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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS RATOEIROS / William Faulkner
OS RATOEIROS / William Faulkner

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os Ratoneiros uma das obras-primas de William Faulkner, é um romance que conta a história de três improváveis ladrões, ou ratoneiros, de carros no Mississippi rural, no início do século xx. O jovem de onze anos Lucius Priest é persuadido por Boon Hogganbeck, um dos empregados da família, a roubar o espectacular carro do avô e fazer uma viagem até Memphis. O cocheiro negro, Ned McCaslin, junta-se-lhes clandestinamente e os três "ratoneiros" partem numa heróica odisseia para a qual não estão preparados, uma aventura que os leva do bordel de Miss Reba a uma espectacular corrida de cavalos, onde Lucius tem de levar um garanhão à vitória para reaver o Winton Flyer que Ned trocou pelo cavalo.
WILLIAM FAULKNER nasceu em New Albany, no Mississippi, a 25 de Setembro de 1897. Frequentou a Universidade do Mississippi e, em 1918, alistou-se na Royal Air Force do Canadá. Depois de ter viajado pela Europa durante 1925-1926, fixou residência em Oxford, no Mississippi, onde teve vários empregos enquanto tentava afirmar-se como escritor. O seu primeiro romance, Soldier's Pay, viria a ser publicado ainda em 1926. Aclamado por romances como Absalão, Absalão!, Palmeiras Bravas/ Rio Velho, Na Minha Morte, Luz em Agosto, O Som e a Fúria, Desce, Moisés e Santuário, todos publicados pela Dom Quixote nesta colecção, Faulkner recebeu o Prémio Nobel de Literatura em 1949. Anos mais tarde, em 1957-1958, foi escritor residente na Universidade da Virgínia. Os Ratoneiros - uma reminiscência foi o último livro de William Faulkner. Recebeu o Prémio Pulitzer de 1962, pouco tempo depois da sua morte.

 

 

 

 

O AVÔ DISSE: Ora aí está a espécie de homem que era o Boon Hogganbeck. Pregado na parede, bem podia ter sido o seu epitáfio, como uma ficha Bertillon ou um cartaz da polícia; no Norte do Mississippi qualquer polícia o teria prendido no meio de qualquer multidão bastando-lhe para tanto ler a data.
Era sábado de manhã por volta das dez. Nós - o teu bisavô e eu - estávamos no escritório, o meu pai sentado à secretária a contar o dinheiro do saco de lona e a conferi-lo com a lista das facturas que eu tinha acabado de ir cobrar às lojas da praça; e eu sentado na cadeira encostada à parede, à espera do meio-dia, hora a que me pagavam o salário de sábado (a semanada), dez dólares, e depois íamos para casa almoçar e eu ficava finalmente livre para ir para o jogo de beisebol (estávamos em Maio) que estava a decorrer sem mim desde o pequeno-almoço; a ideia (não minha, do teu bisavô) era que, mesmo aos onze anos, um homem já devia ter atrás de si na economia mundial (a economia de Jefferson, Mississippi, pelo
menos) um ano a pagar as suas despesas, a assumir a responsabilidade pelo espaço que ocupava, pelo quarto onde dormia. Eu saía de casa com o meu pai todos os sábados de manhã depois do pequeno-almoço, quando todos os outros rapazes lá da rua esta-
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vam a munir-se de bolas, tacos e luvas - isto sem falar nos meus três irmãos, que, sendo mais novos e portanto mais pequenos do que eu, tinham mais sorte, partindo do princípio de que a lógica ou a premissa do meu pai era esta: desde que qualquer homem adulto digno desse nome pudesse providenciar e fazer face às necessidades económicas de quatro crianças, bastava que apenas uma delas, certamente a maior, se encarregasse das tarefas necessárias à condução das operações económicas: neste caso, fazer todos os sábados de manhã a volta com as facturas das caixas e caixotes de mercadorias que os nossos cocheiros negros tinham ido buscar à estação ao longo da semana e entregado na porta dos fundos das mercearias, armazéns de ferragens e armazéns agrícolas, e trazer o saco de lona para a cocheira de aluguer para o meu pai contar e conferir o dinheiro, e depois passar o resto da manhã sentado no escritório só para atender o telefone - e tudo isto em troca da quantia de dez cêntimos por semana, quantia essa que em princípio deveria chegar para a minha subsistência.
Era isto que estávamos a fazer quando o Boon entrou aos saltos pelo escritório adentro. Isso mesmo. Aos saltos. Em boa verdade, o degrau do corredor para o escritório nem era assim tão alto, mesmo para um rapaz de onze anos (apesar de o John Powell, o palafreneiro chefe, ter mandado o Son Thomas, o cocheiro mais novo, procurar, pedir emprestado, trazer - numa palavra, surripiar - de um lado qualquer um bloco de madeira para me servir de degrau intermédio), e o Boon poder perfeitamente subi-lo como sempre fazia com aquela passada de quem mede quase dois metros. Mas desta vez não; deu um salto. Se no seu estado normal a cara dele já nada tinha de dócil ou sereno, desta vez parecia prestes a saltar-lhe dos ombros a qualquer momento, tal era a pressa, a agitação ou sei lá o quê que o fez entrar pelo escritório aos saltos e ir direito à secretária a gritar para o meu pai - Cuidado, Mr. Maury, saia da frente - passando por ele e precipitando-se
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de mão estendida para a gaveta de baixo, onde se encontrava a pistola da cocheira; não percebi se foi o Boon ao precipitar-se para a gaveta que empurrou a cadeira (era uma cadeira rotativa com rodinhas) ou se foi o meu pai que a atirou para trás para ter espaço para dar um pontapé na mão estendida do Boon, ao mesmo tempo que as moedas cuidadosamente empilhadas se espalhavam por cima da secretária em todas as direcções e o meu pai desatava também aos berros, sem parar de dar com o pé na gaveta ou na mão do Boon, ou se calhar nas duas:
- Pára, c'os diabos!
- Vou matar o Ludus! - gritou o Boon. - A estas horas ele já deve estar do outro lado da praça! Cuidado, Mr. Maury!
- Não! - disse o meu pai. - Sai daqui!
- Não ma vai dar?
- Não, diabos me levem - disse o meu pai.
- Está bem - disse o Boon, dirigindo-se outra vez aos saltos para a porta e saindo. Mas o meu pai deixou-se ficar sentado. Tenho a certeza de que já reparaste muitas vezes como as pessoas com mais de trinta ou quarenta anos são ignorantes. Não quero dizer esquecidas. Isso é falso e fácil de dizer; é fácil de mais dizer Ah o pai (ou o avô) ou a mãe (ou a avó) já são velhos; já se esqueceram. Porque há coisas, há duras realidades que não se esquecem por mais velho que se seja. Existe um fosso, um abismo; quando éramos jovens atravessávamo-lo por cima de um tronco. Mas quando lá voltamos aos trinta e cinco ou quarenta anos, já derreados e fracos das pernas, o tronco já lá não está; podemos até não nos lembrar do tronco, mas pelo menos não nos lançamos nesse vazio outrora galgado pelo tronco. Assim era o meu pai naquela altura. O Boon entrou aos saltos pelo escritório adentro e quase derrubou a cadeira do meu pai e tudo mais na ânsia de abrir a gaveta onde estava a pistola, até o meu pai conseguir pontapear ou pisar ou lá o que foi a mão dele para a afastar, e depois o Boon deu meia-volta e saiu outra vez do escritório aos saltos, e aparentemente, como é obvio, o meu pai pensou que a coisa ia ficar por aí, que era assunto encerrado. Até parou de praguejar, apenas por princípio, como se a crise já tivesse passado, voltou a colocar a cadeira junto à secretária e pôs-se a olhar para o dinheiro espalhado que ia ter de ser todo contado de novo, mas nisto desatou a amaldiçoar o Boon outra vez, não por causa da pistola, mas do próprio Boon, por ele ser o Boon Hogganbeck, até eu lhe dizer:
- Ele vai tentar pedir emprestada a do John Powell.
- O quê? - disse o meu pai. E desatou também ele aos saltos, desatámos os dois, saindo porta fora para o corredor e precipitan-do-nos pelo corredor fora em direcção ao cercado por trás da cocheira onde o John Powell e o Luster estavam a ajudar o Gabe, o ferreiro, a ferrar três mulas e um dos cavalos de tiro, o meu pai agora sem tempo sequer para praguejar, apenas a gritar: - John! Boon! John! Boon! - a cada três saltos que dava.
Mas também desta vez chegou tarde de mais. Porque o Boon enganou-o - enganou-nos. Porque a pistola do John Powell não era só um problema de ordem moral na cocheira, era também um problema de ordem emocional. Tratava-se de um revólver de cano curto, calibre .41, já muito antigo, mas em excelente estado, pois o John tinha-o mantido assim desde que o tinha comprado ao pai dele no dia em que fez vinte e um anos. Só que havia um problema, ele não devia ter o revólver. Quer dizer, oficialmente o revólver não existia. A regra, tão velha como a própria cocheira, dizia que a única pistola ali existente era a que estava guardada no escritório na gaveta de baixo do lado direito da secretária e, por mútuo acordo de cavalheiros, partia-se do princípio de que nenhum dos empregados da cocheira possuía sequer uma arma de fogo desde o momento em que pegava ao trabalho até ao momento de voltar para casa, e muito menos a trazia para o trabalho. Porém - e o John tinha-nos explicado a sua situação e granjeado o apoio e a com-
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preensão de todos nós, confederados numa frente unida e inexpugnável contra o mundo, e até contra o meu pai, se essa crise inimaginável alguma vez tivesse surgido, o que jamais teria acontecido se não existisse o Boon Hogganbeck - contou-nos (o John) que tinha ganho o dinheiro para comprar a pistola a fazer biscates no seu tempo livre, fora do tempo que passava a ajudar o pai na quinta, um tempo que era seu para o gastar a comer ou a dormir, até ao momento em que, no dia em que fez vinte e um anos, depositou a última moeda na mão do pai e recebeu a pistola; contou-nos como a pistola era o símbolo vivo da sua maioridade e da sua virilidade, a prova irrefutável de que ele agora era um homem de vinte e um anos; e que nunca tivera a intenção, recusando-se até a imaginar uma situação em que alguma vez tivesse de o fazer, de puxar o gatilho contra um ser humano, mas que, apesar de tudo, tinha de a ter sempre consigo; que lhe era tão impossível deixar a pistola em casa quando saía como deixar a sua maioridade e a sua virilidade fechadas num armário esconso ou numa gaveta quando vinha para o trabalho; disse-nos (e nós acreditámos) que se alguma vez chegasse o momento em que tivesse de escolher entre deixar a pistola em casa ou ele próprio não vir trabalhar, só teria uma escolha possível.
Assim, a princípio, a mulher tinha cosido um bolso resistente e exactamente do feitio da pistola na parte de dentro do peitilho do macacão. Mas o próprio John depressa reconheceu que não ia resultar. Não porque a pistola pudesse cair irreparavelmente quando menos esperasse, mas porque os seus contornos eram visíveis por baixo da ganga; aquilo não poderia ser mais nada senão uma pistola. Visível não para nós: todos sabíamos que ela ali estava, desde o Mr. Ballott, o capataz branco da cocheira, e do Boon, o seu ajudante (que fazia o turno da noite e por isso a estas horas devia estar em casa a dormir), por aí abaixo até ao mais humilde cavalariço e até a mim próprio, que só fazia a cobrança das facturas e atendia o telefone, ou até ao velho Dan Grinnup, sempre imundo
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e com a barba manchada de tabaco, que nunca estava completamente bêbado e que não tinha nenhuma função oficial na cocheira, talvez em parte por causa do uísque, mas sobretudo por causa do seu nome, que não era Grinnup coisa nenhuma, mas Grenier: um dos nomes mais antigos do condado até a família ter degenerado - o huguenote Louis Grenier que atravessou as montanhas desde a Virgínia até à Carolina depois da revolução e a seguir desceu até ao Mississippi nos anos de 1790, onde fundou Jefferson e a baptizou -que (o velho Dan) não tinha morada certa (nem família, salvo um idiota de um sobrinho ou primo ou lá o que era que ainda era vivo e vivia numa tenda na selva, junto ao rio, para lá de Frenchman's Bend, que outrora tinha feito parte da plantação Grenier) até ao momento em que ele (o velho Dan), nunca tão bêbado que não pudesse conduzir, aparecia na cocheira a tempo de levar o fiacre à estação para esperar os comboios das 21I130 e das 04I112 e levar os caixeiros-viajantes ao hotel, ou para ficar toda a noite de serviço quando na ópera havia bailes, espectáculos de comediantes ou peças de teatro (às vezes, quando a bebedeira se manifestava cortante e sarcástica, dizia que outrora os Greniers dirigiam a sociedade de Yoknapatawpha e que agora os Grinnups a conduziam), conservando o emprego, segundo se dizia, porque a primeira mulher do Mr. Ballott era filha dele, embora na cocheira todos nós estivéssemos convencidos de que era porque quando o meu pai era pequeno começou a ir caçar raposas em Frenchman's Bend com o pai do velho Dan.
Visível (a pistola) não só para nós, mas também para o meu pai. Porque o meu pai também sabia da história. Tinha de saber; o nosso estabelecimento era muito pequeno, muito complicado, muito imbricado. Por isso, o problema moral do meu pai era exactamente o mesmo do John Powell, e ambos sabiam disso e lidavam com isso como dois cavalheiros devem e se impõe: se o meu pai se visse alguma vez obrigado a reconhecer que a pistola estava lá,
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teria de dizer ao John que ou ele a deixava em casa no dia seguinte ou não punha mais os pés na cocheira. O John sabia disto e, também ele um cavalheiro, jamais seria ele a obrigar o meu pai a reconhecer a existência da pistola. Assim, em vez de coser o bolso ao peitilho do macacão, a mulher do John coseu-o por baixo da cava da camisola, o que o deixava invisível (ou pelo menos sem dar nas vistas) quando o John tinha a camisola vestida ou quando, na época do calor (como agora), a camisola ficava pendurada no prego do John na selaria. Era esta a situação da pistola quando o Boon, que estava a ser pago para estar em casa a dormir e que, de certa forma, tinha dado a sua palavra de que ia estar em casa a dormir a esta hora em vez de andar a cirandar pela praça, onde estaria vulnerável ao que quer que fosse que o tinha feito voltar a correr para a cocheira, entrou aos saltos pelo escritório adentro há um minuto atrás, fazendo o meu pai e o John Powell passar por mentirosos.
Só que o meu pai mais uma vez chegou tarde de mais. O Boon enganou-o - enganou-nos. Porque o Boon também sabia do prego na selaria e, espertíssimo, esperto de mais para voltar para trás pelo corredor e passar outra vez pela porta do escritório, quando chegámos ao cercado, o John, o Luster e o Gabe (e também as três mulas e o cavalo) ainda estavam a olhar para o portão lateral, já imóvel, por onde o Boon tinha acabado de desaparecer com a pistola na mão. O John e o meu pai ficaram a olhar um para o outro uns dez segundos enquanto toda a estrutura de entendre-de-nobksse se desfazia em pó, embora a noblesse e o oblige continuassem de pé.
- Era a minha - disse o John.
- Pois era - disse o meu pai. - Ele viu o Ludus na praça.
- Eu apanho-o - disse o John - e tiro-lha da mão. E só dizer.
- Apanhem o Ludus, alguém o agarre - disse o Gabe. Apesar de baixo, era um homem tremendamente corpulento, mais do que o Boon, com uma perna pavorosamente aleijada devido a um antigo acidente de trabalho; pegava na pata traseira de um cavalo ou de
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uma mula, prendia-a atrás do joelho deformado e (se houvesse alguma coisa - um poste - qualquer coisa - para ele se agarrar) o cavalo ou a mula podiam dar um safanão, mas nada mais: nem libertar a pata nem tomar balanço suficiente para lhe dar um coice com a outra. - Ei, Luster, vai atrás dele e apanha-o...
- Que ninguém se preocupe com o Ludus - disse o John. - O Ludus é o que corre menos perigo. Eu já vi o Boon Hoggan-beck disparar outras vezes - ele não disse Mister e sabia que o meu pai tinha ouvido: uma coisa que ele jamais deixaria de fazer diante de qualquer branco que considerasse seu igual, porque o John era um cavalheiro. Mas o meu pai também era competente em matéria de nobksse; o que era imperdoável era aquela pistola, e o meu pai sabia-o. - É só dizer, Mr. Maury.
- Não - disse o meu pai. - Vá a correr ao escritório e telefone ao Mr. Hampton. - (É verdade. Nessa altura um Hampton também era xerife.) - Diga-lhe que eu disse para ele deitar a mão ao Mr. Boon o mais depressa possível - e o meu pai encaminhou-se para o portão.
- Vai com ele - disse o Gabe ao Luster. - Ele pode precisar de alguém que corra por ele. E fecha o portão.
E, assim, lá fomos os três rua acima em direcção à praça, eu a dar corridinhas para os acompanhar, não propriamente para apanhar o Boon, mas para ficar entre o Boon e a pistola e o John Powell. Porque, como o próprio John tinha dito, ninguém precisava de se preocupar com o Ludus. Porque todos nós conhecíamos a reputação do Boon como atirador, e com ele o Ludus não corria qualquer perigo. Ele (o Ludus) tinha sido também um dos nossos cocheiros até à última terça-feira de manhã. Eis o que aconteceu, tal como pude reconstituir pelo que contaram o Boon, o Mr. Ballott, o John Powell e um pouco pelo próprio Ludus. Uma ou duas semanas antes o Ludus tinha arranjado uma nova namorada, filha (ou mulher: não sabíamos bem) do caseiro de uma quinta que
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ficava a duas léguas da cidade. Na segunda-feira à tardinha, quando Boon chegou para substituir o Mr. Ballott no turno da noite, já lá estavam todas as carroças, cavalos e cocheiros excepto o Ludus. O Mr Ballott disse ao Boon para lhe telefonar quando o Ludus chegasse e foi para casa. Isto foi o que o Mr. Ballott contou. O que o Boon contou, corroborado em parte pelo John Powell (o meu pai tinha ido para casa pouco antes), foi isto: o Mr. Ballott mal tinha saído pela porta da frente quando o Ludus entrou pela porta dos fundos, apeado. O Ludus disse ao Boon que o pneu de uma das rodas tinha uma folga e que ele tinha passado por nossa casa para falar com o meu pai e que ele lhe tinha dito que metesse a carroça no lago do prado, que assim a roda de madeira ia inchar e ajustar-se outra vez ao pneu, e que levasse as mulas para o nosso estábulo e lhes desse de comer e só as viesse buscar na manhã seguinte. Seria de esperar que até o Boon acreditasse nesta história, mas não o John Powell, que imediatamente desconfiou, pois quem conhecesse qualquer dos intervenientes teria percebido logo que, fosse qual fosse a sua decisão sobre o que fazer com a carroça nessa noite, o meu pai teria mandado o Ludus levar as mulas para as suas baias na cocheira de aluguer onde poderiam ser devidamente tratadas e alimentadas. Mas isto foi o que o Boon disse que lhe foi dito, e que foi por isso, disse ele, que não interrompeu o jantar do Mr. Ballott para o informar, uma vez que o meu pai sabia onde estavam as mulas e a carroça, e o dono das mulas era o meu pai, não o Mr. Ballott.
E agora a versão do John Powell: mas relutante; o mais provável era ele nem ter contado nada se o Boon não tivesse feito do seu silêncio (do John) sobre a verdade dos factos um problema moral mais importante do que a sua lealdade para com a sua raça. Ao ver o Ludus entrar de mãos a abanar pela porta dos fundos da cocheira um minuto depois de o Mr. Ballott ter saído pela da frente deixando apenas o Boon a tomar conta, o John nem se deu ao
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trabalho de ouvir a história que o Ludus ia contar. Foi simplesmente até ao fundo do corredor, atravessou o cercado, saiu para o beco, foi até ao fundo do beco e estava postado ao lado da carroça quando o Ludus voltou. Dentro da carroça estavam, na altura, um saco de farinha, um garrafão com cinco litros de petróleo (segundo disse o John) e um saco de cinco cêntimos de rebuçados de hortelã-pimenta. Foi isto mais ou menos que se passou, porque embora uma ordem do John relativa a qualquer cavalo ou mula, enquanto na cocheira, fosse lei e inviolável, acima do Boon, mesmo do Mr. Ballot e até do meu pai, aqui na terra de ninguém ele era apenas mais um assalariado da cocheira de aluguer de Maury Priest, e tanto ele como o Ludus sabiam disso. Pode ser que o Ludus até lhe tenha lembrado que assim era, mas duvido. Porque tudo o que o Ludus precisava de dizer era qualquer coisa como: "S'o Maury Priest ficar a saber como foi qu' esta noite eu pedi empristada a carroça e as mulas, pode ser que tamém fique a saber o qué é que tá cosido a essa camisola que vomicê tem."
E não me parece que ele o dissesse, quer porque tanto ele como o John ambos sabiam disso, tal como sabiam que se o Ludus ficasse à espera que o John fosse fazer queixa ao meu pai de que o Ludus tinha pedido a carroça e as mulas "empristadas", como ele dizia, o meu pai nunca ia ficar a saber, e se o John ficasse à espera que o Ludus (ou outro negro qualquer lá da cocheira ou mesmo de toda a Jefferson) fosse contar ao meu pai da pistola, o meu pai também nunca ia ficar a saber. Por isso, o mais provável é que o Ludus não tenha dito absolutamente nada, e o John tenha dito apenas, "Está bem. Mas se as mulas não estiverem nas baias amanhã de manhã uma boa hora antes de o Mr. Ballot chegar, e sem uma marca que seja de suor ou de chicote e sem sinais de sono" (já deves ter reparado que tanto um como o outro tinham posto o Boon completamente à margem: nem o Ludus disse: "O Mr. Boon sabe qu'as mulas não vão voltar esta noite;
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e não é ele o capataz até o Mr. Ballott voltar amanhã de manhã?" nem John disse: "Qualquer pessoa que acredite na história que tu trouxeste para aqui esta noite no lugar das mulas não tem competência para ser capataz de coisa nenhuma. E eu ainda não estou convencido de que o nome dele seja Boon Hogganbeck") O Mr Maury não só vai saber onde é que a carroça e as mulas não ficaram ontem à noite, como também vai saber por onde é que elas andaram."
Mas o John não disse nada disto. E está bom de ver que embora as mulas do Ludus tivessem voltado para as baias uma boa hora antes do raiar do dia, um quarto de hora depois de chegar à cocheira às seis da manhã do dia seguinte o Mr. Ballott mandou chamar o Ludus e disse-lhe que estava despedido.
- O Mr. Boon sabia qu'as mulas e a carroça não tavam cá - disse o Ludus. - Ele memo me mandou ir buscar um canjirão d'uísque e eu trusse-lho por volta das quatro da manhã.
- Eu não te mandei a lado nenhum - disse o Boon. - Quando ele aqui chegou ontem à noite com aquela história da carochinha que as mulas estavam no cercado do Mr. Maury, eu nem quis ouvir. Nem me dei ao trabalho de lhe perguntar onde é que a carroça estava realmente e muito menos porque é que ele tinha precisado tão desesperadamente da carroça na noite passada. O que eu lhe disse foi que, antes de ele trazer a carroça de volta esta manhã, eu esperava que ele passasse pelo Mack Winbush e me trouxesse um canjirão de uísque do tio Cal Bookwright. Até lhe dei o dinheiro, dois dólares.
- E eu trusse-hYo uísque - disse o Ludus. - Não sei o que vomicê lhe fez.
- Tu trouxeste-me foi meio canjirão de zurrapa, uma mistela ordinária de lixívia e pimentos vermelhos - disse o Boon. - Não sei o que e que o Mr. Maury te vai fazer por teres andado com as mulas
a por fora toda a noite, mas isso não vai nem chegar perto do que
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o Calvin Bookwright te vai fazer quando eu lhe mostrar aquele uísque e lhe disser que tu disseste que foi ele que o fez.
- O Mr. Winbush fica a mais de duas léguas da cidade - disse Ludus. - Havia de ser meia-noite antes d'eu poder voltar pra... -parou.
- Então era para isso que tu precisavas da carroça - disse o Boon. - Piraste-te de Jefferson de fininho para andares na boa-vai-ela e agora tiveste de andar por aí às voltas até encontrares uma janela dos fundos por onde pudesses entrar à socapa. Pois bem, agora vais ter tempo de sobra; só há um problema, vais ter de ir a pé...
- Vomicê disse-m'um canjirão d'uísque - resmungou Ludus -e eu trusse-lhe um canjirão...
- Nem meio estava - disse o Boon. E depois, para o Mr. Ballott: - Cos diabos, agora nem vai ter de lhe pagar a semanada. - (O salário semanal dos cocheiros era dois dólares; não te esqueças de que estávamos em 1905.) - Ele já me deve isso pelo uísque. De que é que está à espera? Que o Mr. Maury venha cá ele mesmo despedi-lo?
No entanto, se o Mr. Ballott (e o meu pai) tivessem mesmo intenção de despedir o Ludus de uma vez por todas, tinham-lhe pago o salário. O facto de não o terem feito mostra só por si (e o Ludus sabia-o) que ele estava apenas a ser privado de uma semana de salário (com direito a férias) por ter andado com as mulas toda a noite lá por fora sem a devida autorização; na segunda-feira da semana seguinte, o Ludus ia apresentar-se ao trabalho com os outros cocheiros à hora habitual e o John Powell ia ter a parelha de mulas à espera dele como se nada tivesse acontecido. Só que o Destino - os Boatos - a Má Língua, tinham de se meter de permeio.
Por isso, o meu pai, o Luster e eu próprio lá fomos desarvorados pelo beco acima até à praça, eu já a correr e mesmo assim a ficar para trás. Ainda não tínhamos chegado ao fim da rua quando ouvi-
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mos os tiros, os cinco: pau pau pau pau pau, tal e qual, e nisto chegámos à praça e demos de caras com aquilo (não era longe: mesmo na esquina, em frente da loja de ferragens do primo Isaac McCaslin). Havia montes de gente; não há dúvida de que o Boon escolheu bem o dia para arranjar testemunhas; os primeiros sábados eram dias de feira, mesmo naquela altura, mesmo em Maio, quando se podia pensar que as pessoas deviam andar todas atarefadas com as sementeiras. Mas não no condado de Yoknapataw-pha. Estavam lá todos, pretos e brancos: uma multidão onde o Mr. Hampton (o avô deste Little Hub que é agora xerife, ou vai voltar a ser para o ano) e dois ou três mirones estavam a lutar com o Boon, e uma outra multidão, a meia dúzia de metros, onde outro ajudante do xerife estava a agarrar o Ludus, ainda em pose cristalizada de corrida ou cristalizado em pose de corrida ou em pose de corrida cristalizada, como queiras, e outra multidão junto à montra da loja do primo Ike que uma das balas do Boon (nunca chegaram a descobrir onde foram parar as outras quatro) tinha estilhaçado depois de ter passado de raspão pelas nádegas de uma negrinha que jazia agora no passeio a gritar até o primo Ike em pessoa sair da loja a correr abafando a voz dela com a sua, a vociferar com o Boon, enfurecido, não por ele lhe ter partido a montra, mas (nessa altura o primo Ike ainda era jovem, mas já era o melhor batedor e o melhor caçador de sempre do condado) por não ter sido capaz de acertar com nenhum dos cinco tiros num alvo a escassos seis metros de distância.
E tudo continuou a acontecer de roldão. O consultório do Dr. Peabody ficava do outro lado da rua, por cima da drogaria do Christian; com o Mr. Hampton à frente com a pistola do John 1 owell na mão e o Luster e um outro negro atrás a subirem a escada com a rapariga nos braços ainda a sangrar e a gritar que nem um porco na matança, seguidos pelo meu pai e o Boon, e logo atrás eu e o ajudante do xerife com o Ludus e mais tantos quantos se conse-
21 guiam amontoar pela escada acima até o Mr. Hampton parar, se virar para trás e dar dois berros. O gabinete do juiz Steven ficava no mesmo corredor que o do Dr. Peabody, mas um pouco mais à frente, e ele estava à nossa espera ao cimo das escadas. Então nós - quer dizer, o meu pai, eu, o Boon, o Ludus e o ajudante do xerife - entrámos e ficámos à espera que o Mr. Hampton voltasse do consultório do Dr. Peabody, o que não demorou muito.
- Ora bem - disse o Mr. Hampton. - Mal lhe tocou. Comprem-lhe um vestido novo - ela não trazia nada por baixo - e um saco de rebuçados e dêem dez dólares ao pai. É quanto basta para o Boon resolver a questão com ela. Mas ainda não sei o que vai ser preciso para ele resolver a questão comigo. - Olhou para o Boon e bufou com toda a força: era um homem corpulento, de olhos cinzentos pequeninos e duros, na verdade tão corpulento como o Boon, se bem que não tão alto. - Ora bem - disse ele ao Boon.
- Ele insultou-me - disse o Boon. - Ele disse ao Son Thomas que eu era um cagarolas dum filho da puta que nem cu tinha.
O Mr. Hampton olhou para o Ludus.
- Muito bem.
- Eu nunca disse qu'ele num tinha cu - disse o Ludus. - O qu'eu disse é qu'ele num tinha cuca.
- O quê? - disse Boon.
- Isso ainda é pior - disse o juiz Stevens.
- Claro que é pior - disse, ou melhor, exclamou o Boon. - Não está a ver? E eu nem sequer tenho alternativa. Eu, um branco, tenho de ficar aqui parado e deixar que um maldito dum carroceiro preto critique o meu traseiro ou declare diante de cinco testemunhas que não regulo bem da cabeça. Não está a ver? Porque não se pode retirar nada, nadinha. Nem sequer corrigir nada, porque não há nada a corrigir nem para um lado nem para o outro. - Neste momento ele estava quase a chorar, com aquela cara enorme, feia e rubicunda, dura e áspera como uma noz, contorcida numa careta
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que nem a de uma criança. - Mesmo que eu conseguisse arranjar por aí uma pistola para dar um tiro no Son Thomas, o mais provável era também não lhe acertar.
O meu pai levantou-se muito depressa, bruscamente. Era o único que estava sentado; até o juiz Stevens estava parado com as pernas afastadas diante da lareira apagada, com as mãos metidas debaixo das abas da sobrecasaca, exactamente como se fosse Inverno e houvesse lume a arder.
- Tenho de voltar para o trabalho - disse o meu pai. - Como é aquele velho ditado sobre as mãos ociosas? - E disse, para ninguém em especial: - Quero os dois, o Boon e este rapaz, sob caução, para manter a paz: digamos, cem dólares cada um; eu pago a caução. Mas há uma coisa, quero duas cauções mútuas de acção dupla. Quero duas cauções que sejam as duas ab-rogadas e cobradas no mesmo instante em que qualquer deles faça alguma coisa que... que eu...
- Que não lhe agrade - disse o juiz Stevens.
- Muito obrigado - disse o meu pai - ... no mesmo segundo em que qualquer deles quebre a paz. Não sei se isso é legal ou não.
- Nem eu - disse o juiz Stevens. - Mas podemos experimentar. Se uma caução assim não é legal, devia ser.
- Muito obrigado - disse o meu pai e dirigimo-nos para a porta (o meu pai, eu e o Boon).
- Eu podia voltar já, sem esperar por segunda-feira - disse o Ludus. - Se vomicê pricisa de mim.
- Não - disse o meu pai e depois descemos a escada (o meu pai, eu e o Boon) e saímos para a rua. Continuava a ser o primeiro sábado e dia de feira, mas não havia mais nada de especial, quer dizer, ate alguém chamado Boon Hogganbeck deitar a mão a outra pistola, íamos nós pela rua fora de volta à cocheira, o meu pai, eu e o Boon, que a certa altura disse por cima da minha cabeça e para as costas do meu pai:
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- Um dólar por semana para perfazer duzentos dólares dá um ano e quarenta e oito semanas. Aquela montra do Ike há-de ser mais dez ou quinze, acho eu, para além da rapariga que se atravessou no caminho. Digamos, dois anos e três meses. Eu tenho cerca de quarenta dólares em dinheiro. Se eu lhos desse como entrada, continuo a achar que não me punha a mim, ao Ludus e ao Son Thomas numa das baias vazias e fechava a porta por dez minutos. Ou punha?
- Não - disse o meu pai.
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II

ISTO FOI NO sábado. O Ludus voltou ao trabalho na segunda-feira. Na sexta-feira seguinte o meu avô - o outro, o pai da minha mãe, o pai da tua bisavó - morreu em Bay St. Louis.
O Boon realmente não nos pertencia. Quer dizer, não apenas a nós, aos Priests. Ou, melhor dizendo, aos McCaslins e aos Edmonds, de quem os Priests são o que se pode chamar o ramo mais novo. O Boon tinha três proprietários: não apenas nós, representados pelo meu avô, o meu pai, o primo Ike McCaslin e o nosso outro primo, o Zachary Edmonds, a cujo pai, McCaslin Edmonds, o primo Ike tinha doado a plantação McCaslin no dia em que ele fez vinte e um anos - ele pertencia-nos, não apenas a nós, mas também ao major De Spain e ao general Compson até ao dia em que morreu. O Boon era uma corporação, uma sociedade mútua por acções em que nós os três - McCaslin, De Spain e o general Compson - possuíamos acções de responsabilidade mútua, iguais mas completamente indefinidas, sendo que a única regra da nossa sociedade era que aquele de entre nós que estivesse mais perto em momentos de crise acorreria imediatamente a colmatar qualquer brecha aberta pelo Boon, erro cometido ou simplesmente herdado; ele (o Boon) era uma associação benevolente de protecção e socorros mútuos
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onde os benefícios eram inteiramente dele, Boon, e nossas a benevolência e a protecção oferecida.
A avó dele era filha de uma das índias chickasaw do velho Issetibbeha e tinha casado com um comerciante branco de uísque; por vezes, dependendo da quantidade de copos ingeridos, o Boon apregoava que era pelo menos noventa e nove por cento chickasaw e que de facto descendia em linha directa do velho chefe Issetibbeha; mas no dia seguinte ameaçava esmurrar qualquer homem que ousasse sequer insinuar que ele tinha uma gota que fosse de sangue índio a correr-lhe nas veias.
Era duro, fiel, valente, e nem por sombras de confiança; media um metro e noventa, pesava cento e vinte quilos e tinha a mentalidade de uma criança; há mais de um ano que o meu pai tinha começado a dizer que não faltava muito para eu o ultrapassar.
De facto, e embora ele fosse obviamente um produto biológico de carne e osso perfeitamente normal (vejam-se os momentos das suas bebedeiras em que estava não apenas pronto e disposto, mas desejoso de lutar com qualquer homem ou homens tanto a favor como contra o seu direito à linhagem real, dependendo de como a bebida lhe tivesse caído) e por isso em algum lugar tivesse de ter estado durante esses primeiros nove, dez ou onze anos, era como se o Boon tivesse sido criado tal e qual era agora, e já com nove, dez ou onze anos, por nós os três, McCaslin-De Spain-Compson, como solução para um dilema colocado uma vez no acampamento de caça do major De Spain.
Isso mesmo, exactamente o mesmo acampamento a que tu provavelmente vais continuar a chamar acampamento McCaslin ainda por vários anos depois de o primo Ike desaparecer, tal como nós - os teus antepassados - continuámos a chamar-lhe acampamento De Spain por vários anos depois de o major De Spain morrer. Mas na época dos meus antepassados, quando o major De Spain comprou ou tomou de empréstimo ou arrendou a terra (a maneira
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como os homens conseguiam adquirir títulos válidos de propriedade no Mississippi entre 1865 e 1870) e construiu a cabana, os estábulos e os canis, o acampamento era dele: que escolhia e seleccionava os homens que considerava dignos de caçar a caça que ele decretava que fosse caçada, e assim, nesse sentido, era dono não só de quem a caçava, mas da terra onde a caçavam e mesmo daquilo que caçavam. Ursos, veados, lobos e pumas também a percorriam nessa época, a menos de trinta quilómetros de Jefferson - as quatro ou cinco secções de selva fluvial que tinham feito parte do grandioso sonho digno de reis do velho Thomas Sutpen, que acabou por ser destruído, não só o sonho mas também Thomas, e que naquele tempo eram uma espécie de porta de acesso a leste, à imensidão selvagem e quase virgem de selva e pantanal que se estendia para oeste ao longo do Mississippi, desde os montes até às cidades e às plantações.
Naquela época eram só trinta quilómetros; os nossos antepassados podiam sair de Jefferson à meia-noite em caleches e carroças (um homem a cavalo percorria-os ainda mais depressa) no dia quinze de Novembro e ao raiar do dia estarem na porta respectiva à espera dos ursos ou dos veados. Mesmo em 1905, a terra selvagem só tinha recuado mais trinta quilómetros; as carroças com as armas, os mantimentos e as mantas só tinham de sair ao pôr do Sol; e, entretanto, uma empresa de madeireiros do Norte tinha construído, para transporte dos troncos, um ramal que ia entroncar na linha principal e que passava a menos de dois quilómetros do novo acampamento do major De Spain, e que tinha uma paragem de cortesia para o major De Spain e os seus convidados se apearem e fazerem o resto do percurso nas caleches que tinham saído na véspera e já lá estavam à espera deles. No entanto, em 1925 ja se sentia o fim a aproximar-se. O major De Spain e o resto desse velho grupo, excepto o primo Ike McCaslin e o Boon, já tinham desaparecido, e agora (a estrada que ligava Jefferson ao apeadeiro
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do major De Spain estava agora coberta de gravilha) quando os seus herdeiros desligavam os motores dos automóveis ouviam o som dos machados e das serras onde um ano antes apenas se ouviam os latidos dos cães a perseguir a caça. E que o Manfred de Spain era banqueiro, não caçador como o pai, e subalugou, vendeu a terra e a madeira, de modo que em 1940 (o acampamento era agora do McCaslin) eles - nós - metíamos a bagagem toda em carrinhas de caixa aberta e tínhamos de fazer trezentos quilómetros por estradas alcatroadas para conseguir encontrar floresta onde pudéssemos montar as tendas, embora em 1980 o automóvel será tão obsoleto para chegar à terra selvagem quanto a terra selvagem terá sido tornada obsoleta pelo automóvel que a demanda. Mas talvez eles - tu - encontrem terra selvagem na face oculta de Marte ou da Lua, quem sabe até se habitada por ursos e veados.
Mas quando o Boon apareceu um dia no-acampamento, armado e equipado e já com dez, onze ou doze anos, trinta quilómetros era tudo o que tinham de percorrer o major De Spain, o general Compson, o McCaslin Edmonds, o Walter Ewell, o velho Bob Legate e mais meia dúzia que iam e vinham. Mas apesar de o general Compson ter comandado tropas em Shiloh como coronel, e sem grandes desaires, e novamente sem grandes desaires como brigadeiro durante a retirada de Johnston para Atlanta, não era lá grande coisa em orientação no terreno nem em topografia, e perdia-se rapidamente dez minutos depois de sair do acampamento (a mula que ele gostava de montar tê-lo-ia trazido de volta a qualquer momento, mas como general confederado e ajuramentado que era, e ainda por cima um Compson, recusava-se a aceitar conselhos de uma mula), pelo que, assim que o último caçador regressava da expedição matinal, toda a gente tocava a corneta à vez até o general Compson finalmente chegar - o que era satisfatório, pelo menos resolvia o problema até o ouvido do general Compson também começar a falhar. Até que por fim, uma tarde, o Walter Ewell
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e o Sam Fathers, que era meio negro e meio índio chickasaw, tiveram de partir à procura dele e passar a noite acampados com ele na floresta, o que colocou o major De Spain perante a alternativa de o proibir de sair do acampamento ou de o expulsar do clube; eis senão quando apareceu o Boon Hogganbeck, já um gigante, já maior, aos dez ou onze anos, do que o general Compson, de quem se tornou criado de companhia - uma criança vadia que parecia não ter nada de seu nem saber nada a não ser o próprio nome; nem mesmo o primo Ike sabe ao certo se foi o McCaslin Edmonds, ou o major De Spain, quem primeiro encontrou o Boon, lá onde quem quer que o tivesse dado à luz o tinha abandonado. Tudo o que o Ike sabe - aquilo de que se lembra - é que o Boon já lá estava, com cerca de doze anos, em casa do velho Carothers McCaslin, onde o McCaslin Edmonds já estava a criar o Ike como se fosse seu pai, e agora, e sem interrupção, acolhia também o Boon, igualmente como se tivesse sido seu pai, embora nessa altura o próprio McCaslin Edmonds tivesse apenas trinta anos.
O certo é que assim que o major De Spain percebeu que, das duas uma, ou tinha de expulsar o general Compson do clube, o que seria difícil, ou tinha de o proibir de sair do acampamento, o que seria impossível, e que -por isso a única solução era equipar o general Compson com algo parecido a um Boon Hogganbeck, eis que surge o Boon Hogganbeck, tirado da manga pelo McCaslin Edmonds ou talvez por ambos - o Edmonds e o próprio De Spain -em crise simultânea. O Ike lembrava-se disto: de carregarem a carroça com as mantas, as armas e os mantimentos no dia catorze de Novembro, com o Jim da Tennie (o avô do Bobo Beauchamp de quem vais ouvir falar mais adiante), o Sam Fathers e o Boon (ele, o Ike, só tinha cinco ou seis anos nessa altura; se tivesse nascido quatro ou cinco anos mais cedo já teria dez e poderia ir com eles) e o próprio McCaslin, a cavalo à frente, rumo ao acampamento de onde todas as manhãs o Boon partia atrás do general Compson
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numa outra mula, até que, recorrendo provavelmente apenas à sua força, uma vez que aos doze anos já era maior do que a pessoa que o tinha a seu cargo, o Boon o obrigava a tomar a direcção certa a tempo de chegar ao acampamento antes do anoitecer.
Assim, mesmo sem querer, o general Compson fez do Boon um batedor exímio, por assim dizer, simplesmente para se proteger. Mas nem mesmo comer à mesma mesa, calcorrear as mesmas florestas e dormir debaixo da mesma chuva que o Walter Ewell foi capaz de fazer dele um atirador exímio; uma das histórias favoritas no acampamento era acerca da pontaria do Boon e era contada pelo Walter Ewell, que estava numa porta onde tinha deixado o Boon (o velho general Compson tinha finalmente partido para junto dos seus antepassados - ou para onde quer que os veteranos da Guerra Civil, fossem eles azuis ou cinzentos, provavelmente teimavam em ir, já que provavelmente nenhum lugar lhes servia para nada que se assemelhasse a uma estadia permanente - e agora o Boon era um caçador como qualquer outro) e ouviu os cães e percebeu que o veado ia passar pela porta do Boon, e depois de ouvir os cinco tiros da velha espingarda de pressão do Boon (o general Compson tinha-lha oferecido; nunca tinha funcionado nas melhores condições quando era do general Compson e o Walter disse que o que realmente o surpreendeu foi que a arma tivesse disparado duas vezes seguidas sem encravar, quanto mais cinco) e a seguir a voz do Boon a ecoar no mato que os separava: "Rai's o partam! Lá vai ele! Apanhe-o! Apanhe-o!", e que ele - o Walter - correu para a porta do Boon e viu os cinco cartuchos no chão e, a menos de dez passos de distância, as pegadas do veado em fuga em que o Boon não tinha acertado nem de raspão.
Depois o meu avô comprou o tal automóvel e o Boon encontrou a sua alma gémea. Por esta altura já ele fazia oficialmente parte (com o mútuo acordo de McCaslin-Edmonds-Priest, tendo mesmo o McCaslin Edmonds desistido ou visto finalmente a luz, quando o
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Boon chumbou a terceira classe pela segunda vez - ou talvez a verdadeira luz que o McCaslin viu fosse que o Boon jamais ficaria numa quinta o tempo suficiente para aprender a ser agricultor) do pessoal da cocheira. A princípio, as tarefas que lhe cabiam eram sobretudo as indiferenciadas - dar de comer aos cavalos, limpar os arneses e as caleches. Mas eu disse-te que ele tinha um jeito muito especial para lidar com os cavalos e as mulas, e em breve passou a condutor de veículos de aluguer - os fiacres e táxis em que os caixeiros-viajantes faziam a sua volta pelas lojas da região. Ele agora vivia na cidade, excepto quando o McCaslin e o Zachary passavam os dois a noite fora e o Boon ia dormir lá em casa para proteger as mulheres e as crianças. Quer dizer, vivia em Jefferson. Quer dizer, tinha realmente um lar - um quarto alugado naquele que no tempo do meu pai era o Commercial Hotel, aberto na esperança de fazer concorrência ao Holston House, esperança essa que sempre se gorou. Era no entanto um hotel decente, onde os jurados pernoitavam e tomavam as refeições durante os julgamentos, e onde os litigantes mais provincianos e os comerciantes de mulas e cavalos se sentiam mais à vontade do que entre as carpetes e os escarradores de latão, os cadeirões de couro e as toalhas de linho do outro lado da cidade; depois, já no meu tempo, o Snopes Hotel, com os dois esses ao contrário pintados à mão, quando o Mr. Fiem Snopes (o banqueiro, assassinado há dez ou doze anos por um parente enlouquecido que se recusava talvez a acreditar que o seu próprio primo o tinha mandado realmente para a penitenciária, quando podia pelo menos tê-lo salvado ou no mínimo tentado) começou a trazer para a cidade a sua tribo, que vinha da selva, para lá de Frenchman's Bend; depois, por um curto período nos meados dos anos 30, foi alugado por uma senhora de cabelos ruivos que chegou de repente vinda não se sabia de onde e partiu de repente para o mesmo lugar donde tinha vindo, e passou a ser conhecido pelo teu pai e pela polícia como Little Chicago; e que tu agora conheces
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- sendo as glórias do passado agora meras recordações - como a pensão da Mrs. Rouncewell. Mas no tempo do Boon ainda era o Commercial Hotel, e nos intervalos em que não ficava a dormir no chão da cozinha de qualquer Compson ou Edmonds ou Priest, era lá que ele vivia quando o meu avô comprou o automóvel.
O meu avô nem sequer queria ter um automóvel, mas foi obrigado a comprá-lo. Como banqueiro e presidente do vetusto Banco de Jefferson, o primeiro banco do condado de Yoknapatawpha, estava absolutamente convencido nessa altura, e assim continuou até à hora da sua morte, muitos anos depois, numa época em que já todas as outras pessoas, mesmo as do condado de Yoknapatawpha, tinham percebido que o automóvel tinha vindo para ficar, que esse veículo motorizado era um fenómeno tão inconsequente como a brevidade da vida do amanita muscaria que surgiu a noite passada, e que, tal como o fungo, desapareceria com o sol da manhã. Mas o coronel Sartoris, presidente do moderno Banco dos Comerciantes e Agricultores, que tinha surgido subitamente qual cogumelo, obrigou-o a comprar um. Ou melhor, foi um outro inconsequente, um tal Buffaloe, um mágico da mecânica, de olhos de genciana míopes e sonhadores, que a isso o compeliu. Porque o carro do meu avô não foi o primeiro a aparecer em Jefferson. (Não estou a contar com o EMF vermelho de corrida do Manfred de Spain. Embora o De Spain tivesse esse carro e durante vários anos se pavoneasse com ele todos os dias pelas ruas de Jefferson, o carro não era mais bem aceite pelo decoro burguês da cidade do que o próprio Manfred, ambos solteirões incorrigíveis, mas impunha-se à cidade pelas suas tropelias, como aconteceu numa noite de sábado prolongada até ao raiar da aurora, no tempo em que o Manfred era mayor, sendo o seu vermelho-vivo não propriamente um descarado desafio à cidade, mas antes uma espécie de displicente rejeição.) O carro do meu avô não foi sequer o primeiro automóvel a ver Jefferson ou vice-versa. Não foi sequer o primeiro a aparecer em
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Jefferson. Dois anos antes, um outro carro tinha feito o percurso desde Memphis, cobrindo os cento e vinte quilómetros em menos de três dias. Nisto começou a chover e o carro ficou retido em Jefferson duas semanas, período esse em que quase não tivemos luz eléctrica; nem transportes públicos, se a cocheira dependesse unicamente do Boon. É que o Mr. Buffaloe era o homem - o único homem, o único ser humano mais próximo do que Memphis - que sabia como manter, e mantinha, o gerador a vapor a funcionar; e desde o momento em que o automóvel deu sinais de que não ia mais longe, pelo menos naquele dia, o Mr. Buffaloe e o Boon colaram-se a ele, inseparáveis como duas sombras, uma grande e outra pequena - o gigante descomunal a cheirar a amoníaco e óleo de arneses, e o homenzinho besuntado e enfarruscado, com uns olhos azuis como duas penas de periquito na muda caídas sobre um montinho de carvão, que mal teria feito a agulha da balança chegar aos cinquenta quilos com todas as suas ferramentas nos bolsos (e as da cidade também) - um de olhar pregado no carro com uma espécie de incrédula avidez, qual touro prestes a investir; o outro, sonhador, gentil e terno, com a mão enfarruscada, doce como a de uma mulher, a acariciar o carro e a afagá-lo, para no instante seguinte mergulhar até às ancas sob o capo levantado.
Choveu toda a noite e chovia ainda na manhã seguinte. O dono do carro foi informado, tranquilizado - pelo Mr. Buffaloe, ao que parecia; o que era um pouco estranho, já que nunca ninguém o tinha visto afastar-se o suficiente da central eléctrica ou da oficina ao fundo do quintal para ter percorrido estradas que chegassem para poder vaticinar o seu estado - que as estradas estariam intransitáveis durante pelo menos uma semana, talvez dez dias. E, assim, o dono do carro voltou para Memphis de comboio, deixando o automóvel guardado naquilo que, no quintal de qualquer outra pessoa excepto o Mr. Buffaloe, teria sido uma cavalariça ou um curral. E havia outra coisa que não percebíamos: como é que
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o Mr. Buffaloe - aquele homenzinho afável e submisso, quase mudo e num estado permanente de etéreo, enfarruscado e deva-neante sonambulismo - como é que, e por que meios, por que mesméricos e hipnóticos dons que até agora nem mesmo ele sabia que possuía, tinha conseguido persuadir um perfeito desconhecido a deixar aquele brinquedo de luxo à sua guarda.
Mas o certo é que deixou e voltou para Memphis; e agora, sempre que havia avarias eléctricas em Jefferson, alguém tinha de ir a pé, a cavalo ou de bicicleta até à casa do Mr. Buffaloe, na periferia da cidade, e lá aparecia o Mr. Buffaloe, vago, sonhador e sem pressa, e ainda a limpar as mãos, a dobrar a esquina da casa vindo do quintal; e ao terceiro dia o meu pai descobriu finalmente onde é que o Boon estava (tinha estado) durante todo o tempo em que ele - o Boon -devia ter estado na cocheira de aluguer. Porque nesse mesmo dia o próprio Boon revelou o segredo, deu com a língua nos dentes, com frenética e enfurecida urgência. Ele e o Mr. Buffaloe tinham chegado ao que teria sido um confronto físico se o Mr. Buffaloe - aparentemente um reservatório inesgotável de surpresas e possibilidades -não tivesse apontado a Boon uma pistola toda besuntada e coberta de fuligem, mas em perfeito estado de funcionamento.
Foi assim que o Boon contou a história. Ele e o Mr. Buffaloe tinham chegado a acordo, a um entendimento, não apenas total mas imediato, sobre todo o processo de manterem o automóvel nas mãos do Mr. Buffaloe e o dono fora da cidade; e, naturalmente, o Boon pensou que o Mr. Buffaloe rapidamente resolveria o mistério de como pô-lo a funcionar, e depois, à noite, podiam ir buscá-lo e dar umas voltas. Mas para choque e indignação do Boon, tudo o que o Mr. Buffaloe queria era descobrir porque é que o automóvel funcionava.
- Ele deu cabo dele! - disse o Boon. - Desfê-lo em bocados só para ver o que tinha lá dentro! E nunca mais vai conseguir montá-lo outra vez!
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Mas o Buffaloe conseguiu. E lá estava ele, perfilado, afável, enfarruscado e placidamente sonhador, quando passadas duas semanas o dono voltou, pôs o motor a trabalhar e se foi embora; e passado um ano o Buffaloe tinha construído o seu próprio carro, motor, caixa de velocidades e tudo, a partir de uma caleche com pneus de borracha; nessa tarde, ao atravessar a praça paulatinamente e sem pressa, fazendo um barulho dos diabos, assustou de tal maneira os cavalos que puxavam a carruagem do coronel Sartoris que os animais dispararam à desfilada levando de rastos a charrete (felizmente vazia) e deixando-a mais ou menos espatifada; na noite seguinte foi formalmente registado nos arquivos de Jefferson um decreto municipal que proibia o uso de qualquer veículo de propulsão mecânica dentro dos limites do município. Assim, como presidente do banco mais antigo e conceituado do condado de Yoknapatawpha, o meu avô viu-se obrigado a comprar um automóvel, ou a isso ser obrigado pelo presidente do segundo banco. Estás a ver aonde eu quero chegar? Não se tratava de primeiro e segundo na hierarquia social da cidade, e muito menos de dois banqueiros rivais, mas sim de colegas da banca, sacerdotes devotados aos mistérios impenetráveis e inelutáveis da alta finança; era como se, mau grado a sua inflexível e irredutível oposição à era das máquinas, a sua recusa até em reconhecê-la, o meu avô tivesse sido visitado logo no início por uma espécie - para ele - de visão de pesadelo do futuro vasto e sem limites da nossa nação, em que a unidade base da economia e da prosperidade seria um pequeno habitáculo produzido em massa com quatro rodas e um motor.
Por isso, comprou o automóvel, e o Boon encontrou a menina dos seus olhos, o amor virginal do seu embotado e inocente coração. Era um Wynton Flyer. (Este foi o primeiro que ele - nós - possuímos, antes do White Steamer por que o meu avô o trocou quando a minha avó finalmente decidiu, passados dois anos, que não podia suportar de maneira nenhuma o cheiro a gasolina.) Punha-se o
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motor a trabalhar manualmente, na frente do carro, sem mais nenhum risco (desde que a pessoa se tivesse lembrado de o pôr em ponto morto) do que partir um ou dois ossos do braço; tinha faróis de querosene para a noite e, quando ameaçava chuva, cinco ou seis pessoas conseguiam montar facilmente a capota e as cortinas laterais em dez ou quinze minutos, e o meu avô equipou-o até com uma lanterna de querosene, um eixo sobressalente, um pequeno rolo de arame farpado e um guincho, para quando ia para longe da cidade, sendo que com este equipamento podia ir até Memphis, como de facto aconteceu uma vez de que em breve falarei. Além disso, todos nós, avós, pais, tias, primos e crianças, tínhamos umas fatiotas especiais para andar no automóvel, compostas por véus, bonés, óculos de protecção, luvas sem dedos e uma espécie de batas largas e compridas abotoadas até ao pescoço e de cor neutra chamadas guarda-pós, de que também falarei mais adiante.
Nesta altura, o Mr. Buffaloe já há muito que tinha ensinado o Boon a conduzir o seu automóvel de fabrico caseiro. Claro que não podiam levá-lo para as ruas de Jefferson - na verdade, nunca mais transpôs a fronteira da sebe do jardim da frente do Mr. Buffaloe -mas havia uma área de terreno aberto nas traseiras da casa que, em devido tempo, o Mr. Buffaloe e o Boon tinham aplanado (relativamente) e alisado, transformando-a num autódromo bastante satisfatório. Assim, na altura em que o Boon e o Mr. Wordwin, o caixa do banco do meu avô (era solteiro e um dos membros do nosso clube, um dos nossos homens mais conhecidos; no espaço de dez anos tinha sido padrinho do noivo em trinta casamentos), foram a Memphis de comboio e voltaram de lá com o automóvel (em menos de dois dias desta vez; um recorde), o Boon já estava predestinado a ser o decano dos motoristas de Jefferson.
E então, ao arrepio dos sonhos do Boon, o meu avô aboliu o automóvel. Limitou-se a comprá-lo, pagou por ele o que o Boon designava por um apreciável monte de dinheiro sonante, exami-
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nou-o minuciosa e imperscrutavelmente uma única vez e depois baniu-o da circulação. Mas ele - o meu avô - não podia fazê-lo completamente; havia aquele decreto arrogante do coronel Sartoris que ele - o meu avô - sendo o mais velho, não se podia permitir tolerar, fosse qual fosse a sua opinião sobre os automóveis. De facto, e a seu ver, ele e o coronel Sartoris pensavam exactamente a mesma coisa; até às suas mortes (numa altura em que o ar de todo o condado de Yoknapatawpha já estava empestado durante o dia com vapores de gasolina, e retinia, durante a noite, especialmente aos sábados, com o entrechocar dos guarda-lamas e o chiar dos travões) nenhum deles se dignou a emprestar um cêntimo que fosse a qualquer indivíduo acerca do qual tivessem a mais leve suspeita de querer o dinheiro para comprar um automóvel. O crime do coronel Sartoris foi simplesmente ter-se antecipado ao seu colega sénior ao tomar uma medida que ambos aprovavam -banir oficialmente os automóveis de Jefferson ainda antes de eles lá terem chegado. Estás a ver? O meu avô não comprou o automóvel para desafiar o decreto do coronel Sartoris. Tratava-se simplesmente de uma calma e deliberadamente ponderada revogação do mesmo, ainda que só através de um simbólico gesto semanal.
Precisamente antes do decreto do coronel Sartoris, o meu avô tinha mandado transferir a carruagem e os cavalos do seu pátio para a cocheira de aluguer, onde estavam mais facilmente ao alcance de um telefonema da minha avó do que dos seus gritos de uma das janelas do primeiro andar, porque havia sempre alguém que atendia o telefone na cocheira, o que o Ned, na cozinha, no estábulo ou onde quer que estivesse (ou se pensasse que estava quando a minha avó o chamava), nem sempre fazia. Na verdade, a maior parte das vezes ele não estava ao alcance de nenhuma das vozes da casa da minha avó, porque uma dessas vozes era a da mulher dele. E assim chegamos ao Ned. Era o cocheiro do meu avô. A mulher dele (a que ele tinha na altura, pois teve quatro) era a
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Delphine, a cozinheira da minha avó. Nessa altura, ele era o "tio" Ned só para a minha mãe. Quer dizer, ela era a única que insistia que todos nós, as crianças - éramos três, porque o Alexander ainda não conseguia chamar nada a ninguém - o tratássemos por tio Ned. Mais ninguém se importava que o tratássemos assim ou não, nem mesmo a minha avó, que também era uma McCaslin, e muito menos o próprio Ned, que não o tinha merecido nem sequer por ter vivido tempo suficiente para a tira de cabelo que lhe envolvia a careca começar a ficar grisalha, e muito menos branca (nunca ficou. Quer dizer, o cabelo: ficar branco ou mesmo grisalho. Quando ele morreu, aos setenta e quatro anos, salvo ter passado por quatro mulheres, não tinha mudado nada), e que na verdade podia não querer ser tratado por tio; nenhum deles insistia nisso a não ser a minha mãe, que do ponto de vista dos McCaslin nem sequer era nossa parente. Porque ele - o Ned - era um McCaslin, nascido ao fundo do quintal dos McCaslin em 1860. Ele era o esqueleto no armário da nossa família; e nós, por sua vez, herdámo-lo com a sua história (que não tinha quem melhor a defendesse do que o próprio McCaslin) de que a mãe era filha natural do velho Lucius Quintus Carothers em pessoa e de uma escrava negra; nunca o Ned deixou que algum de nós se esquecesse de que ele, além do primo Isaac, era realmente neto do há muito venerado Lancaster, enquanto nós, os pobres Edmonds e Priests que ganhávamos o pão com o suor do nosso rosto, apesar de sermos três - tu, eu e o meu avô - usávamos o nome dele e não passávamos de parentes de segunda e uns parasitas.
Por isso, quando o Boon e o Mr. Wordwin chegaram com o carro, a cocheira estava pronta para o receber: chão novo e portas novas, e um cadeado novinho em folha já na mão do meu avô enquanto ele ia andando muito devagarinho à volta do carro, a olhar para ele exactamente como teria examinado a charrua, a segadeira ou a carroça (e, já agora, o cliente também) sobre a qual
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esse futuro cliente do banco pretendia contrair um empréstimo. Depois fez sinal ao Boon para levar o automóvel para a garagem (ah sim, em 1904, e mesmo no Mississippi, nós já sabíamos que era eSse o nome que se dava ao barracão onde se guardavam os automóveis).
- O quê? - disse o Boon.
- Mete-o lá dentro - disse o meu avô.
- Não vai sequer experimentá-lo? - disse o Boon.
- Não - disse o meu avô. O Boon meteu-o na garagem e voltou a sair (só o Boon). Se antes tinha a perplexidade estampada no rosto, agora a sua expressão era de choque, ansiedade, algo muito parecido com o pânico. - O carro tem chave? - perguntou o meu avô.
- O quê? - disse o Boon.
- Uma argola. Uma cavilha. Um gancho, qualquer coisa que o ponha a funcionar. - Muito devagar, o Boon tirou uma coisa do bolso e depositou-a na mão do meu avô. - Fecha as portas - disse o meu avô, e ele próprio foi passar o cadeado pelo ferrolho, fechan-do-o com um estalido e guardando a chave no bolso. O Boon travava agora uma batalha consigo mesmo. Estava em crise; a situação era desesperada. Eu - nós, o Mr. Wordwin, o meu avô, o Ned, a Delphine e todas as outras pessoas brancas e pretas que iam a passar na rua quando o automóvel chegou - vimo-lo sair vencedor, pelo menos deste primeiro confronto.
- Eu volto depois do almoço para a Miss Sarah - era a minha avó - o experimentar. Por volta da uma. Posso vir mais cedo se acha que é muito tarde.
- Eu mando recado à cocheira - disse o meu avô. Porque se tratava de um combate em grande escala e não de meras escaramuças entre postos avançados. Era tudo ou nada, ganhar ou perder; havia a considerar a logística e o terreno; golpe simulado e parada, manha; mas, acima de tudo, paciência, visão a longo prazo. Isto
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prolongou-se pelos três dias que faltavam até sábado. O Boon voltou para a cocheira e durante toda a tarde nunca se afastou muito do telefone, mas como é óbvio sem dar nas vistas, sem nada revelar; fez até o seu trabalho - ou assim pensavam, até o meu pai descobrir que o Boon, por sua alta recreação, tinha encarregado o Luster de ir com o fiacre esperar o comboio da tarde, cuja chegada (a menos que viesse atrasado) coincidia sempre com a hora, o momento em que o meu avô saía do banco ao fim de um dia de trabalho. Porém, e embora a batalha estivesse ainda na fase da expectativa, requerendo - não, exigindo - atenção e vigilância constantes em vez de uma ofensiva capaz de se impor pela sua própria pujança, o Boon ainda estava confiante, ainda dominava a situação:
- Claro que mandei o Luster. Da maneira como esta cidade está a crescer, um dia destes vamos precisar de mandar dois fiacres para a estação e já há muito tempo que eu ando a pensar no Luster para segundo cocheiro. Não se preocupe; eu fico de olho nele.
Mas o telefonema não chegava, e às seis horas até o Boon admitiu que não viria telefonema nenhum. Essa era a fase da expectativa; ainda nada estava perdido e, ao abrigo da escuridão, ele podia até manipular um pouco as coisas. Na manhã seguinte, por volta das dez, ele - nós - entrámos no banco como se por mera inspiração de momento.
- Dê-me as chaves - disse ele ao meu avô. - Toda aquela lama e aquela poeira do Mississippi, para não falar da lama e da poeira do Tennessee que já vinham por baixo das outras. Eu levo comigo a mangueira da cocheira para o caso de o Ned ter enfiado a sua sabe-se lá onde.
O meu avô ficou a olhar para o Boon, a olhar para ele sem pressa, como se o Boon fosse de facto um cliente que vinha oferecer a carroça ou a enfardadeira em troca de quinze dólares emprestados.
- Eu não quero o interior da minha cocheira todo molhado - disse
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meu avô. Mas o Boon chegou para ele, igualmente distante e 'nda mais indiferente, ainda com mais tempo disponível, tempo para gastar.
- Claro, claro. Mas lembre-se que o homem disse que o carro devia andar todos os dias. Não para ir a lado nenhum em especial, só para as velas e o magneto não enferrujarem e depois ter de mandar vir outro de Memphis ou sabe-se lá donde, talvez até da fábrica, e ter de desembolsar vinte ou vinte e cinco dólares. Longe de mim responsabilizá-lo, mas tudo o que eu sei foi o que ele lhe disse, e eu também tenho de acreditar na palavra do homem. Mas afinal o carro é seu, pode fazer dele o que quiser. Se quiser deixá-lo a enferrujar ninguém tem nada com isso. Com um cavalo seria diferente. Mesmo que não tivesse dado nem cem dólares por ele, ia ver-me lá fora todas as manhãs ao raiar da aurora a fazê-lo correr na ponta duma corda só para lhe manter as tripas a funcionar. - Porque o meu avô era um grande banqueiro e o Boon sabia disso: que o meu avô sabia não só quando executar uma hipoteca, mas também quando chegar a acordo ou anulá-la. O meu avô levou a mão ao bolso e deu as duas chaves ao Boon - a do cadeado e a que punha o automóvel a trabalhar. - Vamos - disse-me o Boon, já de saída.
Ainda nós íamos a subir a rua e já podíamos ouvir a minha avó a gritar pelo Ned da janela do primeiro andar, se bem que ela já tivesse desistido quando chegámos ao portão. Quando íamos a atravessar o quintal para ir buscar a mangueira, a Delphine saiu da porta da cozinha.
- Onde está o Ned? - perguntou ela. - Temos passado a manhã toda a gritar por ele. Está lá em cima na cocheira?
- Claro - disse o Boon. - Eu digo-lhe. Mas não esperem por ele. O Ned estava mesmo lá. Ele e dois dos meus irmãos. Pareciam uma escadinha de três degraus a tentar espreitar pelas frinchas da porta da garagem. Acho que o Alexander também lá estaria, só que ainda não sabia andar; não sei porque é que a tia Callie ainda não
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se tinha lembrado de o trazer. Nisto vem o Alexander; a minha mãe vinha da nossa casa, a atravessar a rua com ele ao colo. Se calhar a tia Callie ainda estava a lavar fraldas. - Bom dia, Miss Alison - disse o Boon. - Bom dia, Miss Sarah - disse ele a seguir, porque agora a minha avó também aí vinha com a Delphine atrás. E mais duas senhoras, duas vizinhas, ainda com as toucas de dormir. Porque o Boon talvez não fosse banqueiro nem sequer bom comerciante, mas estava a provar ser um guerrilheiro de primeira. Aproximou-se, destrancou a porta da garagem e abriu-a. O Ned foi o primeiro a entrar.
- Ora bem - disse-lhe o Boon - estás aqui desde o raiar da aurora a espreitar pela frincha. Que tal te parece?
- Não me parece nada - disse o Ned. - Por este dinheiro o Patrão Priest podia ter comprado o melhor cavalo de duzentos dólares de todo o condado de Yoknapatawpha.
- Não há cavalos de duzentos dólares no condado de Yoknapatawpha - disse o Boon. - Se houvesse, o dinheiro que este carro custou dava pra comprar dez cavalos. Vai lá ligar a mangueira.
- Vá ligar a mangueira, Lucius - disse-me o Ned sem sequer olhar. Depois foi direito ao automóvel e abriu a porta. Era a porta de trás. Naquela época não havia portas à frente, entrava-se directamente. - Venha, Miss Sarah, a sinhora e a Miss Alison - disse o Ned. - A Delphine pode esperar c'os meninos pela próxima viagem.
- Vai ligar essa mangueira como eu te mandei - disse o Boon. - Tenho de o tirar daqui primeiro antes de lhe fazer alguma coisa.
- Não vai pegar-lhe em peso prò tirar daí, poi não? - disse o Ned. - Acho que podemos aproveitar pr'andar esse bocadito. Tá-me cá a parecer que vou ter d'o guiar, por isso quanto mais cedo começar, melhor. - E depois fez: - Hi hi hi. - E a seguir: - Venha, Miss Sarah.
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- Não há perigo, Boon? - perguntou a minha avó.
- Não senhora, Miss Sarah - disse o Boon. A minha avó e a minha mãe entraram no carro e, antes que o Boon tivesse tempo de fechar a porta, já o Ned estava sentado ao volante.
- Sai já daí - disse o Boon.
- Vá tratar da sua vida, s'é que sabe tratar dela - disse o Ned. - Eu não vou tocar em nada até saber como se faz, e ficar aqui sentado não me vai ensinar. Vá lá dar à manivela, ou lá o que é que se
tem de fazer.
O Boon foi de volta até ao lugar do condutor, ajustou os interruptores e as alavancas e depois foi pôr-se à frente do carro e começou a dar à manivela. À terceira tentativa o motor começou a roncar.
- Boon! - gritou a minha avó.
- Está tudo bem, Miss Sarah! - berrou o Boon sobrepondo-se à barulheira e voltando a correr para o volante.
- Não quero saber! - disse a minha avó. - Entra depressa! Estou a ficar nervosa! - O Boon entrou, calou o motor e mexeu nas alavancas; num segundo o automóvel rolou lenta e silenciosamente em marcha-atrás para fora da cocheira, para o cercado ensolarado, e parou.
- Hi hi hi - disse o Ned.
- Tem cuidado, Boon - disse a minha avó. Eu podia ver como a mão dela se agarrava com força à barra da capota.
- Sim senhora - disse o Boon. O automóvel andou mais um bocado para trás, começou a curvar e depois a andar para a frente, sempre a curvar; a mão da minha avó continuava agarrada à barra. A cara da minha mãe parecia a de uma rapariguinha. O carro avançou devagar e sem ruído e atravessou o cercado até ao portão de acesso à estrada, ao exterior, ao mundo, e parou. E o Boon não disse nada: limitou-se a ficar ali sentado ao volante, com o motor a trabalhar de mansinho, sem ruído, com a cabeça virada apenas o
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suficiente para a minha avó lhe ver a cara. Sim, ele podia não ser um mago dos negócios como o meu avô, e havia em Jefferson quem dissesse que ele até não valia quase nada, mas pelo menos nesta luta provava ser um lutador que primava pela elegância e habilidade. A minha avó continuou sentada talvez por meio minuto e depois encheu o peito de ar e expeliu-o com força.
- Não - disse ela. - Temos de esperar pelo Mr. Priest. - Talvez não fosse uma vitória, mas pelo menos o nosso lado - o Boon -tinha não só descoberto o ponto fraco das linhas avançadas do inimigo (o meu avô) como nessa noite à hora do jantar o inimigo ia também, ele próprio, descobrir.
Descobrir que, de facto, o seu flanco tinha sido contornado. Na tarde seguinte (sábado) depois de o banco ter fechado, e todas as outras tardes de sábado, e depois, quando chegou o Verão, todas as tardes excepto quando estava a chover, com o meu avô à frente, ao lado do Boon, e todos nós à vez - a minha avó, a minha mãe, eu e os meus três irmãos, e a tia Callie que em troca tomava conta de nós, incluindo o meu pai, e a Delphine e vários parentes e vizinhos e as amigas da minha avó, na devida ordem - todos de guarda-pó e óculos de protecção, íamos passear por Jefferson e arredores; a tia Callie e a Delphine na vez delas, mas não o Ned. Esse andou uma única vez: aquele minuto enquanto o carro saiu lentamente da garagem de marcha-atrás e atravessou o cercado até a minha avó perder a paciência e dizer Não ao portão aberto e ao mundo exterior, mas desde então nunca mais. No segundo sábado ele tinha percebido, aceitado - ou pelo menos ficado convencido - que mesmo que o meu avô tivesse pensado fazer dele motorista oficial e guarda do automóvel, ele só teria conseguido aproximar-se dele por cima do cadáver do Boon. Porém, e embora ele se tivesse recusado a tomar conhecimento da existência do automóvel, ele e o meu avô tinham chegado a um acordo tácito de cavalheiros a esse respeito: o Ned nunca faria troça nem diria mal do automóvel nem
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, doproprietário, e o meu avô nunca mandaria o Ned lavá-lo ou poli-lo como costumava fazer com a carruagem - o que ambos sabiam que o Ned se recusaria a fazer, mesmo que o Boon deixasse- ou seja, o meu avô infligia assim ao Ned o único castigo possível pela sua apostasia, recusando-se a dar-lhe a oportunidade de se negar publicamente a lavar o automóvel antes que o Boon pudesse ter tido uma oportunidade de se recusar publicamente a deixá-lo
fazer isso.
Porque foi nessa altura que o Boon se transferiu - foi transferido por mútuo e instantâneo consentimento - do turno de dia na cocheira para o turno da noite. De outra maneira, a cocheira de aluguer nunca mais lhe poria a vista em cima. Aquele sector da classe ociosa da nossa Jefferson, amigos ou conhecidos do meu pai ou talvez apenas amigos de cavalos, que podiam ter usado a cocheira como endereço comercial permanente - se eles tivessem algum negócio ou esperassem receber correio - eram lá mais conhecidos do que o Boon. Agora, se - quando - alguém, quer dizer, o meu pai, precisava do Boon, mandava-me ao cercado do meu avô, onde ele estava a lavar e a polir o automóvel - mesmo durante aquelas primeiras semanas em que o carro não tinha saído do cercado desde o sábado anterior e não voltaria a sair até ao sábado seguinte, tiran-do-o de marcha-atrás da cocheira para o lavar outra vez todas as manhãs, com terno desvelo, até à última porca e ao último raio das rodas, ficando depois sentado lá dentro a guardá-lo até ele secar.
- Ele vai acabar por lhe tirar a tinta toda - disse o Mr. Ballott.
- O Patrão sabe que ele descarrega a mangueira em cima daquele automóvel durante quatro ou cinco horas todos os dias?
- E o que é que adiantava se soubesse? - disse o meu pai.
- O Boon ia continuar a passar o dia inteiro sentado no cercado a olhar para ele.
- Ponha-o no turno da noite - disse o Mr. Ballott. - Assim ele
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podia fazer o que quisesse durante o dia e o John Powell podia ir para casa dormir numa cama todas as noites, para variar.
- Já está transferido - disse o meu pai. - É só arranjar alguém que vá lá ao cercado dizer-lhe.
Na selaria havia um colchão de folhelho onde até agora o John Powell ou um dos outros cocheiros ou palafreneiros sob o seu comando passavam sempre a noite, sobretudo como vigilantes, por causa dos incêndios. Agora o meu pai instalou um beliche com um colchão no escritório propriamente dito, onde o Boon podia dormir um bocado, que bem precisava, uma vez que já podia passar o dia inteiro com completa imunidade no cercado do meu avô, a lavar o automóvel ou simplesmente a olhar para ele.
Por isso agora, todas as tardes, tantos de nós quantos o banco traseiro pudesse albergar, partíamos em levas ordenadas, passando pela praça e seguindo para o campo; o meu avô já tinha instalado o equipamento de emergência, que passou a ser uma parte tão inseparável do automóvel como o próprio motor que o fazia andar.
Mas passávamos sempre primeiro pela praça. Qualquer um teria pensado que assim que comprasse o automóvel o meu avô teria feito o que qualquer um teria feito tendo comprado o automóvel com esse fim: ficar à espera do coronel Sartoris e da sua carruagem e emboscá-lo, sair-lhe ao caminho, para lhe ensinar a não passar decretos a restringir os direitos e privilégios dos outros sem consultar primeiro os seus superiores. Mas o meu avô não fez nada disso. E nós finalmente percebemos que ele não estava interessado no coronel Sartoris: estava interessado era em parelhas de cavalos, em veículos. Porque, como eu te disse, ele era um homem de vistas largas, um homem de visão: a minha avó sentada muito tensa e rígida, agarrada à barra da capota e já a esquecer-se de tratar o meu avô por Mr. Priest, como fazia desde que a conhecíamos, mas a tratá-lo pelo primeiro nome, como se não fosse da família dele, o cavalo ou
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parelha de que nos aproximávamos sustidos com as rédeas e com o freio para se acalmarem, e às vezes vindo até para trás, e a minha avó a dizer, Lucius! Lucius!, e o meu avô (se era um homem que ia a conduzir e não havia mulheres nem crianças na caleche ou na carroça) a dizer baixinho ao Boon:
- Não pares. Segue em frente. Mas agora devagar. - Ou, quando era uma mulher que segurava as rédeas, a dizer ao Boon para parar e ele próprio saía do carro e falava calma e firmemente com o cavalo assustado até conseguir deitar a mão ao freio e desviar o veículo, tirando depois o chapéu às senhoras que iam na caleche e voltando para o banco da frente do automóvel, só então respondendo à minha avó: - Temos de os acostumar a isto. Quem sabe? Pode haver outro automóvel em Jefferson nos próximos dez ou quinze anos.
Com efeito, aquele sonho de fabrico caseiro que o Mr. Buffaloe tinha criado sozinho no seu quintal dois anos antes esteve quase a curar o meu avô de um hábito que ele tinha desde os dezanove anos. Ele mascava tabaco. E a primeira vez que virou a cabeça para cuspir lá para fora com o automóvel em andamento, nós, no banco traseiro, só nos apercebemos do que ia acontecer quando já era tarde de mais. Sim, como é que poderíamos? Até aí nenhum de nós tinha andado num automóvel mais do que (esta foi a primeira viagem) da cocheira até ao portão do cercado, e muito menos a vinte e cinco quilómetros à hora (e há ainda outra coisa: quando íamos a quinze à hora o Boon dizia sempre que íamos a trinta; a trinta dizia sempre sessenta; descobrimos uma recta com cerca de um quilómetro de comprimento, a poucos quilómetros da cidade, onde o automóvel conseguia chegar aos cinquenta à hora, e eu ouvi-o dizer a um grupo de homens na praça que o automóvel dava noventa à hora; isto foi antes de ele saber que nós sabíamos que aquela coisa no painel de comandos que parecia um manómetro de vapor era um velocímetro); por isso como é que havíamos de
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saber? Além disso, não fez nenhuma diferença a nenhum de nós; todos levávamos óculos de protecção, guarda-pós e véus e, mesmo que os guarda-pós fossem novos, as manchas e salpicos eram apenas manchas e salpicos castanhos, e lá por lhes chamarem guarda-pós não era razão para não serem chamados a proteger-nos de outras coisas além do pó. Talvez fosse por a minha avó ir sentada do lado esquerdo (naquela época os automóveis tinham o volante à direita, como as caleches; nem o Henry Ford, um homem de vistas tão largas quanto o meu avô, tinha ainda adivinhado que o volante ia passar para o lado esquerdo) exactamente atrás do meu avô. Ela disse imediatamente ao Boon:
- Pára o automóvel - e continuou sentada, não propriamente furiosa, antes implacavelmente indignada e chocada. Nessa altura ela tinha acabado de fazer cinquenta anos (tinha quinze quando se casou com o meu avô) e ao longo desses cinquenta anos sempre tinha achado tão inacreditável que qualquer homem, e ainda mais o meu avô, lhe cuspisse na cara, como lhe parecia inacreditável que o Boon, por exemplo, se aproximasse de uma curva sem tocar a buzina. Disse, para ninguém em especial, e sem sequer se dignar levar a mão à cara para limpar o cuspo:
- Leva-me para casa.
- Pronto, Sarah - disse o meu avô. - Pronto, Sarah. - E depois deitou fora o tabaco mascado e tirou o lenço lavado do outro bolso, mas a minha avó recusou-se a aceitá-lo. O Boon já estava a sair do carro para ir a uma casa ali perto pedir uma bacia com água, sabão e uma toalha, mas a minha avó também não deixou.
- Não me toquem - disse ela. - Vamos embora. - E nós lá fomos, a minha avó com aquela mancha castanha e comprida esparramada numa das lentes dos óculos, a escorrer-lhe pela cara abaixo, apesar de a minha mãe não parar de se oferecer para pôr um bocadinho de cuspe no lenço e limpá-la. - Deixa-me em paz, Alison -disse a minha avó.
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Mas a minha mãe não. Essa não se importava com o tabaco quando ia no carro. Se calhar era por isso. Mas nesse Verão era cada vez mais a minha mãe e nós e a tia Callie e um ou dois garotos da vizinhança que íamos no banco de trás, a minha mãe com a cara afogueada, luzidia e ansiosa como a de uma rapariguinha. Porque ela tinha inventado uma espécie de escudo protector com um cabo, parecido com um leque muito grande, mas suficientemente leve para ela o erguer à nossa frente quase tão depressa como o meu avô conseguia virar a cabeça. Assim, ele agora já podia mascar à vontade, e a minha mãe sempre atenta e de resguardo a postos; aliás, agora todos nós éramos muito rápidos, de tal maneira que quase antes do instante em que o meu avô tomava consciência de que ia virar a cabeça para a esquerda para cuspir, o resguardo já tinha subido e todos nós no banco de trás já nos tínhamos inclinado para a direita como se puxados pelo mesmo arame, nesta altura já a trinta ou quarenta quilómetros à hora, porque já havia mais dois automóveis em Jefferson nesse Verão; era como se os próprios automóveis andassem a aplanar as estradas muito antes de o dinheiro que eles representavam ter começado a exigir estradas mais planas.
- Daqui a vinte e cinco anos não vai haver uma única estrada no condado onde não se possa andar de automóvel seja com que tempo for - disse a minha avó.
- Mas isso não vai custar um dinheirão, papá? - disse a minha mãe.
- Vai custar muito dinheiro - disse o meu avô. - Os construtores de estradas vão emitir obrigações. E o banco vai comprá-las.
- O nosso banco? - disse a minha mãe. - Comprar obrigações de automóveis?
- Sim - disse o meu avô. - Vamos comprá-las.
- Então e nós?... Quer dizer, o Maury.
- Vai continuar com o negócio dos veículos de aluguer - disse
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o meu avô. - Só que vai dar-lhe outro nome. Por exemplo, Priest Garage ou Priest Motor Company. As pessoas vão pagar qualquer preço pela mobilidade. Vão até trabalhar para a terem. Olha as bicicletas. Olha o Boon. Não sabemos porquê.
Entretanto chegou Maio e o meu outro avô, o pai da minha mãe, morreu em Bay St. Louis.
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III

