAGE Enigma ou mulher, o mesmo é.
 
GONÇALO (olhando para dentro) Ei-la!
 
BOCAGE O enigma.
 
GONÇALO A perfeição.
 
 
CENA XVII Os ditos, D. Maria Joana e o Comendador.
 
GONÇALO Se dá licença, a Sra. D. Maria Joana Galvão, apresento-lhe o Sr. Manuel Maria Barbosa de Bocage, cadete do regimento de Setúbal, que lhe traz recado do Sr. Juiz Ouvidor de Vila Viçosa.
 
D. MARIA JOANA O Sr. Juiz Ouvidor teve notícia de nós, e digna-se pensar em mim!
 
BOCAGE Dever é de todo o homem proteger as damas. Mais ainda quando o homem é magistrado. Mais ainda quando as damas são de tal qualidade. — Por sua ordem e em seu nome venho. Infelizmente não chego a tempo de ser util.
 
D. MARIA JOANA Se não é já necessário auxílio, o Sr. cadete vem sempre a tempo de receber os meus agradecimentos, e os do Sr. comendador de Monsarás... (Os homens inclinam-se, cumprimentando-se) que me acompanha... para os transmitir à estremada cortesia do Sr. Juiz Ouvidor. — Está aqui há muito?
 
BOCAGE Há um instante. Os meus soldados esperam as ordens de vossa senhoria.
 
D. MARIA JOANA Soldados! Mais? Temos uma guarnição completa. Coitados! Mandeos descansar.
 
BOCAGE Estão já descansando.
 
D. MARIA JOANA Nesse caso, o Sr. cadete demora-se também.
 
BOCAGE (inclinando-se) Mandaram-me ficar às ordens! (Baixo, a Gonçalo) Tinha razão. Gentilíssima!
 
GONÇALO (a Bocage, do mesmo modo) Inflamado já? (Alto) Apresentei-lhe o militar, permita-me agora que lhe apresente o poeta... O Sr. Bocage é conhecido, e já apreciado, pelo seu estro brilhante... um estro que se revelou desde a infância... Nem só em França se frequenta o Parnaso. Aqui tem um moço que nasceu poeta.
 
BOCAGE Como outros nascem vesgos ou tartamudos. — Talvez seja assim, se a amizade do Sr. tenente o não cega, ou me não favorece... mas talvez também a segunda apresentação prejudique a primeira.
 
D. MARIA JOANA Por quê? As armas e as musas não são inimigas, que eu saiba.
 
COMENDADOR Horácio esteve na batalha de Filipes, o Suetônio foi escritor e guerreiro! Ainda que Pitaco, um dos sete sábios da Grécia, dizia “os validos de Marte são a injustiça e a violência” não deixou o grande Plutarco de escrever “que os Lacedemônios pintavam Palas armada” posto serem uma só Palas e Minerva.
 
BOCAGE (contemplando-o abismado, a Gonçalo em voz baixa) Este quem é?
 
GONÇALO (idem) A outra singularidade!
 
BOCAGE Que pena ter estudado! Forte asno se perdeu ali!
 
D. MARIA JOANA “Numa das mãos a pena, noutra a espada,” diz, creio eu, o nosso Camões, poeta e soldado também.
 
BOCAGE Aí está um também capaz de inventar orgulho no mais modesto... se o não tomasse à conta de exageração obsequiosa. (A Gonçalo, baixo) Vênus, disfarçada em viajante!
 
D. MARIA JOANA Exageração! Em que? Por ler vivido fora da pátria não lhe desaprendi a língua, nem lhe desestimo as glórias.
 
BOCAGE (lisonjeado) Dessas glórias não participo eu, como obscuro ainda.
 
GONÇALO Não tanto, Sr. Bocage!
 
D. MARIA JOANA Ainda? Não há nessa palavra a consciência do que é? a confiança no que será? As musas não deixam muito tempo sem glória os seus prediletos.
 
BOCAGE Sabe se sou desses?
 
D. MARIA JOANA Adivinho-o. Deixa-me vaticinar-lho?
 
BOCAGE (com entusiasmo) Bastaria o vaticínio para inflamar o estro.
 
D. MARIA JOANA Deveria provar-me que tenho razão. Em França estima-se a poesia, e eu venho sequiosa da nossa. Era dar-me as boas-vindas.
 
GONÇALO Ninguém melhor do que o Sr. Bocage. É não só poeta, mas improvisador.
 
D. MARIA JOANA Como em Itália.
 
GONÇALO Ainda há pouco...
 
BOCAGE (atalhando-o) Por quem é! (A D. Maria Joana) Vem de França, vossa senhoria?
 
D. MARIA JOANA De Paris.
 
BOCAGE Francês era meu avô; com as musas francesas me criou minha mãe... Somos quase conhecidos.
 
D. MARIA JOANA Bocage!... Não me é novo o apelido. Não tem em França parentes?
 
BOCAGE Tenho. Uma segunda tia materna... Bocage também por seu marido.
 
D. MARIA JOANA Já sei. A Sra. D. Mariana, autora do poema da Columbiada... coroada há anos em Fernei pelas próprias mãos de Voltaire... E queixa-se de lhe faltar a glória!
 
BOCAGE Agora não me queixo. Ainda que não seja minha essa glória, é meu o proveito dela.
 
COMENDADOR (que tem disfarçado alguns sinais de impaciência, murmurando consigo) Coroada por Voltaire!... Boa prenda há de ser!...
 
BOCAGE (que não ouviu bem, mas que lhe notou o gesto, a Gonçalo) Antipatizo formalmente com a singularidade!
 
D. MARIA JOANA A poesia é hereditária nos seus, já vejo.
 
GONÇALO De ambos os lados. Seu pai o dr. José Luiz Soares de Barbosa adorna a toga com a lira, e é um dos discípulos mais estimados de SoutoMaior.
 
BOCAGE (sorrindo) É doença de família, não o nego. Doença crônica, e por isso incurável.
 
D. MARIA JOANA Em França diz-se: noblesse oblige. A poesia, que é nobreza também, está a obrigá-lo.
 
BOCAGE (exaltando-se progressivamente) A poesia... A poesia é a língua dos deuses, e a história do mundo. É o raio omnipotente de Júpiter, e o carro fulgurante de Apolo. Nela, em todos os tempos, têm cantado os homens as suas alegrias, têm chorado as suas dores, têm perpetuado os seus feitos, têm imortalizado as suas catástrofes. Nela começou a balbuciar a humanidade; nela fundou os monumentos que desafiam os séculos. A poesia é a expressão do que há mais íntimo no coração e mais celestial no pensamento; é magnificência e harmonia; é arrebatamento e sedução; esplendor pela forma, delícia pelo som. É resumo de quantas artes levantam o homem ao Olimpo; sentimento para a alma, ideia para o espírito, imagem para os olhos, música para o ouvido, enlevo para todos os sentidos! Seria a poesia a única língua digna de saudá-la, minha senhora, se a mais completa poesia não fosse a própria formosura. (Recrescendo) Deve ser a poesia...
 
COMENDADOR (que durante esta fala passeou indo à janela) Não quer que lhe feche esta janela, Sra. D. Maria Joana? Estão frias as noites, e o ar por aqui traspassa. Dos ares montezinhos, diz o insigne Columela...
 
D. MARIA JOANA (atalhando-o impaciente e repreensiva) Comendador!
 
(O comendador aproxima-se tirando a caixa de rapé)
 
BOCAGE (reprimindo um gesto furioso e como continuando) Mas a poesia, como dama, tem os seus dias, tem os seus momentos, tem os seus caprichos. É rainha, e não serva. Impera, não obedece. Se vai arremessada no voo, se a fazem colher as asas e baixar à terra (fitando o comendador)... para tropeçar na impudência, ou no ridículo... faz-se alegoria, faz-se apólogo; é epigrama, é sátira; fustiga, flagela, punge, dilacera, fulmina... e segue, a sorrir desdenhosa, deixando atascada no seu lodaçal imundo a sandice enfatuada e grosseira!...
 
COMENDADOR (sorrindo dubiamente e saboreando a pitada) Hipotipóse arrojada! Já Demócrito, filósofo da Trácia, dizia... o que quer que seja semelhante... ao divino Hipócrates, natural da ilha de Cós! 
 
(Bocage vai para replicar arrebatado. Entra o morgado)
 
 
CENA XVIII Os ditos e o Morgado.
 
MORGADO (com um papel na mão, que esconde apenas vê os que estão em cena) Grande novidade, prima! Grande novidade!
 
GONÇALO (que observou tudo) Diversão a tempo.
 
D. MARIA JOANA (ao morgado) Como as do costume?
 
MORGADO A mulher do Luiz Manuel que está muito mal! Perdeu já a fala.
 
D. MARIA JOANA Tão mal a pobre Simoa!... Comendador, Sr. Gonçalo Mendo, venham, venham.
 
MORGADO Pode ir logo, prima. A sua refeição há de estar pronta!
 
D. MARIA JOANA Quando me diz que temos aí uma criatura em perigo! Enlouqueceu? (Aos outros) Vamos... (Como lembrando-se, e detendo-se) Sr. cadete... qualquer dos seus soldados pode ir buscar o cirurgião à vila.
 
GONÇALO Que monte a cavalo um dos dragões: irá mais depressa.
 
D. MARIA JOANA Vamos, venham. (Sai, e o comendador pela esquerda)
 
BOCAGE (baixo, apressado e a Gonçalo) Uma ninfa! uma deusa! Estou doido por ela. Tem só um defeito...
 
GONÇALO (indicando o comendador) A singularidade?
 
BOCAGE A asnidade, digo eu. 
 
(Sai. — Gonçalo segue D. Maria Joana)
 
 
CENA XIX Morgado só, pouco depois o Comendador.
 
MORGADO (vendo-os sair, desconfiado) Um cadete agora! É o quartel general aqui... (Olhando em redor) Tardava-me já ver-me só... (Tirando o papel e examinando-o) Fechado!... sem direção!... E com que ânsia e mistério a Simoa me segredou... “isto à Sra. morgada... sem falta!...” Que pena perder os sentidos!... Que será? Pois que não tem direção... (lançando novamente os olhos em redor) fácil é sabê-lo. (Abre, lê atentamente, e acaba com um grito de admiração) Oh!... (Passeando e meditando) Quem tal havia de dizer? (Para como resolvendo de repente) Não há que pensar... Agora posso ir encomendando a sege... (Assoma à porta o comendador, sem que o morgado o pressinta) Com um segredo destes!...
 
COMENDADOR Que segredo, Sr. morgado?
 
MORGADO (sobressaltado, e guardando apressadamente o papel) Segredo!... (Serenando, ironicamente) Um segredo meu, Sr. comendador.
 
COMENDADOR (com o habitual sorriso entre fátuo e maligno) Segredos, só debaixo da terra... como faziam os romanos!
 
 
 
ATO II
Ao fundo a frente e esquina de um quarteirão da rua Augusta, tomadas da extremidade de uma travessa, cujos edifícios estão ainda em obras. Janelas praticáveis em dois andares. A entrada do prédio pela travessa. — Renques de marcos de pedra guarnecendo os passeios. — Toldo cobrindo a rua. — As janelas, ornadas de armações de damasco, e preparadas para iluminação. Cobertores de seda e colchas da Índia nos parapeitos. — O chão areado; espadanas e murta. Faltam ainda os lampiões. Fins da tarde. Pouca animação. Alguns transeuntes apenas.
 
CENA I Bocage (à paisana, encostado à esquina da direita, com os olhos numa das janelas da rua Augusta. — Compadre Teotônio e compadre Amâncio, que veem de lados opostos). Durante esta cena e a seguinte, Bocage dá algumas voltas, aparecendo e desaparecendo, mas sempre tornando ao mesmo lugar e à mesma observação.
 
COMPADRE AMÂNCIO (topando-se com o outro) Aonde vai com tanta pressa, compadre Teotônio!
 
COMPADRE TEOTÔNIO Ao presépio da Mouraria. Quero ver se apanho ainda o Manuel Gonçalves da Ribeira das Naus.
 
COMPADRE AMÂNCIO Trabalha hoje com os arames?
 
COMPADRE TEOTÔNIO Entra no fim. Por quê? Não vou a tempo?
 
COMPADRE AMÂNCIO Se vai! O Manuel Gonçalves tem sua graça... principalmente na cena do dilúvio, quando se queixa que perdeu o pente de derrubar.
 
COMPADRE TEOTÔNIO Pois quando ardem as estopadas! As pulhas que ele deita aos demônios!... Tem pilhas de graça! — Deixe-me ir que se faz tarde, e já agora a de seis está destinada. (Partindo)
 
COMPADRE AMÂNCIO (detendo-o) Que eu, cá para mim, como o Tortinho da Sé, apesar de velho, é que não ha... Nem o Antônio Antunes, do Bairro-Alto. Saca as palavras assim com um tremor do buxo, o maldito, que é a gente espojar-se! — Deus o leve, compadre. Até à noite na loja.
 
COMPADRE TEOTÔNIO Não fecha hoje?
 
COMPADRE AMÂNCIO Lá mais tarde. É dia de muito freguês de fora, não tem mãos a medir os rapazes, e para alguma barba, assim mais tal, preciso servir eu. Bem sabe a roda que tenho. — Chego ali abaixo à Arcada, a comprar os Autos da Maria Parda para o serão das pequenas, e volto já.
 
COMPADRE TEOTÔNIO Vá com Deus, compadre Amâncio, e até logo. 
 
(Separam-se e saem. — Entram logo tia Páscoa, e tia Vicência vindo juntas)
 
 
CENA II Tia Páscoa, Tia Vicência e Bocage.
 
TIA VICÊNCIA Ih! Jesus, Deus Menino! Ainda por aqui arrastadinha, tia Páscoa! O seu homem ainda no Limoeiro! Quer creia, quer não, estava de pedra e cal que se tinha já livrado. Uma pessoa estabelecida! com loja aberta!...
 
TIA PÁSCOA E mestre de ofício!... Um mestre de torno, que ninguém lhe leva as tampas!... É isto, que vê, tia Vicência... Debaixo dos pés se levantam os trabalhos... Que a culpa não é dele...
 
TIA VICÊNCIA Isso sempre eu disse... Pobre homem!... Não fui logo lá quando soube, porque da rua dos Remédios à Esperança sempre é um estirão. Aquilo com a labutação do padejo, é vir uns dias por outros ao Terreiro, e não há tempo para mais.
 
TIA PÁSCOA Pois eu não sei! — Tudo intrigas do Alcaide!
 
TIA VICÊNCIA Sim? Ora vejam! E então como foi?
 
TIA PÁSCOA O Alcaide tem uma sobrinha na rua do Lambaz... Sobrinha, vamos... sobrinha ou o que quer que é, que se eu tivesse má língua...
 
TIA VICÊNCIA Sim, sim, não sabe a gente o que são sobrinhas dessas!... Que mundo, ai! que mundo, tia Páscoa!
 
TIA PÁSCOA Uma sobrinha toda peralta!... Sempre como em dia de círio ou de festa!... Quer na rua, quer em casa, capotilho de durante e baju de escumilha, um palmito mesmo!... Sobrinha, pois não!... Vá que fosse sobrinha... Estava a ir-nos todos os dias à loja, que até já eu não andava contente, Deus me perdoe... Tudo era encomendar continhas, botõezinhos, coquilhos, cabos de chapéus... um nunca acabar. Mas coisa de pagar, qual! Tanto encomendou, e tanto faltou, que o meu Francisco por fim deixou de lhe fazer obra, e quis obrigála a pagar por justiça... Justiça, está bom!... Ela tinha o pai Alcaide... pai ou tio, que eu sei lá o que lhe é... Foi-nos a casa toda assanhada... palavra puxa palavra... Enfim, deram-nos uma força por injuria, e agora o verás... Eu bem dizia ao meu homem: “ó Francisco, deixa... deixa. Não apertes com a moça.” “Água vertida nem toda é colhida.” Mas, nada. Pensam que só eles têm juízo, estes senhores homens! Teimou, teimou, e aqui está. Vai já para um mês que dura este fadário. Sempre com o mantinho aos ombros!... E Deus sabe o que durará!... E tudo em casa a derreter-se... Os meus cordões e arrecadas, foi tempo... Dois toros de buxo, que ele tinha comprado pelo São Miguel... sem um nó, que eram mesmo uma perfeição... e haviam de render bons vinténs... já lá vão por dez réis de nada... Até uma grosa de piões, que estavam para a Senhora do Cabo... há de crer, tia Vicência?... a quinze réis cada um, que a bem dizer mais custou o ferrão!... E ainda se não fosse o mestre José Gomes... Deus lho pague!... Sabe? O mestre José Gomes, cirieiro às Trinas, que é juiz do povo!... Se não fosse ele nem resquícios havia já da loja. Agora venho eu do Terreirinho das Olarias, de casa do escrivão, e vou para o Poço dos Negros, a ver se falo ao Sr. juiz do crime do Mocambo.
 
TIA VICÊNCIA Até hoje! Cuidei que andava a ver as ruas!
 
TIA PÁSCOA A ver as ruas, eu! Ai, santo Antônio e almas! Não faço senão correr de Herodes para Pilatos... E é duas peças a um, quatro moedas a outro... Que os leve a todos trezentos... Jesus, santo nome de Jesus! Nossa Senhora do Livramento me perdoe, que nem eu sei o que ia a dizer... Cruzes, inimigo!... Mas Páscoa do Espírito Santo não seja eu, se o Alcaide, e a beberrona da tal sobrinha, me não pagam mais duro que ossos... Pesquei ontem cá uma coisa... O que eu queria era falar ao Sr. Juiz... Dizem que há aí uma tal Sra. morgada, de lá de cima... uma Sra. D. Felícia, que dá assembleia todas as semanas, aonde vai o Sr. Juiz...
 
TIA VICÊNCIA Sei eu quem é... Mora às Portas da Cruz... É minha freguesa, e por sinal que me deve bons vinténs. Vou lá muita vez.
 
TIA PÁSCOA Vai? Se me arranjasse modos de falar à morgada, para ver se ela pedia...
TIA VICÊNCIA Isso é fácil. Mas quer que lhe diga?... Se deseja que o Juiz lhe dê audiência, e depressa, vá à Esteireira... aquela que representa no Salitre... passe por casa da madama Charles, e leve-lhe uma peça de esguião... se não pode chegar a um rosicler de pedras.
 
TIA PÁSCOA Ai! Senhor!... Coisas que custam os olhos da cara!...
 
TIA VICÊNCIA Então é deitar o coração à larga... Deus ainda está onde estava, e atrás do tempo, tempo vem. Eu cá nas minhas aflições pego-me com a Senhora da Purificação, rainha madrinha, que ainda me não faltou. Agora mesmo lhe vou levar à Boa Hora uma quarta de cera, que comprei ali em cima no Socorro...
 
TIA PÁSCOA (dispondo-se a acompanhá-la) Vamos para a mesma banda.
 
TIA VICÊNCIA Eu da Boa-Hora tenho de ir à botica das Portas de Santo Antão, que se vende lá uma água...
 
TIA PÁSCOA Também tenho de tornar ao Terreirinho. Em quanto fica na igreja, chego eu acima e volto por lá. — Teve novidade em casa?
 
TIA VICÊNCIA Tive a minha Guiteria com umas terçãs, que não havia tirar-lhas do corpo... Estava-me a entisicar, a entisicar todos os dias... na espinha mesmo... Assim Deus purifique a minha alma, em como não foi se não mal que lhe deu a Brites do Forno... Conhece?
 
TIA PÁSCOA Pois não conheço. Não fosse ela atravessada! O tição!... E então por quê?
 
TIA VICÊNCIA Contos largos. Vamos andando. (Saindo juntas ao passo que entra um transeunte) E a respeito da sobrinha do Alcaide, não me disse...?
 
TIA PÁSCOA Paga-mas todas, com certeza. O caso é falar ao Juiz. Ontem ao escurecer, tinham dado trindades no convento, vinha eu... (Desaparecem)
 
 
CENA III Bocage e o Transeunte.
 
TRANSEUNTE (embuçado, observando, descendo a Bocage, que está de novo parado à esquina, e batendo-lhe no ombro) Elmano, a lira divina Por que razão emudece?
 
BOCAGE (voltando atônito, mas acudindo logo) Porque mais cala no mundo Quem mais o mundo conhece!
 
TRANSEUNTE Que tens nesse mundo achado Que mais assombro te faça?
 
BOCAGE Um poeta com ventura, Um tratante com desgraça.
 
(Entra Gonçalo Mendo, de fumo no braço, e para observando)
 
TRANSEUNTE Bem respondido, Sr. Bocage.
 
BOCAGE Bem perguntado, Sr. Tolentino.
 
(Nicolau Tolentino aperta-lhe a mão, saindo)
 
CENA IV Bocage e Gonçalo Mendo.
 
GONÇALO Quisera que tivesse mais testemunhas o encontro e o improviso.
 
BOCAGE (chegando-se) Para que?... Riam... mofavam. Dois poetas que se cumprimentam em verso!
 
GONÇALO Efetivamente não são vulgares os cumprimentos entre poetas... e consta que não é pródigo deles o Sr. Bocage.
 
BOCAGE Não sou, porque não me inclino senão ao mérito verdadeiro e superior. A este qualquer pode inclinar-se. Raramente nos encontramos; falamo-nos ainda menos; mas admiro-o e respeito-o.
 
GONÇALO Desejara também que lhe ouvissem essas palavras.
 
BOCAGE Por quê?
 
GONÇALO Porque sou seu amigo. Correm por aí, de mão em mão, cópias de alguns improvisos satíricos... seus decerto... — Deixa-me falar-lhe com franqueza?
 
BOCAGE Tão custoso é o que me quer dizer!
 
GONÇALO A verdade amarga.
 
BOCAGE Trava menos na boca da amizade, e eu creio na sua.
 
GONÇALO Encontro-o em ocasião grave para mim. Talvez daí venham estes desejos de o prevenir e aconselhar.
 
BOCAGE Ainda agora reparo. De luto?
 
GONÇALO Achei em Lisboa a notícia do falecimento de meu irmão.
 
BOCAGE Sinto!... (Apertando-lhe a mão) Sinto-o. — Cheguei também há oito dias do Alentejo com licença. Não sabia ainda...
 
GONÇALO Tornou-se-me obrigação a sisudeza. — Tem um grande talento, Sr. Bocage; não lhe faltam proteções... Empregando esse talento em proveito da pátria, será grande em pouco, e dar-lhe-á grandeza. Se tão altos dotes recebeu de Deus, foi para honra da sua terra. Dedicar-lhos é dever; desperdiçá-los é sacrilégio. O engenho, o saber, o estro são instrumentos que valem segundo o uso que deles se faz. Não há glória maior quando bem dirigidos; não há mais pesada responsabilidade quando mal aproveitados.
 
BOCAGE (um pouco ressentido) Por que me diz isso? Estou em crer que tenho aos pés um abismo.
 
GONÇALO E tem talvez. As suas frechas epigramáticas promovem-lhe ódios tenazes e profundos. Quanto mais agudas forem, e mais acertarem no alvo, mais inimigos lhe hão de suscitar. E os perigosos não são os que lhe respondem como podem; são os que na perfídia dissimulam a vindicta; são os que no sorriso afetado encobrem a vaidade ulcerada, e o rancor que não perdoa.
 
BOCAGE Quer então que desça a humilhar-me em dissimulação igual? Quer que abata aos pés do vício dourado, ou da ignorância presumida, esses dons em que me fala? Quer que envileça a lira fazendo-a servir aos festins dos poderosos, como acessório apetitoso, ou como adorno comprado?
 
GONÇALO Quem lhe diz tal! Supõe-me capaz de lhe aconselhar baixezas? Consagre a lira à pátria, como os egrégios poetas de todos os tempos, como Homero, como Virgílio, como o Dante, como Camões... como o nosso grande Camões... tão grande e tão nosso, que se tudo em Portugal acabasse, ele só bastara para dar a imortalidade ao nome português!... Faça-o que pode. São largos trabalhos esses, são cruas batalhas também. No árduo trilho achará igualmente diante de si o erro, o vício, a vulgaridade, a ignorância!... mais ainda, a mediocridade!... pior ainda, a inveja! Terá de cingir o corpo como os peregrinos, terá de afrontar o martírio como os apóstolos. Não lhe faltarão obstáculos nem dissabores. Não lhe faltarão perigos nem trabalhos. Não lhe faltará a luta, a luta acerba, contínua, ardente... Mas ao cabo está a glória, a verdadeira glória, a glória infalível ainda que tardia. — Há de seduzi-lo esta!
 
BOCAGE E não será ainda servir a pátria castigar os ridículos? Não faltam aí também em compensação de qualquer desgosto, os aplausos para impelir, para embriagar, para exaltar, para inspirar a musa... E a minha musa... que lhe hei de fazer, Sr. tenente?... a minha musa é toda isenções e aventuras. Não consente sujeição.
 
GONÇALO Os ridículos destes! os aplausos daqueles! Que aplausos e que ridículos? Não valerão tanto uns como outros? É para mais o seu engenho do que para servir de desafogo a rivalidades pequenas. E diga-me: tem certeza de ser sempre justo? Não o entristecem muitas vezes esses ruidosos aplausos em recintos frequentados de ociosos? Não vê que muitos glorificam nos seus versos, menos a claridade que os ilumina, do que o raio que vai ferir um émulo, ou um superior? “Não vê que arrastando na ignomínia os seus competidores, a si mesmo se apouca? Não repara que desse modo só favorece os baixos instintos dos detratores sem alma?” É para isso a musa e a lira? Aplaudem-no! Aplaudem. Mas como? Mas por quê? Mas quem? Olhe em torno de si e medite. Aplaudem-no entusiasmos que depois o nauseiam, aplaudem-no paixões que depois o envergonham. O epigrama cortante, a hipérbole sarcástica, a imagem insultuosa, despertam na sua presença um delírio interessado, que lhe deixa após o vácuo e o pejo. Compare esse aplauso suspeito com outros menos estrepitosos, mas seletos, que já lhe tem granjeado obras mais altas e mais dignas. Recorde a satisfação que lhe fica na consciência, quando arremessa o voo às regiões luminosas onde fita os astros! — Fala-lhe pela minha boca a simpatia, e a experiência. Somos camaradas; sou seu amigo, repitolhe... sou ainda mais amigo desta terra, de que deve ser, de que pode ser ornamento e brasão... e que o precisa, creia... que precisa de todos os grandes esforços para a levantar da ameaçadora decadência. — Está nas primeiras impressões e nos primeiros anos. Tem aberta a carreira das armas. Com o seu nascimento, com a sua capacidade, com a instrução e o estudo... qualquer outra que prefira se lhe pode abrir. É por isto, é para isto que o importuno... Nicolau Tolentino é oficial de secretaria... Manuel de Figueiredo também... aí em dois poetas!...
 
