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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS PRÍNCIPES DA IRLANDA - p.3 / Edward Rutherfurd
OS PRÍNCIPES DA IRLANDA - p.3 / Edward Rutherfurd

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

A rocha de Cashel

Já fazia setenta anos que o rei o'Brien ofertara a antiga fortaleza de Munster, com sua vista dominante da paisagem rural, à Igreja para o uso do arcebispo. Era certamente um local magnífico para se realizar um concílio, e também apropriado, pensou Gilpatrick: pois um grande número dos clérigos de Munster, que ele conhecia, eram tão ardorosos reformistas quanto ele. Deveria ser uma grande reunião. A maioria dos bispos, muitos abades e um núncio papal deviam estar presentes. Mesmo assim, ao se aproximar do cume de sua pedra cinzenta, ele teve uma sensação de inquietude.

 

 

 

 

Fora interessante observar o rei Henrique.

Embora tivesse convocado o concílio, o rei pedira ao núncio apostólico papal que assumisse a presidência, aparentemente submetendo-se a ele em tudo e permanecendo sentado, calado, a um canto do grande salão da reunião. Na maioria dos dias vestira-se sem cerimônia, com a simples túnica verde de caça de que gostava. Seu cabelo, que cortava curto, tinha um leve matiz avermelhado, o que lembrava um dos seus ancestrais vikings normandos. O rosto, porém, era atento, astuto, vigilante; e Gilpatrick não pôde deixar de imaginar que ele era como uma raposa observando tantas galinhas eclesiásticas.

Além do núncio apostólico, estavam presentes vários clérigos ingleses ilustres, e foi um deles, no primeiro dia dos trabalhos, quem forneceu a Gilpatrick e Lawrence OToole algumas informações interessantes.

— Vocês têm de entender — disse-lhes calmamente durante uma pausa nos trabalhos — que o rei Henrique está ansioso para dar uma boa impressão. Essa morte do Becket... — Aqui, baixou a voz: — Há bispos na Inglaterra que acham Becket tão culpado quanto Henrique. E posso lhes dizer que, no mínimo por razões de estado, é inconcebível que Henrique tenha ordenado o assassinato. Seja como for, o rei está ansioso para mostrar sua compaixão... a qual, asseguro-lhes, é genuína — acrescentou apressadamente —, e ele está muitíssimo determinado a que o papa o veja fazer todo o esforço para ajudar a Igreja irlandesa nas reformas que sabemos que vocês dois desejam fazer. É claro — prosseguiu com um leve sorriso — que nem todos os clérigos irlandeses são tão dedicados à purificação da Igreja quanto vocês.

O núncio quis que eles primeiro compilassem um relatório sobre as deficiências atuais da Igreja irlandesa. Como em concílios anteriores desse tipo, os bispos em geral foram mais incisivos em aproximar a prática religiosa irlandesa da do resto da cristandade ocidental, onde o poder residia nos bispados e nas paróquias em vez de nos mosteiros. Os abades hereditários, não sem motivo, argumentavam que os antigos sistemas monástico e tribal de certo modo ainda eram os mais convenientes ao país. Gilpatrick ficou fascinando em ouvir o arcebispo OToole, um abade como também um padre, e um príncipe como a maioria, dar seu capacitado apoio aos abades. “Ainda há espaço, acredito, para ambos os sistemas, dependendo do território.” Quanto à exigência de que não deveria haver mais clérigos hereditários, ele novamente foi bondoso. “A verdadeira questão”, destacou, “é se um clérigo é qualificado para o posto. Se for inadequado, então deve desistir; mas o fato de o cargo ter sido passado através de sua família não deve ser motivo de desqualificação. Na antiga Israel, todos os padres o eram por herança. O espírito vem de Deus, e não da confecção de regras arbitrárias.” Além disso, ele fez mais pressão sobre outras questões: reforma nas instituições religiosas; a ordenação de padres de paróquias, que em geral era negligenciada; a extensão das paróquias; e a coleta dos dízimos. Foi formidável ver como, dentre todos aqueles homens, muitos dos quais vinham de famílias tão nobres quanto a sua, esse homem piedoso e altruísta merecia tanto respeito devido apenas à sua autoridade espiritual. Durante o concílio, preparou-se um relatório que, segundo o consenso geral, serviria aos propósitos do evento.

O padre inglês levou o arcebispo e Gilpatrick a um canto.

— O relatório é promissor — disse ele —, mas incompleto. Falta — procurou a palavra — convicção. Olhou seriamente para o arcebispo. — O senhor, é claro, arcebispo, é um reformista. Mas alguns de seus colegas... O relatório, como está, pode ser usado pelo núncio, ou mesmo pelo rei Henrique, se estivesse disposto... e não digo que está... para alegar que a Igreja irlandesa não vê com seriedade a reforma. Em Roma, podem até mesmo dizer, talvez, que são necessários outros bispos de fora da Irlanda.

— Creio que não — disse o'Toole.

— O que quer dizer? — indagou Gilpatrick.

— Essa questão dos clérigos hereditários — disse o padre inglês a o'Toole — será um problema. E padres casados — aqui ele olhou para Gilpatrick — há um século foram abolidos na Inglaterra. O papa não vai tolerar. — Gilpatrick pensou em seu pai e enrubesceu. — O mais importante, porém, é o cuidado com o nosso rebanho. Podemos realmente desviar os olhos da lassidão que tem sido permitida em tantas partes da ilha? Ora, até mesmo em Dublin, segundo nos disseram, são realizados abertamente casamentos que contrariam o direito canônico. Um homem se casar com a viúva de seu irmão, por exemplo? Intolerável. — Sacudiu a cabeça, enquanto Gilpatrick ficava ainda mais vermelho. — Mas não há uma palavra sobre isso no tal relatório.

— O que sugere que devamos fazer? — quis saber Gilpatrick.

— Sugiro — disse o inglês calmamente — que uma pequena comissão, formada por nós, veja o que pode fazer para fortalecer as partes que precisam ser fortalecidas e deixar como estão as partes que já são excelentes. — Virou-se para o arcebispo OToole. — Será que o padre Gilpatrick, como seu representante, poderia trabalhar conosco na preparação de um rascunho de uma revisão para a sua consideração?

E assim foi feito. E, poucos dias depois, surgiu um novo relatório que o núncio recomendou pessoalmente ao concílio. Levou alguns dias para os clérigos irlandeses se convencerem a concordar com isso, o que não foi nada surpreendente, pois o relatório era condenatório. Cada mau hábito, cada falta, cada desvio dos irlandeses do código continental aceito era implacavelmente descrito. Quando Gilpatrick e o padre inglês o mostraram a OToole, o arcebispo hesitou.

— É muito rígido — comentou.

— É. Concordo — disse o padre inglês. — Mas pense no fervor que ele demonstra. — Sorriu. — Agora ninguém poderá acusar a Igreja irlandesa de falta de convicção.

— Não deveria haver uma menção ao trabalho de reforma já realizado na Irlanda e o que pretendemos fazer nc futuro? — indagou OToole.

— Claro. Essa é a chave de toda a questão. E é disso que precisamos tratar no segundo relatório. Quanto mais cedo conseguirmos isso — acrescentou animadamente —, melhor.

E, assim, o relatório condenatório foi aprovado e o núncio estimulou-os a avaliar que reformas já haviam sido feitas, e qual seria a melhor maneira de fomentar o bom trabalho. Essa parte do concílio, de modo algum, era fácil, mas por volta do início de fevereiro o trabalho ficou pronto e foi produzido um segundo relatório. O núncio agradeceu-lhes e o rei Henrique, que ficara apenas observando, levantou-se para felicitá-los pelo excelente trabalho. E assim terminou o Concílio de Cashel.

O arcebispo OToole não ficou satisfeito com todos os detalhes, mas Gilpatrick achou que, no conjunto, eles se saíram razoavelmente bem.

O marinheiro chegou numa cinzenta manhã de março. Nuvens de chuva varriam o céu acima do Liffey. O Peregrino e sua esposa tinham ido ao acampamento do rei e deixaram Una e Fionnuala encarregadas do hospital até voltarem. Havia gotas de chuva no cabelo do marinheiro. Ele perguntava por Una.

— Tenho um recado de sua mãe — informou a ela. — Seu pai tem estado muito doente. Mas se conseguir andar novamente, voltará a Dublin, pois quer ver a Irlanda antes de morrer.

Os olhos de Una encheram-se de lágrimas. Ela ansiara muito em ver a sua família, mas não desse modo. Perguntas práticas também apinhavam sua mente. Como eles viveriam? Se seu pai morresse ou ficasse doente demais para trabalhar, seus irmãos ainda eram muito jovens para serem artesãos bem-sucedidos. Ela e a mãe teriam de sustentá-los da melhor maneira possível. E onde morariam? Se ao menos, pensou, pudessem ter de volta sua antiga casa, qualquer que fosse o seu estado. Se havia algo que pudesse ajudar seu pai a se recuperar, pensou ela, era isso. Ficou imaginando se talvez o Peregrino fizesse algo por eles e decidiu pedir seu conselho assim que ele voltasse.

Enquanto isso, discutiu o problema com Fionnuala. Sua amiga andara abatida desde a perda de Brendan, no inverno. Algumas vezes voltara ao seu antigo estado de ânimo, mas nas últimas duas ou três semanas andava meio absorta, como se algo secreto a estivesse preocupando. Para seu crédito, entretanto, hoje ela estava solidária, colocou o braço em volta de Una e lhe disse que tudo acabaria bem.

Quando, porém, o Peregrino e sua esposa retornaram, logo após o meio-dia, ficou claro que ele não estava com disposição de falar; pois, quando o Una procurou, ele sorriu tristemente, disse “Agora não, minha menina” e passou por ela em direção aos seus aposentos, acompanhado pela esposa. Duas horas se passaram e nenhum dos dois voltou a sair. As duas moças apenas podiam imaginar o que haveria de errado.

Fionnuala estava no pátio, quando viu a figura atravessar o portão. O céu havia clareado um pouco, mas a brisa de março fazia um ruído irritadiço e sibi-lante no telhado de palha e bateu o portão quando o homem entrou. Una surgiu do dormitório feminino naquele exato momento e Fionnuala percebeu os olhos dela em ambos. Ela se deu conta de que Una provavelmente não sabia quem era o homem. Fionnuala encarou-o.

Peter FitzDavid olhou para ela. Seu rosto era sombrio. Se sentia constrangimento diante de seu olhar frio, tomava cuidado para não demonstrar.

— Seu irmão Gilpatrick pediu-me para buscá-la—disse calmamente. — Devo levá-la à sua casa. Encontrei-o no acampamento do rei — acrescentou, para esclarecer sua presença.

Fionnuala sentiu uma leve pontada de medo. Um de seus pais estaria ferido? Una agora estava a seu lado.

— Por quê? — perguntou.

— Não souberam? O Peregrino não lhes contou? — Pareceu surpreso e depois assentiu lentamente. — É o rei Henrique — explicou. — Terminou seus negócios na Irlanda. Está pronto para partir. Há apenas alguns assuntos em Dublin para tratar, e é o que ele faz agora. Receio, Fionnuala — parou um momento — que não tenha sido nada bom para o seu pai; embora ele tenha sido tratado com especial consideração — acrescentou. — Ele fica com a parte sul de suas terras, lá onde está seu irmão. Essas, é claro, ele as manterá por ordem do rei, como seu vassalo. Mas toda a parte norte de sua terra, perto de Dublin, foi doada a um homem chamado Baggot. Seu pai está muito perturbado. — Parou. — Receio que esse tipo de transmissão de posse seja bastante normal nessas circunstâncias.

As duas moças fitaram-no, atônitas. Una foi a primeira a se recobrar.

— Foi isso que aconteceu ao Peregrino?

— Eu diria que o caso dele foi bem pior. O rei tomou todas as terras dele em Fingal para seus cavaleiros. Deixou o Peregrino com sua terra perto de Dublin, que não é suficiente para sustentar a si mesmo e ao hospital. O rei, é claro, está atento para o fato de o Peregrino não ter herdeiros. É com o hospital que ele realmente se preocupa.

Una ficou calada. Após um choque desses, como poderia incomodar o Peregrino com as dificuldades de sua própria pobre família?

— Caíram escrituras sobre os afortunados como folhas no outono — disse Peter. — Para casas dentro da cidade também.

— E o que você ganhou com isso? — indagou friamente Fionnuala.

— Eu? — Peter deu de ombros. — Eu não ganhei nada, Fionnuala. Strongbow tem sua própria parentela para cuidar e, assim que o rei Henrique veio para cá, seu poder de doação foi enormemente reduzido. O rei Henrique mal me conhece. Nada recebi na Irlanda. Devo ir embora quando o rei Henrique se for. Strongbow convenceu-o a me levar, e assim talvez eu faça a minha fortuna em outras terras.

Fionnuala absorveu essa notícia. Então deu um sorriso triste.

— Então não deveremos vê-lo novamente, galês — disse ela, mais amavelmente.

— Não.

— Bem, espero que tenha gostado do tempo que passou aqui.

— Gostei. Muito.

Olharam-se em silêncio por um momento. Então Fionnuala suspirou.

— Você não precisa me acompanhar até em casa, galês. Tenho umas coisinhas para fazer aqui e depois irei.

Durante essa breve conversa, que achou um tanto sem sentido, a mente de Una se concentrara em uma coisa que Peter dissera.

— Gostaria de saber o que aconteceu com a casa de meu pai — murmurou para Fionnuala.

— Galês — disse Fionnuala. — Esta é Una MacGowan, cuja família morava no seu alojamento. Ela queria saber que fim levou a casa.

— Eu, por acaso, sei — retrucou Peter. — Há um grande número de comerciantes de Bristol vindo para cá, e essa casa, igual a tantas outras, foi concedida a um deles. Um homem que, aliás, eu conheci. Chama-se Doyle.

Una esperava que Fionnuala saísse logo após Peter ter ido embora. Para sua grande surpresa, porém, meia hora se passou e ela se deu conta de que Fionnuala continuava lá. Ao procurá-la, encontrou-a no quarto que havia nos fundos do dormitório masculino, onde outrora tivera seu encontro particular com o padre. Estava ajoelhada no chão, chorando em silêncio. Pensando em confortá-la, Una sentou-se a seu lado.

— Podia ser pior, Fionnuala — lembrou-lhe. — Sua família ainda é mais rica do que a maioria. Tenho certeza de que, um dia, seu irmão será um bispo. E não haverá falta de excelentes jovens à espera para se casar com você.

Nada disso, porém, pareceu ajudar. Os ombros de Fionnuala continuavam sacudindo. Ela murmurou:

— Brendan se foi. O meu galês se foi. Todos. — Isso, para Una, pareceu um pouco fora de propósito; mas, querendo confortá-la, aventou:

—Talvez você devesse se encontrar novamente com aquele padre. — Isso só fez com que Fionnuala chorasse ainda mais. Finalmente, então, ela ergueu a cabeça e virou o rosto, riscado de lágrimas, na direção de sua amiga.

— Você não entende, Una, pobre criatura tola. Não entende mesmo. Eu estou grávida.

— Está? Em nome de Deus, Fionnuala, quem é o responsável por isso?

— Ruairi o'Byrne. Que Deus me ajude. É Ruairi.

Havia todo tipo de gente no navio: oleiros, carpinteiros, seleiros, pedreiros, artesãos e pequenos comerciantes. Ele trouxera muitos deles pessoalmente de Bristol. O navio também era dele, claro. Ventava, mas o dia de abril estava claro enquanto a embarcação vinha pelo mar esverdeado.

Os olhos escuros de Doyle observavam o cais de madeira enquanto Dublin se aproximava.

— Você está pronto? — Doyle não se virou para fazer a pergunta.

— Mais pronto do que nunca — respondeu o homem mais jovem, parado atrás dele. Era bem mais jovem, quando fora pela primeira vez à casa de Doyle, meia dúzia de anos atrás, e sua barba pontuda, cortada curta, agora era encrespada; e seu rosto estava castigado pelo tempo por causa das viagens marítimas nas quais fora enviado.

— Vai assumir as conseqüências de seu crime?

— Sou obrigado. Você não me dá escolha. — Sorriu amarelo. — Depois que assumir, você não terá mais poder sobre mim.

— Mas ainda estará trabalhando para mim, não se esqueça.

—Verdade. Mas farei minha fortuna em Dublin e, então, me livrarei de você.

Doyle não retrucou. Quem sabe, pensou o homem mais jovem, o que reside nas profundas e escuras passagens daquele cérebro tortuoso? E, aliás, o comerciante de Bristol ainda tinha muito no que pensar. Embora tivesse negócios em Dublin, há anos não visitava o lugar. A fim de aproveitar as novas oportunidades criadas pelo rei Henrique, que acabara de partir, ele teria de agir com cuidado. Foi uma gentileza ao homem de pé atrás dele que Doyle o tivesse escolhido para conduzir a transação em Dublin. Quando este foi pela primeira vez à sua casa, era uma jovem ruína, não prestava para nada. Em seis anos, porém, Doyle o transformara em um competente comerciante e num homem. Se as coisas fossem bem em Dublin, então, na ocasião oportuna, um dos netos de Doyle poderia ir para lá e assumir; mas isso estava a anos de distância. Antes, porém, de deixar aquele jovem encarregado, Doyle sabia que ele precisaria fazer um bom reconhecimento do lugar e de seu comércio atual. Muitos comerciantes com quem lidara até recentemente tinham ido para lá, pelo menos por enquanto; mas havia poucos em quem confiava. E então, é claro, havia aquele homem amável com quem, anos atrás, fizera amizade em uma visita anterior. Ailred, o Peregrino. Ele o visitaria em primeiro lugar.

No momento em que o viu, o coração de Una disparou.

Quando, mais cedo, soubera quem era a visita de Ailred, ela ainda hesitara em falar com o Peregrino. Estava tão aflita por não lhe pedir ajuda, porque sabia que ele não poderia mais lhe dar, que ainda não lhe contara sobre a volta de seu pai. Contudo, como ele iria mesmo descobrir no devido tempo, e acharia muito estranho por ela não ter mencionado isso, Una criara coragem e foi vê-lo naquela tarde.

— Quer dizer que esse comerciante de Bristol que vem me ver ficou com a casa de seu pai? E diz que seu pai pode voltar em breve? — Ailred pareceu preocupado. — Certamente explicarei a ele a sua situação. Mas o que ele fará é outra questão. — Suspirou. — Nunca tive antes de implorar, Una, mas preciso aprender a fazê-lo. — Como o coração dela se solidarizou com ele, quando disse isso.

Mas quando Una viu o comerciante atravessar o portão do hospital e desaparecer no pequeno refeitório dos fundos com o Peregrino e sua esposa, qualquer esperança que pudesse ter ancorado em seu coração foi a pique. Alto, firme, moreno, com um fitar amedrontador de olhos escuros: bastou olhar para Doyle que ela soube que estava perdida. Um homem como aquele não é dado a bondades, pensou ela. Um homem como aquele pega o que quer e derruba qualquer um em seu caminho. Ela podia ver seu pai deixado para morrer em sua própria porta, e sua mãe forçada a mendigar nas ruas, pelo menos até o Peregrino lhe dar abrigo.

Então, o que ela deveria fazer após Doyle rejeitar a proposta do Peregrino? Essa era a pergunta que remoía, enquanto o comerciante de Bristol jantava sozinho com Ailred e sua esposa naquela noite. O caso parecia sem esperança, mas ela não podia deixar assim. Se necessário, decidiu que procuraria o homem e suplicaria a ele pessoalmente. Não tinha escolha.

Tentou imaginar a situação. Implorar por caridade era obviamente uma perda de tempo; mas o que poderia oferecer a ele? Trabalhar de graça como sua criada? Isso não seria o suficiente para conseguir a casa de volta. Vender-se como escrava? Não resolveria. Que mais?

Houve apenas uma única coisa em que conseguiu pensar. Seu corpo. E se ela fosse sua criada e lhe desse isso também? Achava que um homem como Doyle aceitaria sob essa condição. Se ao menos ele a achasse atraente: não fazia idéia a respeito. Pensou em sua figura alta, morena e seu rosto rígido, e tremeu. Dar seu corpo, como uma meretriz, a um homem como aquele: conseguiria fazer isso) Para uma moça como Fionnuala, imaginou, talvez não fosse tão difícil. Quase desejou que ela mesma fosse assim. Mas não era, e sabia que jamais poderia ser Então pensou no pobre paizinho vindo até ela e, mordendo o lábio, disse a si mesma, Sim, se for preciso, por ele, eu o farei.

Ailred, o Peregrino, lembrava-se muito bem de Doyle, embora seus negócios, que aconteceram seis ou sete anos atrás, não tivessem sido extensos. Estava ciente da importância do homem em Bristol e de certo modo lisonjeado por Doyle ter buscado seu conselho numa ocasião como aquela.

— Desde que inaugurei este hospital — informou ao comerciante — não tenho tido qualquer participação no comércio do porto e, portanto, não sei se poderei ajudá-lo muito.

Enquanto olhava o distinto nórdico idoso e sua gentil esposa, Doyle lamentava por aquele homem estar passando por tantas dificuldades e se perguntava se o Peregrino não poderia, de algum modo, se ressentir dele, como um intruso. Entretanto, tinha sua própria missão a cumprir e não era um homem de se desviar de sua meta. Educada, mas firmemente, portanto, ocupou Ailred com perguntas sobre a cidade, quantos artesãos tinha, o que era comprado e vendido, que comerciantes eram confiáveis. E, como havia esperado, o Peregrino, de fato, sabia muita coisa. Ao terminarem a carne e serem trazidos tortas de frutas e queijos, o comerciante de Bristol pôde descontrair, tomar seu vinho, dedicar-se a assuntos mais gerais e responder a algumas perguntas que Ailred tinha para ele.

Em particular, o Peregrino queria saber sobre a cidade de Bristol e sua organização — seus conselheiros municipais, suas isenções comerciais e que taxas eram pagas ao rei.

— Pois isso, suponho — disse ele —, é o que devemos agora esperar para Dublin. — Nessas e em outras questões, Doyle foi capaz de satisfazê-lo.

Enquanto conversavam, Ailred também observava cuidadosamente o comerciante de Bristol. Não sabia exatamente o que procurava: algo talvez que lhe desse uma pista sobre a mente do visitante, alguma pista sobre seu caráter que ele pudesse usar, por exemplo, para convencê-lo a fazer uma gentileza a Una e sua família. O nome Doyle sugeria uma origem irlandesa, e Ailred pensou ter ouvido o homem dizer que tinha família na Irlanda. Talvez isso pudesse abrir um caminho.

— Você vai se transferir para Dublin, para morar? — indagou ele.

— Não no momento — respondeu Doyle. — Tenho um jovem sócio que, por enquanto, cuidará dessas coisas para mim. Ele é muito competente.

— Então não tem família em Dublin? — arriscou o Peregrino.

— Nós somos de Waterford. Tenho alguns parentes lá — retrucou Doyle. Então, pela primeira vez, ele sorriu. — O resto de minha família que estava em Dublin deixou seu corpo aqui. Na batalha de Clontarf. Um nórdico como você, só que dinamarquês. Um dos antigos nômades do mar.

— Houve muitos homens corajosos que morreram nessa batalha — concordou Ailred. — Eu devo ter ouvido falar nele.

— Deve, sim. Para dizer a verdade — prosseguiu Doyle —, a família em Waterford nunca soube muito a respeito dele, além de que era um formidável guerreiro. Foi um dos que atacou o acampamento de Brian Boru. Pelo que me consta, ele pode até mesmo ter desferido pessoalmente um golpe no rei.

Era evidente que o comerciante moreno de Bristol, por mais rígido que fosse, sentia orgulho de seu ancestral.

— E o que aconteceu com ele? — quis saber o Peregrino.

— Nunca soubemos. Dizem que saiu em perseguição ao inimigo e nunca mais foi visto. Morto pelos guardas de Brian Boru, eu arriscaria afirmar.

— E como se chamava?

— Sigurd — disse o comerciante orgulhosamente. — Como o meu. Sigurd.

— Ah — fez Ailred.

— Ouviu falar nele? — Doyle ficou quase ansioso.

— Talvez — disse Ailred. — Preciso pensar um pouco, mas devo ter ouvido. Parecia não restar a menor dúvida. Aquele devia ser o Sigurd que tinha ido à fazenda de Harold, seu ancestral, e foi morto pelo padre. Quem se lembraria dele hoje em dia?, perguntou-se. Provavelmente só mesmo Doyle e, sem dúvida, a família de Fionnuala. Evidentemente, Doyle não fazia idéia da péssima reputação de seu ancestral. E ali estava o Peregrino, sua fortuna ganha honestamente perdida, prestes a implorar um favor daquele descendente de um cruel assassino, que pensava que seu ancestral era um herói. Por um momento, apenas por um momento, ele sentiu-se tentado a humilhar esse homem que obtivera poder à sua custa; mas então pensou na pobre e pequena Una, e sua própria boa natureza prevaleceu.

— Creio que ouvi falar — disse ele, sem mentir — que foi um homem terrível.

— Ele mesmo — afirmou Doyle, com satisfação.

Na ligeira calmaria que se seguiu, parecia que o comerciante de Bristol estava prestes a introduzir um novo tema de conversa, mas, percebendo que a discussão sobre seu ancestral lhe dera bastante prazer, Ailred aproveitou a oportunidade para tocar no delicado assunto de Una.

— Eu tenho — atacou — uma pequena gentileza para lhe pedir. — Ele viu o olhar de Doyle ficar alerta, mas insistiu e em poucas palavras explicou o triste caso de Una e seu pai. — Veja a minha situação aqui — continuou Ailred. — Eu poderia dar um abrigo temporário à família, mas... você não teria um modo de ajudá-la?

Doyle olhou-o firmemente. Era difícil saber no que pensava, mas, em algum lugar de seus olhos negros, Ailred pensou ter visto um leve vislumbre de prazer. Não sabia o motivo, a não ser talvez que o homem de Bristol estivesse refletindo sobre a ironia de sua própria perda de prosperidade e o fato de ter de implorar daquela maneira. Mas quem pede favores não pode se dar ao luxo de ressentimentos, portanto ele esperou pacientemente a resposta de Doyle.

— Eu ia instalar o meu jovem sócio lá — comentou Doyle. —Talvez ele não queira perder seus alojamentos. Não tenho o costume — acrescentou calmamente — de fazer favores a pessoas que não conheço e a quem não devo nada.

Se isso foi um aviso para o Peregrino não se atrever a ir mais longe, Ailred aceitou-o e nada disse em resposta. Mas sua esposa, sempre amável, prosseguiu.

— Sempre achamos — disse ela, docemente — que obtivemos mais felicidade do trabalho que realizamos neste hospital do que jamais ganhamos por intermédio de nossa outrora grande fortuna. Tenho certeza — sorriu para ele amavelmente — de que o senhor já fez e recebeu favores em sua vida.

Ailred ficara olhando nervosamente para Doyle, enquanto ela fazia esse pequeno discurso, receoso de que seu convidado pudesse não gostar. Mas, se fosse pelo jeito inocente dela, ou algo mais em suas palavras, o homem de Bristol não pareceu se importar.

—É verdade — reconheceu — que recebi favores uma ou duas vezes em minha vida. — Olhou-a de banda. — Se os retribuí é outra questão. — Então, calou-se e pareceu que não desejava mais discutir o assunto. A esposa de Ailred, porém, não era de se deixar dissuadir facilmente.

— Diga-me, qual foi o maior favor que já recebeu?

Doyle fitou-a pensativamente por alguns momentos, como se estivesse refletindo sobre outra coisa; então, tendo aparentemente chegado a algum tipo de conclusão, falou novamente.

— Posso lhe dizer um. Aconteceu muitos anos atrás. — Assentiu lentamente, como se para si mesmo. —Tive dois filhos. O meu mais velho sempre foi direito, mas o meu segundo, quando era jovem, caiu em más companhias. Nunca me preocupei com isso, porque pensei que, sendo meu filho, ele teria bom senso demais para fazer qualquer burrice. — Suspirou. — Isso demonstra o quanto estamos enganados. Pois bem, um dia, ele desapareceu. Sem mais nem menos. Dias se passaram e eu não fazia idéia de onde ele estava. Então descobri que ele andara me roubando dinheiro para jogar e outras coisas. Era uma grande soma. Não podia pagar, é claro. Ficou com medo de mim... com razão... e tão envergonhado que fugiu. Deixou Bristol. Nem mesmo seu irmão sabia aonde ele fora. Meses se passaram. Anos. — Parou.

— O que o senhor fez? — indagou a esposa de Ailred.

— Na verdade eu menti — confessou Doyle. — Quis proteger seu nome, mas também, arriscaria dizer, o meu amor-próprio. Então dizia que ele tinha ido à França, cuidar de negócios da família. Mas como não tínhamos notícias dele, pensei que pudesse estar morto. Por fim tivemos. Ele fora levado por um comerciante de Londres. O mais estranho era que eu conhecia o homem apenas de vista. Mas recebeu meu filho em sua casa, foi como um pai para ele... e um pai bem severo... e ajudou-o a se estabelecer no comércio para poder começar a me pagar. Então esse comerciante fez com que ele voltasse para mim e pedisse o meu perdão. Foi um favor, por assim dizer. — Fez uma pausa. Não se pode realmente retribuir algo assim. Tem-se simplesmente que aceitar.

— E o senhor perdoou seu filho? — quis saber a mulher de Ailred.

— Perdoei — retrucou o comerciante moreno de Bristol. — Para dizer a verdade, fiquei agradecido somente por ele estar vivo.

— Ele voltou a viver com o senhor?

— Impus duas condições. Ele teria de me deixar perdoar o resto do que me devia. Eu achava que a culpa de ele ter feito aquilo era minha. No fundo eu me culpava por ter sido um pai tão severo. Isso o levou a fugir.

— E a outra condição?

— Ele teria de se casar com a esposa que eu escolhesse. Nada de incomum nisso. Consegui para ele uma moça boa, direita. Eles são felizes. — Levantou-se abruptamente. — Está ficando tarde. Agradeço-lhes pela hospitalidade. — Virou-se para a esposa de Ailred. — Arrisco dizer que um obséquio merece outro Pensarei sobre essa moça e sua família e lhe darei a resposta pela manhã.

Ele partiu e o Peregrino e sua esposa ficaram sentados sozinhos no refeitório

— Tenho certeza de que ele a ajudará — disse ela.

— Não diga nada a Una — retrucou. — Vamos esperar para ver o que ele faz. Por algum tempo, depois disso, permaneceram sentados juntos, sem nada dizer.

Foi ela quem finalmente rompeu o silêncio.

— Que estranho o filho dele fazer o mesmo que Harold. E ele até contou a história do mesmo modo que contamos. Só que dissemos que Harold foi numa peregrinação.

— Ele teve seu filho de volta — observou Ailred tristemente. — Suponho que também levei Harold a fugir.

— Você nunca foi severo.

— Não. Fui bondoso demais. — Gesticulou na direção dos dormitórios. — O que alguém pode fazer quando rouba o próprio pai e este é Ailred, o Peregrino?

Ela quase disse que talvez Harold também estivesse vivo, mas sabia que o assunto era doloroso demais para ele.

— Vamos torcer — disse ela, em vez disso — para que Doyle faça algo por Una.

Una, na manhã seguinte, estava na rua do lado de fora do hospital, quando chegou um homem. Um homem ruivo, alto, bonito, com o rosto castigado pelo tempo. Perguntou pelo Peregrino, mas ela não percebeu que ele viera de parte de Doyle, o comerciante de Bristol.

Começou a mostrar o caminho, mas ele parecia conhecê-lo. Atravessou o portão no mesmo instante em que, por acaso, Ailred saíra pela porta do hospital para o pátio. Una vinha atrás. Ela viu Ailred olhá-lo, intrigado, mas não achou que ele o conhecesse. Mas na verdade o Peregrino olhou-o estupefato quando o homem se ajoelhou de repente e disse: “Papai.”

Foi no solstício do inverno seguinte, nove meses após o rei Henrique da Inglaterra ter partido da ilha, que o arcebispo o'Toole de Dublin chamou o padre Gilpatrick a seus aposentos particulares e entregou-lhe três documentos. Quando terminou de lê-los, o jovem padre continuou a encarar os pergaminhos como se tivesse visto um fantasma.

— Tem certeza de que são autênticos? — perguntou.

— Não há dúvida — retrucou o arcebispo.

— Imagino — disse Gilpatrick baixinho — o que meu pai dirá.

Fora um ano penoso. O casamento de Fionnuala com Ruairi o'Byrne tinha sido necessário, é claro. Seu pai fora inflexível, e com razão. Os próprios o'Byrne haviam sido igualmente insistentes. “Ruairi não desonrará os Ui Fergusa”, declararam. Aliás, Gilpatrick desconfiava de que a presença de Brendan o'Byrne no casamento se deveu em parte para ele se certificar de que Ruairi compareceria e de que o assunto fosse concluído de modo satisfatório. Todos fizeram gosto no casamento. O pai de Gilpatrick o oficializou. Não havia, porém, quem se equivocasse com o estado da noiva e, embora, como sinal de amizade, o arcebispo o'Toole tivesse comparecido, a família inteira se sentiu rebaixada diante do olhar de todos. Após o rei ter tomado suas terras, aquele foi um golpe doloroso.

De fato, foi uma época sombria para a maioria das antigas famílias de Dublin, com uma notável exceção.

Ailred, o Peregrino, recebera de volta seu filho. Era uma coisa notável de se ver. Ainda que não tivesse conseguido fazer uma peregrinação a Jerusalém, como seu pai fizera, ele retornara como sócio de Doyle, o comerciante de Bristol, e, portanto, garantira uma certa posição de prosperidade no porto de Dublin. Agora vivia em uma casa na rua Matadouro de Peixes. O mais notável de tudo, porém, fora seu casamento, não muito após sua chegada, com Una MacGowan. Parecia até que ele a aceitara como uma deferência aos desejos de seu pai, e mais particularmente de sua mãe. Como um feliz resultado dessa união, quando o pai de Una voltou, doente, com sua família, naquele verão, o novo genro conseguiu instalá-lo mais uma vez em sua própria casa, visto que agora ela era de propriedade de Doyle, o comerciante. Embora não a conhecesse intimamente, Gilpatrick ficou feliz pela família, e especialmente por Una, a quem outrora salvara de um destino pior. Mas, se essa reviravolta serviu para lembrá-lo de que Deus sempre observa as vidas dos homens, o pergaminho agora em suas mãos parecia mostrar — se não fosse um sacrilégio ao menos supor — que os olhos de Deus deviam estar dirigidos para outro lugar.

Os documentos em questão eram cartas do papa de Roma. Uma era endereçada ao arcebispo e seus colegas bispos; a segunda era dirigida aos reis e príncipes da Irlanda. A terceira era uma cópia de uma carta para o rei Henrique da Inglaterra.

A mais curta era a dos príncipes irlandeses. Louvava-os por se submeterem ao “nosso mais querido filho em Cristo, Henrique”. Era desse modo que o papa se referia ao homem responsável pela morte de Becket! Dizia-lhes que Henrique viera para reformar a Igreja na Irlanda. E os alertava para serem submissa e humildemente obedientes ao rei inglês, ou corriam o risco da ira papal. Para os bispos, louvava Henrique como um soberano cristão que livraria a Igreja da Irlanda de suas terríveis imoralidades e corrupção, e os impelia a impor obediência “com censura eclesiástica”.

— Você acha que ele quer dizer que devemos excomungar qualquer um dos nossos chefes que não lhe obedeça? — perguntou surpreso OToole. — O Santo Padre também parece achar — acrescentou preocupado — que todos os príncipes da Irlanda foram à casa do rei Henrique, o que não é verdade.

A questão, porém, era pior do que aquilo, pois, ao ler as cartas, Gilpatrick notara algo mais. A terminologia. O papa usara exatamente os termos da obediência e obrigação feudais que teria usado com barões franceses ou ingleses. E, lembrando-se da conversa com o inteligente Brendan o'Byrne, ele se deu conta do quanto seria difícil explicar todas essas diferenças ao arcebispo.

— O Santo Padre não entende a situação irlandesa — comentou ele tristemente.

— Com toda a certeza não entende — explodiu OToole. — Olhe isto aqui — apontou para uma frase na primeira carta —, e isto! — Espetou o dedo na segunda. — Quanto a isto... — Apanhou a terceira carta e depois largou-a desgostoso sobre a mesa.

Não havia dúvida, as cartas não eram apenas inadequadas, mas totalmente insultuosas. Os irlandeses, de acordo com o papa, eram uma raça “ignorante e indisciplinada”, chafurdando numa “imoralidade imunda e monstruosa”. Eram “bárbaros, incultos, ignorantes da lei divina”. Poder-se-ia pensar que os setecentos anos, desde a chegada de São Patrício, as grandes escolas monásticas, os missionários irlandeses, o livro de Kells, e todas as outras glórias da arte cristã irlandesa jamais haviam existido. E o Santo Padre estava bastante satisfeito, aparentemente, em se dirigir aos bispos e príncipes irlandeses e afirmar isso em suas caras.

— O que ele pretende? O que podemos pensar disso? — indagou o piedoso arcebispo.

Mas Gilpatrick já sabia. Percebia tudo muito claramente. A resposta estava na terceira carta, a carta ao rei Henrique.

Felicitações. Não havia outra palavra para aquilo. O pontífice enviou felicitações ao rei inglês por aquela formidável ampliação de seu poder sobre os obstinados irlandeses, que haviam rejeitado a prática da fé cristã. Além disso, para obter o perdão total de seus pecados — entre estes, sem dúvida, estaria principalmente sua cumplicidade no assassinato do arcebispo de Cantuária — o rei teria apenas de continuar seu bom trabalho. Portanto, Henrique conseguira tudo o que queria: não apenas o perdão por matar Becket, mas uma bênção pela sua cruzada contra os irlandeses. — Até parece — queixou-se o'Toole — que foi escrita pelo papa inglês.

E como Henrique o conseguira? O texto da carta deixava isso claro. O papa soubera, explicou ele, do vergonhoso estado da moral na ilha ocidental através de uma fonte irrepreensível: ou seja, o próprio clérigo enviado pelo rei Henrique! E suas palavras não foram confirmadas pelo próprio relatório que eles, os clérigos irlandeses, lhe enviaram? Ele enumerava alguns dos abusos: casamentos impróprios, falta de pagamentos de dízimos, exatamente todas as coisas que o Concílio de Cashel tivera o cuidado de indicar. O papa, porém, não fazia menção à conferência de Cashel. Evidentemente, desconhecia completamente que ela se realizara e as reformas aprovadas ali. Como também parecia ignorar todo o excelente trabalho realizado por Lawrence o'Toole e outros como ele.

E agora, finalmente, Gilpatrick percebia a astúcia do rei Plantageneta. Ele enganara os clérigos irlandeses, levando-os a emitir o relatório condenatório, depois correu para Roma, levando-o como uma prova do estado de coisas na Irlanda. Suprimira qualquer menção ao concílio. Os funcionários em Roma, que, de qualquer modo, sabiam muito pouco sobre a Irlanda, haviam encontrado a antiga carta do papa Adriano. E o truque ficou completo. A incursão do rei inglês na Irlanda para enquadrar Strongbow era agora uma cruzada papal. — E nós lhe demos o pretexto. Condenamos a nós mesmos com nossas próprias mãos — murmurou Gilpatrick.

Foi desonesto. Foi uma traição. Foi uma brilhante lição de política dada por um mestre no jogo.

 

                                               1192

No dia de São Patrício no ano de Nosso Senhor de 1192, realizou-se uma importante cerimônia em Dublin. Conduzida pelo arcebispo da cidade, uma procissão de dignitários eclesiásticos emergiu da catedral da Igreja de Cristo e seguiu caminho através do portão sul da cidade. Entre eles estava o padre Gilpatrick. A duzentos metros de distância rua abaixo ficava o chamado Poço de São Patrício, ao lado do qual, por muito tempo, havia uma igrejinha. Mas hoje, no seu lugar, erguia-se uma enorme porém incompleta estrutura. De fato, seu tamanho e suas belas proporções sugeriam que talvez sua pretensão fosse rivalizar com a própria grande catedral da Igreja de Cristo. Tampouco seria apenas uma igreja, pois já se podiam ver as fundações da escola que a acompanharia. No entanto, havia algo de incongruente naquele novo estabelecimento dedicado ao santo padroeiro da Irlanda. O arcebispo de Dublin que o liderava chamava-se John Cumin: e era sem dúvida inglês.

Aliás, tudo em relação à nova igreja de São Patrício era inglês. Foi construída no novo estilo gótico, agora em moda na Inglaterra e na França. Diferentemente dos importantes estabelecimentos irlandeses, que eram monásticos, o novo colégio de São Patrício pretendia ser uma igreja colegiada para padres, e não monges — no mais recente estilo inglês. A maioria dos padres eram ingleses, e não irlandeses. E quase ninguém poderia ter deixado de notar que aquela nova sede inglesa do bispo inglês ficava situada fora das muralhas da cidade e a várias centenas de metros da antiga Igreja de Cristo, onde os monges ainda lembravam o piedoso arcebispo o'Toole com reverência e afeto.

A úmida brisa de março bateu no rosto de Gilpatrick. Ele devia, supôs, sentir-se agradecido. Era, afinal de contas, um elogio o fato de o arcebispo inglês tê-lo escolhido, um irlandês, para ser um dos novos cônegos. “Todos o têm em alta estima”, disse-lhe Cumin com toda a franqueza. “Sei que usará sabiamente a sua influência.” Dadas as circunstâncias atuais, Gilpatrick não teve dúvidas de que seria seu dever aceitar. Mas, ao olhar para o local do antigo mosteiro de sua família na elevação à sua esquerda, e ao pensar no homem a quem pedira, com muita relutância, que viesse encontrá-lo assim que terminasse a consagração, ele só conseguiu pensar: graças a Deus, meu pobre pai não está mais vivo para ver isso.

O último ano de vida do seu pai não fora feliz. Após a visita do rei Henrique, o velho viu seu mundo ser gradualmente retalhado, como um corpo que perdesse os membros, um de cada vez. O golpe final veio quando um novo concílio da Igreja declarou que todos os padres hereditários como ele deveriam ser afastados de seus cargos e expropriados. O arcebispo OToole recusara-se terminantemente a deixar que isso acontecesse, mas depois disso o coração do velho esmoreceu. O fim veio apenas meio ano após a morte do próprio Lawrence o'Toole. Seu pai saíra para uma caminhada até o antigo Thingmount. E lá, no túmulo de seu ancestral Fergus, ele sofreu um único e violento ataque do coração e caiu morto ali mesmo. Foi um final honroso, pensou Gilpatrick, para o último dos Ui Fergusa.

Seu pai fora o último chefe do clã. Ele próprio, como um padre celibatário, não tinha herdeiros. Quanto a seu irmão Lorcan, que por acaso ou por castigo divino, por ter-se casado com a viúva do irmão, fora agraciado com filhas, mas nenhum filho. Na linhagem masculina, portanto, a família de chefes, que havia guardado Ath Cliath desde antes da vinda de São Patrício, estava para se extinguir.

Havia, contudo, uma indignidade final reservada para aquele dia. Era, de fato, uma bênção o seu pai não estar presente para ver o que ele teve de fazer após a consagração.

O serviço religioso foi bem executado, não se podia negar. E depois todos foram muito amigáveis com ele, até mesmo elogiosos. Mas aquilo não lhe deu qualquer prazer. Ele não tinha ilusões. A Igreja ainda era predominantemente irlandesa, portanto precisavam de um homem como ele como intermediário. Por enquanto. Até os ingleses serem maioria. O atual bispo, a seu modo, não era um homem ruim. Gilpatrick conhecera outros clérigos como ele durante a época que passara na Inglaterra. Um administrador, um funcionário do rei: inteligente, mas frio. Como sentia falta, às vezes, do espírito menos terreno de o'Toole. Quando o serviço acabou, ele saiu e olhou em volta. Logo em seguida avistou a figura arrogante se aproximar e se revolveu por dentro. Era tudo culpa de seu irmão.

Por um breve período, após o rei Henrique ter completado sua visita à ilha, pareceu que as duas facções que ocupavam a terra poderiam viver em uma paz apreensiva. O monarca Plantageneta e o rei supremo o'Connor tinham até mesmo preparado um novo tratado dividindo a ilha entre si, em vez da divisão em duas metades de Leth Cuinn e Leth Moga, norte e sul, como antigamente. Por todo o território ocupado pelos ingleses, começaram a surgir castelos normandos com fossos e muralhas. Enormes paliçadas de madeira cercavam altos montes fortificados, coroados com uma prisão feita de troncos. Esses pequenos e robustos fortes operacionais certamente dominavam as propriedades rurais, as novas herdades que Strongbow e seus seguidores haviam instalado. Mas parou por aí? Claro que não. Os irlandeses estavam infelizes; os colonizadores tinham ganância por mais terra ainda. Não demorou para a trégua ser rompida e os senhores das herdades da região fronteiriça começaram a invadir os domínios do rei supremo e roubar território. Ironicamente, durante esse processo, Strongbow, que fora a causa de tudo, morreu. Isso, porém, não fez diferença. O roubo de terras desenvolvera um ritmo próprio. Um aristocrata aventureiro chamado de Courcy até mesmo invadira Ulster e se apoderara de um pequeno reino para si mesmo lá em cima.

Esses acontecimentos nas fronteiras não tinham afetado muito a família de Gilpatrick, na relativa calma de Dublin; mas um novo desdobramento teria profundas conseqüências para seu irmão, pois, no ano de 1185, a Irlanda recebera uma segunda visita real; não de Henrique, dessa vez, mas de seu filho mais novo.

O príncipe João nada tinha do fascínio de seu irmão mais velho, Ricardo Coração de Leão. Toda a sua vida ele pareceu fazer inimigos. Era inteligente, mas grosseiro; fazia tudo aos trancos. Ao chegar à Irlanda para se encontrar com chefes irlandeses, cujas vestes e barbas esvoaçantes achou engraçadas, o rapaz zombou deles e os insultou. Por trás dessa arrogância e dessa vulgaridade, havia uma outra avaliação mais sombria. O príncipe João não ligava a mínima para os sentimentos dos irlandeses: ele fora para impor a ordem e levara consigo capangas impiedosos, com nomes como Burgh e uma família de administradores conhecida como os Butler, que eram de fato muito eficientes em impor ordem.

A Irlanda ocupada devia ser administrada no feitio inglês: os antigos territórios tribais seriam administrados como baronatos; burgos seriam criados. As sedes de modestos chefetes se tornariam herdades fortificadas de cavaleiros armados ingleses. Tribunais ingleses, impostos ingleses, costumes ingleses, até mesmo condados ingleses foram planejados. Havia também outros contingentes de cavaleiros, muitos deles amigos do príncipe, que deviam receber propriedades rurais irlandesas. E se isso significava expulsar mais alguns irlandeses de suas terras, o príncipe João não ficou nem um pouco preocupado.

Entre os afetados estava Ailred, o Peregrino. Certo dia, foi repentinamente informado de que suas propriedades a oeste da cidade, que sustentavam o hospital, haviam sido doadas a dois amigos ingleses do príncipe João; e, apesar de tanto seu filho Harold quanto o neto de Doyle serem agora homens importantes em Dublin, nem mesmo sua influência fora capaz de impedir isso. Em poucos meses, porém, o amável Peregrino e sua esposa, em vez de cederem à ira, haviam convencido os dois homens agraciados com suas terras a doar de volta grande parte delas ao hospital, que recebeu, pouco depois, uma bênção formal do papa. “Pois é”, declarou graciosamente sua esposa, “no final das contas, tudo acabou saindo melhor.”

Se ao menos seu irmão tivesse sido tão sensato assim, pensou Gilpatrick. Mas, perguntou-se, a culpa teria sido em parte sua? Estivera tão ocupado com os assuntos da Igreja para se dar conta do perigo que corria seu irmão?

Quando tomara as antigas terras dos Ui Fergusa, o rei Henrique as dividira em duas grandes herdades, norte e sul. A herdade norte continuava com Baggot; a do sul permanecera de posse do irmão de Gilpatrick. No modo de pensar de seu irmão, portanto, ele ainda era o chefe. E o fato de que ele nunca entendera completamente sua nova situação, imaginava Gilpatrick, era em parte por um desejo ilusório, mas também porque, como irlandês, ele não compreendia uma importante característica da vida feudal européia: o senhorio ausente.

Era um lugar-comum na Inglaterra ou na França. O rei concedia a seus grandes lordes a propriedade de territórios dispersos; estes, por sua vez, tinham arrendatários. O dono da grande herdade talvez residisse lá; ou talvez vivesse ausente; ou talvez tivesse várias herdades e fosse representado por um administrador a quem deviam se reportar as várias pessoas da herdade, desde os arrendatários das grandes fazendas ao mais humilde criado.

No caso das terras dos Ui Fergusa, o proprietário da herdade era o próprio rei, representado pelo justiciar, o principal magistrado da corte inglesa. Um administrador cuidava dos assuntos diários. Até então, por conveniência, o irmão de Gilpatrick fora deixado como o único arrendatário do lugar; durante os primeiros anos, os aluguéis exigidos pelo administrador tinham sido modestos e o irmão de Gilpatrick entendia isso como um tributo habitual devido por um chefe irlandês a seu rei. Com a chegada dos novos administradores do rei João, entretanto, a situação mudou e começou a confusão. Quando o administrador exigiu pagamentos pelos serviços prestados pelos cavaleiros à propriedade, o irmão de Gilpatrick não pagou. Intimado a se apresentar ao lorde da corte da herdade, ele não compareceu. Quando o administrador, um homem paciente, foi visitá-lo, ele tratou com desprezo o funcionário real.

— Somos chefes aqui desde antes de se ouvir falar da família do seu rei —. disse ao administrador, o que era verdade. — Um chefe não atende a um empregado do rei. Quando o rei estiver novamente na Irlanda — consentiu —, eu irei à casa dele. — O administrador nada mais disse e foi embora.

Teria sido, porém, culpa sua, perguntava-se agora Gilpatrick, o fato de seu irmão ter-se comportado tão estupidamente? Se não tivesse estado tão ocupado com os assuntos da Igreja, não teria evitado que a posição de sua família fosse ameaçada? Fazia três semanas que seu irmão chegara à sua casa. E, no momento em que fizera a pergunta, o coração de Gilpatrick disparou.

— Explique-me, Gilpatrick, o que é um arrendatário por permissão?

Havia vários tipos de homens em qualquer propriedade feudal. Os mais humildes eram os servos, ligados à terra, e um pouquinho melhores do que os escravos. Acima deles, vinham várias classes, algumas de trabalhadores especializados, com direitos e deveres claramente definidos. No topo da hierarquia, estavam os arrendatários livres, que mantinham uma ou duas fazendas mediante aluguéis formalmente contratados. Podiam ser agricultores livres e homens de posses, ou mesmo outro senhor feudal ou uma instituição religiosa com interesses ou participação em uma herdade. Abaixo, porém, do arrendatário livre, havia uma classe precária. O arrendatário por permissão era em geral um homem livre, com liberdade de ir e vir como quisesse, mas mantinha sua terra na herdade sem nenhum contrato estabelecido. O proprietário tinha o direito de encerrar seu arrendamento a qualquer hora.

Quando o rei Henrique tomou as terras dos Ui Fergusa, ninguém ao menos se preocupou em obter uma escritura adequada. Por ter sido deixada em paz, a família de Gilpatrick supôs que tinha direito de posse. Afinal de contas, ela estava ali havia mil anos. Isso não tornava sua posição suficientemente clara? Claro que não, pensou Gilpatrick, e ele, dentre todo mundo, devia saber disso.

O administrador desferira um golpe duplo. Lembrara ao magistrado que, a próxima vez que o rei precisasse recompensar um dos seus homens, a herdade dos Ui Fergusa ao sul ainda estava disponível. E agora que a herdade acabara de ser doada, o administrador informara ao novo proprietário que ele tinha um arrendatário encrenqueiro. “Entretanto”, explicara, “como nunca houve qualquer acordo formal, podemos considerá-lo um arrendatário por permissão.” Na semana anterior, o administrador fora procurar o irmão de Gilpatrick e, calmamente, lhe informara: — O novo proprietário chegará em breve. Ele quer que você saia antes de sua chegada. Portanto, junte suas coisas e saia.

— E para onde eu vou? — perguntara furiosamente o irmão de Gilpatrick. — Para o alto das montanhas de Wicklow?

— Por mim — rebateu friamente o administrador —, você é livre para ir para o inferno.

E agora cabia ao padre Gilpatrick tentar salvar a situação. Era amarga a constatação de que terras ancestrais provavelmente seriam perdidas pela família, mesmo na linhagem feminina, pelo resto dos tempos. Felizmente, a maioria das filhas de seu irmão estavam agora casadas em segurança; mas ainda havia duas para serem providas. Pelo menos, pensou Gilpatrick, talvez eu consiga ganhar alguns anos para ele. Pois, como destacara seu irmão com bastante propriedade, se alguém tinha alguma chance de convencer o novo dono da herdade a ceder, esse alguém era ele. Afinal de contas, ele o conhecia.

Portanto, exibiu o seu melhor sorriso quando a figura outrora familiar se aproximou dele e olhou-o de cima de seu cavalo.

— Já faz muito tempo — disse Gilpatrick — desde a última vez que nos encontramos, Peter FitzDavid.

Já fazia muito tempo. Peter FitzDavid não podia negar. Um quarto de século desde sua primeira partida; vinte e tantos anos que ele esperara pela sua recompensa. Alguns desses anos tinham sido passados fora da Irlanda; mas freqüentemente ele se vira ali de volta. Havia lutado no oeste, em Limerick; organizara guarnições, agira em nome do magistrado inglês. Tornara-se bem conhecido e respeitado entre os soldados da ilha. Peter, o Galês como os irlandeses o chamavam; e as tropas inglesas e os colonizadores de classes mais baixas se referiam a ele como Peter Welsh ou, como geralmente soava ao ouvido, Walsh.

Peter FitzDavid, mais conhecido por Walsh, se mantivera na ativa durante anos porque era confiável. Aprendera a ser paciente e cuidadoso. No tempo certo, porém, ele seria avisado de que a recompensa não tardaria; e agora, quando esta finalmente chegou, foi muito melhor do que jamais ousara sonhar. Uma excelente propriedade, não na fronteira onde os furiosos irlandeses costumavam atacar como vingança pelo que lhes fora roubado, mas ali, na rica e segura costa de Leinster, perto da guarnição da própria Dublin.

Era hora de se estabelecer. Tempo, por mais tarde que fosse, de se casar e providenciar um herdeiro. Anos de serviço seguidos por um casamento tardio — não era uma carreira incomum para um cavaleiro. Ele já encontrara a noiva — a filha mais nova de Baggot, o cavaleiro cuja herdade fazia limites com a sua. Tinha toda a intenção de desfrutar a boa fortuna que merecera.

Pensara em Gilpatrick, claro, quando soube que receberia a herdade dos Ui Fergusa; mas não se sentiu constrangido ao se encontrar com ele. Atingira o ponto da maturidade no qual não tinha mais tempo ou emoção a perder. A terra agora era dele. E bastava. As venturas da guerra. O problema do irmão mais novo de Gilpatrick, porém, era outra questão. Ele sabia perfeitamente bem que aquele devia ser o motivo que levara o padre a pedir para vê-lo, e sabia, fora a cortesia, que devia ouvir o que Gilpatrick tinha a dizer. Mas houve talvez um elemento calculista no fato de que, ao se aproximar do velho amigo, ele não desmontou. Nem quando Gilpatrick sugeriu que deveriam caminhar um pouco ele o fez, mas permitiu que o padre andasse a seu lado.

O caminho levou-os por um curto trecho para o leste, até um riacho que corria em direção à antiga pedra viking, à beira do estuário. Recentemente, um segundo hospital, menor, para leprosos, fora construído ali e dedicado a Santo Estêvão. Foi por essa pequena edificação junto ao pântano que as figuras passaram, uma ainda montada e a outra a pé; e Peter ouvia as desventuras do pobre irmão de Gilpatrick. E, enquanto ouvia, ele sentia...

Nada. Ouviu a história da família, as circunstâncias atenuantes, o fato — o padre tinha certeza, disse ele, que Peter compreenderia — de que seu irmão ainda não avaliara completamente a nova situação. Gilpatrick lembrou-lhe seu velho pai e sua amizade no passado. Mesmo assim, quase para sua própria surpresa, Peter nada sentiu. Ou melhor, após um tempo, ele começou a sentir algo. O que sentiu, porém, foi desprezo.

Desprezou o irmão de Gilpatrick. Desprezou-o porque ele não lutara e, mesmo assim, perdera. Desprezou-o por ser tão arrogante quanto fraco. Desprezou-o por ser obstinadamente mal informado, por ser desorganizado e burro. Ele mesmo não tivera de lutar, suportar privações e aprender a ser prudente e paciente? O sucesso despreza o fracasso. Peter permanecia em seu cavalo. E, finalmente, quando olharam em direção ao Thingmount e à pedra viking, ele disse:

— Gilpatrick, nada posso fazer. — E continuou em frente.

— Vejo que você endureceu com os anos — observou o padre pesarosamente. Peter virou a cabeça do cavalo e lentamente deu meia-volta. O encontro acabara. Para ele, já chegava. Quis acelerar o cavalo a um trote e deixar seu ex-amigo de pé ali. E, por mais descortês que isso fosse, ele talvez o tivesse feito se, naquele exato momento, não tivesse visto uma mulher atravessando o gramado em direção a eles. Por enquanto, em vez de partir, ele fixava o olhar à frente.

Fionnuala. Não havia como confundi-la. Fazia quase vinte anos desde que haviam se separado, mas, mesmo à distância e de relance, ele a reconheceria. Ao se aproximar, ela cumprimentou Gilpatrick com um breve sinal com a cabeça.

— Disseram-me que você estaria aqui.

— Eu não sabia que você estava em Dublin — começou o padre. Ele parecia um pouco desconcertado. — Você se lembra da minha irmã Fionnuala? — perguntou a Peter.

— Ele se lembra — atalhou ela calmamente.

— Eu explicava a Peter que o nosso irmão...

— Ele é um tolo. — Ela olhava diretamente para Peter. — Um tolo quase tão grande quanto a irmã dele foi outrora — disse isso com simplicidade, sem qualquer malícia. — Disseram-me que você ia se encontrar com ele — falou para Gilpatrick. — Por isso, pensei em vir também a Dublin.

— Infelizmente... — começou novamente Gilpatrick.

— Ele o desiludiu. — Ela transferiu o olhar para Peter. — Não foi mesmo, galês?

Os anos foram mais do que gentis com Fionnuala. Se jovem fora adorável, pensou Peter, só havia agora uma maneira de descrevê-la. Ela era magnífica. Uma ninhada de filhos deixara seu corpo flexível, porém mais cheio. Seu cabelo continuava negro como um corvo, a cabeça mantinha-se altiva, os olhos permaneciam com o mesmo surpreendente verde-esmeralda. A vontade consigo mesma e com o mundo, ela parecia exatamente a princesa irlandesa que era. E essa é a mulher, pensou Peter, com quem, em circunstâncias diferentes, eu talvez tivesse me casado.

— Receio que sim — admitiu ele com um vestígio de embaraço.

— Ele foi espoliado — gritou ela, subitamente. —Todos nós tivemos roubada a terra que amamos por mil anos. Não percebe isso, galês? Não consegue imaginar a ira dele? Nem mesmo fomos conquistados. Fomos enganados. — Parou e, então, com uma voz mais baixa, continuou: — Você não se importa. Não deve nada a ele.

Peter não retrucou.

— É a mim que você deve algo — disse ela, calmamente.

Os dois se entreolharam, enquanto Gilpatrick parecia intrigado. Ele não era capaz de imaginar por que o cavaleiro devia algo à sua irmã.

— Você agora desfruta de boa sorte, galês — prosseguiu amarguradamente — Mas nem sempre foi assim.

— É de praxe ser recompensado por vinte anos de serviço — frisou ele.

— O seu rei inglês o recompensou. Mas fui eu, como uma idiota, que fiz com que fosse notado quando lhe dei Dublin.

— Você me deu a si mesma. E não Dublin.

— Você me traiu. — Ela disse isso tristemente. — Você me magoou, galês. Ele assentiu lentamente. Cada palavra era verdade. Notou que Gilpatrick parecia desconcertado.

— O que é que você deseja, Fionnuala? — perguntou ele, finalmente.

— O meu irmão ainda precisa encontrar marido para duas de suas filhas. Deixe-o com a fazenda pelo menos até elas se casarem.

— Isso é tudo?

— O que mais poderia haver?

Será que ela, imaginou ele, desejava que tivesse se casado com ele? Ou agora ela apenas o odiava? Nunca saberia.

— Ele terá de pagar os aluguéis — disse ele.

— Ele pagará.

Peter franziu os lábios. Pôde imaginar os futuros problemas que seu arrendatário provavelmente lhe causaria. Seriam anos de olhares emburrados e ira. Como poderia ser de outro modo? Talvez Fionnuala conseguisse manter o irmão na linha, talvez não. Um dia, sem dúvida, acabaria expulsando o irmão dela de sua terra ancestral. Era assim que as coisas funcionavam. Mas achava que podia conviver com o sujeito até as duas últimas filhas irem embora com seus maridos e dotes adequados.

— Não pede nada para si mesma — comentou ele. — Suas próprias filhas não estariam atrás de bons maridos? Cavaleiros ingleses, talvez? — Pois, se elas fossem parecidas com você, pensou ele consigo mesmo, isso não seria impossível.

Ela respondeu com uma gargalhada.

— Minhas filhas? Tenho sete delas, galês, correndo livres com os o'Byrne nas colinas. Elas não se casarão com cavaleiros ingleses. Mas tome cuidado — acrescentou, olhando-o diretamente nos olhos —, pois um dia podem descer das colinas para tomar de volta suas terras.

— Bem, Fionnuala — falou lentamente —, talvez. Mas seu irmão, pelo menos, pode ficar. Farei isso por sua causa. Tem a minha palavra. Isto é, se confiar na minha palavra — acrescentou causticamente.

Ela assentiu e depois virou-se para o irmão.

— E então, Gilpatrick? Devo confiar na palavra de um homem do rei da Inglaterra? — E, ao falar isso, olhou de volta para o seu ex-amante, com um leve sorriso irônico.

Mas o padre Gilpatrick, por mais confuso que estivesse diante da conversa dos dois, já havia testemunhado muita coisa desde o dia que atravessara o mar com Peter. E agora, embora o cavaleiro tivesse sido seu amigo, ele só conseguiu responder à pergunta com o silêncio.

 

                                       Dalkey, 1370

O falcão bateu as asas e tentou alçar vôo; entretanto, as mãos enluvadas de Walsh o mantiveram preso. Seu grande bico curvado investiu contra a mão, mas John Walsh apenas riu. Ele adorava o espírito livre e feroz do pássaro. Uma companhia apropriada a um lorde francês ou inglês. Seus olhos também eram prodigiosos: podiam distinguir um camundongo a mil passos.

Walsh olhava da muralha de seu castelo. Como a maioria de sua família, ele tinha um forte rosto de soldado. Os olhos azuis eram aguçados. Tinham de ser, ali nas regiões fronteiriças. Eles se estreitaram, agora, ao se fixarem em algo. Era um pequeno objeto que se movia, sem qualquer significado. Bastante comum. Comum demais. Isso lhe pareceu estranho. Nada era comum na fronteira.

Castelo Carrickmines. Carrickmines significando “Pequena Planície de Pedras”. E certamente havia bastantes pedras, espalhadas em volta de todo o terreno próximo. Mas a verdadeira personalidade do local originava-se das imponentes encostas das montanhas de Wicklow que se erguiam bem diante do pequeno castelo e, atrás dele, as seis léguas da estrada que levava na direção norte, através da rica faixa costeira, até Dublin.

O objeto que se movia era uma menina. A última vez que a vira, lembrou-se, algumas cabeças de gado sumiram logo depois.

O castelo fora construído em pedra; já fora reforçado várias vezes. A maioria dos castelos dos colonos originais eram agora robustas fortalezas de pedra espalhadas por imensos trechos da ilha. Três das melhores da região de Dublin ficavam nas extremidades norte e sul da larga baía; havia um na península setentrional de Howth; um pouco acima de onde ficava o robusto castelo de Malahide; e ali, em Carrickmines, logo abaixo do alto promontório que marcava a extremidade sul da baía, a família Walsh protegia suas terras e o acesso ao grande e novo centro do poder inglês.

O território em volta de Dublin era uma enorme colcha de retalhos de propriedades feudais. O maior proprietário de terras, sem dúvida, era a Igreja. O arcebispo de Dublin possuía áreas imensas. Sua grande herdade de Shankill ficava logo ao sul do castelo de Walsh; abaixo da cidade, ocupando as antigas terras de Rathmines, ficava sua herdade ainda maior, chamada Santo Sepulcro. Entretanto, praticamente todas as casas religiosas de Dublin — e agora havia muitas delas — tinham suas ricas propriedades na região: os monges da Igreja de Cristo, as freiras de Santa Maria, os cavaleiros de São João; o hospital de Ailred, o Peregrino, possuía duas belas propriedades; até mesmo a pequena casa de leprosos de Santo Estêvão possuía uma rica gleba não muito longe dos Walsh, conhecida como Leopardstown. Parte da terra dessas propriedades eclesiásticas era administrada diretamente pelos próprios donos da igreja; a maioria era alugada a inquilinos lavradores. O resto do território era ocupado por homens como Walsh.

“E é um grande alívio”, comentara com ele certa vez um comerciante de Dublin, “saber que a região rural em volta está segura nas mãos de ingleses leais.”

Seria verdade?, perguntou-se Walsh. Em Fingal, talvez fosse. Ainda havia na região um minúsculo resíduo da antiga aristocracia celta — embora uma pequena família chamada o’Casey fosse o único exemplo que lhe vinha à mente. As antigas famílias vikings tinham sido quase todas expulsas de Fingal. Em seu lugar, estavam nomes normandos e ingleses — Plunkett e Field, Bisset e Cruise, Barnewall, e os lordes Talbot de Malahide. Eram todos ingleses robustos; casavam-se entre si ou com outras famílias inglesas. Em outra parte, porém, a situação era menos definida. Já que os nórdicos não estavam mais em Fingal, e no antigo subúrbio à margem esquerda do Liffey? Oxmantown, as pessoas costumavam chamá-lo agora, mas a origem do nome — Ostmanby, a cidade dos ostmen não foi esquecida. Havia muita gente ali descendente dos nórdicos. E, fazendo-se a grande curva para oeste e sul da cidade, encontravam-se senhores locais com nomes que eram tudo menos ingleses. Havia os Harold, descendentes do filho de Ailred, o Peregrino. Eram nórdicos. Como o eram também os poderosos Archbold. Quanto à família Thorkyll, esta descendia de um ex-rei nórdico da cidade — sem dúvida, leal ao justiciar inglês, mas dificilmente um inglês. E, por fim, existiam famílias como a sua. Havia uma porção delas no território sul da cidade, morando em ricas e fortificadas fazendas. Howell, Lawless e as várias ramificações da família Walsh; seus nomes podiam ou não ser óbvios, mas todas tinham vindo do País de Gales. Eram, também, leais à Inglaterra? Claro que eram. Tinham de ser.

Do mesmo modo, a vida nas fazendas do sul era bem diferente daquela ao norte de Dublin. Por causa das agrestes montanhas de Wicklow que se erguiam ali perto, e onde os antigos clãs irlandeses ainda tinham influência, a área era mais como uma fronteira. A mãe de John viera de uma situação estabelecida em Fingal, e sua preocupação era se lhe daria permissão de correr livre junto com as crianças irlandesas locais, mas seu pai tinha uma opinião diferente. “Se ele vai viver junto a essas pessoas”, dizia alegremente, “então é melhor que ele as conheça.” E eles as conheceu. Até mesmo na fazenda dos Walsh chegava às vezes um harpista ou um bardo irlandês e se oferecia para entreter o seu pai em seu salão — uma oferta que o pai nunca recusava, e pela qual sempre pagava generosamente. E, quanto ao jovem John, raramente havia um mês que não saísse com os pescadores da vizinha aldeia de Dalkey, ou subisse nas montanhas de Wicklow e corresse com os OToole e os o'Byrne. Todos sabiam quem ele era, é claro: ele era um Walsh, um dos colonos que tomaram as suas melhores terras. Mas crianças tinham passaporte para lugares aonde seus pais talvez não fossem, e por muitos anos o menino teve apenas uma turva noção da barreira que havia entre ele e seus colegas. Falava a língua deles, normalmente se vestia e cavalgava em pêlo como eles. Certa vez descobrira até mesmo um vínculo mais próximo.

Um grupo de meninos subira às colinas e cavalgara seus pôneis até os lagos de Glendalough. O velho mosteiro que havia lá era uma sombra do que fora: o bispado havia muito fora assumido por Dublin e apenas um pequeno grupo de monges vivia ali agora; mas John ainda se sentia impressionado pela tranqüila beleza do lugar. Haviam parado perto do pequeno povoado vizinho quando ele notou a garota de cabelos negros olhando-o. Tinha mais ou menos a sua idade, magra; achou-a muito bonita. Estava sentada sobre uma ribanceira coberta de grama comendo uma maçã e encarando-o silenciosamente com um par de olhos verdes Sentindo-se um pouco incomodado com aquele olhar fixo, ele foi até ela.

— O que você está olhando? — exigiu saber, embora tivesse falado de um modo perfeitamente amigável.

— Você. — Deu outra mordida na maçã.

— Eu conheço você?

