Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS QUARENTA E CINCO
2º Volume / Segunda Parte
A ÁGUA
Ao passo que os viajantes iam progredindo em sua jornada, a região apresentava um aspecto estranho. Parecia que a gente do campo tinha desertado como a das vilas e aldeias. Com efeito, não se viam vacas a pastar nos prados, nem uma única cabra trepando pelas encostas dos montes ou empinando-se junto das sebes para alcançar os ramos verdes das silvas e das vinhas bravas; não apareciam rebanhos, nem pastores, nem arados, nem lavradores, nem bufarinheiros transitando com os fardos às costas, nem um único carreiro entoando os roucos estribilhos dos homens do Norte, e caminhando ao lado do pesado carro com o comprido chicote na mão. Por todo o espaço que a vista alcançava naquelas planícies magníficas, sobre os outeiros, nas campinas, e por entre os bosques, não se divisava um só vulto humano, nem se ouvia uma única voz. Era o silêncio da natureza na véspera do dia da criação do homem e dos animais.
Ia anoitecendo.
Henrique, pasmado do que via, e fazendo neste sentimento causa comum com os viajantes que o precediam, pedia ao ar, às árvores, aos horizontes longínquos e às nuvens mesmo, uma explicação de tão sinistro fenómeno.
As únicas personagens que animavam aquela triste solidão eram Rémy e a sua companheira, alumiados pelo clarão avermelhado do pôr do Sol, e debruçando-se sobre os cavalos para escutarem a fim de conseguirem ouvir algum rumor; e mais atrás, a uns cem passos, a figura de Henrique, conservando sempre a mesma distância e a mesma atitude.
Chegou a noite, fria e sombria, e um vento noroeste, que de repente se levantou, fez ressoar por aqueles desertos os seus roncos, ainda mais medonhos do que o silêncio. Rémy deteve a sua companheira, agarrando-lhe nas rédeas do cavalo.
— Minha Senhora — disse —, sabe muito bem que não sou medroso, e que nem para salvar a minha vida seria capaz de recuar; pois sinto esta noite que se passa em mim alguma coisa muito singular; um torpor estranho prende-me as faculdades, paralisa-as, e diz-me que não vá para diante. Minha Senhora, chame se quiser a isto terror, timidez, ou pânico mesmo; porém, minha Senhora, confesso-lhe que, pela primeira vez na minha vida... sinto medo.
A senhora voltou-se para ele; não tinha reparado provavelmente em todos aqueles presságios ameaçadores; não tinha visto talvez coisa alguma até ali.
— Ele ainda nos segue? — perguntou ela.
— Oh! já não é dele que se trata — respondeu Rémy —, peço-lhe que não pense mais nele; ele está só, e com um homem só ainda eu posso lutar. Não; o perigo que eu receio, ou, para melhor dizer, que eu sinto e adivinho mais pelo instinto do que pela razão; o perigo que se aproxima, que nos ameaça, que nos cerca já talvez, é de outra natureza; é-me desconhecido, e eis o motivo por que lhe chamo um perigo. A senhora abanou a cabeça.
— Olhe, minha Senhora — disse Rémy —, vê além aqueles salgueiros que o vento agita?
— Vejo, sim.
— Junto daquelas árvores diviso uma casinha; caminhemos para lá; se for habitada, é mais uma razão para ali pedirmos agasalho; se o não for, tomemos posse dela, minha Senhora: rogo-lhe que não rejeite a minha proposta.
A emoção de Rémy, a sua voz trémula e a irresistível persuasão das suas palavras, fizeram com que a senhora se resolvesse a anuir ao que ele pedia. Voltou por conseguinte a cabeça do cavalo na direcção que Rémy lhe havia indicado.
Passados alguns minutos, estavam os dois viajantes batendo à porta da tal casa, que era efectivamente situada junto de um grupo de salgueiros. Um ribeiro, afluente do Nethe, riacho que ficava distante dali um quarto de légua, banhava as raízes dos salgueiros com as suas sussurrantes águas; por detrás da casa, que era construída de tijolos e coberta de telha, havia um jardim pequeno cercado de uma sebe verde. Tudo aquilo estava deserto, solitário, abandonado. Ninguém respondeu às repetidas argoladas que os viajantes bateram à porta. Rémy não hesitou: puxou pela faca, cortou um ramo de salgueiro, introduziu-o entre a porta e a fechadura e carregou sobre a lingueta. A porta abriu-se. Rémy entrou vivamente. Havia uma hora que mostrava em todas as suas acções a actividade de um homem acometido de um ataque de febre. A fechadura, tosco produto da indústria de um ferreiro da vizinhança, tinha cedido quase sem resistência.
Rémy empurrou precipitadamente a sua companheira para dentro da casa, fechou logo a porta, correu um ferrolho maciço, e quando se viu assim entrincheirado respirou como se tivesse quebrado novo alento. Não satisfeito de ter recolhido a sua ama, foi conduzi-la para o único quarto que havia no primeiro andar, onde achou, às apalpadelas, um leito, uma cadeira e uma mesa.
Tendo ficado descansado a respeito dela, desceu ao andar térreo e, abrindo uma greta da portada de uma janela de grades, pôs-se a espreitar os movimentos do conde, o qual, tendo-os visto entrar em casa, se havia aproximado dela no mesmo instante.
As reflexões que Henrique fazia eram tristes, e estavam em harmonia com as de Rémy.
«Não há dúvida nenhuma, dizia ele consigo, que esta região está ameaçada de algum perigo que nos é desconhecido, mas de que os habitantes são sabedores; as terras têm sido assoladas pela guerra; os Franceses tomaram Antuérpia, ou estão para a tomar: a gente do campo está aterrada e busca refúgio nas cidades.»
Esta explicação, se bem que especiosa, não satisfazia o mancebo. E demais, despertava-lhe 'deias de outra natureza.
«Que virão aqui fazer Rémy e a sua ama? perguntou ele a si próprio. Qual será a imperiosa necessidade que os obriga a arrostar tão terrível perigo? Oh! hei-de sabê-lo, porque está finalmente chegada a ocasião de eu falar a essa mulher, e de pôr termo para sempre às minhas dúvidas. Ainda não se apresentou tão oportuno ensejo.»
E caminhou direito à casa. Mas de repente deteve-se.
«Não, não, disse ele com uma daquelas súbitas hesitações tão usuais nos corações dos namorados; não: hei-de ser mártir até ao fim. E demais, não é ela acaso senhora das suas acções, e sabe porventura a história que a seu respeito me contou aquele miserável Rémy? Oh! é contra ele, contra ele só que me devo voltar, pois me asseverava que ela não tinha amor a pessoa a'guma! Mas sejamos justos, ainda assim: como poderia eu exigir que aquele homem, que não me conhece, atraiçoasse a ama divulgando-me os seus segredos? Não! não! a minha desgraça é certa, e o pior é que só eu sou culpado do que me está sucedendo, e a ninguém posso acusar. Falta-me unicamente presenciar a completa revelação da verdade; ver chegar aquela mulher ao acampamento, deitar os braços ao pescoço de algum oficial e dizer-lhe: "Vê o que tenho sofrido por tua causa, e avalia quanto te amo!" Pois bem: hei-de segui-la até lá; hei-de ver isso que tremo de ver, e depois morrerei de dor; assim pouparei trabalho aos mosquetes e à artilharia. Ah! meu Deus, acrescentava Henrique, dando largas à mágoa que lhe oprimia a alma tão religiosa e tão amante, não procurei por minhas mãos esta angústia suprema; caminhava risonho para uma morte reflectida, tranquila, gloriosa; queria expirar num campo de batalha com um nome nos lábios, que era o Vosso, meu Deus! e com outro no coração, que era o dela! Não o quiseste assim, destinaste-me a uma morte desesperada, cheia de fel e de tortura: aceito-a, já que assim o queres, Senhor!»
E logo, lembrando-se daqueles dias de esperança e daquelas noites de sofrimento que tinha passado em frente da casa inexorável da Rua de Bussy, parecia-lhe que, apesar de tudo, a não ser a dúvida que lhe devorava o coração, a sua posição actual era menos cruel do que em Paris, porque a via de vez em quando, ouvia-lhe o som da voz, que nunca tinha ouvido, e, caminhando assim em seu seguimento, sentia às vezes pelo rosto, de envolta com a brisa que passava, o perfume dos aromas penetrantes que emanavam da mulher que se ama. E prosseguia dizendo, com os olhos fitos na casinha onde ela estava encerrada: «Enquanto não chega essa morte que desejo, e podendo eu tomar para abrigo estas árvores que sombreiam a casa onde ela descansa, para que me hei-de queixar, se lhe posso ouvir a voz quando ela falar, e ver-lhe o rosto se ela chegar à janela?... Oh! não, não me queixo, Senhor, meu Deus! ainda me considero muito feliz.»
Dizendo isto, Henrique deitou-se debaixo dos salgueiros cujos ramos cobriam a casa, escutando com um sentimento de melancolia que não é possível descrever o murmúrio da água que corria ao lado. De repente estremeceu: trouxe-lhe o vento o som da artilharia que troava da banda do norte.
«Ah! disse consigo, cheguei tarde: estão atacando Antuérpia.»
O primeiro movimento de Henrique foi para se erguer, tornar a montar a cavalo e correr, guiado pelos tiros, para o sítio onde se pelejava; mas para isso tinha de abandonar a dama incógnita, e iria morrer sem esclarecer as suas dúvidas. Se não a houvesse encontrado no caminho, Henrique teria seguido ao seu destino sem olhar para trás, sem suspirar pelo tempo passado, sem um pesar pelo futuro; mas as incertezas que aquele encontro lhe tinha despertado no espírito haviam trazido consigo a irresolução. Ficou pois.
Permaneceu deitado pelo espaço de duas horas, escutando as detonações sucessivas que lhe feriam o ouvido, e cismando na causa daqueles estrondos irregulares e mais fortes que de quando em quando se ouviam acima dos outros. Longe estava de supor que aquelas detonações fossem causadas pelos navios do irmão que iam pelos ares.
Afinal, por volta das duas horas, foi diminuindo aquele estampido, e às duas e meia nada se ouvia já.
O ribombo da artilharia não fora ouvido, segundo parecia, no interior da casa, ou, se lá chegara, os seus habitantes provisórios tinham-se conservado insensíveis a ele.
«A estas horas, pensava Henrique, Antuérpia está tomada, e meu irmão é vencedor; mas depois de Antuérpia, será preciso tomar Gand; depois de Gand, Bruges, e não me faltarão ocasiões para morrer gloriosamente. Mas antes de morrer, hei-de saber o que vai procurar esta mulher ao acampamento dos franceses.
E como, em seguida a todas aquelas comoções que haviam agitado o ar, a natureza tinha tornado a serenar, Joyeuse, embuçando-se no capote, voltou à mesma imobilidade.
Entregava-se àquela espécie de sonolência a que a vontade do homem não pode resistir para o fim da noite, quando o cavalo, que estava pastando distante dele alguns passos, arrebitou as orelhas e relinchou tristemente.
Henrique abriu os olhos.
O animal, firmando-se sobre as patas, com a cabeça voltada em direcção diferente da do corpo, aspirava a aragem que, tendo virado com a aproximação da manhã, soprava da banda do sudoeste.
— Que tens tu, meu bom cavalo? — disse o mancebo, levantando-se e acariciando com a mão o pescoço do animal. — Viste passar alguma lontra que te assustou, ou estás com saudades do agasalho de uma boa estrebaria?
O cavalo, como se entendesse a interpelação e quisesse responder-lhe, pulou vivamente na direcção de Lier, e fitando os olhos e dilatando as ventas, pareceu escutar.
— Ah... ah!... — murmurou Henrique — pelo que vejo o caso é mais sério; será alguma alcateia de lobos que seguem o exército para devorar os cadáveres?...
O cavalo relinchou, abaixou a cabeça, e depois, com um movimento rápido como um raio, deitou a fugir para a banda do oeste. Mas, quando ia a fugir, passou ao alcance da mão do dono, que o deteve pela rédea ao passar, e fê-lo parar. Henrique, sem largar a rédea, deitou-lhe a mão à crina e saltou para a sela. Apenas cavalgou, como tinha bom calção, assenhoreou-se do animal e conteve-o. Porém, ao cabo de um instante, Henrique começou a ouvir o mesmo que o cavalo tinha ouvido, e com grande admiração sua principiou a sentir, ele também, o mesmo terror que o animal havia sentido.
Um longo sussurro, semelhante a um vento estridente e grave ao mesmo tempo, levantava-se dos diversos pontos de um semicírculo que parecia estender-se do sul ao norte; e umas baforadas de vento fresco e como carregado de partículas de água, interrompiam por intervalos aquele sussurro, que então se assemelhava ao estrondo da enchente da maré numa praia semeada de rochedos.
«Que é isto!? disse consigo Henrique; será o vento?... Não pode ser, pois é o vento que me traz este ruído e os dois sons ouvem-se distintamente. Um exército em marcha talvez... Mas não (e inclinou o ouvido para o chão): se fosse, ouvir-se-ia a cadência dos passos, o retinir das armaduras e o ruído das vozes. Será a crepitação de algum incêndio? Também não pode ser, pois não se apercebe nenhum clarão no horizonte e até parece que vai escurecendo o céu...»
O estrondo aumentou e tornou-se distinto; era como o rodar contínuo, pesado e atroador, de milhares de peças de artilharia desfilando a distância sobre uma calçada sonora. Henrique persuadiu-se por um instante que tinha acertado com o motivo de tão grande estrépito, atribuindo-o à causa que acabámos de dizer, porém logo pensou:
«É impossível! não há para aquela banda da estrada nenhuma calçada, e no exército todo não existem mil peças de artilharia...»
O rumor continuava a aproximar-se. Henrique meteu o cavalo a galope e trepou a um ponto mais elevado.
— Que vejo!?... — exclamou ele quando chegou ao cume do outeiro.
Aquilo que então via, já o cavalo tinha visto primeiro que ele, pois só conseguira fazê-lo avançar naquela direcção a poder de lhe cravar as esporas; e quando chegaram ao alto da colina, empinou-se quase a ponto de derrubar o cavaleiro.
O que eles estavam vendo, tanto o cavalo como o cavaleiro, era, no horizonte, uma faixa esbranquiçada, imensa e infinita, semelhante a um nível, a qual ia invadindo a planície, em forma de um grande círculo, e avançando para o mar. E aquela faixa ia alargando gradualmente aos olhos de Henrique, como uma peça de fazenda que se desenrola.
O mancebo observava ainda indeciso tão estranho fenómeno, quando, ao olhar para o sítio que acabava de deixar, reparou que se ia alargando a campina, que o riacho trasbordava e começava a submergir nas suas águas, que cresciam sem motivo visível os canaviais que, havia um quarto de hora, lhe guarneciam as duas margens. A água subia pouco a pouco para o lado da casa.
— Desgraçado, louco que eu sou! — exclamou Henrique — ainda não tinha adivinhado o que era!... É a água! é a água! Os Flamengos destruíram os diques!
Henrique correu imediatamente para a casinha e bateu à porta como um furioso.
— Abra! abra! — gritou ele. Ninguém respondeu.
— Abra, Rémy! — gritou o mancebo com terror — abra! sou eu, Henrique de Bouchage,
abra!
— Oh! não é preciso que me diga o seu nome, Senhor Conde — respondeu Rémy da parte de dentro da casa —, há muito que o conheci. Mas sempre o quero advertir de uma coisa, e é que se arrombar essa porta, encontrar-me-á a mim, logo por detrás dela, com uma pistola em cada mão.
— Mas tu não percebes o que eu digo, desgraçado?! — gritou Henrique com desesperação; — a água! a água! a água!...
— Deixe-se de contos, de pretextos e de subtilezas, que lhe ficam mal, Senhor Conde! Digo-lhe que só passando por cima do meu corpo entrará aqui.
— Pois então passarei por cima de ti! — exclamou Henrique — mas hei-de entrar! Em nome do Céu, em nome de Deus, pela tua salvação e pela da tua ama! queres abrir a porta?
— Não!
Henrique procurou em redor de si, e avistou uma daquelas pedras homéricas, como as que Ájax arremessava aos seus inimigos; agarrou na pedra com ambas as mãos, levantou-a acima da cabeça e, aproximando-se da casa, atirou-a de encontro à porta. A porta fez-se em estilhas. No mesmo instante zuniu uma bala ao ouvido de Henrique, mas não o feriu. Henrique correu para Rémy. Rémy disparou a segunda pistola, mas só ardeu a escorva.
— Tu nãoivês que não tenho armas, insensato?! — exclamou Henrique. — Não continues a defender-te de um homem que não te agride; olha, somente, olha!
E arrastou-o consigo para junto de uma janela, que arrombou com um murro.
— Então!? — disse ele — vês agora, vês!?...
E mostrou-lhe com o dedo o imenso lençol de água que alvejava no horizonte e avançava com um estrondo igual ao de um exército gigantesco.
— A água! — murmurou Rémy.
— Sim, a água! a água! — exclamou Henrique — vai-nos cercando... Olha aqui para baixo: o rio trasborda e cresce; daqui a cinco minutos já não poderemos sair de onde estamos.
— Minha Senhora! — gritou Rémy — minha Senhora!
— Nada de gritos, nada de assustar, Rémy! Apronta os cavalos; depressa, depressa! «Ele ama-a, pensou Rémy: há-de salvá-la.»
Rémy correu para a cavalariça. Henrique subiu a escada. A dama, ouvindo os gritos de Rémy, tinha aberto a porta. O mancebo tomou-a ao colo, como se fora uma criança. Ela, porém, julgando que era traição ou violência, estrebuchava com toda a força e agarrava-se aos tabiques.
— Por favor!... — gritou Henrique — diga-lhe que a quero salvar!
Rémy ouviu a voz do mancebo, no momento em que voltava com os dois cavalos.
— Sim! sim! — bradou ele — sim, minha Senhora, ele quer salvá-la, ou, mais exacto: há-de salvá-la. Venha! venha!
A FUGA
Henrique, sem perder tempo em tranquilizar a dama, levou-a para fora de casa e quis sentá-la sobre o seu próprio cavalo. Ela, porém, com um movimento de invencível repugnância, escorregou daquele anel vivo que a segurava e foi aparada por Rémy, que a colocou sobre o cavalo que estava pronto para ela.
— Oh... que faz minha senhora!? — disse Henrique — como é possível que assim se engane a respeito dos meus sentimentos!? Certifico-lhe que o que eu tenho em vista não é gozar da ventura de a enlaçar em meus braços, ou de a apertar de encontro ao meu peito, se bem que, para obter semelhante favor, eu não hesitaria em sacrificar a própria vida; só desejo fugir daqui com a senhora, mais rápido que um pássaro. Olhe! olhe! vê como vão fugindo os passarinhos?...
Com efeito, à claridade do crepúsculo que ia começando a aparecer, viam-se nuvens de passarinhos e de pombos, que atravessavam o espaço com voo rápido e espavorido; e no meio da escuridão aqueles voos ruidosos, que as rajadas de vento favoreciam, feriam os ouvidos com um som sinistro e deslumbravam a vista.
A dama não respondeu; mas, como já estava montada, tocou o cavalo para diante sem voltar a cabeça. Porém, o seu cavalo e o de Rémy, que tinham andado dois dias sem interrupção, estavam cansados. Henrique voltava-se para trás a cada instante, e vendo que eles não podiam acompanhá-lo:
— Olhe só, minha Senhora — dizia ele — a dianteira que o meu cavalo leva aos seus, e isto apesar de eu o segurar com ambas as mãos; por favor, minha Senhora! enquanto ainda é tempo, já não lhe peço para a levar em meus braços, mas somente lhe rogo que monte no meu cavalo e me deixe o seu.
— Muito agradecida, Senhor — respondia a dama, com voz sempre tranquila, e sem que o seu gesto acusasse a menor alteração.
— Mas... minha Senhora! — exclamava Henrique, olhando para trás com desesperação — a água não tarda a alcançar-nos! ouve? ouve?...
Ouvia-se efectivamente naquele mesmo instante um horrível estalido; era o dique de uma aldeia que acabava de ser invadida pela inundação; madeiros, espeques, terraplenos, tudo tinha cedido; uma linha dúplice de estacaria tinha sido destruída com um estampido que parecia um trovão, e a água, bramindo por cima de todas aquelas ruínas, começava a alagar um bosque de carvalhos, cujos ramos se agitavam e rangiam como se por entre eles estivesse desfilando uma legião de demónios.
As árvores, arrancadas pelas raízes, iam bater de encontro às estacas; as madeiras das casas que tinham abatido flutuavam ao cimo da água; os gritos dos homens e os relinchos dos cavalos, que arrastava consigo a inundação, formavam um concerto de sons tão estranhos e lúgubres que o arrepio que agitava Henrique comunicou-se ao impassível e indomável coração da dama incógnita.
Tocou o cavalo, e este, como se sentisse também quanto era iminente o perigo, fez novos esforços para lhe fugir. Porém a água ia crescendo sempre; era evidente que primeiro que decorressem dez minutos já teria alcançado os viajantes. Henrique parava a cada momento para esperar pelos companheiros, e gritava-lhes:
— Mais depressa, minha Senhora! por favor, mais depressa! A água cresce! a água vem chegando! ela aí está!
Chegava, com efeito, irada, espumante, e fazendo redemoinhos; arrebatou como se fora uma pena a casa onde Rémy havia recolhido a sua ama, levantou como uma palha o barquinho que estava preso às margens do riacho e, majestosa, imensa, desenrolando os seus anéis como os de uma serpente, ergueu-se, semelhante a um muro, na retaguarda dos cavalos de Rémy e da dama. Henrique soltou um grito de terror e correu para a água, como se tencionasse detê-la.
— Bem vê que está perdida — bradou ele com desespero. — Vamos, minha Senhora, ainda está a tempo talvez, apeie-se e venha comigo, venha!
— Não senhor — disse ela.
— Mas repare que daqui a um minuto já será tarde! olhe, olhe!
A dama voltou a cabeça; a água estava a uns cinquenta passos apenas.
— Cumpra-se o meu destino! — disse ela. — O senhor fuja! fuja!
O cavalo de Rémy, já esfalfado, foi-se abaixo das mãos, e não pôde tornar a levantar-se, apesar de todos os esforços do cavaleiro.
— Salve-a! salve-a! ainda mesmo contra a sua vontade — exclamou Rémy.
E a este tempo, enquanto ele procurava soltar os pés dos estribos, a água, semelhante a um monumento gigantesco aluindo-se, cobriu a cabeça do fiel servidor.
A ama, quando viu tal, soltou um grito terrível e deitou-se do cavalo abaixo, resolvida a morrer com Rémy.
Porém Henrique, adivinhando-lhe a intenção, tinha-se apeado ao mesmo tempo que ela; agarrou-a, enlaçando-lhe a cintura com o braço direito; e tornando a montar a cavalo, partiu
como um raio.
— Rémy! Rémy! — gritava a dama, estendendo os braços para onde ele tinha ficado —
Rémy!
Respondeu-lhe um grito. Rémy tinha vindo ao cimo da água, e com a esperança indomável, se bem que insensata, que acompanha sempre o moribundo até ao fim da agonia, nadava apoiando-se numa trave. Passou por ele o seu cavalo, batendo na água desesperada-mente com as patas, enquanto a água alcançava o cavalo da ama, e adiante, a uns vinte passos quando muito, Henrique e a sua companheira não corriam mas voavam sobre o terceiro cavalo, que o medo fazia fugir como um louco. Rémy já não tinha pena de deixar a vida, por isso que morria com a esperança de que aquela a quem unicamente estimava havia de ser
salva.
— Adeus, minha Senhora, adeus! — gritou ele — eu vou adiante, para dizer àquele que está esperando por nós que ainda vive para...
Rémy não acabou a frase: passou-lhe por cima da cabeça uma montanha de água, que ainda chegou a molhar os pés do cavalo de Henrique.
— Rémy! Rémy! — gritou a dama — Rémy, quero morrer contigo! Deixe-me, Senhor, quero esperar por ele! quero apear-me! em nome de Deus, deixe-me!
Estas palavras foram proferidas com tamanha energia e de um modo tão terminante, que o mancebo abriu os braços e deixou-a escorregar para o chão, dizendo:
— Muito bem, minha Senhora! aqui morreremos os três; agradeço-lhe a concessão desse favor, que eu nunca me teria atrevido a esperar.
E ao tempo que dizia estas palavras, sopeando o cavalo, alcançou-o a água, assim como tinha alcançado a Rémy; mas, por um derradeiro esforço de amor, deteve pelo braço a pobre senhora, que já se tinha apeado. A água cercou-os, e foi-os arrastando durante alguns segundos de envolta com outros destroços.
Era um espectáculo sublime ver a presença de espírito daquele homem, tão moço e tão delicado, cujo meio corpo se conservava fora da água, amparando com a mão a sua companheira, e guiando com os joelhos os esforços do agonizante cavalo para se utilizar dele até ao último arranco.
Houve um instante de luta terrível, durante o qual a dama, amparada pela mão direita de Henrique, continuava a ter a cabeça acima do nível da água, enquanto Henrique, com a esquerda, desviava as madeiras flutuantes e os cadáveres, para evitar que o choque lhe submergisse ou esmagasse o cavalo.
Um dos corpos que boiava na água, ao passar junto deles, gritou, ou antes, suspirou:
— Adeus! minha Senhora, adeus!
— Céus! — exclamou Henrique — é Rémy! Pois também te hei-de salvar a ti!
E sem calcular o perigo que podia provir daquele aumento de peso, agarrou na manga de Rémy, puxou-o para cima da coxa esquerda e fê-lo respirar livremente.
Porém, ao mesmo tempo, o cavalo, não podendo já com aquele tríplice peso, enterrava-se até ao pescoço, e depois até aos olhos; por fim foi-se abaixo das pernas e desapareceu de todo.
— Não há remédio senão morrer! — murmurou Henrique. — Oh! meu Deus! aí tens a minha vida, sempre foi pura! Minha Senhora — prosseguiu ele —, receba a minha alma, era toda sua!
A este tempo Henrique sentiu que Rémy lhe ia escapando da mão; não tentou mais detê-lo, pois era trabalho baldado.
Somente tratou de suster a dama acima da água, a fim de que ela ao menos fosse a última a morrer, e para que ele mesmo pudesse expirar com a consolação de ter feito quanto em si cabia para a livrar da morte.
De repente, e quando já não pensava senão em morrer, ouviu a pouca distância um grito de alegria. Voltou-se e viu que Rémy acabava de lançar mão de um barquinho.
Era aquele barquinho da casa que a água havia arrebatado, conforme dissemos: a corrente arrastara-o consigo, e Rémy, tendo cobrado alento, graças ao auxílio que recebera de Henrique, e vendo-o passar ao seu alcance, apartara-se do grupo e, nadando para ele, agarrara-o.
Os dois remos estavam presos às bordas, e um croque estava arrumado no fundo. Estendeu o croque a Henrique, que se agarrou a ele, levando consigo a dama, que levantou acima dos ombros e entregou nas mãos de Rémy. Em seguida, agarrando-se também à borda do barquinho, trepou para junto deles.
Despontavam então os primeiros raios do dia, mostrando as planícies inundadas, e o barquinho, que se balanceava como um átomo sobre aquele oceano coberto de destroços.
A uns duzentos passos, pouco mais ou menos, para a esquerda, elevava-se uma colina, a qual, completamente cercada de água, parecia uma ilha no meio do mar.
Henrique agarrou nos remos e remou para a banda da colina, ajudado pela corrente, que Para lá os impelia.
Rémy pegou no croque e, de pé na proa, foi afastando as vigas e os madeiros que vinham de encontro ao barco.
Graças à força de Henrique, e à destreza de Rémy, aportaram, ou, para melhor dizer, encalharam na colina.
Rémy saltou em terra, e agarrando na corrente de ferro do barco puxou-o para si. Henrique dirigiu-se para a dama, a fim de lhe pegar ao colo, porém ela estendeu a mão e, levantando-se sozinha, saltou em terra.
Henrique soltou um suspiro; teve um instante a ideia de se arremessar ao abismo para morrer à sua vista; porém um sentimento irresistível prendia-o à vida, enquanto via aquela mulher, de quem tinha desejado a presença durante tanto tempo, sem nunca poder obtê-la.
Ajudou a puxar o barquinho para terra, e foi sentar-se a dez passos da dama e de Rémy, lívido, com o fato a escorrer-lhe água, o que era para ele mais doloroso do que se fosse sangue.
Estavam salvos do perigo mais iminente, que era a água; a inundação, por muito grande que fosse, nunca poderia subir até à altura da colina. Puderam então contemplar a cena que se lhes desenrolava aos pés; aquela temível cólera das ondas, à qual só é superior a infinita cólera de Deus. Henrique via passar aquela água rápida e enraivecida, que acarretava consigo montões de cadáveres franceses, e juntamente com eles os cavalos e as armas.
Rémy sentia uma forte dor no ombro; tinha batido de encontro a um madeiro flutuante no momento em que o cavalo se fora abaixo. Quanto à dama, essa nenhum incómodo sofria, a não ser o frio. Henrique ficou sobremaneira admirado de ver que aqueles dois entes, que tão milagrosamente haviam escapado à morte, só a ele agradeciam, e não dirigiam uma única acção de graças a Deus, que havia sido o primeiro autor da sua salvação.
A dama foi a primeira que se levantou; notou ela que lá para o fundo do horizonte, da banda do ocidente, brilhava por entre o nevoeiro uma coisa que parecia o clarão de um incêndio. É escusado dizer que esse clarão vinha de um ponto elevado a que não tinha podido chegar a inundação.
Tanto quanto se podia calcular no meio daquele frio crepúsculo que havia sucedido à escuridão da noite, o clarão parecia distante uma légua pouco mais ou menos.
Rémy foi à extremidade da colina que se prolongava para a parte de onde vinha o fogo, e voltou a dizer que lhe parecia que a uns mil passos, aproximadamente, do sítio onde tinham aportado, começava uma espécie de calçada que seguia em linha recta para onde parecia ser o fogo.
Rémy persuadia-se que existia ali uma calçada, ou um caminho qualquer, por ver duas fileiras de árvores, directas e regulares. Henrique fez também as suas observações, as quais concordaram com as de Rémy; porém naquelas circunstâncias faltavam os dados necessários para poder calcular com exactidão.
A água, correndo no sentido do declive da planície, impelira-os para a esquerda do caminho que seguiam, fazendo-os descrever um ângulo considerável; aquela derivação, junta com a corrida insensata dos cavalos, tirara-lhes toda a possibilidade de se orientarem.
Verdade é que vinha amanhecendo; mas a atmosfera estava sombria e carregada de nuvens; com tempo sereno e céu claro ter-se-ia avistado o campanário de Malinas, de onde apenas estariam distantes duas léguas, quando muito.
— Então, Senhor Conde? — perguntou Rémy — que julga que será aquele clarão?
— O clarão, que, na sua opinião, indica um abrigo hospitaleiro, assusta-me a mim e causa-me desconfiança.
— Por que motivo?
— Rémy — disse Henrique baixando a voz —, olhe para aqueles cadáveres. São todos franceses; nem um só é flamengo; anunciam-nos um grande desastre: os diques foram abertos para acabar de destruir o exército francês, se é que foi vencido, ou para neutralizar a sua vitória, se é que triunfou. Quem sabe se o clarão não é de fogos acesos por inimigos, e se não serão apenas um ardil destinado a atrair os fugitivos...
— Contudo — disse Rémy —, não podemos conservar-nos aqui; o frio e a fome acabariam por matar minha ama.
— Tem razão, Rémy — disse o conde —, fique aqui com a senhora; eu vou até à calçada e voltarei a trazer-lhes notícias.
— Não senhor — disse a dama —, não irá expor-se sozinho: salvámo-nos juntos, juntos devemos morrer. Rémy, dá-me o teu braço, estou pronta a acompanhar-te.
Cada uma das palavras daquela singela criatura tinha um tão irresistível acento de autoridade que ninguém se lembrava de lhe resistir um só instante. Henrique inclinou-se e foi andando adiante.
A inundação tinha serenado; a calçada que vinha pegar com a colina formava uma espécie de enseada onde a água adormecia. Meteram-se os três no barquinho e empurraram-no de novo para o meio dos destroços e dos cadáveres flutuantes.
Daí a um quarto de hora conseguiram chegar à calçada. Prenderam a corrente do barco ao tronco de uma árvore, saltaram outra vez em terra, foram seguindo pela calçada adiante durante uma hora pouco mais ou menos e chegaram a um grupo de cabanas flamengas, no centro do qual havia um largo cercado de tílias, onde estavam reunidos, em roda de uma grande fogueira, duzentos ou trezentos soldados, por cima de cujas cabeças ondeava uma bandeira francesa.
De repente a sentinela, colocada a uns cem passos do bivaque, avivou o morrão do mosquete, bradando:
— Quem vive?
— França! — respondeu de Bouchage. — E logo, voltando-se para Diana — Agora, minha Senhora — disse ele —, está salva: aquele estandarte é o da cavalaria de Aunis, corpo de fidalgos no qual servem alguns amigos meus.
Alguns soldados, ouvindo o grito da sentinela e a resposta do conde, correram com efeito ao encontro dos recém-chegados, os quais foram recebidos com as maiores demonstrações de regozijo, não somente por terem escapado ao desastre, como também por serem compatriotas. Henrique deu-se a conhecer pessoalmente dizendo de quem era irmão.
Às multiplicadas perguntas que lhe fizeram, respondeu narrando o modo milagroso por que tinha escapado à morte juntamente com os seus companheiros. Rémy e a sua ama sentaram-se silenciosamente a um canto; Henrique foi buscá-los convidando-os a chegarem-se para a fogueira. Ambos estavam ainda a escorrer água.
— Minha Senhora — disse ele —, há-de ser tratada aqui com tanto respeito como se estivesse em sua própria casa; tomei a liberdade de dizer que era uma parenta minha, desculpe-me.
E sem dar tempo a que lhe agradecessem os dois entes a quem tinha salvado a vida, Henrique afastou-se para ir ter com os oficiais que estavam à sua espera. Rémy e Diana trocaram um olhar, que o conde teria por certo considerado como o melhor agradecimento ao seu valor e delicadeza se o tivesse visto.
A cavalaria de Aunis, à qual os nossos fugitivos acabavam de pedir agasalho, tinha retirado em boa ordem depois da derrota e do grito de salve-se quem puder, dado pelos chefes.
Quando se dá o caso de homogeneidade de posição, identidade de sentimentos e hábito de viver juntos, não é raro que haja espontaneidade na execução, depois da unidade no pensamento; era o que naquela mesma noite tinha sucedido com a cavalaria de Aunis.
Quando viram que eram abandonados pelos chefes, e que os outros regimentos tratavam de se pôr a salvo conforme podiam, olharam uns para os outros, uniram-se mais, em vez de romperem a forma, meteram os cavalos a galope e marcharam sobre Bruxelas, comandados por um alferes que era por todos estimado pelo seu valor, e respeitado pelo seu nascimento.
Viram, assim como os demais actores daquela terrível cena, todo o desenrolar da inundação, e foram perseguidos pela água enfurecida; porém tiveram a felicidade de encontrar no caminho que seguiam a aldeia de que já falámos, e que lhes oferecia uma posição onde nada tinham que recear dos homens nem dos elementos.
Os habitantes, sabendo que estavam seguros, não tinham abandonado as casas; apenas as mulheres, os velhos e as crianças haviam sido mandados para a cidade; e por isso a cavalaria de Aunis encontrou alguma resistência; mas na sua retaguarda uivava a morte: atacou com desesperação, triunfou de todos os obstáculos, perdeu dez homens à entrada da calçada mas conseguiu alojar-se e fez fugir os flamengos.
Daí a uma hora estava a aldeia completamente cercada pela água, exceptuando apenas o sítio a que vinha dar a calçada onde vimos aportarem Henrique e os seus companheiros.
Foi esta narração que fizeram a de Bouchage os soldados da cavalaria de Aunis.
— E o resto do exército? — perguntou Henrique.
— Olhe — respondeu o alferes —, estes cadáveres que passam a cada instante são a resposta à sua pergunta.
— Mas... mas... meu irmão?... — perguntou de Bouchage com voz sufocada.
— Infelizmente, Senhor Conde, não podemos dar-lhe notícias exactas a respeito dele; bateu-se como um leão; por três vezes o retirámos do fogo. É certo que sobreviveu à batalha, mas não podemos dizer se escapou à inundação.
Henrique baixou a cabeça, e entregou-se a acerbo meditar; passado um instante:
— E o duque? — perguntou ele.
O alferes chegou-se a Henrique e disse em voz baixa:
— Conde, o duque foi dos primeiros que fugiram. Estava montado num cavalo branco que não tinha nenhuma outra malha além de uma estrela preta na testa. Pois ainda agora vimos passar o cavalo no meio de um montão de destroços: a perna de um cavaleiro vinha presa ao estribo e aparecia fora da água na altura do selim.
— Santo Deus! — exclamou Henrique.
— Santo Deus! — murmurou Rémy, o qual, tendo-se erguido a estas palavras do conde: «E o duque?», acabava de ouvir a resposta, e fitou imediatamente os olhos na sua pálida companheira.
— E depois? — perguntou o conde.
— Sim, e depois? — balbuciou Rémy.
— Um dos meus homens arriscou-se a ir agarrar as rédeas do cavalo quando chegou à revessa que fazia a água no ângulo deste dique; conseguiu deitar-lhe a mão, e levantou a cabeça do animal, que já estava morto. Vimos então aparecer a bota branca e a espora de ouro que usava o duque. Porém, no mesmo instante, cresceu a água como enraivecida por ver que lhe arrancavam a sua vítima. O meu soldado largou mão da rédea para não ser arrastado pela corrente e desapareceu tudo. Nem sequer teremos a consolação de dar ao nosso príncipe uma sepultura de cristão.
— Morto! morto ele também, o herdeiro da coroa! que desastre!...
Rémy voltou-se para a sua companheira, e com uma expressão impossível de descrever:
— Morreu, como está ouvindo, minha Senhora! — disse ele.
— Louvado seja Deus, que me poupa um crime — respondeu ela, a meia voz, levantando as mãos e os olhos para o Céu em sinal de agradecimento.
— Isso é assim, mas priva-nos da vingança — respondeu Rémy.
— Deus tem sempre direito de se lembrar. A vingança só compete ao homem quando Deus se esquece.
O conde via com uma espécie de susto aquela exaltação das duas singulares personagens que salvava da morte; observava-os de longe, e procurava inutilmente comentar os seus gestos e a expressão das suas fisionomias para formar ideia dos seus desejos ou dos seus receios.
A voz do alferes veio tirá-lo da contemplação em que estava.
— Porém, conde — perguntou este —, que tenciona fazer? O conde estremeceu.
— Eu?
— Sim, o senhor.
— Esperarei aqui que passe por diante de mim o corpo de meu irmão — replicou o mancebo com acento de sombrio desespero. — Tratarei então de o trazer para terra, a fim de lhe dar uma sepultura de cristão; e creia-me: se lhe deitar a mão, não o tornarei a largar.
Rémy ouviu estas palavras sinistras e dirigiu para o mancebo um olhar de afectuosa exprobração.
Quanto à dama, essa, desde que o alferes tinha dado a notícia da morte do duque de Anjou, já não ouvia coisa alguma: estava orando.
TRANSFIGURAÇÃO
A companheira de Rémy, quando acabou a sua oração, ergueu-se tão formosa e radiante, que o conde não pôde reprimir um grito de surpresa e admiração. Parecia que tinha acordado de um sono muito longo com o cérebro cansado de sonhos que lhe haviam alterado a serenidade das feições; de um desses sonos pesadíssimos que deixam impressas na fronte húmida da pessoa as torturas quiméricas que sofreu a sonhar. Ou, mais exactamente, era a filha de Jairo, acordando da morte sobre o seu túmulo e erguendo-se da fúnebre cama, já purificada e pronta para subir ao Céu.
A dama, ao sair daquele letargo, lançou em redor de si um olhar tão meigo, tão suave, tão repleto de angélica bondade, que Henrique, com a credulidade própria de todos os namorados, imaginou que ela se havia compadecido do seu penar e que cedia finalmente a um sentimento que, se não era de ternura, era ao menos de gratidão e dó.
Enquanto os soldados, depois de terem comido o rancho frugal, dormiam espalhados pelas ruínas; enquanto o próprio Rémy cedia ao sono e deixava cair a cabeça sobre a travessa de uma cancela a que estava encostado o seu banco, Henrique veio colocar-se junto da dama, e com uma voz tão mansa e doce que parecia o sussurrar da brisa, disse:
— Minha Senhora, está viva!... Oh! conceda-me que lhe exprima a alegria que transborda do meu coração ao vê-la aqui sã e salva, depois de a ter visto às portas da morte.
— É verdade, Senhor — respondeu a dama —, se estou viva ao senhor o devo; e — acrescentou com um sorriso triste — bem quisera poder dizer-lhe que lhe sou reconhecida.
— Minha Senhora — replicou Henrique, com um esforço sublime de amor e abnegação —, considero-me feliz por ter podido salvá-la para a restituir às pessoas que ama.
— Que diz? — perguntou a dama.
— Às pessoas a quem ia procurar expondo-se a tamanho perigo — prosseguiu Henrique.
— Senhor, as pessoas que eu amava morreram, e as que eu procurava estão mortas também.
— Oh! minha Senhora — murmurou Henrique, pondo-se de joelhos —, volva os olhos para mim, que tanto tenho sofrido, para mim, que tanto a amo! Oh! não desvie o rosto; é jovem, é formosa como um anjo do Céu. Leia bem neste coração que lhe abro, e verá que não contém um átomo de amor parecido com o dos outros homens. Não me acredita?... Examine as horas passadas; pese-as uma por uma! Qual foi a que me causou alegria? Qual foi a que me deu esperança?... Contudo, sempre persisti. Fez-me chorar: bebi as minhas lágrimas; fez-me sofrer: devorei a minha dor; obrigou-me a desejar a morte: ia procurá-la sem me queixar. Neste mesmo momento, em que desvia de mim a vista e em que cada uma das minhas palavras, por muito ardente que seja, parece uma gota de água gelada caindo sobre o seu coração, a minha alma é toda sua e só vivo porque ainda vive. Não estive ainda há pouco a ponto de morrer junto de si?... Que lhe pedi eu? Nada. Toquei porventura na sua mão? Nunca, a não ser para a livrar de um perigo mortal. Tinha-a entre os meus braços para a livrar das ondas: sentiu acaso o contacto do meu peito? Não. Eu não sou mais do que uma alma; todo o meu ser foi purificado pelo fogo devorador da minha paixão.
— Oh! Senhor! por piedade não me fale assim!
— Por piedade também, não me condene! Disseram-me que a ninguém amava; oh! repita-me isso que me afirmaram! É uma extravagância, não é assim? pedir um homem que ama uma mulher que ela lhe diga que não lhe tem amor... Mas eu prefiro isso, visto dizer-me ao mesmo tempo que a todos é insensível. Oh! minha Senhora, já que é a única adoração da minha vida, responda-me.
Apesar de todas as instâncias de Henrique, um suspiro foi a única resposta da dama.
— Nada me diz... — replicou o conde — Rémy, ao menos, teve mais dó de mim do que a senhora: tentou consolar-me! Oh! bem vejo o que é: não me responde porque não me quer dizer que vinha à Flandres ter com alguém mais feliz do que eu; do que eu, que ainda sou moço, contudo; do que eu, a cuja vida está ligada uma parte das esperanças de meu irmão; do que eu, que morro a seus pés, sem que me diga: «Amei, mas já não amo», ou: «Amo, mas hei-de deixar de amar.»
— Senhor Conde — redarguiu a dama com majestosa solenidade —, não me diga frases como essas que é costume dizer a uma mulher; eu sou uma criatura pertencente a outro mundo, e não vivo neste. Se me tivesse parecido menos nobre, menos bom, menos generoso; se não tivesse para o Senhor, no fundo do meu coração, o sorriso terno e afável de uma irmã para o irmão, dir-lhe-ia: «Levante-se, Senhor Conde, e não continue a importunar-me os ouvidos com palavras de amor, que me horrorizam.» Porém, não lhe direi isso, Senhor Conde, porque me faz pena ver o seu sofrimento. Digo mais: agora, que já o conheço, pegar-lhe-ei na mão, encostá-la-ei ao meu peito e dir-lhe-ei de boamente: «Veja: o meu coração já não palpita; viva junto de mim, se assim o quer; assista dia por dia, se isso pode dar-lhe gosto, ao doloroso suplício de um corpo aniquilado pelas torturas da alma.» Porém esse sacrifício, que estou certa que aceitaria como uma ventura...
— Oh! sim, por certo! — exclamou Henrique.
— Pois bem! esse sacrifício, devo rejeitá-lo. De hoje em diante houve uma mudança na minha vida; já não tenho direito a encostar-me a braço algum neste mundo; nem mesmo ao daquele amigo generoso, ao daquela criatura nobre que além descansa, e a quem o Céu concedeu a felicidade de poder por um instante esquecer as mágoas! Ah! pobre Rémy — prosseguiu ela, dando à voz pela primeira vez uma inflexão de sensibilidade —, pobre Rémy! o teu despertar também há-de ser bem triste!... Tu não sabes dos progressos do meu pensamento, não podes ler nos meus olhos, não sabes que, ao acordar do teu sono, hás-de achar-te completamente desamparado sobre a Terra, pois cumpre que eu suba só à presença de Deus!
— Que está dizendo!? — exclamou Henrique — também pensa em morrer?! Rémy, acordando ao grito doloroso que soltara o conde, ergueu a cabeça e escutou.
— Viu-me a orar, não é assim? — prosseguiu a dama. Henrique fez um sinal afirmativo.
— Aquela oração era a minha despedida da Terra; aquela alegria que notou no meu rosto, e de que ainda neste momento estou possuída, é a mesma que observaria em mim se o anjo da morte viesse dizer-me: «Levanta-te, Diana, e acompanha-me aos pés de Deus!»
— Diana! Diana!... — murmurou Henrique — já sei finalmente como se chama... Diana! nome querido e adorado!...
E o desventurado deitou-se aos pés da dama, repetindo esse nome com a embriaguez de uma indizível felicidade.
— Oh! cale-se — disse a dama com a sua voz solene —, esqueça-se desse nome, que me escapou; ninguém entre os vivos tem direito a rasgar-me o coração proferindo-o.
— Oh! minha Senhora, minha Senhora! — exclamou Henrique — agora, que já sei o seu nome, não me diga que vai morrer...
— Não é isso que eu digo, Senhor — replicou gravemente a dama —, digo que vou deixar este mundo de lágrimas, de ódios, de tenebrosas paixões, de vis interesses e de desejos inomináveis; digo que nada mais tenho que fazer entre as criaturas que Deus criou semelhantes a mim; já não tenho lágrimas nos olhos, o sangue já não faz palpitar o meu coração, a minha cabeça já não concebe um único pensamento, desde que morreu o pensamento que a ocupava interiormente; sou apenas uma vítima sem valor algum, visto que, renunciando ao mundo, não sacrifico desejos, nem esperanças, mas enfim, tal qual sou, ofereço-me a Deus; espero que Ele me olhe com misericórdia, já que tanto me fez sofrer e não quis que eu sucumbisse à minha dor.
Rémy, tendo ouvido estas palavras, ergueu-se vagarosamente e veio direito a sua ama.
— Vai abandonar-me? — perguntou com voz sentida.
— Para me entregar a Deus — replicou Diana, levantando para o Céu a sua mão pálida e emagrecida como a da sublime Madalena.
— Tem razão — respondeu Rémy, deixando cair a cabeça sobre o peito —, tem razão! E ao mesmo tempo que Diana abaixava a mão, tomou-a nas suas e apertou-a de encontro
ao peito como se fora a relíquia de uma santa.
