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TRINTA E SETE
A chuva imprevista começou pouco depois das cinco da tarde. Enquanto dobrava a última das mesas debaixo da tenda, Lizzie sentiu o cheiro da mudança no ar e olhou para as heras no muro de tijolos do jardim. Como esperado, as folhas dançavam ao vento, reluzentes, encarando o céu cinzento.
– Não era para chover – murmurou para ninguém em especial.
– Você sabe o que dizem sobre o clima por estas partes – um dos garçons replicou.
É, pois é, ela sabia.
Onde estaria Lane?, perguntou-se. Estava sem notícias dele desde a conversa ao lado da picape, seis horas atrás.
O senhor Harris se aproximou.
– Você disse para eles que tudo isso vai para a área de carga e descarga?
– Sim – ela respondeu. – É sempre ali que ficam as coisas alugadas e, antes que pergunte, os copos e talheres também.
Já que o homem estava parado ali sem fazer nada, ela ficou tentada a pedir que ele a ajudasse segurando uma das pontas da mesa para carregá-la até a parte oposta do deque. Mas estava bem evidente que ele não era alguém que metia a mão na massa.
– Qual o problema?
– A polícia está aqui de novo. Estão tentando respeitar o evento, mas querem me interrogar mais uma vez.
Lizzie abaixou a voz.
– Quer que eu cuide das coisas?
– Sinto que eles não querem esperar.
– Pode deixar, tudo será feito da maneira correta.
O mordomo limpou a garganta. Em seguida, que Deus o abençoasse, ele se curvou levemente na sua direção.
– Agradeço imensamente. Obrigado. Não deve demorar muito.
Ela o viu se afastar, depois voltou ao trabalho.
Levantando a mesa, atravessou o espaço cavernoso e prosseguiu a céu aberto, onde o início de um chuvisco a molhou nos ombros e na cabeça. A área de carga e descarga ficava na parte oposta da casa. O sotaque carregado de Greta ressoava pelo lugar, enquanto dois empregados, um entrando com o lixo da festa, o outro saindo de mãos vazias, se apressavam.
Lizzie se dirigiu para junto deles, aproximando-se das mercadorias a serem devolvidas.
A tenda maior seria desarmada em vinte minutos, e a equipe de limpeza já estava trabalhando no chão, recolhendo guardanapos amassados, garfos perdidos e copos.
Os ricos não eram diferentes de qualquer outro rebanho de animais, capazes de deixar uma trilha de detritos depois de abandonarem o local de alimentação.
– Última mesa – disse, assim que se viu debaixo da tenda.
– Que bom. – Greta apontou para uma pilha. – Fica ali, ja?
– Isso mesmo. – Lizzie ergueu a mesa na altura da cintura e a deslizou no alto da pilha. – O senhor Harris teve que cuidar de umas coisas, por isso vou supervisionar a limpeza.
– Logo terremos tudo em orrdem. – Greta apontou o outro canto para dois rapazes com seis engradados de copos cada um. – Ali. Deixem debaixo da coberrturra, sim?
– Vou dar uma olhada na cozinha.
– Vamos terrminarr dentrro de uma horra.
– Como planejado.
– Semprre.
E Greta estava certa. Terminaram às seis em ponto; a tenda grande foi desmontada, a casa e os jardins foram liberados e o quintal estava limpo. Como de hábito, o esforço tinha sido tremendo. Os empregados se retiravam; a maioria se reuniria para beber e se livrar das dores, desconfortos e “Oh, meu Deus” do dia, mas não Lizzie nem sua colega. Casa. As duas iriam para suas respectivas casas. Lizzie esperaria por Lane, e Greta seria recebida por uma refeição preparada pelo marido.
As duas se encaminharam para o estacionamento dos funcionários, não disseram nenhuma palavra e, junto aos carros, abraçaram-se rapidamente.
– Mais uma vencida – Lizzie disse ao se separarem.
– Agorra vamos nos preparrarr parra a festa de aniverrsárrio da Pequena V.E.
Ou a festa de casamento de Gin, Lizzie ponderou.
– Eu te vejo amanhã? – perguntou.
– Domingo? Não – Greta gargalhou. – Não haverrá uma alma se-querr se movendo aqui, nem um marrtíni, nem um rato.
– Ah, é mesmo. Desculpe, a minha cabeça já pifou. Te vejo na segunda, então.
– Está bem parra dirrigirr?
– Claro!
Com um aceno, Lizzie entrou no seu Yaris e depois se juntou à fila de carros e caminhões que saía pelo caminho dos funcionários.
Tomando a esquerda na estrada River, a garoa se transformou em chuva de verdade, e o dilúvio a fez pensar na corrida. Caramba, perdera a corrida. Esticando a mão para o rádio, sintonizou na estação local. Quando conseguiu ouvir comentários sobre a corrida, já estava no entroncamento, passando por cima do rio Ohio.
Mas não acompanhou o relato – e não só porque não entendia nada do esporte.
Franzindo o cenho, aproximou o rosto do para-brisa.
– Meu Deus…
Mais à frente, o horizonte estava carregado de nuvens negras pairando alto no céu. E o pior? Havia uma coloração meio esverdeada em tudo aquilo. E mesmo um olhar desacostumado perceberia que aquilo parecia estar girando.
Olhou por cima do ombro. Atrás dela, não viu nada anormal. Havia até uma faixa de céu azul.
Enfiando a mão na bolsa, pegou o celular e ligou para Easterly. Quando aquela voz carregada de sotaque inglês atendeu, ela disse: – O tempo está piorando. Você vai ter que…
– Senhorita King?
– Escute, você vai ter que cobrir a piscina e os vasos…
– Mas o tempo não está piorando. Na verdade, a previsão deixou bem claro que deveríamos esperar apenas uns chuviscos esta noite.
Quando um raio cortou uma nuvem logo adiante, ela pensou que pelo menos se entendera com o homem uma hora antes.
– A previsão do tempo que se dane. Estou te contando o que está bem na minha frente: há uma tempestade maior que o centro da cidade de Charlemont atravessando o rio, e a colina de Easterly é a primeira coisa que ela vai atingir.
Droga, será que se lembrara de fechar as janelas da sua casa?
– Eu desconhecia os seus talentos de metereologista – o senhor Harris comentou com secura.
E o senhor é um cretino.
– Muito bem, mas depois você vai ter que explicar o seguinte assim que ela passar por aí: um, por que o abrigo ao lado da piscina saiu voando; dois, por que os quatro vasos da varanda da parte oeste caíram e terão que ser replantados; três, onde foi parar a mobília do jardim, porque, a menos que garanta que ela esteja na casa da piscina, ela acabará voando pelos canteiros do jardim. O que me leva ao número quatro, ou seja, quando as heras, as rosas e as hidrângeas serão reparadas. Ah, e depois você pode concluir isso fazendo um cheque de sete mil dólares para a família para cobrir todo o material de jardinagem que terá que ser reposto.
Tic, tac, tic, tac…
– Qual era o segundo item? – ele perguntou.
Te peguei.
Lizzie repassou todo o procedimento que ela e Greta desenvolveram, resultado do trabalho de vários anos com Gary McAdams, preparando-se para as grandes tempestades de primavera e de verão. O pior era que não era necessário um tornado F5 caindo diretamente em Easterly para criar o caos. Algumas tempestades eram mais do que capazes de estragar bastante coisa, se fossem atingidos por ventos diretos.
Era uma das coisas que aprendera rapidamente ao se mudar para Charlemont.
Como se provando que estava certa, ela logo atravessou uma cortina de chuva, que atingiu seu para-brisa com tanta força que pareceu uma dupla de sapateadores dançando “The Star-Spangled Banner”.
Aumentando a velocidade dos limpadores, tirou o pé do acelerador porque seu Yaris era bem capaz de hidroplanar na estrada mesmo na mais ínfima quantidade de água sob os pneus finos.
– Entendeu? – ela perguntou. – Preciso desligar e dirigir no meio desta coisa.
– Sim, sim, claro… ah, meu Deus – o homem sussurrou.
– Então, está vendo a tempestade agora? – Divirta-se, ela pensou. – Melhor começar a se mexer.
– Sim, de fato.
Desligou e jogou o celular dentro da bolsa. Depois, só lhe restou se dobrar em cima do volante, segurar firme… e rezar para que nenhum exibido numa SUV a jogasse para fora da estrada.
A situação piorou bem rápido.
E, puxa, depois de um dia atarefado e longo como o que tivera, a última coisa que precisava era enfrentar aquele aguaceiro reduzindo sua visibilidade para um metro e meio de distância, somado a trovões ensurdecedores e raios. O clima parecia disposto a acompanhar lado a lado o que acontecia em Easterly. Quase como se o drama na casa estivesse afetando o tempo.
Ok, talvez aquilo fosse exagero.
Mas, mesmo assim…
Levou uns quinhentos anos para chegar à sua saída. E mais setecentos ou oitocentos para chegar à entrada da sua casa. Nesse meio-tempo, a tempestade se transformou em Tempestade, com T maiúsculo: raios cruzavam o céu, parecendo querer atingir seu carro, e trovões rugiam. Ela foi atingida por uma rajada de granizo que poderia ter derrubado Fenway Park. Já com os nós dos dedos embranquecidos, irritada, preocupada com Lane e toda dolorida, finalmente chegou em casa, toda esbaforida e…
O dedo de Deus.
Foi só no que pensou.
Num momento, estava estacionando em seu lugar de costume próximo à casa. No seguinte? Um raio desceu do céu e atingiu a sua enorme e linda árvore bem no topo.
Faíscas se formaram, como se fosse 4 de julho.
E ela gritou, pisando no freio:
– Não!
Os pneus do Yaris derraparam no piso seco. Ou na estrada lamacenta e escorregadia.
E foi nessa hora que descobriu que Lane estava na sua casa.
Porque acabou batendo com tudo no para-choque traseiro do Porsche dele.
Lane já estava havia duas horas sentado à mesa da cozinha de Lizzie, lendo os relatórios financeiros da CBB, quando a chuva chegou. Enquanto a tempestade dava seu primeiro show, com trovões e raios sacudindo a casa, ele nem se deu ao trabalho de desviar o olhar do laptop, mesmo quando os antigos vidros tremeram e o telhado rangeu.
A quantidade de informação era tremenda.
E ele estava em pânico por entender apenas uma fração dela.
Mas, pensando bem, tinha sido muita ingenuidade da parte dele pensar que poderia lidar com os negócios do pai com algum tipo de diligência. Fora a quantidade incrível de arquivos, ele não tinha o conhecimento necessário para entender tudo aquilo.
Ainda bem que Edward tinha se preparado para algo assim, criando aquelas contas fantasmas, senhas e e-mails. Sem tais coisas, teria sido impossível exportar as informações sem disparar algum alerta interno.
Se bem que isso ainda poderia acontecer.
Ele não sabia de quanto tempo dispunham até que o pai deles descobrisse o vazamento de informações.
Fazendo uma pausa, recostou-se na cadeira e esfregou os olhos. Foi nesse instante que o segundo round da tempestade começou. Seja pelo cochilo forçado devido aos seus olhos cansados ou pelo fato de que suas células T estavam alertas, ele logo percebeu que a casa de Lizzie estava sendo atacada.
Levantou-se, deu a volta e fechou todas as persianas do andar de cima e de baixo. Enquanto corria de cômodo em cômodo, os raios iluminavam tudo como estrobos enlouquecidos, lançando sombras velozes sobre o piso de Lizzie, a mobília, o piano. O céu estava tão escuro como se fosse meia-noite, a chuva açoitava a fazenda, e Lane sentiu como se estivesse numa zona de guerra.
Tinha esquecido como aquelas tempestades de primavera vindas do leste podiam ser furiosas, as colisões das frentes frias e quentes correndo à solta por quilômetros e quilômetros da planície no centro-oeste.
De volta ao primeiro andar, relanceou para a varanda e praguejou. As mesinhas e as cadeiras de balanço de vime estavam todas amontoadas, numa agitação nervosa provocada pelas rajadas de vento.
Quando foi abrir a porta, a força da corrente fez com que ele tivesse que usar força para fechá-la novamente depois que saiu. Ao segurar tudo o que encontrava, moveu os objetos de Lizzie para o canto oposto da varanda, distante dos ventos mais fortes.
Estava voltando para apanhar a última cadeira quando viu faróis fazendo a curva na estrada principal. Só podia ser ela, e ele ficou aliviado. Tivera a intenção de telefonar, mandar uma mensagem, sinal de fumaça ou um pombo-correio, mas sua mente acabara se concentrando em…
Tudo aconteceu numa estranha combinação de câmera lenta com a velocidade do som: um raio surgiu no céu, seguido por um barulho de explosão e uma bomba de iluminação.
Um galho do tamanho de uma viga se partiu e caiu no chão.
Bem onde Lizzie acabava de estacionar.
O som de metal se retorcendo fez o coração dele parar de bater.
– Lizzie! – ele berrou e voou para fora da varanda.
A chuva o atingiu no rosto e o vento parecia uma matilha de cães atacando suas roupas, mas ele seguiu em frente.
A morte vem em três.
– Não! – ele berrou na tempestade. – Nããããooo!
O Yaris cedeu sob o peso, o teto amassou, a capota afundou, e a vida dele passou pela sua mente quando ele parou de súbito, descalço. Galhos com folhas novas atrapalhavam sua visão, assim como a chuva e o vento, e os raios e trovões continuaram, como se nada de importante tivesse acontecido.
– Lizzie!
Ele se enfiou na confusão verde, se contorcendo. Mesmo com todo aquele vento, ele sentia o cheiro de gasolina e óleo, e ouvia o sibilo do motor mortalmente atingido.
Talvez toda aquela umidade impedisse uma explosão?
Resolveu mudar de tática e começou a subir no carro, até dar a volta e chegar à frente do veículo. Por fim, sentiu algo molhado e escorregadio nas mãos, e começou a bater, para que ela soubesse que ele estava ali.
– Lizzie, vou te tirar daí!
Com puxões frenéticos, arrancou galhos e folhas até encontrar o vidro do para-brisa todo rachado. Fechando o punho, socou com força, e faltou pouco para que ele inteiro passasse pela abertura.
Lizzie estava de lado, com a cabeça apoiada no banco do passageiro, mexendo os braços como se estivesse tentando se orientar. Os dois airbags tinham sido acionados, e o pó branco e seco do interior contrastava com a umidade da tempestade.
– Lizzie!
Pelo menos ela estava se mexendo.
Merda. Ele não tinha como abrir as portas. Teria que puxá-la.
Esticando o braço, tocou-a no rosto.
– Lizzie?
Ela piscou, e havia sangue em sua testa.
– Lane…?
– Estou com você. Vou te tirar daí. Está machucada? O pescoço, como está? As costas?
– Desculpe, bati no seu carro…
Ele fechou os olhos por uma fração de segundo e murmurou uma oração. Em seguida, voltou a agir.
– Vou ter que te arrastar para fora.
Abrindo caminho pelo interior do carro, conseguiu, de algum modo, soltar o cinto dela, segurá-la pelos braços…
E parou.
– Lizzie? Presta atenção, tem certeza de que não está machucada? Consegue mover as pernas e os braços? – Quando ela não respondeu, ele sentiu uma onda de pânico. – Lizzie? Lizzie!
TRINTA E OITO
De volta a Charlemont, Edward não estava prestando atenção em seu último cavalo no Derby. Não estava sequer na pista.
Não, ele estava tentando um novo papel.
O de perseguidor.
Atrás do volante do caminhão do Haras Vermelho & Preto, olhou pela janela do passageiro para a enorme mansão de tijolos aparentes diante da qual estava parado.
Construída no início dos anos 1900, a grande casa georgiana era propositadamente maior do que Easterly. Já fazia quase um século que os Sutton eram arrivistas bem-sucedidos, e quando a fortuna da família por fim superou a dos Bradford, aquela casa transformou-se num troféu para o seu triunfo. Com seus vinte ou trinta quartos e um vilarejo para os empregados, a mansão era quase uma cidade, na segunda melhor colina com a segunda melhor vista do rio e o segundo melhor jardim.
Mas, sim, vencia Easterly em relação ao tamanho.
Assim como a Destilaria Sutton Corporation, que era um terço maior que a CBB.
Edward meneou a cabeça e relanceou para o relógio barato que passara a usar. Caso Sutton se ativesse aos seus costumes, não tardaria a chegar.
Pelo menos, nenhum funcionário uniformizado acompanhado por um pastor alemão a ladrar veio incomodá-lo pedindo para que fosse embora. A segurança da propriedade da família de Sutton Smythe era tão rigorosa quanto a de Easterly, mas ele tinha duas vantagens. A primeira era o logotipo em seu veículo; a marca registrada V&P era como uma garantia real, e mesmo que fosse um serial killer parado no vestíbulo do tribunal de justiça no centro da cidade, existia uma grande possibilidade que a polícia o deixasse em paz. A segunda coisa que tinha a seu favor era o Derby. Sem dúvida, todos ainda estavam comentando sobre a corrida, acertando apostas, deliciando-se com suas glórias.
Em breve. Muito em breve ela estaria em casa.
Depois que Lane o levou de volta à fazenda, ele tomou alguns remédios e um drinque. Em seguida, releu os papéis da hipoteca… E ficou só mais dez minutos ali antes de apanhar a bolsa de festa de Sutton e claudicar até um dos caminhões.
Moe e Shelby e o resto dos ajudantes estavam na pista junto aos treinadores e aos cavalos. Ao se afastar dirigindo, pensou que era uma lástima desperdiçar todo o silêncio e a tranquilidade da fazenda, mas aquilo era uma coisa que ele tinha que resolver pessoalmente.
A chuva começou a cair – primeiro uns pingos, depois um chuvisco.
Voltou a olhar para o relógio.
Treze minutos. Estava apostando que ela chegaria em treze minutos. Enquanto as outras 200 mil pessoas em Steeplehill Downs teriam que caminhar pelo longo trajeto até seus carros, para em seguida enfrentar um congestionamento na tentativa de entrar na autoestrada, pessoas como os Bradford e os Sutton tinham escolta policial, o que os fazia entrar e sair rápido dos lugares.
E ele estava certo.
Doze minutos e alguns segundos mais tarde, um dos Mulsannes pretos da família parou diante da casa. O motorista saiu de trás do volante, abriu um guarda-chuva e seguiu para a porta de trás. Um segundo segurança fez o mesmo do outro lado.
O pai de Sutton saiu primeiro, e precisou do braço do motorista para chegar à casa.
Sutton, por sua vez, saiu lentamente, com os olhos fixos no caminhão. Depois de conversar com o motorista, pegou o guarda-chuva dele e veio caminhando, sem se dar conta de que estava estragando os sapatos de salto alto.
Edward abaixou o vidro quando ela se aproximou, tentando ignorar o seu perfume conforme ela chegava cada vez mais perto.
– Entre – disse, sem olhar.
– Edward…
– Não vou discutir o que você assinou com o meu pai aí na sua casa. Nem no seu jardim.
Ela emitiu um xingamento agressivo e marchou para a frente do caminhão. Com um grunhido, ele tentou se esticar como um cavalheiro teria feito para lhe abrir a porta, mas ela chegou antes. Além disso, seu corpo não permitiria que ele se esticasse tanto assim.
Depois de se acomodar no banco, Sutton ficou imóvel ao ver sua bolsa.
Ligando o veículo, ele murmurou:
– Pensei que você gostaria de ter a sua habilitação de volta.
– Tenho que estar no baile em quarenta e cinco minutos – ela disse quando ele começou a descer a colina.
– Você odeia ir a esses eventos.
– Tenho um encontro.
– Tem? Que bom, parabéns. – Uma fugaz fantasia de raptá-la para impedi-la de ir se passou em sua mente. Como num filme, a fantasia culminaria numa Síndrome de Estocolmo, pois ela se apaixonaria pelo seu sequestrador. – Quem é ele?
– Ninguém que te interesse.
Edward virou à esquerda e apenas continuou dirigindo.
– Então você está mentindo.
– Veja as colunas sociais amanhã – ela argumentou num tom enfastiado. – Você poderá ler tudo a respeito.
– Eu não assino mais o Charlemont Courier Journal.
– Escute, Edward…
– Que diabos você está aprontando? Fazendo um hipoteca da minha própria casa?
Mesmo que não estivesse olhando para ela, ele sentia o olhar gélido cravado em seu rosto.
– Primeiro, foi seu pai quem me procurou. Segundo, se voltar a falar nesse tom comigo, executarei a hipoteca imediatamente.
Edward a encarou.
– Como pôde fazer isso? Você é mesmo tão gananciosa assim?
– Os juros são mais do que justos! Você queria que ele tivesse ido a um banco, que fosse exposto? Manterei tudo em segredo, desde que os pagamentos sejam feitos.
Ele apontou um dedo para os documentos no banco.
– Quero que suma com isso.
– Você não tem parte no acordo, Edward. E, ao que tudo leva a crer, o seu pai precisa do dinheiro. Ou não teria me procurado.
– Aquela casa pertence à minha mãe!
– Sabe, se eu fosse você, estaria me agradecendo. Não sei ao certo o que anda acontecendo debaixo daquele seu teto, mas dez milhões não deveriam ser nada para a grande e gloriosa família Bradford!
Edward virou à esquerda e estacionou num dos parques públicos do rio Ohio. Cruzando o estacionamento deserto, ele parou ao chegar ao atracadouro, e desligou o motor. Àquela altura, a tempestade caía a valer, e os raios no céu inflamavam a raiva dentro dele.
Virando-se no banco, ele engoliu um gemido de dor.
– Ele não precisa do dinheiro, Sutton.
Claro, era uma mentira. Mas a última coisa que a família precisava era de boatos. Por mais que ele estivesse frustrado com Sutton, sabia que poderia confiar nela, só que deviam haver outras pessoas envolvidas. Advogados, banqueiros. Pelo menos ela poderia negar essa conversa, caso fosse mencionada.
– Então por que ele assinou aquele documento? – ela inquiriu. – Por que o seu pai se desdobrou para me desviar de uma reunião de negócios para propor isso?
Enquanto ela o confrontava, ele teve uma rápida imagem mental da noite anterior, dela em seu colo, montando sobre ele, sendo gentil com seu corpo alquebrado.
Logo se lembrou do pai tentando abraçá-la no escritório.
Aquilo tinha como ficar mais confuso?, perguntou-se enquanto seu ódio por William Baldwine ressurgia.
Edward se concentrou nos lábios dela e pensou na esposa do irmão.
– Ele já te beijou?
– O que disse?
– O meu pai. Ele já te beijou?
Sutton meneou a cabeça em descrença.
– Vamos nos concentrar na questão da hipoteca de Easterly, está bem?
– Responda a maldita pergunta.
Ela levantou as mãos.
– Você me viu no escritório com ele. O que acha?
Então, sim, Edward pensou com uma onda de fúria.
– Escute – Sutton disse –, não sei o que está acontecendo com a sua família, ou por que ele quis fazer isso. Só o que sei foi que era um bom negócio para mim… e pensei que poderia ajudá-los. Fui idiota, pensei que manter isso em segredo poderia beneficiá-los.
Depois de um momento, ele murmurou:
– Bem, você está errada. E é por isso que quero que rasgue o documento.
– O seu pai também tem uma cópia – ela observou, seca. – Por que não vai falar com ele?
– Ele fez o acordo com você porque me odeia. Ele o fez porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Pelo menos isso não era mentira, ele pensou quando ela arfou.
Deus bem sabia que ele já se sentia apenas meio homem perto dela…
Sutton se mexeu no banco, absorvendo as palavras de Edward. Não conseguiu esconder sua ansiedade.
O orgulho fez com que quisesse atingi-lo, mas as palavras iradas se atropelaram em sua cabeça, e só o que ela acabou fazendo foi contemplar o rio agitado e lamacento.
Os limpadores de para-brisa estavam ligados, movendo-se em intervalos, clareando a vista da margem oposta temporariamente. E, engraçado, a vida era meio assim também, não era? Você segue em frente, cuidando da sua vida, sem conseguir ver exatamente onde se encontra por causa dos tantos detalhes demandando atenção, quando, subitamente, as coisas se cristalizam e você recebe uma breve visão que a faz pensar “Ah, é aqui que estou”.
Sutton pigarreou, mas não adiantou muito, pois, quando falou, as palavras saíram meio roucas.
– Sabe, acho que nunca vou entender por que me considera tão pouco. É um mistério para mim.
Edward disse algo, mas ela falou por cima dele:
– Você deve saber que me apaixonei por você há muito tempo.
Isso fez com que ele se calasse.
– Você deve saber. Como não saberia? Eu o segui por anos… É por isso que me odeia? – Olhou na direção dele, mas não conseguiu ver muito por causa do boné. O que era bom, provavelmente. – Você me despreza por isso? Sempre pensei que você foi deixando porque pensou que os meus sentimentos poderiam lhe ser úteis de algum jeito, mas é algo mais doentio do que isso? Sei que desprezo a mim mesma pela minha fraqueza. – Ela acenou para os documentos. – Quero dizer, esses papéis são um exemplo perfeito de como sou patética. Eu não teria feito um negócio assim, às escondidas, com ninguém mais. Mas imagino que seja um problema meu, e não seu.
Ela voltou a fitar além do para-brisa.
– Sei que não gosta de falar sobre o que aconteceu na América do Sul, mas… Eu não dormi o tempo todo que você estava lá, e tive pesadelos nos meses seguintes. E depois você voltou a Charlemont e não quis me ver. Disse a mim mesma que era porque você não estava recebendo ninguém, mas não é verdade, é?
– Sutton…
– Não – interrompeu-o com firmeza. – Não vou livrá-lo dessa hipoteca. Seria apenas mais uma estupidez nessa coisa que tenho com você.
– Você entendeu tudo errado, Sutton.
– Entendi? Não tenho tanta certeza assim. Então, que tal se terminarmos tudo aqui, agora? Você pode ir se foder, Edward. Agora me leve de volta para a minha casa antes que eu ligue para a polícia.
Ela esperou que ele discutisse. Depois de um instante, porém, ele engatou a marcha a ré e deu a volta.
Na estrada, ela o encarou de perfil.
– É melhor rezar para que aquele seu pai faça os pagamentos dentro do prazo. Se ele não fizer, não hesitarei em pôr a sua família no olho da rua. E se acha que isso não vai fazer as pessoas desta cidade comentarem a respeito, você perdeu o juízo.
Foi a última coisa dita no caminho de volta para a casa dela.
Quando ele parou diante da mansão, ela fez questão de pegar a bolsa de festa e levá-la consigo, e o caminhão mal tinha parado quando ela abriu a porta.
Sutton tinha quase certeza de que ele disse seu nome uma última vez antes de ela sair, mas talvez não.
Quem se importava?
Enquanto corria debaixo da chuva, o mordomo lhe abria a porta de entrada.
– Senhorita! – ele exclamou. – A senhorita está bem?
Ela não se dera ao trabalho de abrir o guarda-chuva, e uma rápida olhada no antigo espelho ao lado da porta mostrou que ela parecia tão exausta e abatida quanto se sentia.
– Na verdade, não estou me sentindo muito bem. – Não era nenhuma mentira. – Por favor, avise Brandon Miller que vou me deitar. Eu deveria me encontrar com ele para irmos ao baile de hoje.
Ele se curvou.
– Devo telefonar para o doutor Qalbi?
– Não, não. Só estou exausta.
– Eu lhe levarei uma bandeja com chá.
A ideia lhe pareceu nauseante.
– Quanta gentileza. Muito obrigada.
Enquanto o homem se afastava na direção da cozinha, ela seguiu para o elevador. Felizmente, ele já estava parado no térreo e ela pôde entrar imediatamente. A última coisa que queria era se encontrar com o pai ou com o irmão.
Tirou os sapatos e caminhou descalça pelo corredor, entrando sorrateiramente no quarto e batendo a porta atrás de si.
Fechou os olhos, mas continuou ouvindo a voz de Edward em sua mente.
Ele fez isso porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Inacreditável.
E era engraçado. Mesmo com todo o dinheiro que ela tinha, toda a posição social e autoridade, o respeito e a adulação… Ela ainda podia ser reduzida a uma criança devastada.
Só era preciso ficar num local fechado com Edward Baldwine.
Por dez minutos.
Não mais, ela jurou. A obsessão doentia que tinha por aquele homem precisava cessar agora.
Nos recessos da mente, às vezes ela se perguntava se ele também não combatia uma obsessão por ela, a competição centenária entre as duas famílias impedindo-o de se aproximar. Mas isso, evidentemente, fora uma projeção injusta da parte dela, algum tipo de fantasia romântica nascida dos seus próprios sentimentos.
As únicas coisas gentis que ele lhe dissera foram quando ele pensou que ela era uma prostituta a seu serviço.
No entanto, a realidade estava visivelmente clara agora. Ele tinha acabado de apresentá-la num outdoor na proverbial praça central da sua cidade. Deixara tudo evidente, sem margem para dúvidas.
Ela podia ser patética.
Mas não era burra.
TRINTA E NOVE
Atingida na cabeça.
Enquanto Lizzie escorregava para o lado da cabine esmagada de seu Yaris, sentiu como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
Por uma combinação de Wolverine, The Rock e talvez por Schwarzenegger em seus tempos de glória.
E, como resultado, nada estava sendo muito bem processado – o fato de ter batido na traseira do carro de Lane, o motivo pelo qual seu rosto estava molhado, o barulho alto…
– Lizzie!
O som do seu nome dissipou parte da sua confusão, e ela olhou ao redor, tentando descobrir por que Deus, de repente, estava com a voz muito parecida com a de Lane.
– Lane? – ela disse, piscando repetidas vezes.
Por que ele estava entrando pelo para-brisa? Seria aquilo um sonho? – … machucada em algum lugar? – ele dizia. – Preciso saber antes de tentar te mover.
– Desculpe, o seu carro…
– Lizzie, você tem que me dizer se está machucada!
Caramba, quando ele ficava ansioso aquele sotaque sulista ficava mais evidente, não? Ela estava confusa. Machucada? Por que ela estaria…
E foi então que ela viu toda a folhagem.
Dentro do carro.
Muito bem, aquilo devia ser um sonho ruim, mas ela podia seguir a correnteza. Testou os braços, as pernas, inspirou fundo, moveu a cabeça… Tudo parecia funcionar bem.
– Eu estou bem – murmurou. – O que aconteceu?
– Vou te puxar para a frente, ajude se puder, ok?
– Claro. Eu…
Uau. Ai!
Mas ela estava determinada a participar daquele esforço. Mesmo quando seus músculos ficaram meio esticados demais, parecendo querer saltar para fora das juntas, ela apoiou os pés em qualquer coisa que conseguiu, se empurrando enquanto Lane a puxava e fez força para seguir em frente.
A chuva atingiu seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Arranhões. O vento a cegou.
Mas ele a arrancou para fora.
E ela logo se viu nos braços dele, ao encontro do seu peito, sentindo-o estremecer.
– Ai, Deus – ele disse, rouco. – Ah, graças a Deus, você está viva…
Lizzie se segurou nele, ainda sem entender por que estavam sentados numa árvore. Como é que os carros tinham subido na…
Um raio espocou no céu tão perto deles que ela sentiu os ouvidos explodindo.
– Temos que entrar – Lane rugiu. – Venha.
Em algum momento no processo de tropeçar e cair no chão, o cérebro dela voltou à ativa, e o que ela viu quase a paralisou.
Metade da magnífica árvore que crescia ao lado da sua casa tinha esmagado seu carro.
No fim, ela não colidira com o Porsche.
A batida que ouviu era o seu sedãzinho sendo esmagado por todo aquele peso.
– Lane, o meu carro…
Foi tudo o que conseguiu dizer antes de ele a pegar nos braços e sair correndo na direção da casa. Quando ele saltou na varanda, ela o empurrou e saiu dos braços dele, recusando-se a ir mais longe. Cobrindo a boca com a mão ao ver seu carro daquele jeito, ela…
Sangue. Havia sangue por toda parte sobre ela.
Uma súbita tontura a acometeu, fazendo-a cambalear ao olhar para si mesma.
– Lane… Estou machucada?
– Para dentro – ele ordenou, conduzindo-a.
Enquanto a empurrava para dentro e empenhava todas as suas forças para fechar a porta, o coração dela começou a bater forte quando deu uma bela olhada no seu salvador: ele também estava todo molhado e ensanguentado.
Mas isso importava?
Os dois se abraçaram com tanta pressa que as roupas ensopadas se grudaram, os corpos voltando a se ligar, partilhando calor, segurando-se firmes um ao outro.
– Pensei que tivesse te perdido – ele disse ao ouvido dela. – Ah, meu Deus, pensei que…
– Você me salvou, você me salvou…
Ambos falavam apressadamente, tropeçando sobre as palavras, trêmulos pelo que quase acontecera. Ele a beijou e ela retribuiu.
Só que, depois de um tempo, ela se afastou.
– Acho que quem está sangrando é você.
– São só uns arranhões…
– Oh, Deus! Olhe para os seus braços, as suas mãos!
Ele estava todo machucado; sua pele tinha vários cortes por ter brigado com os galhos para chegar até ela, e havia contusões no rosto e no pescoço.
– Não estou nem aí – ele disse. – É com você que estou preocupado.
– Você precisa de um médico?
– Ora, por favor… A árvore caiu em cima de você, lembra?
E foi então que as luzes se apagaram.
Lizzie ficou imóvel um segundo, mas logo começou a rir com tanta intensidade que seus olhos arderam. Eram emoções demais, coisas demais para lidar… E, antes que se desse conta, Lane estava gargalhando também. Os dois se abraçaram, libertando-se de toda a tensão, dos problemas da família dele, do estresse do Brunch… até aquele horrendo acidente de carro.
– Banho? – ela sugeriu.
– Pensei que nunca fosse pedir.
Normalmente, ela ficaria irritada com as marcas dos pés na sala e nos degraus, mas não agora. A lembrança de todo aquele peso sobre seu carro a fazia priorizar o que era importante.
– Juro que pensei ter batido no seu carro – ela disse ao chegarem ao segundo andar.
– Não teria sido um problema, se tivesse mesmo.
Ah, as alegrias de ser um Bradford, ela pensou.
– Tenho certeza de que você tem um Porsche reserva.
– Mesmo se eu não tivesse, não teria tido importância, contanto que você estivesse bem.
Passaram ao mesmo tempo pelo batente do banheiro dela e se apertaram dentro do box, e quando ela ligou o chuveiro, ele partiu para cima dela, desabotoando sua roupa, abrindo zíperes, tirando tudo o que a deixava fria e molhada.
Arrepios se formaram nos braços e nas pernas dela, provocados mais pelo calor do olhar dele que pelo frio do ar. Logo Lane também se despiu, deixando as roupas caídas junto às dela.
– Para a água – ela grunhiu quando ele a acariciou no pescoço com o nariz, beijando um caminho até a boca.
Ele soltou um xingamento quando se colocaram debaixo do jato quente e suave. E quando a água os lavou, ela ficou aliviada: eram apenas arranhões, nada sério.
E esse foi seu último pensamento antes que as mãos grandes dele começassem a viajar pelos seus seios escorregadios, e a boca descesse com avidez sobre a dela, e aquele desejo erótico tão conhecido se reacendesse entre eles.
Eu te amo, ela pensou.
Eu te amo tudo de novo, Lane.
Algum tempo depois, quando a eletricidade voltou, depois de Lane ter feito amor com sua Lizzie duas vezes no chuveiro e mais uma na cama, depois que desceram e comeram os restos da lasanha congelada e boa parte do sorvete de pêssego, depois que voltaram para cima e foram para a cama de novo… todos os problemas do dia voltaram para ele.
Felizmente, Lizzie estava adormecida no escuro, por isso qualquer que fosse sua expressão, que já não tinha forças para esconder, não seria um problema.
Fitando o teto, sua mente começou a girar, e ele mal percebeu que o sol se levantava no horizonte. Deu uma rápida olhada para o rádio-relógio de Lizzie e se surpreendeu ao ver que ficara acordado a noite inteira.
Deslizando para fora dos lençóis, pôs-se de pé e foi para o banheiro. Suas roupas não tinham salvação; pegou-as no chão e jogou-as no lixo. A única coisa que ainda podia ser usada era a cueca.
Era melhor que dirigir nu para casa no dia do Senhor.
De volta ao quarto, aproximou-se de Lizzie.
– Tenho que ir.
Ela despertou de pronto, e ele a acariciou até que ela voltasse a apoiar a cabeça no travesseiro.
– Tenho um encontro com uma linda mulher e não posso faltar – ele disse.
Lizzie sorriu de uma maneira sonolenta, que fez com que ele desejasse ficar olhando para ela para sempre.
– Mande um oi.
– Pode deixar. – Ele a beijou na boca. – A propósito, hoje eu trago o jantar.
– Congelado?
– Não, vai estar mais quente que o inferno.
O sorriso que ela lhe lançou o atingiu direto no sangue, excitando-o, apesar de não haver tempo para fazer nada a respeito.
– Eu te… – Lane se deteve, sabendo que ela não gostaria daquela despedida. – Eu te vejo às cinco da tarde.
– Estarei aqui.
Ele a beijou uma vez mais e foi para a porta.
– Espere. E as suas roupas? – ela disse em voz alta.
– Não podem me prender. As partes ofensivas estão cobertas.
O riso dela o acompanhou até a escada e a saída da casa. E a visão de metade da copa daquela árvore fez o coração dele saltar.
Quando inspirou fundo, seu primeiro instinto foi o de pegar o telefone e ligar para Gary McAdams para que ele retirasse o galho e levasse aquela lata amassada que era o carro dela para um pátio de demolição. Mas se conteve. Lizzie não era do tipo de mulher que apreciaria esse tipo de manobra. Ela devia ter os próprios contatos, ideias de como lidar com aquele problema, planos para seu Yaris.
Conhecendo-a, ela tentaria fazer com que ele voltasse a funcionar.
Sacudiu a cabeça e foi até seu carro. O Porsche quase foi destruído também, sendo oupado por pouco. Depois de tirar alguns galhos do teto, entrou, ligou o carro e seguiu seu caminho lentamente ao largo dos galhos caídos e faixas de terra cheias de água. Assim que chegou ao asfalto, acelerou na direção de Charlemont, atravessando o rio e subindo a colina de Easterly.
Estava na metade do caminho quando teve que desacelerar porque outro carro vinha descendo.
Um sedã Mercedes preto S550.
E, atrás do volante, com imensos óculos escuros e um véu preto como se estivesse de luto, sua futura ex-mulher.
Chantal não olhou para ele, mesmo sabendo muito bem quem estava passando.
Tudo bem. Com um pouco de sorte, ela estaria de mudança e poderiam deixar que os advogados cuidassem de tudo, dali por diante. Deus bem sabia que ele tinha outras coisas para se preocupar.
Estacionou o Porsche na frente da casa, entrou pela porta principal e parou quando viu bagagem no vestíbulo.
Não era de Chantal. Ela tinha conjuntos da Louis Vuitton. Aquelas eram Gucci, marcadas com as iniciais RIP.
Richard Ignatius Pford.
Uma cretina saindo, ele pensou. E outro entrando.
Que diabos Gin estava pensando?
Ah, espere. Ele sabia a resposta. Para uma mulher com pouca formação acadêmica e nenhuma experiência profissional, sua irmã tinha um talento incontestável: saber cuidar de si mesma.
Assustada com a questão financeira, ela seguiu as orientações do pai e se agarrou ao tolo endinheirado a fim de que, não importando o que acontecesse com a família, seu estilo de vida não fosse afetado. Ele só desejava que o custo para ela não se provasse alto demais. Richard Pford era um filho da puta odioso.
Só que aquele circo não era seu, tampouco os macacos que nele se apresentariam. Por mais que o entristecesse, fazia tempo que aprendera a deixar que Gin seguisse sua cabeça e fosse em frente. Na verdade, não havia uma estratégia para lidar com a sua irmã.
Subiu os degraus rapidamente, foi para o quarto, tomou banho, se barbeou e vestiu o terno risca de giz. Precisou de duas tentativas para acertar a gravata borboleta.
Caramba, como odiava aquelas coisas.
Desceu pela escada dos empregados, cortou caminho pela cozinha e foi parar diante da porta da senhorita Aurora. Como fizera na primeira vez em que fora visitá-la quando ali chegou, verificou se estava com a camisa bem enfiada dentro da calça antes de bater à porta.
Mas parou antes de bater. Por algum motivo, sentiu um medo insano de que desta vez ela não atenderia. Que ele esperaria… e repetiria, e esperaria um pouco mais…
E então teria que invadir, forçando a porta como fizera no escritório de Rosalinda… E encontraria mais uma morta.
A porta se abriu, e a senhorita Aurora mostrou uma carranca.
– Está atrasado.
Lane se sobressaltou, mas logo se recobrou.
– Desculpe.
A senhorita Aurora resmungou e deu um tapinha em seu chapéu azul-claro de igreja. O conjunto dela era tão brilhante quanto um céu primaveril, e ela usava luvas e sapatos combinando, e uma perfeita bolsa do tamanho de uma raquete de tênis. O batom era vermelho-cereja, os brincos, os de pérola que ele lhe dera três anos atrás, e ela também usava o anel de pérola que lhe dera no ano anterior a esse.
Ofereceu-lhe o braço quando ela fechou a porta, e ela o aceitou.
Juntos, caminharam até a porta da frente, passando pelo senhor Harris, que sabia que não deveria comentar sobre a porta que estavam usando.
Lane acompanhou a senhorita Aurora até o Porsche e a acomodou no carro. Depois deu a volta e colocou-se atrás do volante.
– Vamos chegar atrasados – ela disse com rispidez.
– Farei com que cheguemos a tempo. Fique só observando.
– Não gosto de alta velocidade.
Ele se viu olhando para ela, piscando.
– Então feche os olhos, senhorita Aurora.
Ela deu um tapa no braço dele e o encarou.
– Você não está velho demais para levar uma surra?
– Sei que quer se sentar num dos bancos da frente.
– Tulane Baldwine, não ouse infringir a lei.
– Sim, senhora.
Com um sorriso maroto, ele pisou no acelerador, voando colina abaixo. Quando relanceou para a senhorita Aurora, viu que ela estava sorrindo.
Por um momento, tudo estava certo em seu mundo.
QUARENTA
A Igreja Batista de Charlemont ficava no West End e suas tábuas brancas se destacavam em meio aos quarteirões e quarteirões de unidades residenciais de baixa renda. Pense em algo imaculado. Desde o gramado muito bem aparado, o estacionamento recém-varrido, os vasos de plantas ao lado das portas duplas até as quadras de basquete nos fundos, o lugar era tão bem cuidado que parecia ter saído de um cartão postal dos anos 1950.
E às 9h20 da manhã de domingo, a igreja estava lotada.
No instante em que Lane se aproximou com o carro, as saudações surgiram tão rápido e de tantos lados que ele teve que desacelerar. Abaixando os dois vidros, ele apertou mãos, cumprimentou as pessoas pelos seus nomes, aceitou desafios para algumas partidas. Estacionou nos fundos, ajudou a senhorita Aurora a sair e depois a conduziu pela calçada que ladeava a igreja.
Havia crianças por toda parte, com vestidinhos florais e terninhos, tão coloridos quanto uma caixa de lápis de cor; o comportamento delas era muito melhor que o do grupo de adultos que participava das festas em Easterly. Todas as pessoas, todas mesmo, pararam para falar com ele e com a senhorita Aurora, querendo saber como estavam, colocando a conversa em dia. Nesse processo, ele se deu conta do quanto sentia falta daquela comunidade.
Engraçado, ele não era de frequentar a igreja, mas sempre que estava em casa, nunca deixava de acompanhar a senhorita Aurora.
Lá dentro, devia haver umas mil pessoas; as fileiras de bancos estavam repletas pelos féis, todos conversando, se abraçando, rindo. Era muito cedo ainda para que ligassem os ventiladores, mas isso logo aconteceria, bastava chegar junho. Lá na frente, havia uma banda com guitarras elétricas, bateria e baixos, e ao lado dela os cantores que compunham o coro. Atrás disso tudo, estava o admirável órgão – do tipo capaz de arrebentar as portas e as janelas e até mesmo o telhado –, ligando a congregação diretamente aos céus.
Max deveria estar aqui, Lane pensou. Seu irmão tinha participado do coro por diversos anos antes de partir para a faculdade.
Mas era uma tradição perdida. Ao que tudo levava a crer, para sempre.
A duas filas a partir da frente, havia espaço para eles, pois uma família de sete se espremeu para que coubessem.
– Muito obrigado – disse Lane, apertando a mão do pai. – Ei, você não é irmão de Thomas Blake?
– Sou, sim – o homem assentiu. – Sou Stan, o mais velho. E você é o menino da senhorita Aurora.
– Sim, senhor.
– Por onde andou? Faz tempo que não o vejo aqui.
Enquanto a senhorita Aurora erguia uma sobrancelha na sua direção, Lane pigarreou.
– Estive no norte.
– Meus sentimentos – disse Stan. – Mas, pelo menos, agora voltou.
– Aqueles são os meus sobrinhos. – A senhorita Aurora apontou para o outro lado do corredor. – D’Shwane está jogando para os Colts de Indiana agora. É recebedor. E Qwentin, ao lado dele, é atacante no Miami Heat.
Lane ergueu a mão quando os dois homens perceberam o olhar da senhorita Aurora.
– Lembro de quando jogavam na faculdade. Qwentin foi um dos melhores atacantes que os Águias já tiveram, e eu estava lá quando D’Shawne nos ajudou a ganhar o Sugar Bowl.
– São bons meninos.
– Toda a sua família é.
O órgão deu a primeira nota e a banda começou a tocar, e do nártex, o coral com beca vermelho-sangue entrou, cinquenta homens e mulheres andando lado a lado, cantando durante a procissão. Atrás deles, o reverendo Nyce seguia com a Bíblia junto ao peito; o homem era alto e distinto e fitava o seu rebanho com afeto. Ao ver Lane, estendeu o braço e apertou-lhe a mão.
– É bom tê-lo de volta, filho.
Quando chegou a hora de todos voltarem a se sentar, Lane sentiu uma sensação estranha. Perturbado, esticou o braço e segurou a mão da senhorita Aurora na sua.
Só conseguia pensar naquele galho de árvore caindo na noite anterior. A visão do carro amassado de Lizzie. O medo eletrizante que sentira ao se arrastar pelos galhos no meio da tempestade, gritando o nome dela.
Quando a banda começou o seu hino gospel predileto, ele olhou para o altar e só balançou a cabeça.
Claro que tinha que ser essa música, pensou.
Como se a própria igreja o estivesse acolhendo em casa também.
Levantou-se com a senhorita Aurora, e começou a se mover com o resto da congregação, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
E se viu cantando junto:
– Quero que saiba que Deus está ao meu lado…
Uma hora e meia mais tarde, o culto terminou e era hora do lanche. A congregação se dirigiu para o andar inferior para tomar ponche, comer uns cookies e conversar.
– Vamos descer – Lane disse.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Preciso voltar. Tenho trabalho.
Ele franziu o cenho.
– Mas nós sempre…
Ele se deteve. Não havia nada que requeresse cuidados em Easterly. Portanto, a única explicação era a que o fazia querer ligar para a emergência.
– Não olhe para mim assim, menino – ela murmurou. – Não é uma emergência médica, e mesmo que fosse, não vou morrer na minha igreja. Deus não faria isso com esta congregação.
– Vamos, apoie-se no meu braço.
Pareceram despreocupados ao andarem contra a maré e, puxa, ele preferiria levá-la nos ombros tal qual um bombeiro, abrindo caminho como um jogador da linha de defesa. Na metade do trajeto até a porta, teve que parar para conversar com Qwentin e D’Shwane – além dos dezessete outros membros da família da senhorita Aurora. Normalmente, ele teria adorado as conversas, mas não naquele dia. Não queria ser rude, só estava muito ciente do quanto a senhorita Aurora se apoiava em seu braço.
Quando, por fim, chegaram à porta da igreja, ele disse: – Espere aqui. Vou trazer o carro. E não, não tem discussão, pode parar já.
Ele meio que esperou que ela se opusesse, e quando ela não o fez, afastou-se correndo, indo para a parte mais distante do estacionamento.
Voltando com o Porsche, quase esperou encontrá-la desmaiada.
Nada disso aconteceu. Ela estava conversando com uma mulher magra, muito majestosa, que tinha o rosto de Nefertiti, um simples terno preto e um par de óculos sem aro diante de olhos muito aguçados.
Ah, uau, ele pensou. Aquilo sim era podia ser chamado de vento do passado.
Lane saiu do carro.
– Tanesha?
– Lane, como está? – Tanesha era a filha mais velha do reverendo. – É bom ver você.
Abraçaram-se e ele assentiu.
– Também é bom te ver. Já virou médica?
– Estou fazendo residência aqui na UC.
– No que vai se especializar?
– Oncologia.
– Ela está fazendo o trabalho do Senhor – disse a senhorita Aurora.
– Como está Max? – Tanesha perguntou.
Lane pigarreou.
– Eu é que não sei. Não falo com ele desde que ele foi para a costa oeste. Você sabe como ele é, imprevisível.
– Sim, ele era mesmo.
Momento. Embaraçoso.
– Bem, vou levar a senhorita Aurora de volta para casa – ele disse. – Foi bom te ver.
– Você também.
As duas mulheres falaram num tom baixo por um instante, e depois a senhorita Aurora permitiu que ele a conduzisse pelos degraus até o carro.
– Sobre o que falavam? – ele perguntou quando se afastaram.
– Sobre o ensaio do coral na semana que vem.
– A senhora não está no coral. – Olhou para ela quando ela não disse nada. – Senhorita Aurora? Quer me contar alguma coisa?
– Sim.
Ai, Deus…
– O quê?
Ela o segurou pela mão, mas não olhou para ele.
– Quero que se lembre do que lhe disse antes.
– E o que foi?
– Tenho Deus. – Apertou a mão dele com força. – E tenho você. Sou mais rica do que poderia imaginar.
Ela o segurou pela mão durante todo o trajeto de volta a Easterly, e ele soube… ele soube. Ela estava tentando prepará-lo para o que estava por vir. Também percebeu que era por isso que ele tinha insistido que Edward a visse no dia anterior, quando o irmão estivera na casa.
Se ao menos houvesse um modo de localizarem Max.
– Não quero que você parta – Lane disse, emocionado. – Vai ser duro demais.
A senhorita Aurora ficou calada até chegarem à base da colina de Easterly.
– Falando em partir – ela disse –, fiquei sabendo que Chantal foi embora.
– Sim, estou pondo um fim nisso.
– Bom. Talvez você e Lizzie finalmente voltem a ficar juntos. Ela é a mulher para você.
– Sabe, senhorita Aurora, eu concordo. Agora só preciso convencê-la.
– Eu ajudo.
– E eu aceito a sua ajuda. – Olhou para ela de relance. – A propósito, ela mandou um oi.
A senhorita Aurora sorriu.
– Isso quando você a deixou hoje cedo?
Enquanto Lane gaguejava e ficava vermelho como o Mercedes que lhe dera, a senhorita Aurora riu dele com gosto.
– Você é um menino levado, Lane.
– Sei disso. É por isso que a senhora precisa ficar por perto, para me fazer andar na linha. Não canso de lembrá-la.
Em vez de parar na frente da casa, ele deu a volta até os fundos para parar mais perto dos aposentos dela. Aproximando-se da porta de trás, freou, desligou o motor… e não saiu.
Olhando para ela, sussurrou:
– Estou falando sério. Preciso da sua ajuda aqui, na Terra… Nesta casa, na minha vida.
Deus, foi impossível ignorar o fato de que três dias atrás ela estivera berrando com ele, dizendo que não iria a parte alguma, mas, agora, algo mudara. Havia alguma coisa diferente.
Antes que ela conseguisse dizer qualquer coisa, a porta da garagem subiu e o motorista saiu com o Phantom. O carro de 500 mil dólares passou por eles e seguiu até a frente da casa.
– Ele é maligno – Lane disse. – Esse meu pai…
A senhorita Aurora ergueu as mãos.
– Amém.
– Onde diabos ele vai hoje cedo?
– Pra igreja é que não.
– Talvez tenha ido atrás de Chantal.
No instante em que proferiu as palavras, soltou um xingamento.
– Do que está falando?
Lane sacudiu a cabeça e saiu.
– Venha, vamos entrar.
Mas não entraram. Quando ele deu a volta e abriu a porta dela, ela continuou sentada com a bolsa no colo, com as mãos enluvadas uma sobre a outra.
– Pode contar.
– Senhorita Aurora…
– O que ele fez com você?
– Isso não é sobre mim.
– Se é sobre aquela sua esposa horrível, pode apostar o seu traseiro como é da sua conta.
Lane combateu o desejo de bater a cabeça no capô do Porsche.
– Não tem nenhuma importância.
– Eu sei que ela se livrou do seu bebê.
Quando aqueles olhos negros se ergueram para ele, Lane xingou uma vez mais.
– Senhorita Aurora. Não faça isso. Deixe estar. Existem muitas outras coisas com as quais vale a pena se preocupar.
Só o que ela fez foi erguer uma sobrancelha.
Lane se acomodou sobre os calcanhares. Deus, como ele amava aquele rosto, cada uma das rugas e marcas de expressão, cada curva e todas as linhas. E ele amava o fato de ela ser uma dama no comportamento, mas forte como um homem.
Ela e Lizzie eram muito parecidas.
– Existem algumas coisas que não valem a pena saber.
– E outras que você não deveria guardar para si.
Por algum motivo, ele se viu abaixando o olhar, como se tivesse algo de que se envergonhar.
– Ela está grávida, senhorita Aurora. E o filho não é meu.
– De quem é? – ela inquiriu.
O resto da história foi transmitido silenciosamente. E o mais engraçado foi que ela não se mostrou totalmente surpresa.
– Tem certeza? – ela perguntou baixinho.
– Foi o que ela disse. E quando o confrontei, a resposta apareceu na cara dele.
A senhorita Aurora fitou adiante, com a testa crispada e a cabeça tão baixa que ele já não enxergava os olhos dela.
– Deus o punirá.
– Eu não esperaria sentado, se fosse a senhora. – Ele se levantou e lhe estendeu a mão. – Está ficando quente aqui fora. Venha.
A senhorita Aurora voltou a fitá-lo nos olhos.
– Eu te amo.
Foi o jeito de ela se desculpar pelo que sabia que todos eles tiveram que aguentar por causa do pai. Não apenas aquela história hedionda com Chantal, mas todas as décadas de tudo o que se passara, desde que eram crianças.
– Sabe – ele disse –, eu nunca te agradeci. Por todos estes anos em que esteve presente, eu nunca… Foi a senhora quem nos manteve nos trilhos, especialmente eu. Sempre esteve ao meu lado. Sempre está ao meu lado.
– Deus me deu esse trabalho sagrado quando cruzou a minha vida com a de todos vocês.
– Eu te amo, mãe – disse emocionado. – Para sempre.
QUARENTA E UM
O som da serra elétrica nas mãos de Lizzie era tão alto que ela não ouviu a aproximação do carro. E foi só depois que deixou de acelerar e o motor da máquina silenciou que ela ouviu uma voz muito sensual e máscula anunciar que ela já não estava mais sozinha.
– Você é a mulher mais sexy que eu já vi.
Girando e olhando para baixo, ela encontrou Lane encostado no seu Porsche, de braços cruzados, pés fincados no chão e expressão intensa.
Do seu ponto de vista vantajoso – de cima do capô amassado do seu Yaris –, ela suspendeu a serra elétrica acima da cabeça e deu umas duas aceleradas.
– Ouça o meu urro.
– Ouça a minha súplica.
Ela teve que rir ao pular para o chão.
– Fiz algum progresso, mas não acho que…
Lane a interrompeu encostando a boca na dela, e o beijo rapidamente se tornou tão erótico que ele quase a dobrou para trás. Quando se separaram um pouco, os dois arfavam.
– Então, oi – ele disse.
– Você, por acaso, sentiu a minha falta?
– Todos os segundos. Deus, como eu amo v… amo o modo como você maneja essa serra.
Foi impossível não perceber o que ele quis dizer, e ela também teve que se bloquear mentalmente quando o instinto quase fez com que deixasse escapar a mesma declaração.
Contudo, Lane encobriu o desconforto com desembaraço.
– Como prometi, trouxe o jantar. Comida do clube. Peguei aquela salada que espero que ainda goste, e uma montanha de lombo fatiado. Sabe, para o caso de termos que nos recobrar.
– Do quê? – perguntou, com malícia, abaixando a serra.
– Ah, você sabe do que… – Só que ele franziu o cenho. – A menos que… bem, você esteja dolorida por causa da noite passada.
Lizzie sacudiu a cabeça.
– Nem um pouco.
– Uma pena.
– Como é?
Aproximando-se, deixou a boca pairar sobre a dela e lambeu seus lábios.
– Pensei que eu poderia dar uns beijinhos para melhorar.
– Você ainda pode fazer isso.
Quando ele a girou e a encostou contra o carro, ela sentiu o coração começar a flanar e pensou que podia muito bem se soltar. Uma árvore tinha destruído seu carro, seu quintal estava uma bagunça, e havia galhos espalhados em toda a sua propriedade… mas Lane estava ali, e se lembrava que ela gostava de salada Cobb e, maldição, ele era o melhor beijador do planeta.
Amanhã ela voltaria a andar nos trilhos. Amanhã ela se lembraria de tomar cuidado…
Lane se afastou um tantinho.
– Me diz uma coisa: o que você acha de fazer sexo a céu aberto?
Ela acenou para as três vacas que estavam perto da varanda.
– Acho que a nossa plateia pode duplicar quando o meu vizinho descobrir que essas senhoras vieram explorar minha terra de novo.
– Então vamos entrar agora mesmo antes que eu fique louco.
– Longe de mim me colocar entre você e a sua sanidade mental.
Ele tinha até uma maleta de roupas, ela percebeu, levando as coisas para dentro.
– Tenho novidades – ele disse ao fechar a porta da frente.
– O quê?
– Chantal saiu de casa hoje cedo.
Lizzie parou e o fitou. Ele estava vestindo sua roupa casual: bermuda e uma camisa polo IzOD, mocassins Gucci, óculos escuros Ray Ban, e o relógio Cartier, o conjunto fazendo com que ele parecesse saído de uma foto cuja legenda era “Os belos e os ricos”. Até o cabelo estava alisado para trás, embora se devesse ao fato de ele ter acabado de sair do banho e ainda estar úmido.
O coração dela oscilou, e ela sentiu um medo momentâneo. Lindo como estava, ele parecia o pôster de um homem em quem não se podia confiar, ainda mais no que se referia a mulheres como Chantal…
Como se ele pudesse ler sua mente, Lane tirou os óculos escuros, revelando seus olhos. Em contraste com tudo o que sua aparência dizia, eles eram límpidos, firmes e tranquilos.
Honestos.
– É mesmo? – ela sussurrou.
– Mesmo. – Ele se aproximou e a virou na sua direção. – Lizzie, acabou. Tudo acabou. E antes que me pergunte, não é só por sua causa. Eu deveria ter metido uma bala nesse casamento há muito tempo. Falha minha.
Fitando seu rosto, ela xingou baixinho.
– Desculpe, Lane. Desculpe ter duvidado de você, eu só…
– Psiu. – Ele a silenciou com os lábios. – Não vivo no passado. É perda de tempo. Só me importo com o presente.
Passando os braços ao redor do pescoço dele, ela curvou o corpo.
– Entãããooo… Não consegui ficar naquela coisa de sermos só amigos, consegui?
– Estou perfeitamente de acordo.
– Acho que esse foi o melhor jantar da minha vida.
Lane fitou-a da outra ponta do sofá e viu quando Lizzie se largou sobre as almofadas, pousando a mão sobre a barriga. Quando as pálpebras dela começaram a pesar, ele a visualizou sobre aquele galho como um anjo vingador, cortando os galhos que mataram seu carrinho.
Mesmo tendo passado a primeira hora desde a sua chegada um em cima do outro, Lane sentiu a ereção engrossar de novo.
– É um milagre – murmurou.
– Eu ter gostado tanto assim do lombo? Acho que não.
– Quero dizer, estar aqui com você.
Os olhos azuis voltaram a se abrir lentamente.
– Sinto a mesma coisa. – Quando ele começou a rir no fundo da garganta, ela o deteve, levantando as mãos. – Não, você não pode dormir sobre os louros da vitória.
Deixando o guardanapo de lado, ele pairou sobre seu corpo, e montou nela.
– Sabe, tenho outras opções de comemoração.
Movendo os quadris, ele sentiu uma pontada de desejo quando ela mordeu o lábio inferior, como se estivesse pronta para mais dele.
– Quer que eu demonstre? – perguntou, esfregando o nariz no seu pescoço.
As mãos dela o afagaram nas costas.
– Quero sim.
– Hummm…
O som do telefone sobre a mesinha lateral fez com que ele saltasse para pegá-lo, assustado.
– Não a senhorita Aurora… Por favor, que não seja sobre a senhorita Aurora…
– Ah, meu Deus… Lane, ela está…
Assim que ele viu que a ligação começava com o código de área 917, relaxou, aliviado.
– Graças a Deus. – Olhou para ela. – Tenho que atender. É um amigo de Nova York.
– Vá em frente.
Ele atendeu e disse:
– Jeff.
– Sentiu minha falta? – seu velho colega de quarto disse. – Sei que é por isso que deixou recado.
– Não chegou nem perto.
– Bem, não vou mandar aqueles bolinhos de canela que você come de manhã, à tarde e à noite pelo correio…
– Preciso saber quanto tempo você tem de férias.
Silêncio absoluto. Em seguida:
– A Série Mundial de Pôquer não está acontecendo agora. Por que está me perguntando isso?
– Preciso da sua ajuda. – Distraído, ele se encostou nas almofadas e posicionou as pernas de Lizzie sobre o seu colo. Depois do banho, ela tinha vestido shorts, e ele adorava ficar alisando aquelas panturrilhas macias e musculosas. – Estou com um problema sério aqui.
Jeff deixou a brincadeira de lado.
– Que tipo de problema?
– Preciso que alguém me diga se o meu pai está desviando dinheiro da empresa. Algo em torno de cinquenta milhões de dólares.
Jeff assobiou baixinho.
– É muita grana, cara.
– O meu irmão conseguiu me dar acesso a… sei lá, umas quinhentas páginas de relatórios financeiros e planilhas, mas eu não faço a mínima ideia do que tenho nas mãos. Quero que você venha para cá e me diga o que aconteceu, e isso tem que ser feito agora, antes que ele descubra que estou de olho e se livre de tudo o que possa incriminá-lo.
– Escuta aqui, Lane, você sabe que eu te amo como o irmão que nunca tive, mas o que você precisa é de um perito contábil. Existem pessoas que se especializaram nisso, e por um bom motivo. Deixe que eu encontre alguém em quem você possa confiar…
– É exatamente essa a minha preocupação, Jeff. Não posso confiar em ninguém com relação a esse assunto. Estamos falando da minha família.
– Podemos blindar todos os documentos. Posso ajudá-lo com isso, de modo que quem for fazer o…
– Quero você.
– Porra, Lane.
Por conhecer o homem há anos, Lane sabia muito bem que sua tarefa agora era se calar e deixar que Jeff ruminasse o assunto sozinho. Nada o convenceria nem o persuadiria, e se ele continuasse a falar, o tiro sairia pela culatra.
Em vez disso, Lane sabia que, se ficasse calado, todos aqueles anos de amizade resolveriam a questão.
Bingo!
– Insisto para que depois alguém revise o meu trabalho – Jeff murmurou. – Cacete, isso não é negociável. Não vou me responsabilizar por ferrar com tudo só porque você tem uma noção romântica de que sou brilhante com números.
– Mas você é.
– Maldição, Baldwine.
– Não posso mandar o meu avião. Chamaria muita atenção.
– Tudo bem. Um da minha família está na costa leste. Viajo amanhã de manhã e, não, não posso ir antes. Vou ter que ajeitar umas coisas no trabalho.
– Fico te devendo.
– Claro que fica. E pode começar a me pagar amanhã. Quero bebida grátis e mulheres à vontade, se vou ter que fazer isso.
– Cuido de tudo. Vou até te pegar no aeroporto, é só me dizer que horas vai chegar.
Jeff estava murmurando obscenidades quando desligou sem nem se despedir.
Quando Lane abaixou o aparelho, soltou um longo suspiro.
– Graças a Deus.
– Quem era?
– Acho que posso chamá-lo de meu melhor amigo. Foi com ele que me hospedei enquanto estive no norte. Jeff Stern. Financista brilhante. Se existe alguém que pode entender o rastro do dinheiro, Jeff é o cara. E, depois… – Lane esfregou os olhos. – Deus, acho que vou ter que procurar a polícia. Talvez a Comissão de Valores Imobiliários. O que eu queria mesmo era lidar com tudo isso sem alarde.
– E se o seu pai tiver infringido a lei?
Uma súbita imagem de William Baldwine num macacão laranja o deixou aliviado, de uma maneira doentia, por sua mãe estar desconectada da realidade.
– Não vou interferir com as autoridades. O que me preocupa é ele ter usado seu poder como procurador da minha mãe para secar as contas dela, mas não tenho acesso aos registros. Está tudo em poder da Fundos Prospect.
– Se a polícia ou o FBI se envolverem, eles vão conseguir descobrir isso.
Lane assentiu, lembrando-se do saco com o corpo de Rosalinda saindo de Easterly.
– Se Rosalinda cometeu suicídio por causa disso, o meu pai tem o sangue de outra pessoa nas mãos. Ele precisa ser levado à Justiça.
– Sabe, sempre tento olhar o lado positivo de tudo, mas… – Lizzie balançou a cabeça. – Bem, não importa o que aconteça, estou do seu lado, está bem?
Olhando para ela, ele disse, sério:
– É só disso que preciso. Não importa como tudo vai terminar, se eu tiver você…
O telefone tocou novamente, e ele riu ao apanhar o aparelho.
– Lá vem ele se arrependendo… Não, Jeff, não vai poder recuar agor…
– Você está perto de alguma TV?
Lane se endireitou.
– Samuel T.?
– Está ou não?
– Não. O que está acontecendo?
– Preciso que venha para a minha casa imediatamente. A polícia está à sua procura, e quando não o encontraram em Easterly, Mitch me ligou.
– O que… do que você está falando? – Depois pensou… ah, merda. – Olha só, sei que Edward e eu tecnicamente invadimos o centro de negócios sob falso pretexto, mas o maldito escritório está dentro da nossa propriedade, pra começo de conversa. E quanto aos documentos…
– Não sei do que você está falando e, neste instante, pouco me importo. Chantal foi parar no pronto-socorro hoje cedo, toda surrada. Ela disse às autoridades que você fez isso com ela assim que entrou com o pedido de divórcio, quando descobriu que ela estava grávida. Estão te acusando de violência doméstica, e eles podem ter o suficiente para acusá-lo de tentativa de homicídio também.
– O quê? – Lane se levantou. – Ela está louca!
– Não, ela está na sala operatória. Estão reparando o maxilar dela neste instante.
– Nunca toquei em Chantal! E posso provar! Eu nem estava em casa ontem à noite…
– Apenas venha para a minha casa. Vou intermediar a sua entrada no meio da noite para que não haja nenhuma foto sua indo para a delegacia, e depois te libero com uma fiança…
– Isso tudo é uma grande idiotice – Lane ralhou. – Não vou dançar de acordo com a música dela…
– Não é nenhuma brincadeira. E, a menos que compareça na delegacia, vai ser considerado fugitivo da justiça.
Lane olhou para Lizzie. Ela estava ereta, alarmada, preparada para receber más notícias.
De repente, lembrou-se de Chantal passando naquele Mercedes ao sair de Easterly. O rosto estava coberto com óculos escuros e um véu preto.
Até onde ele sabia, ela podia ter dado uma de Garota Exemplar e provocado os ferimentos ela mesma. Nunca colocara a mulher no campo da patologia antes, mas talvez tivesse subestimado a loucura dela.
– Muito bem. Estou a caminho. Chego na sua fazenda em vinte minutos.
Desligando, ouviu-se dizer:
– Tenho que ir.
– Lane, o que está acontecendo?
Os pratos do lindo jantar que tinham partilhado ainda estavam sobre a mesa, as almofadas do sofá afundadas no lugar em que ele estava recostado, alisando as pernas dela.
No entanto, tais momentos já pareciam pertencer a um passado muito, muito distante.
– Vou cuidar do assunto – ele disse. – Vou dar um jeito. Ela está mentindo. De novo, ela está mentindo.
– O que posso fazer para ajudar?
– Fique aqui. E não ligue o rádio. Ligo assim que puder para explicar tudo. – Segurou o rosto dela entre as mãos. – Eu te amo. Preciso que acredite. Preciso que se lembre disso. E vou cuidar de tudo, juro pela vida da minha mãe.
– Você está me assustando.
– Vai ficar tudo bem. Prometo.
Dito isso, saiu da casa dela.
Em disparada.
QUARENTA E DOIS
Enquanto o Porsche de Lane voava pela escuridão que se avolumava, Lizzie ficou por um bom tempo sentada onde ele a havia deixado. Só conseguia pensar que não deveriam estar surpresos. Chantal Baldwine não era flor que se cheirasse, e de jeito nenhum ela perderia sua posição social e o acesso ao estilo de vida dos Bradford sem lutar bastante.
Portanto, o que quer que fosse aquilo seria apenas o começo.
Pondo-se de pé, juntou os pratos e pensou que não era bem assim que tinha imaginado sua noite.
Mas talvez ele ainda voltasse. Tinha deixado a mala ali.
Maldita seja Chantal.
De volta à cozinha, deixou tudo na pia e despejou um pouco de detergente sobre a bagunça, depois abriu a torneira de água quente.
Então seu celular tocou sobre a bancada.
– Graças a Deus – disse, esticando a mão sobre os azulejos. – Lane? Pode me contar o q…
– Lizzie? Você está em casa?
– Greta? – Havia um zumbido na ligação, como se a mulher estivesse ao volante. – Greta? Não estou conseguindo te ouvir direito.
– … em casa?
– Sim, sim, estou em casa. Você está bem?
– … a caminho – buzz, brrrr, quick – … em dez minutos.
– Ok, mas não vou terminar de cortar os galhos agora. Já quase anoiteceu e, pra falar a verdade, não estou com vontade…
– … o telefone.
– O que foi?
A interferência sumiu e o sotaque carregado se fez alto e claro: – Você prrecisa desligarr o telefone.
– Por quê? Não. – Lane poderia telefonar. – Olha só, não estou com muita vontade de ter companhia e…
Houve um estalido alto e a ligação foi interrompida.
– Maravilha.
Enfiando o celular no bolso, voltou para junto da pia, lavou os pratos e os talheres, secou e guardou tudo.
Estava na sala de estar, sentada no sofá, folheando nervosamente a última edição da revista Garden & Gun, quando luzes de faróis brilharam na frente da sua casa e os pedriscos da sua entrada fizeram barulho.
Pondo-se de pé, ajeitou a blusa e deu uma segunda olhada para ver se o seu cabelo não estava todo bagunçado. Não havia motivos para parecer que tinha acabado de sair da cama com Lane.
Ainda mais porque boa parte do sexo que fizeram foi sobre o tapete do corredor. E nas escadas. E de pé no chuveiro.
Ao abrir a porta, ela…
Conforme Greta saía do Mercedes, Lizzie viu que o rosto de sua colega estava muito sério e que ela tinha os ombros encurvados. E ela parecia estar enxugando lágrimas debaixo daqueles óculos.
– Ai, meu Deus – disse Lizzie. – Aconteceu alguma coisa com seus filhos?
A mulher não respondeu, apenas subiu até a varanda e entrou direto na casa. Lizzie a seguiu, fechando a porta.
– Greta?
Ela deu uns passos. Depois parou, por fim.
– Você esteve com ele ontem à noite?
– O que disse?
– Lane. Só… Apenas diga, esteve ou não? A noite inteirra?
– Do que você está falando?
– Chantal está acusando Lane de surrá-la a ponto de mandá-la parra o hospital.
– O QUÊ?
E foi assim que ficou sabendo de tudo. Chantal. O hospital. A polícia. A imprensa.
Lane.
Quando Greta finalmente se calou, Lizzie se deixou cair sobre uma cadeira, às cegas.
– Eu…
– Aquele homem pode serr um monte de coisas – disse Greta –, mas nunca soube de ele terr levantado a mão parra uma mulherr.
– Claro que não. Deus, não. Absolutamente não.
– Ele ficou aqui ontem à noite?
– Ficou. Cheguei em casa durante a tempestade e ele já estava aqui. E não foi embora até hoje de manhã para levar a senhorita Aurora para a igreja. – Levantou-se de um salto. – Tenho que ajudá-lo! Tenho que contar à polícia que ele estava comigo e…
– Tem mais uma coisa.
– Pode me levar? Estou tão atarantada que acho que eu não deveria…
– Lizzie.
Ante o seu nome, ela parou, um medo gélido se instalando em seu peito.
– O quê…?
Agora os olhos de Greta estavam ficando marejados.
– Sinto muito.
– O quê? Fale de uma vez antes que a minha cabeça exploda!
– Chantal está grrávida. E ela disse à polícia… que Lane é o pai.
Lizzie piscou enquanto tudo freava de repente: seus pensamentos, seu coração, seus pulmões… até mesmo o tempo e as leis da física.
– Ela disse que é porr isso que ele bateu nela. Quando ela contou. Ela disse que ele ficou furrioso.
Uma onda de náusea a atingiu no meio do estômago. Mas não… Não, ela não poderia estar revivendo tudo. Não poderia estar exatamente na mesma situação com Chantal e Lane.
Já vivi isso, ela pensou. Já vivi esse pesadelo.
Deus, não. Por favor, não.
– Quando… – Lizzie pigarreou. – Quando ela procurou a polícia?
– Logo cedo. Lá pelas nove ou dez.
Se estivesse muito machucada, não esperaria para ser receber cuidados médicos, Lizzie pensou.
Se a mulher estava grávida, e contou a ele quando ele voltou para Easterly… ele poderia muito bem…
Com uma náusea absurda, Lizzie fugiu para o corredor e mal chegou ao banheiro a tempo antes de vomitar todo o lombo.
Quando chegou à fazenda de Samuel T., Lane estava tão irado que poderia morder latas e cuspir pregos.
Afundando o pé no freio, parou diante da mansão do amigo e quase deixou o motor ligado ao sair.
Samuel T. abriu a porta antes de ele dar a volta no carro.
– Liguei para o Mitch. Ele vai estar aqui em quarenta e cinco minutos, sem viatura. Não querem esperar para te levar para interrogatório, mas vão te deixar entrar por uma porta lateral. Ninguém com câmera tem acesso a essa parte, então vai ficar tudo bem.
Lane passou pelo cara.
– Isso é a mais absoluta mentira! Ela é louca e vai… – Ele parou e ficou confuso ante o olhar do amigo. – O que foi? Por que está olhando assim para mim?
Em vez de responder, Samuel T. esticou a mão e segurou o braço de Lane.
– Como conseguiu todos esses arranhões nas suas mãos, nos braços, no rosto e no pescoço?
Lane olhou para si mesmo.
– Jesus Cristo, Sam, isso foi de ontem à noite. Fui para a casa da Lizzie e um galho caiu no carro dela. – Quando o amigo apenas o encarou, ele perdeu as estribeiras. – Ela pode testemunhar, se quiser. Eu a tirei daquele maldito Yaris. Pensei que ela tivesse morrido.
– Você está saindo com ela de novo?
– Sim, estou.
– E acha que ela vai querer te ajudar quando descobrir que Chantal está grávida de um filho seu? De novo? Vocês dois não passaram por todo esse drama dois anos atrás?
Lane sentiu noventa por cento do seu sangue abandonar a sua cabeça.
– Não é meu, Sam. Eu te disse quando assinei todos aqueles papéis. Não estive com Chantal desde que fui embora.
– Não é o que ela contou para a polícia. Ela disse que tem ido e vindo de Manhattan no último ano, tentando fazer o relacionamento de vocês dar certo.
– Não é meu. – Ele abaixou a voz, mesmo não havendo mais ninguém por perto. – É do meu pai.
Foi a vez de Samuel T. ficar chocado.
– Do seu… pai?
– Você ouviu.
– Tem certeza?
– Tenho, falei com os dois.
Samuel T. tossiu no punho fechado.
– Sabe, essa sua família é uma coisa do outro mundo.
– É o que as pessoas me dizem. – Lane cruzou os braços sobre o peito. – Posso me submeter a um teste de detecção de mentiras. Juro sobre a Bíblia… Inferno, eles deveriam verificar debaixo das unhas dela. Não vão encontrar nada de mim nela. Nem dentro dela. Não toquei nela, Sam.
– Ela disse que tem uma testemunha.
– Rá! Só nos sonhos dela. Diabos, ela mesma deve ter feito isso consigo…
– É uma criada chamada Tiffany.
Lane se retraiu.
– Uma criada? Tiff… Espere, é “p-h-a-n-i-i”?
Visualizou a moça das toalhas, que se apresentara com aquele olhar de interesse.
Samuel T. deu de ombros.
– Não sei como se soletra o nome dela. Ainda tenho que ver os detalhes com Mitch. Mas a mulher disse que ouviu você e Chantal discutindo, e que você a ameaçou. E, segundo a criada, você jurou “acabar com a vida dela”.
– Eu nunca disse isso!
– Vocês estavam no segundo andar e a criada apareceu no meio da discussão.
– Ela está mentindo… – Lane parou e meneou a cabeça, uma lembrança retornando. – Espere, não, não. Não foi assim, eu disse isso porque Chantal havia desrespeitado a senhorita Aurora. Fiquei irritado. Mas não falei pra valer.
Samuel olhou para os cortes nos braços dele.
– Vou ser bem franco. Você parece ter respostas bem convenientes…
– É a verdade! Não estou inventando nada!
– Escuta só, não quero brigar com você.
– Samuel T. – ele disse, num tom controlado. – Você já me viu ser violento? Ainda mais com uma mulher?
Samuel T. o encarou longamente. Depois, levantou as mãos.
– Não, nunca o vi assim. E quero acreditar em você, quero mesmo. Mas mesmo que esteja dizendo a verdade, temos dois problemas aqui: um legal e outro publicitário. A parte legal pode ser facilmente resolvida, caso Lizzie testemunhe a seu favor e não houver nenhuma evidência forense no seu corpo ou no de Chantal. Agora, o problema publicitário será muito mais difícil de controlar. A notícia vai se espalhar, Lane. Ainda mais se você estiver certo e o seu pai tiver um filho com a sua esposa. Diabos, isso vai virar notícia nacional… E você sabe como a imprensa nunca deixa a verdade atrapalhar uma boa história. E esse tipo de coisa afeta o preço das ações e o valor intrínseco dos produtos da sua família. Não estou dizendo que seja certo, mas é a realidade. Você é a Cia. Bourbon Bradford. A sua família é a Cia. Bourbon Bradford. Posso ter conseguido apagar a passagem da sua irmã pela cadeia, mas isso aqui… Não tem como. A história já está no noticiário local.
Lane andou em círculos no átrio da casa do amigo. Depois olhou para ele.
– Falando em família, você tem bourbon nesta casa?
– Sempre. E só me sirvo do melhor, portanto é um Bradford.
Lane pensou em Mack e nos silos fechados. E depois no pai… E em tudo o que o homem tinha aprontado.
– Veremos por quanto tempo mais – Lane murmurou.
QUARENTA E TRÊS
Seis horas mais tarde, enquanto ainda estava na sala de interrogatórios da delegacia do condado, Lane tentou ligar para o celular de Lizzie pela sexta vez, e concluiu que ela devia ter ficado sabendo da situação. Talvez alguém tivesse ligado para ela. Ou, quem sabe, ela tinha ligado o rádio, pois não tinha televisão.
Inferno, talvez alguém tivesse colocado uma placa luminosa no centro de Charlemont e ela conseguia ver lá de Indiana.
– Estamos quase terminando aqui – Samuel T. disse quando voltou à saleta cinza. – A boa notícia é que você foi rebaixado a apenas uma pessoa de interesse, mas as coisas ainda vão ficar no limbo até a investigação ser concluída. Mas, pelo menos, agora você pode voltar para casa e não vai ser fichado.
Lane desligou o telefone e esfregou os olhos cansados. Tinham lhe entregado a carteira e o celular uns quinze minutos antes, e a primeira coisa que fez foi tentar falar com Lizzie.
Visto a maneira como saíra da casa dela, não havia a menor possibilidade de ela não atender, caso quisesse falar com ele.
Evidentemente, ela não tinha interesse nenhum em ouvir a sua versão dos fatos.
– Quanto tempo mais? – perguntou, esfregando a cabeça dolorida. – Posso ir embora agora?
– Quase. Só estamos verificando com o promotor público, que, por acaso, é um companheiro meu de caçada. – Samuel T. se sentou. – Sei que é politicamente incorreto, mas graças a Deus a rede de amizades masculinas ainda vai muito bem, obrigado, nesta cidade. Ou você estaria sendo submetido a uma revista pessoal neste exato minuto.
– Você faz milagres – Lane disse, entorpecido.
– Ajuda o fato de a história de Chantal ter alguns buracos. Ela, evidentemente, estava trabalhando sozinha quando teve essa brilhante ideia. Quem é que toma banho logo depois de ser atacada? E toma tanto cuidado para limpar as unhas quebradas? Não faz o mínimo sentido. E também há o pequenino detalhe de ela ter ligado tanto para a imprensa quanto para dois canais de TV… do leito hospitalar.
– Eu te disse. – Olhou para o telefone para ver se Lizzie tinha retornado a ligação sem ele perceber. – Essa aí está arruinando a minha vida.
– Não se eu puder impedir.
Lane tentou falar com Lizzie pela sétima vez. Depois abaixou o celular.
– Como ela estava? Chantal, quero dizer. Quando chegou ao hospital.
– Tem certeza de que quer ver as fotos?
– Tenho, preciso saber a gravidade da situação.
Samuel T. voltou a se levantar.
– Vou ver o que posso fazer.
Enquanto a porta da sala de interrogatórios se abria e se fechava uma vez mais, Lane ficou mexendo no telefone. Pensou em mandar uma mensagem de texto, mas duvidou que fizesse alguma diferença.
Inacreditável. Literalmente, custava a acreditar que aquilo estivesse acontecendo de novo com ele: duas mulheres, as mesmas palavras… onde isso ia parar?
Estava morrendo de medo de já ter a resposta. Lizzie o excluíra uma vez. Claramente, era daquela maneira que ela pretendia lidar com o assunto de novo.
Samuel T. voltou uns dez minutos depois com um envelope pardo.
– Aqui está.
Lane o pegou e levantou a aba. Segurou quatro fotos, e franziu a testa ao ver a de cima.
Dois olhos roxos. Hematomas dos dois lados do rosto. Marcas de estrangulamento no pescoço.
– Isso é muito ruim – disse com voz partida. – Jesus…
Ele não sentia o menor afeto por Chantal, porém não gostava de ver ninguém naquelas condições, ainda mais uma mulher. E ele ponderou que não havia como ela ter feito aquilo sozinha. Alguém devia ter batido nela, repetidamente e com força.
Será que ela pagou para que alguém fizesse aquilo?, ficou imaginando.
A segunda e a terceira fotos eram close ups. A quarta…
Lane voltou para a terceira. Aproximando-se, estudou um detalhe na face, um corte profundo debaixo do olho.
De repente, deixou as fotos na mesa e se recostou na cadeira, fechando os olhos.
– O que foi? – Samuel T. perguntou.
Demorou um pouco para ele poder responder. Mas, por fim, virou a foto e apontou para o corte aberto na face de Chantal.
– Meu pai fez isso com ela.
– Como você sabe?
Com uma claridade impressionante, Lane se lembrou mais uma vez daquela terrível noite de Ano Novo, quando era criança e seu irmão mais velho foi surrado.
– Quando ele batia em Edward, o anel de sinete deixava exatamente essa marca. O meu pai estapeava com o dorso da mão… e o ouro provocava o corte.
Samuel T. xingou baixinho.
– Está falando sério?
– Muito sério.
– Espere um instante, deixe-me ver se consigo fazer o investigador voltar. Eles vão querer saber disso.
Enquanto dirigia para o trabalho, ao romper do dia, Lizzie não conseguiu deixar de se lembrar daquele mesmo trajeto poucos dias atrás, quando a ambulância a ultrapassou antes da colina para Easterly.
Sentia o mesmo mau presságio de então. E o mesmo medo de ver Lane.
Nada de rádio ligado desta vez. Não queria se arriscar a ouvir a estação local com a grande notícia sobre como um dos mais proeminentes homens de Charlemont tinha mandado sua esposa gestante para o hospital. Detalhes adicionais sobre a situação não mudariam a história, e ela já estava se sentindo bem mal com tudo aquilo.
Passando pelo portão principal da PFB, tomou o caminho dos empregados e seguiu em meio a campos abertos e estufas até o estacionamento na parte superior. Era tão cedo que não havia mais ninguém por perto, nem mesmo Gary McAdams.
Era assim que tinha planejado.
No piloto automático, manobrou sua caminhonete e se virou para trás para pegar a bolsa.
– Droga.
Deixara-a em casa. O que significava que ficaria sem óculos de sol, protetor solar, nem chapéu.
Tanto faz. Não voltaria para casa.
E devia ser muito bom o fato de também estar sem telefone. Lane não parara de ligar desde as quatro da manhã.
A caminhada até a porta dos fundos de Easterly levou algum tempo, e ela refletiu se não era apenas um indício do seu cansaço. Depois que Greta finalmente foi embora lá pela uma da manhã, ela ficou acordada vendo o nascer do sol acima da bagunça do quintal.
Uma metáfora da sua vida.
Entrando na cozinha, encontrou a senhorita Aurora diante do fogão.
– Bom dia – disse, com o que esperava ser sua voz normal. – Viu o senhor Harris?
A senhorita Aurora girou os ovos com a sua espátula.
– Ele está no quarto. Não tenho nenhum pedido da família hoje, então isso aqui é para mim, para você e para quem estiver por perto. Levo tudo para a saleta de descanso em dez minutos.
– Desculpe, mas tenho que…
– Te vejo lá.
Lizzie inspirou fundo.
– Vou tentar ir.
– Faça isso. – A senhorita Aurora olhou por sobre o ombro, seus olhos negros reluziam. – Senão, vou ter que ir atrás de você e falar até você entender que a gente não pode acreditar em tudo o que ouve.
Abaixando os olhos, Lizzie saiu da cozinha e foi até a porta do senhor Harris. Antes de bater, olhou para a de Rosalinda. Uma fita isolante fora colocada em toda a volta da porta, assim como uma amarela de “atenção” entre os batentes.
Mais uma cena de crime na casa, pensou. Como será que está o quarto de Chantal?
O mordomo abriu a porta e recuou um passo.
– Senhorita King?
Lizzie se recompôs.
– Ah, desculpe… Hum, preciso falar com o senhor.
Ele franziu a testa, mas algo na postura dela deve ter afetado sua atitude pomposa.
– Entre, por favor.
Previsivelmente, a decoração era bastante inglesa, com todo tipo de livros com capa de couro, cadeiras antigas e artigos orientais preenchendo os espaços. Além da área de estar, havia uma cozinha embutida e, como nos aposentos da senhorita Aurora, na parte oposta havia uma porta fechada, onde ela imaginava que deviam ficar o quarto e o banheiro dele.
O cheiro era agradável, cítrico e de limpeza, nada abafado.
– Estou apresentando o meu pedido de demissão – disse abruptamente. – Com duas semanas de aviso prévio. Eu teria informado Rosalinda, mas…
O senhor Harris a encarou por um momento; depois se afastou e se sentou atrás de uma escrivaninha entalhada. Havia uma pilha de papéis sobre o tampo, mas nenhum computador.
– É uma surpresa.
– Está no meu contrato. Só preciso avisar duas semanas antes.
– Posso perguntar o motivo?
– Apenas uma mudança de objetivos. Tenho cogitado já há algum tempo.
– De fato. – Ele cruzou as mãos. – Então isso não está nada relacionado aos noticiários da noite passada?
– Lamento muito que a família tenha que lidar com assuntos tão desagradáveis.
O senhor Harris ergueu uma sobrancelha.
– Não há nada que eu possa fazer para convencê-la a ficar?
– Já tomei minha decisão, mas obrigada.
Ela saiu depois disso, voltando para o corredor e fechando a porta atrás de si. Sozinha, piscou para afastar as lágrimas, erguendo a cabeça enquanto rezava para que o nariz não começasse a escorrer.
Dentre todas as maneiras que imaginara sair um dia de Easterly, nada nunca se parecera com aquilo. Mas não havia volta. Chegara à decisão de se demitir enquanto ela e Greta acabavam com um litro de sorvete de flocos, depois do seu primeiro acesso de choro e antes do segundo.
No fim, não acreditava que Lane tivesse machucado Chantal daquela maneira, era simplesmente impossível. Mas a questão não era essa.
Não importava se a mulher estava ou não grávida, ou quem seria o pai, caso ela estivesse mesmo.
A verdade nua e crua era que, depois de quase uma década com aquela família, Lizzie percebeu que eles eram diferentes de uma maneira fundamental, e não porque os Bradford tinham mais dinheiro do que ela conseguiria ver em toda a sua vida. A questão era que, de onde ela vinha, as pessoas se casavam e tinham filhos, planejavam suas aposentadorias, saíam de férias uma vez ao ano para lugares como Disney ou Sandals. Pagavam seus impostos em dia e comemoravam casamentos e nascimentos com festas triviais, e não traíam seus maridos e suas esposas.
Tinham vidas dignas e modestas, sem serem afetadas pelos dramas loucos que aconteciam com os Bradford.
E a questão era que, por mais que se sentisse atraída por Lane – diabos, talvez se sentisse atraída pela mesma loucura que a repelia –, ela simplesmente não tinha mais as forças e os recursos para continuar com ele de qualquer maneira possível. Tinha se apaixonado rápido demais, intensamente e, assim como no passado, o que ele trouxe para a sua vida foi um buraco no estômago, mais noites insones… e uma sensação de profunda tristeza.
Alguns riscos é melhor não correr. Doenças, acidentes ou outros tipos de tragédias são imprevisíveis… nem sempre é possível reduzir as chances de se machucar, porque estamos vivos, e é a realidade dos seres vivos neste planeta.
Já para outros problemas, questões ou perigos, havia uma certa liberdade para se afastar, para recuar. E quando se é um adulto responsável, que deseja viver uma existência meio que saudável, é uma obrigação cuidar de si próprio, se proteger… amar a si mesmo.
Obviamente, ela não confiava em si mesma para agir com sensatez no que se referia a Lane Baldwine, por isso resolveria o problema da sua falta de autocontrole com a falta de proximidade.
Era hora de partir.
Como uma viciada no período de abstinência, ela simplesmente se afastaria. E não, não pretendia conversar com ele sobre o assunto. Seria o mesmo que um viciado querendo bater papo com uma seringa de heroína. Sem dúvida, Lane apresentaria o seu lado, mas não importava qual fosse, não mudaria o fato de que o coração dela se estilhaçara de novo e que a sua decisão de deixar o trabalho não estava sujeita a negociações.
E agora, ela daria o seu melhor para chegar ao fim do dia.
Descendo até as estufas, entrou na primeira e se sentiu mais do que pronta para trabalhar com as mudas, que no momento nem eram mudas ainda. Mas, antes de seguir para a estação de suprimentos para juntar o necessário, parou e pegou o celular.
O que fez em seguida não levou mais do que um momento.
E, provavelmente, foi uma estupidez.
Mas transferiu 17 mil, 486 dólares e 79 centavos da sua poupança… para a conta da hipoteca.
Terminando de pagar a sua fazenda.
Bom, aquela não devia ser uma decisão muito sensata, considerando-se que a colocaria à venda. O orgulho, contudo, fez com que aquela transação fosse necessária. Orgulho e a sensação de que precisava alcançar o objetivo estabelecido ao comprar aquele lugar.
Sempre quisera algo só seu no mundo, um lar que ela mesma estabelecesse, pagasse e sustentasse, sem a ajuda de mais ninguém.
O fato de agora não ter um centavo sequer era um contrapeso para tudo o que estava sentindo.
Prova de que fracassara completamente ao tentar cuidar de si própria.
Lane voltou a Easterly assim que foi liberado.
Isto é, depois de voltar à casa de Samuel T. para pegar o seu Porsche.
Entrou na propriedade da família pelos fundos, atravessando os campos e as estufas, porque queria evitar a imprensa no portão principal e porque queria saber se Lizzie estava ali.
Estava. A caminhonete marrom da fazenda estava no estacionamento junto aos veículos dos outros empregados.
– Droga – exalou.
Subiu até a garagem, estacionou o carro debaixo da magnólia e foi diretamente para a entrada dos fundos do centro de negócios. Depois de inserir a senha que Edward lhe fornecera, escancarou a porta e foi abrindo caminho até a recepção, cruzando escritórios, a sala de reuniões e a sala de jantar.
Homens e mulheres em ternos levantaram as cabeças, alarmados, mas ele os ignorou.
Não parou até se ver dentro do escritório envidraçado da assistente do pai.
– Vou vê-lo agora.
– Senhor Baldwine, o senhor não pode…
– Até parece que não.
– Senhor Baldwine…
Lane abriu a porta e…
Parou no lugar. O pai não estava atrás da escrivaninha.
– Senhor Baldwine, não sabemos onde ele está.
Lane olhou por sobre o ombro.
– Como assim?
– O seu pai… Era para ele ter viajado hoje de manhã, mas ele não apareceu no aeroporto. O piloto o esperou por uma hora.
– Você ligou para a casa, claro.
– E para o celular dele. – A mulher cobriu a boca com a mão. – Ele nunca fez isso antes. Ninguém na mansão o viu.
– Merda.
Bom Deus, o que fazer agora?
Enquanto Lane saía do escritório, a voz da assistente o acompanhou.
– Pode, por favor, pedir que ele ligue para mim?
De volta à luz matutina, disparou na direção da porta da cozinha de Easterly. Assim que entrou, passou pelas bancadas de aço inoxidável e empurrou a porta que dava para o corredor dos empregados. Subiu a escada dos fundos de dois em dois degraus, quase atropelando uma criada que passava aspirador no corredor do segundo andar.
Passou pelo seu quarto e pelo de Chantal.
Chegou ao do pai.
Parou diante da porta e pensou que não estava pronto para um “Rosalinda, parte II” com seu próprio pai. Não por não desejar ver o cadáver de um dos seus progenitores.