Ela mastigou um pouco antes de responder.

— Eu sei quem é você.

— E quem sou eu?

— Meu primo. — Olhou com interesse seu ar de espanto. — É o menino dos Walsh, não é mesmo? — Ele concordou que era. — Eu também poderia ter sido uma Walsh, se quisesse — declarou ela. — Mas não quis — acrescentou raivosa, dando outra mordida na maçã. Então pôs-se rapidamente de pé e saiu correndo.

Aquela garota poderia realmente ser sua parente?, perguntara ao seu pai, naquela noite, ao chegar em casa.

—Ah, sim, ela é mesmo sua prima. — Seu pai pareceu divertir-se. — Embora eu nunca a tenha visto. O seu tio Henry era muito bom com as mulheres. Você tem mais primos em Leinster do que imagina. Certa ocasião, havia uma linda garota lá nas colinas. Essa aí que você viu deve ser filha dela, não tenho dúvida. Pena seu tio ter morrido tão cedo, mas certamente ele deixou um registro de sua passagem. — Suspirou afetuosamente. — Ela é bonita?

— É — disse John, e então enrubesceu.

— Bem, ela é sua prima — confirmou o pai. — E vou lhe dizer mais uma coisa. A maioria das terras aqui em volta, e quase até Dublin, pertencia ao povo da mãe dela. Os Ui Fergusa, como eram chamados. Nós estamos aqui desde a época de Strongbow, quando recebemos a concessão da propriedade. Mas eles têm muito boa memória. Para os descendentes dos Ui Fergusa, nós estamos nas terras deles.

A lembrança da garota o fascinou por um longo tempo. Certa vez, chegou a ir a Glendalough perguntar por ela. Mas lhe disseram que ela se mudara e ele nunca mais a viu.

Aliás, um ano depois, ele até mesmo achou que ela podia ter morrido, pois aquela tinha sido a época da terrível peste.

A peste negra finalmente chegara à Irlanda, assim como a toda a Europa. De 1347 em diante, por quase quatro anos, a peste, transmitida por pulgas de rato com os quais, quer soubessem ou não, os seres humanos sempre dividiram suas habitações, varreu todo o continente. Em sua forma bubônica, devastava suas vítimas com terríveis chagas; em sua forma pneumônica, ainda mais mortal, atacava os pulmões e propagava-se, com terrível rapidez, de pessoa para pessoa, por meio da respiração. Talvez um terço da população da Europa morreu. A doença chegou à costa leste da Irlanda em agosto de 1348.

Os Walsh tiveram sorte. O pai de John tinha ido a Dublin no próprio dia em que foi dada a notícia de que a peste chegara lá. A notícia da Grande Mortalidade, como era chamada, chegara um pouco antes de os navios mercantes atingirem o porto; portanto, no instante em que Walsh ouviu falar da repentina doença na cidade, ele retornou. Por mais de um mês a família permaneceu em sua fazenda; e Deus, ao que parece, ordenou que ela deveria sobreviver. Pois, embora outras fazendas tivessem sido atingidas e a aldeia de pescadores vizinha de Dalkey tivesse sofrido — souberam até mesmo de mortes em Glendalough —, a peste passara direto por eles.

O efeito, porém, na região de Dublin fora considerável. Na cidade e em seus subúrbios, houve ruas inteiras que ficaram praticamente vazias. As propriedades rurais da Igreja perderam numerosos arrendatários. Havia uma sensação de desolação e desordem, como se a terra tivesse acabado de sair de uma guerra. E, portanto, não foi surpresa para a família Walsh quando os o'Toole e os o'Byrne lá das montanhas de Wicklow, sentindo a fraqueza nas planícies lá embaixo, começaram a descer para ver o que havia sobrado para eles pegarem. Havia certamente muito gado sem homens suficientes para vigiá-lo. Ninguém familiarizado com a vida tradicional dos clãs poderia ficar surpreso se houvesse algumas incursões para roubo de gado. “Eles roubam gado uns dos outros desde antes da chegada de São Patrício”, comentou calmamente o pai de John, “portanto, não devemos nos surpreender se eles estenderem o cumprimento para nós.” Para o jovem John, e ele desconfiava que para seu pai também, havia uma certa empolgação na perspectiva de uma incursão. Havia a emoção da perseguição, a chance de uma pequena escaramuça com gente que, com toda a probabilidade, seria reconhecida. Fazia parte da vida da fronteira. Mas o masgistrado real tinha uma opinião um tanto desanimadora. Para ele, e para os cidadãos de Dublin, esses sinais de desordem eram deploráveis e deviam ser combatidos com firmeza. Eram necessárias fortificações. E, por isso, o castelo de Carrickmines — que fora negligenciado durante anos — foi reformado e fortalecido, e o pai de John Walsh foi convidado a se mudar de sua fazenda e assumir o local como castelão. “Precisamos de um homem bom, confiável”, dissera-lhe o magistrado. E o jovem John teve uma vaga idéia de que a mudança também representaria uma promoção social para seu pai Aos olhos dos funcionários reais em Dublin, ele era agora um dos oficiais do rei mais um cavaleiro do que um fazendeiro, mais próximo ao status do seu ancestral Peter FitzDavid, a quem primeiramente a terra fora concedida.

Foi um pequeno incidente, naquela ocasião, que lhe ensinara o que tudo aquilo significava para sua própria identidade.

A família instalara-se no castelo havia poucos meses, quando o oficial de Dublin cavalgou até lá em cima. Fazia uma bela manhã e o jovem John acabara de decidir que visitaria um dos seus primos Walsh em uma fazenda vizinha. Como sempre, quando percorria a localidade, usava apenas uma camisa e uma túnica; suas pernas ficavam nuas e montava sem sela o seu pequeno cavalo. Poderia muito bem se passar por um dos jovens o'Byrne. O homem que subia a alameda, vindo de Dublin, estava elegantemente vestido e parecia como qualquer outro cavaleiro inglês, e John observou-o, não sem admiração. Quando o homem parou defronte ao portão do castelo, olhou para John e indagou bruscamente se Walsh estava.

— Quem devo dizer que o está procurando? — perguntou John.

O cavaleiro franziu a testa, sem saber se aquele jovem diante dele pertencia ou não ao castelo; e apenas pretendendo ser útil, John sorriu e explicou:

— Sou John Walsh, o filho dele.

Não esperava qualquer reação em particular a esse comentário; por isso, ficou mais do que perplexo com o que aconteceu a seguir, pois, em vez de meramente assentir, o cavaleiro fitou-o, boquiaberto.

— Você é filho de Walsh? Walsh, o administrador deste castelo? — Um ar de repugnância atravessou seu rosto. — E seu pai deixa você montar desse jeito?

John baixou a vista para suas pernas e o cavalo em pêlo. Ficou evidente para ele que aquele jovem cavaleiro devia ser um novato, um do grupo que chegara recentemente da Inglaterra para ajudar o magistrado em Dublin. De qualquer modo, diante do olhar desdenhoso do nobre, ele se sentiu um pouco acanhado.

— Eu só vou até a outra fazenda — explicou, defensivamente.

— Por Deus, homem — exclamou o cavaleiro —, não deve se vestir como um nativo. — E, percebendo que o jovem parecia confuso, disse-lhe categoricamente: — Componha-se. — Então, sem lhe dirigir qualquer outra palavra, trotou através do portão do castelo.

A princípio, John pretendeu prosseguir sua viagem; mas dera apenas cinqüenta passos quando parou e voltou. O cavaleiro foi rude — obviamente conhecia pouca coisa da Irlanda — mas John não gostou de ser desdenhado por um homem que, afinal de contas, era de sua própria classe. Pouco depois, portanto, ele estava no quarto de sua mãe, o cabelo sendo vigorosamente escovado e vestindo uma camisa branca limpa e botas de couro. Quando estava pronto para ir embora, o cavaleiro encontrou no pátio um jovem que poderia se passar por um belo nobre em qualquer castelo inglês.

— Melhorou — comentou sucintamente ao passar a passos largos por ele; e, após montar, fez sinal para John acompanhá-lo pelo caminho que levava ao portão. Ao saírem, ele freou o cavalo e apontou para o rico pasto diante deles. — Diga-me uma coisa, jovem Walsh — perguntou com um tom de voz mais amigável. — Você quer manter esta terra?

— Sim, quero — respondeu John.

— Então é melhor se dar conta de que o único modo de você fazer isso é lembrar-se de que é um inglês. — E, com esse breve conselho, cavalgou para longe.

Hoje, de pé na muralha de seu castelo, vinte anos depois, Walsh não discordaria da avaliação do cavaleiro. O domínio do rei da Inglaterra estendeu-se sobre partes da Irlanda, mas desde a expansão colonial, na época de Henrique II e seu filho, houve uma retirada gradual. A ilha agora estava dividida entre os irlandeses nativos e os colonizadores numa vasta colcha de retalhos de territórios, representando uma série de acomodações ou impasses. Os governantes ingleses estavam na defensiva, não apenas contra a classe governante irlandesa, mas até mesmo contra alguns dos colonizadores que, após cinco ou seis gerações nas regiões fronteiriças, pareciam eles mesmos agir mais como chefes de clãs irlandeses, e quase tão difíceis de controlar. Quando os administradores ingleses em Dublin perceberam o mundo incerto que os cercava, só puderam tirar uma conclusão: “Temos de endurecer a espinha dorsal de nosso povo aqui. Manter uma certa ordem inglesa, ou o lugar degenerará para o caos. Devemos lembrar aos nossos colonizadores que eles são ingleses.”

O que significava ser um inglês? Havia a questão da vestimenta, é claro. Um inglês não saía por aí com as pernas nuas nem cavalgava em pêlo. Não deixava sua esposa usar um xale de uma berrante cor de açafrão, como uma irlandesa. Não falava irlandês, exceto com os nativos; falava inglês. Na época de seu avô, lembrava-se Walsh, um fidalgo podia falar francês normando. Ainda era usado nos tribunais em ações judiciais mais formais. Mas se alguém fosse agora a Dublin veria normalmente os comerciantes e os funcionários reais falarem um inglês afran-cesado, que era comum em lugares como Bristol ou Londres. E, acima de tudo não se casaria com irlandeses. “Casar-se com um deles”, declarou-lhe um dos seus conhecidos de Fingal, “é onde começa a deterioração.”

De fato, o governo inglês tornara-se tão firme nessa questão que, quatro anos antes, em um encontro do parlamento realizado na cidade de Kilkenny, fora promulgada uma série de estatutos que realmente tornava ilegais as relações sexuais entre as comunidades.

Particularmente, Walsh não se deixou impressionar pelo Estatuto de Kilkenny. Os colonizadores vinham se casando com irlandeses desde que Strongbow obteve Leinster ao se casar com a filha do rei Diarmait; e do mesmo modo que os nórdicos e os irlandeses andaram se casando antes disso. Essa tentativa de forçar as duas comunidades a formarem dois mundos separados talvez fosse possível, mas ele achava que isso cheirava a pânico. Leis não eram boas quando não podiam ser cumpridas.

No entanto, mesmo se ele não pensasse no plano mais geral, Walsh entendia perfeitamente bem o que significava ser inglês ali em sua própria localidade. Significava proteger dos o'Byrne a sua fazenda e as de seus vizinhos.

A maior parte do tempo, diga-se de passagem, tudo era calmo. De vez em quando, porém, as coisas ficavam interessantes. Dez anos antes, o chefe dos o'Byrne nessa época, um homem incomumente ambicioso, descera com uma grande tropa e cercara o castelo. “Você se acha capaz de manter este lugar, se o tomar de mim?”, gritara Walsh de cima da muralha. Recebeu, porém, apenas uma saraivada de projéteis em retribuição à sua aflição. O cerco durou vários dias, até o magistrado, o conde de Ormond, vir de Dublin com um grande grupo de cavaleiros e expulsar os invasores. “Pessoalmente”, dissera Walsh à sua esposa, “creio que o'Byrne está fazendo um jogo. Quer ser um incômodo para ver o quanto pode conseguir do magistrado.” E quando, alguns meses depois, o'Byrne entrou num acordo com Ormond, a notável notícia chegou: “Esse selvagem das montanhas recebeu nada menos do que um título de fidalguia!” Walsh gargalhou até lacrimejar. Mesmo assim, as muralhas foram novamente reforçadas e, de tempos em tempos, tropas de cavalaria ficavam estacionadas ali. Por quase dez anos, depois disso, as coisas permaneceram tranqüilas. Entretanto, a verdade subjacente permanecia. As propriedades ao sul de Dublin eram seguras porque o castelo as protegia; e o castelo estava ali porque os ingleses governavam Dublin.

Como ele mencionara apenas recentemente a um de seus primos: “O rei inglês nos deu as nossas terras e as nossas ocupações. Ele também pode tirá-las. E não se pode supor, nem por um momento, que os o'Byrne e os o'Tooll nos deixariam de posse delas, se o poder inglês fosse derrubado.” Sim, pensou John Walsh, ao fim do dia, era aquilo que significava para ele ser inglês.

Portanto, que diabos aquela garota estava fazendo? No lado oriental da pequena planície onde ficava o castelo, erguia-se a alta corcova do promontório sul da baía, ocultando de sua vista a aldeia de pescadores de Dalkey. Menos de um quilômetro de distância, com o promontório como uma magnífica cortina de fundo, ele instalara uma enorme coelheira. Esse foi outro proveitoso costume que os colonizadores haviam trazido consigo. A coelheira fornecia-lhe um constante suprimento de carne e pele. E era por essa coelheira que a garota andava espreitando. Será que planejava roubar alguns coelhos?

Ele sabia quem ela era, é claro. Era a filha de sua linda prima de cabelos negros da montanha. A prima, ele ouvira dizer, se casara anos atrás com um dos o'Byrne. A garotinha parecia exatamente como ela. Os mesmos olhos verdes brilhantes. Ele sorriu para si mesmo. Se ela roubasse um coelho, ele certamente fingiria que não viu. Havia alguns meses, ele a notara uma vez espreitando por suas terras; e, pouco depois, ele perdeu algumas cabeças de gado. Agora o assunto era mais sério.

Mas então outro pensamento lhe ocorreu, e ele franziu a testa. Recentemente, tinha havido problemas em Munster e as autoridades de Dublin ficaram preocupadas o suficiente para enviar tropas. Havia agora um novo chefe o'Byrne e, ao ver as tropas inglesas ocupando o lugar, ele aproveitou a oportunidade para mudar-se para vários pequenos fortes pela costa. Foi imprudente, mas Walsh supôs que o chefe irlandês provavelmente se safaria dessa. Pelo menos por enquanto. Seria o prelúdio de outro ataque a Carrickmines? Na opinião de Walsh, isso seria imprudente. As pessoas em Dublin já andavam nervosas. Duas semanas atrás, eles enviaram um esquadrão montado ao acampamento em Dalkey, para o caso de ser feita qualquer tentativa de saída sorrateira pela costa. Ao primeiro sinal de encrenca vindo das colinas, haveria mais cavaleiros indo para Carrickmines — sem considerar o fato de que o castelo estava agora resistente demais para o'Byrn entrar à força. Mesmo assim, nunca se podia ter certeza. Seria possível que aquela priminha estivesse espreitando a coelheira para um propósito mais sinistro? Estaria à procura de tropas? Estaria observando o estado das muralhas e do portão do castelo? Nesse caso, não andava se escondendo muito bem. Ele lamentaria se sua jovem parenta estivesse sendo descuidada com relação a essas coisas.

Ou estaria acontecendo algo mais? Seus olhos procuraram as encostas. Eles já estariam lá em cima, esperando descer de roldão assim que a garotinha corresse de volta ou desse um sinal? Esquadrinhou as colinas. Achava que não. Agora, a garota movimentava-se. Que caminho seguiria?

O falcão em seu pulso ficou novamente agitado. Com um único movimento circular, deixou que ele se soltasse e observou sua ascensão, magnífico e vigilante, aos céus daquela manhã de verão.

Tom estava a caminho da igreja, quando passou por ela. Em geral, ele seguia por ali na parte da tarde, mas hoje estava uma hora atrasado em relação ao habitual, porque um dos pescadores insistira em conversar com ele até após o Angelus soar distante pelo vale.

Ela era uma coisinha linda. Longos cabelos negros. Ele nunca a vira antes. Ela andara vadiando pela rua que vinha da praia. Ao passar por ela, a garota o olhara com os mais extraordinários olhos verdes.

Tom Tidy era um homem de baixa estatura. Seu bigode amarelado e sua barba pontuda faziam um pequeno triângulo que a inclinação dos ombros impelia à frente. Havia nele uma tranqüila determinação, mas também uma insinuação de melancolia, como se Deus exigisse que ele arasse um sulco, o qual, como se verificaria, não tinha fim. Tom Tidy talvez não causasse impressão, mas sempre se podia confiar nele. Todos diziam isso. Pois ainda outro dia, quando fora pagar seu aluguel no escritório da diocese, o próprio arcebispo chegara e dissera: “Se existe um homem no qual eu sei que posso confiar, Mestre Tidy, esse homem é você.” Mestre Tidy, ele o chamara: um título de respeito. Isso o fizera enrubescer de orgulho.

Tom Tidy sempre fora à igreja todos os dias, quando ainda morava no subúrbio ao sul de Dublin. Após os filhos se casarem e ele ter perdido a esposa com quem vivera por trinta anos, e querer uma mudança, o bailio do arcebispo, que procurava locatários confiáveis, ofereceu-lhe ótimas condições para se mudar para a aldeia de pescadores de Dalkey.

E Dalkey era bastante agradável. Situada numa saliência de terra entre a alta corcova do promontório ao sul da baía e o mar, consistia de uma única rua com uma igrejinha e lotes de terra nos quais foram instalados domicílios e jardins. O lote de Tidy era de tamanho médio — trinta metros de frente, quarenta metros de fundos. Mas ele também tinha direito a várias faixas no campo comunal, atrás dos lotes, e de pastar seu gado na terra comunal a céu aberto, que ficava para o lado do mar. Os lotes em uma cidade eram conhecidos como burgos e os donos de tais propriedades em um distrito municipal — diferentemente dos camponeses e criados que habitavam cabanas menores — eram homens livres conhecidos como burgueses.

Embora parecesse e quase fosse uma pequena cidade, Dalkey não tinha os privilégios de uma cidade. Era parte de uma das grandes propriedades rurais do arcebispo. O arcebispo era o senhor feudal; seu bailio coletava os aluguéis da terra, o tributo feudal estimado sobre a pesca dos pescadores e alguns outros impostos. Se houvesse transgressões à lei, os habitantes eram convocados para serem julgados no tribunal do arcebispo, para o qual o seu bailio escolhia os jurados. Em suma, o povoado irlandês de Dalkey era organizado tipicamente ao modo inglês.

Tom Tidy pagava três shillings por ano pela sua propriedade, que totalizava cerca de 12 hectares. De sua base, dirigia um pequeno negócio de transportes, levando carga do pequeno porto para as propriedades locais ou para Dublin. Sua propriedade era uma das maiores. A casa com telhado colmado era modesta; mas, atrás dela, havia um quintal considerável com um comprido estábulo, onde ele guardava vários veículos: a carreta para transportar peixes, a enorme carroça para os grandes toneis de vinho e barris de sal, e outra para fardos de tecidos e peles. Também fermentava um pouco de cerveja, que vendia na localidade, e pela qual pagava ao bailio uma pequena taxa por cada fermentação. O negócio era ocasional. Alguns dias ele trabalhava, outros não. O ritmo lento de Dalkey combinava muito bem com Tom, o viúvo.

Havia trinta e nove burgos em Dalkey, mas, como alguns deles tinham se juntado, o número de burgueses, na verdade, era menor. A maioria deles, porém, não morava em Dalkey. Proprietários de terras e comerciantes de Dublin assumiam os burgos e os sublocavam, geralmente em lotes menores para gente com menos posses. Tom Tidy, portanto, era uma das pessoas mais importantes do lugar. Aliás, como o posto de chefe, ou capataz, estivesse atualmente vago, o bailio lhe disse: “Embora você não esteja há muito tempo em Dalkey, Tom, estamos pensando em indicá-lo.”

Foi o litoral que dera a Dalkey seu nome. A alguma distância da praia, uma pequena ilha e uma fila de rochas sugerira o nome celta de Deilginis — que significava ilha do Espinho ou da Adaga —, o qual os colonizadores vikings transformaram depois em Dalkey. Nenhum rio do interior descia por ali, por isso durante a maior parte de sua vida não passara de uma aldeia de pescadores. Mais recentemente, contudo, Dalkey adquirira uma nova importância.

Os bancos de areia e alagadiços do estuário do Liffey sempre foram um risco para os barcos, mas, desde a época dos vikings, as atividades do porto haviam contribuído para o assoreamento do rio, ao mesmo tempo que as chatas de pesca medievais, com sua extensa largura e seu grande calado, encontravam dificuldade de transpor os baixios de Dublin, embora costumassem contratar um prático para guiá-las. Perto dali, havia outros abrigos com águas mais profundas. O pequeno porto de Howth, na península norte da baía, era um deles; mais abaixo, na extremidade sul da baía, Dalkey era outro. Pois a ilha agia como uma parede natural de enseada para proteger qualquer navio que entrasse, e o local tinha uma excelente água profunda — oito braças, mesmo na maré baixa. Navios mercantes de grande calado geralmente descarregavam ali — às vezes, a carga inteira, às vezes o suficiente para tornar a embarcação mais leve — para poderem transpor os baixios de Dublin. De todo modo, isso fornecia trabalho extra para a gente do povoado, inclusive Tom Tidy.

Após passar pela garota, Tom caminhou mais cinqüenta metros antes de parar. No momento, não havia qualquer navio no porto. Os barcos de pesca, por acaso ele sabia, estavam todos fora. Por que, então, a garota seguia o caminho que vinha da água? Não havia nada para ver lá embaixo. O que ela pretendia? Virou-se para olhá-la novamente, mas ela havia sumido.

A pequena igreja de pedra de São Begnet ficava do lado norte da rua. Junto a ela, havia um cemitério e a casa do padre. O último padre morrera naquela primavera e um cura temporário vinha de outra igreja para as missas dos domingos. Nesse meio tempo, eram confiadas a Tom tanto as chaves da igreja, que ele trancava à noite, quanto as da casa do padre, que na ocasião era usada pelo oficial do esquadrão visitante, cujos soldados estavam acampados em barracas no jardim dos fundos. Dois desses soldados estavam sempre postados lá na margem, para ficar de olho para coibir a aproximação dos o'Byrne ou de qualquer embarcação que pudesse trazê-los.

Tom entrou na igreja e, após ajoelhar-se, seguiu para o altar. Ao lado, havia uma divisória atrás da qual um genuflexório fornecia um lugar reservado para rezar. Ali Tom afundou os joelhos e, por vários minutos, ficou perdido para o mundo em orações — tanto que mal ouviu a porta da igreja ser aberta. Nem ergueu a vista. Se mais alguém tinha vindo rezar no silêncio da igrejinha, ele não queria perturbá-lo. Permaneceu onde estava. Poucos momentos se passaram e ele ouviu o leve arrastar no chão de sapatos de couro macio. Pareceu-lhe que havia duas pessoas perto da porta, mas, por causa da divisória, não conseguia vê-las e, supostamente, elas também não conseguiam vê-lo. Então ele ouviu uma voz.

— Eu tentei encontrar você lá na praia.

— Você viu as sentinelas?

— Claro. — Essa voz pareceu-lhe ser de uma garota. A outra pertencia a um homem. Falavam em irlandês, mas ele os entendia muito bem.

— Tem uma mensagem para mim de o'Byrne?

— Tenho. Ele não vem a Dalkey. — Novamente a voz da garota.

— Entendo. Se não a Dalkey, então aonde?

— Carrickmines.

— Quando?

— Daqui a uma semana não haverá lua. Será nessa ocasião. No escuro. Por volta da meia-noite.

— Nós estaremos prontos. Diga-lhe isso.

Ouviu som de passos no chão e da porta da igreja se abrindo. Em seguida, o som desta se fechando.

Tom manteve-se totalmente imóvel. Assim que ouvira o nome o'Byrne, sentira uma pontada de medo congelante. Nunca se sabia o que essa gente podia estar tramando. E não queria saber. Pessoas que ouviam demais, pessoas que podiam se tornar informantes, acabavam sumindo. Dez anos atrás, lembrava-se, um sujeito de Dalkey soubera do planejamento de um distúrbio e informara às autoridades. Como resultado, um dos o'Byrne acabou morrendo. Uma semana depois, pescaram do mar o corpo do informante — sem a cabeça.

Assim, enquanto o resto da conversa o alcançava, ele desejou desaparecer no chão. Se eles — fossem quem fossem — entrassem um pouco mais na igreja e o descobrissem, o que fariam? Uma sensação de pânico percorreu seu corpo, o suor escorrendo da testa. Mesmo após a porta ser fechada e a igreja voltar ao silêncio ele continuou tremendo. Permaneceu mais algum tempo ajoelhado, os ouvidos atentos.

Por fim, olhou cautelosamente além da divisória. A igreja estava vazia. Levantou-se e foi até a porta. Abriu-a lentamente. Ninguém à vista. Saiu. Os olhos procuraram por um sinal do casal que ele ouvira por acaso. Pareciam ter sumido. Não estavam no pátio da igreja, nem quando ele foi até lá conseguiu vê-los em qualquer lugar da rua. Voltou e trancou a porta da igreja; depois seguiu pelo caminho em direção à sua casa. Ainda nenhum sinal dos dois.

Estava na metade da rua quando, ao olhar para a trilha que seguia em direção ao sul, avistou a moça, seus longos cabelos negros ondeando atrás dela, correndo como uma corça. Era ela a mensageira, sem dúvida, no caminho de volta em direção a o’Byrne. Teve um súbito e insensato instinto de correr atrás dela, mas se deu conta de que era inútil. Olhou em volta atrás de algum sinal de seu companheiro, mas nada havia. Devia, certamente, ser alguém de Dalkey. Mas quem? Estaria o homem, em algum lugar, observando-o naquele exato momento?

Lenta e cuidadosamente, Tom Tidy seguia pela rua. Quando chegou em casa, foi cuidar dos seus seis cavalos de carroça. Após serem alimentados e trancados em suas baias para passar a noite, ele foi para casa, apanhou uma torta de carne da despensa, cortou uma grossa fatia e colocou-a em um prato de madeira sobre a mesa. Despejou cerveja clara de uma jarra para uma caneca de barro; então sentou-se para comer. E pensar. Não deixou sua casa naquela noite.

Na manhã seguinte, Tom Tidy estava de pé com a alvorada e trabalhando no quintal ao lado de seu celeiro. Era um carpinteiro razoável e decidira fazer uma nova tampa traseira para a carroça de peixes. Escolheu uma tábua e por mais de duas horas trabalhou em silêncio, modelando-a a seu gosto. Ninguém foi perturbá-lo.

Na noite anterior, ele meditara cuidadosamente sobre o assunto; e agora o repassou com toda a calma. Tom Tidy era um sujeito leal que sabia qual era o seu dever. Mas não era burro. A perigosa informação que chegara aos seus ouvidos tinha de ser passada adiante; mas se fosse rastreada de volta a ele, não tinha certeza se conseguiria responder pela sua vida. Como passá-la então? E para quem? A solução óbvia talvez fosse informar o oficial encarregado do esquadrão; mas ele estava perto demais de sua casa. Qualquer sinal de que os soldados suspeitavam do verdadeiro estado de coisas seria notado pela aldeia, e quem quer que tivesse estado na igreja com a moça provavelmente adivinharia que fora Tom quem o entregara. Havia o bailio nas terras do arcebispo, mas Tom sempre achara o homem indiscreto. Se contasse ao bailio, não demoraria muito para toda a região saber. O caminho mais inteligente, ponderou, seria falar com alguém em Dublin, mas isso requereria certo planejamento cuidadoso. Quem seria discreto e ao mesmo tempo poderoso? Quem o protegeria? Em quem poderia confiar? Ele não tinha certeza.

Ao terminar a tampa, Tom Tidy guardou as ferramentas, deixou sua casa e subiu a rua, olhando de relance as casas da direita e da esquerda ao fazê-lo. Uma brisa que soprava do porto trazia consigo o penetrante odor salgado que tinha um cheiro bom e revigorante. Estava na hora de pedir um conselho.

Se, por um lado, os burgueses donos dos arrendamentos em Dalkey incluíam membros importantes da pequena nobreza e de famílias de Dublin, como os Dawes e Stackpoole, por outro, os arrendatários que realmente viviam ali formavam um misturado ajuntamento. Várias das famílias de pescadores, com suas troncudas figuras ruivas, tinham obviamente ascendência irlandesa e viking. Outros provinham dos modestos cidadãos e pequenos proprietários ingleses que fizeram a travessia durante as décadas que se seguiram à invasão de Strongbow — homens com nomes como Fox e White, Kendal e Crump. A maioria estava ali havia uma ou duas gerações e mal se distinguiam de seus vizinhos irlandeses e nórdicos. Contudo, à procura de orientação, Tom ignorou-os todos.

A residência para a qual ele finalmente se dirigiu era bastante diferente das outras. Aliás, ela não se parecia tanto com outra coisa quanto com um pequeno castelo. A casa principal, embora não muito maior do que a de seus vizinhos com teto triangular coberto de palha, tinha três andares de altura, era quadrada e feita de pedra. Essa casa fortificada pertencia a Doyle, um proeminente comerciante de Dublin, que a utilizava para armazenar mercadorias. E foi com o homem que morava na casa e trabalhava para Doyle — o bom amigo de Tom e o único homem em Dalkey em quem ele podia confiar — que Tom tinha ido falar.

Ninguém se surpreenderia com o fato de ele ir lá. Tom e Michael MacGowan eram amigos desde que Tom chegara a Dalkey. A despeito da diferença de idades, eles tinham muito em comum. Ambos eram de Dublin. O irmão de MacGowan era um artesão bem considerado na cidade. Ele mesmo fora aceito por Doyle como aprendiz, e agora, na casa dos vinte, já fazia quase cinco anos que vigiava o depósito em Dalkey para o seu patrão. A moça que ele cortejava em Dublin estava convencida a se mudar para Dalkey, se os dois se casassem, e portanto era provável que permanecesse lá por um longo tempo. Tom Tidy passou a considerá-lo um jovem estável, com a cabeça sensata sobre os ombros. Podia confiar na discrição dele.

Encontrou MacGowan no quintal — um homenzinho moreno com um punhado de cabelos negros e um rosto que parecia olhar para o mundo com um pouco de perplexidade. Ele cumprimentou Tom e, quando este indicou que queria conversar, conduziu-o a um banco sob uma macieira. Ouviu atentamente enquanto Tom lhe contava o que acontecera e explicava o seu dilema.

Quando Michael MacGowan pensava, executava um curioso artifício com o rosto. Jogava a cabeça para trás, fechava um olho e abria o outro, sob uma sobrancelha erguida, bem arregalado. Ao fazer isso agora, encarando o céu, pareceu a Tom que o olho aberto de MacGowan ficara quase do tamanho de uma das maçãs que amadureciam no pé. Quando Tom terminou, seu amigo ficou calado, mas apenas por um curto espaço de tempo.

— Está pedindo o meu conselho sobre o que deve fazer?

— Estou.

— Eu acho que não deve fazer nada. Não conte para ninguém. Esqueça o que ouviu. — Dirigiu o seu único olho aberto para o homem mais velho e encarou-o de modo incômodo. — Há perigo aqui, Tom Tidy.

— Eu pensei que talvez Doyle... Eu pensei que você diria que deveríamos contar a ele. — O importante comerciante proprietário da casa fortificada não era apenas um dos mais proeminentes parlamentares da cidade, mas um homem de impressionante reputação, quase igual à do próprio magistrado real.

Um dos motivos pelos quais Dalkey era especialmente popular como desembarcadouro era porque sempre fora possível evitar pagar direitos alfandegários que eram cobrados no porto de Dublin sobre todas as mercadorias que entravam. Os direitos alfandegários eram significativos. Um comerciante que os evitasse podia facilmente aumentar os seus lucros em um terço. Não era muito difícil evitar os inspetores alfandegários fazendo-se o transporte das mercadorias de Dalkey pela costa, por chatas, ou por terra, com carroças. O problema causava alguma irritação ao governo.

Quando foi feita a sugestão aos funcionários reais em Dublin para que concedessem a Doyle a função de guarda-rios de Dalkey, essa parecera uma boa solução para o problema. E, de fato, desde que ele assumira o cargo, o pequeno porto fornecia um constante fluxo de receita. Ninguém ali ousaria fazer qualquer coisa pelas costas de Doyle. Seu alcance era longo. Não foi surpresa, portanto, que Tom Tidy tivesse pensado no poderoso comerciante como uma possível solução para o seu problema.

— Dizem que sabe guardar segredos e é tão astuto quanto poderoso — arriscou ele.

— Você não o conhece, Tom. — MacGowan sacudiu a cabeça. — Doyle é um homem duro. Se contarmos a ele, sabe o que vai acontecer? Vai providenciar para que o’Byrne e seus amigos caiam numa armadilha que matará todos. E vai se orgulhar disso. Vai contar a todo mundo em Dublin que foi o responsável. E como você acha que vai ficar a minha situação aqui em Dalkey? Os o’Byrne são um clã enorme, Tom. Vão vir aqui me pegar. E assim que imaginarem o que aconteceu, vão matar você também. Pode contar com isso. Nem mesmo Doyle conseguiria evitar isso, se tentasse... o que, provavelmente, não faria — acrescentou friamente.

— Está dizendo que não devo fazer nada para salvar os Walsh e o seu pessoal em Carrickmines?

— Deixe que as muralhas deles os protejam.

Tom assentiu tristemente. Foi algo duro o que MacGowan dissera, mas ele entendia. Levantou-se para ir embora.

—Tom. —A voz de MacGowan era aflita. Seu olho agora o fitava como o de um animal apanhado em uma armadilha e sofrendo.

— Sim?

— Faça o que fizer, Tom, não procure Doyle. Você me promete isso? Tidy fez que sim e partiu. Mas enquanto MacGowan o observava ir, pensou

consigo mesmo: se eu conheço você, Tom Tidy, e seu senso de dever, vai encontrar alguém para contar.

Não havia dúvida das boas intenções do sujeito. Harold olhou para Tom Tidy com certa admiração quando este apareceu em sua casa com uma carroça cheia de mercadorias e pediu para falar com ele. Era um inteligente ardil a fim de evitar suspeitas, e Harold comprou uma boa quantidade de mantimentos para fornecer a Tidy seu necessário resguardo.

— Você fez a coisa certa — garantiu ele ao carreteiro, ao saber o motivo da visita de Tidy — e veio à pessoa certa.

Tidy tinha razão em achar que Harold era um homem em quem se confiar para agir, como também discreto. Ninguém era um defensor mais firme do domínio inglês na Irlanda do que Robert Harold. Dois séculos haviam se passado desde que o seu ancestral Harold retornara ao seu pai, Ailred, o Peregrino; naquela época, a família era conhecida como os Harold, e como Harold eles haviam prosperado. Adquiriram uma grande faixa de terra, que começava ao sul de Dublin, em um lugar chamado Harolds Cross, e se estendia em direção ao sudoeste até a fronteira do território de Dublin — March, como os ingleses chamavam essa região fronteiriça — além da qual, presentemente, o governo da coroa era fraco. As famílias da fronteira, como os Harold, com seus amplos hectares, casas fortificadas e homens armados, eram importantes na preservação da ordem inglesa naquela parte da ilha.

Havia dez anos desde que ele fora eleito chefe de sua família. Várias famílias da fronteira, como os clãs celtas, haviam optado por escolher o chefe da família por meio de eleições. Às vezes, até mesmo convidavam outras famílias ou figuras importantes, como o arcebispo, para ajudá-las na escolha. O fato de os Harold terem feito isso era apenas outro sinal de sua determinação para assegurar que eles tinham uma forte liderança em tempos difíceis.

Robert Harold tinha apenas estatura mediana. Bem cedo na vida seus cabelos tornaram-se grisalhos. Os olhos, que eram surpreendentes, de um azul nórdico, normalmente tinham uma expressão suave; mas podiam subitamente se tornar duros e, quando se tornavam, quem quer que se metesse com ele descobriria a crueldade de Harold. Ele provara ser um líder eficiente, cauteloso mas severo.

Enquanto Tidy explicava tudo — desde o avistar da moça até sua conversa na igreja com o homem que ele não viu —, Harold observava-o cuidadosamente. O nervosismo do sujeito era visível. Por várias vezes, Tom enfatizou que preferira procurá-lo em vez do bailio do arcebispo ou dos funcionários do magistrado, a fim de que ninguém em Dublin o ligasse ao assunto.

— Por favor, não revele onde conseguiu essa informação — suplicou. Até certo ponto, Harold pôde lhe garantir isso. Não via qualquer razão pela qual ele necessitasse citar o nome de Tidy.

Às vezes Harold achava que era praticamente a única pessoa que realmente entendia o que acontecia na Irlanda. O magistrado também, talvez. Os homens que faziam os balanços do Tesouro real certamente entendiam. Alguns de seus colegas da pequena nobreza, porém, homens como Walsh de Carrickmines, não percebiam a gravidade da situação. Particularmente, considerava-os fracos.

A deterioração começara realmente quando seu pai era menino. Dois fatos contribuíram para o processo de degradação dos acontecimentos. Houve vários anos de péssimas colheitas e fome. Isso não ajudou. Depois houve a guerra dos ingleses com os escoceses. O rei Eduardo I, o Martelo dos Escoceses, destruiu Wallace, o herói escocês; mas, depois de Wallace, os escoceses revidaram. Robert Bruce e seu irmão Edward derrotaram o exército inglês em Bannockburn e deram um novo ânimo aos escoceses. Não seria surpresa, portanto, se os grandes clãs irlandeses começassem a imaginar se eles, também, seriam capazes de tomar o poder dos ingleses. Foi feito um acordo. Os CConnor e os o’Neill aliaram-se a Edward Bruce, que levara uma grande tropa de escoceses à Irlanda. “Desse modo, daremos aos ingleses uma guerra em duas frentes”, imaginaram, “e talvez possamos expulsá-los da Irlanda e também da Escócia.” Caso fossem bem-sucedidos, os chefes irlandeses haviam prometido a Edward Bruce a posição de rei supremo.

Isso poderia ter êxito? Possivelmente. Bruce e seus aliados haviam feito um grande estardalhaço no norte e avançaram quase até as muralhas de Dublin. Os dublinenses, porém, os deixaram de fora e o resto da Irlanda não se sublevou para apoiá-los. Era o velho problema irlandês: não havia qualquer união por toda a ilha. Os poderosos e antigos o’Neill descobriram que só podiam confiar em seus amigos. Não demorou muito, Bruce foi assassinado e o renascimento do exército celta acabou-se.

Contudo, algo mudou. Para começar, a Irlanda ficou mais pobre. Colonos ingleses ficaram menos dispostos a ir para lá; alguns começaram a ir embora; os investimentos do governo inglês diminuíram. A epidemia de peste só fez piorar a tendência existente. Quando Robert Harold atingiu a idade adulta, a Inglaterra e a França já tinham se envolvido naquele interminável conflito conhecido como a Guerra dos Cem Anos, e o rei inglês tinha pouco uso para a Irlanda, exceto tirar dela todo o dinheiro que conseguisse — que era cada vez menos com o passar das décadas. Pelo que constava a Harold, o rei da Inglaterra recebia agora da Irlanda apenas cerca de duas mil libras por ano; nos tempos de Eduardo I era três vezes essa quantia. O rei enviava seus magistrados, seus funcionários reais e, certa vez, enviou até mesmo o seu filho; mas o interesse real na ilha era tíbio.

Alguns anos antes, num acesso de pânico, quando acharam, muito erradamente, que Dublin não estava em segurança, os funcionários do Tesouro real haviam fugido com todos os balancetes para uma fortaleza em Carlow. Era o tipo de covardia imbecil que Harold mais desprezava. Ele não fazia muita fé nos homens do rei.

— Se os ingleses na Irlanda quiserem manter a ordem, terão de fazer isso sozinhos — Harold gostava de dizer. Eles tinham seus próprios parlamentos, com consideráveis poderes, que geralmente se reuniam em Dublin. — Mas não temos líderes suficientes — acrescentava. — Esse é o problema.

Não tinha sido apenas a coroa que sofrera. Muitos senhores feudais importantes, com propriedades tanto na Inglaterra quanto na Irlanda, haviam decidido que a ilha ocidental, com sua descontente população nativa, não valia a pena. Deixaram suas propriedades na Irlanda nas mãos de administradores e ficaram do outro lado do mar. Do mesmo modo ruim, algumas das maiores propriedades feudais, como a própria imensa herança de Strongbow, foram subdivididas entre herdeiros e, em gerações posteriores, repartidas novamente. Assim, havia uma grande carência de homens que poderiam ter formado um baluarte contra as forças da desordem. Reconhecendo essa fraqueza, o rei inglês decretou uma importante medida: criou três grandes condados que só poderiam ser passados adiante, sem subdivisões, para a descendência masculina. O condado de Ormond ele o deu à poderosa família Butler; os condados de Kildare e de Desmond foram para dois ramos dos Fitzgerald, que haviam ido com Strongbow. Esses condados controlavam regiões que ficavam além do governo do rei de Dublin; mas, embora fossem certamente poderosos o bastante para impor o poder inglês em amplas áreas do interior irlandês, eles eram também mais como reis celtas independentes do que nobres ingleses e como tais eram tratados pelos chefes irlandeses. Seus interesses estavam na Irlanda. Particularmente, Harold desconfiava que, se algum dia o governo inglês desmoronasse na Irlanda, os grandes condes provavelmente continuariam ali, lado a lado com os reis irlandeses.

Não, cabia à pequena nobreza, a homens como ele próprio, manter o poder inglês, se não em toda a Irlanda, pelo menos no largo arco de território em volta da região costeira de Dublin. Herdade, igreja paroquial e aldeia; cidades mercantis com seus pequenos conselhos municipais; condados ingleses com suas cortes e juizes reais. Essa era a ordem estabelecida que Harold queria preservar, segura para ele mesmo e gente modesta como Thomas Tidy. E isso podia ser preservado, se ao menos os próprios ingleses na Irlanda se mantivessem firmes.

Mas se manteriam? Não fazia muito tempo, no sul, um descendente do velho malvado rei Diarmait se proclamara rei de Leinster. Kavanagh, era como se chamava o sujeito. Foi um gesto vazio, claro, apenas um chefe nativo soprando inutilmente sua corneta ao vento. Mas, de qualquer maneira, foi um lembrete. Mostre fraqueza agora e haverá outros Kavanagh. Os o’Connor e os o’Neill sempre podiam se rebelar novamente. O planejado ataque contra Carrickmines podia ser ou não sério; entretanto, um fracasso ao enfrentá-lo poderia ser visto como um sinal de fraqueza da Inglaterra e notado por toda a ilha. Devia ser enfrentado, e enfrentado com firmeza.

Tidy estava quase acabando.

— O essencial — frisou — é não darmos qualquer pista aos o’Byrne ou aos seus amigos de que são esperados. Se houver deslocamento de tropas de Dublin, isso deverá ser feito no último momento, protegido pela escuridão.

— Concordo — assentiu Harold.

— E o esquadrão em Dalkey — continuou Tidy ansiosamente — precisa ficar onde está. Para não denunciar o plano — explicou.

E também para não levantar suspeitas sobre você mesmo, pensou Harold desagradavelmente. Em voz alta, disse:

— Não se preocupe, Thomas Tidy. Tomaremos cuidado. — E deu a Tom um sorriso tranqüilizador.

Teria o pobre coitado realmente imaginado que se dariam ao luxo de deixar todo um esquadrão parado inutilmente em Dalkey, enquanto Carrickmines era atacada? Bem, de qualquer modo, isso caberia ao magistrado. Mas era melhor que Tidy se desse conta de uma coisa. Se ele quisesse viver numa Irlanda segura, teria de correr alguns riscos, como todos os demais. Harold não tinha intenção de sacrificar Tom Tidy. Mas, se necessário, ele o faria.

A reunião estava marcada para o meio-dia. Os olhos negros de Doyle inspecionavam o cais com satisfação. Até então, as coisas estavam funcionando muito bem. Se a Irlanda sofrera durante o último século, não se percebia isso ao se olhar o cais de Dublin. Para começar, desde a época de Strongbow, um constante processo de reivindicação de terras em ambas as margens havia alterado a forma do no Liffey de tal modo que, perto da cidade, ele tinha apenas metade de sua largura. Um novo muro de pedra corria agora ao longo de toda a margem do Wood Quay, o cais de madeira, até a ponte, uns cento e cinqüenta metros diante da antiga fortificação. Do lado de fora das muralhas da cidade, haviam crescido subúrbios de modo irregular, especialmente ao longo da estrada ao sul, de modo que, se fosse incluída Oxmantown do outro lado do rio, havia agora cerca de três pessoas vivendo nos subúrbios para cada uma no interior das muralhas. Igrejas paroquiais, assim como edificações monásticas, enfeitavam os subúrbios. E, para garantir um fornecimento de água adequado, um dos rios do sul fora desviado para correr através de canais e aquedutos, no interior da crescente cidade, num fluxo renovado e constante.

E poucos homens na nova Dublin tinham se saído melhor do que Doyle. Até mesmo a peste negra agira a seu favor: embora o comércio da cidade tivesse sido atingido, dois de seus rivais no ramo morreram, e ele conseguiu assumir seus negócios como também comprou todas as suas propriedades a preços razoáveis. Vinte anos após a terrível peste, grande parte do comércio de Dublin havia se recuperado. Guerras não mais forneciam navios carregados de prisioneiros e invasões do litoral eram coisa do passado, portanto o antigo mercado de escravos de Dublin deixara de funcionar. A Irlanda, porém, tinha muitas mercadorias para exportar para Bretanha, França e Espanha.

O produto mais exportado dos domínios ingleses, durante muitas gerações, vinha sendo a lã. O comércio era regulado através de um número limitado de portos, conhecidos como os Staple Ports, os portos classificadores de lã, onde eram taxados os direitos alfandegários. Dublin era um deles. “Nunca criamos ovelhas com excelentes tosquias, como as dos melhores rebanhos ingleses”, admitia Doyle prontamente. “Mas há também mercado para a lã inferior.” Enormes quantidades de couro das grandes manadas de gado da ilha e peles de seus animais da floresta saíam dos cais de Dublin. A captura de pescado do mar da Irlanda era enorme. Peixe, fresco ou salgado, era constantemente transportado através dos mares. Madeira também das intermináveis áreas de floresta da Irlanda abastecia a Inglaterra. O madeiramento do telhado de algumas das maiores catedrais da Inglaterra, como a de Salisbury, vinha dos carvalhos irlandeses.

Doyle tinha uma participação em cada um desses carregamentos. Ele, porém, estava mais interessado no negócio de importação. Os robustos cogs, com seu único mastro e bojo profundo, traziam todos os tipos de mercadorias: ferro da Espanha, sal da França, cerâmica de Bristol, tecidos finos de Flandres. Mercadores italianos chegavam com cargas de especiarias orientais para as grandes feiras de verão, realizadas na parte externa do portão ocidental. Contudo, o negócio de que ele mais gostava era embarcar vinho do sudoeste da França. Pipas com vinho tinto vermelho-rubi de Bordeaux: ele adorava a aparência, a textura, o cheiro dos enormes barris de sessenta e três galões, quando eram içados dos barcos, embora os carregamentos fossem tão grandes que eram normalmente calculados por barril — o equivalente a duzentos e cinqüenta e dois galões cada. Tinha sido o comércio de vinhos que tornara Doyle, com todos os seus navios, um homem tão rico.

O magistrado real convocara Doyle ao castelo, no dia anterior, logo após Harold ter estado lá. De fato, o representante do rei chamara o comerciante antes mesmo de haver informado ao prefeito da cidade. Como a maioria das grandes cidades da Inglaterra, Dublin tinha um conselho de quarenta e oito que governavam seus aproximadamente sete mil habitantes. O conselho interno, do qual a cada ano era escolhido o prefeito, consistia apenas de vinte e quatro dos homens mais poderosos da cidade, e Doyle era um deles. Era por ser tão impressionado com Doyle que o magistrado o deixara concluir o valioso empreendimento de importação através do porto de Dalkey e ele sabia que o comerciante era extremamente bem informado. “Doyle tem olhos e ouvidos por toda parte”, comentava o magistrado. “Ele é poderoso, mas também habilidoso. Se deseja que algo aconteça, faz acontecer.” O magistrado lhe fizera um completo e confidencial relato sobre a notícia que Robert Harold acabara de lhe dar e Doyle ouvira atentamente.

— Bem, se essa informação é correta — resumira o magistrado —, eles atacarão em Carrickmines dentro de poucos dias. A questão é: o que devemos fazer?

Se Doyle não ficara totalmente surpreso, não deixou transparecer. Refletiu cuidadosamente.

— Mesmo se a informação se revelar errada — retrucara Doyle cuidadosamente —, não vejo como ignorá-la. Creio que precisa chamar Walsh, e Harold, e alguns dos outros homens em quem pode confiar, assim que for possível, para um conselho de guerra.

— Amanhã, ao meio-dia — dissera decididamente o magistrado. — Quero você aqui também, é claro.

Ao seguir caminho do cais em direção à reunião, Doyle notou com prazer a cena a seu redor. Das várias artérias que levavam ao novo muro do rio, a melhor delas, que corria de oeste e paralelamente à antiga Matadouro de Peixes, era a rua Winetavern, onde os maiores comerciantes de vinho, inclusive o próprio Doyle, tinham suas casas. E algumas delas eram realmente esplêndidas.

Pois a mudança mais notável, ocorrida nos últimos dois séculos em Dublin, não se limitou apenas à cobertura de seus telhados, mas à sua arquitetura. Foi o mesmo por quase toda a Europa. Em vez das residências com telhado de palha e paredes de pau-a-pique atrás de cercas de madeira, as ruas de Dublin agora tinham fileiras de sólidas casas com vigamento de madeira, dois ou três andares de altura, com coruchéus e andares superiores que se destacavam para pender sobre a rua. Alguns dos telhados eram de palha, mas muitos tinham cobertura de ardósia ou telha. As janelas, em sua maioria, eram protegidas por venezianas, embora nas dos homens ricos como Doyle também houvesse vidraças. Ao caminhar pela rua Winetavern com um ar de satisfação, vestido com o seu esplêndido manto vermelho e macio chapéu azul, Doyle parecia exatamente o que era: um rico parlamentar de uma próspera cidade medieval. Na parte de cima da rua, parou diante de uma barraca e comprou um pouco de mostarda. Ele gostava do sabor pronunciado da mostarda com carne. Conquanto parecesse muito contente, o comprido rosto saturnino ainda parecia trazer um vestígio de algo sombrio àquela clara e ensolarada manhã.

Percorreu a passagem para um portão da antiga muralha e, dali, para os arredores da catedral da Igreja de Cristo. Não entrou para rezar, mas contornou a grande igreja, saindo no cruzamento acima da Matadouro de Peixes, onde ficava o pelourinho. A uma curta distância dali, à sua direita, a grande High Cross, a Cruz Celta da cidade, seis metros de altura, erguia-se no meio da rua do lado oposto à grande prefeitura com seus muitos coruchéus, a Tholsel, onde os homens mais importantes da cidade se congregavam, quatro vezes por ano, para uma reunião das associações. Símbolos de ordem; símbolos de estabilidade. Doyle era adepto dessas coisas.

E estaria toda essa ordem ameaçada pela questão de Carrickmines? Ele sabia que Harold acreditava que sim. O magistrado também. Bons homens, ambos. E possivelmente certos, a longo prazo. Mas enquanto permanecia parado no centro da cidade medieval de altos telhados triangulares, somente ele sabia de outra informação, uma informação secreta. Somente ele entendia a verdadeira natureza dos riscos para Walsh e para Harold, para Tom Tidy e para MacGowan em Dalkey, e até para si mesmo. Em qualquer ação que fosse decidida na reunião de hoje haveria riscos ocultos.

Ele estava preparado para corrê-los. Doyle adorava correr riscos. Virou para a esquerda e seguiu em direção ao castelo.

Enquanto Doyle seguia seu caminho vindo do cais, John Walsh já havia chegado aos arredores da cidade. A convocação do magistrado tinha chegado na noite anterior, mas sem qualquer explicação. Todo elegante e vestindo sua melhor túnica, Walsh deixara cedo Carrickmines para ter certeza de chegar na hora. Passou pelo grandioso sobrestante gótico da catedral de São Patrício, como chamavam agora a igreja de São Patrício, e logo depois entrou na cidade através de um dos seus portões do lado sul.

O castelo assentava-se na extremidade sudeste da cidade. Onde ficara outrora o grande salão real, havia agora um enorme pátio separado do resto da cidade por um muro alto entre torres e um fosso. A entrada, por uma ponte levadiça, era através de uma comprida passagem com duas torres redondas. Lá dentro ficava o Grande Salão, a cunhagem onde eram emitidas as moedas, e os numerosos escritórios e residências dos funcionários reais. Havia também uma pequena capela, consagrada ao ex-rei inglês e santo, Eduardo, o Confessor.

Ao chegar, Walsh foi conduzido a um enorme aposento ricamente mobiliado, onde, parados diante de uma grande lareira, encontrou meia dúzia de homens que conhecia, inclusive Doyle e Harold. O magistrado deu início aos trabalhos.

— Nada do que for dito nesta reunião deverá ser repetido lá fora—— alertou-os. — Caso contrário, poderemos perder o essencial elemento surpresa. — Fez uma pausa. — Hoje, cavalheiros, enfrentamos uma ameaça muito séria. — Sumarizou o esperado ataque a Carrickmines. —Temos uma semana para nos preparar. Isso é tudo. — Dirigiu-se a Walsh. — Você tem algo a acrescentar?

Walsh estava para dizer que não, mas então lembrou-se da garota o’Byrne de cabelos negros. Descreveu resumidamente o modo como ela espreitava perto de Carrickmines. — Não creio que seja significativo — admitiu.

— Mas é — interrompeu Harold. Os outros olharam para ele. — Prefiro não lhes dizer como sei, mas essa garota é a mensageira. Isso é certo.

— Temos alguma noção da proporção desse suposto ataque? — quis saber Walsh. — Não tenho mesmo muita certeza se os o’Byrne seriam fortes o suficiente para tomar Carrickmines.

Ele ouviu um grunhido de impaciência de Harold.

— Devemos encarar isso seriamente, Walsh — reprovou-o o magistrado. — É de nossa responsabilidade. E sua — acrescentou, com um olhar severo.

— Posso trazer dez cavaleiros totalmente armados — ofereceu-se Harold.

— Sem dúvida, Walsh trará o mesmo número.

Dois dos outros fidalgos indicaram que podiam trazer pequenos contingentes. O magistrado disse-lhes que esperava notícias sobre que forças o município poderia fornecer.

— O importante, porém — frisou —, é reunir as nossas tropas sem sermos vistos. Não quero que chegue aos ouvidos dos o’Byrne a notícia de que nós os estamos esperando. Isso — acrescentou — pode limitar a quantidade de homens que poderemos reunir.

— E quanto aos soldados de Dalkey? — perguntou Walsh. — Trata-se de uma valorosa força de homens bem treinados.

Para sua surpresa, o magistrado pareceu em dúvida e Harold também franziu os lábios.

— Não sabemos — salientou Harold — se o’Byrne atacará também Dalkey. Devemos levar em consideração — olhou de relance para o magistrado — que, se transferirmos o esquadrão de Dalkey para Carrickmines antes do ataque, o’Byrne com certeza saberá. Não queremos alertá-lo.

Seguiu-se uma pausa embaraçosa. Embora o argumento de Harold parecesse bastante lógico, Walsh teve a sensação de que não lhe haviam contado algo sobre o esquadrão de Dalkey. Também notou que, até então, Doyle ouvira, mas nada dissera. Agora, porém, o saturnino comerciante falou:

— Sempre me pareceu improvável — observou calmamente — que o’Byrne atacasse Dalkey. Se ele deseja saquear as terras em volta de Dublin, então deve tomar primeiro Carrickmines, pois não pode se dar ao luxo de ter o forte agindo atrás dele. Quanto a Dalkey, a única coisa de valor que existe lá é a minha própria casa, onde, no momento, tenho estocadas, por acaso, algumas excelentes mercadorias. Mas, com todo o prazer, e fosse como fosse, eu sacrificaria a minha casa e a carga de um navio por uma causa mais importante. — Olhou em volta para todos, a cara fechada. — O magistrado disse que enfrentamos uma séria ameaça. Permitam-me discordar. Se essa informação é correta, isso então não é tanto uma ameaça, mas uma grande oportunidade. Ao atacar Carrickmines, o’Byrne nos dará a todos o motivo de que necessitamos. Que ele venha. Vamos esperá-lo. Que ele caia numa terrível armadilha. Então nós o esmagaremos. — Bateu com o punho na mão. — Nós o destruiremos de vez. Mataremos seus homens. E deixaremos que toda a Irlanda saiba.

Até mesmo Harold pareceu um pouco abalado. Walsh sentia-se ficar cada vez mais pálido diante da sombria crueldade do homem de Dublin. Doyle, porém, ainda não acabara:

— Na noite anterior ao ataque, encheremos Carrickmines de homens. Nós os levaremos para lá no meio da escuridão. Concentraremos as nossas tropas. O esquadrão de Dalkey deverá voltar imediatamente para Dublin. Ainda hoje. Ninguém desconfiará disso. De qualquer modo, eles estão mesmo sem fazer nada por lá. Depois, nós os esconderemos em Carrickmines com o resto.

— Se colocarmos todas as tropas em Carrickmines, há o risco de que o’Byrne possa localizá-las — advertiu Harold.

— Escondam-nas onde quiserem — rebateu Doyle com um impaciente dar de ombros. — Por mim, podem até escondê-las na catedral de São Patrício. Mas devem estar prontos para levá-las decisivamente até lá quando o’Byrne chegar. Isso é o que importa.

— Concordo — disse o magistrado. — Esta é uma chance de acabar com essa gente de uma vez por todas.

E, apesar de sua lealdade à coroa inglesa, Walsh não pôde evitar de sentir pena dos o’Byrne e seu povo.

No dia seguinte, o esquadrão deixou Dalkey. Tidy fez nervosas indagações sobre para onde ele ia, mas os soldados garantiram que lhes tinham dito que não havia mais necessidade deles ali e, por isso, deviam retornar a Dublin. Já que não houve qualquer sinal dos O’Byrne desde a chegada deles, a ordem não pareceu surpreendê-los. Um bastante aliviado Tom Tyde e Michael MacGowan observaram-nos partir. Tom não contara a MacGowan sobre seu encontro com Harold; nem MacGowan lhe perguntara se ele havia revelado o segredo a mais alguém. Tom, porém, imaginava que ele devia estar curioso. Enquanto as tropas passavam, nenhum dos dois disse nada; mas, após estas sumirem e os dois estarem caminhando juntos pela rua, MacGowan perguntou:

— Você acha que estão indo para Carrickmines?

— Eles disseram que iam para Dublin. MacGowan nada mais perguntou.

O dia seguinte foi tranqüilo. Pela manhã, Tom caminhou até o alto promon-tório acima da aldeia e fitou além. A grande baía de Dublin era de um azul sereno.

Em direção leste, o céu fundia-se com o mar. Olhando além do litoral para sul, onde, depois de um tapete verde de planície costeira, os suaves cones das colinas se erguiam em meio a uma nebulosa tranqüilidade, era difícil acreditar que em algum lugar atrás daquelas colinas, os o’Byrne preparavam um terrível ataque ao castelo de Walsh.

Naquela tarde, uma pequena embarcação chegara ao ancoradouro atrás da ilha. Era um pequeno barco vistoso, largo de boca; logo abaixo do topo de seu único mastro, havia um cesto de madeira no qual um vigia podia ficar de pé. Muitos dos cogs tinham esses cestos de vigia. Acima do cesto de vigia, um galhardete vermelho e azul tremulava garbosamente com a brisa. Os homens de Dalkey saíram em seus botes e descarregaram cinco barris de pregos, cinco de sal e dez pipas de vinho. Aliviado desse peso, o barco prosseguiu seu caminho, enquanto as mercadorias eram levadas para a casa fortificada de Doyle, onde MacGowan fez cuidadosamente as tabulações. Naquela noite, ele perguntou se Tom poderia, na manhã seguinte, levar o sal de carroça para Dublin.

Ao amanhecer, quando Tom chegou para fazer o carregamento, MacGowan anunciou que o acompanharia.

— Preciso entregar as tabulações a Doyle — explicou — e depois vou visitar a minha noiva.

Fazia uma bela manhã; a viagem transcorreu sem incidentes e as barracas estavam abrindo, quando chegaram a High Cross e começaram a descida em direção à rua Winetavern.

Tom passou um dia bastante agradável em Dublin. O tempo estava excelente. Visitou o antigo hospital de São João, do Peregrino; fez a travessia da ponte para Oxmantown; mais tarde, foi até o portão oriental, perambulou até a Santo Estêvão e acompanhou o pequeno riacho que descia até a antiga Long Stone viking, a pedra que permanecia de pé junto ao estuário além do Thingmount. No final da tarde, quando apanhou MacGowan para levá-lo de volta, Tom sentia-se um tanto satisfeito.

MacGowan também parecia contente, se bem que talvez um pouco pensativo quando a carroça passou pela catedral de São Patrício.

A área em volta da catedral tinha uma natureza particular. Várias residências religiosas tinham herdades ali, cujos privilégios as tornavam quase independentes dos tribunais e administradores reais. E nas propriedades feudais independentes eram conhecidas como “Liberties” e os dublinenses passaram a se referir à área por esse nome. Foi logo após passarem pelas Liberties e pegarem o caminho do seste em direção ao mar que MacGowan virou-se para Tom e comentou:

— Alguém andou fazendo perguntas a seu respeito.

— Oh, quem foi? Alguém de Dublin?

-— Não. — MacGowan hesitou. — Em Dalkey. — Fez novamente uma pausa antes de prosseguir. — Um pescador. Não interessa quem foi. Em todo caso, isso não importa. Ele me procurou ontem e me perguntou: “Uma noite dessas, eu vi Tom Tidy saindo da igreja. Você faz idéia de por que ele foi lá tão tarde?” Eu respondi que não sabia. Achei que você tinha se atrasado. Então ele me perguntou: “Ele não lhe disse nada nessa ocasião? Nada incomum?” Então olhei para ele um tanto intrigado e disse: “Nadinha. O que ele teria para dizer?” E ele assentiu e me disse: “Esqueça. Tudo bem.” — MacGowan olhava para a frente, sem querer encarar Tom. — Ontem, eu não tinha certeza se devia lhe contar. Mas isso só pode significar uma coisa, Tom. Eles andam imaginando se você ouviu alguma coisa. Não sei se contou a mais alguém o que me contou, mas, se algo der errado em Carrickmines, será atrás de você que eles virão. Achei que você devia saber.

Por algum tempo, a carroça seguiu em silêncio. Tom nada disse. MacGowan supôs que, quando terminasse de digerir aquela informação, Tom faria algum comentário. Mas ele não fez. A carroça pegou a alameda que levava em direção ao sul, através de uma aldeia chamada Donnybrook.

—Tom — disse MacGowan finalmente —, é melhor você voltar para Dublin por uns tempos. Pode ficar na casa do meu irmão. Ele terá prazer em recebê-lo. Eu lhe disse hoje que talvez você precisasse ficar uns tempos com ele... embora, é claro, eu não tenha dito por quê. Ele mora do lado de dentro das muralhas. Ninguém vai perturbá-lo lá. Eu cuidarei de sua casa em Dalkey para você. Talvez dentro de um mês você possa voltar. Tentarei descobrir. Mas não corra o risco de ficar, Tom. Não há necessidade.

Tom não respondeu. Logo depois eles seguiram pela longa estrada que levava à grande praia da baía, mas, mesmo ali, ao fazerem a volta pelo promontório na extremidade sul da baía e avistarem a ilha de Dalkey, Tom Tidy continuou sem dar uma palavra.

Se colocasse uma moeda de prata entre dois de seus dedos, Doyle seria capaz de movê-la, através dos nós, de um dedo para outro, com fluente rapidez. Esse exercício o divertia e relaxava e geralmente ele o fazia enquanto pensava. Era o que ele fazia agora, enquanto estava sentado em seu escritório comercial, pensando na situação em Dalkey.

A casa de Doyle na rua Winetavern consistia de três andares acima de um porão. O salão principal e a cozinha ficavam no térreo. No andar de cima, que se estendia para a rua, havia três aposentos, um dos quais lhe servia de escritório comercial. Tinha uma janela com vidraça que dava para a rua Winetavern e, junto à janela, uma mesa de carvalho sobre a qual havia várias pilhas de pennies de prata. Também sobre a mesa havia espalhados pennies cortados em dois, ou em quatro, para serem usados em transações menores.

Se a moeda agora fizera uma dezena de vezes o seu caminho de ida e volta pelos nós dos dedos, era porque o problema que ocupava sua mente não era nada fácil.

As providências para defender Carrickmines e enfrentar os o’Byrne tinham sido cuidadosamente planejadas. Tudo funcionava muito bem. Os preparativos tinham sido tão perfeitos que ele não achava que poderia melhorá-los, visto que ele mesmo tomara todas as providências. Só restava agora esperar dois dias.

Havia apenas um problema: Tom Tidy. Ele sabia que muita gente o considerava um homem cruel, mas sua conversa sigilosa com MacGowan não lhe deixara qualquer dúvida: Tidy não devia permanecer em Dalkey. Ele já servira ao seu propósito e o fizera muito bem; mas se Tidy permanecesse agora em Dalkey, parecia a Doyle inevitável que o carreteiro seria morto; ele não conseguia ver outra alternativa. Ao mesmo tempo que Doyle estava pronto para correr pessoalmente grandes riscos — e ser impiedoso quando necessário —, não tinha desejo de ver Tom Tidy sacrificado. Com sorte, após MacGowan ter passado a ele a notícia arrepiante, talvez Tidy voltasse a Dublin por conta própria. Doyle certamente esperava isso.

Mais duas noites. Quando Tom Tidy se separou de Michael MacGowan, ele conseguiu, pelo menos externamente, parecer sereno. Continuou sem fazer qualquer menção aos riscos que poderia correr e deu boa-noite a MacGowan, como alegrou-se em notar, do modo mais tranqüilo imaginável. Em seguida, do mesmo modo intencional, foi cuidar dos cavalos, exatamente como costumava fazer. Após isso, entrou em casa, cortou duas fatias do pão do dia anterior, dois generosos pedaços de queijo e serviu-se de uma caneca de cerveja. Tudo como sempre. Então sentou-se tranqüilamente e começou a consumi-los, encarando diretamente à frente enquanto o fazia. Depois disso, apesar de ainda restarem algumas horas de claridade de verão, ele resolveu ir dormir.

Mas não pegou no sono. Por mais que tentasse, seu cérebro cansado não se entregava à inconsciência.

O que ele faria? MacGowan estaria com a razão? Devia retornar a Dublin? A pergunta, em suas várias formas, continuava a se reafirmar, uma voz em sua cabeça que não silenciava. Após algum tempo, levantou-se e saiu para o quintal.

O sol mergulhava atrás da colina. Normalmente aquela era a hora em que a terra coberta de pedras entre a aldeia e a praia ficava iluminada por enormes listras douradas e a lã das ovelhas dispersas reluzia calidamente; mas, nessa noite, uma série de nuvens reunira-se ao longo do horizonte ocidental, bloqueando o pôr-do-sol. Além do quintal de Tom Tídy, debaixo da luz que rispidamente se estiolava, os campos quase prontos para a colheita haviam se tornado bronze-escuro; e, mais além, as terras comuns agora pareciam estranhamente desoladas. O ar estava morno. Tom permaneceu ali, em silêncio, observando, enquanto a terra mudava imperceptivelmente de verde-escuro para cinza.

O anoitecer se instalava quando ele percebeu a primeira sombra se mover. Deu-se conta do que era, é claro. Ele estivera encarando uma pequena pedra por tanto tempo que esta pareceu se mexer. Um truque da imaginação. Nada mais. Certamente, em pouco tempo, no lusco-fusco, outras pedras pareceriam se mexer. Continuou olhando. Seriam mesmo pedras? Ou ovelhas? Ou outras formas? Poderiam ser fantasmas, ou mesmo pessoas, movendo-se ali adiante? Estariam observando-o? Esperando para ir à sua casa? Haveria, no meio da noite, uma batida na porta, uma entrada forçada? E depois? Descobriu que seu coração batia depressa. Inspirou fundo e disse a si mesmo para não ser tolo.

Mesmo assim, continuou ali enquanto a escuridão aumentava. Acima dele e em direção leste, sobre o mar, o bruxuleante céu noturno estava claro. Em breve, o prateado restante da lua minguante penderia como um suspiro argênteo entre as estrelas. Mais uma noite e então... Escuridão. A noite do ataque. A noite da terrível armadilha que Harold e o magistrado haviam preparado. Doyle, também, sem dúvida. A escuridão agora era completa. Todas as sombras haviam sumido. Poderia haver ali uma centena de homens, vindo em sua direção, e ele não os enxergaria.