— Oh! que sou eu na presença destes dois corações? — suspirou o mancebo com um arrepio de terror.
— É — respondeu Diana — a única criatura humana em quem pousei por duas vezes a minha vista desde que sentenciei os meus olhos a fecharem-se para sempre.
Henrique ajoelhou.
— Agradeço-lhe, minha Senhora — disse ele. — Acaba de se revelar completamente a mim; agradeço-lhe, torno a dizer; já vejo claramente qual há-de ser o meu destino: a datar deste momento, nem mais uma palavra da minha boca, nem mais uma aspiração do meu coração, darão a conhecer o muito que a amava.
— Pertenço ao Senhor, não tenha ciúmes de mim.
Acabava ela de proferir estas palavras, e erguia-se entregue ao encanto regenerador que acompanha sempre uma resolução nobre e imutável, quando ressoou um estridor longínquo de trombetas pela planície, ainda coberta de vapores, que de instante para instante se iam aclarando cada vez mais. Os soldados correram todos às armas, e apareceram montados mesmo antes da voz de comando. Henrique escutava.
— Senhores, Senhores! — gritou ele — são as trombetas do almirante, que muito bem lhes conheço o toque. Meu Deus, possa aquele som anunciar a chegada de meu irmão!
— Bem vê que ainda deseja alguma coisa neste mundo — disse-lhe Diana —, e ainda a alguém tem amizade; então para que há-de entregar-se à desesperação, criança que é, com aqueles que já nada desejam e que a ninguém amam já?...
— Um cavalo! — exclamou Henrique — dêem-me um cavalo!
— Mas por onde quer sair — perguntou o alferes —, estando nós cercados de água por toda a parte?
— Mas bem vê que se acha pé na planície; bem vê que eles vêm marchando, pois tocam as trombetas!
— Suba ao alto da calçada, Senhor Conde — respondeu o alferes —, o tempo vai aclarando, poderá talvez ver alguma coisa.
— Lá vou — disse o mancebo.
Henrique trepou à eminência que lhe designara o alferes; as trombetas continuavam a tocar por intervalos, sem se aproximarem nem afastarem. Rémy tinha voltado para o seu lugar junto de Diana.
OS DOIS IRMÃOS
Henrique voltou passado um quarto de hora; tinha visto sobre uma colina, que até ali não se podia diferençar por causa da escuridão, e que então já estava patente aos olhos de todos, um corpo considerável de tropas francesas acampado e entrincheirado.
À excepção de um fosso largo, cheio de água, que cercava a aldeia ocupada pela cavalaria de Aunis, a planície ia começando a esgotar-se, como um tanque quando se despeja, por isso que o declive natural do terreno fazia correr as águas para o mar, e alguns pontos mais elevados principiavam a aparecer como depois de um dilúvio.
O lodo e os limos que as águas haviam arrastado consigo tinham coberto os campos, e era um triste espectáculo ver, à medida que o vento ia levantando o véu de vapores que encobria a planície, uns cinquenta cavaleiros enterrando-se naquele lodaçal, e fazendo inúteis esforços para se acolherem à aldeia ou à colina. A gente que estava na colina tinha ouvido os brados que eles davam pedindo socorro, e era esse o motivo por que as trombetas tocavam sem cessar.
Assim que o vento acabou de espalhar o nevoeiro, Henrique avistou sobre a colina a bandeira francesa, flutuando galhardamente no ar. Os da cavalaria acenaram com o estandarte de Aunis, e ouviram-se logo de ambas as partes tiros de mosqueteria disparados em sinal de regozijo.
Por volta das onze horas, o sol veio alumiar aquela cena de desolação, enxugando alguns pontos da planície, e tornando praticável o cume de uma espécie de caminho de comunicação.
Henrique, que andava explorando aquela vereda, foi o primeiro que observou, pelo som das ferraduras do cavalo, que havia uma estrada que ia ter, por um rodeio, da aldeia à colina; logo concluiu que os cavalos se enterrariam no lodo até acima dos cascos, até aos joelhos, ou até aos peitos talvez, mas daí não passariam, porque poderiam firmar-se na base sólida da estrada.
Pediu que lhe deixassem fazer a experiência e, como não havia nenhum outro concorrente a tão perigosa tentativa, recomendou Rémy e a sua companheira ao cuidado do alferes e aventurou-se ao arriscado caminho.
Ao tempo que ele se pôs a caminho, viu-se que descia da colina um cavaleiro que intentava, à imitação de Henrique, achar um caminho para vir dar à aldeia. Toda a encosta da colina que ficava fronteira à aldeia estava guarnecida de soldados espectadores que levantavam os braços para o Céu, e pareciam querer deter pelos seus rogos o imprudente cavaleiro.
Os dois deputados daqueles dois troços do exército francês foram seguindo denodadamente o seu caminho, e em breve conheceram que a empresa a que se tinham abalançado era menos difícil do que a princípio julgavam e do que receavam os espectadores.
Um regueiro de água que corria de um aqueduto arrombado por um encontrão de uma trave, saía da lama e lavava, como de propósito, o lodo que encobria a calçada, pondo assim patente o assento da estrada aos pés dos cavalos. Os cavaleiros tinham chegado a duzentos passos um do outro.
— França! — gritou o cavaleiro que vinha da colina. E tirou o gorro, adornado de uma pluma branca.
— Oh! és tu?! — gritou Henrique, com uma exclamação de alegria — tu, meu caro Anne?!...
— Tu, Henrique?! tu aqui, meu irmão?! — exclamou o outro cavaleiro.
E sem atenderem ao perigo que lhes podia resultar de se desviarem para a direita ou para a esquerda, meteram ambos os cavalos a galope, dirigindo-se um para o outro. Os dois cavaleiros, apenas se juntaram, abraçaram-se ternamente, ao som das aclamações frenéticas dos espectadores da aldeia e da colina, que imediatamente se despovoaram; cavalaria pesada e cavalaria ligeira, fidalgos huguenotes e católicos, todos correram ao encontro uns dos outros pelo caminho que os dois irmãos acabavam de abrir. Não tardou que se reunisse e abraçasse a gente dos dois acampamentos, e naquele caminho onde todos tinham julgado que iam encontrar a morte viam-se três mil franceses, que davam graças ao Céu e gritavam: «Viva a França!»
— Senhores — bradou um oficial huguenote —, é «viva o Senhor Almirante!» que devemos bradar, pois é ao Senhor Duque de Joyeuse unicamente que somos devedores de ter escapado com vida esta noite e de gozar esta manhã a ventura de abraçar os nossos compatriotas.
Seguiram-se a estas palavras prolongados aplausos. Os dois irmãos trocaram algumas palavras banhadas de lágrimas; e depois o duque disse a Henrique:
— E o príncipe?
— Julga-se que morreu — respondeu Henrique.
— Será verdade?
— Os soldados ,da cavalaria de Aunis viram passar o cadáver do cavalo em que ele montava, que conheceram pelos sinais. O cavalo levava preso ao estribo um cavaleiro, de que se não podia ver a cabeça, porque ia debaixo de água.
— Triste dia é este para a França — disse o almirante. E em seguida, voltando-se para a sua gente:
— Vamos, Senhores, nada de perder tempo. É provável que nos ataquem logo que tenham escorrido as águas; tratemos de nos entrincheirar até que possamos obter notícias e víveres.
— Porém, Senhor — respondeu uma voz —, a cavalaria decerto não poderá marchar; os cavalos não comem desde as quatro horas da tarde de ontem; os pobres animais estão quase mortos de fome.
— Cevada temos nós no nosso acampamento — disse o alferes — mas que se há-de dar de comer aos homens?
— Pois bem! — replicou o almirante — se há cevada, é quanto basta: os homens sustentar-se-ão como os cavalos.
— Meu irmão — interrompeu Henrique —, eu preciso falar-te um instante a sós.
— Eu vou ocupar a aldeia — respondeu Joyeuse. — Escolhe quartel para mim, e vai esperar-me lá.
Henrique foi ter com os seus dois companheiros.
— Vê que está no meio de um exército — disse ele para Rémy. — Tome o meu conselho, oculte-se no quartel que eu vou escolher; não convém que esta senhora seja vista por pessoa alguma. À noite, quando todos estiverem dormindo, então tratarei de lhe dar mais liberdade.
Rémy recolheu-se portanto com Diana ao quartel que lhe cedeu o alferes da cavalaria, o qual, em consequência da chegada de Joyeuse, ficava como simples oficial às ordens do almirante.
Pelas duas horas, o duque de Joyeuse entrou na aldeia a toque de cornetas; fez alojar as suas tropas e deu ordens severas para manter a disciplina.
Mandou fazer a seguir uma distribuição de cevada aos homens e de aveia aos cavalos; repartiu pelos feridos alguns tonéis de cerveja e de vinho que se encontravam nas adegas, e ele mesmo, à vista de todos, jantou um pedaço de pão de rala e um copo de água, enquanto andava examinando os postos avançados.
Foi recebido em toda a parte como um salvador, com gritos de afecto e de gratidão.
— Está bom, está bom — disse ele, à volta, quando se viu só com o irmão. — Venham agora os Flamengos, pois estou certo que os hei-de bater, e se isto durar, parece-me, assim Deus me salve! que sou capaz de os devorar, porque estou com muita fome.
E acrescentou em voz baixa para Henrique, atirando fora o pão que parecia estar comendo com grande apetite:
— Esta comida é detestável.
Depois, deitando-lhe os braços ao pescoço:
— Ora agora, meu amigo, conversemos, e conta-me como te achas na Flandres quando eu te julgava em Paris.
— Meu caro irmão — respondeu Henrique ao almirante —, tinha-se-me tornado a vida insuportável em Paris, e por isso parti para vir ter contigo à Flandres.
— Sempre por amor? — perguntou Joyeuse.
— Não, por desespero. Juro-te, Anne, que se me acabou o amor; a minha única paixão, presentemente, é a tristeza.
— Meu irmão, meu irmão! — exclamou Joyeuse — concede-me que te diga que sempre deste com uma mulher bem malvada.
— Como assim!?
— Sim, Henrique, porque quando se chega a um certo grau de maldade ou de virtude, os entes criados excedem a vontade do Criador, e tornam-se verdugos e homicidas duas coisas que a Igreja igualmente reprova; não fazer caso dos sofrimentos de outrem, por demasiada virtude, é uma exaltação bárbara, uma falta de caridade cristã.
— Oh! meu irmão — exclamou Henrique —, não calunies a virtude!
— Oh! eu não calunio a virtude, Henrique; acuso o vício, e nada mais. Repito pois: a tal mulher é malvada, e a sua posse, por muito apetecível que seja, nunca há-de valer os tormentos que te causa. É num caso destes que se deve usar de força e poder, pois, longe de ser um ataque, é uma defesa legítima. Eu, no teu lugar, Henrique, teria ido tomar de assalto a casa dessa mulher; ter-me-ia apoderado dela depois de lhe tomar a casa, e quando, segundo costuma suceder com toda a criatura subjugada, que se torna tão humilde na presença do vencedor quanto era brava antes da luta, ela viesse deitar-te os braços ao pescoço, dizendo-te: «Henrique, eu adoro-te!», então repeli-la-ia, respondendo-lhe: «Pois faz muito bem, minha Senhora, mas agora chegou a sua vez, e é justo que sofra também, assim como eu sofri.»
Henrique agarrou na mão do irmão, dizendo-lhe:
— Estou certo de que esse não é na realidade o teu modo de pensar, Joyeuse.
— Juro-te que é.
— Tu, que tens tão bom coração e és tão generoso?!...
— Generosidade para com gente desalmada é uma loucura, meu irmão.
— Oh! Joyeuse, Joyeuse! não conheces essa mulher!
— Com mil demónios! nem a quero conhecer!
— Porquê?
— Porque me obrigaria a praticar aquilo a que toda a gente chamaria um crime e que eu chamaria um acto de justiça.
— Oh! meu bom irmão — disse Henrique, com angélico sorriso —, quanto és feliz em não amares ninguém!... — Mas, por favor, Senhor Almirante: ponhamos de parte o meu louco amor e conversemos a respeito dos negócios da guerra.
— Aprovo! pois se continuássemos a tratar da tua loucura, eu era capaz de enlouquecer também.
— Faltam-nos víveres, como vês.
— Bem sei, e já cogitei a maneira de os ter.
— Ocorreu-te alguma ideia?
— Ocorreu, e parece-me eficaz.
— Qual é?
— Eu não posso tirar-me daqui enquanto não receber notícias do exército, porque a posição é boa e susceptível de se defender contra forças cinco vezes mais numerosas do que as nossas; mas posso mandar à descoberta um corpo de exploradores, os quais nos servirão, em primeiro lugar, para alcançarmos notícias, de que depende verdadeiramente a vida de gente que se acha reduzida à situação em que estamos; e em segundo lugar, para obtermos víveres, porque na realidade, esta Flandres é uma bela região.
— Nem tanto assim, meu irmão, nem tanto assim...
— Oh! eu não me refiro senão à terra tal qual Deus a fez, e não aos homens, que deitam eternamente a perder as obras de Deus. Já viste, Henrique, um desatino igual ao daquele príncipe?.. . como perdeu a partida em que se achava empenhado! como o orgulho e precipitação causaram a ruína daquele desgraçado Francisco... A sua alma está com Deus: não falemos mais nele; mas, na verdade, podendo adquirir uma glória imortal e um dos mais belos reinos da Europa, só tratou de promover os interesses de quem?... de Guilherme o sonso. Talvez não saibas, Henrique, que os antuerpenses se bateram com denodo...
— E tu também, segundo ouvi dizer, meu irmão.
— É exacto; estava num dos meus dias felizes... E demais a mais houve uma coisa que muito me excitou...
— O que foi?
— Foi ter eu encontrado no campo de batalha uma espada minha conhecida.
— Um francês?
— Um francês, sim.
— Nas fileiras dos Flamengos?...
— À frente deles. Henrique, é este um segredo que precisamos indagar, para dar um segundo acto à execução de Salcède na Praça de Greve.
— Enfim, meu caro irmão! eis-te aqui de volta são e salvo, com grande satisfação minha; porém, já que não pude partilhar dos teus trabalhos preciso fazer alguma coisa agora.
— Que queres fazer?
— Peço-te que me dês o comando dos teus exploradores.
— Não, porque é na realidade muito arriscado, Henrique; não te diria isto na presença de estranhos; mas não quero proporcionar-te uma morte obscura, e feia, por consequência. Pode ser que os exploradores encontrem algum corpo de vilões flamengos, que pelejam com mangoais e foices: matas mil, mas no fim sempre aparece um que te corta ao meio ou te desfigura o rosto. Não, Henrique, não; se tens muito empenho em morrer, reserva-te para melhor ocasião.
— Meu irmão, concede-me o que te peço; hei-de portar-me com toda a prudência e prometo voltar aqui.
— Está bom, já percebo...
— Que é que percebes?
— Queres experimentar se será possível abrandar o coração da desumana praticando algum feito brilhante. Confessa que é esse o motivo da tua teima...
— Confessá-lo-ei, já que assim o queres, meu querido irmão.
— Pois bem, acho que tens razão. Há mulheres que resistem a uma grande paixão e se deixam cativar às vezes por uma pouca de celebridade.
— Não tenho essa esperança.
— Então, se vais expor-te sem essa esperança, estás doido varrido. Olha, Henrique, os rigores dessa mulher não provêm senão de ela ser uma criatura fantástica, sem coração nem olhos.
— Dás-me o comando que te pedi, não é assim, meu irmão?
— Que remédio tenho eu, já que assim o exiges...
— Posso partir esta noite mesmo?
— É indispensável, Henrique; sabes muito bem que não podemos esperar por mais tempo.
— Quantos homens tencionas pôr à minha disposição?
— Cem homens, unicamente. Bem vês, Henrique, que não devo enfraquecer a minha posição.
— Dá-me menos gente, se te parecer, meu irmão.
— Não, e bem quisera poder dar-te o dobro. Mas empenha-me a tua palavra de honra em como, se fores atacado por mais de trezentos homens, hás-de retirar-te em vez de te fazer matar.
— Meu irmão — disse Henrique sorrindo —, estás-me vendendo por mui subido preço uma glória a que pões tantas restrições...
— Pois então, meu caro Henrique, nem a venderei nem a restringirei: entregarei a direcção do reconhecimento a outro oficial.
— Meu irmão, dá-me as tuas ordens e prometo cumpri-las.
— Não travarás combate algum que não seja com forças iguais, dobradas ou tresdobradas; mas não sairás disto.
— Juro que assim farei.
— Muito bem. Agora, qual é o corpo que preferes?
— Deixa-me levar cem homens da cavalaria de Aunis; tenho bastantes amigos nesse regimento, e posso aí escolher gente que me há-de acompanhar para onde eu quiser.
— Vai pois a cavalaria de Aunís.
— Quando hei-de marchar?
— Imediatamente. Mas primeiro manda distribuir rações: aos homens para um dia, e aos animais para dois. Lembra-te de que desejo obter quanto antes notícias exactas.
— Vou partir já, meu irmão; tens a dar-me alguma instrução secreta?
— Não espalhes a morte do duque; deixa que todos se persuadam de que ele está no acampamento. Exagera as minhas forças; e se encontrares o cadáver do príncipe, apesar de ter sido um homem malvado e um triste general (afinal de contas, sempre pertencia à Casa Real de França), manda-o encerrar num caixão de carvalho e fá-lo conduzir para aqui pelos teus soldados, para o levarmos a enterrar em S. Dinis.
— Muito bem, meu irmão; nada mais?
— Nada mais.
Henrique pegou na mão do irmão mais velho para a beijar, porém este apertou-o nos braços.
— Henrique — disse Joyeuse —, promete-me outra vez que o fim que levas em vista não é o seres morto em combate.
— Meu irmão, era esse o meu pensamento quando vim ter contigo; mas juro-te que já abandonei semelhante ideia.
— E desde quando a abandonaste?
— Haverá duas horas.
— Por que motivo?
— Meu irmão... dispensa-me de o contar.
— Está bem, Henrique, eu não pretendo saber os teus segredos.
— Oh! quanto és generoso, meu irmão!
Os dois mancebos abraçaram-se novamente e separaram-se, voltando-se repetidas vezes um para o outro, para se despedirem por acenos.
A EXPEDIÇÃO
Foi com o coração a transbordar de alegria que Henrique se dirigiu para o lugar onde havia deixado Diana e Rémy.
— Aprontem-se para daqui a um quarto de hora — disse ele —, porque vamos partir. Encontrarão dois cavalos aparelhados à porta da escadinha de madeira que dá serventia para este corredor; confundam-se com a gente da comitiva, e nem respirem.
Em seguida, indo à varanda que cercava o primeiro andar da casa, bradou:
— Trombetas de Aunis, toquem a bota-selas!
Logo ressoou a chamada pela aldeia, e o alferes veio formar com a sua gente em frente da casa. Na retaguarda vinham os criados com alguns muares e dois carros. Rémy e a sua companheira, conforme o conselho de Henrique, confundiram-se com eles.
— Soldados — disse Henrique —, o almirante meu irmão entregou-me interinamente o comando da sua companhia e incumbe-me de ir à descoberta; hão-de acompanhar-me cem homens: a missão é arriscada, mas é para a salvação de todos que vão expor as vidas. Quem se oferece para vir comigo?
Os trezentos homens saíram todos à frente.
— Senhores — disse Henrique —, agradeço a todos; vejo que foi com razão que se disse que tinham servido de exemplo ao exército; porém não posso levar mais do que cem homens; não quero escolher, o acaso resolverá. Senhor — prosseguiu Henrique dirigindo-se ao alferes —, peço-lhe que mande tirar à sorte.
Enquanto se procedia a esta operação, dava Joyeuse as suas últimas instruções ao irmão.
— Toma sentido no que te vou dizer, Henrique — dizia o almirante —, deve existir, segundo afirma a gente da terra, uma comunicação entre Conticq e Rupelmonde; vais marchar entre uma ribeira e um rio caudaloso, o Rupel e o Escalda; para passar o Escalda encontrarás, antes de chegar a Rupelmonde, barcos vindos de Antuérpia; quanto ao Rupel, não é indispensável passá-lo. Persuado-me, porém, que não terás de ir até Rupelmonde para achares armazéns de víveres ou moinhos.
Henrique ia partir, depois de ouvir estas palavras.
— Espera lá — disse-lhe Joyeuse —, esquece-te o essencial: os meus homens aprisionaram três camponeses; dou-te um para te servir de guia. Nada de contemplações com ele: se vires que te quer atraiçoar, manda-lhe dar um tiro de pistola ou uma punhalada.
Depois desta última determinação, abraçou ternamente o irmão, e deu ordem para a partida. Os cem homens tirados à sorte pelo alferes puseram-se a caminho no mesmo instante, com de Bouchage à sua frente. Henrique colocou o guia entre dois soldados, que levavam constantemente as pistolas na mão. Rémy e a sua companheira iam juntos com a gente da comitiva. Henrique não tinha feito recomendação alguma a respeito deles, por se lembrar que bem bastava já a curiosidade que a sua presença tinha despertado, e que melhor seria não a aumentar com precauções mais perigosas do que salutíferas. Quanto a ele, apenas saiu da aldeia, foi tomar lugar no flanco da companhia, sem ter importunado os seus protegidos com um único olhar.
A tropa marchava muito devagar; de vez em quando faltava o terreno aos cavalos, e o destacamento todo ficava metido num atoleiro.
Enquanto não encontraram a estrada que procuravam, tiveram de se resignar a andar como se fossem peados. De espaço a espaço sulcavam a planície uns espectros, que fugiam ao ouvirem o tropel dos cavalos; eram camponeses que haviam tido demasiada pressa de voltar para as suas terras, e que receavam cair nas mãos dos inimigos que tinham querido aniquilar. Outras vezes eram alguns desgraçados franceses, meio mortos de frio e de fome, incapazes de poderem lutar com gente bem armada, e que, na incerteza em que estavam de darem com amigos ou inimigos, preferiam esperar pelo dia para prosseguirem em sua trabalhosa jornada.
Andaram duas léguas em três horas; ao cabo das duas léguas estava o destacamento nas margens do Rupel, junto as quais havia uma estrada calçada; mas então seguiram-se os perigos às dificuldades: dois ou três cavalos caíram por perderem o pé nos interstícios das pedras, ou, escorregando sobre o lodo que as cobria, foram mergulhar os cavaleiros na água rápida do rio. Por mais de uma vez também, dispararam-se tiros de algum bote amarrado à margem oposta, de que resultou ficarem feridos dois bagageiros e um soldado. Um dos bagageiros tinha sido ferido ao lado de Diana; esta mostrou condoer-se da desgraça do homem, mas sem recear nada por si.
Henrique, em todas estas circunstâncias, portou-se para com a sua gente como um digno capitão, verdadeiro amigo; caminhava na frente de todos, obrigando assim os soldados a seguirem-lhe as pisadas; e, confiando menos na própria sagacidade do que no instinto do cavalo que lhe havia dado o irmão, conduzia todos a salvamento, arriscando-se só ele a morrer.
A três léguas de Rupelmonde, encontrou a avançada uma meia dúzia de soldados franceses acocorados de roda de uma fogueira de mato, na qual estavam assando um pedaço de carne de cavalo, único sustento que tinham encontrado havia dois dias. A chegada da cavalaria veio perturbar os convivas de tão triste banquete: dois ou três levantaram-se para fugir, porém um deles conservou-se sentado, dizendo:
— Pois bem! se forem inimigos, matar-nos-ão, e assim acabarão os nossos trabalhos.
— França! França! — gritou Henrique, ao ouvir estas palavras — venham para nós, pobres homens!
Os infelizes, logo que viram que os recém-chegados eram compatriotas, correram para eles; deram-lhes capotes e uma pouca de genebra para beberem, concedendo-se-lhes em seguida que montassem à garupa dos criados. Acompanharam assim o destacamento.
Meia légua adiante, encontraram quatro soldados de cavalaria ligeira com um único cavalo para os quatro; foram igualmente recolhidos.
Por fim chegaram às margens do Escalda: a noite estava muito escura; a avançada encontrou junto ao rio dois homens, que procuravam, em mau flamengo, conseguir de um barqueiro que os passasse para a outra banda. Este recusava com ameaças.
O alferes falava holandês. Aproximou-se sem bulha à testa da coluna, e enquanto esta fazia alto, ouviu estas palavras:
— Sois franceses, haveis de morrer aqui; não os quero passar para a outra banda.
Um dos dois homens apontou-lhe um punhal à goela, e sem se dar ao incómodo de lhe falar na sua língua, disse-lhe em excelente francês:
— És tu que vais morrer aqui, apesar de seres flamengo, se não nos levares para a outra banda neste mesmo instante.
— Não o largue, Senhor, não o largue! — gritou o alferes. — Dentro de cinco segundos estaremos aí.
Mas o barqueiro, aproveitando-se do movimento que fizeram os dois franceses ao ouvirem estas palavras, desatou o nó que prendia o barco à praia e afastou-se rapidamente, deixando-os em terra. Porém um dos soldados, calculando a utilidade que poderia resultar da posse do barco, entrou no rio com o cavalo e derrubou o barqueiro com um tiro de pistola. O barco, logo que ficou sem governo, girou sobre si mesmo, mas, como ainda não tinha chegado ao meio do rio, a revessa impeliu-o para terra. Os dois homens lançaram-lhe mão apenas chegou à praia, e foram os primeiros que nele se acomodaram. Tanta pressa em se afastarem causou admiração ao alferes.
— Olá, Senhores! — perguntou — façam o favor de dizer quem são.
— Senhor, nós somos oficiais do regimento da marinha; e o senhor pertence à cavalaria de Aunis, segundo parece...
— Sim senhor, e muito folgaremos se lhe prestarmos para alguma coisa; não querem acompanhar-nos?
— Com todo o gosto, Senhores.
— Pois então trepem para cima dos carros, se estão demasiado cansados para nos seguirem a pé.
— Ser-me-á lícito perguntar aonde vão? — disse o oficial de marinha que ainda não tinha falado.
— Temos ordem de seguir até Rupelmonde.
— Pois acautelem-se — replicou o mesmo interlocutor —, nós não atravessámos o rio há mais tempo, em consequência de ter passado esta manhã um destacamento de espanhóis vindos de Antuérpia; só ao pôr do Sol é que julgámos que poderíamos aventurar-nos, porque dois homens só não causam desconfiança; porém os senhores são muitos...
— É verdade — disse o alferes —, vou chamar o nosso chefe.
Chamou efectivamente por Henrique, que se aproximou para saber o que lhe queriam.
— É que estes senhores — respondeu o alferes — encontraram esta manhã um destacamento de espanhóis que seguiam o mesmo caminho que levamos.
— Quantos eram eles? — perguntou Henrique.
— Uns cinquenta homens.
— E assusta-se por tão pouco?...
— Não, Senhor Conde, mas parece-me que seria prudente conservarmos o barco para o que puder acontecer; cabem nele vinte homens e, se for necessário atravessar o rio, será fácil concluir a operação em cinco caminhos, levando os cavalos pelas rédeas.
— Muito bem — disse Henrique —, fiquemos pois com o barco; deve haver casas no ponto onde o Rupel se reúne com o Escalda...
— Há uma aldeia — disse uma voz.
— Marchemos para lá: o ângulo formado pela junção de dois rios é sempre uma boa posição. — Destacamento! em frente! Metam-se dois homens no barco e levem-no pelo rio abaixo, enquanto nós seguimos pela margem.
— Tomaremos nós conta do barco — disse um dos dois oficiais —, se for do seu agrado.
— Sim senhor — disse Henrique —, mas não nos percam de vista e venham ter connosco logo que estivermos alojados na aldeia.
— E se alguém nos tirar o barco quando o abandonarmos?...
— Acharão a cem passos da aldeia uma guarda de dez homens, a quem o entregarão.
— Está bom — disse o oficial da marinha; e com uma vigorosa remada afastou-se de terra.
«É boa! disse Henrique, ao pôr-se em marcha; aquela voz é minha conhecida...»
Dali a uma hora chegou à aldeia ocupada pelo destacamento de espanhóis em que tinha falado o oficial: estes, assim surpreendidos quando menos o esperavam, ofereceram fraca resistência. Henrique mandou desarmar os prisioneiros, fechou-os na casa mais forte da aldeia e colocou um destacamento de dez homens de guarda a eles. Uma outra guarda de dez homens foi mandada para tomar conta do barco. Foram distribuídos outros dez homens de sentinela a diversos pontos, prometendo-se-lhes que seriam rendidos dali a uma hora.
Henrique determinou em seguida que ceariam aos vinte de cada vez na casa que ficava fronteira àquela em que estavam fechados os prisioneiros espanhóis. A ceia dos primeiros cinquenta ou sessenta já estava pronta; era a destinada para a gente que acabava de ser aprisionada.
Henrique escolheu, no primeiro andar, um quarto para Diana e Rémy, que ele não queria obrigar a cear com os mais. Mandou sentar à mesa o alferes, com dezassete homens, incumbindo-o de convidar a cear com ele os dois oficiais de marinha condutores do barco. E em seguida foi, antes de se sentar à mesa, rondar a gente que tinha distribuído pelos diversos pontos.
Ao cabo de meia hora voltou Henrique. Aquela meia hora tinha-lhe bastado para providenciar acerca do aquartelamento e sustento de todos os seus soldados, e para dar as ordens necessárias, caso fossem surpreendidos pelos holandeses.
Os oficiais, apesar de lhes ter pedido que não se incomodassem por sua causa, esperaram por ele para começarem a comer; entretanto, como se tinham sentado à mesa, alguns dormiam de cansaço sobre as cadeiras. A entrada do conde acordou os que dormiam, e fez levantar os que estavam acordados. Henrique correu a vista pela sala.
Uns candeeiros de latão, suspensos do tecto, espalhavam um clarão misturado com fumo quase compacto. A mesa, coberta de pães alvos e de carne de porco, com um pichel de boa cerveja para cada homem, apresentava um aspecto capaz de desafiar o apetite, mesmo a gente que não tivesse passado vinte e quatro horas sem comer. Destinaram para Henrique o lugar da cabeceira da mesa. Sentou-se.
— Comam, meus Senhores — disse ele.
Apenas foram proferidas estas palavras, logo o tinir das facas e garfos sobre os pratos de pó de pedra deu a conhecer a Henrique que elas eram esperadas com certa impaciência e recebidas com a maior satisfação.
— É verdade — perguntou Henrique ao alferes —, encontraram os nossos dois oficiais de marinha?
— Sim senhor.
— Onde estão eles?
— Estão acolá, no fim da mesa.
Não somente estavam sentados na extremidade da mesa, mas também no sítio mais escuro da casa.
— Senhores — disse Henrique —, ficaram mal colocados, e parece-me que não comem...
— Muito obrigado, Senhor Conde — respondeu um deles —, estamos muito cansados, e na verdade carecemos mais de dormir do que comer; já dissemos isto mesmo aos seus oficiais, porém eles insistiram, dizendo que o Senhor Conde tinha determinado que ceássemos consigo... É um convite que muito nos honra, e que sobremaneira agradecemos. Contudo, se em vez de nos deter por mais tempo aqui, tivesse a bondade de nos mandar destinar um quarto...
Henrique tinha escutado com a maior atenção, mas bem se via que escutava mais a voz do que as palavras.
— E o seu companheiro é também desse parecer? — perguntou Henrique, logo que o oficial de marinha acabou de falar.
E, ao dizer isto, olhava para o tal companheiro, que conservava o chapéu caído para a cara e teimava em não dizer palavra, com tanto cuidado que alguns dos convivas olharam também para ele. Porém este, vendo-se obrigado a responder à pergunta do conde, proferiu de um modo apenas inteligível estas palavras:
— Sim, Senhor Conde.
O mancebo estremeceu apenas o ouviu e, levantando-se logo, foi direito à extremidade da mesa, enquanto os circunstantes seguiam com singular atenção os movimentos de Henrique, e a manifestação visível da sua admiração. Henrique parou junto dos dois oficiais.
— Senhor — disse ele para o primeiro que tinha falado —, faça-me um favor...
— Qual é, Senhor Conde?
— Certifica-me que não é irmão do Sr. Aurilly, ou talvez o próprio Sr. Aurilly?...
— Aurilly?! — exclamaram todos os circunstantes.
— E peço ao seu companheiro -— prosseguiu Henrique — que levante um pouco a aba do chapéu que lhe encobre o rosto, quando não chamar-lhe-ei Alteza e inclinar-me-ei perante ele.
E Henrique, tirando ao mesmo tempo o chapéu, inclinou-se respeitosamente diante do desconhecido.
Este ergueu a cabeça.
— O Senhor Duque de Anjou! — exclamaram os oficiais.
— O duque vivo!...
— Meus Senhores — disse o oficial —, visto quererem ainda reconhecer o vosso príncipe, apesar de vencido e fugitivo, não resistirei por mais tempo a esta manifestação, que muito lhes agradeço; não se enganavam, meus Senhores: sou efectivamente o duque de Anjou.
— Viva Sua Alteza! — exclamaram os oficiais.
PAULO EMÍLIO
Todas estas aclamações, apesar de sinceras, sobressaltaram o príncipe.
— Oh! silêncio, silêncio, Senhores! — disse ele. — Rogo-lhes que não mostrem mais contentamento do que eu próprio pela felicidade que tive. Estou muitíssimo satisfeito por não ter morrido, como bem podem crer... e contudo, se não me tivessem conhecido, não seria eu por certo quem me gabaria de estar ainda vivo...
— Pois quê, meu Senhor!? — disse Henrique — tinha-me conhecido, estava no meio de soldados franceses, via que estávamos desesperados pela sua morte, e queria deixar-nos entregues ao pesar de o havermos perdido?!...
— Senhores — respondeu o príncipe —, além de uma infinidade de razões que faziam com que eu desejasse conservar-me incógnito, confesso que, visto julgarem-me todos morto, não se me dava de aproveitar esta ocasião, que talvez não se tornará a apresentar na minha vida, para ficar sabendo o teor da oração fúnebre que há-de ser proferida sobre a minha campa.
— Meu Senhor, meu Senhor!...
— É isso mesmo — replicou o duque. — Porque eu sou como Alexandre da Macedónia; faço a guerra segundo as regras da arte, e tenho nisso o meu amor-próprio, como todos os artistas. Pois bem! digo-lhe sem a menor vaidade que me parece que cometi um erro.
— Meu Senhor — retorquiu Henrique, baixando os olhos —, peço-lhe que não diga tal...
— Porque não?... A não ser o papa, ninguém é infalível; e ainda assim, desde o tempo de Bonifácio VIII para cá, tem havido quem ponha em dúvida essa infalibilidade.
— Veja Vossa Alteza a quanto se expunha algum de nós se se atrevesse a emitir o seu parecer acerca da expedição, e se o parecer fosse uma censura!...
— E então? porque não o faria?... Julga acaso que não me tenho já censurado severamente a mim próprio, não por ter dado a batalha, mas por a ter perdido?...
— Meu Senhor, tanta bondade confunde-nos, e permita-me Vossa Alteza que lhe diga que essa alegria não é natural... Queira Vossa Alteza tranquilizar-nos, dizendo-nos que não se sente incomodado...
Uma nuvem terrível passou pela fronte do príncipe e cobriu aquele rosto, já tão fatal, de um véu sinistro.
— Nada! — disse ele — nada! Graças a Deus, nunca estive tão bom de saúde como neste momento, e é com a maior satisfação que me vejo entre os senhores.
Os oficiais cortejaram.
— Quantos homens tem às suas ordens, de Bouchage? — perguntou o duque.
— Cento e cinquenta, meu Senhor.
— Ah!... cento e cinquenta para doze mil, é a mesma proporção do desastre de Canas... É natural, Senhores, que mandem também para Antuérpia um alqueire de anéis dos seus camaradas, mas duvido que as formosuras flamengas possam servir-se deles sem desbastarem previamente os dedos com as facas dos maridos... e como cortavam bem!...
— Meu Senhor — replicou Joyeuse —, se bem que a nossa batalha se tenha assemelhado à batalha de Canas, fomos mais felizes do que os Romanos, porque nos ficou o nosso Paulo Emílio.
— Por minha alma, Senhores! — replicou o duque — o Paulo Emílio de Antuérpia foi Joyeuse! e provavelmente, para em tudo se parecer com o seu heróico modelo, teu irmão foi morto, não, de Bouchage?
Esta pergunta tão fria dilacerou o coração de Henrique.
— Não, meu Senhor — respondeu ele —, ainda vive.
— Ah!... ainda bem — disse o duque, com o seu sorriso glacial. — Pois quê!? o nosso valente Joyeuse sobreviveu?!... Aonde está ele para lhe dar um abraço?
— Não está aqui, meu Senhor.
— Ah! sim: ficou ferido...
— Não, meu Senhor: escapou são e salvo.
— Mas fugitivo como eu... errante, esfomeado... cheio de vergonha, infelizmente! Bem certo é o ditado: Para a glória a espada, depois da espada sangue, e depois do sangue lágrimas.
— Meu Senhor, eu não sabia do ditado, e estimo muito poder participar a Vossa Alteza, apesar do ditado, que meu irmão teve a fortuna de salvar três mil homens, com os quais está ocupando uma grande aldeia distante daqui sete léguas; e eu, que aqui estou falando a Vossa Alteza, sou o comandante dos exploradores do seu exército.
O duque empalideceu.
— Três mil homens?! — exclamou — e foi Joyeuse quem salvou três mil homens?... Sabes que teu irmão é um verdadeiro Xenofonte! Bem avisado andou meu irmão em me mandar o teu, quando não voltava eu só para França... Viva Joyeuse, por Deus! fora com a Casa de Valois! não é ela por certo que pode tomar por divisa: Hilariter.
— Meu Senhor! oh meu Senhor!... — murmurou de Bouchage, sufocado de dor por ver que aquela hilaridade do príncipe encobria um sombrio e doloroso ciúme.
— Não, por minha alma! falo verdade... não é assim, Aurilly? Voltamos para França como Francisco depois da batalha de Pavia. Tudo perdemos, e a honra também! Ah! ah! ah! agora achei eu a divisa da Casa Real da França...
Um triste silêncio seguiu-se a estas risadas pungentes, como se fossem sentido choro.
— Meu Senhor — interrompeu Henrique —, conte-me como foi que o deus tutelar da França salvou Sua Alteza.
— Ah! meu caro conde, o caso é simples: penso que o deus tutelar da França tinha naquela ocasião algum negócio mais importante entre mãos, de forma que me salvei a mim mesmo.
— E de que maneira, meu Senhor?
— Correndo a toda a brida.
Ninguém sorriu ao ouvir este gracejo, que o duque teria decerto castigado com pena de morte se tivesse sido proferido por outro que não fosse ele.
— Foi assim mesmo. Corremos quanto podíamos!... Não é verdade, meu valente Aurilly?
— Todos nós — disse Henrique — sabemos a que ponto chega o frio denodo e génio militar de Vossa Alteza, por isso lhe rogamos que não nos dilacere o coração fazendo a si mesmo censuras que não merece. Nenhum general é invencível, por melhor que seja, e o próprio Aníbal foi derrotado em Zama.
— Pois sim — respondeu o duque —, mas Aníbal tinha ganho as batalhas de Trébia, de Trasimeno e de Canas, enquanto eu apenas ganhei a de Château-Cambrésis; e isto na realidade não basta para estabelecer a comparação.
— Porém Vossa Alteza está evidentemente gracejando quando diz que fugiu...
— Não, por Deus! não estou gracejando! e demais, achas porventura que haja motivo para gracejar, de Bouchage?...
— E que outro partido podíamos nós tomar, Senhor Conde?... — disse Aurilly, julgando que era preciso auxiliar o amo.
— Cala-te, Aurilly — disse o duque —, pergunta à sombra de Saint-Aignan se era possível deixar de fugir.
Aurilly abaixou a cabeça.
— Ah! os senhores não sabem a história de Saint-Aignan?... Pois vou contar-lha... em três caretas.
A este gracejo, que, naquelas circunstâncias, se tornava odioso, os oficiais encresparam as sobrancelhas, sem lhes importar se lhe desagradavam ou não.
— Imaginem pois, Senhores — disse o príncipe, sem dar o menor indício de ter reparado naquele sinal de desaprovação —, que, no momento em que se declarava que estava perdida a batalha, conseguiu reunir quinhentos cavalos, e, em vez de retirar, como toda a gente, veio ter comigo, e disse-me:
«-— É preciso carregar, meu Senhor.
«— O quê!? carregar?! — respondi — está doido, Saint-Aignan! são cem contra um... «— Ainda que fossem mil — retorquiu ele, fazendo uma horrível careta —, hei-de carregar! «— Pois carregue, meu caro, carregue; eu é que não estou resolvido a carregar. «— Contudo, dar-me-á previamente o seu cavalo, que já não pode andar, e ficará com o meu, que está folgado; para mim, como não quero fugir, todo o cavalo é bom.
«E, com efeito, montou no meu cavalo branco e deu-me o seu cavalo preto, dizendo-me: «— Príncipe, esse cavalo é capaz de correr vinte léguas em quatro horas, se quiser. «Em seguida, voltando-se para a sua gente: «— Vamos, Senhores — disse ele —, acompanhem-me; para a frente quem não quer virar
as costas!
«E arremeteu para o inimigo, com uma segunda careta ainda mais horrível do que a primeira. Pensava que ia encontrar homens, mas encontrou água; eu já desconfiava disso mesmo. Saint-Aignan e os seus paladinos lá ficaram. Se ele me tivesse atendido, em lugar de praticar tão inútil valentia, tê-lo-íamos connosco a esta mesa e não estaria fazendo a estas horas uma terceira careta, muito mais feia provavelmente do que as duas primeiras.»
Um arrepio de horror fez estremecer todos os circunstantes.
« Aquele miserável não tem coração, pensou Henrique. Oh! é pena que a sua desgraça, a sua infâmia, e sobretudo o seu nascimento, o ponham a salvo do desafio que qualquer de nós tanto gosto teria em lhe dirigir!
— Senhores — disse em voz baixa Aurilly, que viu o efeito terrível que produziram as palavras do príncipe no meio daquele auditório de gente de brio —, observem como Sua Alteza está fora de si e não façam caso das suas palavras: desde a desgraça que lhe sucedeu, parece-me que tem realmente momentos de delírio.
— E cá está — prosseguiu o príncipe, despejando o copo — como foi que Saint-Aignan morreu e eu fiquei vivo; mas ainda assim, com a sua morte prestou-me um derradeiro serviço: como estava montado no meu cavalo, fez com que todos se persuadissem de que era eu que tinha morrido; de forma que esse boato espalhou-se não somente no exército francês mas também no exército flamengo, que então afrouxou em me perseguir: Porém fiquem descansados, Senhores: os nossos bons amigos flamengos não hão-de levar o negócio às mãos lavadas; havemos de tirar uma desforra, Senhores, e bem sanguinolenta; desde ontem, estou organizando, mentalmente por enquanto, o exército mais formidável que até hoje tem existido.
— Entretanto, meu Senhor — disse Henrique —, queira Vossa Alteza tomar o comando da minha gente; já não me cumpre a mim, simples fidalgo, dar uma única ordem onde está um príncipe francês.
— Pronto — disse o príncipe. — E começo por ordenar a todos que ceiem, e particularmente ao Sr. de Bouchage, pois nem sequer tocou no prato.
— Eu não tenho vontade de comer, meu Senhor.
— Pois se assim é, de Bouchage, meu amigo, volte a rondar os postos; participe aos chefes que eu ainda estou vivo, mas peço-lhes que moderem a sua alegria, para que não se espalhe a notícia enquanto não estivermos metidos numa cidadela melhor que esta, ou reunidos com o corpo do exército do nosso invencível Joyeuse, pois confesso-lhes que, visto ter escapado do fogo e da água, não tenho presentemente desejo algum de vir a ficar ainda prisioneiro.
— Meu Senhor, obedecerei rigorosamente a Vossa Alteza e, à excepção destes senhores, ninguém saberá que nos faz a honra de permanecer entre nós.
— E estes senhores guardarão segredo? — perguntou o príncipe. Todos se inclinaram.
— Vá à ronda, conde, vá.
De Bouchage saiu da sala. Tinha bastado, como se vê, um único instante, para que aquele vagabundo, aquele fugitivo, aquele vencido, reassumisse a sua altivez e o seu modo imperioso. Dar ordens a cem homens ou a cem mil, sempre é dar ordens; o duque de Anjou teria feito o mesmo com Joyeuse. Os príncipes nunca exigem aquilo que julgam merecer, mas sim aquilo que julgam que lhes é devido.
Enquanto de Bouchage ia executar com a maior pontualidade a ordem que recebera, por isso que não queria mostrar-se despeitado por ter de obedecer, Francisco fazia suas indagações, e Aurilly, que seguia como uma sombra todos os movimentos do amo, também fazia perguntas. O duque achava extraordinário que um homem com o nome e com a categoria de de Bouchage tivesse consentido em tomar assim o comando de um punhado de homens e se houvesse incumbido de uma expedição tão arriscada. A comissão era com efeito mais própria para um simples alferes do que para o irmão do almirante-mor. Para o príncipe tudo era motivo de desconfiança, e toda a desconfiança precisava ser esclarecida. Insistiu pois, e soube que o almirante-mor tinha encarregado o irmão do reconhecimento a poder de muitos rogos deste. O indivíduo que dava esta informação ao duque, e que o fazia sem más tenções, era o alferes da cavalaria de Aunis que havia recolhido de Bouchage, e a quem este tinha tirado o comando, assim como o duque acabava agora de o tirar a de Bouchage. Tinha parecido ao príncipe que no coração do alferes havia um ligeiro sentimento de irritabilidade contra de Bouchage, e era esse o motivo por que o interrogava a ele particularmente.
— Mas — perguntou o príncipe — qual era então o projecto do conde, para solicitar com tanta instância um tão insignificante comando?
— Prestar um serviço ao exército, em primeiro lugar — disse o alferes — (e desse sentimento não duvido eu)...
— Em primeiro lugar, disse o senhor?... qual é o segundo?
— Ah! meu Senhor — replicou o alferes —, não sei.
— Está-me enganando, ou está-se enganando a si mesmo; sabe muito bem o que pretendo que me diga.
— Meu Senhor, não posso ser obrigado a dar contas, mesmo a Vossa Alteza, senão do meu serviço, e nada mais.
— Bem vêem, Senhores — disse o príncipe, voltando-se para os poucos oficiais que tinham ficado à mesa —, que me assistia toda a razão em querer conservar-me incógnito, pois há no meu exército segredos de que sou excluído.
— Ah! meu Senhor — replicou o alferes —, Vossa Alteza engana-se a respeito do motivo da minha discrição; eu só tenho segredos pelo que toca ao Sr. de Bouchage; não se poderia dar o caso de que o Sr. Henrique, ao passo que servia a todos em geral, quisesse também obsequiar algum parente ou amigo, fazendo-o escoltar?...
— Qual é então o parente ou amigo do conde que aqui se acha? digam! quero-o abraçar.
— Meu Senhor — disse Aurilly, vindo meter-se na conversa com a respeitosa familiaridade a que estava costumado —, meu Senhor, descobri agora mesmo parte do segredo, e não é coisa que possa motivar a desconfiança de Vossa Alteza. O parente que o Sr. de Bouchage queria fazer escoltar, é...
— Então? — disse o príncipe — acaba, Aurilly!
— Pois bem! é uma Parente, meu Senhor.
— Ah! ah! ah! — exclamou o duque — porque não me disse isso francamente, o meu caro Henrique?... Não há coisa mais natural... Está bom, está bom: fechemos os olhos a respeito da parenta, e não se fale mais em semelhante coisa.
— Vossa Alteza fará muito bem — disse Aurilly —, porque a coisa é muitíssimo misteriosa.
— Como assim!?
— Sim, a dama em questão, a exemplo da célebre Bradamanta, de quem tenho cantado a xácara mais de vinte vezes a Vossa Alteza, está disfarçada em trajo de homem.