Não, era mais porque, se o homem precisasse de um caixão, Lane queria se responsabilizar por colocar a cabeça do maldito sobre o travesseiro acolchoado.
Abriu a porta.
– Pai! – exclamou. – Onde você está?
Marchando quarto adentro, aguçou os ouvidos e fechou a porta atrás de si – só para o caso de o homem estar vivo. Pois iria machucar o filho da puta, que os céus o ajudassem, mas estava preparado para machucá-lo muito.
Chantal podia ser uma vadia e uma mentirosa, mas nenhuma mulher merecia apanhar. Não importavam as circunstâncias.
– Onde diabos você está? – exigiu saber ao abrir a porta do banheiro.
Quando não encontrou a toalha sobre o box do banheiro, refez seus passos e foi para o closet.
Nada ali também.
Não, espere.
A mala do pai, aquela com monograma que ele costumava usar, estava aberta e parcialmente cheia. Mas mal arrumada. As roupas estavam mal acomodadas, jogadas às pressas por alguém com pouca experiência em fazer aquele tipo de tarefa.
Vasculhando o conteúdo, Lane não percebeu nada de extraordinário.
Mas notou que o relógio predileto do pai, o Audemars Piguet Royal Oak, não estava junto aos perfilados na gaveta forrada. E a carteira também estava faltando.
Retornando para o quarto, perscrutou a mobília, os livros, a mesa, mas não fazia ideia se havia algo fora do lugar. Estivera ali apenas um punhado de vezes… e não voltava havia uns belos vinte anos.
– O que está aprontando, pai? – perguntou baixinho, no ar parado.
Seguindo seus instintos, saiu, fechou a porta e voltou correndo pelas escadas até o primeiro andar. Levou menos de um minuto para entrar na garagem e contar os carros. O Phantom ainda estava ali, mas faltavam dois Mercedes. Chantal, evidentemente, estava com um.
O pai devia ter saído com o outro.
A pergunta era… para onde?
E quando?
QUARENTA E QUATRO
– Você não pode estar fazendo isso de novo. Vamos lá, acorda.
Edward bateu na mão que o puxava.
– Me deixa em paz.
– Eu não. Tá frio aqui fora e você não vai aguentar.
Edward abriu os olhos lentamente. A luz entrava pela porta aberta da baia no fundo do estábulo, ressaltando a poeira do feno e o perfil de um dos gatos vadios que perambulavam por lá. Uma égua relinchou do lado oposto, e outra coiceou a baia. Ao longe, ele percebeu o ronco de um dos tratores.
Puta merda, como a sua cabeça doía. Mas não era nada comparado ao seu traseiro. Engraçado como uma parte do corpo conseguia estar absolutamente entorpecida e dolorida ao mesmo tempo.
– Você vai ter que se levantar, inferno.
Toda aquela conversa o fez praguejar… e tentar focar a vista.
Ora, ora, vejam só. Havia duas Shelbys falando com ele. Sua nova empregada estava parada de pé como uma professora severa, com as mãos nos quadris estreitos, as pernas cobertas pela calça jeans e os pés com botas afastados, como se estivesse considerando a possibilidade de chutar sua cabeça tal qual uma bola de futebol.
– Pensei que você não falasse palavrão – ele murmurou.
– Não falo.
– Ora, mas acho que você acabou de falar.
Os olhos dela se estreitaram.
– Você vai se levantar ou vou ter que te varrer para fora daqui com o resto da sujeira?
– Você não sabia que “inferno” é apenas o primeiro passo? É como maconha. Sem se dar conta, logo, logo, você vai estar lançando bombas de “cacete” a torto e a direito.
– Tudo bem. Pode ficar aí. Espera pra ver se me importo.
Quando ela se virou para sair, ele a chamou.
– Como foi o seu encontro ontem à noite?
Ela girou sobre os calcanhares.
– Do que você tá falando?
– Com o Moe.
Dito isso, ele se esforçou para se erguer do piso de concreto do estábulo. Quando não conseguiu, ela levantou uma sobrancelha.
– Sabe, acho que vou mesmo te deixar aí.
Acima da cabeça dele, Neb relinchou, como se estivesse rindo.
– Não pedi a sua ajuda – Edward disse entre dentes.
Sem aviso, sua mão escorregou e seu corpo se chocou no concreto com tanta força que seus dentes bateram.
– Você vai acabar se matando – ela resmungou ao marchar de volta.
Shelby o ergueu com todo o cuidado que alguém dispensaria com uma forquilha caída, mas ele tinha que dar a mão à palmatória. Mesmo ela chegando apenas na metade do peito dele, era forte o suficiente para levá-lo pelo corredor, para fora do estábulo, e pela grama até o chalé.
Uma vez lá dentro, ele indicou sua poltrona com a cabeça.
– Ali já está…
– Você vai ficar com hipotermia. Isso não vai acontecer, não.
Em seguida, ele a viu sentando-o sobre o vaso sanitário e começando a aquecer a água da banheira.
– Pode deixar comigo a partir daqui – ele disse, pendendo para o lado e deixando que ela o segurasse. – Obrigado.
Ele estava fechando os olhos quando ela lhe deu um tapa.
– Acorda.
O ardor da batida o fez despertar e esfregar a face.
– Gostou de fazer isso?
– Gostei. E posso fazer de novo. – Enfiou uma escova de dentes na boca dele. – Use isso.
Era difícil falar com aquela maldita coisa na boca, portanto ele obedeceu, limpando o lado esquerdo, o direito, a frente e as partes inferiores. Depois se inclinou sobre a pia e cuspiu.
– Não está tão frio assim – ele disse.
– Como é que você sabe? Está pra lá de bêbado.
Na verdade, não estava, não. E isso era parte do problema. Pela primeira vez em muito tempo, ele não tinha tomado nenhuma bebida alcoólica na noite anterior.
– O que está fazendo? – ele perguntou quando as mãos dela se apossaram da sua malha.
– Tirando a sua roupa.
– É mesmo?
Enquanto ela se ocupava com as roupas dele, ele olhou para o corpo dela. Era difícil ver grande coisa, já que ela estava com uma blusa larga de moletom, então ele resolveu esticar a mão e testar a cintura dela.
Ela parou. Recuou.
– Não estou interessada.
– Então por que está tirando as minhas roupas?
– Porque os seus lábios estão roxos.
– Desliga isso. – Ele apontou para a torneira. – Assumo daqui.
– Você vai se afogar.
– E daí? Além do mais, não quero que você veja o que tenho debaixo da roupa.
– Vou ficar esperando lá fora, perto da sua poltrona.
– Ah, maravilha – ele disse baixinho.
Ela fechou a porta ao sair, e ele não fez mais nada. Só se encostou na parede e ficou olhando para a água fumegante.
– Não estou ouvindo barulho de água – ela comentou do lado de fora.
– Não está fundo o bastante ainda para eu nadar.
Toc. Toc. Toc.
– Entre logo, senhor Baldwine.
– Esse é o meu pai. E ele é um idiota. Atendo por Edward.
– Cale a boca e entre na banheira.
Mesmo na névoa do seu estupor, ele sentiu algo chamejar por ela. Achou que fosse respeito.
Mas quem se importav…
Bum, bum, bum!
– Você vai acabar derrubando a maldita porta – ele exclamou acima de todo aquele barulho. – E pensei que você não quisesse me ver nu.
– Água. Agora! – ela ralhou. – E não quero mesmo, mas melhor do que te encontrar morto.
– É apenas uma questão de opinião, minha cara.
No entanto, por algum motivo inexplicável, ele resolveu fazer como ela mandava.
Apoiando os braços na pia e na parte traseira do vaso sanitário antigo, suspendeu o corpo. Suas roupas eram um estorvo, mas conseguiu tirá-las e logo se colocou na banheira. Estranho, mas a água quente provocou o efeito contrário ao esperado. Em vez de aquecê-lo, fez com que ele sentisse frio, e começou a tremer tanto que criou ondulações na superfície da água.
Cruzando os braços diante do peito, seus dentes tiritaram, e seu coração saltou.
– Você está bem aí dentro? – ela perguntou.
Quando ele não respondeu, Shelby o chamou mais alto: – Edward?
A porta se escancarou e ela invadiu o banheiro como se estivesse preparada para bancar a salva-vidas, resgatando-o de cinquenta centímetros de profundidade de água. E foi horrível… Quando ela o fitou, só o que ele conseguiu fazer foi ficar encarando a água agitada, na esperança de que ela cobrisse suas pernas raquíticas, seu sexo flácido e sua pele branca coberta de cicatrizes.
Ele teve quase certeza de que ela arquejou.
Sorrindo-lhe, ele disse:
– Bonito, não sou? Mas acredite ou não, eu funciono muito bem. Bem, digamos que um pouco de Viagra ajude. Seja boazinha, sim? E me traga alguma bebida… Acho que estou me desintoxicando, e é por isso que estou tremendo tanto.
– Você… – Ela pigarreou. – Você precisa de um médico?
– Não, só de um pouco de Jim Beam. Ou Jack Daniel’s.
Quando ela simplesmente continuou olhando para ele, Edward apontou para a porta aberta.
– Estou falando sério. O que eu preciso é de álcool. Se quer me salvar, vá buscar um pouco. Agora.
Quando saiu do banheiro e fechou a porta, Shelby Landis tinha toda intenção de fazer o que Edward lhe pedira. Afinal, ela tinha muita experiência com alcoólatras, e por mais que não aprovasse nada daquilo, ela levara bebida ao pai milhares de vezes, e isso também costumava ser pela manhã.
Pelo menos, esse era o plano. Só que ela não parecia capaz de se mexer, de pensar… sequer de respirar.
Não estava preparada para ver aquele homem lá dentro, com a cabeça pensa como se ele tivesse vergonha de ser magro demais, do seu corpo alquebrado, do seu orgulho masculino tão esfarrapado e maltratado quanto suas carnes. Um dia ele fora uma grande força; seu pai tinha lhe contado histórias sobre o domínio de Edward nos negócios, nas pistas, na sociedade. Puxa, ouvira falar dos Bradford desde que era criança. Seu pai se recusava a beber qualquer outra coisa que não o no 15 deles, assim como boa parte das pessoas que lidavam com cavalos que ela conhecia.
Levando as mãos ao rosto, sussurrou:
– O que fez comigo, pai?
Por que ele a mandara ali?
Por que…
– Shelby? – exigiu a voz de lá de dentro.
Deus, ele era como seu pai. O modo como Edward pronunciara seu nome com uma pontada de desespero… era exatamente igual ao pai quando estava desesperado por uma bebida.
Fechando os olhos, praguejou bem baixinho. Depois sentiu culpa.
– Perdoe-me, Senhor. Não sei o que estou dizendo.
Ao procurar pelo cômodo, encontrou uma fila de garrafas na parte da frente de uma das prateleiras de troféus, e a ideia de lhe entregar o veneno a deixou nauseada. Mas ele mesmo acabaria saindo e pegando… e provavelmente caindo e batendo a cabeça no processo. Então, em que pé estariam? Além disso, ela sabia como aquelas coisas funcionavam. Aquele tremor terrível não cessaria até que a fera dentro dele fosse alimentada de acordo com sua necessidade, e o corpo dele já parecia tão frágil…
– Já estou indo – disse em voz alta. – O que prefere?
– Tanto faz.
Direcionando-se para as garrafas às cegas, pegou uma de gim e voltou para a porta fechada do banheiro. Não se deu ao trabalho de bater, simplesmente entrou.
– Pronto. – Tirou a tampa. – Pode beber direto do gargalo.
Só que as mãos dele tremiam tanto que não havia um modo de ele conseguir erguer a garrafa sem derrubar tudo.
– Deixa que eu seguro pra você – ela murmurou.
Houve um instante de hesitação por parte dele, mas logo ele ergueu a boca como um potrinho recém-nascido abandonado pela mãe.
E deu umas duas ou três belas goladas.
– Isso sim é que esquenta.
Deixando o gim ao lado da banheira onde ele conseguiria alcançar caso quisesse, ela pegou uma toalha de banho e submergiu na água, atrás dele. Quando ficou encharcada, ela a passou pela protuberância da coluna e das costelas dele. Depois tratou de cuidar da cabeça com uma esponja de banho, molhando o cabelo, alisando-o para trás.
Sem que ele pedisse, ela ergueu a garrafa mais uma vez e ele bebeu, sorvendo direto do gargalo.
Banhá-lo com sabonete e xampu fez com que ela se lembrasse dos cuidados oferecidos a um animal recém-resgatado. Ele estava assustado. Desconfiado.
Meio morto.
– Você precisa comer – ela disse numa voz partida.
Não tenho isso dentro de mim, Senhor. Não vou conseguir fazer isso de novo.
Não conseguira salvar o pai alcoólatra. Perder dois homens numa vida só parecia um fracasso grande demais para superar.
– Vou te preparar o café da manhã depois, Edward.
– Você não tem que fazer isso.
– É – respondeu, rouca –, eu sei.
QUARENTA E CINCO
– Então, vamos repetir tudo de novo?
Ante o som da voz máscula, Lizzie parou no meio do transplante de uma Hedera helix para um vaso novo. Fechando os olhos, inspirou fundo e ordenou às mãos que não tremessem e nem derrubassem nada.
Estava à espera que Lane a procurasse para conversar. Ele não demorou muito.
– E então? – disse ele. – Voltamos aos dias em que você ouve alguma coisa que não gosta e me exclui? Porque se for o roteiro que vamos seguir, e é bem isso o que está parecendo, acho que só me resta subir num avião e voltar para Nova York e pôr um fim à história. Vai ser muito mais eficiente, e não vou acabar com uma conta telefônica quilométrica por deixar mensagens na sua caixa postal.
Forçando as mãos a continuarem a trabalhar, enfiou as raízes no buraco que cavara no vaso e começou a transferir terra nova para enchê-lo.
– Algo que eu não queria ouvir – ela repetiu. – Sim, acho que podemos dizer que descobrir que a sua esposa está grávida de novo é uma notícia que eu preferiria não ouvir. Especialmente porque fiquei sabendo logo depois de termos feito sexo. Em seguida, veio a notícia maravilhosa de que você estava sendo preso por mandá-la para o pronto-socorro.
Quando ele não respondeu, ela se voltou na direção dele. Lane estava parado na entrada da estufa, junto à estação de trabalho em que Greta deveria estar, caso Lizzie não tivesse avisado à mulher que precisava ficar um tempo sozinha.
– Acha mesmo que eu seria capaz de fazer uma coisa do tipo? – ele perguntou num tom baixo.
– Não cabe a mim decidir nada disso. – Ela voltou a se concentrar no que estava fazendo e odiou as próprias palavras. – Mas uma coisa que eu posso dizer é que o melhor indicador de um futuro comportamento é o modo como a pessoa se comportou no passado. E eu não posso… Não posso mais fazer isso com você. Não importa se os boatos são verdadeiros ou não, não é essa a questão.
Depois de colocar a terra nova, ela pegou o regador e o inclinou sobre o vaso de trepadeira. Em três meses, a planta estaria pronta para ser levada para o lado externo, para o muro ou para um dos vasos do terraço. Tinham muita sorte com aquela variedade, mas era bom planejar reposições antes que elas fossem necessárias.
Limpando as mãos na frente do avental, virou-se para ele.
– Entreguei meu pedido de demissão. Portanto, não precisa se preocupar em voltar para Nova York.
Não teve dificuldades para sustentar o olhar dele. Para encará-lo. Enfrentá-lo.
É incrível como você fica determinado com os outros quando sabe em que pé está.
– Você acha mesmo que eu faria aquilo com uma mulher? – ele repetiu.
Claro que não, ela pensou. Mas permaneceu em silêncio porque sabia que, se quisesse mesmo que ele a deixasse em paz, a insinuação feriria seu orgulho masculino e isso, infelizmente, agiria em seu favor.
– Lizzie, responda.
– Não é da minha conta. Não é.
Depois de um instante, ele assentiu.
– Ok. Muito justo.
Quando ele se virou e se dirigiu para a porta, ela teve que admitir que ficou um pouco surpresa. Esperava ouvir algum tipo de explicação demorada. Uma torrente de persuasão da qual ela teria que se esquivar. Algum tipo de “Eu te amo, Lizzie, de verdade”.
– Desejo tudo de bom para você, Lizzie – ele disse. – Cuide-se.
E foi… só isso.
A porta se fechou sozinha. E, por uma fração de segundo, ela sentiu o impulso absurdo de ir atrás dele e gritar na sua cara que ele era um cretino colossal por tê-la seduzido do jeito como seduziu, que era um mau caráter, que era exatamente quem ela temia que ele fosse, um usurpador de mulheres, um mentiroso, um elitista enganador e sádico que não saberia…
Lizzie forçosamente se afastou desse precipício.
Se aquela despedida significava alguma coisa, o fato de ela permanecer ou não na vida dele parecia não importar nem um pouco para ele.
Bom saber disso, ela pensou com amargura. Bom saber.
Colocando-se atrás do volante do 911, Lane pensou que havia momentos na vida em que, por mais que você quisesse lutar, era melhor simplesmente desistir.
Você não precisava gostar do fracasso.
Não tinha que se sentir maravilhoso com relação ao resultado das coisas.
E, por certo, não se afastava de tudo sem arranhões, sem ficar seriamente ferido pela perda, aleijado, até.
Mas você precisava abrir mão de tudo, porque desperdiçar energias não o levaria a parte alguma, e você poderia muito bem já ir se acostumando com a perda.
Era a única lição que o seu relacionamento com o seu pai lhe ensinara. Se ele teria apreciado a presença de uma figura masculina que pudesse admirar, se espelhar, se orgulhar e sentir respeito? Sim, claro. Teria sido maravilhoso não crescer numa casa onde o som de chinelos sobre o piso de mármore ou o cheiro de cigarro não o obrigasse a procurar um lugar para se esconder. Óbvio. Poderia ter se beneficiado de conselhos paternos, ainda mais em tempos como aquele?
Sim, poderia.
Entretanto, não foi assim para ele. E ele teve que se acostumar com isso para não enlouquecer negociando com um fracasso que jamais conseguiria mudar ou melhorar.
Seguindo o mesmo raciocínio, se Lizzie King de fato acreditasse que havia a mínima possibilidade de ele ter botado as mãos numa mulher daquela forma, que ele tivesse mentido descaradamente a respeito de Chantal, que qualquer bebê que aquela mulher tivesse pudesse ser seu… então não havia esperanças para eles dois. Não importaria o que ele lhe dissesse ou como tentasse explicar as coisas… ela não o conhecia de verdade e, mais importante, não confiava nele.
E o fato de aquilo tudo ser uma mentira, de Chantal, mais uma vez, ter lhe roubado a mulher que ele amava…
Bom, a vida é dura.
Buá, buá, buá.
Peça um pai novo para o Papai Noel. Peça à Fada do Dente que te dê uma nova ex-esposa.
Tanto faz.
Deixando Easterly, entrou na estrada e dobrou o limite de velocidade a caminho do Aeroporto Internacional de Charlemont, não porque estivesse com pressa ou atrasado, mas porque podia. O carro aguentaria o tranco e, naquele exato instante, ele estava sóbrio e no controle.
A entrada para as chegadas e partidas particulares era a primeira saída do caminho que cercava a enorme construção. Lane estacionou à direita das portas duplas e deixou o motor ligado.
Jeff Stern já estava próximo do espaço luxuoso. Só tinham se passado poucos dias, mas parecia um século desde aquele jogo de pôquer em que a loira burra o incomodava, quando ele se levantou para atender ao telefone.
Como era de se esperar, seu colega de apartamento estava vestido como o homem de Wall Street que era: óculos, terno escuro e camisa branca engomada. Até estava com a poderosa gravata vermelha.
– Poderia ter vindo de bermuda – Lane comentou quando se cumprimentaram batendo as mãos.
– Estou vindo do escritório, idiota.
Aquele sotaque, ao mesmo tempo estranho e familiar, era exatamente o que ele precisava naquele instante.
– Deus, você está com uma aparência péssima – Jeff comentou, enquanto sua bagagem chegava num carrinho. – A vida familiar evidentemente não combina com você.
– Não a minha, pelo menos. Me diz uma coisa, o seu avião ainda está aqui?
– Não por muito tempo. Está sendo reabastecido. Por quê? – Quando Lane apenas olhou para a pista, o amigo praguejou. – Não. Não, não, não, não, não. Você não me arrastou para cá, abaixo da Mason-Dixie, para atender um alarme falso e agora quer voltar para Manhattan. Sério, Lane.
Por um instante, Lane hesitou. Queria ficar, só para ferrar o pai em múltiplas instâncias, mas também queria partir, porque estava cansado de tanta insanidade.
Parecia que ele e Lizzie, no fim, tinham algo em comum.
Os dois queriam se afastar.
– Lane?
– Vamos – convidou, dando uma gorjeta para o carregador e pegando as duas malas de couro do amigo. – Quando foi a última vez que veio a Easterly?
– Num Derby, há um milhão de anos.
– Nada mudou.
Colocou as malas no Porsche e saíram de lá, acelerando para longe do aeroporto e entrando na estrada.
– Então, vou ou não conhecer essa sua mulher, Baldwine?
– Provavelmente não. Ela pediu demissão.
– Puxa, que rápido. Lamento muito.
– Não finja que não leu as notícias.
– Pois é, está em todos os lugares. Acho que você é o responsável por ressuscitar os jornais impressos. Parabéns.
Lane praguejou e ultrapassou um carro.
– Não era um prêmio que eu queria, eu garanto.
– Espere um instante. Você disse “se demitindo”? Quer dizer que ela trabalha para a sua família? Isso é tipo Sabrina, meu velho?
– Lizzie é a horticultora-chefe da propriedade. Ou era.
– Não uma simples jardineira, hein… faz sentido. Você odeia mulheres burras.
Lane o encarou.
– Sem ofensas, mas podemos falar sobre outra coisa? Talvez sobre o fato de a minha família estar perdendo todo o seu dinheiro? Preciso me alegrar.
Jeff balançou a cabeça.
– Você, meu amigo, leva uma vida e tanto.
– Quer trocar de lugar? Por que, neste exato instante, estou procurando uma saída.
QUARENTA E SEIS
Naquela noite, Lizzie chegou em casa e não havia nenhuma árvore caída no seu quintal.
Saindo da caminhonete da fazenda, olhou ao redor. O Yaris ainda estava esmagado no mesmo lugar, destroçado, com as janelas quebradas e o interior molhado e cheio de folhas, e parecia ter saído de um jogo de videogame. Mas o galho tinha sumido, e não restava nada além de serragem fresca e perfumada espalhada por lá.
Não ouse, Lane, ela pensou.
Não ouse tentar cuidar de mim agora.
Levantou o olhar e viu que o corte onde o galho se partira do tronco fora feito com cuidado, selado de modo que cicatrizaria e o bordo maravilhoso sobreviveria aos estragos.
– Maldito.
Pelo menos ele tinha deixado o carro no lugar. Se tivesse cuidado disso também, ela teria que procurá-lo para descobrir onde deveria recuperar a carcaça.
Devia ter desconfiado que as coisas entre eles estavam inacabadas.
Ao marchar rumo à varanda, ficou discutindo mentalmente com ele o tempo inteiro… Mas parou no primeiro degrau. Na tela da porta, um bilhete fora afixado à moldura.
Maravilha. Agora isso. Algum tipo de “Agora que nossas cabeças esfriaram, blá-blá-blá…”.
Ele era um homem doentio.
E ela estava agindo bem partindo dali. Por mais que estivesse sofrendo por ir embora, precisava se afastar dele, de Easterly, daquela parte bizarra da sua vida que só podia ser descrita como um pesadelo.
Forçou-se a se mover, subiu e arrancou o papel da porta. Queria jogar fora aquela coisa maldita, mas algum impulso masoquista tornou isso impossível. Abrindo o bilhete, ela…
Olá, vizinha. As vacas se espalharam pelo seu quintal. Estragaram as moitas de flores dos fundos. Como sou péssimo com flores, cuidei da sua árvore. Minha mulher te mandou uma torta. Deixei na bancada.
Buella e Ross
Expirou, sendo acometida por uma onda de exaustão, e em vez de entrar na casa, atravessou a varanda e se sentou no balanço. Empurrando as tábuas do piso com um pé, ficou atenta aos grilos e aos rangidos das correntes afixadas no teto acima da sua cabeça. Sentiu a brisa suave e cálida no rosto e observou as luzes alaranjadas do entardecer criarem sombras alongadas sobre a terra.
Precisava replantar os canteiros…
Não, não precisava.
Bem, pelo menos teria uma bela sobremesa; Buella fazia tortas de outro mundo. Talvez fosse de pêssego. Ou, quem sabe, de mirtilos.
Lizzie se descobriu enxugando os olhos e fitando as lágrimas nas pontas dos dedos.
Era horrível ter que sair dali para se salvar… Era bem parecido com… serrar um galho doente.
Estava dando tudo certo.
Mas Lane tinha que chegar e estragar tudo.
– Foi tudo o que Edward conseguiu tirar de lá – disse Lane ao andar de um lado para o outro no quarto de hóspedes em que acomodara Jeff.
Era a melhor suíte, com vista para os jardins e o rio, e também tinha uma escrivaninha com tampo tão comprido que poderia ser qualificada como balcão de cozinha. Na verdade, um bilhão de anos antes, aqueles aposentos tinham sido do avô de Lane, e depois da morte do homem, nada fora tocado a não ser nas faxinas regulares.
O comentário de Jeff ao entrar foi típico dele. Algo relacionado à possibilidade de a Guerra Civil ter sido comandada de lá.
Contudo, conforme esperado, assim que o cara acessou os dados financeiros, deixou de lado as brincadeiras e se tornou totalmente profissional.
– Bem, já está quase na hora do jantar. – Lane olhou para seu relógio de pulso. – Nos vestimos formalmente. Bem, todos fazem isso, menos eu. Então o seu terno vai estar de acordo.
– Mande me trazer alguma coisa aqui mesmo – Jeff murmurou ao arrancar a gravata, sem despregar os olhos da tela do computador. – E vou precisar de papel e caneta.
– Está querendo me dizer que não quer testemunhar a troca de olhares furiosos entre mim e o meu pai por sobre o suflê? – Sim, porque Lane estava mais do que ansioso para isso. – Você também poderia aproveitar para conhecer o novo e fabuloso noivo da minha irmã. O cara é tão charmoso quanto um tumor.
Quando Jeff não respondeu, Lane andou e espiou por cima do ombro dele.
– Diga-me que isso faz algum sentido para você.
– Ainda não, mas vai fazer.
É o homem certo para este trabalho, Lane pensou ao finalmente se retirar. Já no corredor, descobriu-se encarando a porta do quarto da mãe. Talvez Edward estivesse certo. Talvez se tudo virasse pó, a mãe deles nem ficaria sabendo. Todas aquelas drogas a mantinham encasulada e segura em seu delírio. Algo que, pela primeira vez, estava começando a entender.
Falando nisso, que tal um pouco de bourbon?
Seguindo para as escadas da frente, resolveu que também pularia o jantar. Ainda estava louco de vontade de socar o pai, mas, com Jeff cuidando de tudo, ele tinha, quem sabe, chances muito maiores de pegar o homem de jeito.
E depois seguiria o exemplo de Lizzie e iria embora daquele lugar de uma vez por todas.
Tudo ali era demais, bizantino demais, poluído demais.
Talvez voltasse para Nova York. Ou talvez estivesse na hora de alargar seus horizontes. Quem sabe ir para o exterior…
Lane parou na metade da escada.
Mitch Ramsey e dois policiais estavam parados no átrio de entrada logo abaixo, sem os chapéus. Seus rostos pareciam saídos de um texto de justiça criminal: estavam totalmente impassíveis.
Merda, Lane pensou ao fechar os olhos.
Pelo visto, Samuel T. tinha conseguido tirar vantagem da boa e velha camaradagem masculina só até certo ponto.
– Vou pegar a minha carteira – Lane avisou. – E vou ligar para o meu advogado…
Mitch levantou o olhar bem quando o senhor Harris vinha da sala de jantar.
– Ah, senhor Baldwine – disse o mordomo –, estes cavalheiros vieram vê-lo.
– Foi o que imaginei. Só vou pegar a…
Mitch falou:
– Podemos conversar reservadamente?
Lane franziu a testa.
– Quero a presença do meu advogado.
Quando Mitch sacudiu a cabeça, Lane encarou os outros policiais. Nenhum deles o olhava de frente.
Lane terminou de descer e indicou a sala com a mão.
– Na sala de estar.
Enquanto os quatro seguiam para o elegante cômodo, o senhor Harris deslizou as portas duplas que davam para o vestíbulo. E, num acordo tácito, ninguém disse nada até que o homem atravessasse a sala e fechasse as outras portas.
Lane cruzou os braços diante do peito.
– O que foi, Mitch? Está querendo completar um trio? Primeiro Gin, depois eu… e agora, que tal o meu pai?
– É com muito pesar que preciso informar que…
Uma pontada fria de medo perpassou seu corpo.
– Não o Edward, ah, Deus, por favor não o Edward…
– … um corpo foi encontrado no rio duas horas atrás. Temos motivos para acreditar que seja o seu pai.
A expiração que escapou dos pulmões de Lane foi estranhamente lenta e controlada.
– O quê… – Ele limpou a garganta. – Onde ele foi encontrado?
– Na parte oposta à cachoeira. Precisamos que nos acompanhe para identificar o corpo. Um parente é preferível, mas eu jamais peço à esposa, se puder evitar.
Como resposta, Lane se aproximou do carrinho de bebidas e se serviu de uma bela dose do Reserva de Família. Depois de tomá-la, acenou para Mitch e para os outros dois membros da força policial.
– Me dê um minuto. Eu já volto.
Ao passar por Mitch, o homem esticou a mão e o segurou pelo braço.
– Eu sinto muito, Lane.
Lane franziu a testa.
– Sabe, não consigo dizer o mesmo.
QUARENTA E SETE
Lane não contou a ninguém onde estava indo e nem o motivo.
Voltou do quarto com seu celular e sua carteira, e tomou cuidado para ficar longe das vistas das pessoas que comiam e conversavam baixo na sala de jantar.
Não, não contaria nada a ninguém. Não até ter certeza.
Entrando na parte traseira do SUV do delegado Mitch, fechou a porta e fitou adiante, através do para-brisa.
Quando o policial se colocou atrás do volante, Lane perguntou: – Alguém já sabe?
– Mantive em segredo por enquanto. O corpo apareceu num ancoradouro coberto a uns quinhentos metros da catarata. As pessoas que o encontraram são gente boa. Estão assustadas e não querem a atenção da mídia nem repórteres em sua propriedade. Mas isso não vai durar para sempre.
O trajeto até o necrotério foi meio bizarro. O tempo se arrastava, tudo era muito brilhante, claro demais, volumoso demais. E assim que entrou naquele prédio sem graça, frio, a sensação piorou até ele sentir como se estivesse aos tropeços, o surrealismo de tudo aquilo fazendo com que parecesse algo saído de um desenho animado de Jerry Garcia.
A única coisa que conseguia fazer era acompanhar Mitch onde quer que o cara fosse. Não muito tempo depois, Lane se viu numa saleta de espera do tamanho de uma despensa.
No meio da parede diante dele havia uma cortina que cobria, segundo ele imaginava, uma grande janela. Havia uma porta ao lado.
– Não – Lane disse a Mitch. – Quero vê-lo cara a cara.
Houve um instante de constrangimento.
– Veja bem, Lane, o corpo não está nada bonito. Caiu da cascata e pode ter se chocado num barco maior. Seria mais fácil…
– Não estou interessado em nada fácil. – Lane estreitou o olhar na direção do delegado. – Quero entrar.
Mitch praguejou.
– Me dá um minuto.
Enquanto o delegado desaparecia pela porta, Lane ficou satisfeito que o homem não tivesse se oposto. Não queria admitir que o motivo pelo qual necessitava chegar perto era por querer ter certeza de que o pai estava de fato morto.
O que era estupidez.
Como se todos aqueles policiais fossem perder tempo inventando a história.
Mitch retornou e segurou a porta aberta.
– Pode entrar.
Entrar naquela sala azulejada se tornou algo de que Lane se recordaria pelo resto da vida. E, Jesus, era igualzinho aos filmes: no meio do recinto, sobre uma mesa de aço com rodinhas, havia um saco mortuário.
Absurdamente, notou que era do mesmo tipo em que Rosalinda fora colocada.
Ao lado da maca, uma mulher de jaleco branco estava de pé com luvas descartáveis e uma prancheta nas mãos.
– Está pronto, senhor?
– Sim. Por favor.
Ela esticou a mão e puxou o zíper. Desceu-o até os pés e afastou a lona.
Lane se inclinou, mas o cheiro da água e da podridão o fez se retrair.
Não esperava encontrar os olhos do pai abertos.
– É ele – Lane disse, com uma voz partida.
– Lamento pela sua perda – a médica legista disse ao voltar a subir o zíper.
Quando ela terminou, deduziu que quisessem que ele se retirasse, mas ele só conseguiu ficar ali parado olhando para o saco mortuário.
Todos os tipos de imagem invadiram seus pensamentos, uma mistura de coisas do passado e do presente.
Mas não há mais futuro algum, pensou. Não haveria mais nada com aquele homem.
Deus, dentre todos os modos como as coisas entre eles poderiam terminar… aquele momento silencioso, naquela fria sala médica, com Mitch Ramsey de um lado e uma completa estranha do outro… não tinha imaginado nada daquilo.
– E agora? – ouviu-se perguntar.
Mitch pigarreou.
– Extraoficialmente, e não me obrigue a sustentar isso, temos quase certeza de que foi suicídio. Considerando tudo o que tem acontecido… bem, você entende.
– Sim. Sim, claro. – E a polícia nem desconfiava da questão financeira.
Que covarde filho da puta, Lane pensou. Primeiro ele provoca toda essa confusão, e depois resolve fugir se jogando de uma ponte.
Cretino.
– Gostaríamos do consentimento para realizar a autópsia – disse Mitch. – Só para excluir a possibilidade de um crime. Mas, repito, não é nisso que acreditamos.
– Claro. – Lane olhou para o delegado. – Escute, preciso de um tempo antes que isso chegue à imprensa. Tenho que contar à minha mãe e aos meus irmãos. Nem sei como localizar Maxwell, mas não quero que ele fique sabendo disso no noticiário das seis. Ou pior, na TMZ.
– A polícia está determinada a trabalhar com você e com a sua família.
– Serei o mais rápido que puder.
– Isso facilitaria tudo para nós também.
Uma prancheta surgiu de sabe-se lá onde, e ele assinou uma variedade de coisas. Quando devolveu a caneta ao delegado, pensou: “Merda, vamos ter que planejar um funeral”.
Ainda que, sendo bem franco, a última coisa que o interessava era honrar o pai de qualquer maneira.
– Não estou com fome.
Edward se acomodou na sua poltrona no chalé, bem ciente de que parecia um garotinho de quatro anos se recusando a jantar, mas não se importou.
O fato de o aroma vindo da sua cozinha embutida fazer sua boca salivar não era relevante.
Shelby, contudo, sofria de audição seletiva.
– Aqui está.
Ela colocou uma tigela de cozido na mesinha ao lado da sua garrafa de… o que era mesmo que estava bebendo? Ah, tequila. Ora, vejam só se não combinava à perfeição com o molho de carne.
– Coma – ela ordenou, num tom que sugeria que ou ele mesmo cuidava disso ou ela amassaria tudo e o forçaria a comer por meio de um canudo.
– Sabe, você pode ir quando quiser – ele murmurou.
Pelo amor de Deus, a mulher ficou na sua casa o dia inteiro, limpando, lavando a roupa, cozinhando. Ele lhe disse algumas vezes que ela tinha sido contratada para cuidar dos cavalos, e não do proprietário deles, mas, de novo, a audição dela era seletiva.
Maldição, isso aqui está muito bom, pensou ao encher a boca.
– Quero marcar um horário com o seu médico.
O som de um carro chegando foi uma interrupção bem-vinda. Esforçou-se para se lembrar que dia era, e desejou que, de algum modo, já fosse sexta-feira de novo, pois até gostava da ideia de ela ver uma prostituta vindo servi-lo. Inferno, ela até podia ficar olhando se quisesse. Não que fosse um bom espetáculo…
Por uma fração de segundo, lembrou-se de Sutton sobre ele, movendo-se para cima e para baixo, fitando-o nos olhos.
Uma dor afiada em seu peito o fez comer mais rápido só para se livrar da sensação.
A batida foi alta.
– Você se importaria de fazer as honras? – disse a Shelby. – Se for uma mulher, convide-a a entrar. Se não, diga que vá para o inferno. E use a palavra “inferno”, sim? Nós dois sabemos que ela faz parte do seu vocabulário agora.
O olhar furioso que ela lhe lançou provavelmente o teria derrubado se ele já não estivesse sentado.
Mas ela foi até a porta.
Abrindo-a, disse:
– Ah, nossa.
– Quem é? – Edward murmurou. – A sua fada madrinha?
Só que não era. Era Lane.
Enquanto seu irmão entrava no chalé, Edward já meneava a cabeça.
– O que quer que seja, você vai ter que ir para outro lugar. Já disse, não vou mais ajudar…
– Podemos falar em particular.
Não era uma pergunta.
Edward revirou os olhos.
– Não importa o que você vai dizer.
– É assunto de família.
– E não é sempre? – Quando Lane não cedeu, Edward praguejou. – O que quer que tenha a dizer, pode falar na frente dela.
A presença de Shelby talvez apressasse o assunto.
Lane olhou para a mulher. Voltou a olhar para ele.
– Nosso pai está morto.
Enquanto Shelby arfava, Edward lentamente abaixou a colher. Depois disse, numa voz grave: – Shelby, você pode, por favor, nos dar licença? Muito obrigado.
Engraçado como os bons modos surgiam nele em momentos de crise.
Depois que Shelby saiu rapidamente, Edward limpou a boca no guardanapo de papel.
– Quando?
– Em algum momento na noite passada, é o que estão acreditando. Ele se jogou de uma ponte, provavelmente. O corpo apareceu do outro lado da cascata.
Edward se recostou na poltrona.
Tinha a intenção de dizer alguma coisa. Tinha mesmo.
Só… não se lembrava o que era.
Lane, evidentemente, se sentia do mesmo modo, porque seu irmão caçula se aproximou da única outra cadeira no cômodo e se sentou.
– Contei para mamãe antes de vir para cá. Não acho que ela entendeu o que eu disse. Ela não está acompanhando nada. E também contei para a Gin. A reação dela foi igual à sua.
– Confirmaram se é ele?
Por algum motivo, aquilo parecia de importância vital. Ainda que… Como seria possível cometer um erro dessa magnitude?
– Fui eu quem identificou o corpo.
Edward fechou os olhos. E, por um breve instante, aquela luz piloto dele se acendeu novamente.
– Não deveria ter sido você. Eu deveria ter feito isso.
– Tudo bem. Eu não… – Lane inspirou fundo. – Acho que não estou tendo reação alguma. Tenho certeza de que ficou sabendo o que aconteceu ontem.
Edward olhou para o irmão.
– O que aconteceu ontem?
Lane teve que gargalhar.
– Às vezes não ter TV a cabo é uma coisa muito boa, não? Tudo bem, não importa. Não mesmo.
Ficaram sentados em silêncio por um bom tempo. Edward percebeu que estava esperando por algum tipo de reação emocional de si mesmo. Tristeza. Diabos, talvez até alegria.
Mas não sentiu nada. Apenas um torpor ressonante.
– Tenho que encontrar Max – disse Lane. – A polícia vai segurar a informação até estarmos prontos para dar uma declaração, mas não pode demorar muito.
– Não sei onde ele está – Edward murmurou.
– Fico ligando para o número que ele tinha há dois anos. Também mandei um e-mail, o último que ele tinha. Acho que ele deve estar mesmo fora do radar.
Mais silêncio.
– Gin está bem? – Edward perguntou.
Lane meneou a cabeça, depois percorreu o cômodo com o olhar.
– Algum de nós está?
Infelizmente, Edward pensou, a resposta é não.
QUARENTA E OITO
Na manhã seguinte, quando subiu pelas escadas dos fundos com um arranjo floral nas mãos, Lizzie tentou se encorajar.
Tudo bem ficar escondida nas estufas, mas convenhamos, ela ainda tinha treze dias no emprego em Easterly e não pretendia fazer corpo mole até lá. Sempre fora a responsável pelas flores dos quartos. Tinha seu cronograma e ia fazer muito bem o seu trabalho.
No segundo andar, aprumou os ombros e se encaminhou para a segunda melhor suíte de hóspedes. O senhor Harris lhe dissera que um hóspede tinha chegado inesperadamente e que também não havia mais a necessidade de trocar as flores no quarto de Chantal.
Muito bom saber disso, senhor Harris. Muito obrigada.
Pelo menos, era uma pessoa a menos na sua lista de “Pessoas a não encontrar”.
Uma pena que o número um ainda estivesse sob o teto de Easterly.
– Treze dias – disse baixinho. – Apenas treze dias.
Bateu à porta e esperou. Um momento depois, uma voz masculina disse: – Entre.
Empurrando a porta, viu um homem sentado à escrivaninha do avô de Lane, com as costas curvadas como uma vírgula enquanto trabalhava sobre o laptop. Ao lado dele, uma impressora cuspia páginas com tabelas e colunas e, aos seus pés, bolas de papel amarelo amassado salpicavam o chão.
Ele não levantou a cabeça.
– Só vim colocar um vaso de flores – explicou.
– Ã-hã.
Ao lado dele, sobre o peitoril da janela, havia uma bandeja de café da manhã vazia. Ao ajeitar o vaso sobre uma cômoda antiga, ofereceu: – Posso levar essa bandeja para baixo para você?
– O quê? – ele murmurou, ainda concentrado na tela.
– A bandeja?
– Sim, claro. Obrigado.
Concluiu que ele estava ali para examinar os arquivos que Rosalinda tinha deixado para trás.
Mas se lembrou que não era da sua conta.
Dando a volta na escrivaninha, viu duas malas caras. Uma estava aberta e remexida, mas ainda assim tinha a impressão de que o homem não tinha trocado de roupa desde a sua chegada. A camisa branca estava toda amassada, bem como as calças.
Também não era da sua conta.
Pegando a bandeja, ela…
– Ah, meu Deus.
Quando ele falou, ela quase deixou de olhar na direção dele, imaginando que ele tivesse encontrado algo no que quer que estivesse examinando. Mas logo percebeu que ele estava olhando para ela.
– O que foi? – perguntou.
– Você é a Lizzie. Certo?
Retraindo-se, ela olhou ao redor. O que foi meio ridículo, pois não havia ninguém atrás dela, não é?
– Hum… sim.
– A Lizzie do Lane. A horticulturista.
– Não – ela negou. – Não dele.
O homem esticou os braços acima da cabeça, e seu corpo todo estalou; ela notou que ele era muito bonito, com cabelos e olhos escuros – poderiam ser castanhos ou azuis.
O sotaque definitivamente era de Nova York.
– Uau – murmurou ele. – Pensei que você fosse de mentira.
– Se me der licença, tenho trabalho a fazer.
– E agora eu entendo por que ele não foi atrás de mais ninguém por dois anos.
Não pergunte, Lizzie se ordenou, não pergunte.
– O que disse? – ouviu-se perguntar.
Droga.
– Por dois anos, nada. Quero dizer, fizemos faculdade juntos, por isso vi em primeira mão como ele conquistou sua reputação. Mas nos dois últimos anos, ele não chegou perto de nenhuma mulher. Pensei que ele fosse gay. Até perguntei se ele era gay. – Ele mostrou as palmas num gesto defensivo. – Não que exista algo de errado com isso.
Isso faz parte de algum diálogo do Seinfeld?,23 ela se perguntou.
– Eu… hum…
– Agora estou entendendo. – O homem deu um amplo sorriso. – Mas ele disse que você está de partida? Não é da minha conta, mas… por quê? Ele é um bom homem. Não é perfeito, mas é bom. Só não sugeriria que você jogasse pôquer contra ele. Não a menos que tenha dinheiro sobrando para perder.
Lizzie franziu a testa.
– Eu… hum…
– A propósito, eu nem sabia que ele era casado. Ele nunca falou dela. Eu, por certo, nunca a vi… E agora, pensando bem, foi tudo por sua causa… Bem, de todo modo, tenho que voltar a trabalhar.
Como se o cara não tivesse acabado de lançar uma bomba no meio do quarto.
Quando o coração de Lizzie começou a bater forte, ela perguntou: – Desculpe. Mas você disse… que não sabia que ele era casado?
Ele voltou a olhar para ela.
– Não, ele nunca mencionou. Nenhuma vez nos dois anos em que dormiu no meu sofá. Só fiquei sabendo quando ele me ligou uns dias atrás.
– Mas você deve tê-la conhecido, não? Quando ela o visitou.
– Quando o visitou? Querida, ele nunca recebeu nenhuma visita, e eu sei disso porque ele nunca saía da minha casa. Jogávamos pôquer à noite e eu saía para trabalhar, só para voltar à noite e encontrá-lo no meu sofá na exata posição da manhã. Ele não via ninguém. Não atendia a telefonemas. Nunca voltou para cá. Nunca viajou. Só ficava trancado no meu apartamento, bebendo. Pensei que a próxima parada seria numa unidade de diálise.
– Nossa.
O cara arqueou uma sobrancelha, como se quisesse saber se ela precisava de alguma outra informação.
– Obrigada.
– Obrigado pelas flores. Nunca recebi flores de uma mulher antes.
E voltou a trabalhar, concentrado na tela.
Lizzie saiu do quarto num estado de torpor e teve que se lembrar de fechar a porta.
Depois de parada por um instante, virou a cabeça e olhou na direção do quarto do senhor Baldwine.
Nenhuma visita. Nenhum telefonema. Dois anos em Nova York no sofá do amigo.
E, supostamente, Chantal estava grávida.
De Lane.
Lizzie não teve ciência de quando se decidiu a andar. Mas, antes que se desse conta, deixou a bandeja no chão ao lado do quarto de hóspedes e andou nas pontas dos pés sobre a passadeira. Ao chegar ao quarto do senhor Baldwine, encostou a orelha na porta.
Depois bateu com suavidade.
Quando não obteve resposta, entrou sorrateiramente e se fechou ali dentro.
Havia algo de estranho no ar. Pensando bem, estava invadindo o lugar, visto que não tinha nenhum motivo válido para estar ali.
Bem, nenhum motivo profissional válido.
Relanceando para se certificar de que não havia ninguém no banheiro adjacente, apressou-se para junto da enorme cama, arrumada com precisão militar.
Ajoelhando-se, estendeu o pescoço debaixo do criado-mudo, debaixo da própria cabeceira da cama.
O tecido de seda ainda estava ali, no chão.
Lizzie esticou o braço e…
Toc, toc, toc.
– Serviço de quarto, senhor Baldwine.
Mergulhando rapidamente, Lizzie se enfiou embaixo da cama, encolhendo as pernas enquanto a criada abria a porta e entrava no quarto.
Um assobio suave e passadas leves sobre o carpete anunciavam o progresso da mulher conforme ela ia para o banheiro.
Por favor, não limpe, Lizzie suplicou em pensamentos, deitada no escuro. Só deixe as toalhas e siga com a sua vida.
Deixe as toalhas.
Siga em frente.
Deus, seu coração batia tão forte que foi um milagre a criada não ouvir nada.
Momento depois, um milagre aconteceu e as passadas recuaram para a porta, fechando-a novamente.
Lizzie relaxou e cerrou os olhos. Certo, riscaria ladra de galinhas da lista das suas possíveis escolhas de carreira para quando partisse de Easterly.
Segurando a lingerie, enfiou a peça no cós dos seus shorts e a cobriu, soltando a blusa por cima. Depois saiu dali, ficou de pé e tratou de se apressar.
Junto à porta, ouviu…
Caramba, o aspirador de pó estava ali no corredor bem na sua frente.
Nos aposentos da senhorita Aurora, Lane se esforçava para terminar o bacon com ovos.
– Você não precisa terminar, se não quiser – ela lhe disse ao seu lado.
– Nunca pensei ouvir isso da senhora.
– As regras estão suspensas hoje.
Recostando-se na poltrona reclinável, ele observou a pequenina cozinha embutida. Todos os pratos estavam lavados, já secando no escorredor. A esponja estava na pia. O pano de pratos estava dobrado com esmero sobre o puxador do fogão.
– Acha que o reverendo Nyce faria o funeral? – perguntou. – Na igreja batista de Charlemont?
A senhorita Aurora o fitou, curiosa.
– Mesmo?
– É a minha igreja. De Edward, Gin e Max também. – Olhou para ela. – A senhora foi a única pessoa que nos levou para rezar.
– Acho que ele ficaria honrado.
– Que bom. Vou ligar para ele.
Quando se calaram, Lane ficou olhando para a frente, sem ver nada, se concentrando no vazio. Também não havia nada na cabeça dele. Estava entorpecido, era um receptáculo vazio reagindo ao mundo ao seu redor, sem viver de verdade.
– Não vou te dar a minha bênção, menino.
Ele estremeceu e voltou a olhar para ela.
– O que disse?
– Não vou dizer que vai ficar tudo bem se você for embora.
Lane franziu o cenho e abriu a boca. Depois a fechou.
Engraçado, não se lembrava de ter dito isso em voz alta, mas ela o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa.
– Não deu certo com a Lizzie. De novo. Papai morreu. Edward se mudou. Mamãe está… bem, você sabe como ela está. Gin vai se casar com aquele idiota e provavelmente vai levar Amelia com ela. Esta era chegou ao fim, senhorita Aurora. E o que é pior: já não sei o que o futuro nos reserva. Easterly… – Moveu a mão no ar, pensando na propriedade e em todas as pessoas que dependiam dela. – Easterly faz parte do passado. Sabe, não posso viver aqui. É venenoso. Esta família, esta casa, este estilo de vida… tudo isso é simplesmente venenoso.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Você está encarando do jeito errado.
– Não estou, não.
Ela se colocou mais para a frente na poltrona e se esticou para tocar-lhe as mãos.
– Este é o seu momento, Lane. Deus lhe deu o dever sagrado de manter esta família unida. Você é o único que pode fazer isso. Tudo vai se ajeitar porque é o seu destino unir o seu sangue uma vez mais. É o tipo de coisa que acontece com algumas gerações. Está acontecendo agora. Esta é a sua hora.
Lane ficou encarando suas mãos juntas, o preto e o branco entrelaçados, e disse: – Era para ser Edward, sabe?
– Não, ou ele não estaria onde está agora. – A voz da senhorita Aurora demonstrou força. – Eu não te criei como um covarde, Lane. Não te criei para que abandonasse o seu dever e saísse correndo. Se quiser me honrar quando eu tiver partido, vai cumprir o seu dever fazendo com que esta família siga em frente, juntos. Cumpri o meu dever sagrado com você. Agora, você, filho do meu coração, vai fazer o mesmo com eles.
Lane fechou os olhos e sentiu um peso repentino cair sobre seu corpo, como se as paredes e o teto de Easterly tivessem se afundado sobre ele.
– Você vai fazer isso por mim, Lane. Porque se não fizer, tudo o que eu fiz por você não vai ter significado nada. Se não fizer, terei fracassado no meu dever.
Por dentro, ele gritava.
Por dentro, ele já estava num avião, indo para qualquer lugar distante de Charlemont.
– Deus não nos dá mais do que podemos suportar – disse ela com seriedade.
Mas e se Deus não nos conhece de verdade?, Lane pensou consigo. Ou pior… e se os planos de Deus estiverem simplesmente errados?
– Não sei, senhorita Aurora.
– Bem, eu sei. E você não vai me desapontar, filho. Simplesmente não vai.
Seinfeld foi uma série de TV produzida pela NBC. Tendo sido transmitida entre 1989 e 1998, foi eleita pelo TV Guide, em 2002, como "melhor programa de todos os tempos". (N.E.)
QUARENTA E NOVE
A verdadeira definição da eternidade, Lizzie concluiu, é quando se está preso num lugar em que não se deveria estar.
Com um babydoll que não é seu enfiado no cós dos seus malditos shorts.
Quando os sons por fim cessaram, ela aguardou mais uns cinco ou dez minutos antes de dar uma espiada.
Hora do almoço, deduziu. Graças a Deus.
Foi para o meio do corredor, deixou que a porta se fechasse atrás de si e ficou ali, com os ouvidos aguçados.
A próxima parada ficava além do quarto de Gin: o quarto de Chantal.
Bateu à porta. Nenhuma resposta. A mulher tinha ido embora, certo?
Esgueirando-se para dentro, fechou-se ali e…
– Ai, meu Deus! – murmurou, agitando a mão diante do nariz.
A fragrância do perfume caro fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas, mas como tinha peixes maiores para pescar, foi rapidamente para o closet de Chantal, parando diante de um armário grande o suficiente para rivalizar com o departamento feminino inteiro da Nordstrom. Ou da Saks. Ou quaisquer outros lugares elegantes onde mulheres como Chantal compravam suas roupas.
Puxa, seria capaz mesmo de fazer aquilo?
Concluiu que era provavelmente uma ideia bem idiota, enquanto procurava em meio aos cabides, passando por todo tipo de seda, cetim e renda. E terninhos, jaquetas, vestidos de gala…
– Onde está a sua lingerie, Chantal?
Claro, na cômoda.
No meio do closet, como uma ilha de organização, havia um móvel com gavetas dos dois lados. Começou a puxá-las aleatoriamente.
Ok, isso é uma idiotice, pensou. Achou mesmo que encontraria a parte de baixo d…
Estava na terceira gaveta, de baixo para cima, à esquerda do lado que dava para o norte quando encontrou o que procurava.
Mais ou menos.
No meio dos conjuntos de calcinha e sutiã perfilados e separados por papel de seda, encontrou… um babydoll roxo idêntico àquele encontrado debaixo da cama do quarto do senhor Baldwine.
Só para ter certeza de que não estava imaginando coisas, pegou o que trazia consigo, cor de pêssego, e os colocou lado a lado sobre o carpete branco e fofo. O mesmo tamanho, a mesma marca… La Perla? Tudo idêntico, a não ser a cor.
Sentou-se e ficou olhando para as peças.
E foi então que viu a mancha no tapete.
Do outro lado do quarto, havia uma penteadeira alinhada a uma alcova com janelas com vista para o jardim. Era o lugar ideal para fazer a maquiagem – ou para que alguém fizesse em você – sob a luz natural.
E debaixo das pernas de marfim, num canto, havia uma mancha amarela, redonda, meio escondida.
O tipo de coisa que se encontra em casas com cachorros.
Só que não existiam cachorros em Easterly.
Engatinhando até lá, enfiou-se debaixo da segunda peça de mobília e colocou o dedo sobre a mancha. Estava seca. Mas, ao aproximar os dedos do nariz… isso mesmo, aquela era a origem de todo o perfume no ar.
Franzindo o cenho, Lizzie se ajoelhou.
– Ai, meu Deus.
O tampo de vidro da penteadeira estava rachado no meio. E o espelho estava partido.
Com sangue bem no centro.
Hora de sair daqui, disse a si mesma.
Voltando para o closet, pegou a lingerie que deixara no chão, devolveu a roxa na gaveta e depois, numa inspiração, usou a cor de pêssego para limpar suas impressões digitais dos puxadores. De todos eles.
A última coisa que precisava era que a polícia fosse até ali e descobrisse que ela estivera bisbilhotando, por assim dizer…
Ficou imóvel ao ouvir uma voz masculina vinda do quarto ao lado, de Gin.
Ouviu duas pessoas conversando. Bem alto.
Indo até a parede, encostou a orelha ao lado da pintura de uma mulher francesa basicamente nua.
– Não me importo – Gin disse. – Vai ser apenas no cartório.
– O seu pai está morto.
Lizzie se retraiu, cobrindo a boca com a mão. O quê?
Richard Pford prosseguiu:
– Vamos esperar, nos casaremos depois do enterro.
– Não estou de luto por causa dele.
– Claro que não está. Para isso, você precisaria ter um coração, e nós dois sabemos que essa é sua anomalia física.
Lizzie recuou e tropeçou. Caiu sobre a cômoda.
Depois de um instante, continuou a limpar suas impressões e voltou para a porta que dava para o corredor. Como seu coração batia acelerado e forte, ela não estava conseguindo ouvir direito, mas mandou tudo às favas. Se fosse descoberta, o que fariam com ela?
Ela podia muito bem dizer que estava verificando as flores.
Mas não havia ninguém ali.
Seguiu às cegas para a escada dos empregados, com a mente num torvelinho, os pensamentos se debatendo, dissonantes, se partindo.
No meio de tudo aquilo, contudo, chegou a uma conclusão inescapável.
Tinha cometido um erro terrível.
Do tipo que seria impossível obter perdão.
Já no primeiro andar, parou de súbito. E percebeu que, de todos os lugares em que poderia ter se detido, escolhera parar diante do escritório de Rosalinda.
William Baldwine também estava morto.
Como?, ficou se perguntando. O que tinha acontecido?
Numa série de flashes, viu Lane parado na estufa, com a expressão fechada, a voz sem nenhuma emoção. Ouviu o amigo dele dizendo que, em vez de transar alegremente com Chantal às escondidas, ele não recebera ninguém e não fizera nada por dois anos.
E depois veio a bomba com aquele espelho quebrado no andar de cima. E a lingerie.
Lembrou-se da última imagem de Chantal à piscina, pedindo uma limonada.
Naquela hora, o fato de ela estar usando uma saída de seda não lhe parecera muito significativo. Mas agora…
Ela estava grávida e a barriga começava a aparecer. Motivo pelo qual ela pedira a bebida virgem, ou seja, sem álcool.
Chantal estava dormindo com William Baldwine. Traindo o filho com o pai. E tinha engravidado.
Ela deve ter contado a William, Lizzie concluiu. Depois do Derby.
E o homem perdeu as estribeiras. E bateu nela perto da penteadeira.
E depois a expulsou da casa. Ou algo assim.
Balançando a cabeça, Lizzie levou as mãos ao rosto rubro e tentou respirar.
Seu único pensamento foi o de precisar se acertar com Lane. Tinha o condenado com base em seu próprio medo de se magoar novamente…
Quando, na verdade, existia uma possibilidade muito, mas muito grande, de ele não ter nada a ver com todo o alvoroço.
Abaixando os braços, soube que palavras não bastariam. Não naquele caso.
Quando a solução surgiu, ela consultou o relógio. Se corresse…
Atravessou a cozinha às pressas, e a senhorita Aurora ergueu o olhar da panela no fogão.
– Aonde vai? – a mulher perguntou. – O que está pegando fogo?
Lizzie derrapou junto à porta que dava para a garagem.
– Preciso ir para Indiana. Se vir Lane, diga que vou voltar. Eu vou voltar!
CINQUENTA
Lane pensou que a área externa estava bem agradável, ao se sentar no jardim.
Olhando para os muros cobertos de heras e os canteiros de flores ao longo da piscina azul e das portas francesas do centro de negócios, imaginou todo o árduo trabalho necessário para manter aquela beleza “natural”.
Era impossível não visualizar Lizzie ali, mas refreou o impulso rapidamente.
Não havia motivo para se aborrecer com esse tipo de coisa.
Curvando a cabeça, esfregou os olhos. Samuel T. tinha telefonado para falar da situação de Chantal, e sabia que tinha que retornar a ligação. Mitch também tinha deixado uma mensagem, provavelmente a respeito dos resultados preliminares da autópsia. Nesse meio-tempo, lá no segundo andar, Jeff avaliava todos os relatórios financeiros.
As decisões quanto ao funeral precisavam ser tomadas.
Mas não tinha forças para lidar com nada daquilo.
Maldição, senhorita Aurora, pensou. Deixe-me ir. Só me deixe fugir de tudo.
Amava tanto aquela mulher. E devia-lhe muito mais. Ela era sua mãe, e mesmo que estivesse lhe dando uma surra moral, ele simplesmente já não estava mais envolvido naquela luta.
Erguendo os olhos para a incrível extensão branca de Easterly, fitou a mansão como um corretor imobiliário o faria. Não obstante a hipoteca de Sutton Smythe, poderia quitar boa parte da dívida junto à Fundos Prospect apenas com a venda do lugar.
Inferno. Com o pai morto, talvez pudessem procurar Sutton e pedir que ela não depositasse o dinheiro e rasgasse o documento.
Pensou em Edward. Deveria mandar Edward resolver esse assunto.
Ou talvez não. Talvez devesse simplesmente lavar as mãos.
Talvez, em vez de tentar pilotar o avião danificado no qual todos estavam, devesse deixar que a maldita aeronave se chocasse com a montanha.
Podia morrer como um covarde, podia desapontar sua mãe, mas, pelo menos, terminaria mais rápido do que se tentasse adivinhar os controles numa tentativa de aterrissar numa pista longe, muito longe dali…
Lane?
Fechou os olhos. Maravilha. Estava começando a alucinar.
Como se Lizzie fosse mesmo procurá-lo…
– Lane?
Virando-se no banco de pedra, ele viu… bem, hipoteticamente, ele a viu parada a poucos metros de distância.
E, vejam só, sob a luz do entardecer, ela estava mais linda do que nunca. Natural, adorável, com os límpidos olhos azuis e os cabelos iluminados pelo efeito do sol, e aquele uniforme de Easterly, que na verdade não deveria deixá-la sexy, mas que nela era simplesmente demais.
– Lane, posso falar com você?
Ele limpou a garganta. Sentou-se ereto.
Ao que tudo levava a crer, não era fruto da sua imaginação.
– Sim, claro. Do que precisa? Se for uma carta de referência, posso pedir ao mordomo que…
– Desculpe. – Quando a voz dela se partiu, ela respirou fundo. – Sinto muito, muito mesmo.
O que ela estava…
– Ah, meu pai. – Encolheu os ombros. – Acho que deve ter ficado sabendo. Sim, ele morreu. O enterro será na semana que vem. Obrigado pelas palavras gentis.
– Não estou falando disso. Embora, sim, eu lamente que você tenha perdido o seu pai. Sei que o relacionamento entre vocês não era dos melhores, mas ainda assim deve ser difícil.
– Bem, acontece que me supero em relacionamentos que não são bons. Parece uma habilidade minha.
Até para os próprios ouvidos, sua voz soou falsa. As palavras não eram as que normalmente usaria.
Edward, pensou, entorpecido. Estava parecendo Edward.
Lizzie se aproximou, e ele ficou mais do que surpreso por vê-la se ajoelhar diante dele. E ela estava…
– Por que está chorando? – perguntou. – Você está bem?
– Deus, como você pode perguntar isso? Depois de tudo o que eu fiz…
– Do que você está falando?
Então começaram a falar um por cima do outro, do modo típico deles. Mas como Lane não tinha forças para tentar decifrar nada, calou-se, na esperança de que ela explicasse e esclarecesse as coisas.
– Eu errei – disse, emocionada. – Sinto muito por não ter acreditado em você. A respeito de Chantal. Eu só… Eu não queria me magoar de novo, e me precipitei em tirar conclusões. E, ah, meu Deus, eu sei que foi o seu pai. Eu sei que foi ele. Foi ele quem bateu nela, foi ele quem a engravidou. Sinto muito.
Lágrimas rolaram pelo rosto dela, uma chuva de lágrimas, aterrissando na grama aos pés dele.
Lane piscou. Foi só o que ele conseguiu…
Jesus, seu cérebro não seria capaz de processar tantas informações. Ele literalmente não entendia o que ela estava dizendo…
Levando a mão às costas, ela pegou algo. Um maço de papéis dobrados ao meio?
– Lamento que não baste – ela disse. – Magoei você demais. Então preciso fazer algo concreto, para provar que estou ao seu lado, que eu te amo e que… que estou ao seu lado mesmo.
Entregou as folhas para ele.
– Eu preciso te mostrar, e não te dizer.
Lane balançou a cabeça.
– Lizzie, eu não sei o que…
– Pegue – ela disse.
Fez o que ela pediu porque não tinha motivos para não fazê-lo. Alisando a dobra, olhou para…
Um monte de palavras. Seguidas de alguns números.
A segunda folha era um mapa?
– É a escritura da minha fazenda – ela sussurrou. – Sei que não é nada comparado ao que você tem. Mas é tudo o que tenho neste mundo.
– Não estou entendendo…
– Sei dos problemas financeiros que você está enfrentando, e sei que não vai ajudar a saldar a dívida, mas vale o bastante para ajudá-lo a pagar bons advogados, pessoas que podem ajudá-lo a resolver a questão. – Apontou para o documento. – Quitei o empréstimo ontem. Não devo mais nada. E já fui abordada várias vezes para que a vendesse. A terra é boa. Vale bastante. E agora é sua.
O ar saiu do corpo dele.
O coração parou de bater.
A alma se partiu ao meio.
– Eu te amo, Lane. Desculpe por ter duvidado de você. Eu sinto que… Deus, você não faz ideia de como estou me sentindo mal. Deixe-me recompensá-lo do único modo que posso. Ou jogue esses documentos na minha cara, se quiser. Não vou te culpar. Mas eu tinha que fazer alguma coisa relevante. Eu tinha que… te oferecer tudo o que sou e tudo o que tenho…
Lane não se deu conta de que estava se aproximando dela.
Mas soube no instante em que ela foi de encontro ao seu peito.
Envolvendo-a com os braços, descontrolou-se por completo, as represas se abriram, e tudo saiu aos soluços.
E Lizzie, com seu corpo forte e coração grande, abraçou-o pelo tempo que foi necessário.
– Vai ficar tudo bem – ela lhe disse. – Eu te prometo. De algum modo, tudo vai ficar bem.
Quando, por fim, ele conseguiu se controlar o suficiente para se afastar, sentiu uma súbita vontade de se apalpar entre as pernas só para ver se ainda era homem. Mas Lizzie não parecia se importar por ele estar fragilizado.
Enxugou o rosto dela com os polegares e a beijou.
– Eu te amo, Lizzie. – Depois balançou a cabeça. – Mas não sei quanto a Deus.
– O que disse?
Lane expirou, estremecendo.
– É só uma coisa que a senhorita Aurora sempre me disse.
– E o que era?
Ele beijou sua mulher uma vez mais.
– Não sei se tenho Deus. Mas tenho certeza de uma coisa: eu tenho você. E isso me torna mais rico do que preciso ser.
Trazendo-a de volta para junto de si, ele a abraçou e ficou olhando para Easterly.
Ao diabo com a ideia de jogar o avião numa montanha, pensou.
A partir daquele instante, ele seria o chefe da família, a seu modo.
E ele estaria ferrado caso as coisas ruíssem na sua vigília.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
TRINTA E SETE
A chuva imprevista começou pouco depois das cinco da tarde. Enquanto dobrava a última das mesas debaixo da tenda, Lizzie sentiu o cheiro da mudança no ar e olhou para as heras no muro de tijolos do jardim. Como esperado, as folhas dançavam ao vento, reluzentes, encarando o céu cinzento.
– Não era para chover – murmurou para ninguém em especial.
– Você sabe o que dizem sobre o clima por estas partes – um dos garçons replicou.
É, pois é, ela sabia.
Onde estaria Lane?, perguntou-se. Estava sem notícias dele desde a conversa ao lado da picape, seis horas atrás.
O senhor Harris se aproximou.
– Você disse para eles que tudo isso vai para a área de carga e descarga?
– Sim – ela respondeu. – É sempre ali que ficam as coisas alugadas e, antes que pergunte, os copos e talheres também.
Já que o homem estava parado ali sem fazer nada, ela ficou tentada a pedir que ele a ajudasse segurando uma das pontas da mesa para carregá-la até a parte oposta do deque. Mas estava bem evidente que ele não era alguém que metia a mão na massa.
– Qual o problema?
– A polícia está aqui de novo. Estão tentando respeitar o evento, mas querem me interrogar mais uma vez.
Lizzie abaixou a voz.
– Quer que eu cuide das coisas?
– Sinto que eles não querem esperar.
– Pode deixar, tudo será feito da maneira correta.
O mordomo limpou a garganta. Em seguida, que Deus o abençoasse, ele se curvou levemente na sua direção.
– Agradeço imensamente. Obrigado. Não deve demorar muito.
Ela o viu se afastar, depois voltou ao trabalho.
Levantando a mesa, atravessou o espaço cavernoso e prosseguiu a céu aberto, onde o início de um chuvisco a molhou nos ombros e na cabeça. A área de carga e descarga ficava na parte oposta da casa. O sotaque carregado de Greta ressoava pelo lugar, enquanto dois empregados, um entrando com o lixo da festa, o outro saindo de mãos vazias, se apressavam.
Lizzie se dirigiu para junto deles, aproximando-se das mercadorias a serem devolvidas.
A tenda maior seria desarmada em vinte minutos, e a equipe de limpeza já estava trabalhando no chão, recolhendo guardanapos amassados, garfos perdidos e copos.
Os ricos não eram diferentes de qualquer outro rebanho de animais, capazes de deixar uma trilha de detritos depois de abandonarem o local de alimentação.
– Última mesa – disse, assim que se viu debaixo da tenda.
– Que bom. – Greta apontou para uma pilha. – Fica ali, ja?
– Isso mesmo. – Lizzie ergueu a mesa na altura da cintura e a deslizou no alto da pilha. – O senhor Harris teve que cuidar de umas coisas, por isso vou supervisionar a limpeza.
– Logo terremos tudo em orrdem. – Greta apontou o outro canto para dois rapazes com seis engradados de copos cada um. – Ali. Deixem debaixo da coberrturra, sim?
– Vou dar uma olhada na cozinha.
– Vamos terrminarr dentrro de uma horra.
– Como planejado.
– Semprre.
E Greta estava certa. Terminaram às seis em ponto; a tenda grande foi desmontada, a casa e os jardins foram liberados e o quintal estava limpo. Como de hábito, o esforço tinha sido tremendo. Os empregados se retiravam; a maioria se reuniria para beber e se livrar das dores, desconfortos e “Oh, meu Deus” do dia, mas não Lizzie nem sua colega. Casa. As duas iriam para suas respectivas casas. Lizzie esperaria por Lane, e Greta seria recebida por uma refeição preparada pelo marido.
As duas se encaminharam para o estacionamento dos funcionários, não disseram nenhuma palavra e, junto aos carros, abraçaram-se rapidamente.
– Mais uma vencida – Lizzie disse ao se separarem.
– Agorra vamos nos preparrarr parra a festa de aniverrsárrio da Pequena V.E.
Ou a festa de casamento de Gin, Lizzie ponderou.
– Eu te vejo amanhã? – perguntou.
– Domingo? Não – Greta gargalhou. – Não haverrá uma alma se-querr se movendo aqui, nem um marrtíni, nem um rato.
– Ah, é mesmo. Desculpe, a minha cabeça já pifou. Te vejo na segunda, então.
– Está bem parra dirrigirr?
– Claro!
Com um aceno, Lizzie entrou no seu Yaris e depois se juntou à fila de carros e caminhões que saía pelo caminho dos funcionários.
Tomando a esquerda na estrada River, a garoa se transformou em chuva de verdade, e o dilúvio a fez pensar na corrida. Caramba, perdera a corrida. Esticando a mão para o rádio, sintonizou na estação local. Quando conseguiu ouvir comentários sobre a corrida, já estava no entroncamento, passando por cima do rio Ohio.
Mas não acompanhou o relato – e não só porque não entendia nada do esporte.
Franzindo o cenho, aproximou o rosto do para-brisa.
– Meu Deus…
Mais à frente, o horizonte estava carregado de nuvens negras pairando alto no céu. E o pior? Havia uma coloração meio esverdeada em tudo aquilo. E mesmo um olhar desacostumado perceberia que aquilo parecia estar girando.
Olhou por cima do ombro. Atrás dela, não viu nada anormal. Havia até uma faixa de céu azul.
Enfiando a mão na bolsa, pegou o celular e ligou para Easterly. Quando aquela voz carregada de sotaque inglês atendeu, ela disse: – O tempo está piorando. Você vai ter que…
– Senhorita King?
– Escute, você vai ter que cobrir a piscina e os vasos…
– Mas o tempo não está piorando. Na verdade, a previsão deixou bem claro que deveríamos esperar apenas uns chuviscos esta noite.
Quando um raio cortou uma nuvem logo adiante, ela pensou que pelo menos se entendera com o homem uma hora antes.
– A previsão do tempo que se dane. Estou te contando o que está bem na minha frente: há uma tempestade maior que o centro da cidade de Charlemont atravessando o rio, e a colina de Easterly é a primeira coisa que ela vai atingir.
Droga, será que se lembrara de fechar as janelas da sua casa?
– Eu desconhecia os seus talentos de metereologista – o senhor Harris comentou com secura.
E o senhor é um cretino.
– Muito bem, mas depois você vai ter que explicar o seguinte assim que ela passar por aí: um, por que o abrigo ao lado da piscina saiu voando; dois, por que os quatro vasos da varanda da parte oeste caíram e terão que ser replantados; três, onde foi parar a mobília do jardim, porque, a menos que garanta que ela esteja na casa da piscina, ela acabará voando pelos canteiros do jardim. O que me leva ao número quatro, ou seja, quando as heras, as rosas e as hidrângeas serão reparadas. Ah, e depois você pode concluir isso fazendo um cheque de sete mil dólares para a família para cobrir todo o material de jardinagem que terá que ser reposto.
Tic, tac, tic, tac…
– Qual era o segundo item? – ele perguntou.
Te peguei.
Lizzie repassou todo o procedimento que ela e Greta desenvolveram, resultado do trabalho de vários anos com Gary McAdams, preparando-se para as grandes tempestades de primavera e de verão. O pior era que não era necessário um tornado F5 caindo diretamente em Easterly para criar o caos. Algumas tempestades eram mais do que capazes de estragar bastante coisa, se fossem atingidos por ventos diretos.
Era uma das coisas que aprendera rapidamente ao se mudar para Charlemont.
Como se provando que estava certa, ela logo atravessou uma cortina de chuva, que atingiu seu para-brisa com tanta força que pareceu uma dupla de sapateadores dançando “The Star-Spangled Banner”.
Aumentando a velocidade dos limpadores, tirou o pé do acelerador porque seu Yaris era bem capaz de hidroplanar na estrada mesmo na mais ínfima quantidade de água sob os pneus finos.
– Entendeu? – ela perguntou. – Preciso desligar e dirigir no meio desta coisa.
– Sim, sim, claro… ah, meu Deus – o homem sussurrou.
– Então, está vendo a tempestade agora? – Divirta-se, ela pensou. – Melhor começar a se mexer.
– Sim, de fato.
Desligou e jogou o celular dentro da bolsa. Depois, só lhe restou se dobrar em cima do volante, segurar firme… e rezar para que nenhum exibido numa SUV a jogasse para fora da estrada.
A situação piorou bem rápido.
E, puxa, depois de um dia atarefado e longo como o que tivera, a última coisa que precisava era enfrentar aquele aguaceiro reduzindo sua visibilidade para um metro e meio de distância, somado a trovões ensurdecedores e raios. O clima parecia disposto a acompanhar lado a lado o que acontecia em Easterly. Quase como se o drama na casa estivesse afetando o tempo.
Ok, talvez aquilo fosse exagero.
Mas, mesmo assim…
Levou uns quinhentos anos para chegar à sua saída. E mais setecentos ou oitocentos para chegar à entrada da sua casa. Nesse meio-tempo, a tempestade se transformou em Tempestade, com T maiúsculo: raios cruzavam o céu, parecendo querer atingir seu carro, e trovões rugiam. Ela foi atingida por uma rajada de granizo que poderia ter derrubado Fenway Park. Já com os nós dos dedos embranquecidos, irritada, preocupada com Lane e toda dolorida, finalmente chegou em casa, toda esbaforida e…
O dedo de Deus.
Foi só no que pensou.
Num momento, estava estacionando em seu lugar de costume próximo à casa. No seguinte? Um raio desceu do céu e atingiu a sua enorme e linda árvore bem no topo.
Faíscas se formaram, como se fosse 4 de julho.
E ela gritou, pisando no freio:
– Não!
Os pneus do Yaris derraparam no piso seco. Ou na estrada lamacenta e escorregadia.
E foi nessa hora que descobriu que Lane estava na sua casa.
Porque acabou batendo com tudo no para-choque traseiro do Porsche dele.
Lane já estava havia duas horas sentado à mesa da cozinha de Lizzie, lendo os relatórios financeiros da CBB, quando a chuva chegou. Enquanto a tempestade dava seu primeiro show, com trovões e raios sacudindo a casa, ele nem se deu ao trabalho de desviar o olhar do laptop, mesmo quando os antigos vidros tremeram e o telhado rangeu.
A quantidade de informação era tremenda.
E ele estava em pânico por entender apenas uma fração dela.
Mas, pensando bem, tinha sido muita ingenuidade da parte dele pensar que poderia lidar com os negócios do pai com algum tipo de diligência. Fora a quantidade incrível de arquivos, ele não tinha o conhecimento necessário para entender tudo aquilo.
Ainda bem que Edward tinha se preparado para algo assim, criando aquelas contas fantasmas, senhas e e-mails. Sem tais coisas, teria sido impossível exportar as informações sem disparar algum alerta interno.
Se bem que isso ainda poderia acontecer.
Ele não sabia de quanto tempo dispunham até que o pai deles descobrisse o vazamento de informações.
Fazendo uma pausa, recostou-se na cadeira e esfregou os olhos. Foi nesse instante que o segundo round da tempestade começou. Seja pelo cochilo forçado devido aos seus olhos cansados ou pelo fato de que suas células T estavam alertas, ele logo percebeu que a casa de Lizzie estava sendo atacada.
Levantou-se, deu a volta e fechou todas as persianas do andar de cima e de baixo. Enquanto corria de cômodo em cômodo, os raios iluminavam tudo como estrobos enlouquecidos, lançando sombras velozes sobre o piso de Lizzie, a mobília, o piano. O céu estava tão escuro como se fosse meia-noite, a chuva açoitava a fazenda, e Lane sentiu como se estivesse numa zona de guerra.
Tinha esquecido como aquelas tempestades de primavera vindas do leste podiam ser furiosas, as colisões das frentes frias e quentes correndo à solta por quilômetros e quilômetros da planície no centro-oeste.
De volta ao primeiro andar, relanceou para a varanda e praguejou. As mesinhas e as cadeiras de balanço de vime estavam todas amontoadas, numa agitação nervosa provocada pelas rajadas de vento.
Quando foi abrir a porta, a força da corrente fez com que ele tivesse que usar força para fechá-la novamente depois que saiu. Ao segurar tudo o que encontrava, moveu os objetos de Lizzie para o canto oposto da varanda, distante dos ventos mais fortes.
Estava voltando para apanhar a última cadeira quando viu faróis fazendo a curva na estrada principal. Só podia ser ela, e ele ficou aliviado. Tivera a intenção de telefonar, mandar uma mensagem, sinal de fumaça ou um pombo-correio, mas sua mente acabara se concentrando em…
Tudo aconteceu numa estranha combinação de câmera lenta com a velocidade do som: um raio surgiu no céu, seguido por um barulho de explosão e uma bomba de iluminação.
Um galho do tamanho de uma viga se partiu e caiu no chão.
Bem onde Lizzie acabava de estacionar.
O som de metal se retorcendo fez o coração dele parar de bater.
– Lizzie! – ele berrou e voou para fora da varanda.
A chuva o atingiu no rosto e o vento parecia uma matilha de cães atacando suas roupas, mas ele seguiu em frente.
A morte vem em três.
– Não! – ele berrou na tempestade. – Nããããooo!
O Yaris cedeu sob o peso, o teto amassou, a capota afundou, e a vida dele passou pela sua mente quando ele parou de súbito, descalço. Galhos com folhas novas atrapalhavam sua visão, assim como a chuva e o vento, e os raios e trovões continuaram, como se nada de importante tivesse acontecido.
– Lizzie!
Ele se enfiou na confusão verde, se contorcendo. Mesmo com todo aquele vento, ele sentia o cheiro de gasolina e óleo, e ouvia o sibilo do motor mortalmente atingido.
Talvez toda aquela umidade impedisse uma explosão?
Resolveu mudar de tática e começou a subir no carro, até dar a volta e chegar à frente do veículo. Por fim, sentiu algo molhado e escorregadio nas mãos, e começou a bater, para que ela soubesse que ele estava ali.
– Lizzie, vou te tirar daí!
Com puxões frenéticos, arrancou galhos e folhas até encontrar o vidro do para-brisa todo rachado. Fechando o punho, socou com força, e faltou pouco para que ele inteiro passasse pela abertura.
Lizzie estava de lado, com a cabeça apoiada no banco do passageiro, mexendo os braços como se estivesse tentando se orientar. Os dois airbags tinham sido acionados, e o pó branco e seco do interior contrastava com a umidade da tempestade.
– Lizzie!
Pelo menos ela estava se mexendo.
Merda. Ele não tinha como abrir as portas. Teria que puxá-la.
Esticando o braço, tocou-a no rosto.
– Lizzie?
Ela piscou, e havia sangue em sua testa.
– Lane…?
– Estou com você. Vou te tirar daí. Está machucada? O pescoço, como está? As costas?
– Desculpe, bati no seu carro…
Ele fechou os olhos por uma fração de segundo e murmurou uma oração. Em seguida, voltou a agir.
– Vou ter que te arrastar para fora.
Abrindo caminho pelo interior do carro, conseguiu, de algum modo, soltar o cinto dela, segurá-la pelos braços…
E parou.
– Lizzie? Presta atenção, tem certeza de que não está machucada? Consegue mover as pernas e os braços? – Quando ela não respondeu, ele sentiu uma onda de pânico. – Lizzie? Lizzie!
TRINTA E OITO
De volta a Charlemont, Edward não estava prestando atenção em seu último cavalo no Derby. Não estava sequer na pista.
Não, ele estava tentando um novo papel.
O de perseguidor.
Atrás do volante do caminhão do Haras Vermelho & Preto, olhou pela janela do passageiro para a enorme mansão de tijolos aparentes diante da qual estava parado.
Construída no início dos anos 1900, a grande casa georgiana era propositadamente maior do que Easterly. Já fazia quase um século que os Sutton eram arrivistas bem-sucedidos, e quando a fortuna da família por fim superou a dos Bradford, aquela casa transformou-se num troféu para o seu triunfo. Com seus vinte ou trinta quartos e um vilarejo para os empregados, a mansão era quase uma cidade, na segunda melhor colina com a segunda melhor vista do rio e o segundo melhor jardim.
Mas, sim, vencia Easterly em relação ao tamanho.
Assim como a Destilaria Sutton Corporation, que era um terço maior que a CBB.
Edward meneou a cabeça e relanceou para o relógio barato que passara a usar. Caso Sutton se ativesse aos seus costumes, não tardaria a chegar.
Pelo menos, nenhum funcionário uniformizado acompanhado por um pastor alemão a ladrar veio incomodá-lo pedindo para que fosse embora. A segurança da propriedade da família de Sutton Smythe era tão rigorosa quanto a de Easterly, mas ele tinha duas vantagens. A primeira era o logotipo em seu veículo; a marca registrada V&P era como uma garantia real, e mesmo que fosse um serial killer parado no vestíbulo do tribunal de justiça no centro da cidade, existia uma grande possibilidade que a polícia o deixasse em paz. A segunda coisa que tinha a seu favor era o Derby. Sem dúvida, todos ainda estavam comentando sobre a corrida, acertando apostas, deliciando-se com suas glórias.
Em breve. Muito em breve ela estaria em casa.
Depois que Lane o levou de volta à fazenda, ele tomou alguns remédios e um drinque. Em seguida, releu os papéis da hipoteca… E ficou só mais dez minutos ali antes de apanhar a bolsa de festa de Sutton e claudicar até um dos caminhões.
Moe e Shelby e o resto dos ajudantes estavam na pista junto aos treinadores e aos cavalos. Ao se afastar dirigindo, pensou que era uma lástima desperdiçar todo o silêncio e a tranquilidade da fazenda, mas aquilo era uma coisa que ele tinha que resolver pessoalmente.
A chuva começou a cair – primeiro uns pingos, depois um chuvisco.
Voltou a olhar para o relógio.
Treze minutos. Estava apostando que ela chegaria em treze minutos. Enquanto as outras 200 mil pessoas em Steeplehill Downs teriam que caminhar pelo longo trajeto até seus carros, para em seguida enfrentar um congestionamento na tentativa de entrar na autoestrada, pessoas como os Bradford e os Sutton tinham escolta policial, o que os fazia entrar e sair rápido dos lugares.
E ele estava certo.
Doze minutos e alguns segundos mais tarde, um dos Mulsannes pretos da família parou diante da casa. O motorista saiu de trás do volante, abriu um guarda-chuva e seguiu para a porta de trás. Um segundo segurança fez o mesmo do outro lado.
O pai de Sutton saiu primeiro, e precisou do braço do motorista para chegar à casa.
Sutton, por sua vez, saiu lentamente, com os olhos fixos no caminhão. Depois de conversar com o motorista, pegou o guarda-chuva dele e veio caminhando, sem se dar conta de que estava estragando os sapatos de salto alto.
Edward abaixou o vidro quando ela se aproximou, tentando ignorar o seu perfume conforme ela chegava cada vez mais perto.
– Entre – disse, sem olhar.
– Edward…
– Não vou discutir o que você assinou com o meu pai aí na sua casa. Nem no seu jardim.
Ela emitiu um xingamento agressivo e marchou para a frente do caminhão. Com um grunhido, ele tentou se esticar como um cavalheiro teria feito para lhe abrir a porta, mas ela chegou antes. Além disso, seu corpo não permitiria que ele se esticasse tanto assim.
Depois de se acomodar no banco, Sutton ficou imóvel ao ver sua bolsa.
Ligando o veículo, ele murmurou:
– Pensei que você gostaria de ter a sua habilitação de volta.
– Tenho que estar no baile em quarenta e cinco minutos – ela disse quando ele começou a descer a colina.
– Você odeia ir a esses eventos.
– Tenho um encontro.
– Tem? Que bom, parabéns. – Uma fugaz fantasia de raptá-la para impedi-la de ir se passou em sua mente. Como num filme, a fantasia culminaria numa Síndrome de Estocolmo, pois ela se apaixonaria pelo seu sequestrador. – Quem é ele?
– Ninguém que te interesse.
Edward virou à esquerda e apenas continuou dirigindo.
– Então você está mentindo.
– Veja as colunas sociais amanhã – ela argumentou num tom enfastiado. – Você poderá ler tudo a respeito.
– Eu não assino mais o Charlemont Courier Journal.
– Escute, Edward…
– Que diabos você está aprontando? Fazendo um hipoteca da minha própria casa?
Mesmo que não estivesse olhando para ela, ele sentia o olhar gélido cravado em seu rosto.
– Primeiro, foi seu pai quem me procurou. Segundo, se voltar a falar nesse tom comigo, executarei a hipoteca imediatamente.
Edward a encarou.
– Como pôde fazer isso? Você é mesmo tão gananciosa assim?
– Os juros são mais do que justos! Você queria que ele tivesse ido a um banco, que fosse exposto? Manterei tudo em segredo, desde que os pagamentos sejam feitos.
Ele apontou um dedo para os documentos no banco.
– Quero que suma com isso.
– Você não tem parte no acordo, Edward. E, ao que tudo leva a crer, o seu pai precisa do dinheiro. Ou não teria me procurado.
– Aquela casa pertence à minha mãe!
– Sabe, se eu fosse você, estaria me agradecendo. Não sei ao certo o que anda acontecendo debaixo daquele seu teto, mas dez milhões não deveriam ser nada para a grande e gloriosa família Bradford!
Edward virou à esquerda e estacionou num dos parques públicos do rio Ohio. Cruzando o estacionamento deserto, ele parou ao chegar ao atracadouro, e desligou o motor. Àquela altura, a tempestade caía a valer, e os raios no céu inflamavam a raiva dentro dele.
Virando-se no banco, ele engoliu um gemido de dor.
– Ele não precisa do dinheiro, Sutton.
Claro, era uma mentira. Mas a última coisa que a família precisava era de boatos. Por mais que ele estivesse frustrado com Sutton, sabia que poderia confiar nela, só que deviam haver outras pessoas envolvidas. Advogados, banqueiros. Pelo menos ela poderia negar essa conversa, caso fosse mencionada.
– Então por que ele assinou aquele documento? – ela inquiriu. – Por que o seu pai se desdobrou para me desviar de uma reunião de negócios para propor isso?
Enquanto ela o confrontava, ele teve uma rápida imagem mental da noite anterior, dela em seu colo, montando sobre ele, sendo gentil com seu corpo alquebrado.
Logo se lembrou do pai tentando abraçá-la no escritório.
Aquilo tinha como ficar mais confuso?, perguntou-se enquanto seu ódio por William Baldwine ressurgia.
Edward se concentrou nos lábios dela e pensou na esposa do irmão.
– Ele já te beijou?
– O que disse?
– O meu pai. Ele já te beijou?
Sutton meneou a cabeça em descrença.
– Vamos nos concentrar na questão da hipoteca de Easterly, está bem?
– Responda a maldita pergunta.
Ela levantou as mãos.
– Você me viu no escritório com ele. O que acha?
Então, sim, Edward pensou com uma onda de fúria.
– Escute – Sutton disse –, não sei o que está acontecendo com a sua família, ou por que ele quis fazer isso. Só o que sei foi que era um bom negócio para mim… e pensei que poderia ajudá-los. Fui idiota, pensei que manter isso em segredo poderia beneficiá-los.
Depois de um momento, ele murmurou:
– Bem, você está errada. E é por isso que quero que rasgue o documento.
– O seu pai também tem uma cópia – ela observou, seca. – Por que não vai falar com ele?
– Ele fez o acordo com você porque me odeia. Ele o fez porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Pelo menos isso não era mentira, ele pensou quando ela arfou.
Deus bem sabia que ele já se sentia apenas meio homem perto dela…
Sutton se mexeu no banco, absorvendo as palavras de Edward. Não conseguiu esconder sua ansiedade.
O orgulho fez com que quisesse atingi-lo, mas as palavras iradas se atropelaram em sua cabeça, e só o que ela acabou fazendo foi contemplar o rio agitado e lamacento.
Os limpadores de para-brisa estavam ligados, movendo-se em intervalos, clareando a vista da margem oposta temporariamente. E, engraçado, a vida era meio assim também, não era? Você segue em frente, cuidando da sua vida, sem conseguir ver exatamente onde se encontra por causa dos tantos detalhes demandando atenção, quando, subitamente, as coisas se cristalizam e você recebe uma breve visão que a faz pensar “Ah, é aqui que estou”.
Sutton pigarreou, mas não adiantou muito, pois, quando falou, as palavras saíram meio roucas.
– Sabe, acho que nunca vou entender por que me considera tão pouco. É um mistério para mim.
Edward disse algo, mas ela falou por cima dele:
– Você deve saber que me apaixonei por você há muito tempo.
Isso fez com que ele se calasse.
– Você deve saber. Como não saberia? Eu o segui por anos… É por isso que me odeia? – Olhou na direção dele, mas não conseguiu ver muito por causa do boné. O que era bom, provavelmente. – Você me despreza por isso? Sempre pensei que você foi deixando porque pensou que os meus sentimentos poderiam lhe ser úteis de algum jeito, mas é algo mais doentio do que isso? Sei que desprezo a mim mesma pela minha fraqueza. – Ela acenou para os documentos. – Quero dizer, esses papéis são um exemplo perfeito de como sou patética. Eu não teria feito um negócio assim, às escondidas, com ninguém mais. Mas imagino que seja um problema meu, e não seu.
Ela voltou a fitar além do para-brisa.
– Sei que não gosta de falar sobre o que aconteceu na América do Sul, mas… Eu não dormi o tempo todo que você estava lá, e tive pesadelos nos meses seguintes. E depois você voltou a Charlemont e não quis me ver. Disse a mim mesma que era porque você não estava recebendo ninguém, mas não é verdade, é?
– Sutton…
– Não – interrompeu-o com firmeza. – Não vou livrá-lo dessa hipoteca. Seria apenas mais uma estupidez nessa coisa que tenho com você.
– Você entendeu tudo errado, Sutton.
– Entendi? Não tenho tanta certeza assim. Então, que tal se terminarmos tudo aqui, agora? Você pode ir se foder, Edward. Agora me leve de volta para a minha casa antes que eu ligue para a polícia.
Ela esperou que ele discutisse. Depois de um instante, porém, ele engatou a marcha a ré e deu a volta.
Na estrada, ela o encarou de perfil.
– É melhor rezar para que aquele seu pai faça os pagamentos dentro do prazo. Se ele não fizer, não hesitarei em pôr a sua família no olho da rua. E se acha que isso não vai fazer as pessoas desta cidade comentarem a respeito, você perdeu o juízo.
Foi a última coisa dita no caminho de volta para a casa dela.
Quando ele parou diante da mansão, ela fez questão de pegar a bolsa de festa e levá-la consigo, e o caminhão mal tinha parado quando ela abriu a porta.
Sutton tinha quase certeza de que ele disse seu nome uma última vez antes de ela sair, mas talvez não.
Quem se importava?
Enquanto corria debaixo da chuva, o mordomo lhe abria a porta de entrada.
– Senhorita! – ele exclamou. – A senhorita está bem?
Ela não se dera ao trabalho de abrir o guarda-chuva, e uma rápida olhada no antigo espelho ao lado da porta mostrou que ela parecia tão exausta e abatida quanto se sentia.
– Na verdade, não estou me sentindo muito bem. – Não era nenhuma mentira. – Por favor, avise Brandon Miller que vou me deitar. Eu deveria me encontrar com ele para irmos ao baile de hoje.
Ele se curvou.
– Devo telefonar para o doutor Qalbi?
– Não, não. Só estou exausta.
– Eu lhe levarei uma bandeja com chá.
A ideia lhe pareceu nauseante.
– Quanta gentileza. Muito obrigada.
Enquanto o homem se afastava na direção da cozinha, ela seguiu para o elevador. Felizmente, ele já estava parado no térreo e ela pôde entrar imediatamente. A última coisa que queria era se encontrar com o pai ou com o irmão.
Tirou os sapatos e caminhou descalça pelo corredor, entrando sorrateiramente no quarto e batendo a porta atrás de si.
Fechou os olhos, mas continuou ouvindo a voz de Edward em sua mente.
Ele fez isso porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Inacreditável.
E era engraçado. Mesmo com todo o dinheiro que ela tinha, toda a posição social e autoridade, o respeito e a adulação… Ela ainda podia ser reduzida a uma criança devastada.