BOCAGE (interrompendo arrebatado) Manuel de Figueiredo, poeta!... Um moralista secante, que se julga inovador por imitar de longe os antigos!... O Tolentino, sim... esse há de ficar para a posteridade!... (Pausa, longa reflexão. Gonçalo observa-o atentamente. Levanta depois o rosto e continua com progressiva exaltação) Ouça-me também, Sr. Gonçalo Mendo. Verá que avalio os seus afetuosos conselhos... E se alguma vez lhe disserem que Bocage é uma índole pertinaz e intratável, poderá afirmar como a austeridade e a razão o acharam dócil. — Ouça-me. Não é novo para mim o que me diz...
 
GONÇALO Aí verá!
 
BOCAGE Tem-me repetido a miúdo a consciência. Oh! não mais que momentos inebria O sórdido clamor da turba sórdida!... Perdoe, involuntariamente se me formulou em verso a ideia.
 
GONÇALO Prodigiosa faculdade! E quer desbaratá-la?
 
BOCAGE (prosseguindo) Não pense que estimo a plebe das admirações... tanto como admiro as magras rimas de ocos versejadores!... No meio das mais estimulantes palestras, quando é maior o alarido e a matinada, quando igualmente espumam os copos e os lábios, quando se condensa o vapor que tolda a casa e o cérebro, quando os motejos se cruzam como setas, e os paradoxos refervem como vagas, que de vezes não fico eu mudo, absorto, sem escutar, sem perceber, sem discernir o que tenho diante!... É que se me desprende a alma para cima!... Tenho os olhos e o espírito nos espaços radiantes, de onde se encara o infinito e o futuro!... Ouço o hino triunfal na boca dos povos reconhecidos!... Enfeixo nos braços as palmas das nações!... Cinjo na fronte os louros perpétuos!... Vejo as idades curvadas aos pés de um monumento coroado de perenes resplendores!... Esta e só esta é a glória, digo... esta e só esta... eterna primavera, eterna aurora... eterna recompensa!
 
GONÇALO (entusiasmado) E quem tal sabe conceber não há de saber realizá-lo!
 
BOCAGE (tristemente, estendendo-lhe a mão)
 
Dê-me que o mundo se povoe de juízos como o seu, de almas como a sua... e será possível, e será fácil... Como ele é, não sei se algum dia terei força para tanto... Por ora, não... Resgate a minha franqueza a minha fragilidade... O menor abalo que desse êxtase me atire à realidade, mal acerto com a vista na nulidade soberba, na vileza prospera, na abjeção remunerada, na astúcia triunfante, na hipocrisia omnipotente... nesse ascoroso acervo das misérias humanas... todo se me revolve o coração... e sai-me pela boca em estrofes irritadas, que a amargura envenena, que a indignação inflama! Quero, e não posso, conter esta fúria, represar esta onda, que se entumece, e trasborda com o temporal de dentro!... Depois... Nenhuma fraqueza lhe dissimulo... Depois, as palmas, os bravos, as aclamações, o frémito das turbas, que pendem da minha voz e a minha voz avassala, todo este rumor contagioso e irresistível... é novo excitante à febre, é maior alimento ao incêndio, que lavra, que lavra, que se desata em labaredas acumulando as cinzas... que investe ao acaso... que devora quanto encontra... que há de acabar por me devorar também!
 
GONÇALO Veia exuberante! Seiva excessiva! Torrente impetuosa! — Os anos o corrigirão.
 
BOCAGE Não sei... Nasci assim. Acho-me assim ao entrar no mundo. Corrigese isto?
 
GONÇALO Quando se não corrige, mata. E o Sr. Bocage há de viver. — Desculpe se o turbei nas suas contemplações... Não pude resistir... posto saber o fito delas.
 
BOCAGE (sorrindo) Das minhas contemplações de agora? Duvido. (Passeando com Gonçalo)
 
GONÇALO Quer que o vá perguntar ao honrado mercador Manuel Simões, que mora naquele primeiro andar, para onde entrou haverá uma hora, com a sua interessante afilhada a Sra. morgada D. Felícia? Bem se vê que está todo no seu enlevo... Tem por mistério o que se passa nas ruas!... Presumo que não anda aí por causa da morgada velha... (Bocage protesta) Logo vi. — E a viúva, diga-me? Quando há quinze dias nos encontramos na Torre da Palma parecia meio apaixonado.
 
BOCAGE Apaixonado de todo.
 
GONÇALO Que fez então a essa paixão súbita?
 
BOCAGE (gracejando) Foi como veio... subitamente. “Vê que não está na minha mão dissimular, e aproveita-se.”
 
GONÇALO “Se pensa...”
 
BOCAGE “Não: desculpe. — Sei que não é curiosidade indiscreta. E a quem melhor podia abrir o coração? Como hei de eu dizer-lho? A viúva é cheia de atrativos... merece todas as adorações... (Malicioso) Não é esta a sua opinião, Sr. tenente?”
 
GONÇALO “Ainda que o seja? Pouco vem ao caso.”
 
BOCAGE “Reservas comigo! Vamos, confidência por confidência. Confesse que não deita luto pela morte da minha paixão da Torre da Palma.”
 
GONÇALO (seriamente) “A Sra. D. Maria Joana Galvão nunca me deu direito para me ofender de qualquer preferência sua.”
 
BOCAGE “Podia não se ofender, e custar-lhe. E não seria da minha parte loucura constituir-me rival do único amigo verdadeiro que ainda encontrei?... (Movimento de Gonçalo) Oh! não, não cuide que lhe quero forçar os segredos... não pense que foi generosidade...” Já que me obriga, digo-lhe tudo. Peço-lhe só que não seja severo. Ou venha dos anos ou do temperamento, o amor em mim é igual à musa, compraz-se no improviso. Rebenta em chamas, mas a chama fulge e esvai-se como relâmpago... Depois... outra fraqueza ainda... é tão superior às damas que tenho conhecido, a Sra. D. Maria Joana Galvão!... tão superior pela graça senhoril, pelo trato do mundo e cultura do espírito!... (Pausa) Encontrei-a, logo que cheguei, numa assembleia, em casa de sua tia D. Felícia onde me apresentaram... Ferviam os motes, e eu calado. Passei quase todo o tempo escutando-a e refletindo.
 
GONÇALO Foi um estudo então?
 
BOCAGE Um exame de consciência. Intimida aquela distinção, subjuga aquela formosura, ordena respeitos aquela voz. Revoltou-se-me o coração contra semelhante império... Se abomino todo o cativeiro!... Estava ali também, como esquecida, uma flor modesta, a afilhada da Sra. D. Felícia. Com ser mimosa sua, era visível a inferioridade da condição. Como, porquê, não sei... Para essa me voou a alma... Admira-se?.... Não posso suportar a ideia da dependência, nem sequer em amor. À dama opulenta e festejada que podia dar o pobre cadete, o poeta noviço? Ainda que me correspondesse... esmola seria a sua mesma preferência. Com a donzela humilde sucede o contrário... é ela a favorecida, e eu o generoso. — Prefiro estes amores... não tolero outros!
 
GONÇALO (olhando para a esquerda) Tem muito empenho em se encontrar com o mercador?
 
BOCAGE Por quê?
 
GONÇALO Porque se não tem, podemos ir aqui de roda dar uma volta até à esquina da Inquisição, e tornar depois.
 
BOCAGE (olhando também) É ele, e não sei quem mais. (A Gonçalo) Com todo o gosto... (Indicando a janela) Como vê, as minhas contemplações não eram bem sucedidas... não tinham ainda objeto.
 
GONÇALO (andando) Logo terão. As estrelas levantam-se com a noite!
 
BOCAGE (saindo com ele, ao passo que entram Manuel Simões e Francisco) Invade também os domínios da poesia, o Sr. tenente! 
 
(Saem)
 
 
CENA V Manuel Simões e Francisco Pedro Simões.
 
MANUEL SIMÕES Que espantos que não vai agora fazer a Sra. Mônica!... Se nem me lembrou dizer-lhe nada!...
 
FRANCISCO E está boa a minha tia Mônica?
 
MANUEL Toda em cuidados pelo seu menino, pelo seu Francisquinho, que hás de ser sempre para ela o Francisquinho, como há vinte e três anos, quando o Sebastião foi para a Bahia, e tu ficaste tanto monta no berço... As raparigas e a caixeirada não te chamam já senão o Sr. doutor... Ela... sim!... Nem anos nem Coimbras lhe persuadem que o seu Benjamim está um homem... (revendo-se nele) e daqui a pouco um Sr. doutor deveras... não é assim?
 
FRANCISCO Este ano ainda, espero.
 
MANUEL Mas vê lá, rapaz... Não te sirva de atraso esta vinda a Lisboa! Jornadas para cá, jornadas para lá... sempre é tempo perdido!...
 
FRANCISCO Sendo por poucos dias...
 
MANUEL Será. Pois que!... Não pensei nisto quando te escrevi. — Recebeste a minha carta a tempo? Recebeste, está visto. Pui-te esperar à estalagem, por me parecer que não faltavas... mas como não respondeste...
 
FRANCISCO Mandei logo buscar os machos, e pus-me a caminho. A resposta era obedecer. Que novidade foi esta, pai?
 
MANUEL Estava tremendo não chegasses... (Em voz baixa) Vem esta noite cá teu padrinho.
 
FRANCISCO O Sr. marquês!... a nossa casa!
 
MANUEL À nossa própria casa. Será o primeiro marquês que vem a casa de teu pai?
 
FRANCISCO É verdade... o Sr. marquês de Pombal era também padrinho de meu irmão, e tenho-lhe ouvido que...
 
MANUEL Que me visitava em pessoa, ele mesmo... (olhando em redor) o grande marquês... E não foi só isso... De vez em quando mandava-me parar a sege à porta da loja... (Esquecendo-se) É que também não torna cá homem como aquele... (caindo em si e olhando em volta) que este não é somenos, em certas coisas! Vem, vem hoje... Podia lá deixar de lhe ter cá o afilhado! Vem hoje... hoje, em véspera de Corpo de Deus, faze ideia! E toda a gente pelas janelas!... E o que se há de falar no arruamento!... E o que aí não virá de encomendas! — Já mandei buscar mais um caixeiro.
 
FRANCISCO Que não seja como o Zé Braga ou o Zeferino... Lembram-me ainda.
 
MANUEL O Zé Braga estabeleceu-se na terra... e vamos, tem queda para o negócio... É nosso correspondente.
 
FRANCISCO Ah!
 
MANUEL O peralvilho do Zeferino... esse lá foi para esses Brasis... Não sai dali coisa de jeito, verão... Confundia-me sempre o lemiste com os droguetes, e o pano jardo com as baetas!... Deu em fazer de faceira... já de chapéu à Anastácia... sempre em touros e presépios... Só lhe faltavam os polvilhos. Deixá-lo. Cá me tenho remediado com outros dois novos, e marçanos não faltam. — Ai! nós aqui a falar, a falar, e lá em casa tudo cheio de gente!... A Mônica estou que perde a cabeça!... Não me lembrava com o gosto de te ver, e de te fazer beijar a mão ao Sr. marquês... que ele sempre há de puxar por ti! — Anda, rapaz, vamos... vamos!... (Em ato de partir)
 
FRANCISCO Tudo cheio de gente lá em casa! É novidade... E quem está? Não me hei de apresentar neste trajo de jornada, se são pessoas de respeito.
 
MANUEL (voltando) Tens razão. Não vieras tu de Coimbra!... Com isto sempre me embalaram: “ou armas ou letras.” Quem está?... Hás de ir mudar de fato primeiro, hás de. Estão pessoas de consideração, e espero mais. Verás... Sujeitos de peso e de porte, que me honram com a sua amizade... (consigo) e precisam do meu dinheiro... Pois num dia destes, e vindo cá teu padrinho!... Está a Sra. morgada D. Felícia, que essa é já conhecimento velho... está...
 
FRANCISCO (alvoroçado, vivamente) E a afilhada?
 
MANUEL E a afilhada... bem sabes que nunca a larga... Está a afilhada, e vem também uma sobrinha, que chegou de França há dias!
 
FRANCISCO (em ato de partir) E nós aqui a perdermos tempo.
 
MANUEL (detendo-o) Espera, espera. Que fogo te deu mal te falei na morgada! Dar-se-á caso... (Severo) Francisco?
 
FRANCISCO (timidamente) Meu pai.
 
MANUEL Esse alvoroço não é natural!
 
FRANCISCO (como acima) Está fazendo falta de certo, pai.
 
MANUEL Já vamos. (Consigo) A morgada não pode ser... a sobrinha não a viu ainda... Querem ver... (com inteireza) Sr. Francisco Pedro, forma-se este ano. Daqui a tempos será juiz de fora, desembargador, quem sabe?... Conversei já a seu respeito com o meu amigo João Pires... Conhece? O Sr. João Pires, à Magdalena, que traz dois navios para a Índia, e tem uma filha que não anda por assembleias, mas leva quarenta mil cruzados de dote. — Quando pensar em casar, é a noiva que lhe convém.
 
FRANCISCO (consternado) Oh! meu pai! Por quem é não disponha assim do meu coração!
 
MANUEL Do seu coração! A que propósito vem o seu coração? Quer dizer que olhou para a afilhada da Sra. D. Felícia? Ignora que é filha de uma criada?
 
FRANCISCO Mas educada com tanta estimação! O amor não mede distâncias.
 
MANUEL Ensinaram-lhe isso em Coimbra?... Não o tirasse eu do balcão!... Felizmente seu pai não dorme. Perca daí o sentido. Já lhe disse o que lhe convinha. Escusa de se cansar... não costumo repetir as coisas duas vezes!
 
FRANCISCO Não me permite uma súplica ao menos?
 
MANUEL Com tanto que seja breve.
 
FRANCISCO Morro por ela... (Hesita)
 
MANUEL Se me não diz mais...
 
FRANCISCO E dei-lhe palavra de casamento.
 
MANUEL Deu-lhe palavra... (Furioso) Por quê? Para quê?... Sem me consultar... sem consultar seu pai!... sem saber se lhe fazia transtorno!... Viu-se já!... (Fitando-o) Estes rapazes!... (Mais brando) Com que então destelhe palavra? (Gesto afirmativo de Francisco) Pois se lhe deste, cumprea. — Um Simões nunca faltou a ela!
 
FRANCISCO (transportado) Consente!... Consente?... Como lhe hei de agradecer, meu pai!
 
MANUEL Não é o que eu queria, e custa-me... Não te mandei a Coimbra para te empregar na filha de uma criada!... Mas na nossa casa a palavra é escritura. Pagamos à vista... sempre, e tudo: é o nosso brasão!
 
 
CENA VI Os ditos e o Morgado.
 
MORGADO Ora até que o encontrei, Sr. Manuel Simões. Procurei-o ontem, antes de ontem, esta manhã...
 
MANUEL (interrompendo-o secamente) Sei, sei... Bem sei.
 
MORGADO Se me desse licença logo...
 
MANUEL Tenho gente em casa, tenho muita gente... Há de me dar licença. — Vamos, Francisco, vamos.
 
 
CENA VII Morgado pouco depois o Comendador.
 
MORGADO (desesperado e ameaçador) Se fora da nobreza... e se não fora a necessidade!...
 
COMENDADOR (que tem entrado) Que é isso, Sr. Morgado? Quem o fez agastar?
 
(Durante esta cena os criados acendem de dentro as iluminações das janelas)
 
MORGADO Quem há de ser? Esta gente de negócio que na verdade...
 
COMENDADOR Não tem uso do mundo, é sabido... cansa-se de dar dinheiro, e nem sempre se lembra das jerarquias!... Que quer? Na opinião de Cicero o dinheiro faz todos iguais... e lá reza o nosso rifão: “negro é o carvoeiro, branco é o seu dinheiro!!”
 
MORGADO Mas quem lhe diz...
 
COMENDADOR Que precisa de dinheiro? O Sr. Morgado precisa sempre... Que o mercador lho recusa? Encontro Manuel Simões, e acho-o enfadado. Não é preciso ser astrólogo para adivinhar. Excelentes astrólogos são os olhos... que sabem ver. Bem o disse o poeta Manílio, e melhor o explica Júlio Firmico Materno, contemporâneo de Constantino Magno, nos oito livros que escreveu sobre o assunto.
 
MORGADO (meio aborrecido) Oito? Admiro-lhe a pachorra. — Mas, vamos, Sr. Comendador... Estão já acendendo as luminárias. Daqui a pouco enche-se aí tudo de gente. — Que notícias? — Sabe que morreu Salvador Teixeira, o irmão mais velho de Gonçalo Mendo? Ficou senhor da casa agora o tenente, e...
 
COMENDADOR E... receia o competidor.
 
MORGADO Receá-lo! Por quê? Em quê? Um homem como eu não teme nenhum rival... Minha prima é senhora de gosto e de juízo... E em último caso tenho modo infalível de suplantar o tenente... (intencionalmente) ou qualquer outro.
 
COMENDADOR (sorrindo) Infalível!
 
MORGADO Infalível.
 
COMENDADOR Contra qualquer?
 
MORGADO Contra qualquer.
 
COMENDADOR No dizer de Plinio poucas coisas se podem julgar infalíveis. — Tem estado com sua prima?
 
MORGADO Todos os dias. — Ainda antes de ontem em casa da morgada da Torre da Palma... ainda ontem a ver correr parelhas e alcanzias em Campolide.
 
COMENDADOR Então para que pergunta notícias?
 
MORGADO Para saber o que se diz. — Posso contar com a sua amizade?
 
COMENDADOR Como eu com a sua. — Amizade de obras mais do que de palavras, como a quer Tito Lívio.
 
MORGADO Também... comigo pode o comendador contar para a vida e para a morte. O braço e a espada do morgado da Gesteira estão sempre ao seu dispor.
 
COMENDADOR Deseja saber o que há?
 
MORGADO Não se me dava... para afugentar de vez o primeiro que se atreva a galantear abertamente minha prima.
 
COMENDADOR (malicioso) Terá que fazer. — Veja o que Propércio diz da sua Cíntia... Pode fazer calar os requebros dos pintassilgos à aurora?
 
MORGADO Pintassilgos, diz bem. Principalmente o cadetinho... o tal Sr. poeta de loas, ou das dúzias... Ia-me saindo das medidas na casa da Torre da Palma. Se não fosse a morte quase repentina de Simoa!... Já o encontrei por aí e não o perco de vista. Não que minha prima possa olhar para semelhantes figuras...
 
COMENDADOR Eu sei, morgado. Ele é de boa gente, e as damas... Enfim a respeito desse, descanse... Traz o Sentido em outra parte.
 
MORGADO (avidamente) Em quem?
 
COMENDADOR Ainda não reparou?... Na afilhada de D. Felícia.
 
MORGADO (desdenhoso) Ah!... (Como refletindo) Mas o filho do mercador? É correspondido, e está aí.
 
COMENDADOR (sorrindo) Era correspondido... Verá como os dois se arrufam, como o poeta fica e é aceito, como... Isso corre por minha conta.
 
MORGADO Por conta do comendador! (Desconfiado) E com que interesse?
 
COMENDADOR Interesse? Nenhum... Amizade... Desejo de lhe ser útil... Não queria afugentar os galanteadores de sua prima?... Para isso vale mais a astúcia do que a força, creia. O mestre das retóricas ensinava a Herênio “que a verdadeira prudência era a sagacidade,” e como diz Cornélio Nepote, “mais pôde a destreza de Temístocles do que as armas da Grécia.”
 
MORGADO (pensativo) Não é fora de razão... ainda que nada disso vale uma recarga a tempo como a ensina o alferes Teotônio Rodrigues, ou uma flanconada como as queria o grande Montenegro. (Mirando-o de revés) Com que o poeta desistiu já de minha prima?
 
COMENDADOR (sorrindo, e do mesmo modo) Respondo-lhe por ele.
 
MORGADO O tenente, esse...
 
COMENDADOR Faz-se desistir.
 
MORGADO (como acima) E depois?
 
COMENDADOR Depois... não há rivais que afrontem o Sr. morgado. (Cresce o número dos passeantes. — Ruído dentro) aí vem já o rancho dos poetas. Conhece-se pela algazarra.
 
(Principiam a aparecer às janelas algumas senhoras de gala, e toucadas)
 
MORGADO (olhando para as janelas) Já as madamas começam também a aparecer.
 
COMENDADOR Vou num instante a casa do mercador para lhe fazer a vontade. Volto logo.
 
MORGADO Encontra lá minha prima.
 
COMENDADOR E não vem?
 
MORGADO (despeitado) O Sr. Manuel Simões não me fez a honra de me convidar.
 
COMENDADOR Que dissabor lhe há de ser ter sua prima ali e ficar de fora! Que quer? Diógenes, de Sinope, comparava as riquezas às plantas... que nascem em despenhadeiros! (Sai tomando à esquina)
 
(Entram logo Bocage, 1º o e 2º poetas, companheiros, e Gonçalo Mendo)
 
 
CENA VIII Bocage, Gonçalo Mendo, 1º e 2º poetas.
 
GONÇALO (a Bocage, despedindo-se e indicando as janelas de Manuel Simões) Boa sorte e propícios amores!... Da inspiração não lhe falo: nunca lhe falta, e hoje menos lhe faltará.
 
BOCAGE (meio desconfiado) Já não quis entrar comigo um instante no Nicola, e agora deixa-me!
 
GONÇALO É noite de festas, e está ainda mal fechada a sepultura de meu irmão!
 
BOCAGE (caindo em si) Tem razão.
 
MORGADO (chegando-se) Soube o desgosto que teve, Sr. tenente Gonçalo Mendo... Muitos parabéns... (corrigindo-se) dou-lhe os sentimentos, quero dizer... Seu irmão, também era doente... Quantos anos tinha?... Boa casa!... É uma boa casa, a casa de Mendel, dizem todos. E de mais a mais com os coutos de Sandim!... Deixou uma grande casa!... O Sr. Gonçalo Mendo naturalmente larga a vida militar. — Com uma casa daquelas!
 
GONÇALO (com inteireza) “Senhor morgado da Gesteira, a minha família foi sempre uma família de soldados. Ali cumprir a lei e servir a pátria não é especulação, é preceito. Se meu irmão por fraco e enfermo não pôde satisfazer a obrigação, por ele a satisfazia eu. Hoje, que me falta, essa obrigação fez-se duplicada: é a dele e a minha!” — Creio que o Sr. Bartolomeu Tojo não vê no vínculo senão a renda. A mim ensinaram-me de pequeno a só considerar no patrimônio dos meus, como coisas superiores, o dever e o nome! — Adeus Sr. Bocage! (Sai)
 
MORGADO E então! Dês que está senhor da casa parece que traz el-rei na barriga!
 
BOCAGE (fitando-o) Engana-se. Tem o coração no seu lugar... e não sucede o mesmo a todos.
 
(Sinais de aprovação nos circunstantes)
 
MORGADO (ameaçador) Isso entende-se comigo?
 
BOCAGE (com obsequioso sarcasmo) De nenhum modo: era supor-lhe coração!
 
(Riso nos circunstantes)
 
MORGADO (com satisfação) Logo vi que se não podia entender comigo.
 
(Retira-se majestosamente e sai)
 
 
CENA IX Bocage 1º e 2º poetas, companheiros, 1º e 2º mancebos, damas, povo.
 
(Vão-se povoando mais e mais as janelas; aumenta na rua a concorrência)
 
PRIMEIRO MANCEBO Senhor Bocage, senhor Bocage!
 
BOCAGE (ainda agastado da altercação com o morgado) Que é?
 
PRIMEIRO MANCEBO Fez-me o favor de limar aquelas decimas, que lhe entreguei o outro dia?
 
BOCAGE Pois não!
 
PRIMEIRO MANCEBO Queria ver se as recitava esta noite... Tem-nas aí?
 
BOCAGE O que?
 
PRIMEIRO MANCEBO As minhas decimas.
 
BOCAGE Como hei de ter, se nada sobrou delas.
 
PRIMEIRO MANCEBO (pasmado) Não sobrou nada?
 
BOCAGE Absolutamente nada. Ficou-me tudo na lima!
 
(Riso nos circunstantes; o 1º mancebo mete-se na turba corrido)
 
SEGUNDO MANCEBO Senhor Bocage, um obséquio?
 
BOCAGE Que temos?
 
SEGUNDO MANCEBO Faz anos, depois de amanhã, um tio que eu tenho...
 
BOCAGE A novidade seria fazer anos um tio que não tivesse.
 
SEGUNDO MANCEBO Compus dois sonetos...
 
BOCAGE Dois de uma assentada! Já vejo. Monta um Pégaso manhoso que lhe desandou uma parelha de...
 
SEGUNDO MANCEBO (ingenuamente) Isso. Estão aqui os sonetos. Só lhe peço que me diga qual é o melhor... para o oferecer ao tio...
 