— Oh! meu Senhor — disse o alferes —, peço licença para observar a Vossa Alteza que o Sr. Henrique pareceu-me tratar a tal senhora com o maior respeito, e levaria provavelmente a mal qualquer indiscrição...
— Sem dúvida, sem dúvida, Senhor Alferes; fique descansado, que havemos de ser mudos como sepulcros... ou como o pobre Saint-Aignan; contudo, se virmos a dama, trataremos de não lhe fazer caretas. Ah! Henrique tem consigo uma parenta... e assim no meio dos soldados?.. . e onde está a tal parenta, Aurilly?
— Lá em cima.
— Como!? lá em cima, nesta mesma casa?!
— Sim, meu Senhor. Mas caluda! aí vem o Sr. de Bouchage...
— Caluda! — repetiu o príncipe, dando uma gargalhada.
UMA DAS RECORDAÇÕES DO DUQUE DE ANJOU
O mancebo, quando entrou, ainda ouviu a funesta gargalhada do príncipe; mas não tinha tido suficiente trato com Sua Alteza para saber quanto era ameaçadora uma manifestação de alegria do duque de Anjou.
Também teria podido perceber, pela perturbação das fisionomias de alguns dos circunstantes, que o duque havia interrompido, ao vê-lo entrar, uma conversação que lhe era hostil.
Porém Henrique não era bastante desconfiado para adivinhar do que se tratava; e não estava presente ninguém que fosse tão seu dedicado amigo que lho dissesse na cara do duque.
Demais, Aurilly estava alerta, e o duque, que provavelmente já formara o seu plano, procurou deter Henrique junto a si, até saírem todos os oficiais que tinham ouvido a conversa.
O duque havia feito algumas mudanças na distribuição dos postos.
Henrique, enquanto estava só, tinha julgado conveniente ficar no centro da aldeia, visto que era ele o chefe, e estabelecer o seu quartel-general na casa de Diana.
Para o ponto mais importante depois daquele, que era o do rio, destinara ele o alferes.
O duque, tomado chefe em lugar de Henrique, passava a ocupar o posto que este reservara para si, e mandava Henrique para onde devia ir o alferes.
Henrique não se admirou desta disposição.
O príncipe tinha notado que aquele ponto era o mais importante, e confiava-lho a ele: era a coisa mais natural; tão natural, que toda a gente, começando pelo próprio Henrique, se enganou a respeito das intenções do duque.
Entretanto, julgou acertado fazer algumas recomendações ao alferes da cavalaria e aproximou-se dele.
Era também muito natural confiar à sua protecção as duas pessoas por quem se interessava, e que se via obrigado a abandonar momentaneamente.
Mas, logo às primeiras palavras que Henrique disse ao alferes, interveio o duque.
— Temos segredos... — disse ele, sorrindo.
O oficial tinha percebido, se bem que já tarde, que acabava de cometer uma indiscrição. Estava arrependido e, querendo vir em auxílio do conde:
— Não, meu Senhor — respondeu ele —, o Senhor Conde está-me perguntando unicamente quantos arráteis tenho ainda de pólvora enxuta e em estado de servir.
Esta resposta visava dois fins, ou, mais exactamente, dois resultados: o primeiro, era desvanecer as suspeitas do duque, se algumas tinha; o segundo, indicar ao conde que podia contar com um auxiliar.
— Ah! está bom — replicou o duque, que não podia deixar de dar crédito àquelas palavras sem comprometer a sua dignidade de príncipe, descendo ao repugnante ofício de espião.
— Sua Alteza já sabe que o senhor tem alguém na sua companhia — disse o alferes ao ouvido de Henrique.
De Bouchage estremeceu; mas já era tarde. O estremecimento não escapara ao duque e, figurando que desejava certificar-se por seus próprios olhos se tinham sido cumpridas as ordens que havia dado, ofereceu-se ao conde para o acompanhar até ao posto, oferecimento este que o conde não pôde deixar de aceitar.
Henrique bem teria querido avisar Rémy que se acautelasse, e que fosse preparando alguma resposta; mas já não era possível: o que pôde unicamente fazer foi despedir-se do alferes com estas palavras:
— Vigiará o depósito da pólvora como eu o vigiaria se aqui ficasse, não é assim?
— Sim, Senhor Conde — respondeu o oficial.
O duque, pelo caminho, perguntou a de Bouchage:
— Onde está a pólvora que recomendou ao nosso jovem oficial, conde?
— Na casa onde eu tinha estabelecido o quartel-general, Alteza.
— Fique descansado, de Bouchage — replicou o duque —, eu sei avaliar a importância de um tal depósito na situação em que nos achamos, e hei-de prestar-lhe toda a atenção. Não há-de ser o nosso jovem alferes quem o há-de vigiar, hei-de ser eu mesmo.
A conversa parou aqui. Chegaram, sem dar mais palavra, à confluência do rio com a ribeira; o duque recomendou muito a de Bouchage que não desamparasse o seu posto, e voltou. Foi ter com Aurilly; este não tinha saído da sala da ceia, e estava dormindo deitado sobre um banco e embuçado num capote de oficial. O duque bateu-lhe no ombro para o acordar. Aurilly esfregou os olhos, e olhou para o príncipe.
— Preciso da tua ajuda.
— Estou às suas ordens, meu Senhor — respondeu Aurilly.
— Aposto que não sabes a que me refiro...
— Ora essa! à dama incógnita, à parenta do Senhor Conde de Bouchage.
— Bom; já vejo que o jogo de Bruxelas e a cerveja de Lovaina ainda não te tornaram a cabeça muito obtusa.
— Experimente, meu Senhor: fale ou faça-me apenas um aceno, e verá Vossa Alteza que estou com o engenho mais apurado do que nunca.
— Então vejamos: chama toda a tua imaginação em teu auxílio e adivinha.
— Pois bem, meu Senhor: adivinho que Vossa Alteza está com muita curiosidade.
— Ah! grande admiração!... isso é apenas a consequência do meu temperamento; não, trata-se unicamente de me dizeres o que é que desperta neste momento a minha curiosidade.
— Quer saber quem é a criatura denodada que atravessa fogo e água para acompanhar os dois Srs. de Joyeuse?...
— Per mille pericula Martis! diria minha irmã Margarida, se aqui estivesse; deste com o vinte, Aurilly! — É verdade... já lhe escreveste, Aurilly?
— A quem, meu Senhor?
— A minha irmã Margarida.
— Era preciso que eu escrevesse a Sua Majestade?
— Decerto.
— Acerca de quê?
— Boa pergunta! para lhe contar que nos batemos e que ficámos derrotados, para ela tomar conta de si.
— Por que motivo, meu Senhor?
— Pelo motivo de que a Espanha, vendo-se livre de mim no Norte, vai agredi-la a ela no Sul.
— Ah!... não há dúvida.
— Não lhe escreveste, então?
— Não me lembrou, meu Senhor.
— Porque adormeceste.
— Confesso que sim; mas ainda mesmo que me tivesse ocorrido a ideia de lhe escrever, como o poderia fazer, meu Senhor?... não tenho aqui papel, nem tinta, nem pena...
— Então procura. Quaere et invenies, diz o Evangelho.
— Como demónio quer Vossa Alteza que eu ache tudo isso na choupana de um aldeão que nunca soube provavelmente o que é escrever?...
— Procura, toleirão! e se não achares o que procuras, então...
— Então, quê?
— Sempre encontrarás alguma outra coisa.
— Oh! que pateta sou! — exclamou Aurilly, batendo na testa. — É verdade! Vossa Alteza tem razão: a minha cabeça vai-se tornando romba; isto provém de eu estar com imensa vontade de dormir, meu Senhor.
— Está bom, está bom, não me custa a acreditar; despede o sono por um instante e, já que não escreveste, escreverei eu; procura-me, porém, tudo quanto é preciso para escrever; busca, Aurilly, busca, e não voltes enquanto não tiveres achado; eu fico aqui.
— Vou já, meu Senhor.
Aurilly levantou-se e dirigiu-se, ligeiro como um pássaro, para o quarto imediato, que era onde começava a escada. Aurilly era leve como um pássaro; por isso apenas se ouviu um pequeno estalo no momento em que pôs o pé no primeiro degrau, mas nenhuma outra bulha deu a conhecer a tentativa. Passados cinco minutos, veio ter com o amo, que tinha ficado, conforme dissera, na sala principal.
— Então? — perguntou este.
— Meu Senhor, depreendo de quanto vi que a casa deve ser excessivamente pitoresca.
— Por que razão?
— Porque não entra nela quem quer, meu Senhor.
— Que dizes!?
— Digo que há um dragão de guarda a ela.
— Que estulto gracejo é esse, Aurilly!?
— Ah! meu Senhor, não é, infelizmente, um estulto gracejo, é uma triste verdade. O tesouro está no primeiro andar, num quarto por trás de uma porta, por baixo da qual se vê brilhar luz.
— Bem; e depois?
— Vossa Alteza quer dizer antes...
— Aurilly!...
— Sim, meu Senhor: antes de chegar à porta, dá-se com um homem que está deitado à entrada dela, e coberto com um grande capote cinzento.
— Oh! oh! o Sr. de Bouchage atreve-se a destacar um soldado de cavalaria para lhe guardar a porta da amante?!
— Não é um soldado de cavalaria, meu Senhor, é algum criado da dama, ou talvez do conde.
— E que casta de homem é?
— Não é possível ver-lhe o rosto, meu Senhor; mas o que se vê perfeitamente é uma grande faca flamenga que tem metida no cinto, e sobre cujo cabo descansa uma vigorosa mão.
— É célebre! — disse o duque — vai acordar o tal patusco, Aurilly.
— Oh! isso não, meu Senhor.
— Que dises tu!?
— Digo que, além do muito respeito que tenho à faca flamenga, não estou disposto a tornar meus inimigos mortais os Srs. de Joyeuse, que são muito bem vistos na corte. Se fôssemos rei dos Países Baixos, ainda me abalançaria a isso; porém, nas nossas actuais circunstâncias, é necessário mostrar afabilidade, meu Senhor, e especialmente àquelas pessoas que nos salvaram; porque não há dúvida que foram os Joyeuses que nos salvaram... E olhe, meu Senhor, que se não o disser, di-lo-ão eles.
— Tens razão, Aurilly — disse o duque, batendo o pé no chão —, muita razão; e contudo...
— Sim, percebo: contudo, há mais de quinze dias que Vossa Alteza não vê um único rosto de mulher. Eu não me refiro à espécie de animais que povoam as campinas desta terra, pois não merecem o nome de homens nem de mulheres: são machos e fêmeas, nada mais.
— Eu quero ver a amante de de Bouchage, Aurilly; quero vê-la, ouviste?
— Sim, meu Senhor, ouvi muito bem.
— Pois então, responde-me.
— Pois, meu Senhor, respondo que Vossa Alteza poderá vê-la talvez, mas não há-de ser pela porta decerto.
— Embora — replicou o príncipe —, se não puder vê-la pela porta, vê-la-ei pela janela ao menos.
— Ah! bem lembrado, meu Senhor! E para prova de que a ideia me parece excelente, vou já procurar uma escada de mão.
Aurilly saiu ao pátio e foi dar com uma alpendrada debaixo da qual os soldados da cavalaria tinham recolhido os cavalos. Depois de algumas pesquisas, achou um objecto que quase sempre se encontra debaixo de uma alpendrada, isto é, uma escada de mão. Manobrou com ela pelo meio dos homens e dos animais, com a precisa destreza para não acordar uns e levar coices dos outros, e, saindo à rua, aplicou-a à parede exterior da casa.
Era preciso ser príncipe e desprezar soberbamente os preconceitos do vulgo, como sucede em geral com os déspotas de direito divino, para se atrever, na presença da sentinela que passeava em frente da porta da casa onde estavam os prisioneiros, a cometer uma acção tão audaciosamente insultante, a respeito de de Bouchage, como aquela que o príncipe se dispunha a pôr em prática. Aurilly fez com que o príncipe reparasse na sentinela, a qual, não sabendo quem eram aqueles dois homens, se aprontava para lhes bradar:
— Quem vem lá!?
Francisco encolheu os ombros, e caminhou em direitura ao soldado. Aurilly seguiu-o.
— Meu amigo — disse o príncipe —, este lugar é o ponto mais elevado da aldeia, não é assim?
— Sim, meu Senhor — disse a sentinela, que, tendo conhecido que era o duque, lhe fez continência —, e se a vista não fosse interceptada por aquelas tílias além, descobrir-se-ia parte do campo, graças ao luar que está.
— Bem me queria a mim parecer — disse Francisco —, por isso mandei para aqui trazer aquela escada de mão, para ver por cima das árvores. Sobe, Aurilly... ou não: será melhor que eu mesmo suba; um príncipe deve ver tudo pelos seus próprios olhos.
— Onde determina Vossa Alteza que eu encoste a escada? — perguntou o hipócrita criado.
— Eu sei lá... Onde te der jeito... a esta parede, por exemplo. Apenas se firmou a escada, o príncipe subiu.
A sentinela, ou porque desconfiasse do projecto do príncipe, ou por discrição natural, voltou a cabeça para o lado oposto.
O príncipe trepou ao cimo da escada; Aurilly conservou-se em baixo.
O quarto onde Henrique havia encerrado Diana era forrado de esteira e tinha por mobília um leito grande de carvalho, com cortinas de sarja, uma mesa e algumas cadeiras.
A dama, cujo coração parecia aliviado de um enorme peso desde a falsa notícia da morte do príncipe, que lhe tinha constado no acampamento da cavalaria de Aunis, pedira a Rémy que lhe trouxesse qualquer coisa de comer, ordem que este havia cumprido prontamente e com indizível satisfação.
Era aquela a primeira vez que Diana provava uma comida mais substancial do que pão, desde a noite em que recebera a notícia da morte do pai; e pela primeira vez também bebera algumas gotas de vinho do Reno, que os soldados haviam encontrado na adega e oferecido a de Bouchage.
Depois de ter comido, se bem que muito parcamente, o sangue de Diana, açoitado por tanta comoção violenta e tão inauditas fadigas, afluiu-lhe mais impetuosamente ao coração, cujo caminho parecia ter olvidado; Rémy viu que ela fechava os olhos e deixava pender a cabeça sobre o ombro.
Saiu do aposento devagarinho e, como já vimos, foi-se deitar atravessado à entrada da porta, não porque tivesse a menor desconfiança, mas porque era aquele o seu costume desde que tinha saído de Paris.
Depois de tomadas por ele aquelas disposições para a segurança da sua ama durante a noite, é que Aurilly tinha encontrado Rémy deitado no corredor.
Quanto a Diana, tinha adormecido com o cotovelo encostado à mesa, e a cabeça descansada sobre a mão.
O seu corpo, flexível e delicado, estava reclinado sobre uma cadeira de espaldar; um candeeiro de ferro, colocado sobre a mesa, junto de um prato com restos de comida, alumiava aquela cena de interior, que tão tranquila parecia à primeira vista, mas onde acabava de amainar o furor de uma tempestade que em breve ia reaparecer.
O vinho do Reno, que Diana apenas havia chegado aos lábios, resplandecia, puro como um diamante em estado de fusão, num grande copo de cristal, de feitio de cálice, o qual, situado entre o candeeiro e Diana, quebrava os raios da luz e lhe realçava a alvura do rosto.
Diana, assim encostada, com os olhos ocultos pelas pálpebras, em que serpeavam azuladas veias, com a boca levemente aberta e o cabelo deitado para trás por cima do capuz do fato grosseiro de homem que trajava, devia necessariamente aparecer como uma visão sublime aos olhos do indivíduo que se dispunha a devassar o segredo do seu retiro.
O duque, ao avistá-la, não pôde reprimir um movimento de admiração; encostou-se ao parapeito da janela, e devorou com a vista até os mais insignificantes pormenores daquela ideal formosura.
De repente, no meio da sua contemplação, contraíram-se-lhe as sobrancelhas, e desceu dois degraus com uma espécie de precipitação nervosa.
Naquela situação, o príncipe já não ficava exposto aos reflexos luminosos da janela, que parecia querer evitar; encostou-se à parede, cruzou os braços sobre o peito, e assim se conservou por um instante, a meditar.
Aurilly, que não o perdia de vista, pôde então perceber que ele estava com o olhar parado, como um homem que procura chamar a si recordações antigas e quase desvanecidas.
Passados dez minutos de meditação e imobilidade, o duque tornou a trepar à janela, espreitou outra vez pelos vidros, mas não conseguiu provavelmente certificar-se do que desejava, porque ficou com o mesmo gesto carregado e a mesma imobilidade no olhar.
Estava neste ponto das suas averiguações, quando Aurilly se chegou apressadamente ao pé da escada.
— Depressa, depressa, meu Senhor! venha para baixo — disse Aurilly —; ouço passos de alguém na extremidade da rua próxima...
Porém o duque, em vez de atender a este aviso, desceu vagarosamente, sem que diminuísse por maneira alguma o afinco com que interrogava as suas recordações.
— Já era tempo! — disse Aurilly.
— Para que lado ouviste o ruído? — perguntou o duque.
— Para esse lado — disse Aurilly, estendendo a mão na direcção de uma espécie de travessa escura.
O príncipe escutou.
— Não ouço coisa alguma — disse ele.
— É porque o indivíduo parou, decerto; deve ser algum espião que nos está espreitando.
— Tira a escada — disse o príncipe.
Aurilly obedeceu; o príncipe, entretanto, foi sentar-se num dos bancos de pedra que havia dos dois lados da porta da casa.
O barulho não se repetiu, e não aparecia pessoa alguma no fim da travessa. Aurilly voltou.
— Então, meu Senhor? — perguntou ele — é formosa a dama?
— Muito formosa — respondeu o príncipe, com um ar sombrio.
— Por que razão ficou tão triste, então, meu Senhor? Ela viu-o porventura?
— Está dormindo.
— Se é assim, por que motivo está tão preocupado? O príncipe não respondeu.
— É morena?... ou loura?... — indagou Aurilly.
— É caso singular, Aurilly... — murmurou o príncipe — eu já vi aquela mulher em qualquer parte...
— Então conhece-a, é?
— Não: porque não posso aplicar nome algum àquele rosto; todavia, mal encarei com ela senti uma pancada violenta no coração.
Aurilly olhou para o príncipe muito admirado, e depois, com um sorriso de que não procurou disfarçar a ironia:
— Ora! uma coisa assim... — disse ele.
— Faz favor de não te rires — replicou secamente Francisco —, não vês que estou sofrendo?...
— Oh! meu Senhor, será possível!? — exclamou Aurilly.
— Sim, na verdade, é como te digo... não sei o que sinto; mas — acrescentou tristemente — parece-me que fiz mal em espreitar.
— Contudo, justamente por causa da impressão que a vista dessa mulher produziu no Senhor Duque, é preciso sabermos quem ela é, meu Senhor.
— É preciso, por certo — disse Francisco.
— Procure bem na sua lembrança, meu Senhor; teria sido na corte que a viu?
— Parece-me que não.
— Em França? na Navarra?... na Flandres?...
— Nada.
— É alguma espanhola, se calhar...
— Não creio.
— Alguma inglesa?... alguma dama da rainha Isabel, hem?...
— Não, não! esta mulher está ligada à minha vida de algum modo mais íntimo: desconfio que já me apareceu em alguma circunstância terrível...
— Então facilmente se recordará dela, pois, graças a Deus, Vossa Alteza não tem tido na sua vida muitas dessas circunstâncias a que alude.
— Achas?... — disse Francisco, com um sorriso fúnebre. Aurilly inclinou-se.
— Sabes que mais? — disse o duque — já me sinto bastante senhor de mim para analisar as minhas sensações: aquela mulher é formosa à maneira de uma defunta, formosa como uma sombra, formosa como as figuras que aparecem nos sonhos; e por isso também me quer parecer que foi num sonho que a vi. E eu já tive na minha vida dois ou três sonhos horríveis, e todos eles me deixaram como um arrepio no coração. Pois agora afirmo-te, com toda a certeza, que foi em algum desses sonhos que eu vi a mulher que está lá em cima.
— Meu Senhor, meu Senhor! — exclamou Aurilly — permita-me Vossa Alteza que lhe diga que mui raras vezes lhe tenho ouvido exprimir tão dolorosamente a sua susceptibilidade em matéria de sono: o coração de Vossa Alteza é felizmente de tão boa têmpera, que pode lutar com o mais rijo aço, e estou convencido de que nem vivos nem mortos são capazes de lhe fazer mossa: digo-lhe, meu Senhor, que se eu não estivesse sentindo o peso dos olhos que nos estão espreitando daquela rua, também treparia à escada, e prometo-lhe que havia de acabar com o sonho, a sombra e o arrepio de Vossa Alteza.
— Parece-me que tens razão, Aurilly. Vai buscar a escada, arruma-a à janela, e sobe; que importa o espreitador! não me pertences tu a mim?... Vai ver, Aurilly, vai ver...
Aurilly já tinha dado alguns passos para obedecer ao amo, quando de repente se ouviram pés de alguém que vinha correndo, e Henrique bradou para o duque:
— Alerta, meu Senhor, alerta!
Aurilly, num pulo, veio para o pé do duque.
— Tu?! — disse o príncipe — tu aqui, conde?! qual foi o motivo por que abandonaste o teu posto!?
— Meu Senhor — respondeu Henrique com firmeza —, se Vossa Alteza julgar que deve mandar castigar-me, pode fazê-lo. Entretanto, era meu dever vir aqui, e por isso vim.
O duque, com um sorriso expressivo, lançou os olhos para a janela.
— Teu dever, conde?... Explica-te melhor — disse.
— Meu Senhor, apareceram alguns cavaleiros para a banda do Escalda, e não se sabe se serão amigos ou inimigos.
— São muitos? — perguntou o duque, com sobressalto.
— É um grupo bastante numeroso, meu Senhor.
— Pois então, conde, nada de fanfarronice! fizeste bem em voltar. Manda acordar os soldados. Sigamos à margem da ribeira, que é menos larga, e tratemos de nos pôr ao fresco; é o partido mais prudente.
— Não há dúvida, meu Senhor, não há dúvida; mas parece-me que seria conveniente avisar quanto antes meu irmão...
— Bastarão dois homens.
— Se bastam dois homens, meu Senhor — disse Henrique —, irei eu com um soldado.
— Nada! — acudiu logo Francisco — hás-de acompanhar-nos. Num lance como este, não quero separar-me de um defensor como tu.
— Vossa Alteza leva consigo toda a escolta?
— Toda.
— Muito bem, meu Senhor — replicou Henrique, inclinando-se —, quando quer Vossa Alteza partir?
— Imediatamente, conde.
— Olá! venha alguém! — gritou Henrique.
O jovem alferes saiu da travessa como se estivesse ali à espera daquela ordem do seu chefe para aparecer.
Henrique deu-lhe as suas ordens, e pouco tardou que viessem recolhendo os soldados de todas as extremidades da aldeia, para formarem no largo, prontos a marchar.
No centro deles estava o duque conversando com os oficiais.
— Senhores — disse ele —, o príncipe de Orange, segundo me quer parecer, mandou-me perseguir; mas não convém que um príncipe francês fique prisioneiro sem ter a desculpa de uma batalha como a de Poitiers ou de Pavia. Cedamos pois ao número, retiremos para Bruxelas. Estou certo de que não há-de perigar a minha vida, nem a minha liberdade, enquanto me conservar no meio de vós.
Depois, voltando-se para Aurilly:
— Tu ficarás aqui — disse-lhe —, a mulher que está aí não pode vir connosco. E demais, eu tenho bastante conhecimento dos Joyeuses, para saber que este não se atreverá a levar a amante consigo na minha presença. Além de que nós não vamos para nenhum sarau; e o passo em que havemos de andar fatigaria essa senhora.
— Para onde vai Vossa Alteza?
— Para França; parece-me que estão aqui completamente transtornados os meus negócios.
— Mas para que parte da França? Vossa Alteza julga que será prudente voltar para a corte?...
— Não, por certo; é muito provável que fique pelo caminho, em algum dos meus apanágios... Em Château-Thierry, por exemplo.
— Vossa Alteza ainda não resolveu onde há-de ser?
— Sim, Château-Thierry convém-me por todos os respeitos; fica a boa distância de Paris (são vinte e quatro léguas); de lá poderei vigiar os Srs. de Guisa, que passam metade do ano em Soissons. Levar-me-ás pois a bela incógnita para Château-Thierry.
— Porém, meu Senhor... pode ser que ela não se deixe levar...
— Estás louco!?... Visto que de Bouchage me acompanha para Thierry, e que ela segue de Bouchage, o negócio caminhará por si mesmo.
— Mas pode ser que ela queira ir para outra parte, se me vir disposto a conduzi-la para onde for o Senhor Duque...
— Não é para onde eu for que a hás-de conduzir, torno a dizer — é para onde for o conde. Ora esta! pela minha honra te digo que parece ser a primeira vez que me ajudas em semelhantes circunstâncias!... Tens dinheiro?
— Tenho os dois cartuxos de ouro que Vossa Alteza me deu à saída do acampamento.
— Mete pois mãos à obra. E emprega todos os meios possíveis — todos, percebes? — para me trazeres a minha bela incógnita a Château-Tierry; pode ser que eu conheça quem ela é, vendo-a mais de perto...
— E o criado também?
— Também, se não te incomodar.
— E se me incomodar?...
— Faz-lhe o mesmo que se faz a uma pedra em que se dá uma topada: atira-o para dentro de um fosso.
— Muito bem, meu Senhor.
Enquanto os dois fúnebres conspiradores combinavam os seus planos no escuro, Henrique subiu ao primeiro andar e acordou Rémy.
Rémy, apenas soube do que se tratava, bateu à porta de certo modo, e a dama abriu-a imediatamente.
Viu de Bouchage por detrás de Rémy.
— Boa noite, Senhor — disse ela, com um sorriso de que o seu rosto já estava desacostumado.
— Oh! desculpe-me, minha Senhora — respondeu prontamente o conde —, eu não venho importuná-la, venho unicamente despedir-me da senhora.
— Despedir-se?! vai marchar, Senhor Conde?
— Para França, sim, minha Senhora.
— E abandona-nos aqui?
— Sou obrigado a isso, minha Senhora, pois o meu primeiro dever é obedecer ao príncipe.
— Ao príncipe?... há algum príncipe aqui? — disse Rémy.
— Que príncipe? — perguntou Diana empalidecendo.
— O Senhor Duque de Anjou, que todos julgavam morto, e que escapou milagrosamente, está connosco.
Diana soltou um grito espantoso, e Rémy tornou-se tão pálido que parecia ter sido subitamente ferido de morte.
— Repita-me — balbuciou Diana — que o Senhor Duque de Anjou ainda vive... que o Senhor Duque de Anjou está aqui...
— Se não estivesse, minha Senhora, e se não me tivesse ordenado que o seguisse, acompanhá-la-ia até ao convento, para onde, segundo me disse, tenciona retirar-se.
— Sim, sim! — disse Rémy — o convento, minha Senhora, o convento.
E levou um dedo à boca. Diana deu-lhe a conhecer, por um aceno de cabeça, que tinha percebido o sinal.
— E era bem grande o meu desejo de a acompanhar, minha Senhora — prosseguiu Henrique —, por isso que muito receio que seja molestada pelos criados do príncipe.
— Como assim!?
— Sim, tudo me induz a crer que ele já sabe da existência de uma mulher nesta casa, e pensa provavelmente que é alguma amante minha.
— E de que provém essa desconfiança?
— O nosso jovem alferes viu-o encostar uma escada de mão à parede, subir e espreitar por aquela janela.
— Oh!... — exclamou Diana — meu Deus! meu Deus!...
— Sossegue, minha Senhora: ele ouviu também o príncipe dizer ao companheiro que não a conhecia,
— Não importa... não importa... — disse a dama, olhando para Rémy.
— Tudo quanto quiser, minha Senhora, tudo!— disse Rémy, mostrando nas feições uma resolução suprema.
— Não se assuste, minha Senhora — disse Henrique —, o duque vai partir agora mesmo: daqui a um quarto de hora estará só e livre. Conceda-me me pois que a cumprimente com todo o respeito, e que lhe diga outra vez que até ao último suspiro meu coração há-de palpitar pela senhora e para a senhora. Adeus!
E o conde, inclinando-se tão religiosamente como se estivesse em frente de um altar, deu dois passos para trás.
— Não! não! — exclamou Diana, como tresvariada com febre — não! Deus não quis decerto semelhante coisa... Não! Deus tinha morto aquele homem: não é possível que o ressuscitasse! não, não! Senhor, está enganado... o duque morreu!
No mesmo instante, e como para responder àquela invocação dolorosa dirigida à misericórdia celeste, ressoou na rua a voz do príncipe:
— Conde! — gritou ele — estamos à sua espera...
— Ouviu, minha Senhora?... — disse Henrique. — Pela última vez: adeus! E depois de apertar a mão de Rémy, correu pela escada abaixo.
Diana aproximou-se da janela, trémula e convulsa, como um pássaro fascinado por uma cobra das Antilhas.
Avistou o duque a cavalo; dava-lhe no rosto o clarão vermelho dos archotes que dois soldados levavam.
— Oh! ainda está vivo aquele demónio! ainda está vivo!... — murmurou Diana ao ouvido de Rémy, com um acento tão terrível que chegou a assustar o fiel criado. — Está vivo?... pois vivamos também; parte para França?... muito bem, Rémy: é para França que devemos ir.
SEDUÇÃO
Os aprestos da partida da cavalaria tinham causado bastante confusão na aldeia; a partida fez suceder um profundo silêncio ao rumor das armas e das vozes.
Rémy deixou acabar todo aquele barulho; depois, quando imaginou que a casa estava completamente deserta, veio abaixo à sala, para se aprontar também, a fim de partir com Diana.
Porém, ao empurrar a porta da sala, ficou muito admirado de ver um homem sentado junto do fogão, e com o rosto virado para o lado da entrada.
Aquele homem estava evidentemente espreitando a saída de Rémy, se bem que tivesse assumido, ao vê-lo, um ar da maior indiferença.
Rémy aproximou-se, conforme o seu costume, com andar vagaroso e cansado, descobrindo a fronte calva, semelhante à de um ancião carregado de anos.
O indivíduo a quem ele se dirigiu tinha a luz por trás de si, de forma que Rémy não lhe pôde distinguir as feições.
— Perdão, Senhor — disse Rémy —, pensei que estava só, ou quase só.
— Também eu — respondeu o outro — mas vejo com satisfação que terei companheiros.
— Oh! tristes companheiros terá, Senhor — respondeu Rémy —, pois, à excepção de um mancebo doente que eu levo comigo para França...
— Ah! — disse de repente Aurilly, afectando a lhaneza de um burguês compassivo — bem sei o que quer dizer...
— Deveras? — perguntou Rémy.
— Sim: fala da senhora que está lá em cima.
— De qual senhora!? — exclamou Rémy, sempre na defensiva.
— Está bom, está bom! não se enfade, meu rico amigo — respondeu Aurilly —, eu sou mordomo da casa de Joyeuse; vim ter com meu amo por ordem do irmão; e o conde, quando daqui marchou, recomendou-me uma senhora e um criado já idoso, que tencionam voltar para França, depois de o terem acompanhado à Flandres...
O homem, ao passo que falava, ia-se chegando para Rémy, com gesto risonho e afectuoso. Tinha-se colocado, em consequência do movimento que fizera, no meio dos raios da luz, de maneira que a claridade dava-lhe em cheio.
Rémy pôde então vê-lo bem.
Porém, em vez de continuar a caminhar para o seu interlocutor, deu um passo para trás, e um sentimento semelhante ao do horror fulgurou-lhe por um instante no rosto.
— Não responde? dir-se-ia que lhe meto medo... — disse Aurilly, sorrindo com o maior agrado.
— Senhor — respondeu Rémy, afectando voz trémula —, há-de desculpar um pobre velho a quem os infortúnios e as feridas têm tornado tímido e desconfiado.
— Mais uma mão, meu amigo — respondeu Aurilly —, para aceitar o auxílio e o apoio de um companheiro honrado; e demais, como há pouco lhe disse, venho de mando de um amo que deve inspirar-lhe toda a confiança.
— Decerto, Senhor.
E Rémy deu outro passo para trás.
— Vai deixar-me?...
— Vou consultar minha ama; deve compreender que não posso deliberar por mim só.
— Oh! isso é muito natural; mas conceda-me licença que eu mesmo me apresente a ela; explicar-lhe-ei pormenorizadamente a minha missão.
— Não, não, obrigado; pode ser que a senhora ainda esteja dormindo, e o seu sono é sagrado para mim.
— Como quiser. Além de que, eu nada mais tenho a dizer-lhe, senão isto que o meu amo me encarregou de lhe comunicar.
— A mim?
— A si, e à senhora.
— Seu amo, o Senhor Conde de Bouchage, não é assim?
— Ele mesmo.
— Obrigado, Senhor.
Apenas Rémy fechou a porta, todas as aparências de velho, à excepção da fronte calva e da cara enrugada, desapareceram no mesmo instante, e subiu a escada com tal precipitação e tão extraordinário vigor, que ninguém daria mais de vinte e cinco anos àquele homem, que um momento antes figurava ter sessenta.
— Minha Senhora! minha Senhora! — exclamou Rémy com voz sobressaltada, logo que avistou Diana.
— Então? que mais novidades temos, Rémy? o duque não se foi embora?...
— Foi, sim, minha Senhora; mas ficou aqui um demónio mil vezes pior, mil vezes mais temível do que ele! um demónio sobre cuja cabeça tenho chamado todos os dias, por espaço de seis anos, a vingança do Céu, assim como a senhora a chama sobre a cabeça de seu amo, esperando sempre, também, que chegue a ocasião de me vingar por minhas próprias mãos.
— Aurilly, não? — perguntou Diana.
— Aurilly em pessoa! O infame está lá em baixo, esquecido, como uma serpente fora do ninho pelo seu cúmplice.
— Esquecido, dizes tu, Rémy?! oh! estás enganado! tu, que conheces o duque, sabes muito bem que ele não deixa ao acaso a tarefa de fazer mal a ninguém, sempre que o pode fazer por suas mãos; não! não, Rémy! Aurilly não ficou aqui por esquecimento, crê no que te digo — foi o duque que o deixou para algum fim oculto.
— Oh! minha Senhora, tudo quanto me disserem a respeito dele eu acreditarei!
— Ele conhece-me?
— Penso que não.
— E a ti, conheceu-te?
— Oh! a mim, minha Senhora — respondeu Rémy, com um triste sorriso —, ninguém é capaz de me conhecer.
— Adivinhou, talvez, quem eu sou, não?
— Não, porque me pediu licença para a ver...
— Rémy, digo-te que, se não me conheceu, desconfia de quem sou.
— Pois, nesse caso, o negócio é muito simples — disse Rémy, com gesto sombrio —, e dou graças a Deus, que nos indica tão claramente o caminho que temos a seguir; a aldeia está deserta, o infame está só, eu só estou também... vi-lhe um punhal à cinta... eu trago uma faca na minha...
— Espera, Rémy, espera! — disse Diana — não quero disputar-te a vida desse miserável, porém, antes de o matar, é preciso saber o que ele pretende de nós e se, na situação em que nos achamos, não haverá meio de tirarmos proveito do mal que ele nos quer fazer. Como se apresentou ele a ti, Rémy?
— Como mordomo do Sr. de Bouchage, minha Senhora.
— Bem vês que mente; por consequência, tem algum motivo para mentir. Saibamos o que ele quer, mas ocultando-lhe sempre os nossos projectos.
— Cumprirei as suas ordens, minha Senhora.
— Que pede ele, por enquanto?
— Quer acompanhá-la.
— Em que qualidade?
— Na qualidade de mordomo do conde.
— Diz-lhe que aceito.
— Oh! minha Senhora!...
— Acrescenta que estou em vésperas de ir para Inglaterra, onde tenho parentes, mas que tenho hesitado até agora. Mente como ele; para vencer, Rémy, é preciso ao menos combater com armas iguais.
— Mas, nesse caso, ele há-de vê-la...
— E a minha máscara? E demais, desconfio que ele me conhece, Rémy.
— Então, se a conhece, é um laço que lhe está armando.
— Pois o meio de eu o evitar é fingir que me deixo cair nele.
— Contudo...
— Ora! que receias tu? Sabes porventura que haja alguma coisa pior do que a morte?
— Não.
— Bem! e já não estás resolvido a morrer para cumprimento do nosso voto?
— Estou, sim, minha Senhora! mas não quero morrer sem vingança.
— Rémy, Rémy! — disse Diana, com o olhar animado de feroz exaltação — deixa estar que nos havemos de vingar, tu do criado e eu do amo.
— Pois bem! seja assim, minha Senhora, é negócio decidido.
— Vai, meu amigo, vai.
E Rémy desceu, mas ainda a hesitar.
O honrado mancebo, vendo Aurilly, sentira involuntariamente um arrepio nervoso, misturado de sombrio terror, igual ao que se sente à vista de um réptil; queria matá-lo porque tinha medo dele.
Mas, à medida que ia descendo, voltava a resolução àquela alma tão rijamente temperada, e quando abriu a porta tinha formado tenção, apesar do conselho de Diana, de interrogar Aurilly, de o confundir, e, se o visse com as más tenções de que desconfiava, de o apunhalar imediatamente.
Era assim que Rémy entendia a diplomacia.
Aurilly esperava-o com impaciência; tinha aberto a janela para vigiar com um golpe de vista todas as saídas.
Rémy caminhou para ele, armado de inabalável resolução; e por isso as palavras que lhe dirigiu foram comedidas e serenas.
— Senhor, minha ama não pode aceitar a sua proposta. -— Por que motivo?
— Porque o senhor não é mordomo do Sr. de Bouchage. Aurilly empalideceu.
— Quem lhe disse isso? — perguntou ele.
— O caso é bem simples. O Sr. de Bouchage, quando se despediu de mim, recomendou-me a senhora a quem acompanho, e não me disse uma única palavra a seu respeito.
— Só depois de a deixar é que ele me viu...
— Isso é mentira!
Aurilly empertigou-se; o aspecto de Rémy dava-lhe toda a aparência de um velho.
— Fala-me de um modo muito esquisito, honrado homem... — disse ele franzindo os sobrolhos. — Tome sentido! o senhor é fraco, e eu sou forte...
Rémy sorriu, mas não respondeu.
— Se eu lhe quisesse fazer mal, ao senhor ou a sua ama — prosseguiu Aurilly —, bastava-
-me levantar a mão.
— Oh!... — disse Rémy — talvez seja engano meu, e que o senhor lhe queira bem.
— Por certo que sim.
— Explique-me então o que deseja.
— Meu amigo — replicou Aurilly —, desejo torná-lo rico, se me servir.
— E se eu não o servir?
— Nesse caso, já que me fala francamente, responder-lhe-ei com igual franqueza: nesse caso, desejo matá-lo.
— Matar-me?! ah!... — exclamou Rémy, com um sorriso sombrio.
— Sim, estou autorizado a isso. Rémy respirou.
— Mas, para eu o poder servir — disse ele — é necessário ao menos que saiba quais são os seus projectos...
— Eu lhos digo! O senhor adivinhou: eu não pertenço ao conde de Bouchage.
— Ah! A quem pertence então?
— Sirvo um senhor muito mais poderoso.
— Cuidado! vai mentir outra vez.
— Porque diz isso?
E porque não me consta que haja muita casa superior à de Joyeuse.
— Nem mesmo a Casa Real de França?.
— Oh! oh! — exclamou Rémy.
— E aqui está como ela paga — acrescentou Aurilly, metendo na mão de Rémy um dos cartuchos de ouro do duque de Anjou.
Rémy estremeceu quando sentiu o contacto daquela mão, e recuou um passo.
— Pertence a el-rei? — perguntou, com uma candura tão bem fingida que melhor não o faria por certo homem mais astucioso do que ele.
— Não, mas a seu irmão, o Senhor Duque.
— Ah! muito bem; eu respeito muito o Senhor Duque.
— As mil maravilhas!
— Mas depois?
— Como, depois?...
— Sim, que deseja Sua Alteza?
— Sua Alteza, meu rico amigo — disse Aurilly, chegando-se para Rémy e procurando novamente meter-lhe o cartucho de dinheiro na mão —, está enamorado da sua ama.
— Ele conhece-a porventura?
— Viu-a.
— Viu-a?! — exclamou Rémy, levando a mão ao cabo da faca — e quando foi que a viu?
— Esta noite.
— É impossível! minha ama não saiu do quarto...
— Pois aí está! o príncipe portou-se como um verdadeiro rapaz de escola, prova de que está verdadeiramente enamorado...
— Então que fez ele? vejamos; conte-me.
— Pegou numa escada de mão e trepou à sacada.
— Ah!... — disse Rémy, comprimindo as pulsações tumultuosas do coração — pois ele fez semelhante coisa?!...
— Consta-me que ela é muito formosa... — acrescentou Aurilly.
— Então o senhor não a viu?
— Não; mas pelo que Sua Alteza me disse dela, estou com imenso desejo de a ver, quanto mais não seja para ajuizar a exageração ao que o amor arrasta às vezes o espírito de um homem sisudo. — Assim pois, está tratado: o senhor é por nós.
E Aurilly tentou pela terceira vez fazer com que Rémy aceitasse o ouro.
— Serei pelos senhores, sem dúvida — replicou Rémy, repelindo a mão de Aurilly —, mas, ainda assim, é preciso que eu saiba qual é o papel que tenho a desempenhar nos acontecimentos que está preparando.
— Responda em primeiro lugar: a senhora que está lá em cima é amante do Sr. de Bouchage ou do irmão?
O sangue subiu ao rosto de Rémy.
— Nem de um, nem de outro — disse ele com algum constrangimento. — A senhora que está lá em cima não tem amante.
— Não tem amante?! então está mesmo talhada para um rei! Uma mulher que não tem amante!... por Deus, Senhor Duque! demos com a pedra filosofal!
— Assim pois — perguntou Rémy —, o Senhor Duque de Anjou está enamorado de minha ama?...
— Sim senhor.
— E que pretende ele?
— Quer tê-la em Château-Thierry para onde vai a marchas forçadas.
— Ora aí está uma paixão que nasceu bem repentinamente...
— É sempre assim que nascem as paixões de Sua Alteza.
— Não vejo em tudo isso senão um inconveniente... — disse Rémy.
— Qual é?
— É que a minha ama vai embarcar para Inglaterra.
— Cos demónios! aí está precisamente o ponto em que me pode ser útil! Trate de a resolver!
— A quê?
— A tomar o caminho oposto.
— Não conhece minha ama, Senhor! é uma mulher muito aferrada às suas ideias; e demais não basta que ela vá para França em vez de ir para Londres. Ainda que ela se resolva a ir para Château-Thierry, julga que cederá aos desejos do príncipe?...
— Porque não?
— Ela não gosta do duque de Anjou.
— Histórias! sempre se gosta de um príncipe de sangue!
— Mas como foi que o Senhor Duque de Anjou, se é verdade que desconfia que minha ama gosta do Senhor Conde de Bouchage, ou mesmo do Sr. Duque de Joyeuse, teve a desgraça da lembrança de a tirar ao homem que ela ama?
— Que toleirão! — disse Aurilly — sempre tens ideias muito triviais!... Vejo já que nos há-de custar entendermo-nos; por isso também não discutirei; tenho preferido até aqui a brandura à violência, mas agora, se me obrigares a mudar de sistema, não terei remédio senão mudar.
— Que fará então?
-— Já te disse: o príncipe deu-me plenos poderes. Matar-te-ei e roubarei a tua ama.
— E acredita que ficará impune?
— Eu acredito sinceramente em tudo quanto meu amo me ordena que acredite. Vamos! queres resolver tua ama a vir para França?
— Farei a diligência, mas não posso prometer coisa alguma.
— E quando terei a resposta?
— Dê-me o tempo indispensável para subir ao seu quarto e consultá-la.
— Está bom; sobe, que eu espero.
— Obedeço, Senhor.
— Uma última palavra, meu velho: sabes que a tua fortuna e a tua vida estão na minha mão?...
— Bem sei.
— É quanto basta. Vai; entretanto eu tratarei de aparelhar os cavalos.
— Não se apresse muito.
— Ora adeus! estou certo de que a resposta há-de ser favorável; já te constou que alguma mulher resistisse a um príncipe?...
— Creio que se dá esse caso às vezes.
— Sim — disse Aurilly —, mas é coisa muitíssimo rara. Vai, vai.
E enquanto Rémy tornava a subir, Aurilly, como se tivesse a certeza de que se realizariam as suas esperanças, dirigiu-se efectivamente para a cavalariça.
— Então? — perguntou Diana, ao avistar Rémy.
— Então, minha Senhora, o duque viu-a! E está apaixonado pela senhora.
— O duque viu-me?! o duque apaixonado por mim?! — exclamou Diana — estás tresvariado, Rémy!?...
— Não; digo o que me disseram.
— E quem foi que te contou isso?
— Aquele homem!... aquele Aurilly!... aquele infame, aquele pérfido!
— Mas... se ele me viu, então conheceu-me!...
— Se o duque a tivesse conhecido, julga que Aurilly se atreveria a apresentar-se à senhora para lhe falar de amor em nome do príncipe... Não, o duque não a reconheceu.
— Tens razão, mil vezes razão, Rémy. Têm passado tantas coisas, nestes seis anos, por aquele espírito infernal, que se esqueceu de mim. Sigamos esse homem, Rémy.
— Pois sim, mas esse homem conhecê-la-á...
— Porque julgas que ele há-de ter melhor memória do que o amo?...
— Porque o interesse dele está em se recordar, assim como o do príncipe está em se esquecer; que o duque se esqueça, ele, libertino, sinistro, cego, devasso, assassino dos seus amores, isso não admira. Se não se esquecesse, como poderia viver?... Mas Aurilly não terá esquecido; se vir o seu rosto, pensará que está vendo uma sombra vingadora e denunciá-la-á.
— Rémy, parecia-me que já te tinha dito que tinha uma máscara, e julgava que me havias dito que tinhas uma faca ou um punhal...
— É verdade, minha Senhora — disse Rémy —, e vou começando a crer que Deus está de combinação connosco para castigar os malvados.
E logo, chamando Aurilly do cimo das escadas:
— Ó Senhor! Senhor!...
— O que é? — perguntou Aurilly.
— Minha ama agradece ao Senhor Conde de Bouchage as providências que tomou para sua segurança e aceita com gratidão o seu obsequioso oferecimento.
— muito bem- disse Aurilly -, diga-lhe que estão prontos os cavalos.
— Venha minha Senhora, venha - disse Rémy, oferecendo o braço a Diana.
Aurely, ansioso por ver o rosto da incógnita, estava esperando no primeiro degrau da escada com uma lanterna na mão.
«Cos demónios! murmurou ele, traz máscara!... Oh! mas daqui até Château-Thierry serão os cordões de seda gastos ou cortados...»
A JORNADA
Puseram-se a caminho. Aurilly assumiu para com Rémy modos de perfeita igualdade, ao passo que tratava Diana com o mais profundo respeito. Mas Rémy bem percebia que aquelas mostras de respeito eram interesseiras. E, com efeito, segurar o estribo a uma mulher, quando ela monta a cavalo ou se apeia, vigiar com solicitude todos os seus movimentos e não deixar perder nunca a ocasião de lhe apanhar a luva ou de lhe acolchetar o manto, é papel só próprio de um amante, de um criado ou de um curioso.
Aurilly, entregando a luva, via a mão; acolchetando o manto, espreitava por baixo da máscara; e, segurando o estribo, esperava que um acaso lhe deixasse ver de relance aquele rosto, que o príncipe, na confusão das suas recordações, não tinha conhecido, mas que ele, Aurilly, fiado na exactidão da sua memória, estava certo que havia de conhecer.