Ele sabia que devia dormir. Mesmo assim, não conseguia. Uma onda de cansaço oprimiu seu cérebro; mas, em seguida, seu medo, como uma opaca adaga atravessou a escuridão e atingiu seu coração. Dalkey costumava ser um lugar tão agradável. O alto promontório atrás dele, com sua vista além da baía, era como uma companhia amigável. Não mais, porém. A forma escura da colina parecia uma montanha imensa e ameaçadora, de onde a qualquer momento talvez avançassem as forças fantasmagóricas da vingança. Os o’Byrne não estavam muito longe. Por toda a sua volta, em Dalkey, havia provavelmente pescadores aliados a eles. Em quais de seus vizinhos ele podia confiar? Não fazia idéia. Seus rostos surgiram diante dele, um por um; em sua mente, rostos familiares subitamente transformaram-se em máscaras de fúria e ódio, até, finalmente, mesmo seu amigo querido MacGowan parecer estar entre eles, olhando-o de seu modo esquisito, com um olho fechado e o outro aberto crescendo cada vez mais e mais, terrível, frio e maligno.

Por que ficar ali? Por que esperar? Que queimassem sua casa e suas carroças, se quisessem, reduzindo-o à pobreza. Por que deveria esperar por sua própria destruição?

Contudo, finalmente, a fadiga superou até mesmo seu medo, e Tom Tidy, exausto, voltou para dentro e foi dormir. Mas, antes disso, fez algo que nunca fizera antes: botou a tranca na porta.

Na manhã seguinte, Tom foi direto a MacGowan e contou-lhe que partiria para Dublin.

— Não precisa se preocupar com coisa alguma — disse-lhe MacGowan. —-Irei à sua casa todos os dias. Ficarei de olho no lugar. — Levaria para sua própria casa o restante dos cavalos de Tom, prometeu. — Faz a coisa certa, Tom — assegurou-lhe. Tom podia perceber que seu amigo ficou bastante aliviado. De volta à sua casa, ele arreou seus dois melhores cavalos à carroça grande e prendeu mais um em uma rédea na traseira. Então partiu para Dublin.

Não pôde deixar de sentir uma bem-vinda sensação de alívio ao percorrer a linha longa e reta da rua de Saint Francis, onde as casas de altos coruchéus se apinhavam, e sair na encruzilhada a céu aberto, onde virou à direita para entrar na cidade. Cerca de cem metros atrás dele ficava o velho hospital de Aiíred, o Peregrino; à sua direita, a área verde onde se realizavam as grandes feiras de verão; diante dele, o grande portão ocidental — mais esplêndido do que nunca, desde que fora reformado, com suas duas volumosas torres e uma pequena cadeia. Atravessou o portão ocidental e seguiu, com um ar de mais confiança, e logo chegou à casa do irmão de MacGowan.

— Quanto tempo vai ficar? — quis saber o irmão de MacGowan. — Michael tne disse que talvez você viesse — acrescentou, sem mais comentários. Sem dúvida, estava contente em ver o amigo do irmão, mas não jubiloso.

— Talvez uma ou duas semanas — disse Tom, subitamente sentindo que tirava vantagem demais da boa vontade do outro.

A casa do artesão era bastante espaçosa, com um enorme quintal nos fundos. Sua mulher e seus filhos pareceram um poucos surpresos ao verem Tom, mas fizeram com que ele se sentisse bem-vindo e insistiram para que dormisse na casa, ao lado da cozinha, em vez de no celeiro acima do estábulo como ele sugerira. Um bom irlandês saberia como mergulhar confortavelmente em um banco e passar algumas horas do dia sem se preocupar; mas, embora tivesse vivido na Irlanda toda a sua vida, a natureza inglesa de Tom Tidy não lhe permitia descansar tão facilmente. É verdade, sentou-se por uma hora, e foi o mais amigável que conseguiu ser; entretanto, por algum motivo, ele sentiu que atrapalhava, deu uma desculpa e saiu para caminhar.

A casa ficava a um pulo da magnífica e antiga igreja de Saint Audoen, a qual se assentava na parte de dentro do antigo muro da margem do rio. Depois do muro, o terreno descia um pouco, numa ladeira íngreme, passava por algumas lojas de comida e padarias, até a área de terra nivelada que fora tirada do rio. Havia uma vista do Liffey a partir do velho muro perto da igreja e, com o agradável aroma das padarias ali perto, esse deveria ser considerado um lugar agradável. No entanto, para Tom Tidy, no presente estado de ânimo, suas pedras cinzentas eram sombrias, e até mesmo a alta forma da Saint Audoen parecia opressiva. Após caminhar um pouco por ali, não se sentiu nem um pouco mais tranqüilo e, não querendo ainda voltar para a casa, perambulou em direção ao topo da elevação da cidade e os arredores da Igreja de Cristo.

Talvez estivesse mais ensolarado ali do que na parte baixa do morro, mas, ao chegar aos arredores, Tom sentiu-se melhor. A forma atarracada da Igreja de Cristo parecia sólida e reconfortante. Entrou.

Não havia dúvida de que a Igreja de Cristo era o coração cristão de Dublin. A catedral de São Patrício, com suas elevadas abóbadas góticas, era alta e magnífica e parecia ter toda a intenção de olhar de cima a velha Igreja de Cristo ou qualquer outra igreja que ousasse levantar a cabeça. Por um longo tempo, aliás, os cânones da São Patrício e os monges da Igreja de Cristo viveram numa freqüente disputa uns com os outros. Mas essa rivalidade se esgotara e agora as duas catedrais eram bastante amigáveis.

Era, porém, no silêncio da Igreja de Cristo que se sentia a presença da antiga tradição celta de Patrício e Colum Cille. Seus pilares e arcos pareciam a Tom tão protetores quanto um castelo. As janelas com vitrais, como as páginas de um antigo livro de evangelhos, cintilavam suavemente com uma luz misteriosa. De tempos em tempos, um monge atravessava as sombras.

Tom perambulou por ali satisfeito. Olhou o pedaço da cruz verdadeira e outras relíquias sagradas. Caminhou por entre os túmulos. O mais impressionante deles era a enorme laje elevada com a efígie esculpida de Strongbow. Era típico dos Plantagenetas garantir que seus vassalos tivessem o seu lugar final de descanso e monumento em um dos locais mais sagrados da ilha. O túmulo de Strongbow era o símbolo do domínio deles sobre a Irlanda. O maior tesouro, porém, da Igreja de Cristo, mais venerado ainda do que a cruz verdadeira, era o báculo do próprio São Patrício.

Já fazia quase dois séculos desde que os monges da Igreja de Cristo, durante a chefia do arcebispo o’Toole, haviam obtido esse grande tesouro de seu antigo santuário em Ulster. Fora um triunfo do próprio prestígio deles, é claro. Mas a presença do báculo em Dublin também tinha um significado mais sutil.

Se, por um lado, os ingleses haviam fracassado em impor a ordem em toda a ilha, a própria Igreja, por outro, refletia uma divisão semelhante. No que concernia ao papa, o rei da Inglaterra era o patrono da Igreja irlandesa e os bispos irlandeses lhe deviam uma aliança adequada a um monarca feudal. Se o rei inglês insistia cada vez mais em ter ingleses como bispos em seu reino irlandês, o papa talvez às vezes objetasse, mas, quase sempre, concordava. Na prática, entretanto, esse domínio inglês era apenas realmente efetivo nas áreas sob controle real. A maioria dos padres do norte e do oeste eram irlandeses, pregando para populações de língua irlandesa. Aliás, a divisão era tão grande que o arcebispo inglês da própria São Patrício de Armagh, em Ulster, nem sequer residia em Armagh, onde não era bem-vindo, mas ao sul, em uma área de falantes de inglês. Era irônico que o grande cajado do santo padroeiro irlandês estivesse no coração da Dublin administrada pelos ingleses.

O cajado era magnífico. O grande estojo dourado que o continha era incrustado com pedras preciosas. Tom sabia que o santo o recebera das mãos do próprio Cristo, e que costumavam se referir a ele como o Báculo de Jesus, o Bachall losa. Olhou-o com reverência.

— O cajado de um herói. — Ele não notara o padre se aproximar por trás. Era um jovem louro com um rosto aberto, bastante franco, e se dirigira a Tom no dialeto inglês local, o que sugeria que ele chegara apenas recentemente à Irlanda.

— De fato — disse Tom educadamente.

— Nada conseguiu amedrontá-lo — declarou o jovem padre. — Nem o rei supremo. Nem os druidas. Ele era destemido.

Nos séculos desde os primórdios da Igreja irlandesa, as lendas sobre seus líderes continuaram a crescer. Como qualquer um, Tom as conhecia e acreditava em todas elas. Sabia como São Patrício enfrentara o rei supremo e desafiara seus druidas, à maneira de um profeta do Antigo Testamento, para ver de quem seria o deus capaz de fazer um fogo inextinguível; ele sabia que São Patrício realizara muitos milagres e até banira as cobras — uma lenda que teria sido uma grande surpresa para o próprio santo.

— Sim — concordou —, era destemido.

— Porque ele confiava em Deus — afirmou o jovem padre, e Tom baixou a cabeça, aquiescendo. O padre, entretanto, não terminara suas reflexões. Deu um sorriso insinuante para Tom. — É muito bom para você e para mim que o túmulo de Strongbow e o báculo de São Patrício estejam aqui nesta catedral — observou.

— De fato — repetiu Tom. — Então, um tanto curiosamente: — Por que diz isso?

— Eram ambos ingleses — disse o jovem triunfantemente. — Ou seja, nós — acrescentou. — Corajosos. — E, tendo declarado essa grande verdade, fez para Tom Tidy um amigável gesto com a cabeça e seguiu seu caminho.

Tom Tidy conhecia o suficiente de história para perceber o lado engraçado disso. Inglês, São Patrício o era, sem dúvida; mas alguém poderia realmente chamá-lo de inglês? Quanto a Strongbow, será que via o grande senhor anglo-normando como um inglês como ele próprio, ou como aquele simples padre? Não sabia. Entretanto, houve algo que o jovem dissera que não era tão engraçado. “Corajosos.” Strongbow e São Patrício, cada um a seu modo, certamente o foram. Olhou para o reluzente Bachall losa. Seria ele corajoso? Não o fora ao fugir em pânico de Dalkey para Dublin, forçando uma família que ele mal conhecia a aceitá-lo como hóspede, e tudo por causa de uma ameaça que poderia nem mesmo ser verdadeira. Sacudiu a cabeça tristemente. Não podia se orgulhar muito de si mesmo naquele dia. Aliás, começava a pensar que o seu comportamento era um tanto desprezível.

Meia hora depois, os MacGowan de Dublin ficaram surpresos quando Tom Tidy voltou e lhes informou que não ficaria. No fim da tarde, sua carroça voltava por Harolds Cross. E ainda restavam algumas horas de claridade, quando, para seu horror, Michael MacGowan avistou Tom Tidy subir a rua e, ao correr em sua direção, recebeu a notícia de um rosto contente.

— Mudei de idéia. Vou ficar aqui.

— Você não pode — vociferou MacGowan. Mas Tom já tinha passado por ele.

Naquela noitinha, enquanto escurecia, Michael MacGowan fez tudo o que pôde para convencer o seu amigo a partir novamente.

— Qual é a necessidade — exigiu saber — de se arriscar? — Mas nada conseguiu. Tom estava inflexível. Como resultado, MacGowan passou a noite insone. Antes de amanhecer, foi até o quintal, montou em seu cavalo e saiu de Dalkey. Enquanto cavalgava em meio à cinzenta alvorada, as palavras de uma conversa secreta que tivera recentemente ecoavam friamente em seus ouvidos.

— Ele tem de ir, MacGowan. Senão...

— Eu sei disso — respondera ele. — Mas não vou matá-lo, você sabe.

— Ninguém pedirá para fazê-lo, embora os o’Byrne possam fazer — rebatera calmamente a voz do outro. — Faça-o ir embora.

Eles foram para Carrickmines durante a noite. Tudo foi feito habilmente. Não foram em grupos, mas individualmente, conduzindo seus cavalos pela escuridão com panos de saco amarrados nos cascos, para que não fossem vistos nem ouvidos. E não foram, pois até mesmo as estrelas estavam escondidas atrás de um manto de nuvens. Do mesmo modo, altas horas da noite, o esquadrão de Dalkey, os homens de Harold e todo o resto — num total de sessenta cavaleiros e muitos soldados a pé—passaram pelos portões de Carrickmines e desapareceram lá dentro como muitos guerreiros fantasmagóricos no interior de uma montanha mágica. Quando surgiu a alvorada, Carrickmines parecia exatamente a mesma de antes. O portão estava fechado, mas isso não era incomum. Encurralados lá dentro, os cavalos às vezes faziam um pouco de ruído, mas a grossa muralha de pedra prendia esses sons dentro dela. Na metade da manhã, Walsh apareceu na muralha com seu falcão. Soltou-o no céu, onde ele voou por algum tempo, antes de retornar. Esse foi o único movimento visto naquela manhã no castelo de Carrickmines.

Foi à tarde, ao ir sozinho até a muralha, que Walsh pensou ter visto a garota escondida entre algumas pedras um pouco distante ao sul. A não ser que ela tivesse estado lá na noite anterior, Walsh tinha certeza de que a garota não poderia fazer a menor idéia de que Carrickmines estava cheia de soldados. Após um breve instante, ele desceu novamente. Para fazer tudo parecer normal, abriu os portões e deixou uma carroça, conduzida por um dos seus homens, sair do castelo e seguir rangendo até uma fazenda vizinha, retornando depois com algumas provisões. Nesse meio tempo, o portão foi deixado entreaberto e dois de seus filhos saíram para brincar. Brincaram até a carroça voltar, pularam para dentro dela, quando atravessou o portão, que ficou ainda entreaberto por algum tempo depois disso. Ele sabia que a garota de cabelos negros devia estar observando a movimentação, pois quando subiu até a muralha e as crianças entraram, ele a avistou numa encosta distante, vigiando o castelo.

À tardinha, porém, quando ele subiu novamente, não conseguiu vê-la e concluiu que ela se fora.

— Tenho certeza — disse ele a Harold, após descer — que atacarão esta noite.

Havia algo de estranho em Dalkey naquele dia. Tom o sentiu assim que saiu à rua. Seria apenas sua imaginação? Estaria nervoso? Levou isso em conta, claro. Mas achou que não. Mesmo assim, fazia uma perfeita manhã em Dalkey. A cerração da alvorada cedera lugar a uma névoa luminosa, salgada. À medida que o céu clareava para um suave azul, pequenas nuvens surgiam flutuando, brancas como a espuma do mar. Tom até mesmo tivera uma sensação de alegria ao sair de sua casa e começar a caminhar pela rua. Avistando um dos seus vizinhos, desejou-lhe bom dia, exatamente como faria em qualquer outro dia. No entanto, embora o homem tivesse respondido, pareceu a Tom que ele estava constrangido. Poucos momentos depois, viu um dos pescadores, que consertava redes diante de sua cabana, lançar-lhe um olhar estranho; e, ao ir mais adiante, teve a nítida impressão de que o observavam de ambos os lados da rua. Era uma sensação estranha, como se subitamente tivesse se tornado um convidado indesejado em sua própria aldeia.

Então foi à casa de MacGowan e descobriu que seu amigo sumira. Procurou por toda a Dalkey e perguntou a várias pessoas, mas ninguém fazia idéia do paradeiro de MacGowan. Era muito estranho. Após algum tempo, Tom voltou para casa e permaneceu ali pelo resto da manhã. Ao meio-dia, saiu novamente atrás de MacGowan, porém continuava a não haver sinal dele. Dessa vez, no caminho de volta, encontrou na rua dois homens e uma mulher. Embora respondessem ao seu cumprimento, notou neles o mesmo constrangimento. Um dos homens tentou desviar o olhar e a mulher disse “Eu pensei que você estivesse em Dublin”, num tom de voz que dava a entender que era a Dublin que ele pertencia. Quando chegou novamente em casa, seu estado de ânimo era sombrio.

Faltavam apenas algumas horas: uma tarde quente, um longo fim de tarde de verão, a escuridão baixando lentamente e, então, por fim, escuridão. E, no meio dessa escuridão, a terrível armadilha em Carrickmines. Esse pensamento o oprimia. Gostaria de poder tirá-lo da mente. Mais de uma vez, ao sentar-se sozinho em sua casa, Tom perguntou-se se não fizera tudo errado. MacGowan sumira; seria porque estava com medo? Seus vizinhos pareciam não ser mais seus amigos; saberiam de algo que ele não sabia? Deveria voltar para Dublin, afinal de contas? Duas coisas, porém, o impediam. A primeira era a vergonha. Se voltasse novamente para a casa do irmão de MacGowan, não pareceria um idiota? A segunda devia ser coragem ou talvez teimosia. Ele não tinha tomado a decisão de permanecer ali em Dalkey e enfrentar o perigo?, lembrou a si mesmo. Não iria recuar agora.

A tarde passou lentamente. Ele tentou manter-se ocupado. Deu banho nos cavalos e procurou tarefas para fazer dentro de casa. Ninguém apareceu. Caminhou incansavelmente pelo quintal. No meio da tarde, sentiu vontade de ir até a igrejinha, mas se forçou a esperar. Iria na hora de sempre, não antes. Foi ao estábulo e limpou todas as carroças, não porque isso precisasse ser feito, mas para preencher o tempo até, finalmente, sentir a hora se aproximar. Estava parado no quintal calibrando a luz e prestes a sair, quando, ao olhar em direção às terras comuns, captou a visão de algo junto a uma das pedras. Era difícil dizer do que se tratava. Uma ovelha escura, talvez — muitas das ovelhas de Dalkey tinham lã escura. Um truque da luz?

Ou algo mais. Os cabelos negros de uma garota?

A garota de cabelos negros. Por que ela surgiu em sua mente? Era absurdo. Sua imaginação pregava peças, e ele sabia disso. Sacudiu a cabeça com impaciência.

Daquele lugar, ela tinha uma boa visão de seu quintal. Teria visto todos os seus movimentos. Haveria alguém observando do outro lado da casa? Qualquer um em Dalkey poderia fazer isso. Fitou o trecho escuro junto à pedra, para ver se conseguia discernir um rosto. Não viu — e o motivo por que não viu, disse a si mesmo firmemente, era porque não havia rosto para ser visto. Inspirou fundo e virou-se, recusando-se a se deixar envolver pelo medo. Começou a sair do quintal. Estava na hora de ir à igreja. Ao seguir pela rua vazia, olhou para trás e viu a garota de cabelos negros levantar-se de um pulo e correr rapidamente de seu esconderijo em direção à extremidade mais afastada da aldeia.

A igreja estava silenciosa. Os raios do sol da tarde atravessando suas pequenas janelas banhavam o interior com uma luz cálida e suave. Não havia mais ninguém lá. Foi para seu lugar habitual atrás da divisória e, tremendo, ajoelhou-se para orar. Rezou um padre-nosso e várias ave-marias. Depois outro padre-nosso. As palavras pareciam rodopiar em volta dele, aliviando, curando. Aceitou, agradecido, seu poder protetor.

Ficou rezando silenciosamente por algum tempo, quando ouviu a porta da igreja abrir.

Eram dois. Um deles tinha uma passada suave; a do outro soava mais forte, como se usasse botas pesadas. Não havia motivo por que duas pessoas não devessem entrar numa igreja, é claro. Sua mente, porém, correu de volta até a semana anterior. Não pôde evitar. Seria a garota novamente? E seu acompanhante desconhecido? Sentiu-se esfriar.

— Tem certeza de que ele está aqui? — Uma voz grave. Uma voz que ele não conhecia.

— Tenho certeza. — Isso foi isso dito baixinho, mas a voz lhe soou familiar. Gelou.

— Então, onde está ele?

Se houve uma resposta, esta foi inaudível. Mas não fez diferença. As passadas vinham em sua direção.

Vinham atrás dele. Não havia nada a ser feito. Como fora idiota, já que podia ter ficado em Dublin. Mas agora era tarde demais. Nem mesmo tinha uma arma para se defender. Eles iam matá-lo: tinha certeza. Mas o matariam ali, na igreja? Não. Ali era a Irlanda. Não fariam isso. Eles o levariam para um local tranqüilo em alguma parte. Depois ele desapareceria. Talvez, em breve, estivesse bem ali enterrado sob as terras comuns de Dalkey. Hesitou se permanecia de joelhos, rezando, ou se levantaria e os enfrentaria como homem; os passos chegaram muito perto. Pararam. Ele vírou-se e ergueu os olhos.

Era MacGowan. E um homem alto, saturnino, a quem reconheceu como Doyle. Franziu a testa. Seu amigo? E o comerciante de Dublin? Certamente não podiam estar associados aos o’Byrne. Sua mente vacilou com a idéia dessa traição. Então Doyle falou:

— Precisa sair, Tidy. Precisa vir agora conosco. — E enquanto Tom fitava sem compreender, o rosto escuro do comerciante se abriu num amável sorriso. — MacGowan me contou tudo. Você é um homem corajoso, Thomas Tidy. Mas não podemos deixá-lo ficar aqui. — Estendeu o longo braço e segurou Tom delicada mas firmemente pelo cotovelo. — Está na hora de ir.

Tom levantou-se lentamente. Franziu o cenho.

— Quer dizer que...? — começou.

— Quer dizer que vou levá-lo a Dublin — completou Doyle calmamente. — Você ficará na minha casa por algum tempo, até esse assunto estar encerrado.

— Você acha que eles sabem? Podem desconfiar — frisou Tom —, mas não devem saber.

— Tenho certeza que eles sabem. — Isso foi dito com determinação. Tom meditou.

— Harold deve ter contado — disse ele tristemente. — Não há mais ninguém. — Suspirou. — Se bem que, mesmo assim, não sei como a informação chegou aos o’Byrne.

Ele viu Doyle e MacGowan trocarem olhares. Não podia adivinhar o que eles talvez soubessem, mas se deu conta de que Doyle tinha informantes em toda parte.

— Na Irlanda, Tidy, não há segredos — declarou o comerciante. Conduziram-no para fora e ele não discutiu mais. Doyle tinha uma carroça à

espera, com um criado contendo as rédeas.

— MacGowan cuidará de sua casa — disse o comerciante, ao ajudar Tom a subir na carroça.

Uma dezena de pessoas se reunira do lado de fora para observar. Tom olhou-as de relance. Mas, embora estivessem observando-o, era para Doyle que olhavam. Quando o comerciante entrou na carroça depois dele, olhou em volta para todos, carrancudo, sombrio, e todos curvaram a cabeça. Tom não pôde deixar de admirar o homem: seu poder era palpável. Quando a carroça deslizou para fora de Dalkey e pegou a alameda para Dublin, ele teve de admitir que teve uma secreta sensação de alívio.

Era quase meia-noite. Lá em cima, nuvens altas obscureciam as estrelas; a sombra negra da lua suspensa, invisível, em outro mundo.

Para Harold, parado junto a Walsh na muralha do castelo, as trevas em volta eram tão silenciosas, tão íntimas que parecia que Carrickmines estava encerrada no interior de uma imensa concha de ostra. No pátio do castelo, abaixo, os sessenta cavalos já estavam montados; seus leves bufos e grunhidos, e o ocasional arrastar de cascos pateando o chão, eram os únicos sons no interior das muralhas.

Harold olhou na direção da planície polvilhada de pedras. Embora seus olhos já estivessem bem acostumados à escuridão e conseguisse às vezes distinguir vagas formas à distância, ele não detectava qualquer sinal de movimento. Forçava os ouvidos, mas nada escutava. Parecia quase sobrenatural aquele negro e sufocante silêncio. Esperou tensamente.

Entretanto, apesar da tensão, não podia evitar que sua mente divagasse uma ou duas vezes. Descobriu-se pensando em sua família. Era por ela, afinal de contas, que fazia aquilo. Mesmo se eu for morto esta noite, pensou, o sacrifício terá sido necessário. Valeu a pena. Lembrou-se das reuniões com o magistrado e com Tom Tidy. O sujeito de Dalkey fora bem corajoso, a seu modo. Harold estava contente com o fato de o magistrado não tê-lo feito revelar seu informante e, portanto, conseguira proteger o homem de Dalkey. Ele fora bastante discreto. Nem mesmo mencionara Tidy para a própria esposa. Desse modo, a não ser que Tidy tivesse contado seu segredo a mais alguém, ele estaria em segurança.

Sentiu uma cutucada no cotovelo.

— Escute. — A voz de Walsh, bem baixa, ao lado dele.

Cavalos. Em algum lugar, lá fora, diante do portão. Harold ouviu-os agora: um leve som de cascos, um bufo. Quantos? Impossível saber. Não menos de uma dúzia, pensou; mas podia ser uma centena. Era isso, então. o’Byrne viera.

— Mande os homens se prepararem — cochichou Walsh. — Eu ficarei de olho. — Harold virou-se e desceu correndo da muralha. Enquanto fazia isso pensou ter ouvido o som de passos indo na direção da muralha. Eles teriam trazido escadas para escalar as muralhas? Em seguida correu de um lado a outro do pátio do castelo, sibilando ordens, enquanto um dos seus homens ordenava baixinho — tochas.

Eles estavam bem preparados. Ninguém falava. Até mesmo os cavalos pareciam saber que deviam ficar em silêncio. Os homens no portão tinham suas ordens. Os infantes estavam esperando no saguão de Walsh. Cada qual carregava duas tochas, que agora acendiam no enorme braseiro. Dada a ordem, eles correriam para fora e entregariam uma tocha a cada cavaleiro; em seguida, ou correriam acima para defender a muralha, ou irromperiam portão afora atrás da cavalaria. Walsh daria essa ordem.

Harold esperava enquanto os minutos passavam. Estava à frente dos homens montados e seria o primeiro a cruzar o portão. Sentiu seu cavalo tremer e acariciou suavemente seu pescoço. Ainda tentava escutar o que acontecia lá fora, mas as muralhas do castelo não deixavam passar os sons. Ergueu a vista para onde Walsh estivera parado. Achou que conseguia distinguir sua forma sombreada ali em cima, mas não tinha certeza.

Bamm! O súbito estrondo no portão pegou a todos de surpresa. O cavalo de Harold empinou e quase caiu.

— Aríete. — A voz de Walsh, baixa mais clara, vindo da muralha. — Preparem-se.

— Tragam tochas — ordenou baixinho Harold. Um momento depois as luzes surgiram à sua direita e seguiram fluindo em direção aos cavaleiros.

Um segundo estrondo. O portão estremeceu e ouviu-se o som de madeira lascando.

— Mais um — gritou Walsh, e Harold fez um sinal para os homens no portão. Todos os cavaleiros agora tinham tochas, inclusive ele mesmo. — As muralhas estão livres — gritou Walsh. Houve uma breve pausa.

Em seguida um terceiro estrondo no portão.

— Agora! — gritou Harold.

Os atacantes lá fora não tinham propriamente um aríete, pois este teria de ser suspenso por laçadas de cordas. Tudo que tinham era uma enorme e grossa estaca com que vinham fazendo desajeitadas investidas contra o portão. E tinham acabado de recuar para a quarta investida, quando, em vez de permanecerem bloqueados, os portões subitamente abriram-se e uma torrente de cavaleiros com tochas resplandecentes irrompeu e avançou contra eles. Era uma cena aterrorizante. Largando o aríete, eles se dispersaram na escuridão.

Harold cavalgava à frente. As tochas estavam por toda a parte, precipitando-se no ar, arremessadas para cá e para lá no chão. Os atacantes eram como sombras fugazes na luz lampejante e bruxuleante. Espadas golpeavam; havia o som de metal contra metal. Em algum lugar mais adiante, ele ouviu uma voz bradar: “Fomos destruídos.”

Eles realmente os tinham apanhado de surpresa; mas a questão não seria tão fácil assim. O terreno era acidentado. Seu cavalo já quase tropeçara. A tocha que ele carregava fornecia luz, mas também ocupava sua mão livre. Após alguns momentos, Harold puxou a rédea e olhou em volta. Ouviu a voz de Walsh aproximar-se por trás. Pôde ver as silhuetas dos homens a pé, mas onde estavam os cavaleiros? Se por um lado a tocha iluminava tudo que estava perto, por outro era difícil enxergar além de sua luz brilhante. Um pouco adiante, porém, ele pensou distinguir as vagas formas de homens montados. Com um único movimento circular do braço, ele jogou a tocha no ar, formando um alto arco em direção às formas adiante.

O primeiro bruxuleio surgira pouco antes da meia-noite. Um ponto minúsculo, um vislumbre do outro lado da água. Uma vela numa caixa com a frente de vidro — modesta mas eficaz. A luz veio da ponta da ilha de Dalkey. Quase imediatamente, uma luz em resposta surgiu no primeiro dos três barcos. Outra luz brilhava agora, do bote ancorado logo após a última das rochas. Eram úteis essas lamparinas com frente de vidro. Ninguém em Dalkey possuía algo assim; elas eram fornecidas por Dublin. Mais duas luzes surgiram agora, dos outros dois barcos. A noite estava tão escura que, não fosse por esses pequenos brilhos na água, suas formas silenciosas mal teriam sido percebidas nas trevas. Havia apenas o vento suficiente para levar os barcos a vela ao ancoradouro. Ao chegarem, os botes da praia seguiram rapidamente para seus costados. Cordas foram jogadas; mais lamparinas apareceram. Vozes falando baixinho. Na praia, carroças esperavam. A cidade toda de Dalkey estava de pé e atarefada naquela noite; pois as horas de escuridão eram breves e havia muito trabalho a fazer.

Walsh cavalgava ao lado de Harold. Todos os cavaleiros seguiam juntos. Suas tochas tinham se apagado, mas o céu havia clareado e as estrelas forneciam luz suficiente para se enxergar o caminho.

Ao afastarem-se de Carrickmines, o’Byrne conseguiu distanciar-se deles; mas não foi capaz de aumentar sua dianteira. Ao subirem a trilha em direção às montanhas Wicklow, ele ficava ocasionalmente fora de vista, mas não por muito tempo. Às vezes, Walsh ouvia o som de tropel adiante, às vezes não. A princípio, havia suposto que os cavaleiros irlandeses se espalhariam, a fim de despistá-los; mas, em vez disso, eles se mantiveram na trilha, e logo ficou claro que pretendiam usar as pontes sobre os dois rios que precisavam atravessar antes de conseguirem subir até a planície que havia depois.

E foi o que aconteceu. Quase uma hora se passara desde que haviam cruzado a segunda ponte e lá estavam eles, cavalgando por entre os cumes, debaixo das estrelas cintilantes, no grande planalto que se estendia por todo o caminho até Glendalough. As estrelas causavam um débil reflexo na charneca escura, quando os dois grupos de cavaleiros fantasmagóricos a atravessaram. Na maior parte do tempo, cavalgaram em silêncio, mas, após percorrerem o planalto por algum tempo, Walsh comentou:

— Há uma mata adiante. Talvez eles se espalhem e tentem nos despistar ali.

— Antes disso, nós os atropelaremos — rebateu Harold.

Walsh não tinha tanta certeza. Havia uma força implacável em Harold que ele não podia deixar de admirar; mas isso não queria dizer que ele pegaria o esperto irlandês. Ele já notara que, toda vez que aumentavam a marcha, o’Byrne fazia o mesmo e, quando tiveram de caminhar para descansar os cavalos, o irlandês agiu do mesmo modo. Se por um lado o’Byrne deixava que o mantivessem à vista, por outro não deixava que se aproximassem. Ele devia ter sido apanhado de surpresa em Carrickmines, mas, desde então, fora friamente astuto. Aliás, pensou Walsh inquietamente, era quase como se o’Byrne estivesse brincando com eles. Essa idéia incômoda permaneceu com ele por algum tempo, e refletiu cuidadosamente, antes de falar outra vez.

— Acho que ele nos conduz numa dança — comentou finalmente.

— O que você quer dizer?

— o’Byrne. Ele quer que o sigamos.

Harold recebeu essa notícia em silêncio. Cavalgaram por mais cerca de meio quilômetro.

— Vamos persegui-lo até matá-lo — vociferou ele.

Continuaram avançando como antes. o’Byrne mantinha sua distância; eles não conseguiam chegar mais perto. Adiante, a forma escura da mata surgiu à vista e lentamente ficava mais definida. Aproximaram-se. Os homens que estavam à frente entraram na mata e foram engolidos instantaneamente. Agora eles mesmos se aproximaram da mata. Mais um momento e entrariam. Walsh continuava ao lado de Harold, e este se apressava firmemente adiante.

— Parem! — ordenou Walsh. Não pôde evitar. Um esmagador instinto, algo inerente aos anos passados na fronteira levou-o a fazer isso. Freou o cavalo. — É uma armadilha — gritou.

Os outros cavaleiros passaram quase esbarrando. Ele ouviu Harold amaldiçoar. Mas não pararam. Um momento depois foram engolidos pela escuridão adiante, avançando indiferentes.

Era uma armadilha. Sentia nos ossos. Naquela mata em terreno alto, a quilômetros de qualquer tipo de ajuda, eram um alvo perfeito para uma emboscada. Sem dúvida o’Byrne conhecia cada centímetro daquela floresta; provavelmente seria capaz de cavalgar por ela de olhos fechados. Seria fácil para ele dar a volta, no meio da escuridão, e massacrar todos eles. Estavam fazendo exatamente o que ele queria. Walsh aguçou os ouvidos. Esperava a qualquer momento ouvir os gritos aflitos adiante, quando seus amigos fossem emboscados. Nada ouviu; mas era apenas uma questão de tempo.

Suspirou. O que fazia, esperando ali fora? Ia voltar? Deixar os outros à própria sorte? Claro que não. Não podia fazer isso. Por mais burrice que fosse, e quaisquer que fossem as conseqüências, teria de ir atrás deles. Desembainhou a espada e, a passo lento, levou seu cavalo adiante, para dentro da escuridão da mata.

A trilha era como um túnel. Os galhos acima tapavam as estrelas. As árvores de cada lado eram altas presenças, mais sentidas do que vistas no escuro. Esfor-çou-se para ouvir o som de tropel adiante ou de qualquer movimento no mato que o cercava, mas não ouviu nada. Apenas silêncio. A trilha fez uma curva. Nada ainda. Seu cavalo quase tropeçou, mas ele o conteve. Ficou imaginando a que distância os outros estariam e se deveria gritar.

O movimento à sua direita foi tão repentino que ele mal teve tempo de pensar; um estrépito na vegetação rasteira, quando cavalo e cavaleiro saltaram adiante para a trilha e quase colidiram com ele. Automaticamente, deu um golpe com a espada na direção onde o cavaleiro parecia estar, mas sua lâmina nada encontrou. Girou para atacar novamente. Mas como lutar num escuro como breu, quando se está praticamente cego? Luta-se por instinto, pois nada mais resta a fazer Ergueu a espada e voltou a atacar. Dessa vez o golpe atingiu. Houve um retumbante ruído de metal em metal, e um dolorido choque percorreu seu braço. Ele retraiu-se; havia uma dor incandescente em seu punho. A espada em sua mão pareceu subitamente pesada, mas ele começou a girá-la para atacar novamente. Um estrondo. O golpe atingiu a base da lâmina com tanta força que arrancou completamente a espada de sua mão. Ele ofegou de dor. Seu punho estava dobrado num ângulo estranho e ele não parecia conseguir mexê-lo. Ouviu sua espada cair no chão. Teve tempo apenas de imaginar onde estava seu agressor e se conseguia de alguma forma enxergar no escuro, quando, para seu horror, sentiu uma mão agarrar seu pé, levantá-lo da sela e enviá-lo para baixo, numa queda com um forte ruído surdo no chão. Resfolegando, o pulso agora doendo, tateou com a mão livre atrás da espada, que devia estar por perto, mas não conseguiu encontrá-la. Então uma voz falou acima dele.

— Está derrotado, John Walsh. — As palavras foram pronunciadas em irlandês.

Ele tentou olhar para cima e retrucou do mesmo modo.

— Você sabe o meu nome. Mas quem é você?

— Nenhum nome lhe fará bem.

Walsh não precisou que ele dissesse mais nada. Era o próprio o’Byrne. Não conseguia ver seu rosto, mas mesmo assim sabia. Sua mão esquerda ainda tentava localizar a espada.

— Está acabado, John Walsh.

Era verdade. Walsh inspirou fundo.

— Se vai me matar, é melhor acabar logo com isso.

Esperou o golpe, mas não veio nenhum. Em vez disso, pensou ouvir uma leve risadinha.

— Levarei o seu cavalo. É um excelente cavalo o que você tem. Poderá ir andando para casa. —Walsh ouviu seu cavalo se movimentar, quando o’Byrne segurou a rédea. — Qual é o nome dele?

— Finbarr.

— Um bom nome irlandês. Você está ferido?

— Acho que você quebrou o meu pulso.

—Ah. — o’Byrne já começava a se afastar. Walsh ergueu-se dolorosamente. Teria algumas contusões pela manhã. Conseguiu distinguir as sombras dos dois cavalos seguindo pela trilha. Fixou a vista neles. Então bradou:

— Que brincadeira é essa?

Mas a única resposta que pensou discernir foi uma leve gargalhada.

A alvorada logo romperia sobre o mar. O céu continuava escuro, porém uma tênue insinuação de luminosidade era perceptível ao longo do horizonte oriental, e logo a ilha de Dalkey passaria de uma sombra para uma forma.

Michael MacGowan fitou além da água. O último dos três barcos já estava bem distante no mar. O assunto fora resolvido.

A organização fora brilhante — não havia qualquer dúvida a respeito, e estava orgulhoso disso. Toda a cidade de Dalkey estivera ocupada, aquela noite, no que foi provavelmente a maior descarga de uma só vez que aquele pequeno porto já vira. Toneis de vinho, fardos de tecidos finos, barris de especiarias. E nem uma carga sequer caída no mar. Um milagre, realmente.

Ao amanhecer, tudo já estava armazenado. Algumas das mercadorias estavam na casa fortificada de Doyle; mas havia outros esconderijos secretos que MacGowan preparara. Cada carroça e carrinho de mão da cidade entrara em serviço. Os meios de transporte de TomTidy vieram a calhar; aliás, sua inesperada volta de Dublin, no dia anterior, significara que haveria outra grande carroça disponível, com que MacGowan originalmente não tinha contado. Em suma, as coisas não poderiam ter saído melhores. Mas, mesmo assim, fora algo de dar nos nervos lidar com Tidy. Sua presença ali poderia ter estragado tudo, pois é desnecessário dizer que, embora já estivesse vivendo há algum tempo em Dalkey, Tom Tidy nada sabia sobre os negócios de Doyle.

Quando Doyle conseguiu ser nomeado guarda-rios, houve pouca dúvida na mente das pessoas sobre qual seria a verdadeira natureza do acordo. Aliás, o mundo feudal foi em grande parte construído com base em tais préstimos. É verdade que as obrigações que um rei feudal e seus funcionários podiam cobrar dos senhores e proprietários de terras eram muito mais drásticas do que os toscos pagamentos de tributos da antiga Irlanda celta, mas, especialmente nas grandes Liberties feudais, onde o senhor feudal era quase como um pequeno rei, e nos limites da Fronteira, onde lei e ordem só existiam se o senhor local as pudesse impor, o proprietário de terras feudais essencialmente pagava à coroa um aluguel de terreno após o qual estava livre para fazer o que quisesse com o local. Do mesmo modo cobradores de impostos reais eram na prática cobradores que pagavam ao rei o direito de cobrar impostos por um período de tempo. Os funcionários reais em Dublin, com modesta capacidade de trabalho e renda decrescente, ficavam satisfeitos o bastante em receber quaisquer impostos que conseguissem. Portanto, se Doyle pudesse carrear para eles um fluxo razoável de receitas, advindas dos impostos aduaneiros devidos em Dalkey, era improvável que eles o incomodassem muito por causa de detalhes de sua contabilidade. Se talvez houvesse certas dis-crepâncias e irregularidades, se uma certa porcentagem dos carregamentos era calculada de modo incorreto, bem, esse era o lucro do comerciante pelos seus préstimos. Podia ser ilegal, podia ser imoral, mas, dadas as circunstâncias da ilha na época, era certamente o modo mais inteligente de se proceder. O talento empreendedor, tanto no governo quanto no comércio, floresce no lucro.

Era isso que Doyle fazia. Os balanços que apresentava eram sempre minuciosos e pareciam ser completos. Quase. Mas as contas de MacGowan diferiam dos registros oficiais de Doyle em cerca de dez por cento. Todas as mercadorias que deixavam a casa-forte de Doyle exibiam seu selo oficial declarando que as taxas alfandegárias tinham sido pagas. E tinham mesmo: mas um shilling em dez fora para ele em vez do erário público. Uma interessante variação do tema, e ainda mais difícil de se verificar, era selar as mercadorias e enviá-las a preço de custo para Bristol, onde podiam desembarcar isentas de taxas alfandegárias. O método era meio embaraçoso, mas ele o utilizara uma ou duas vezes como um favor para parentes ou amigos com quem fazia negócios no porto inglês.

Talvez fosse inevitável que um dia ele seria tentado a ir mais além. A idéia ocorrera-lhe no passado, é claro, mas provavelmente não a teria tentado se MacGowan não tivesse se mostrado tão habilidoso em controlar os moradores de Dalkey. Quando surgira essa oportunidade — uma oportunidade realmente magnífica —, MacGowan o havia convencido de que seria capaz de executar o plano com sucesso e em segurança. Mesmo assim, porém, o poderoso comerciante hesitara. Os riscos eram grandes. Se fosse apanhado em sua habitual sonegação de impostos aduaneiros — e, de qualquer modo, provar isso era difícil —, ele arriscava um pouco mais do que uma repreensão e o pagamento devido às autoridades. Talvez nem mesmo perdesse seu cargo. Entretanto, esse contrabando de grandes quantidades de mercadorias era outro caso. Para começar, significava envolver não apenas seu próprio funcionário, mas toda a Dalkey. A descoberta acarretaria sérias conseqüências: perda do cargo, uma multa pesada, ou coisa pior. O lucro, o imposto relativo a três barcos carregados com mercadorias valiosas, seria imenso, mas, de qualquer modo, ele era um homem rico e não precisava do dinheiro. Por que, então, fizera aquilo?

Fez a pergunta a si mesmo e achou que conhecia a resposta. Era o risco. A dificuldade e o perigo da coisa era o que realmente o atraía. Sem dúvida, os seus distantes antepassados vikings teriam se sentido do mesmo modo. Fazia muito tempo que o poderoso comerciante e parlamentar não sentia uma emoção de verdade. Essa era um aventura em alto-mar.

O planejamento e a logística foram formidáveis. Os três barcos teriam de vir de portos diferentes, encontrar-se ao largo da costa do sul da Irlanda e prosseguir juntos. As mercadorias teriam de ser descarregadas com incrível velocidade, no escuro; então, teriam de ser escondidas e, mais tarde, distribuídas em vários mercados para serem vendidas, sem levantar suspeitas. Somente após todos esses complexos problemas terem sido resolvidos foi que surgiu a enorme dificuldade — o súbito aparecimento do esquadrão, em Dalkey, para vigiar a costa. Assim que foi informado disso, MacGowan concluiu que os planos teriam de ser abortados.

“Suponho que acabou”, dissera tristemente a Doyle, e ficara surpreso quando o comerciante respondera calmamente: “De jeito nenhum.”

Aliás, Doyle gostara demais do desafio extra. Como conseguiria convencer o esquadrão a deixar Dalkey? Convencendo-o de que o inimigo que procurava, na verdade, atacaria em outro lugar. O castelo de Carrickmines fora a escolha óbvia. Mas a genialidade do comerciante revelou-se no modo como isso foi feito. Foi MacGowan que, desde o início, lhe sugerira Tom Tidy, quando o alertara de que o carroceiro era a única pessoa em Dalkey que não participaria do contrabando. “Se ele ao menos desconfiar do que está havendo, irá direto procurar as autoridades”, prevenira a Doyle. “Preciso tirá-lo de Dalkey por uns tempos.”

“Vamos, então, usar Tidy para a fazer o trabalho para nós”, dissera Doyle ao jovem surpreso. Foi idéia de Doyle que Tidy seria seguido, quando fosse à igreja rezar, e que deveria ouvir os conspiradores planejando o ataque a Carrickmines. “Se ele o procurar para uma orientação, o que provavelmente fará, você deve fingir dissuadi-lo de contar a qualquer um”, Doyle instruíra MacGowan. “Desse modo, ele jamais sonhará que você tramou isso contra ele. E, se é verdade o que você me contou sobre o caráter dele, então nosso amigo vai de qualquer maneira procurar as autoridades.”

E foi o que aconteceu. Tanto MacGowan quanto o próprio Doyle, quando convocados pelo magistrado, interpretaram seus papéis com perfeição. O plano do ataque a Carrickmines foi aceito como verdade; o esquadrão teria de ser retirado; a costa ficou livre novamente para o desembarque. Doyle, porém, não parou por aí. Para tornar a coisa convincente, justificou a MacGowan: “Precisaremos de um ataque a Carrickmines.”

Somente um homem com a grande penetração de Doyle seria capaz de conseguir tal coisa — nem mesmo a MacGowan foi revelado como aquilo fora feito —, mas a notícia chegou a o’Byrne e foi feito um acordo. O chefe irlandês lideraria um convincente ataque contra o castelo, no meio da noite, e providenciaria para que seus homens atraíssem os defensores para bem longe de Dalkey. Aparentemente, o plano parecera divertido a o’Byrne, e ele fora bem pago. De fato, uma boa parte do lucro da operação teria de ser sacrificada, mas Doyle já fora longe demais para recuar agora. O irlandês fora alertado do perigo que representariam Harold e os soldados, mas o risco da operação só fizera aumentar seu atrativo. “Em todo caso”, observara, “meus rapazes se fundirão com a noite.” Foi ele quem enviara pessoalmente a garota de cabelos negros para vaguear nas proximidades do castelo e do porto. “Eu disse a ela”, prometera a Doyle, “para ter certeza de que fosse vista.”

E, assim, tudo foi providenciado. Doyle, é claro, jamais seria visto. De Dublin, poderia até mesmo negar qualquer conhecimento que fosse do assunto; quanto a MacGowan, este sabia muito bem que, se algo saísse errado, Doyle o colocaria em segurança num esconderijo e, se necessário, do outro lado do mar, antes que os homens do magistrado conseguissem colocar as mãos nele.

Houve apenas um problema. Ele não se dera conta do quanto seria difícil tirar Tom de Dalkey. Fizera tudo para amedrontá-lo e fazer com que se refugiasse em Dublin, exatamente como Doyle sugerira, com histórias inventadas de perigos e a planejada hostilidade dos habitantes de Dalkey; mas quando Tom voltou, no próprio dia do desembarque, MacGowan entrou em desespero. No final, o próprio Doyle teve de tirá-lo de lá. O comerciante não ficou muito feliz com isso.

De qualquer modo, pensava MacGowan agora, ao avaliar a conclusão bem-sucedida do trabalho noturno, Doyle provavelmente não demoraria a perdoá-lo por aquele pequeno erro em seus cálculos.

Três semanas depois, quando cavalgava pelo sopé da colina, John Walsh encontrou a garota.

A vida transcorria relativamente tranqüila no castelo de Carrickmines desde a noite do ataque. O plano de impor uma pesada derrota a o’Byrne não se concretizara. Vários de seus homens, certamente, tinham se ferido. Mas, de algum modo, na escuridão, cada um deles conseguira escapar, embora a procura por eles no sopé da montanha tenha varado o dia. Quanto a Harold e seu grupo, eles madrugaram andando em círculos, de mãos vazias, na mata além de Glendalough. A operação toda fora um fracasso. Não demorou, porém — menos de uma semana —, para ser considerada um sucesso. “Nós lhes demos um susto. Colocamos todos para correr. Foi uma lição que tão cedo não vão esquecer.” Estes foram os veredictos que logo estavam na boca dos habitantes de Dublin, a história contada da batalha.

Walsh nada disse. Ele sabia que fora um truque, algum tipo de trapaça; mas não conseguira descobrir de que espécie. Obviamente, o’Byrne sabia o que ia acontecer. Se sabia que as tropas estariam à sua espera, então deve ter desejado que estivessem ali. Ao meditar mais sobre o assunto, porém, pareceu-lhe que, se o’Byrne, ou quem quer que estivesse agindo com ele, queria todas as forças militares reunidas em Carrickmines, isso só podia significar que não as queria em outro lugar. Portanto, de onde tinham vindo as tropas? De Dublin, Harolds Cross e Dalkey. Nada, que ele soubesse, acontecera em qualquer um desses lugares, no entanto, quanto mais pensava a respeito, mais suas suspeitas se concentravam em Dalkey. Talvez ele nunca viesse a saber, mas, no futuro, se lembraria e observaria com interesse. A vida na fronteira, refletiu satisfeito, nunca era monótona.

Ela estava deitada numa pedra ao sol. Devia ter adormecido; caso contrário, ele nunca teria chegado perto da garota daquela maneira. Seus longos cabelos negros tinham caído em cascata pela lateral da pedra. Levantou-se com um salto e lançou-lhe um olhar irritado, diante do qual ele apenas sorriu. Fazia-o rir lembrar-se de que aquela figura fugidia era na verdade sua prima. Ela virou-se para ir embora, mas ele lhe falou pelas costas.

— Tenho um recado para você.

— Você não tem nada para me dizer — bradou de volta, desafiadoramente.

— Leve um recado para o’Byrne — retrucou ele. — Diga-lhe que meu pulso está sarando mas que não ganhei nada pelo meu transtorno. — Ele não havia planejado recado algum, imaginou-o num impulso daquele momento, mas ficou contente com ele. Então, antes que a garota pudesse esboçar qualquer outra reação, ele virou a cabeça de seu cavalo e cavalgou para longe.

Uma semana depois, ao sair do castelo, logo após o amanhecer, ele descobriu que meia dúzia de barriletes de vinho haviam sido deixados do lado de fora do portão durante a noite.

Sorriu consigo mesmo. Então era essa a brincadeira. Dalkey ficava logo depois da estrada para Carrickmines. Talvez estivesse na hora, pensou, de a família Walsh começar a se interessar mais pelo lugar.

 

                                   O’Pale

Se os historiadores quisessem assinalar uma data para marcar o fim da Idade Média e o início da era moderna, a viagem de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo em 1492 seria uma escolha razoável. Na história britânica convenciona-se escolher 1485; pois, nesse ano, a longa rixa conhecida atualmente como a Guerra das Rosas entre os ramos York e Lancaster da casa real Plantageneta, chegou ao fim quando Ricardo III, o último rei Plantageneta, foi morto em batalha por Henrique Tudor. Sob a nova dinastia Tudor, a Inglaterra entrou no mundo do Renascimento, da Reforma e na era da exploração.

Contudo, na ilha ocidental da Irlanda, uma data melhor certamente deve ser a de apenas dois anos depois, 1487. Pois, em 24 de maio desse ano, a cidade de Dublin testemunhou um evento sem paralelo na história da Irlanda, e cujas repercussões foram profundas a longo prazo: os irlandeses partiram para conquistar a Inglaterra.

A multidão do lado de fora da catedral da Igreja de Cristo era grande. Os homens importantes da Irlanda estavam todos lá dentro, como também a maioria da pequena nobreza local.

— Eu gostaria de entrar, papai — disse a garota de cabelos ruivos. — Nós não fomos convidados?

— Claro que fomos. Mas chegamos tarde demais — retrucou ele com um sorriso. — Agora jamais conseguiremos atravessar essa multidão. Além do mais — acrescentou —, assim é melhor. Veremos o cortejo quando eles saírem.

Margaret Rivers olhou ansiosa para a Igreja de Cristo. Seu rosto sardento estava pálido de excitação, os olhos azuis luzindo. Ela sabia que sua família era importante. Não sabia exatamente por quê, mas sabia que devia ser verdade, pois seu pai lhe dissera.

— E você, Margaret, será um grande sucesso — costumava dizer a ela.

— Como sabe, papai? — perguntava.

— Porque você é a minha menina especial — respondia, como ela sabia que ele faria, e sentia um pequeno afluxo de felicidade. Tinha três irmãos, mas ela era a única mulher, e a mais nova. Claro que ela era sua menina especial. Não sabia direito o que fizera para ser um grande sucesso, porém, mais cedo naquele ano, em seu aniversário de oito anos, seu pai anunciara para toda a família: “Margaret fará um magnífico casamento. Com um homem de riqueza e importância.” Por isso, ela acreditara que o sucesso tinha algo a ver com isso.

Sabia que seu pai era um homem maravilhoso. Às vezes, via sua mãe erguer os olhos para o céu quando ele falava; ela não sabia direito o que aquilo significava, visto que a mãe nunca disse; mas, por outro lado, sua mãe tinha tendência, às vezes, a estranhos humores.

As freiras sempre trataram seu pai com o maior respeito, quando ele visitava o velho convento. Havia apenas sete, e uma delas era surda, mas suas vidas, aparentemente, estavam inteiramente nas mãos dele. “O que seria de nós sem o senhor?”, costumavam dizer. Seu pai cuidava dos negócios delas, administrava suas extensas terras e dizia-lhes que nunca teriam de se preocupar que as enormes dotações de sua abadia deixassem de sustentar suas poucas e modestas necessidades. “Sabemos que sempre podemos confiar no seu querido pai”, comentou certo dia para a pequena Margaret uma das freiras fiéis. “Seu pai é um fidalgo.”

Um fidalgo. A casa deles no subúrbio de Oxmantown talvez não fosse diferente das dos comerciantes locais, mas por toda a Fingal e além, Margaret sabia, os proprietários de terras eram, de um modo ou de outro, seus parentes. “Somos aparentados”, seu pai gostava de afirmar, “de cada família importante do Pale.”

O Pale, a paliçada inglesa: era assim que chamavam agora o território inglês em volta de Dublin — um nome que sugeria uma cerca invisível delimitando a região. As condições ali eram quase as mesmas que havia um século antes. No Pale, como na Inglaterra, persistia um padrão de paróquias e condados, onde xerifes cobravam impostos reais e os juizes decidiam casos baseados no direito comum inglês. Em torno dos limites do Pale, os senhores da fronteira ainda mantinham sua existência fronteiriça; e, mais além do enclave, quer dominado por chefes irlandeses ou por nobres como os Butler e os Fitzgerald, ficava o mundo da Irlanda gaélica. Depois do Pale, segundo o pai de Margaret, a civilização terminava. No interior do enclave, porém, a ordem era garantida pelos ingleses da Irlanda, os irlandeses de sangue inglês, homens como ele mesmo: nem tudo, talvez, o que ele gostaria de ser, mas aos seus próprios olhos e pelo menos aos das freiras, um fidalgo inglês.

Hoje, porém, na catedral da Igreja de Cristo, fidalgos como ele se preparavam para invadir o reino inglês.

— Olhe, papai. — As portas da igreja se escancararam. Soldados saíam, empurrando a multidão para trás. Um largo caminho foi aberto. Surgiam figuras, com vestimentas resplandecentes, no vão da porta. Seu pai a ergueu e Margaret pôde vê-los claramente: três bispos com mitras na cabeça lideravam o cortejo; então, vieram os abades e os priores. Em seguida, com seus mantos funcionais, vermelho, azul e dourado, vieram o prefeito e o conselheiro municipal; atrás deles, caminhavam o bispo de Dublin com o vice-rei, o conde de Kildare, chefe do poderoso clã dos Fitzgerald e o homem mais poderoso de toda a Irlanda. A seguir, vieram o lorde chanceler e o tesoureiro, seguidos pelos mais importantes nobres e funcionários da coroa. E, então, veio o menino.

Era apenas um rapazinho, um pouco mais velho do que ela. À guisa de coroa, haviam tirado o aro de ouro, que formava o halo de uma estátua da Virgem Maria, e colocado na cabeça do menino. E para garantir que esse novo rei menino fosse visto claramente, tinham escolhido um fidalgo de Fingal, um certo Darcy de nome, um gigante de quase dois metros de altura, e colocaram o rei menino sobre seus ombros.

Formando a retaguarda do cortejo vinham duzentos mercenários alemães enviados dos Países Baixos pela duquesa de Borgonha, carregando temíveis lanças e acompanhados por pífaros e tambores.

Assim, o menino Edmundo, conde de Warwick, acabara de ser coroado rei da Inglaterra e estava pronto para partir e reivindicar seu legítimo reino. Mas por que motivo ele foi coroado em Dublin?

Uma geração atrás, durante o período em que a casa real de York predominava sobre a de Lancaster, um dos príncipes de York governara a Irlanda por alguns anos e, o que era incomum para um inglês, tornara-se popular. Desde então, em muitas partes da comunidade irlandesa, especialmente em Dublin, houve uma lealdade à causa yorkista. Mas agora a Casa de York fora derrotada. Henrique Tudor que mantinha a coroa por direito de conquista, baseara sua reivindicação ao trono no fato de que seus ancestrais, embora pertencendo a uma família da pequena nobreza emergente de Gales, haviam se casado com membros da Casa de Lancaster. No que se refere à realeza, tratava-se de uma reivindicação um tanto frouxa; e embora tivesse espertamente se casado com uma princesa yorkista para fortalecer sua posição real, o novo rei Tudor não poderia dormir tranqüilo se houvesse por aí outro, mais legítimo, herdeiro Plantageneta.

E, subitamente, alguns meses antes, aparecera um herdeiro com uma reivindicação mais legítima ao trono do que a de Henrique Tudor. Era Edmundo, conde de Warwick, um príncipe real da Casa de York. Seu aparecimento, sob os cuidados de um padre, causara consternação na corte Tudor. O rei Henrique imediatamente o chamara de impostor. “Seu nome verdadeiro é Lambert Simnel”, declarou, o filho de um fabricante de órgãos de Oxford — embora o artesão em questão estivesse convenientemente morto. Então Henrique arrumou outro menino, a quem manteve na Torre de Londres, e anunciou que se tratava do verdadeiro Edmundo de Warwick. O problema foi que dois parentes Plantagenetas de Edmundo — um deles a duquesa de Borgonha, uma princesa yorkista —, após entrevistarem os dois meninos, declararam que o menino do padre é que era na verdade Edmundo, e que o de Henrique era uma fraude. Para a própria segurança do menino, o padre o levara para a Irlanda. E hoje fora coroado.

Entretanto, por mais que preferissem a Casa de York, por que os homens mais importantes da comunidade inglesa da Irlanda resolveram desafiar o rei Tudor? Visto de um século mais recente pode parecer estranho, mas, no ano de 1487, após décadas de alternância de poder entre os York e os Lancaster, não havia motivo para se supor que o apenas seminobre Henrique Tudor conseguisse conservar a sua coroa. Se muitos da alta nobreza acreditavam que estariam melhor sob domínio de um príncipe yorkista do que sob domínio de um conquistador lancastriano, os bispos, abades e funcionários reais dificilmente teriam coroado o menino se não estivessem honestamente convencidos de que era, realmente, o legítimo herdeiro.

O cortejo acabara de iniciar a descida da rua quando Margaret e seu pai foram acompanhados por um jovem a quem o pai perguntou amavelmente:

— E então, John, já se decidiu?

Seu irmão mais velho, John. Assim como Margaret, ele herdara o cabelo ruivo da família da mãe, pois ela era uma Harold. Mas se o de Margaret era escuro, quase castanho-avermelhado, o de John era claro e se erguia de sua cabeça como uma chama cor de cenoura. Vinte anos de idade, alto, atlético, para Margaret ele sempre fora um herói. E nunca tanto quanto agora, pois, na última semana, ele e seu pai vinham discutindo se ele devia se juntar à futura expedição. E agora ele anunciou:

— Já, papai. Vou com eles.

— Muito bem — assentiu o pai. — Estive conversando com um homem que conhece Thomas Fitzgerald. Trata-se do próprio irmão de Kildare — explicou para Margaret. — Não deixaremos que vá como um soldado comum de infantaria. Espero que ao meu filho — acrescentou com grande importância — mostrem alguma consideração.

— Obrigado, papai. — O irmão dela sorriu afetuosamente. Ele tinha um belo sorriso.

— Você vai à Inglaterra? — perguntou-lhe Margaret, emocionada. — Para lutar pelo menino?

Ele fez que sim.

— Está certo em ir, John — disse-lhe o pai. — Saia-se bem e poderá haver recompensas.

— Vamos seguir o cortejo — gritou o irmão e, erguendo Margaret, colocou-a sobre os ombros e começou a andar pela rua a passos largos com o pai caminhando com dignidade a seu lado. E como Margaret sentia-se feliz e orgulhosa ao seguir montada nos ombros do irmão, exatamente como o rei menino à frente deles, naquela ensolarada manhã de maio.

Desceram a rua entre as casas com altos coruchéus, os pífaros e os tambores soando alegremente adiante; saíram pelo portão oriental, conhecido como Dames Gate, Portão das Damas, atravessaram para Hoggen Green e o antigo Thingmount. Tendo feito esse circuito, o cortejo, ainda seguido por uma enorme multidão, fez seu caminho de volta para a cidade antes de, finalmente, desaparecer pelo portão que dava acesso ao castelo de Dublin, onde seria oferecido um banquete em homenagem ao rei menino.

— Você vai ao banquete, papai? — quis saber Margaret, quando seu irmão a colocou no chão.

— Não — respondeu ele, e então sorriu confiante. — Mas muitos dos grandes senhores ali dentro devem ser seus parentes. Nunca se esqueça deste dia, Margaret — prosseguiu firmemente —, pois ele ficará na história. Lembre-se de que esteve aqui com o seu corajoso irmão e o seu pai.

Não era apenas seu pai que estava confiante. Poucos dias depois, o Parlamento da Irlanda reuniu-se e, entusiasticamente, os fidalgos ingleses e os representantes da Igreja ratificaram a coroação. Emitiram uma proclamação de sua realeza. Até mesmo cunharam novas moedas com a imagem da cabeça do menino. Além dos mercenários alemães, Thomas Fitzgerald reunira mercenários irlandeses e jovens entusiastas como John, para, no fim de maio, poder dizer ao seu irmão, lorde Kildare: “Estamos prontos para partir. E devemos atacar imediatamente.” De fato, apenas uma nota discordante soava naqueles dias impetuosos.

Era de se esperar. Se dois poderosos condados do clã Fitzgerald — Kildare se estendendo do centro do Pale, e Desmond para o sul — eram os mais influentes domínios de um lorde, o terceiro grande domínio, o condado de Ormond, da família Butler, também ainda era reconhecidamente uma impressionante potência. Às vezes, as relações entre os Butler e os Fitzgerald eram cordiais, porém quase sempre não eram; e não era novidade que os Butler tivessem inveja do domínio dos Fitzgerald. Assim, quando Henrique Tudor tomara o trono da Casa de York, da qual sabia-se que os Fitzgerald eram muitos amigos, os Butler rapidamente fizeram questão que Henrique soubesse que tinham prazer em apoiar sua causa lancastriana.

E agora, logo após o Parlamento em Dublin ter se manifestado a favor do menino, chegou um mensageiro do conde de Ormond, o chefe dos Butler. “Lorde Ormond recusa-se a homenagear esse menino pretendente”, anunciou, “e declara ilegais todos esses procedimentos.”

A reação de Fitzgerald foi rápida. Lorde Kildare mandou que o mensageiro fosse levado imediatamente ao Thingmount, em Hoggen Green, e enforcado.

— Isso é cruel — declarou o pai de Margaret com uma sacudida de cabeça. — Ele era apenas o mensageiro. — Mas Margaret pôde sentir o tom de furtiva admiração em sua voz. Dois dias depois, o irmão de Kildare, Thomas, e seu pequeno exército lançaram-se ao mar rumo à Inglaterra, levando junto o seu irmão John.

A expedição do rei menino desembarcou na Inglaterra no quarto dia de junho. Seguindo em direção a York, alguns lordes yorkistas e sua comitiva se juntaram a ela; logo seu número inchara para seis mil e quinhentos homens. Depois, eles seguiram para o sul.

E Henrique Tudor, apanhado de surpresa, talvez até tivesse perdido seu reino se vários nobres ingleses, que lhe deviam lealdade e achavam que ele oferecia as melhores chances de manutenção da ordem, não tivessem se reunido a ele com contingentes de tropas inesperadamente grandes. Na manhã de 16 de junho, próximo a uma aldeia chamada East Stoke na parte central da ilha, o exército do rei menino viu-se confrontado por quinze mil combatentes bem armados e treinados. Embora os mercenários alemães tivessem bestas mortais, os arqueiros galeses e ingleses de Henrique Tudor conseguiram disparar contínuas saraivadas de flechas que caíam como tempestade de granizo. Contra os contingentes da Irlanda semitreinados e na maioria sem a proteção de armaduras, Henrique contava com lanceiros treinados e cavaleiros com armadura.

O exército irlandês foi esmagado. O rei menino foi capturado; e, tendo feito isso, Henrique Tudor não deu trégua. No local onde houve a batalha, havia uma vala que, desse dia em diante, ficou sendo conhecida como Red Gutter, pois dizia-se que ao final da manhã estava repleta de sangue. Quase todos os alemães e irlandeses foram cortados em pedaços.

Felizmente, Margaret soube apenas que seu irmão fora morto.

Henrique Tudor, porém, era mais do que impiedoso; também era esperto. Tendo capturado vivo o menino Edmundo, ele não o matou ou sequer colocou-o na prisão. Insistindo que se tratava apenas de um impostor chamado Lambert Simnel, colocou-o para trabalhar nas cozinhas reais, de onde às vezes o chamava alegremente para servir os convidados dos banquetes. Durante o reinado de Henrique, e por séculos que viriam, quase ninguém acreditou que o menino fosse na verdade o príncipe real.

Contudo, a lição que Margaret tirou desses acontecimentos teve muito pouco a ver com o próprio rei menino.

Como resultado imediato da tragédia, ela teve apenas uma profunda sensação de dor. Embora tivesse sido criada para se orgulhar de ser inglesa, formou-se em sua mente uma idéia inconsciente de que a própria Inglaterra era de certo modo um lugar estranho e ameaçador. Como é possível, perguntava-se, se havia um Deus no céu, que o rei inglês tenha tirado a vida do seu irmão daquela maneira? Ao crescer e meditar sobre os eventos que levaram à morte dele, uma nova dúvida lhe ocorreu.

— Como é possível, papai, John ter sido morto e os Fitzgerald não terem sido punidos?—Tratava-se de uma questão que remontava às origens da política irlandesa.

Quando o rei menino foi coroado em Dublin, foi o próprio Kildare, chefe dos Fitzgerald e, como vice-rei, o representante do rei Henrique Tudor e governador da ilha, quem liderara a traição. Os Butler, por outro lado, haviam permanecido leais. Contudo, Henrique perdoara Kildare, ao passo que os Butler não receberam qualquer recompensa pelo seu empenho.

— Os Fitzgerald têm a maioria do território. São parentes por afinidade de muitas famílias da pequena nobreza e, como também têm casamentos com os mais importantes príncipes irlandeses, podem reclamar mais homens e mais favores do que qualquer outro clã — disse-lhe o pai. — Além do mais, embora o poder dos Butler também seja enorme, o território deles fica entre dois condados dos Fitzgerald... Kildare do lado norte e Desmond do sul. Se os Fitzgerald quiserem, podem espremer os Butler assim. — E fez um gesto com as mãos como se manipulasse uma tenaz. — Pois bem, Margaret, dos dois grandes domínios ingleses, é natural que o de Fitzgerald governe. E se o rei inglês tentasse ignorar a ambos e mandasse um homem seu para governar, os dois logo tornariam a vida tão difícil para ele que o coitado desistiria.

E, durante o resto da infância, foi exatamente esse o padrão político a que Margaret assistiu. Mesmo quando Henrique mandou seu representante de confiança Poynings — que disse bruscamente ao Parlamento irlandês que não podia mais aprovar qualquer lei sem a sanção do rei Tudor, e até mesmo prendeu Kildare, que foi enviado para Londres —, os Fitzgerald tornaram tão difícil para ele governar que pouco tempo depois até Poynings desistiu. E, de volta à Inglaterra, quando comunicou que “toda a Irlanda não é capaz de governar Kildare e seus Fitzgerald”, Henrique Tudor calmamente observou: “Se a Irlanda não consegue governar Kildare, então é melhor que Kildare governe a Irlanda”. E mandou o chefe dos Fitzgerald de volta novamente como seu vice-rei.

— É Kildare quem governa a Irlanda, Margaret — disse-lhe o pai. — E sempre governará.

Margaret tinha treze anos quando soube que seu pai fora roubado. Soube por completo acaso.

Prometia ser uma manhã rotineira em Oxmantown. Seu pai estava em casa, sem qualquer trabalho particular a fazer naquele dia, quando um vizinho passou para perguntar se ele ia do outro lado do rio assistir à diversão.

— Você não soube — explicou ele — que um grupo de homens dos Butler e dos Fitzgerald estão brigando perto da São Patrício?

— Por que motivo? — perguntou o pai dela.

— Quem sabe? Porque são Butler e Fitzgerald.

—Acho que vou também — disse o pai. E certamente teria ido sem Margaret, se ela não tivesse implorado para que ele a deixasse ir. — Se houver qualquer perigo — alertou-a com firmeza —, terá de voltar direto para casa.

Quando chegaram à catedral, encontraram uma multidão reunida do lado de fora. Todos pareciam bem animados, e o vizinho deles, que foi na frente para descobrir o que estava acontecendo, logo depois informou que a briga já terminara e que os grupos rivais, ambos no interior da catedral, concordaram com uma trégua.

— Só tem um problema — explicou ele. — Os homens de Butler estão de um lado de uma grande porta, e os de Fitzgerald, do outro; mas a porta está trancada e ninguém tem a chave. E, antes de se apertarem as mãos, nenhum dos dois lados pretende se afastar de onde está, pois um não confia no outro.

— Eles pretendem ficar ali para sempre? — perguntou o pai.

— De jeito nenhum. Vão cortar um buraco na porta. Mas, como é uma porta grossa, isso vai levar algum tempo.

