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OS QUEBRA BLINDAGENS / William Voltz
OS QUEBRA BLINDAGENS / William Voltz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A Humanidade do ano 2.327 do calendário terrano defronta-se com um perigo imenso, vindo do leste da Via Láctea.

Lá, no setor leste da Galáxia, ainda pouco explorado, os blues ou gatasenses criaram, com suas inexpugnáveis naves de molkex, um império estelar que se revela cada vez mais como um inimigo implacável do Império Unido, dirigido por Perry Rhodan.

Nas lutas até aqui travadas entre as estrelas, os terranos e seus aliados conseguiram, principalmente por meio da coragem, do blefe ou de ações arrojadas, evitar derrotas mais graves. Mas os dirigentes terranos já sabem que o único meio de alcançar uma reviravolta a favor do Império Unido seria por intermédio de uma arma capaz de destruir as blindagens de molkex do inimigo.

No curso da Missão Náutilus, comandada por Lemy Danger, um especialista da USO, os terranos conseguiram desvendar o grande mistério da blindagem de molkex que envolve as naves dos blues.

Mas só Os Quebra-Blindagens poderão provar se o molkex realmente pode ser destruído em quaisquer circunstâncias...

 

Prezado Dr. Sharoon:

Este Instituto foi informado de que o senhor foi a primeira pessoa que conseguiu cultivar cravos lebaneses. Esta instituição tem o maior interesse pela experiência. Por isso queremos pedir-lhe o obséquio de nos fornecer um pouco dessas sementes, assim que o desenvolvimento das flores o permita. Naturalmente transferiremos a quantia correspondente para sua conta.

Cordiais saudações,

Instituto Terrano de Jardinagem

 

Suspirando profundamente, o Dr. Waco Sharoon largou a carta. Era um homem baixo com os olhos afundados nas órbitas, sobrancelhas hirsutas e um grande nariz em forma de batata. Uma mexa de cabelo ruivo estendia-se da testa à nuca, onde estava cuidadosamente firmada com alguma paciência e muita brilhantina.

O Dr. Sharoon levantou-se, passou pela grande fileira de mesas sobre as quais se encontravam os aparelhos usados nas experiências, atravessou uma porta de vidro e penetrou na sala dos fundos do laboratório.

Era onde cultivava flores e outras plantas raras, e era também onde passava a maior parte de suas escassas horas de folga.

Uma lufada de ar quente e úmido atingiu-o. O perfume das flores mais variadas irritou a mucosa de seu nariz. Por um instante ficou encostado à porta, com os olhos fechados. Até parecia que, ao atravessar aquela porta de vidro, penetrara num mundo diferente. Era um mundo pequeno e maravilhoso, todo seu. Sabia que os colegas muitas vezes se divertiam à sua custa, mas isso não o perturbava.

Aqui até podia afastar da mente por algum tempo os pensamentos excitantes sobre o hormônio B.

O Dr. Sharoon dirigiu-se à caixa na qual tinham sido lançadas as sementes dos cravos lebaneses. Na manhã daquele dia as primeiras plantas começaram a sair do solo bem adubado. Eram plantinhas verdes, cada uma com dois caules, nos quais estavam penduradas folhas delicadas que abriam em leque. Mas ainda não era possível reconhecer a forma definitiva das plantas.

O Dr. Waco Sharoon esperava que os cravos crescessem depressa, para que pudesse transplantá-los para vasos e fazê-los florescer. Controlou cuidadosamente a temperatura e a umidade do ar. Estava tudo em ordem. Dedicou um pensamento cheio de gratidão a Gregory Burnett, que lhe arranjara as sementes. Burnett afirmava tê-las recebido de um astronauta embriagado. O jovem Burnett trabalhava nos laboratórios situados no subsolo e, da mesma forma que todas as pessoas que trabalhavam no laboratório de pesquisas, conhecia a paixão do Dr. Sharoon.

Não se podia dizer que Burnett fosse mau, mas gostava de freqüentar bares mal-afamados, tinha amizades esquisitas e raramente se comportava como um cientista sério. Até então Sharoon quase não tivera nenhum contato com Burnett, mas desde que este lhe dera as sementes, ele o tratava com uma espécie de amizade paternal.

Talvez seja bom que o rapaz sinta que tem amigos que se preocupam realmente com ele”, pensou o Dr. Sharoon.

Na manhã daquele dia, quando os primeiros cravos floresceram, ele informara Burnett. Este lhe dera efusivos parabéns e manifestara a opinião de que, dentro de pouco tempo, amadores e profissionais se interessariam por aquelas plantas sensíveis.

A carta do Instituto de Jardinagem era a primeira prova de que Burnett tinha razão. Era bem verdade que Sharoon nunca ouvira falar nesse instituto, mas tinha certeza de que era uma instituição muito importante, já que o cabeçalho da carta era de um tamanho e colorido impressionantes.

Acho que deveria telefonar para Burnett”, pensou. “Ficará contente ao saber desta carta.

Voltou ao laboratório e pediu uma ligação para o subsolo, uma área reservada para as experiências perigosas. Paredes de concreto e aço de vários metros de espessura protegiam as outras salas contra eventuais explosões. O trabalho no subsolo combinava com o caráter aventureiro de Burnett.

Kerrick, chefe do laboratório do subsolo, respondeu ao chamado. Sharoon disse que queria falar com Burnett.

— Estamos esperando que um tanque de água oxigenada estoure na cara dele — disse Kerrick em tom contrariado. — Por enquanto parece ter sobrevivido a este tipo de experiência. Aposto que depois que lhe é acrescentado o hormônio B a coisa fica completamente estável.

— Não estou chamando por causa das experiências — disse o Dr. Sharoon. — Gostaria de ter uma conversa em particular com Burnett.

Kerrick emitiu um ruído que dava a entender que tinha uma simpatia ainda menor pelas pessoas que queriam falar com Burnett em caráter particular que por aquelas que trabalhavam com ele no laboratório.

— Um momento, doutor — resmungou. — Tentarei trazê-lo para junto do telefone.

O químico aguardou pacientemente até que a voz de Burnett se fizesse ouvir no aparelho telefônico.

— Alô, doutor — exclamou o jovem cientista. — Imagine só. Uma quantidade muito reduzida de hormônio B basta para catalisar cem litros de água oxigenada.

— Muito bem — disse o Dr. Sharoon.

— Burnett, acabo de receber uma carta sobre os cravos.

Burnett parecia tão surpreso que não conseguia dizer uma palavra.

— É verdade! — disse Sharoon em tom entusiástico. — O Instituto de Jardinagem escreveu que quer comprar a semente logo que o desenvolvimento das plantas o permita.

O telefone transmitiu um ruído borbulhante.

— Burnett, o senhor está escovando os dentes? — perguntou Sharoon, irritado.

— Não, doutor! — gemeu Burnett. — É a alegria pelo sucesso que o senhor alcançou.

O Dr. Sharoon sorriu. Estava satisfeito.

— Poderei fazer publicações em revistas especializadas — anunciou em tom orgulhoso.

— Meu nome logo se tornará conhecido entre os cultivadores de flores.

— Sem dúvida — asseverou Burnett.

— Naturalmente o senhor terá uma participação nos lucros — disse o Dr. Sharoon num rasgo de generosidade. — Pretendo...

— Desculpe, doutor — interrompeu Burnett. — Minha experiência está em andamento. Preciso voltar ao trabalho.

Desligou.

O Dr. Sharoon ficou espantado. Havia algo de errado com Burnett. Será que a experiência que estava sendo realizada o deixava tão ocupado que não se interessava por mais nada, ou teria vindo trabalhar bêbedo mais uma vez? Aliás, bêbedo não era a palavra adequada. Quando muito, Burnett aparecia com uma forte ressaca, mas nunca negligenciava o trabalho.

O Dr. Sharoon não compreendia como Burnett podia passar a noite sentado numa banqueta de bar, esfregando o balcão com os cotovelos e oferecendo fogo para os cigarros compridos da encarregada do bar. Sharoon nunca ouvira falar em strip-tease e espetáculos semelhantes. Não havia dúvida de que Burnett era muito inteligente; realizava as experiências mais difíceis em seu laboratório. Sem dúvida era por isso que Kerrick aceitava os vícios de Burnett.

O Dr. Sharoon lembrou-se de que Gregory Burnett tinha quase trinta anos, mas dava a impressão de que ainda não deixara de ser adolescente.

Gregory Burnett aproveitava todas as oportunidades que se lhe ofereciam para dar provas de seu espírito juvenil.

Quando o Dr. Waco Sharoon voltou ao seu local de trabalho, na manhã do dia seguinte, dirigiu-se imediatamente à sala dos fundos.

Muito curioso, aproximou-se da caixa em cujo interior tinham sido plantados os cravos lebaneses. Já deviam ter um tamanho suficiente para que pudesse estudar algumas de suas características.

Quando se inclinou sobre a caixa, o Dr. Sharoon soltou um grito abafado. As plantas haviam crescido muito durante a noite.

Mas não eram cravos lebaneses!

Sobre o precioso solo que o Dr. Waco Sharoon havia preparado com tanto amor e dedicação, simples cenouras terranas cresciam em direção ao sol artificial embutido no teto.

 

Com a mão esquerda apoiada na coxa e o cotovelo direito sobre o balcão, Gregory Burnett observava a negra que cantava no pequeno palco. Estava envolta num véu que Burnett atribuía em parte ao seu estado avançado de embriaguez e em parte à fumaça dos cigarros que enchia o ar.

A voz quente e agradável saía da bruma. Os movimentos lentos com que a negra realçava seu canto pareciam agradáveis diante da pressa com que os dois garçons misturavam os drinques.

Burnett tomou um golezinho, sem sentir o sabor do que estava bebendo. Pela primeira vez em toda a vida estava bêbedo de verdade. Estava bebendo de teimosia, talvez também de aborrecimento.

— O senhor será posto na rua! — dissera Kerrick. — Desta vez foi longe demais, Greg.

Burnett nunca acreditara que um saquinho de sementes de cenoura pudesse ser motivo para a dispensa, mas desta vez o aborrecimento de Sharoon parecia exceder seu senso de humor. E Kerrick? Burnett fechou os olhos por um instante. Em sua opinião Kerrick só esperara um pretexto para demiti-lo.

E isso tinha de acontecer logo quando ele estava realizando as experiências tão interessantes com o hormônio B. Praguejou contra a idéia maluca que tivera.

Quando voltou a abrir os olhos, um homem gordo estava sentado na banqueta a seu lado e observava-o.

— Olá! — disse Burnett um tanto contrariado.

O gorducho tomava suco de fruta num copo comprido. Talvez só parecesse ser suco de fruta, mas isso não interessava a Burnett.

— É o senhor Burnett? — perguntou o gordo.

O homem mantinha os olhos presos em Burnett. Havia neles um brilho de experiência e esperteza. Alguma coisa no interior de Burnett contraiu-se numa advertência dolorosa. Estreitou os olhos para vencer o torpor.

— Sim — respondeu Burnett.

— O senhor Gregory Burnett?

— Sim — repetiu este.

O gordo saltou da banqueta com a agilidade de um gato.

— Venha comigo — disse.

Burnett sentiu a raiva tomar conta dele, ao mesmo tempo que a confusão começou a espalhar-se em seu espírito. Nunca vira este homem gordo.

— O que é que o senhor quer? — perguntou, contrariado.

— Daqui a pouco o senhor saberá. Aqui não podemos falar sobre isto. Venha logo.

O modo de falar do desconhecido aguçou o espírito de contradição de Burnett. Só agora pensou como Kerrick o atingira profundamente ao demiti-lo. Talvez tivesse uma personalidade profunda, apesar da despreocupação que costumava demonstrar diante dos outros. Será que só a demissão lhe fizera reconhecer esta parte de seu caráter?

 

Gregory Burnett era um homem de estatura média. Tinha ombros largos e um começo de barriga. O cabelo cacheado castanho-escuro era um pouco ralo nas têmporas. O nariz era esguio e ligeiramente encurvado na frente. Os lábios grossos formavam um estranho contraste com o queixo saliente, dando um aspecto um tanto exótico ao rosto.

— Ainda não quero ir embora — disse. — Espere até que eu termine ou diga logo o que quer.

— Trata-se do hormônio B — cochichou o gordo.

— O que é que o senhor sabe a respeito disso? — perguntou Burnett.

— Nada — confessou o gordo. — Mas disseram-me que o senhor me acompanharia se eu lhe dissesse sobre o que querem falar com o senhor.

— Quem quer falar comigo?

O homem robusto usava um terno simples. Tinha o cabelo curto, que dava o aspecto de uma peruca que não assentava bem.

— Acho que já está na hora de esvaziar o copo e ir comigo — disse, dando pela primeira vez sinais de impaciência.

— Não — respondeu Burnett em tom áspero.

O desconhecido fez um movimento tão rápido que nenhum dos garçons pôde ver o que estava fazendo. Aproximou-se de Burnett e deu-lhe uma cotovelada na região do fígado. Burnett respirava com dificuldade e ia caindo da banqueta. Sentiu-se muito mal.

O gordo pôs as mãos embaixo de seus braços.

— Parece que andou bebendo demais — disse, dirigindo-se aos garçons. — Vou levá-lo lá fora para que ele respire um pouco de ar puro.

— Não — protestou Burnett com a voz débil. — Este sujeito quer...

Sentiu que o gordo pisava em seus pés, pondo todo o peso de seu corpo sobre os mesmos. Soltou um grito.

A cantora interrompeu sua canção. Burnett viu confusamente que olhava para ele. Seus olhos muito grandes brilhavam como cristais.

Sentiu uma estranha leveza e percebeu que estava sendo carregado em direção à porta. Ouviu risadas vindas da parte mais baixa do salão. O gordo apressou-se em levar para fora a carga que se debatia violentamente.

Burnett sentiu uma lufada de ar puro. De repente estava totalmente acordado.

Empurrou os cotovelos para trás, atingindo com toda a força o ventre do gordo. As mãos que o seguravam embaixo dos braços ficaram mais frouxas. Burnett deu um salto e conseguiu libertar-se.

A rua fortemente iluminada estava completamente vazia. E bem adiante, à frente de um pequeno hotel, havia um táxi.

— Por que não procura ser sensato? — perguntou o gordo.

Burnett cambaleou ligeiramente e precipitou-se sobre o desconhecido, porém foi um gesto em vão: um golpe atingiu-o no ponto exato. A força do impacto fez com que perdesse o apoio dos pés e caísse para trás. Quando seu corpo atingiu o solo, já estava inconsciente.

 

Os ruídos começaram a tornar-se mais nítidos, fundiram-se com o zumbido que ouvia em sua cabeça e logo Gregory Burnett percebeu que vozes humanas atingiam seu ouvido.

Abriu os olhos.

Um homem inclinou-se sobre ele. Usava o uniforme da frota do Império Unido.

Estou sonhando”, pensou Burnett.

No mesmo instante voltou a lembrar-se do que lhe acontecera. Viu-se parado ã frente do bar, e também viu-se correr bem para dentro do terrível golpe que o gordo disparara abruptamente por baixo. Franziu a testa, mas logo voltou a alisá-la, porque a dor violenta que parecia martelar-lhe as têmporas aumentou bastante.

O homem que estava inclinado sobre Burnett tinha um rosto de traços finos e cabelos escuros. Sorriu para Burnett, como se compreendesse tudo que tinha acontecido.

— Onde estou? — grasnou Burnett.

Já estava convencido de que o ambiente em que se encontrava não era um quadro traçado em seus sonhos.

— No cruzador pesado Asubaja — respondeu o homem com a maior tranqüilidade.

— Ah, é? — disse Burnett, mas logo sobressaltou-se: — Que diabo! Onde mesmo?

O homem de uniforme repetiu o que já dissera. Ao contrário do gordo, que certamente o trouxera para cá, este homem parecia ser amável e compreensivo. A raiva de Burnett desvaneceu-se, mas os efeitos da ressaca ainda o incomodavam bastante. Apalpou cautelosamente o rosto. Seus dedos sentiram uma forte inchação.

O homem que continuava inclinado sobre ele sorriu.

— Devemos pedir desculpas pelo método pouco ortodoxo de trazê-lo a bordo — disse em tom amável. — Pelo que informou Jicks, o senhor se encontrava num estado em que o ser humano parece pouco acessível a uma explicação lógica. E não podíamos perder tempo. Por isso tivemos de reforçar um pouco sua capacidade de decisão, pois não tínhamos tempo para cuidar pessoalmente do senhor.

Burnett conseguiu levantar a cabeça um pouco e colocar a mão embaixo da nuca. Massageou-a cautelosamente. O oficial assistiu pacientemente a essa atividade.

— Sou o Tenente Wetzler — disse. — Quando estiver um pouco melhor, levá-lo-ei ao laboratório em que trabalha o senhor Kerrick.

— Kerrick — repetiu Burnett como quem não compreende nada. — Tenho a impressão de que ele me demitiu.

Wetzler fez um gesto de pouco caso.

— Pois nós o readmitimos. E o laboratório ao qual acabo de referir-me é o da nave Asubaja. E neste laboratório Kerrick não será seu chefe, mas seu colega, tal qual o Dr. Sharoon.

 

Dali a meia hora Burnett já estava recuperado a ponto de poder levantar da cama. Wetzler já tinha saído. Sobre a mesa havia uma jarra com água e um caneco. Ao lado do armário via-se uma torneira de água quente e uma cafeteira automática. Burnett fez um café bem forte. Nunca estivera numa espaçonave, mas as instalações do recinto em que se encontrava provavam, sem a menor sombra de dúvida, de que agora se encontrava num veículo dessa espécie.

Praguejou contra Jicks e contra a própria fraqueza, que o fizera freqüentar sempre o mesmo bar.

Wetzler o informara de que a Asubaja era um cruzador pesado. Que belas perspectivas! Quando tinha tomado quase todo o café, alguém bateu na porta.

Burnett ainda não desejava companhia. Ficou quieto. De repente a porta abriu-se e o Dr. Sharoon entrou. Burnett olhou-o com certa desconfiança, mas o químico não parecia ter a intenção de repreendê-lo por causa de um pacote com sementes de cenoura e uma carta falsificada.

— Vim para explicar o motivo por que estamos aqui — disse.

— É mesmo? — perguntou Burnett.

O Dr. Sharoon fitou-o demoradamente. Finalmente disse em tom de compaixão:

— Parece que o senhor sofreu uma queda, Burnett.

— Não — respondeu Burnett, contrariado. — Fui seqüestrado e trazido para esta nave.

— O Dr. Kerrick, o senhor e eu devemos participar de uma missão motivada por nos termos ocupado intensamente com o hormônio B — principiou o Dr. Sharoon.

Burnett lembrou-se das experiências que tinham realizado. Transformaram o H2O2 em estado puro numa substância líquida, de um azul intenso, que para surpresa dos cientistas continuava estável, mesmo em estado altamente concentrado. Ao que parecia, o hormônio B usado como catalisador modificara por completo as características da água oxigenada.

Um agente da USO, o siganês Lemy Danger, juntamente com o ertruso Melbar Kasom, conseguira apoderar-se de 80 litros de hormônio B em Gatas I, colocando-o em lugar seguro.

Nesse meio tempo foram realizadas, no planeta Terra, experiências que tinham por objetivo atacar as reduzidas quantidades de molkex de que se dispunha com a água oxigenada em estado puro. Mas o molkex não mostrou a menor reação enquanto o H2O2 não fosse estabilizado por meio do hormônio B.

Perry Rhodan ordenou que quarenta litros do hormônio fossem colocados à disposição dos cientistas. Em relação ao remanescente do precioso líquido os planos do Administrador Geral eram diferentes. Experiências em grande escala estavam sendo realizadas na Terra e em vários planetas dos aras.

Apesar de tudo os cientistas demonstraram certo ceticismo diante das informações de Danger sobre o hormônio dos bebês. O que provocou a incredulidade dos mesmos foi principalmente o chamado “efeito drive” observado por Danger, segundo o qual uma quantidade de molkex voava para todos os lados, depois da reação de contato do H2O2 enriquecido com hormônio B.

— Temos cinqüenta bombas especiais a bordo — informou o Dr. Sharoon.

— Bombas? — perguntou Burnett com a voz triste. — O que vamos bombardear?

Lembrou-se de que Wetzler lhe dissera que a nave Asubaja era um cruzador pesado. E uma vez que o Dr. Sharoon aludia a bombas, já não podia haver a menor duvida de que a nave deveria cumprir uma missão bastante desagradável.

E ele, Gregory Burnett, encontrava-se a bordo dessa nave!...

De repente Burnett sentiu necessidade de tomar mais café. Preparou um caneco para o Dr. Sharoon e outro para si mesmo.

— Trata-se de cinqüenta foguetes — esclareceu o Dr. Sharoon. — Têm o formato de charuto e dispõem de um sistema de propulsão química. Os foguetes também podem ser disparados do solo, por meio de armações leves de plástico. Um dispositivo de mira óptica conduz os mesmos em direção ao alvo. Uma vez disparados, as bombas-foguete de H2O2 não estão mais sujeitas a qualquer influência exterior.

— Um momento — resmungou Burnett. — O senhor acaba de falar em bombas de H2O2?

— Naturalmente — confirmou o Dr. Sharoon. — A finalidade dos foguetes consiste exclusivamente em fazer chegar ao alvo certa quantidade de água oxigenada enriquecida com o hormônio B.

Burnett pôs-se a refletir e chegou à conclusão de que só havia um tipo de alvo que prometia ser bastante sensível a este tipo de bomba: o molkex. E, como na Terra quase não havia esta substância, teriam de procurá-la em outro lugar.

Aos poucos Burnett foi ligando os fatos. A missão da Asubaja consistia em verificar os efeitos da substância recém-criada sobre o molkex. Era por isso que o Dr. Kerrick, o Dr. Sharoon e ele mesmo se encontravam a bordo.

Burnett teve uma sensação nada agradável. Fosse qual fosse o mundo em que eles encontrariam o molkex, não havia dúvida de que o mesmo seria perigoso. Transmitiu esta impressão ao Dr. Sharoon, mas este parecia mais otimista.

— O plano foi elaborado por Perry Rhodan. Acho que ele tomou todas as providências para proteger-nos contra quaisquer surpresas.

— Mas não nos protegeu contra Jicks — observou Burnett em tom azedo.