BOCAGE Ao Sr. seu tio... que vocemecê tem. — Deixe ver. (O 2º mancebo entrega-lhe um papel de dois que tem na mão. — Bocage chega-se à luz das luminárias, e lê atentamente. Em quanto lê, o 2º mancebo responde aos poetas que parecem divertir-se com ele. Depois de ler, restituindo-lhe o papel e em tom decidido) Leve-lhe o outro.
 
SEGUNDO MANCEBO O outro! Mas ainda não viu o outro.
 
BOCAGE É o mesmo... leve.
 
SEGUNDO MANCEBO Por quê?
 
BOCAGE Porque não pode ser pior do que esse.
 
(Riso dos circunstantes; o 2º mancebo sai também corrido)
 
 
CENA X Bocage, 1º e 2º poetas, companheiros, damas, povo
 
SEGUNDO POETA. Está de veia hoje, o nosso cadete.
 
BOCAGE Menos isso. — O cadete ficou onde ficou a farda. Aqui está só o poeta.
 
PRIMEIRO POETA (ao 2º) Condenado como réu de lesa Arcádia. O Bocage tem razão. Será cadete no regimento; entre os pastores do Pindo é Elmano, o esperançoso Elmano, como tu és Alcino, como eu sou Lereno. A propósito, falta-nos Albano.
 
(Bocage parece cair em profunda meditação)
 
SEGUNDO POETA Foi jantar a casa de algum fidalgo. É o seu costume. Mas vem de certo. Disse-me que vinha. — Agora nego que fosse réu de lesa Arcádia tratando Elmano pelo grau militar.
 
PRIMEIRO POETA Como provas essa?
 
SEGUNDO POETA Muito facilmente. Qual é neste caso o distintivo do vale e do soldado? Uma estrela. O mesmo em ambos. Cada qual tem a sua. Logo... (Declamando) O Apolo, e o Marte que zelas, Não se afastam grande espaço: Tem um a estrela no braço, Outro o braço nas estrelas!
 
PRIMEIRO POETA Fora o seiscentista. Sempre te achei queda para os conceitos alambicados e antíteses retorcidas! Essa vem na Fênix renascida, ou nos Desmaios de Maio, aposto! — Bocage... (reparando e tomando-lhe o braço) Bocage!... Em que pensas?... Que fizeste à picante jovialidade tão bem estreada, e que tanto prometia para esta noite?
 
BOCAGE (como despertando) Que?... Eu?... (Compreendendo) Ah!... Jovialidade lhe chamas? Não era, não. Era raiva, era fúria, era...
 
PRIMEIRO POETA Contra uns pobres rapazes! Deixa versejar a vadiagem. Cansará depressa. Não vale a indignação.
 
BOCAGE Isso dizem todos, e disso sobra forças à mediocridade e a vilania, que são gêmeas. Uns pobres rapazes! Hoje néscias vaidades apenas... amanhã caluniadores invejosos!... Deixai-os medrar, deixai; e queixai-vos depois dos danos que vos fizerem! E há piores ainda... Piores e mais nocivos são os desalmados, que nem adivinham a alma, e desse aleijão moral fazem a bitola de todos os caracteres!... Que me hão de aparecer por toda a parte vilezas!... Não reparem, amigos... São restos da cólera em que me deixou esse homem, que até na morte vê o interesse sem lhe ver as lágrimas!... Quando estas ignomínias me surgem diante, sou como aquele tirano antigo, que desejava um só corpo à humanidade, para a degolar de um golpe!... Quisera tê-las também todas congregadas e incorporadas debaixo da mão, para lhes arrancar a máscara hipócrita, para as retalhar com o látego justiceiro, para apresentá-las como são, hediondas e infames, perante a sociedade que iludem ou pervertem. — Desculpem a rajada. Vamos ao que importa. (Olhando para as janelas do mercador, ainda desertas) Ficamos aqui?
 
PRIMEIRO POETA Alcino tem uma Anarda ali num segundo andar do quarteirão imediato, e ela provavelmente traz-lhe mote preparado. Queres vir?
 
BOCAGE (com os olhos nas janelas) Com tanto que voltemos depressa!
 
SEGUNDO POETA Percebo. Temos também por cá pastora! Uma Armia, uma Isbela, uma Anfrisa?
 
BOCAGE Melhor do que isso. Uma esperança!
 
(Gritos, tumulto fora)
 
SEGUINDO POETA Há novidade, ao que parece.
 
(Grande tumulto fora. Gritos: “Aqui del-rei! Agarra!” O povo aflui àquele lado)
 
BOCAGE É desordem?
 
PRIMEIRO POETA O costumado.
 
VOZES (no povo) Arreda! arreda!
 
(Reflui tudo. — Bocage, à frente dos companheiros, impelido pela turba, acha-se na extremidade quando entra, correndo deste lado, Alcaide, e a ronda de quadrilheiros e paisanos)
 
 
CENA XI Alcaide, Bocage, 1º e 2º poetas, companheiros, morgado (que entra esbaforido), damas, povo.
 
ALCAIDE (topando Bocage, e pondo-lhe uma pistola aos peitos) Da parte da ronda — quem é? de onde vem? para onde vai?
 
BOCAGE (serenamente)
 
Sou o poeta Bocage, Venho há pouco do Nicola, E vou para o outro mundo Se me dispara a pistola!
 
POETAS e COMPANHEIROS Bravo! Bravo, Bocage!
 
ALCAIDE (deixando-o) Ah! é o Bocage! Que foi então? Quem gritou?
 
MORGADO Foi um chibante de cigarro que deu três facadas num moço das carvoarias, que ia cantando a Fofa ali para a banda da Bitesga!... Ah! que se o apanho a jeito!... 
 
(Esquiva-se logo que o Alcaide interroga)
 
ALCAIDE Quem falou para aí?... (À ronda) Depressa, anda... Venham as lanternas, que nas travessas está escuro como breu. (Os paisanos adiantam-se com as lanternas, mostrando certa repugnância) Mais depressa... (Aos quadrilheiros) Para a frente vocês. (Estes obedecem com prontidão, e passam velozmente. — O Alcaide continua para este lado como falando a um dos quadrilheiros que passou) Ó Gaiola, bota cordão lá para diante... agarra tudo!... O Sr. Corregedor do Crime mora aí para cima; ele que os joeire!... Vá, vá.
 
(Os grupos abrem vivamente passagem ao Alcaide e aos mais da ronda, que saem apressados)
 
 
CENA XII Os ditos, menos o Alcaide e Ronda, depois um cego (que vende impressos).
 
(Apenas o Alcaide sai, ouve-se tambor e gaita de foles. — O povo grupa-se para esse lado)
 
SEGUNDO POETA Círio agora, querem ver!
 
PRIMEIRO POETA (observando) Não. São os foliões do Espírito Santo com a bandeira, e o ermitão da Senhora do Monte com o Embrechado. Meteram-se para a outra travessa.
 
BOCAGE Por isso estão todos nas janelas dos lados.
 
SEGUNDO POETA Com semelhante inferneira, bem se há de poetar agora.
 
O CEGO (passando e apregoando em cantilena) Comprai, meninas comprai, Por dez réis, ou meio tostão, O Testamento da Velha Ind'antes da serração; Ou as obras afamadas, Que ninguém comprou em vão, Da Cristaleira de Coimbra, Coisa de satisfação.
 
BOCAGE (rindo e como terminando a trova do cego) Temos rival pela proa: Vá, ao outro quarteirão
 
PRIMEIRO e SEGUNDO POETAS (galhofeiros) Vá, vamos. 
 
(Saem os três)
 
 
CENA XIII
 
O cego, logo depois tia Vicência; tia Páscoa, logo depois compadre Teotônio e compadre Amâncio. 
 
(Movimento. Homens apregoando caramelo. Pretas apregoando alcomonia, etc.)
 
CEGO Comprai, meninas, comprai, Por dez réis ou meio tostão... (Perde-se-lhe a voz na distância)
 
TIA VICÊNCIA Bem lho cantava eu, tia Páscoa! Qual juiz, nem meio juiz! Não lhe põem a vista em cima! A Esteireira é que é de desengano. Que eu não lhe digo isto para me esquivar... Se quer que peça à morgada, apareça amanhã... amanhã não, é dia de festa... apareça depois de amanhã, e lá iremos... Verá que me não diz que não...
 
TIA PÁSCOA Vou... Sempre vou... Se por aí se arranja o negócio é uma boa dose que poupo, e para quero está já tão arrastado...
 
COMPADRE AMÂNCIO (entre as dez e as onze, capote a um lado, entrando com compadre Teotônio) Safa!... Cuidei que me filavam também!
 
TIA PÁSCOA Se não se fizer nada, então tomo o seu conselho, e vou à Esteireira... Por fim de contas são conhecimentos que se tomam... Ah! meu rico Santo Antônio! sou capaz de vender a camisa do corpo só para meter pelo chão abaixo aqueles marotos que nos desgraçaram... 
 
(Saem conversando)
 
CENA XIV Compadre Teotônio, compadre Amâncio (observando) pouco depois Morgado e Comendador. Grupos rareados.
 
COMPADRE TEOTÔNIO (também com um grão na asa, mas dando-lhe para taciturno, e preocupado, e servindo-se com frequência de um cheirador de simonte) Prenderam o homem?
 
COMPADRE AMÂNCIO A ronda vai apanhando a torto e a direito, mas o homem, sim! Meteu-se para a rua das Hortas, salta num pulo a São Roque, e de lá à Cotovia... Depois... boas noites... (Puxando, endireitando o capote, e mirando-o) Por um triz se não vai desta feita, o meu cobre-miséria! E o seu não ficou também pouco derreado, compadre Teotônio!
 
COMPADRE TEOTÔNIO Leve a fortuna os apertões, compadre Amâncio.
 
COMPADRE AMÂNCIO Olhe se não vai na ronda o mestre Joaquim da Ferraria... (Olhando em redor) Está isto por aqui só ainda! (Ouvem-se fora palmas e aplausos) Que é? (Vai ver) Ah! são os poetas que andam pelo outro quarteirão... Vamos até lá, compadre?... Quero dar o meu voto a respeito do Bocage, que ainda não ouvi... Tem-me ido já umas poucas de vezes barbear-se à loja, e dizem que na versaria põe tudo a uma banda!
 
COMPADRE TEOTÔNIO Cá por mim... o José Daniel!
 
COMPADRE AMÂNCIO Não digo que não, mas vista faz fé. Vem?
 
(Entram o morgado e o comendador. Formam dois grupos distintos)
 
COMENDADOR Onde ia tão assustado? Não me via?
 
MORGADO Assustado eu!... Ia desesperado... O tal Sr. cadete, o tal Sr. poeta!...
 
COMENDADOR Disse-lhe alguma?
 
MORGADO A tanto não se atrevia ele... Ainda agora o fiz eu tornar atrás... Os modos... os modos é que me dão a perros... Tomara achar azo de lhe pregar uma boa vaia, aí diante de toda a gente.
 
COMENDADOR Havia de lhe doer... mas isso é antes desforra de mulher que de homem... A verdadeira vingança quer-se mais segura. No conceito de Sêneca toda a soberba é injuria, e Plauto ensina como as injurias se pagam... 
 
(Ficam conversando)
 
COMPADRE AMÂNCIO (do outro lado) Não se mexe daí, compadre? Parece-me jarra! Largue o cheirador, que é capaz de lhe subir o simonte ao miolo. Se não está para ouvir os poetas, venha até ao Talaveiras, que tem uma pinga do velho...
 
COMPADRE TEOTÔNIO Cá por mim, o Petinga.
 
COMPADRE AMÂNCIO Não sai disto! Ó compadre Teotônio, você por mais que me digam já fez hoje mais de uma estação!... (Ouve-se campainha) Será a Misericórdia? (Indo verificar) Ora o que há de ser!
 
COMPADRE TEOTÔNIO O que é?
 
COMPADRE AMÂNCIO É o Bernardo atafoneiro, que vem aí todo vestido de holandilhas, com bordão de gancho e lanterna pendurada, a pedir para o Senhor Jesus dos Aflitos... Conheço-o pelo roliço. Aquilo faz dinheiro de tudo! Rendem-lhe mais as penitências que o ofício, e ainda em cima aluga a preta para andar a vender pelas ruas.
 
(Atravessa o penitente, como está descrito tocando a espaços a campainha; traz à cinta um mealheiro. Dão-lhe esmola)
 
COMPADRE TEOTÔNIO (elevando a voz) Ora se há um birbas assim!
 
COMPADRE ANASTÁCIO (impondo-lhe silêncio) Mais devagar, compadre, mais devagar, que o Bernardo é familiar do Santo Ofício... como alguns fidalgos!
 
MORGADO (do outro lado, ao comendador olhando para a janela dum 2° andar) Lá está uma palmilhadeira do meu conhecimento, no 2º andar, mesmo por cima da casa do mercador... (Depois de refletir, como achando) Ah!
 
COMENDADOR (irônico) Teve alguma lembrança feliz?
 
MORGADO Tive. (Olhando) Cá vem o rancho outra vez! (D. Felícia e D. Maria Joana aparecem a uma das janelas do 1º andar da esquina. Maria Gertrudes a outra. Enchem-se as janelas. — Afluem sucessivamente os grupos) Verá que vergonhaça!... Digam que não sei varar um gamo, nem pegar numa espada, nem determinar uma mesa, se o poeta não fica hoje corrido!... 
 
(Sai precipitadamente dobrando a esquina. O comendador vê-o sair, encolhe os ombros desdenhosamente, e mete-se por entre os grupos. Compadre Teotônio e compadre Amâncio giram na turba. Entra Bocage e os poetas. O grupo destes fica sobressaindo)
 
 
CENA XIV Bocage, 1º e 2º poetas, companheiros, comendador, compadre.
 
(Amâncio, compadre Teotônio, D. Felícia, D. Maria Joana e Maria Gertrudes, (nas janelas) damas, povo. — Grande animação)
 
PRIMEIRO POETA Oh! agora está já tudo pelas janelas. Vamos, quem rompe?
 
BOCAGE Eu não... Logo.
 
SEGUNDO POETA Rompo eu. (Para as janelas) Mote... Venha mote, minhas senhoras!
 
(Agrupam-se todos curiosamente para ouvir)
 
D. FELÍCIA Essas peraltas de agora, Eu não sei de onde lhes vem.
 
SEGUNDO POETA (repetindo) Essas peraltas de agora... Eu não sei de onde lhes vem. (Fica por momentos pensativo)
 
BOCAGE (ao 1º poeta) Foi a morgada que deu o mote?
 
PRIMEIRO POETA Foi. (Ao 2º Poeta) Glosa-lho ao jeito, se queres que te aplauda, a tartaruga!
 
SEGUNDO POETA Deixa. (Batendo as palmas) Lá vai:
 
Cambraias, sedas, matizes; Vermelhas capas bem fartas Forradas de peles martas; Bons vestidos de países; Filós, rendas, pertiguizes; Sécias tudo, e a toda a hora; Sempre em visitas por fora; Conhecendo toda a gente: Eis-aqui, sucintamente, “Essas peraltas de agora;”
 
PRIMEIRO POETA (interrompendo) Bravo!
 
D. FELÍCIA (aplaudindo) Bravo! Bravo!
 
BOCAGE (de parte ao 1º poeta) Não é glosa: é rol da roupa!
 
SEGUNDO POETA (continuando) No dia cinco e seis vezes Correm, sem que isto as afronte, Dos perfumes do Le-Conte Ás lojas dos genoveses; Não faltam nos entremeses; De casa, nem um vintém; Trazem fiado o que tem E na roca não põem mão: Ou é milagre, ou então “Eu não sei de onde lhes vem!”
 
D. FELÍCIA (debruçando-se encantada e aplaudindo) Bravo!... Lindo!... Bravíssimo... Uma suspensão!... uma suspensão!
 
(Alguns aplausos nos quais se distingue Mestre Amâncio)
 
SEGUNDO POETA (a Bocage rindo) Que tal?
 
BOCAGE Um trocadilho de Luiz de Gôngora!
 
COMPADRE AMÂNCIO (como consultando Compadre Teotônio) Então?
 
COMPADRE TEOTÔNIO (cheirando) Percebeu, compadre?
 
COMPADRE AMÂNCIO Isso é seca, homem! Se percebesse, por que havia de aplaudir?
 
VOZES (no povo, que, olhando se afasta como para dar lugar) Olha! Olha! É o volantim do nosso Marquês.
 
COMPADRE AMÂNCIO O volantim do Marquês... De qual Marquês?... (Olhando) Ai! é o do Sr. Marquês de Marialva! (O volantim, passa, e dirige-se rapidamente à casa da direita, que dobra) Lá vae... Como ele vai!... (A onda do povo dirige-se para aquele lado, como para observar. Compadre Amâncio precede-a) Aonde irá? (Olhando para fora. Atônito) A casa do mercador Manuel Simões!... Vai... Entrou... (Voltando ao Compadre) Compadre Teotônio, compadre. Grande novidade!... Querem ver que o Marquês vem a casa do Manuel Simões!... (Observando) Vem... Lá estão já os caixeiros com as tochas à porta, e o patrão no patim!
 
COMPADRE TEOTÔNIO Nós que temos com isso?
 
 
CENA XV Os ditos e Morgado (que se aproxima procurando o Comendador).
 
SEGUNDO POETA É feliz este Manuel Simões! Compadre do Marquês de Marialva!... e já o foi do outro... Por isso lhe chove a freguesia, que está podre de rico... (A Compadre Teotônio)
 
COMPADRE TEOTÔNIO (a Compadre Amâncio) O Marquês de Pombal é que era o nosso!
 
COMPADRE AMÂNCIO (baixo e vivamente) Cale-se! Quer que nos metam na inquisição?
 
PRIMEIRO POETA (ao segundo) Não há nada como negociar!
 
SEGUNDO POETA O mau da poesia é não se medir aos côvados.
 
BOCAGE Estás enganado. Nesse ponto a poesia é como as fazendas da loja. Medidos se querem também os versos... e quem pior os mede mais lucro tira.
 
COMPADRE AMÂNCIO Aí vem o Sr. Marquês de Marialva... aí vem... Traz consigo o Almeirão e o Gaeta. Olhe, compadre, o Gaeta, que em metendo o rojão, deita sempre abaixo o touro!
 
COMPADRE TEOTÔNIO Cá por mim... o Fava-Seca!
 
COMPADRE AMÂNCIO Deixou a sege na travessa, para não atropelar ninguém... Ele sempre é bom de lei!... Viva o nosso Marquês, que é pai do povo!
 
(Entra o Marquês, 3º poeta, o Gaeta, o Almeirão, séquito de picadores e escudeiros)
 
VOZES Viva!
 
 
CENA XVI Os ditos, o Marquês, 3º poeta e séquito.
 
MARQUÊS Obrigado! Obrigado! (A um dos picadores) Toma cuidado, Gaeta. O teu cardão tem um gavarro no pé esquerdo. Sente-se do casco ao bater na calçada. Está em princípio ainda, mas se lhe não acodes, vai-se-te o animal, e é pena! (Aos poetas) Então, tem-se poetado muito?... (Olhando para as senhoras, que lhe fazem mesura) Com tais musas, muito e bem decerto. (A outro picador) Almeirão, anda-me com tento no tordilho. É um cavalo fino, mas tem pouca escola ainda. Tira pela mão, e não ganhou união nos movimentos. Para praça não está capaz. (Olhando de novo para as janelas) Oh! lá vejo a Morgada da Torre da Palma, e mais a sobrinha que veio de França. (Cumprimenta-as. Aos poetas) É formosa, e dizem que não menos discreta... (A Bocage) Oh!... Manuel Maria... Está em Lisboa com licença, sabia já... Desta vez ainda não foi ver-me a Belém.
 
BOCAGE Vossa excelência estava em Salvaterra.
 
MARQUÊS Cheguei esta tarde, é verdade. Quero-o lá um dia cedo... Aqui lhes trago reforço. (Indicando o 3º poeta) Foi esperar-me ao desembarque!
 
SEGUNDO POETA Tardava-nos o nosso pastor Albano!
 
MARQUÊS Aí está já o meu compadre Manuel Simões. Hão de me dar licença. — Manuel Maria, espero ter o gosto de ouvi-lo hoje. 
 
(Sai com o séquito acompanhado do grupo dos poetas. — As senhoras das janelas do mercador desaparecem momentaneamente)
 
 
CENA XVIII Os ditos menos Marquês e séquito.
 
VOZES Viva o nosso Marquês! Viva!
 
MORGADO (de parte ao Comendador) Verá agora a camisa de onze varas em que eu meti o poeta!
 
COMENDADOR Quem! o Sr. Morgado? Há de permitir que duvide.
 
MORGADO (impondo-lhe silêncio) Psiu! — Verá!
 
(O grupo dos poetas volta alvoroçado)
 
TERCEIRO POETA (para as janelas) Mote, minhas senhoras. — Venha mote!
 
A PALMILHADEIRA (no 2º andar) Senhor Bocage, senhor Bocage!
 
BOCAGE (levantando a cabeça) Quem me honra?
 
PALMILHADEIRA “O meu amor foi para a Índia!”
 
PRIMEIRO POETA Índia! — Mais parece peça que mote!
 
MORGADO (ao Comendador esfregando as mãos) Olhe como ficou embuchado!
 
BOCAGE (consigo, surpreendendo-lhe o movimento) Já vejo de onde vem a chufa. (Aos poetas) Será peça, mas se é, tenho pena de quem a quis pregar. Seja quem for, é ainda mais asno que tratante.
 
TERCEIRO POETA A rima é difícil.
 
BOCAGE (desdenhosamente) Difícil! Com dois verbos que remedeiam. — Guindar, findar; guinde-a finde-a. (Fitando o grupo do Morgado e do Comendador) Nem sabem inventar dificuldades! (Dá-lhes as costas e passa adiante)
 
PALMILHADEIRA Senhor Bocage: “O meu amor foi para a Índia.”
 
BOCAGE (voltando a cabeça) Sim? Pois quando vier... dê-lhe muitas saudades. (Segue)
 
(Riso. Aplauso)
 
COMENDADOR (ao Morgado) Não lhe dizia eu?
 
(As senhoras voltam às janelas do mercador)
 
TERCEIRO POETA Mote, minhas senhoras... Mote.
 
D. MARIA JOANA “Ás ondas se lançou Ero formosa!”
 
(Bocage aproxima-se; o 3º poeta fica meditando momentos)
 
SEGUNDO POETA O mote é conceituoso.
 
BOCAGE É. Dá um banho de mar à formosura!
 
TERCEIRO POETA (batendo as palmas) “Ás ondas se lançou Ero formosa!” Cansada de esperar o terno amante, Ero infeliz ao céu se pranteava, E como que o futuro adivinhava, Aqui e ali corria delirante; Da aurora em tanto a face radiante, Nos mares pouco a pouco se espelhava, E à frouxa luz ao longe se avistava Sobre elas um cadáver flutuante: A triste vacilava suspirando Nos braços da incerteza suspeitosa, Até que enfim se vai desenganando: Então, desesperada e lacrimosa, Do caro esposo os manes invocando. “Ás ondas se lançou Ero formosa!”
 
(Alguns aplausos)
 
SEGUNDO POETA Bravo, Albano!... Descritivo e sonoro!
 
PRIMEIRO POETA (a Bocage) Correto, não?
 
BOCAGE Correto, mas frio. Não admira. Uma paixão que vai por água abaixo!
 
SEGUNDO POETA Mote. Venha mote.
 
MARIA GERTRUDES “Os roubos que me fez a má ventura!”
 
BOCAGE (vivamente aos poetas) Este para mim.  (Repetindo imediatamente) “Os roubos que me fez a má ventura!” Eu deliro, Gertrúria, eu desespero No inferno de incertezas e temores, Eu da morte as angústias e os terrores Por ti mil vezes sem morrer tolero! Pelo céu, por teus olhos te assevero Que ferve esta alma em cândidos amores: Longe a riqueza, e os seus vãos favores, Quero o teu coração, mais nada quero.
 
VOZES (diversas) Bravo! Bravo!
 
BOCAGE (continuando arrebatado) Ah! não sejas também qual é comigo A cega divindade, a sorte dura, A varia deusa, que me nega abrigo! Tudo perdi; mas valha-me a ternura; Amor me valha, e pague-me contigo “Os roubos que me fez a má ventura!”
 
(Grande explosão de aplausos)
 
SEGUNDO E TERCEIRO POETAS Bravo! bravo, Bocage.
 
PRIMEIRO POETA Inimitável!
 
TERCEIRO POETA Uma cópia!
 
DIFERENTES VOZES (em torno de Bocage) Uma cópia! uma cópia.
 
COMENDADOR (junto a Compadre Amâncio) Gertrúria! Gertrudes! — Dava uma moeda de ouro só por uma cópia deste soneto.
 
COMPADRE AMÂNCIO Uma moeda!... É deveras?
 
COMENDADOR Deveras.
 
COMPADRE AMÂNCIO Aonde lhe hei de levar? 
 
(Comendador diz-lhe ao ouvido. — Misturam-se os grupos, continuando todos a felicitar Bocage)
 
MORGADO (ao Comendador) Quer dar uma moeda de ouro por uma cópia daquilo! Para quê?
 
COMENDADOR O Sr. Morgado tem os seus segredos... Eu tenho os meus!
 
PRIMEIRO POETA (a Bocage) Está aqui um amigo que nos convida a todos para o Izidro à meia noite.
 
BOCAGE (rindo) Vem a propósito a ceia... para servir de jantar!
 
(Ouvem-se os clarins e tambores dos pretos, que logo se afastam)
 
VOZES As charamelas! As charamelas!
 
(Corre tudo. — Neste movimento Bocage fica um pouco isolado. Compadre Amâncio aproveita a ocasião e aproxima-se-lhe)
 
COMPADRE AMÂNCIO (tomando-o de parte) Senhor Bocage!
 
BOCAGE (satisfeito do triunfo) Também por cá, mestre?
 