Porém, o músico tinha de lutar com um adversário igualmente matreiro. Rémy reclamou o direito de prestar os seus serviços à sua companheira, e mostrou-se cioso das atenções de Aurilly para com ela. Diana mesmo, sem dar a conhecer que suspeitava qual era a verdadeira causa de tantos obséquios, tomou o partido daquele que Aurilly considerava como um criado velho, pretendendo por isso aliviá-lo de parte do seu trabalho.
Aurilly ficou pois reduzido, durante as compridas marchas, a esperar que o favorecessem a sombra e a chuva, e, durante as horas de descanso, a desejar a hora da comida. Enganou-se porém nos cálculos; nem chuva nem sol faziam nada ao caso, pois a máscara conservava-se sempre sobre o rosto, e quando chegava a ocasião da comida, a dama encerrava-se para esse fim em quarto separado.
Aurilly percebeu que, se ele não a reconhecera, tinha-o ela reconhecido: diligenciou pois vê-la pelos buracos das fechaduras; mas ela tinha as costas constantemente voltadas para as Portas; quis espreitá-la pelas janelas, mas achou-as tapadas com amplas cortinas, ou, na falta de cortinas, com os capotes dos viajantes. Nem perguntas nem tentativas de corrupção puderam conseguir coisa alguma de Rémy; o criado dizia que aquela era a vontade da ama, e por conseguinte a sua também.
— Porém estas cautelas de que ela usa são por minha causa unicamente?... — perguntou
— Não; emprega-as para com toda a gente.
— Mas o Senhor Duque de Anjou viu-a; portanto nessa ocasião ela não se escondeu...
— Foi um acaso, um simples acaso — respondia Rémy —, e é precisamente por ter sido Vista pelo Senhor Duque de Anjou, contra sua vontade, que minha ama se acautela para que mais ninguém a torne a ver.
Entretanto iam decorrendo os dias; já estavam quase chegados ao fim da jornada; e, graças às precauções de Rémy e da ama, não tinha Aurilly conseguido satisfazer a sua curiosidade
Já a Picardia ia aparecendo à vista dos viajantes. Aurilly, depois de ter empregado, durante três ou quatro dias, bons modos, amuos, atenções e todos os outros recursos que o seu génio violento lhe sugeria, já ia começando a perder a paciência e cedendo gradualmente aos maus instintos da sua natureza. Parecia que adivinhava que o véu daquela mulher encobria um segredo mortal. Um dia ficou um pouco para a retaguarda com Rémy, e renovou para com ele as suas tentativas de sedução, que este repeliu na forma do costume.
— Enfim... — disse Aurilly — mais dia menos dia, sempre hei-de ver a tua ama!
— Não há dúvida — respondeu Rémy —, mas há-de ser no dia em que ela quiser, e não no dia em que o senhor quiser.
— E se eu quisesse usar da força?... — disse Aurilly. Os olhos de Rémy fulguraram involuntariamente.
— Experimente... — disse ele.
Aurilly reparou no brilho daquele olhar, e conheceu quanta energia havia ainda no homem que ele tomara por velho. Desatou a rir.
— Que tolice! — disse ele — que me importa a mim saber quem ela é... É a mesma que o Senhor Duque de Anjou viu, não é assim?
— É, por certo!
— E que ele me disse que trouxesse para Château-Thierry?
— Exactamente.
— Pois bem! é quanto me basta; não sou eu que estou enamorado dela, é Sua Alteza; e contanto que não procure fugir de mim, ou escapar...
— Já demos algum indício de tal? — replicou Rémy.
— Não.
— Tanto não é da nossa tenção fugirmos, que, ainda mesmo que não viéssemos com o senhor, sempre prosseguiríamos no nosso caminho para Château-Thierry; pois se o duque deseja ver-nos, também nós desejamos vê-lo.
— Então — disse Aurilly — estamos perfeitamente de acordo.
Em seguida, como para se certificar da verdade do que Rémy dizia, a respeito de não quererem mudar de caminho:
— Tua ama quererá descansar aqui por alguns momentos?
E apontava para uma espécie de estalagem que havia na estrada.
— Sabe muito bem — respondeu Rémy — que minha ama só pára nas cidades.
— Assim tenho visto — respondeu Aurilly —, mas não tinha reparado que o fazia por sistema.
— Pois é assim mesmo.
— Porém, eu, que não fiz nenhum voto, quero demorar-me aqui um pouco; continuem no vosso caminho, que em breve os alcançarei.
Aurilly ensinou a Rémy o caminho que devia seguir, apeou-se e foi ter com o estalajadeiro, o qual veio ao seu encontro com grandes demonstrações de respeito e como se o conhecesse Rémy foi para junto de Diana.
— Que dizia ele? — perguntou a dama.
— Exprimia-me o desejo do costume.
— Quer ver-me?
— Quer.
Diana sorriu por baixo da máscara.
— Tome muito sentido — disse Rémy —, que ele está furioso.
— Não me há-de ver. Eu não quero, e é quanto basta para ele o não conseguir.
— Mas quando estiver em Château-Thierry, que remédio terá senão mostrar-se a ele com o rosto descoberto...
— Que tem isso, se quando descobrirem quem sou já for tarde para ambos?... E demais, o amo não me conheceu.
— Pois sim; mas há-de conhecê-la o criado.
— Bem vês que até agora não tem dado mostras de me conhecer, nem pelo andar, nem pela voz.
— Não importa, minha Senhora — redarguiu Rémy —, estes mistérios todos que existem há oito dias para Aurilly, não existiam para o príncipe, e portanto não excitaram a sua curiosidade, nem despertaram as suas recordações; enquanto que Aurilly, há oito dias que procura e combina; a sua vista acordará uma memória que tem tantos motivos para estar alerta, e, se ainda não a conheceu, há-de conhecê-la infalivelmente.
Foram interrompidos neste momento por Aurilly, o qual, tendo tomado por um atalho, seguira-os sem os perder de vista, e aparecia de repente, na esperança de ouvir assim algumas palavras da conversação.
O silêncio súbito que se seguiu à sua aparição provou-lhe evidentemente que os incomodava; contentou-se pois em os seguir à distância, como fazia às vezes.
Desta ocasião em diante, Aurilly formou o seu plano. Ele desconfiava com efeito de alguma coisa, como Rémy tinha dito; mas desconfiava por instinto, pois o seu espírito, passando de conjectura a conjectura, ainda não atinara com a verdade.
Não podia atinar com o motivo por que tanto teimavam em lhe ocultar aquele rosto que cedo ou tarde sempre ele havia de ver.
Para melhor conseguir o bom êxito do seu projecto, fingiu desde aquele momento tê-lo posto de parte, e portou-se durante o resto do dia como bom e jovial companheiro. Esta mudança causou alguma inquietação a Rémy. Entraram numa cidade, onde dormiram, como era costume. No dia imediato, com o pretexto de terem de dar uma grande caminhada, partiram ao romper do dia. Ao meio-dia tiveram de parar para deixar descansar os cavalos. As duas horas tornaram a pôr-se a caminho. Andaram outra vez até às quatro.
Divisava-se ao longe uma grande floresta; era a de La Fere.
Apresentava o aspecto sombrio e misterioso das florestas do Norte, que tanta impressão causa nas organizações meridionais, que exigem, primeiro que tudo, a luz do dia e o calor do Sol; mas nenhum efeito produzia em Rémy e Diana, acostumados a verem as densas matas do Anjou e da Sologne.
Entretanto, sempre olharam um para o outro, como se lhes adivinhasse o coração que era ali que os esperava o acontecimento de que estavam ameaçados desde o momento da partida.
Entraram na floresta. Seriam seis horas da tarde. Ao cabo de meia hora de marcha o dia ia declinando. Um vento rijo fazia redemoinhar as folhas, e varria-as para uma lagoa imensa perdida na profundidade das árvores, qual outro mar Morto, e que banhava a margem da estrada que os viajantes seguiam.
O terreno, barrento, estava encharcado pela chuva, que caía a cântaros havia duas horas. Diana, confiada ao cavalo e cuidando pouco da sua própria segurança, deixava caminhar o animal à vontade: Aurilly ia à direita e Rémy à esquerda. Aurilly marchava à beira da lagoa, e Rémy no meio da estrada. Nem uma única criatura humana se avistava por baixo dos sombrios arcos de verdura, em toda a extensa curva que o caminho descrevia.
Dir-se-ia que a floresta era um daqueles bosques enfeitiçados, debaixo de cuja sombra nada pode viver, se não se ouvissem de vez em quando os roucos uivos dos lobos, que acordavam com a proximidade da noite. De repente sentiu Diana que o selim do cavalo, que tinha sido aparelhado, como de costume, por Aurilly, vacilava e se virava; chamou Rémy, que se apeou logo e se abaixou para apertar a cilha. No mesmo instante Aurilly chegou-se para Diana, que estava debruçada sobre o cavalo, e com a ponta do punhal cortou o laço de seda que lhe segurava a máscara.
Antes que ela tivesse tempo de adivinhar o fim daquele movimento ou de levar a mão ao rosto, Aurilly arrancou a máscara e debruçou-se para ela, que ao mesmo tempo se inclinava para o lado dele.
O olhar dessas duas criaturas fitando-se foi terrível; ninguém poderia dizer qual deles estava mais pálido ou mais ameaçador.
Aurilly sentiu que lhe inundava a testa um suor frio; deixou cair a máscara e o punhal, e juntou as mãos com aflição, bradando:
— Céus e Terra!... é a dama de Monsoreau!...
— É um nome que tu nunca mais repetirás!... — exclamou Rémy, agarrando Aurilly pela cinta e deitando-o do cavalo abaixo.
Ambos caíram ao chão. Aurilly estendeu a mão para tornar a pegar no punhal.
— Não, Aurilly, não!... — disse-lhe Rémy, inclinando-se sobre ele e encostando-lhe um joelho contra o peito — é preciso que fiques aqui.
O último véu que ainda cobria as recordações de Aurilly pareceu rasgar-se então.
— Le Haudouin!... — exclamou ele. — Estou morto!
— Ainda não — disse Rémy, tapando com a mão esquerda a boca do miserável, que debaixo dele estrebuchava —, mas não tardará...
E com a mão direita sacou a faca da bainha.
— Agora — disse ele —, Aurilly, tens razão: agora estás morto realmente. E o ferro desapareceu na goela do músico, que soltou um grito abafado.
Diana, com os olhos espantados, encostada ao arção do selim, trémula, mas desapiedada, não tinha desviado a vista de tão terrível espectáculo. Porém, quando viu correr o sangue pela folha da faca, deitou-se para trás e caiu do cavalo, inteiriçada como se estivesse morta. Rémy não se ocupou dela naquele momento terrível; revistou os bolsos de Aurilly, e tirou-lhe os dois cartuchos de ouro; depois atou uma pedra ao pescoço do cadáver, e atirou-o para dentro da lagoa. A chuva continuava a correr a jorros.
— Apaga, oh meu Deus! — exclamou ele — os vestígios da Tua justiça; porque ainda tens a castigar outros réus!
Lavou em seguida as mãos na água escura e estagnada, agarrou em Diana, ainda desmaiada, sentou-a no cavalo e montou ele também no seu, amparando sempre a sua companheira.
O cavalo de Aurilly, assustado pelo uivar dos lobos, que se iam aproximando, como se aquela cena os houvesse chamado, desapareceu no interior do bosque.
Apenas Diana tornou a si, os dois viajantes, sem trocarem palavra, prosseguiram em seu caminho para Château-Thierry.
DE COMO O REI HENRIQUE III NÃO CONVIDOU CRILLON PARA ALMOÇAR, E DE COMO CHICOT SE CONVIDOU A SI MESMO
No dia imediato àquele em que tinham tido lugar na floresta de La Fere os acontecimentos que acabámos de narrar, o rei de França saiu do banho às nove horas da manhã, pouco mais ou menos.
O criado de quarto, depois de o ter embrulhado num cobertor de lã fina e de lhe ter enxugado o corpo com duas toalhas daquele algodão fino da Pérsia parecido com o velo de uma ovelha, cedera o lugar aos cabeleireiros e guarda-roupas, após os quais entraram os criados encarregados dos perfumes, e em seguida os cortesãos.
Finalmente, depois de saírem estes últimos, o rei mandara chamar o seu mordomo, para lhe dizer que desejava que lhe aprontasse mais alguma coisa além do caldo do costume, por isso que havia acordado com vontade de comer.
Esta boa nova, que no mesmo instante se espalhou pelo Louvre, causou a todos uma bem legítima satisfação; e o aroma das iguarias ia começando a exalar-se das cozinhas, quando Crillon, que era coronel da Guarda Francesa, como os leitores estarão lembrados, entrou no aposento de Sua Majestade, para receber as suas ordens.
— Olha, meu bom Crillon — disse-lhe o rei —, dá hoje as providências que entenderes mais acertadas para segurança da minha pessoa, mas, por Deus! não me obrigues a fazer de rei! Sinto-me em óptima disposição; parece-me que não peso uma onça e que estou capaz até de voar. Estou com grande apetite, Crillon... percebes o que isto quer dizer, meu amigo?
— Percebo muito bem, Real Senhor — respondeu o coronel da Guarda Francesa. — Eu também estou com imensa vontade de comer.
— Oh! Crillon — disse o rei, desatando a rir —, tu também estás sempre pronto para comer!...
— Nem sempre, meu Senhor!... oh! não! Vossa Majestade exagera: só tenho vontade de comer três vezes ao dia. E Vossa Majestade?
— Oh! eu só uma vez no ano, e ainda assim quando recebo boas notícias.
— Deveras?... Devo crer, pois, Real Senhor, que recebeu boas notícias... Ainda bem, ainda bem! porque me quer parecer que se vão tornando de dia para dia mais raras.
— Não recebi notícia alguma, Crillon; mas tu bem sabes o ditado...
— Ah! sim: a falta de notícias equivale a boas notícias. Eu não tenho muita fé nos ditados, Real Senhor, e nesse particularmente. Não recebeu aviso nenhum da Navarra?
— Nada.
— Nada?
— Por certo; e é sinal de que estão a dormir.
— Nem da Flandres?
— Nada.
— Nada?... sinal de que se está pelejando por lá. E de Paris?
— Nada.
— Sinal de que estão fazendo conspirações.
— Ou filhos, Crillon... Por falar em filhos: parece-me que estou para ter um.
— Vossa Majestade, Real Senhor?!... — exclamou Crillon, pasmado de admiração.
— Sim: a rainha sonhou a noite passada que estava grávida.
— Finalmente, Real Senhor... — disse Crillon.
— Acaba, vá.
— Causa a maior alegria saber que Vossa Majestade está com grande apetite logo pela manhã cedo. Adeus, Real Senhor.
— Vai com Deus, meu bom Crillon, vai.
— Na verdade, Real Senhor — disse Crillon —, já que Vossa Majestade está com tanta vontade de comer, bem podia convidar-me para almoçar... Porque dizem por aí que Vossa Majestade vive de ar, e que é essa a razão por que emagrece, visto o ar ser mau; e eu muito folgaria de poder dizer a todos: «Tudo isso são puras calúnias: el-rei come como toda a gente.»
— Não, Crillon, não, pelo contrário: deixa a todos na persuasão em que estão; eu envergonho-me de comer como um simples mortal na presença dos meus súbditos. Meu Crillon, repara nisto que te vou dizer: um rei deve conservar-se sempre poético e apresentar-se com certa nobreza. Eu te cito já um exemplo...
— Estou ouvindo, Real Senhor.
— Lembras-te do rei Alexander?
— Qual rei Alexander?
— Alexander Magnus. Ah! tu não entendes latim, é verdade... Pois bem. Alexandre gostava de se banhar à vista dos seus soldados, porque era muito galante, bem-feito e com sofríveis carnes, motivo por que o compararam a Apolo, e mesmo a Antínoo.
— Oh! oh! Real Senhor — disse Crillon —, Vossa Majestade faria muito mal se tivesse a lembrança de o imitar e de se banhar à vista dos seus, pois está muito magro, meu pobre rei.
— Honrado Crillon!... — replicou Henrique batendo-lhe no ombro — sempre és um excelentíssimo bruto! mas não me adulas: nada tens de cortesão, meu velho amigo.
— É a paga de não me convidar para almoçar — respondeu Crillon, rindo ingenuamente, e despedindo-se do rei, mais contente do que descontente, pois a falta do almoço tinha sido largamente compensada pela palmada no ombro.
Apenas Crillon saiu, logo puseram a mesa.
O mordomo tinha-se desbancado. Havia um certo guisado de perdigotos com molho de túbaras e de castanhas reduzidas a polme, que logo atraiu a atenção do rei, que já se tinha tentado com umas famosas ostras.
Assim, o caldo, a que o monarca guardava tão constante fidelidade, ficou desprezado; debalde punha o mordomo uns grandes olhos na tigela de ouro; esses olhos mendicantes, como diria Teófilo, nada obtiveram de Sua Majestade.
O rei deu começo ao ataque pelo guisado.
Ia para engolir o quarto bocado, quando uns passos ligeiros ressoaram no sobrado por trás dele, rangeram os rodízios de uma poltrona, e uma voz bem conhecida pediu asperamente.
— Um talher!
O rei voltou-se.
— Chicot! — exclamou ele.
— Em pessoa.
E Chicot, fiel aos seus hábitos, que nenhuma ausência era capaz de lhe fazer perder, estendeu-se na poltrona, pegou num prato e, metendo o garfo nas ostras, começou a escolher as maiores e a temperá-las com sumo de limão, sem proferir palavra.
— Tu aqui?! de volta, já?! — exclamou Henrique.
«Caluda!» respondeu Chicot com um aceno de mão, e com a boca cheia. E aproveitou-se da exaltação do rei para puxar para si o guisado.
— Alto lá, Chicot! esse guisado é destinado só para mim! — gritou Henrique, estendendo a mão para deter o prato.
Chicot, repartindo fraternalmente com o seu príncipe, deu-lhe metade. Em seguida encheu o copo de vinho, passou do guisado a uma empada de atum, e do atum a uns caranguejos recheados; engoliu, além disso, no fim de tudo, o caldo do rei; e depois, soltando um grande suspiro:
— Não tenho mais vontade de comer — disse.
— Isso não me custa a crer, Chicot.
— Ah!... muito bons-dias, meu rei! como tens passado? acho-te muito alegre esta manhã.
— Achas, Chicot?
— E com lindas cores.
— Hum...
— São tuas, ou postiças?
— Que pergunta!
— Pois então, dou-te os parabéns.
— O caso é que me sinto o mais satisfeito que é possível esta manhã.
— Ainda bem, meu rei, ainda bem. Mas diz-me: o teu almoço não acaba nisto decerto... ainda hás-de ter por aí alguma gulodice...
— Temos aqui doce de cerejas das freiras de Montmartre.
— É muito enjoativo.
— E nozes recheadas com passas de Corinto.
— Não prestam! deixaram as grainhas nas passas.
— Nada te satisfaz!
— É porque, palavra de honra! tudo vai degenerando, mesmo a arte da cozinha, e por isso está-se passando muito mal na tua corte.
— E passava-se melhor, porventura, na de el-rei de Navarra?... — perguntou Henrique rindo-se.
— Eu sei lá!... não digo que não.
— Então é porque houve por lá grandes mudanças...
— Ah! quanto a isso, mal sabes tu que acertaste, Henriquinho.
— Fala-me pois um pouco da tua jornada; servirá para me distrair.
— Com todo o gosto; foi para isso mesmo que vim aqui. Por onde queres tu que eu comece?
— Pelo princípio. Como fizeste a jornada?
— Oh! foi um passeio divertidíssimo!
— Não tiveste nenhum incómodo pelo caminho?
— Nada! foi mesmo uma jornada de fadas.
— Nem maus encontros?
— Ora essa! quem havia de ter o atrevimento de molestar um embaixador de Sua Majestade Cristianíssima!? Estás caluniando os teus hábitos, meu filho!
— Dizia isto — replicou o rei, lisonjeado por ver o sossego que havia no seu reino — porque, não tendo tu carácter oficial, podias correr algum risco.
— Digo-te, Henriquinho, que tens o reino mais lindo do mundo; os viajantes encontram por toda a parte quem lhes dê de comer grátis, e são hospedados pelo amor de Deus; não se pisam senão flores pelas estradas e, quanto aos lameiros, esses são forrados de veludo com franjas de ouro; é incrível, mas é assim mesmo.
— Enfim: estás satisfeito, Chicot.
— Satisfeitíssimo!
— Sim, sim... A minha polícia é muito bem feita.
— Às mil maravilhas! deve-se-lhe esta justiça.
— E a estrada, está limpa?
— Como a do Paraíso: não se encontram senão anjinhos, que passam a cantar louvores a el-rei.
— Chicot, vamos tornando a Virgílio...
— A que passagem de Virgílio?
— As Bucólicas. O fortunatus nimium.
— Ah! muito bem; mas qual é o motivo dessa excepção a favor da gente do campo, meu filho?
— É porque, infelizmente, não sucede o mesmo nas cidades.
— O caso é, Henrique, que as cidades são um centro de corrupção.
— Ora vê: andaste quinhentas léguas sem estorvo...
— Andei, sim... como se fosse sentado numa cadeira de rodízios.
— E eu fui apenas a Vincennes, que são três quartos de légua...
— E então?
— E então, olha: estive para ser assassinado na estrada!
— Peta! — disse Chicot.
— Eu te contarei como foi, meu amigo; estou tratando de mandar imprimir um relatório circunstanciado do acontecimento. Se não fossem os meus Quarenta e Cinco, estava morto a estas horas!
— Deveras?... e onde foi que teve lugar o sucedido?
— Queres dizer: onde estava para ter lugar...
— Sim.
— Em Bel-Esbat.
— Próximo ao convento do nosso amigo Gorenflot?
— Exactamente.
— E como se portou, nessa circunstância, o nosso amigo?
— Perfeitamente, como sempre, Chicot; não sei se ele também tinha tido notícia de alguma coisa, mas, em vez de estar a ressonar, como costumam estar àquelas horas os mandriões dos meus frades todos, achava-se de pé à sua varanda, ao passo que a comunidade guarnecia a estrada.
— E não fez nenhuma outra coisa?
— Quem?
— Dom Modesto.
— Deitou-me a bênção, com uma majestade tal que ninguém é capaz de imitar, Chicot.
— E os monges?
— Gritaram a bom gritar: «Viva el-rei!»
— E não reparaste em nada mais?
— Em quê?
— Que tivessem todos eles uma arma qualquer por baixo dos hábitos...
— Estavam armados de ponto em branco, Chicot; e foi por isso que conheci quanto é previdente o estimável prior. E disse comigo: aquele homem sabia tudo, e entretanto calou-se; nada pediu, nem veio no dia seguinte, como dEpernon, despejar todas as minhas algibeiras dizendo: «Real Senhor, isto é por ter salvo a vida de el-rei.»
— Oh! disso não era ele capaz; e, demais, as mãos dele não caberiam nas tuas algibeiras.
— Chicot! não faças escárnio de Dom Modesto; ele é um dos grandes homens que hão-de ilustrar o meu reinado; e desde já te declaro que lhe hei-de dar um bispado logo que se ofereça ocasião.
— E farás muito bem, meu rei.
— Observa uma coisa, Chicot — disse o rei, assumindo um ar profundo —, os homens de talento são em tudo completos quando nascem na classe do povo; nós, os cavalheiros, sempre recebemos do sangue certas virtudes e certos vícios de raça, que fazem de nós especialidades históricas. Por exemplo: os Valois são sagazes, subtis e valentes, mas preguiçosos; os Lorenos são ambiciosos e avarentos, mas têm talento para a intriga e são buliçosos; os Bourbons são sensuais e circunspectos, mas sem ideias, sem força, sem vontade (senão, vê Henrique). E quando a natureza, pelo contrário, cria um homem destinado a sair do nada para se elevar acima dos mais, só emprega a mais fina argila; por isso o teu Gorenflot é completo.
— Achas?
— Sim: é sábio, modesto, astuto e valente; está apto para tudo quanto quiserem fazer dele, ministro, general ou mesmo papa.
— Tá! tá! Real Senhor, alto aí! — disse Chicot — se o estimável homem o ouvisse, ficava tão inchado que lhe estourava a pele; pois o prior Dom Modesto, apesar de tudo que dizes, é muito orgulhoso.
— Tu tens inveja, Chicot!
— Eu?! Deus me livre de tal! Inveja!... Fora! que sentimento tão feio!
— Oh! é porque eu sou justo; a nobreza do sangue não me cega a mim: stemmata quid faciuntí... ,
— Bravo! Mas dizias tu, meu rei, que por pouco não tinhas sido assassinado...
— É verdade.
— Por quem?
— Pela Liga, cos demónios!
— Como vai de saúde a tal Liga?
— Sempre na mesma.
— Isso quer dizer que vai indo de melhor para melhor. Olha que ela vai engordando, Hen-riquinho, vai engordando...
— Oh! oh! os corpos políticos que engordam logo na infância não vivem muito; sucede' -lhes como às crianças, Chicot.
— Em suma! estás satisfeito, meu filho.
— Pouco mais ou menos.
— Parece-te que estás no Paraíso, é?
— Sim, Chicot; e causa-me imensa alegria que chegasses na ocasião em que estou muito contente, e em que espero ver ainda aumentado o meu júbilo.
— Habemos consulem facetum, como dizia Catão.
— Trazes boas novas, não trazes, meu filho?
— Pudera não!
— E não satisfazes a minha impaciência, maganão?!...
— Por onde queres tu que eu comece, meu rei?
— Já to disse: pelo princípio; mas tu sempre divagas!...
— Queres que te faça um relatório de tudo desde o momento da minha partida?
— Não é preciso; já me disseste que a jornada tinha sido excelente, não é verdade?
— Bem vês que voltei são e salvo.
— Sim. Vamos pois à tua chegada a Navarra.
— Prontamente.
— Que fazia Henrique quando tu lá chegaste?
— Namorava.
— A Margarida?
— Oh... não!
— Com efeito... seria para admirar. Então continua a ser infiel à esposa?... que malvado! infiel a uma princesa francesa!... Ainda bem que ela lhe paga na mesma moeda. E quando chegaste, como se chamava a rival de Margarida?
— Fosseuse.
— Uma Montmorency?!... Está bom, a escolha é honrosa para aquele urso do Béarn. Falavam aqui numa aldeã... numa jardineira... numa burguesa...
— Oh! tudo isso já é velho.
— Assim pois, Margarida é enganada, hem?
— Tanto quanto uma mulher o pode ser.
— E está furiosa?
— Danada.
— E trata de se vingar?
— Pois.
Henrique esfregou as mãos com uma alegria sem igual.
— Que fará ela agora? — exclamou rindo. — Tratará de remexer Céu e Terra, de açular a Espanha contra a Navarra, Artois e a Flandres contra a Espanha?... ou tencionará chamar o seu mano Henriquinho contra o seu marido Henriquezinho, hem?...
— Pode ser.
— Tu viste-a?
— Vi.
— E quando te despediste dela, que estava ela fazendo?
— Oh! isso não és tu capaz de adivinhar.
— Dispunha-se a tomar outro amante, hem?
— Dispunha-se a ser parteira.
— O quê!?... essa frase que significa!? Aí há equívoco, Chicot; cuidado com os equívocos!
— Não, meu rei, não. Eu bem sei o que digo; não foi equívoco. Era mesmo parteira o que eu queria dizer.
— Obstetrix?...
— Obstetrix, sim, meu rei... ou Juno Lucina, se quiseres.
— Sr. Chicot!...
— Oh! arregala os olhos à tua vontade; digo-te que tua irmã Margarida estava tratando de um parto quando saí de Nérac.
— Por sua própria conta?! — exclamou Henrique, empalidecendo — pois Margarida teve um filho!?...
— Não, não: por conta do marido; tu bem sabes que os últimos Valois não possuem a virtude prolífica; já os Bourbons não são assim, com a breca!
— Visto isso... Margarida partejava, verbo activo?...
— O mais activo que é possível.
— E a quem partejava ela?
— A Menina Fosseuse.
— A fé que não entendo como ela deu semelhante passo! — disse o rei.
— Nem eu tão-pouco — replicou Chicot —, mas eu não me comprometi a fazer com que tu entendesses; obriguei-me a contar-te o que sucedeu, e nada mais.
- Mas foi talvez muito contra sua vontade que ela consentiu em semelhante humilhação, não?
— Houve luta... houve também superioridade de uma ou outra parte... (veja-se o exemplo de Hércules com Anteu, de Jacob com o anjo); sucedeu que tua irmã teve menos força do que Henrique... e eis aí finalmente como foi.
— Cos demónios! estimo isso, na verdade.
— Mau irmão!
— Devem odiar-se, não?
— Penso que não morrem de amores um pelo outro.
— Mas aparentemente...?
— Vivem como íntimos amigos, Henrique.
— Sim; porém mais dia menos dia aparece algum outro namorico que os malquistará de todo.
— Pois esse outro namorico já apareceu, Henrique.
— Qual história!
— É verdade, posso jurar-to; mas queres que te diga o receio que tenho?...
— Diz.
— Receio que o novo namorico, em vez de os malquistar um com o outro, seja motivo para fazerem as pazes.
— Há, pois, novos amores?... do Bearnês?...
— Do Bearnês mesmo.
— Com quem?
— Espera lá... queres saber tudo, hem?
— Sim, sim! conta, Chicot, conta; tu narras muito bem.
— Obrigado, meu filho. Então, se queres saber tudo, é preciso que eu torne ao princípio.
— Torna lá, mas diz depressa.
— Tu tinhas escrito uma carta ao indómito Bearnês...
— Como sabes tu isso?
— Forte admiração!... porque a li!
— Que tal te pareceu?
— Pareceu-me que aquele teu procedimento não era delicado, mas que a linguagem da carta era bastante astuciosa.
— Era quanto bastava para os malquistar um com o outro.
— Sim, se Henrique e Margarida fossem uns cônjuges comuns, marido e mulher à maneira dos burgueses.
— Que queres dizer com isso?
— Quero dizer que o Bearnês não é nenhum tolo.
— Oh!...
— E que adivinhou.
— Adivinhou o quê?
— Que tu querias malquistá-lo com a mulher.
— Isso era claro.
— Sim; mas o que não era claro era o fim com que os querias malquistar. — Ah! cos demónios! o fim...
— Sim, o excomungado Bearnês chegou a persuadir-se de que o fim com que tu querias malquistá-lo com a mulher era não pagares a tua irmã o dote que lhe deves.
— Deveras?!...
— Não há a menor dúvida; foram estas as ideias que se encaixaram na cabeça do Bearnês.
— Prossegue, Chicot, prossegue — disse o rei, tornando-se pensativo. — E depois?
— Mal adivinhou isto, tornou-se como tu agora estás: triste e melancólico.
— E depois, Chicot, e depois?
— Então distraiu-se da sua distracção, e quase que deixou de ter amor à Fosseuse.
— Peta!
— É como te estou dizendo; foi então acometido desse outro amor a que há pouco aludi.
— O homem, pelo que vejo, é um persa, um pagão, um turco segue o sistema da poligamia!... — E que disse Margarida?
— Agora, meu filho, vais admirar-te: Margarida, desta vez, ficou contentíssima.
— Pois por causa do desastre da Fosseuse, percebo muito bem.
— Nada, nada! contentíssima por sua própria conta.
— Então vai tomando gosto ao ofício de parteira, é?
— Ah! desta vez não há-de ser ela a parteira...
— Então o que há-de ser?
— Há-de ser madrinha; foi o marido quem lho prometeu, e a estas horas já se deitaram os foguetes.
— Seja como for, não os comprou com o seu apanágio.
— Estás persuadido disso, meu rei?...
— Decerto, visto que me tenho negado a entregar-lhe o apanágio. Mas... como se chama a nova amante?
— Oh! é uma guapa e robusta dama, que tem uma cintura magnífica e é muito capaz de se defender se a atacarem.
— E defendeu-se?
— Por certo!
— De forma que Henrique foi repelido com perda, não?
— A princípio.
— Ah! ah! e depois?
— Henrique é teimoso: voltou à carga.
— De sorte que...?
— De sorte que se apoderou dela.
— Como assim!?
— À força.
— À força?
— Sim; com petardos.
— Que diabo estás tu dizendo, Chicot?
— A verdade.
— Com petardos?! e quem é essa bela de quem a gente se apodera com petardos?...
— É a Sr.a Cahors.
— A Sr.a Cahors?...
— Sim; uma galante mocetona, por minha fé! que tinha fama de estar tão donzela como Péronne, e tem um pé sobre o Lot e o outro sobre a montanha; e de quem é, ou mais exactamente. .. de quem era tutor o Sr. de Vézin, um valente fidalgo teu amigo.
— Por Deus! — exclamou Henrique com furor — a minha cidade!... pois ele tomou a minha cidade!?...
— Então que querias tu que ele fizesse, Henriquinho?... não lha davas, tendo-lha prometido.. . ele não teve remédio senão tomá-la. — Mas, é verdade: pega lá; é uma carta que ele me incumbiu de te entregar em mão própria.
E Chicot, tirando uma carta da algibeira, entregou-a ao rei.
Era a mesma que Henrique tinha escrito depois da tomada de Cahors, e que rematava com estas palavras: Quod mihi dixisti profuit multum: cognosco meos devotos; nosce tuos; Chicotus coetera expediet.
Isto queria dizer: «Foi-me proveitoso o que me disseste; conheço os meus amigos, conhece também os teus; Chicot te explicará o mais.»
COMO SUCEDEU QUE HENRIQUE, DEPOIS DE TER RECEBIDO NOTÍCIAS DO SUL, TAMBÉM AS RECEBEU DO NORTE
O rei tinha ficado em tal estado de exasperação, que mal pôde ler a carta que Chicot acabava de lhe entregar.
Enquanto ele soletrava o latim do Bearnês com movimentos de impaciência que faziam tremer o sobrado, Chicot, de pé, em frente de um grande espelho de Veneza que estava suspenso por cima de um aparador guarnecido de baixela, admirava o seu garbo e as graças infinitas que a sua pessoa tinha adquirido com o trajo militar.
A palavra infinitas era na realidade bem apropriada, porque Chicot nunca tinha feito tão boa figura; a cabeça, um pouco calva, estava coberta com uma celada cónica à feição dos elmos alemães, que tão primorosamente se lavravam naquela época em Tréveros e Mogúncia; e entretinha-se em afivelar por cima do jaleco de anta, já bastante engordurado pelo suor e pela fricção das armas, uma meia couraça de jornada, que tinha tirado e posto sobre uma banca para poder almoçar mais desembaraçadamente; ao passo que apertava as correias da couraça fazia também tinir sobre o sobrado umas esporas mais próprias para estripar um cavalo do que para o aguilhoar.
— Oh! fui traído!... — exclamou Henrique, logo que acabou de ler — o Bearnês tinha um plano, e eu nem suspeitas tive de tal!
— Meu filho — replicou Chicot —, tu bem sabes o que diz o adágio: «A água que dorme é a pior.»
— Vai-te para o Diabo com os teus adágios! Chicot caminhou para a porta, como para obedecer.
— Não! fica. Chicot deteve-se.
— Cahors tomada!... — prosseguiu Henrique.
— Conforme todos os preceitos — disse Chicot.
— Mas então ele tem generais, engenheiros?...
— Nada! — respondeu Chicot — o Bearnês é pobre; como poderia pagar-lhes?... É ele mesmo quem faz tudo.
— E... ele bate-se?... — disse Henrique, com uma espécie de desprezo.
— Não me atreverei a asseverar que vai logo para diante com muito entusiasmo, lá isso não; parece-se com certos indivíduos que apalpam a água antes de se banharem; molha as pontas dos dedos, bate no peito como dizendo alguns mea culpa, faz algumas reflexões filosóficas (gasta nisto os dez primeiros minutos que se seguem ao primeiro tiro de artilharia); depois, mete a cabeça à acção, e nada em chumbo derretido e em fogo como uma salamandra.
— Cos diabos! — exclamou Henrique — cos diabos!
— E posso certificar-te, Henrique, de que fazia por lá bastante calor.
O rei levantou-se precipitadamente e pôs-se a andar pela sala a passos largos.
— Ah! sofri um revés! — exclamou, concluindo o seu pensamento em alta voz — vão todos rir-se de mim! Não tardará que me façam cantigas. Os brejeiros dos gascões são mordazes, e parece-me que já os estou ouvindo a afiarem os dentes e os sorrisos ao som das desafinadas árias das suas gaitas-de-foles. Por Deus! ainda bem que tive a lembrança de mandar a Francisco o auxílio que ele tanto pediu: Antuérpia servirá de compensação à perda de Cahors! as vantagens conseguidas no Norte farão esquecer os erros cometidos no Sul.
— Amém! — disse Chicot, introduzindo delicadamente, para acabar a sua sobremesa, a extremidade dos dedos nas caixinhas de confeitos e nas compoteiras do rei.
Naquele momento abriu-se a porta, e o porteiro anunciou.
— O Senhor Conde de Bouchage!
— Ah! — exclamou Henrique — bem te dizia eu, Chicot! aí chegam as notícias que eu esperava. Entre, conde, entre!
O porteiro tirou-se para o lado, e apareceu então no quadro que formava a porta com o reposteiro meio caído, o mancebo que acabavam de anunciar, semelhante a um retrato em pé de Holbein ou de Ticiano. Adiantou-se vagarosamente, e dobrou o joelho no meio da alcatifa do aposento.
— Sempre pálido — disse-lhe o rei —, sempre lúgubre... Ora vamos, meu amigo! reveste-te por um instante da tua cara dos domingos, e não queiras dar-me boas notícias com um semblante tão triste; fala depressa, de Bouchage, pois estou sequioso de ouvir a tua narração. Vens da Flandres, meu filho?
— Venho, sim, Real Senhor.
— E com toda a ligeireza, segundo vejo...
— Tão apressadamente quanto um homem pode andar sobre a terra, meu Senhor.
— Sê pois bem-vindo. Que há a respeito de Antuérpia?
— Antuérpia pertence hoje ao príncipe de Orange, Real Senhor.
— Ao príncipe de Orange?! que quer isso dizer!?
— A Guilherme, se antes quer que assim lhe chame.
— Mas diz-me: meu irmão não estava em marcha sobre Antuérpia?...
— Sim, Real Senhor; mas, presentemente, já não é sobre Antuérpia que ele marcha, é sobre Château-Thierry.
— Então ele abandonou o exército?
— Já não há exército, meu Senhor.
— Oh! — exclamou o rei, deixando-se cair sobre a poltrona por lhe fraquejarem os joelhos — e Joyeuse?
— Real Senhor, meu irmão, depois de ter obrado prodígios de valor à frente dos seus marinheiros, depois de ter sustentado toda a retirada, reuniu o pequeno grupo de homens que escaparam do desastre, e com eles formou uma escolta para o Senhor Duque de Anjou.
— Uma derrota!... — murmurou o rei. E logo, com um brilho nos olhos:
— Visto isso... está perdida a Flandres para meu irmão?
— Completamente, Real Senhor.
— E sem remédio?
— Receio muito que assim seja.
O semblante do rei alegrou-se gradualmente, como cedendo à influência de um pensamento interno.
— O pobre Francisco — disse ele sorrindo — é infeliz com as coroas. Escapou-lhe a de Navarra; estendeu a mão para a da Inglaterra; tocou quase na da Flandres... Apostemos, de Bouchage, em como nunca há-de reinar. Pobre irmão! e ele que tanto o deseja!...
— Ah! meu Deus! sempre assim sucede quando se deseja muito alguma coisa — disse Chicot em tom solene.
— E quanta gente ficou prisioneira? — perguntou o rei.
— Uns dois mil homens, pouco mais ou menos.
— Quantos ficaram mortos?
— Outros tantos, pelo menos; entrando nesse número o Sr. de Saint-Aignan.
— Pois quê!? morreu o pobre Saint-Aignan?!
— Afogado.
— Afogado?... como!? atiraram-mo ao Escalda?...
— Nada; foi o Escalda que se atirou a nós.
O conde fez então ao rei uma narração exacta da batalha e da inundação. Henrique esteve-o ouvindo até ao fim, com uma atitude, um silêncio e uma fisionomia a que não faltava certa majestade. Depois, apenas o conde concluiu a sua narração, ergueu-se e foi ajoelhar no genuflexório do seu oratório particular; demorou-se um instante a orar, e tornou para o seu lugar com o parecer completamente serenado.
— Bem! — disse ele — parece-me que sei portar-me como um rei. Um rei apoiado pelo Senhor é realmente mais do que um homem. Vamos, conde, imite-me, e visto que, graças a Deus, seu irmão escapou, assim como o meu, tratemos agora de nos alegrar.
— Estou às suas ordens, Real Senhor.
— Que queres tu como recompensa dos teus serviços, de Bouchage? fala.
— Meu Senhor — disse o mancebo, abanando a cabeça —, eu não prestei serviço algum.
— Não creio; mas quando assim fosse, prestou-os teu irmão.
— E imensos, Real Senhor.
— Salvou o exército, dizes tu... ou mais exactamente: os destroços do exército.
— De toda a gente que escapou, não há um único homem que não confesse dever a vida a meu irmão.
— Pois bem, de Bouchage, é da minha vontade tornar os meus benefícios extensivos a ambos, e assim imitarei o Omnipotente, que vos protegeu de uma maneira tão visível, fazendo-os ambos iguais, isto é, ricos, valentes e formosos; assim como também imitarei os grandes políticos da Antiguidade, sempre tão bem inspirados, os quais tinham por costume remunerar os mensageiros portadores de más notícias.
— Deixa-te de histórias! — disse Chicot — exemplos sei eu de mensageiros que foram enforcados por terem sido portadores de más novas.
— Pode ser — respondeu majestosamente Henrique —, mas também há o exemplo de dar o Senado agradecimentos a Varro.
— Estás-me citando actos de republicanos. Valois! Valois, a desgraça tornou-te humilde.
— Vamos lá, de Bouchage, que queres tu? que desejas tu?
— Visto Vossa Majestade fazer-me a honra de me falar tão afectuosamente, animo-me a aproveitar a sua benevolência: estou aborrecido da vida, Real Senhor; contudo, repugna-me dar cabo da minha existência, porque o proíbe Deus; todos quantos subterfúgios emprego em tal caso são pecados mortais; fazer-se a gente matar no exército, deixar-se morrer de fome, esquecer-se de nadar quando se atravessa um rio, tudo isso são disfarces do suicídio que não iludem os olhos de Deus, porque, como muito bem sabe Vossa Majestade, os nossos mais ocultos pensamentos são conhecidos de Deus; renuncio pois a morrer antes do termo que Deus estabeleceu à minha vida, mas estou cansado do mundo e quero deixá-lo.
— Meu amigo!... — exclamou o rei.
Chicot ergueu a cabeça, e olhou com interesse para aquele mancebo tão formoso, tão valente e tão rico, que acabava de falar com uma tal desesperação.
— Real Senhor — prosseguiu o conde, em tom resoluto —, tudo quanto me tem sucedido há algum tempo a esta parte tem contribuído para fortificar em mim este desejo; quero lançar-me nos braços de Deus, soberano consolador dos aflitos, assim como também é soberano Senhor dos felizes da Terra; digne-se, pois, Real Senhor, proporcionar-me os meios de tomar prontamente o hábito religioso, porque o meu coração está, como diz o profeta, triste como a morte.
Chicot, o eterno escarnecedor, interrompeu por um instante a incessante ginástica dos seus braços e fisionomia, para escutar aquela dor majestosa, que falava tão nobremente e com tanta sinceridade, com uma voz tão suave e persuasiva.
Os seus olhos brilhantes anuviaram-se ao encontrar o olhar aflito do irmão de Joyeuse, e o seu corpo estendeu-se e ficou prostrado pela simpatia daquele descoroçoamento que parecia ter cortado todas as fibras do corpo de de Bouchage.
O rei também tinha sentido oprimir-se-lhe o coração ao ouvir uma tão dolorosa súplica.
— Ah! percebo, meu amigo — disse ele —, queres tomar o hábito de religioso, mas sentes que és homem, e receias as provas...
— Não tenho receio das austeridades, meu Senhor, mas sim do tempo que deixam à indecisão; não, não é para suavizar as provas que me hão-de ser exigidas, porque tenciono não poupar ao meu corpo sofrimento algum físico, nem ao meu espírito privação alguma moral: é para tirar, tanto a um como a outro, todo e qualquer pretexto de voltarem ao passado: é, numa palavra, para fazer brotar subitamente do chão a grade que há-de separar-me para sempre do mundo, e que, segundo as regras eclesiásticas, cresce ordinariamente com tanto vagar como se fora uma sebe de espinhos.
— Pobre rapaz! — disse o rei, que tinha seguido o discurso de de Bouchage, medindo, por assim dizer, cada uma das suas palavras — pobre rapaz... Parece-me que há-de ser bom pregador, não achas, Chicot?
Chicot não respondeu. De Bouchage prosseguiu:
— É escusado dizer-lhe, Real Senhor, que é na minha própria família que há-de ter lugar a luta; que são os meus parentes mais próximos quem me hão-de fazer a maior oposição; meu irmão cardeal, que tem bom coração, e que tão mundano é, procurará mil razões para me fazer mudar de parecer; e se o não conseguir, há-de recorrer às impossibilidades materiais, e alegar-me-á que a corte de Roma exige que medeie certo espaço de tempo entre cada grau das ordens. Nisso é que Vossa Majestade pode tudo fazer em meu favor; então conhecerei o braço que Vossa Majestade se digna estender sobre a minha cabeça. Perguntou-me o que eu desejava, Real Senhor, e prometeu-me que satisfaria o meu desejo: como o meu único desejo é pertencer a Deus, consiga Vossa Majestade que Roma me dispense do noviciado.
O rei, de pensativo que estava, ergueu-se risonho e, pegando na mão do conde, disse:
— Farei o que me pedes, meu filho; queres pertencer a Deus? tens razão, é um ser melhor do que eu.
— Que cumprimento tão lisonjeiro!... — resmungou Chicot por entre o bigode e os dentes.
— Pois bem! seja assim — prosseguiu o rei —, receberás as ordens sacras conforme desejas, querido conde, eu to prometo.
— Vossa Majestade acaba de me encher de alegria! — exclamou o mancebo, beijando a mão de Henrique com tanta satisfação como se acabasse de ser nomeado duque, par ou marechal de França. — Bem... é negócio tratado?...
— Pela minha palavra de rei, à fé de cavalheiro! — respondeu Henrique.
O parecer de de Bouchage animou-se; assomou-lhe aos lábios um sorriso de êxtase; cortejou respeitosamente o rei e saiu.
— Que ditoso mancebo! — exclamou Henrique.
— Bom! — replicou Chicot — parece-me que nada tens a invejar-lhe: não é decerto mais digno de lástima do que tu, meu rei!
— Mas, atende bem, Chicot: vai ser monge, vai dar-se ao Céu!...
— E que demónio obsta a que faças o mesmo?... Ele pede dispensa a seu irmão cardeal, mas eu conheço um cardeal que te dará todas as dispensas necessárias, pois ainda é mais bem visto em Roma do que tu! não sabes a quem me refiro? é ao cardeal de Guisa.
— Chicot!...
— E se é a tonsura que te dá cuidado (porque, enfim, a tonsura sempre é uma operação delicada), as mais lindas mãos do mundo, a mais bonita tesoura da Rua da Cutelaria — uma tesoura de ouro, nada menos! — dar-te-á esse precioso símbolo, que elevará ao algarismo três o número das coroas que terás possuído, justificando a divisa: Manet ultima coeto.
— Umas lindas mãos, dizes tu?...
— Ora vamos! serás também capaz de dizer mal das mãos da Senhora Duquesa de Mont-pensier, como tens dito dos seus ombros?... Que rei esquisito que és, e como te mostras severo para com as tuas súbditas!...
O rei franziu as sobrancelhas e correu a mão pela testa, mão tão branca como aquelas de que falava Chicot, mas com certeza mais trémula.