 

Burnett ficou sabendo que a Asubaja ainda se encontrava em órbita em torno da Terra, à espera de notícias da Defesa Galáctica. Quem lhe deu esta informação foi Jicks, com quem ele se encontrou quando se dirigia pela primeira vez ao laboratório da nave. O gorducho trocara o terno pelo uniforme da Defesa Galáctica. Sorriu para Burnett com uma franqueza cativante.

— Como vai o senhor? — perguntou.

— Bem — mentiu Burnett. — Nunca me senti tão bem em toda a minha vida.

Jicks ergueu as sobrancelhas, mostrando que se lamentava.

— Infelizmente não os acompanharei na viagem — informou. — Assim que chegar a notícia que estamos aguardando, voltarei à Terra num barco espacial.

— E lá continuará a usar seus métodos eficientes para raptar as pessoas — disse Burnett em tom sarcástico.

— Se for necessário — respondeu Jicks em tom seco.

— Qual é a notícia que temos de aguardar antes de seguir viagem? — perguntou Burnett em tom indiferente.

— Um cruzador ligeiro da Defesa galáctica encontra-se em Tombstone, o mundo dos vermes do pavor.

— Nossos agentes procuram descobrir um lugar em que tenha sido colocado um verme do pavor prestes a morrer.

— Compreendo — disse Burnett. — Partiremos assim que soubermos em que mundo poderemos encontrar molkex.

— Isso mesmo — confirmou o agente. — Rhodan está interessado em descobrir um mundo no qual os gafanhotos córneos acabam de concluir o processo de produção de molkex.

Conversaram mais um pouco. Finalmente Jicks recebeu ordem pelo intercomunicador para dirigir-se à sala de comando.

— Provavelmente não nos veremos mais — disse o gordo. Apontou para o hematoma que Burnett apresentava. — Não me leve a mal.

— Já está diminuindo — disse Burnett. Quando chegou ao laboratório, Kerrick e

Sharoon já estavam preparando as bombas-foguete. Sharoon sorriu, enquanto Kerrick cumprimentou em tom contrariado. Era um homem baixo e tão largo que sua figura quase chegava a ser quadrada. Tinha dobras de gordura na nuca. Os lábios virados para fora e os olhos pálidos davam-lhe o aspecto de uma foca zangada. Quem o visse dificilmente acreditaria que executava seu trabalho com uma tranqüilidade que beirava à indolência, enquanto o Dr. Sharoon precisava concentrar-se ao máximo para cumprir qualquer tarefa.

Burnett constatou que passaria muito tempo em companhia dos dois. Por isso não convinha deixá-los aborrecidos nessa altura. O mau humor de Kerrick logo passaria. E o Dr. Sharoon era bastante comunicativo, embora fosse um esquisitão.

— Sabiam que desceremos num mundo devastado pelos gafanhotos córneos? — perguntou Burnett.

— Sim — respondeu Kerrick, contrariado. — Já nos contaram.

— O comandante da operação é Thoma Herisch. E coronel e biofísico — explicou o Dr. Sharoon. — O senhor ainda o conhecerá.

Burnett mergulhou no trabalho. Sempre gostara de trabalhar com Kerrick. Quanto a Sharoon, mal o conhecia. Sabia que durante a viagem eles se aproximariam. E a aproximação poderia trazer desentendimentos.

Quando ele e o Dr. Sharoon carregavam uma bomba-foguete para a mesa do laboratório, Kerrick encontrava-se num lugar em que não podia ouvi-los.

— Ele se empenhou pelo senhor — disse Sharoon em voz baixa. — Queriam mandar o Dr. Lessinger, mas Kerrick insistiu que fosse o senhor.

— Caramba! — exclamou o rapaz.

— Pensei que o senhor estivesse interessado em saber disso — observou Sharoon.

— Se estou! — respondeu Burnett.

 

No dia 25 de novembro de 2.327 o cruzador pesado Asubaja, uma nave com quinhentos metros de diâmetro, abandonou a órbita que descrevia em torno do planeta Terra e disparou espaço afora. A notícia pela qual se esperava acabara de chegar. Apesar dos incidentes ocorridos na concentração de Hiesse, os vermes do pavor mantinham-se fiéis à aliança que haviam celebrado com a Terra. O destino fornecido pelos vermes do pavor era um pequeno sol amarelo, que ficava a 57.713 anos-luz da Terra. Vagrat — era este o nome do sol — ficava no setor leste da Via Láctea, numa região periférica pobre em estrelas.

O sol Vagrat possuía um estranho sistema planetário, formado exclusivamente por fragmentos cósmicos. Ao que se supunha, antigamente havia no sistema dois ou mais planetas grandes, que foram destruídos numa catástrofe desconhecida. Um dos fragmentos que circulavam em torno de Vagrat era do tamanho de Marte e era conhecido pelo nome Tauta.

Segundo informavam os vermes do pavor, há pouco tempo uma nave de molkex descera em Tauta, deixando um verme do pavor em início de postura. Tauta girava em torno de Vagrat juntamente com milhões de asteróides dos mais variados tamanhos e a Asubaja teria de atravessar esta infinidade de fragmentos cósmicos para chegar a Tauta.

O Tenente Wetzler dizia que preferia atravessar um covil de cobras descalço do que passar com o cruzador pesado por este cinturão de asteróides.

Qualquer um dos pontos que apareciam na tela poderia representar um perigo para a Asubaja. O cruzador pesado que executava o comando experimental avançara até o sistema do sol Vagrat em vôo linear. A característica mais perigosa dos asteróides era o fato de que cada um tinha uma velocidade e uma órbita diferente.

Na opinião do Coronel Thoma Herisch havia duas possibilidades: atravessar o montão de destroços tão depressa que a Asubaja abalroasse um dos fragmentos, ou voar tão devagar fazendo com que a nave por sua vez, fosse abalroada por um deles. Os fragmentos menores não representavam nenhum perigo para a Asubaja, e alguns asteróides maiores que se interpusessem em seu caminho poderiam ser destruídos pela artilharia da nave.

As coisas só se tornariam realmente perigosas se a nave entrasse numa aglomeração de asteróides e não encontrasse logo uma brecha por onde pudesse sair.

Pelo que informavam os vermes do pavor, só o planeta Tauta possuía um cinturão de milhares de luas. Às vezes algumas delas caíam, caindo no planeta sob a forma de uma chuva de meteoritos.

Vários milênios se passariam antes que as condições reinantes no interior do sistema de Vagrat se modificassem a tal ponto que se pudesse penetrar no mesmo com certa segurança.

Acontece que os homens não podiam esperar tanto tempo.

O Coronel Herisch fez a nave penetrar cautelosamente na zona de perigo. Os campos defensivos estavam ligados. À medida que a Asubaja penetrava no sistema, os campos energéticos colidiam com fragmentos pequenos e outros pequeníssimos, todos se desfazendo num lampejo ofuscante.

Alguns eram tão pequenos que a tela não registrava sua presença, e choviam aos montes sobre os campos defensivos do cruzador pesado.

O planeta Tauta já tinha aparecido nas telas do hiper-rastreamento. Para a nave de molkex dos blues, que percorrera o mesmo caminho há pouco tempo, a missão não fora tão difícil, já que a mesma era protegida pela blindagem.

— Até parece que estamos participando de uma corrida de obstáculos cósmica — disse o Tenente Wetzler, na sala de comando da Asubaja. — Tomara que possamos chegar ao destino.

Além de muita habilidade, precisava-se de nervos de aço para passar com uma esfera oca de meio quilômetro de diâmetro, e com paredes finíssimas em relação ao tamanho, pelo cinturão mortífero.

O Coronel Thoma Herisch parecia possuir nervos de aço, pois a única resposta que teve para a observação de Wetzler foi um sorriso.

Herish era um homem esbelto de estatura média, que caminhava ligeiramente inclinado para a frente. O nariz aquilino dominava o rosto, e embaixo dos olhos amortecidos grossas veias azuis atravessavam a pele. Era difícil avaliar a idade do biofísico.

O piloto automático da nave estava desligado. Herisch e Wetzler acharam preferível executar pessoalmente a tarefa de conduzir a Asubaja entre os fragmentos de antigos planetas.

Tauta, o planeta de destino, possuía uma atmosfera de oxigênio respirável, cuja densidade era idêntica à do ar das montanhas mais elevadas do planeta Terra. Segundo diziam os vermes do pavor, tratava-se de um mundo relativamente frio com uma superfície desértica, na qual só de vez em quando se viam traços de vegetação.

Na sala de artilharia da Asubaja o Coronel Zimprich estava sentado na banqueta pouco confortável do oficial de comando de tiro, aguardando o momento em que ele e seus homens teriam de arrebentar com disparos de suas armas um fragmento de maiores dimensões. Até ali a habilidade de pilotagem de Herisch e Wetzler tinham sido suficientes para aproximar a nave do planeta de destino sem que a mesma sofresse qualquer dano.

A Asubaja entrou numa nuvem de poeira cósmica. Os campos defensivos tornaram-se incandescentes.

— No que é que eu vou atirar? — perguntou Zimprich a si mesmo.

Na sala de comando, Herisch reduziu imediatamente a velocidade. O rugido dos geradores que alimentavam os campos defensivos energéticos chegou a eles.

— A esta altura dois pedaços grandes seriam suficientes — gracejou Wetzler.

Parecia inacreditável, mas a poeira girava em alta velocidade ao redor de Vagrat. Para o observador que se encontrasse na Asubaja pareceria uma cortina pesada pendurada no espaço, uma rede que envolvesse gulosamente a nave para prendê-la para sempre.

No entanto, a nave cercada de campos energéticos de alta estabilidade aproximava-se inexoravelmente do seu destino: Tauta.

 

Gregory Burnett lacrou a última bomba-foguete de H2O2 e pôs-se a escutar com a cabeça levantada. Nos últimos trinta minutos os ruídos a que estava acostumado na nave se tinham modificado. Uma vibração quase imperceptível parecia sacudi-la, enquanto o zumbido monótono dos geradores se tinha transformado num rugido.

Os três cientistas não eram astronautas; por isso cada ruído novo deixava-os preocupados. O Dr. Sharoon era o que parecia cada vez mais nervoso.

— Deveríamos perguntar na sala de comando o que está acontecendo — sugeriu. — No laboratório não temos telas de imagem.

Kerrick passou a bomba lacrada por Burnett para os dois técnicos, a fim de que estes a acoplassem ao sistema de propulsão química. Olhou para Sharoon.

— Não estou preocupado — disse. — Se houver algum imprevisto seremos avisados sem demora. Afinal, estamos cuidando da carga mais importante.

— Assim mesmo acho que deveriam ternos comunicado certos detalhes — disse Burnett. — Já estou cansado de ser tratado como um menino inexperiente pelos astronautas.

Um dos técnicos pigarreou ostensivamente, o que lhe rendeu um olhar zangado de Burnett.

— Alguma objeção? — perguntou em tom irritado.

— Nenhuma — respondeu o técnico. — Cada um tem de aliviar-se do medo à sua maneira.

Burnett esteve a ponto de protestar, mas sua inteligência lhe disse que o técnico tinha razão. As modificações sonoras ocorridas na nave tinham despertado seu sentimento de insegurança.

— Posso explicar o que está acontecendo — disse o técnico. — Estamos atravessando uma concentração de meteoritos. O ruído dos geradores tornou-se mais fortes porque os campos defensivos precisam de mais energia.

— Quer dizer que não estamos mais em vôo linear? — perguntou o Dr. Sharoon.

O técnico fitou-o como se tivesse pena dele.

— E claro que não — respondeu. — Estamos penetrando no sistema ao qual nos destinamos.

— Isso sempre é tão barulhento? — perguntou Burnett.

— Depende do que se atravessa no nosso caminho — respondeu o técnico.

Os alto-falantes do sistema de intercomunicação emitiram um estalido.

— Aqui fala o comandante — disse a voz de Herisch. — Parece que teremos problemas.

Estamos atravessando uma região atulhada de fragmentos de planetas. Provavelmente teremos de abrir caminho a tiros. A partir deste momento a nave fica de prontidão. As escotilhas devem ser vedadas. Os barcos especiais serão preparados.

O Dr. Sharoon contornou a mesa. Estava muito nervoso.

— Onde estão nossos trajes espaciais? — perguntou.

Burnett teve de fazer um esforço para não ser contaminado pelo nervosismo do outro. Os dois técnicos colocaram-se ao lado do Dr. Sharoon e procuraram acalmá-lo. Kerrick tirou o avental e jogou-o sobre a mesa.

— Já está na hora de alguém me dizer o que está acontecendo — disse em tom resoluto e aproximou-se da porta.

Neste momento um solavanco ligeiro mas violento sacudiu a nave. Kerrick perdeu o equilíbrio e deslizou em direção à mesa. Segurou-se na mesma e puxou-se para cima. Estava com o rosto pálido.

Sharoon livrou-se dos técnicos que o seguravam. Ao que parecia, os mesmos nem sequer haviam balançado.

— O que foi isso? — perguntou Burnett, apavorado.

— Uma pequena colisão — informou o mais idoso dos dois técnicos. — Não foi grave.

— Ah, é? — exclamou Burnett.

— Será que a esta hora a nave não tem um vazamento? — perguntou o Dr. Sharoon com a voz trêmula.

— Tolice — disse o técnico. — Só foi um fragmento maior que abalou o campo defensivo antes que pudéssemos destruí-lo a tiros.

Kerrick estava com as costas apoiadas na mesa, comprimindo as mãos contra a tampa. Não se via mais a expressão contrariada em seu rosto; o mesmo só exprimia medo.

No seu íntimo Burnett rogou uma praga contra Jicks, que o trouxera para bordo. Preferiria que Kerrick não tivesse conseguido convencer alguma das grandes figuras de que ele, Burnett, poderia ser mais útil à missão que o Dr. Lessinger.

A Asubaja sofreu mais dois abalos. Da primeira vez Burnett mordeu a língua, fazendo-a sangrar, e da segunda vez o Dr. Sharoon pediu que o levassem a um barco espacial.

Mas logo a voz do Coronel Herisch saiu dos alto-falantes com a calma de sempre.

— Já passamos — disse.

Burnett soltou um suspiro de alívio. Mas não pôde deixar de pensar na viagem de regresso, que lhes reservava as mesmas atribulações.

Segundo os planos, a Asubaja colocaria em Tauta cem especialistas chefiados por Herisch, juntamente com um laboratório móvel, alguns veículos voadores blindados, denominados shifts, e várias peças de artilharia pesada. A nave voltaria ao espaço e circularia em torno de Vagrat, escondida entre milhares de fragmentos, até que os homens colocados no planeta tivessem cumprido sua tarefa.

Até então Gregory Burnett acreditara que a tarefa seria relativamente fácil. Nas primeiras horas de vôo a perspectiva da permanência num mundo estranho lhe despertara grandes esperanças.

Mas o incidente que acabara de verificar-se fez com que logo se esquecesse de tais idéias.

Ainda bem...

 

A Asubaja atravessou o cinturão de luas que cerca Tauta sem sofrer qualquer dano e penetrou na atmosfera rarefeita do planeta. O cálculo das órbitas de todos os satélites seria uma supertarefa astronômica, isto se alguém estivesse interessado no resultado.

Pelos cálculos do Coronel Herisch, a Asubaja reduzira o número de luas pelo menos em vinte, durante a operação de pouso. Mas isso não tinha a menor importância, pois no correr dos anos Tauta atrairia outros fragmentos que entrassem em seu campo de gravitação.

O montão de destroços que formava o sistema de Vagrat modificava constantemente seu aspecto óptico. Era um caleidoscópio cósmico fascinante, que evidenciava de uma maneira inigualável o intercâmbio das forças que atuavam no cosmos.

Enquanto os quatro astrônomos do cruzador pesado observavam através dos instrumentos o que estava ocorrendo em torno de Tauta, Herisch e Wetzler conduziam a nave em direção a uma cadeia de montanhas baixas que se desenhava na tela.

O local de pouso escolhido pelos dois oficiais foi um extenso planalto.

Wetzler ligou o dispositivo antigravitacional da Asubaja e fez sair as colunas de apoio. Com um solavanco quase imperceptível, a gigantesca nave pousou na superfície de Tauta.

— Assim que o comando especial tenha sido colocado no planeta, o senhor colocará a Asubaja numa órbita relativamente segura — disse Herisch, dirigindo-se ao Tenente Wetzler. — Manteremos contato pelo rádio, a fim de deixá-lo informado sobre o que estiver acontecendo por aqui.

Via-se que Wetzler gostaria muito de descer no planeta no lugar de Herisch, mas não era cientista e mesmo na hierarquia militar ficava bem abaixo do comandante.

A hora que se seguiu foi consumida numa atividade febril. Os membros do comando especial foram colocados fora da nave, juntamente com os instrumentos, os blindados voadores e o laboratório móvel. Dentro de pouco tempo as construções em cúpula da base erguiam-se sobre o planalto.

Para a maioria daqueles homens a descida num planeta desconhecido não tinha nada de extraordinário. Sabiam perfeitamente o que deviam fazer.

A Asubaja voltou para o espaço sob o comando do Tenente Wetzler.

Gregory Burnett, que deixara o cruzador pesado juntamente com Kerrick e Sharoon, sendo um dos últimos cientistas a fazê-lo, lançou um olhar desconfiado para o quadro estranho que se estendia à sua frente. Da mesma forma que todos os membros do comando, usava traje voador de combate.

Os três cientistas foram caminhando lentamente em direção ao laboratório móvel. Burnett achou que sua presença era dispensável em meio aos especialistas que trabalhavam por ali, e Kerrick parecia ter a mesma impressão.

— Gostaria de saber por que nos trouxeram — disse, contrariado.

Sharoon estava tão absorto na contemplação da estranha paisagem que não parecia haver nada que pudesse abalá-lo. Depois de algum tempo dirigiu-se a Burnett.

— Não me sinto bem por aqui — disse em voz baixa. — Nunca vi uma paisagem tão desolada.

— O senhor não está aqui para sentir-se bem — disse um homem alto, que se aproximou deles. -— Acontece que o dilúvio violeta dos gafanhotos córneos precipitou-se sobre este planeta. Não deixaram para trás nada além do deserto — abriu o capacete do traje de combate e sorriu. — Apesar disso podemos dispensar o conjunto respiratório.

O Dr. Kerrick apontou para o laboratório móvel.

— Quando poderemos entrar ali? — perguntou. — Já estamos parados por muito tempo, sem saber o que fazer.

— Meu nome é Drude — disse o homem alto a título de apresentação. — Sou um dos membros do grupo que possui longa experiência com os blues. Caso deseje alguma informação a este respeito, dirija-se ao Dr. De Fort.

Sharoon fez uma careta. Até parecia que tinha mordido uma fruta azeda. Kerrick grunhiu alguma coisa.

— O que aconteceu? — perguntou Burnett. — Conhece o Dr. De Fort?

— Conheço — respondeu Kerrick. — Infelizmente não consegui evitá-lo. Quando o senhor ainda estava sendo, como direi?, quando estava sendo “convencido” a subir a bordo desta nave, o Dr. De Fort nos fez uma visita no laboratório da Asubaja. Pelo que afirma o Dr. Drude, é ele quem dirige o laboratório móvel.

— E daí? — perguntou Burnett em tom ingênuo. — Será que ele é um vampiro que gosta de morder o pescoço dos outros?

Drude deu uma risada e foi-se afastando, para ajudar na instalação de um canhão energético.

Burnett seguiu-o com os olhos. Não sabia o que pensar.

— Até parece que este planalto está sendo transformado numa fortaleza — disse. — Será que devemos esperar um ataque?

Kerrick fitou-o como se sentisse pena dele. Fez um gesto amplo com o braço. Até parecia que queria abraçar o planeta.

— Sabe lá quantas toneladas do precioso molkex existem em Tauta? — não deu tempo para que Burnett desse uma resposta. — Não somos os únicos que se interessam por isso. A qualquer momento uma nave dos blues poderá pousar aqui para levar o molkex.

Burnett engoliu em seco.

— O que acontecerá se eles nos encontrarem aqui? — perguntou.

— Seus canhões farão picadinho de nós — disse Kerrick em tom seco.

— Mas temos as bombas-foguete de H2O2 — objetou o Dr. Sharoon com uma calma pouco convincente.

Houve uma modificação no rosto de Kerrick. Parecia que o mesmo tinha raiva de alguém.

— Quem nos garante que estas bombas realmente são capazes de destruir a blindagem das naves dos blues? Além de umas poucas experiências só temos a afirmativa de um menininho de Siga, segundo o qual dará certo.

Em cima deles, no interior da eclusa do laboratório móvel, surgiu um ruído de metal arranhando metal. Burnett olhou para lá e estremeceu.

Na eclusa havia uma cadeira de rodas do tipo raramente usado por pessoas que sofreram uma amputação e não podem usar prótese. Na cadeira estava sentado um homem. Tinha o rosto muito magro e os maxilares salientes, o que fez com que os olhos muito negros parecessem ainda mais sombrios. No lugar do nariz o homem usava uma peça de plástico achatada, e os lábios que se estendiam por baixo da mesma pareciam traços finos nos quais não corria nenhum sangue. Como o doente não usava traje de combate, Burnett viu que o lado esquerdo do crânio era completamente calvo. Na parte superior do crânio havia uma chapa de metal.

— É o Dr. De Fort — disse Kerrick com a voz de quem tem areia entre os dentes.

De Fort fitou Burnett como se pudesse enxergar através dele com mais facilidade do que se olha através de uma placa de vidro.

— Se isso não o assustasse, eu o cumprimentaria com um sorriso — disse De Fort com a voz agradável.

— Não tive a intenção... — principiou Burnett.

O Dr. De Fort interrompeu-o com um gesto ligeiro.

— Entre — pediu. — Está na hora de tratarmos de arranjar um pouco de molkex para nossas experiências.

Burnett refletiu sobre o sentimento que o olhar do homem exprimia. Enquanto subia pelo passadiço, teve a impressão de que já sabia.

O Dr. De Fort parecia martirizar-se com um ódio muito intenso por alguma pessoa.

 

Burnett soube da história do Dr. De Fort por intermédio de Kerrick, quando o aleijado os deixou a sós na sala de experiências.

Martin De Fort era um cientista jovem e brilhante. Há um ano descera em certo planeta com um pequeno grupo, a fim de realizar pesquisas sobre determinadas espécies de cristais.

Acontece que o destino o fizera descer num planeta em que havia ovos de gafanhotos córneos. No dia 4 de agosto de 2.326, quando foi produzido o choque gravitacional que desencadeou o processo de maturação dos vermes do pavor em inúmeros planetas, o Dr. Martin De Fort ainda se encontrava naquele mundo.