COMPADRE AMÂNCIO Venho aqui pedir-lhe um favor, que é quase uma esmola... O Sr. Bocage bem me podia remediar a minha necessidade!
 
BOCAGE Diga, mestre!
 
COMPADRE AMÂNCIO Um ginja quer cópia daqueles versos que recitou ainda agora, e dá por ela uma moeda de ouro... (Instando) Podíamos repartir ao meio...
 
BOCAGE (atalhando) Fique-se aí, ou estraga o negócio. — Amanhã lhe dou a cópia... se me lembrar ainda. E guarde para si o que lhe ofereceram. O senhor mestre pode vender barbas e sonetos, se quiser... (Compadre Amâncio desfaz-se em agradecimentos) A lira de Bocage ninguém a paga!
 
(Repiques, foguetes ao longe. Aflui o povo. Está a festa no auge da animação)
 
OS POETAS Mote, mote... Minhas senhoras, venha mote!
 
 
 
ATO III Em janeiro de 1786. Sala em casa de Manuel Simões. Mobília dos meados do século XVIII.
 
CENA I D. Felícia, D. Maria Joana e Maria Gertrudes (em trajo de passeio).
 
D. FELÍCIA (a D. Maria Joana) Pois muito bem, sobrinha. Trouxe já o meu escudeiro de propósito. — Aproveito a ocasião para ir à festa de São Domingos. Prega hoje o Padre Mestre fr. Joaquim do Rosário... Sabe? o Padre Mestre fr. Joaquim, que vai às nossas assembleias, e canta à viola francesa “De saudades morrerei,” com tantos requebros, que é mesmo uma suspensão?
 
D. MARIA JOANA Sei. Pode ir descansada à sua festa. — Provavelmente preciso demorar-me com o Sr. Manuel Simões, visto que em resultado de conselho seu lhe entreguei por uns meses, como precisava, a administração da minha casa.
 
D. FELÍCIA Não se arrependa. Honrado até ali. Depois que ele me administra... por obséquio, já se vê... é outra coisa. A minha pena é não lhe ter pedido há mais tempo. Sermões não faltam, é verdade... o dinheiro espremido, que nem que fosse dele... mas pronto sempre, e incapaz de arredar um fio!
 
D. MARIA JOANA Acredito. — Tinha necessidade de descanso. Passei o verão no campo, e nada examinei ainda... Parece-me que é tempo. — Já lhe mandou recado?
 
D. FELÍCIA Está lá em baixo nos armazéns. Não tarda. — E foi só por isso que veio?... Ai! sobrinha! não faz ideia que mal me sinto dos meus histéricos vendo tratar com tanto afinco dessas coisas uma pessoa da sua idade, e no seu caso... com tantos vínculos... com...
 
D. MARIA JOANA Por isso mesmo!
 
D. FELÍCIA Enfim, a sobrinha gosta de se entreter em negócios!... Cá por mim... abrenuntio!... Negócios, deixo-os a quem toca. Não são para senhoras da nossa jerarquia!... (Movimento de D. Maria Joana) Não digo nada, não digo nada... A sobrinha é senhora das suas ações. — É uma conferência então? E há de ser longa!
 
D. MARIA JOANA Não se apresse, minha tia. Tem tempo para tudo, já vê.
 
D. FELÍCIA Deixo-lhe a afilhada para a acompanhar. Venho logo buscá-la, e de caminho darei também duas palavras ao Sr. Manuel Simões.
 
D. MARIA JOANA (sorrindo-se e ameigando-a) E dizia que era inimiga de negócios!
 
D. FELÍCIA Jesus! Deus me defenda!... Ai! eu, são duas palavras só. Até logo. (Para sair, e voltando à afilhada) É verdade, Maria Gertrudes. Trazesme aí a minha água da Rainha de Hungria?
 
MARIA GERTRUDES (dando-lhe um pequeno frasco) Aqui está, madrinha!
 
D. FELÍCIA (recebendo-o, cheirando-o, e depois arrecadando-o) Não posso andar sem isto... por causa dos histéricos... Até logo, sobrinha.
 
 
CENA II D. Maria Joana e Maria Gertrudes.
 
D. MARIA JOANA (voltando, e olhando meio impaciente para as portas) Demora-se!... (Pausa) Está triste, Maria?
 
MARIA GERTRUDES Eu, minha senhora! Triste! Por quê?
 
D. MARIA JOANA Não tem razão, decerto. Minha tia não a pode trazer mais estimada, e merece-lho.
 
MARIA GERTRUDES A minha rica madrinha! Não sei como lhe hei de agradecer a criação que me deu... e o muito que me quer!...
 
D. MARIA JOANA Querendo lhe também, como faz. — Vamos, daí não procede o mal. Do que de ordinário mais inquieta na sua idade menos ainda. — Se não me engano, está em Lisboa um certo cadete... já poeta de fama... cada dia de maior fama, que... É certo?
 
MARIA GERTRUDES (atalhando, envergonhada) Oh! minha senhora!
 
D. MARIA JOANA Então que tem? Uma inclinação não está mal... Em se não faltando ao recato!... E ele mostra-se respeitoso, que é sempre bom indício... Todos os casamentos por aí principiam, e estou que não quer professar. — Que lhe diz o coração?
 
MARIA GERTRUDES (olhando receosa em redor) Nunca falei nisto, nem a minha madrinha!
 
D. MARIA JOANA Pudera! Falo-lhe eu, porque também lhe sou afeiçoada. Provavelmente não se entendia tão bem com minha tia.
 
MARIA GERTRUDES O coração... Nem, eu sei. — O Sr. Bocage diz-me coisas como ninguém... (inadvertidamente) mas o outro...
 
D. MARIA JOANA Ah!... Ah! temos outro!...
 
MARIA GERTRUDES (toda balbuciante) Eu disse outro? (Animando-se) Disse. Disse, porque é verdade... (Acudindo) A culpa não é minha!
 
D. MARIA JOANA Está visto. Pois nós temos culpa nunca dessas... complicações! — E o outro?
 
MARIA GERTRUDES (quase chorando) Foi um ingrato! Não posso, não devo mais lembrar-me dele...
 
D. MARIA JOANA Então daí estamos desenganadas. Naturalmente fica preferido o poeta.
 
MARIA GERTRUDES (hesitando) Ai! agora fica... (Mais decidida) Fica... mas...
 
D. MARIA JOANA Mas?... Suspeito desse mas.
 
MARIA GERTRUDES (meio impaciente) Tomara quem me ensinasse como se conhece um amor verdadeiro. (Achando uma ideia) Ah!... A Sra. D. Maria Joana há de saber... É viúva, sabe... Diz-me?
 
D. MARIA JOANA Eu!... (Enleada) Devia saber, devia... mas... (Consigo) Aqui estou eu também a cair nos mas...
 
MANUEL SIMÕES (dentro) Ainda agora me dizem!
 
D. MARIA JOANA (consigo)
 
Vem muito a propósito o Sr. Manuel Simões.
 
 
CENA III As ditas, Manuel Simões (da porta).
 
MANUEL SIMÕES Que vergonha!... que vergonha para esta casa!...
 
D. MARIA JOANA Que é isso, Sr. Manuel Simões?
 
MANUEL SIMÕES Fazerem esperar tanto tempo sua senhoria!... neste instante me deram o recado, aqueles brutos... Que há de dizer?... Há de dizer que nem sei tratar com pessoas de condição, eu, Manuel Simões, que toda a minha vida... com bem o digamos... fui favorecido da grandeza!... eu, um compadre de dois marqueses!... (Corrigindo-se) De dois... de um, que o outro...
 
D. MARIA JOANA O outro já lá vai. — Não se aflija com isso. Esperei, mas não me enfastiei. E bem era que esperasse, que o negócio é meu...
 
MANUEL SIMÕES Negócios! — É verdade... a Sra. morgada? Em seu nome me levaram o recado.
 
D. MARIA JOANA Vim com ela. Foi à festa a São Domingos. Volta logo.
 
MANUEL SIMÕES (admirado) Negócios! Vossa senhoria! Comigo!
 
D. MARIA JOANA Pois não me tomou a administração?
 
MANUEL SIMÕES Por pouco tempo, disse-lhe logo... Estou já tão sobrecarregado!... Depois, estas administrações... afastam-me do meu giro.
 
D. MARIA JOANA Justamente. Aí verá se precisamos falar. Para não o incomodar mais, e tomar a direção da casa, preciso examinar, preciso esclarecer-me... e agora ninguém melhor do que o Sr. Manuel Simões.
 
MANUEL SIMÕES (atônito) Ah!
 
D. MARIA JOANA Admira-se?
 
MANUEL SIMÕES Admiro, porque não é o costume. Admiro, mas aprovo. Quando quererá sua tia D. Felícia fazer o mesmo, ou pelo menos ouvir-me? Pois devia... devia, que se continua como vai, não sei como há de ser... Por mais que lhe peça, por mais que lhe diga, nada. Não quer saber senão de dinheiro... Como se o dinheiro se cavasse!... Quando lhe falo em contas, dão-lhe os seus histéricos, e... acabou-se, não é possível. — Os papéis estão todos em ordem no meu escritório. (Indica a porta respectiva) Não é casa costumada a donaires, mas se não a assusta...
 
D. MARIA JOANA (dirigindo-se à porta indicada) Pois a que vim eu?
 
MANUEL SIMÕES (reparando em Maria Gertrudes e com certo afeto) Ai! a menina Maria Gertrudes! Já aqui lhe mando minha irmã Mônica para lhe fazer companhia.
 
MARIA GERTRUDES Não é preciso... Vou eu mesmo procurá-la, se me dá licença.
 
MANUEL SIMÕES (como acima)
 
Bem sabe que é de casa! (Encaminha-se ao escritório. — Como lembrando-se de repente) Oh!... (Novamente às senhoras) Permitem? (Indo à porta) Levem lá para baixo essas peças de saragoça, que hão de ir amanhã para Abrantes... e arejem-me as baetas, não se esqueçam... (Voltando) Isto, se eu não determinar tudo!... 
 
(Inclinando-se e esperando à porta do escritório que D. Maria Joana passe. — Sai D. Maria Joana e Manuel Simões)
 
 
CENA IV Maria Gertrudes, pouco depois Francisco.
 
MARIA GERTRUDES Há de ser grande a demora e a espera. (Indo à janela) Não são como as nossas estas ruas da baixa. É um burburinho de gente sempre! 
 
(Chega-se à janela. — Entra Francisco. Vê-a e não pode reprimir um movimento de involuntário alvoroço)
 
FRANCISCO Ah!
 
MARIA GERTRUDES (voltando vivamente, vendo-o) Ah!
 
FRANCISCO (constrangido) Desculpe... Não a esperava aqui... Já me retiro.
 
MARIA GERTRUDES (do mesmo modo) Pode ter que fazer... Sou eu que vou procurar sua tia.
 
(Dão alguns passos. — Quando vão a afastar-se, param e voltam-se quase simultaneamente)
 
FRANCISCO (com vivacidade) Chamou?
 
MARIA GERTRUDES (de olhos no chão) Chamou?
 
FRANCISCO (depois de pausa) Nada.
 
MARIA GERTRUDES (idem) Nada.
 
FRANCISCO Adeus, menina Gertrudes!
 
MARIA GERTRUDES Adeus, Sr. Doutor. (A ponto de retirar-se. Francisco torna atrás)
 
FRANCISCO Quer-me ouvir um instante?
 
MARIA GERTRUDES O Sr. doutor está em sua casa! (De olhos baixos)
 
FRANCISCO (picado) Ah! é só por isso? E por que me não chama Francisco como dantes?
 
MARIA GERTRUDES Um doutor, já formado! — E por que me trata por menina? Não era o seu costume.
 
FRANCISCO São preceitos do seu poeta?
 
MARIA GERTRUDES Receia que o vão dizer à sua apaixonada?
 
FRANCISCO Uma apaixonada, eu!
 
MARIA GERTRUDES (com ímpeto) Há de negar que teve o outro dia uma briga por causa da Esteireira que representa no Salitre?
 
FRANCISCO Ia passando... É mulher... Insultavam-na... defendi-a.
 
MARIA GERTRUDES (com ressentida ironia) Deu agora em defender todas as mulheres! até mulheres que representam no teatro!... E o que ela lhe está obrigada... E o que fala no senhor!... no Sr. Doutor!... E o que...
 
FRANCISCO Mas se lhe digo...
 
MARIA GERTRUDES (atalhando) Não negue... sei tudo... Contou-me tudo a mulher de um torneiro, que tem o marido na cadeia, e vai lá às vezes às Portas da Cruz, falar à madrinha para peditórios... (Ele quer atalhar; ela não o deixa) Conhece também a tal criatura, a mulher do torneiro... ouviu-lho mesmo da sua boca... (Como acima) Veja se é verdade, ou não!
 
FRANCISCO (desesperado) Pois é verdade... será verdade... Porque não hei de estar apaixonado de uma cômica, se a menina não vê senão o seu novo arrojado.
 
MARIA GERTRUDES (quase chorando) Olhe? Confessa!
 
FRANCISCO Nem se atreve a dizer que não!
 
MARIA GERTRUDES Depois do que me tinha prometido!
 
FRANCISCO Depois do que me tinha protestado! — E eu que voltei ainda tão descansado para Coimbra, depois daquela véspera do Corpo de Deus o ano passado!... Estava entretido a responder a meu padrinho quando por ali andavam os poetas a versar... Nem dei por cousa nenhuma... Parti logo no dia seguinte de madrugada, e demorei-me depois até me doutorar... Andava cego... Mas apenas cheguei ultimamente a Lisboa, tive logo quem me abrisse os olhos.
 
MARIA GERTRUDES (vivamente) Quem?
 
FRANCISCO Quem? É verdade, já vê. — Quem? Uma pessoa de porte e de respeito... uma pessoa que não mente!... (Mostrando um papel) Lembra-se do soneto que fez o Bocage ao mote que lhe deu nessa noite? (Lendo) “Eu deliro, Gertrúria, eu desespero.” Gertrúria, Gertrudes! É evidente. (Lendo) “Pelo céu, por teus olhos te assevero Que ferve est'alma em cândidos amores.” Ferve-lhe a alma em amores... Escreve-se isto!... Querem-no mais claro?
 
MARIA GERTRUDES (picada) Porque me não há de o Sr. Bocage fazer versos, se o Sr. Doutor tem a sua apaixonada!
 
FRANCISCO Outra vez a apaixonada! Sim? Não tem mais que me dizer? (Sufocado) Pois eu estava morto por encontrá-la em liberdade, para lhe declarar... que está tudo acabado...
 
MARIA GERTRUDES Isso esperava eu!...
 
FRANCISCO (continuando)
 
E para lhe jurar, por alma de quem Deus tem, que haja o que houver...
 
MARIA GERTRUDES Não jure, Sr. Doutor, não se canse... Não é preciso... (Com dignidade) Sua tia está lá dentro, não? Sou pobre, sou humilde, mas não obrigo ninguém. Faço-lhe a vontade. (Sai)
 
 
CENA V
 
FRANCISCO (só) Viu-se nunca uma coisa assim! Ainda em cima! É ela que me faz a vontade!... (Passeando agitado) Quem me havia de dizer?... Com aqueles modos inocentes... Ah! mulheres, mulheres! O que são as mulheres!... Que hei de agora fazer? Queria-lhe mais que à vida, mas humilhar-me, não... Embarco... é o verdadeiro... Embarco... vou para longe. Tomara eu uma vida em que nem ouvisse falar de mulheres... Meu pai não consente de certo... Ah!... Meu padrinho... Vou hoje mesmo falar a meu padrinho para que me alcance...
 
 
CENA VI Francisco e Manuel Simões.
 
MANUEL SIMÕES (à porta do escritório) Falta a escritura do arrendamento da Carvoíça. Tenho-a na carteira do armazém... Trago-a já.
 
FRANCISCO (correndo ao pai) Meu pai, quer-me ouvir.
 
MANUEL SIMÕES (complacente) Ai! é o Sr. doutor... Deixa-me que estou com pressa.
 
FRANCISCO São duas palavras. Pensei melhor. Escusa de falar à Sra. D. Felícia... Não caso já com a afilhada.
 
MANUEL SIMÕES (indignado e atônito) Que é isto! Então assim se fazem e se desfazem essas coisas! “Deilhe palavra!... Já não caso!...” Assim zomba de seu pai, Sr. Francisco Pedro!... Cuida que por ter o grau, já não sou quem sou?... Desembargador do paço que fosses, não consentia que me faltasses ao respeito... Já não casas!... Agora?... Depois de te formares, que era só o que faltava!... Tinha que ver!... Costumei me a considerar a pequena como filha!... E não sabes também que já dei uns longes à morgada?... (Entra o comendador) Queres que passe por um catavento naquela casa, que por fim de contas é uma casa honrada!... Pensasses antes. — O dito, dito: casas... Queiras ou não queiras, hás de casar!
 
 
CENA VII Os ditos e o Comendador.
 
COMENDADOR (intervindo a Manuel Simões) Faça a vontade a seu filho. (A Francisco) Descanse que não casa.
 
MANUEL SIMÕES (furioso) Quem diz que não casa?... (Vendo o comendador, e moderando-se) Ah! é o Sr. comendador... Se fosse outro!... Isto são coisas de família... Vossa senhoria não sabe...
 
COMENDADOR Sei... e há de chegar-se à razão.
 
MANUEL SIMÕES Pois eu na minha casa, não posso...
 
COMENDADOR (tomando-o de parte. — Francisco afasta-se) O padre Inácio deseja que se não faça este casamento.
 
MANUEL SIMÕES (respeitosamente) O padre Inácio!
 
COMENDADOR Bem sabe o que lhe deve, e o que deve aos padres da Companhia!... O irmão Simões não quer desobedecer decerto... e fazia mal se desobedecesse, que o nome acabou, mas o poder hoje revive!
 
MANUEL SIMÕES (fitando-o aterrado) O Sr. comendador também é?... (O comendador faz-lhe sinal de silêncio: a meia voz) Os padres sabem que nunca desobedeço... Mas que interesse podem ter...
 
COMENDADOR Não é preciso que o saiba.
 
MANUEL SIMÕES E quem me assegura...
 
COMENDADOR Que o não engano? Veja este bilhete. (Dá-lhe)
 
MANUEL SIMÕES (lendo) “Faça quanto lhe disser o Sr. comendador de Monsarás. — Padre Inácio!” (Resignado) Não casará.
 
COMENDADOR Agradeça a seu pai, que por minha intercessão lhe faz o gosto.
 
MANUEL SIMÕES (consigo) Com esta gente nem pai se pode ser!...
 
FRANCISCO (humilde e tristemente) Meu pai...
 
MANUEL SIMÕES Está bom, está bom... O Sr. comendador deseja mais alguma coisa?
 
COMENDADOR Tenho ainda que lhe falar a respeito do negócio de um amigo meu, que há de aqui vir ter comigo. — Está ocupado agora?
 
MANUEL SIMÕES Estava ajustando umas contas, e confesso que muito desejo concluir.
 
COMENDADOR Conclua, conclua. Não tenho pressa, e o meu amigo ainda não chegou. Esperarei, se me permite.
 
MANUEL SIMÕES Está em sua casa. Dando-me licença, vou acabar. (Consigo) E o tempo que já tenho perdido!... (Como ocorrendo-lhe) Olha, Francisco... vai lá abaixo ao armazém... abre a carteira... aqui tens a chave... (Dálha) hás de achar ao canto da direita um maço pequeno, atado com um nastro encarnado. Manda-me aqui ao escritório, e a chave também... Podem vir de roda para não incomodar o Sr. comendador e o seu amigo, se já tiver chegado. (Francisco sai. Para o comendador) Aproveito o obséquio, e abreviarei o que poder.
 
 
CENA VIII Comendador só, pouco depois Morgado.
 
COMENDADOR (saboreando uma pitada) Bem diziam os escritores da gentilidade: estavam fora de si os deuses quando inventaram o homem, e mal recobraram o tino desataram a rir pondo os olhos na sua obra. Tudo nele é vão. Vana mortalitas, como lhe chamava Plinio, o historiador. Movem-se por um fio... (Sentando-se) Tudo está em saber-lho atar. (Entra o morgado esbaforido e derreado) Chega a propósito, morgado... ia-me tardando... Que é isso?... Teve alguma coisa?... Aposto que fez das suas... Não quer domar esse gênio!...
 
MORGADO (lisonjeado) Não posso. Muitas vezes quero ter mão em mim... mas qual... todo eu sou fogo.
 
COMENDADOR Deixe, deixe. “Casarás, amansarás!” — Foi briga, pendência, rixa, desafio?... Pois nem pensando em sua prima, deixa descansar a espada! Quer ser como Lúcio Licínio Dentato, que oito vezes em repto singular saiu vencedor à vista de dois exércitos?...
 
MORGADO (mais lisonjeado) Cada vez o vejo mais: o comendador é um amigo deveras... um amigo como há poucos...
 
COMENDADOR (sorrindo) Ainda agora dá por isso! — Homem, é boa a fama de valente para cativar as damas, mas nem tanto que assuste. Brigou?
 
MORGADO Nada. (Com fátua arrogância) Não acho já quem queira.
 
COMENDADOR (consigo) Miles gloriosus!
 
MORGADO Quê?
 
COMENDADOR Estou morto por saber o que teve... que o morgado não vinha no seu natural.
 
MORGADO Que havia de ser? — Esta manhã, para matar o tempo, fui até à feira das cavalgaduras... ali pela banda do nascente do passeio... Bem sabe o meu fraco. Estava na barraca dos juízes, segundo o costume... Tudo entendedores de mão cheia... Não sei como se passou o tempo... o caso é que deram dez horas... Era a hora a que tínhamos ajustado o nosso encontro aqui... Despedi-me à pressa... instaramme que ficasse... Se eles não podem passar sem mim! Foi preciso dizer-lhes que tinha que fazer na baixa, e era tarde já... O Domingos Sanches... aquele polvorista rico... Decerto conhece... (Gesto negativo do comendador) Ora, não conhece outra coisa!... O Domingos Sanches quis por força que viesse no seu lasão... um lasão melado... bonito animal... mas de maus sinais... gazio dos olhos, e bebendo em branco... “Não és boa peça, não,” disse eu logo comigo... “esperem que vão ver o que é o morgado da Gesteira a cavalo!...” (Entusiasmando-se) Estava tudo atento... Monto... como eu costumo montar... O cavalo, apenas me sente, começa a defender-se, e a negar-se... Eu aperto-lhe as esporas... Ele atira dois saltos encabritados... Eu cozo-me com a sela... Ele furta-me o corpo...
 
COMENDADOR (depois de breve pausa) E depois?
 
MORGADO Depois... caí!
 
COMENDADOR (erguendo-se, sem poder suster o riso) Caiu?... Cuidei... Caiu!...
 
MORGADO (mais entusiasmado) Mas como eu cai!... com todos os preceitos... Ficou tudo pasmado!
 
COMENDADOR Creio, creio... E o cavalo?
 
MORGADO Fugiu. — Para não perder tempo, vim às carreiras... aí tem a razão da demora.
 
COMENDADOR Bem empregada foi, visto que lhe proporcionou triunfo semelhante. — Tácito conta que Júlio Cesar, o fundador do império, também caiu de um cavalo... Provavelmente caiu assim.
 
MORGADO Favores, favores. — E a respeito do meu negócio? Falou já a Manuel Simões?
 
COMENDADOR A respeito do seu negócio ainda não. Está ajustando umas contas, não tarda. E primeiro temos nós que falar, porque enfim... (Sussurro na rua. — Aplicando o ouvido) Espere. Não ouve?
 
MORGADO Ouço. Parecem gritos de agarra! 
 
(Chegam ambos à janela do 2º plano, e debruçam-se para ver)
 
 
CENA IX Os ditos, Manuel Simões, e D. Maria Joana (à porta do escritório).
 
MANUEL SIMÕES Enganou-se o Francisco. Não era aquele o arrendamento... (Vai a avançar, e detém-se vendo os dois) Ai! que já me não lembrava.
 
D. MARIA JOANA (rapidamente) É o comendador Louzelos, e o morgado da Gesteira?
 
MANUEL SIMÕES São.
 
D. MARIA JOANA Quisera esquivar-me às suas importunidades.
 
MANUEL SIMÕES Não a viram. Pode esperar no escritório... O pior é que talvez tenha de me demorar um pouco. São horas de enfardar as fazendas, e...
 
D. MARIA JOANA
 
Vá, vá... Não tenho pressa. Espero.
 
MORGADO (atento para fora) Vê o que é?
 
COMENDADOR São os rapazes a correr... Ah! agora... É um cavalo solto... e é alazão... Será o tal?
 
MORGADO (afirmando-se) É, é!
 
MANUEL SIMÕES (rapidamente a Maria Joana) Se lhes não quer falar...
 
D. MARIA JOANA (fechando a porta) Até logo. (Fecha vivamente a porta)
 
 
CENA X Os ditos, menos D. Maria Joana.
 
MORGADO E como ele se leva! Não o apanham, não. — Já se não vê.
 
COMENDADOR (voltando também e rindo) Em vez de vir o Morgado atrás do cavalo, veio o cavalo atrás do Morgado. (Vendo Manuel Simões) Ah! Sr. Manuel Simões! Acabou já as suas contas?
 
MANUEL SIMÕES Ainda não. São horas de carregar as fazendas que hão de embarcar ao meio dia, e se eu não assisto... Não tendo vossa senhoria coisa de maior urgência... Na minha vida não se pode perder um instante!...
 
COMENDADOR Já lhe disse que o não quero estorvar. — Sei o que é a lida de uma casa, no ponto a que chegou a sua... (Intencionalmente) Vamos, que lhe não tem corrido mal... Passei ainda agora pela loja, e vi a azafama que por lá ia... Uma fileira de carros à porta, e um deitar abaixo de fazendas das prateleiras, que era um terramoto!
 