— Está bom, está bom — disse Chicot —, deixemos isso de parte, pois bem percebo o aborrecimento que te está causando esta conversa, e voltemos às coisas que me interessam pessoalmente.
O rei fez um gesto meio indiferente e meio aprovativo.
Chicot olhou em redor de si, fazendo girar a poltrona sobre os dois pés traseiros.
— Vamos — disse ele a meia voz —, responde, meu filho: os Srs. de Joyeuse partiram assim, sem mais nem menos, para a Flandres?
— Em primeiro lugar, que queres tu dizer com o teu sem mais nem menos?
— Quero dizer que esses sujeitos são tão aferrados, um ao prazer, o outro à tristeza, que me admira que deixassem Paris sem fazer alguma travessura, um para se divertir, e o outro para se atordoar.
— E então?
— Então, como és um dos seus melhores amigos, deves saber como daqui saíram.
— Não há dúvida que sei.
— Conta-me, pois, Henriquinho; não ouviste dizer...? Chicot deteve-se.
— O quê?
— Que se desse uma sova em alguma pessoa notável, por exemplo?
— Não ouvi dizer tal.
— Que roubaram alguma mulher com arrombamento de porta e tiros de pistola?...
— Não, que eu saiba.
— E... que deitaram fogo a alguma coisa, por acaso?
— A quê?
— Sei lá!... a alguma dessas coisas a que deita fogo um fidalgo quando quer divertir-se... à casa de algum pobre diabo, por exemplo...
— Estás doido, Chicot!? pôr fogo a uma casa na minha cidade de Paris! Quem se atreveria a cometer semelhante atentado?...
— Ah! sim, sim; fazem muita cerimónia contigo!...
— Chicot!...
— Enfim: nada fizeram de que ouvisses o ruído ou visses o fumo, pois não?
— Juro-te que não.
— Ainda bem! — disse Chicot, respirando com certa facilidade, operação de que tinha estado privado enquanto havia durado o interrogatório a que acabava de submeter Henrique.
— Sabes uma coisa, Chicot?... — disse Henrique.
— Nada, não sei.
— É que te vais tornando perverso.
— Eu?
— Sim, tu.
— A minha residência no túmulo tinha-me edulcorado, ó grande rei, mas a tua presença torna-me azedo. Omnia tello putrescunt.
— Queres tu dizer que já estou bolorento, é?... — disse o rei.
— Um pouco, meu filho, um pouco.
— Vais-te tornando insuportável, Chicot, e descubro em ti projectos de intriga e de ambição que julgava bem longe do teu carácter.
— Projectos de ambição em mim?! Chicot ambicioso?!... Henriquinho, meu filho! tu não passavas de um pateta, agora estás endoidecendo! tens feito progressos.
— E eu digo-lhe, Sr. Chicot, que quer afastar de mim todos os meus servidores, imputando-lhes intenções que eles não têm e crimes de que nunca se lembraram! digo, enfim, que quer monopolizar!
— Monopolizar, eu?! — exclamou Chicot — monopolizar!... para fazer o quê?... Deus me livre de tal! És um ente muito incómodo, bom Deus! E muito custoso de sustentar. Oh! isso não, não!
— Hum - disse o rei.
— Vamos, explica-me: de onde te veio essa ideia bicuda?
— Começaste por ouvir com frieza os elogios que fiz ao teu antigo amigo Dom Modesto, a quem deves muitas obrigações...
— Eu devo muitas obrigações a Dom Modesto?... Bom, bom, bom! e depois?
— Depois, tentaste caluniar os Joyeuses, dois verdadeiros amigos.
— Não o nego.
— Em seguida, deste uma unhada nos Guisas.
— Ah tu és amigo deles agora?... Também esses! vejo que te deu hoje para seres amigo de
toda a gente.
— Não; não sou amigo deles; mas como se conservam actualmente quietos e calados; como não me causam o menor dano; como não os perco um instante de vista, e a única coisa que neles observo é sempre a mesma frieza de mármore; e como não costumo ter medo de estátuas, por muito ameaçadoras que sejam, prefiro aquelas de que já conheço o rosto e a atitude. Sabes que mais, Chicot? um fantasma, logo que se torna familiar, já não é mais do que um companheiro insuportável. Todos esses Guisas, com olhos espavoridos e imensas espadas, são de toda a gente do meu reino os que até hoje me têm feito menos mal; e assemelham-se. .. queres que te diga a quê?...
— Diz, Henriquinho, diz, que nisso me darás gosto; bem sabes que és cheio de subtileza nas tuas comparações.
— Assemelham-se às percas que se deitam nos tanques para darem caça aos peixes grandes a fim de evitar que engordem muito... Mas supõe por um instante que os peixes grandes não têm medo delas...
— Sim; que sucede?
— Não têm nos dentes força necessária para lhes fazerem mossa nas escamas.
— Oh! Henrique, meu filho, como és subtil!...
— Enquanto que o teu Bearnês...
— Conclui, vá; também te ocorre alguma comparação para o Bearnês, hem?...
— Enquanto que o teu Bearnês, que mia como um gato, morde como um tigre...
— Por minha vida! — disse Chicot — ali está o Valois ameigando o Guisa! Vamos, meu filho, não pares em tão bom caminho. Divorcia-te já da tua mulher e casa com a Sr.a de Montpensier; com ela sempre terás uma probabilidade em teu favor: se não lhe fizeres filhos, ela os fará. Ela não teve uma paixão por ti noutro tempo?...
Henrique empertigou-se com fatuidade:
— Sim — disse —, mas eu tinha então outro namoro; é essa a origem de todas as suas ameaças. Chicot, aí é que bate o ponto; tem contra mim um rancor de mulher, e provoca-me de tempos a tempos; mas felizmente sou homem, e rio-me dos seus manejos.
Henrique acabava de dizer estas palavras levantando o seu colar de canudos à italiana, quando o porteiro Nambu gritou do limiar da porta:
— Um mensageiro do Senhor Duque de Guisa para Sua Majestade!
— É um correio ou um gentil-homem? — perguntou o rei.
— É um capitão, Real Senhor.
— Pois que entre; e bem-vindo seja.
Entrou logo um capitão de cavalaria, vestido com o uniforme de campanha, e fez a continência do estilo.
OS DOIS ADVERSÁRIOS
Chicot, mal ouvira anunciar o capitão, sentara-se, conforme o seu costume, com as costas insolentemente voltadas para a porta; os seus olhos, meio fechados, indicavam que ele se achava entregue a uma daquelas meditações internas que lhe eram tão usuais; porém, as primeiras palavras que proferiu o mensageiro dos Guisas fizeram-no estremecer.
Abriu por conseguinte um dos olhos. Felizmente, ou infelizmente, o rei, que estava dando atenção ao recém-chegado, não reparou nesta manifestação, que da parte de Chicot era sempre para assustar.
O mensageiro achava-se colocado a dez passos da cadeira de braços em que Chicot estava agachado, e como o perfil deste ficava quase de todo encoberto pelas guarnições da cadeira, o olho de Chicot via o mensageiro dos pés à cabeça, enquanto o mensageiro apenas via o olho
de Chicot.
— Vem da Lorena? — perguntou o rei ao mensageiro, o qual tinha ademanes de homem
nobre e garbo, bastante militar.
— Não, Real Senhor; de Soissons, onde o Senhor Duque, que não tem saído daquela cidade há um mês, me entregou esta carta, que tenho a honra de depositar nas mãos de Vossa
Majestade.
O olho de Chicot fulgurava e não deixava escapar um único gesto do recém-chegado, assim como também os seus ouvidos não perdiam uma única palavra das que ele dizia.
O mensageiro abriu o seu jaleco de anta, que era fechado com colchetes de prata, e tirou de uma algibeira de couro, forrada de seda, e colocada sobre o coração, não uma carta só, mas duas, porque uma trouxe consigo a outra, a que tinha aderido o lacre do selo, de forma que, ao puxar o capitão pela primeira, a segunda caiu sobre a alcatifa.
O olho de Chicot seguiu o voo da carta como o olho de um gato segue o voo de um
pássaro.
Notou também que a queda inesperada da carta tinha feito tingir de vermelho as faces do mensageiro, e não lhe escapou o embaraço em que este se viu para a apanhar, assim como para entregar a primeira ao rei.
Porém Henrique nada viu; Henrique, modelo de confiança, estava na sua hora de distracção, e em nada reparou. Contentou-se com abrir aquela das duas cartas que lhe ofereciam,
e leu.
O mensageiro, vendo o rei entretido com a leitura, ficou absorto a contemplá-lo, parecendo procurar-lhe no rosto o reflexo de todos os pensamentos que tão interessante carta lhe podia despertar no espírito.
«Ah! mestre Borromeu! mestre Borromeu!... resmungou Chicot, seguindo também com os olhos todos os movimentos do homem de confiança do Sr. de Guisa. Ah tu és capitão?... e não dás senão uma carta a el-rei tendo duas na algibeira... Espera, meu maganãozinho, espera!...»
— Muito bem! muito bem! — disse o rei, tornando a ler cada regra da carta do duque com visível satisfação. — Vá com Deus, capitão, e diga ao Sr. de Guisa que muito lhe agradeço o oferecimento que me faz.
— Vossa Majestade não é servido honrar-me com uma resposta por escrito? — perguntou o mensageiro.
— Não; hei-de estar com ele daqui a um mês ou mais; por conseguinte, agradecer-lhe-ei pessoalmente. Pode ir.
O capitão inclinou-se e saiu.
— Bem vês, Chicot — disse então o rei para o seu companheiro, que ele julgava estar ainda repoltreado na cadeira de braços —, que o Sr. de Guisa está fora de toda e qualquer maquinação. O honrado duque soube dos sucessos de Navarra; receia que os hugue-notes cobrem de novo alento e levantem a cabeça, porque lhes constou que os Alemães querem mandar auxílio ao rei de Navarra. Nesta conjuntura, que faz ele? adivinha o que ele faz;..
Chicot não respondeu. Henrique pensou que ele esperava pela explicação.
— Pois sabe — prosseguiu ele — que me oferece o exército que acaba de organizar na Lorena para vigiar a Flandres, e avisa-me de que, dentro de seis semanas, o exército de que se trata estará todo à minha disposição, bem como o seu general! Que dizes a isto, Chicot?
O gascão continuou a ficar calado.
— Digo-te, na verdade, meu caro Chicot — prosseguiu o rei —, que tens um costume muito absurdo, meu amigo: és teimoso como uma mula espanhola, e se alguém tem a infelicidade de te convencer de algum erro, o que muitas vezes sucede, zangas-te; é assim mesmo! zangas-te como um pateta que és.
Nem um sopro sequer veio contradizer Henrique na opinião que acabava de manifestar tão francamente a respeito do amigo. Havia uma coisa que a Henrique desagradava ainda mais do que a contradição: era o silêncio.
— Estou a ver — disse ele — que o maroto teve o atrevimento de adormecer... Chicot — prosseguiu, caminhando para a poltrona —, é o teu rei quem está falando... não respondes?
Mas Chicot não podia responder, visto que já ali não estava. Henrique não achou ninguém na poltrona. Correu os olhos pelo quarto; o gascão já não estava no quarto, nem na cadeira de braços. O seu morrião tinha desaparecido como ele e com ele. O rei sentiu uma espécie de arrepio supersticioso; ocorria-lhe às vezes à imaginação que Chicot não era um ente humano, que era alguma encarnação diabólica, de boa casta, é verdade, mas enfim diabólica.
Chamou por Nambu. Nambu em nada se parecia com Henrique. Era, pelo contrário, um espírito forte, como são em geral os indivíduos que guardam as antecâmaras dos reis. Acreditava em aparições e desaparições de entes vivos, e não de espectros. Nambu asseverou positivamente a Sua Majestade que tinha visto sair Chicot cinco minutos antes da saída do enviado do Senhor Duque de Guisa. Tinha notado unicamente que ele havia saído com a ligeireza e cautela próprias de um homem que não queria que o vissem sair.
«Não há dúvida, disse Henrique, dirigindo-se para o seu oratório, Chicot enfadou-se por se ter enganado nas suas conjecturas. Muito mesquinhos são os homens, oh! meu Deus!
Nambu tinha razão; Chicot, com a sua celada na cabeça e a enorme espada cingida, tinha atravessado as antessalas sem fazer bulha; mas apesar de toda a sua cautela, não pôde evitar que as esporas tinissem ao descer a escadaria que dava serventia dos quartos para o pátio do Louvre, e o resultado foi receber Chicot uma imensidade de barretadas, pois todos sabiam qual era a sua posição junto do rei, e muita gente cumprimentava Chicot com mais consideração do que teria cumprimentado o duque de Anjou.
A um canto do portão Chicot deteve-se para afivelar uma espora. O capitão do Sr. de Guisa, como dissemos, tinha saído uns cinco minutos apenas depois de Chicot, no qual não havia reparado. Descera a escadaria e atravessara os pátios com gesto soberbo, porque não tinha mau garbo como militar, e fazia gosto em ostentar a sua elegância à vista dos suíços e dos guardas de Sua Majestade Cristianíssima; e satisfeito, porque o rei o havia recebido de modo que mostrava não ter a menor desconfiança acerca do Sr. de Guisa. No momento em que saía do portão do Louvre e atravessava a ponte levadiça, feriu-lhe os ouvidos um tinir de esporas que parecia o eco das suas.
Voltou-se, pensando que o rei o mandava talvez chamar, e grande foi o seu assombro quando conheceu por baixo dos bicos arrebitados da celada, o rosto benigno e a sonsa fisionomia de Roberto Briquet.
Os leitores estão lembrados que o primeiro movimento daqueles dois homens a respeito um do outro não tinha sido precisamente um movimento de simpatia.
Borromeu escancarou espantosamente a boca, e, julgando que o indivíduo que o seguia lhe desejava falar, parou, de forma que Chicot chegou ao pé dele com duas pernadas.
Já é sabido que tais eram as pernadas de Chicot.
— Com o demónio! — disse Borromeu.
— Com a breca! — exclamou Chicot.
— Meu pacato burguês!
— Meu Reverendo Padre!
— Com essa celada!...
— Vestido de anta!...
— Muito folgo de o ver!
— Muita satisfação me causa encontrá-lo!
E os dois ferrabrases olharam-se durante alguns segundos com a hesitação hostil de dois galos que estão para brigar e que, para se intimidarem um ao outro, se empertigam e agitam os esporões.
Borromeu passou do tom grave para o brando.
Os músculos do rosto relaxaram-se, e com um modo de franqueza militar e de amável urba-nidade, disse:
— Viva Deus! sempre é muito matreiro, Sr. Roberto Briquet!
— Eu, meu Reverendo?! — respondeu Chicot — por que motivo diz isso?
— Por causa daquele nosso encontro no Convento dos Dominicanos, onde me fez crer que era um simples burguês. Digo-lhe, na verdade, que sempre é preciso que seja dez vezes mais astuto e mais valente do que um procurador e um capitão juntos!
Chicot conheceu que era a boca, e não o coração, que lhe fazia aquele cumprimento.
— Ah! ah! — respondeu com lhaneza — e que diremos do Sr. Borromeu?...
— De mim?
— Sim, do senhor.
— Porquê?
— Por me ter feito capacitar de que era um monge. É preciso, na verdade, que seja dez vezes mais astuto do que o próprio papa! (e dizendo-lhe isto não o ofendo, porque o papa hoje em dia é um insigne descobridor de tramas).
— Pensa, na realidade, isso que diz? — perguntou Borromeu.
— Com a breca! costumo mentir, porventura?...
— Pois então... toque!
E estendeu a mão a Chicot.
— Ah! o senhor tratou-me bem mal, lá no convento, irmão capitão... — disse Chicot.
— Julgava que era um burguês, e sabe muito bem o caso que sempre fazemos dos burgueses, nós, homens de espada.
— É verdade — disse Chicot, rindo-se —, é o mesmo que nós fazemos dos monges... E contudo, colheu-me no laço.
— No laço?
— Sem dúvida; pois aquele disfarce encobria um laço forçosamente. Um valente como o senhor não troca, sem graves motivos, a couraça por um hábito.
— Com um militar, como eu, não quero ter segredos — retorquiu Borromeu. — Sim, é verdade, tenho certos interesses no Convento dos Dominicanos; e o senhor?
— Eu também — disse Chicot —, mas caluda!
— Quer que conversemos a respeito de tudo isso?
— Por minha alma que muito o desejo.
— Costa de bom vinho?
— Gosto, quando é bom.
— Pois bem! sei de uma taberninha que não tem rival em Paris...
— Também eu sei de uma — respondeu Chicot. — Como se chama a sua?
— É a Cornucópia.
— Ah!... — disse Chicot estremecendo.
— Então!? que é isso?...
— Nada.
— Tem algum motivo para não gostar de tal taberna?
— Nada; bem pelo contrário.
— É sua conhecida?
— Nem sabia que existia.
— É de seu agrado que vamos para lá?
— Pois não! já, sem demora.
— Vamos então.
— Para onde fica?
— Para a banda da Porta Bourdelle. O dono da casa é um velho provador de vinhos, que sabe perfeitamente avaliar a diferença que há entre o paladar de um homem e a goela de um bebedor de arribação.
— Visto isso, poderemos conversar lá à vontade.
— Na adega até, se quisermos.
— Sem que nos estorvem?
— Fecharemos as portas.
— Está bom — disse Chicot —, vejo que é um homem de recursos, e tão benquisto nas tabernas como nos conventos.
— Acaso julga que estou de combinação com o estalajadeiro?...
— Assim se me figura, com efeito.
— À fé que não! desta feita está enganado; mestre Bonhomet vende-me vinho quando eu quero, e pago-lhe quando posso, nada mais.
— Bonhomet?... — disse Chicot. — Eis aí, por minha honra! um nome que muito promete.
— E que não falha. Vamos lá, vamos.
«Oh! oh! disse consigo Chicot, seguindo o falso monge, agora trate de escolher a melhor das suas caretas, amigo Chicot; porque se Bonhomet o reconhece logo ao entrar, está perdido,
e fica com cara de tolo.»
A CORNUCÓPIA
O caminho por onde Borromeu ia guiando Chicot, sem imaginar que este o sabia tão bem como ele, recordava ao nosso gascão os felizes dias da sua juventude.
Com efeito, quantas vezes, noutro tempo, não tinha Chicot vindo, livre de cuidados, gozar de um raio do Sol no Inverno, ou de uma fresca sombra no Verão, em frente daquela mesma estalagem da Cornucópia para onde um estranho o conduzia naquele momento!
Então, bastava-lhe sentir na bolsa o tinir de algumas peças de ouro, ou mesmo de prata, para se julgar mais feliz do que um rei; entregava-se todo ao doce prazer de mandriar, e nisso levava o tempo que bem lhe parecia, pois não tinha amante à sua espera em casa, nem filhos esfomeados à porta da rua, nem pais desconfiados e resmungadores a espreitarem-no pelos vidros. Chicot sentava-se indolentemente no banco de pau ou no escabelo da taberna, e ali esperava por Gorenflot, ou, para melhor dizer, ali o encontrava, sempre pontual, a aspirar as primeiras emanações da refeição que se mandava aprontar.
Gorenflot, então, animava-se a olhos vistos, e Chicot, sempre inteligente, sempre observador, sempre anatomista, espreitava os progressos da sua embriaguez, estudando aquela natureza tão curiosa através do vapor subtil de uma emoção razoável; e sob a influência do vinho generoso, do calor e da liberdade, sentia todo o seu ser remoçado.
Chicot, ao passar em frente da Encruzilhada de Bussy, pôs-se nos bicos dos pés, para ver se lobrigava a casa que tanto tinha recomendado ao cuidado de Rémy; porém a rua era sinuosa, e não lhe pareceu conveniente parar; soltou um suspiro, e seguiu o capitão Borromeu. Em breve se lhe ofereceu à vista a Rua Larga de S. Tiago, depois o Claustro de S. Bento, e quase em frente do claustro, a estalagem da Cornucópia, um pouco envelhecida, com as paredes algum tanto emporcalhadas e gretadas, mas ainda ornada de plátanos e de castanheiros exteriormente, e guarnecida no interior de luzidios potes de estanho e de brilhantes caçarolas, que são para os bebedores e gastrónomos simples ficções de ouro e de prata, mas que atraem realmente o verdadeiro ouro e prata para os bolsos do taberneiro, e isto por motivos simpáticos de que só a natureza sabe o segredo.
Chicot, depois de correr a vista rapidamente do limiar da porta para o interior da casa, alcatruzou as costas, perdendo assim umas seis polegadas de estatura, que já tinha diminuído na presença do capitão; adicionou a isto uma careta de sátiro, muito diversa do seu gesto franco e do jogo usual da sua fisionomia, e aprontou-se para arrostar com a presença do antigo taberneiro, mestre Bonhomet.
Demais, Borromeu entrou primeiro para lhe ensinar o caminho, e mestre Bonhomet, à vista dos dois capacetes, só procurou conhecer o que vinha adiante.
Se a frontaria da Cornucópia se tinha gretado, o rosto do estimável taberneiro também não tinha escapado aos estragos do tempo. Além das rugas, que correspondem no rosto humano as fendas que o tempo abre na fachada dos monumentos, mestre Bonhomet tinha adoptado modos de homem poderoso, que o tornavam de difícil acesso para tudo quanto não fosse gente de espada, e enrugavam-lhe mais o semblante. Porém sempre respeitava a espada: era o seu fraco; tinha contraído aquele hábito por viver num bairro que ficava fora do alcance da vigilância municipal, e debaixo da influência dos pacíficos Beneditinos.
E, com efeito, se por desgraça se travava alguma rixa naquela gloriosa taberna, primeiro que houvesse tempo de ir à contra-escarpa buscar os suíços ou a guarda de segurança, já a espada tinha trabalhado, e de maneira a abrir ventiladores nuns poucos de gibões; esta desdita já sucedera a Bonhomet umas sete ou oito vezes, e de cada vez lhe custara cem libras; respeitava pois a espada, segundo este sistema: do receio nasce o respeito.
Quanto aos outros clientes da Cornucópia, estudantes, escreventes, frades e comerciantes, esses bastava Bonhomet para os domar; havia adquirido uma certa celebridade por encaixar um balde de chumbo na cabeça dos pagadores recalcitrantes ou desleais, e quando levava a efeito tal execução, sempre tinha em seu favor certos sustentáculos de taberna, por ele escolhidos entre os mais vigorosos caixeiros das lojas vizinhas. Demais, o vinho, que cada qual tinha licença para ir buscar pessoalmente à adega, era tão bom e tão puro, a sua longanimidade a respeito de certos fregueses acreditados no seu balcão era tão conhecida, que ninguém se escandalizava com esquisitices motivadas pelo seu humor fantástico.
Alguns fregueses antigos atribuíam as tais esquisitices a desgostos caseiros que tinha mestre Bonhomet. Tais foram, pelo menos, as explicações que Borromeu julgou conveniente dar a Chicot acerca do carácter do dono da casa, de quem iam avaliar a hospitalidade. A misantropia de Bonhomet tinha redundado em prejuízo do embelezamento e asseio da estalagem. O estalajadeiro, julgando-se, segundo o seu modo de pensar, muito acima dos seus fregueses, não se deu ao incómodo de aformosear a taberna; daqui resultou parecer a Chicot, quando entrou na sala, que tinha lá estado na véspera; nada estava mudado, à excepção da cor fuliginosa do tecto, que, de cinzento que era, passara a preto.
Naqueles tempos bem-aventurados ainda as estalagens não tresandavam ao fartum acre e enjoativo de tabaco, de que hoje se impregnam as madeiras e cortinados de tais casas, e que é um cheiro que absorve e exala tudo quanto é poroso e esponjoso.
Assim, pois, a sala geral da Cornucópia, apesar da sua venerável antiguidade e aparente tristeza, não neutralizava, com exalações exóticas, os miasmas vinhosos profundamente enraizados em cada átomo do estabelecimento, de forma que, seja-nos permitido dizê-lo, um verdadeiro bebedor folgava de entrar naquele templo do deus Baco, onde respirava o aroma e incenso mais querido daquela divindade.
Chicot entrou atrás de Borromeu, como já dissemos, e não foi visto, ou, mais exactamente, não foi conhecido pelo dono da Cornucópia.
Ele já sabia qual era o canto mais escuro da sala geral e, como se não soubesse de outro, ia para se sentar aí, quando Borromeu o deteve.
— Espere, amigo! — disse ele — há por trás deste tabique um retiro onde dois homens que têm segredos a comunicar um ao outro podem conversar em liberdade depois de beberem, ou mesmo enquanto bebem.
— Então vamos para lá — respondeu Chicot.
Borromeu fez um aceno ao estalajadeiro, como para perguntar: «Mestre, o gabinete está devoluto?»
Bonhomet respondeu com outro aceno, que queria dizer: «Está, sim senhor.»
E conduziu Chicot, que fingia tropeçar pelo corredor, para o retiro, tão conhecido pelos nossos leitores que se deram ao incómodo de ler A Dama de Monsoreau.
— Muito bem! — disse Borromeu. —- Agora fique aqui enquanto eu vou usar do privilégio concedido às pessoas que frequentam o estabelecimento, e de que também pode utilizar-se quando for mais conhecido.
— Qual é? — perguntou Chicot.
— É de ir eu mesmo à adega escolher o vinho que havemos de beber.
— Ah! ah! — exclamou Chicot — é um belo privilégio!
Borromeu saiu. Chicot seguiu-o com a vista; e depois, apenas ele fechou a porta, chegou-se à parede e levantou uma imagem, que representava a Morte do Crédito, assassinado pelos maus pagadores, imagem essa que estava metida numa moldura de madeira preta e fazia simetria com outra, que representava uns doze farroupilhas puxando o Diabo pela cauda. Por detrás da imagem havia um buraco, e pelo buraco via-se para a sala grande sem ser visto.
«Ah! ah! disse ele, tu trazes-me para uma taberna de que és freguês; metes-me num retiro onde pensas que ninguém poderá ver-me, e de onde imaginas que não poderei ver, mas neste retiro há um buraco, graças ao qual tu não farás um único gesto que me escape. Ora vamos, meu capitão! não és muito ladino.»
E Chicot, ao passo que proferia estas palavras, com ar de desprezo próprio só dele, aplicou o olho ao tabique, que estava engenhosamente furado num nó da madeira. Pelo buraco avistou Borromeu, o qual levou primeiro o dedo à boca em sinal de cautela, e depois falou com Bonhomet, que pareceu anuir aos seus desejos com um aceno de cabeça olímpico. Pelo movimento dos lábios do capitão, Chicot, que era experiente em tais matérias, adivinhou que a frase por ele pronunciada queria dizer: «Leve-nos de comer para aquele retiro, e depois, seja qual for o rumor que ouvir, não entre lá.»
Em seguida, Borromeu pegou numa lamparina que ardia eternamente em cima de uma arca, levantou um alçapão e desceu ele mesmo à adega, utilizando-se assim do privilégio mais precioso de que gozavam os fregueses do estabelecimento.
Chicot bateu então no tabique de certo modo particular. Ao ouvir aquele modo de bater, que lhe avivava forçosamente alguma lembrança profundamente gravada no coração, Bonhomet estremeceu, olhou para o ar e escutou. Chicot bateu segunda vez, como quem se admirava de que não tivessem obedecido ao primeiro chamamento. Bonhomet correu para o retiro, e encontrou Chicot de pé e com gesto ameaçador. Mal Bonhomet o viu, soltou um grito; julgava Chicot morto, como toda a gente, e pensou que estava na presença de um fantasma.
— Então que quer isto dizer, mestre!? — perguntou Chicot — e desde quando é que obriga gente da minha qualidade a chamar duas vezes?
— Oh! meu caro Sr. Chicot! — disse Bonhomet — é o senhor, na realidade, ou é a sua sombra que estou vendo?...
— Ou seja eu ou a minha sombra — replicou Chicot —, visto que me conhece, mestre, confio que há-de obedecer-me em tudo.
— Oh! por certo que sim, meu rico Sr. Chicot! dê-me as suas ordens.
— Seja qual for o rumor que ouvir neste gabinete, mestre Bonhomet, determino-lhe que não entre aqui sem que eu o chame.
— Ser-me-á ainda mais fácil cumprir os seus desejos, meu caro Sr. Chicot, porque a recomendação que me faz é exactamente a mesma que acaba de me fazer o seu companheiro.
— Sim, mas não há-de ser ele que há-de chamar, percebe, Sr. Bonhomet? hei-de ser eu; ou, se ele chamar, já fica sabendo que será exactamente como se não chamasse.
— Tenho entendido, Sr. Chicot.
— Bem; agora trate de pôr ao fresco todos os outros fregueses com qualquer pretexto, para que, dentro de dez minutos, possamos estar aqui em sua casa em tanta liberdade e tão sós como se tivéssemos vindo para aqui jejuar em Sexta-Feira da Paixão.
— Daqui a dez minutos, Sr. Chicot, não existirá um gato sequer em toda a estalagem, à excepção deste seu humilde criado.
— Vá, Bonhomet, vá; continua merecendo toda a minha estima — disse majestosamente Chicot.
«Oh! meu Deus! meu Deus! — disse Bonhomet, ao retirar-se — que estará para suceder na minha pobre e humilde casa?...»
Saiu a recuar, e assim foi andando, até que deu de cara com Borromeu, que voltava da adega com as garrafas.
— Ouviste? — disse-lhe este — daqui a dez minutos, nem viva alma no estabelecimento!
Bonhomet fez com a cabeça, ordinariamente tão desdenhosa, um sinal de obediência, e retirou-se para a cozinha, a fim de meditar na maneira mais acertada de cumprir as ordens que simultaneamente tinha recebido dos seus dois temíveis fregueses.
Borromeu entrou para o retiro, e achou Chicot à sua espera, de perna estendida e de parecer risonho.
Não sabemos qual foi o recurso de que lançou mão mestre Bonhomet; mas o caso é que ainda não tinha decorrido o décimo minuto, e já o último estudante transpunha o limiar da porta, dando o braço ao último escrevente, e dizendo:
— Oh! oh! o tempo está de borrasca em casa de mestre Bonhomet; vamo-nos embora, antes que venha por aí algum granizo...
O QUE SUCEDEU NO RETIRO DO MESTRE BONHOMET
Quando o capitão entrou no retiro com um cesto de doze garrafas na mão, Chicot recebeu-o com um modo tão franco e risonho, que Borromeu chegou quase a capacitar-se de que ele era um parvoeirão.
Borromeu estava com pressa de tirar as rolhas as garrafas que tinha ido buscar à adega, mas a pressa com que estava Chicot ainda excedia a dele.
Os preparativos não levaram muito tempo.
Os dois companheiros, como bebedores já experientes, pediram alguns petiscos salgados, com o louvável fim de não deixar extinguir a sede, petiscos que lhe foram trazidos por Bonho-met, ao qual cada um deles dirigiu um último olhar.
Bonhomet também correspondeu a ambos; mas se alguém tivesse podido observar aqueles dois olhares, teria encontrado uma grande diferença entre o que era dirigido a Borromeu e o que era destinado a Chicot.
Bonhomet saiu,, e os dois companheiros começaram a beber.
A princípio, como se a ocupação fosse demasiado importante para admitir interrupção, os dois bebedores engoliram bom número de copázios sem darem palavra. Era um gosto, especialmente, ver Chicot, que ainda não tinha dito senão isto:
— Palavra de honra! o vinho é um magnífico borgonha! E o presunto é realmente excelente!
Tinha engolido o conteúdo de duas garrafas, isto é, uma garrafa por cada frase. «Por Deus! resmungava consigo Borromeu, logo por felicidade minha quis o acaso que eu deparasse com um beberrão destes!»
À terceira garrafa, Chicot levantou os olhos para o Céu.
— Realmente — disse —, se continuarmos a beber assim não tardará que nos embriaguemos.
— Mas que se lhe há-de fazer?... este salsichão é tão salgado!... — respondeu Borromeu.
— Ah! vejo que gosta da pinga... — disse Chicot — pois continuemos amigo, que eu tenho a cabeça rija.
E cada um deles despejou mais uma garrafa. O vinho produziu nos dois companheiros um efeito inteiramente oposto: soltava a língua de Chicot e prendia a de Borromeu. «Ah! murmurou Chicot, tu calas-te, amigo; é porque desconfias de ti próprio.» «Ah! pensou Borromeu, tu começas a tagarelar, é porque te vais embebedando.»
— Quantas garrafas lhe são precisas, amigo? — perguntou Borromeu.
— Para quê? — disse Chicot.
— Para ficar alegre.
— Despejando quatro, tenho a minha conta.
— E para ficar toldado?
— Bastam umas seis.
— E para ficar bêbado de todo?
— Dobre a dose.
— Visto isso, temos muito por onde nos alargar — disse Borromeu, tirando do cesto uma quinta garrafa para si e outra para Chicot.
Chicot notou, porém, que das cinco garrafas alinhadas à direita de Borromeu, umas estavam em meio, e outras em dois terços; nenhuma estava vazia. Esta observação confirmou-o na ideia que logo a princípio lhe tinha ocorrido: que o capitão estava com más tenções a seu respeito. Ergueu-se para receber a quinta garrafa que lhe oferecia Borromeu, e oscilou sobre as pernas.
— Eh lá!... — disse ele — não sente?...
— O quê?
— Um tremor de terra.
— Ora adeus!
— É o que lhe digo! Felizmente esta estalagem da Cornucópia é uma casa muito sólida... se bem que edificada sobre um eixo.
— Edificada sobre um eixo?... — perguntou Borromeu.
— Boa dúvida!... é por isso que ela anda à roda!
— É verdade — replicou Borromeu, despejando lodo o conteúdo do copo —, eu bem sentia o efeito, mas não atinava com a causa.
— Porque não é latinista — replicou Chicot —, e não leu o tratado De natura rerum; se o tivesse lido, saberia que não há efeito sem causa.
— Pois bem, meu querido camarada! — disse Borromeu — (creio que é capitão como eu, não é assim?...)
— Capitão, desde as unhas dos pés até à raiz do cabelo! — respondeu Chicot.
— Pois bem, meu querido capitão! — replicou Borromeu — diga-me, visto que não há efeito sem causa, segundo afirma: qual era a causa do seu disfarce?
— De qual disfarce?
— Daquele que usava quando apareceu no convento de Dom Modesto.
— Como estava eu disfarçado?
— Em trajos de burguês.
— Ah!... é verdade!
— Conte-me isso, e assim dará começo à minha educação de filósofo.
— Com todo o gosto; mas há-de dizer-me também qual era o motivo por que estava disfarçado em trajes de monge... confidência por confidência.
— Está dito! — replicou Borromeu.
— Toque aqui! — disse Chicot; e estendeu a mão ao capitão. Ele deu uma palmada em cheio na mão de Chicot.
— Agora eu — disse Chicot.
E deu uma palmada na mesa, fingindo que não acertava com a mão de Borromeu.
— Muito bem! — disse Borromeu.
— Quer pois saber porque é que eu estava disfarçado em trajes de burguês, não é assim? — perguntou Chicot, custando-lhe já a acertar com as palavras.
— Quero; é uma coisa que me faz cismar.
— E contar-me-á tudo também?...
— À fé de capitão! não foi esse o nosso ajuste?...
— É verdade; já me esquecia. Pois bem! o caso é muito simples...
— Diga lá, então.
— Em duas palavras ficará sabendo tudo...
— Estou ouvindo.
— Andava fazendo de espião para servir el-rei.
— O quê!? andava fazendo de espião?!
— É verdade.
— Então... é espião por ofício?...
— Não; por simples curiosidade.
— Que espiava então no convento de Dom Modesto?
— Tudo. Espiava Dom Modesto, em primeiro lugar, depois Frei Borromeu, depois o Tiagozito, e, finalmente, todo o convento.
— E que descobriu, meu estimável amigo?
— Descobri, em primeiro lugar, que Dom Modesto é um asno muito grande.
— Para isso não é preciso muita habilidade nem muito estudo.
— Peço perdão! porque Sua Majestade Henrique III, que não é nenhum tolo, tem-no em conta de um dos luminares da Igreja, e tenciona fazê-lo bispo.
— Pois faça-o embora; nada tenho a dizer contra uma tal promoção; pelo contrário, hei-de rir muito nesse dia. Que mais descobriu?
— Descobri que um certo Frei Borromeu não era frade, mas capitão.
— Ah! deveras?... descobriu isso?...
— Logo à primeira vista.
— E que mais?
— Descobri que o Tiagozinho se andava exercitando com um florete quando não esgrimia com uma espada, e que aprendia a atirar ao alvo quando não tinha ocasião de atirar aos homens.
— Ah descobriste tudo isso?... — exclamou Borromeu, franzindo a testa — e depois? que mais descobertas fizeste?
— Oh! dá-me de beber, senão não me lembrarei de mais nada.
— Olha que vais encetar a sexta garrafa... — disse Borromeu, rindo-se.
— Por isso também vou estando toldado — replicou Chicot —, não pretendo afirmar o contrário; nós viemos porventura para aqui para fazer filosofia?...
— Não; viemos para beber.
— Bebamos pois!
E Chicot encheu o copo.
— Então? — perguntou Borromeu, quando acabou de corresponder ao convite de Chicot — vais-te recordando?
— De quê?
— Do mais que viste no convento.
— Pudera não! — disse Chicot.
— Então que mais viste tu?
— Vi que os monges, em vez de serem masmarros, eram soldados, e que em vez de obedecerem a Dom Modesto, te obedeciam a ti. Aí tens o que eu vi.
— Ah! deveras... Mas aposto que ainda não é tudo...
— Não; mas dá-me de beber; de beber, de beber, senão foge-me a memória!
E como a garrafa de Chicot já estava vazia, estendeu o copo para Borromeu, que lhe vazou da sua. Chicot despejou o copo sem tomar fôlego.
— Então? vamo-nos recordando, hem? — perguntou Borromeu.
— Se nos recordamos!... boa pergunta!
— Que mais viste?
— Vi que havia uma conspiração.
— Uma conspiração?! — exclamou Borromeu, empalidecendo.
— Uma conspiração, sim — replicou Chicot.
— Contra quem?
— Contra el-rei.
— Com que fim?
— Com o fim de o capturar.
— Quando?
— Quando ele voltasse de Vincennes.
— Inferno!
— Que diz?
— Nada. Viu tudo isso?
— Vi, sim.
— E avisou el-rei?
— Decerto! para isso é que eu lá tinha ido.
— Então foi o senhor a causa de ter falhado o plano, bem?
— Eu mesmo — disse Chicot.
— Maldição! — resmungou Borromeu, por entre os dentes.
— Dizia?... — perguntou Chicot.
— Digo que tem bons olhos, meu amigo.
— Ora! — respondeu Chicot a balbuciar — ainda vi muitas outras coisas... Passe para cá uma das suas garrafas, e há-de ficar admirado quando eu lhe contar o que vi.
Borromeu satisfez imediatamente o desejo de Chicot.
— Vamos lá — disse ele —, quero admirar-me.
— Em primeiro lugar — disse Chicot —, vi o Sr. de Maiena ferido.
— Não pode ser!
— Por que duvida? encontrei-o no caminho! E depois, vi a tomada de Cahors.
— Como!? a tomada de Cahors?! vem então de Cahors?...
— Certamente. Ah, capitão! que linda vista que era! digo-lhe, na verdade, que um valente militar como o senhor havia de ter gostado de presenciar aquele espectáculo.
— Não duvido. Visto isso, estava em companhia de el-rei de Navarra?
— Lado a lado, meu rico amigo, como aqui estamos.
— E veio embora...?
— Para vir trazer a notícia a el-rei de França.
— E esteve no Louvre?
— Onde entrei um quarto de hora antes do senhor.
— Nesse caso, como não nos separámos de então para cá, não lhe perguntarei o que viu desde que nos encontrámos no Louvre.
— Pelo contrário, pergunte, pergunte! porque é, palavra de honra! o mais curioso da festa.
— Diga, então.
— Diga, diga!... — repetiu Chicot — com a breca! parece-lhe isso muito fácil?...
— Faça um esforço.
— Venha outro copo de vinho para me soltar a língua... Bem cheio, bem? Bom! lá vai... Vi, meu camarada, que ao tirares da algibeira a carta de Sua Alteza o Duque de Guisa, deixaste cair outra no chão.
— Outra?!... — exclamou Borromeu, dando um pulo.
— Sim — disse Chicot —, a qual está aqui.
E, depois de descrever dois ou três ziguezagues com a mão trémula, tocou com a ponta do dedo no gibão de anta de Borromeu, precisamente no sítio onde estava a carta. Borromeu estremeceu, como se o dedo de Chicot fosse um ferro em brasa que lhe tivesse tocado no peito em lugar de lhe tocar no gibão.
— Oh! oh! — disse ele — não faltava senão uma coisa...
— Para quê?
— Para completar tudo isso que viu.
— Qual é?
— É que soubesse a quem é dirigida.
— Ah! forte admiração!... — disse Chicot, deixando cair os dois braços sobre a mesa; — vem dirigida à Senhora Duquesa de Montpensier.
— Sangue de Cristo! — gritou Borromeu — e já disse isso também a el-rei!?...
— Ainda não, mas hei-de dizer.
— Quando?
— Logo que tiver passado pelo sono um bocado — disse Chicot.
E deixou cair a cabeça sobre os braços, do mesmo modo que tinha deixado cair os braços sobre a mesa.
— Ah! sabe que eu trago uma carta para a duquesa?... — perguntou o capitão, com voz sufocada.
— Sei, sim senhor, sei-o perfeitamente — balbuciou Chicot.
— E se pudesse firmar-se bem nas pernas iria ao Louvre?...
— Iria ao Louvre.
— E denunciar-me-ia?...
— E denunciá-lo-ia.
— De forma que... não foi gracejo?...
— O quê?
— Dizer que, logo que tiver passado pelo sono...
— Que mais?
— El-rei tudo saberá?...
— Meu querido amigo — replicou Chicot, levantando a cabeça e encarando Borromeu com os olhos amortecidos —, ouça: o senhor é conspirador e eu sou espião; recebo um tanto por cada conspiração que descubro; maquina e eu denuncio-o. Fazemos ambos o nosso ofício, e aí está. Boa noite, capitão.
«Chicot, ao dizer estas palavras, não só havia tornado à sua primeira posição, mas arranjara-se na cadeira e na mesa de maneira tal que tinha a parte dianteira da cabeça enterrada nas mãos, e a parte traseira resguardada pelo capacete, sendo as costas a única superfície que apresentava. Mas as costas, privadas da couraça, que ele havia tirado e posto sobre uma cadeira, ofereciam uma rotundidade tentadora.
— Ah! — disse Borromeu, fitando no companheiro um olhar de fogo — ah! queres denunciar-me, meu querido amigo?...
— Logo que acorde, meu amigo, é negócio tratado — retorquiu Chicot.
— Resta saber se tu acordarás! — rugiu Borromeu.
E, ao mesmo tempo, descarregou uma furiosa punhalada nas costas do companheiro, julgando que o atravessava de lado a lado e o deixava pregado à mesa. Porém Borromeu não tinha contado com a túnica de malhas de aço que Chicot havia tirado por empréstimo a Dom Modesto. A adaga partiu-se como vidro de encontro à rija cota de malha, à qual, pela segunda vez, devia Chicot a salvação. E, antes que o assassino tivesse tempo de tornar a si do assombro
em que ficara, o braço direito de Chicot, estendendo-se como uma mola, descreveu um semicírculo e veio assentar um murro de trezentos quilos na cara de Borromeu, que foi cair de encontro à parede todo ensanguentado e pisado.
Estes dois segundos tinham bastado a Chicot para se levantar também e desembainhar a espada. Os vapores do vinho tinham-se dissipado como por encanto; Chicot estava com o corpo inclinado sobre a perna esquerda, os olhos atentos, a mão firme e pronto a receber o seu inimigo. A mesa, como um campo de batalha sobre o qual estavam deitadas as garrafas vazias, ficava entre os dois adversários, e servia a ambos de trincheira. Porém, a vista do sangue que lhe corria do nariz para a cara, e da cara para o chão, enfureceu Borromeu, e, perdendo toda a prudência, arremessou-se ao seu inimigo, aproximando-se dele tanto quanto permitia a mesa.
— Forte bruto! — disse Chicot — bem vês que afinal de contas és tu quem está bêbado, porque não me podes alcançar de um lado para o outro da mesa, enquanto que o meu braço tem mais seis polegadas de comprimento que o teu, e a minha espada mais seis polegadas do que a tua. E aqui tens a prova do que te digo!
E Chicot, sem mexer o corpo, estendeu o braço com a rapidez de um raio, e picou Borromeu no meio da testa.
Borromeu soltou um grito, mais de raiva do que de dor; e como, apesar de tudo, era dotado de excessivo valor, ainda mais se encarniçou no ataque. Chicot, sempre do lado oposto da mesa, pegou numa cadeira e sentou-se sossegadamente.
— Oh! meu Deus! como os soldados são estúpidos!... — disse, encolhendo os ombros. — Têm presunção de saber manejar a espada, e qualquer burguês é capaz de os matar como moscas se lhe der na vontade... Está bom! queres agora tirar-me um olho... Ah sobes para cima da mesa?... muito bem! era o que faltava! Toma sentido, grande asno que és! olha que as estocadas de baixo para cima são temíveis; e agora, se eu quisesse, espetava-te aí como um estorninho.
E picou-o na barriga, como já o tinha picado na testa. Borromeu bramiu de furor, e saltou abaixo da mesa.
— Agora sim — disse Chicot —, estamos ao mesmo nível e podemos conversar e esgrimir ao mesmo tempo. Ah! capitão, capitão! pelo que vejo, além de conspirador também és assassino nas horas vagas, bem?
— Eu faço pela minha causa o que o senhor faz pela sua — respondeu Borromeu, tornando às ideias sérias, e involuntariamente atemorizado por ver o fogo que brilhava nos olhos de Chicot.
— Muito bem — disse Chicot. — E contudo, amigo, vejo com muita satisfação que valho mais que o senhor... Ah! essa foi má!
Borromeu acabava de atirar a Chicot uma estocada, que por pouco não lhe chegou ao peito.
— Não foi má, mas eu já conheço essa sorte; foi a mesma que ensinaste ao Tiagozito. Dizia eu, pois, que valia mais do que o amigo; porque não fui eu que dei princípio à luta, se bem que não me faltasse a vontade; ainda mais: deixei que pusesse em prática o seu projecto, dando-lhe para isso toda a latitude, e mesmo agora, neste momento, contento-me em aparar-lhe as estocadas; é porque tenho a propor-lhe uma combinação.
— Nada! — disse Borromeu, desesperado por ver a placidez de Chicot — nada!
E atirou-lhe uma estocada que teria atravessado o gascão de lado a lado, se este não tivesse dado, com as imensas pernas, um passo que o pôs fora do alcance do adversário.
— Sempre te vou dizer qual é a combinação que proponho, para não ter depois que me arrepender...
— Cala-te! — disse Borromeu — é escusado, cala-te!
— Escuta-me — replicou Chicot —, é para descanso da minha consciência; eu não estou sequioso do teu sangue, percebes? E não quero matar-te senão quando não puder deixar de ser.
— Pois eu digo-te que me mates; mata-me, se és capaz! — exclamou Borromeu, desesperado.
— Nada; já uma vez na minha vida matei um outro espadachim como tu... direi mesmo: um outro espadachim mais destro do que tu... É verdade! tu deves tê-lo conhecido, também pertencia à Casa de Guisa... era um letrado...
— Ah! Nicolau David!... — murmurou Borromeu, assustando-se com um tal precedente e tornando a pôr-se em guarda.
— Exactamente.
— Ah foste tu que o mataste?...
— Fui eu mesmo, com uma linda estocada, que te mostrarei a ti também, se não aceitares a combinação.
— Então qual é essa combinação? diz.