Quando apareceram os gafanhotos córneos, o Dr. De Fort se encontrava longe da nave. Com muita dificuldade conseguiu reunir forças para alcançar a mesma, mas os homens que tinham ficado na nave estavam tão nervosos que abriram fogo contra ele.

Depois arrastaram para dentro da nave o que sobrara de De Fort e fugiram daquele mundo macabro. Martin De Fort nunca chegara a cometer o erro de culpar os homens que haviam atirado contra ele pela desgraça que lhe acontecera.

Dali a seis meses, quando conseguiu locomover-se numa cadeira de rodas, passou a dedicar todo o ódio de que era capaz aos vermes do pavor. Como era especialista em minerais e cristais extraterrestres, foi convocado para colocar seus conhecimentos a serviço da pesquisa do molkex.

O ódio que impelia o Dr. De Fort transformara-o em pouco tempo num dos cientistas mais competentes na área desse material extraordinário. De Fort nunca fez segredo de que estava empenhado antes de mais nada na destruição dos vermes do pavor e dos blues, que eram responsáveis pela disseminação do flagelo dos gafanhotos córneos.

De Fort era um excêntrico, e foi só graças às suas qualificações que consentiram em levá-lo para o espaço no estado em que se encontrava.

— Está doente de corpo e alma — concluiu Kerrick. — Não cometa o erro de demonstrar uma atenção especial ou até compaixão por ele. Nunca perdoaria uma coisa dessas.

— Ele me assusta — confessou Burnett, um tanto embaraçado.

A idéia de ter de permanecer por bastante tempo em companhia desse homem deixou-o nervoso. Procurou consolar-se com o fato de que o laboratório móvel provavelmente seria usado por muitas pessoas, motivo por que teria pouco contato com De Fort. Mas a simples idéia de encontrar-se a poucos metros do cientista não era nada agradável.

Burnett constatou que depois que Jicks o carregara para fora do bar ele se encontrava num ambiente totalmente diverso. Não restava quase nada da atmosfera despreocupada que o envolvia na Terra. Quase não tinha tempo — nem vontade — para fazer brincadeiras.

A missão parecia exalar uma ameaça: a ameaça invisível da invasão dos blues.

Burnett percebeu o perigo que o expansionismo dessa raça representava para a Humanidade. Por isso era muito importante que descobrissem logo uma substância capaz de destruir o molkex. E para isso pouco importava que tivesse de trabalhar com homens como o Dr. De Fort ou Kerrick.

— Ele é uma capacidade — disse a voz de Kerrick em meio aos seus pensamentos. — Teria ido longe, se este acidente não o tivesse atrapalhado.

Burnett perguntou a si mesmo se o Dr. De Fort realmente teria chegado ao lugar em que chegou, se não tivessem feito dele um aleijado. Podia parecer uma pergunta cruel, mas o fato é que às vezes uma fatalidade como a de De Fort pode impulsionar um homem.

— Vamos dar uma olhada nas instalações — sugeriu o Dr. Sharoon, que parecia não gostar da conversa.

A porta abriu-se subitamente, e o Dr. De Fort fez sua cadeira de rodas entrar pela mesma. Estava todo encurvado na cadeira, e seus olhos pareciam soltar chispas sombrias.

— Recebemos uma mensagem da Eric Manoli — disse em tom violento. — Rhodan enviará um verme do pavor para apoiar-nos.

Burnett esteve a ponto de responder alguma coisa, mas o olhar de advertência que Kerrick lhe lançou fez com que ficasse calado.

De Fort rolou para o centro da sala. A tampa artificial de seu crânio emitiu um brilho prateado sob a ação da luz da enorme lâmpada.

— Então teremos um verme do pavor como aliado — disse, perplexo.

Atirou-se para trás com um movimento repentino e soltou uma gargalhada estridente.

— É uma excelente idéia — exclamou. — Poderíamos suicidar-nos logo.

Sharoon passou a mão numa mecha de cabelo que lhe descia por trás do crânio.

— Temos uma aliança com os vermes do pavor — lembrou. — Até agora eles a têm cumprido. Se não fossem eles, não estaríamos aqui.

De Fort dirigiu sua cadeira de rodas para perto do Dr. Sharoon. Até parecia que queria atropelar o químico. Sharoon recuou instintivamente alguns passos.

— O senhor realmente é tão idiota como parece? — gritou De Fort. — Seria preferível fazermos uma aliança com o diabo. Ainda não percebeu que os vermes do pavor representam um perigo para a Galáxia?

— Não... não sei — disse Sharoon em tom inseguro.

De Fort bateu ruidosamente em sua cadeira.

— Pois eu lhe direi, Dr. Sharoon! — gritou. — O processo de multiplicação dos vermes do pavor representa uma agressão à vida de todas as outras raças. Se quisermos manter vivos estes vermes gigantes, dentro em breve não existirá mais nenhum mundo em que os mesmos possam ser colocados. Será que um dia teremos que desocupar a Terra, para que eles disponham de mais um mundo em que possam despejar seus miseráveis ovos?

— No presente caso existe uma pequena diferença — ponderou o Dr. Sharoon.

— Tolice! — respondeu o Dr. De Fort em tom resoluto. — Sei perfeitamente que não tenho bastante influência para, manter o verme do pavor afastado de Tauta. É possível até que já haja alguns por aqui. Mas sempre desconfiarei desses monstros malditos.

Burnett ouvira a discussão em silêncio. Alguma coisa parecia obrigá-lo a ir para fora, a fim de ver a Eric Manoli, nave-capitânia da Frota, largar o verme do pavor.

Conhecia os vermes do pavor e a nave de 1.500 metros de diâmetro somente por fotografias.

— Rhodan sabe muito bem o que está fazendo — interveio Kerrick. — Não dispomos de muito tempo, e o verme do pavor poderá ajudar-nos bastante.

O Dr. De Fort deu uma risada desagradável e voltou a movimentar sua cadeira de rodas em direção à saída da sala de experiências. Burnett seguiu-o.

Quando chegou à porta, De Fort parou abruptamente.

— O que deseja? — perguntou De Fort em tom pouco amável.

— Quero sair — disse Burnett com a maior tranqüilidade. — Estou interessado em ver o verme do pavor.

Para surpresa de Burnett, De Fort absteve-se da expressão odienta que já era esperada. Enquanto se dirigiam à eclusa, De Fort passou à frente de Burnett. O cientista dirigia sua cadeira de rodas com muita habilidade.

Burnett constatou que não tinha nenhuma dificuldade em deixar de sentir pena de De Fort, e que também não tinha nenhuma antipatia pelo mesmo.

O homem da cadeira de rodas aguardou Burnett no interior da eclusa. Burnett passou por ele sem dizer uma palavra.

— Ouça, jovem! — chamou De Fort em voz baixa, no momento em que Burnett saltava para a superfície de Tauta.

— Pois não — disse Burnett, sem olhar para trás.

— Tenha cuidado para não ser esmagado pelo monstro.

Burnett franziu a testa e foi-se afastando. Depois de ter andado um pedaço, parou. Alguma coisa na voz de De Fort lhe dissera que ele estava falando sério ao lhe dar o conselho.

 

Agachado no interior da eclusa, aquele ser antes parecia um monstro antediluviano. De repente virou a cabeça e olhou para Rhodan.

Este ligou o conversor de símbolos e esperou um instante. Perguntou a si mesmo se haveria possibilidade de exprimir alguma coisa parecida com a gratidão diante de um verme do pavor. O fato de que o lagarto gigante se encontrava a bordo da Eric Manoli provava que os vermes do pavor tinham confiança nos terranos. O auxílio que se dispunham a prestar excedia em muito aquilo que fora estipulado no tratado celebrado entre as duas raças.

Para Rhodan o verme do pavor que se encontrava no interior da eclusa não era nenhum desconhecido. Era Pedro, o primeiro indivíduo de sua raça com o qual os terranos conseguiram estabelecer contato. Por um momento Rhodan lembrou-se do Capitão Brent Firgolt e seus valorosos companheiros, que haviam lançado uma ponte entre os vermes do pavor e os homens, ponte esta que se consolidava cada vez mais.

— Não pousaremos — disse Rhodan falando para dentro do conversor de símbolos.

Tratava-se de um aparelho sofisticado que enviava a intervalos regulares impulsos de rádio, impulsos estes que o verme do pavor captava e interpretava na forma de símbolos, por intermédio de seu gigantesco cérebro, cujo funcionamento se aproximava ao de uma complicada estação transmissora-receptora.

— Você poderá saltar da eclusa quando nos tivermos aproximado o suficiente da superfície do planeta — prosseguiu Rhodan. — Agradecemos pelo apoio que prestará aos cientistas durante suas experiências.

Pedro, que fora o primeiro verme do pavor a revoltar-se contra os blues, fez um ligeiro movimento.

— Tudo que eu fizer por vocês prejudicará os gatasenses — disse através do conversor de símbolos. — E por assim dizer um efeito duplo. Dessa forma também estou agindo por interesse próprio.

— Os homens que se encontram em Tauta já foram informados sobre sua chegada — disse Rhodan. — Já o esperam. Entre em contato com o Coronel Thoma Herisch, que dirige o comando experimental.

Depois de uma ligeira hesitação, Rhodan prosseguiu:

— Entre os homens que se encontram lá embaixo está um certo Dr. De Fort, que tem de locomover-se num veículo para doentes. Mantenha-se afastado dele.

Se havia uma possibilidade de se ler sentimentos nos olhos de um verme do pavor, naquele momento os olhos de Pedro exprimiam perplexidade.

— Temos um tratado — disse o verme. — Presto-lhes auxílio, e qualquer indivíduo de sua raça deveria aprovar isto.

— As coisas não são tão simples — observou Rhodan. — Os seres humanos são individualistas e o contrato, só por si, não cria a coincidência de opiniões.

— Neste caso o contrato é inútil — retrucou Pedro com uma lógica sedutora.

— Não — objetou Rhodan. — O Dr. De Fort não é a favor do contrato, mas cumprirá o mesmo, porque foi aprovado pela coletividade.

— A minoria sempre segue a maioria? — perguntou o verme do pavor.

— Às vezes é o contrário — disse Rhodan em tom pensativo. — Já foram travadas guerras pelo simples motivo de não podermos chegar a um acordo sobre qual era a melhor idéia.

O conversor de símbolos permaneceu em silêncio por algum tempo. Parecia que o verme do pavor estava refletindo. Finalmente deu a impressão de ter descoberto uma lacuna na argumentação cautelosa de Rhodan.

— Você é o chefe de sua raça? — perguntou.

Rhodan começou a ficar nervoso.

— Sou — respondeu depois de algum tempo.

— Muito bem — prosseguiu Pedro. — Você é uma minoria, e a minoria mais reduzida que se possa imaginar, pois é uma única pessoa. No entanto, você constantemente toma decisões pela maioria, decisões estas que chegam a atingir outras raças. Será que toda vez que você toma uma decisão você tem certeza de que a mesma corresponde à vontade da maioria?

— Não — respondeu Rhodan. — Acontece que fui eleito pela Humanidade e dela recebi meus poderes. Preciso justificar-me perante o Senado. Além disso, sempre procuro fazer aquilo que é melhor para a raça humana.

— É possível que o Dr. De Fort procure fazer a mesma coisa — ponderou Pedro, — E de seu ponto de vista até pode ter razão.

Como você pode ter certeza de que a Humanidade foi a favor do tratado celebrado conosco? Você o concluiu depois de ter conferenciado com seus amigos.

— Não posso fazer uma eleição toda vez que tenho que decidir alguma coisa — disse Rhodan em tom paciente.

— A estrutura social da Humanidade é muito complicada — disse o verme do pavor. — Por mais velho que fique, nunca conseguirei entendê-la. Por que vocês não possuem algum tipo de pensamento coletivo?

A discussão foi interrompida por uma voz retumbante saída do alto-falante que se encontrava na parte superior da eclusa. Rhodan ficou satisfeito ao ouvir a voz de Kors Dantur, comandante da Eric Manoli.

— Já descemos bastante, chefe. Pode jogar fora o “bebê gigante”.

— Por que vocês não possuem algum tipo de pensamento coletivo? — repetiu Pedro obstinadamente.

— Faça o favor de sair da eclusa, senhor — disse a voz de um dos oficiais-de-dia.

Rhodan desligou apressadamente o conversor de símbolos e retirou-se da câmara da eclusa. Os vermes do pavor sabiam travar discussões intermináveis, que às vezes deixavam seus interlocutores desesperados.

Rhodan apressou-se para voltar à sala de comando. Dantur estava sentado na poltrona do comandante. Parecia ofendido.

— Por que não ficamos aqui por algum tempo, chefe? — perguntou, — Parece que as coisas vão ficar interessantes em Tauta.

— Não se preocupe, coronel — disse Rhodan. — Farei tudo para que o senhor não fique entediado. Como sabe, os blues nos dão muito trabalho. Não podemos concentrar todas as nossas forças no mesmo lugar. Quando precisarem de nós no sistema de Vagrat, eles nos chamarão.

A tela do sistema de rastreamento de superfície mostrou a base planetária do comando experimental. Viram alguns homens saírem das cúpulas metálicas e abanarem os braços.

O Coronel Herisch foi avisado pelo rádio de que o verme do pavor saltaria naquele instante.

— Tomara que caia bem no meio do acampamento — disse Dantur, que de vez em quando gostava de demonstrar um humor macabro.

Pedro tocou a superfície a duzentos metros do planalto. Rhodan desejou bom êxito aos homens, e a Eric Manoli retornou ao espaço em alta velocidade.

A nave logo voltou a prosseguir em vôo linear. O sistema de Vagrat foi desaparecendo atrás dele. Não demorou, e o pequeno sol amarelo era apenas um entre muitos.

 

Burnett e o Dr. De Fort viram o Coronel Herisch sair da cúpula de comando e cumprimentar o verme do pavor. Kerrick e Sharoon estavam andando pelo planalto a fim de arranjar algumas amostras de molkex para o laboratório.

— Olhe para ele — disse De Fort com a voz odienta. — Assim que ele atingir certa idade também iniciará sua funesta produção de ovos, e mais um mundo será transformado num deserto.

Burnett desligou a tela.

— Esta criatura vem como amiga — disse em tom penetrante. — Procure ver as coisas deste ângulo.

De Fort resmungou alguma coisa e foi saindo em sua cadeira de rodas. Burnett seguiu-o com os olhos, e viu que De Fort estava zangado. Sabia que se houvesse um encontro entre o doutor da cadeira de rodas e o verme do pavor poderiam surgir complicações.

Burnett saiu do laboratório e dirigiu-se ã cúpula de comando. O verme do pavor, ao lado do qual o Coronel Herisch parecia um anão, trouxera dois conversores de símbolos da Eric Manoli.

Burnett viu que Kerrick, Sharoon e mais uns vinte especialistas também estavam reunidos em torno do verme. O Dr. Sharoon parecia nervoso.

Burnett procurou andar mais depressa. Assim que o viu, Kerrick fez sinal para que se aproximasse.

— Não encontramos um pedaço sequer de molkex — disse, decepcionado. — Pelo que diz o verme do pavor, em Tauta já não existe nenhuma quantidade desse material. Diz que já foi retirado pelos blues.

Burnett procurou extrair logo as conseqüências resultantes dessa informação, mas a voz de Herisch interrompeu seus pensamentos.

— Tem certeza de que já foi retirada toda a produção de molkex? — perguntou.

Desligou o conversor por um instante e dirigiu-se aos cientistas:

— Este sujeito está zangado — disse. — Para ele a retirada prematura do molkex representa uma violação do tratado celebrado com os blues. Afirma que em Tauta devem existir seis ou sete vermes do pavor.

— É um crime — disse Pedro assim que Herisch religou o conversor.

Os cientistas falaram todos ao mesmo tempo. Herisch levantou os braços.

— Façam o favor, cavalheiros! — protestou. — Permitam que eu descubra o que devemos fazer.

— Não há nada a fazer! — gritou um homenzinho magro. — Se os blues já estiveram aqui, podemos suspender a operação neste ponto. Em Tauta não existe nenhuma quantidade de molkex com a qual possamos experimentar os efeitos de nossas bombas.

— Talvez o verme do pavor esteja enganado — disse um homem bastante circunspecto. — Não pode saber o que está acontecendo no outro hemisfério deste mundo.

— Perguntarei a ele — disse o Coronel Herisch.

A resposta que receberam de Pedro não foi nada encorajadora. O verme do pavor tinha certeza de que os blues não tinham feito o trabalho pela metade, pois precisavam de molkex mais do que nunca.

O verme do pavor prometeu então verificar se havia em algum ponto do planeta Tauta outro verme do pavor, cuja presença os blues não tivessem notado porque ainda não saíra do ovo. Para Pedro isso não representava nenhum problema, pois os vermes do pavor também se comunicavam entre si por intermédio de seu cérebro transmissor-receptor, e qualquer um deles poderia captar facilmente as transmissões de um outro que ainda vivesse em Tauta. Bastava concentrar-se nas mesmas.

Aos poucos o ar rarefeito começava a incomodar Burnett. Por isso o mesmo fechou seu capacete e abriu as válvulas de oxigênio. Sentiu o ar puro penetrar nos pulmões. A seguir ligou o rádio do capacete para acompanhar a discussão.

O verme do pavor levou alguns minutos para descobrir que em Tauta havia ainda um único casulo, em cujo interior um verme do pavor se preparava para sair.

Nada disso poderá salvar a missão”, pensou Burnett. “E demorariam muito para encontrar outro planeta onde pudessem prosseguir as experiências tão importantes para a própria existência da Humanidade.”

— Dentro de uma hora avisarei quando chamaremos de volta a Asubaja — disse Herisch. — Parece que teremos de sair de Tauta sem termos conseguido nada.

Ninguém formulou uma objeção, pois todos sabiam que, mesmo sem querer, os blues haviam chegado antes deles. A sorte parecia favorecer o inimigo.

Os especialistas voltaram às suas cúpulas. Herish ordenou o regresso de várias equipes, que se deslocavam em várias direções. O planalto, que ainda há pouco tinha o aspecto de um formigueiro, parecia abandonado.

O verme do pavor retirou-se, para permanecer em contato com o indivíduo de sua espécie que estava prestes a sair do casulo.

Kerrick fez com que Burnett o acompanhasse.

— Não fique parado que nem um pateta — disse, dirigindo-se ao jovem. — Em outro mundo teremos mais sorte.

— Quando isso acontecer talvez seja tarde — lembrou Burnett.

Sharoon acompanhou-os. Voltaram ao laboratório. Os canhões pesados que Herish agrupara em torno do acampamento pareciam aves gigantescas que procuravam em vão por uma presa.

O Dr. De Fort já estava à sua espera, Ao que parecia, já estava conformado com a presença do verme do pavor. Até chegou a demonstrar um pouco de amabilidade para com seus colaboradores.

— Realmente parece que neste mundo não encontraremos nenhum molkex — lamentou-se. — Entrei em contato com os grupos que ainda estão lá fora, mas por enquanto nenhum deles teve êxito. O coronel pediu que voltassem.

— Suponho que Herisch chame a Asubaja, para que possamos sair de Tauta — conjeturou Kerrick.

De Fort manobrou a cadeira de rodas através do corredor, até chegar à sala de experiência. Enquanto passava pela porta, disse:

— Já estava tudo preparado, e agora temos de constatar que Tauta não passa de um monte de escombros cuja superfície foi devorada, e no qual nem sequer existe molkex.

— Os blues cometeram uma violação indireta do tratado que celebraram com os vermes do pavor, e com isso transformaram os mesmos definitivamente em inimigos — disse o Dr. Sharoon.

— Não confio nesses monstros — disse , De Fort. — A forma pela qual garantem a conservação da espécie prejudica todas as outras formas de vida.

Burnett já descobrira que o cientista nunca se cansava de propalar sua antipatia pelos vermes do pavor. Ao que parecia, De Fort se considerava um sacerdote que pregava no deserto. No entanto, Burnett não achava provável que Perry Rhodan e os outros responsáveis não tivessem pensado no problema. No momento, o verdadeiro perigo que ameaçava o Império Unido partia dos blues. As naves-patrulha da Frota constataram que os blues constantemente formavam grandes concentrações de naves. Ao que tudo indicava, preparavam uma invasão do Império criado pelos homens. Burnett resolveu não dar muita importância às queixas de De Fort.

— Vamos começar a desmontar as bombas de H2O2? — perguntou o Dr. Sharoon.

— Espere mais um pouco — decidiu De Fort. — Por enquanto o coronel não deu ordem de retirada.

Dirigiu-se à grande mesa, sobre a qual tinham sido colocadas amostras de pedras de Tauta.

— Venham, minha gente — pediu. — Vamos verificar se nestas pedras ainda existem vestígios de molkex.

Burnett ficou calado. Estava resignado. Pouco importava o que fazia neste momento. A última experiência decidida por De Fort não os levaria a nada.

No mundo em que se encontravam já não havia nenhum molkex...

 

Depois que conseguira aprisionar 48 terranos no décimo quarto planeta do sistema de Verth, Leclerc foi investido no comando de uma grande nave-disco com blindagem de molkex.

A nave tinha o dobro do tamanho daquela que até então atravessara o espaço sob o comando de Leclerc.

Apesar disso o gatasense sentia-se desapontado. Tinha certeza de que seria nomeado comandante de um grande grupo de naves. Acontece que o caminho que leva para cima era bem mais difícil do que ele imaginara.

No fundo, não havia nenhuma diferença entre uma nave pequena e uma nave grande. O número de tripulantes aumentara, a sala de comando parecia mais luxuosa e o respeito que lhe era dispensado tornara-se bem maior. Mas este último fato resultava menos de sua posição que do conhecimento que os tripulantes tinham de seus feitos do passado.

Depois de pouco tempo Leclerc voltou a sentir-se aprisionado na velha rotina. Começou a recear que a aposentadoria chegaria mais depressa que a tão desejada convocação para o comando de um grupo de naves.

Uma guerra estava à vista. Tratava-se de um conflito cósmico de proporções inacreditáveis. Desta forma teria mais uma oportunidade para demonstrar seu valor — se não morresse, é claro!

Guerra”, refletiu Leclerc, “batalhas espaciais e combates furiosos por determinados mundos”. A idéia não provocou nem o entusiasmo nem a repugnância do gatasense. Sua raça precisava de mais espaço vital, e por isso qualquer inimigo devia ser eliminado.