MANUEL SIMÕES (cobrindo o rosto com as mãos) Um terramoto!... Jesus! Santo nome de Jesus, Sr. Comendador! Pelo amor de Deus, não diga essa palavra diante de mim! Já lá vão trinta anos, e ainda me parece ver as torres da Sé a dançar!... E a minha casa!... E a minha pobre mulher, a primeira, que ali ficou!... E toda essa ira de Deus!... (Benzendo-se) Em nome do Padre, do Filho, e do Espírito Santo!... Todo eu me arrepio ainda.
 
COMENDADOR Tem razão... não direi mais... Mas o que lá vai, lá vai! E dê graça a Deus (intencionalmente) pelas boas proteções que tem tido!
 
MORGADO (cumprimentando obsequiosamente) Senhor Manuel Simões!
 
MANUEL SIMÕES (secamente) Viva, Sr. Morgado! (Ao Comendador) É o amigo que esperava?
 
COMENDADOR Em pessoa.
 
MANUEL SIMÕES (ao Comendador) Daqui a meia hora, o mais, estou às suas ordens.
 
COMENDADOR Não se apresse... Temos tempo.
 
 
CENA X Morgado e Comendador.
 
MORGADO Vê como ele me trata? Oh! que se não fosse...
 
COMENDADOR Quando estiver de posse da casa de Carregueiros, faça-lhe o mesmo.
 
MORGADO Oh! isso!... E há de ser quanto antes. Estou resolvido a acabar de vez com estas incertezas e duvidas de minha prima. Tenho o remédio na mão.
 
COMENDADOR (com o seu sorriso) Tem?... (Indo examinar a porta, e depois voltando) Ninguém na casa de fora, nem no corredor... Estamos sós e à vontade... Podemos conversar um pedaço. — Com quê... resolveu casar com sua prima quanto antes? Faz muito bem. Casar, e casar rico, era já conselho de Plauto. Nubere in divitias!
 
MORGADO Faço muito bem? É deveras a sua opinião, Comendador?
 
COMENDADOR Pois por que não há de ser?
 
MORGADO Quer que lhe diga uma coisa?
 
COMENDADOR Diga.
 
MORGADO Andei muito tempo desconfiado... Loucuras minhas, agora vejo!... Uma pessoa prudente e de juízo, como o comendador?...
 
COMENDADOR Diga sempre. De que andou desconfiado?
 
MORGADO Tinha-me querido parecer que se inclinava a galantear também minha prima.
 
COMENDADOR (tranquilamente) Não se enganou.
 
MORGADO (sobressaltado) Não me enganei?
 
COMENDADOR Sossegue. Passou-me isso pela cabeça na jornada em que a acompanhei de Paris... Mas refleti depois. — Sossegue. Já lá vai. — Escreveu-me um antigo conhecimento de Santa Clara.
 
MORGADO (malicioso) Ah! chegaram-lhe lembranças dos doces e da grade!
 
COMENDADOR Refleti... dês que o encontrei.
 
MORGADO (lisonjeado) Dês que me encontrou?
 
COMENDADOR E principalmente quando o conheci a fundo. Cada vez tenho por mais seguro que ninguém convém tanto a sua prima... nem a mim.
 
MORGADO (admirado) Nem ao Comendador?
 
COMENDADOR Refleti muito. — Sua prima está ainda no calor da mocidade, não lhe ficaram as melhores impressões do primeiro matrimônio, e há de querer indenizar-se... O segundo marido leva grande responsabilidade e grandes trabalhos!... Eu, o que preciso é descanso... Mesa substancial, o meu copo do Porto velho, os meus livros... e uma boa sege à boleia. A doirada mediania, de que fala Horácio Flaco, o Venusino. — Nisto assentei... e veja como o tenho ajudado.
 
MORGADO (convencido) Assim é, assim é. Realmente, não sei como lhe hei de pagar tantas obrigações!
 
COMENDADOR (sorrindo) Ah! isso não lhe dê cuidado. — O Bocage não o afronta já: está todo cativo da afilhada de D. Felícia... E a afilhada de D. Felícia... não lho prognostiquei?... deu já de mão ao filho do mercador. O tenente, de um momento para o outro... Desse depois se tratará, sendo preciso. — Bem vê como lhe abro praça, e o deixo só em campo tornando-lhe fácil a vitória. (Vai sentar-se)
 
MORGADO (recuando com uma espécie de terror) E tudo por amizade!
 
COMENDADOR A amizade é o meu fraco. Chegue-se para aqui. Sente-se. Vamos ao que importa. (O morgado senta-se-lhe ao pé) Manuel Simões não parece muito disposto a dar-lhe as cinquenta moedas de que me disse precisava infalivelmente.
 
MORGADO E preciso. Que faria eu diante de minha prima sem real?
 
COMENDADOR (preparando a caixa para tomar uma pitada) Mau era na verdade... Mas a Gesteira, que nunca chegou para muito, já não dá para mais... As vinte moedas, que lhe arranjei o ano passado, foram-se num instante à banca, e ao loto de Génova... Manuel Simões sabe tudo isto perfeitamente, vê-o afogado num dilúvio de hipotecas, e não é homem que deite o seu dinheiro pela janela fora... (Oferecendo-lhe a caixa) Toma?
 
MORGADO (erguendo-se consternado)
 
Mas então como há de ser? Se me mandou vir aqui só para me dizer isso!...
 
COMENDADOR Há de ter as cinquenta moedas; abono-o eu.
 
MORGADO (sentando se e abraçando-o) Isto é que é um amigo.
 
COMENDADOR (saboreando a pitada) Que rendimento terá a Sra. D. Maria Joana? Já averiguou?... Há de ter averiguado.
 
MORGADO Só da casa de Val-Moreno, que recebeu pela mãe, anda por cinco mil cruzados.
 
COMENDADOR (oferecendo-lhe tabaco) Serve-se? (Morgado tira maquinalmente uma pitada) É isso. — Quanto aos vínculos de Fresnos e Carregueiros... que lhe tocaram por parte do pai, e que o pai tinha herdado de seu irmão o Capitão-mor, marido de D. Felícia, que morreu sem filhos... quanto aos vínculos de Fresnos e de Carregueiros, deve andar cada um para mais ainda... principalmente o de Carregueiros.
 
MORGADO Não tem menos de quinze a dezesseis mil cruzados ao todo. Mas a que propósito...
 
COMENDADOR Cálculos necessários. Vinte moedas em junho passado, cinquenta agora, fazem setenta... que o morgado vem a dever-me.
 
MORGADO (como protestando) Devo, devo... Hei de dever, e hei de pagar... juro-lhe. Juro por... pela cruz da minha espada.
 
COMENDADOR Se pudesse jurar por outra coisa!
 
MORGADO (ofendido) Duvida?
 
COMENDADOR Há viver e morrer. — Homem, a comenda, bem sabe, apenas me chega para viver com decência... e parcimônia. — Suetônio, e outros autores, louvam a parcimônia como virtude; mas Terêncio tem que a dureza da vida não é para gente adiantada... e eu sou da opinião de Terêncio! — O morgado não há de querer que perca assim setenta moedas!
 
MORGADO (desconfiado) Deseja alguma segurança?
 
COMENDADOR (saboreando a pitada) Quase nada. O morgado faz-me uma escritura de dívida de trinta mil cruzados!... e sou eu que lhe hei de pôr a data!
 
MORGADO (erguendo-se de súbito e exclamando furioso) Trinta mil cruzados! Dois anos de rendimento da casa de minha prima!...
 
COMENDADOR (tranquilamente) Não grite. — Olhe se estivesse aí alguém perto?
 
MORGADO (contendo mais a indignação) Trinta mil cruzados para pagar setenta moedas!
 
COMENDADOR Quem lhe diz isso? Para deitar sege, e ter honradamente as comodidades que me faltam. — Ouça, e entre na razão. Desistindo de aspirar à mão de sua prima, renuncio àquela riqueza toda. Não tem valor isto? E faço mais; trabalho para desafogá-lo de rivais perigosos... perigosos, podemos dizê-lo entre nós. Não merecerão estes serviços trinta mil cruzados? Contou bem. São dois anos do rendimento de sua prima. Pode pagar em quatro. Fica-lhe ainda metade. Veja quem lho fazia por menos. — Não recuse, ou ponholhe quarenta por condição.
 
MORGADO Por condição?
 
COMENDADOR Por condição. E hei de obtê-la. — Há condições de muitas espécies. No código de Justiniano, e nos cinquenta livros dos Pandectas, que lhe servem de comentário...
 
MORGADO (atalhando-o desesperado) Quais Pandectas nem qual Justiniano! Esse pinhal de autores e de latins, é um pinhal da Azambuja. (Passeando agitado) Trinta mil cruzados!... Nada, não me deixo roubar... Tão tolo era eu que assinasse semelhante escritura!... Põem-me condições!... a mim!... Sempre quero ver!...
 
COMENDADOR (cruzando a perna tranquilamente e tirando um papel do bolso) Há de ver.
 
MORGADO Põem-me condições!... E dessas!... É muito caro o seu auxílio, comendador. Dispenso-o. Tenho outro modo de convencer minha prima, mais seguro e mais barato.
 
COMENDADOR Mais barato, duvido.
 
MORGADO Verá.
 
COMENDADOR O seu famoso segredo?
 
MORGADO Verá.
 
COMENDADOR (sossegadamente) Pois então experimente. (O morgado para e fita-o) Vá dizer a sua prima: “Prima, tenho aqui uma declaração, que me entregou nos últimos momentos a Simoa da Torre da Palma...” É provável que a traga no bolso... (O morgado leva vivamente a mão ao bolso, como para verificar se lá está o papel indicado) Traz, descanse!...
 
MORGADO (mais tranquilo) Conjecturas para pescar verdades... O ardil é velho.
 
COMENDADOR Quer saber o que diz a declaração? 
 
(Desdobra o papel que tem na mão. Estão ambos atentíssimos um para o outro. Descerra-se mansamente a porta do escritório, e D. Maria Joana aparece ali, a rápidos intervalos, observando)
 
 
CENA XII Os ditos e D. Maria Joana (meia oculta).
 
COMENDADOR (lendo) — “Por temor de Deus, e amor da verdade, eu Joaquina Simoa, familiar da casa da Torre da Palma, tendo pressentimento de que me chegará breve a hora de dar contas, e não querendo condenar a minha alma, declaro o seguinte, que nesta hora confirmo com juramento aos Santos Evangelhos, em presença do reverendo padre cura de Vaiamonte, e por sua exortação e conselho...” (O morgado, primeiro atônito, depois aterrado, tem tirado do bolso a outra declaração, como para comparar com o que ouve, e parecendo duvidar ainda) É exatamente isto?
 
MORGADO Ou o comendador tem parte com Satanás... ou é verdade o que dizem!
 
COMENDADOR (negligentemente) Então que dizem?
 
MORGADO Dizem que é um jesuíta... dos que não trazem roupeta.
 
COMENDADOR (severamente) Senhor morgado, não repita levianamente as maledicências do vulgo, que se pode arrepender! — Quer verificar o resto da declaração? Conta nela a Simoa: — como estando já separada do marido a morgada da Torre da Palma, a filha dela Simoa adoecera; — como o Capitão-mor, em casa de quem a mesma Simoa nascera e se criara, a reduzira a prometer-lhe que, se a criança morresse, lhe substituiria a filha dele e de D. Felícia, e faria passar por morta a herdeira, tudo isto para que os bens de Carregueiros passassem a varão; — como o escudeiro Luiz Manuel fora mandado administrar uma herdade da casa ao pé de Olivença, até à morte do Capitãomor, para que nem ele soubesse do segredo, de que a mulher ficava única depositaria; — finalmente como a Simoa, levada das obrigações que devia à casa do Capitão-mor, tivera a fraqueza de ceder, e criara como sua a filha de D. Felícia, até que esta a mandou buscar já crescida cuidando ser a afilhada. — Está tudo claramente explicado, e devidamente datado e assinado.
 
MORGADO (subjugado) Essa declaração passou das mãos da Simoa às minhas... nunca a mostrei... nunca a larguei... Como é possível sem ser por artes sobrenaturais...
 
COMENDADOR Tem inocências! — Dei uma volta a Vaiamonte. O cura é... É meu amigo. Não me podia negar a minuta do papel que ele mesmo escrevera. (Sentando-se de novo) Como íamos dizendo... O morgado vai a sua prima... mostra-lhe esse documento, e diz-lhe: “a suposta afilhada de sua tia D. Felícia é sua prima direita, e herdeira da casa de seu tio Capitão-mor. Este papel e este segredo valem dois terços da sua riqueza. É a única prova. Se quiser que tal prova desapareça, case comigo. Nada tenho de Adônis; sou um tanto néscio; falador insofrível e farfante rematado.” (Movimento do morgado) É tudo isto, é, morgado... e mais alguma coisa. (Como se prosseguisse o discurso do morgado) “Mas, — continuará, — rasgando este papel é como se lhe trouxesse em dote os vínculos de Fresnos e de Carregueiros.” O argumento conclui. Entra na ordem daqueles a que Cicero chamava: argumento premente. Ora como o tenente Gonçalo Mendo não é ainda coisa certa, e como ninguém perde de vontade dez mil cruzados de renda, sua prima fecha os olhos, convence-se, e o morgado casa. Com isso conta, e faz bem em contar. Nada mais sólido, mais engenhoso e brilhante. Que pena, se aparecesse esta minuta, e pela data se visse que o Sr. morgado tem há oito meses em seu poder a declaração, sem a entregar!... Era deitar tudo a perder! — Verdade, verdade; não vale quarenta mil cruzados?
 
MORGADO Quarenta agora!...Trinta!...Tinha dito trinta!...
 
COMENDADOR (abrindo a caixa) Tinha? Enganei-me. Quem se não engana? Lucio Floro, da nobre família dos Aneanos, conta que um engano decidiu uma batalha, e Sêneca chama-lhe alucinatio para mostrar a perturbação mental que o determina. (Voltando-se mesmo sentado, inclinando-se sobre a esquerda, como para evitar que a pitada que vai sorver lhe macule a tira) Foram quarenta, nem menos um real... E se hesita...
 
MORGADO (acudindo) Não hesito... Assino-lhe a escritura.
 
D. MARIA JOANA (que se adiantara sem que os dois, absorvidos na conversação a pressentissem, apresentando-se entre ambos com jovial placidez) E eu sirvo de testemunha!
 
COMENDADOR (erguendo-se sobressaltado) A Sra. D. Maria Joana Galvão aqui!
 
D. MARIA JOANA (com o mesmo modo prazenteiro) Por quê? Não sou interessada?
 
MORGADO (enleado) A prima, naturalmente, não sabe ainda...
 
D. MARIA JOANA (atalhando como transfigurada, com grave altivez e severa dignidade) Sei... Sei que o Sr. morgado da Gesteira me entrega imediatamente esse papel... e o Sr. comendador esse também!
 
 
CENA XIII Os ditos, Bocage e Gonçalo Mendo (aparecendo e detendo-se a observar).
 
MORGADO Há de perdoar, prima. Este papel foi-me confiado.
 
D. MARIA JOANA (como acima) De que modo correspondeu à confiança? — Esse papel é o alívio de uma saudade, a consolação de uma família, a restituição de um patrimônio... Esse papel é a consciência e o dever. Tem direito de o conservar nas suas mãos?
 
COMENDADOR (de parte ao morgado) Não ceda. Se fica ela com a prova, fica o morgado sem o casamento!
 
D. MARIA JOANA (sem os perder de vista) Senhor comendador, não se envileça mais... nem faça envilecer mais o Sr. morgado! A cegueira de um homem, que já não vive, privou sua própria filha do nome e dos bens que lhe pertenciam... O temor da hora extrema corrigiu essa injustiça... (Crescendo em indignação) Sobre este erro, que é para chorar, sobre este remorso, que devia ser sagrado, ajusta-se um pato infame... (Movimento dos dois) Infame, repito!... Um mercadeja a honra, outro a consciência!... Um sacrifica a natureza, outro o decoro!... Isso tudo que é senão valor para traficar, fazenda para vender?... Que importa a filha deserdada? Que importa a mulher ofendida? A mulher há de calar-se e consentir. É o seu interesse... Pensaram isso?... Pensaram, e nem lhes passou pelo rosto o pejo de o pensarem! É o mal das índoles corrompidas não admitirem sequer a existência de corações sãos e inteiros, para quem a satisfação do dever seja a primeira riqueza! Fizeram-me o ultraje de me julgar por si. Não o podiam imaginar maior! — Sr. morgado, esse papel!... Sr. comendador, esse papel!
 
MORGADO Se outra pessoa que não fosse a prima se atrevesse a dizer-me semelhantes coisas!...
 
(Bocage quer adiantar se; Gonçalo detém-no)
 
COMENDADOR Estes papéis pertencem-nos!
 
D. MARIA JOANA (mais exaltada) É a minha tia que pertencem. Sou eu que lhos quero entregar!... Sou eu que devo entregar-lhos!... Não me obriguem a...
 
GONÇALO (adiantando-se e interpondo-se com respeitosa serenidade) Perdoe, Sra. D. Maria Joana Galvão... Uma senhora da sua qualidade não pode entender-se com estes senhores.
 
BOCAGE (com ironia mal dissimulada) Estes senhores vão pôr já nas suas mãos os papéis que lhes não pertencem.
 
GONÇALO (com terrível frieza, crescendo contra o morgado, que recua na sua presença) O Sr. morgado não há de querer desatender sua prima! — O papel?
 
BOCAGE (do mesmo modo ao comendador)
 
O Sr. comendador de certo não falta ao respeito a uma dama. — O papel?
 
(O Morgado e o Comendador, transidos e sufocados, entregam os papéis aos homens que têm diante)
 
GONÇALO (entregando reverentemente o papel a D. Maria Joana) Aqui está.
 
BOCAGE (idem) Aqui está.
 
 
CENA XIV Os ditos e D. Felícia, entrando pelo braço de Manuel Simões, que vem sem chapéu.
 
MANUEL SIMÕES Isto é coisa que se creia! Obrigar-me a sair assim pela rua fora, eu, um compadre dos dois marqueses!
 
D. FELÍCIA Queria que entrasse pelos armazéns, ou desse o braço ao escudeiro? Viu-o na loja... chamei-o para me acompanhar. Vinha com o meu histérico, e já não podia...
 
D. MARIA JOANA (correndo a ela e atirando-se-lhe ao pescoço) Minha tia! minha tia! Mal sabe...
 
D. FELÍCIA Credo, sobrinha! Olhe que me desmancha o penteado. Isso são modos de uma senhora? — A afilhada não está na sua companhia?
 
MANUEL SIMÕES Está lá dentro com a mana Mônica.
 
D. MARIA JOANA (alvoroçada)
 
A sua... a minha... (Dando-lhe o braço do outro lado e levando-a consigo) Venha, venha, que a espera uma grande alegria.
 
D. FELÍCIA (toda turbada) Que dia de juízo é este! — Não me largue o braço que não estou boa, Sr. Manuel Simões.
 
(Saem. — D. Maria Joana puxando por D. Felícia, D. Felícia puxando por Manuel Simões)
 
 
CENA XV Bocage, Gonçalo, Comendador e Morgado.
 
(Pausa em que os quatro se medem reciprocamente)
 
GONÇALO (rindo, para Bocage) Conhece alguma coisa mais horrenda do que o Sr. morgado quando se faz amarelo?
 
BOCAGE Conheço: é o Sr. comendador quando se faz verde.
 
MORGADO Oh! que se eu me não contivesse... Mas contenho-me.
 
COMENDADOR (com o seu sorriso) Motejos sempre, Sr. Bocage! Plinio, o moço, celebra como coisa de muito apreço a graça das palavras!
 
BOCAGE (a Gonçalo) Está mais verde ainda... Foi a peçonha que se lhe derramou!
 
MORGADO Oh! que se eu me não contivesse!...
 
GONÇALO Já disse isso!
 
BOCAGE Que lhe parece, Sr. Gonçalo Mendo! Acabamos com esta raça daninha? (Indo à janela) A altura é sofrível. Dêmos um exemplo. — Deitemos isto à rua. (Indica os dois) Limpamos a cidade.
 
(Morgado recua aterrado)
 
COMENDADOR (sorrindo mais) Tem graça o Sr. Bocage, tem muita graça!
 
GONÇALO (fitando o comendador) É a praga de todos os tempos!... Deixe... Espera-os a pública justiça, que há de chegar... Em gente dessa não põem mão homens de bem. As víboras esmagam-se com o pé! (Indicando-lhes a porta, com um gesto a que os dois logo obedecem) Temos que falar com o dono da casa!
 
 
 
ATO IV Em casa da morgada D. Felícia, às Portas da Cruz. — Sala de visitas dando para outra. — Ao fundo a porta que abre sobre esta. — À esquerda a porta da antessala, fechada com reposteiro de pano azul, orlado de amarelo, com as armas da casa ao meio. — À direita duas portas. Para o fundo, à esquerda da porta de comunicação com a outra sala, um bufete com tinteiro, etc. — Trumeaux, cadeiras o canapés; a mobília branca e dourada de meias canas.
 
CENA I Ao levantar do pano, um grupo de homens à porta como vendo e admirando o que se passa na outra sala. — Ouve-se nesta uma rabeca terminando o minuete da corte. — Apenas acaba, muitas palmas em que toma parte o grupo da porta. Logo depois entram os personagens da cena seguinte, e a sala toma o aspeto de uma reunião ou assembleia do tempo. — As damas veem sucessivamente sentar-se na ordem adiante designada. — Os homens ficam pela maior parte em pé diversamente grupados.
 
 
CENA II D. Felícia pelo braço do Comendador; sucessivamente D. Maria Joana, D. Maria Gertrudes, Morgado, Gonçalo Mendo, damas e cavalheiros convidados.
 
D. FELÍCIA (para fora) Não o faz melhor o próprio Dupré!... Admirável!... Divino!... Uma suspensão!... (Ao comendador) Ninguém dança o minuete da corte como o Sr. Tomás Xavier... Uma gravidade... um garbo!... Viu, aquele rasgado das cortesias?
 
COMENDADOR E a Sra. D. Angélica?... Uma majestade... um donaire!
 
D. FELÍCIA. É o par mais completo!... (Procurando com os olhos em redor) Maria?... A minha filha?...
 
MARIA GERTRUDES Estou aqui, minha mãe!
 
D. FELÍCIA (sentando-se) Isso... Bem ao pé de mim, filha. (Ao comendador) Não repare... Não me canso de repetir este nome de filha... Tinha-o quase desaprendido!... Ainda o não creio... Ainda me parece tudo um sonho... Foi milagre, Sr. comendador, não foi?
 
COMENDADOR Com razão simbolizaram os doutos e discretos o maternal afeto na ave chamada pelicano, figurando-a o dar-se a morte para dar vida aos filhos. (Continua como conversando)
 
GONÇALO (dando o braço a D. Maria Joana)
 
Se sua tia soubesse com quem desafoga aqueles enlevos!
 
D. MARIA JOANA E para que o há de saber? Mais lhe vale ignorar sempre semelhantes vilanias. (Sentando-se) Foi meu cúmplice no cumprimento do dever. Seja-o no segredo dessas iniquidades. — É dever também.
 
GONÇALO A que não me obrigará com a perspectiva de tal cumplicidade? — Cúmplice!... Mediu bem a palavra?
 
D. MARIA JOANA (graciosamente) Medi. 
 
(Continuam conversando)
 
(Entra Francisco, como procurando alguém. Vê D. Maria Gertrudes, e vai tristemente encostar-se ao trumeau fronteiro)
 
 
CENA III Os ditos e Francisco.
 
D. FELÍCIA (beijando D. Maria) A minha filha!... Bem parecia que me adivinhava o coração!... (Vendo Francisco) Sr. Dr. Francisco Pedro, seu pai está na roda do isque?... Estas modas novas de Inglaterra fazem os homens bem pouco sociáveis!
 
FRANCISCO (com melancólica resignação) Não, minha senhora... Não é homem de modas, meu pai. — Creio que o vi ao pé do padre procurador de São Vicente.
 
D. FELÍCIA Ai! se ele se fica a ouvir as histórias que o Sr. D. Frei Caetano conta às meninas, não sai de lá tão depressa... (Abanando-se) Por que não nos tem aparecido, Sr. morgado da Gesteira?
 
(Acham-se todos dispostos como segue: D. Felícia num canapé, tendo ao lado D. Maria Gertrudes em cadeira. — Em outro canapé, defronte, D. Maria Joana, e Gonçalo Mendo próximo, em pé. — O Comendador, que passou à extremidade, sentado conversando com uma dama. Junto deste o morgado em pé. — Do mesmo lado, encostado ao trumeau, Francisco Pedro extático para D. Maria Gertrudes, que não ousa levantar os olhos para ele)
 
MORGADO Não tenho tido mãos a medir, Sra. D. Felícia, não tenho tido mãos a medir... Fui passar quatro dias ao pé da Arrabida... Não me deixava um amigo, homem poderoso, que tenho para aqueles sítios... Tudo por causa de uma caçada de javardos... Sem mim não se podia fazer... Fui eu que dispus os emprazadores. Fui eu que dirigi os couteiros. Fui eu que fiz chapear os cavalos por causa dos estrepes, e meter-lhes as sapatilhas e peitorais de mato como é indispensável. Fui eu que determinei a calcada... Finalmente, bateram-se duas moitas, e trouxemos nem menos de seis rezes grandes, uma cerva, dois vareiros e três javardos... Só eu à minha parte, a tiro e à faca, matei sete.
 
COMENDADOR (sorrindo) Trouxeram seis, e matou sete!
 
MORGADO É verdade. Perdeu-se um bique enorme... Sumiu-se no brejo que não foi possível achá-lo.
 
COMENDADOR Fez tudo o morgado. E os outros caçadores?
 