Só era preciso ficar num local fechado com Edward Baldwine.
Por dez minutos.
Não mais, ela jurou. A obsessão doentia que tinha por aquele homem precisava cessar agora.
Nos recessos da mente, às vezes ela se perguntava se ele também não combatia uma obsessão por ela, a competição centenária entre as duas famílias impedindo-o de se aproximar. Mas isso, evidentemente, fora uma projeção injusta da parte dela, algum tipo de fantasia romântica nascida dos seus próprios sentimentos.
As únicas coisas gentis que ele lhe dissera foram quando ele pensou que ela era uma prostituta a seu serviço.
No entanto, a realidade estava visivelmente clara agora. Ele tinha acabado de apresentá-la num outdoor na proverbial praça central da sua cidade. Deixara tudo evidente, sem margem para dúvidas.
Ela podia ser patética.
Mas não era burra.
TRINTA E NOVE
Atingida na cabeça.
Enquanto Lizzie escorregava para o lado da cabine esmagada de seu Yaris, sentiu como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
Por uma combinação de Wolverine, The Rock e talvez por Schwarzenegger em seus tempos de glória.
E, como resultado, nada estava sendo muito bem processado – o fato de ter batido na traseira do carro de Lane, o motivo pelo qual seu rosto estava molhado, o barulho alto…
– Lizzie!
O som do seu nome dissipou parte da sua confusão, e ela olhou ao redor, tentando descobrir por que Deus, de repente, estava com a voz muito parecida com a de Lane.
– Lane? – ela disse, piscando repetidas vezes.
Por que ele estava entrando pelo para-brisa? Seria aquilo um sonho? – … machucada em algum lugar? – ele dizia. – Preciso saber antes de tentar te mover.
– Desculpe, o seu carro…
– Lizzie, você tem que me dizer se está machucada!
Caramba, quando ele ficava ansioso aquele sotaque sulista ficava mais evidente, não? Ela estava confusa. Machucada? Por que ela estaria…
E foi então que ela viu toda a folhagem.
Dentro do carro.
Muito bem, aquilo devia ser um sonho ruim, mas ela podia seguir a correnteza. Testou os braços, as pernas, inspirou fundo, moveu a cabeça… Tudo parecia funcionar bem.
– Eu estou bem – murmurou. – O que aconteceu?
– Vou te puxar para a frente, ajude se puder, ok?
– Claro. Eu…
Uau. Ai!
Mas ela estava determinada a participar daquele esforço. Mesmo quando seus músculos ficaram meio esticados demais, parecendo querer saltar para fora das juntas, ela apoiou os pés em qualquer coisa que conseguiu, se empurrando enquanto Lane a puxava e fez força para seguir em frente.
A chuva atingiu seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Arranhões. O vento a cegou.
Mas ele a arrancou para fora.
E ela logo se viu nos braços dele, ao encontro do seu peito, sentindo-o estremecer.
– Ai, Deus – ele disse, rouco. – Ah, graças a Deus, você está viva…
Lizzie se segurou nele, ainda sem entender por que estavam sentados numa árvore. Como é que os carros tinham subido na…
Um raio espocou no céu tão perto deles que ela sentiu os ouvidos explodindo.
– Temos que entrar – Lane rugiu. – Venha.
Em algum momento no processo de tropeçar e cair no chão, o cérebro dela voltou à ativa, e o que ela viu quase a paralisou.
Metade da magnífica árvore que crescia ao lado da sua casa tinha esmagado seu carro.
No fim, ela não colidira com o Porsche.
A batida que ouviu era o seu sedãzinho sendo esmagado por todo aquele peso.
– Lane, o meu carro…
Foi tudo o que conseguiu dizer antes de ele a pegar nos braços e sair correndo na direção da casa. Quando ele saltou na varanda, ela o empurrou e saiu dos braços dele, recusando-se a ir mais longe. Cobrindo a boca com a mão ao ver seu carro daquele jeito, ela…
Sangue. Havia sangue por toda parte sobre ela.
Uma súbita tontura a acometeu, fazendo-a cambalear ao olhar para si mesma.
– Lane… Estou machucada?
– Para dentro – ele ordenou, conduzindo-a.
Enquanto a empurrava para dentro e empenhava todas as suas forças para fechar a porta, o coração dela começou a bater forte quando deu uma bela olhada no seu salvador: ele também estava todo molhado e ensanguentado.
Mas isso importava?
Os dois se abraçaram com tanta pressa que as roupas ensopadas se grudaram, os corpos voltando a se ligar, partilhando calor, segurando-se firmes um ao outro.
– Pensei que tivesse te perdido – ele disse ao ouvido dela. – Ah, meu Deus, pensei que…
– Você me salvou, você me salvou…
Ambos falavam apressadamente, tropeçando sobre as palavras, trêmulos pelo que quase acontecera. Ele a beijou e ela retribuiu.
Só que, depois de um tempo, ela se afastou.
– Acho que quem está sangrando é você.
– São só uns arranhões…
– Oh, Deus! Olhe para os seus braços, as suas mãos!
Ele estava todo machucado; sua pele tinha vários cortes por ter brigado com os galhos para chegar até ela, e havia contusões no rosto e no pescoço.
– Não estou nem aí – ele disse. – É com você que estou preocupado.
– Você precisa de um médico?
– Ora, por favor… A árvore caiu em cima de você, lembra?
E foi então que as luzes se apagaram.
Lizzie ficou imóvel um segundo, mas logo começou a rir com tanta intensidade que seus olhos arderam. Eram emoções demais, coisas demais para lidar… E, antes que se desse conta, Lane estava gargalhando também. Os dois se abraçaram, libertando-se de toda a tensão, dos problemas da família dele, do estresse do Brunch… até aquele horrendo acidente de carro.
– Banho? – ela sugeriu.
– Pensei que nunca fosse pedir.
Normalmente, ela ficaria irritada com as marcas dos pés na sala e nos degraus, mas não agora. A lembrança de todo aquele peso sobre seu carro a fazia priorizar o que era importante.
– Juro que pensei ter batido no seu carro – ela disse ao chegarem ao segundo andar.
– Não teria sido um problema, se tivesse mesmo.
Ah, as alegrias de ser um Bradford, ela pensou.
– Tenho certeza de que você tem um Porsche reserva.
– Mesmo se eu não tivesse, não teria tido importância, contanto que você estivesse bem.
Passaram ao mesmo tempo pelo batente do banheiro dela e se apertaram dentro do box, e quando ela ligou o chuveiro, ele partiu para cima dela, desabotoando sua roupa, abrindo zíperes, tirando tudo o que a deixava fria e molhada.
Arrepios se formaram nos braços e nas pernas dela, provocados mais pelo calor do olhar dele que pelo frio do ar. Logo Lane também se despiu, deixando as roupas caídas junto às dela.
– Para a água – ela grunhiu quando ele a acariciou no pescoço com o nariz, beijando um caminho até a boca.
Ele soltou um xingamento quando se colocaram debaixo do jato quente e suave. E quando a água os lavou, ela ficou aliviada: eram apenas arranhões, nada sério.
E esse foi seu último pensamento antes que as mãos grandes dele começassem a viajar pelos seus seios escorregadios, e a boca descesse com avidez sobre a dela, e aquele desejo erótico tão conhecido se reacendesse entre eles.
Eu te amo, ela pensou.
Eu te amo tudo de novo, Lane.
Algum tempo depois, quando a eletricidade voltou, depois de Lane ter feito amor com sua Lizzie duas vezes no chuveiro e mais uma na cama, depois que desceram e comeram os restos da lasanha congelada e boa parte do sorvete de pêssego, depois que voltaram para cima e foram para a cama de novo… todos os problemas do dia voltaram para ele.
Felizmente, Lizzie estava adormecida no escuro, por isso qualquer que fosse sua expressão, que já não tinha forças para esconder, não seria um problema.
Fitando o teto, sua mente começou a girar, e ele mal percebeu que o sol se levantava no horizonte. Deu uma rápida olhada para o rádio-relógio de Lizzie e se surpreendeu ao ver que ficara acordado a noite inteira.
Deslizando para fora dos lençóis, pôs-se de pé e foi para o banheiro. Suas roupas não tinham salvação; pegou-as no chão e jogou-as no lixo. A única coisa que ainda podia ser usada era a cueca.
Era melhor que dirigir nu para casa no dia do Senhor.
De volta ao quarto, aproximou-se de Lizzie.
– Tenho que ir.
Ela despertou de pronto, e ele a acariciou até que ela voltasse a apoiar a cabeça no travesseiro.
– Tenho um encontro com uma linda mulher e não posso faltar – ele disse.
Lizzie sorriu de uma maneira sonolenta, que fez com que ele desejasse ficar olhando para ela para sempre.
– Mande um oi.
– Pode deixar. – Ele a beijou na boca. – A propósito, hoje eu trago o jantar.
– Congelado?
– Não, vai estar mais quente que o inferno.
O sorriso que ela lhe lançou o atingiu direto no sangue, excitando-o, apesar de não haver tempo para fazer nada a respeito.
– Eu te… – Lane se deteve, sabendo que ela não gostaria daquela despedida. – Eu te vejo às cinco da tarde.
– Estarei aqui.
Ele a beijou uma vez mais e foi para a porta.
– Espere. E as suas roupas? – ela disse em voz alta.
– Não podem me prender. As partes ofensivas estão cobertas.
O riso dela o acompanhou até a escada e a saída da casa. E a visão de metade da copa daquela árvore fez o coração dele saltar.
Quando inspirou fundo, seu primeiro instinto foi o de pegar o telefone e ligar para Gary McAdams para que ele retirasse o galho e levasse aquela lata amassada que era o carro dela para um pátio de demolição. Mas se conteve. Lizzie não era do tipo de mulher que apreciaria esse tipo de manobra. Ela devia ter os próprios contatos, ideias de como lidar com aquele problema, planos para seu Yaris.
Conhecendo-a, ela tentaria fazer com que ele voltasse a funcionar.
Sacudiu a cabeça e foi até seu carro. O Porsche quase foi destruído também, sendo oupado por pouco. Depois de tirar alguns galhos do teto, entrou, ligou o carro e seguiu seu caminho lentamente ao largo dos galhos caídos e faixas de terra cheias de água. Assim que chegou ao asfalto, acelerou na direção de Charlemont, atravessando o rio e subindo a colina de Easterly.
Estava na metade do caminho quando teve que desacelerar porque outro carro vinha descendo.
Um sedã Mercedes preto S550.
E, atrás do volante, com imensos óculos escuros e um véu preto como se estivesse de luto, sua futura ex-mulher.
Chantal não olhou para ele, mesmo sabendo muito bem quem estava passando.
Tudo bem. Com um pouco de sorte, ela estaria de mudança e poderiam deixar que os advogados cuidassem de tudo, dali por diante. Deus bem sabia que ele tinha outras coisas para se preocupar.
Estacionou o Porsche na frente da casa, entrou pela porta principal e parou quando viu bagagem no vestíbulo.
Não era de Chantal. Ela tinha conjuntos da Louis Vuitton. Aquelas eram Gucci, marcadas com as iniciais RIP.
Richard Ignatius Pford.
Uma cretina saindo, ele pensou. E outro entrando.
Que diabos Gin estava pensando?
Ah, espere. Ele sabia a resposta. Para uma mulher com pouca formação acadêmica e nenhuma experiência profissional, sua irmã tinha um talento incontestável: saber cuidar de si mesma.
Assustada com a questão financeira, ela seguiu as orientações do pai e se agarrou ao tolo endinheirado a fim de que, não importando o que acontecesse com a família, seu estilo de vida não fosse afetado. Ele só desejava que o custo para ela não se provasse alto demais. Richard Pford era um filho da puta odioso.
Só que aquele circo não era seu, tampouco os macacos que nele se apresentariam. Por mais que o entristecesse, fazia tempo que aprendera a deixar que Gin seguisse sua cabeça e fosse em frente. Na verdade, não havia uma estratégia para lidar com a sua irmã.
Subiu os degraus rapidamente, foi para o quarto, tomou banho, se barbeou e vestiu o terno risca de giz. Precisou de duas tentativas para acertar a gravata borboleta.
Caramba, como odiava aquelas coisas.
Desceu pela escada dos empregados, cortou caminho pela cozinha e foi parar diante da porta da senhorita Aurora. Como fizera na primeira vez em que fora visitá-la quando ali chegou, verificou se estava com a camisa bem enfiada dentro da calça antes de bater à porta.
Mas parou antes de bater. Por algum motivo, sentiu um medo insano de que desta vez ela não atenderia. Que ele esperaria… e repetiria, e esperaria um pouco mais…
E então teria que invadir, forçando a porta como fizera no escritório de Rosalinda… E encontraria mais uma morta.
A porta se abriu, e a senhorita Aurora mostrou uma carranca.
– Está atrasado.
Lane se sobressaltou, mas logo se recobrou.
– Desculpe.
A senhorita Aurora resmungou e deu um tapinha em seu chapéu azul-claro de igreja. O conjunto dela era tão brilhante quanto um céu primaveril, e ela usava luvas e sapatos combinando, e uma perfeita bolsa do tamanho de uma raquete de tênis. O batom era vermelho-cereja, os brincos, os de pérola que ele lhe dera três anos atrás, e ela também usava o anel de pérola que lhe dera no ano anterior a esse.
Ofereceu-lhe o braço quando ela fechou a porta, e ela o aceitou.
Juntos, caminharam até a porta da frente, passando pelo senhor Harris, que sabia que não deveria comentar sobre a porta que estavam usando.
Lane acompanhou a senhorita Aurora até o Porsche e a acomodou no carro. Depois deu a volta e colocou-se atrás do volante.
– Vamos chegar atrasados – ela disse com rispidez.
– Farei com que cheguemos a tempo. Fique só observando.
– Não gosto de alta velocidade.
Ele se viu olhando para ela, piscando.
– Então feche os olhos, senhorita Aurora.
Ela deu um tapa no braço dele e o encarou.
– Você não está velho demais para levar uma surra?
– Sei que quer se sentar num dos bancos da frente.
– Tulane Baldwine, não ouse infringir a lei.
– Sim, senhora.
Com um sorriso maroto, ele pisou no acelerador, voando colina abaixo. Quando relanceou para a senhorita Aurora, viu que ela estava sorrindo.
Por um momento, tudo estava certo em seu mundo.
QUARENTA
A Igreja Batista de Charlemont ficava no West End e suas tábuas brancas se destacavam em meio aos quarteirões e quarteirões de unidades residenciais de baixa renda. Pense em algo imaculado. Desde o gramado muito bem aparado, o estacionamento recém-varrido, os vasos de plantas ao lado das portas duplas até as quadras de basquete nos fundos, o lugar era tão bem cuidado que parecia ter saído de um cartão postal dos anos 1950.
E às 9h20 da manhã de domingo, a igreja estava lotada.
No instante em que Lane se aproximou com o carro, as saudações surgiram tão rápido e de tantos lados que ele teve que desacelerar. Abaixando os dois vidros, ele apertou mãos, cumprimentou as pessoas pelos seus nomes, aceitou desafios para algumas partidas. Estacionou nos fundos, ajudou a senhorita Aurora a sair e depois a conduziu pela calçada que ladeava a igreja.
Havia crianças por toda parte, com vestidinhos florais e terninhos, tão coloridos quanto uma caixa de lápis de cor; o comportamento delas era muito melhor que o do grupo de adultos que participava das festas em Easterly. Todas as pessoas, todas mesmo, pararam para falar com ele e com a senhorita Aurora, querendo saber como estavam, colocando a conversa em dia. Nesse processo, ele se deu conta do quanto sentia falta daquela comunidade.
Engraçado, ele não era de frequentar a igreja, mas sempre que estava em casa, nunca deixava de acompanhar a senhorita Aurora.
Lá dentro, devia haver umas mil pessoas; as fileiras de bancos estavam repletas pelos féis, todos conversando, se abraçando, rindo. Era muito cedo ainda para que ligassem os ventiladores, mas isso logo aconteceria, bastava chegar junho. Lá na frente, havia uma banda com guitarras elétricas, bateria e baixos, e ao lado dela os cantores que compunham o coro. Atrás disso tudo, estava o admirável órgão – do tipo capaz de arrebentar as portas e as janelas e até mesmo o telhado –, ligando a congregação diretamente aos céus.
Max deveria estar aqui, Lane pensou. Seu irmão tinha participado do coro por diversos anos antes de partir para a faculdade.
Mas era uma tradição perdida. Ao que tudo levava a crer, para sempre.
A duas filas a partir da frente, havia espaço para eles, pois uma família de sete se espremeu para que coubessem.
– Muito obrigado – disse Lane, apertando a mão do pai. – Ei, você não é irmão de Thomas Blake?
– Sou, sim – o homem assentiu. – Sou Stan, o mais velho. E você é o menino da senhorita Aurora.
– Sim, senhor.
– Por onde andou? Faz tempo que não o vejo aqui.
Enquanto a senhorita Aurora erguia uma sobrancelha na sua direção, Lane pigarreou.
– Estive no norte.
– Meus sentimentos – disse Stan. – Mas, pelo menos, agora voltou.
– Aqueles são os meus sobrinhos. – A senhorita Aurora apontou para o outro lado do corredor. – D’Shwane está jogando para os Colts de Indiana agora. É recebedor. E Qwentin, ao lado dele, é atacante no Miami Heat.
Lane ergueu a mão quando os dois homens perceberam o olhar da senhorita Aurora.
– Lembro de quando jogavam na faculdade. Qwentin foi um dos melhores atacantes que os Águias já tiveram, e eu estava lá quando D’Shawne nos ajudou a ganhar o Sugar Bowl.
– São bons meninos.
– Toda a sua família é.
O órgão deu a primeira nota e a banda começou a tocar, e do nártex, o coral com beca vermelho-sangue entrou, cinquenta homens e mulheres andando lado a lado, cantando durante a procissão. Atrás deles, o reverendo Nyce seguia com a Bíblia junto ao peito; o homem era alto e distinto e fitava o seu rebanho com afeto. Ao ver Lane, estendeu o braço e apertou-lhe a mão.
– É bom tê-lo de volta, filho.
Quando chegou a hora de todos voltarem a se sentar, Lane sentiu uma sensação estranha. Perturbado, esticou o braço e segurou a mão da senhorita Aurora na sua.
Só conseguia pensar naquele galho de árvore caindo na noite anterior. A visão do carro amassado de Lizzie. O medo eletrizante que sentira ao se arrastar pelos galhos no meio da tempestade, gritando o nome dela.
Quando a banda começou o seu hino gospel predileto, ele olhou para o altar e só balançou a cabeça.
Claro que tinha que ser essa música, pensou.
Como se a própria igreja o estivesse acolhendo em casa também.
Levantou-se com a senhorita Aurora, e começou a se mover com o resto da congregação, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
E se viu cantando junto:
– Quero que saiba que Deus está ao meu lado…
Uma hora e meia mais tarde, o culto terminou e era hora do lanche. A congregação se dirigiu para o andar inferior para tomar ponche, comer uns cookies e conversar.
– Vamos descer – Lane disse.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Preciso voltar. Tenho trabalho.
Ele franziu o cenho.
– Mas nós sempre…
Ele se deteve. Não havia nada que requeresse cuidados em Easterly. Portanto, a única explicação era a que o fazia querer ligar para a emergência.
– Não olhe para mim assim, menino – ela murmurou. – Não é uma emergência médica, e mesmo que fosse, não vou morrer na minha igreja. Deus não faria isso com esta congregação.
– Vamos, apoie-se no meu braço.
Pareceram despreocupados ao andarem contra a maré e, puxa, ele preferiria levá-la nos ombros tal qual um bombeiro, abrindo caminho como um jogador da linha de defesa. Na metade do trajeto até a porta, teve que parar para conversar com Qwentin e D’Shwane – além dos dezessete outros membros da família da senhorita Aurora. Normalmente, ele teria adorado as conversas, mas não naquele dia. Não queria ser rude, só estava muito ciente do quanto a senhorita Aurora se apoiava em seu braço.
Quando, por fim, chegaram à porta da igreja, ele disse: – Espere aqui. Vou trazer o carro. E não, não tem discussão, pode parar já.
Ele meio que esperou que ela se opusesse, e quando ela não o fez, afastou-se correndo, indo para a parte mais distante do estacionamento.
Voltando com o Porsche, quase esperou encontrá-la desmaiada.
Nada disso aconteceu. Ela estava conversando com uma mulher magra, muito majestosa, que tinha o rosto de Nefertiti, um simples terno preto e um par de óculos sem aro diante de olhos muito aguçados.
Ah, uau, ele pensou. Aquilo sim era podia ser chamado de vento do passado.
Lane saiu do carro.
– Tanesha?
– Lane, como está? – Tanesha era a filha mais velha do reverendo. – É bom ver você.
Abraçaram-se e ele assentiu.
– Também é bom te ver. Já virou médica?
– Estou fazendo residência aqui na UC.
– No que vai se especializar?
– Oncologia.
– Ela está fazendo o trabalho do Senhor – disse a senhorita Aurora.
– Como está Max? – Tanesha perguntou.
Lane pigarreou.
– Eu é que não sei. Não falo com ele desde que ele foi para a costa oeste. Você sabe como ele é, imprevisível.
– Sim, ele era mesmo.
Momento. Embaraçoso.
– Bem, vou levar a senhorita Aurora de volta para casa – ele disse. – Foi bom te ver.
– Você também.
As duas mulheres falaram num tom baixo por um instante, e depois a senhorita Aurora permitiu que ele a conduzisse pelos degraus até o carro.
– Sobre o que falavam? – ele perguntou quando se afastaram.
– Sobre o ensaio do coral na semana que vem.
– A senhora não está no coral. – Olhou para ela quando ela não disse nada. – Senhorita Aurora? Quer me contar alguma coisa?
– Sim.
Ai, Deus…
– O quê?
Ela o segurou pela mão, mas não olhou para ele.
– Quero que se lembre do que lhe disse antes.
– E o que foi?
– Tenho Deus. – Apertou a mão dele com força. – E tenho você. Sou mais rica do que poderia imaginar.
Ela o segurou pela mão durante todo o trajeto de volta a Easterly, e ele soube… ele soube. Ela estava tentando prepará-lo para o que estava por vir. Também percebeu que era por isso que ele tinha insistido que Edward a visse no dia anterior, quando o irmão estivera na casa.
Se ao menos houvesse um modo de localizarem Max.
– Não quero que você parta – Lane disse, emocionado. – Vai ser duro demais.
A senhorita Aurora ficou calada até chegarem à base da colina de Easterly.
– Falando em partir – ela disse –, fiquei sabendo que Chantal foi embora.
– Sim, estou pondo um fim nisso.
– Bom. Talvez você e Lizzie finalmente voltem a ficar juntos. Ela é a mulher para você.
– Sabe, senhorita Aurora, eu concordo. Agora só preciso convencê-la.
– Eu ajudo.
– E eu aceito a sua ajuda. – Olhou para ela de relance. – A propósito, ela mandou um oi.
A senhorita Aurora sorriu.
– Isso quando você a deixou hoje cedo?
Enquanto Lane gaguejava e ficava vermelho como o Mercedes que lhe dera, a senhorita Aurora riu dele com gosto.
– Você é um menino levado, Lane.
– Sei disso. É por isso que a senhora precisa ficar por perto, para me fazer andar na linha. Não canso de lembrá-la.
Em vez de parar na frente da casa, ele deu a volta até os fundos para parar mais perto dos aposentos dela. Aproximando-se da porta de trás, freou, desligou o motor… e não saiu.
Olhando para ela, sussurrou:
– Estou falando sério. Preciso da sua ajuda aqui, na Terra… Nesta casa, na minha vida.
Deus, foi impossível ignorar o fato de que três dias atrás ela estivera berrando com ele, dizendo que não iria a parte alguma, mas, agora, algo mudara. Havia alguma coisa diferente.
Antes que ela conseguisse dizer qualquer coisa, a porta da garagem subiu e o motorista saiu com o Phantom. O carro de 500 mil dólares passou por eles e seguiu até a frente da casa.
– Ele é maligno – Lane disse. – Esse meu pai…
A senhorita Aurora ergueu as mãos.
– Amém.
– Onde diabos ele vai hoje cedo?
– Pra igreja é que não.
– Talvez tenha ido atrás de Chantal.
No instante em que proferiu as palavras, soltou um xingamento.
– Do que está falando?
Lane sacudiu a cabeça e saiu.
– Venha, vamos entrar.
Mas não entraram. Quando ele deu a volta e abriu a porta dela, ela continuou sentada com a bolsa no colo, com as mãos enluvadas uma sobre a outra.
– Pode contar.
– Senhorita Aurora…
– O que ele fez com você?
– Isso não é sobre mim.
– Se é sobre aquela sua esposa horrível, pode apostar o seu traseiro como é da sua conta.
Lane combateu o desejo de bater a cabeça no capô do Porsche.
– Não tem nenhuma importância.
– Eu sei que ela se livrou do seu bebê.
Quando aqueles olhos negros se ergueram para ele, Lane xingou uma vez mais.
– Senhorita Aurora. Não faça isso. Deixe estar. Existem muitas outras coisas com as quais vale a pena se preocupar.
Só o que ela fez foi erguer uma sobrancelha.
Lane se acomodou sobre os calcanhares. Deus, como ele amava aquele rosto, cada uma das rugas e marcas de expressão, cada curva e todas as linhas. E ele amava o fato de ela ser uma dama no comportamento, mas forte como um homem.
Ela e Lizzie eram muito parecidas.
– Existem algumas coisas que não valem a pena saber.
– E outras que você não deveria guardar para si.
Por algum motivo, ele se viu abaixando o olhar, como se tivesse algo de que se envergonhar.
– Ela está grávida, senhorita Aurora. E o filho não é meu.
– De quem é? – ela inquiriu.
O resto da história foi transmitido silenciosamente. E o mais engraçado foi que ela não se mostrou totalmente surpresa.
– Tem certeza? – ela perguntou baixinho.
– Foi o que ela disse. E quando o confrontei, a resposta apareceu na cara dele.
A senhorita Aurora fitou adiante, com a testa crispada e a cabeça tão baixa que ele já não enxergava os olhos dela.
– Deus o punirá.
– Eu não esperaria sentado, se fosse a senhora. – Ele se levantou e lhe estendeu a mão. – Está ficando quente aqui fora. Venha.
A senhorita Aurora voltou a fitá-lo nos olhos.
– Eu te amo.
Foi o jeito de ela se desculpar pelo que sabia que todos eles tiveram que aguentar por causa do pai. Não apenas aquela história hedionda com Chantal, mas todas as décadas de tudo o que se passara, desde que eram crianças.
– Sabe – ele disse –, eu nunca te agradeci. Por todos estes anos em que esteve presente, eu nunca… Foi a senhora quem nos manteve nos trilhos, especialmente eu. Sempre esteve ao meu lado. Sempre está ao meu lado.
– Deus me deu esse trabalho sagrado quando cruzou a minha vida com a de todos vocês.
– Eu te amo, mãe – disse emocionado. – Para sempre.
QUARENTA E UM
O som da serra elétrica nas mãos de Lizzie era tão alto que ela não ouviu a aproximação do carro. E foi só depois que deixou de acelerar e o motor da máquina silenciou que ela ouviu uma voz muito sensual e máscula anunciar que ela já não estava mais sozinha.
– Você é a mulher mais sexy que eu já vi.
Girando e olhando para baixo, ela encontrou Lane encostado no seu Porsche, de braços cruzados, pés fincados no chão e expressão intensa.
Do seu ponto de vista vantajoso – de cima do capô amassado do seu Yaris –, ela suspendeu a serra elétrica acima da cabeça e deu umas duas aceleradas.
– Ouça o meu urro.
– Ouça a minha súplica.
Ela teve que rir ao pular para o chão.
– Fiz algum progresso, mas não acho que…
Lane a interrompeu encostando a boca na dela, e o beijo rapidamente se tornou tão erótico que ele quase a dobrou para trás. Quando se separaram um pouco, os dois arfavam.
– Então, oi – ele disse.
– Você, por acaso, sentiu a minha falta?
– Todos os segundos. Deus, como eu amo v… amo o modo como você maneja essa serra.
Foi impossível não perceber o que ele quis dizer, e ela também teve que se bloquear mentalmente quando o instinto quase fez com que deixasse escapar a mesma declaração.
Contudo, Lane encobriu o desconforto com desembaraço.
– Como prometi, trouxe o jantar. Comida do clube. Peguei aquela salada que espero que ainda goste, e uma montanha de lombo fatiado. Sabe, para o caso de termos que nos recobrar.
– Do quê? – perguntou, com malícia, abaixando a serra.
– Ah, você sabe do que… – Só que ele franziu o cenho. – A menos que… bem, você esteja dolorida por causa da noite passada.
Lizzie sacudiu a cabeça.
– Nem um pouco.
– Uma pena.
– Como é?
Aproximando-se, deixou a boca pairar sobre a dela e lambeu seus lábios.
– Pensei que eu poderia dar uns beijinhos para melhorar.
– Você ainda pode fazer isso.
Quando ele a girou e a encostou contra o carro, ela sentiu o coração começar a flanar e pensou que podia muito bem se soltar. Uma árvore tinha destruído seu carro, seu quintal estava uma bagunça, e havia galhos espalhados em toda a sua propriedade… mas Lane estava ali, e se lembrava que ela gostava de salada Cobb e, maldição, ele era o melhor beijador do planeta.
Amanhã ela voltaria a andar nos trilhos. Amanhã ela se lembraria de tomar cuidado…
Lane se afastou um tantinho.
– Me diz uma coisa: o que você acha de fazer sexo a céu aberto?
Ela acenou para as três vacas que estavam perto da varanda.
– Acho que a nossa plateia pode duplicar quando o meu vizinho descobrir que essas senhoras vieram explorar minha terra de novo.
– Então vamos entrar agora mesmo antes que eu fique louco.
– Longe de mim me colocar entre você e a sua sanidade mental.
Ele tinha até uma maleta de roupas, ela percebeu, levando as coisas para dentro.
– Tenho novidades – ele disse ao fechar a porta da frente.
– O quê?
– Chantal saiu de casa hoje cedo.
Lizzie parou e o fitou. Ele estava vestindo sua roupa casual: bermuda e uma camisa polo IzOD, mocassins Gucci, óculos escuros Ray Ban, e o relógio Cartier, o conjunto fazendo com que ele parecesse saído de uma foto cuja legenda era “Os belos e os ricos”. Até o cabelo estava alisado para trás, embora se devesse ao fato de ele ter acabado de sair do banho e ainda estar úmido.
O coração dela oscilou, e ela sentiu um medo momentâneo. Lindo como estava, ele parecia o pôster de um homem em quem não se podia confiar, ainda mais no que se referia a mulheres como Chantal…
Como se ele pudesse ler sua mente, Lane tirou os óculos escuros, revelando seus olhos. Em contraste com tudo o que sua aparência dizia, eles eram límpidos, firmes e tranquilos.
Honestos.
– É mesmo? – ela sussurrou.
– Mesmo. – Ele se aproximou e a virou na sua direção. – Lizzie, acabou. Tudo acabou. E antes que me pergunte, não é só por sua causa. Eu deveria ter metido uma bala nesse casamento há muito tempo. Falha minha.
Fitando seu rosto, ela xingou baixinho.
– Desculpe, Lane. Desculpe ter duvidado de você, eu só…
– Psiu. – Ele a silenciou com os lábios. – Não vivo no passado. É perda de tempo. Só me importo com o presente.
Passando os braços ao redor do pescoço dele, ela curvou o corpo.
– Entãããooo… Não consegui ficar naquela coisa de sermos só amigos, consegui?
– Estou perfeitamente de acordo.
– Acho que esse foi o melhor jantar da minha vida.
Lane fitou-a da outra ponta do sofá e viu quando Lizzie se largou sobre as almofadas, pousando a mão sobre a barriga. Quando as pálpebras dela começaram a pesar, ele a visualizou sobre aquele galho como um anjo vingador, cortando os galhos que mataram seu carrinho.
Mesmo tendo passado a primeira hora desde a sua chegada um em cima do outro, Lane sentiu a ereção engrossar de novo.
– É um milagre – murmurou.
– Eu ter gostado tanto assim do lombo? Acho que não.
– Quero dizer, estar aqui com você.
Os olhos azuis voltaram a se abrir lentamente.
– Sinto a mesma coisa. – Quando ele começou a rir no fundo da garganta, ela o deteve, levantando as mãos. – Não, você não pode dormir sobre os louros da vitória.
Deixando o guardanapo de lado, ele pairou sobre seu corpo, e montou nela.
– Sabe, tenho outras opções de comemoração.
Movendo os quadris, ele sentiu uma pontada de desejo quando ela mordeu o lábio inferior, como se estivesse pronta para mais dele.
– Quer que eu demonstre? – perguntou, esfregando o nariz no seu pescoço.
As mãos dela o afagaram nas costas.
– Quero sim.
– Hummm…
O som do telefone sobre a mesinha lateral fez com que ele saltasse para pegá-lo, assustado.
– Não a senhorita Aurora… Por favor, que não seja sobre a senhorita Aurora…
– Ah, meu Deus… Lane, ela está…
Assim que ele viu que a ligação começava com o código de área 917, relaxou, aliviado.
– Graças a Deus. – Olhou para ela. – Tenho que atender. É um amigo de Nova York.
– Vá em frente.
Ele atendeu e disse:
– Jeff.
– Sentiu minha falta? – seu velho colega de quarto disse. – Sei que é por isso que deixou recado.
– Não chegou nem perto.
– Bem, não vou mandar aqueles bolinhos de canela que você come de manhã, à tarde e à noite pelo correio…
– Preciso saber quanto tempo você tem de férias.
Silêncio absoluto. Em seguida:
– A Série Mundial de Pôquer não está acontecendo agora. Por que está me perguntando isso?
– Preciso da sua ajuda. – Distraído, ele se encostou nas almofadas e posicionou as pernas de Lizzie sobre o seu colo. Depois do banho, ela tinha vestido shorts, e ele adorava ficar alisando aquelas panturrilhas macias e musculosas. – Estou com um problema sério aqui.
Jeff deixou a brincadeira de lado.
– Que tipo de problema?
– Preciso que alguém me diga se o meu pai está desviando dinheiro da empresa. Algo em torno de cinquenta milhões de dólares.
Jeff assobiou baixinho.
– É muita grana, cara.
– O meu irmão conseguiu me dar acesso a… sei lá, umas quinhentas páginas de relatórios financeiros e planilhas, mas eu não faço a mínima ideia do que tenho nas mãos. Quero que você venha para cá e me diga o que aconteceu, e isso tem que ser feito agora, antes que ele descubra que estou de olho e se livre de tudo o que possa incriminá-lo.
– Escuta aqui, Lane, você sabe que eu te amo como o irmão que nunca tive, mas o que você precisa é de um perito contábil. Existem pessoas que se especializaram nisso, e por um bom motivo. Deixe que eu encontre alguém em quem você possa confiar…
– É exatamente essa a minha preocupação, Jeff. Não posso confiar em ninguém com relação a esse assunto. Estamos falando da minha família.
– Podemos blindar todos os documentos. Posso ajudá-lo com isso, de modo que quem for fazer o…
– Quero você.
– Porra, Lane.
Por conhecer o homem há anos, Lane sabia muito bem que sua tarefa agora era se calar e deixar que Jeff ruminasse o assunto sozinho. Nada o convenceria nem o persuadiria, e se ele continuasse a falar, o tiro sairia pela culatra.
Em vez disso, Lane sabia que, se ficasse calado, todos aqueles anos de amizade resolveriam a questão.
Bingo!
– Insisto para que depois alguém revise o meu trabalho – Jeff murmurou. – Cacete, isso não é negociável. Não vou me responsabilizar por ferrar com tudo só porque você tem uma noção romântica de que sou brilhante com números.
– Mas você é.
– Maldição, Baldwine.
– Não posso mandar o meu avião. Chamaria muita atenção.
– Tudo bem. Um da minha família está na costa leste. Viajo amanhã de manhã e, não, não posso ir antes. Vou ter que ajeitar umas coisas no trabalho.
– Fico te devendo.
– Claro que fica. E pode começar a me pagar amanhã. Quero bebida grátis e mulheres à vontade, se vou ter que fazer isso.
– Cuido de tudo. Vou até te pegar no aeroporto, é só me dizer que horas vai chegar.
Jeff estava murmurando obscenidades quando desligou sem nem se despedir.
Quando Lane abaixou o aparelho, soltou um longo suspiro.
– Graças a Deus.
– Quem era?
– Acho que posso chamá-lo de meu melhor amigo. Foi com ele que me hospedei enquanto estive no norte. Jeff Stern. Financista brilhante. Se existe alguém que pode entender o rastro do dinheiro, Jeff é o cara. E, depois… – Lane esfregou os olhos. – Deus, acho que vou ter que procurar a polícia. Talvez a Comissão de Valores Imobiliários. O que eu queria mesmo era lidar com tudo isso sem alarde.
– E se o seu pai tiver infringido a lei?
Uma súbita imagem de William Baldwine num macacão laranja o deixou aliviado, de uma maneira doentia, por sua mãe estar desconectada da realidade.
– Não vou interferir com as autoridades. O que me preocupa é ele ter usado seu poder como procurador da minha mãe para secar as contas dela, mas não tenho acesso aos registros. Está tudo em poder da Fundos Prospect.
– Se a polícia ou o FBI se envolverem, eles vão conseguir descobrir isso.
Lane assentiu, lembrando-se do saco com o corpo de Rosalinda saindo de Easterly.
– Se Rosalinda cometeu suicídio por causa disso, o meu pai tem o sangue de outra pessoa nas mãos. Ele precisa ser levado à Justiça.
– Sabe, sempre tento olhar o lado positivo de tudo, mas… – Lizzie balançou a cabeça. – Bem, não importa o que aconteça, estou do seu lado, está bem?
Olhando para ela, ele disse, sério:
– É só disso que preciso. Não importa como tudo vai terminar, se eu tiver você…
O telefone tocou novamente, e ele riu ao apanhar o aparelho.
– Lá vem ele se arrependendo… Não, Jeff, não vai poder recuar agor…
– Você está perto de alguma TV?
Lane se endireitou.
– Samuel T.?
– Está ou não?
– Não. O que está acontecendo?
– Preciso que venha para a minha casa imediatamente. A polícia está à sua procura, e quando não o encontraram em Easterly, Mitch me ligou.
– O que… do que você está falando? – Depois pensou… ah, merda. – Olha só, sei que Edward e eu tecnicamente invadimos o centro de negócios sob falso pretexto, mas o maldito escritório está dentro da nossa propriedade, pra começo de conversa. E quanto aos documentos…
– Não sei do que você está falando e, neste instante, pouco me importo. Chantal foi parar no pronto-socorro hoje cedo, toda surrada. Ela disse às autoridades que você fez isso com ela assim que entrou com o pedido de divórcio, quando descobriu que ela estava grávida. Estão te acusando de violência doméstica, e eles podem ter o suficiente para acusá-lo de tentativa de homicídio também.
– O quê? – Lane se levantou. – Ela está louca!
– Não, ela está na sala operatória. Estão reparando o maxilar dela neste instante.
– Nunca toquei em Chantal! E posso provar! Eu nem estava em casa ontem à noite…
– Apenas venha para a minha casa. Vou intermediar a sua entrada no meio da noite para que não haja nenhuma foto sua indo para a delegacia, e depois te libero com uma fiança…
– Isso tudo é uma grande idiotice – Lane ralhou. – Não vou dançar de acordo com a música dela…
– Não é nenhuma brincadeira. E, a menos que compareça na delegacia, vai ser considerado fugitivo da justiça.
Lane olhou para Lizzie. Ela estava ereta, alarmada, preparada para receber más notícias.
De repente, lembrou-se de Chantal passando naquele Mercedes ao sair de Easterly. O rosto estava coberto com óculos escuros e um véu preto.
Até onde ele sabia, ela podia ter dado uma de Garota Exemplar e provocado os ferimentos ela mesma. Nunca colocara a mulher no campo da patologia antes, mas talvez tivesse subestimado a loucura dela.
– Muito bem. Estou a caminho. Chego na sua fazenda em vinte minutos.
Desligando, ouviu-se dizer:
– Tenho que ir.
– Lane, o que está acontecendo?
Os pratos do lindo jantar que tinham partilhado ainda estavam sobre a mesa, as almofadas do sofá afundadas no lugar em que ele estava recostado, alisando as pernas dela.
No entanto, tais momentos já pareciam pertencer a um passado muito, muito distante.
– Vou cuidar do assunto – ele disse. – Vou dar um jeito. Ela está mentindo. De novo, ela está mentindo.
– O que posso fazer para ajudar?
– Fique aqui. E não ligue o rádio. Ligo assim que puder para explicar tudo. – Segurou o rosto dela entre as mãos. – Eu te amo. Preciso que acredite. Preciso que se lembre disso. E vou cuidar de tudo, juro pela vida da minha mãe.
– Você está me assustando.
– Vai ficar tudo bem. Prometo.
Dito isso, saiu da casa dela.
Em disparada.
QUARENTA E DOIS
Enquanto o Porsche de Lane voava pela escuridão que se avolumava, Lizzie ficou por um bom tempo sentada onde ele a havia deixado. Só conseguia pensar que não deveriam estar surpresos. Chantal Baldwine não era flor que se cheirasse, e de jeito nenhum ela perderia sua posição social e o acesso ao estilo de vida dos Bradford sem lutar bastante.
Portanto, o que quer que fosse aquilo seria apenas o começo.
Pondo-se de pé, juntou os pratos e pensou que não era bem assim que tinha imaginado sua noite.
Mas talvez ele ainda voltasse. Tinha deixado a mala ali.
Maldita seja Chantal.
De volta à cozinha, deixou tudo na pia e despejou um pouco de detergente sobre a bagunça, depois abriu a torneira de água quente.
Então seu celular tocou sobre a bancada.
– Graças a Deus – disse, esticando a mão sobre os azulejos. – Lane? Pode me contar o q…
– Lizzie? Você está em casa?
– Greta? – Havia um zumbido na ligação, como se a mulher estivesse ao volante. – Greta? Não estou conseguindo te ouvir direito.
– … em casa?
– Sim, sim, estou em casa. Você está bem?
– … a caminho – buzz, brrrr, quick – … em dez minutos.
– Ok, mas não vou terminar de cortar os galhos agora. Já quase anoiteceu e, pra falar a verdade, não estou com vontade…
– … o telefone.
– O que foi?
A interferência sumiu e o sotaque carregado se fez alto e claro: – Você prrecisa desligarr o telefone.
– Por quê? Não. – Lane poderia telefonar. – Olha só, não estou com muita vontade de ter companhia e…
Houve um estalido alto e a ligação foi interrompida.
– Maravilha.
Enfiando o celular no bolso, voltou para junto da pia, lavou os pratos e os talheres, secou e guardou tudo.
Estava na sala de estar, sentada no sofá, folheando nervosamente a última edição da revista Garden & Gun, quando luzes de faróis brilharam na frente da sua casa e os pedriscos da sua entrada fizeram barulho.
Pondo-se de pé, ajeitou a blusa e deu uma segunda olhada para ver se o seu cabelo não estava todo bagunçado. Não havia motivos para parecer que tinha acabado de sair da cama com Lane.
Ainda mais porque boa parte do sexo que fizeram foi sobre o tapete do corredor. E nas escadas. E de pé no chuveiro.
Ao abrir a porta, ela…
Conforme Greta saía do Mercedes, Lizzie viu que o rosto de sua colega estava muito sério e que ela tinha os ombros encurvados. E ela parecia estar enxugando lágrimas debaixo daqueles óculos.
– Ai, meu Deus – disse Lizzie. – Aconteceu alguma coisa com seus filhos?
A mulher não respondeu, apenas subiu até a varanda e entrou direto na casa. Lizzie a seguiu, fechando a porta.
– Greta?
Ela deu uns passos. Depois parou, por fim.
– Você esteve com ele ontem à noite?
– O que disse?
– Lane. Só… Apenas diga, esteve ou não? A noite inteirra?
– Do que você está falando?
– Chantal está acusando Lane de surrá-la a ponto de mandá-la parra o hospital.
– O QUÊ?
E foi assim que ficou sabendo de tudo. Chantal. O hospital. A polícia. A imprensa.
Lane.
Quando Greta finalmente se calou, Lizzie se deixou cair sobre uma cadeira, às cegas.
– Eu…
– Aquele homem pode serr um monte de coisas – disse Greta –, mas nunca soube de ele terr levantado a mão parra uma mulherr.
– Claro que não. Deus, não. Absolutamente não.
– Ele ficou aqui ontem à noite?
– Ficou. Cheguei em casa durante a tempestade e ele já estava aqui. E não foi embora até hoje de manhã para levar a senhorita Aurora para a igreja. – Levantou-se de um salto. – Tenho que ajudá-lo! Tenho que contar à polícia que ele estava comigo e…
– Tem mais uma coisa.
– Pode me levar? Estou tão atarantada que acho que eu não deveria…
– Lizzie.
Ante o seu nome, ela parou, um medo gélido se instalando em seu peito.
– O quê…?
Agora os olhos de Greta estavam ficando marejados.
– Sinto muito.
– O quê? Fale de uma vez antes que a minha cabeça exploda!
– Chantal está grrávida. E ela disse à polícia… que Lane é o pai.
Lizzie piscou enquanto tudo freava de repente: seus pensamentos, seu coração, seus pulmões… até mesmo o tempo e as leis da física.
– Ela disse que é porr isso que ele bateu nela. Quando ela contou. Ela disse que ele ficou furrioso.
Uma onda de náusea a atingiu no meio do estômago. Mas não… Não, ela não poderia estar revivendo tudo. Não poderia estar exatamente na mesma situação com Chantal e Lane.
Já vivi isso, ela pensou. Já vivi esse pesadelo.
Deus, não. Por favor, não.
– Quando… – Lizzie pigarreou. – Quando ela procurou a polícia?
– Logo cedo. Lá pelas nove ou dez.
Se estivesse muito machucada, não esperaria para ser receber cuidados médicos, Lizzie pensou.
Se a mulher estava grávida, e contou a ele quando ele voltou para Easterly… ele poderia muito bem…
Com uma náusea absurda, Lizzie fugiu para o corredor e mal chegou ao banheiro a tempo antes de vomitar todo o lombo.
Quando chegou à fazenda de Samuel T., Lane estava tão irado que poderia morder latas e cuspir pregos.
Afundando o pé no freio, parou diante da mansão do amigo e quase deixou o motor ligado ao sair.
Samuel T. abriu a porta antes de ele dar a volta no carro.
– Liguei para o Mitch. Ele vai estar aqui em quarenta e cinco minutos, sem viatura. Não querem esperar para te levar para interrogatório, mas vão te deixar entrar por uma porta lateral. Ninguém com câmera tem acesso a essa parte, então vai ficar tudo bem.
Lane passou pelo cara.
– Isso é a mais absoluta mentira! Ela é louca e vai… – Ele parou e ficou confuso ante o olhar do amigo. – O que foi? Por que está olhando assim para mim?
Em vez de responder, Samuel T. esticou a mão e segurou o braço de Lane.
– Como conseguiu todos esses arranhões nas suas mãos, nos braços, no rosto e no pescoço?
Lane olhou para si mesmo.
– Jesus Cristo, Sam, isso foi de ontem à noite. Fui para a casa da Lizzie e um galho caiu no carro dela. – Quando o amigo apenas o encarou, ele perdeu as estribeiras. – Ela pode testemunhar, se quiser. Eu a tirei daquele maldito Yaris. Pensei que ela tivesse morrido.
– Você está saindo com ela de novo?
– Sim, estou.
– E acha que ela vai querer te ajudar quando descobrir que Chantal está grávida de um filho seu? De novo? Vocês dois não passaram por todo esse drama dois anos atrás?
Lane sentiu noventa por cento do seu sangue abandonar a sua cabeça.
– Não é meu, Sam. Eu te disse quando assinei todos aqueles papéis. Não estive com Chantal desde que fui embora.
– Não é o que ela contou para a polícia. Ela disse que tem ido e vindo de Manhattan no último ano, tentando fazer o relacionamento de vocês dar certo.
– Não é meu. – Ele abaixou a voz, mesmo não havendo mais ninguém por perto. – É do meu pai.
Foi a vez de Samuel T. ficar chocado.
– Do seu… pai?
– Você ouviu.
– Tem certeza?
– Tenho, falei com os dois.
Samuel T. tossiu no punho fechado.
– Sabe, essa sua família é uma coisa do outro mundo.
– É o que as pessoas me dizem. – Lane cruzou os braços sobre o peito. – Posso me submeter a um teste de detecção de mentiras. Juro sobre a Bíblia… Inferno, eles deveriam verificar debaixo das unhas dela. Não vão encontrar nada de mim nela. Nem dentro dela. Não toquei nela, Sam.
– Ela disse que tem uma testemunha.
– Rá! Só nos sonhos dela. Diabos, ela mesma deve ter feito isso consigo…
– É uma criada chamada Tiffany.
Lane se retraiu.
– Uma criada? Tiff… Espere, é “p-h-a-n-i-i”?
Visualizou a moça das toalhas, que se apresentara com aquele olhar de interesse.
Samuel T. deu de ombros.
– Não sei como se soletra o nome dela. Ainda tenho que ver os detalhes com Mitch. Mas a mulher disse que ouviu você e Chantal discutindo, e que você a ameaçou. E, segundo a criada, você jurou “acabar com a vida dela”.
– Eu nunca disse isso!
– Vocês estavam no segundo andar e a criada apareceu no meio da discussão.
– Ela está mentindo… – Lane parou e meneou a cabeça, uma lembrança retornando. – Espere, não, não. Não foi assim, eu disse isso porque Chantal havia desrespeitado a senhorita Aurora. Fiquei irritado. Mas não falei pra valer.
Samuel olhou para os cortes nos braços dele.
– Vou ser bem franco. Você parece ter respostas bem convenientes…
– É a verdade! Não estou inventando nada!
– Escuta só, não quero brigar com você.
– Samuel T. – ele disse, num tom controlado. – Você já me viu ser violento? Ainda mais com uma mulher?
Samuel T. o encarou longamente. Depois, levantou as mãos.
– Não, nunca o vi assim. E quero acreditar em você, quero mesmo. Mas mesmo que esteja dizendo a verdade, temos dois problemas aqui: um legal e outro publicitário. A parte legal pode ser facilmente resolvida, caso Lizzie testemunhe a seu favor e não houver nenhuma evidência forense no seu corpo ou no de Chantal. Agora, o problema publicitário será muito mais difícil de controlar. A notícia vai se espalhar, Lane. Ainda mais se você estiver certo e o seu pai tiver um filho com a sua esposa. Diabos, isso vai virar notícia nacional… E você sabe como a imprensa nunca deixa a verdade atrapalhar uma boa história. E esse tipo de coisa afeta o preço das ações e o valor intrínseco dos produtos da sua família. Não estou dizendo que seja certo, mas é a realidade. Você é a Cia. Bourbon Bradford. A sua família é a Cia. Bourbon Bradford. Posso ter conseguido apagar a passagem da sua irmã pela cadeia, mas isso aqui… Não tem como. A história já está no noticiário local.
Lane andou em círculos no átrio da casa do amigo. Depois olhou para ele.
– Falando em família, você tem bourbon nesta casa?
– Sempre. E só me sirvo do melhor, portanto é um Bradford.
Lane pensou em Mack e nos silos fechados. E depois no pai… E em tudo o que o homem tinha aprontado.
– Veremos por quanto tempo mais – Lane murmurou.
QUARENTA E TRÊS
Seis horas mais tarde, enquanto ainda estava na sala de interrogatórios da delegacia do condado, Lane tentou ligar para o celular de Lizzie pela sexta vez, e concluiu que ela devia ter ficado sabendo da situação. Talvez alguém tivesse ligado para ela. Ou, quem sabe, ela tinha ligado o rádio, pois não tinha televisão.
Inferno, talvez alguém tivesse colocado uma placa luminosa no centro de Charlemont e ela conseguia ver lá de Indiana.
– Estamos quase terminando aqui – Samuel T. disse quando voltou à saleta cinza. – A boa notícia é que você foi rebaixado a apenas uma pessoa de interesse, mas as coisas ainda vão ficar no limbo até a investigação ser concluída. Mas, pelo menos, agora você pode voltar para casa e não vai ser fichado.
Lane desligou o telefone e esfregou os olhos cansados. Tinham lhe entregado a carteira e o celular uns quinze minutos antes, e a primeira coisa que fez foi tentar falar com Lizzie.
Visto a maneira como saíra da casa dela, não havia a menor possibilidade de ela não atender, caso quisesse falar com ele.
Evidentemente, ela não tinha interesse nenhum em ouvir a sua versão dos fatos.
– Quanto tempo mais? – perguntou, esfregando a cabeça dolorida. – Posso ir embora agora?
– Quase. Só estamos verificando com o promotor público, que, por acaso, é um companheiro meu de caçada. – Samuel T. se sentou. – Sei que é politicamente incorreto, mas graças a Deus a rede de amizades masculinas ainda vai muito bem, obrigado, nesta cidade. Ou você estaria sendo submetido a uma revista pessoal neste exato minuto.
– Você faz milagres – Lane disse, entorpecido.
– Ajuda o fato de a história de Chantal ter alguns buracos. Ela, evidentemente, estava trabalhando sozinha quando teve essa brilhante ideia. Quem é que toma banho logo depois de ser atacada? E toma tanto cuidado para limpar as unhas quebradas? Não faz o mínimo sentido. E também há o pequenino detalhe de ela ter ligado tanto para a imprensa quanto para dois canais de TV… do leito hospitalar.
– Eu te disse. – Olhou para o telefone para ver se Lizzie tinha retornado a ligação sem ele perceber. – Essa aí está arruinando a minha vida.
– Não se eu puder impedir.
Lane tentou falar com Lizzie pela sétima vez. Depois abaixou o celular.
– Como ela estava? Chantal, quero dizer. Quando chegou ao hospital.
– Tem certeza de que quer ver as fotos?
– Tenho, preciso saber a gravidade da situação.
Samuel T. voltou a se levantar.
– Vou ver o que posso fazer.
Enquanto a porta da sala de interrogatórios se abria e se fechava uma vez mais, Lane ficou mexendo no telefone. Pensou em mandar uma mensagem de texto, mas duvidou que fizesse alguma diferença.
Inacreditável. Literalmente, custava a acreditar que aquilo estivesse acontecendo de novo com ele: duas mulheres, as mesmas palavras… onde isso ia parar?
Estava morrendo de medo de já ter a resposta. Lizzie o excluíra uma vez. Claramente, era daquela maneira que ela pretendia lidar com o assunto de novo.
Samuel T. voltou uns dez minutos depois com um envelope pardo.
– Aqui está.
Lane o pegou e levantou a aba. Segurou quatro fotos, e franziu a testa ao ver a de cima.
Dois olhos roxos. Hematomas dos dois lados do rosto. Marcas de estrangulamento no pescoço.
– Isso é muito ruim – disse com voz partida. – Jesus…
Ele não sentia o menor afeto por Chantal, porém não gostava de ver ninguém naquelas condições, ainda mais uma mulher. E ele ponderou que não havia como ela ter feito aquilo sozinha. Alguém devia ter batido nela, repetidamente e com força.
Será que ela pagou para que alguém fizesse aquilo?, ficou imaginando.
A segunda e a terceira fotos eram close ups. A quarta…
Lane voltou para a terceira. Aproximando-se, estudou um detalhe na face, um corte profundo debaixo do olho.
De repente, deixou as fotos na mesa e se recostou na cadeira, fechando os olhos.
– O que foi? – Samuel T. perguntou.
Demorou um pouco para ele poder responder. Mas, por fim, virou a foto e apontou para o corte aberto na face de Chantal.
– Meu pai fez isso com ela.
– Como você sabe?
Com uma claridade impressionante, Lane se lembrou mais uma vez daquela terrível noite de Ano Novo, quando era criança e seu irmão mais velho foi surrado.
– Quando ele batia em Edward, o anel de sinete deixava exatamente essa marca. O meu pai estapeava com o dorso da mão… e o ouro provocava o corte.
Samuel T. xingou baixinho.
– Está falando sério?
– Muito sério.
– Espere um instante, deixe-me ver se consigo fazer o investigador voltar. Eles vão querer saber disso.
Enquanto dirigia para o trabalho, ao romper do dia, Lizzie não conseguiu deixar de se lembrar daquele mesmo trajeto poucos dias atrás, quando a ambulância a ultrapassou antes da colina para Easterly.
Sentia o mesmo mau presságio de então. E o mesmo medo de ver Lane.
Nada de rádio ligado desta vez. Não queria se arriscar a ouvir a estação local com a grande notícia sobre como um dos mais proeminentes homens de Charlemont tinha mandado sua esposa gestante para o hospital. Detalhes adicionais sobre a situação não mudariam a história, e ela já estava se sentindo bem mal com tudo aquilo.
Passando pelo portão principal da PFB, tomou o caminho dos empregados e seguiu em meio a campos abertos e estufas até o estacionamento na parte superior. Era tão cedo que não havia mais ninguém por perto, nem mesmo Gary McAdams.
Era assim que tinha planejado.
No piloto automático, manobrou sua caminhonete e se virou para trás para pegar a bolsa.
– Droga.
Deixara-a em casa. O que significava que ficaria sem óculos de sol, protetor solar, nem chapéu.
Tanto faz. Não voltaria para casa.
E devia ser muito bom o fato de também estar sem telefone. Lane não parara de ligar desde as quatro da manhã.
A caminhada até a porta dos fundos de Easterly levou algum tempo, e ela refletiu se não era apenas um indício do seu cansaço. Depois que Greta finalmente foi embora lá pela uma da manhã, ela ficou acordada vendo o nascer do sol acima da bagunça do quintal.
Uma metáfora da sua vida.
Entrando na cozinha, encontrou a senhorita Aurora diante do fogão.
– Bom dia – disse, com o que esperava ser sua voz normal. – Viu o senhor Harris?
A senhorita Aurora girou os ovos com a sua espátula.
– Ele está no quarto. Não tenho nenhum pedido da família hoje, então isso aqui é para mim, para você e para quem estiver por perto. Levo tudo para a saleta de descanso em dez minutos.
– Desculpe, mas tenho que…
– Te vejo lá.
Lizzie inspirou fundo.
– Vou tentar ir.
– Faça isso. – A senhorita Aurora olhou por sobre o ombro, seus olhos negros reluziam. – Senão, vou ter que ir atrás de você e falar até você entender que a gente não pode acreditar em tudo o que ouve.
Abaixando os olhos, Lizzie saiu da cozinha e foi até a porta do senhor Harris. Antes de bater, olhou para a de Rosalinda. Uma fita isolante fora colocada em toda a volta da porta, assim como uma amarela de “atenção” entre os batentes.
Mais uma cena de crime na casa, pensou. Como será que está o quarto de Chantal?
O mordomo abriu a porta e recuou um passo.
– Senhorita King?
Lizzie se recompôs.
– Ah, desculpe… Hum, preciso falar com o senhor.
Ele franziu a testa, mas algo na postura dela deve ter afetado sua atitude pomposa.
– Entre, por favor.
Previsivelmente, a decoração era bastante inglesa, com todo tipo de livros com capa de couro, cadeiras antigas e artigos orientais preenchendo os espaços. Além da área de estar, havia uma cozinha embutida e, como nos aposentos da senhorita Aurora, na parte oposta havia uma porta fechada, onde ela imaginava que deviam ficar o quarto e o banheiro dele.
O cheiro era agradável, cítrico e de limpeza, nada abafado.
– Estou apresentando o meu pedido de demissão – disse abruptamente. – Com duas semanas de aviso prévio. Eu teria informado Rosalinda, mas…
O senhor Harris a encarou por um momento; depois se afastou e se sentou atrás de uma escrivaninha entalhada. Havia uma pilha de papéis sobre o tampo, mas nenhum computador.
– É uma surpresa.
– Está no meu contrato. Só preciso avisar duas semanas antes.
– Posso perguntar o motivo?
– Apenas uma mudança de objetivos. Tenho cogitado já há algum tempo.
– De fato. – Ele cruzou as mãos. – Então isso não está nada relacionado aos noticiários da noite passada?
– Lamento muito que a família tenha que lidar com assuntos tão desagradáveis.
O senhor Harris ergueu uma sobrancelha.
– Não há nada que eu possa fazer para convencê-la a ficar?
– Já tomei minha decisão, mas obrigada.
Ela saiu depois disso, voltando para o corredor e fechando a porta atrás de si. Sozinha, piscou para afastar as lágrimas, erguendo a cabeça enquanto rezava para que o nariz não começasse a escorrer.
Dentre todas as maneiras que imaginara sair um dia de Easterly, nada nunca se parecera com aquilo. Mas não havia volta. Chegara à decisão de se demitir enquanto ela e Greta acabavam com um litro de sorvete de flocos, depois do seu primeiro acesso de choro e antes do segundo.
No fim, não acreditava que Lane tivesse machucado Chantal daquela maneira, era simplesmente impossível. Mas a questão não era essa.
Não importava se a mulher estava ou não grávida, ou quem seria o pai, caso ela estivesse mesmo.
A verdade nua e crua era que, depois de quase uma década com aquela família, Lizzie percebeu que eles eram diferentes de uma maneira fundamental, e não porque os Bradford tinham mais dinheiro do que ela conseguiria ver em toda a sua vida. A questão era que, de onde ela vinha, as pessoas se casavam e tinham filhos, planejavam suas aposentadorias, saíam de férias uma vez ao ano para lugares como Disney ou Sandals. Pagavam seus impostos em dia e comemoravam casamentos e nascimentos com festas triviais, e não traíam seus maridos e suas esposas.
Tinham vidas dignas e modestas, sem serem afetadas pelos dramas loucos que aconteciam com os Bradford.
E a questão era que, por mais que se sentisse atraída por Lane – diabos, talvez se sentisse atraída pela mesma loucura que a repelia –, ela simplesmente não tinha mais as forças e os recursos para continuar com ele de qualquer maneira possível. Tinha se apaixonado rápido demais, intensamente e, assim como no passado, o que ele trouxe para a sua vida foi um buraco no estômago, mais noites insones… e uma sensação de profunda tristeza.
Alguns riscos é melhor não correr. Doenças, acidentes ou outros tipos de tragédias são imprevisíveis… nem sempre é possível reduzir as chances de se machucar, porque estamos vivos, e é a realidade dos seres vivos neste planeta.
Já para outros problemas, questões ou perigos, havia uma certa liberdade para se afastar, para recuar. E quando se é um adulto responsável, que deseja viver uma existência meio que saudável, é uma obrigação cuidar de si próprio, se proteger… amar a si mesmo.
Obviamente, ela não confiava em si mesma para agir com sensatez no que se referia a Lane Baldwine, por isso resolveria o problema da sua falta de autocontrole com a falta de proximidade.
Era hora de partir.
Como uma viciada no período de abstinência, ela simplesmente se afastaria. E não, não pretendia conversar com ele sobre o assunto. Seria o mesmo que um viciado querendo bater papo com uma seringa de heroína. Sem dúvida, Lane apresentaria o seu lado, mas não importava qual fosse, não mudaria o fato de que o coração dela se estilhaçara de novo e que a sua decisão de deixar o trabalho não estava sujeita a negociações.
E agora, ela daria o seu melhor para chegar ao fim do dia.
Descendo até as estufas, entrou na primeira e se sentiu mais do que pronta para trabalhar com as mudas, que no momento nem eram mudas ainda. Mas, antes de seguir para a estação de suprimentos para juntar o necessário, parou e pegou o celular.
O que fez em seguida não levou mais do que um momento.
E, provavelmente, foi uma estupidez.
Mas transferiu 17 mil, 486 dólares e 79 centavos da sua poupança… para a conta da hipoteca.
Terminando de pagar a sua fazenda.
Bom, aquela não devia ser uma decisão muito sensata, considerando-se que a colocaria à venda. O orgulho, contudo, fez com que aquela transação fosse necessária. Orgulho e a sensação de que precisava alcançar o objetivo estabelecido ao comprar aquele lugar.
Sempre quisera algo só seu no mundo, um lar que ela mesma estabelecesse, pagasse e sustentasse, sem a ajuda de mais ninguém.
O fato de agora não ter um centavo sequer era um contrapeso para tudo o que estava sentindo.
Prova de que fracassara completamente ao tentar cuidar de si própria.
Lane voltou a Easterly assim que foi liberado.
Isto é, depois de voltar à casa de Samuel T. para pegar o seu Porsche.
Entrou na propriedade da família pelos fundos, atravessando os campos e as estufas, porque queria evitar a imprensa no portão principal e porque queria saber se Lizzie estava ali.
Estava. A caminhonete marrom da fazenda estava no estacionamento junto aos veículos dos outros empregados.
– Droga – exalou.
Subiu até a garagem, estacionou o carro debaixo da magnólia e foi diretamente para a entrada dos fundos do centro de negócios. Depois de inserir a senha que Edward lhe fornecera, escancarou a porta e foi abrindo caminho até a recepção, cruzando escritórios, a sala de reuniões e a sala de jantar.
Homens e mulheres em ternos levantaram as cabeças, alarmados, mas ele os ignorou.
Não parou até se ver dentro do escritório envidraçado da assistente do pai.
– Vou vê-lo agora.
– Senhor Baldwine, o senhor não pode…
– Até parece que não.
– Senhor Baldwine…
Lane abriu a porta e…
Parou no lugar. O pai não estava atrás da escrivaninha.
– Senhor Baldwine, não sabemos onde ele está.
Lane olhou por sobre o ombro.
– Como assim?
– O seu pai… Era para ele ter viajado hoje de manhã, mas ele não apareceu no aeroporto. O piloto o esperou por uma hora.
– Você ligou para a casa, claro.
– E para o celular dele. – A mulher cobriu a boca com a mão. – Ele nunca fez isso antes. Ninguém na mansão o viu.
– Merda.
Bom Deus, o que fazer agora?
Enquanto Lane saía do escritório, a voz da assistente o acompanhou.
– Pode, por favor, pedir que ele ligue para mim?
De volta à luz matutina, disparou na direção da porta da cozinha de Easterly. Assim que entrou, passou pelas bancadas de aço inoxidável e empurrou a porta que dava para o corredor dos empregados. Subiu a escada dos fundos de dois em dois degraus, quase atropelando uma criada que passava aspirador no corredor do segundo andar.
Passou pelo seu quarto e pelo de Chantal.
Chegou ao do pai.
Parou diante da porta e pensou que não estava pronto para um “Rosalinda, parte II” com seu próprio pai. Não por não desejar ver o cadáver de um dos seus progenitores.
Não, era mais porque, se o homem precisasse de um caixão, Lane queria se responsabilizar por colocar a cabeça do maldito sobre o travesseiro acolchoado.
Abriu a porta.
– Pai! – exclamou. – Onde você está?
Marchando quarto adentro, aguçou os ouvidos e fechou a porta atrás de si – só para o caso de o homem estar vivo. Pois iria machucar o filho da puta, que os céus o ajudassem, mas estava preparado para machucá-lo muito.
Chantal podia ser uma vadia e uma mentirosa, mas nenhuma mulher merecia apanhar. Não importavam as circunstâncias.
– Onde diabos você está? – exigiu saber ao abrir a porta do banheiro.
Quando não encontrou a toalha sobre o box do banheiro, refez seus passos e foi para o closet.
Nada ali também.
Não, espere.
A mala do pai, aquela com monograma que ele costumava usar, estava aberta e parcialmente cheia. Mas mal arrumada. As roupas estavam mal acomodadas, jogadas às pressas por alguém com pouca experiência em fazer aquele tipo de tarefa.
Vasculhando o conteúdo, Lane não percebeu nada de extraordinário.
Mas notou que o relógio predileto do pai, o Audemars Piguet Royal Oak, não estava junto aos perfilados na gaveta forrada. E a carteira também estava faltando.
Retornando para o quarto, perscrutou a mobília, os livros, a mesa, mas não fazia ideia se havia algo fora do lugar. Estivera ali apenas um punhado de vezes… e não voltava havia uns belos vinte anos.
– O que está aprontando, pai? – perguntou baixinho, no ar parado.
Seguindo seus instintos, saiu, fechou a porta e voltou correndo pelas escadas até o primeiro andar. Levou menos de um minuto para entrar na garagem e contar os carros. O Phantom ainda estava ali, mas faltavam dois Mercedes. Chantal, evidentemente, estava com um.
O pai devia ter saído com o outro.
A pergunta era… para onde?
E quando?
QUARENTA E QUATRO
– Você não pode estar fazendo isso de novo. Vamos lá, acorda.
Edward bateu na mão que o puxava.
– Me deixa em paz.
– Eu não. Tá frio aqui fora e você não vai aguentar.
Edward abriu os olhos lentamente. A luz entrava pela porta aberta da baia no fundo do estábulo, ressaltando a poeira do feno e o perfil de um dos gatos vadios que perambulavam por lá. Uma égua relinchou do lado oposto, e outra coiceou a baia. Ao longe, ele percebeu o ronco de um dos tratores.
Puta merda, como a sua cabeça doía. Mas não era nada comparado ao seu traseiro. Engraçado como uma parte do corpo conseguia estar absolutamente entorpecida e dolorida ao mesmo tempo.
– Você vai ter que se levantar, inferno.
Toda aquela conversa o fez praguejar… e tentar focar a vista.
Ora, ora, vejam só. Havia duas Shelbys falando com ele. Sua nova empregada estava parada de pé como uma professora severa, com as mãos nos quadris estreitos, as pernas cobertas pela calça jeans e os pés com botas afastados, como se estivesse considerando a possibilidade de chutar sua cabeça tal qual uma bola de futebol.
– Pensei que você não falasse palavrão – ele murmurou.
– Não falo.
– Ora, mas acho que você acabou de falar.
Os olhos dela se estreitaram.
– Você vai se levantar ou vou ter que te varrer para fora daqui com o resto da sujeira?
– Você não sabia que “inferno” é apenas o primeiro passo? É como maconha. Sem se dar conta, logo, logo, você vai estar lançando bombas de “cacete” a torto e a direito.
– Tudo bem. Pode ficar aí. Espera pra ver se me importo.
Quando ela se virou para sair, ele a chamou.
– Como foi o seu encontro ontem à noite?
Ela girou sobre os calcanhares.
– Do que você tá falando?
– Com o Moe.
Dito isso, ele se esforçou para se erguer do piso de concreto do estábulo. Quando não conseguiu, ela levantou uma sobrancelha.
– Sabe, acho que vou mesmo te deixar aí.
Acima da cabeça dele, Neb relinchou, como se estivesse rindo.
– Não pedi a sua ajuda – Edward disse entre dentes.
Sem aviso, sua mão escorregou e seu corpo se chocou no concreto com tanta força que seus dentes bateram.
– Você vai acabar se matando – ela resmungou ao marchar de volta.
Shelby o ergueu com todo o cuidado que alguém dispensaria com uma forquilha caída, mas ele tinha que dar a mão à palmatória. Mesmo ela chegando apenas na metade do peito dele, era forte o suficiente para levá-lo pelo corredor, para fora do estábulo, e pela grama até o chalé.
Uma vez lá dentro, ele indicou sua poltrona com a cabeça.
– Ali já está…
– Você vai ficar com hipotermia. Isso não vai acontecer, não.
Em seguida, ele a viu sentando-o sobre o vaso sanitário e começando a aquecer a água da banheira.
– Pode deixar comigo a partir daqui – ele disse, pendendo para o lado e deixando que ela o segurasse. – Obrigado.
Ele estava fechando os olhos quando ela lhe deu um tapa.
– Acorda.
O ardor da batida o fez despertar e esfregar a face.
– Gostou de fazer isso?
– Gostei. E posso fazer de novo. – Enfiou uma escova de dentes na boca dele. – Use isso.
Era difícil falar com aquela maldita coisa na boca, portanto ele obedeceu, limpando o lado esquerdo, o direito, a frente e as partes inferiores. Depois se inclinou sobre a pia e cuspiu.
– Não está tão frio assim – ele disse.
– Como é que você sabe? Está pra lá de bêbado.
Na verdade, não estava, não. E isso era parte do problema. Pela primeira vez em muito tempo, ele não tinha tomado nenhuma bebida alcoólica na noite anterior.
– O que está fazendo? – ele perguntou quando as mãos dela se apossaram da sua malha.
– Tirando a sua roupa.
– É mesmo?
Enquanto ela se ocupava com as roupas dele, ele olhou para o corpo dela. Era difícil ver grande coisa, já que ela estava com uma blusa larga de moletom, então ele resolveu esticar a mão e testar a cintura dela.
Ela parou. Recuou.
– Não estou interessada.
– Então por que está tirando as minhas roupas?
– Porque os seus lábios estão roxos.
– Desliga isso. – Ele apontou para a torneira. – Assumo daqui.
– Você vai se afogar.
– E daí? Além do mais, não quero que você veja o que tenho debaixo da roupa.
– Vou ficar esperando lá fora, perto da sua poltrona.
– Ah, maravilha – ele disse baixinho.
Ela fechou a porta ao sair, e ele não fez mais nada. Só se encostou na parede e ficou olhando para a água fumegante.
– Não estou ouvindo barulho de água – ela comentou do lado de fora.
– Não está fundo o bastante ainda para eu nadar.
Toc. Toc. Toc.
– Entre logo, senhor Baldwine.
– Esse é o meu pai. E ele é um idiota. Atendo por Edward.
– Cale a boca e entre na banheira.
Mesmo na névoa do seu estupor, ele sentiu algo chamejar por ela. Achou que fosse respeito.
Mas quem se importav…
Bum, bum, bum!
– Você vai acabar derrubando a maldita porta – ele exclamou acima de todo aquele barulho. – E pensei que você não quisesse me ver nu.
– Água. Agora! – ela ralhou. – E não quero mesmo, mas melhor do que te encontrar morto.
– É apenas uma questão de opinião, minha cara.
No entanto, por algum motivo inexplicável, ele resolveu fazer como ela mandava.
Apoiando os braços na pia e na parte traseira do vaso sanitário antigo, suspendeu o corpo. Suas roupas eram um estorvo, mas conseguiu tirá-las e logo se colocou na banheira. Estranho, mas a água quente provocou o efeito contrário ao esperado. Em vez de aquecê-lo, fez com que ele sentisse frio, e começou a tremer tanto que criou ondulações na superfície da água.
Cruzando os braços diante do peito, seus dentes tiritaram, e seu coração saltou.
– Você está bem aí dentro? – ela perguntou.
Quando ele não respondeu, Shelby o chamou mais alto: – Edward?
A porta se escancarou e ela invadiu o banheiro como se estivesse preparada para bancar a salva-vidas, resgatando-o de cinquenta centímetros de profundidade de água. E foi horrível… Quando ela o fitou, só o que ele conseguiu fazer foi ficar encarando a água agitada, na esperança de que ela cobrisse suas pernas raquíticas, seu sexo flácido e sua pele branca coberta de cicatrizes.
Ele teve quase certeza de que ela arquejou.
Sorrindo-lhe, ele disse:
– Bonito, não sou? Mas acredite ou não, eu funciono muito bem. Bem, digamos que um pouco de Viagra ajude. Seja boazinha, sim? E me traga alguma bebida… Acho que estou me desintoxicando, e é por isso que estou tremendo tanto.
– Você… – Ela pigarreou. – Você precisa de um médico?
– Não, só de um pouco de Jim Beam. Ou Jack Daniel’s.
Quando ela simplesmente continuou olhando para ele, Edward apontou para a porta aberta.
– Estou falando sério. O que eu preciso é de álcool. Se quer me salvar, vá buscar um pouco. Agora.
Quando saiu do banheiro e fechou a porta, Shelby Landis tinha toda intenção de fazer o que Edward lhe pedira. Afinal, ela tinha muita experiência com alcoólatras, e por mais que não aprovasse nada daquilo, ela levara bebida ao pai milhares de vezes, e isso também costumava ser pela manhã.
Pelo menos, esse era o plano. Só que ela não parecia capaz de se mexer, de pensar… sequer de respirar.
Não estava preparada para ver aquele homem lá dentro, com a cabeça pensa como se ele tivesse vergonha de ser magro demais, do seu corpo alquebrado, do seu orgulho masculino tão esfarrapado e maltratado quanto suas carnes. Um dia ele fora uma grande força; seu pai tinha lhe contado histórias sobre o domínio de Edward nos negócios, nas pistas, na sociedade. Puxa, ouvira falar dos Bradford desde que era criança. Seu pai se recusava a beber qualquer outra coisa que não o no 15 deles, assim como boa parte das pessoas que lidavam com cavalos que ela conhecia.
Levando as mãos ao rosto, sussurrou:
– O que fez comigo, pai?
Por que ele a mandara ali?
Por que…
– Shelby? – exigiu a voz de lá de dentro.
Deus, ele era como seu pai. O modo como Edward pronunciara seu nome com uma pontada de desespero… era exatamente igual ao pai quando estava desesperado por uma bebida.
Fechando os olhos, praguejou bem baixinho. Depois sentiu culpa.
– Perdoe-me, Senhor. Não sei o que estou dizendo.
Ao procurar pelo cômodo, encontrou uma fila de garrafas na parte da frente de uma das prateleiras de troféus, e a ideia de lhe entregar o veneno a deixou nauseada. Mas ele mesmo acabaria saindo e pegando… e provavelmente caindo e batendo a cabeça no processo. Então, em que pé estariam? Além disso, ela sabia como aquelas coisas funcionavam. Aquele tremor terrível não cessaria até que a fera dentro dele fosse alimentada de acordo com sua necessidade, e o corpo dele já parecia tão frágil…
– Já estou indo – disse em voz alta. – O que prefere?
– Tanto faz.
Direcionando-se para as garrafas às cegas, pegou uma de gim e voltou para a porta fechada do banheiro. Não se deu ao trabalho de bater, simplesmente entrou.
– Pronto. – Tirou a tampa. – Pode beber direto do gargalo.
Só que as mãos dele tremiam tanto que não havia um modo de ele conseguir erguer a garrafa sem derrubar tudo.
– Deixa que eu seguro pra você – ela murmurou.
Houve um instante de hesitação por parte dele, mas logo ele ergueu a boca como um potrinho recém-nascido abandonado pela mãe.
E deu umas duas ou três belas goladas.
– Isso sim é que esquenta.
Deixando o gim ao lado da banheira onde ele conseguiria alcançar caso quisesse, ela pegou uma toalha de banho e submergiu na água, atrás dele. Quando ficou encharcada, ela a passou pela protuberância da coluna e das costelas dele. Depois tratou de cuidar da cabeça com uma esponja de banho, molhando o cabelo, alisando-o para trás.
Sem que ele pedisse, ela ergueu a garrafa mais uma vez e ele bebeu, sorvendo direto do gargalo.
Banhá-lo com sabonete e xampu fez com que ela se lembrasse dos cuidados oferecidos a um animal recém-resgatado. Ele estava assustado. Desconfiado.
Meio morto.
– Você precisa comer – ela disse numa voz partida.
Não tenho isso dentro de mim, Senhor. Não vou conseguir fazer isso de novo.
Não conseguira salvar o pai alcoólatra. Perder dois homens numa vida só parecia um fracasso grande demais para superar.
– Vou te preparar o café da manhã depois, Edward.
– Você não tem que fazer isso.
– É – respondeu, rouca –, eu sei.
QUARENTA E CINCO
– Então, vamos repetir tudo de novo?
Ante o som da voz máscula, Lizzie parou no meio do transplante de uma Hedera helix para um vaso novo. Fechando os olhos, inspirou fundo e ordenou às mãos que não tremessem e nem derrubassem nada.
Estava à espera que Lane a procurasse para conversar. Ele não demorou muito.
– E então? – disse ele. – Voltamos aos dias em que você ouve alguma coisa que não gosta e me exclui? Porque se for o roteiro que vamos seguir, e é bem isso o que está parecendo, acho que só me resta subir num avião e voltar para Nova York e pôr um fim à história. Vai ser muito mais eficiente, e não vou acabar com uma conta telefônica quilométrica por deixar mensagens na sua caixa postal.
Forçando as mãos a continuarem a trabalhar, enfiou as raízes no buraco que cavara no vaso e começou a transferir terra nova para enchê-lo.
– Algo que eu não queria ouvir – ela repetiu. – Sim, acho que podemos dizer que descobrir que a sua esposa está grávida de novo é uma notícia que eu preferiria não ouvir. Especialmente porque fiquei sabendo logo depois de termos feito sexo. Em seguida, veio a notícia maravilhosa de que você estava sendo preso por mandá-la para o pronto-socorro.
Quando ele não respondeu, ela se voltou na direção dele. Lane estava parado na entrada da estufa, junto à estação de trabalho em que Greta deveria estar, caso Lizzie não tivesse avisado à mulher que precisava ficar um tempo sozinha.
– Acha mesmo que eu seria capaz de fazer uma coisa do tipo? – ele perguntou num tom baixo.
– Não cabe a mim decidir nada disso. – Ela voltou a se concentrar no que estava fazendo e odiou as próprias palavras. – Mas uma coisa que eu posso dizer é que o melhor indicador de um futuro comportamento é o modo como a pessoa se comportou no passado. E eu não posso… Não posso mais fazer isso com você. Não importa se os boatos são verdadeiros ou não, não é essa a questão.
Depois de colocar a terra nova, ela pegou o regador e o inclinou sobre o vaso de trepadeira. Em três meses, a planta estaria pronta para ser levada para o lado externo, para o muro ou para um dos vasos do terraço. Tinham muita sorte com aquela variedade, mas era bom planejar reposições antes que elas fossem necessárias.
Limpando as mãos na frente do avental, virou-se para ele.
– Entreguei meu pedido de demissão. Portanto, não precisa se preocupar em voltar para Nova York.
Não teve dificuldades para sustentar o olhar dele. Para encará-lo. Enfrentá-lo.
É incrível como você fica determinado com os outros quando sabe em que pé está.
– Você acha mesmo que eu faria aquilo com uma mulher? – ele repetiu.
Claro que não, ela pensou. Mas permaneceu em silêncio porque sabia que, se quisesse mesmo que ele a deixasse em paz, a insinuação feriria seu orgulho masculino e isso, infelizmente, agiria em seu favor.
– Lizzie, responda.
– Não é da minha conta. Não é.
Depois de um instante, ele assentiu.
– Ok. Muito justo.
Quando ele se virou e se dirigiu para a porta, ela teve que admitir que ficou um pouco surpresa. Esperava ouvir algum tipo de explicação demorada. Uma torrente de persuasão da qual ela teria que se esquivar. Algum tipo de “Eu te amo, Lizzie, de verdade”.
– Desejo tudo de bom para você, Lizzie – ele disse. – Cuide-se.
E foi… só isso.
A porta se fechou sozinha. E, por uma fração de segundo, ela sentiu o impulso absurdo de ir atrás dele e gritar na sua cara que ele era um cretino colossal por tê-la seduzido do jeito como seduziu, que era um mau caráter, que era exatamente quem ela temia que ele fosse, um usurpador de mulheres, um mentiroso, um elitista enganador e sádico que não saberia…
Lizzie forçosamente se afastou desse precipício.
Se aquela despedida significava alguma coisa, o fato de ela permanecer ou não na vida dele parecia não importar nem um pouco para ele.
Bom saber disso, ela pensou com amargura. Bom saber.
Colocando-se atrás do volante do 911, Lane pensou que havia momentos na vida em que, por mais que você quisesse lutar, era melhor simplesmente desistir.
Você não precisava gostar do fracasso.
Não tinha que se sentir maravilhoso com relação ao resultado das coisas.
E, por certo, não se afastava de tudo sem arranhões, sem ficar seriamente ferido pela perda, aleijado, até.
Mas você precisava abrir mão de tudo, porque desperdiçar energias não o levaria a parte alguma, e você poderia muito bem já ir se acostumando com a perda.
Era a única lição que o seu relacionamento com o seu pai lhe ensinara. Se ele teria apreciado a presença de uma figura masculina que pudesse admirar, se espelhar, se orgulhar e sentir respeito? Sim, claro. Teria sido maravilhoso não crescer numa casa onde o som de chinelos sobre o piso de mármore ou o cheiro de cigarro não o obrigasse a procurar um lugar para se esconder. Óbvio. Poderia ter se beneficiado de conselhos paternos, ainda mais em tempos como aquele?
Sim, poderia.
Entretanto, não foi assim para ele. E ele teve que se acostumar com isso para não enlouquecer negociando com um fracasso que jamais conseguiria mudar ou melhorar.
Seguindo o mesmo raciocínio, se Lizzie King de fato acreditasse que havia a mínima possibilidade de ele ter botado as mãos numa mulher daquela forma, que ele tivesse mentido descaradamente a respeito de Chantal, que qualquer bebê que aquela mulher tivesse pudesse ser seu… então não havia esperanças para eles dois. Não importaria o que ele lhe dissesse ou como tentasse explicar as coisas… ela não o conhecia de verdade e, mais importante, não confiava nele.
E o fato de aquilo tudo ser uma mentira, de Chantal, mais uma vez, ter lhe roubado a mulher que ele amava…
Bom, a vida é dura.
Buá, buá, buá.
Peça um pai novo para o Papai Noel. Peça à Fada do Dente que te dê uma nova ex-esposa.
Tanto faz.
Deixando Easterly, entrou na estrada e dobrou o limite de velocidade a caminho do Aeroporto Internacional de Charlemont, não porque estivesse com pressa ou atrasado, mas porque podia. O carro aguentaria o tranco e, naquele exato instante, ele estava sóbrio e no controle.
A entrada para as chegadas e partidas particulares era a primeira saída do caminho que cercava a enorme construção. Lane estacionou à direita das portas duplas e deixou o motor ligado.
Jeff Stern já estava próximo do espaço luxuoso. Só tinham se passado poucos dias, mas parecia um século desde aquele jogo de pôquer em que a loira burra o incomodava, quando ele se levantou para atender ao telefone.
Como era de se esperar, seu colega de apartamento estava vestido como o homem de Wall Street que era: óculos, terno escuro e camisa branca engomada. Até estava com a poderosa gravata vermelha.
– Poderia ter vindo de bermuda – Lane comentou quando se cumprimentaram batendo as mãos.
– Estou vindo do escritório, idiota.
Aquele sotaque, ao mesmo tempo estranho e familiar, era exatamente o que ele precisava naquele instante.
– Deus, você está com uma aparência péssima – Jeff comentou, enquanto sua bagagem chegava num carrinho. – A vida familiar evidentemente não combina com você.
– Não a minha, pelo menos. Me diz uma coisa, o seu avião ainda está aqui?
– Não por muito tempo. Está sendo reabastecido. Por quê? – Quando Lane apenas olhou para a pista, o amigo praguejou. – Não. Não, não, não, não, não. Você não me arrastou para cá, abaixo da Mason-Dixie, para atender um alarme falso e agora quer voltar para Manhattan. Sério, Lane.
Por um instante, Lane hesitou. Queria ficar, só para ferrar o pai em múltiplas instâncias, mas também queria partir, porque estava cansado de tanta insanidade.
Parecia que ele e Lizzie, no fim, tinham algo em comum.
Os dois queriam se afastar.
– Lane?
– Vamos – convidou, dando uma gorjeta para o carregador e pegando as duas malas de couro do amigo. – Quando foi a última vez que veio a Easterly?
– Num Derby, há um milhão de anos.
– Nada mudou.
Colocou as malas no Porsche e saíram de lá, acelerando para longe do aeroporto e entrando na estrada.
– Então, vou ou não conhecer essa sua mulher, Baldwine?
– Provavelmente não. Ela pediu demissão.
– Puxa, que rápido. Lamento muito.
– Não finja que não leu as notícias.
– Pois é, está em todos os lugares. Acho que você é o responsável por ressuscitar os jornais impressos. Parabéns.
Lane praguejou e ultrapassou um carro.
– Não era um prêmio que eu queria, eu garanto.
– Espere um instante. Você disse “se demitindo”? Quer dizer que ela trabalha para a sua família? Isso é tipo Sabrina, meu velho?
– Lizzie é a horticultora-chefe da propriedade. Ou era.
– Não uma simples jardineira, hein… faz sentido. Você odeia mulheres burras.
Lane o encarou.
– Sem ofensas, mas podemos falar sobre outra coisa? Talvez sobre o fato de a minha família estar perdendo todo o seu dinheiro? Preciso me alegrar.
Jeff balançou a cabeça.
– Você, meu amigo, leva uma vida e tanto.
– Quer trocar de lugar? Por que, neste exato instante, estou procurando uma saída.
QUARENTA E SEIS
Naquela noite, Lizzie chegou em casa e não havia nenhuma árvore caída no seu quintal.
Saindo da caminhonete da fazenda, olhou ao redor. O Yaris ainda estava esmagado no mesmo lugar, destroçado, com as janelas quebradas e o interior molhado e cheio de folhas, e parecia ter saído de um jogo de videogame. Mas o galho tinha sumido, e não restava nada além de serragem fresca e perfumada espalhada por lá.
Não ouse, Lane, ela pensou.
Não ouse tentar cuidar de mim agora.
Levantou o olhar e viu que o corte onde o galho se partira do tronco fora feito com cuidado, selado de modo que cicatrizaria e o bordo maravilhoso sobreviveria aos estragos.
– Maldito.
Pelo menos ele tinha deixado o carro no lugar. Se tivesse cuidado disso também, ela teria que procurá-lo para descobrir onde deveria recuperar a carcaça.
Devia ter desconfiado que as coisas entre eles estavam inacabadas.
Ao marchar rumo à varanda, ficou discutindo mentalmente com ele o tempo inteiro… Mas parou no primeiro degrau. Na tela da porta, um bilhete fora afixado à moldura.
Maravilha. Agora isso. Algum tipo de “Agora que nossas cabeças esfriaram, blá-blá-blá…”.
Ele era um homem doentio.
E ela estava agindo bem partindo dali. Por mais que estivesse sofrendo por ir embora, precisava se afastar dele, de Easterly, daquela parte bizarra da sua vida que só podia ser descrita como um pesadelo.
Forçou-se a se mover, subiu e arrancou o papel da porta. Queria jogar fora aquela coisa maldita, mas algum impulso masoquista tornou isso impossível. Abrindo o bilhete, ela…
Olá, vizinha. As vacas se espalharam pelo seu quintal. Estragaram as moitas de flores dos fundos. Como sou péssimo com flores, cuidei da sua árvore. Minha mulher te mandou uma torta. Deixei na bancada.
Buella e Ross
Expirou, sendo acometida por uma onda de exaustão, e em vez de entrar na casa, atravessou a varanda e se sentou no balanço. Empurrando as tábuas do piso com um pé, ficou atenta aos grilos e aos rangidos das correntes afixadas no teto acima da sua cabeça. Sentiu a brisa suave e cálida no rosto e observou as luzes alaranjadas do entardecer criarem sombras alongadas sobre a terra.
Precisava replantar os canteiros…
Não, não precisava.
Bem, pelo menos teria uma bela sobremesa; Buella fazia tortas de outro mundo. Talvez fosse de pêssego. Ou, quem sabe, de mirtilos.
Lizzie se descobriu enxugando os olhos e fitando as lágrimas nas pontas dos dedos.
Era horrível ter que sair dali para se salvar… Era bem parecido com… serrar um galho doente.
Estava dando tudo certo.
Mas Lane tinha que chegar e estragar tudo.
– Foi tudo o que Edward conseguiu tirar de lá – disse Lane ao andar de um lado para o outro no quarto de hóspedes em que acomodara Jeff.
Era a melhor suíte, com vista para os jardins e o rio, e também tinha uma escrivaninha com tampo tão comprido que poderia ser qualificada como balcão de cozinha. Na verdade, um bilhão de anos antes, aqueles aposentos tinham sido do avô de Lane, e depois da morte do homem, nada fora tocado a não ser nas faxinas regulares.
O comentário de Jeff ao entrar foi típico dele. Algo relacionado à possibilidade de a Guerra Civil ter sido comandada de lá.
Contudo, conforme esperado, assim que o cara acessou os dados financeiros, deixou de lado as brincadeiras e se tornou totalmente profissional.
– Bem, já está quase na hora do jantar. – Lane olhou para seu relógio de pulso. – Nos vestimos formalmente. Bem, todos fazem isso, menos eu. Então o seu terno vai estar de acordo.
– Mande me trazer alguma coisa aqui mesmo – Jeff murmurou ao arrancar a gravata, sem despregar os olhos da tela do computador. – E vou precisar de papel e caneta.
– Está querendo me dizer que não quer testemunhar a troca de olhares furiosos entre mim e o meu pai por sobre o suflê? – Sim, porque Lane estava mais do que ansioso para isso. – Você também poderia aproveitar para conhecer o novo e fabuloso noivo da minha irmã. O cara é tão charmoso quanto um tumor.
Quando Jeff não respondeu, Lane andou e espiou por cima do ombro dele.
– Diga-me que isso faz algum sentido para você.
– Ainda não, mas vai fazer.
É o homem certo para este trabalho, Lane pensou ao finalmente se retirar. Já no corredor, descobriu-se encarando a porta do quarto da mãe. Talvez Edward estivesse certo. Talvez se tudo virasse pó, a mãe deles nem ficaria sabendo. Todas aquelas drogas a mantinham encasulada e segura em seu delírio. Algo que, pela primeira vez, estava começando a entender.
Falando nisso, que tal um pouco de bourbon?
Seguindo para as escadas da frente, resolveu que também pularia o jantar. Ainda estava louco de vontade de socar o pai, mas, com Jeff cuidando de tudo, ele tinha, quem sabe, chances muito maiores de pegar o homem de jeito.
E depois seguiria o exemplo de Lizzie e iria embora daquele lugar de uma vez por todas.
Tudo ali era demais, bizantino demais, poluído demais.
Talvez voltasse para Nova York. Ou talvez estivesse na hora de alargar seus horizontes. Quem sabe ir para o exterior…
Lane parou na metade da escada.
Mitch Ramsey e dois policiais estavam parados no átrio de entrada logo abaixo, sem os chapéus. Seus rostos pareciam saídos de um texto de justiça criminal: estavam totalmente impassíveis.
Merda, Lane pensou ao fechar os olhos.
Pelo visto, Samuel T. tinha conseguido tirar vantagem da boa e velha camaradagem masculina só até certo ponto.
– Vou pegar a minha carteira – Lane avisou. – E vou ligar para o meu advogado…
Mitch levantou o olhar bem quando o senhor Harris vinha da sala de jantar.
– Ah, senhor Baldwine – disse o mordomo –, estes cavalheiros vieram vê-lo.