Foi exatamente nesse instante que Margaret avistou a menininha.

Estava parada com a mãe, não muito longe dali. Devia ter uns cinco anos de idade, adivinhou Margaret, mas era pequenina. Usava um vestido com desenhos bem coloridos; seus olhos eram escuros, as feições azeitonadas finamente delineadas e delicadas. Era a criança mais maravilhosa que Margaret já vira. Um rápido olhar para sua mãe, uma pequena, elegante mulher mediterrânea, explicou imediatamente a aparência da criança. Devia ser espanhola.

— Oh, papai — clamou. — Posso ir brincar com ela?

Era incomum mas não inesperado encontrar-se feições espanholas na Irlanda. Os irlandeses negros, as pessoas costumavam chamá-los. Não obstante a lenda de que alguns dos primitivos habitantes da ilha tivessem vindo da penínsul Ibérica, o motivo para haver irlandeses negros era muito simples. Séculos de comércio entre a Espanha e os portos irlandeses provavelmente resultaram em alguns casamentos entre pessoas de etnias diferentes, porém as maiores fontes de irlandeses negros foram as visitas regulares das grandes frotas pesqueiras espanholas, as quais, por gerações, foram atrás da pesca abundante na costa sul da ilha, principalmente ao largo das terras dos o’Sullivan e dos o’Driscoll em West Cork. Barcos dessas frotas costumavam aportar nas enseadas, para salgar o produto da pesca e pagar aos senhores o’Sullivan e o’Driscoll pelo privilégio. Às vezes, um marinheiro encontrava uma namorada local e se fixava lá, ou deixava um filho.

A mãe não fez objeção contra Margaret distrair sua pequenina filha. Seu nome era Joan. Por algum tempo Margaret brincou com a menina, que ficou obviamente fascinada pela menina ruiva mais velha, e não tirou mais seus enormes olhos castanhos de cima dela. Finalmente, porém, o pai chamou Margaret e disse-lhe que estava na hora de ir. Ele acabara de sorrir de modo amistoso para a espanhola e sua filha e começava a se afastar, quando um viva da multidão anunciou que os homens da catedral estavam saindo e, então, ficaram para assistir.

Os homens de Fitzgerald saíram primeiro, cerca de vinte. Seguiram rapidamente na direção do portão da cidade. Pouco depois, emergiu o grupo de Butler. A maioria foi na direção do hospital de Santo Estêvão; mas alguns se separaram, e um desses atravessou a multidão na direção deles. Tratava-se de um homem bonito, forte, com cabelo castanho rareando e um largo rosto de aparência inglesa. Ao sair do meio da aglomeração, a menininha espanhola avistou-o, gritou “Papá!” e, num instante, já se jogara em seus braços. Margaret sorriu. Era uma cena encantadora. Por isso, ela ficou surpresa quando olhou para seu pai e o viu fechar a cara, furioso.

— Vamos embora — disse Rivers subitamente e, segurando-a pelo braço, praticamente arrastou-a dali.

— O que aconteceu? — perguntou ela. — É o pai de Joan?

— Nunca imaginaria que era a filha dele — resmungou.

— Quem é ele, papai?

— Henry Butler — respondeu, mas a raiva na voz alertou-a para que não fizesse mais perguntas.

Alcançaram a ponte sobre o rio, antes que ele rompesse o silêncio.

— Muitos anos atrás, Margaret, houve uma herança... não imensa, mas grande o bastante... deixada por dois primos da família de minha mãe. E ela foi trapaceada no seu legítimo direito. Com a conivência de Ormond, tudo foi para a mãe daquele homem que você viu lá. Seu nome é Henry Butler. É de um ramo inferior dos Butler, mas, mesmo assim, um parente distante do conde. E ele tem vivido dos frutos desse excelente espólio que poderia ter sido meu. Por isso, me dói e me irrita vê-lo. — Fez uma pausa. — Nunca lhe contei isso porque não gosto de falar no assunto.

Uma disputa de herança: Margaret costumava ouvir esse tipo de coisa. Disputas entre herdeiros, em particular, eram bastante comuns na Irlanda.

— Henry Butler sabe que ficou com a sua herança?

— É bem certo que ele saiba — retrucou o pai. — Eu encontrei esse homem uma vez. Assim que ouviu o meu nome, virou as costas e foi embora.

— Joan é um doce — disse Margaret. Entristeceu-lhe o fato de a linda criancinha espanhola ser filha do inimigo de seu pai.

— O seu dinheiro foi para ela — rebateu ele sombriamente.

Não tocaram mais no assunto, mas, naquela noite, quando sua mãe achou que ela estivesse dormindo, Margaret ouviu os pais conversando.

— Já faz tanto tempo — ouviu a mãe argumentar, em voz baixa. — Não pense nisso.

— Mas é por causa disso que sou forçado a viver desta maneira, um administrador miserável trabalhando para os outros, em vez de um fidalgo com a minha própria propriedade.

— Nós temos nos arranjado muito bem. Você não consegue ser feliz com o que tem? Uma esposa e filha que o amam?

— Sei que amo a minha família mais do que tudo no mundo. — Sua voz baixou até um ponto em que ela não conseguiu escutar, em seguida voltou a subir. — Mas como posso prover para ela? Henry Butler ficou com tudo. Me diga, cadê o dote de Margaret? Está com a pequena espanhola. — Houve uma pausa. Então, novamente a voz do pai, quase em lágrimas. — Oh, que dor. Que dor.

Depois disso, Margaret tapou os ouvidos e ficou ali deitada, tremendo, por muito tempo, até finalmente cair no sono.

Margaret tinha dezoito anos quando seu pai iniciou a busca para lhe conseguir um marido.

— Procuraremos — disse-lhe confiante — em Fingal. Fingal é o lugar falou com firmeza — para uma moça inglesa como você. — Ela sabia o que ele queria dizer. Não era apenas porque Fingal era a área de fazendas inglesas, onde proprietários de terras cuidavam das grandes plantações de trigo e cevada; Fingal era uma rede familiar. Havia os Fagan, os Conran e os Cusack; a família Finglas, os Ussher, os Bealing, os Bali, osTaylor em Swords. Todas elas famílias inglesas da pequena nobreza que se casavam entre si e com as mais importantes famílias de comerciantes de Dublin. A rede de casamentos também se estendeu externamente, para os Dillon em Meath, os Bellew, os Sarsfield e os Plunkett — alguns dos melhores ingleses na Irlanda. No vértice das famílias de Fingal havia três, cujas terras se localizavam ao longo da costa. A família de St. Lawrence ocupava o promontório de Howth; logo ao norte, junto à baía seguinte, ficava o ramo da grande família aristocrática Talbot e, vizinha a esta, os Barnewall. Essas eram as pessoas a quem seu pai se referia quando mencionava Fingal.

Ela conhecia uma porção deles — não bem, mas o suficiente para travar uma conversa. Às vezes, se ia a alguma bela herdade a negócios, seu pai a levava junto. Ocasionalmente, a família era convidada a uma festa em uma das casas; ou um de seus irmãos podia aparecer na companhia de um amigo que pertencia a uma família de Fingal. Dois anos atrás ela tivera a chance de fazer amizade com a filha mais nova da família St. Lawrence. Por cerca de um ano, foram praticamente inseparáveis. Cada vez que ia à casa da amiga, Margaret ficava lá durante dias. Elas caminhavam ao longo da praia acima do estuário do Liffey até onde o riacho Tolka descia em Clontarf; ou, em dias de sol, passavam horas no promontório contemplando a costa sul do outro lado da baía onde as montanhas vulcânicas erguiam-se magicamente através da névoa. Era uma amizade feliz. A família St. Lawrence sempre foi gentil com ela. Mas depois conseguiram um marido para sua amiga, que deixou Fingal. Depois disso, não havia mais motivo para Margaret ir a Howth.

“O cabelo de Margaret,” dizia seu pai, “é seu grande patrimônio.” E ninguém discordava.

Alguém poderia dizer que seu rosto era um pouco comum demais, mas, graças a seus cabelos, bastava ela apenas passar por uma aglomeração de gente para todas as cabeças se virarem. Abundante, vermelho-escuro — se não o prendesse para cima, ele caía pelas costas como uma cortina cintilante. Ela esperava que também tivesse outros atrativos: pele boa, corpo bonito, uma personalidade marcante. Mas não era tola. “Eles notarão você por causa de seu cabelo, Margaret,” dizia-lhe a mãe. “O resto cabe a você.”

A oportunidade, para que toda a Fingal a visse, surgiu no verão, quando ela tinha dezoito anos.

Corria um dia da metade de junho quando, certa tarde, seu pai chegou em casa parecendo contente consigo mesmo e anunciou:

— Ouviram falar que um dos rapazes dos Talbot acaba de retornar da Inglaterra? Edward Talbot ficou três anos lá. Visitou a corte real. Na opinião de todos, um excelente jovem fidalgo. Vai haver uma grande festa em Malahide para recepcioná-lo. Toda a Fingal estará presente. — Fez uma pausa para que percebessem que se tratava do final da informação. — Nós também vamos, é claro — acrescentou com o rosto sério que pouco a pouco se abriu num sorriso triunfante.

Como seu pai conseguira um convite para um evento tão importante? Margaret não sabia. Mas a semana seguinte foi dedicada a ajudar sua mãe na confecção de um novo e belo vestido e em todos os outros preparativos necessários para a ocasião. Por acaso, seus dois irmãos estavam ausentes nessa época, e, um dia antes, sua mãe sofrera uma queda e luxara o tornozelo, decidindo assim ficar em casa, mas Margaret e o pai partiram para a festa com o ânimo bastante alto. O vestido de Margaret, de brocado de seda verde e preto, era um triunfo. “Destaca perfeitamente o seu cabelo”, assegurou-lhe a mãe. E embora ele não tivesse dito muita coisa, ela podia perceber que seu pai estava empolgado. Quando ele disse, “Você será a moça mais bonita da festa, Margaret”, ela ficou contente por tê-lo feito feliz e pela idéia de sua boa aparência.

O castelo de Malahide ficava no lado mais distante da antiga Planície das Revoadas de Pássaros, nas terras contíguas aos campos ondulados onde, séculos antes, Harold, o nórdico, ficava olhando a sua fazenda. Na extremidade norte da propriedade, onde um riacho fluía para o mar, passando por alguns leitos de ostras, ficava a movimentada pequena aldeia de Malahide. De seu lado oriental, ficava o mar aberto. As herdades da pequena nobreza de Fingal não eram grandes — a maioria se estendia por dezenas de hectares em vez de centenas — mas a terra de Malahide era boa e a herdade, valiosa. O castelo situava-se em uma agradável área com gramado e árvores, pontilhada de velhos carvalhos e freixos que davam ao local uma aparência imponente. Por um longo tempo, ele fora apenas uma erma torre de defesa; duas décadas antes, porém, osTalbot haviam acrescentado outras construções, inclusive um grande salão, o que deu ao castelo um aspecto mais grandioso e familiar. Diante da entrada principal, estendia-se um longo gramado a céu aberto. De um lado, havia um jardim murado. Ao se aproximarem, a luz do sol da tarde sobre a pedra dava ao castelo uma agradável aparência de suavidade.

Um grande grupo já estava reunido. Fazia calor e haviam colocado do lado de fora mesas repletas de frutas cristalizadas e outras iguarias. Criados de librê serviam vinho. Ao olhar em volta, Margaret pôde ver rostos conhecidos — conselheiros municipais e funcionários reais de Dublin, pequenos nobres de várias partes da região. “A fina flor de Fingal”, murmurou-lhe o pai, antes de acrescentar, como se todos tivessem ido lá por causa dela. “É só você escolher.”

Se, por um lado, se sentiu intimidada com a tal multidão de gente importante, por outro ficou feliz em ver várias jovens que conhecia, inclusive a velha amiga da família St. Lawrence; portanto, não demorou para que se visse envolvida numa afável conversa. Tinha consciência de que também atraíra alguma atenção. Quando se movimentava, várias cabeças masculinas se viravam. Sua mãe tinha razão: a combinação da seda verde com seu cabelo ruivo funcionava perfeitamente. Um distinto senhor de idade até mesmo veio cumprimentá-la — um membro da notável família Plunkett, revelou-lhe sua amiga.

O banquete no salão do castelo foi um magnífico acontecimento. O salão estava apinhado. Seu pai sentou-se a uma certa distância dela, mas Margaret teve alegres jovens por companhia. Foram servidos três pratos de peixe. Havia rosbife girando num espeto, carne de veado, de porco e até mesmo de ganso. Ela conhecia pouco de vinhos, no entanto pôde perceber que os vinhos franceses que serviam eram os melhores. Nunca participara antes de um evento tão suntuoso, e cuidou de se lembrar do conselho do pai. “Prove de tudo que for oferecido, mas sirva-se apenas de minúsculas porções de cada. Essa é a maneira correta de se desfrutar um banquete.” Os convidados eram tantos que não sobrava espaço para dançar, entretanto havia gaitas-de-fole e harpas sendo tocadas. Quando foram servidos os pratos de doces, Edward Talbot, em cuja homenagem era feito tudo aquilo, levantou-se e fez um encantador discurso de boas-vindas. Estava no início da casa dos vinte anos, tinha o rosto oval e feições belamente delineadas. Margaret achou que ele parecia agradável e inteligente. Seu cabelo era castanho-avermelhado e já rareava; mas ela concluiu que a sua bela testa o deixaria, no mínimo, mais atraente à medida que envelhecesse. Assim que se sentou, porém, ficou oculto da vista de Margaret e ela não voltou mais a vê-lo.

Ao final do banquete, ela foi para junto do pai. Ainda havia luz lá fora e uma trupe de dançarinos providenciava a diversão. Alguns dos convidados se reuniram diante do castelo para assisti-los, outros se dividiram em grupos para passear. Quando seu pai lhe perguntou se tinha visto o jardim murado e ela respondeu que não, ele levou-a em volta da lateral do castelo, até um portão no muro e conduziu-a ao interior.

Se mosteiros tinham seus claustros para exercícios leves e contemplação, a casa da herdade medieval tinha seu jardim murado. O jardim agora diante de Margaret estava disposto quase que geometricamente, com sebes baixas, aparadas e, aqui e ali, caramanchões copados, onde cavalheiros e damas podiam se sentar e desfrutar o silêncio para ler, conversar e namorar. Ao entrarem, Margaret sentiu as doces fragrâncias de lavanda e madressilva. Em uma extremidade da área cercada, havia uma horta. Na outra, o muro todo era coberto de rosas trepadeiras. Havia passagens entre as sebes aparadas. No centro, viu um pequeno gramado com morangos silvestres e uma única pereira, cujos frutos ainda verdes pendiam dos galhos como pedras preciosas verde-claras. Havia várias outras pessoas ali, as quais, respeitando a paz do jardim, conversavam em voz baixa. Virando na direção da horta, caminharam silenciosamente por uma passagem.

— Você é um grande sucesso, Margaret — murmurou o pai com satisfação. —As pessoas andaram perguntando quem você é. Aliás, um cavalheiro já me pediu permissão para falar com você, e foi por isso que eu a trouxe aqui. — Sorriu. — É um pouco mais velho do que eu desejaria, mas não fará qualquer mal se você falar com ele. Cause uma boa impressão e ele falará bem de você. Fará isso por mim, não é mesmo?

— Farei o que lhe agradar, papai — disse ela alegremente, pois desejava, no mínimo, fazê-lo feliz.

— Fique aqui, que vou procurá-lo — pediu ele, e saiu pelo portão. Margaret estava muito contente. Foi até a horta e começou a examiná-la. Passou

a ver quantas espécies diferentes conseguia contar, e estava tão absorta que só notou que alguém se aproximava por trás quando ouviu uma leve tosse. Virando-se e esperando ver o seu pai, ela, em vez disso, viu-se encarando um jovem a quem reconheceu imediatamente como Edward Talbot.

— Você gosta de nossas hortaliças?

— Eu as estava contando.

— Ah. — Ele sorriu. — Quantas consegue identificar?

— Há tomilho, salsa, é claro, hortelã, manjericão, noz-moscada... — identificou mais ou menos uma dúzia.

— E aquela ali? — Ele apontou, mas ela sacudiu a cabeça. — Ela vem — explicou — da Pérsia. — Era extraordinário o que ele sabia. Percorreu o canteiro mostrando-lhe hortaliças da França, da África, da Terra Santa e de mais longe. Plantas de que ela nunca ouvira falar, hortaliças cuja história ele conhecia. Ele porém, mostrava seu conhecimento com tal humor, inteligência e entusiasmo que, em vez de sentir-se oprimida, ela se descobriu sorrindo de prazer.

Ele perguntou seu nome e Margaret conseguiu lhe dar informações sobre sua família e sua parentela em Fingal para que percebesse que era parente de várias pessoas que ele conhecia.

— Talvez também sejamos parentes — sugeriu ele.

— Ah, não, minha família não pode ter tais pretensões. Não somos de modo algum importantes — teve o cuidado de frisar. — Quanto a mim — sorriu —, meus pais me dizem que o meu único patrimônio é o cabelo.

Ele riu e retrucou:

— Tenho certeza de que você deve ter muitos outros. — Então, fitando os cabelos dela com a mesma cuidadosa observação que empregava com as hortaliças, comentou gentilmente: — É mesmo muito bonito. Maravilhoso. — E quase esquecendo o que fazia, ergueu a mão como se fosse alisar o cabelo dela, antes de se deter e rir. Ela imaginava aonde aquela conversa poderia levar, quando, nesse momento, seu pai reapareceu no portão e foi na direção deles.

Estava sozinho. Evidentemente, não encontrara o homem que procurava, mas sorriu ao se aproximar e Margaret esclareceu para Talbot.

— Este é meu pai.

Ela ficou satisfeita com a cortesia com que Talbot cumprimentou seu pai e o quanto, por sua vez, este parecia ser bem informado quando fez ao jovem algumas perguntas sobre o período passado na Inglaterra, às quais Talbot pareceu encantado em responder. Os dois homens tinham acabado de iniciar um interessante debate, quando Margaret notou que uma senhora de bela aparência, que entrara no jardim enquanto ela e Talbot conversavam sobre as hortaliças, vinha agora rapidamente na direção deles. Ela usava um vestido de damasco branco-e-dourado, o qual, a cada passo que dava, produzia um leve sibilo.

— Ah, mamãe — disse Edward Talbot. E estava para apresentar Margaret, quando a senhora se virou para o pai da moça e, friamente, interpelou-o:

— Esta é sua filha?

Lady Talbot era alta. Tinha um rosto forte. Os olhos cinzentos pareciam observar o mundo de uma grande altitude.

— Sim, milady. Esta é Margaret.

Margaret viu-se então alvo de um olhar aristocrático: ou, melhor dizendo, lady Talbot olhou-a exatamente do mesmo modo impassível com que teria olhado uma peça de mobília.

— Você tem um cabelo muito bonito. — Embora tecnicamente isso fosse um cumprimento, seu tom de voz sugeria que ela poderia ter acrescentado: nada mais a dizer a seu respeito. Virou-se para o filho. — Seu pai está à sua procura, Edward. Há convidados do castelo de Dublin a quem você deve atenção.

Com uma educada vênia para o pai dela e um sorriso para Margaret, Edward Talbot os deixou. Lady Talbot, porém, não se mexeu. Esperou até Edward deixar o jardim e, então, virando-se para seu pai, como se Margaret sequer estivesse ali, dirigiu-se a ele com a maior frieza.

— Quantos de seus parentes você usou para conseguir um convite para este banquete de hoje?

— Acredito que conhece vários dos meus parentes, milady.

— Você veio aqui para mostrar sua filha ao mundo.

— Eu sou o pai dela, milady. O que mais deveria fazer um pai?

— Concordo com o fato de você ter sido convidado, embora, por direito, não devesse estar aqui. — Fez uma pausa. — Concordo com o fato de você deixar sua filha e o cabelo dela serem vistos. — Fez novamente uma pausa. — Mas não concordo que tenha vindo aqui para que a sua filha tentasse se insinuar para o meu filho. Você abusou da minha confiança.

Isso foi tão surpreendente que, por um momento, nem pai nem filha disseram qualquer coisa. Mas foi tão injusto que Margaret não pôde evitar de explodir:

— Não dirigi uma palavra a seu filho antes de ele se aproximar de mim. Os pétreos olhos cinzentos estavam novamente sobre ela. Teria havido agora

uma leve insinuação de reconhecimento?

— Pode ser que seja verdade — concedeu a lady. Virou-se para o pai de Margaret. — Mas talvez você saiba mais do que a sua filha.

Margaret olhou para seu pai. Seria possível que ele tivesse combinado o encontro? Ele saíra, não para buscar o pretendente mais velho, mas para mandar Edward Talbot em seu lugar? Diante da fria acusação de lady Talbot, Margaret ficou feliz por ele não ter enrubescido ou vociferado, mas permanecido bem calmo.

— Eu não trouxe a minha filha aqui para que fôssemos insultados — rebateu tranqüilamente.

— Então não a traga novamente — retrucou bruscamente lady Talbot. Virou-se para Margaret: — Arrume um comerciante de Dublin, mocinha do cabelo vermelho. Seu lugar não é no castelo de Malahide. — E saiu impetuosamente.

Nem Margaret nem seu pai sentiram muita vontade de falar, enquanto voltavam para casa. O sol da tardinha ainda projetava compridas sombras na Planície das Revoadas de Pássaros à medida que sua carroça deslizava pela deserta paisagem. Se Margaret pensava consigo mesma que a acusação de lady Talbot podia ser verdadeira, não era algo que quisesse perguntar ao pai. Foi ele, afinal, quem rompeu o silêncio.

— Não foi nossa família que a levou a falar daquele modo. Sou um fidalgo, como sabe.

— Eu sei.

— Foi porque sou pobre, Margaret, que ela a tratou daquele modo. — Falou amargurado, mas baixou a cabeça, envergonhado. Ela pôs o braço em volta dele.

— Obrigada pelo que tentou fazer por mim, papai — disse ela amavelmente.

— Você é um pai maravilhoso.

— Gostaria de ter sido. — Sacudiu a cabeça. — Não pretendia que você descobrisse a crueldade do mundo — declarou, ressentido. — Não desse jeito. Eu tinha esperança... — A voz morreu. Sentindo o corpo dele soluçar, Margaret não sabia se mantinha o braço em volta do pai ou não, mas deixou-o onde estava.

— Não tem importância — disse ela, após algum tempo. — Não mesmo.

— Para mim, tem — murmurou, e então silenciou novamente por um instante, até seus ombros pararem de sacudir. — Esses Talbot não são tão bons assim

— resmungou finalmente. — Dizem que se misturaram com os Butler. É provável que acabem mal. É melhor considerarmos os Barnewall. — Ele pareceu se animar um pouco. — Eles, você sabe, são seus parentes distantes.

— Oh, papai — berrou em frustração —, pelo amor de Deus, consiga para mim um rapaz em Dublin que me ame pelo que eu sou.

E naquele momento, quando à noite ela foi para a cama chorando baixinho, isso era tudo o que Margaret verdadeiramente desejava. Quando, porém, na manhã seguinte, acordou revigorada, experimentou uma nova sensação de rebeldia. Os orgulhosos Talbot talvez não a quisessem, mas ela lhes mostraria.

 

                                               1518

Era uma visão inusitada. Mulheres — cerca de cem delas, à espera junto à casa do guindaste no cais. Não apenas mulheres comuns: muitas eram senhoras refinadas, ricamente vestidas, rindo e tagarelando em uma luminosa manhã de setembro.

A casa do guindaste era um prédio de dois andares pesado, desgracioso, que servia como alfândega, do qual se projetava uma sólida estrutura de madeira, cujas rilhantes rodas dentadas e rangentes roldanas permitiam que cargas pesadas fossem içadas dos barcos da zona portuária e tivessem seu peso avaliado. Ficava mais ou menos no meio do comprido cais. A leste, tendo avançado agora muitos metros para dentro do rio, por causa das contínuas reformas, ficava o antigo cais de madeira. A oeste, na área que avançava em direção à ponte, a margem do rio era conhecida como Merchants Quay, o Cais dos Mercadores. E embora o guindaste tivesse uma aparência grosseira e uma brisa gelada tivesse começado agora a soprar no cais, as mulheres ignoravam o frio. Afinal de contas, tratava-se de uma ocasião especial.

A Riding of the Franchises, uma cavalgada cívica pelas margens da cidade, só acontecia uma vez a cada três anos. Ao romper daquela manhã, o prefeito de Dublin, resplandecente em sua vestimenta oficial e precedido por um homem carregando a espada cerimonial da cidade, deixara o Dame's Gate no leste e, após passar cavalgando pelo Thingmount e pela Long Stone viking, seguiu ao longo do estuário do Liffey em direção ao mar. Cavalgando atrás dele, vinham os vinte e quatro conselheiros municipais, os membros do conselho comum e um grande grupo de senhores feudais da localidade — quase uma centena de cavaleiros no total. Na praia, o guarda-rios arremessara uma lança no mar, para simbolizar os direitos da cidade sobre o litoral de Dublin. Em seguida, partiram para percorrer os limites da cidade.

Era um enorme circuito, pois a jurisdição da cidade — com exceção das extensas Liberties, que, em sua maioria, pertenciam à Igreja — estendia-se muito além das muralhas e, em alguns locais, era agora marcada por portões e cabines de pedágio nas estradas que dela se aproximavam. O percurso os levava primeiramente à costa, quase a meio caminho de Dalkey; depois viravam para o interior cruzando a aldeia de Donnybrook, passavam pelas cercanias de Santo Estêvão e das Liberties, perto da catedral de São Patrício, e seguiam ainda mais longe, na direção oeste, para a vila de Kilmainham, cerca de três quilômetros rio acima da cidade, onde o prefeito tomava a balsa para cavalos que fazia a travessia do Liffey Ao norte do Liffey, a fronteira seguia um imenso arco que passava cerca de quilômetro e meio a norte de Oxmantown, atravessava o riacho Tolka e continuava costa, acima até o antigo campo de batalha de Brian Boru em Clontarf e mesmo quilômetro e meio depois disso.

Passava do meio-dia. O cortejo, após percorrer a distância total de 48 quilômetros, retornava por Oxmantown e em pouco tempo passava pela ponte de volta à cidade. No fim da cavalgada, esposas começavam a procurar pelos maridos. Lenços de seda eram agitados. Houve gargalhadas. Grupo algum parecia mais animado do que o que cercava a pequena mulher de aparência hispânica, metida em um vestido de rico brocado com gola de pele para protegê-la do vento.

Margaret esperava a pouca distância desse grupo. Conhecia de vista somente poucas mulheres da cidade. Não costumava ir a Dublin; sempre havia muito o que fazer na fazenda. Vestia um bom traje, do qual não tinha motivo para se envergonhar; e, com a crescente família para pensar, ela não deixaria seu marido lhe dar um caro vestido guarnecido de pele, mesmo se ele oferecesse. Virou-se para a mulher parada ali perto.

— Aquela senhora ali, que parece uma espanhola, com quem ela é casada?

— Ah — a voz da mulher baixou respeitosamente o tom —, aquela é a esposa do conselheiro Doyle. Dizem que é muito rica. — Ela olhou surpresa para Margaret. — Não conhece Doyle? É um homem muito poderoso em Dublin.

Os habitantes de Dublin tinham orgulho de seus ricos e poderosos. Esse, afinal de contas, era exatamente o motivo da cerimônia. Na cavalgada pelos limites da cidade, o prefeito e seu grupo inspecionavam e confirmavam as fronteiras externas do extenso território da cidade. Era uma cerimônia, mas também um acontecimento jurídico. E o se qualquer outro proprietário de terras, mesmo a Santa Igreja, contestasse a extensão ou linha de fronteira das terras do município, podia ter certeza de que o prefeito se sairia bem ao reivindicar o seu direito, fosse por ação judicial ou pela força física. Dublin podia ter apenas um décimo do tamanho da poderosa Londres, mas era uma cidade grande por qualquer padrão e era a chave para a dominação da Irlanda. Já fazia muito tempo que os ricos conselheiros municipais de Dublin haviam se acostumado que os reis da Inglaterra solicitassem seus favores e alimentassem seu orgulho da cidade. A enorme espada carregada à frente do prefeito fora doada à cidade um século atrás por um rei agradecido, após um ex-prefeito ter liderado uma campanha bem-sucedida às montanhas de Wicklow contra os rebeldes o’Byrne. Atualmente, o prefeito tinha, também, o cargo de almirante, o que lhe dava direito aos impostos aduaneiros reais pagos pelos portos da costa de Dublin, até Dalkey e mais além — embora os funcionários reais abrissem mão desses impostos pois sempre tiveram muita dificuldade em cobrá-los.

Até mesmo o envolvimento dos moradores de Dublin na questão de Lambert Simnel, o rei menino, não lhes causara qualquer mal. Aliás, só deixara Henrique Tudor mais ansioso para cultivar boas relações com eles; e, durante os últimos nove anos, seu filho Henrique VIII continuara a mesma política. A mensagem da corte real para os cidadãos de Dublin era clara: “O rei da Inglaterra os quer como amigos.” Não era pouca coisa, portanto, ser mulher do conselheiro Doyle.

Não era a primeira vez que Margaret via a mulher de Doyle. Ela a avistara havia apenas duas semanas.

Um dos poucos eventos de Dublin a que Margaret sempre comparecia era a Feira de Donnybrook. Esta acontecia no final de agosto, na aldeia que ficava a um quilômetro e meio ao sul do Santo Estêvão. Às vezes, seu marido ia lá comprar ou vender gado; havia à venda todos os tipos de tecido, de comerciantes de toda a Europa; ela costumava adquirir algumas iguarias para a despensa de sua casa. Havia, também, as barracas de comida e os entretenimentos — cantores e malabaristas, músicos e mágicos. “Donnybrook é o meu passeio anual”, costumava dizer.

Aconteceu durante a feira. Ela notou a mulher de imediato por causa de sua aparência hispânica, mas não lhe deu muita atenção. Não a princípio. Somente quando examinava uma barraca de ervas medicinais, pouco depois, foi que ela se deu conta de que o rosto da mulher era familiar. Por quê?

Vinte e cinco anos se passaram desde que seu pai e ela haviam visto a família de Henry Butler e, se não fosse pelas coisas terríveis que seu pai lhe contara sobre eles, e a dor que aquilo causava a ele, Margaret certamente teria se esquecido da aparência dos Butler. Mas, por causa disso, todos os três rostos — Butler, sua mulher e a menininha — ficaram gravados em sua mente. E, agora, ficou subitamente ciente de que aquela mulher na feira de Donnybrook se parecia exatamente com a mulher de Butler de anos atrás. Seria possível que aquela fosse a menininha? Chocada, Margaret percebeu que ela estaria com aquela idade.

Ela se virou para observá-la e notou que a mulher, por sua vez, a observava com um ar de reconhecimento. Então, pensou, ela sabe quem eu sou. E enquanto imaginava como devia se sentir agora em relação à menina Butler e se devia ou não falar com ela, viu algo que primeiramente a fez gelar e depois a enojou. A mulher dera um sorriso malicioso. Não havia a menor dúvida, pensou — um risinho de triunfo e desprezo. Então, quando Margaret a encarou com súbita fúria, ela se virou e foi embora. Pouco depois, Margaret viu-a deixar a feira.

Margaret não fizera nada a respeito. O que poderia fazer? Nem mesmo tentou descobrir qualquer coisa a mais sobre a mulher. Quando, naquela noite, seu marido lhe perguntou por que parecia perturbada, ela inventou uma desculpa qualquer. Queria afastar o incidente do pensamento.

Agora, porém, parada no cais, ela descobriu quem era a mulher. Esposa de um rico conselheiro municipal, com uma grande casa, sem dúvida, e todos os luxos que o dinheiro podia comprar. Não, lembrou a si mesma, que ela tivesse algo de que se envergonhar. Doyle podia ser rico, mas continuava sendo um comerciante. Seu próprio marido era um fidalgo, nada menos do que neto de Walsh de Carrickmines, e suficientemente importante para ser convidada para tomar parte na cavalgada cívica de hoje. Sua propriedade podia ficar na fronteira do sul em vez de em Fingal, como gostaria, e podia produzir apenas uma modesta renda, mas seu marido fora educado na Inglaterra e seus ganhos como advogado compensavam as deficiências da propriedade. Não tinha razão, disse a si mesma, de se envergonhar ao se deparar com aquela mulher cuja família roubara a sua. Quando, porém, se lembrava daquele risinho ainda se sentia tensionar de raiva. Seria melhor evitá-la por completo. Afastar-se e não pensar nela.

No entanto, que espírito de autodestruição a levou, momentos depois, a seguir na direção da mulher de Doyle?

— Lá está ele. Lá está o meu marido. — Joan Doyle acenou com um lenço de seda. — Ainda não me viu — disse rindo. — Uma coisa é certa: devem estar famintos.

Joan Doyle conhecera o sofrimento, mas hoje se julgava a pessoa mais sortuda do mundo. Aos dezoito anos, teve um casamento muito feliz com um fidalgo das proximidades de Waterford. Seis anos depois, após ter perdido dois filhos para a febre, perdeu o terceiro e o marido num acidente de navegação. Aos vinte e quatro, já era viúva, e por muitos meses permaneceu num estado de silenciosa tristeza do qual não enxergava qualquer saída.

Mas então conheceu John Doyle, que, com grande paciência, convenceu-a a deixar de lado o sofrimento e, um ano depois, a se casar. Isso já fazia seis anos e, agora, com um lar e dois filhos, Joan Doyle era mais feliz do que um dia sonhou ser possível. E por ser uma alma ardente e afetuosa, por ter conhecido o que era sofrer uma grande dor, ela fazia questão de, se possível, nunca causar dor aos outros. Vivia sempre fazendo pequenas bondades; e divertia seu rico marido o fato de que nunca passava uma semana sem que ela o procurasse com um novo plano para ajudar alguém em dificuldade.

“Deve ser o seu sangue espanhol que a faz ter tanto calor humano”, dizia ele às gargalhadas. Por não ter malícia, ela não conseguia imaginá-la nos outros. Isso também seu marido adorava: fazia com que se sentisse protetor.

Joan avistou Margaret quando ela ainda estava distante uma dezena de metros. Não se virou para olhá-la, a princípio, porque a mulher a seu lado começara a entabular uma conversa com ela; mesmo com o canto do olho, porém, pôde perceber que era a mulher que notara dia desses na Feira de Donnybrook. Certamente, não poderia haver em Dublin duas mulheres com um cabelo ruivo-escuro tão maravilhoso. Não havia nele, também, qualquer vestígio de grisalho, embora estimasse que a mulher devia ser um pouco mais velha do que ela. O próprio cabelo de Joan tinha alguns fios grisalhos, os quais ela disfarçava habilmente; aliás, ela sorrira com deplorável deleite diante do pensamento de que aquela ruiva não precisava desse artifício, quando Margaret a vira e interpretava sua expressão como um risinho desdenhoso.

Desse modo, a avaliação de Margaret sobre Joan Doyle foi baseada num mal-entendido. Sobre a rixa entre as duas famílias, Joan nada sabia. A disputa da herança era tão antiga que Henry Butler nunca se preocupara em contar à filha. Quanto ao presente, Joan não fazia a menor idéia de quem era Margaret.

Portanto, foi uma infelicidade que, por acaso, quando Margaret chegou ao alcance da voz, a mulher ao lado de Joan falasse sobre um caso recente de disputa de herança havida em Dublin. A família que perdera, comentou ela, ficou muito amargurada.

— Meu marido diz que o momento de se garantir uma herança é antes da morte de alguém, não depois — retrucou Joan. — Ele é um homem terrível — prosseguiu com uma risada. — Sabe o que ele diz? — E agora, para imitar a voz do conselheiro, ela falou mais alto: — Os deserdados só devem culpar a si mesmos.

Foram essas últimas palavras que Margaret escutou, ao mesmo tempo que Joan dava uma risada e se virava para olhá-la.

Se as pessoas costumam ouvir o que esperam ouvir, então todas as expectativas de Margaret foram agora satisfeitas. Não havia dúvida em sua mente: ela ouvira aquilo que queria ouvir. Aquela rica mulher de Dublin, cuja família roubara a herança de seu pobre pai, zombava dela para um grupo de mulheres, insultava-a em público. Pois bem, pensou ela, que zombe na minha cara.

— Diga-me — intrometeu-se calmamente na conversa —, como se sentiria se você mesma fosse deserdada? — E, com isso, fixou-lhe um olhar duro e frio.

Joan Doyle não retribuiu o olhar, embora certamente olhasse para Margaret. Achou um pouco rude da parte daquela desconhecida se intrometer daquele modo, e a mulher parecia estar com a cara amarrada numa ocasião tão festiva quanto aquela. Não era, porém, da natureza de Joan censurar ninguém. E, realmente, não havia dúvida, pensou ela, que aquela mulher de aparência grave tinha um cabelo maravilhoso.

— Não sei — respondeu ela simplesmente. Então, pensando em aliviar o ânimo aparentemente solene da outra com um alegre cumprimento, ela disse, rindo: — Tenho certeza de que conseguiria suportar isso, se eu tivesse o seu cabelo. — Mal havia dito isso quando foi distraída por uma das outras mulheres avisando que os cavaleiros estavam na ponte e que seu marido acenava para ela. Quando se virou novamente, a ruiva havia sumido. Perguntou às suas companheiras quem era ela, mas nenhuma sabia.

Ela descobriria, entretanto, no mês seguinte.

Se havia uma coisa de que os ingleses da Irlanda se orgulhavam era sua religião. Tinham o seu idioma, leis e costumes, claro, e essas coisas eram importantes; mas após três séculos de convivência com os irlandeses na ilha, o que poderiam os ingleses destacar como algo importante que os mantinha unidos como uma comunidade e provava sua superioridade até mesmo para o melhor dos nativos? O que lhes dava o alto padrão moral? A resposta era simples.

Os ingleses sabiam que eram superiores porque eram católicos romanos.

Os irlandeses nativos também eram católicos, claro. Fora do enclave inglês, porém, no interior da Irlanda, todos sabiam que a Igreja Celta continuava sendo em grande parte o que sempre foi. Divórcio era permitido, padres se casavam, mosteiros eram dirigidos por chefes locais — em suma, a igreja nativa continuava tolerando essas práticas degeneradas que o papa pedira aos ingleses que purgassem, quando invadiram pela primeira vez a ilha. Para os ingleses da Irlanda, a coisa era clara como o dia: o verdadeiro catolicismo, o catolicismo romano, somente se encontrava no interior da paliçada inglesa.

De fato, dentre todos os reinos católicos, nenhum era mais leal ao papa de Roma do que o reino da Inglaterra. Na Alemanha, ou nos Países Baixos, os heréticos protestantes, os seguidores de Lutero e outros que ameaçavam a boa ordem católica, podiam ser tolerados. Mas não na Inglaterra. O jovem Henrique VIII e sua leal esposa, Catarina, a princesa de Espanha, cuidavam para que assim fosse. O rei da Inglaterra detestava protestantes; estava pronto e disposto a executá-los. Os ingleses da Irlanda, contudo, podiam afirmar de fato: “Nós somos os guardiões da fé romana.”

Mas havia muito tempo faltava uma coisa na Irlanda. A igreja era o repositório da cultura e do saber; o alto clero era quase todo formado por homens instruídos. Na Irlanda, porém, não havia universidade. Jovens ambiciosos viam o clero como um meio de viajar para Paris ou Itália — ou, mais comumente, para Oxford ou Cambridge. E, em 1518, um primeiro passo foi dado para corrigir essa situação.

Eles formavam um grupo animado. Havia Doyle, alto e belo e ostentando um magnífico chapéu de pele no qual prendera distintivo circular engastado com jóias. Joan, com um suntuoso vestido de veludo marrom guarnecido de pérolas, estava sentada alegremente a seu lado. A carruagem era vistosa — assentos acolchoados, cortinas de seda. No interior da carruagem também viajavam James MacGowan e sua esposa. Estavam vestidos mais discretamente, mais condizentes com sua posição social menos elevada. Embora talvez pudesse se dar ao luxo de roupas tão finas quanto as de Doyle, MacGowan era bem mais inteligente para querer usá-las. Empoleirado lá na frente, ao lado do cocheiro, estava Tidy, um luveiro terminando o seu aprendizado, que MacGowan trouxera consigo. O dia de outubro estava nublado, mas havia brechas luminosas nas nuvens, e nenhum sinal de chuva, enquanto deslizavam na direção oeste. O grupo seguia para Maynooth.

O castelo de Maynooth ficava cerca de quinze quilômetros a oeste de Dublin Muito maior do que as herdades fortificadas de pequenos nobres como a de Malahide, era um dos admiráveis centros onde o poderoso conde de Kildare mantinha um tribunal. E, sem dúvida, era porque Maynooth ficava próximo de Dublin e do coração do Pale que o conde o escolhera para a sua nova fundação religiosa.

Se os ingleses da Irlanda tinham orgulho de sua fé, eles também investiam nela. Em Dublin especialmente, homens ricos como Doyle talvez relutassem em contribuir para edificações municipais, mas, as igrejas, seus memoriais e capelas em que os padres rezavam missas para suas almas, eram mais esplendidamente dotadas do que nunca. O que, neste caso, fariam os Fitzgerald, se não algo numa escala muito maior?

O novo Colégio de Maynooth ficava alojado perto do castelo. Tinha um salão, uma capela e um dormitório. Seu objetivo declarado era formar uma pequena comunidade para estudo e instrução religiosos. “Mas, se conheço algo sobre a ambição dos Fitzgerald”, comentara Doyle, “isso será apenas o começo.” Todos sabiam que foram exatamente como pequenos colégios que as universidades de Oxford e Cambridge começaram.

E, com os prédios concluídos, o conde convidara gente de toda a parte para assistir à cerimônia de consagração.

Joan olhava seus companheiros de viagem com afeição. Seu marido: alto, moreno, competente; algumas pessoas, ela sabia, tinham medo dele, mas, para ela, era forte como um leão, porém dócil como um cordeiro. MacGowan, mais novo do que seu marido, estranhamente imutável, com o cabelo rareando, lábio pendurado e o olhar sempre aguçado. Comerciava por todo o Pale e além. “Sei muita coisa”, comentara seu marido certa vez, “mas o nosso amigo MacGowan sabe tudo.” E em várias ocasiões voltara para casa sacudindo a cabeça maravilhado e lhe dissera: “Aquele sujeito é mais astuto do que o próprio diabo. Mas McGowan e sua simplória esposa sempre pareceram a Joan um casal cordial e afetuoso. Talvez, meditou, ambas as qualidades fossem verdadeiras. Quanto ao jovem Tidy, seu caso era bastante simples. “A família Tidy é boa gente dissera-lhe o marido. “Uma das melhores famílias de artesãos, e muito devota. Henry Tidy ia ser um luveiro. Um bom ofício. Em poucos anos, supôs ela, o jovem Tidy estaria procurando uma esposa. Talvez, pensou alegremente, pudesse ajudá-lo a conseguir uma boa moça.

No fim da manhã, o grupo de Doyle chegou bem animado ao castelo de Maynooth. O que não era de surpreender, pois ficou imediatamente claro que, naquele dia pelo menos, todas as rixas seriam esquecidas.

Todo mundo estava presente. Fitzgerald e Butler, Talbot e Barnewall, funcionários reais de Dublin e alguns dos maiores chefes irlandeses de fora da paliçada. Afinal, embora o novo colégio fosse claramente um triunfo para os Fitzgerald, e se situasse no interior da paliçada inglesa, ainda assim, a seu modo, era um estabelecimento que honrava toda a ilha.

Assim que os Doyle chegaram, muitas pessoas vieram saudá-los. Até mesmo os Talbot de Malahide se aproximaram para dizer algumas palavras amigáveis. Apesar de toda a sua riqueza, não era todo dia que os orgulhosos Talbot chegariam perto para falar com Doyle. “É porque eles sabem que você nasceu uma Butler”, disse ele com um sorriso para Joan. Mas o que Joan realmente esperava era uma chance para ver, bem de perto, o conde de Kildare em pessoa.

Claro que ela já o vira vez por outra em Dublin, indo ou vindo do castelo ou da mansão dos Kildare na cidade. Mas ele sempre fora uma presença distante, protegido por criados. Mesmo em sua casa na cidade, havia sentinelas de guarda nos portões, armados com mosquetes alemães. A última vez que o vira na rua, ele estava cercado por uma falange de gallotuglasses, como chamavam os temidos mercenários escoceses com suas terríveis achas-de-armas, os quais alguns chefes irlandeses passaram atualmente a contratar como guarda-costas e tropas de choque.

Se, vinte anos antes, Henrique Tudor cinicamente decidira que era mais fácil deixar o velho conde em paz do que destruí-lo, a convivência com a nova geração estava perto disso. O atual conde e o rei Henrique VIII eram amigos e, nos últimos anos, o rei inglês deixara o amigo governar a Irlanda praticamente como ele queria. Kildare tinha a concessão de todas as receitas da coroa e, desde que mantivesse a ordem, nem sequer precisava prestar contas.

“A verdade”, comentara Doyle certo dia para Joan, “é que agora Kildare é praticamente o rei supremo da Irlanda.” E a analogia era válida. Após gerações de parentescos por afinidade com as mais importantes famílias principescas irlandesas, o chefe dos Fitzgerald não apenas possuía uma imensa rede de contatos políticos entre os príncipes irlandeses nativos, como também o sangue de reis irlandeses corria em suas veias. Em suas fortalezas fora do Pale, os bardos irlandeses nos banquetes cantavam canções sobre seus ancestrais irlandeses, e ele aplicava a justiça de acordo com as antigas leis irlandesas não escritas, com a mesma facilidade com que utilizaria a lei inglesa em outro lugar. “Ele usa a lei que melhor lhe convém”, resmungavam alguns dos litigantes. Ao rei inglês, ele dizia: “Majestade, sem o senhor eu não sou nada.” Aos poderosos o’Neill, seus parentes, que o reconheciam como seu chefe supremo, ele frisava, “Estamos nos saindo muito bem fora daqui”. Para preservar a ordem, do mesmo modo como os reis irlandeses haviam feito séculos antes, ele incursionava nos territórios de quaisquer chefes que lhe causassem problemas e confiscava seu gado. A única diferença entre os velhos tempos e agora era que Kildare tinha a artilharia Tudor.

Por acaso, Joan conseguiu seu desejo mais cedo do que esperava. Foi depois que os Talbot se afastaram que ela notou outro grupo vindo em sua direção. As pessoas estavam acompanhadas pelo prefeito de Dublin, mas pareciam ser estrangeiras. Havia um padre, o qual, pela aparência, ela julgou ser italiano; um cavalheiro aristocrático vestido de preto, que era sem dúvida da Espanha; e duas damas, cujos corpetes e vestidos reluzentes com jóias eram de um modo geral mais ricos do que qualquer coisa já vista em Dublin. O que mais chamou a sua atenção, porém, foi o belo personagem que os acompanhava. Estava com meias e sapatos acolchoados. Seu gibão bem justo, costurado com fios de ouro e cravejado de pérolas, tinha enormes mangas bufantes com cortes. Ela nunca vira antes alguém vestido daquele modo, mas tinha bastante conhecimento para adivinhar que aquela devia ser a moda aristocrática na corte inglesa. Ele aproximou-se com o gracioso andar de um grande felino; ela ouviu-o dizer algumas palavras em francês para as damas, que riram, e Joan ficou imaginando quem poderia ser aquela deslumbrante criatura palaciana. Então subitamente reconheceu-o, com um leve susto. Era o conde de Kildare.

Um momento depois, o prefeito os apresentava. Kildare, os olhos cintilando agradavelmente, disse algumas palavras oportunas, e o grupo seguiu adiante, deixando Joan observando-o, fascinada.

Ela sabia que o conde fora enviado pelo pai para passar muitos anos na corte inglesa. Foi quando fizera sua amizade com o rei atual, Henrique VIII. E ela sabia que atualmente a corte inglesa era um centro de aprendizado, onde se esperava que os cortesãos se familiarizassem com a literatura clássica e as artes, como também fossem capazes de dançar e tocar o alaúde e compor versos. Mas aquela foi a primeira vez que ela vislumbrava o rosto dourado da Renascença, e sentia aquele novo mundo mesmo sem saber exatamente o que era.

— Impressionada? — Seu marido olhava-a divertido.

— Ele parece um homem que vive em outro mundo. — Ela sorriu. — Com os anjos no paraíso.

— E vive realmente. — Doyle assentiu pensativamente enquanto Kildare e seu grupo se afastavam. — E, segundo alguns — prosseguiu baixinho —, à nossa custa. Instala suas tropas quando quer na casa das pessoas. Cobra altos impostos e fica com o dinheiro. É por isso que consegue sustentar seus partidários. Algumas pessoas veriam com bons olhos uma reforma.

Na maior parte de sua vida, Joan ouvira pessoas murmurando sobre a reforma na Irlanda, mas aprendera a não levar o assunto a sério.

— Meus parentes Butler costumavam se queixar dos Fitzgerald — comentou com uma risada — mas, tendo uma chance, tenho certeza de que se comportariam do mesmo modo. — Olhou para Doyle mais seriamente. — Ele tem a amizade do rei — mencionou. “Agora mais do que nunca, segundo dizem.”

Doyle assentiu pensativamente. Ela viu seus olhos acompanhando Kildare, enquanto este continuava avançando por entre os convidados.

— Vou lhe contar uma história — disse ele. — Anos atrás, o pai do rei tinha dois conselheiros. Vinham servindo-o fielmente durante muitos anos e, graças a eles, quando Henrique Tudor morreu, havia mais dinheiro no tesouro real do que jamais houve na história da Inglaterra. O nosso rei atual conheceu os dois homens toda a sua vida. Eram como tios para eles. Entretanto, por servirem tão bem ao pai dele, os dois fizeram muitos inimigos. Por isso, quando o velho rei morreu, o Parlamento inglês quis destituí-los. — Fez uma pausa. — Sabe o que o jovem Henrique fez? Mandou executar ambos os homens. Sem pensar duas vezes. Porque isso lhe convinha. — Fez uma pausa. — A amizade do rei Henrique VIII é algo perigoso. Ele só ama a si mesmo.

E agora Joan descobriu-se fitando a dourada figura de Kildare, e a cinzenta luz de outubro sobre suas costas parecia mais sombria e melancólica.

Então avistou a mulher de cabelo ruivo.

Dessa vez descobriu rapidamente quem era ela. MacGowan ainda estava parado por perto e ele soube de imediato.

— É a mulher de William Walsh. Tenho feito negócios na casa deles. Ela quase nunca vem a Dublin.

— William Walsh, o advogado? — perguntou Doyle. — Dizem que é um bom homem. Pode trazê-los aqui? — perguntou a MacGowan.

Wiliam Walsh olhou surpreso para a esposa.

— Vai parecer muito estranho — disse ele — se você não for. — Ele era um homem alto, magro, tinha braços compridos, pernas compridas, cabelo grisalho cortado à escovinha e uma nervosa energia no rosto amável; seu queixo quadrado, todavia, dava uma pista de sua ascendência militar. Não podia imaginar por que sua mulher relutava tanto em ir falar com os Doyle, principalmente em uma ocasião festiva como aquela; e embora estivesse acostumado às ocasionais rabugices de Margaret, achava que devia ser firme. — São pessoas a quem eu não gostaria de ofender — advertiu-a delicadamente, quando ela teimou em não acompanhá-lo.

Doyle cumprimentou-os cortesmente. Ele pareceu a Margaret uma pessoa bastante franca. Joan Doyle deu um lindo sorriso.

— Eu sei quem você é — disse ela a William Walsh, e continuou, ao dirigir seu sorriso para Margaret: — Eu sei tudo sobre você. — Era uma daquelas pequenas frases brilhantes que podiam significar qualquer coisa ou nada. Margaret não retrucou, mas permaneceu atenta.

Doyle falou a maior parte do tempo, mas ficou claro que queria ouvir a opinião de William Walsh sobre vários assuntos. A impressão de Margaret foi a de que o conselheiro orgulhava-se de conhecer todo mundo que interessava no Pale, e que, ao ser apresentado a William Walsh, o advogado, decidira conhecê-lo melhor. Pelo que pôde julgar, William o impressionara.

Durante esse tempo, nenhuma das esposas foi chamada a falar. Mas então a conversa voltou-se para famílias.

— Você é parente dos Walsh, de Carrickmines, creio eu — comentou Doyle. Era um sinal, um educado reconhecimento do status do advogado entre a pequena nobreza.

— Sim, sou parente — respondeu William agradavelmente.

— Acabamos de falar com os Talbot de Malahide — continuou Doyle, com evidente prazer. — Minha mulher os conhece muito bem — exagerou só um pouco —, pois ela é uma Butler. Você os conhece, talvez?

— Ligeiramente—disse William Walsh, com perfeita veracidade. Então, com um sorriso tranqüilo, acrescentou: — Malahide é muito distante de onde moramos.

E agora, com seu sorrisinho sempre pronto, Joan Doyle dirigiu-se a Margaret:

— Você não gostaria de ir até lá, tenho certeza. — Virou-se de costas para os demais. — Aquela subida toda desde Fingal.

Isso pareceu inofensivo. Ninguém, além de ela mesma, Margaret deu-se conta, podia saber o que a mulher de Doyle realmente quis dizer. “Eu sei tudo sobre você”, dissera ela. E de que modo astucioso, agora, ela a humilhava com o que sabia. Ela obviamente sabia que a família de Margaret viera de Fingal. Os Talbot deviam ter-lhe contado como despacharam Margaret quando ela era jovem. As lembranças amargas a esse respeito ainda feriam fundo, após todos aqueles anos. E agora a mulher do conselheiro decidira escarnecer dela com aquilo sob o disfarce de uma conversa amigável. A maldade daquela mulherzinha morena quase lhe tirava o fôlego.

Ninguém mais, porém, notara coisa alguma e, um momento depois, a conversa mudou para o novo colégio e, então, para o próprio Kildare.

— Devo dizer — observou Walsh para o conselheiro — que o conde tem sido muito bom comigo. — De fato, foi em parte como uma expressão de lealdade e gratidão que ele fizera questão de ir a Maynooth naquele dia com a sua esposa. — Pois graças a ele — explicou — acabo de conseguir o cultivo de uma boa terra da Igreja.

Se os ingleses da Irlanda eram orgulhosos defensores da Igreja, esta, por sua vez, era boa para com eles. Como advogado, William Walsh cuidava dos interesses de várias casas religiosas, inclusive a casa das freiras, cujos negócios o pai de Margaret lhe passara alguns anos antes de sua morte. Outra maneira pela qual a Igreja recompensava os pequenos nobres locais era arrendar-lhes suas terras por aluguéis muito modestos. A família Walsh — parte de uma íntegra pequena nobreza que também fornecera por gerações vários clérigos ilustres — tinham bons candidatos a tal tratamento; mas fora um pedido de Kildare que garantira recentemente a William Walsh o arrendamento de uma fazenda monástica por um aluguel quase irrisório.

Margaret entendeu muito bem que, ao informar isso a Doyle, seu marido habilmente deixava que o conselheiro tomasse conhecimento de duas coisas: primeira, que tinha as boas graças de Kildare e era leal a ele; e, segunda, que estava ativamente empenhado em obter fortuna. Doyle pareceu impressionado.

— Você pensa em concorrer ao Parlamento? — indagou o conselheiro. Embora o Parlamento irlandês supostamente representasse toda a ilha, na

prática quase todos os seus trinta ou quarenta membros vinham de Dublin e do território inglês vizinho: o Pale. O poder do Parlamento podia ser limitado pelo rei inglês, mas havia prestígio em ser um de seus membros.

— Penso sim — cogitou Walsh. — E você? — Havia muitos comerciantes ricos no Parlamento.

— Eu também — confirmou Doyle, e deu um olhar para Walsh que dizia: conversaremos mais depois.

Durante o diálogo, Margaret observara em silêncio. Sabia o quanto o marido havia trabalhado arduamente para sua família — era uma das muitas coisas que amava nele — e ficava feliz em vê-lo conquistar algum sucesso. Ela nada tinha em particular contra Doyle. Se ao menos sua esposa fosse uma outra pessoa.

A conversa foi em frente. Os dois homens comentavam sobre o rei. Ela não prestava muita atenção, mas ouviu a mulher de Doyle dizer ao marido:

— Você devia lhe contar a história que acabou de me contar. — E o conselheiro passou a relatar o caso sobre os dois conselheiros que o rei executara. — Esses Tudor são bem cruéis, talvez até mais do que foram os Plantagenetas — Margaret ouviu-o comentar. Enquanto ele dizia isso, ela descobriu a mente retornar àquela expedição fatal ocorrida em sua infância, quando os fidalgos irlandeses, um tanto insensatamente, invadiram a Inglaterra e Henrique Tudor matara todos eles. E, subitamente, pela primeira vez em anos, o rosto jovial de seu irmão John surgiu diante dela — aquele rosto feliz, animado, antes de ter partido para a morte — e ela sentiu uma onda de tristeza percorrer seu corpo.

Ela não ouvia. A mulher de Doyle estava falando.

— Meu marido é muito cauteloso — expunha ela —, principalmente com os ingleses. Ele diz — e agora pareceu a Margaret que a mulher de Doyle olhava de lado para ver se ela ouvia —, ele diz que quem procura encrenca com os Tudor só deve culpar a si mesmo.

A mesma frasezinha: as palavras idênticas que usara antes em relação à herança. Seria possível que aquela mulher fosse tão má, tão vil, para fazer tal referência cruel à perda do seu irmão? Nenhum deles notara qualquer coisa, mas não era mesmo para notar. Não foi exatamente o truque que aquela mulherzinha morena executara antes? Também sorria, como se manteiga não derretesse em sua boca, e então dirigiu-se a ela.

— Você tem mesmo um cabelo maravilhoso.

— Obrigada. — Margaret retribuiu o sorriso. Eu vejo através de você, pensou ela, e desta vez você foi longe demais. Se era guerra o que a mulher de Doyle queria, ela a teria.

E, minutos depois, quando ela e o marido se afastavam dali, Margaret murmurou:

— Odeio essa mulher.

— É mesmo? Por quê? — perguntou Walsh.

— Não importa. Tenho os meus motivos.

— Eu acho — comentou insensatamente — que ela é bonita.

 

                                         1525

O rosto de Sean o’Byrne permanecia muito tranqüilo. Era o jeito dele. Mas não estava contente. Uma úmida brisa de março desmanchava seu cabelo. Ergueu a vista para o céu azul-claro e viu os rostos acusadores: como eles achavam que eram superiores.

A acusação era verdadeira. Ele dormira com a garota. Mas como souberam? Era isso que o incomodava. Eles o acusavam com base na suspeita e na sua reputação. Para ele isso era injusto. Aliás, era intolerável. Na curiosa mente singular de Sean o’Byrne, isso fazia com que eles estivessem mais errados do que ele.

Não que pudesse realmente culpar sua esposa. Deus era testemunha que, através dos anos, ele lhe dera muitos motivos para se queixar. E ele, provavelmente, não devia guardar rancor do frade, visto que o frade era um homem bom e santo que, pelo menos até então, não dissera uma palavra. O padre, contudo, era outra questão. Num lugar pequeno como aquele, as pessoas precisavam ser unidas.

Sean o’Byrne nunca esquecia que tinha sangue nobre. Quatro gerações atrás, seu ancestral, o filho mais novo do chefe dos o’Byrne, recebera algumas terras cobiçadas do lado oriental das montanhas de Wicklow. Atualmente, grande parte dessa herança se fora; a parte que permanecera era chamada de Rathconan; e Sean, que era conhecido como o’Byrne de Rathconan, a adorava.

Adorava a pequena torre quadrada de pedra — quatro andares de altura, um aposento por andar — que outrora fora o centro fortificado do poder local de sua família, e que, agora, na verdade, nada mais era do que uma modesta fazenda. Adorava os tufos de capim que cresciam por toda a parte de sua esfacelada alvenaria. Adorava olhar de seu telhado para a grande vastidão verde que se estendia em direção à costa. Adorava o conjunto de edificações da fazenda, onde seus desma-zelados filhos brincavam naquele momento, e a capelinha de pedra onde padre Donal ministrava os sacramentos. Adorava suas poucas plantações, seu pequeno pomar, o pasto onde mantinha o gado, que era sua principal ocupação, no inverno; e, acima de tudo, adorava os cumes das colinas para atrás das quais, no verão, tocava sua manada e onde podia perambular, livre como um pássaro, dia após dia.

Ele adorava os filhos. As meninas cresceram fortes e tornavam-se beldades. A mais velha era morena e, sua irmã mais nova, loura. Ambas tinham os olhos azuis da mãe. Já recebera algumas propostas pela morena. “Você só terá que dar um dote simbólico para vê-las bem casadas”, dissera-lhe um vizinho recentemente. Ele ficou contente em ouvir isso e torcia para que fosse verdade. Sua única preocupação era o filho mais velho, Seamus. O rapaz era um bom trabalhador e entendia de gado. Mas já estava com dezesseis anos e Sean podia sentir que ele andava impaciente. Teve a idéia de lhe dar alguma responsabilidade, mas ainda não sabia qual. Seu filho menor, Fintan, tinha apenas cinco anos. Ainda não havia necessidade de se preocupar com ele.

Sean também adorava a esposa. Ele a escolhera bem. Ela era uma o’Farrell, da parte central da ilha, depois de Kildare. Terra de gado. Uma boa e honesta mulher de cabelos louros. Ele a cortejara e a conquistara à moda antiga; e, desde então, ele a tratava à moda antiga. E esse foi o problema.

— É a soberba que leva você a se comportar assim — dizia-lhe agora o padre Donal. — O terrível pecado da soberba.

Ele não era apenas um nobre o’Byrne; o ancestral que recebera Rathconan notara a menininha de cabelos negros e olhos verdes que costumava levar recados para seu pai no porto de Dalkey ou no forte de Carrickmines. Ele se apaixonara e se casara com ela. Sean sabia que o sangue de Walsh de Carrickmines corria nas veias dela e, até mesmo, também o sangue dos ainda lembrados Ui Fergusa de Dublin. Pois, além de seu escasso dote, ela trouxera para a sua família uma antiga taça de caveira com a borda de ouro — uma estranha e medonha lembrança do nobre passado do clã. Sentia ele orgulho de descender de todos aqueles governantes da ilha? Certamente. E isso o fazia pensar que tinha o direito a cada mulher que conseguisse encontrar? Não, o padre estava errado quanto a isso.

Fora a ganância, quando era mais jovem, que o levara a perseguir mulheres. Simples ganância. Ele sabia disso muito bem. Não era cada mulher uma prova viva de que a vida era para ser vivida plenamente? Se, às vezes, tinha ido de uma para outra, duas por dia, ele foi como um homem no banquete da vida, vendo quantos pratos conseguia provar. Foi ganância. E vaidade. Ele tinha uma reputação a preservar. “Sean o’Byrne de Rathconan. Ah, ele é um demônio com as mulheres.” Era isso que todos diziam dele. Tinha orgulho de sua reputação, e não ia desistir dela — não enquanto ainda conseguisse possuir mulheres. E também, é claro, havia mais uma coisa. Talvez ela pegue a gente depois de velho, mas para Sean ela estivera ali desde o começo. Medo da morte. Não seria cada mulher uma prova de que ele continuava jovem, continuava vivo — sem desperdiçar um único dos preciosos momentos de vida que restavam? Sim, era isso. Viver plenamente antes de morrer, antes que seja tarde demais.

Quanto à garota, não foi tão ruim. A mulher de Brennan. Já fazia cinco anos que Brennan era um arrendatário, cultivando uma parte da terra de Sean o’Byrne. Sua casinha — na verdade, um pouco mais do que uma cabana — ficava do outro lado de um pequeno bosque um pouco mais de meio quilômetro encosta abaixo. Brennan era o tipo de homem confiável, pagava seus aluguéis na data, um bom trabalhador. Igual a muitos arrendatários semelhantes, ele não tinha garantias; pela lei irlandesa, o’Byrne podia despejá-lo a qualquer hora que desejasse; bons arrendatários, porém, não eram fáceis de se conseguir, e Sean sentia-se bastante contente em tê-lo, embora ele fosse uma espécie de sujeito estúpido, simplório. Estranhamente, somente no ano anterior passara a notar a mulher de Brennan. Achava que o marido a mantivera dentro da cabana, fora de vista. Certa tarde, porém, na época da colheita, ele a vira sozinha no campo e fora falar com ela.

Era uma coisinha linda. Rosto largo. Sardenta. Cheirava a fazenda, é claro, mas havia nela um outro odor, mais sutil, algo próprio de sua pele. No outono, aquele cheiro, e tudo o mais nela, tornou-se uma obsessão para ele. Antes de o inverno chegar, ela foi sua. Mas ele fora cauteloso. Nunca estivera antes com uma mulher assim tão perto de casa. Tinha certeza de que sua mulher não os vira. Não tinha certeza de que Brennan fazia alguma idéia do caso— A garota dissera que ele não sabia. Se sabia, não deixava transparecer. Provavelmente por medo de perder seu arrendamento. Quanto à garota, ela pareceu bastante Propensa; de supôs que ela devia sentir-se entediada com Brennan. Claro, pode ser que ela o estivesse fazendo feliz porque ele tinha poder sobre os dois, mas Sean preferia não pensar nisso. Ela e seu marido deviam estar agora na cabana deles alheios ao Vergonhoso interrogatório que acontecia na entrada de sua casa.

— Não é verdade — disse ele para sua esposa, ignorando totalmente o padre Donal. — Não há nada mais a dizer.

Ficou imaginando por que sua esposa resolvera atacá-lo agora. A mulher de Brennan ficava perto demais da casa, supôs ele: devia ser isso. Os olhos da esposa mantinham um olhar firme, fixo, como se tivesse decidido algo. Mas o quê? Haveria dor oculta no frio fitar daqueles olhos? Ele sabia muito bem que havia. Ela simplesmente a ocultava. Ele não tinha dúvida de que voltaria às boas com ela, como sempre voltara antes; embora, supôs, talvez tivesse de desistir da garota. Bem, se tivesse de ser assim, que fosse.

— Você nega? — atalhou o padre Donal. — Pretende mesmo, seriamente, que a gente acredite nisso?

Houve uma ou duas vezes, quando suas próprias ausências ficaram sem explicação, quando Brennan fora procurar pela garota. Uma vez, apenas uma vez, sua esposa o vira com o braço em volta da garota, mas ele explicara aquilo imediatamente. Nada havia que eles pudessem provar. Nada. Então por que o padre alto e esquelético lhe lançava o olhar acusador na entrada de sua própria casa?

Ele tratava bem o padre Donal. De certo modo, era uma sorte tê-lo ali. Diferentemente de muitos dos padres das paróquias menores, ele era um homem com alguma instrução, tinha até mesmo um pouco de poeta. E fora ordenado adequadamente: podia ministrar os sacramentos. Mas também, igual a muitos padres de paróquias irlandesas mais pobres, ele era forçado a trabalhar para ganhar a vida. De vez em quando, saía com os pescadores de Dalkey, ou ia a um ou outro porto da região, para ganhar um dinheiro extra. “O próprio São Pedro era pescador”, resmungava. E, igual a muitos padres da Igreja irlandesa, tinha mulher e vários filhos. “Na paliçada inglesa, você não poderia fazer isso”, comentara Sean o’Byrne para ele em várias ocasiões. “Sempre foi um costume na Igreja irlandesa”, retrucara-lhe o padre Donal com um dar de ombros. E, de fato, dizia-se que o próprio Santo Padre estava ciente do costume e preferia não fazer estardalhaço disso. Sean não sabia se fora realizada uma cerimônia de casamento entre os dois, e nunca perguntou. Tudo o que sabia era que ele era bondoso com os filhos do padre Donal, dava-lhes pequenos recados para fazer e ajudava-os a se manter alimentados. Por isso, não parecia nada direito o padre vir agora com aquele seu tom de severidade moral, por causa daquela sua fraqueza.

— Está disposto a jurar? — Debaixo da sobrancelha de ferro, o olhar do padre Donal o perfurava. Era desconcertante. Então, subitamente, Sean pensou ter entendido. Estaria o padre oferecendo-lhe uma saída? Talvez fosse esse o jogo. Olhou para a esposa, que vigiava em silêncio. Ele precisava responder, agora, para sua vigilante esposa.

— Estou de fato — afirmou, sem corar. — Juro pela Santa Virgem.

— Seu marido jurou — declarou o padre a Eva o’Byrne. — Isso vai satisfazê-la?

Mas ela tinha virado de costas.

Ela não conseguia olhar para ele. Ainda não. Era doloroso demais.

Às vezes, quando se lembrava do passado, Eva culpava o casamento informal pelos problemas em sua vida. Não era incomum, fora da paliçada inglesa, casais viverem juntos durante um tempo antes de se comprometerem com um casamento formal. Seu pai não aprovara, mas Eva era cabeçuda naquela época; foi viver com Sean o’Byrne. E aqueles foram os meses mais felizes e excitantes de sua vida. Se ao menos, pensou ela, eu tivesse dado mais atenção ao estudo do caráter dele e menos às alegrias de nossa vida amorosa. Contudo, como podia ter-se sentido de outro modo, quando pensava em seu corpo esplêndido, atlético, e suas habilidosas carícias? Mesmo agora, após todos esses anos, seu físico magnífico praticamente não mudara. Ela ainda o desejava. Mas os anos de dor também cobraram seu preço.