ERA OUTRA VEZ sábado. Na verdade, o seguinte; o Ludus ia começar outra vez a receber o salário todos os sábados à noite; talvez ele até tivesse deixado de pedir mulas emprestadas. Ainda não eram oito horas; eu ainda nem ia a meio da praça com as facturas do transporte de mercadorias e o meu saco de lona para guardar o dinheiro; estava quase a terminar no armazém de produtos agrícolas quando o Boon entrou, muito depressa, depressa de mais para ele. Eu devia ter desconfiado logo. Não, devia ter percebido logo, conhecendo o Boon desde que nasci, e para mais andando a vê-lo desde há um ano sempre às voltas com aquele automóvel. Ele já estava a agarrar o saco do dinheiro e a arrancar-mo da mão antes de eu ter tempo de fechá-lo.
- Deixa isso - disse ele. - Anda daí.
- Agora? - disse eu. - Ainda mal comecei.
- Eu disse para deixares isso. Despacha-te. Rápido. Têm de apanhar o Vinte-e-três - disse ele já de saída. Tinha ignorado completamente as facturas por pagar. Essas eram apenas papel e a companhia dos caminhos-de ferro tinha muito mais. Mas o saco continha dinheiro.
- Quem é que tem de apanhar o Vinte-e-três? - perguntei eu.
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O Vinte-e-três era o comboio da manhã da linha do Sul. Ah, sim, nessa altura Jefferson já tinha comboios de passageiros, e eram tantos que tinham de lhes pôr números para os distinguirem.
- Cos diabos - disse o Boon - como é que te hei-de dar a notícia com jeito se nem me estás a ouvir? O teu avô morreu a noite passada. Temos de nos despachar.
- Não morreu nada! - disse eu, gritei. - Ele estava na varanda esta manhã quando passámos. - E estava mesmo. O meu pai e eu tínhamo-lo visto os dois, a ler o jornal ou simplesmente em pé ou sentado como todas as manhãs, a fazer horas para ir para o banco.
- E quem diabo está a falar do Patrão? - disse o Boon. - Estou a falar do teu outro avô, o pai da tua mãe, lá no Sul, em Jackson ou Mobile ou lá onde é.
- Ah - disse eu. - Não sabes sequer a diferença entre Bay St. Louis e Mobile? - Porque agora estava tudo bem. Isto era diferente. Bay St. Louis ficava a quinhentos quilómetros; eu quase não tinha estado com o meu avô Lessep, excepto duas vezes pelo Natal, em Jefferson, e três vezes quando lá fomos no Verão. Além disso, ele já estava doente há muito tempo; nós - a minha mãe e nós - tínhamos até ido lá no Verão anterior para o visitar já doente na cama, de onde não mais se levantaria, embora na altura não o soubéssemos (a minha mãe e a tia Callie, como o teu tio-avô Alexander tinha nascido um mês antes do tempo, tinham lá ido no Inverno, quando julgavam que ele ia morrer). Digo "embora" a pensar na minha mãe; para uma criança, quando uma pessoa de idade fica doente, é porque já desistiu de viver; a morte propriamente dita só vem tornar as coisas mais claras, por assim dizer, antes incapaz de levar algo que já não existia.
- Está bem, está bem - disse o Boon. - Vem mas é daí. Jackson, Mobile, Nova Orleães - tudo o que eu sei é que fica algures lá para o Sul, e seja lá onde for, continuam a ter de apanhar o comboio. - E isso - o nome Nova Orleães, introduzido no contexto mais por
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o do que intencionalmente - devia ter-me dito tudo, revelado toda a sua dimensão o mirabolante sonho do Boon, as suas tenções e disposição; as suas posteriores e elaboradas maquinações para me convencer mais não eram do que a mera corroborado Mas talvez eu ainda estivesse a recuperar do choque; além disso, naquela altura eu não possuía tantos dados como o Boon. Assim, saímos a correr, eu a esforçar-me para o acompanhar, cortando caminho através da praça, direitos a casa.
Onde reinava grande agitação. Faltavam só duas horas para o comboio e a minha mãe andava atarefada de mais para ter tempo para prantos ou lamentações: estava simplesmente pálida, deliberada, eficiente. Porque eu agora fiquei a saber o que o Boon já me tinha dito duas vezes: que o meu avô e a minha avó também iam ao funeral do avô Lessep. Ele e o meu avô tinham sido companheiros de quarto e colegas de turma na universidade; tinham sido padrinhos de casamento um do outro, o que provavelmente teve alguma coisa que ver com o facto de a minha mãe e o meu pai se terem escolhido um ao outro em todo o mundo para viverem olhos nos olhos para todo o sempre (acho que tu lhe chamas namorar), e a minha avó e a avó Lessep viviam a uma distância suficiente para continuarem a dar-se bem e cada uma a ser até amável para com a outra mãe de um filho único. Além disso, as pessoas levavam os funerais muito a sério naquela época. Mas não a morte: a morte era uma presença habitual: não havia família cujos anais não estivessem semeados de lápides cujos titulares tinham passado tão fugazmente por esta vida que nem tempo houvera para lhes dar sequer um nome - a menos, claro, que a mãe também repousasse nessa sepultura, o que acontecia com mais frequência do que se possa imaginar. Sem falar nos maridos, nos tios e nas tias com vinte, trinta e quarenta anos, e nos avós e tios e tias-avós sem filhos que morriam em casa nessa época, nos mesmos quartos e nas mesmas camas onde tinham nascido e não em eufemismos em forma de
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cubículo com nomes evocativos do ocaso. Mas os funerais, as cerimónias do enterro, com laços ténues mas fortes como o aço, podiam ter mais peso e estender-se ainda até mais longe do que a distância entre Jefferson e o golfo do México.
Por isso, o meu avô e a minha avó também iam ao funeral, o que queria dizer, mas isso não interessava, que, não havendo mais nenhum parente próximo na cidade, nós - eu, os meus três irmãos e a tia Callie - tínhamos de ser mandados para a quinta do primo Zachary Edmonds, que ficava a vinte e cinco quilómetros, até o meu pai e a minha mãe voltarem; o que queria dizer, mas isso não interessava, que o meu pai e a minha mãe iam estar fora quatro dias. O que queria dizer, e isso realmente interessava, que o meu avô e a minha avó não iam voltar nem ao fim dos quatro dias. Porque o meu avô nunca saía de Jefferson, nem que fosse para ir só até Memphis, sem passar dois ou três dias em Nova Orleães, que ele adorava, ou à ida ou à volta; e desta vez era bem possível que levassem o meu pai e a minha mãe com eles. O que realmente queria dizer era aquilo que o Boon já me tinha dito duas vezes por eufórica e ainda incrédula inadvertência: que o dono daquele automóvel e toda e qualquer outra pessoa com autoridade, real ou delegada, sobre ele iam estar a quinhentos quilómetros de distância por um período entre quatro dias e uma semana. Por isso, todas as suas toscas maquinações para me seduzir e corromper apenas o corroboravam. Não eram sequer uma gorjeta ou um brinde. Ele podia ter levado o carro sozinho, o que sem dúvida faria se eu tivesse sido incorruptível, mesmo sabendo que mais dia menos dia teria de o trazer de volta ou ele próprio voltar para enfrentar consequências bem menos assustadoras do que as que o esperavam se
- quando - a polícia do meu avô o apanhasse. Porque não tinha outro remédio senão voltar. Aonde mais poderia ir, ele, que não conhecia mais lugar nenhum, ele, para quem as palavras, os nomes
- Jefferson, McCaslin, De Spain, Compson - eram não só a sua casa,
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mas também o seu pai e a sua mãe? Porém, algum resquício definhado de consciência grosseira, algum embrionário vislumbre de inteligência rudimentar ainda virgem, e algum senso comum per-suadiram-no a pelo menos experimentar primeiro comigo, a ter-me por perto como uma espécie de refém. E ele nem precisava de experimentar, de me testar primeiro. Quando os adultos falam da inocência das crianças, não sabem realmente o que estão a dizer. Pressionados, irão um pouco mais longe e dirão: Bem, então ignorância. As crianças não são uma coisa nem outra. Não existe crime que um rapaz de onze anos não tenha já contemplado há muito. A sua única inocência é ainda não ter idade para desejar os frutos desse acto, o que não tem a ver com inocência mas com apetite; a sua ignorância é não saber como cometê-lo, o que não é ignorância, mas tamanho.
Só que o Boon não sabia disto. Tinha de me aliciar. E restava-lhe tão pouco tempo: só da hora a que o comboio partia até à noite. Podia ter começado a frio, do zero, no dia seguinte ou no outro ou em qualquer outro dia até quarta-feira, inclusive. Mas hoje, agora, era a melhor altura, com o carro já em movimento, já de partida, para que toda a Jefferson pudesse ver; era como se os próprios deuses lhe tivessem concedido estas horas grátis entre as onze e dois minutos e o pôr do Sol, que ele era livre de desprezar, de ignorar por sua conta e risco. O carro chegou, já com o meu avô e a minha avó lá dentro, com a caixa de sapatos com frango frito, ovos recheados e bolo para o almoço, pois não havia carruagem-restaurante até mudarem para o Limited no entroncamento, à uma da tarde, e tanto a minha avó como a minha mãe conheciam o meu avô e o meu pai de sobra para saberem que eles não iam esperar até à uma hora da tarde para almoçar, independentemente de quem tivesse morrido. Não; e a minha avó também não, a menos que a parente mais próxima do defunto fosse a minha mãe. Não, isto também não e verdade; a minha avó faria o mesmo com mais pessoas além da
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mulher do filho; talvez tudo o que a minha mãe tivesse precisado fosse de ser mulher. Não são os homens que fazem face à morte; esses resistem, tentam lutar e a consequência é ficarem de cabeça perdida; ao passo que as mulheres contornam-na, envolvem-na numa suave e imediata confederação de não-resistência, como algodão ou teias de aranha, já desarmadas e inofensivas, não só miniaturizadas e utilizáveis, mas até úteis, como um parente solteirão - ou uma parente solteirona - e pobretanas, sempre disposto - ou disposta - a preencher um espaço vazio ou servir de par ao jantar a um - ou uma - conviva inesperado - ou inesperada. As malas de viagem dos meus avós já estavam amarradas aos guar-da-lamas e o Son Thomas já tinha trazido as do meu pai e da minha mãe para a rua e nós saímos logo atrás, a minha mãe de véu negro a cobrir-lhe a cara e o meu pai com um fumo no braço, e nós atrás com a tia Callie que levava o Alexander ao colo.
- Adeus - disse a minha mãe - adeus - dando-nos um beijo por cima do véu e tudo, a cheirar como sempre cheirava, mas com alguma coisa preta no cheiro à mistura, como o fino véu que na verdade não escondia nada, como se tivesse chegado mais do que uma simples mensagem electromecânica através do fio de cobre percorrendo a distância de quinhentos quilómetros desde Bay St. Louis; ah, sim, senti o cheiro quando ela me beijou e me disse: - Tu és o mais velho, agora és o homem da casa. Tens de ajudar a tia Callie a tomar conta dos outros, para eles não arreliarem a prima Louisa - já a entrar apressada para o automóvel e a sentar-se ao lado da minha avó, quando o Boon disse:
- Tenho de encher o depósito de gasolina para a viagem até à quinta depois do almoço. Estava a pensar que o Lucius podia vir comigo agora para me ajudar no regresso da estação. - Estás a ver, ia ser facílimo. Era até fácil de mais, até me sentia envergonhado. Era como se as próprias cartas da virtude e da rectidão estivessem contra o meu avô, a minha avó, o meu pai e a minha mãe. Pronto,
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está bem: contra mim também. Até o facto de os automóveis terem surgido em Jefferson apenas há dois ou três anos jogava a favor do Boon - está bem, de nós dois. O Mr. Rouncewell, o agente da companhia petrolífera que abastecia todas as lojas do condado de Yoknapatawpha a partir dos seus depósitos no ramal da estação, tinha instalado também desde há dois anos um depósito de gasolina com uma bomba e um negro para dar à bomba; tudo o que o Boon ou alguém que quisesse gasolina tinha de fazer era simplesmente levar o carro até lá, parar, sair do carro e o negro levantava o banco da frente, media o nível da gasolina no depósito com uma vareta calibrada, enchia o depósito e recebia o dinheiro ou (se o Mr. Rouncewell não estivesse lá) deixava que o cliente assentasse o nome e os litros de gasolina num livro imundo. No entanto, e embora o meu avô já tivesse o carro há quase um ano, nenhum deles - o meu avô, a minha avó, o meu pai ou a minha mãe - tinha conhecimentos sobre o funcionamento de um carro nem a temeridade (ou talvez apenas a curiosidade) para pôr à prova ou questionar os conhecimentos do Boon.
Assim, ele e eu ficámos na plataforma com a minha mãe a dizer-nos adeus da janela enquanto o comboio se afastava. Estava na hora de ele jogar a grande cartada. Ia ter de dizer alguma coisa, começar por algum lado. Tinha conseguido ficar com as cartas todas na mão e comigo no bolso, pelo menos até a tia Callie começar a cogitar onde é que eu ia almoçar. Quer dizer, o Boon não sabia que não tinha de dizer nada, além, talvez, de me dizer para onde íamos, e mesmo isso - o nosso destino - não importava. Ele não tinha aprendido nada de novo sobre os seres humanos e, aparentemente, tinha até esquecido aquilo que um dia devia ter sabido sobre os rapazes.
E agora o próprio Boon não sabia por onde começar. Tinha pedido aos céus para ter sorte e logo a seguir, na volta do correio, por assim dizer, tinha-lhe sido enviada tanta que não sabia o que
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fazer com ela. Provavelmente já ouviste dizer que a Fortuna é uma rameira inconstante, que nada guarda mas tudo dá, seja do bom ou do ruim: mais do primeiro do que julgas (e talvez com razão) que mereces; e mais do último do que podes controlar. Assim era com o Boon. Por isso, tudo o que ele disse foi:
- Ora bem.
Eu também não o ajudei; foi essa a minha vingança. Está bem, vingar-me de quem? Não do Boon, claro: de mim, da minha vergonha; talvez do meu pai e da minha mãe, que me tinham abandonado à mercê da vergonha; talvez do meu avô, cujo automóvel tinha colocado essa vergonha à minha disposição; quem sabe? Talvez do próprio Mr. Buffaloe - esse sonâmbulo sonhador e tocado pela centelha divina, que tinha começado toda esta história dois inocentes anos atrás. Mas eu estava mesmo com pena do Boon por ele ter tão pouco tempo. Nesta altura já passava das onze; a tia Callie estaria à espera de me ver voltar daí a alguns minutos, não porque soubesse que não podíamos levar mais de dez minutos a chegar a casa depois de ela ter ouvido o Vinte-e-três a apitar na passagem de nível de baixo, mas porque já estaria doida de impaciência para nos ver todos almoçados e a caminho do McCaslin; ela tinha nascido no campo e continuava a preferir o campo. O Boon nem para mim olhava. Muito prudente, não olhava para mim.
- Quinhentos quilómetros - disse ele. - Foi uma boa coisa terem inventado os comboios. Se eles tivessem de ir de diligência como antigamente, nem daqui a dez dias lá chegavam, quanto mais estarem de volta daqui a dez dias.
- O meu pai disse quatro dias - disse eu.
- E verdade - disse o Boon - pois disse. Se calhar tínhamos quatro dias para voltar para casa, mas isso continua a não ser um tempo por aí além. - Voltámos para o carro e entrámos. Mas ele não o pôs a trabalhar. - Quando o Patrão voltar daqui a quatro dias talvez me deixe ensinar-te a conduzir esta coisa. Já tens
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idade suficiente. E além disso já sabes. Já alguma vez pensaste
nisso?
- Não - disse eu. - Porque ele não vai deixar.
- Bem, também não é preciso ter pressa. Tens quatro dias para ele mudar de ideias. Se bem que pelos meus cálculos sejam quase dez. - E continuou sem pôr o carro a trabalhar. - Dez dias - disse ele. - Até onde achas que este automóvel seria capaz de chegar em dez dias?
- O meu pai disse quatro - disse eu.
- Está bem - disse ele. - Até onde em quatro dias?
- Também não vou saber - disse eu. - Porque não há por aqui ninguém que vá descobrir para me dizer.
- Está bem - disse ele e, de repente, pôs o carro a trabalhar, fez marcha-atrás e inversão de marcha, já a acelerar, mas não em direcção à praça nem à bomba de gasolina do Mr. Rouncewell.
- Julgava que tínhamos de ir meter gasolina - disse eu. íamos muito depressa.
- Mudei de ideias - disse o Boon. - Trato disso antes de partirmos para a quinta do McCaslin depois do almoço. Assim evapora-se menos do que se ficar por aí parado. - Seguíamos agora por uma estrada estreita a toda a brida entre cabanas de negros, hortas e capoeiras, com galinhas e cães rafeiros a fugir à nossa frente na poeira, apavorados, mesmo no último segundo, saindo depois da estrada e entrando em campo aberto, um descampado sulcado por pneus, mas sem sinais de cascos. E então reconheci-o: era o autó-dromo de fabrico caseiro do Mr. Buffaloe, para onde a lei do coronel Sartoris o tinha empurrado havia dois anos e onde ele tinha ensinado o Boon a guiar. E mesmo assim continuei sem compreender, até ao momento em que o Boon parou o carro de repente e disse: - Passa para aqui.
De maneira que cheguei mesmo atrasado para o almoço; a tia Callie já estava na varanda da frente com o Alexander ao colo, já a
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gritar pelo Boon e por mim, mesmo antes de ele parar o carro para me deixar sair. Porque ao fim e ao cabo o Boon venceu-me num combate leal; era evidente que não se tinha esquecido do que tinha aprendido em jovem sobre rapazes. Claro que agora sei que não era bem assim, e até já sabia naquela altura: que a queda do Boon e a minha foram não apenas instantâneas mas também simultâneas, no preciso momento em que a minha mãe recebeu a notícia de que o meu avô Lessep morrera. Mas isso era no que eu teria gostado de acreditar: que o Boon simplesmente me tinha vencido. Pelo menos foi o que eu disse a mim mesmo naquela altura; que, protegido atrás daquela inviolável e inescapável rectidão inerente ao nome que eu usava, moldado à imagem dos cavaleiros ancestrais da nossa família e solicitado - não, compelido - pelas palavras do meu pai, e ainda protegido e tornado vulnerável à vergonha pelos fanáticos desvelos da minha mãe, eu tinha estado apenas a pôr o Boon à prova; não a testar a minha própria virtude, mas a capacidade do Boon para a minar; e, na minha inocência, confiando em demasia na armadura e no escudo da inocência, esperava, exigia, imaginava mais do que aquele frágil milanês conseguia suportar. Digo "frágil milanês" não só deliberada mas explicitamente, pois já tinha reparado como naquele tempo era frequente os defensores e até os praticantes da virtude terem evidentemente sérias dúvidas quanto à invulnerabilidade da virtude enquanto escudo, pondo a sua fé e confiança não na virtude propriamente dita, mas no deus ou deusa que a rege; traindo, fintando por assim dizer a virtude por fidelidade à deusa suprema, em troca de que a deusa afastaria as tentações ou pelo menos intercederia entre o crente e a tentação. O que explica muita coisa, pois também já tinha reparado que a deusa que regia a virtude parece ser a mesma que rege a sorte, e talvez até a loucura.
Portanto o Boon venceu-me num combate leal, e de luva branca, como todo o cavalheiro que se preza deve fazer. Quando parou
o
o carro e me disse, "Passa para aqui", eu achei que sabia qual era a intenção dele. Já tínhamos feito o mesmo antes quatro ou cinco vezes, discretamente, no cercado do meu avô, eu sentado ao colo do Boon com as mãos no volante, a guiar, enquanto ele punha o automóvel numa velocidade baixa. Portanto, estava pronto para ele. Já estava en garde e até já tinha dado início à contra-ofensiva, já a abrir a boca para dizer Roje está muito calor para me sentar em cima de outra pessoa. Além disso é melhor voltarmos para casa quando vi que ele já estava fora do carro, ao lado do carro, ao mesmo tempo que, ainda a falar, segurava o volante com uma mão, com o carro ainda a trabalhar. Por mais um ou dois segundos continuei a não querer acreditar.
- Despacha-te - disse ele. Não tarda a Callie aparece aí a correr pelo caminho abaixo a gritar por nós com o bebé debaixo do braço.
Então sentei-me ao volante e, com o Boon ao meu lado, por cima de mim e atravessado à minha frente, com as mãos por cima das minhas para meter as mudanças e regular a válvula de alívio, lá começámos a andar para trás e para a frente no terreiro deserto e ensolarado, primeiro para a frente e depois para trás, determinados, intemporais, o Boon tanto quanto eu, compenetrado, em êxtase, a controlar-me (ele tinha apostado muito alto, estás a ver), fora do tempo, para lá dele, invulneráveis ao tempo até que o relógio do tribunal bateu o meio-dia a um quilómetro de distância e nos restituiu, nos atirou de novo para o iminente e impiedoso universo da manha e da mentira.
- Está bem - disse o Boon. - Rápido - sem perder um segundo e levantando-me em peso para passar ele para o volante, já com o carro a acelerar pelos campos fora a caminho de casa, e nós a falar de homem para homem, cúmplices no crime, unidos sem dúvida, mas não ainda coniventes devido à minha inocência; eu já a começar a dizer O que é que eu faço agora? Tens de me ensinar quan-
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do o Boon falou mais uma vez tratando-nos como iguais: - Já percebeste como se faz? Olha que não temos muito tempo.
- Está bem - disse eu. - Vá, volta para casa antes que a tia Callie comece a gritar. - Então, estás a ver o que eu quero dizer com Virtude? Já ouviste - ou vais ouvir - as pessoas a falar de tempos ruins ou de uma geração rasca. Mas essas coisas não existem. Nenhuma época da história ou geração de seres humanos alguma vez foi, é ou será suficientemente grande para carregar a falta de virtude de um dado momento, do mesmo modo que não poderiam conter todo o ar de um dado momento; tudo o que podem fazer é esperarem sair o mais limpos possível da sua passagem. Porque é uma pena que a Virtude não trate de si - possivelmente não pode - como faz a Não-virtude. Provavelmente não pode: a quem os adeptos da virtude oferecem como recompensa apenas uma fria, insípida e inodora virtude, em comparação não só com as aliciantes recompensas do pecado e do prazer, mas também com a destreza sempre vigilante, infatigável e omnipresente - essa capacidade incrível e sem par para a invenção e a imaginação - com que mesmo os passos incertos da infância são firme e resolutamente guiados para um caminho de rosas. Porque, oh sim, eu tinha amadurecido assustadoramente desde as badaladas daquele relógio dois minutos atrás. Tenho podido observar que, à excepção de meia dúzia de casos esporádicos daquilo a que se poderia chamar hiperprematuridade malévola, as crianças, tal como os poetas, mentem mais por prazer do que por proveito. Ou assim pensava eu até esse momento, com poucas e negligenciáveis excepções envolvendo a simples autodefesa contra criaturas (os meus pais) maiores e mais fortes do que eu. Mas isso tinha acabado. Pelo menos por agora. Sentia-me tão determinado quanto o Boon, e - pelo menos durante o próximo passo - ainda mais culpado. Porque (percebi; não, eu sabia; era óbvio; o próprio Boon o admitira com todas as palavras) eu era
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mais esperto do que o Boon. Eu percebi, senti subitamente aquele exultante e febril lampejo que o próprio Fausto deve ter sentido: que de nós dois, condenados e irrevogáveis, era eu o líder, o patrão, o mestre.
A tia Callie já estava na varanda com o Alexander ao colo e a gritar.
- Calma - disse eu. - O almoço já está pronto? O automóvel avariou. O Boon é que o arranjou. Nem deu tempo para irmos à gasolina e agora tenho de comer a correr e ir ajudá-lo a encher o depósito. - Fui para a casa de jantar. O almoço já estava na mesa. O Lesseo e o Maury já estavam a comer. A tia Callie já os tinha vestido (tinha-os vestido para fazerem os vinte e cinco quilómetros até à quinta do primo Zachary, onde iam passar quatro dias, como se fossem para Memphis; não sei porquê, a menos que fosse por ela não ter mais nada para fazer entre o momento em que o meu pai e a minha mãe saíram e o almoço. Porque o Maury e o Alexander ainda tinham de dormir a sesta antes de nós partirmos), mas a julgar pelo estado da camisa dele, ela ia ter de lavar o Maury e vesti-lo outra vez.
Mesmo assim, acabei de almoçar antes deles e voltei (a tia Callie continuava a gritar, mas claro que não muito alto por ser dentro de casa. Mas o que podia ela fazer, completamente sozinha - e negra - contra a Não-virtude?) para a casa do meu avô, do outro lado da rua. O mais provável era o Ned ter ido para a cidade assim que o automóvel partiu. Mas ainda mais provável era ter voltado para almoçar. E tinha mesmo. Estávamos os dois parados no quintal das traseiras, ele a mirar-me com os olhos piscos. Muitas vezes, de facto a maior parte do tempo, os olhos dele eram vermelhos, como os de uma raposa.
- Porque é que não quer ficar lá na quinta? - disse o Ned.
- Prometi a uns tipos que dávamos amanhã uma escapadela para irmos pescar num novo charco de que um deles ouviu falar.
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O Ned piscou os olhos.
- Atão tá a pensar ir até à quinta do McCaslin com o Boon Hogganbeck e depois voltar para trás com ele. Só que vai ter d'arranjar alguma outra coisa pra contar à Miss Louisa pra ela o deixar voltar e vai precisar de mim prò ajudar.
- Não - disse eu. - Não preciso de ti para nada. Só te estou a dizer para saberes onde eu estou e eles não te poderem atirar as culpas para cima. Nem sequer te vou dar trabalho. Vou ficar com o primo Ike. - Antes de os outros todos chegarem, quer dizer, os meus irmãos, quando o meu pai e a minha mãe ficavam fora até tarde e o meu avô e a minha avó também tinham saído, eu costumava ficar com o Ned e a Delphine. Às vezes ficava a dormir toda a noite em casa deles, só por graça. Podia ter feito isso desta vez, se tivesse dado jeito. Mas o primo Ike vivia sozinho num quarto por cima da loja de ferragens. Mesmo que o Ned (ou outra pessoa) lhe perguntasse de caras se eu estava com ele no sábado à noite, nessa altura já seria pelo menos segunda-feira e eu já tinha decidido de uma vez por todas não pensar em segunda-feira. Estás a ver, se ao menos as pessoas não se recusassem de uma vez por todas a pensar na segunda-feira seguinte, a Virtude não teria de passar por um tão mau bocado e tanta ingratidão.
- Tou a ver - disse o Ned. - Não precisa de mim pra nada. Tá só a mostrar o seu bom coração pra me poupar trabalho e preocupações. Pra poupar trabalho e preocupações a toda a gente que vier perguntar porqu'é que não tá na quinta do McCaslin onde o seu pai o mandou tar. - E, piscando os olhos, fez: - Hi hi hi.
- Está bem - disse eu. - Podes ir contar ao meu pai que eu fui pescar no domingo enquanto eles estavam fora a ver se me importo.
- Não tou a pensar ir contar nada a ninguém - disse ele. - O que fizer não é da minha conta. E da conta da Callie até a sua mãe che-
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gar. A não ser que queira que passe a ser da conta do Mr. Ike esta noite, como já disse. - Olhou para mim a piscar os olhos. - Quando é qu'o Boon Hogganbeck o vem buscar?
- Daqui a pouco - disse eu. - E é melhor que não deixes o meu pai nem o Patrão ouvirem-te chamar-lhe Boon Hogganbeck.
- Já lhe chamo Mister mais vezes do qu'ele vale - disse o Ned -e muito mais do qu'ele merece. - E acrescentou: - Hi hi hi.
Estás a ver? Eu estava a fazer o melhor que podia. O meu problema era as ferramentas de que eu tinha de me servir. A inocência e a ignorância: eu não só não tinha força nem conhecimentos, como também não tinha tempo suficiente. Quando o destino, os deuses - está bem, a Não-virtude - nos dão oportunidades, o mínimo que podem fazer é dar-nos também espaço. Mas pelo menos o primo Ike era fácil de encontrar ao sábado.
- Podes apostar - disse ele. - Vem cá ficar esta noite. Pode ser que amanhã a gente vá pescar; mas não digas nada ao teu pai.
- Não senhor - disse eu. - Esta noite não vou ficar consigo. Vou ficar com o Ned e a Delphine, como faço sempre. Só queria que soubesse, já que a minha mãe não está cá para eu lhe poder contar. Quer dizer, pedir. - Estás a ver: eu a fazer o melhor que podia com aquilo que tinha, que sabia. Não que eu estivesse a perder a fé no sucesso final: simplesmente parecia-me que, ao tentar pôr-me à prova, a Não-virtude estava a desperdiçar um tempo que era precioso e até desesperadamente necessário para fins mais importantes. Voltei para casa, mas não a correr -Jefferson não devia ver-me a correr; mas o mais depressa que pude sem correr. Estás a ver, eu não me atrevia a confiar no Boon sozinho nas mãos da tia Callie.
Cheguei a tempo. De facto, Boon e o automóvel é que se atrasaram. A tia Callie até já tivera de vestir outra vez o Maury e o Alexander; se eles tinham dormido a sesta depois do almoço, tinha sido a sesta mais rápida e mais curta de que havia memória na
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nossa casa. Além disso, o Ned também lá estava, onde não tinha nada que meter o nariz. Não, não é assim. Quer dizer, a presença dele ali era completamente errada: não o facto de estar em nossa casa, porque estava lá muitas vezes, mas de não estar noutro lado onde podia estar a fazer alguma coisa de útil enquanto o meu avô e a minha avó estavam fora da cidade. Porque ele estava a trazer as bagagens cá para fora - o cesto de verga com as fraldas do Alexander e outros objectos pessoais, as malas com as minhas roupas, as do Lessep e as do Maury para quatro dias, e a trouxa da tia Callie, largando-as em monte junto ao portão e dizendo à tia Callie:
- O melhor é sentar-se a descansar os pés. O Boon Hogganbeck avariou aquela coisa e tá por aí algures a ver s'a conserta. Se quer mesmo chegar à quinta do McCaslin antes da hora do jantar, telefone prà cocheira, prò Mr. Ballott mandar o Son Thomas com a carruagem, e eu levo-os lá todos como as pessoas devem ser levadas.
E daí a um bocado começou a parecer que o Ned tinha razão. Chegou a uma e meia (o Alexander e o Maury bem podiam ter estado a dormir) e nem sinais do Boon; depois o Maury e o Alexander podiam ter dormido mais meia hora em cima da anterior; por esta altura o Ned já tinha dito tantas vezes "Eu bem a avisei" que a tia Callie tinha desistido de gritar por causa do Boon e começado a gritar com o próprio Ned até ele se ir sentar debaixo da parreira de muscadínea; ela já estava quase a mandar-me ir à procura do Boon e do automóvel quando ele apareceu. Quando o vi, fiquei aterrorizado. Ele tinha mudado de roupa. Quer dizer, tinha feito a barba e trazia vestida não apenas uma camisa branca, mas uma camisa lavada, de colarinho, e uma gravata; e eu não tinha dúvidas de que quando saísse do carro para nos ajudar a entrar havia de estar de casaco no braço, e a primeira coisa que a tia Callie ia ver quando chegasse ao carro era a mala dele no chão. Horror, mas também raiva (não contra o Boon: descobri, percebi isso de imediato)
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contra mim mesmo, que devia ter percebido, desconfiado, tendo sabido (percebia isso agora) toda a minha vida que quem lidasse com o Boon estava a lidar com uma criança, e tinha não só de se haver com os seus caprichos imprevisíveis, mas saber prevê-los; não era a loucura de ao Boon faltarem os mais elementares rudimentos de bom senso, mas a vergonha do meu fracasso em prevê-los, em partir do princípio de que ele não os teria, dizendo, gritando para quem quer que a gente recorre nestas crises Não vês que eu só tenho onze anos? Como éque queres que eu faça tudo isto só com onze anos? Não vês que me estás a dar mais do que eu consigo resolver? Mas, daí a um segundo, raiva também contra o Boon: não que a sua estupidez tivesse agora arruinado de uma vez por todas a nossa viagem de carro até Memphis (é verdade, Memphis enquanto nosso destino nunca foi mencionada, nem a ti, nem entre mim e o Boon. E porque havia de ter sido? Onde mais tínhamos nós de ir? Na verdade, onde mais poderia alguém do Norte do Mississippi querer ir? Algum velho ou velha decrépitos no seu leito de morte poderiam contemplar ou temer um destino mais longínquo, mas esses não eram nem eu nem o Boon). De facto, neste momento eu só desejava nunca ter ouvido falar em Memphis, no Boon ou em automóveis; neste momento eu estava do lado do coronel Sartoris ao ter banido o Mr. Buffaloe e o seu sonho da face da Terra no primeiro momento. A minha raiva contra o Boon era por ele ter destruído, deitado por terra com aquele seu golpe infantil, como o pontapé inconsciente de um bebé, o precário e frenético chorrilho de mentiras, falsas promessas e falsas juras por mim desencadeado; pondo a descoberto a impostura com pés de barro pela qual eu tinha trocado - não, condenado - a minha alma; isso, ou talvez o desmascarar da verdadeira torpeza e indigência da alma pela qual eu tinha tido a petulância de achar que o diabo daria alguma coisa: como perder a virgindade por um inadvertido e desgraçado infortúnio, como por exemplo não saber por onde se vai, inocente de prazer,
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e mais ainda de pecado. Mas depois até a raiva se dissipou. Não restava nada, nada. Eu não queria ir a lugar nenhum, estar em lugar nenhum. Quer dizer, eu não queria ser um é em lugar nenhum. Se tivesse de ser alguma coisa, queria que fosse um era. Eu disse, e acredito (eu sei que acredito nisso porque o disse mil vezes desde então e continuo a acreditar e espero dizê-lo mais mil vezes nesta vida e desafio alguém a dizer que não acredito) Nunca mais volto a mentir. Dá muito trabalho. É muito parecido com tentar pôr uma pena em pé num pires com areia. Nunca mais se consegue. Nunca mais se tem descanso. Nunca mais está feito. E a areia nunca mais acaba para se poder desistir de tentar.
Só que não aconteceu nada. O Boon saiu do carro e não trazia casaco nenhum. O Ned já estava a meter os sacos, os cestos e as trouxas dentro do carro. A certa altura riu-se com ar sinistro:
- Hi hi hi. - E depois disse: - Vá, ponha-se a andar, pra ter tempo d'avariar o carro e mesmo assim dar tempo prò consertar e voltar prà cidade antes que seja noite. - Agora estava a falar com o Boon, a dizer: - Inda volta à cidade antes d'ir?
E o Boon disse:
- Ir para aonde?
- Ir jantar - disse o Ned. - O qu'é que fazem as pessoas de bom senso quando o Sol se põe?
- Ah - disse o Boon. - Preocupa-te com o teu jantar. É o único jantar com que tens de te preocupar.
Entrámos para o carro e partimos, eu à frente com o Boon e os outros atrás. Atravessámos a praça, apinhada com as multidões de sábado à tarde, e saímos da cidade. Mas lá estávamos nós. Quer dizer, nós não percebíamos nada de transportes. Daí a nada estávamos a chegar ao cruzamento com a estrada que nos havia de levar à quinta do primo Zack e logo havíamos de seguir na direcção errada. E mesmo que tivéssemos seguido na direcção certa, continuávamos a não estar livres; enquanto continuássemos a ter a tia
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Callie, o Maury e o Alexander no banco de trás, só estávamos livres de ter o Ned onde mais ninguém no mundo esperaria que ele estivesse, a dizer Hi hi hi e Volte à cidade antes. O Boon nem uma única vez tinha olhado para mim, nem eu para ele. E também não tinha falado comigo; possivelmente intuíra que me tinha assustado com a camida lavada, o colarinho, a gravata e a barba feita a meio do dia e todos os outros sinais que lhe davam uma aura de viagem, de partida, separação, afastamento; intuíra que eú estava não apenas assustado mas zangado, e que tinha sido vulnerável ao susto; e lá íamos nós, com a estrada batida pelo sol da tarde a esten-der-se à nossa frente pelos vinte e cinco quilómetros ao longo dos quais alguma coisa ia ter de ser decidida, acordada; pelos campos ensolarados de Maio, com a poeira que levantávamos a elevar-se em rolos atrás de nós a não ser que tivéssemos de abrandar para passar uma ponte ou um troço arenoso, que requeriam mudanças baixas; os vinte e cinco quilómetros que não iam durar eternamente mesmo sendo vinte e cinco, com os marcos quilométricos a diminuírem depressa de mais enquanto alguma coisa tinha de ser feita, decidida cada vez mais próximo e cada vez mais perto, e eu ainda sem saber o quê; ou talvez apenas alguma coisa ser dita, uma voz, um ruído, um som humano, já que seja qual for a amarga comissão que a Não-virtude possa extorquir-nos e arrancar-nos depois, o isolamento, a solidão e o silêncio não devem estar incluídos. Mas pelo menos o Boon tentou. Ou talvez no caso dele fosse também o silêncio, e algum não-silêncio fosse melhor, por mais ridículo e antecipadamente votado ao fracasso. Não, era mais do que isso; faltava-nos agora percorrer menos de metade da distância e alguma coisa tinha de ser feita, iniciada, desencadeada:
- As estradas agora são bem boas por toda a parte, mesmo fora do condado de Yoknapatawpha. Um homem não podia querer melhores estradas para uma viagem longa como um cortejo fúnebre de automóveis ou lá como são agora. Até onde é que achas que
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este carro podia chegar de agora até ao sol-pôr? - Estás a ver? Dirigido a ninguém em especial, como um homem prestes a afo-gar-se a estender uma mão desesperada fora de água na esperança de encontrar uma palha. Mas não encontrou nenhuma:
- Não sei - disse a tia Callie do banco de trás, com o Alexander ao colo, que vinha a dormir desde que tínhamos saído da cidade e não merecia uma viagem de automóvel de um quilómetro quanto mais vinte e cinco. - E tu também não vais saber, a não ser que vás deslindar isso esta noite sentado aí à frente nesse banco e trancado naquela cocheira no cercado do Patrão.
Agora estávamos quase a chegar.
- Então queres... - disse o Boon entre dentes, apenas com altura exacta para eu ouvir, dirigido exactamente ao meu ouvido direito como uma arma ou uma seta ou talvez uma mão cheia de areia atirada contra uma janela fechada.
- Cala-te - disse eu, exactamente como ele. A coisa mais simples e cobarde seria dizer-lhe de repente para parar e, quando ele obedecesse, saltar do carro, já a correr, colocando a tia Callie perante a alternativa imediata de abandonar o Alexander aos cuidados do Boon e tentar alcançar-me na mata, ou ficar com o Alexander e per-seguir-me com os seus gritos. Quer dizer, mandar o Boon seguir em frente, deixá-los em casa e deixar-me a mim à vontade para lhe saltar ao caminho e entrar para dentro do carro quando ele passasse de regresso à cidade ou numa qualquer direcção oposta a todos quantos sentiriam a minha falta e tinham autoridade sobre mim; essa era a maneira cobarde; então porque não a aproveitei, eu que já era um mentiroso sem remissão, condenado pela aldrabice; porque não ir até ao fim e tornar-me também num cobarde; ser irrevogável e irremediável como Fausto se tornou? glória na baixeza, obrigar, compelir o meu novo mestre a respeitar-me pela minha integridade mesmo que escarnecesse do meu tamanho? Só que não o fiz. Não teria resultado; pelo menos um de nós tinha de ser
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prático; desde que eu e o Boon já estivéssemos longe antes que a prima Louisa pudesse mandar alguém ao terreno onde o primo Zack devia estar às três da tarde na época do plantio, e desde que o primo Zack não tivesse qualquer possibilidade de nos alcançar no seu cavalo; ele também não teria tentado, teria ido direito à cidade, e ao fim de um minuto com o Ned e o primo Ike teria sabido exactamente o que fazer e tê-lo-ia feito, servindo-se do telefone e da
polícia.
Tínhamos chegado. Saí do carro e abri o portão (os mesmos umbrais do tempo do velho Lucius Quintus Carothers; o teu primo Carothers actual instalou um daqueles gradeados para o gado não sair, mas os automóveis, que não têm cascos, podem passar) e subimos a alameda das alfarrobeiras em direcção à casa (ainda lá está: a casa de troncos unidos com barro, com dois quartos, meio domicílio meio fortaleza, que o velho Lucius construiu depois de atravessar as montanhas com os seus escravos e os seus cães de caça desde a Carolina, em 1813; ainda lá está algures, escondida debaixo das ripas, dos motivos de revivalismo clássico e das madeiras trabalhadas como nos barcos a vapor que as mulheres com quem os sucessivos Edmonds casaram lhe tinham acrescentado).
A prima Louisa e todas as outras pessoas da casa já nos tinham ouvido a chegar e (excepto provavelmente aquelas que o primo Zack conseguia realmente ver do seu cavalo) estavam na varanda da frente, nos degraus e no pátio quando nós chegámos e parámos à porta.
- Está bem - disse o Boon, outra vez entre dentes - como queiras. - Porque, como vocês dizem agora, era assim; já não havia tempo, e muito menos privacidade, para ter uma - qualquer - ideia daquilo que ele agora devia desesperadamente saber. Porque nós - ele e eu - éramos novatos nisto, estás a ver. Éramos piores que amadores: inocentes, completamente inocentes no roubo de automóveis mesmo que nenhum de nós lhe chamasse roubo, uma vez
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que tencionávamos devolvê-lo intacto; mesmo que as pessoas, o mundo (pelo menos Jefferson) nos tivessem deixado em paz, sem dar pela nossa falta. Mesmo que eu lhe pudesse ter respondido, se ele tivesse perguntado. Porque era ainda pior para mim do que para ele; estávamos ambos desesperados, mas o meu desespero era o mais urgente, uma vez que eu tinha de fazer alguma coisa, e depressa, numa questão de segundos, enquanto tudo o que ele tinha de fazer era ficar sentado no carro, no máximo a fazer figas. Eu não sabia o que fazer agora; já tinha dito mais mentiras do que eu próprio me julgava capaz de inventar, e tinha conseguido que acreditassem nelas ou pelo menos que as aceitassem com uma consistência que me tinha deixado admirado se não mesmo estupefacto; eu estava na posição do negro velho que disse, "Aqui tou eu, Sinhô. Se quês qu'eu me salve, tens a milho op'tunidade qu'alguma vez viste aqui na Tua frente a olha pra Ti." Eu tinha jogado a minha última cartada e a do Boon também. Se a Não-virtude ainda queria reclamar um de nós, estava na hora de o fazer.
O que ela de facto fez, vestida como o primo Zachary Edmonds. Ele saiu pela porta da frente naquele momento, e no mesmo instante eu vi um rapazito negro no pátio a segurar as rédeas do cavalo dele. Estás a perceber? O Zachary Edmonds, em quem Jefferson nunca punha a vista em cima num dia de semana desde que começava a preparar a terra para o cultivo em Março até ela ficar a descansar em Julho, tinha estado na cidade esta manhã (um assunto urgente relacionado com o moinho) e parado no armazém do primo Ike poucos minutos depois de eu próprio lá ter estado; o que, combinado com rigor e precisão com a hora e tal de que a Não-virtude tinha precisado para barbear o Boon e trocar-lhe a camisa, tinha dado ao primo Zack o tempo exacto necessário para ir a cavalo até casa e estar a desmontar à porta quando eles nos ouviram a chegar. E então ele disse, para mim:
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- O que estás tu aqui a fazer? O Ike disse-me que ias ficar na cidade esta noite e que amanhã te vai levar a pescar.
Claro que a tia Callie começou logo a gritar e eu não precisei de dizer nada de nada mesmo que tivesse sabido o que dizer.
- Pescar? - gritou ela. - Num domingo? S'o pai dele óvisse uma coisa destas, saltava do comboio abaixo neste minuto e nem esp'-rava pra telegrafar! E a mãe dele tamém. A Miss Alison não lhe disse pra ficar na cidade com nenhum Mister Ike nem com mai ninguém! Ela disse-lhe pra vir pràqui comigo e c'os outros meninos e s'ele não se portar bem, o Mister Zack mete-o na ordem!
- Está bem, está bem - disse o primo Zack. - Pára de gritar por um minuto; assim não consigo ouvir nada. Talvez ele tenha mudado de ideias. Mudaste?
- Como? - disse eu. - Sim senhor. Quer dizer, não senhor.
- Bem, em que ficamos? Vais ficar aqui ou vais voltar com o Boon?
- Sim senhor - disse eu. - Vou voltar. O primo Ike disse-me para lhe perguntar se podia. - E a tia Callie desatou outra vez a gritar (de facto ela não tinha verdadeiramente parado excepto talvez durante aquele longo suspiro quando o primo Zack a mandou parar) mas mais nada: era ela a gritar e o primo Zack a dizer:
- Pára com isso, pára com isso. Assim não oiço nada. Se o Ike não o trouxer de volta amanhã, mando-o buscar na segunda-feira. - Eu voltei para o carro; o Boon já tinha o motor a trabalhar.
- Diabos me levem - disse ele, não em voz alta mas com o mais completo respeito, até com um certo temor.
- Vamos - disse eu. - Põe-te a andar daqui pra fora. - E lá partimos, calma mas rapidamente, cada vez mais rápido, pela alameda abaixo em direcção ao portão.
- Se calhar é um desperdício tudo isto só para uma viagem de automóvel - disse ele. - Se calhar devia aproveitar-te para qualquer coisa que desse dinheiro.
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- Cala-te e guia - disse eu. Como é que eu havia de lhe dizer, de explicar? Estou farto de mentir, de ter de dizer mentiras. Porque eu sabia, percebia agora que isto era só o começo, que nunca mais ia ter fim, não apenas o fim das mentiras que eu ia ter de continuar a dizer só para proteger as que já tinha dito, mas que eu nunca mais me veria livre das mentiras velhas e gastas que já tinha usado e abusado.
Voltámos para a cidade. Desta vez a toda a velocidade; se as vistas eram panorâmicas, ninguém naquele carro desfrutou delas. Agora eram quase cinco horas. O Boon disse, tenso e ansioso, mas controlado:
- Temos de deixar as coisas arrefecer um bocado. Eles viram-me sair da cidade para vos ir levar a todos à quinta do McCaslin; e agora vêem-me chegar só contigo; e estão à espera de me ver guardar o carro na cocheira do Patrão. E depois vão ver-me a mim e a ti, mas separados, a andar por aí como se nada fosse. - Mas como é que eu podia também dizer-lhe isto? Não. Vamos lá. Se eu tiver de dizer mais mentiras, pelo menos que seja a desconhecidos. Ele ainda estava a dizer: - ... carro. O que foi que ele disse sobre se nós ainda passávamos pela cidade antes de partir?
- Quem é que disse o quê?
- O Ned. Mesmo antes de nós sairmos da cidade.
- Não me lembro - disse eu. - E o carro?
- Onde vamos deixá-lo enquanto eu dou uma volta pela praça e tu vais a casa buscar uma camisa lavada ou do que precisares? Lembra-te que eu tive de descarregar a bagagem toda lá no McCaslin. A tua também. Quer dizer, só prò caso de lá estar alguém a meter o nariz em tudo. - Ambos sabíamos a quem ele se referia.
- Porque é que não podes guardá-lo na cocheira?
- Não tenho a chave - disse ele. - Só o cadeado. O Patrão tirou-me a chave esta manhã, abriu o cadeado e pediu ao Mr. Ballott para guardar a chave até ele voltar. O combinado é eu meter lá o
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carro assim que voltar do McCaslin e fechar o cadeado, e depois o Patrão vai mandar um telegrama ao Mr. Ballott a dizer em que comboio chega para ele ir ao cadeado e eu poder ir buscá-los.
- Então temos de arriscar - disse eu.
- Pois é, temos de arriscar. Talvez com o Patrão e a Miss Sarah fora, nem a Delphine o encontre outra vez até segunda-feira de manhã. - E nós arriscámos. O Boon foi até à cocheira, tirou a mala de viagem e o casaco de onde os tinha escondido no varandim e depois esticou o braço outra vez, puxou um oleado dobrado e pôs a mala e o casaco no banco de trás. O bidão da gasolina já estava preparado: um bidão novo de vinte e cinco litros que o meu avô tinha mandado o latoeiro que fez a caixa das ferramentas reconstruir mais ou menos para ser estanque ao cheiro, uma vez que a minha avó já naquela altura detestava o cheiro a gasolina, e que nós ainda nunca tínhamos usado, porque o automóvel nunca tinha viajado até tão longe; o funil e o filtro de camurça já estavam na caixa das ferramentas juntamente com as ferramentas para mudar os pneus, o macaco e as chaves inglesas que já vinham com o carro, bem como a lanterna, o machado, a pá, o rolo de arame farpado e o guincho que o meu avô tinha mandado acrescentar, além do balde de folha para encher o radiador quando passávamos por riachos ou charcos. Ele colocou o bidão (estava cheio; talvez fosse isso que o atrasou mais um bocado quando nos veio buscar) na parte de trás e abriu o oleado, sem o estender completamente, mas desdobrando-o apenas o necessário para tudo ficar tapado e com ar de ser apenas um oleado amontoado.
- Metemos-lhe também debaixo a tua bagagem - disse ele. - Depois não se nota, parece simplesmente um bocado de oleado que ninguém se deu ao trabalho de dobrar. O melhor que tens a fazer é ires num pulo a casa buscar uma camisa lavada, voltares logo para aqui e ficares à espera. Eu não me demoro: vou só dar uma volta pela praça para o caso de o Ike querer começar também a fazer perguntas. E depois partimos.
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Fechámos a porta. O Boon ia meter o cadeado velho no ferrolho.
- Não - disse eu; tinha avançado tão depressa no caminho do mal que nem sequer tinha de lhe dizer porquê. - Mete-o no bolso.
Mas ele sabia porquê, e disse-mo.
- Tens razão, c'os diabos - disse ele. - Já passámos por muita coisa para nos arriscarmos a que alguém passe por aqui e tranque a porta a julgar que eu me esqueci.
Fui a casa. Era só atravessar a rua. Agora está lá uma bomba de gasolina, e o que dantes era a casa do meu avô está transformado em apartamentos onde os inquilinos estão sempre a mudar. A casa estava vazia, com a porta só no trinco, claro, pois em Jefferson ninguém trancava as portas naqueles tempos de inocência. Passava um pouco das cinco, ainda faltava muito para o Sol se pôr, mas o dia já tinha chegado ao fim, acabado; a casa vazia e silenciosa não estava de todo vazia, mas sim cheia de presenças semelhantes a suspiros contidos; e, de repente, eu só queria a minha mãe; já não queria nada disto, nada de livre-arbítrio; queria voltar atrás, desistir, sentir-me seguro, a salvo do tipo de decisões e resoluções cuja gémea adoptiva era esta decisão de ter de roubar um automóvel. Mas agora era tarde de mais; já tinha escolhido, optado; já que tinha vendido a minha alma a Satanás por um prato de lentilhas, pelo menos ia aceitá-lo e comê-lo, diabos me levassem: pois não me tinha o próprio Boon advertido e avisado, quase como se tivesse previsto este momento de fraqueza e vacilação na casa vazia:
- Já passámos por muita coisa para não deixarmos que nada nos faça parar.
As minhas roupas - camisas lavadas, calças, meias e a escova de dentes - estavam em casa do McCaslin. Claro que eu tinha outras na gaveta, excepto a escova de dentes, de que, na ausência da minha mãe, nem a tia Callie nem a prima Louisa se iam lembrar. Mas não tirei roupa nenhuma, nadinha; não por esquecimento, mas prova-
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velmente porque nunca tinha tido essa intenção. Limitei-me a entrar e a ficar parado à porta o tempo suficiente para provar a mim mesmo que de nós dois, o Boon e eu, não ia ser eu que nos ia deixar ficar mal, e atravessei outra vez a rua para o outro lado e o quintal do meu avô, em direcção ao cercado. Mas também não era o Boon que nos ia deixar ficar mal; ainda não tinha chegado à cocheira e já ouvia o motor a trabalhar baixinho. O Boon já estava sentado ao volante; creio que o automóvel já tinha a mudança engatada e tudo.
- Onde está a tua camisa lavada? - disse ele. - Deixa lá. Eu com-pro-te uma em Memphis. Anda. Já podemos ir. - Saiu de marcha-atrás. O cadeado aberto foi mais uma vez pendurado no trinco. -Anda - disse ele. - Não te preocupes em fechá-lo. Agora é tarde de mais.
- Não - disse eu. Naquela altura também não lhe podia ter dito porquê: com o cadeado passado pelo trinco e pelo ferrolho da porta fechada, até parecia que o automóvel estava a bom recato lá dentro. E assim seria: tudo não passava de um sonho do qual eu podia acordar no dia seguinte, ou talvez naquele preciso momento, ou no seguinte, e sentir-me seguro, a salvo. Por isso, fechei a porta e o cadeado e abri o portão do cercado para o Boon sair, e depois fechei-o também e entrei no carro, já com ele em movimento - se é que ele tinha chegado a parar completamente. - Se formos pelas traseiras evitamos a praça - disse eu. E ele voltou a dizer:
- Agora é tarde de mais. Tudo o que eles podem fazer agora é gritar. - Mas ninguém gritou. E mesmo com a praça a ficar para trás ainda não era tarde de mais. Aquela decisão irrevogável ainda estava a mais de um quilómetro de distância, na bifurcação da estrada de Memphis de onde partia a estrada para a quinta do McCaslin e onde eu podia dizer Pára. Deixa-me sair. E ele ia parar. Mais: eu podia dizer Mudei de ideias. Leva-me de volta à quinta do primo McCaslin
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e eu sabia que ele também faria isso. E então, de repente, percebi que se dissesse Volta para trás, eu vou buscar aquela chave ao Mr. Ballott e nós vamos guardar este automóvel na cocheira onde o Patrão julga que ele já está neste momento, ele o faria. E mais: que ele queria que eu o fizesse, que estava a pedir-me com o seu silêncio para eu o fazer; ele e eu, ambos zangados não com a sua temeridade individual mas com a de ambos, a nossa rebeldia cúmplice, e que o Boon sabia que não tinha a força necessária para resistir à dele e que por isso devia apoiar-se na minha força e rectidão. Estás a ver? O que é que eu te disse a respeito da Não-virtude? Se as coisas tivessem sido ao contrário e eu tivesse pedido em silêncio ao Boon para voltar para trás, podia ter confiado na sua virtude e na sua piedade, ao passo que aquele a quem o Boon pediu não tinha uma nem outra.
Por isso eu não disse nada; a bifurcação, a última mão frágil e impotente que se estendia para me salvar, aproximou-se veloz, passou e eclipsou-se, desapareceu, irrevogável; eu disse Então está bem. Cá vou eu. Talvez o Boon me tivesse ouvido, porque eu ainda era o patrão. Fosse como fosse, ele deixou Jefferson para trás das nossas costas; Satanás teria pelo menos defendido os seus devotos dos primeiros amanhãs; o Boon disse então:
- Realmente não temos nada com que nos preocupar a não ser amanhã, quando tivermos de atravessar Hell Creek, que é bem o vau do inferno. Harrykin Creek não vale nada ao pé deste.
- Quem disse que valia? - disse eu. Hurricane Creek fica a seis quilómetros da cidade; toda a vida passaste por lá tão depressa que provavelmente nem sabes o seu nome. Mas as pessoas que o atravessavam a vau naquela época sabiam-no bem. Havia uma ponte de madeira por cima do rio propriamente dito, mas para lá chegar, mesmo no pino do Verão, era preciso passar por uma série de charcos de lama.
- E o que te estou a dizer - disse o Boon. - Não vale nada. Eu e o Mr. Wordwin atravessámo-lo naquele dia o ano passado sem
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precisar sequer do guincho: só da pá e do machado que o Mr. Wordwin foi pedir emprestados a uma casa, quase a um quilómetro de distância, e que, agora que falas nisso, acho que nem chegou a devolver. O mais provável é o outro tipo ter vindo buscá-los no
dia seguinte.
Ele quase acertou. Passámos por cima do primeiro charco e até atravessámos a ponte. Mas o outro charco obrigou-nos a parar. O automóvel deu um solavanco para a frente, uma, duas vezes, mas depois quedou-se de esguelha com as rodas a patinar. Sem perder tempo, o Boon descalçou os sapatos (esqueci-me de te dizer que ele também os tinha mandado engraxar), arregaçou as calças e saltou para a lama.
- Passa para o volante - disse-me ele. - Mete a primeira e acelera quando eu disser. Vá. Tu sabes como se faz; aprendeste ainda esta manhã. - Passei para o volante. Ele nem sequer parou para tirar o guincho. - Não preciso. Demora muito a montar e a desmontar e nós não temos tempo para isso. - Ele não precisava. Havia um gradeamento na berma da estrada e ele, metido na água e na lama até aos joelhos, já lhe tinha arrancado a parte de cima e enfiado a extremidade por baixo do eixo traseiro; depois disse: - Agora. Dá-lhe tudo - levantando o carro em peso e, ofegante, empurrando-o para a frente com um arremesso, à força de braços, levando-o outra vez para a terra seca ao mesmo tempo que gritava: - Desliga o motor! Desliga o motor! - o que eu fiz de imediato, felizmente com êxito, e depois ele voltou para o carro, empurrou-me para o lado e sentou-se ao volante sem sequer se dar ao trabalho de desenrolar as calças enlameadas.
O Sol estava quase a pôr-se; já seria noite cerrada quando chegássemos ao Ballenbaugh, onde íamos pernoitar; fomos o mais depressa que nos atrevíamos, e pouco depois estávamos a passar pela casa do Mr. Wyott - uma família nossa amiga; o meu pai levou-me lá para caçar pássaros nesse Natal - que ficava a doze quiló-
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metros de Jefferson e ainda a seis do rio, com o Sol precisamente a pôr-se por detrás da casa. Seguimos em frente; a Lua não tardaria a aparecer, porque os nossos faróis a petróleo eram bem melhores para mostrar aos outros que nos aproximávamos do que para iluminar o caminho; nisto o Boon disse:
- Que cheiro é este? Foste tu? - Mas antes que eu pudesse negar já ele tinha parado o automóvel de chofre, ficando imóvel por um momento, mas virando-se depois bruscamente para puxar o oleado amachucado que cobria o banco traseiro. E lá estava o Ned, sentado no chão. Vinha de fato preto, chapéu, camisa branca com o passador de ouro para o colarinho que ele usava ao domingo, mas sem colarinho nem gravata; trazia até a velha mala já estropiada (se fosse agora chamavas-lhe pasta) que tinha pertencido ao velho Lucius McCaslin ainda o meu pai não era nascido; não sei que mais ele costumava levar lá dentro noutras alturas. Tudo o que eu sempre lá vi foi a Bíblia (igualmente herdada da minha trisavô McCaslin), que ele não sabia ler, e um frasco de meio litro com um bom trago de uísque. - Rai's me partam - disse o Boon.
- Eu tamém quero fazer uma viagem - disse o Ned. - Hi hi hi.
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IV