— Hás-de passar do serviço do duque de Guisa para o de el-rei, sem largares contudo o do duque de Guisa.
— Ou por outra: hei-de tornar-me espião como tu, não é?
— Estás enganado, há-de haver uma diferença: a mim ninguém me paga, e tu serás pago; começarás pois por me mostrar essa carta que aí tens do Senhor Duque de Guisa para a Senhora Duquesa de Montpensier; hás-de consentir que tire uma cópia dela, e deixar-te-ei em paz até nova ocasião. Que tal, hem?... parece-me que não exijo muito...
— Toma lá! — disse Borromeu — aí está a minha resposta!
A resposta de Borromeu foi uma cutilada, dada com tanta rapidez que a ponta da espada roçou pelo ombro de Chicot.
— Está bom — disse Chicot —, vejo que não tenho outro remédio senão mostrar-te como matei Nicolau David; é uma estocada simples e bonita, como vais ter ensejo de ver.
E Chicot, que até ali se tinha conservado na defensiva, deu um passo em frente e atacou também.
— Aí vai a tal estocada — disse Chicot. — Simulo uma quarta baixa...
E fez o que dizia: Borromeu parou recuando; mas, depois do primeiro passo de retirada, não pôde recuar mais por ter o tabique atrás de si.
— Muito bem! é isso mesmo... aparas o golpe... (fazes mal, porque o meu punho é mais rijo do que o teu)... enlaço a espada... volto de unhas abaixo... caio a fundo... e... toquei-te! ou, para melhor dizer: matei-te.
Com efeito, a estocada seguira, ou, mais exactamente, acompanhara a demonstração, e o agudo ferro, penetrando no peito de Borromeu, escorregara como uma agulha entre duas costelas, indo picar profundamente, e com um som agudo, o tabique de pinho.
Borromeu estendeu os braços e deixou cair a espada; os olhos injectaram-se-lhe de sangue e dilataram-se; abriu-se-lhe a boca e apareceu-lhe nos lábios uma escuma vermelha; a cabeça inclinou-se-lhe sobre o ombro com um suspiro que parecia um estertor; as pernas cessaram de o suster, e o corpo, ao aluir-se, alargou a ferida que lhe havia feito a espada, mas não pôde arrancá-la do tabique, de encontro ao qual a segurava o punho infernal de Chicot, de forma que o pobre desgraçado, à semelhança de uma gigantesca mariposa, ficou pregado à parede, onde batia convulsivamente com os pés.
Chicot, frio e impassível, como sempre em circunstâncias extremas, especialmente quando tinha no fundo do coração a convicção de haver feito o que lhe prescrevia a consciência, largou a espada, que se conservou espetada horizontalmente, desafivelou o cinto do capitão, meteu-lhe a mão na algibeira, tirou a carta e leu o sobrescrito, que dizia:
Para a Senhora Duquesa de Montpensier,
Entretanto corria o sangue aos borbotões da ferida, e o sofrimento atroz da agonia contraía as feições do ferido.
— Morro... expiro... — murmurou ele — meu Deus, tende piedade de mim!
Este derradeiro brado pela misericórdia divina que soltava um homem que pela primeira vez, provavelmente, se lembrava de tal, naquele momento supremo, comoveu Chicot.
«Sejamos caritativo, disse ele; e já que este homem deve morrer, que morra ao menos sem muito penar.»
E aproximando-se do tabique, tirou com custo a espada da parede e, segurando o corpo de Borromeu, evitou que ele caísse desamparado no chão.
Porém esta última cautela era inútil; a morte, que havia acudido rápida e gelada, tinha paralisado todo o ser do vencido; as pernas dobraram-se-lhe, escorregou dos braços de Chicot, e caiu pesadamente no sobrado. O abalo da queda fez correr da ferida uma golfada de sangue escuro, com o qual fugiu o resto da vida que ainda animava Borromeu. Chicot foi então abrir a porta e chamou Bonhomet.
Não teve que chamar duas vezes; o taberneiro havia escutado à porta, e ouvira sucessivamente a bulha das mesas, dos escabelos, do tinir das espadas e da queda de um corpo pesado; ora, o estimável Sr. Bonhomet tinha tanta experiência do carácter da gente de espada em geral, e do de Chicot em particular, que não podia deixar de adivinhar logo tudo quanto se passara, especialmente depois da confidência que lhe tinham feito. A única coisa que ignorava era qual dos dois adversários tinha sucumbido.
Devemos dizer, em louvor de mestre Bonhomet, que o seu rosto assumiu uma expressão de verdadeira alegria quando ouviu a voz de Chicot e viu que era o gascão quem abria a porta. Chicot, a quem nada escapava, notou esta expressão e agradeceu-lha lá no seu particular.
Bonhomet entrou a tremer no gabinete.
— Ai Jesus! — exclamou ele, vendo o corpo do capitão escorrendo sangue.
— Ah! meu Deus! meu pobre Bonhomet — disse Chicot —, não somos nada neste mundo! o nosso querido capitão está muito doente, como vês.
— Oh! meu bom Sr. Chicot, meu bom Sr. Chicot! — exclamou Bonhomet, quase desmaiado.
— Então!? que dizes tu, homem?... — perguntou Chicot.
— Que desacertada lembrança teve em escolher a minha casa para esta execução! um capitão tão guapo!...
— Preferias acaso ver Chicot estendido aí no chão, e Borromeu de pé?...
— Não! oh! não, por certo! — exclamou o estalajadeiro, do íntimo do coração.
— Pois foi o que esteve para acontecer, se não tivesse havido um milagre da Providência.
— Deveras?...
— À fé de Chicot. Examina-me aqui as costas: doem-me imenso as costas, meu caro amigo.
E abaixou-se por diante do taberneiro, de modo que lhe ficavam os ombros na altura dos olhos. O gibão tinha um buraco entre as duas espáduas, e uma nódoa de sangue redonda, do tamanho de um escudo de prata, aparecia no sítio do rasgão.
— Sangue! — exclamou Bonhomet — sangue! Ah! está ferido!
— Espera, espera.
Chicot despiu o gibão, e depois a camisa.
— Vês agora? — disse ele.
— Ah! tinha uma couraça! Que felicidade, meu rico Sr. Chicot! E diz que o malvado quis assassiná-lo, é?
— Que é que dizes?... parece-me que não fui eu que me diverti a apunhalar-me a mim mesmo entre as espáduas! ou foi? Agora que vês?
— Uma malha partida.
— O meu querido capitão não era para graças... E há por aí sangue também?
— Sim, muito sangue por baixo das malhas.
— Tiremos então a couraça — disse Chicot.
Chicot despiu a cota de malha, e desnudou assim um tronco que parecia composto unicamente de ossos, de músculos pegados aos esses e de pele pegada aos músculos.
— Ah! Sr. Chicot — disse Bonhomet —, tem uma nódoa do tamanho de um prato!
— Sim, é isso mesmo, o sangue está extravasado; é uma equimose, como lhe chamam os médicos. Vai buscar um bocado de pano de linho, enche um copo com partes iguais de bom azeite e borras de vinho e lava-me essa nódoa, meu amigo, lava.
— Porém este corpo, meu rico Sr. Chicot... que hei-de fazer deste corpo?
— Isso não é da tua conta.
— O quê!? não é da minha conta?...
— Não. Traz-me tinta, pena e papel.
— No mesmo instante, meu rico Sr. Chicot. Bonhomet saiu a correr do gabinete.
Durante esse tempo, Chicot, que não tinha provavelmente um minuto a perder, aquecia à luz da lamparina a ponta de uma faquinha, e cortava pelo meio do lacre o selo da carta.
Concluída a operação, tirou Chicot a missiva de dentro do sobrescrito e leu-a, com evidentes mostras de satisfação.
Tinha concluído a leitura quando mestre Bonhomet voltou com o azeite, o vinho, o papel e a pena.
Chicot dispôs diante de si a pena, a tinta e o papel, sentou-se à mesa e apresentou as costas a Bonhomet com estóico sangre-frio.
Bonhomet entendeu a pantomina, e deu começo às fricções.
Entretanto, como se em vez de lhe irritarem uma ferida dolorosa, lha estivessem coçando voluptuosamente, Chicot ia copiando a carta do duque de Guisa a sua irmã, e fazia seus comentários a cada palavra.
A carta era assim concebida:
Minha querida irmã:
A expedição de Antuérpia teve bom êxito para todos, mas falhou para nós; hão-de dizer-te que o duque de Anjou morreu: não acredites, pois está vivo.
Está vivo, percebeste? eis aí toda a questão.
Estas palavras encerram o destino de toda uma dinastia; estas duas palavras separam a Casa de Lorena do trono de França melhor do que se fossem um abismo sem fundo.
Entretanto, não te dê isto muito cuidado. Descobri que duas pessoas que eu julgava que tinham falecido ainda existem, e da vida de tais pessoas poderá muito bem resultar a morte do príncipe.
Trata portanto unicamente de Paris; convém que daqui a seis semanas comece a Liga a trabalhar: informa os membros da Liga de que está próximo o momento, para que estejam prontos.
O exército está organizado; temos doze mil homens seguros e bem apercebidos de tudo; entrarei com eles em França, com o pretexto de me opor aos huguenotes alemães que vão auxiliar Henrique de Navarra; derrotarei os huguenotes e, tendo entrado em França como amigo, procederei depois como senhor.
— Ah! ah! — exclamou Chicot.
— Fiz-lhe doer, meu rico Senhor? — perguntou Bonhomet, suspendendo as fricções.
— Sim, meu amigo.
— Deixe estar, vou esfregar mais ao de leve. Chicot prosseguiu:
P- S. —Aprovo inteiramente o teu plano a respeito dos Quarenta e Cinco; todavia, hás-de conceder-me que te diga, querida mana, que assim darás aos tais marotos uma consideração que eles não merecem...
— Ah! cos demónios! isto é que eu não percebo. E tornou a ler:
... Aprovo inteiramente o teu plano a respeito dos Quarenta e Cinco... «Que plano será este?» perguntou Chicot a si mesmo.
... todavia, hás-de conceder-me que te diga, querida mana, que assim darás aos tais marotos uma consideração que eles não merecem...
Chicot prosseguiu:
... que eles não merecem. — Teu irmão muito afectuoso, H. de Lorena.
«Enfim, disse Chicot, tudo isto é muito claro, à excepção do pós-escrito.»
— Meu rico Sr. Chicot — aventurou-se a dizer Bonhomet, vendo que Chicot tinha cessado de escrever e ficara pensativo —, ainda não me disse o que hei-de fazer a este cadáver...
— O negócio é muito simples...
— Para o senhor, que tem uma imaginação muito fértil, decerto, mas não para mim.
— Pois bem! supõe, por exemplo, que este desgraçado capitão tivesse uma rixa na rua com os suíços ou os soldados embriagados, e que to trouxessem para aqui ferido... ter-te-ias negado a recebê-lo?
— Certamente que não, meu rico Sr. Chicot.
— Supõe que, tendo-o depositado ali, naquele canto, ele tivesse passado desta para melhor, apesar de todos os cuidados que lhe prodigalizavas... Seria uma grande desgraça, e nada mais, não é assim?
— Decerto.
— E em vez de mereceres censuras, todos haviam de louvar a tua humanidade... Supõe ainda mais que o pobre capitão, ao expirar, tivesse proferido o nome do prior dos Dominicanos de Santo António.
— De Dom Modesto Gorenflot?!... — exclamou Bonhomet, muito admirado.
— Sim, de Dom Modesto Gorenflot. Pois bem! vais avisar Dom Modesto; Dom Modesto vem aqui imediatamente, e como numa das algibeiras do defunto se encontra a sua bolsa (percebes?... é essencial que se encontre a bolsa; digo isto como advertência) e como se encontra, então, a bolsa numa das algibeiras do defunto, e esta carta na outra, ninguém desconfiará de coisa alguma.
— Já percebo, meu rico Sr. Chicot.
— Ainda mais: dar-te-ão uma recompensa, em vez de seres castigado.
— É um homem de muito talento, querido Sr. Chicot; vou já correndo ao Priorado de Santo António.
— Espera lá, cos demónios! Eu disse: a bolsa e a carta.
— Ah! sim... e a carta é essa que tem na mão, não é?
— Exactamente.
— É preciso não dizer que foi lida e copiada...
— Era o que faltava! a recompensa que hás-de receber será justamente por se encontrar esta carta intacta.
— Então essa carta contém um segredo?
— Neste tempo em que vivemos, meu caro Bonhomet, em tudo há segredos.
E Chicot, depois desta resposta tão sentenciosa, prendeu o fio de seda por baixo do lacre do selo, servindo-se do mesmo processo anterior, e depois uniu o lacre, tão artificiosamente, que os olhos mais perspicazes não teriam podido perceber a menor greta.
Feito isto, tornou a meter a carta na algibeira do morto, mandou aplicar sobre a ferida o pano impregnado de azeite e de borras de vinho como se fosse uma cataplasma, vestiu sobre a pele a preservativa cota de malha, enfiou por cima a camisa, envergou o gibão, apanhou a espada, limpou-a, meteu-a na bainha e saiu.
Mas logo, voltando atrás:
— Olha — disse ele —, se não aprovas a fábula que eu inventei, ainda tens outro recurso; podes acusar o capitão de se ter enfiado a si mesmo com a espada.
— Um suicídio?...
— Porque não?... bem vês que é uma coisa que não compromete ninguém.
— Mas, desse modo, não será enterrado este infeliz em sagrado...
— Ora adeus! — disse Chicot — julgas que ele apreciará esse favor?...
— Estou convencido que sim.
— Pois então, faz por ele o mesmo que farias por ti próprio, meu caro Bonhomet. Adeus. É verdade... — acrescentou — já que ele morreu, é preciso que eu pague.
E Chicot atirou três escudos de ouro para cima da mesa.
Em seguida, levou o dedo aos lábios em sinal de silêncio e saiu.
O MARIDO E O AMANTE
Não foi sem uma forte emoção que Chicot tornou a ver a Rua dos Agostinhos, tão sossegada e solitária, o ângulo formado pelo quarteirão de casas que precediam a sua, e por fim a sua querida casinha, com o seu telhado triangular, a sua varanda carcomida e as suas goteiras ornadas de carrancas.
Tinha tido tamanho receio de encontrar um vácuo no lugar da casa, ou de ver a rua bronzeada pelo fumo de um incêndio, que tanto a rua como a casa lhe pareceram prodígios de limpeza, de graça e de esplendor.
Chicot tinha escondido na cavidade de uma pedra que servia de base a uma das colunas da varanda a chave da sua querida casa.
Naquele tempo, uma chave de qualquer arca ou traste era igual em peso e em volume às maiores chaves das nossas casas de hoje; as chaves das casas eram, portanto, segundo as porporções naturais, iguais às das cidades modernas.
Por isso Chicot, calculando a dificuldade que teria em acomodar a bem-aventurada chave no bolso, tomara o partido de a esconder onde dissemos.
Chicot experimentou, pois, forçoso é confessá-lo, um leve arrepio quando introduziu os dedos na parte oca da pedra; ao arrepio seguiu-se uma alegria sem igual quando sentiu a frialdade do ferro.
A chave estava exactamente no mesmo lugar onde Chicot a tinha posto.
Também não encontrou novidade no arranjo dos trastes do primeiro quarto, nem na tabuinha pregada sobre a trave, nem, finalmente, nos mil escudos que ainda dormiam muito sossegadamente no seu esconderijo de carvalho.
Chicot não era avarento; pelo contrário: muitas vezes mesmo tinha desperdiçado ouro às mãos-cheias, sacrificando assim o material ao triunfo da ideia, pois é nisto que se encerra a filosofia de todo o homem de certo valor; porém, quando a ideia cessava momentaneamente de imperar na matéria, isto é, quando não havia necessidade de dinheiro nem de sacrifício, quando, numa palavra, uma intermitência sensual reinava na alma de Chicot, e que a alma concedia ao corpo que vivesse e gozasse, o ouro, primeira, incessante e eterna fonte de gozos animais reassumia o seu valor aos olhos do nosso filósofo, e ninguém melhor do que ele sabia o número de parcelas saborosas em que pode subdividir-se o inestimável todo chamado escudo.
«Com a breca! murmurava Chicot, acocorado no meio da casa, com a laje levantada, a tabuinha ao lado e o tesouro à vista; tenho acolá defronte um excelente vizinho, estimável mancebo, que fez respeitar, e respeitou ele mesmo, o meu dinheiro; é na verdade uma acção muito rara neste tempo em que vivemos. Devo um agradecimento a tão honrado homem, e esta noite sem falta hei-de ir lá.»
Em seguida, tornou a colocar a tabuinha sobre a trave, e a laje sobre a tabuinha; depois chegou à janela e olhou para defronte.
A casa conservava a cor parda e sombria com que a imaginação reveste, como se fora a cor natural, os edifícios cujo carácter lhe é conhecido.
«Ainda não são horas de estarem deitados, disse Chicot; e demais, eu sei com certeza que aquela gente não é muito dorminhoca. Vejamos.»
Desceu e foi bater à porta do vizinho, tendo previamente dado à sua fisionomia a expressão da mais risonha amabilidade.
Ouviu bulha na escada, e o rangido de passos apressados; contudo, esteve tanto tempo à espera, que lhe pareceu conveniente tornar a bater.
A segunda argolada, abriu-se a porta e apareceu um homem na penumbra.
— Muito boa noite e muito obrigado! — disse Chicot, estendendo a mão. — Já estou de volta, e venho dar-lhe os meus agradecimentos, meu caro vizinho.
— Que diz?... — perguntou uma voz admirada, e cujo acento também Chicot estranhou.
Ao mesmo tempo, o homem que tinha vindo abrir a porta deu um passo para trás.
— E esta, hem?... enganei-me! — disse Chicot. — Quando daqui me ausentei, não era meu vizinho... e contudo, assim Deus me perdoe! conheço-o...
— E eu também — retorquiu o mancebo.
— É o Senhor Visconde Ernauton de Carmainges.
— E o senhor é a Sombra.
— Na verdade — disse Chicot —, estou pasmado!...
— Mas enfim: que pretende de mim, Senhor? — perguntou o mancebo, com um moc um tanto desabrido.
— Peço perdão, estou-o incomodando talvez, meu caro Senhor...
— Não, mas há-de permitir que lhe pergunte em que o posso servir...
— Em nada; desejava unicamente falar com o dono da casa.
— Pois fale então.
— Como assim!?
— Decerto; o dono da casa sou eu.
— O senhor?! desde quando?
— Haverá três dias.
— Sério? então a casa estava à venda?
— Assim parece, visto que a comprei.
— Mas que é do antigo senhorio?
— Já aqui não mora, como vê.
— Para onde foi?
— Não sei.
— Ora vamos! tratemos de nos entender... — disse Chicot.
— É esse também o meu desejo — respondeu Ernauton, com visível impaciência — mas será bom que nos entendamos depressa.
— O antigo senhorio era um homem de vinte e cinco anos, que parecia ter quarenta, não é verdade?
— Nada; era um homem de sessenta e cinco a sessenta e seis anos, e que mostrava ter
mesmo essa idade.
— Calvo?
— Pelo contrário, tinha uma mata de cabelo branco.
— Tinha uma enorme cicatriz no lado esquerdo da cabeça, não é verdade?
— Não lhe vi cicatriz alguma, mas muitas rugas.
— Declaro que não entendo — disse Chicot.
— Enfim — replicou Ernauton, depois de um instante de silêncio —, que pretendia do tal homem, meu caro Sr. Sombra?
Chicot ia para confessar o motivo que ali o tinha levado, quando de repente o mistério da admiração de Ernauton lhe recordou certo ditado sabido das pessoas mais circunspectas.
— Vinha para lhe fazer uma visitinha, como é prática entre vizinhos — disse ele —, nada mais.
Deste modo, Chicot não mentia mas também não confessava a verdade.
— Pois, meu caro Senhor — respondeu Ernauton com civilidade, mas diminuindo consideravelmente a abertura da porta, que conservava entreaberta —, tenho muita pena de não lhe poder dar informações mais exactas.
— Muito obrigado, Senhor — replicou Chicot —, indagarei noutra parte.
— Todavia — prosseguiu Ernauton, continuando a empurrar a porta —, isto não obsta a que eu muito folgue de que o acaso me tornasse a pôr em contacto com o senhor.
«E também folgaria de que me levasse o Diabo, não é assim?»pensou Chicot, correspondendo-lhe à cortesia.
Entretanto, como Chicot, apesar desta resposta mental, estava tão preocupado que não se lembrava de se retirar, Ernauton, entalando a cara entre a porta e o alisar, disse-lhe:
— Até mais ver, Sr. Sombra.
— Conceda-me mais um instante, Sr. de Carmainges... — disse Chicot.
— Sinto muito — respondeu Ernauton —, mas não posso demorar-me; estou esperando uma pessoa que há-de vir bater a esta mesma porta, e essa pessoa agastar-se-ia comigo se eu não a recebesse com toda a discrição.
— Basta, Senhor, já percebo — disse Chicot. — Peço perdão de o ter incomodado, e vou-me já embora.
— Adeus, meu caro Sr. Sombra.
— Adeus, estimável Sr. Ernauton.
E Chicot, dando um passo para trás, levou muito brandamente com a porta na cara.
Escutou, para se certificar se o desconfiado mancebo espreitava a sua retirada, mas os passos de Ernauton ressoaram pela escada acima, e Chicot pôde voltar descansadamente para casa, na qual se encerrou, com a resolução de não tornar a incomodar o seu novo vizinho, mas também, segundo o seu louvável costume, de o não perder mais de vista.
Com efeito, Chicot não era homem que deixasse escapar um facto qualquer que lhe parecesse importante, sem ter apalpado, repisado e dissecado o mesmo facto com a paciência de um distinto anatomista; por um privilégio ou um defeito da sua organização, mesmo sem querer, toda e qualquer forma embutida no seu cérebro se lhe apresentava à análise pelos seus lados salientes, de forma que as paredes cerebrais do pobre Chicot eram como feridas gretadas, e obrigadas a um exame imediato.
Chicot, que até ali tinha cismado continuamente nesta frase da carta do duque de Guisa: «Aprovo inteiramente o teu plano a respeito dos Quarenta e Cinco», abandonou esta frase, que formou tenção de examinar mais tarde, para destruir, sem mais demora, a nova preocupação que acabava de substituir a antiga.
Chicot reflectiu que era muitíssimo extraordinário que Ernauton estivesse residindo como senhor naquela casa misteriosa, cujos habitantes tinham assim desaparecido de repente. Tanto mais que aos tais habitantes primitivos podia muito bem referir-se, no entender de Chicot, certa frase da carta do duque de Guisa relativa ao duque de Anjou. Era um acaso digno de reparo, e Chicot costumava acreditar em casos providenciais. Desenvolvia mesmo a este respeito, quando lho pediam, teorias muito engenhosas. A base das suas teorias era uma ideia que, em nossa opinião, vale tanto como qualquer outra. A ideia é esta: o acaso é a reserva de Deus. O Omnipotente não emprega a Sua reserva senão em circunstâncias mui graves, especialmente depois que viu que os homens são bastante sagazes para estudar e prever as probabilidades segundo a Natureza e os elementos regularmente organizados. Ora, Deus gosta, ou deve gostar, de frustrar as combinações dos orgulhosos, de quem já castigou a passada altivez afogando-os, e de quem há-de castigar a soberba futura queimando-os. Deus, pois, dizemos nós, ou, mais exactamente, dizia Chicot, Deus gosta de frustrar as combinações dos orgulhosos com os elementos que lhes são desconhecidos, e de que não podem prever a intervenção. Esta teoria, como se vê, contém argumentos especiosos, e pode fornecer brilhantes teses; porém, o leitor, que está provavelmente com tanta pressa como Chicot de saber o que fazia Carmainges naquela casa, há-de estimar que não levemos por diante o seu desenvolvimento.
Chicot reflectiu, pois, que era muito extraordinário estar Ernauton naquela casa, onde ele tinha visto sempre Rémy.
Pareceu-lhe aquilo extraordinário por duas razões: a primeira, porque os dois homens eram totalmente desconhecidos um ao outro, devendo necessariamente supor-se que tinha havido entre eles um medianeiro, cuja existência Chicot ignorava; a segunda, porque a casa tinha sido vendida a Ernauton, que decerto não possuía o dinheiro preciso para a comprar.
«É verdade que o mancebo afirma que está para lhe chegar uma visita, e é uma mulher; dizia consigo Chicot, sentando-se o mais comodamente que pôde à beira do telhado, que era o seu observatório usual; as mulheres hoje em dia são ricas e satisfazem todos os seus apetites. Ernauton é bonito, jovem e elegante: agradou a alguma mulher, que deseja encontrar-se com ele, e disse-lhe que comprasse aquela casa; comprou-a, e está ali para o encontro aprazado. Ernauton, prosseguiu Chicot, vive no paço; por consequência, o seu namoro é com alguma mulher da corte. Pobre rapaz, ele gostará dela deveras?... Deus o livre de tal, para não cair naquela voragem de perdição. Bom! não estou eu fazendo moral?... Moral perfeitamente inútil e sumamente estúpida. Inútil, porque ele não me ouve, e ainda que me ouvisse não quereria atender-me. Estúpida, porque muito mais acertado seria ir deitar-me, e pensar um pouco no pobre Borromeu. E a este respeito, prosseguiu Chicot, tornando-se-lhe o parecer carregado, ocorre-me uma coisa: é que o remorso não existe, e não é senão um sentimento relativo; o caso é que eu não tenho remorso de ter morto Borromeu, visto que a preocupação que me ocasiona a situação do Sr. de Carmainges me fez esquecer que o matei; e ele também, se me tivesse pregado de encontro à mesa, como eu o preguei de encontro ao tabique, não sentiria por certo a esta hora mais remorsos do que eu estou sentindo.»
Chicot achava-se neste ponto dos seus arrazoados, das suas induções e da sua filosofia, que lhe teriam levado boa hora e meia ao todo, quando saiu da preocupação em que estava por ver chegar uma liteira que vinha da banda da hospedaria do Cavaleiro Destemido. A liteira parou defronte da porta da casa misteriosa. Apeou-se uma dama coberta com um véu, e desapareceu pela porta que Ernauton tinha vindo abrir.
«Pobre rapaz! murmurou Chicot, está visto que não me enganei: era de facto uma mulher que ele esperava; e agora posso ir deitar-me.»
E Chicot levantou-se; mas conservou-se imóvel, se bem que de pé.
«Nada! disse ele, ainda que me vá deitar, não poderei dormir; mas ainda estou pelo meu dito: se não dormir, não será por causa do remorso, mas sim por causa da curiosidade; e é tão verdade isto que digo, que se aqui me conservar no meu observatório, só me preocuparei com uma coisa: saber qual das nossas lindas fidalgas honra o galante Ernauton com o seu amor. Melhor será, portanto, que eu me conserve no meu observatório, porque, se me for deitar, não tardará que me torne a levantar para voltar para aqui.»
Em seguida tornou Chicot a sentar-se. Tinha decorrido uma hora, pouco mais ou menos, e não sabemos dizer se Chicot estava pensando na sua dama incógnita ou em Borromeu, se estava preocupado pela curiosidade ou atormentado pelo remorso, quando lhe pareceu que ouvia galopar um cavalo à entrada da rua. E, com efeito, não tardou que aparecesse um cavaleiro embuçado num capote. O cavaleiro parou no meio da rua, parecendo que procurava orientar-se. Avistou então o grupo que formavam a liteira e os respectivos criados. O cavaleiro dirigiu-se a cavalo para eles; vinha armado, pois ouvia-se o tinir da sua grande espada de encontro às esporas. Os moços quiseram tolher-lhe o passo; porém ele dissera-lhes algumas palavras, e eles não somente lhe abriram caminho, com sinais de respeito e consideração, mas até um dos moços, depois de ele se apear, tomou conta das rédeas do cavalo. O desconhecido caminhou para a porta e bateu com violência.
«Por Deus! disse consigo Chicot; sempre fiz bem em ficar aqui! os meus pressentimentos, que me vaticinavam que estava para se passar alguma coisa notável, não me enganaram. Aquele há-de ser o marido; pobre Ernauton! vou presenciar dentro em pouco alguma cena de sangue. Contudo, se é o marido, parece-me toleima fazer tanta bulha para dar sinal da sua chegada.»
Todavia, apesar de ele ter batido como se fora o dono da casa, ainda hesitavam em abrir.
— Abra! — gritou o indivíduo, que batia à porta.
— Abra! abra! — repetiram os moços.
«Decididamente, pensou Chicot, é o marido; ameaçou os moços de os mandar açoitar ou enforcar, e os moços tomaram parte por ele. Pobre Ernauton! vai ser esfolado vivo!... Oh! oh! tal não sofrerei, acrescentou Chicot. Porque, enfim, devo acudir-lhe também. Ora parece que está chegada a ocasião oportuna de lhe valer...»
Chicot era atrevido e generoso, e além disso era também curioso: tirou do prego a durindana, meteu-a debaixo do braço e desceu apressadamente a escada.
Chicot sabia abrir a porta sem a fazer ranger, ciência esta indispensável a toda a pessoa que deseja escutar com proveito.
Deixou-se ficar debaixo da varanda, escondido com uma coluna, e esperou.
Apenas tinha tomado posição, abriu-se a porta fronteira, em consequência de uma palavra que o desconhecido disse pelo buraco da chave; mas não passou do limiar.
Passado um instante, a dama apareceu à porta, deu o braço ao cavaleiro, que a foi meter na liteira, fechou a portinhola com todo o cuidado e tornou a montar a cavalo.
«Não há dúvida: era o marido, disse Chicot; sempre é um marido muito bonacheirão, que não passa revista à casa para estripar o meu amigo Carmainges.»
A liteira pôs-se a caminho, indo o cavaleiro à portinhola.
«Preciso de ir em seguimento daquela gente, disse consigo Chicot, para saber quem são e para onde vão; não posso deixar de tirar da minha descoberta algum bom conselho para o meu amigo de Carmainges.»
Chicot seguiu, com efeito a comitiva, conservando-se sempre, por cautela, na sombra das paredes, e confundindo o som das suas passadas com as dos homens e dos cavalos.
Não foi pequena a admiração de Chicot, quando viu que a liteira parava em frente da hospedaria do Cavaleiro Destemido.
Quase imediatamente, e como se alguém estivesse à espera, abriu-se a porta.
A dama, sempre coberta com o véu, apeou-se, entrou e subiu para o torreão, onde se via luz na janela do primeiro andar.
O marido subiu atrás dela.
Adiante de todos caminhava respeitosamente a Sr.a Fournichon, levando um castiçal na mão.
«Decididamente disse Chicot cruzando os braços, não entendo o que isto é!»
CHICOT COMEÇA A ENTENDER A CARTA DO SR. DE GUISA
Chicot tinha a certeza de ter visto já em alguma outra parte a figura daquele cavaleiro tão condescendente; porém, a confusão que lhe fizera na memória aquela jornada a Navarra, onde vira tanta figura diversa, obstava a que lhe ocorresse com facilidade o nome que desejava proferir.
Enquanto ele, assim escondido na sombra, com os olhos fitos na janela que tinha luz, pensava no que teriam vindo fazer aquele homem e aquela mulher sós a sós à hospedaria do Cavaleiro Destemido, deixando Ernauton na casa misteriosa, viu o nosso estimável gascão abrir-se a porta da hospedaria e, a favor do raio de luz que saiu pela abertura, avistou uma espécie de perfil preto de fradinho. O tal perfil parou um instante para olhar para a mesma janela que Chicot.
«Oh! oh! murmurou, aquilo, se me não engano, é um hábito de domínico!... Gorenflot terá afrouxado na sua severidade em manter a disciplina, para assim consentir que as suas ovelhas venham vadiar a estas horas da noite a tamanha distância do priorado?...»
Chicot seguiu*com a vista o dominicano, enquanto ele ia descendo pela Rua dos Agos-tinhos, e um certo instinto particular sugeriu-lhe a ideia de que encontraria naquele monge a explicação do enigma que debalde tinha procurado adivinhar até ali. E demais, assim como Chicot tinha julgado que conhecia a figura do cavaleiro, também lhe queria parecer que o fradinho tinha certos movimentos de ombros e certo garbo militar só próprios de um frequentador de salas de esgrima ou de ginásios.
«Quero que o Diabo me leve, murmurou, se aquele hábito não encobre o garoto que me queriam dar para companheiro de jornada, e que maneja com tanta destreza o arcabuz e o florete!»
Apenas lhe ocorreu esta ideia, Chicot, para se certificar da sua exactidão, abriu as imensas pernas, e com umas dez passadas alcançou o dominicano, que tinha arregaçado o hábito para andar mais depressa.
A empresa também não era muito difícil, por isso que o fradinho parava de espaço a espaço para olhar para trás, como se se afastasse a custo e com muita saudade. Os seus olhos dirigiam-se constantemente para a luz que brilhava na janela do torreão. Chicot, antes de ter dado os dez passos, já estava certo de não se haver enganado nas suas conjecturas.
— Eh lá, meu amiguinho! — disse ele — olá, meu Tiagozinho! olá, meu Clementezinho! Faça alto!
E proferiu esta última palavra tão militarmente, que o fradinho estremeceu.
— Quem me chama? — perguntou o rapaz, em tom desabrido e provocador.
— Eu — replicou Chicot, perfilando-se com o dominicano —, eu! não me conheces, meu filho?
— Oh! o Sr. Roberto Briquet!... — exclamou o fradinho, surpreendido.
— Eu mesmo, meu rapazinho. Para onde vais tu tão tarde, meu querido menino?
— Para o priorado, Sr. Briquet.
— Bem; mas de onde vens?
— Eu?
— Sim, tu, meu libertino.
O rapaz estremeceu novamente.
— Eu não sou isso que diz, Sr. Briquet — replicou ele —, bem pelo contrário: fui encarregado de uma importante comissão por Dom Modesto, e ele mesmo o certificará, se preciso for.
— Mais devagar, meu S. Jerónimo em ponto pequeno; incendeias-te tão pronto que nem uma mecha!
— E parece-lhe que não tenho razão, depois de ouvir o que me disse?...
— A dizer a verdade, um hábito como o teu, saindo de uma taberna a estas horas...
— De uma taberna, eu?!
— Que dúvida! aquela casa de onde saíste não é o Cavaleiro Destemido?... Ah! bem vês que te apanhei!
— Eu saí daquela casa — disse Clemente —, tem razão, mas não saí de uma taberna.
— Pois quê!? — exclamou Chicot — não há uma taberna na hospedaria do Cavaleiro Destemido?!
— Uma taberna é uma casa onde se bebe vinho, e como eu não provei vinho naquela casa, para mim não é taberna.
— Cos demónios! — exclamou Chicot — a distinção é muito subtil e, se não me engano, ainda um dia hás-de vir a dar um douto teólogo. Mas enfim: se não entraste naquela casa para beber vinho, que foste então lá fazer?
Clemente não respondeu, e Chicot pôde ler-lhe no rosto, apesar da escuridão, uma firme tenção de não dar mais palavra. Esta resolução do frade causou grande despeito ao nosso amigo, que tinha por costume indagar tudo.
Não é que Clemente desse mostras de se calar por estar enfadado; parecia muitíssimo satisfeito de ter encontrado de uma maneira tão inesperada o seu sábio professor de esgrima, mestre Roberto Briquet, e fizera-lhe o melhor acolhimento de que era susceptível aquela natureza reconcentrada e intratável.
A conversação havia esmorecido completamente; Chicot, para a renovar, esteve a ponto de proferir o nome de Frei Borromeu; porém, apesar de não sentir remorsos, ou de se persuadir de que não os sentia, o nome expirou-lhe nos lábios.
O mancebo, ao passo que se conservava calado, parecia esperar alguma coisa; dir-se-ia que olhava como uma grande felicidade poder permanecer o mais tempo possível nas imediações do Cavaleiro Destemido.
Roberto Briquet falou-lhe na jornada que ele tinha tido ideia de fazer na sua companhia.
Os olhos de Tiago Clemente brilharam ao ouvir as palavras espaço e liberdade.
Roberto Briquet contou-lhe que nas terras que acabava de percorrer era muito cultivada a arte da esgrima; acrescentou, além disso, que tinha aprendido por lá algumas sortes admiráveis.
Trazia assim Tiago a um assunto tentador. Pediu a Chicot que lhe ensinasse as tais sortes, e este, fazendo de comprido braço espada, demonstrou alguns botes ao fradinho.
Porém todas estas gaifonadas de Chicot não abrandaram a pertinácia do jovem Clemente; e se bem que diligenciava parar as sortes desconhecidas que lhe ensinava o seu amigo mestre Roberto Briquet, teimava em não lhe declarar o que tinha vindo fazer àquele bairro.
Chicot, despeitado, mas sempre senhor de si, resolveu lançar mão de uma injustiça; a injustiça é uma das poderosas provocações inventadas para obrigar a falar as mulheres, as crianças e os inferiores, sejam de que natureza forem.
— Não importa, meu menino — disse ele, como se tornasse à sua primeira ideia —, és um lindo fradinho, mas andas pelas estalagens... e que estalagens então!... por aquelas onde se encontram formosas damas!... e paras em êxtase defronte das janelas de onde se lhes pode ver a sombra... Menino, deixa estar que eu direi tudo a Dom Modesto!
O tiro acertou melhor do que supunha Chicot, porque não pensava, ao começar, que lhe fizesse uma ferida tão funda. Tiago virou-se para ele como uma serpente quando a pisam.
— Não é verdade! — bradou ele, corando de vergonha e de cólera — eu não olho para as mulheres!
— Olhas, olhas, sim — prosseguiu Chicot. — Quando tu saíste da hospedaria do Cavaleiro Destemido ficou lá uma senhora muito elegante; tu voltaste-te para trás para a tornares a ver; sei que estiveste à espera dela no torreão, e sei também que falaste com ela.
Chicot deitava-se a adivinhar. Tiago não pôde conter-se.
— Não há dúvida de que lhe falei! — exclamou — é pecado falar às mulheres?...
— Não, quando a gente não se dirige a elas de seu moto próprio, e impelido pela tentação de Satanás.
— Satanás nada tem que ver com isto! foi-me preciso falar com aquela senhora porque tinha de lhe entregar uma carta.
— De que te tinha encarregado Dom Modesto?... — exclamou Chicot.
— É verdade. E agora, se lhe parece, vá-lhe fazer queixa.
Chicot, que por instantes tinha ficado atordoado e como às apalpadelas no meio das trevas, sentiu estas palavras como um raio que lhe iluminou o entendimento.
— Ah! — disse ele — eu bem sabia...
— Que é que sabia?
— O que tu me querias dizer.
— Eu não digo nunca os meus segredos, e muito menos os dos outros.
— Pois sim, mas isso não se entende comigo.
— Por que motivo não se há-de entender com o senhor?
— Porque eu sou amigo de Dom Modesto; e depois, eu...
— Diga lá o resto, vá.
— Já estou ciente de tudo quanto tu me poderias dizer.
Tiago olhou para Chicot, abanando a cabeça com um sorriso de incredulidade.
— Pois bem! — disse Chicot — queres que te conte eu e que tu não me queres contar?...
— Sempre quero ouvir isso — disse Tiago. Chicot fez um esforço.
— Em primeiro lugar, o pobre Borromeu... O semblante de Tiago anuviou-se.
— Oh! — disse o rapaz — se eu estivesse presente...
— Se estivesses presente?...
— Não teria sucedido e que sucedeu.
— Tê-lo-ias protegido contra os suíços com quem teve uma rixa, não?
— Tê-lo-ia protegido contra todos!
— De forma que não teria sido morto, hem?
— Ou ter-me-iam morto juntamente com ele.
— Mas enfim... tu não estavas presente, e o pobre diabo morreu numa obscura estalagem; e ao expirar proferiu o nome de Dom Modesto.
— É verdade.
— Motivo por que foram logo avisar Dom Modesto.
— Foi um homem todo espavorido, e que causou grande alarido no convento.
— E Dom Modesto mandou aprontar a sua liteira, e dirigiu-se a toda a pressa para a Cornucópia.
— Quem lhe contou isso?
— Oh! tu ainda não me conheces, menino: eu sou uma espécie de nigromante. Tiago recuou dois passos.
— Mas isto ainda não é tudo — prosseguiu Chicot, a quem iluminava a própria luz das suas palavras à medida que ia falando. — Encontrou-se uma carta na algibeira do defunto.
— Uma carta, é isso mesmo.
— E Dom Modesto incumbiu o seu Tiagozinho de levar a carta à pessoa que designava o sobrescrito.
— É verdade.
— E o Tiagozinho foi logo correndo ao Palácio de Guisa
— Oh!...
— Onde não encontrou ninguém...
— Meu Deus!...
— À excepção do Sr. de Mayneville.
— Misericórdia!...
— O qual Sr. de Mayneville trouxe Tiago consigo para a hospedaria do Cavaleiro Destemido.
— Sr. Briquet... — exclamou Tiago — sabe tudo!
— Com a breca! bem vês que sei! — exclamou Chicot, exultando por ter desembaraçado aquele segredo, para ele tão importante, das faixas tenebrosas em que a princípio estava envolvido.
— Então — replicou Tiago —, bem vê, Sr. Briquet, que não sou criminoso.
Não — disse Chicot —, não pecaste por acção, nem por omissão, mas pecaste pelo pensamento.
— Eu?
— Decerto; pois achas que a duquesa é muitíssimo formosa.
— Eu?!
— E voltaste para trás para a tornares a ver pelos vidros
— Eu?!...
O fradinho fez-se corado e balbuciou:
— É verdade; mas é porque se parece com a figura da Virgem Nossa Senhora que estava a cabeceira da cama de minha mãe!
«Oh! murmurou Chicot, quantas descobertas deixam de fazer as pessoas que não são curiosas!...»
Obrigou então o jovem Clemente, que já agora estava à sua mercê, a narrar-lhe tudo quanto ele mesmo acabava de contar; mas, desta vez, com pormenores que ele não podia saber.
— Vês — disse Chicot, logo que ele acabou — que triste mestre de esgrima tinhas em frei Borromeu?...
— Sr. Briquet — disse Tiagozinho —, não é bonito dizer mal de quem está morto.
— Não; mas confessa uma coisa...
— Que é?
— É que Borromeu não jogava tão bem a espada como o indivíduo que o matou.
— Isso é verdade.
— E agora, nada mais tenho a dizer-te. Boa noite, meu Tiagozinho; até mais ver; e, se quiseres...
— O quê, Sr. Briquet?
— Dar-te-ei eu lições de esgrima para o futuro.
— Oh! aceito com todo o gosto!
— Agora, a caminho, menino! olha que és esperado com impaciência no priorado.
— É verdade; muito agradecido, Sr. Briquet, por me ter lembrado. E o fradinho desapareceu a correr.
Não era sem motivo que Chicot tinha despedido o seu interlocutor. Sacara dele tudo quanto desejava saber; e ainda precisava proceder a sérias investigações por outra parte.
Voltou pois a passo largo para casa. A liteira, os moços e o cavalo ainda se conservavam à porta do Cavaleiro Destemido.
Tornou, sem fazer bulha, para a beira do telhado.
Na casa que ficava fronteira à sua, ainda se viam luzes.
Dali por diante não tirou mais os olhos daquela casa.
Viu primeiro, pela greta de uma cortina, Ernauton a passear pelo quarto, como quem está esperando com impaciência.
Depois viu regressar a liteira, viu que Mayneville se despedia, e, finalmente, viu entrar a duquesa no aposento onde Ernauton a esperava com o coração a palpitar-lhe.
Ernauton ajoelhou diante da duquesa, que lhe deu a beijar a nívea mão.
A duquesa, em seguida, levantou o mancebo e fê-lo sentar defronte de si, a uma mesa guarnecida com elegância.
«É célebre! disse consigo Chicot, isto começou como uma conspiração e acaba num encontro de amantes! Sim, prosseguiu Chicot, mas quem aprazou este encontro de amantes? A Sr.a de Montpensier!»
E logo, como se o iluminasse novo raio de luz:
«Oh! oh! murmurou ele. «Querida mana, aprovo o teu plano a respeito dos Quarenta e Cinco; concede-me, todavia, que te diga que assim darás àqueles marotos uma consideração que eles não merecem.» Com a breca! exclamou Chicot, torno à minha primeira ideia: isto não é amor, é uma conspiração. A Senhora Duquesa de Montpensier está enamorada do Sr. Ernauton de Carmainges; vigiemos os amores da Senhora Duquesa.»
E Chicot vigiou até à meia hora da noite, hora a que Ernauton saiu, embuçado até aos olhos, enquanto a Sr.a de Montpensier tornava a meter-se na liteira.
«Agora, disse consigo Chicot, ao descer a sua escada, qual será aquela probabilidade de morte que pode livrar o duque de Guisa do herdeiro presuntivo da coroa? Que indivíduos são aqueles que ele julgava que tinham falecido e ainda estão vivos?... Por Deus! parece-me, se por acaso não me engano, que descobri o rasto!»
O CARDEAL DE JOYEUSE
A mocidade tem teimas, para o bem e para o mal, que equivalem à firmeza de uma idade mais madura. Quando tal obstinação tende para grandes acções, imprime sempre ao homem que entra na vida um movimento que o conduz, por uma inclinação natural, para um heroísmo qualquer. Bayard e Du Guesclin foram grandes cabos-de-guerra, tendo sido em crianças excessivamente travessos e intratáveis; o guardador de porcos de quem a natureza fizera um pegureiro de Montalto, e que o seu génio transformou em Sisto V, tornou-se um grande papa por ter teimado em fazer mal o seu trabalho de porqueiro. Foi assim também que as piores tendências naturais dos Espartistas se desenvolveram no sentido do heroísmo, depois de terem começado pela pertinácia na dissimulação e na crueldade.
O retrato que aqui pretendemos esboçar não é de um homem extraordinário; entretanto, mais de um biógrafo teria encontrado em Henrique de Bouchage, aos vinte anos, o génio de um grande homem.
Henrique obstinou-se no seu amor e na sua sequestração do mundo. Esperou ainda alguns dias, conforme lhe havia pedido o irmão, e o rei tinha exigido; porém, o eterno pensamento que nutria, tendo-se tornado cada vez mais imutável, deliberou uma manhã ir visitar o irmão cardeal, personagem importante que na idade de vinte e seis anos já era cardeal havia dois, e que tinha passado do arcebispado de Narbonne para o grau mais elevado das dignidades eclesiásticas, devendo a sua elevação à nobreza da sua raça e ao seu grande talento.
Francisco de Joyeuse, que apresentámos em cena para esclarecer a dúvida de Henrique de Valois a respeito de Sila, jovem e mundano, galante e espirituoso, era um dos homens mais notáveis e mais importantes da época. Ambicioso por natureza, mas circunspecto por cálculo e pela sua posição, Francisco de Joyeuse podia tomar por divisa: Nada de mais, e justificar essa divisa.
Era talvez o único de todos os homens da corte (pois Francisco de Joyeuse era sobretudo um homem de corte) que tinha sabido apoiar-se nos dois tronos, religioso e secular, de que dependia como fidalgo francês e príncipe da Igreja: Sisto protegia-o contra Henrique III, e Henrique III protegia-o contra Sisto. Era italiano em Paris, parisiense em Roma, e, tanto numa como noutra parte, magnífico e hábil.
A espada do almirante-mor Joyeuse dava a este último mais peso na balança; mas bem se conhecia, por certos sorrisos do cardeal, que, se bem que privado daquelas pesadas armas temporais que o braço do irmão, apesar da sua elegância, manejava com tanta destreza, sabia usar, e mesmo abusar, das armas espirituais que lhe tinham sido confiadas pelo chefe supremo da Igreja.
O cardeal Francisco de Joyeuse tinha enriquecido depressa, em primeiro lugar porque tinha bom património, e em segundo, porque eram muito rendosos os seus benefícios. Naquele tempo, a Igreja possuía bens, e muito avultados, e quando os cofres estavam exaustos, conhecia as fontes, hoje estancadas, que serviam para os tornar a encher.