Quando foi que ele começou a procurar outras mulheres? Na época em que nasceu o primeiro filho deles. Ela sabia que tal coisa não era incomum. Um homem tem necessidades. Mas, na ocasião, sentiu-se terrivelmente magoada. Era culpa dela se, desde então, ele continuou a se desgarrar? Por algum tempo, pensou que poderia ser, mas, com o passar dos anos, ela concluiu que realmente não era. Tomara bastante cuidado com a aparência. Ainda era atraente, e o marido, nitidamente, achava isso. No conjunto, a vida conjugal deles era inteiramente satisfatória: ela supunha que devia agradecer a Deus por isso. E, acima de tudo, ela era uma boa esposa. A terra que lhes restara em Rathconan era apenas o suficiente para mantê-los. O chefe dos o’Byrne podia ser parente deles, mas, como a maioria dos governantes irlandeses locais, cobrava pesadas quantias pelo seu governo e proteção, do mesmo modo como ele, por sua vez, tinha de pagar pesados impostos ao conde de Kildare. O sistema podia ser inglês no nome, mas, na prática, o poder de Kildare exercido sobre os o’Byrne era o mesmo de um tradicional rei irlandês. Era ela, tanto quanto o seu marido desgarrado, quem providenciava, a cada ano, para que essas obrigações sempre pudessem ser cumpridas-era ela quem cuidava para que a colheita fosse feita, quando ele perambulava com o gado pelos morros; era ela quem ficava de olho nos Brennan e outros subordinados do local. Por isso, o fato de ele ter iniciado um relacionamento com a mulher de Brennan a deixara particularmente irritada. “Como pode ser tão estúpido?”, enfurecera-se. “Você tem um bom locatário e vai se meter a besta com a mulher dele.”

Mas, acima de tudo, como ele foi capaz de humilhá-la daquele jeito, praticamente em sua própria casa? Quase duas décadas de casamento, uma esposa amorosa, filhos — isso não significava nada para ele? Não tinha respeito por ela? Não era só por causa da mulher que fizera tanta objeção. Era a mentira que doía. Ele sabia que ela sabia, mas era capaz de mentir na sua cara. Será que ele nem mesmo percebia o profundo menosprezo que mostrava por ela? Foi por isso que ela convencera o padre a fazê-lo jurar: na esperança de que, por uma vez, ela conseguisse forçá-lo a dizer a verdade. Queria apenas abrir um caminho até ele, para fazer algo mudar.

Ela pensou que ele hesitaria em mentir para o padre. Principalmente porque havia também um frade presente. Fosse qual fosse o seu comportamento, ela sabia que o marido respeitava a religião. Até mesmo o vira dar um dinheiro extra aos frades viajantes quando achou que ela não estava olhando. E ela o amara por aquilo. Como a maioria das pessoas, mesmo aquelas que eram céticas em relação a padres mundanos ou monges sedentários, ele gostava de dar esmolas para os pobres frades que pregavam e cuidavam dos doentes, e levavam uma vida simples. E tampouco carecia de veneração. Certa vez, quando foram à catedral da Igreja de Cristo para ver o Bachall Iosa e outras relíquias sagradas que havia lá, ela o viu fitá-las com admiração e temor nos olhos. Sean o’Byrne gostava de mostrar que era um sujeito audacioso, mas tinha medo das relíquias sagradas, como qualquer outro.

Contudo, ele simplesmente mentiu outra vez. Fez um juramento sagrado do mesmo modo despreocupado com que seduzira a moça. Talvez tenha sido um erro escolher o padre Donal para a incumbência, concluiu ela. O padre era por demais conhecido dele. De algum modo pensava que podia mentir para o padre Donal, e isso não importava. Quanto ao frade, era apenas um espectador que dificilmente se envolveria. E assim, após aquela cena constrangedora, ela não se sentia melhor do que antes. Sabia muito bem que ele a olhava, mesmo agora, com um sorriso de triunfo no rosto. Era doloroso demais. Ela fracassara em chegar a qualquer lugar. Não admirava que ela tivesse dado as costas.

O frade, que fora levado à casa pelo padre Donal, estava a caminho para visitar um eremita que vivia lá em cima, em Glendalough. Seu marido agora dirigia-se ao frade, convidando-o a entrar. Claro, o bom frade seria alimentado. Ela inspirou fundo e preparou-se para o seu dever. Mesmo na derrota, porém, ela prometeu secretamente que ainda não terminara com Sean o’Byrne.

Cecily estava passando pelo Dames Gate, naquela mesma manhã, quando eles a agarraram. Dois homens seguraram seus braços; o terceiro marchava à frente, parecendo feliz consigo mesmo. Por um momento, quando isso aconteceu, ela fora tomada de tanta surpresa que só conseguiu emitir um gritinho. Quando se apercebeu do que estavam fazendo, eles já a levavam marchando triunfalmente encosta acima.

— Vocês não podem me prender — protestou ela. — Não fiz nada de errado.

— É o que veremos — disse o homem que ia à frente —, na Tholsel.

A periclitante velha prefeitura com seus pesados coruchéus não era um prédio do qual a sociedade de Dublin podia se orgulhar muito. A cada ano, algum dos conselheiros municipais declarava que o local devia ser reformado, e todos concordavam; mas, de algum modo, nunca havia verba disponível. “Faremos isso no próximo ano”, diziam sempre. Todavia, com sua velha face danificada fitando sonolentamente em direção à Igreja de Cristo, a Tholsel tinh uma espécie de esfarrapada dignidade. E hoje, como resultado de suas confabulações ali dentro, uma turma de funcionários municipais decidira enviar grupos de homens para vasculhar as ruas da cidade à procura de transgressores — e proveitosas multas. Estavam à espera de Cecily no gabinete superior.

Sua transgressão — e tratava-se de um crime menor — foi porque usava na cabeça um lenço cor de açafrão.

— Seu nome.

Ela forneceu. Cecily Baker. Um nome francamente inglês, apenas só um pouco enganador, pois, como muitas outras pessoas em Dublin com nomes ingleses, ela tinha mãe irlandesa — uma o’Casey, aliás. Oficialmente, porém, ela era inglesa residente em Dublin e, portanto, não tinha permissão para usar lenço cor de açafrão, que era popular entre os irlandeses nativos.

Não eram apenas os proibidos vestidos irlandeses que os guardiões da lei procuravam naquele dia. Em Dublin, como em Londres e outras cidades, havia muitas leis antigas regulando o que as pessoas podiam usar. Artesãos não deviam se vestir como conselheiros, que eram seus superiores; freiras eram proibidas de usar peles finas. Tudo fazia parte do trabalho de manter a ordem social e a moral. Algumas dessas leis eram mais cumpridas do que outras, mas estavam ali para serem lembradas sempre que as autoridades decidiam se afirmar ou precisavam arrecadar algum dinheiro. Em resposta às perguntas que lhe fizeram, ela disse a eles que era solteira, embora noiva, costureira, e que morava a pouca distância do lado externo do portão sul da cidade.

— Já posso ir? — perguntou ela. Se quisessem processá-la, sabiam onde encontrá-la. Mas, para sua irritação, ainda não a deixariam ir embora. Alguém teria de vir e se responsabilizar por ela, insistiram. Assim, ela forneceu o nome do rapaz com quem ia se casar: Henry Tidy, o luveiro. E enviaram um homem para buscá-lo. Então disseram-lhe que podia se sentar num banco de madeira enquanto esperava.

Cecily Baker era uma jovem sincera. Tinha o rosto redondo, bochechas vermelhas, o nariz pontudo e um doce sorriso. Também tinha algumas opiniões muito fortes.

Na opinião de Cecily, a Santa Igreja era sagrada; outros podiam criticar as falhas de algumas ordens religiosas, mas era a fé que importava, e a fé devia ser firmemente defendida. Aquelas pessoas em outros países — ouvira falar em Lutero e nos chamados reformistas protestantes no continente — que queriam perturbar a ordem santificada pelos séculos, segundo ela, eram destruidoras e criminosas; e ela não fazia objeção se perfeitos monarcas católicos como Henrique VIII da Inglaterra quisessem queimá-las na fogueira. Ela achava que isso talvez fosse melhor. Ia à missa regularmente e confessava seus pecados ao seu padre; e quando, certa vez, o padre esqueceu quantas ave-marias lhe dera como penitência por um pequeno pecado no mês anterior e mandou que rezasse uma quantidade menor na vez seguinte, ela, delicada mas firmemente, lembrou-lhe do seu engano. Também tinha idéias muito claras sobre o que um jovem casal, como ela e Tidy, deviam fazer juntos, depois que noivassem e o casamento estivesse marcado para breve. E essa idéias eram físicas e irrestritas — de tal modo que o jovem Tidy ficara um tanto quanto espantado. O fato de que esses pecados da carne deviam posteriormente ser confessados ao seu padre era, pelo que lhe dizia respeito, uma parte bem característica do processo.

E talvez fosse a confiança de saber que cumpriria todas as obrigações religiosas o que dava a Cecily tamanha convicção de que as autoridades seculares não tinham o direito de abusar dela injustamente. Ela sabia que sua prisão — só por usar um velho lenço de cabeça de sua mãe — era um absurdo. Ela conhecia a lei, mas podia ver que os homens da Tholsel estavam simplesmente tentando angariar algumas multas. Não estava impressionada, e certamente não estava com medo. Mas desejava que Henry Tidy aparecesse. Após algum tempo, ela começou a se sentir um tanto solitária, sentada naquele banco duro.

Teve de esperar quase uma hora. Quando, finalmente, pareceu, ele não estava sozinho. E parecia preocupado.

Ela levantou-se para cumprimentá-lo. O jovem que ela amava. Sorriu. Deu um passo na direção dele, à espera de pelo menos um beijo. Mas, para sua surpresa, ele não fez qualquer movimento na direção dela. Ficou parado onde estava, o rosto tenso, e seus olhos azuis fitando-a de modo repreensivo.

— Você deu meu nome.

Claro que ela deu. Eles não iam se casar? Ele, supostamente, não deveria protegê-la?

— Eles disseram que eu precisava de alguém para se responsabilizar por mim.

— Eu trouxe MacGowan.

— Estou vendo. — Ela cumprimentou educadamente o comerciante com um gesto de cabeça. Por que ela se sentia incomodada com aquele homem? Seria seu olho perscrutador? Ou seria apenas o fato de que ele tinha a fama de ser esperto, e ela nunca conseguia saber o que ele pensava? Mesmo assim, ela conhecia muitas pessoas que confiavam em MacGowan e o procuravam para se aconselhar.

— Ele tem cidadania — explicou Tidy. Ter cidadania era uma importante questão de status em Dublin. Ser um cidadão honorário permitia que a pessoa votasse para o conselho municipal, negociasse livremente sem pagar taxas e, até mesmo, fizesse negócios com comerciantes estrangeiros. Henry Tidy, prestes a se estabelecer por conta própria como mestre artesão, muito em breve poderia ser contemplado com a cidadania; uma comissão de conselheiros municipais decidiria se ela seria ou não concedida. O fato de ele ter trazido um cidadão honorário mostrava que, pelo menos em sua mente, aquela prisão insensata era um assunto sério. MacGowan já entrara para falar com os homens sentados confortavelmente atrás de uma mesa. Pareciam tratá-lo com mais respeito do que a trataram. Ela os ouviu sussurrando.

Enquanto isso, Henry Tidy não era muito gentil. Olhava-a como se houvesse alguma coisa naquele assunto que ele não conseguia acreditar.

— Como pôde fazer isso, Cecily? Você conhece a lei. — Claro que ela conhecia a lei. Mas a prisão foi absurda. Ele não conseguia ver isso? — Você conhece a lei, Cecily—repetiu. Sua atitude começava a magoá-la. Ele tinha de ser tão tímido?

Os homens à mesa haviam terminado de falar. Ela viu MacGowan concordar com a cabeça. Um momento depois, ele veio de lá e disse-lhe que ela podia ir embora. Quando, porém, Tidy deu-lhe um olhar interrogativo, MacGowan sacudiu a cabeça: e, assim que se encontraram lá fora, ele anunciou:

— Eles não vão retirar.

— O que devemos fazer? — perguntou Tidy.

— Meu conselho? Devemos ir ver Doyle.

— Doyle. — Tidy pareceu pensativo. Ela sabia que havia muitos anos ele estivera brevemente com o conselheiro, pois lhe contara o fato com um certo orgulho. Também sabia que Henry tinha um certo medo dele. Ele virou-se para ela. — Acho — disse com hesitação — que é melhor você ir também.

Ela o encarou. Isso era tudo o que ele tinha a dizer? Ainda sem qualquer palavra de compreensão? Será que ele realmente pensava que era tudo culpa dela?

Os ombros dele caíam ligeiramente à frente. Ela nunca pensara muito a respeito daquilo, exceto para achar que o fazia parecer determinado. Um sinal de força. Agora, subitamente, se perguntava: aquilo o fazia parecer um corcunda? Sua pequena e pontuda barba loura projetava-se adiante. Isso a irritava, embora não soubesse dizer exatamente por quê.

— Não há necessidade — disse ela abruptamente. — Eu vou para casa. — Virou-se e começou a se afastar.

E ele nem sequer tentou detê-la.

A casa do conselheiro ficava perto. Doyle havia saído, mas sua esposa estava em casa. Então MacGowan deixou Tidy com ela enquanto ia procurar o conselheiro. Sentado à espera na enorme casa do conselheiro, na companhia de sua atraente esposa de aparência hispânica, Henry Tidy sentiu-se a princípio um pouco sem jeito. Ele conhecia dame Doyle, como se referia respeitosamente a ela, desde a época em que era aprendiz, e sempre a admirara secretamente; nunca, porém, estivera em sua companhia, daquele modo, na casa dela. Ela estava em sua sala de estar, sentada tranqüilamente diante de sua roda de fiar com uma de suas filhas; não falavam muito, mas, de vez em quando, ela lhe fazia uma pergunta, à qual ele respondia timidamente. Após algum momento, ela mandou a filha sair para fazer alguma coisa, e então ele ficou sozinho com a mulher. Então ela lhe deu um amável sorriso.

— Você está preocupado, não está?

Não demorou muito para ele confiar nela. O problema não era apenas a prisão, explicou; ele sabia que Cecily fora tratada rudemente e queria defendê-la. Mas não era tão simples assim. As notícias corriam depressa em Dublin. Ele sabia o que as pessoas diriam: “O jovem Tidy arranjou uma moça insensata. Uma encrenqueira.” Dame Doyle não achava que Cecily devia ter pensado nisso? Ele não queria se zangar, mas Cecily não devia ter-lhe mostrado mais consideração? Também se preocupava com o fato de que ela não mostrara muita sensatez. Durante todas essas queixas, Joan Doyle observou-o cuidadosamente.

— Você está noivo, não? — perguntou ela. Ele fez que sim. — E está com dúvidas? Saiba que isso não é incomum.

— Não é isso — confessou ele. — Mas, sabe — prosseguiu meio sem jeito —, em breve ganharei cidadania.

Agora, dame Doyle entendeu completamente.

— Minha nossa — exclamou. — Isso é um problema.

Em Dublin, como na maioria das cidades, havia várias maneiras de se tornar um cidadão honorário. Uma delas era ser membro de uma guilda; outra, usada com igual freqüência, era por concessão direta dos conselheiros. O que, porém, tornava Dublin incomum era o papel que isso conferia às mulheres. Talvez refletisse o tradicionalmente alto status das mulheres na ilha, mas elas certamente tinham mais oportunidades em Dublin do que em qualquer cidade inglesa. Não apenas uma viúva assumia a cidadania do marido, após sua morte; às mulheres, em Dublin, casadas ou solteiras, podia ser conferida cidadania por seu próprio direito. Ainda mais notável, um homem que se casasse com uma mulher que tivesse cidadania recebia também a concessão. Doyle já prometera à esposa que obteria a cidadania para cada uma de suas filhas. Além dos dotes que ele proporcionaria, isso as tornaria noivas altamente desejáveis.

Mas se uma viúva sucedia o marido na cidadania honorária, parecia a Tidy ser sensato que os parlamentares levassem em conta com que tipo de mulher um homem estava casado, quando este pedisse cidadania. E, a julgar pela façanha daquele dia, não tinha muita certeza do que eles pensavam de Cecily. De fato, não os censuraria se eles achassem que ela era inadequada. O que aconteceu com ela para se comportar daquele modo?

— Estou pensando seriamente se devo me casar com ela depois do que me fez hoje.

— Estou certa de que ela não pretendeu prejudicá-lo — assegurou-lhe amavelmente a mulher do conselheiro. Observou-o com todo cuidado. —Você a ama?

— Sim. Ah, sim. — Ele amava.

— Ótimo. — Ela sorriu. — Ah, aí vem o meu marido.

O conselheiro entrou apressadamente, beijou a esposa e deu a Tidy um amigável aceno com a cabeça.

— Não deve se preocupar com essa bobagem — declarou com firmeza ao luveiro. — MacGowan contou-me o que eles fizeram. Posso mandar retirar a acusação, mas ela receberá uma advertência, é claro. Ela deve esperar por isso. — Olhou agora com um pouco mais de severidade para Tidy. — Se você tem influência sobre essa jovem, deve convencê-la a ser mais cuidadosa no futuro. — O cabelo negro do conselheiro atualmente estava grisalho nas têmporas. Isso aumentava sua autoridade.

Com a conversa agora encerrada, pelo menos no que se referia a Doyle, este sorriu amavelmente para indicar que Tidy podia ir embora.

— Eles vão se casar — interferiu delicadamente sua esposa. — Ele vai requerer cidadania. Agora está com medo que...

Doyle ficou parado e franziu os lábios. Virou-se para Tidy e fez-lhe algumas perguntas sobre sua posição na associação dos luveiros, sobre a moça e a família dela. Então sacudiu a cabeça. Há muito tempo aprendera que, se tinha uma má notícia a comunicar, o mais delicado era fazê-lo rapidamente.

— Acho que seu pedido será rejeitado — disse francamente. — Eles dirão que a sua esposa é irlandesa.

Se as antigas proibições contra roupas irlandesas ainda eram aplicadas no Pale, pressupunha-se certamente que a cidadania de Dublin seria reservada aos ingleses, e os parlamentares eram bastante rigorosos em manter os irlandeses de fora. Mais sutil era a pergunta: quem é inglês e quem é irlandês? MacGowan, por exemplo, era irlandês de nome e de ascendência. Mas os MacGowan eram importantes artesãos da cidade desde os tempos de Brian Boru. Dublinenses respeitáveis havia séculos, eles eram considerados como ingleses, e MacGowan tinha a cidadania. Dentre os conselheiros municipais, não se esperaria sequer encontrar qualquer nome irlandês; entretanto, um rico comerciante irlandês chamado Malone conseguira tal riqueza e proeminência que até mesmo se tornou conselheiro. Suas características irlandesas foram simplesmente ignoradas. Por outro lado, por gerações, os Harold apoiaram firmemente o poder inglês contra os irlandeses, nas regiões fronteiriças; mas, na opinião dos conselheiros de Dublin, recentemente alguns dos Harold haviam se tornado um pouco rebeldes e celtas demais em seus modos, e a um deles acabara de ser recusada a cidadania. Talvez a realidade fosse melhor expressada pelo próprio Doyle, quando, certo dia, mordazmente, observou para a comissão: “As pessoas são inglesas quando eu digo que são.”

Cecily Baker podia ter mãe irlandesa, mas ninguém teria se preocupado em questionar suas características inglesas, se não fosse por aquele incidente. Doyle podia anular a acusação, mas isso chamaria atenção, as pessoas comentariam e, quando Tidy fosse examinado pela comissão, algum intrometido certamente saberia disso e tocaria no assunto. Isso não seria nada bom. Tidy era apenas um sujeito humilde de uma das guildas menos importantes e não tinha pistolões poderosos; sua noiva andava por aí causando incômodo com sua roupa irlandesa. Ele jamais conseguiria. Doyle não conhecia Cecily, mas lhe parecia que ela não tinha muito juízo e, pessoalmente, imaginava que o jovem Tidy talvez não fosse nada melhor. Seu olhar desanimador para a esposa disse exatamente isso.

— Ele a ama — disse ela amavelmente. — Não podemos fazer algo? Fazer algo? Fazer o quê? Dizer aos conselheiros da velha e cinzenta Dublin

que Henry Tidy amava Cecily Baker e, por isso, devia ganhar a cidadania? Ele fitou a esposa afetuosamente. Isso, provavelmente, seria o que ela faria, pensou ele. E também não se sairia bem. Não era tão fácil assim. Se ele realmente se dedicasse a isso, provavelmente poderia obter a cidadania para o jovem Tidy. Mas mesmo um homem poderoso como ele só conseguia tanta benevolência quanto fosse capaz de dar algo em troca. Ele ainda precisava obter a cidadania para suas próprias filhas. Deveria desperdiçar sua preciosa benevolência por causa de uma moça sem a qual o jovem Tidy provavelmente estaria bem melhor?

— Eles podem ser tão felizes quanto nós dois — disse a esposa docemente, como se respondendo aos seus pensamentos.

Conseguiria Tidy realmente encontrar o afeto, a ternura, a generosidade de espírito que ele encontrara? Filhos, conhecidos, amigos e agora até mesmo esse jovem taciturno e sua tola namorada — sua esposa atraía todos para o círculo de bondade no qual transformara o lar deles. Ele sacudiu a cabeça e gargalhou.

—Você também está envolvida nisso, sabe. — Deu um leve aperto no ombro da esposa. — Cecily Baker deve saber que ela não poderá jamais repetir esse comportamento. Ela terá de ser uma cidadã modelo. Se transgredir novamente — lançou um duro olhar para a esposa —, isso afetará a minha reputação e a minha capacidade de ajudar a minha própria família. Portanto, por favor, certifique-se de que ela pretende se endireitar.—Virou-se paraTidy. — Não posso lhe prometer nada, mas falarei em seu favor. — E agora lançou para o jovem um olhar ainda mais severo. — Se você se casar com essa moça, trate de mantê-la na linha. Ou deixarei de ser seu amigo.

Tidy prometeu, agradecido, que faria isso; e, gentil como sempre, dame Doyle foi pessoalmente ver Cecily no dia seguinte.

A primavera passou sem novidades para a família Walsh. Foi durante o verão que Margaret notou que seu marido estava preocupado.

Uma razão para aquilo era evidente. O tempo que havia feito na primavera fora excelente, mas, no verão, tornara-se um desastre. Dias nublados, ventos gelados, garoa; ela não se lembrava de um verão pior; e já estava claro que a safra seria arruinada. Todo mundo parecia triste. Seria um péssimo ano para a herdade Walsh.

Foi durante julho que ela adivinhou que havia algo mais na mente dele. Sempre conseguia saber quando ele estava preocupado: tinha um pequeno truque de cruzar os dedos e ficar olhando para eles. Mas ela sabia que era melhor esperar que ele falasse a respeito e, cerca de uma semana antes do festival de Lughnasa, foi o que aconteceu.

— Precisarei ir em breve a Munster — anunciou ele.

A solicitação para que ele se encarregasse dos assuntos legais de um mosteiro em Munster chegara como uma bem-vinda surpresa poucos meses antes. Os honorários cobririam o que faltaria por causa da má colheita, e, nas últimas semanas, Walsh estivera ocupado em Dublin com os negócios do mosteiro. Agora chegara ao ponto, explicou, em que precisaria passar algum tempo no próprio mosteiro.

— Você acha que não conseguirei me arranjar enquanto você estiver fora? — perguntou ela, provocantemente.

— De modo algum. — Ele sorriu pesarosamente. — Sei que ficará contente em me ver fora de casa por uns tempos. — Fez uma pausa. — Mas não quero que você diga aonde fui.

— Não devo dizer que está em Munster?

— Isso poderia ser mal interpretado.

— E por que seria?

William Walsh era um cuidadoso observador da cena política. Ainda tinha esperanças de ter um assento no Parlamento; mas os últimos sete anos não tinham sido um período fácil para se envolver em política.

Superficialmente, a situação na Irlanda parecia a mesma de sempre. O rei estava muito distante; os Butler e os Fitzgerald ainda rivalizavam pelo poder, e estes, como sempre, eram os mais fortes. Havia, porém, uma sutil diferença.

Walsh lembrava-se da história que Doyle havia contado sobre o rei Henrique no encontro que tiveram em Maynooth, e do alerta que ela continha. Passara-se apenas um ano desde que algo do caráter de Henrique fora revelado quando Kildare e seu amigo real tiveram uma desavença. A causa fora uma complexa questão jurídica em relação à herança dos Butler: Henrique chegara a uma conclusão; Kildare, na Irlanda, o refutara totalmente. E, logo depois, Kildare fora chamado à Inglaterra e um importante nobre inglês foi enviado para governar a Irlanda em seu lugar. Walsh passara a cultivar o seu relacionamento com Doyle desde a amigável conversa que tiveram em Maynooth, e foi durante uma de suas conversas em Dublin que o conselheiro aprofundara o tema sobre o qual haviam debatido anteriormente.

— Você tem de entender — comentou ele — que, por baixo de todo o esplendor real, Henrique é como uma criança mimada. Ninguém nunca lhe disse: não. Se ele quer uma coisa, acha que deve tê-la. Graças à imensa fortuna que os conselheiros do pai lhe deixaram, ele foi capaz de construir novos palácios e se ocupar com algumas expedições idiotas pelo Continente. Tudo em busca de glória. Em breve, esvaziará seu tesouro. Seu pai teve de se curvar com o vento... perdoou Kildare por causa da questão Simnel e deixou-o governar a Irlanda porque ninguém mais conseguia. O pai era pragmático; o filho é presunçoso. E ele não tolera, se Kildare o contradiz ou o faz de tolo. Sua amizade, como já lhe disse, não vale nada.

Entretanto, mesmo achando que Doyle talvez estivesse com a razão, Walsh também acreditava que os Fitzgerald continuariam a agir a seu modo; e os acontecimentos pareciam confirmar isso. Após pouco mais de um ano, o importante nobre inglês implorou para voltar. “É preciso um enorme exército e uma campanha de dez anos para impor o regime inglês a essa ilha”, disse ele ao rei. “É melhor deixar isso por conta de Kildare.” Henrique não desistia tão facilmente. Colocou um Butler como encarregado. Mas, como sempre, os Fitzgerald logo tornaram impossível para os Butler governarem. Houve inúmeros incidentes. Um dos Talbot um bom amigo dos Butler, foi até mesmo morto pelo próprio irmão de Kildare. Não tinha jeito: no ano anterior, Kildare fora enviado de volta para governar a Irlanda — com a condição de que cooperasse com os Butler na administração. Claro que tudo foi feito para salvar as aparências. Henrique deu-lhe um abraço apertado; os dois juraram lealdade e amizade eternas. Henrique até mesmo deu ao amigo uma de suas próprias primas como esposa inglesa. Os olhos dele, porém, não sorriam. E, por seu lado, os Fitzgerald não se deixaram enganar. “Ele gostaria de nos destruir, mas não consegue”, concluíram. Nem se alarmaram. Eles sobreviviam havia gerações a reis ingleses.

Para William Walsh, parecia que agora sua lealdade à casa de Kildare provavelmente agiria em seu benefício. De fato, surgira recentemente a chance de uma vaga parlamentar e ele tinha esperanças de que, com o apoio de Fitzgerald e a benevolência de um certo número de homens importantes de Dublin, inclusive Doyle, em pouco tempo ele poderia se encontrar no Parlamento. Mas, mesmo assim, era preciso ser cuidadoso. Muito cuidadoso. E ainda mais agora, pois os últimos boatos que ele ouvira em Dublin o deixaram apavorado e por um bom motivo. Referiam-se a Munster.

Quando relatos de espiões deram conta de que os Fitzgerald despachavam enviados a seus inimigos começaram a surgir no conselho real da Inglaterra, o rei Henrique a princípio mal pôde acreditar. “Que diabos”, quis saber, “esses detestáveis Fitzgerald pretendem agora? A mim me parece”, acrescentou nefastamente, traição

Na verdade, foi um outro Fitzgerald, um parente de Kildare, o conde de Desmond, em Munster, quem despachara os enviados para o rei da França; e não era tão estranho quanto parecia. Devido aos seus antigos vínculos comerciais com França e Espanha, a província de Munster sempre cuidara de seus próprios interesses além-mar, e era sabido que os condes de Desmond enviavam representantes à França e à corte de Borgonha desde a época Plantageneta. Nesse caso, entretanto, o rei Henrique tinha razão em desconfiar: pois, na verdade, o que Desmond concordara, em um tratado secreto, era que se o governo Tudor na Irlanda se tornasse por demais desagradável, ele transferiria sua aliança para a França e procuraria a proteção de seu rei. Para Desmond, acostumado a séculos de independência irlandesa em seus domínios em Munster, isso poderia ser imprudente, mas ainda eram negócios como sempre. Para Henrique, Desmond era um súdito e sua missão diplomática parecia traição. Quando Henrique desafiou Kildare por causa dos relatos, o ilustre irlandês riu disso. “Desmond é um sujeito estranho”, disse-lhe. “Não posso responder por tudo o que ele apronta em Munster.” “Será melhor que o faça”, alertou-o o rei, “pois vou responsabilizá-lo”. Isso fora alguns meses atrás e, em Dublin pelo menos, o assunto parecia ter morrido.

Contudo, recentemente, Walsh soubera de outro e mais perturbador boato. Ainda havia à solta membros da dinastia Plantageneta. A maioria sem querer problemas, e fora da Inglaterra. Era sempre possível, porém, que um deles pudesse ser usado por uma potência estrangeira para organizar uma expedição contra o rei Henrique, como a invasão de Lambert Simnel contra seu pai. Isso era algo que Henrique temia. Portanto, quando Walsh ouviu o boato de que o rei da França estava atualmente planejando tal provocação com um dos Plantagenetas, teve certeza de duas coisas: que o rei Tudor desconfiaria de qualquer um que fosse visitar o Desmond pró-França; e que certamente havia espiões em Dublin e em outros portos vigiando quem viajava para Munster.

— O problema — explicou agora para Margaret — é que eu, um advogado que deve favores aos Fitzgerald, não apenas tenho de ir a Munster, mas parte do meu trabalho lá é encontrar o próprio conde de Desmond.

— Você precisa ir?

— Preciso ir mesmo. Venho protelando isso, mas não dá mais.

— O que posso fazer para ajudá-lo?

— Irei diretamente para o mosteiro. Com sorte, posso até mesmo me encontrar lá com Desmond. Mas não direi que vou a Munster, e quero que você também não diga. Se alguém perguntar, o que não vai acontecer, diga que estou em Fingal. De modo algum diga que fui falar com Desmond.

— Não direi — prometeu ela.

Na segunda semana de agosto, deveria ser época de colheita. Mas não houve colheita. Os pedúnculos nos campos estavam marrons e encharcados. O verão malograra. Recentemente, porém, um estranho calor úmido parecia se formar no ar e até mesmo no chão. Na baía de Dublin, sob o céu cinzento, o mar parecia esbranquiçado e agitado, como leite numa panela antes de ferver e espumar. Como o criado comentara com Joan Doyle naquela manhã: “Não parece esta época do ano

Joan e o marido tinham viajado para Dalkey três dias antes. No último século e meio, a aldeia não mudara muito sua estrutura, mas à casa fortificada de Doyle se juntaram uma meia dúzia de fortalezas semelhantes que pertenciam a importantes negociantes e pequenos nobres, inclusive os Walsh de Carrickmines, que quiseram tirar vantagem do porto de águas profundas. Doyle ia lá de vez em quando para verificar o armazém ou supervisionar um descarregamento, e Joan costumava acompanhá-lo. Ela gostava do sossego acolhedor do povoado de pescadores no sopé da colina. Estavam ali há dois dias quando Doyle foi chamado de volta a Dublin, a negócios, e ela decidira partir no dia seguinte, cavalgando despreocupadamente na companhia do criado.

Foi um erro. Ela devia ter partido pela manhã. A opressiva atmosfera e o céu escurecendo no sul deveriam tê-la alertado. Entretanto, foi lenta em deixar a casa, executando pequenas tarefas que podiam ser deixadas para outra ocasião. No início da tarde, quando finalmente partiram, ficou óbvio que vinha uma tempestade. “Ainda poderemos chegar a Dublin antes que ela nos alcance”, disse ela. Ao passarem por Carrickmines e ouvirem o distante estrondo de trovões além das montanhas de Wicklow, ela comentou pesarosa com o criado que talvez se molhassem um pouco; e, pouco depois, quando o céu ficou negro e as primeiras rajadas de vento surgiram subitamente por entre as árvores, ela gargalhou. “Vamos nos afogar.” Mas quando a tempestade finalmente caiu varrendo as colinas e desabou sobre eles, foi algo muito além do que qualquer coisa que ela pudesse ter imaginado.

Houve um forte estouro e o clarão de um relâmpago. Seu cavalo empinou e quase a derrubou; e o céu abriu-se. Momentos depois a chuva caía tão forte que mal conseguiam enxergar a estrada adiante deles. Avançaram pela beira, à procura de um abrigo. A princípio, nada viram, mas a pouca distância após uma curva da estrada, notaram logo adiante à esquerda uma estrutura cinzenta e atarracada. Apressaram-se em sua direção.

Até então fora um dia sem novidades. Walsh estava fora. Margaret tinha consigo em casa apenas uma das filhas e o filho mais novo, Richard. O rapaz fazia uma cadeira nova no celeiro; ele era habilidoso com as mãos. A filha estava na cozinha ocupada com as criadas. Margaret acabara de olhar de relance a tempestade através de uma das vidraças esverdeadas — ela tinha muito orgulho das janelas de vidro que haviam sido instaladas recentemente no grande salão da casa — quando foi atender à porta. Ao ver duas figuras encharcadas à procura de abrigo, ela, é claro, conduziu-as imediatamente para dentro.

— Meu Deus — exclamou —, é melhor eu apanhar roupas secas para vocês. Em seguida, ficou um tanto atônita quando uma delas retirou o lenço que colocara sobre a cabeça e observou alegremente:

— Ora, é a mulher de cabelo maravilhoso.

Era a maldita mulher de Doyle. Por apenas um momento, ela imaginou se, por algum motivo obscuro, a mulher do conselheiro tinha ido ali de propósito para aborrecê-la; mas o enorme estouro de um trovão lá fora levou-a a admitir o absurdo da idéia.

Sete anos se passaram desde que elas haviam se encontrado em Maynooth. Ocasionalmente, seu marido mencionara ter visto a mulher em Dublin e, uma ou duas vezes, ela mesma a avistara em suas raras visitas à cidade — embora sempre tivesse se desviado para evitá-la. E agora ali estava a criatura em sua própria casa, seus claros olhos castanhos iluminados de prazer e seu lindo rosto, pelo que Margaret podia ver, parecendo ainda mais jovem do que os seus trinta e sete anos.

— A mulher de cabelos ruivos — exclamou novamente, se bem que agora houvesse um ou dois fios grisalhos.

— É melhor vir para perto da lareira — sugeriu Margaret. Com sorte, pensou ela, a tempestade logo passaria e a visitante indesejada iria embora.

A tempestade, porém, não passou. Ao contrário, parecia que, ao ultrapassar as montanhas de Wicklow, a tempestade havia parado junto à grande curva da baía de Dublin e que pretendia despejar todos os seus furiosos trovões e seu grande dilúvio sobre Dalkey, Carrickmines e cercanias.

Enquanto o criado era levado para a cozinha, Margaret mandou que a filha apanhasse roupas secas para a mulher do conselheiro, enquanto Joan Doyle despia as roupas molhadas diante do fogo e, prazerosamente, aceitava o cálice de vinho que lhe era oferecido. Então, após ter vestido o roupão de Margaret, observando que poderia ficar ali por algum tempo, sentou-se num grande banco de carvalho, enfiou confortavelmente os pés sob o corpo e acomodou-se, segundo ela, para ter uma boa conversa.

Talvez tivesse sido seu contentamento o que Margaret achou irritante. A colheita estava arruinada, William Walsh estava fora, arriscando sua reputação; mesmo assim, enquanto os trovões estouravam lá fora, aquela rica mulherzinha de Dublin tagarelava como se nada houvesse de errado no mundo. Falou sobre os acontecimentos da cidade e sobre sua vida lá, subitamente observando, sem motivo algum que Margaret pudesse ver:

— Mas você tem muita sorte de viver aqui.

Discorreu sobre as delícias de Dalkey. Descreveu uma visita que fizera a Fingal. Mas foi então, quando, como um aparte, ela expressou seus sentimentos pelo assassinato de Talbot na virada do ano anterior, que Margaret perdeu a paciência e, quase antes de perceber o que dizia, comentou desagradavelmente:

— Um Talbot a menos nunca fez mal.

Foi realmente imperdoável. Teria sido cruel mesmo se ela não soubesse que a família Butler de Joan era chegada aos Talbot. E por mais que a mulher de Doyle a tivesse escarnecido no passado, era pior do que falta de educação insultá-la daquele modo, visto que ela era uma visita em sua casa. Margaret sentiu-se envergonhada logo que as palavras saíram de sua boca. O insulto atingiu o alvo. Viu a mulher de Doyle dar um leve arquejo e enrubescer. E ela não sabia para onde a conversa poderia descambar a seguir, se seu filho de quinze anos, Richard, não tivesse acabado de entrar na casa, vindo do celeiro.

— Esse é seu filho? — A mulher de Dublin virou-se e sorriu; e Margaret, secretamente, soltou um suspiro de alívio.

Não havia como negar, o filho mais novo dela era um rapaz muito bonito. Magro, cabelo ruivo, não tão escuro quanto o dela, algumas sardas, temperamento afável. Se, como a maioria dos rapazes de sua idade, às vezes ficava taciturno, com estranhos, como a mulher do conselheiro, ele era sempre simpático. Margaret pôde perceber que, em pouco tempo, ele encantou a mulher de Dublin. Graças a Deus, pensou arrependida, que ele tinha a boa educação do pai. Em pouco tempo, ele já respondia a todas as perguntas da visita sobre si mesmo e descrevia sua vida simples no campo com tanto entusiasmo natural que Joan Doyle ficou encantada: e, se não havia esquecido o insulto de Margaret, preferiu acreditar que o tinha esquecido, e portanto Margaret ficou contente por deixar os dois conversarem. Apenas uma vez os interrompeu. A mulher de Doyle havia perguntado a Richard sobre seus irmãos e irmã e, depois:

— E seu pai, onde está ele?

— Em Fingal — respondeu Margaret rapidamente, antes que o filho pudesse falar. Ele olhou-a de relance com um sinal de irritação, como se quisesse dizer: você acha que sou tão estúpido para deixar escapar a coisa errada? A mulher de Doyle percebeu, mas tudo que disse foi:

— Meu marido tem alta consideração pelo seu pai.

No fim da tarde a tempestade não diminuíra. A trovoada tinha ido para além da baía, mas a chuva continuava caindo forte com o mesmo monótono sibilar.

— Você não irá a lugar algum esta noite — Margaret ouviu-se dizer. Quando entrou na cozinha para supervisionar os preparativos da refeição noturna, Joan Doyle acompanhou-a; mas esperou e não se intrometeu até ver que havia ervilhas para debulhar, silenciosamente fez-se útil. Fossem quais fossem seus sentimentos em relação à mulher, Margaret não podia realmente se queixar dela.

Era início da noite quando começaram a comer. Normalmente ainda estaria claro lá fora, mas as nuvens da tempestade eram tão negras que Margaret teve de acender velas sobre a grande mesa de carvalho. Além de ensopado de peixe, carne e frutas cristalizadas — sua visita, afinal de contas, era esposa de um conselheiro de Dublin —, Margaret providenciou uma jarra com o seu melhor vinho. Eu mesma precisarei disso, pensara ela, para agüentar esta noite. Durante a refeição, porém, na qual, à maneira irlandesa, todos da casa comiam juntos, a mulher de Dublin foi tão simpática com todos, rindo e gracejando com os filhos dela e o criado, os empregados da fazenda e as mulheres que trabalhavam na casa, que Margaret, relutantemente, reconhecera que ela era, afinal de contas, esposa e mãe não muito diferente dela própria. E talvez aquilo fosse por causa do vinho que tomava — pois, quando bebia vinho, este geralmente abrandava seu ânimo —, mas Margaret até mesmo se descobriu rindo dos gracejos de Joan Doyle e ela mesma dizendo alguns. O grupo todo permaneceu à mesa até tarde e, após o término da refeição e limpeza da mesa, as duas continuaram sentadas e beberam um pouco mais. Quando, finalmente, chegou a hora de se recolher para dormir, Joan Doyle disse que ficaria suficientemente bem instalada ali mesmo no largo banco do saguão.

— Dê-me apenas um cobertor — sugeriu ela.

Por um momento, Margaret hesitou. O criado já tinha ido para a cozinha, e era bastante normal, numa casa antiquada como aquela, uma visita dormir no grande salão. Mas, no andar de cima, em um dormitório formal, Margaret e o marido tinham uma grande e bonita cama com dossel. Era o objeto mais valioso da casa e Margaret se orgulhava dele.

— Nada disso — rebateu ela. — Você irá lá para cima e dormirá na cama. Tratava-se de um aposento bem equipado. No ano anterior, William recebera uma fina tapeçaria como pagamento por um serviço que prestara, e esta enfeitava uma das paredes. Quando Margaret colocou a vela sobre uma mesa, a grande cama de carvalho brilhou suavemente e Joan Doyle comentou a excelência do leito. Como sempre fazia, Margaret soltou o cabelo e o escovou, enquanto a mulher de Dublin permanecia sentada na cama observando-a.

— Você tem um cabelo maravilhoso — disse ela. Quando Margaret se deitou em um lado da cama, Joan Doyle despiu-se e Margaret novamente notou com admiração que esta mantinha o belo corpo, apenas um pouco mais rechonchudo do que devia ter sido quando ela era jovem. Joan então foi para a cama ao lado de Margaret e deitou a cabeça. Era estranho, pensou Margaret, ter aquela bela mulher deitada tão perto. — Você tem excelentes travesseiros — comentou Joan, e fechou os olhos. O ruído da chuva caindo vinha suavemente da janela, quando Margaret também fechou os seus.

O forte estrondo do trovão no meio da noite foi tão repentino e tão alto que ambas se ergueram da cama ao mesmo tempo. Então Joan Doyle deu uma risada.

— Eu não estava dormindo. Você estava?

— Na verdade, não.

— Foi o vinho. Bebi muito vinho. Está ouvindo a tempestade? — A chuva agora caía torrencial, num rugido constante. Houve um clarão ofuscante lá fora; o barulho de um trovão pareceu sacudir o quarto. — Agora não vou conseguir dormir — suspirou Joan Doyle.

Começaram novamente a conversar. Talvez fosse a estranha intimidade da escuridão, quando a chuva se despejava e a trovoada continuava a crepitar e estrondear no céu, mas o diálogo tornou-se bem pessoal. Joan falou das filhas e da esperança que tinha para elas. Também contou como tentava ajudar Tidy e Cecily.

— Vou lhe dizer uma coisa — confessou — eu tive de repreender aquela moça.” E tão evidentes eram sua bondade e suas boas intenções que Margaret imaginou: será possível que ela a tivesse julgado mal no passado? A tranqüila conversa prosseguiu por mais outra hora e a mulher de Dublin tornou-se um tanto confidencial. Parecia que estava preocupada com o marido. Odiava a política da cidade, disse a Margaret. — Não me importo nem um pouco que os Fitzgerald queiram governar nossas vidas — afirmou, — mas por que precisam ser tão truculentos? — O Talbot que mataram no ano anterior era um bom homem de quem ela gostava, explicou. Margaret não teve certeza se aquilo foi uma delicada repreensão pelo comentário que fizera anteriormente, mas Joan prosseguiu: — Fique longe disso tudo, vivo implorando ao meu marido. Você não pode imaginar os boatos odiosos, ridículos. E são espalhados por pessoas intrometidas que não sabem o mal que causam, ou por espiões do rei. Sabia que os conselheiros reais suspeitam de qualquer homem que visite Munster por qualquer motivo? Tudo porque lorde Desmond é atualmente motivo de suspeita por causa de uns negócios idiotas que tem com os franceses. Dá para acreditar? Dia desses, meu marido teve de afiançar um homem inocente.

Ela fez uma pausa e então alisou o braço de Margaret.

— É melhor vocês aqui não se envolverem nessas coisas — disse ela.

E foi então, talvez porque decidiu que, afinal de contas, podia confiar naquela mulher Doyle, talvez também porque pensou que, se precisasse, o conselheiro poderia fornecer ao seu marido uma proteção semelhante, e talvez até mesmo porque aquele último comentário sugeriu que a esposa de Doyle achava que ela não era enfronhada o bastante para saber dessas coisas, que Margaret então confidenciou: — Ah, mas estamos envolvidos. — E contou-lhe sobre a visita de William Walsh a Munster. — Mas precisa prometer não contar a ninguém — implorou-lhe —, pois William ficaria furioso se soubesse que lhe contei.

— Ele é muito sensato — assegurou-lhe Joan. — Não contarei nem mesmo ao meu próprio marido. Que mundo tolo este — suspirou —, para termos de guardar esses segredos. — Ficou calada por uns momentos, depois disso. —Acho — murmurou — que agora conseguirei dormir.

O sol estava alto quando acordaram. A tempestade passara; fazia um dia claro. Joan Doyle sorria satisfeita quando, após agradecer calorosamente a Margaret e abraçá-la, preparou-se para partir. Ao cavalgar para fora do pátio, ela virou-se para Margaret uma última vez.

— Lamento por você não gostar dos Talbot — disse ela com um sorriso.

Passaram-se mais dez dias, antes de William Walsh retornar de Munster. Margaret ficou feliz por ele parecer contente consigo mesmo. Os negócios tinham se saído bem. Encontrara-se, sem nenhum incidente, com o conde de Desmond, no mos teiro. — A não ser que eu tenha sido seguido — comentou —, não creio ninguém saiba que estive com ele.

Ela contou-lhe da visita de Joan Doyle, evitando qualquer menção à convers sobre Munster, e isso o deleitou. —A esposa de Doyle é uma boa mulher — disse ele —, e o próprio Doyle está mais poderoso do que nunca. Que bom que você ficou amiga dela.

Ele permaneceu vários dias em casa, antes de, certa manhã, ir a Dublin.

Voltou no fim da tarde. Assim que ele entrou na casa, ela percebeu que havi algo errado. Fez a refeição apenas na companhia dela, com a aparência pensativa, mas falou muito pouco. Ao final da refeição, porém, perguntou-lhe baixinho: Você não contou a ninguém que eu estive em Munster, contou?

— Munster? — Ela sentiu-se empalidecer. — Por que eu faria isso? O que aconteceu?

— É muito estranho — retrucou ele. — Você sabe que havia uma chance de me ser oferecida uma cadeira no Parlamento. Hoje, numa conversa sobre o assunto com um funcionário do conselho real, ele me disse para eu não ter o trabalho de solicitar. Eu esperava um apoio bem amplo, você sabe. Homens como Doyle e também os Fitzgerald. Mas, de acordo com esse sujeito, Kildare agora está comprometido com uma outra pessoa... que é a maneira de dizer que ele não quer me apoiar. Andei investigando por aí e tive a impressão de que algo foi dito contra mim. — Sacudiu a cabeça. — Mesmo Doyle, em quem confio, pareceu sem jeito e disse não saber de coisa alguma. Mas, assim que eu ia saindo, ele me deu um olhar estranho e disse: “Dublin está tão cheia de boatos hoje em dia que nenhum de nós está a salvo.” Foram essas as próprias palavras dele. E a única coisa que me ocorre que poderia haver contra mim é se alguém soube dessa visita a Munster e iniciou um boato. Você tem certeza de que não se lembra de ter falado para alguém?

Margaret olhou pela janela. Ainda havia um pouco de luz. Os vidros formavam um mortiço retângulo esverdeado.

Foi Joan Doyle. Só podia ser. Ela deve ter contado ao marido. Fizera isso inocentemente, em confiança? Ou o fizera com malícia? Margaret lembrou-se de suas palavras ao partir. “Lamento por você não gostar dos Talbot.” Sim, foi isso. Ela conseguiu a informação para prejudicar a família Walsh, e deixou Margaret saber que se lembrava do insulto e que era sua inimiga. E agora, subitamente, o pensamento ocorreu a Margaret com uma sensação fria e doentia. A história que a mulher de Doyle lhe contara sobre o homem que fora a Munster. Ela a teria inventado? Após aquele breve embaraço com Richard sobre o paradeiro de seu pai, teria Joan Doyle adivinhado que era a viagem de William a Munster que a família escondia? Com todas aquelas palavras doces durante a noite, estaria a mulher de Dublin apenas colhendo informações?

— Tenho certeza — respondeu ela. — Não falei. — Ficou envergonhada da mentira. Mas como poderia dizer-lhe que foi ela mesma a causa do boato? Como ele poderia perdoá-la? Ela supôs que a mulher de Doyle também devia ter previsto isso.

— Eu jamais descobrirei — disse Walsh tristemente. — Quando essas pessoas resolvem não falar é o mesmo que perguntar a uma sepultura. — Suspirou. — Silêncio.

—Talvez — sugeriu ela sem muita esperança — eles mudem de idéia sobre o Parlamento.

— Talvez — disse ele. Ela percebeu que ele não acreditava nisso.

Então, tudo no que Margaret pôde pensar foi em Joan Doyle e imaginar quando, e de que forma, ela poderia se vingar.

Eva o’Byrne não disse uma palavra quando seu marido chegou em casa. Ela havia preparado tudo com extremo cuidado.

Amanhã seria Michaelmas, a festa de São Miguel que acontecia em 29 de setembro, um dos principais dias do calendário da Igreja para o acerto de contas. Ela não pôde deixar de rir sozinha por causa da coincidência. Era tão apropriado.

Durante a manhã, ela caminhara até a casa de Brennan. Ele estava fora, no campo, com seu gado, e ela o viu olhar curiosamente em sua direção. Sua esposa estava parada na porta da cabana deles. Ela tinha o rosto largo, pele sardenta; seu olhar, Eva julgou, parecia falso. Ela era uma putinha bonita, pensou, algo indigno de sua atenção. Havia um menino com três anos de idade brincando na terra aos pés da garota. Subitamente percorreu sua mente a idéia de que o menino pudesse ser de seu marido. Olhou atentamente a criancinha, mas não conseguiu ver qualquer semelhança. Em seguida, deu de ombros. O que isso importava? Dirigiu algumas palavras Sem importância à garota. Mais importante, imaginou, era como estaria a cabana por dentro. Era bastante desprovida, quando ela estivera ali pela última vez, alguns anos atrás, mas não dava para ver nada do lado de fora. Deixou o olhar vaguear pelo campo que descia a encosta. Era uma terra boa Depois, fez um gesto com a cabeça para a garota e caminhou de volta para sua casa. Os Brennan deviam estar imaginando por que ela fora ali. Que imaginassem

O resto da manhã ela passara com os filhos. Seamus, o mais velho, tinha saído com o pai. Havia mais cinco, um menino e quatro meninas. Ela amava todos eles. Mas se tivesse de escolher um favorito — o que jamais admitiria — seria Fintan. Cinco anos de idade, parecia demais com ela: o mesmo cabelo louro; os mesmos olhos azuis. Acima de tudo, porém, acreditava, ele pensava igual a ela. Franco, honesto. Confiável. Ela passara uma hora contando-lhe histórias sobre sua família nas Midlands. Ele adorava ouvir sobre o lado dela da família, e a mãe sempre lhe lembrava: “Eles também são sua gente, assim como os o’Byrne.” No dia anterior, ele lhe revelara que gostaria de visitar a família dela. “Prometo que um dia o levarei lá”, dissera ela; então, acrescentou: “Talvez em breve.”

O frei de Dublin chegara no início da tarde. Ela o tinha visto se aproximar e saíra para recebê-lo.

— Você trouxe? Ele fez que sim.

— Está aqui. — Deu um tapinha num pequeno volume sob a batina. Como a maioria das pessoas da ilha, fosse no enclave inglês ou no interior

irlandês, Eva reverenciava os frades. O padre Donal era um bom homem e ela o respeitava. Quando recebia o sacramento de suas mãos, não tinha dúvida de que o milagre da Eucaristia era realizado; quando ele ouvia sua confissão, dava-lhe penitência e absolvição, o fato de ele mesmo ser um marido em tudo menos no nome e pai de uma criança não a deixava nem um pouco perturbada. Ele era um homem paternal, instruído, carregava consigo a autoridade da Igreja, a qual por si só era impressionante. Sua repreensão, igualmente, tinha aquela mesma irrefutável autoridade moral. Mas o frei era algo especial. Era um homem santo. Seu fino rosto ascético não era indelicado, mas continha um fogo interno. Ele era como um eremita, um habitante do deserto, um homem que caminhara sozinho diante da terrível presença do próprio Deus. Seus olhos, quando se fixavam em alguém, pareciam cortar como uma faca até a verdade.

Fora na primavera anterior, quando, pela manhã, partia para seguir em seu caminho para Glendalough, que ela pedira pela primeira vez seu conselho. Suas palavras então tinham sido amáveis, mas não encorajadoras. Foi, porém, enquanto ele estava distante, nas montanhas, que Eva concebeu sua inspirada idéia e, quando ele passou novamente por lá, na volta, ela falou-lhe em particular e fez seu pedido. Mesmo nessa ocasião, somente após muita súplica, foi que ele, finalmente, concordou em ajudá-la.

O frade passara a tarde com o padre Donal, enquanto Eva, ajudada pelos filhos, fazia os preparativos para a noite.

Ela tinha orgulho de sua casa. Em muitos aspectos, a casa-forte de o’Byrne não era muito diferente da de Walsh. A modesta fortaleza de pedra tinha um salão no qual acontecia a maior parte das atividades da casa. Embora houvesse des-pensas e depósitos separados, Eva cozinhava num braseiro no centro do aposento, do modo tradicional, em vez de na cozinha; mas ela e Sean o’Byrne tinham seu próprio dormitório — uma concessão ao costume moderno com o qual o pai de Sean não teria tido qualquer problema. Os o’Byrne falavam irlandês. Os Walsh falavam inglês, e como Walsh era um advogado que estudara e se formara em Londres, o inglês dele era culto. Contudo, os Walsh se sentiriam perfeitamente à vontade falando irlandês na casa dos o’Byrne. Walsh usava uma túnica inglesa e calções; o’Byrne vestia camisa e capote e, normalmente, preferia as pernas nuas. Walsh tocava pessimamente o alaúde; o’Byrne tocava bem a harpa. Walsh tinha uma coleção de livros impressos; O’Byrne possuía um Saltério com iluminuras do tamanho da mão e era capaz de, durante horas, recitar poesias com os bardos visitantes. A vista de Walsh, porque ele lia à luz de velas, era um pouco fraca; a de o’Byrne era aguçada. Mas a refeição que Eva preparava agora para suas visitas, a palha fresca que espalhava no chão, e as enormes travessas e canecas que suas filhas arrumavam sobre a mesa não eram diferentes das que Margaret Walsh teria usado. Ao olhar em volta para aquela cena doméstica, com os filhos e os dois criados tão produtivamente envolvidos, ela torceu muito para que a noite fosse bem-sucedida. Teria pena, de fato, de deixar tudo aquilo.

Quando Sean O’Byrne chegou, ficou um tanto surpreso de encontrar o frei e o padre Donal em sua casa. Mas, naturalmente, teriam de receber hospitalidade; e, de bom humor, os moradores da casa se reuniram para a refeição da noite. A colheita podia ter sido arruinada, mas Eva providenciara deliciosos bolos de aveia, salada de agrião, morcela e um ensopado de carne em homenagem às visitas. O frei abençoou a comida e, embora comesse frugalmente, provou de tudo por gentileza à anfitriã e aceitou um pouco do vinho que Sean ofereceu. Mostrou particular interesse nas crianças, especialmente em Seamus, o rapaz mais velho.

— Você está se tornando um homem — disse-lhe seriamente — e precisa assumir as responsabilidades de um adulto. Somente ao final da refeição, o frei revelou que gostaria de ter uma conversa em particular com o casal o’Byrne.

Eva observou o marido. Se ele parecesse ligeiramente surpreso, ela saberia que não fazia idéia do que viria. Talvez tivesse esquecido que, naquela primavera, jurara inocência diante dos dois homens. Por conhecê-lo, mesmo isso era possível, pensou ela tortuosamente. Quando as crianças os deixaram e os quatro ficaram sozinhos, o frei começou a falar.

Falou bem baixinho. Ambos precisavam entender, disse-lhes, que o sacramento do matrimônio não era apenas uma questão de conveniência para uma melhor ordenação da sociedade.

— Aqui na Irlanda — discorreu — tradicionalmente, a natureza inviolável do casamento e a importância da castidade não têm sido observados como requisitos plenos. Isso, porém, é uma pena, pois, se seguíssemos os ensinamentos de Nosso Senhor, eles deveriam ser observados. Acima de tudo, mesmo sem conseguirmos atingir esses altos padrões, tem de haver, entre duas pessoas casadas, um entendimento e um respeito pelos sentimentos uma da outra. Talvez tenhamos de pedir perdão uma à outra, mas os maridos não devem escarnecer de suas esposas, nem esposas de seus maridos. — Olhou severamente para Sean. — Humilhar aquele a quem devemos amar é um crime maior do que ser infiel. — Ele falou com uma autoridade tão pacífica que nem mesmo Sean seria capaz de se queixar.

No entanto, o frei em pessoa a havia a princípio aconselhado a não insistir no assunto, quando conversaram a respeito no verão.

— O seu marido fez um juramento — dissera-lhe ele —, e você deveria ter a sensatez de aceitá-lo.

— Mesmo eu sabendo que é mentira? — perguntara ela.

— Talvez sim — respondera ele francamente, e fizera-lhe uma breve preleção sobre o seu dever de humildemente se submeter a essas provações. — Talvez Deus a esteja testando — explicou. Mas ela era incapaz de aceitar esse conselho, mesmo vindo do devoto frei.

— É a humilhação — explodira ela —, o escárnio de sua mentira que lhe permite continuar dormindo com aquela garota praticamente na minha própria casa. E demais — berrara —, não agüento mais. Ele nada faz além de mentir para mim e, se tento pressioná-lo, ele simplesmente escapole, deixando-me sem nada. Algo tem de mudar. — Olhara para o frei desesperadamente. — Se ele continuar com isso, não responderei pelos meus atos. Talvez — acrescentara com furiosa ameaça — eu enfie uma faca em seu coração enquanto ele estiver dormindo. — E, enquanto ele a olhava horrorizado, ela repetira a ameaça. — Mesmo se eu for para o inferno por causa disso — jurara. Só assim ele concordara em levar em conta o seu pedido de ajuda.

— Há uma coisa que eu posso fazer — sugerira ele.

Agora, enquanto ela olhava para o marido, era difícil dizer o que ele pensava. A essa altura, ele devia ter uma idéia do que viria e, sem dúvida, já preparava sua defesa habitual. Mas havia uma coisa que ele não sabia.

— O seu arrendatário Brennan — começou o frei, lançando um duro olhar para Sean — tem uma esposa com a qual você...

— Eu já fiz um juramento em relação a isso — interrompeu Sean, veloz como um raio.

— Eu sei que já fez. — O frei ergueu a mão. — Mas talvez você queira reconsiderar. Seria algo terrível, Sean o’Byrne, ter na consciência o pecado de um falso juramento, quando tudo que precisa fazer é pedir perdão a esta mulher — apontou para Eva —, que ama você e está disposta a esquecer o passado. Não percebe — prosseguiu premente — que sua crueldade a está magoando?

Mas, se Sean percebia, não admitia. Seu rosto continuava teimosamente firme.

— Eu já jurei — disse ele — para o padre Donal, aqui presente.

— Então não faria objeção em jurar para mim? — indagou o frei.

Será que agora, só por um momento, o seu marido hesitou? Pareceu a Eva que sim. Mas ele estava encurralado.

— Eu juraria para o próprio bispo — declarou enfurecido.

— Muito bem. — Enfiando a mão na batina, o frei retirou um pequeno embrulho.

— O que é isso? — quis saber Sean, desconfiado.

Lenta e cuidadosamente, o frei desembrulhou o pano que envolvia a caixinha de madeira, escurecida pelo tempo, a qual depositou sobre a mesa. Com reverência, tirou a tampa da caixa, para revelar que continha outra caixa, esta feita de prata, a parte superior incrustada com jóias.

— Isto veio da Igreja de São Kevin de Dublin — anunciou tranqüilamente. — Contém o osso do dedo do próprio São Kevin de Glendalough.

E, dessa vez, Eva ouviu o marido inspirar levemente quando todos fitaram pasmados a caixa ornada com jóias.

A mais esplêndida de todas as relíquias, como o Bachall Iosa de São Patrício que se encontravam na Catedral da Igreja de Cristo; mas várias das igrejas menores tinham tesouros do grande santo, os quais, todos sabiam, tinham espantosos poderes. Quando alguém tocava na relíquia que agora estava diante deles ficava na presença do próprio santo de Glendalough.

— Colocaria a sua mão, Sean o’Byrne, sobre o corpo de São Kevin e juraria que nunca teve relações carnais com a mulher de Brennan? — convidou calmamente o frei. — Você faria isso?

Houve um silêncio. Os três o observavam. Sean olhou primeiro para o frei, depois para a caixinha. Por um momento, pareceu realmente que ele estenderia a mão à frente.

Mas, fossem quais fossem os seus pecados, Sean o’Byrne ainda tinha um saudável temor a Deus e ao poder de Seus santos. Após uma agonizante hesitação, olhou zangado para os três e recuou a mão.

— Não consegue fazer isso — disse o frei. — E devia agradecer por não conseguir; pois, se o tivesse feito, Sean o’Byrne, teria sido um pecado tão terrível que nada poderia mantê-lo afastado do fogo eterno do inferno. Graças a Deus, não o fez.

Se, porém, estava agradecido a Deus, Sean o’Byrne não demonstrava. Quando o frei colocou a tampa de volta na escura caixinha, ele sentou-se emburrado, encarando a mesa, sem pronunciar uma só palavra. Por fim, foi Eva quem falou:

— Os Brennan irão embora. Seamus poderá ficar com a propriedade deles. Sean virou-se na direção dela e olhou, fixamente, para seu rosto.

— Eu decidirei isso — afirmou.

— Você pode decidir o que quiser — rebateu ela. — Mas, se os Brennan ficarem, então serei eu quem partirá amanhã. — Eva falava sério, ele pôde perceber isso. Ela pensara em tudo. Levaria consigo o pequeno Fintan e a menina mais nova; os mais velhos poderiam ficar. Não havia muito o que Sean pudesse fazer a respeito. Qualquer coisa era melhor do que ficar ali com ele e a mulher de Brennan zombando dela todos os dias.

O silêncio que se seguiu foi quebrado pelo padre Donal:

— Seria bom para Seamus ter aquela terra — comentou. Houve uma pausa.

— Eu perderei o aluguel dos Brennan.

— Mas talvez a terra dê mais lucro para você — observou o padre.

— Os Brennan terão de ir embora — disse finalmente o’Byrne, como se, ao afirmar isso, tivesse recuperado o controle da situação. — Eles são rendeiros por permissão, como sabem. Podem ser mandados embora a qualquer momento. — Olhou para Eva, que calmamente assentiu. — Diremos a ele que precisamos da fazenda para Seamus.

No dia seguinte, os Brennan foram mandados embora. A explicação dada foi a de que precisavam da propriedade para o jovem Seamus. Se Brennan acreditou nisso ou não, não ficou claro.

Talvez tivesse acreditado, pois, assim como o próprio o’Byrne ocupava uma pequena porção dos vastos territórios de seus nobres ancestrais, do mesmo modo, por toda a Irlanda, quando uma geração sucedia à outra, essas pequenas propriedades rurais iam sendo subdivididas entre os descendentes, até os seus mais humildes arrendatários terem de ceder lugar a um dos muitos herdeiros da família. Com os OToole, os o’Byrne e até mesmo os poderosos o’Neill acontecia a mesma coisa. “Parece que cada maldito trabalhador rural irlandês pensa que é descendente de príncipes”, os ingleses às vezes reclamavam. O motivo era que muitos deles o eram.

Então os Brennan foram embora à procura de outro lugar, e o jovem Seamus o’Byrne passou a sentir-se em casa na cabana deles, e Eva recuperou sua dignidade.

Antes de partir, o frei dera alguns bons conselhos ao casal. “Você fez a coisa certa”, disse a Sean. “Você tem uma boa esposa e espero que tenha sabedoria para ver isso. E você”, virou-se para Eva, “tem um bom esposo. Lembre-se disso agora e o respeite.”

Nas semanas e meses que se seguiram, ela fez o melhor que pôde para seguir o conselho e tornar-se agradável e atraente para o esposo, de todas as maneiras que conhecia. Pareceu dar certo. Ele se tornou bastante amoroso, se bem que não exatamente afetuoso. E, sabe Deus, pensou ela, era melhor agradecer por isso. Durante aquele inverno e depois ela não teve motivo, pensou, de se arrepender do que fizera.

Não lhe ocorreu que, na mente de Sean o’Byrne, apenas uma coisa acontecera no dia em que o frei trouxera a relíquia. Ele, Sean o’Byrne de Rathconan, um príncipe entre os homens, fora enganado e humilhado por ela diante do padre. Ele tivera sua posição usurpada. Não era o amo em sua própria casa. Isso era tudo o que entendia; mas nada disse.

 

                                    Silken Thomas,1533

Os anos que se seguiram ao seu casamento deveriam ter sido felizes para Cecily; e, de certo modo, o foram. Ela amava o marido. Tinha duas lindas meninas. Os negócios de Tidy floresciam: ele fazia as melhores luvas de Dublin; MacGowan e dame Doyle o recomendavam a todos os amigos; e já tinha um menino aprendiz em sua oficina. Também se tornara um atarefado e ascendente membro da guilda de seu ofício; em dias de festa, Cecily observava-o vestir-se com o reluzente uniforme da associação, tão contente consigo mesmo que era comovente de se ver. E, é claro, ele tinha a cidadania honorária.

“Seu marido está ficando famoso”, comentou dame Doyle para ela com um sorriso, quando, certo dia, se encontraram na rua. “Você deve estar orgulhosa dele.”

Estava? Ela sabia que devia. Não era ele tudo o que um bom artesão de Dublin deveria ser? Trabalhador, confiável. Quando, à noite, ela o via sentado em sua cadeira com uma menininha sobre cada joelho, tinha uma profunda sensação de alegria e contentamento; e ia até ele e o beijava, e ele lhe sorria feliz, e ela rezava secretamente por mais crianças, esperando que pudesse lhe dar o filho que — embora negasse — ela sabia que ele desejava. Sim, seu marido era um bom homem e ela o amava. Ela podia ir ao seu confessor com a consciência tranqüila, segura por saber que nunca era fria com o marido, nunca lhe negava seu corpo, quase nunca ficava irritada e sempre controlava seus humores. O que poderia confessar, exceto que, de tempos em tempos — talvez um tanto freqüentemente —, desejava que ele fosse diferente?

Contudo, o motivo para a primeira desavença séria entre eles nada teve a ver com suas próprias vidas. Teve a ver com os acontecimentos na distante Inglaterra.

Para a maioria dos habitantes de Dublin, os últimos oito anos tinham parecido movimentados como de hábito. A rivalidade entre os Butler e os Fitzgerald continuara. Confiando nas suspeitas do rei Henrique em relação às intrigas estrangeiras da família Fitzgerald, os Butler o haviam convencido a lhes dar por uns tempos o cargo de vice-rei, mas em pouco tempo a grande tenaz de poder dos Fitzgerald os espremeu novamente para fora. A Dublin propriamente dita estivera calma o bastante, entretanto, no interior, os aliados irlandeses dos Fitzgerald vinham extorquindo dinheiro de proteção dos chefes mais fracos e dos proprietários de terras — Aluguel Negro, como o chamavam — e, em uma ocasião, eles haviam seqüestrado um dos chefes Butler e o mantido vários meses em cativeiro para recebimento de resgate. Mesmo em Dublin essas transgressões eram vistas com estranha satisfação. “Que audácia desses sujeitos”, diziam as pessoas, pois, na Irlanda, sempre havia nessas escaramuças um elemento de orgulho. Os bravos jovens guerreiros celtas não vinham atacando os seus inimigos desde tempos imemoriais?

Mas o insensível rei Henrique em Londres e seus funcionários amantes da ordem não encaravam nada com bom humor. “Eu já lhes disse antes que, se não governarem a si mesmos, nós os governaremos da Inglaterra”, declarou. E assim, em 1528, um oficial inglês chegou para pôr ordem na ilha. Ninguém o queria, é claro; mas ele veio também com uma enorme vantagem.

No entender do rei Henrique, se ele enviou um servidor real para governar em seu nome, então esse servidor estava investido de sua autoridade real e devia ser obedecido, não interessava quem fosse. Não era assim, porém, que as coisas eram vistas na Irlanda. As genealogias dos chefes irlandeses, fossem reais ou inventadas, recuavam à época celta. Mesmo os poderosos ingleses como os Butler e os Fitzgerald já eram aristocratas quando chegaram à ilha havia mais de três séculos. A sociedade irlandesa era e sempre fora aristocrática e hierárquica. Os criados das tradicionais residências irlandesas podiam comer e dormir lado a lado com seus amos, mas a família do chefe era tratada com reverência. A coisa era mística.

O novo vice-rei era o mestre de artilharia do rei. Um soldado rude de sangue vermelho como brasa, mas não azul.

—Vim trazer uma nova ordem inglesa para a Irlanda—avisou aos irlandeses.

— É mesmo? — estes retrucaram. — Príncipes da Irlanda se curvarem para um sujeito sem berço nobre? — protestaram. — Nunca. — O Canhoneiro, era como eles o chamavam desdenhosamente. E apesar de fazer o melhor que podia e de o próprio Kildare, por ordem do rei Henrique, tê-lo apoiado de má vontade, não demorou muito para que o desgastassem.