MORGADO (ao comendador) Admiraram. (A D. Felícia) Antes de ontem passei a tarde numa academia de espada... (Ao comendador) em casa de mestre Estevão da rua das Hortas... (À companhia) Ia lá um genovês de quem se diziam maravilhas. E com efeito é homem desembaraçado na arte. Tirou a melhor de quantos contenderam. Eu estava ali a ver, e não queria assim sem mais nem menos entrar em assalto com um estrangeiro, que não sabe a gente quem é... Mas os amigos, que me tinham levado ali... provavelmente já de propósito... começam a dizer-me: “Sr. morgado, isto é uma vergonha para o reino!... Sr. morgado, só vossa senhoria pode desafrontar a nação!... Sr. morgado, isto são pontos de honra!...” Atacaram-me pelo meu fraco... Não pude resistir... (Fazendo menção de despir) Largo o Josezinho... pego na espada... coloco-me no reto... Ao terceiro passe, o genovês tira-me de quarta a fundo... Paro de forte contra forte!... Faço um prendimento rápido... Estava desarmado o homem! (Gonçalo sorri) Não é por me gabar: confessou ele mesmo que nunca vira pulso tão rijo, nem uma agilidade assim!
 
GONÇALO (com obsequiosidade irônica) Estava em boas mãos... a honra nacional!
 
MORGADO (secamente) Favores! (Continuando) Ontem fui a uma corrida de pombos a Carnide. (Negligentemente) Não enfiei senão cinco. Deram-me para correr um cavalo quase serril... E era à gineta, que se fosse à brida!... Hoje estava convidado para jantar em casa de um desembargador da Casa da Suplicação, meu amigo de tu. Chegou-lhe um cozinheiro de França, que faz na perfeição a sopa de natas e as tortas de espargos. — O meu amigo, sabendo como sou entendedor, fazia empenho no meu voto. — É também tarde de ópera na Rua dos Condes. Representam uma coisa italiana que se chama... que se chama...
 
COMENDADOR Il Mercato di Malmantile... Uma ópera nova.
 
MORGADO Creio que sim. A estas primeiras representações nunca falto.
 
D. FELÍCIA E não foi? Um peralta de quarto voto, como o Sr. morgado!
 
MORGADO Não fui... só para não faltar aqui logo no princípio, e vir aos pés da Sra. morgada!
 
D. FELÍCIA Já vejo que me queixei sem razão. Uma pessoa como o Sr. morgado nunca é senhora de si. (Ao comendador) E que tal é a ópera?
 
COMENDADOR Não são para mim semelhantes futilidades. Em coisas de teatro só acho sabor aos gregos e romanos. — Sabia o título da ópera nova, porque o vi na Gazeta de terça feira. Aqui a trago eu. (Tira do bolso uma folha impressa, em papel pardo, em quarto pequeno)
 
D. MARIA JOANA A ópera nova?
 
COMENDADOR Não, minha senhora... a Gazeta. Já se sabe a razão por que o eleitor de Saxônia toma parte tão ativa na liga germânica. Eu profetizei-o sempre!
 
D. FELÍCIA Não gosta do nosso teatro? Não tem razão. Queria que visse aquela peça intitulada... As lágrimas da beleza são as armas que mais vencem... que se representou o ano passado no Bairro Alto... Faz chorar as pedras... E já não é o que era, aquela casa. Viu, sobrinha?
 
D. MARIA JOANA (que conversava com Gonçalo) Não vi, minha tia.
 
D. FELÍCIA Em França também há teatros e peças bonitas? Se há de haver! Tem gracioso em todas, como cá? E mágicas?
 
D. MARIA JOANA Há de tudo, e com abundância. — Para mim nunca achei autor que me deleitasse como um chamado Molière. Não é dos modernos, nem está agora em voga; mas escreveu comédias, que ainda não li outras de igual verdade... duas sobre tudo... o Tartufo... Não conhece o Tartufo Sr. comendador?
 
COMENDADOR (um pouco turbado) Não conheço senão os antigos... Terêncio, Plauto, Aristófanes...
 
D. MARIA JOANA Que pena! Pois é excelente comédia o Tartufo... E acho também um sainete particular ao Importuno... O Sr. morgado da Gesteira devia dar uns anos de folga à montaria, ou à esgrima, ou à gastronomia, e aprender o francês... só para ler o Importuno!... Estou que havia de gostar.
 
D. FELÍCIA (que a ouvia admirada) Vês, filha, que de coisas se sabem lá por fora?
 
MORGADO (a D. Maria Joana) Os homens da minha condição não perdem o seu tempo com...
 
D. MARIA JOANA (atalhando ironicamente) Com um insignificante como Molière. Acho-lhe razão.
 
D. FELÍCIA Em óperas, vi eu já o que se pode ver. Quem assistiu em Queluz à ópera da Galateia!... Eram os anos do príncipe D. José, e estavam para se ajustar as pazes com a Espanha... Quem assistiu a uma coisa daquelas...
 
D. MARIA JOANA Ah! esteve no teatro da corte?
 
D. FELÍCIA (hesitando um pouco) Estive... alguma coisa de longe... Não era onde devia estar... mas estive... Alcancei entrada pelo Sr. marquês de Marialva, que esse sabe dar estimação a quem a merece... Estive... Por sinal fui achar entre as açafatas a mulher daquele da alfandega... que se não sabe de onde lhe veio o dom... Não tem senão um criado de almofada... e quando lhe vão visitas, chama pelo nome e sobrenome o criado de porta abaixo, que não há outro na casa, para figurar de escudeiro... Estava lá, estava ali, ela, em quanto pessoas que sempre se trataram à lei da nobreza... Açafata aquilo!... Não foi senão por empenho do Estácio, o bobo do paço, algum dia que teve a fortuna de fazer rir Suas Majestades... Aquilo açafata!... Ai!... Ai!... Maria, filha... a água de Melissa... depressa!...
 
D. MARIA JOANA E D. MARIA GERTRUDES (erguendo-se como para socorrê-la) Tem alguma coisa?
 
D. FELÍCIA Não é nada... o meu histérico!...
 
D. MARIA JOANA (ameigando-a) Passou?... Passou... (Voltando a sentar-se) E a Galateia? D. FELÍCIA Isso sim! — A Galateia, de Metastário, com música do Antônio da Silva... a orquestra dirigida pelo João Cordeiro... tudo professores da real capela!... Pois os cantores!... Vindos de Itália de propósito... o Romanini, o Violani... o Violani principalmente... Umas volatas... uns gorjeios... uma... uma suspensão!... Não espero tornar a ouvir cantar assim... E depois o baile de Alberti! — E as pessoas reais!... E toda aquela corte... Não se via senão sedas, veludos e ouro!... E que telas, que pinturas, que lustres!... Teatro aquele! Ópera aquilo!... o mais...
 
 
CENA IV Entra um escudeiro velho e dirige-se respeitosamente a D. Felícia.
 
D. FELÍCIA Que quer, João Rodrigues? (A D. Maria Gertrudes) — São já sete horas?
 
D. MARIA GERTRUDES (distraída, e sem levantar os olhos) São. — Hão de ser.
 
D. FELÍCIA (vivamente) Que tens?... Triste agora!
 
D. MARIA GERTRUDES (constrangendo-se) Triste, eu? — Nunca estive tão alegre!...
 
(O escudeiro diz algumas palavras em voz baixa a D. Felícia)
 
D. FELÍCIA (ao escudeiro) Já sei, já sei. Ponha a banca e as urnas na outra sala. (Levanta-se, e todos. Aos circunstantes) São horas do nosso chá. (Indo a uma das damas presentes) A menina Escolástica há de nos cantar depois aquela modinha brasileira com primeiras e segundas... tão linda, tão linda... uma suspensão mesmo!... Aquela... Recorda-se?... (Achando) Ah! “Os Melindres da Sinhá!” Canta, riquinha, sim?
 
D. MARIA JOANA (a Gonçalo) Se não estiver com a rouquidão do costume.
 
GONÇALO Está decerto, em quanto não chegar o seu tudo.
 
D. FELÍCIA (a outra) A Sra. D. Eufrásia das Neves faz a segunda e o Sr. D. Frei Caetano acompanha-as ao cravo... (A uma dama) Ali onde o vê, o meu cravo foi o primeiro cravo de martelos que veio a Lisboa... já depois da guerra de 62, creio... Mandou-o vir Sua Alteza o Sr. conde de Lipe, que era grande tocador, e muito divertido. (A Gonçalo Mendo) Lembra-se da guerra de 62?...
 
GONÇALO Uma guerra que não passou do princípio?
 
D. FELÍCIA Desculpe... Não pode lembrar-se... Tive um primo nos reais voluntários... foi morrer à Índia. A propósito, o nosso cadete? O seu amigo Bocage demora-se... Estou vendo que nos falta hoje!... Logo hoje que não veio outro, e estão cá tantas pessoas para o ouvir!...
 
GONÇALO Não falta. (Em voz baixa) Mas pelo amor de Deus, Sra. morgada, não lhe diga isso...
 
D. FELÍCIA Isso o quê?
 
GONÇALO Que lhe faz falta por não ter outro. É capaz de se declarar mudo... se não fizer pior!
 
D. FELÍCIA Sempre lhe digo que tem um tal gênio, o cadetinho!
 
GONÇALO Desculpe-o. Não é poeta como os outros.
 
D. FELÍCIA Fazem-se sempre assim. Em ganhando fama!... (Como em confidência ao comendador, que veio dar-lhe o braço) É a novidade, que eu cá para mim acho mais chiste ao padre Braz... e mesmo ao Caldas.
 
COMENDADOR Pois tem dúvida! — Chamarem àquilo poeta!...
 
D. FELÍCIA Ai! nem tanto!... (Saem)
 
(Vão saindo todos. Fica em último lugar Gonçalo Mendo com D. Maria Joana pelo braço)
 
GONÇALO (em quanto os outros saem) Que me diz às nossas assembleias? Francamente, lembra-se com pena do seu Paris?
 
D. MARIA JOANA Pensa que não há ridículos também? Não tenho pena! Vaidades? Olhe a luta de Marmontel e do abade Arnaud por causa de Gluck e do Orlando. Vícios? Olhe o processo do cardeal de Rohan o ano passado, a prisão da condessa de la Mohe, e as negras maquinações de Cagliostro!... Se visse o que de lá me escrevem!
 
GONÇALO Deveras; não lhe dão saudades?
 
D. MARIA JOANA (gentilmente) Cada vez menos.
 
GONÇALO (transportado) Oh!... Quando poderei eu ter esperanças?
 
D. MARIA JOANA (como acima) Não começou já?
 
 
CENA V Os ditos e Bocage.
 
GONÇALO (vendo Bocage) Ah!... aí chega o nosso poeta. Permite-me que lhe fale em quanto vão ao seu chá? (Conduzindo-a à porta da outra sala)
 
D. MARIA JOANA Permito que vá da minha parte agradecer-lhe.
 
CENA VI Gonçalo e Bocage.
 
BOCAGE Pelo que vejo parece-me que lhe posso dar os parabéns. — Pois dou, e de todo o coração. É mais do que formosa a Sra. D. Maria Joana... é mais do que discreta... é uma alma grande, dessas que é fortuna encontrar. Como ela se despojou facilmente e alegremente da maior parte dos bens, que desde pequena tinha como seus!
 
GONÇALO É o menos, isso. Era dever: bastava. Tem raras qualidades em tudo... por isso a adorava já de longe...
 
BOCAGE Ah! confessa?
 
GONÇALO Posso confessá-lo... agora.
 
BOCAGE Porque a adora... de perto. Foram então a propósito os parabéns!
 
GONÇALO Os parabéns, ainda não.
 
BOCAGE Mas não podem tardar.
 
GONÇALO Mais caso de parabéns é o seu. A transformação da menina da casa engrandece o objeto das suas predileções. Em vez da humilde afilhada, pobre e dependente, acha uma boa família e uma rica herdeira!
 
BOCAGE (despedidamente)
 
Por causa disso estive para não vir!
 
GONÇALO Por quê? Não lhe tem já amor? Bem me dizia então...
 
BOCAGE Dizia mal... O que lhe dizia não se entendia com esta!... Não lhe tenho já amor? Tenho. E bem deveras, e bem de dentro... De certo o primeiro da minha vida... e... quem sabe?... talvez o último! Mas o que provocou este amor desapareceu. Foi-se o que lho fazia grato, o que me fazia generoso. Foi-se-lhe com a condição, foi-se-lhe com a orfandade.
 
GONÇALO Se tem esse modo de encarar as coisas...
 
BOCAGE Poucos me hão de entender. Poucos me entendem com efeito. Mas entende-me o Sr. Gonçalo Mendo... Sei já que entende. — Rica! Rica? E eu que lhe levo em troca?... Dirão que lhe procuro a riqueza!... Dirão que fiz do afeto um pretexto, do carinho um degrau, da paixão uma usura!... “A poesia àquele serviu”, repetirá contente por aí a turba vilã dos malévolos e dos zoilos... Arrendou-a por contrato... pôs a lira a juros... vende mais caro o coração que as obras.” — Dirão isto, dirão... e Deus sabe o que mais... E o grande número crê... e não poucos aplaudem... — Vender-me, eu!... Eu, Bocage!... Vender o coração! vender a musa!... esta musa indômita e indomável!... Oh! basta que o suspeitem!
 
GONÇALO (calorosamente) Pois a tais considerações sacrifica a felicidade? Pois...
 
BOCAGE A felicidade?... Seria... Aqui pressinto que era... Mas o orgulho a sublevar-se-me de contínuo! — Resistiria a felicidade a semelhante procela? — Podia a donzelinha modesta ser a estrela polar do poeta sem graus nem haveres... Podia em quanto era o infortúnio... Deixou de ser a constelação melancólica das noites saudosas; fez-se o astro de ouro dos dias refulgentes!... Era... era a felicidade no amor casto, no puro enlevo... Veio a fatalidade, e levantou em seu lugar o ídolo das multidões. — Esse não pode ser o ídolo de Bocage!
 
GONÇALO Tudo exagera... tudo leva ao extremo. É de condição distinta. Casando com a herdeira, pode desafogadamente cultivar o talento, aproveitar o estro, e servir a pátria... O que recebe em fortuna, pagao em glória!
 
BOCAGE Bocage casar! Casar eu!... Curvar o colo a esse jugo!... roxear os pulsos com esses grilhões! Sujeitar-me a esse perene cativeiro!... Eu!... Que mal me conhece! — É pouco para mim o ar e o espaço... Toda a ideia de sujeição me oprime como as grades de um cárcere... Alexandre de Macedônia, no auge do poder, visitou em Corinho o filósofo que da miséria extrema fazia ofício e gala. — “Pede sem receio. Que queres de mim?” disse o grande conquistador. — “Que te afastes daí, para me não tirar o sol,” respondeu o festivo indigente. Tenho alguma coisa do espírito desse filósofo... Acima de todas as venturas ponho uma... a verdadeira, a maior, a superior, a única... a minha independência!
 
GONÇALO (severamente) Que quer então fazer? Desvalida ou abastada, a menina da Torre da Palma é uma flor de candura. — Quer-lhe inutilizar sem fito os breves anos juvenis?... Quer-lhe imolar a mocidade?... A quê?... Ainda há pouco estava aí um pobre moço, penando por ela que fazia dó... penando uma paixão sincera e sem egoísmo. Sabe quais são os intentos desse mancebo? Deixar o lar e a pátria... só para não vê-la indiferente!...
 
BOCAGE (arrebatado) Quem é?
 
GONÇALO Conhece-o já... É o filho de Manuel Simões, que se doutorou ultimamente. — É um rapaz honrado... é rico também... e começa uma carreira estimada. Podia fazê-la feliz... e fazia de certo. Com que direito a priva se não pode compensá-la? Julgaria ele destino invejável o que o Sr. Bocage reputa insuportável prisão!
 
BOCAGE (pensativo) E ela?
 
GONÇALO Ela, a pobre inocente, sabe lá! — Diga-me, o que quer fazer?
 
BOCAGE (pensativo) Não sei. (Reparando para dentro) É o morgado da Gesteira, e o comendador de Monsarás, que vejo na outra sala?
 
GONÇALO São.
 
BOCAGE Aqui? ambos!
 
GONÇALO Ambos. — A Sra. D. Maria Joana deseja formalmente que se não fale do que se passou com eles em casa do mercador. E tem razão. Impõe-lhe este dever a delicadeza. Não podemos publicar a parte vergonhosa, que tiveram no caso, sem dar ocasião a divulgarem eles a fraqueza do capitão-mor. — Isso quer evitar a Sra. D. Maria Joana por atenção à memória de seu tio. Calando nós, calam-se forçosamente os dois. Que estamos todos na resolução de nos calar, já o Comendador percebeu, e daí tiram ambos a audácia. — Compreende agora o nobre silêncio da Sra. D. Maria Joana, e a presença do Comendador e do Morgado?
 
BOCAGE Compreendo o silêncio: não compreendo a impudência. Esses homens não têm sentimentos!
 
GONÇALO Se tivessem sentimentos não faziam o que fazem. Ei-los aí.
 
BOCAGE Vamo-nos então, nós. Custa-me a conter.
 
 
CENA VII Os ditos, Comendador e Morgado.
 
(Gonçalo e Bocage vão a sair. Os dois veem entrando. Encontram-se)
 
COMENDADOR (indo prazenteiramente a Bocage, e oferecendo-lhe a mão) Oh! Sr. Bocage! Como vai?
 
BOCAGE (sem lhe dar a mão, passando) Vou para diante! (Sai com Gonçalo para a outra sala)
 
 
CENA VIII Comendador e o Morgado.
 
COMENDADOR (tirando a caixa e encolhendo os ombros) Mocidade imprudente!
 
MORGADO Vê, comendador? Não temesse eu que falassem, e saberiam...
 
COMENDADOR Não falam. Se o pudessem fazer, já o tinham feito.
 
MORGADO O que lhe invejo é o sossego.
 
COMENDADOR Claudiano diz: “O espírito do sábio é semelhante ao cume do Olimpo; fica tão superior aos ventos e às nuvens, que nunca as tempestades o inquietam.”
 
MORGADO Mas eu que não sou sábio... nem tenho pena... aqui estou agora... (Olhando em redor) Ninguém nos ouve... Aqui estou agora sem dinheiro, sem casamento, e sem esperanças.
 
COMENDADOR (saboreando a pitada) Sem esperanças!... Por quê? — Sua prima tem ainda a casa de Valmorel. Cinco mil cruzados de renda, creio que me disse... Não é o mesmo, seguramente... um terço apenas do que era... mas nas suas circunstâncias atuais... Pela minha parte sou justo. (Olhando em redor, em voz baixa) A escritura de dívida, não será já de trinta, será de dez mil cruzados. Dispenso a sege.
 
MORGADO Pois teima ainda! Não se desenganou com o desastre do outro dia?
 
COMENDADOR O outro dia... veja o que tirou das suas dúvidas e espalhafatos! Quintiliano tem por vergonha desesperar do possível. Eu nunca me desengano em quanto vejo remédio.
 
MORGADO Remédio! Mas que remédio? Não vê como o tenente anda todo derretido para minha prima? Não vê como ela o atende? E agora, de mais a mais, que está senhor de uma boa casa.
 
COMENDADOR Estranho-o. Pois é possível imaginar que pode alguém competir com o Morgado?
 
MORGADO Não digo isso...
 
COMENDADOR O tenente fica por minha conta. Tenho que lhe pagar uma dívida... e ao Bocage também. Nós sabemos esperar... e nada esquecemos. Não há inimigo pior do que o inimigo que espera e não se espera. Inexpectatus hostis, lhe chama Ovídio, Sulmonense. — Sua prima está já casada, porventura?
 
MORGADO Mas aquele ajuste que ela ouviu! a impressão que lhe ficou!
 
COMENDADOR Empregue também pela sua parte algum esforço. Não sejam tudo vozes vãs. — Se estivesse no seu lugar, disso mesmo faria um merecimento mais. Atribua-me toda a culpa. Indigne-se bem contra mim: não tem dúvida. Diga-lhe que foi a desesperação, o amor, o desejo de alcançar a sua mão. As damas raramente deixam de se convencer disso. Afirme-lhe que vive no meio de um incêndio... como a salamandra... Ainda que Gesnero assevera que a cinza de salamandra é remédio soberano, e daí se deva concluir que mal poderá viver no fogo o que se reduz a cinzas... Enfim pinte-lhe ao vivo as chamas em que se abrasa... (Enfastiado) Isso é com o Morgado, não é comigo. — Convém-lhe ou não lhe convém ainda o casamento?
 
MORGADO Se convém! O que eu não sei é como se há de agora estorvar o tenente!
 
COMENDADOR Sei eu. (Olhando para dentro) Acabou o chá. Aí vem todos outra vez. 
 
(Dar o braço a D. Felícia para a conduzir para o seu lugar)
 
 
CENA IX Os ditos, D. Felícia, D. Maria Joana, D. Maria Gertrudes, Bocage, Gonçalo, Francisco e convidados.
 
D. FELÍCIA Que pena ter enrouquecido a menina Escolástica! Também, havia de ir logo sentar-se ao pé do corredor... Não foi senão o ar da porta com o calor do chá... (À Dama) Quer a sua pelícia, minha joia? (Gesto negativo) Tomara que ouvissem!... Canta as modinhas brasileiras como ninguém... Tem uma graça naqueles tons menores!... É mesmo...
 
COMENDADOR (atalhando) Uma suspensão. — E é, na verdade, é.
 
GONÇALO (a D. Maria Joana) Não lhe dizia eu? Faltou-lhe o seu tudo.
 
D. MARIA JOANA Faltando-lhe... tudo, como havia de ter voz!
 
GONÇALO São os namorados mais extremosos! Ela, sangrou-se há tempos. Ele, foi logo procurar o cirurgião, e deu-lhe cinco moedas pela lanceta!
 
D. FELÍCIA Felizmente veio o Sr. Bocage. Não imagina como estamos impacientes por ouvi-lo. (Sentam-se. Tomam todos os seus anteriores lugares. Unicamente D. Maria Gertrudes passa à esquerda de sua mãe. Bocage fica em pé junto a D. Felícia e o Comendador em pé ao lado do Morgado, defronte) Aqui é melhor, não? O padre procurador não acaba com as suas histórias!...
 
BOCAGE Pedi já desculpa, Sra. morgada. Fui passar o dia ao Lumiar. Na volta demorei-me mais do que desejava no Campo Pequeno. Há touros amanhã.
 
GONÇALO No Campo Pequeno? Tinham-me dado ideias. É cavaleiro o Manuel dos Santos, não?
 
BOCAGE É. E o Romão a pé.
 
MORGADO (intrometendo-se) Tem disposições o Manuel dos Santos. Chama bem à estribeira; mas não tem pulso para o rojão, e à espada é fraco. O Romão com as farpas não vai mal. Se um dia me resolver...
 
BOCAGE (cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joana) A Sra. D. Maria Joana vai?
 
D. MARIA JOANA (que estava entretida) Como, Sr. Bocage? (Percebendo) Não vou. Confesso que não é dos divertimentos mais do meu gosto.
 
D. FELÍCIA Ouvi que se não correm touros em França. Naturalmente hão de dizer mal de nós por isso.
 
D. MARIA JOANA Nem todos. Ao conde de Saint-Germain, que os tinha visto em Espanha no tempo de Filipe V, ouvi eu que era apaixonadíssimo.
 
BOCAGE No tempo de Filipe V! Quantos anos tem hoje esse conde de Saint-Germain, e quantos tinha quando esteve em Espanha?
 
D. MARIA JOANA Esteve em Espanha e percorreu o mundo. O conde de Saint-Germain é um viajante como não há outro. Beijou a mão a Francisco I na véspera da batalha de Pavia; conheceu El-Rei D. Sebastião quando se preparava a expedição de África; e teve em Cuba amizade com Fernando Cortez antes de este ir conquistar o México.
 
BOCAGE (rindo) Parece tão convencida! Ninguém dirá que está gracejando.
 
D. MARIA JOANA Mas não estou.
 
BOCAGE (rindo) Há então em França Matusaléns ainda? Julgava perdida a espécie.
 
D. MARIA JOANA Um Matusalém! Na aparência não. Quem o vir dirá que tem a idade do Sr. Morgado, pouco mais ou menos... (Maliciosa) antes para menos que para mais.
 
MORGADO E conheceu El-Rei D. Sebastião! Essa agora!...
 
D. MARIA JOANA Diz ele. Pergunte ao Sr. Comendador, que o viu na embaixada, e lhe falou nas salas do meu contraparente D. Vicente de Sousa. É verdade, Sr. Comendador?
 
COMENDADOR É verdade. E viu-o toda a gente em Paris. O conde afirma que possui o elixir da imortalidade. Só assim. — O grande Raimundo Lúlio refere...
 
BOCAGE (cortando-lhe a palavra, a D. Maria Joana) E os parisienses acreditam isso?
 
D. MARIA JOANA Acreditam.
 
BOCAGE Falem-me então na credulidade portuguesa.
 
D. MARIA JOANA Duvidaram ao princípio. Agora vão-lho negar! O conde sabia os segredos de todos... Não admira, tendo vivido e viajado tanto!... Está lá, ainda creio... Se acaso se lembra de dar uma volta por Lisboa... Há de ser incomodo, um homem que está senhor dos segredos de toda a gente... Não lhe parece, Sr. Morgado?
 
MORGADO (balbuciante) Por mim...
 
D. FELÍCIA Coisas de estrangeiros! Eu, se tal visse, tinha o meu histérico, por força. Nome da Benta Hora! Credo!
 
BOCAGE E eu quisera encontrá-lo, para satisfazer uma curiosidade. Desejava perguntar-lhe... visto que tanto andou e tanto sabe... se alguma vez, nas suas longas peregrinações, encontrou figurão mais sem pejo... do que dois sujeitos do meu conhecimento.
 
COMENDADOR (baixo ao Morgado) Estão apostados a molestá-lo. Não sucumba.
 