– Foi o que imaginei. Só vou pegar a…
Mitch falou:
– Podemos conversar reservadamente?
Lane franziu a testa.
– Quero a presença do meu advogado.
Quando Mitch sacudiu a cabeça, Lane encarou os outros policiais. Nenhum deles o olhava de frente.
Lane terminou de descer e indicou a sala com a mão.
– Na sala de estar.
Enquanto os quatro seguiam para o elegante cômodo, o senhor Harris deslizou as portas duplas que davam para o vestíbulo. E, num acordo tácito, ninguém disse nada até que o homem atravessasse a sala e fechasse as outras portas.
Lane cruzou os braços diante do peito.
– O que foi, Mitch? Está querendo completar um trio? Primeiro Gin, depois eu… e agora, que tal o meu pai?
– É com muito pesar que preciso informar que…
Uma pontada fria de medo perpassou seu corpo.
– Não o Edward, ah, Deus, por favor não o Edward…
– … um corpo foi encontrado no rio duas horas atrás. Temos motivos para acreditar que seja o seu pai.
A expiração que escapou dos pulmões de Lane foi estranhamente lenta e controlada.
– O quê… – Ele limpou a garganta. – Onde ele foi encontrado?
– Na parte oposta à cachoeira. Precisamos que nos acompanhe para identificar o corpo. Um parente é preferível, mas eu jamais peço à esposa, se puder evitar.
Como resposta, Lane se aproximou do carrinho de bebidas e se serviu de uma bela dose do Reserva de Família. Depois de tomá-la, acenou para Mitch e para os outros dois membros da força policial.
– Me dê um minuto. Eu já volto.
Ao passar por Mitch, o homem esticou a mão e o segurou pelo braço.
– Eu sinto muito, Lane.
Lane franziu a testa.
– Sabe, não consigo dizer o mesmo.
QUARENTA E SETE
Lane não contou a ninguém onde estava indo e nem o motivo.
Voltou do quarto com seu celular e sua carteira, e tomou cuidado para ficar longe das vistas das pessoas que comiam e conversavam baixo na sala de jantar.
Não, não contaria nada a ninguém. Não até ter certeza.
Entrando na parte traseira do SUV do delegado Mitch, fechou a porta e fitou adiante, através do para-brisa.
Quando o policial se colocou atrás do volante, Lane perguntou: – Alguém já sabe?
– Mantive em segredo por enquanto. O corpo apareceu num ancoradouro coberto a uns quinhentos metros da catarata. As pessoas que o encontraram são gente boa. Estão assustadas e não querem a atenção da mídia nem repórteres em sua propriedade. Mas isso não vai durar para sempre.
O trajeto até o necrotério foi meio bizarro. O tempo se arrastava, tudo era muito brilhante, claro demais, volumoso demais. E assim que entrou naquele prédio sem graça, frio, a sensação piorou até ele sentir como se estivesse aos tropeços, o surrealismo de tudo aquilo fazendo com que parecesse algo saído de um desenho animado de Jerry Garcia.
A única coisa que conseguia fazer era acompanhar Mitch onde quer que o cara fosse. Não muito tempo depois, Lane se viu numa saleta de espera do tamanho de uma despensa.
No meio da parede diante dele havia uma cortina que cobria, segundo ele imaginava, uma grande janela. Havia uma porta ao lado.
– Não – Lane disse a Mitch. – Quero vê-lo cara a cara.
Houve um instante de constrangimento.
– Veja bem, Lane, o corpo não está nada bonito. Caiu da cascata e pode ter se chocado num barco maior. Seria mais fácil…
– Não estou interessado em nada fácil. – Lane estreitou o olhar na direção do delegado. – Quero entrar.
Mitch praguejou.
– Me dá um minuto.
Enquanto o delegado desaparecia pela porta, Lane ficou satisfeito que o homem não tivesse se oposto. Não queria admitir que o motivo pelo qual necessitava chegar perto era por querer ter certeza de que o pai estava de fato morto.
O que era estupidez.
Como se todos aqueles policiais fossem perder tempo inventando a história.
Mitch retornou e segurou a porta aberta.
– Pode entrar.
Entrar naquela sala azulejada se tornou algo de que Lane se recordaria pelo resto da vida. E, Jesus, era igualzinho aos filmes: no meio do recinto, sobre uma mesa de aço com rodinhas, havia um saco mortuário.
Absurdamente, notou que era do mesmo tipo em que Rosalinda fora colocada.
Ao lado da maca, uma mulher de jaleco branco estava de pé com luvas descartáveis e uma prancheta nas mãos.
– Está pronto, senhor?
– Sim. Por favor.
Ela esticou a mão e puxou o zíper. Desceu-o até os pés e afastou a lona.
Lane se inclinou, mas o cheiro da água e da podridão o fez se retrair.
Não esperava encontrar os olhos do pai abertos.
– É ele – Lane disse, com uma voz partida.
– Lamento pela sua perda – a médica legista disse ao voltar a subir o zíper.
Quando ela terminou, deduziu que quisessem que ele se retirasse, mas ele só conseguiu ficar ali parado olhando para o saco mortuário.
Todos os tipos de imagem invadiram seus pensamentos, uma mistura de coisas do passado e do presente.
Mas não há mais futuro algum, pensou. Não haveria mais nada com aquele homem.
Deus, dentre todos os modos como as coisas entre eles poderiam terminar… aquele momento silencioso, naquela fria sala médica, com Mitch Ramsey de um lado e uma completa estranha do outro… não tinha imaginado nada daquilo.
– E agora? – ouviu-se perguntar.
Mitch pigarreou.
– Extraoficialmente, e não me obrigue a sustentar isso, temos quase certeza de que foi suicídio. Considerando tudo o que tem acontecido… bem, você entende.
– Sim. Sim, claro. – E a polícia nem desconfiava da questão financeira.
Que covarde filho da puta, Lane pensou. Primeiro ele provoca toda essa confusão, e depois resolve fugir se jogando de uma ponte.
Cretino.
– Gostaríamos do consentimento para realizar a autópsia – disse Mitch. – Só para excluir a possibilidade de um crime. Mas, repito, não é nisso que acreditamos.
– Claro. – Lane olhou para o delegado. – Escute, preciso de um tempo antes que isso chegue à imprensa. Tenho que contar à minha mãe e aos meus irmãos. Nem sei como localizar Maxwell, mas não quero que ele fique sabendo disso no noticiário das seis. Ou pior, na TMZ.
– A polícia está determinada a trabalhar com você e com a sua família.
– Serei o mais rápido que puder.
– Isso facilitaria tudo para nós também.
Uma prancheta surgiu de sabe-se lá onde, e ele assinou uma variedade de coisas. Quando devolveu a caneta ao delegado, pensou: “Merda, vamos ter que planejar um funeral”.
Ainda que, sendo bem franco, a última coisa que o interessava era honrar o pai de qualquer maneira.
– Não estou com fome.
Edward se acomodou na sua poltrona no chalé, bem ciente de que parecia um garotinho de quatro anos se recusando a jantar, mas não se importou.
O fato de o aroma vindo da sua cozinha embutida fazer sua boca salivar não era relevante.
Shelby, contudo, sofria de audição seletiva.
– Aqui está.
Ela colocou uma tigela de cozido na mesinha ao lado da sua garrafa de… o que era mesmo que estava bebendo? Ah, tequila. Ora, vejam só se não combinava à perfeição com o molho de carne.
– Coma – ela ordenou, num tom que sugeria que ou ele mesmo cuidava disso ou ela amassaria tudo e o forçaria a comer por meio de um canudo.
– Sabe, você pode ir quando quiser – ele murmurou.
Pelo amor de Deus, a mulher ficou na sua casa o dia inteiro, limpando, lavando a roupa, cozinhando. Ele lhe disse algumas vezes que ela tinha sido contratada para cuidar dos cavalos, e não do proprietário deles, mas, de novo, a audição dela era seletiva.
Maldição, isso aqui está muito bom, pensou ao encher a boca.
– Quero marcar um horário com o seu médico.
O som de um carro chegando foi uma interrupção bem-vinda. Esforçou-se para se lembrar que dia era, e desejou que, de algum modo, já fosse sexta-feira de novo, pois até gostava da ideia de ela ver uma prostituta vindo servi-lo. Inferno, ela até podia ficar olhando se quisesse. Não que fosse um bom espetáculo…
Por uma fração de segundo, lembrou-se de Sutton sobre ele, movendo-se para cima e para baixo, fitando-o nos olhos.
Uma dor afiada em seu peito o fez comer mais rápido só para se livrar da sensação.
A batida foi alta.
– Você se importaria de fazer as honras? – disse a Shelby. – Se for uma mulher, convide-a a entrar. Se não, diga que vá para o inferno. E use a palavra “inferno”, sim? Nós dois sabemos que ela faz parte do seu vocabulário agora.
O olhar furioso que ela lhe lançou provavelmente o teria derrubado se ele já não estivesse sentado.
Mas ela foi até a porta.
Abrindo-a, disse:
– Ah, nossa.
– Quem é? – Edward murmurou. – A sua fada madrinha?
Só que não era. Era Lane.
Enquanto seu irmão entrava no chalé, Edward já meneava a cabeça.
– O que quer que seja, você vai ter que ir para outro lugar. Já disse, não vou mais ajudar…
– Podemos falar em particular.
Não era uma pergunta.
Edward revirou os olhos.
– Não importa o que você vai dizer.
– É assunto de família.
– E não é sempre? – Quando Lane não cedeu, Edward praguejou. – O que quer que tenha a dizer, pode falar na frente dela.
A presença de Shelby talvez apressasse o assunto.
Lane olhou para a mulher. Voltou a olhar para ele.
– Nosso pai está morto.
Enquanto Shelby arfava, Edward lentamente abaixou a colher. Depois disse, numa voz grave: – Shelby, você pode, por favor, nos dar licença? Muito obrigado.
Engraçado como os bons modos surgiam nele em momentos de crise.
Depois que Shelby saiu rapidamente, Edward limpou a boca no guardanapo de papel.
– Quando?
– Em algum momento na noite passada, é o que estão acreditando. Ele se jogou de uma ponte, provavelmente. O corpo apareceu do outro lado da cascata.
Edward se recostou na poltrona.
Tinha a intenção de dizer alguma coisa. Tinha mesmo.
Só… não se lembrava o que era.
Lane, evidentemente, se sentia do mesmo modo, porque seu irmão caçula se aproximou da única outra cadeira no cômodo e se sentou.
– Contei para mamãe antes de vir para cá. Não acho que ela entendeu o que eu disse. Ela não está acompanhando nada. E também contei para a Gin. A reação dela foi igual à sua.
– Confirmaram se é ele?
Por algum motivo, aquilo parecia de importância vital. Ainda que… Como seria possível cometer um erro dessa magnitude?
– Fui eu quem identificou o corpo.
Edward fechou os olhos. E, por um breve instante, aquela luz piloto dele se acendeu novamente.
– Não deveria ter sido você. Eu deveria ter feito isso.
– Tudo bem. Eu não… – Lane inspirou fundo. – Acho que não estou tendo reação alguma. Tenho certeza de que ficou sabendo o que aconteceu ontem.
Edward olhou para o irmão.
– O que aconteceu ontem?
Lane teve que gargalhar.
– Às vezes não ter TV a cabo é uma coisa muito boa, não? Tudo bem, não importa. Não mesmo.
Ficaram sentados em silêncio por um bom tempo. Edward percebeu que estava esperando por algum tipo de reação emocional de si mesmo. Tristeza. Diabos, talvez até alegria.
Mas não sentiu nada. Apenas um torpor ressonante.
– Tenho que encontrar Max – disse Lane. – A polícia vai segurar a informação até estarmos prontos para dar uma declaração, mas não pode demorar muito.
– Não sei onde ele está – Edward murmurou.
– Fico ligando para o número que ele tinha há dois anos. Também mandei um e-mail, o último que ele tinha. Acho que ele deve estar mesmo fora do radar.
Mais silêncio.
– Gin está bem? – Edward perguntou.
Lane meneou a cabeça, depois percorreu o cômodo com o olhar.
– Algum de nós está?
Infelizmente, Edward pensou, a resposta é não.
QUARENTA E OITO
Na manhã seguinte, quando subiu pelas escadas dos fundos com um arranjo floral nas mãos, Lizzie tentou se encorajar.
Tudo bem ficar escondida nas estufas, mas convenhamos, ela ainda tinha treze dias no emprego em Easterly e não pretendia fazer corpo mole até lá. Sempre fora a responsável pelas flores dos quartos. Tinha seu cronograma e ia fazer muito bem o seu trabalho.
No segundo andar, aprumou os ombros e se encaminhou para a segunda melhor suíte de hóspedes. O senhor Harris lhe dissera que um hóspede tinha chegado inesperadamente e que também não havia mais a necessidade de trocar as flores no quarto de Chantal.
Muito bom saber disso, senhor Harris. Muito obrigada.
Pelo menos, era uma pessoa a menos na sua lista de “Pessoas a não encontrar”.
Uma pena que o número um ainda estivesse sob o teto de Easterly.
– Treze dias – disse baixinho. – Apenas treze dias.
Bateu à porta e esperou. Um momento depois, uma voz masculina disse: – Entre.
Empurrando a porta, viu um homem sentado à escrivaninha do avô de Lane, com as costas curvadas como uma vírgula enquanto trabalhava sobre o laptop. Ao lado dele, uma impressora cuspia páginas com tabelas e colunas e, aos seus pés, bolas de papel amarelo amassado salpicavam o chão.
Ele não levantou a cabeça.
– Só vim colocar um vaso de flores – explicou.
– Ã-hã.
Ao lado dele, sobre o peitoril da janela, havia uma bandeja de café da manhã vazia. Ao ajeitar o vaso sobre uma cômoda antiga, ofereceu: – Posso levar essa bandeja para baixo para você?
– O quê? – ele murmurou, ainda concentrado na tela.
– A bandeja?
– Sim, claro. Obrigado.
Concluiu que ele estava ali para examinar os arquivos que Rosalinda tinha deixado para trás.
Mas se lembrou que não era da sua conta.
Dando a volta na escrivaninha, viu duas malas caras. Uma estava aberta e remexida, mas ainda assim tinha a impressão de que o homem não tinha trocado de roupa desde a sua chegada. A camisa branca estava toda amassada, bem como as calças.
Também não era da sua conta.
Pegando a bandeja, ela…
– Ah, meu Deus.
Quando ele falou, ela quase deixou de olhar na direção dele, imaginando que ele tivesse encontrado algo no que quer que estivesse examinando. Mas logo percebeu que ele estava olhando para ela.
– O que foi? – perguntou.
– Você é a Lizzie. Certo?
Retraindo-se, ela olhou ao redor. O que foi meio ridículo, pois não havia ninguém atrás dela, não é?
– Hum… sim.
– A Lizzie do Lane. A horticulturista.
– Não – ela negou. – Não dele.
O homem esticou os braços acima da cabeça, e seu corpo todo estalou; ela notou que ele era muito bonito, com cabelos e olhos escuros – poderiam ser castanhos ou azuis.
O sotaque definitivamente era de Nova York.
– Uau – murmurou ele. – Pensei que você fosse de mentira.
– Se me der licença, tenho trabalho a fazer.
– E agora eu entendo por que ele não foi atrás de mais ninguém por dois anos.
Não pergunte, Lizzie se ordenou, não pergunte.
– O que disse? – ouviu-se perguntar.
Droga.
– Por dois anos, nada. Quero dizer, fizemos faculdade juntos, por isso vi em primeira mão como ele conquistou sua reputação. Mas nos dois últimos anos, ele não chegou perto de nenhuma mulher. Pensei que ele fosse gay. Até perguntei se ele era gay. – Ele mostrou as palmas num gesto defensivo. – Não que exista algo de errado com isso.
Isso faz parte de algum diálogo do Seinfeld?,23 ela se perguntou.
– Eu… hum…
– Agora estou entendendo. – O homem deu um amplo sorriso. – Mas ele disse que você está de partida? Não é da minha conta, mas… por quê? Ele é um bom homem. Não é perfeito, mas é bom. Só não sugeriria que você jogasse pôquer contra ele. Não a menos que tenha dinheiro sobrando para perder.
Lizzie franziu a testa.
– Eu… hum…
– A propósito, eu nem sabia que ele era casado. Ele nunca falou dela. Eu, por certo, nunca a vi… E agora, pensando bem, foi tudo por sua causa… Bem, de todo modo, tenho que voltar a trabalhar.
Como se o cara não tivesse acabado de lançar uma bomba no meio do quarto.
Quando o coração de Lizzie começou a bater forte, ela perguntou: – Desculpe. Mas você disse… que não sabia que ele era casado?
Ele voltou a olhar para ela.
– Não, ele nunca mencionou. Nenhuma vez nos dois anos em que dormiu no meu sofá. Só fiquei sabendo quando ele me ligou uns dias atrás.
– Mas você deve tê-la conhecido, não? Quando ela o visitou.
– Quando o visitou? Querida, ele nunca recebeu nenhuma visita, e eu sei disso porque ele nunca saía da minha casa. Jogávamos pôquer à noite e eu saía para trabalhar, só para voltar à noite e encontrá-lo no meu sofá na exata posição da manhã. Ele não via ninguém. Não atendia a telefonemas. Nunca voltou para cá. Nunca viajou. Só ficava trancado no meu apartamento, bebendo. Pensei que a próxima parada seria numa unidade de diálise.
– Nossa.
O cara arqueou uma sobrancelha, como se quisesse saber se ela precisava de alguma outra informação.
– Obrigada.
– Obrigado pelas flores. Nunca recebi flores de uma mulher antes.
E voltou a trabalhar, concentrado na tela.
Lizzie saiu do quarto num estado de torpor e teve que se lembrar de fechar a porta.
Depois de parada por um instante, virou a cabeça e olhou na direção do quarto do senhor Baldwine.
Nenhuma visita. Nenhum telefonema. Dois anos em Nova York no sofá do amigo.
E, supostamente, Chantal estava grávida.
De Lane.
Lizzie não teve ciência de quando se decidiu a andar. Mas, antes que se desse conta, deixou a bandeja no chão ao lado do quarto de hóspedes e andou nas pontas dos pés sobre a passadeira. Ao chegar ao quarto do senhor Baldwine, encostou a orelha na porta.
Depois bateu com suavidade.
Quando não obteve resposta, entrou sorrateiramente e se fechou ali dentro.
Havia algo de estranho no ar. Pensando bem, estava invadindo o lugar, visto que não tinha nenhum motivo válido para estar ali.
Bem, nenhum motivo profissional válido.
Relanceando para se certificar de que não havia ninguém no banheiro adjacente, apressou-se para junto da enorme cama, arrumada com precisão militar.
Ajoelhando-se, estendeu o pescoço debaixo do criado-mudo, debaixo da própria cabeceira da cama.
O tecido de seda ainda estava ali, no chão.
Lizzie esticou o braço e…
Toc, toc, toc.
– Serviço de quarto, senhor Baldwine.
Mergulhando rapidamente, Lizzie se enfiou embaixo da cama, encolhendo as pernas enquanto a criada abria a porta e entrava no quarto.
Um assobio suave e passadas leves sobre o carpete anunciavam o progresso da mulher conforme ela ia para o banheiro.
Por favor, não limpe, Lizzie suplicou em pensamentos, deitada no escuro. Só deixe as toalhas e siga com a sua vida.
Deixe as toalhas.
Siga em frente.
Deus, seu coração batia tão forte que foi um milagre a criada não ouvir nada.
Momento depois, um milagre aconteceu e as passadas recuaram para a porta, fechando-a novamente.
Lizzie relaxou e cerrou os olhos. Certo, riscaria ladra de galinhas da lista das suas possíveis escolhas de carreira para quando partisse de Easterly.
Segurando a lingerie, enfiou a peça no cós dos seus shorts e a cobriu, soltando a blusa por cima. Depois saiu dali, ficou de pé e tratou de se apressar.
Junto à porta, ouviu…
Caramba, o aspirador de pó estava ali no corredor bem na sua frente.
Nos aposentos da senhorita Aurora, Lane se esforçava para terminar o bacon com ovos.
– Você não precisa terminar, se não quiser – ela lhe disse ao seu lado.
– Nunca pensei ouvir isso da senhora.
– As regras estão suspensas hoje.
Recostando-se na poltrona reclinável, ele observou a pequenina cozinha embutida. Todos os pratos estavam lavados, já secando no escorredor. A esponja estava na pia. O pano de pratos estava dobrado com esmero sobre o puxador do fogão.
– Acha que o reverendo Nyce faria o funeral? – perguntou. – Na igreja batista de Charlemont?
A senhorita Aurora o fitou, curiosa.
– Mesmo?
– É a minha igreja. De Edward, Gin e Max também. – Olhou para ela. – A senhora foi a única pessoa que nos levou para rezar.
– Acho que ele ficaria honrado.
– Que bom. Vou ligar para ele.
Quando se calaram, Lane ficou olhando para a frente, sem ver nada, se concentrando no vazio. Também não havia nada na cabeça dele. Estava entorpecido, era um receptáculo vazio reagindo ao mundo ao seu redor, sem viver de verdade.
– Não vou te dar a minha bênção, menino.
Ele estremeceu e voltou a olhar para ela.
– O que disse?
– Não vou dizer que vai ficar tudo bem se você for embora.
Lane franziu o cenho e abriu a boca. Depois a fechou.
Engraçado, não se lembrava de ter dito isso em voz alta, mas ela o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa.
– Não deu certo com a Lizzie. De novo. Papai morreu. Edward se mudou. Mamãe está… bem, você sabe como ela está. Gin vai se casar com aquele idiota e provavelmente vai levar Amelia com ela. Esta era chegou ao fim, senhorita Aurora. E o que é pior: já não sei o que o futuro nos reserva. Easterly… – Moveu a mão no ar, pensando na propriedade e em todas as pessoas que dependiam dela. – Easterly faz parte do passado. Sabe, não posso viver aqui. É venenoso. Esta família, esta casa, este estilo de vida… tudo isso é simplesmente venenoso.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Você está encarando do jeito errado.
– Não estou, não.
Ela se colocou mais para a frente na poltrona e se esticou para tocar-lhe as mãos.
– Este é o seu momento, Lane. Deus lhe deu o dever sagrado de manter esta família unida. Você é o único que pode fazer isso. Tudo vai se ajeitar porque é o seu destino unir o seu sangue uma vez mais. É o tipo de coisa que acontece com algumas gerações. Está acontecendo agora. Esta é a sua hora.
Lane ficou encarando suas mãos juntas, o preto e o branco entrelaçados, e disse: – Era para ser Edward, sabe?
– Não, ou ele não estaria onde está agora. – A voz da senhorita Aurora demonstrou força. – Eu não te criei como um covarde, Lane. Não te criei para que abandonasse o seu dever e saísse correndo. Se quiser me honrar quando eu tiver partido, vai cumprir o seu dever fazendo com que esta família siga em frente, juntos. Cumpri o meu dever sagrado com você. Agora, você, filho do meu coração, vai fazer o mesmo com eles.
Lane fechou os olhos e sentiu um peso repentino cair sobre seu corpo, como se as paredes e o teto de Easterly tivessem se afundado sobre ele.
– Você vai fazer isso por mim, Lane. Porque se não fizer, tudo o que eu fiz por você não vai ter significado nada. Se não fizer, terei fracassado no meu dever.
Por dentro, ele gritava.
Por dentro, ele já estava num avião, indo para qualquer lugar distante de Charlemont.
– Deus não nos dá mais do que podemos suportar – disse ela com seriedade.
Mas e se Deus não nos conhece de verdade?, Lane pensou consigo. Ou pior… e se os planos de Deus estiverem simplesmente errados?
– Não sei, senhorita Aurora.
– Bem, eu sei. E você não vai me desapontar, filho. Simplesmente não vai.
Seinfeld foi uma série de TV produzida pela NBC. Tendo sido transmitida entre 1989 e 1998, foi eleita pelo TV Guide, em 2002, como "melhor programa de todos os tempos". (N.E.)
QUARENTA E NOVE
A verdadeira definição da eternidade, Lizzie concluiu, é quando se está preso num lugar em que não se deveria estar.
Com um babydoll que não é seu enfiado no cós dos seus malditos shorts.
Quando os sons por fim cessaram, ela aguardou mais uns cinco ou dez minutos antes de dar uma espiada.
Hora do almoço, deduziu. Graças a Deus.
Foi para o meio do corredor, deixou que a porta se fechasse atrás de si e ficou ali, com os ouvidos aguçados.
A próxima parada ficava além do quarto de Gin: o quarto de Chantal.
Bateu à porta. Nenhuma resposta. A mulher tinha ido embora, certo?
Esgueirando-se para dentro, fechou-se ali e…
– Ai, meu Deus! – murmurou, agitando a mão diante do nariz.
A fragrância do perfume caro fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas, mas como tinha peixes maiores para pescar, foi rapidamente para o closet de Chantal, parando diante de um armário grande o suficiente para rivalizar com o departamento feminino inteiro da Nordstrom. Ou da Saks. Ou quaisquer outros lugares elegantes onde mulheres como Chantal compravam suas roupas.
Puxa, seria capaz mesmo de fazer aquilo?
Concluiu que era provavelmente uma ideia bem idiota, enquanto procurava em meio aos cabides, passando por todo tipo de seda, cetim e renda. E terninhos, jaquetas, vestidos de gala…
– Onde está a sua lingerie, Chantal?
Claro, na cômoda.
No meio do closet, como uma ilha de organização, havia um móvel com gavetas dos dois lados. Começou a puxá-las aleatoriamente.
Ok, isso é uma idiotice, pensou. Achou mesmo que encontraria a parte de baixo d…
Estava na terceira gaveta, de baixo para cima, à esquerda do lado que dava para o norte quando encontrou o que procurava.
Mais ou menos.
No meio dos conjuntos de calcinha e sutiã perfilados e separados por papel de seda, encontrou… um babydoll roxo idêntico àquele encontrado debaixo da cama do quarto do senhor Baldwine.
Só para ter certeza de que não estava imaginando coisas, pegou o que trazia consigo, cor de pêssego, e os colocou lado a lado sobre o carpete branco e fofo. O mesmo tamanho, a mesma marca… La Perla? Tudo idêntico, a não ser a cor.
Sentou-se e ficou olhando para as peças.
E foi então que viu a mancha no tapete.
Do outro lado do quarto, havia uma penteadeira alinhada a uma alcova com janelas com vista para o jardim. Era o lugar ideal para fazer a maquiagem – ou para que alguém fizesse em você – sob a luz natural.
E debaixo das pernas de marfim, num canto, havia uma mancha amarela, redonda, meio escondida.
O tipo de coisa que se encontra em casas com cachorros.
Só que não existiam cachorros em Easterly.
Engatinhando até lá, enfiou-se debaixo da segunda peça de mobília e colocou o dedo sobre a mancha. Estava seca. Mas, ao aproximar os dedos do nariz… isso mesmo, aquela era a origem de todo o perfume no ar.
Franzindo o cenho, Lizzie se ajoelhou.
– Ai, meu Deus.
O tampo de vidro da penteadeira estava rachado no meio. E o espelho estava partido.
Com sangue bem no centro.
Hora de sair daqui, disse a si mesma.
Voltando para o closet, pegou a lingerie que deixara no chão, devolveu a roxa na gaveta e depois, numa inspiração, usou a cor de pêssego para limpar suas impressões digitais dos puxadores. De todos eles.
A última coisa que precisava era que a polícia fosse até ali e descobrisse que ela estivera bisbilhotando, por assim dizer…
Ficou imóvel ao ouvir uma voz masculina vinda do quarto ao lado, de Gin.
Ouviu duas pessoas conversando. Bem alto.
Indo até a parede, encostou a orelha ao lado da pintura de uma mulher francesa basicamente nua.
– Não me importo – Gin disse. – Vai ser apenas no cartório.
– O seu pai está morto.
Lizzie se retraiu, cobrindo a boca com a mão. O quê?
Richard Pford prosseguiu:
– Vamos esperar, nos casaremos depois do enterro.
– Não estou de luto por causa dele.
– Claro que não está. Para isso, você precisaria ter um coração, e nós dois sabemos que essa é sua anomalia física.
Lizzie recuou e tropeçou. Caiu sobre a cômoda.
Depois de um instante, continuou a limpar suas impressões e voltou para a porta que dava para o corredor. Como seu coração batia acelerado e forte, ela não estava conseguindo ouvir direito, mas mandou tudo às favas. Se fosse descoberta, o que fariam com ela?
Ela podia muito bem dizer que estava verificando as flores.
Mas não havia ninguém ali.
Seguiu às cegas para a escada dos empregados, com a mente num torvelinho, os pensamentos se debatendo, dissonantes, se partindo.
No meio de tudo aquilo, contudo, chegou a uma conclusão inescapável.
Tinha cometido um erro terrível.
Do tipo que seria impossível obter perdão.
Já no primeiro andar, parou de súbito. E percebeu que, de todos os lugares em que poderia ter se detido, escolhera parar diante do escritório de Rosalinda.
William Baldwine também estava morto.
Como?, ficou se perguntando. O que tinha acontecido?
Numa série de flashes, viu Lane parado na estufa, com a expressão fechada, a voz sem nenhuma emoção. Ouviu o amigo dele dizendo que, em vez de transar alegremente com Chantal às escondidas, ele não recebera ninguém e não fizera nada por dois anos.
E depois veio a bomba com aquele espelho quebrado no andar de cima. E a lingerie.
Lembrou-se da última imagem de Chantal à piscina, pedindo uma limonada.
Naquela hora, o fato de ela estar usando uma saída de seda não lhe parecera muito significativo. Mas agora…
Ela estava grávida e a barriga começava a aparecer. Motivo pelo qual ela pedira a bebida virgem, ou seja, sem álcool.
Chantal estava dormindo com William Baldwine. Traindo o filho com o pai. E tinha engravidado.
Ela deve ter contado a William, Lizzie concluiu. Depois do Derby.
E o homem perdeu as estribeiras. E bateu nela perto da penteadeira.
E depois a expulsou da casa. Ou algo assim.
Balançando a cabeça, Lizzie levou as mãos ao rosto rubro e tentou respirar.
Seu único pensamento foi o de precisar se acertar com Lane. Tinha o condenado com base em seu próprio medo de se magoar novamente…
Quando, na verdade, existia uma possibilidade muito, mas muito grande, de ele não ter nada a ver com todo o alvoroço.
Abaixando os braços, soube que palavras não bastariam. Não naquele caso.
Quando a solução surgiu, ela consultou o relógio. Se corresse…
Atravessou a cozinha às pressas, e a senhorita Aurora ergueu o olhar da panela no fogão.
– Aonde vai? – a mulher perguntou. – O que está pegando fogo?
Lizzie derrapou junto à porta que dava para a garagem.
– Preciso ir para Indiana. Se vir Lane, diga que vou voltar. Eu vou voltar!
CINQUENTA
Lane pensou que a área externa estava bem agradável, ao se sentar no jardim.
Olhando para os muros cobertos de heras e os canteiros de flores ao longo da piscina azul e das portas francesas do centro de negócios, imaginou todo o árduo trabalho necessário para manter aquela beleza “natural”.
Era impossível não visualizar Lizzie ali, mas refreou o impulso rapidamente.
Não havia motivo para se aborrecer com esse tipo de coisa.
Curvando a cabeça, esfregou os olhos. Samuel T. tinha telefonado para falar da situação de Chantal, e sabia que tinha que retornar a ligação. Mitch também tinha deixado uma mensagem, provavelmente a respeito dos resultados preliminares da autópsia. Nesse meio-tempo, lá no segundo andar, Jeff avaliava todos os relatórios financeiros.
As decisões quanto ao funeral precisavam ser tomadas.
Mas não tinha forças para lidar com nada daquilo.
Maldição, senhorita Aurora, pensou. Deixe-me ir. Só me deixe fugir de tudo.
Amava tanto aquela mulher. E devia-lhe muito mais. Ela era sua mãe, e mesmo que estivesse lhe dando uma surra moral, ele simplesmente já não estava mais envolvido naquela luta.
Erguendo os olhos para a incrível extensão branca de Easterly, fitou a mansão como um corretor imobiliário o faria. Não obstante a hipoteca de Sutton Smythe, poderia quitar boa parte da dívida junto à Fundos Prospect apenas com a venda do lugar.
Inferno. Com o pai morto, talvez pudessem procurar Sutton e pedir que ela não depositasse o dinheiro e rasgasse o documento.
Pensou em Edward. Deveria mandar Edward resolver esse assunto.
Ou talvez não. Talvez devesse simplesmente lavar as mãos.
Talvez, em vez de tentar pilotar o avião danificado no qual todos estavam, devesse deixar que a maldita aeronave se chocasse com a montanha.
Podia morrer como um covarde, podia desapontar sua mãe, mas, pelo menos, terminaria mais rápido do que se tentasse adivinhar os controles numa tentativa de aterrissar numa pista longe, muito longe dali…
Lane?
Fechou os olhos. Maravilha. Estava começando a alucinar.
Como se Lizzie fosse mesmo procurá-lo…
– Lane?
Virando-se no banco de pedra, ele viu… bem, hipoteticamente, ele a viu parada a poucos metros de distância.
E, vejam só, sob a luz do entardecer, ela estava mais linda do que nunca. Natural, adorável, com os límpidos olhos azuis e os cabelos iluminados pelo efeito do sol, e aquele uniforme de Easterly, que na verdade não deveria deixá-la sexy, mas que nela era simplesmente demais.
– Lane, posso falar com você?
Ele limpou a garganta. Sentou-se ereto.
Ao que tudo levava a crer, não era fruto da sua imaginação.
– Sim, claro. Do que precisa? Se for uma carta de referência, posso pedir ao mordomo que…
– Desculpe. – Quando a voz dela se partiu, ela respirou fundo. – Sinto muito, muito mesmo.
O que ela estava…
– Ah, meu pai. – Encolheu os ombros. – Acho que deve ter ficado sabendo. Sim, ele morreu. O enterro será na semana que vem. Obrigado pelas palavras gentis.
– Não estou falando disso. Embora, sim, eu lamente que você tenha perdido o seu pai. Sei que o relacionamento entre vocês não era dos melhores, mas ainda assim deve ser difícil.
– Bem, acontece que me supero em relacionamentos que não são bons. Parece uma habilidade minha.
Até para os próprios ouvidos, sua voz soou falsa. As palavras não eram as que normalmente usaria.
Edward, pensou, entorpecido. Estava parecendo Edward.
Lizzie se aproximou, e ele ficou mais do que surpreso por vê-la se ajoelhar diante dele. E ela estava…
– Por que está chorando? – perguntou. – Você está bem?
– Deus, como você pode perguntar isso? Depois de tudo o que eu fiz…
– Do que você está falando?
Então começaram a falar um por cima do outro, do modo típico deles. Mas como Lane não tinha forças para tentar decifrar nada, calou-se, na esperança de que ela explicasse e esclarecesse as coisas.
– Eu errei – disse, emocionada. – Sinto muito por não ter acreditado em você. A respeito de Chantal. Eu só… Eu não queria me magoar de novo, e me precipitei em tirar conclusões. E, ah, meu Deus, eu sei que foi o seu pai. Eu sei que foi ele. Foi ele quem bateu nela, foi ele quem a engravidou. Sinto muito.
Lágrimas rolaram pelo rosto dela, uma chuva de lágrimas, aterrissando na grama aos pés dele.
Lane piscou. Foi só o que ele conseguiu…
Jesus, seu cérebro não seria capaz de processar tantas informações. Ele literalmente não entendia o que ela estava dizendo…
Levando a mão às costas, ela pegou algo. Um maço de papéis dobrados ao meio?
– Lamento que não baste – ela disse. – Magoei você demais. Então preciso fazer algo concreto, para provar que estou ao seu lado, que eu te amo e que… que estou ao seu lado mesmo.
Entregou as folhas para ele.
– Eu preciso te mostrar, e não te dizer.
Lane balançou a cabeça.
– Lizzie, eu não sei o que…
– Pegue – ela disse.
Fez o que ela pediu porque não tinha motivos para não fazê-lo. Alisando a dobra, olhou para…
Um monte de palavras. Seguidas de alguns números.
A segunda folha era um mapa?
– É a escritura da minha fazenda – ela sussurrou. – Sei que não é nada comparado ao que você tem. Mas é tudo o que tenho neste mundo.
– Não estou entendendo…
– Sei dos problemas financeiros que você está enfrentando, e sei que não vai ajudar a saldar a dívida, mas vale o bastante para ajudá-lo a pagar bons advogados, pessoas que podem ajudá-lo a resolver a questão. – Apontou para o documento. – Quitei o empréstimo ontem. Não devo mais nada. E já fui abordada várias vezes para que a vendesse. A terra é boa. Vale bastante. E agora é sua.
O ar saiu do corpo dele.
O coração parou de bater.
A alma se partiu ao meio.
– Eu te amo, Lane. Desculpe por ter duvidado de você. Eu sinto que… Deus, você não faz ideia de como estou me sentindo mal. Deixe-me recompensá-lo do único modo que posso. Ou jogue esses documentos na minha cara, se quiser. Não vou te culpar. Mas eu tinha que fazer alguma coisa relevante. Eu tinha que… te oferecer tudo o que sou e tudo o que tenho…
Lane não se deu conta de que estava se aproximando dela.
Mas soube no instante em que ela foi de encontro ao seu peito.
Envolvendo-a com os braços, descontrolou-se por completo, as represas se abriram, e tudo saiu aos soluços.
E Lizzie, com seu corpo forte e coração grande, abraçou-o pelo tempo que foi necessário.
– Vai ficar tudo bem – ela lhe disse. – Eu te prometo. De algum modo, tudo vai ficar bem.
Quando, por fim, ele conseguiu se controlar o suficiente para se afastar, sentiu uma súbita vontade de se apalpar entre as pernas só para ver se ainda era homem. Mas Lizzie não parecia se importar por ele estar fragilizado.
Enxugou o rosto dela com os polegares e a beijou.
– Eu te amo, Lizzie. – Depois balançou a cabeça. – Mas não sei quanto a Deus.
– O que disse?
Lane expirou, estremecendo.
– É só uma coisa que a senhorita Aurora sempre me disse.
– E o que era?
Ele beijou sua mulher uma vez mais.
– Não sei se tenho Deus. Mas tenho certeza de uma coisa: eu tenho você. E isso me torna mais rico do que preciso ser.
Trazendo-a de volta para junto de si, ele a abraçou e ficou olhando para Easterly.
Ao diabo com a ideia de jogar o avião numa montanha, pensou.
A partir daquele instante, ele seria o chefe da família, a seu modo.
E ele estaria ferrado caso as coisas ruíssem na sua vigília.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
TRINTA E SETE
A chuva imprevista começou pouco depois das cinco da tarde. Enquanto dobrava a última das mesas debaixo da tenda, Lizzie sentiu o cheiro da mudança no ar e olhou para as heras no muro de tijolos do jardim. Como esperado, as folhas dançavam ao vento, reluzentes, encarando o céu cinzento.
– Não era para chover – murmurou para ninguém em especial.
– Você sabe o que dizem sobre o clima por estas partes – um dos garçons replicou.
É, pois é, ela sabia.
Onde estaria Lane?, perguntou-se. Estava sem notícias dele desde a conversa ao lado da picape, seis horas atrás.
O senhor Harris se aproximou.
– Você disse para eles que tudo isso vai para a área de carga e descarga?
– Sim – ela respondeu. – É sempre ali que ficam as coisas alugadas e, antes que pergunte, os copos e talheres também.
Já que o homem estava parado ali sem fazer nada, ela ficou tentada a pedir que ele a ajudasse segurando uma das pontas da mesa para carregá-la até a parte oposta do deque. Mas estava bem evidente que ele não era alguém que metia a mão na massa.
– Qual o problema?
– A polícia está aqui de novo. Estão tentando respeitar o evento, mas querem me interrogar mais uma vez.
Lizzie abaixou a voz.
– Quer que eu cuide das coisas?
– Sinto que eles não querem esperar.
– Pode deixar, tudo será feito da maneira correta.
O mordomo limpou a garganta. Em seguida, que Deus o abençoasse, ele se curvou levemente na sua direção.
– Agradeço imensamente. Obrigado. Não deve demorar muito.
Ela o viu se afastar, depois voltou ao trabalho.
Levantando a mesa, atravessou o espaço cavernoso e prosseguiu a céu aberto, onde o início de um chuvisco a molhou nos ombros e na cabeça. A área de carga e descarga ficava na parte oposta da casa. O sotaque carregado de Greta ressoava pelo lugar, enquanto dois empregados, um entrando com o lixo da festa, o outro saindo de mãos vazias, se apressavam.
Lizzie se dirigiu para junto deles, aproximando-se das mercadorias a serem devolvidas.
A tenda maior seria desarmada em vinte minutos, e a equipe de limpeza já estava trabalhando no chão, recolhendo guardanapos amassados, garfos perdidos e copos.
Os ricos não eram diferentes de qualquer outro rebanho de animais, capazes de deixar uma trilha de detritos depois de abandonarem o local de alimentação.
– Última mesa – disse, assim que se viu debaixo da tenda.
– Que bom. – Greta apontou para uma pilha. – Fica ali, ja?
– Isso mesmo. – Lizzie ergueu a mesa na altura da cintura e a deslizou no alto da pilha. – O senhor Harris teve que cuidar de umas coisas, por isso vou supervisionar a limpeza.
– Logo terremos tudo em orrdem. – Greta apontou o outro canto para dois rapazes com seis engradados de copos cada um. – Ali. Deixem debaixo da coberrturra, sim?
– Vou dar uma olhada na cozinha.
– Vamos terrminarr dentrro de uma horra.
– Como planejado.
– Semprre.
E Greta estava certa. Terminaram às seis em ponto; a tenda grande foi desmontada, a casa e os jardins foram liberados e o quintal estava limpo. Como de hábito, o esforço tinha sido tremendo. Os empregados se retiravam; a maioria se reuniria para beber e se livrar das dores, desconfortos e “Oh, meu Deus” do dia, mas não Lizzie nem sua colega. Casa. As duas iriam para suas respectivas casas. Lizzie esperaria por Lane, e Greta seria recebida por uma refeição preparada pelo marido.
As duas se encaminharam para o estacionamento dos funcionários, não disseram nenhuma palavra e, junto aos carros, abraçaram-se rapidamente.
– Mais uma vencida – Lizzie disse ao se separarem.
– Agorra vamos nos preparrarr parra a festa de aniverrsárrio da Pequena V.E.
Ou a festa de casamento de Gin, Lizzie ponderou.
– Eu te vejo amanhã? – perguntou.
– Domingo? Não – Greta gargalhou. – Não haverrá uma alma se-querr se movendo aqui, nem um marrtíni, nem um rato.
– Ah, é mesmo. Desculpe, a minha cabeça já pifou. Te vejo na segunda, então.
– Está bem parra dirrigirr?
– Claro!
Com um aceno, Lizzie entrou no seu Yaris e depois se juntou à fila de carros e caminhões que saía pelo caminho dos funcionários.
Tomando a esquerda na estrada River, a garoa se transformou em chuva de verdade, e o dilúvio a fez pensar na corrida. Caramba, perdera a corrida. Esticando a mão para o rádio, sintonizou na estação local. Quando conseguiu ouvir comentários sobre a corrida, já estava no entroncamento, passando por cima do rio Ohio.
Mas não acompanhou o relato – e não só porque não entendia nada do esporte.
Franzindo o cenho, aproximou o rosto do para-brisa.
– Meu Deus…
Mais à frente, o horizonte estava carregado de nuvens negras pairando alto no céu. E o pior? Havia uma coloração meio esverdeada em tudo aquilo. E mesmo um olhar desacostumado perceberia que aquilo parecia estar girando.
Olhou por cima do ombro. Atrás dela, não viu nada anormal. Havia até uma faixa de céu azul.
Enfiando a mão na bolsa, pegou o celular e ligou para Easterly. Quando aquela voz carregada de sotaque inglês atendeu, ela disse: – O tempo está piorando. Você vai ter que…
– Senhorita King?
– Escute, você vai ter que cobrir a piscina e os vasos…
– Mas o tempo não está piorando. Na verdade, a previsão deixou bem claro que deveríamos esperar apenas uns chuviscos esta noite.
Quando um raio cortou uma nuvem logo adiante, ela pensou que pelo menos se entendera com o homem uma hora antes.
– A previsão do tempo que se dane. Estou te contando o que está bem na minha frente: há uma tempestade maior que o centro da cidade de Charlemont atravessando o rio, e a colina de Easterly é a primeira coisa que ela vai atingir.
Droga, será que se lembrara de fechar as janelas da sua casa?
– Eu desconhecia os seus talentos de metereologista – o senhor Harris comentou com secura.
E o senhor é um cretino.
– Muito bem, mas depois você vai ter que explicar o seguinte assim que ela passar por aí: um, por que o abrigo ao lado da piscina saiu voando; dois, por que os quatro vasos da varanda da parte oeste caíram e terão que ser replantados; três, onde foi parar a mobília do jardim, porque, a menos que garanta que ela esteja na casa da piscina, ela acabará voando pelos canteiros do jardim. O que me leva ao número quatro, ou seja, quando as heras, as rosas e as hidrângeas serão reparadas. Ah, e depois você pode concluir isso fazendo um cheque de sete mil dólares para a família para cobrir todo o material de jardinagem que terá que ser reposto.
Tic, tac, tic, tac…
– Qual era o segundo item? – ele perguntou.
Te peguei.
Lizzie repassou todo o procedimento que ela e Greta desenvolveram, resultado do trabalho de vários anos com Gary McAdams, preparando-se para as grandes tempestades de primavera e de verão. O pior era que não era necessário um tornado F5 caindo diretamente em Easterly para criar o caos. Algumas tempestades eram mais do que capazes de estragar bastante coisa, se fossem atingidos por ventos diretos.
Era uma das coisas que aprendera rapidamente ao se mudar para Charlemont.
Como se provando que estava certa, ela logo atravessou uma cortina de chuva, que atingiu seu para-brisa com tanta força que pareceu uma dupla de sapateadores dançando “The Star-Spangled Banner”.
Aumentando a velocidade dos limpadores, tirou o pé do acelerador porque seu Yaris era bem capaz de hidroplanar na estrada mesmo na mais ínfima quantidade de água sob os pneus finos.
– Entendeu? – ela perguntou. – Preciso desligar e dirigir no meio desta coisa.
– Sim, sim, claro… ah, meu Deus – o homem sussurrou.
– Então, está vendo a tempestade agora? – Divirta-se, ela pensou. – Melhor começar a se mexer.
– Sim, de fato.
Desligou e jogou o celular dentro da bolsa. Depois, só lhe restou se dobrar em cima do volante, segurar firme… e rezar para que nenhum exibido numa SUV a jogasse para fora da estrada.
A situação piorou bem rápido.
E, puxa, depois de um dia atarefado e longo como o que tivera, a última coisa que precisava era enfrentar aquele aguaceiro reduzindo sua visibilidade para um metro e meio de distância, somado a trovões ensurdecedores e raios. O clima parecia disposto a acompanhar lado a lado o que acontecia em Easterly. Quase como se o drama na casa estivesse afetando o tempo.
Ok, talvez aquilo fosse exagero.
Mas, mesmo assim…
Levou uns quinhentos anos para chegar à sua saída. E mais setecentos ou oitocentos para chegar à entrada da sua casa. Nesse meio-tempo, a tempestade se transformou em Tempestade, com T maiúsculo: raios cruzavam o céu, parecendo querer atingir seu carro, e trovões rugiam. Ela foi atingida por uma rajada de granizo que poderia ter derrubado Fenway Park. Já com os nós dos dedos embranquecidos, irritada, preocupada com Lane e toda dolorida, finalmente chegou em casa, toda esbaforida e…
O dedo de Deus.
Foi só no que pensou.
Num momento, estava estacionando em seu lugar de costume próximo à casa. No seguinte? Um raio desceu do céu e atingiu a sua enorme e linda árvore bem no topo.
Faíscas se formaram, como se fosse 4 de julho.
E ela gritou, pisando no freio:
– Não!
Os pneus do Yaris derraparam no piso seco. Ou na estrada lamacenta e escorregadia.
E foi nessa hora que descobriu que Lane estava na sua casa.
Porque acabou batendo com tudo no para-choque traseiro do Porsche dele.
Lane já estava havia duas horas sentado à mesa da cozinha de Lizzie, lendo os relatórios financeiros da CBB, quando a chuva chegou. Enquanto a tempestade dava seu primeiro show, com trovões e raios sacudindo a casa, ele nem se deu ao trabalho de desviar o olhar do laptop, mesmo quando os antigos vidros tremeram e o telhado rangeu.
A quantidade de informação era tremenda.
E ele estava em pânico por entender apenas uma fração dela.
Mas, pensando bem, tinha sido muita ingenuidade da parte dele pensar que poderia lidar com os negócios do pai com algum tipo de diligência. Fora a quantidade incrível de arquivos, ele não tinha o conhecimento necessário para entender tudo aquilo.
Ainda bem que Edward tinha se preparado para algo assim, criando aquelas contas fantasmas, senhas e e-mails. Sem tais coisas, teria sido impossível exportar as informações sem disparar algum alerta interno.
Se bem que isso ainda poderia acontecer.
Ele não sabia de quanto tempo dispunham até que o pai deles descobrisse o vazamento de informações.
Fazendo uma pausa, recostou-se na cadeira e esfregou os olhos. Foi nesse instante que o segundo round da tempestade começou. Seja pelo cochilo forçado devido aos seus olhos cansados ou pelo fato de que suas células T estavam alertas, ele logo percebeu que a casa de Lizzie estava sendo atacada.
Levantou-se, deu a volta e fechou todas as persianas do andar de cima e de baixo. Enquanto corria de cômodo em cômodo, os raios iluminavam tudo como estrobos enlouquecidos, lançando sombras velozes sobre o piso de Lizzie, a mobília, o piano. O céu estava tão escuro como se fosse meia-noite, a chuva açoitava a fazenda, e Lane sentiu como se estivesse numa zona de guerra.
Tinha esquecido como aquelas tempestades de primavera vindas do leste podiam ser furiosas, as colisões das frentes frias e quentes correndo à solta por quilômetros e quilômetros da planície no centro-oeste.
De volta ao primeiro andar, relanceou para a varanda e praguejou. As mesinhas e as cadeiras de balanço de vime estavam todas amontoadas, numa agitação nervosa provocada pelas rajadas de vento.
Quando foi abrir a porta, a força da corrente fez com que ele tivesse que usar força para fechá-la novamente depois que saiu. Ao segurar tudo o que encontrava, moveu os objetos de Lizzie para o canto oposto da varanda, distante dos ventos mais fortes.
Estava voltando para apanhar a última cadeira quando viu faróis fazendo a curva na estrada principal. Só podia ser ela, e ele ficou aliviado. Tivera a intenção de telefonar, mandar uma mensagem, sinal de fumaça ou um pombo-correio, mas sua mente acabara se concentrando em…
Tudo aconteceu numa estranha combinação de câmera lenta com a velocidade do som: um raio surgiu no céu, seguido por um barulho de explosão e uma bomba de iluminação.
Um galho do tamanho de uma viga se partiu e caiu no chão.
Bem onde Lizzie acabava de estacionar.
O som de metal se retorcendo fez o coração dele parar de bater.
– Lizzie! – ele berrou e voou para fora da varanda.
A chuva o atingiu no rosto e o vento parecia uma matilha de cães atacando suas roupas, mas ele seguiu em frente.
A morte vem em três.
– Não! – ele berrou na tempestade. – Nããããooo!
O Yaris cedeu sob o peso, o teto amassou, a capota afundou, e a vida dele passou pela sua mente quando ele parou de súbito, descalço. Galhos com folhas novas atrapalhavam sua visão, assim como a chuva e o vento, e os raios e trovões continuaram, como se nada de importante tivesse acontecido.
– Lizzie!
Ele se enfiou na confusão verde, se contorcendo. Mesmo com todo aquele vento, ele sentia o cheiro de gasolina e óleo, e ouvia o sibilo do motor mortalmente atingido.
Talvez toda aquela umidade impedisse uma explosão?
Resolveu mudar de tática e começou a subir no carro, até dar a volta e chegar à frente do veículo. Por fim, sentiu algo molhado e escorregadio nas mãos, e começou a bater, para que ela soubesse que ele estava ali.
– Lizzie, vou te tirar daí!
Com puxões frenéticos, arrancou galhos e folhas até encontrar o vidro do para-brisa todo rachado. Fechando o punho, socou com força, e faltou pouco para que ele inteiro passasse pela abertura.
Lizzie estava de lado, com a cabeça apoiada no banco do passageiro, mexendo os braços como se estivesse tentando se orientar. Os dois airbags tinham sido acionados, e o pó branco e seco do interior contrastava com a umidade da tempestade.
– Lizzie!
Pelo menos ela estava se mexendo.
Merda. Ele não tinha como abrir as portas. Teria que puxá-la.
Esticando o braço, tocou-a no rosto.
– Lizzie?
Ela piscou, e havia sangue em sua testa.
– Lane…?
– Estou com você. Vou te tirar daí. Está machucada? O pescoço, como está? As costas?
– Desculpe, bati no seu carro…
Ele fechou os olhos por uma fração de segundo e murmurou uma oração. Em seguida, voltou a agir.
– Vou ter que te arrastar para fora.
Abrindo caminho pelo interior do carro, conseguiu, de algum modo, soltar o cinto dela, segurá-la pelos braços…
E parou.
– Lizzie? Presta atenção, tem certeza de que não está machucada? Consegue mover as pernas e os braços? – Quando ela não respondeu, ele sentiu uma onda de pânico. – Lizzie? Lizzie!
TRINTA E OITO
De volta a Charlemont, Edward não estava prestando atenção em seu último cavalo no Derby. Não estava sequer na pista.
Não, ele estava tentando um novo papel.
O de perseguidor.
Atrás do volante do caminhão do Haras Vermelho & Preto, olhou pela janela do passageiro para a enorme mansão de tijolos aparentes diante da qual estava parado.
Construída no início dos anos 1900, a grande casa georgiana era propositadamente maior do que Easterly. Já fazia quase um século que os Sutton eram arrivistas bem-sucedidos, e quando a fortuna da família por fim superou a dos Bradford, aquela casa transformou-se num troféu para o seu triunfo. Com seus vinte ou trinta quartos e um vilarejo para os empregados, a mansão era quase uma cidade, na segunda melhor colina com a segunda melhor vista do rio e o segundo melhor jardim.
Mas, sim, vencia Easterly em relação ao tamanho.
Assim como a Destilaria Sutton Corporation, que era um terço maior que a CBB.
Edward meneou a cabeça e relanceou para o relógio barato que passara a usar. Caso Sutton se ativesse aos seus costumes, não tardaria a chegar.
Pelo menos, nenhum funcionário uniformizado acompanhado por um pastor alemão a ladrar veio incomodá-lo pedindo para que fosse embora. A segurança da propriedade da família de Sutton Smythe era tão rigorosa quanto a de Easterly, mas ele tinha duas vantagens. A primeira era o logotipo em seu veículo; a marca registrada V&P era como uma garantia real, e mesmo que fosse um serial killer parado no vestíbulo do tribunal de justiça no centro da cidade, existia uma grande possibilidade que a polícia o deixasse em paz. A segunda coisa que tinha a seu favor era o Derby. Sem dúvida, todos ainda estavam comentando sobre a corrida, acertando apostas, deliciando-se com suas glórias.
Em breve. Muito em breve ela estaria em casa.
Depois que Lane o levou de volta à fazenda, ele tomou alguns remédios e um drinque. Em seguida, releu os papéis da hipoteca… E ficou só mais dez minutos ali antes de apanhar a bolsa de festa de Sutton e claudicar até um dos caminhões.
Moe e Shelby e o resto dos ajudantes estavam na pista junto aos treinadores e aos cavalos. Ao se afastar dirigindo, pensou que era uma lástima desperdiçar todo o silêncio e a tranquilidade da fazenda, mas aquilo era uma coisa que ele tinha que resolver pessoalmente.
A chuva começou a cair – primeiro uns pingos, depois um chuvisco.
Voltou a olhar para o relógio.
Treze minutos. Estava apostando que ela chegaria em treze minutos. Enquanto as outras 200 mil pessoas em Steeplehill Downs teriam que caminhar pelo longo trajeto até seus carros, para em seguida enfrentar um congestionamento na tentativa de entrar na autoestrada, pessoas como os Bradford e os Sutton tinham escolta policial, o que os fazia entrar e sair rápido dos lugares.
E ele estava certo.
Doze minutos e alguns segundos mais tarde, um dos Mulsannes pretos da família parou diante da casa. O motorista saiu de trás do volante, abriu um guarda-chuva e seguiu para a porta de trás. Um segundo segurança fez o mesmo do outro lado.
O pai de Sutton saiu primeiro, e precisou do braço do motorista para chegar à casa.
Sutton, por sua vez, saiu lentamente, com os olhos fixos no caminhão. Depois de conversar com o motorista, pegou o guarda-chuva dele e veio caminhando, sem se dar conta de que estava estragando os sapatos de salto alto.
Edward abaixou o vidro quando ela se aproximou, tentando ignorar o seu perfume conforme ela chegava cada vez mais perto.
– Entre – disse, sem olhar.
– Edward…
– Não vou discutir o que você assinou com o meu pai aí na sua casa. Nem no seu jardim.
Ela emitiu um xingamento agressivo e marchou para a frente do caminhão. Com um grunhido, ele tentou se esticar como um cavalheiro teria feito para lhe abrir a porta, mas ela chegou antes. Além disso, seu corpo não permitiria que ele se esticasse tanto assim.
Depois de se acomodar no banco, Sutton ficou imóvel ao ver sua bolsa.
Ligando o veículo, ele murmurou:
– Pensei que você gostaria de ter a sua habilitação de volta.
– Tenho que estar no baile em quarenta e cinco minutos – ela disse quando ele começou a descer a colina.
– Você odeia ir a esses eventos.
– Tenho um encontro.
– Tem? Que bom, parabéns. – Uma fugaz fantasia de raptá-la para impedi-la de ir se passou em sua mente. Como num filme, a fantasia culminaria numa Síndrome de Estocolmo, pois ela se apaixonaria pelo seu sequestrador. – Quem é ele?
– Ninguém que te interesse.
Edward virou à esquerda e apenas continuou dirigindo.
– Então você está mentindo.
– Veja as colunas sociais amanhã – ela argumentou num tom enfastiado. – Você poderá ler tudo a respeito.
– Eu não assino mais o Charlemont Courier Journal.
– Escute, Edward…
– Que diabos você está aprontando? Fazendo um hipoteca da minha própria casa?
Mesmo que não estivesse olhando para ela, ele sentia o olhar gélido cravado em seu rosto.
– Primeiro, foi seu pai quem me procurou. Segundo, se voltar a falar nesse tom comigo, executarei a hipoteca imediatamente.
Edward a encarou.
– Como pôde fazer isso? Você é mesmo tão gananciosa assim?
– Os juros são mais do que justos! Você queria que ele tivesse ido a um banco, que fosse exposto? Manterei tudo em segredo, desde que os pagamentos sejam feitos.
Ele apontou um dedo para os documentos no banco.
– Quero que suma com isso.
– Você não tem parte no acordo, Edward. E, ao que tudo leva a crer, o seu pai precisa do dinheiro. Ou não teria me procurado.
– Aquela casa pertence à minha mãe!
– Sabe, se eu fosse você, estaria me agradecendo. Não sei ao certo o que anda acontecendo debaixo daquele seu teto, mas dez milhões não deveriam ser nada para a grande e gloriosa família Bradford!
Edward virou à esquerda e estacionou num dos parques públicos do rio Ohio. Cruzando o estacionamento deserto, ele parou ao chegar ao atracadouro, e desligou o motor. Àquela altura, a tempestade caía a valer, e os raios no céu inflamavam a raiva dentro dele.
Virando-se no banco, ele engoliu um gemido de dor.
– Ele não precisa do dinheiro, Sutton.
Claro, era uma mentira. Mas a última coisa que a família precisava era de boatos. Por mais que ele estivesse frustrado com Sutton, sabia que poderia confiar nela, só que deviam haver outras pessoas envolvidas. Advogados, banqueiros. Pelo menos ela poderia negar essa conversa, caso fosse mencionada.
– Então por que ele assinou aquele documento? – ela inquiriu. – Por que o seu pai se desdobrou para me desviar de uma reunião de negócios para propor isso?
Enquanto ela o confrontava, ele teve uma rápida imagem mental da noite anterior, dela em seu colo, montando sobre ele, sendo gentil com seu corpo alquebrado.
Logo se lembrou do pai tentando abraçá-la no escritório.
Aquilo tinha como ficar mais confuso?, perguntou-se enquanto seu ódio por William Baldwine ressurgia.
Edward se concentrou nos lábios dela e pensou na esposa do irmão.
– Ele já te beijou?
– O que disse?
– O meu pai. Ele já te beijou?
Sutton meneou a cabeça em descrença.
– Vamos nos concentrar na questão da hipoteca de Easterly, está bem?
– Responda a maldita pergunta.
Ela levantou as mãos.
– Você me viu no escritório com ele. O que acha?
Então, sim, Edward pensou com uma onda de fúria.
– Escute – Sutton disse –, não sei o que está acontecendo com a sua família, ou por que ele quis fazer isso. Só o que sei foi que era um bom negócio para mim… e pensei que poderia ajudá-los. Fui idiota, pensei que manter isso em segredo poderia beneficiá-los.
Depois de um momento, ele murmurou:
– Bem, você está errada. E é por isso que quero que rasgue o documento.
– O seu pai também tem uma cópia – ela observou, seca. – Por que não vai falar com ele?
– Ele fez o acordo com você porque me odeia. Ele o fez porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Pelo menos isso não era mentira, ele pensou quando ela arfou.
Deus bem sabia que ele já se sentia apenas meio homem perto dela…
Sutton se mexeu no banco, absorvendo as palavras de Edward. Não conseguiu esconder sua ansiedade.
O orgulho fez com que quisesse atingi-lo, mas as palavras iradas se atropelaram em sua cabeça, e só o que ela acabou fazendo foi contemplar o rio agitado e lamacento.
Os limpadores de para-brisa estavam ligados, movendo-se em intervalos, clareando a vista da margem oposta temporariamente. E, engraçado, a vida era meio assim também, não era? Você segue em frente, cuidando da sua vida, sem conseguir ver exatamente onde se encontra por causa dos tantos detalhes demandando atenção, quando, subitamente, as coisas se cristalizam e você recebe uma breve visão que a faz pensar “Ah, é aqui que estou”.
Sutton pigarreou, mas não adiantou muito, pois, quando falou, as palavras saíram meio roucas.
– Sabe, acho que nunca vou entender por que me considera tão pouco. É um mistério para mim.
Edward disse algo, mas ela falou por cima dele:
– Você deve saber que me apaixonei por você há muito tempo.
Isso fez com que ele se calasse.
– Você deve saber. Como não saberia? Eu o segui por anos… É por isso que me odeia? – Olhou na direção dele, mas não conseguiu ver muito por causa do boné. O que era bom, provavelmente. – Você me despreza por isso? Sempre pensei que você foi deixando porque pensou que os meus sentimentos poderiam lhe ser úteis de algum jeito, mas é algo mais doentio do que isso? Sei que desprezo a mim mesma pela minha fraqueza. – Ela acenou para os documentos. – Quero dizer, esses papéis são um exemplo perfeito de como sou patética. Eu não teria feito um negócio assim, às escondidas, com ninguém mais. Mas imagino que seja um problema meu, e não seu.
Ela voltou a fitar além do para-brisa.
– Sei que não gosta de falar sobre o que aconteceu na América do Sul, mas… Eu não dormi o tempo todo que você estava lá, e tive pesadelos nos meses seguintes. E depois você voltou a Charlemont e não quis me ver. Disse a mim mesma que era porque você não estava recebendo ninguém, mas não é verdade, é?
– Sutton…
– Não – interrompeu-o com firmeza. – Não vou livrá-lo dessa hipoteca. Seria apenas mais uma estupidez nessa coisa que tenho com você.
– Você entendeu tudo errado, Sutton.
– Entendi? Não tenho tanta certeza assim. Então, que tal se terminarmos tudo aqui, agora? Você pode ir se foder, Edward. Agora me leve de volta para a minha casa antes que eu ligue para a polícia.
Ela esperou que ele discutisse. Depois de um instante, porém, ele engatou a marcha a ré e deu a volta.
Na estrada, ela o encarou de perfil.
– É melhor rezar para que aquele seu pai faça os pagamentos dentro do prazo. Se ele não fizer, não hesitarei em pôr a sua família no olho da rua. E se acha que isso não vai fazer as pessoas desta cidade comentarem a respeito, você perdeu o juízo.
Foi a última coisa dita no caminho de volta para a casa dela.
Quando ele parou diante da mansão, ela fez questão de pegar a bolsa de festa e levá-la consigo, e o caminhão mal tinha parado quando ela abriu a porta.
Sutton tinha quase certeza de que ele disse seu nome uma última vez antes de ela sair, mas talvez não.
Quem se importava?
Enquanto corria debaixo da chuva, o mordomo lhe abria a porta de entrada.
– Senhorita! – ele exclamou. – A senhorita está bem?
Ela não se dera ao trabalho de abrir o guarda-chuva, e uma rápida olhada no antigo espelho ao lado da porta mostrou que ela parecia tão exausta e abatida quanto se sentia.
– Na verdade, não estou me sentindo muito bem. – Não era nenhuma mentira. – Por favor, avise Brandon Miller que vou me deitar. Eu deveria me encontrar com ele para irmos ao baile de hoje.
Ele se curvou.
– Devo telefonar para o doutor Qalbi?
– Não, não. Só estou exausta.
– Eu lhe levarei uma bandeja com chá.
A ideia lhe pareceu nauseante.
– Quanta gentileza. Muito obrigada.
Enquanto o homem se afastava na direção da cozinha, ela seguiu para o elevador. Felizmente, ele já estava parado no térreo e ela pôde entrar imediatamente. A última coisa que queria era se encontrar com o pai ou com o irmão.
Tirou os sapatos e caminhou descalça pelo corredor, entrando sorrateiramente no quarto e batendo a porta atrás de si.
Fechou os olhos, mas continuou ouvindo a voz de Edward em sua mente.
Ele fez isso porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Inacreditável.
E era engraçado. Mesmo com todo o dinheiro que ela tinha, toda a posição social e autoridade, o respeito e a adulação… Ela ainda podia ser reduzida a uma criança devastada.
Só era preciso ficar num local fechado com Edward Baldwine.
Por dez minutos.
Não mais, ela jurou. A obsessão doentia que tinha por aquele homem precisava cessar agora.
Nos recessos da mente, às vezes ela se perguntava se ele também não combatia uma obsessão por ela, a competição centenária entre as duas famílias impedindo-o de se aproximar. Mas isso, evidentemente, fora uma projeção injusta da parte dela, algum tipo de fantasia romântica nascida dos seus próprios sentimentos.
As únicas coisas gentis que ele lhe dissera foram quando ele pensou que ela era uma prostituta a seu serviço.
No entanto, a realidade estava visivelmente clara agora. Ele tinha acabado de apresentá-la num outdoor na proverbial praça central da sua cidade. Deixara tudo evidente, sem margem para dúvidas.
Ela podia ser patética.
Mas não era burra.
TRINTA E NOVE
Atingida na cabeça.
Enquanto Lizzie escorregava para o lado da cabine esmagada de seu Yaris, sentiu como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
Por uma combinação de Wolverine, The Rock e talvez por Schwarzenegger em seus tempos de glória.
E, como resultado, nada estava sendo muito bem processado – o fato de ter batido na traseira do carro de Lane, o motivo pelo qual seu rosto estava molhado, o barulho alto…
– Lizzie!
O som do seu nome dissipou parte da sua confusão, e ela olhou ao redor, tentando descobrir por que Deus, de repente, estava com a voz muito parecida com a de Lane.
– Lane? – ela disse, piscando repetidas vezes.
Por que ele estava entrando pelo para-brisa? Seria aquilo um sonho? – … machucada em algum lugar? – ele dizia. – Preciso saber antes de tentar te mover.
– Desculpe, o seu carro…
– Lizzie, você tem que me dizer se está machucada!
Caramba, quando ele ficava ansioso aquele sotaque sulista ficava mais evidente, não? Ela estava confusa. Machucada? Por que ela estaria…
E foi então que ela viu toda a folhagem.
Dentro do carro.
Muito bem, aquilo devia ser um sonho ruim, mas ela podia seguir a correnteza. Testou os braços, as pernas, inspirou fundo, moveu a cabeça… Tudo parecia funcionar bem.
– Eu estou bem – murmurou. – O que aconteceu?
– Vou te puxar para a frente, ajude se puder, ok?
– Claro. Eu…
Uau. Ai!
Mas ela estava determinada a participar daquele esforço. Mesmo quando seus músculos ficaram meio esticados demais, parecendo querer saltar para fora das juntas, ela apoiou os pés em qualquer coisa que conseguiu, se empurrando enquanto Lane a puxava e fez força para seguir em frente.
A chuva atingiu seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Arranhões. O vento a cegou.
Mas ele a arrancou para fora.
E ela logo se viu nos braços dele, ao encontro do seu peito, sentindo-o estremecer.
– Ai, Deus – ele disse, rouco. – Ah, graças a Deus, você está viva…
Lizzie se segurou nele, ainda sem entender por que estavam sentados numa árvore. Como é que os carros tinham subido na…
Um raio espocou no céu tão perto deles que ela sentiu os ouvidos explodindo.
– Temos que entrar – Lane rugiu. – Venha.
Em algum momento no processo de tropeçar e cair no chão, o cérebro dela voltou à ativa, e o que ela viu quase a paralisou.
Metade da magnífica árvore que crescia ao lado da sua casa tinha esmagado seu carro.
No fim, ela não colidira com o Porsche.
A batida que ouviu era o seu sedãzinho sendo esmagado por todo aquele peso.
– Lane, o meu carro…
Foi tudo o que conseguiu dizer antes de ele a pegar nos braços e sair correndo na direção da casa. Quando ele saltou na varanda, ela o empurrou e saiu dos braços dele, recusando-se a ir mais longe. Cobrindo a boca com a mão ao ver seu carro daquele jeito, ela…
Sangue. Havia sangue por toda parte sobre ela.
Uma súbita tontura a acometeu, fazendo-a cambalear ao olhar para si mesma.
– Lane… Estou machucada?
– Para dentro – ele ordenou, conduzindo-a.
Enquanto a empurrava para dentro e empenhava todas as suas forças para fechar a porta, o coração dela começou a bater forte quando deu uma bela olhada no seu salvador: ele também estava todo molhado e ensanguentado.
Mas isso importava?
Os dois se abraçaram com tanta pressa que as roupas ensopadas se grudaram, os corpos voltando a se ligar, partilhando calor, segurando-se firmes um ao outro.
– Pensei que tivesse te perdido – ele disse ao ouvido dela. – Ah, meu Deus, pensei que…
– Você me salvou, você me salvou…
Ambos falavam apressadamente, tropeçando sobre as palavras, trêmulos pelo que quase acontecera. Ele a beijou e ela retribuiu.
Só que, depois de um tempo, ela se afastou.
– Acho que quem está sangrando é você.
– São só uns arranhões…
– Oh, Deus! Olhe para os seus braços, as suas mãos!
Ele estava todo machucado; sua pele tinha vários cortes por ter brigado com os galhos para chegar até ela, e havia contusões no rosto e no pescoço.
– Não estou nem aí – ele disse. – É com você que estou preocupado.
– Você precisa de um médico?
– Ora, por favor… A árvore caiu em cima de você, lembra?
E foi então que as luzes se apagaram.
Lizzie ficou imóvel um segundo, mas logo começou a rir com tanta intensidade que seus olhos arderam. Eram emoções demais, coisas demais para lidar… E, antes que se desse conta, Lane estava gargalhando também. Os dois se abraçaram, libertando-se de toda a tensão, dos problemas da família dele, do estresse do Brunch… até aquele horrendo acidente de carro.
– Banho? – ela sugeriu.
– Pensei que nunca fosse pedir.
Normalmente, ela ficaria irritada com as marcas dos pés na sala e nos degraus, mas não agora. A lembrança de todo aquele peso sobre seu carro a fazia priorizar o que era importante.
– Juro que pensei ter batido no seu carro – ela disse ao chegarem ao segundo andar.
– Não teria sido um problema, se tivesse mesmo.
Ah, as alegrias de ser um Bradford, ela pensou.
– Tenho certeza de que você tem um Porsche reserva.
– Mesmo se eu não tivesse, não teria tido importância, contanto que você estivesse bem.
Passaram ao mesmo tempo pelo batente do banheiro dela e se apertaram dentro do box, e quando ela ligou o chuveiro, ele partiu para cima dela, desabotoando sua roupa, abrindo zíperes, tirando tudo o que a deixava fria e molhada.
Arrepios se formaram nos braços e nas pernas dela, provocados mais pelo calor do olhar dele que pelo frio do ar. Logo Lane também se despiu, deixando as roupas caídas junto às dela.
– Para a água – ela grunhiu quando ele a acariciou no pescoço com o nariz, beijando um caminho até a boca.
Ele soltou um xingamento quando se colocaram debaixo do jato quente e suave. E quando a água os lavou, ela ficou aliviada: eram apenas arranhões, nada sério.
E esse foi seu último pensamento antes que as mãos grandes dele começassem a viajar pelos seus seios escorregadios, e a boca descesse com avidez sobre a dela, e aquele desejo erótico tão conhecido se reacendesse entre eles.
Eu te amo, ela pensou.
Eu te amo tudo de novo, Lane.
Algum tempo depois, quando a eletricidade voltou, depois de Lane ter feito amor com sua Lizzie duas vezes no chuveiro e mais uma na cama, depois que desceram e comeram os restos da lasanha congelada e boa parte do sorvete de pêssego, depois que voltaram para cima e foram para a cama de novo… todos os problemas do dia voltaram para ele.
Felizmente, Lizzie estava adormecida no escuro, por isso qualquer que fosse sua expressão, que já não tinha forças para esconder, não seria um problema.
Fitando o teto, sua mente começou a girar, e ele mal percebeu que o sol se levantava no horizonte. Deu uma rápida olhada para o rádio-relógio de Lizzie e se surpreendeu ao ver que ficara acordado a noite inteira.
Deslizando para fora dos lençóis, pôs-se de pé e foi para o banheiro. Suas roupas não tinham salvação; pegou-as no chão e jogou-as no lixo. A única coisa que ainda podia ser usada era a cueca.
Era melhor que dirigir nu para casa no dia do Senhor.
De volta ao quarto, aproximou-se de Lizzie.
– Tenho que ir.
Ela despertou de pronto, e ele a acariciou até que ela voltasse a apoiar a cabeça no travesseiro.
– Tenho um encontro com uma linda mulher e não posso faltar – ele disse.
Lizzie sorriu de uma maneira sonolenta, que fez com que ele desejasse ficar olhando para ela para sempre.
– Mande um oi.
– Pode deixar. – Ele a beijou na boca. – A propósito, hoje eu trago o jantar.
– Congelado?
– Não, vai estar mais quente que o inferno.
O sorriso que ela lhe lançou o atingiu direto no sangue, excitando-o, apesar de não haver tempo para fazer nada a respeito.
– Eu te… – Lane se deteve, sabendo que ela não gostaria daquela despedida. – Eu te vejo às cinco da tarde.
– Estarei aqui.
Ele a beijou uma vez mais e foi para a porta.
– Espere. E as suas roupas? – ela disse em voz alta.
– Não podem me prender. As partes ofensivas estão cobertas.
O riso dela o acompanhou até a escada e a saída da casa. E a visão de metade da copa daquela árvore fez o coração dele saltar.
Quando inspirou fundo, seu primeiro instinto foi o de pegar o telefone e ligar para Gary McAdams para que ele retirasse o galho e levasse aquela lata amassada que era o carro dela para um pátio de demolição. Mas se conteve. Lizzie não era do tipo de mulher que apreciaria esse tipo de manobra. Ela devia ter os próprios contatos, ideias de como lidar com aquele problema, planos para seu Yaris.
Conhecendo-a, ela tentaria fazer com que ele voltasse a funcionar.
Sacudiu a cabeça e foi até seu carro. O Porsche quase foi destruído também, sendo oupado por pouco. Depois de tirar alguns galhos do teto, entrou, ligou o carro e seguiu seu caminho lentamente ao largo dos galhos caídos e faixas de terra cheias de água. Assim que chegou ao asfalto, acelerou na direção de Charlemont, atravessando o rio e subindo a colina de Easterly.
Estava na metade do caminho quando teve que desacelerar porque outro carro vinha descendo.
Um sedã Mercedes preto S550.
E, atrás do volante, com imensos óculos escuros e um véu preto como se estivesse de luto, sua futura ex-mulher.
Chantal não olhou para ele, mesmo sabendo muito bem quem estava passando.
Tudo bem. Com um pouco de sorte, ela estaria de mudança e poderiam deixar que os advogados cuidassem de tudo, dali por diante. Deus bem sabia que ele tinha outras coisas para se preocupar.
Estacionou o Porsche na frente da casa, entrou pela porta principal e parou quando viu bagagem no vestíbulo.
Não era de Chantal. Ela tinha conjuntos da Louis Vuitton. Aquelas eram Gucci, marcadas com as iniciais RIP.
Richard Ignatius Pford.
Uma cretina saindo, ele pensou. E outro entrando.
Que diabos Gin estava pensando?
Ah, espere. Ele sabia a resposta. Para uma mulher com pouca formação acadêmica e nenhuma experiência profissional, sua irmã tinha um talento incontestável: saber cuidar de si mesma.
Assustada com a questão financeira, ela seguiu as orientações do pai e se agarrou ao tolo endinheirado a fim de que, não importando o que acontecesse com a família, seu estilo de vida não fosse afetado. Ele só desejava que o custo para ela não se provasse alto demais. Richard Pford era um filho da puta odioso.
Só que aquele circo não era seu, tampouco os macacos que nele se apresentariam. Por mais que o entristecesse, fazia tempo que aprendera a deixar que Gin seguisse sua cabeça e fosse em frente. Na verdade, não havia uma estratégia para lidar com a sua irmã.
Subiu os degraus rapidamente, foi para o quarto, tomou banho, se barbeou e vestiu o terno risca de giz. Precisou de duas tentativas para acertar a gravata borboleta.
Caramba, como odiava aquelas coisas.
Desceu pela escada dos empregados, cortou caminho pela cozinha e foi parar diante da porta da senhorita Aurora. Como fizera na primeira vez em que fora visitá-la quando ali chegou, verificou se estava com a camisa bem enfiada dentro da calça antes de bater à porta.
Mas parou antes de bater. Por algum motivo, sentiu um medo insano de que desta vez ela não atenderia. Que ele esperaria… e repetiria, e esperaria um pouco mais…
E então teria que invadir, forçando a porta como fizera no escritório de Rosalinda… E encontraria mais uma morta.
A porta se abriu, e a senhorita Aurora mostrou uma carranca.
– Está atrasado.
Lane se sobressaltou, mas logo se recobrou.
– Desculpe.
A senhorita Aurora resmungou e deu um tapinha em seu chapéu azul-claro de igreja. O conjunto dela era tão brilhante quanto um céu primaveril, e ela usava luvas e sapatos combinando, e uma perfeita bolsa do tamanho de uma raquete de tênis. O batom era vermelho-cereja, os brincos, os de pérola que ele lhe dera três anos atrás, e ela também usava o anel de pérola que lhe dera no ano anterior a esse.
Ofereceu-lhe o braço quando ela fechou a porta, e ela o aceitou.
Juntos, caminharam até a porta da frente, passando pelo senhor Harris, que sabia que não deveria comentar sobre a porta que estavam usando.
Lane acompanhou a senhorita Aurora até o Porsche e a acomodou no carro. Depois deu a volta e colocou-se atrás do volante.
– Vamos chegar atrasados – ela disse com rispidez.
– Farei com que cheguemos a tempo. Fique só observando.
– Não gosto de alta velocidade.
Ele se viu olhando para ela, piscando.
– Então feche os olhos, senhorita Aurora.
Ela deu um tapa no braço dele e o encarou.
– Você não está velho demais para levar uma surra?
– Sei que quer se sentar num dos bancos da frente.
– Tulane Baldwine, não ouse infringir a lei.
– Sim, senhora.
Com um sorriso maroto, ele pisou no acelerador, voando colina abaixo. Quando relanceou para a senhorita Aurora, viu que ela estava sorrindo.
Por um momento, tudo estava certo em seu mundo.
QUARENTA
A Igreja Batista de Charlemont ficava no West End e suas tábuas brancas se destacavam em meio aos quarteirões e quarteirões de unidades residenciais de baixa renda. Pense em algo imaculado. Desde o gramado muito bem aparado, o estacionamento recém-varrido, os vasos de plantas ao lado das portas duplas até as quadras de basquete nos fundos, o lugar era tão bem cuidado que parecia ter saído de um cartão postal dos anos 1950.
E às 9h20 da manhã de domingo, a igreja estava lotada.
No instante em que Lane se aproximou com o carro, as saudações surgiram tão rápido e de tantos lados que ele teve que desacelerar. Abaixando os dois vidros, ele apertou mãos, cumprimentou as pessoas pelos seus nomes, aceitou desafios para algumas partidas. Estacionou nos fundos, ajudou a senhorita Aurora a sair e depois a conduziu pela calçada que ladeava a igreja.
Havia crianças por toda parte, com vestidinhos florais e terninhos, tão coloridos quanto uma caixa de lápis de cor; o comportamento delas era muito melhor que o do grupo de adultos que participava das festas em Easterly. Todas as pessoas, todas mesmo, pararam para falar com ele e com a senhorita Aurora, querendo saber como estavam, colocando a conversa em dia. Nesse processo, ele se deu conta do quanto sentia falta daquela comunidade.
Engraçado, ele não era de frequentar a igreja, mas sempre que estava em casa, nunca deixava de acompanhar a senhorita Aurora.
Lá dentro, devia haver umas mil pessoas; as fileiras de bancos estavam repletas pelos féis, todos conversando, se abraçando, rindo. Era muito cedo ainda para que ligassem os ventiladores, mas isso logo aconteceria, bastava chegar junho. Lá na frente, havia uma banda com guitarras elétricas, bateria e baixos, e ao lado dela os cantores que compunham o coro. Atrás disso tudo, estava o admirável órgão – do tipo capaz de arrebentar as portas e as janelas e até mesmo o telhado –, ligando a congregação diretamente aos céus.
Max deveria estar aqui, Lane pensou. Seu irmão tinha participado do coro por diversos anos antes de partir para a faculdade.
Mas era uma tradição perdida. Ao que tudo levava a crer, para sempre.
A duas filas a partir da frente, havia espaço para eles, pois uma família de sete se espremeu para que coubessem.
– Muito obrigado – disse Lane, apertando a mão do pai. – Ei, você não é irmão de Thomas Blake?
– Sou, sim – o homem assentiu. – Sou Stan, o mais velho. E você é o menino da senhorita Aurora.
– Sim, senhor.
– Por onde andou? Faz tempo que não o vejo aqui.
Enquanto a senhorita Aurora erguia uma sobrancelha na sua direção, Lane pigarreou.
– Estive no norte.
– Meus sentimentos – disse Stan. – Mas, pelo menos, agora voltou.
– Aqueles são os meus sobrinhos. – A senhorita Aurora apontou para o outro lado do corredor. – D’Shwane está jogando para os Colts de Indiana agora. É recebedor. E Qwentin, ao lado dele, é atacante no Miami Heat.
Lane ergueu a mão quando os dois homens perceberam o olhar da senhorita Aurora.
– Lembro de quando jogavam na faculdade. Qwentin foi um dos melhores atacantes que os Águias já tiveram, e eu estava lá quando D’Shawne nos ajudou a ganhar o Sugar Bowl.
– São bons meninos.
– Toda a sua família é.
O órgão deu a primeira nota e a banda começou a tocar, e do nártex, o coral com beca vermelho-sangue entrou, cinquenta homens e mulheres andando lado a lado, cantando durante a procissão. Atrás deles, o reverendo Nyce seguia com a Bíblia junto ao peito; o homem era alto e distinto e fitava o seu rebanho com afeto. Ao ver Lane, estendeu o braço e apertou-lhe a mão.
– É bom tê-lo de volta, filho.
Quando chegou a hora de todos voltarem a se sentar, Lane sentiu uma sensação estranha. Perturbado, esticou o braço e segurou a mão da senhorita Aurora na sua.
Só conseguia pensar naquele galho de árvore caindo na noite anterior. A visão do carro amassado de Lizzie. O medo eletrizante que sentira ao se arrastar pelos galhos no meio da tempestade, gritando o nome dela.
Quando a banda começou o seu hino gospel predileto, ele olhou para o altar e só balançou a cabeça.
Claro que tinha que ser essa música, pensou.
Como se a própria igreja o estivesse acolhendo em casa também.
Levantou-se com a senhorita Aurora, e começou a se mover com o resto da congregação, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
E se viu cantando junto:
– Quero que saiba que Deus está ao meu lado…
Uma hora e meia mais tarde, o culto terminou e era hora do lanche. A congregação se dirigiu para o andar inferior para tomar ponche, comer uns cookies e conversar.
– Vamos descer – Lane disse.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Preciso voltar. Tenho trabalho.
Ele franziu o cenho.
– Mas nós sempre…
Ele se deteve. Não havia nada que requeresse cuidados em Easterly. Portanto, a única explicação era a que o fazia querer ligar para a emergência.
– Não olhe para mim assim, menino – ela murmurou. – Não é uma emergência médica, e mesmo que fosse, não vou morrer na minha igreja. Deus não faria isso com esta congregação.
– Vamos, apoie-se no meu braço.
Pareceram despreocupados ao andarem contra a maré e, puxa, ele preferiria levá-la nos ombros tal qual um bombeiro, abrindo caminho como um jogador da linha de defesa. Na metade do trajeto até a porta, teve que parar para conversar com Qwentin e D’Shwane – além dos dezessete outros membros da família da senhorita Aurora. Normalmente, ele teria adorado as conversas, mas não naquele dia. Não queria ser rude, só estava muito ciente do quanto a senhorita Aurora se apoiava em seu braço.
Quando, por fim, chegaram à porta da igreja, ele disse: – Espere aqui. Vou trazer o carro. E não, não tem discussão, pode parar já.
Ele meio que esperou que ela se opusesse, e quando ela não o fez, afastou-se correndo, indo para a parte mais distante do estacionamento.
Voltando com o Porsche, quase esperou encontrá-la desmaiada.
Nada disso aconteceu. Ela estava conversando com uma mulher magra, muito majestosa, que tinha o rosto de Nefertiti, um simples terno preto e um par de óculos sem aro diante de olhos muito aguçados.
Ah, uau, ele pensou. Aquilo sim era podia ser chamado de vento do passado.
Lane saiu do carro.
– Tanesha?
– Lane, como está? – Tanesha era a filha mais velha do reverendo. – É bom ver você.
Abraçaram-se e ele assentiu.
– Também é bom te ver. Já virou médica?
– Estou fazendo residência aqui na UC.
– No que vai se especializar?
– Oncologia.
– Ela está fazendo o trabalho do Senhor – disse a senhorita Aurora.
– Como está Max? – Tanesha perguntou.
Lane pigarreou.
– Eu é que não sei. Não falo com ele desde que ele foi para a costa oeste. Você sabe como ele é, imprevisível.
– Sim, ele era mesmo.
Momento. Embaraçoso.
– Bem, vou levar a senhorita Aurora de volta para casa – ele disse. – Foi bom te ver.
– Você também.
As duas mulheres falaram num tom baixo por um instante, e depois a senhorita Aurora permitiu que ele a conduzisse pelos degraus até o carro.
– Sobre o que falavam? – ele perguntou quando se afastaram.
– Sobre o ensaio do coral na semana que vem.
– A senhora não está no coral. – Olhou para ela quando ela não disse nada. – Senhorita Aurora? Quer me contar alguma coisa?
– Sim.
Ai, Deus…
– O quê?
Ela o segurou pela mão, mas não olhou para ele.
– Quero que se lembre do que lhe disse antes.
– E o que foi?
– Tenho Deus. – Apertou a mão dele com força. – E tenho você. Sou mais rica do que poderia imaginar.
Ela o segurou pela mão durante todo o trajeto de volta a Easterly, e ele soube… ele soube. Ela estava tentando prepará-lo para o que estava por vir. Também percebeu que era por isso que ele tinha insistido que Edward a visse no dia anterior, quando o irmão estivera na casa.
Se ao menos houvesse um modo de localizarem Max.
– Não quero que você parta – Lane disse, emocionado. – Vai ser duro demais.
A senhorita Aurora ficou calada até chegarem à base da colina de Easterly.
– Falando em partir – ela disse –, fiquei sabendo que Chantal foi embora.
– Sim, estou pondo um fim nisso.
– Bom. Talvez você e Lizzie finalmente voltem a ficar juntos. Ela é a mulher para você.
– Sabe, senhorita Aurora, eu concordo. Agora só preciso convencê-la.
– Eu ajudo.
– E eu aceito a sua ajuda. – Olhou para ela de relance. – A propósito, ela mandou um oi.
A senhorita Aurora sorriu.
– Isso quando você a deixou hoje cedo?
Enquanto Lane gaguejava e ficava vermelho como o Mercedes que lhe dera, a senhorita Aurora riu dele com gosto.
– Você é um menino levado, Lane.
– Sei disso. É por isso que a senhora precisa ficar por perto, para me fazer andar na linha. Não canso de lembrá-la.
Em vez de parar na frente da casa, ele deu a volta até os fundos para parar mais perto dos aposentos dela. Aproximando-se da porta de trás, freou, desligou o motor… e não saiu.
Olhando para ela, sussurrou:
– Estou falando sério. Preciso da sua ajuda aqui, na Terra… Nesta casa, na minha vida.
Deus, foi impossível ignorar o fato de que três dias atrás ela estivera berrando com ele, dizendo que não iria a parte alguma, mas, agora, algo mudara. Havia alguma coisa diferente.
Antes que ela conseguisse dizer qualquer coisa, a porta da garagem subiu e o motorista saiu com o Phantom. O carro de 500 mil dólares passou por eles e seguiu até a frente da casa.
– Ele é maligno – Lane disse. – Esse meu pai…
A senhorita Aurora ergueu as mãos.
– Amém.
– Onde diabos ele vai hoje cedo?
– Pra igreja é que não.
– Talvez tenha ido atrás de Chantal.
No instante em que proferiu as palavras, soltou um xingamento.
– Do que está falando?
Lane sacudiu a cabeça e saiu.
– Venha, vamos entrar.
Mas não entraram. Quando ele deu a volta e abriu a porta dela, ela continuou sentada com a bolsa no colo, com as mãos enluvadas uma sobre a outra.
– Pode contar.
– Senhorita Aurora…
– O que ele fez com você?
– Isso não é sobre mim.
– Se é sobre aquela sua esposa horrível, pode apostar o seu traseiro como é da sua conta.
Lane combateu o desejo de bater a cabeça no capô do Porsche.
– Não tem nenhuma importância.
– Eu sei que ela se livrou do seu bebê.
Quando aqueles olhos negros se ergueram para ele, Lane xingou uma vez mais.
– Senhorita Aurora. Não faça isso. Deixe estar. Existem muitas outras coisas com as quais vale a pena se preocupar.
Só o que ela fez foi erguer uma sobrancelha.
Lane se acomodou sobre os calcanhares. Deus, como ele amava aquele rosto, cada uma das rugas e marcas de expressão, cada curva e todas as linhas. E ele amava o fato de ela ser uma dama no comportamento, mas forte como um homem.
Ela e Lizzie eram muito parecidas.
– Existem algumas coisas que não valem a pena saber.
– E outras que você não deveria guardar para si.
Por algum motivo, ele se viu abaixando o olhar, como se tivesse algo de que se envergonhar.
– Ela está grávida, senhorita Aurora. E o filho não é meu.
– De quem é? – ela inquiriu.
O resto da história foi transmitido silenciosamente. E o mais engraçado foi que ela não se mostrou totalmente surpresa.
– Tem certeza? – ela perguntou baixinho.
– Foi o que ela disse. E quando o confrontei, a resposta apareceu na cara dele.
A senhorita Aurora fitou adiante, com a testa crispada e a cabeça tão baixa que ele já não enxergava os olhos dela.
– Deus o punirá.
– Eu não esperaria sentado, se fosse a senhora. – Ele se levantou e lhe estendeu a mão. – Está ficando quente aqui fora. Venha.
A senhorita Aurora voltou a fitá-lo nos olhos.
– Eu te amo.
Foi o jeito de ela se desculpar pelo que sabia que todos eles tiveram que aguentar por causa do pai. Não apenas aquela história hedionda com Chantal, mas todas as décadas de tudo o que se passara, desde que eram crianças.
– Sabe – ele disse –, eu nunca te agradeci. Por todos estes anos em que esteve presente, eu nunca… Foi a senhora quem nos manteve nos trilhos, especialmente eu. Sempre esteve ao meu lado. Sempre está ao meu lado.
– Deus me deu esse trabalho sagrado quando cruzou a minha vida com a de todos vocês.
– Eu te amo, mãe – disse emocionado. – Para sempre.
QUARENTA E UM
O som da serra elétrica nas mãos de Lizzie era tão alto que ela não ouviu a aproximação do carro. E foi só depois que deixou de acelerar e o motor da máquina silenciou que ela ouviu uma voz muito sensual e máscula anunciar que ela já não estava mais sozinha.
– Você é a mulher mais sexy que eu já vi.
Girando e olhando para baixo, ela encontrou Lane encostado no seu Porsche, de braços cruzados, pés fincados no chão e expressão intensa.
Do seu ponto de vista vantajoso – de cima do capô amassado do seu Yaris –, ela suspendeu a serra elétrica acima da cabeça e deu umas duas aceleradas.
– Ouça o meu urro.
– Ouça a minha súplica.
Ela teve que rir ao pular para o chão.
– Fiz algum progresso, mas não acho que…
Lane a interrompeu encostando a boca na dela, e o beijo rapidamente se tornou tão erótico que ele quase a dobrou para trás. Quando se separaram um pouco, os dois arfavam.
– Então, oi – ele disse.
– Você, por acaso, sentiu a minha falta?
– Todos os segundos. Deus, como eu amo v… amo o modo como você maneja essa serra.