O rei Henrique ficou furioso. E se não houvesse outros problemas maiores em seu reino para lidar, ele talvez tivesse tomado medidas mais severas. Como, porém, não tinha dinheiro nem energia para se envolver ainda mais com a Irlanda naquela ocasião, a contragosto ele devolveu a ilha a Kildare. “Que ele reine por enquanto”, declarou irritado, “até conseguirmos pensar em algo melhor.” Para os irlandeses, pareceu que, mais uma vez, eles haviam provado que o rei inglês jamais conseguiria se impor sobre eles. Kildare estava de volta, para o que desse e viesse. Tudo voltava a ser como antes.

Mas, na Inglaterra, grandes mudanças tiveram início.

Quando, por volta da chegada do Canhoneiro à Irlanda, o rei Henrique anunciou que desejava anular o seu longo casamento com a rainha espanhola, Catarina de Aragão, e surgiram distúrbios em Londres, onde a devota rainha era popular. Pouca gente na Irlanda, porém, se importou com isso. Nos territórios fora do enclave britânico, o divórcio nunca tinha sido visto como algo muito chocante. Mesmo na rigorosa paliçada inglesa, a maioria das pessoas sabia que anulações eram comumente concedidas a aristocratas e príncipes; e, em todo caso, o rei acreditava que tinha fundamentos válidos para uma anulação. Essa era uma questão entre o rei inglês e o Santo Padre. Além disso, todos em Dublin estavam ocupados demais em se livrar do Canhoneiro para se preocupar muito com a rainha Catarina.

Por que, então, a questão do rei Henrique fora o motivo da briga entre Cecily e seu marido? A verdade era que nem mesmo ela sabia direito. Começara, também, muito inocentemente, com um comentário casual que ela fizera certo dia, de que não parecia muito certo o rei livrar-se de sua fiel esposa após todos aqueles anos.

— Ah — ele a olhara com um vestígio de condescendência —, mas você deve levar em conta o seu problema. Ele só tem uma filha e precisa de um filho.

— Então, se eu só lhe der filhas — indagou ela —, você também se livrará de mim?

— Não seja tola, Cecily — disse ele. — Não sou nenhum rei.

Por que seus modos a irritaram? Teria sido o vestígio de presunção em sua voz? Na opinião dela, desde que começara a criar fama na guilda, ele às vezes se mostrava um pouquinho presunçoso.

—A filha dele poderia ser rainha. Já houve antes rainhas por direito — frisou ela corretamente.

-— Você não entende a situação na Inglaterra — rebateu ele, desistindo da conversa. Agora não havia mais dúvida. Ele falava com ela como se ela fosse uma idiota. Cecily olhou-o furiosamente. Quem ele pensava que era? Mas não houve sempre um vestígio de desdém em sua atitude em relação a ela, desde aquele tolo incidente com o lenço cor de açafrão, antes de se casarem? Contudo, ela não queria brigar com o marido e, portanto, não retrucou.

Com o passar do tempo, os acontecimentos na Inglaterra tornaram-se mais chocantes. Todo tipo de pressão foi feito sobre a pobre rainha para fazê-la desistir de sua posição, no entanto seu orgulho espanhol e sua religiosidade fizeram-na declarar, com toda a razão, que era a fiel esposa do rei Henrique até o santo papa dizer-lhe o contrário. Enquanto isso, o rei, dizia-se, estava enfeitiçado por uma jovem dama chamada Ana Bolena, e queria se casar com ela o mais cedo possível. Mas, apesar de admitir estudar o assunto, o papa ainda não concedera ao rei Henrique a sua anulação, embora este tivesse começado a insinuar que, de qualquer modo, poderia seguir em frente. Cecily estava chocada.

— Como pode o rei ao menos pensar em se casar com sua prostituta — era assim que muita gente se referia a Bolena, apesar da bem conhecida recusa de Ana em entregar o seu corpo ao rei sem um anel de casamento — sem o Santo Padre ter emitido sua decisão? — perguntou ela.

— Não está levando em conta a posição do papa — replicou Tidy, com um tom de certo modo pomposo. E explicou-lhe como o novo rei da Espanha, que era sobrinho da rainha Catarina, também herdara os imensos domínios da família Habsburgo em outras partes da Europa, juntamente com o título de Sagrado Imperador Romano. O orgulho da família Habsburgo era muito forte. O imperador jamais permitiria que sua tia fosse posta de lado pelo pretensioso rei da pequena Inglaterra. — O papa não ousa ofender o imperador, portanto não pode conceder a anulação desejada por Henrique — explicou Tidy. — Todo mundo sabe disso — acrescentou, desnecessariamente.

Mas, para Cecily, a questão não era essa. O rei Henrique desafiava o papa. E quando declarou que ele era o chefe supremo da Igreja Anglicana em vez do papa, e disse ao Santo Padre que, se o excomungasse, “não faria caso”, sua desconsideração e seu menosprezo pelo rei foram completos. O primeiro-ministro inglês, sir Thomas More, renunciou imediatamente.

— More, pelo menos, é um verdadeiro católico — declarou ela. Mas e o resto dos súditos de Henrique? E os católicos ingleses de Dublin e do Pale?

“Foram você e seu amigos — lembrou ela ao marido — que me disseram que eu era irlandesa demais. Não foi, em primeiro lugar, para defender a verdadeira igreja que os ingleses vieram para a Irlanda com a bênção papal? Mas sou eu quem protesta contra essa infâmia, e não ouço qualquer palavra de nenhum de vocês.

— E vendo que ele não tinha resposta para isso, ela continuou: — Dizem que a prostituta Bolena também é uma herética luterana.

— Isso não corresponde à verdade — disparou Tidy. Mas ela sabia que ele também ouvira as histórias. E quando chegou ao porto um boato de que o imperador talvez invadisse o reino inglês e procurasse ajuda na Irlanda, ela comentou, irritada:

— Por mim, ele pode vir.

— Deus me livre, nem pense numa coisa dessas — bradou ele, horrorizado.

— Isso seria traição. Como pode dizer uma maldade dessas?

— Maldade? — retrucou ela. — E é maldade a pobre rainha Catarina recusar-se a repudiar seus votos matrimoniais e o Santo Padre, e tornar-se ela mesma uma herética, como a prostituta do rei Henrique?

Para Cecily, o assunto era claro. Imaginava a dor da pobre rainha. Tidy não pensava nisso? Ela via a crueldade do rei inglês. Essas coisas não significavam nada? Não no insensível mundo da política. A infeliz rainha da Inglaterra está sendo maltratada, assim como ela fora, de seu modo insignificante, naquele dia, anos atrás, quando a prenderam estupidamente. Era tudo a mesma coisa, a tirania dos homens que nunca se sentiriam felizes até forçar cada mulher a se submeter à sua insensatez. Ela admirava a rainha por lutar pela verdade e pelos seus direitos; e admirava, certamente, os poucos como Thomas More que tiveram a coragem de seguir suas convicções. Quanto ao resto dos homens, porém, fosse na Inglaterra ou em Dublin, que achavam que sabiam tudo, ela percebia agora que, por trás de sua fanfarronice pomposa, havia apenas covardia. E era doloroso pensar que seu marido não era melhor do que o resto deles. E, conseqüentemente, enquanto os anos passavam por esses tempestuosos acontecimentos na Inglaterra, em seu coração — embora jamais admitisse ao seu confessor e a si mesma — ela amava cada vez menos o marido.

Foi logo após essa última conversa que Cecily começou a querer uma casa nova.

A moradia deles ficava do lado de fora das muralhas da cidade, na Liberty de São Patrício, e consistia de uma oficina e dois quartos. Tinham sido suficientemente felizes ali, mas os quartos não eram grandes e ficavam devassados a todos os que passavam pelo pequeno pátio; as crianças cresciam, e não foi desmedido o fato de Cecily, certo dia, dizer ao marido, “Precisamos de mais espaço”. Durante os dois últimos anos, Tidy tornara-se ciente da irritação e da insatisfação ocasionais de Cecily, entretanto ele nunca soubera ao certo o que fazer a respeito; portanto, ficou por demais satisfeito com a chance de fazer uma coisa que, aparentemente, a deixaria feliz. Começou imediatamente a procurar um lugar. Após um mês, porém, ainda não encontrara nada que parecesse satisfatório, e pensava no que fazer, quando, certo dia, enquanto ele e Cecily caminhavam pela velha cidade murada, ela de repente comentou: — Eu gostaria que pudéssemos morar numa dessas torres.

Havia, na época, inúmeras torres nas muralhas da cidade de Dublin; cada século parecia ter acrescentado mais algumas. Havia torres com portões em cinco grandes acessos na muralha externa, sem contar os vários portões de entrada pelo rio ao longo do porto. Além desses, havia numerosas torrezinhas a intervalos entre os portões, algumas das quais eram habitadas. Um grande número desses acessos fornecia alojamentos, na maior parte para funcionários municipais de alguma espécie, mas alguns eram alugados para artesãos.

— Seria ótimo olhar para alguma coisa, em vez de ser olhada — suspirou ela.

— Se possuísse uma dessas duas torres, você acredita que seria feliz? — perguntou ele.

— Sim — concordou ela. — Acho que seria.

— Não penso que haja muita chance — disse ele; mas, secretamente, pôs-se a agir para ver se conseguia uma, recorrendo à ajuda do próprio Doyle. Seria uma forma de surpreendê-la e alegrá-la.

Os meses que passaram foram particularmente difíceis. Várias vezes ele ouviu que uma torre talvez ficasse disponível, mas, a cada vez, se revelava ser uma notícia falsa. Ele estava tão determinado a surpreendê-la que nunca lhe contou de seus esforços, resultando que freqüentemente ela o atormentava para encontrar moradia, e várias vezes ele saiu pessoalmente para procurar. Nesse meio tempo, os acontecimentos na Inglaterra iam de mal a pior. O rei Henrique não apenas fizera todo o clero se submeter a ele, como indicara o seu próprio arcebispo, que anulou o seu casamento e, obedientemente, casou-o com Ana Bolena, que, a despeito de seus escrúpulos iniciais, estava agora visivelmente grávida. O escândalo aconteceu em maio daquele ano, quando, com toda a pompa e cerimônia, Ana foi formalmente coroada rainha. Cecily ficou fora de si de ódio.

— Se eu não conseguir logo uma torre para ela — confessou Tidy a Doyle, certo dia de junho —, minha vida não valerá a pena ser vivida.

— Pois acho — retrucou o conselheiro — que tenho boas notícias para vocês. Vai vagar uma propriedade e posso segurá-la para você. Poderá tê-la em breve. Durante as festividades de Corpus Christi.

Se olhasse para trás durante os últimos oito anos, Margaret Walsh poderia se sentir razoavelmente feliz consigo mesma. Os piores anos tinham sido os primeiros, quando Butler ficara no poder. Não fora nenhuma surpresa o fato de Doyle, naquela ocasião, ter-se tornado membro do Parlamento irlandês, e seu marido não; mas doeu do mesmo jeito. Nas raras ocasiões em que se encontrou com Joan Doyle, a mulher de Dublin sempre a cumprimentou calorosamente, como se fossem amigas, mas Margaret preferia a técnica de sorrir enigmaticamente e ir embora tão logo a boa educação permitisse.

Dois anos depois, entretanto, quando o Canhoneiro tornou-se vice-rei e Kildare teve permissão de voltar à ilha, com a condição de apoiar o homem da artilharia, as esperanças de Walsh de um assento no Parlamento ressuscitaram. Quaisquer suspeitas que tivessem sido levantadas contra Walsh, por ocasião de sua visita a Munster, a passagem de alguns anos e as mudanças na administração foram o bastante para apagá-las.

— Disseram-me que o Canhoneiro nada tem contra mim — informou a Margaret —, e Kildare está do meu lado. Creio que é o momento de outra tentativa. — A oportunidade de ela ajudá-lo surgiu em um dia da primavera.

— Preciso que você — anunciou Walsh — vá ao castelo de Dublin e seja gentil com o Canhoneiro.

O evento ocorreu na semana seguinte. Embora o velho castelo cinzento fosse normalmente sombrio e um tanto decadente, Margaret pôde ver que fora feita uma tentativa de melhorar a aparência do grande pátio e do salão principal que coberto de tapeçarias e iluminado por mil velas, parecia um tanto festivo. Ela se esforçou para cuidar da aparência. Escolheu o seu melhor vestido, sem uso havia quase um ano, e fez algumas habilidosas alterações, acrescentando um novo adorno de brocado de seda para que parecesse como novo. Graças ao uso criterioso de tintura, cuidadosamente aplicada pela sua filha mais velha, ela entrou no salão com um cabelo da mesma tonalidade de vermelho que possuía uma década atrás. Colocara até mesmo a fragrância de um pequeno frasco de perfume oriental que, com sensação de culpa, havia comprado alguns anos antes na feira de Donnybrook. E quando seu belo e distinto marido se virou para ela e disse, com admiração:

— Margaret, você é a mulher mais bonita deste castelo — ela realmente enrubesceu de prazer.—Você só precisa causar uma boa impressão no Canhoneiro — explicara. —A maioria dos nobres faz questão de mostrar que o despreza; por isso, ele fica muito contente quando alguém é cortês com ele. Se quiser, pode até mesmo flertar com ele — acrescentou com um sorriso forçado.

Acontece que ela gostou do Canhoneiro. Era um homem baixo, agitado, de olhar penetrante; ela podia imaginá-lo direcionando seu canhão com grande eficácia. Por um momento, ao se aproximarem e verem que o grupo em volta dele incluía os Doyle, ela sentiu o coração parar. Nem ajudou quando Joan Doyle, vendo-a, sorriu e declarou, “É a minha amiga com seu maravilhoso cabelo ruivo. Parece melhor do que nunca”, acrescentou, enquanto Margaret devolveu o sorriso e pensou: se esse é o modo de você dizer que eu o tingi, não conseguirá me constranger. Mas quando ela foi apresentada ao pequeno vice-rei, este fez uma bela mesura. E, pouco depois, quando um nobre inglês visitante juntou-se ao grupo, ele apresentou a esposa do conselheiro como “dame Doyle”, ao passo que Margaret, como mulher de um proprietário de terras, ele apresentou como “A lady Walsh” — uma distinção que a agradava bastante.

De qualquer modo, ela deve ter causado uma boa impressão, pois, algum tempo depois, quando ficou, por acaso, sozinha, viu o Canhoneiro vir lepidamente em sua direção para entabular uma conversa. O militar certamente se mostrou bem agradável. Perguntou-lhe sobre sua casa e sua família, e ela tratou de enfatizar que descendia da leal e pequena nobreza inglesa de Fingal. Isso pareceu tranqüilizá-lo e, em pouco tempo, falava-lhe muito francamente sobre as dificuldades de seu cargo.

— Precisamos manter a ordem — declarou. — Se ao menos toda a Irlanda fosse como Fingal. Mas veja os problemas que enfrentamos. Não são apenas os chefes irlandeses que atacam e saqueiam. Veja o assassinato do pobre Talbot, ou o seqüestro de um dos nossos próprios comandantes, não faz um ano. — Visto que aprovara o primeiro e sabia muito bem que os Fitzgerald estiveram por trás do segundo, Margaret contentou-se em murmurar diplomaticamente que algo devia ser feito. — O problema é dinheiro, lady Walsh — confessou. — O rei me deu canhões e soldados, mas nenhum dinheiro. Quanto ao Parlamento irlandês...

Margaret sabia que o Parlamento, como qualquer legislatura, detestava pagar impostos. Mesmo quando o ex-representante Butler colocara seus próprios homens, como Doyle, no Parlamento, estes continuaram deixando-o sem fundos.

— Estou certa de que meu marido entende suas necessidades — disse ela firmemente. Isso pareceu agradar ao pequeno inglês, e logo ele passou a comentar a situação política.

— A senhora sabe — explicou —, com esse problema do divórcio do rei, nós tememos realmente que o imperador tente usar a Irlanda como local para fomentar transtornos para Sua Majestade. Para começar, nunca se deve confiar que o conde de Desmond não conspire com potências estrangeiras.

Ele olhava-a duramente. Teria ele sabido dos problemas de seu marido por causa de Munster? Seria um aviso?

— Meu marido sempre diz — rebateu ela com todo o cuidado — que o conde de Desmond parece viver em um mundo separado do resto de nós. — Isso pareceu satisfazê-lo, pois assentiu energicamente.

— Seu marido é um homem sábio. Mas, particularmente, posso lhe dizer que vigiamos todos os comerciantes, para o caso de algum deles estar em contato com o imperador.

Então Margaret viu sua chance.

— Isso deve ser difícil — sugeriu ela. — Há tantos comerciantes em Dublin negociando com a Espanha e outros portos onde o imperador tem agentes. Veja Doyle, por exemplo. Entretanto, certamente o senhor não imaginaria que os Doyle estariam envolvidos em nada parecido com isso.

— É verdade — admitiu; mas ela o viu ficar pensativo, e sentiu uma pequena vibração de emoção com o que fizera. Pois não incutiu nele o veneno ao mesmo tempo que lhe garantiu que os Doyle eram inocentes? Nunca fizera antes algo semelhante e isso lhe pareceu uma obra-prima de diplomacia. Podia fazer o mesmo jogo de Joan Doyle. O Canhoneiro então afastou-se, não sem antes dar um leve aperto em sua mão.

Dois meses depois, William Walsh soube que ganharia um assento no próximo Parlamento, e ela achou que seria justo receber parte do crédito. Contudo, se o Canhoneiro andou investigando os Doyle, durante o restante de seu tempo no cargo, ela nunca soube.

Outro sucesso para a família foi seu filho Richard. Tinha sido idéia do pai que ele deveria ir para Oxford. A princípio, ela se opusera ao plano — em parte porque detestava a idéia de se separar dele, mas também porque, apesar de atraente, ele nunca mostrara muito interesse nos estudos. “Mesmo assim, ele tem boa cabeça”, insistira o pai, “e como não receberá qualquer herança para garanti-lo, terá de conquistar o seu lugar no mundo. Precisa de instrução. E isso significa ir para a Inglaterra.” Embora tivesse havido uma grande esperança no novo colégio dos Fitzgerald em Maynooth, este nunca evoluiu para algo que se aproximasse de uma universidade. Para isso, ainda era necessário ir para ultramar.

Walsh preparara o rapaz pessoalmente, ensinando-lhe todos os dias como poupar e orientando-o firmemente. E Richard aplicara-se com todo esforço e fizera tanto progresso que, após um ano, seu pai falou para Margaret: “Ele está pronto.” E, ocultando as lágrimas atrás de um sorriso, Margaret viu-o partir para a Inglaterra. Ele não voltou. De Oxford, seguiu para as Inns of Court em Londres, para se formar advogado, como o pai. “Se ele conseguir se ajeitar em Londres, tanto melhor”, disse William a Margaret. “Se não, ele voltará para cá com excelentes perspectivas.” Margaret torcia para que voltasse. Era difícil nunca mais vê-lo.

Esses sucessos, porém, criaram um problema. Quanto mais subia de posição na sociedade, mais tempo William passava em Dublin, e às vezes era necessário que Margaret o acompanhasse. Ele se vestia mais dispendiosamente; comprava roupas novas para Margaret — coisas que eram necessárias, mas não eram baratas. Richard na Inglaterra também era um maior escoadouro dos recursos da família do que Margaret imaginara. Como um aluno pobre em Oxford, ele gastava bastante; mas, assim que entrou para as Inns of Court, suas cartas pedindo dinheiro tornaram-se mais freqüentes. Para Margaret, que às vezes se preocupava com o fato de o marido estar trabalhando demais, parecia estranho que o filho precisasse de tanto, mas William sacudia a cabeça, sorrindo, e lhe dizia: “Eu me lembro como era, quando estive lá. Viver no meio daqueles jovens nobres...” Quando se perguntava por que seu filho favorito não podia levar uma vida mais tranqüila, menos elegante, o marido lhe dizia apenas: “Não, deixe que ele viva como um fidalgo. Eu não desejaria de outra maneira.” Em suas cartas, havia insinuações de que era popular com as mulheres, e Margaret lembrou-se do quanto, ainda menino, ele encantara tão rapidamente Joan Doyle. Tais coisas, porém, envolviam despesas. Ele já não deveria estar se sustentando?, perguntou ela. “Vai demorar muito até ele ganhar o suficiente”, explicou William. “Enquanto isso, precisa ter moradia decente e ser conhecido.”

Como ele parecia com seu próprio pai quando disse isso. Ela quase podia ouvir o pai declarar que seu irmão John não devia ir para a Inglaterra como um soldado comum de infantaria. Pobre John, que nunca retornou; pobre pai, com seu desejo de ser um fidalgo. E agora, olhando para o marido, ela entendeu que Richard em Londres era uma extensão dele mesmo, e sentiu uma onda de afeto por ambos. “Em Dublin, ele também poderia viver como um fidalgo e ser um orgulho para você — destacou ela — com menos despesas.”

O fluxo de saída de dinheiro era tão grande que, embora Walsh estivesse se saindo bem, ela sabia que não havia possibilidade de a renda deles cobrir as despesas. Uma ou duas vezes ela suscitou a questão com William, mas ele garantiu que as finanças estavam sob controle; e como sempre fora um cuidadoso administrador, ela supôs que devia ser verdade. Contudo, pareceu-lhe que o marido andava mais preocupado do que o habitual. Uma esperança de aumentar a renda deles seria obter outra propriedade da Igreja em condições favoráveis. Walsh tinha uma boa posição para conseguir isso e já avisara que procurava por algo. Mas, aí, surgiu uma nova dificuldade. E proveniente de ninguém menos do que o arcebispo de Dublin.

Agora que o rei Henrique se proclamara chefe supremo da Igreja Anglicana, sua atenção não demorou a recair sobre sua imensa e subutilizada riqueza. A Igreja precisava de reforma, declarou ele, só que esta não significava seguir na direção das doutrinas protestantes — pois o rei Henrique ainda se considerava mais católico do que o papa — mas que deveria ser mais organizada e produzir mais receitas. O boato era de que os funcionários da corte estava de olho em alguns dos ricos velhos mosteiros, cujas imensas receitas eram usadas para sustentar apenas um punhado de monges. Portanto, não foi surpresa quando o arcebispo Alen, um servidor real inglês que também tinha o cargo de chanceler, e que estava naturalmente ansioso para agradar seu amo real, anunciou, “Basta desses arrendamentos a preços baixos. Todos os arrendatários irlandeses precisam começar a pagar à Igreja os aluguéis apropriados pela sua terra”.

— Claro — admitiu Walsh à esposa —, ele tem razão. Mas esse é o modo como as coisas sempre foram feitas na Irlanda. Os fidalgos não vão gostar disso. — Fez uma careta. — Também não posso dizer que eu tenha gostado muito.

— Nós vamos nos arranjar? — perguntou ela, um pouco aflita. Mas ainda que ele lhe garantisse que sim, ela pôde perceber, na primavera de 1533, que William estava preocupado.

Foi por volta do solstício de verão que ela detectou uma alteração no humor do marido. Ele parecia caminhar mais suavemente. As linhas de preocupação de seu rosto não estavam tão profundas. Teria ele conseguido a promessa de uma propriedade da Igreja?, perguntou ela. Não, respondeu ele, mas seus negócios pareciam ter melhorado. Para Margaret, porém, parecia haver uma nova felicidade, quase um entusiasmo em seus modos. Ele era agora um distinto senhor de cabelos grisalhos, mas, de certo modo estranho, como ela observou: “Você parece mais jovem.” Cerca de três semanas após o solstício de verão, eles receberam uma longa carta de Richard, que descrevia as festas na casa de um fidalgo do interior, onde, evidentemente, ele se hospedara, prometia ir vê-los em Dublin em breve, e pedia uma substancial quantia em dinheiro. Isso a deixou apavorada, mas William pareceu encarar a coisa com perfeita serenidade — tanta que ela honestamente se perguntou se a cabeça dele não estaria em outro lugar. Então, uma semana após o recebimento da carta, MacGowan apareceu para uma visita.

Margaret gostava de MacGowan. Sua posição na comunidade de negócios de Dublin era especial. A maioria dos comerciantes de Dublin comprava e vendia seus artigos nos mercados da própria cidade; entretanto, eles também precisavam comprar mercadorias como madeira, grãos e gado no vasto interior da Irlanda. Havia, portanto, um certo número de comerciantes que negociava livremente nas regiões fronteiriças, agindo como intermediários para as comunidades inglesa e irlandesa. MacGowan era um desses comerciantes intermediários mais bem-sucedidos. Sua especialidade era a compra de madeira dos o’Byrne e dos OToole nas montanhas de Wicklow, mas fazia todos os tipos de negócios e quase sempre executava incumbências para Doyle. Como resultado de suas viagens, MacGowan não apenas ganhava muito bem, como era também uma mina de informações sobre o que acontecia na zona rural. William, que casualmente estava em casa no dia de sua visita, também ficou encantado em vê-lo.

Ele chegou quase à tarde. Acabara de passar a noite na casa de Sean o’Byrne de Rathconan, bem mais ao sul. Margaret ouvi-o contar que Sean o’Byrne era um mulherengo, mas não o conhecia. Ela tentou convencer MacGowan a também ficar com eles, mas, após um breve repouso, ele disse que precisava prosseguir viagem para Dublin e William o acompanhou até a entrada da casa para se despedir. Foi completamente por acaso que ela subiu até o grande quarto de dormir e, fortuitamente, ouviu os dois homens conversarem sob a janela.

— O seu negócio com Doyle vai bem? — ela ouviu William perguntar.

— Vai. E o seu... seu negócio particular com a esposa dele? — Isso foi dito em voz baixa. — Sabe, ela acha você muito bonito. Foi ela mesma quem me disse — acrescentou o' viajante com uma risadinha.

O negócio particular de William com Joan Doyle? O que poderia ser?

— Você conhece os segredos de todo mundo — murmurou Walsh. — Isso o torna um homem perigoso.

— Se conheço segredos — retrucou MacGowan —, eu lhe garanto que é porque sou muito discreto. Mas não respondeu à minha pergunta sobre a dama.

— Está tudo bem, creio eu.

— Doyle sabe?

— Não sabe.

— E sua esposa?

— Não. Deus me livre.

— Bem, o seu segredo está a salvo comigo. E você levou o assunto a uma conclusão?

— No dia de Corpus Christi será consumado. Ela me prometeu.

— Adeus.

Ela ouviu o som de MacGowan se afastando.

Ela permaneceu ali, paralisada. Seu marido e a tal Doyle. Ambos podiam estar meio velhos, mas ela sabia que seu marido era fisicamente capaz de consumar um ato amoroso. E plenamente. Mas que ele algum dia fizesse aquilo com ela: foi isso que a deixou em choque. Por um instante, ela mal conseguiu acreditar no que ouvira. Tinham parecido vozes de outro mundo.

Então ela se lembrou: a tal Doyle o achara bonito. E ele era. Mas o que ele dissera sobre ela, tantos anos atrás, quando se conheceram em Maynooth? Que ele a achava bonita. Eles sentiam uma atração mútua. Isso fazia sentido. As vozes não tinham vindo de outro mundo. Vieram do seu próprio. E seu próprio mundo, aparentemente, acabara de desmoronar.

Corpus Christi. Seria dali a dois dias. O que ela faria?

Quando Eva o’Byrne refletiu sobre os últimos oito anos, uma coisa ficou clara para ela. Fizera a coisa certa quando chamara o frade, pois os anos que se seguiram tinham sido alguns dos melhores de sua vida.

Se Sean o’Byrne tinha outras mulheres, ele as mantinha longe da vista. Quando se encontrava em casa, era um marido atencioso. Um ano após os Brennan terem ido, ela teve outra bebezinha, que a mantinha ativamente ocupada. A menina parecia deleitar Sean também; ao observá-lo brincar com ela no gramado defronte à velha torre, ela experimentava momentos de pura alegria. Enquanto isso, Seamus conseguira se sair bem na casa que fora de Brennan. Ele praticamente a reconstruíra sozinho; e, dois anos antes, também conseguira uma esposa — não um bom partido, talvez, sendo a filha de um dos OToole menos importantes, mas uma moça sensível de quem Eva gostava.

Quanto a Fintan, o garoto tornara-se seu companheiro especial. Era quase engraçado, ela sabia, vê-la com o seu filho mais novo; pois, agora, estava claro para todo mundo que ele se parecia com ela e pensava igual a ela. Os dois saíam juntos para caminhar e ela lhe ensinava sobre todas as plantas e flores que conhecia; em relação ao gado e aos animais domésticos, ele era um fazendeiro nato. Às vezes, lembrava-lhe seu próprio pai. E ele era carinhoso. A cada inverno, fazia algo para ela — um pente de madeira, um batedor de manteiga — e esses pequenos presentes eram como tesouros, levando-lhe um sorriso ao rosto quando os usava diariamente. Ela e o garoto eram tão chegados que ela quase chegava a temer que o marido pudesse ter ciúmes. Mas Sean o’Byrne parecia mais satisfeito do que qualquer outra coisa e contente pelo garoto dar a ela tanta felicidade. Quanto ao seu próprio relacionamento com Fintan, isto era muito simples. “Obrigado”, dizia ele, “por me dar um filho que entende tanto sobre gado.”

E ele, por sua vez, em retribuição, trouxera para a esposa um outro maravilhoso presente. A bebezinha tinha dois anos de idade, quando Sean, certo dia, chegou de uma viagem a Munster e, casualmente, perguntou-lhe:

— Você gostaria de um acréscimo à nossa família? — Ela pensava no que ele queria dizer, quando ele explicou: — Um filho adotivo. Um menino da idade de Fintan.

Embora o costume da adoção remontasse à antiga tradição celta, esse hábito ainda continuava bastante vivo entre as famílias nobres, inglesas ou irlandesas, da ilha. Quando o filho de uma família ia viver com outra, formava-se um vínculo de lealdade entre elas, quase como um casamento. Mandar um filho para a casa de um grande chefe era garantir o seu futuro; e acolher em sua casa o filho de uma família importante era um privilégio. Acreditando que o marido fazia um favor a uma família mais pobre, Eva não pareceu muito feliz; mas ao perceber a reação da mulher, Sean apenas sorriu.

— É um dos Fitzgerald — informou-lhe calmamente. — Um parente de Desmond.

Um Fitzgerald, aparentado do poderoso conde de Desmond. Um parente bem distante, de um modesto ramo dos Fitzgerald do sul. Mesmo assim, um Fitzgerald.

— Como você conseguiu isso? — quis saber ela com franca admiração.

— Deve ter sido o meu encanto. — Ele sorriu. — É bom garoto. Você não faz objeção?

— Seria ótimo Fintan ter um amigo assim — respondeu ela. — Que ele venha, assim que desejar.

Ele foi no mês seguinte. Seu nome era Maurice. Tinha a mesma idade de Fintan, era moreno, ao contrário do louro Fintan, mais magro, um pouco mais alto, com feições celtas perfeitamente traçadas que serviam para lembrar que os Fitzgerald eram tanto príncipes irlandeses quanto nobres ingleses, e belos olhos, que ela achava estranhamente instigantes. Era muito educado e declarou que a casa dela parecia exatamente com a de seus pais — “Exceto”, acrescentou, “que a nossa fica junto a um rio.” Apesar de magro, era atlético e habilidoso com o gado, e pareceu deslizar facilmente para dentro da vida de Fintan como um modesto amigo. Entretanto podia-se notar, ela observou, que ele vinha de um lar aristocrático. Seus modos, embora muito simples, eram corteses. Sempre se referia a ela como “a lady o’Byrne”; obedecia ao marido dela com imediato respeito e dizia “por favor” e “obrigado” mais do que eles estavam acostumados. Também sabia ler e escrever muito melhor do que Fintan, e tocava harpa. Mas, além de tudo isso, havia nele um refinamento que ela não conseguia descrever completamente, mas que o distinguia e, reservadamente, ela confessou ao marido: “Espero que Fintan aprenda com ele.”

Certamente os dois garotos tornaram-se bons amigos. Após um ano, pareciam tão unidos quanto irmãos, e Eva passou a ver Maurice como um filho a mais. Sean era um bom pai adotivo. Não apenas garantia que o garoto viesse a saber tudo o que havia para saber sobre a lavoura e as questões locais das montanhas de Wicklow e da planície do Liffey, como, às vezes, mandava-o sair com MacGowan para visitar as fazendas e residências de pessoas como os Walsh, ou ir a Dalkey ou mesmo à própria Dublin com o comerciante.

Eva achava que o garoto talvez quisesse conhecer também os seus parentes Kildare. Mas Sean explicou-lhe que, com as suspeitas levantadas recentemente contra o conde de Desmond, isso poderia não ser prudente. “Seus parentes providenciarão isso, quando acharem adequado”, disse ele. “Não cabe a nós apresentá-lo à sua parentela.” E Maurice parecia perfeitamente contente com sua vida tranqüila na residência dos o’Byme.

Entretanto, de um modo estranho, ele era também um ser à parte. Não era apenas o seu amor pela música — pois, às vezes, quando tocava harpa, parecia estar longe numa espécie de sonho. Não era apenas sua aptidão para as coisas do intelecto — pois o padre Donal, que ensinava aos dois meninos, às vezes comentava desolado: “É pena ele não estar destinado a ser padre.” Era a sua propensão à melancolia. Isto era raro, mas quando o atacava, ele perambulava solitário pelas colinas e desaparecia por quase um dia, sem dar passos vigorosos montanha acima como Sean, mas caminhando sozinho como se estivesse em transe. Até mesmo Fintan percebia que o amigo não queria companhia nessas ocasiões, e deixava-o sozinho até a melancolia passar. E, quando isso acontecia, ele emergia, ao que parecia, revigorado. “Você é um sujeito estranho”, dizia-lhe Fintan afetuosamente. E não surpreendeu ninguém quando o frade, ao passar por lá uma ou duas vezes, em seu caminho para visitar o eremita em Glendalough, se sentou durante horas com o garoto e, antes de partir, lhe deu sua bênção.

Nada disso, porém, parecia afetar a amizade do menino Fitzgerald com Fintan. Trabalhavam juntos, iam caçar e pregavam peças um no outro exatamente como o faziam outros garotos saudáveis de sua idade; e, certa vez, quando Eva perguntou a Fintan quem era o seu melhor amigo, ele olhou-a atônito e disse, “Ora, Maurice, é claro”.

Quanto ao relacionamento de Maurice com ela, era o de filho para mãe, exceto que, com a ligeira reserva de um padre, ele sempre se mantinha um pouco distante — um fato que, após um ou dois anos, quase chegara a angustiá-la, até ela se dar conta de que ele fazia isso para assegurar que não usurparia o relacionamento de Eva com Fintan; e ela admirou sua delicadeza.

Embora ninguém pudesse dizer quando ou por quê, o clima na casa de o’Byrne de Rathconan mudou sutilmente com a chegada de Maurice Fitzgerald. Mesmo Sean pareceu tornar-se gradualmente mais solícito em relação a ela. E não poderia haver melhor prova do que o fato de ele, com a aproximação do aniversário dela, no verão de 1533, ter convidado todos os vizinhos para uma festa na casa. Houve um rabequista, danças e um bardo itinerante, à moda antiga, contou histórias contou histórias de Cuchulainn, Finn mac Cumaill e outros heróis lendários enquanto Sean e Fintan permaneceram sentados ao lado dela; e Maurice também tocou harpa para todos os convidados. Na ocasião, Sean deu-lhe de presente um par das finas luvas bordadas de HenryTidy, juntamente com um corte de seda brocada, o que a agradou sobremodo, pois adivinhou que ambos os presentes haviam sido escolhidos por Maurice em uma de suas viagens a Dublin com MacGowan.

E todos comeram, cantaram e dançaram até tarde da noite, que era véspera de Corpus Christi.

Havia várias procissões importantes no calendário de Dublin. De três em três anos, havia a cavalgada cívica; sempre havia procissão nos dias de São Patrício e de São Jorge, os santos padroeiros da Irlanda e da Inglaterra. A maior procissão de todas, porém, acontecia em julho, quatro sextas-feiras após o solstício de verão, na festa de Corpus Christi.

Corpus Christi, o corpo de Cristo, a celebração do milagre da Eucaristia. Que dia melhor para as sociedades corporativas, as irmandades religiosas e as associações profissionais celebrarem a si mesmas? Afinal, se o prefeito, conselheiros e cidadãos honorários eram os governantes de Dublin, praticamente todos eles eram membros de uma ou outra dessas instituições. Havia as grandes irmandades religiosas, como a poderosa Santa Trindade à qual Doyle pertencia, que tinha sua capela na Igreja de Cristo e ocupava-se com beneficência e obras de caridade; e havia as numerosas associações profissionais, as guildas de comerciantes, alfaiates, ourives, açougueiros, tecelões, luveiros e muitos mais que controlavam seus próprios ofícios e a maioria possuía modestas capelas em igrejas menores da cidade. E, no dia de Corpus Christi, eles faziam o seu grande desfile.

Há gerações tudo seguia o mesmo padrão. Cada guilda tinha seu carro alegórico, com um cenário pintado semelhante ao de um pequeno palco. Dois metros e meio de largura, para poderem passar pelo Dames Gate, puxados por seis ou oito cavalos, eles eram preservados orgulhosamente para oferecer um esplêndido espetáculo. Cada qual representava uma cena famosa da Bíblia ou das lendas populares. A ordem do desfile foi estabelecida pelo Chain Book, que continha as normas municipais e era mantido naTholsel. Primeiro vinham os luveiros, representando Adão e Eva; em seguida, os sapateiros; depois os marinheiros, que representavam Noé e sua arca; depois os tecelões, seguidos pelos artesãos — quase vinte representações teatrais no total, incluindo um esplêndido quadro vivo do rei Artur e seus Cavaleiros da Távola Redonda desempenhados pelos auditores municipais. Finalmente, abrindo caminho, mais parecendo uma pantomima de dois homens fantasiados de cavalo, e assentindo de modo majestoso para a multidão, vinha o grande dragão de São Jorge, o símbolo da corporação de Dublin.

Reunindo-se de manhã bem cedo em terreno a céu aberto perto do velho hospital de Ailred, o Peregrino, do lado de fora do portão ocidental, o desfile cruzava o portão, subia a High Street até a High Cross perto da Tholsel, passava pela Igreja de Cristo e o castelo, depois atravessava o Dame's Gate, terminando perto da área de treinamento dos arqueiros na extremidade de Hoggen Green, onde algumas guildas representavam pequenas peças em seus carros alegóricos.

Tidy estava animado. Nesse ano ele fora escolhido pelos seus colegas luveiros para interpretar o papel de Adão. Durante o desfile, ele ficaria de pé no carro alegórico, metido numa calça justa e colete brancos, usando uma enorme folha de figueira de forma ligeiramente indecente; porém, mais tarde, ele teria uma fala decorada e, durante semanas, Cecily teve de ouvi-lo ensaiar solenemente frases como: “Ó mulher insensata, o que fizeste?”

O sol já brilhava quando Tidy partiu, parecendo satisfeito, mas determinado. Uma hora depois, Cecily deixou as crianças com uma vizinha e foi à cidade para vê-lo.

Margaret teve a impressão de que, naquele dia, toda a região convergira para Dublin. Tão compacta era a multidão que ela foi obrigada a deixar seu cavalo em uma taberna perto da Catedral de São Patrício, pagando uma taxa absurda, e se juntar à turba que seguia a pé através do portão meridional. Isso teve a vantagem de ela passar despercebida, mas Margaret ficou imaginando se conseguiria localizar o seu marido.

Walsh partira ao amanhecer. Ela esperou uma hora, depois disse ao criado que voltaria à noitinha, e saiu atrás dele sem uma palavra de explicação. Pensou que conseguiria segui-lo no caminho, mas ele fora rápido demais para ela e perdeu-o de vista. Quanto à explicação que daria, ao retornar, para sua ausência de casa, isso ia depender do que aconteceria naquele dia.

Ela havia pensado se devia enfrentá-lo por causa do caso com a mulher de Doyle, mas decidira que não. Não tinha provas. Se ele negasse, como ela ficaria? Em um estado de perpétua incerteza. Algumas mulheres, ela sabia, teriam ignorado isso, o que, sem dúvida, tornaria a vida mais fácil. Ela, porém, não achava que fosse capaz. Nem tinha qualquer outra mulher em quem pudesse confiar: encontrava-se sozinha diante daquela inesperada crise em sua vida. Por isso, decidira segui-lo até Dublin. Sabia que era bobagem. Sabia que talvez nem conseguisse vê-lo. E, se conseguisse, se o visse com a tal Doyle, o que ela faria? Tampouco sabia.

Como todos estavam alegres. A pitoresca multidão fluía através da passagem para o portão, rindo e tagarelando, enquanto Margaret, o cabelo empurrado para baixo de um chapéu de veludo preto, o rosto solene e desolado, era carregada no fluxo como um graveto num riacho. Subiram a Saint Nicholas Street, passaram pela Shoemaker Lane e, dali, para o grande cruzamento com a High Street, de onde se podia ver os altos coruchéus da antiga Tholsel. A multidão no cruzamento era compacta demais para ser atravessada, mas, felizmente, os organizadores deixaram um grupo, inclusive Margaret, passar para o outro lado da rua, nos arredores da Igreja de Cristo, onde havia mais espaço para a multidão se instalar. Momentos depois, a rua estava novamente desobstruída. O desfile vinha vindo.

Um grupo de cavaleiros, policiais municipais, e outros guardas precediam o desfile. Em seguida, vinha a banda com gaitas-de-fole e tambores. E, atrás, movendo-se com dificuldade e aproximando-se lentamente, vinha o primeiro dos carros alegóricos.

Os luveiros certamente deram um bom início à folia. No meio do carro, havia uma árvore feita de papelão pintado com folhas verdes e maçãs douradas. Adão e Eva, ambos homens, usavam as apropriadas folhas de figueira; Eva ostentava um par de seios enormes, segurava uma maçã dourada do tamanho de uma abóbora e fazia movimentos lascivos para delírio da multidão, enquanto Adão, a aparência solene, gritava de vez em quando: “Ó mulher insensata, o que fizeste?”

A serpente — um homem alto e magro — usava um engenhoso capacete, o qual com a ajuda de um cordão, fazia virar de um lado para o outro ou arremessar sua cabeça de modo apavorante na direção da multidão.

Margaret observou-o passar com um sorriso amarelo. Começou a abrir caminho aos poucos pela multidão, na direção leste. Outra alegoria passou estron-deando: Caim e Abel. Logo após, ela chegou ao local que queria e, encontrando um lugar num muro baixo onde algumas crianças estavam de pé, ela pôde usufruir de uma boa visão, por cima das cabeças dos espectadores, das portas das casas do outro lado.

Aparte da High Street do lado oposto à catedral era conhecida como Skinners Row. As mansões com coruchéus existentes ali eram as residências em Dublin de parte da aristocracia e da pequena nobreza, incluindo os Butler. Outras pertenciam aos comerciantes mais importantes. Doyle se mudara da Winetavern Street para lá, após seu casamento. Os andares superiores das casas, construídos em madeira e que davam para a rua, possuíam balcões perfeitos para se assistir ao desfile, e todas as janelas estavam apinhadas. O local que Margaret escolhera ficava defronte à casa dos Doyle.

Esta era realmente impressionante: quatro andares, o térreo construído em pedra e os outros de madeira e emboço, com dois coruchéus e telhado de ardósia — uma exibição permanente da riqueza do conselheiro. Margaret observava as janelas de cima, cheias de rostos: criados, crianças, amigos em cada uma delas. Na maior, enxergou Doyle e sua esposa. Seu marido estaria ali também? Não o estava vendo.

As alegorias passaram: Noé e sua arca, o faraó do Egito e seu exército, várias histórias da Natividade; Pôncio Pilatos acompanhado da esposa. Logo após este, o rosto de Doyle desapareceu da janela e, quando surgiram o rei Artur e seus cavaleiros, ela viu o conselheiro, com o manto escarlate do cargo, emergir da porta da rua e caminhar na direção da Tholsel. Continuou a vigiar até o esplêndido dragão verde e vermelho de São Jorge, que também tinha asas prateadas, surgir no fim do desfile, juntamente com outra banda de gaitas de foles e tambores.

Quando o final do cortejo passou, muita gente seguiu atrás. Percebendo que poderia chamar atenção para si, Margaret recuou um pouco até uma pequena árvore nas redondezas, de onde ainda podia observar a casa dos Doyle. Os rostos já haviam deixado as janelas e as pessoas começavam a sair pela porta da rua, provavelmente para seguir o desfile até Hoggen Green e assistir às peças. Parecia que todos os moradores da casa estavam saindo, até mesmo os criados, mas, embora observasse com cuidado, não viu a esposa de Doyle. Depois que a porta se fechou, a enorme casa pareceu vazia. Ela esperou que as pessoas que seguiam o cortejo se afastassem. Teria Joan Doyle saído, afinal de contas? Ela a teria perdido de vista? Imaginou o que fazer.

Então, caminhando airosamente ao longo da rua, ela avistou seu marido. Ele parou diante da porta de Doyle, olhou para os lados e parecia que ia bater, quando a porta se abriu e, ali, na entrada, sorridente, surgiu Joan Doyle. Ele entrou e a porta se fechou atrás dele.

Margaret arregalou os olhos. Seu coração fraquejou. Então era verdade: seu marido e a tal Doyle. Ela sentiu um golpe gelado atingi-la no peito. Ficou subitamente sem fôlego.

O que devia fazer agora? Eles estariam realmente sozinhos? Com certeza, haveria pelo menos um criado na casa. A não ser que a tal Doyle tivesse propositadamente liberado todos eles. Talvez tivesse feito isso: o desfile de Corpus Christi era a desculpa perfeita. Eles iriam assistir às peças, enquanto o seu marido entrava sorrateiramente na casa vazia. Ela olhou a rua na direção em que o desfile tinha ido. A maré de pessoas acabara de escoar pelo pelourinho que permanecia sozinho ao final da Skinners Row. Ouviu o distante toque de alguém soprando uma corneta próximo ao Dames Gate, um aviso atormentador como um sinal de alarme.

Ela deveria ir e enfrentá-los. Era agora ou nunca. Mas que desculpa daria? Que fora a Dublin, por acaso, naquele dia? Que acabara de vê-lo entrando na casa? E se a visita tivesse um outro motivo, puramente inocente? Seria, no mínimo, constrangedor. E, enquanto imaginava o que poderia dizer, deu-se conta da inutilidade daquilo, pois se eles estivessem de fato fazendo amor, a porta certamente estaria trancada para que não corressem o risco de ser apanhados em flagrante. Se ela batesse na porta, William ou sumiria por uma porta nos fundos ou, mais provavelmente, seria encontrado ali, completamente vestido e com uma desculpa plausível. Ela acabaria parecendo uma idiota e sem saber de nada o que acontecia. Pensou se deveria ir até a casa e tentar bisbilhotar pelas janelas.

Decidiu esperar um pouco para ver o que acontecia. O tempo passou. Mas estava tão aflita que, após alguns momentos, se deu conta de que não fazia idéia de quanto tempo estivera observando. Um quarto de hora? Meia hora? Parecia uma eternidade. Estava justamente tentando avaliar quanto tempo se passara, quando uma porta se abriu e William saiu. Virou-se e caminhou rapidamente na direção do pelourinho, ao mesmo tempo que a porta se fechava atrás dele. Margaret ficou onde estava. Mais tempo se passou. A porta não foi aberta novamente.

Os carros alegóricos tinham parado à beira de Hoggen Green, onde havia uma pequena capela consagrada a São Jorge. Enquanto os seus cavalos pastavam na relva, um grupo de cinco carros formou um grande semicírculo no gramado; eram eles que apresentariam uma sucessão de pequenas peças, começando com a de Adão e Eva dos luveiros.

Cecily sorriu. Era uma cena encantadora, à vista do velho Thingmount. Haviam sido instaladas algumas barracas para a venda de cerveja e refrescos. O céu estava azul-claro e o sol, quente. Havia um cheiro de cavalo e suor humano e cerveja de cevada que não era desagradável.

Embora curta, a peça dos luveiros foi bem desempenhada. O grito de Tidy “Ó mulher insensata, o que fizeste?” foi decorado pelas pessoas, as quais, todas juntas, com muito bom humor, gritavam de volta. Adão, Eva e a Serpente foram sumariamente expulsos do Paraíso sob aplausos generalizados. Dentre em pouco seria a vez do grupo seguinte interpretar Caim e Abel.

A atenção de Cecily já fora atraída para o grupo de rapazes que parara ali perto durante a apresentação da peça dos luveiros. Era óbvio, por suas brilhantes camisas e túnicas de seda, que se tratava de ricos jovens aristocratas, e alguns deles pareciam ter vindo de Londres. Também estavam embriagados, mas pareciam inofensivos. E não ficou chocada quando, ao perceberem que ela os observava, começaram a dizer-lhe gracejos.

O que uma mulher bonita como ela estava fazendo sozinha? Onde estava seu marido? No palco, disse-lhes ela. Quem era ele? Adão. Isto foi recebido com alvoroço. Então ela devia ser Eva. Seria ela uma tentação? Qual deles ela tentaria? Tudo isso ela podia levar na brincadeira. Quando, porém, começou a peça seguinte, e eles passaram a fazer comentários mais lascivos, ela decidiu colocá-los em seu lugar.

— Prestem atenção à peça, senhores — gritou —, e não em mim. Lembrem-se de que esta ainda é a festa de Corpus Christi.

Contudo, se ela achou que a repreensão os aquietaria, esta teve o efeito oposto. Começaram a fazer trocadilhos vulgares, perguntando se ela também mostraria o corpo no Corpus Christi, até, finalmente, ela ficar farta daquilo.

— Não zombem do milagre da Eucaristia — bradou severamente, esperando que isso os silenciasse de uma vez por todas. Por isso, ela ficou abismada quando um dos jovens nobres, que sem dúvida era inglês, fez um comentário injurioso sobre a Eucaristia. Não foi dito muito alto, mas foi audível; e, mais espantoso ainda, alguns de seus amigos riram.

Ela até mesmo esqueceu a peça. Olhou aborrecida para eles. Quem esses janotas ingleses pensavam que eram? E por que seus amigos irlandeses permitiam que fizessem isso impunemente? Podiam ser filhos de homens importantes — ela não sabia e não se importava — mas não deviam ter permissão de ir a Dublin para proferir sacrilégios. Partiu para cima deles.

— Vocês podem ser protestantes e heréticos em Londres — bradou com firmeza—, mas não precisam trazer suas blasfêmias a Dublin. —Alguns deles, pensou ela, pareceram sem jeito, mas não todos.

— Oh, Tom — berrou o insolente —, vocês têm umas mulheres ferozes na Irlanda. — Ela pôde notar que ele estava ligeiramente bêbado, mas isso não era desculpa. E quando ele fez uma reverência zombeteira e insolente, isso apenas a enfureceu ainda mais. Por que o janota estrangeiro pensava que podia ser condescendente com ela só porque estava na Irlanda e ela era apenas uma mulher? — Quer dizer, então, madame, que, na Inglaterra, somos heréticos? — caçoou dela.

— Já que sua nova rainha — enfatizou a última palavra com desprezo — é uma herética, talvez todos vocês sejam — disparou.

— Uma estocada, Tom, uma estocada — berrou o jovem fidalgote. Prendeu as mãos sobre o coração. — Fui atingido. — Cambaleou para o lado como se estivesse ferido. As pessoas em volta, em vez de assistir à peça, viraram-se para olhá-lo. Mas então, desviando abruptamente daquela comédia, ele lhe lançou um olhar perigoso. — Tome tenência, madame, antes de acusar a rainha de heresia. O rei é o chefe supremo de nossa Igreja.

— Não da minha Igreja, senhor — retrucou ela asperamente. — O Santo Padre é o chefe da minha Igreja, graças a Deus — acrescentou ela com fervor.

Tecnicamente, isso ainda era verdade. Como até então a questão da supremacia do rei Henrique não fora levada diante do Parlamento irlandês, ainda não era lei no país, e Cecily podia afirmar corretamente que respondia ao papa. Ela o encarou furiosamente. Havia algo de afeminado naquele jovem elegante com suas súbitas mudanças de humor? Seu olhar tornou-se de desprezo. Ele percebeu.

— Ora, madame — berrou para que todos em volta ouvissem —, creio que sua fala é de traição. — Ele quase cantou a última palavra. Esta pairou, horrivelmente, no ar. Até mesmo Caim e Abel em seu palco pararam um instante a fim de olhar nervosamente na direção dela. Mas Cecily estava agora tão furiosa que nem notou.

— Prefiro ser culpada de traição do que negar a verdadeira fé e o Santo Padre — gritou ela. — Quanto a você, apodrecerá no inferno junto com o rei Henrique!

A peça parou. Todos se viraram para olhá-la, a mulher que acabara de condenar o rei ao inferno. Por mais indignada que estivesse, Cecily percebeu que fora longe demais. Aquele era um território perigoso, a fronteira da traição. Pior do que os olhares da multidão, porém, era a expressão do rosto do homem que agora caminhava a passos largos em sua direção.

O rosto de Tidy estava pálido como seu traje. Mas os olhos reluziam. Ele tinha MacGowan a seu lado. Veio irrompendo através da multidão. Ainda estava vestido de Adão com a ridícula folha de figueira balançando abaixo da cintura. Agarrou-a pelo braço.

— Você está louca? — sussurrou.

Para os jovens aristocratas, aquilo tudo foi demais. Para eles, pelo menos, a perigosa tensão do momento foi quebrada.

—Adão! — gritaram. — Oh, Adão! Cuide da sua esposa! — E como se tivessem combinado, todos juntos exclamaram: — Ó mulher insensata! O que fizeste?

Tidy nada disse. Segurando sua mulher por um braço, ao mesmo tempo que MacGowan segurava pelo outro, ele a levou dali, enquanto os jovens gritavam, com zombeteira solenidade, “Traição. Cortem-lhe a cabeça. Traição”. Ele só parou quando alcançaram o portão da cidade.

Pois aquele era um dia especial. Ele o planejara com todo o cuidado. Após o fim da peça, ele a conduziria até a cidade e, sob algum pretexto, a levaria à torre do portão oeste onde Doyle os encontraria e lhes entregaria as chaves de seu novo domicílio. Então ele ficaria observando o seu rosto, enquanto ela olhava em volta seus novos aposentos espaçosos e arejados. Como ela ficaria feliz. Que surpresa maravilhosa. Um dia perfeito. Tudo planejado.

— Você amaldiçoou o rei, Cecily — disse ele, com desespero na voz. — As pessoas dirão que somos traidores. Não percebe o que fez?

— Ele negou a Eucaristia — retrucou ela asperamente.

— Oh, Cecily. — Seus olhos estavam repletos de censura.

— Você sabe quem eram eles? — Foi MacGowan quem falou agora, com um tom de voz baixo. — Ingleses amigos do jovem lorde Thomas. Ele fazia parte do grupo. — Fez uma pausa e, vendo que Cecily ainda não compreendera, concluiu: — Lorde Thomas Fitzgerald, o herdeiro do conde de Kildare.

— O filho de Kildare? — gritou Tidy consternado.

— Então não deviam ter falado daquele jeito — disse Cecily defensivamente.

— Talvez não — concedeu MacGowan. — Mas são jovens nobres que andaram bebendo. Era tudo pilhéria.

Tidy sacudiu a cabeça.

— Agora Kildare e os conselheiros reais vão saber que a minha esposa amaldiçoou o rei — disse ele miseravelmente. E embora não tivesse dito nada mais naquele instante um pensamento lhe ocorreu: Eu devia ter me casado com outra.

Foi com o coração pesado e sem qualquer sorriso de prazer que, no fim da tarde, ele levou Cecily até a torre e, mostrando-lhe as esplêndidas acomodações, perguntou-lhe:

— Você acha que, agora, poderia ficar mais satisfeita?

— Acredito que posso — respondeu ela. — Sim, estou. Mas ele se perguntou se era verdade.

No momento em que os Tidy examinavam sua torre, Margaret chegou em casa. Ela esperara cerca de uma hora do lado de fora da casa dos Doyle e, vendo finalmente Joan Doyle sair, seguiu-a na direção do Dames Gate e depois perdeu-a de vista. No final das contas, desistiu e voltou para casa.

William só chegou de noitinha. Parecia satisfeito consigo mesmo. Disse que jantara na cidade e parecia ter bebido bastante. Dizendo-se cansado, subiu para o quarto e adormeceu.

O dia seguinte ele passou tranqüilamente em casa. No dia posterior, teve negócios para cuidar em Dublin, mas voltou no fim da tarde. E, assim, por duas semanas, a vida continuou do seu modo habitual. Estaria ele tendo encontros ilícitos com Joan Doyle em Dublin? Não tinha certeza. Pelo menos uma vez, após passar o dia em Dublin, ele voltara e fizera amor com ela do modo habitual. O que significava então tudo aquilo? Acontecera algo no dia de Corpus Christi em Dublin? Supondo-se que sim, isso se repetiria? Margaret achava difícil acreditar que não. Mesmo assim, o que ela devia fazer? Dividir seu marido com Joan Doyle até que terminasse o romance deles? Confrontá-lo com algo que não podia provar? Esperar? Vigiar? Ela não sabia que a incerteza podia causar tanta dor.

Duas semanas depois, ele foi cedo a Dublin e voltou muito tarde, à noite. Uma semana após isso, passou alguns dias em Fingal. Nada havia de incomum nessas ausências, mas agora todos os seus movimentos tinham assumido um novo significado. E Margaret talvez não soubesse o que fazer a seguir se, durante o mês de agosto, ele não tivesse chegado certo dia com um ar preocupado e dito a ela: — O mosteiro precisa que eu vá novamente a Munster, mas não sei se é aconselhável.

— Você deve ir — disse ela —, imediatamente.

Ele ficou fora durante três semanas. Ao voltar, ficou tão ocupado que ela achou que ele não conseguiria encontrar tempo para se encontrar com a amante.

E, além disso, durante sua ausência, ela fizera uma mudança em seu próprio estilo de vida. Passara a ir a Dublin.

Não seguia qualquer padrão estabelecido. Em algumas semanas, ela não ia. A partir do final daquele verão, porém, ela saía cavalgando para visitar as feiras e voltava tarde do dia. Na cidade, ao se passar caminhando pela casa de Doyle na Skinners Row, ou entreouvindo uma conversa casual num barraca de feira, era fácil saber do paradeiro dos Doyle; assim, quando, em outubro, William teve de passar vários dias em Fingal, ela conseguiu averiguar que Joan Doyle estava segura em sua própria casa e longe de William. Tratava-se de uma verificação imperfeita, mas era alguma coisa. Em novembro, os Doyle foram a Bristol e permaneceram lá quase quatro semanas. Nem, deduziu ela, William e a Sra. Doyle se encontraram em dezembro. Com o Natal se aproximando, parecia que o caso, se é que havia começado, talvez tivesse terminado. Ela até mesmo chegou a supor que toda essa história talvez tivesse sido uma invenção de sua imaginação.

Portanto, foi com um excelente humor que, apenas poucos dias antes do Natal, ela acompanhou William a Dublin, para participarem de um banquete de inverno oferecido pela Trinity Guild, associação dos comerciantes.

Era a habitual comemoração bem-humorada da cidade. Presentes a ela um esplendoroso grupo de convidados, parlamentares em seus mantos e librês, fidalgos do Pale, muitos deles membros da Trinity Guild ou cidadãos honorários.

Entretanto, o interesse particular em torno do banquete era se o chefe dos Fitzgerald compareceria.

Não foi surpresa para ninguém quando, durante o outono, o rei Henrique convocou novamente o conde de Kildare a Londres. Todos sabiam que o rei ainda estava aborrecido com o modo pelo qual os Fitzgerald o haviam forçado a lhes devolver o cargo de vice-rei, e havia rumores de que os Butler andavam fornecendo à corte inglesa informações para serem usadas contra ele. Ao mesmo tempo que enviara educadas desculpas ao rei, Kildare confidenciara aos amigos que protelaria o quanto pudesse sua ida à Inglaterra; e para lembrar ao rei que os Fitzgerald não eram de se menosprezar, ele, friamente, retirara os canhões do castelo de Dublin e os colocara em suas próprias fortalezas. Durante os últimos meses, Kildare permanecera calmamente na Irlanda, deixando Henrique colérico.

Recentemente, porém, Walsh soubera que Kildare estava adoentado. Ferimentos que recebera em campanhas militares haviam retornado para molestá-lo. Diziam que sofria dores atrozes e, depois, que estava gravemente doente. “Pensei que estivesse se fingindo de doente, uma desculpa para não ir à Inglaterra”, disse Walsh a Margaret, “mas a notícia é que o conde está mesmo debilitado.” De fato, em vez de comparecer ao banquete, Kildare mandou o filho Thomas para representá-lo. A família Kildare era enorme: o conde tinha nada menos do que cinco irmãos. “Mas se algo acontecer ao conde”, frisou Walsh, “é Thomas e não seus tios quem terá direito ao título e à nobreza. Pouca gente em Dublin sabia muita coisa sobre o rapaz, exceto que era um sujeito elegante que aparecera com alguns janotas ingleses que se embriagaram no último Corpus Christi.Silken Thomas' é como seus amigos o chamam”, contou o advogado com certa reprovação. No entanto, como o resto dos cavalheiros de Dublin, estava bastante curioso para dar uma olhada nele.

De fato, o jovem lorde Thomas causou uma impressão bastante favorável. Ele tinha a bela aparência aristocrática de sua família; estava vestido com uma túnica cintada por faixa da mais fina seda, que devia ser o ponto alto da moda nas cortes da Inglaterra ou França, mas suas roupas não eram espalhafatosas; ao fazer seu circuito por entre os convivas, antes de começar a refeição, tratou a todos com a máxima cortesia e, após ter sido chamado para falar com ele, Walsh retornou e informou: “Ele é jovem, mas bem informado. Não é um idiota.”

O banquete foi excelente. Após terem comido, os convidados se misturaram mais uma vez. E foi enquanto acompanhava o marido em uma volta pelo salão que Margaret subitamente se viu defronte a Joan Doyle. O conselheiro havia acabado de se adiantar para falar com Thomas e sua esposa ficou sozinha. Ao avistar os Walsh, o rosto de dame Doyle iluminou-se.

Não havia como escapar dela. Em resposta à sua saudação, Margaret armou o seu melhor simulacro de sorriso. Os três trocaram as habituais cortesias inexpressivas; então Joan Doyle dirigiu-se a Margaret.

— Você devia vir a Dublin com mais freqüência — disse ela.

— As vezes, vou às feiras — retrucou calmamente Margaret.

— Você não acha que ela devia? — perguntou Joan a Walsh.

— Ah, sim, acho — respondeu ele educadamente.

Margaret estudou os dois. A conversa soava bem inocente. Entretanto, se estavam disfarçando, não perceberam que ela os observava de perto.

— Talvez você tenha razão — concordou ela. — Eu deveria vir pelo menos para as festas. —Assentiu, como se pensasse consigo mesma. — Como a de Corpus Christi.

Será que eles, apenas por um instante, se entreolharam? Sim, ela tinha certeza disso. Então a mulher de Doyle deu uma risada.

— O Corpus Christi foi um dia maravilhoso — falou com um sorriso para Walsh, que também sorriu e concordou com a cabeça.

Estavam zombando dela. Pensavam que ela não sabia.

— Aliás — frisou Margaret, radiante —, eu vi o Corpus Christi deste ano. Não havia como estar enganada. Seu marido empalideceu.

— Você viu?

— Eu não contei, não é mesmo? Foi um impulso repentino. Vi os carros alegóricos passando pela Skinners Row. — Deu um sorriso para ambos. — Vi todo tipo de coisa.

O momento era perfeito. O atordoamento dos dois parecia tê-los forçado ao silêncio. Joan Doyle foi a primeira a se recuperar.

— Você devia ter passado lá em casa — exclamou ela. — Estávamos todos na janela. Teria tido uma visão melhor.

— Ah, a visão que tive foi ótima — afirmou Margaret.

Ela os tinha onde queria. Experimentava uma formidável sensação de poder. Isso quase fazia a dor valer a pena. Podia vê-los tentando imaginar o quanto ela sabia, se seus comentários eram ou não irônicos. Eles não tinham como saber. Ela os havia encurralado.

Sorriu e segurou o marido pelo braço.

— Precisamos continuar com nossos cumprimentos — murmurou, indicando um fidalgo de Fingal que estava nas proximidades, e seguiu adiante, deixando a mulher de Doyle parada ali sozinha.

Contudo, foi um triunfo vazio, pois se os dois foram deixados na incerteza, a falta de jeito deles dissera-lhe tudo que ela precisava saber a respeito da cumplicidade de ambos. Eles já a haviam enganado antes; portanto, era provável que pretendessem fazê-lo novamente. Naquela noite, na cama, ela virou-se para ele.

— Joan Doyle é tão atraente assim?

— Você acha que eu a acho atraente? — rebateu espertamente. Fez uma pausa, como se meditasse. — Ela é uma boa mulher — respondeu tranqüilamente — mas prefiro as ruivas.

Durante o Natal, ele foi especialmente amoroso e atencioso, e ela sentiu-se grata por isso. Conhecedora da natureza desonesta de Joan Doyle, ela nem mesmo culpou em demasia o marido. Nunca imaginara que ele fosse capaz de fazer uma coisa dessas com ela, mas agora que havia feito, sua preocupação principal era dar um fim a isso. Não fez referência ao caso amoroso dos dois, mas teve o cuidado de alertá-lo: “Não deve confiar na Sra. Doyle. Ela é hipócrita e perigosa.”

Os sentimentos dela por Joan Doyle, entretanto, endureceram e tornaram-se uma secreta e gélida fúria. Ela zombou de mim e me trapaceou por toda a minha vida, pensou ela, e agora ocupa-se em roubar o meu marido. Ela ainda não estava certa de qual seria a forma que sua vingança tomaria, mas se Joan Doyle pensava que ia ficar impune, prometeu a si mesma, ela descobriria o significado da vingança.

Talvez fosse por causa do modo como as coisas corriam em sua própria vida, mas, às vezes, na primavera de 1534, parecia a Margaret que tudo à sua volta estava mudando. Havia uma sensação de instabilidade no ar.

Logo após o Natal, a neve caiu pesadamente e o clima invernal manteve Walsh em casa durante quase todo o mês de janeiro. Em fevereiro, fez várias viagens a Dublin, retornando a cada noitinha. A situação por lá, informou, era incerta.

— Kildare está sem dúvida doente. Finalmente, ele vai a Londres, mas dizem que só vai mesmo porque deseja convencer o rei Henrique a confirmar seu filho Thomas como vice-rei em seu lugar.

A semana seguinte à partida de Kildare, Walsh permaneceu três dias em Dublin e Margaret ficou imaginando se estaria com Joan Doyle; mas, ao retornar, ele parecia circunspecto, e a notícia que trouxe colocou de lado todas as outras ponderações que havia em sua mente.

— Estou preocupado com o nosso arrendamento das terras da Igreja — disse-lhe. — Você sabe que deve ser renovado este ano. Acabei de ser informado dos termos do arcebispo Alen. — Sacudiu a cabeça. —Ao que parece — acrescentou sombriamente —, isso nem mesmo será negociado. — Os termos eram sufocantes. O aluguel mais do que dobrou. — E o problema — explicou Walsh — é que, como advogado e administrador, eu faria a mesma coisa se estivesse no lugar do arcebispo. A terra vale o que ele pede. — Suspirou. — Mas ele ficará com a maior parte do meu lucro.

Por dois dias ele estudou o problema de todos os ângulos. Então, finalmente, anunciou, “Preciso ir a Londres para falar com Richard”. Partiu no início de março.

Eles não foram os únicos afetados desse modo. Durante as semanas que se seguiram, Margaret soube de várias famílias que foram forçadas a deixar as propriedades da Igreja que exploravam, algumas até mesmo parentes do próprio Kildare. Em circunstâncias normais, até o arcebispo de Dublin hesitaria em ofender os Fitzgerald, e ela se pôs a imaginar o que significava aquilo. Enquanto isso, notícias vindas da Inglaterra sugeriam que os acontecimentos por lá haviam atingido o ponto de uma crise.

“O papa excomungou Henrique.” Londres estava segura, mas havia ameaças de insurreições em outras regiões, principalmente no norte e no oeste, onde as lealdades tradicionais eram muito fortes. Corria até mesmo o boato de que o imperador Habsburgo planejava uma invasão a partir da Espanha. Por causa de toda a sua arrogante fanfarronice, o rei Tudor poderia perder seu trono se isso acontecesse. Então, no final do mês, William Walsh retornou. Ela jamais esqueceria a noite em que ele chegou, quando, parado no vão da porta, anunciou: “Eu trouxe alguém comigo.”

Richard. O Richard dela. O mesmo Richard, com seu cabelo ruivo, olhos alegres e rosto sorridente, porém mais alto, mais forte, ainda mais bonito do que quando partira. Richard, o jovem robusto que a envolveu em seus braços. Se havia sentido uma amarga decepção por ter sido forçado a deixar Londres e voltar para casa, ele a escondeu por causa dela. Walsh contou-lhe naquela noite que ele e Richard decidiram juntos que este deveria voltar. “Não podemos mais nos dar ao luxo de mantê-lo em Londres. Ele vai morar conosco por algum tempo. Com certeza posso ajudá-lo a começar em Dublin.” Portanto, ele estava em casa, finalmente, para ficar. Há males, pensou ela secretamente consigo mesma, que vêm para bem. E o que, perguntou-se, seria feito com a propriedade da Igreja? “Desistirei dela”, disse Walsh. “Enquanto isso”, sorriu amarelo, “por algum tempo, não haverá vestidos novos para você ou mantos para mim.”