- TENHO tanto direito de fazer uma viagem como vomicê e o Lucius - disse o Ned.
inda mais. Este automóvel pertence ao Patrão e o Lucius é só neto
dele e vomicê nem lh'é nada.
- Está bem, está bem - disse o Boon. - O que eu estou a dizer é que tu ficaste aí atrás o tempo todo debaixo do oleado e deixaste-me ir sozinho para a lama levantar este carro sem ajuda, só a poder de braço.
- E apanhei cá um calor - disse o Ned. - Nem sei confaguentei. Pra não falar de ter d'evitar qu'aqui esta chocolateira de lata me desse cabo dos miolos cada vez que vomicê dava um solavanco, e pior ainda estar semp'à espera qu'aquela gasolina ou lá como lhe chamam fosse chocalhada até resolver explodir. O qu'é que queria qu'eu fizesse? Estávamos só a seis quilómetros da cidade. Ia obri-gar-me a voltar pra casa a pé.
- Agora estamos a quinze - disse o Boon. - O que é que te faz pensar que não vais ter de os palmilhar na mesma?
E eu atalhei, muito depressa:
- Já te esqueceste? Passámos pelo Wyott há três quilómetros. Podemos bem estar só a outros três de Bay St. Louis.
- É verdade - disse o Ned todo contente. - Não ia ter d'andar
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assim tanto. - O Boon não perdeu muito tempo a olhar para ele.
- Sai daí e dobra esse oleado de maneira a não ocupar mais espaço do que o necessário - disse ele ao Ned. - E areja-o também, se vieste debaixo dele.
- Foram todos aqueles saltos e solavancos que deu - disse o Ned. - Fala como s'eu me tivesse esquecido das boas maneiras de propósito só pra ser apanhado.
Enquanto estávamos parados, o Boon acendeu também os faróis e depois limpou os pés e as pernas a uma ponta do oleado, voltou a calçar as meias e os sapatos e desenrolou as calças, que já estavam a ficar secas. Nesta altura, o Sol já se tinha posto e já havia luar. Seria noite cerrada quando chegássemos ao Ballenbaugh.
Ouvi dizer que agora o Ballenbaugh é um acampamento de pescadores e que o gerente é um italiano que umas vezes faz e outras não faz contrabando de uísque - quando digo não faz estou a refe-rir-me àquela uma ou duas semanas que cada novo xerife, de quatro em quatro anos, leva a descobrir as verdadeiras intenções das pessoas que ele julgou que votaram nele; toda aquela extensão de leito de rio que fez parte do gorado sonho feudal do Thomas Stupen e era o local do acampamento de caça do major De Spain é agora uma bacia hidrográfica; a terra selvagem onde o próprio Boon, quando jovem, caçava (ou pelo menos assistia enquanto outros melhores do que ele o faziam) ursos, veados e pumas, está agora domesticada e cultivada com algodão e milho, e até Wyotfs Crossing já não é mais do que um nome.
Mesmo em 1905 ainda havia vestígios da terra selvagem, embora a maior parte dos veados e a totalidade dos ursos e dos pumas (e também o major De Spain e os seus caçadores) já tivessem desaparecido; o entreposto também; e agora chamamos A Ponte de Ferro a Wyotfs Crossing, porque foi a primeira ponte de ferro e a única, durante vários anos ainda, que nós tínhamos ou de que
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tínhamos ouvido falar no condado de Yoknapatawpha. Mas antigamente, no tempo dos nossos reizecos chickasaw, Issetibbeha e Moketubbe, e do regicida usurpador que a si mesmo deu o nome de Destruição, e quando chegou o primeiro Wyott e os índios lhe mostraram o passo e ele instalou o armazém e a barcaça e lhes deu o seu nome, este era não apenas o único ponto de travessia em muitos quilómetros, mas cabeça de linha também; os barcos (e quando o caudal aumentava no Inverno, até um barco a vapor dos pequenos) vinham fundear à porta do Wyott, por assim dizer, trazendo de Vicksburg uísque, charruas, petróleo e rebuçados de hor-telã-pimenta, e levando algodão e peles.
Mas Memphis ficava mais perto do que Vicksburg, mesmo de carroça, e então construíram uma estrada, o mais a direito que conseguiram, desde Jefferson até ao terminal sul do entreposto do Wyott, e o mais a direito que conseguiram desde o terminal norte até Memphis. Assim, o algodão e tudo o mais começaram a transitar por essa via, em carroças puxadas por mulas ou por bois, até que logo a seguir apareceu vindo ninguém sabe donde um gigante sem linhagem que disse chamar-se Ballenbaugh; havia quem dissesse que na verdade ele comprou ao Wyott a pequena e lúgubre residência de um só quarto e o armazém adjacente, até aí tão tranquilos, e também os direitos que ele (Wyott) considerava ter sobre o antigo passo chickasaw, outros diziam que o Ballenbaugh se limitou a dizer ao Wyott que ele (Wyott) já tinha estado ali tempo suficiente e que estava na hora de se retirar seis quilómetros para o interior e dedicar-se à agricultura.
Pelo menos foi isso que o Wyott fez. E então o seu pequeno eremitério anichado naquele recanto da terra selvagem transformou-se num verdadeiro pandemónio, passando a funcionar como local de pernoita, casa de pasto e bar para os transportadores de passagem e os grupos permanentes de arrieiros de palavras brutais e almas embrutecidas que vinham esperar as carroças de um e outro
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lado do rio com duas, três e até (se necessário) quatro parelhas de mulas já ajaezadas, para meterem as pesadas carroças na barcaça entre pragas e palavrões numa das margens do rio e as descarregarem outra vez em terra firme na outra margem. Um pandemónio; de qualquer maneira, um lugar só para homens. Mas nessa altura só dos de rija têmpera, agora já não; até o coronel Sartoris (não me refiro ao banqueiro, que adquiriu o título nobiliárquico em parte por herança e em parte por afinidade, e que era responsável por o Boon e eu estarmos onde neste momento estávamos; refiro-me ao pai dele, o verdadeiro coronel dos Estados Confederados da América - soldado, estadista, político, duelista e, segundo dizem os sobrinhos e primos por descendência colateral de um jovem de vinte e um anos do condado de Yoknapatawpha, também assassino) construiu o seu caminho-de-ferro por volta de 1875 e acabou com isso.
Mas não com o estabelecimento do Ballenbaugh, e muito menos com o Ballenbaugh. As caravanas de carroças chegaram e tiraram os barcos do rio e mudaram o nome de Wyotfs Crossing para Ballenbaugh's Ferry; os comboios chegaram e tiraram os fardos de algodão às carroças e, consequentemente, o ferry a Ballenbaugh, mas foi tudo; quarenta anos antes, no caso do modesto comerciante Wyott, Ballenbaugh tinha-se mostrado perfeitamente capaz de prever a onda de progresso e apanhá-la; agora, na pessoa do seu filho, um outro gigante que em 1865 regressou com (segundo constava) o casaco forrado com notas ainda por cortar do banco dos Estados Unidos, vindo (dizia ele) do Arkansas, onde (dizia ele) tinha servido e sido honrosamente desmobilizado de uma unidade de guerrilheiros, de cujo comandante ele já não se conseguia lembrar do nome, mostrava que não tinha perdido nada da atávica agilidade, destreza e omnisciência. A princípio, as pessoas passavam no Ballenbaugh e pernoitavam lá; agora iam até ao Ballenbaugh, sempre de noite e muitas vezes à
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pressa, para darem tanto tempo quanto possível ao Ballenbaugh para esconder o cavalo ou a vaca no pântano antes que a polícia ou o dono aparecessem. Porque, a somar aos bandos de lavradores em fúria que seguiam as pegadas sem retorno de cavalos e reses, com os xerifes a perseguirem os criminosos até ao Ballenbaugh, pelo menos um cobrador dos impostos deixou uma série de pegadas sem retorno. Porque enquanto o velho Ballenbaugh se limitava a vender uísque, o actual também o fabricava e era agora proprietário daquilo que é eufemisticamente designado por salão de baile, e por volta de 1885 o estabelecimento do Ballenbaugh era sinónimo de horror e indignação num raio de muitos quilómetros; os sacerdotes e as velhas senhoras tentaram nomear xerifes cujo programa eleitoral fosse exclusivamente expulsar o Ballenbaugh do condado de Yoknapatawpha e também do Mississippi, se possível, levando com ele os seus bêbados, trapaceiros, batoteiros e raparigas. Mas o Ballenbaugh e a sua trupe - estrebaria, casa de prazer ou lá como lhe queiram chamar - nunca se meteram com os forasteiros como nós: nunca saíam da sua fortaleza e não existia nenhuma lei que obrigasse ninguém a ir lá; por outro lado, aparentemente a sua nova vida (avatar) era tão compensadora que corria o boato que qualquer pessoa cujas vistas ou ambições não fossem além de um cavalo com esparavão ou de uma novilha sem leite já não era bem-vinda. Assim, as pessoas sensatas deixavam simplesmente o Ballenbaugh em paz. O que, naturalmente, incluía os xerifes, que eram não só pessoas sensatas mas também chefes de família e que tinham presente o exemplo do cobrador de impostos por lá desaparecido ainda não há muito tempo.
Ou seja, até ao Verão de 1886, quando um pastor baptista chamado Hiram Hightower - mais um gigante, tão alto e quase tão corpulento como o próprio Ballenbaugh, que aos domingos, entre 1861 e 1865, tinha sido um dos capelães da companhia Forrest e nos
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restantes seis dias um dos seus soldados mais aguerridos e destemidos - chegou a cavalo ao Ballenbaugh armado com uma Bíblia e as mãos vazias, e converteu toda a gente com os seus punhos, um de cada vez quando podia, dois ou três de uma assentada quando a tal era obrigado. Assim, quando o Boon, o Ned e eu nos aproximámos do local nesta tarde de Maio de 1905 ao lusco-fusco, o Ballenbaugh consumava o seu terceiro avatar na pessoa de uma solteirona de cinquenta anos: a sua filha única, mulher grisalha, empertigada, descarnada e de ar severo, que cultivava algodão e milho num pedaço de boa terra de aluvião e geria uma pequena loja com um sótão equipado com uma fiada de colchões de folhelho, cada um com lençóis, fronhas e cobertores irrepreensivelmente limpos, para albergar caçadores de raposas e guaxinins, e pescadores que (segundo se dizia) voltavam uma segunda vez não pela caça nem pela pesca, mas pela comida que a Miss Ballenbaugh punha na mesa.
Ela também nos ouviu. E já não éramos os primeiros; disse-nos que éramos o décimo terceiro automóvel a passar por ali nos últimos dois anos, cinco dos quais nos últimos quarenta dias; ela já tinha perdido duas galinhas e provavelmente ia ter de começar a fechar todos os animais, mesmo os cães. Ela, a cozinheira e um negro já estavam na varanda com as mãos a proteger os olhos do clarão fantasmagórico dos nossos faróis. Ela não só conhecia o Boon há muito tempo, como reconheceu ainda primeiro o automóvel; já nessa altura, mesmo ainda só tendo passado por ali treze automóveis, ela tinha olho para identificar os carros.
- Então sempre conseguiu chegar a Jefferson - disse ela.
- Num ano? - disse o Boon. - Credo, Miss Ballenbaugh, desde essa altura este automóvel já chegou cem vezes mais longe que Jefferson. Mil vezes. O melhor é desistir: vai ter de se habituar aos automóveis como toda a gente. - Foi nessa altura que ela nos falou nos treze carros em dois anos e nas duas galinhas.
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- Essas ao menos foram passear de automóvel nem que fosse só uns metros - disse ela. - O que é mais do que me posso gabar.
- Quer dizer que nunca andou em nenhum? - disse o Boon.
- Vem cá, Ned - disse ele - salta daí e traz as malas também. Loosh, deixa a Miss Ballenbaugh sentar-se à frente onde tem melhor vista.
- Espere - disse a Miss Ballenbaugh. - Tenho de dizer à Alice o que há-de fazer para o jantar.
- O jantar pode esperar - disse o Boon. - Aposto que a Alice também nunca andou de automóvel. Vamos, Alice. Quem é esse aí ao teu lado? O teu marido?
- Não ando à procura de marido - disse a cozinheira. - E mesmo qu'andasse, não era o Ephum que m'interessava.
- Trá-lo também - disse o Boon. A cozinheira e o homem entraram também para o carro, para o banco de trás, ao pé do bidão da gasolina e do oleado dobrado. O Ned e eu ficámos parados na luz que saía pela porta aberta a olhar para o automóvel, a ver o farol vermelho da cauda a subir a estrada, depois a parar, recuar, virar, voltar para trás e passar por nós, com o Boon a tocar a buzina, a Miss Ballenbaugh muito direita e um bocadinho tensa no banco da frente, e a Alice e o Ephum no de trás a dizerem-nos adeus.
- Eeeeeena pá - gritou o Ephum para o Ned. - Vai buscar um cavalo!
- Está a dar espectáculo - disse o Ned; referia-se ao Boon.
- Ele devia era tar contente por o Patrão Priest não estar aqui também. Esse é que lhe baixava a garimpa. - O carro parou, recuou um pouco, fez novamente inversão de marcha, voltou para junto de nós e parou. Daí por um instante a Miss Ballenbaugh disse:
- Muito bem. - Depois mexeu-se e disse com rispidez: - Pronto, Alice. - A seguir fomos jantar e eu fiquei a saber porque é que os caçadores e os pescadores voltavam sempre. Depois o Ned foi-se embora com o Ephum e eu dei as boas-noites à Miss Ballenbaugh
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e, com o Boon a segurar no candeeiro, subimos a escada até ao sótão, por cima da loja.
- Não trouxeste mesmo nada? - perguntou-me o Boon. - Nem sequer um lenço lavado?
- Não vou precisar de nada - disse eu.
- Bem, não podes dormir assim. Olha para estes lençóis tão limpos. Pelo menos tira os sapatos e as calças. E a tua mãe também te ia obrigar a lavar os dentes.
- Não ia nada - disse eu. - Nem podia. Não trouxe nada com que possa lavá-los.
- Isso para ela não interessava, e tu sabes bem que é assim. Se não conseguisses encontrar alguma coisa, ias ter de fazer alguma coisa com que pudesses lavá-los ou ias ver como elas mordiam.
- Está bem - disse eu. Já estava deitado no meu colchão. - Boa noite. - Ele estava ainda de pé com a mão no ar para apagar o candeeiro.
- Estás bem? - disse ele.
- Cala-te - disse eu.
- Uma palavra tua e voltamos para casa. Não agora, mas amanhã de manhã.
- Esperaste este tempo todo para ficares com medo? - disse eu.
- Boa noite - disse ele. - Apagou o candeeiro e deitou-se. Depois fomos envolvidos pela noite primaveril: o coaxar das grandes rãs com as suas vozes de baixo nos charcos, os ruídos das florestas, das grandes florestas, da selva com as suas coisas selvagens: guaxinins, coelhos, martas, ratos almiscarados, os grandes mochos e as grandes cobras - as de água e as cascavéis - e talvez até as árvores a respirar e o próprio rio a respirar, sem falar nos espíritos dos velhos chickasaws que deram o nome à terra antes de os brancos lhe terem posto a vista em cima, e dos brancos que vieram depois -o Wyott, o velho Stupen e os caçadores do major De Spain e as jangadas carregadas de algodão e depois as caravanas e os arrieiros
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desordeiros e toda a série de bandidos e assassinos que acabaram por produzir a Miss Ballenbaugh; de repente percebi que barulho era aquele que o Boon estava a fazer.
- De que é que te estás a rir? - perguntei.
- Estou a pensar em Hell Creek. Chegamos lá amanhã de manhã por volta das onze.
- Julguei que tinhas dito que íamos ter problemas para o atravessar.
- Bem podes dizê-lo - disse o Boon. - Vou levar o machado, a pá, o arame farpado, o guincho, todas as barras de metal e eu, tu e o Ned, os três. É dele que me estou a rir: do Ned. Amanhã, no momento em que deixarmos Hell Creek para trás, ele vai desejar não ter esquecido as boas maneiras, como ele diz, nem ter feito mais nada debaixo daquele oleado até sentir o chão de Memphis debaixo das rodas.
O Boon acordou-me muito cedo, e todas as outras pessoas no raio de um quilómetro, apesar de ainda ter levado algum tempo a fazer sair o Ned de onde ele tinha dormido, em casa do Ephum, e vir para a cozinha tomar o pequeno-almoço (e ainda mais tempo do que isso para o fazer sair de uma cozinha com uma mulher lá dentro). Tomámos o pequeno-almoço - e depois desse pequeno-almoço se eu fosse caçador ou pescador não me ia apetecer meter pés ao caminho para lado nenhum por um bom bocado - e o Boon levou a Miss Ballenbaugh a dar mais uma voltinha no automóvel, mas agora sem a Alice nem o Ephum, embora o Ephum estivesse ali à mão. Depois nós - o Boon - encheu o depósito da gasolina e o radiador; não que fosse preciso, mas acho que foi por a Miss Ballenbaugh e o Ephum estarem ali a ver, e partimos. O Sol estava a nascer quando atravessámos a ponte de ferro sobre o rio (e o fantasma daquele barco a vapor também; tinha-me esquecido disso na noite anterior) e entrámos em território desconhecido, num outro condado; à noite entraríamos até num outro estado, e em Memphis.
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- Desde que a gente consiga atravessar em Hell Creek - disse o Boon.
- Talvez, se tu deixares de falar nisso - disse eu.
- Claro - disse o Boon. - Hell Creek quer lá saber se uma pessoa fala nisso ou não. Está-se mas é nas tintas. Vais ver. - E depois disse: - Ora bem, ali está ele. - Pouco passava das dez; tínhamos feito um tempo excelente pelas cumeadas, com as estradas secas e poeirentas entre campos cultivados, a terra deserta, na paz do domingo, as pessoas já com os seus trajes domingueiros no ócio das varandas, e as crianças e os cães a correr para as sebes ou para a berma da estrada para nos verem passar; e depois em charretes, caleches e carroças, a cavalo ou em mulas, de uma a três pessoas nos cavalos, mas não nas mulas (um pouco depois das nove passámos por outro automóvel; o Boon disse que era um Ford; ele tinha olho para os automóveis, como a Miss Ballenbaugh), a caminho das pequenas igrejas a branquejar nos bosques primaveris.
A nossa frente estendia-se um amplo vale, com a estrada a descer do planalto em direcção a uma fiada de salgueiros e ciprestes que demarcavam o ribeiro. A mim não me parecia assim tão mau, nem de longe tão largo como o vau do rio que já tínhamos atravessado, e até podíamos ver o rasgão poeirento da estrada a subir para o planalto do outro lado. Mas o Boon já tinha começado a praguejar e até a acelerar encosta abaixo, quase como se estivesse desejoso, ansioso por chegar e começar a lutar com ele, como se fosse uma coisa consciente, não meramente hostil mas irredimível, como um inimigo humano, um outro homem.
- Olha bem para ele - disse ele. - Inocente como um ovo acaba-dinho de pôr. Até dá para ver a estrada do outro lado como se estivesse a rir-se de nós, como se estivesse a dizer, Se vocês conseguirem chegar até aqui é como se já estivessem a ver Memphis; só que primeiro têm de conseguir...
- S'é assim tão mau, porque não vamos à volta? - disse o
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Ned. - Era isso qu'eu fazia se fosse aí sentado onde vomicê vai.
- Porque não se pode contornar Hell Creek - disse o Boon, desabrido. - Dás a volta por um lado e vais parar ao Alabama; vais pelo outro e cais no Mississipi.
- Uma vez vi o rio Mississippi em Memphis - disse o Ned. - Agora que fala nisso, Memphis já eu vi uma vez. Mas nunca vi o Alabama. Se calhar gostava de lá ir.
- Também nunca tinhas vindo a Hell Creek até agora - disse o Boon. - Certamente o que te levou a esconderes-te ontem debaixo daquele oleado foi para ficares mais instruído. Porque é que achas que os únicos dois automóveis que vimos desde que saímos de Jefferson até agora foram este e aquele Ford? Porque não há mais automóveis nenhuns no Mississippi para baixo de Hell Creek, ora aí está.
- A Miss Ballenbaugh contou treze que passaram pela casa dela nos últimos dois anos - disse eu.
- Dois desses eram este - disse o Boon. - E mesmo os outros onze nunca os contou a atravessarem Hell Creek, pois não?
- Talvez dependa de quem vai a conduzir - disse o Ned. - Hi hi hi. O Boon parou o carro bruscamente e virou-se para trás.
- Muito bem. Salta daí. Tu querias ir visitar o Alabama. Olha que já perdeste um quarto de hora com as tuas baboseiras.
- Porqu'é qu'há-de tratar mal uma pessoa só porque lhe veio fazer companhia? - disse o Ned. Mas o Boon não estava a ouvir. Acho que não estava sequer a falar com o Ned. Já tinha saltado do carro e aberto a caixa de ferramentas que o meu avô tinha mandado prender por cima do estribo para guardar o guincho, o machado, a pá e a lanterna, e estava a tirar tudo para fora menos a lanterna e a pôr tudo no banco de trás ao lado do Ned.
- Assim não perdemos tempo - disse ele, a falar muito depressa, mas controlado, calmo, sem histerismos nem aflições, fechando a
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caixa em seguida e voltando a sentar-se ao volante. - Vamos a isto. De que é que estamos à espera?
Eu continuava a não ver qual era o problema - apenas mais uma estrada florestal a cruzar mais um ribeiro pantanoso, a estrada já não completamente seca, mas também não propriamente encharcada, com os buracos e as poças já preenchidos por anteriores pioneiros para nossa conveniência com troncos e ramos, e até algumas secções alisadas com canas atravessadas na lama (é verdade, de repente aper-cebi-me de que a estrada - à falta de melhor termo - tinha deixado também de não estar ainda verdadeiramente molhada) por isso talvez o próprio Boon fosse o responsável, ele que tinha povoado a penumbra estagnada daquele túnel de ciprestes e salgueiros sussurrante de mosquitos com os fantasmas de automóveis atolados e pessoas a suar e a praguejar. Nisto pensei que já lá tínhamos chegado, mas que eu não só não conseguia ver nenhum talude nem terra mais seca que indicasse que estávamos a chegar à outra margem do pântano, como também não conseguia ver ainda o ribeiro propriamente dito à minha frente e muito menos uma ponte. E de novo o automóvel deu um solavanco, empinando-se e ficando exactamente como tinha ficado na véspera quando atravessámos Hurricane Creek, e o Boon já a tirar os sapatos e as meias e a arregaçar as calças.
- Muito bem - disse ele ao Ned virando-se para trás - salta daí.
- Não sei pra quê - disse o Ned, sem se mexer. - Inda não aprendi a mexer nos automóveis. Só vou estorvar. Eu fico aqui sentado co Lucius pra vomicê ter espaço à vontade.
- Hi hi hi - fez o Boon numa feroz e vingativa imitação. - Não querias fazer uma viagem? Pois aí está ela. Salta daí.
- Tou co meu fato de domingo - disse o Ned.
- E eu também - disse o Boon. - Se eu não estou preocupado com um par de calças, tu também não precisas de estar.
- Pra si é fácil falar - disse o Ned. - Tem o Mr. Maury, mas eu tenho de trabalhar pra ganhar o meu dinheiro. Quando os meus
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fatos se estragam ou ficam velhos, sou eu que tenho de comprar outros.
- Tu nunca compraste uma peça de roupa, sapatos ou sequer um chapéu na tua vida - disse o Boon. - Tens uma sobrecasaca, eu sei, que foi do velho Lucius McCaslin, sem falar no general Compson e no major De Spain, e ainda no Patrão. Podes arregaçar as calças ou não e tirar os sapatos ou não, isso é contigo. Mas vais sair deste automóvel.
- O Lucius que saia - disse o Ned. - E mai novo do qu'eu e tamém mais forte pró tamanho dele.
- Ele tem de ir para o volante - disse o Boon.
- Eu vou, s'é só disso que precisa - disse o Ned. - Tenho passado a minha vida a conduzir cavalos, mulas e bois e acho qu'andar p'à direita e p'à esquerda com esse volante não há-de ser diferente d'andar p'à direita e p'à esquerda cum par de rédeas ou um aguilhão. - E depois, para mim: - Salte daí, menino, e vá ajudar o Mr. Boon. É melhor tirar os sapatos e as meias...
- Vais sair daí ou tenho de te içar com uma mão e tirar o automóvel debaixo de ti com a outra? - disse o Boon. Então o Ned mexeu-se, e até bem depressa, quando finalmente percebeu que não tinha outro remédio, e só resmungou um bocado enquanto tirava os sapatos, arregaçava as calças e despia o casaco. Quando voltei a olhar para o Boon ele estava a tirar dois paus do matagal, dois tronquinhos de árvore.
- Ainda não é desta que vais usar o guincho? - disse eu.
- Não, que diabo - disse o Boon. - Quando for altura para isso, não vais ter de perguntar a ninguém. Ficas logo a saber. - Então éa ponte, pensei eu. Se calhar nem há nenhuma ponte e é esse o problema. E mais uma vez o Boon leu-me os pensamentos. - Não te preocupes com a ponte. A essa ainda nem sequer chegámos.
Também ia ficar a saber o que ele queria dizer com aquilo, mas não agora. O Ned meteu um pé devagarinho na água.
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- Esta água está cheia de lodo - disse ele. - S'há coisa qu'eu detesto é sentir o lodo entre os dedos.
- Isso é porque a tua circulação ainda não activou - disse o Boon. - Agarra neste pau. Disseste que ainda não percebes nada de automóveis. Pois é uma queixa que nunca mais vais ter de fazer para o resto da vida. Muito bem - e agora para mim: - Levanta o pé devagarinho e quando pegar continua a acelerar. - Eu assim fiz, enquanto o Boon e o Ned metiam os paus por baixo do eixo traseiro, fazendo-nos dar um salto e avançar mais meio metro, um metro e às vezes metro e meio, até o carro começar a patinar outra vez, com as rodas de trás a girar e a cobri-los de lama dos joelhos ao cocuruto da cabeça como se tivessem sido pulverizados com uma daquelas pistolas que os pintores agora usam. - Estás a perceber agora o que eu queria dizer - disse o Boon, cuspindo, voltando a meter a vara como uma alavanca e a levantar o carro, o que nos fez dar mais um salto em frente - sobre ficares a conhecer os automóveis? E exactamente como os cavalos e as mulas: nunca te ponhas atrás de nenhum que tenha uma das patas traseiras já levantada.
Nisto vi a ponte. Tínhamos chegado a uma zona de terra (comparativamente) tão seca que o Boon e o Ned, agora quase irreconhecíveis por causa da lama, tiveram de correr com as varas na mão, e nem mesmo eles me conseguiam acompanhar, e o Boon a gritar, ofegante, "Vá! Continua!", até que eu vi a ponte uns cem metros mais à frente e depois vi o que estava ainda entre nós e a ponte e percebi o que ele queria dizer. Parei o carro. A estrada (a passagem ou lá o que lhe quiséssemos chamar) à nossa frente não se tinha propriamente alterado, mas metamorfoseado, mudado os meios, os elementos. Agora parecia um grande receptáculo de café com leite de onde emergiam aqui e além alguns tristes e impotentes vestígios de galhos, ramos e troncos e um ou outro montículo de terra autêntica que, estranhamente, parecia ter sido para ali atirada por uma charrua. Depois vi ainda outra coisa e percebi o que
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o Boon me tinha andado a querer dizer indirectamente há mais de um ano acerca de Hell Creek, e o que tinha vindo a reiterar com uma espécie de assombrada e perplexa obsessão desde que tínhamos saído de Jefferson no dia anterior. Amarradas a uma árvore na berma da estrada (canal) estavam duas mulas arreadas como se para puxar uma charrua - quer dizer, com rédeas, coalheira e arcos, os tirantes metidos pelos arcos dos arreios e as rédeas enroladas num novelo e também a pender dos arcos; e ao lado, encostada a outra árvore, uma pesada charrua de aiveca dupla - um arado -toda ela coberta, da rabiça ao varal, com mais lama daquela que estava rapidamente a secar e a envolver o Boon e o Ned como num molde, e um balancim, igualmente recoberto de lama, encostado à charrua; e logo atrás uma cabana de dois quartos, completamente nova, mas ainda por pintar, em cuja varanda, sentado numa cadeira de verga, estava um homem descalço, com os suspensórios pendurados à cintura e as botas encostadas à parede ao lado da cadeira. E então percebi que tinha sido aqui, e não em Hurricane Creek, que (segundo o Boon) ele e o Mr. Wordwin tinham sido obrigados a pedir uma pá emprestada no ano anterior, a qual (segundo o Boon) o Mr. Wordwin se tinha esquecido de devolver, e que o Mr. Wordwin bem se podia ter esquecido de pedir emprestada pois não lhes serviu para nada.
O Ned também o tinha visto e já tinha feito cara feia ao lamaçal. Agora estava a olhar para as mulas já arreadas, ali paradas a enxotar os mosquitos com a cauda enquanto esperavam por nós.
- Ora aqui tá uma coisa propó...
- Cala o bico - disse o Boon num sussurro feroz. - Nem uma palavra. Nem um pio. - Falava com uma fúria tensa, controlada. Encostou a vara enlameada ao carro e foi buscar o guincho e o rolo de arame farpado, o machado e a pá. Disse três vezes Filho da puta. Depois virou-se para mim e disse: - Tu também.
- Eu? - disse eu.
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- Mas olhem só pràquelas mulas - disse o Ned. - Ele até já tem uma corrente para arrastar troncos presa àquele balancim...
- Não me ouviste dizer para calares o bico? - murmurou de novo o Boon em tom feroz, mas cortês. - Desculpa se não fui claro. O que eu quis dizer foi, Cala o bico.
- Só não p'cebo pa que raio ele quer a charrua - disse o Ned. - E tamém tá cheia de lama até òs cabos. E como s'ele tivesse... Tá a querer dizer qu'ele vem pràqui côas mulas lavrar isto tudo pra trás e prà frente só pra isto ficar tudo empapado? - O Boon já trazia na mão a pá, o machado e o guincho. Por um momento pensei que ele ia bater no Ned com alguma das coisas, ou com as três, e disse muito depressa:
- O que é que queres que eu...
- Sim - disse o Boon. - Vamos ser todos precisos. Eu... eu e o Mr. Wordwin tivemos um pequeno problema com ele o ano passado; desta vez temos de passar...
- Quanto é que tiveram de lhe pagar o ano passado pra serem desatolados? - perguntou o Ned.
- Dois dólares - disse o Boon. - ... por isso é melhor tirares as calças e a camisa também; aqui não faz mal...
- Dois dólares? - disse o Ned. - Não há dúvida qu'isto rende mais co algodão. Ele pode amanhar a terra aqui mesmo, sentadinho à sombra sem precisar de mexer uma palha. O qu'eu quero qu'o Patrão m'arranje é um bom lamaçal com muitos carros a passar por lá.
- Boa - disse o Boon. - Podes aprender como é que se faz aqui com este. - Deu ao Ned o guincho e o arame farpado. - Leva isto ali para aquele salgueiro, o maior, e amarra-o bem. - O Ned desenrolou a corda e levou a polé até à árvore. Eu tirei as calças e os sapatos e meti-me na lama. A sensação era boa, fresca. Talvez o Boon também sentisse o mesmo. Ou talvez para ele - e para o Ned - a sensação fosse só de alívio, de liberdade por agora não terem de se
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preocupar em não ficarem todos sujos de lama. Pelo menos deste momento em diante ele ignorou simplesmente a lama, agachado nela a repetir baixinho, Filho da puta, Filho da puta, enquanto procurava prender o guincho à parte da frente do carro com o arame farpado. - Ouve - disse-me ele - vai ali buscar alguns daqueles ramos e trá-los para aqui - lendo-me de novo o pensamento: - Também não sei de onde é que saíram. Talvez ele os ponha ali para as pessoas se servirem à vontade e descobrirem como ele merece bem os dois dólares que lhe devem.
E eu fui buscar os ramos - ramos e pequenos galhos - e enter-rei-os na lama em frente do carro, enquanto o Boon e o Ned engatavam a corda no guincho e nos preparávamos, o Ned e eu junto do guincho e o Boon atrás do carro novamente com a sua famosa alavanca pronta para entrar em acção.
- Vocês ficaram com a parte fácil - disse ele. - Tudo o que têm de fazer é segurar a corda quando eu levantar o carro. Muito bem -disse ele - vamos a isto.
Era como se eu estivesse a viver um sonho, não um pesadelo. Era como um sonho - o cenário silvestre, calmo, silencioso remoto e quase primitivo, de lama, lodo, vegetação e calor húmido, onde a presença das próprias mulas, que calmamente agitavam a cauda e pateavam para enxotar a vida infinitesimal que enxameava o ar que respirávamos e onde nos movíamos, não só não tinha nada de estranho como era até curiosamente adequada, sendo elas próprias uns impasses biológicos e, portanto, já obsoletas antes de terem nascido; o automóvel: esse brinquedo mecânico inútil e caríssimo cuja potência e força é calculada em dúzias de cavalos, não obstante retido, inactivo e impotente, na armadilha quase infantil de meia dúzia de centímetros de conjunção temporária de dois elementos amenos e pacíficos - terra e água - que os mais frágeis integrais e unidades de movimento, tal como foram produzidos pelos antigos métodos anteriores à mecânica, tinham
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conseguido enfrentar ao longo de gerações e gerações sem disso haver consciência; nós três, criaturas bípedes idênticas e agora irreconhecíveis na nossa capa de lama, empenhados num combate de vida ou morte cujo progresso, se existia, tinha de ser medido, como nos glaciares, em penosos e aterradores centímetros. E durante todo este tempo o homem lá estava sentado na varanda com a cadeira inclinada para trás a observar-nos enquanto o Ned e eu lutávamos por cada centímetro que conseguíamos ganhar à corda que nesta altura já estava demasiado escorregadia para a agarrarmos com as mãos, e lá atrás o Boon lutava como um demónio, titânico, enfiando a vara por baixo do carro e levantando-o e empurrando-o para a frente; a certa altura largou a vara, atirou-a para o chão e, curvando-se, agarrou o carro com as duas mãos e empurrou-o para a frente uns trinta ou cinquenta centímetros como se fosse um carrinho de mão. Nenhum homem aguentava isto. Nenhum homem jamais devia ter de aguentar. Eu finalmente disse-o. Parei de puxar e disse ofegante:
- Não. Não, não conseguimos. Simplesmente não conseguimos. - E o Boon, num fio de voz tão sumido e doce como um murmúrio de amor, disse:
- Então sai da frente senão eu passo-te por cima com ele.
- Não - disse eu, aproximando-me dele a cambalear, escorregando e enterrando-me na lama. - Não - disse-lhe eu. - Vais-te matar.
- Eu não estou cansado - disse o Boon com a mesma voz fraca e quebradiça. - Ainda estou só a começar. Mas tu e o Ned podem descansar um bocado. E enquanto recuperas o fôlego podias ir buscar mais uns daqueles ramos...
- Não - disse eu. - Não! Lá vem ele! Queres que ele veja? -Porque nós estávamos a vê-lo e a ouvi-lo - o choc choc das mulas a avançar devagarinho e a patinhar delicadamente a orla do lamaçal, o tinir quase musical das correntes, com o homem montado numa
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e a guiar a outra, com os sapatos presos um ao outro pelos atacadores com uma laçada à volta do arco dos arreios, e o balancim equilibrado à sua frente, exactamente como se vê nas fotografias onde antigos caçadores de búfalos transportavam as armas - um homem cadavérico, mais velho do que nós - pelo menos eu - tínhamos pensado.
- B'dia, rapazes - disse ele. - Tão com ar de já tarem prontos pra mim. Viva, Jefferson - disse ele para o Boon. - Parece que afinal sempre conseguiram passar, no Verão passado.
- Pois parece - disse o Boon. A expressão dele tinha mudado completa e instantaneamente como uma página virada, como o jogador de póquer que acaba de ver o segundo ás ir parar a uma mão do outro lado da mesa. - E desta vez também conseguíamos passar se vocês não plantassem aqui tanta lama.
- Não nos queiram mal por isso - disse o homem. - A lama é uma das nossas melhores colheitas por estas paragens.
- A dois dólares por lamaçal, devia mas era ser a milhor - disse o Ned. O homem fitou o Ned por um momento com olhos piscos.
- És capaz de ter razão - disse ele. - Toma. Pega neste balancim; tens cara de rapaz que sabe a que ponta da mula o deves engatar.
- Salte você da mula e venha engatá-lo - disse o Boon. - Sim, para que é que lhe estamos a pagar dois dólares para ser o especialista contratado? O ano passado foi você que fez isso.
- Isso foi o ano passado - disse o homem. - Andar sempre a patinhar na água a prender correntes pesadas àquelas duas coisas deu-me cabo da saúde e agora basta cuspirem-me em cima e fico logo cheio de reumatismo. - E o homem não se mexeu. Limitou-se a trazer as mulas até ao carro e a pô-las lado a lado enquanto o Boon e o Ned prendiam as correntes dos tirantes aos balancins e depois o Boon se agachava na lama para prender a corrente ao automóvel.
- Onde é que quer que a prenda? - perguntou ele.
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- Pra mim tanto faz - disse o homem. - Prenda-a a uma parte qualquer que queira tirar deste lamaçal. Se quiser que saia todo ao mesmo tempo, eu diria que deve prendê-la ao eixo. Mas primeiro eu voltava a meter todas essas pás e cordas no automóvel. Já não vai precisar mais delas, pelo menos aqui. - Então eu e o Ned tratámos disso, o Boon prendeu a corrente e depois afastámo-nos os três e ficámos a olhar. Ele era o especialista, claro, mas nesta altura as mulas também eram, a tirarem o automóvel da lama, mantendo a tracção equilibrada no balancim com a suavidade de equilibristas do arame, pondo o automóvel em movimento e assim o mantendo, sem mais orientação do que uma palavra de vez em quando do homem que montava a mula mais próxima e um afago esporádico da chibata, até o automóvel encontrar chão que fosse mais terra do que água.
- Muito bem, Ned - disse o Boon. - Desengata-o.
- Ainda não - disse o homem. - Há uma outra poça deste lado da ponte que eu lhes estou a oferecer de borla. - Há um ano que não passam por aqui. E depois, para o Ned: - É o lamaçal de reserva, como lhe chamamos.
- Quer dizer, assim como a metade do Natal - disse o Ned.
- Talvez - disse o homem. - O que é isso? O Ned explicou.
- É o que nós fazíamos na quinta do McCaslin há muito tempo, antes da Rendição, quando o velho L.Q.C, inda era vivo, e como os filhos do Edmonds inda fazem. Todas as Primaveras é traçada uma linha pelo meio do melhor pedaço de terra da quinta, e todos os pés d'algodão entre essa linha e o extremo do campo pertencem ò fundo do Natal, não são pró Patrão mas pra dividir por todos os negros que trabalham pró McCaslin. Isso é qu'é a metade do Natal. Provavelmente vocês aqui, os lamaceiros, nunc'ouviram falar disso.
- O homem e o Ned fitaram-se longamente até que o Ned disse:
- Hi hi hi.
- Assim tá melhor - disse o homem. - Por um momento pensei
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que nos íamos desentender. - E depois, para o Boon: - Talvez seja melhor ir alguém pró volante.
- Sim - disse o Boon. - Muito bem - disse-me ele, e eu sentei-me ao volante, coberto de lama e tudo. Mas ainda não foi desta que começámos a avançar. Então o homem disse:
- Esqueci-me de lhes dizer, por isso é melhor dizer agora. Os preços por aqui duplicaram desde o ano passado.
- Porquê? - disse o Boon. - O carro é o mesmo, a poça é a mesma; e rai's me partam se não estou convencido de que até a lama é a mesma.
- Isso foi o ano passado. Agora há mais trabalho. Tanto que não me posso dar ò luxo de não subir o preço.
- Está bem, cos diabos - disse o Boon. - Vamos a isto. - E então começámos a avançar, ignominiosamente, a passo de mula, seguindo em frente, sem parar, até entrarmos no próximo lamaçal e de novo sairmos dele. A ponte estava agora mesmo à nossa frente; do outro lado podíamos ver a estrada até ao extremo do vale e a terra firme.
- Desta estão safos - disse o homem. - Até à volta. - O Boon estava a desengatar a corrente enquanto o Ned soltava os tirantes e devolvia o balancim ao homem montado na mula.
- Não vamos voltar por aqui - disse o Boon.
- Eu também não voltava - disse o homem. O Boon foi até à última poça, limpou alguma lama das mãos, voltou para o carro e tirou quatro dólares da carteira. O homem nem se mexeu.
- São seis dólares - disse ele.
- O ano passado eram dois dólares - disse o Boon. - Você disse que agora era o dobro. O dobro são quatro. Muito bem. Aqui estão os quatro dólares.
- Eu cobro um dólar por passageiro - disse o homem. - O ano passado eram dois. Foram dois dólares. O preço agora dobrou. Vocês são três. São seis dólares. Você talvez preferisse voltar a pé
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para Jefferson em vez de pagar os dois dólares, mas talvez esse rapaz e esse negro não pensem o mesmo.
- E talvez o meu preço nem tenha subido - disse o Boon. - E se eu não lhe pagar os seis dólares? E se de facto eu não lhe pagar nada?
- Pode fazer isso à vontade - disse o homem. - Estas mulas tiveram um dia muito duro, mas eu cá acho que inda têm genica suficiente pra levar essa coisa de volta para donde a tiraram.
Mas o Boon já tinha desistido, abandonado a luta, já se tinha rendido.
- Que diabo - disse ele - este rapaz não passa duma criança! Certamente que por uma criança...
- Voltar a pé pra Jefferson pode ser mais fácil pra ele - disse o homem - mas a distância não será mais curta.
- Está bem - disse o Boon - mas olhe para o outro! Quando tirar aquela lama toda de cima, nem branco é!
O homem fitou o horizonte por uns momentos. Depois olhou para o Boon e disse:
- Meu filho, estas mulas são ambas daltónicas.
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V

O Boon tinha dito ao Ned e a mim que uma vez vencido o vau de Hell Creek estaríamos na civilização, e desenhou-nos um quadro de todas as estradas daí para a frente como estando pejadas com um autêntico formigueiro de automóveis. No entanto, primeiro era necessário deixar Hell Creek para trás, tão longe de nós como se fosse o limbo, o esquecimento ou, pelo menos, longe da vista; talvez nós não fôssemos dignos da civilização enquanto não nos livrássemos da lama do vau de Hell Creek. Fosse como fosse, ainda não tinha acontecido nada. O homem pegou nos seis dólares e foi-se embora com as mulas e o balancim; reparei que não voltou para o casebre onde morava, mas que se meteu pântano adentro e desapareceu, como se o dia de trabalho tivesse chegado ao fim; o Ned também reparou.
- Ele não é ganancioso - disse o Ned. - Não precisa de ser. Já ganhou seis dólares e inda nem é hora d'almoço.
- Eu cá também acho - disse o Boon. - Vai buscar o nosso almoço. - Então ele foi buscar a caixa com o almoço que a Miss Ballenbaugh nos tinha preparado e o guincho, o machado, a pá, os nossos sapatos, as meias e as calças (não podíamos fazer nada em relação ao automóvel, o que além do mais seria um desperdício de
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energia até chegarmos a Memphis, onde certamente - pelo menos assim esperávamos - não haveria mais nenhum lamaçal) e desceu até ao ribeiro para lavar as ferramentas e enrolar as polés do guincho. E também não havia muito a fazer em relação às roupas do Boon e do Ned, embora o Boon se tivesse metido mesmo na água, com a roupa e tudo, para se limpar da lama, e tivesse tentado convencer o Ned a segui-lo, uma vez que ele - Boon - tinha uma muda de roupa na mala. Mas tudo o que o Ned fez foi tirar a camisa e voltar a vestir o casaco. Acho que já te falei da pasta dele, que ele usava mais como peça de indumentária do que como acessório quando ia de viagem, como os diplomatas usam as deles, transportando lá dentro (estou a falar da Bíblia do Ned e das duas colheres de sopa do - provavelmente - melhor uísque do meu avô), desconfio, por vezes até menos do que eles.
Depois almoçámos - o presunto, o frango frito, os pãezinhos, as peras de conserva caseiras, o bolo e o jarro de coalhada - e em seguida arrumámos o equipamento de emergência de combate à lama (que afinal em vez de dar luta só tinha dado barraca), medimos o depósito da gasolina - não em termos de distância mas de tempo - e seguimos viagem. Uma vez que os dados estavam definitivamente lançados, não perdemos tempo com remorsos nem ressentimentos nem a pensar no que podia ter acontecido e não aconteceu; se atravessámos o Rubicão quando atravessámos a Ponte de Ferro para um outro condado, quando vencemos Hell Creek baixámos os portões de ferro e deitámos fogo à ponte levadiça. E parecia de facto que tínhamos ganho uma suspensão de pena como recompensa da nossa invencível determinação, ou da recusa em reconhecermos a derrota quando a olhávamos de frente ou ela nos olhava de frente. Ou talvez fosse somente a Virtude que tivesse desistido, abandonando-nos à Não-virtude, para que cuidasse de nós, nos acarinhasse e nos mimasse, tal como era nosso direito após a venda agora irrevogável das nossas almas.
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Até a própria terra parecia ter mudado. As quintas eram maiores, mais prósperas, com vedações mais sólidas, casas pintadas e até celeiros; até o ar que respirávamos era urbano. Chegámos por fim a uma recta muito larga que se perdia na distância, profusamente impressa de marcas de pneus; o Boon disse com uma espécie de triunfo, como se tivéssemos duvidado dele ou como se ele a tivesse inventado para nos desacreditar, como se a tivesse criado, rasgan-do-a, nivelando-a e aplanando-a com as próprias mãos (e quem sabe se acrescentado até as marcas de pneus):
- O que é que eu vos disse? Cá está a estrada de Memphis. -Podíamos ver quilómetros de estrada à nossa frente; a uma distância muito mais curta elevava-se no ar uma nuvem de poeira que se aproximava veloz, como um presságio, uma promessa. Não deixava dúvidas, dada a velocidade e o volume; por isso, nem sequer ficámos surpreendidos quando vimos que continha um automóvel; passámos uns pelos outros, unindo-se a poeira de ambos numa nuvem gigantesca, uma coluna, um marco erigido para cobrir a terra com uma antevisão do futuro: o incansável vaivém, como formigas, a incurável praga das vendas a prestações; o mecanizado, o mobilizado, o inescapável destino da América.
E agora, cinzentos de poeira da ponta dos pés à ponta dos cabelos (especialmente as roupas ainda húmidas do Boon), podíamos ganhar tempo, mesmo se, por enquanto, não velocidade; sem desligar o motor, o Boon saiu do carro cheio de energia, deu a volta até ao meu lado e disse com a mesma energia:
- Muito bem. Passa para ali. Tu sabes como se faz. Só não te ponhas para aí a pensar que és uma daquelas locomotivas que dão sessenta à hora. - E assim lá fui eu a conduzir pela tarde ensolarada de Maio. No entanto, não podia olhar para a paisagem, de demasiado ocupado que estava, demasiado concentrado (pronto, está bem, demasiado nervoso e orgulhoso): tarde de domingo, dia de descanso, o algodão e o milho a crescerem agora
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sem entraves, as próprias mulas tinham ares dominicais, ociosas no prado, e as pessoas ainda com os seus fatos domingueiros nas varandas e na sombra dos quintais, com copos de limonada ou pratinhos com o sorvete que tinha sobrado do almoço. Depois também corremos velozes; o Boon disse:
- Vamos passar agora por uma série de povoações. É melhor eu pegar no carro. - Continuámos. A civilização era agora uma constante: lojas rurais e pequenos povoados; mal saíamos de um, entrávamos logo noutro; o comércio fervilhava à nossa volta, a atmosfera era realmente urbana, até o pó que levantávamos e nos envolvia deixava na língua e nas narinas um sabor metropolitano; mesmo as crianças e os cães já não corriam para os portões e para as sebes para nos verem passar, a nós e aos outros três automóveis com que nos tínhamos cruzado nos últimos vinte quilómetros.
Por fim o próprio campo desapareceu. Já não havia intervalos entre as casas, as lojas e os grandes armazéns; subitamente surgiu à nossa frente uma avenida larga, bordejada de árvores e bem arranjada, com linhas de eléctrico ao meio; e, como não podia deixar de ser, o carro-eléctrico com o motorista e o condutor a baixarem o trólei traseiro e a subirem o frontal, para inverterem a marcha e voltarem para a rua principal.
- Dois minutos para as cinco - disse o Boon. - Há vinte e três horas e meia atrás estávamos em Jefferson, Mississippi, a cento e vinte quilómetros daqui. Um recorde. - Eu já tinha ido a Memphis antes (o Ned também, como ele nos tinha dito essa manhã e como nos iria provar daí a meia hora) mas sempre de comboio, nunca assim: para ver Memphis crescer, desenvolver-se; para saborear a cidade deliberadamente como uma colher de sorvete na boca. Nunca pensei que pudéssemos fazer outra coisa sem ser ir para o Hotel Gayoso como nós - pelo menos eu - sempre ia. Por isso, não sei que pensamentos meus é que o Boon leu desta vez. - Vamos para uma espécie de pensão que eu conheço - disse ele. - Vais gos-
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tar. A semana passada recebi uma carta de uma das ra... senhoras que lá estão hospedadas e ela tem lá um sobrinho de visita e por isso tu até vais ter com quem brincar. E a cozinheira pode arranjar também um lugar para o Ned dormir.
- Hi hi hi - disse o Ned. Além dos eléctricos havia caleches e charretes - faetontes, tipóias, cabrioles e pelo menos uma vitória, com os cavalos a esbugalharem os olhos para nós, mas ainda calmos; evidentemente que os cavalos de Memphis já estavam habituados aos automóveis - pelo que o Boon não podia virar a cabeça para trás para olhar para o Ned. Mas podia virar um olho.
- Porque foi isso agora? - perguntou ele.
- Por nada - disse o Ned. - Veja por onde vai e nassaflija comigo. Nassaflija mesmo. Eu tamém cá tenho amigos. Mostre-me só onde é qu'est'automóvel vai estar amanhã de manhã e eu lá estarei.
- E é melhor que estejas, cos diabos - disse o Boon - se estás a pensar voltar nele para Jefferson. Eu e o Lucius nunca te convidámos para esta viagem, por isso não és da minha responsabilidade nem da dele. Cá por mim estou-me nas tintas se voltas connosco ou não, e acho que Jefferson também está.
- Quando voltarmos a Jefferson co este automóvel e tivermos de encarar o Patrão Priest e o Mr. Maury, ninhum de nós vai ter tempo pra estar ou deixar de estar nas tintas pra quem voltou ou deixou de voltar - disse o Ned. Mas agora era tarde de mais para continuar a falar disso, e o Boon disse apenas:
- Está bem, está bem. Tudo o que eu disse foi que se tu quiseres estar de volta a Jefferson, quando começaste a fazer a cena de não teres tempo para te estares nas tintas ou deixares de estar, é melhor que estejas onde eu te veja quando o carro partir. - Estávamos a aproximar-nos agora da rua principal, com os seus prédios altos, o comércio e os hotéis: o Gaston (já desaparecido) e o Peabody (entretanto passaram para outro lado), e o Gayoso, pelo qual todos nós, McCaslin-Edmonds-Priest, tínhamos verdadeira devoção,
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como por um relicário de família, porque o nosso tio e primo afastado Theophilus McCaslin, pai do primo Ike, tinha feito parte do grupo de cavaleiros que, segundo a lenda (lenda talvez para alguns, para nós é verdade histórica), entraram a galope pelo átrio do hotel adentro comandados pelo general Forrest e quase capturaram um general ianque. Mas nós não chegámos lá. O Boon virou numa transversal que mais parecia um beco, com dois bares na esquina e cheia de casas que não pareciam velhas nem novas, todas no mais absoluto silêncio, tão silenciosas como Jefferson ao domingo à tarde. Até o Boon falou nisso. - Devias ter visto isto ontem à noite. Ou qualquer sábado à noite. Ou mesmo numa noite de semana quando há na cidade a convenção dos bombeiros ou dos polícias ou da associação de protecção aos alces ou outra qualquer.
- Talvez tenham ido todos para a igreja mais cedo - disse eu.
- Não - disse o Boon. - Não me parece. O mais provável é estarem a descansar.
- De quê? - disse eu.
- Hi hi hi - disse o Ned lá atrás. Obviamente, como estávamos agora a descobrir, o Ned já tinha estado em Memphis outras vezes, embora provavelmente nem mesmo o meu avô soubesse quantas, apesar de ser capaz de saber quando. Além disso, estás a ver, eu tinha só onze anos. Desta vez, como a rua estava deserta, o Boon virou a cabeça para trás.
- Se fazes isso mais uma vez que seja... - disse ele ao Ned.
- Isso o quê? - disse o Ned. - Tudo o qu'eu digo é diga-me só onde é qu'esta coisa vai tar amanhã de manhã, e eu estarei sentado lá dentro quando ela partir. - O Boon assim fez. Estávamos quase a chegar: uma casa a precisar quase tanto de pintura como as outras, no meio de um quintalinho sem relva, mas com uma espécie de vestíbulo à entrada em gradeado de madeira como um fontanário. O Boon encostou ao passeio. Agora já se podia virar para trás e olhar para o Ned.
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- Muito bem - disse ele. - Vou acreditar na tua palavra. E tu é melhor acreditares na minha. Amanhã de manhã ao bater das oito. E estou a falar da primeira badalada, não da última. Porque já nem sequer aqui vou estar para a ouvir.
O Ned já estava a sair, levando com ele a pequena maleta e a camisa enlameada.
- Não tem já problemas que cheguem a ocupar-lhe a cabeça para querer carregar tamém os meus? - disse ele. - Se vomicê consegue estar despachado amanhã de manhã às oito horas, porque é que pensa qu'eu não consigo? - e começou a afastar-se. Nisto disse, sem parar nem olhar para trás: - Hi hi hi.
- Vamos - disse o Boon. - A Miss Reba vai deixar-nos tomar um banho. - Saímos do carro. O Boon estendeu o braço para puxar a mala dele e disse: - Ah, é verdade - e depois estendeu a mão para o painel de comandos, tirou a chave da ignição, guardou-a no bolso e começou a tirar a mala, mas parou, tirou a chave do bolso e disse: - Toma. Guarda-a tu. Eu posso deixá-la por aí e perdê-la. Guarda-a bem guardada, para não cair. Podes pôr-lhe o lenço por cima. -Peguei na chave e ele começou outra vez a estender a mão para a mala, mas parou mais uma vez, olhou de relance para a pensão, por cima do ombro, e depois virou-se um pouco de lado, tirou a carteira do bolso de trás, abriu-a encostada ao peito, tirou uma nota de cinco dólares, nisto parou, e depois tirou também uma nota de um dólar, fechou a carteira, passou-ma por trás das costas e disse, sem pressa, mas baixinho: - Guarda isto também. Posso esquecer-me também dela por aí. Sempre que precisar de dinheiro digo-te quanto me hás-de dar. - Porque eu nunca antes tinha estado dentro de uma pensão; e lembra-te, eu só tinha onze anos. Assim, meti também a carteira no bolso, o Boon pegou na mala, entrámos pelo portão, subimos a rampa até ao vestíbulo gradeado e batemos à porta. O Boon mal tinha tocado na campainha quando ouvimos passos dentro de casa. - O que é que eu te disse? - disse o Boon
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muito depressa. - O mais certo é elas estarem todas a espreitar por detrás das cortinas a apreciar o automóvel. - A porta abriu-se. A nossa frente estava uma rapariga negra, mas antes que ela pudesse abrir a boca, uma mulher branca empurrou-a para o lado; era também uma mulher muito jovem com uma cara bonita mas dura, o cabelo muito ruivo e nas orelhas dois diamantes amarelados, os maiores que alguma vez vi.
- Bolas, Boon - disse ela. - No mesmo minuto que a Corrie recebeu ontem o teu recado eu disse-lhe para te mandar logo um telegrama para não trazeres esse miúdo para aqui. Já cá tenho um há uma semana e um diabo à solta é suficiente para qualquer casa e já agora para qualquer rua. Ou até para toda a cidade de Memphis, desde que seja este que nós já cá temos. E não me mintas a dizer que também não recebeste o telegrama.
- E não recebi mesmo - disse o Boon. - Já devíamos ter saído de Jefferson quando ele chegou. E agora o que é que queres que eu faça com ele? Que o prenda no quintal?
- Entra - disse ela, afastando-se da porta para nós podermos passar; assim que entrámos, a criada voltou a fechar a porta à chave. Na altura não percebi porquê; talvez fosse o que toda a gente fazia em Memphis, mesmo quando estavam em casa. O hall era igual a todos os outros, com uma escada para o andar de cima, só que nesse instante cheirou-me a qualquer coisa, toda a casa aliás cheirava ao mesmo. Era um cheiro que eu nunca tinha sentido. Mas não desgostei; fiquei só surpreendido. Quer dizer, no momento em que senti o cheiro foi como se toda a minha vida tivesse esperado por ele. Acho que só devemos ser atirados de cabeça, e sem aviso, para experiências que bem poderíamos passar o resto da vida sem conhecer. Mas quando se trata de uma experiência inevitável (mais do que isso, necessária) é indecente que as Circunstâncias, o Destino, não nos preparem primeiro, especialmente quando essa preparação é tão simples como ter quinze anos. Era esse o tipo de
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cheiro a que me refiro. A mulher ainda estava a falar. - Sabes tão bem como eu que o Mr. Binford não gosta que os miúdos venham para as casas passar as férias; bem o ouviste o Verão passado, quando ela trouxe para aqui aquele f.d.p-zinho a primeira vez, só porque acha que ele não aprende boas maneiras naquela quinta arrendada do Arkansas. E como diz o Mr. Binford, dentro de pouco tempo eles vão mesmo andar por aqui, por isso para quê apressá-los, pelo menos até terem algum dinheiro para poderem gastar. Isto para não falar nos clientes, que vêm cá para uma coisa e descobrem que nós afinal temos aqui mas é um infantário. -Estávamos agora na sala de jantar, onde havia uma pianola. A mulher não se calava: - Como é o nome dele?
- Lucius - disse o Boon. - Cumprimenta a Miss Reba. - Assim fiz, como sempre fazia: como eu acho que a mãe do meu avô lhe ensinou e a minha avó ensinou ao meu pai, e a minha mãe nos ensinou a nós: aquilo a que o Ned chamava "arrastar o pé". Quando me endireitei, a Miss Reba estava a olhar para mim com um ar divertido.
- Rai's me partam - disse ela. - Minnie, viste aquilo? Será que a Miss Corrie...
- Tá-s'a vestir o mais depressa que pode - disse a criada. E foi então que eu vi. Quer dizer, o dente da Minnie. Quer dizer, era assim que - sim, porquê - eu, tu, as pessoas, toda a gente se lembrava da Minnie. Aliás, ela tinha uns dentes muito bonitos, parecidos com pedras pequeninas de alabastro ricamente talhadas e harmoniosamente dispostas no chocolate quente do seu rosto quando sorria ou falava. Mas tinha mais. O do meio de cima do lado direito era de ouro e reinava no seu rosto moreno como um rei entre a brancura cintilante dos restantes, parecendo realmente reluzir e rebrilhar como se lá dentro ardesse um fogo lento ou um fulgor proveniente de algo mais do que o ouro, até aquele dente isolado parecer ainda maior do que os dois diamantes amarelos da Miss Reba juntos. (Mais tarde ouvi dizer - como, não
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interessa - que ela tinha mandado tirar o dente de ouro e pôr no seu lugar um dente branco normal, como os de toda a gente, e tive pena. Pensei que, se eu fosse da idade e da raça dela, teria valido a pena ser marido dela só para ver aquele dente em acção todos os dias do outro lado da mesa; aos onze anos parecia-me que até a comida que aquele dente mastigava devia ter um sabor diferente, melhor.)
A Miss Reba virou-se outra vez para o Boon.
- O que andaste tu a fazer? A lutar com os porcos?
- Atolámo-nos num lamaçal, na estrada, lá para trás. Mas conseguimos cá chegar. O automóvel está lá fora.
- Já vi - disse a Miss Reba. - Todas nós o vimos. Não me digas que é teu. Diz-me só se a polícia anda atrás dele. Se anda, tira-o da minha porta. O Mr. Binford não quer nem por sombras ver a polícia por aqui. E eu também não.
- Não há problema com o automóvel - disse o Boon.
- É melhor que não haja - disse a Miss Reba. Ela estava de novo a olhar para mim e disse: - Lucius - sem se dirigir a ninguém - que pena não teres chegado mais cedo. O Mr. Binford gosta de crianças. Gosta delas mesmo quando já começa a ter dúvidas, e esta última semana foi de fazer duvidar qualquer pessoa que não esteja ainda transformada num esqueleto. Quer dizer, ele ainda estava disposto a dar ao Otis o benefício da dúvida e levá-lo ao jardim zoológico depois do almoço. O Lucius também podia ter ido. Mas por outro lado talvez não. Se o Otis continuar a estas horas a dar conta das dúvidas à velocidade com que estava a fazê-lo antes de saírem daqui, não volta é nunca mais - desde que haja maneira de o pôr bem perto da jaula para um dos leões ou dos tigres o comer - isto desde que algum leão ou algum tigre o queira, e não iam querer se tivessem passado uma semana aqui em casa com ele. - Continuando a olhar para mim, disse: - Lucius - sem se dirigir a ninguém em especial. E depois, para a Minnie: - Vai lá acima dizer a todas elas para deixa-
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rem a casa de banho livre durante a próxima meia hora. - E, a seguir, para o Boon: - Trazes alguma muda de roupa?
- Sim - disse o Boon.
- Então vai-te lava e veste essa roupa; isto aqui é um lugar decente; não é nenhuma espelunca. Eles podem ficar no quarto da Vera, Minnie. A Vera foi visitar a família a Paducah. - E depois disse para o Boon, ou talvez para nós dois: - A Minnie fez uma cama para o Otis no sótão. O Lucius pode dormir com ele esta noite.
Soaram passos na escada, depois no corredor e finalmente a porta abriu-se. Desta vez era uma rapariga enorme. Não digo gorda, só grande, como o Boon era grande, mas ainda uma rapariga, e muito nova, de cabelo castanho-escuro e olhos azuis, e a princípio achei que tinha uma cara feia. Mas ela entrou no quarto sem tirar os olhos de mim e eu percebi que a cara dela não interessava para nada. - Olá, miúda - disse o Boon. Mas ela não lhe ligou nenhuma; ela e a Miss Reba estavam ambas a olhar para mim.
- Agora tem cuidado - disse a Miss Reba. - Lucius, esta é a Miss Corrie. - Fiz de novo uma vénia. - Estás a ver o que eu quero dizer? -disse a Miss Reba. - Tu trouxeste aquele teu sobrinho para aqui atrás de boas maneiras. Pois elas aqui estão, à espera dele. Ele não vai saber o que significa e muito menos por que o faz. Mas pode ser que o Lucius consiga pelo menos ensinar-lhe a imitá-lo. Pronto -disse ela para o Boon - vai lá lavar-te.
- Talvez a Corrie queira vir ajudar-nos - disse o Boon, já a pegar na mão da Miss Corrie. - Olá, miúda - disse ele outra vez.
- Não com vocês a parecerem dois ratos de esgoto - disse a Miss Reba. - Pelo menos ao domingo vou manter esta maldita casa respeitável.
A Minnie mostrou-nos onde eram o quarto e a casa de banho, no andar de cima, deu-nos um bocado de sabão e uma toalha a cada um e foi-se embora. O Boon abriu a mala em cima da cama e tirou uma camisa lavada e o outro par de calças. Eram as calças de
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todos os dias, mas as de domingo que ele trazia vestidas não estavam capazes de ser usadas em lado nenhum enquanto não fossem lavadas, provavelmente com nafta.
- Estás a ver? - disse ele. - Eu bem te avisei. Fiz tudo o que pude para te convencer a trazeres pelo menos uma camisa lavada.
- A minha camisa não está suja de lama - disse eu.
- Mas devias trazer uma lavada, por uma questão de princípio, para vestires depois do banho.
- Eu não vou tomar banho - disse eu. - Ainda ontem tomei.
- Também eu - disse ele. - Mas ouviste o que a Miss Reba disse, não ouviste?
- Ouvi - disse eu. - Mas nunca vi nenhuma senhora em lado nenhum que não quisesse obrigar alguém a tomar banho.
- Daqui a umas horas, quando já conheceres melhor a Miss Reba, vais descobrir que também aprendeste mais uma coisa a respeito das senhoras: que quando ela sugere que faças alguma coisa é bom que a faças logo, ainda enquanto estás a decidir se a vais fazer ou não. - Ele já tinha tirado da mala as outras calças e a camisa. Não é preciso muito tempo para tirar de uma mala um par de calças e uma camisa, mas ele parecia estar com problemas, sobretudo onde pousá-las depois de as ter tirado, sem olhar para mim, dobrado sobre a mala aberta, atarefado, com a camisa na mão enquanto decidia onde pôr as calças, pousando depois a camisa na cama e pegando outra vez nas calças para as puxar um ou dois palmos mais para baixo, pegando depois na camisa para a colocar onde as calças tinham estado; a seguir pigarreou muito alto e com força, foi até à janela, abriu-a, debruçou-se e cuspiu, e depois fechou a janela e voltou para junto da cama, sem olhar para mim, a falar alto, como quando alguém chega lá acima aos quartos no dia de Natal de manhã antes dos outros e te diz que o que vais ter na árvore de Natal não é aquilo que pediste na carta que escreveste ao Pai Natal:
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- Não é o máximo o que um tipo consegue aprender, e em pouco tempo, sobre alguma coisa que ele não só não conhecia antes, mas que nem lhe passava pela cabeça que viesse a querer conhecer, e muito menos que viesse a achar útil para o resto da vida -desde que a guardasse e nunca a deixasse escapar. Tu, por exemplo. Pensa só. Basta pensares na manhã de ontem, ainda nem há dois dias, e vê o que já aprendeste desde então: como conduzir um automóvel, como ir a Memphis por estrada sem precisar do comboio, até como desatolar um automóvel. Assim, quando fores grande e tiveres o teu próprio automóvel, já vais saber não só como conduzi-lo, mas também como chegar a Memphis e até como desatolá-lo.
- O Patrão diz que quando eu tiver idade para ter o meu automóvel, já não vai haver lamaçais por aí para os carros se atolarem. Que as estradas, por todo o lado, vão ser tão planas e duras que os automóveis vão ser confiscados e reclamados pelo banco ou mesmo ficarem a cair de velhos sem nunca terem visto uma poça de lama.
- Claro, claro - disse o Boon. - Pois sim, pois sim. Dizem que já não é preciso saber como sair duma poça de lama, mas tu pelo menos ainda vais saber. E porquê? Porque não vais passar esse conhecimento a mais ninguém.
- Como é que eu podia? - disse eu. - Quem é que ia querer saber se já não houver poças de lama?
- Está bem, está bem - disse o Boon. - Mas ouve-me só um minuto, está bem? Não estou a falar de poças de lama. Estou a falar das coisas que um tipo, que um rapaz pode aprender e em que nunca sequer pensou antes, e que daí em diante, e para sempre, vão estar à sua disposição quando precisar delas. Porque não há nada que possas aprender que não chegue o dia em que vás precisar disso ou em que te seja útil, desde que ainda guardes esse saber e não o tenhas perdido por azar ou, pior ainda, deixado escapar por
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descuido ou pura e simplesmente mau julgamento. Estás a ver agora o que eu quero dizer? Está claro?
- Não sei - disse eu. - Deve estar, senão não podia continuar a falar disso.
- Muito bem - disse ele. - Este é o ponto número um. Vamos agora ao ponto número dois. Tu e eu temos sido bons amigos desde que nos conhecemos, e estamos a fazer juntos uma bela viagem; tu já aprendeste algumas coisas que nunca tinhas visto ou ouvido falar antes, e eu estou orgulhoso de ser aquele que vai estar contigo a ajudar-te a aprendê-las. E esta noite estás destinado a aprender mais algumas coisas em que também não me parece que tenhas pensado antes, coisas, informações e factos que muitas pessoas em Jefferson e também noutros lugares vão tentar dizer que não tens ainda idade para te preocupares em aprender. Balelas, um rapaz que não só aprendeu a guiar um automóvel mas a guiá-lo até Memphis e ainda por cima a tirá-lo do lamaçal daquele filho da puta, e tudo no mesmo dia, tem mais do que idade suficiente para enfrentar tudo o que encontrar pela frente. Só que... - teve de tossir outra vez, com força, e aclarar a garganta, e depois ir à janela, abri-la, cuspir lá para fora, fechá-la outra vez e voltar para o meio do quarto.
"E este é o ponto número três. E o que eu estou a tentar ensinar-te. Todas as coisas que* 115 um ho... ti...* rapaz vê e aprende e em que ouve falar, mesmo que não as consiga entender na altura e não seja sequer capaz de imaginar que possam vir um dia a ser-lhe úteis, um dia vão ser-lhe úteis e vai precisar delas, desde que ainda as guarde e não as tenha dado ao desbarato a ninguém. E então nessa altura vai agradecer à estrela da sorte pelo bom amigo que o seu amigo foi desde que teve de andar a correr na cocheira com ele às cavalitas como um bebé e o ajudou com o primeiro cavalo que ele montou, e o avisou a tempo para não deitar fora esse saber e o perder para sempre por esquecimento, acidente, azar ou talvez apenas con-
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versa fiada sobre o que não é da conta de mais ninguém senão dele...
- O que tu queres dizer é que veja eu o que vir durante esta viagem, não é para contar nada ao Patrão nem ao meu pai nem à minha mãe nem à minha avó quando voltarmos para casa. É isso?
- E não concordas comigo? - disse o Boon. - Não achas que isso é o mínimo do mais puro bom senso e sensatez, e que ninguém tem nada que ver com isso a não ser tu e eu? Não concordas?
- Então porque é que não disseste logo tudo de uma vez? - disse eu. Só que ele ainda se lembrou de me obrigar a tomar outro banho; e a casa de banho tinha ainda mais cheiro. Não digo mais forte, apenas mais. Eu não sabia muito sobre pensões, e podia ser que houvesse uma só para senhoras. Perguntei ao Boon; íamos nessa altura a descer a escada para o andar de baixo; estava a começar a escurecer e eu estava com fome.
- Tens toda a razão, são mesmo senhoras - disse ele. - E se eu te apanho a tentares fazer-te engraçado com alguma delas...
- Quer dizer, não há hóspedes... homens, a viver aqui?
- Não. Viver, viver, não vive aqui nenhum homem a não ser o Mr. Binford; mas também não se pode dizer que isto seja propriamente uma pensão. Mas elas aqui estão sempre muito bem acompanhadas, com visitas a entrar e a sair depois do jantar e até altas horas da noite; tu vais ver. Claro que hoje é domingo e o Mr. Binford é muito rigoroso em relação aos domingos: nada de bailes nem festarolas: só visitar as amigas discreta e educadamente, sem demorar muito tempo, e o Mr. Binford está de olho neles para impor respeito e boa educação enquanto cá estão. Na verdade, ele é sempre assim, mesmo durante a semana. E, por falar nisso, tudo o que tu tens de fazer é ficares calado, seres bem-educado e prestares muita atenção se ele te disser alguma coisa em particular, porque ele nunca fala muito alto da primeira vez e não gosta nada
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quando alguém o obriga a repetir segunda vez. É por aqui. Devem estar no quarto da Miss Reba.
E estavam: a Miss Reba, a Miss Corrie, o Mr. Binford e o Otis. A Miss Reba estava agora com um vestido preto, e mais três diamantes, também amarelados. O Mr. Binford era pequeno, o mais pequeno de todos os que estavam naquele quarto depois do Otis e de mim. Estava com um fato preto de domingo, com botões de punho em ouro, uma grande corrente de relógio também em ouro e uma farta bigodaça, e ainda uma bengala com o castão em ouro, um chapéu de coco e um copo de uísque em cima da mesa, ao seu lado. Mas a primeira coisa em que uma pessoa reparava era nos seus olhos, porque a primeira coisa que uma pessoa descobria era que ele já estava a olhar para ela. O Otis também estava vestido com as roupas de domingo. Não era sequer tão alto como eu, mas havia nele alguma coisa de errado.
- Boa noite, Boon - disse o Mr. Binford.
- Boa noite, Mr. Binford - disse o Boon. - Este é um amigo meu. O Lucius Priest. - Mas, quando o cumprimentei com uma vénia, ele não disse absolutamente nada. Só parou de olhar para mim. - Reba - disse ele - vai buscar uma bebida para o Boon e para a Corrie. E diz à Minnie para fazer limonada para os rapazes.
- A Minnie está a tratar do jantar - disse a Miss Reba, abrindo a porta do armário. Lá dentro havia uma espécie de bar - uma prateleira com copos e outra com garrafas. - Ainda por cima o da Corrie quer tanto beber limonada como o Boon. O que ele quer é cerveja.
- Eu sei - disse o Mr. Binford. - Ele fugiu-me no parque. E era o que ele teria feito; só que não encontrou ninguém que lha fosse comprar ao bar. O teu também é amigo de cerveja, Boon?
- Não senhor - disse eu. - Eu não bebo cerveja.
- Porquê? - perguntou o Mr. Binford. - Não gostas ou não consegues arranjá-la?
- Não senhor - disse eu. - Porque ainda não tenho idade.
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- Então... e uísque? - disse o Mr. Binford.
- Não senhor - disse eu. - Não bebo nada. Prometi à minha mãe que só bebia se o meu pai ou o Patrão me convidassem.
- Quem é o patrão dele? - perguntou o Mr. Binford ao Boon.
- Ele quer dizer o avô - disse o Boon.
- Ah - disse o Mr. Binford. - O dono do automóvel. Então é óbvio que ninguém lhe prometeu nada.
- Nem é preciso - disse o Boon. - Ele diz-nos o que temos de fazer e nós fazemos.
- Fala como se também o tratasse por patrão - disse o Mr. Binford. - Às vezes...
- É verdade - disse o Boon. E isto que eu quero dizer a respeito do Mr. Binford: ele já estava a olhar para mim ainda antes de eu ter dado por isso.
- Mas a tua mãe agora não está aqui - disse ele. - Agora vieste fazer uma escapadela com o Boon. Cento e vinte quilómetros, não é?
- Não senhor - disse eu. - Eu prometi-lhe.
- Estou a ver - disse o Mr. Binford. - Só lhe prometeste que não bebias com o Boon. Mas não lhe prometeste que não vinhas às putas com ele.
- Seu filho da puta - disse a Miss Reba. Nem sei como explicar o que se seguiu. Sem se mexerem, ela e a Miss Corrie saltaram, deram um pulo, juntas, a Miss Reba com a garrafa de uísque numa mão e três copos na outra.
- Chega! - disse o Mr. Binford.
- Chega o caraças - disse a Miss Reba. - Olha qu'eu também te ponho daqui pra fora. Não penses que não. Que raio de maneira de falar é essa?
- E tu também! - disse a Miss Corrie; estava a falar com a Miss Reba. - E tão boa como ele! Mesmo à frente deles...
- Eu disse que já chega - disse o Mr. Binford. - Um não conse-
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gue arranjar cerveja e o outro não bebe, por isso se calhar vieram mesmo para cá só por causa da educação e das boas maneiras. E olha que já aprenderam alguma coisa. Acabaram de aprender que puta e filho da puta são palavras em que se deve pensar duas vezes antes de as disparar, porque ambas podem fazer ricochete.
- Então, Mr. Binford - disse o Boon.
- Então o quê? Rai's me partam se não há outro porco neste atoleiro - disse o Mr. Binford. - E dos grandes. Despacha-te, Miss Reba, antes que esta gente sufoque de tanta sede. - A Miss Reba serviu o uísque com mão trémula, o suficiente para bater com a garrafa no copo e desatar a dizer filho da puta, filho da puta, filho da puta num sussurro feroz e enrouquecido. - Assim está melhor -disse o Mr. Binford. - Vamos ter paz e sossego. Vamos beber a isso.
- Ergueu o copo e tinha começado a dizer: - Senhoras e senhores...
- quando alguém - suponho que a Minnie - começou a tocar uma campainha algures lá dentro e o Mr. Binford se levantou. - Isto ainda é melhor - disse ele. - Mesmo à horinha. Para nos ensinar a todos que a boca tem melhor serventia do que botar sentenças cá para fora.
Voltámos para a sala de jantar sem pressas, com o Mr. Binford à frente. Soaram outra vez passos, apressados; mais duas senhoras, duas raparigas - é isso, uma delas era ainda uma rapariga - vinham a correr pela escada abaixo, um bocadinho ofegantes, ainda a abotoar os vestidos, um vermelho e o outro rosa.
- Viemos o mais depressa que pudemos - disse uma delas, apressadamente, para o Mr. Binford. - Não estamos atrasadas.
- Isso agrada-me - disse o Mr. Binford. - Esta noite não estou para atrasos. - Entrámos. Havia lugares mais do que suficientes à volta da mesa, mesmo contando comigo e com o Otis. A Minnie ainda estava a trazer coisas, todas frias - frango frito, pãezinhos e salada, coisas que tinham ficado do almoço, excepto para o Mr. Binford. O jantar dele era quente: no lugar dele estava, não um
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prato, mas uma travessa com um bife de cebolada. (Estás a ver como o Mr. Binford estava avançado para o seu tempo? Já era republicano. E não me refiro a republicano de 1905 - não sei qual era a inclinação política dele no Tennessee, ou sequer se tinha alguma -refiro-me a republicano de 1961. E ainda era mais: era conservador. É assim: um republicano é um homem que construiu a sua fortuna; um liberal é um homem que a herdou; um democrata é um liberal a fazer descalço uma corrida de corta-mato; um conservador é um republicano que aprendeu a ler e a escrever.) Sentámo-nos todos à mesa, as duas senhoras também; eu já tinha conhecido tanta gente que já não conseguia decorar os nomes e também já tinha deixado de me esforçar; além disso, nunca mais voltei a ver estas duas. Começámos a jantar. Talvez a razão por que o bife do Mr. Binford cheirava tão fantasticamente bem fosse porque o resto da comida já tinha perdido o cheiro ao meio-dia. Nisto uma das novas senhoras - a que já não era rapariga - disse:
- Estamos, Mr. Binford? - Entretanto a outra, a rapariga, também tinha parado de comer.
- Estão o quê? - disse o Mr. Binford.
- O senhor sabe - exclamou a rapariga. - Miss Reba - disse ela -sabe que nós fazemos o melhor que podemos... nem nos atrevemos a fazer barulho de mais, nada de música ao domingo quando em todos os outros lugares toca à vontade, sempre a mandar calar os clientes quando eles querem um bocadinho mais de paródia... mas se não estivermos já sentadas nos nossos lugares nesta sala de jantar quando ele mete o nariz por aquela porta, no sábado seguinte temos nós de meter vinte e cinco cêntimos naquela maldita caixa...
- São as regras da casa - disse o Mr. Binford. - Uma casa sem regras não é casa. O problema das putas como vocês é terem de se portar como senhoras durante parte do tempo, mas não saberem como. É isso que eu vos estou a ensinar.
- Não pode falar comigo dessa maneira - disse a mais velha.
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- Muito bem - disse o Mr. Binford. - Viramos a coisa ao contrário. O problema das senhoras como vocês é não saberem com deixar de se portar como putas.
A mais velha pôs-se de pé. Havia nela algo de estranho. Não era ser velha, assim como a minha avó, porque isso ela não era. Tinha um ar solitário. Era como se não devesse ter de estar ali, sozinha, ter de passar por isto. Não, também não era isso. É que ninguém deveria nunca ter de estar assim tão sozinho, ninguém, nunca. Depois ela disse:
- Desculpe, Miss Reba. Eu vou-me embora. Esta noite.
- Para onde? - disse o Mr. Binford. - Para a casa da Birdie Watt aqui em frente? Talvez ela desta vez te deixe trazer de lá a tua mala... a não ser que já a tenha vendido.
- Miss Reba - disse a mulher num fio de voz. - Miss Reba.
- Pronto - disse a Miss Reba com rispidez. - Senta-te e janta não vais para lado nenhum. Sim, é que eu também gosto de paz e sossego - disse ela. - Por isso vou só dizer mais uma coisa e o assunto fica encerrado de uma vez por todas. - Estava a falar para a outra ponta da mesa, para o Mr. Binford. - Que raio se passa contigo? O que é que aconteceu esta tarde para te deixar com esse mau humor?
- Nada, que eu saiba - disse o Mr. Binford.
- E é verdade - disse o Otis de repente. - Não aconteceu nadinha. Ele não queria correr. - Nisto foi como se uma descarga eléctrica a tivesse atingido de repente; a Miss Reba ficou estática, sentada de boca aberta com o garfo parado lá dentro. Eu ainda não tinha percebido, mas todos os outros, até o Boon, já tinham. E um segundo depois também eu percebi.
- O que é que não queria correr? - disse a Miss Reba.
- O cavalo - disse o Otis. - O cavalo e a carruagem em que apostámos. Poi não, Mr. Binford? - Agora o silêncio já não era só eléctrico: era choque, electrocussão. Lembras-te de eu te dizer que
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havia algo de estranho no Otis. No entanto, eu ainda achava que não era bem isso ou, pelo menos, só isso. Mas a Miss Reba continuava a lutar. Porque as mulheres são maravilhosas. Conseguem suportar tudo, porque têm o bom senso de saber que tudo o que se tem de fazer com a mágoa e os problemas é enfrentá-los e ultrapassá-los. Cá para mim elas conseguem fazer isso porque não só se recusam a dignificar a dor física levando-a a sério, como também não se envergonham ante a ideia de serem postas fora de combate. Ela não desistiu, nem mesmo assim.
- Uma corrida de cavalos - disse ela. - No jardim zoológico? Em Overton Park?
- Não foi em Overton Park - disse o Otis. - Foi no hipódromo. Encontrámos um homem no eléctrico que sabia que conjunto de cavalo e carruagem ia ganhar e que nos fez mudar de ideias em relação a Overton Park. Só que não ganharam, poi não, Mr. Binford? Mas mesmo assim não perdemos tanto como o homem disse, não chegámos a perder quarenta dólares, porque o Mr. Binford deu-me vinte e cinco cêntimos desse dinheiro pra eu não dizer nada e, por isso, tudo o que nós perdemos foram só trinta e nove dólares e setenta e cinco cêntimos. Só que depois disso os meus vinte e cinco cêntimos desapareceram naquela cena da cerveja que o Mr. Binford estava a contar. Não foi, Mr. Binford? -Depois, outra vez silêncio. Sossego absoluto. Até a Miss Reba dizer:
- Seu filho da puta. - E a seguir: - Vá. Acaba primeiro de comer o bife se quiseres. - Mas o Mr. Binford também não era de dar o braço a torcer. Era orgulhoso, dos que não dão nem aceitam tréguas, como um galo de luta. Cruzou a faca e o garfo no prato educadamente, sem pressa de comer o bife que ainda mal tinha começado; até dobrou o guardanapo, meteu-o na argola e disse:
- Com a vossa licença. - E saiu, sem olhar para ninguém, nem mesmo para o Otis.
- Credo, santo nome de Deus - disse a mais nova das duas retar-
132datarias, a rapariga; foi então que reparei que a Minnie estava parada à entrada da cozinha, com a porta entreaberta. - Quem havia de dizer?
- Vão prò diabo que vos carregue - disse a Miss Reba para a rapariga. - As duas. - A rapariga e a mulher levantaram-se muito depressa.
- Quer dizer... embora? - disse a rapariga.
- Não - disse a Miss Reba. - Desapareçam só daqui. Se não estão à espera de ninguém nos próximos minutos, porque não vão dar uma volta ao quarteirão ou coisa assim? - Elas também não perderam tempo. A Miss Corrie pôs-se de pé. - Tu também - disse ela ao Otis. - Vai lá para cima para o teu quarto e não saias de lá.
- Para isso ele tem de passar pela porta do quarto da Miss Reba -disse o Boon. - Já te esqueceste dos vinte e cinco cêntimos?
- Era mais do que isso - disse o Otis. - Havia também os oitenta e cinco cêntimos que eu ganhei a tocar a pianola para eles dançarem no sábado à noite. Quando ele descobriu aquilo da cerveja, também me tirou esse dinheiro. - Mas a Miss Reba olhou para ele e disse:
- Quer dizer que o vendeste por oitenta e cinco cêntimos -disse ela.
- Vai para a cozinha - disse a Miss Corrie ao Otis. - Deixa-o voltar para lá, Minnie.
- Tá bem - disse a Minnie. - Vou tentar mantê-lo longe do frigorífico. Mas ele é ladino de mais pra mim.
- Que diabo, deixa-o ficar aqui - disse a Miss Reba. - Agora é tarde de mais. Ele devia ter sido mandado para outro sítio qualquer ainda antes de ter saído daquele comboio do Arkansas a semana passada. - A Miss Corrie foi sentar-se na cadeira ao lado da Miss Reba.
- Porque é que não vai ajudá-lo a fazer as malas? - disse ela, muito baixinho.
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- Quem diabo tás tu a acusar? - disse a Miss Reba. - Confio nele até ao meu último cêntimo. Excepto quando mete os malditos cavalos. - Levantou-se de repente, com o seu corpo fogoso e bem torneado, o rosto duro e bonito e o cabelo de um vermelho demasiado intenso. - Por que diabo não sou capaz de passar sem ele? Por que diabo?
- Pronto, pronto - disse a Miss Corrie. - Está a precisar duma bebida. Dê as chaves à Minnie... Não, ela ainda não pode ir ao seu quarto...
- Ele já saiu - disse a Minnie. - Ouvi a porta da rua. Não vai demorar. Nunca demora.
- É verdade - disse a Miss Reba. - Eu e a Minnie já passámos por isto antes, não foi, Minnie? - Deu as chaves à Minnie, sentou-se e a Minnie saiu e voltou a entrar, desta vez com uma garrafa de gim e todos beberam um copo, a Minnie também (embora ela se recusasse a beber ao pé de tantos brancos juntos, levando de cada vez o copo cheio para a cozinha e reaparecendo daí a nada com o copo vazio), excepto eu e o Otis. E então descobri tudo sobre o Mr. Binford.
Ele era o dono da casa. Era esse o seu título e designação oficiais, embora não houvesse nada escrito. Todos os lugares, todas as casas como esta, tinham um, tinham de ter um. No mundo exterior, suficientemente afortunado para não ter de ganhar a vida deste modo difícil, excomungado e autodestrutivo, ele tinha um nome mais duro e desprezível. Mas aqui, macho único, não só numa casa cheia de mulheres, mas numa barafunda de mulheres histéricas, ele era não apenas rei e senhor, mas o catalisador desprezado e ignorado, o único e frágil poder com ar de respeitabilidade suficiente para impor um mínimo de ordem naquela histeria colectiva e manter o negócio solvente, ou pelo menos a dar o lucro necessário para não passarem fome; ele era o agente que contava o dinheiro e recebia os recibos dos impostos e despesas obrigatórias, que negociava com os fornecedores, desde os comer-
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ciantes de bebidas até aos canalizadores que descongelavam os canos no Inverno e aos homens que vinham limpar as chaminés e os algerozes e arrancar as ervas daninhas no quintal, passando pelos merceeiros e pelos vendedores de carvão; era também sua a mão que pagava a chantagem aos representantes da lei; sua a voz que travava as batalhas perdidas com os fiscais e avaliadores camarários e insultava o vendedor de jornais no dia seguinte a alguma falha na entrega. E entre estes (quer dizer, os donos das casas), o Mr. Binford era príncipe e modelo: um homem com presença, classe, maneiras e ideais; incorruptível nos seus princípios, de moral impecável, mais fiel do que muitos maridos ao longo destes cinco anos em que era amante da Miss Reba, um homem cujo único e exclusivo vício eram os cavalos que entravam em competições onde se faziam apostas. A isso não conseguia resistir; sabia que era a sua fraqueza e lutava contra ela. Mas cada vez que soava o grito "Partiram!" era como massa de vidraceiro nas mãos de qualquer estranho com um dólar para apostar.
- Ele memo sabia disso - disse a Minnie - e tinha vergonha dele memo e por ele memo, por ser tão fraco, d' haver alguma coisa mais forte do qu'ele; de descobrir que não é mais forte do que qualquer coisa qu'ele possa incontrar, não interessa onde nem o quê, memo que seja só por fora, pràs pessoas que não o conheciam, ele parecia apenas um galarote. E atão fazia promessas, e tava a ser sincero, como fez daquela vez há dois anos quando nós tivemos finalmente d'o pôr na rua. Lembra-se do trabalhão que deu pró trazer de volta? -disse ela à Miss Reba.
- Se lembro - disse a Miss Reba. - Serve mais uma rodada.
- Não sei confele se vai arranjar - disse a Minnie. - Porque quan-d'ele sair, não leva mai nada a não ser a roupa. Quer dizer, só a que leva no corpo, já que foi tudo comprado co dinheiro da Miss Reba. Mas não vão passar nem dois dias até aparecer por aí um mensageiro a bater à porta cos quarenta dólares até ao último cêntimo...
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- Queres dizer trinta e nove dólares e setenta e cinco - disse o
Boon.
- Não - disse a Minnie. - Os quarenta dólares inteirinhos, até com os vinte e cinco cêntimos, qu'eram da Miss Reba. Ele não se dá por satisfeito com menos. E depois a Miss Reba manda-o chamar e ele não quer vir; o ano passado, quando a gente finalmente o incontrámos ele tava a trabalhar numa equipa de limpeza de esgotos a meter uma rede de esgotos pela rua abaixo pra lá da estação de Frisco até ela ter de implorar, e de joelhos em terra...
- Já chega - disse a Miss Reba. - Pára de dar à língua, pelo menos o tempo de servires o gim. - A Minnie começou a servir o gim, mas nisto parou com a garrafa na mão.
- Que berraria é aquela? - disse ela. E então todos nós ouvimos também: gritos distantes vindos algures das traseiras.
- Vai ver o que é - disse a Miss Reba. - Vá, dá-me a garrafa. -A Minnie deu-lhe a garrafa e voltou para a cozinha. A Miss Reba serviu-se de mais gim e passou a garrafa.
- Ele agora está dois anos mais velho - disse a Miss Corrie. - Há-de ter mais juízo...
- Para que é que ele o está a guardar? - disse a Miss Reba. - Toma. E depois passa-a. - A Minnie voltou e disse:
- Tá um home no quintal a berrar Mr. Boon Hogganbeck prás traseiras da casa. E traz co'ele uma coisa enorme.
Fomos todos a correr atrás do Boon, atravessámos a cozinha e saímos para a varanda das traseiras. Já estava bastante escuro; a lua ainda não estava suficientemente alta para se ver alguma coisa. No meio do quintal estavam dois vultos difusos, um pequeno e o outro grande, e o pequeno estava a gritar: "Boon Hogganbeck! Mister Boon Hogganbeck! Sou eu. Sou eu", para as janelas do primeiro andar até o Boon lhe abafar a voz gritando ainda mais alto:
- Caluda! Caluda! Caluda!
Era o Ned. E o que trazia com ele era um cavalo.
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VI