Francisco de Joyeuse vivia pois com grande luxo. Deixando o irmão ao orgulho da casa militar, atulhava as suas antecâmaras de vigários e arcebispos; tinha a sua especialidade.
Depois de nomeado cardeal, como era príncipe da Igreja, e superior, por consequência, ao irmão, tinha tomado pajens à moda de Itália, e guardas à moda de França. Mas esses guardas e esses pajens contribuíam para ele gozar ainda de mais liberdade.
Mandava muitas vezes colocar os guardas e os pajens de roda de uma grande liteira, pelas cortinas da qual se lobrigava a mão do secretário, de luva calçada, enquanto ele, a cavalo e de espada à cinta, corria a cidade, disfarçado com uma cabeleira, um enorme colarinho de canudos e umas botas de montar em que tiniam umas esporas cujo som lhe regozijava a alma.
O cardeal gozava, portanto, de grande consideração, porque as fortunas humanas, quando chegam a certas elevações, são absorventes e obrigam, como se fossem compostas de átomos com garras, todas as demais fortunas a aliarem-se a elas como satélites; e por esta razão reflectia nele todo o esplendor do nome glorioso do pai, e da ilustração recente e inexplicável de Anne, o irmão mais velho. Além de que, como sempre tinha observado escrupulosamente o preceito de ocultar a sua vida e ostentar o seu espírito, só era conhecido debaixo do aspecto que mais o favorecia, e mesmo na própria família era tido em conta de grande homem, felicidade que não lograram muitos imperadores carregados de glórias e coroados por uma nação inteira.
Foi a casa deste prelado que se dirigiu o conde de Bouchage depois da sua explicação com o irmão, e da sua conversa com o rei de França.
Deixou, porém, como já dissemos, decorrer alguns dias, para obedecer à ordem expressa do irmão mais velho e do rei.
Francisco residia numa bela casa na cidade. O pátio imenso da casa estava sempre cheio de cavaleiros e de liteiras; porém o prelado, cujo jardim confinava com a beira do rio, deixava que os pátios e as antecâmaras se enchessem de cortesãos e, como tinha uma porta que dava saída para o rio, e um bote junto da porta, que o levava sem bulha e muito comodamente para onde queria, sucedia muitas vezes que esperavam debalde por ele, a quem uma penitência austera servia de pretexto para não receber visitas.
Eram costumes de Itália no centro da boa cidade do rei de França; era Veneza entre os dois braços do Sena.
Francisco era soberbo, mas nada tinha de vaidoso; estimava os seus amigos como irmãos, e os seus quase tanto como amigos. Mais velho cinco anos do que de Bouchage, não lhe poupava bons ou maus conselhos, e também nunca lhe faltava com a bolsa nem com o agrado.
Porém, como trajava com toda a dignidade o hábito de cardeal, de Bouchage admirava-o com uma espécie de temor, e respeitava-o talvez mais do que respeitava o irmão mais velho de ambos. Henrique confiava a Anne o segredo dos seus amores, mas não se atrevia a confessá-los a Francisco.
Entretanto, quando se dirigiu ao palácio do cardeal, ia com a firme resolução de se abrir francamente, primeiro com o confessor, depois com o amigo.
Entrou no pátio, de onde saíam, na mesma ocasião, uns poucos de fidalgos, cansados de esperar pelo favor de uma audiência sem a terem podido conseguir, atravessou as antecâmaras, as salas, e depois os aposentos. Tinham-lhe dito, a ele como aos mais, que o irmão estava em conferência; mas nem um único dos criados teria o atrevimento de vedar a entrada a de Bouchage.
De Bouchage atravessou pois os aposentos todos, e assim foi indo até ao jardim, verdadeiro jardim de prelado romano, com sombra, fresquidão e aromas, como ainda hoje em dia se encontra na Vila Panfília ou no Palácio de Borghese.
Henrique parou debaixo de um caramanchão; no mesmo momento, abriu-se a cancela que dava para o rio, e entrou um homem embuçado num grande capote pardo e acompanhado de um pajem. O homem viu Henrique, que estava tão absorto nas suas meditações que nem deu por ele, e foi-se encobrindo com as árvores para evitar as vistas de Bouchage ou de qualquer outra pessoa.
Henrique não tinha reparado naquela entrada misteriosa e só viu o homem quando ele já ia para entrar em casa.
Depois de uns dez minutos de espera, dispunha-se ele também a entrar para perguntar a algum criado quando poderia ver o irmão, quando um fâmulo, que parecia andar a procurá-lo, o avistou, se dirigiu a ele, pedindo-lhe que fizesse o favor de ir para a biblioteca, onde o esperava o cardeal.
Henrique acedeu ao convite, mas com todo o vagar, porque já adivinhava que ia ter lugar uma nova luta. Encontrou o irmão cardeal, a quem um criado estava enfiando umas roupas talares, um pouco mundanas talvez, porém de talhe elegante e muito cómodas.
— Bons-dias, conde — disse o cardeal. — Que notícias há, meu irmão?
— Trago excelentes notícias, pelo que diz respeito à nossa família — respondeu Henrique. — Anne, como sabe, cobriu-se de glória na retirada de Antuérpia, e está vivo.
— E, graças a Deus, tu também estás são e salvo, Henrique...
— Estou, meu irmão.
— Bem vês — disse o cardeal — que Deus tem as vistas sobre nós.
— Meu irmão, estou por tal forma agradecido a Deus, que tenho projectado consagrar-me ao seu serviço: venho pois falar-lhe seriamente a respeito deste meu projecto, que me parece maduro, e a respeito do qual já lhe disse algumas palavras...
— Ainda pensas nisso, de Bouchage?! — disse o cardeal, soltando uma exclamação que bem mostrava a Joyeuse que havia de ter algumas objecções a combater.
— Cada vez mais, meu irmão.
— Mas não te disseram já que isso é impossível, Henrique? — replicou o cardeal.
— Eu não fiz caso do que me disseram, meu irmão, porque uma voz mais forte, que fala dentro em mim, obsta que eu atenda às palavras dos que tentam desviar-me de Deus.
— Tu não és tão ignorante das coisas deste mundo, meu irmão — disse o cardeal em tom muito sério —, que chegues a persuadir-te de que seja essa na realidade a voz do Senhor; pelo contrário, atrevo-me a afirmar que é um sentimento inteiramente mundano que te sugere semelhante ideia. Deus nada tem que ver neste negócio; não abuses pois do Seu santo nome, e não queiras confundir a voz do Céu com a da Terra.
— Não confundo tal, meu irmão; digo unicamente que há uma força irresistível que me arrasta para uma vida retirada e para a solidão.
— Ora ainda bem, Henrique, que trouxeste a questão aos seus verdadeiros termos. Pois bem, meu caro! tomo nota das tuas palavras, e vou dizer-te o que tens a fazer para ser o mais feliz dos homens.
— Oh! muito agradecido, meu irmão!
— Ouve-me, Henrique. Pega em dinheiro, toma dois escudeiros e vai viajar por toda a Europa, como convém a um filho da casa a que pertencemos. Verás terras longínquas... a Tartária, a Rússia, e mesmo, se quiseres, os Lapões, povo fabuloso para quem nunca brilha o Sol; darás assim largas ao teu pensamento até que o germe devorador que te consome esteja aniquilado ou satisfeito... Então voltarás para o nosso grémio.
Henrique tinha-se sentado, e levantou-se a estas palavras, mais sério ainda do que o irmão.
— Não me percebeu, Senhor — disse ele.
— Perdão, Henrique! disseste vida retirada e solidão...
— Sim, foi isso o que eu disse; mas quando falei em vida retirada e solidão, referia-me a uma clausura, meu irmão, e não a viagens; viajar é gozar a vida; eu apeteço a morte, e quero saboreá-la enquanto ela não me arrebata.
— Hás-de permitir-me que te diga que é absurda essa tua ideia, Henrique, porque o homem que deseja isolar-se pode estar só em qualquer parte. Mas, já que assim o queres, vai para uma clausura. Estimo que viesses falar-me nesse projecto. Conheço beneditinos muito sábios, e agos-tinhos muito ilustrados, cujos conventos são alegres e bem situados, e que têm regras suaves e cómodas. Poderás passar um ano agradavelmente, entregue a trabalhos científicos ou artísticos, e com boa companhia, pois sempre é bom fugir de convivências rasteiras; e se ao cabo de um ano ainda persistires no teu projecto, então, meu querido Henrique, deixarei de me opor, e eu mesmo abrirei a porta que há-de conduzir-te à eterna salvação.
— Está visto que não me entende, meu irmão — respondeu de Bouchage. — Ou, para melhor dizer, a sua inteligência tão generosa não quer entender-me: não é uma morada alegre, nem um agradável asilo, que eu pretendo; quero professar, quero proferir votos que me deixem como única distracção uma cova para abrir, uma comprida oração para dizer.
O cardeal franziu as sobrancelhas e levantou-se da cadeira.
— Sim — disse ele —, eu tinha entendido muito bem, e procurei combater, com a minha resistência sem frases e sem dialéctica, a loucura da tua resolução; mas já que a tanto me obrigas, ouve-me...
— Ah! meu irmão — disse Henrique, com tristeza —, não tente convencer-me: é impossível.
— Meu irmão, falar-te-ei em nome de Deus em primeiro lugar, de Deus a quem ofendes, dizendo que d'Ele dimana essa resolução. Deus não aceita sacrifícios inconsiderados. Tu és fraco, visto que te deixas vencer logo à primeira dor que sofres; como queres que Deus receba com agrado uma vítima quase indigna que lhe ofereces?...
Henrique fez um movimento.
— Oh! já não quero poupar-te, meu irmão, porque também tu não nos poupas — replicou o cardeal. — Esqueces-te do desgosto que vais causar ao nosso irmão mais velho, a mim...
— Peço perdão! — atalhou Henrique, corando — peço perdão, Senhor, mas parece-me que o serviço de Deus não é uma carreira tão triste e desonrosa que deva enlutar uma família toda! O senhor, meu irmão, cujo retrato vejo neste aposento, com aquele ouro, aqueles diamantes e aquela púrpura, não é porventura a honra e a alegria da nossa casa, apesar de ter escolhido o serviço de Deus, como nosso irmão mais velho escolheu o dos reis da Terra?...
— Criança! — exclamou o cardeal, com impaciência — estou quase persuadindo-me de que perdeste o juízo. Pois quê!? queres comparar a minha casa com um convento; os meus cem lacaios, os meus picadores, os meus gentis-homens e os meus guardas, com uma célula e uma vassoura, que são as únicas armas e a única riqueza de um claustro?! Estás doido varrido!? Não disseste há pouco que desprezas todas essas superfluidades que me são indispensáveis a mim, como quadros, vasos preciosos, pompa e ruído?... Tens acaso, como eu, a esperança de colocar um dia sobre a tua fronte a tiara de S. Pedro?... Eis uma carreira, Henrique; ocupa-se o espírito, luta-se, vive-se, enquanto não se consegue o desejado fim; mas tu!... só queres a sopa de um mineiro, a enxada de um frade cartuxo e a sepultura de um coveiro; queres privar-te de ar, de alegria e de esperança!... E tudo isso (faz-me na verdade corar o ver que és tão pouco homem), tudo isso porque tens amor a uma mulher que não te ama! Digo-te, na verdade, Henrique, que assim degeneras da tua raça!
— Meu irmão! — exclamou o mancebo, empalidecendo e com os olhos chamejantes — parece-me preferível dar em mim um tiro de pistola, ou aproveitar-me da honra que tenho de cingir uma espada para a cravar no coração! Por Deus, Senhor! visto que é cardeal e príncipe, deite-me já a absolvição desse pecado mortal; prometo executar tão rapidamente o que acabo de dizer, que não lhe darei tempo para concluir esse feio e indigno pensamento: que degenerei da minha raça! coisa que, graças a Deus, nunca sucederá a um Joyeuse.
— Vamos, vamos, Henrique! — disse o cardeal, puxando para si o irmão e detendo-o nos braços — vamos, querido menino de todos aqui estimado! esquece tudo isso, e sê clemente para com as pessoas que te têm amizade. Peço-te como egoísta; ouve-me. Dá-se connosco um caso bem raro neste mundo: todos nós somos felizes; uns pela ambição satisfeita, outros pelas bênçãos de toda a casta que Deus derramou sobre a nossa existência; não entornes pois, Henrique, o veneno mortal do retiro da clausura sobre as alegrias da tua família; lembra-te de que farás chorar nosso pai, lembra-te de que todos nós conservaremos na fronte a nódoa negra desse luto de que nos pretendes cobrir. Suplico-te, Henrique, que anuas ao meu pedido: o convento não serve para ti. Não te direi que vais morrer lá, pois bem sei que me responderás, desgraçado, com um sorriso infelizmente muito inteligível; não: dir-te-ei somente que o claustro curva a fronte, em vez de a erguer para o Céu; a humidade das abóbadas penetra gradualmente no sangue, e entranha-se até à medula dos ossos, a ponto de fazer do clausurado mais uma estátua de granito para ornato do convento. Meu irmão, atende ao que te digo: a vida é breve, e a mocidade não dura sempre. Os anos da tua juventude hão-de passar depressa, porque te consome um grande pesar, mas quando tiveres trinta anos serás um homem, e possuirás toda a seiva da idade madura; esse resto de dor, já gasto, terá desaparecido, e então quererás tornar a viver; mas já será tarde, porque te terás tornado triste, feio e doente; o teu coração já não terá ardor, e os teus olhos não terão brilho; aqueles a quem procurares, fugirão de ti como de um sepulcro hiante, cuja profundidade a vista se não atreve a medir. Henrique, estou-te falando com amizade, com prudência; atende-me.
O mancebo conservou-se imóvel e calado. O cardeal pensou que o tinha enternecido e abalado.
— Olha — disse ele —, lança mão de outro recurso, Henrique: arrasta contigo por toda a parte essa seta envenenada que tens cravada no coração; leva-a contigo para o tumulto das festas, senta-te com ela nos nossos banquetes; imita a corça ferida, que atravessa as sebes, os matos e as silvas, a ver se arranca das ilhargas a frecha que lhe pende dos beiços da ferida; sucede às vezes cair a frecha.
— Meu irmão, por favor — disse Henrique — não continue a insistir; isto que lhe peço não é fantasia de um instante, uma decisão de uma hora: é o resultado de uma longa e dolorosa resolução. Meu irmão, em nome do Céu, rogo-lhe que me conceda a mercê que lhe peço!
— Pois bem! que mercê pedes tu, diz.
— Uma dispensa, Senhor.
— Para quê?
— Para abreviar o meu noviciado.
— Ah! bem digo eu!... até no teu rigorismo és mundano, de Bouchage, meu pobre amigo. Oh! bem sei a razão que vais dar. Oh! sim, bem se vê que ainda és um homem deste mundo; pareces-te com os rapazes que assentam praça como voluntários, e que estão prontos a ir ao fogo, às balas e onde há luta, mas não querem trabalhar nas trincheiras nem varrer as barracas. Ainda podemos ter alguma esperança, Henrique; ainda bem, ainda bem!
— A dispensa, meu irmão, a dispensa: peço-lha de joelhos!
— Prometo que a hás-de ter; vou escrever para Roma; só daqui a um mês chegará a resposta. Mas em troca promete-me uma coisa...
— Que é?
— É que durante este mês de espera não hás-de recusar-te a tomar parte nos divertimentos que se te apresentarem; e se, daqui a um mês, ainda persistires no teu projecto, Henrique, então eu mesmo te entregarei a dispensa. Estás satisfeito agora? Tens a pedir-me mais alguma
coisa?
— Não, meu irmão, muito obrigado. Mas um mês é tanto tempo!... a demora mata-me.
— Entretanto, meu irmão, para começar a distrair-te, queres fazer-me o favor de almoçar comigo? tenho hoje uma companhia muito agradável...
E o prelado, ao dizer isto, sorriu de um modo capaz de causar inveja ao mais mundano dos favoritos de Henrique III.
— Meu irmão... — disse Bouchage, querendo escusar-se.
— Não admito desculpas; não tenho em Paris outro parente mais chegado; e como ainda à pouco regressaste da Flandres, a tua casa há-de estar desorganizada...
A estas palavras, o cardeal levantou-se e, correndo um reposteiro que vedava a porta de um grande gabinete guarnecido de sumptuosa mobília:
— Venha, condessa — disse ele —, para me ajudar a convencer o Senhor Conde de Bouchage de que deve ficar morando aqui connosco.
Mas no momento em que o cardeal havia corrido o reposteiro, Henrique vira reclinado sobre almofadas o pajem que entrara com um cavaleiro pela cancela que dava para o rio; e mesmo antes de o prelado ter dado a conhecer o sexo do pajem, já ele tinha percebido que era uma mulher.
Sentiu logo como um súbito terror, como um invencível susto; e enquanto o mundano cardeal foi buscar o lindo pajem pela mão, Henrique de Bouchage fugiu do quarto, de forma que, quando Francisco voltou com a dama, a quem alvoroçava a esperança de conquistar um coração para o mundo, estava o aposento perfeitamente deserto.
Francisco franziu os sobrolhos e, sentando-se a uma mesa carregada de papéis e de cartas, escreveu rapidamente algumas regras.
— Faça-me o favor de chamar, querida condessa — disse ele —, tem aí à mão a campainha. O pajem obedeceu. Entrou um criado particular.
— É preciso que monte já a cavalo um correio — disse Francisco — que vá levar esta carta ao Senhor Almirante-Mor, em Château-Thierry.
RECEBEM-SE NOTÍCIAS DE AURILLY
No dia seguinte, estava o rei trabalhando no Louvre com o superintendente da Real Fazenda, quando vieram dizer-lhe que o Sr. de Joyeuse mais velho tinha chegado naquele instante, e estava esperando no gabinete grande das audiências, para falar com Sua Majestade, a mandado do Senhor Duque de Anjou, que ficava em Château-Thierry. O rei largou imediatamente o trabalho e correu ao encontro do seu querido amigo.
O gabinete estava cheio de oficiais e cortesãos; a rainha Catarina tinha vindo ao paço naquela tarde, com a sua escolta de damas de honor, e aquelas senhoras tão garridas eram outros tanto sóis sempre cercados de satélites. O rei deu a mão a beijar a Joyeuse, e correu pela assembleia um olhar satisfeito. No ângulo da porta de entrada estava, no seu lugar do costume, Henrique de Bouchage, cumprindo rigorosamente com o seu serviço e os seus deveres. O rei agradeceu-lhe com um aceno de cabeça amigável, ao qual Henrique correspondeu com uma profunda cortesia. Estes sinais fizeram voltar a cabeça a Joyeuse, que de longe sorriu para o irmão, sem contudo o saudar visivelmente para não ofender a etiqueta.
— Real Senhor — disse Joyeuse —, sou enviado a Vossa Majestade pelo Senhor Duque de Anjou, o qual regressou recentemente da expedição de Flandres.
— Meu irmão passa bem, Senhor Almirante? — perguntou o rei.
— Tão bem quanto lho permite o estado em que tem o espírito; não ocultarei todavia a Vossa Majestade que Sua Alteza parece andar adoentado.
— Carece naturalmente de alguma distracção, depois da desgraça que lhe sucedeu — disse o rei, estimando poder publicar o desastre do irmão ao passo que parecia compadecer-se do seu estado.
— Penso que sim, meu Senhor.
— Disseram-nos, Senhor Almirante, que foi um cruel desastre...
— Meu Senhor...
— Mas que, graças ao senhor, tinha sido salva uma boa parte do exército; muito lho agradeço, Senhor Almirante. O pobre duque de Anjou não deseja ver-me?...
— Deseja imenso, Real Senhor.
— Pois iremos vê-lo. Não é do seu parecer, minha Senhora? — perguntou Henrique, voltando-se para Catarina, cujo coração sofria, mas sem que o rosto o desse a conhecer.
— Senhor — respondeu ela —, eu tencionava ir sozinha ao encontro de meu filho; mas visto acompanhar-me Vossa Majestade nesse desejo de boa amizade, a jornada será para mim uma função.
— Acompanhem-me todos, Senhores — disse o rei para os cortesãos —, amanhã partiremos; irei dormir a Meaux.
— Real Senhor, posso ir participar essa boa nova a Sua Alteza?
— Não senhor, não quero que me deixe já tão depressa, Senhor Almirante! Acho muito natural que um Joyeuse seja estimado de meu irmão e que ele deseje tê-lo na sua companhia, mas, graças a Deus, ainda há mais do mesmo nome!... De Bouchage far-me-á o favor de ir
a Château-Thierry.
— Real Senhor — perguntou Henrique —, ser-me-á lícito voltar para Paris, depois de ter dado notícia da ida de Vossa Majestade ao Senhor Duque de Anjou?
— Poderá fazer o que lhe aprouver, de Bouchage — disse o rei. Henrique cortejou e dirigiu-se para a porta. Felizmente Joyeuse estava atento.
— Concede-me licença, Real Senhor, que diga uma palavra a meu irmão?
— Diga. Mas que é? — indagou o rei em voz baixa.
— É que ele vai correr a toda a brida para desempenhar a incumbência que Vossa Majestade lhe deu, e há-de fazer o mesmo para a volta: e isso transtorna os meus projectos, Real Senhor, bem como os do Senhor Cardeal.
— Vai, então, vai: repreende-me aquele louco namorado. Anne correu atrás do irmão, e alcançou-o na antessala.
— Então que é isso? — disse Joyeuse — vais partir com tanta pressa, Henrique?...
— É verdade, meu irmão.
— Porquê? tencionas voltar com rapidez?
— Exactamente.
— Não projectas demorar-te algum tempo em Château-Thierry?
— Quanto menos tempo melhor.
— Por que motivo?
— O meu lugar, meu irmão, não é onde há divertimentos.
— Pelo contrário, Henrique: é precisamente porque o Senhor Duque de Anjou há-de dar» funções na corte, que devias ficar em Château-Thierry.
— É impossível, meu irmão.
— Por causa dos teus desejos de clausura, dos teus projectos de austeridade?...
— Sim, meu irmão.
— Foste pedir uma dispensa a el-rei?
— Quem tal te disse?
— Sei-o eu.
— Fui, é verdade.
— Não a conseguirás.
— Porque dizes isso, meu irmão?
— Porque el-rei não quererá decerto privar-se de um servidor como tu.
— Meu irmão cardeal fará então o que el-rei não quiser fazer.
— E tudo isso por causa de uma mulher!...
— Anne... rogo-te que não insistas.
— Ah! descansa, que não tornarei a importunar-te. Mas, vamos ao que tenho a dizer-te» vais para Château-Thierry; pois bem! em vez de voltares imediatamente, como tencionas,! desejo que esperes lá por mim no meu aposento; há muito tempo que não vivemos juntos;!
preciso muito estar contigo.
— Meu irmão, a tua ida para Château-Thierry é com o fim de te divertires; eu, se ficar láj somente servirei para prejudicar todos os teus divertimentos.
— Oh! não tenhas esse receio! eu saberei resistir; tenho um génio alegre e próprio para combater a tua melancolia.
— Meu irmão...
— Conde — disse o almirante, insistindo imperiosamente —, eu sou aqui o representante de nosso pai, e determino que esperes por mim em Château-Thierry; lá acharás o meu quarto, de que poderás tomar posse. É no andar térreo, e as janelas deitam para a tapada.
— Se assim o ordenas, meu irmão... — disse Henrique, resignadamente.
— Dá-lhe o nome que quiseres, conde: desejo ou ordeno; mas espera por mim.
— Obedecerei, meu irmão.
— E estou persuadido de que não mo levas a mal... — acrescentou Joyeuse, abraçando o mancebo.
Este soltou-se, com gesto algum tanto desabrido, do abraço fraternal, pediu os seus cavalos e partiu imediatamente para Château-Thierry. Corria com a raiva de um homem a quem contrariaram projectos, isto é, devorava o espaço. Naquela mesma tarde subia ele, antes da noite fechada, a colina em que está assente Château-Thierry, com o rio Marna aos pés. Bastou dizer o nome para lhe abrirem as portas do palácio em que residia o príncipe; porém decorreu mais de uma hora primeiro que pudesse obter uma audiência. O príncipe, diziam uns, estava na sua câmara; outro dizia que estava dormindo; o criado de quarto supunha que estava estudando música. Nenhum dos criados dava uma resposta positiva. Henrique insistiu, para poder desempenhar quanto antes a incumbência do rei, a fim de poder entregar-se todo à sua tristeza. Em resultado de tanta instância, e como todos sabiam que ele e seu irmão eram muito familiares com o duque, mandaram-no entrar para uma das salas do primeiro andar, onde o príncipe consentiu afinal em lhe falar.
Passou-se ainda meia hora; a noite ia toldando o céu insensivelmente. O andar pesado do duque de Anjou ressoou pela galeria; Henrique, que logo o conheceu, aprontou-se para o cerimonial do estilo. Porém, o príncipe, que parecia estar com muita pressa, dispensou logo o embaixador das formalidades, pegando-lhe na mão e abraçando-o.
— Adeus, conde — disse ele —, por que motivo o incomodaram para vir visitar um pobre vencido?
— Meu Senhor, el-rei manda dizer-lhe que está com grande desejo de ver Vossa Alteza, e que, a fim de não o privar do descanso que tão preciso lhe é depois das fadigas, resolveu vir ao seu encontro e estará em Château-Thierry amanhã o mais tardar.
— El-rei chega amanhã?!... — exclamou Francisco, com um movimento de impaciência.
Mas, logo, emendando-se:
— Amanhã amanhã!... — disse ele — não é possível, daqui até lá, fazer as disposições necessárias, aqui no paço e na cidade, para a recepção de Sua Majestade.
Henrique inclinou-se, como um homem que transmite uma ordem mas a quem não cumpre comentá-la.
— A muita pressa com que estão Suas Majestades de ver Vossa Alteza fez com que se não lembrassem do incómodo que lhe poderiam causar.
— Pois bem! — disse o príncipe, com volubilidade — vou já tratar de aproveitar o pouco tempo que ainda me resta. Deixo-o, pois, Henrique; obrigado pela prontidão com que veio; porque, segundo me quer parecer, veio a correr todo o caminho... Vá descansar.
— Vossa Alteza não tem mais ordem alguma a dar-me? — perguntou respeitosamente Henrique.
— Nenhuma. Vá-se deitar. Levar-lhe-ão a ceia ao quarto, conde. Eu não como esta noite: estou incomodado, inquieto; perdi o apetite e o sono; e o resultado é levar uma vida tão lúgubre que não quero obrigar ninguém a partilhá-la. É verdade: já soube a notícia?
— Que notícia, meu Senhor?
— Aurilly foi comido pelos lobos...
— Aurilly?! — exclamou Henrique, muito admirado.
— Ele mesmo... devoraram-no!... É célebre: como todos que se chegam para mim morrem desastradamente! Boa noite, conde, estimo que durma bem. E o príncipe retirou-se apressadamente.
DÚVIDA
Henrique desceu, e ao atravessar as antecâmaras encontrou muitos oficiais seus conhecidos, que vieram ter com ele, e com grandes demonstrações de amizade se ofereceram para o conduzir ao quarto de seu irmão, que era situado num dos ângulos do palácio.
Era a biblioteca que o duque tinha dado para morada a Joyeuse, durante a sua estada em Château-Thierry.
Duas salas mobiladas ao gosto da época de Francisco I comunicavam uma com a outra, e davam serventia para a biblioteca; as janelas desta última casa deitavam para o jardim.
Joyeuse, homem de espírito preguiçoso e culto ao mesmo tempo, tinha mandado armar a cama na biblioteca; bastava-lhe estender o braço para tocar na ciência, e abrir as janelas para gozar da natureza; as organizações assim carecem de gozos mais completos; e a brisa da manhã, o trinar dos passarinhos ou o aroma das flores, davam novo realce às redondilhas de Clemente Marot ou às odes de Ronsard.
Henrique resolveu conservar tudo como estava, não porque fosse movido pelo sibaritismo poético do irmão, mas por desleixo, e porque lhe era indiferente estar ali ou noutra qualquer parte.
Porém, fosse qual fosse o estado de espírito em que se achava o conde, como tinha sido educado com o hábito de nunca faltar aos deveres para com o rei ou os príncipes da Casa Real de França, tratou logo de indagar qual era a parte do palácio em que habitava o duque depois do seu regresso.
O acaso tinha deparado a Henrique um excelente informador; era o jovem alferes que, naquela aldeia da Flandres onde as nossas personagens se demoraram um pouco, tinha, pela sua indiscrição, divulgado ao príncipe o segredo do conde; este oficial não havia deixado a companhia do duque desde a sua volta, e estava por conseguinte habilitado a dar a Henrique todos os esclarecimentos que ele exigisse.
O príncipe, nos primeiros dias da sua estada em Château-Thierry, tinha procurado distracção e ruído; habitava então nos quartos principais, recebia visitas pela manhã e à noite, e durante o dia monteava os veados na floresta, ou ia à caça de alta volataria na tapada; mas desde a notícia da morte de Aurilly, notícia que havia chegado aos ouvidos do príncipe sem que se soubesse como, tinha-se retirado para um pavilhão situado no meio da tapada; esse pavilhão, espécie de retiro inacessível a todos, menos aos familiares da casa do príncipe, ficava encoberto com a ramada das árvores, e apenas se lhe avistava o telhado por cima das gigantescas latadas e através das densas sebes.
Havia pois dois dias que o príncipe se havia retirado para o tal pavilhão; os que o não conheciam diziam que era o pesar que lhe causava a morte de Aurilly que o induzia a encerrar-se naquela solidão; os que o conheciam, afirmavam que se estava maquinando naquele pavilhão alguma empresa vergonhosa ou infernal, que mais dia menos dia havia de aparecer à luz. Qualquer destas duas suposições era muito provável, por isso que o príncipe dava mostras de enfado sempre que algum negócio ou visita o obrigava a aparecer no palácio, e apenas acabava de receber a visita ou de aviar o negócio, voltava para a sua solidão, onde era servido unicamente por dois velhos criados particulares, que o conheciam desde a infância.
— Então — disse Henrique —, se o príncipe está numa disposição tão melancólica, as festas não hão-de ser muito alegres.
— Decerto — respondeu o alferes —, porque todos hão-de julgar a sua tristeza proveniente do golpe que sofreu no seu orgulho e nos seus afectos.
Henrique continuava a interrogá-lo sem querer, e todas estas perguntas iam-lhe prendendo a atenção de uma maneira singular; a morte de Aurilly, que ele conhecera na corte e com quem se encontrara na Flandres; a espécie de indiferença com que o príncipe lhe dera a notícia da perda que havia sofrido; a reclusão em que vivia o príncipe, segundo todos diziam, desde aquela morte; tudo isto tinha ligação, sem que ele soubesse porquê, com o trama misterioso e sombrio em que se achavam envolvidos havia algum tempo os acontecimentos da sua vida.
— E — perguntou ele ao alferes — não se sabe como chegou ao conhecimento do príncipe a notícia da morte de Aurilly?
— Não.
— Mas enfim... — insistiu ele — conta-se por aí alguma coisa a esse respeito?...
— Sem dúvida — respondeu o alferes. — Nestes casos, como muito bem sabe, sempre se conta alguma coisa, ou seja verdade ou mentira.
— Que se diz então? conte-me.
— Diz-se que o príncipe andava à caça na proximidade dos salgueiros que estão à beira do rio, e que se tinha afastado dos outros caçadores (porque ele faz tudo aos repelões, e deixa-se arrebatar pelo génio, na caça como no jogo) quando de repente viram que voltava com o parecer muito consternado. Os cortesãos interrogaram-no, pensando que o caso não passava de uma simples aventura da caça. Trazia na mão dois cartuchos de ouro. — «Então que lhes parece, Senhores!?... — disse ele com voz trémula — Aurilly está morto! Aurilly foi comido pelos lobos!...» Todos ficaram espantados. «É como lhes estou dizendo — prosseguiu o príncipe —, ou os demónios me levem! o pobre tocador de alaúde sempre tinha sido melhor músico do que bom cavaleiro; julga-se que o cavalo em que montava se desbocou, e que atirou com ele a um barranco, onde ficou morto; no dia imediato, dois viajantes, passando junto do tal barranco, acharam o cadáver, em parte devorado pelos lobos; É uma prova de que foi assim que a coisa sucedeu, e de que não foram ladrões que o mataram, é que aqui estão dois cartuchos de ouro que ele tinha consigo, e que me foram fielmente restituídos.» Ora, como ninguém vira fazer a entrega dos dois cartuchos de ouro — prosseguiu o alferes —, julgaram todos que tinham sido restituídos ao príncipe pelos viajantes, os quais, tendo-o encontrado e conhecido à beira do rio, lhe haviam comunicado a notícia da morte de Aurilly.
— É célebre!... — murmurou Henrique.
— Tanto mais célebre — continuou o alferes — que há quem visse, segundo dizem também (será verdade ou será invenção?) o príncipe abrir a portinha da tapada, ao pé dos castanheiros, e que pela portinha entraram dois vultos. O príncipe mandou portanto entrar duas pessoas para a tapada; provavelmente eram os dois viajantes. Foi desde então que o príncipe emigrou para o seu pavilhão e nunca mais o vimos senão de relance.
— E ninguém viu os dois viajantes? — perguntou Henrique.
— Eu — replicou o alferes —, indo pedir ao príncipe o santo para a guarda do paço durante a noite, encontrei um homem que me pareceu não pertencer à casa de Sua Alteza, mas não lhe pude ver o rosto, porque o homem voltou a cara para a banda ao avistar-me, e puxou para os olhos o capuz do gibão.
— O capuz do gibão?...
— Sim; o homem parecia um camponês flamengo, e, não sei porquê, fez-me lembrar aquele que vinha na sua companhia quando nos encontrámos na Flandres.
Henrique estremeceu; esta observação ainda aumentava o interesse surdo e tenaz que lhe inspirava a história; a ele também, que vira Diana e o seu companheiro entregues a Aurilly, lhe ocorrera a ideia de que os dois viajantes que tinham dado ao príncipe a notícia da morte do infeliz tocador de alaúde eram os seus conhecidos.
Henrique olhou atentamente para o alferes.
— E quando lhe pareceu que conhecia o homem, qual foi a ideia que lhe ocorreu? — perguntou ele.
— Eis o que eu presumo — respondeu o alferes — (contudo, não me atreveria a afirmá-lo): o príncipe não renunciou provavelmente aos seus projectos a respeito da Flandres; tem portanto espiões assalariados; o homem do gibão de lã é algum espião, que no seu giro teve conhecimento do desastre que sucedeu ao músico e trouxe duas notícias juntas.
— Isso é verosímil — disse Henrique, pensativo —, mas que fazia o homem quando o viu?
— Ia cosido com a sebe que cerca o tabuleiro de flores do jardim — das suas janelas poderá ver a sebe —, e dirigia-se para as estufas.
— Visto isso, os dois viajantes, pois (se não me engano, disse que eram dois)...
— Corre para aí que entraram duas pessoas, mas não vi senão uma, que foi o homem do gibão de lã.
— Então está persuadido de que o homem do gibão habita nas estufas?...
— É muito provável.
— E as estufas têm alguma saída?
— Têm, conde, têm: uma porta que dá para a cidade.
Henrique conservou-se por algum tempo em silêncio; palpitava-lhe o coração com violência; estes pormenores, que aparentemente lhe eram indiferentes, despertavam-lhe contudo a curiosidade em subido grau, pelo mistério que os envolvia.
Tinha anoitecido de todo; e os dois mancebos estavam conversando sem luz no quarto de Joyeuse.
O conde, cansado da jornada, admirado dos acontecimentos extraordinários que acabavam de lhe contar, e sem força para resistir às emoções que nele tinham despertado, estava deitado sobre o leito do irmão, e com os olhos fitos maquinalmente na abóboda azulada do céu, que parecia semeada de diamantes.
O alferes estava sentado sobre o peitoril da janela, e tinha-se entregado também ao abandono do espírito, à poesia da mocidade, e ao suave entorpecimento dos sentidos que ocasiona a frescura balsâmica da noite.
Reinava profundo silêncio na tapada e na cidade; as portas começavam a fechar-se, as luzes iam brilhando gradualmente, ouviam-se ao longe os latidos dos cães por ocasião de andarem os criados fechando as portas das cavalariças.
De repente, o alferes endireitou-se, fez com a mão um sinal de atenção, debruçou-se para fora da janela e, chamando em voz baixa e apressada o conde, que ainda estava estendido sobre o leito, disse-lhe: — Venha, venha depressa!
— Que temos? — perguntou Henrique, despertando violentamente da sua meditação.
— É o homem, o homem!...
— Qual homem?
— O homem do gibão... o espião!
— Oh! — exclamou Henrique, saltando do leito para a janela e encostando-se ao alferes.
— Olhe! — prosseguiu o alferes — não o vê além?... Vai encostado à sebe... não tarda que torne a aparecer... Olhe agora para aquele espaço onde dá o luar! lá vai ele, lá vai ele!
— É verdade.
— Não tem um semblante tão sinistro?...
— O termo sinistro é bem apropriado — respondeu de Bouchage, tornando-se taciturno.
— Parece-lhe que será um espião?...
— Não me parece nada, e parece-me tudo.
— Vê?... vai do pavilhão do príncipe para as estufas.
— Então acolá é que fica o pavilhão do príncipe?... — perguntou de Bouchage, apontando com o dedo para o ponto de onde parecia vir o desconhecido.
— Repare naquela luz que tremula entre as folhas...
— Estou reparando.
— É a sala de janur.
— Ah! — exclamou Henrique — lá torna ele a aparecer!
— Sim, não há dúvida, vai para as estufas ter com o companheiro: ouviu?
— O quê?
— O ruído da chave a ranger na fechadura...
— É célebre! — disse de Bouchage — em tudo que estou vendo nada há de extraordinário, e contudo...
— E contudo, fá-lo arrepiar, não é assim?
— Faz — disse o conde. — Mas que é aquilo agora? Ouvia-se o som duma sineta.
— É o sinal para a ceia dos oficiais da casa do príncipe; não vem cear connosco, conde?
— Não, obrigado, não tenho vontade; se me apertar o apetite, então chamarei.
— Não espere por isso, Senhor Conde, e venha distrair-se na nossa companhia.
— Não; não é possível.
— Porquê?
— Sua Alteza Real quase que me ordenou que ceasse no meu quarto. Mas não se demore por minha causa, vá lá, vá.
— Obrigado, conde; boa noite. Vigie o nosso fantasma.
— Oh! sim, eu lho prometo... Isto é — prosseguiu Henrique, receoso de ter avançado muito —, se o sono não se apoderar de mim. E parece-me que será o mais provável; e em todo o caso, será mais salutífero do que estar à espreita de sombras e de espiões.
— Pois! — respondeu o alferes, rindo-se.
E despediu-se de de Bouchage. Apenas ele saiu da biblioteca, saltou Henrique para o jardim.
«Oh! murmurou ele, é Rémy, é Rémy! até nas trevas do Inferno eu seria capaz de o conhecer';.
E o mancebo, sentindo que lhe tremiam as pernas, apertou com as mãos húmidas a fronte ardente.
«Meu Deus! exclamou ele, não será isto uma alucinação do meu pobre cérebro doente, ou quererá a fatalidade que, ou eu durma, ou vele, de noite ou de dia, tenha constantemente presente estes dois vultos que abriram na minha existência um sulco tão sombrio?... E com efeito, prosseguiu, como obedecendo à necessidade de se convencer a si mesmo, para que havia Rémy de estar aqui, neste palácio, em casa do duque de Anjou?... Que viria aqui fazer? Que relações poderia ter o duque de Anjou com Rémy?... Como teria ele abandonado Diana? ele, o seu eterno companheiro... Nada! não pode ser ele.»
Mas, ao cabo de um instante, uma convicção íntima, profunda e de instinto, desvaneceu-lhe a dúvida.
«É ele! é ele!» murmurou com desesperação, e encostando-se à parede para não cair.
Ao tempo que acabava de formular este pensamento dominante, invencível, e senhor de todos os outros, ouviu-se novamente o ranger da fechadura, e se bem que era um rumor quase imperceptível, não escapou aos seus sentidos exaltados.
Um inexprimível arrepio correu-lhe por todo o corpo. Tornou a escutar. Havia em redor dele um tal silêncio, que ouvia as palpitações do próprio coração. Decorreram alguns minutos sem que visse aparecer o que esperava. Contudo, na falta dos olhos, diziam-lhe os ouvidos que se aproximava alguém. Ouvia o som das passadas sobre a areia. De repente, a linha escura da latada cresceu; pareceu-lhe que via mover-se sobre aquele fundo sombrio um grupo ainda mais sombrio.
«Ei-lo que volta, disse consigo Henrique; virá só ou acompanhado?»
O grupo caminhava para a parte onde o luar prateava um espaço que ficava a descoberto. Foi no momento em que o homem do gibão tinha atravessado aquele espaço, andando em sentido contrário, que Henrique julgara conhecer Rémy. Desta vez viu Henrique duas sombras bem distintas; não havia engano. Um frio de morte penetrou-lhe até ao coração, e pareceu transformá-lo em mármore. As duas sombras caminhavam rapidamente com passo firme; a primeira trazia um gibão de lã, e desta segunda vez, como da primeira, o conde julgou conhecer perfeitamente que era Rémy. A segunda, completamente embuçada num grande capote de homem, escapava a qualquer análise. Todavia, apesar do capote, quis parecer a Henrique que adivinhava que vulto era aquele que assim se ocultava a todas as vistas. Soltou uma espécie de rugido de dor, e apenas as duas misteriosas personagens desapareceram por trás da latada, o mancebo caminhou na mesma direcção, e, encobrindo-se com os grupos de arbustos, foi em seguimento dos indivíduos que queria conhecer.
«Oh! murmurou ele pelo caminho, isto não será engano, meu Deus!? isto será possível!?...»
CERTEZA
De Bouchage foi andando encoberto com a latada pelo lado da sombra, tendo o cuidado de não fazer ruído na areia, nem ao roçar pelas folhas.
Como era obrigado a caminhar com toda a cautela, nada podia ver. Contudo, pelo vulto, pelo trajo e pelo modo de andar, cada vez mais se convencia de que o homem do gibão de lã era Rémy.
As simples conjecturas que o seu espírito formava a respeito do companheiro daquele homem, eram para ele ainda mais medonhas do que a realidade.
A latada acabava junto de uma grande sebe de silvas e de uma fileira de choupos que separava o resto da tapada do pavilhão do Senhor Duque de Anjou, e o cercava de uma cortina de verdura, no meio da qual, como já dissemos, ficava inteiramente oculto naquele canto isolado do palácio.
Havia em roda lindos tanques, bosques sombrios cortados por sinuosas ruas, e árvores seculares nos cumes das quais batia em cheio a luz prateada da Lua, ao passo que por baixo delas havia uma sombra negra, opaca e impenetrável.
Henrique, quando chegou ao pé da sebe, sentiu um desfalecimento.
E, com efeito, aquela transgressão audaz das ordens do príncipe, e uma tão temerária indiscrição, era uma acção mais própria de um vil espião, ou de um homem com a cabeça transtornada pelo ciúme, do que de um cavalheiro leal e honrado.
Porém, como ao abrir a cancela que separava a tapada do jardim, o homem fez um movimento que lhe deixou o rosto a descoberto, e como o rosto era na realidade o de Rémy, o conde pôs de parte todos os escrúpulos, e caminhou para diante, resolvido a sofrer as consequências do passo que dava.
Tinham tornado a fechar a cancela; Henrique saltou por cima das travessas e continuou a seguir os dois misteriosos hóspedes do príncipe.
Estes iam com pressa.
Entretanto veio assaltá-lo um novo motivo de terror.
O duque saiu do pavilhão quando ouviu os passos de Rémy e do seu companheiro na areia.
Henrique ocultou-se por trás do tronco de uma árvore e esperou.
Apenas pôde ver que Rémy fizera uma grande cortesia, que o companheiro fizera uma mesura de mulher e não um cumprimento de homem, e que o duque, com evidentes mostras de satisfação, oferecera o braço a este último, como se fora efectivamente uma mulher.
Em seguida, dirigindo-se todos três para o pavilhão, tinham desaparecido para dentro do vestíbulo, cuja porta se havia fechado depois de eles entrarem.
«É preciso acabar com isto, disse consigo Henrique, e procurar um sítio mais cómodo para poder ver tudo sem ser visto.»
Escolheu um grupo de arvoredo, situado entre o pavilhão e as latadas, no centro do qual havia uma fonte, e que lhe pareceu um asilo impenetrável, por isso que não era provável que o príncipe se arriscasse a vir respirar de noite o ar fresco e húmido que reinava naturalmente nas proximidades da fonte.
Henrique, ocultando-se por trás da estátua que adornava a fonte, e elevando-se à altura do pedestal, pôde ver tudo quanto se passava no pavilhão, cuja principal janela estava inteiramente aberta diante dos seus olhos.
Como ninguém podia, ou, mais exactamente, ninguém devia penetrar até ali, nenhuma cautela havia em vedar a vista.
Estava uma mesa posta, servida com luxo, e carregada de vinhos preciosos em garrafas de vidro de Veneza.
As duas únicas cadeiras que havia à mesa indicavam que eram só dois os convivas que se esperavam.
O duque dirigiu-se para uma das cadeiras, e, largando o braço do companheiro de Rémy, apontou-lhe a outra, parecendo convidá-lo a tirar o capote, o qual, se bem que muito cómodo para um passeio nocturno, tornava-se muito incómodo ao sentar-se a pessoa à mesa.
Então, essa pessoa a quem ele dirigia esse convite atirou o capote para cima de uma cadeira, e a luz alumiou em cheio o rosto pálido e formoso de uma mulher, que os olhos espavoridos de Henrique imediatamente reconheceram.
Era a dama da casa misteriosa da Rua dos Agostinhos, a mesma que ele tinha encontrado a viajar na Flandres; era aquela Diana, enfim, cujos olhos matavam como se fossem punhais. Desta vez trazia os trajos próprios do seu sexo: tinha um vestido de brocado, e brilhavam-lhe diamantes no pescoço, no cabelo e nos pulsos.
Aqueles adornos faziam-lhe sobressair ainda mais a palidez do rosto, e se não fosse o fogo que lhe dardejava dos olhos, poder-se-ia julgar que o duque, por meio de algum segredo mágico, tinha evocado a sombra daquela mulher, e não a própria mulher.
Se não estivesse encostado à estátua de roda da qual deitara os braços, que estavam mais frios do que o próprio mármore, Henrique teria caído de costas para dentro do tanque da fonte.
O duque parecia transportado de alegria; devorava com os olhos aquela admirável criatura que se tinha sentado defronte dele, e que apenas tocava nas iguarias que estavam diante de si.
De quando em quando, Francisco estendia-se por cima da mesa para beijar as mãos da sua silenciosa e pálida conviva, a qual parecia tão insensível aos beijos como se a sua mão fosse esculpida no alabastro de que tinha a transparência e a brancura.
De espaço a espaço, Henrique estremecia, levava a mão à testa para limpar o suor gelado que lha humedecia, e perguntava a si mesmo: «Estará ela viva ou morta?»
O duque fazia todos os esforços e desenvolvia toda a sua eloquência para alegrar aquele semblante austero.
Tinha mandado embora toda a gente, de forma que Rémy era o único criado que os servia a ambos; e, roçando de vez em quando o cotovelo pela ama, ao passar por trás dela, parecia que a reanimava com aquele contacto, e que a chamava de novo à vida, ou antes, à situação. A fronte da dama tingia-se então de vermelho, os seus olhos despediam um raio e sorria, como se algum nigromante houvesse tocado numa mola oculta naquele autómato inteligente, operando no mecanismo dos olhos o raio, no das faces a cor, e no dos lábios o sorriso. Mas, passado um instante, tornava à mesma imobilidade.