O extermínio dos habitantes do outro império já fora decidido. Dentro de pouco tempo receberiam instruções sobre a maneira de levá-lo a efeito.

Nem por um instante Leclerc duvidou da vitória de sua raça. Nenhuma arma do inimigo era capaz de romper as blindagens de molkex das naves-disco, enquanto seus torpedos espaciais abririam feridas profundas nas naves esféricas da raça estranha.

Leclerc deixou que os ruídos do ambiente agissem sobre ele. Era o zumbido monótono que enchia a sala de comando, o tiquetaquear do computador e o irritante “clic-clac” do rastreamento espacial que funcionava ininterruptamente.

O alarme soou tão de repente, pegando-o de surpresa, que Leclerc estremeceu. Avançou a mão esquerda para baixo e endireitou a poltrona. Com dois movimentos da direita acendeu a tela que se encontrava bem em cima da poltrona do comandante.

Só depois disso é que Leclerc deu-se conta de que o alarme não resultava de um rastreamento direto.

— Impulso na quinta dimensão vindo do sistema de Vagrat — anunciou o radioperador. — Parece tratar-se de um verme do pavor.

Leclerc desligou apressadamente a tela. Fazia votos de que ninguém tivesse observado sua reação precipitada. Obrigou-se a pensar mais depressa. Em condições normais teria de entrar em contato com o quartel-general, para obter as informações disponíveis sobre o molkex depositado no sistema de Vagrat. Mas Leclerc resolveu esperar mais um pouco.

— Verifique se somos a única nave nas proximidades do sistema — ordenou.

Os homens puseram-se a trabalhar. Por enquanto parecia que não havia muito a ganhar no caso. Poderiam recolher um verme do pavor e certa quantidade de molkex, mas isso era uma operação comum que praticamente não envolvia nenhum risco, motivo por que Leclerc achou que a mesma não o ajudaria na promoção. Mas por outro lado tinha a obrigação de investigar o caso se não houvesse nenhuma nave mais próxima do sistema.

Leclerc fazia votos para que não fosse obrigado a perder tempo com o transporte de um verme do pavor.

Pouco depois foi informado que sua nave era a que se encontrava mais próxima do sistema de Vagrat. Leclerc reprimiu a raiva que sentia por causa da tarefa que automaticamente passou a ser sua. Mandou que se entrasse em contato com o quartel-general.

Pouco depois foi informado pelo mesmo de que uma nave já pousara no planeta Tauta, pertencente ao sistema de Vagrat, e dali retirara seis vermes do pavor e toda a produção de molkex. Supunha-se que a presença de algum verme do pavor que saíra do casulo mais tarde passara despercebida. Leclerc foi incumbido de buscá-lo.

O comandante gatasense não tinha a possibilidade de exprimir sentimentos no rosto. Mas as palavras que proferiu foram suficientes para mostrar à tripulação que a ordem não o deixara nada satisfeito.

A nave-disco mudou de rota e seguiu em direção ao sistema de Vagrat.

 

Burnett viu o Coronel Herisch aparecer na tela.

— Estamos recebendo visita, doutor — gritou para Kerrick.

Como no momento De Fort não se encontrava presente, Kerrick estava supervisionando as experiências; limpou as mãos no avental e aproximou-se de Burnett.

— Parece que está com pressa — disse. Burnett teve a impressão de que alguma coisa na postura de Herisch mudara. Os movimentos do coronel eram estranhos e tensos, e a posição dos braços não tinha mais nada dos gestos de indolência que neles se costumava ver.

Aconteceu alguma coisa”, pensou Burnett. Um tanto perplexo, perguntou a si mesmo como poderia ter tanta certeza, mas sentiu certa satisfação pela sensibilidade que desenvolvera ultimamente.

Esperou que o coronel saísse do campo de imagem e abriu a porta. Dali a pouco ouviram os passos firmes de Herisch no corredor.

O Dr. Sharoon parou de colocar poeira moída num recipiente de vidro e olhou para a porta. Kerrick tirou o avental, enquanto Burnett estava parado, esperando. De repente uma tensão indefinível parecia encher a sala.

Herisch entrou e olhou em torno, como se estivesse à procura de alguma coisa.

— Tragam De Fort — disse com a voz tranqüila. — Houve um imprevisto.

O rangido da cadeira de rodas fez com que voltasse a cabeça. Viu o aleijado passar pela porta.

— Ouvi o que o senhor acaba de dizer — disse De Fort. — O que aconteceu?

— O verme do pavor emitiu um sinal de identificação — informou Herisch. — Não percebemos nada, mas o Tenente Wetzler informou que o impulso foi captado na Asubaja. Perguntei ao verme do pavor, e ele me disse que queria atrair uma nave de molkex dos blues.

— Quem se mete com o diabo só pode queimar-se nas fogueiras do inferno — disse De Fort.

Burnett teve a impressão de que certa satisfação vibrava na voz de De Fort, já que o mesmo via confirmada suas suspeitas a respeito dos vermes do pavor.

— Pare com isso — disse Herisch em tom áspero. — Não podemos perder tempo em discussões. Temos duas possibilidades: fugir depressa na Asubaja, ou esperar a chegada dos blues.

— Vamos dar o fora — pediu Kerrick no mesmo instante. — O verme do pavor poderá enfrentar a situação por ele criada.

— Sem dúvida sua sugestão goza de bastante popularidade — escarneceu De Fort. — Mas gostaria de ouvir a opinião do coronel.

Herisch fez um gesto ligeiro com a mão.

— Viemos para verificar os efeitos de nossa nova arma sobre o molkex. De início, a falta desse material parecia pôr em perigo o êxito de nossa missão, mas agora... — Herisch fez uma pausa de efeito.

Burnett começou a desconfiar aonde o coronel queria chegar. Fez votos de que Kerrick e os outros levantassem seus protestos.

— O senhor acha que devemos esperar até que a nave de molkex pouse no planeta para levar o verme do pavor — constatou Kerrick em tom indiferente. — Nesse caso haveria em sua opinião a possibilidade de experimentar os foguetes de H2O2 na nave dos blues, isso se não formos liquidados antes.

— Tem uma sugestão melhor? — perguntou o comandante.

O rosto de Kerrick parecia um pouco mais contrariado.

— Sou apenas um cientista — disse. — O senhor deve saber o que faz. Se este for seu desejo, ficaremos aqui.

— É claro que vamos ficar — disse De Fort.

— Deste momento em diante todos os homens usarão trajes de combate — ordenou Herisch. — Esta ordem também se aplica durante a permanência nas cúpulas ou no laboratório. Os canhões serão guarnecidos e os foguetes especiais devem ser preparados para o disparo.

Burnett encontrava-se ao lado de De Fort, numa posição que lhe permitia observar perfeitamente a expressão de seu rosto. Teve a impressão de ver nele uma satisfação profunda, o que o deixou um tanto inseguro. Para De Fort pouco importava o resultado da luta que se aproximava. Só queria saciar sua sede de vingança. O aleijado estava impregnado de pensamentos odientos. Sua vida nada significava para ele.

Mas Burnett não tinha a intenção de morrer em Tauta. Restava saber como explicar a Herisch que De Fort não devia participar dos combates. O homem em cadeira de rodas representava um fator de risco, porque avançaria contra os blues sem pensar antes.

— Neste meio tempo o outro verme do pavor saiu do ovo e está vindo para cá — prosseguiu Herisch. — Consegui convencer Pedro de que é preferível eles ficarem afastados deste planalto por algum tempo, para que os blues não nos descubram logo. Concordou e pretende atrair os gatasenses para a armadilha.

— Ele nos trairá — disse De Fort, zangado.

Herisch saiu, e Burnett seguiu-o apressadamente. Quando chegou ao corredor, o coronel parou.

— O senhor é um dos cientistas que trabalharam com o molkex na Terra, não é mesmo? — perguntou Herisch.

— Sou — respondeu Burnett. — Trabalhei com o Dr. Kerrick e o Dr. Sharoon.

Herisch colocou a mão sobre seu ombro.

— Quando as coisas começarem por aqui, terei muito trabalho — disse. — Por isso quero pedir-lhe que cuide do Dr. De Fort. É um homem muito doente.

Entreolharam-se. Burnett sentiu-se aliviado. Herisch parecia saber muito bem o que estava fazendo.

— Está bem, coronel — disse Burnett. — Pode confiar em mim.

Acompanhou Herisch até a eclusa do laboratório móvel. O biofísico parou na câmara da mesma e protegeu os olhos com a mão, para evitar que o sol, cujos raios penetravam na eclusa, o ofuscasse. Vagrat parecia um mundo leitoso e sombrio. O fenômeno era produzido pelas nuvens de pó que giravam em torno do sol juntamente com os destroços cósmicos.

— Daqui a pouco vai escurecer — disse Herisch. — Tomara que os blues não cheguem de noite.

Burnett seguiu-o com os olhos, enquanto ia se afastando. Para ele era indiferente a hora em que os gatasenses pousassem em Tauta.

De qualquer maneira sua vida estava em perigo.

 

Um estranho ruído despertou Gregory Burnett, que ficou sobressaltado. A respiração regular de Kerrick atravessava a escuridão. Burnett dividia o quartinho com ele. O Dr. De Fort e o Dr. Sharoon dormiam no quarto ao lado, separado apenas por uma parede fina.

Burnett prendeu a respiração e pôs-se a escutar. Teria sonhado? Mas não. O ruído voltou a soar. No mesmo instante Burnett descobriu a causa do mesmo. Fora despertado pelo rangido da cadeira de rodas de De Fort.

Burnett tirou a coberta e atravessou o quarto o mais silenciosamente que pôde.

Abriu cuidadosamente a porta e lançou os olhos para o corredor iluminado. Ainda viu De Fort desaparecer na curva atrás da qual ficava a eclusa. O cientista usava o traje de combate especialmente feito para ele.

Burnett praguejou e voltou apressadamente ao quarto. Preferiu não ligar a luz, para que Kerrick não acordasse. Encontrou seu traje de combate e vestiu-o às pressas. Kerrick resmungou alguma coisa, mas não fez o menor movimento.

O que será que De Fort pretendia fazer no meio da noite? Ninguém tinha dado o alarme.

Burnett fechou o capacete e ligou o aparelho de oxigênio. Saiu para o corredor e fechou a porta atrás de si.

Quando chegou à eclusa do laboratório móvel, notou que a porta interna da mesma estava fechada. Verificou os controles e constatou que De Fort já devia estar do lado de fora. Também saiu.

O Coronel Herisch mandara desligar todos os holofotes, mas a luz de pelo menos trinta luas pequenas e grandes não foi capaz de iluminar a noite, nem mesmo debilmente. As cúpulas pareciam monstros adormecidos de bruços, e as armas apontavam ameaçadoramente por cima do planalto.

Burnett tinha certeza de que Herisch colocara sentinelas, mas De Fort certamente sabia disso e tomaria cuidado. O fato de que o aleijado pretendia fazer uma coisa proibida deixou-o surpreso.

O jovem cientista desprendeu-se da sombra do laboratório e saiu correndo em direção à cúpula mais próxima. Os vermes do pavor mantinham-se afastados alguns quilômetros do acampamento, a pedido de Herisch.

Será que De Fort pretendia ir ao lugar em que os mesmos estavam acampados?

Burnett parou e olhou em torno. As sombras das cúpulas e dos veículos de esteira ofereciam inúmeros esconderijos. Além disso, De Fort podia avançar muito bem com sua cadeira de rodas, já que cada uma das oito rodas da mesma tinha suspensão independente, tornando o veículo capaz de vencer todos os acidentes do terreno.

Burnett correu em direção à borda do planalto e voltou a parar. Abriu o capacete. O ar da noite era tépido e rarefeito. Burnett estremeceu. Concentrou-se nos ruídos que o vento da noite pudesse trazer para ele.

Mas a escuridão parecia ter engolido De Fort. Não havia perigo imediato, mas Burnett sentiu seu pulso acelerar-se.

De repente teve a impressão de que ouvira o rangido da areia. Vinha de cima do planalto, de um lugar em que tinham descoberto algumas cavernas. Burnett seguiu nesta direção. Parava a intervalos regulares, para ouvir melhor. As rochas espalhadas em torno do acampamento lançavam sombras grotescas projetadas pela luz das inúmeras luas. Era tudo estranho e misterioso. A noite parecia exalar perigo, e os braços do medo pareciam atingir Burnett de todos os lados.

Tirou o desintegrador do traje voador de combate e destravou o mesmo. O contato do metal frio fez com que recuperasse parte de sua autoconfiança.

Virou a cabeça e olhou para o acampamento. Tudo continuava escuro e em silêncio. Ao que parecia, ninguém tinha notado a excursão de De Fort.

Uma pedra rolou pela encosta, bem adiante. Burnett prendeu a respiração. Seria De Fort? Procurou acalmar os nervos agitados. Quem poderia andar por ali, a não ser De Fort? Graças à ação dos gafanhotos córneos, em Tauta só havia a rocha nua.

Por alguns segundos Burnett teve a impressão de ver uma sombra, mas também podia ser uma rocha tocada pela luz de uma das luas. O nariz e a face de Burnett estavam frios. Cada vez que respirava, uma nuvenzinha aparecia à frente de sua boca.

Burnett foi-se aproximando das cavernas. Se De Fort estivesse lá, não se sabia quais eram seus planos. Será que o homem de cadeira de rodas não conseguia dormir e resolvera fazer uma excursão? Se De Fort o descobrisse nestas circunstâncias, a situação seria bastante embaraçosa. Mas o instinto dizia a Burnett que De Fort poderia estar fazendo tudo, menos dando um passeio inocente.

Mas quais seriam mesmo as intenções deste homem estranho?

Burnett tropeçou em algumas pedras e por pouco não caiu. Conseguiu equilibrar-se e continuou andando. O acampamento quase tinha desaparecido. A grande mancha escura que Burnett via lá embaixo era o planalto sobre o qual estavam montadas as cúpulas.

O químico lançou um olhar ansioso para o céu. Lá em cima estava o cruzador pesado Asubaja, bem protegido pelos destroços cósmicos.

Há dois dias, lembrou-se Burnett, ele ainda se encontrava num bar do planeta Terra, onde Jicks aparecera e o “recrutara” para a missão. A lembrança do gordo fez com que Burnett sorrisse e se sentisse mais aliviado.

De repente uma luz surgiu a uns cem metros de distância, no lugar em que ficavam as cavernas. Burnett levantou os olhos, para que nada lhe escapasse. Mas a única coisa que viu foi um ligeiro brilho metálico, e logo a escuridão voltou a envolver tudo.

Agora tinha certeza de que De Fort voara para as cavernas com sua cadeira de rodas. Sem dúvida o veículo era capaz de voar. Burnett imaginava que o cientista devia ter pousado várias vezes, para orientar-se. Desta forma provocara os ruídos que o colocaram em sua pista.

Por um instante Burnett sentiu-se tentado a percorrer o caminho também pelo ar, mas logo chegou à conclusão de que isso sena muito perigoso. Só agora lembrou-se de que poderia chamar o Coronel Herisch pelo rádio do capacete. Dentro de alguns minutos o coronel formaria um grupo, que faria uma inspeção ligeira das cavernas.

Mas se ele estivesse enganado? Era possível que De Fort nem se encontrasse lá. Mesmo que estivesse, poderia não estar fazendo nada demais. Antes de avisar Herisch, ele mesmo precisava descobrir o que estava acontecendo. Burnett seguiu em frente resolutamente. Tinha de prestar atenção aos acidentes do terreno, mas quando levantou os olhos por um instante teve a impressão de ver novamente o brilho metálico à sua frente. Desta vez estava bem mais próximo.

Em virtude do ar rarefeito a marcha forçada deixou-o mais cansado do que ele esperara. Mas preferiu não fechar o capacete, para não perder o contato acústico com o mundo. Era bem verdade que o equipamento sonoro transmitia grande parte dos ruídos, mas Burnett preferia confiar em sua própria capacidade auditiva.

O caminho tornou-se tão difícil que Burnett teve de colocar a arma no cinto para não perder o equilíbrio. Finalmente duas rochas gigantescas interpuseram-se em seu caminho. Ligou o equipamento de vôo de seu traje, que o levou ao topo. Foi mais fácil do que ele imaginara, embora não tivesse nenhuma prática nisso.

Encontrava-se agora bem à frente das cavernas.

Havia uma débil luminosidade em uma delas. De Fort estava em sua cadeira de rodas, bem na entrada, e montava uma armação. Burnett observou-o sem dizer uma palavra. O que estaria fazendo o cientista? Burnett compreendeu então por que só vira a luz por alguns instantes. As duas rochas obstruíam sua visão, mas entre elas havia uma fenda por onde a luz o atingia quando se encontrava numa posição favorável. Burnett perguntou a si mesmo o que deveria fazer. A razão disse-lhe que deveria voltar e avisar o Coronel Herisch, mas ao mesmo tempo tinha vontade de apurar por conta própria o que De Fort estava fazendo.

Burnett viu De Fort voltar para o interior da caverna, da qual saiu depois de pouco tempo com outro objeto. Prendeu-o na armação que já estava firmada no solo. Burnett compreendeu. Já sabia o que De Fort estava fazendo.

O cientista estava montando um pequeno canhão energético!

Burnett começou a tremer, o nervosismo tomando conta dele. Será que esse louco queria bombardear o acampamento? Não, não era possível. Mas o cientista queria atirar em alguma coisa, numa coisa grande, numa coisa contra a qual uma arma portátil seria impotente.

A solução saltava à vista: De Fort pretendia atirar num verme do pavor! O ódio levava-o a cometer essa loucura. Burnett percebeu que De Fort poderia frustrar todo o plano que haviam elaborado se ninguém o detivesse.

De Fort certamente aguardaria a chegada dos blues no interior da caverna, a fim de aproveitar a confusão da luta para travar uma guerra particular, inútil e puramente provocativa, contra os dois vermes do pavor. O homem devia ser meio louco, mas Burnett não pôde deixar de admirar a energia extraordinária com a qual De Fort executava seus estranhos planos.

De Fort voltou a desaparecer na caverna. Burnett correu para a entrada da mesma e precipitou-se em seu interior. De Fort montara um holofote no fundo, de tal maneira que só uma luz muito fraca chegava ao exterior. Estava levantando duas travessas que pretendia levar à entrada da caverna.

Burnett engoliu em seco e obrigou-se a ficar bem calmo. Ouviu a própria voz, que soava muito tranqüila:

— Boa noite, Dr. De Fort. Será que estou incomodando?

 

Tempo: 26 de novembro de 2.327; 20:36 h, tempo padrão.

Lugar: sala de comando do cruzador pesado Asubaja.

De um instante para outro o indicador do sistema de rastreamento da nave de quinhentos metros de diâmetro começou a movimentar-se. O sargento Hastings e o Tenente Wetzler inclinaram-se sobre o instrumento.

— Deve ser algum fragmento com um elevado teor de metal que está cruzando nossa trajetória — disse o sargento Hastings.

O Tenente Wetzler sacudiu a cabeça.

— Acho que são os blues — disse. — A única coisa que podemos fazer é desejar boa sorte ao Coronel Herisch e seus homens.

 

Tempo: 26 de novembro; 20:42 h, tempo padrão.

Lugar: nave pesada de molkex comandada pelo gatasense Leclerc.

O receptor voltou a emitir um sinal. Leclerc inclinou-se tranqüilamente sobre o sistema de interpretação.

— Os sinais vêm da face noturna — disse com a voz calma. — É lá que ele está.

Recostou-se na poltrona. Ao que parecia, só tinha um simples trabalho de rotina pela frente.

— Vamos pousar ao amanhecer e o pegamos — disse Leclerc.

 

De Fort virou-se lentamente, como se durante o movimento precisasse refletir sobre o que fazer. Também estava com o capacete aberto para trás. A parte metálica de seu crânio brilhava ã luz do holofote. Mas o brilho de seus olhos parecia ser ainda mais intenso.

Burnett recuou instintivamente. Percebeu que um pedido de desculpas queria aflorar aos seus lábios.

— O senhor anda me espionando — constatou De Fort com uma calma forçada.

— Estou agindo assim por ordem do comandante — sem que o percebesse, Burnett viu-se colocado na defensiva. Apontou para a entrada. — Para que serve este canhão?

De Fort não respondeu. Agiu com tamanha rapidez que Burnett nem teve tempo para soltar um grito de surpresa. O aleijado fez rolar a cadeira de rodas com uma rapidez extraordinária em direção às pernas de Burnett. Este sentiu o impacto e fez um esforço desesperado para não perder o equilíbrio, mas foi atirado ao chão. Com uma habilidade incrível, De Fort fez recuar a cadeira alguns metros, para num novo impulso fazê-la rolar por cima de Burnett. Este viu os olhos odientos do outro pousados nele. A queda deixara-o atordoado. Anéis escuros pareciam cercar o holofote.

Burnett viu a cadeira de rodas sair do feixe de luz e vir em sua direção. Não teve tempo para levantar. Deu um salto de três metros e De Fort precipitou-se no vazio. O rangido das rodas freadas atravessou a escuridão. Burnett conseguiu ajoelhar-se no momento em que De Fort acionava o equipamento de vôo de seu traje de combate, que estava acoplado à sua cadeira de rodas. De repente a mesma parecia escapar à ação da gravidade, flutuando sob o teto.

Burnett empurrou-se com as mãos e ficou de pé, cambaleante. Quando ia pegar o desintegrador, De Fort desceu vertiginosamente sobre ele. A cadeira de rodas foi acelerada perigosamente, precipitando-se sobre o jovem como se fosse um projétil.

A reação de Burnett foi puramente automática. Comprimiu a tecla de decolagem de seu traje e foi impelido para o alto. Sem saber como, conseguiu frear antes de bater no teto.

De Fort conseguiu sair do mergulho pouco antes de bater no chão e descreveu uma curva ampla.

— Pare! — gritou Burnett e veio planando lentamente sob o teto.

Pegou o desintegrador e apontou-o para De Fort. Mas o aleijado também possuía uma arma e disparou na direção de Burnett.

Este acionou o propulsor em sentido horizontal, Atrás dele pedaços de rocha desprenderam-se do teto e caíram ruidosamente ao chão. Burnett colidiu com um pedaço de rocha saliente e soltou um grito. A risada louca de De Fort ressoou pela caverna. Burnett foi descendo. As dores fustigavam seu corpo.