Foi impossível não perceber o que ele quis dizer, e ela também teve que se bloquear mentalmente quando o instinto quase fez com que deixasse escapar a mesma declaração.
Contudo, Lane encobriu o desconforto com desembaraço.
– Como prometi, trouxe o jantar. Comida do clube. Peguei aquela salada que espero que ainda goste, e uma montanha de lombo fatiado. Sabe, para o caso de termos que nos recobrar.
– Do quê? – perguntou, com malícia, abaixando a serra.
– Ah, você sabe do que… – Só que ele franziu o cenho. – A menos que… bem, você esteja dolorida por causa da noite passada.
Lizzie sacudiu a cabeça.
– Nem um pouco.
– Uma pena.
– Como é?
Aproximando-se, deixou a boca pairar sobre a dela e lambeu seus lábios.
– Pensei que eu poderia dar uns beijinhos para melhorar.
– Você ainda pode fazer isso.
Quando ele a girou e a encostou contra o carro, ela sentiu o coração começar a flanar e pensou que podia muito bem se soltar. Uma árvore tinha destruído seu carro, seu quintal estava uma bagunça, e havia galhos espalhados em toda a sua propriedade… mas Lane estava ali, e se lembrava que ela gostava de salada Cobb e, maldição, ele era o melhor beijador do planeta.
Amanhã ela voltaria a andar nos trilhos. Amanhã ela se lembraria de tomar cuidado…
Lane se afastou um tantinho.
– Me diz uma coisa: o que você acha de fazer sexo a céu aberto?
Ela acenou para as três vacas que estavam perto da varanda.
– Acho que a nossa plateia pode duplicar quando o meu vizinho descobrir que essas senhoras vieram explorar minha terra de novo.
– Então vamos entrar agora mesmo antes que eu fique louco.
– Longe de mim me colocar entre você e a sua sanidade mental.
Ele tinha até uma maleta de roupas, ela percebeu, levando as coisas para dentro.
– Tenho novidades – ele disse ao fechar a porta da frente.
– O quê?
– Chantal saiu de casa hoje cedo.
Lizzie parou e o fitou. Ele estava vestindo sua roupa casual: bermuda e uma camisa polo IzOD, mocassins Gucci, óculos escuros Ray Ban, e o relógio Cartier, o conjunto fazendo com que ele parecesse saído de uma foto cuja legenda era “Os belos e os ricos”. Até o cabelo estava alisado para trás, embora se devesse ao fato de ele ter acabado de sair do banho e ainda estar úmido.
O coração dela oscilou, e ela sentiu um medo momentâneo. Lindo como estava, ele parecia o pôster de um homem em quem não se podia confiar, ainda mais no que se referia a mulheres como Chantal…
Como se ele pudesse ler sua mente, Lane tirou os óculos escuros, revelando seus olhos. Em contraste com tudo o que sua aparência dizia, eles eram límpidos, firmes e tranquilos.
Honestos.
– É mesmo? – ela sussurrou.
– Mesmo. – Ele se aproximou e a virou na sua direção. – Lizzie, acabou. Tudo acabou. E antes que me pergunte, não é só por sua causa. Eu deveria ter metido uma bala nesse casamento há muito tempo. Falha minha.
Fitando seu rosto, ela xingou baixinho.
– Desculpe, Lane. Desculpe ter duvidado de você, eu só…
– Psiu. – Ele a silenciou com os lábios. – Não vivo no passado. É perda de tempo. Só me importo com o presente.
Passando os braços ao redor do pescoço dele, ela curvou o corpo.
– Entãããooo… Não consegui ficar naquela coisa de sermos só amigos, consegui?
– Estou perfeitamente de acordo.
– Acho que esse foi o melhor jantar da minha vida.
Lane fitou-a da outra ponta do sofá e viu quando Lizzie se largou sobre as almofadas, pousando a mão sobre a barriga. Quando as pálpebras dela começaram a pesar, ele a visualizou sobre aquele galho como um anjo vingador, cortando os galhos que mataram seu carrinho.
Mesmo tendo passado a primeira hora desde a sua chegada um em cima do outro, Lane sentiu a ereção engrossar de novo.
– É um milagre – murmurou.
– Eu ter gostado tanto assim do lombo? Acho que não.
– Quero dizer, estar aqui com você.
Os olhos azuis voltaram a se abrir lentamente.
– Sinto a mesma coisa. – Quando ele começou a rir no fundo da garganta, ela o deteve, levantando as mãos. – Não, você não pode dormir sobre os louros da vitória.
Deixando o guardanapo de lado, ele pairou sobre seu corpo, e montou nela.
– Sabe, tenho outras opções de comemoração.
Movendo os quadris, ele sentiu uma pontada de desejo quando ela mordeu o lábio inferior, como se estivesse pronta para mais dele.
– Quer que eu demonstre? – perguntou, esfregando o nariz no seu pescoço.
As mãos dela o afagaram nas costas.
– Quero sim.
– Hummm…
O som do telefone sobre a mesinha lateral fez com que ele saltasse para pegá-lo, assustado.
– Não a senhorita Aurora… Por favor, que não seja sobre a senhorita Aurora…
– Ah, meu Deus… Lane, ela está…
Assim que ele viu que a ligação começava com o código de área 917, relaxou, aliviado.
– Graças a Deus. – Olhou para ela. – Tenho que atender. É um amigo de Nova York.
– Vá em frente.
Ele atendeu e disse:
– Jeff.
– Sentiu minha falta? – seu velho colega de quarto disse. – Sei que é por isso que deixou recado.
– Não chegou nem perto.
– Bem, não vou mandar aqueles bolinhos de canela que você come de manhã, à tarde e à noite pelo correio…
– Preciso saber quanto tempo você tem de férias.
Silêncio absoluto. Em seguida:
– A Série Mundial de Pôquer não está acontecendo agora. Por que está me perguntando isso?
– Preciso da sua ajuda. – Distraído, ele se encostou nas almofadas e posicionou as pernas de Lizzie sobre o seu colo. Depois do banho, ela tinha vestido shorts, e ele adorava ficar alisando aquelas panturrilhas macias e musculosas. – Estou com um problema sério aqui.
Jeff deixou a brincadeira de lado.
– Que tipo de problema?
– Preciso que alguém me diga se o meu pai está desviando dinheiro da empresa. Algo em torno de cinquenta milhões de dólares.
Jeff assobiou baixinho.
– É muita grana, cara.
– O meu irmão conseguiu me dar acesso a… sei lá, umas quinhentas páginas de relatórios financeiros e planilhas, mas eu não faço a mínima ideia do que tenho nas mãos. Quero que você venha para cá e me diga o que aconteceu, e isso tem que ser feito agora, antes que ele descubra que estou de olho e se livre de tudo o que possa incriminá-lo.
– Escuta aqui, Lane, você sabe que eu te amo como o irmão que nunca tive, mas o que você precisa é de um perito contábil. Existem pessoas que se especializaram nisso, e por um bom motivo. Deixe que eu encontre alguém em quem você possa confiar…
– É exatamente essa a minha preocupação, Jeff. Não posso confiar em ninguém com relação a esse assunto. Estamos falando da minha família.
– Podemos blindar todos os documentos. Posso ajudá-lo com isso, de modo que quem for fazer o…
– Quero você.
– Porra, Lane.
Por conhecer o homem há anos, Lane sabia muito bem que sua tarefa agora era se calar e deixar que Jeff ruminasse o assunto sozinho. Nada o convenceria nem o persuadiria, e se ele continuasse a falar, o tiro sairia pela culatra.
Em vez disso, Lane sabia que, se ficasse calado, todos aqueles anos de amizade resolveriam a questão.
Bingo!
– Insisto para que depois alguém revise o meu trabalho – Jeff murmurou. – Cacete, isso não é negociável. Não vou me responsabilizar por ferrar com tudo só porque você tem uma noção romântica de que sou brilhante com números.
– Mas você é.
– Maldição, Baldwine.
– Não posso mandar o meu avião. Chamaria muita atenção.
– Tudo bem. Um da minha família está na costa leste. Viajo amanhã de manhã e, não, não posso ir antes. Vou ter que ajeitar umas coisas no trabalho.
– Fico te devendo.
– Claro que fica. E pode começar a me pagar amanhã. Quero bebida grátis e mulheres à vontade, se vou ter que fazer isso.
– Cuido de tudo. Vou até te pegar no aeroporto, é só me dizer que horas vai chegar.
Jeff estava murmurando obscenidades quando desligou sem nem se despedir.
Quando Lane abaixou o aparelho, soltou um longo suspiro.
– Graças a Deus.
– Quem era?
– Acho que posso chamá-lo de meu melhor amigo. Foi com ele que me hospedei enquanto estive no norte. Jeff Stern. Financista brilhante. Se existe alguém que pode entender o rastro do dinheiro, Jeff é o cara. E, depois… – Lane esfregou os olhos. – Deus, acho que vou ter que procurar a polícia. Talvez a Comissão de Valores Imobiliários. O que eu queria mesmo era lidar com tudo isso sem alarde.
– E se o seu pai tiver infringido a lei?
Uma súbita imagem de William Baldwine num macacão laranja o deixou aliviado, de uma maneira doentia, por sua mãe estar desconectada da realidade.
– Não vou interferir com as autoridades. O que me preocupa é ele ter usado seu poder como procurador da minha mãe para secar as contas dela, mas não tenho acesso aos registros. Está tudo em poder da Fundos Prospect.
– Se a polícia ou o FBI se envolverem, eles vão conseguir descobrir isso.
Lane assentiu, lembrando-se do saco com o corpo de Rosalinda saindo de Easterly.
– Se Rosalinda cometeu suicídio por causa disso, o meu pai tem o sangue de outra pessoa nas mãos. Ele precisa ser levado à Justiça.
– Sabe, sempre tento olhar o lado positivo de tudo, mas… – Lizzie balançou a cabeça. – Bem, não importa o que aconteça, estou do seu lado, está bem?
Olhando para ela, ele disse, sério:
– É só disso que preciso. Não importa como tudo vai terminar, se eu tiver você…
O telefone tocou novamente, e ele riu ao apanhar o aparelho.
– Lá vem ele se arrependendo… Não, Jeff, não vai poder recuar agor…
– Você está perto de alguma TV?
Lane se endireitou.
– Samuel T.?
– Está ou não?
– Não. O que está acontecendo?
– Preciso que venha para a minha casa imediatamente. A polícia está à sua procura, e quando não o encontraram em Easterly, Mitch me ligou.
– O que… do que você está falando? – Depois pensou… ah, merda. – Olha só, sei que Edward e eu tecnicamente invadimos o centro de negócios sob falso pretexto, mas o maldito escritório está dentro da nossa propriedade, pra começo de conversa. E quanto aos documentos…
– Não sei do que você está falando e, neste instante, pouco me importo. Chantal foi parar no pronto-socorro hoje cedo, toda surrada. Ela disse às autoridades que você fez isso com ela assim que entrou com o pedido de divórcio, quando descobriu que ela estava grávida. Estão te acusando de violência doméstica, e eles podem ter o suficiente para acusá-lo de tentativa de homicídio também.
– O quê? – Lane se levantou. – Ela está louca!
– Não, ela está na sala operatória. Estão reparando o maxilar dela neste instante.
– Nunca toquei em Chantal! E posso provar! Eu nem estava em casa ontem à noite…
– Apenas venha para a minha casa. Vou intermediar a sua entrada no meio da noite para que não haja nenhuma foto sua indo para a delegacia, e depois te libero com uma fiança…
– Isso tudo é uma grande idiotice – Lane ralhou. – Não vou dançar de acordo com a música dela…
– Não é nenhuma brincadeira. E, a menos que compareça na delegacia, vai ser considerado fugitivo da justiça.
Lane olhou para Lizzie. Ela estava ereta, alarmada, preparada para receber más notícias.
De repente, lembrou-se de Chantal passando naquele Mercedes ao sair de Easterly. O rosto estava coberto com óculos escuros e um véu preto.
Até onde ele sabia, ela podia ter dado uma de Garota Exemplar e provocado os ferimentos ela mesma. Nunca colocara a mulher no campo da patologia antes, mas talvez tivesse subestimado a loucura dela.
– Muito bem. Estou a caminho. Chego na sua fazenda em vinte minutos.
Desligando, ouviu-se dizer:
– Tenho que ir.
– Lane, o que está acontecendo?
Os pratos do lindo jantar que tinham partilhado ainda estavam sobre a mesa, as almofadas do sofá afundadas no lugar em que ele estava recostado, alisando as pernas dela.
No entanto, tais momentos já pareciam pertencer a um passado muito, muito distante.
– Vou cuidar do assunto – ele disse. – Vou dar um jeito. Ela está mentindo. De novo, ela está mentindo.
– O que posso fazer para ajudar?
– Fique aqui. E não ligue o rádio. Ligo assim que puder para explicar tudo. – Segurou o rosto dela entre as mãos. – Eu te amo. Preciso que acredite. Preciso que se lembre disso. E vou cuidar de tudo, juro pela vida da minha mãe.
– Você está me assustando.
– Vai ficar tudo bem. Prometo.
Dito isso, saiu da casa dela.
Em disparada.
QUARENTA E DOIS
Enquanto o Porsche de Lane voava pela escuridão que se avolumava, Lizzie ficou por um bom tempo sentada onde ele a havia deixado. Só conseguia pensar que não deveriam estar surpresos. Chantal Baldwine não era flor que se cheirasse, e de jeito nenhum ela perderia sua posição social e o acesso ao estilo de vida dos Bradford sem lutar bastante.
Portanto, o que quer que fosse aquilo seria apenas o começo.
Pondo-se de pé, juntou os pratos e pensou que não era bem assim que tinha imaginado sua noite.
Mas talvez ele ainda voltasse. Tinha deixado a mala ali.
Maldita seja Chantal.
De volta à cozinha, deixou tudo na pia e despejou um pouco de detergente sobre a bagunça, depois abriu a torneira de água quente.
Então seu celular tocou sobre a bancada.
– Graças a Deus – disse, esticando a mão sobre os azulejos. – Lane? Pode me contar o q…
– Lizzie? Você está em casa?
– Greta? – Havia um zumbido na ligação, como se a mulher estivesse ao volante. – Greta? Não estou conseguindo te ouvir direito.
– … em casa?
– Sim, sim, estou em casa. Você está bem?
– … a caminho – buzz, brrrr, quick – … em dez minutos.
– Ok, mas não vou terminar de cortar os galhos agora. Já quase anoiteceu e, pra falar a verdade, não estou com vontade…
– … o telefone.
– O que foi?
A interferência sumiu e o sotaque carregado se fez alto e claro: – Você prrecisa desligarr o telefone.
– Por quê? Não. – Lane poderia telefonar. – Olha só, não estou com muita vontade de ter companhia e…
Houve um estalido alto e a ligação foi interrompida.
– Maravilha.
Enfiando o celular no bolso, voltou para junto da pia, lavou os pratos e os talheres, secou e guardou tudo.
Estava na sala de estar, sentada no sofá, folheando nervosamente a última edição da revista Garden & Gun, quando luzes de faróis brilharam na frente da sua casa e os pedriscos da sua entrada fizeram barulho.
Pondo-se de pé, ajeitou a blusa e deu uma segunda olhada para ver se o seu cabelo não estava todo bagunçado. Não havia motivos para parecer que tinha acabado de sair da cama com Lane.
Ainda mais porque boa parte do sexo que fizeram foi sobre o tapete do corredor. E nas escadas. E de pé no chuveiro.
Ao abrir a porta, ela…
Conforme Greta saía do Mercedes, Lizzie viu que o rosto de sua colega estava muito sério e que ela tinha os ombros encurvados. E ela parecia estar enxugando lágrimas debaixo daqueles óculos.
– Ai, meu Deus – disse Lizzie. – Aconteceu alguma coisa com seus filhos?
A mulher não respondeu, apenas subiu até a varanda e entrou direto na casa. Lizzie a seguiu, fechando a porta.
– Greta?
Ela deu uns passos. Depois parou, por fim.
– Você esteve com ele ontem à noite?
– O que disse?
– Lane. Só… Apenas diga, esteve ou não? A noite inteirra?
– Do que você está falando?
– Chantal está acusando Lane de surrá-la a ponto de mandá-la parra o hospital.
– O QUÊ?
E foi assim que ficou sabendo de tudo. Chantal. O hospital. A polícia. A imprensa.
Lane.
Quando Greta finalmente se calou, Lizzie se deixou cair sobre uma cadeira, às cegas.
– Eu…
– Aquele homem pode serr um monte de coisas – disse Greta –, mas nunca soube de ele terr levantado a mão parra uma mulherr.
– Claro que não. Deus, não. Absolutamente não.
– Ele ficou aqui ontem à noite?
– Ficou. Cheguei em casa durante a tempestade e ele já estava aqui. E não foi embora até hoje de manhã para levar a senhorita Aurora para a igreja. – Levantou-se de um salto. – Tenho que ajudá-lo! Tenho que contar à polícia que ele estava comigo e…
– Tem mais uma coisa.
– Pode me levar? Estou tão atarantada que acho que eu não deveria…
– Lizzie.
Ante o seu nome, ela parou, um medo gélido se instalando em seu peito.
– O quê…?
Agora os olhos de Greta estavam ficando marejados.
– Sinto muito.
– O quê? Fale de uma vez antes que a minha cabeça exploda!
– Chantal está grrávida. E ela disse à polícia… que Lane é o pai.
Lizzie piscou enquanto tudo freava de repente: seus pensamentos, seu coração, seus pulmões… até mesmo o tempo e as leis da física.
– Ela disse que é porr isso que ele bateu nela. Quando ela contou. Ela disse que ele ficou furrioso.
Uma onda de náusea a atingiu no meio do estômago. Mas não… Não, ela não poderia estar revivendo tudo. Não poderia estar exatamente na mesma situação com Chantal e Lane.
Já vivi isso, ela pensou. Já vivi esse pesadelo.
Deus, não. Por favor, não.
– Quando… – Lizzie pigarreou. – Quando ela procurou a polícia?
– Logo cedo. Lá pelas nove ou dez.
Se estivesse muito machucada, não esperaria para ser receber cuidados médicos, Lizzie pensou.
Se a mulher estava grávida, e contou a ele quando ele voltou para Easterly… ele poderia muito bem…
Com uma náusea absurda, Lizzie fugiu para o corredor e mal chegou ao banheiro a tempo antes de vomitar todo o lombo.
Quando chegou à fazenda de Samuel T., Lane estava tão irado que poderia morder latas e cuspir pregos.
Afundando o pé no freio, parou diante da mansão do amigo e quase deixou o motor ligado ao sair.
Samuel T. abriu a porta antes de ele dar a volta no carro.
– Liguei para o Mitch. Ele vai estar aqui em quarenta e cinco minutos, sem viatura. Não querem esperar para te levar para interrogatório, mas vão te deixar entrar por uma porta lateral. Ninguém com câmera tem acesso a essa parte, então vai ficar tudo bem.
Lane passou pelo cara.
– Isso é a mais absoluta mentira! Ela é louca e vai… – Ele parou e ficou confuso ante o olhar do amigo. – O que foi? Por que está olhando assim para mim?
Em vez de responder, Samuel T. esticou a mão e segurou o braço de Lane.
– Como conseguiu todos esses arranhões nas suas mãos, nos braços, no rosto e no pescoço?
Lane olhou para si mesmo.
– Jesus Cristo, Sam, isso foi de ontem à noite. Fui para a casa da Lizzie e um galho caiu no carro dela. – Quando o amigo apenas o encarou, ele perdeu as estribeiras. – Ela pode testemunhar, se quiser. Eu a tirei daquele maldito Yaris. Pensei que ela tivesse morrido.
– Você está saindo com ela de novo?
– Sim, estou.
– E acha que ela vai querer te ajudar quando descobrir que Chantal está grávida de um filho seu? De novo? Vocês dois não passaram por todo esse drama dois anos atrás?
Lane sentiu noventa por cento do seu sangue abandonar a sua cabeça.
– Não é meu, Sam. Eu te disse quando assinei todos aqueles papéis. Não estive com Chantal desde que fui embora.
– Não é o que ela contou para a polícia. Ela disse que tem ido e vindo de Manhattan no último ano, tentando fazer o relacionamento de vocês dar certo.
– Não é meu. – Ele abaixou a voz, mesmo não havendo mais ninguém por perto. – É do meu pai.
Foi a vez de Samuel T. ficar chocado.
– Do seu… pai?
– Você ouviu.
– Tem certeza?
– Tenho, falei com os dois.
Samuel T. tossiu no punho fechado.
– Sabe, essa sua família é uma coisa do outro mundo.
– É o que as pessoas me dizem. – Lane cruzou os braços sobre o peito. – Posso me submeter a um teste de detecção de mentiras. Juro sobre a Bíblia… Inferno, eles deveriam verificar debaixo das unhas dela. Não vão encontrar nada de mim nela. Nem dentro dela. Não toquei nela, Sam.
– Ela disse que tem uma testemunha.
– Rá! Só nos sonhos dela. Diabos, ela mesma deve ter feito isso consigo…
– É uma criada chamada Tiffany.
Lane se retraiu.
– Uma criada? Tiff… Espere, é “p-h-a-n-i-i”?
Visualizou a moça das toalhas, que se apresentara com aquele olhar de interesse.
Samuel T. deu de ombros.
– Não sei como se soletra o nome dela. Ainda tenho que ver os detalhes com Mitch. Mas a mulher disse que ouviu você e Chantal discutindo, e que você a ameaçou. E, segundo a criada, você jurou “acabar com a vida dela”.
– Eu nunca disse isso!
– Vocês estavam no segundo andar e a criada apareceu no meio da discussão.
– Ela está mentindo… – Lane parou e meneou a cabeça, uma lembrança retornando. – Espere, não, não. Não foi assim, eu disse isso porque Chantal havia desrespeitado a senhorita Aurora. Fiquei irritado. Mas não falei pra valer.
Samuel olhou para os cortes nos braços dele.
– Vou ser bem franco. Você parece ter respostas bem convenientes…
– É a verdade! Não estou inventando nada!
– Escuta só, não quero brigar com você.
– Samuel T. – ele disse, num tom controlado. – Você já me viu ser violento? Ainda mais com uma mulher?
Samuel T. o encarou longamente. Depois, levantou as mãos.
– Não, nunca o vi assim. E quero acreditar em você, quero mesmo. Mas mesmo que esteja dizendo a verdade, temos dois problemas aqui: um legal e outro publicitário. A parte legal pode ser facilmente resolvida, caso Lizzie testemunhe a seu favor e não houver nenhuma evidência forense no seu corpo ou no de Chantal. Agora, o problema publicitário será muito mais difícil de controlar. A notícia vai se espalhar, Lane. Ainda mais se você estiver certo e o seu pai tiver um filho com a sua esposa. Diabos, isso vai virar notícia nacional… E você sabe como a imprensa nunca deixa a verdade atrapalhar uma boa história. E esse tipo de coisa afeta o preço das ações e o valor intrínseco dos produtos da sua família. Não estou dizendo que seja certo, mas é a realidade. Você é a Cia. Bourbon Bradford. A sua família é a Cia. Bourbon Bradford. Posso ter conseguido apagar a passagem da sua irmã pela cadeia, mas isso aqui… Não tem como. A história já está no noticiário local.
Lane andou em círculos no átrio da casa do amigo. Depois olhou para ele.
– Falando em família, você tem bourbon nesta casa?
– Sempre. E só me sirvo do melhor, portanto é um Bradford.
Lane pensou em Mack e nos silos fechados. E depois no pai… E em tudo o que o homem tinha aprontado.
– Veremos por quanto tempo mais – Lane murmurou.
QUARENTA E TRÊS
Seis horas mais tarde, enquanto ainda estava na sala de interrogatórios da delegacia do condado, Lane tentou ligar para o celular de Lizzie pela sexta vez, e concluiu que ela devia ter ficado sabendo da situação. Talvez alguém tivesse ligado para ela. Ou, quem sabe, ela tinha ligado o rádio, pois não tinha televisão.
Inferno, talvez alguém tivesse colocado uma placa luminosa no centro de Charlemont e ela conseguia ver lá de Indiana.
– Estamos quase terminando aqui – Samuel T. disse quando voltou à saleta cinza. – A boa notícia é que você foi rebaixado a apenas uma pessoa de interesse, mas as coisas ainda vão ficar no limbo até a investigação ser concluída. Mas, pelo menos, agora você pode voltar para casa e não vai ser fichado.
Lane desligou o telefone e esfregou os olhos cansados. Tinham lhe entregado a carteira e o celular uns quinze minutos antes, e a primeira coisa que fez foi tentar falar com Lizzie.
Visto a maneira como saíra da casa dela, não havia a menor possibilidade de ela não atender, caso quisesse falar com ele.
Evidentemente, ela não tinha interesse nenhum em ouvir a sua versão dos fatos.
– Quanto tempo mais? – perguntou, esfregando a cabeça dolorida. – Posso ir embora agora?
– Quase. Só estamos verificando com o promotor público, que, por acaso, é um companheiro meu de caçada. – Samuel T. se sentou. – Sei que é politicamente incorreto, mas graças a Deus a rede de amizades masculinas ainda vai muito bem, obrigado, nesta cidade. Ou você estaria sendo submetido a uma revista pessoal neste exato minuto.
– Você faz milagres – Lane disse, entorpecido.
– Ajuda o fato de a história de Chantal ter alguns buracos. Ela, evidentemente, estava trabalhando sozinha quando teve essa brilhante ideia. Quem é que toma banho logo depois de ser atacada? E toma tanto cuidado para limpar as unhas quebradas? Não faz o mínimo sentido. E também há o pequenino detalhe de ela ter ligado tanto para a imprensa quanto para dois canais de TV… do leito hospitalar.
– Eu te disse. – Olhou para o telefone para ver se Lizzie tinha retornado a ligação sem ele perceber. – Essa aí está arruinando a minha vida.
– Não se eu puder impedir.
Lane tentou falar com Lizzie pela sétima vez. Depois abaixou o celular.
– Como ela estava? Chantal, quero dizer. Quando chegou ao hospital.
– Tem certeza de que quer ver as fotos?
– Tenho, preciso saber a gravidade da situação.
Samuel T. voltou a se levantar.
– Vou ver o que posso fazer.
Enquanto a porta da sala de interrogatórios se abria e se fechava uma vez mais, Lane ficou mexendo no telefone. Pensou em mandar uma mensagem de texto, mas duvidou que fizesse alguma diferença.
Inacreditável. Literalmente, custava a acreditar que aquilo estivesse acontecendo de novo com ele: duas mulheres, as mesmas palavras… onde isso ia parar?
Estava morrendo de medo de já ter a resposta. Lizzie o excluíra uma vez. Claramente, era daquela maneira que ela pretendia lidar com o assunto de novo.
Samuel T. voltou uns dez minutos depois com um envelope pardo.
– Aqui está.
Lane o pegou e levantou a aba. Segurou quatro fotos, e franziu a testa ao ver a de cima.
Dois olhos roxos. Hematomas dos dois lados do rosto. Marcas de estrangulamento no pescoço.
– Isso é muito ruim – disse com voz partida. – Jesus…
Ele não sentia o menor afeto por Chantal, porém não gostava de ver ninguém naquelas condições, ainda mais uma mulher. E ele ponderou que não havia como ela ter feito aquilo sozinha. Alguém devia ter batido nela, repetidamente e com força.
Será que ela pagou para que alguém fizesse aquilo?, ficou imaginando.
A segunda e a terceira fotos eram close ups. A quarta…
Lane voltou para a terceira. Aproximando-se, estudou um detalhe na face, um corte profundo debaixo do olho.
De repente, deixou as fotos na mesa e se recostou na cadeira, fechando os olhos.
– O que foi? – Samuel T. perguntou.
Demorou um pouco para ele poder responder. Mas, por fim, virou a foto e apontou para o corte aberto na face de Chantal.
– Meu pai fez isso com ela.
– Como você sabe?
Com uma claridade impressionante, Lane se lembrou mais uma vez daquela terrível noite de Ano Novo, quando era criança e seu irmão mais velho foi surrado.
– Quando ele batia em Edward, o anel de sinete deixava exatamente essa marca. O meu pai estapeava com o dorso da mão… e o ouro provocava o corte.
Samuel T. xingou baixinho.
– Está falando sério?
– Muito sério.
– Espere um instante, deixe-me ver se consigo fazer o investigador voltar. Eles vão querer saber disso.
Enquanto dirigia para o trabalho, ao romper do dia, Lizzie não conseguiu deixar de se lembrar daquele mesmo trajeto poucos dias atrás, quando a ambulância a ultrapassou antes da colina para Easterly.
Sentia o mesmo mau presságio de então. E o mesmo medo de ver Lane.
Nada de rádio ligado desta vez. Não queria se arriscar a ouvir a estação local com a grande notícia sobre como um dos mais proeminentes homens de Charlemont tinha mandado sua esposa gestante para o hospital. Detalhes adicionais sobre a situação não mudariam a história, e ela já estava se sentindo bem mal com tudo aquilo.
Passando pelo portão principal da PFB, tomou o caminho dos empregados e seguiu em meio a campos abertos e estufas até o estacionamento na parte superior. Era tão cedo que não havia mais ninguém por perto, nem mesmo Gary McAdams.
Era assim que tinha planejado.
No piloto automático, manobrou sua caminhonete e se virou para trás para pegar a bolsa.
– Droga.
Deixara-a em casa. O que significava que ficaria sem óculos de sol, protetor solar, nem chapéu.
Tanto faz. Não voltaria para casa.
E devia ser muito bom o fato de também estar sem telefone. Lane não parara de ligar desde as quatro da manhã.
A caminhada até a porta dos fundos de Easterly levou algum tempo, e ela refletiu se não era apenas um indício do seu cansaço. Depois que Greta finalmente foi embora lá pela uma da manhã, ela ficou acordada vendo o nascer do sol acima da bagunça do quintal.
Uma metáfora da sua vida.
Entrando na cozinha, encontrou a senhorita Aurora diante do fogão.
– Bom dia – disse, com o que esperava ser sua voz normal. – Viu o senhor Harris?
A senhorita Aurora girou os ovos com a sua espátula.
– Ele está no quarto. Não tenho nenhum pedido da família hoje, então isso aqui é para mim, para você e para quem estiver por perto. Levo tudo para a saleta de descanso em dez minutos.
– Desculpe, mas tenho que…
– Te vejo lá.
Lizzie inspirou fundo.
– Vou tentar ir.
– Faça isso. – A senhorita Aurora olhou por sobre o ombro, seus olhos negros reluziam. – Senão, vou ter que ir atrás de você e falar até você entender que a gente não pode acreditar em tudo o que ouve.
Abaixando os olhos, Lizzie saiu da cozinha e foi até a porta do senhor Harris. Antes de bater, olhou para a de Rosalinda. Uma fita isolante fora colocada em toda a volta da porta, assim como uma amarela de “atenção” entre os batentes.
Mais uma cena de crime na casa, pensou. Como será que está o quarto de Chantal?
O mordomo abriu a porta e recuou um passo.
– Senhorita King?
Lizzie se recompôs.
– Ah, desculpe… Hum, preciso falar com o senhor.
Ele franziu a testa, mas algo na postura dela deve ter afetado sua atitude pomposa.
– Entre, por favor.
Previsivelmente, a decoração era bastante inglesa, com todo tipo de livros com capa de couro, cadeiras antigas e artigos orientais preenchendo os espaços. Além da área de estar, havia uma cozinha embutida e, como nos aposentos da senhorita Aurora, na parte oposta havia uma porta fechada, onde ela imaginava que deviam ficar o quarto e o banheiro dele.
O cheiro era agradável, cítrico e de limpeza, nada abafado.
– Estou apresentando o meu pedido de demissão – disse abruptamente. – Com duas semanas de aviso prévio. Eu teria informado Rosalinda, mas…
O senhor Harris a encarou por um momento; depois se afastou e se sentou atrás de uma escrivaninha entalhada. Havia uma pilha de papéis sobre o tampo, mas nenhum computador.
– É uma surpresa.
– Está no meu contrato. Só preciso avisar duas semanas antes.
– Posso perguntar o motivo?
– Apenas uma mudança de objetivos. Tenho cogitado já há algum tempo.
– De fato. – Ele cruzou as mãos. – Então isso não está nada relacionado aos noticiários da noite passada?
– Lamento muito que a família tenha que lidar com assuntos tão desagradáveis.
O senhor Harris ergueu uma sobrancelha.
– Não há nada que eu possa fazer para convencê-la a ficar?
– Já tomei minha decisão, mas obrigada.
Ela saiu depois disso, voltando para o corredor e fechando a porta atrás de si. Sozinha, piscou para afastar as lágrimas, erguendo a cabeça enquanto rezava para que o nariz não começasse a escorrer.
Dentre todas as maneiras que imaginara sair um dia de Easterly, nada nunca se parecera com aquilo. Mas não havia volta. Chegara à decisão de se demitir enquanto ela e Greta acabavam com um litro de sorvete de flocos, depois do seu primeiro acesso de choro e antes do segundo.
No fim, não acreditava que Lane tivesse machucado Chantal daquela maneira, era simplesmente impossível. Mas a questão não era essa.
Não importava se a mulher estava ou não grávida, ou quem seria o pai, caso ela estivesse mesmo.
A verdade nua e crua era que, depois de quase uma década com aquela família, Lizzie percebeu que eles eram diferentes de uma maneira fundamental, e não porque os Bradford tinham mais dinheiro do que ela conseguiria ver em toda a sua vida. A questão era que, de onde ela vinha, as pessoas se casavam e tinham filhos, planejavam suas aposentadorias, saíam de férias uma vez ao ano para lugares como Disney ou Sandals. Pagavam seus impostos em dia e comemoravam casamentos e nascimentos com festas triviais, e não traíam seus maridos e suas esposas.
Tinham vidas dignas e modestas, sem serem afetadas pelos dramas loucos que aconteciam com os Bradford.
E a questão era que, por mais que se sentisse atraída por Lane – diabos, talvez se sentisse atraída pela mesma loucura que a repelia –, ela simplesmente não tinha mais as forças e os recursos para continuar com ele de qualquer maneira possível. Tinha se apaixonado rápido demais, intensamente e, assim como no passado, o que ele trouxe para a sua vida foi um buraco no estômago, mais noites insones… e uma sensação de profunda tristeza.
Alguns riscos é melhor não correr. Doenças, acidentes ou outros tipos de tragédias são imprevisíveis… nem sempre é possível reduzir as chances de se machucar, porque estamos vivos, e é a realidade dos seres vivos neste planeta.
Já para outros problemas, questões ou perigos, havia uma certa liberdade para se afastar, para recuar. E quando se é um adulto responsável, que deseja viver uma existência meio que saudável, é uma obrigação cuidar de si próprio, se proteger… amar a si mesmo.
Obviamente, ela não confiava em si mesma para agir com sensatez no que se referia a Lane Baldwine, por isso resolveria o problema da sua falta de autocontrole com a falta de proximidade.
Era hora de partir.
Como uma viciada no período de abstinência, ela simplesmente se afastaria. E não, não pretendia conversar com ele sobre o assunto. Seria o mesmo que um viciado querendo bater papo com uma seringa de heroína. Sem dúvida, Lane apresentaria o seu lado, mas não importava qual fosse, não mudaria o fato de que o coração dela se estilhaçara de novo e que a sua decisão de deixar o trabalho não estava sujeita a negociações.
E agora, ela daria o seu melhor para chegar ao fim do dia.
Descendo até as estufas, entrou na primeira e se sentiu mais do que pronta para trabalhar com as mudas, que no momento nem eram mudas ainda. Mas, antes de seguir para a estação de suprimentos para juntar o necessário, parou e pegou o celular.
O que fez em seguida não levou mais do que um momento.
E, provavelmente, foi uma estupidez.
Mas transferiu 17 mil, 486 dólares e 79 centavos da sua poupança… para a conta da hipoteca.
Terminando de pagar a sua fazenda.
Bom, aquela não devia ser uma decisão muito sensata, considerando-se que a colocaria à venda. O orgulho, contudo, fez com que aquela transação fosse necessária. Orgulho e a sensação de que precisava alcançar o objetivo estabelecido ao comprar aquele lugar.
Sempre quisera algo só seu no mundo, um lar que ela mesma estabelecesse, pagasse e sustentasse, sem a ajuda de mais ninguém.
O fato de agora não ter um centavo sequer era um contrapeso para tudo o que estava sentindo.
Prova de que fracassara completamente ao tentar cuidar de si própria.
Lane voltou a Easterly assim que foi liberado.
Isto é, depois de voltar à casa de Samuel T. para pegar o seu Porsche.
Entrou na propriedade da família pelos fundos, atravessando os campos e as estufas, porque queria evitar a imprensa no portão principal e porque queria saber se Lizzie estava ali.
Estava. A caminhonete marrom da fazenda estava no estacionamento junto aos veículos dos outros empregados.
– Droga – exalou.
Subiu até a garagem, estacionou o carro debaixo da magnólia e foi diretamente para a entrada dos fundos do centro de negócios. Depois de inserir a senha que Edward lhe fornecera, escancarou a porta e foi abrindo caminho até a recepção, cruzando escritórios, a sala de reuniões e a sala de jantar.
Homens e mulheres em ternos levantaram as cabeças, alarmados, mas ele os ignorou.
Não parou até se ver dentro do escritório envidraçado da assistente do pai.
– Vou vê-lo agora.
– Senhor Baldwine, o senhor não pode…
– Até parece que não.
– Senhor Baldwine…
Lane abriu a porta e…
Parou no lugar. O pai não estava atrás da escrivaninha.
– Senhor Baldwine, não sabemos onde ele está.
Lane olhou por sobre o ombro.
– Como assim?
– O seu pai… Era para ele ter viajado hoje de manhã, mas ele não apareceu no aeroporto. O piloto o esperou por uma hora.
– Você ligou para a casa, claro.
– E para o celular dele. – A mulher cobriu a boca com a mão. – Ele nunca fez isso antes. Ninguém na mansão o viu.
– Merda.
Bom Deus, o que fazer agora?
Enquanto Lane saía do escritório, a voz da assistente o acompanhou.
– Pode, por favor, pedir que ele ligue para mim?
De volta à luz matutina, disparou na direção da porta da cozinha de Easterly. Assim que entrou, passou pelas bancadas de aço inoxidável e empurrou a porta que dava para o corredor dos empregados. Subiu a escada dos fundos de dois em dois degraus, quase atropelando uma criada que passava aspirador no corredor do segundo andar.
Passou pelo seu quarto e pelo de Chantal.
Chegou ao do pai.
Parou diante da porta e pensou que não estava pronto para um “Rosalinda, parte II” com seu próprio pai. Não por não desejar ver o cadáver de um dos seus progenitores.
Não, era mais porque, se o homem precisasse de um caixão, Lane queria se responsabilizar por colocar a cabeça do maldito sobre o travesseiro acolchoado.
Abriu a porta.
– Pai! – exclamou. – Onde você está?
Marchando quarto adentro, aguçou os ouvidos e fechou a porta atrás de si – só para o caso de o homem estar vivo. Pois iria machucar o filho da puta, que os céus o ajudassem, mas estava preparado para machucá-lo muito.
Chantal podia ser uma vadia e uma mentirosa, mas nenhuma mulher merecia apanhar. Não importavam as circunstâncias.
– Onde diabos você está? – exigiu saber ao abrir a porta do banheiro.
Quando não encontrou a toalha sobre o box do banheiro, refez seus passos e foi para o closet.
Nada ali também.
Não, espere.
A mala do pai, aquela com monograma que ele costumava usar, estava aberta e parcialmente cheia. Mas mal arrumada. As roupas estavam mal acomodadas, jogadas às pressas por alguém com pouca experiência em fazer aquele tipo de tarefa.
Vasculhando o conteúdo, Lane não percebeu nada de extraordinário.
Mas notou que o relógio predileto do pai, o Audemars Piguet Royal Oak, não estava junto aos perfilados na gaveta forrada. E a carteira também estava faltando.
Retornando para o quarto, perscrutou a mobília, os livros, a mesa, mas não fazia ideia se havia algo fora do lugar. Estivera ali apenas um punhado de vezes… e não voltava havia uns belos vinte anos.
– O que está aprontando, pai? – perguntou baixinho, no ar parado.
Seguindo seus instintos, saiu, fechou a porta e voltou correndo pelas escadas até o primeiro andar. Levou menos de um minuto para entrar na garagem e contar os carros. O Phantom ainda estava ali, mas faltavam dois Mercedes. Chantal, evidentemente, estava com um.
O pai devia ter saído com o outro.
A pergunta era… para onde?
E quando?
QUARENTA E QUATRO
– Você não pode estar fazendo isso de novo. Vamos lá, acorda.
Edward bateu na mão que o puxava.
– Me deixa em paz.
– Eu não. Tá frio aqui fora e você não vai aguentar.
Edward abriu os olhos lentamente. A luz entrava pela porta aberta da baia no fundo do estábulo, ressaltando a poeira do feno e o perfil de um dos gatos vadios que perambulavam por lá. Uma égua relinchou do lado oposto, e outra coiceou a baia. Ao longe, ele percebeu o ronco de um dos tratores.
Puta merda, como a sua cabeça doía. Mas não era nada comparado ao seu traseiro. Engraçado como uma parte do corpo conseguia estar absolutamente entorpecida e dolorida ao mesmo tempo.
– Você vai ter que se levantar, inferno.
Toda aquela conversa o fez praguejar… e tentar focar a vista.
Ora, ora, vejam só. Havia duas Shelbys falando com ele. Sua nova empregada estava parada de pé como uma professora severa, com as mãos nos quadris estreitos, as pernas cobertas pela calça jeans e os pés com botas afastados, como se estivesse considerando a possibilidade de chutar sua cabeça tal qual uma bola de futebol.
– Pensei que você não falasse palavrão – ele murmurou.
– Não falo.
– Ora, mas acho que você acabou de falar.
Os olhos dela se estreitaram.
– Você vai se levantar ou vou ter que te varrer para fora daqui com o resto da sujeira?
– Você não sabia que “inferno” é apenas o primeiro passo? É como maconha. Sem se dar conta, logo, logo, você vai estar lançando bombas de “cacete” a torto e a direito.
– Tudo bem. Pode ficar aí. Espera pra ver se me importo.
Quando ela se virou para sair, ele a chamou.
– Como foi o seu encontro ontem à noite?
Ela girou sobre os calcanhares.
– Do que você tá falando?
– Com o Moe.
Dito isso, ele se esforçou para se erguer do piso de concreto do estábulo. Quando não conseguiu, ela levantou uma sobrancelha.
– Sabe, acho que vou mesmo te deixar aí.
Acima da cabeça dele, Neb relinchou, como se estivesse rindo.
– Não pedi a sua ajuda – Edward disse entre dentes.
Sem aviso, sua mão escorregou e seu corpo se chocou no concreto com tanta força que seus dentes bateram.
– Você vai acabar se matando – ela resmungou ao marchar de volta.
Shelby o ergueu com todo o cuidado que alguém dispensaria com uma forquilha caída, mas ele tinha que dar a mão à palmatória. Mesmo ela chegando apenas na metade do peito dele, era forte o suficiente para levá-lo pelo corredor, para fora do estábulo, e pela grama até o chalé.
Uma vez lá dentro, ele indicou sua poltrona com a cabeça.
– Ali já está…
– Você vai ficar com hipotermia. Isso não vai acontecer, não.
Em seguida, ele a viu sentando-o sobre o vaso sanitário e começando a aquecer a água da banheira.
– Pode deixar comigo a partir daqui – ele disse, pendendo para o lado e deixando que ela o segurasse. – Obrigado.
Ele estava fechando os olhos quando ela lhe deu um tapa.
– Acorda.
O ardor da batida o fez despertar e esfregar a face.
– Gostou de fazer isso?
– Gostei. E posso fazer de novo. – Enfiou uma escova de dentes na boca dele. – Use isso.
Era difícil falar com aquela maldita coisa na boca, portanto ele obedeceu, limpando o lado esquerdo, o direito, a frente e as partes inferiores. Depois se inclinou sobre a pia e cuspiu.
– Não está tão frio assim – ele disse.
– Como é que você sabe? Está pra lá de bêbado.
Na verdade, não estava, não. E isso era parte do problema. Pela primeira vez em muito tempo, ele não tinha tomado nenhuma bebida alcoólica na noite anterior.
– O que está fazendo? – ele perguntou quando as mãos dela se apossaram da sua malha.
– Tirando a sua roupa.
– É mesmo?
Enquanto ela se ocupava com as roupas dele, ele olhou para o corpo dela. Era difícil ver grande coisa, já que ela estava com uma blusa larga de moletom, então ele resolveu esticar a mão e testar a cintura dela.
Ela parou. Recuou.
– Não estou interessada.
– Então por que está tirando as minhas roupas?
– Porque os seus lábios estão roxos.
– Desliga isso. – Ele apontou para a torneira. – Assumo daqui.
– Você vai se afogar.
– E daí? Além do mais, não quero que você veja o que tenho debaixo da roupa.
– Vou ficar esperando lá fora, perto da sua poltrona.
– Ah, maravilha – ele disse baixinho.
Ela fechou a porta ao sair, e ele não fez mais nada. Só se encostou na parede e ficou olhando para a água fumegante.
– Não estou ouvindo barulho de água – ela comentou do lado de fora.
– Não está fundo o bastante ainda para eu nadar.
Toc. Toc. Toc.
– Entre logo, senhor Baldwine.
– Esse é o meu pai. E ele é um idiota. Atendo por Edward.
– Cale a boca e entre na banheira.
Mesmo na névoa do seu estupor, ele sentiu algo chamejar por ela. Achou que fosse respeito.
Mas quem se importav…
Bum, bum, bum!
– Você vai acabar derrubando a maldita porta – ele exclamou acima de todo aquele barulho. – E pensei que você não quisesse me ver nu.
– Água. Agora! – ela ralhou. – E não quero mesmo, mas melhor do que te encontrar morto.
– É apenas uma questão de opinião, minha cara.
No entanto, por algum motivo inexplicável, ele resolveu fazer como ela mandava.
Apoiando os braços na pia e na parte traseira do vaso sanitário antigo, suspendeu o corpo. Suas roupas eram um estorvo, mas conseguiu tirá-las e logo se colocou na banheira. Estranho, mas a água quente provocou o efeito contrário ao esperado. Em vez de aquecê-lo, fez com que ele sentisse frio, e começou a tremer tanto que criou ondulações na superfície da água.
Cruzando os braços diante do peito, seus dentes tiritaram, e seu coração saltou.
– Você está bem aí dentro? – ela perguntou.
Quando ele não respondeu, Shelby o chamou mais alto: – Edward?
A porta se escancarou e ela invadiu o banheiro como se estivesse preparada para bancar a salva-vidas, resgatando-o de cinquenta centímetros de profundidade de água. E foi horrível… Quando ela o fitou, só o que ele conseguiu fazer foi ficar encarando a água agitada, na esperança de que ela cobrisse suas pernas raquíticas, seu sexo flácido e sua pele branca coberta de cicatrizes.
Ele teve quase certeza de que ela arquejou.
Sorrindo-lhe, ele disse:
– Bonito, não sou? Mas acredite ou não, eu funciono muito bem. Bem, digamos que um pouco de Viagra ajude. Seja boazinha, sim? E me traga alguma bebida… Acho que estou me desintoxicando, e é por isso que estou tremendo tanto.
– Você… – Ela pigarreou. – Você precisa de um médico?
– Não, só de um pouco de Jim Beam. Ou Jack Daniel’s.
Quando ela simplesmente continuou olhando para ele, Edward apontou para a porta aberta.
– Estou falando sério. O que eu preciso é de álcool. Se quer me salvar, vá buscar um pouco. Agora.
Quando saiu do banheiro e fechou a porta, Shelby Landis tinha toda intenção de fazer o que Edward lhe pedira. Afinal, ela tinha muita experiência com alcoólatras, e por mais que não aprovasse nada daquilo, ela levara bebida ao pai milhares de vezes, e isso também costumava ser pela manhã.
Pelo menos, esse era o plano. Só que ela não parecia capaz de se mexer, de pensar… sequer de respirar.
Não estava preparada para ver aquele homem lá dentro, com a cabeça pensa como se ele tivesse vergonha de ser magro demais, do seu corpo alquebrado, do seu orgulho masculino tão esfarrapado e maltratado quanto suas carnes. Um dia ele fora uma grande força; seu pai tinha lhe contado histórias sobre o domínio de Edward nos negócios, nas pistas, na sociedade. Puxa, ouvira falar dos Bradford desde que era criança. Seu pai se recusava a beber qualquer outra coisa que não o no 15 deles, assim como boa parte das pessoas que lidavam com cavalos que ela conhecia.
Levando as mãos ao rosto, sussurrou:
– O que fez comigo, pai?
Por que ele a mandara ali?
Por que…
– Shelby? – exigiu a voz de lá de dentro.
Deus, ele era como seu pai. O modo como Edward pronunciara seu nome com uma pontada de desespero… era exatamente igual ao pai quando estava desesperado por uma bebida.
Fechando os olhos, praguejou bem baixinho. Depois sentiu culpa.
– Perdoe-me, Senhor. Não sei o que estou dizendo.
Ao procurar pelo cômodo, encontrou uma fila de garrafas na parte da frente de uma das prateleiras de troféus, e a ideia de lhe entregar o veneno a deixou nauseada. Mas ele mesmo acabaria saindo e pegando… e provavelmente caindo e batendo a cabeça no processo. Então, em que pé estariam? Além disso, ela sabia como aquelas coisas funcionavam. Aquele tremor terrível não cessaria até que a fera dentro dele fosse alimentada de acordo com sua necessidade, e o corpo dele já parecia tão frágil…
– Já estou indo – disse em voz alta. – O que prefere?
– Tanto faz.
Direcionando-se para as garrafas às cegas, pegou uma de gim e voltou para a porta fechada do banheiro. Não se deu ao trabalho de bater, simplesmente entrou.
– Pronto. – Tirou a tampa. – Pode beber direto do gargalo.
Só que as mãos dele tremiam tanto que não havia um modo de ele conseguir erguer a garrafa sem derrubar tudo.
– Deixa que eu seguro pra você – ela murmurou.
Houve um instante de hesitação por parte dele, mas logo ele ergueu a boca como um potrinho recém-nascido abandonado pela mãe.
E deu umas duas ou três belas goladas.
– Isso sim é que esquenta.
Deixando o gim ao lado da banheira onde ele conseguiria alcançar caso quisesse, ela pegou uma toalha de banho e submergiu na água, atrás dele. Quando ficou encharcada, ela a passou pela protuberância da coluna e das costelas dele. Depois tratou de cuidar da cabeça com uma esponja de banho, molhando o cabelo, alisando-o para trás.
Sem que ele pedisse, ela ergueu a garrafa mais uma vez e ele bebeu, sorvendo direto do gargalo.
Banhá-lo com sabonete e xampu fez com que ela se lembrasse dos cuidados oferecidos a um animal recém-resgatado. Ele estava assustado. Desconfiado.
Meio morto.
– Você precisa comer – ela disse numa voz partida.
Não tenho isso dentro de mim, Senhor. Não vou conseguir fazer isso de novo.
Não conseguira salvar o pai alcoólatra. Perder dois homens numa vida só parecia um fracasso grande demais para superar.
– Vou te preparar o café da manhã depois, Edward.
– Você não tem que fazer isso.
– É – respondeu, rouca –, eu sei.
QUARENTA E CINCO
– Então, vamos repetir tudo de novo?
Ante o som da voz máscula, Lizzie parou no meio do transplante de uma Hedera helix para um vaso novo. Fechando os olhos, inspirou fundo e ordenou às mãos que não tremessem e nem derrubassem nada.
Estava à espera que Lane a procurasse para conversar. Ele não demorou muito.
– E então? – disse ele. – Voltamos aos dias em que você ouve alguma coisa que não gosta e me exclui? Porque se for o roteiro que vamos seguir, e é bem isso o que está parecendo, acho que só me resta subir num avião e voltar para Nova York e pôr um fim à história. Vai ser muito mais eficiente, e não vou acabar com uma conta telefônica quilométrica por deixar mensagens na sua caixa postal.
Forçando as mãos a continuarem a trabalhar, enfiou as raízes no buraco que cavara no vaso e começou a transferir terra nova para enchê-lo.
– Algo que eu não queria ouvir – ela repetiu. – Sim, acho que podemos dizer que descobrir que a sua esposa está grávida de novo é uma notícia que eu preferiria não ouvir. Especialmente porque fiquei sabendo logo depois de termos feito sexo. Em seguida, veio a notícia maravilhosa de que você estava sendo preso por mandá-la para o pronto-socorro.
Quando ele não respondeu, ela se voltou na direção dele. Lane estava parado na entrada da estufa, junto à estação de trabalho em que Greta deveria estar, caso Lizzie não tivesse avisado à mulher que precisava ficar um tempo sozinha.
– Acha mesmo que eu seria capaz de fazer uma coisa do tipo? – ele perguntou num tom baixo.
– Não cabe a mim decidir nada disso. – Ela voltou a se concentrar no que estava fazendo e odiou as próprias palavras. – Mas uma coisa que eu posso dizer é que o melhor indicador de um futuro comportamento é o modo como a pessoa se comportou no passado. E eu não posso… Não posso mais fazer isso com você. Não importa se os boatos são verdadeiros ou não, não é essa a questão.
Depois de colocar a terra nova, ela pegou o regador e o inclinou sobre o vaso de trepadeira. Em três meses, a planta estaria pronta para ser levada para o lado externo, para o muro ou para um dos vasos do terraço. Tinham muita sorte com aquela variedade, mas era bom planejar reposições antes que elas fossem necessárias.
Limpando as mãos na frente do avental, virou-se para ele.
– Entreguei meu pedido de demissão. Portanto, não precisa se preocupar em voltar para Nova York.
Não teve dificuldades para sustentar o olhar dele. Para encará-lo. Enfrentá-lo.
É incrível como você fica determinado com os outros quando sabe em que pé está.
– Você acha mesmo que eu faria aquilo com uma mulher? – ele repetiu.
Claro que não, ela pensou. Mas permaneceu em silêncio porque sabia que, se quisesse mesmo que ele a deixasse em paz, a insinuação feriria seu orgulho masculino e isso, infelizmente, agiria em seu favor.
– Lizzie, responda.
– Não é da minha conta. Não é.
Depois de um instante, ele assentiu.
– Ok. Muito justo.
Quando ele se virou e se dirigiu para a porta, ela teve que admitir que ficou um pouco surpresa. Esperava ouvir algum tipo de explicação demorada. Uma torrente de persuasão da qual ela teria que se esquivar. Algum tipo de “Eu te amo, Lizzie, de verdade”.
– Desejo tudo de bom para você, Lizzie – ele disse. – Cuide-se.
E foi… só isso.
A porta se fechou sozinha. E, por uma fração de segundo, ela sentiu o impulso absurdo de ir atrás dele e gritar na sua cara que ele era um cretino colossal por tê-la seduzido do jeito como seduziu, que era um mau caráter, que era exatamente quem ela temia que ele fosse, um usurpador de mulheres, um mentiroso, um elitista enganador e sádico que não saberia…
Lizzie forçosamente se afastou desse precipício.
Se aquela despedida significava alguma coisa, o fato de ela permanecer ou não na vida dele parecia não importar nem um pouco para ele.
Bom saber disso, ela pensou com amargura. Bom saber.
Colocando-se atrás do volante do 911, Lane pensou que havia momentos na vida em que, por mais que você quisesse lutar, era melhor simplesmente desistir.
Você não precisava gostar do fracasso.
Não tinha que se sentir maravilhoso com relação ao resultado das coisas.
E, por certo, não se afastava de tudo sem arranhões, sem ficar seriamente ferido pela perda, aleijado, até.
Mas você precisava abrir mão de tudo, porque desperdiçar energias não o levaria a parte alguma, e você poderia muito bem já ir se acostumando com a perda.
Era a única lição que o seu relacionamento com o seu pai lhe ensinara. Se ele teria apreciado a presença de uma figura masculina que pudesse admirar, se espelhar, se orgulhar e sentir respeito? Sim, claro. Teria sido maravilhoso não crescer numa casa onde o som de chinelos sobre o piso de mármore ou o cheiro de cigarro não o obrigasse a procurar um lugar para se esconder. Óbvio. Poderia ter se beneficiado de conselhos paternos, ainda mais em tempos como aquele?
Sim, poderia.
Entretanto, não foi assim para ele. E ele teve que se acostumar com isso para não enlouquecer negociando com um fracasso que jamais conseguiria mudar ou melhorar.
Seguindo o mesmo raciocínio, se Lizzie King de fato acreditasse que havia a mínima possibilidade de ele ter botado as mãos numa mulher daquela forma, que ele tivesse mentido descaradamente a respeito de Chantal, que qualquer bebê que aquela mulher tivesse pudesse ser seu… então não havia esperanças para eles dois. Não importaria o que ele lhe dissesse ou como tentasse explicar as coisas… ela não o conhecia de verdade e, mais importante, não confiava nele.
E o fato de aquilo tudo ser uma mentira, de Chantal, mais uma vez, ter lhe roubado a mulher que ele amava…
Bom, a vida é dura.
Buá, buá, buá.
Peça um pai novo para o Papai Noel. Peça à Fada do Dente que te dê uma nova ex-esposa.
Tanto faz.
Deixando Easterly, entrou na estrada e dobrou o limite de velocidade a caminho do Aeroporto Internacional de Charlemont, não porque estivesse com pressa ou atrasado, mas porque podia. O carro aguentaria o tranco e, naquele exato instante, ele estava sóbrio e no controle.
A entrada para as chegadas e partidas particulares era a primeira saída do caminho que cercava a enorme construção. Lane estacionou à direita das portas duplas e deixou o motor ligado.
Jeff Stern já estava próximo do espaço luxuoso. Só tinham se passado poucos dias, mas parecia um século desde aquele jogo de pôquer em que a loira burra o incomodava, quando ele se levantou para atender ao telefone.
Como era de se esperar, seu colega de apartamento estava vestido como o homem de Wall Street que era: óculos, terno escuro e camisa branca engomada. Até estava com a poderosa gravata vermelha.
– Poderia ter vindo de bermuda – Lane comentou quando se cumprimentaram batendo as mãos.
– Estou vindo do escritório, idiota.
Aquele sotaque, ao mesmo tempo estranho e familiar, era exatamente o que ele precisava naquele instante.
– Deus, você está com uma aparência péssima – Jeff comentou, enquanto sua bagagem chegava num carrinho. – A vida familiar evidentemente não combina com você.
– Não a minha, pelo menos. Me diz uma coisa, o seu avião ainda está aqui?
– Não por muito tempo. Está sendo reabastecido. Por quê? – Quando Lane apenas olhou para a pista, o amigo praguejou. – Não. Não, não, não, não, não. Você não me arrastou para cá, abaixo da Mason-Dixie, para atender um alarme falso e agora quer voltar para Manhattan. Sério, Lane.
Por um instante, Lane hesitou. Queria ficar, só para ferrar o pai em múltiplas instâncias, mas também queria partir, porque estava cansado de tanta insanidade.
Parecia que ele e Lizzie, no fim, tinham algo em comum.
Os dois queriam se afastar.
– Lane?
– Vamos – convidou, dando uma gorjeta para o carregador e pegando as duas malas de couro do amigo. – Quando foi a última vez que veio a Easterly?
– Num Derby, há um milhão de anos.
– Nada mudou.
Colocou as malas no Porsche e saíram de lá, acelerando para longe do aeroporto e entrando na estrada.
– Então, vou ou não conhecer essa sua mulher, Baldwine?
– Provavelmente não. Ela pediu demissão.
– Puxa, que rápido. Lamento muito.
– Não finja que não leu as notícias.
– Pois é, está em todos os lugares. Acho que você é o responsável por ressuscitar os jornais impressos. Parabéns.
Lane praguejou e ultrapassou um carro.
– Não era um prêmio que eu queria, eu garanto.
– Espere um instante. Você disse “se demitindo”? Quer dizer que ela trabalha para a sua família? Isso é tipo Sabrina, meu velho?
– Lizzie é a horticultora-chefe da propriedade. Ou era.
– Não uma simples jardineira, hein… faz sentido. Você odeia mulheres burras.
Lane o encarou.
– Sem ofensas, mas podemos falar sobre outra coisa? Talvez sobre o fato de a minha família estar perdendo todo o seu dinheiro? Preciso me alegrar.
Jeff balançou a cabeça.
– Você, meu amigo, leva uma vida e tanto.
– Quer trocar de lugar? Por que, neste exato instante, estou procurando uma saída.
QUARENTA E SEIS
Naquela noite, Lizzie chegou em casa e não havia nenhuma árvore caída no seu quintal.
Saindo da caminhonete da fazenda, olhou ao redor. O Yaris ainda estava esmagado no mesmo lugar, destroçado, com as janelas quebradas e o interior molhado e cheio de folhas, e parecia ter saído de um jogo de videogame. Mas o galho tinha sumido, e não restava nada além de serragem fresca e perfumada espalhada por lá.
Não ouse, Lane, ela pensou.
Não ouse tentar cuidar de mim agora.
Levantou o olhar e viu que o corte onde o galho se partira do tronco fora feito com cuidado, selado de modo que cicatrizaria e o bordo maravilhoso sobreviveria aos estragos.
– Maldito.
Pelo menos ele tinha deixado o carro no lugar. Se tivesse cuidado disso também, ela teria que procurá-lo para descobrir onde deveria recuperar a carcaça.
Devia ter desconfiado que as coisas entre eles estavam inacabadas.
Ao marchar rumo à varanda, ficou discutindo mentalmente com ele o tempo inteiro… Mas parou no primeiro degrau. Na tela da porta, um bilhete fora afixado à moldura.
Maravilha. Agora isso. Algum tipo de “Agora que nossas cabeças esfriaram, blá-blá-blá…”.
Ele era um homem doentio.
E ela estava agindo bem partindo dali. Por mais que estivesse sofrendo por ir embora, precisava se afastar dele, de Easterly, daquela parte bizarra da sua vida que só podia ser descrita como um pesadelo.
Forçou-se a se mover, subiu e arrancou o papel da porta. Queria jogar fora aquela coisa maldita, mas algum impulso masoquista tornou isso impossível. Abrindo o bilhete, ela…
Olá, vizinha. As vacas se espalharam pelo seu quintal. Estragaram as moitas de flores dos fundos. Como sou péssimo com flores, cuidei da sua árvore. Minha mulher te mandou uma torta. Deixei na bancada.
Buella e Ross
Expirou, sendo acometida por uma onda de exaustão, e em vez de entrar na casa, atravessou a varanda e se sentou no balanço. Empurrando as tábuas do piso com um pé, ficou atenta aos grilos e aos rangidos das correntes afixadas no teto acima da sua cabeça. Sentiu a brisa suave e cálida no rosto e observou as luzes alaranjadas do entardecer criarem sombras alongadas sobre a terra.
Precisava replantar os canteiros…
Não, não precisava.
Bem, pelo menos teria uma bela sobremesa; Buella fazia tortas de outro mundo. Talvez fosse de pêssego. Ou, quem sabe, de mirtilos.
Lizzie se descobriu enxugando os olhos e fitando as lágrimas nas pontas dos dedos.
Era horrível ter que sair dali para se salvar… Era bem parecido com… serrar um galho doente.
Estava dando tudo certo.
Mas Lane tinha que chegar e estragar tudo.
– Foi tudo o que Edward conseguiu tirar de lá – disse Lane ao andar de um lado para o outro no quarto de hóspedes em que acomodara Jeff.
Era a melhor suíte, com vista para os jardins e o rio, e também tinha uma escrivaninha com tampo tão comprido que poderia ser qualificada como balcão de cozinha. Na verdade, um bilhão de anos antes, aqueles aposentos tinham sido do avô de Lane, e depois da morte do homem, nada fora tocado a não ser nas faxinas regulares.
O comentário de Jeff ao entrar foi típico dele. Algo relacionado à possibilidade de a Guerra Civil ter sido comandada de lá.
Contudo, conforme esperado, assim que o cara acessou os dados financeiros, deixou de lado as brincadeiras e se tornou totalmente profissional.
– Bem, já está quase na hora do jantar. – Lane olhou para seu relógio de pulso. – Nos vestimos formalmente. Bem, todos fazem isso, menos eu. Então o seu terno vai estar de acordo.
– Mande me trazer alguma coisa aqui mesmo – Jeff murmurou ao arrancar a gravata, sem despregar os olhos da tela do computador. – E vou precisar de papel e caneta.
– Está querendo me dizer que não quer testemunhar a troca de olhares furiosos entre mim e o meu pai por sobre o suflê? – Sim, porque Lane estava mais do que ansioso para isso. – Você também poderia aproveitar para conhecer o novo e fabuloso noivo da minha irmã. O cara é tão charmoso quanto um tumor.
Quando Jeff não respondeu, Lane andou e espiou por cima do ombro dele.
– Diga-me que isso faz algum sentido para você.
– Ainda não, mas vai fazer.
É o homem certo para este trabalho, Lane pensou ao finalmente se retirar. Já no corredor, descobriu-se encarando a porta do quarto da mãe. Talvez Edward estivesse certo. Talvez se tudo virasse pó, a mãe deles nem ficaria sabendo. Todas aquelas drogas a mantinham encasulada e segura em seu delírio. Algo que, pela primeira vez, estava começando a entender.
Falando nisso, que tal um pouco de bourbon?
Seguindo para as escadas da frente, resolveu que também pularia o jantar. Ainda estava louco de vontade de socar o pai, mas, com Jeff cuidando de tudo, ele tinha, quem sabe, chances muito maiores de pegar o homem de jeito.
E depois seguiria o exemplo de Lizzie e iria embora daquele lugar de uma vez por todas.
Tudo ali era demais, bizantino demais, poluído demais.
Talvez voltasse para Nova York. Ou talvez estivesse na hora de alargar seus horizontes. Quem sabe ir para o exterior…
Lane parou na metade da escada.
Mitch Ramsey e dois policiais estavam parados no átrio de entrada logo abaixo, sem os chapéus. Seus rostos pareciam saídos de um texto de justiça criminal: estavam totalmente impassíveis.
Merda, Lane pensou ao fechar os olhos.
Pelo visto, Samuel T. tinha conseguido tirar vantagem da boa e velha camaradagem masculina só até certo ponto.
– Vou pegar a minha carteira – Lane avisou. – E vou ligar para o meu advogado…
Mitch levantou o olhar bem quando o senhor Harris vinha da sala de jantar.
– Ah, senhor Baldwine – disse o mordomo –, estes cavalheiros vieram vê-lo.
– Foi o que imaginei. Só vou pegar a…
Mitch falou:
– Podemos conversar reservadamente?
Lane franziu a testa.
– Quero a presença do meu advogado.
Quando Mitch sacudiu a cabeça, Lane encarou os outros policiais. Nenhum deles o olhava de frente.
Lane terminou de descer e indicou a sala com a mão.
– Na sala de estar.
Enquanto os quatro seguiam para o elegante cômodo, o senhor Harris deslizou as portas duplas que davam para o vestíbulo. E, num acordo tácito, ninguém disse nada até que o homem atravessasse a sala e fechasse as outras portas.
Lane cruzou os braços diante do peito.
– O que foi, Mitch? Está querendo completar um trio? Primeiro Gin, depois eu… e agora, que tal o meu pai?
– É com muito pesar que preciso informar que…
Uma pontada fria de medo perpassou seu corpo.
– Não o Edward, ah, Deus, por favor não o Edward…
– … um corpo foi encontrado no rio duas horas atrás. Temos motivos para acreditar que seja o seu pai.
A expiração que escapou dos pulmões de Lane foi estranhamente lenta e controlada.
– O quê… – Ele limpou a garganta. – Onde ele foi encontrado?
– Na parte oposta à cachoeira. Precisamos que nos acompanhe para identificar o corpo. Um parente é preferível, mas eu jamais peço à esposa, se puder evitar.
Como resposta, Lane se aproximou do carrinho de bebidas e se serviu de uma bela dose do Reserva de Família. Depois de tomá-la, acenou para Mitch e para os outros dois membros da força policial.
– Me dê um minuto. Eu já volto.
Ao passar por Mitch, o homem esticou a mão e o segurou pelo braço.
– Eu sinto muito, Lane.
Lane franziu a testa.
– Sabe, não consigo dizer o mesmo.
QUARENTA E SETE
Lane não contou a ninguém onde estava indo e nem o motivo.
Voltou do quarto com seu celular e sua carteira, e tomou cuidado para ficar longe das vistas das pessoas que comiam e conversavam baixo na sala de jantar.
Não, não contaria nada a ninguém. Não até ter certeza.
Entrando na parte traseira do SUV do delegado Mitch, fechou a porta e fitou adiante, através do para-brisa.
Quando o policial se colocou atrás do volante, Lane perguntou: – Alguém já sabe?
– Mantive em segredo por enquanto. O corpo apareceu num ancoradouro coberto a uns quinhentos metros da catarata. As pessoas que o encontraram são gente boa. Estão assustadas e não querem a atenção da mídia nem repórteres em sua propriedade. Mas isso não vai durar para sempre.
O trajeto até o necrotério foi meio bizarro. O tempo se arrastava, tudo era muito brilhante, claro demais, volumoso demais. E assim que entrou naquele prédio sem graça, frio, a sensação piorou até ele sentir como se estivesse aos tropeços, o surrealismo de tudo aquilo fazendo com que parecesse algo saído de um desenho animado de Jerry Garcia.
A única coisa que conseguia fazer era acompanhar Mitch onde quer que o cara fosse. Não muito tempo depois, Lane se viu numa saleta de espera do tamanho de uma despensa.
No meio da parede diante dele havia uma cortina que cobria, segundo ele imaginava, uma grande janela. Havia uma porta ao lado.
– Não – Lane disse a Mitch. – Quero vê-lo cara a cara.
Houve um instante de constrangimento.
– Veja bem, Lane, o corpo não está nada bonito. Caiu da cascata e pode ter se chocado num barco maior. Seria mais fácil…
– Não estou interessado em nada fácil. – Lane estreitou o olhar na direção do delegado. – Quero entrar.
Mitch praguejou.
– Me dá um minuto.
Enquanto o delegado desaparecia pela porta, Lane ficou satisfeito que o homem não tivesse se oposto. Não queria admitir que o motivo pelo qual necessitava chegar perto era por querer ter certeza de que o pai estava de fato morto.
O que era estupidez.
Como se todos aqueles policiais fossem perder tempo inventando a história.
Mitch retornou e segurou a porta aberta.
– Pode entrar.
Entrar naquela sala azulejada se tornou algo de que Lane se recordaria pelo resto da vida. E, Jesus, era igualzinho aos filmes: no meio do recinto, sobre uma mesa de aço com rodinhas, havia um saco mortuário.
Absurdamente, notou que era do mesmo tipo em que Rosalinda fora colocada.
Ao lado da maca, uma mulher de jaleco branco estava de pé com luvas descartáveis e uma prancheta nas mãos.
– Está pronto, senhor?
– Sim. Por favor.
Ela esticou a mão e puxou o zíper. Desceu-o até os pés e afastou a lona.
Lane se inclinou, mas o cheiro da água e da podridão o fez se retrair.
Não esperava encontrar os olhos do pai abertos.
– É ele – Lane disse, com uma voz partida.
– Lamento pela sua perda – a médica legista disse ao voltar a subir o zíper.
Quando ela terminou, deduziu que quisessem que ele se retirasse, mas ele só conseguiu ficar ali parado olhando para o saco mortuário.
Todos os tipos de imagem invadiram seus pensamentos, uma mistura de coisas do passado e do presente.
Mas não há mais futuro algum, pensou. Não haveria mais nada com aquele homem.
Deus, dentre todos os modos como as coisas entre eles poderiam terminar… aquele momento silencioso, naquela fria sala médica, com Mitch Ramsey de um lado e uma completa estranha do outro… não tinha imaginado nada daquilo.
– E agora? – ouviu-se perguntar.
Mitch pigarreou.
– Extraoficialmente, e não me obrigue a sustentar isso, temos quase certeza de que foi suicídio. Considerando tudo o que tem acontecido… bem, você entende.
– Sim. Sim, claro. – E a polícia nem desconfiava da questão financeira.
Que covarde filho da puta, Lane pensou. Primeiro ele provoca toda essa confusão, e depois resolve fugir se jogando de uma ponte.
Cretino.
– Gostaríamos do consentimento para realizar a autópsia – disse Mitch. – Só para excluir a possibilidade de um crime. Mas, repito, não é nisso que acreditamos.
– Claro. – Lane olhou para o delegado. – Escute, preciso de um tempo antes que isso chegue à imprensa. Tenho que contar à minha mãe e aos meus irmãos. Nem sei como localizar Maxwell, mas não quero que ele fique sabendo disso no noticiário das seis. Ou pior, na TMZ.
– A polícia está determinada a trabalhar com você e com a sua família.
– Serei o mais rápido que puder.
– Isso facilitaria tudo para nós também.
Uma prancheta surgiu de sabe-se lá onde, e ele assinou uma variedade de coisas. Quando devolveu a caneta ao delegado, pensou: “Merda, vamos ter que planejar um funeral”.
Ainda que, sendo bem franco, a última coisa que o interessava era honrar o pai de qualquer maneira.
– Não estou com fome.
Edward se acomodou na sua poltrona no chalé, bem ciente de que parecia um garotinho de quatro anos se recusando a jantar, mas não se importou.
O fato de o aroma vindo da sua cozinha embutida fazer sua boca salivar não era relevante.
Shelby, contudo, sofria de audição seletiva.
– Aqui está.
Ela colocou uma tigela de cozido na mesinha ao lado da sua garrafa de… o que era mesmo que estava bebendo? Ah, tequila. Ora, vejam só se não combinava à perfeição com o molho de carne.
– Coma – ela ordenou, num tom que sugeria que ou ele mesmo cuidava disso ou ela amassaria tudo e o forçaria a comer por meio de um canudo.
– Sabe, você pode ir quando quiser – ele murmurou.
Pelo amor de Deus, a mulher ficou na sua casa o dia inteiro, limpando, lavando a roupa, cozinhando. Ele lhe disse algumas vezes que ela tinha sido contratada para cuidar dos cavalos, e não do proprietário deles, mas, de novo, a audição dela era seletiva.
Maldição, isso aqui está muito bom, pensou ao encher a boca.
– Quero marcar um horário com o seu médico.
O som de um carro chegando foi uma interrupção bem-vinda. Esforçou-se para se lembrar que dia era, e desejou que, de algum modo, já fosse sexta-feira de novo, pois até gostava da ideia de ela ver uma prostituta vindo servi-lo. Inferno, ela até podia ficar olhando se quisesse. Não que fosse um bom espetáculo…
Por uma fração de segundo, lembrou-se de Sutton sobre ele, movendo-se para cima e para baixo, fitando-o nos olhos.
Uma dor afiada em seu peito o fez comer mais rápido só para se livrar da sensação.
A batida foi alta.
– Você se importaria de fazer as honras? – disse a Shelby. – Se for uma mulher, convide-a a entrar. Se não, diga que vá para o inferno. E use a palavra “inferno”, sim? Nós dois sabemos que ela faz parte do seu vocabulário agora.
O olhar furioso que ela lhe lançou provavelmente o teria derrubado se ele já não estivesse sentado.
Mas ela foi até a porta.
Abrindo-a, disse:
– Ah, nossa.
– Quem é? – Edward murmurou. – A sua fada madrinha?
Só que não era. Era Lane.
Enquanto seu irmão entrava no chalé, Edward já meneava a cabeça.
– O que quer que seja, você vai ter que ir para outro lugar. Já disse, não vou mais ajudar…
– Podemos falar em particular.
Não era uma pergunta.
Edward revirou os olhos.
– Não importa o que você vai dizer.
– É assunto de família.
– E não é sempre? – Quando Lane não cedeu, Edward praguejou. – O que quer que tenha a dizer, pode falar na frente dela.
A presença de Shelby talvez apressasse o assunto.
Lane olhou para a mulher. Voltou a olhar para ele.
– Nosso pai está morto.
Enquanto Shelby arfava, Edward lentamente abaixou a colher. Depois disse, numa voz grave: – Shelby, você pode, por favor, nos dar licença? Muito obrigado.
Engraçado como os bons modos surgiam nele em momentos de crise.
Depois que Shelby saiu rapidamente, Edward limpou a boca no guardanapo de papel.
– Quando?
– Em algum momento na noite passada, é o que estão acreditando. Ele se jogou de uma ponte, provavelmente. O corpo apareceu do outro lado da cascata.
Edward se recostou na poltrona.
Tinha a intenção de dizer alguma coisa. Tinha mesmo.
Só… não se lembrava o que era.
Lane, evidentemente, se sentia do mesmo modo, porque seu irmão caçula se aproximou da única outra cadeira no cômodo e se sentou.
– Contei para mamãe antes de vir para cá. Não acho que ela entendeu o que eu disse. Ela não está acompanhando nada. E também contei para a Gin. A reação dela foi igual à sua.
– Confirmaram se é ele?
Por algum motivo, aquilo parecia de importância vital. Ainda que… Como seria possível cometer um erro dessa magnitude?
– Fui eu quem identificou o corpo.
Edward fechou os olhos. E, por um breve instante, aquela luz piloto dele se acendeu novamente.
– Não deveria ter sido você. Eu deveria ter feito isso.
– Tudo bem. Eu não… – Lane inspirou fundo. – Acho que não estou tendo reação alguma. Tenho certeza de que ficou sabendo o que aconteceu ontem.
Edward olhou para o irmão.
– O que aconteceu ontem?
Lane teve que gargalhar.
– Às vezes não ter TV a cabo é uma coisa muito boa, não? Tudo bem, não importa. Não mesmo.
Ficaram sentados em silêncio por um bom tempo. Edward percebeu que estava esperando por algum tipo de reação emocional de si mesmo. Tristeza. Diabos, talvez até alegria.
Mas não sentiu nada. Apenas um torpor ressonante.
– Tenho que encontrar Max – disse Lane. – A polícia vai segurar a informação até estarmos prontos para dar uma declaração, mas não pode demorar muito.
– Não sei onde ele está – Edward murmurou.
– Fico ligando para o número que ele tinha há dois anos. Também mandei um e-mail, o último que ele tinha. Acho que ele deve estar mesmo fora do radar.
Mais silêncio.
– Gin está bem? – Edward perguntou.
Lane meneou a cabeça, depois percorreu o cômodo com o olhar.
– Algum de nós está?
Infelizmente, Edward pensou, a resposta é não.
QUARENTA E OITO
Na manhã seguinte, quando subiu pelas escadas dos fundos com um arranjo floral nas mãos, Lizzie tentou se encorajar.
Tudo bem ficar escondida nas estufas, mas convenhamos, ela ainda tinha treze dias no emprego em Easterly e não pretendia fazer corpo mole até lá. Sempre fora a responsável pelas flores dos quartos. Tinha seu cronograma e ia fazer muito bem o seu trabalho.
No segundo andar, aprumou os ombros e se encaminhou para a segunda melhor suíte de hóspedes. O senhor Harris lhe dissera que um hóspede tinha chegado inesperadamente e que também não havia mais a necessidade de trocar as flores no quarto de Chantal.
Muito bom saber disso, senhor Harris. Muito obrigada.
Pelo menos, era uma pessoa a menos na sua lista de “Pessoas a não encontrar”.
Uma pena que o número um ainda estivesse sob o teto de Easterly.
– Treze dias – disse baixinho. – Apenas treze dias.
Bateu à porta e esperou. Um momento depois, uma voz masculina disse: – Entre.
Empurrando a porta, viu um homem sentado à escrivaninha do avô de Lane, com as costas curvadas como uma vírgula enquanto trabalhava sobre o laptop. Ao lado dele, uma impressora cuspia páginas com tabelas e colunas e, aos seus pés, bolas de papel amarelo amassado salpicavam o chão.
Ele não levantou a cabeça.
– Só vim colocar um vaso de flores – explicou.
– Ã-hã.
Ao lado dele, sobre o peitoril da janela, havia uma bandeja de café da manhã vazia. Ao ajeitar o vaso sobre uma cômoda antiga, ofereceu: – Posso levar essa bandeja para baixo para você?
– O quê? – ele murmurou, ainda concentrado na tela.
– A bandeja?
– Sim, claro. Obrigado.
Concluiu que ele estava ali para examinar os arquivos que Rosalinda tinha deixado para trás.
Mas se lembrou que não era da sua conta.
Dando a volta na escrivaninha, viu duas malas caras. Uma estava aberta e remexida, mas ainda assim tinha a impressão de que o homem não tinha trocado de roupa desde a sua chegada. A camisa branca estava toda amassada, bem como as calças.
Também não era da sua conta.
Pegando a bandeja, ela…
– Ah, meu Deus.
Quando ele falou, ela quase deixou de olhar na direção dele, imaginando que ele tivesse encontrado algo no que quer que estivesse examinando. Mas logo percebeu que ele estava olhando para ela.
– O que foi? – perguntou.
– Você é a Lizzie. Certo?
Retraindo-se, ela olhou ao redor. O que foi meio ridículo, pois não havia ninguém atrás dela, não é?
– Hum… sim.
– A Lizzie do Lane. A horticulturista.
– Não – ela negou. – Não dele.
O homem esticou os braços acima da cabeça, e seu corpo todo estalou; ela notou que ele era muito bonito, com cabelos e olhos escuros – poderiam ser castanhos ou azuis.
O sotaque definitivamente era de Nova York.
– Uau – murmurou ele. – Pensei que você fosse de mentira.
– Se me der licença, tenho trabalho a fazer.
– E agora eu entendo por que ele não foi atrás de mais ninguém por dois anos.
Não pergunte, Lizzie se ordenou, não pergunte.
– O que disse? – ouviu-se perguntar.
Droga.
– Por dois anos, nada. Quero dizer, fizemos faculdade juntos, por isso vi em primeira mão como ele conquistou sua reputação. Mas nos dois últimos anos, ele não chegou perto de nenhuma mulher. Pensei que ele fosse gay. Até perguntei se ele era gay. – Ele mostrou as palmas num gesto defensivo. – Não que exista algo de errado com isso.
Isso faz parte de algum diálogo do Seinfeld?,23 ela se perguntou.
– Eu… hum…
– Agora estou entendendo. – O homem deu um amplo sorriso. – Mas ele disse que você está de partida? Não é da minha conta, mas… por quê? Ele é um bom homem. Não é perfeito, mas é bom. Só não sugeriria que você jogasse pôquer contra ele. Não a menos que tenha dinheiro sobrando para perder.
Lizzie franziu a testa.
– Eu… hum…
– A propósito, eu nem sabia que ele era casado. Ele nunca falou dela. Eu, por certo, nunca a vi… E agora, pensando bem, foi tudo por sua causa… Bem, de todo modo, tenho que voltar a trabalhar.
Como se o cara não tivesse acabado de lançar uma bomba no meio do quarto.
Quando o coração de Lizzie começou a bater forte, ela perguntou: – Desculpe. Mas você disse… que não sabia que ele era casado?
Ele voltou a olhar para ela.
– Não, ele nunca mencionou. Nenhuma vez nos dois anos em que dormiu no meu sofá. Só fiquei sabendo quando ele me ligou uns dias atrás.
– Mas você deve tê-la conhecido, não? Quando ela o visitou.
– Quando o visitou? Querida, ele nunca recebeu nenhuma visita, e eu sei disso porque ele nunca saía da minha casa. Jogávamos pôquer à noite e eu saía para trabalhar, só para voltar à noite e encontrá-lo no meu sofá na exata posição da manhã. Ele não via ninguém. Não atendia a telefonemas. Nunca voltou para cá. Nunca viajou. Só ficava trancado no meu apartamento, bebendo. Pensei que a próxima parada seria numa unidade de diálise.
– Nossa.
O cara arqueou uma sobrancelha, como se quisesse saber se ela precisava de alguma outra informação.
– Obrigada.
– Obrigado pelas flores. Nunca recebi flores de uma mulher antes.
E voltou a trabalhar, concentrado na tela.
Lizzie saiu do quarto num estado de torpor e teve que se lembrar de fechar a porta.
Depois de parada por um instante, virou a cabeça e olhou na direção do quarto do senhor Baldwine.
Nenhuma visita. Nenhum telefonema. Dois anos em Nova York no sofá do amigo.
E, supostamente, Chantal estava grávida.
De Lane.
Lizzie não teve ciência de quando se decidiu a andar. Mas, antes que se desse conta, deixou a bandeja no chão ao lado do quarto de hóspedes e andou nas pontas dos pés sobre a passadeira. Ao chegar ao quarto do senhor Baldwine, encostou a orelha na porta.
Depois bateu com suavidade.
Quando não obteve resposta, entrou sorrateiramente e se fechou ali dentro.
Havia algo de estranho no ar. Pensando bem, estava invadindo o lugar, visto que não tinha nenhum motivo válido para estar ali.
Bem, nenhum motivo profissional válido.
Relanceando para se certificar de que não havia ninguém no banheiro adjacente, apressou-se para junto da enorme cama, arrumada com precisão militar.
Ajoelhando-se, estendeu o pescoço debaixo do criado-mudo, debaixo da própria cabeceira da cama.
O tecido de seda ainda estava ali, no chão.
Lizzie esticou o braço e…
Toc, toc, toc.
– Serviço de quarto, senhor Baldwine.
Mergulhando rapidamente, Lizzie se enfiou embaixo da cama, encolhendo as pernas enquanto a criada abria a porta e entrava no quarto.
Um assobio suave e passadas leves sobre o carpete anunciavam o progresso da mulher conforme ela ia para o banheiro.
Por favor, não limpe, Lizzie suplicou em pensamentos, deitada no escuro. Só deixe as toalhas e siga com a sua vida.
Deixe as toalhas.
Siga em frente.
Deus, seu coração batia tão forte que foi um milagre a criada não ouvir nada.
Momento depois, um milagre aconteceu e as passadas recuaram para a porta, fechando-a novamente.
Lizzie relaxou e cerrou os olhos. Certo, riscaria ladra de galinhas da lista das suas possíveis escolhas de carreira para quando partisse de Easterly.
Segurando a lingerie, enfiou a peça no cós dos seus shorts e a cobriu, soltando a blusa por cima. Depois saiu dali, ficou de pé e tratou de se apressar.
Junto à porta, ouviu…
Caramba, o aspirador de pó estava ali no corredor bem na sua frente.
Nos aposentos da senhorita Aurora, Lane se esforçava para terminar o bacon com ovos.
– Você não precisa terminar, se não quiser – ela lhe disse ao seu lado.
– Nunca pensei ouvir isso da senhora.
– As regras estão suspensas hoje.
Recostando-se na poltrona reclinável, ele observou a pequenina cozinha embutida. Todos os pratos estavam lavados, já secando no escorredor. A esponja estava na pia. O pano de pratos estava dobrado com esmero sobre o puxador do fogão.
– Acha que o reverendo Nyce faria o funeral? – perguntou. – Na igreja batista de Charlemont?
A senhorita Aurora o fitou, curiosa.
– Mesmo?
– É a minha igreja. De Edward, Gin e Max também. – Olhou para ela. – A senhora foi a única pessoa que nos levou para rezar.
– Acho que ele ficaria honrado.
– Que bom. Vou ligar para ele.
Quando se calaram, Lane ficou olhando para a frente, sem ver nada, se concentrando no vazio. Também não havia nada na cabeça dele. Estava entorpecido, era um receptáculo vazio reagindo ao mundo ao seu redor, sem viver de verdade.
– Não vou te dar a minha bênção, menino.
Ele estremeceu e voltou a olhar para ela.
– O que disse?
– Não vou dizer que vai ficar tudo bem se você for embora.
Lane franziu o cenho e abriu a boca. Depois a fechou.
Engraçado, não se lembrava de ter dito isso em voz alta, mas ela o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa.
– Não deu certo com a Lizzie. De novo. Papai morreu. Edward se mudou. Mamãe está… bem, você sabe como ela está. Gin vai se casar com aquele idiota e provavelmente vai levar Amelia com ela. Esta era chegou ao fim, senhorita Aurora. E o que é pior: já não sei o que o futuro nos reserva. Easterly… – Moveu a mão no ar, pensando na propriedade e em todas as pessoas que dependiam dela. – Easterly faz parte do passado. Sabe, não posso viver aqui. É venenoso. Esta família, esta casa, este estilo de vida… tudo isso é simplesmente venenoso.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Você está encarando do jeito errado.
– Não estou, não.
Ela se colocou mais para a frente na poltrona e se esticou para tocar-lhe as mãos.
– Este é o seu momento, Lane. Deus lhe deu o dever sagrado de manter esta família unida. Você é o único que pode fazer isso. Tudo vai se ajeitar porque é o seu destino unir o seu sangue uma vez mais. É o tipo de coisa que acontece com algumas gerações. Está acontecendo agora. Esta é a sua hora.
Lane ficou encarando suas mãos juntas, o preto e o branco entrelaçados, e disse: – Era para ser Edward, sabe?
– Não, ou ele não estaria onde está agora. – A voz da senhorita Aurora demonstrou força. – Eu não te criei como um covarde, Lane. Não te criei para que abandonasse o seu dever e saísse correndo. Se quiser me honrar quando eu tiver partido, vai cumprir o seu dever fazendo com que esta família siga em frente, juntos. Cumpri o meu dever sagrado com você. Agora, você, filho do meu coração, vai fazer o mesmo com eles.
Lane fechou os olhos e sentiu um peso repentino cair sobre seu corpo, como se as paredes e o teto de Easterly tivessem se afundado sobre ele.
– Você vai fazer isso por mim, Lane. Porque se não fizer, tudo o que eu fiz por você não vai ter significado nada. Se não fizer, terei fracassado no meu dever.
Por dentro, ele gritava.
Por dentro, ele já estava num avião, indo para qualquer lugar distante de Charlemont.
– Deus não nos dá mais do que podemos suportar – disse ela com seriedade.
Mas e se Deus não nos conhece de verdade?, Lane pensou consigo. Ou pior… e se os planos de Deus estiverem simplesmente errados?
– Não sei, senhorita Aurora.
– Bem, eu sei. E você não vai me desapontar, filho. Simplesmente não vai.
Seinfeld foi uma série de TV produzida pela NBC. Tendo sido transmitida entre 1989 e 1998, foi eleita pelo TV Guide, em 2002, como "melhor programa de todos os tempos". (N.E.)
QUARENTA E NOVE
A verdadeira definição da eternidade, Lizzie concluiu, é quando se está preso num lugar em que não se deveria estar.
Com um babydoll que não é seu enfiado no cós dos seus malditos shorts.
Quando os sons por fim cessaram, ela aguardou mais uns cinco ou dez minutos antes de dar uma espiada.
Hora do almoço, deduziu. Graças a Deus.
Foi para o meio do corredor, deixou que a porta se fechasse atrás de si e ficou ali, com os ouvidos aguçados.
A próxima parada ficava além do quarto de Gin: o quarto de Chantal.
Bateu à porta. Nenhuma resposta. A mulher tinha ido embora, certo?
Esgueirando-se para dentro, fechou-se ali e…
– Ai, meu Deus! – murmurou, agitando a mão diante do nariz.
A fragrância do perfume caro fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas, mas como tinha peixes maiores para pescar, foi rapidamente para o closet de Chantal, parando diante de um armário grande o suficiente para rivalizar com o departamento feminino inteiro da Nordstrom. Ou da Saks. Ou quaisquer outros lugares elegantes onde mulheres como Chantal compravam suas roupas.
Puxa, seria capaz mesmo de fazer aquilo?
Concluiu que era provavelmente uma ideia bem idiota, enquanto procurava em meio aos cabides, passando por todo tipo de seda, cetim e renda. E terninhos, jaquetas, vestidos de gala…
– Onde está a sua lingerie, Chantal?
Claro, na cômoda.
No meio do closet, como uma ilha de organização, havia um móvel com gavetas dos dois lados. Começou a puxá-las aleatoriamente.
Ok, isso é uma idiotice, pensou. Achou mesmo que encontraria a parte de baixo d…
Estava na terceira gaveta, de baixo para cima, à esquerda do lado que dava para o norte quando encontrou o que procurava.
Mais ou menos.
No meio dos conjuntos de calcinha e sutiã perfilados e separados por papel de seda, encontrou… um babydoll roxo idêntico àquele encontrado debaixo da cama do quarto do senhor Baldwine.
Só para ter certeza de que não estava imaginando coisas, pegou o que trazia consigo, cor de pêssego, e os colocou lado a lado sobre o carpete branco e fofo. O mesmo tamanho, a mesma marca… La Perla? Tudo idêntico, a não ser a cor.
Sentou-se e ficou olhando para as peças.
E foi então que viu a mancha no tapete.
Do outro lado do quarto, havia uma penteadeira alinhada a uma alcova com janelas com vista para o jardim. Era o lugar ideal para fazer a maquiagem – ou para que alguém fizesse em você – sob a luz natural.
E debaixo das pernas de marfim, num canto, havia uma mancha amarela, redonda, meio escondida.
O tipo de coisa que se encontra em casas com cachorros.
Só que não existiam cachorros em Easterly.
Engatinhando até lá, enfiou-se debaixo da segunda peça de mobília e colocou o dedo sobre a mancha. Estava seca. Mas, ao aproximar os dedos do nariz… isso mesmo, aquela era a origem de todo o perfume no ar.
Franzindo o cenho, Lizzie se ajoelhou.
– Ai, meu Deus.
O tampo de vidro da penteadeira estava rachado no meio. E o espelho estava partido.
Com sangue bem no centro.
Hora de sair daqui, disse a si mesma.
Voltando para o closet, pegou a lingerie que deixara no chão, devolveu a roxa na gaveta e depois, numa inspiração, usou a cor de pêssego para limpar suas impressões digitais dos puxadores. De todos eles.
A última coisa que precisava era que a polícia fosse até ali e descobrisse que ela estivera bisbilhotando, por assim dizer…
Ficou imóvel ao ouvir uma voz masculina vinda do quarto ao lado, de Gin.
Ouviu duas pessoas conversando. Bem alto.
Indo até a parede, encostou a orelha ao lado da pintura de uma mulher francesa basicamente nua.
– Não me importo – Gin disse. – Vai ser apenas no cartório.
– O seu pai está morto.
Lizzie se retraiu, cobrindo a boca com a mão. O quê?
Richard Pford prosseguiu:
– Vamos esperar, nos casaremos depois do enterro.
– Não estou de luto por causa dele.