Estávamos todos na cozinha.
- Deus seja louvado - disse o Boon. -Trocaste o automóvel do Patrão por um cavalo2. - Ele teve até de repetir a frase duas vezes. Porque o Ned continuava a olhar para o dente da Minnie. Quer dizer, estava outra vez à espera de o ver. Talvez a Miss Reba tivesse dito alguma coisa à Minnie ou talvez tivesse sido a Minnie que resolveu falar. Do que me lembro é do brilho intenso e instantâneo do ouro a luzir à luz eléctrica da cozinha por entre o que quer que a Minnie estava a dizer, como se o próprio dente tivesse adquirido um novo fulgor, uma nova cintilação à luz mais branda do candeeiro na escuridão exterior, tal como tinha acontecido com os olhos do cavalo - isso, e o seu efeito sobre o Ned.
Tinha-o deixado paralisado no mesmo momento, no mesmo instante, como um basilisco. Tal como me tinha deixado paralisado a mim a primeira vez que o vi, e por isso eu sabia o que o Ned estava a sentir. Só que nele o efeito era ainda maior. Porque isso eu percebia vagamente, mesmo tendo só onze anos: que eu estava muito distante do Ned, não só na raça, mas na idade, para sentir o mesmo que ele; eu podia ficar apenas deslumbrado, fascinado e satisfeito; mas não podia, como o Ned, participar daquele dente.
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Na ancestral guerra dos sexos, aqui estava um inimigo digno da sua espada; na ancestral e mística solidariedade da raça, aqui estava uma suma sacerdotisa digna de se morrer por ela - se tamanha fosse a capacidade de devoção: o que, como depressa se tornou evidente, não era o que o Ned pretendia (ou pelo menos esperava) fazer com a Minnie. Por isso, o Boon teve de repetir antes de o Ned o ouvir, ou pelo menos reparar nele.
- Sabe tão bem como eu - disse o Ned - qu'o Patrão não quer ninhum automóvel. Ele só comprou aquela coisa porque não tinha outro remédio, porque o coronel Sartoris o obrigou. Ele teve de comprar aquele automóvel pra pôr o coronel Sartoris outra vez no seu lugar. Do qu'o Patrão gosta é dum cavalo. E eu arranjei-lh'um. No memo minuto qu'ele vir este cavalo, vai-m'agradecer logo por eu ter estado onde pude deitar-lhe a mão antes qu'outro qualquer o fizesse... - Aquilo era como um sonho, um pesadelo; uma pessoa sabe que é, e que se ao menos puder tocar nalguma coisa sólida, real, verdadeira, inalterada, pode acordar; o Boon e eu tivemos instantaneamente a mesma ideia: eu só fui mais rápido porque tinha menos massa para pôr em movimento. O Ned travou-nos; leu-nos o pensamento: - Não precisam d'ir ver - disse ele. - Ele já veio buscá-lo. - O Boon, suspenso em plena passada, olhou para mim desvairado, os dois unidos numa horrorizada e mútua descrença, enquanto eu procurava no bolso. Mas a chave da ignição estava lá. - Claro - disse o Ned - ele não precisou disso pra nada. Ele é um especialista. Disse que sabia como meter a mão por trás da ignição e ligá-la lá por baixo. E foi isso qu'ele fez. Eu tamém não acreditava até ter visto. E nem lhe deu trabalho ninhum. E ele inda deu o cabresto de borla com o cavalo...
Nós - o Boon e eu - precipitámo-nos para a porta da rua, não a correr mas a andar muito depressa, e a Miss Reba e a Miss Corrie também. O automóvel tinha desaparecido. Foi só nessa altura que me apercebi de que a Miss Reba e a Miss Corrie também lá estavam
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e que nenhuma delas tinha dito absolutamente nada, não mostrando surpresa nem choque; observavam e ouviam, sem perder pitada, mas não diziam absolutamente nada, como se pertencessem a uma sociedade ou a uma espécie à parte, diferentes do Boon, de mim, do Ned e do automóvel do meu avô e do cavalo (a quem quer que ele pertencesse) e nada tivessem que ver com as nossas preocupações e actos além de nos acolherem; e lembro-me que aquela era exactamente a maneira como a minha mãe olhava para mim, para os meus irmãos e para quaisquer outros rapazes da vizinhança que estivessem engalfinhados, sem perder pitada, muito firme e confiável, calorosa até, atenta e afável, mas independente, até ao momento em que era preciso restabelecer a paz e (quando necessário) estancar o sangue.
Voltámos para a cozinha, onde tínhamos deixado o Ned e a Minnie. Já estávamos a ouvir o Ned:
- ... dinheiro de que tás a falar, boneca, eu tenho-o ou posso arranjá-lo. Deixa-me ir acomodar o cavalo e dar-lhe de comer e depois tu e eu vamos lá pra fora e deixamos esse dente brilhar entre qualquer coisa digna dele, como por exemplo um prato de peixe-gato ou então de carne de porco, se ele gostar mais de carne de porco...
- Muito bem - disse o Boon. - Vai buscar o cavalo. Onde é que o homem mora?
- Que homem? - disse o Ned. - O qu'é que vomicê lhe quer?
- Que ele me devolva o automóvel do Patrão. E depois logo decido se te mando para a cadeia ou se te levo de volta para Jefferson para o Patrão se divertir à tua custa.
- Porque é que não pára de falar por um minuto e me dá ouvidos? - disse o Ned. - Claro qu'eu sei onde o homem mora: pois não fiz o negócio do cavalo co'ele esta noite? Mas deixe-o em paz. Ainda não o queremos pra nada. Não vamos precisar dele até a corrida chegar ao fim. Porque nós não temos só o cavalo, ele tamém
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nos deu a corrida. A estas horas tá um homem em Possum, que tem um cavalo, à espera d'o pôr a correr contra o nosso assim que lá chegarmos. Pró caso d'as sinhoras não saberem onde fica Possum, é onde a linha de comboio que vem de Jefferson se cruza co a de Memphis e onde se muda de carruagem a não ser que se venha d'automóvel como nós fizemos...
- Muito bem - disse o Boon. - Um homem em Possum...
- Aah - disse a Miss Reba. - Parsham.
- Isso memo - disse o Ned. - Onde treinam e testam perdigueiros. Não é brincadeira. Há lá um cavalo que já desafiou este pra uma corrida em três mãos, cinquenta dólares cada mão, e o vencedor ganha tudo. Mas isso não é nada: só cento e cinquenta dólares. O qu'a gente vamos fazer é ganhar aquele automóvel.
- Como? - disse o Boon. - Como diabo vais tu usar o cavalo para recuperar o automóvel do homem que já trocou o cavalo por ele?
- Porqu'o homem não acredita qu'o cavalo seja capaz de correr. Porqu'é que julga qu'ele o trocou por uma coisa tão barata como um automóvel? Porqu'é qu'ele não ficou co cavalo e ganhou dinheiro pra comprar um automóvel, s'era isso qu'ele queria, e ficado cos dois, um cavalo e um automóvel?
- Isso queria eu saber - disse o Boon. - Porquê?
- Acabei de lhe dizer. Este cavalo já tinha sido batido duas vezes pelo tal cavalo de Possum porque nunca ninguém descobriu como fazê-lo correr. Por isso, naturalmente, o homem tá convencido que s'o cavalo não correu das outras duas vezes, tamém não vai correr desta. Por isso tudo o qu'a gente temos de fazer é ir ter co ele e apostar o cavalo contra o automóvel do Patrão. E ele vai aceitar porque naturalmente não se importava nada de ficar tamém co cavalo, uma vez que já tem o automóvel, especialmente quando o risco não é maior do que ter de ficar à espera na meta até o cavalo finalmente aparecer e ele poder deitar-lhe a mão, prendê-lo à traseira do automóvel e voltar pra Memphis...
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Esta foi a primeira vez que a Miss Reba falou, para dizer:
- Valha-me Deus.
- ... porqu'ele tamém não acredita qu'eu consigo fazer aquele cavalo correr. Mas a não ser qu'eu 'teja a ficar enferrujado e 'teja muifinganado, a descrença dele não é tanta que não vá estar em Possum depois d'amanhã pra descobrir. E se vomicê não conseguir juntar dinheiro suficiente entre estas sinhoras aqui presentes pra ele ficar memo interessado em apostar aquele automóvel contra o cavalo, melhor seria nunca ter posto os olhos no Patrão Priest em toda a sua vida. Seria preciso um home mais valente do qu'eu pra lhe devolver só o automóvel. Mas pode ser qu'este cavalo seja a sua salvação. Porque no memo momento em que pus os olhos naquele cavalo, lembrei-me...
- Hi hi hi - disse o Boon, naquele seu arremedo roufenho e tresloucado. - Trocaste o automóvel do Patrão por um cavalo que não corre, e agora estás a preparar-te para devolver o cavalo desde que eu consiga juntar dinheiro suficiente para interessar o homem...
- Deixe-nfacabar - disse o Ned. O Boon calou-se. - Vai-me deixar acabar?
- Acaba lá - disse o Boon. - E vê se te...
- ... lembrei-me duma mula qu'eu tive - disse o Ned. Neste momento ficaram os dois calados a olhar um para o outro e nós todos a olhar para eles. Passado um momento, o Ned disse com voz doce, quase sonhadora: - Estas sinhoras não conheceram a minha mula; é natural, sendo umas sinhoras tão jovens como são, e tão longe do condado de Yoknapatawpha. É uma pena o Patrão ou o Mr. Maury não 'tarem aqui agora pra eu lhes contar a história.
Eu podia tê-la contado. Porque a mula era uma das lendas da nossa família. Foi quando o meu pai e o Ned eram jovens, antes de o meu avô ter deixado a quinta McCaslin para se vir instalar em Jefferson como banqueiro. Um dia, na ausência do primo McCaslin (pai do primo Zack), o Ned cobriu a égua da parelha de
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puros-sangues que puxava a carruagem com o burro da quinta. Quando o escândalo que se seguiu esmoreceu e o potro de mula nasceu, o primo McCaslin obrigou o Ned a comprar-lho em prestações de dez cêntimos por semana subtraídas do salário deste. O Ned levou três anos a pagar, altura em que a mula já tinha batido qualquer outra mula num raio de vinte ou trinta quilómetros que corresse contra ela, e já estava a ser desafiada por mulas vindas de sessenta e setenta quilómetros de distância, e a vencê-las.
Tu já nasceste muito tarde para teres privado com as mulas e poderes perceber como esta história é espantosa e até chocante. Uma mula que consiga fazer um quilómetro a galope na direcção escolhida pelo cavaleiro, nem que o faça uma só vez, torna-se uma lenda na região; uma mula que o faça repetidamente, vezes sem conta, é um fenómeno inacreditável. Porque, ao contrário do cavalo, a mula é inteligente de mais para se esfalfar a correr à volta duma rodela com um ou dois quilómetros. Com efeito, eu acho que só o rato é mais inteligente do que a mula, seguindo-se, por esta ordem, o gato, o cão e, por último, o cavalo, partindo do princípio, claro está, de que tu aceitas a minha definição de inteligência, que é a capacidade para enfrentar o meio ambiente, o que significa aceitar o meio ambiente, mas preservando pelo menos alguma liberdade pessoal.
O rato, claro, ponho-o em primeiro lugar. Vive em nossa casa sem nos ajudar a comprá-la, a construí-la, a consertá-la ou a pagar os impostos; come do que nós comemos sem nos ajudar a criar, comprar ou mesmo trazer para casa os animais que comemos; não nos conseguimos livrar dele; se não fosse canibal, há muito que teria herdado a terra. O gato vem em terceiro lugar; tem algumas das mesmas qualidades, mas é uma criatura mais fraca, mais débil; não labuta nem se esforça, é nosso parasita, mas não nos ama; poderia bem morrer, deixar de existir, desaparecer da face da Terra (quer dizer, na sua forma doméstica), mas por enquanto ainda não
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teve de o fazer. (Há aquela fábula, chinesa acho eu, na literatura, disso tenho a certeza, sobre um período da história da Terra em que os gatos dominavam, e em que ao fim de séculos a tentarem lidar com as angústias da mortalidade - a fome, as pestes, a guerra, a injustiça, a loucura e a ganância, numa palavra, o governo civilizado - fizeram um congresso dos filósofos felinos mais sábios para ver o que poderia ser feito, e nesse congresso, após longas deliberações, concordaram que o dilema, o problema em si mesmo, era insolúvel e que a única solução prática era desistir, ceder, abdicar, seleccionando entre as espécies inferiores uma raça suficientemente optimista para acreditar que a questão da mortalidade podia ser resolvida e suficientemente ignorante para nunca ir mais longe do que isso no conhecimento. E por isso que os gatos vivem connosco, dependem de nós para lhes darmos casa e comida, mas não mexem uma palha para nos ajudar e não nos amam; numa palavra, esta é a razão por que os gatos olham para nós como eles olham.)
O cão, ponho-o em quarto lugar. É corajoso, fiel, monogâmico na sua dedicação; é também nosso parasita: o seu defeito (em comparação com o gato) é que trabalha para nós - quer dizer, voluntariamente, alegremente, faz truques e gracinhas, por mais ridículos que sejam, só para nos agradar em troca de uma festa na cabeça; forte e saudável como todos os parasitas, o seu defeito é ser um sicofanta, acreditar que ainda por cima tem de mostrar gratidão; é capaz de aviltar e violar a sua própria dignidade só para nosso divertimento; rasteja depois de levar um pontapé; dá a vida por nós em combate e morre de fome, inconsolável, sobre o nosso cadáver. O cavalo, ponho-o em último lugar. É uma criatura que apenas consegue pensar numa coisa de cada vez e a sua principal qualidade é a timidez e o medo. Pode ser enganado e persuadido por uma criança a partir as pernas ou a morrer de exaustão ao correr distâncias grandes de mais ou depressa de mais, ou ao saltar obstáculos
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demasiado largos, difíceis ou altos; se não o vigiarmos como uma criança, come até rebentar; se tivesse um grama que fosse da inteligência do rato mais atrasado, seria ele o cavaleiro.
A mula, ponho-a em segundo lugar. Mas só porque conseguimos fazê-la trabalhar para nós. Mas mesmo isso só dentro das suas regras muito rígidas. Nunca se permite comer de mais. Puxa uma carroça ou uma charrua, mas recusa-se a entrar numa corrida. Jamais tenta saltar seja o que for que não saiba de antemão que consegue saltar; nunca entra em sítio nenhum a menos que saiba por experiência própria o que está lá dentro; trabalha pacientemente para nós durante dez anos à espera de uma oportunidade para nos poder dar um coice. Numa palavra, livre das obrigações da ancestralidade e das responsabilidades da posteridade, conquistou não apenas a vida, mas também a morte e, por isso, é imortal; se por acaso desaparecesse neste momento da face da Terra, a mesma combinação biológica fortuita que ontem a produziu iria produzi-la daqui a mil anos, inalterada, imutável, incorrigível, mas sempre dentro dos limites que ela própria provou e testou; sempre livre, sempre lutadora. É por isso que a mula do Ned era única, um fenómeno. Põe uma dúzia de mulas numa pista de corridas e, quando soar a palavra Partida, elas vão largar em doze direcções diferentes, como insectos em debandada na superfície de um charco; aquela de entre as doze cuja direcção calhar coincidir com a pista será inevitavelmente a vencedora.
Mas não a mula do Ned. O meu pai dizia que ela corria como um cavalo, mas sem o frenesi nervoso do cavalo, os arranques e hesitações, as suicidas explosões de velocidade ditadas pelo pânico. Enfrentava uma corrida como uma tarefa a cumprir: ao toque do Ned (ou ao som da sua voz ou lá qual era o sinal) arrancava à velocidade que ela já tinha calculado ser a velocidade exacta necessária, e essa velocidade nunca se alterava até cortar a meta e o Ned a mandar parar. E ninguém, nem mesmo o meu pai - que era, bem, não
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propriamente o mentor do Ned, mas mais o seu sócio e corretor de apostas - sabia o que é que o Ned lhe fazia. Naturalmente que a lenda cresceu e avolumou-se (o que também não fazia mal nenhum à cocheira). Quer dizer, sobre o truque que o Ned tinha descoberto ou inventado para fazer aquela mula correr de modo completamente diferente de qualquer outra. Mas eles - nós - nunca ficámos a saber qual era, e também mais ninguém a conseguiu montar, mesmo depois de o Ned começar a ficar mais velho e mais pesado, até que um dia a mula morreu, invicta, com vinte e dois anos de idade; a sua sepultura (alguns Edmonds certamente já ta mostraram) está lá, na quinta do McCaslin.
Era o que o Ned queria e o Boon sabia-o, e o Ned sabia que ele o sabia. Estavam os dois a entreolhar-se.
- Este não é aquela mula - disse o Boon. - Este é um cavalo.
- Este cavalo tem a mesma esperteza qu'aquela mula tinha -disse o Ned. - Não tem tanta, mas é da mema colidade. - Continuaram a entreolhar-se. Até que o Boon disse:
- Vamos lá vê-lo. - A Minnie acendeu um candeeiro de petróleo. Com o Boon à frente a levar o candeeiro, saímos todos para a varanda e depois para o quintal, a Minnie, a Miss Corrie e a Miss Reba também. A lua estava a despontar e já se via alguma coisa. O cavalo estava preso debaixo de uma alfarrobeira, num canto. Os seus olhos luziram e depois o lampejo desapareceu; resfolegou e ouvimos o bater nervoso de um casco.
- As sinhoras fazem favor de se chegar um bocadinho pra trás, por favor - disse o Ned. - Ele inda não tá habituado a ter tanta gente à volta. - Parámos, com o Boon a segurar o candeeiro bem alto; os olhos luziram outra vez, frios e nervosos, à medida que o Ned se aproximava, falando com ele, até poder tocar-lhe na espádua, afagando-o, sempre a falar com ele, até conseguir ter o cabresto na mão. - Atenção, não vire esse candeeiro pra ele - disse ele ao Boon. - Aproxime-se e pegue no candeeiro de maneira qu'as
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sinhoras possam ver um cavalo, se quiserem. E quando digo um cavalo, quero dizer memo um cavalo. Não essas pilecas a que chamam cavalos lá em Jefferson.
- Pára de falar e trá-lo para aqui para onde a gente o possa ver -
disse o Boon.
- Já o tão a ver - disse o Ned. - Levante o candeeiro. - No entanto, trouxe o cavalo para mais perto e virou-o ligeiramente. Oh sim, lembro-me bem dele: três anos, três quartos puro-sangue (pelo menos, pois podia ser mais: não tinha experiência para saber), um alazão castrado, não muito grande, não chegava a um metro e sessenta, mas com o pescoço alongado para equilibrar, as espáduas recuadas para dar velocidade, grandes jarretes para dar potência (e, segundo o Ned, o Ned McCaslin para lhe dar ânimo e determinação). E assim, mesmo só com onze anos, creio que estava a pensar exactamente o mesmo que o Boon provou logo a seguir que também estava. Ele olhou para o cavalo e depois para o Ned. Mas quando falou a sua voz não era mais do que um murmúrio:
- Este cavalo é...
- Espera - disse a Miss Corrie. E verdade. Eu nem tinha dado pela presença do Otis. Era outra coisa que ele tinha: quando dávamos por ele, era sempre um segundo antes de já ser tarde de mais. Mas ainda não era isso que ele tinha de errado.
- Meu Deus, pois é - disse a Miss Reba. Deixa-me que te diga, as mulheres são maravilhosas. - Sai daqui - disse ela ao Otis.
- Vai para casa, Otis - disse a Miss Corrie.
- É pra já - disse o Otis. - Vem daí, Lucius.
- Não - disse a Miss Corrie. - Só tu. E agora. Vai já para cima, para o teu quarto.
- Inda é muito cedo - disse o Otis. - E também não tenho sono.
- Olha que eu não te digo duas vezes - disse a Miss Reba. O Boon esperou até o Otis ter voltado para casa. Todos nós esperámos, com o Boon a segurar o candeeiro ao alto para a luz incidir
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sobretudo na cara dele e na do Ned, dizendo outra vez naquele tom monocórdico e desapaixonado, ele e o Ned em simultâneo:
- Este cavalo é roubado - murmurou o Boon.
- E o que é que diria que é o automóvel? - murmurou o Ned. Sim, maravilhosas; o tom de voz da Miss Reba não era mais forte
do que o do Boon e do Ned, só mais ríspido:
- Tens de o levar para fora da cidade.
- Foi precisamente co essa ideia qu'eu o trusse pra cá - disse o Ned. - Assim qu'acabar de jantar, eu e ele vamos partir pra Possum.
- Fazes alguma ideia da distância a que fica Possum, já sem falar na direcção? - disse o Boon.
- Isso é importante? - disse o Ned. - Quando o Patrão saiu da cidade e não levou o automóvel co ele, vomicê por acaso deu voltas ao miolo a pensar a que distância ficava Memphis?
A Miss Reba aproximou-se.
- Vamos para dentro - disse ela. - Alguém consegue vê-lo aqui?
- perguntou ela ao Ned.
- Ninguém - disse o Ned. - Eu sei o que faço e já tratei de tudo.
- Prendeu o cavalo à árvore outra vez e subimos a escada das traseiras atrás da Miss Reba.
- Para a cozinha - disse ela. - Está na hora de começar a chegar companhia. - Já na cozinha disse à Minnie: - Vai sentar-te no meu quarto para poderes ir abrir a porta. Já me deste as chaves ou... Tudo bem. Não dês nada fiado a ninguém a não ser que conheças as pessoas; se puderes, faz o troco ainda antes de tirares a rolha. Vai ver também quem é que cá está agora. Se alguém perguntar pela Miss Corrie, diz apenas que o amigo dela de Chicago está na cidade.
- E se algum deles não acreditar, diz-lhes que vão à volta pelo beco e batam à porta das traseiras - disse o Boon.
- Por amor de Deus - disse a Miss Reba. - Não tens já problemas de sobra para te entreteres? Se não queres que a Miss Corrie
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receba visitas, porque diabo não a compras de uma vez por todas em vez de só a alugares uma vez de seis em seis meses?
- Pronto, pronto - disse o Boon.
- E vê também onde é que está toda a gente aqui de casa - disse a Miss Reba à Minnie.
- Eu mesma trato dele - disse a Miss Corrie.
- Obriga-o a ficar lá em cima - disse a Miss Reba. Ele já fez todas as tropelias com cavalos que eu consigo aguentar num só dia. - A Miss Corrie saiu. A Miss Reba foi ela própria fechar a porta e ficou parada a olhar para o Ned. - Quer dizer que tu estavas a preparar-te pra ires a pé até Parsham com aquele cavalo à arreata?
- É isso mesmo - disse o Ned.
- Sabes a que distância fica Parsham?
- O qu'é qu'isso importa? - disse o Ned outra vez. - Eu não preciso de saber a que distância fica Possum. Tudo o qu'eu preciso é de Possum. Foi por isso que mudei d'ideias quant'a levá-lo à arreata: podia ser longe. A princípio pensei que, uma vez qu'o seu negócio são as relações...
- Que diabo queres tu dizer com isso? - disse a Miss Reba. - Eu dirijo uma casa. Quem não for suficientemente educado para lhe chamar assim, não o quero na porta da frente nem na das traseiras.
- Eu quero dizer uma das relações das suas sinhoras - disse o Ned. - Que pudesse ter um cavalo de montar ou até um cavalo de tiro ou até mesmo uma mula qu'eu pudesse montar enquanto o Lucius montava o potro, pra irmos até Possum. Mas nós não temos só de correr dois quilómetros depois d'amanhã, temos de fazer isso três vezes e pelo menos duas delas vão ter de ser antes qu'o próximo cavalo possa. Por isso, vou levá-lo a pé pra Possum.
- Muito bem - disse a Miss Reba. - Tu e o cavalo já estão em Parsham. Tudo o que precisas agora é duma corrida de cavalos.
- Qualquer homem c' um cavalo consegue incontrar uma corrida
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seja onde for - disse o Ned. - Tudo o qu'ele precisa é qu'os dois fiquem parados o tempo suficiente pra começar.
- Consegues manter este parado tanto tempo?
- Claro - disse o Ned.
- Consegues pô-lo a correr enquanto está parado?
- Claro.
- Como é que sabes?
- Punha aquela mula a correr - disse o Ned.
- Que mula? - disse a Miss Reba. A Miss Corrie entrou e fechou a porta. - Fecha-a bem fechada - disse a Miss Reba. E depois para o Ned: - Muito bem. Conta-me lá como foi essa corrida. - O Ned olhou para ela por um bom quarto de minuto; a desfaçatez mimada e imune de privilegiado que caracterizava as suas relações com o Boon, bem como o autoritarismo avuncular dos que estavam comigo, tinham desaparecido completamente.
- Pelas suas palavras parece que quer falar a sério, pra variar -disse ele.
- Põe-me à prova - disse a Miss Reba.
- Muito bem - disse o Ned. - Um home, um outro ricaço branco, não sei o nome dele mas sei como incontrá-lo; não há senão um cavalo com'este em trinta quilómetros à volta de Possum, e muito menos dez ou quinze - ele tem um puro-sangue assim que já correu duas vezes contra este cavalo o Inverno passado e duas vezes lhe ganhou. O tal cavalo de Possum ganhou a este cavalo da primeira vez com vantagem suficiente prò outro ricaço branco que era dono deste cavalo apostar o dobro da segunda vez. E voltou a perder cuma diferença tão grande dessa segunda vez que, quand'este cavalo aparecer em Possum depois d'amanhã a desafiá-lo pra outra corrida, o ricaço branco não só vai querer correr outra vez contra este cavalo como vai provavelmente ficar todo orgulhoso e até envergonhado d'aceitar o dinheiro.
- Muito bem - disse a Miss Reba. - Continua.
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- É tudo - disse o Ned. - Eu sou capaz de pôr este cavalo a correr. Só que por enquanto mai ninguém sabe disso a não ser eu. Por isso, se por acaso as sinhoras quiserem ganhar uma boa maquia, eu, o Lucius e o Mr. Hogganbeck tamém podemos levar esse dinheiro connosco.
- Isso inclui também o que tem agora o automóvel? - perguntou a Miss Reba. - Quer dizer, entre os que não sabem que consegues pô-lo a correr?
- Claro - disse o Ned.
- Então porque é que ele não poupou trabalho a toda a gente e te mandou a ti e ao cavalo para Parsham, já que acredita que tudo o que tem de fazer pra ficar com os dois, o cavalo e o automóvel, é entrar nessa corrida? - Agora não se ouvia nem um som; estavam os dois a entreolhar-se. - Vá - disse a Miss Reba. - Diz alguma coisa. Como te chamas?
- Ned William McCaslin Jefferson Mississippi - disse o Ned.
- Então? - disse a Miss Reba.
- Talvez ele não tivesse dinheiro pra isso - disse o Ned.
- Cos diabos - disse o Boon. - Nós também não...
- Cala-te - disse a Miss Reba para o Boon. E depois, para o Ned: - Julguei que disseste que ele era rico.
- Tou a falar daquele com quem fiz a troca - disse o Ned.
- Ele comprou o cavalo ao tal ricaço?
- Ele tinha o cavalo - disse o Ned.
- Ele deu-te algum papel quando fizeram a troca?
- Eu tenho o cavalo - disse o Ned.
- Tu não sabes ler - disse a Miss Reba. - Pois não?
- Tu tens o cavalo. Vais levá-lo para Parsham. Dizes que tens um sistema para o fazer correr. Achas que esse sistema também vai levar o automóvel para Parsham?
- Puxe pia esperteza - disse o Ned. - E olhe que tem muita. Já enxergou mais longe e mais depressa do que qualquer outra pessoa
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aqui presente. Olhe só com mais atenção e vai ver qu'aqueles com quem fiz a troca...
- Aqueles? - disse a Miss Reba. - Mas tu falaste num homem. -Mas o Ned nem tinha parado:
-... estão co memo fito que nós: eles tamém vão ter de voltar pra casa mais tarde ou mais cedo.
- Seja o nome dele Ned William McCaslin ou Boon Hogganbeck ou até o das pessoas que trocaram o cavalo, voltar para casa só com o cavalo ou só com o automóvel não é suficiente: ele quer os dois. É isso? - perguntou Miss Reba.
- Inda não chegou lá - disse o Ned. - Atáo não é isso qu'eu tou a tentar explicar-lhe há duas horas? - A Miss Reba continuava a olhar para o Ned. Inspirou fundo, uma vez, muito devagar.
- E então agora vais levá-lo a pé para Parsham com todos os polícias do Tennessee a farejarem cada palmo de estrada à volta de Memphis à procura do cavalo...
- Reba! - disse a Miss Corrie.
- ... amanhã de manhã mal o dia nascer.
- Claro - disse o Ned. - Agora já é muito tarde pr'alguém ser apanhado. Mas a sinhora tá a ir bem. Tá a ir muito bem. Ora continue. - Ela estava a olhar para ele; desta vez inspirou duas vezes e nem desviou os olhos quando disse à Miss Corrie:
- Aquele guarda-freio...
- Que guarda-freio? - disse a Miss Corrie.
- Tu sabes a quem me refiro. Aquele que o tio ou o primo da mãe ou lá o que é...
- Ele não é guarda-freio - disse a Miss Corrie. - É o homem da bandeirinha. Do Memphis Special, para Nova Iorque. Usa uniforme e tudo, como os condutores...
- Está bem - disse a Miss Reba. - E o homem da bandeirinha. - E agora para o Boon: - Que a Corrie tem entre as suas... - olhou de relance para o Ned - relações... Afinal, acho que gosto dessa tua
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palavra. O tio da mãe dele, ou lá o que é, é vice-presidente, ou lá o que é, da companhia de caminhos-de-ferro que passa em Parsham...
- O tio dele é chefe de divisão - disse a Miss Corrie. - Quer dizer, nos intervalos do tempo que passa aqui no hipódromo, ou nos das outras cidades por onde passa o comboio dele, a ver corridas de cavalos, enquanto o sobrinho trabalha que se esfalfa para subir na vida já a sentir o gostinho do sucesso desde que não seja demasiado sôfrego para não dar nas vistas. Estão a perceber?
- O vagão das bagagens - disse o Boon.
- Isso mesmo - disse a Miss Reba. - Assim, amanhã de manhã quando o dia clarear já eles estão em Parsham, longe da vista.
- Mesmo no vagão das bagagens vai custar dinheiro - disse o Boon. - E depois têm de ficar escondidos até à hora da corrida, e depois temos de apostar cento e cinquenta na corrida propriamente dita, e tudo o que eu tenho são quinze ou vinte dólares. -Pôs-se de pé. - Vai buscar o cavalo - disse ele ao Ned. - Onde foi que disseste que mora o homem a quem deste o automóvel?
- Senta-te - disse a Miss Reba. - Santo Deus, estás metido numa alhada das grandes quando chegares a Jefferson e ainda tens tempo pra contar tostões. - Olhou para o Ned. - Como é que disseste que te chamavas?
O Ned disse outra vez.
- Vomicê quer saber mais sobre aquela mula. Pergunte ao Boon Hogganbeck.
- Nunca o obrigas a tratar-te por Mister? - perguntou ela ao Boon.
- Eu trato-o sempre - disse o Ned. - Mister Boon Hogganbeck. Pergunte-lhe pela mula.
Ela virou-se para a Miss Corrie.
- O Sam está na cidade esta noite?
- Está - disse a Miss Corrie.
- Consegues encontrá-lo agora?
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- Consigo - disse a Miss Corrie. A Miss Reba virou-se agora para o Boon.
- Tu desaparece daqui. Vai dar uma volta. Umas duas horas. Ou então vai ali pra casa da Birdie Watt, se quiseres. Só uma coisa, por amor de Deus não te embebedes. Donde é que julgas que a Corrie tira o dinheiro para comer e pagar o quarto enquanto tu andas lá por aqueles pântanos do Mississippi a roubar automóveis e a raptar crianças? Do ar?
- Eu não vou para lado nenhum - disse o Boon. - Rai's te partam - disse ele para o Ned - vai buscar o cavalo.
- Eu não preciso de o chamar aqui - disse a Miss Corrie. - Posso telefonar-lhe. - Não mostrava presunção nem timidez: apenas serenidade. Ela era grande de mais, tinha tamanho de mais para ser presunçosa ou tímida. Mas tinha o tamanho exacto para ser serena.
- Tens a certeza? - disse a Miss Reba.
- Tenho - disse a Miss Corrie.
- Então trata disso - disse a Miss Reba.
- Vem cá - disse o Boon. A Miss Corrie parou. - Vem cá, já disse -disse o Boon. Então ela aproximou-se, mas sem ficar ao alcance dele; de repente notei que ela não estava a olhar para o Boon, estava era a olhar para mim. E se calhar foi por isso que o Boon, mesmo sentado, conseguiu esticar-se de repente e agarrar-lhe o braço antes que ela pudesse escapar, puxando-a para ele, ela a lutar, se bem que tarde de mais, como uma rapariga daquele tamanho faria, e sempre a olhar para mim.
- Larga-me - disse ela. - Tenho de ir telefonar.
- Claro, claro - disse o Boon - há muito tempo para isso - e continuava a puxá-la; até que, com aquela presença de espírito contrafeita, aquela vontade desesperada de parecer ao mesmo tempo temível e inofensiva com que atiramos a maçã que temos na mão (ou outro qualquer objecto de distracção momentânea) ao touro que de repente descobrimos que está também do nosso lado
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da sebe, ela baixou-se intempestivamente e beijou-o, depositou-lhe um beijo fugaz no alto da cabeça, já a retroceder. Mas era outra vez tarde de mais, com a mão dele a descer e a agarrar-lhe uma das bochechas do rabo, à vista de todos, e ela a retrair-se, outra vez a olhar para mim com uma sombra negra e suplicante nos olhos - vergonha, sofrimento, não sei dizer - enquanto o sangue afluía lentamente ao seu rosto de menina grande, que afinal não era feio a não ser à primeira vista, e só por um momento; ela ainda havia de ser uma senhora. Até lutava como uma senhora. Mas era simplesmente grande de mais, forte de mais, para alguém mesmo tão grande e tão forte como o Boon agarrar só com uma mão, sem mais ajuda; e libertou-se.
- Não tens vergonha de ti mesmo? - disse ela.
- Isso não pode esperar ao menos até ela fazer aquele telefonema? - disse a Miss Reba para o Boon. - Se é pra te tomares de calores por causa da castidade dela, por que diabo não lhe montas uma casinha só dela onde ela se pode manter casta e continuar a comer?
Então a Miss Corrie disse:
- Vou telefonar. Já são nove horas.
Já era tarde para tudo o que tínhamos de fazer. A casa tinha começado a animar - "a aquecer", como hoje se diz. Mas com decoro: nada de banzés, nem de música nem de conversas; o espectro do Mr. Binford continuava a reinar, a ensombrar as suas grutas cali-pígeas, pois só duas das senhoras sabiam realmente que ele se tinha ido embora e os clientes ainda não tinham dado pela sua falta; tínhamos ouvido a campainha e a voz da Minnie a falar baixinho à porta e os passos das ninfas pela escada abaixo; e, mesmo quando a Miss Corrie parou com a mão na maçaneta, o tilintar dos copos alternava em ordeira frequência com as vozes graves dos convidados e os timbres mais agudos das anfitriãs do outro lado da porta que ela abriu e fechou atrás de si depois de entrar. Nessa altura, a Minnie também voltou; parecia que as
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senhoras desocupadas iam revezar-se como recepcionistas neste período mais movimentado.
Estás a ver como a criança é o pai do homem, e a mãe da mulher também. Lá em Jefferson eu tinha pensado que a razão por que a corrupção, a Não-virtude, tinha encontrado em mim um adversário tão insignificante que nem era digno desse nome era por causa da minha tenra idade e da ignorância dela decorrente. Mas essa vitória requereu pelo menos as três horas entre o momento em que fiquei a saber da morte do avô Lessep e aquele em que o comboio se pôs em movimento e eu percebi que o Boon ia estar na posse indiscutível da chave do automóvel do meu avô durante pelo menos quatro dias. Ao passo que aqui estavam a Miss Reba e a Miss Corrie: adversárias, diria eu, já calejadas, mesmo se não amadurecidas, pela experiência constante do dia-a-dia para enfrentarem qualquer ardil ou assalto que a Não-virtude (ou a Virtude) pudesse inventar contra elas, já tão saqueadas e pilhadas, elas que meia hora antes nem sabiam que o Ned existia, e muito menos o cavalo. Sem falar no completo desconhecido a quem a Miss Corrie, depois de ter saído do quarto tranquilamente, ia telefonar, segura de o conquistar sem outra arma além do telefone.
Ela tinha saído há quase dois minutos. A Minnie tinha pegado no candeeiro e voltado para a varanda das traseiras; reparei que o Ned também não estava no quarto.
- Minnie - disse a Miss Reba para a porta das traseiras - algum daquele frango...
- Sissiôra - disse a Minnie. - Já UYarranjei um prato. Tá agora a comer. - O Ned disse qualquer coisa. Não conseguimos ouvir, mas ouvimos o que disse a Minnie: - Se não tens mai ninguém pra te satisfazer o apetite, vais morrer à fome duas vezes entre agora e o nascer do dia. - Não conseguimos ouvir o Ned. Agora a Miss Corrie já se tinha ido embora quase há quatro minutos. O Boon levantou-se bruscamente.
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- Rai's a partam - disse ele.
- Até dum telefone tu tens ciúmes? - disse a Miss Reba. - Que diabo lhe pode ele fazer através daquele auscultador de guta-per-cha? - Mas conseguíamos ouvir a Minnie: um ruído seco, rápido, átono, e depois os seus passos. A Minnie entrou. Vinha com a respiração um bocadinho acelerada. - O que se passa? - perguntou a Miss Reba.
- Não se passa nada - disse a Minnie. - Ele é como todos os outros. Apetite não lhe falta, mas parece que não sabe é onde.
- Dá-lhe uma garrafa de cerveja. A não ser que tenhas medo de lá voltar.
- Eu não tenho medo - disse a Minnie. - É a força da natureza. Só que nele é de mais. Já tou habituada. Há-os òs montes por aí: é tanta a força da natureza que ninguém tem descanso enquanto não vão dormir.
- Aposto que tens - disse o Boon. - É esse dente. As mulheres são o diabo, vocês não dão descanso.
- O que é que queres dizer com isso? - disse a Miss Reba.
- Sabes muito bem o que eu quero dizer, que diabo - disse o Boon. - Vocês nunca desistem. Nunca estão satisfeitas. Nunca têm pena dum desgraçado. Olha para ela: não ficou satisfeita enquanto não poupou e esgadanhou até pôr um dente de ouro, um dente de ouro no meio da cara, só para fazer perder a cabeça a um pobre negro labrego e ignorante...
- ... ou passar cinco minutos a falar para uma caixa de madeira só para fazer perder a cabeça a um pobre filho da mãe labrego e ignorante que nunca fez nada na vida a não ser roubar um automóvel e agora um cavalo. Nunca conheci ninguém que precisasse tanto de se casar como tu.
- Se precisa... - disse a Minnie da porta. - Isso ia curá-lo. Eu exprimentei duas vezes e aprendi a lição, e de que maneira... -A Miss Corrie entrou.
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- Pronto - disse ela, serena, e não mais feia do que um grande candeeiro de porcelana com um pavio a arder lá dentro. - Ele já aí vem. Vai ajudar-nos. Ele...
- A mim não - disse o Boon. - Esse filho da puta a mim não me vai ajudar.
- Então desaparece - disse a Miss Reba. - Vai-te embora. Como é que vais fazer? Voltas a pé para o Mississippi ou vais montado no cavalo? Vá lá. Senta-te. E tu também, é o melhor que têm a fazer enquanto esperamos. Ora diz lá - disse ela para a Miss Corrie.
Estás a ver?
- Ele não é guarda-freio! E o homem da bandeirinha] Usa um uniforme igualzinho ao do condutor. Ele vai ajudar-nos. - Todo o mundo se apaixona por um apaixonado, disse (creio eu) o Cisne de Avon, que enxergava mais fundo que ninguém no coração dos homens. Que pena ele não entender nada de cavalos, para ter acrescentado: Aparentemente, todo o mundo se apaixona também por um cavalo roubado. A Miss Corrie contou-nos; o Otis agora também estava ali no quarto embora eu não o tivesse visto entrar, ainda com alguma coisa de errado, embora sem dar por ele até ser quase tarde de mais mas ainda não:
- Vamos ter de comprar pelo menos um bilhete para Possum para...
- E Parsham - disse a Miss Reba.
- Está bem - disse a Miss Corrie - ... para o podermos registar como bagagem, como se faz com uma mala; o Sam traz cá o bilhete e o registo da bagagem. Mas não há problema; vai estar num ramal um vagão de mercadorias vazio, o Sam vai saber onde, e tudo o que temos de fazer é meter o cavalo lá dentro e, segundo disse o Sam, fazer uma baia a um canto com tábuas para ele não escorregar; o Sam arranja as tábuas e os pregos; ele disse que é o máximo que pode fazer assim em tão pouco tempo, porque não se atreveu a contar ao tio mais do que o mínimo necessário senão o tio tam-
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bém ia querer vir com ele. Por isso, o Sam diz que o único risco é levar o cavalo daqui até ao sítio onde o vagão está à espera. Ele diz que não dá para o... - parou e olhou para o Ned.
- Ned William McCaslin Jefferson Mississippi - disse o Ned.
- ... o Ned ir a pé a esta hora da noite, mesmo que seja por uma rua secundária, com um cavalo à arreata; o primeiro polícia com que se cruzarem vai mandá-lo parar. Por isso, ele - o Sam - vai trazer uma manta e vai vestir o uniforme, e ele, o Boon e eu levamos o cavalo para a estação e ninguém vai dar por nada. Ah, é verdade, o comboio de passageiros vai...
- Santo nome de Deus - disse a Miss Reba. - Uma puta, um condutor de autocarros e um rato dos pântanos do Mississippi do tamanho dum tanque de rega a levarem um cavalo de corrida pelas ruas de Memphis à meia-noite num domingo e ninguém vai dar por nada?
- Pare com isso! - disse a Miss Corrie.
- Paro com quê? - disse a Miss Reba.
- Sabe bem. De faiar assim à frente d...
- Ah bom - disse a Miss Reba. - Se ele tivesse vindo até aqui do Mississippi com o Boon para fazer, por assim dizer, uma visita de cortesia até podíamos querer proteger-lhe os ouvidos. Mas a usarem esta casa como quartel-general enquanto roubam um automóvel e um cavalo, ele vai ter de se aguentar como todos nós. O que é que estavas a dizer do comboio?
- Sim, o comboio de passageiros que parte para Washington às quatro da manhã vai buscar o vagão e estamos todos em Possum antes de o dia clarear.
- Parsham, que diabo - disse a Miss Reba. - Estamos?
- Não vem também? - disse a Miss Corrie.
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VII

Foi o que nós fizemos. No entanto, o Sam teve de ver o cavalo primeiro. Entrou pelas traseiras, pela cozinha, com o cavalo e a manta. Vinha fardado. Era quase tão grande como o Boon.
Então nós - outra vez todos - ficámos de novo no quintal, desta vez com o Ned a segurar no candeeiro, a iluminar não o cavalo mas o casaco e o colete do Sam, com os botões de latão e o boné com as letras douradas à frente. Para dizer a verdade, eu estava a prever que houvesse problemas com o Ned por causa de o Sam levar o cavalo, mas enganei-me.
- Quem, eu? - disse o Ned. - Pra quê? Não ia ser melhor memo que fosse um polícia a levar este cavalo até Possum. - Pelo contrário, os problemas que íamos ter com o Sam seriam por causa do Boon. O Sam olhou para o cavalo.
- E um bom cavalo - disse o Sam. - Parece-me mesmo muito bom.
- Claro - disse o Boon. - Ele não vem equipado com nenhum apito nem campainha. Nem sequer tem faróis. Até me admira que o consiga ver.
- O que é que você quer dizer com isso? - disse o Sam.
- Não quero dizer nada - disse o Boon. - Só aquilo que disse.
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Você percebe de cavalos de ferro. O melhor é ir andando para a estação sem esperar por nós.
- Seu fi... - disse a Miss Reba, mas arrependeu-se: - Não vês que o homem está só a tentar ajudar? a incomodar-se para que no momento em que chegares a casa o primeiro animal vivo que vires não seja o xerife? Ele é que devia estar a mandar-te pró inferno, lá para donde vieste, com o maldito cavalo e tudo. Pede-lhe desculpa.
- Está bem - disse o Boon. - Esqueça.
- Chamas a isso pedir desculpa? - disse a Miss Reba.
- O que é que tu queres? - disse o Boon. - Que me agache à frente dele e o convide a...
- Tu vais-te calar! E já! - disse a Miss Corrie.
- E tu também não ajudas nada - disse o Boon. - Já fizeste com que eu e a Miss Reba chegássemos ao ponto de termos de tentar esquecer a língua inglesa antes mesmo de nos cumprimentarmos.
- Isso não é mentira nenhuma - disse a Miss Reba. - Esse que tu trouxeste para aqui do Arkansas já era mau que chegasse, com uma mão na geleira atrás da cerveja e a outra pronta a gamar tudo o que fosse pequeno e não estivesse bem preso sempre que ninguém estava a olhar. E agora o Boon Hogganbeck tinha de trazer outro que me deixa tão assustada que nem me atrevo a abrir a boca à frente dele.
- Ele não gamou nada! - disse a Miss Corrie. - O Otis não tira nada sem pedir primeiro! Pois não, Otis?
- Claro - disse a Miss Reba. - Pergunta-lhe. Ele deve saber.
- Minhas senhoras, minhas senhoras, minhas senhoras - disse o Sam. - Este cavalo quer ir para Parsham esta noite ou não quer?
E então pusemo-nos a caminho. Mas a princípio a Miss Corrie não tirava os olhos do Otis e de mim.
- Eles deviam estar na cama - disse ela.
- Claro - disse a Miss Reba. - No Arkansas ou no Mississippi ou até mais longe, se dependesse de mim. Mas agora é tarde. Não se
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pode mandar um para a cama sem o outro, e o do Boon é co-pro-prietário do cavalo. - Só que por fim a Miss Reba também não pôde ir. Ela e a Minnie não podiam ser dispensadas. Agora as coisas por lá estavam mesmo a aquecer, mas ainda discretamente, com decoro dominical: a maré vazante da noite de sábado, encapelada numa derradeira erupção de espuma contra o árduo ramerrão da labuta diária por um tecto e o pão de cada dia.
O Ned e o Boon deitaram a manta por cima do cavalo. Depois, nós - o Ned, o Otis e eu - ficámos no passeio a ver o Boon e o Sam em poliândrica... não diria amizade, mas pelo menos trégua, com a Miss Corrie entre os dois, a levarem o cavalo rua abaixo, de arco voltaico em arco voltaico, no dominical silêncio nocturno da Second e da Third Street, em direcção à estação. Já passava das dez; poucas eram as luzes acesas, e só nas outras pensões (agora eu já tinha experiência; já era, não um especialista, claro, mas pelo menos um iniciado sofisticado, e reconhecia uma casa como a da Miss Reba quando via alguma). Porém os bares estavam todos às escuras. Quer dizer, eu não reconhecia um bar só por passar à porta; ainda havia particularidades que me escapavam; foi o Ned que nos disse - ao Otis e a mim - que eram bares e que estavam fechados. Cá por mim eu não esperava nada: nem que estivessem fechados nem que estivessem abertos; lembra-te que eu ainda não estava em Memphis (ou em Catalpa Street) há seis horas, e sem a minha mãe ou o meu pai para me ajudarem; estava até a sair-me muito bem.
- Chamam-lhe a lei azul - disse o Ned.
- O que é uma lei azul? - perguntei eu.
- Tamém não sei - disse o Ned. - Só sei que quer dizer qu'as pessoas estoiraram o dinheiro todo no sábado à noite e qu'agora ninguém tem cheta que se veja pra valer a pena tar a gastar petróleo.
- É assim com todos os bares - disse o Otis. - E ninguém fica mal. O que não vendem no domingo à noite podem guardar e ven-
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der, se calhar às mesmas pessoas, na segunda-feira. Mas o truca-truca é diferente. Podem vendê-lo esta noite, dar meia-volta e tornar a vender o mesmo truca-truca amanhã. Não se perde nada. E o mais certo é que se tentassem aplicar essa tal lei azul ao truca-truca, a polícia vinha por aí e não deixava.
- O que é o truca-truca? - perguntei eu.
- Vomicê sabe muito, não sabe? - disse o Ned para o Otis. - Não admira qu'o Arkansas seja piqueno de mais pra ti. S'o resto dos que lá vivem souberem tanto como vomicê coa sua idade, quando chegarem aos vinte e um anos nem o Texas lhes há-de chegar.
- M... - disse o Otis.
- O que é o truca-truca? - perguntei eu.
- Veja mas é se põe essa cabeça a trabalhar pr'arranjar comida pràquele cavalo - disse o Ned, para mim, ainda mais alto. - Pra ver s'ele fica calmo até chegar a Possum, sem contar que primeiro inda tem d' intrar naquele comboio. Aquele ali, o condutor proprietário dos comboios, que põe e dispõe dos vagões sem tirar a mão do bolso, alguém lhe lembrou isso? E talvez tamém um balde com água e sabão. Prà sua tia - agora estava a falar com o Otis - poder levá-lo pra trás dalguma coisa e esfregar-lh'essa língua.
- M... - disse o Otis.
- Ou talvez o pau que estiver mais à mão - disse o Ned.
- M... - disse o Otis. E, como não podia deixar de ser, encontrámos um polícia. Quer dizer, o Otis viu o polícia ainda antes de o polícia ver o cavalo. - Ala que se faz tarde - disse o Otis. O polícia conhecia a Miss Corrie e parecia que também conhecia o Sam.
- Para onde é que o levam? - disse ele. - Roubaram-no ou quê?
- Pedimo-lo emprestado - disse o Sam, sem parar. - Levámo-lo para as orações esta noite e agora estamos a levá-lo para casa. - Nós continuámos a andar. O Otis disse outra vez: Ala que se faz tarde.
- Nunca vi nada assim - disse ele. - Todos os polícias que eu vi a falar com alguém, essa pessoa dá-lhes sempre qualquer coisa.
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Como a Minnie e a Miss Reba, já com uma garrafa de cerveja à espera ainda antes de ele ter tempo para meter o pé dentro da porta, mesmo que a Miss Reba o amaldiçoe antes de ele chegar e outra vez depois de ele se ir embora. E desde que aqui cheguei o Verão passado e descobri isto, vou todos os dias ao largo do tribunal onde aquele esparguete tem a banca da fruta e dos amendoins, e não falha, lá vem o polícia e, mesmo sem dar por isso, tira uma maçã ou uma mão-cheia de amendoins. - Ele ia quase a correr para nos acompanhar; para veres como ele era bem mais pequeno do que eu. Quer dizer, ele não parecia ser assim tão pequeno até eu o ver a correr para nos acompanhar. Mas havia nele algo de errado. Quando é connosco, dizemos para nós mesmos, Para o ano vou ser maior do que sou agora, simplesmente porque ser maior é não só natural como inevitável; não importa sequer que a gente não seja capaz de imaginar como vai ser ou parecido com quem vai ser nessa altura. E passa-se o mesmo com as outras crianças; elas também não podem fazer nada contra isso. Mas com o Otis era como se há dois ou três anos ele já tivesse chegado onde nós só vamos chegar daqui a um ano e daí em diante tivesse andado para trás. Ele ainda ia a falar. - Por isso, o que eu pensei naquela altura foi que a única coisa que valia a pena ser era polícia. Mas a mania passou-me depressa. E muito limitado.
- Limitado a quê? - disse o Ned.
- A cerveja, maçãs e amendoins - disse o Otis. - Quem é que quer perder tempo com cerveja, maçãs e amendoins? - E depois disse três vezes, Ala que se faz tarde. - E nesta cidade que está a burra.
- A burra? - disse o Ned. - Claro qu'aqui há burras. Ou acha qu'em Memphis não precisam de mulas como em toda a parte?
- A burra - disse o Otis. - Os carcanhóis. O pilim. Quando penso no tempo todo que perdi no Arkansas antes de alguém me ter falado em Memphis. Aquele dente, por exemplo. Quanto achas que
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vale só aquele dente? Se ela entrasse no banco e o tirasse e o pusesse em cima do balcão e dissesse: Dê-me o que ele vale em trocados?
- Pois é - disse o Ned. - Tou-me a lembrar dum rapaz como tu lá em Jefferson que tamém só pensava em dinheiro o tempo todo. Sabes onde é qu'ele tá agora?
- Aqui em Memphis, se for esperto - disse o Otis.
- Ele nunca chegou tão longe - disse o Ned. - O mais qu'ele conseguiu foi ir parar à prisão estadual em Parchman. E pio caminho que parece tar a levar é onde vomicê vai parar tamém.
- Mas não amanhã - disse o Otis. - E se calhar depois d'amanhã também não. Ala que se faz tarde. Quando nem o raio dum polícia é capaz de passar sem lhe meterem na mão uma garrafa de cerveja ou uma maçã ou uma mão-cheia de amendoins ainda antes dele pedir. Aqueles oitenta e cinco cêntimos que me deram ontem à noite para tocar a pianola e que aquele filho da puta me tirou esta noite. Que eu até podia ter tocado aquela pianola de borla a troco de nada se não tivesse descoberto por acaso que eles estavam a pensar pagar-me por isso; se eu por acaso tivesse resolvido ir até lá fora por um minuto, tinha perdido a oportunidade. E se nem lá tivesse estado, eles tinham dado o dinheiro na mesma a outro qualquer que fosse a passar. Estás a ver o que eu quero dizer? Às vezes quando penso nisto só me apetece abandonar tudo, desistir.
- Desistir de quê? - disse o Ned. - Desistir porquê?
- Só desistir - disse o Otis. - Quando penso em todos aqueles anos que passei naquela maldita quinta do Arkansas com Memphis aqui a dois passos do outro lado do rio e eu sem saber de nada. Como é que seria se eu tivesse sabido aos quatro ou cinco anos quanto tempo eu tinha de esperar até ao ano passado para descobrir, às vezes só me apetece abandonar tudo, desistir. Mas acho que não vou desistir. Acho que se calhar vou conseguir recuperar. Quanto é que vocês estão a contar ganhar com aquele cavalo?
- Não se preocupe co cavalo - disse o Ned. - E quanfa a recu-
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p'rar, só tem de recup'rar forças pra voltar pra trás por essa rua acima prò sítio onde vai dormir esta noite e meter-se na cama. -Ele até parou, e virou-se ligeiramente para trás. - Sabe o caminho de volta?
- Lá não há nada - disse o Otis. - Já tentei. Eles estão sempre à coca. Não é como lá no Arkansas, quando a tia Corrie ainda estava em casa da tia Fittie e eu tinha o buraco para espreitar. Se tu trocaste aquele automóvel por ele, deves estar a pensar pelo menos em duzentos... - Desta vez o Ned virou-se todo para trás e o Otis deu um salto, desviando-se, e desatou a insultar o Ned, a chamar-lhe preto - uma coisa que o meu pai e o meu avô me devem ter começado a ensinar ainda antes do que eu me consigo lembrar, porque não sei quando começou, só sabia que era assim: que nenhum cavalheiro se referia jamais a alguém pela sua raça ou religião.
- Continua - disse eu. - Eles estão a afastar-se. - E estavam: quase dois quarteirões à frente neste momento e já a dobrarem a esquina; nós corríamos, esfalfávamo-nos, o Ned também, para os apanhar e por pouco não conseguíamos: a estação estava à nossa frente e o Sam estava a falar com um outro homem, de fato macaco enfarruscado e lanterna na mão; era um agulheiro ou pelo menos um ferroviário qualquer.
- Tão a ver o qu'eu quero dizer? - disse o Ned. - Consegue imaginar a polícia a mandar um homem cuma lanterna pra nos alumiar o caminho? - E tu estás a ver também o que eu quero dizer: o mundo inteiro (quer dizer, por causa de um cavalo roubado); quem serve a Virtude trabalha sozinho, sem ajuda, num gélido vazio de juízos reservados; ao passo que se te renderes à Não-virtude toda a região fervilha de voluntários para te virem ajudar. Parecia que o Sam estava a tentar persuadir a Miss Corrie a ficar à espera na estação comigo e com o Otis enquanto eles iam procurar o vagão e meter o cavalo lá dentro, sugerindo até, cheio de boa vontade, que
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o Boon ficasse connosco a dar-nos a protecção do seu tamanho, idade e sexo, o que provava que, neste cenário poliândrico, pelo menos a parte que cabia ao Sam era amistosa e confiável. Mas a Miss Corrie recusou, falando por todos nós. Virámos por isso para o outro lado, seguindo a lanterna, e depois de passarmos um portão entrámos num labirinto de plataformas e carris; nesta altura o Ned teve ele próprio de vir segurar no cabresto e acalmar o cavalo para podermos continuar a avançar, envoltos agora na aura quente e a tresandar a amoníaco do cavalo (nunca sentiste o cheiro que um cavalo assustado deita, pois não?) e no murmúrio constante da voz do Ned a falar com ele, ambos - murmúrio e cheiro - mais fortes, mais densos, mais concentrados agora entre as formas indistintas de vagões de bagagem e carruagens de passageiros, no emaranhado de reflexos verdes e vermelhos das agulhas; sempre em frente até sairmos da gare de passageiros e metermos por um caminho coberto de escória ao lado de um ramal que terminava num armazém enorme e às escuras com um cais de carga à frente. E lá estava também o vagão, com uns bons sete metros e meio de espaço vazio e enluarado (isso mesmo. Estávamos agora banhados pelo luar. Livres das luzes da rua e da estação, nós - eu - podíamos vê-lo agora) entre ele e o ponto mais próximo do cais de carga, uma distância considerável até para um cavalo de salto, quanto mais para um potro de três anos e de corrida que (segundo o Ned) tinha até alguma dificuldade em correr. O Sam amaldiçoou em surdina todo o pessoal da estação: agulheiros, carregadores, vendedores de bilhetes, todos e mais alguns.
- Vou buscar a cábrea - disse o homem da lanterna.
- Nós não precisamos de cabra nenhuma - disse o Ned - por mais longe qu'ela consiga saltar. O qu'a gente precisa é de puxar o cais ou o vagão.
- Ele está a falar do guindaste - disse o Sam para o Ned. - Não -disse ele para o homem da lanterna. - Eu já tava à espera disto.
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Para uma equipa de agulhagem, sete metros e meio de diferença é praticamente zero. Foi por isso que eu disse para trazeres a chave do barracão. Vai buscar as alavancas. Talvez o Mr. Boon não se importe de ajudar.
- Porque não vai você? - disse o Boon. - O caminho-de-ferro é seu. Eu aqui sou apenas um estranho.
- Porque não levas estes rapazes para casa para irem dormir se ficas assim tão tímido ao pé de estranhos? - disse a Miss Corrie.
- E porque não os levas tu para casa? - disse o Boon. - O teu amiguinho já te disse que não tens nada que estar aqui.
- Eu vou com ele buscar as alavancas - disse a Miss Corrie para o Sam. - Ficas de olho nos rapazes?
- Pronto, pronto - disse o Boon. - Vamos mas é fazer alguma coisa, por amor de Deus. O comboio vai partir daqui a quatro ou cinco horas e nós ainda vamos estar aqui parados a discutir. - Onde é o barracão, chefe? - E lá foram os dois, ele e o homem da lanterna, e nós ficámos só com o luar a alumiar-nos. O cheiro do cavalo tinha desaparecido quase por completo e eu podia vê-lo a enfiar o focinho no casaco do Ned como um cachorrinho. E o Sam estava a pensar o mesmo que eu vinha a pensar desde que tinha visto o cais de carga.
- Lá por trás há uma rampa - disse ele. - Ele já alguma vez subiu uma rampa? Porque não o levas agora até lá para olhar bem para ela. Quando tivermos o vagão no sítio, podemos todos ajudar-te a levá-lo pela rampa se for preciso...
- Não perca tempo a preocupar-se com isso - disse o Ned. - Leve mas é aquele vagão pra onde a gente não tenha de saltar três metros pra intrar. Este cavalo tá tão interessado em chegar a Memphis como vomicê. - Só que eu estava com medo que o Sam dissesse: Não quer que aqui este rapaz vá consigo? Porque eu queria vê-los deslocar o vagão. Eu não acreditava. Por isso espe-
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ramos. Mas não muito tempo; o Boon e o homem da lanterna voltaram com duas alavancas que pareciam ter pelo menos dois metros e meio de comprimento e eu fiquei a vê-los trabalhar (a Miss Corrie e o Otis). O homem pousou a lanterna, subiu pela escada até ao telhado e soltou a roda do travão enquanto o Sam e o Boon enfiavam as alavancas entre as rodas traseiras e os carris, fazendo movimentos rápidos para cima e para baixo, como se estivessem a dar à bomba, e mesmo assim eu continuava a não acreditar: a sombra do vagão a desenhar-se negra, quadrada, gigantesca, sob a lua, sólida e rectangular como um muro negro enquadrado na fina moldura prateada do luar, e uma figurinha minúscula lá no alto agarrada à roda do travão e outras duas figurinhas minúsculas cá em baixo, de gatas, acocoradas, a enfiarem as alavancas de ferro como lanças prateadas por baixo das rodas traseiras; tão imensa e tão imóvel que a princípio parecia, não que o vagão estava a deslocar-se para a frente, mas sim que o Boon e o Sam, em terrível e pantomímica obediência, estavam a empurrar infinitesimalmente para trás, para trás da massa fixa e alicerçada do vagão, a terra panorâmica inebriada de luar: tão delicadamente equilibrada agora no auge massivo do Movimento, que o Sam e o Boon largaram as alavancas, e o Boon empurrou sozinho o vagão suavemente para a frente com as próprias mãos, como se fosse um carrinho de bebé, ao longo da plataforma até à posição pretendida, e o Sam disse:
- Está bem assim - e o homem lá no alto voltou a prender a roda do travão. Assim, tudo o que nós tínhamos de fazer agora era meter o cavalo no vagão. O que era o mesmo que dizer: Chegámos ao Alasca; agora é só descobrir a mina de ouro. Demos a volta até às traseiras do armazém. Havia uma rampa de tábuas. Mas o cais tinha sido construído com a altura certa para as carroças poderem carregar e descarregar, e a rampa pouco mais era do que um carril para porta-cargas e carros de mão, resistente quanto baste, mas só com
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metro e meio de largura e sem guardas. O Ned estava parado junto à rampa a falar com o cavalo.
- Ele já a viu - disse ele. - Ele sabe qu'a gente queremos qu'ele suba por ela, mas inda não decidiu s'é isso qu'ele quer. Quem me dera qu'aqui o Mr. Vagões se tivesse lembrado tamém de pedir um chicote emp'estado.
- Tens aqui um - disse o Boon. Estava a referir-se a mim, a um dos meus truques, das minhas gracinhas. Eu fazia com a língua, contra a caixa de ressonância da boca, da garganta, do gorgomilo, um som agudo e estridente, tão agudo e tão estridente quando era bem feito como o estalar de um chicote; a minha mãe acabou por me proibir de fazer isso no nosso quintal, e muito menos dentro de casa. Uma vez até fiz a minha avó dar um salto e dizer um palavrão. Mas foi só uma vez. Só que foi há quase um ano e agora eu podia já não me lembrar de como se fazia.
- É verdade - disse o Ned. - Pois temos. - E depois disse-me: - Vá procurar uma chibata bem comprida. Há-de haver uma acolá naqueles arbustos. - E havia, num ligustro; tudo isto tinha sido provavelmente o relvado ou o jardim de uma casa antes de o progresso, a indústria, o comércio e os caminhos-de-ferro terem chegado. Cortei a chibata e voltei. O Ned pegou no cavalo e colocou-o de frente para a rampa. - Agora, vomicês dois, Mr. Boon e Mr. Vagões, ponham-se um de cada lado como se fossem umbrais de portão. - Eles assim fizeram, com o Ned a meio da rampa a segurar o cabresto, a olhar para o cavalo e a falar com ele. - Cá tás tu - disse ele - a subir por esta rampa de galinheiro acima direitinho à glória e a Possum, Tennessee, amanhã ao nascer do Sol. - Voltou para baixo, já a virar o cavalo, com movimentos bastante rápidos, dizen-do-me agora: - Ele já viu a chibata. Ponha-se mesmo atrás dele. Não lhe toque nem estale a língua até eu dizer. - Eu assim fiz, e os três - o Ned, o cavalo e eu - afastámo-nos da rampa sempre em linha recta aí uns vinte metros, quando, sem parar, o Ned se virou
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e rodou o cavalo, comigo sempre atrás, até ele ficar de frente para a rampa entre o Boon e o Sam, a vinte metros. Quando ele viu a rampa, estacou. - Estale a língua - disse o Ned. - Eu fiz o ruído, e saiu bem; o cavalo deu um pequeno salto para a frente, com o Ned já a avançar, agora um pouco mais depressa, em direcção à rampa.
- Quando desta vez lhe disser pra estalar a língua, toque-lhe coa chibata. Não lhe bata: dê-lhe só uma pancadinha no nascer da cauda, um segundo depois de estalar a língua. - Ele já tinha passado entre o Boon e o Sam e já estava na rampa. O cavalo estava agora a tentar decidir o que fazer: negar-se, fugir (com a confusão adicional de ter de decidir qual dos dois, Boon ou Sam, seria mais fácil derrubar) ou simplesmente saltar por cima de todos nós. Quase podíamos ver como tudo se ia passar: que era se calhar com o que o Ned contava: uma inteligência assustada e timorata, e capaz de gerir só uma ideia de cada vez, onde a intrusão de uma segunda ideia reduz tudo ao caos. - Estale a língua - disse o Ned. Desta vez toquei também no cavalo, como o Ned me tinha dito. Ele arremeteu, dando um salto, já com as patas dianteiras a meio da rampa e a pata traseira mais próxima (a do lado do Boon) a bater na borda da rampa e a escorregar até que o Boon, antes que o Ned pudesse dizer alguma coisa, lhe agarrou a perna com ambas as mãos e a colocou outra vez na rampa, atirando o seu peso para cima do flanco, com o cavalo agora imóvel, a tremer, com os quatro cascos sobre a rampa. - Agora - disse o Ned - atravesse a chibata atrás dos jarretes pra ele saber que tá aí alguma coisa que não o deixa cair.
- Para não o deixar voltar para trás e sair da rampa - disse o Sam.
- Precisamos duma das alavancas. Vai buscá-la, Charley.
- Isso mesmo - disse o Ned. - Daqui a um minuto vamos precisar dessa alavanca. Mas de tudo o que precisamos agora é dessa chibata. Vomicê é muito pequeno - disse-me ele. - Deixe o Mr. Boon e o Mr. Vagões ficar co'ela. Passem-na por trás dos jarretes como uma retranca. - Eles assim fizeram, pegando cada um numa ponta
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da chibata flexível. - Agora, façam-no andar prà frente. Quando eu disser pra estalar a língua desta vez, estale de rijo, pra ele pensar qu'a chicotada tamém vai ser das rijas. - Mas eu já não precisei de estalar a língua mais vez nenhuma. O Ned disse ao cavalo: - Anda, meu filho. Vamos pra Possum - e o cavalo avançou, com o Boon e o Sam a avançarem também com ele, a chibata como uma laçada de corda a empurrá-lo para a frente, agora já com as patas dianteiras em cima do cais, e depois um último impulso, uma escorregadela, uma derrapagem, e o cais a ressoar como se ele tivesse saltado para cima de uma ponte de madeira.
- Vai ser preciso mais do que esta chibata ou esse rapaz a estalar a língua para o metermos naquele vagão - disse o Sam.
- O qu'o vai meter naquele vagão é essa alavanca - disse o Ned. - Inda não tá aqui? - Estava a chegar. - Tirem daqui esta rampa de galinheiro - disse o Ned.
- Espera - disse o Sam. - Para quê?
- Pra ele poder ir até ao vagão - disse o Ned. - Ele agora já tá acostumado. Já percebeu que não há nada do outro lado que lhe faça mal ou o assuste.
- Mas ele ainda não cheirou o interior dum vagão - disse o Sam. - E nisso que eu estou a pensar. - Mas a ideia do Ned fazia sentido. Além disso, já tínhamos chegado longe de mais para hesitar mesmo que o Ned nos tivesse mandado deitar abaixo as duas paredes do armazém para o cavalo não ter de dobrar as esquinas. Por isso, o Boon e o ferroviário tiraram a rampa.
- Rai's partam - disse o Sam. - Não sabem fazer isso sem barulho?
- Vomicê não tá 'qui connosco? - disse o Ned. - Decerto pode tirar mais proveito desses botões de latão do que só andar praí a pavonear-se com eles. - No entanto, todos fomos precisos, até a Miss Corrie, para levantar a rampa em peso para cima do cais de carga, transportá-la para o outro lado e atravessá-la como uma
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ponte entre o cais e a bocarra negra da porta do vagão. Então o Ned levou o cavalo até lá e eu percebi imediatamente o que é que o Sam tinha querido dizer. O cavalo não só nunca tinha sentido antes o cheiro de um vagão vazio, como, ao contrário de nós, meros seres humanos, também conseguia ver lá para dentro; lembro-me de ter pensado Agora que arrancámos a rampa, já não vamos poder sequer tirá-lo outra vez do cais antes de a luz do dia nos apanhar. Mas nada disso aconteceu. Quer dizer, não percebi o que foi que aconteceu; nenhum de nós percebeu. O Ned conduziu o cavalo, com os cascos a ressoarem alto nas tábuas e com um som oco, até ao final da rampa que agora era uma ponte, colocando-se o Ned em cima da ponte, mas já do lado de dentro da porta, a falar com o cavalo e a puxar suavemente pelo cabresto até o cavalo colocar uma pata em frente, em cima da ponte, e eu não sei o que estava a pensar; momentos antes estava convencido de que não havia em toda a Memphis gente suficiente para meter aquele cavalo dentro daquele buraco negro, e no minuto seguinte estava à espera daquele mesmo impulso e daquele salto que teriam levado o cavalo para dentro do vagão como tinha acontecido na rampa; eis senão quando o cavalo levantou a pata e a puxou para trás para o cais, ele e o Ned parados frente a frente como num quadro. Ouvi o Ned respirar uma vez.
- Vomicês cheguem-se pra trás e encostem-se à parede - disse ele.
- Nós assim fizemos. Na altura eu não sabia o que ele sabia. Vi-o apenas com uma mão a segurar a corda e a outra a fazer festas, a afagar o focinho do cavalo. Depois recuou para dentro do vagão e desapareceu; a corda estava esticada, mas só a voz dele saía lá de dentro: - Vem, meu filho. Tá aqui.
- Rai's me partam - disse o Sam. Porque foi tudo. A ponte peri-clitante ressoou um pouco, o negrume cavernoso do interior do vagão troou com os cascos, mas nada mais. Levámos a lanterna para dentro do vagão; os olhos do cavalo luziram com frieza e desapareceram onde o Ned estava com ele a um canto.
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- Onde 'tão as tábuas e os pregos de que vomicê falou? - perguntou ele ao Sam. - Traga praqui aquela rampa de galinheiro; essa já dá pra uma parede inteirinha.
- Diabo - disse o Sam. - Espera aí.
- Quando as pessoas chegarem aqui amanhã já vão dar pela falta de um vagão inteiro - disse o Ned. - Não vão ter tempo pra se preocuparem com ninharias como uma escada de fabrico caseiro trazida duma capoeira qualquer. - Assim, todos nós outra vez excepto o Ned - até a Miss Corrie - levámos a rampa estropiada para dentro do vagão e pusemo-la ao alto no lugar, enquanto o Boon, o Sam e o ferroviário (o Sam também já tinha as tábuas e os pregos a postos) construíam uma baia à volta do cavalo num canto do vagão; ainda antes que o Ned se começasse a queixar, o Sam trouxe um balde com água, uma caixa para o grão e até um molho de feno; e nós demos todos um passo atrás na aura de saciedade do mastigar consolado do cavalo. - É como s'ele já 'tivesse em Possum neste preciso momento - disse o Ned.
- O que vocês mais querem é que ele já tenha cortado aquela meta depois de amanhã - disse o Sam. - Que horas são? - mas logo a seguir foi ele mesmo que nos disse: - Passa pouco da meia-noite. Dá para dormir uma soneca antes de o comboio partir às quatro da manhã. - Estava agora a falar com o Boon. - Você e o Ned certamente vão querer ficar aqui com o vosso cavalo; foi por isso que eu trouxe todo aquele feno a mais. Assim, você dorme aqui e eu levo a Corrie e os rapazes para casa e encontramo-nos todos aqui às...
- Você manda - disse o Boon, não tanto com arreganho como com uma espécie de sinistra frieza. - Você vem aqui ter às quatro horas. Se acordar a tempo, talvez a gente se veja. - E, já a virar costas para se ir embora: - Vamos, Corrie.
- Vai deixar o automóvel do seu patrão, quer dizer, o cavalo do seu patrão, quer dizer, este cavalo, seja lá o dono quem for,
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aqui sem mais ninguém a vigiá-lo senão este tipo de cor? - disse o
Sam.
- Não - disse o Boon. - Esse cavalo agora pertence aos cami-nhos-de-ferro. Eu tenho um recibo de bagagem para o provar. Se calhar você só pediu emprestada essa fatiota dos caminhos-de-ferro para impressionar mulheres e crianças, mas enquanto a tiver vestida é melhor que a use para honrar este recibo de bagagem, senão os directores do caminho-de-ferro podem não gostar.
- Boon! - disse a Miss Corrie. - Eu não vou para casa com ninguém! Anda, Lucius, tu e o Otis.
- Não faz mal - disse o Sam. - Nós estamo-nos sempre a esquecer como o Boon tem de mourejar cinco ou seis meses naquela plantação de algodão ou lá o que é para vir passar uma noite em Catalpa Street. Vão-se todos embora. A gente encontra-se no comboio.
- Não podes ao menos dizer muito agradecido? - disse a Miss
Corrie para o Boon.
- Claro - disse o Boon. - A quem é que eu devo agradecimentos? Ao cavalo?
- Tente agradecer ao Ned - disse o Sam. E depois para o Ned: - Queres que fique aqui contigo?
- Nós ficamos bem - disse o Ned. - Pode ser que se tamém se for embora as coisas fiquem tão sossegadas por aqui que dê pra uma pessoa dormir um bocado. Quem me dera ter-me lembrado a tempo de...
- Mas lembrei-me eu - disse o Sam. - Onde é que está o outro
balde, Charley?
O ferroviário - o agulheiro ou lá o que ele era - também o tinha; estava num canto do vagão, com as tábuas, os pregos, as ferramentas e o feno, e dentro tinha uma grossa sandes de presunto, uma garrafa pequena com água e uma garrafa média com uísque. - Aqui está - disse o Sam. - Até tens pequeno-almoço.
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- Estou a ver que sim - disse o Ned. - Como é que vomicê se chama?
- Sam Caldwell - disse o Sam.
- Sam Caldwell - disse o Ned. - Está-me a parecer que Sam Caldwell é um nome duas vezes milhor pra este tipo de negócio de cavalos do que outros qu'a gente podia encontrar por aí. Mais até, eu tava capaz de desejar qu'eu e vomicê continuássemos a trabalhar juntos daqui prà frente. Muito agradecido, com sua licença.
- Foi um prazer, com a tua licença - disse o Sam. E então nós demos as boas-noites ao Sam, ao Ned e ao Charley (quer dizer, todos nós excepto o Boon e o Otis) e voltámos para casa da Miss Reba. As ruas estavam desertas e silenciosas; Memphis estava a aproveitar estas últimas horas estafadas e extenuadas da semana para dormir pelo menos um pouco e recuperar forças para enfrentar a manhã de segunda-feira; caminhávamos em silêncio na luz ausente entre as janelas às escuras e os muros: excepto por uma única luz ténue e quase imperceptível naquela que o meu novo e infalível instinto de boémio imediatamente reconheceu como uma casa rival da Miss Reba; e uma outra luz idêntica na palidez por detrás das cortinas da Miss Reba, porque mesmo aqui a energia já se devia ter esgotado a estas horas; até a Minnie já devia ter ido para a cama ou para casa ou lá para onde é que ela ia ao soar das vésperas no ofício dela e da Miss Reba. Porque foi a própria Miss Reba que nos veio abrir a porta, a tresandar a gim e, com a sua beleza dura e competente, a agir em conformidade. Tinha mudado de vestido. Este quase não tinha parte de cima, e naquela época as senhoras - as mulheres - não costumavam pintar a cara, pelo que aquela foi também a primeira vez que eu vi tal coisa. E ostentava ainda mais diamantes, tão grandes e amarelados como os dois primeiros. Não: cinco. Mas a Minnie também não se tinha ido deitar. Estava parada à porta do quarto da Miss Reba, e também com o mesmo ar esbodegado.
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- Tudo a postos? - disse a Miss Reba, fechando a porta assim que entrámos.
- Tudo - disse a Miss Corrie. - Porque não vai prà cama? Minnie, obriga-a a ir prà cama.
- Podia ter-me dito isso há uma hora atrás - disse a Minnie. - E eu só espero que ninguém me diga o mesmo daqui a duas horas. Mas vomicê não tava aqui da outra vez há dois anos.
- Venha prà cama - disse a Miss Corrie. - Quando voltarmos de Possum na quarta-feira...
- Parsham, que diabo - disse a Miss Reba.
- Tá bem - disse a Miss Corrie. -... quarta-feira, a Minnie já descobriu onde ele está e podemos ir buscá-lo.
- Claro - disse a Miss Reba. - E enterrá-lo logo ali na mesma valeta desta vez, com a pá, a picareta e tudo, se eu tivesse juízo na cabeça. Aceitas um copo? - disse ela para o Boon. - A Minnie é o raio duma cientista cristã ou republicana ou lá o que é, e recusa-se a beber.
- Alguém aqui tem de não beber - disse a Minnie. - E não é preciso ser republicana pra isso. Tudo o qu'é preciso é tar derreada e com vontade de se deitar.
- É do que todos nós precisamos - disse a Miss Corrie. - Aquele comboio parte às quatro da manhã e já passa da uma. Vamos lá.
- Então deitem-se - disse a Miss Reba. - Quem diabo vos está a impedir? - Nós fomos para cima, e eu e o Otis fomos ainda mais para cima; ele sabia o caminho. Era um sótão sem mais nada além de alguns baús e algumas arcas e um colchão no chão a fazer de cama. O Otis tinha uma camisa de noite (a camisa ainda tinha os vincos com que a Miss Corrie, acho eu, a tinha trazido da prateleira da loja), mas meteu-se na cama tal e qual como eu tinha de fazer: tirou as calças e os sapatos, apagou a luz e deitou-se para baixo. Havia uma janelinha por onde nós podíamos ver a lua e depois eu até via o que estava no quarto por causa do luar; havia algo de erra-
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do nele; eu estava cansado, e enquanto subia a escada vinha a pensar que mal me deitasse ia adormecer logo. Mas sentia-o ali deitado ao meu lado, não só completamente acordado, mas mais como uma coisa que nunca tinha dormido em toda a vida e nem sequer sabia disso. E de repente senti também algo de errado em mim. Era como se não soubesse ainda o que era: só sabia que havia algo de errado e que daí a um minuto eu ia saber o quê e detestar; e de repente não queria estar mais ali, não queria estar em Memphis ou sequer ter ouvido falar em Memphis: queria estar em casa. O Otis disse outra vez: Ala que se faz tarde.
- Bela burra que aqui há - disse ele. - Até se sente o cheiro. Não é justo que sejam só as mulheres que podem ganhar dinheiro com o truca-truca enquanto tudo o que um homem pode fazer é tentar deitar a mão a algum quando ele vai a passar... - Lá estava aquela palavra outra vez, que eu já tinha perguntado duas vezes o que queria dizer. Mas agora não, não ia perguntar outra vez: ali deitado tenso e rígido com uma janela do tamanho da lua por cima das minhas pernas e das do Otis, a tentar não o ouvir mas a ter de ouvir: - ... um dos quartos é mesmo aqui por baixo; numa noite movimentada como ao sábado podes ouvi-los através do chão. Mas aqui não temos sorte nenhuma. Mesmo que eu conseguisse arranjar uma verruma e abrir um buraco no chão, aquela preta e a Miss Reba não me iam deixar trazer ninguém cá para cima para eu ganhar uns cobres com isso, e mesmo que eu conseguisse o mais certo era elas tirarem-me o dinheiro como aquele filho da puta fez hoje com o dinheiro da pianola. Mas em casa da tia Fittie era diferente, quando a Bee... - Calou-se e ficou perfeitamente imóvel. E disse outra vez: Ala que se faz tarde.
- A Bee - disse eu. Mas era tarde de mais. Não, não era tarde de mais. Porque agora eu já sabia.
- Quantos anos tens? - disse ele.
- Onze - disse eu.
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- Então tens mais um ano do que eu - disse ele. - Que pena já não estares aqui depois desta noite. Se ao menos aqui estivesses na próxima semana, podíamos arranjar maneira de abrir aquele
buraco.
- Para quê? - disse eu. Estás a ver, eu tinha de perguntar. Porque o que eu queria era estar de volta a casa. Queria a minha mãe. Porque temos de estar preparados para a experiência, para o conhecimento, para o saber, e não ser agredidos por ele de chofre na escuridão como por um salteador de estradas ou um bandido. Lembra-te que eu tinha só onze anos. Há coisas, circunstâncias, situações neste mundo que não deviam existir, mas existem, e nós não lhes podemos fugir e, na verdade, nem lhes deveríamos fugir se pudéssemos escolher, pois também elas fazem parte do Movimento, da participação na vida, da condição de estar vivo. Só que devem chegar com elegância, com decência. Eu estava a ser obrigado a aprender de mais e depressa de mais, sem acompanhamento; não tinha onde guardar tudo aquilo, ainda não tinha nenhum receptáculo, nenhum escaninho preparado para aceitar tudo aquilo sem dor nem lacerações. Ele estava deitado de costas, tal como eu. Não se tinha mexido, nem sequer os olhos. Mas eu sentia-o a observar-me.
- Tu não sabes quase nada, pois não? - disse ele. - Donde é que
disseste que eras?
- Do Mississippi - disse eu.
- M... - disse ele. - Não admira que não saibas nada.
- Está bem - disse eu. - A Bee é a Miss Corrie.
- Aqui estou eu, a deitar dinheiro à rua como se não fosse nada - disse ele. - Mas pode ser que juntos, tu e eu, a gente consiga fazer alguma coisa. Claro. O nome dela é Everbe Corinthia, como a avó. E um raio dum nome para usar no trabalho. Já era mau lá em Kiblett, onde uns já o conheciam e estavam habituados, e outros vinham geralmente tão cheios de pressa que se estavam nas tintas
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para ela se chamar assim ou assado. Mas aqui em Memphis, numa casa como esta, para onde se diz que todas as raparigas de Memphis tentam entrar assim que vaga um quarto... Mas lá em Kiblett nunca fez grande diferença depois de a mãe dela morrer e a tia Fittie a levar para casa dela para a criar e a pôr a trabalhar assim que teve idade para isso. Mas depois ela descobriu que em Memphis havia muito mais dinheiro e veio para cá, e ninguém conhecia a Everbe e ela pôde passar a chamar-se Corrie. Por isso, cada vez que venho cá de visita, como no Verão passado e agora, como eu sei que ela é Everbe, ela dá-me cinco cêntimos todos os dias para eu não dizer nada a ninguém. Estás a ver? Em vez de te dizer, como eu agora escorreguei a dizer-te, se eu tivesse ido ter com ela e dito: Por cinco cêntimos por dia, eu posso tentar não me distrair, mas dez cêntimos por dia iam tornar duas vezes mais difícil distrair-me. Mas não faz mal; posso dizer-lhe amanhã que tu também sabes, e pode ser que a gente consiga...
- Quem era a tia Fittie? - perguntei eu.
- Não sei - disse ele. - As pessoas chamavam-lhe tia Fittie. Podia ser parente de alguns de nós, mas não sei. Vivia sozinha numa casa dos subúrbios da cidade até ter tomado conta da Bee depois de a mãe da Bee morrer e assim que a Bee teve idade suficiente, o que não demorou muito, porque a Bee já era uma rapariga grande ainda antes dos dez ou onze anos ou lá com que idade é que foi que ela começou...
- Começou a fazer o quê? - disse eu. Estás a ver? Eu tinha de perguntar. Agora já tinha chegado longe de mais para parar, como ontem em Jefferson... será que era ontem? o ano passado: numa outra altura: numa outra vida: num outro Lucius Priest. - O que é o truca-truca?
Ele explicou-me com algum desdém, mas sobretudo com uma espécie de espanto quase incrédulo, quase receoso, quase respeitoso.
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- Era onde eu tinha o buraco, um buraquinho na parede do fundo com uma corrediça fininha a tapá-lo que só eu e mais ninguém sabia como destapar, enquanto a tia Fittie ficava à porta a receber o dinheiro e a vigiar. Os miúdos da tua idade tinham de subir para cima dum escadote e eu cobrava-lhes cinco cêntimos até a tia Fittie descobrir que eu estava a deixar homens adultos espreitar por dez cêntimos, quando esses podiam ter entrado por cinquenta cêntimos, e desatar a berrar comigo como uma gata assanhada...
Já de pé, eu estava agora a esmurrá-lo, e era tanta a surpresa dele (e a minha também) que eu tinha tido de me baixar para o agarrar e puxar até o ter ao meu alcance. Eu não sabia nada de boxe e pouco sabia de luta. Mas sabia exactamente o que queria fazer: não apenas magoá-lo, mas destruí-lo; lembro-me talvez de um segundo durante o qual tive pena (num remoto avatar dos campos de jogos de Eton) que ele não fosse do meu tamanho. Mas não mais do que um segundo; eu estava a esmurrar, a esgadanhar, a pontapear não um rapaz franzino de dez anos, mas os dois, o Otis e a proxeneta: a criança diabólica que aviltou a privacidade dela e a bruxa que debochou a sua inocência - uma carne para espancar e rasgar, um feixe de nervos para torturar e atormentar; mais: não apenas aqueles dois, mas todos os que tinham participado no seu aviltamento: não só os dois predadores, mas as crianças insensíveis e ignóbis e os homens brutais e depravados que pagavam para assistir à sua degradação indefesa, desamparada e sem esperança de vingança. Ele estava agora caído de gatas no colchão, a mexer nas calças ali deixadas; eu não sabia porquê (nem me interessava), nem mesmo quando as mãos dele se projectaram para fora e para cima. Só então lhe vi no punho fechado a lâmina do canivete, mas também não liguei; isso era a minha carte blanche. Tirei-lhe o canivete da mão. Não sei como; nem senti a lâmina; quando atirei o canivete para longe e lhe bati outra vez, o sangue que vi na cara dele pensei que fosse o dele.
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Nisto o Boon estava a levantar-me do chão e eu a debater-me e a chorar. Ele estava descalço, só com as calças vestidas. A Miss Corrie também lá estava, com um quimono e o cabelo solto, que lhe chegava abaixo da cintura. O Otis estava encostado à parede, todo encolhido; não chorava, mas insultava-me como tinha insultado o Ned.
- Mas que diabo... - disse o Boon.
- A mão dele - disse a Miss Corrie. Parou o tempo suficiente para se voltar para trás e olhar para o Otis. - Vai para o meu quarto - disse ela. - Já. - Ele saiu. O Boon pousou-me no chão. - Deixa ver isso - disse ela.
Essa foi a primeira vez que eu percebi de onde vinha o sangue -um golpe perfeito ao longo das almofadas de todos os quatro dedos; eu devo ter agarrado a lâmina do canivete precisamente quando o Otis tentava tirá-lo do meu alcance. Ainda estava a sangrar. Quer dizer, recomeçou a sangrar quando a Miss Corrie abriu a minha mão.
- Por que diabo estavam vocês a lutar? - perguntou o Boon.
- Por nada - disse eu, puxando a mão para trás.
- Mantém-na fechada até eu voltar - disse a Miss Corrie. Saiu e voltou com uma bacia com água, uma toalha, um frasco não sei de quê e o que parecia ser um bocado duma camisa de homem. Limpou o sangue com água e abriu o frasco. - Vai arder - disse ela. E ardeu mesmo. Depois rasgou uma tira da camisa e ligou-me a mão.
- Ele continua a não querer dizer por que estavam a lutar - disse o Boon. - Pelo menos espero que tenha sido ele a começar: não tem nem metade do teu tamanho mesmo sendo um ano mais velho. Não admira que tenha puxado do canivete...
- Ele não é sequer da minha idade - disse eu. - Ele tem dez anos.
- Ele a mim disse-me que tinha doze - disse o Boon. E então eu descobri o que é que havia de errado com o Otis.
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- Doze? - disse a Miss Corrie. - Ele faz quinze anos na próxima segunda-feira. - Ela estava a olhar para mim. - Queres...
- Só quero que não o deixem vir para aqui - disse eu. - Estou cansado. Quero dormir.
- Não te preocupes com o Otis - disse ela. - Ele vai voltar para casa esta manhã. Há um comboio às nove. Vou mandar a Minnie levá-lo à estação e vou dizer-lhe para ver bem se ele entra mesmo no comboio e para se deixar lá ficar onde o possa ver através da janela até o comboio partir.
- Certo - disse o Boon. - E ele pode ficar com a minha mala para lá meter a cultura e as boas maneiras para as levar com ele para casa. Trazê-lo para aqui para passar uma semana em Memphis
num...
- Não digas mais nada - disse a Miss Corrie.
- Numa casa à procura de cultura e boas maneiras. Talvez ele as tenha encontrado; podia ter andado anos à procura em todas as casas de meninas do Arkansas sem nunca encontrar ninguém mais ou menos do seu tamanho para o ameaçar com o canivete...
- Pára com isso! Pára com isso! - disse a Miss Corrie.
- Certo, certo - disse o Boon. - Mas afinal o Lucius tem de saber o nome do sítio onde está para se poder gabar de cá ter estado. -Depois apagaram a luz e saíram. Ou pelo menos era o que eu pensava. Desta vez foi o Boon que acendeu a luz outra vez. - Talvez seja melhor contares-me o que se passou - disse ele.
- Nada - disse eu. Ele baixou os olhos para mim, enorme, em tronco nu, com a mão na luz para a apagar outra vez.
- Onze anos - disse ele - e já esfaqueado numa rixa de bordel. -Olhou para mim outra vez. - Só queria ter-te conhecido há trinta anos. Contigo para me ensinares quando eu tinha onze anos, talvez agora eu também tivesse algum juízo. Boa noite.
- Boa noite - disse eu. Ele apagou a luz. Desta vez, já eu tinha adormecido, era a Miss Corrie, ajoelhada ao lado do colchão; podia
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ver os contornos do seu rosto e a lua por entre os seus cabelos. Desta vez era ela que chorava; era uma rapariga grandalhona, grande de mais para saber como chorar com elegância: só baixinho.
- Eu obriguei-o a contar-me - disse ela. - Vocês lutaram por minha causa. Já vi homens - bêbados - lutarem por minha causa, mas tu és o primeiro que luta por mim. E eu não estou habituada a isso, estás a ver. E por isso que agora não sei o que fazer. Excepto uma coisa. Isso eu posso fazer. Quero fazer-te uma promessa. Lá no Arkansas a culpa foi minha. Mas não vai voltar a ser nunca mais. -Estás a ver? Uma pessoa tem de aprender muito depressa; tem de dar um salto no escuro e esperar que Alguma Coisa - Aquilo, Eles -te encaminhe na direcção certa. Por isso, pode ser que haja afinal outras coisas além da Pobreza e da Não-virtude que conseguem desenvencilhar-se sozinhas.
- Naquela época a culpa não foi sua - disse eu.
- Foi sim. Uma pessoa pode escolher. Pode decidir. Pode dizer Não. Pode procurar trabalho e ir trabalhar. Mas a culpa não vai voltar a ser minha. É essa a promessa que eu te quero fazer. E que eu vou cumprir como tu cumpriste aquela de que falaste ao Mr. Binford hoje à noite antes do jantar. Vais ter de a aceitar. Vais aceitá-la?
- Está bem - disse eu.
- Mas tens de dizer que a aceitas. E tens de dizer em voz alta.
- Sim - disse eu. - Aceito.
- Agora vê se adormeces outra vez - disse ela. - Eu trouxe uma cadeira e vou ficar aqui sentada, pronta para te acordar a tempo de ires para a estação.
- Vá também para a cama - disse eu.
- Não tenho sono - disse ela. - Vou ficar aqui sentada. E tu vê se dormes. - E desta vez era o Boon de novo. O quadrado de janela desenhado pelo luar tinha-se deslocado e eu percebi que desta vez tinha dormido; a voz dele esforçava-se para se manter num mur-
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múrio, ou pelo menos monocórdica, e o seu torso nu agigantava-se por cima da cadeira da cozinha onde a Everbe (quer dizer, a Miss Corrie) estava sentada, enquanto a mão lhe agarrava o braço que tentava a todo o custo libertar-se:
- Anda lá. Já só temos uma hora.
- Larga-me - disse ela também num murmúrio. - Já é muito tarde. Larga-me, Boon. - E depois o murmúrio ríspido do Boon, ainda a tentar não passar de um murmúrio:
- Por que diabo julgas tu que eu vim de tão longe, e esperei tanto tempo, farto de trabalhar, de poupar, à espera de... - Agora a esquadria enluarada da janela tinha-se deslocado ainda mais e ouvi algures um galo cantar, e a minha mão cortada estava parcialmente debaixo de mim e doía muito, devendo ter sido isso que me acordou. Por isso não sabia dizer se esta vez era a mesma ou se ele se tinha ido embora e voltado depois: somente as vozes, ainda a tentarem manter-se num murmúrio, e se já estava um galo a cantar é porque eram horas de levantar. E, ah é verdade, ela estava a chorar outra vez.
- Não quero! Não quero! Deixa-me em paz!
- Está bem, está bem. Mas hoje é uma noite sem exemplo; amanhã à noite, quando estivermos instalados em Possum...
- Não! Amanhã também não! Não posso! Não posso! Deixa-me em paz! Por favor, Boon. Por favor!
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VIII