MORGADO (idem) Vai ver. Deixe... Deixe que vai ver.
 
D. FELÍCIA (a Bocage) Queria encontrá-lo? Não diga isso. — Nestas conversas se vai o tempo, e nada se faz. — Sr. Bocage... Um improviso dos seus... Quem dá mote?... Dê mote, sobrinha!
 
MORGADO Versos a motes quem quer faz... Não tenho eu querido, senão... Versos a motes!... Sempre ouvi dizer que era o A B C... e está claro que é (sem achar saída), porque os versos com os motes e os motes com os versos... ou para falar mais claro, os versos sem os motes e os motes sem os versos...
 
COMENDADOR (sugerindo-lhe indiretamente a ideia) O mote com efeito é uma sentença, que serve de assunto, e põe a caminho o engenho. O principal está feito. O mais é ajustar palavras e combinar as rimas. Com algum exercício não é difícil!
 
BOCAGE (medindo-os admirado e retraído) Ah!
 
COMENDADOR (continuando) Mote querem alguns que venha do latim motus, que significa movimento. E bem se pode ter que assim é, porque do mote em verdade nasce o impulso que faz mover o estro...
 
MORGADO (atalhando) É o que eu queria dizer. O mote vem a ser tudo... Mais por aqui, mais por ali, é tudo o mote. — O mote é o assunto; não havendo mote não há assunto; e aí é que está! (Satisfeito de si e com extrema volubilidade) Fazer versos sem assunto não é para qualquer: tem de se tirar tudo da cabeça, assim de repente, do pé para a mão, sem mais nem mais. Também não sei porque se há de pedir mote. Quando uma pessoa monta a cavalo não precisa de mote para fazer os piafés, e as curvetas, e as balotadas, e as garupadas; nem tão pouco se dá mote quando qualquer mete mão à espada, e entra a executar batiduras, ligamentos, juntamentos, cambiamentos, tentamentos, e esquivamentos. Eis aí. Isto é que eu queria... Chegar um homem, não esperar por mais, nem esfregar a testa, nem pôr os olhos em alvo, bater as palmas e logo ali, zás... como quem deita um foguete de sete respostas!...
 
BOCAGE (atalhando e batendo as palmas) Lá vai!
 
COMENDADOR (sorrindo) Sem assunto?
 
BOCAGE Está aí defronte, o assunto. Famosa geração de faladores Consta que foi, Morgado, a origem tua, Que nem todos os cães, ladrando à lua, Tiveram que fazer com teus maiores: Um a língua ensinou dos palradores; Outro, o motu contínuo achou na sua; Outro, além de encovar toda uma rua, Açaimou numa junta a cem doutores: Teu avô, santanário venerando, Soube mais orações que mil beatas, Com reza impertinente os céus zangando: Teu pai foi um trovão de pataratas: Teu tio, o bacharel, morreu falando; Tu, falando sem tom, não morres — “matas”!
 
TODOS (aplaudindo) Bravo! bravo!
 
MORGADO (engasgado de raiva) Senhor Bocage!... Senhor Bocage!...
 
BOCAGE (fitando-o serenamente) Que é?...
 
COMENDADOR (com o seu sorriso, ao Morgado) Agasta-se? De quê? Não tem razão... São facecias inocentes, e muito graciosas na verdade!... (Gonçalo passa disfarçadamente para o lado de Bocage) Mais picantes ainda as fez Juvenal!... Se fosse verdadeiramente improviso, era deveras um primor... E não digo que não seja... Mas é fácil trazer estas coisas estudadas já... 
 
(Bocage estremece de indignação ante a contraditória perfídia. — Gonçalo que lhe está ao pé detém-no)
 
GONÇALO (baixo) Querem fazê-lo sair de si. Com algum fito é. Modere-se.
 
COMENDADOR (observando) Depois, os conceitos naturalmente andam preparados com antecedência.
 
BOCAGE (sem poder ter-se, batendo as palmas) Lá vai! — Sr. Comendador, permita-me descrever-lhe um certo individuo... do nosso conhecimento... à moda de Juvenal! Do Sena, que foi ver por seu desdouro, Um pedante voltou, de escassa fama, Que os livros cata, os cartapácios ama, E neles julga os anos um tesouro: Traz laivos de francês, arranha o mouro, Sabe que Deus em turco Alah se chama, Que no grego alfabeto o G é gama, Que taurus em latim quer dizer touro: Tem de velhos canhenhos chocho extrato; Abocanha talentos que não goza; Se rosna, prega unhadas como um gato: Achareis na pintura rigorosa Um fofo sabichão, posto em retrato, Que é nada em verso, quase nada é prosa!
 
(Impressão de assombramento. Ninguém ousa aplaudir. Segredam todos mutuamente)
 
COMENDADOR (parecendo satisfeitíssimo) Muito bem, muito bem, Sr. Bocage. Esse sim. A isso é que se chama responder aposité. (O escudeiro, vem apressadamente a D. Felícia, e falalhe em voz baixa) Retrato lhe chama, não? Vê-se que é: há de mostrarme o original. Mas cuidado, não o saiba ele!...
 
D. FELÍCIA (ao escudeiro) Que me diz! (Erguendo-se alvoroçada) Meus senhores, o Sr. marquês de Marialva está aí. 
 
(Levantam-se todos)
 
 
CENA IX Os ditos e Manuel Simões.
 
MANUEL SIMÕES (alvoroçado) O meu compadre! Está aí o meu compadre? (A Francisco) Olha que é o teu padrinho, Francisco.
 
D. FELÍCIA Valha-me Deus! Sem estar nada prevenido... Mande abrir já o portão, João Rodrigues. (O escudeiro sai vivamente) Querem fazer-me o favor de me acompanhar?...
 
MANUEL SIMÕES Vamos esperá-lo todos!
 
D. FELÍCIA Vamos receber sua excelência.
 
(Saem todos. Fica só o morgado passeando agitado, e o comendador observando-o)
 
 
CENA X Comendador e Morgado.
 
MORGADO (depois de os ver sair) Ter a confiança de me tratar por tu!... Desta vez faço uma falada!... Ambos... hão de ser ambos!... Fizeram bem em aproveitar a ocasião de se esgueirar.... Não podia já conter-me!... E agora...
 
COMENDADOR (tomando-lhe o braço) Deixe-se disso.
 
MORGADO (forcejando para se desembaraçar, e mais agitado)
 
Não me sustenha, comendador, não me sustenha!
 
COMENDADOR (largando-o) Aonde quer ir?
 
MORGADO Aonde quero ir? Boa pergunta! Aonde quero ir!... (Forcejando como antes) Não me sustenha... (Vendo que o não sustem, e hesitando) Quê?... (Em grandes passos) Não me sustenha... Quero dizer, sustenha-me, sustenha-me, senão vou fazer uma grande desgraça!...
 
COMENDADOR Acomode-se. Não ouviu quem vem aí?
 
MORGADO (estacando transido) São eles?
 
COMENDADOR Não, homem. Não sabe que é o marquês?
 
MORGADO Não são eles? (Recomeçando as bravatas) Pudera! Olhem se nos aparecem agora! Olhe lá se voltam senão no meio de toda essa gente!... Cobardes!
 
COMENDADOR Esteja quieto. Estamos aqui sós... e já nos conhecemos!
 
MORGADO Então isto há de ficar assim? — Não é senão o tenente que mete a caminho o Bocage para nos chasquear. Não o viu há pouco ir ter com ele? — Isto há de ficar assim!...
 
COMENDADOR (com o seu sorriso) Não lhe disse já que não... Andam a semear!... Deixe, que hão de colher!... Ouve? O marquês subiu já. Vamos também. 
 
(Dirigem-se à porta. Entra o escudeiro, corre o reposteiro, e coloca-se à umbreira. Os dois tomam também de uma e outra parte lugar à porta. — Entra o marquês, ao lado de D. Felícia, e seguido de toda a companhia anterior)
 
 
CENA XI Marquês, D. Felícia, D. Maria Joana, D. Maria Gertrudes, Manuel Simões, Francisco, Gonçalo, Bocage, Comendador, Morgado e convidados.
 
MARQUÊS Se soubesse que vinha incomodá-la, Sra. morgada...
 
D. FELÍCIA Incomodar-nos, vossa excelência! Estava bem longe de esperar tamanha honra, e por isso...
 
MARQUÊS Cheguei há pouco de Cintra, e achei em Belém uma carta de Martinho de Melo, que me obrigou a vir logo aqui. — Passei por sua casa, Simões... Disseram lá ao meu volantim, que tinha ido com seu filho de visita à Sra. morgada. — (A D. Felícia) Vim assim mesmo, com as minhas saragoças... Não esperava encontrar tão luzida companhia. — Como é caso de pressa não queria perder a ocasião.
 
MANUEL SIMÕES (sem perceber) Vossa excelência dignou-se passar por minha casa... é negócio de pressa...
 
MARQUÊS Um negócio com o meu afilhado... Onde está ele?
 
FRANCISCO (apresentando-se respeitoso) Meu padrinho!
 
MARQUÊS (em confidência)
 
Teu pai sempre o há de saber... e mais vale que seja agora, diante de mim. (Alto) A nau de viagem sai para a semana. Já vês que se não pode perder tempo.
 
MANUEL SIMÕES (atônito) A nau de viagem... o Francisco!...
 
D. FELÍCIA. O Sr. marquês de pé! (Oferecendo-lhe o canapé) Sr. marquês...
 
MARQUÊS Não me demoro... (Indicando a cadeira junto ao bufete) Prefiro aquela cadeira. Está ali um tinteiro, e há de ser preciso... (A Francisco) Fui eu mesmo falar a Martinho de Melo. Achei-o em boa ocasião. Serviume logo, sem objeções... que é raridade. Pediu-me só que lhe mandasse o nome por escrito... Não sei como... as minhas distrações do costume... passou-me de todo. Agora, à volta de Cintra, recebo uma carta dele, e dentro o decreto já assinado, dizendo-me que fora expedido com o nome em branco para não causar atraso, vista a proximidade da partida... Venho remediar o esquecimento. 
 
(Dirige-se à cadeira indicada, e senta-se. Sentam-se as damas)
 
MANUEL SIMÕES Mas, meu senhor... Vossa excelência foi falar ao ministro da marinha? Por causa de meu filho?... Traz-lhe um decreto!... Sou pai, Sr. marquês... não se há de estranhar... Um decreto de quê?
 
MARQUÊS De guarda marinha para Goa.
 
MANUEL SIMÕES (aterrado) Guarda marinha!... Para Goa!... quando eu pensava... quando esperava... E pediu meu filho semelhante coisa a vossa excelência... pediu-lho sem me dizer nada!
 
MARQUÊS Ponderei-lhe isso mesmo... aconselhei-o... Deu-me razões que me convenceram. Entendo que faz bem... As viagens são distrações poderosas... são convenientes à mocidade... Voltará quando for tempo... e espero que será breve... Se lhe não convier a vida do mar, dará baixa... Agora é bem que vá. — Simões seu filho está formado, não se lhe pode opor... Dê-lhe o seu consentimento. Peço-lhe que dê, e digo-lhe que o deve dar... (a Francisco) Apronta-te quanto antes. Embarcas para a semana.
 
D. MARIA GERTRUDES (sem poder já, levando a mão ao coração) Ai! Jesus!
 
D. FELÍCIA Que tens... que tens, Maria?... (Vendo-a debulhada em lágrimas) Ai! a minha filha... A água de Melissa... a água da Rainha de Hungria!... (Acodem todas as damas a socorrê-la) Não repare vossa excelência, Sr. marquês... é minha filha!
 
MARQUÊS (erguendo-se) Sei... sei já... É coisa de cuidado?
 
D. MARIA JOANA Não é nada. Um pequeno espasmo. Passa já.
 
GONÇALO (de parte a Bocage, indicando D. Maria Gertrudes) Vê?
 
(Bocage contempla-a meditativo)
 
D. MARIA GERTRUDES (com esforço) Não foi nada... Um afrontamento.
 
FELÍCIA O melhor é recolheres-te ao teu quarto. Queres?
 
D. MARIA GERTRUDES (vivamente) Não, não, minha mãe... Não é nada.
 
(Retomam todos os seus lugares. O marquês senta-se de novo)
 
MARQUÊS (a Manuel Simões) Então, Manuel Simões, consente?
 
MANUEL SIMÕES Que remédio... É desejo dele... e vossa excelência aprova.
 
MARQUÊS (tirando o decreto, desdobrando-o sobre a mesa, e tomando a pena) Vamos... é pôr o nome, e podemos dar os parabéns ao novo guarda marinha.
 
(Bocage passa lentamente por detrás de todos dirigindo-se ao bufete)
 
MANUEL SIMÕES (tristemente, ao filho) Sempre cuidei que te acharia ao pé de mim... para me fechar os olhos.
 
FRANCISCO (lançando-se-lhe comovido nos braços) Meu pai!
 
MARQUÊS (acabando de ler o decreto) “Samora Correia, em 31 de janeiro de 1786. Com a rubrica de Sua Majestade.” — Está em ordem. (Sem levantar os olhos) O nome todo?
 
BOCAGE (atrás do marquês) Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage!
 
(Espanto nos circunstantes)
 
MARQUÊS (erguendo atônito o rosto, e depondo a pena) Quê?
 
BOCAGE (mostrando Francisco nos braços do pai) Será ele que deva partir?
 
MARQUÊS Mas sabe por que o meu afilhado quer embarcar?
 
BOCAGE Vossa excelência deseja-o feliz?... Deseja... é o seu coração, e o seu costume. Permita-me que faça por um momento as suas vezes, e verá... (Indo ao grupo do pai e do filho) Desculpe, Sr. Manuel Simões. (Tomando Francisco pela mão, em voz baixa) Não viu já que o ama? (Indo a D. Maria Gertrudes, em voz baixa e rápida, indicando-lhe Francisco) Quer-lhe como ninguém. (Alto a D. Felícia) Sra. morgada da Torre da Palma, estou autorizado a pedir a mão de sua filha para o Sr. dr. Francisco Pedro Simões. 
 
(Atenção geral)
 
D. FELÍCIA (assombrada) A mão de minha filha... Se não fosse o respeito do Sr. marquês, tinha o meu histérico!... A mão de minha filha!... Desse modo!... tão de repente!... (Depois de breve pausa) O Sr. Manuel Simões é um homem honrado; estimo-o; sou-lhe obrigada, não nego... mas... mas ele bem sabe que a nossa jerarquia... 
 
(O marquês ergue-se. Erguem-se todos)
 
MARQUÊS (intervindo) Perdoe, Sra. morgada... O meu afilhado segue uma profissão nobre... Doutorou-se... poderá em breve alcançar algum despacho de Juiz de fora... Como seu padrinho tenho obrigação de lhe dar um presente de noivado. (Baixo) Falei já à rainha, minha senhora, a respeito da Sra. D. Felícia. — O presente que destino ao meu afilhado é um alvará de açafata para sua sogra.
 
D. FELÍCIA (encantada) Ai! Sr. marquês! Deveras? Filha, filha, a minha água da rainha de Hungria!...
 
MANUEL SIMÕES (baixo ao comendador em tom suplicante) Senhor comendador, posso dizer que sim ao casamento?
 
COMENDADOR Embarca o Bocage? (Gesto afirmativo de Manuel Simões) Pode.
 
MARQUÊS (prosseguindo a D. Felícia, mais baixo) Depois, Manuel Simões dá ao doutor quarenta mil cruzados. Excelente ocasião de restaurar a Torre da Palma, que o precisa. (A Manuel Simões) Não dá quarenta mil cruzados a seu filho, Simões?
 
MANUEL SIMÕES (no auge de alegria) Não, meu senhor. Dou sessenta.
 
MARQUÊS (baixo a D. Felícia) Por causa de sua filha, queria o meu afilhado embarcar! (Indicando Francisco e D. Maria Gertrudes) E veja... Terá coração para fazer dois desgraçados? (Alto) A Sra. morgada diz que sim.
 
FELÍCIA Basta ser vontade do Sr. marquês. (Consigo) Açafata do paço!
 
MARQUÊS (que passou a Bocage, em jovial confidência) Acertou, Sr. Manuel Maria.
 
BOCAGE Então ganhei o meu decreto.
 
MARQUÊS Insiste?
 
BOCAGE Espero só que vossa excelência me faça a honra de escrever o meu nome.
 
MARQUÊS (indo sentar-se ao bufete)
 
Veja bem. Pensou?
 
BOCAGE Pensei. Meu pai deixou-me a vocação livre. O mar é a minha vocação. (Dolorosamente) Se tivesse aqui um afeto, se pudesse haver esperança que me prendesse... Não tenho. Não há. E é justo. (Com profunda amargura) Nós os poetas cantamos tanto o amor, que o amor todo nos voa no canto!
 
MORGADO (baixo ao comendador) Que lhe parece? vai para Goa..
 
COMENDADOR Em Goa temos gente também.
 
MORGADO E se voltar?
 
COMENDADOR Está cá o Santo Ofício.
 
MARQUÊS (dispondo-se a escrever) Repita-me o nome por inteiro... Bem sabe a triste memória que tenho... Está a tempo ainda. Considere.
 
BOCAGE (decidido) Manuel Maria Barbosa Hedois de Bocage. (Marquês escreve lentamente) Meu avô, Gil de Bocage, foi coronel do mar. Herdei talvez a inclinação com o sangue.
 
FRANCISCO (indo a Bocage) Não o conhecia ainda... (Intencionalmente) Ninguém agora o admira mais.
 
GONÇALO (apertando-lhe a mão) Regozije-se. Felicito-o. É uma nobre ação.
 
BOCAGE Começo outra vida, rude vida de ânsias e trabalhos, mas vida esplêndida de alvoroços e promessas. (Inebriando-se das próprias palavras) Oh! quem me dera já nas solidões do oceano, entre os dois abismos, para não ver mais do que o eterno lampadário dos astros, para não ouvir mais do que o majestoso hino das vagas!... (Como vendo o que repete) Ondeante à popa a bandeira que recorda as margens distantes... a melancolia da saudade!... Diante de mim os horizontes infinitos... a incerteza do futuro!... Aos meus pés a voragem tumultuosa... a advertência dos desenganos!... E além... lá bem ao longe, a nossa Índia... a Índia que demos de presente ao mundo!... o recesso dos mistérios... a terra dos prodígios... crivada dos nossos padrões, povoada das nossas memorias, cheia ainda do nosso passado, repetindo de todos os ângulos a maravilhosa história que os povos decoraram em todas as línguas!... além as grandes recordações dos grandes feitos... os grandes ecos dos grandes nomes... as grandes imagens das grandes idades!... além enfim a perene e inflamada visão, que acima da escuridão dos tempos e do luto das catástrofes, como um farol no meio das trevas, ergue rutilante do berço do sol a glória da pátria!
 
D. MARIA JOANA (fervorosamente) Tem a Índia inspirado os nossos grandes poetas! Começou já a inspirá-lo!
 
MARQUÊS (erguendo-se e dando-lhe o decreto) Aqui tem Sr. guarda marinha. (A D. Felícia) Está tudo justo, não? As escrituras do casamento assinam-se em Belém de hoje a oito dias!
 
D. FELÍCIA Pois vossa excelência quer fazer tamanha fineza a minha filha!...
 
MANUEL SIMÕES (prontamente) Que honra!... Que honra para o afilhado!...
 
MARQUÊS Justo é que sejam testemunhas todos os que presenciaram este feliz acordo. Ficam prevenidos. (Inclinando-se) Terei ocasião de dizer à Sra. D. Maria Joana Galvão o muito que a estimo e respeito. (D. Maria Joana faz mesura. — O marquês dirige-se à porta. — Dispõem se todos a segui-lo) Sra. morgada, dispenso etiquetas... não consinto...
 
D. FELÍCIA Seria privar-nos da maior satisfação!
 
MARQUÊS (a Bocage) Não nos falte, Manuel Maria. Quero vê-lo com o seu novo uniforme! 
 
(Sai com D. Felícia. — Acompanham-no todos. Ficam sucessivamente em último lugar, Francisco que dá o braço a D. Maria Gertrudes, Gonçalo ao lado de D. Maria Joana, o comendador e o morgado da parte oposta, Bocage)
 
 
CENA XIII Os ditos, menos Marquês, D. Felícia e os convidados.
 
GONÇALO (a D. Maria Joana, indicando D. Maria Gertrudes) Não lhe diz nada a vista daquele par?
 
D. MARIA JOANA Diz-me que preciso um protetor... e que já o aceitei!
 
GONÇALO (transportado) É definitivamente uma esperança?
 
D. MARIA JOANA (dando-lhe a mão) É mais... é uma certeza.
 
(O morgado mostra ao comendador esta ação. — D. Maria Joana esquiva-se como envergonhada, e mete-se no séquito)
 
MORGADO (consternado ao comendador) Viu?
 
COMENDADOR (saboreando a pitada) Vi... Não estão ainda casados.
 
GONÇALO (que seguiu um instante D. Maria Joana, volta a Bocage, e mostra-lhe D. Maria Gertrudes e Francisco que de embevecidos se deixaram ficar atrás de todos) Repare... O amor e a mocidade, coroados pela ventura!... Ali tem o seu melhor poema!
 
BOCAGE Creio que sim... (Dolorosamente) porque nenhum ainda me custou tanto!
 
 
ATO V No palácio dos Marialvas, em Belém. Sala forrada de damasco, severamente sumptuosa, abrindo sobre um terraço que dá para o Tejo. Em perspectiva os montes da Outra-Banda. — Esplêndido dia de inverno. Amplas colguduras de seda. Cadeiras de damasco igual ao do forro da casa. Altos contadores marchetados, cobertos de preciosas curiosidades. À a mesa preparada para a assinatura das escrituras. 
 
CENA I Gonçalo (esperando) o Marquês, um cavalheiro, um mouro.
 
(O Cavalheiro, que mostra mais de trinta anos, entra de botas e esporas, seguido do Mouro. Este vestido a uso marroquino, botas escarlates, zorame, etc. O mouro traz-lhe a vara de marmeleiro. Ao mesmo tempo entra o Marquês. O Mouro fica imóvel onde está. O Cavalheiro vai com profundo acatamento ao Marquês, ajoelha e beija-lhe a mão)
 
MARQUÊS (com majestosa simplicidade) Deus o abençoe, D. José! Já sei que o murzelo começa a executar sofrivelmente a lição dos quatro círculos para a esquerda... É preciso trabalhá-lo... É rijo dos rins, convém-lhe o trote avançado. Está ainda desigual dos travadouros. — Pode recolher-se agora aos seus quartos, filho... Há de precisar descanso... Ouça... recomende ao Mouro que vá ver como atam o murzelo... e se lhe estendem bem as coberturas. — Se quiser escrever para Cintra a suas irmãs, e ao Marquês D. Diogo, tenha tudo pronto. Amanhã de madrugada partimos para Samora. Acompanha-nos o conde de Vila-Verde. 
 
(O Cavalheiro sai. O Mouro segue-o)
 
 
CENA II O Marquês e Gonçalo.
 
MARQUÊS (consigo) Estes rapazes precisam dirigidos! (Vendo Gonçalo, que se conserva respeitosamente de parte, e indo a ele) Desculpe que o não via. Chegou há muito?
 
GONÇALO Entrei há pouco, Sr. Marquês.
 
MARQUÊS Tenho pena de o não ter apresentado a meu filho.
 
GONÇALO Tive já a honra de falar ao Sr. D. José de Menezes! Encontrei-o várias vezes no quartel de Lipe e na academia de Antônio Diniz.
 
MARQUÊS Ah! conhecia-o?... Não lhe dá ares do Conde dos Arcos, que tão desgraçadamente... (Sufoca-se, e desvia o rosto para limpar escondidamente as lágrimas; pequena pausa; mais senhor de si) É tristeza que me não deixa, e é paixão que nunca me há de passar! Não posso ver qualquer dos meus filhos que me não lembre aquela fatalidade!... Há quem murmure de me não ter deixado destes exercícios... Não pensam que assim se fazem homens para as armas, e soldados para a pátria... Na minha casa os costumes transmitem-se intatos como a honra. Deixá-los murmurar.
 
GONÇALO Quem se atreveria a murmurar do venerando patriarca dos Marialvas, tão respeitado e tão querido na corte e no povo!
 
MARQUÊS Deixá-los. Não sei que façam mais do que nós; com as suas modas de hoje! — Deixá-los, e deixemos também o que não vem para aqui. — O dia é de alegrias, e creio que tem bom quinhão nelas. Cumprimentei já a Sra. D. Maria Joana Galvão. Uma dama completa. Não podia escolher melhor... nem ela também. Suponho não ser indiscreto.
 
GONÇALO A Sra. D. Maria Joana já me permitiu confessar francamente o que era há muito a minha secreta esperança, o que hoje se me fez inapreciável realidade.
 
MARQUÊS Estimo... estimo-o deveras. — Uma dama prendada, um valente soldado... boas famílias... elevados sentimentos... vai tudo de acordo. — É assim que se perpetuam as casas honradas... Há de prevenir-me quando for o casamento. — Não andará longe, não? — É festa de que também me não dispenso. O regozijo dos velhos é casar os moços... (Com os olhos no terraço) A sua família nova já aí anda... O meu afilhado, esse madrugou, como é natural... Estão todos, creio... É cedo... ainda me não deram parte de ter chegado o tabelião. — E o nosso poeta?... o nosso novo guarda-marinha?... Vem de certo.
 
GONÇALO Não o tenho visto. Disse-me que ia a Setúbal despedir-se dos pais.
 
MARQUÊS Voltou há três dias... De onde procederia aquela resolução repentina!...
 
GONÇALO Do mais generoso impulso!
 
MARQUÊS Quis-me parecer... — Que logo de cabeça! vai em tudo aos extremos. — Ou há de subir muito alto, ou fazer-se muito infeliz!
 
GONÇALO O mesmo diz a Sra. D. Maria Joana.
 