– Claro que não está. Para isso, você precisaria ter um coração, e nós dois sabemos que essa é sua anomalia física.
Lizzie recuou e tropeçou. Caiu sobre a cômoda.
Depois de um instante, continuou a limpar suas impressões e voltou para a porta que dava para o corredor. Como seu coração batia acelerado e forte, ela não estava conseguindo ouvir direito, mas mandou tudo às favas. Se fosse descoberta, o que fariam com ela?
Ela podia muito bem dizer que estava verificando as flores.
Mas não havia ninguém ali.
Seguiu às cegas para a escada dos empregados, com a mente num torvelinho, os pensamentos se debatendo, dissonantes, se partindo.
No meio de tudo aquilo, contudo, chegou a uma conclusão inescapável.
Tinha cometido um erro terrível.
Do tipo que seria impossível obter perdão.
Já no primeiro andar, parou de súbito. E percebeu que, de todos os lugares em que poderia ter se detido, escolhera parar diante do escritório de Rosalinda.
William Baldwine também estava morto.
Como?, ficou se perguntando. O que tinha acontecido?
Numa série de flashes, viu Lane parado na estufa, com a expressão fechada, a voz sem nenhuma emoção. Ouviu o amigo dele dizendo que, em vez de transar alegremente com Chantal às escondidas, ele não recebera ninguém e não fizera nada por dois anos.
E depois veio a bomba com aquele espelho quebrado no andar de cima. E a lingerie.
Lembrou-se da última imagem de Chantal à piscina, pedindo uma limonada.
Naquela hora, o fato de ela estar usando uma saída de seda não lhe parecera muito significativo. Mas agora…
Ela estava grávida e a barriga começava a aparecer. Motivo pelo qual ela pedira a bebida virgem, ou seja, sem álcool.
Chantal estava dormindo com William Baldwine. Traindo o filho com o pai. E tinha engravidado.
Ela deve ter contado a William, Lizzie concluiu. Depois do Derby.
E o homem perdeu as estribeiras. E bateu nela perto da penteadeira.
E depois a expulsou da casa. Ou algo assim.
Balançando a cabeça, Lizzie levou as mãos ao rosto rubro e tentou respirar.
Seu único pensamento foi o de precisar se acertar com Lane. Tinha o condenado com base em seu próprio medo de se magoar novamente…
Quando, na verdade, existia uma possibilidade muito, mas muito grande, de ele não ter nada a ver com todo o alvoroço.
Abaixando os braços, soube que palavras não bastariam. Não naquele caso.
Quando a solução surgiu, ela consultou o relógio. Se corresse…
Atravessou a cozinha às pressas, e a senhorita Aurora ergueu o olhar da panela no fogão.
– Aonde vai? – a mulher perguntou. – O que está pegando fogo?
Lizzie derrapou junto à porta que dava para a garagem.
– Preciso ir para Indiana. Se vir Lane, diga que vou voltar. Eu vou voltar!
CINQUENTA
Lane pensou que a área externa estava bem agradável, ao se sentar no jardim.
Olhando para os muros cobertos de heras e os canteiros de flores ao longo da piscina azul e das portas francesas do centro de negócios, imaginou todo o árduo trabalho necessário para manter aquela beleza “natural”.
Era impossível não visualizar Lizzie ali, mas refreou o impulso rapidamente.
Não havia motivo para se aborrecer com esse tipo de coisa.
Curvando a cabeça, esfregou os olhos. Samuel T. tinha telefonado para falar da situação de Chantal, e sabia que tinha que retornar a ligação. Mitch também tinha deixado uma mensagem, provavelmente a respeito dos resultados preliminares da autópsia. Nesse meio-tempo, lá no segundo andar, Jeff avaliava todos os relatórios financeiros.
As decisões quanto ao funeral precisavam ser tomadas.
Mas não tinha forças para lidar com nada daquilo.
Maldição, senhorita Aurora, pensou. Deixe-me ir. Só me deixe fugir de tudo.
Amava tanto aquela mulher. E devia-lhe muito mais. Ela era sua mãe, e mesmo que estivesse lhe dando uma surra moral, ele simplesmente já não estava mais envolvido naquela luta.
Erguendo os olhos para a incrível extensão branca de Easterly, fitou a mansão como um corretor imobiliário o faria. Não obstante a hipoteca de Sutton Smythe, poderia quitar boa parte da dívida junto à Fundos Prospect apenas com a venda do lugar.
Inferno. Com o pai morto, talvez pudessem procurar Sutton e pedir que ela não depositasse o dinheiro e rasgasse o documento.
Pensou em Edward. Deveria mandar Edward resolver esse assunto.
Ou talvez não. Talvez devesse simplesmente lavar as mãos.
Talvez, em vez de tentar pilotar o avião danificado no qual todos estavam, devesse deixar que a maldita aeronave se chocasse com a montanha.
Podia morrer como um covarde, podia desapontar sua mãe, mas, pelo menos, terminaria mais rápido do que se tentasse adivinhar os controles numa tentativa de aterrissar numa pista longe, muito longe dali…
Lane?
Fechou os olhos. Maravilha. Estava começando a alucinar.
Como se Lizzie fosse mesmo procurá-lo…
– Lane?
Virando-se no banco de pedra, ele viu… bem, hipoteticamente, ele a viu parada a poucos metros de distância.
E, vejam só, sob a luz do entardecer, ela estava mais linda do que nunca. Natural, adorável, com os límpidos olhos azuis e os cabelos iluminados pelo efeito do sol, e aquele uniforme de Easterly, que na verdade não deveria deixá-la sexy, mas que nela era simplesmente demais.
– Lane, posso falar com você?
Ele limpou a garganta. Sentou-se ereto.
Ao que tudo levava a crer, não era fruto da sua imaginação.
– Sim, claro. Do que precisa? Se for uma carta de referência, posso pedir ao mordomo que…
– Desculpe. – Quando a voz dela se partiu, ela respirou fundo. – Sinto muito, muito mesmo.
O que ela estava…
– Ah, meu pai. – Encolheu os ombros. – Acho que deve ter ficado sabendo. Sim, ele morreu. O enterro será na semana que vem. Obrigado pelas palavras gentis.
– Não estou falando disso. Embora, sim, eu lamente que você tenha perdido o seu pai. Sei que o relacionamento entre vocês não era dos melhores, mas ainda assim deve ser difícil.
– Bem, acontece que me supero em relacionamentos que não são bons. Parece uma habilidade minha.
Até para os próprios ouvidos, sua voz soou falsa. As palavras não eram as que normalmente usaria.
Edward, pensou, entorpecido. Estava parecendo Edward.
Lizzie se aproximou, e ele ficou mais do que surpreso por vê-la se ajoelhar diante dele. E ela estava…
– Por que está chorando? – perguntou. – Você está bem?
– Deus, como você pode perguntar isso? Depois de tudo o que eu fiz…
– Do que você está falando?
Então começaram a falar um por cima do outro, do modo típico deles. Mas como Lane não tinha forças para tentar decifrar nada, calou-se, na esperança de que ela explicasse e esclarecesse as coisas.
– Eu errei – disse, emocionada. – Sinto muito por não ter acreditado em você. A respeito de Chantal. Eu só… Eu não queria me magoar de novo, e me precipitei em tirar conclusões. E, ah, meu Deus, eu sei que foi o seu pai. Eu sei que foi ele. Foi ele quem bateu nela, foi ele quem a engravidou. Sinto muito.
Lágrimas rolaram pelo rosto dela, uma chuva de lágrimas, aterrissando na grama aos pés dele.
Lane piscou. Foi só o que ele conseguiu…
Jesus, seu cérebro não seria capaz de processar tantas informações. Ele literalmente não entendia o que ela estava dizendo…
Levando a mão às costas, ela pegou algo. Um maço de papéis dobrados ao meio?
– Lamento que não baste – ela disse. – Magoei você demais. Então preciso fazer algo concreto, para provar que estou ao seu lado, que eu te amo e que… que estou ao seu lado mesmo.
Entregou as folhas para ele.
– Eu preciso te mostrar, e não te dizer.
Lane balançou a cabeça.
– Lizzie, eu não sei o que…
– Pegue – ela disse.
Fez o que ela pediu porque não tinha motivos para não fazê-lo. Alisando a dobra, olhou para…
Um monte de palavras. Seguidas de alguns números.
A segunda folha era um mapa?
– É a escritura da minha fazenda – ela sussurrou. – Sei que não é nada comparado ao que você tem. Mas é tudo o que tenho neste mundo.
– Não estou entendendo…
– Sei dos problemas financeiros que você está enfrentando, e sei que não vai ajudar a saldar a dívida, mas vale o bastante para ajudá-lo a pagar bons advogados, pessoas que podem ajudá-lo a resolver a questão. – Apontou para o documento. – Quitei o empréstimo ontem. Não devo mais nada. E já fui abordada várias vezes para que a vendesse. A terra é boa. Vale bastante. E agora é sua.
O ar saiu do corpo dele.
O coração parou de bater.
A alma se partiu ao meio.
– Eu te amo, Lane. Desculpe por ter duvidado de você. Eu sinto que… Deus, você não faz ideia de como estou me sentindo mal. Deixe-me recompensá-lo do único modo que posso. Ou jogue esses documentos na minha cara, se quiser. Não vou te culpar. Mas eu tinha que fazer alguma coisa relevante. Eu tinha que… te oferecer tudo o que sou e tudo o que tenho…
Lane não se deu conta de que estava se aproximando dela.
Mas soube no instante em que ela foi de encontro ao seu peito.
Envolvendo-a com os braços, descontrolou-se por completo, as represas se abriram, e tudo saiu aos soluços.
E Lizzie, com seu corpo forte e coração grande, abraçou-o pelo tempo que foi necessário.
– Vai ficar tudo bem – ela lhe disse. – Eu te prometo. De algum modo, tudo vai ficar bem.
Quando, por fim, ele conseguiu se controlar o suficiente para se afastar, sentiu uma súbita vontade de se apalpar entre as pernas só para ver se ainda era homem. Mas Lizzie não parecia se importar por ele estar fragilizado.
Enxugou o rosto dela com os polegares e a beijou.
– Eu te amo, Lizzie. – Depois balançou a cabeça. – Mas não sei quanto a Deus.
– O que disse?
Lane expirou, estremecendo.
– É só uma coisa que a senhorita Aurora sempre me disse.
– E o que era?
Ele beijou sua mulher uma vez mais.
– Não sei se tenho Deus. Mas tenho certeza de uma coisa: eu tenho você. E isso me torna mais rico do que preciso ser.
Trazendo-a de volta para junto de si, ele a abraçou e ficou olhando para Easterly.
Ao diabo com a ideia de jogar o avião numa montanha, pensou.
A partir daquele instante, ele seria o chefe da família, a seu modo.
E ele estaria ferrado caso as coisas ruíssem na sua vigília.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
TRINTA E SETE
A chuva imprevista começou pouco depois das cinco da tarde. Enquanto dobrava a última das mesas debaixo da tenda, Lizzie sentiu o cheiro da mudança no ar e olhou para as heras no muro de tijolos do jardim. Como esperado, as folhas dançavam ao vento, reluzentes, encarando o céu cinzento.
– Não era para chover – murmurou para ninguém em especial.
– Você sabe o que dizem sobre o clima por estas partes – um dos garçons replicou.
É, pois é, ela sabia.
Onde estaria Lane?, perguntou-se. Estava sem notícias dele desde a conversa ao lado da picape, seis horas atrás.
O senhor Harris se aproximou.
– Você disse para eles que tudo isso vai para a área de carga e descarga?
– Sim – ela respondeu. – É sempre ali que ficam as coisas alugadas e, antes que pergunte, os copos e talheres também.
Já que o homem estava parado ali sem fazer nada, ela ficou tentada a pedir que ele a ajudasse segurando uma das pontas da mesa para carregá-la até a parte oposta do deque. Mas estava bem evidente que ele não era alguém que metia a mão na massa.
– Qual o problema?
– A polícia está aqui de novo. Estão tentando respeitar o evento, mas querem me interrogar mais uma vez.
Lizzie abaixou a voz.
– Quer que eu cuide das coisas?
– Sinto que eles não querem esperar.
– Pode deixar, tudo será feito da maneira correta.
O mordomo limpou a garganta. Em seguida, que Deus o abençoasse, ele se curvou levemente na sua direção.
– Agradeço imensamente. Obrigado. Não deve demorar muito.
Ela o viu se afastar, depois voltou ao trabalho.
Levantando a mesa, atravessou o espaço cavernoso e prosseguiu a céu aberto, onde o início de um chuvisco a molhou nos ombros e na cabeça. A área de carga e descarga ficava na parte oposta da casa. O sotaque carregado de Greta ressoava pelo lugar, enquanto dois empregados, um entrando com o lixo da festa, o outro saindo de mãos vazias, se apressavam.
Lizzie se dirigiu para junto deles, aproximando-se das mercadorias a serem devolvidas.
A tenda maior seria desarmada em vinte minutos, e a equipe de limpeza já estava trabalhando no chão, recolhendo guardanapos amassados, garfos perdidos e copos.
Os ricos não eram diferentes de qualquer outro rebanho de animais, capazes de deixar uma trilha de detritos depois de abandonarem o local de alimentação.
– Última mesa – disse, assim que se viu debaixo da tenda.
– Que bom. – Greta apontou para uma pilha. – Fica ali, ja?
– Isso mesmo. – Lizzie ergueu a mesa na altura da cintura e a deslizou no alto da pilha. – O senhor Harris teve que cuidar de umas coisas, por isso vou supervisionar a limpeza.
– Logo terremos tudo em orrdem. – Greta apontou o outro canto para dois rapazes com seis engradados de copos cada um. – Ali. Deixem debaixo da coberrturra, sim?
– Vou dar uma olhada na cozinha.
– Vamos terrminarr dentrro de uma horra.
– Como planejado.
– Semprre.
E Greta estava certa. Terminaram às seis em ponto; a tenda grande foi desmontada, a casa e os jardins foram liberados e o quintal estava limpo. Como de hábito, o esforço tinha sido tremendo. Os empregados se retiravam; a maioria se reuniria para beber e se livrar das dores, desconfortos e “Oh, meu Deus” do dia, mas não Lizzie nem sua colega. Casa. As duas iriam para suas respectivas casas. Lizzie esperaria por Lane, e Greta seria recebida por uma refeição preparada pelo marido.
As duas se encaminharam para o estacionamento dos funcionários, não disseram nenhuma palavra e, junto aos carros, abraçaram-se rapidamente.
– Mais uma vencida – Lizzie disse ao se separarem.
– Agorra vamos nos preparrarr parra a festa de aniverrsárrio da Pequena V.E.
Ou a festa de casamento de Gin, Lizzie ponderou.
– Eu te vejo amanhã? – perguntou.
– Domingo? Não – Greta gargalhou. – Não haverrá uma alma se-querr se movendo aqui, nem um marrtíni, nem um rato.
– Ah, é mesmo. Desculpe, a minha cabeça já pifou. Te vejo na segunda, então.
– Está bem parra dirrigirr?
– Claro!
Com um aceno, Lizzie entrou no seu Yaris e depois se juntou à fila de carros e caminhões que saía pelo caminho dos funcionários.
Tomando a esquerda na estrada River, a garoa se transformou em chuva de verdade, e o dilúvio a fez pensar na corrida. Caramba, perdera a corrida. Esticando a mão para o rádio, sintonizou na estação local. Quando conseguiu ouvir comentários sobre a corrida, já estava no entroncamento, passando por cima do rio Ohio.
Mas não acompanhou o relato – e não só porque não entendia nada do esporte.
Franzindo o cenho, aproximou o rosto do para-brisa.
– Meu Deus…
Mais à frente, o horizonte estava carregado de nuvens negras pairando alto no céu. E o pior? Havia uma coloração meio esverdeada em tudo aquilo. E mesmo um olhar desacostumado perceberia que aquilo parecia estar girando.
Olhou por cima do ombro. Atrás dela, não viu nada anormal. Havia até uma faixa de céu azul.
Enfiando a mão na bolsa, pegou o celular e ligou para Easterly. Quando aquela voz carregada de sotaque inglês atendeu, ela disse: – O tempo está piorando. Você vai ter que…
– Senhorita King?
– Escute, você vai ter que cobrir a piscina e os vasos…
– Mas o tempo não está piorando. Na verdade, a previsão deixou bem claro que deveríamos esperar apenas uns chuviscos esta noite.
Quando um raio cortou uma nuvem logo adiante, ela pensou que pelo menos se entendera com o homem uma hora antes.
– A previsão do tempo que se dane. Estou te contando o que está bem na minha frente: há uma tempestade maior que o centro da cidade de Charlemont atravessando o rio, e a colina de Easterly é a primeira coisa que ela vai atingir.
Droga, será que se lembrara de fechar as janelas da sua casa?
– Eu desconhecia os seus talentos de metereologista – o senhor Harris comentou com secura.
E o senhor é um cretino.
– Muito bem, mas depois você vai ter que explicar o seguinte assim que ela passar por aí: um, por que o abrigo ao lado da piscina saiu voando; dois, por que os quatro vasos da varanda da parte oeste caíram e terão que ser replantados; três, onde foi parar a mobília do jardim, porque, a menos que garanta que ela esteja na casa da piscina, ela acabará voando pelos canteiros do jardim. O que me leva ao número quatro, ou seja, quando as heras, as rosas e as hidrângeas serão reparadas. Ah, e depois você pode concluir isso fazendo um cheque de sete mil dólares para a família para cobrir todo o material de jardinagem que terá que ser reposto.
Tic, tac, tic, tac…
– Qual era o segundo item? – ele perguntou.
Te peguei.
Lizzie repassou todo o procedimento que ela e Greta desenvolveram, resultado do trabalho de vários anos com Gary McAdams, preparando-se para as grandes tempestades de primavera e de verão. O pior era que não era necessário um tornado F5 caindo diretamente em Easterly para criar o caos. Algumas tempestades eram mais do que capazes de estragar bastante coisa, se fossem atingidos por ventos diretos.
Era uma das coisas que aprendera rapidamente ao se mudar para Charlemont.
Como se provando que estava certa, ela logo atravessou uma cortina de chuva, que atingiu seu para-brisa com tanta força que pareceu uma dupla de sapateadores dançando “The Star-Spangled Banner”.
Aumentando a velocidade dos limpadores, tirou o pé do acelerador porque seu Yaris era bem capaz de hidroplanar na estrada mesmo na mais ínfima quantidade de água sob os pneus finos.
– Entendeu? – ela perguntou. – Preciso desligar e dirigir no meio desta coisa.
– Sim, sim, claro… ah, meu Deus – o homem sussurrou.
– Então, está vendo a tempestade agora? – Divirta-se, ela pensou. – Melhor começar a se mexer.
– Sim, de fato.
Desligou e jogou o celular dentro da bolsa. Depois, só lhe restou se dobrar em cima do volante, segurar firme… e rezar para que nenhum exibido numa SUV a jogasse para fora da estrada.
A situação piorou bem rápido.
E, puxa, depois de um dia atarefado e longo como o que tivera, a última coisa que precisava era enfrentar aquele aguaceiro reduzindo sua visibilidade para um metro e meio de distância, somado a trovões ensurdecedores e raios. O clima parecia disposto a acompanhar lado a lado o que acontecia em Easterly. Quase como se o drama na casa estivesse afetando o tempo.
Ok, talvez aquilo fosse exagero.
Mas, mesmo assim…
Levou uns quinhentos anos para chegar à sua saída. E mais setecentos ou oitocentos para chegar à entrada da sua casa. Nesse meio-tempo, a tempestade se transformou em Tempestade, com T maiúsculo: raios cruzavam o céu, parecendo querer atingir seu carro, e trovões rugiam. Ela foi atingida por uma rajada de granizo que poderia ter derrubado Fenway Park. Já com os nós dos dedos embranquecidos, irritada, preocupada com Lane e toda dolorida, finalmente chegou em casa, toda esbaforida e…
O dedo de Deus.
Foi só no que pensou.
Num momento, estava estacionando em seu lugar de costume próximo à casa. No seguinte? Um raio desceu do céu e atingiu a sua enorme e linda árvore bem no topo.
Faíscas se formaram, como se fosse 4 de julho.
E ela gritou, pisando no freio:
– Não!
Os pneus do Yaris derraparam no piso seco. Ou na estrada lamacenta e escorregadia.
E foi nessa hora que descobriu que Lane estava na sua casa.
Porque acabou batendo com tudo no para-choque traseiro do Porsche dele.
Lane já estava havia duas horas sentado à mesa da cozinha de Lizzie, lendo os relatórios financeiros da CBB, quando a chuva chegou. Enquanto a tempestade dava seu primeiro show, com trovões e raios sacudindo a casa, ele nem se deu ao trabalho de desviar o olhar do laptop, mesmo quando os antigos vidros tremeram e o telhado rangeu.
A quantidade de informação era tremenda.
E ele estava em pânico por entender apenas uma fração dela.
Mas, pensando bem, tinha sido muita ingenuidade da parte dele pensar que poderia lidar com os negócios do pai com algum tipo de diligência. Fora a quantidade incrível de arquivos, ele não tinha o conhecimento necessário para entender tudo aquilo.
Ainda bem que Edward tinha se preparado para algo assim, criando aquelas contas fantasmas, senhas e e-mails. Sem tais coisas, teria sido impossível exportar as informações sem disparar algum alerta interno.
Se bem que isso ainda poderia acontecer.
Ele não sabia de quanto tempo dispunham até que o pai deles descobrisse o vazamento de informações.
Fazendo uma pausa, recostou-se na cadeira e esfregou os olhos. Foi nesse instante que o segundo round da tempestade começou. Seja pelo cochilo forçado devido aos seus olhos cansados ou pelo fato de que suas células T estavam alertas, ele logo percebeu que a casa de Lizzie estava sendo atacada.
Levantou-se, deu a volta e fechou todas as persianas do andar de cima e de baixo. Enquanto corria de cômodo em cômodo, os raios iluminavam tudo como estrobos enlouquecidos, lançando sombras velozes sobre o piso de Lizzie, a mobília, o piano. O céu estava tão escuro como se fosse meia-noite, a chuva açoitava a fazenda, e Lane sentiu como se estivesse numa zona de guerra.
Tinha esquecido como aquelas tempestades de primavera vindas do leste podiam ser furiosas, as colisões das frentes frias e quentes correndo à solta por quilômetros e quilômetros da planície no centro-oeste.
De volta ao primeiro andar, relanceou para a varanda e praguejou. As mesinhas e as cadeiras de balanço de vime estavam todas amontoadas, numa agitação nervosa provocada pelas rajadas de vento.
Quando foi abrir a porta, a força da corrente fez com que ele tivesse que usar força para fechá-la novamente depois que saiu. Ao segurar tudo o que encontrava, moveu os objetos de Lizzie para o canto oposto da varanda, distante dos ventos mais fortes.
Estava voltando para apanhar a última cadeira quando viu faróis fazendo a curva na estrada principal. Só podia ser ela, e ele ficou aliviado. Tivera a intenção de telefonar, mandar uma mensagem, sinal de fumaça ou um pombo-correio, mas sua mente acabara se concentrando em…
Tudo aconteceu numa estranha combinação de câmera lenta com a velocidade do som: um raio surgiu no céu, seguido por um barulho de explosão e uma bomba de iluminação.
Um galho do tamanho de uma viga se partiu e caiu no chão.
Bem onde Lizzie acabava de estacionar.
O som de metal se retorcendo fez o coração dele parar de bater.
– Lizzie! – ele berrou e voou para fora da varanda.
A chuva o atingiu no rosto e o vento parecia uma matilha de cães atacando suas roupas, mas ele seguiu em frente.
A morte vem em três.
– Não! – ele berrou na tempestade. – Nããããooo!
O Yaris cedeu sob o peso, o teto amassou, a capota afundou, e a vida dele passou pela sua mente quando ele parou de súbito, descalço. Galhos com folhas novas atrapalhavam sua visão, assim como a chuva e o vento, e os raios e trovões continuaram, como se nada de importante tivesse acontecido.
– Lizzie!
Ele se enfiou na confusão verde, se contorcendo. Mesmo com todo aquele vento, ele sentia o cheiro de gasolina e óleo, e ouvia o sibilo do motor mortalmente atingido.
Talvez toda aquela umidade impedisse uma explosão?
Resolveu mudar de tática e começou a subir no carro, até dar a volta e chegar à frente do veículo. Por fim, sentiu algo molhado e escorregadio nas mãos, e começou a bater, para que ela soubesse que ele estava ali.
– Lizzie, vou te tirar daí!
Com puxões frenéticos, arrancou galhos e folhas até encontrar o vidro do para-brisa todo rachado. Fechando o punho, socou com força, e faltou pouco para que ele inteiro passasse pela abertura.
Lizzie estava de lado, com a cabeça apoiada no banco do passageiro, mexendo os braços como se estivesse tentando se orientar. Os dois airbags tinham sido acionados, e o pó branco e seco do interior contrastava com a umidade da tempestade.
– Lizzie!
Pelo menos ela estava se mexendo.
Merda. Ele não tinha como abrir as portas. Teria que puxá-la.
Esticando o braço, tocou-a no rosto.
– Lizzie?
Ela piscou, e havia sangue em sua testa.
– Lane…?
– Estou com você. Vou te tirar daí. Está machucada? O pescoço, como está? As costas?
– Desculpe, bati no seu carro…
Ele fechou os olhos por uma fração de segundo e murmurou uma oração. Em seguida, voltou a agir.
– Vou ter que te arrastar para fora.
Abrindo caminho pelo interior do carro, conseguiu, de algum modo, soltar o cinto dela, segurá-la pelos braços…
E parou.
– Lizzie? Presta atenção, tem certeza de que não está machucada? Consegue mover as pernas e os braços? – Quando ela não respondeu, ele sentiu uma onda de pânico. – Lizzie? Lizzie!
TRINTA E OITO
De volta a Charlemont, Edward não estava prestando atenção em seu último cavalo no Derby. Não estava sequer na pista.
Não, ele estava tentando um novo papel.
O de perseguidor.
Atrás do volante do caminhão do Haras Vermelho & Preto, olhou pela janela do passageiro para a enorme mansão de tijolos aparentes diante da qual estava parado.
Construída no início dos anos 1900, a grande casa georgiana era propositadamente maior do que Easterly. Já fazia quase um século que os Sutton eram arrivistas bem-sucedidos, e quando a fortuna da família por fim superou a dos Bradford, aquela casa transformou-se num troféu para o seu triunfo. Com seus vinte ou trinta quartos e um vilarejo para os empregados, a mansão era quase uma cidade, na segunda melhor colina com a segunda melhor vista do rio e o segundo melhor jardim.
Mas, sim, vencia Easterly em relação ao tamanho.
Assim como a Destilaria Sutton Corporation, que era um terço maior que a CBB.
Edward meneou a cabeça e relanceou para o relógio barato que passara a usar. Caso Sutton se ativesse aos seus costumes, não tardaria a chegar.
Pelo menos, nenhum funcionário uniformizado acompanhado por um pastor alemão a ladrar veio incomodá-lo pedindo para que fosse embora. A segurança da propriedade da família de Sutton Smythe era tão rigorosa quanto a de Easterly, mas ele tinha duas vantagens. A primeira era o logotipo em seu veículo; a marca registrada V&P era como uma garantia real, e mesmo que fosse um serial killer parado no vestíbulo do tribunal de justiça no centro da cidade, existia uma grande possibilidade que a polícia o deixasse em paz. A segunda coisa que tinha a seu favor era o Derby. Sem dúvida, todos ainda estavam comentando sobre a corrida, acertando apostas, deliciando-se com suas glórias.
Em breve. Muito em breve ela estaria em casa.
Depois que Lane o levou de volta à fazenda, ele tomou alguns remédios e um drinque. Em seguida, releu os papéis da hipoteca… E ficou só mais dez minutos ali antes de apanhar a bolsa de festa de Sutton e claudicar até um dos caminhões.
Moe e Shelby e o resto dos ajudantes estavam na pista junto aos treinadores e aos cavalos. Ao se afastar dirigindo, pensou que era uma lástima desperdiçar todo o silêncio e a tranquilidade da fazenda, mas aquilo era uma coisa que ele tinha que resolver pessoalmente.
A chuva começou a cair – primeiro uns pingos, depois um chuvisco.
Voltou a olhar para o relógio.
Treze minutos. Estava apostando que ela chegaria em treze minutos. Enquanto as outras 200 mil pessoas em Steeplehill Downs teriam que caminhar pelo longo trajeto até seus carros, para em seguida enfrentar um congestionamento na tentativa de entrar na autoestrada, pessoas como os Bradford e os Sutton tinham escolta policial, o que os fazia entrar e sair rápido dos lugares.
E ele estava certo.
Doze minutos e alguns segundos mais tarde, um dos Mulsannes pretos da família parou diante da casa. O motorista saiu de trás do volante, abriu um guarda-chuva e seguiu para a porta de trás. Um segundo segurança fez o mesmo do outro lado.
O pai de Sutton saiu primeiro, e precisou do braço do motorista para chegar à casa.
Sutton, por sua vez, saiu lentamente, com os olhos fixos no caminhão. Depois de conversar com o motorista, pegou o guarda-chuva dele e veio caminhando, sem se dar conta de que estava estragando os sapatos de salto alto.
Edward abaixou o vidro quando ela se aproximou, tentando ignorar o seu perfume conforme ela chegava cada vez mais perto.
– Entre – disse, sem olhar.
– Edward…
– Não vou discutir o que você assinou com o meu pai aí na sua casa. Nem no seu jardim.
Ela emitiu um xingamento agressivo e marchou para a frente do caminhão. Com um grunhido, ele tentou se esticar como um cavalheiro teria feito para lhe abrir a porta, mas ela chegou antes. Além disso, seu corpo não permitiria que ele se esticasse tanto assim.
Depois de se acomodar no banco, Sutton ficou imóvel ao ver sua bolsa.
Ligando o veículo, ele murmurou:
– Pensei que você gostaria de ter a sua habilitação de volta.
– Tenho que estar no baile em quarenta e cinco minutos – ela disse quando ele começou a descer a colina.
– Você odeia ir a esses eventos.
– Tenho um encontro.
– Tem? Que bom, parabéns. – Uma fugaz fantasia de raptá-la para impedi-la de ir se passou em sua mente. Como num filme, a fantasia culminaria numa Síndrome de Estocolmo, pois ela se apaixonaria pelo seu sequestrador. – Quem é ele?
– Ninguém que te interesse.
Edward virou à esquerda e apenas continuou dirigindo.
– Então você está mentindo.
– Veja as colunas sociais amanhã – ela argumentou num tom enfastiado. – Você poderá ler tudo a respeito.
– Eu não assino mais o Charlemont Courier Journal.
– Escute, Edward…
– Que diabos você está aprontando? Fazendo um hipoteca da minha própria casa?
Mesmo que não estivesse olhando para ela, ele sentia o olhar gélido cravado em seu rosto.
– Primeiro, foi seu pai quem me procurou. Segundo, se voltar a falar nesse tom comigo, executarei a hipoteca imediatamente.
Edward a encarou.
– Como pôde fazer isso? Você é mesmo tão gananciosa assim?
– Os juros são mais do que justos! Você queria que ele tivesse ido a um banco, que fosse exposto? Manterei tudo em segredo, desde que os pagamentos sejam feitos.
Ele apontou um dedo para os documentos no banco.
– Quero que suma com isso.
– Você não tem parte no acordo, Edward. E, ao que tudo leva a crer, o seu pai precisa do dinheiro. Ou não teria me procurado.
– Aquela casa pertence à minha mãe!
– Sabe, se eu fosse você, estaria me agradecendo. Não sei ao certo o que anda acontecendo debaixo daquele seu teto, mas dez milhões não deveriam ser nada para a grande e gloriosa família Bradford!
Edward virou à esquerda e estacionou num dos parques públicos do rio Ohio. Cruzando o estacionamento deserto, ele parou ao chegar ao atracadouro, e desligou o motor. Àquela altura, a tempestade caía a valer, e os raios no céu inflamavam a raiva dentro dele.
Virando-se no banco, ele engoliu um gemido de dor.
– Ele não precisa do dinheiro, Sutton.
Claro, era uma mentira. Mas a última coisa que a família precisava era de boatos. Por mais que ele estivesse frustrado com Sutton, sabia que poderia confiar nela, só que deviam haver outras pessoas envolvidas. Advogados, banqueiros. Pelo menos ela poderia negar essa conversa, caso fosse mencionada.
– Então por que ele assinou aquele documento? – ela inquiriu. – Por que o seu pai se desdobrou para me desviar de uma reunião de negócios para propor isso?
Enquanto ela o confrontava, ele teve uma rápida imagem mental da noite anterior, dela em seu colo, montando sobre ele, sendo gentil com seu corpo alquebrado.
Logo se lembrou do pai tentando abraçá-la no escritório.
Aquilo tinha como ficar mais confuso?, perguntou-se enquanto seu ódio por William Baldwine ressurgia.
Edward se concentrou nos lábios dela e pensou na esposa do irmão.
– Ele já te beijou?
– O que disse?
– O meu pai. Ele já te beijou?
Sutton meneou a cabeça em descrença.
– Vamos nos concentrar na questão da hipoteca de Easterly, está bem?
– Responda a maldita pergunta.
Ela levantou as mãos.
– Você me viu no escritório com ele. O que acha?
Então, sim, Edward pensou com uma onda de fúria.
– Escute – Sutton disse –, não sei o que está acontecendo com a sua família, ou por que ele quis fazer isso. Só o que sei foi que era um bom negócio para mim… e pensei que poderia ajudá-los. Fui idiota, pensei que manter isso em segredo poderia beneficiá-los.
Depois de um momento, ele murmurou:
– Bem, você está errada. E é por isso que quero que rasgue o documento.
– O seu pai também tem uma cópia – ela observou, seca. – Por que não vai falar com ele?
– Ele fez o acordo com você porque me odeia. Ele o fez porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Pelo menos isso não era mentira, ele pensou quando ela arfou.
Deus bem sabia que ele já se sentia apenas meio homem perto dela…
Sutton se mexeu no banco, absorvendo as palavras de Edward. Não conseguiu esconder sua ansiedade.
O orgulho fez com que quisesse atingi-lo, mas as palavras iradas se atropelaram em sua cabeça, e só o que ela acabou fazendo foi contemplar o rio agitado e lamacento.
Os limpadores de para-brisa estavam ligados, movendo-se em intervalos, clareando a vista da margem oposta temporariamente. E, engraçado, a vida era meio assim também, não era? Você segue em frente, cuidando da sua vida, sem conseguir ver exatamente onde se encontra por causa dos tantos detalhes demandando atenção, quando, subitamente, as coisas se cristalizam e você recebe uma breve visão que a faz pensar “Ah, é aqui que estou”.
Sutton pigarreou, mas não adiantou muito, pois, quando falou, as palavras saíram meio roucas.
– Sabe, acho que nunca vou entender por que me considera tão pouco. É um mistério para mim.
Edward disse algo, mas ela falou por cima dele:
– Você deve saber que me apaixonei por você há muito tempo.
Isso fez com que ele se calasse.
– Você deve saber. Como não saberia? Eu o segui por anos… É por isso que me odeia? – Olhou na direção dele, mas não conseguiu ver muito por causa do boné. O que era bom, provavelmente. – Você me despreza por isso? Sempre pensei que você foi deixando porque pensou que os meus sentimentos poderiam lhe ser úteis de algum jeito, mas é algo mais doentio do que isso? Sei que desprezo a mim mesma pela minha fraqueza. – Ela acenou para os documentos. – Quero dizer, esses papéis são um exemplo perfeito de como sou patética. Eu não teria feito um negócio assim, às escondidas, com ninguém mais. Mas imagino que seja um problema meu, e não seu.
Ela voltou a fitar além do para-brisa.
– Sei que não gosta de falar sobre o que aconteceu na América do Sul, mas… Eu não dormi o tempo todo que você estava lá, e tive pesadelos nos meses seguintes. E depois você voltou a Charlemont e não quis me ver. Disse a mim mesma que era porque você não estava recebendo ninguém, mas não é verdade, é?
– Sutton…
– Não – interrompeu-o com firmeza. – Não vou livrá-lo dessa hipoteca. Seria apenas mais uma estupidez nessa coisa que tenho com você.
– Você entendeu tudo errado, Sutton.
– Entendi? Não tenho tanta certeza assim. Então, que tal se terminarmos tudo aqui, agora? Você pode ir se foder, Edward. Agora me leve de volta para a minha casa antes que eu ligue para a polícia.
Ela esperou que ele discutisse. Depois de um instante, porém, ele engatou a marcha a ré e deu a volta.
Na estrada, ela o encarou de perfil.
– É melhor rezar para que aquele seu pai faça os pagamentos dentro do prazo. Se ele não fizer, não hesitarei em pôr a sua família no olho da rua. E se acha que isso não vai fazer as pessoas desta cidade comentarem a respeito, você perdeu o juízo.
Foi a última coisa dita no caminho de volta para a casa dela.
Quando ele parou diante da mansão, ela fez questão de pegar a bolsa de festa e levá-la consigo, e o caminhão mal tinha parado quando ela abriu a porta.
Sutton tinha quase certeza de que ele disse seu nome uma última vez antes de ela sair, mas talvez não.
Quem se importava?
Enquanto corria debaixo da chuva, o mordomo lhe abria a porta de entrada.
– Senhorita! – ele exclamou. – A senhorita está bem?
Ela não se dera ao trabalho de abrir o guarda-chuva, e uma rápida olhada no antigo espelho ao lado da porta mostrou que ela parecia tão exausta e abatida quanto se sentia.
– Na verdade, não estou me sentindo muito bem. – Não era nenhuma mentira. – Por favor, avise Brandon Miller que vou me deitar. Eu deveria me encontrar com ele para irmos ao baile de hoje.
Ele se curvou.
– Devo telefonar para o doutor Qalbi?
– Não, não. Só estou exausta.
– Eu lhe levarei uma bandeja com chá.
A ideia lhe pareceu nauseante.
– Quanta gentileza. Muito obrigada.
Enquanto o homem se afastava na direção da cozinha, ela seguiu para o elevador. Felizmente, ele já estava parado no térreo e ela pôde entrar imediatamente. A última coisa que queria era se encontrar com o pai ou com o irmão.
Tirou os sapatos e caminhou descalça pelo corredor, entrando sorrateiramente no quarto e batendo a porta atrás de si.
Fechou os olhos, mas continuou ouvindo a voz de Edward em sua mente.
Ele fez isso porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Inacreditável.
E era engraçado. Mesmo com todo o dinheiro que ela tinha, toda a posição social e autoridade, o respeito e a adulação… Ela ainda podia ser reduzida a uma criança devastada.
Só era preciso ficar num local fechado com Edward Baldwine.
Por dez minutos.
Não mais, ela jurou. A obsessão doentia que tinha por aquele homem precisava cessar agora.
Nos recessos da mente, às vezes ela se perguntava se ele também não combatia uma obsessão por ela, a competição centenária entre as duas famílias impedindo-o de se aproximar. Mas isso, evidentemente, fora uma projeção injusta da parte dela, algum tipo de fantasia romântica nascida dos seus próprios sentimentos.
As únicas coisas gentis que ele lhe dissera foram quando ele pensou que ela era uma prostituta a seu serviço.
No entanto, a realidade estava visivelmente clara agora. Ele tinha acabado de apresentá-la num outdoor na proverbial praça central da sua cidade. Deixara tudo evidente, sem margem para dúvidas.
Ela podia ser patética.
Mas não era burra.
TRINTA E NOVE
Atingida na cabeça.
Enquanto Lizzie escorregava para o lado da cabine esmagada de seu Yaris, sentiu como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
Por uma combinação de Wolverine, The Rock e talvez por Schwarzenegger em seus tempos de glória.
E, como resultado, nada estava sendo muito bem processado – o fato de ter batido na traseira do carro de Lane, o motivo pelo qual seu rosto estava molhado, o barulho alto…
– Lizzie!
O som do seu nome dissipou parte da sua confusão, e ela olhou ao redor, tentando descobrir por que Deus, de repente, estava com a voz muito parecida com a de Lane.
– Lane? – ela disse, piscando repetidas vezes.
Por que ele estava entrando pelo para-brisa? Seria aquilo um sonho? – … machucada em algum lugar? – ele dizia. – Preciso saber antes de tentar te mover.
– Desculpe, o seu carro…
– Lizzie, você tem que me dizer se está machucada!
Caramba, quando ele ficava ansioso aquele sotaque sulista ficava mais evidente, não? Ela estava confusa. Machucada? Por que ela estaria…
E foi então que ela viu toda a folhagem.
Dentro do carro.
Muito bem, aquilo devia ser um sonho ruim, mas ela podia seguir a correnteza. Testou os braços, as pernas, inspirou fundo, moveu a cabeça… Tudo parecia funcionar bem.
– Eu estou bem – murmurou. – O que aconteceu?
– Vou te puxar para a frente, ajude se puder, ok?
– Claro. Eu…
Uau. Ai!
Mas ela estava determinada a participar daquele esforço. Mesmo quando seus músculos ficaram meio esticados demais, parecendo querer saltar para fora das juntas, ela apoiou os pés em qualquer coisa que conseguiu, se empurrando enquanto Lane a puxava e fez força para seguir em frente.
A chuva atingiu seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Arranhões. O vento a cegou.
Mas ele a arrancou para fora.
E ela logo se viu nos braços dele, ao encontro do seu peito, sentindo-o estremecer.
– Ai, Deus – ele disse, rouco. – Ah, graças a Deus, você está viva…
Lizzie se segurou nele, ainda sem entender por que estavam sentados numa árvore. Como é que os carros tinham subido na…
Um raio espocou no céu tão perto deles que ela sentiu os ouvidos explodindo.
– Temos que entrar – Lane rugiu. – Venha.
Em algum momento no processo de tropeçar e cair no chão, o cérebro dela voltou à ativa, e o que ela viu quase a paralisou.
Metade da magnífica árvore que crescia ao lado da sua casa tinha esmagado seu carro.
No fim, ela não colidira com o Porsche.
A batida que ouviu era o seu sedãzinho sendo esmagado por todo aquele peso.
– Lane, o meu carro…
Foi tudo o que conseguiu dizer antes de ele a pegar nos braços e sair correndo na direção da casa. Quando ele saltou na varanda, ela o empurrou e saiu dos braços dele, recusando-se a ir mais longe. Cobrindo a boca com a mão ao ver seu carro daquele jeito, ela…
Sangue. Havia sangue por toda parte sobre ela.
Uma súbita tontura a acometeu, fazendo-a cambalear ao olhar para si mesma.
– Lane… Estou machucada?
– Para dentro – ele ordenou, conduzindo-a.
Enquanto a empurrava para dentro e empenhava todas as suas forças para fechar a porta, o coração dela começou a bater forte quando deu uma bela olhada no seu salvador: ele também estava todo molhado e ensanguentado.
Mas isso importava?
Os dois se abraçaram com tanta pressa que as roupas ensopadas se grudaram, os corpos voltando a se ligar, partilhando calor, segurando-se firmes um ao outro.
– Pensei que tivesse te perdido – ele disse ao ouvido dela. – Ah, meu Deus, pensei que…
– Você me salvou, você me salvou…
Ambos falavam apressadamente, tropeçando sobre as palavras, trêmulos pelo que quase acontecera. Ele a beijou e ela retribuiu.
Só que, depois de um tempo, ela se afastou.
– Acho que quem está sangrando é você.
– São só uns arranhões…
– Oh, Deus! Olhe para os seus braços, as suas mãos!
Ele estava todo machucado; sua pele tinha vários cortes por ter brigado com os galhos para chegar até ela, e havia contusões no rosto e no pescoço.
– Não estou nem aí – ele disse. – É com você que estou preocupado.
– Você precisa de um médico?
– Ora, por favor… A árvore caiu em cima de você, lembra?
E foi então que as luzes se apagaram.
Lizzie ficou imóvel um segundo, mas logo começou a rir com tanta intensidade que seus olhos arderam. Eram emoções demais, coisas demais para lidar… E, antes que se desse conta, Lane estava gargalhando também. Os dois se abraçaram, libertando-se de toda a tensão, dos problemas da família dele, do estresse do Brunch… até aquele horrendo acidente de carro.
– Banho? – ela sugeriu.
– Pensei que nunca fosse pedir.
Normalmente, ela ficaria irritada com as marcas dos pés na sala e nos degraus, mas não agora. A lembrança de todo aquele peso sobre seu carro a fazia priorizar o que era importante.
– Juro que pensei ter batido no seu carro – ela disse ao chegarem ao segundo andar.
– Não teria sido um problema, se tivesse mesmo.
Ah, as alegrias de ser um Bradford, ela pensou.
– Tenho certeza de que você tem um Porsche reserva.
– Mesmo se eu não tivesse, não teria tido importância, contanto que você estivesse bem.
Passaram ao mesmo tempo pelo batente do banheiro dela e se apertaram dentro do box, e quando ela ligou o chuveiro, ele partiu para cima dela, desabotoando sua roupa, abrindo zíperes, tirando tudo o que a deixava fria e molhada.
Arrepios se formaram nos braços e nas pernas dela, provocados mais pelo calor do olhar dele que pelo frio do ar. Logo Lane também se despiu, deixando as roupas caídas junto às dela.
– Para a água – ela grunhiu quando ele a acariciou no pescoço com o nariz, beijando um caminho até a boca.
Ele soltou um xingamento quando se colocaram debaixo do jato quente e suave. E quando a água os lavou, ela ficou aliviada: eram apenas arranhões, nada sério.
E esse foi seu último pensamento antes que as mãos grandes dele começassem a viajar pelos seus seios escorregadios, e a boca descesse com avidez sobre a dela, e aquele desejo erótico tão conhecido se reacendesse entre eles.
Eu te amo, ela pensou.
Eu te amo tudo de novo, Lane.
Algum tempo depois, quando a eletricidade voltou, depois de Lane ter feito amor com sua Lizzie duas vezes no chuveiro e mais uma na cama, depois que desceram e comeram os restos da lasanha congelada e boa parte do sorvete de pêssego, depois que voltaram para cima e foram para a cama de novo… todos os problemas do dia voltaram para ele.
Felizmente, Lizzie estava adormecida no escuro, por isso qualquer que fosse sua expressão, que já não tinha forças para esconder, não seria um problema.
Fitando o teto, sua mente começou a girar, e ele mal percebeu que o sol se levantava no horizonte. Deu uma rápida olhada para o rádio-relógio de Lizzie e se surpreendeu ao ver que ficara acordado a noite inteira.
Deslizando para fora dos lençóis, pôs-se de pé e foi para o banheiro. Suas roupas não tinham salvação; pegou-as no chão e jogou-as no lixo. A única coisa que ainda podia ser usada era a cueca.
Era melhor que dirigir nu para casa no dia do Senhor.
De volta ao quarto, aproximou-se de Lizzie.
– Tenho que ir.
Ela despertou de pronto, e ele a acariciou até que ela voltasse a apoiar a cabeça no travesseiro.
– Tenho um encontro com uma linda mulher e não posso faltar – ele disse.
Lizzie sorriu de uma maneira sonolenta, que fez com que ele desejasse ficar olhando para ela para sempre.
– Mande um oi.
– Pode deixar. – Ele a beijou na boca. – A propósito, hoje eu trago o jantar.
– Congelado?
– Não, vai estar mais quente que o inferno.
O sorriso que ela lhe lançou o atingiu direto no sangue, excitando-o, apesar de não haver tempo para fazer nada a respeito.
– Eu te… – Lane se deteve, sabendo que ela não gostaria daquela despedida. – Eu te vejo às cinco da tarde.
– Estarei aqui.
Ele a beijou uma vez mais e foi para a porta.
– Espere. E as suas roupas? – ela disse em voz alta.
– Não podem me prender. As partes ofensivas estão cobertas.
O riso dela o acompanhou até a escada e a saída da casa. E a visão de metade da copa daquela árvore fez o coração dele saltar.
Quando inspirou fundo, seu primeiro instinto foi o de pegar o telefone e ligar para Gary McAdams para que ele retirasse o galho e levasse aquela lata amassada que era o carro dela para um pátio de demolição. Mas se conteve. Lizzie não era do tipo de mulher que apreciaria esse tipo de manobra. Ela devia ter os próprios contatos, ideias de como lidar com aquele problema, planos para seu Yaris.
Conhecendo-a, ela tentaria fazer com que ele voltasse a funcionar.
Sacudiu a cabeça e foi até seu carro. O Porsche quase foi destruído também, sendo oupado por pouco. Depois de tirar alguns galhos do teto, entrou, ligou o carro e seguiu seu caminho lentamente ao largo dos galhos caídos e faixas de terra cheias de água. Assim que chegou ao asfalto, acelerou na direção de Charlemont, atravessando o rio e subindo a colina de Easterly.
Estava na metade do caminho quando teve que desacelerar porque outro carro vinha descendo.
Um sedã Mercedes preto S550.
E, atrás do volante, com imensos óculos escuros e um véu preto como se estivesse de luto, sua futura ex-mulher.
Chantal não olhou para ele, mesmo sabendo muito bem quem estava passando.
Tudo bem. Com um pouco de sorte, ela estaria de mudança e poderiam deixar que os advogados cuidassem de tudo, dali por diante. Deus bem sabia que ele tinha outras coisas para se preocupar.
Estacionou o Porsche na frente da casa, entrou pela porta principal e parou quando viu bagagem no vestíbulo.
Não era de Chantal. Ela tinha conjuntos da Louis Vuitton. Aquelas eram Gucci, marcadas com as iniciais RIP.
Richard Ignatius Pford.
Uma cretina saindo, ele pensou. E outro entrando.
Que diabos Gin estava pensando?
Ah, espere. Ele sabia a resposta. Para uma mulher com pouca formação acadêmica e nenhuma experiência profissional, sua irmã tinha um talento incontestável: saber cuidar de si mesma.
Assustada com a questão financeira, ela seguiu as orientações do pai e se agarrou ao tolo endinheirado a fim de que, não importando o que acontecesse com a família, seu estilo de vida não fosse afetado. Ele só desejava que o custo para ela não se provasse alto demais. Richard Pford era um filho da puta odioso.
Só que aquele circo não era seu, tampouco os macacos que nele se apresentariam. Por mais que o entristecesse, fazia tempo que aprendera a deixar que Gin seguisse sua cabeça e fosse em frente. Na verdade, não havia uma estratégia para lidar com a sua irmã.
Subiu os degraus rapidamente, foi para o quarto, tomou banho, se barbeou e vestiu o terno risca de giz. Precisou de duas tentativas para acertar a gravata borboleta.
Caramba, como odiava aquelas coisas.
Desceu pela escada dos empregados, cortou caminho pela cozinha e foi parar diante da porta da senhorita Aurora. Como fizera na primeira vez em que fora visitá-la quando ali chegou, verificou se estava com a camisa bem enfiada dentro da calça antes de bater à porta.
Mas parou antes de bater. Por algum motivo, sentiu um medo insano de que desta vez ela não atenderia. Que ele esperaria… e repetiria, e esperaria um pouco mais…
E então teria que invadir, forçando a porta como fizera no escritório de Rosalinda… E encontraria mais uma morta.
A porta se abriu, e a senhorita Aurora mostrou uma carranca.
– Está atrasado.
Lane se sobressaltou, mas logo se recobrou.
– Desculpe.
A senhorita Aurora resmungou e deu um tapinha em seu chapéu azul-claro de igreja. O conjunto dela era tão brilhante quanto um céu primaveril, e ela usava luvas e sapatos combinando, e uma perfeita bolsa do tamanho de uma raquete de tênis. O batom era vermelho-cereja, os brincos, os de pérola que ele lhe dera três anos atrás, e ela também usava o anel de pérola que lhe dera no ano anterior a esse.
Ofereceu-lhe o braço quando ela fechou a porta, e ela o aceitou.
Juntos, caminharam até a porta da frente, passando pelo senhor Harris, que sabia que não deveria comentar sobre a porta que estavam usando.
Lane acompanhou a senhorita Aurora até o Porsche e a acomodou no carro. Depois deu a volta e colocou-se atrás do volante.
– Vamos chegar atrasados – ela disse com rispidez.
– Farei com que cheguemos a tempo. Fique só observando.
– Não gosto de alta velocidade.
Ele se viu olhando para ela, piscando.
– Então feche os olhos, senhorita Aurora.
Ela deu um tapa no braço dele e o encarou.
– Você não está velho demais para levar uma surra?
– Sei que quer se sentar num dos bancos da frente.
– Tulane Baldwine, não ouse infringir a lei.
– Sim, senhora.
Com um sorriso maroto, ele pisou no acelerador, voando colina abaixo. Quando relanceou para a senhorita Aurora, viu que ela estava sorrindo.
Por um momento, tudo estava certo em seu mundo.
QUARENTA
A Igreja Batista de Charlemont ficava no West End e suas tábuas brancas se destacavam em meio aos quarteirões e quarteirões de unidades residenciais de baixa renda. Pense em algo imaculado. Desde o gramado muito bem aparado, o estacionamento recém-varrido, os vasos de plantas ao lado das portas duplas até as quadras de basquete nos fundos, o lugar era tão bem cuidado que parecia ter saído de um cartão postal dos anos 1950.
E às 9h20 da manhã de domingo, a igreja estava lotada.
No instante em que Lane se aproximou com o carro, as saudações surgiram tão rápido e de tantos lados que ele teve que desacelerar. Abaixando os dois vidros, ele apertou mãos, cumprimentou as pessoas pelos seus nomes, aceitou desafios para algumas partidas. Estacionou nos fundos, ajudou a senhorita Aurora a sair e depois a conduziu pela calçada que ladeava a igreja.
Havia crianças por toda parte, com vestidinhos florais e terninhos, tão coloridos quanto uma caixa de lápis de cor; o comportamento delas era muito melhor que o do grupo de adultos que participava das festas em Easterly. Todas as pessoas, todas mesmo, pararam para falar com ele e com a senhorita Aurora, querendo saber como estavam, colocando a conversa em dia. Nesse processo, ele se deu conta do quanto sentia falta daquela comunidade.
Engraçado, ele não era de frequentar a igreja, mas sempre que estava em casa, nunca deixava de acompanhar a senhorita Aurora.
Lá dentro, devia haver umas mil pessoas; as fileiras de bancos estavam repletas pelos féis, todos conversando, se abraçando, rindo. Era muito cedo ainda para que ligassem os ventiladores, mas isso logo aconteceria, bastava chegar junho. Lá na frente, havia uma banda com guitarras elétricas, bateria e baixos, e ao lado dela os cantores que compunham o coro. Atrás disso tudo, estava o admirável órgão – do tipo capaz de arrebentar as portas e as janelas e até mesmo o telhado –, ligando a congregação diretamente aos céus.
Max deveria estar aqui, Lane pensou. Seu irmão tinha participado do coro por diversos anos antes de partir para a faculdade.
Mas era uma tradição perdida. Ao que tudo levava a crer, para sempre.
A duas filas a partir da frente, havia espaço para eles, pois uma família de sete se espremeu para que coubessem.
– Muito obrigado – disse Lane, apertando a mão do pai. – Ei, você não é irmão de Thomas Blake?
– Sou, sim – o homem assentiu. – Sou Stan, o mais velho. E você é o menino da senhorita Aurora.
– Sim, senhor.
– Por onde andou? Faz tempo que não o vejo aqui.
Enquanto a senhorita Aurora erguia uma sobrancelha na sua direção, Lane pigarreou.
– Estive no norte.
– Meus sentimentos – disse Stan. – Mas, pelo menos, agora voltou.
– Aqueles são os meus sobrinhos. – A senhorita Aurora apontou para o outro lado do corredor. – D’Shwane está jogando para os Colts de Indiana agora. É recebedor. E Qwentin, ao lado dele, é atacante no Miami Heat.
Lane ergueu a mão quando os dois homens perceberam o olhar da senhorita Aurora.
– Lembro de quando jogavam na faculdade. Qwentin foi um dos melhores atacantes que os Águias já tiveram, e eu estava lá quando D’Shawne nos ajudou a ganhar o Sugar Bowl.
– São bons meninos.
– Toda a sua família é.
O órgão deu a primeira nota e a banda começou a tocar, e do nártex, o coral com beca vermelho-sangue entrou, cinquenta homens e mulheres andando lado a lado, cantando durante a procissão. Atrás deles, o reverendo Nyce seguia com a Bíblia junto ao peito; o homem era alto e distinto e fitava o seu rebanho com afeto. Ao ver Lane, estendeu o braço e apertou-lhe a mão.
– É bom tê-lo de volta, filho.
Quando chegou a hora de todos voltarem a se sentar, Lane sentiu uma sensação estranha. Perturbado, esticou o braço e segurou a mão da senhorita Aurora na sua.
Só conseguia pensar naquele galho de árvore caindo na noite anterior. A visão do carro amassado de Lizzie. O medo eletrizante que sentira ao se arrastar pelos galhos no meio da tempestade, gritando o nome dela.
Quando a banda começou o seu hino gospel predileto, ele olhou para o altar e só balançou a cabeça.
Claro que tinha que ser essa música, pensou.
Como se a própria igreja o estivesse acolhendo em casa também.
Levantou-se com a senhorita Aurora, e começou a se mover com o resto da congregação, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
E se viu cantando junto:
– Quero que saiba que Deus está ao meu lado…
Uma hora e meia mais tarde, o culto terminou e era hora do lanche. A congregação se dirigiu para o andar inferior para tomar ponche, comer uns cookies e conversar.
– Vamos descer – Lane disse.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Preciso voltar. Tenho trabalho.
Ele franziu o cenho.
– Mas nós sempre…
Ele se deteve. Não havia nada que requeresse cuidados em Easterly. Portanto, a única explicação era a que o fazia querer ligar para a emergência.
– Não olhe para mim assim, menino – ela murmurou. – Não é uma emergência médica, e mesmo que fosse, não vou morrer na minha igreja. Deus não faria isso com esta congregação.
– Vamos, apoie-se no meu braço.
Pareceram despreocupados ao andarem contra a maré e, puxa, ele preferiria levá-la nos ombros tal qual um bombeiro, abrindo caminho como um jogador da linha de defesa. Na metade do trajeto até a porta, teve que parar para conversar com Qwentin e D’Shwane – além dos dezessete outros membros da família da senhorita Aurora. Normalmente, ele teria adorado as conversas, mas não naquele dia. Não queria ser rude, só estava muito ciente do quanto a senhorita Aurora se apoiava em seu braço.
Quando, por fim, chegaram à porta da igreja, ele disse: – Espere aqui. Vou trazer o carro. E não, não tem discussão, pode parar já.
Ele meio que esperou que ela se opusesse, e quando ela não o fez, afastou-se correndo, indo para a parte mais distante do estacionamento.
Voltando com o Porsche, quase esperou encontrá-la desmaiada.
Nada disso aconteceu. Ela estava conversando com uma mulher magra, muito majestosa, que tinha o rosto de Nefertiti, um simples terno preto e um par de óculos sem aro diante de olhos muito aguçados.
Ah, uau, ele pensou. Aquilo sim era podia ser chamado de vento do passado.
Lane saiu do carro.
– Tanesha?
– Lane, como está? – Tanesha era a filha mais velha do reverendo. – É bom ver você.
Abraçaram-se e ele assentiu.
– Também é bom te ver. Já virou médica?
– Estou fazendo residência aqui na UC.
– No que vai se especializar?
– Oncologia.
– Ela está fazendo o trabalho do Senhor – disse a senhorita Aurora.
– Como está Max? – Tanesha perguntou.
Lane pigarreou.
– Eu é que não sei. Não falo com ele desde que ele foi para a costa oeste. Você sabe como ele é, imprevisível.
– Sim, ele era mesmo.
Momento. Embaraçoso.
– Bem, vou levar a senhorita Aurora de volta para casa – ele disse. – Foi bom te ver.
– Você também.
As duas mulheres falaram num tom baixo por um instante, e depois a senhorita Aurora permitiu que ele a conduzisse pelos degraus até o carro.
– Sobre o que falavam? – ele perguntou quando se afastaram.
– Sobre o ensaio do coral na semana que vem.
– A senhora não está no coral. – Olhou para ela quando ela não disse nada. – Senhorita Aurora? Quer me contar alguma coisa?
– Sim.
Ai, Deus…
– O quê?
Ela o segurou pela mão, mas não olhou para ele.
– Quero que se lembre do que lhe disse antes.
– E o que foi?
– Tenho Deus. – Apertou a mão dele com força. – E tenho você. Sou mais rica do que poderia imaginar.
Ela o segurou pela mão durante todo o trajeto de volta a Easterly, e ele soube… ele soube. Ela estava tentando prepará-lo para o que estava por vir. Também percebeu que era por isso que ele tinha insistido que Edward a visse no dia anterior, quando o irmão estivera na casa.
Se ao menos houvesse um modo de localizarem Max.
– Não quero que você parta – Lane disse, emocionado. – Vai ser duro demais.
A senhorita Aurora ficou calada até chegarem à base da colina de Easterly.
– Falando em partir – ela disse –, fiquei sabendo que Chantal foi embora.
– Sim, estou pondo um fim nisso.
– Bom. Talvez você e Lizzie finalmente voltem a ficar juntos. Ela é a mulher para você.
– Sabe, senhorita Aurora, eu concordo. Agora só preciso convencê-la.
– Eu ajudo.
– E eu aceito a sua ajuda. – Olhou para ela de relance. – A propósito, ela mandou um oi.
A senhorita Aurora sorriu.
– Isso quando você a deixou hoje cedo?
Enquanto Lane gaguejava e ficava vermelho como o Mercedes que lhe dera, a senhorita Aurora riu dele com gosto.
– Você é um menino levado, Lane.
– Sei disso. É por isso que a senhora precisa ficar por perto, para me fazer andar na linha. Não canso de lembrá-la.
Em vez de parar na frente da casa, ele deu a volta até os fundos para parar mais perto dos aposentos dela. Aproximando-se da porta de trás, freou, desligou o motor… e não saiu.
Olhando para ela, sussurrou:
– Estou falando sério. Preciso da sua ajuda aqui, na Terra… Nesta casa, na minha vida.
Deus, foi impossível ignorar o fato de que três dias atrás ela estivera berrando com ele, dizendo que não iria a parte alguma, mas, agora, algo mudara. Havia alguma coisa diferente.
Antes que ela conseguisse dizer qualquer coisa, a porta da garagem subiu e o motorista saiu com o Phantom. O carro de 500 mil dólares passou por eles e seguiu até a frente da casa.
– Ele é maligno – Lane disse. – Esse meu pai…
A senhorita Aurora ergueu as mãos.
– Amém.
– Onde diabos ele vai hoje cedo?
– Pra igreja é que não.
– Talvez tenha ido atrás de Chantal.
No instante em que proferiu as palavras, soltou um xingamento.
– Do que está falando?
Lane sacudiu a cabeça e saiu.
– Venha, vamos entrar.
Mas não entraram. Quando ele deu a volta e abriu a porta dela, ela continuou sentada com a bolsa no colo, com as mãos enluvadas uma sobre a outra.
– Pode contar.
– Senhorita Aurora…
– O que ele fez com você?
– Isso não é sobre mim.
– Se é sobre aquela sua esposa horrível, pode apostar o seu traseiro como é da sua conta.
Lane combateu o desejo de bater a cabeça no capô do Porsche.
– Não tem nenhuma importância.
– Eu sei que ela se livrou do seu bebê.
Quando aqueles olhos negros se ergueram para ele, Lane xingou uma vez mais.
– Senhorita Aurora. Não faça isso. Deixe estar. Existem muitas outras coisas com as quais vale a pena se preocupar.
Só o que ela fez foi erguer uma sobrancelha.
Lane se acomodou sobre os calcanhares. Deus, como ele amava aquele rosto, cada uma das rugas e marcas de expressão, cada curva e todas as linhas. E ele amava o fato de ela ser uma dama no comportamento, mas forte como um homem.
Ela e Lizzie eram muito parecidas.
– Existem algumas coisas que não valem a pena saber.
– E outras que você não deveria guardar para si.
Por algum motivo, ele se viu abaixando o olhar, como se tivesse algo de que se envergonhar.
– Ela está grávida, senhorita Aurora. E o filho não é meu.
– De quem é? – ela inquiriu.
O resto da história foi transmitido silenciosamente. E o mais engraçado foi que ela não se mostrou totalmente surpresa.
– Tem certeza? – ela perguntou baixinho.
– Foi o que ela disse. E quando o confrontei, a resposta apareceu na cara dele.
A senhorita Aurora fitou adiante, com a testa crispada e a cabeça tão baixa que ele já não enxergava os olhos dela.
– Deus o punirá.
– Eu não esperaria sentado, se fosse a senhora. – Ele se levantou e lhe estendeu a mão. – Está ficando quente aqui fora. Venha.
A senhorita Aurora voltou a fitá-lo nos olhos.
– Eu te amo.
Foi o jeito de ela se desculpar pelo que sabia que todos eles tiveram que aguentar por causa do pai. Não apenas aquela história hedionda com Chantal, mas todas as décadas de tudo o que se passara, desde que eram crianças.
– Sabe – ele disse –, eu nunca te agradeci. Por todos estes anos em que esteve presente, eu nunca… Foi a senhora quem nos manteve nos trilhos, especialmente eu. Sempre esteve ao meu lado. Sempre está ao meu lado.
– Deus me deu esse trabalho sagrado quando cruzou a minha vida com a de todos vocês.
– Eu te amo, mãe – disse emocionado. – Para sempre.
QUARENTA E UM
O som da serra elétrica nas mãos de Lizzie era tão alto que ela não ouviu a aproximação do carro. E foi só depois que deixou de acelerar e o motor da máquina silenciou que ela ouviu uma voz muito sensual e máscula anunciar que ela já não estava mais sozinha.
– Você é a mulher mais sexy que eu já vi.
Girando e olhando para baixo, ela encontrou Lane encostado no seu Porsche, de braços cruzados, pés fincados no chão e expressão intensa.
Do seu ponto de vista vantajoso – de cima do capô amassado do seu Yaris –, ela suspendeu a serra elétrica acima da cabeça e deu umas duas aceleradas.
– Ouça o meu urro.
– Ouça a minha súplica.
Ela teve que rir ao pular para o chão.
– Fiz algum progresso, mas não acho que…
Lane a interrompeu encostando a boca na dela, e o beijo rapidamente se tornou tão erótico que ele quase a dobrou para trás. Quando se separaram um pouco, os dois arfavam.
– Então, oi – ele disse.
– Você, por acaso, sentiu a minha falta?
– Todos os segundos. Deus, como eu amo v… amo o modo como você maneja essa serra.
Foi impossível não perceber o que ele quis dizer, e ela também teve que se bloquear mentalmente quando o instinto quase fez com que deixasse escapar a mesma declaração.
Contudo, Lane encobriu o desconforto com desembaraço.
– Como prometi, trouxe o jantar. Comida do clube. Peguei aquela salada que espero que ainda goste, e uma montanha de lombo fatiado. Sabe, para o caso de termos que nos recobrar.
– Do quê? – perguntou, com malícia, abaixando a serra.
– Ah, você sabe do que… – Só que ele franziu o cenho. – A menos que… bem, você esteja dolorida por causa da noite passada.
Lizzie sacudiu a cabeça.
– Nem um pouco.
– Uma pena.
– Como é?
Aproximando-se, deixou a boca pairar sobre a dela e lambeu seus lábios.
– Pensei que eu poderia dar uns beijinhos para melhorar.
– Você ainda pode fazer isso.
Quando ele a girou e a encostou contra o carro, ela sentiu o coração começar a flanar e pensou que podia muito bem se soltar. Uma árvore tinha destruído seu carro, seu quintal estava uma bagunça, e havia galhos espalhados em toda a sua propriedade… mas Lane estava ali, e se lembrava que ela gostava de salada Cobb e, maldição, ele era o melhor beijador do planeta.
Amanhã ela voltaria a andar nos trilhos. Amanhã ela se lembraria de tomar cuidado…
Lane se afastou um tantinho.
– Me diz uma coisa: o que você acha de fazer sexo a céu aberto?
Ela acenou para as três vacas que estavam perto da varanda.
– Acho que a nossa plateia pode duplicar quando o meu vizinho descobrir que essas senhoras vieram explorar minha terra de novo.
– Então vamos entrar agora mesmo antes que eu fique louco.
– Longe de mim me colocar entre você e a sua sanidade mental.
Ele tinha até uma maleta de roupas, ela percebeu, levando as coisas para dentro.
– Tenho novidades – ele disse ao fechar a porta da frente.
– O quê?
– Chantal saiu de casa hoje cedo.
Lizzie parou e o fitou. Ele estava vestindo sua roupa casual: bermuda e uma camisa polo IzOD, mocassins Gucci, óculos escuros Ray Ban, e o relógio Cartier, o conjunto fazendo com que ele parecesse saído de uma foto cuja legenda era “Os belos e os ricos”. Até o cabelo estava alisado para trás, embora se devesse ao fato de ele ter acabado de sair do banho e ainda estar úmido.
O coração dela oscilou, e ela sentiu um medo momentâneo. Lindo como estava, ele parecia o pôster de um homem em quem não se podia confiar, ainda mais no que se referia a mulheres como Chantal…
Como se ele pudesse ler sua mente, Lane tirou os óculos escuros, revelando seus olhos. Em contraste com tudo o que sua aparência dizia, eles eram límpidos, firmes e tranquilos.
Honestos.
– É mesmo? – ela sussurrou.
– Mesmo. – Ele se aproximou e a virou na sua direção. – Lizzie, acabou. Tudo acabou. E antes que me pergunte, não é só por sua causa. Eu deveria ter metido uma bala nesse casamento há muito tempo. Falha minha.
Fitando seu rosto, ela xingou baixinho.
– Desculpe, Lane. Desculpe ter duvidado de você, eu só…
– Psiu. – Ele a silenciou com os lábios. – Não vivo no passado. É perda de tempo. Só me importo com o presente.
Passando os braços ao redor do pescoço dele, ela curvou o corpo.
– Entãããooo… Não consegui ficar naquela coisa de sermos só amigos, consegui?
– Estou perfeitamente de acordo.
– Acho que esse foi o melhor jantar da minha vida.
Lane fitou-a da outra ponta do sofá e viu quando Lizzie se largou sobre as almofadas, pousando a mão sobre a barriga. Quando as pálpebras dela começaram a pesar, ele a visualizou sobre aquele galho como um anjo vingador, cortando os galhos que mataram seu carrinho.
Mesmo tendo passado a primeira hora desde a sua chegada um em cima do outro, Lane sentiu a ereção engrossar de novo.
– É um milagre – murmurou.
– Eu ter gostado tanto assim do lombo? Acho que não.
– Quero dizer, estar aqui com você.
Os olhos azuis voltaram a se abrir lentamente.
– Sinto a mesma coisa. – Quando ele começou a rir no fundo da garganta, ela o deteve, levantando as mãos. – Não, você não pode dormir sobre os louros da vitória.
Deixando o guardanapo de lado, ele pairou sobre seu corpo, e montou nela.
– Sabe, tenho outras opções de comemoração.
Movendo os quadris, ele sentiu uma pontada de desejo quando ela mordeu o lábio inferior, como se estivesse pronta para mais dele.
– Quer que eu demonstre? – perguntou, esfregando o nariz no seu pescoço.
As mãos dela o afagaram nas costas.
– Quero sim.
– Hummm…
O som do telefone sobre a mesinha lateral fez com que ele saltasse para pegá-lo, assustado.
– Não a senhorita Aurora… Por favor, que não seja sobre a senhorita Aurora…
– Ah, meu Deus… Lane, ela está…
Assim que ele viu que a ligação começava com o código de área 917, relaxou, aliviado.
– Graças a Deus. – Olhou para ela. – Tenho que atender. É um amigo de Nova York.
– Vá em frente.
Ele atendeu e disse:
– Jeff.
– Sentiu minha falta? – seu velho colega de quarto disse. – Sei que é por isso que deixou recado.
– Não chegou nem perto.
– Bem, não vou mandar aqueles bolinhos de canela que você come de manhã, à tarde e à noite pelo correio…
– Preciso saber quanto tempo você tem de férias.
Silêncio absoluto. Em seguida:
– A Série Mundial de Pôquer não está acontecendo agora. Por que está me perguntando isso?
– Preciso da sua ajuda. – Distraído, ele se encostou nas almofadas e posicionou as pernas de Lizzie sobre o seu colo. Depois do banho, ela tinha vestido shorts, e ele adorava ficar alisando aquelas panturrilhas macias e musculosas. – Estou com um problema sério aqui.
Jeff deixou a brincadeira de lado.
– Que tipo de problema?
– Preciso que alguém me diga se o meu pai está desviando dinheiro da empresa. Algo em torno de cinquenta milhões de dólares.
Jeff assobiou baixinho.
– É muita grana, cara.
– O meu irmão conseguiu me dar acesso a… sei lá, umas quinhentas páginas de relatórios financeiros e planilhas, mas eu não faço a mínima ideia do que tenho nas mãos. Quero que você venha para cá e me diga o que aconteceu, e isso tem que ser feito agora, antes que ele descubra que estou de olho e se livre de tudo o que possa incriminá-lo.
– Escuta aqui, Lane, você sabe que eu te amo como o irmão que nunca tive, mas o que você precisa é de um perito contábil. Existem pessoas que se especializaram nisso, e por um bom motivo. Deixe que eu encontre alguém em quem você possa confiar…
– É exatamente essa a minha preocupação, Jeff. Não posso confiar em ninguém com relação a esse assunto. Estamos falando da minha família.
– Podemos blindar todos os documentos. Posso ajudá-lo com isso, de modo que quem for fazer o…
– Quero você.
– Porra, Lane.
Por conhecer o homem há anos, Lane sabia muito bem que sua tarefa agora era se calar e deixar que Jeff ruminasse o assunto sozinho. Nada o convenceria nem o persuadiria, e se ele continuasse a falar, o tiro sairia pela culatra.
Em vez disso, Lane sabia que, se ficasse calado, todos aqueles anos de amizade resolveriam a questão.
Bingo!
– Insisto para que depois alguém revise o meu trabalho – Jeff murmurou. – Cacete, isso não é negociável. Não vou me responsabilizar por ferrar com tudo só porque você tem uma noção romântica de que sou brilhante com números.
– Mas você é.
– Maldição, Baldwine.
– Não posso mandar o meu avião. Chamaria muita atenção.
– Tudo bem. Um da minha família está na costa leste. Viajo amanhã de manhã e, não, não posso ir antes. Vou ter que ajeitar umas coisas no trabalho.
– Fico te devendo.
– Claro que fica. E pode começar a me pagar amanhã. Quero bebida grátis e mulheres à vontade, se vou ter que fazer isso.
– Cuido de tudo. Vou até te pegar no aeroporto, é só me dizer que horas vai chegar.
Jeff estava murmurando obscenidades quando desligou sem nem se despedir.
Quando Lane abaixou o aparelho, soltou um longo suspiro.
– Graças a Deus.
– Quem era?
– Acho que posso chamá-lo de meu melhor amigo. Foi com ele que me hospedei enquanto estive no norte. Jeff Stern. Financista brilhante. Se existe alguém que pode entender o rastro do dinheiro, Jeff é o cara. E, depois… – Lane esfregou os olhos. – Deus, acho que vou ter que procurar a polícia. Talvez a Comissão de Valores Imobiliários. O que eu queria mesmo era lidar com tudo isso sem alarde.
– E se o seu pai tiver infringido a lei?
Uma súbita imagem de William Baldwine num macacão laranja o deixou aliviado, de uma maneira doentia, por sua mãe estar desconectada da realidade.
– Não vou interferir com as autoridades. O que me preocupa é ele ter usado seu poder como procurador da minha mãe para secar as contas dela, mas não tenho acesso aos registros. Está tudo em poder da Fundos Prospect.
– Se a polícia ou o FBI se envolverem, eles vão conseguir descobrir isso.
Lane assentiu, lembrando-se do saco com o corpo de Rosalinda saindo de Easterly.
– Se Rosalinda cometeu suicídio por causa disso, o meu pai tem o sangue de outra pessoa nas mãos. Ele precisa ser levado à Justiça.
– Sabe, sempre tento olhar o lado positivo de tudo, mas… – Lizzie balançou a cabeça. – Bem, não importa o que aconteça, estou do seu lado, está bem?
Olhando para ela, ele disse, sério:
– É só disso que preciso. Não importa como tudo vai terminar, se eu tiver você…
O telefone tocou novamente, e ele riu ao apanhar o aparelho.
– Lá vem ele se arrependendo… Não, Jeff, não vai poder recuar agor…
– Você está perto de alguma TV?
Lane se endireitou.
– Samuel T.?
– Está ou não?
– Não. O que está acontecendo?
– Preciso que venha para a minha casa imediatamente. A polícia está à sua procura, e quando não o encontraram em Easterly, Mitch me ligou.
– O que… do que você está falando? – Depois pensou… ah, merda. – Olha só, sei que Edward e eu tecnicamente invadimos o centro de negócios sob falso pretexto, mas o maldito escritório está dentro da nossa propriedade, pra começo de conversa. E quanto aos documentos…
– Não sei do que você está falando e, neste instante, pouco me importo. Chantal foi parar no pronto-socorro hoje cedo, toda surrada. Ela disse às autoridades que você fez isso com ela assim que entrou com o pedido de divórcio, quando descobriu que ela estava grávida. Estão te acusando de violência doméstica, e eles podem ter o suficiente para acusá-lo de tentativa de homicídio também.
– O quê? – Lane se levantou. – Ela está louca!
– Não, ela está na sala operatória. Estão reparando o maxilar dela neste instante.
– Nunca toquei em Chantal! E posso provar! Eu nem estava em casa ontem à noite…
– Apenas venha para a minha casa. Vou intermediar a sua entrada no meio da noite para que não haja nenhuma foto sua indo para a delegacia, e depois te libero com uma fiança…
– Isso tudo é uma grande idiotice – Lane ralhou. – Não vou dançar de acordo com a música dela…
– Não é nenhuma brincadeira. E, a menos que compareça na delegacia, vai ser considerado fugitivo da justiça.
Lane olhou para Lizzie. Ela estava ereta, alarmada, preparada para receber más notícias.
De repente, lembrou-se de Chantal passando naquele Mercedes ao sair de Easterly. O rosto estava coberto com óculos escuros e um véu preto.
Até onde ele sabia, ela podia ter dado uma de Garota Exemplar e provocado os ferimentos ela mesma. Nunca colocara a mulher no campo da patologia antes, mas talvez tivesse subestimado a loucura dela.
– Muito bem. Estou a caminho. Chego na sua fazenda em vinte minutos.
Desligando, ouviu-se dizer:
– Tenho que ir.
– Lane, o que está acontecendo?
Os pratos do lindo jantar que tinham partilhado ainda estavam sobre a mesa, as almofadas do sofá afundadas no lugar em que ele estava recostado, alisando as pernas dela.
No entanto, tais momentos já pareciam pertencer a um passado muito, muito distante.
– Vou cuidar do assunto – ele disse. – Vou dar um jeito. Ela está mentindo. De novo, ela está mentindo.
– O que posso fazer para ajudar?
– Fique aqui. E não ligue o rádio. Ligo assim que puder para explicar tudo. – Segurou o rosto dela entre as mãos. – Eu te amo. Preciso que acredite. Preciso que se lembre disso. E vou cuidar de tudo, juro pela vida da minha mãe.
– Você está me assustando.
– Vai ficar tudo bem. Prometo.
Dito isso, saiu da casa dela.
Em disparada.
QUARENTA E DOIS
Enquanto o Porsche de Lane voava pela escuridão que se avolumava, Lizzie ficou por um bom tempo sentada onde ele a havia deixado. Só conseguia pensar que não deveriam estar surpresos. Chantal Baldwine não era flor que se cheirasse, e de jeito nenhum ela perderia sua posição social e o acesso ao estilo de vida dos Bradford sem lutar bastante.
Portanto, o que quer que fosse aquilo seria apenas o começo.
Pondo-se de pé, juntou os pratos e pensou que não era bem assim que tinha imaginado sua noite.
Mas talvez ele ainda voltasse. Tinha deixado a mala ali.
Maldita seja Chantal.
De volta à cozinha, deixou tudo na pia e despejou um pouco de detergente sobre a bagunça, depois abriu a torneira de água quente.
Então seu celular tocou sobre a bancada.
– Graças a Deus – disse, esticando a mão sobre os azulejos. – Lane? Pode me contar o q…
– Lizzie? Você está em casa?
– Greta? – Havia um zumbido na ligação, como se a mulher estivesse ao volante. – Greta? Não estou conseguindo te ouvir direito.
– … em casa?
– Sim, sim, estou em casa. Você está bem?
– … a caminho – buzz, brrrr, quick – … em dez minutos.
– Ok, mas não vou terminar de cortar os galhos agora. Já quase anoiteceu e, pra falar a verdade, não estou com vontade…
– … o telefone.
– O que foi?
A interferência sumiu e o sotaque carregado se fez alto e claro: – Você prrecisa desligarr o telefone.
– Por quê? Não. – Lane poderia telefonar. – Olha só, não estou com muita vontade de ter companhia e…
Houve um estalido alto e a ligação foi interrompida.
– Maravilha.
Enfiando o celular no bolso, voltou para junto da pia, lavou os pratos e os talheres, secou e guardou tudo.
Estava na sala de estar, sentada no sofá, folheando nervosamente a última edição da revista Garden & Gun, quando luzes de faróis brilharam na frente da sua casa e os pedriscos da sua entrada fizeram barulho.
Pondo-se de pé, ajeitou a blusa e deu uma segunda olhada para ver se o seu cabelo não estava todo bagunçado. Não havia motivos para parecer que tinha acabado de sair da cama com Lane.
Ainda mais porque boa parte do sexo que fizeram foi sobre o tapete do corredor. E nas escadas. E de pé no chuveiro.
Ao abrir a porta, ela…
Conforme Greta saía do Mercedes, Lizzie viu que o rosto de sua colega estava muito sério e que ela tinha os ombros encurvados. E ela parecia estar enxugando lágrimas debaixo daqueles óculos.
– Ai, meu Deus – disse Lizzie. – Aconteceu alguma coisa com seus filhos?
A mulher não respondeu, apenas subiu até a varanda e entrou direto na casa. Lizzie a seguiu, fechando a porta.
– Greta?
Ela deu uns passos. Depois parou, por fim.
– Você esteve com ele ontem à noite?
– O que disse?
– Lane. Só… Apenas diga, esteve ou não? A noite inteirra?
– Do que você está falando?
– Chantal está acusando Lane de surrá-la a ponto de mandá-la parra o hospital.
– O QUÊ?
E foi assim que ficou sabendo de tudo. Chantal. O hospital. A polícia. A imprensa.
Lane.
Quando Greta finalmente se calou, Lizzie se deixou cair sobre uma cadeira, às cegas.
– Eu…
– Aquele homem pode serr um monte de coisas – disse Greta –, mas nunca soube de ele terr levantado a mão parra uma mulherr.
– Claro que não. Deus, não. Absolutamente não.
– Ele ficou aqui ontem à noite?
– Ficou. Cheguei em casa durante a tempestade e ele já estava aqui. E não foi embora até hoje de manhã para levar a senhorita Aurora para a igreja. – Levantou-se de um salto. – Tenho que ajudá-lo! Tenho que contar à polícia que ele estava comigo e…
– Tem mais uma coisa.
– Pode me levar? Estou tão atarantada que acho que eu não deveria…
– Lizzie.
Ante o seu nome, ela parou, um medo gélido se instalando em seu peito.
– O quê…?
Agora os olhos de Greta estavam ficando marejados.
– Sinto muito.
– O quê? Fale de uma vez antes que a minha cabeça exploda!
– Chantal está grrávida. E ela disse à polícia… que Lane é o pai.
Lizzie piscou enquanto tudo freava de repente: seus pensamentos, seu coração, seus pulmões… até mesmo o tempo e as leis da física.
– Ela disse que é porr isso que ele bateu nela. Quando ela contou. Ela disse que ele ficou furrioso.
Uma onda de náusea a atingiu no meio do estômago. Mas não… Não, ela não poderia estar revivendo tudo. Não poderia estar exatamente na mesma situação com Chantal e Lane.
Já vivi isso, ela pensou. Já vivi esse pesadelo.
Deus, não. Por favor, não.
– Quando… – Lizzie pigarreou. – Quando ela procurou a polícia?
– Logo cedo. Lá pelas nove ou dez.
Se estivesse muito machucada, não esperaria para ser receber cuidados médicos, Lizzie pensou.
Se a mulher estava grávida, e contou a ele quando ele voltou para Easterly… ele poderia muito bem…
Com uma náusea absurda, Lizzie fugiu para o corredor e mal chegou ao banheiro a tempo antes de vomitar todo o lombo.
Quando chegou à fazenda de Samuel T., Lane estava tão irado que poderia morder latas e cuspir pregos.
Afundando o pé no freio, parou diante da mansão do amigo e quase deixou o motor ligado ao sair.
Samuel T. abriu a porta antes de ele dar a volta no carro.
– Liguei para o Mitch. Ele vai estar aqui em quarenta e cinco minutos, sem viatura. Não querem esperar para te levar para interrogatório, mas vão te deixar entrar por uma porta lateral. Ninguém com câmera tem acesso a essa parte, então vai ficar tudo bem.
Lane passou pelo cara.
– Isso é a mais absoluta mentira! Ela é louca e vai… – Ele parou e ficou confuso ante o olhar do amigo. – O que foi? Por que está olhando assim para mim?
Em vez de responder, Samuel T. esticou a mão e segurou o braço de Lane.
– Como conseguiu todos esses arranhões nas suas mãos, nos braços, no rosto e no pescoço?
Lane olhou para si mesmo.
– Jesus Cristo, Sam, isso foi de ontem à noite. Fui para a casa da Lizzie e um galho caiu no carro dela. – Quando o amigo apenas o encarou, ele perdeu as estribeiras. – Ela pode testemunhar, se quiser. Eu a tirei daquele maldito Yaris. Pensei que ela tivesse morrido.
– Você está saindo com ela de novo?
– Sim, estou.
– E acha que ela vai querer te ajudar quando descobrir que Chantal está grávida de um filho seu? De novo? Vocês dois não passaram por todo esse drama dois anos atrás?
Lane sentiu noventa por cento do seu sangue abandonar a sua cabeça.
– Não é meu, Sam. Eu te disse quando assinei todos aqueles papéis. Não estive com Chantal desde que fui embora.
– Não é o que ela contou para a polícia. Ela disse que tem ido e vindo de Manhattan no último ano, tentando fazer o relacionamento de vocês dar certo.
– Não é meu. – Ele abaixou a voz, mesmo não havendo mais ninguém por perto. – É do meu pai.
Foi a vez de Samuel T. ficar chocado.
– Do seu… pai?
– Você ouviu.
– Tem certeza?
– Tenho, falei com os dois.
Samuel T. tossiu no punho fechado.
– Sabe, essa sua família é uma coisa do outro mundo.
– É o que as pessoas me dizem. – Lane cruzou os braços sobre o peito. – Posso me submeter a um teste de detecção de mentiras. Juro sobre a Bíblia… Inferno, eles deveriam verificar debaixo das unhas dela. Não vão encontrar nada de mim nela. Nem dentro dela. Não toquei nela, Sam.
– Ela disse que tem uma testemunha.
– Rá! Só nos sonhos dela. Diabos, ela mesma deve ter feito isso consigo…
– É uma criada chamada Tiffany.
Lane se retraiu.
– Uma criada? Tiff… Espere, é “p-h-a-n-i-i”?
Visualizou a moça das toalhas, que se apresentara com aquele olhar de interesse.
Samuel T. deu de ombros.
– Não sei como se soletra o nome dela. Ainda tenho que ver os detalhes com Mitch. Mas a mulher disse que ouviu você e Chantal discutindo, e que você a ameaçou. E, segundo a criada, você jurou “acabar com a vida dela”.
– Eu nunca disse isso!
– Vocês estavam no segundo andar e a criada apareceu no meio da discussão.
– Ela está mentindo… – Lane parou e meneou a cabeça, uma lembrança retornando. – Espere, não, não. Não foi assim, eu disse isso porque Chantal havia desrespeitado a senhorita Aurora. Fiquei irritado. Mas não falei pra valer.
Samuel olhou para os cortes nos braços dele.
– Vou ser bem franco. Você parece ter respostas bem convenientes…
– É a verdade! Não estou inventando nada!
– Escuta só, não quero brigar com você.
– Samuel T. – ele disse, num tom controlado. – Você já me viu ser violento? Ainda mais com uma mulher?
Samuel T. o encarou longamente. Depois, levantou as mãos.
– Não, nunca o vi assim. E quero acreditar em você, quero mesmo. Mas mesmo que esteja dizendo a verdade, temos dois problemas aqui: um legal e outro publicitário. A parte legal pode ser facilmente resolvida, caso Lizzie testemunhe a seu favor e não houver nenhuma evidência forense no seu corpo ou no de Chantal. Agora, o problema publicitário será muito mais difícil de controlar. A notícia vai se espalhar, Lane. Ainda mais se você estiver certo e o seu pai tiver um filho com a sua esposa. Diabos, isso vai virar notícia nacional… E você sabe como a imprensa nunca deixa a verdade atrapalhar uma boa história. E esse tipo de coisa afeta o preço das ações e o valor intrínseco dos produtos da sua família. Não estou dizendo que seja certo, mas é a realidade. Você é a Cia. Bourbon Bradford. A sua família é a Cia. Bourbon Bradford. Posso ter conseguido apagar a passagem da sua irmã pela cadeia, mas isso aqui… Não tem como. A história já está no noticiário local.
Lane andou em círculos no átrio da casa do amigo. Depois olhou para ele.
– Falando em família, você tem bourbon nesta casa?
– Sempre. E só me sirvo do melhor, portanto é um Bradford.
Lane pensou em Mack e nos silos fechados. E depois no pai… E em tudo o que o homem tinha aprontado.
– Veremos por quanto tempo mais – Lane murmurou.
QUARENTA E TRÊS
Seis horas mais tarde, enquanto ainda estava na sala de interrogatórios da delegacia do condado, Lane tentou ligar para o celular de Lizzie pela sexta vez, e concluiu que ela devia ter ficado sabendo da situação. Talvez alguém tivesse ligado para ela. Ou, quem sabe, ela tinha ligado o rádio, pois não tinha televisão.
Inferno, talvez alguém tivesse colocado uma placa luminosa no centro de Charlemont e ela conseguia ver lá de Indiana.
– Estamos quase terminando aqui – Samuel T. disse quando voltou à saleta cinza. – A boa notícia é que você foi rebaixado a apenas uma pessoa de interesse, mas as coisas ainda vão ficar no limbo até a investigação ser concluída. Mas, pelo menos, agora você pode voltar para casa e não vai ser fichado.
Lane desligou o telefone e esfregou os olhos cansados. Tinham lhe entregado a carteira e o celular uns quinze minutos antes, e a primeira coisa que fez foi tentar falar com Lizzie.
Visto a maneira como saíra da casa dela, não havia a menor possibilidade de ela não atender, caso quisesse falar com ele.
Evidentemente, ela não tinha interesse nenhum em ouvir a sua versão dos fatos.
– Quanto tempo mais? – perguntou, esfregando a cabeça dolorida. – Posso ir embora agora?
– Quase. Só estamos verificando com o promotor público, que, por acaso, é um companheiro meu de caçada. – Samuel T. se sentou. – Sei que é politicamente incorreto, mas graças a Deus a rede de amizades masculinas ainda vai muito bem, obrigado, nesta cidade. Ou você estaria sendo submetido a uma revista pessoal neste exato minuto.
– Você faz milagres – Lane disse, entorpecido.
– Ajuda o fato de a história de Chantal ter alguns buracos. Ela, evidentemente, estava trabalhando sozinha quando teve essa brilhante ideia. Quem é que toma banho logo depois de ser atacada? E toma tanto cuidado para limpar as unhas quebradas? Não faz o mínimo sentido. E também há o pequenino detalhe de ela ter ligado tanto para a imprensa quanto para dois canais de TV… do leito hospitalar.
– Eu te disse. – Olhou para o telefone para ver se Lizzie tinha retornado a ligação sem ele perceber. – Essa aí está arruinando a minha vida.
– Não se eu puder impedir.
Lane tentou falar com Lizzie pela sétima vez. Depois abaixou o celular.
– Como ela estava? Chantal, quero dizer. Quando chegou ao hospital.
– Tem certeza de que quer ver as fotos?
– Tenho, preciso saber a gravidade da situação.
Samuel T. voltou a se levantar.
– Vou ver o que posso fazer.
Enquanto a porta da sala de interrogatórios se abria e se fechava uma vez mais, Lane ficou mexendo no telefone. Pensou em mandar uma mensagem de texto, mas duvidou que fizesse alguma diferença.
Inacreditável. Literalmente, custava a acreditar que aquilo estivesse acontecendo de novo com ele: duas mulheres, as mesmas palavras… onde isso ia parar?
Estava morrendo de medo de já ter a resposta. Lizzie o excluíra uma vez. Claramente, era daquela maneira que ela pretendia lidar com o assunto de novo.
Samuel T. voltou uns dez minutos depois com um envelope pardo.
– Aqui está.
Lane o pegou e levantou a aba. Segurou quatro fotos, e franziu a testa ao ver a de cima.
Dois olhos roxos. Hematomas dos dois lados do rosto. Marcas de estrangulamento no pescoço.
– Isso é muito ruim – disse com voz partida. – Jesus…
Ele não sentia o menor afeto por Chantal, porém não gostava de ver ninguém naquelas condições, ainda mais uma mulher. E ele ponderou que não havia como ela ter feito aquilo sozinha. Alguém devia ter batido nela, repetidamente e com força.
Será que ela pagou para que alguém fizesse aquilo?, ficou imaginando.
A segunda e a terceira fotos eram close ups. A quarta…
Lane voltou para a terceira. Aproximando-se, estudou um detalhe na face, um corte profundo debaixo do olho.
De repente, deixou as fotos na mesa e se recostou na cadeira, fechando os olhos.
– O que foi? – Samuel T. perguntou.
Demorou um pouco para ele poder responder. Mas, por fim, virou a foto e apontou para o corte aberto na face de Chantal.
– Meu pai fez isso com ela.
– Como você sabe?
Com uma claridade impressionante, Lane se lembrou mais uma vez daquela terrível noite de Ano Novo, quando era criança e seu irmão mais velho foi surrado.