Nós - a Everbe, o Boon e eu - chegámos à estação com muita antecedência, ou assim pensávamos. A primeira pessoa que vimos foi o Ned, logo à porta, à nossa espera. Estava com uma camisa branca lavada - ou era nova ou ele tinha arranjado maneira de lavar a outra. Mas quase no mesmo instante as coisas precipitaram-se para alguém ter tempo de perceber que a camisa nova era uma das do Sam. O Ned nem deu tempo ao Boon para abrir a boca.
- Acalme-se - disse ele. - O Mr. Sam tá a tomar conta do Relâmpago enquant'eu trato dos últimos preparativos. O vagão, já o vieram buscar, e tá engatado ao comboio que tá agora atrás da estação à espera que vocês entrem todos. Com o Mr. Sam Caldwell no comando, é limpinho, olá se é. Até já lhe demos um nome -Relâmpago Binfurcado. - Nisto viu a ligadura e quase deu um salto. - O que é que fez à mão?
- Cortei-me - disse eu. - Está tudo bem.
- Cortou-se muito? - disse ele.
- Sim - disse a Everbe. - O golpe apanhou-lhe os quatro dedos. Ele nem deve mexer a mão. - Mas o Ned não perdeu mais tempo por ali. Nisto olhou em volta de relance.
- Onde tá o outro? - disse ele.
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- Qual outro? - disse o Boon.
- O Carapau-de-corrida - disse o Ned. - Aquele miúdo enfezado que só falava em dinheiro e que 'teve aqui coa gente ont'à noite. Sou capaz de precisar de dois ajudantes pràquele cavalo. Quem julgam qu'o vai montar na corrida? Eu ou vomicê, qu'é duas vezes mais pesado do qu'eu? O Lucius é que ia montá-lo, mas com' a gente agora tem o outro, não precisamos d'arriscar. Ele inda pesa menos qu'o Lucius e memo que não seja tão esperto como o Lucius, pelo menos em ruindade tem mais qu'idade pra intrar numa corrida de cavalos e é viciado em dinheiro quanto baste pra querer ganhar, e se calhar cobarde de mais pra dar rédea solta ò cavalo e acabar por cair. E isso é tudo o que nós precisamos. Ond'é qu'ele tá?
- Voltou para o Arkansas - disse o Boon. - Quantos anos julgas tu que ele tem?
- Os que parece - disse o Ned. - Quinze, mais ou menos, não é? Foi prò Arkansas? Atão é melhor alguém ir lá buscá-lo a correr.
- Está bem - disse a Everbe. - Eu trago-o. Agora já não dá tempo para o ir buscar. Por isso eu fico e levo-o no comboio da tarde.
- Assim é qu'é falar - disse o Ned. - É o comboio do Mr. Sam. Basta entregar o Carapau-de-corrida ò Mr. Sam; ele trata dele.
- Claro - disse o Boon para a Everbe. - E assim ficas com uma hora inteirinha livre para praticares o teu Não com o Sam. Talvez ele seja mais homem do que eu e não esteja pelos ajustes. - Mas ela limitou-se a olhar para ele.
- Então porque é que não ficas tu à espera e trazes o Otis e nós esperamos por ti em Parsham logo à tarde? - disse eu. O Boon olhou para mim.
- Bem, bem - disse ele. - O que foi que o Mr. Binford disse a noite passada? Se não havia outro porco neste chiqueiro. Só que este ainda é só um bácoro. Quer dizer, eu julgava que era.
- Por favor, Boon - disse a Everbe. Assim: - Por favor, Boon.
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- Leva-o também contigo e voltem os dois pràquele matadouro dum raio donde se calhar, e pra começar, nem deviam ter saído - disse o Boon. - Desta vez ela não disse nada. Limitou-se a ficar parada, de olhos no chão: uma rapariga grandalhona a quem a imobilidade assentava bem. Depois virou-lhe as costas, já a afastar-se.
- Talvez eu vá - disse eu. - Direito a casa. O Ned já tem outro para montar o cavalo e tu parece que não sabes o que fazer com nenhuma das pessoas que estão a tentar ajudar-te.
Ele olhou para mim e fulminou-me com o olhar, talvez por um segundo.
- Está bem - disse ele, passando de raspão à minha frente no encalço dela. - Eu disse está bem - disse ele. - Está bem assim?
- Está bem - disse ela.
- Logo vou esperar o primeiro comboio. Se não vieres nele fico à espera dos outros todos. Está bem?
- Está bem - disse ela e foi-se embora.
- Aposto que nenhum de vomicês se lembrou de trazer o meu saco - disse o Ned.
- O quê? - disse o Boon.
- Onde é que ele está? - disse eu.
- Lá na cozinha ond'o deixei - disse o Ned. - Aquela morena do dente d'ouro bem o viu.
- A Miss Corrie leva-o logo - disse eu. - Vamos. - Entrámos na estação. O Boon foi comprar os nossos bilhetes e passámos para o sítio onde o comboio estava, já com as pessoas a entrar. Lá à frente podíamos ver o vagão. O Sam, o condutor e mais dois homens estavam parados à porta; um deles devia ser o condutor. Estás a ver? Não apenas o homem da bandeirinha em dia de folga, mas uma tripulação completa.
- Vai pô-lo a correr hoje? - disse o condutor.
- Amanhã - disse o Boon.
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- Bem, primeiro temos de o levar até lá - disse o condutor, olhando para o relógio. - Quem é que vai com ele?
- Eu - disse o Ned. - Assim que encontrar um caixote ou qualquer coisa para subir.
- Dá-me cá o pé - disse o Sam. O Ned dobrou o joelho e o Sam atirou-o pelo ar. - Vemo-nos em Parsham amanhã - disse ele.
- Julgava que seguia para Washington - disse o Boon.
- Quem, eu? - disse o Sam. - Isso é só o comboio. Eu vou apanhar o 209 em Chattanooga esta noite e volto para trás. Chego a Parsham amanhã de manhã às sete. Eu até ia com vocês agora e apanhava o 208 em Parsham logo à noite, mas tenho de dormir um bocado. Além disso, vocês não precisam de mim.
Tal como eu e o Boon. Quer dizer, precisávamos de dormir. Passámos pelo sono, até o condutor nos acordar, e depois fomos lá para junto da linha, em Parsham, aos primeiros alvores, e ficámos a ver a locomotiva (aqui havia uma rampa para carregamento do gado) ir buscar o vagão, desta vez correctamente, voltar ao seu comboio e seguir viagem ao som metálico das carruagens que rangiam e trepidavam ao cruzar as outras linhas que seguiam para sul, para Jefferson. Depois, nós três desmontámos a baia e o Ned deixou sair o cavalo; e claro está que, como não podia deixar de ser, de repente, como se saído do nada, surgiu à nossa frente um rapaz negro de aspecto simpático com cerca de dezanove anos, postado ao fundo da rampa, que disse:
- Viva, Mr. McCaslin.
- Es tu, meu filho? - disse o Ned. - Para que lado? - E então nessa altura separámo-nos de Boon, que tinha agora a tarefa de pôr as coisas em Movimento, em marcha: encontrar um lugar para todos nós, e não apenas para mim e para ele, mas também para o Otis e a Everbe, quando chegassem à tarde: localizar um homem cujo nome o Ned nem sequer sabia e que mais ninguém a não ser o Ned afirmava possuir um cavalo, e depois persuadi-lo a pôr esse
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cavalo a correr, a entrar numa corrida - uma ficção do Ned a fazer correr outra ficção - uma corrida hipotética que por ser no futuro não existia, contra um cavalo que ele já tinha vencido duas vezes (isto apenas segundo o Ned, ou seja, a ficção número três), o que ia permitir, ainda segundo o Ned, recuperar o automóvel do meu avô; era tudo isto que o Boon tinha de fazer sem dar azo a interpelações sobre quem era realmente o dono do cavalo. Nós - o Ned, o rapaz e eu - pusemo-nos a caminho e já estávamos fora da cidade, o que não levava muito tempo nessa altura, pois não passava de um lugarejo com duas ou três lojas no entroncamento das duas linhas férreas, e a estação, com o seu cais de carga, o depósito de mercadorias e a plataforma para carregar os fardos de algodão. No entanto, algumas coisas não mudaram: o grande hotel desconexo em estilo gótico, réplica dos barcos a vapor do Mississippi, com as suas múltiplas varandas e múltiplos andares, onde uma multidão de aficionados de fato-macaco, os treinadores de perdigueiros profissionais e os milionários do Norte proprietários dos cães se reuniam todos os anos em Fevereiro durante duas semanas (uma noite, no átrio, em 1933, com os seus negócios*179 no Ohio e os* de todos os outros sob a espada de Dâmocles depois de o governo federal ter encerrado os bancos, eu próprio ouvi o Horace Lytle recusar cinco mil dólares pela tricampeã Mary Montrose); o Paul Rainey também, ele que gostava tanto do nosso país - ou pelo menos dos nossos ursos, veados e pumas - que investiu parte do dinheiro ganho em Wall Street na compra de terras no Mississippi para ele e os amigos irem para lá caçar; era acima de tudo um apaixonado por cães que levava a sua matilha treinada na caça ao urso para Africa para ver como se portavam frente aos leões, ou vice-versa.
- Este rapaz branco vai a dormir em pé não tarda nada - disse o jovem. - Não tem uma sela? - Mas eu não ia adormecer. Eu tinha de descobrir, de perguntar:
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- Eu nem sabia que tu conhecias aqui alguém, e muito menos que tinhas avisado que vinhas.
O Ned continuou a andar como se eu nem tivesse falado. Passado um bocado virou-se para trás e disse por cima do ombro: -
Quer então saber, não é? - E continuou a andar. E depois: - Eu e o avô deste rapaz somos mações.
- Porque estás a falar tão baixo? - disse eu. - O Patrão também pertence à maçonaria, mas nunca o ouvi baixar a voz para falar disso.
- Eu não sabia que era - disse o Ned. - Mas afinal era. Pra qu'é qu'uma pessoa há-de querer pertencer a uma loja se não for por ser tão secreta que quase mai ninguém lá pode intrar? E como é qu'a gente há-de mantê-la secreta se não a tratar como tal?
- Mas como é que o avisaste? - perguntei.
- Deixe-me dizer-lhe uma coisa - disse o Ned. - Se alguma vez precisar de fazer alguma coisa, não só fazer, mas fazer depressa e em segredo, e quiser ter a certeza qu'ela vai ser feita, e sem alarde, põe-se à procura ate incontrar alguém com'ò Mr. Sam Caldwell e encarrega-o disso. Lembre-se disto. As pessoas de Jefferson bem precisavam dele. Até precisavam duma dúzia de Sams Caldwells.
Chegámos. O sol já ia alto. Era uma cabana com dois quartos separados por uma passagem coberta, sem pintura, mas sólida e muito limpa, entre alfarrobeiras e árvores-dos-rosários, num quintal bem varrido rodeado por uma cerca a que não faltava uma única ripa e com um portão de dobradiças que até funcionava, galinhas a debicar na terra, uma vaca e uma parelha de mulas no cercado do estábulo por trás da casa, dois belos cães de caça que já tinham reconhecido o jovem que nos acompanhava e um velho ao cimo dos degraus da varanda, mesmo por cima deles - um velho de pele muito escura, camisa branca, suspensórios e chapéu de palha desabado, bigode irrepreensivelmente branco e barbicha, já a descer os
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degraus e a atravessar o quintal para vir ver o cavalo, e pelo menos uma das ficções do Ned desapareceu.
- Vocês compraram-no? - perguntou ele.
- É nosso - disse o Ned.
- Há tempo suficiente para o porem a correr?
- Uma vez, pelo menos - disse o Ned, e depois, para mim:
- Cumprimente o tio Possum Hood. - E eu assim fiz.
- Venham sentar-se - disse o tio Parsham. - Estão todos prontos para o pequeno-almoço, não é verdade? - Eu já sentia o cheirinho - presunto.
- Eu só quero ir dormir - disse eu.
- Ele 'teve a pé toda a noite - disse o Ned. - 'Tivemos os dois. Só qu'ele teve de passar a dele numa casa cheia de mulheres a gritar, que não se calavam, enquanto tudo o qu'eu tinha à minha volta era um vagão vazio com um cavalo lá dentro. - Mas eu ainda queria ir ajudar a meter o Relâmpago no estábulo e dar-lhe de comer. Só que eles não me deixaram. - Vá co Lycurgus e veja se dorme um bocado - disse o Ned. - Daqui a pouco vou precisar de si, antes d'o calor apertar. Temos d'ir procurar o tal cavalo, e quanto mais cedo começarmos, mais cedo é a corrida. - Fui com o Lycurgus. O quarto era num anexo: uma cama com uma colcha garrida de retalhos impecavelmente limpa; a impressão que tive foi que caí a dormir ainda antes de me deitar, e que o Ned me veio abanar ainda eu não tinha dormido nada. Ele trazia na mão uma meia grossa de lã branca e um bocado de cordel. Eu estava cheio de fome. - Depois tem tempo pra tomar o pequeno-almoço - disse o Ned. - Doma melhor o cavalo co estômago vazio. Pegue... - disse ele com a meia aberta.
- O Carapau-de-corrida inda não apareceu. Se calhar era melhor nem aparecer. Ele é daqueles que por mais qu'uma pessoa ache que precisa dele, acaba sempre por descobrir qu'era melhor ter passado sem ele. Estenda a mão. - A da ligadura, queria ele dizer. Enfiou-lhe a meia, sem tirar a ligadura, e amarrou-a à volta do
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pulso com o cordel. - Pode continuar a usar o polegar, mas com isto já não vai abrir a mão por distracção, e abrir esse golpe outra vez.
O tio Parsham e o Lycurgus estavam à espera com o cavalo. Já estava devidamente arreado, com uma sela McClellan velha e gasta, mas impecavelmente estimada. O Ned olhou para ela.
- Podíamos montá-lo em pêlo, a menos que nos obriguem a selá-lo. Mas vamos deixá-la estar. Podemos experimentar das duas maneiras e deixar qu'ele nos diga de qual gosta mais.
Havia um pequeno prado à beira do ribeiro, plano, liso, com bom piso, O Ned encurtou as rédeas, não tanto por mim, mas mais por ele, e pôs-me em cima do cavalo.
- Sabe o qu'há-de fazer: o mesmo que faz cos potros da quinta McCaslin. Ele que preste atenção à mão qu'o conduz; o mais provável é que tudo o que lhe tentaram insinar foi só a correr tanto quanto o freio deixar, na direcção pra que lh'apontam a cabeça. Qu'é tudo o qu'ele quer fazer. Inda não precisa da chibata. Além disso, não é a chibata qu'a gente quer insinar: a gente quer insiná-lo a ele. Vamos lá.
Levei-o para o prado, a trote. O freio estava muito frouxo; uma teia de aranha bastava para o travar, e disse-o ao Ned.
- Aposto que sim - disse o Ned. - Aposto que tem bem mais marcas de chicote nos flancos do que marcas do freio na boca. Vamos. Ponha-o a correr. - Mas ele recusou-se. Eu dava-lhe com a biqueira, batia-lhe com os calcanhares, mas ele não saía do trote, um pouco mais rápido na volta (eu estava a correr numa pista circular, como a que a gente tinha feito na cerca do primo Zack) até que de repente percebi que o que ele queria era voltar a correr para junto do Ned. Mas mesmo assim sem morder o freio e sem obedecer às rédeas uma só vez que fosse, com a cabeça curvada e recolhida, mas sem fazer pressão na mão, como se o freio fosse um courato de porco e ele um muçulmano (ou uma espinha de peixe
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e ele um candidato a chefe da polícia do Mississippi a quem a oposição baptista tinha acusado de angariar votos entre os católicos, ou uma das cartas da Mrs. Roosevelt e um dos secretários do movimento racista Citizens Council, ou a ponta do charuto do senador Goldwater e o mais jovem membro da associação Americans for Democratic Action), sem parar até chegar junto do Ned e, com um puxão que eu senti pelo braço acima até ao ombro, libertar a cabeça e começar a esfregar o focinho na camisa do Ned. - Ui-ui! - disse o Ned. Tinha uma mão atrás das costas e eu podia ver uma chibata. - Puxe-o pra trás. - Depois, para o cavalo: - Tens d'aprender, meu filho, a não voltar pra trás até eu te chamar. - E depois, para mim: - Desta vez ele não vai parar. Mas faça de conta que vai: uma passada antes do sítio onde, se estivesse no lugar dele, ia querer dar meia-volta para vir ter comigo, leve a mão atrás e bata-lhe com toda a força. Agora, firme na sela. - E, dando um passo atrás, chicoteou a garupa do cavalo com um golpe brusco e violento.
Ele deu um salto e partiu a galope: o movimento (não a nossa velocidade nem sequer o nosso progresso; apenas o movimento do cavalo) parecia formidável: sem elegância, claro, mas formidável. Porque era um simples reflexo face ao medo, e o medo não se coaduna com os cavalos. A sua estrutura física não se adapta ao medo, uma vez que são só massa e simetria, enquanto o medo exige fluidez, elegância, criatividade e a capacidade de encantar e cativar, e até de espantar e assustar, como uma impala, uma girafa ou uma cobra; e, mesmo à medida que o medo se dissipava, eu podia sentir, podia ver o movimento tornar-se simplesmente obediência, um galope de mão obediente, nada mais, contornando a pista e seguindo a direito pelo que seria o caminho de regresso, quando eu fiz o que o Ned mandou: uma passada antes do ponto onde ele anteriormente tinha virado em direcção ao Ned, levei o braço atrás e bati-lhe com quanta força tinha na palma da mão boa; e de
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novo o salto, o pinote, mas desta feita com ímpeto, obediência, agitação: sem cólera nem ansiedade.
- Já chega - disse o Ned. - Traga-o praqui. - Obedecemos e parámos junto do Ned. O cavalo estava ligeiramente suado, mas era tudo. - Com'é qu'ele tá? - perguntou o Ned.
Tentei explicar-lhe:
- A dianteira não quer correr.
- Mas ele alargou bem a passada quand'eu lhe bati - disse o Ned.
Tentei de novo.
- Não me refiro a toda a dianteira. As pernas parecem-me bem. Só que a cabeça não quer ir a lado nenhum.
- Ui-ui - disse o Ned. E depois, para o tio Parsham: - Vomicê viu uma dessas corridas. O qu'é qu'aconteceu?
- Eu vi as duas - disse o tio Parsham. - Não aconteceu nada. Ele ia a correr bem até que de repente deve ter olhado e visto que não havia nada à frente dele a não ser a pista vazia.
- Hum - disse o Ned. - Salte daí. - Eu apeei-me. Ele arrancou-lhe a sela. - Dê cá o pé.
- Como é que sabes que um cavalo já foi montado em pêlo? -perguntou o tio Parsham.
- Não sei - disse o Ned. - Mas vamos descobrir.
- Este rapaz só tem uma mão - disse o tio Parsham. - Vem cá, Lycurgus...
Mas o Ned já me tinha agarrado o pé.
- Este rapaz aprendeu a aguentar-se lá em cima com os potros do Zack Edmonds, no Mississippi. Pelo menos uma vez vi-o aguentar-se e nem sabia a qu'é qu'ele se tava a agarrar a não ser que fosse òs dentes. - Empurrou-me lá para cima. O cavalo não se mexeu: fincou as pernas no chão, hesitou um segundo, estremeceu ligeiramente, e foi tudo. - Hum - disse o Ned. - Vá tomar o pequeno-almoço. Logo à tarde o Carapau-de-corrida já cá tá
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prò treinar e atão pode ser qu'o Relâmpago tamém se comece a divertir.
A mãe do Lycurgus, a filha do tio Parsham, estava a fazer o almoço; a cozinha cheirava aos legumes que estavam na panela. Mas ela tinha mantido no borralho o meu pequeno-almoço: toucinho frito, sêmola e pãezinhos, com soro de leite, leite ou café; tirou-me a meia, para eu poder comer, e ficou admirada por eu nunca ter provado café, pois o Lycurgus tomava café aos domingos de manhã desde os dois anos. E eu a pensar que estava só com fome até cair a dormir ali mesmo em cima do prato e o Lycurgus me levar, meio de rastos meio ao colo, para a cama dele no anexo. E, tal como o Ned dizia, o Mr. Sam Caldwell era um homem e tanto: a Everbe e o Otis desceram da carruagem da tripulação de um comboio de mercadorias que parou em Parsham unicamente para isso poucos minutos antes do meio-dia. Era um comboio que seguia directo para Florence, no Alabama, ou coisa parecida. Não sei quanto carvão mais foi preciso para accionar os travões e fazer parar o comboio em Parsham e depois atear a caldeira o suficiente para o comboio voltar a ganhar velocidade e recuperar o tempo perdido. Grande Sam Caldwell. Ala que se faz tarde, como dizia o Otis.
Assim, quando aquela voz forte que eu não conhecia me acordou e a mãe do Lycurgus tirou a meia de onde a tinha guardado quando eu adormeci em cima do prato e ma calçou outra vez e eu saí lá para fora, já eles estavam lá todos: uma caleche presa ao portão e o tio Parsham parado novamente ao cimo dos degraus, ainda de chapéu na cabeça, e o Ned sentado no segundo degrau a contar de baixo e o Lycurgus postado na varanda ao cimo dos degraus, como se estivessem os três a barricar a casa; e no quintal, à frente deles, a Everbe (é verdade, ela trazia-o, quer dizer, o saco do Ned), o Otis, o Boon e o que falava grosso, um homem quase tão grande como o Boon e quase tão feio como ele, parado entre o Boon e a Everbe, com a cara toda vermelha, um crachá e uma pistola com o
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respectivo coldre metida no bolso traseiro das calças, que continuava a esforçar-se por se libertar da mão que lhe agarrava o braço.
- Sim - dizia ele - eu conheço o velho Possum Hood. Mais do que isso, o velho Possum Hood conhece-me, não conheces, rapaz?
- Todos nós aqui o conhecemos, Mr. Butch - disse o tio Parsham sem emoção na voz.
- Se alguém não conhecer, é só um lapso que se corrige rapidamente - disse o Butch. - Se as tuas mulheres estão demasiado atarefadas a limpar e a varrer para nos convidarem para entrar, diz-lhes que tragam cadeiras cá para fora para esta jovem se sentar. E tu, rapaz - disse ele para o Lycurgus - traz para aqui duas dessas cadeiras da varanda para eu e tu - agora estava a falar com a Everbe -nos podermos sentar ao fresco a conversar para nos conhecermos melhor enquanto aqui o Pinga-amor - referia-se ao Boon; não sei como é que eu percebi - vai mostrar o cavalo a estes rapazes. Que dizes? - Sem largar o braço da Everbe, empurrou-a devagar para longe dele até ela quase perder o equilíbrio, e depois, mais depressa, mas sem violência, puxou-a outra vez para ele, com ela ainda a tentar libertar-se; ela estava agora a empurrar-lhe o pulso com a outra mão. E eu a observar o Boon. - Tens a certeza de que eu não te vi por aí? Talvez na Birdie Watt? Já agora, onde é que tens estado escondida? Uma rapariga bonita como tu? - O Ned levantou-se, sem pressa.
- B'dia, Mr. Boon - disse ele. - O sinhor e o sinhor xerife querem qu'o Lucius traga o cavalo? - O Butch parou de importunar a Everbe, mas não a largou.
- Quem é ele? - perguntou. - Regra geral, nós aqui não gostamos de pretos desconhecidos. Quer dizer, até não nos importamos desde que eles digam ao que vêm e depois fiquem de boca fechada.
- Ned William McCaslin Jefferson Mississippi - disse o Ned.
- Tens nomes a mais - disse o Butch. - Por aqui vais querer ter um nome curto e simples até poderes ter uma bigodaça branca e
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uma barbicha branca ali como o velho Possum, e merecê-la. Também não nos interessa donde vens; aqui, tudo o que precisas é dum sítio para onde voltar. Mas provavelmente não vais ter problemas; pelo menos tens bom senso suficiente para reconheceres a Autoridade quando olhas para ela.
- Sim sinhor - disse o Ned. - Eu conheço bem a Autoridade. Lá em Jefferson tamém a temos. - E depois, para o Boon: - Quer o cavalo?
- Não - disse a Everbe; tinha conseguido libertar o braço e afas-tava-se rapidamente; ela podia ter conseguido libertar-se mais cedo - bastava-lhe dizer Boon: que era o que o Butch - o ajudante do xerife ou lá o que era - queria que ela fizesse, e todos nós também o sabíamos. Ela afastou-se, muito rápida para uma rapariga tão grande, até me ter a mim entre ela e o Butch, e ela agarrada ao meu braço; eu sentia a mão dela a tremer ligeiramente no meu braço. - Anda, Lucius. Leva-nos lá - disse ela. E depois, com a voz tensa, num murmúrio quase apaixonado: - Como está a tua mão? Ainda dói?
- Está bem - disse eu.
- Tens a certeza? Se não estivesse dizias-me, não dizias? Essa meia serve para alguma coisa?
- Está tudo bem - disse eu. - Claro que dizia. - Voltámos para o estábulo, com a Everbe quase a levar-me de rastos para me manter entre ela e o Butch. Mas não serviu de nada, pois ele passou-me à frente; eu podia até sentir-lhe o cheiro - a suor e a uísque - e nisto vi a rolha de um frasco de meio litro a sair do outro bolso traseiro das calças; e ele (o Butch) outra vez a agarrar-lhe o braço e de repente tive medo, porque sabia que não conhecia a Everbe assim tão bem e não tinha a certeza se o Boon conhecia. Não: medo não, não era essa a palavra certa; medo não, porque nós - o Boon sozinho - ter-lhe-íamos tirado a pistola e dado depois umas valentes chicotadas, mas medo pela Everbe, pelo tio Parsham, pela casa e
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pela família do tio Parsham quando isso acontecesse. Era até mais do que medo. Eu sentia vergonha por haver uma razão para ter medo pelo tio Parsham, que tinha de viver aqui; a odiar tudo isto (não era o tio Parsham que odiava, era eu), a odiar-nos a todos por sermos as pobres vítimas indefesas da condição de estar vivo, de ter de continuar vivo - a odiar a Everbe por ser a vítima vulnerável e desamparada do referente; e o Boon por ser o vulnerável e desamparado vitimizado; e o tio Parsham e o Lycurgus por estarem onde tinham de estar, a verem sem querer brancos a comportarem-se exactamente como os brancos alardeavam que só os negros se comportavam - tal como tinha odiado o Otis por me ter contado tudo sobre a vida da Everbe no Arkansas e odiado a Everbe por ser aquele referente para o aviltamento humano sobre o qual ele me tinha falado, e odiado a mim mesmo por lhe dar ouvidos, por ter de ouvir, aprender, ficar a conhecer; a odiar que tal não só fosse mas devesse ser, tivesse de ser, se a vida estivesse destinada a continuar e a humanidade a fazer parte dela.
E, subitamente, fiquei angustiado com saudades de casa, corroído, amarfanhado e em agonia: voltar para casa, não só retroceder, mas retractar-me, obliterar: obrigar o Ned a devolver o cavalo a quem quer e aonde quer e como quer que o tivesse obtido, recuperar o automóvel do meu avô e levá-lo de volta para Jefferson, de marcha-atrás se necessário, a andar para trás para desenrolar, desenlear, de volta ao Não-ser, ao Nunca-ser, todo aquele percurso de estradas de terra, lamaçais, o homem e as suas mulas daltónicas, a Miss Ballenbaugh, a Alice e o Ephum, para que, se dependesse de mim, eles nunca tivessem existido; quando, súbita, silenciosa e incisiva, alguma coisa no meu íntimo me disse Porque não o fazes? Porque eu podia fazê-lo; bastava dizer ao Boon "Vamos para casa", e o Ned teria devolvido o cavalo e a minha confissão abjecta levaria a polícia a localizar o automóvel e a recuperá-lo meramente pelo preço da minha vergonha. Porque agora eu não podia. Era tarde de
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mais. Talvez na véspera, enquanto eu era ainda uma criança, mas não agora. Eu sabia de mais, tinha visto de mais. Agora eu já não era uma criança; a inocência e a infância estavam para sempre perdidas, tinham-me abandonado para sempre. E a Everbe tinha-se libertado outra vez. Eu não tinha visto como é que ela tinha conseguido desta vez: só que estava livre, a olhá-lo de frente; ela disse qualquer coisa inaudível, fugaz; de qualquer maneira, ele nem sequer estava a tocar-lhe, só a olhar para ela e a sorrir.
- Claro, claro - disse ele. - Esperneia um bocado; se calhar eu até gosto; e assim ainda é melhor aqui para o velho Pinga-amor. Muito bem, rapaz - disse ele para o Ned - vamos lá ver esse cavalo.
- Fique aqui - disse-me o Ned. - Eu e o Lycurgus vamos buscá-lo. - E eu fiquei, ao lado da Everbe, encostado à cerca; ela estava outra vez agarrada ao meu braço, com a mão ainda um pouco trémula. O Ned e o Lycurgus foram buscar o cavalo. O Ned já vinha a olhar para mim e perguntou muito depressa: - Onde tá o outro?
- Não me digas que tens dois - disse o Butch. Mas eu sabia ao que o Ned se referia. E a Everbe também. Ela virou-se muito depressa.
- Otis! - disse ela. Mas ele não se via em lado nenhum.
- Corre - disse o Ned ao Lycurgus. - Se ele inda não introu em casa, pode ser que consigas apanhá-lo. Diz-lhe qu'a tia quer falar co'ele. E não o largues. - O Lycurgus nem esperou para dizer Sim sinhor: passou o cabresto para a mão do Ned e desatou a correr, enquanto nós, os restantes, ficámos encostados à cerca - a Everbe o mais quieta possível, que era a única maneira que tinha de passar despercebida, mas grande de mais para o conseguir, tal como a corça é grande de mais para o abrunheiro-bravo que é tudo o que tem para se proteger; o Boon furioso e a espumar, a controlar-se, ele que nunca antes se tinha controlado. Não por medo; podes crer, ele não estava com medo, nem da pistola nem do crachá: ele podia - e era o que lhe apetecia fazer - tê-los tirado ambos ao
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Butch e, num gesto triunfante, ter atirado a pistola para o chão a meio caminho entre os dois, e depois deixado o Butch dar o primeiro passo para a apanhar; e só metade da lealdade que me protegeria a mim - e à minha família (à sua família) - do resultado de uma tal batalha, fosse quem fosse o vencedor. Porque a outra metade era cavalheirismo: proteger uma mulher, mesmo uma prostituta, de um dos predadores que desonram os crachás da polícia servindo-se deles para atacar impunemente seres indefesos. E um pouco mais à frente, demarcado mas presente, o tio Parsham, o patrício (ele tinha no seu nome o patronímico da terra que pisávamos), o verdadeiro aristocrata de entre nós todos e o juiz de todos nós.
- Cos diabos - disse o Butch. - Ele não pode ganhar corridas
sem morder o freio. Vá lá. Mete-o a trote.
- Nós já mandámos chamar o jóquei - disse o Ned. - Depois vai vê-lo em acção. - E a seguir: - A não ser que teja com pressa de voltar pràs suas...
- Para as minhas quê? - disse o Butch.
- Pràs suas leis - disse o Ned. - Em Possum ou lá onde é.
- Depois de ter vindo até aqui para ver um cavalo de corrida? -disse o Butch. - Mas até agora tudo o que eu vejo é um matungo a dormir em pé no meio do cercado.
- Fico até contente por tar a dizer isso - disse o Ned. - Pensei que se calhar não tava interessado. - Depois virou-se para o Boon: - Por isso, o melhor que o sinhor e a Miss Corrie podem fazer talvez seja voltar prà cidade e prepararem-se pra ir esperar os outros quando o comboio chegar. Pode mandar a caleche de volta, pró Mr. Butch, pró Lucius e pràquele outro rapaz, depois de termos feito o Relâmpago correr um bocado.
- Ah ah ah - disse o Butch, sem alegria, sem nada. - Que tal a ideia? Hein, Pinga-amor? Você e a Coisinha Fofa voltam muito agarradinhos para o hotel, e eu, o tio Remus e o Pequeno Lorde
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havemos de nos pôr a andar mais tarde ou mais cedo antes da meia-noite, desde que, bem entendido, a gente já não seja aqui precisos. - Aproximou-se rapidamente do sítio onde estava o Boon, a olhar para ele, mas a falar com o Ned: - Não posso deixar o Pinga-amor ir-se embora sem mim. Tenho de ficar colado a ele, senão ele ainda mete toda a gente em sarilhos. Agora há uma lei contra levar raparigas bonitas para outro estado para aquilo a que eles chamam fins imortais. Ora aqui o Pinga-amor é um forasteiro, ele não sabe onde fica exactamente a fronteira estadual, e podia-lhe resvalar o pé para o outro lado enquanto ele está distraído com qualquer outra coisa, com qualquer coisa que não é um pé. Pelo menos aqui não lhe chamamos pé. Hein, Pinga-amor? Deu uma palmada nas costas do Boon, ainda a sorrir e a olhar para ele - uma dessas palmadas que os homens trocam entre si por brincadeira, mas mais forte, quase forte de mais mas não propriamente demasiado forte. O Boon não se mexeu; continuou com as mãos na barra superior do portão. Estavam demasiado queimadas do sol ou talvez demasiado sujas de terra para ficarem brancas. Mas eu bem vi os músculos. - Sim, senhor - disse o Butch, sempre a olhar para o Boon e a sorrir - os amigos todos juntos, pelo menos ainda por mais um bocado. Para onde vai um ou vão todos ou não vai nenhum - pelo menos ainda por mais um bocado. Pelo menos até acontecer alguma coisa que possa pôr fora de circulação um homem que não preste atenção ao que faz - por exemplo, um estranho de quem ninguém vai sentir falta. Hein, Pinga-amor? - e deu outra palmada nas costas do Boon, desta vez ainda com mais força, sempre a olhar para ele e a sorrir. E desta vez a Everbe também viu a mão do Boon e disse, muito alto e muito depressa:
- Boon - assim mesmo: - Boon. - O tio Parsham também tinha visto.
- Aí vem o outro rapaz - disse ele. - O Otis vinha a dobrar a esquina da casa com o Lycurgus atrás, quase duas vezes mais alto
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do que ele. Mesmo sabendo o que havia de errado nele, isso não ajudava muito o Otis. Mas o Ned era o que estava a olhar para ele com ar severo. Ele aproximou-se devagar, na realidade como se viesse a passear.
- Alguém me chamou? - disse ele.
- Fui eu - disse o Ned. - Mas inda não o vi à luz do dia e pode ser que mude d'opinião. - E depois disse para o Lycurgus: - Vai buscar os arreios. - Assim, nós - eles - arreámos o cavalo, e o Lycurgus e o Ned seguiram à frente pela vereda até à várzea, connosco atrás, e até o Butch seguia com atenção o desenrolar dos acontecimentos; a não ser que, como o pescador, ele estivesse deliberadamente a dar tempo à Everbe para se recompor, para depois poder lutar outra vez com unhas e dentes contra a força daquela estrela de lata na sua camisa suada. Quando chegámos à várzea, o Ned e o Otis já estavam parados a olhar um para o outro a cerca de três metros de distância; atrás deles estava o Lycurgus com o cavalo. O Ned parecia tenso e cansado. Tanto quanto eu sabia, não tinha dormido nada, a menos que tivesse dormido uma ou duas horas no vagão em cima da palha. Mas era tudo o que ele estava: não propriamente exausto por ter passado a noite em claro, mas apenas irritado com isso. O Otis estava a tirar macacos do nariz, muito devagar. - Um sabidolas - estava o Ned a dizer - nunca vi rapaz mais sabido. Só espero que quando eu tiver o dobro da idade dele inda só saiba metade do que ele sabe agora.
- Obrigadinho - disse o Otis.
- Sabe montar? - perguntou o Ned.
- Eu vivo há uma data de anos numa quinta do Arkansas - disse o Otis.
- Sabe montar a cavalo? - repetiu o Ned. - Não interessa onde viveu ou inda vive.
- Bem, isso depende, como diz o outro - disse o Otis. - Eu achava que ia voltar para casa esta manhã. Que a estas horas já eu estava
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há muito em Kiblett, no Arkansas. Mas como os meus planos foram alterados sem ninguém me perguntar, ainda não decidi o que vou fazer a seguir. Quanto é que pagas a quem montar aquele cavalo?
- Otis! - disse a Everbe.
- Inda não chegámos aí - disse o Ned, tão doce como o Otis. - A primeira coisa a fazer é organizar as três mãos e estar à frente depois das duas primeiras. Só nessa altura se vai ver quanto.
- Hi hi hi - disse o Otis, também sem vontade de rir. - Quer dizer, não vai haver cheta para pagar a ninguém até alguém ganhar -quer dizer... tu. E nem sequer podes entrar na corrida sem arranjares alguém para montar o cavalo - quer dizer... eu. Certo?
- Otis! - disse a Everbe.
- Certo - disse o Ned. - Todos nós temos de fazer a nossa parte pra termos alguma coisa pra dividir no fim. A sua parte tamém vai ter d'espr'ar, com'a nossa.
- Pois sim - disse o Otis. - Eu já vi fazer essa divisão em partes no Arkansas, com o algodão. O problema é que a parte do tipo que faz a parte dele é sempre um pouco diferente da parte do que faz a divisão. O tipo que faz a parte dele inda tá à espera da parte que lhe cabe, porque não sabe onde ela tá. Por isso, daqui prà frente, eu quero é a minha parte em dinheiro à cabeça e vocês podem ficar com a divisão dos lucros.
- E quant'é qu'isso dá? - perguntou o Ned.
- Nada que te interesse, porque ainda não correste a primeira mão, e muito menos a ganhaste. Mas eu não me importo de te dizer, em confidência, por assim dizer. Vão ser dez dólares.
- Otis! - disse a Everbe. E avançando para ele, exclamou: - Não tens vergonha?
- Calma, Miss Everbe - disse o Ned. - Eu cá m'arranjo. - Estava com um ar cansado, mas era tudo. Sem pressa, tirou do bolso das calças um saco de farinha dobrado, desdobrou-o, tirou a carteira já muito velha e abriu-a. - Estenda a mão - disse ele ao Lycurgus, que obede-
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ceu, enquanto o Ned, muito devagar, contava seis notas muito gastas para cima dela e mais um monte de moedas de todos os tipos. - Vão faltar quinze cêntimos, mas o Mr. Hogganbeck paga a diferença.
- A diferença para quê? - disse o Otis.
- Pràquilo que disse. Dez dólares - disse o Ned.
- Tá-me cá a parecer que também és surdo - disse o Otis. - O que eu disse foi vinte dólares. - O Boon mexeu-se ao ouvir isto.
- Rai's parta isto - disse ele.
- Calma - disse-lhe o Ned. A mão do Ned nem parou, recuperando as moedas uma a uma da mão do Lycurgus, e a seguir as notas gastas, meteu tudo na carteira, embrulhou-a outra vez no saco de farinha e guardou o saco no bolso. - Então não vai montar o cavalo - disse ele ao Otis.
- Não vi o meu dinheiro... - disse o Otis.
- Ali o Mr. Boon Hogganbeck tá a preparar-se pra lho dar agora -disse o Ned. - Porque é que não se porta como um homem e diz que não vai montar aquele cavalo? A razão não interessa. - Estavam os dois a olhar um para o outro. - Vá, diga lá duma vez.
- Ná - disse o Otis. - Não vou montá-lo. - E disse mais qualquer coisa, feia, como o seu carácter; maldosa, como o seu carácter; completamente desnecessária, tal e qual como o seu carácter. Sim, nem mesmo sabendo finalmente o que era ajudava no caso dele. Por esta altura, a Everbe já o tinha agarrado e puxado com força para ela. E desta vez ele rosnou e insultou-a. - Presta atenção. Eu ainda não acabei de falar, longe disso... se me der na gana...
- Uma palavra tua - disse o Butch - e eu dou-lhe uma sova só por uma questão de princípio; já nem falo no prazer. Como diabo é que o Pinga-amor o deixou chegar a estes extremos sem ao menos uma surra?
- Não! - disse a Everbe para o Butch, continuando a agarrar o Otis pelo braço. - Tu vais voltar para casa no próximo comboio!
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- Até que enfim que diz alguma coisa de jeito - disse o Otis. -Até já lá estava se não fosse por sua culpa. - Ela soltou-o.
- Volta para a carruagem - disse ela.
- Não podes correr esse risco - disse o Boon muito depressa. -vais ter de ir com ele. - E depois disse: - Está bem, voltam todos para a cidade. Podes mandar-me buscar a mim e ao Lucius ao sol-pôr.
E eu sabia o que aquilo queria dizer, que decisão ele tinha tomado depois de muito lutar. Mas o Butch levou-nos à certa; o pescador confiante dava linha ao peixe.
- Certo - disse ele. - Mande-nos buscar. - A Everbe e o Otis foram-se embora. - E agora que este assunto está resolvido, quem é que vai montar o cavalo?
- Aqui este rapaz - disse o Ned. - Uma mão chega pràquele cavalo.
- Hi hi hi - disse o Butch; desta vez estava mesmo a rir. - Vi este cavalo correr aqui no Inverno passado. Se uma mão chega para o espevitar, se é que chega, são precisas mais mãos que as duma aranha ou dum aranhão para o pôr a correr contra o cavalo do coronel Linscomb.
- Pode ser que vomicê teja certo - disse o Ned. - É isso qu'a gente vamos descobrir agora. Meu filho - disse ele para o Lycurgus -chega-me cá o meu casaco. - Eu ainda nem tinha visto o casaco, mas o Lycurgus já estava com ele na mão; e também com a chibata. O Ned pegou em tudo e vestiu o casaco. Depois disse para o Boon e para o Butch: - Vomicês fiquem acolá debaixo daquelas árvores co tio Possum; assim ficam à sombra e não lhe tirem a atenção. Dê-me cá o seu pé - disse-me ele. - Assim fizemos. Quer dizer, o Ned pôs-me lá em cima, e o Boon, o Butch e o Lycurgus voltaram para debaixo da árvore onde já estava o tio Parsham. Mesmo só tendo dado três voltas ao prado naquela manhã, tínhamos lá deixado vestígios de uma pista de que o Relâmpago se ia lembrar mesmo
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que eu não conseguisse vê-la. O Ned levou-o para o ponto donde tínhamos partido de manhã e falou com calma e poucas palavras. Agora não era o tio Remus. Mas nunca era, quando à volta dele só estava eu e membros da sua raça:
- Aquela pista amanhã não chega a ter um quilómetro, por isso vai ter de dar duas voltas. Faça de conta que esta já é a outra, pra quand'ele amanhã vir a verdadeira já saber de antemão o qu'o espera e o que tem de fazer. Tá a perceber?
- Estou - disse eu. - Faço-o dar duas voltas... Estendeu-me a chibata.
- Faça-o correr depressa, com genica. Dê-lhe uma vez co ela antes memo d'ele a ver e depois não lhe toque mais co ela até eu dizer. Mantenha-o a correr o mais depressa que puder com os calcanhares e com palavras, mas não lhe faça nada: deixe-s'ir. Vá com atenção pra dar duas voltas, e veja s'ele vai também com atenção, como fazia cos potros lá no McCaslin. Não a pode usar, mas desta vez tem a chibata. Mas não lhe toque até eu dizer. - Voltou-me as costas e pôs-se a fazer qualquer coisa por dentro do casaco, qualquer coisa minuciosa com as mãos escondidas; nisto cheirou-me a qualquer coisa, um cheiro leve, mas nítido; agora sei que o devia ter reconhecido logo, mas na altura não tive tempo para isso. Ele vol-tou-se para trás e, tal como tinha feito de manhã para atrair o cavalo para dentro do vagão, a mão dele tocou, afagou o focinho do Relâmpago talvez por um segundo, e depois ele deu um passo atrás, já com o Relâmpago a querer ir atrás dele se eu não tivesse puxado as rédeas. - Vá! - disse o Ned. - Bata-lhe com força!
Assim fiz. Ele deu um pinote, atirou-se para a frente impelido apenas pelo medo, nada mais; foi precisa meia passada para lhe levantar a cabeça e mais outra para ele perceber que era pela pista que queríamos ir; e lá retomámos o nosso caminho, agora a galope rasgado, só com a pressão necessária na rédea de fora para o manter na trajectória; e eu já a meter-lhe os calcanhares com quanta
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força tinha, mesmo antes de o medo se começar a dissipar. Só que voltou a acontecer precisamente o mesmo que de manhã: ia a andar bem, obediente, cheio de força, mas outra vez aquela sensação de que a cabeça não queria ir propriamente a lado nenhum; até entrarmos no troço final e ele voltar a ver o Ned do outro lado da pista. E então foi de novo a explosão, e lá disparou ele com o freio nos dentes, saindo da pista e cortando a direito em direcção ao Ned antes que eu pudesse recuperar o equilíbrio o suficiente para deitar a mão boa às rédeas e puxá-la com força, obrigando-o a voltar à pista, a toda a velocidade; tive de o segurar com a rédea de fora para voltar ao troço donde podia ver o Ned outra vez e mais uma vez ele mordeu o freio para ir direito a ele; agora eu tinha de usar também a mão ferida para o manter na pista; pareceu-me uma eternidade até o Ned dizer:
- Bata-lhe com força e depois largue a chibata.
Assim fiz e atirei a chibata para trás das costas; novo salto, mas desta vez eu tinha-o controlado, pois bastava uma rédea, a de fora, para o manter na trajectória, e ele em bom ritmo, atacando a primeira curva, e eu já preparado para quando ele visse o Ned, e ele em bom ritmo, recta de trás, sempre em frente, atacando a última curva, sempre em frente, agora com o Ned postado uns vinte metros para lá do sítio onde estaria a meta, a falar no tom de voz exacto para o Relâmpago o ouvir, e exactamente como tinha falado com ele à porta do vagão na noite anterior - e eu nem precisei da chibata; nem teria tido tempo de usá-la se ainda a tivesse na mão e até àquele momento eu estava convencido de que tinha montado pelo menos um cavalo a que podia realmente chamar veloz, mas nada como isto, esta explosão, este poder de arranque, como se até agora tivéssemos vindo a arrastar uma corda com um pedaço de madeira na ponta e a voz do Ned a tivesse cortado:
- Vamos, meu filho. Tá aqui.
E lá estávamos nós, o Relâmpago com o focinho enfiado até às
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narinas na mão do Ned, apesar de tudo o que eu conseguia sentir agora ser apenas o fedor a suor de cavalo e tudo o que conseguia ver ser a mão cheia de erva que o Relâmpago estava a comer; e o Ned a dizer: - Hi hi hi - tão baixinho e com uma voz tão doce que eu também comecei a falar baixo.
- O que...? - disse eu. - O que...? - Mas o Boon não vinha a falar baixo quando se aproximou.
- Rai's me partam. Que diabo é que tu lhe disseste?
- Nada - disse o Ned. - Pra ele vir comer a janta, só isso. - E o Butch também não: valentão, confiante, irredutível, sem escrúpulos nem piedade.
- Sim senhor - disse ele. Não tirou a cabeça do Relâmpago da mão do Ned: puxou-a para cima com um repelão e agarrou o freio com violência quando o Relâmpago tentou recuar, assustado.
- Eu seguro-o - disse o Ned muito depressa. - O que é que quer saber?
- Quando eu precisar de ajuda para lidar com os cavalos, chamo por alguém - disse o Butch. - E não há-de ser por ti. Tu ficas de reserva para quando eu precisar de gritar por ajuda lá no Mississippi. - Levantou o beiço do Relâmpago e olhou-lhe para as gengivas e depois para os olhos. - Não sabes que é contra a lei drogar um cavalo para uma corrida? Talvez vocês lá nos pântanos não tenham ouvido dizer nada, mas é assim.
- Mas médicos de cavalos nós temos, lá no Mississippi - disse o Ned. - Mande chamar um pra ver s'ele tá drogado.
- Claro, claro - disse o Butch. - Mas porque é que lha deste um dia antes da corrida? Para ver se funcionava?
- Isso mesmo - disse o Ned. - S'eu não lhe der nada. Como não dei. Como vomicê, se percebe de cavalos, já percebeu.
- Claro, claro - disse o Butch de novo. - Não me intrometo nos segredos profissionais de ninguém... desde que funcione. Este
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cavalo vai voltar a correr assim amanhã? E não estou a dizer uma vez: estou a dizer três vezes.
- Ele só precisa d'o fazer duas - disse o Ned.
- Pronto, está bem - disse o Butch. - Duas vezes. Vai?
- Pergunte ali ao Mr. Hogganbeck se não é melhor que ele corra duas - disse o Ned.
- Eu não tenho de perguntar nada ao Pinga-amor - disse o Butch. - É a ti que estou a perguntar.
- Eu posso fazê-lo repetir aquilo duas vezes - disse o Ned.
- Seja - disse o Butch. - De facto, se tudo o que te resta são três doses, eu não arriscava mais de duas vezes. Assim, se ele perder à segunda, podes usar a última para ele voltar para o Mississippi.
- Tamém pensei nisso - disse o Ned. - Leve-o prò estábulo -disse-me ele. - Deixe-o arrefecer e depois damos-lhe banho.
O Butch também ficou a assistir, pelo menos a parte. Voltámos para o estábulo, tirei-lhe os arreios e o Lycurgus trouxe um balde e um esfregão, lavou-o de alto a baixo e limpou-o com sacos de estopa antes de o meter na baia e lhe dar a ração - ou ter começado a dar. Porque o Butch disse:
- Vamos, rapaz, e leva um balde de água e açúcar para a varanda da frente. Eu e o Pinga-amor vamos tomar um toddy - embora o Lycurgus não se tivesse mexido até o tio Parsham dizer:
- Vai lá. - E ele foi, com o Boon e o Butch atrás. O tio Parsham ficou parado à porta do estábulo a olhar para ele (quer dizer, para o Butch), com a sua silhueta magra e dramática de velho, imperial, toda a preto e branco: calças pretas, camisa branca, cara preta e chapéu preto, cabelo e bigode brancos. - É a autoridade - disse ele. Disse-o serenamente, com frio e distante desprezo.
- A um homem que nunca teve nada lá dentro, basta um cra-chazeco pra lhe subir à cabeça tão depressa qu'até nos põe a nossa a andar à roda - disse o Ned. - Só que não era co crachá, mas coa
pistola qu'ele sonhava quando era menino, mas sempre soube
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qu'assim que tivesse idade pra ter uma, a lei não o ia deixar brincar com ela. E agora com aquele crachá não corre o risco de ir parar à cadeia e ficar sem ele, e pode continuar a ser menino apesar de ter crescido. O perigo é qu'a pistola vai continuar na cabeça do menino até ò dia em qu'ele vai disparar sobre alguma coisa viva antes de s'aperceber qu'apontou a arma. - Entretanto chegou o Lycurgus.
- Tão à sua espera - disse-me ele. - A charrete.
- Já voltou da cidade? - perguntei.
- Não chegou a partir - disse o Lycurgus. - Não saiu daqui. Ela tá lá sentada há um tempão co'aquele rapaz à vossa espera. Ela diz pra irem.
- 'Pere - disse o Ned. - Parei; ainda tinha a meia calçada e julguei que ele se estava a referir a isso. Mas ele estava a olhar para mim. - Agora vai começar a ser abordado pelas pessoas.
- Que pessoas?
- A estas horas a notícia já se espalhou, sobre a corrida.
- Espalhou-se como? - disse eu.
- Com'é qu'as notícias se espalham? - disse ele. - Nem é preciso mensageiros, basta haver dois cavalos capazes de correr a menos de quinze quilómetros um do outro. Com'é qu'acha qu'a Autoridade veio aqui parar? Que se calhar farejou a rapariga branca a seis ou sete quilómetros como um cão. Eu sei; eu tinha esp'-rança qu'acontecesse aquilo em qu'o Boon Hogganbeck inda acredita: que podíamos juntar aqui os dois cavalos pela calada, todos contentes, e fazer a corrida, ganhá-la ou perdê-la, e eu, vomicê e ele podíamos voltar pra casa ou ir pra outro sítio qualquer, desde que fora do alcance do Patrão Priest. Mas agora isso acabou. A partir d'agora vai começar a encontrá-los. E amanhã inda vão ser mais.
- Queres dizer que podemos fazer a corrida?
- Agora temos de a fazer. Se calhar sempre tivemos desde qu'o Boon percebeu qu'o patrão tinha afastado os olhos daquele auto-
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móvel por vinte e quatro horas. Mas agora é que temos memo de a fazer.
- O que é que queres que eu faça? - perguntei.
- Nada. Tou só a dizer-lhe pra depois não s'admirar. Tudo o que temos de fazer é pôr os dois cavalos na mema pista virados prò memo lado e vomicê só tem de tar montado no Relâmpago e fazer o qu'eu disser. E agora vá, antes que comecem a gritar por si.
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IX