Viu De Fort no centro da caverna, fazendo pontaria calmamente em sua direção. Burnett levantou a arma e fez um disparo às cegas. A rocha desmanchou-se bem à frente de De Fort, tirando a visão do inimigo. De Fort errou o alvo.

De repente Burnett voltou a sentir chão firme sob os pés. Com três saltos alcançou uma rocha que se erguia no meio da caverna e abrigou-se atrás da mesma.

A risada de De Fort cessou, mas em compensação os chiados e o rangido de sua cadeira de rodas voltaram a encher a caverna. Burnett rastejou um pedaço e olhou por cima da rocha.

De Fort tinha virado sua cadeira na direção da rocha atrás da qual Burnett estava abrigado e fazia pontaria cuidadosamente sobre a mesma. Burnett abaixou a cabeça. No mesmo instante uma chuva de pedras desceu sobre ele. Uma nuvem de fumaça subiu da rocha. Burnett percebeu que De Fort acabaria por obrigá-lo a sair de trás da rocha.

Arriscou um olhar ligeiro para o resto da caverna. De Fort parecia antes um demônio que um ser humano. Os cabelos desciam pela parte do crânio que continuava intacta. A pele do rosto avermelhara em torno do engaste de plástico, e os olhos muito afundados nas órbitas ardiam.

— Saia daí! — grasnou De Fort.

Disparou três vezes seguidas. Burnett, cujo corpo estava grudado ao solo, sentiu o ar escapar-lhe dos pulmões. Fechou o capacete e ligou o campo defensivo de seu traje. Depois disso deu um salto por cima da rocha.

De Fort gritou e atirou, enquanto Burnett corria em sua direção. Burnett fez pontaria para a cadeira de rodas, mas o aleijado também ativou seu campo defensivo individual.

O espírito ágil de De Fort foi o primeiro a reconhecer a nova situação. Não perdeu tempo. Dirigiu a cadeira de rodas para a entrada da caverna e parou.

— Por aqui o senhor não passa — disse, dirigindo-se a Burnett.

Este sentiu um misto de raiva e resolução. Aproximou-se da entrada passo após passo. De Fort observava-o com uma expressão de ave de rapina.

— Pare antes que eu o mate — chiou De Fort.

— O senhor irá ao acampamento comigo — disse Burnett com a voz tranqüila.

O rapaz estava muito agitado, mas suas mãos não tremiam. Não tinha muita experiência com trajes de combate e perguntou a si mesmo o que aconteceria se os dois campos defensivos entrassem em contato. Provavelmente não aconteceria nada, pois os astronautas muitas vezes tinham de combater num espaço extremamente reduzido.

De repente De Fort fez um movimento inesperado e arrancou de debaixo da cadeira uma barra comprida, pertencente à armação do canhão. Burnett viu o perigo aproximar-se, mas não conseguiu reagir em tempo. A barra desceu sobre ele, atravessando o campo defensivo que só retinha a energia, e atingiu o químico no ombro. Burnett recuou cambaleante e soltou um grito de dor. De Fort aproximou-se instantaneamente com a cadeira de rodas e comprimiu-o contra o chão.

Uma das rodas subiu ao peito de Burnett. Este procurou levantá-la com ambas as mãos, mas De Fort parecia pesar centenas de quilos. Com um movimento rápido o mesmo desligou o campo defensivo do traje de Burnett e levantou a arma.

Burnett fez um esforço tremendo para erguer o corpo, mas a cadeira de rodas continuou a avançar sobre seu corpo e não havia como afastá-la.

— Fique bem quieto! — ordenou De Fort, enquanto apontava a arma para o peito de Burnett.

Um suor frio cobriu a testa de Burnett. A imagem de De Fort tremeu diante de seus olhos.

— Desliguei meu rádio de capacete — disse De Fort em tom irônico. — Ninguém ouve o que eu digo, e o senhor vai ficar quieto. Burnett sabia que sua vida dependia dos caprichos de um louco, e este louco podia pôr em perigo o êxito da missão. Burnett também se sentiu culpado porque as coisas tinham chegado a este ponto. Deveria ter avisado logo o Coronel Herisch.

— Desligue seu rádio de capacete — ordenou De Fort. — Com a mão esquerda. E nada de truques.

Burnett obedeceu. Devia fazer com que De Fort se sentisse seguro, até que ele se descuidasse. Quando isso acontecesse, poderia dar seu golpe.

De Fort abaixou-se e tirou tranqüilamente o cinto do traje de Burnett.

— Por que faz isso? — perguntou Burnett com a voz rouca.

De Fort deu uma gargalhada.

— Sem o cinto o senhor não pode voar nem ativar o campo defensivo. Todos os circuitos estão reunidos lá, e desta forma o senhor ficará indefeso. O traje não serve para mais nada. O senhor nem sequer pode falar com o pessoal que está no acampamento.

— Quando os blues chegarem não terei nenhuma proteção — disse Burnett.

— O senhor deveria ter pensado nisso antes — disse De Fort e pegou o cinto.

Depois disso recuou a cadeira um metro.

— Vamos! Levante! — disse.

Burnett olhou para sua arma, que estava jogada no chão. De Fort deu uma risada e fundiu-a com um tiro de sua arma energética.

— E agora — disse De Fort em tom convidativo — vamos armar juntos este canhão.

— Pretende bombardear o acampamento? — perguntou Burnett.

— Assim que os gatasenses chegarem, haverá uma luta de que participará todo o acampamento.

Burnett percebeu que estava completamente dominado pelos planos de um louco, e que nada o deteria.

— É claro que os vermes do pavor lutarão do nosso lado. Quando aparecerem, eu lhes darei uma recepção condigna.

Burnett olhou-o com uma expressão de compaixão.

— O senhor realmente acredita que pode matar essas criaturas com os tiros despachados por este canhão?

De Fort apontou para trás de sua cadeira de rodas, onde havia alguma coisa escondida embaixo de uma lona.

— Não tenho a menor dúvida de que com nossas bombas-foguete de H2O2 conseguirei — disse. — Reservei quatro para mim.

Burnett quis precipitar-se sobre ele, mas um movimento ameaçador do desintegrador deteve-o.

— O senhor está pondo em perigo a vida de centenas de pessoas — disse em tom de recriminação. — Será que o senhor é incapaz de esquecer esse ódio insensato e agir em benefício da comunidade?

De Fort voltou a dar uma risada.

— Que comunidade é essa? — perguntou em tom irônico. — Não pertenço a nenhuma comunidade.

— Dentro de alguns anos os médicos o deixarão em perfeitas condições — disse Burnett. — Acontece que sua impaciência é tamanha que o senhor só pensa em ódio e vingança.

De Fort apontou para a escuridão, onde em algum lugar situado abaixo do nível das cavernas cem homens desprevenidos passavam uma noite inquieta.

— Terei minha vingança — disse. Burnett sentou no chão, enquanto De Fort voltou a trabalhar com seu canhão.

Burnett decidiu que impediria De Fort de cumprir suas intenções. Ainda não sabia como fazer, mas nada o impediria de fazê-lo. Em Tauta cuidava-se de coisas muito mais importantes que a satisfação dos sentimentos de vingança de De Fort. O próprio destino da Humanidade estava em jogo.

Burnett deu-se conta da tremenda responsabilidade que pesava sobre seus ombros.

— Está certo — disse Herisch enquanto se erguia de seu leito simples. — Irei imediatamente.

Espreguiçou-se e olhou para o relógio. A noite estava chegando ao fim. O corpo da sentinela era apenas uma silhueta escura que se desenhava na entrada da cúpula.

O Coronel Herisch deu um empurrão no Tenente Pashaven, que roncava fortemente.

Pashaven virou-se abruptamente.

— Já estão chegando? — perguntou, perturbado.

Todo mundo sabia a quem se referia.

— Não — respondeu Herisch. — É a Asubaja que está chamando. Precisamos ir à cúpula do rádio.

Pashaven livrou-se dos cobertores e levantou-se praguejando.

— Ande depressa, tenente — ordenou Herisch.

Dirigiu-se à entrada e fez sinal para que a sentinela o acompanhasse. Pashaven seguiu-os um tanto claudicante, enquanto fechava seu traje de combate.

A Asubaja está transmitindo imagens condensadas com intensidade muito reduzida — informou a sentinela. — Será que isso significa alguma coisa?

— O senhor tem direito de adivinhar três vezes — disse Herisch em tom sarcástico.

Atravessaram a área livre que separava as cúpulas e entraram na sala de rádio. Assim que Herisch fechou a porta atrás de si, o radioperador ligou todas as luzes.

— Então, Sparks? — perguntou o coronel.

— Acabo de decifrar a mensagem — disse o radioperador levantando-se de sua cadeira, para entregar o texto a Herisch. — “Nossos amigos” acabam de chegar.

Pashaven entrou apressadamente e olhou para Herisch.

— Está começando — disse este. — Os gatasenses acabam de penetrar no sistema de Vagrat.

— Quer que envie uma confirmação à Asubaja?, — perguntou o radioperador.

— É preferível não fazer isso — decidiu Herisch. — Não queremos assumir riscos desnecessários. De qualquer maneira os gatasenses não demorarão a descobrir nossa presença.

— Quando descerão no planeta? — perguntou a sentinela.

Herisch fez um gesto difícil de interpretar.

— Talvez seja ao raiar do dia. Pedro está enviando o sinal de identificação a intervalos regulares, para que saibam que ele se encontra na face noturna.

— Vamos dar o alarme? — perguntou Pashaven.

— Calma, tenente — disse Herisch. — Enquanto não iniciarem o pouso não há motivo para nervosismo. Informarei os cientistas, para que se preparem. Estou curioso para conhecer os efeitos de nossas novas bombas sobre as blindagens de molkex.

Saíram da cúpula em que ficava a sala de rádio. A sentinela voltou ao seu posto, enquanto Herisch e Pashaven se dirigiam ao laboratório móvel.

Encontraram a eclusa do laboratório aberta. Herisch parecia pensativo enquanto subia pelo passadiço.

— Parece que alguém está andando por aí — disse Pashaven.

— Tomara que nenhum dos especialistas tenha resolvido agir por conta própria — disse Herisch.

Instintivamente apressou o passo. Uma porta abriu-se à sua frente, e o Dr. Sharoon saiu para o corredor com o rosto sonolento. Olhou para Herisch e o tenente com os olhos semicerrados.

— Ah — disse. — E o senhor!

Esta constatação parecia acalmá-lo, tanto que fez menção de virar-se e ir embora. Herisch segurou-o pelo braço.

— Acorde o Dr. De Fort e os outros, doutor — disse. — Os blues devem chegar ao amanhecer.

— De Fort? — perguntou Sharoon, perplexo. — Pensei que estivesse em sua cúpula.

Herisch não era dado a discussões inúteis. Passou por Sharoon, entrou na cabine e viu que De Fort não se encontrava presente. Sem dizer uma palavra, correu para a cabine que ficava ao lado. Ligou a luz.

Kerrick virou-se todo sonolento.

— Que diabo! — perguntou, mal-humorado. — Por que está andando por aqui no meio da noite, Burnett?

— Não sou Burnett — comunicou Herisch. — Levante, pois temos trabalho. Parece que De Fort saiu da cama e Burnett foi atrás dele.

— Parece que este sujeito está tramando mais uma das suas — disse Sharoon, que se encontrava na porta.

Herisch franziu a testa.

— Com De Fort? — perguntou em tom irônico. — É um homem sem o menor senso de humor. Bem, se Burnett está atrás dele não pode acontecer muita coisa.

Virou-se para Kerrick, que estava praguejando.

— Assuma o comando. Acorde os cientistas. As bombas têm de ficar prontas. E não se esqueça de que todos devem usar trajes de combate.

— Está bem — resmungou Kerrick, bastante aborrecido.

Assim que o comandante desapareceu no corredor, Kerrick disse a Sharoon:

— Nunca mais ninguém me faz sair de nossa linda Terra.

Herisch e Pashaven já se encontravam do lado de fora.

— Acorde todos os homens — ordenou o coronel. — Mas não faça barulho desnecessário e cuide para que as luzes fiquem apagadas.

— Sim senhor — respondeu Pashaven e retirou-se.

Herisch ficou parado. Estava pensativo. Não podia arriscar-se a mandar outros homens para fora do acampamento. De Fort e Burnett já representavam uma perda considerável. Se mandasse procurar os dois cientistas, teria que dispensar outros homens.

Voltou à cúpula de comando e encontrou o sargento Luttrop com todo o equipamento de combate.

— Quero perguntar onde devemos tomar posição, senhor — perguntou o homem em voz alta.

Herisch contemplou a figura robusta.

— O senhor não está em manobras, sargento — disse. — Aguarde a chegada dos blues, e o senhor verá que cada um de nós tem de formar um exército.

Luttrop mordeu o lábio inferior. Ao que parecia, estava refletindo sobre a maneira pela qual ele sozinho poderia desempenhar o papel de um exército.

— Dê o fora! — ordenou Herisch. — Quando chegar a hora, o senhor receberá suas ordens.

Luttrop resmungou alguma coisa sobre ações a serem desenvolvidas com cientistas incompetentes e retirou-se.

O cadete Meisnitzer, que também era cibernético, estava controlando os aparelhos de rastreamento.

Herisch fitou-o com uma expressão indagadora e Meisnitzer limitou-se a abanar a cabeça. O coronel suspirou. Parecia não fazer muita questão de que os gatasenses chegassem de noite. Isso só tornaria sua tarefa mais difícil.

Depois de algum tempo o Tenente Pashaven entrou, respirando com dificuldade.

— Tudo em ordem, senhor — disse. — No acampamento todo mundo está bem acordado.

Herisch confirmou com um gesto e dirigiu-se ao seu leito simples. O perfil de Meisnitzer desenhava-se nitidamente diante dos aparelhos de rastreamento fortemente iluminados. Os controles brilhavam como se fossem olhos de monstros pré-históricos. Herisch abriu o capacete e respirou profundamente. Deixou-se cair para trás.

A próxima chegada dos blues representava o maior problema, mas seus pensamentos vagavam constantemente em torno de De Fort e Burnett. Perguntou a si mesmo o que os poderia ter levado a abandonar o acampamento. Apesar de seu excelente treinamento militar, o Coronel Herisch era antes de tudo um cientista, e acreditava ser capaz de compreender quando aqueles homens inexperientes se envolvessem em dificuldades.

De Fort já estivera em outros planetas, mas não estava no pleno gozo de suas faculdades mentais. E Burnett era um jovem sobre o qual não sabia quase nada.

“Estou me preocupando sem motivo”, pensou Herisch e fechou os olhos.

De repente a porta da cúpula abriu-se, e o Dr. Kerrick entrou, pisando fortemente. Assim que fechou a porta atrás de si, Pashaven apagou a luz. Kerrick parecia zangado e preocupado.

— Estão faltando quatro das nossas bombas — disse.

Herisch olhou para o relógio. O dia amanheceria dali a três horas.

— Aposto que estão com Burnett — disse Kerrick, enquanto os outros se mantinham em silêncio.

— Ou com De Fort — disse Herisch com a voz tranqüila e levantou-se.

— Devemos procurá-las — sugeriu Kerrick. — Envie imediatamente um grupo de homens bem equipados.

Herisch esforçou-se para compreender a desconfiança daquele homem. Por estranho que pudesse parecer, não tinha o menor ressentimento para com Burnett. Não era capaz de acreditar que o químico pudesse ter levado as bombas para fora do acampamento. Precisava abafar a raiva de Kerrick e evitar que o cientista conseguisse convencê-lo a liberar alguns homens.

— Ainda temos quarenta e seis bombas — disse em tom tranqüilo. — Devem chegar.

Kerrick praguejou de forma pouco acadêmica.

— As quatro bombas que estão faltando deixam-me mais preocupado que toda a frota dos blues — disse.

 

As luas que se encontravam próximas à linha do horizonte foram empalidecendo, e uma faixa prateada surgiu no nascente. Fazia muito frio no interior da caverna. Burnett encostou-se à parede, sacudido por calafrios, embora a rocha não lhe fornecesse nenhum calor.

De Fort mantinha-se imóvel junto ao canhão e olhava para o acampamento. Olhou para trás de repente.

— O dia está raiando — disse.

— Quer dizer que a hora da execução de sua idéia maluca está se aproximando — respondeu Burnett ainda rouco.

 

A gigantesca nave-disco acompanhava o movimento de rotação do planeta. Sua superfície revestida de molkex refletia em cheio a luz do sol Vagrat. Para o molkex as temperaturas extremamente altas e baixas não representavam o menor perigo.

Os olhos de gato do comandante contemplavam a tela situada acima da poltrona de comando com uma aparente insensibilidade. Suas mãos seguravam firmemente o leme.

Os sinais de identificação do verme do pavor continuavam a sair dos receptores. Agindo com a segurança a que estava habituado, Leclerc tirou a nave da órbita que estava descrevendo e a fez descer lentamente. Enquanto o sol iluminava a superfície do planeta, Leclerc foi baixando a nave em espirais amplas.

Sabia que o quadro que teria pela frente não seria nada belo. Um mundo devastado pelos gafanhotos córneos não oferecia uma visão muito agradável.

Mas isso não importava. Só teria de executar um trabalho de rotina, e além disso não tinha a menor simpatia pelos vermes do pavor. Sabia que esses monstros seriam destruídos assim que os gatasenses estivessem em condições de obter a matéria-prima do molkex por via sintética. Os cientistas dos blues trabalhavam febrilmente na solução do problema, a fim de que seu povo não fosse mais obrigado a colocar mundos preciosos à disposição dos vermes do pavor.

Mas muito tempo ainda se passaria antes que se pudesse pôr um paradeiro na disseminação dos monstros.

Por enquanto o mais importante era destruir os seres que viajavam em naves esféricas. Haviam encontrado outro império, cujas espaçonaves eram bem melhores que as suas. Mas os blues possuíam a vantagem enorme representada pelas blindagens de molkex.

Leclerc sabia perfeitamente que sem o molkex estariam indefesos diante da raça estranha. Por isso teriam que desferir o golpe decisivo antes que os representantes dessa raça descobrissem uma arma capaz de romper a blindagem das naves-disco.

Nem todas as naves dos gatasenses possuíam o manto protetor. Por isso os blues sempre haviam colocado as naves de molkex nas primeiras linhas durante as batalhas espaciais. As naves menos protegidas avançavam assim que se abrissem as primeiras clareiras nas filas do inimigo.

As primeiras imagens da superfície de Tauta apareceram na tela. Conforme Leclerc esperara, toda a beleza desse mundo fora roubada pelos gafanhotos gigantes.

Leclerc transmitia calmamente suas ordens.

— Emitir sinal de chamada — ordenou.

Os gatasenses ainda acreditavam que os vermes do pavor eram seres um tanto primitivos. Não conheciam o verdadeiro grau de inteligência desses lagartos gigantes. Por isso as naves-disco costumavam emitir sinais de chamada assim que desciam num planeta em que havia um ou mais vermes do pavor. Era o sinal para que os monstros se aproximassem da nave.

Leclerc não pensava em termos humanos nem sentia como um homem. Mas a repugnância que sentia diante da idéia de recolher a bordo um verme do pavor não era muito diferente da repugnância que se apodera de um terrano que vê pela primeira vez uma criatura dessa espécie.

Leclerc olhou para o altímetro. Se o verme do pavor que se encontrava em Tauta não fosse completamente estúpido, a esta hora já deveria saber que alguém vinha buscá-lo.

O diâmetro horizontal da nave de Leclerc era de quase mil metros. Era uma nave gigantesca até mesmo segundo os padrões terranos.

O comandante gatasense não tirava os olhos da tela de imagem. A qualquer momento esperava ver o corpo de lagarta do verme do pavor saltar sobre o chão desértico.

— São dois, comandante! — exclamou o oficial que ocupava o posto de observação.

Leclerc começou a girar furiosamente os botões da tela, para obter uma imagem ampliada.

— Dois vermes do pavor bem embaixo da nave! — exclamou o mesmo homem.

Por estranho que isso possa parecer, Leclerc não desconfiou de nada. Era tão ignorante em relação ao grau de inteligência daqueles seres que a idéia de que poderia entrar numa armadilha nem lhe veio à mente. Só se sentia aborrecido pela falta de habilidade dos dois monstros. Só um dos vermes do pavor havia irradiado o sinal de identificação. O outro manteve-se em silêncio.

Finalmente Leclerc reconheceu os dois vermes gigantes na tela. Um dos futuros passageiros de sua nave era bem maior que o outro, mas isso também não deixou Leclerc preocupado. Nem sequer teve a idéia de fazer um exame sistemático da área que se estendia embaixo da sua nave esférica. Para ele os dois vermes do pavor eram os únicos seres vivos que se encontravam em Tauta.

Ainda não sabia que pagaria pelo erro com a própria vida...

 

Se havia um ponto fraco em seu plano, era o verme do pavor Tommy, que acabara de sair do ovo. Pedro sabia perfeitamente que todo recém-nascido de sua raça ficava preso às velhas tradições, que para ele havia tabus de que dificilmente conseguia livrar-se. Para Tommy os blues eram os chamados benévolos, aos quais devia dedicar sua gratidão.

Pedro esperava que o tempo que passara em companhia de Tommy, depois do nascimento deste, seria suficiente para fazer com que o mesmo se colocasse do lado dos terranos, mas não tinha certeza absoluta.

Lembrava-se perfeitamente do dia de seu nascimento. Quanto tempo não tivera de lutar consigo mesmo antes de atacar e ocupar a nave dos benévolos. Fora o primeiro a entrar em contato com os terranos. Era bem verdade que o mérito disso pertencia mais à sua raça que a ele mesmo, pois tivera a intenção de matar os homens que se encontravam com ele na nave de molkex.

Pouco tempo se tinha passado depois disso, mas parecia que o episódio se situava num passado longínquo.

Muito antes que Leclerc mandasse irradiar o sinal de chamada, Pedro já sabia que dentro em breve os blues desceriam no planeta.

— Nosso plano é muito simples — transmitiu para Tommy. — Atraímos a nave dos blues para o vale situado abaixo do acampamento terrano. Desta forma nossos aliados terão uma boa oportunidade de disparar suas armas contra a nave de molkex.

Tommy transmitiu sua concordância, mas isso naturalmente não significava que realmente pensava assim.

Pedro imaginou que antes da descida dos benévolos, que poderiam ser tudo menos benévolos, não poderia descobrir quais seriam as reações de Tommy. Só lhe restava fazer votos de que o recém-nascido desse mais valor aos conselhos de um verme do pavor experimentado que às tradições e ao saber coletivo já existente na época do nascimento.