– Quando ele batia em Edward, o anel de sinete deixava exatamente essa marca. O meu pai estapeava com o dorso da mão… e o ouro provocava o corte.
Samuel T. xingou baixinho.
– Está falando sério?
– Muito sério.
– Espere um instante, deixe-me ver se consigo fazer o investigador voltar. Eles vão querer saber disso.
Enquanto dirigia para o trabalho, ao romper do dia, Lizzie não conseguiu deixar de se lembrar daquele mesmo trajeto poucos dias atrás, quando a ambulância a ultrapassou antes da colina para Easterly.
Sentia o mesmo mau presságio de então. E o mesmo medo de ver Lane.
Nada de rádio ligado desta vez. Não queria se arriscar a ouvir a estação local com a grande notícia sobre como um dos mais proeminentes homens de Charlemont tinha mandado sua esposa gestante para o hospital. Detalhes adicionais sobre a situação não mudariam a história, e ela já estava se sentindo bem mal com tudo aquilo.
Passando pelo portão principal da PFB, tomou o caminho dos empregados e seguiu em meio a campos abertos e estufas até o estacionamento na parte superior. Era tão cedo que não havia mais ninguém por perto, nem mesmo Gary McAdams.
Era assim que tinha planejado.
No piloto automático, manobrou sua caminhonete e se virou para trás para pegar a bolsa.
– Droga.
Deixara-a em casa. O que significava que ficaria sem óculos de sol, protetor solar, nem chapéu.
Tanto faz. Não voltaria para casa.
E devia ser muito bom o fato de também estar sem telefone. Lane não parara de ligar desde as quatro da manhã.
A caminhada até a porta dos fundos de Easterly levou algum tempo, e ela refletiu se não era apenas um indício do seu cansaço. Depois que Greta finalmente foi embora lá pela uma da manhã, ela ficou acordada vendo o nascer do sol acima da bagunça do quintal.
Uma metáfora da sua vida.
Entrando na cozinha, encontrou a senhorita Aurora diante do fogão.
– Bom dia – disse, com o que esperava ser sua voz normal. – Viu o senhor Harris?
A senhorita Aurora girou os ovos com a sua espátula.
– Ele está no quarto. Não tenho nenhum pedido da família hoje, então isso aqui é para mim, para você e para quem estiver por perto. Levo tudo para a saleta de descanso em dez minutos.
– Desculpe, mas tenho que…
– Te vejo lá.
Lizzie inspirou fundo.
– Vou tentar ir.
– Faça isso. – A senhorita Aurora olhou por sobre o ombro, seus olhos negros reluziam. – Senão, vou ter que ir atrás de você e falar até você entender que a gente não pode acreditar em tudo o que ouve.
Abaixando os olhos, Lizzie saiu da cozinha e foi até a porta do senhor Harris. Antes de bater, olhou para a de Rosalinda. Uma fita isolante fora colocada em toda a volta da porta, assim como uma amarela de “atenção” entre os batentes.
Mais uma cena de crime na casa, pensou. Como será que está o quarto de Chantal?
O mordomo abriu a porta e recuou um passo.
– Senhorita King?
Lizzie se recompôs.
– Ah, desculpe… Hum, preciso falar com o senhor.
Ele franziu a testa, mas algo na postura dela deve ter afetado sua atitude pomposa.
– Entre, por favor.
Previsivelmente, a decoração era bastante inglesa, com todo tipo de livros com capa de couro, cadeiras antigas e artigos orientais preenchendo os espaços. Além da área de estar, havia uma cozinha embutida e, como nos aposentos da senhorita Aurora, na parte oposta havia uma porta fechada, onde ela imaginava que deviam ficar o quarto e o banheiro dele.
O cheiro era agradável, cítrico e de limpeza, nada abafado.
– Estou apresentando o meu pedido de demissão – disse abruptamente. – Com duas semanas de aviso prévio. Eu teria informado Rosalinda, mas…
O senhor Harris a encarou por um momento; depois se afastou e se sentou atrás de uma escrivaninha entalhada. Havia uma pilha de papéis sobre o tampo, mas nenhum computador.
– É uma surpresa.
– Está no meu contrato. Só preciso avisar duas semanas antes.
– Posso perguntar o motivo?
– Apenas uma mudança de objetivos. Tenho cogitado já há algum tempo.
– De fato. – Ele cruzou as mãos. – Então isso não está nada relacionado aos noticiários da noite passada?
– Lamento muito que a família tenha que lidar com assuntos tão desagradáveis.
O senhor Harris ergueu uma sobrancelha.
– Não há nada que eu possa fazer para convencê-la a ficar?
– Já tomei minha decisão, mas obrigada.
Ela saiu depois disso, voltando para o corredor e fechando a porta atrás de si. Sozinha, piscou para afastar as lágrimas, erguendo a cabeça enquanto rezava para que o nariz não começasse a escorrer.
Dentre todas as maneiras que imaginara sair um dia de Easterly, nada nunca se parecera com aquilo. Mas não havia volta. Chegara à decisão de se demitir enquanto ela e Greta acabavam com um litro de sorvete de flocos, depois do seu primeiro acesso de choro e antes do segundo.
No fim, não acreditava que Lane tivesse machucado Chantal daquela maneira, era simplesmente impossível. Mas a questão não era essa.
Não importava se a mulher estava ou não grávida, ou quem seria o pai, caso ela estivesse mesmo.
A verdade nua e crua era que, depois de quase uma década com aquela família, Lizzie percebeu que eles eram diferentes de uma maneira fundamental, e não porque os Bradford tinham mais dinheiro do que ela conseguiria ver em toda a sua vida. A questão era que, de onde ela vinha, as pessoas se casavam e tinham filhos, planejavam suas aposentadorias, saíam de férias uma vez ao ano para lugares como Disney ou Sandals. Pagavam seus impostos em dia e comemoravam casamentos e nascimentos com festas triviais, e não traíam seus maridos e suas esposas.
Tinham vidas dignas e modestas, sem serem afetadas pelos dramas loucos que aconteciam com os Bradford.
E a questão era que, por mais que se sentisse atraída por Lane – diabos, talvez se sentisse atraída pela mesma loucura que a repelia –, ela simplesmente não tinha mais as forças e os recursos para continuar com ele de qualquer maneira possível. Tinha se apaixonado rápido demais, intensamente e, assim como no passado, o que ele trouxe para a sua vida foi um buraco no estômago, mais noites insones… e uma sensação de profunda tristeza.
Alguns riscos é melhor não correr. Doenças, acidentes ou outros tipos de tragédias são imprevisíveis… nem sempre é possível reduzir as chances de se machucar, porque estamos vivos, e é a realidade dos seres vivos neste planeta.
Já para outros problemas, questões ou perigos, havia uma certa liberdade para se afastar, para recuar. E quando se é um adulto responsável, que deseja viver uma existência meio que saudável, é uma obrigação cuidar de si próprio, se proteger… amar a si mesmo.
Obviamente, ela não confiava em si mesma para agir com sensatez no que se referia a Lane Baldwine, por isso resolveria o problema da sua falta de autocontrole com a falta de proximidade.
Era hora de partir.
Como uma viciada no período de abstinência, ela simplesmente se afastaria. E não, não pretendia conversar com ele sobre o assunto. Seria o mesmo que um viciado querendo bater papo com uma seringa de heroína. Sem dúvida, Lane apresentaria o seu lado, mas não importava qual fosse, não mudaria o fato de que o coração dela se estilhaçara de novo e que a sua decisão de deixar o trabalho não estava sujeita a negociações.
E agora, ela daria o seu melhor para chegar ao fim do dia.
Descendo até as estufas, entrou na primeira e se sentiu mais do que pronta para trabalhar com as mudas, que no momento nem eram mudas ainda. Mas, antes de seguir para a estação de suprimentos para juntar o necessário, parou e pegou o celular.
O que fez em seguida não levou mais do que um momento.
E, provavelmente, foi uma estupidez.
Mas transferiu 17 mil, 486 dólares e 79 centavos da sua poupança… para a conta da hipoteca.
Terminando de pagar a sua fazenda.
Bom, aquela não devia ser uma decisão muito sensata, considerando-se que a colocaria à venda. O orgulho, contudo, fez com que aquela transação fosse necessária. Orgulho e a sensação de que precisava alcançar o objetivo estabelecido ao comprar aquele lugar.
Sempre quisera algo só seu no mundo, um lar que ela mesma estabelecesse, pagasse e sustentasse, sem a ajuda de mais ninguém.
O fato de agora não ter um centavo sequer era um contrapeso para tudo o que estava sentindo.
Prova de que fracassara completamente ao tentar cuidar de si própria.
Lane voltou a Easterly assim que foi liberado.
Isto é, depois de voltar à casa de Samuel T. para pegar o seu Porsche.
Entrou na propriedade da família pelos fundos, atravessando os campos e as estufas, porque queria evitar a imprensa no portão principal e porque queria saber se Lizzie estava ali.
Estava. A caminhonete marrom da fazenda estava no estacionamento junto aos veículos dos outros empregados.
– Droga – exalou.
Subiu até a garagem, estacionou o carro debaixo da magnólia e foi diretamente para a entrada dos fundos do centro de negócios. Depois de inserir a senha que Edward lhe fornecera, escancarou a porta e foi abrindo caminho até a recepção, cruzando escritórios, a sala de reuniões e a sala de jantar.
Homens e mulheres em ternos levantaram as cabeças, alarmados, mas ele os ignorou.
Não parou até se ver dentro do escritório envidraçado da assistente do pai.
– Vou vê-lo agora.
– Senhor Baldwine, o senhor não pode…
– Até parece que não.
– Senhor Baldwine…
Lane abriu a porta e…
Parou no lugar. O pai não estava atrás da escrivaninha.
– Senhor Baldwine, não sabemos onde ele está.
Lane olhou por sobre o ombro.
– Como assim?
– O seu pai… Era para ele ter viajado hoje de manhã, mas ele não apareceu no aeroporto. O piloto o esperou por uma hora.
– Você ligou para a casa, claro.
– E para o celular dele. – A mulher cobriu a boca com a mão. – Ele nunca fez isso antes. Ninguém na mansão o viu.
– Merda.
Bom Deus, o que fazer agora?
Enquanto Lane saía do escritório, a voz da assistente o acompanhou.
– Pode, por favor, pedir que ele ligue para mim?
De volta à luz matutina, disparou na direção da porta da cozinha de Easterly. Assim que entrou, passou pelas bancadas de aço inoxidável e empurrou a porta que dava para o corredor dos empregados. Subiu a escada dos fundos de dois em dois degraus, quase atropelando uma criada que passava aspirador no corredor do segundo andar.
Passou pelo seu quarto e pelo de Chantal.
Chegou ao do pai.
Parou diante da porta e pensou que não estava pronto para um “Rosalinda, parte II” com seu próprio pai. Não por não desejar ver o cadáver de um dos seus progenitores.
Não, era mais porque, se o homem precisasse de um caixão, Lane queria se responsabilizar por colocar a cabeça do maldito sobre o travesseiro acolchoado.
Abriu a porta.
– Pai! – exclamou. – Onde você está?
Marchando quarto adentro, aguçou os ouvidos e fechou a porta atrás de si – só para o caso de o homem estar vivo. Pois iria machucar o filho da puta, que os céus o ajudassem, mas estava preparado para machucá-lo muito.
Chantal podia ser uma vadia e uma mentirosa, mas nenhuma mulher merecia apanhar. Não importavam as circunstâncias.
– Onde diabos você está? – exigiu saber ao abrir a porta do banheiro.
Quando não encontrou a toalha sobre o box do banheiro, refez seus passos e foi para o closet.
Nada ali também.
Não, espere.
A mala do pai, aquela com monograma que ele costumava usar, estava aberta e parcialmente cheia. Mas mal arrumada. As roupas estavam mal acomodadas, jogadas às pressas por alguém com pouca experiência em fazer aquele tipo de tarefa.
Vasculhando o conteúdo, Lane não percebeu nada de extraordinário.
Mas notou que o relógio predileto do pai, o Audemars Piguet Royal Oak, não estava junto aos perfilados na gaveta forrada. E a carteira também estava faltando.
Retornando para o quarto, perscrutou a mobília, os livros, a mesa, mas não fazia ideia se havia algo fora do lugar. Estivera ali apenas um punhado de vezes… e não voltava havia uns belos vinte anos.
– O que está aprontando, pai? – perguntou baixinho, no ar parado.
Seguindo seus instintos, saiu, fechou a porta e voltou correndo pelas escadas até o primeiro andar. Levou menos de um minuto para entrar na garagem e contar os carros. O Phantom ainda estava ali, mas faltavam dois Mercedes. Chantal, evidentemente, estava com um.
O pai devia ter saído com o outro.
A pergunta era… para onde?
E quando?
QUARENTA E QUATRO
– Você não pode estar fazendo isso de novo. Vamos lá, acorda.
Edward bateu na mão que o puxava.
– Me deixa em paz.
– Eu não. Tá frio aqui fora e você não vai aguentar.
Edward abriu os olhos lentamente. A luz entrava pela porta aberta da baia no fundo do estábulo, ressaltando a poeira do feno e o perfil de um dos gatos vadios que perambulavam por lá. Uma égua relinchou do lado oposto, e outra coiceou a baia. Ao longe, ele percebeu o ronco de um dos tratores.
Puta merda, como a sua cabeça doía. Mas não era nada comparado ao seu traseiro. Engraçado como uma parte do corpo conseguia estar absolutamente entorpecida e dolorida ao mesmo tempo.
– Você vai ter que se levantar, inferno.
Toda aquela conversa o fez praguejar… e tentar focar a vista.
Ora, ora, vejam só. Havia duas Shelbys falando com ele. Sua nova empregada estava parada de pé como uma professora severa, com as mãos nos quadris estreitos, as pernas cobertas pela calça jeans e os pés com botas afastados, como se estivesse considerando a possibilidade de chutar sua cabeça tal qual uma bola de futebol.
– Pensei que você não falasse palavrão – ele murmurou.
– Não falo.
– Ora, mas acho que você acabou de falar.
Os olhos dela se estreitaram.
– Você vai se levantar ou vou ter que te varrer para fora daqui com o resto da sujeira?
– Você não sabia que “inferno” é apenas o primeiro passo? É como maconha. Sem se dar conta, logo, logo, você vai estar lançando bombas de “cacete” a torto e a direito.
– Tudo bem. Pode ficar aí. Espera pra ver se me importo.
Quando ela se virou para sair, ele a chamou.
– Como foi o seu encontro ontem à noite?
Ela girou sobre os calcanhares.
– Do que você tá falando?
– Com o Moe.
Dito isso, ele se esforçou para se erguer do piso de concreto do estábulo. Quando não conseguiu, ela levantou uma sobrancelha.
– Sabe, acho que vou mesmo te deixar aí.
Acima da cabeça dele, Neb relinchou, como se estivesse rindo.
– Não pedi a sua ajuda – Edward disse entre dentes.
Sem aviso, sua mão escorregou e seu corpo se chocou no concreto com tanta força que seus dentes bateram.
– Você vai acabar se matando – ela resmungou ao marchar de volta.
Shelby o ergueu com todo o cuidado que alguém dispensaria com uma forquilha caída, mas ele tinha que dar a mão à palmatória. Mesmo ela chegando apenas na metade do peito dele, era forte o suficiente para levá-lo pelo corredor, para fora do estábulo, e pela grama até o chalé.
Uma vez lá dentro, ele indicou sua poltrona com a cabeça.
– Ali já está…
– Você vai ficar com hipotermia. Isso não vai acontecer, não.
Em seguida, ele a viu sentando-o sobre o vaso sanitário e começando a aquecer a água da banheira.
– Pode deixar comigo a partir daqui – ele disse, pendendo para o lado e deixando que ela o segurasse. – Obrigado.
Ele estava fechando os olhos quando ela lhe deu um tapa.
– Acorda.
O ardor da batida o fez despertar e esfregar a face.
– Gostou de fazer isso?
– Gostei. E posso fazer de novo. – Enfiou uma escova de dentes na boca dele. – Use isso.
Era difícil falar com aquela maldita coisa na boca, portanto ele obedeceu, limpando o lado esquerdo, o direito, a frente e as partes inferiores. Depois se inclinou sobre a pia e cuspiu.
– Não está tão frio assim – ele disse.
– Como é que você sabe? Está pra lá de bêbado.
Na verdade, não estava, não. E isso era parte do problema. Pela primeira vez em muito tempo, ele não tinha tomado nenhuma bebida alcoólica na noite anterior.
– O que está fazendo? – ele perguntou quando as mãos dela se apossaram da sua malha.
– Tirando a sua roupa.
– É mesmo?
Enquanto ela se ocupava com as roupas dele, ele olhou para o corpo dela. Era difícil ver grande coisa, já que ela estava com uma blusa larga de moletom, então ele resolveu esticar a mão e testar a cintura dela.
Ela parou. Recuou.
– Não estou interessada.
– Então por que está tirando as minhas roupas?
– Porque os seus lábios estão roxos.
– Desliga isso. – Ele apontou para a torneira. – Assumo daqui.
– Você vai se afogar.
– E daí? Além do mais, não quero que você veja o que tenho debaixo da roupa.
– Vou ficar esperando lá fora, perto da sua poltrona.
– Ah, maravilha – ele disse baixinho.
Ela fechou a porta ao sair, e ele não fez mais nada. Só se encostou na parede e ficou olhando para a água fumegante.
– Não estou ouvindo barulho de água – ela comentou do lado de fora.
– Não está fundo o bastante ainda para eu nadar.
Toc. Toc. Toc.
– Entre logo, senhor Baldwine.
– Esse é o meu pai. E ele é um idiota. Atendo por Edward.
– Cale a boca e entre na banheira.
Mesmo na névoa do seu estupor, ele sentiu algo chamejar por ela. Achou que fosse respeito.
Mas quem se importav…
Bum, bum, bum!
– Você vai acabar derrubando a maldita porta – ele exclamou acima de todo aquele barulho. – E pensei que você não quisesse me ver nu.
– Água. Agora! – ela ralhou. – E não quero mesmo, mas melhor do que te encontrar morto.
– É apenas uma questão de opinião, minha cara.
No entanto, por algum motivo inexplicável, ele resolveu fazer como ela mandava.
Apoiando os braços na pia e na parte traseira do vaso sanitário antigo, suspendeu o corpo. Suas roupas eram um estorvo, mas conseguiu tirá-las e logo se colocou na banheira. Estranho, mas a água quente provocou o efeito contrário ao esperado. Em vez de aquecê-lo, fez com que ele sentisse frio, e começou a tremer tanto que criou ondulações na superfície da água.
Cruzando os braços diante do peito, seus dentes tiritaram, e seu coração saltou.
– Você está bem aí dentro? – ela perguntou.
Quando ele não respondeu, Shelby o chamou mais alto: – Edward?
A porta se escancarou e ela invadiu o banheiro como se estivesse preparada para bancar a salva-vidas, resgatando-o de cinquenta centímetros de profundidade de água. E foi horrível… Quando ela o fitou, só o que ele conseguiu fazer foi ficar encarando a água agitada, na esperança de que ela cobrisse suas pernas raquíticas, seu sexo flácido e sua pele branca coberta de cicatrizes.
Ele teve quase certeza de que ela arquejou.
Sorrindo-lhe, ele disse:
– Bonito, não sou? Mas acredite ou não, eu funciono muito bem. Bem, digamos que um pouco de Viagra ajude. Seja boazinha, sim? E me traga alguma bebida… Acho que estou me desintoxicando, e é por isso que estou tremendo tanto.
– Você… – Ela pigarreou. – Você precisa de um médico?
– Não, só de um pouco de Jim Beam. Ou Jack Daniel’s.
Quando ela simplesmente continuou olhando para ele, Edward apontou para a porta aberta.
– Estou falando sério. O que eu preciso é de álcool. Se quer me salvar, vá buscar um pouco. Agora.
Quando saiu do banheiro e fechou a porta, Shelby Landis tinha toda intenção de fazer o que Edward lhe pedira. Afinal, ela tinha muita experiência com alcoólatras, e por mais que não aprovasse nada daquilo, ela levara bebida ao pai milhares de vezes, e isso também costumava ser pela manhã.
Pelo menos, esse era o plano. Só que ela não parecia capaz de se mexer, de pensar… sequer de respirar.
Não estava preparada para ver aquele homem lá dentro, com a cabeça pensa como se ele tivesse vergonha de ser magro demais, do seu corpo alquebrado, do seu orgulho masculino tão esfarrapado e maltratado quanto suas carnes. Um dia ele fora uma grande força; seu pai tinha lhe contado histórias sobre o domínio de Edward nos negócios, nas pistas, na sociedade. Puxa, ouvira falar dos Bradford desde que era criança. Seu pai se recusava a beber qualquer outra coisa que não o no 15 deles, assim como boa parte das pessoas que lidavam com cavalos que ela conhecia.
Levando as mãos ao rosto, sussurrou:
– O que fez comigo, pai?
Por que ele a mandara ali?
Por que…
– Shelby? – exigiu a voz de lá de dentro.
Deus, ele era como seu pai. O modo como Edward pronunciara seu nome com uma pontada de desespero… era exatamente igual ao pai quando estava desesperado por uma bebida.
Fechando os olhos, praguejou bem baixinho. Depois sentiu culpa.
– Perdoe-me, Senhor. Não sei o que estou dizendo.
Ao procurar pelo cômodo, encontrou uma fila de garrafas na parte da frente de uma das prateleiras de troféus, e a ideia de lhe entregar o veneno a deixou nauseada. Mas ele mesmo acabaria saindo e pegando… e provavelmente caindo e batendo a cabeça no processo. Então, em que pé estariam? Além disso, ela sabia como aquelas coisas funcionavam. Aquele tremor terrível não cessaria até que a fera dentro dele fosse alimentada de acordo com sua necessidade, e o corpo dele já parecia tão frágil…
– Já estou indo – disse em voz alta. – O que prefere?
– Tanto faz.
Direcionando-se para as garrafas às cegas, pegou uma de gim e voltou para a porta fechada do banheiro. Não se deu ao trabalho de bater, simplesmente entrou.
– Pronto. – Tirou a tampa. – Pode beber direto do gargalo.
Só que as mãos dele tremiam tanto que não havia um modo de ele conseguir erguer a garrafa sem derrubar tudo.
– Deixa que eu seguro pra você – ela murmurou.
Houve um instante de hesitação por parte dele, mas logo ele ergueu a boca como um potrinho recém-nascido abandonado pela mãe.
E deu umas duas ou três belas goladas.
– Isso sim é que esquenta.
Deixando o gim ao lado da banheira onde ele conseguiria alcançar caso quisesse, ela pegou uma toalha de banho e submergiu na água, atrás dele. Quando ficou encharcada, ela a passou pela protuberância da coluna e das costelas dele. Depois tratou de cuidar da cabeça com uma esponja de banho, molhando o cabelo, alisando-o para trás.
Sem que ele pedisse, ela ergueu a garrafa mais uma vez e ele bebeu, sorvendo direto do gargalo.
Banhá-lo com sabonete e xampu fez com que ela se lembrasse dos cuidados oferecidos a um animal recém-resgatado. Ele estava assustado. Desconfiado.
Meio morto.
– Você precisa comer – ela disse numa voz partida.
Não tenho isso dentro de mim, Senhor. Não vou conseguir fazer isso de novo.
Não conseguira salvar o pai alcoólatra. Perder dois homens numa vida só parecia um fracasso grande demais para superar.
– Vou te preparar o café da manhã depois, Edward.
– Você não tem que fazer isso.
– É – respondeu, rouca –, eu sei.
QUARENTA E CINCO
– Então, vamos repetir tudo de novo?
Ante o som da voz máscula, Lizzie parou no meio do transplante de uma Hedera helix para um vaso novo. Fechando os olhos, inspirou fundo e ordenou às mãos que não tremessem e nem derrubassem nada.
Estava à espera que Lane a procurasse para conversar. Ele não demorou muito.
– E então? – disse ele. – Voltamos aos dias em que você ouve alguma coisa que não gosta e me exclui? Porque se for o roteiro que vamos seguir, e é bem isso o que está parecendo, acho que só me resta subir num avião e voltar para Nova York e pôr um fim à história. Vai ser muito mais eficiente, e não vou acabar com uma conta telefônica quilométrica por deixar mensagens na sua caixa postal.
Forçando as mãos a continuarem a trabalhar, enfiou as raízes no buraco que cavara no vaso e começou a transferir terra nova para enchê-lo.
– Algo que eu não queria ouvir – ela repetiu. – Sim, acho que podemos dizer que descobrir que a sua esposa está grávida de novo é uma notícia que eu preferiria não ouvir. Especialmente porque fiquei sabendo logo depois de termos feito sexo. Em seguida, veio a notícia maravilhosa de que você estava sendo preso por mandá-la para o pronto-socorro.
Quando ele não respondeu, ela se voltou na direção dele. Lane estava parado na entrada da estufa, junto à estação de trabalho em que Greta deveria estar, caso Lizzie não tivesse avisado à mulher que precisava ficar um tempo sozinha.
– Acha mesmo que eu seria capaz de fazer uma coisa do tipo? – ele perguntou num tom baixo.
– Não cabe a mim decidir nada disso. – Ela voltou a se concentrar no que estava fazendo e odiou as próprias palavras. – Mas uma coisa que eu posso dizer é que o melhor indicador de um futuro comportamento é o modo como a pessoa se comportou no passado. E eu não posso… Não posso mais fazer isso com você. Não importa se os boatos são verdadeiros ou não, não é essa a questão.
Depois de colocar a terra nova, ela pegou o regador e o inclinou sobre o vaso de trepadeira. Em três meses, a planta estaria pronta para ser levada para o lado externo, para o muro ou para um dos vasos do terraço. Tinham muita sorte com aquela variedade, mas era bom planejar reposições antes que elas fossem necessárias.
Limpando as mãos na frente do avental, virou-se para ele.
– Entreguei meu pedido de demissão. Portanto, não precisa se preocupar em voltar para Nova York.
Não teve dificuldades para sustentar o olhar dele. Para encará-lo. Enfrentá-lo.
É incrível como você fica determinado com os outros quando sabe em que pé está.
– Você acha mesmo que eu faria aquilo com uma mulher? – ele repetiu.
Claro que não, ela pensou. Mas permaneceu em silêncio porque sabia que, se quisesse mesmo que ele a deixasse em paz, a insinuação feriria seu orgulho masculino e isso, infelizmente, agiria em seu favor.
– Lizzie, responda.
– Não é da minha conta. Não é.
Depois de um instante, ele assentiu.
– Ok. Muito justo.
Quando ele se virou e se dirigiu para a porta, ela teve que admitir que ficou um pouco surpresa. Esperava ouvir algum tipo de explicação demorada. Uma torrente de persuasão da qual ela teria que se esquivar. Algum tipo de “Eu te amo, Lizzie, de verdade”.
– Desejo tudo de bom para você, Lizzie – ele disse. – Cuide-se.
E foi… só isso.
A porta se fechou sozinha. E, por uma fração de segundo, ela sentiu o impulso absurdo de ir atrás dele e gritar na sua cara que ele era um cretino colossal por tê-la seduzido do jeito como seduziu, que era um mau caráter, que era exatamente quem ela temia que ele fosse, um usurpador de mulheres, um mentiroso, um elitista enganador e sádico que não saberia…
Lizzie forçosamente se afastou desse precipício.
Se aquela despedida significava alguma coisa, o fato de ela permanecer ou não na vida dele parecia não importar nem um pouco para ele.
Bom saber disso, ela pensou com amargura. Bom saber.
Colocando-se atrás do volante do 911, Lane pensou que havia momentos na vida em que, por mais que você quisesse lutar, era melhor simplesmente desistir.
Você não precisava gostar do fracasso.
Não tinha que se sentir maravilhoso com relação ao resultado das coisas.
E, por certo, não se afastava de tudo sem arranhões, sem ficar seriamente ferido pela perda, aleijado, até.
Mas você precisava abrir mão de tudo, porque desperdiçar energias não o levaria a parte alguma, e você poderia muito bem já ir se acostumando com a perda.
Era a única lição que o seu relacionamento com o seu pai lhe ensinara. Se ele teria apreciado a presença de uma figura masculina que pudesse admirar, se espelhar, se orgulhar e sentir respeito? Sim, claro. Teria sido maravilhoso não crescer numa casa onde o som de chinelos sobre o piso de mármore ou o cheiro de cigarro não o obrigasse a procurar um lugar para se esconder. Óbvio. Poderia ter se beneficiado de conselhos paternos, ainda mais em tempos como aquele?
Sim, poderia.
Entretanto, não foi assim para ele. E ele teve que se acostumar com isso para não enlouquecer negociando com um fracasso que jamais conseguiria mudar ou melhorar.
Seguindo o mesmo raciocínio, se Lizzie King de fato acreditasse que havia a mínima possibilidade de ele ter botado as mãos numa mulher daquela forma, que ele tivesse mentido descaradamente a respeito de Chantal, que qualquer bebê que aquela mulher tivesse pudesse ser seu… então não havia esperanças para eles dois. Não importaria o que ele lhe dissesse ou como tentasse explicar as coisas… ela não o conhecia de verdade e, mais importante, não confiava nele.
E o fato de aquilo tudo ser uma mentira, de Chantal, mais uma vez, ter lhe roubado a mulher que ele amava…
Bom, a vida é dura.
Buá, buá, buá.
Peça um pai novo para o Papai Noel. Peça à Fada do Dente que te dê uma nova ex-esposa.
Tanto faz.
Deixando Easterly, entrou na estrada e dobrou o limite de velocidade a caminho do Aeroporto Internacional de Charlemont, não porque estivesse com pressa ou atrasado, mas porque podia. O carro aguentaria o tranco e, naquele exato instante, ele estava sóbrio e no controle.
A entrada para as chegadas e partidas particulares era a primeira saída do caminho que cercava a enorme construção. Lane estacionou à direita das portas duplas e deixou o motor ligado.
Jeff Stern já estava próximo do espaço luxuoso. Só tinham se passado poucos dias, mas parecia um século desde aquele jogo de pôquer em que a loira burra o incomodava, quando ele se levantou para atender ao telefone.
Como era de se esperar, seu colega de apartamento estava vestido como o homem de Wall Street que era: óculos, terno escuro e camisa branca engomada. Até estava com a poderosa gravata vermelha.
– Poderia ter vindo de bermuda – Lane comentou quando se cumprimentaram batendo as mãos.
– Estou vindo do escritório, idiota.
Aquele sotaque, ao mesmo tempo estranho e familiar, era exatamente o que ele precisava naquele instante.
– Deus, você está com uma aparência péssima – Jeff comentou, enquanto sua bagagem chegava num carrinho. – A vida familiar evidentemente não combina com você.
– Não a minha, pelo menos. Me diz uma coisa, o seu avião ainda está aqui?
– Não por muito tempo. Está sendo reabastecido. Por quê? – Quando Lane apenas olhou para a pista, o amigo praguejou. – Não. Não, não, não, não, não. Você não me arrastou para cá, abaixo da Mason-Dixie, para atender um alarme falso e agora quer voltar para Manhattan. Sério, Lane.
Por um instante, Lane hesitou. Queria ficar, só para ferrar o pai em múltiplas instâncias, mas também queria partir, porque estava cansado de tanta insanidade.
Parecia que ele e Lizzie, no fim, tinham algo em comum.
Os dois queriam se afastar.
– Lane?
– Vamos – convidou, dando uma gorjeta para o carregador e pegando as duas malas de couro do amigo. – Quando foi a última vez que veio a Easterly?
– Num Derby, há um milhão de anos.
– Nada mudou.
Colocou as malas no Porsche e saíram de lá, acelerando para longe do aeroporto e entrando na estrada.
– Então, vou ou não conhecer essa sua mulher, Baldwine?
– Provavelmente não. Ela pediu demissão.
– Puxa, que rápido. Lamento muito.
– Não finja que não leu as notícias.
– Pois é, está em todos os lugares. Acho que você é o responsável por ressuscitar os jornais impressos. Parabéns.
Lane praguejou e ultrapassou um carro.
– Não era um prêmio que eu queria, eu garanto.
– Espere um instante. Você disse “se demitindo”? Quer dizer que ela trabalha para a sua família? Isso é tipo Sabrina, meu velho?
– Lizzie é a horticultora-chefe da propriedade. Ou era.
– Não uma simples jardineira, hein… faz sentido. Você odeia mulheres burras.
Lane o encarou.
– Sem ofensas, mas podemos falar sobre outra coisa? Talvez sobre o fato de a minha família estar perdendo todo o seu dinheiro? Preciso me alegrar.
Jeff balançou a cabeça.
– Você, meu amigo, leva uma vida e tanto.
– Quer trocar de lugar? Por que, neste exato instante, estou procurando uma saída.
QUARENTA E SEIS
Naquela noite, Lizzie chegou em casa e não havia nenhuma árvore caída no seu quintal.
Saindo da caminhonete da fazenda, olhou ao redor. O Yaris ainda estava esmagado no mesmo lugar, destroçado, com as janelas quebradas e o interior molhado e cheio de folhas, e parecia ter saído de um jogo de videogame. Mas o galho tinha sumido, e não restava nada além de serragem fresca e perfumada espalhada por lá.
Não ouse, Lane, ela pensou.
Não ouse tentar cuidar de mim agora.
Levantou o olhar e viu que o corte onde o galho se partira do tronco fora feito com cuidado, selado de modo que cicatrizaria e o bordo maravilhoso sobreviveria aos estragos.
– Maldito.
Pelo menos ele tinha deixado o carro no lugar. Se tivesse cuidado disso também, ela teria que procurá-lo para descobrir onde deveria recuperar a carcaça.
Devia ter desconfiado que as coisas entre eles estavam inacabadas.
Ao marchar rumo à varanda, ficou discutindo mentalmente com ele o tempo inteiro… Mas parou no primeiro degrau. Na tela da porta, um bilhete fora afixado à moldura.
Maravilha. Agora isso. Algum tipo de “Agora que nossas cabeças esfriaram, blá-blá-blá…”.
Ele era um homem doentio.
E ela estava agindo bem partindo dali. Por mais que estivesse sofrendo por ir embora, precisava se afastar dele, de Easterly, daquela parte bizarra da sua vida que só podia ser descrita como um pesadelo.
Forçou-se a se mover, subiu e arrancou o papel da porta. Queria jogar fora aquela coisa maldita, mas algum impulso masoquista tornou isso impossível. Abrindo o bilhete, ela…
Olá, vizinha. As vacas se espalharam pelo seu quintal. Estragaram as moitas de flores dos fundos. Como sou péssimo com flores, cuidei da sua árvore. Minha mulher te mandou uma torta. Deixei na bancada.
Buella e Ross
Expirou, sendo acometida por uma onda de exaustão, e em vez de entrar na casa, atravessou a varanda e se sentou no balanço. Empurrando as tábuas do piso com um pé, ficou atenta aos grilos e aos rangidos das correntes afixadas no teto acima da sua cabeça. Sentiu a brisa suave e cálida no rosto e observou as luzes alaranjadas do entardecer criarem sombras alongadas sobre a terra.
Precisava replantar os canteiros…
Não, não precisava.
Bem, pelo menos teria uma bela sobremesa; Buella fazia tortas de outro mundo. Talvez fosse de pêssego. Ou, quem sabe, de mirtilos.
Lizzie se descobriu enxugando os olhos e fitando as lágrimas nas pontas dos dedos.
Era horrível ter que sair dali para se salvar… Era bem parecido com… serrar um galho doente.
Estava dando tudo certo.
Mas Lane tinha que chegar e estragar tudo.
– Foi tudo o que Edward conseguiu tirar de lá – disse Lane ao andar de um lado para o outro no quarto de hóspedes em que acomodara Jeff.
Era a melhor suíte, com vista para os jardins e o rio, e também tinha uma escrivaninha com tampo tão comprido que poderia ser qualificada como balcão de cozinha. Na verdade, um bilhão de anos antes, aqueles aposentos tinham sido do avô de Lane, e depois da morte do homem, nada fora tocado a não ser nas faxinas regulares.
O comentário de Jeff ao entrar foi típico dele. Algo relacionado à possibilidade de a Guerra Civil ter sido comandada de lá.
Contudo, conforme esperado, assim que o cara acessou os dados financeiros, deixou de lado as brincadeiras e se tornou totalmente profissional.
– Bem, já está quase na hora do jantar. – Lane olhou para seu relógio de pulso. – Nos vestimos formalmente. Bem, todos fazem isso, menos eu. Então o seu terno vai estar de acordo.
– Mande me trazer alguma coisa aqui mesmo – Jeff murmurou ao arrancar a gravata, sem despregar os olhos da tela do computador. – E vou precisar de papel e caneta.
– Está querendo me dizer que não quer testemunhar a troca de olhares furiosos entre mim e o meu pai por sobre o suflê? – Sim, porque Lane estava mais do que ansioso para isso. – Você também poderia aproveitar para conhecer o novo e fabuloso noivo da minha irmã. O cara é tão charmoso quanto um tumor.
Quando Jeff não respondeu, Lane andou e espiou por cima do ombro dele.
– Diga-me que isso faz algum sentido para você.
– Ainda não, mas vai fazer.
É o homem certo para este trabalho, Lane pensou ao finalmente se retirar. Já no corredor, descobriu-se encarando a porta do quarto da mãe. Talvez Edward estivesse certo. Talvez se tudo virasse pó, a mãe deles nem ficaria sabendo. Todas aquelas drogas a mantinham encasulada e segura em seu delírio. Algo que, pela primeira vez, estava começando a entender.
Falando nisso, que tal um pouco de bourbon?
Seguindo para as escadas da frente, resolveu que também pularia o jantar. Ainda estava louco de vontade de socar o pai, mas, com Jeff cuidando de tudo, ele tinha, quem sabe, chances muito maiores de pegar o homem de jeito.
E depois seguiria o exemplo de Lizzie e iria embora daquele lugar de uma vez por todas.
Tudo ali era demais, bizantino demais, poluído demais.
Talvez voltasse para Nova York. Ou talvez estivesse na hora de alargar seus horizontes. Quem sabe ir para o exterior…
Lane parou na metade da escada.
Mitch Ramsey e dois policiais estavam parados no átrio de entrada logo abaixo, sem os chapéus. Seus rostos pareciam saídos de um texto de justiça criminal: estavam totalmente impassíveis.
Merda, Lane pensou ao fechar os olhos.
Pelo visto, Samuel T. tinha conseguido tirar vantagem da boa e velha camaradagem masculina só até certo ponto.
– Vou pegar a minha carteira – Lane avisou. – E vou ligar para o meu advogado…
Mitch levantou o olhar bem quando o senhor Harris vinha da sala de jantar.
– Ah, senhor Baldwine – disse o mordomo –, estes cavalheiros vieram vê-lo.
– Foi o que imaginei. Só vou pegar a…
Mitch falou:
– Podemos conversar reservadamente?
Lane franziu a testa.
– Quero a presença do meu advogado.
Quando Mitch sacudiu a cabeça, Lane encarou os outros policiais. Nenhum deles o olhava de frente.
Lane terminou de descer e indicou a sala com a mão.
– Na sala de estar.
Enquanto os quatro seguiam para o elegante cômodo, o senhor Harris deslizou as portas duplas que davam para o vestíbulo. E, num acordo tácito, ninguém disse nada até que o homem atravessasse a sala e fechasse as outras portas.
Lane cruzou os braços diante do peito.
– O que foi, Mitch? Está querendo completar um trio? Primeiro Gin, depois eu… e agora, que tal o meu pai?
– É com muito pesar que preciso informar que…
Uma pontada fria de medo perpassou seu corpo.
– Não o Edward, ah, Deus, por favor não o Edward…
– … um corpo foi encontrado no rio duas horas atrás. Temos motivos para acreditar que seja o seu pai.
A expiração que escapou dos pulmões de Lane foi estranhamente lenta e controlada.
– O quê… – Ele limpou a garganta. – Onde ele foi encontrado?
– Na parte oposta à cachoeira. Precisamos que nos acompanhe para identificar o corpo. Um parente é preferível, mas eu jamais peço à esposa, se puder evitar.
Como resposta, Lane se aproximou do carrinho de bebidas e se serviu de uma bela dose do Reserva de Família. Depois de tomá-la, acenou para Mitch e para os outros dois membros da força policial.
– Me dê um minuto. Eu já volto.
Ao passar por Mitch, o homem esticou a mão e o segurou pelo braço.
– Eu sinto muito, Lane.
Lane franziu a testa.
– Sabe, não consigo dizer o mesmo.
QUARENTA E SETE
Lane não contou a ninguém onde estava indo e nem o motivo.
Voltou do quarto com seu celular e sua carteira, e tomou cuidado para ficar longe das vistas das pessoas que comiam e conversavam baixo na sala de jantar.
Não, não contaria nada a ninguém. Não até ter certeza.
Entrando na parte traseira do SUV do delegado Mitch, fechou a porta e fitou adiante, através do para-brisa.
Quando o policial se colocou atrás do volante, Lane perguntou: – Alguém já sabe?
– Mantive em segredo por enquanto. O corpo apareceu num ancoradouro coberto a uns quinhentos metros da catarata. As pessoas que o encontraram são gente boa. Estão assustadas e não querem a atenção da mídia nem repórteres em sua propriedade. Mas isso não vai durar para sempre.
O trajeto até o necrotério foi meio bizarro. O tempo se arrastava, tudo era muito brilhante, claro demais, volumoso demais. E assim que entrou naquele prédio sem graça, frio, a sensação piorou até ele sentir como se estivesse aos tropeços, o surrealismo de tudo aquilo fazendo com que parecesse algo saído de um desenho animado de Jerry Garcia.
A única coisa que conseguia fazer era acompanhar Mitch onde quer que o cara fosse. Não muito tempo depois, Lane se viu numa saleta de espera do tamanho de uma despensa.
No meio da parede diante dele havia uma cortina que cobria, segundo ele imaginava, uma grande janela. Havia uma porta ao lado.
– Não – Lane disse a Mitch. – Quero vê-lo cara a cara.
Houve um instante de constrangimento.
– Veja bem, Lane, o corpo não está nada bonito. Caiu da cascata e pode ter se chocado num barco maior. Seria mais fácil…
– Não estou interessado em nada fácil. – Lane estreitou o olhar na direção do delegado. – Quero entrar.
Mitch praguejou.
– Me dá um minuto.
Enquanto o delegado desaparecia pela porta, Lane ficou satisfeito que o homem não tivesse se oposto. Não queria admitir que o motivo pelo qual necessitava chegar perto era por querer ter certeza de que o pai estava de fato morto.
O que era estupidez.
Como se todos aqueles policiais fossem perder tempo inventando a história.
Mitch retornou e segurou a porta aberta.
– Pode entrar.
Entrar naquela sala azulejada se tornou algo de que Lane se recordaria pelo resto da vida. E, Jesus, era igualzinho aos filmes: no meio do recinto, sobre uma mesa de aço com rodinhas, havia um saco mortuário.
Absurdamente, notou que era do mesmo tipo em que Rosalinda fora colocada.
Ao lado da maca, uma mulher de jaleco branco estava de pé com luvas descartáveis e uma prancheta nas mãos.
– Está pronto, senhor?
– Sim. Por favor.
Ela esticou a mão e puxou o zíper. Desceu-o até os pés e afastou a lona.
Lane se inclinou, mas o cheiro da água e da podridão o fez se retrair.
Não esperava encontrar os olhos do pai abertos.
– É ele – Lane disse, com uma voz partida.
– Lamento pela sua perda – a médica legista disse ao voltar a subir o zíper.
Quando ela terminou, deduziu que quisessem que ele se retirasse, mas ele só conseguiu ficar ali parado olhando para o saco mortuário.
Todos os tipos de imagem invadiram seus pensamentos, uma mistura de coisas do passado e do presente.
Mas não há mais futuro algum, pensou. Não haveria mais nada com aquele homem.
Deus, dentre todos os modos como as coisas entre eles poderiam terminar… aquele momento silencioso, naquela fria sala médica, com Mitch Ramsey de um lado e uma completa estranha do outro… não tinha imaginado nada daquilo.
– E agora? – ouviu-se perguntar.
Mitch pigarreou.
– Extraoficialmente, e não me obrigue a sustentar isso, temos quase certeza de que foi suicídio. Considerando tudo o que tem acontecido… bem, você entende.
– Sim. Sim, claro. – E a polícia nem desconfiava da questão financeira.
Que covarde filho da puta, Lane pensou. Primeiro ele provoca toda essa confusão, e depois resolve fugir se jogando de uma ponte.
Cretino.
– Gostaríamos do consentimento para realizar a autópsia – disse Mitch. – Só para excluir a possibilidade de um crime. Mas, repito, não é nisso que acreditamos.
– Claro. – Lane olhou para o delegado. – Escute, preciso de um tempo antes que isso chegue à imprensa. Tenho que contar à minha mãe e aos meus irmãos. Nem sei como localizar Maxwell, mas não quero que ele fique sabendo disso no noticiário das seis. Ou pior, na TMZ.
– A polícia está determinada a trabalhar com você e com a sua família.
– Serei o mais rápido que puder.
– Isso facilitaria tudo para nós também.
Uma prancheta surgiu de sabe-se lá onde, e ele assinou uma variedade de coisas. Quando devolveu a caneta ao delegado, pensou: “Merda, vamos ter que planejar um funeral”.
Ainda que, sendo bem franco, a última coisa que o interessava era honrar o pai de qualquer maneira.
– Não estou com fome.
Edward se acomodou na sua poltrona no chalé, bem ciente de que parecia um garotinho de quatro anos se recusando a jantar, mas não se importou.
O fato de o aroma vindo da sua cozinha embutida fazer sua boca salivar não era relevante.
Shelby, contudo, sofria de audição seletiva.
– Aqui está.
Ela colocou uma tigela de cozido na mesinha ao lado da sua garrafa de… o que era mesmo que estava bebendo? Ah, tequila. Ora, vejam só se não combinava à perfeição com o molho de carne.
– Coma – ela ordenou, num tom que sugeria que ou ele mesmo cuidava disso ou ela amassaria tudo e o forçaria a comer por meio de um canudo.
– Sabe, você pode ir quando quiser – ele murmurou.
Pelo amor de Deus, a mulher ficou na sua casa o dia inteiro, limpando, lavando a roupa, cozinhando. Ele lhe disse algumas vezes que ela tinha sido contratada para cuidar dos cavalos, e não do proprietário deles, mas, de novo, a audição dela era seletiva.
Maldição, isso aqui está muito bom, pensou ao encher a boca.
– Quero marcar um horário com o seu médico.
O som de um carro chegando foi uma interrupção bem-vinda. Esforçou-se para se lembrar que dia era, e desejou que, de algum modo, já fosse sexta-feira de novo, pois até gostava da ideia de ela ver uma prostituta vindo servi-lo. Inferno, ela até podia ficar olhando se quisesse. Não que fosse um bom espetáculo…
Por uma fração de segundo, lembrou-se de Sutton sobre ele, movendo-se para cima e para baixo, fitando-o nos olhos.
Uma dor afiada em seu peito o fez comer mais rápido só para se livrar da sensação.
A batida foi alta.
– Você se importaria de fazer as honras? – disse a Shelby. – Se for uma mulher, convide-a a entrar. Se não, diga que vá para o inferno. E use a palavra “inferno”, sim? Nós dois sabemos que ela faz parte do seu vocabulário agora.
O olhar furioso que ela lhe lançou provavelmente o teria derrubado se ele já não estivesse sentado.
Mas ela foi até a porta.
Abrindo-a, disse:
– Ah, nossa.
– Quem é? – Edward murmurou. – A sua fada madrinha?
Só que não era. Era Lane.
Enquanto seu irmão entrava no chalé, Edward já meneava a cabeça.
– O que quer que seja, você vai ter que ir para outro lugar. Já disse, não vou mais ajudar…
– Podemos falar em particular.
Não era uma pergunta.
Edward revirou os olhos.
– Não importa o que você vai dizer.
– É assunto de família.
– E não é sempre? – Quando Lane não cedeu, Edward praguejou. – O que quer que tenha a dizer, pode falar na frente dela.
A presença de Shelby talvez apressasse o assunto.
Lane olhou para a mulher. Voltou a olhar para ele.
– Nosso pai está morto.
Enquanto Shelby arfava, Edward lentamente abaixou a colher. Depois disse, numa voz grave: – Shelby, você pode, por favor, nos dar licença? Muito obrigado.
Engraçado como os bons modos surgiam nele em momentos de crise.
Depois que Shelby saiu rapidamente, Edward limpou a boca no guardanapo de papel.
– Quando?
– Em algum momento na noite passada, é o que estão acreditando. Ele se jogou de uma ponte, provavelmente. O corpo apareceu do outro lado da cascata.
Edward se recostou na poltrona.
Tinha a intenção de dizer alguma coisa. Tinha mesmo.
Só… não se lembrava o que era.
Lane, evidentemente, se sentia do mesmo modo, porque seu irmão caçula se aproximou da única outra cadeira no cômodo e se sentou.
– Contei para mamãe antes de vir para cá. Não acho que ela entendeu o que eu disse. Ela não está acompanhando nada. E também contei para a Gin. A reação dela foi igual à sua.
– Confirmaram se é ele?
Por algum motivo, aquilo parecia de importância vital. Ainda que… Como seria possível cometer um erro dessa magnitude?
– Fui eu quem identificou o corpo.
Edward fechou os olhos. E, por um breve instante, aquela luz piloto dele se acendeu novamente.
– Não deveria ter sido você. Eu deveria ter feito isso.
– Tudo bem. Eu não… – Lane inspirou fundo. – Acho que não estou tendo reação alguma. Tenho certeza de que ficou sabendo o que aconteceu ontem.
Edward olhou para o irmão.
– O que aconteceu ontem?
Lane teve que gargalhar.
– Às vezes não ter TV a cabo é uma coisa muito boa, não? Tudo bem, não importa. Não mesmo.
Ficaram sentados em silêncio por um bom tempo. Edward percebeu que estava esperando por algum tipo de reação emocional de si mesmo. Tristeza. Diabos, talvez até alegria.
Mas não sentiu nada. Apenas um torpor ressonante.
– Tenho que encontrar Max – disse Lane. – A polícia vai segurar a informação até estarmos prontos para dar uma declaração, mas não pode demorar muito.
– Não sei onde ele está – Edward murmurou.
– Fico ligando para o número que ele tinha há dois anos. Também mandei um e-mail, o último que ele tinha. Acho que ele deve estar mesmo fora do radar.
Mais silêncio.
– Gin está bem? – Edward perguntou.
Lane meneou a cabeça, depois percorreu o cômodo com o olhar.
– Algum de nós está?
Infelizmente, Edward pensou, a resposta é não.
QUARENTA E OITO
Na manhã seguinte, quando subiu pelas escadas dos fundos com um arranjo floral nas mãos, Lizzie tentou se encorajar.
Tudo bem ficar escondida nas estufas, mas convenhamos, ela ainda tinha treze dias no emprego em Easterly e não pretendia fazer corpo mole até lá. Sempre fora a responsável pelas flores dos quartos. Tinha seu cronograma e ia fazer muito bem o seu trabalho.
No segundo andar, aprumou os ombros e se encaminhou para a segunda melhor suíte de hóspedes. O senhor Harris lhe dissera que um hóspede tinha chegado inesperadamente e que também não havia mais a necessidade de trocar as flores no quarto de Chantal.
Muito bom saber disso, senhor Harris. Muito obrigada.
Pelo menos, era uma pessoa a menos na sua lista de “Pessoas a não encontrar”.
Uma pena que o número um ainda estivesse sob o teto de Easterly.
– Treze dias – disse baixinho. – Apenas treze dias.
Bateu à porta e esperou. Um momento depois, uma voz masculina disse: – Entre.
Empurrando a porta, viu um homem sentado à escrivaninha do avô de Lane, com as costas curvadas como uma vírgula enquanto trabalhava sobre o laptop. Ao lado dele, uma impressora cuspia páginas com tabelas e colunas e, aos seus pés, bolas de papel amarelo amassado salpicavam o chão.
Ele não levantou a cabeça.
– Só vim colocar um vaso de flores – explicou.
– Ã-hã.
Ao lado dele, sobre o peitoril da janela, havia uma bandeja de café da manhã vazia. Ao ajeitar o vaso sobre uma cômoda antiga, ofereceu: – Posso levar essa bandeja para baixo para você?
– O quê? – ele murmurou, ainda concentrado na tela.
– A bandeja?
– Sim, claro. Obrigado.
Concluiu que ele estava ali para examinar os arquivos que Rosalinda tinha deixado para trás.
Mas se lembrou que não era da sua conta.
Dando a volta na escrivaninha, viu duas malas caras. Uma estava aberta e remexida, mas ainda assim tinha a impressão de que o homem não tinha trocado de roupa desde a sua chegada. A camisa branca estava toda amassada, bem como as calças.
Também não era da sua conta.
Pegando a bandeja, ela…
– Ah, meu Deus.
Quando ele falou, ela quase deixou de olhar na direção dele, imaginando que ele tivesse encontrado algo no que quer que estivesse examinando. Mas logo percebeu que ele estava olhando para ela.
– O que foi? – perguntou.
– Você é a Lizzie. Certo?
Retraindo-se, ela olhou ao redor. O que foi meio ridículo, pois não havia ninguém atrás dela, não é?
– Hum… sim.
– A Lizzie do Lane. A horticulturista.
– Não – ela negou. – Não dele.
O homem esticou os braços acima da cabeça, e seu corpo todo estalou; ela notou que ele era muito bonito, com cabelos e olhos escuros – poderiam ser castanhos ou azuis.
O sotaque definitivamente era de Nova York.
– Uau – murmurou ele. – Pensei que você fosse de mentira.
– Se me der licença, tenho trabalho a fazer.
– E agora eu entendo por que ele não foi atrás de mais ninguém por dois anos.
Não pergunte, Lizzie se ordenou, não pergunte.
– O que disse? – ouviu-se perguntar.
Droga.
– Por dois anos, nada. Quero dizer, fizemos faculdade juntos, por isso vi em primeira mão como ele conquistou sua reputação. Mas nos dois últimos anos, ele não chegou perto de nenhuma mulher. Pensei que ele fosse gay. Até perguntei se ele era gay. – Ele mostrou as palmas num gesto defensivo. – Não que exista algo de errado com isso.
Isso faz parte de algum diálogo do Seinfeld?,23 ela se perguntou.
– Eu… hum…
– Agora estou entendendo. – O homem deu um amplo sorriso. – Mas ele disse que você está de partida? Não é da minha conta, mas… por quê? Ele é um bom homem. Não é perfeito, mas é bom. Só não sugeriria que você jogasse pôquer contra ele. Não a menos que tenha dinheiro sobrando para perder.
Lizzie franziu a testa.
– Eu… hum…
– A propósito, eu nem sabia que ele era casado. Ele nunca falou dela. Eu, por certo, nunca a vi… E agora, pensando bem, foi tudo por sua causa… Bem, de todo modo, tenho que voltar a trabalhar.
Como se o cara não tivesse acabado de lançar uma bomba no meio do quarto.
Quando o coração de Lizzie começou a bater forte, ela perguntou: – Desculpe. Mas você disse… que não sabia que ele era casado?
Ele voltou a olhar para ela.
– Não, ele nunca mencionou. Nenhuma vez nos dois anos em que dormiu no meu sofá. Só fiquei sabendo quando ele me ligou uns dias atrás.
– Mas você deve tê-la conhecido, não? Quando ela o visitou.
– Quando o visitou? Querida, ele nunca recebeu nenhuma visita, e eu sei disso porque ele nunca saía da minha casa. Jogávamos pôquer à noite e eu saía para trabalhar, só para voltar à noite e encontrá-lo no meu sofá na exata posição da manhã. Ele não via ninguém. Não atendia a telefonemas. Nunca voltou para cá. Nunca viajou. Só ficava trancado no meu apartamento, bebendo. Pensei que a próxima parada seria numa unidade de diálise.
– Nossa.
O cara arqueou uma sobrancelha, como se quisesse saber se ela precisava de alguma outra informação.
– Obrigada.
– Obrigado pelas flores. Nunca recebi flores de uma mulher antes.
E voltou a trabalhar, concentrado na tela.
Lizzie saiu do quarto num estado de torpor e teve que se lembrar de fechar a porta.
Depois de parada por um instante, virou a cabeça e olhou na direção do quarto do senhor Baldwine.
Nenhuma visita. Nenhum telefonema. Dois anos em Nova York no sofá do amigo.
E, supostamente, Chantal estava grávida.
De Lane.
Lizzie não teve ciência de quando se decidiu a andar. Mas, antes que se desse conta, deixou a bandeja no chão ao lado do quarto de hóspedes e andou nas pontas dos pés sobre a passadeira. Ao chegar ao quarto do senhor Baldwine, encostou a orelha na porta.
Depois bateu com suavidade.
Quando não obteve resposta, entrou sorrateiramente e se fechou ali dentro.
Havia algo de estranho no ar. Pensando bem, estava invadindo o lugar, visto que não tinha nenhum motivo válido para estar ali.
Bem, nenhum motivo profissional válido.
Relanceando para se certificar de que não havia ninguém no banheiro adjacente, apressou-se para junto da enorme cama, arrumada com precisão militar.
Ajoelhando-se, estendeu o pescoço debaixo do criado-mudo, debaixo da própria cabeceira da cama.
O tecido de seda ainda estava ali, no chão.
Lizzie esticou o braço e…
Toc, toc, toc.
– Serviço de quarto, senhor Baldwine.
Mergulhando rapidamente, Lizzie se enfiou embaixo da cama, encolhendo as pernas enquanto a criada abria a porta e entrava no quarto.
Um assobio suave e passadas leves sobre o carpete anunciavam o progresso da mulher conforme ela ia para o banheiro.
Por favor, não limpe, Lizzie suplicou em pensamentos, deitada no escuro. Só deixe as toalhas e siga com a sua vida.
Deixe as toalhas.
Siga em frente.
Deus, seu coração batia tão forte que foi um milagre a criada não ouvir nada.
Momento depois, um milagre aconteceu e as passadas recuaram para a porta, fechando-a novamente.
Lizzie relaxou e cerrou os olhos. Certo, riscaria ladra de galinhas da lista das suas possíveis escolhas de carreira para quando partisse de Easterly.
Segurando a lingerie, enfiou a peça no cós dos seus shorts e a cobriu, soltando a blusa por cima. Depois saiu dali, ficou de pé e tratou de se apressar.
Junto à porta, ouviu…
Caramba, o aspirador de pó estava ali no corredor bem na sua frente.
Nos aposentos da senhorita Aurora, Lane se esforçava para terminar o bacon com ovos.
– Você não precisa terminar, se não quiser – ela lhe disse ao seu lado.
– Nunca pensei ouvir isso da senhora.
– As regras estão suspensas hoje.
Recostando-se na poltrona reclinável, ele observou a pequenina cozinha embutida. Todos os pratos estavam lavados, já secando no escorredor. A esponja estava na pia. O pano de pratos estava dobrado com esmero sobre o puxador do fogão.
– Acha que o reverendo Nyce faria o funeral? – perguntou. – Na igreja batista de Charlemont?
A senhorita Aurora o fitou, curiosa.
– Mesmo?
– É a minha igreja. De Edward, Gin e Max também. – Olhou para ela. – A senhora foi a única pessoa que nos levou para rezar.
– Acho que ele ficaria honrado.
– Que bom. Vou ligar para ele.
Quando se calaram, Lane ficou olhando para a frente, sem ver nada, se concentrando no vazio. Também não havia nada na cabeça dele. Estava entorpecido, era um receptáculo vazio reagindo ao mundo ao seu redor, sem viver de verdade.
– Não vou te dar a minha bênção, menino.
Ele estremeceu e voltou a olhar para ela.
– O que disse?
– Não vou dizer que vai ficar tudo bem se você for embora.
Lane franziu o cenho e abriu a boca. Depois a fechou.
Engraçado, não se lembrava de ter dito isso em voz alta, mas ela o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa.
– Não deu certo com a Lizzie. De novo. Papai morreu. Edward se mudou. Mamãe está… bem, você sabe como ela está. Gin vai se casar com aquele idiota e provavelmente vai levar Amelia com ela. Esta era chegou ao fim, senhorita Aurora. E o que é pior: já não sei o que o futuro nos reserva. Easterly… – Moveu a mão no ar, pensando na propriedade e em todas as pessoas que dependiam dela. – Easterly faz parte do passado. Sabe, não posso viver aqui. É venenoso. Esta família, esta casa, este estilo de vida… tudo isso é simplesmente venenoso.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Você está encarando do jeito errado.
– Não estou, não.
Ela se colocou mais para a frente na poltrona e se esticou para tocar-lhe as mãos.
– Este é o seu momento, Lane. Deus lhe deu o dever sagrado de manter esta família unida. Você é o único que pode fazer isso. Tudo vai se ajeitar porque é o seu destino unir o seu sangue uma vez mais. É o tipo de coisa que acontece com algumas gerações. Está acontecendo agora. Esta é a sua hora.
Lane ficou encarando suas mãos juntas, o preto e o branco entrelaçados, e disse: – Era para ser Edward, sabe?
– Não, ou ele não estaria onde está agora. – A voz da senhorita Aurora demonstrou força. – Eu não te criei como um covarde, Lane. Não te criei para que abandonasse o seu dever e saísse correndo. Se quiser me honrar quando eu tiver partido, vai cumprir o seu dever fazendo com que esta família siga em frente, juntos. Cumpri o meu dever sagrado com você. Agora, você, filho do meu coração, vai fazer o mesmo com eles.
Lane fechou os olhos e sentiu um peso repentino cair sobre seu corpo, como se as paredes e o teto de Easterly tivessem se afundado sobre ele.
– Você vai fazer isso por mim, Lane. Porque se não fizer, tudo o que eu fiz por você não vai ter significado nada. Se não fizer, terei fracassado no meu dever.
Por dentro, ele gritava.
Por dentro, ele já estava num avião, indo para qualquer lugar distante de Charlemont.
– Deus não nos dá mais do que podemos suportar – disse ela com seriedade.
Mas e se Deus não nos conhece de verdade?, Lane pensou consigo. Ou pior… e se os planos de Deus estiverem simplesmente errados?
– Não sei, senhorita Aurora.
– Bem, eu sei. E você não vai me desapontar, filho. Simplesmente não vai.
Seinfeld foi uma série de TV produzida pela NBC. Tendo sido transmitida entre 1989 e 1998, foi eleita pelo TV Guide, em 2002, como "melhor programa de todos os tempos". (N.E.)
QUARENTA E NOVE
A verdadeira definição da eternidade, Lizzie concluiu, é quando se está preso num lugar em que não se deveria estar.
Com um babydoll que não é seu enfiado no cós dos seus malditos shorts.
Quando os sons por fim cessaram, ela aguardou mais uns cinco ou dez minutos antes de dar uma espiada.
Hora do almoço, deduziu. Graças a Deus.
Foi para o meio do corredor, deixou que a porta se fechasse atrás de si e ficou ali, com os ouvidos aguçados.
A próxima parada ficava além do quarto de Gin: o quarto de Chantal.
Bateu à porta. Nenhuma resposta. A mulher tinha ido embora, certo?
Esgueirando-se para dentro, fechou-se ali e…
– Ai, meu Deus! – murmurou, agitando a mão diante do nariz.
A fragrância do perfume caro fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas, mas como tinha peixes maiores para pescar, foi rapidamente para o closet de Chantal, parando diante de um armário grande o suficiente para rivalizar com o departamento feminino inteiro da Nordstrom. Ou da Saks. Ou quaisquer outros lugares elegantes onde mulheres como Chantal compravam suas roupas.
Puxa, seria capaz mesmo de fazer aquilo?
Concluiu que era provavelmente uma ideia bem idiota, enquanto procurava em meio aos cabides, passando por todo tipo de seda, cetim e renda. E terninhos, jaquetas, vestidos de gala…
– Onde está a sua lingerie, Chantal?
Claro, na cômoda.
No meio do closet, como uma ilha de organização, havia um móvel com gavetas dos dois lados. Começou a puxá-las aleatoriamente.
Ok, isso é uma idiotice, pensou. Achou mesmo que encontraria a parte de baixo d…
Estava na terceira gaveta, de baixo para cima, à esquerda do lado que dava para o norte quando encontrou o que procurava.
Mais ou menos.
No meio dos conjuntos de calcinha e sutiã perfilados e separados por papel de seda, encontrou… um babydoll roxo idêntico àquele encontrado debaixo da cama do quarto do senhor Baldwine.
Só para ter certeza de que não estava imaginando coisas, pegou o que trazia consigo, cor de pêssego, e os colocou lado a lado sobre o carpete branco e fofo. O mesmo tamanho, a mesma marca… La Perla? Tudo idêntico, a não ser a cor.
Sentou-se e ficou olhando para as peças.
E foi então que viu a mancha no tapete.
Do outro lado do quarto, havia uma penteadeira alinhada a uma alcova com janelas com vista para o jardim. Era o lugar ideal para fazer a maquiagem – ou para que alguém fizesse em você – sob a luz natural.
E debaixo das pernas de marfim, num canto, havia uma mancha amarela, redonda, meio escondida.
O tipo de coisa que se encontra em casas com cachorros.
Só que não existiam cachorros em Easterly.
Engatinhando até lá, enfiou-se debaixo da segunda peça de mobília e colocou o dedo sobre a mancha. Estava seca. Mas, ao aproximar os dedos do nariz… isso mesmo, aquela era a origem de todo o perfume no ar.
Franzindo o cenho, Lizzie se ajoelhou.
– Ai, meu Deus.
O tampo de vidro da penteadeira estava rachado no meio. E o espelho estava partido.
Com sangue bem no centro.
Hora de sair daqui, disse a si mesma.
Voltando para o closet, pegou a lingerie que deixara no chão, devolveu a roxa na gaveta e depois, numa inspiração, usou a cor de pêssego para limpar suas impressões digitais dos puxadores. De todos eles.
A última coisa que precisava era que a polícia fosse até ali e descobrisse que ela estivera bisbilhotando, por assim dizer…
Ficou imóvel ao ouvir uma voz masculina vinda do quarto ao lado, de Gin.
Ouviu duas pessoas conversando. Bem alto.
Indo até a parede, encostou a orelha ao lado da pintura de uma mulher francesa basicamente nua.
– Não me importo – Gin disse. – Vai ser apenas no cartório.
– O seu pai está morto.
Lizzie se retraiu, cobrindo a boca com a mão. O quê?
Richard Pford prosseguiu:
– Vamos esperar, nos casaremos depois do enterro.
– Não estou de luto por causa dele.
– Claro que não está. Para isso, você precisaria ter um coração, e nós dois sabemos que essa é sua anomalia física.
Lizzie recuou e tropeçou. Caiu sobre a cômoda.
Depois de um instante, continuou a limpar suas impressões e voltou para a porta que dava para o corredor. Como seu coração batia acelerado e forte, ela não estava conseguindo ouvir direito, mas mandou tudo às favas. Se fosse descoberta, o que fariam com ela?
Ela podia muito bem dizer que estava verificando as flores.
Mas não havia ninguém ali.
Seguiu às cegas para a escada dos empregados, com a mente num torvelinho, os pensamentos se debatendo, dissonantes, se partindo.
No meio de tudo aquilo, contudo, chegou a uma conclusão inescapável.
Tinha cometido um erro terrível.
Do tipo que seria impossível obter perdão.
Já no primeiro andar, parou de súbito. E percebeu que, de todos os lugares em que poderia ter se detido, escolhera parar diante do escritório de Rosalinda.
William Baldwine também estava morto.
Como?, ficou se perguntando. O que tinha acontecido?
Numa série de flashes, viu Lane parado na estufa, com a expressão fechada, a voz sem nenhuma emoção. Ouviu o amigo dele dizendo que, em vez de transar alegremente com Chantal às escondidas, ele não recebera ninguém e não fizera nada por dois anos.
E depois veio a bomba com aquele espelho quebrado no andar de cima. E a lingerie.
Lembrou-se da última imagem de Chantal à piscina, pedindo uma limonada.
Naquela hora, o fato de ela estar usando uma saída de seda não lhe parecera muito significativo. Mas agora…
Ela estava grávida e a barriga começava a aparecer. Motivo pelo qual ela pedira a bebida virgem, ou seja, sem álcool.
Chantal estava dormindo com William Baldwine. Traindo o filho com o pai. E tinha engravidado.
Ela deve ter contado a William, Lizzie concluiu. Depois do Derby.
E o homem perdeu as estribeiras. E bateu nela perto da penteadeira.
E depois a expulsou da casa. Ou algo assim.
Balançando a cabeça, Lizzie levou as mãos ao rosto rubro e tentou respirar.
Seu único pensamento foi o de precisar se acertar com Lane. Tinha o condenado com base em seu próprio medo de se magoar novamente…
Quando, na verdade, existia uma possibilidade muito, mas muito grande, de ele não ter nada a ver com todo o alvoroço.
Abaixando os braços, soube que palavras não bastariam. Não naquele caso.
Quando a solução surgiu, ela consultou o relógio. Se corresse…
Atravessou a cozinha às pressas, e a senhorita Aurora ergueu o olhar da panela no fogão.
– Aonde vai? – a mulher perguntou. – O que está pegando fogo?
Lizzie derrapou junto à porta que dava para a garagem.
– Preciso ir para Indiana. Se vir Lane, diga que vou voltar. Eu vou voltar!
CINQUENTA
Lane pensou que a área externa estava bem agradável, ao se sentar no jardim.
Olhando para os muros cobertos de heras e os canteiros de flores ao longo da piscina azul e das portas francesas do centro de negócios, imaginou todo o árduo trabalho necessário para manter aquela beleza “natural”.
Era impossível não visualizar Lizzie ali, mas refreou o impulso rapidamente.
Não havia motivo para se aborrecer com esse tipo de coisa.
Curvando a cabeça, esfregou os olhos. Samuel T. tinha telefonado para falar da situação de Chantal, e sabia que tinha que retornar a ligação. Mitch também tinha deixado uma mensagem, provavelmente a respeito dos resultados preliminares da autópsia. Nesse meio-tempo, lá no segundo andar, Jeff avaliava todos os relatórios financeiros.
As decisões quanto ao funeral precisavam ser tomadas.
Mas não tinha forças para lidar com nada daquilo.
Maldição, senhorita Aurora, pensou. Deixe-me ir. Só me deixe fugir de tudo.
Amava tanto aquela mulher. E devia-lhe muito mais. Ela era sua mãe, e mesmo que estivesse lhe dando uma surra moral, ele simplesmente já não estava mais envolvido naquela luta.
Erguendo os olhos para a incrível extensão branca de Easterly, fitou a mansão como um corretor imobiliário o faria. Não obstante a hipoteca de Sutton Smythe, poderia quitar boa parte da dívida junto à Fundos Prospect apenas com a venda do lugar.
Inferno. Com o pai morto, talvez pudessem procurar Sutton e pedir que ela não depositasse o dinheiro e rasgasse o documento.
Pensou em Edward. Deveria mandar Edward resolver esse assunto.
Ou talvez não. Talvez devesse simplesmente lavar as mãos.
Talvez, em vez de tentar pilotar o avião danificado no qual todos estavam, devesse deixar que a maldita aeronave se chocasse com a montanha.
Podia morrer como um covarde, podia desapontar sua mãe, mas, pelo menos, terminaria mais rápido do que se tentasse adivinhar os controles numa tentativa de aterrissar numa pista longe, muito longe dali…
Lane?
Fechou os olhos. Maravilha. Estava começando a alucinar.
Como se Lizzie fosse mesmo procurá-lo…
– Lane?
Virando-se no banco de pedra, ele viu… bem, hipoteticamente, ele a viu parada a poucos metros de distância.
E, vejam só, sob a luz do entardecer, ela estava mais linda do que nunca. Natural, adorável, com os límpidos olhos azuis e os cabelos iluminados pelo efeito do sol, e aquele uniforme de Easterly, que na verdade não deveria deixá-la sexy, mas que nela era simplesmente demais.
– Lane, posso falar com você?
Ele limpou a garganta. Sentou-se ereto.
Ao que tudo levava a crer, não era fruto da sua imaginação.
– Sim, claro. Do que precisa? Se for uma carta de referência, posso pedir ao mordomo que…
– Desculpe. – Quando a voz dela se partiu, ela respirou fundo. – Sinto muito, muito mesmo.
O que ela estava…
– Ah, meu pai. – Encolheu os ombros. – Acho que deve ter ficado sabendo. Sim, ele morreu. O enterro será na semana que vem. Obrigado pelas palavras gentis.
– Não estou falando disso. Embora, sim, eu lamente que você tenha perdido o seu pai. Sei que o relacionamento entre vocês não era dos melhores, mas ainda assim deve ser difícil.
– Bem, acontece que me supero em relacionamentos que não são bons. Parece uma habilidade minha.
Até para os próprios ouvidos, sua voz soou falsa. As palavras não eram as que normalmente usaria.
Edward, pensou, entorpecido. Estava parecendo Edward.
Lizzie se aproximou, e ele ficou mais do que surpreso por vê-la se ajoelhar diante dele. E ela estava…
– Por que está chorando? – perguntou. – Você está bem?
– Deus, como você pode perguntar isso? Depois de tudo o que eu fiz…
– Do que você está falando?
Então começaram a falar um por cima do outro, do modo típico deles. Mas como Lane não tinha forças para tentar decifrar nada, calou-se, na esperança de que ela explicasse e esclarecesse as coisas.
– Eu errei – disse, emocionada. – Sinto muito por não ter acreditado em você. A respeito de Chantal. Eu só… Eu não queria me magoar de novo, e me precipitei em tirar conclusões. E, ah, meu Deus, eu sei que foi o seu pai. Eu sei que foi ele. Foi ele quem bateu nela, foi ele quem a engravidou. Sinto muito.
Lágrimas rolaram pelo rosto dela, uma chuva de lágrimas, aterrissando na grama aos pés dele.
Lane piscou. Foi só o que ele conseguiu…
Jesus, seu cérebro não seria capaz de processar tantas informações. Ele literalmente não entendia o que ela estava dizendo…
Levando a mão às costas, ela pegou algo. Um maço de papéis dobrados ao meio?
– Lamento que não baste – ela disse. – Magoei você demais. Então preciso fazer algo concreto, para provar que estou ao seu lado, que eu te amo e que… que estou ao seu lado mesmo.
Entregou as folhas para ele.
– Eu preciso te mostrar, e não te dizer.
Lane balançou a cabeça.
– Lizzie, eu não sei o que…
– Pegue – ela disse.
Fez o que ela pediu porque não tinha motivos para não fazê-lo. Alisando a dobra, olhou para…
Um monte de palavras. Seguidas de alguns números.
A segunda folha era um mapa?
– É a escritura da minha fazenda – ela sussurrou. – Sei que não é nada comparado ao que você tem. Mas é tudo o que tenho neste mundo.
– Não estou entendendo…
– Sei dos problemas financeiros que você está enfrentando, e sei que não vai ajudar a saldar a dívida, mas vale o bastante para ajudá-lo a pagar bons advogados, pessoas que podem ajudá-lo a resolver a questão. – Apontou para o documento. – Quitei o empréstimo ontem. Não devo mais nada. E já fui abordada várias vezes para que a vendesse. A terra é boa. Vale bastante. E agora é sua.
O ar saiu do corpo dele.
O coração parou de bater.
A alma se partiu ao meio.
– Eu te amo, Lane. Desculpe por ter duvidado de você. Eu sinto que… Deus, você não faz ideia de como estou me sentindo mal. Deixe-me recompensá-lo do único modo que posso. Ou jogue esses documentos na minha cara, se quiser. Não vou te culpar. Mas eu tinha que fazer alguma coisa relevante. Eu tinha que… te oferecer tudo o que sou e tudo o que tenho…
Lane não se deu conta de que estava se aproximando dela.
Mas soube no instante em que ela foi de encontro ao seu peito.
Envolvendo-a com os braços, descontrolou-se por completo, as represas se abriram, e tudo saiu aos soluços.
E Lizzie, com seu corpo forte e coração grande, abraçou-o pelo tempo que foi necessário.
– Vai ficar tudo bem – ela lhe disse. – Eu te prometo. De algum modo, tudo vai ficar bem.
Quando, por fim, ele conseguiu se controlar o suficiente para se afastar, sentiu uma súbita vontade de se apalpar entre as pernas só para ver se ainda era homem. Mas Lizzie não parecia se importar por ele estar fragilizado.
Enxugou o rosto dela com os polegares e a beijou.
– Eu te amo, Lizzie. – Depois balançou a cabeça. – Mas não sei quanto a Deus.
– O que disse?
Lane expirou, estremecendo.
– É só uma coisa que a senhorita Aurora sempre me disse.
– E o que era?
Ele beijou sua mulher uma vez mais.
– Não sei se tenho Deus. Mas tenho certeza de uma coisa: eu tenho você. E isso me torna mais rico do que preciso ser.
Trazendo-a de volta para junto de si, ele a abraçou e ficou olhando para Easterly.
Ao diabo com a ideia de jogar o avião numa montanha, pensou.
A partir daquele instante, ele seria o chefe da família, a seu modo.
E ele estaria ferrado caso as coisas ruíssem na sua vigília.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
TRINTA E SETE
A chuva imprevista começou pouco depois das cinco da tarde. Enquanto dobrava a última das mesas debaixo da tenda, Lizzie sentiu o cheiro da mudança no ar e olhou para as heras no muro de tijolos do jardim. Como esperado, as folhas dançavam ao vento, reluzentes, encarando o céu cinzento.
– Não era para chover – murmurou para ninguém em especial.
– Você sabe o que dizem sobre o clima por estas partes – um dos garçons replicou.
É, pois é, ela sabia.
Onde estaria Lane?, perguntou-se. Estava sem notícias dele desde a conversa ao lado da picape, seis horas atrás.
O senhor Harris se aproximou.
– Você disse para eles que tudo isso vai para a área de carga e descarga?
– Sim – ela respondeu. – É sempre ali que ficam as coisas alugadas e, antes que pergunte, os copos e talheres também.
Já que o homem estava parado ali sem fazer nada, ela ficou tentada a pedir que ele a ajudasse segurando uma das pontas da mesa para carregá-la até a parte oposta do deque. Mas estava bem evidente que ele não era alguém que metia a mão na massa.
– Qual o problema?
– A polícia está aqui de novo. Estão tentando respeitar o evento, mas querem me interrogar mais uma vez.
Lizzie abaixou a voz.
– Quer que eu cuide das coisas?
– Sinto que eles não querem esperar.
– Pode deixar, tudo será feito da maneira correta.
O mordomo limpou a garganta. Em seguida, que Deus o abençoasse, ele se curvou levemente na sua direção.
– Agradeço imensamente. Obrigado. Não deve demorar muito.
Ela o viu se afastar, depois voltou ao trabalho.
Levantando a mesa, atravessou o espaço cavernoso e prosseguiu a céu aberto, onde o início de um chuvisco a molhou nos ombros e na cabeça. A área de carga e descarga ficava na parte oposta da casa. O sotaque carregado de Greta ressoava pelo lugar, enquanto dois empregados, um entrando com o lixo da festa, o outro saindo de mãos vazias, se apressavam.
Lizzie se dirigiu para junto deles, aproximando-se das mercadorias a serem devolvidas.
A tenda maior seria desarmada em vinte minutos, e a equipe de limpeza já estava trabalhando no chão, recolhendo guardanapos amassados, garfos perdidos e copos.
Os ricos não eram diferentes de qualquer outro rebanho de animais, capazes de deixar uma trilha de detritos depois de abandonarem o local de alimentação.
– Última mesa – disse, assim que se viu debaixo da tenda.
– Que bom. – Greta apontou para uma pilha. – Fica ali, ja?
– Isso mesmo. – Lizzie ergueu a mesa na altura da cintura e a deslizou no alto da pilha. – O senhor Harris teve que cuidar de umas coisas, por isso vou supervisionar a limpeza.
– Logo terremos tudo em orrdem. – Greta apontou o outro canto para dois rapazes com seis engradados de copos cada um. – Ali. Deixem debaixo da coberrturra, sim?
– Vou dar uma olhada na cozinha.
– Vamos terrminarr dentrro de uma horra.
– Como planejado.
– Semprre.
E Greta estava certa. Terminaram às seis em ponto; a tenda grande foi desmontada, a casa e os jardins foram liberados e o quintal estava limpo. Como de hábito, o esforço tinha sido tremendo. Os empregados se retiravam; a maioria se reuniria para beber e se livrar das dores, desconfortos e “Oh, meu Deus” do dia, mas não Lizzie nem sua colega. Casa. As duas iriam para suas respectivas casas. Lizzie esperaria por Lane, e Greta seria recebida por uma refeição preparada pelo marido.
As duas se encaminharam para o estacionamento dos funcionários, não disseram nenhuma palavra e, junto aos carros, abraçaram-se rapidamente.
– Mais uma vencida – Lizzie disse ao se separarem.
– Agorra vamos nos preparrarr parra a festa de aniverrsárrio da Pequena V.E.
Ou a festa de casamento de Gin, Lizzie ponderou.
– Eu te vejo amanhã? – perguntou.
– Domingo? Não – Greta gargalhou. – Não haverrá uma alma se-querr se movendo aqui, nem um marrtíni, nem um rato.
– Ah, é mesmo. Desculpe, a minha cabeça já pifou. Te vejo na segunda, então.
– Está bem parra dirrigirr?
– Claro!
Com um aceno, Lizzie entrou no seu Yaris e depois se juntou à fila de carros e caminhões que saía pelo caminho dos funcionários.
Tomando a esquerda na estrada River, a garoa se transformou em chuva de verdade, e o dilúvio a fez pensar na corrida. Caramba, perdera a corrida. Esticando a mão para o rádio, sintonizou na estação local. Quando conseguiu ouvir comentários sobre a corrida, já estava no entroncamento, passando por cima do rio Ohio.
Mas não acompanhou o relato – e não só porque não entendia nada do esporte.
Franzindo o cenho, aproximou o rosto do para-brisa.
– Meu Deus…
Mais à frente, o horizonte estava carregado de nuvens negras pairando alto no céu. E o pior? Havia uma coloração meio esverdeada em tudo aquilo. E mesmo um olhar desacostumado perceberia que aquilo parecia estar girando.
Olhou por cima do ombro. Atrás dela, não viu nada anormal. Havia até uma faixa de céu azul.
Enfiando a mão na bolsa, pegou o celular e ligou para Easterly. Quando aquela voz carregada de sotaque inglês atendeu, ela disse: – O tempo está piorando. Você vai ter que…
– Senhorita King?
– Escute, você vai ter que cobrir a piscina e os vasos…
– Mas o tempo não está piorando. Na verdade, a previsão deixou bem claro que deveríamos esperar apenas uns chuviscos esta noite.
Quando um raio cortou uma nuvem logo adiante, ela pensou que pelo menos se entendera com o homem uma hora antes.
– A previsão do tempo que se dane. Estou te contando o que está bem na minha frente: há uma tempestade maior que o centro da cidade de Charlemont atravessando o rio, e a colina de Easterly é a primeira coisa que ela vai atingir.
Droga, será que se lembrara de fechar as janelas da sua casa?
– Eu desconhecia os seus talentos de metereologista – o senhor Harris comentou com secura.
E o senhor é um cretino.
– Muito bem, mas depois você vai ter que explicar o seguinte assim que ela passar por aí: um, por que o abrigo ao lado da piscina saiu voando; dois, por que os quatro vasos da varanda da parte oeste caíram e terão que ser replantados; três, onde foi parar a mobília do jardim, porque, a menos que garanta que ela esteja na casa da piscina, ela acabará voando pelos canteiros do jardim. O que me leva ao número quatro, ou seja, quando as heras, as rosas e as hidrângeas serão reparadas. Ah, e depois você pode concluir isso fazendo um cheque de sete mil dólares para a família para cobrir todo o material de jardinagem que terá que ser reposto.
Tic, tac, tic, tac…
– Qual era o segundo item? – ele perguntou.
Te peguei.
Lizzie repassou todo o procedimento que ela e Greta desenvolveram, resultado do trabalho de vários anos com Gary McAdams, preparando-se para as grandes tempestades de primavera e de verão. O pior era que não era necessário um tornado F5 caindo diretamente em Easterly para criar o caos. Algumas tempestades eram mais do que capazes de estragar bastante coisa, se fossem atingidos por ventos diretos.
Era uma das coisas que aprendera rapidamente ao se mudar para Charlemont.
Como se provando que estava certa, ela logo atravessou uma cortina de chuva, que atingiu seu para-brisa com tanta força que pareceu uma dupla de sapateadores dançando “The Star-Spangled Banner”.
Aumentando a velocidade dos limpadores, tirou o pé do acelerador porque seu Yaris era bem capaz de hidroplanar na estrada mesmo na mais ínfima quantidade de água sob os pneus finos.
– Entendeu? – ela perguntou. – Preciso desligar e dirigir no meio desta coisa.
– Sim, sim, claro… ah, meu Deus – o homem sussurrou.
– Então, está vendo a tempestade agora? – Divirta-se, ela pensou. – Melhor começar a se mexer.
– Sim, de fato.
Desligou e jogou o celular dentro da bolsa. Depois, só lhe restou se dobrar em cima do volante, segurar firme… e rezar para que nenhum exibido numa SUV a jogasse para fora da estrada.
A situação piorou bem rápido.
E, puxa, depois de um dia atarefado e longo como o que tivera, a última coisa que precisava era enfrentar aquele aguaceiro reduzindo sua visibilidade para um metro e meio de distância, somado a trovões ensurdecedores e raios. O clima parecia disposto a acompanhar lado a lado o que acontecia em Easterly. Quase como se o drama na casa estivesse afetando o tempo.
Ok, talvez aquilo fosse exagero.
Mas, mesmo assim…
Levou uns quinhentos anos para chegar à sua saída. E mais setecentos ou oitocentos para chegar à entrada da sua casa. Nesse meio-tempo, a tempestade se transformou em Tempestade, com T maiúsculo: raios cruzavam o céu, parecendo querer atingir seu carro, e trovões rugiam. Ela foi atingida por uma rajada de granizo que poderia ter derrubado Fenway Park. Já com os nós dos dedos embranquecidos, irritada, preocupada com Lane e toda dolorida, finalmente chegou em casa, toda esbaforida e…
O dedo de Deus.
Foi só no que pensou.
Num momento, estava estacionando em seu lugar de costume próximo à casa. No seguinte? Um raio desceu do céu e atingiu a sua enorme e linda árvore bem no topo.
Faíscas se formaram, como se fosse 4 de julho.
E ela gritou, pisando no freio:
– Não!
Os pneus do Yaris derraparam no piso seco. Ou na estrada lamacenta e escorregadia.
E foi nessa hora que descobriu que Lane estava na sua casa.
Porque acabou batendo com tudo no para-choque traseiro do Porsche dele.
Lane já estava havia duas horas sentado à mesa da cozinha de Lizzie, lendo os relatórios financeiros da CBB, quando a chuva chegou. Enquanto a tempestade dava seu primeiro show, com trovões e raios sacudindo a casa, ele nem se deu ao trabalho de desviar o olhar do laptop, mesmo quando os antigos vidros tremeram e o telhado rangeu.
A quantidade de informação era tremenda.
E ele estava em pânico por entender apenas uma fração dela.
Mas, pensando bem, tinha sido muita ingenuidade da parte dele pensar que poderia lidar com os negócios do pai com algum tipo de diligência. Fora a quantidade incrível de arquivos, ele não tinha o conhecimento necessário para entender tudo aquilo.
Ainda bem que Edward tinha se preparado para algo assim, criando aquelas contas fantasmas, senhas e e-mails. Sem tais coisas, teria sido impossível exportar as informações sem disparar algum alerta interno.
Se bem que isso ainda poderia acontecer.
Ele não sabia de quanto tempo dispunham até que o pai deles descobrisse o vazamento de informações.
Fazendo uma pausa, recostou-se na cadeira e esfregou os olhos. Foi nesse instante que o segundo round da tempestade começou. Seja pelo cochilo forçado devido aos seus olhos cansados ou pelo fato de que suas células T estavam alertas, ele logo percebeu que a casa de Lizzie estava sendo atacada.
Levantou-se, deu a volta e fechou todas as persianas do andar de cima e de baixo. Enquanto corria de cômodo em cômodo, os raios iluminavam tudo como estrobos enlouquecidos, lançando sombras velozes sobre o piso de Lizzie, a mobília, o piano. O céu estava tão escuro como se fosse meia-noite, a chuva açoitava a fazenda, e Lane sentiu como se estivesse numa zona de guerra.
Tinha esquecido como aquelas tempestades de primavera vindas do leste podiam ser furiosas, as colisões das frentes frias e quentes correndo à solta por quilômetros e quilômetros da planície no centro-oeste.
De volta ao primeiro andar, relanceou para a varanda e praguejou. As mesinhas e as cadeiras de balanço de vime estavam todas amontoadas, numa agitação nervosa provocada pelas rajadas de vento.
Quando foi abrir a porta, a força da corrente fez com que ele tivesse que usar força para fechá-la novamente depois que saiu. Ao segurar tudo o que encontrava, moveu os objetos de Lizzie para o canto oposto da varanda, distante dos ventos mais fortes.
Estava voltando para apanhar a última cadeira quando viu faróis fazendo a curva na estrada principal. Só podia ser ela, e ele ficou aliviado. Tivera a intenção de telefonar, mandar uma mensagem, sinal de fumaça ou um pombo-correio, mas sua mente acabara se concentrando em…
Tudo aconteceu numa estranha combinação de câmera lenta com a velocidade do som: um raio surgiu no céu, seguido por um barulho de explosão e uma bomba de iluminação.
Um galho do tamanho de uma viga se partiu e caiu no chão.
Bem onde Lizzie acabava de estacionar.
O som de metal se retorcendo fez o coração dele parar de bater.
– Lizzie! – ele berrou e voou para fora da varanda.
A chuva o atingiu no rosto e o vento parecia uma matilha de cães atacando suas roupas, mas ele seguiu em frente.
A morte vem em três.
– Não! – ele berrou na tempestade. – Nããããooo!
O Yaris cedeu sob o peso, o teto amassou, a capota afundou, e a vida dele passou pela sua mente quando ele parou de súbito, descalço. Galhos com folhas novas atrapalhavam sua visão, assim como a chuva e o vento, e os raios e trovões continuaram, como se nada de importante tivesse acontecido.
– Lizzie!
Ele se enfiou na confusão verde, se contorcendo. Mesmo com todo aquele vento, ele sentia o cheiro de gasolina e óleo, e ouvia o sibilo do motor mortalmente atingido.
Talvez toda aquela umidade impedisse uma explosão?
Resolveu mudar de tática e começou a subir no carro, até dar a volta e chegar à frente do veículo. Por fim, sentiu algo molhado e escorregadio nas mãos, e começou a bater, para que ela soubesse que ele estava ali.
– Lizzie, vou te tirar daí!
Com puxões frenéticos, arrancou galhos e folhas até encontrar o vidro do para-brisa todo rachado. Fechando o punho, socou com força, e faltou pouco para que ele inteiro passasse pela abertura.
Lizzie estava de lado, com a cabeça apoiada no banco do passageiro, mexendo os braços como se estivesse tentando se orientar. Os dois airbags tinham sido acionados, e o pó branco e seco do interior contrastava com a umidade da tempestade.
– Lizzie!
Pelo menos ela estava se mexendo.
Merda. Ele não tinha como abrir as portas. Teria que puxá-la.
Esticando o braço, tocou-a no rosto.
– Lizzie?
Ela piscou, e havia sangue em sua testa.
– Lane…?
– Estou com você. Vou te tirar daí. Está machucada? O pescoço, como está? As costas?
– Desculpe, bati no seu carro…
Ele fechou os olhos por uma fração de segundo e murmurou uma oração. Em seguida, voltou a agir.
– Vou ter que te arrastar para fora.
Abrindo caminho pelo interior do carro, conseguiu, de algum modo, soltar o cinto dela, segurá-la pelos braços…
E parou.
– Lizzie? Presta atenção, tem certeza de que não está machucada? Consegue mover as pernas e os braços? – Quando ela não respondeu, ele sentiu uma onda de pânico. – Lizzie? Lizzie!
TRINTA E OITO
De volta a Charlemont, Edward não estava prestando atenção em seu último cavalo no Derby. Não estava sequer na pista.
Não, ele estava tentando um novo papel.
O de perseguidor.
Atrás do volante do caminhão do Haras Vermelho & Preto, olhou pela janela do passageiro para a enorme mansão de tijolos aparentes diante da qual estava parado.
Construída no início dos anos 1900, a grande casa georgiana era propositadamente maior do que Easterly. Já fazia quase um século que os Sutton eram arrivistas bem-sucedidos, e quando a fortuna da família por fim superou a dos Bradford, aquela casa transformou-se num troféu para o seu triunfo. Com seus vinte ou trinta quartos e um vilarejo para os empregados, a mansão era quase uma cidade, na segunda melhor colina com a segunda melhor vista do rio e o segundo melhor jardim.
Mas, sim, vencia Easterly em relação ao tamanho.
Assim como a Destilaria Sutton Corporation, que era um terço maior que a CBB.
Edward meneou a cabeça e relanceou para o relógio barato que passara a usar. Caso Sutton se ativesse aos seus costumes, não tardaria a chegar.
Pelo menos, nenhum funcionário uniformizado acompanhado por um pastor alemão a ladrar veio incomodá-lo pedindo para que fosse embora. A segurança da propriedade da família de Sutton Smythe era tão rigorosa quanto a de Easterly, mas ele tinha duas vantagens. A primeira era o logotipo em seu veículo; a marca registrada V&P era como uma garantia real, e mesmo que fosse um serial killer parado no vestíbulo do tribunal de justiça no centro da cidade, existia uma grande possibilidade que a polícia o deixasse em paz. A segunda coisa que tinha a seu favor era o Derby. Sem dúvida, todos ainda estavam comentando sobre a corrida, acertando apostas, deliciando-se com suas glórias.
Em breve. Muito em breve ela estaria em casa.
Depois que Lane o levou de volta à fazenda, ele tomou alguns remédios e um drinque. Em seguida, releu os papéis da hipoteca… E ficou só mais dez minutos ali antes de apanhar a bolsa de festa de Sutton e claudicar até um dos caminhões.
Moe e Shelby e o resto dos ajudantes estavam na pista junto aos treinadores e aos cavalos. Ao se afastar dirigindo, pensou que era uma lástima desperdiçar todo o silêncio e a tranquilidade da fazenda, mas aquilo era uma coisa que ele tinha que resolver pessoalmente.