O príncipe, entretanto, foi-se aproximando dela, e pelos seus discursos apaixonados tentou captar a atenção da sua nova conquista.
Então Diana, que de tempos a tempos olhava para as horas que marcava um relógio magnífico pendurado por cima da cabeça do príncipe, na parede que lhe ficava fronteira, pareceu fazer um violento esforço e, conservando sempre os lábios risonhos, tomou parte mais activa na conversa.
Henrique, no seu esconderijo do arvoredo, mordia os punhos e amaldiçoava toda a criação, começando pelas mulheres criadas por Deus, e acabando em Deus, que o tinha criado a ele.
Parecia-lhe monstruoso e iníquo que aquela mulher, tão pura e severa, se entregasse tão vulgarmente ao príncipe, porque era príncipe, e ao amor, porque era dourado naquele palácio.
O horror que Rémy lhe causava era tal, que lhe teria rasgado sem piedade as entranhas, para se certificar se aquele monstro tinha o sangue e o coração de um homem.
Henrique conservou-se neste paroxismo de raiva e de desprezo todo o tempo que durou aquela ceia, tão deliciosa para o duque de Anjou.
Deu meia-noite. O príncipe, escandecido pelo vinho e pelos seus ditos amorosos, levantou-se da mesa para ir abraçar Diana.
Todo o sangue de Henrique se lhe coalhou nas veias. Levou a mão ao lado, para procurar uma espada, e ao peito, para procurar um punhal.
Diana, com um sorriso muito singular, e que decerto nunca até ali tinha havido semelhante em rosto algum, deteve-o no meio do caminho.
— Meu Senhor — disse ela —, conceda-me que, antes de me levantar da mesa, eu reparta com Vossa Alteza esta fruta que me está tentando.
Ao dizer estas palavras, estendeu a mão para um cesto de filigrana de ouro, que continha uns vinte pêssegos magníficos, e tirou um.
Em seguida, tirando do cinto uma linda faquinha com folha de prata e cabo de mala-quite, dividiu o pêssego em duas metades, e ofereceu uma ao príncipe, que lhe pegou e a levou com avidez à boca, como se estivesse beijando os lábios de Diana.
Aquela acção apaixonada produziu nele uma tal impressão, que lhe escureceu a vista uma nuvem no momento em que mordia a fruta.
Diana observava-o com um olhar frio e um sorriso imóvel.
Rémy, encostado a um pilar de madeira esculpida, observava-o também com gesto sombrio.
O príncipe levou a mão à testa, limpou algumas gotas de suor, e engoliu o bocado que tinha mordido.
O suor era provavelmente precursor de algum incómodo súbito, porque, enquanto Diana comia a outra metade do pêssego, o príncipe deixou cair o resto da sua no prato e, levantando-se com dificuldade, pareceu convidar a sua formosa conviva a ir tomar ar para o vasto jardim em sua companhia.
Diana levantou-se e, sem proferir uma única palavra, pegou no braço que lhe oferecia o duque.
Rémy seguiu-os com a vista, e especialmente ao príncipe, a quem o ar reanimou de todo.
Diana ia limpando a folha da faquinha a um lenço bordado de ouro, e tornou a metê-la na sua bainha de fino cabedal.
Chegaram assim à proximidade do bosque onde estava Henrique.
O príncipe apertava com amor, de encontro ao peito, o braço da dama.
— Sinto-me melhor — disse ele — e contudo, não sei que peso me oprime o cérebro... Conheço que lhe tenho demasiado amor, minha senhora.
Diana arrancou de um jasmineiro um ramo de uma clematite e duas bonitas rosas, que tinham desabrochado junto do soco da estátua por trás da qual estava Henrique, encolhido com susto.
— Que está fazendo, minha Senhora? — perguntou o príncipe.
— Sempre tenho ouvido dizer, meu Senhor — respondeu ela —, que o aroma das flores é o melhor remédio que há para as vertigens. Estou fazendo um ramalhete, com a esperança de que, dado por mim, terá a influência mágica que lhe desejo.
Porém, quando ia para reunir as flores do ramalhete, deixou cair uma rosa, que o príncipe logo se deu pressa em apanhar.
O movimento de Francisco foi rápido; mas assim mesmo deu tempo a Diana para deixar cair sobre outra rosa algumas gotas de um líquido que continha um frasco de ouro que tirou do seio.
Em seguida, pegou na rosa que o príncipe tinha apanhado e, entalando-a no cinto, disse:
— Esta é para mim; troquemos.
E em troca da rosa que recebia das mãos do príncipe, ofereceu-lhe o ramalhete.
O príncipe pegou avidamente, cheirou-o com delícia, e deitou o braço de roda da cintura de Diana. Porém aquela pressão voluptuosa acabou provavelmente de transtornar os sentidos de Francisco, pois fraquejaram-lhe os joelhos, e teve de se sentar num banco de relva que havia ali próximo.
Henrique não perdia de vista as duas personagens, e observava ao mesmo tempo Rémy, o qual, tendo ficado no pavilhão, espreitava o fim da cena, parecendo devorar todos os pormenores dela.
Quando viu que faltaram as pernas ao príncipe, veio até ao limiar da porta do pavilhão. Diana, sentindo que Francisco cambaleava, sentou-se junto dele no banco.
A vertigem de Francisco durou da segunda vez mais do que da primeira; o príncipe tinha a cabeça inclinada sobre o peito. Parecia ter perdido o fio das ideias, e até mesmo o sentimento da existência; e todavia, o movimento convulso dos dedos sobre a mão de Diana indicava que, por instinto, ainda prosseguia na sua quimera de amor.
Por fim, ergueu vagarosamente a cabeça, e como os lábios se achavam na altura do rosto de Diana, fez um esforço para tocar nos da sua linda conviva; porém a dama, como se não tivesse reparado neste movimento, levantou-se.
— Está incomodado, meu Senhor?... — disse ela — melhor seria irmos para casa.
— Oh! sim, entremos — exclamou o príncipe. — Sim, venha, obrigado!
E levantou-se a cambalear; então, em vez de ser Diana a encostar-se ao braço dele, foi ele que se encostou ao braço de Diana; e, caminhando mais desembaraçadamente, graças a este apoio, pareceu ter-se esquecido da febre da vertigem; endireitando-se de repente, tocou com os lábios, quase por surpresa, no pescoço da dama.
Esta estremeceu, como se, em lugar de um beijo, tivesse sido a queimadura de um ferro em brasa.
— Rémy! um castiçal — exclamou ela —, um castiçal!
Rémy voltou logo à sala de jantar, e acendeu, a uma das luzes que estavam sobre a mesa, a vela de um castiçal que tirou de um aparador; depois, aproximando-se rapidamente da entrada do pavilhão com o castiçal na mão, disse para Diana:
— Pronto, minha Senhora.
— Para onde quer Vossa Alteza ir? — perguntou Diana, pegando no castiçal e voltando a cara para a banda.
— Oh! para o meu quarto!... para o meu quarto!... E há-de conduzir-me até lá, não é assim, minha Senhora?... — replicou o príncipe com manifesta ternura.
— Com todo o gosto, meu Senhor — respondeu Diana.
E caminhou levantando o castiçal ao ar.
Rémy foi abrir, no fundo do pavilhão, uma janela, por onde o ar penetrou, com tanto ímpeto, que a vela que Diana levava atirou, como furiosa, toda a chama e todo o fumo para o rosto de Francisco, que ficava precisamente exposto à corrente de ar.
Os dois amantes, pois tais os julgava Henrique, chegaram assim, depois de atravessarem uma galeria, ao quarto de cama do duque, e desapareceram por trás da tapeçaria bordada de flores-de-lis que lhe servia de reposteiro.
Saiu do esconderijo e, prostrado, com os braços pendentes e os olhos amortecidos, dispunha-se a voltar, com a morte no coração, para o seu quarto no palácio.
Eis senão quando, levantou-se de repente o reposteiro por trás do qual ele acabava de ver desaparecer Diana com o príncipe, e a dama, entrando a correr na sala de jantar, levou consigo Rémy, o qual, de pé e imóvel, parecia estar unicamente à espera que ela voltasse.
— Vem!... — disse ela — vem, que está tudo acabado.
E ambos deitaram a correr, como embriagados, loucos ou furiosos, pelo jardim fora.
Porém Henrique, ao avistá-los, tinha recobrado toda a sua energia; correu ao encontro deles, e acharam-no de repente atravessado no caminho, de pé, com os braços cruzados, e mais terrível no seu silêncio do que se estivesse proferindo ameaças.
Henrique, com efeito, havia chegado a um tal grau de exasperação, que teria morto todo aquele que se atrevesse a afirmar que as mulheres não eram monstros mandados pelo Inferno para enxovalhar o mundo.
Agarrou no braço de Diana, e deteve-a com força, apesar do grito de terror que ela soltou, e apesar do punhal que Rémy lhe apontou ao peito, e que ainda chegou a arrancar-lhe a pele.
— Oh! já não me conhece, provavelmente!... — disse ele, com um terrível ranger de dentes. — Sou aquele mancebo ingénuo que a amava, e a cujo amor a senhora não quis corresponder, porque para a senhora já não havia futuro, mas somente passado... Ah! formosa hipócrita!... E tu, cobarde embusteiro! conheço-te afinal... conheço-te e amaldiçoo-te. A um digo: desprezo-te!; à outra: causas-me horror!
—Abra caminho! — bradou Rémy com voz afogada — abra caminho, louco mancebo!... senão!...
— Pois sim — replicou Henrique —, conclui a tua obra! mata o meu corpo, miserável! já que me mataste a alma.
— Silêncio! — murmurou Rémy, enfurecido, e carregando cada vez mais no punhal, o qual já ia ferindo o peito do mancebo.
Porém Diana empurrou violentamente o braço de Rémy; e agarrando no de de Bouchage, puxou-o para diante de si.
Estava de uma palidez lívida; o seu lindo cabelo desatado caía-lhe para cima dos ombros; o contacto da sua mão no pulso de Henrique causava a este uma sensação de frio, semelhante à que poderia causar um cadáver.
— Senhor! — disse ela — não ajuize temerariamente das coisas de Deus!... Eu sou Diana de Méridor, a amante do Sr. de Bussy, que o duque de Anjou deixou matar como um miserável, podendo salvá-lo. Há oito dias que Rémy apunhalou Aurilly, que tinha sido cúmplice do príncipe; e pelo que respeita ao príncipe, acabo agora de o envenenar com uma fruta, um ramalhete e uma vela. Lugar, Senhor! lugar a Diana de Méridor, que vai daqui em direitura ao Convento das Hospitaleiras!
Disse, e, largando o braço de Henrique, enfiou o seu no de Rémy, que tinha ficado à espera. Henrique caiu de joelhos, e depois de costas, seguindo com a vista os dois assassinos, que desapareceram por baixo de copado arvoredo como uma visão infernal.
Só uma hora depois, moído de cansaço, esmagado pelo terror, e com a cabeça a arder, pôde achar a força necessária para se arrastar até ao seu quarto; assim mesmo, fez mais de dez tentativas antes de conseguir saltar pela janela. Deu alguns passos pela casa, e foi, aos
tropeções, cair sobre o leito.
Já todos dormiam no palácio.
FATALIDADE
No dia seguinte, pelas nove horas, dourava o sol as ruas areadas de Château-Thierry. Uma multidão de trabalhadores, que de véspera haviam sido avisados, tinham começado a tratar, desde o amanhecer, da limpeza da tapada e do arranjo dos quartos destinados para a acomodação do rei, que estava para chegar. Ninguém se mexia ainda no pavilhão onde descansava o duque, pois na véspera havia determinado aos dois criados velhos que o não acordassem. Deviam esperar que ele os chamasse.
Por volta das nove horas e meia, dois correios, galopando a toda a brida, entraram na cidade, e anunciaram a próxima chegada de Sua Majestade. Os vereadores do Município, o governador e a guarnição procederam logo a formar alas nas ruas por onde tinha de desfilar o cortejo. Às dez horas apareceu o rei no cimo do monte. Tinha montado a cavalo desde a última muda. Era um costume que ele tinha, para melhor se mostrar quando entrava em alguma cidade, e isso porque era bem-apessoado e bom cavaleiro. A rainha Catarina seguia-o numa liteira; e logo atrás vinham cinquenta gentis-homens, ricamente vestidos e bem montados. Uma companhia da Guarda Real, comandada por Crillon em pessoa, cento e vinte suíços, e outros tantos escoceses, capitaneados por Larchant, e os oficiais todos da casa do rei, com mulas, arcas e criadagem, formavam um exército cujas fileiras se desenrolavam pelas sinuosidades da estrada que sobe do rio até ao cumo da colina. Por fim o cortejo entrou na cidade, ao som de repiques de sinos, de descargas de artilharia e de música. Os habitantes deram vivas entusiásticos: a presença do rei, naqueles tempos, era tão rara, que quando se mostrava ao público parecia ter conservado ainda certo reflexo da Divindade. O rei, ao atravessar a multidão, debalde procurou o duque de Anjou. Só encontrou Henrique de Bouchage, à porta do paço. Apenas entrou no palácio, perguntou Henrique III notícias da saúde do irmão ao oficial que tinha vindo receber Sua Majestade.
— Real Senhor — respondeu ele —, Sua Alteza habita já há alguns dias o pavilhão da tapada, e ainda o não vimos esta manhã. Contudo, como estava de perfeita saúde ontem, é provável que ainda hoje assim se conserve.
— Esse pavilhão da tapada fica, pelos vistos, muito distante — disse Henrique com enfado — pois não se consegue ouvir lá o estrondo da artilharia...
— Real Senhor — atreveu-se a dizer um dos dois criados do duque —, Sua Alteza não esperava talvez Vossa Majestade com tanta brevidade...
— Velho tonto! — resmungou Henrique — pensas que um rei vem assim visitar as pessoas sem as prevenir?... O Senhor Duque de Anjou sabe da minha vinda desde ontem à noite.
E logo, receando entristecer a todos com os seus maus modos, Henrique, a quem não se dava de aproveitar a ocasião de se mostrar benigno e afável à custa de Francisco, exclamou:
— Bem! já que ele não vem ao nosso encontro, vamos nós ao encontro dele.
— Ensine-nos o caminho — disse Catarina do fundo da liteira. Toda a comitiva se encaminhou para a tapada.
No momento em que os primeiros guardas chegavam ao pé da latada ouviu-se um grito agudo e lúgubre.
— Que é aquilo!? — disse o rei, voltando-se para a mãe.
— Meu Deus! — murmurou Catarina, procurando ler em todos os rostos — foi um grito de angústia ou de desesperação!...
— O meu príncipe! o meu pobre duque!... — exclamou o outro criado velho de Francisco, aparecendo a uma janela com todos os sinais da mais violenta dor.
Todos correram para o pavilhão, e o rei de envolta com os mais.
Chegou no momento em que levantavam o corpo do duque de Anjou, que o seu criado de quarto, que tinha entrado, apesar das ordens recebidas, para lhe dar a notícia da vinda do rei, acabava de encontrar estirado sobre a alcatifa da câmara.
O príncipe estava frio, inteiriçado; os únicos sinais de vida que dava era o movimento singular das pálpebras e uma contracção dos lábios que parecia uma careta.
O rei deteve-se no limiar da porta; todos pararam por detrás dele.
— Eis aí um péssimo prognóstico! — murmurou ele.
— Peço-lhe que se retire, meu filho — disse Catarina.
— Pobre Francisco!... — disse Henrique, estimando que o mandassem embora, e que assim lhe poupassem o espectáculo daquela agonia.
Todo o acampamento seguiu as pisadas do rei.
«Caso célebre é este!...» murmurou Catarina, ajoelhando junto do príncipe, ou, para melhor dizer, do cadáver, sem outra companhia além dos dois criados velhos; e, enquanto se andava pela cidade em busca do médico do príncipe, e partia um correio para Paris, a fim de apressar a vinda dos médicos do rei, que tinham ficado em Meaux com a rainha, examinava ela, com menos ciência sem dúvida, mas com tanta perspicácia como faria o próprio Miron, os diagnósticos daquela doença estranha a que o filho sucumbia.
A florentina tinha muita experiência; por isso tratou primeiro que tudo de interrogar, com indiferença e sem os atrapalhar, os dois criados, que arrepelavam os cabelos e batiam murros nas caras, patenteando assim a sua desesperação.
Ambos responderam que o príncipe voltara para casa na véspera à noitinha, depois de ter sido chamado para receber o Sr. Henrique de Bouchage, que lhe trazia uma mensagem do rei.
Acrescentaram mais que, depois da audiência, a qual tinha sido dada no paço, o príncipe havia encomendado uma ceia delicada, ordenando que ninguém se apresentasse no pavilhão sem ser chamado; e por último, tinha determinado positivamente que não o acordassem pela manhã e não entrassem na câmara sem sua ordem expressa.
— Estava à espera de alguma amante, não é assim? — perguntou a rainha Catarina.
— Pensamos que sim, minha Senhora — responderam humildemente os criados —, mas não nos atrevemos a certificar se assim era.
— Porém, quando levantaram a mesa logo haviam de conhecer se meu filho tinha ceado sozinho...
— Nós ainda não levantámos a mesa, por isso que havia ordem de Sua Alteza para que ninguém entrasse no pavilhão.
— Bom — disse Catarina —, visto isso, ninguém entrou aqui, pois não?
— Ninguém, minha Senhora.
— Retirem-se.
Catarina ficou desta vez inteiramente só.
Então, deixando o príncipe sobre o leito, onde o haviam depositado, deu começo a uma minuciosa investigação de cada um dos sintomas, ou de cada um dos vestígios, que se lhe ofereciam à vista, como resultado das suas desconfianças ou dos seus receios.
Tinha notado a cor triste que apresentava a testa de Francisco, bem como os olhos injectados de sangue, com um círculo azulado, e os lábios, onde se via um sulco semelhante ao que deixa uma queimadura de enxofre nas carnes vivas.
Observou o mesmo sinal no nariz e dos lados.
«Vejamos...» disse ela, procurando em redor do príncipe.
A primeira coisa que viu foi o castiçal, no qual tinha ardido até ao fim a vela que Rémy havia acendido na véspera à noite.
«Esta vela ardeu muito tempo, disse ela, e, por consequência, Francisco conservou-se durante muito tempo neste quarto. Ah! está aqui um ramalhete sobre a alcatifa...»
Catarina pegou-lhe precipitadamente e, vendo que as flores de que se compunha ainda se conservavam viçosas, à excepção de uma rosa, que estava preta e ressequida:
«Que é isto?... murmurou ela; que puseram sobre as folhas desta flor?... Se não me engano, há um líquido meu conhecido que faz murchar assim as rosas...»
Arrepiou-se, e atirou o ramalhete para longe de si.
«Isto explica-me o motivo dos estragos que apareceram no nariz, e da dissolução das carnes na testa; mas os lábios?...»
Catarina correu à casa de jantar. Os criados não tinham mentido; bem se conhecia que ninguém havia mexido na mesa desde o fim da ceia.
Na borda da mesa, uma metade de pêssego, na qual se via impresso um semicírculo de dentes, atraiu principalmente a atenção de Catarina. A fruta conservava toda a sua vermelhidão junto do caroço, mas estava enegrecida por fora, como a rosa, e tinha por dentro manchas roxas e pardas. A acção corrosiva distinguia-se mais particularmente na parte por onde tinha roçado a faca.
«Cá está o que lhe atacou os lábios... disse ela; porém Francisco apenas comeu uma dentada desta fruta, e não teve o ramalhete muito tempo na mão, pois as flores ainda estão viçosas: o mal não é pois irremediável, o veneno não pode ter penetrado profundamente. Mas então, se ele apenas obrou superficialmente, de onde procede esta paralisia tão completa e este trabalho tão adiantado de decomposição?... Ainda não vi tudo, certamente.»
Catarina, ao dizer estas palavras, lançou os olhos em torno de si, e viu, pendente do seu poleiro de pau-santo, pela corrente de prata que tinha no pé, o papagaio azul e encarnado que Francisco particularmente estimava. O pássaro estava morto, inteiriçado, e com as asas abertas.
Catarina voltou-se com ansiedade para o castiçal, que já havia examinado para se certificar se o príncipe tinha vindo cedo para o quarto.
«O fumo! disse consigo Catarina, o fumo!... o pavio da vela estava envenenado: meu filho está morto!»
Chamou logo. Encheu-se a câmara de servidores e de oficiais.
— Miron! Miron! — diziam uns.
— Um padre! — diziam outros.
Porém ela, durante esse tempo, chegava aos lábios de Francisco um dos frascos que trazia sempre na algibeira, e observava as feições do filho para avaliar o efeito do contra-veneno.
O duque ainda abriu os olhos e a boca: porém os olhos já não tinham brilho, e a goela já não articulava um único som.
Catarina, muda e sombria, saiu do quarto, fazendo sinal aos dois criados para que a acompanhassem antes que tivessem ocasião de comunicar com pessoa alguma.
Levou-os consigo para outra casa, onde se sentou, olhando atentamente para ambos.
— O Senhor Duque de Anjou — disse ela — foi envenenado à ceia; quem serviu à mesa? A estas palavras, os dois homens tornaram-se pálidos como defuntos.
— Ponham-nos a tratos, se quiserem — disseram eles —, matem-nos; mas não nos acusem.
— São uns patetas! Julgam acaso que se eu desconfiasse de vocês não teria feito já isso que dizem?... Eu bem sei que não foram vocês que assassinaram o príncipe; mas alguém o matou, e é preciso que eu saiba quem foram os assassinos. Quem entrou neste pavilhão?
— Um homem idoso, vestido miseravelmente, e que Sua Alteza aqui recebia havia dois dias.
— Porém... a mulher?...
— Não vimos... De que mulher quer Vossa Majestade falar?...
— Veio aqui uma mulher, que fez um ramalhete...
Os dois criados olharam com tanto espanto um para o outro, que Catarina logo conheceu que estavam inocentes.
— Vão já buscar — disse ela — o governador da cidade e o governador do castelo. Os dois criados correram para a porta.
— Esperem aí! — disse Catarina, fazendo-os estacar com estas palavras no limiar da porta. — Vocês e eu somos as únicas pessoas que sabem o que acabo de dizer. Eu não hei-de contá-lo; se alguém o sonhar, será pelos ditos de algum. Nesse dia, morrem ambos. Vão agora!
Catarina interrogou menos abertamente os dois governadores. Disse-lhes que o duque tinha recebido de certa pessoa uma notícia desagradável que profundamente o havia afectado, que era essa a causa do seu incómodo, e que lhe passaria provavelmente a inquietação em que estava falando outra vez com a pessoa em questão.
Os governadores mandaram proceder a pesquisas na cidade, na tapada e nos arredores; mas ninguém soube dizer o que era feito de Rémy e de Diana. Henrique era o único que sabia o segredo, e não havia perigo de ele o revelar.
Durante o dia, a terrível notícia, comentada, exagerada, e desfigurada, espalhou-se por Château-Thierry e pela província toda; cada um explicava, segundo o seu carácter e inclinação, o desastre que tinha sucedido ao duque. Porém não houve uma só pessoa, excepto Catarina e de Bouchage, que se persuadisse de que o duque estava morto. O príncipe não recobrou a voz nem os sentidos, ou, para melhor dizer, não tornou a dar sinal nenhum de inteligência.
O rei, assaltado de impressões lúgubres, que eram a coisa que ele mais receava no mundo, bem teria querido regressar para Paris; mas a rainha Catarina opôs-se à partida, e não houve remédio senão ficar a corte em Château-Thierry.
Os médicos chegaram uns após outros; Miron foi o único que adivinhou a causa da doença e que lhe conheceu o perigo; porém, como bom cortesão que era, não podia deixar de calar a verdade, especialmente depois de ter consultado os olhos de Catarina.
Às perguntas que todos lhe faziam, respondia ele que certamente o Senhor Duque de Anjou tinha tido algum grande desgosto, que lhe havia causado um violento abalo. Assim não se comprometeu, o que é muito difícil em tais casos.
Quando Henrique III lhe pediu que lhe respondesse afirmativa ou negativamente a esta pergunta: «O duque escapará?», ele replicou:
— Só de hoje a três dias poderei responder a Vossa Majestade.
— E a mim, que responderá? — disse Catarina em voz baixa.
— A senhora é outro caso; responderei sem hesitar.
— O quê?
— Queira Vossa Majestade interrogar-me.
— Daqui a quantos dias estará o meu filho morto, Miron?
— Amanhã à noite, minha Senhora.
— Tão depressa?!
— Ah! minha Senhora - murmurou o médico -, a dose também era demasiado forte...
Catarina levou um dedo aos lábios, olhou para o moribundo e repetiu devagar a sua palavra sinistra:
— Fatalidade!
AS HOSPITALEIRAS
*O conde tinha passado uma noite terrível, num estado muito próximo do tresvario da morte.
Contudo, sempre exacto no cumprimento dos seus deveres, apenas ouviu anunciar a chegada do rei levantou-se e foi recebê-lo à porta do paço; mas, depois de haver cumprimentado Sua Majestade, cortejado a rainha Catarina, e apertado a mão ao almirante, voltara a fechar-se no quarto, não já para morrer, mas para pôr decididamente em execução o seu projecto, do qual já não podia desviá-lo consideração alguma.
E por isso, pelas onze horas da manhã, isto é, quando, depois de já espalhada a terrível notícia da doença mortal do duque de Anjou, cada qual se havia retirado, deixando o rei entregue à surpresa que lhe causara tão inesperado acontecimento, Henrique foi bater à porta do irmão, o qual, tendo passado parte da noite na estrada, acabava de se recolher ao quarto.
— Ah! és tu — disse Joyeuse, meio a dormir —, que temos de novo?
— Venho dizer-te adeus, meu irmão — respondeu Henrique.
— Como adeus!?... vais-te embora?...
— Vou-me embora, sim, meu irmão; creio que já não há motivo para aqui me demorar.
— Porquê?
— Visto que não podem ter lugar os festejos a que desejavas que eu assistisse, estou desobrigado da minha promessa.
— Estás enganado, Henrique — respondeu o almirante-mor. — Assim como ontem teria proibido que partisses, também to proibo hoje.
— Nesse caso, meu irmão, terei pela primeira vez na minha vida o dissabor de desobedecer às tuas ordens e de te faltar ao respeito, porque desde já te declaro, Anne, que estou firmemente resolvido a entrar sem demora para um convento.
— Está bem; e a dispensa que há-de vir de Roma?...
— Esperarei no convento que ela chegue.
— Estás na verdade doido varrido! — exclamou Joyeuse, erguendo-se estupefacto.
— Pelo contrário, meu irmão: sou de todos o que tenho mais juízo, porque só eu aqui sei muito bem o que faço.
— Henrique! tinhas prometido esperar ainda um mês...
— Não pode ser, meu irmão.
— Mas oito dias, ao menos!...
— Nem mais uma hora.
— Mui grande deve ser o teu pesar, pobre rapaz!
— Pelo contrário: já se acabou o meu sofrimento, e eis o motivo por que conheço que o mal não tem remédio.
— Mas enfim, meu amigo!... a mulher certamente não é de bronze... poderá enternecer-se... Eu a abrandarei.
— Nunca conseguirás uma coisa impossível; e demais, ainda que ela hoje se deixasse comover, sou eu já quem não poderia ter-lhe amor.
— Está boa! aí temos novo despropósito!
— É como te digo, meu irmão.
— Pois quê!? se ela te quisesse agora, já não a querias?! Isso é loucura, não há dúvida!
— Oh! não, por certo! — exclamou Henrique, com um movimento de horror. — Entre mim e aquela mulher já não pode haver relação alguma.
— Que quer isso dizer!? — perguntou Joyeuse, com admiração — e que mulher é essa então!? Vamos, fala, Henrique! bem sabes que nunca tivemos segredos um para o outro.
Henrique receou ter dito demasiado e ter aberto, com o sentimento que acabava de manifestar, uma porta pela qual os olhos do irmão pudessem penetrar até ao segredo terrível que se encerrava no seu coração; caiu por conseguinte no excesso contrário, e, como sempre sucede em tais casos, para emendar a palavra imprudente que havia soltado, proferiu outra ainda mais imprudente.
— Meu irmão — disse ele —, não instas comigo; aquela mulher nunca poderá pertencer-me, visto que actualmente pertence a Deus.
— Loucuras! histórias!... Aquela mulher, freira?!... Foi mentira que te pregou!
— Não, meu irmão, a mulher não mentiu: é hospitaleira; não curemos mais dela, e respeitemos os que se lançam nos braços do Senhor.
Anne teve bastante poder sobre si para não dar a conhecer a Henrique a satisfação que lhe causava semelhante revelação. Prosseguiu:
— Eis aí um caso novo, pois nunca tal me disseste.
— É novo, com efeito, porque foi recentemente que tomou o véu; mas estou certo de que a sua resolução é tão irrevogável como a minha. Assim pois, não tentes deter-me mais, meu irmão. Abraça-me com amizade, e recebe os meus agradecimentos por todos os favores, por toda a tua paciência e imensa ternura para com um pobre insensato. Adeus!
Joyeuse encarou o irmão com um gesto enternecido, e como que persuadido de que aquele seu sentimento o havia de convencer a ficar.
Porém Henrique conservou-se inflexível, e apenas lhe respondeu com o seu triste e eterno sorriso.
Joyeuse abraçou o irmão, e deixou-o sair.
— Vai — disse ele consigo —, ainda não me dou por vencido, e por muita pressa que leves, não tardará que eu te alcance.
Foi ter com o rei, que estava almoçando na cama, com Chicot ao lado.
— Bons-dias, bons-dias! — disse Henrique para Joyeuse — muito estimo ver-te por aqui, Anne; estava com receio de que ficasses deitado todo o dia, mandrião! Como está meu irmão?
— Não sei, Real Senhor; eu venho falar a Vossa Majestade a respeito do meu.
— De qual deles?
— Do Henrique.
— Ainda teima em querer ser frade?...
— Mais do que nunca.
— E quer professar?
— Sim, meu Senhor.
— Pois faz muito bem, meu filho.
— Que diz, meu Senhor!?
— Sim, é o caminho mais breve para ir para o Céu.
— Oh! — disse Chicot para o rei — muito mais breve ainda é o que segue o teu irmão.
— Real Senhor, Vossa Majestade concede-me licença para lhe fazer uma pergunta?
— Vinte mesmo, Joyeuse! vinte, se quiseres! já estou enfastiado de Château-Thierry, e as tuas perguntas servir-me-ão de distracção.
— Vossa Majestade conhece todas as casas religiosas do seu reino?
— Como os brasões dos meus fidalgos, meu caro.
— Queira pois Vossa Majestade explicar-me que casta de ordem é a das Hospitaleiras.
— É uma comunidade pouco numerosa, muito distinta, muito rígida e muito severa, composta de vinte senhoras, que são cónegas de S. José.
— E admitem-se lá votos?
— Sim: por favor, e sendo pessoa apresentada pela rainha.
— Será indiscrição perguntar a Vossa Majestade onde é situada essa comunidade?
— Não, por certo: fica na Rua de Chevet-Saint-Landry, na cidade, por trás do Claustro de Nossa Senhora.
— Em Paris?
— Em Paris, sim.
— Obrigado, meu Senhor.
— Mas, por que demónio me perguntas isso?... Teu irmão mudou de resolução, porventura, e em vez de se meter frade capucho, quererá agora ser hospitaleira?...
— Não, Real Senhor; prouvera a Deus que assim fosse, pois em vista do que Vossa Majestade me fez a honra de dizer, não julgaria tamanha a sua loucura; mas é porque desconfio que uma pessoa dessa comunidade foi quem lhe transtornou a cabeça, e desejava, por conseguinte, descobrir essa pessoa e falar com ela.
— Assim Deus me salve — disse o rei com certo desvanecimento —, lembra-me que naquele convento conheci, vai para sete anos, uma superiora que era muito formosa...
— Pois, meu Senhor, talvez ainda seja a mesma...
— Não sei; desde então para cá, eu também, meu Joyeuse, quase me meti frade.
— Seja como for, Real Senhor — disse Joyeuse —, peço-lhe que me dê na mesma uma carta para a superiora sua conhecida, e licença para me ausentar por dois dias.
— Deixas-me?! — exclamou o rei — abandonas-me aqui?...
— Ingrato! — disse Chicot, encolhendo os ombros — e eu, não fico na tua companhia?...
— Dê-me a carta, se lhe apraz, meu Senhor — disse Joyeuse. O rei suspirou, mas sempre escreveu a carta.
— Mas tu não tens que fazer em Paris!... — disse Henrique, ao entregar a carta a Joyeuse.
— Peço perdão, Real Senhor: tenho de acompanhar, ou, pelo menos, de vigiar meu irmão.
— Tens razão. Vai pois; mas volta depressa.
Joyeuse saiu apenas obteve a licença, pediu os seus cavalos e, tendo-se certificado de que Herrique já se pusera a caminho, meteu a galope para o seu destino.
O mancebo foi, sem parar, direito à Rua de Chavet-Saint-Landry.
Esta rua desembocava, de um lado, na Rua do Inferno, e do outro, na dos Marmousets, que lhe ficava paralela.
Um edifício escuro e venerável, por cima de cujos muros apareciam os cumes de algumas árvores frondosas, umas janelas muito espaçadas e guarnecidas de gradaria de ferro, e um portão com um postigo, tal era a aparência externa do Convento das Hospitaleiras.
Na chave da abóbada do portão tinham sido abertas a cinzel, por mão de tosco artista, estas palavras latinas:
Matronae Hospites
O tempo tinha gasto a pedra e quase apagado o letreiro.
Joyeuse bateu ao postigo, e mandou levar os cavalos para a Rua dos Marmousets, para que a presença deles na rua não causasse grande rebuliço. Em seguida, batendo à grade da rodeira:
— Faça-me a mercê de dizer à madre superiora — disse ele — que o duque de Joyeuse, almirante-mor de França, deseja falar-lhe, de mandado de el-rei.
A religiosa que tinha aparecido à grade corou ao ouvir estas palavras, e a roda tornou a fechar-se. Passados cinco minutos abriu-se uma porta, e Joyeuse entrou para o locutório. Uma mulher formosa ainda e de elevada estatura fez uma profunda mesura a Joyeuse, que este lhe retribuiu com maneiras de homem religioso e mundano ao mesmo tempo.
— Minha Senhora — disse ele —, el-rei sabe que está para admitir, ou que admitiu já, no número das suas pensionistas, uma pessoa com quem eu tenho de falar. Peço-lhe que me apresente a essa pessoa.
— Quer fazer-me o favor de dizer o nome dessa senhora?
— Não sei como se chama, minha Senhora.
— Então como poderei eu satisfazer o seu pedido?...
— É muito fácil. Quem tem admitido para a comunidade de há um mês a esta parte?
— Designa-me tão positivamente, ou tão vagamente, a pessoa de que se trata, que não posso satisfazer o seu desejo.
— Porquê?
— Porque, de há um mês a esta parte, não tenho admitido pessoa alguma, a não ser esta manhã.
— Esta manhã?...
— Sim, Senhor Duque; e vem vê que a sua vinda aqui, duas horas depois de ela ter chegado, assemelha-se tanto a uma perseguição, que não posso consentir que lhe fale.
— Minha senhora... eu lho rogo.
— É impossível, Senhor.
— Deixe somente que eu veja essa senhora.
— É impossível, torno a dizer... Demais, o seu nome foi quanto bastou para que eu lhe franqueasse a porta da minha casa; mas, para falar com alguém aqui, excepto comigo, é preciso uma ordem assinada por el-rei.
— Aqui está a ordem, minha Senhora — respondeu Joyeuse, entregando-lhe a carta que Henrique tinha escrito.
A superiora leu, e inclinou-se.
— Cumpra-se a vontade de Sua Majestade — disse ela —, apesar de ser contrária à vontade de Deus.
E encaminhou-se para o pátio do convento.
— Agora, minha Senhora — disse Joyeuse, detendo-a com urbanidade —, já viu que venho aqui devidamente autorizado; mas estou com receio de me enganar: a dama em questão não é talvez a mesma que procuro; tenha a bondade de me dizer como foi que ela veio, por que motivo veio e quem a acompanhava.
— Tudo isso é escusado — replicou a superiora —, o Senhor Duque não está enganado. A senhora que diz, de quem estive à espera quinze dias, e que apenas esta manhã chegou, foi-me recomendada por alguém que tudo pode para comigo, e estou certa de que é a pessoa com quem o Senhor Duque de Joyeuse deve ter precisão de falar.
A superiora, depois de proferir estas palavras, fez nova mesura ao duque e desapareceu. Dali a alguns minutos voltou, com uma hospitaleira que trazia o véu todo caído para o rosto. Era Diana, que já tinha vestido o hábito da Ordem. O duque agradeceu à superiora, ofereceu um escabelo à dama, sentou-se ele também, e a superiora saiu, fechando por sua própria mão as portas do locutório solitário e sombrio.
— Minha Senhora — disse então Joyeuse, sem mais preâmbulo —, é a dama da Rua dos Agostinhos, a mulher misteriosa a quem meu irmão, o conde de Bouchage, ama louca e mortalmente?
A hospitaleira inclinou a cabeça como resposta, mas não falou.
Esta afectação pareceu a Joyeuse uma incivilidade; já estava muito mal disposto para com a sua interlocutora, e prosseguiu:
— Não se persuadiu, por certo, minha Senhora, que basta ser formosa, ou parecer formosa, e não ter coração, para, depois de haver ateado uma desgraçada paixão na alma de um mancebo do meu nome, dizer-lhe um dia: «Tanto pior para si se tem coração: eu não tenho, nem quero ter.»
— Não foi isso que eu respondi, Senhor; informaram-no muito mal — disse a hospitaleira, com um metal de voz tão nobre e tão suave, que abrandou por um instante a cólera de Joyeuse.
— Os termos em nada alteram o sentido da frase, minha Senhora; repeliu meu irmão, e reduziu-o ao desespero.
— Muito inocentemente, Senhor, pois sempre procurei afastar de mim o Sr. de Bouchage.
— A isso chama-se manejo de mulher namoradeira, minha Senhora, e o mal está no resultado.
— Ninguém tem direito a me acusar, Senhor; eu não sou culpada de nada do que sucedeu; visto estar tão enfadado comigo, a nada mais responderei.
— Oh! oh!... — exclamou Joyeuse, encolerizando-se gradualmente — deitou a perder meu irmão, e julga poder justificar-se com tão provocadora majestade?!... Não, não! o passo que dou deve mostrar-lhe quais são as minhas tenções: estou falando muito sério, juro-lho! e bem vê pelo tremor das minhas mãos e dos meus lábios que lhe serão necessários bons argumentos para me abrandar.
A hospitaleira levantou-se.
— Se veio aqui insultar uma mulher — disse ela, com o mesmo sangue-frio — insulte-me, Senhor; se veio para me fazer mudar de parecer, está perdendo tempo: retire-se.
— Ah! Não é uma criatura humana — exclamou Joyeuse, desesperado —, é um demónio!
— Já disse que a nada mais responderia, vejo agora que isso não basta, e portanto retiro-me. E a hospitaleira deu um passo para a porta. Joyeuse deteve-a.
— Espere um instante! Não a deixarei fugir assim, depois de ter andado tanto tempo à sua procura. Já que afinal lhe consegui falar, e visto ter-me confirmado a sua insensibilidade, na ideia, que há muito me tinha ocorrido, de que é uma criatura infernal, enviada pelo inimigo dos homens para perder meu irmão, quero ver esse rosto em que o abismo estampou as suas mais cruéis ameaças! quero ver o fogo desse olhar fatal que transtorna as cabeças! A nós dois agora, Satanás!
E Joyeuse, benzendo-se com uma das mãos, a modo de exorcismo, arrancou com a outra o véu que encobria o rosto de Diana; porém esta, muda, impassível, sem cólera e sem proferir um queixume, fitando o seu olhar sereno e puro no indivíduo que tão cruelmente a ultrajava:
— Oh! Senhor Duque — disse ela —, a acção que fez é imprópria de um cavalheiro! Joyeuse sentiu-se ferido no coração: tanta mansidão abrandou-lhe a cólera, e tanta formosura perturbou-lhe a razão.
— Não há dúvida de que é mui formosa... — murmurou ele, ao cabo de um instante —- e Henrique teve razão de a amar; porém essa formosura que Deus lhe outorgou foi para a derramar como um suave aroma numa existência ligada à sua.
— Não falou a meu respeito com seu irmão, Senhor?... ou se lhe falou, não quis ele fazê-lo seu confidente; pois, se assim fosse, ter-lhe-ia contado que já fiz o que diz: já amei, e nunca mais amarei; já vivi, só me resta morrer.
Joyeuse não tinha cessado de olhar para Diana; a chama daquele olhar irresistível tinha penetrado até ao fundo da sua alma, à semelhança dos fogos vulcânicos, que derretem o bronze das estátuas só ao passar por elas.
Aquele raio tinha consumido toda a parte material do coração do almirante; só o ouro puro nele fervia, e o coração estalava como o cadinho quando o metal está em estado de fusão.
— Oh!... sim — disse ele outra vez, em voz mais baixa, e continuando a fitar nela um olhar em que se ia apagando o fogo da cólera — sim... Henrique teve razão de a amar. Oh! minha Senhora, por piedade! de joelhos lhe peço que ame meu irmão!
Diana conservou-se fria e silenciosa.
— Não queira cobrir uma família toda de luto, e destruir a esperança da nossa raça; não faça morrer um de desesperação, e os outros de saudade!
Diana não respondia, e continuava a olhar com tristeza para o suplicante que perante ela se inclinava.
- Oh! — exclamou afinal Joyeuse, comprimindo furiosamente o coração com um movimento convulsivo — oh! tenha compaixão de meu irmão, tenha dó de mim também! Estou a arder! esse olhar matou-me!... Adeus, minha Senhora, adeus!
Levantou-se, como um louco, sacudiu, ou antes, arrancou os ferrolhos da porta do locutório, saiu do Convento das Hospitaleiras, e correu como fora de si até onde estavam os criados que o esperavam à esquina da Rua do Inferno.
SUA ALTEZA O SENHOR DUQUE DE GUISA
Cerca das onze horas da manhã de domingo 10 de Junho, estava toda a corte reunida no quarto que precedia o gabinete onde o duque de Anjou ia morrendo lentamente desde o seu encontro com Diana de Méridor.
Nem a ciência dos médicos, nem a aflição da mãe, nem as preces mandadas fazer pelo rei, tinham podido salvá-lo.
Miron, naquele mesmo dia, pela manhã, declarou ao rei que a doença não tinha remédio, e que Francisco de Anjou não chegaria à noite.O rei mostrou todos os sinais de grande pesar, e voltou-se para as pessoas presentes: — Eis um acontecimento que muito há-de contribuir para reanimar as esperanças dos meus inimigos — disse ele.
Ao que a rainha-mãe respondeu:
— O nosso destino está nas mãos de Deus, meu filho.
E Chicot, que se conservava em atitude humilde e contrita junto de Henrique III, acrescentou em voz baixa:
— Ajudemos Deus sempre que pudermos, Real Senhor.
Entretanto, o doente perdeu, por volta das onze horas e meia, a cor e a vista; a boca, atéali aberta, fechou-se-lhe; o fluxo de sangue que desde a véspera tinha assustado todos os circunstantes, como outrora havia sucedido com o suor de Carlos IX, estancou subitamente e as extremidades começaram a esfriar.
Henrique estava sentado à cabeceira do leito do irmão.
Catarina, colocada entre a parede e o leito, tinha agarrado uma das mãos do moribundo.O bispo de Château-Thierry e o cardeal de Joyeuse recitavam as preces dos agonizantes, que todos quantos estavam presentes repetiam, ajoelhados e de mãos postas.Pelo meio-dia, o doente abriu os olhos; o Sol saiu de entre uma nuvem e fez resplandecersobre o leito como uma auréola de ouro.
Francisco, que até então nem sequer tinha podido mexer um dedo, e cuja inteligência havia estado encoberta, como o Sol que reaparecera, levantou um braço para o Céu com o gesto de um homem assustado.
Olhou em redor de si, ouviu as preces, e conheceu a sua posição, talvez porque já pressentia a sua entrada no lugar escuro e sinistro para onde vão certas almas quando deixam a Terra.
Soltou então um imenso grito, e bateu na testa com uma força tal, que fez estremecer todos.Depois, franzindo os sobrolhos, como se acabasse de ler no pensamento um dos mistériosda sua vida, murmurou:
— Bussy... Diana...
Esta última palavra só Catarina a ouviu, tão fraca era a voz com que o moribundo a havia articulado.
Com a última sílaba deste nome exalou Francisco de Anjou o último suspiro. Naquele mesmo momento, por uma coincidência singular, o Sol, cujo reflexo dourava o escudo das armas de França e as flores-de-lis de ouro, tornou a desaparecer; de forma que as flores-de-lis, que estavam tão brilhantes havia um instante, ficaram tão sombrias como o campo azul em que pouco antes figuravam como estrelas de um esplendor quase igual ao das constelações que os olhos do sábio procuram no céu.
Catarina deixou cair a mão do filho. Henrique III arrepiou-se, e encostou-se muito trémulo ao ombro de Chicot, que também estremeceu, mas por causa do respeito que todo o cristão deve aos mortos.
Miron chegou uma pena de ouro aos lábios de Francisco e, passados três segundos, tendo-a examinado, disse:
— Sua Alteza expirou.
Apenas proferiu estas palavras, ressoou pelas antessalas um doloroso gemido, como acompanhamento do salmo que murmurava o cardeal:
Cedant iniquitates meae ad vocem depreca tionis meae.
— Morreu!... — exclamou o rei, atirando consigo para uma cadeira e benzendo-se —
— meu irmão, meu irmão!...
— O único herdeiro do trono de França! — murmurou Catarina, a qual, abandonando o leito do defunto, tinha voltado para junto do filho que lhe restava.
— Oh! — disse Henrique — este trono de França é largo em demasia para um rei sem posteridade; e a coroa é bem grande para uma cabeça só... Não tenho filhos, nem herdeiros!... Quem será o meu sucessor?...
Quando ele acabava de proferir estas palavras, ouviu-se um grande rumor pela escada e nas salas. Nambu entrou apressadamente no quarto mortuário, anunciando:
— Sua Alteza o Senhor Duque de Guisa.
O rei empalideceu, ao ouvir aquela resposta à pergunta que a si mesmo fazia. Levantou-se e olhou para a mãe.
Catarina ainda estava mais pálida do que o filho. Mal o acaso lhe pressagiou qual era o horrível infortúnio que esperava a sua raça, agarrou na mão do rei e apertou-lha como para lhe dizer: «Aí é que está o perigo... Mas não tenhas medo, que eu estou ainda a teu lado.»
O filho e a mãe, sem se falarem, tinham entendido qual era o motivo do seu terror e o perigo que os ameaçava.
O duque entrou, seguido dos seus cabos-de-guerra. Vinha com a fronte erguida, se bem que os olhos procuravam o rei, ou o leito onde tinha morrido o irmão deste, com certo constrangimento.
Henrique III, de pé, e com a majestade suprema que só ele, talvez, sabia encontrar em certas ocasiões, na sua natureza tão singularmente poética, deteve o duque a meio do caminho, com um gesto soberano que lhe designava o real cadáver estendido sobre a cama, amarrotada pelas convulsões da agonia.
O duque curvou-se, e dobrou vagarosamente os joelhos.
Todos em redor deles curvaram as cabeças e ajoelharam.
Henrique III foi o único que se conservou de pé, juntamente com a mãe, e o seu olhar fulgurou uma última vez com orgulho.
Chicot notou o olhar do rei, e murmurou devagarinho este outro versículo dos Salmos:
Dejicietpotentes de sede et exaltabit humiles. (Derribará do trono os poderosos e exaltará os humildes.)
Alexandre Dumas
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