MARQUÊS É ela que o Há de saber avaliar!... Do espírito e do coração da sua... da sua noiva... vamos, pode-se já dizer.
 
GONÇALO Pode.
 
MARQUÊS Do seu espírito e coração tinha ouvido muito Ontem porém fui ainda mais informado. Esteve aqui o Juiz do Cível da Corte, que se não cansou de me gabar a nobreza e desinteresse que provou com a restituição dos vínculos à prima. Ela mesma desfez todas as dificuldades... e com tal zelo, com tal contentamento!... A propósito, deu-me também a entender coisas um pouco desagradáveis a respeito do Morgado da Gesteira, e do Comendador de Monsarás... Quase que me arrependi de lhes ter aberto as minhas portas... Sabe se com efeito...
 
GONÇALO (constrangido, e volvendo os olhos com frequência para o terraço) Que hei de eu saber, Sr. Marquês?
 
MARQUÊS (reparando)
 
Fiz a pergunta sem reflexão. Contaram-me também que se mostram seus inimigos declarados... e os homens como o Sr. Gonçalo Mendo nunca falam de um inimigo pelas costas... Essa mesma resposta confirma o que me disseram... Que o Morgado, fraco inimigo pode ser... Mais de temer é o Comendador... (Movimento de Gonçalo) de acautelar, quero dizer... tem relações que... (Notando como ele olha para o terraço) Não o preocupam agora os inimigos, vejo... e tem razão... (Sorrindo) Há de querer cumprimentar as senhoras. Na minha idade já se esquecem facilmente essas impaciências.
 
GONÇALO Senhor Marquês!... Não pense vossa excelência...
 
MARQUÊS (festivamente) Não pensava, não pensava... Acompanho-o também.
 
(Vai a sair; D. Maria Joana vem a entrar, seguida do Morgado, que se retira logo vendo o Marquês e Gonçalo)
 
 
CENA III Os ditos e D. Maria Joana.
 
MARQUÊS (inclinando-se afavelmente) Minha senhora! Não lhe queira mal pela demora. O culpado fui eu: faltei-lhe a seu respeito. (Reparando para fora) É sua tia que está ali?
 
D. MARIA JOANA É, Sr. Marquês, — encantada do palácio, da vista, do dia, do Tejo... e principalmente de vossa excelência!...
 
MARQUÊS E eu que tão mal lhe pago, que ainda quase lhe não fiz as honras da casa, nem lhe cumpri a palavra. 
 
(Desaparece no terraço. D. Maria Joana vai a segui-lo. Gonçalo detém-na)
 
 
CENA IV Gonçalo e D. Maria Joana.
 
GONÇALO Esquivava-se ao Morgado, pareceu-me. Esse homem atreve-se ainda a persegui-la?
 
D. MARIA JOANA O Morgado?... O Morgado não pode perseguir ninguém! Cuido que tentava não sei que justificação... Nem eu percebi... Andava passeando no terraço. Ao passar, ouvi a sua voz aqui: entrei... para o não ouvir, a ele.
 
GONÇALO (contendo a cólera) Tenho agora direitos sagrados. Se o Morgado ousou...
 
D. MARIA JOANA Ousou... evaporar-se apenas o viu. Ora, vamos... é homem que inquiete alguém, o Morgado?... Começa a fazer de marido cioso?... Previno-o de uma coisa... tenho horror aos ciosos! (Gracejando) Se não pode conter-se, estamos a tempo ainda!...
 
GONÇALO Não me contive eu três anos... padecendo a ausência... sem uma palavra de esperança ou de conforto... vendo-a repartir sem diferença graças que só para mim cobiçava, agrados pelos quais dera a vida?
 
D. MARIA JOANA Não verão o avarento!... aí está o que estes senhores querem... e aí está porque eu fugia de prender-me!... Se não fazemos diferença nos agrados, um coro de suspiros, uma circular de queixumes... todos a mesma coisa... Apenas temos a fraqueza de mostrar uma preferência, o favorecido converte-se em tirano, e pede-nos conta... até dos sorrisos passados. — Bem me dizia em Paris o cavalheiro de Florian... um moço de gosto e saber.
 
GONÇALO Que lhe dizia?
 
D. MARIA JOANA Que para uma dama era inestimável presente de Deus a mocidade e a independência.
 
GONÇALO (picado) Ah!... (Tristemente) Repito-lhe então as suas mesmas palavras: — estamos a tempo ainda!...
 
D. MARIA JOANA Ei-lo aí já todo sério e enfadado! Valha-me Deus!... não vê que estou gracejando? — A independência... a nossa independência!... Muito é para invejar, na verdade!... Parece à primeira vista que nos festejam e nos adoram. Examinando bem... não há mais duro cativeiro do que semelhante liberdade... Os galanteadores são sentinelas, os lisonjeiros espias. — Não foi tão vigiada a ninfa da fábula. Ao menos os cem olhos de Argos fecharam-se uma hora...
 
GONÇALO (sorrindo) E não foi preciso mais!
 
D. MARIA JOANA Malicioso! (Em tom mais jovial) Estes Argos interesseiros não os fecham nem de dia nem de noite. Não sei como fazem, que se fortalecem da vigília, como os outros do repouso. Para qualquer lado que nos voltemos, lá estão eles com os madrigais assestados. Cada protesto de respeito é uma atalaia dissimulada. Cada cumprimento é uma baioneta posta ao peito para nos tomar o passo... E que severa inquisição!... Se olhamos, é leviandade; se rimos, inconstância; se nos desviamos, desdém... se baixamos os olhos, é disfarce; se choramos, é fingimento; se estamos sisudas, é reserva... Até se nos encerramos, nos põem à porta a suspeita!... As mesmas ilusões de uns, se fazem nos outros furibundas indignações. Sufoca-nos um círculo insuperável de cortesias insidiosas, de reverências desconfiadas, e de homenagens hostis... (seriamente) e quando menos o pensamos, achamo-nos envolvidas pela astúcia, pela cobiça, pela perfídia... não poucas vezes pela calunia! — Eis aqui a nossa independência!... (No tom anterior) O cavalheiro de Florian ainda não conhecia o mundo!
 
GONÇALO (gracejando também) Dês de quando faz essa ideia da independência feminina?
 
D. MARIA JOANA (gravemente) Dês que uma proteção oportuna me libertou desse âmbito opressivo... cheio de laços e de perigos... e me fez respirar os ares limpos e sãos de um nobre e generoso afeto!... (Com gentileza) Não sei se vacilava ainda... (dando-lhe a mão com meiga dignidade) Sei que desse instante para diante não vacilei mais.
 
GONÇALO (beijando-lhe a mão, e conservando-lhe nas suas) Desculpa um momento de irreflexão?
 
D. MARIA JOANA (esquecendo a mão nas de Gonçalo) Ninguém é perfeito neste mundo.
 
 
CENA V Os ditos e Bocage.
 
(Bocage entrando, vendo-os, e detendo-se)
 
D. MARIA JOANA Ah!... O Sr. Bocage? (Retira vivamente a mão)
 
BOCAGE O anão da casa encaminhou-me para aqui. Se sou importuno... (Como para sair por onde entrou)
 
GONÇALO (indo a Bocage e detendo-o)
 
Era esperado, e desejado... venha. (Descendo com ele) Ninguém aceitaria com mais satisfação para confidente dos meus alvoroços.
 
D. MARIA JOANA Não é já o Sr. Bocage da nossa intimidade? Não me esqueceu ainda!
 
BOCAGE (com forçada jovialidade) Filho de Marte e de Vênus pintaram o Amor. É indispensável corrigir a mitologia... O Amor, de menino fez-se homem; de azougado cordato; de despido composto; de vendado atento... abjurou por fim a gentilidade, e até de pagão se converteu a bom católico... para santamente unir e abençoar, como o pediam os seus merecimentos, um novo Marte e uma Vênus melhor!
 
GONÇALO (fitando-o) Por que violenta o espírito?... Esse tom festivo tem o que quer que seja de febril... não vem do coração.
 
BOCAGE (naturalmente) Não vem, não; diz bem. No coração... tenho uma tristeza profunda... uma dor que eu desconhecia.
 
GONÇALO (apertando-lhe a mão) Compreendo. Sente agora o sacrifício!
 
BOCAGE Não a merecia!... Deus não quis!
 
D. MARIA JOANA Arrepende-se?
 
BOCAGE Não, minha senhora, não me arrependo. Fiz o que devia fazer...
 
D. MARIA JOANA O que poucos saberiam fazer tão bem!
 
BOCAGE Mas a impressão não se apaga assim!... (A Gonçalo) Confessei-lhe a minha natural inconstância... Conhecia mal esta grave e sincera afeição, que podia emendar-me... que outro me tornaria talvez!... Que lhe hei de fazer? Bem certo é, que só se dá valor ao bem quando se perde!...
 
D. MARIA JOANA Há de encontrar um coração que o aprecie... Com o seu mérito!... A felicidade, que hoje cuida perdida, fácil lhe será restaurá-la.
 
BOCAGE Duvido, minha senhora. Ama-se uma só vez assim... quando se ama. Está em mim mesmo, está na minha índole, o germe do infortúnio. Se o podia atalhar alguma coisa, era isto... (Resignando-se) Enfim não estava para mim!... (Abatido) A imprudência foi prometer que viria aqui hoje... Vinte vezes tive tentações de voltar para traz... Faltavame o ânimo!
 
GONÇALO Isso não. Tempera-se a alma nos lances difíceis. E na vida que vai seguir é preciso ter coração para tudo.
 
BOCAGE (recobrando impetuosamente a resolução) É. — Isso pensei; por isso vim... e verá! — Era fraqueza: não lhe quis ceder. Seria encetar mal uma carreira, em que o sacrifício é condição de todas as horas, em que o esforço é necessidade de todos os momentos! nestas procelas d'alma quero dispor-me para as tempestades temerosas que resolvem os céus e os mares. O espírito sacudido de embates angustiosos, que em si mesmo lutou e venceu, está preparado para se não assombrar nem desmaiar, quando os horizontes se condensam... e os ventos se desencadeiam... e os abismos se rasgam... e a crista das vagas, empinadas como serras, se cruza com a fita do raio, lívido como espectro... quando os silvos do vendaval na enxarcia parecem ais de agonizante... quando, nesse tumulto, nesse horror, nesse caos, o baixel que o valor sustenta, que a inteligência dirige, que salva a perícia, range até às profundezas com o estertor do moribundo!... Atrai-me, convida-me a perspectiva... E quase me esqueço do mais... e todo me ufano revendo-me neste uniforme, que significa a honra o dever, o patriotismo, a abnegação... contemplando aquele glorioso estandarte, que se já não varre as águas como conquistador, se já não as senhoreia como soberano, há de no mundo ser sempre venerado por ações egrégias... há de em Portugal ser sempre saudado de legítimas esperanças!
 
GONÇALO Com esses sentimentos, Sr. Bocage, não há mágoa que não se console... não há grandeza a que se não aspire!
 
BOCAGE Os sentimentos... São, sim... estes são, estes devem ser. — (Consigo) Mas o que faz deles muitas vezes o destino!
 
GONÇALO (olhando para o terraço) O marquês dirige-se para aqui, se não me engano.
 
D. MARIA JOANA (olhando) Veem todos.
 
BOCAGE (idem) O comendador e o morgado são os primeiros! (A Gonçalo) Têm-me feito, pagar bem caro o pecado das más companhias, estes heróis.
 
 
CENA VI Os ditos, Comendador e Morgado.
 
MORGADO (ao comendador) O que eu vejo, comendador, é que está tudo perdido!
 
COMENDADOR (ao morgado)
 
Sossegue. — A tempo chega quem sabe dispor as coisas. “Hoje por vós, amanhã por nós.” Afirma Cicero que um dia basta para pôr termo aos triunfos.
 
BOCAGE (a Gonçalo) Aves de ruim agouro!
 
GONÇALO Que hão de agourar-nos agora?
 
 
CENA VII Os ditos, Marquês (entrando sem dar atenção ao comendador e morgado, que se inclinam). — Depois um escudeiro, de hábito de Cristo.
 
MARQUÊS Vão sendo horas. (A D. Maria Joana) Manuel Simões não cabe em si de contente, e sua tia anda nos ares. (Vendo o escudeiro) Creio que chegou o tabelião. (O escudeiro dirige-se respeitosamente ao marquês, e diz-lhe algumas palavras em voz baixa) Está aí com efeito. (Ao escudeiro) Mande entrar, e mande pôr as cadeiras.
 
 
CENA VIII Os ditos, D. Felícia, D. Maria Gertrudes, Francisco, Manuel Simões e convidados.
 
D. FELÍCIA (vendo Gonçalo, jovialmente) O sobrinho não tem pressa de cumprimentar a sua tia nova?... Não lhe chega o tempo, já vejo... Era bem feito que me opusesse agora!
 
GONÇALO Para nos cobrir de tristeza!
 
D. FELÍCIA Ai! não... não quero ver ninguém triste... Sabe?... O Sr. marquês!... Oh! grande marquês!... O Sr. marquês entregou-me já o alvará de açafata. — Que dia! — que dia para a família, sobrinha!... Estou curada dos meus histéricos!
 
D. MARIA JOANA Parabéns, minha tia!
 
MANUEL SIMÕES (impaciente, ao marquês, mas sem nunca esquecer o usual acatamento) O tabelião traz já as escrituras prontas, meu senhor. — É só assinar.
 
MARQUÊS Ler e assinar. — Vejam como vem guapo o nosso guarda marinha!... (A Bocage) Quando levanta ferro a nau?
 
BOCAGE Amanhã, Sr. marquês.
 
MARQUÊS (aos circunstantes) E de uniforme grande, em honra do dia. Não lho agradece, Manuel Simões?
 
FRANCISCO Sou eu... (Indicando D. Maria Gertrudes) somos nós dois... que principalmente lhe devemos agradecer. (Indo a Bocage) Se os votos de uma gratidão profunda podem ser-lhe aceitos... asseguro-lhe que não os há mais ardentes e sinceros.
 
D. MARIA GERTRUDES Hão de acompanhá-lo sempre as nossas orações!
 
BOCAGE (comovido) As orações dos anjos são para os infelizes... (com esforço) e eu... sou apenas um desterrado voluntário!
 
MANUEL SIMÕES Aí vem o tabelião. — (Consigo) Meu filho doutor!... minha sogra açafata!... a minha nora morgada!... por compadre um marquês! — Está-me a cair o hábito de Cristo!...
 
 
CENA IX Os ditos, o escudeiro precedendo o tabelião e seis ou oito criados.
 
(O tabelião entra fazendo reverência a todos, e inclina-se profundamente diante do marquês; sob indicação do escudeiro toma o seu lugar à mesa em pé, e desenrola as escrituras. — Os criados chegam ao marquês uma cadeira de espaldas, e colocam em torno da mesa mais algumas cadeiras comuns. O marquês e as damas sentam-se. O escudeiro fica à frente dos criados)
 
MARQUÊS (sentado, ao tabelião) Pode começar a leitura. 
 
(O tabelião dispõe-se a ler)
 
MANUEL SIMÕES Ainda o não posso crer!
 
GONÇALO (por detrás da cadeira de D. Maria Joana, que fica na extremidade) Chegará também brevemente o nosso dia!
 
 
CENA X Os ditos e um pajem.
 
(O pajem entra apressadamente com uma bandeja de prata, e em cima um ofício; dirige-se ao marquês, ao qual apresenta a bandeja com um joelho em terra)
 
MARQUÊS (vendo o pajem, ao tabelião) Queira esperar. (Recebendo o ofício) O que será? (O pajem retira-se para o lado) É para o Sr. Gonçalo Mendo... traz o selo da secretaria de estado... Provavelmente não o achou em casa o correio, e disseramlhe que estava aqui. 
 
(O pajem vai receber o ofício da mão do marquês, leva-o a Gonçalo Mendo, e sai)
 
GONÇALO Para mim... Da secretaria? — (Recebe o ofício, abre, e lê, com visível agitação)
 
COMENDADOR (de parte, ao morgado, tirando a caixa) Quer apostar que se não faz o casamento de sua prima!
 
(O marquês observa-os. Bocage não tira os olhos deles)
 
MARQUÊS (inquieto) Que é?
 
GONÇALO (consternado) A nomeação de capitão de Sofala... e ordem terminante de partir na nau de viagem, que sai amanhã!
 
D. MARIA JOANA (erguendo-se com um grito angustioso) Jesus! 
 
(Socorrem-na D. Felícia e D. Maria Gertrudes. — Erguem-se todos, e afluem em roda de Gonçalo. Mostras de pesar na família. O morgado não pode conter o alvoroço. Bocage continua a observar os dois, refreado unicamente pelo respeito da casa)
 
MARQUÊS (admirado) Tinha requerido?
 
GONÇALO Eu, Sr. marquês! — nesta ocasião!...
 
COMENDADOR (saboreando a pitada hipocritamente)
 
Que transtorno!... No livro 5º da Eneida ha...
 
BOCAGE (prorrompendo) Sei eu... vejo eu de onde vem o tiro...
 
GONÇALO (dolorosamente) Acertaram-me no coração!... (Breve pausa. — A Bocage, com ânimo inteiro) Somos companheiros de viagem.
 
(D. Maria Joana soluça, com o lenço nos olhos, nos braços de D. Felícia, e sua prima)
 
BOCAGE (impetuosamente) Não pode ser... não deve ser... O ministro foi enganado!
 
MANUEL SIMÕES (insinuando) Uma palavra que o Sr. marquês diga a Sua Majestade!...
 
MARQUÊS Parto daqui a um instante para Samora. Vou falar à rainha, minha senhora. Há tempo ainda. — Não embarca, Sr. Gonçalo Mendo. (Ao escudeiro) Que aprontem o meu escaler. 
 
(O escudeiro vai a sair, e detém-se à voz de Gonçalo)
 
GONÇALO Peço perdão, Sr. marquês: embarco. — Sei o que vossa excelência pode... mas sei também o que devo. — (Grave e solene) Quando ultimamente fui tomar posse do meu solar de Mendel, aonde não voltara dês que entrei no colégio dos Nobres, a primeira coisa que me deu nos olhos, na sala de respeito, foi a longa fileira dos retratos de meus avós... um morto na defesa de Ceuta... outro espedaçado nos bastiões de Diu... outro malferido na batalha de Montes Claros!... Todos com o arnês no peito e a espada no cinto... todos soldados desde Aljubarrota!... Parei a contemplá-los na vasta quadra, triste e deserta, que novamente a morte visitava. — Do alto das sombrias paredes pareciam dizer-me aqueles vultos severos: “por servir a pátria, e para servir a pátria, nos foi dado o patrimônio que te deixamos, com as obrigações do nosso nome, com as tradições do nosso sangue. De ferro eram os nossos corações, como eram de ferro as nossas armaduras... nunca tremeram nos riscos mais afrontosos... nunca vacilaram nos mais apertados transes!... Esta imaculada austeridade nos fez estimados e honrados... Tal é o depósito de virtudes hereditárias que te confiamos... Recebe-o para o transmitir como o recebes.” — Isto julguei ouvir... isto se me gravou na alma. — Podia esquecê-lo agora?
 
BOCAGE Mas essa nomeação foi solicitada pela perfídia... essa ordem...
 
GONÇALO (atalhando) É da pátria. Não a examino; obedeço-lhe. Foi o que prometi quando jurei bandeiras. — O primeiro predicado militar é a obediência: o valor é apenas o segundo. (Veemente) O soldado que se nega a obedecer é como um desertor em dia de batalha, — atraiçoa igualmente o juramento! Ninguém ousaria aconselhar-me... ninguém espera tal de mim! 
 
(D. Maria Joana alça o rosto, e escuta-o atenta, enxugando os olhos)
 
BOCAGE Não, o esquecimento do dever ninguém lho poderia aconselhar... Mas o estado que vai tomar, mas a família que lhe abre os braços, não lhe dita deveres também?
 
GONÇALO A pátria é a família das famílias! — Se uma veneranda mãe chama por seus filhos em nome da honra comum, qual pode recusar-se? com que pretexto há de eximir-se? — Os afetos de família! Quem é o desamparado que não tem alguma família? Se essa razão prevalece, ninguém servirá. Mais que para qualquer, para nós, os que seguimos a profissão das armas, e a pátria mãe rígida e imperiosa, mas amada sobre tudo. Ainda mais sua do que nossa é aquela honra que entregaram à nossa guarda. Que filho consente que a honra de sua mãe possa entrar em dúvida? — Sr. Bocage, o pundonor do soldado não exige menos que a isenção do poeta. Um passo para ficar... (com os olhos no Comendador e Morgado) e não faltará quem diga que eu... eu, um militar, um português, um neto de veteranos!... recuei diante dos perigos do clima, ou da azagaia dos cafres... A calúnia é a espada da hipocrisia... não tem outra. Haviam de dizê-lo. (Com resolução entusiasta) Não o dirão... Podem os meus inimigos triunfar com o meu suplício; não triunfarão com as minhas fraquezas. Ninguém dirá nunca de Gonçalo Mendo, que o viu hesitar... nem diante da catástrofe súbita das mais justas esperanças!
 
BOCAGE (desesperado) Não tenho palavras que o convençam? (Indicando-lhe D. Maria Joana) Veja se resiste àquele rosto, àquela dor, às súplicas ali estampadas, à voz e às lágrimas que mais do que eu o persuadirão.
 
D. MARIA JOANA (descendo, triste e gravemente) O que existe no mundo mais santo do que o amor puro de duas almas, que uma da outra vivem, que uma para a outra só querem viver? Há distância que lhes desate os laços? (Crescendo em veemente sensibilidade) Haverá golpe que lhes corte os vínculos? Não lhes são comuns as alegrias? Não lhes são comuns as penas? Não lhes é tudo comum? Pode alguém separá-las em sentimentos, quando foi o sentimento que as uniu, que das duas fez uma, quer para viver, quer para pensar, quer para sofrer? (Pausa. Com ponderativa energia) É a mulher de um soldado a companheira de todos os seus perigos, de todos os seus trabalhos... e de todos os seus deveres. A glória dele é único desvelo, único fito, único enlevo dela. A obediência, que é nele empenho, nela é culto... Cumpre que seja em ambos a resolução igualmente heroica. Se não pode acompanhá-lo nos dias de batalha... pode esconder-lhe o pranto nos dias de provação!... (Pausa meditativa. Com súbito e convulso esforço) Vá, Sr. Gonçalo Mendo... vá que eu espero-o!
 
GONÇALO Não, Sra. D. Maria Joana. Admiro a nobreza do seu ânimo... para mais sentir o que nele perco... mas o sacrifício da sua mocidade pesaria eternamente sobre a minha consciência. — Restituo-lhe a palavra que me deu. É livre.
 
D. MARIA JOANA (solene e decidida) Senhor Gonçalo Mendo, se na sua família o juramento é timbre que a tudo sobreleva, na minha casa dão-se juntamente o coração e a palavra, e a palavra só deixa de obrigar quando o coração deixa de bater. Pode julgar-se livre; eu não. Se tivéramos tempo de consagrar a nossa aliança, podia negar-me o favor de acompanhá-lo? Se estivéssemos já unidos à face do altar, teria acaso direito de dizerme: “restituo-lhe a palavra e a liberdade?” Considero-me ligada perante Deus: só Deus me pode desligar. Amanhã recolho-me ao convento de Santos. Unicamente a sua mão me abrirá aquelas grades!
 
GONÇALO Quem se não deixará vencer? — À volta irei dedicar-lhe esta vida, que já toda lhe pertence. Há de permiti-lo Deus!
 
MARQUÊS (intervindo) Fizeram todos o seu dever. Tenho também um para cumprir... (Para o Comendador e Morgado) às pessoas, que eu protejo, nem o próprio Marquês de Pombal se atreveu nunca! (Fulminando-os de desdém) Sr. Morgado da Gesteira, precisa sair de Lisboa e tornar quanto antes para a sua terra... (O Morgado fica atônito. — Com intimativa) Precisa. — Há de ter disposições que fazer. Não o quero demorar... (O Morgado percebe e encaminha-se todo encolhido e confuso à porta) Espere... o seu amigo Comendador deseja acompanhá-lo. — Sr. Comendador, é provável que a mesa da Consciência lhe queira tomar contas do modo por que tem cumprido os encargos da sua comenda. 
 
(O Comendador, que ao princípio ouvia altivo, resigna-se também o segue o Morgado)
 
 
CENA ÚLTIMA
 
Os ditos, menos Comendador e Morgado.
 
BOCAGE (vendo-os sair) A vilania e a jactância... a cobiça e a hipocrisia!... aí estão os homens, aí estão os vícios, que me ensopam a sátira em fel... que me inflamam de raios a musa!... Bem o prevejo, bem o pressinto... Contribuirão eles para me abreviar a vida... pagar-lhes-ei eu com a imortalidade do ridículo!...
 
MARQUÊS Guarde para mais a lira, Manuel Maria. Não vê como os castiga o desprezo da gente de bem? — (A Gonçalo) Há de voltar... e há de voltar breve.
 
D. FELÍCIA (consolada) Há de... há de... que me diz o coração!
 
MANUEL SIMÕES (sempre impaciente) Ainda bem! (Ao Marquês insinuante e respeitoso) Então agora... as escrituras...
 
MARQUÊS Podem ler-se e assinar-se.
 
(O Tabelião torna a pegar nas escrituras)
 
FRANCISCO (a D. Maria Gertrudes) Finalmente... vou firmar a minha ventura!
 
GONÇALO (a D. Maria Joana) Ao menos... levo a esperança!
 
BOCAGE (pensativo e com os olhos nos dois pares) E a mim... (Consigo, dolorosamente, enquanto D. Maria Joana que o observa, se lhe aproxima com Gonçalo Mendo, cuja atenção chama pelo gesto) A mim... que me fica?
 
D. MARIA JOANA Fica-lhe... a posteridade!

 

 

                                                                  João Silva Mendes Leal

 

 

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