O Ned estava certo. Quer dizer, a respeito de a notícia se ter espalhado. A minha mão estava normal quando a Everbe me tirou a meia. Quer dizer, estava como a mão de qualquer pessoa que se tivesse cortado na véspera a toda a largura dos quatro dedos. Acho que não tinha voltado a sangrar, mesmo quando a tinha esforçado para segurar o Relâmpago nessa tarde. Mas com a Everbe isso não adiantou e parámos primeiro no consultório do médico, a cerca de dois quilómetros, deste lado da cidade. O Butch conhecia-o, sabia onde era, mas não sei como é que a Everbe o convenceu a levar-nos lá - com súplicas ou ameaças ou promessas ou talvez tenha feito como uma mãe truta, tão preocupada em proteger a truta pequenina que tivesse deixado de se portar como se realmente estivesse ali um anzol atado a uma linha e o pescador tivesse de fazer qualquer coisa nem que fosse livrar-se da truta pequena. Ou talvez não fosse a Everbe, mas o frasco vazio, e o próximo copo tivesse de ser no hotel de Parsham. Porque quando dobrei a esquina da casa, a mãe do Lycurgus estava na ponta da varanda com um açucareiro e um balde de água com uma concha feita de cabaça e o Butch e o Boon estavam a emborcar dois copázios e o Lycurgus a tirar o frasco vazio de cima da roseira para onde o Butch o tinha atirado.
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E então o Butch levou-nos ao médico - uma casa pequena que outrora tinha sido branca no meio de um pequeno quintal cheio de flores poeirentas, fétidas e luxuriantes, das que chegam no fim do Verão e caem logo, uma mulher gorda e grisalha de lornhão à professora reformada que mesmo já passados quinze anos ainda odiava crianças de oito anos, que veio abrir a porta, olhou para nós (o Ned estava certo) e disse lá para dentro:
- É aquela gente do cavalo de corrida. - Deu meia-volta e desapareceu, e o Butch já a entrar por ali adentro antes que ela tivesse tempo de se virar para trás, sorridente, como se já lhe tivessem dado as boas-vindas - ou como se fosse melhor que alguém se apressasse a fazê-lo (mais uma vez o crachá, estás a ver; uma vez que o tinha ou que simplesmente sabiam que o tinha, entrar numa casa de outra maneira qualquer não seria apenas mera traição individual, mas traição à casta e um escândalo) - e a dizer:
- Ora viva, doutor, tenho aqui um doente para si. - Falava com um homem também grisalho, se fosse possível limpar o fumo do tabaco impregnado nas suíças hirsutas, com uma camisa branca como a do Ned, mas não tão limpa, e também um casaco preto com um pingo do ovo de há dois dias a escorrer por ele abaixo, um homem que cheirava e se parecia também com qualquer coisa, que não era só álcool, ou melhor, não tudo álcool. - Eu e o mano Hogganbeck esperamos na sala - disse o Butch. - Não se incomode; eu sei onde está a garrafa. Não te preocupes com o doutor -disse ele para o Boon. - Ele quase nunca toca no uísque a menos que tenha mesmo de ser. A lei permite-lhe usar uma dose de éter como parte da cura de pacientes com hemorragias ou fracturas. Se for só um golpezito de nada ou um dedo partido ou uma esfola-dela como esta, o doutor divide a dose entre ele e o paciente: ele fica com o éter e o paciente com a cura. Ah ah ah. Por aqui.
E o Butch e o Boon lá foram os dois, e a Everbe e eu (sem dúvida já reparaste que ainda ninguém tinha dado pela falta do Otis.
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Saímos da charrete; parecia que era do Butch; pelo menos era ele que ia a conduzir; tínhamo-nos atrasado no tio Parsham enquanto o Butch tentava persuadir, depois convencer a bem e por fim obrigar a Everbe a sentar-se à frente ao lado dele, mas ela trocou-lhe as voltas e foi para o banco de trás, dando-me um braço e segurando o Otis dentro da charrete com a outra mão até o Boon ir para a frente para o lado do Butch, e, primeiro o Butch e depois nós todos, entrámos em casa do médico, mas nessa altura ninguém se lembrou do Otis) fomos com o médico para uma outra sala onde havia um sofá de crina com uma almofada imunda e um edredão acolchoado, e uma escrivaninha de tampa de correr pejada de frasquinhos de remédios e mais frasquinhos na cornija da lareira onde ainda jaziam intocadas as cinzas da última fogueira do último Inverno, e um lavatório com bacia e jarro e um bacio que ainda ninguém tinha despejado, cada um a seu canto e uma espingarda no outro; e se a minha mãe lá estivesse as unhas dele não teriam tocado sequer em nenhum arranhão que ela tivesse, muito menos quatro dedos cortados, e claro que a Everbe era da mesma opinião, pois disse:
- Eu tiro a ligadura - e assim fez. Eu disse que a mão estava bem. O médico olhou para ela através dos óculos de armação de aço.
- O que é que lhe puseste? - perguntou ele. A Everbe disse-lhe. Agora já sei o que é. O médico olhou para ela: - Como é que tinhas isso à mão? - perguntou. Depois puxou os óculos para cima pegan-do-lhes por um canto da lente, olhou para ela e disse: - Oh. - E depois: - Bem, bem. - Voltou a puxar os óculos para baixo e - sim, era um suspiro - disse: - Há trinta e cinco anos que não vou a Memphis
- parou um minuto e - estou a dizer-te, era um suspiro - repetiu:
- Sim, há trinta e cinco anos. - E depois: - Se eu fosse a ti não lhe fazia nada. Ligava-a outra vez e pronto. - Sim, exactamente como a minha mãe: ele tirou a ligadura, mas ela voltou a colocá-la. - És o rapaz que vai entrar naquela corrida amanhã? - perguntou ele.
- É sim - disse a Everbe.
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- Vence-me aquele cavalo do Linscomb desta vez, rai's o partam.
- Vamos tentar - disse a Everbe. - Quanto lhe devemos?
- Nada - disse ele. - Tu já a curaste. Trata mas é de vencer aquele maldito cavalo do Linscomb amanhã.
- Quero pagar-lhe por ter olhado para ela - disse a Everbe. - Por nos ter dito que está tudo bem.
- Não - disse ele. Depois olhou para ela com os seus olhos de velho ampliados por trás dos óculos, mas infocáveis, como dois ovos sem conserto, até dar a ideia de lhes ser completamente impossível captar e guardar coisas tão recentes como eu e a Everbe.
- Sim - disse a Everbe - o que é?
- Não tens por acaso um lenço a mais ou coisa assim... - E depois: - Sim, trinta e cinco anos. Um dia tive um, quando era jovem, trinta, trinta e cinco anos atrás. Depois casei-me e ele... - E depois: - Sim, trinta e cinco anos.
- Oh - disse a Everbe, voltando-nos as costas e dobrando-se para a frente com um ruge-ruge de saiotes; não demorou nada; novo ruge-ruge quando se endireitou. - Tome lá - disse ela. Era uma liga.
- Vence esse maldito cavalo! - disse ele. - Vence-o! Tu consegues! - Nisto ouvimos as vozes - quer dizer, a voz, do Butch - a falar alto no pequeno vestíbulo antes de lá chegarmos:
- Já viram isto? O Pinga-amor já não quer beber mais. Todos compinchas, toma lá dá cá, nada de golpes baixos, e agora insulta-me. - Estava parado a sorrir para o Boon, triunfante, desafiador. O Boon estava com uma cara de meter medo. Tal como o Ned (todos nós) também estava a cair de sono. Mas toda a carga que o Ned tinha de transportar era o cavalo; a Everbe e o crachá do Butch não lhe davam cuidado. - Então rapaz? - disse o Butch já a prepa-rar-se para dar ao Boon mais uma palmada nas costas com aquela força e jovialidade que era só um nadinha violenta de mais, mas não totalmente.
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- Não volte a fazer isso - disse o Boon. O Butch parou. Não desfez o movimento: só o interrompeu, sempre a sorrir para o Boon.
- O meu nome é Mister Lovemaiden - disse ele. - Mas trata-me
por Butch.
Daí a um bocado o Boon disse:
- Lovemaiden.
- Butch - disse o Butch.
- Lindo menino - disse o Butch. E depois para a Everbe: - O Doe tratou-vos bem? Se calhar devia ter-te avisado acerca do Doe. Dizem por aí que, quando ele tinha o sangue na guelra, há cinquenta ou sessenta anos atrás, tinha-te deitado a mão aos culotes ainda antes de levar a mão ao chapéu.
- Vamos embora - disse o Boon. - Pagaste-lhe?
- Sim - disse a Everbe. Saímos lá para fora e foi então que alguém disse: Onde está o Otis? Não, foi a Everbe, claro; essa olhou em volta uma vez e disse: - Otis! - muito alto, com força, para não dizer com urgência, para não dizer aflita e desesperada.
- Não me digas que ele tem medo de cavalos mesmo amarrados a um portão - disse o Butch.
- Vamos embora - disse o Boon. - Ele só foi à frente; não tem mais sítio nenhum para onde ir. A gente apanha-o.
- Mas porquê? - disse a Everbe. - Porque é que ele não...
- Como é que hei-de saber? - disse o Boon. - Talvez ele tenha razão. - Referia-se ao Butch. Depois era ao Otis: - Apesar de ele ser o filho da mãe mais sabido que já saiu do Arkansas ou do Mississippi, não deixa de ser um cobardolas rematado. Vamos embora. - E então subimos para a charrete e partimos para a cidade. Mas eu estava do lado da Everbe no que tocava ao Otis; quando não o víamos é que era boa altura para começarmos a pensar onde ele estaria e porquê. Nunca vi ninguém perder a confiança dos outros tão depressa como ele; agora ia ter muita dificuldade em encontrar alguém nesta charrete disposto a levá-lo a outro zoo ou fosse onde
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fosse. E não ia tardar muito para também não ser capaz de encon-tar ninguém em Parsham.
Só que não o apanhámos. Não o vimos na estrada até ao hotel. E o Ned estava errado. Quer dizer, acerca da crescente multidão de fãs de corridas de cavalos que íamos encontrar daí em diante. Talvez eu estivesse à espera de os ver apinhados na varanda do hotel à nossa espera, a ver a nossa chegada. Se assim era, enganei-me; não estava lá absolutamente ninguém. Claro que no Inverno, durante a época da caça à codorniz, e especialmente nas duas semanas dos National Trials, seria diferente. Mas naquele tempo Parsam não tinha uma temporada de Verão como Londres; as pessoas iam para outros lados, praia ou montanha, para Raleigh, perto de Memphis, ou para Iuka, não muito longe do Mississippi, ou para os Ozarks ou Cumberlands. (Aliás, agora também não tem, como nenhum outro lugar tem, temporada de Verão nem de temporada de Inverno; já não há temporadas, com os interiores das casas artificialmente mantidos a quinze graus no Verão e a trinta no Inverno, para os botas-de-elástico inveterados como eu que tivessem de sair de casa no Verão fugirem ao frio e no Inverno ao calor; contando também com os automóveis que eram antigamente uma mera necessidade económica, mas são agora uma necessidade social, e está para breve o momento em que, se toda a raça humana deixar de circular ao mesmo tempo, a superfície da terra vai ficar inundada, coalhada: há gente de mais; a humanidade há-de destruir-se a si própria não pela fissão atómica, mas por outra coisa que começa por F e que é ao mesmo tempo um verbo na voz activa e um estado condicional; eu já não estarei cá para ver, mas tu talvez: uma lei imposta e aplicada por um implacável e frenético desespero social - não económico - para não deixar que as mulheres tenham mais de um filho tal como agora não podem ter mais de um marido.)
Mas no Inverno, claro (como agora), era diferente, com a tem-
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porada das codornizes e os Grand National Trials, com todo o dinheiro dos magnatas do petróleo e do trigo de Wall Street, Chicago e Saskatchewan, e os fabulosos cães com pedigrees mais invejáveis do que os de príncipes, e os fabulosos canis de criação e treino a apenas alguns minutos de automóvel - Red Banks, Michigan City, La Grange e Germantown, e os nomes - Coronel Linscomb, contra cujo cavalo (assim pensávamos) íamos correr no dia seguinte, e Horace Lytle e George Peyton, nomes tão prestigiados entre os amantes de cães de caça como Babe Ruth e Ty Cobb entre os afi-cionados do beisebol, e Mr. Jim Avant de Hickory Fiat e Mr. Paul Rainey, meia dúzia de quilómetros mais abaixo na linha-férrea de Jefferson do Coronel Sartoris, ambos conhecedores de cães de caça, que (julgo eu), ao olharem para estes perdigueiros e setters só com pedigree, se consideravam entre a ralé; o enorme e desconexo hotel fervilhava então de actividade, aprumado e elegante, onde o próprio ar ressoava com o murmúrio suave do dinheiro, coberto de fitas multicores e atravancado de taças de prata.
Mas agora não havia lá ninguém e a rua deserta e silenciosa estava coberta com o pó de Maio (já passava das seis; Parsham estava em casa a jantar - ou a preparar-se para jantar), deserta até de Otis, embora ele pudesse estar, como provavelmente estava, lá dentro. E o que era ainda mais surpreendente, pelo menos para mim, deserta de Butch. Ele limitou-se a levar-nos à porta, a deixar-nos sair e a ir-se embora, detendo-se apenas o tempo suficiente para lançar à Everbe um olhar duro, sinistramente jocoso, e ao Boon um olhar duro, jocosamente sinistro, talvez um tudo nada mais duro do que à Everbe, dizendo:
- Não te preocupes, rapaz, eu volto. Se tens assuntos pendentes, é melhor resolvê-los antes de eu voltar, ou alguma coisa pode correr mal - e foi-se embora. Portanto, aparentemente ele também tinha um lugar para estar de vez em quando, uma casa; eu continuava ignorante e ingénuo (não tanto como há vinte e qua-
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tro horas atrás, mas ainda embotado), mas estava do lado do Boon, era para ele que ia a minha lealdade, já sem falar na Everbe, e já tinha assimilado o suficiente desde a véspera (tivesse ou não digerido tudo) para saber exactamente o que pretendia quando desejei que ele pudesse ter uma mulher à espera dele lá dentro -uma inocente qualquer arrebatada a um convento cuja traição cruel e gratuita viesse acrescentar uma última ofensa ao cômputo final da sua impiedosa e natural baixeza; melhor ainda: uma megera ambidestra que chegava para ele, pelo menos para lhe atirar à cara cada uma das suas conquistas extraconjugais. Porque o mais provável era que o prazer que retirava da fornicação era mostrar quem era vítima. Mas eu estava a ser injusto. Ele era solteiro.
Mas o Otis também não estava dentro do hotel: só o solitário recepcionista eventual no átrio semicoberto de lençóis e o solitário criado eventual a agitar o guardanapo à porta da sala de jantar completamente coberta de lençóis excepto uma mesa solitária posta para anónimos esporádicos como nós éramos - isto é, éramos até agora. Mas ninguém tinha visto o Otis.
- Não é tanto saber onde ele está que me preocupa - disse o Boon - como saber que diabo fez ele desta vez que nós ainda não descobrimos.
- Nada! - disse a Everbe. - Ele é apenas uma criança!
- Claro - disse o Boon. - Apenas uma criancinha armada. Quando tiver idade suficiente para roubar...
- Chega! - disse a Everbe. - Não vou...
- Está bem, está bem - disse o Boon. - Achar, então. Achar dinheiro suficiente para comprar uma navalha com uma lâmina de quinze centímetros em vez daquele canivete de cinco, e quem lhe virar as costas é melhor que esteja vestido com uma daquelas armaduras antigas como as que há nos museus. Temos de ter uma conversa - disse-lhe ele. - O jantar é daqui a nada e depois temos
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de ir esperar o comboio. E aquele garanhão de crachá ao peito está por aí a chegar a relinchar e aos pinotes a qualquer momento. Ele deu-lhe o braço e disse:
- Vamos lá.
Isso foi quando eu tive de começar a ouvir o Boon. Quer dizer, tive mesmo. A Everbe obrigou-me. Ela nem sequer queria ir com ele se eu não fosse também. Nós - eles - fomos para a salinha das senhoras; tínhamos de jantar e depois ir à estação esperar a Miss Reba. Naquele tempo as mulheres não andavam num corrupio a entrar e a sair dos quartos dos cavalheiros nos hotéis como, segundo me disseram, fazem agora, chegando mesmo a usar, segundo me disseram, aquilo a que os anúncios chamam calcinhas ou biquinis capazes de dar às mulheres a liberdade de que precisam para lutarem pela liberdade; de facto, eu nunca tinha visto uma mulher sozinha num hotel (a minha mãe não iria para ali sem o meu pai) e lembro-me de ter achado estranho como é que tinham sequer deixado entrar a Everbe sem aliança de casada. Lá - nos hotéis -eles tinham as chamadas salinhas das senhoras, como esta onde estávamos agora - uma sala mais pequena, mas ainda mais elegante, e também ela quase inteiramente coberta com capas de pano de Holanda. Mas eu ainda estava do lado do Boon; não entrei, fiquei parado do lado de fora da porta, onde a Everbe podia saber onde eu estava se precisasse de me chamar, mesmo que não pudesse verme. E então ouvi. Bem, escutei. Teria ficado à escuta de qualquer maneira; por esta altura já tinha ido longe de mais em sofisticação e nos factos da vida para parar dum momento para o outro, tal como tinha ido longe de mais no roubo de automóveis e em cavalos de corrida para também conseguir parar. E então ouvi-os: a Everbe, e quase logo a seguir pôs-se a gritar outra vez:
- Não! Não quero! Deixa-me em paz! - Depois o Boon:
- Mas porquê? Disseste que me amavas. Isso também era mentira? - Depois a Everbe:
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- Eu amo-te. É por isso mesmo. Deixa-me em paz! Larga-me! Lucius! Lucius! - Depois o Boon:
- Cala-te. Pára com isso imediatamente. - Depois nada durante um minuto. Eu não olhei, não espreitei, limitei-me a escutar. Não: só a ouvir: - Se eu desconfiasse que estavas a trocar-me as voltas com esse maldito do crachá... - Depois a Everbe:
- Não! Não! Não estou! - Depois qualquer coisa que não consegui ouvir, até que o Boon disse:
- O quê? Desistir? O que é que queres dizer com isso de desistir? - Depois a Everbe:
- Isso mesmo! Desisti! Acabou-se. Nunca mais! - Depois o Boon:
- E como é que vais viver? O que é que vais comer? Onde vais dormir? - E a Everbe:
- Vou arranjar um emprego. Eu posso trabalhar.
- O que é que tu sabes fazer? Não tens mais instrução do que eu. O que é que sabes fazer para ganhar a vida?
- Posso lavar pratos. Lavar e passar roupa. Posso aprender a cozinhar. Posso fazer qualquer coisa, até mondar e apanhar algodão. Deixa-me ir, Boon. Por favor. Por favor. Tenho de ir. Não vês que tenho de ir? - Depois o ruído dos passos dela a correr, mesmo na carpete espessa; tinha-se ido embora. E desta vez o Boon apa-nhou-me. Desta vez a cara dele estava péssima. O Ned estava com sorte; só tinha de se ralar com um cavalo de corrida.
- Olha para mim - disse o Boon. - Olha bem para mim. O que é que há de errado comigo? Que diabo há de errado comigo? Dantes eu era... - A cara dele parecia prestes a explodir. Voltou à carga: - E porquê eu? Por que diabo eu? Por que diabo é que ela tinha de me escolher para se reabilitar? Raios a partam, ela é uma puta, será que não entende isso? Ela é paga para me pertencer, a mim e só a mim, no momento em que põe os pés onde eu estiver, tal como eu sou pago para pertencer ao Patrão e ao Mr. Maury, a eles e a mais nin-
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guém, no momento em que ponho os pés onde eles estiverem. Mas agora desistiu. Por razões pessoais. Não consegue aguentar mais. Ela também não tem mais direito a desistir sem o meu consentimento do que eu tenho a desistir sem o consentimento do Patrão e do Mr. Maury... - calou-se, furioso e confuso, enraivecido e impotente; mais ainda: aterrorizado. Lá estava o criado negro a passar por esta porta a agitar o guardanapo. O Boon fez um esforço tremendo para disfarçar, enquanto o Ned, que só tinha uma corrida de cavalos para vencer, nem sabia o que eram preocupações. - Vai dizer-lhe que venha jantar. Temos de ir esperar o comboio. O quarto dela é o cinco.
Mas ela não quis sair do quarto, e eu e o Boon jantámos sozinhos. A cara dele ainda não estava muito melhor. Comia como se estivesse a meter carne numa picadora: não como se quisesse comer ou não quisesse comer, mas porque eram horas de comer. Daí por um bocado eu disse:
- Talvez ele esteja a voltar a pé para o Arkansas. Esta tarde ele disse duas ou três vezes que era onde ele estaria a estas horas se as pessoas não tivessem passado a vida a interferir com ele.
- Claro - disse o Boon. - Se calhar foi à frente para lhe arranjar o tal emprego a lavar pratos. Ou se calhar ele também se reabilitou e vão os dois direitinhos para o céu sem pararem no Arkansas nem em mais lado nenhum, e ele só foi à frente para descobrir como passar por Memphis sem que ninguém os veja. - Depois eram horas de irmos. Já há dois minutos que eu estava a ver a ponta do vestido dela através da porta da sala de jantar, mas foi o criado que veio.
- O duzentos e oito, senhor - disse ele. - Apitou mesmo agora na passagem de nível. - E nós lá fomos até à estação, que não era longe, os três lado a lado, como simples clientes do mesmo hotel. Quer dizer, agora nós - eles - não iam a discutir; nós - eles - poderiam até ir a falar, a conversar comedidamente e sem consequências. A Everbe tê-lo-ia feito, mas teria de ser o Boon a falar primeiro.
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Não era longe: foi só atravessar a linha e subir para a plataforma, já com o comboio à vista, e eles dois (o Boon e a Everbe) juntos mas separados, estranhos mas indissolúveis, interligados mas inconciliáveis por aquilo que para o Boon não passava de um capricho: ele (o Boon) que apesar da idade pouco mais velho era do que eu e nem sequer sabia que as mulheres já não têm caprichos, mais do que dúvidas ou ilusões ou problemas da próstata; o comboio, a locomotiva, passou por nós com um silvo aterrador, entre as faú-lhas que saltavam dos calços dos travões; era o comprido, o grande, o foguete, o Especial: os vagões da bagagem, a carruagem dos negros, que tinha metade reservada para salão de fumo, as carruagens normais, as intermináveis carruagens-cama e, por fim, a carruagem restaurante, tudo a abrandar; era o comboio do Sam Caldwell e se a Everbe e o Otis tinham viajado para Parsham na carruagem dos ferroviários, a Miss Reba vinha certamente no salão, se não mesmo na carruagem presidencial; o comboio finalmente parou, mas nenhuma porta se abriu nem sinais de carregadores de casaco branco nem de maquinista, embora o Sam estivesse certamente a tentar localizar-nos; até o Boon dizer: "Diabo, o salão de fumo" e desatar a correr. Depois vimo-los todos, lá à frente: o Sam Caldwell, com o seu uniforme, em cima das cinzas, a ajudar a Miss Reba a descer, alguém - uma outra mulher - atrás dela, a saírem não do salão de fumo, mas da parte da carruagem dos negros reservada aos negros; o comboio - era o especial para Washington e Nova Iorque, o foguete, que transportava ricaças ajoujadas de diamantes e homens a fumar charutos de dólar numa aprazível e recatada transmigração de um extremo ao outro da terra - de novo em movimento, dando ao Sam tempo apenas para nos acenar do degrau enquanto desaparecia rumo ao leste entre as curtas e intermitentes baforadas de vapor e os longos silvos do apito e, por fim, as duas lanternas vermelhas cada vez mais pequeninas, e as duas mulheres ali paradas, entre malas e sacos de viagem, no espaço
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vazio de cinzas, a Miss Reba afoita, bonita e muito chique, e a Minnie ao seu lado mais parecendo a morte.
- Tivemos problemas - disse a Miss Reba. - Onde é o hotel? -Fomos para o hotel. Lá, no átrio iluminado, podíamos ver bem a Minnie. Afinal a cara dela não parecia a da morte. A morte é serena. O que o olhar fixo e os lábios cerrados da Minnie auguravam não era serenidade e também não era sobre ela que tal augúrio pesava. O recepcionista apareceu. - Sou a Mrs. Binford - disse a Miss Reba. - Recebeu o meu telegrama a pedir uma cama extra no meu quarto para a minha criada?
- Sim, Mrs. Binford - disse o recepcionista. - Nós temos aposentos especiais para os criados, com sala de jantar própria...
- Pois podem ficar com eles - disse a Miss Reba. - O que eu disse foi uma cama no meu quarto. Quero-a junto de mim. Esperamos na salinha enquanto preparam a cama. Onde fica? -Mas ela já tinha localizado a salinha das senhoras, e nós fomos atrás dela. - Onde está ele? - perguntou.
- Onde está quem? - disse a Everbe.
- Sabes bem quem - disse a Miss Reba. E de repente eu também soube, e percebi que não tardava a saber porquê. Mas não deu tempo. A Miss Reba sentou-se. - Senta-te - disse ela à Minnie. Mas a Minnie não se mexeu. - Está muito bem - disse a Miss Reba. - Conta-lhes. - A Minnie fez-nos um sorriso. Era fantasmagórico: um ritus ansioso de predador, um arreganhar angustiado e rapace onde os seus dentes belos e incomparáveis se projectavam para o orifício negro que albergara o dente de ouro; percebi então porque é que o Otis tinha fugido de Parsham, mesmo tendo de o fazer a pé; oh sim, nesse momento há cinquenta e seis anos atrás senti a mesma incredulidade escandalizada e horrorizada que estás a sentir agora, até que finalmente a Minnie e a Miss Reba nos contaram.
- Foi ele! - disse a Minnie. - Eu sei que foi ele! Tirou-o enquanto eu estava a dormir!
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- Diabos me levem - disse o Boon. - Roubaram-te um dente da boca e tu não deste por nada?
- Raios, ouve até ao fim - disse a Miss Reba. - A Minnie tinha mandado fazer o dente assim mesmo, para o poder pôr e tirar... com horas extraordinárias, poupando e economizando... quantos anos foram, Minnie? Três, não foi?... Até juntar dinheiro para tirar o dente verdadeiro e pôr aquele maldito dente de ouro. Ah, sim, eu fiz os possíveis por lhe tirar isso da cabeça... estragar assim aquela dentadura natural que qualquer outra pessoa daria mil dólares por dente para a ter, isso e a tudo o mais que ela tinha; sem falar do que teve de dar a mais para lho fazerem de maneira a poder tirá-lo para comer...
- Tirá-lo para comer? - disse o Boon. - Então para que diabo é que ela quer os dentes?
- Há muito que eu queria aquele dente - disse a Minnie. - Trabalhei e poupei para o ter, trabalhei que me fartei. E agora não quero estragá-lo todo com comida misturada com cuspo.
- Por isso, ela tirava-o para comer - disse a Miss Reba. - Punha-o ali mesmo diante do prato, onde o podia ver, não só olhar para ele, mas apreciá-lo enquanto estava a comer. Mas não foi assim que ele o apanhou; ela diz que voltou a colocá-lo depois do pequeno-almoço, e eu acredito nela; ela nunca se esqueceu dele antes porque tinha muito orgulho nele, era valioso, tinha-lhe custado um dinheirão; como vocês também não deixariam num sítio qualquer aquele maldito cavalo que custou uma data de vezes mais do que um dente de ouro, e depois esqueciam-se dele...
- Eu sei que nunca... - disse a Minnie. - Voltei a pô-lo mal acabei de comer. Lembro-me muito bem. Só que estava cansada, derreada de todo...
- Pois é - disse a Miss Reba. Falava agora com a Everbe: - Acho que ontem à noite quando vocês chegaram eu já estava bem aviada. O dia já estava a despontar e eu ainda não tinha parado, e já o sol tinha nascido quando finalmente convenci a Minnie a beber um
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bom trago de gim, ir ver se a porta da frente estava trancada e voltar para a cama, e eu também fui para cima e acordei a Jackie e disse-lhe para manter a casa fechada, e que não queria saber nem que todos os bordeleiros a sul de St. Louis viessem bater à porta, não era para deixar entrar ninguém antes das seis da tarde. E então a Minnie foi deitar-se no divã na arrecadação, que dá para a varanda das traseiras, e primeiro pensei que talvez ela se tivesse esquecido de fechar a porta à chave...
- Claro que fechei - disse a Minnie. - É lá qu'a cerveja tá guardada. Tenho tido essa porta bem fechada desde qu'esse rapaz aqui chegou, porque me lembrei dele do Verão passado, quando aqui esteve de visita.
- E ela lá estava - disse a Miss Reba - derreada e a dormir que nem uma pedra naquele divã, com a porta fechada à chave e sem dar por nada até...
- Acordar - disse a Minnie. - Inda tava tão cansada e derreada que dormia que nem uma pedra, como toda a gente; estava ali deitada e só sentia que se passava alguma coisa estranha com a minha boca. Mas pensei que talvez fosse um bocadinho de qualquer coisa que lá tivesse ficado agarrada por mais cuidado qu'eu tivesse tido, até me levantar e olhar para o espelho...
- Só me admira que não a tenham ouvido em Chattanooga, para não falar em Parsham - disse a Miss Reba. - E a porta continuava fechada à chave...
- Foi ele! - disse, gritou, a Minnie. - Eu sei que foi! Ele andava a atazanar-me pelo menos uma vez por dia pra saber quanto custava e porqu'é qu'eu não o vendia e quanto é que me podiam dar por ele e onde é qu'eu ia vendê-lo...
- Claro - disse a Miss Reba. - Foi por isso que ele se eriçou todo esta manhã que nem um gato selvagem, quando tu lhe disseste que ele não ia voltar para casa porque tinha de vir contigo para Parsham - disse a Everbe. - E depois quando ouviu o apito do com-
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bóio, tratou de fugir... hein? Onde é que achas que ele está? Porque eu vou recuperar o dente da Minnie.
- Não sabemos - disse a Everbe. - Ele desapareceu da charrete por volta das cinco horas. Nós pensávamos que ele tinha de estar lá, porque não tem mais nenhum sítio para onde ir. Mas ainda não o encontrámos.
- Talvez não tenham procurado bem - disse a Miss Reba. - Ele não é dos que aparecem ao primeiro assobio. E preciso fazê-lo sair cá para fora com fumo, como os ratos ou as cobras. - O recepcionista voltou. - Tudo pronto? - disse a Miss Reba.
- Sim, Mrs. Binford - disse o recepcionista. A Miss Reba levan-tou-se.
- Vou levar a Minnie ao quarto e fazer-lhe companhia até ela adormecer. Depois gostaria de comer qualquer coisa - disse ela ao recepcionista. - Tanto faz.
- Já é um pouco tarde - disse o recepcionista. - A sala de jantar...
- E daqui a bocado ainda vai ser mais tarde - disse a Miss Reba. - Tanto faz. Vem, Minnie. - Ela e a Minnie saíram. Depois saiu o recepcionista. E nós ali de pé; nenhum de nós se tinha sentado; ela - a Everbe - estava ali especada: uma rapariga grandalhona a quem o estatismo assentava bem; a mágoa também, desde que fosse estática, como esta. Ou talvez não fosse mágoa, mas mais vergonha.
- Lá ele não tinha oportunidades nenhumas - disse ela. - Foi por isso que eu pensei tirá-lo de lá nem que fosse só por uma semana o Verão passado. E depois este ano, especialmente depois de vocês terem aparecido todos, e assim que eu vi o Lucius percebi que era assim que eu sempre tinha querido que ele fosse, só que também não sabia como lhe havia de dizer, de o ensinar. E então pensei que talvez se ele andasse com o Lucius, nem que fosse só por dois ou três dias...
- Claro - disse o Boon. - Classe. - Depois aproximou-se dela,
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desajeitado. Não tentou abraçá-la outra vez. Na verdade nem sequer lhe tocou. Deu-lhe só uma palmadinha nas costas; aparentemente tão forte, a mão dele, insensível e pesada, como quando o Butch à tarde lhe tinha dado a ele uma palmada nas costas. Mas não era. - Pronto - disse ele. - Tu não tens culpa, percebes. Tu estavas a fazer o melhor que sabias. Fizeste bem. Agora vamos. - Era o criado outra vez.
- O seu cocheiro está na cozinha, senhor - disse ele. - Diz que é importante.
- O meu cocheiro? - disse o Boon. - Eu não tenho cocheiro nenhum.
- É o Ned - disse eu, já em movimento, logo seguido pela Everbe, à frente do Boon. Seguimos o criado até à cozinha. O Ned estava parado mesmo ao lado da cozinheira, uma negra descomunal que estava a limpar a loiça encostada à banca. E estava a dizer:
- Se é dinheiro que te preocupa, lindeza, eu sou o homem que... - Nisto viu-nos e leu o pensamento do Boon num ápice: - Não precisa de s'afligir. Ele está em casa do Possum. O que é que ele fez desta vez?
- O quê? - disse o Boon.
- É o Otis - disse eu. - O Ned encontrou-o.
- Eu cá não o encontrei - disse o Ned. - Que eu nem o tinha perdido. Os cães do tio Possum é que o encontraram. Obrigaram-no a trepar para uma arvorezita da borracha por trás do galinheiro praí há uma hora atrás, até o Lycurgus ir lá buscá-lo. Ele não quis vir comigo. Pra dizer a verdade comportava-se como se para já não quisesse ir a lado nenhum. O qu'é qu'ele fez desta vez? -Contámos-lhe. - Então ela também cá tá - disse ele. Depois, muito baixinho: - Hi hi hi. - E a seguir: - Então ele não vai lá tar quando eu voltar.
- O que queres dizer com isso? - disse o Boon.
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- No lugar dele vomicês inda lá tavam? - disse o Ned. - Ele sabe qu'a estas horas essa rapariga já acordou e deu pela falta do dente. Nesta altura ele já deve conhecer bem a Miss Reba pra saber qu'ela não vai parar enquanto não lhe deitar a mão e o virar de cabeça pra baixo e o chocalhar até o dente cair do sítio onde ele o escondeu. Eu memo lhe disse pra onde ia naquela mula, e lá qualquer pessoa lhe pode dizer a que horas chegou o comboio e quanto tempo leva para uma pessoa lá voltar. Vomicê inda lá tava se tivesse aquele dente consigo?
- Está bem - disse o Boon. - Mas o que é que ele vai fazer com o dente?
- Se fosse outra pessoa qualquer - disse o Ned - eu diria que tinha três alternativas: vendê-lo, escondê-lo ou dá-lo. Mas como é ele, só tem duas: vendê-lo ou escondê-lo, e se for para o dente ter de ficar escondido por aí, bem pode voltar para a boca dessa rapariga, pela parte que lhe toca. Por isso, o melhor lugar pra vender rapidamente um dente d'ouro é lá em Memphis. Só que Memphis é muito longe pra ir a pé, e pr'apanhar o comboio (que custaria dinheiro, qu'até é provável qu' ele tenha desde que o desespero seja suficiente pra ele gastar algum do que tem) tinha de voltar a Possum, onde alguém o podia ver. Assim, o outro lugar mais próximo ond'ele pode vender o dente d'ouro é amanhã no hipódromo. Se fosse vomicê ou eu, o mais provável era a gente apostar esse dente amanhã num dos cavalos. Mas ele não é dado a apostas. Apostar é muito lento pra ele, já pra não dizer incerto. Memo assim, aquela pista de corridas vai ser um bom lugar pra começarmos a procurá-lo. Que pena eu não ter sabido daquele dente ontem à noite quando o tinha na mão. Talvez o tivesse conseguido convencer a dar-mo. E depois, s' o tivesse em meu poder, o Mr. Caldwell havia de passar por aqui amanhã de manhã no comboio às vinte pràs sete, rumo ao oeste, e eu levava-o prà estação e entregava-o ao Mr. Sam e dizia ao Mr. Sam prò agarrar bem até as
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portas se fecharem no primeiro comboio d'amanhã para o
Arkansas.
- Consegues encontrá-lo amanhã? - disse a Everbe. - Eu tenho de o encontrar. Ele não passa de uma criança. Eu pago o dente, eu compro outro dente à Minnie. Mas tenho de o encontrar. Ele vai dizer que não o tem, que nunca o viu, mas eu tenho de...
- Claro - disse o Ned. - Era também o qu'eu dizia se 'tivesse no lugar dele. Vou tentar. Amanhã tou aqui cedinho pra vir buscar o Lucius, mas a melhor altura é amanhã no hipódromo mesmo antes da corrida. - E depois disse-me: - O pessoal já começou a passar por casa do Possum, assim como quem não quer a coisa, provavelmente pra tentarem descobrir quem é que desta vez inda acredita qu'aquele cavalo consegue correr. Por isso, o mais provável é termos um bela multidão amanhã a ver-nos correr. Já é tarde, é melhor ir dormir e eu também vou levar pra casa a mula do Possum e deitar-me. Onde tá a sua meia? Não a perdeu?
- Tenho-a aqui no bolso - disse eu.
- Veja se não a perde - disse ele. - O par dessa é do pé esquerdo e dá azar andar com uma meia do pé esquerdo, a não ser qu'ande côas duas. - Virou-se, mas só até à cozinheira, a gorducha, e disse-lhe: - A não ser qu'eu mude d'ideias e fique esta noite na cidade. A que horas serves o pequeno-almoço, lindeza?
- Tão cedo quanta tua queixada tiver longe de mais pra lhe meter o dente - disse a cozinheira.
- Boa noite a todos - disse o Ned. Depois foi-se embora e nós voltámos para a sala de jantar, onde o criado, agora de camisa de manga curta e já sem colarinho nem laço, trouxe à Miss Reba um prato com costeletas de porco, sêmola, pãezinhos e doce de amora, o mesmo que tínhamos comido ao jantar, agora nem quente nem frio, mas morno, digamos que em trajos menores, como o
criado.
- Conseguiu pô-la a dormir? - perguntou a Everbe.
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- Sim - disse a Miss Reba. - Aquele filhinho da.... - não terminou e disse: - Desculpem. Eu achava que já tinha visto tudo neste meu ofício, mas nunca pensei que fosse acontecer o roubo de um dente numa das minhas casas. Detesto sacaninhas de algibeira. São como as cobras pequenas. Das grandes a gente safa-se porque já estamos de sobreaviso. Mas as pequenas já nos morderam pelas costas ainda antes de a gente saber que tinham dentes. Onde está o meu café? - O criado trouxe-lho e voltou a sair. E então até aquela sala de jantar coberta de lençóis ficou apinhada; era como se cada vez que o Boon e o Butch entravam nas mesmas quatro paredes tudo crescesse e se multiplicasse, não deixando realmente espaço para mais nada. Ele - o Butch - tinha voltado ao consultório do médico, ou talvez nesta sua profissão de crachá ao peito soubesse bem quem é que não ousava recusar-lhe uma bebida de borla. Já era tarde e eu estava cansado, mas ali estava ele outra vez; e de repente percebi que até agora ele ainda não tinha realmente feito nada e que era agora que íamos começar a aturá-lo, ali à porta, todo inchado, olhos a luzir, seguro de si, vivaço e ainda mais vermelho, e até parecia que o próprio crachá tinha ganho vida própria e queria saltar-nos à cara da camisa suada, esse crachá que ele - o Butch - usava não como consagração oficial de uma vocação sem par, mas como um escuteiro usa uma medalha de mérito; ao mesmo tempo como recompensa única e ganha com esforço, como emblema de uma especialização, como pré-absolvição para quaisquer outras actividades cobertas ou abrangidas pela sua aura mística; nesse momento a Everbe levantou-se muito depressa do outro lado da mesa, contornando-a quase a correr, e foi sentar-se ao lado da Miss Reba, para quem o Butch olhava agora, todo inchado. E foi então que eu passei o Boon para segundo lugar e pus a Everbe em primeiro no que toca a problemas. Tudo o que o Boon tinha era o Butch; ela tinha os dois, o Boon e o Butch.
- Muito bem - disse o Butch - estou a ver que Catalpa Street
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em peso rumou a leste, direitinha a Possum. - Falava de tal maneira que a princípio julguei que ele fosse amigo ou pelo menos cliente da Miss Reba. Mas, se era, não se lembrava do nome dela. Mas depois, mesmo tendo só onze anos, eu estava a aprender que há pessoas como o Butch que não se lembram de ninguém a não ser na medida das suas necessidades imediatas, e do que ele precisava agora (ou o que pelo menos lhe dava jeito) era outra mulher, tanto fazia qual, desde que fosse relativamente nova e agradável à vista. Não, ele de facto não precisava de mulher nenhuma, tinha simplesmente encontrado uma pelo caminho, como um leão a preparar-se para lutar com outro leão por causa de um antílope que ele nunca teve dúvidas de que ia vencer (quer dizer, vencer o outro leão, não o antílope), que seria parvo se não tentasse arranjar, só para dar sorte, digamos, um outro antílope se encontrasse algum tresmalhado. O que o Butch encontrou foi outro leão.
- Isto é o que eu chamo o Pinga-amor a usar a cabeça; para que serve eu e ele engalfinharmo-nos por causa de um naco de carne quando está aqui outro exactamente igual em todos os detalhes importantes excepto talvez uma pequena diferença na pelagem?
- Quem é esse? - perguntou a Miss Reba à Everbe. - É teu amigo?
- Não - disse a Everbe, e nesse momento ela estava literalmente de cócoras; aquela rapariga grandalhona, grande de mais para estar de cócoras. - Por favor...
- É como ela lhe está a dizer - disse o Boon. - Ela já não tem amigos. Nem os quer ter. Desistiu, abandonou esta vida. Assim que tudo acabar, depois de perdermos a corrida, ela vai-se embora e vai arranjar um emprego a lavar pratos. Pergunte-lhe.
Miss Reba olhava agora para a Everbe.
- Por favor - disse a Everbe.
- O que é que você quer? - perguntou a Miss Reba ao Butch.
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- Nada - disse o Butch. - Absolutamente nada. Eu e o Pinga-amor andámos meio esquinados durante um tempo, mas agora que tu apareceste está tudo óptimo. Ala que se faz tarde. - E, entrando na sala, agarrou a Everbe pelo braço. - Anda daí. A charrete está lá fora. Vamos deixá-los à vontade.
- Vai chamar o gerente - disse a Miss Reba muito alto, para mim. Eu nem tive de sair de onde estava; o mais provável era, se tivesse olhado, tê-lo visto de fugida através da porta. O gerente entrou. - E este que representa a lei por aqui? - disse Miss Reba.
- Ora essa, todos nós conhecemos o Butch, Mrs. Binford - disse o recepcionista. - Ele tem mais amigos em Parsham do que qualquer outra pessoa que eu conheça. Bem entendido que ele pertence a Hardwick, lá mais para cima; para dizer a verdade, nós não temos nenhum representante da lei aqui em Parsham; ainda não temos tamanho para isso. - A atitude calorosa e toda inchada de Butch tinha aliciado, convidado, o recepcionista quase antes de ele poder entrar a porta, como se ele - o recepcionista - tivesse entrado de cabeça, disparado, e desaparecido como um rato dentro de um bocado de âmbar cinzento ainda mole. Mas agora os olhos do Butch estavam muito frios, e duros.
- Talvez seja isso que falta por aqui - disse ele ao recepcionista. - Talvez seja por isso que não há mais progresso e desenvolvimento por aqui: o que vocês precisam é de um pouco mais de autoridade.
- Ora, Butch! - disse o recepcionista.
- Quer você dizer que qualquer um que lhe apeteça pode entrar por aqui dentro, agarrar uma das suas hóspedes, a que mais lhe agradar, e arrastá-la para a cama mais próxima como se você dirigisse um lupanar? - disse a Miss Reba.
- Arrastar quem para onde? - disse o Butch. - Arrastar com quê? Uma nota de dois dólares? - A Miss Reba pôs-se de pé.
- Vem - disse ela para a Everbe. - Há um comboio para voltares
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para Memphis esta noite. Eu conheço o dono desta espelunca. Amanhã vou falar com ele...
- Oh Butch - disse o recepcionista. - Espere, Mrs. Binford...
- Volte para o seu lugar, Virgil - disse o Butch ao recepcionista.
- Só faltam quatro meses para Novembro e algum milionário com dois perdigueiros certificados pode entrar por aí dentro a qualquer minuto, e depois não vai estar lá ninguém para lhe dizer onde deve assinar. Vá lá. Aqui somos todos amigos. - E o recepcionista lá foi.
- Agora que este assunto está resolvido - disse o Butch, e tentou agarrar outra vez o braço da Everbe.
- E você a dar-lhe - disse a Miss Reba. - Nós dois vamos lá para fora, ou para um sítio qualquer privado. Quero dar-lhe uma palavrinha.
- Acerca de quê? - disse o Butch. Ela não respondeu, já a diri-gir-se para a porta. - Privado, foi o que disse? - disse o Butch.
- Está-se mesmo a ver; cada vez que eu não conseguir satisfazer uma rapariga bonita em privado, dou o meu inteiro consentimento ao Pinga Amor para se juntar a nós. - Saíram os dois. E depois, do átrio, pudemos vê-los através da porta da salinha das senhoras, durante à vontade um minuto, talvez um pouco mais, até a Miss Reba voltar com o seu passo firme, determinada, dura, bonita e controlada; um segundo depois veio Butch, a dizer: - Ai ele é isso? Pois veremos... - e a Miss Reba a voltar com passo firme para onde estávamos à espera, a ver o Butch atravessar o átrio sem sequer olhar para nós.
- Está tudo resolvido? - perguntou a Everbe.
- Está - disse a Miss Reba. - E isso aplica-se também a ti - disse ela para o Boon. Depois olhou para mim. - Meu Deus - disse ela.
- Que diabo lhe fizeste? - perguntou o Boon.
- Nada - disse ela por cima do ombro, porque estava a olhar para mim. -... Pensava que já tinha visto todos os problemas possíveis num lupanar. Até ter um com crianças lá dentro. Tu trouxeste
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uma - falava agora com a Everbe - que correu com o gerente e roubou todos os dentes soltos que encontrou e mais catorze dólares de cerveja; e como se isso não bastasse, o Boon Hogganbeck traz uma que está a levar as malditas das minhas raparigas à pobreza e à respeitabilidade. Eu vou-me deitar e tu...
- Vá lá - disse o Boon. - O que foi que disseste?
- Qual é a tua cidade? - perguntou a Miss Reba.
- Jefferson - respondeu o Boon.
- Vocês, os das grandes cidades como Jefferson e Memphis, cheios de manias das grandes cidades, não sabem nada sobre a Autoridade. E preciso vir para lugares pequenos como este. Eu sei, porque fui criada num. Ele é o polícia. Podias passar uma semana em Jefferson ou em Memphis e nem o vias. Mas aqui, entre as pessoas que o elegeram (a maioria de doze ou treze que votaram nele, e a minoria de nove, dez ou onze que não votaram nele e já estão arrependidos ou em breve estarão), ele está-se nas tintas para o xerife do condado, para o governador do estado ou para o presidente dos Estados Unidos, todos juntos. Porque ele é baptista. Quer dizer, é baptista em primeiro lugar e depois a Autoridade. Quando puder ser baptista e a Autoridade tudo ao mesmo tempo, ele será. Mas sempre que a lei se vier meter onde não é chamada, a lei sabe o que pode fazer e onde o pode fazer. Contam a história daquele faraó que era muito bom a governar, e de um outro dos antigos, dos tempos da Bíblia, um chamado César, que se esforçou ao máximo. Deviam ter vindo aqui pelo menos uma vez ver como se porta um polícia do Arkansas, do Mississippi ou do Tennessee.
- Mas como é que sabe quem ele é? - disse a Everbe. - Como é que vai saber se há um aqui?
- Há um em toda a parte - disse a Miss Reba. - Pois não acabei de te dizer que fui criada num lugar como este? Não preciso de saber quem ele é. Tudo o que eu precisava era de mostrar àquele estupor que eu sabia que também havia um aqui. Eu vou-me...
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- Mas o que foi que lhe disseste? - insistiu o Boon. - Vá lá, um dia pode ser que eu queira recordar-me disso.
- Nada, já te disse - disse a Miss Reba. - Se nesta altura eu ainda não tivesse aprendido a lidar com estes malditos garanhões com uma mão no crachá e a outra na braguilha, há muito que tinha ido parar ao albergue. Disse-lhe que se tornasse a ver-lhe as fuças por aqui esta noite, mandava aquele sonso do recepcionista acordar o chefe da polícia e dizer-lhe que um ajudante do xerife de Hardwick tinha acabado de instalar duas putas de Memphis no hotel de Parsham. Vou-me deitar, e o melhor é vocês irem também. Vem, Corrie. Pus a tua honra ultrajada nas mãos daquele recepcionista e agora tens de lhe fazer jus, pelo menos onde ele te possa ver. - E saíram as duas. Depois saiu o Boon; se calhar seguiu o Butch até à porta só para se certificar de que a charrete já tinha partido. Nisto a Everbe correu para mim, aquela rapariga grandalhona, a bichanar muito depressa:
- Não trouxeste mesmo nada, pois não? Quer dizer, de vestir. Andas com a mesma roupa desde que saíste de casa.
- E que mal tem? - disse eu.
- Eu vou lavá-la - disse ela. - A tua roupa interior, as meias e a camisa. E a meia com que montas também. Vá lá, tira-as.
- Mas eu não tenho mais nenhumas.
- Não faz mal. Podes meter-te na cama. Amanhã quando te levantares tenho-as todas prontas. Vá lá. - E ficou à espera do lado de fora da porta, enquanto eu me despia e lhe passava a camisa, a roupa interior e as meias pela frincha da porta, e depois deu-me as boas-noites e eu fechei a porta e meti-me na cama; no entanto, ainda faltava uma coisa que nós não tínhamos feito, ainda não tínhamos tratado: a reunião secreta de preparação para a corrida; a sigilosa, implacável e acalorada conspiração para delinear a estratégia para o dia seguinte. Até eu perceber que, em rigor, não tínhamos estratégia nenhuma; não tínhamos nada para planear nem com que planear:
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um cavalo cuja propriedade era duvidosa e mesmo desconhecida (a menos que o Ned a conhecesse), de cujo passado sabíamos apenas que ele tinha corrido exactamente com a regularidade necessária para terminar em segundo numa corrida de dois cavalos; para ser posto a correr no dia seguinte, exactamente num local que eu nem sequer conhecia, contra um cavalo que nenhum de nós tinha visto e cuja própria existência (tanto quanto sabíamos) tinha de ser aceite sem provas. Até eu perceber que, de todas as actividades humanas, as corridas de cavalos, e tudo o que com elas tem que ver ou está relacionado, estavam indiscutivelmente nas mãos de Deus. Nisto entrou o Boon; eu já estava na cama, já meio a dormir.
- O que fizeste à tua roupa? - perguntou ele.
- A Everbe está a lavá-la - disse eu. Ele tinha tirado as calças e os sapatos e já estava a esticar-se para apagar a luz. E então parou, ficou completamente imóvel.
- Quem é que disseste? - Agora eu já tinha acordado, mas era tardíssimo, e deixei-me ficar deitado de olhos fechados, sem me mexer. - Que nome é que tu disseste?
- E a Miss Corrie que está... - disse eu.
- Tu disseste outra coisa. - Podia senti-lo a olhar para mim. - Tu chamaste-lhe Everbe. - Podia senti-lo a olhar para mim. - E esse o nome dela? - Podia senti-lo a olhar para mim. - Então ela disse-te o seu nome verdadeiro. - E depois disse, muito baixinho: - Raios a partam - e através das pálpebras vi o quarto escurecer, ouvi a cama ranger quando ele se deitou, como as camas fazem sempre por ele ser tão grande, como sempre as ouvi fazer desde que me lembro cada vez que dormi com ele: uma ou duas vezes lá em casa, quando o meu pai estava fora e ele lá ficava para a minha mãe não ter medo, e na pensão da Miss Ballenbaugh há duas noites, e em Memphis a noite passada, até me lembrar que não tinha dormido com ele em Memphis, mas com o Otis. - Boa noite - disse ele.
- Boa noite - respondi.
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X

Depois era de manhã, era o dia seguinte:
Aquele dia em que eu ia entrar pela primeira vez numa corrida de cavalos a sério (e, ao vencê-la, dar ao Boon e ao Ned - e, claro, a mim também; mas eu estava a salvo, imune; não só por ser apenas uma criança, mas por ser da família - a possibilidade de voltarem para casa outra vez, talvez não com honra, tão pouco incólumes, mas pelo menos poderem voltar) que era o culminar de mil e uma aldrabices, estratagemas, manipulações e malabarismos (sem contar com os outros crimes subsequentes... pronto, em consequência do roubo simples e realmente espontâneo e, de certo modo, inocente do automóvel do meu avô, de que eu não tinha conhecimento); e agora aqui estava ela.
- Então ela disse-te qual é o seu verdadeiro nome - disse o Boon. É que, estás a ver, agora já era mesmo muito tarde, e eu estava meio a dormir na noite anterior e desprevenido.
- Sim - disse eu, posto o que percebi que isso era completamente falso: ela não mo tinha dito; ela não sabia sequer que eu sabia, que a tinha vindo a tratar por Everbe desde domingo à noite. Mas agora era muito tarde. - Mas tens de prometer - disse eu. - Não prometer a ela: prometer-me a mim. Nunca o dizeres em voz alta até ela o dizer primeiro.
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- Prometo - disse ele. - Até agora nunca te menti. Quer dizer, mentir a sério. Quer dizer... eu nunca... Está bem - disse ele. - Está prometido. - Depois disse outra vez, como na noite anterior: - Raios a partam. - E a minha roupa - camisa, meias, roupa interior e a meia de montar - estavam impecavelmente dobradas, lavadas e passadas em cima de uma cadeira do lado de fora da porta. O Boon trouxe-mas. - Com estas roupas todas limpas, tens de tomar banho outra vez - disse ele.
- Ainda no sábado me obrigaste a tomar banho - disse eu.
- No sábado à noite estávamos na estrada - disse ele. - Só chegámos a Memphis no domingo de manhã.
- Pronto, no domingo então - disse eu.
- Hoje é terça-feira - disse ele. - Dois dias.
- Só um dia - disse eu. - Duas noites, mas só um dia.
- Tens andado em viagem desde então - disse o Boon. - Agora tens duas camadas de poeira em cima.
- São quase sete horas - disse eu. - Já estamos atrasados para o pequeno-almoço.
- Podes tomar banho primeiro - disse ele.
- Tenho de me vestir para poder ir agradecer à Everbe pela minha roupa.
- Primeiro o banho - disse o Boon.
- Vou molhar a ligadura - disse eu.
- Mantém a mão no pescoço - disse o Boon - assim como assim nunca o lavas.
- Então e porque é que tu não tomas banho? - disse eu.
- Não estamos a falar de mim. Estamos a falar de ti.
E eu lá fui para a casa de banho, tomei banho, voltei a vestir-me e fui para a sala de jantar. E o Ned estava certo. Na noite anterior só havia uma mesa, com uma extremidade destapada e posta para nós. Mas agora estavam lá sete ou oito pessoas, todos homens (mas não desconhecidos, forasteiros, repara bem; de facto só eram des-
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conhecidos para nós que não vivíamos em Parsham. Nenhum deles tinha saído de um comboio, vestido com roupa interior de seda e a fumar charutos Upmann; nós não tínhamos vindo abrir em pleno Maio a cosmopolita temporada de caça do Inverno de Parsham. Uns estavam de fato-macaco e só um trazia gravata: pessoas como nós, com a diferença que viviam aqui, com as mesmas paixões, esperanças e o mesmo dialecto, desfrutando - o Boon também -do nosso inalienável direito constitucional à livre escolha e à actividade privada que fez do nosso país o que ele é, e nos permitiu organizar uma corrida de cavalos particular entre dois cavalos locais; se alguém, comissão ou indivíduo, de tão perto quanto o condado vizinho, se tivesse lembrado de vir interferir, alterar, impedir ou mesmo participar de outra forma que não fosse apostando no cavalo da sua preferência, todos nós, partidários de cada um dos cavalos, nos teríamos levantado como um só e expulsado essa pessoa). E, além do criado, vi as costas de uma criada fardada a passar pela porta de vaivém da copa ou da cozinha, e estavam dois homens (um deles era o que trazia gravata) sentados à nossa mesa a falar com o Boon e a Miss Reba. Mas a Everbe não estava lá e, por um instante, um segundo, tive a visão horrorizante de o Butch a ter finalmente conseguido apanhar de surpresa e dominado à força, montando-lhe uma emboscada no corredor, talvez quando ela trazia a cadeira com a minha roupa lavada para junto da porta do meu quarto e do Boon. Mas apenas por um segundo de excesso de fantasia; se ela tinha estado a lavar a minha roupa até tarde, tinha provavelmente, sem dúvida, ficado a pé até muito tarde a lavar a roupa dela e talvez a da Miss Reba também, e ainda estava a dormir. Por isso, fui sentar-me à mesa, onde um dos homens disse:
- É este o rapaz que o vai montar? Até parece que lhe ligaram a mão para um primeiro combate.
- Pois é - disse o Boon, empurrando o prato do presunto na minha direcção quando eu me sentei; a Miss Reba passou-me os
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ovos e a sêmola do outro lado da mesa. - Cortou-se ontem à noite a comer ervilhas.
- Ah ah - disse o homem. - De qualquer modo, desta vez carregará menos peso.
- Com certeza - disse Boon. - Só se ele come as facas, os garfos e as colheres quando nós não estamos a ver, e se calhar ainda leva um dos morilhos para a merenda.
- Ah ah - disse o homem. - Pela maneira como ele correu aqui o Inverno passado, vai precisar de bem mais do que apenas menos peso. Mas aí é que está o segredo, hein?
- Com certeza - disse o Boon; agora estava a comer outra vez.
- Mesmo que a gente não tivesse segredo nenhum, íamos ter de agir como se tivéssemos.
- Ah ah - disse o homem outra vez. Levantaram-se. - Bem, pelo menos, boa sorte. É capaz de ser tão boa para aquele cavalo como menos peso. - A criada veio trazer-me um copo de leite e um prato com pãezinhos quentes. Era a Minnie, de avental lavado e toucado, que a Miss Reba tinha emprestado ou alugado ao hotel para dar uma ajuda, com o seu ar ofendido e implacável, mas agora calma e em silêncio; via-se que tinha descansado, dormido até alguma coisa, mesmo que ainda não tivesse perdoado a ninguém. Os dois desconhecidos foram-se embora.
- Estão a ver? - disse a Miss Reba para ninguém em especial.
- Tudo o que precisamos é do cavalo certo e de um milhão de dólares para apostar.
- Ouviste o Ned no domingo à noite - disse o Boon. - Foste tu que acredistaste nele. Quer dizer, que decidiu acreditar nele. Comigo foi diferente. Depois de aquele maldito automóvel desaparecer e só nos restar o cavalo, eu tinha de acreditar nele.
- Pronto - disse a Miss Reba. - Não te aflijas.
- E tu também podes parar de te preocupar - disse-me o Boon.
- Ela foi só à estação para o caso de aqueles cães o terem apanhado
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outra vez ontem à noite e o Ned o ter trazido para o comboio. Pelo menos foi o que ela disse...
- O Ned encontrou-o? - perguntei.
- Ná - disse o Boon. - O Ned está agora na cozinha. Podes per-guntar-lhe... pelo menos foi o que ela disse. Sim. Afinal talvez seja melhor começares a preocupar-te. A Miss Reba fez-te o favor de correr com aquele garanhão do crachá, mas o outro... como é o nome dele... o Caldwell... estava no comboio esta manhã.
- De que é que tu estás a falar agora? - disse a Miss Reba.
- De nada - disse o Boon. - Não tenho nada para falar. Desisti. O Lucius é que tem agora rivais de crachá e boné de ferroviário. -Mas eu já estava a levantar-me, porque agora sabia onde ela estava.
- Só comes isso ao pequeno-almoço? - disse a Miss Reba.
- Deixa-o em paz - disse o Boon. - Está apaixonado. - Atravessei o átrio. Talvez o Ned estivesse certo, e tudo o que era preciso para haver uma corrida de cavalos fossem dois cavalos a uma distância de quinze quilómetros um do outro e tempo para correrem a corrida, e o ar se encarregaria de espalhar a notícia. Se bem que ela ainda não tivesse chegado à salinha das senhoras. Assim, o que eu queria dizer com o choro assentar bem na Everbe era que ela tinha tamanho suficiente para chorar tanto quanto parecia que tinha de chorar, e mesmo assim ainda ficar com espaço para todas essas lágrimas secarem sem deixarem marca. Ela estava sentada, sozinha, na salinha das senhoras, a chorar mais uma vez, a terceira... não, a quarta, contando com duas no domingo à noite. Até uma pessoa se pôr a pensar porquê. Quer dizer, ninguém a obrigou a vir connosco e podia ter voltado para Memphis no primeiro comboio que passasse. No entanto, ela aqui estava, pelo que devia estar onde queria. No entanto, esta era a segunda vez que chorava desde que tínhamos chegado a Parsham. Quer dizer, alguém com tantas lágrimas de reserva como ela tinha,
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mesmo assim não podia ter que chegassem para gastar tantas com o Otis. Por isso eu disse:
- Ele está bem. Hoje o Ned vai encontrá-lo. Muito obrigado por ter lavado a minha roupa. Onde está o Mr. Sam? Julgava que ele vinha naquele comboio.
- Ele teve de levar o comboio para Memphis e desfardar-se -disse ela. - Não pode ir fardado a uma corrida de cavalos. Chega ao meio-dia no comboio de mercadorias. Não consigo encontrar o meu lenço.
Eu encontrei-o e dei-lho.
- Talvez fosse melhor ir lavar a cara - disse eu. - Quando o Ned o encontrar, também vai recuperar o dente.
- O dente é o menos - disse ela. - Eu vou comprar um dente novo para a Minnie. E que... Ele nunca teve oportunidades. Ele... Também prometeste à tua mãe que nunca ias roubar nada?
- Isso não é coisa que seja preciso prometer a ninguém - disse eu. - Uma pessoa não rouba.
- Mas terias prometido, se ela te tivesse pedido?
- Ela não me ia pedir isso - disse eu. - Uma pessoa não rouba.
- Pois não - disse ela. - E depois disse: - Não vou ficar em Memphis. Falei com o Sam na estação esta manhã e ele também acha que é boa ideia. Ele pode arranjar-me um emprego em Chattanooga ou noutro sítio qualquer. Mas tu vais continuar em Jefferson, e por isso talvez eu pudesse escrever-te um postal de onde eu estiver e se te apetecer...
- Sim - disse eu. - Eu escrevo-lhe. Venha. Eles ainda estão a tomar o pequeno-almoço.
- Há uma coisa a meu respeito que tu não sabes. Que nem te passa pela cabeça.
- Eu sei - disse eu. - E Everbe Corinthia. Há dois ou três dias que a chamo assim. É isso mesmo. Foi o Otis. Mas eu não digo nada a ninguém. Mas não percebo porquê.
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- Porquê? Um nome parolo e antiquado como esse? Consegues imaginar alguém em casa da Reba a dizer, Manda-me a Everbe Corinthia? Eles iam ter vergonha. Iam morrer a rir. Por isso resolvi mudar o nome para Yvonne ou Billie ou Ken. Mas a Reba disse que Corrie servia muito bem.
- Tretas - disse eu.
- Quer dizer que achas bem? Ora diz lá o nome. - Eu disse-o. Ela ouviu e depois continuou à escuta, como se estivesse à espera do eco. - Sim - disse ela. - E assim que é agora.
- Então venha tomar o pequeno-almoço - disse eu. - O Ned está à minha espera e tenho de ir. - Mas o Boon chegou primeiro.
- Está ali gente de mais - disse ele. - Se calhar não devia ter dito àquele tipo duma figa que tu ias montá-lo hoje. - Olhou para mim.
- Se calhar nunca te devia ter deixado sair de Jefferson. - Havia uma porta pequena por detrás de uma cortina ao fundo da sala.
- Vamos - disse ele. Havia outro corredor. Nisto estávamos na cozinha. A imensa cozinheira estava outra vez encostada ao lava-loiça. O Ned estava sentado à mesa a terminar o pequeno-almoço, mas sobretudo a dizer:
- Quando m'embeiço por uma mulher, não é só conversa fiada. Elas podem comprar alguma coisa... - parou de repente, levantou-se logo e disse-me: - Tá pronto? Tá na hora de voltarmos prò campo. Há por aqui gente a mais. Se todos eles tivessem dinheiro e o apostassem, e o cavalo em que apostassem fosse o cavalo errado, e nós tivéssemos dinheiro pra cobrir as apostas e soubéssemos qual era o cavalo certo pràs cobrir, não ia ser só um automóvel qu'a gente levava pra Jefferson esta noite: ia ser Possum inteirinha, e isso talvez adoçasse o mau génio do Patrão Priest. Ele até 'gora nunca foi dono duma cidade, e era bem capaz de gostar.
- Espera aí - disse o Boon. - Não temos de traçar um plano?
- O único que precisa dum plano é o Relâmpago - disse o Ned.
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- E o único plano qu'ele precisa é planear sair na dianteira e man-ter-se na dianteira até alguém lhe dizer pra parar. Mas eu sei do que tá a falar. Nós vamos correr no hipódromo do coronel Linscomb. A primeira mão é às duas da tarde. Fica a seis quilómetros daqui. Eu, o Relâmpago e o Lucius vamos aparecer lá cerca de dois minutos antes da hora. Vomicê é melhor chegar mais cedo. Vomicê é melhor partir daqui assim que o Mr. Sam sair daquele comboio de mercadorias. Porqu'esse é o plano de vomicê e dele: chegar àquela pista a tempo de apostarem o dinheiro, e levarem algum dinheiro pr'apostar quando lá chegarem.
- Espera - disse o Boon. - E o automóvel? O que é que nos adianta o dinheiro se voltarmos para casa sem...
- Pare de se preocupar co'aquele automóvel - disse o Ned. - Atão eu não lhe disse qu'aqueles rapazes tamém tinham de voltar pra casa não muito depois desta noite?
- Que rapazes? - disse o Boon.
- Sim sinhor - disse o Ned. - O problema do Natal é o primeiro de Janeiro; essa é que é essa. - A Minnie entrou com um tabuleiro cheio de loiça suja - a máscara morena, calma, trágica, esfomeada e inconsolável. - Vá lá - disse-lhe o Ned - dá-me outra vez aquele sorriso pra eu saber onde hei-de enfiar o dente quando o trouxer de volta logo à noite.
- Não faças isso, rapariga - disse a cozinheira gorda. - Talvez esse açúcar do Mississippi sirva para alguma coisa lá no sítio donde veio, mas aqui no Tennessee não chega para comprar nada. Pelo menos nesta cozinha, nem por sombras.
- Mas espera - disse o Boon.
- Fique à espera do Mr. Sam - disse o Ned. - Ele lhe dirá. De facto, enquanto eu e o Lucius ganhamos esta corrida, talvez vomicê e o Mr. Sam consigam detectar entre a multidão o carapau-de-corrida e aquele dente. - Desta vez ele trazia a caleche do tio Possum, com uma das mulas. E ele estava certo: a aldeola tinha
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mudado completamente de um dia para o outro. Não que vissem muitas pessoas na rua, pelo menos não mais do que na véspera. Era o próprio ar que respirava alegria; tomei consciência pela primeira vez de que ia participar numa corrida de cavalos daí a poucas horas, e pude sentir a saliva a alagar-me a língua.
- Julgava que tinhas dito ontem à noite que o Otis já se teria ido embora quando voltasses da cidade - disse eu.
- E tinha - disse o Ned. - Mas não pra muito longe. Ele também não tem pra onde ir. Os cães ladraram duas vezes durante a noite junto ao estábulo; aqueles cães antipatizaram com ele à primeira vista confacontece côas pessoas. O mais provável é ele ter aparecido prò pequeno-almoço assim qu'eu saí esta manhã.
- E se ele vende o dente antes de nós o apanharmos?
- Já tratei disso - disse o Ned. - Ele não o vai vender. Não vai encontrar ninguém que lho queira comprar. S'ele não aparecer prò pequeno-almoço, o Lycurgus leva os cães e obriga-o a trepar outra vez àquela árvore e depois diz-lhe qu'ont'à noite quando eu cheguei de Parsham disse qu' um homem de Memphis ofereceu vinte e oito dólares pelo dente à rapariga, em contado. Ele vai acreditar. Se fossem cem dólares ou até cinquenta, ele não ia acreditar. Mas vai acreditar num número esquisito como vinte e oito dólares, sobretudo porque vai achar que não é suficiente, que o tal homem de Memphis estava a explorar a Minnie. E quando ele o tentar vender no hipódromo esta noite, ninguém lhe vai dar nem isso e ele não vai ter outro remédio senão esperar até poder voltar pra Memphis com o dente. Por isso, deixe de pensar no dente e comece mas é a pensar na corrida. Nas duas últimas, quer dizer. Nós vamos perder a primeira, por isso não precisa de se preocupar com ela...
- O quê? - disse eu. - Porquê?
- Porque não? - disse o Ned. - Tudo o que precisamos é de ganhar duas.
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- Mas porquê perder a primeira? Porque não ganhamos essa, para ficarmos à frente o mais depressa possível... - Ele continuou a conduzir a caleche talvez mais meio minuto.
- O problema com esta corrida é ter demasiadas coisas diferentes misturadas.
- Demasiadas quê? - disse eu.
- Demasiado de tudo - disse ele. - Gente a mais. Mas sobretudo corridas a mais. Se fosse só uma corrida, uma volta, algures na mata sem mais ninguém por perto além de mim, vomicê e o Relâmpago, e o outro cavalo e quem quer qu'o vai montar, táva-mos nós bem. Porqu'ontem descobrimos que podemos fazer o Relâmpago correr uma vez. Só qu'agora ele tem de correr três vezes.
- Mas tu fizeste aquela mula correr todas as vezes - disse eu.
- Este cavalo não é aquela mula - disse o Ned. - Não há cavalo no mundo igual àquela mula. Ou a outra mula qualquer. E o cavalo com que temos de contar agora não tem sequer a esperteza dalguns cavalos. Por isso já tá a ver qual é o nosso problema. A gente sabe qu'eu posso fazê-lo correr uma vez, e temos esperança qu'eu consiga fazê-lo correr duas vezes. Mas é tudo. Só esperança. Por isso, até chegar a altura certa, não podemos arriscar aquela vez que sabemos qu'eu posso fazê-lo correr. Por isso, o máximo que temos são duas vezes. E se temos mesmo de perder uma delas, dê por onde der, então vamos perder aquela em que talvez a gente possa aprender alguma coisa que nos seja útil a seguir. E essa vai ser a primeira.
-Já disseste isso ao Boon? Para ele não...
- Deixe-o perder a primeira mão, desde qu'ele não aposte logo todo o dinheiro qu'aquelas damas juntaram pra ele apostar. Coisa qu'ele não vai fazer, pelo qu'eu vi daquela Miss Reba. Isso vai fazer subir inda mais as apostas nas outras duas mãos. Além disso, podemos dizer-lhe tudo o que ele precisa de saber quando chegar a altura. Por isso, vomicê só tem de...
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- Não me referia a isso - disse eu. - Referia-me ao aut...
- Eu não lhe disse que tamém tava a tratar disso? - disse ele. - Pare de se preocupar. Não tou a dizer parar de pensar na corrida, porque isso não consegue. Mas parar de se preocupar em ganhar. Pense só no qu'o Relâmpago hYinsinou ontem sobre como montá-lo. É tudo o que tem de fazer. Do resto trato eu. Tem a meia, não
tem?
- Tenho - disse eu. Só que nós não estávamos a voltar para casa do tio Parsham; não estávamos sequer a ir nessa direcção.
- Temos o nosso estábulo privado pra esta corrida - disse o Ned. - Junto a uma nascente, num descampado que pertence a um dos membros da paróquia de Possum, onde vamos estar a menos de meio quilómetro do hipódromo sem ninguém que nos venh' atazanar até a gente querer. O Lycurgus e o tio Possum foram pra lá co Relâmpago logo a seguir ò pequeno-almoço.
- O hipódromo - disse eu. Claro que tinha de haver um hipódromo. Nunca tinha pensado nisso. Se pensei alguma coisa, foi achar que alguém ia trazer o outro cavalo, montado nele ou à arreata, e nós íamos fazer a corrida ali mesmo no prado do tio Possum.
- Pois é verdade - disse o Ned. - Um hipódromo a sério, igual òs grandes, só qu'este tem menos d'um quilómetro e não tem bancadas nem estaminés a vender cerveja e uísque como fazem os que dirigem hipódromos como deve ser. Fica no prado do major Linscomb, o dono do outro cavalo. Eu e o Lycurgus fomos lá ver ontem à noite. Quer dizer, o hipódromo, não o cavalo. Inda não vi o cavalo. Mas vamos ter op'tunidade d'olhar pra ele hoje, ou pelo menos pra uma das extremidades. Só qu'o qu'a gente quer é traçar um plano pràquele cavalo passar a última metade de duas das mãos a olhar prà garupa do Relâmpago. Por isso preciso de falar co rapaz qu'o vai montar. É um rapaz de cor, o Lycurgus conhece-o. Quero falar co'ele duma maneira qu'ele só perceba depois da corrida qu'eu falei com ele.
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- Sim - disse eu. - Como?
- Primeiro temos de lá chegar - disse o Ned. Continuámos a andar; esta zona era nova para mim, claro. Era óbvio que estávamos a atravessar a plantação do major Linscomb, ou de outro qualquer
- grandes campos muito bem tratados com algodão e milho a crescer, e prados com sólidas vedações, cabanas para os trabalhadores e armazéns de algodão ao fundo dos talhões; e agora podia ver também os celeiros e os estábulos e, como era de esperar, lá estava a mancha branca de um oval perfeito da pequena pista; nós - o Ned
- virámos agora para uma estrada que mal se via e desembocava num pequeno bosque; e lá estava ela, isolada e segura, até secreta, se quiséssemos: um bosque de faias junto a uma nascente. E o Relâmpago ali parado, com o Lycurgus ao lado dele, lavado e escovado, até com o pêlo a brilhar suavemente à luz coada do Sol, a outra mula presa mais atrás e o tio Parsham, dramático - majestoso até - vestido de preto e branco, príncipe e juiz austero na sua dignidade de ancião desafogado e ocioso, sentado na sela que o Lycurgus tinha encostado a uma árvore transformando-a numa espécie de cadeira especialmente para ele, todos à nossa espera. E depois, no instante seguinte, percebi o que é que estava errado: estavam todos à minha espera. E foi nesse preciso momento - com o Relâmpago e eu próprio ali parados no mesmo ar (para não dizer a respirar o mesmo ar), a menos de trezentos metros da pista e a pouco mais de um décimo disso em minutos da corrida propriamente dita - que realmente percebi, não só que o destino do Relâmpago e o meu eram agora um só, mas que nós dois em conjunto carregávamos também o destino dos restantes, seguramente o do Boon e o do Ned, pois dependia de nós em que circunstâncias eles poderiam voltar para casa, ou mesmo se poderiam voltar - uma condição mística que um rapaz de apenas onze anos não devia realmente ser chamado a carregar aos ombros. Razão, talvez, pela qual eu não reparei em nada, ou pelo menos não regis-
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tei aquilo que vi: apenas que o Lycurgus entregou a arreata do Relâmpago ao tio Parsham, veio pegar nas nossas rédeas e o Ned disse: - Dá-lhe aquele recado, tá bem? - e o Lycurgus disse, Sim senhor, e o Ned disse-me: - Porque não vai buscar o Relâmpago ò tio Possum, pra ele não ter de se levantar? - E eu assim fiz, deixando o Ned e o Lycurgus juntos ao lado da caleche; e que pouco depois o Ned veio ter connosco, deixando ao Lycurgus a tarefa de desatrelar a mula, enrolar as rédeas e os tirantes, ir prender a mula ao lado do seu companheiro e voltar para junto de nós, para onde o Ned estava agora de cócoras ao lado do tio Parsham. E disse ele: - Conte lá outra vez como foram aquelas duas corridas o Inverno passado. Disse que não se passou nada. Que tipo de nada?
- Ah - disse o tio Parsham - era uma corrida à melhor de três, exactamente como esta, só qu'eles só correram duas vezes. Ao fim da segunda já não havia necessidade de correr a terceira. Ou talvez alguém se tivesse cansado.
- Só se for cansado de meter a mão no bolso de trás - disse o Ned.
- Talvez - disse o tio Parsham. - Da primeira vez o vosso cavalo arrancou cedo de mais e da segunda arrancou tarde de mais. Ou atão foi o chicote que estalou cedo de mais da primeira vez e não tão cedo como devia da segunda. Pelo menos à primeira chicotada o vosso cavalo arrancou à frente, ganhou um bom avanço e assim se conservou durante toda a primeira volta, mesmo depois do chicote ter deixado de fazer efeito, como acontece cos cavalos e também cos homens: uma pessoa só aguenta umas tantas chicotadas e depois é o mesmo que se lhe estivessem a cuspir em cima. Mas quando entraram na recta da meta foi como s'o vosso cavalo visse a pista vazia diante dele e dissesse cos seus botões: Isto é falta de educação; eu aqui sou um desconhecido, e se deixasse ficar pra trás o suficiente pra encostar a cabeça ao joelho do jóquei do coronel Linscomb, e aí a deixar ficar até alguém lhe dizer que podia parar.
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E da outra vez, o vosso cavalo arrancou como se julgasse qu'inda não tinha terminado a primeira mão, com a cabeça toda ela cortesia e delicadeza ao lado do joelho do jóquei do coronel Linscomb até à última curva da última volta, onde o rapaz de Memphis lhe deu a primeira chicotada, desta vez não tão tarde como devia, porque o salto longo qu'ele deu desta vez foi de novo para lhe mostrar a pista vazia.
- Não tão tarde como devia pr'assustar o McWillie - disse o Lycurgus.
- Assustá-lo como?
- O suficiente - disse o Lycurgus. O Ned continuava de cócoras. Devia ter dormido alguma coisa na noite anterior, mesmo com os cães a ladrar ao Otis de vez em quando. No entanto não parecia nada.
- Muito bem - disse-me ele. - Vomicê e o Lycurgus vão dar uma volta até àquele estábulo. Tudo o que vai fazer é mostrar-se ao cavalo contra o qual vai correr esta tarde. Quant' ò resto, deixe que seja o Lycurgus a falar, e não olhe pra trás quando voltar pràqui. -Nem lhe perguntei porquê. Ele também não me ia responder. Não era longe: passava-se para o outro lado da pista bem tratada, com os seus oitocentos metros de comprimento e vedações tão brancas que devia ser bom ser assim tão rico, e mais adiante os estábulos, uma cavalariça que se o primo Zack tivesse uma assim lá na quinta, a prima Louisa ia para lá viver com a família. Não se via vivalma. Não sei do que estava à espera: talvez ainda de ver mais alguns aficcionados de fato-macaco e sem gravata acocorados ao longo da parede a mascar tabaco, como os tínhamos visto na sala de jantar ao pequeno-almoço. Se calhar ainda era cedo de mais: precisamente a razão pela qual, percebia eu agora, o Ned nos tinha mandado para ali; nós - o Lycurgus - ali ficámos na entrada que - a cavalariça - era tão grande como a nossa cocheira em Jefferson, destinada a dar algum lucro, e bastante mais limpa -
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uma selaria de um lado e o que devia ter sido um escritório do outro, precisamente como na nossa; um moço de estrebaria negro a limpar uma baia na parte de trás, e um jovem que pelo tamanho, idade e cor podia ser gémeo do Lycurgus, a descansar num fardo de palha encostado à parede, que disse para o Lycurgus:
- Boas. À procura dum cavalo?
- Boas - disse o Lycurgus. - A procura de dois. Pensámos que talvez o outro tamém aqui tivesse.
- Quer dizer qu'o Mr. Van Tosch inda não chegou?
- Nem vai chegar - disse o Lycurgus. - Desta vez são outros que vão correr co Acobreado. Uns brancos, um tal Mr. Boon Hogganbeck. E um rapaz branco qu'o vai montar. Este é o McWillie - disse-me ele. O McWillie observou-me durante um minuto e depois dirigiu-se para a porta do escritório, abriu-a, disse qualquer coisa lá para dentro e voltou para trás ao mesmo tempo que um homem branco (É o treinador - murmurou o Lycurgus. - O Mr. Walter) aparecia à porta e dizia:
- Bom dia, Lycurgus. Afinal onde é que a tua gente tem o cavalo escondido? Não o trocaram por nenhum campeão, pois não?
- Não sinhor - disse o Lycurgus. - Acho qu'inda não chegou da cidade. Pensámos qu'eles o podiam ter mandado pràqui. Por isso viemos ver.
- Fizeram a pé o caminho todo até aqui desde o Possum?
- Não sinhor - disse o Lycurgus. - Viemos nas mulas.
- Onde é que as deixaram? Não as vejo. Se calhar pintaram-nas com a mesma tinta invisível que puseram no cavalo quando o tiraram do comboio ontem de manhã.
- Não sinhor - disse o Lycurgus. - Viemos nas mulas até ao prado e deixámo-las lá ficar. Fizemos o resto do caminho a pé.
- Bem, seja como for, vocês vieram para ver um cavalo e não vos vamos decepcionar. Vai buscá-lo, McWillie, e leva-o para onde eles o possam ver bem.
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- Olhem-lhe prò focinho pra variar - disse o McWillie. - Os tipos que têm montado esse tal Acobreado passaram todo o Inverno só a ver a traseira do Akron, mas inda nenhum deles lhe viu o focinho.
- Então pelo menos aqui o rapaz pode começar por saber como ele é pela frente. Como te chamas, miúdo? - Eu disse-lhe. - Não és daqui.
- Não, senhor. De Jefferson, Mississippi.
- Ele veio co Mr. Hogganbeck, que vai pôr o Acobreado a correr desta vez - disse o Lycurgus.
- Ah - disse o Mr. Walter. - Esse Mr. Hogganbeck comprou-o?
- Não sei, não sinhor - disse o Lycurgus. - O Mr. Hogganbeck é que o vai pôr a correr. - O McWillie trouxe o cavalo; ele e o Mr. Walter tiraram-lhe a manta. Era preto, maior do que o Relâmpago, mas muito nervoso; apareceu a mostrar o branco dos olhos e cada vez que alguém se mexia ou falava perto dele deitava logo as orelhas para trás e levantava ligeiramente uma das patas traseiras como se a preparar-se para desferir um coice, e o Mr. Walter e o McWillie a falarem com ele baixinho, mas sempre atentos.
- Muito bem - disse o Mr. Walter. - Dá-lhe de beber e leva-o para dentro. - Fomos com ele até à porta. - Não deixes que ele te desanime - disse ele. - Afinal é só um cavalo de corrida.
- Isso é verdade, sinhor - disse o Lycurgus. - E o que dizem. Muifagradecido por nos deixar olhar pra ele.
- Muito obrigado, senhor - disse eu.
- Adeus - disse o Mr. Walter. - Não façam esperar as mulas. Até logo à tarde na linha de partida.
- Não sinhor - disse o Lycurgus.
- Sim senhor - disse eu. - E voltámos, passando mais uma vez pelos estábulos e pela pista.
- Lembre-se do qu'o Mr. McCaslin nos disse - disse o Lycurgus.
- O Mr. McCaslin? - disse eu. - Ah, sim - E também desta vez
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não perguntei, O quê? Acho que agora já sabia. Ou talvez não quisesse acreditar que sabia; não queria acreditar nem mesmo agora que com uns escassos onze anos era possível progredir tão depressa na penosa desilusão; talvez ter perguntado, O quê? tivesse sido admitir que tinha mesmo. - Aquele cavalo é uma fera - disse eu.
- Está assustado - disse o Lycurgus. - Foi o qu'o Mr. McCaslin disse ont'à noite.
- Ontem à noite? - disse eu. - Julguei que vocês tinham vindo todos ver a pista.
- Pra qu'é qu'a gente ia querer ver a pista? - disse o Lycurgus. - A pista não sai dond' ela tá. Ele veio ver aquele cavalo.
- Na escuridão? - disse eu. - E eles não tinham lá um vigilante e a porta da cavalariça não estava fechada à chave nem nada?
- Quando o Mr. McCaslin mete uma coisa na cabeça, vai até ao fim - disse o Lycurgus. - Inda não pe'cebeu qu'ele é assim? - Então nós - eu - nem olhámos pra trás. Voltámos para o nosso refúgio, onde o Relâmpago - quer dizer, o Acobreado - e as duas mulas batiam os cascos e agitavam as caudas na sombra sarapintada de sol, e o Ned continuava acocorado ao lado da sela do tio Parsham e um outro homem estava sentado nos calcanhares do outro lado da nascente - um outro negro; eu quase que o conhecia, tinha conhecido, visto, ou coisa assim... antes de o Ned falar.
- É o Bobo - disse ele. E então fiquei descansado. Esse também era um McCaslin, o Bobo Beauchamp, primo do Lucas - Lucas Quintus Carothers McCaslin Beauchamp, que a minha avó, cuja mãe lhe tinha dito como era o velho Lucas, dizia que era igualzinho a ele (no feitio também: a mesma arrogância, a mesma cas-murrice, a mesma intolerância) excepto na cor. O Bobo era mais um dos Beauchamp sem mãe que a tia Tennie criou até ele não conseguir resistir ao apelo da cidade grande e ter partido para Memphis já lá iam três anos. - O Bobo trabalhou prò antigo dono do Relâmpago - disse o Ned. - Veio prò ver correr. - Porque eu
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agora estava descansado: a única coisa que ainda nos preocupava -me preocupava: o Bobo havia de saber onde estava o automóvel. De facto, até era bem capaz de ser ele que o tinha. Mas era um erro, porque nesse caso o Boon e o Ned ter-lho-iam pura e simplesmente tirado - até que de repente percebi que a razão por que era um erro era porque eu não queria que fosse; se para recuperarmos o automóvel bastasse dizer ao Bobo para o ir buscar, e depressa, então o que é que nós estávamos aqui a fazer? Para que tinha sido tanto trabalho e tanta ansiedade? Levar o Relâmpago camuflado e disfarçado pelo bairro da luz vermelha de Memphis até à estação; usar sem qualquer escrúpulo uma combinação de amor e nepotismo para desviar um vagão inteirinho do sistema ferroviário e levá-lo para Parsham; sem falar no resto: ter de aturar o Butch, o dente da Minnie, invadir e abusar da casa do tio Parsham, e ainda noites mal dormidas, (sim) saudades de casa e (outra vez eu) nem uma mísera muda de roupa; tanto esforço, tanta luta, tantas tramóias para entrar numa corrida de cavalos com um cavalo que não era nosso, para recuperar um automóvel em que para começar nunca devíamos ter tocado, quando tudo o que tínhamos de fazer para reaver o automóvel era mandar um dos negros da família buscá-lo. Estás a perceber o que eu quero dizer? Se o sucesso da corrida dessa tarde não era realmente o principal; se eu e o Relâmpago não éramos o derradeiro e desesperado obstáculo entre o Boon e o Ned e a cólera do meu avô, se não mesmo a sua polícia; se mesmo sem ganhar a corrida ou sequer entrar nela, o Ned e o Beauchamp podiam voltar para Jefferson (que era o único lar que o Ned conhecia, e o único lugar onde o Boon podia ter sobrevivido) como se nada tivesse acontecido, e continuado a viver como se nunca de lá tivessem saído, então nós estávamos todos envolvidos num faz-de-conta não muito diferente daquele jogo infantil dos polícias e ladrões. Mas o Bobo podia saber onde estava o automóvel, isso seria aceitável; isso seria justo; e o Bobo era dos nossos. E foi isso