Na oportunidade em que pela primeira vez disparara seus tiros energéticos contra os blues, Pedro não acreditara que sua ação desencadearia uma revolução entre os seres de sua espécie. Atualmente os terranos eram aliados melhores que os benévolos com os quais só colaboravam aparentemente.

E agora, depois de tanto tempo, a revolta que ele mesmo iniciara num mundo diferente ainda poderia tornar-se fatal para ele. Não só ele, mas também os terranos que se encontravam no planalto, estariam em perigo se Tommy os traísse.

Pedro procurou prever o que esperava sua raça. A mesma dependia das naves espaciais de civilizações orientadas num sentido mais técnico, para que os indivíduos fossem levados a planetas em que poderiam pôr seus ovos. Ninguém gostaria disso, nem mesmo os terranos.

Haveria de chegar o dia em que surgiria uma crise mais séria, pensou Pedro, pois um belo dia não haveria mais naves nem mundos para eles, algum dia uma raça lhes daria um não categórico.

O problema do transporte representava uma carga mental para cada verme do pavor.

Todos refletiam sobre isso, mas não encontravam nenhuma solução. Não tinham possibilidade de construir suas próprias naves, pois suas garras só permitiam a realização dos trabalhos mais rudimentares.

O que adiantava seu espírito superior, se o mesmo estava metido num corpo imprestável?

Pedro voltou a transmitir o sinal de identificação. Naturalmente já fora localizado pelos benévolos, mas devia incutir nos mesmos a crença de que se tratava de um ser que agia de forma mais ou menos instintiva.

Tommy, o jovem verme do pavor, talvez viesse tornar ainda mais difícil seu problema de transporte. Se revelasse o plano dos terranos, os blues ficariam sabendo do jogo ambíguo realizado por seus passageiros. Além disso os terranos responderiam à traição, denunciando o tratado que haviam celebrado com os vermes do pavor.

Pedro avistou a nave, que era uma mancha escura no céu matutino. No primeiro instante assustou-se. Não esperara que uma das maiores naves dos benévolos fosse descer no planeta. Com isso a tarefa dos cem terranos que se encontravam no planalto tornava-se mais difícil.

— Pronto! — transmitiu para Tommy. — Vamos retirar-nos para o vale.

O jovem verme do pavor acompanhou-o prontamente. Não parecia ter nenhuma dúvida. Pedro sentiu-se satisfeito por não saber o que se passava na mente de um recém-nascido. Seria preferível que tudo acontecesse muito depressa. Qualquer demora poderia levar Tommy a refletir. É as reflexões poderiam fazer com que sucumbisse às antigas concepções. Dirigiram-se ao vale em grandes saltos.

Pedro gostaria de saber quanto tempo levariam os gatasenses para notar o acampamento terrano. De repente sentiu-se fraco e cansado. Já estava saturado de lutar e matar. Muita matança fora feita depois do início de sua revolta, mas nem por isso a solução do problema do transporte parecia mais próxima.

Pedro teve suas dúvidas de que a matança ininterrupta pudesse melhorar a situação dos vermes do pavor.

Mas estavam colocados entre duas frentes. Quando os dois impérios entrassem em choque, os vermes do pavor não escapariam ilesos. Pedro desejava a vitória dos terranos, mas não acreditava na mesma.

As naves de molkex dos blues eram indestrutíveis.

A nova arma dos terranos não modificaria este dado.

Quando Pedro voltou a olhar para cima, a nave era uma sombra gigantesca, que deslizava ameaçadoramente sobre o terreno. Pedro viu Tommy abaixar-se instintivamente e suas preocupações cresceram.

 

— Pelos planetas da Galáxia — exclamou Pashaven, profundamente abalado. — É a maior nave-disco que já vi.

Estavam parados na entrada da cúpula de comando, olhando para o crepúsculo matutino. A nave de molkex foi deslizando para o vale no qual deviam estar os dois vermes do pavor.

Herisch confirmou com um gesto. Esperavam uma nave menor. Não pensavam que os blues viessem numa nave a bordo da qual devia haver pelo menos dois mil gatasenses. O coronel perguntou a si mesmo se não seria preferível suspender a operação. Ainda havia tempo para avisar os vermes do pavor.

Mas enquanto ainda estava entretido neste pensamento, compreendeu que já não havia como voltar atrás. Ali estava a nave com blindagem de molkex, na qual poderiam experimentar as bombas-foguete de H2O2.

— O que vamos fazer? — perguntou Pashaven. Em sua voz vibrava um medo indisfarçável.

— Cumpriremos o plano — disse Herisch.

Fazia votos de que sua voz soasse mais firme que a de Pashaven. Ouviu um ruído a seu lado. O cadete Meisnitzer aproximou-se.

— Só quero verificar se aqui fora a nave parece tão grande como na tela — disse como quem pede desculpas e voltou a desaparecer no interior de sua cúpula.

— Todos os canhões e lança-foguetes estão guarnecidos? — perguntou Herisch.

— Sim senhor — respondeu Pashaven, sem tirar os olhos da nave que baixava cada vez mais. — Tudo em ordem.

Ergueu o braço em direção ao disco, e perguntou:

— Quando seremos descobertos?

— Faço votos de que não seja logo — respondeu Herisch. — Os dois vermes do pavor saberão como distraí-los.

Herisch não se iludia quanto ao poder de combate de sua tropa. Se as bombas de água oxigenada não produzissem o efeito desejado, os gatasenses ficariam à vontade para matá-los a tiros ou aprisioná-los.

— Quem dera que isso já tivesse passado — observou Pashaven. — Será que não deveríamos pedir auxílio à Asubaja?

— Se os blues notarem que há algo de errado por aqui, eles se retirarão, e nós perderemos nossa chance.

Pashaven reconheceu que já não havia como deter a marcha do desastre. Conformou-se com a situação e resolveu fazer com que o inimigo pagasse o preço mais alto possível por sua vida.

Foi em companhia de Herisch ao lugar em que estavam montados os lança-foguetes, dos quais seriam disparadas as bombas especiais. Todos os cientistas estavam reunidos neste lugar. Os homens que guarneciam as peças estavam literalmente cercados.

Herisch ordenou em palavras ásperas que os homens se espalhassem e avançou para o lugar em que estava o Dr. Kerrick. O rosto do cientista estava pálido.

— Não sou medroso — afirmou o Dr. Kerrick. — Mas não podemos deixar de reconhecer que as chances estão do outro lado.

— Resolveu fazer uma demonstração de humor fúnebre, doutor? — perguntou Herisch sem o menor sarcasmo.

— De forma alguma — respondeu Kerrick. — Mas fico me perguntando se nossas bombinhas serão capazes de arranhar este colosso.

Herisch não respondeu. Aproximou-se de um dos canhões e olhou através da mira óptica. Também viu os dois vermes do pavor. Ao que parecia, estavam esperando que a nave tocasse a superfície de Tauta.

— O senhor dará ordem para abrir fogo? — perguntou o Dr. Sharoon.

— Quanto a isso não tenha a menor dúvida — respondeu Herisch.

Certificou-se de que tudo correria sem incidentes. Assim que a nave de molkex tocasse o solo, metade dos foguetes especiais seria disparada.

Herisch fazia votos de que não tivessem nenhuma decepção. Pashaven entregou-lhe um binóculo, para que pudesse acompanhar os acontecimentos no vale. A nave dos gatasenses estava flutuando cem metros acima da superfície do planeta. Ao que parecia, o seu comandante ainda hesitava em dar a ordem de pouso. Herisch mordeu a ponta de língua, de tão nervoso que estava. O disco gigantesco continuou a baixar. Os dois vermes do pavor correram ao encontro do inimigo em grandes saltos. Estavam desempenhando muito bem o seu papel.

Herisch teve a impressão de que ouvia o ruído ensurdecedor provocado pelos monstros no planalto em que se encontrava. Transferiu-se de forma tão realística ao teatro dos acontecimentos que chegou a sentir o impacto das toneladas do corpo dos vermes do pavor.

A nave-disco pousou em meio a uma nuvem de pó. Herisch olhou para os lados e viu rostos obstinados embaixo dos capacetes, rostos nos quais se lia uma expectativa feroz.

É assim que começa uma guerra cósmica”, pensou. Sentiu por alguns segundos o poder que tinha nas mãos, mas logo ficou muito tranqüilo. Então ordenou:

— Fogo!

 

De Fort, que se encontrava mais próximo à entrada, foi o primeiro a ver a nave-disco. Recostou-se levemente na cadeira de rodas e virou a cabeça feia na direção de Burnett.

— Estão chegando — disse com uma evidente satisfação.

O tempo passara com uma rapidez apavorante — ao menos para Burnett. Viu-se colocado diante da alternativa de manter-se passivo, à espera do que estava para acontecer, ou intervir nos acontecimentos.

Qualquer ataque ao aleijado só poderia ser um ato de desespero. De Fort mantinha a arma térmica pronta para disparar. Controlava constantemente os controles do canhão, como se receasse que alguma coisa não pudesse funcionar.

Burnett levantou-se cuidadosamente. Sentiu os joelhos moles. Não era um lutador experimentado, pois até então nunca enfrentara um conflito sério, porém agora as circunstâncias exigiam uma ação resoluta. Naquele momento não importava nem um pouco que soubesse distinguir com os olhos vendados, só pelo gosto, sessenta coquetéis diferentes. Isso lhe rendera muita admiração nos bares terranos, mas aqui tal capacidade era completamente inútil.

De repente desejava ser como Jicks. O homem da Segurança Galáctica sabia impor-se. Gostaria de saber se De Fort realmente o mataria, caso o agente resolvesse atacá-lo.

Burnett caminhou em atitude indiferente para perto de De Fort. Este levantou a arma térmica e deu uma risada malvada.

— Pare! Não se atreva a chegar mais perto.

Burnett fez como se não o tivesse ouvido. Seu rosto exprimia um espanto enorme. Levantou o braço e apontou para fora da caverna.

— São duas naves! — gritou em tom de surpresa.

A cabeça de De Fort virou-se abruptamente — e Burnett saltou.

Ouviu-se um ruído surdo e desagradável, quando Burnett colidiu com De Fort. A cadeira de rodas tombou e De Fort caiu para fora da mesma. Durante a queda atirou contra Burnett, mas só acertou a parede lateral da entrada da caverna. Burnett pegou a mão que segurava a arma e empurrou-a para baixo. De Fort desenvolveu forças incríveis. Girou juntamente com Burnett. Bateram na armação em que De Fort prendera o canhão. De repente a cadeira de rodas rolou e caiu sobre as pernas de Burnett. Este bateu com o braço do inimigo contra o suporte do canhão. De Fort deixou cair a arma, soltando um grito.

Burnett procurou deitar em cima do inimigo, mas mesmo fora da cadeira de rodas o aleijado revelava a agilidade de uma cobra, pelo menos enquanto ambos estavam deitados no chão. Burnett procurou empurrar a arma para longe com os pés, mas a cadeira de rodas prendia suas pernas de tal forma que mal conseguia movê-las. De Fort gemeu não conseguindo quase respirar, porém a musculatura de seus braços tinha o dobro da força da de um homem normal. Burnett teve a impressão de estar preso num torno.

Por algum tempo ficaram rolando pelo chão, sem que qualquer um deles conseguisse uma vantagem. De repente De Fort fez um movimento rápido em direção ã garganta de Burnett. O químico recuou instintivamente, dando suficiente liberdade de movimento a De Fort para pegar a arma.

Burnett viu a morte diante dos olhos quando o cano da arma foi girando lentamente em direção ao seu rosto.

De repente, porém, o peso da cadeira de rodas sobre as pernas de Burnett cedeu e o veículo foi escorregando em direção à cabeça dos dois. De Fort disparou no momento em que seu braço recebeu um golpe inesperado da cadeira de rodas, sendo atirado para o lado.

De Fort atirara no próprio peito!...

Burnett soltou um grito de pavor. Sombras vermelhas agitavam-se diante de seus olhos. Voltou cambaleante para o interior da caverna e vomitou. A fumaça e o mau cheiro enchiam o ar.

Burnett teve a impressão de que ouvira o rangido de rodas na rocha. Aos poucos foi recuperando o autocontrole. Olhou para a entrada da caverna. De Fort jazia calmamente embaixo da cadeira, meio empurrado para dentro do canhão. Seus olhos arregalados já não demonstravam o ódio que antes o dominara.

Burnett saiu tateando as paredes da caverna em direção ao cadáver e arrastou-o para o interior da mesma. Como De Fort disparara o tiro energético contra o próprio corpo a uma distância de apenas alguns centímetros, o campo defensivo revelara-se inútil.

Burnett tropeçou sobre os destroços da cadeira de rodas quando ia saindo para voltar ao planalto, e por acaso olhou para o vale.

Viu que a nave-disco acabara de pousar... e também que a batalha já tinha começado.

Ficou parado por algum tempo. Era um jovem sobre o qual irrompiam ininterruptamente novas emoções. Só a muito custo conseguiu pôr em ordem seus pensamentos.

Voltou à caverna e começou a colocar o canhão na antiga posição. O rosto de Burnett parecia mais magro e mostrava agora um traço obstinado. Os ruídos da batalha chegaram até ele. Não perdeu tempo olhando para o local dos acontecimentos. Aprontou o canhão às pressas e carregou-o com as quatro bombas roubadas.

Voltou a colocar o cinto do traje de combate. Foi para junto do canhão e ajustou cuidadosamente a mira óptica.

Depois disso sentou no chão e pôs-se a esperar, enquanto no vale a luta mortífera entre os blues e os terranos atingia o ponto culminante.

 

Leclerc era um bom comandante, e também um comandante que possuía certa ligação íntima com sua nave. Qualquer ruído lhe dizia alguma coisa a respeito do que estava acontecendo no interior da mesma. Sentia uma dor física quando um dos propulsores falhava por uma fração de segundo, quando um gerador deixava de fornecer bastante energia ou quando a imagem projetada numa tela começava a tremer. Leclerc praticamente era uma peça da nave, a cabeça de um conjunto bem ajustado e dominador das coordenadas.

Quando deu a ordem final para pousar, sentiu-se dominado por um sentimento de insegurança, que parecia ser infundado, mas do qual não conseguiu livrar-se. Viu os dois vermes do pavor saltarem em direção ao disco. Atrás deles desenhava-se uma paisagem desolada. Nada indicava que seus pressentimentos tivessem alguma razão de ser.

Leclerc sentiu a nave pousar suavemente. Ficou satisfeito com o pouso bem executado.

Levantou-se e atravessou a sala de comando.

Naquele instante a voz do oficial de vigilância confirmou seus pressentimentos vagos.

— Estamos sendo atacados, comandante!

Leclerc virou-se abruptamente, contorcendo o corpo magro. A cabeça de prato parecia não resistir ao peso.

Leclerc correu de volta para seu lugar. Pontos luminosos apareceram na tela do sistema de observação de superfície.

— São foguetes! — gritou Leclerc com a voz estridente. — Alguém está disparando foguetes contra nós!

Todos os aparelhos de rastreamento da nave-disco estavam trabalhando a plena força. Dentro de poucos segundos mostraram o acampamento terrano situado no planalto, acima do vale.

Mas já era tarde. Antes que Leclerc tivesse tempo de dar uma ordem, as primeiras das trinta bombas-foguete de H2O2 estouraram sobre a blindagem de molkex da nave-disco.

As explosões foram relativamente inofensivas. Mas assim que os blues responderam ao fogo, outro efeito, muito mais terrível começou a produzir-se, espalhando o pânico entre os homens de Leclerc.

 

Acima de suas cabeças trinta objetos voadores precipitaram-se sobre a nave dos blues. Antes que desse o próximo salto, saberia se a nova arma dos terranos era eficiente. Pedro viu que Tommy continuava sempre a seu lado e já não representava nenhum perigo. Fora arrastado no turbilhão dos acontecimentos. Estava resignado e acompanharia o indivíduo mais velho de sua raça na luta.

Pedro previu que participaria do início de um conflito cósmico de proporções gigantescas, que envolveria vários impérios estelares. Não se tratava de uma luta entre dois planetas ou de um atrito entre dois sistemas solares. Estava assistindo às escaramuças iniciais que seriam seguidas pelo choque de dois impérios gigantescos.

Uma guerra entre os terranos e os blues deixaria em polvorosa metade da Galáxia, passaria como um incêndio devastador sobre os planetas habitados, a não ser que uma das partes conseguisse uma decisão rápida.

A batalha que se desenvolvia em Tauta era um tipo de experiência, com base na qual se poderia chegar a uma conclusão sobre a evolução das lutas futuras.

Pedro deu o salto seguinte. Viu o corpo de Tommy atravessar o ar rarefeito a seu lado. Antes que voltassem a tocar no chão, as armas terranas começaram a produzir seus efeitos na blindagem de molkex da nave-disco.

Ninguém por mais atencioso e atento que seja encontrará na Enciclopédia da Humanidade um relato detalhado sobre a batalha de Tauta. Não porque os cronistas não tivessem dado importância a esta luta decisiva, mas sim porque a mesma se desenvolveu com uma rapidez extraordinária em vários lugares. Não houve simplesmente uma troca de tiros entre o acampamento dos terranos e a nave-disco. Depois de alguns minutos ambas as partes se dividiram em numerosos grupos, e cada um deles experimentou os horrores da luta travada com armas supermodernas.

Mesmo o historiador cuidadoso terá dificuldade de escolher, entre as inúmeras histórias, aquela que talvez retrate as lutas que decidiram a batalha de Tauta. Outra dificuldade consiste em fornecer às pessoas interessadas na História a seqüência dos atos de guerra capaz de retratar o curso da batalha lendária.

É possível que os cronistas atribuam um valor exagerado aos atos de determinados grupos, talvez eles se tenham deixado influenciar pela personalidade de certos combatentes. Ninguém seria capaz de emitir um juízo sobre este ponto nos dias que correm. A gigantesca biblioteca que compreende a Enciclopédia da Humanidade, a maior obra histórica que já foi escrita, não pode incluir todos os detalhes que assumiram alguma importância.

Desta forma confundem-se a lenda e a realidade, a coragem e a covardia, a vitória e a derrota, formando o resultado final daquela batalha inesquecível.

O leitor interessado na manipulação rigorosa da tradição histórica pode recorrer ao volume 2.114 da Enciclopédia da Humanidade, página 456, parágrafo oito, onde se lê textualmente:

 

Depois de uma violenta ação defensiva do inimigo, os terranos saíram vitoriosos em Tauta.

 

Na verdade as coisas se passaram como relatado a seguir.

 

— Acertou! — berrou Herisch. — Acertou! — voltou a dizer.

Depois disso as bombas-foguete estouraram numa seqüência tão rápida sobre a blindagem de molkex da nave inimiga, que a voz de Herisch falhou. Os gritos de triunfo dos cientistas e soldados ressoaram no alto-falante de seu capacete. Inclinou-se para a frente, a fim de enxergar melhor através da mira óptica. E o que viu fez com que prendesse a respiração. O líquido contido nas bombas, formado por uma mistura de água oxigenada e hormônio B, espalhou-se com uma rapidez alucinante sobre a camada de molkex. Parecia ter uma tendência irresistível de cobrir a blindagem com uma camada finíssima.

Herisch acompanhou o fenômeno. Seus dedos trêmulos de nervosismo quiseram fazer um ajuste mais preciso da mira óptica, quando alguma coisa o arrastou com uma força irresistível pelo chão. Conseguiu segurar-se num dos canhões.

— Estão atirando em nós! — anunciou Panshaven com a voz em pânico.

O planalto parecia transformado num disco chamejante. No centro do acampamento, aproximadamente no lugar em que fora construída a cúpula de comando, um lampejo ofuscante transformou tudo em destroços.

Herisch conseguiu levantar-se, apoiado no canhão, e olhou para o vale. Outra salva disparada pelos gatasenses descarregou-se alguns quilômetros atrás do acampamento, rompendo o ar numa explosão retumbante e criando uma cortina branco-azulada feita de energia indômita. Todo apavorado, Herisch procurou imaginar o que teria acontecido se o disparo tivesse atingido o alvo.

Conseguiu colocar o capacete à frente da mira óptica do canhão. O vale estava transformado num verdadeiro inferno. De repente a nave de molkex parecia ter adquirido vida. O material, que era considerado indestrutível, fervia e borbulhava, descendo pelo casco de aço como se fosse água, enquanto os vapores pareciam obscurecer o céu.

A voz rouca de Herisch transmitiu a sensação de triunfo para dentro do microfone, embora tivesse certeza de que ninguém conseguiria entendê-lo. Atrás dele os feridos rastejavam pelo chão, enquanto outros já se tinham levantado de novo e guarneciam os canhões para bombardear a nave que fora privada da blindagem.

De repente o Dr. Kerrick colocou-se a seu lado e bateu com o punho fechado em seu ombro.

— A blindagem está sendo rompida! — gritou. — Veja só, coronel. A substância provoca a dissolução do molkex.

A nave dos gatasenses parecia desnudada. Em vários lugares o molkex pendia da parede de aço como se fosse uma horrível erupção. Os disparos das armas terranas atingiam a nave, mostrando como a mesma era fraca quando não dispunha da blindagem de molkex.

Embaixo da nave fervia um lago de molkex. O fenômeno fez com que Herisch se lembrasse de uma indômita paisagem vulcânica. A massa tornava-se cada vez mais fluida.

O tiro seguinte dos gatasenses acertou o alvo, rasgando o solo numa largura superior a cem metros. A terra ardeu e desmanchou-se. A vala gigantesca estendia-se até o fim do planalto, engolindo pelo menos sete cúpulas dos terranos.

Uma feia cicatriz atravessava o acampamento de lado a lado. Os canhões que continuavam intactos foram levados do lado oposto do planalto para o lado voltado para o vale. Herisch viu-se cercado por homens que gemiam e praguejavam, mas em sua voz não havia nenhuma resignação, mas apenas a vontade inabalável de transformar o êxito inicial numa vitória.

Dentro de alguns minutos todo o molkex foi removido da nave-disco. Nem as finas paredes de aço, nem o campo defensivo de reduzida potência poderiam proteger a nave contra as armas energéticas dos terranos. A face maior do disco foi perfurada em muitos pontos.

A fervura do lago de molkex foi diminuindo e a massa endureceu, transformando-se numa bola gigantesca.

Depois disso a massa ergueu-se do solo e subiu em velocidade alucinante para o céu matutino. Herisch teve a impressão de estar sonhando. Mas logo se lembrou do “efeito drive” de que Danger lhe falara. Aqui deviam estar em ação as mesmas forças misteriosas.