O mês de abril foi quase todo dedicado a Richard. Seu pai não o deixava em casa para se dedicar ao ócio. Por vários dias levou-o a Fingal. Posteriormente, passaram dez dias em Munster. Também levou-o a Dublin, onde, seu pai alegrava-se em comunicar: “Ele encantou a todos que o conheceram.” Margaret teve de admitir o zelo do marido. Por volta do início de maio, Richard parecia conhecer todo mundo.

— E quem, em Dublin, o impressionou mais? — perguntou ela ao filho, certa noite, quando se encontravam juntos sentados diante do fogo.

— Eu acho que — respondeu após pensar por um momento — o conselheiro Doyle. Nunca encontrei um homem que conhecesse melhor seu ofício. E, é claro, a esposa dele é adorável.

Se, por um lado, Walsh estava contente com seu filho, por outro, a notícia que ouviu em Dublin causou-lhe mais preocupação. Quando o conde de Kildare chegou a Londres, foi recebido cortesmente. Na metade de maio, porém, vários membros de sua família chegaram a Dublin com a notícia de que sua saúde piorava e que o rei Henrique, abruptamente, o destituíra do cargo e se recusara a dá-lo ao seu filho. Pior ainda. “Já imaginaram?”, protestaram. “Ele está mandando o Canhoneiro novamente.” Também chegou a notícia de que vários do clã Butler teriam posições-chave na nova administração. Mas talvez o boato mais infausto era o de que os Butler haviam garantido ao rei Henrique que não dariam apoio a qualquer reivindicação feita pelo papa na Irlanda. “Isso só pode significar uma coisa”, declarou Walsh. “Henrique acredita que os espanhóis invadirão.”

Que fariam os Fitzgerald? Todos estavam de olho no jovem Silken Thomas e seus cinco tios. Já tinha havido uma furiosa disputa com o arcebispo Alen por causa das propriedades rurais da Igreja. Antes de maio chegar ao fim, o jovem herdeiro Fitzgerald fora até Ulster para falar com os o’Neill e depois a Munster. Ainda não havia sinal do Canhoneiro. Os Fitzgerald ganhariam tempo ou começariam a agitar imediatamente as províncias? A medida do perigo, para Margaret, foi um dia no fim de maio, quando seu marido chegou em casa carregando um arcabuz, pólvora e chumbo. “Eu trouxe o canhão do capitão de um navio”, explicou. “Por via das dúvidas.”

E como, no meio de toda essa incerteza, William Walsh encontrava tempo e energia para continuar seu romance com Joan Doyle? Margaret mal conseguia acreditar, mas era isso que ele parecia fazer.

Houve várias ocasiões, desde que ele voltara de Londres com Richard, em que ela imaginou que seu marido devia estar se encontrando com a esposa do conselheiro. No início de maio, ele foi a Dublin com Richard, depois mandou o filho a Fingal, onde este permaneceu dois dias cuidando de uns afazeres. O mesmo aconteceu na semana seguinte, quando ele despachou Richard para Maynooth e um mosteiro nas proximidades. Como ele podia usar o próprio filho para servir de cobertura?, perguntava-se ela. Não havia dúvida, porém, que era a mulher de Doyle quem sugeria isso, pensou ela, enojada. Se houvesse qualquer dúvida em sua mente sobre o que acontecia, ela foi desfeita no início de junho.

Um navio chegara a Dublin com a notícia de que o inválido conde de Kildare fora executado em Londres. Os Fitzgerald ficaram fora de si. “Talvez não seja verdade”, ponderou Walsh. De qualquer modo, ele foi a Dublin, para saber mais, e levou Richard junto. Dois dias depois, Richard apareceu de volta em casa.

—Thomas acaba de ser chamado a Londres. Continuamos sem saber o que aconteceu com Kildare — comunicou ele a Margaret. — Papai disse que você devia esconder tudo que houver de valor e se preparar para confusão. Talvez até precisemos do arcabuz. — Ninguém em Dublin sabia o que aconteceria. Até mesmo os homens do rei no castelo de Dublin pareciam no escuro, informou ele. — Eu disse a papai que ele devia discutir a situação com Doyle. — Richard prosseguiu, confiante. — Doyle sabe das coisas. Mas não foi possível, pois Doyle vai estar fora a semana inteira, em Waterford.

— A semana inteira? — Sem querer, ela permitiu que sua voz aumentasse de volume até quase um guincho. Ele olhou-a, surpreso.

— Sim. O que tem isso?

— Nada — retrucou ela rapidamente. — Nada. — Então era isso. Ela percebeu o jogo deles. Tinha sido tudo arranjado. A mulher de Doyle sabia que o marido estaria fora. Joan Doyle novamente a fizera de idiota e enviara seu próprio e insuspeito filho com o recado. O que ela deveria fazer? Mandar Richard de volta? Correr o risco de ele descobrir a verdade? A diabólica astúcia dessa mulher era inacreditável. Nada, porém, a havia preparado para o que veio a seguir.

— A propósito, vou lhe contar uma estranha coincidência — disse Richard. — Papai e eu descobrimos esta manhã. — Ele sorriu um tanto tristemente. — Sabe quem acabou arrendando aquela terra da Igreja da qual desistimos? O conselheiro Doyle. Todavia — acrescentou filosoficamente —, suponho que ele pode arcar com ela.

Doyle? Demorou um momento para tudo ficar claro. Mas, então, aos poucos, Margaret pareceu entender. Não foi exatamente isso que Joan Doyle fizera antes? Primeiro, ela a tranqüilizara, dando-lhe uma falsa segurança, na noite da tempestade, e depois usou a informação que tolamente fornecera para atacar sua família. Depois seduzira deliberadamente William, enquanto o próprio marido, que era sem dúvida íntimo do arcebispo Alen, roubava a terra dos Walsh. Não haveria limite para o que ela faria para destruí-los? Pobre William. Agora até mesmo sentia pena de seu marido. O que era um homem, afinal, nas mãos de uma mulher realmente determinada e inescrupulosa? Joan Doyle o seduzira e o ludibriara da mesma forma cruel com que ludibriara antes a própria Margaret. Naquele instante, ela odiou Joan Doyle mais do que já odiara qualquer ser humano em toda a sua vida.

Ela percebeu tudo. Mesmo agora, William, por mais esperto que fosse, provavelmente ainda não se dera conta de que fora traído. A tal Doyle deveria ter uma explicação para tudo: disso podia-se ter certeza. Neste momento, provavelmente, ele estava fazendo amor com ela, o pobre idiota.

Foi então que Margaret teve a certeza de que ia matá-la.

MacGowan estava parado com Walsh e Doyle diante da Tholsel, quando começou a confusão. Era o dia seguinte após Walsh ter mandado seu filho de volta para casa; Doyle chegara de Waterford naquela manhã. Eles tinham acabado de começar a discutir a situação política, quando se iniciou o tumulto.

Aconteceu rápido demais. Foi isso que os deixou atônitos. Mal tinham acabado de esmorecer os primeiros gritos vindos do portão, avisando que um grupo de homens se aproximava, quando começaram o tropel e o retinir e o martelar de cascos; e assim que os três homens recuaram para o vão da porta da Tholsel, a enorme marcha de cavaleiros, em fila de três, passou — havia tantos que demoraram vários minutos para passar — seguida por três colunas de soldados a pé e mercenários. MacGowan calculou que havia mais de mil homens. No centro, acompanhados por doze dúzias de cavaleiros em cota de malha, cavalgava o jovem lorde Thomas — não usava armadura, mas uma suntuosa túnica de seda verde e dourada e chapéu com uma pluma. Parecia tão contente como se estivesse participando de um desfile. Tal era o estilo, a confiança e a arrogância dos Fitzgerald.

Uma arrogância cuidadosamente calculada. Após atravessar a cidade e depois seguir em tropel até o salão onde os membros de conselho real estavam reunidos, Silken Thomas, calmamente, entregou-lhes a espada cerimonial de autoridade que seu pai, como vice-rei, mantinha em seu poder e renunciou à sua aliança com o rei Henrique. O gesto era medieval: um nobre revogava o juramento de lealdade ao seu chefe supremo feudal. O rei inglês não apenas perdia seu vassalo, como, agora, os Fitzgerald se declaravam livres para, em vez disso, oferecer sua aliança a outro rei — ao sagrado imperador romano da Espanha, por exemplo, ou mesmo ao papa. Não acontecera nada igual desde que o avô de lorde Thomas havia coroado o jovem Lambert Simnel e enviado um exército para invadir a Inglaterra cerca de cinqüenta anos antes.

Levou apenas uma hora para que toda a Dublin soubesse.

MacGowan passou o resto daquele dia com Walsh e Doyle. Embora bem informados, estes tinham sido apanhados de surpresa pelo gesto radical de Thomas e pareciam abalados. Vendo-os juntos, MacGowan não deixou de perceber a ironia da situação. O grisalho advogado de aparência distinta e o poderoso comerciante moreno — um ligado aos Fitzgerald, o outro, aos Butler—eram adversários políticos; Doyle acabara de ficar com as melhores terras de Walsh; MacGowan ainda não tinha certeza se Doyle sabia quanto às relações de Walsh com a esposa de Doyle. Contudo, fossem quais fossem os motivos que os dois pudessem ter tido durante todos aqueles anos para romper, ali estavam eles, ainda amáveis e cordiais um com o outro. Até aquele dia, quando o jovem Silken Thomas, a quem mal conheciam, havia provocado uma crise tão séria que poderia levar a uma guerra civil. Seriam agora forçados a uma oposição mortal? Talvez tenha sido esse pensamento que levou Doyle a suspirar, quando se separaram: “Sabe Deus o que será de nós agora.”

No entanto, o mais notável nos dois meses seguintes foi que nada parecia acontecer. Após marcar sua posição, Silken Thomas e suas tropas não se demoraram em Dublin. Primeiro, ele recuou através do rio, depois enviou destacamentos para todo o enclave inglês. Dez dias depois, estes avisaram que ninguém oferecia qualquer resistência. A zona rural estava segura.

Mas Dublin não.

— Não consigo imaginar por que Fitzgerald nos deixou fazer isso — confessou Doyle a MacGowan. — Talvez tenha pensado que não ousaríamos. — Mas enquanto as tropas de Fitzgerald estavam ocupadas protegendo a zona rural, os defensores da cidade calmamente fecharam todos os portões de Dublin. — É um jogo — confessou Doyle —, mas estamos apostando no rei inglês.

Estariam eles com a razão? Não demorou muito para chegar a notícia de que o conde de Kildare continuava vivo. Não fora executado, embora, assim que soube da revolta, o rei Henrique prendeu o conde na Torre. MacGowan desconfiava que o conde talvez aprovasse os atos de seu filho. Kildare era um homem moribundo, mas o rei Henrique estava claramente desconcertado. Seus funcionários na corte negavam que houvesse qualquer problema na Irlanda. Quanto ao Canhoneiro, que deveria ser enviado às pressas à Irlanda com tropas e artilharia, não demonstrava qualquer sinal de querer assumir o seu posto. Subitamente chega um enviado espanhol, fornecendo a lorde Thomas suprimentos de pólvora e chumbo e comunicando que tropas da Espanha estavam a caminho. Eram, de fato, notícias emocionantes. Se as pessoas suspeitavam que sua declaração em Dublin tinha sido um blefe, a costumeira arruaça dos Fitzgerald para o forçar o rei Henrique a devolver-lhes novamente o cargo, as notícias vindas da Espanha colocavam as coisas sob uma perspectiva diferente.

“Com tropas espanholas”, disse o jovem lorde Thomas aos seus amigos, “posso tirar à força a Irlanda do rei Henrique.” E, logo depois, emitiu uma surpreendente proclamação. “Os ingleses não são mais bem-vindos na Irlanda. Devem ir embora.” Quem era inglês? “Qualquer um que não nasceu aqui”, declarou Fitzgerald. Isso significava o pessoal do rei Henrique. Todos concordavam com isso. O arcebispo Alen de Dublin e os demais servidores reais trancaram-se apressadamente no castelo de Dublin. Num gesto de superioridade, Thomas Fitzgerald até mesmo separou-se de sua jovem esposa inglesa e mandou-a também de volta à Inglaterra.

E se muita gente ficara solidária à causa de lorde Thomas, durante o verão seus sentimentos foram fortalecidos pelos acontecimentos na Inglaterra. Toda a cristandade sabia que o rei Henrique fora excomungado. A Espanha falava em invasão; até mesmo o cínico rei da França achava Henrique um idiota. Mas agora, no verão de 1534, o rei Tudor foi além. Homens corajosos como Thomas More se recusaram a apoiar suas pretensões para se tornar, na verdade, o papa inglês; e quando a ordem dos frades ingleses também se recusou, Henrique mandou fechar suas residências e começou a jogá-los na prisão. Os santos frades: os homens mais amados e reverenciados da Irlanda, dentro e fora do enclave inglês. Era uma afronta. Não era de admirar, portanto, que Silken Thomas agora declarasse ao povo irlandês que a sua revolta era igualmente em defesa da verdadeira Igreja. Mensageiros foram enviados com essa mensagem ao imperador Habsburgo e ao Santo Padre. “Meus ancestrais vieram para a Irlanda para defender a verdadeira fé”, declarou Fitzgerald, “a serviço de um rei inglês. Agora devemos lutar contra um rei inglês para preservá-la.”

No final de julho, o arcebispo Alen pôs-se em fuga e tentou pegar para um barco que deixava a Irlanda. Alguns dos homens de Fitzgerald o capturaram, houve uma escaramuça e o arcebispo foi morto. Ninguém, porém, ficou chocado. Ele não passava de um empregado do rei inglês que usava a mitra de bispo. Os frades eram homens santos.

Quando agosto começou, pareceu a MacGowan que o jovem Silken Thomas talvez tivesse se safado. A cidade estava num curioso estado de ânimo. Os portões estavam fechados por ordem do conselho, mas, como Fitzgerald se encontrava fora, em Maynooth, e suas tropas dispersas, as portinholas nos portões estavam abertas para as pessoas entrarem e saírem, e a vida prosseguia praticamente normal. MacGowan estava indo visitar Tidy em sua casa na torre, quando calhou de encontrar Doyle na rua e, parando para conversar, expressou a opinião de que Dublin em breve seria forçada a acolher lorde Thomas e suas tropas espanholas como seus novos governantes. Mas Doyle sacudiu a cabeça.

— As tropas espanholas foram prometidas, mas nunca virão. O imperador vai constranger Henrique Tudor, mas uma guerra aberta contra a Inglaterra lhe custaria muito. Lorde Thomas terá de se arranjar sozinho. Ele também será enfraquecido pelo fato de que os Butler já usam essa oportunidade para obter favores de Henrique. Fitzgerald pode ser mais forte do que os Butler, mas estes podem miná-lo.

— Mas o rei Henrique tem lá as dificuldades dele — frisou MacGowan. — Talvez não tenha meios de subjugar lorde Thomas. Afinal de contas, ele não fez nada até agora.

— Talvez leve tempo — retrucou Doyle —, mas, no final, Henrique vai esmagá-lo. Não resta dúvida sobre isso em minha mente. Ele reagirá e jamais desistirá. Por dois motivos. O primeiro é que lorde Thomas o fez de idiota aos olhos do mundo. E Henrique é profundamente vaidoso. Não descansará enquanto não destruí-lo. O segundo é mais profundo. Henrique Tudor agora enfrenta o mesmo desafio que Henrique Plantageneta enfrentou cerca de quatro séculos atrás, quando Strongbow veio para a Irlanda. Um de seus vassalos ameaça estabelecer um reinado próprio do outro lado do mar ocidental. Pior, isso se tornaria uma plataforma para qualquer potência, como a França ou Espanha, que desejasse se opor a ele. Não pode permitir que isso aconteça.

Estava claro para Eva que Thomas Fitzgerald dera ao seu marido um novo começo de vida. Há uns dois anos que Sean o’Byrne andava sem motivação. Mas, desde o início da revolta, ele parecia dez anos mais jovem. Quase como um menino. A chance de entrar em ação, a emoção de participar de uma batalha e até mesmo de correr perigo — ela supunha que a necessidade dessas coisas estava tão profundamente enraizada na natureza de seu marido quanto a necessidade de ter filhos estava na sua. Era a sensação da caça. Em sua opinião, a maioria dos homens era igual — pelo menos, os melhores eram.

Sean o’Byrne não era o único. A animação espalhara-se por todas as comunidades das montanhas de Wicklow — uma sensação de que algo ia mudar. Ninguém sabia dizer o quê. O controle dos Fitzgerald não era tão leve. Os o’Byrne e outros clãs como eles não alimentavam ilusões de que teriam permissão de atirar-se sobre o Pale e expulsar os Walsh e o restante da pequena nobreza de suas antigas terras. No entanto, uma vez que o rei inglês fosse retirado de cena, uma nova liberdade nasceria inevitavelmente. Se, até então, os Fitzgerald e os Walsh tinham sido irlandeses ingleses, de agora em diante eles seriam irlandeses, como também o seria a Irlanda.

Sean se dedicara ao assunto com todo gosto. Havia muito a fazer. Estivera fora com várias patrulhas na parte meridional da paliçada, assegurando a integridade da zona rural para os Fitzgerald. Por ser um o’Byrne com um Fitzgerald como filho adotivo, Sean era, no mínimo, altamente confiável, e isso lhe dava prazer. Levou consigo os filhos e o jovem Maurice. Eva ficou um pouco nervosa ao vê-los partir, mas não houve qualquer problema. Em breve, acreditava Sean, haveria uma grande incursão no território dos Butler. “Só para garantir que eles fiquem quietos”, disse-lhe ele alegremente. Ela não tinha certeza de como se sentir a respeito disso. Ele levaria os meninos?

Seus meninos: ela não contava mais Seamus como menino. Ele agora era um chefe de família com seus próprios filhos. Ampliara a casa onde os Brennan tinham morado e desenvolvera um rebanho de gado com quase a metade do tamanho do de seu pai. Mas Fintan e Maurice ainda eram seus meninos.

Algumas crianças ficam parecidas com um dos pais por um tempo, depois assemelham-se ao outro. Mas não Fintan. Era um absurdo ele se parecer tanto com ela. “Você não poderia fazê-lo parecer comigo em algum aspecto?”, Sean repreendeu-a de brincadeira certa vez. “Ele é igual a você. É maravilhoso com o gado”, retrucou ela. “Mas você também é”, frisou ele, com uma gargalhada. O cabelo de Fintan era tão louro quanto o fora na infância, seu rosto largo ainda se abria facilmente em um inocente sorriso. Tinha a mesma natureza gentil. E Maurice, também, ainda era o mesmo menino, bonito e atencioso, os belos olhos parecendo às vezes distantes e melancólicos. “Um espírito poético”, como diria o padre Donal. Houve momentos em que ela se sentira quase culpada, meio temerosa de que o amasse tanto quanto amava o próprio filho; mas, então, ao vislumbrar os olhos azuis e afetuosos de Fintan, ela sabia que por mais que gostasse de Maurice, era Fintan, o sangue de seu sangue, a quem dera à luz, o seu verdadeiro filho.

Sorria ao observar os dois rapazes juntos. Estavam se tornando tão viris — explodindo de energia, mas ainda um pouco tímidos, porém muito orgulhosos de si mesmos. Via os dois andarem juntos, Maurice magro e moreno, um pouco mais alto, e o louro Fintan, agora tão desenvolvido quanto um jovem touro, compartilhando suas brincadeiras particulares; à tardinha, às vezes Maurice tocava harpa, o marido o acompanhava na rabeca e Fintan, que tinha uma voz agradável, cantava. Aqueles foram os melhores tempos de todos.

A patrulha no início de agosto foi a de rotina. As patrulhas anteriores haviam percorrido regiões que poderiam ser focos de problemas; agora, ficara decidido que iriam até mesmo a residências de partidários dos Fitzgerald. Lorde Thomas queria um novo juramento de lealdade e coube a Sean o’Byrne uma área bastante ampla para percorrer. Eva não sabia dizer por que sentia uma inquietação em relação a essa patrulha. Não havia motivo para se esperar qualquer problema. Todos os homens iriam: Seamus viera de sua casa, Maurice e Fintan estavam prontos para ir. Antes, porém, de partirem, ela gritou para Sean:

— Você vai levar todos os meus homens? — E, dando-lhe um breve olhar: — Ficarei sozinha?

Ele olhou para ela e pareceu captar seus sentimentos. Decidiu ser bondoso.

— Com qual deles você ficaria?

— Fintan — disse ela, após um instante de hesitação, e arrependeu-se imediatamente. Ela viu o rosto do filho esmorecer.

— Mas, papai... — começou ele.

— Não discuta — disse Sean. — Você ficará com a sua mãe.

E serei repreendida, pensou Eva tristemente; mas não mudou de idéia, apesar de seu coração se apertar quando seu filho se aproximou e ficou ao lado dela, fazendo o máximo possível para lhe sorrir afetuosamente. Quando o grupo se afastou, ela colocou o braço à sua volta.

— Obrigada por ficar comigo — disse ela.

Margaret Walsh já estava parada do lado de fora de sua porta com o marido, quando a patrulha chegou. Havia uma dezena de homens a cavalo. A propriedade dos Walsh era a terceira que o’Byrne e seus homens visitavam.

Então aquele era Sean o’Byrne, o tal demônio com as mulheres. Ela deu uma boa olhada nele. Certamente era um bonito sujeito moreno. Ela podia perceber isso. Havia agora uns poucos cabelos grisalhos em sua cabeça, mas sua aparência era esbelta e saudável. Ela percebeu sua vaidade, mas esta não a desagradou, embora não o tenha achado atraente quando ele cumprimentou William e a ela com fria cortesia.

A sugestão de Walsh de que todos deveriam entrar para descansar, Sean respondeu que apenas ele e dois de seus homens precisavam deter-se alguns momentos lá dentro com advogado e, portanto, sem mais delongas, Walsh foi obrigado a ir com os três até a grande mesa de carvalho do salão, onde, com um ar oficial, Sean o’Byrne apanhou um pequeno livro dos Evangelhos em latim e, colocando-o sobre a mesa, pediu cordialmente a William que pousasse a mão sobre ele.

— É um juramento que você quer? — indagou Walsh.

— É — respondeu o’Byrne tranqüilamente.

— E que tipo de juramento seria? — quis saber Walsh.

— De lealdade a lorde Thomas.

— De lealdade? — O rosto de Walsh anuviou-se. — Não acredito — disse ele, um tanto ressentido, aprumando-se e recuperando toda a sua altura — que lorde Thomas queira forçar um juramento de mim, que todos esses anos tenho oferecido livremente lealdade a seu pai, o conde. — Lançou a o’Byrne um olhar de leve repreensão. — Você me ofende — declarou com discreta dignidade.

— Não é uma obrigação.

— Você veio aqui com homens armados.

— Eu direi a lorde Thomas que fez o juramento de bom grado — retrucou o’Byrne polidamente —, se isso o satisfaz.

Não pareceu satisfazer Walsh, que parecia seriamente descontente. Indo até a porta, pediu à esposa que chamasse todos os homens imediatamente ao salão e ficou parado na porta até todos estarem reunidos. Então, com um olhar fixo para o’Byrne, foi rapidamente até a mesa, bateu ruidosamente a mão sobre os Evangelhos e declarou:

—Juro, sobre os Evangelhos, ter o mesmo amor, respeito e lealdade para com lorde Thomas Fitzgerald que sempre tive, e ainda tenho, para com seu pai, conde de Kildare. — Apanhou o livro e devolveu-o com determinação a o’Byrne. — Fiz um juramento, o qual, tendo em vista a minha conhecida simpatia, jamais deveriam ter pedido que fizesse. Mas, mesmo assim, eu o fiz com prazer. E agora — acrescentou com certa frieza —, desejo-lhes um bom dia. — Indicou a porta com uma ligeira reverência, mostrando seu desejo de que o’Byrne se retirasse.

— Não é o bastante — disse Sean o’Byrne.

— Não é o bastante? — Não era comum que William Walsh se irritasse, mas parecia que isso estava para acontecer. Alguns dos homens de o’Byrne pareciam sem jeito. — Você veio aqui me insultar? — vociferou ele. — Já jurei. Não jurarei mais. Se lorde Thomas duvida de minha lealdade... o que não é o caso... então que ele venha aqui dizer isso na minha cara. Já terminei. — E, com uma expressão de fúria e passos largos, começou a deixar o salão.

o’Byrne, porém, colocou-se diante da porta.

— O juramento exige que declare lealdade a lorde Thomas — disse calmamente —, também ao Santo Padre e ao sagrado imperador romano Carlos da Espanha.

Essa trindade fora cuidadosamente planejada. Uma vez feito o juramento a ela, não havia como voltar ao rei inglês. No que dizia respeito a Henrique VIII, quem prestasse tal juramento fazia uma declaração de traição, para a qual a temível pena era ser enforcado, estripado e esquartejado. Para quem entendia suas implicações, o objetivo do juramento era aterrador.

Contudo, Walsh estava agora tão exaltado que mal conseguia ouvir.

— Não jurarei mais nada — bradou. — Que lorde Thomas venha aqui, com mil homens, e oferecerei a minha própria cabeça para ele cortar, se duvida de mim. Mas não serei tratado como um vilão por você, o’Byrne. — Lançou um olhar de desprezo para o homem das montanhas de Wicklow, ao mesmo tempo que seu rosto ficava vermelho. — A você, não jurarei nada. Agora, saia de minha casa — gritou furioso.

Sean o’Byrne, porém, não se mexeu. Sacou sua espada.

— Já matei homens melhores do que você, Walsh — afirmou perigosamente —, e já incendiei casas maiores do que esta — acrescentou, com um olhar de relance para Margaret. — Portanto — concluiu brandamente —, você tem uma opção.

Seguiu-se uma pausa. Walsh permaneceu totalmente imóvel. Margaret observava-o aflita. Ninguém pronunciou uma só palavra.

— Eu o farei — concedeu Walsh, com infinito desgosto — sob ameaça de morte. Vocês são testemunhas — olhou em volta para os homens ali reunidos — do modo como fui tratado por esse homem.

Momentos depois, à mesa, o’Byrne transmitiu o juramento, e Walsh, aparentando dignidade e desdém, com a mão sobre os Evangelhos, repetiu monoto-namente as palavras. Então a patrulha partiu. Somente após os dois estarem seguramente fora de vista, Walsh falou.

— Ainda bem que Richard está hoje em Dublin — comentou. — Espero que ele não tenha de prestar esse juramento.

— Receei por um momento que você não o fizesse — disse Margaret.

— Tentei não fazê-lo — explicou-lhe o marido. — O juramento que fiz voluntariamente, de apoiar lorde Thomas como fiz a seu pai, era bastante inofensivo. Kildare, afinal de contas, era o representante do rei na Irlanda. Mas eu já tinha ouvido falar nesse novo juramento deles, e sabia que coisa terrível ele era. A referência ao imperador é a pior parte. Trata-se de traição pura e simples. — Sacudiu a cabeça. — Já que ele não me deixou saída, pelo menos eu teria de ter testemunhas de que foi arrancado de mim sob coerção. Foi por isso que mandei todo mundo entrar. Não é uma defesa cabal, mas, se as coisas não saírem bem para lorde Thomas, talvez eu consiga salvar o meu pescoço.

Margaret olhou para o marido com admiração.

— Eu não me dei conta de que era isso que você fazia — disse ela. — Interpretou muito bem.

— Não esqueça — disse ele com um sorriso — que sou advogado.

— Mas acredita realmente que lorde Thomas fracassará? — perguntou.

— Quando os Fitzgerald lutam contra os Butler é uma coisa —retrucou.

— Mas quando enfrentam o rei da Inglaterra, é outra. Precisaremos ver como as coisas vão se sair.

Naquela noite, ao adormecer, Margaret descobriu duas imagens invadindo sua mente. A primeira foi de Sean o’Byrne com a espada ameaçando o seu marido, que era um homem mais brilhante e mais esperto. A segunda foi de seu irmão, como ela imaginava que pareceria, espada em punho, ao seguir para combater o rei Tudor da Inglaterra. Ela dormiu muito mal depois disso.

Se Tidy acreditara que conseguir as novas acomodações na torre talvez acarretasse uma maior harmonia em sua família, naquele mês de agosto ele concluiu que foi a pior coisa que já fizera em sua vida.

No início daquele mês, Silken Thomas retornou a Dublin e encontrou os portões fechados. Exigiu ingresso. O prefeito e os conselheiros recusaram. Disse-lhes que atacaria, mas eles não se deixaram impressionar. Portanto, Thomas teve de se acomodar do lado de fora da muralha.

O cerco a Dublin que se seguiu foi um fato ilusório. Fitzgerald não tinha tropas suficientes para ocupar toda a extensão da muralha. Incendiou algumas casas nos subúrbios, mas não adiantou. E, mesmo que tivesse conseguido cortar os suprimentos da cidade pela metade, os conselheiros já tinham providenciado para que houvesse no interior da muralha provisões suficientes para durar meses. O jovem lorde Thomas conseguia apenas fazer, de vez em quando, uma demonstração de força e torcer para que os dublinenses mudassem de idéia. E era o que ele fazia, certa manhã de agosto, quando o conselheiro Doyle apareceu para inspecionar as defesas no portão ocidental.

As instruções para os guardas do portão ocidental foram simples. O portão propriamente dito tinha tranca dupla. Eles não deveriam provocar Fitzgerald e seu pessoal, mas, se atacados, era para responderem com arcabuzes e flechas das ameias. Pouco antes de Doyle chegar, Tidy vira de uma das janelas da torre que lorde Thomas e cerca de cem homens a cavalo se aproximavam do portão, e tinha descido para ver se as sentinelas estavam a par. Como resultado, viu-se parado junto do conselheiro de um lado do portão, enquanto lorde Thomas se aproximava pelo outro, e ouviu o jovem senhor gritar bem claramente para quem pudesse ouvir, nas ameias ou atrás do portão, que, se não abrissem logo a cidade, ele seria forçado a trazer seu canhão. “Mesmo com o que o enviado espanhol lhe forneceu e seus próprios suprimentos”, afirmou Doyle calmamente para os homens que estavam em volta, “sei que é verdade que ele não tem pólvora nem chumbo suficiente para tomar a cidade. É uma ameaça vazia.” E parecia que Fitzgerald não receberia qualquer resposta, quando, subitamente, se ouviu uma outra voz. Veio de uma janela de algum lugar no alto da torre.

— É o lorde Thomas em pessoa? — Uma voz de mulher gritou lá de cima. Isso foi seguido por uma pausa e o som de cavalos movimentando-se ao redor. Talvez os homens de Fitzgerald achassem que alguém ia atingi-lo. Mas Tidy sabia que não era nada disso. Gelou. A voz era de Cecily. Um momento depois, para seu ainda maior espanto, o aristocrata respondeu:

É.

Era verdade, Cecily gritou para baixo, que ele defenderia a Santa Igreja contra o herético Henrique? Era. Ele não negava a Eucaristia? Claro que não. Agora, porém, Tidy achou que conseguiu ouvir um vestígio de humor na voz de Fitzgerald, quando ele perguntou se ela era a mulher que amaldiçoara o rei Henrique no Corpus Christi passado. Era sim, respondeu, e ela amaldiçoaria lorde Thomas e seus amigos, também, se eles negassem a Eucaristia.

— Nenhum amigo meu, eu prometo — gritou ele. E por que ele era mantido fora de Dublin?, indagou cordialmente. Ele não era bem-vindo?

— O senhor será bem recebido por todos, exceto por alguns conselheiros heréticos — bradou ela para baixo —, que precisam aprender uma lição.

Até esse momento, Tidy ficara tão surpreso que nem se mexera. Ele sabia como Cecily se sentia, é claro. Enquanto os acontecimentos daquela primavera se desenrolavam, ela lhe dissera o que pensava do excomungado rei inglês. Mas Tidy implorou para que ela mantivesse seus pensamentos dentro de casa, e, embora Cecily tivesse ficado um pouco chateada por causa disso, nunca havia ocorrido a ele que ela fosse fazer algo como aquilo. Ele olhou para Doyle, o seu maior ben-feitor, que acabara de ser chamado de herético. O rosto do conselheiro ficava cada vez mais escuro.

Tidy correu para o interior da torre e subiu a escada em espiral. Resfolegan-do, irrompeu no aposento superior de onde Cecily gritava para os homens de lorde Thomas que, se arrombassem o portão, eles encontrariam uma calorosa recepção, e a arrastou para ionge da janela. Ela debateu-se e ele socou-a, a primeira vez por raiva e a segunda por medo — porque pensou que ela talvez começasse novamente — com muito mais força, e então Cecily caiu, sangrando, no chão. Sem tomar muito cuidado, ele a arrastou até a porta e depois escada abaixo até o aposento inferior, onde não havia janela que dava para fora da muralha. Em seguida, trancou-a ali e desceu até o portão para se desculpar com Doyle. Mas o conselheiro tinha ido embora.

Cecily não falou muito com o marido nos dias que se seguiram. Ambos entenderam o que tinha acontecido: não havia nada o que dizer. Diante dos filhos e do aprendiz, eram silenciosamente civilizados; quando sozinhos, calados. Se um esperava que o outro pedisse desculpas, a espera parecia ser em vão. Nem também as coisas melhoraram.

Pouco depois, no mês de agosto, Thomas decidiu enviar um grupo para atacar as fazendas em Fingal. Para a missão, escolheu um contingente de homens das Wicklow liderados pelos OToole. Quando os criadores de gado irlandeses perderam o controle, incendiando e saqueando as ricas fazendas de Fingal, uma enorme coluna de dublinenses, muitos dos quais tinham propriedades por lá, irrompeu da cidade e partiu em direção ao norte para ajudar os fazendeiros de Fingal.

Da torre, Cecily viu-os voltar. Vinham avançando rapidamente para atravessar a ponte. Pelo modo como cavalgavam, ela pôde perceber que fugiam e, ao fazerem a travessia, ela conseguiu ver que muitos estavam feridos. Uma hora depois, Tidy chegou em casa com a terrível notícia.

— Oitenta homens foram mortos. — Seu rosto estava pálido, quando a encarou solenemente. — Oitenta.

Ela observou-o em silêncio. Sabia que era o momento de dizer alguma coisa, expressar a compaixão que poderia romper a barreira que havia entre eles. Ela sabia, mas achou que não podia.

— Não lamento — disse ela. E deixou o silêncio que se seguiu perdurar como um mar invisível, até congelar e se tornar definitivo.

Durante os dias subseqüentes, a cidade ficou em estado de choque. Não havia uma família que não tivesse perdido um parente ou um amigo. Um número crescente de habitantes da cidade começava a se perguntar o que aconteceria a seguir. As tropas de Fitzgerald começariam a matar o povo de Oxmantown? Os o’Byrne desceriam e invadiriam as terras do sul? Doyle e seus amigos eram todos a favor da resistência, mas até mesmo alguns dos conselheiros imaginavam se não seria melhor um acordo com Fitzgerald. “Vamos pelo menos negociar”, disseram. E assim que tiveram permissão para fazê-lo, chegou-se rapidamente a um acordo. Os portões de Dublin seriam abertos. Lorde Thomas e suas tropas poderiam ocupar a cidade em troca da promessa de não tocarem em seus habitantes. Tudo ficaria acessível a ele, exceto a cidadela do castelo propriamente dita. Os funcionários reais e uma parte dos conselheiros se recolheriam ao castelo e arriscariam a sorte de acordo com o que resultasse dos acontecimentos. Não era o que lorde Thomas queria, mas foi algum progresso em relação ao que ele tinha. Portanto, aceitou o acordo.

— Vou para o castelo com Doyle. Ele está levando junto toda a família. — Eram onze da manhã quando Tidy chegou para dar essa notícia a Cecily. — Então eu acho que todos devemos ir — acrescentou. — Precisamos nos aprontar imediatamente.

— Vou ficar aqui — disse ela simplesmente.

— E as crianças?

— Ficarão mais seguras comigo. Fitzgerald não fará mal a mim e às crianças. É você quem correrá perigo, se ele atacar o castelo.

— Suas paredes são muito grossas. E já está suprido com provisões. Poderíamos nos manter ali em segurança durante anos.

Ela olhou-o friamente.

— Você receia ofender a Doyle. Eu receio ofender a Deus. Creio que é essa a diferença entre nós.

— Já que é essa a sua opinião — rebateu ele. Por volta do meio-dia, ele deixou a casa.

E se foi a sua religião a causa do rompimento com o marido, ou se isso apenas fornecera uma desculpa para que ela mantivesse uma separação que agora desejava, a própria Cecily não sabia dizer com certeza.

O cerco ao castelo de Dublin prosseguiu, sem sucesso, através de setembro. Com o avançar do mês, porém, notícias da Inglaterra tornaram a questão mais urgente. Os ingleses, finalmente, viriam. Tropas já se agrupavam, canhões eram levados em direção ao porto, conseguiu-se um navio. Até mesmo o próprio Canhoneiro fez uma aparição. Parecia que, enfim, eles lutariam valentemente.

Quando MacGowan parou na rua do castelo e olhou para suas velhas muralhas cinzentas, sentiu-se desanimado. Fazia um belo dia; as lajes e as pedras mus-gosas de Dublin refletiam um brilho esverdeado no céu azul de setembro. A poucos metros adiante dele, um grupo de homens de Fitzgerald disparavam flechas por cima da muralha, num gesto provavelmente inútil — a não ser que alguém no interior do castelo fosse idiota o bastante para ficar no seu caminho. Nada disso, porém, o inquietava. O que preocupava MacGowan era de que modo ajudaria a esposa do conselheiro Doyle. Ele não queria decepcioná-la.

No mês anterior, ele conseguira prestar um grande favor ao conselheiro. Doyle precisava de um arrendatário para a propriedade que tomara dos Walsh, e o comerciante lembrou-se da família de Brennan, que já morava nas terras de Sean o’Byrne e estava insatisfeito com o seu arrendamento atual. “Você sempre sabe de tudo”, disse-lhe Doyle, com admiração. Isso dera a MacGowan um grande prazer. A transferência dos Brennan ocorreu bem a tempo de fazer a colheita — e, como agora tinham vários filhos fortes, foram de uma grande ajuda para Doyle. Com sua atual missão, entretanto, MacGowan vinha obtendo menos sucesso.

O cerco ao castelo de Dublin fora uma ocorrência insípida. As ineficazes tentativas feitas na rua diante dele eram agora apenas simbólicas. Mas mesmo nos melhores dias, quando eles levaram canhões, tropas e escadas, a missão fora muito difícil, pois o castelo era um obstáculo poderoso. Da muralha externa, havia uma descida alta e brusca para a antiga lagoa, agora praticamente assoreado, de Dubh Linn. Suas outras muralhas, ainda que se encontrassem no interior da cidade, eram altas, robustas e fáceis de serem defendidas. Se Fitzgerald tivesse mais munição, talvez fosse capaz de destruir os portões ou derrubar uma parte da muralha; mas como ainda carecia de balas de canhão, não poderia invadir. Nem tinha tropas suficientes para um ataque em massa. Embora tivesse enviado um enorme contingente de soldados ao território dos Butler, para atacá-los e amedrontá-los a fim de que se rendessem, os Butler, ainda assim, estavam prontos para combater e, portanto, Fitzgerald tinha forças dispersas em numerosos lugares diferentes. Quanto aos habitantes de Dublin, estes obedeciam às suas ordens, mas quando se tratava de assaltar o castelo, eles agiam sem muita convicção, pois muitos tinham amigos lá dentro.

Fora fácil o bastante para MacGowan enviar uma mensagem ao conselheiro Doyle. Ele simplesmente a enrolou em uma flecha sem ponta que disparou por cima da muralha. A mensagem perguntava se havia algo que o conselheiro queria.

Esse era o tipo de comunicação entre a cidade e o castelo que acontecia diariamente. A resposta viera, no dia seguinte, presa a uma pedra jogada a seus pés diante do portão. Doyle estava preocupado, disse ele ao comerciante, com duas coisas. Primeira: com os ingleses provavelmente a caminho, ele achava que lorde Thomas faria um ataque mais decisivo e tentaria conquistar a cidadela. Segunda: sua esposa não estava bem. Ele queria obter um salvo-conduto para que ela deixasse o castelo e MacGowan pudesse escoltá-la com segurança para a casa em Dalkey. E ele estava disposto a pagar aos sitiantes uma bela quantia por esse privilégio. Era isso que MacGowan tentava conseguir.

O problema era que Doyle não era o primeiro a entrar numa negociação particular dessa espécie. Para sua grande surpresa, o comerciante fora levado à presença do próprio Thomas, mas o jovem aristocrata lhe informou educadamente: “Eu já dei salvos-condutos demais. A não ser, é claro, que o conselheiro queira me pagar com algumas das balas de canhão que eu, tão inadvertidamente, deixei no castelo durante o verão.”

MacGowan pensava justamente no que faria em seguida, quando avistou William Walsh e a esposa aproximando-se e deu-se conta de que aquele podia ser um singular golpe de sorte. Momentos depois, ele já havia levado o advogado para um canto.

Felizmente, Walsh não demorou para entender o seu ponto de vista. O advogado e sua esposa tinham ido a Dublin naquele dia para ver pessoalmente como progredia o cerco. Como partidário de Fitzgerald que entretanto lamentava o traiçoeiro juramento que prestara, Walsh acompanhava com interesse os acontecimentos que poderiam culminar com a chegada dos ingleses. Se o Canhoneiro se revelasse forte demais para Thomas, não faria nenhum mal, frisou MacGowan, o fato de eles terem ajudado Doyle.

— E quero crer — acrescentou diplomaticamente o comerciante — que você teria muito prazer em fazer igualmente um favor para dame Doyle. — Como um antigo aliado dos Fitzgerald, disse ele, Walsh talvez tivesse mais sorte em convencer o jovem lorde Thomas. Com tudo isso o advogado concordou prontamente.

“Aliás, verei se ele me recebe agora mesmo. — Dito isto Walsh pediu a MacGowan que cuidasse de sua esposa e afastou-se apressadamente.

MacGowan passou quase uma hora com Margaret Walsh. Os homens tinham parado de disparar sobre a muralha e, assim, os dois puderam caminhar em volta do castelo. Debateram a situação política e ela lhe forneceu um relato detalhado de como Sean o’Byrne forçara seu marido a fazer o juramento. Ficou claro para MacGowan que ela compartilhava a cautela do marido.

— Sempre fomos fiéis a Kildare, mas esse juramento idiota foi longe demais — ela salientou. Mas quando ela perguntou em que assunto o seu marido estava envolvido, ele estancou. Walsh e o conselheiro eram pessoas civilizadas, mas ele não tinha certeza de quais eram os sentimentos de Margaret em relação aos Doyle, nem o quanto sabia das relações de Joan Doyle com o seu marido. Portanto, ele se limitou a dizer:

— Ele está fazendo um favor para mim, que tento ajudar umas pessoas lá dentro. — Apontou para o castelo. — Você terá de perguntar a ele.

Ela olhou-o pensativa, mas pareceu se contentar. Pouco depois, porém, ela pareceu se iluminar e comentou:

— Espero que seja o conselheiro Doyle. Sabe, o meu marido gosta dele, e sua esposa é muito amiga minha.

— Ela é? — Não era sempre que MacGowan era apanhado de surpresa, mas, nessa hora, ele foi. E, supondo que pareceria estranho sonegar a informação, ele contou-lhe resumidamente qual era a incumbência. Ela pareceu encantada.

Pouco depois do meio-dia, Walsh ressurgiu parecendo contente.

— Contei à sua esposa o que você foi fazer — disse-lhe MacGowan. — Portanto, não precisa lhe explicar.

— Ah. — Será que Walsh pareceu sem jeito por um instante? Se foi o caso, ele se recuperou sem demora. — Consegui convencê-lo — anunciou com um sorriso.

— Como fez isso? — quis saber MacGowan, com franca admiração.

— Não é à toa que o meu marido é advogado — observou Margaret, enfiando afetuosamente seu braço no dele. — Quando ela vai deixar o castelo? — perguntou.

— Amanhã, ao anoitecer. Não antes. Você deverá levá-la discretamente para fora da cidade através do Dames Gate — informou Walsh a MacGowan.

Logo após, o advogado e sua esposa voltaram para sua herdade; e MacGowan, depois de enviar uma mensagem ao conselheiro, dando-lhe ciência do que fora combinado, voltou agradecido para sua casa. Foi um golpe de sorte, refletiu, que o nobre advogado tivesse aparecido por acaso daquela maneira.

Por essa razão, o comerciante não conseguiu encontrar uma explicação para a estranha sensação que o dominou naquela noite, ao pensar em dame Doyle. Havia algo no combinado de que ele não gostava. Não sabia por quê. Um instinto. Uma sensação de intranqüilidade. Aqueles eram tempos perigosos.

Bem, disse ele a si mesmo, tinha de escoltá-la até Dalkey, fosse qual fosse o perigo, pois já dera sua palavra a Doyle, e este, além de ser um amigo, era uma pessoa poderosa. Decidiu, porém, tomar uma precaução extra.

Ao amanhecer do dia seguinte, deixando um recado para o marido adormecido de que tinha ido a Dublin e que voltaria naquela tarde, Margaret Walsh saiu de casa. Mas seguira apenas uma curta distância quando virou o cavalo e, em vez de ir na direção da cidade, encaminhou-se ao sul, rumo à montanhas de Wicklow.

A ameaça do Canhoneiro e de suas tropas inglesas talvez preocupasse os moradores de Dublin, mas Eva o’Byrne não parecia se importar. Para os que moravam no campo, o ritmo lento do rebanho que subia e descia as altas e silenciosas colinas dificilmente era afetado pelo fluxo e refluxo dos clãs rivais predominantes através das gerações — exceto quando estes forneciam a ocasional animação de uma incursão para roubo de gado. O governo da cidadela inglesa podia mudar de tempos em tempos, mas para ela parecia que o padrão fundamental da vida irlandesa permanecia sempre o mesmo.

E não era esse exatamente o caso agora? A disputa entre Silken Thomas e o rei Henrique podia ser sobre temas profundos além-mar; mas, para os o’Byrne, significara algumas patrulhas e um grande ataque ao território dos Butler. Para sua grande decepção, Sean o’Byrne não fora chamado para a incursão contra os Butler; mas, agora, enquanto Dublin aguardava o Canhoneiro, os amigos de Fitzgerald nas montanhas de Wicklow faziam preparativos para os Butler retribuírem a cortesia. A qualquer dia esperava-se que grupos de homens surgissem nas encostas para roubar o gado e até mesmo incendiar as fazendas. Os o’Byrne estavam prontos para enfrentá-los, e Sean fizera extensos preparativos em Rathconan. Secretamente, Eva sabia, seu marido torcia para que o pessoal dos Butler viesse, e mal podia esperar por isso. “Eles conseguirão mais do que pechincharam”, disse-lhe alegremente, “quando começarem uma briga com os o’Byrne.”

O estranho apareceu de manhã bem cedo, cavaleiro solitário vindo do norte. Após assobiar para um homem no pátio para que ele fosse buscar Sean o’Byrne, o cavaleiro permaneceu do lado de fora, ainda montado, envolto em um capote e com o rosto coberto. Quando o’Byrne saiu, o estranho insistiu em se afastar uma curta distância da casa, a fim de que a conversa entre eles fosse particular. Ficaram juntos um quarto de hora; depois o estranho foi embora.

Quando Sean voltou para dentro, Eva achou que ele parecia um tanto alegre, mas também nervoso. Ele partiria dentro de uma hora, avisou à mulher, e só voltaria na manhã seguinte.

— Levarei os rapazes e alguns dos homens — anunciou. Mandou o cavalariço chamar Seamus. — Diga-lhe para trazer suas armas — instruiu. Fintan deveria cavalgar até duas fazendas vizinhas e pedir a cada uma delas que reunisse o máximo possível de homens armados. — Eu o apanharei — disse-lhe o pai — no caminho. Mas, mesmo isso, revelou, não seria suficiente. — Preciso de pelo menos doze, talvez vinte homens.

O que significava tudo aquilo?, quis saber Eva. Era contra um grupo de homens de Butler com quem ele teria de lutar? Não, disse ele, é outra coisa. Explicaria tudo amanhã. Enquanto isso, alertou, ela não deveria dizer nada a ninguém. Apenas que ele tinha saído numa patrulha. Ele podia, pelo menos, exigiu ela, dizer aonde ia? Não, não podia.

— E se os Butler atacarem enquanto você e o pessoal estiverem fora? O que devo fazer?

Isso o fez parar.

— Não houve ainda qualquer sinal deles — retrucou. — E ficaremos fora menos de um dia. — Ele refletiu. Então dirigiu-se a Maurice. — Você ficará aqui. Se houver perigo, todos vocês devem ir para as montanhas. Entendeu?

Por um segundo, apenas um segundo, ela viu o ar de desânimo nos belos olhos do rapaz. Ela sabia muito bem como ele devia ansiar por ir com Fintan e o marido dela nessa aventura. Mas, em um instante, aquilo se desfizera. Ele curvou a cabeça graciosamente, aceitando a ordem e, então, virou-se para ela com um sorriso.

— O prazer será todo meu. —Tinha de se admirar'o seu estilo aristocrático. Sean o’Byrne dirigiu-lhe um gesto de apreço com a cabeça.

— Da última vez, Fintan teve de ficar em casa. Agora é a sua vez. — Logo depois, ele partiu.

Fazia um daqueles dias quentes de setembro, quando um imenso céu azul sem nuvens se estende sobre as colinas e um mormaço se espalha pelos vales. Havia vestígios de fumaça no ar.

Eva passou tranqüilamente o resto da manhã. Após terminar as tarefas domésticas, foi até o pequeno pomar, juntou as maçãs que haviam caído e levou-as para a despensa, onde as pousou sobre uma comprida mesa de madeira. Mais tarde, seriam fervidas e postas em conserva. Maurice cuidava do gado. O rebanho havia descido das colinas e estava agora pastando. Ele contava com a ajuda de um velho tratador; e também da esposa de Seamus e das crianças pequenas. Aos cuidados de Eva, também havia um cavalariço e três mulheres que trabalhavam na casa, o padre Donal e sua família, e o velho bardo. Essas eram as únicas pessoas em Rathconan naquele dia.

As horas passavam lentamente. No início da tarde, Eva foi se sentar no pomar. Estava tudo calmo. Fora o ocasional mugido do gado no pasto e o suave roçar da brisa nas encrespadas folhas da macieira, tudo era silêncio. Ela imaginou onde Sean estaria e o que fazia, mas não tinha a menor idéia. Fosse o que fosse, ele parecera satisfeito e bastante confiante. Após ficar sentada durante uma hora, ela levantou-se para voltar para a casa. Talvez, pensou, começasse a ferver logo as maçãs.

Mas antes de chegar à porta ouviu um grito. Era Maurice. Vinha correndo em sua direção. Ela viu o padre Donal logo atrás dele com o velho bardo.

—Tropas — berrou Maurice. — Homens de Butler. Vêm subindo pelo vale.

Ela própria os viu apenas um instante depois: um grupo de homens, alguns a cavalo e outros a pé, vindo em direção a Rathconan. Estavam a cerca de três quilômetros de distância.

— Acha que são homens de Butler? — perguntou ela ao padre Donal.

— Quem mais seriam? — retrucou ele.

— Os cavalos estarão prontos num instante — disse-lhe Maurice. — Temos de subir para as colinas.

— Eles levarão o gado — lembrou ela.

— Eu sei. — O jovem não parecia feliz com isso. — Mas foram essas as instruções do seu marido. — Fez uma pausa. —Talvez, se conseguirmos levar as mulheres para um local seguro, o padre Donal poderá ficar com vocês, e eu e os homens...

Ela sorriu. Os homens armados que se aproximavam pareciam totalizar vinte. Estaria aquele bravo e belo jovem realmente se propondo a atacá-los com a ajuda do velho tratador de gado, do cavalariço e do bardo?

— Não — disse-lhe ela. — Ficaremos juntos. — Mesmo assim, era algo terrível abandonar a casa e o rebanho para os invasores. O gado era a fortuna deles, o meio de vida deles, o status deles. Bem dentro dela, gerações de seus antepassados, todos criadores de gado, se insurgiram, furiosos. Sean podia ter tolamente colocado o rebanho em risco, mas, se fosse possível, ela pretendia salvá-lo, ou, em todo caso, pelo menos parte dele. Haveria a possibilidade de separar o rebanho e esconder parte dele? Haveria tempo? Foi então que, lembrando-se de algo que vira certa vez na infância, Eva teve uma idéia. Era ousada e perigosa. E também seria necessário habilidade. Ela olhou para Maurice Fitzgerald.

— Você gostaria de tentar uma coisa comigo? — perguntou ela. — É arriscado e, se não der certo, talvez eles nos matem. — Em seguida, explicou o que deveria ser feito.

Como era estranho, pensou ela, enquanto observava seu rosto. Momentos antes, dividido entre o desejo de fazer algo e o dever de seguir as instruções de Sean, o belo rapaz de cabelos negros parecera aflito. Contudo, ao ouvir a proposta dela, que poderia custar a vida de todos eles, seu rosto pareceu descontrair. Uma luz surgiu em seus olhos. Uma expressão que, na juventude, ela vira uma ou duas vezes no rosto de seu marido, subitamente apareceu no de Maurice — um ar de orgulhosa coragem. Sim, pensou consigo mesma, esses Fitzgerald eram irlandeses, com toda a certeza.

— Então escute — disse ela. — Vou dizer o que precisaremos fazer.

Enquanto o grupo dos Butler se aproximava de Rathconan, Sean o’Byrne e seus homens estavam bem no alto das montanhas e muito longe, ao sul. Seu grupo agora constava de onze homens a cavalo. Todos, inclusive o jovem Fintan, estavam armados.

Não que Sean esperasse uma batalha — um confronto físico seria o mais provável. Eles atacariam no escuro, com a vantagem da surpresa; havia um objetivo limitado e claramente definido; e era bastante provável que a presa deles estivesse acompanhada de apenas dois ou três homens. O principal era encontrar, antes de escurecer, o lugar certo para a emboscada e para descansar os cavalos. Ele achava que conhecia o lugar. Um local com algumas árvores onde poderiam se esconder na estrada que levava a Dalkey.

Ele ficara realmente surpreso quando a mulher de Walsh aparecera assim de repente. Lembrava-se dela da ocasião em que fora exigir o juramento de seu marido, o advogado; mas, naquele momento, não prestara muita atenção nela. A proposta dela, de ele seqüestrar a mulher do conselheiro, o surpreendera ainda mais.

Por que ela fazia aquilo?, ele perguntara. Ela tinha suas razões, dissera-lhe. Foi tudo o que disse. Mas ela devia odiar a mulher de Doyle, pensou ele, para dar aquele passo. Por que as mulheres brigam? Em geral por causa de um homem. Era de se pensar que ela era um pouco velha para isso, matutou; mas talvez uma mulher nunca fosse velha demais para sentir ciúmes. Em todo caso, quaisquer que fossem seus motivos, a recompensa daquele serviço poderia ser imensa. Era isso que atraía Sean o’Byrne.

O acordo que ele e Margaret Walsh fizeram foi bastante simples. Ele deveria capturar dame Doyle e exigir um resgate. Não seria o primeiro rapto dessa espécie em anos recentes; mas, normalmente, haveria séria repercussão se uma figura relativamente obscura como Sean o’Byrne ousasse raptar a mulher de um homem tão importante quanto Doyle. As atuais circunstâncias, entretanto, com Doyle em conflito armado com os Fitzgerald, apresentavam uma maravilhosa oportunidade; e, embora Silken Thomas tivesse fornecido um salvo-conduto para Joan Doyle deixar a cidade, isso não se estenderia além dos subúrbios. Na estrada a céu aberto até Dalkey, ela estaria por conta própria, e lorde Thomas Fitzgerald provavelmente não ligaria a mínima para o que acontecesse com ela depois. Assim que o’Byrne obtivesse do conselheiro o dinheiro do resgate, ele entregaria secretamente a metade a Margaret. Muito secretamente. Ninguém — nem mesmo a própria família dele ou o marido de Margaret — deveria saber que ela tomara qualquer parte naquilo; mas sua pretensão à metade do resgate era inteiramente razoável. Ela lhe dera a idéia, e dissera quando e por onde dame Doyle viajaria. o’Byrne concordara de imediato com o plano.

Havia apenas uma coisa que ele não tinha resolvido. Quanto deveria pedir? Imaginava que seria uma quantia substancial — talvez mais dinheiro do que já vira em sua vida. Embora soubesse exatamente o valor de cada vaca dentro ou fora da paliçada inglesa, o’Byrne não fazia a menor idéia do preço da esposa de um conselheiro de Dublin.

— Quando você capturá-la — prometera a mulher de Walsh —, eu lhe direi o que pedir. — E o’Byrne estava disposto a acreditar que a mulher do advogado sabia das coisas. — Mas se não conseguirmos o preço exigido? — perguntara ele. — E se eles não pagarem?

A mulher de Walsh deu-lhe um sorriso sinistro.

— Mate-a — disse.

Eles subiam lentamente a encosta, gastando o tempo. Havia vinte deles: dez a cavalo e dez a pé. Seis dos que seguiam a pé eram simples kerne — homens tirados do trabalho no campo para lutar por remuneração. Quatro, porém, eram os apavorantes mercenários escoceses, com machados de cabo longo e espadas de dois gumes: eram capazes de fazer picadinho praticamente dos mais bem treinados homens de armas.

Já tinham estado na casa de Seamus e a encontraram deserta. A preocupação de Eva era se iam incendiá-la, mas eles não se deram ao trabalho. Aos poucos se aproximavam de sua casa.

Ela cuidara de tudo. Se os atacantes achassem que a casa estava defendida, talvez se espalhassem para poderem se proteger. Mas, mesmo à distância, era evidente que a casa fora abandonada às pressas. A porta estava escancarada; uma das venezianas sacudia ao sabor do vento, rangendo e martelando. Ainda em formação compacta, eles avançavam.

O terreno da casa era flanqueado num lado por um leque de árvores e, no outro, por um muro baixo. O chão declinava suavemente. Os homens ainda se encontravam cerca de cem metros da casa, quando o padre Donal, que estava escondido entre as árvores, deu o sinal.

O estrondear de cascos começou subitamente. Parecia vir de dois lugares ao mesmo tempo, fazendo com que o grupo de assalto parasse, confuso, por um momento, olhando de um lado para o outro. Então, horrorizados, eles viram o que era.

As duas manadas avançavam de ambos os lados da casa. Já corriam bastante e, quando os dois conjuntos acabaram de dar a volta na torre e convergiram, tornaram-se uma única massa de cabeças com chifres, os cavaleiros atrás delas uivan-do, gritando e estalando açoites a fim de forçar o estouro da boiada. Cem, duzentos, trezentos bois desembestavam ladeira abaixo, uma enorme muralha de chifres, um peso descomunal impelindo abaixo os atacantes inexoravelmente. Os homens procuraram uma salvação. Não havia para onde ir. A grande manada enchia todo o espaço entre as árvores e o muro e, em todo caso, não havia como alcançar qualquer um dos dois. Viraram-se para fugir, mas a boiada já estava em cima deles. Houve um estalo, um estrondo, um terrível mugido.

De onde estava, montada em um cavalo, perto das árvores, Eva viu a muralha ambulante de bois esmagar os homens. Viu uma espada voar pelos ares, ouviu um grito e um cavalo guinchar; em seguida, apenas o fluxo do rebanho arrastando tudo o que via pela frente, como um rio numa inundação. Atrás dela, também montado, pôde ouvir o velho bardo, dando urras e gargalhando como um menino entusiasmado; do outro lado, perto do muro, com o rosto concentrado e as bochechas ruborizadas, ela conseguiu avistar Maurice cavalgando no meio da manada. Como parecia bonito, como era destemido. Apenas por um instante, ela se deu conta de que estava meio apaixonada por ele. Talvez, em meio a todo aquele ardor e emoção, ela mesma tivesse se tornado novamente uma jovem mulher, mas, na formidável ilusão do momento, pareceu-lhe que o jovem aristocrata era o que o seu marido poderia ter sido, em seus anos de juventude, se fosse mais refinado.

O gado agora passava por cima dos invasores e se espalhava lá embaixo depois da encosta. Maurice pastoreava os animais habilmente, fazendo com que voltassem. Mais atrás, onde estivera o grupo invasor, havia uma verdadeira chacina.

Se os homens tivessem sido mais rápidos, se não tivessem hesitado, talvez pudessem ter sobrevivido fazendo a volta e correndo junto com a manada. Vários haviam tentado, mas era tarde demais, chocaram-se uns com os outros. Três tinham começado a correr, mas não foram rápidos o suficiente. A enorme locomotiva de bois ou chocara-se com os cavalos ou colhera-os por trás, derrubando a todos e pisoteando-os. A destruição dos homens que vieram a pé fora ainda mais completa. Não fazia diferença se eram cavaleiros, kerne ou poderosos guerreiros de aluguel: a manada atropelara a todos. Braços, pernas, crânios e esternos tinham sido despedaçados e esmagados; seus corpos, mutilados ou reduzidos a pasta. Os grandes machados dos escoceses jaziam no chão com os cabos quebrados, suas cabeças inúteis.

Este foi o conhecido estouro da boiada, uma tática de guerra irlandesa tão antiga quanto as montanhas. Ainda que Eva só a tivesse visto uma vez, quando criança, não era algo que se pudesse esquecer; e como cada um dos moradores de Rathconan, desde ela mesma ao filho mais novo de Seamus, era um hábil tocador de gado, não fora difícil para eles, apesar de poucos, criar um estouro e conduzir um rebanho de trezentas cabeças.

A esposa de Seamus vinha agora chegando. Ela viera conduzindo o gado por trás. As mulheres da casa também chegaram. Inspecionaram os estragos. Um grande número de homens já estava morto. Outros jaziam gemendo. Um dos mercenários grandalhões até mesmo tentava se levantar. As mulheres sabiam o que fazer. A um gesto de cabeça de Eva, pegaram suas facas e foram, de um a um, cortando-lhes as gargantas. Eva desmontou e fez o mesmo com os infelizes cavalos. Foi uma tarefa sangrenta, mas ela se sentiu triunfante; salvara todos os seus. E quando Maurice retornou, justamente quando ela terminava, também lançou-lhe um olhar de triunfo, amor e júbilo.

Sean o’Byrne tinha tempo. Eles haviam descansado por algumas horas assim que voltaram à segurança das colinas. Não foram seguidos. Não havia razão para pressa. Pouco antes da alvorada, partiram para atravessar as montanhas com sua carga.

A emboscada fora bem preparada. Antes de escurecer, ele encontrara o lugar que procurava. Os homens foram cuidadosamente posicionados. Ele e Fintan pegariam a mulher de Doyle, enquanto o resto do grupo, liderado por Seamus, dominava seus acompanhantes. Embora todos os seus homens estivessem armados, ele lhes dissera para não usarem as espadas, a não ser que encontrassem reação. Com sorte, poderiam resolver o assunto sem matar ninguém. Em particular, ele se preocupava com MacGowan. A esposa de Walsh tinha certeza de que o comerciante estaria acompanhando dame Doyle até Dalkey, e o’Byrne não conseguia imaginá-lo desistir sem opor resistência. Ele gostava de MacGowan e lamentaria feri-lo, mas não havia muita coisa que pudesse fazer a respeito. O plano teria de ser levado a cabo; do resto cuidaria o destino.

O único problema seria enxergar a mulher. Entretanto, havia uma lua crescente que forneceria luz o bastante. E assim esperou com razoável confiança, tendo Fintan bem perto dele.

A escuridão desceu. A lua projetava uma luz suave na estrada enquanto serpenteava entre as árvores. Se ela tivesse deixado o castelo ao cair da noite e supondo que o grupo cavalgasse a uma velocidade razoável, chegariam ali na hora que ele tinha calculado; mas o tempo passou e nem sinal deles. Mesmo assim, ele esperou pacientemente. A mulher de Walsh parecera clara o bastante. Talvez tivessem se atrasado. Uma hora se passou e ele começava a ter dúvidas, quando ouviu algo. Som de passos. Um grande número deles. Era estranho. Ele achava que o grupo viria montado a cavalo. Assobiou para os seus homens se prepararem. Pôde ouvi-los montar. Sentiu o próprio corpo tenso, na expectativa. Então, à luz da lua, avistou o grupo dobrar a curva.

Havia apenas duas pessoas montadas: MacGowan e a mulher cavalgavam à frente. Atrás deles, porém, vinham vinte homens a pé. Um grupo diversificado: cidadãos armados, soldados normais; até Brennan, armado com uma comprida lança, fora trazido da nova propriedade de Doyle. Mas foram os oito homens que marchavam à frente que chamaram a atenção de o’Byrne. Olhou incrédulo. Mercenários escoceses. Seus machados e espadões vinham inclinados sobre seus ombros. MacGowan deve tê-los contratado. Praguejou baixinho e hesitou.

Deveriam atacar assim mesmo? O número deles mais ou menos se igualava. Só que cada escocês valia por dois ou três dos seus homens destreinados. Não gostou do risco.

Sentiu uma cutucada. Fintan.

— Não vamos? — cochichou o rapaz.

— Escoceses — respondeu ele baixinho.

— Mas estão a pé. Podemos ir e voltar a cavalo e eles jamais nos pegarão. — Parecia sensato. Ele percebeu exatamente o que seu filho pensava. Mas Fintan não entendeu. Sean sacudiu a cabeça.

— Não.

— Mas, papai... — Houve uma insinuação não apenas de decepção, mas até mesmo de repreensão. Como podia seu pai ser tão covarde? — Veja.

Sean não pôde acreditar. Fintan instigou o cavalo para avançar, saiu do esconderijo e correu em direção aos soldados sob o luar. Achando que fora dado o sinal, Seamus e o resto de seu pessoal também avançou. MacGowan e a mulher haviam parado. Os escoceses se movimentavam velozmente em volta deles, formando um círculo protetor. Era tarde demais agora. Nada havia que ele pudesse fazer, a não ser avançar também. Precipitou-se contra os escoceses para ajudar seu filho. Talvez, afinal, o rapaz estivesse com a razão.

Tudo aconteceu apenas algumas horas atrás, mas é tamanha a estranheza de uma batalha que sua luta contra os escoceses já parecia estar a eras de distância, como se tivesse ocorrido em outro mundo. Não era nem mesmo da luta que ele se lembrava, mas, logo após ter derrubado MacGowan de seu cavalo, da visão de Fintan esticando os braços para tentar agarrar a mulher de Doyle e, depois, da sensação de o rapaz passar raspando por ele quando todos fugiram. Deixaram quatro homens na estrada com os escoceses, mas estavam além de qualquer ajuda. Mesmo à luz do luar, ele pôde ver que, pelos seus ferimentos, já estavam mortos ou moribundos. Lembrava-se da arremetida encosta acima, com as vozes dos escoceses disparando insultos bem lá de trás, e de Seamus chegar perto dele e dar uma risada amistosa para Fintan, por causa da irrefletida bravura do rapaz. Depois Fintan desmaiou.

As estrelas começavam a desfalecer quando deixaram para trás o escuro contorno dos cumes das montanhas e começaram a descer na direção de Rathconan.

E o sol já se erguia sobre o mar oriental, sua luz ardente refletindo nas encostas acima e penetrando nas fendas das montanhas de Wicklow, quando Sean o’Byrne e seu grupo surgiram à vista da casa. Muito antes de a alcançarem, Eva e Maurice e o velho padre Donal saíram para recebê-los, seus rostos sorrindo largamente até verem que o que traziam consigo não era nenhum troféu, nenhum prisioneiro, mas apenas seu fardo, envolto firmemente em um cobertor e amarrado ao próprio cavalo: Fintan, que sangrara até a morte de um profundo ferimento que Sean não vira, causado não pela espada mortal de um escocês, mas pela comprida lança de Brennan que perfurara as costelas de Fintan quando ele tentava agarrar Joan Doyle.

Tarde daquela manhã, Margaret cavalgou até o local de encontro nas colinas, onde Sean o’Byrne lhe dissera que estaria para dar notícias sobre a expedição da noite anterior. Ela esperou ali até o meio da tarde, mas ele não apareceu. Sentiu-se tentada a ir até Rathconan, entretanto decidiu que seria arriscado demais. À noite, ficou contente por não ter ido.

Richard Walsh fora sozinho até Dublin naquela manhã. Voltou à noite com a informação de que dame Doyle fora atacada perto de Dalkey.

— Mas felizmente ela escapou — ele acrescentou. Quatro dos agressores haviam sido mortos. — Parece que vieram das bandas de Rathconan. Dizem que Sean o’Byrne está envolvido. — MacGowan fora derrubado de seu cavalo, mas não estava muito machucado.

— Quer dizer que dame Doyle está agora em segurança em Dalkey? — perguntou Margaret.

— Está, graças a Deus.

— O que vão fazer com o’Byrne? — quis saber ela.

— Nada, eu diria. Doyle está trancado no castelo. Lorde Thomas não se importa. E, de qualquer modo, os rapazes de o’Byrne levaram a pior.

Não fazia muito sentido ir visitar o’Byrne depois disso.

Dias depois MacGowan apareceu na casa deles. Como sempre, o advogado ficou feliz em vê-lo e comentou alegremente que o comerciante aparentava ter saído ileso de seu recente embate. E MacGowan ficou grato por descansar no interior da casa e tomar um pouco de vinho. Parecia cansado, quando se sentaram no salão.