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mesmo que eu disse ao Ned. - Pensava que lhe tinha dito pra deixar de se preocupar co'aquele automóvel - disse-me ele. - Eu não lhe prometi que tratava do assunto na altura certa? Tem muitas outras coisas pra lh'ocupar a cabeça: tem uma corrida pela frente. Não acha que chega e sobra? - E depois para o Lycurgus: - Tudo bem?
- Acho que sim - disse o Lycurgus. - Não olhámos pra trás pra ver.
- Atão talvez esteja - disse o Ned. - Mas o Bobo já se tinha ido embora. Não o vi nem ouvi ir; simplesmente desapareceu. - Vai buscar o balde - disse o Ned ao Lycurgus. - Agora é uma boa altura pra comermos a nossa merenda enquanto inda temos alguma paz e sossego por aqui. - O Lycurgus trouxe-o - um balde de folha para a banha com um pano de loiça limpo por cima e lá dentro sandes de pão de milho com toucinho frito; e havia outro balde com soro de leite na nascente.
- Tomou o pequeno-almoço? - perguntou-me o tio Parsham.
- Sim senhor - disse eu.
- Atão não coma mai nada - disse ele. - Coma só um bocadinho de pão e uma pinguinha d'água.
- É verdade - disse o Ned. - Corre milhor co estômago vazio. -Assim, deu-me só uma fatia de pão de milho e estávamos agora todos de cócoras à volta da sela do tio Parsham, com os dois baldes no chão, ao centro; ouvimos um passo ou talvez dois a subir o talude atrás de nós, e depois o McWillie disse:
- Boas, tio Possum, b'dia, reverendo - (esta era para o Ned), e desceu o talude, já - ou ainda - a olhar para o Relâmpago. - Pois é, é o Acobreado sim sinhor. Estes rapazes assustaram o Mr. Walter esta manhã, que julgou que tinham trazido outro cavalo. E vomicê qu'o vai pôr a correr, reverendo?
- Trata-o por Mr. McCaslin - disse o tio Parsham.
- Sim sinhor - disse o McWillie. - Mr. McCaslin, é vomicê qu'o vai pôr a correr?
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- É um branco chamado Mr. Hogganbeck - disse o Ned.
- Tamos agora à espera dele.
- Que pena não terem mai nada à espera dele além do Acobreado, um que pudesse dar luta ao Akron - disse o McWillie.
- Eu já disse isso ao Mr. Hogganbeck - disse o Ned. Em seguida engoliu. Sem pressa, pegou no balde de soro e bebeu, sem pressa nenhuma. O McWillie observava-o. O Ned pousou o balde e disse: - Senta-te e come alguma coisa.
- Muito agradecido - disse o McWillie - mas já comi. Se calhar é por isso qu'o Mr. Hogganbeck tá atrasado, à espera pra trazer o outro cavalo.
- Já não dá tempo - disse o Ned. - Agora vai ter de pôr este a correr. O único problema é que o único qu'aqui tá que conhece bem este cavalo é precisamente aquele que sabe o suficiente pra não o deixar ficar pra atrás. Este cavalo não gosta d'ir à frente. O qu'ele quer é correr atrás até ver a meta, e ter alguma coisa pra onde correr. Inda não o vi correr, mas era capaz d'apostar que quanto mais devagar for o cavalo que vai à frente dele, menos ele vai querer passar prá frente onde não tem companhia - até ver a meta e perceber que tá numa corrida e então correr pra ela. Tudo o qu'uma pessoa tem de fazer pra lhe ganhar é mantê-lo tão calmo que quando ele reparar que tá numa corrida já vai ser tarde de mais. Um dia deviam deixá-lo ficar tão pra trás qu'ele s'assustasse, e depois, cuidado. Mas não vai ser nesta corrida. O problema é que o único aqui que também sabe disso é a pessoa errada.
- E quem é? - perguntou o McWillie. O Ned deu mais uma dentada.
- O que vai montar hoje o outro cavalo.
- Sou eu - disse o McWillie. - Não me diga qu'o tio Possum e o Lycurgus inda não lhe disseram.
- Atão devias era tar a falar comigo - disse o Ned. - Senta-te e come; o tio Possum tem aqui muita comida.
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- Muito agradecido - disse o McWillie outra vez. - Bem - disse ele - o Mr. Walter vai gostar de saber que este cavalo não é outro senão o Acobreado. Távamos com medo d'ir encontrar outro cavalo. A gente vê-se na corrida. - E foi-se embora. Mas eu esperei mais um minuto.
- Mas porquê? - disse eu.
- Não sei - disse o Ned. - Até pode ser qu'a gente não precise. Mas se precisarmos, já está. Lembra-se qu'eu lhe disse esta manhã qual era o problema desta corrida, qu'havia nela demasiadas coisas diferentes misturadas? Ora bem, não é a nossa pista nem a nossa terra, e nem sequer o nosso cavalo a não ser por empréstimo, e por isso não podemos eliminar nenhuma dessas coisas. O milhor qu'a gente podemos fazer é meter-lhe ainda mais algumas coisas extra por nossa conta. Foi isso qu'acabámos de fazer. O outro cavalo é um puro-sangue certificado e tudo; atão porque não tá ele a fazer corridas em Memphis, em Louisville ou em Chicago, em vez de tar a fazê-las aqui num prado de trazer por casa contra qualquer um qu'apareça pela porta das traseiras, como nós? Porque, ora bem, porqu'eu tive a observá-lo ont'à noite e ele tá escanzelado, como um cavalo que ninguém consegue agarrar nos primeiros mil, mil e duzentos metros, mas mais cento e cinquenta metros e, antes qu'a gente tenha tempo de dar por isso, já ele tá vergado debaixo da sela. E até agora, tudo com qu'aquele rapaz...
- O McWillie - disse eu.
- ... com qu'o McWillie teve de se preocupar foi aguentar-se em cima dele e mantê-lo na direcção certa; já ganhou duas vezes e provavelmente pensa que se tivesse op'tunidade ia acabar coa carreira do Earl Sande e do Dan Patch duma vez por todas. Mas agora pusemos-outra coisa na cabeça; agora tem duas coisas em que pensar que não batem certo uma coa outra. Por isso vamos esperar pra ver. E enquanto esperamos, vá-se deitar a descansar ali atrás daqueles arbustos. Acabou a conversa, agora o pessoal vai começar
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a aparecer por aqui como quem nao quer a coisa, pra ver o que conseguem descobrir, e ali não o vão incomodar.
Assim fiz. Mas não estive sempre a dormir; ouvia as vozes; nem precisava de os ver, mesmo que me tivesse soerguido num cotovelo, aberto um olho e espreitado por entre os arbustos: os fatos-macaco de sempre, sem gravata, os chapéus suados, o tabaco de mascar, de cócoras, sem pressa, parcos nas palavras, a olhar ines-crutavelmente para o cavalo. Nem sempre acordado, porque o Lycurgus estava de pé ao meu lado e o tempo tinha passado; pela luz já tinha passado do meio-dia.
- Tá na hora - disse ele. Agora não estava mais ninguém com o Relâmpago além do Ned e do tio Parsham; se já estavam todos no hipódromo é porque devia ser ainda mais tarde. Estava à espera de ver também o Boon e o Sam e provavelmente a Everbe e a Miss Reba também. (Mas não o Butch. Nem tinha pensado nele; talvez a Miss Reba já se tivesse livrado dele de vez, e ele já tivesse voltado para Hardwick ou lá onde o tipo do hotel disse que ele pertencia. Tinha-me esquecido dele; percebia agora o que era realmente a paz da manhã.) E disse-o.
- Eles ainda não chegaram?
- Inda ninguém lhes disse pra onde ir - disse o Ned. - Nós agora não precisamos do Boon Hogganbeck. Venha. Pode levá-lo a pé até à pista, pra lhe desentorpecer as pernas. - Pus-me de pé: a sela McClellan, já usada mas em perfeito estado de conservação, e, também usadas mas em perfeito estado de conservação, as rédeas da cavalaria, que eram a outra metade dos despojos trazidos pelo tio Parsham (ou lá quem foi) daquela Causa que, quanto mais vivo mais me convenço, ao contrário das tuas tias solteiras, que quem quer que a tenha perdido, não fomos nós.
- Talvez andem à procura do Otis - disse eu.
- Talvez - disse o Ned. - E um bom sítio pra procurarem por ele, quer o encontrem quer não. - E lá fomos, o tio Parsham e o Ned
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junto à cabeça do Relâmpago; o Lycurgus iria à volta pela estrada, com a caleche e a outra mula, desde que tivesse espaço suficiente para a atrelar. Porque o prado pegado à pista já estava cheio de carroças, com as parelhas desatreladas e presas aos postes e às traseiras das carroças, estando as caleches, os cavalos de sela e as mulas amarrados à própria vedação; e agora nós - eu - podia ver as pessoas, pretas e brancas, as camisas sem gravata e os fatos-macaco, já apinhados junto à vedação e à volta do paddock. Porque não te esqueças que se tratava de uma corrida caseira; isto era a democracia, não triunfante, porque qualquer coisa pode ser triunfante desde que seja protegida, guardada e defendida na sua inocente fragilidade com ternura e firmeza suficientes, mas a democracia em acção: o coronel Linscomb, o aristocrata, o barão, o*250 suserano,* não estava sequer presente. Tanto quanto sabia, ninguém sabia onde estava. E, tanto quanto sabia, ninguém estava interessado em saber. Ele era o proprietário de um dos cavalos (eu ainda não sabia ao certo quem era o proprietário do cavalo onde eu estava montado) e do terreno onde íamos correr e da vedação impecavelmente branca que o cercava e do prado adjacente que estava agora a ser sulcado pelas carroças e as caleches e a cerca a que um cavalo furioso ou espantado tinha acabado de arrancar um painel inteirinho, mas ninguém sabia onde ele estava nem pareciam preocupados ou
interessados.
Fomos para o paddock. Ah sim, tínhamos um; tínhamos tudo o que um hipódromo deve ter, excepto, como disse o Ned, bancadas e bares a vender cerveja e uísque; tínhamos tudo o mais que os outros hipódromos têm, mas também tínhamos democracia; os juízes eram o telegrafista que fazia o turno da noite na estação e o Mr. McDiarmid, que geria o restaurante, e que, rezava a lenda, conseguia partir o presunto tão fino que a família inteira tinha podido ir passear no Verão para Chicago só com o lucro de um dos presuntos; o nosso comissário e director era um treinador de cães
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que caçava codornizes para abastecer o mercado e estava agora em liberdade condicional pela sua participação (activa ou apenas presencial) num homicídio ocorrido no Inverno anterior numa destilaria de uísque das redondezas; eu não te disse que isto era o livre-arbítrio, a livre escolha e a iniciativa privada na sua forma mais pura? E lá estava o Boon e o Sam à nossa espera. - Não consigo encontrá-lo - disse o Boon. - Não o viram?
- Viram quem? - disse o Ned. - Salte daí - disse-me ele a seguir. O outro cavalo também lá estava, ainda nervoso, ainda com aquele ar a que eu chamaria maldoso, mas que o Lycurgus dizia e o Ned dizia que era medo. - Ora bem, o que foi que este cavalo...
- Aquele maldito rapaz! - disse o Boon. - Disseste esta manhã que ele ia lá estar.
- Talvez esteja escondido atrás de alguma coisa - disse o Ned e voltou para junto de mim. - O qu'é qu'este cavalo lh'insinou ontem? Dessa vez também estava a fazer um circuito de duas voltas à pista. O que é qu'ele hYinsinou? Pense. - Eu bem me esforcei, mas não via nada.
- Nada - disse eu. - Tudo o que eu fiz foi impedi-lo de correr direito para ti sempre que te via.
- E é exactamente isso que vai querer fazer na primeira mão: limite-se a mantê-lo a meio da pista, não o deixe parar e não se zangue co ele; sobretudo não se zangue; nós de qualquer maneira vamos perder essa primeira mão, e não se fala mai nisso...
- Perder? - disse o Boon. - Mas que diabo...
- Vomicê quer dirigir esta corrida de cavalos ou quer que seja eu a dirigi-la? - perguntou-lhe o Ned.
- Está bem - disse o Boon. - Mas raios partam isto... - E depois disse: - Tu disseste que aquele maldito rapaz...
- Deixenfatão fazer a pergunta doutra maneira - disse o Ned. - Quer ficar vomicê a dirigir esta corrida e que vá eu à caça daquele dente?
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- Lá vêm eles - disse o Sam. - Já não temos tempo para isso. Dê-me o seu pé - e pôs-me lá em cima. De facto não tínhamos tempo, nem para o Ned me dar mais instruções nem para mais nada. Mas também não precisávamos; a nossa vitória na primeira mão (não a ganhámos; foi só um dividendo que chegou mais tarde) não foi mérito meu nem sequer do Lightining, mas do Ned e do McWillie; em boa verdade só depois é que eu fiquei a saber o que se estava a passar. Devido ao meu (indubitável) tamanho e à minha (mais do que indubitável) inexperiência, sem falar no estado incontrolável em que o outro cavalo estava visivelmente a ficar, foi estipulado, e todos concordaram, que devíamos ser conduzidos por cavalariços até à linha de partida, que nos soltariam à palavra Partida. O que nós fizemos (ou fomos), comportando-se o Relâmpago como sempre fazia quando o Ned estava suficientemente perto para ele enfiar o focinho no casaco ou na mão dele, e comportando-se o Acheron como (presumia eu, já que só o tinha visto uma vez) sempre fazia quando sentia alguém perto da cabeça, avançando aos sacões, puxando o cavalariço para um lado e para o outro, mas acabando por chegar à linha de partida, que teria lugar a qualquer momento; pareceu-me ver realmente o comissário de pista encher os pulmões para gritar Partida!, quando não sei o que se passou, quer dizer a sequência: nisto o Ned disse:
- Firme na sela - e foi como se me arrancassem cabeça, braços, ombros e tudo o mais; não sei o que foi que ele usou - sovela, pica-dor de gelo ou talvez apenas um prego na palma da mão, o salto, o pinote; a voz que não gritava Partida! porque nunca tinha gritado, mas que em vez disso gritava agora:
- Parem! Parem! Ôooo! Ôooo! - o que nós - o Relâmpago e eu - fizemos, e nesse momento vi o cavalariço que segurava o Acheron ainda de joelhos no sítio para onde o Acheron o tinha atirado, e o Acheron e o McWillie já a toda a brida a aproximarem-se da primeira curva, o McWillie a controlá-lo ora com uma rédea
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ora com a outra, a torcer o pescoço do Acheron ora para um lado ora para o outro. Mas ele já ia com o freio nos dentes, e o comissário mais três ou quatro espectadores a correrem pista fora a tentarem fazê-lo parar na recta de trás; mas era o mesmo que irem a gritar atrás do comboio foguete do Sam entre dois apeadeiros. Mas o McWillie tinha conseguido fazê-lo abrandar a marcha, apesar de agora ser apenas uma mera questão de escolha: acabar de dar a volta à pista ou dar meia-volta e vir para trás, pois a distância era a mesma. O McWillie (ou talvez tivesse sido o Acheron) escolheu a primeira hipótese, e o Ned murmurou baixinho à altura do meu joelho:
- Pelo menos levamos-lhe quase um quilómetro de avanço. Desta vez vai ter de ser vomicê a fazê-lo porque os juízes vão... -E estavam, já estavam a aproximar-se. E o Ned disse: - Lembre-se duma coisa. Esta tamém não interessava... - E então eles fizeram-no mesmo: desqualificaram-no. No entanto, não tinham visto nada, só que ele tinha largado a cabeça do Relâmpago antes da palavra Partida. Por isso, desta vez veio um voluntário da assistência segurar a cabeça do Relâmpago, e o McWillie olhava-me furioso enquanto por baixo dele o Acheron dava sacões e se atirava para a frente enquanto o cavalariço, aos poucos, o punha de novo em posição. E desta vez quem levou a palma foi o McWillie. Estás a ver o que eu quero dizer? Mesmo que a Não-virtude não soubesse nada de corridas de cavalos rústicas, também não precisava de saber: tudo que era necessário era fornecer-me o Sam, para dar uma ajuda extra ao mal por algum processo primevo e insensível como a osmose ou talvez a simples justaposição. Não sabia porquê, mas nem sequer esperei que o Relâmpago mordesse o freio; puxei o bridão para ele (com não pouca, de facto foi até considerável, ajuda do volutário que ia servir, a mim e ao Relâmpago, de motor de arranque individual) e assim fiquei, estático; e como não podia deixar de ser, vi as solas dos pés do cavalariço do Acheron
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e o próprio Acheron já a atacar em dois saltos a volta seguinte enquanto eu e o Relâmpago continuávamos imóveis. Mas desta vez o McWillie segurou-o antes de ele chegar à curva, pelo que a equipa de socorro não só chegou primeiro ao outro lado do circuito, como conseguiu mesmo fazer parar o Acheron e trazê-lo de volta. E assim, a nossa vantagem - minha e do Ned - era só de mil e duzentos metros, e os últimos duzentos discutíveis. Contudo o grande ganho era o McWillie; ele agora não estava apenas doido de fúria, estava também em pânico, de novo a fuzilar-me com o olhar, mas com mais alguma coisa do que raiva, com dois cavalariços agora a segurar o Acheron tempo suficiente para nós, eu e o Relâmpago, nos recolocarmos em posição, agora do lado de fora para lhes dar bastante espaço, quando soou a palavra Partida.
E foi assim. Partimos, o Relâmpago vigoroso e determinado, com todas as qualidades que de facto se podem desejar excepto a ansiedade, ainda sem ter compreendido que isto era uma corrida, e o McWillie agora a frear o Acheron, deixando que fôssemos nós a marcar o andamento durante a primeira volta, com o Relâmpago a correr cada vez mais devagar ante toda aquela solidão, até ao momento em que o Acheron ganhou terreno e nos ultrapassou apesar dos esforços do McWillie; após o que o Relâmpago, vendo que tinha companhia, acelerou de novo na segunda volta, ganhando velocidade, levando o Acheron uma cabeça de vantagem e começando a multidão a gritar como se para fazer jus ao dinheiro das apostas; a linha de partida estava então à nossa frente e o McWillie dá ao Acheron uma chicotada tão brutal que bem podia ter atingido também o Relâmpago; mais seis metros e teríamos ultrapassado o McWillie só com a velocidade adquirida. Mas os seis metros não estavam lá, e o McWillie lançou-me por cima do ombro um último olhar fulminante, de raiva e medo, mas também de triunfo, enquanto eu travava o Relâmpago, o fazia dar meia-volta e nisto vi: não uma luta, mas mais um burburinho, um turbilhão de
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cabeças, ombros e costas no meio da multidão que rodeava o palanque dos juízes, no meio do qual o Boon se ergueu subitamente como um rebento numa moita de abrunheiros, com metade da camisa arrancada, a agitar um braço, com dois ou três homens agarrados a ele; podia vê-lo a gritar. Nisto desapareceu e vi o Ned a correr pela pista fora na minha direcção. Depois o Butch e um outro homem saíram da multidão, também em direcção a nós.
- O que ...? - perguntei eu ao Ned.
- Nassaflija co isso - disse ele. Agarrou as rédeas com uma mão, já a enfiar a outra no bolso das calças. - É outra vez aquele Butch; não interessa porquê. Pegue - e estendeu-me a mão. Não parecia aflito nem apressado: apenas rápido. - Pegue. A si não o vão incomodar. - Era um saquinho de tabaco com uma coisa dura lá dentro mais ou menos do tamanho de uma noz-pecã. - Esconda-o bem escondido, mas não o perca. Lembre-se donde veio: do Ned William McCaslin. Vai-se lembrar? Ned William McCaslin Jefferson Mississippi.
- Sim - disse eu, e guardei aquela coisa no bolso das minhas calças. - Mas o que... - Ele nem me deixou acabar.
- Assim que puder, vá procurar o tio Possum e fique co ele. Nassaflija co Boon nem cos outros. S'eles o apanharam, tamém apanharam os outros todos. Vá direitinho ao tio Possum e fique ò pé dele. Ele vai saber o que fazer.
- Sim - disse eu. O Butch e o outro homem tinham chegado ao portão de acesso à pista; parte da camisa do Butch também tinha desaparecido. Estavam a olhar para nós.
- E aquele? - disse o homem que estava com ele.
- É - disse o Butch.
- Traz esse cavalo para aqui, rapaz - disse o homem para o Ned. - Eu quero esse cavalo.
- Fique quieto - disse-me o Ned, e levou o cavalo até onde eles estavam à espera.
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- Salta daí, meu filho - disse-me o homem, todo amável. - Não é a ti que eu quero. - Eu assim fiz. - Passa para cá as rédeas - disse ele ao Ned. O Ned assim fez. - A ti levo-te mesmo sem sela - disse o homem ao Ned. - Estás detido.
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XI

Agora íamos ter de enfrentar a multidão em peso. Ali estávamos nós, a olhar para o Butch e para o outro homem, que estava agora a segurar no Relâmpago.
- E isso quer dizer o quê, homens brancos? - perguntou o Ned.
- Quer dizer que vais para a prisão - disse o outro homem.
- E assim que dizemos aqui. Não sei como é que vocês dizem lá donde vens.
- Sim sinhor - disse o Ned. - Tamém lá temos disso. Só que lá dizem porquê, mesmo aos pretos.
- Ah, temos aqui um advogado - disse o Butch. - Ele quer ver um papel. Mostre-lhe um... Deixe lá, eu mesmo mostro. - Tirou qualquer coisa do bolso das calças: era uma carta num envelope imundo. O Ned pegou-lhe e ficou em silêncio com a carta na mão.
- O que pensas disto - disse o Butch. - Um homem que nem sabe ler a querer ver um papel. Cheira-o. Pode ser que cheire bem.
- Sim sinhor - disse o Ned. - Está tudo bem.
- Não te dês por satisfeito se não estiveres - disse o Butch.
- Sim sinhor - disse o Ned. - Está tudo bem. - Já tínhamos a multidão à nossa volta. O Butch tirou o envelope da mão do Ned, voltou a metê-lo no bolso das calças e disse para a assistência:
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- Está tudo bem, rapaziada; é só uma pequena questão legal sobre quem é o proprietário deste cavalo. A corrida não está cancelada. A primeira mão continua a valer; as outras duas ficam só adiadas até amanhã. Vocês lá atrás conseguem ouvir-me?
- É provável que não, se as apostas também forem canceladas -disse uma voz. Ouviu-se uma gargalhada, depois duas ou três.
- Não sei - disse o Butch. - Quem viu este cavalo de Memphis correr contra o Akron aquelas duas vezes no Inverno passado e mesmo assim quer apostar nele já cancelou o seu dinheiro ainda antes de fazer a aposta. - Ficou à espera, mas desta vez não houve gargalhadas; depois a mesma voz - ou outra - disse:
- O Walter Clapp também pensa o mesmo? Mais três metros e aquele alazão hoje batia-o.
- Está bem, está bem - disse o Butch. - Amanhã vê-se isso. Não mudou nada; as outras duas mãos só ficam adiadas até amanhã. As apostas de cinquenta dólares por mão continuam de pé e o coronel Linscomb só ainda ganhou uma. Vá, toca a andar; temos de levar este cavalo e estas testemunhas para a cidade onde tudo vai ser esclarecido, para nos prepararmos para correr outra vez amanhã. Alguém dê um grito aí atrás para me trazerem a charrete. - Depois vi o Boon uma cabeça acima deles. A cara dele estava agora bastante calma, ainda raiada de sangue, e alguém (estava à espera de o ver algemado, mas não estava; continuávamos a ser uma democracia; ele continuava a ser apenas uma minoria e não uma heresia) lhe tinha posto as mangas da camisa rasgada ao pescoço, para o cobrir. Depois vi também o Sam; quase não estava marcado; foi ele o primeiro a avançar. - Há meia hora que tentamos aproximar-nos de você, mas você não deixa.
- Você tem toda a razão - disse o Sam. - Vou perguntar-lhe outra vez, e espero que seja a última. Estamos detidos?
- Estão detidos quem? - disse o Butch.
- O Hogganbeck. Eu. E ali aquele negro.
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- Ora aqui está mais um advogado - disse o Butch para o outro homem. Percebi rapidamente que se tratava do representante da lei em Parsham; era aquele de quem a Miss Reba nos tinha falado na noite anterior: o chefe da polícia eleito naquele círculo eleitoral, onde o Butch, com crachá, pistola e tudo, não passava, tal como nós, de mais um hóspede, sendo ele (o Butch) apenas mais um representante sem mandato oficial do nepótico gabinete do xerife do condado na sede do condado em Hardwick, a vinte quilómetros dali. - Talvez ele também queira ver um papel.
- Não - disse o outro homem, o chefe da polícia, para o Sam.
- Pode ir-se embora quando quiser.
- Então vou voltar a Memphis à procura da lei - disse o Sam.
- Quer dizer, do tipo de lei a que um homem como eu pode recorrer sem se sujeitar a que lhe arranquem as calças e as cuecas. Se eu não voltar esta noite, estarei aqui amanhã bem cedo. - Ele já me tinha visto, e disse: - Vamos. Tu vens comigo.
- Não - disse eu. - Eu vou ficar aqui. - O chefe da polícia estava a olhar para mim.
- Podes ir com ele, se quiseres - disse ele.
- Não, senhor - disse eu. - Vou ficar aqui.
- A quem é que ele pertence? - perguntou o chefe da polícia.
- Ele tá comigo - disse o Ned. O chefe da polícia perguntou, como se o Ned não tivesse dito nada, como se não tivesse ouvido o mínimo som:
- Quem o trouxe até aqui?
- Eu - disse o Boon. - Trabalho para o pai dele.
- Eu trabalho para o avô dele - disse o Ned. - Já tá assente tomarmos conta dele.
- Aguentem firme - disse o Sam. - Vou tentar voltar ainda esta noite. E então tudo se resolve.
- E quando voltar - disse-lhe o chefe da polícia - lembre-se de que não está em Memphis nem em Nashville. Que nem sequer está
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no condado de Hardwick, a não ser administrativamente. Onde você está agora, e onde vai estar de cada vez que descer dum comboio ali na estação, é no círculo eleitoral quatro.
- Isso é que é falar, juiz - disse o Butch. - O estado livre de Possum, Tennessee.
- Eu também estava a falar consigo - disse o chefe da polícia ao Butch. - Você bem pode ser o que mais se deve esforçar por se lembrar disto. - A charrete chegou ao sítio onde eles estavam a segurar o Boon. O chefe da polícia fez sinal ao Ned para subir. De repente o Boon começou a debater-se; o Ned estava a dizer-lhe qualquer coisa. Depois o chefe da polícia virou-se para mim. - Aquele negro diz que vais para casa do velho Possum Hood.
- Sim senhor - disse eu.
- Isso não me está a agradar... um rapaz branco ficar com uma família de pretos. Vens é comigo para casa.
- Não senhor - disse eu.
- Vens sim - disse ele, ainda com toda a amabilidade. - Vamos lá. Não tenho tempo a perder.
- Há um ponto em que vomicês têm de parar - disse o Ned. O chefe da polícia ficou completamente imóvel, meio virado para trás.
- O que é que tu disseste? - disse ele.
- Qu' há um ponto ond'a lei acaba e as pessoas começam - disse o Ned. O chefe da polícia continuou sem se mexer por mais um segundo - um homem mais velho do que se julga a princípio, seco, vigoroso ainda, mas mais velho, sem pistola, no bolso ou noutro sítio qualquer, e se tinha um crachá, também não estava à vista.
- Tens razão - disse ele. E depois, para mim: - É onde queres ficar? Com o velho Possum?
- E sim senhor - disse eu.
- Muito bem - disse ele. Depois virou-se para trás: - Entrem,
rapazes.
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- O que é que vai fazer com o preto? - perguntou-lhe o Butch, que tinha tirado as rédeas das mãos do homem que tinha trazido a charrete, e já estava com o pé no estribo para se sentar no lugar do condutor; o Boon e o Sam já estavam no banco de trás. - Vai deixá-lo levar o seu cavalo?
- Tu vais levar o meu cavalo - disse o chefe da polícia. - Vá, salta para lá. Meu filho - disse ele ao Ned. - Aqui o perito em cavalos és tu. - O Ned tirou as rédeas ao Butch, subiu e bloqueou a roda para o chefe da polícia subir para o lado dele. O Boon continuava a olhar para mim lá de cima, com a cara amassada e ferida, mas calma, agora por baixo do sangue já a secar.
- Vem com o Sam - disse ele.
- Eu estou bem - disse eu.
- Não - disse o Boon. - Eu não posso...
- Eu conheço o Possum Hood - disse o chefe da polícia. - Se ficar preocupado com ele, vou lá buscá-lo esta noite. Vamos embora, meu filho. Partiram. Foram-se embora. E eu fiquei sozinho. Quer dizer, se eu tivesse ficado entregue a mim mesmo como quando dois caçadores se separam na floresta ou no campo, para se encontrarem outra vez mais tarde, mesmo tão tarde como só à noite no acampamento, mesmo assim não me teria sentido tão só. Assim como estava, estava tudo menos solitário. Eu era uma ilha naquele círculo de chapéus suados, camisas sem gravata e fatos-macaco, rostos estranhos e sem nome, já a desviarem-se de mim enquanto eu olhava em volta para eles, sem me dirigirem uma única palavra, Sim ou Não ou Vai ou Fica: que - eu - estava a ser reabandonado, eu que já tinha sido abandonado uma vez: e aos onze anos apenas uma pessoa não é de facto suficientemente grande em tamanho para valer tanto abandono; iria ser aniquilado, apagado, dissolvido, vaporizado por ele. Até que um deles disse:
- Estás à procura do Possum Hood? Acho que ele está acolá na caleche dele, à tua espera. - E estava. As outras carroças e caleches
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já estavam de partida; a maior parte delas e todos os cavalos e mulas de sela já se tinham ido embora. Aproximei-me da caleche e parei. Não sei porquê; simplesmente parei. Talvez porque não havia mais sítio nenhum para onde ir. Quer dizer, não havia espaço para o próximo passo em frente até alguém mover a caleche.
- Suba - disse o tio Possum. - Vamos para casa esperar pelo Lycurgus.
- Lycurgus - disse eu, como se nunca tivesse ouvido o nome antes.
- Ele foi à cidade na mula. Vai descobrir o que é que foi tudo isto para nos contar. E vai também saber a que horas parte esta noite o comboio para Jefferson.
- Para Jefferson? - disse eu.
- Para vomicê poder ir para casa - disse ele sem olhar de frente para mim. - Se quiser.
- Eu ainda não posso ir para casa - disse eu. - Tenho de esperar pelo Boon.
- Eu disse se quiser - disse o tio Parsham. - Entre. - Entrei. Ele atravessou o prado e saiu para a estrada. - Feche o portão - disse o tio Parsham. - Já é altura de alguém se lembrar de o fechar. -Fechei o portão e voltei para a caleche. - Já alguma vez conduziu uma caleche puxada por uma mula?
- Não senhor - disse eu. - Ele deu-me as rédeas. - Não sei como fazer - disse eu.
- Então agora pode aprender. Uma mula não é como um cavalo. Quando um cavalo mete na cabeça uma ideia errada, tudo o que temos a fazer é meter-lhe lá outra no lugar daquela. Quase tudo dá... um chicote ou uma espora, ou só assustá-lo gritando co ele. Uma mula é diferente. Pode ter duas ideias ao mesmo tempo e a maneira de mudar uma delas é agir como se acreditássemos que foi ela que pensou primeiro em mudá-la. Ela vai perceber, porque as mulas são inteligentes. Mas também são bem-educadas e, quando
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sé cortês com elas e as tratamos com respeito sem tentarmos comprá-las nem amedrontá-las, elas tamém se mostram corteses e tratam-nos com respeito... desde qu'a gente não lhes ponha o pé em cima. É por isso que não fazemos festas a uma mula como fazemos a um cavalo: ela sabe que não gostamos dela, que estamos só a tentar enganá-la prà levarmos a fazer uma coisa qu'ela não quer fazer, e isso ofende-a. Conduza-a assim. Ela sabe o caminho de casa e vai saber que não sou eu que tenho as rédeas. Por isso, tudo o que tem a fazer é dizer-lhe côas rédeas que tamém sabe o caminho, mas ela vive aqui e vomicê não passa dum rapazinho e por isso quer que seja ela a conduzi-lo.
Lá íamos, agora em bom andamento, a mula ágil e ligeira, a levantar menos de metade do pó que um cavalo levantaria. E eu já podia sentir aquilo de que o tio Parsham tinha falado; as rédeas comunicavam-me não só poder, mas inteligência e sagacidade; não apenas a capacidade, mas a vontade de escolher sempre que necessário entre duas alternativas, e tomar a decisão certa sem hesitações.
- O que faz lá em sua casa? - perguntou o tio Parsham.
- Trabalho aos sábados - disse eu.
- Então vai poupar algum desse dinheiro. O que vai comprar com ele? - E, assim, de repente, eu estava a falar, a contar-lhe: sobre os cães de caça, que queria ser caçador de raposas como o primo Zack, e que o primo Zack disse que a melhor forma de aprender era largar uma matilha de cães de caça atrás de coelhos; e que o meu pai me pagava dez cêntimos todos os sábados na cocheira de aluguer e que o meu pai me dava outro tanto igual ao que eu poupasse até eu poder comprar o primeiro casal para começar a minha matilha, o que me custaria doze dólares, e que eu já tinha oito dólares e dez cêntimos; e depois, também de repente, desatei a chorar convulsivamente: estava cansado, não de ter feito uma corrida de quilómetro e meio, porque uma vez já tinha corrido
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mais do que isso, se bem que não tivesse sido uma corrida a sério; mas era talvez por me ter levantado cedo e ter andado a atravessar o campo para trás e para a frente sem ter comido mais nada de almoço senão um bocado de pão de milho. Talvez fosse isso, eu estava era com fome. Mas o certo é que estava ali sentado a chorar convulsivamente como um bebé, pior que o Alexander e até o Maury, em cima da camisa do tio Parsham enquanto ele me abraçava com um braço e me tirava as rédeas com a outra mão, sem dizer absolutamente nada, até dizer: - Agora pode parar. Estamos quase a chegar; só vai ter tempo de lavar a cara no bebedouro antes d'entrarmos. Não quer qu'as mulheres o vejam nesse estado.
E eu assim fiz. Isto é, primeiro desatrelámos a mula, demos-lhe de beber, fomos pendurar o arnês, limpámos a mula, metemo-la na baia e demos-lhe de comer, empurrámos a caleche para debaixo do telheiro e só depois é que eu fui passar a cara por água no bebedouro e depois limpei-a (mais ou menos) com a meia de montar e entrei em casa. E o jantar, a refeição da noite, já estava pronta, apesar de ainda serem só cinco horas, a hora a que as pessoas do campo, os agricultores, comiam; sentámo-nos: o tio Parsham, a filha e eu, pois o Lycurgus ainda não tinha voltado da cidade, e o tio Parsham perguntou:
- Tamém dão graças lá em sua casa? - e eu respondi:
- Sim senhor - e ele disse:
- Baixem a cabeça - e nós assim fizemos e ele deu graças, rapidamente, com cortesia, mas também dignidade, sem servilismo nem adulação: de um homem de bem e inteligente para outro, notificando o Céu de que ia começar a comer e Lhe agradecia o privilégio, mas lembrando-Lhe ao mesmo tempo que também tinha dado uma ajuda; que se pessoas com os nomes de Hood ou Briggins (ou seja, o nome do Lycurgus e da mãe dele) não tivessem contribuído com o seu suor, quase só teriam a agradecer pratos vazios, e depois disse Ámen, desdobrou o guardanapo, meteu a
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ponta no colarinho exactamente como o meu avô fazia, e começámos a comer: pratos de legumes frios que deviam ter sido comidos quentes às onze horas, como era hábito no campo, mas havia pãezinhos quentes, três variedades de compota e soro de leite. E nem sequer era ainda hora do sol-pôr: o longo crepúsculo e mesmo depois disso, e ainda o longo anoitecer, a longa noite e eu nem sequer sabia onde ia ficar a dormir nem em cima de quê, e o tio Parsham ali sentado a palitar os dentes com um palito de ouro, exactamente como o do meu avô e a ler-me o pensamento como se fosse um diapositivo de uma lanterna mágica:
- Gosta de ir à pesca? - Eu não gostava por aí além. Parecia que nunca mais conseguia aprender a querer - ou talvez querer aprender - a ficar parado tanto tempo. Disse muito depressa:
- Sim senhor.
- Então vamos lá. Quando regressarmos já o Lycurgus tá de volta. - Havia três canas de pesca, com linhas, flutuadores, chumbos, anzóis e tudo, penduradas em dois pregos na parede da varanda das traseiras. Ele tirou duas. - Vamos - disse ele. No barracão das ferramentas havia um balde de folha com a tampa perfurada com um prego. - É o balde dos grilos do Lycurgus - disse ele. - Eu prefiro as minhocas. Estavam num tabuleiro baixo cheio de terra; ele - não - eu; eu pedi:
- Deixe-me fazer isso - e, tirando-lhe da mão o garfo partido, tirei da terra minhocas compridas e frenéticas, e meti-as numa lata.
- Vamos - disse ele, pondo a cana ao ombro, passando pelo estábulo, mas flectindo para o outro lado e descendo em direcção ao ribeiro, não longe dali; havia um bom trilho, já aberto, entre silvados de amoras negras, depois os salgueiros e por fim o ribeiro, cuja água parecia atrair com suavidade a luz em declínio para com igual suavidade a reflectir; havia até um tronco para nos sentarmos. - E aqui que a minha filha vem pescar - disse ele.
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- Chamamos-lhe o buraco da Mary. Mas tu podes aproveitá-lo agora. Eu vou ficar ali mais abaixo, na margem - e lá foi. A luz esmorecia agora rapidamente e não tardava seria noite. Sentei-me no tronco, rodeado pelo zumbido suave dos mosquitos. Não ia ser muito difícil; tudo o que eu tinha de fazer era simplesmente dizer Não vou pensar sempre que fosse necessário. Pouco depois pensei em meter o anzol na água, e depois podia ficar a ver quanto tempo seria preciso para o flutuador desaparecer na escuridão quando a noite finalmente chegasse. Depois pensei até em pôr um dos grilos do Lycurgus no anzol, mas os grilos nem sempre eram fáceis de apanhar e o Lycurgus vivia perto de um rio e por isso tinha mais tempo para pescar e ia precisar deles. Por isso pensei simplesmente Não vou pensar; agora que o flutuador estava na água, podia vê-lo com mais nitidez que nunca; seria provavelmente a última coisa a desaparecer na escuridão, já que a própria água seria a penúltima; não conseguia ver nem ouvir o tio Parsham, não sabia a que é que ele chamava mais abaixo na margem e esta era a altura ideal, a oportunidade para me portar como um bebé, mas o que adiantava portar-me como um bebé, desperdiçar lágrimas sem ninguém por perto para me ver ou me vir consolar - se é que alguém queria ser consolado ou mesmo voltar para casa, porque tudo o que realmente queria é uma cama macia para variar, onde pudesse dormir; ouvia noitibós a cantar de vez em quando algures na outra margem, e uma coruja também, das grandes, a julgar pelo piar; talvez houvesse grandes florestas do outro lado e se os cães do Lycurgus (ou talvez fossem do tio Parsham) tinham sido tão bons a apanhar o Otis na noite anterior, seguramente deveriam ser capazes de apanhar coelhos, guaxinins ou gambás. Por isso perguntei-lhe. Já há algum tempo que era noite cerrada. E ele disse baixinho atrás de mim; eu nem sequer o tinha ouvido até aí: - Já mordeu algum?
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- Não sou grande pescador - disse eu. - Que tal são os seus cães de caça?
- Bons - disse ele. - E depois, sem elevar a voz: - Do melhor.
- A camisa branca do tio Parsahm também reflectia a luz, enviando-a até nós, e o Lycurgus pegou nas duas canas e lá fomos atrás dele carreiro acima, onde os dois cães vieram ao nosso encontro, de novo rumo à casa, à luz do candeiro de petróleo, ao prato com o jantar coberto com um pano à espera do Lycurgus.
- Senta-te - disse o tio Parsham. - Podes falar enquanto comes.
- O Lycurgus sentou-se.
- Eles inda lá tão - disse ele.
- Inda não os levaram pra Hardwick? - perguntou o tio Parsham. - Em Possum não há prisão - disse-me ele. - Fecham as pessoas no barracão da lenha por trás da escola até as poderem levar prà prisão de Hardwick. Quer dizer, os homens. Inda nunca lá prenderam mulheres.
- Não sinhor - disse o Lycurgus. - As sinhoras ind'é no hotel, cum guarda à porta. Só o Mr. Hogganbeck é que tá no barracão da lenha. O Mr. Caldwell voltou pra Memphis no Trinta-e-um. E levou aquele rapaz co'ele.
- O Otis? - disse eu. - E conseguiram recuperar o dente?
- Não falaram em nada - disse o Lycurgus, enquanto comia, olhando de relance para mim. - E o cavalo tamém tá bem. Fui lá vê-lo. Tá no estábulo do hotel. Antes de partir, o Mr. Caldwell pagou a fiança do Mr. McCaslin pra ele ficar a tratar do cavalo. - Continuou a comer. - Às nove e quarenta há um comboio pra Jefferson. Se se despachar inda o pode apanhar. - O tio Parsham tirou do bolso um enorme relógio de prata e olhou para ele. - Inda dá tempo - disse o Lycurgus.
- Não posso - disse eu. - Tenho de esperar. O tio Parsham guardou o relógio, levantou-se e chamou, sem elevar a voz:
- Mary. - Ela estava na sala da frente; eu não tinha ouvido o mínimo ruído. A Mary assomou-se à porta.
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- Já tratei de tudo - disse ela. E depois, para o Lycurgus: - O teu colchão tá pronto no hall. - E a seguir, para mim: - Vomicê dorme na cama do Lycurgus, onde dormiu ontem.
- Eu não preciso de ficar com a cama do Lycurgus - disse eu.
- Posso dormir com o tio Parsham. Não me importo nada. - Eles olharam para mim, completamente imóveis, completamente idênticos. - Durmo muitas vezes com o Patrão - disse eu. - E ele ainda por cima ressona. Mas eu não me importo.
- O Patrão? - disse o tio Parsham.
- E como nós chamamos ao meu avô - disse eu. - E ele ainda por cima ressona. Não me vou importar.
- Seja - disse o tio Parsham. Fomos para o quarto dele. O candeeiro dele tinha flores pintadas na chaminé de loiça e havia a um canto um grande retrato, com uma moldura dourada colocado num cavalete dourado, de uma mulher não muito velha, mas vestida com roupas de antigamente; a cama tinha uma colcha garrida de retalhos, como a do Lycurgus, e mesmo sendo Maio havia brasas a crepitar na lareira. Havia uma cadeira, de baloiço, mas eu não me sentei. Fiquei ali parado, de pé. Depois ele entrou outra vez. Trazia vestida uma camisa de noite e vinha a dar corda ao relógio de prata.
- Dispa-se - disse ele. Assim fiz. - A sua mãe deixa-o dormir assim em casa?
- Não senhor - disse eu.
- Não trouxe nada consigo, pois não?
- Não senhor - disse eu. - Ele pousou o relógio na cornija da lareira, dirigiu-se para a porta e chamou:
- Mary. - Ela perguntou o que era. - Traz uma camisa lavada do Lycurgus. - Pouco depois a mão dela passou a camisa pela porta entreaberta. Ele pegou-lhe e disse-me: - Tome. - Eu vesti-a. - Faz as suas orações na cama ou de joelhos? - perguntou ele.
- De joelhos - disse eu.
- Então faça-as agora - disse ele. Ajoelhei-me ao lado da cama
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e fiz as minhas orações. A cama já estava aberta. Deitei-me, ele apagou o candeeiro, ouvi a cama outra vez e depois - esta noite a lua só ia estar alta muito tarde, mas já havia luz suficiente - podia vê-lo, todo preto e branco sobre a almofada branca, com o bigode branco imperial, deitado de costas com as mãos cruzadas sobre o peito. - Amanhã de manhã levo-o comigo à cidade pra irmos ver o Mr. Hogganbeck. S'ele disser que vomicê já fez aqui tudo o que podia fazer e qu'o melhor é ir pra casa, nessa altura vai?
- Vou, sim senhor - disse eu.
- Agora durma - disse ele. Porque, mesmo antes de ele o ter dito, eu sabia que era exactamente isso que eu queria, o que eu provavelmente tinha querido desde a véspera: ir para casa. Quer dizer, ninguém gosta de ser vencido, mas se calhar há alturas em que não consegue evitá-lo; em que tudo o que podemos fazer é não desistir. E o Boon e o Ned não tinham desistido, senão não estariam onde estavam agora. E talvez eles não dissessem que eu tinha desistido, se fossem eles a dizer-me para ir para casa. Talvez eu fosse só muito pequeno, muito novo; talvez eu simplesmente não fosse capaz de cumprir a minha tarefa, fosse ela qual fosse, e se eles tivessem encontrado alguém maior ou mais velho ou talvez apenas mais esperto, nós não tivéssemos sido vencidos. Estás a ver? Assim: todo falacioso e racional; impugnável até, quando a pura verdade era que eu queria ir para casa, mas não tinha a coragem de o dizer, e muito menos de o fazer. Por isso agora, tendo finalmente admitido que era não só um falhado mas também um cobarde, a minha cabeça devia estar em paz e tranquila e eu devia adormecer como um bebé onde o tio Parsham já estava a dormir, quase sem ressonar (devia ter ouvido o meu avô). Não que isso tivesse qualquer importância, pois eu estaria em casa no dia seguinte sem nada - nem cavalo roubado nem prostitutas em crise de castidade e condutores errantes de comboio e o Ned e o Boon Hogganbeck no seu estado normal depois de ter escapado ao chicote do meu pai - para me
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perturbar o sono, a ouvir a voz, os gritos, duas ou três vezes antes de me levantar atabalhoadamente e sair para o exterior, para a luz do dia, a luz do Sol; a cama estava vazia do lado do tio Parsham e podia ouvir agora os gritos vindos lá de fora:
- Ó da casa. Ó da casa. Lycurgus. Lycurgus - e dei um pulo, saltei da cama, já a correr, e atravessei o quarto até à janela, de onde podia ver o quintal da frente. Era o Ned. E trazia o cavalo.
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XII

Assim, mais uma vez, às duas da tarde, o McWillie e eu estávamos em cima das nossas (pelo menos a dele) irrequietas montadas - na véspera tínhamos deixado o Mr. Clapp tão assustado, que desta vez tirámos à sorte as nossas posições na linha de partida, e o McWillie ficou com a melhor - a postos para ouvir o comissário de pista (treinador de perdigueiros, caçador mercenário e suspeito de homicídio) dar voz de Partida!
Contudo, aconteceram algumas coisas antes. Uma delas foi o Ned. Estava com mau aspecto. Péssimo mesmo. Não era só falta de sono; todos nós a tínhamos. Mas o Boon e eu tínhamos pelo menos passado as quatro noites desde que saíramos de Jefferson deitados numa cama, enquanto o Ned tinha passado talvez duas, uma delas no vagão com o cavalo e a outra no estábulo também com ele, ambas em cima da palha, na melhor das hipóteses. Era também a roupa dele. A camisa estava imunda e as calças pretas não estavam melhor. Pelo menos a Everbe tinha lavado parte da minha roupa duas noites atrás, mas, até agora o Ned nem sequer tinha tirado a dele até agora: agora estava sentado, com umas calças de ganga desbotadas e uma camisola do tio Parsham, enquanto a Mary lhe lavava a camisa e limpava as calças o melhor que
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podia, sentado comigo à mesa da cozinha, a tomarmos o pequeno-almoço, com o tio Parsham sentado ao nosso lado a ouvi-lo.
Ele contou que pouco antes de o dia clarear um dos homens brancos - mas não o Mr. Poleymus, o chefe da polícia - o foi acordar onde ele estava a dormir em cima de uns fardos de palha e lhe disse para pegar no cavalo e sair da cidade com ele...
- Só tu e o Relâmpago, sem o Boon e os outros? - disse eu. - Onde é que eles estão?
- Onde os brancos os meteram - disse o Ned. - E atão eu disse Muito agradecido, brancos, peguei no Relâmpago e...
- Porquê - disse eu.
- O que é que isso interessa? Tudo o que nós temos de fazer agora é estar atrás daquela linha de partida às duas da tarde para lhes ganharmos duas mãos e deitarmos a mão ao automóvel do Patrão e voltarmos para Jefferson donde nunca devíamos ter
saído...
- Não podemos voltar sem o Boon - disse eu. - Se eles te deixaram vir embora com o Relâmpago, porque não o deixaram a ele?
- Olhe - disse o Ned - vomicê e eu já temos muito que fazer só pra correr aquela corrida. Porque não acaba o pequeno-almoço e depois vai deitar-s'a descansar mais um bocado até eu o ir chamar
a tempo de...
- Pára de mentir - disse-lhe o tio Parsham. - O Ned continuou a comer, com a cabeça curvada sobre o prato, muito depressa. Estava cansado; o branco dos seus olhos já não estava sequer apenas rosado, estava vermelho.
- O Mr. Boon Hogganbeck não vai a lado nenhum por algum tempo. Desta vez tá preso e é pra valer. Eles vão levá-lo esta manhã pra Hardwick, onde o podem ter preso sem problemas. Mas esqueça isso. O que vomicê e eu temos de fazer é...
- Conta-lhe - disse o tio Parsham. - Ele tem suportado todas as outras trapalhadas em que vocês o meteram desde que o trouxe-
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ram para aqui; o que te leva a pensar qu'ele não é capaz de suportar também o resto, até vocês conseguirem resolver esta alhada e levá-lo de volta a casa? Atão ele não teve d'assistir a tudo tamém, aqui mesmo no meu quintal e na minha casa, e acolá no meu prado, sem falar no qu'ele viu na cidade desde então - aquele homem a atirar-se àquela rapariga, e ela a tentar fugir dele, e sem ter mai ninguém pra quem correr a não ser este menino d'onze anos? Sem poder contar co Boon Hogganbeck nem co representante da lei nem cos outros brancos adultos, sem esperar nada deles, a não ser dele? Conta-lhe. - E eu já a sentir cá dentro aquela coisa a dizer-me Não Não Não perguntes Deixa estar Deixa estar. E depois disse:
- O que foi que o Boon fez? - O Ned estava a mastigar por cima do prato, a piscar os olhos vermelhos, como quando entra areia.
- Ele deu uma coça naquele representante da lei. Naquele Butch. Quase dava cabo dele. Eles deixaram-no sair antes de mim e do Relâmpago. E ele nem parou. Foi direito àquela rapariga...
- Era a Miss Reba - disse eu. - Era a Miss Reba.
- Não - disse o Ned. - Era a outra. A grandalhona. Eles nunca disseram o nome dela à minha frente. Ele deu-lhe uma coça e foi-se embora...
- Ele bateu-lhe? - disse eu. - O Boon bateu na Ever... Miss Corrie?
- E esse o nome dela? Bateu. E depois virou costas e voltou pra trás até encontrar aquele representante da lei e deu-lhe uma coça tamém, coa pistola e tudo, até o conseguirem segurar...
- O Boon bateu-lhe - disse eu. - Ele bateu-lhe.
- É verdade - disse o Ned. - É por causa dela qu'eu e o Relâmpago estamos agora em liberdade. Aquele Butch descobriu que não podia tê-la doutra maneira, e quando descobriu qu'eu e vomicê e o Boon tínhamos de ganhar a corrida d' hoje antes de nos podermos atrever a voltar pra casa, e que tudo o qu'ele tinha prà
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ganhar era o Relâmpago, pegou no Relâmpago e prendeu-o. Foi isso qu'aconteceu. É tudo; o tio Parsham já lhe tinha dito que estava a pressentir isto desde segunda-feira, e se calhar eu tamém devia ter pressentido e se calhar até tinha pressentido se não andasse tão atarefado co Relâmpago, ou talvez s'eu conhecesse um pouco melhor aquele Butch...
- Não acredito - disse eu.
- É verdade - disse ele. - Foi o que aconteceu. Foi só pouca sorte, daquela pouca sorte pra que nunca se pode tar prevenido d'avanço. Provavelmente ela só tava onde tava por acaso, quando ele a viu na segunda-feira e percebeu logo qu'aquele crachá e aquela pistola eram tudo o que precisava, acostumado como estava a que isso lhe bastasse. Só que desta vez não bastou e atão ele teve d'arranjar outra coisa e atão, claro, lá tava o Relâmpago, de quem nós dependíamos pra ganhar aquela corrida pra podermos recuperar o automóvel do Patrão e talvez voltar pra casa...
- Não! - disse eu. - Não! Não foi ela! Ela nem sequer aqui está! Ela voltou para Memphis com o Sam ontem à tarde! Eles é que não te disseram nada! Era outra pessoa! Era outra!
- Não - disse o Ned. - Era ela. Bem viu o que se passou aqui na segunda-feira. - Ah, sim; e nessa tarde na charrete na viagem de regresso, e no médico, e nessa noite no hotel até a Miss Reba o espantar, nós - pelo menos eu - achava que ele se tinha ido de vez. Porque a Miss Reba também era mulher. E então disse:
- Porque é que mais ninguém a ajudou? Um homem que a ajudasse - aquele homem, aquele homem que te levou a ti e ao Relâmpago, que disse ao Sam e ao Butch que ambos podiam ser o que muito bem quisessem em Memphis ou Nashville ou Hardwick, mas que aqui em Possum quem mandava era ele... - disse eu, e gritei: - Não acredito.
- É verdade - disse o Ned. - Foi ela que trouxe o Relâmpago pra correr hoje outra vez. Não tou a falar de mim, do Boon e dos
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outros; o Butch nunca quis saber da gente pra nada, excepto talvez manter o Boon fora do caminho até esta manhã. Tudo o que ele precisava era do Relâmpago, só que tinha de nos prender, a mim e ao Boon e aos outros, pra fazer com qu'o Mr. Poleymus acreditasse nele. Porqu'o Butch tamém o enganou, tamém o usou, até ao que quer qu'aconteceu esta manhã - s'o Butch foi subornado e disse que tava enganado ou qu'o cavalo não era aquele, ou talvez naquela altura em que o próprio Mr. Poleymus tinha somado dois e dois e a coisa começou a não lhe cheirar bem e ele soltou toda a gente, e mal ele virou costas o Boon vai e bate na rapariga e depois volta pra trás sem parar um segundo e tenta arrancar a cabeça ao Butch, com a pistola e tudo, só com as próprias mãos, e então a coisa começou a cheirar muito mal ao Mr. Poleymus. Que o Mr. Poleymus pode ser pequeno, e velho, mas é homem. Eles contaram-me qu'a mulher o ano passado teve um ataque e agora nem um dedo consegue mexer, e os filhos tão todos casados e a viver longe e por isso ele tem d'a lavar, de lhe dar de comer e d'a tirar e meter na cama de manhã e à noite, além de fazer também a comida e a lida da casa, a menos qu'alguma vizinha o venha ajudar. Mas a gente não s'apercebe de nada a olhar pra ele e a vê-lo agir. Ele foi lá - qu'eu não vi nada, foi o que me contaram: dois ou três a segurar o Boon e outro a tentar impedir o Butch de lhe dar coa pistola enquanto eles o agarravam -avançou prò Butch e arrancou-lh'a pistola da mão, estendeu a mão e arrancou-lho crachá e metade da camisa e telefonou pra Hardwick pra mandarem um automóvel buscá-los a todos prós levar prà cadeia, as mulheres tamém. Quando é mulheres chamam-lhe mocidade.
- Mendicidade - disse o tio Parsham.
- Foi o qu'eu disse - disse o Ned. - Chame-lhe como quiser. Eu chamo-lhe prisão.
- Não acredito - disse eu. - Ela desistiu disso.
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- Atão é melhor a gente dar graças por ela ter voltado ò mesmo - disse o Ned. - Senão eu, vomicê e o Relâmpago...
- Ela desistiu - disse eu. - Ela prometeu-me.
- Não temos o Relâmpago de volta? - disse o Ned. - Tudo o que temos de fazer agora não é só pô-lo a correr? Atão o Mr. Sam não disse que vai voltar hoje pra resolver tudo, e depois eu, vomicê e o Boon voltamos pra casa e continuamos coa nossa vidinha de sempre?
Eu fiquei ali sentado. Ainda era cedo. Quer dizer, mesmo agora ainda só eram oito horas. Ia fazer muito calor, o primeiro dia quente, a anunciar o Verão. Estás a ver, continuar a dizer Não acredito só me servia por agora; assim que as palavras, o ruído, esmoreceram, lá estava ela - a angústia, a raiva, a indignação, a mágoa ou lá o que era - exactamente na mesma. - Tenho de ir imediatamente à cidade - disse eu ao tio Parsham. - Se puder levar uma das mulas, mando-lhe o dinheiro assim que chegar a casa. - Ele levantou-se de imediato.
- Vamos - disse ele.
- Esperem - disse o Ned. - Agora é tarde de mais, o Mr. Poleymus já mandou vir o automóvel. A estas horas já partiram.
- Ele pode apanhá-los - disse o tio Parsham. - Daqui até à estrada por onde eles vão não chega a um quilómetro.
- Eu devia dormir um bocado - disse o Ned.
- Eu sei - disse o tio Parsham. - Eu vou com ele. Disse-lhe ontem à noite qu'ia.
- Eu ainda não vou para casa - disse eu. - Vou só à cidade num instante. Depois volto para aqui.
- Tá bem - disse o Ned. - Pelo menos deixe-m'acabar o meu café. - Não esperámos por ele. Uma das mulas estava fora, provavelmente no campo com o Lycurgus. Mas a outra estava lá. O Ned apareceu antes de lhe termos posto a sela. O tio Parsham indicou-nos o atalho para a estrada de Hardwick, mas isso não me interes-
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sava. Quer dizer, neste momento não me interessava onde é que o ia encontrar. Se eu não estivesse já saturado de corridas de cavalos, mulheres, ajudantes de xerife e todos os outros que não estavam em casa, que era onde eles deviam estar, talvez tivesse preferido ter o encontro com o Boon num lugar discreto, para bem de nós dois. Mas agora não interessava; por mim, podia ser no meio da estrada ou até no meio da praça; podia haver até um automóvel cheio de gente. Mas nós não encontrámos o automóvel; obviamente era o destino a proteger-me; ter de o fazer em público teria sido intolerável, gratuitamente intolerável para alguém que tinha servido tão fielmente a Não-virtude nestes últimos quatro dias e pedido tão pouco em troca. Quer dizer, não ter de ver mais ninguém além do que fosse necessário. O que me foi concedido; o automóvel ainda vazio mal tinha parado à porta do hotel quando nós chegámos. Era um Stanley Steamer de sete passageiros e com espaço suficiente para a bagagem de dois - não, de três: a Minnie também - mulheres numa viagem de dois dias de Memphis a Parsham, que deviam estar agora lá em cima a fazer as malas, pelo que até o roubo de um cavalo se resolvia sozinho. O Ned bloqueou a roda para me deixar sair. - Continua a não me querer dizer o que veio cá fazer? - perguntou ele.
- Não - disse eu. - Nenhuma das cadeiras alinhadas na varanda em longa fila estava ocupada, César podia ter celebrado ali o seu triunfo com todo o isolamento que a condição de Boon e de Butch exigia; o átrio estava vazio, e o Mr. Poleymus podia ter-se aproveitado disso. Mas ele era um homem de bem; estavam na sala das senhoras - o Mr. Poleymus, o condutor do carro (outro ajudante de xerife; pelo menos trazia crachá), o Butch e o Boon, ainda com as marcas frescas da batalha. Se bem que para mim só existisse o Boon, que conseguia ler nos meus olhos (já os conhecia há muito tempo) ou talvez fosse o seu coração ou pelo menos a consciência; e então disse muito depressa:
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- Cuidado, Lucius, cuidado! - já a tomar balanço com um braço ao mesmo tempo que se levantava bruscamente, já a dar um passo atrás, a recuar, e eu a avançar em direcção a ele, a avançar para ele, nem sequer com metade da altura dele e sem nada onde me pudesse empoleirar (aquele ridículo anticlímax da vergonha), a ter de me esticar, mesmo de saltar para me esticar o mais que podia para lhe bater na cara; ah sim, eu estava a chorar outra vez, convulsivamente; nem conseguia vê-lo; batia tão alto quanto conseguia, tendo de saltar para lhe chegar, batendo contra as suas fragas e penhascos altaneiros e escarpados como os Alpes, e o Mr. Poleymus a dizer-me:
- Bate-lhe outra vez. Ele bateu numa mulher, não me interessa quem ela é - e agarrou-me (ele ou outra pessoa) até eu me debater até me conseguir libertar num repelão, virando-me, cego, para a porta ou para onde pensava que me lembrava dela, guiado agora pelo tacto.
- Espera - disse o Boon. - Não a queres ver? - Estás a ver, eu estava cansado e doíam-me os pés. Estava quase exausto e precisava de dormir. Mas havia mais: estava imundo. Queria roupas lavadas. Ela tinha-me lavado a roupa na segunda-feira à noite, mas eu não queria só a roupa lavada outra vez; queria uma muda de roupa que tivesse tido tempo de descansar, como em casa, a cheirar a descanso, ao silêncio das gavetas, a goma e a lixívia; mas sobretudo os meus pés; queria meias lavadas e os meus outros sapatos.
- Não quero ver ninguém! - disse eu. - Quero ir para casa!
- Está bem - disse o Boon. - Aí... alguém... há aí alguém que o meta no comboio esta manhã? Eu tenho dinheiro... posso arranjá-
-lo...
- Cala-te - disse eu. A mão fez-me virar; à minha frente tinha
uma parede.
- Limpa a cara - disse o Mr. Poleymus, e estendeu-me um lenço colorido; mas eu não aceitei. A minha ligadura chegava bem para absorver as lágrimas. Pelo menos a meia de montar chegou. Já estava
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habituada a que lhe chorasse em cima. Quem sabe, se ficasse comigo tempo suficiente, podia até ganhar uma corrida de cavalos. Agora já conseguia ver; estávamos no átrio. Comecei a dar meia-volta, mas ele segurou-me. - Espera um minuto - disse ele. Se continuas a não querer ver ninguém... - Era a Miss Reba e a Everbe que vinham a descer as escadas com os sacos de viagem, mas a Minnie não vinha com elas. O ajudante de xerife motorista estava à espera. Pegou-lhes nos sacos e elas dirigiram-se para a porta, sem olhar na nossa direcção, a Miss Reba de cabeça erguida, muito hirta e furiosa; se o ajudante de xerife não tivesse sido ligeiro ela passa-va-lhe por cima - dele, dos sacos e tudo. Saíram. - Eu compro-te um bilhete para casa - disse o Mr. Poleymus. - E só meteres-te no comboio. - A ele eu não disse Cale-se. - Agora já não tens ninguém que te acompanhe; eu fico contigo e digo ao condutor...
- Eu vou esperar pelo Ned - disse eu. - Não posso partir sem ele. Se o senhor não tivesse estragado tudo ontem, a estas horas já nos tínhamos ido todos embora.
- Quem é o Ned? - perguntou ele. Disse-lhe. - Quer dizer que vais montar hoje aquele cavalo dê por onde der? Tu e o Ned sozinhos? - Disse-lhe. - Onde está o Ned agora? - Disse-lhe. - Vem -disse ele. - Podemos sair pela porta lateral. - O Ned estava parado ao lado da mula. A traseira do automóvel estava virada para nós. E a Minnie continuava a não estar lá. Talvez tivesse voltado na véspera para Memphis com o Sam e o Otis; talvez agora que tinha deitado a mão ao Otis, não o quisesse largar até ter o dente na palma da mão. Pelo menos era isso que eu teria feito.
- Atão o Mr. Poleymus tamém acabou por o apanhar, não foi? -disse o Ned. - O qu'é que se passa? Ele não tem algemas do seu tamanho?
- Cala-te - disse eu.
- Quando é que o vais levar para casa, meu filho? - disse o Mr. Poleymus para o Ned.
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- Espero qu'esta noite - disse o Ned; neste momento ele não estava a armar-se em tio Remus, nem em esperto, engraçadinho ou outra coisa qualquer. - Assim que estiver livre desta corrida de cavalos e possa tratar disso.
- Tens dinheiro suficiente?
- Sim senhor - disse o Ned. - Muito agradecido. Depois da corrida vai ficar tudo bem. - Ele bloqueou a roda e nós entrámos. O Mr. Poleymus estava de pé agarrado ao fueiro, e disse:
- Então esta tarde sempre vais pôr a correr aquele cavalo do Linscomb - disse ele.
- Esta tarde vamos vencer aquele cavalo do Linscomb - disse o
Ned.
- Espero bem que sim - disse o Mr. Poleymus.
- Eu sei que sim - disse o Ned.
- Até onde chega a tua certeza? - disse o Mr. Poleymus.
- Quem me dera a mim ter cem dólares pr'apostar nele - disse o Ned. - Ficaram a olhar um para o outro; por um bom tempo. Depois, o Mr. Poleymus tirou a mão do fueiro e tirou do bolso uma carteira já gasta, daquelas que fecham em cima com um estalinho - que quando eu a vi até pensei que estava a ver a dobrar porque era igualzinha à do Ned, velha, gasta, e até mais comprida do que a meia de montar, tão iguais que já não sabia quem estava a pagar o quê a quem - abriu-a com um estalinho, tirou duas notas de um dólar, fechou-a com outro estalinho e estendeu as notas ao Ned.
- Aposta isto por mim - disse ele. - Se acertares, podes guardar metade. - O Ned pegou no dinheiro.
- Eu aposto por si - disse ele. - E muito agradecido. Amanhã ao sol-pôr vou poder emprestar-lhe metade de três ou quatro vezes este dinheiro. - Pusemo-nos em marcha - quer dizer, o Ned pôs-se em marcha - e demos meia volta; não passámos pelo automóvel. - Teve outra vez a chorar - disse ele. - Um jóquei de corridas de cavalos e inda não deixou de chorar.
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- Cala-te - disse eu. Mas ele estava a virar outra vez a caleche, passando por cima dos carris para o que teria sido o outro lado da praça principal se Parsham fosse suficientemente grande para ter uma praça principal, e parou; estávamos à porta de uma loja.
- Segure-a - disse o Ned. Depois desceu, entrou na loja por pouco tempo, saiu com um saco de papel, subiu outra vez para a caleche, pegou nas rédeas e seguiu para casa - quer dizer, para a casa do tio Parsham - e com a mão livre tirou do saco, que era enorme, um outro mais pequeno; eram rebuçados de hortelã-pimenta. - Tome - disse ele. - Trouxe também bananas e assim que levarmos o Relâmpago outra vez pràquele cercado particular perto da nascente, qu' a gente tá a usar, podemos sentar-nos a comer, e atão talvez eu possa dormir alguma coisa antes de me esquecer como é. E entretanto pare de s'afligir co'aquela rapariga, agora que já disse o que tinha a dizer ao Boon Hogganbeck. Bater numa mulher não a magoa porqu'a mulher não resiste aos golpes como faz o homem; a mulher submete-se e depois quand'a gente vira costas deita a mão ao ferro d'engomar ou à faca de trinchar. E por isso qu'uma tareia não lhes parte nada; tudo o que lhes faz é um olho negro ou um corte num beiço. E isso pra uma mulher não vale nada. E porquê? Porque que melhor sinal pode uma mulher querer qu'um homem lhe dê qu'um olho negro ou um beiço rachado de qu'a tem no pensamento?
E assim, mais uma vez, presos com mão firme pelos nossos respectivos cavalariços, lá estávamos eu e o McWillie atrás da linha de partida em cima das nossas montadas nervosas e irrequietas. (E isso mesmo, nervosas e irrequietas, o Relâmpago tamém; pelo menos tinha aprendido - pelo menos lembrava-se da véspera - que devia estar pelo menos a par do Acheron quando a corrida começasse, mesmo qu'inda não tivesse descoberto que devia estar - que se esperava que estivesse - à frente dele quando a corrida terminasse.)
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Desta vez as instruções finais do Ned foram simples, explícitas e
sucintas:
- Lembre-se só duma coisa, eu sei que posso fazê-lo correr uma vez, e tou convencido de que posso fazê-lo correr duas vezes. Só qu'a gente queremos guardar essa vez qu'eu sei até sabermos que precisamos dela. Por isso, isto é o qu'eu quero que vomicê faça na primeira mão: mesmo antes d'os juizes e demais gritarem Partida!, diga pra si mesmo O meu nome éNed William McCaslin e depois fá-lo.
- Faço o quê? - disse eu.
- Tamém inda não sei - disse ele. - Mas o Akrum é um cavalo, e cum cavalo tudo pod'acontecer. E cum rapaz preto a montá-lo, as probabilidades dobram. Só tem de estar atento e a postos, pra quand' isso acontecer, já ter dito O meu nome éNed William McCaslin e depois poder fazê-lo e fazê-lo depressa. E não se preocupe. Se não resultar e não acontecer nada, eu vou tar à espera na recta da meta, ond'eu entro em cena. Porque nós sabemos qu'eu posso fazê-lo correr uma vez.
Depois a voz gritou Partida! e os nossos cavalariços saltaram para o lado para salvar a vida e nós partimos (como já disse, tínhamos tirado à sorte e o McWillie tinha ficado na melhor posição). Ou melhor, o McWillie partiu. Porque não me lembro se tinha planeado assim ou se o fiz por instinto, pois quando o McWillie se lançou para a frente eu já estava bem seguro e o primeiro salto do Relâmpago fê-lo dar um tal puxão às rédeas que senti o impacto por mim acima até aos ombros, mão ferida e tudo. O Acheron já ia largado com três comprimentos de avanço quando eu deixei o Relâmpago partir, mas mantendo os três comprimentos de intervalo, indo nós dois agora a três cavalos de distância, quando vi o McWillie fazer aquilo que hoje se chama deitar os olharapos: um único relance de soslaio, virando só os olhos, à espera, claro está, de me ver mais ou menos à altura do seu joelho, parecendo depois que se lançava a toda a brida para mais uma estirada antes de o
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olho dizer à inteligência que eu e o Relâmpago não estávamos lá. Então virou-se, rodou a cabeça completamente para olhar para trás e ainda hoje me lembro do branco dos olhos e da boca escancarada; podia vê-lo a puxar freneticamente o freio do Acheron para o fazer abrandar; estou sinceramente convencido de que até o ouvi gritar: "Bolas, branco, se queres correr, corre!" e o intervalo entre nós a diminuir rapidamente porque ele agora tinha o Acheron todo torcido para trás e para o lado até ficar atravessado na pista, parecendo enchê-la ao avançar em ziguezague entre uma vedação e outra de frente para a vedação exterior, ficando nesse momento, instante, segundo, completamente imóvel. Estou convencido de que o espírito agora frenético do McWillie estava de facto a brincar com a ideia de dar meia-volta e retroceder até poder virar-se outra vez já com o Relâmpago à frente. Sem premeditação, sem nada: disse apenas em pensamento O meu nome éNed William McCaslin e chicoteei o Relâmpago com quanta força tinha com a chibata, puxando-lhe a cabeça para cima para que quando ele saltasse para o espaço entre a traseira do Acheron e a vedação interior, roçássemos no Acheron; lembro-me de ter pensado A minha perna vai ficar esmagada e eu ali em cima, com a chibata outra vez em sossego, completamente alheado, à espera, curioso apenas de ver como seria o impacto, o choque, o estalo, o jacto de sangue e ossos ou o que fosse. Mas nós tínhamos espaço à justa ou talvez fosse sorte à justa: não foi a minha perna, mas o flanco do Relâmpago que roçou na garupa do Acheron, e nesse preciso momento bati-lhe outra vez com a chibata com quanta força tinha. Não havia juiz ou comissário de pista, treinador de cães, caçador mercenário ou assassino, nem purista ou picuinhas, por mais rigoroso e isento que fosse, que pudesse afirmar que não era a minha montada que eu estava a chicotear; de facto, naquele segundo nós estávamos tão inextrica-velmente indestrinçáveis que, de nós quatro, só o Acheron realmente sabia quem tinha sido chicoteado.
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E continuámos. Quer dizer, o Relâmpago e eu. Eu não olhei -não podia olhar - logo para trás, pelo que tive de esperar para saber o que tinha acontecido. Eles disseram que o Acheron não tentou sequer saltar a vedação: recuou apenas e caiu por cima dela numa espécie de turbilhão de poeira e tábuas brancas estilhaçadas, mas continuando de pé e saindo da pista em louca correria, mais ou menos a direito em direcção ao prado, com os espectadores a fugir à frente dele, até o McWillie o fazer dar meia-volta; e disseram que desta vez o próprio McWillie o atirou em ziguezague contra a vedação (era tarde de mais para voltar para trás e entrar pela brecha que ele tinha aberto; nós - o Relâmpago - já íamos muito adiantados) como se fosse um caçador. Mas ele recusou, e preferiu correr a toda a velocidade ao longo da vedação, mas ainda pelo lado de fora, com os espectadores a gritar e a saltar à frente dele que nem rãs à medida que ele, coisa nunca vista, abria uma nova pista. Foi então que comecei a ouvi-lo outra vez. Ele - eles: o McWillie e o Acheron -aproximavam-se agora velozes, embora com a vedação exterior a separar-nos: o Relâmpago com a pista toda para ele, a correr no ritmo elegante e vigoroso de sempre, a mesma passada e pujança como se ainda não lhe tivesse ocorrido que ali a pressa era prioridade; agora na recta de trás e o Acheron, que tinha corrido pelo menos mais cinquenta metros e tinha de correr outro tanto antes de chegar à meta, já a par de nós do outro lado da vedação; a descrever agora a curva mais afastada da primeira volta, e agora eu podia realmente ver o desespero que ia na cabeça do McWillie a debater-se freneticamente ante a escolha cada vez mais próxima entre desviar o Acheron dando-lhe espaço suficiente para voltar a entrar na pista pela brecha que ele próprio tinha aberto sem esbarrar com os destroços da vedação, ou jogar pelo seguro e ficarem onde estavam, na nova pista de onde já tinham eliminado os obstáculos.
Venceu o conservadorismo (como deveria ser e é); de novo a
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recta da meta (agora na segunda volta); e agora a recta de trás (na segunda volta) e depois a curva mais afastada (também a segunda), e mesmo na curva exterior mais alongada, eles iam na dianteira; lá estava o arame e o Acheron com um comprimento de vantagem pelo menos, e creio que por um segundo pensei usar o chicote só por usar; e lá íamos nós; a multidão estava agora a gritar e quem podia censurá-los? Poucos ou nenhuns tinham visto antes uma corrida assim, entre dois cavalos a correrem em lados opostos da vedação; e lá íamos nós, o Acheron ainda a toda a velocidade pelo seu corredor fora, tão desimpedido e aberto diante dele como o caminho para o céu; com dois comprimentos de avanço quando nós - o Relâmpago - passámos por baixo do arame, e (era evidente que o Acheron gostava de correr por fora) já a entrar na terceira volta quando o McWillie o puxou com toda a força e o levou para o prado fechando a pouco e pouco um círculo que já nem mesmo ele conseguia controlar. E agora atrás de nós elevava-se o clamor, a gritaria: "Falta! Falta! Não! Não! Sim! Corrida nula! Foi sim! Não, não foi! Perguntem ao juiz! Perguntem ao Ed! O que foi, Ed?" Aquela parte da multidão que o Acheron tinha posto em debandada aproximava-se agora em chusma pela pista, entrando pela vedação derrubada para se juntar aos que estavam do lado de dentro; eu tentava encontrar o Ned; pareceu-me vê-lo, mas era o Lycurgus que vinha a trote pela pista fora na minha direcção até que conseguiu agarrar o freio do Relâmpago, já a fazê-lo dar meia-volta.
- Venha - disse ele. - Já pode parar. Tem d'o deixar arrefecer. O Mr. McCaslin disse prò tirar da pista e pró levar pràcolá pra debaixo daquelas acácias onde tá a caleche e ond'ele pode ficar descansado e nós podemos limpá-lo. - Mas eu tentei resistir.
- O que é que aconteceu? - disse eu. - Vai valer? Nós ganhámos, não ganhámos? Nós passámos por baixo do arame. Eles passaram à volta. Toma - disse eu - fica aí com ele enquanto eu vou lá ver.
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- Não, tou-lh'a dizer - disse o Lycurgus. - Tinha agora o Relâmpago a trote. - O Mr. McCaslin tamém não o quer lá. Ele disse pra eu e vomicê ficarmos aqui co Relâmpago e prò prepararmos pra correr outra vez; e a próxima mão é daqui a menos duma hora e essa nós temos de ganhar, porque s'isto anula esta, nós temos de ganhar a próxima dê por onde der. - Por isso lá fomos. Ele baixou uma trave da vedação no fim da pista e nós saímos em direcção às acácias, cerca de duzentos metros mais à frente. Eu já estava a ver a caleche do tio Parsham amarrada a uma delas. E ainda conseguia ouvir as vozes vindas do palanque dos juízes e eu ainda a pensar numa maneira de lá ir para descobrir o que se passava. Mas o Lycurgus já tinha previsto isso também, e tinha metido na caleche baldes, esponjas, panos e até uma selha com água para nós cuidarmos do Relâmpago.
Assim, tive de obter a minha primeira informação acerca do que tinha acontecido (e estava ainda a acontecer) através de terceiros - o que o pequeno Lycurgus tinha visto antes de o Ned o mandar vir ter comigo, e outros mais tarde - antes de o Ned aparecer: o clamor, as vozes de protesto e afirmação (ah sim, mesmo depois de perder duas corridas - duas mãos, ou lá o que era - no Inverno anterior, e a primeira mão desta ontem, ainda havia quem tivesse apostado no Relâmpago. Porque eu só tinha onze anos e ainda não tinha aprendido que nunca nenhum cavalo entrou numa corrida, desde que ainda estivesse de pé quando lá chegou, que não tivesse havido alguém a apostar nele), quase chegando por uma ou duas vezes a vias de facto, com o Ned no centro dos acontecimentos, na verdade até o seu ponto fulcral, delicado e calmo, mas casmurro e obstinado, rechaçando cada ataque:
- Não houve corrida. São precisos pelo menos dois cavalos pr'-haver uma corrida, e um deles não tava sequer na pista. - E o Ned:
- Não sinhor. Os regulamentos não falam em quantos cavalos. Só falam num cavalo de cada vez: que se não cometer faltas e não
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parar de correr e o jóquei não cair e ele cruzar a meta em primeiro lugar, ganha. - Depois um outro:
- Então acabou de provar que o preto ganhou: ele não prejudicou ninguém a não ser seis metros daquela vedação e também não parou de correr porque eu próprio vi pelo menos cem pessoas a fugir no último segundo diante dele e você mesmo o viu cortar aquela meta com uns bons dois comprimentos de avanço sobre o alazão. - E o Ned:
- Não sinhor. Aquele arame de chegada atravessa a pista mas só de uma vedação à outra. Não vai por ali abaixo até ò Mississippi. Se fosse, há por lá cavalos qu'o tinham atravessado hoje desde o nascer do Sol e de qu'inda não ouvimos falar. Não sinhor. É uma pena o qu'aconteceu àquela vedaçãozeca manhosa, mas nós távamos muito ocupados a correr co nosso cavalo pra termos tempo pra parar e ficar à espera qu'o outro voltasse. - Quando de repente entraram em cena três recém-chegados, ou pelo menos, de acordo com o que se dizia, não três desconhecidos, porque um deles era o coronel Linscomb em pessoa e todos o conheciam uma vez que eram seus vizinhos. Por isso o que deviam querer dizer é que os outros dois eram seus convidados, homens da cidade ou muito provavelmente apenas da idade do coronel e igual solvência, como ele de casaco e gravata, que - um deles - parecendo tomar conta da situação, avançou para a multidão vociferante ao redor do Ned e dos comissários acossados e disse:
- Meus senhores, deixem-me propor uma solução. Como este homem - referia-se ao Ned - diz, o cavalo dele correu em conformidade com as regras e passou por baixo do arame em primeiro lugar. Porém, todos nós vimos que o outro cavalo fez a corrida mais rápida e estava à frente no final. Os donos dos cavalos são estes cavalheiros aqui atrás de mim: o coronel Linscomb, vosso vizinho, e o Mr. Van Tosch, de Memphis, de suficientemente perto para ser também vosso vizinho quando o conhecerem melhor. Eles concor-
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daram, e os vossos juízes certamente aprovarão, considerar esta corrida que acabou de terminar como aquilo a que os banqueiros chamam conta congelada. Aqui já todos fizeram negócios com banqueiros quer queiram quer não. - Eles disseram que ele até fez uma pausa para a gargalhada geral, e recebeu-a. - E sabem bem como eles têm um nome para tudo...
- E juros para tudo também - disse uma voz, e ele recebeu essa gargalhada de borla e juntou-se a ela.
- O que congelada significa neste caso é suspensa. Não anulada ou cancelada, mas apenas suspensa. As apostas continuam a ser válidas tal como as fizeram; ninguém ganhou e ninguém perdeu; podem aumentá-las ou diminuí-las ou fazer o que quiserem; o dinheiro em jogo para esta última corrida continua válido e os donos já estão a acrescentar cinquenta dólares cada um para a próxima, sendo que o vencedor desta próxima corrida será o vencedor da que agora terminou. Quem ganhar a próxima corrida ganha tudo.
O que dizem?
Isto foi o que eu - nós, o Lycurgus e eu - ouvimos mais tarde. Mas agora não sabíamos de nada; estávamos só à espera do Ned ou de alguém que nos viesse buscar ou chamar, já com o Relâmpago lavado e agasalhado e o Lycurgus a fazê-lo andar para baixo e para cima, para o manter em movimento, e eu sentado no chão debaixo de uma árvore e sem a meia de montar para deixar secar a ligadura; pareceram-me horas, uma eternidade, e depois no minuto seguinte parecia que o tempo não tinha passado, que se tinha reduzido a nada, condensado. Nisto chegou o Ned, e vinha apressado. Eu disse-te como ele estava com má cara de manhã, mas isso era em parte por causa da roupa. A camisa agora estava branca (ou quase) e as calças também estavam limpas. Mas desta vez a culpa não teria sido da roupa, mesmo que estivesse imunda. Era a cara dele. O aspecto dele não era o de quem tinha visto um simples e inocente fantasma: era o de quem se tinha confrontado sem aviso com
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a própria Morte, mas uma Morte que lhe tinha dito: Acalma-te. Ainda faltam trinta ou quarenta minutos para eu te vir buscar. Está apostos nessa altura mas entretanto pára de te preocupar e trata dos teus afazeres. Mas a mim - a nós - não deu ele tempo nenhum. Foi buscar o casaco preto à caleche e vestiu-o, já a falar.
- Eles consideraram-na aquilo qu'eles chamam uma conta congelada. Quer dizer que quem perder a próxima perde tudo. Preparem-se. - Mas o Lycurgus já tinha tirado a manta, e não demorou nada. Depois eu já estava de pé, o Ned junto à cabeça do Relâmpago a segurar o freio com uma mão e com a outra mão metida no bolso do casaco, a mexer em qualquer coisa. - Esta vai ser fácil pra ti. Picámo-lo um bocado ontem e hoje vomicê enganou-o bem enganado. Por isso não pense tramá-lo outra vez. Mas tamém não carece; desta vez não precisamos de o tramar; desta encarrego-m'eu. Tudo o que tem de fazer é manter-se em cima dele até ao fim. Não caia: é tudo o que tem de fazer até ao fim. E só mantê-lo entre as vedações, e não cair. Lembre-se do qu'ele hYinsinou na segunda-feira. Quando estiver na primeira volta, e um segundo antes d'ele pensar onde eu tava na segunda-feira, dê-lhe com força. Não o deixe abrandar; não se preocupe co outro cavalo, teja ele onde tiver ou faça ele o que fizer: trate mas é do seu. Entendido?
- Sim - disse eu.
- Muito bem. E agora aqui tá a única outra coisa que tem de fazer. Quando tiver na última volta a dar a curva pra entrar recta da meta em direcção àquele arame, não se fie, verifique qu'o Relâmpago tá onde pode ver a pista toda à frente dele. Quando lá chegar, saberá porquê. Mas antes disso, não se content'em pensar qu'ele é capaz, ou qu'a esta altura do campeonato sem dúvida que tinha obrigação de ser capaz, mas verifique qu'ele tá a ver a pista toda até ao arame e pra lá dele. S'o outro cavalo tiver à sua frente, puxe o Relâmpago todo prò lado pró corredor de fora se for preciso onde não vai haver nada qu'o impeça de ver aquele arame e o
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que tá pra lá dele tamém. Não se preocupe coa distância; trate é de ter o Relâmpago ond'ele possa ver tudo à sua frente. - A outra mão dele estava agora fora do bolso e o Relâmpago esfregava nela o focinho sem parar e eu voltei a sentir aquele vago odor que tinha sentido no prado do tio Parsham na segunda-feira, que eu ou outra qualquer pessoa devia reconhecer de imediato, e que eu teria reconhecido se o tivesse sentido quando tinha tempo. - Vai conseguir lembrar-se disso?
- Sim - disse eu.
- Então vá - disse ele. - Leva-o, Lycurgus.
- Tu não vens? - disse eu. O Lycurgus estava a puxar pelo freio para tirar o focinho do Relâmpago à força da mão do Ned, e finalmente o Ned teve de voltar a meter a mão no bolso.
- Vá - disse ele. - Já sabe o que tem de fazer. - O Lycurgus ia à frente a segurar o Relâmpago. Teve de ser assim durante algum tempo, pois o Relâmpago até tentou uma vez virar-se e voltar para trás até o Lycurgus lhe deitar a mão.
- Dê-lhe co chicote - disse o Lycurgus. - Pra ele prestar atenção ao que tá a fazer. - Assim fiz e ele continuou a andar, e então, pela terceira vez, o McWillie e eu lá estávamos a postos com os nossos relâmpagos velozes atrás daquele arame. Como o cavalariço do McWillie se tinha recusado a ser atirado por terra pela terceira vez e mais ninguém se tinha oferecido ou sequer aceitado o convite para ocupar o seu lugar, eles estenderam uma corda de juta, daquelas com que amarram os fardos de algodão, de uma vedação à outra, corda essa que estava a ser esticada por mais dois democratas posicionados frente a frente de cada lado da pista. Foi provavelmente a melhor partida de todas. O Acheron, que não tinha hesitado em enfiar-se por uma tábua de quinze centímetros de espessura, recusava-se naturalmente a aproximar-se a menos de dois metros da corda, e o Relâmpago, embora quase a tocar-lhe com o focinho, mantinha-se agora tão quieto como uma vaca,
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penso que a esquadrinhar a multidão à procura do Ned, quando o comissário de pista gritou Partida! e a corda caiu, e no mesmo instante o Acheron e o McWillie dispararam a toda a brida, com o McWillie a gritar-me quase ao ouvido:
- Desta vez eu digo-te como é, branquelas! - já à frente, se bem que por pouco mais de um comprimento, até o Relâmpago se aproximar obdedientemente do joelho do McWillie - o poder, o ritmo, tudo, enfim, excepto que ninguém ainda lhe tinha metido na cabeça que isto era uma corrida. E, de facto, pela primeira vez, pelo menos desde que eu tinha começado a participar, sido um factor a ter em conta, nós até parecíamos estar numa corrida, com os dois cavalos, como se presos um ao outro e algo vacilantes, a lançarem-se para a recta da meta no final da primeira volta, com as nossas posições relativas a alterarem-se e a mudarem em relação à nossa progressão com uma indolência quase própria de um sonho, ganhando o Acheron a dianteira até parecer que nos ia deixar para trás, para logo o Relâmpago parecer reparar no intervalo e anulá-lo. Parecia até um desafio; eu bem os ouvia ao longo da vedação, àqueles que ainda não conheciam realmente o Relâmpago: que ele só não queria ficar isolado tão atrás; entrámos na última parte da primeira volta e avançámos para a recta da meta, e dou-te a minha palavra de honra que o Relâmpago entrou nela já à procura do Ned; dou-te a minha palavra de honra que ele relinchou; em corrida vertiginosa e a relinchar: era a primeira vez que ouvia um cavalo a rir enquanto corria. Nem sequer sabia que conseguiam.
Chicoteei-o com quanta força tinha. Ele quebrou, vacilou, mas recuperou; já tínhamos dado ao McWillie dois comprimentos de brinde e por isso dei-lhe outra vez com o chicote; entrámos na segunda volta com dois comprimentos de atraso a avançar agora a poder da chibata descascada até o intervalo entre ele e o Acheron substituir o Ned naquilo a que o Relâmpago chamava a sua mente, e ele o anular até ter novamente a cabeça a par do joelho do
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McWillie, em completa obediência, mas nem mais um centímetro -essa organização organizada e magnificamente equipada cujos músculos nunca tinham recebido informações do cérebro, ou cujo cérebro nunca tinha recebido informações dos seus postos avançados de observação e experiência, de que o único objectivo e propósito de todo este frenético esforço era chegar primeiro a algum lugar. O McWillie estava agora a chicoteá-lo, pelo que eu não precisava de o fazer; era-lhe tão impossível ganhar terreno ao Relâmpago como perdê-lo, outra vez na recta de trás a caminho da última curva, e eu ainda em cima do Relâmpago, e o Relâmpago ainda entre as vedações, pelo que tudo o que restava daqui até ao fim eram as instruções finais do Ned: segurá-lo e depois soltá-lo, dando outra vez ao McWillie um comprimento de avanço, até que nada lhe obstruísse a visão da pista, o arame e o que estava para lá dele. Ele - o Relâmpago - foi até o primeiro a ver o Ned. A primeira coisa que senti foi aquele esticão do pescoço e a arremetida, como se ele - o Relâmpago - tivesse acabado de quebrar uma rédea ou jugo invisível. Depois eu próprio vi o Ned, talvez uns quarenta metros para lá do arame, pequeno, franzino e sozinho na vastidão da pista enquanto o Acheron e o braço flagelante do McWillie recuavam vertiginosamente ao nosso encontro; nisto, por um instante, também a cara contorcida do McWillie, mas também ela desapareceu; o arame luzia lá no alto. - Anda, meu filho - disse o
Ned. - Tá aqui.
Ele - o Relâmpago - quase me atirou ao chão quando parou, atravessando a pista outra vez (o Acheron estava algures muito perto atrás de nós, também ele a tentar parar, esperava eu) e foi ao encontro do Ned na mesma corrida vertiginosa, sem querer saber do freio nem de mais nada, e depois simplesmente parou de correr, já com o focinho enfiado na mão do Ned, e eu por cima das suas orelhas a tentar agarrar-me ao que pudesse, com a mão ferida e tudo.
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- Conseguimos! - disse eu, ou melhor, gritei. - Conseguimos! Vencemo-lo!
- Vencemos esta parte - disse o Ned. - E agora reze pra que seja suficiente. - Porque eu tinha acabado de fazer a minha primeira corrida e vencê-la, estás a ver. Quer dizer, uma corrida para homens, com pessoas, pessoas crescidas, mais pessoas do que eu me lembrava de alguma vez ter visto juntas, a verem-me ganhá-la e (pelo menos alguns) a terem apostado o seu dinheiro em como eu ia ganhar. Também não tive tempo para notar ou reparar na cara dele ou na voz dele ou no que ele estava a dizer, porque as pessoas já tinham saltado a vedação e corriam pela pista em direcção a nós: toda aquela chusma, aquele tropel de chapéus suados, camisas sem gravata e caras ainda boquiabertas a gritar. - Cuidado - disse o Ned; mas eu nada; só as caras e as vozes, como um mar:
- Assim é que se monta, rapaz! Assim é que se ganha! - mas nós não parámos, com o Ned a puxar o Relâmpago e a dizer:
- Deixem-nos passar, brancos; deixem-nos passar, brancos - até eles se afastarem o suficiente para nós passarmos, mas sempre a acompanharem-nos, como as vagas, até chegarmos ao portão que dava para a zona onde os juizes estavam à espera, e o Ned disse outra vez: - Cuidado agora - e depois não me lembro de mais nada: só do cavalo parado com o Ned a segurar no freio como num quadro, e eu a olhar por cima das orelhas do Relâmpago para o meu avô levemente apoiado na bengala (a do castão de ouro) e mais duas pessoas que eu tinha conhecido algures há muito tempo logo atrás dele.
- Patrão - disse eu.
- O que fizeste à tua mão? - disse ele.
- Sim senhor - disse eu. - Patrão.
- Agora estás muito ocupado - disse ele. - Eu também. - Estava muito afável e muito frio. Não: não estava nada. - Vamos esperar
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até chegarmos a casa - disse ele. E depois foi-se embora. As tais duas pessoas eram o Sam e a Minnie, a olhar para mim lá de baixo com aquele seu rosto inconsolável e soturno, e pareceu-me imenso tempo enquanto o Ned continuava a bater-me na perna.
- Onde tá aquele saco de tabaco qu'eu lhe dei ontem pra guardar? - perguntou ele. - Decerto não o perdeu?
- Ah esse - disse eu, tirando-o do bolso.
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XIII