Antes que tivesse tempo de refletir sobre isso, a bola gigantesca desapareceu de seu campo de visão. Herisch ficou contrariado ao constatar que mais uma vez estavam sem molkex para suas experiências. Mas lembrou-se da Asubaja. Talvez o Tenente Wetzler conseguisse capturar a bola no espaço.

— O senhor viu o que eu vi? — perguntou o Dr. Kerrick, dirigindo-se ao coronel.

Herisch limitou-se a confirmar com um gesto, sem dar atenção ao espanto do cientista. Outras pessoas cuidariam da solução do enigma, pois eles ainda tinham seus problemas com os tripulantes da nave-disco.

Mandou que um dos oficiais entrasse em contato com a Asubaja, a fim de preparar Wetzler para o estranho objeto que dentro em breve correria em disparada pelo sistema de Vagrat.

Lá embaixo, no vale, os dois vermes do pavor abriram fogo contra a nave dos gatasenses. Os tiros energéticos que dispararam com seus emissores orgânicos abriram grandes buracos no casco da nave.

— Preparar três blindados voadores! — gritou Herisch. — Dirijam-se imediatamente ao vale e abram fogo contra o inimigo!

As tripulações dos veículos blindados voadores saíram correndo. Dali a pouco os planadores de aspecto tosco ergueram-se do solo e voaram em alta velocidade em direção ao vale.

Herisch dividiu os homens restantes em quatro grupos e mandou que se aproximassem cautelosamente da nave inimiga, usando seus trajes de combate. Parte dos soldados e cientistas ficou no planalto. Os blues continuavam atirando a partir da nave, mas o fogo era pouco concentrado, motivo por que os impactos eram incapazes de causar prejuízos diretos.

Herisch ligou o propulsor de seu traje de combate e desprendeu-se do solo. No mesmo instante viu os gatasenses abandonarem a nave em chamas. Assustou-se ao ver quantos inimigos saíam das comportas e dos poços de elevador. Muitos deles usavam trajes de molkex. O coronel felicitou-se por ter resolvido guardar algumas das bombas-foguete. Haveria de chegar o momento em que teria muita necessidade delas.

O vale estava coberto de fumaça e vapores. A nave-disco era quase invisível; estava envolta em chamas e brumas.

Herisch regulou o propulsor de seu traje de combate para a potência máxima e saiu voando em direção ao vale à frente de uma dezena de homens.

 

Em comparação com a luta travada sob o gelo do décimo quarto planeta do sistema de Verth, a batalha parecia marcada pela infelicidade. Leclerc logo percebeu o efeito dos foguetes do inimigo sobre a blindagem da nave.

Sua ordem de abrir fogo veio tarde demais para inverter a situação. O comandante ficou impotente ao ver a nave perder o envoltório que lhe conferia segurança e ficar exposta aos ataques ininterruptos lançados contra ela. Além disso, havia o bombardeio dos dois vermes do pavor, que certamente haviam montado a armadilha.

Se Leclerc não estivesse tão ocupado com os problemas ligados à sua segurança, ele teria cuidado antes de mais nada da destruição dos dois traidores. Estava provado que os vermes do pavor deveriam ter sido exterminados há muito tempo. Teriam de contentar-se com o molkex de que já dispunham. Ao que parecia, estes seres belicosos se colocavam do lado do outro império.

Leclerc começou a suspeitar de que estes seres desajeitados não eram tão primitivos como até então fizeram acreditar aos blues.

A nave foi sacudida por fortes explosões. Leclerc sabia que não poderiam defender a nave por muito tempo. Mandou que os homens que guarneciam os canhões abrissem fogo contra o acampamento inimigo. A perda da blindagem de molkex representava uma enorme vantagem psicológica para o inimigo. Leclerc nem teve necessidade de examinar os rostos dos homens que o cercavam para saber que o pânico era iminente. Tinham confiado demais na blindagem indestrutível. E agora a auréola da invencibilidade acabara de ser destruída.

Se Leclerc fosse capaz de exprimir seus sentimentos no rosto, talvez teria esboçado um sorriso triste. Uma informação apavorante atrás da outra era trazida ao seu conhecimento.

Mandou que os tripulantes colocassem trajes protetores. Havia trajes de molkex para cerca de trezentos deles. Possivelmente ainda haveria uma possibilidade de derrotar o inimigo do lado de fora.

Leclerc saiu da sala de comando e correu pelo corredor principal, em direção à eclusa. Viu que a mesma fora perfurada por um impacto direto. As chamas subiam pelas paredes. O cheiro do revestimento em chamas fez com que Leclerc recuasse.

Não havia como escapar por ali. Teriam de utilizar as eclusas laterais e as dos fundos. Leclerc encontrou um grupo de trinta gatasenses, que fugiam desordenadamente pelo corredor. Sua voz acostumada a dar ordens os deteve.

— Temos uma grande superioridade numérica sobre o inimigo — disse em tom de desprezo. — Perderemos a nave, mas não a batalha. Abandonem a nave e combatam o inimigo ao ar livre. Dividam-se e ataquem de todos os lados. Somos muito mais que eles.

Sua voz parecia tranqüilizar os homens. Saíram correndo para pegar os trajes de combate. Leclerc entrou num poço e desceu pelo mesmo até a eclusa de carga. Em redor da mesma acumulavam-se homens nervosos, que queriam sair. Leclerc ficou preocupado ao notar que muitos deles nem sequer estavam armados.

Gritou com eles e conseguiu pôr ordem em suas fileiras. Leclerc estava em toda parte ao mesmo tempo. Providenciou a distribuição das armas, cuidou para que os trajes de molkex fossem usados pelos homens mais capazes e fez com que a saída pela eclusa corresse sem incidentes.

Algum idiota desatinado ligou o ar-condicionado. Em vez de ar puro, o equipamento soprou fumaça para dentro do recinto. Os homens que ainda não haviam colocado seus trajes voltaram ao corredor tossindo. Leclerc atirou nos tubos de insuflação até que a fumaceira parasse.

Assim que se certificou de que na eclusa de carga estava tudo em ordem, voltou para a sala de comando. Um poço de deslizamento o fez avançar quatrocentos metros em três segundos.

Quando entrou correndo na sala de comando, não havia ninguém com exceção do oficial de vigilância.

Leclerc soltou um gemido. Aqueles covardes haviam fugido assim que perceberam que as coisas começavam a ficar sérias e o comandante não estava presente.

Leclerc olhou para as telas e viu que os terranos se aproximavam com três veículos voadores. Outros inimigos aproximavam-se pelo ar.

Leclerc ligou para as torres de canhões, mas ninguém respondeu ao seu chamado.

— O que é isso? — gritou para o oficial de vigilância. — Onde estão os artilheiros?

O homem não respondeu. Louco de raiva, Leclerc atravessou a sala de comando e deu um soco no ombro do oficial. O homem dobrou o corpo, amoleceu, girou em torno de si próprio, e caiu ao chão à frente de Leclerc.

Estava morto.

— Morreu de medo — ironizou Leclerc, desesperado.

Bem, se todos estavam abandonando a nave, ele mostraria aos estranhos do que um gatasense era capaz. Saiu da sala de comando a passos largos e usou o elevador mais próximo para subir à primeira torre de canhões. Os artilheiros estavam mortos em seus assentos. Um impacto perfurara o casco da nave e matara os homens na hora.

Ofegante, Leclerc segurou os pés do artilheiro mais próximo e puxou-o para fora do assento. Trabalhou que nem um louco. Arrastou os quatro homens para o corredor e só então teve tempo para lançar um olhar para fora pelas câmaras ópticas. O vale estava cheio de gatasenses apavorados que corriam para a frente das armas terranas.

O anel giratório do canhão energético estava emperrado. Leclerc arrancou uma barra de ferro do suporte e usou-a como alavanca. O canhão rangeu, mas acabou cedendo. Conseguiu colocá-lo numa posição mais ou menos adequada.

Um gatasense sem traje protetor entrou cambaleante. Dirigiu os olhos de gato para Leclerc e balbuciou algumas palavras incompreensíveis. O comandante agarrou-o e arrastou-o para dentro da torre de canhões. O homem estava quase louco de medo.

— Vamos! — gritou Leclerc, superando o ruído da batalha que entrava pela perfuração do casco. — Vamos abrir fogo contra uma das máquinas voadoras.

O homem choramingava enquanto ajudava a carregar o canhão. Leclerc desenvolveu a força de três homens adultos. Mais uma vez teve de usar a barra de ferro, mas finalmente conseguiu girar o canhão. Deu um empurrão no homem, colocando-o no lugar certo.

— Levante! — gritou.

Não esperou que a ordem fosse cumprida, mas disparou a carga inteira. Em meio à fumaça viu três aviões blindados se aproximarem. Nada parecia detê-los. As cúpulas giratórias da proa disparavam em direção aos gatasenses que atiravam desesperadamente.

Leclerc viu que a superioridade numérica em que tanto confiara estava desaparecendo rapidamente. Por enquanto não havia ordem no procedimento de seus homens. Teria que abandonar a nave e sair na frente deles para combater o inimigo.

De repente notou que do lado vinha um fogo concentrado contra os três aviões. Leclerc soltou um grito de alegria. Eram os homens que tinham saído pela eclusa de carga. Em sua maioria usavam trajes de molkex bem ajustados ao corpo.

Leclerc quis carregar mais uma vez o canhão, quando o maior dos dois vermes do pavor apareceu embaixo da torre e disparou uma carga inteira em sua direção. Leclerc teve a impressão de ter sido envolvido por um relâmpago. Uma torrente de fogo parecia atravessar seu corpo. Leclerc ainda sentiu quando foi atirado com toda força contra o canhão. O calor tornou-se insuportável. A abertura do casco aumentou para o dobro, mas Leclerc não chegou a perceber isso.

Naquele momento a parte dianteira da nave-disco explodiu, depois de um impacto direto na câmara de fusão de um dos propulsores.

Se Leclerc ainda estava vivo, morreu logo depois na explosão que abriu a nave em cima da torre de canhões e entortou as paredes de aço como se fossem de papel, tangendo um calor escaldante através dos corredores.

O corpo de Leclerc encontrou uma sepultura grandiosa — os destroços de uma das maiores naves-disco pertencentes à frota dos gatasenses...

 

A fumaça era tão densa que Burnett não viu nada além dos lampejos ofuscantes de novas explosões. O campo de batalha estava envolto num véu de bruma. O planalto também fora atingido várias vezes. Somente três das cúpulas continuavam intactas. Homens guarneciam os canhões que não tinham sido destruídos, mas não podiam arriscar-se a disparar em direção ao vale, pois correriam perigo de atingir os próprios companheiros.

Há alguns minutos Burnett vira subir o sol Vagrat acima da linha do horizonte sob a forma de um disco apagado, iluminando o quadro horrendo da guerra. Burnett detestava qualquer tipo de luta, mas aqui a existência da raça humana estava em jogo. Os combates que os homens travavam entre si eram uma coisa bem diferente das lutas pela própria existência a que os estranhos os forçavam.

Burnett sabia que até então os blues tinham exterminado qualquer raça que surgisse no seu caminho. Os homens teriam o mesmo destino, caso não se defendessem. Rhodan defendia a paz, mas os blues eram pretensiosos, suas naves de molkex os tornavam arrogantes. Só negociariam depois que seu mito de segurança tivesse sido quebrado.

Burnett teve de lutar constantemente contra o desejo de descer ao vale para participar da luta. Imaginava que ainda poderia ser útil lá em cima. Se um grupo de gatasenses conseguisse penetrar no acampamento, poderia intervir com o canhão. Neste caso teria de fazer boa pontaria, para que as quatro bombas de que dispunha fossem suficientes para decidir a luta.

Burnett olhou para o vale. O rádio de capacete não transmitiu nenhuma notícia que permitisse tirar alguma conclusão. O Coronel Herisch parecia estar preocupado unicamente em modificar constantemente a posição dos poucos homens de que dispunha, para não oferecer um bom alvo aos gatasenses.

De repente Burnett estremeceu.

A sua direita, num lugar em que as rochas formavam uma massa compacta, houve um movimento. Burnett inclinou-se para a frente para enxergar melhor. O que viu fez com que seu coração batesse mais depressa: cinqüenta blues com trajes de molkex estavam subindo em direção às cavernas, um atrás do outro.

Burnett agachou-se atrás do pequeno canhão. Naquele momento desejava que pudesse ser tão corajoso como o Dr. De Fort.

 

O Tenente Wetzler estreitou um dos olhos e procurou não demonstrar nenhuma surpresa.

— O que devemos procurar? — perguntou ao sargento Hastings.

— Uma gigantesca bola de molkex — respondeu Hastings sem abalar-se. — Recebemos notícia de Tauta de que a mesma está a caminho.

— E ninguém falou a respeito de aranhas gigantes de trinta pernas? — perguntou Wetzler em tom azedo.

— Não senhor. Por enquanto não. Quando a bola de molkex apareceu nas telas de rastreamento de matéria, Wetzler abandonou sua atitude de incredulidade. O bloco atravessou o anel de asteróides com uma velocidade fantástica e prosseguiu em direção ao centro da Via Láctea.

— Atrás dela! — gritou Wetzler. — Não acredito que consigamos alcançá-la, mas vamos tentar.

A Asubaja abriu caminho entre os fragmentos cósmicos e saiu para o espaço livre. A massa de molkex só aparecia nos aparelhos de rastreamento.

O cruzador pesado acelerou, penetrou no semi-espaço e começou a caçar a gigantesca bola de molkex impelida por forças misteriosas.

O sargento Luttrop procurou conformar-se com a idéia de que representava um exército que devia rechaçar o ataque do inimigo contra o planalto. Fitou atentamente a fumaça, da qual vez por outra saía um vulto. Só depois de alguns segundos podia-se saber se era um terrano ou um gatasense.

— Sargento Luttrop, o senhor me ouve? — perguntou a voz de Herisch saída do alto-falante do capacete.

Luttrop sobressaltou-se. Onde estaria Herisch? Em algum lugar, lá embaixo, naquele inferno. Quanto a isso não havia dúvida.

— Sim senhor — apressou-se Luttrop a responder. — O planalto continua em nosso poder.

— Muito bem — resmungou Herisch. — Alguns dos gatasenses estão usando trajes de molkex. E possível que consigam avançar até o acampamento. Quando aparecerem, o senhor terá de providenciar para que sejam destruídos com as bombas especiais que nos restam.

— Sim senhor — disse Luttrop.

Luttrop contou os lança-foguetes que restavam. Eram sete ao todo, mas só quatro deles possuíam guarnições de artilheiros. Felizmente o inimigo já não estava em condições de bombardear o acampamento.

Mas isso poderia mudar se algum grupo conseguisse romper as linhas dos terranos. Os blues sabiam de onde provinham os ataques terranos e tentariam avançar nessa direção.

Luttrop sabia que os trajes de molkex representavam uma boa proteção. Por isso o inimigo teria possibilidade de avançar.

Mais uma vez viu vultos que saíam da fumaça. Desta vez não cambaleavam. Saíam resolutamente do vale. Luttrop olhou pelo binóculo.

Teve um choque. Nunca pensara que tantos blues conseguissem romper as linhas terranas. Mas não teve tempo para refletir sobre isso.

Os gatasenses cometeram o erro de andar juntos. Luttrop fazia votos de que esse erro viesse privá-los da vitória.

— Atenção, sargento! — gritou Herisch pelo rádio do capacete. — Estão chegando!

— Já os vimos, senhor — respondeu Luttrop em tom zangado.

— Enviarei um dos planadores para apoiá-lo — anunciou Herisch.

— Obrigado, senhor — respondeu Luttrop.

Os gatasenses aproximaram-se rapidamente. Enfiados em seus trajes de molkex, ofereciam um quadro estranho. Luttrop olhou para trás e viu o que ainda lhe restava defender. Só três cúpulas continuavam de pé. O planalto parecia ter sido revolvido pelas garras de um gigante.

Apesar disso, Luttrop tinha certeza de que conseguiriam defender o acampamento.

Deu ordem para que os homens que guarneciam os lança-foguetes disparassem as bombas-foguete que lhes restavam contra os blues. Dentro de alguns minutos o avanço parou e as colunas inimigas logo se dissolveram de vez.

 

Herisch viu-se envolvido num torvelinho de fogo e fumaça. Os destroços da nave-disco deviam encontrar-se lá embaixo, um pouco de lado. As sombras que corriam por lá não eram outra coisa senão gatasenses. O coronel dera ordem aos seus homens para que permanecessem no ar. Só assim era possível distinguir quem era amigo ou inimigo.

Dominados pelo pânico, os blues atiravam contra as sombras que flutuavam acima de suas cabeças. Os planadores descreviam suas curvas entre os terranos e os blues. Seu fogo aliviava constantemente os amigos que se encontravam em situação difícil.

A batalha de extermínio causava repugnância a Herisch, mas um blue não se deixava aprisionar antes de lutar até a exaustão. Além disso, ainda não tinham certeza de que sairiam vencedores em Tauta. Os gatasenses estavam divididos em numerosos grupos e lutavam em vários lugares ao mesmo tempo. Por isso era difícil conhecer a extensão das perdas nas próprias fileiras.

Herisch sentiu-se impelido numa distância de alguns metros pelo impacto de um tiro energético absorvido por seu campo defensivo. Disparou seu desintegrador contra três gatasenses que apenas viu confusamente. Um deles caiu ao chão e saiu rastejando à procura de um abrigo entre as rochas. Os outros dois abriram fogo cruzado contra Herisch. Este tentou ligar o campo deflexivo para tornar-se invisível, quando de repente o campo defensivo de seu traje de combate deixou de funcionar. Um raio energético escaldante passou junto ao coronel. Herisch perdeu o controle do sistema de propulsão e foi descendo em parafuso. Mexeu desesperadamente nos controles embutidos em seu cinto, mas havia algo de errado. Seus esforços foram em vão. Continuou a descer.

O coronel bateu no chão. Quis pedir auxílio pelo rádio de capacete, mas ficou apavorado ao notar que este também não estava funcionando. Estava praticamente indefeso. O primeiro gatasense que o visse poderia matá-lo sem dificuldades. Felizmente o equipamento de oxigênio estava funcionando, de forma que não teve de respirar o ar envenenado.

Procurou orientar-se em meio às nuvens de fumaça. A nave incendiada devia ficar à sua esquerda. Ali estaria em segurança, mas não conseguiria restabelecer as comunicações com seus homens.

De repente um gatasense saiu da fumaça. Ficou tão surpreso quanto o próprio Herisch. O coronel sentiu os olhos de gato pousados nele. Eram olhos insensíveis, totalmente indiferentes. Herisch disparou, mas o campo defensivo do gatasense resistiu à carga.

Herisch saltou para dentro de uma nuvem de fumaça no momento em que o calor de um disparo de arma térmica começou a fervilhar em torno dele. Herisch atirou-se ao chão e saiu rastejando sobre os joelhos e os cotovelos. Viu um lampejo a seu lado, mas não era o gatasense que estava atirando contra ele.

A idéia de que seus homens estavam abrindo fogo contra ele fez com que continuasse a rastejar, apavorado. Os soldados que circulavam pelo ar deviam acreditar que era um gatasense, pois ele mesma dera ordem para que ninguém permanecesse no solo.

Sem querer chegou à nave dos blues, que continuava a arder. Centenas de cadáveres estavam espalhados junto às saídas. Herisch estremeceu, levantou e saiu correndo, todo abaixado, entrando embaixo de uma parede de aço da nave-disco, que continuava intacta. Parou. Respirando com dificuldade, comprimiu o corpo contra o metal aquecido. Estava afastado do campo de batalha e não sabia se em algum lugar seus homens estavam em situação difícil. Ficou preocupado ao lembrar-se do sargento Luttrop, que tinha que defender o planalto contra os gatasenses protegidos pelo molkex.

Refletiu intensamente para encontrar um meio de obter auxílio. No momento todos os terranos estavam bastante ocupados. A superioridade numérica dos blues ainda era muito grande para que algum terrano se atrevesse a descer à superfície.

Herisch inclinou-se para a frente para verificar de que lado da nave se encontrava. Neste exato momento um furo foi derretido na parede de aço, alguns metros acima dele. O metal pingou sobre o coronel, obrigando-o a dar um salto para colocar-se em segurança.

De repente um vulto gigantesco saiu da fumaça.

Herisch levantou os braços. Era um dos vermes do pavor, que aparentemente continuava a bombardear a nave. Herisch fez votos de que a lagarta gigante o avistasse. Com um movimento rápido tirou o conversor de símbolos do cinto.

— Venha para cá e ajude-me — transmitiu.

Quase chegou a pensar que o verme do pavor se retiraria, mas o réptil mudou de direção e aproximou-se de Herisch.

— Suba às minhas costas — respondeu o verme do pavor. — Eu o tirarei daqui.

Herisch soltou um suspiro de alívio e saltou para as costas do monstro, que eram duras como aço. O ser que pesava várias toneladas esperou pacientemente até que o coronel conseguisse acomodar-se num lugar seguro.

A lagarta gigante saiu rastejando e penetrou na cortina de fumaça. Sempre que via um gatasense, Herisch atirava contra ele. Viu que sem os dois vermes do pavor não teriam a menor chance diante da superioridade do inimigo.

— Pode levar-me ao planalto? — perguntou através do conversor de símbolos.

— Posso — respondeu o verme do pavor.

A cavalgada fez Herisch atravessar as hordas de blues que ainda andavam por ali. O verme do pavor constantemente despejava seus raios energéticos para as fileiras inimigas. Em comparação, a arma de Herisch teve um desempenho miserável.

Não havia nada que detivesse o verme do pavor. Herisch foi sacudido fortemente, mas conseguiu segurar-se com uma das mãos. A fumaça começou a tornar-se menos densa. Herisch não demorou a reconhecer os objetos mais próximos.

Pela primeira vez voltou a entrar em contato com seus homens. Dois vultos voaram em sua direção e pousaram nas costas do gigante.

Herisch fez um sinal para os homens, e estes se aproximaram rastejando.

Explicou que seu cinto não estava funcionando. Ficou aliviado ao reconhecer o cabo Blanco e um dos cientistas. Blanco chegou bem perto, para que pudessem conversar independentemente do rádio de capacete.

— O propulsor e o rádio de capacete de meu traje falharam — informou Herisch. — Como está a luta?

Blanco fez um gesto amplo.