— É por conta da noite passada, estou acabando de vir da casa de Sean o’Byrne

— disse ele, exausto. — Estive no velório do filho dele.

— O filho? — Margaret ergueu os olhos, surpresa. — Ele perdeu um filho?

— Perdeu. Fintan. Numa noite dessas. Um velório muito triste. Uma coisa terrível.

— Mas... — ela fitou-o pasmada, como se refletisse sobre as implicações daquela notícia. — Devem ter sido os homens que você contratou que os mataram.

— Não resta a menor dúvida.

— Estou surpresa por você ter ido ao velório — observou ela.

— Fui ao velório dele em respeito a seu pai — retrucou calmamente MacGowan. — Sua morte não foi culpa minha e os o’Byrne sabem disso. O que está feito está feito.

Ela ficou em silêncio. MacGowan fechou os olhos.

— Ele lhe disse como soube que dame Doyle ia a Dalkey? — perguntou Walsh.

— É isso que me intriga.

— Não, não disse. — Os olhos de MacGowan continuavam fechados.

— Eu sei que nada é segredo em Dublin — comentou o advogado. — Devo concluir que, quando pedi o salvo-conduto, um dos homens próximos a lorde Thomas deve ter preparado a emboscada.

— Eles deviam conhecer Sean o’Byrne — concordou MacGowan, aparentemente ainda procurando dormir; e nenhum dos dois homens falou por um tempo. — Quem passou a informação — prosseguiu calmamente — tem a morte do jovem Fintan o’Byrne na consciência. — Então, abriu um olho e olhou direto para Margaret.

Margaret devolveu o olhar. O olho dele ficou cravado nela. Parecia tão grande e tão acusador.

O que ele sabia? O quanto teria adivinhado o esperto comerciante? o’Byrne teria dito algo? Se soubesse, pretendia contar ao seu marido, ou aos Doyle? Ela tentou manter a calma, não deixar nada transparecer. Mas sentiu apenas uma fria e aterradora apreensão. Baixou a vista. Não conseguia mais encarar aquele olho terrível.

Lentamente, MacGowan levantou-se.

— Preciso ir — anunciou. — Obrigado — disse a Walsh — pela sua hospitalidade. — A Margaret, não dirigiu qualquer outra palavra. Ela não lamentou em vê-lo ir embora.

Se ela, porém, pensou que sua aflição chegara ao fim com a sua partida, estava enganada.

Cerca de uma hora depois, após cuidar de alguns assuntos, seu marido entrou no salão e encontrou-a sentada sozinha. Como estivera pensando na desconfortável conversa com MacGowan, ela ficou contente por ter alguém para distrair seus pensamentos e virou-se para ele com um sorriso esperançoso quando se sentou na pesada cadeira de carvalho ao lado da mesa. Ele também parecia ter algo em mente, pois demorou-se pensativamente antes de começar.

— Ainda bem que Joan Doyle não se machucou na tal noite. Isto é, para nós, como família.

— E? — Ela sentiu uma leve dificuldade na respiração, ao ouvi-lo mencionar o assunto Joan Doyle daquele modo. — Por quê?

— Porque... — hesitou um momento — há algo que nunca lhe contei. Era isso, então, finalmente. Ela sentiu uma fria sensação de queda. Iria querer

ouvir aquilo? Metade dela queria detê-lo. Sua garganta ficou seca.

— O quê?

— No dia de Corpus Christi, ano passado, peguei emprestado com ela uma grande quantia em dinheiro.

— No Corpus Christi? — Ela o encarou.

— Sim. Você deve se lembrar — continuou rapidamente — que Richard, em Londres, fez uma grande despesa em nosso nome. Eu passava por dificuldades financeiras e fiquei preocupado. Mais preocupado do que queria que você soubesse. Foi o nosso amigo MacGowan que, certo dia, ao me ver em Dublin um tanto acabrunhado, sugeriu que ela talvez pudesse me ajudar. Então procurei-a para pedir um empréstimo.

— Ela faz empréstimos? Sem o marido saber?

— Faz. Você sabe que as nossas mulheres de Dublin têm mais liberdade até mesmo do que as de Londres. Descobri que ela faz um número razoável de empréstimos. Normalmente, consulta o conselheiro, mas nem sempre. No meu caso, porque me sentia constrangido, ela me emprestou o dinheiro confidencialmente. Há um acordo por escrito, é claro, adequadamente redigido, mas, pelo que me consta, trata-se de um acordo particular entre mim e dame Doyle. — Fez uma pausa. Em seguida, deu uma risadinha. — Sabe por que fez o empréstimo? Ela se lembrou de Richard. Da ocasião em que ficou abrigada nesta casa. “Ele é um menino encantador”, disse ela. “Ele precisa ser ajudado.” E me deu o dinheiro. E em condições bastante razoáveis.

— No dia de Corpus Christi?

— Eu fui procurá-la. Com exceção de um velho criado, ela estava sozinha. O resto do pessoal da casa tinha ido assistir às peças. E ela me deu o dinheiro ali mesmo.

— Quando você terá de pagar?

— O prazo vencia em um ano. Achei que podia conseguir. Mas, após perdermos a propriedade da Igreja... Ela me deu mais três anos de prazo. Condições generosas.

— Mas foi o marido dela quem ficou com a nossa terra.

— Eu sei. “Sua perda foi o nosso ganho”, disse-me ela. “Depois disso, não posso me recusar a estender o prazo do seu empréstimo, não é mesmo?” — Ele sacudiu a cabeça. — Ela nos tratou... a mim, se prefere... excepcionalmente bem. Meu crime, Margaret, foi porque fiquei com vergonha e escondi isso de você. Se ela tivesse sido morta naquela noite, o documento do empréstimo seria descoberto entre os seus papéis e Doyle poderia vir atrás do dinheiro. Não sei. — Suspirou. — De qualquer modo, estava na hora de lhe contar. Você me perdoa?

Margaret fitou-o. Seria essa toda a verdade? Ela não tinha dúvidas a respeito do empréstimo. Se o seu marido disse que houve um empréstimo, então houve. A história sobre Corpus Christi também era provavelmente verdadeira. A bondade dela, porém, teria sido mais do que por causa de sua simpatia por Richard? Não haveria algo entre essa mulher, que sempre a menosprezara, e seu marido?

Se não havia, então ela mandara Sean o’Byrne atacá-la e causara a morte de seu filho por nada. Nada mesmo.

— Meu Deus — exclamou, numa súbita incerteza. — Oh, meu Deus.

Para Cecily, o mês de setembro trouxe uma nova e embaraçosa decisão. Dois dias após a volta de MacGowan do velório de Fintan o’Byrne, a cidade mudou de idéia. Talvez por causa das notícias cada vez mais prementes de que o exército inglês estava prestes a chegar, ou porque os cidadãos estavam fartos de aquartelar as tropas de Fitzgerald, ou uma percepção entre os membros do conselho de que o regime de Silken Thomas carecia de convicção; fossem quais fossem os motivos, a cidade transformou-se.

Cecily percebeu isso, pela primeira vez, quando uma das crianças subiu correndo as escadas da torre parecendo apavorada. Em seguida, ouviu pancadas e gritos na rua. Olhando lá fora, viu um grupo de escoceses de Fitzgerald batendo em retirada pelo portão ocidental. E, logo atrás, seguia-os uma enorme onda furiosa de pessoas armadas com lanças, espadas, machados, bastões — no que conseguiram botar as mãos — jorrando através do portão. Apanharam e mataram dezenas de homens de Fitzgerald. Se Silken Thomas propunha salvar a Irlanda para a única verdadeira Igreja, o povo não parecia se importar. “Heréticos”, ela os chamava furiosamente. Mas Silken Thomas estava agora de volta ao lado de fora de Dublin e, embora tivesse colocado novamente a cidade sob cerco, ele não conseguia voltar para o lado de dentro. Poucos dias depois, Silken Thomas e os conselheiros concordaram com uma trégua de seis semanas. “Ele não lutará contra nós”, disseram os dublinenses, “vai esperar os ingleses.”

Essa volta ao impasse teve outro resultado. O castelo de Dublin abriu seu portão e Henry Tidy foi para casa.

Foi uma pena uma das crianças ter emborcado um jarro de leite, pouco antes de ele chegar, e Cecily não estar de bom humor. Ela esperara tanto tempo por esse dia. Muitas vezes, enquanto o marido se encontrava no castelo, ela pensara no momento de sua volta. O que ela queria? Ao olhar para os filhos e recordar os primeiros dias de seu casamento, ela soube muito bem. Ansiava voltar ao afeto da vida de casada. Ela não conseguia mudar as opiniões religiosas dele. Isso era impossível. E não achava, igualmente, que o marido pudesse mudar sua atitude. Mas certamente podiam dar um jeito de viver em paz.

Se ao menos ele fosse gentil. Quando ele a agredira, naquele dia terrível, não tinha sido tanto a pancada que doera — embora ela tivesse ficado chocada — mas a frieza que sentira por trás daquilo. E algo dentro dela havia morrido. Conseguiria ressuscitar?

Ela precisava saber que ele a amava. Fosse qual fosse a sua opinião sobre o rei Henrique, por mais que o tivesse constrangido diante de Doyle e das autoridades municipais, ela queria saber se ele realmente a amava. Era para isso que estaria atenta, após o seu retorno. Como ele agiria? Qual seria o significado disso? Poderia confiar nele?

Foi uma pena, portanto, que, num momento de irritação, ela tivesse se virado, quando ele surgiu na porta, e o cumprimentado friamente.

— Você não parece contente em me ver.

Ela olhou para ele. Quis sorrir. Fora essa sua intenção. Mas agora que chegara o momento pelo qual havia esperado e tudo começou a dar errado, ela se sentiu estranhamente paralisada. Sentiu algo recuar dentro de si.

— Você abandonou a sua família — retrucou ela, indiferente.

Será que ele pediria desculpas? Será que tomaria a iniciativa? Será que renovaria nela a confiança?

— Você se recusou a ir comigo, Cecily. Não. Nenhuma palavra. Nada mudara.

— Não é culpa minha se o rei Henrique foi excomungado.

— Eu continuo sendo seu marido.

Ela deu um leve encolher de ombros. — E o Santo Padre continua sendo o Santo Padre.

— De todo modo, eu voltei. — Ele tentou um sorriso. — Você poderia me fazer sentir bem-vindo.

— Por quê? — Não pôde evitar a amargura na voz. — Você quer estar aqui? Ele a encarou. O que estaria ele pensando? Deve estar pensando, que mulher

fria e cruel sou eu, pensou ela. A culpa em parte é minha.

— Não.

Então era isso. Ele falou a verdade. Seria a verdade, porém, ou ele estaria apenas revidando? Esperou que ele acrescentasse mais alguma coisa. Ele não o fez.

— Não temos nada a dizer um para o outro — disse ela, sentido-se estranhamente desamparada, e ficou parada ali, esperando, enquanto a frieza baixava, se instalando silenciosamente entre eles.

No dia seguinte, o lar deTidy iniciou um novo estilo de vida. A oficina ficava ao nível da rua. Ali, Tidy e o aprendiz trabalhavam e dormiam. No andar superior, ficava o aposento principal, onde a família se reunia para as refeições. Acima dele, na torre, dormiam Cecily e as crianças. Da janela do alto, Cecily contemplava a olaria onde eles produziam louças de barro.

Para ela, a janela da torre era um refúgio. Às vezes, durante o dia, subia até lá para ficar sozinha e olhar as louças, ou mesmo avistar à distância os homens de Fitzgerald. À tardinha, separada do marido, após as crianças terem ido dormir, ela ficava sentada ali durante horas, observando o pôr-do-sol ou as estrelas e imaginando o que acontecia no mundo.

Pouco tempo após ter iniciado suas vigílias, chegou a notícia de que o conde de Kildare morrera na Inglaterra. Por mais triste que fosse, isso também significava que Silken Thomas era agora o novo conde, com toda a autoridade e o prestígio que o nome evocava. Não demoraria muito agora, esperava ela, para a causa vencer. Pela metade de outubro, os navios ingleses, finalmente, chegaram. Doyle e os demais conselheiros deram as boas-vindas de Dublin ao Canhoneiro e aos seus homens. As tropas inglesas eram numerosas e pareciam ter sido treinadas; também tinham trazido artilharia. Ela torcera para vê-los destruídos em uma batalha aberta contra Silken Thomas, e sentiu um certo desgosto, de sua janela, ao ver grupos de soldados de Thomas recuando calmamente. Confortou-se, porém, com a opinião predominante entre os partidários de Kildare.

— Ele vai esperar em Maynooth. Os Fitzgerald ainda mantêm todas as suas fortalezas. Ele vai vencer a resistência do Canhoneiro e, quando as tropas espanholas chegarem, elas expulsarão os ingleses da Irlanda para sempre.

Em um mês, o Canhoneiro pôs-se a caminho. Veio a notícia de que ele recuperara um dos castelos de que os Fitzgerald haviam se apoderado, em Trim. Vieram notícias ainda mais terríveis dando conta de que dois dos cinco tios de Thomas cooperavam com o Canhoneiro. Ao olhar pela sua janela, após ouvir isso, ela achou difícil não ter uma sensação de desalento. Como era possível, perguntou-se, haver tanta traição? Contudo, ao rezar, teve a certeza de que devia manter a fé e disse a si mesma para ter paciência.

E, de fato, nos meses de inverno, houve motivo para esperança. O inverno era frio e úmido. O Canhoneiro retirou-se para Dublin e permaneceu lá, e logo passou a se queixar de que estava indisposto. Cecily via-o ocasionalmente, cavalgando pelas ruas com sua escolta. Em vez do ativo militar que fora, ele agora parecia pálido e esgotado. Suas tropas também sofriam. Havia deserções. Melhor ainda, Silken Thomas estava de volta às fortalezas que o Canhoneiro tomara inicialmente. O mais importante de tudo, perto do Natal, Cecily ouviu dizer que os espanhóis estavam enviando dez mil homens armados. Assim que chegassem, o Canhoneiro desapareceria.

Veio janeiro, frio e medonho. As tropas inglesas eram agora enviadas para guar-nições-chave em torno do enclave inglês; não havia, porém, ação. Silken Thomas continuava à espera dos soldados espanhóis, mas não vinham notícias deles. Certo dia, em fevereiro, durante a refeição no aposento principal, Tidy comentou serenamente:

— Sabe o que as pessoas dizem agora? Que o rei espanhol tem outras coisas com que se preocupar. Vai deixar Silken Thomas de mãos abanando.

— É o que você diz — retrucou ela indiferente. Atualmente, não era sempre que conversavam.

— Chegou um navio ontem ao porto — continuou ele calmamente. — Da Espanha. Não há sinal nem notícia de que qualquer soldado será enviado para cá.

— Os inimigos dos Fitzgerald dizem o que querem dizer — contrapôs ela.

— Você não entende. — Fitou-a impassivelmente. — Não são os inimigos deles que dizem. São os amigos.

Naquela noite houve uma nevasca. Pela manhã, quando ela foi à sua janela e olhou na direção das montanhas, viu apenas um silêncio branco e desanimador.

O verdadeiro golpe, porém, veio em março. O Canhoneiro finalmente se pusera em marcha para desencadear uma campanha adequada. Corajosamente, fora a Maynooth, o baluarte dos Fitzgerald. Mesmo com sua artilharia, imaginou Cecily, ele seria contido durante semanas por aquela imensa fortaleza. Então, sem muita demora, chegou a notícia.

— Maynooth caiu. — Era seu marido, que subira até o seu refúgio no alto da torre para lhe contar.

— O Canhoneiro a tomou? Tidy sacudiu a cabeça.

— Ele dirá que tomou, é claro. Mas foram alguns homens do próprio Fitzgerald que o traíram e deixaram os ingleses entrar. — Em seguida, desceu a escada novamente.

À noite, após ver o pôr-do-sol, ela não conseguiu dormir e ficou sentada olhando as estrelas cintilantes até elas desfalecerem antes da fria alvorada.

Foi em abril, quando Thomas já era um fugitivo, percorrendo os pântanos, que Cecily foi visitar dame Doyle. Não fora fácil se aproximar da casa do conselheiro que de bom grado ficara ao lado do herético rei Henrique; mas sua esposa era diferente e Cecily confiava nela.

— Não posso continuar assim — disse ela à mulher mais velha. — Não sei o que fazer. — E contou tudo o que se passara entre ela e Henry Tidy. Entretanto, se esperava compaixão, ou que dame Doyle se oferecesse como mediadora, ficou decepcionada.

— Você precisa voltar a viver com o seu marido — disse-lhe abruptamente dame Doyle. — É muito simples. Mesmo — acrescentou um tanto severamente — que você não o ame. — Olhou pensativa para Cecily. — Você conseguiria amá-lo suficiente?

Era isso o que Cecily andava se perguntando.

— O problema — confessou ela — é que eu acho que ele não me ama.

— Tem certeza disso?

— É no que eu acredito.

— Talvez — disse dame Doyle mais amavelmente — você deva dar ao seu marido o benefício da dúvida. De certo modo, casamento é como religião — sugeriu ela delicadamente. — É necessário um ato de fé.

— Não é a mesma coisa, de jeito nenhum — protestou Cecily. — Em relação à verdadeira fé, eu não tenho qualquer dúvida.

— Bem, pelo menos você poderia ter esperança — comentou dame Doyle com um sorriso. E, vendo que Cecily ainda continuava indecisa: — Minha menina, você então terá de recorrer à caridade. Seja amável com ele. Pode ser que as coisas melhorem. Além do mais — acrescentou astutamente —, você mesma disse que as coisas não podem continuar como estão. O fato indiscutível é que você não tem nada a perder.

Então, naquela noite, após colocar as crianças para dormir no aposento principal, Cecily desceu até a oficina e sugeriu que Tidy se juntasse a ela em seu refúgio lá no alto.

 

O velho chegou a Rathconan em um belo dia no fim de agosto. Era um brehon, ele informou a Eva, um homem versado nas antigas leis irlandesas e conselheiro dos Fitzgerald em Munster. Ele viera de parte dos pais de Maurice com uma mensagem que deveria entregar somente ao próprio rapaz e a Sean. Como eles estavam fora, com o rebanho nos pastos da montanha, ela mandou um dos homens chamá-los, enquanto, com a devida demonstração de respeito ao velho, ela arrumou uma jarra com cerveja e uma refeição ligeira no salão, onde ele disse que gostaria de descansar. Até Sean e Maurice chegarem, ela só pôde imaginar qual seria a natureza do assunto do brehon.

Uma possibilidade, claramente, dizia respeito à família Fitzgerald. Após sua guarnição tê-lo traído em Maynooth, Silken Thomas escapara e fora reunir os chefes irlandeses que eram leais à sua família. O Canhoneiro podia manter algumas fortalezas e possuir a maior parte da artilharia, mas tinha apenas poucas centenas de soldados e não estava muito bem de saúde. A tropa inglesa podia ser vencida e destruída.

O Canhoneiro, porém, tinha o poder da Inglaterra atrás de si. Os chefes irlandeses foram cautelosos. Silken Thomas continuava insistindo que os espanhóis viriam; mas semanas se passaram e nem sinal deles. Silken Thomas estava aprendendo a lição mais amarga do poder: amigos são aqueles que pensam que você vencerá. “Pelo menos as pessoas aqui são leais aos Fitzgerald”, observara Eva para Sean certo dia; mas ele lhe dera apenas um olhar de banda. “Alguns dos o’Toole e os nossos próprios parentes o’Byrne estão atualmente em conversações com o Canhoneiro”, disse a ela. “Ele está oferecendo um bom dinheiro.” Por volta do solstício de verão, Silken Thomas andava escondido pelas matas e pelos pântanos como um chefe guerreiro do passado.

Entretanto, ele não era um antigo chefe irlandês; era o jovem e rico lorde Thomas. Se, por um lado, o Canhoneiro era moroso, por outro, o herdeiro Fitzgerald começava a perder o ânimo. E, uma semana atrás, quando um dos seus parentes ingleses, um comandante do rei, o encontrara miseravelmente acampado no Brejo de Allen e lhe prometera sua vida e o perdão, se ele se entregasse, Silken Thomas concordara em fazê-lo. A notícia chegara a Rathconan três dias atrás.

Portanto, agora, embora Eva achasse difícil de acreditar, parecia que o poder da prestigiosa casa de Kildare esmorecia como o som de gaitas-de-fole desaparecendo atrás das montanhas. E se o poder de Kildare desmoronara, o que isso significaria para os Desmond Fitzgerald do sul? Incerteza, na melhor das hipóteses. Será que os Fitzgerald do sul queriam seu filho Maurice de volta para eles em segurança?

Ela esperava que não. Desde a morte de Fintan, o jovem Maurice vinha sendo uma imensa torre de força, ajudando Sean e dando a ela seu sereno afeto. Não se podia, é claro, ficar para sempre com um filho adotivo, mas ela não suportaria logo agora ter de se afastar dele. Ainda não.

Sean e Maurice chegaram em casa de tardinha. Sean cumprimentou respeitosamente o brehon e, após tomar um gole de cerveja, sentou-se na grande cadeira de carvalho do salão, com uma aparência certamente impressionante. Maurice sentou-se calado em um banquinho e fitou o velho com curiosidade. Eva sentou-se num banco. Então, educadamente, Sean pediu ao brehon que dissesse o motivo de sua visita.

— Sou Kieran, filho de Art, brehon hereditário, e vim em nome de lady Fitzgerald, mãe de Maurice Fitzgerald, filho adotivo de Sean o’Byrne — começou, de um modo formal que evidenciava a seriedade de sua missão. — Você poderia confirmar para mim — dirigiu-se a Maurice — que é Maurice Fitzgerald? — Maurice fez que sim. — E que você é o mesmo Sean o’Byrne?

— Sou — disse Sean. — E qual é a sua mensagem?

— Por alguns anos, Sean o’Byrne, esse Maurice tem vivido em sua casa como seu filho adotivo. — Fez uma pausa, olhando Sean, pareceu a Eva, um tanto severamente. — Mas, como também sabe, esse jovem tem uma pretensão maior.

Sean acolheu essa estranha afirmação com uma graciosa inclinação de sua bela cabeça.

— E, de acordo com os antigos costumes da Irlanda — continuou o brehon —, digo-lhe, Sean o’Byrne, que a mãe dele, lady Fitzgerald, está agora reclamando a admissão de sua responsabilidade nessa questão e que tome as providências necessárias.

— Ela me cita?

— Cita.

Maurice ouvia esse diálogo absolutamente atônito. Eva fitava o velho com um ar horrorizado em seu rosto pálido. Somente Sean parecia totalmente à vontade, sentado em sua grande cadeira e assentindo calmamente em reconhecimento ao que o brehon dizia.

— Que responsabilidade? — Interrompeu Eva. — Que providências? — Um pânico súbito acrescentou uma aspereza à sua voz. — O que é isso que está dizendo?

O brehon virou-se na direção dela. Era difícil dizer que expressão havia em seu rosto, que parecia tão velho quanto as colinas.

— Que seu marido, Sean o’Byrne, é o pai desse rapaz. — Indicou Maurice. — Que Lady Fitzgerald o citou. Não sabia disso?

Ela não respondeu. Seu rosto estava totalmente branco; a boca formava um pequeno O, do qual nenhum som emergia. O velho dirigiu-se a Sean.

— Você não nega isso? Agora Sean sorria.

— Não. Ela tem o direito.

Era lei e costume na Irlanda que, se uma mulher citasse um homem como o pai de seu filho e isso fosse reconhecido, então a criança estava habilitada a fazer reivindicações ao pai, inclusive uma parte de sua propriedade depois que este morresse.

— Quando? — Finalmente, Eva encontrou a sua voz. — Quando se soube disso?

Sean não pareceu ter pressa para retrucar, e então o velho respondeu. — Foi admitido particularmente entre as partes, quando Sean o’Byrne foi pedir Maurice como filho adotivo.

— Foi quando Maurice veio para cá. Ele trouxe Maurice porque era seu filho?

— Deve ter sido — disse o brehon. — Na ocasião, o marido de lady Fitzgerald não quis constranger a si mesmo ou à sua esposa; portanto, logo que foi informado do assunto, ele concordou que Maurice ficasse com seu pai como filho adotivo. Entretanto, visto que agora ele não pretende provê-lo, Sean o’Byrne foi citado.

— Você é meu pai? — Foi Maurice quem falou agora. Ele estava muito pálido. Estivera observando Eva e agora se dirigia a Sean.

— Sou. — Sean sorriu. Ele parecia encantado.

— Mas por quê? — A voz de Eva era um grito de dor. Não conseguia evitar aquilo. — Por que, em nome de Deus, trouxe o seu filho com outra mulher para morar em minha casa todos esses anos, sob o meu próprio nariz, e nunca me disse uma palavra sobre quem ele era? Você me viu cuidar dele e amá-lo como se fosse meu. E era tudo uma mentira! Uma mentira para me fazer de tola. Foi por isso que mentiu, Sean? Para me humilhar? Em nome de Deus, quando penso na boa esposa que tenho sido para você, por que faria uma coisa dessas? — Parou, encarando-o. — Você esteve planejando isso durante anos.

E quando ele a olhou com o mais imperturbável dos sorrisos em seu belo rosto, ela viu, também, um leve lampejo de furioso triunfo em seus olhos.

— Foi você quem trouxe o frade aqui e me fez jurar por São Kevin. — Ele fez uma pausa e ela viu seus dedos apertarem-se nos braços da cadeira de carvalho, enquanto o seu corpo se inclinava para adiante do assento. — Foi você quem me humilhou, Eva, na frente do frade e do padre — sua voz erguia-se num acesso de fúria contida — em minha própria casa. —Jogou-se para trás no assento. Então sorriu. — Você fez um bom trabalho, cuidando do meu filho. Isso eu admito.

E, num terrível e abrasador lampejo, Eva compreendeu, como nunca compreendera antes, a vaidade de um homem e o longo e frio alcance de sua vingança. Nesse momento, Maurice deixou correndo o salão.

Sean e Eva comeram em silêncio naquela noite. O brehon, tendo ido visitar o padre Donal, mandara avisar que ficaria com o sacerdote e sua família até sua partida, de manhã bem cedo. Maurice fora para o celeiro, para ficar sozinho. Embora Eva tivesse pedido que ele voltasse para dentro, ele solicitara, como sempre educadamente, permissão para ficar sozinho com os seus pensamentos; e, assim, após dar em seu braço um desajeitado mas afetuoso aperto, Eva deixou-o lá.

Sean já anunciara que subiria novamente para o pasto alto, pela manhã. Os dois ficaram sentados — ele aparentemente satisfeito, ela num pétreo silêncio — até que, finalmente, quando a refeição terminou, ela falou para ele:

— Sabe, eu nunca vou superar isso.

— Vai sim, com o tempo. — Ele segurava uma maçã. Cortou-a em quatro pedaços com sua faca, deixando neles as sementes, e comeu uma quarta parte, engolindo as sementes. — O que está feito está feito — observou. —Você o ama, apesar de tudo. Ele é um ótimo rapaz.

— Ah, sim, é ótimo — concordou ela. — A única coisa que me espanta — acrescentou causticamente — é que alguém tão bom quanto ele possa ser seu filho.

— Você acha? — Ele meneou a cabeça, pensativo. — Bem, parece que, com a mãe dele, pude fazer um filho melhor do que com você. — E apanhou outro pedaço da maçã cortada.

A cabeça dela ergueu-se. A dor daquelas palavras cruéis foi imensa, como se uma adaga a apunhalasse na barriga. Ela pensou em Fintan.

— Você ama alguém? — perguntou ela, por fim. — Além de si mesmo?

— Amo. — Deixou a palavra oscilar como uma isca diante de um peixe no córrego, mas ela teve suficiente bom senso para virar o rosto.

Permaneceram em silêncio durante todo o tempo que ele levou, em sua calculada lentidão, para comer os outros dois quartos da maçã.

— Ele precisa ir — disse ela.

— Você é ótima em expulsar gente da minha casa — comentou ele. — É do meu filho que agora você quer que eu me livre?

— Ele precisa ir, Sean. Você disse que eu o amo, e é verdade. Mas não consigo suportar isso. Ele precisa ir.

— O meu filho ficará na casa do pai dele — retrucou com determinação; e, dito isso, subiu e foi dormir, deixando-a sentada no salão, pensando no que faria. Ficou sentada ali a noite toda.

Ela queria realmente que ele fosse embora? Pensou em tudo o que Maurice significava para ela. Certamente nada daquilo era culpa do rapaz. Como estaria se sentindo agora, ali no celeiro, pensando no engano que todos praticaram contra ele todos aqueles anos. Estaria ela repetindo o que fizera com a mulher de Brennan ao insistir que Maurice fosse embora? Não se tratava da mesma batalha contra a vontade de seu marido? Não era novamente a mesma, só que, agora, ele aumentara a dor e a humilhação? Desta vez, ele até mesmo a fizera amar o rapaz, o motivo de sua dor, e depois envenenara esse amor. Oh, como ele tinha sido esperto. Isso era preciso admitir. Ele a fizera esvaziar uma taça amarga.

E era por isso que não podia mais suportar a presença de Maurice. Ao romper a alvorada, pareceu-lhe que não havia saída.

Poucas horas depois, porém, a decisão foi tirada de suas mãos, pelo próprio Maurice, que, pela primeira vez nos anos em que estivera com eles, calma mas firmemente recusou-se a obedecer ao homem que agora sabia ser seu pai. Disse-lhes que queria ir embora.

— Eu o visitarei sempre, papai — prometeu ele —, e você também, se eu puder — acrescentou para Eva, com um meigo olhar de tristeza naqueles seus maravilhosos olhos, tão estranhos e verde-esmeralda.

— Não precisa ir, Maurice — exclamou ela. — Não é obrigado a ir. Mas sua determinação era total.

— É melhor assim — disse ele.

— Aonde você vai? — perguntou-lhe Sean, um pouco severamente. — Para Munster?

— Para ver a mãe que me traiu e seu marido que não me quer? — Sacudiu tristemente a cabeça. — Se eu vir a minha mãe, talvez eu a amaldiçoe.

— Aonde, então?

— Eu decidi, papai, ir para Dublin.

MacGowan ficou muitíssimo surpreso quando Maurice chegou à sua casa. E ficou ainda mais quando Maurice lhe contou sua história. Não era sempre que o comerciante descobria um segredo há muito tempo guardado, embora íntimo, que ele já não soubesse.

— Está me pedindo para aceitá-lo como aprendiz? — indagou.

— Estou. Estou certo de que meu pai... isto é, Sean o’Byrne... pagará a custa do aprendizado.

— Sem dúvida.

— Se me levar em consideração.

MacGowan levou, mas não precisou de muito tempo para isso. Era óbvio para ele que, com a sua experiência de vida com os o’Byrne e sua educação e modos corteses, o rapaz seria o comerciante respeitado ideal, bem-vindo fora do Pale e também nos melhores círculos de Dublin. Poderia ir longe, imaginou MacGowan, mais longe ainda do que ele.

— Há um problema — disse ele.

— Qual?

— Seu nome.

Maurice Fitzgerald. Que nome para se ter. Seria uma ousadia, até mesmo um descaramento, um jovem comerciante ter um nome aristocrata; e, em vista do atual clima político em Dublin, talvez isso fosse desaconselhável.

— Atualmente, o nome Fitzgerald poderia colocá-lo em perigo — alertou.

— Não é mais meu nome — retrucou Maurice com um sorriso amarelo. — Esquece que eu sou um o’Byrne?

— É mesmo. — MacGowan assentiu pensativamente. — É mesmo. — Fez uma pausa. — Isso também, em Dublin, pode ser um problema. — Sorriu tristemente. — É irlandês demais.

Em vista da personalidade e dos modos do rapaz, provavelmente, com o tempo, ele superaria qualquer preconceito. Todavia, anunciar-se como filho de Sean o’Byrne — o amigo irlandês de Fitzgerald, que tentara raptar a esposa do conselheiro Doyle — não era, frisou delicadamente para Maurice, a melhor maneira de começar. — E um dia você vai querer a liberdade — previu ele. — Pode estar certo disso.

— Nesse caso, para ser sincero com você, eu me sinto mais como órfão do que como filho de qualquer homem, e pretendo ter vida própria. Ficaria bastante feliz em adotar um outro nome. Eu realmente não me importo. — O jovem encarou MacGowan por alguns momentos e, então, sorriu. — O seu nome, por exemplo. MacGowan em inglês seria Smith, o ferreiro.

— Seria. Bem próximo.

— Então, se me aceitar como aprendiz, deixe-me ser Maurice Smith. Isso resolveria?

— Resolveria perfeitamente — disse MacGowan com uma risada. — Você será Maurice Smith.

E, assim, no início do outono de 1535, enquanto SilkenThomas se encontrava no perigoso mar em direção a Londres, um descendente dos principescos o’Byrne e dos nobres Walsh e, embora não soubesse, de Deirdre e de Conal e do próprio velho Fergus, foi viver em Dublin com o nome inglês de Maurice Smith.

Uma semana depois, para sua grande surpresa, Maurice recebeu uma visita. Era seu pai.

Sean demorara um pouco para encontrar seu filho. Ele deduzira que Maurice teria ido procurar MacGowan, mas quando se aproximou uma primeira vez da casa do comerciante e perguntou se havia um jovem de nome o’Byrne morando lá, os vizinhos lhe disseram que não. Ele não pareceu particularmente aborrecido com a decisão de Maurice de não usar o seu nome verdadeiro.

— Você viveu tantos anos usando um outro nome que creio que isso se tornou um hábito — observou Sean com um sorriso.

Ele não se demorou, mas trouxera consigo uma caixa quadrada.

— Você resolveu não viver em Rathconan — disse ele —, mas é melhor que fique com alguma coisa para se lembrar de sua família.

Depois partiu.

Após o pai ter ido embora, Maurice abriu a caixa. Para sua surpresa e encanto, descobriu que continha a taça de caveira do velho Fergus.

No Parlamento irlandês que se reuniu de maio de 1536 até dezembro do ano seguinte, nenhum membro foi mais assíduo em seus esforços para agradar o rei do que William Walsh, o advogado.

Atuando sob a orientação do conselho do rei em Londres, o Parlamento irlandês aprovou medidas para centralizar o governo da Irlanda na Inglaterra, aumentar impostos e, claro, para reconhecer o rei Henrique, e não o papa, como o chefe supremo da Igreja Irlandesa, ao mesmo tempo que permitia seu divórcio e validava seu novo casamento. E, se William Walsh e seus colegas membros do Parlamento gostavam ou não dessas medidas, eles as aprovavam porque tinham de aprovar.

A queda dos Fitzgerald foi terrível. Silken Thomas, após, como prometido, ter sido recebido educadamente na corte inglesa, fora subitamente transferido para a Torre de Londres. Em seguida, seus cinco tios, inclusive os dois que tinham ficado do lado da Inglaterra, foram levados para Londres e enviados também para a Torre. “Vamos acusar todos eles de traição”, contou Walsh soturnamente à esposa, ao retornar certo dia do Parlamento. No meio daquele inverno, os seis Fitzgerald foram levados ao patíbulo público de Londres, em Tyburn, e brutalmente executados. Foi cruel, violou as garantias concedidas, tudo legalizado pelo Parlamento: típico de Henrique.

Enquanto isso, setenta e cinco dos principais homens da Irlanda que se aliaram a Thomas foram sentenciados à morte, o que causou uma onda de pânico na comunidade. E aos membros menos ilustres da pequena nobreza, como William Walsh, que haviam ficado do lado dos Fitzgerald, foi dito que, dependendo da vontade real, talvez obtivessem o perdão em troca de uma multa. “Graças a Deus”, desabafou Walsh, “que tenho testemunhas para provar que fiz aquele maldito juramento sob coação. Mas qual será a multa, ainda não sei, e metade do Parlamento está em situação semelhante.” Henrique manteve-os à espera até terem aprovado todo o seu conjunto de leis. “Ele nos manteve”, confessou Walsh, “exatamente onde queria.”

Alguma oposição até que houve, de aristocratas que não estavam sob ameaça. Quando Henrique exigiu um novo e pesado imposto sobre a renda, esses homens leais conseguiram convencê-lo a ser mais leniente. “Pela graça de Deus”, informou Walsh à sua família, “o imposto será pago apenas pelo clero.” Essa, porém, foi uma das poucas concessões que Henrique fez; e, para que ninguém duvidasse de sua determinação de ser o senhor absoluto da Irlanda, seus representantes continuaram pilhando o país, com exceção do enclave inglês, para subjugar os territórios e caçar implacavelmente algum membro remanescente da família Kildare capaz de causar problemas.

Mesmo assim, Margaret ficou bastante surpresa por não haver mais protestos pelo fato de Henrique assumir o controle da Igreja e fazer ataques ao papa. “Alguns membros do clero têm protestado”, disse-lhe William. “Entretanto, algumas das vozes mais influentes estiveram tão envolvidas comThomas que ou foram privadas de seus benefícios ou fugiram para além-mar. O fato é que”, acrescentou, “embora Henrique tenha se colocado no lugar do papa—o que é uma afronta, claro —, há poucos sinais de que ele pretenda realizar quaisquer mudanças nos rituais e nas doutrinas da fé”. Um novo arcebispo chamado Browne apareceu em Dublin, do qual se dizia ter inclinação protestante, mas, até então, não dissera ou fizera qualquer coisa ofensiva. “A verdadeira questão é o que Henrique pretende fazer com os mosteiros.”

Na Inglaterra, o grande processo já começara. Com a justificativa de uma reforma religiosa, o rei Tudor, que sempre gastava mais do que ganhava, planejava apropriar-se de todas as terras férteis e bens dos mosteiros medievais da Inglaterra e vendê-los. Será que ele faria o mesmo na Irlanda?

“Um dos efeitos disso na Inglaterra”, disse William a seu filho Richard, certo dia, durante a refeição da família, “é que cria uma imensa demanda por advogados. Cada mosteiro quer ser legalmente representado e defender sua causa”. Trabalhando com o pai, Richard já se fizera benquisto por um grande número de instituições monásticas. “Para advogados como nós, Richard”, continuou seu pai, “os honorários podem ser lucrativos.”

Embora não dissesse, Margaret ficou secretamente chocada com a atitude dele. Fossem quais fossem seus defeitos, certamente os antigos mosteiros da Irlanda não mereciam um melhor tratamento do que aquele? Quando uma medida para fechar apenas treze dos mosteiros irlandeses foi proposta ao Parlamento, ela ficou feliz em saber que, finalmente, tinha havido alguma oposição. E quando William, que estivera fora vários dias nos debates, voltou certa tarde para casa, ela o interrogou ansiosamente:

— Eu tenho certeza de que, no fim das contas, o nosso povo não apoiará isso — disse ela.

Mas William apenas deu uma risadinha.

— Isso não é tudo — adiantou-lhe. — O problema é quem vai ficar com a terra. O medo é de que ela vá para os homens do rei e os Butler. Alguns de seus amigos, a pequena nobreza de Fingal, vão a Henrique exigir sua parte. Doyle e seus colegas conselheiros já tiveram a promessa de um dos mosteiros para recompensar a cidade pela oposição a lorde Thomas.

— Você faz parecer como se tudo fosse uma questão de dinheiro — contestou ela.

— Receio — suspirou o advogado — que sim.

Naquela época, a preocupação com dinheiro não poderia estar longe da mente de Walsh. Não apenas a questão de seu perdão real e da multa eram um assunto há muitos meses sem decisão, como também havia o empréstimo feito por Joan Doyle, que continuava sem ser pago. “Contudo”, comentara em várias ocasiões com Margaret, “essas dificuldades também têm sido uma espécie de bênção”. Isso por causa do efeito que tiveram no jovem Richard.

Se Richard Walsh custara à família mais do que os pais podiam ganhar, enquanto viveu como um jovem aristocrata em Londres, ele agora tinha consciência plena desse fato. Se não perdera nada de seu encanto juvenil, se, com o cabelo ruivo da mãe, tinha a mais admirável beleza, ele também era um bom advogado e estava determinado, como qualquer jovem poderia estar, a pagar à família o que acreditava ser sua dívida e, depois, fazer fortuna para subir na vida. Lado a lado com o pai, ele trabalhava com afinco. Fazia qualquer viagem que achasse que poderia ser cansativa para seu pai; se William, ao final do dia, precisasse estudar antigos documentos, ele ficava acordado a noite toda, estudando-os, para que o pai, quando acordasse, encontrasse o trabalho pronto. Procurava novos negócios, substituía William quando este estava ocupado no Parlamento, aprendia tudo o que podia sobre o direito irlandês.

“Às vezes, preciso dizer-lhe para parar”, dizia o pai orgulhosamente. “Mas ele é jovem e forte, e todo esse esforço não lhe fará mal.”

A despeito de todos esses esforços, entretanto, os Walsh estavam longe de pagar somente os juros do empréstimo de Joan Doyle, e colocaram um pouco de lado a multa real.

Se antes não estivera a par da transação, o conselheiro agora estava perfeitamente ciente do empréstimo feito pela esposa. Walsh soube disso certa manhã, quando, a caminho de uma sessão parlamentar, ele encontrou Doyle. Walsh soubera no dia anterior que Mary, a filha do conselheiro, acabara de receber a cidadania e, portanto, educadamente, deu-lhe os parabéns pelo acontecimento, os quais Doyle aceitou amavelmente. Então, chegando bem perto de Walsh, o conselheiro murmurou cordialmente:

— Eis o sujeito que pegou uma fortuna emprestada com a minha mulher. — Vendo Walsh estremecer, ele sorriu. — Ela me contou tudo a respeito. Saiba que não fiz a menor objeção.

Era bastante fácil para Doyle ser otimista, pensou Walsh com um pouco de inveja. Como um conselheiro leal que se opusera a Thomas, com uma esposa ligada aos Butler e que até mesmo fora atacada por o’Byrne, o rico comerciante tinha alta cotação com o rei e provavelmente lucraria com qualquer propriedade monástica ou cargos reais que pudessem surgir.

— Posso pagar os juros — retrucou William. — Mas pagar o principal vai levar tempo. Também tenho que levar em conta a multa real.

— Dizem que seu filho Richard está ajudando-o.

— Está — acrescentou Walsh com um leve enrubescer de orgulho, e falou-lhe dos esforços do rapaz.

— Quanto ao seu empréstimo — observou Doyle depois que Walsh terminou —, eu soube assim que ela o fez, como acontece com qualquer tomador. Você é mais confiável do que a maioria. — Fez uma pausa. — Quanto à multa, terei prazer em falar a seu favor com os funcionários da corte. Atualmente, tenho algum crédito com eles. — E, uma semana depois, encontrando-o novamente, Doyle disse-lhe: — Sua multa será apenas um pagamento simbólico. Eles sabem que não teve culpa.

Quando William relatou essa conversa para Margaret, ela saudou a boa notícia com um sorriso. Entretanto, continuou tremendo por dentro. Nunca se ouvira qualquer menção ao seu envolvimento com a tentativa de rapto, e portanto ela supôs que o’Byrne mantivera silêncio a respeito, ou que, se tinha contado a MacGowan, o comerciante havia, por seus próprios motivos, decidido nada falar. Mas ele poderia mudar de idéia, ou o’Byrne poderia falar. E não havia um dia em que, em sua imaginação, ela não se visse confrontada pela lembrança do terrível e frio olho acusador de MacGowan, ou o eco das últimas palavras que dissera a o’Byrne quando este lhe perguntara o que queria que fizesse com Joan Doyle, se não conseguisse completar o seqüestro. “Mate-a.”

Foi no outono de 1537, com o Parlamento ainda em franca deliberação, que Richard Walsh foi à casa do conselheiro Doyle fazer um pagamento à sua esposa.

Ele pretendia permanecer ali apenas o tempo suficiente para ela conferir a quantia, pois, como estivera ocupado naquela manhã investigando alguns registros na Igreja de Cristo, ele se encontrava num estado um tanto empoeirado. Sentiu-se, portanto, um pouco constrangido, ao ser encaminhado à sala de visitas, onde estavam vários membros da família Doyle. Além de dame Doyle, havia o conselheiro, resplandecente em sua túnica vermelha e dourada, um de seus filhos, a filha Mary e uma irmã mais nova. Eles podiam, pensou, ser confundidos com a família de um rico comerciante ou cortesão da elegante Londres, ao passo que ele, agora, parecia um escriturário empoeirado. Foi um pouco humilhante, mas não pôde ser evitado. Todos os olharam com curiosidade.

— Não pretendia me intrometer em sua família — desculpou-se educadamente com dame Doyle. — Vim apenas deixar o que lhe é devido — e entregou-lhe um pequeno pacote de moedas. — Posso voltar em outra ocasião.

— De modo algum. — Joan Doyle segurou-o com um sorriso. — Não preciso conferir — frisou ela.

— Eu soube que é você quem cuida de tudo enquanto seu pai e eu nos ocupamos com essa sessão do Parlamento — comentou Doyle, com um amigável aceno de cabeça; e Richard sentiu-se grato pela insinuação de que o rico conselheiro e seu pai eram colegas. — Ele fala muito bem de você — acrescentou.

Pareceu a Richard que o filho do conselheiro, não obstante aquelas palavras incentivadoras, olhava-o sem muito apreço; a filha Mary também o observava, mas ele não sabia dizer o que ela pensava. Foi a filha mais nova — devia ter treze anos, supôs — quem deu uma risadinha. Ele olhou-a interrogativamente.

— Você está todo sujo. — E ela apontou.

Ele não tinha visto a enorme marca de sujeira que ficara em uma de suas mangas. Também notou que o punho estava puído. Ele poderia ter enrubescido. Mas, felizmente, os anos que passou em Londres ensinaram-no a ser elegante e agora vieram em sua ajuda. Soltou uma gargalhada.

— E estou mesmo. Não havia notado. — Olhou de relance para Doyle. — É isso que dá trabalhar com os registros da Igreja de Cristo. Espero — dirigiu-se a Joan Doyle — que não tenha deixado cair poeira por toda a sua casa.

— Não acho que tenha.

— Eu diria, Richard, que precisa de roupas novas — disse o conselheiro em um tom paternal.

— Eu sei. — Richard respondeu-lhe francamente. — É verdade. Suponho que, enquanto os nossos negócios não estiverem em melhor estado, colocarei isso de lado o máximo que puder. — Virou-se para a menina que dera a risadinha e deu-lhe um sorriso encantador. — E quando eu conseguir uma bela túnica nova, você pode ter certeza de que virei aqui imediatamente para lhe mostrar.

Doyle concordou com a cabeça, mas, aparentemente entediado com o assunto de roupas, interrompeu-o.

— Pretende fazer fortuna, Richard?

— Pretendo. Se puder.

— Um advogado como você pode ganhar muito bem em Dublin — observou Doyle —, porém há muito mais dinheiro no comércio. O conhecimento das leis pode ser muito útil no comércio.

— Eu sei e já levei isso em conta, mas não tenho meios de começar nesse ramo. Preciso trabalhar com os recursos de que disponho.

Doyle assentiu brevemente e a conversa chegou ao fim. Richard fez uma educada reverência para todos e virou-se para ir embora. Assim que chegou à porta, ouviu Joan Doyle.

— Você tem belos cabelos. — disse ela.

Ele já estava lá fora, na Skinners Row, quando Mary Doyle falou. Ela era uma moça muito bonita, com a aparência hispânica da mãe e os firmes e inteligentes olhos do pai.

— Ele cursou Inns of Court? — dirigiu-se ao pai.

— Cursou.

— Ele é um Walsh de Carrickmines?

— Sim, de um ramo. — O pai olhou para ela. — Por quê? Ela retribuiu o olhar, com os mesmos olhos.

— Apenas curiosidade.

Foi no início do ano de 1538 que MacGowan, conversando certa tarde com Doyle, ficou um tanto surpreso quando o rico comerciante se virou para ele e perguntou o que achava do jovem Richard Walsh.

— Acho que minha filha Mary está interessada nele — confessou.

MacGowan meditou. Pensou em tudo o que sabia sobre as partes envolvidas. Pensou no rapto de o’Byrne e na estranha figura que fora a Rathconan. o’Byrne se recusara a dizer-lhe quem era. Se o’Byrne não queria lhe dizer, avaliou MacGowan, não diria a ninguém. Mas, na ocasião, ele já sabia. A idéia lhe ocorrera assim que começara o ataque. Além de algumas pessoas próximas a Silken Thomas, ninguém mais poderia ter tido conhecimento da viagem de Joan Doyle. E quando, ao voltar do velório do pobre Fintan, soube que Margaret saíra a cavalo, bem cedo, naquele dia fatal, ele teve a certeza. Não sabia ao certo por que ela fizera tal coisa, mas só podia ter sido a mulher de Walsh. E ele não vira tudo em seu rosto, quando a tinha encarado: medo, culpa, terror?

Podia provar isso? Serviria a algum propósito, se pudesse? Faria algum bem ao seu amigo Doyle saber tal coisa? Não, não acreditava que faria. Havia alguns segredos que eram tão sombrios que era melhor que ficassem descansando, sob as colinas. Que Margaret Walsh o temesse e se sentisse grata pelo seu silêncio. Esse sempre fora o seu poder: saber de segredos.

— Nunca ouvi nada contra o jovem Richard Walsh — respondeu com rematada verdade. — Todos parecem gostar dele. — Olhou curiosamente para Doyle. — Pensei que você estivesse atrás de um nobre jovem e rico. Uma moça como Mary... ora, ela tem até mesmo cidadania... seria um partido perfeito para qualquer família de Fingal.

Doyle resmungou.

— Pensei nisso também. O problema — e aqui o comerciante suspirou com a experiência de uma vida — é que nobres jovens e ricos geralmente não querem trabalhar.

— Ah, isso é verdade — concordou MacGowan calmamente.

Quando, no verão de 1538, seu filho Richard pediu-lhe que fosse visitar Joan Doyle, Margaret experimentou um momento de pânico. Entrar na mansão de Dublin, ver-se cara a cara com a mulher com cuja filha Richard estava para se casar — e ela ainda não faz idéia, pensou, que eu tentei matá-la. Como poderia sentar-se lá e olhar a mulher nos olhos?

— Ela vive perguntando quando você irá visitá-la — informou Richard. — Ela vai achar uma descortesia, se não for.

E, assim, tremendo por dentro, num quente dia de verão, Margaret Walsh se viu passar pela pesada porta da rua, de cujo contorno ela se lembrava muito bem, e se encontrar, momentos depois, confortavelmente sentada na sala de visitas, sozinha com a rica mulherzinha que achava que ela era sua amiga — e que a deixou ainda mais desconcertada, após abraçá-la calorosamente e declarar com o mais feliz dos sorrisos:

— Vou lhe contar um segredo. Eu sempre achei que isso aconteceria.

— É mesmo? — Margaret apenas conseguiu encará-la, confusa.

— Você se lembra de quando me ofereceu abrigo por causa da tempestade e ele conversou conosco? Na ocasião, eu pensei: esse é o menino perfeito para Mary. E veja no grande homem que ele se tornou.

— Assim espero. Obrigada — gaguejou a pobre Margaret.

Houve uma pausa e, sem saber como preencher o breve silêncio, Margaret arriscou:

— Você foi muito generosa em nos fazer o empréstimo. — Dava graças a Deus por, pelo menos, a multa real ter sido toda paga recentemente, de modo que, William lhe dissera, ele logo conseguiria começar a fazer os pagamentos à Sra. Doyle. À menção do empréstimo, Joan sorriu positivamente.

— Foi um prazer. Como disse ao seu marido, “Se isso ajudar aquele adorável rapaz, é tudo que preciso saber”. — Suspirou. — Ele tem o cabelo maravilhoso igual ao seu.

— Ah — Margaret assentiu lentamente. — Tem mesmo.

— E como os nossos maridos estão no Parlamento... o meu marido, como sabe, tem o seu em alta estima... isso uniu ainda mais as nossas duas famílias.

Por um momento, Margaret pensou se diria que foi uma pena os dois terem estado em lados opostos durante a revolta de Silken Thomas e, então, achou melhor não. Uma questão, porém, surgiu em sua mente.

— Houve uma ocasião — ela observava atentamente a mulher de Doyle — em que meu marido tentou entrar para o Parlamento, mas lhe foi negado.

— Ah. — Joan Doyle pareceu pensativa. — Meu marido me contou. — Fez uma pausa breve. — Ele me disse para não comentar a respeito, mas já faz tanto tempo. Sabe o que aconteceu? Algum intrometido de Munster, um espião do rei, colocou o seu marido sob suspeita. O meu marido apelou a favor dele, como sabe. Ele ficou furioso. Disse que a história toda era um absurdo e que se responsabilizava pelo seu marido. Mas não houve nada que pudesse fazer. — Suspirou.

— Esses homens e suas suspeitas intermináveis. Assuntos de estado, em sua maioria, são bobagens. É isso o que eu penso.

Margaret descobria tanta coisa, por mais que isso fosse desconfortável para o juízo pregresso que fazia da mulher, que não pôde evitar de tocar em outro assunto.

— Estou igualmente surpresa por permitir que sua filha se case com o meu filho, e não com um rapaz de uma família importante. — Fez uma pausa. — Como os Talbot, de Malahide.

Joan Doyle olhou-a curiosamente.

— Por que os mencionou? — Pensou por um momento. — Você me disse que não gostava deles, não foi? Mas nunca soube por quê.

— Eles não foram muito bons para mim, quando estive lá — disse ela. — Pelo menos, a mãe não foi. Eu era apenas uma menina.

— Deve ter sido a velha lady Talbot. —Joan Doyle fitou por alguns momentos a parede atrás de Margaret. — Eu nunca a vi pessoalmente. Ela morreu antes de eu ir pela primeira vez a Malahide. Eu não sabia que você a tinha conhecido. O resto deles eram todos muito gentis. — Em seguida, sorriu. — Sabe, minha filha Mary está apaixonadíssima pelo seu filho. Você estava apaixonada, quando se casaram?

— Sim — disse Margaret. — Creio que sim.

— É melhor estar apaixonado — suspirou Joan Doyle. — Conheço muitos casais que não estão. — Então deu um sorriso satisfeito. — Eu mesma sou muito felizarda. Passei a amar John Doyle muito lentamente, mas estava apaixonada quando me casei e, desde então, tenho estado apaixonada por ele cada dia de minha vida. — Deu a Margaret um olhar de grande doçura. — Imagine só isso. Apaixonada cada dia por mais de vinte anos. — E não poderia haver dúvida, Margaret se deu conta, qualquer possível sombra de dúvida, de que cada palavra que Joan Doyle pronunciara, desde que estavam sentadas ali juntas, fora verdadeira. Os Doyle nunca denunciaram Walsh, Joan nada sabia sobre a humilhação que Margaret sofrera dos Talbot, e ela nunca fora infiel ao seu marido. Restava apenas uma coisa para descobrir.

— Diga-me — perguntou Margaret —, você sabia que a sua família e a minha tiveram uma desavença, muito tempo atrás? — E contou-lhe a história sobre a disputada herança.

Não havia dúvida — Joan Doyle não era uma atriz — seu ar de espanto e horror não era, não podia ser dissimulado. Ela nunca ouvira falar da herança em sua vida.

— Isso é terrível — bradou. — Quer dizer que ficamos com o dinheiro do seu pai?

— Bem, meu pai certamente acreditava que os Butler o conseguiram injustamente — corrigiu Margaret. — Ele podia — achou que devia acrescentar — estar errado.

— Mas isso deve ter-lhe causado uma terrível dor. — Novamente, Joan pareceu pensativa e, então, teve uma idéia. — Pelo menos — sugeriu —, podemos cancelar o empréstimo.

— Meu bom Deus — exclamou Margaret, agora totalmente confusa. — Não sei o que dizer.

Joan Doyle, porém, mal pareceu tê-la ouvido. Parecia perdida em uma contemplação de si mesma. Finalmente, estendeu a mão e tocou no braço de Margaret.

— Era para você ter me odiado — disse ela com um sorriso. — Foi muita bondade sua não ter me odiado.

— Oh — fez Margaret, sem ação. — Eu jamais faria isso.

Num dia frio e cruel, na metade daquele inverno, a cidade de Dublin testemunhou a mais extraordinária das cenas, que atraiu a curiosidade de toda a região.

Quando Cecily Tidy soube o que estava acontecendo, foi rapidamente do portão ocidental em direção à Skinners Row. Ali, nos amplos arredores da catedral da Igreja de Cristo, e observada por uma multidão que incluía o conselheiro Doyle, ardia uma fogueira. Não era para aquecer a gente pobre daquela área, a quem os monges, diariamente, davam comida e abrigo. Nem fazia parte de alguma celebração de solstício de inverno. Fora montada e acesa por ordem de ninguém menos que George Browne, o arcebispo de Dublin, que, apenas minutos antes da chegada de Cecily, aparecera do lado de fora para se certificar de que as chamas estivessem bem vivas.

O motivo da fogueira do arcebispo era queimar alguns dos maiores tesouros da Irlanda.

Quando Cecily chegou, duas pequenas carretas, acompanhadas por meia dúzia de mercenários escoceses, tinham acabado de estacionar perto do fogo. Os dois oficiais de justiça, que agora começavam a descarregá-las, tinham acabado de retornar de uma volta por algumas das igrejas suburbanas. Um deles carregava martelo e formão. Seu colega, naquele momento, com a ajuda de um dos soldados, transportava para o fogo uma pequena mas um tanto pesada estátua de madeira da Virgem Maria. O crime da estátua, para merecer tamanho castigo, foi terem rezado para ela.

— Meu Deus — murmurou Cecily. — Temos todos de virar protestantes?

As idéias do arcebispo Browne de Dublin nem sempre foram fáceis de se acompanhar. Indicado pelo rei Henrique, ele nada fizera no seu primeiro ano em Dublin. Sua principal contribuição nos últimos dezoito meses fora insistir que seu clero conduzisse orações para o rei Henrique como chefe supremo da Igreja. Ele era, afinal de contas, o homem indicado pelo rei, e o Parlamento irlandês aprovara a necessária lei naquele sentido.

— No entanto, o fato de essa lei ter sido aprovada — informou ao bispo inglês, certo dia, calmamente, Doyle — não significa necessariamente que vá acontecer alguma coisa.

— Eu lhe asseguro, senhor, que, quando a vontade do rei for conhecida e seu Parlamento tiver proclamado o seu desejo, não haverá resistência de qualquer espécie — retrucara Browne. — Ordens devem ser obedecidas.

— Isso pode acontecer na Inglaterra — rebatera educadamente o conselheiro —, mas, na Irlanda, vai descobrir que as coisas se organizam de modo diferente. Acima de tudo — alertou —, não esqueça de que a pequena nobreza do Pale é muito devotada aos antigos costumes de sua fé.

E foi o que o novo arcebispo descobriu. A pequena nobreza, sob a ameaça de multas, talvez até tivesse aprovado a lei; o clero podia até mesmo ter feito um juramento superficial ao rei. Mas, na prática, na maior parte do tempo, ninguém ligava para a oração real. Quando o bispo protestou, “Minhas ordens não são obedecidas”, até mesmo um colega bispo, que conhecia melhor a região, aconselhou-o sabiamente, “Se eu fosse você, arcebispo, não me preocuparia muito com isso”. Mas o arcebispo Browne preocupou-se. Pregava a supremacia em cada igreja que visitava. E comerciantes como Doyle, ou homens da nobreza como William Walsh, ouviam mas não se impressionavam. Ele os achava preguiçosos ou desonrosos. Ainda não lhe ocorrera que eles, que não eram nem uma coisa nem outra, o achavam um imbecil. E, talvez por causa de sua crescente frustração, o arcebispo reformador, naquele inverno, dedicara sua atenção a uma nova campanha.

Se havia um aspecto da fé católica que enfurecia os protestantes era a prática, como estes a encaravam, de paganismo na antiga Igreja. Dias santos eram celebrados, diziam eles, como festivais pagãos; relíquias dos santos, verdadeiras ou falsas, eram tratadas como talismãs; e rezava-se às estátuas de santos como a ídolos pagãos. Essas críticas não eram novas: já haviam sido feitas antes dentro da própria Igreja católica; mas o peso da tradição era grande e, mesmo católicos criteriosos, católicos reformadores, talvez concluíssem que, através dessas celebrações e dessas venerações, conduzidas adequadamente, a fé poderia ser reforçada.

Que o rei Henrique VIII da Inglaterra era um perfeito católico, não havia dúvida: pois ele mesmo disse isso. No entanto, já que sua Igreja se separara da do Santo Padre, ela agora devia se mostrar de alguma forma melhor. A Igreja Anglicana, afirmava-se, era o catolicismo purificado e reformado. E qual foi a natureza dessa reforma? A verdade era que ninguém, muito menos o próprio Henrique, fazia muito idéia. Ao leigo comum foi dito para ser mais devoto, e foram colocadas Bíblias em todas as igrejas para eles lerem. Poucos bons católicos acharam isso censurável. A prática de indulgências — uma temporada no purgatório, mediante pagamento à Igreja — era claramente um abuso e devia ser proibida. E havia a questão dos ritos pagãos, ídolos e relíquias. Eram ou não aceitáveis? Clérigos, cujas idéias reformadoras tinham um tempero protestante, estavam certos de que se tratava de abusos. O rei, cuja opinião parecia mudar com o vento, não lhes dissera que estavam errados; e, desse modo, o arcebispo Browne podia acreditar que não fazia apenas o desejo de Deus, porém, mais importante, o do rei, quando anunciou. “Precisamos purificar a Igreja de todas essas superstições papistas.”

Havia uma coleção e tanto de relíquias nas carretas. Algumas, como os fragmentos da cruz, que se encontravam por toda a cristandade, talvez não fossem genuínas. Um objeto, porém, pertencente a um santo irlandês, tinha toda a probabilidade de ter sido preservado através dos séculos para devota veneração. Após colocarem a estátua no fogo, os dois oficiais voltaram sua atenção a elas. Na carreta ao lado da pira, entre relicários e caixas incrustadas de jóias, havia uma caveira com a borda dourada, uma espécie de vasilha. Um soldado inglês a tirara da casa de um insolente aprendiz de fulgurantes olhos verdes. O soldado não sabia exatamente o que era, mas suas ordens eram para queimar qualquer coisa que cheirasse a paganismo, passado idolatra, portanto, jogou-a junto com o resto da pilhagem. De todo modo, o ouro podia valer alguma coisa. O aprendiz de olhos verdes protestou veementemente, alegando que a caveira era herança de família e tentou brigar pela sua posse até o momento em que o soldado sacou a espada, quando o rapaz, relutantemente, deixou-o passar.

Cecily olhava horrorizada. Se fosse necessário algo para provar a verdadeira natureza do rei herético e de seus criados, certamente era aquilo. Ela sentiu uma onda de fúria diante daquela impiedade, e de desespero, ao pensar em tão terrível perda. Fitou a multidão. Ninguém ia fazer nada? Havia muito tempo ela desistira de esperar muita coisa dos dublinenses, mas era difícil de acreditar que ninguém ao menos dizia uma só palavra.

E ela mesma, o que estava fazendo?

Três anos atrás, ela, pelo menos, teria gritado com os oficiais e os teria chamado de heréticos. Alegremente, teria deixado que a prendessem. Mas, desde o fracasso da revolta de Silken Thomas e a volta de seu marido para a sua família na torre, algo mudara em Cecily Tidy. Talvez estivesse mais velha, ou seus filhos estivessem, ou agora houvesse mais um a caminho; talvez não quisesse aborrecer o marido trabalhador ou que ela simplesmente não conseguisse mais enfrentar a tensão de uma discussão com ele. Fosse qual fosse o motivo, embora suas convicções religiosas não tivessem mudado nem um pouco, algo tinha morrido em Cecily Tidy. Mesmo diante da destruição de tudo que era sagrado, ela não faria escândalo. Não naquele dia.

Então ela avistou o conselheiro Doyle. Ele estava no meio da multidão com seu genro Richard Walsh, observando os procedimentos com grande desgosto. No passado, os dois podiam ter tido suas diferenças, mas pelo menos ele era uma figura de autoridade. E não podia aprovar o que acontecia agora. Ela foi até lá.

— Oh, conselheiro Doyle — disse ela. — Isto é um terrível sacrilégio. Nada pode ser feito?

Ela mal sabia o que esperava que ele dissesse; mas, para sua grande surpresa, ao baixar a vista para ela, pareceu a Cecily que, naqueles olhos, ela viu uma expressão de vergonha.

— Venha — pediu ele calmamente e, segurando-a pelo braço, conduziu-a na direção dos dois oficiais de justiça, com Richard alguns passos atrás deles. Os mercenários escoceses tentaram intervir, mas um dos oficiais, ao reconhecer Doyle, cumprimentou-o:

— Bom dia, conselheiro — e os soldados recuaram.

— O que têm aí? — perguntou Doyle.

— Relíquias — respondeu inexpressivamente um dos oficiais. No momento, seu colega cinzelava um pequeno relicário de ouro incrustado de pedras preciosas. — Alguns são difíceis de abrir — comentou com o outro e, após ter sucesso em abrir a tampa, jogou no fogo uma mecha de cabelo santo, que chamejou instantaneamente.

—A urna? — indagou Doyle, apontando para o relicário de ouro que acabara de ser aberto tão rudemente. — É ouro para o rei. — Mesmo enquanto dizia isso, Cecily observou que o sujeito com o cinzel acabara de arrancar uma das pedras da tampa e, calmamente, a deixou cair em uma bolsinha de couro que pendia de seu cinturão.

— A Igreja precisa ser purificada — comentou o escrivão com o conselheiro. E, se Cecily ficou estarrecida com a frieza da insolência dele, não precisava ter ficado, pois o mesmo acontecia em paróquias por toda a Inglaterra. Embora muitos protestantes honestos desejassem purificar sua religião para uma comunhão mais próxima com Deus, a Reforma se tornava uma das maiores campanhas de pilhagem pública e privada que já se vira em muitos séculos.

— Eles profanam os santuários, Cecily—comentou baixinho Doyle. — Mas, como vê, é o ouro que querem.

E uma lívida Cecily, pela primeira vez, teve um novo e mais correto discernimento da verdadeira natureza do rei Henrique VIII e seus seguidores — não tanto como heréticos, por mais que o fossem, mas como reles ladrões.

— O rei veio roubar a Irlanda — vociferou ela para o escrivão. Mas ele apenas riu.

— Nada disso. — Abriu um sorriso. — Ele roubará qualquer um.

Neste exato momento, seu amigo começara a abrir outra caixinha de prata. Essa abriu facilmente, pois continha uma outra caixa menor, enegrecida.

— O que é isso? — perguntou Doyle.

— O dedo de São Kevin. De Glendalough — disse o escrivão.

— Dê para mim — pediu Doyle, apontando para a caixa preta.

— Há uma pedra preciosa nela — objetou o segundo escrivão, apanhando o seu cinzel.

— Basta — disse Doyle, num tom de voz com tanta autoridade que o escrivão a entregou rapidamente.

— Não posso fazer mais pelo senhor,.conselheiro — disse ele, um pouco nervoso.

Doyle ergueu a pequena relíquia e fitou-a com reverência.

— São Kevin — falou baixinho. — Dizem que isto tem um grande poder.

— Vai guardá-la em segurança? — quis saber Cecily ansiosamente.

Doyle fez uma pausa antes de responder. Seu rosto moreno parecia contemplar algo estranhamente distante. Então, para sua grande surpresa, ele virou-se e, baixando a vista para ela, colocou a pequena relíquia em suas mãos.

— Não — disse ele. — Você vai guardar. Não conheço ninguém em Dublin capaz de cuidar melhor dela. Agora, vá depressa e esconda-a.

Cecily acabara de atravessar a rua e havia parado para olhar uma última vez a enorme fogueira, quando viu MacGowan chegar.

Doyle e Richard Walsh o cumprimentaram. Ela viu MacGowan contemplar as chamas. Em seguida, ele gesticulou para a catedral. Ela viu Doyle e Richard se inclinarem na direção dele. MacGowan parecia dizer-lhes algo com urgência na voz.

Nesse momento, um soldado, despreocupadamente, jogou uma velha caveira amarelada, despojada de sua borda de ouro, nas chamas.

Duas horas depois, a notícia começou a se espalhar por Dublin. A princípio, parecia tão chocante que as pessoas não conseguiam acreditar, mas, à tardinha, não houve mais dúvida.

O Bachall Iosa, uma das mais sagradas relíquias e a mais impressionante de toda a Irlanda — o grande relicário incrustado de pedras preciosas, o Báculo do próprio São Patrício — havia sumido.

Alguns disseram que fora jogado na fogueira defronte à Igreja de Cristo. Outros, que o velho cajado fora queimado em uma fogueira diferente, em outra parte. O arcebispo, diante de um coro horrorizado, negou que o cajado sagrado tivesse sido escolhido para destruição; mas quando as pessoas, inglesas ou irlandesas, dentro ou fora do Pale, levavam em consideração o desprezo do arcebispo pelo que era estimado, e o ouro e as pedras que guarneciam o BachallIosa, parecia não haver o menor motivo para acreditarem nele.

Nunca mais, em todos os anos que se seguiram, o Báculo de São Patrício foi visto novamente.

Alguns, é verdade, sugeriram que ele, juntamente com outras relíquias, levou um sumiço e foi colocado em segurança — e a esperança era de que tivesse sido assim. Ninguém, porém, parecia saber. Ninguém do clero jamais admitiu isso. Nenhum dos conselheiros de Dublin, nem mesmo John Doyle, fazia qualquer idéia. E se, o que era bastante improvável, MacGowan sabia de alguma coisa, ele permaneceu, como sempre, mudo como um túmulo.

 

                                                                                Edward Rutherfurd

 

 

                      

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