- Mostra-lhes - disse a Miss Reba à Minnie. Eles iam todos no nosso automóvel - quer dizer do Boon - não, quer dizer do meu avô: a Everbe, a Miss Reba, a Minnie, o Sam e o motorista do coronel Linscomb; esse era o pai do McWillie; o coronel Linscomb também tinha um automóvel. Eles - o motorista, o Sam e a Minnie -tinham ido a Hardwick buscar a Miss Reba, a Everbe e o Boon para os trazerem de volta para Parsham, onde a Miss Reba, a Minnie e o Sam podiam apanhar o comboio para Memphis. Só que o Boon não voltou com eles. Estava outra vez na prisão, pela terceira vez, e eles tinham parado em casa do coronel Linscomb para dar a notícia ao meu avô. Foi a Miss Reba que contou tudo, sentada no carro, com o meu avô, o coronel Linscomb e eu parados cá fora à volta do carro, porque ela não queria entrar; que contou o que se passou entre o Boon e o Butch.
- As coisas já não estavam bem no automóvel enquanto íamos para lá. Mas pelo menos tínhamos aquele ajudante de xerife, sem contar com aquele polícia velho e minorca que vocês aqui têm e que parece um zé-ninguém, mas cá para mim as pessoas também não se metem muito com ele. Quando chegámos a Hardwick, lá pelo menos tiveram o bom senso de os pôr em celas separadas.
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O problema é que não conseguiram nem por nada manter o novo amigo da Corrie de boca fechada... - calou-se; e eu também não queria ter de olhar para a Everbe; uma rapariga daquele tamanho, grande de mais para lhe acontecerem coisas pequenas como o olho negro ou o golpe no lábio, como preferisse, só que talvez ela não quisesse ou não pudesse contentar-se com menos do que os dois juntos; ali sentada, obrigada a estar ali, sem outro sítio para onde ir nem espaço para dali sair, com o sangue que lenta e dolorosamente lhe tingia a face que eu conseguia ver de onde estava. - Desculpa, miúdo; esquece - disse a Miss Reba. - Onde é que eu
ia?
- Estava a contar o que o Boon fez desta vez - disse o meu avô.
- Ah sim - disse a Miss Reba. - ... Puseram-nos em celas separadas de um e outro lado do corredor e estavam a levar a Corrie e a mim também, claro... trataram-nos até muito bem, como duas senhoras... para o quarto da mulher do guarda da prisão, onde íamos ficar, quando o, como é o nome dele... o Butch... se põe a dizer com a voz aflautada: "Bem, há uma coisa: eu e aqui o Pinga-amor perdemos algum sangue e alguma pele e também duas camisas, mas pelo menos", desculpem o termo - disse a Miss Reba - "tirámos estas putas de Memphis do meio da rua." - E o Boon desatou logo a tentar rebentar a porta de aço, mas eles tinham-se lembrado de a fechar à chave e uma pessoa até podia pensar que isso o poderia acalmar, percebem, ter de ficar ali sentado a olhar para ela por um bocado. Pelo menos foi o que nós pensámos. Depois, o Sam chegou com os papéis necessários ou lá o que era, pelo que lhe estou muito agradecida - disse ela para o meu avô. - Não sei quanto o senhor teve de pagar, mas se me mandar a conta, quando eu chegar a casa trato do assunto. O Boon sabe a morada e conhece-me bem.
- Muito obrigado - disse o meu avô. - Se houver alguma despesa, eu informo-a. O que aconteceu ao Boon? Ainda não me contou.
- Ah sim. Eles soltaram primeiro o não-sei-quantos, o que foi
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um erro, porque ainda não tinham tirado a chave da fechadura do Boon já ele estava fora da cela a atirar-se ao...
- Butch - disse eu.
- Butch - disse a Miss Reba. - ... Uma bela tareia, por acaso, ati-rou-o ao chão e já estava em cima dele antes que alguém tivesse tido tempo para se mexer. Eles nem sequer deram tempo ao Boon para parar, e voltou direitinho para o outro lado do corredor e para dentro da cela, fechado à chave outra vez ainda antes de eles terem tempo para tirar a chave da fechadura. Mas pelo menos temos de o admirar por isso. - Aqui ela parou.
- Por isso o quê? - perguntei eu.
- O que foi que disseste? - perguntou ela.
- O que foi que ele fez para a gente o admirar por isso. Não nos contou isso. O que foi que ele fez?
- Achas que continuar a tentar arrancar a cabeça àquele...
- Butch - disse eu.
- ... Butch ainda antes de o deixarem sair da prisão não é nada? -disse a Miss Reba.
- Ele tinha de fazer isso - disse eu.
- Rai's me partam - disse a Miss Reba. - Vamos mas é embora; temos de apanhar aquele comboio. Não se vai esquecer de mandar a conta - disse ela ao meu avô.
- Saia daí e entre - disse o coronel Linscomb. - O jantar está quase pronto. Podem apanhar o comboio da meia-noite.
- Não, muito agradecida - disse a Miss Reba. - Por muito tempo que a sua mulher fique em Monteagle, ela vai acabar por voltar para casa e o senhor vai ter de se explicar.
- Disparate - disse o coronel Linscomb. - Na minha casa quem manda sou eu.
- E espero que continue a mandar - disse a Miss Reba. - Ah é verdade - disse ela para a Minnie. - Mostra-lhes. - Ela - a Minnie -não sorriu para nós: sorriu para mim. Era uma beleza: a fiada regu-
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lar, imaculada, igual e sem igual, de porcelana, curvando-se para fora para abraçar, quase com paixão, o dente de ouro reencontrado que parecia maior do que três dos dentes naturais simplesmente brancos jamais conseguiriam parecer. Depois cerrou os lábios outra vez, serena, composta, outra vez imune, outra vez invulnerável até ao limite que as nossas frágeis estruturas de ossos, carne e coincidência impõem ou concedem à Invulnerabilidade. - Bem... -disse a Miss Reba. O pai do McWillie deu à manivela, voltou a entrar e o automóvel arrancou. O meu avô e o coronel Linscomb deram meia-volta e dirigiram-se para a casa e eu também me tinha posto em movimento quando soou a buzina do automóvel, não muito alto, uma vez, e eu me virei para trás. Tinha parado e o Sam estava ao lado dele a chamar-me.
- Vem cá - disse ele. - A Miss Reba quer falar contigo, não demora - e ficou parado a ver-me aproximar. - Porque é que tu e o Ned não me disseram que aquele cavalo ia mesmo correr a sério? -disse ele.
- Julgava que sabia - disse eu. - Julgava que era por isso que aqui tínhamos vindo.
- Claro, claro - disse ele. - O Ned disse-me. Tu disseste-me. Toda a gente me disse. Mas porque é que ninguém me fez acreditar nisso? Ah claro, eu nunca parti uma perna. Mas se ao menos tivesse tido a coragem da Miss Reba talvez também tivesse conseguido fazer um seguro para o vagão. Toma - disse ele. Era um rolo de dinheiro, notas. - Isto é do Ned. Diz-lhe que da próxima vez que encontrar um cavalo que não queira correr, não espere para me vir buscar: basta mandar um telegrama. - A Miss Reba estava debruçada da janela, dura e bonita. A Everbe estava ao lado dela, sem se mexer, mas mesmo assim grande de mais para não se dar por ela. Então a Miss Reba disse:
- Não estava à espera de ir parar à prisão também aqui. E daí, talvez eu também não esperasse não ir. Seja como for, o Sam apos-
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tou por mim. Apostei cinquenta pelo Mr. Binford e cinco pela Minnie. O Sam recebeu três para dois. E eu - quer dizer nós - queremos dividi-lo a meias contigo. Neste momento não tenho tanto dinheiro contado por causa da inesperada viagem extra desta manhã...
- Eu não quero - disse eu.
- Já calculava que dissesses isso - disse ela. - Por isso, disse ao Sam para apostar mais cinco por ti. Vais receber sete e meio. Toma -e estendeu a mão.
- Não quero - disse eu.
- O que é que eu lhe disse? - disse o Sam.
- E por ser dinheiro de jogo? - disse ela. - Também prometeste isso? - Eu não tinha prometido nada disso. Talvez a minha mãe não se tivesse ainda lembrado do jogo. Mas eu não precisava de ter prometido nada a ninguém. Só que eu não sabia como explicar-lhe quando eu próprio não sabia porquê: só sabia que não estava a fazer isto por dinheiro, que o dinheiro teria sido a última coisa a interessar; que uma vez que estávamos metidos nisto, eu tinha de continuar, de ir até ao fim, nós dois, eu e o Ned, mesmo que todos os outros tivessem desistido; era como se só fazendo o Relâmpago correr e chegar em primeiro lugar pudesse justificar (não fugir às consequências, mas apenas justificar) o que se passou. Não desejar fazer o começo parecer menos errado - quer dizer, aquilo que o Boon e eu, deliberadamente, de nossa livre vontade, tínhamos de ir fazer a Jefferson quatro dias antes; mas pelo menos não para escaparmos, para nos esquivarmos, mas pelo menos para terminarmos aquilo que nós mesmos tínhamos começado. Mas eu não sabia como dizer-lho. Por isso disse:
- Não, não quero.
- Vá lá - disse o Sam. - Aceita para nos podermos ir embora. Temos de apanhar aquele comboio. Dá-o ao Ned, ou talvez àquele velhote que tomou conta de ti ontem à noite. Eles vão saber o que
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fazer com ele. - Então aceitei o dinheiro; agora tinha dois rolos de dinheiro, o grande e este pequenino. E a Everbe continuava sem se mexer, imóvel, com as mãos pousadas no colo, grandalhona, grande de mais para lhe acontecerem coisas pequenas. - Pelo menos faz-lhe uma festa na cabeça - disse o Sam. - O Ned nunca te ensinou a tratar os cães a pontapé, pois não?
- Ele não vai fazer isso - disse a Miss Reba. - Olha para ele. Meu Deus, vocês os homens. E aqui está outro que não tem senão onze anos. Que diabo importa mais um? Ela não está a provar desde domingo que desistiu? Se tivesses tido de serrar troncos o tempo que ela teve, que diabo interessa mais um tronco quando já fechaste a loja e até tiraste a tabuleta? - E então eu dei a volta ao carro até ao outro lado. E ela sem se mexer, grande de mais para lhe acontecerem coisas pequenas, imensa de mais para ser a receptora de mesquinhices e ninharias, como sujadelas de pássaro num cartaz publicitário ou num tambor; simplesmente ali sentada, grande de mais para sequer se encolher, envergonhada (porque o Ned tinha razão), com a boca um bocadinho inchada, mas sobretudo o olho negro; nela não bastava um olho negro, tinha de parecer maior, mais visível, menos passível de esconder do que em qualquer outra pessoa.
- Não faz mal - disse eu.
- Achei que tinha de o fazer - disse ela. - Não vi outra saída.
- Estás a ver? - disse a Miss Reba. - Como é fácil? E tudo o que precisas de nos dizer; nós acreditamos em ti. Até o mais reles e insignificante filho da mãe, desde que tenha menos de setenta anos, é capaz de fazer qualquer mulher acreditar que não havia outra saída.
- Tinha mesmo de o fazer - disse eu. - Conseguimos levar o Relâmpago de volta a tempo da corrida. Agora já não importa. É melhor irem andando, senão perdem o comboio.
- Claro - disse a Miss Reba. - Além disso ela ainda tem de fazer
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o jantar. Essa ainda tu não sabes; é surpresa. Ela não vai voltar para Memphis. Ela não se reformou apenas do negócio da tentação, também se reformou da tentação, se o que dizem é verdade: que não existe tentação num lugar como Parsham excepto as esperanças e os apetites naturais de um homem. Arranjou trabalho em Parsham, a lavar, a cozinhar, a meter e tirar da cama e a tratar da mulher daquele polícia. Portanto até se reformou de ter de dividir a meias o que ganha e o que tem com o primeiro crachá que lhe aparecer, porque tudo o que tem de fazer agora é meter de permeio uma cafeteira a ferver ou uma frigideira engordurada. Vamos -disse ela ao Sam. - Nem mesmo tu consegues, daqui, fazer esse comboio esperar por nós.
Depois foram-se embora e eu dei meia-volta e dirigi-me para a casa. Era grande, com colunas, pórticos e jardins bem arranjados, estábulos (com o Relâmpago num deles) e cocheiras e o que em tempos tinham sido alojamentos para escravos - a velha (e actual) fazenda Parsham, o que resta da plantação do homem, da família, que deu o nome à cidade e à região, e também a alguns dos seus habitantes, como o tio Parsham Hood. O sol já tinha desaparecido e em breve seria o dia a desaparecer. E então, apercebi-me pela primeira vez de que tudo tinha acabado, terminado - todos aqueles quatro dias de altercações, malabarismos, estratagemas, mentiras e ansiedade; tudo acabado excepto a prestação de contas. O meu avô, o coronel Linscomb e Mr. Van Tosch estavam agora algures dentro de casa a beber os seus toddies antes de jantar. Como ainda devia faltar meia hora para soar a campainha a chamar-nos para o jantar, desviei caminho e atravessei o roseiral em direcção à porta das traseiras. E, como seria de esperar, lá estava o Ned sentado nos degraus.
- Toma - disse eu, estendendo-lhe o grosso rolo de notas. - O Sam diz que são tuas. - Ele pegou-lhes. - Não vais contá-las? -perguntei-lhe.
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- Acho que ele as deve ter contado - disse o Ned. - Tirei o rolo pequeno do bolso. O Ned olhou para ele. - Tamém foi ele que lhe deu esse?
- Foi a Miss Reba. Ela apostou por mim.
- Isso é dinheiro de jogo - disse o Ned. - Ind'é muito novo pra tocar em dinheiro de jogo. Que nunca se tem idade suficiente pra tocar em dinheiro de jogo, mas vomicê de certeza que não tem. - E também não fui capaz de lhe dizer. Depois percebi que estava à espera que ele, o Ned, já soubesse sem eu ter de lho dizer. E um segundo depois ele sabia. - Porque nós nunca fizemos isto por dinheiro - disse ele.
- Também não vais ficar com o teu?
- Vou - disse ele. - Já é tarde de mais pra mim. Mas pra si não é. Vou dar-lh'uma op'tunidade, mesmo qu'isso não seja mais que roubar-hYuma op'tunidade.
- O Sam disse que eu podia dá-lo ao tio Parsham. Mas ele também não ia aceitar dinheiro de jogo, pois não?
- É isso que quer fazer co ele?
- É - disse eu.
- Tá bem - disse ele. - Pegou também no rolo mais pequeno, tirou a carteira do bolso e guardou os dois rolos lá dentro. Agora já era quase noite, mas eu certamente conseguia ouvir aqui a campainha a chamar para o jantar.
- Como é que conseguiste recuperar o dente? - perguntei-lhe.
- Não fui eu - disse ele. - Foi o Lycurgus. Naquela primeira manhã, quando fui buscá-lo ao hotel. E não lhe custou nada. Os cães já o tinham feito trepar à árvore uma vez, e o Lycurgus disse que primeiro pensou ir buscá-los, obrigá-lo a trepar outra vez àquela árvore da borracha e não tirar de lá os cães até o Carapau-de-corrida imbrulhar o dente no boné ou assim e atirá-lo cá pra baixo. Mas o Lycurgus disse qu'inda tava um bocado irritado com as ideias mirabolantes qu'o Carapau-de-corrida tinha sobre cavalos,
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principalmente sobre o Relâmpago. E atão, como o Relâmpago ia ter de correr nessa tarde e precisava de descansar, o Lycurgus disse que resolveu usar uma das mulas. Contou que depois o Carapau-de-corrida o ameaçou com um canivetezito velho, mas o Lycurgus vai esperar até lhe poder dar o troco. - O Ned calou-se. Continuava com uma cara péssima. Continuava sem dormir. Mas talvez seja um alívio ver chegar finalmente a hora da verdade e ter um momento exacto para se começar a preocupar.
- Então? - disse eu. - O que...?
- Acabei de lhe dizer. Foi a mula.
- Como? - disse eu.
- O Lycurgus pôs o Carapau-de-corrida em cima da mula sem rédeas nem sela nem nada, amarrou-lhe os pés por baixo da barriga e disse-lhe que assim que resolvesse imbrulhar o dente no boné e atirá-lo ao chão, ele parava a mula. E depois o Lycurgus deu co a chibata ao de leve na mula, e mais ò menos a meio da primeira volta ao cercado o Carapau-de-corrida atirou o boné, só que dessa vez não trazia nada dentro. Atão o Lycurgus deu-lh'outra vez o boné e deu outra chicotada na mula e disse o Lycurgus que já se tinha esquecido qu'est'era a mula que saltava as vedações até ela ter saltado aquele arame a um metro e vinte do chão e o Lycurgus disse que parecia qu'ela se tava a preparar pra levar o Carapau-de-corrida de volta a Possum. Mas não chegou tão longe e voltou pra trás e saltou outra vez pra dentro do cercado, e atão a próxima vez qu'o Carapau-de-corrida atirou o boné tava lá dentro o dente. Só que prò qu'isso lh'adiantou mais valia tê-lo guardado. Ela também voltou pra Memphis, não foi?
- Sim - disse eu.
- Era o qu'eu pensava. E o mais certo é ela saber tão bem como eu que vai passar muito tempo até Memphis me voltar a ver a mim ou ao Boon Hogganbeck. E s'o Boon tá outra vez na prisão, tamém não me parece que Jefferson, Mississippi, nos vá ver esta noite.
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Eu também não sabia; e de repente percebi que não queria saber; eu não só não queria ter de fazer mais escolhas, tomar mais decisões, como nem sequer queria saber das que estavam a ser feitas por mim até ter de enfrentar as consequências. Depois o pai do McWillie apareceu à porta atrás de nós, de casaco branco; ele também era criado. No entanto, eu não tinha ouvido campainha nenhuma. Como já me tinha lavado (mudado de roupa também; o meu avô tinha-me trazido um saco com roupa, e até o meu outro par de sapatos), o criado levou-me até à sala de jantar e eu fiquei parado à espera; o meu avô, o Mr. Van Tosch e o coronel Linscomb entraram, com o Llewellin, o setter velho e gordo do coronel Linscomb ao seu lado, e ficámos todos de pé enquanto o coronel Linscomb dava graças. Depois sentámo-nos, ficando o velho setter ao lado da cadeira do coronel Linscomb, e começámos a jantar, sendo os pratos mudados não apenas pelo pai do McWillie, mas também por uma criada fardada. Porque eu tinha desistido; não ia fazer mais escolhas nem tomar mais decisões. Estava quase a dormir em cima do prato, em cima da sobremesa, quando o meu avô disse:
- Bem, meus senhores, vamos deixar a guarda abrir fogo?
- Vamos para o meu escritório - disse o coronel Linscomb. Era a melhor sala que eu já tinha visto. Quem me dera que o meu avô tivesse uma assim. O coronel Linscomb também era advogado e por isso havia estantes cheias de livros de direito, mas também jornais agrícolas e revistas hípicas, e uma vitrina com canas de pesca e armas de fogo, e cadeirões e um sofá e um tapete especial para o velho setter se deitar à lareira, e fotografias com cavalos e jóqueis na parede, com as coroas de rosas e as datas das vitórias, e uma estátua de bronze do Manassas (eu não sabia até aí que o coronel Linscomb é que tinha sido o dono do Manassas) sobre a cornija da lareira, e uma mesa especial para um grande livro que era o seu livro dos cavalos, e uma outra mesa com uma caixa de charutos, um decantador, um jarro com água, um açucareiro e copos tam-
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bém, e uma porta-janela que dava para a varanda por cima do roseiral, pelo que podíamos sentir o perfume das rosas mesmo dentro de casa, e da madressilva, e um pássaro imitador a cantar lá fora.
Depois o criado voltou com o Ned, colocou uma cadeira para ele se sentar ao canto da lareira e eles - nós - sentámo-nos - o coronel Linscomb com um fato branco de linho, o Mr. Van Tosch com o estilo de fato que se usava em Chicago (que era de onde ele veio, até ter ido a Memphis e ter gostado tanto da cidade que comprou uma quinta para criar e treinar cavalos de corrida, tendo dado há cinco ou seis anos emprego ao Bobo Beauchamp) e o meu avô com a sobrecasaca cinzenta dos Confederados que ele herdou (quer dizer, não herdou o fato, mas o cinzento dos Confederados, porque ele não tinha sido soldado; tinha apenas catorze anos, na Carolina, filho único, e por isso teve de ficar com a mãe enquanto o pai era sargento de cavalaria do Wade Hampton até ao dia em que um posto avançado do Fitz-John Porter o derrubou da sela com um tiro certeiro quando atravessava o rio Chickahominy na manhã seguinte à batalha de Gaines's Mill, e o meu avô ficou junto da mãe até ela morrer em 1864, e por lá continuou ainda até o general Sherman o expulsar definitivamente da Carolina em 1865, altura em que veio para Mississippi à procura dos descendentes de um parente afastado chamado McCaslin - ele e esse parente até tinham o mesmo nome de baptismo: Lucius Quintus Carothers -e encontrou-o na pessoa de uma sua bisneta chamada Sarah Edmonds, e casou com ela em 1869).
- Muito bem - disse o meu avô para o Ned - começa pelo princípio.
- Um momento - disse o coronel Linscomb. Chegou-se à frente, deitou uísque num copo e estendeu-o ao Ned. - Toma -disse ele.
- Muito agradecido - disse o Ned. Mas não bebeu. Pousou o
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copo na cornija da lareira e sentou-se outra vez. Ainda não tinha olhado para o meu avô e continuou sem olhar; ficou apenas à espera.
- Agora... - disse o meu avô.
- Bebe - disse o coronel Linscomb. - Podes precisar. - Então o Ned pegou no copo, bebeu-o de um trago e ficou sentado com o copo vazio na mão, ainda sem olhar para o meu avô.
- Agora - disse o meu avô - começa...
- Um momento - disse o Mr. Van Tosch. - Como é que conseguiste fazer correr aquele cavalo?
O Ned estava sentado perfeitamente imóvel, com o copo imobilizado na mão, e nós a olhar para ele, à espera. E então ele disse, dirigindo-se ao meu avô pela primeira vez:
- Será qu'estes cavalheiros brancos me dão licença pra falar com vomicê em particular?
- Sobre o quê? - perguntou o meu avô.
- Já vai saber - disse o Ned. - Se depois achar qu'eles tamém devem saber, vomicê pode-lhes contar.
O meu avô pôs-se de pé.
- Dão-nos licença? - disse ele, e começou a encaminhar-se para a porta do hall.
- Porque não vão para a varanda? - disse o coronel Linscomb. - Lá está escuro; sempre é melhor para uma conspiração ou uma confissão. - Então fomos para lá. Quer dizer, eu também já estava de pé. O meu avô parou e disse ao Ned:
- E o Lucius?
- Ele também a usou - disse o Ned. - Qualquer pessoa tem o direito de saber quais são os seus trunfos. - Saímos para a varanda, para a escuridão da noite e o perfume das rosas, e da madressilva, e além do pássaro imitador numa árvore ali perto, podíamos ouvir ainda dois noitibós e, como sempre acontecia à noite no Mississippi, e no Tennessee não era muito diferente, um cão a ladrar. - Era uma sardenha - disse o Ned com muita calma.
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- Não me mintas - disse o meu avô. - Os cavalos não comem sardinhas.
- Este come - disse o Ned. - Vomicê tava lá e viu. Eu e o Lucius tirámos a prova antes. Mas eu nem precisava disso. Assim que botei os olhos nele no domingo passado, percebi qu'ele tinha os mesmos gostos da minha mula.
- Ah - disse o meu avô. - Então era isso que tu e o Maury davam àquela mula.
- Não sinhor - disse o Ned. - O Mr. Maury tamém nunca soube. Ninguém sabia a não ser eu e aquela mula. E este cavalo era igualzinho. Quand'ele correu a última volta esta tarde, eu tinha aquela sardenha à espera dele e ele sabia.
Voltámos para dentro. Eles já estavam a olhar para nós. - Sim -disse o meu avô.
- Mas é um segredo de família. Não o manterei se for necessário. Mas deixam-me ser o juiz, nestas condições? Claro que Van Tosch é quem tem prioridade.
- Nesse caso, vou ter ou de comprar o Ned ou de lhe vender o Acobreado - disse o Mr. Van Tosch. - Mas não será melhor esperarmos que o seu outro homem, o Hogganbeck esteja aqui?
- O senhor não conhece o Hogganbeck - disse o meu avô. - Ele levou o meu automóvel para Memphis. Quando amanhã o tirar da prisão, vai ter de o levar outra vez para Jefferson. E entre estes dois pontos no tempo, sentiríamos tanto a falta da presença dele como da sua ausência. - Só que desta vez ele não teve sequer de dizer ao Ned para começar.
- O Bobo meteu-se em apuros com um branco - disse o Ned. E desta vez foi o Mr. Van Tosch que disse Ah. E foi assim que nós começámos a saber: pelo Ned e pelo Mr. Van Tosch, pelos dois. Porque o Mr. Van Tosch era um forasteiro, um estrangeiro que ainda não vivia no nosso país há tempo suficiente para saber com que espécie de corja de brancos se podia envolver um jovem negro
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criado no campo que nunca tinha saído de casa antes, quando chegava a uma cidade grande à procura de mais dinheiro e diversão em troca do trabalho que pretendia fazer. O mais provável era ser jogo, ou então ter começado pelo jogo; esse era o terreno comum mais simples. Mas nesta altura já tinha ido para além do jogo e nem o Ned parecia saber exactamente do que se tratava - a menos que o Ned soubesse exctamente do que se tratava, mas fossem coisas do mundo dos brancos. Pelo menos, de acordo com o Ned, a coisa estava tão feia - a soma envolvida era cento e vinte e oito dólares -que o branco tinha convencido o Bobo de que, se a polícia descobrisse, o menor dos males seria o Bobo perder o emprego com o Mr. Van Tosch; na verdade, o homem tinha conseguido convencer o Bobo de que os seus piores problemas só iam começar quando ele deixasse de ter um branco a protegê-lo. Até que por fim a situação, a crise, tornou-se tão desesperada e a ameaça tão grande que o Bobo foi falar com o Mr. Van Tosch para lhe pedir cento e vinte e oito dólares, obtendo a resposta que ele provavelmente já esperava do homem que era não só branco e estrangeiro, mas também um homem bem assente na vida que já não se lembrava das paixões e apuros da juventude, e essa resposta foi Não. Isto tinha sido no Outono anterior...
- Eu lembro-me disso - disse o Mr. Van Tosch. - Disse ao homem para não voltar a pôr os pés na minha propriedade. Pensava que ele se tinha ido embora. - Estás a ver onde quero chegar: ele - o Mr. Van Tosch - era um homem bom. Mas era um estrangeiro. - E então o Bobo, perdida aquela última esperança, em que ele nunca tinha realmente acreditado, "angariou", para usar as palavras dele (o Ned também não sabia ou talvez soubesse ou talvez a forma como o Bobo "angariou" o dinheiro fosse tal que nem a um membro da mesma raça ele queria admitir que também era seu parente), quinze dólares e deu-os ao homem, e comprou com eles exactamente aquilo que seria de esperar e que o próprio
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Bobo provavelmente esperava. Mas o que mais podia ele fazer, para onde se havia de virar? Só mais ameaças e pressões depois de provar que conseguia arranjar dinheiro quando devidamente pressionado. - Mas porque é que ele não veio falar comigo? - disse o Mr. van Tosch.
- E ele foi - disse o Ned. - E vomicê disse-lhe que não. - Eles estavam sentados, completamente imóveis. - Vomicê é branco -disse o Ned baixinho. - O Bobo era preto.
- Então porque é que ele não veio falar comigo... - disse o meu avô - não voltou ao sítio donde para começar nunca devia ter saído, em vez de roubar um cavalo?
- E o qu'é que vomicê tinha feito? - disse o Ned. - S'ele tivesse vindo a correr de Memphis e lhe dissesse Não me faça perguntas: dê-me só cento e tal dólares pra eu voltar pra Memphis e depois lhe começar a pagar no primeiro sábado que ganhar esse dinheiro?
- Ele podia ter-me dito para que queria o dinheiro - disse o meu avô. - Eu também sou um McCaslin.
- E também é branco - disse o Ned.
- Continua - disse o meu avô. - Então o Bobo descobriu que os quinze dólares que ele pensava que o podiam salvar, o tinham afinal arruinado. Ora, segundo o Ned, os demónios do Bobo não lhe deram descanso. Ou talvez o branco tivesse começado a ter medo do Bobo - que uma simples prestação, meia dúzia de dólares de cada vez, levasse muito tempo a pagar; ou talvez que o Bobo, devido à sua própria ansiedade e desespero, além do que o branco considerava ser a incapacidade inata da raça do Bobo, cometesse algum erro ou mesmo um crime que deitasse tudo a perder. Pelo menos foi nessa altura que ele - o branco - começou a pressionar o Bobo para dar um golpe que o livrasse duma assentada da dívida, do credor, das preocupações e de tudo o mais. A sua primeira ideia foi dizer ao Bobo para fazer uma limpeza na selaria do Mr. Van Tosch, carregar a caleche ou a carroça ou o que fosse com quantas
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selas, arreios e arneses lá coubessem e desaparecer; naturalmente que o Bobo seria logo suspeito, mas nessa altura o branco já estaria bem longe e a salvo; e se o Bobo fosse suficientemente rápido, o que até mesmo ele devia ter a esperteza de ser, tinha todos os Estados Unidos para se esconder e procurar outro emprego. Mas (disse o Ned) até mesmo o branco pôs esta ideia de lado; ele ia não só ter de andar com uma caleche ou uma carroça carregada de arreios já com o dia a clarear, como ia precisar de muitos dias para se desfazer de tudo, peça a peça, mesmo que tivesse tido muitos dias para o fazer.
E foi então que pensaram num cavalo: condensarem a carroça ou charrete carregada de peças soltas de couro numa única entidade que pudesse ser vendida por junto, e sem grande perda de tempo, se o branco fosse rápido e não perdesse tempo a regatear por meia dúzia de dólares. Isto é, o branco, não o Bobo, estava convencido de que o Bobo ia roubar um cavalo para lhe dar. Só que o Bobo sabia que se não roubasse o cavalo, era o fim de tudo - emprego, liberdade, tudo - quando rompeu a manhã da segunda-feira seguinte (a crise tinha atingido o clímax no sábado anterior, o mesmo dia em que o Boon e eu - e o Ned - partimos de Jefferson no automóvel). E a razão para a crise neste preciso momento, o que a tornava tão desesperada, era um dos cavalos do Mr. Van Tosch estar tão à mão de semear, tão fácil de roubar, que até parecia que o tinham posto ali de propósito. Esse cavalo, claro está, era nem mais nem menos do que o Relâmpago (quer dizer, o Acobreado), que na altura estava numa cavalariça de venda de cavalos a menos de meio quilómetro de distância, onde o Bobo, um empregado de confiança do Mr. Van Tosch (tinha sido até o Bobo que tinha levado o cavalo para essa cavalariça) podia ir buscá-lo a qualquer momento sem mais trabalho do que pôr-lhe o cabresto e tirá-lo de lá. O que em parte até poderia ter sido tolerável. O problema é que o branco sabia que se tratava de um cavalo criado e treinado para
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correr, mas que se recusava a correr, e que por isso mesmo estava tão mal visto pelo Mr. Van Tosch e pelo Mr. Clapp, o treinador, que estava na cavalariça dos cavalos para venda à espera do primeiro que aparecesse e desse alguma coisa por ele; e pela mesma razão o Bobo podia levá-lo de lá que o mais provável era que ninguém dissesse nada ao Mr. van Tosch a menos que ele perguntasse; mais ainda, o Bobo tinha até à manhã seguinte (segunda-feira) para fazer alguma coisa, caso contrário estava em maus lençóis.
Era esta a situação quando o Ned se separou de nós à porta da Miss Reba no domingo à tarde, dobrou a esquina para a Beale Street, entrou no primeiro bar que encontrou e deu de caras com o Bobo a tentar resistir ao seu destino pelo fundo de uma garrafa de uísque. O meu avô disse:
- Então foi isso que aconteceu. Agora estou a começar a entender. Um preto ao sábado à noite. O Bobo já bêbado, e tu de língua de fora desde Jefferson morto por chegares ao primeiro bar que encontrasses... - parou, e disse, quase bruscamente: - Espera. Isso é mentira. Nem sequer era sábado. Tu chegaste a Memphis no domingo à tarde. - E o Ned ali sentado, muito quieto, com o copo vazio na mão. Depois disse:
- Entre a minha gente, o sábado à noite estende-se até domingo.
- E até segunda de manhã também - disse o coronel Linscomb. - Vocês acordam na segunda de manhã, doentes, de ressaca, imundos numa cadeia imunda, e ficam ali deitados até aparecer um branco que pague a fiança e vos leve de volta para a plantação, ou lá para onde for e vos ponha outra vez a trabalhar sem vos dar tempo de tomarem sequer o pequeno-almoço. E depois matam-se a trabalhar o dia todo e pode ser que ao sol-pôr sintam que afinal não vão morrer; e mais outro e outro e outro dia até ser outra vez sábado e poderem pousar o arado ou a enxada e voltarem o mais depressa possível para aquela nojenta cela da prisão na segunda de manhã. Porque é que fazem isso? Eu não entendo.
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- Não pode entender - disse o Ned. - Vomicê tem a cor errada. S'ao menos pudesse ser preto um sábado à noite, nunca mais na vida ia querer ser branco.
- Muito bem - disse o meu avô. - Continua. - Então o Bobo contou ao Ned o aperto em que estava: o cavalo a menos de meio quilómetro, praticamente a pedir para ser roubado, e o branco que sabia disso e que tinha dado ao Bobo um ultimato que se reduzia agora a poucas horas... - Muito bem - disse o meu avô. - Agora avança lá para o meu automóvel.
- Nós já tínhamos feito a coisa - disse o Ned. Eles - ele e o Bobo -foram à cavalariça ver o cavalo. - E assim qu'eu botei os olhos nele, lembrei-me daquela mula qu'eu tive. - E o Bobo, tal como eu, era novo de mais para se lembrar da mula; mas, também como eu, tinha crescido a ouvir a lenda. - Então decidimos ir ter co branco e dizer-lhe que tinha acontecido qualquer coisa e qu'o Bobo não conseguia tirar o cavalo da cavalariça pra lho dar como o Bobo achava qu'era capaz, mas que lhe podíamos arranjar um automóvel no lugar do cavalo. ... Mas 'pere aí - disse ele muito depressa ao meu avô. - Nós sabíamos tão bem como vomicê qu'aquele automóvel tava seguro pelo menos até a gente chegar ao fim. Talvez daqui a trinta ou quarenta anos vomicê possa estar parado na esquina duma rua de Jefferson e contar uma dúzia d'automóveis até ao sol-pôr, mas por enquantinda não. Talvez nessa altura possa roubar um automóvel e encontrar alguém que lho compre sem o importunar com uma data de comos e quem e porquês. Mas agora não. Por isso, pra um homem co'aspecto qu'eu imagino qu'ele tinha (eu inda não o tinha visto), andar por aí a tentar vender um automóvel à pressa e em segredo ia ser tão difícil como vender um elefante à pressa e em segredo. Vomicê não teve trabalho nenhum pra localizar onde ele tava e deitar-lhe a mão assim que vomicê e o Mr. Van Tosch se puseram em campo, poi não?
- Continua - disse o meu avô. E o Ned continuou.
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- Então o branco ia perguntar que automóvel? e o Bobo deixa-va-me ser eu a tratar do assunto; e depois o branco era capaz de perguntar o qu'é qu'eu tinha a ver co'assunto, e depois o Bobo dizia-lhe qu'eu queria aquele cavalo porqu'eu sabia como fazê-lo correr; que já tínhamos uma corrida aprazada pra terça-feira e que s'o branco quisesse tamém podia vir coa gente e ganhar dinheiro suficiente co cavalo pra pagar três ou quatro vezes os cento e trinta dólares, e que depois, se não quisesse, nem ia ter de se preocupar co'automóvel. Porque ia ser o tipo de branco que já tem exp'-riência suficiente pra saber o que é fácil de vender e o que só traz problemas quando s'é apanhado com isso. Era isso que nós íamos fazer até vomicê chegar e estragar tudo: deixar aquele branco assistir à primeira mão sem apostar a favor ou contra, o que ele muito provavelmente ia fazer, e ver o Relâmpago perdê-la como sempre fez, coisa qu'nesta altura o branco já devia ter ouvido por toda a parte;- e atão nós dizíamos-lhe Nassaflija, espere pela próxima mão, e atão apostávamos o cavalo contra o automóvel nessa mão sem ser preciso lembrar-lhe que quando o Relâmpago perdesse desta vez ele tamém ficava co'ele. - Eles - o meu avô, o coronel Linscomb e o Mr. Van Tosch - estavam todos a olhar para o Ned. Nem vou tentar descrever as caras deles. Não posso. - E atão vomicê chega e estraga tudo - disse o Ned.
- Estou a ver - disse o Mr. Van Tosch. - Isso era tudo para salvar o Bobo. Mas supõe que não tinhas conseguido fazer o Acobreado correr, e o perdias também. Nessa altura o que é que ia ser do Bobo?
- Mas eu fi-lo correr - disse o Ned. - Vomicê viu.
- Mas supõe só que não conseguias - disse o Mr. van Tosch.
- Aí o problema era do Bobo - disse o Ned. - Não fui eu qu'o aconselhei a trocar a apanha do algodão no Mississippi por uma vida de jogo e de prazeres em Memphis.
- Mas eu julgava que o Mr. Priest disse que ele é teu primo -disse o Mr. Van Tosch.
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- Toda a gente tem parentes que não têm mais juízo qu'o Bobo -disse o Ned.
- Bem - disse o Mr. Van Tosch.
- Vamos todos tomar um toddy - disse o coronel Linscomb bruscamente e depois levantou-se, preparou-o e serviu-os. - Tu também - disse ele ao Ned. O Ned trouxe o copo, e o coronel Linscomb serviu-o. Desta vez, quando o Ned pousou o copo na cornija da lareira sem beber, ninguém disse nada.
- Pois é - disse o Mr. Van Tosch. E depois: - Bem, Priest, já tem o seu automóvel. E eu tenho o meu cavalo. E talvez tenha assustado aquele maldito patife o suficiente para não se aproximar mais dos meus empregados. - E eles ali sentados. - O que hei-de eu fazer com o Bobo? - E eles ali sentados. - É a ti que eu estou a perguntar - disse o Mr. Van Tosch ao Ned.
- Deixe-o ficar - disse o Ned. - As pessoas, pelo menos os miúdos e os jovens na minha raça, não se convencem facilmente...
- Porquê só os negros? - disse o Mr. Van Tosch.
- Talvez ele queira dizer os McCaslin - disse o coronel Linscomb.
- É verdade - disse o Ned. - Os McCaslin e os pretos comportam-se como se a mistura dum co outro só piore as coisas. Neste momento estou a falar dos jovens, mesmo que este seja um McCaslin preto. Talvez sejam duros de ouvido. Pelo menos têm d'aprender à custa deles qu'a vida de malandro não compensa. Talvez o Bobo tenha aprendido a lição desta vez. E isso não é mais fácil pra vomicê do que ter de domar outro?
- Sim - disse o Mr. Van Tosch. E eles ali sentados. - Sim - disse o Mr. van Tosch outra vez. - Então eu vou ter ou de comprar o Ned ou de vender o Acobreado. - E eles ali sentados. - Consegues fazê-lo correr outra vez, Ned?
- Fi-lo correr aquela vez - disse o Ned.
- Eu disse outra vez - disse o Mr. Van Tosch. E eles ali sentados.
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- Priest - disse o Mr. Van Tosch - acredita que ele consegue fazer aquilo outra vez?
- Sim - disse o meu avô.
- Até onde acredita? - E eles ali sentados.
- Está a falar comigo como banqueiro ou como o quê? - disse o meu avô.
- Digamos que se trata de um camponês perfeitamente normal e natural do Noroeste do Mississippi a fazer o seu repouso semanal, perfeitamente normal e natural, dado por Deus e defendido pela constituição, nos lupanares do Sudoeste do Tennessee - disse o coronel Linscomb.
- Muito bem - disse o Mr. Van Tosch. - Aposto consigo o Acobreado contra o segredo do Ned, uma corrida única de quilómetro e meio. Se o Ned conseguir fazer o Acobreado bater outra vez aquele alazão do Linscomb, eu fico com o segredo e o Acobreado é seu. Se o Acobreado perder, eu não quero o seu segredo para nada e você pega ou larga o Acobreado por quinhentos dólares...
- Isto é, se ele perder, eu posso ficar com o Acobreado por quinhentos dólares ou, se lhe pagar quinhentos dólares, não tenho de ficar com ele - disse o meu avô.
- Certo - disse o Mr. Van Tosch. - E para ter alguma compensação, aposto consigo dois dólares contra um que o Ned não consegue fazê-lo correr outra vez. - E eles ali sentados.
- Então eu tenho de ganhar aquele cavalo ou de o comprar faça eu o que fizer - disse o meu avô.
- Ou então nunca teve juventude - disse o Mr. Van Tosch. - Mas tente recordar-se de alguma. Aqui está entre amigos; tente só por um bocadinho não ser banqueiro. Tente. - E eles ali sentados.
- Dois e cinquenta - disse o meu avô.
- Cinco - disse o Mr. Van Tosch.
- Três e cinquenta - disse o meu avô.
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- Cinco - disse o Mr. Van Tosch.
- Quatro e vinte e cinco - disse o meu avô.
- Cinco - disse o Mr. Van Tosch.
- Quatro e cinquenta - disse o meu avô.
- Quatro e noventa e cinco - disse o Mr. Van Tosch.
- Feito - disse o meu avô.
- Feito - disse o Mr. Van Tosch.
E então, pela quarta vez, o McWillie em cima do Acheron e eu em cima do Relâmpago (quer dizer, do Acobreado) agitavámo-nos nervosos atrás daquela frágil corda de juta bem esticada. Agora o McWillie nem me dirigia a palavra; estava aterrado e indignado, confuso e determinado; sabia que tinha acontecido alguma coisa na véspera que não devia ter acontecido; alguma coisa que, de certa forma, não devia ter acontecido a ninguém e muito menos a um rapaz de dezanove anos que estava simplesmente a tentar ganhar o que ele julgava ser uma simples corrida de cavalos: sem restrições, claro, mas pelo menos o acordo mútuo de que ninguém ia recorrer à necromância. Desta vez não tínhamos tirado à sorte as posições de partida. Nós - o McWillie e eu - tínhamos tido esse privilégio, mas o Ned disse logo:
- Nassaflija desta vez. O McWillie precisa de se sentir melhor depois daquilo d'ontem, por isso deixe-o ficar coa melhor posição ond'ele já se pode começar a sentir melhor. - O que, não sabia se por raiva ou cavalheirismo, o McWillie recusou, deixando-nos no que parecia ser um impasse insolúvel, até o comissário de pista - o tal suspeito de homicídio - resolver rapidamente a questão ao dizer:
- Oiçam, rapazes, se o objectivo é fazer aquela corrida, tratem de ir para trás daquela corda de juta onde é o vosso lugar. - E o Ned também não tinha feito aquela encantação ou ritual preliminar de esfregar o focinho do Relâmpago. Não estou a dizer que se tinha esquecido; o Ned não se esquecia de nada. Por isso era óbvio
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que eu não tinha estado com atenção, não tinha reparado nos pormenores; de qualquer forma agora era demasiado tarde. E ele também não me tinha dado desta vez instruções nenhumas de última hora; mas também o que é que ele tinha para me dizer? E na noite anterior o Mr. Van Tosch, o coronel Linscomb e o meu avô tinham concordado que, uma vez que se tratava de uma corrida privada, quase se podia chamar uma desforra, todos os interessados deviam fazer os possíveis para a manter privada. O que teria sido tão fácil de conseguir em Parsham como manter privado o tempo que ia fazer no dia seguinte, e restrito aos prados do coronel Linscomb, uma vez que numa povoação composta por um hotel de Inverno, dois armazéns, um cais para o embarque de gado e um entreposto num entroncamento ferroviário, igrejas, escolas e quintas espalhadas por uma região remota, qualquer novidade, e ainda para mais a notícia de uma corrida de cavalos, já sem falar que se tratava de uma segunda corrida entre estes dois cavalos, espalhava-se por Parsham tão instantaneamente como o tempo. Por isso eles também aqui estavam hoje, e nem faltava o juiz que era telegrafista durante a noite e que bem devia dormir de vez em quando: não tantos como na véspera, mas consideravelmente mais do que o meu avô e o Mr. Van Tosch tinham dado a impressão de querer - os chapéus surrados, o tabaco, as camisas sem gravata e os fatos-macaco - quando alguém gritou Partida! e a corda se soltou e nós partimos.
Partimos. O McWillie, como sempre, já se tinha adiantado duas passadas antes de o Relâmpago parecer ter percebido que já tínhamos começado e acelerado então, rápido e obediente, mais ou menos até poder encostar a cabeça ao joelho do McWillie (caso quisesse), primeira curva, recta de trás, alternância entre mim e o McWillie da nossa justaposição, fechando e abrindo com aquela sensação de avanço lento como num sonho, provavelmente bem conhecida de quem pilota aviões em formação compacta; segunda
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curva e recta da meta para completar a primeira volta, eu a chicotear o Relâmpago por simples rotina ainda por mais umas passadas, antes de ele se lembrar de começar a procurar o Ned; olhei de relance para os rostos postados ao longo da vedação à procura do Ned, e o Relâmpago correu todo aquele troço sem ver para onde ia mas a passar em revista a sucessão vertiginosa de rostos à procura do do Ned, tal como eu em vão; primeira curva outra vez, de novo a recta de trás rumo à segunda curva e à recta da meta; eu já estava a puxar o Relâmpago para a vedação exterior onde ele podia ver (o Acheron podia estar a ganhar-nos, mas pelo menos não nos obstruía a vista). Mas se ele tinha visto o Ned desta vez, não me disse nada. Nem eu lhe podia dizer. Olha! Olha para ali! Lá está ele! porque o Ned não estava lá; só a pista vazia para lá do arame esticado, de aspecto tão frágil como um raio de luar filtrado ou talvez atenuado, e o McWillie a brandir agora o chicote furiosamente e o Relâmpago a reagir como por encanto, exactamente com um pescoço de atraso; se o Acheron tivesse sabido como correr a noventa quilómetros à hora, ele correria também - com um pescoço de atraso; se o Acheron tivesse decidido parar a três metros do arame, ele teria parado também - com um pescoço de atraso. Mas não parou. E continuámos, ainda entrosados mas algo ziguezagueantes, como se estivéssemos pregados um ao outro; o arame luzia por cima de nós, e o McWillie e eu já falávamos outra vez - isto é, ele falava, gritava-me com uma espécie de sanha canibal: "Iaa-iaa-iaa, iaa-iaa-iaa" abrandando também mas sem parar e seguindo (suponho) direito à cavalariça; ele e o Acheron mereciam-no certamente. Fiz o Relâmpago dar meia-volta e voltei para trás a pé. O Ned vinha a correr ao nosso encontro e atrás vinha o meu avô, mas sem correr; os nossos sicofantas e aduladores da véspera tinham-nos abandonado; César já não era César.
- Vamos - disse o Ned, agarrando no freio com um gesto rápido, mas calmo: impaciente apenas, quase indiferente. - Dê...
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- O que é que aconteceu? - disse o meu avô. - Que diabo aconteceu?
- Nada - disse o Ned. - Desta vez eu não tinha nenhuma sardenha pra ele, e ele sabia. Eu não lhe disse qu'este cavalo era esperto? - E depois para mim: - O Bobo tá acolá, à espera. Devolva-lh'esta pileca pra ele a levar pra Memphis. Nós voltamos pra casa esta noite.
- Mas espera aí - disse eu. - Espera.
- Esqueça o cavalo - disse o Ned. - A gente não o quer pra nada. O Patrão recup'rou o automóvel e tudo o que perdeu foram quatrocentos e noventa e seis dólares e vale bem a pena pagar quatrocentos e noventa e seis dólares pra não ficar co este cavalo. Porqu'o qu'é ca gente ia fazer co ele, se de repente deixassem de fazer aqueles peixitos fedorentos? O Mr. Van Man que fique co ele; talvez um dia o Acobreado lhe conte a ele e ao Bobo o qu'aconteceu aqui ontem.
Mas não voltámos para casa essa noite. Ainda estávamos em casa do coronel Linscomb, outra vez no escritório, outra vez depois do jantar. O Boon tinha a cara marcada e cheia de pensos, e estava consideravelmente deprimido, mas suficientemente calmo e cordato. E limpo também: tinha feito a barba e vestido uma camisa lavada. Quer dizer, uma camisa nova que ele devia ter comprado em Hardwick, sentado na mesma cadeira de costas direitas onde o Ned se tinha sentado na noite anterior.
- Ná - disse ele. - Eu não lutei com ele por causa daquilo. Já nem sequer estava furioso por causa daquilo. Isso era assunto dela. Além disso, não se consegue parar assim de repente: é preciso... preciso...
- Ir reduzindo - disse o meu avô.
- Não senhor - disse o Boon. - Não é reduzir. Uma pessoa desiste. Só que ainda tem de apanhar os cacos, o lixo que ficou espalhado, por mais definitiva que seja a decisão de parar. Não foi isso.
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A razão por que quis partir os costados àquele tipo foi por ele chamar puta à minha mulher.
- Quer dizer que vais casar com ela? - disse o meu avô. Mas não foi ao meu avô, foi a mim que o Boon deu um encontrão, foi a mim que ele quase se atirou.
- Rai's te partam - disse ele - se tu és capaz de enfrentar uma faca de mãos vazias para a defender, por que diabo é que eu não posso casar com ela? Ou não sou tão bom como tu, mesmo não tendo onze anos?
E acho que é tudo. Por volta das seis da tarde do dia seguinte, galgámos o último monte e lá estava o relógio do tribunal a espreitar por cima das árvores da praça. O Ned fez:
- Hi hi hi. Ele ia à frente com o Boon e disse: - Até parece que tive fora dois anos.
- Quando a Delphine tiver acabado contigo esta noite, se calhar vais desejar ter estado - disse o meu avô.
- Ou nem sequer ter voltado - disse o Ned. - Mas uma mulher que tem de passar o dia inteiro a pensar em varrer, cozinhar, lavar e limpar, acho que precisa dum bocadinho d'animação de vez em quando.
Depois chegámos. O automóvel parou. Eu não me mexi. O meu avô saiu e então eu saí também.
- O Mr. Ballot tem a chave - disse o Boon.
- Não, não tem - disse o meu avô, tirando a chave do bolso e dando-a ao Boon. - Vem - disse ele. Atravessámos a rua em direcção a casa. E sabes o que é que eu pensei? Pensei Não tinha sequer mudado nada. Porque devia. Devia ter mudado nem que fosse um bocadinho. Não quero dizer que devia ter mudado em si mesma, mas que eu, que trazia comigo o que os últimos quatro dias deviam ter mudado em mim, a devia ter feito mudar. Quer dizer, se aqueles quatro dias - as mentiras, as artimanhas, os truques, as decisões e indecisões, e as coisas que eu tinha feito, visto, ouvido e aprendido
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e que a minha mãe e o meu pai jamais me teriam deixado fazer, ver, ouvir e aprender - as coisas que eu tinha tido de aprender e para as quais ainda não estava sequer preparado, e que eu não tinha onde armazenar nem sequer onde deixar ficar em depósito; se tudo isso não tinha mudado nada, era como se nunca tivesse existido - nada estava nem mais pequeno nem maior nem mais velho, mais sábio ou mais compassivo - então algo tinha sido desperdiçado, deitado fora, gasto em vão; das duas uma, ou era errado e falso para começar e nunca devia ter existido, ou era eu que era errado ou falso ou fraco ou de algum modo indigno.
- Vem - disse o meu avô, nem afável, nem brusco, nem nada; e eu pensei Se ao menos a tia Callie aparecesse, com ou sem o Alexander, e começasse a gritar comigo. Mas nada: só uma casa que eu conhecia desde antes de ter podido conhecer outra, poucos minutos depois das seis horas de uma tarde de Maio, quando as pessoas já começavam a pensar no jantar; e a minha mãe devia ter tido pelo menos alguns cabelos brancos, ao beijar-me durante um minuto ficando depois a olhar para mim; depois o meu pai, de quem eu sempre tinha tido um pouco de... medo não é a palavra, mas não consigo pensar noutra - medo, porque se não tivesse tido, acho que teria sentido vergonha de nós dois. Então o meu avô disse: - Maury.
- Desta vez não, Patrão - disse o meu pai. E depois para mim: - Vamos acabar com isto.
- Sim senhor - disse eu, e segui-o pelo corredor até à casa de banho e fiquei parado à porta enquanto ele tirava da escápula a correia de afiar as navalhas, dava um passo atrás para voltar a sair e seguíamos em frente; a minha mãe estava ao cimo das escadas da adega; podia ver-lhe as lágrimas, mas nada mais. Tudo o que ela tinha de fazer era dizer Pára ou Por favor ou Maury ou talvez se ela tivesse dito ao menos Lucius. Mas nada, e eu desci com o meu pai e fiquei outra vez parado enquanto ele abria a porta da adega, e depois entrámos, para a adega onde guardávamos as acendalhas
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para a lareira no Inverno e a caixa forrada a zinco no Verão para o gelo, e onde a minha mãe e a tia Callie tinham prateleiras para guardar as conservas, as geleias e as compotas, e até uma velha cadeira de baloiço para a minha mãe e a tia Callie se sentarem enquanto estavam a arrumar os frascos, e para a tia Callie adormecer às vezes depois do jantar, apesar de ela dizer sempre que não tinha adormecido. E aqui estávamos nós finalmente, onde eu tinha levado quatro dias de estratagemas, malabarismos e correrias para chegar; aquilo estava errado, e tanto o meu pai como eu sabíamos disso. Quer dizer, se depois de todas as mentiras, artimanhas, desobediências e conspirações em que eu tinha estado metido, tudo o que ele conseguia fazer era dar-me umas correa-das, então o meu pai não estava à minha altura. E se tudo o que eu tinha feito ficava saldado com aquela correia de afiar navalhas, então éramos ambos igualmente desprezíveis. Estás a ver? Estávamos num impasse, até o meu avô bater à porta. A porta não estava fechada à chave, mas o pai do meu avô tinha-lhe ensinado, e ele tinha ensinado ao meu pai, e o meu pai tinha-me ensinado a mim que nenhuma porta precisa de fechadura: uma porta fechada basta até sermos convidados a entrar. Mas o meu avô não esperou, não desta vez.
- Não - disse o meu pai. - Isto era o que o senhor me teria feito a mim há vinte anos.
- Talvez eu seja mais sensato agora - disse o meu avô. - Convence a Alison a voltar lá para cima e parar com a choradeira. -Então o meu pai saiu e a porta fechou-se outra vez. O meu avô sen-tou-se na cadeira de baloiço: não gordo, mas apenas com a dose certa de barriga para lhe encher o colete branco e fazer a pesada corrente de ouro do relógio cair direita.
- Eu menti - disse eu.
- Vem cá - disse ele.
- Não posso - disse eu. - Eu menti, estou-lhe a dizer.
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- Eu sei - disse ele.
- Então faça alguma coisa. Faça qualquer coisa, desde que seja alguma coisa.
- Não posso - disse ele.
- Não há nada a fazer? Mesmo nada?
- Eu não disse isso - disse o meu avô. - Eu disse que eu não podia. Tu podes.
- O quê? - disse eu. - Como é que eu faço para esquecer? Diga-me como.
- Não podes - disse ele. - Nunca nos esquecemos de nada. Nunca perdemos nada. E valioso de mais.
- Então o que é que eu posso fazer?
- Viver com isso - disse o meu avô.
- Viver com isto? Quer dizer, para sempre? Para o resto da minha vida? Sem nunca mais me livrar disto? Nunca mais? Não posso. Não vê que não posso?
- Podes, sim - disse ele. - E vais conseguir. Um homem de bem consegue sempre. Um homem de bem pode passar seja pelo que for. Um homem de bem aceita a responsabilidade das suas acções e carrega o fardo das suas consequências mesmo quando não foi ele próprio a instigá-las, mas apenas a compactuar com elas, quando não disse Não apesar de saber que deveria fazê-lo. Vem cá. -Nesta altura eu já estava lavado em lágrimas, a soluçar, de pé (não, de joelhos, que eu já estava muito alto) entre os seus joelhos, com uma das suas mãos na minha cintura e a outra na minha cabeça, a aconchegar-me a cara contra a sua camisa e o colarinho engomado, e eu a sentir o cheiro dele - a goma, loção de barbear, tabaco de mascar e benzina, no sítio onde a minha avó ou a Delphine lhe tinham tirado uma nódoa do casaco, e sempre um leve cheiro a uísque que eu achava sempre que era do primeiro toddy que ele tinha tomado de manhã na cama antes de se levantar. Quando eu dormia com ele, a primeira coisa pela manhã era o Ned (não vinha de ca-
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saco branco; às vezes nem casaco trazia e outras nem camisa, e mesmo depois de o meu avô mandar alojar os cavalos na cocheira de aluguer, o Ned conseguia continuar a cheirar como eles) com o tabuleiro com o decantador, o jarro da água, o açucareiro, a colher e o copo alto, e o meu avô sentava-se na cama, fazia o toddy e be-bia-o, e depois punha um bocadinho de açúcar no fundo do copo, mexia, acrescentava-lhe uma pinguinha de água e dava-mo até a minha avó entrar de repente uma manhã e pôr fim a essa prática. - Pronto - disse ele por fim. - Deves ter esvaziado a cisterna. Agora vai lavar a cara. Os homens também choram, mas lavam sempre a cara.
E foi tudo. Era segunda-feira à tarde, depois da escola (o meu pai não deixou a minha mãe enviar uma justificação e eu tive de ficar com as faltas. Mas a Miss Rhodes ia deixar-me pôr o trabalho em dia) e o Ned estava sentado outra vez nos degraus das traseiras, os degraus da minha avó desta vez, mas também à sombra desta vez. Então eu disse-lhe:
- Se ao menos desta última vez nos tivéssemos lembrado de apostar no Relâmpago aquele dinheiro que o Sam nos deu, podíamos ter resolvido a questão de uma vez por todas.
- Eu já a resolvi - disse o Ned. - Desta vez ganhei cinco para três. O velho Possum Hood tem agora vinte dólares prà sua igreja.
- Mas nós perdemos - disse eu.
- Vomicê e o Relâmpago perderam - disse o Ned. - Eu e aquele dinheiro estávamos com o Akrum.
- Ah - disse eu. E depois perguntei: - Quanto era? - Ele não se mexeu. Quer dizer, não fez nada. Quer dizer, não tinha nada de diferente; podia ser outra vez a última sexta-feira em vez deste dia; todos aqueles quatro dias de estratagemas e aldrabices e ter de adivinhar bem e adivinhar depressa, e só com uma oportunidade para adivinhar, não lhe tinham deixado qualquer marca, apesar de eu o ter visto uma vez em que não só não tinha dormido nada como
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também não tinha roupa para vestir. (Estás a ver como eu continuo a falar em quatro dias? Era sábado à tarde quando o Boon e eu - pensávamos nós - partimos de Jefferson, e era sexta à tarde quando o Boon, o Ned e eu voltámos a ver Jefferson. Mas para mim eram os quatro dias entre aquela noite de sábado em casa da Miss Ballenbaugh, quando o Boon teria voltado para casa no dia seguinte se eu lhe tivesse dito para o fazer, e o momento em que eu olhei lá de cima do Relâmpago na quarta-feira e vi o meu avô e lhe passei o comando, quatro dias durante os quais o Ned tinha carregado o fardo sozinho, evitado a enxurrada, escorado o dique periclitante com todas as ferramentas que conseguiu arranjar - eu incluído -até elas se quebrarem nas suas mãos. Quer dizer, partindo do princípio de que nós não tínhamos nada de estar atrás daquele dique: um homem de bem mantém sempre a sua mentira quer a tenha dito quer não.) E eu tinha apenas onze anos; não sabia como é que eu também sabia isso, mas sabia: que nunca se pergunta a ninguém quanto ganhou ou perdeu ao jogo. Por isso disse: - Quer dizer, haveria dinheiro suficiente para devolver ao Patrão os seus quatrocentos e noventa e seis dólares? - E ele ali sentado, na mesmíssima; então porque é que a minha mãe havia de ter algum cabelo branco desde a última vez que eu a tinha visto, já que eu também havia de estar na mesmíssima? Porque agora eu sabia o que o meu avô queria dizer: que a nossa fachada é apenas onde nós vivemos e dormimos, e tem muito pouco que ver com aquilo que somos e ainda menos com aquilo que fazemos. Então ele disse:
- Aprendeu muito sobre as pessoas naquela viagem; só me surpreende que não tenha aprendido mais acerca de dinheiro também. Quer qu'o Patrão m'insulte, ou quer qu'eu insulte o Patrão, ou quer as duas coisas?
- Explica-te - disse eu.
- S'eu m'ofereço pra lhe pagar a sua dívida de jogo não é o mesmo que tar a dizer-lhe na cara que não tem jeito nenhum
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pr'apostar nos cavalos? E s'eu lhe digo donde veio o dinheiro com que lha vou pagar, não lhe tou a provar qu'isso é verdade?
- Continuo a não ver como é que ele te insulta - disse eu.
- É qu'ele era capaz de aceitar - disse o Ned.
Finalmente o dia chegou. A Everbe mandou-me chamar e eu atravessei a cidade até à ruela esconsa e à casinha quase de bonecas que o Boon estava a comprar pagando cinquenta cêntimos todos os sábados ao meu avô. Estava lá uma parteira e ela devia estar deitada na cama; mas estava sentada à minha espera, embrulhada num xaile. Deu mesmo alguns passos até ao berço e ficou parada com a mão no meu ombro enquanto olhávamos para aquela coisa.
- Então? - disse ela. - O que achas?
Eu não achava nada. Era apenas mais um bebé, já com uma cara tão feia como o Boon, mesmo que tivesse de esperar ainda vinte anos para ser tão grande como ele. E foi isso mesmo que eu disse. - Que nome vai pôr a essa coisa?
- Não é uma coisa - disse ela. - É um menino. Então não adivinhas?
- Que nome?
- O nome dele é Lucius Priest Hogganbeck - respondeu ela.

 

 

                                                                  William Faulkner

 

 

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