— Os blues estão nas últimas — disse.

— Alguns grupos estão sendo perseguidos.

— Como vão as coisas em nosso acampamento? — perguntou Herisch, preocupado.

— Não sei — respondeu Blanco. — Ainda não tive contato com Luttrop.

— Preciso ir imediatamente ao planalto — insistiu Herisch. — Não sei se resistirei a um salto de nosso amigo. Talvez seja preferível que o senhor e o cientista fiquem a meu lado, para que possamos voar juntos.

Blanco explicou o plano de Herisch ao outro homem. Todos decolaram das costas do verme do pavor. Quando atingiram certa altura, começaram a ter uma visão melhor.

Herisch constatou que a fumaça ia saindo lenta mas completamente do vale. Mas ninguém poderia deixar de notar os vestígios da luta violenta que estava sendo travada.

Os dois homens seguraram o coronel embaixo dos braços e voaram em direção ao planalto.

Quando se aproximarem, Herisch distinguiu figuras pequenas que acenavam com os braços. Sentiu um alívio enorme. Luttrop conseguira defender o acampamento.

Blanco e o cientista seguiram diretamente para o planalto. Assim que pousaram, Luttrop veio correndo em sua direção.

— Conseguimos detê-los, senhor — disse. — Continuam lá embaixo. Mas o molkex voltou a desaparecer.

Herisch confirmou com um gesto. Parecia que todos os sacrifícios tinham sido em vão. Sabiam que as informações de Lemy Danger eram corretas, mas não conseguiram nenhum molkex para prosseguir nas experiências.

— Preciso de um outro traje de combate — disse Herisch.

De repente houve uma explosão acima do acampamento, que estragou a alegria da vitória. Herisch lançou um olhar apavorado para as cavernas.

O que estaria acontecendo por lá?

Será que alguns blues se tinham entrincheirado nesse lugar?

— Rápido! — ordenou. — Tragam outro traje de combate.

Dois homens trouxeram o traje, entregando-o a Herisch que vestiu-o rapidamente. Ao que tudo indicava, lá em cima estava sendo travada uma batalha. Herisch não tinha certeza se enviara ou não alguns dos seus homens para lá.

Ou será, talvez, que o segundo verme do pavor se encontrava naquele lugar?

De repente Herisch lembrou-se de De Fort e Burnett. Fechou apressadamente o capacete, e ordenou:

— Vamos para as cavernas!

 

Os blues aproximaram-se numa fileira bem ampla. Burnett sabia que ainda não poderia atirar contra eles, porque pelo menos metade dos inimigos sobreviveria aos tiros. Precisava esperar que se juntassem mais.

Nunca me vi diante de tamanha superioridade de forças, e nem sequer possuo experiência de combate,” pensou, apreensivo.

A única coisa que podia fazer era mover o acionador do canhão no momento exato.

E estava decidido a aguardar este momento.

Os gatasenses pareciam exaustos. Avançavam lentamente. Ninguém os perseguia. Burnett desejava que De Fort estivesse a seu lado.

Poderia pedir auxílio pelo rádio de capacete, mas relutou em solicitar apoio. Não podia avaliar a situação dos terranos que se encontravam no vale. Provavelmente também tinham seus problemas.

Os cinqüenta gatasenses estavam chegando cada vez mais perto. Burnett viu que se dirigiam a uma caverna grande, que ficava em ângulo reto em relação àquela em que ele mesmo se encontrava. Girou cautelosamente o canhão. A entrada da caverna à qual os blues se dirigiam era muito estreita, o que os obrigaria a concentrar-se num espaço reduzido. E quando isso acontecesse, Burnett entraria em ação.

Fez um grande esforço para aplacar sua consciência, que se rebelava contra a idéia de atirar nessas criaturas. Mas por outro lado essa raça não hesitava em exterminar povos inteiros para conseguir espaço vital. Burnett procurou convencer-se de que atiraria não apenas em sua defesa, mas também para salvar a vida de inúmeros seres inteligentes que levavam uma vida pacata.

Não podia esquecer que estava lutando pela sobrevivência da raça humana. Lembrou-se das palavras que Perry Rhodan proferira em certa oportunidade diante de um grupo de representantes da imprensa. Rhodan também era inimigo dos conflitos bélicos. Mas quando se tornava necessário defender a raça humana de algum inimigo implacável, Rhodan também sabia usar uma linguagem dura.

Burnett ficou agachado atrás do canhão. Nem por um instante lembrou-se de que poderia perder a própria vida. O sentimento do medo apagara-se em sua mente.

O primeiro gatasense atingiu a entrada da outra caverna. Fez um sinal para que seus companheiros se aproximassem. Não havia dúvida de que os cinqüenta gatasenses pretendiam esconder-se ali.

Burnett segurou firmemente o acionador do canhão. As bombas-foguete logo acabariam com as esperanças desses seres.

Ficou satisfeito ao notar que o gatasense que chegou em primeiro lugar esperou que os outros se aproximassem.

De repente um dos inimigos olhou na direção de Burnett. Este não teve certeza de ter sido visto. Dali a três segundos já não teve a menor dúvida, pois os gatasenses correram sobre as rochas, em sua direção, e começaram a atirar. A reação de Burnett foi puramente instintiva. Em torno dele tudo era calor e rocha que despencava. As pedras ficaram vitrificadas sob o fogo cerrado do inimigo.

Burnett disparou o primeiro foguete, girou o canhão, disparou de novo e viu as fileiras dos atacantes clarearem. Parte deles ficou estirada no chão. Burnett teve bastante inteligência para não desperdiçar os últimos dois foguetes de que dispunha. Os blues procuraram abrigar-se atrás das rochas assim que perceberam que o terrano solitário com o qual se defrontavam era muito perigoso.

— Saiam das tocas! — gritou Burnett.

O sangue subiu-lhe à cabeça. Sentiu-se mal e teve de segurar-se com ambas as mãos no canhão. Não sabia se o campo defensivo de seu traje continuava intacto e nem teve tempo para cuidar desse detalhe. Alguns tiros disparados a esmo passaram por cima de sua cabeça. Densas nuvens de fumaça saíam da caverna.

Sete blues correram em sua direção, vindos de um dos lados, e atiravam ininterruptamente. Os movimentos rápidos impediram-nos de fazer boa pontaria — causando-lhes sua desgraça.

O penúltimo foguete de que Burnett dispunha pôs fim à vida de todos.

Burnett continuava vivo, mas isso era antes um motivo de espanto do que de alegria. O inimigo tornara-se mais cauteloso. Pelos cálculos de Burnett, ainda devia haver uns quinze gatasenses escondidos entre as pedras. E dali em diante teriam bastante inteligência para não atacar em grupo.

Um sorriso desolado surgiu no rosto de Burnett: só dispunha de um único foguete para aquele grupo de blues.

Mas os inimigos não sabiam disso. Certamente acreditavam que sua munição ainda não se esgotara. Isso pelo menos lhe dava mais tempo.

Burnett não teve outra alternativa senão pedir auxílio.

— Aqui fala Burnett — disse para dentro do rádio de capacete. — Alguém me ouve?

— Burnett! — disse a voz de Herisch, que parecia aliviada. — Onde se meteu o senhor?

— Estou em uma das cavernas — respondeu Burnett com a voz rouca. — Minha situação é bastante difícil, coronel. Há uns quinze gatasenses com trajes de molkex escondidos à minha frente, e só me resta um foguete especial.

Herisch refletiu por um instante.

— Aqui também não temos mais nenhuma bomba de H2O2 — disse em tom abatido. — O que podemos fazer pelo senhor?

Burnett viu que o auxílio de que tanto precisava falharia. Pôs-se a refletir intensamente.

— Quem sabe se o senhor poderia juntar os inimigos diante de meu canhão? — perguntou depois de algum tempo. — Nesse caso seria possível pegá-los com um só tiro.

— Vamos tentar — disse Herisch, sem demonstrar muita convicção de que o plano seria bem-sucedido.

 

Herisch gostaria de saber como Burnett arranjara o canhão e as quatro bombas cuja falta fora constatada. Chegou à conclusão de que não valia a pena resolver o enigma, pois no momento havia coisas mais importantes a fazer.

Voaram ordenadamente para as cavernas. A única chance de Burnett — e deles mesmo — era que os blues acreditassem que os terranos que se aproximavam também dispusessem da arma que tornava inúteis os trajes de molkex.

Herisch voou na ponta. Não demorou a descobrir a caverna em que estava Burnett, pois viu sair fumaça da mesma.

De repente o coronel avistou o primeiro gatasense. O inimigo não parecia disposto a atacar Burnett, pois fugia em direção a outra caverna. Os outros blues seguiram-no.

— Estão fugindo — disse Herisch, aliviado. — Saia daí, Burnett, antes que seja tarde.

— Venha para cá — sugeriu Burnett. — Estão numa armadilha. Que tal se conseguíssemos o molkex que se encontra naquela caverna?

— O senhor parece ser um guerreiro selvagem — disse Herisch em tom de elogio.

Voaram em direção a Burnett, que saiu da caverna e acenou com os braços. Herisch e os outros pousaram a seu lado. Burnett exibiu um sorriso de alívio.

— Vamos levar o canhão para lá e tirar os trajes de molkex dos gatasenses — disse, entusiasmado. — O molkex que se encontra na caverna só pode voar até o teto. De lá não passa.

Herisch viu uma possibilidade de ainda conseguir molkex para as experiências. Não seria muito, mas sem dúvida teria grande utilidade para os cientistas.

Iluminou o interior da caverna e viu que De Fort jazia morto. Burnett acompanhou seu olhar.

— Acho que tenho algumas perguntas — disse Herisch.

— Seria bom perguntar logo — disse Burnett em tom irritado. — Será que o senhor pretende abrir um processo a esta hora?

Herisch apontou para o interior da caverna.

— O que aconteceu com ele?

Burnett empertigou o corpo.

— Tombou na luta com os gatasenses — disse. — Foi o único que teve bastante visão para colocar um canhão aqui em cima e evitar que os blues caíssem no nosso flanco. Acho que merece nossa gratidão.

Herisch abaixou a cabeça.

— Nós lhe daremos uma placa comemorativa — disse em tom tranqüilo.

Burnett virou-se e caminhou em direção ao canhão.

— Vamos começar, antes que eles saiam de novo — disse.

 

Quarenta e três homens foram descendo lado a lado para o vale. À sua frente caminhavam quatorze prisioneiros blues. Conforme Burnett previra, conseguiram dominar os gatasenses no interior da caverna. Um deles perdeu a vida, mas todos ficaram sem a blindagem de molkex. Havia um bloco dessa substância preso embaixo do teto. A rocha resistira ao “efeito drive”.

No fundo do vale quarenta e oito terranos e dois vermes do pavor aguardavam o grupo que se aproximava lentamente. Os outros terranos estavam mortos. Dos blues só os quatorze prisioneiros tinham sobrevivido à batalha.

O grupo que se aproximava do teatro das lutas violentas não executava uma marcha triunfal. Os sofrimentos tinham sido muito grandes, o preço fora elevado demais. O vale, que já se transformara numa paisagem desolada com a passagem dos gafanhotos córneos, agora era a própria imagem do terror.

Os destroços da nave gatasense erguiam-se para o ar rarefeito de Tauta como se fossem um enorme esqueleto. Os três aviões blindados já tinham pousado e os tripulantes mantinham-se inativos em torno dos mesmos.

Herisch mandou expedir duas mensagens pelo rádio. Uma delas foi dirigida à Asubaja, que já podia suspender a caça inútil à gigantesca bola de molkex, enquanto a outra solicitava a presença de Rhodan. Herisch achou preferível pedir o apoio da Frota, pois era possível que os gatasenses também tivessem chamado outras naves em seu socorro.

Era bem possível ainda que dentro em breve o sistema de Vagrat se transformasse no teatro de uma sangrenta e gigantesca batalha espacial.

Por isso convinha que saíssem de lá o quanto antes.

 

— Nunca mais quero passar por uma coisa destas — disse o Dr. Sharoon em tom queixoso, ao ver Burnett descer do planalto em meio ao grupo de vinte e três pessoas.

Burnett ficou feliz ao ver que o cientista continuava vivo. Dali a pouco o Dr. Kerrick apareceu a seu lado e fitou-o com uma expressão contrariada.

— Onde esteve escondido todo este tempo? — perguntou. — Suas ações na Terra levaram-me a acreditar que o senhor pudesse dar muito trabalho aos gatasenses.

Burnett limitou-se a sorrir. Sentiu um cansaço infinito, que provavelmente ainda o deixaria deprimido por vários dias.

— Sabe o que andei pensando durante o tempo em que os blues atiravam contra mim? — perguntou Kerrick.

— Não faço a menor idéia -— respondeu Burnett.

— Fiquei refletindo até encontrar um meio de obrigá-lo a retirar seu pedido de demissão de nosso laboratório — esclareceu Kerrick.

— Mas... — principiou o Dr. Sharoon, bastante perturbado.

— Um momento! — interrompeu Burnett apressadamente. — Conheço um meio — disse, dirigindo-se a Kerrick. — Dobre meu ordenado, aumente meu período de férias e transforme-me em chefe do setor de experiências.

O rosto de Kerrick parecia exprimir todos os sofrimentos de nosso mundo desolado.

— Sabe do que mais gosto no senhor? —perguntou.

Burnett sacudiu a cabeça.

— De suas atitudes modestas e discretas — explicou Kerrick em tom sombrio. — De seu senso de humor e de sua tendência para a cleptomania.

— É um homem cheio de virtudes — concluiu o Dr. Sharoon em tom sarcástico.

 

Mais de quatrocentos couraçados da Frota do Império formaram um anel de defesa em torno do sistema de Vagrat. A Eric Manoli separou-se do grupo para pousar em Tauta.

A gigantesca nave-capitânia pousou junto aos destroços da nave gatasense.

No interior da sala de comando Kors Dantur contemplava estupefato as telas que apresentavam um retrato fiel da paisagem.

— Não compreendo como ainda pode haver sobreviventes — disse sua voz retumbante.

Rhodan acenou com a cabeça. Parecia deprimido. Seus olhos exprimiam tristeza pelos mortos — pelos terranos e pelos gatasenses. O Coronel Herisch já lhe tinha fornecido um relatório, mas só agora pôde avaliar as realizações da tropa destacada para a operação.

— Desde o início fui de opinião que deveríamos ter ficado em Tauta — disse Dantur.

— Se a Eric Manoli estivesse a seu lado, Herisch não teria sofrido perdas.

O homem nascido em Epsal costumava manifestar sua opinião sem rodeios diante de qualquer pessoa. Era um hábito que Rhodan admirava bastante. Dantur era um homem rude, mas franco, no qual se podia confiar.

— Ninguém poderia imaginar que os blues pousariam numa nave desse tamanho — disse. — Mas a esta altura já temos certeza de que existe uma arma capaz de destruir a blindagem de molkex.

— Sim, temos a certeza — respondeu Dantur. — Mas não devemos esquecer que só dispomos de uma quantidade muito reduzida de hormônio B. Esta quantidade talvez nos permita destruir mais uma nave dos gatasenses. O que faremos se elas vierem aos milhares?

Com estas frases Dantur acabara de expor o problema mais grave do Império Unido. Os terranos ainda não tinham conseguido a produção sintética do hormônio, apesar dos esforços desesperados realizados juntamente com os aras e outras raças.

Ninguém seria capaz de imaginar o que aconteceria se a frota de invasão dos blues aparecesse no Sistema Solar antes que as naves terranas tivessem sido equipadas com um número suficiente de armas especiais.

— Só nos resta esperar que ganhemos a corrida contra o tempo — disse Rhodan.

Seu rosto continuou indiferente. Em sua longa vida já se vira inúmeras vezes diante de preocupações semelhantes. Toda vez que acreditava que o império estelar criado por ele e seus amigos dedicados estava em segurança, surgia outro perigo que ameaçava destruí-lo.

O Império Unido representava um poder enorme, mas Rhodan tinha bastante inteligência para não acreditar que fosse invencível. A experiência lhe ensinara que até mesmo um inimigo fraco pode dispor de repente de meios capazes de abalar o poder terrano.

Do ponto de vista do Universo mal tinham entrado neste caminho, ainda estavam no começo.

— Já podemos descer, senhor — disse Dantur em meio aos seus pensamentos. — Os homens colocaram trajes de combate.

Rhodan acompanhou Dantur para a eclusa principal e também colocou um traje de combate. Depois voaram para junto dos homens do comando experimental, que estavam à sua espera.

Os dois vermes do pavor estavam encolhidos mais nos fundos. Rhodan lançou um olhar para o campo de batalha e seu velho rancor contra a guerra voltou a manifestar-se. Mas logo passou a dedicar sua atenção a outras coisas.

Assim que pôs os pés no chão, o Coronel Herisch aproximou-se e cumprimentou-o.

— O senhor já nos forneceu um relatório detalhado dos acontecimentos — disse Rhodan. — Onde estão os prisioneiros?

Herisch apontou para uma cúpula ligeiramente danificada.

— Estão presos ali — informou. — O que pretende fazer com eles, senhor?

Rhodan não sabia o que responder. Era possível que mais tarde surgisse a possibilidade de fazer uma troca de prisioneiros com os blues. Por enquanto nunca se conseguira entabular negociações com os pêlos-azuis.

— Por enquanto vamos colocá-los na nave — ordenou Rhodan.

Herisch apontou para o planalto.

— Ali instalamos nosso acampamento — informou. — Mais em cima vêem-se algumas cavernas. Em uma delas há uns trinta metros quadrados de molkex grudados no teto. A caverna está sendo vigiada por dois homens.

Herisch pigarreou.

— Alguns cientistas tentaram recolher o molkex com os meios de que dispomos, mas o mesmo parece firmemente grudado na rocha.

Rhodan confirmou com um gesto.

— Vamos encontrar um meio de levar o material para a Eric Manoli — disse.

Mas acabou descobrindo que isso era muito mais difícil do que ele imaginara. O molkex mostrou-se resistente a todos os tratamentos químicos. Finalmente o material pôde ser recolhido por meio de aparelhos mecânicos e guindastes hidráulicos. O neo-molkex, nome dado ao material transformado por meio do hormônio B, não reagia aos raios de tração ou aos campos magnéticos. Possuía propriedades inteiramente novas, que só poderiam ser analisadas ao longo do tempo.

O transporte efetuado da caverna à nave-capitânia da Frota revelou-se ainda mais difícil. Centenas de homens tiveram de reunir seus esforços para colocar o bloco de cerca de trinta metros quadrados na grande eclusa de carga.

Neste meio tempo um cruzador ligeiro da Segurança Galáctica pousou no planeta e recolheu os dois vermes do pavor, que seriam levados para Tombstone.

Rhodan, Dantur e Herisch ficaram lado a lado, observando, até finalmente se conseguir colocar o molkex na Eric Manoli.

O Coronel Herisch suspirou fortemente. Rhodan olhou-o como quem compreende seus sentimentos.

— Acho que o senhor só se sentirá seguro quando estivermos novamente a bordo — disse.

— Isso mesmo — confessou Herisch. — E só quando o sistema de Vagrat aparecer apenas como um ponto luminoso nas telas do rastreamento terei certeza de que escapamos vivos desta ação de comando.

Kors Dantur permitiu-se uma estrondosa gargalhada, que antes parecia uma trovoada. Herisch fitou-o de lado. Parecia apavorado.

— Não vi o Dr. De Fort entre os cientistas — disse Rhodan como que por acaso.

— Morreu em combate — limitou-se Herisch a dizer.

— Era um homem estranho — lembrou Rhodan. — Quando o conheci, tive a impressão de ver um gênio, mas também um homem que não sabe resolver seus problemas.

— Foi um homem muito corajoso — disse Herisch.

Rhodan percebeu que o coronel preferia não falar mais sobre o assunto.

— Venha — disse. — Vamos voltar para a nave.

 

Gregory Burnett deleitou-se com a sensação agradável de esticar confortavelmente as pernas. Sentia-se protegido em estar dentro da Eric Manoli, que tinha decolado há instantes de Tauta e saía velozmente do sistema de Vagrat à frente do grupo de naves.

Burnett teve um pensamento de saudade para os sessenta coquetéis diferentes que o aguardavam em certo bar do planeta Terra. No futuro teria mais cuidado quando se encontrasse com homens como Jicks.

Alguém bateu à porta do camarote. O Dr. Kerrick entrou. O rosto do químico era muito amável, mas isso só serviu para despertar a desconfiança de Burnett.

— O senhor tem de sair daqui — disse. Burnett foi encolhendo as pernas. Teve a impressão de não ter ouvido bem.

Kerrick dirigiu-se ao aquecedor de água e preparou um café. Burnett contemplou-o, perplexo.

— Ande depressa — disse Kerrick depois de algum tempo. — Estou cansado.

— Este camarote é meu — resmungou Burnett.

— Nada disso — lamentou Kerrick. — O senhor terá de ficar sete portas adiante. Mandaram que eu ficasse neste camarote.

Burnett foi-se levantando e reuniu seus pertences.

— Não me importo de ficar neste ou naquele camarote — disse ao sair.

— É uma idéia muito inteligente — gritou Kerrick atrás dele.

Burnett caminhou depressa pelo corredor, contou sete portas e entrou no camarote que ficava à sua frente.

Viu um grupo de astronautas comprimidos num espaço muito reduzido, que fumavam e conversavam.

— Entre — pediu um homem baixo. — O Dr. Sharoon nos disse que o senhor gosta de companhia. Empenhou-se pessoalmente para que o senhor fizesse a viagem conosco. Acho que nos daremos bem. Lá atrás ainda há uma cama-beliche livre. E a terceira a partir de baixo.

— Obrigado — disse Burnett e entrou cambaleante no camarote superlotado.

Os homens do tipo de Jicks realmente deviam ser tratados com muito cuidado. Se possível, convinha evitá-los.

Quanto aos homens do tipo do Dr. Sharoon, era preferível ficar bem afastado do seu caminho.

Com estes pensamentos na cabeça, Burnett foi abrindo caminho entre os homens que estavam sentados em toda parte, procurando ignorar sua conversa e o cheiro dos seus cigarros. Atirou seus pertences na cama que lhe fora indicada.

Alguém convidou-o a acompanhá-los num jogo de baralho. Burnett não lhe deu atenção. Estava cansado e deixou-se cair na cama.

O Dr. Sharoon vingara-se da brincadeira das sementes de cenoura.

 

 

                                                                  WilliamVoltz

 

 

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