A chuva começou a cair – primeiro uns pingos, depois um chuvisco.
Voltou a olhar para o relógio.
Treze minutos. Estava apostando que ela chegaria em treze minutos. Enquanto as outras 200 mil pessoas em Steeplehill Downs teriam que caminhar pelo longo trajeto até seus carros, para em seguida enfrentar um congestionamento na tentativa de entrar na autoestrada, pessoas como os Bradford e os Sutton tinham escolta policial, o que os fazia entrar e sair rápido dos lugares.
E ele estava certo.
Doze minutos e alguns segundos mais tarde, um dos Mulsannes pretos da família parou diante da casa. O motorista saiu de trás do volante, abriu um guarda-chuva e seguiu para a porta de trás. Um segundo segurança fez o mesmo do outro lado.
O pai de Sutton saiu primeiro, e precisou do braço do motorista para chegar à casa.
Sutton, por sua vez, saiu lentamente, com os olhos fixos no caminhão. Depois de conversar com o motorista, pegou o guarda-chuva dele e veio caminhando, sem se dar conta de que estava estragando os sapatos de salto alto.
Edward abaixou o vidro quando ela se aproximou, tentando ignorar o seu perfume conforme ela chegava cada vez mais perto.
– Entre – disse, sem olhar.
– Edward…
– Não vou discutir o que você assinou com o meu pai aí na sua casa. Nem no seu jardim.
Ela emitiu um xingamento agressivo e marchou para a frente do caminhão. Com um grunhido, ele tentou se esticar como um cavalheiro teria feito para lhe abrir a porta, mas ela chegou antes. Além disso, seu corpo não permitiria que ele se esticasse tanto assim.
Depois de se acomodar no banco, Sutton ficou imóvel ao ver sua bolsa.
Ligando o veículo, ele murmurou:
– Pensei que você gostaria de ter a sua habilitação de volta.
– Tenho que estar no baile em quarenta e cinco minutos – ela disse quando ele começou a descer a colina.
– Você odeia ir a esses eventos.
– Tenho um encontro.
– Tem? Que bom, parabéns. – Uma fugaz fantasia de raptá-la para impedi-la de ir se passou em sua mente. Como num filme, a fantasia culminaria numa Síndrome de Estocolmo, pois ela se apaixonaria pelo seu sequestrador. – Quem é ele?
– Ninguém que te interesse.
Edward virou à esquerda e apenas continuou dirigindo.
– Então você está mentindo.
– Veja as colunas sociais amanhã – ela argumentou num tom enfastiado. – Você poderá ler tudo a respeito.
– Eu não assino mais o Charlemont Courier Journal.
– Escute, Edward…
– Que diabos você está aprontando? Fazendo um hipoteca da minha própria casa?
Mesmo que não estivesse olhando para ela, ele sentia o olhar gélido cravado em seu rosto.
– Primeiro, foi seu pai quem me procurou. Segundo, se voltar a falar nesse tom comigo, executarei a hipoteca imediatamente.
Edward a encarou.
– Como pôde fazer isso? Você é mesmo tão gananciosa assim?
– Os juros são mais do que justos! Você queria que ele tivesse ido a um banco, que fosse exposto? Manterei tudo em segredo, desde que os pagamentos sejam feitos.
Ele apontou um dedo para os documentos no banco.
– Quero que suma com isso.
– Você não tem parte no acordo, Edward. E, ao que tudo leva a crer, o seu pai precisa do dinheiro. Ou não teria me procurado.
– Aquela casa pertence à minha mãe!
– Sabe, se eu fosse você, estaria me agradecendo. Não sei ao certo o que anda acontecendo debaixo daquele seu teto, mas dez milhões não deveriam ser nada para a grande e gloriosa família Bradford!
Edward virou à esquerda e estacionou num dos parques públicos do rio Ohio. Cruzando o estacionamento deserto, ele parou ao chegar ao atracadouro, e desligou o motor. Àquela altura, a tempestade caía a valer, e os raios no céu inflamavam a raiva dentro dele.
Virando-se no banco, ele engoliu um gemido de dor.
– Ele não precisa do dinheiro, Sutton.
Claro, era uma mentira. Mas a última coisa que a família precisava era de boatos. Por mais que ele estivesse frustrado com Sutton, sabia que poderia confiar nela, só que deviam haver outras pessoas envolvidas. Advogados, banqueiros. Pelo menos ela poderia negar essa conversa, caso fosse mencionada.
– Então por que ele assinou aquele documento? – ela inquiriu. – Por que o seu pai se desdobrou para me desviar de uma reunião de negócios para propor isso?
Enquanto ela o confrontava, ele teve uma rápida imagem mental da noite anterior, dela em seu colo, montando sobre ele, sendo gentil com seu corpo alquebrado.
Logo se lembrou do pai tentando abraçá-la no escritório.
Aquilo tinha como ficar mais confuso?, perguntou-se enquanto seu ódio por William Baldwine ressurgia.
Edward se concentrou nos lábios dela e pensou na esposa do irmão.
– Ele já te beijou?
– O que disse?
– O meu pai. Ele já te beijou?
Sutton meneou a cabeça em descrença.
– Vamos nos concentrar na questão da hipoteca de Easterly, está bem?
– Responda a maldita pergunta.
Ela levantou as mãos.
– Você me viu no escritório com ele. O que acha?
Então, sim, Edward pensou com uma onda de fúria.
– Escute – Sutton disse –, não sei o que está acontecendo com a sua família, ou por que ele quis fazer isso. Só o que sei foi que era um bom negócio para mim… e pensei que poderia ajudá-los. Fui idiota, pensei que manter isso em segredo poderia beneficiá-los.
Depois de um momento, ele murmurou:
– Bem, você está errada. E é por isso que quero que rasgue o documento.
– O seu pai também tem uma cópia – ela observou, seca. – Por que não vai falar com ele?
– Ele fez o acordo com você porque me odeia. Ele o fez porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Pelo menos isso não era mentira, ele pensou quando ela arfou.
Deus bem sabia que ele já se sentia apenas meio homem perto dela…
Sutton se mexeu no banco, absorvendo as palavras de Edward. Não conseguiu esconder sua ansiedade.
O orgulho fez com que quisesse atingi-lo, mas as palavras iradas se atropelaram em sua cabeça, e só o que ela acabou fazendo foi contemplar o rio agitado e lamacento.
Os limpadores de para-brisa estavam ligados, movendo-se em intervalos, clareando a vista da margem oposta temporariamente. E, engraçado, a vida era meio assim também, não era? Você segue em frente, cuidando da sua vida, sem conseguir ver exatamente onde se encontra por causa dos tantos detalhes demandando atenção, quando, subitamente, as coisas se cristalizam e você recebe uma breve visão que a faz pensar “Ah, é aqui que estou”.
Sutton pigarreou, mas não adiantou muito, pois, quando falou, as palavras saíram meio roucas.
– Sabe, acho que nunca vou entender por que me considera tão pouco. É um mistério para mim.
Edward disse algo, mas ela falou por cima dele:
– Você deve saber que me apaixonei por você há muito tempo.
Isso fez com que ele se calasse.
– Você deve saber. Como não saberia? Eu o segui por anos… É por isso que me odeia? – Olhou na direção dele, mas não conseguiu ver muito por causa do boné. O que era bom, provavelmente. – Você me despreza por isso? Sempre pensei que você foi deixando porque pensou que os meus sentimentos poderiam lhe ser úteis de algum jeito, mas é algo mais doentio do que isso? Sei que desprezo a mim mesma pela minha fraqueza. – Ela acenou para os documentos. – Quero dizer, esses papéis são um exemplo perfeito de como sou patética. Eu não teria feito um negócio assim, às escondidas, com ninguém mais. Mas imagino que seja um problema meu, e não seu.
Ela voltou a fitar além do para-brisa.
– Sei que não gosta de falar sobre o que aconteceu na América do Sul, mas… Eu não dormi o tempo todo que você estava lá, e tive pesadelos nos meses seguintes. E depois você voltou a Charlemont e não quis me ver. Disse a mim mesma que era porque você não estava recebendo ninguém, mas não é verdade, é?
– Sutton…
– Não – interrompeu-o com firmeza. – Não vou livrá-lo dessa hipoteca. Seria apenas mais uma estupidez nessa coisa que tenho com você.
– Você entendeu tudo errado, Sutton.
– Entendi? Não tenho tanta certeza assim. Então, que tal se terminarmos tudo aqui, agora? Você pode ir se foder, Edward. Agora me leve de volta para a minha casa antes que eu ligue para a polícia.
Ela esperou que ele discutisse. Depois de um instante, porém, ele engatou a marcha a ré e deu a volta.
Na estrada, ela o encarou de perfil.
– É melhor rezar para que aquele seu pai faça os pagamentos dentro do prazo. Se ele não fizer, não hesitarei em pôr a sua família no olho da rua. E se acha que isso não vai fazer as pessoas desta cidade comentarem a respeito, você perdeu o juízo.
Foi a última coisa dita no caminho de volta para a casa dela.
Quando ele parou diante da mansão, ela fez questão de pegar a bolsa de festa e levá-la consigo, e o caminhão mal tinha parado quando ela abriu a porta.
Sutton tinha quase certeza de que ele disse seu nome uma última vez antes de ela sair, mas talvez não.
Quem se importava?
Enquanto corria debaixo da chuva, o mordomo lhe abria a porta de entrada.
– Senhorita! – ele exclamou. – A senhorita está bem?
Ela não se dera ao trabalho de abrir o guarda-chuva, e uma rápida olhada no antigo espelho ao lado da porta mostrou que ela parecia tão exausta e abatida quanto se sentia.
– Na verdade, não estou me sentindo muito bem. – Não era nenhuma mentira. – Por favor, avise Brandon Miller que vou me deitar. Eu deveria me encontrar com ele para irmos ao baile de hoje.
Ele se curvou.
– Devo telefonar para o doutor Qalbi?
– Não, não. Só estou exausta.
– Eu lhe levarei uma bandeja com chá.
A ideia lhe pareceu nauseante.
– Quanta gentileza. Muito obrigada.
Enquanto o homem se afastava na direção da cozinha, ela seguiu para o elevador. Felizmente, ele já estava parado no térreo e ela pôde entrar imediatamente. A última coisa que queria era se encontrar com o pai ou com o irmão.
Tirou os sapatos e caminhou descalça pelo corredor, entrando sorrateiramente no quarto e batendo a porta atrás de si.
Fechou os olhos, mas continuou ouvindo a voz de Edward em sua mente.
Ele fez isso porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Inacreditável.
E era engraçado. Mesmo com todo o dinheiro que ela tinha, toda a posição social e autoridade, o respeito e a adulação… Ela ainda podia ser reduzida a uma criança devastada.
Só era preciso ficar num local fechado com Edward Baldwine.
Por dez minutos.
Não mais, ela jurou. A obsessão doentia que tinha por aquele homem precisava cessar agora.
Nos recessos da mente, às vezes ela se perguntava se ele também não combatia uma obsessão por ela, a competição centenária entre as duas famílias impedindo-o de se aproximar. Mas isso, evidentemente, fora uma projeção injusta da parte dela, algum tipo de fantasia romântica nascida dos seus próprios sentimentos.
As únicas coisas gentis que ele lhe dissera foram quando ele pensou que ela era uma prostituta a seu serviço.
No entanto, a realidade estava visivelmente clara agora. Ele tinha acabado de apresentá-la num outdoor na proverbial praça central da sua cidade. Deixara tudo evidente, sem margem para dúvidas.
Ela podia ser patética.
Mas não era burra.
TRINTA E NOVE
Atingida na cabeça.
Enquanto Lizzie escorregava para o lado da cabine esmagada de seu Yaris, sentiu como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
Por uma combinação de Wolverine, The Rock e talvez por Schwarzenegger em seus tempos de glória.
E, como resultado, nada estava sendo muito bem processado – o fato de ter batido na traseira do carro de Lane, o motivo pelo qual seu rosto estava molhado, o barulho alto…
– Lizzie!
O som do seu nome dissipou parte da sua confusão, e ela olhou ao redor, tentando descobrir por que Deus, de repente, estava com a voz muito parecida com a de Lane.
– Lane? – ela disse, piscando repetidas vezes.
Por que ele estava entrando pelo para-brisa? Seria aquilo um sonho? – … machucada em algum lugar? – ele dizia. – Preciso saber antes de tentar te mover.
– Desculpe, o seu carro…
– Lizzie, você tem que me dizer se está machucada!
Caramba, quando ele ficava ansioso aquele sotaque sulista ficava mais evidente, não? Ela estava confusa. Machucada? Por que ela estaria…
E foi então que ela viu toda a folhagem.
Dentro do carro.
Muito bem, aquilo devia ser um sonho ruim, mas ela podia seguir a correnteza. Testou os braços, as pernas, inspirou fundo, moveu a cabeça… Tudo parecia funcionar bem.
– Eu estou bem – murmurou. – O que aconteceu?
– Vou te puxar para a frente, ajude se puder, ok?
– Claro. Eu…
Uau. Ai!
Mas ela estava determinada a participar daquele esforço. Mesmo quando seus músculos ficaram meio esticados demais, parecendo querer saltar para fora das juntas, ela apoiou os pés em qualquer coisa que conseguiu, se empurrando enquanto Lane a puxava e fez força para seguir em frente.
A chuva atingiu seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Arranhões. O vento a cegou.
Mas ele a arrancou para fora.
E ela logo se viu nos braços dele, ao encontro do seu peito, sentindo-o estremecer.
– Ai, Deus – ele disse, rouco. – Ah, graças a Deus, você está viva…
Lizzie se segurou nele, ainda sem entender por que estavam sentados numa árvore. Como é que os carros tinham subido na…
Um raio espocou no céu tão perto deles que ela sentiu os ouvidos explodindo.
– Temos que entrar – Lane rugiu. – Venha.
Em algum momento no processo de tropeçar e cair no chão, o cérebro dela voltou à ativa, e o que ela viu quase a paralisou.
Metade da magnífica árvore que crescia ao lado da sua casa tinha esmagado seu carro.
No fim, ela não colidira com o Porsche.
A batida que ouviu era o seu sedãzinho sendo esmagado por todo aquele peso.
– Lane, o meu carro…
Foi tudo o que conseguiu dizer antes de ele a pegar nos braços e sair correndo na direção da casa. Quando ele saltou na varanda, ela o empurrou e saiu dos braços dele, recusando-se a ir mais longe. Cobrindo a boca com a mão ao ver seu carro daquele jeito, ela…
Sangue. Havia sangue por toda parte sobre ela.
Uma súbita tontura a acometeu, fazendo-a cambalear ao olhar para si mesma.
– Lane… Estou machucada?
– Para dentro – ele ordenou, conduzindo-a.
Enquanto a empurrava para dentro e empenhava todas as suas forças para fechar a porta, o coração dela começou a bater forte quando deu uma bela olhada no seu salvador: ele também estava todo molhado e ensanguentado.
Mas isso importava?
Os dois se abraçaram com tanta pressa que as roupas ensopadas se grudaram, os corpos voltando a se ligar, partilhando calor, segurando-se firmes um ao outro.
– Pensei que tivesse te perdido – ele disse ao ouvido dela. – Ah, meu Deus, pensei que…
– Você me salvou, você me salvou…
Ambos falavam apressadamente, tropeçando sobre as palavras, trêmulos pelo que quase acontecera. Ele a beijou e ela retribuiu.
Só que, depois de um tempo, ela se afastou.
– Acho que quem está sangrando é você.
– São só uns arranhões…
– Oh, Deus! Olhe para os seus braços, as suas mãos!
Ele estava todo machucado; sua pele tinha vários cortes por ter brigado com os galhos para chegar até ela, e havia contusões no rosto e no pescoço.
– Não estou nem aí – ele disse. – É com você que estou preocupado.
– Você precisa de um médico?
– Ora, por favor… A árvore caiu em cima de você, lembra?
E foi então que as luzes se apagaram.
Lizzie ficou imóvel um segundo, mas logo começou a rir com tanta intensidade que seus olhos arderam. Eram emoções demais, coisas demais para lidar… E, antes que se desse conta, Lane estava gargalhando também. Os dois se abraçaram, libertando-se de toda a tensão, dos problemas da família dele, do estresse do Brunch… até aquele horrendo acidente de carro.
– Banho? – ela sugeriu.
– Pensei que nunca fosse pedir.
Normalmente, ela ficaria irritada com as marcas dos pés na sala e nos degraus, mas não agora. A lembrança de todo aquele peso sobre seu carro a fazia priorizar o que era importante.
– Juro que pensei ter batido no seu carro – ela disse ao chegarem ao segundo andar.
– Não teria sido um problema, se tivesse mesmo.
Ah, as alegrias de ser um Bradford, ela pensou.
– Tenho certeza de que você tem um Porsche reserva.
– Mesmo se eu não tivesse, não teria tido importância, contanto que você estivesse bem.
Passaram ao mesmo tempo pelo batente do banheiro dela e se apertaram dentro do box, e quando ela ligou o chuveiro, ele partiu para cima dela, desabotoando sua roupa, abrindo zíperes, tirando tudo o que a deixava fria e molhada.
Arrepios se formaram nos braços e nas pernas dela, provocados mais pelo calor do olhar dele que pelo frio do ar. Logo Lane também se despiu, deixando as roupas caídas junto às dela.
– Para a água – ela grunhiu quando ele a acariciou no pescoço com o nariz, beijando um caminho até a boca.
Ele soltou um xingamento quando se colocaram debaixo do jato quente e suave. E quando a água os lavou, ela ficou aliviada: eram apenas arranhões, nada sério.
E esse foi seu último pensamento antes que as mãos grandes dele começassem a viajar pelos seus seios escorregadios, e a boca descesse com avidez sobre a dela, e aquele desejo erótico tão conhecido se reacendesse entre eles.
Eu te amo, ela pensou.
Eu te amo tudo de novo, Lane.
Algum tempo depois, quando a eletricidade voltou, depois de Lane ter feito amor com sua Lizzie duas vezes no chuveiro e mais uma na cama, depois que desceram e comeram os restos da lasanha congelada e boa parte do sorvete de pêssego, depois que voltaram para cima e foram para a cama de novo… todos os problemas do dia voltaram para ele.
Felizmente, Lizzie estava adormecida no escuro, por isso qualquer que fosse sua expressão, que já não tinha forças para esconder, não seria um problema.
Fitando o teto, sua mente começou a girar, e ele mal percebeu que o sol se levantava no horizonte. Deu uma rápida olhada para o rádio-relógio de Lizzie e se surpreendeu ao ver que ficara acordado a noite inteira.
Deslizando para fora dos lençóis, pôs-se de pé e foi para o banheiro. Suas roupas não tinham salvação; pegou-as no chão e jogou-as no lixo. A única coisa que ainda podia ser usada era a cueca.
Era melhor que dirigir nu para casa no dia do Senhor.
De volta ao quarto, aproximou-se de Lizzie.
– Tenho que ir.
Ela despertou de pronto, e ele a acariciou até que ela voltasse a apoiar a cabeça no travesseiro.
– Tenho um encontro com uma linda mulher e não posso faltar – ele disse.
Lizzie sorriu de uma maneira sonolenta, que fez com que ele desejasse ficar olhando para ela para sempre.
– Mande um oi.
– Pode deixar. – Ele a beijou na boca. – A propósito, hoje eu trago o jantar.
– Congelado?
– Não, vai estar mais quente que o inferno.
O sorriso que ela lhe lançou o atingiu direto no sangue, excitando-o, apesar de não haver tempo para fazer nada a respeito.
– Eu te… – Lane se deteve, sabendo que ela não gostaria daquela despedida. – Eu te vejo às cinco da tarde.
– Estarei aqui.
Ele a beijou uma vez mais e foi para a porta.
– Espere. E as suas roupas? – ela disse em voz alta.
– Não podem me prender. As partes ofensivas estão cobertas.
O riso dela o acompanhou até a escada e a saída da casa. E a visão de metade da copa daquela árvore fez o coração dele saltar.
Quando inspirou fundo, seu primeiro instinto foi o de pegar o telefone e ligar para Gary McAdams para que ele retirasse o galho e levasse aquela lata amassada que era o carro dela para um pátio de demolição. Mas se conteve. Lizzie não era do tipo de mulher que apreciaria esse tipo de manobra. Ela devia ter os próprios contatos, ideias de como lidar com aquele problema, planos para seu Yaris.
Conhecendo-a, ela tentaria fazer com que ele voltasse a funcionar.
Sacudiu a cabeça e foi até seu carro. O Porsche quase foi destruído também, sendo oupado por pouco. Depois de tirar alguns galhos do teto, entrou, ligou o carro e seguiu seu caminho lentamente ao largo dos galhos caídos e faixas de terra cheias de água. Assim que chegou ao asfalto, acelerou na direção de Charlemont, atravessando o rio e subindo a colina de Easterly.
Estava na metade do caminho quando teve que desacelerar porque outro carro vinha descendo.
Um sedã Mercedes preto S550.
E, atrás do volante, com imensos óculos escuros e um véu preto como se estivesse de luto, sua futura ex-mulher.
Chantal não olhou para ele, mesmo sabendo muito bem quem estava passando.
Tudo bem. Com um pouco de sorte, ela estaria de mudança e poderiam deixar que os advogados cuidassem de tudo, dali por diante. Deus bem sabia que ele tinha outras coisas para se preocupar.
Estacionou o Porsche na frente da casa, entrou pela porta principal e parou quando viu bagagem no vestíbulo.
Não era de Chantal. Ela tinha conjuntos da Louis Vuitton. Aquelas eram Gucci, marcadas com as iniciais RIP.
Richard Ignatius Pford.
Uma cretina saindo, ele pensou. E outro entrando.
Que diabos Gin estava pensando?
Ah, espere. Ele sabia a resposta. Para uma mulher com pouca formação acadêmica e nenhuma experiência profissional, sua irmã tinha um talento incontestável: saber cuidar de si mesma.
Assustada com a questão financeira, ela seguiu as orientações do pai e se agarrou ao tolo endinheirado a fim de que, não importando o que acontecesse com a família, seu estilo de vida não fosse afetado. Ele só desejava que o custo para ela não se provasse alto demais. Richard Pford era um filho da puta odioso.
Só que aquele circo não era seu, tampouco os macacos que nele se apresentariam. Por mais que o entristecesse, fazia tempo que aprendera a deixar que Gin seguisse sua cabeça e fosse em frente. Na verdade, não havia uma estratégia para lidar com a sua irmã.
Subiu os degraus rapidamente, foi para o quarto, tomou banho, se barbeou e vestiu o terno risca de giz. Precisou de duas tentativas para acertar a gravata borboleta.
Caramba, como odiava aquelas coisas.
Desceu pela escada dos empregados, cortou caminho pela cozinha e foi parar diante da porta da senhorita Aurora. Como fizera na primeira vez em que fora visitá-la quando ali chegou, verificou se estava com a camisa bem enfiada dentro da calça antes de bater à porta.
Mas parou antes de bater. Por algum motivo, sentiu um medo insano de que desta vez ela não atenderia. Que ele esperaria… e repetiria, e esperaria um pouco mais…
E então teria que invadir, forçando a porta como fizera no escritório de Rosalinda… E encontraria mais uma morta.
A porta se abriu, e a senhorita Aurora mostrou uma carranca.
– Está atrasado.
Lane se sobressaltou, mas logo se recobrou.
– Desculpe.
A senhorita Aurora resmungou e deu um tapinha em seu chapéu azul-claro de igreja. O conjunto dela era tão brilhante quanto um céu primaveril, e ela usava luvas e sapatos combinando, e uma perfeita bolsa do tamanho de uma raquete de tênis. O batom era vermelho-cereja, os brincos, os de pérola que ele lhe dera três anos atrás, e ela também usava o anel de pérola que lhe dera no ano anterior a esse.
Ofereceu-lhe o braço quando ela fechou a porta, e ela o aceitou.
Juntos, caminharam até a porta da frente, passando pelo senhor Harris, que sabia que não deveria comentar sobre a porta que estavam usando.
Lane acompanhou a senhorita Aurora até o Porsche e a acomodou no carro. Depois deu a volta e colocou-se atrás do volante.
– Vamos chegar atrasados – ela disse com rispidez.
– Farei com que cheguemos a tempo. Fique só observando.
– Não gosto de alta velocidade.
Ele se viu olhando para ela, piscando.
– Então feche os olhos, senhorita Aurora.
Ela deu um tapa no braço dele e o encarou.
– Você não está velho demais para levar uma surra?
– Sei que quer se sentar num dos bancos da frente.
– Tulane Baldwine, não ouse infringir a lei.
– Sim, senhora.
Com um sorriso maroto, ele pisou no acelerador, voando colina abaixo. Quando relanceou para a senhorita Aurora, viu que ela estava sorrindo.
Por um momento, tudo estava certo em seu mundo.
QUARENTA
A Igreja Batista de Charlemont ficava no West End e suas tábuas brancas se destacavam em meio aos quarteirões e quarteirões de unidades residenciais de baixa renda. Pense em algo imaculado. Desde o gramado muito bem aparado, o estacionamento recém-varrido, os vasos de plantas ao lado das portas duplas até as quadras de basquete nos fundos, o lugar era tão bem cuidado que parecia ter saído de um cartão postal dos anos 1950.
E às 9h20 da manhã de domingo, a igreja estava lotada.
No instante em que Lane se aproximou com o carro, as saudações surgiram tão rápido e de tantos lados que ele teve que desacelerar. Abaixando os dois vidros, ele apertou mãos, cumprimentou as pessoas pelos seus nomes, aceitou desafios para algumas partidas. Estacionou nos fundos, ajudou a senhorita Aurora a sair e depois a conduziu pela calçada que ladeava a igreja.
Havia crianças por toda parte, com vestidinhos florais e terninhos, tão coloridos quanto uma caixa de lápis de cor; o comportamento delas era muito melhor que o do grupo de adultos que participava das festas em Easterly. Todas as pessoas, todas mesmo, pararam para falar com ele e com a senhorita Aurora, querendo saber como estavam, colocando a conversa em dia. Nesse processo, ele se deu conta do quanto sentia falta daquela comunidade.
Engraçado, ele não era de frequentar a igreja, mas sempre que estava em casa, nunca deixava de acompanhar a senhorita Aurora.
Lá dentro, devia haver umas mil pessoas; as fileiras de bancos estavam repletas pelos féis, todos conversando, se abraçando, rindo. Era muito cedo ainda para que ligassem os ventiladores, mas isso logo aconteceria, bastava chegar junho. Lá na frente, havia uma banda com guitarras elétricas, bateria e baixos, e ao lado dela os cantores que compunham o coro. Atrás disso tudo, estava o admirável órgão – do tipo capaz de arrebentar as portas e as janelas e até mesmo o telhado –, ligando a congregação diretamente aos céus.
Max deveria estar aqui, Lane pensou. Seu irmão tinha participado do coro por diversos anos antes de partir para a faculdade.
Mas era uma tradição perdida. Ao que tudo levava a crer, para sempre.
A duas filas a partir da frente, havia espaço para eles, pois uma família de sete se espremeu para que coubessem.
– Muito obrigado – disse Lane, apertando a mão do pai. – Ei, você não é irmão de Thomas Blake?
– Sou, sim – o homem assentiu. – Sou Stan, o mais velho. E você é o menino da senhorita Aurora.
– Sim, senhor.
– Por onde andou? Faz tempo que não o vejo aqui.
Enquanto a senhorita Aurora erguia uma sobrancelha na sua direção, Lane pigarreou.
– Estive no norte.
– Meus sentimentos – disse Stan. – Mas, pelo menos, agora voltou.
– Aqueles são os meus sobrinhos. – A senhorita Aurora apontou para o outro lado do corredor. – D’Shwane está jogando para os Colts de Indiana agora. É recebedor. E Qwentin, ao lado dele, é atacante no Miami Heat.
Lane ergueu a mão quando os dois homens perceberam o olhar da senhorita Aurora.
– Lembro de quando jogavam na faculdade. Qwentin foi um dos melhores atacantes que os Águias já tiveram, e eu estava lá quando D’Shawne nos ajudou a ganhar o Sugar Bowl.
– São bons meninos.
– Toda a sua família é.
O órgão deu a primeira nota e a banda começou a tocar, e do nártex, o coral com beca vermelho-sangue entrou, cinquenta homens e mulheres andando lado a lado, cantando durante a procissão. Atrás deles, o reverendo Nyce seguia com a Bíblia junto ao peito; o homem era alto e distinto e fitava o seu rebanho com afeto. Ao ver Lane, estendeu o braço e apertou-lhe a mão.
– É bom tê-lo de volta, filho.
Quando chegou a hora de todos voltarem a se sentar, Lane sentiu uma sensação estranha. Perturbado, esticou o braço e segurou a mão da senhorita Aurora na sua.
Só conseguia pensar naquele galho de árvore caindo na noite anterior. A visão do carro amassado de Lizzie. O medo eletrizante que sentira ao se arrastar pelos galhos no meio da tempestade, gritando o nome dela.
Quando a banda começou o seu hino gospel predileto, ele olhou para o altar e só balançou a cabeça.
Claro que tinha que ser essa música, pensou.
Como se a própria igreja o estivesse acolhendo em casa também.
Levantou-se com a senhorita Aurora, e começou a se mover com o resto da congregação, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
E se viu cantando junto:
– Quero que saiba que Deus está ao meu lado…
Uma hora e meia mais tarde, o culto terminou e era hora do lanche. A congregação se dirigiu para o andar inferior para tomar ponche, comer uns cookies e conversar.
– Vamos descer – Lane disse.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Preciso voltar. Tenho trabalho.
Ele franziu o cenho.
– Mas nós sempre…
Ele se deteve. Não havia nada que requeresse cuidados em Easterly. Portanto, a única explicação era a que o fazia querer ligar para a emergência.
– Não olhe para mim assim, menino – ela murmurou. – Não é uma emergência médica, e mesmo que fosse, não vou morrer na minha igreja. Deus não faria isso com esta congregação.
– Vamos, apoie-se no meu braço.
Pareceram despreocupados ao andarem contra a maré e, puxa, ele preferiria levá-la nos ombros tal qual um bombeiro, abrindo caminho como um jogador da linha de defesa. Na metade do trajeto até a porta, teve que parar para conversar com Qwentin e D’Shwane – além dos dezessete outros membros da família da senhorita Aurora. Normalmente, ele teria adorado as conversas, mas não naquele dia. Não queria ser rude, só estava muito ciente do quanto a senhorita Aurora se apoiava em seu braço.
Quando, por fim, chegaram à porta da igreja, ele disse: – Espere aqui. Vou trazer o carro. E não, não tem discussão, pode parar já.
Ele meio que esperou que ela se opusesse, e quando ela não o fez, afastou-se correndo, indo para a parte mais distante do estacionamento.
Voltando com o Porsche, quase esperou encontrá-la desmaiada.
Nada disso aconteceu. Ela estava conversando com uma mulher magra, muito majestosa, que tinha o rosto de Nefertiti, um simples terno preto e um par de óculos sem aro diante de olhos muito aguçados.
Ah, uau, ele pensou. Aquilo sim era podia ser chamado de vento do passado.
Lane saiu do carro.
– Tanesha?
– Lane, como está? – Tanesha era a filha mais velha do reverendo. – É bom ver você.
Abraçaram-se e ele assentiu.
– Também é bom te ver. Já virou médica?
– Estou fazendo residência aqui na UC.
– No que vai se especializar?
– Oncologia.
– Ela está fazendo o trabalho do Senhor – disse a senhorita Aurora.
– Como está Max? – Tanesha perguntou.
Lane pigarreou.
– Eu é que não sei. Não falo com ele desde que ele foi para a costa oeste. Você sabe como ele é, imprevisível.
– Sim, ele era mesmo.
Momento. Embaraçoso.
– Bem, vou levar a senhorita Aurora de volta para casa – ele disse. – Foi bom te ver.
– Você também.
As duas mulheres falaram num tom baixo por um instante, e depois a senhorita Aurora permitiu que ele a conduzisse pelos degraus até o carro.
– Sobre o que falavam? – ele perguntou quando se afastaram.
– Sobre o ensaio do coral na semana que vem.
– A senhora não está no coral. – Olhou para ela quando ela não disse nada. – Senhorita Aurora? Quer me contar alguma coisa?
– Sim.
Ai, Deus…
– O quê?
Ela o segurou pela mão, mas não olhou para ele.
– Quero que se lembre do que lhe disse antes.
– E o que foi?
– Tenho Deus. – Apertou a mão dele com força. – E tenho você. Sou mais rica do que poderia imaginar.
Ela o segurou pela mão durante todo o trajeto de volta a Easterly, e ele soube… ele soube. Ela estava tentando prepará-lo para o que estava por vir. Também percebeu que era por isso que ele tinha insistido que Edward a visse no dia anterior, quando o irmão estivera na casa.
Se ao menos houvesse um modo de localizarem Max.
– Não quero que você parta – Lane disse, emocionado. – Vai ser duro demais.
A senhorita Aurora ficou calada até chegarem à base da colina de Easterly.
– Falando em partir – ela disse –, fiquei sabendo que Chantal foi embora.
– Sim, estou pondo um fim nisso.
– Bom. Talvez você e Lizzie finalmente voltem a ficar juntos. Ela é a mulher para você.
– Sabe, senhorita Aurora, eu concordo. Agora só preciso convencê-la.
– Eu ajudo.
– E eu aceito a sua ajuda. – Olhou para ela de relance. – A propósito, ela mandou um oi.
A senhorita Aurora sorriu.
– Isso quando você a deixou hoje cedo?
Enquanto Lane gaguejava e ficava vermelho como o Mercedes que lhe dera, a senhorita Aurora riu dele com gosto.
– Você é um menino levado, Lane.
– Sei disso. É por isso que a senhora precisa ficar por perto, para me fazer andar na linha. Não canso de lembrá-la.
Em vez de parar na frente da casa, ele deu a volta até os fundos para parar mais perto dos aposentos dela. Aproximando-se da porta de trás, freou, desligou o motor… e não saiu.
Olhando para ela, sussurrou:
– Estou falando sério. Preciso da sua ajuda aqui, na Terra… Nesta casa, na minha vida.
Deus, foi impossível ignorar o fato de que três dias atrás ela estivera berrando com ele, dizendo que não iria a parte alguma, mas, agora, algo mudara. Havia alguma coisa diferente.
Antes que ela conseguisse dizer qualquer coisa, a porta da garagem subiu e o motorista saiu com o Phantom. O carro de 500 mil dólares passou por eles e seguiu até a frente da casa.
– Ele é maligno – Lane disse. – Esse meu pai…
A senhorita Aurora ergueu as mãos.
– Amém.
– Onde diabos ele vai hoje cedo?
– Pra igreja é que não.
– Talvez tenha ido atrás de Chantal.
No instante em que proferiu as palavras, soltou um xingamento.
– Do que está falando?
Lane sacudiu a cabeça e saiu.
– Venha, vamos entrar.
Mas não entraram. Quando ele deu a volta e abriu a porta dela, ela continuou sentada com a bolsa no colo, com as mãos enluvadas uma sobre a outra.
– Pode contar.
– Senhorita Aurora…
– O que ele fez com você?
– Isso não é sobre mim.
– Se é sobre aquela sua esposa horrível, pode apostar o seu traseiro como é da sua conta.
Lane combateu o desejo de bater a cabeça no capô do Porsche.
– Não tem nenhuma importância.
– Eu sei que ela se livrou do seu bebê.
Quando aqueles olhos negros se ergueram para ele, Lane xingou uma vez mais.
– Senhorita Aurora. Não faça isso. Deixe estar. Existem muitas outras coisas com as quais vale a pena se preocupar.
Só o que ela fez foi erguer uma sobrancelha.
Lane se acomodou sobre os calcanhares. Deus, como ele amava aquele rosto, cada uma das rugas e marcas de expressão, cada curva e todas as linhas. E ele amava o fato de ela ser uma dama no comportamento, mas forte como um homem.
Ela e Lizzie eram muito parecidas.
– Existem algumas coisas que não valem a pena saber.
– E outras que você não deveria guardar para si.
Por algum motivo, ele se viu abaixando o olhar, como se tivesse algo de que se envergonhar.
– Ela está grávida, senhorita Aurora. E o filho não é meu.
– De quem é? – ela inquiriu.
O resto da história foi transmitido silenciosamente. E o mais engraçado foi que ela não se mostrou totalmente surpresa.
– Tem certeza? – ela perguntou baixinho.
– Foi o que ela disse. E quando o confrontei, a resposta apareceu na cara dele.
A senhorita Aurora fitou adiante, com a testa crispada e a cabeça tão baixa que ele já não enxergava os olhos dela.
– Deus o punirá.
– Eu não esperaria sentado, se fosse a senhora. – Ele se levantou e lhe estendeu a mão. – Está ficando quente aqui fora. Venha.
A senhorita Aurora voltou a fitá-lo nos olhos.
– Eu te amo.
Foi o jeito de ela se desculpar pelo que sabia que todos eles tiveram que aguentar por causa do pai. Não apenas aquela história hedionda com Chantal, mas todas as décadas de tudo o que se passara, desde que eram crianças.
– Sabe – ele disse –, eu nunca te agradeci. Por todos estes anos em que esteve presente, eu nunca… Foi a senhora quem nos manteve nos trilhos, especialmente eu. Sempre esteve ao meu lado. Sempre está ao meu lado.
– Deus me deu esse trabalho sagrado quando cruzou a minha vida com a de todos vocês.
– Eu te amo, mãe – disse emocionado. – Para sempre.
QUARENTA E UM
O som da serra elétrica nas mãos de Lizzie era tão alto que ela não ouviu a aproximação do carro. E foi só depois que deixou de acelerar e o motor da máquina silenciou que ela ouviu uma voz muito sensual e máscula anunciar que ela já não estava mais sozinha.
– Você é a mulher mais sexy que eu já vi.
Girando e olhando para baixo, ela encontrou Lane encostado no seu Porsche, de braços cruzados, pés fincados no chão e expressão intensa.
Do seu ponto de vista vantajoso – de cima do capô amassado do seu Yaris –, ela suspendeu a serra elétrica acima da cabeça e deu umas duas aceleradas.
– Ouça o meu urro.
– Ouça a minha súplica.
Ela teve que rir ao pular para o chão.
– Fiz algum progresso, mas não acho que…
Lane a interrompeu encostando a boca na dela, e o beijo rapidamente se tornou tão erótico que ele quase a dobrou para trás. Quando se separaram um pouco, os dois arfavam.
– Então, oi – ele disse.
– Você, por acaso, sentiu a minha falta?
– Todos os segundos. Deus, como eu amo v… amo o modo como você maneja essa serra.
Foi impossível não perceber o que ele quis dizer, e ela também teve que se bloquear mentalmente quando o instinto quase fez com que deixasse escapar a mesma declaração.
Contudo, Lane encobriu o desconforto com desembaraço.
– Como prometi, trouxe o jantar. Comida do clube. Peguei aquela salada que espero que ainda goste, e uma montanha de lombo fatiado. Sabe, para o caso de termos que nos recobrar.
– Do quê? – perguntou, com malícia, abaixando a serra.
– Ah, você sabe do que… – Só que ele franziu o cenho. – A menos que… bem, você esteja dolorida por causa da noite passada.
Lizzie sacudiu a cabeça.
– Nem um pouco.
– Uma pena.
– Como é?
Aproximando-se, deixou a boca pairar sobre a dela e lambeu seus lábios.
– Pensei que eu poderia dar uns beijinhos para melhorar.
– Você ainda pode fazer isso.
Quando ele a girou e a encostou contra o carro, ela sentiu o coração começar a flanar e pensou que podia muito bem se soltar. Uma árvore tinha destruído seu carro, seu quintal estava uma bagunça, e havia galhos espalhados em toda a sua propriedade… mas Lane estava ali, e se lembrava que ela gostava de salada Cobb e, maldição, ele era o melhor beijador do planeta.
Amanhã ela voltaria a andar nos trilhos. Amanhã ela se lembraria de tomar cuidado…
Lane se afastou um tantinho.
– Me diz uma coisa: o que você acha de fazer sexo a céu aberto?
Ela acenou para as três vacas que estavam perto da varanda.
– Acho que a nossa plateia pode duplicar quando o meu vizinho descobrir que essas senhoras vieram explorar minha terra de novo.
– Então vamos entrar agora mesmo antes que eu fique louco.
– Longe de mim me colocar entre você e a sua sanidade mental.
Ele tinha até uma maleta de roupas, ela percebeu, levando as coisas para dentro.
– Tenho novidades – ele disse ao fechar a porta da frente.
– O quê?
– Chantal saiu de casa hoje cedo.
Lizzie parou e o fitou. Ele estava vestindo sua roupa casual: bermuda e uma camisa polo IzOD, mocassins Gucci, óculos escuros Ray Ban, e o relógio Cartier, o conjunto fazendo com que ele parecesse saído de uma foto cuja legenda era “Os belos e os ricos”. Até o cabelo estava alisado para trás, embora se devesse ao fato de ele ter acabado de sair do banho e ainda estar úmido.
O coração dela oscilou, e ela sentiu um medo momentâneo. Lindo como estava, ele parecia o pôster de um homem em quem não se podia confiar, ainda mais no que se referia a mulheres como Chantal…
Como se ele pudesse ler sua mente, Lane tirou os óculos escuros, revelando seus olhos. Em contraste com tudo o que sua aparência dizia, eles eram límpidos, firmes e tranquilos.
Honestos.
– É mesmo? – ela sussurrou.
– Mesmo. – Ele se aproximou e a virou na sua direção. – Lizzie, acabou. Tudo acabou. E antes que me pergunte, não é só por sua causa. Eu deveria ter metido uma bala nesse casamento há muito tempo. Falha minha.
Fitando seu rosto, ela xingou baixinho.
– Desculpe, Lane. Desculpe ter duvidado de você, eu só…
– Psiu. – Ele a silenciou com os lábios. – Não vivo no passado. É perda de tempo. Só me importo com o presente.
Passando os braços ao redor do pescoço dele, ela curvou o corpo.
– Entãããooo… Não consegui ficar naquela coisa de sermos só amigos, consegui?
– Estou perfeitamente de acordo.
– Acho que esse foi o melhor jantar da minha vida.
Lane fitou-a da outra ponta do sofá e viu quando Lizzie se largou sobre as almofadas, pousando a mão sobre a barriga. Quando as pálpebras dela começaram a pesar, ele a visualizou sobre aquele galho como um anjo vingador, cortando os galhos que mataram seu carrinho.
Mesmo tendo passado a primeira hora desde a sua chegada um em cima do outro, Lane sentiu a ereção engrossar de novo.
– É um milagre – murmurou.
– Eu ter gostado tanto assim do lombo? Acho que não.
– Quero dizer, estar aqui com você.
Os olhos azuis voltaram a se abrir lentamente.
– Sinto a mesma coisa. – Quando ele começou a rir no fundo da garganta, ela o deteve, levantando as mãos. – Não, você não pode dormir sobre os louros da vitória.
Deixando o guardanapo de lado, ele pairou sobre seu corpo, e montou nela.
– Sabe, tenho outras opções de comemoração.
Movendo os quadris, ele sentiu uma pontada de desejo quando ela mordeu o lábio inferior, como se estivesse pronta para mais dele.
– Quer que eu demonstre? – perguntou, esfregando o nariz no seu pescoço.
As mãos dela o afagaram nas costas.
– Quero sim.
– Hummm…
O som do telefone sobre a mesinha lateral fez com que ele saltasse para pegá-lo, assustado.
– Não a senhorita Aurora… Por favor, que não seja sobre a senhorita Aurora…
– Ah, meu Deus… Lane, ela está…
Assim que ele viu que a ligação começava com o código de área 917, relaxou, aliviado.
– Graças a Deus. – Olhou para ela. – Tenho que atender. É um amigo de Nova York.
– Vá em frente.
Ele atendeu e disse:
– Jeff.
– Sentiu minha falta? – seu velho colega de quarto disse. – Sei que é por isso que deixou recado.
– Não chegou nem perto.
– Bem, não vou mandar aqueles bolinhos de canela que você come de manhã, à tarde e à noite pelo correio…
– Preciso saber quanto tempo você tem de férias.
Silêncio absoluto. Em seguida:
– A Série Mundial de Pôquer não está acontecendo agora. Por que está me perguntando isso?
– Preciso da sua ajuda. – Distraído, ele se encostou nas almofadas e posicionou as pernas de Lizzie sobre o seu colo. Depois do banho, ela tinha vestido shorts, e ele adorava ficar alisando aquelas panturrilhas macias e musculosas. – Estou com um problema sério aqui.
Jeff deixou a brincadeira de lado.
– Que tipo de problema?
– Preciso que alguém me diga se o meu pai está desviando dinheiro da empresa. Algo em torno de cinquenta milhões de dólares.
Jeff assobiou baixinho.
– É muita grana, cara.
– O meu irmão conseguiu me dar acesso a… sei lá, umas quinhentas páginas de relatórios financeiros e planilhas, mas eu não faço a mínima ideia do que tenho nas mãos. Quero que você venha para cá e me diga o que aconteceu, e isso tem que ser feito agora, antes que ele descubra que estou de olho e se livre de tudo o que possa incriminá-lo.
– Escuta aqui, Lane, você sabe que eu te amo como o irmão que nunca tive, mas o que você precisa é de um perito contábil. Existem pessoas que se especializaram nisso, e por um bom motivo. Deixe que eu encontre alguém em quem você possa confiar…
– É exatamente essa a minha preocupação, Jeff. Não posso confiar em ninguém com relação a esse assunto. Estamos falando da minha família.
– Podemos blindar todos os documentos. Posso ajudá-lo com isso, de modo que quem for fazer o…
– Quero você.
– Porra, Lane.
Por conhecer o homem há anos, Lane sabia muito bem que sua tarefa agora era se calar e deixar que Jeff ruminasse o assunto sozinho. Nada o convenceria nem o persuadiria, e se ele continuasse a falar, o tiro sairia pela culatra.
Em vez disso, Lane sabia que, se ficasse calado, todos aqueles anos de amizade resolveriam a questão.
Bingo!
– Insisto para que depois alguém revise o meu trabalho – Jeff murmurou. – Cacete, isso não é negociável. Não vou me responsabilizar por ferrar com tudo só porque você tem uma noção romântica de que sou brilhante com números.
– Mas você é.
– Maldição, Baldwine.
– Não posso mandar o meu avião. Chamaria muita atenção.
– Tudo bem. Um da minha família está na costa leste. Viajo amanhã de manhã e, não, não posso ir antes. Vou ter que ajeitar umas coisas no trabalho.
– Fico te devendo.
– Claro que fica. E pode começar a me pagar amanhã. Quero bebida grátis e mulheres à vontade, se vou ter que fazer isso.
– Cuido de tudo. Vou até te pegar no aeroporto, é só me dizer que horas vai chegar.
Jeff estava murmurando obscenidades quando desligou sem nem se despedir.
Quando Lane abaixou o aparelho, soltou um longo suspiro.
– Graças a Deus.
– Quem era?
– Acho que posso chamá-lo de meu melhor amigo. Foi com ele que me hospedei enquanto estive no norte. Jeff Stern. Financista brilhante. Se existe alguém que pode entender o rastro do dinheiro, Jeff é o cara. E, depois… – Lane esfregou os olhos. – Deus, acho que vou ter que procurar a polícia. Talvez a Comissão de Valores Imobiliários. O que eu queria mesmo era lidar com tudo isso sem alarde.
– E se o seu pai tiver infringido a lei?
Uma súbita imagem de William Baldwine num macacão laranja o deixou aliviado, de uma maneira doentia, por sua mãe estar desconectada da realidade.
– Não vou interferir com as autoridades. O que me preocupa é ele ter usado seu poder como procurador da minha mãe para secar as contas dela, mas não tenho acesso aos registros. Está tudo em poder da Fundos Prospect.
– Se a polícia ou o FBI se envolverem, eles vão conseguir descobrir isso.
Lane assentiu, lembrando-se do saco com o corpo de Rosalinda saindo de Easterly.
– Se Rosalinda cometeu suicídio por causa disso, o meu pai tem o sangue de outra pessoa nas mãos. Ele precisa ser levado à Justiça.
– Sabe, sempre tento olhar o lado positivo de tudo, mas… – Lizzie balançou a cabeça. – Bem, não importa o que aconteça, estou do seu lado, está bem?
Olhando para ela, ele disse, sério:
– É só disso que preciso. Não importa como tudo vai terminar, se eu tiver você…
O telefone tocou novamente, e ele riu ao apanhar o aparelho.
– Lá vem ele se arrependendo… Não, Jeff, não vai poder recuar agor…
– Você está perto de alguma TV?
Lane se endireitou.
– Samuel T.?
– Está ou não?
– Não. O que está acontecendo?
– Preciso que venha para a minha casa imediatamente. A polícia está à sua procura, e quando não o encontraram em Easterly, Mitch me ligou.
– O que… do que você está falando? – Depois pensou… ah, merda. – Olha só, sei que Edward e eu tecnicamente invadimos o centro de negócios sob falso pretexto, mas o maldito escritório está dentro da nossa propriedade, pra começo de conversa. E quanto aos documentos…
– Não sei do que você está falando e, neste instante, pouco me importo. Chantal foi parar no pronto-socorro hoje cedo, toda surrada. Ela disse às autoridades que você fez isso com ela assim que entrou com o pedido de divórcio, quando descobriu que ela estava grávida. Estão te acusando de violência doméstica, e eles podem ter o suficiente para acusá-lo de tentativa de homicídio também.
– O quê? – Lane se levantou. – Ela está louca!
– Não, ela está na sala operatória. Estão reparando o maxilar dela neste instante.
– Nunca toquei em Chantal! E posso provar! Eu nem estava em casa ontem à noite…
– Apenas venha para a minha casa. Vou intermediar a sua entrada no meio da noite para que não haja nenhuma foto sua indo para a delegacia, e depois te libero com uma fiança…
– Isso tudo é uma grande idiotice – Lane ralhou. – Não vou dançar de acordo com a música dela…
– Não é nenhuma brincadeira. E, a menos que compareça na delegacia, vai ser considerado fugitivo da justiça.
Lane olhou para Lizzie. Ela estava ereta, alarmada, preparada para receber más notícias.
De repente, lembrou-se de Chantal passando naquele Mercedes ao sair de Easterly. O rosto estava coberto com óculos escuros e um véu preto.
Até onde ele sabia, ela podia ter dado uma de Garota Exemplar e provocado os ferimentos ela mesma. Nunca colocara a mulher no campo da patologia antes, mas talvez tivesse subestimado a loucura dela.
– Muito bem. Estou a caminho. Chego na sua fazenda em vinte minutos.
Desligando, ouviu-se dizer:
– Tenho que ir.
– Lane, o que está acontecendo?
Os pratos do lindo jantar que tinham partilhado ainda estavam sobre a mesa, as almofadas do sofá afundadas no lugar em que ele estava recostado, alisando as pernas dela.
No entanto, tais momentos já pareciam pertencer a um passado muito, muito distante.
– Vou cuidar do assunto – ele disse. – Vou dar um jeito. Ela está mentindo. De novo, ela está mentindo.
– O que posso fazer para ajudar?
– Fique aqui. E não ligue o rádio. Ligo assim que puder para explicar tudo. – Segurou o rosto dela entre as mãos. – Eu te amo. Preciso que acredite. Preciso que se lembre disso. E vou cuidar de tudo, juro pela vida da minha mãe.
– Você está me assustando.
– Vai ficar tudo bem. Prometo.
Dito isso, saiu da casa dela.
Em disparada.
QUARENTA E DOIS
Enquanto o Porsche de Lane voava pela escuridão que se avolumava, Lizzie ficou por um bom tempo sentada onde ele a havia deixado. Só conseguia pensar que não deveriam estar surpresos. Chantal Baldwine não era flor que se cheirasse, e de jeito nenhum ela perderia sua posição social e o acesso ao estilo de vida dos Bradford sem lutar bastante.
Portanto, o que quer que fosse aquilo seria apenas o começo.
Pondo-se de pé, juntou os pratos e pensou que não era bem assim que tinha imaginado sua noite.
Mas talvez ele ainda voltasse. Tinha deixado a mala ali.
Maldita seja Chantal.
De volta à cozinha, deixou tudo na pia e despejou um pouco de detergente sobre a bagunça, depois abriu a torneira de água quente.
Então seu celular tocou sobre a bancada.
– Graças a Deus – disse, esticando a mão sobre os azulejos. – Lane? Pode me contar o q…
– Lizzie? Você está em casa?
– Greta? – Havia um zumbido na ligação, como se a mulher estivesse ao volante. – Greta? Não estou conseguindo te ouvir direito.
– … em casa?
– Sim, sim, estou em casa. Você está bem?
– … a caminho – buzz, brrrr, quick – … em dez minutos.
– Ok, mas não vou terminar de cortar os galhos agora. Já quase anoiteceu e, pra falar a verdade, não estou com vontade…
– … o telefone.
– O que foi?
A interferência sumiu e o sotaque carregado se fez alto e claro: – Você prrecisa desligarr o telefone.
– Por quê? Não. – Lane poderia telefonar. – Olha só, não estou com muita vontade de ter companhia e…
Houve um estalido alto e a ligação foi interrompida.
– Maravilha.
Enfiando o celular no bolso, voltou para junto da pia, lavou os pratos e os talheres, secou e guardou tudo.
Estava na sala de estar, sentada no sofá, folheando nervosamente a última edição da revista Garden & Gun, quando luzes de faróis brilharam na frente da sua casa e os pedriscos da sua entrada fizeram barulho.
Pondo-se de pé, ajeitou a blusa e deu uma segunda olhada para ver se o seu cabelo não estava todo bagunçado. Não havia motivos para parecer que tinha acabado de sair da cama com Lane.
Ainda mais porque boa parte do sexo que fizeram foi sobre o tapete do corredor. E nas escadas. E de pé no chuveiro.
Ao abrir a porta, ela…
Conforme Greta saía do Mercedes, Lizzie viu que o rosto de sua colega estava muito sério e que ela tinha os ombros encurvados. E ela parecia estar enxugando lágrimas debaixo daqueles óculos.
– Ai, meu Deus – disse Lizzie. – Aconteceu alguma coisa com seus filhos?
A mulher não respondeu, apenas subiu até a varanda e entrou direto na casa. Lizzie a seguiu, fechando a porta.
– Greta?
Ela deu uns passos. Depois parou, por fim.
– Você esteve com ele ontem à noite?
– O que disse?
– Lane. Só… Apenas diga, esteve ou não? A noite inteirra?
– Do que você está falando?
– Chantal está acusando Lane de surrá-la a ponto de mandá-la parra o hospital.
– O QUÊ?
E foi assim que ficou sabendo de tudo. Chantal. O hospital. A polícia. A imprensa.
Lane.
Quando Greta finalmente se calou, Lizzie se deixou cair sobre uma cadeira, às cegas.
– Eu…
– Aquele homem pode serr um monte de coisas – disse Greta –, mas nunca soube de ele terr levantado a mão parra uma mulherr.
– Claro que não. Deus, não. Absolutamente não.
– Ele ficou aqui ontem à noite?
– Ficou. Cheguei em casa durante a tempestade e ele já estava aqui. E não foi embora até hoje de manhã para levar a senhorita Aurora para a igreja. – Levantou-se de um salto. – Tenho que ajudá-lo! Tenho que contar à polícia que ele estava comigo e…
– Tem mais uma coisa.
– Pode me levar? Estou tão atarantada que acho que eu não deveria…
– Lizzie.
Ante o seu nome, ela parou, um medo gélido se instalando em seu peito.
– O quê…?
Agora os olhos de Greta estavam ficando marejados.
– Sinto muito.
– O quê? Fale de uma vez antes que a minha cabeça exploda!
– Chantal está grrávida. E ela disse à polícia… que Lane é o pai.
Lizzie piscou enquanto tudo freava de repente: seus pensamentos, seu coração, seus pulmões… até mesmo o tempo e as leis da física.
– Ela disse que é porr isso que ele bateu nela. Quando ela contou. Ela disse que ele ficou furrioso.
Uma onda de náusea a atingiu no meio do estômago. Mas não… Não, ela não poderia estar revivendo tudo. Não poderia estar exatamente na mesma situação com Chantal e Lane.
Já vivi isso, ela pensou. Já vivi esse pesadelo.
Deus, não. Por favor, não.
– Quando… – Lizzie pigarreou. – Quando ela procurou a polícia?
– Logo cedo. Lá pelas nove ou dez.
Se estivesse muito machucada, não esperaria para ser receber cuidados médicos, Lizzie pensou.
Se a mulher estava grávida, e contou a ele quando ele voltou para Easterly… ele poderia muito bem…
Com uma náusea absurda, Lizzie fugiu para o corredor e mal chegou ao banheiro a tempo antes de vomitar todo o lombo.
Quando chegou à fazenda de Samuel T., Lane estava tão irado que poderia morder latas e cuspir pregos.
Afundando o pé no freio, parou diante da mansão do amigo e quase deixou o motor ligado ao sair.
Samuel T. abriu a porta antes de ele dar a volta no carro.
– Liguei para o Mitch. Ele vai estar aqui em quarenta e cinco minutos, sem viatura. Não querem esperar para te levar para interrogatório, mas vão te deixar entrar por uma porta lateral. Ninguém com câmera tem acesso a essa parte, então vai ficar tudo bem.
Lane passou pelo cara.
– Isso é a mais absoluta mentira! Ela é louca e vai… – Ele parou e ficou confuso ante o olhar do amigo. – O que foi? Por que está olhando assim para mim?
Em vez de responder, Samuel T. esticou a mão e segurou o braço de Lane.
– Como conseguiu todos esses arranhões nas suas mãos, nos braços, no rosto e no pescoço?
Lane olhou para si mesmo.
– Jesus Cristo, Sam, isso foi de ontem à noite. Fui para a casa da Lizzie e um galho caiu no carro dela. – Quando o amigo apenas o encarou, ele perdeu as estribeiras. – Ela pode testemunhar, se quiser. Eu a tirei daquele maldito Yaris. Pensei que ela tivesse morrido.
– Você está saindo com ela de novo?
– Sim, estou.
– E acha que ela vai querer te ajudar quando descobrir que Chantal está grávida de um filho seu? De novo? Vocês dois não passaram por todo esse drama dois anos atrás?
Lane sentiu noventa por cento do seu sangue abandonar a sua cabeça.
– Não é meu, Sam. Eu te disse quando assinei todos aqueles papéis. Não estive com Chantal desde que fui embora.
– Não é o que ela contou para a polícia. Ela disse que tem ido e vindo de Manhattan no último ano, tentando fazer o relacionamento de vocês dar certo.
– Não é meu. – Ele abaixou a voz, mesmo não havendo mais ninguém por perto. – É do meu pai.
Foi a vez de Samuel T. ficar chocado.
– Do seu… pai?
– Você ouviu.
– Tem certeza?
– Tenho, falei com os dois.
Samuel T. tossiu no punho fechado.
– Sabe, essa sua família é uma coisa do outro mundo.
– É o que as pessoas me dizem. – Lane cruzou os braços sobre o peito. – Posso me submeter a um teste de detecção de mentiras. Juro sobre a Bíblia… Inferno, eles deveriam verificar debaixo das unhas dela. Não vão encontrar nada de mim nela. Nem dentro dela. Não toquei nela, Sam.
– Ela disse que tem uma testemunha.
– Rá! Só nos sonhos dela. Diabos, ela mesma deve ter feito isso consigo…
– É uma criada chamada Tiffany.
Lane se retraiu.
– Uma criada? Tiff… Espere, é “p-h-a-n-i-i”?
Visualizou a moça das toalhas, que se apresentara com aquele olhar de interesse.
Samuel T. deu de ombros.
– Não sei como se soletra o nome dela. Ainda tenho que ver os detalhes com Mitch. Mas a mulher disse que ouviu você e Chantal discutindo, e que você a ameaçou. E, segundo a criada, você jurou “acabar com a vida dela”.
– Eu nunca disse isso!
– Vocês estavam no segundo andar e a criada apareceu no meio da discussão.
– Ela está mentindo… – Lane parou e meneou a cabeça, uma lembrança retornando. – Espere, não, não. Não foi assim, eu disse isso porque Chantal havia desrespeitado a senhorita Aurora. Fiquei irritado. Mas não falei pra valer.
Samuel olhou para os cortes nos braços dele.
– Vou ser bem franco. Você parece ter respostas bem convenientes…
– É a verdade! Não estou inventando nada!
– Escuta só, não quero brigar com você.
– Samuel T. – ele disse, num tom controlado. – Você já me viu ser violento? Ainda mais com uma mulher?
Samuel T. o encarou longamente. Depois, levantou as mãos.
– Não, nunca o vi assim. E quero acreditar em você, quero mesmo. Mas mesmo que esteja dizendo a verdade, temos dois problemas aqui: um legal e outro publicitário. A parte legal pode ser facilmente resolvida, caso Lizzie testemunhe a seu favor e não houver nenhuma evidência forense no seu corpo ou no de Chantal. Agora, o problema publicitário será muito mais difícil de controlar. A notícia vai se espalhar, Lane. Ainda mais se você estiver certo e o seu pai tiver um filho com a sua esposa. Diabos, isso vai virar notícia nacional… E você sabe como a imprensa nunca deixa a verdade atrapalhar uma boa história. E esse tipo de coisa afeta o preço das ações e o valor intrínseco dos produtos da sua família. Não estou dizendo que seja certo, mas é a realidade. Você é a Cia. Bourbon Bradford. A sua família é a Cia. Bourbon Bradford. Posso ter conseguido apagar a passagem da sua irmã pela cadeia, mas isso aqui… Não tem como. A história já está no noticiário local.
Lane andou em círculos no átrio da casa do amigo. Depois olhou para ele.
– Falando em família, você tem bourbon nesta casa?
– Sempre. E só me sirvo do melhor, portanto é um Bradford.
Lane pensou em Mack e nos silos fechados. E depois no pai… E em tudo o que o homem tinha aprontado.
– Veremos por quanto tempo mais – Lane murmurou.
QUARENTA E TRÊS
Seis horas mais tarde, enquanto ainda estava na sala de interrogatórios da delegacia do condado, Lane tentou ligar para o celular de Lizzie pela sexta vez, e concluiu que ela devia ter ficado sabendo da situação. Talvez alguém tivesse ligado para ela. Ou, quem sabe, ela tinha ligado o rádio, pois não tinha televisão.
Inferno, talvez alguém tivesse colocado uma placa luminosa no centro de Charlemont e ela conseguia ver lá de Indiana.
– Estamos quase terminando aqui – Samuel T. disse quando voltou à saleta cinza. – A boa notícia é que você foi rebaixado a apenas uma pessoa de interesse, mas as coisas ainda vão ficar no limbo até a investigação ser concluída. Mas, pelo menos, agora você pode voltar para casa e não vai ser fichado.
Lane desligou o telefone e esfregou os olhos cansados. Tinham lhe entregado a carteira e o celular uns quinze minutos antes, e a primeira coisa que fez foi tentar falar com Lizzie.
Visto a maneira como saíra da casa dela, não havia a menor possibilidade de ela não atender, caso quisesse falar com ele.
Evidentemente, ela não tinha interesse nenhum em ouvir a sua versão dos fatos.
– Quanto tempo mais? – perguntou, esfregando a cabeça dolorida. – Posso ir embora agora?
– Quase. Só estamos verificando com o promotor público, que, por acaso, é um companheiro meu de caçada. – Samuel T. se sentou. – Sei que é politicamente incorreto, mas graças a Deus a rede de amizades masculinas ainda vai muito bem, obrigado, nesta cidade. Ou você estaria sendo submetido a uma revista pessoal neste exato minuto.
– Você faz milagres – Lane disse, entorpecido.
– Ajuda o fato de a história de Chantal ter alguns buracos. Ela, evidentemente, estava trabalhando sozinha quando teve essa brilhante ideia. Quem é que toma banho logo depois de ser atacada? E toma tanto cuidado para limpar as unhas quebradas? Não faz o mínimo sentido. E também há o pequenino detalhe de ela ter ligado tanto para a imprensa quanto para dois canais de TV… do leito hospitalar.
– Eu te disse. – Olhou para o telefone para ver se Lizzie tinha retornado a ligação sem ele perceber. – Essa aí está arruinando a minha vida.
– Não se eu puder impedir.
Lane tentou falar com Lizzie pela sétima vez. Depois abaixou o celular.
– Como ela estava? Chantal, quero dizer. Quando chegou ao hospital.
– Tem certeza de que quer ver as fotos?
– Tenho, preciso saber a gravidade da situação.
Samuel T. voltou a se levantar.
– Vou ver o que posso fazer.
Enquanto a porta da sala de interrogatórios se abria e se fechava uma vez mais, Lane ficou mexendo no telefone. Pensou em mandar uma mensagem de texto, mas duvidou que fizesse alguma diferença.
Inacreditável. Literalmente, custava a acreditar que aquilo estivesse acontecendo de novo com ele: duas mulheres, as mesmas palavras… onde isso ia parar?
Estava morrendo de medo de já ter a resposta. Lizzie o excluíra uma vez. Claramente, era daquela maneira que ela pretendia lidar com o assunto de novo.
Samuel T. voltou uns dez minutos depois com um envelope pardo.
– Aqui está.
Lane o pegou e levantou a aba. Segurou quatro fotos, e franziu a testa ao ver a de cima.
Dois olhos roxos. Hematomas dos dois lados do rosto. Marcas de estrangulamento no pescoço.
– Isso é muito ruim – disse com voz partida. – Jesus…
Ele não sentia o menor afeto por Chantal, porém não gostava de ver ninguém naquelas condições, ainda mais uma mulher. E ele ponderou que não havia como ela ter feito aquilo sozinha. Alguém devia ter batido nela, repetidamente e com força.
Será que ela pagou para que alguém fizesse aquilo?, ficou imaginando.
A segunda e a terceira fotos eram close ups. A quarta…
Lane voltou para a terceira. Aproximando-se, estudou um detalhe na face, um corte profundo debaixo do olho.
De repente, deixou as fotos na mesa e se recostou na cadeira, fechando os olhos.
– O que foi? – Samuel T. perguntou.
Demorou um pouco para ele poder responder. Mas, por fim, virou a foto e apontou para o corte aberto na face de Chantal.
– Meu pai fez isso com ela.
– Como você sabe?
Com uma claridade impressionante, Lane se lembrou mais uma vez daquela terrível noite de Ano Novo, quando era criança e seu irmão mais velho foi surrado.
– Quando ele batia em Edward, o anel de sinete deixava exatamente essa marca. O meu pai estapeava com o dorso da mão… e o ouro provocava o corte.
Samuel T. xingou baixinho.
– Está falando sério?
– Muito sério.
– Espere um instante, deixe-me ver se consigo fazer o investigador voltar. Eles vão querer saber disso.
Enquanto dirigia para o trabalho, ao romper do dia, Lizzie não conseguiu deixar de se lembrar daquele mesmo trajeto poucos dias atrás, quando a ambulância a ultrapassou antes da colina para Easterly.
Sentia o mesmo mau presságio de então. E o mesmo medo de ver Lane.
Nada de rádio ligado desta vez. Não queria se arriscar a ouvir a estação local com a grande notícia sobre como um dos mais proeminentes homens de Charlemont tinha mandado sua esposa gestante para o hospital. Detalhes adicionais sobre a situação não mudariam a história, e ela já estava se sentindo bem mal com tudo aquilo.
Passando pelo portão principal da PFB, tomou o caminho dos empregados e seguiu em meio a campos abertos e estufas até o estacionamento na parte superior. Era tão cedo que não havia mais ninguém por perto, nem mesmo Gary McAdams.
Era assim que tinha planejado.
No piloto automático, manobrou sua caminhonete e se virou para trás para pegar a bolsa.
– Droga.
Deixara-a em casa. O que significava que ficaria sem óculos de sol, protetor solar, nem chapéu.
Tanto faz. Não voltaria para casa.
E devia ser muito bom o fato de também estar sem telefone. Lane não parara de ligar desde as quatro da manhã.
A caminhada até a porta dos fundos de Easterly levou algum tempo, e ela refletiu se não era apenas um indício do seu cansaço. Depois que Greta finalmente foi embora lá pela uma da manhã, ela ficou acordada vendo o nascer do sol acima da bagunça do quintal.
Uma metáfora da sua vida.
Entrando na cozinha, encontrou a senhorita Aurora diante do fogão.
– Bom dia – disse, com o que esperava ser sua voz normal. – Viu o senhor Harris?
A senhorita Aurora girou os ovos com a sua espátula.
– Ele está no quarto. Não tenho nenhum pedido da família hoje, então isso aqui é para mim, para você e para quem estiver por perto. Levo tudo para a saleta de descanso em dez minutos.
– Desculpe, mas tenho que…
– Te vejo lá.
Lizzie inspirou fundo.
– Vou tentar ir.
– Faça isso. – A senhorita Aurora olhou por sobre o ombro, seus olhos negros reluziam. – Senão, vou ter que ir atrás de você e falar até você entender que a gente não pode acreditar em tudo o que ouve.
Abaixando os olhos, Lizzie saiu da cozinha e foi até a porta do senhor Harris. Antes de bater, olhou para a de Rosalinda. Uma fita isolante fora colocada em toda a volta da porta, assim como uma amarela de “atenção” entre os batentes.
Mais uma cena de crime na casa, pensou. Como será que está o quarto de Chantal?
O mordomo abriu a porta e recuou um passo.
– Senhorita King?
Lizzie se recompôs.
– Ah, desculpe… Hum, preciso falar com o senhor.
Ele franziu a testa, mas algo na postura dela deve ter afetado sua atitude pomposa.
– Entre, por favor.
Previsivelmente, a decoração era bastante inglesa, com todo tipo de livros com capa de couro, cadeiras antigas e artigos orientais preenchendo os espaços. Além da área de estar, havia uma cozinha embutida e, como nos aposentos da senhorita Aurora, na parte oposta havia uma porta fechada, onde ela imaginava que deviam ficar o quarto e o banheiro dele.
O cheiro era agradável, cítrico e de limpeza, nada abafado.
– Estou apresentando o meu pedido de demissão – disse abruptamente. – Com duas semanas de aviso prévio. Eu teria informado Rosalinda, mas…
O senhor Harris a encarou por um momento; depois se afastou e se sentou atrás de uma escrivaninha entalhada. Havia uma pilha de papéis sobre o tampo, mas nenhum computador.
– É uma surpresa.
– Está no meu contrato. Só preciso avisar duas semanas antes.
– Posso perguntar o motivo?
– Apenas uma mudança de objetivos. Tenho cogitado já há algum tempo.
– De fato. – Ele cruzou as mãos. – Então isso não está nada relacionado aos noticiários da noite passada?
– Lamento muito que a família tenha que lidar com assuntos tão desagradáveis.
O senhor Harris ergueu uma sobrancelha.
– Não há nada que eu possa fazer para convencê-la a ficar?
– Já tomei minha decisão, mas obrigada.
Ela saiu depois disso, voltando para o corredor e fechando a porta atrás de si. Sozinha, piscou para afastar as lágrimas, erguendo a cabeça enquanto rezava para que o nariz não começasse a escorrer.
Dentre todas as maneiras que imaginara sair um dia de Easterly, nada nunca se parecera com aquilo. Mas não havia volta. Chegara à decisão de se demitir enquanto ela e Greta acabavam com um litro de sorvete de flocos, depois do seu primeiro acesso de choro e antes do segundo.
No fim, não acreditava que Lane tivesse machucado Chantal daquela maneira, era simplesmente impossível. Mas a questão não era essa.
Não importava se a mulher estava ou não grávida, ou quem seria o pai, caso ela estivesse mesmo.
A verdade nua e crua era que, depois de quase uma década com aquela família, Lizzie percebeu que eles eram diferentes de uma maneira fundamental, e não porque os Bradford tinham mais dinheiro do que ela conseguiria ver em toda a sua vida. A questão era que, de onde ela vinha, as pessoas se casavam e tinham filhos, planejavam suas aposentadorias, saíam de férias uma vez ao ano para lugares como Disney ou Sandals. Pagavam seus impostos em dia e comemoravam casamentos e nascimentos com festas triviais, e não traíam seus maridos e suas esposas.
Tinham vidas dignas e modestas, sem serem afetadas pelos dramas loucos que aconteciam com os Bradford.
E a questão era que, por mais que se sentisse atraída por Lane – diabos, talvez se sentisse atraída pela mesma loucura que a repelia –, ela simplesmente não tinha mais as forças e os recursos para continuar com ele de qualquer maneira possível. Tinha se apaixonado rápido demais, intensamente e, assim como no passado, o que ele trouxe para a sua vida foi um buraco no estômago, mais noites insones… e uma sensação de profunda tristeza.
Alguns riscos é melhor não correr. Doenças, acidentes ou outros tipos de tragédias são imprevisíveis… nem sempre é possível reduzir as chances de se machucar, porque estamos vivos, e é a realidade dos seres vivos neste planeta.
Já para outros problemas, questões ou perigos, havia uma certa liberdade para se afastar, para recuar. E quando se é um adulto responsável, que deseja viver uma existência meio que saudável, é uma obrigação cuidar de si próprio, se proteger… amar a si mesmo.
Obviamente, ela não confiava em si mesma para agir com sensatez no que se referia a Lane Baldwine, por isso resolveria o problema da sua falta de autocontrole com a falta de proximidade.
Era hora de partir.
Como uma viciada no período de abstinência, ela simplesmente se afastaria. E não, não pretendia conversar com ele sobre o assunto. Seria o mesmo que um viciado querendo bater papo com uma seringa de heroína. Sem dúvida, Lane apresentaria o seu lado, mas não importava qual fosse, não mudaria o fato de que o coração dela se estilhaçara de novo e que a sua decisão de deixar o trabalho não estava sujeita a negociações.
E agora, ela daria o seu melhor para chegar ao fim do dia.
Descendo até as estufas, entrou na primeira e se sentiu mais do que pronta para trabalhar com as mudas, que no momento nem eram mudas ainda. Mas, antes de seguir para a estação de suprimentos para juntar o necessário, parou e pegou o celular.
O que fez em seguida não levou mais do que um momento.
E, provavelmente, foi uma estupidez.
Mas transferiu 17 mil, 486 dólares e 79 centavos da sua poupança… para a conta da hipoteca.
Terminando de pagar a sua fazenda.
Bom, aquela não devia ser uma decisão muito sensata, considerando-se que a colocaria à venda. O orgulho, contudo, fez com que aquela transação fosse necessária. Orgulho e a sensação de que precisava alcançar o objetivo estabelecido ao comprar aquele lugar.
Sempre quisera algo só seu no mundo, um lar que ela mesma estabelecesse, pagasse e sustentasse, sem a ajuda de mais ninguém.
O fato de agora não ter um centavo sequer era um contrapeso para tudo o que estava sentindo.
Prova de que fracassara completamente ao tentar cuidar de si própria.
Lane voltou a Easterly assim que foi liberado.
Isto é, depois de voltar à casa de Samuel T. para pegar o seu Porsche.
Entrou na propriedade da família pelos fundos, atravessando os campos e as estufas, porque queria evitar a imprensa no portão principal e porque queria saber se Lizzie estava ali.
Estava. A caminhonete marrom da fazenda estava no estacionamento junto aos veículos dos outros empregados.
– Droga – exalou.
Subiu até a garagem, estacionou o carro debaixo da magnólia e foi diretamente para a entrada dos fundos do centro de negócios. Depois de inserir a senha que Edward lhe fornecera, escancarou a porta e foi abrindo caminho até a recepção, cruzando escritórios, a sala de reuniões e a sala de jantar.
Homens e mulheres em ternos levantaram as cabeças, alarmados, mas ele os ignorou.
Não parou até se ver dentro do escritório envidraçado da assistente do pai.
– Vou vê-lo agora.
– Senhor Baldwine, o senhor não pode…
– Até parece que não.
– Senhor Baldwine…
Lane abriu a porta e…
Parou no lugar. O pai não estava atrás da escrivaninha.
– Senhor Baldwine, não sabemos onde ele está.
Lane olhou por sobre o ombro.
– Como assim?
– O seu pai… Era para ele ter viajado hoje de manhã, mas ele não apareceu no aeroporto. O piloto o esperou por uma hora.
– Você ligou para a casa, claro.
– E para o celular dele. – A mulher cobriu a boca com a mão. – Ele nunca fez isso antes. Ninguém na mansão o viu.
– Merda.
Bom Deus, o que fazer agora?
Enquanto Lane saía do escritório, a voz da assistente o acompanhou.
– Pode, por favor, pedir que ele ligue para mim?
De volta à luz matutina, disparou na direção da porta da cozinha de Easterly. Assim que entrou, passou pelas bancadas de aço inoxidável e empurrou a porta que dava para o corredor dos empregados. Subiu a escada dos fundos de dois em dois degraus, quase atropelando uma criada que passava aspirador no corredor do segundo andar.
Passou pelo seu quarto e pelo de Chantal.
Chegou ao do pai.
Parou diante da porta e pensou que não estava pronto para um “Rosalinda, parte II” com seu próprio pai. Não por não desejar ver o cadáver de um dos seus progenitores.
Não, era mais porque, se o homem precisasse de um caixão, Lane queria se responsabilizar por colocar a cabeça do maldito sobre o travesseiro acolchoado.
Abriu a porta.
– Pai! – exclamou. – Onde você está?
Marchando quarto adentro, aguçou os ouvidos e fechou a porta atrás de si – só para o caso de o homem estar vivo. Pois iria machucar o filho da puta, que os céus o ajudassem, mas estava preparado para machucá-lo muito.
Chantal podia ser uma vadia e uma mentirosa, mas nenhuma mulher merecia apanhar. Não importavam as circunstâncias.
– Onde diabos você está? – exigiu saber ao abrir a porta do banheiro.
Quando não encontrou a toalha sobre o box do banheiro, refez seus passos e foi para o closet.
Nada ali também.
Não, espere.
A mala do pai, aquela com monograma que ele costumava usar, estava aberta e parcialmente cheia. Mas mal arrumada. As roupas estavam mal acomodadas, jogadas às pressas por alguém com pouca experiência em fazer aquele tipo de tarefa.
Vasculhando o conteúdo, Lane não percebeu nada de extraordinário.
Mas notou que o relógio predileto do pai, o Audemars Piguet Royal Oak, não estava junto aos perfilados na gaveta forrada. E a carteira também estava faltando.
Retornando para o quarto, perscrutou a mobília, os livros, a mesa, mas não fazia ideia se havia algo fora do lugar. Estivera ali apenas um punhado de vezes… e não voltava havia uns belos vinte anos.
– O que está aprontando, pai? – perguntou baixinho, no ar parado.
Seguindo seus instintos, saiu, fechou a porta e voltou correndo pelas escadas até o primeiro andar. Levou menos de um minuto para entrar na garagem e contar os carros. O Phantom ainda estava ali, mas faltavam dois Mercedes. Chantal, evidentemente, estava com um.
O pai devia ter saído com o outro.
A pergunta era… para onde?
E quando?
QUARENTA E QUATRO
– Você não pode estar fazendo isso de novo. Vamos lá, acorda.
Edward bateu na mão que o puxava.
– Me deixa em paz.
– Eu não. Tá frio aqui fora e você não vai aguentar.
Edward abriu os olhos lentamente. A luz entrava pela porta aberta da baia no fundo do estábulo, ressaltando a poeira do feno e o perfil de um dos gatos vadios que perambulavam por lá. Uma égua relinchou do lado oposto, e outra coiceou a baia. Ao longe, ele percebeu o ronco de um dos tratores.
Puta merda, como a sua cabeça doía. Mas não era nada comparado ao seu traseiro. Engraçado como uma parte do corpo conseguia estar absolutamente entorpecida e dolorida ao mesmo tempo.
– Você vai ter que se levantar, inferno.
Toda aquela conversa o fez praguejar… e tentar focar a vista.
Ora, ora, vejam só. Havia duas Shelbys falando com ele. Sua nova empregada estava parada de pé como uma professora severa, com as mãos nos quadris estreitos, as pernas cobertas pela calça jeans e os pés com botas afastados, como se estivesse considerando a possibilidade de chutar sua cabeça tal qual uma bola de futebol.
– Pensei que você não falasse palavrão – ele murmurou.
– Não falo.
– Ora, mas acho que você acabou de falar.
Os olhos dela se estreitaram.
– Você vai se levantar ou vou ter que te varrer para fora daqui com o resto da sujeira?
– Você não sabia que “inferno” é apenas o primeiro passo? É como maconha. Sem se dar conta, logo, logo, você vai estar lançando bombas de “cacete” a torto e a direito.
– Tudo bem. Pode ficar aí. Espera pra ver se me importo.
Quando ela se virou para sair, ele a chamou.
– Como foi o seu encontro ontem à noite?
Ela girou sobre os calcanhares.
– Do que você tá falando?
– Com o Moe.
Dito isso, ele se esforçou para se erguer do piso de concreto do estábulo. Quando não conseguiu, ela levantou uma sobrancelha.
– Sabe, acho que vou mesmo te deixar aí.
Acima da cabeça dele, Neb relinchou, como se estivesse rindo.
– Não pedi a sua ajuda – Edward disse entre dentes.
Sem aviso, sua mão escorregou e seu corpo se chocou no concreto com tanta força que seus dentes bateram.
– Você vai acabar se matando – ela resmungou ao marchar de volta.
Shelby o ergueu com todo o cuidado que alguém dispensaria com uma forquilha caída, mas ele tinha que dar a mão à palmatória. Mesmo ela chegando apenas na metade do peito dele, era forte o suficiente para levá-lo pelo corredor, para fora do estábulo, e pela grama até o chalé.
Uma vez lá dentro, ele indicou sua poltrona com a cabeça.
– Ali já está…
– Você vai ficar com hipotermia. Isso não vai acontecer, não.
Em seguida, ele a viu sentando-o sobre o vaso sanitário e começando a aquecer a água da banheira.
– Pode deixar comigo a partir daqui – ele disse, pendendo para o lado e deixando que ela o segurasse. – Obrigado.
Ele estava fechando os olhos quando ela lhe deu um tapa.
– Acorda.
O ardor da batida o fez despertar e esfregar a face.
– Gostou de fazer isso?
– Gostei. E posso fazer de novo. – Enfiou uma escova de dentes na boca dele. – Use isso.
Era difícil falar com aquela maldita coisa na boca, portanto ele obedeceu, limpando o lado esquerdo, o direito, a frente e as partes inferiores. Depois se inclinou sobre a pia e cuspiu.
– Não está tão frio assim – ele disse.
– Como é que você sabe? Está pra lá de bêbado.
Na verdade, não estava, não. E isso era parte do problema. Pela primeira vez em muito tempo, ele não tinha tomado nenhuma bebida alcoólica na noite anterior.
– O que está fazendo? – ele perguntou quando as mãos dela se apossaram da sua malha.
– Tirando a sua roupa.
– É mesmo?
Enquanto ela se ocupava com as roupas dele, ele olhou para o corpo dela. Era difícil ver grande coisa, já que ela estava com uma blusa larga de moletom, então ele resolveu esticar a mão e testar a cintura dela.
Ela parou. Recuou.
– Não estou interessada.
– Então por que está tirando as minhas roupas?
– Porque os seus lábios estão roxos.
– Desliga isso. – Ele apontou para a torneira. – Assumo daqui.
– Você vai se afogar.
– E daí? Além do mais, não quero que você veja o que tenho debaixo da roupa.
– Vou ficar esperando lá fora, perto da sua poltrona.
– Ah, maravilha – ele disse baixinho.
Ela fechou a porta ao sair, e ele não fez mais nada. Só se encostou na parede e ficou olhando para a água fumegante.
– Não estou ouvindo barulho de água – ela comentou do lado de fora.
– Não está fundo o bastante ainda para eu nadar.
Toc. Toc. Toc.
– Entre logo, senhor Baldwine.
– Esse é o meu pai. E ele é um idiota. Atendo por Edward.
– Cale a boca e entre na banheira.
Mesmo na névoa do seu estupor, ele sentiu algo chamejar por ela. Achou que fosse respeito.
Mas quem se importav…
Bum, bum, bum!
– Você vai acabar derrubando a maldita porta – ele exclamou acima de todo aquele barulho. – E pensei que você não quisesse me ver nu.
– Água. Agora! – ela ralhou. – E não quero mesmo, mas melhor do que te encontrar morto.
– É apenas uma questão de opinião, minha cara.
No entanto, por algum motivo inexplicável, ele resolveu fazer como ela mandava.
Apoiando os braços na pia e na parte traseira do vaso sanitário antigo, suspendeu o corpo. Suas roupas eram um estorvo, mas conseguiu tirá-las e logo se colocou na banheira. Estranho, mas a água quente provocou o efeito contrário ao esperado. Em vez de aquecê-lo, fez com que ele sentisse frio, e começou a tremer tanto que criou ondulações na superfície da água.
Cruzando os braços diante do peito, seus dentes tiritaram, e seu coração saltou.
– Você está bem aí dentro? – ela perguntou.
Quando ele não respondeu, Shelby o chamou mais alto: – Edward?
A porta se escancarou e ela invadiu o banheiro como se estivesse preparada para bancar a salva-vidas, resgatando-o de cinquenta centímetros de profundidade de água. E foi horrível… Quando ela o fitou, só o que ele conseguiu fazer foi ficar encarando a água agitada, na esperança de que ela cobrisse suas pernas raquíticas, seu sexo flácido e sua pele branca coberta de cicatrizes.
Ele teve quase certeza de que ela arquejou.
Sorrindo-lhe, ele disse:
– Bonito, não sou? Mas acredite ou não, eu funciono muito bem. Bem, digamos que um pouco de Viagra ajude. Seja boazinha, sim? E me traga alguma bebida… Acho que estou me desintoxicando, e é por isso que estou tremendo tanto.
– Você… – Ela pigarreou. – Você precisa de um médico?
– Não, só de um pouco de Jim Beam. Ou Jack Daniel’s.
Quando ela simplesmente continuou olhando para ele, Edward apontou para a porta aberta.
– Estou falando sério. O que eu preciso é de álcool. Se quer me salvar, vá buscar um pouco. Agora.
Quando saiu do banheiro e fechou a porta, Shelby Landis tinha toda intenção de fazer o que Edward lhe pedira. Afinal, ela tinha muita experiência com alcoólatras, e por mais que não aprovasse nada daquilo, ela levara bebida ao pai milhares de vezes, e isso também costumava ser pela manhã.
Pelo menos, esse era o plano. Só que ela não parecia capaz de se mexer, de pensar… sequer de respirar.
Não estava preparada para ver aquele homem lá dentro, com a cabeça pensa como se ele tivesse vergonha de ser magro demais, do seu corpo alquebrado, do seu orgulho masculino tão esfarrapado e maltratado quanto suas carnes. Um dia ele fora uma grande força; seu pai tinha lhe contado histórias sobre o domínio de Edward nos negócios, nas pistas, na sociedade. Puxa, ouvira falar dos Bradford desde que era criança. Seu pai se recusava a beber qualquer outra coisa que não o no 15 deles, assim como boa parte das pessoas que lidavam com cavalos que ela conhecia.
Levando as mãos ao rosto, sussurrou:
– O que fez comigo, pai?
Por que ele a mandara ali?
Por que…
– Shelby? – exigiu a voz de lá de dentro.
Deus, ele era como seu pai. O modo como Edward pronunciara seu nome com uma pontada de desespero… era exatamente igual ao pai quando estava desesperado por uma bebida.
Fechando os olhos, praguejou bem baixinho. Depois sentiu culpa.
– Perdoe-me, Senhor. Não sei o que estou dizendo.
Ao procurar pelo cômodo, encontrou uma fila de garrafas na parte da frente de uma das prateleiras de troféus, e a ideia de lhe entregar o veneno a deixou nauseada. Mas ele mesmo acabaria saindo e pegando… e provavelmente caindo e batendo a cabeça no processo. Então, em que pé estariam? Além disso, ela sabia como aquelas coisas funcionavam. Aquele tremor terrível não cessaria até que a fera dentro dele fosse alimentada de acordo com sua necessidade, e o corpo dele já parecia tão frágil…
– Já estou indo – disse em voz alta. – O que prefere?
– Tanto faz.
Direcionando-se para as garrafas às cegas, pegou uma de gim e voltou para a porta fechada do banheiro. Não se deu ao trabalho de bater, simplesmente entrou.
– Pronto. – Tirou a tampa. – Pode beber direto do gargalo.
Só que as mãos dele tremiam tanto que não havia um modo de ele conseguir erguer a garrafa sem derrubar tudo.
– Deixa que eu seguro pra você – ela murmurou.
Houve um instante de hesitação por parte dele, mas logo ele ergueu a boca como um potrinho recém-nascido abandonado pela mãe.
E deu umas duas ou três belas goladas.
– Isso sim é que esquenta.
Deixando o gim ao lado da banheira onde ele conseguiria alcançar caso quisesse, ela pegou uma toalha de banho e submergiu na água, atrás dele. Quando ficou encharcada, ela a passou pela protuberância da coluna e das costelas dele. Depois tratou de cuidar da cabeça com uma esponja de banho, molhando o cabelo, alisando-o para trás.
Sem que ele pedisse, ela ergueu a garrafa mais uma vez e ele bebeu, sorvendo direto do gargalo.
Banhá-lo com sabonete e xampu fez com que ela se lembrasse dos cuidados oferecidos a um animal recém-resgatado. Ele estava assustado. Desconfiado.
Meio morto.
– Você precisa comer – ela disse numa voz partida.
Não tenho isso dentro de mim, Senhor. Não vou conseguir fazer isso de novo.
Não conseguira salvar o pai alcoólatra. Perder dois homens numa vida só parecia um fracasso grande demais para superar.
– Vou te preparar o café da manhã depois, Edward.
– Você não tem que fazer isso.
– É – respondeu, rouca –, eu sei.
QUARENTA E CINCO
– Então, vamos repetir tudo de novo?
Ante o som da voz máscula, Lizzie parou no meio do transplante de uma Hedera helix para um vaso novo. Fechando os olhos, inspirou fundo e ordenou às mãos que não tremessem e nem derrubassem nada.
Estava à espera que Lane a procurasse para conversar. Ele não demorou muito.
– E então? – disse ele. – Voltamos aos dias em que você ouve alguma coisa que não gosta e me exclui? Porque se for o roteiro que vamos seguir, e é bem isso o que está parecendo, acho que só me resta subir num avião e voltar para Nova York e pôr um fim à história. Vai ser muito mais eficiente, e não vou acabar com uma conta telefônica quilométrica por deixar mensagens na sua caixa postal.
Forçando as mãos a continuarem a trabalhar, enfiou as raízes no buraco que cavara no vaso e começou a transferir terra nova para enchê-lo.
– Algo que eu não queria ouvir – ela repetiu. – Sim, acho que podemos dizer que descobrir que a sua esposa está grávida de novo é uma notícia que eu preferiria não ouvir. Especialmente porque fiquei sabendo logo depois de termos feito sexo. Em seguida, veio a notícia maravilhosa de que você estava sendo preso por mandá-la para o pronto-socorro.
Quando ele não respondeu, ela se voltou na direção dele. Lane estava parado na entrada da estufa, junto à estação de trabalho em que Greta deveria estar, caso Lizzie não tivesse avisado à mulher que precisava ficar um tempo sozinha.
– Acha mesmo que eu seria capaz de fazer uma coisa do tipo? – ele perguntou num tom baixo.
– Não cabe a mim decidir nada disso. – Ela voltou a se concentrar no que estava fazendo e odiou as próprias palavras. – Mas uma coisa que eu posso dizer é que o melhor indicador de um futuro comportamento é o modo como a pessoa se comportou no passado. E eu não posso… Não posso mais fazer isso com você. Não importa se os boatos são verdadeiros ou não, não é essa a questão.
Depois de colocar a terra nova, ela pegou o regador e o inclinou sobre o vaso de trepadeira. Em três meses, a planta estaria pronta para ser levada para o lado externo, para o muro ou para um dos vasos do terraço. Tinham muita sorte com aquela variedade, mas era bom planejar reposições antes que elas fossem necessárias.
Limpando as mãos na frente do avental, virou-se para ele.
– Entreguei meu pedido de demissão. Portanto, não precisa se preocupar em voltar para Nova York.
Não teve dificuldades para sustentar o olhar dele. Para encará-lo. Enfrentá-lo.
É incrível como você fica determinado com os outros quando sabe em que pé está.
– Você acha mesmo que eu faria aquilo com uma mulher? – ele repetiu.
Claro que não, ela pensou. Mas permaneceu em silêncio porque sabia que, se quisesse mesmo que ele a deixasse em paz, a insinuação feriria seu orgulho masculino e isso, infelizmente, agiria em seu favor.
– Lizzie, responda.
– Não é da minha conta. Não é.
Depois de um instante, ele assentiu.
– Ok. Muito justo.
Quando ele se virou e se dirigiu para a porta, ela teve que admitir que ficou um pouco surpresa. Esperava ouvir algum tipo de explicação demorada. Uma torrente de persuasão da qual ela teria que se esquivar. Algum tipo de “Eu te amo, Lizzie, de verdade”.
– Desejo tudo de bom para você, Lizzie – ele disse. – Cuide-se.
E foi… só isso.
A porta se fechou sozinha. E, por uma fração de segundo, ela sentiu o impulso absurdo de ir atrás dele e gritar na sua cara que ele era um cretino colossal por tê-la seduzido do jeito como seduziu, que era um mau caráter, que era exatamente quem ela temia que ele fosse, um usurpador de mulheres, um mentiroso, um elitista enganador e sádico que não saberia…
Lizzie forçosamente se afastou desse precipício.
Se aquela despedida significava alguma coisa, o fato de ela permanecer ou não na vida dele parecia não importar nem um pouco para ele.
Bom saber disso, ela pensou com amargura. Bom saber.
Colocando-se atrás do volante do 911, Lane pensou que havia momentos na vida em que, por mais que você quisesse lutar, era melhor simplesmente desistir.
Você não precisava gostar do fracasso.
Não tinha que se sentir maravilhoso com relação ao resultado das coisas.
E, por certo, não se afastava de tudo sem arranhões, sem ficar seriamente ferido pela perda, aleijado, até.
Mas você precisava abrir mão de tudo, porque desperdiçar energias não o levaria a parte alguma, e você poderia muito bem já ir se acostumando com a perda.
Era a única lição que o seu relacionamento com o seu pai lhe ensinara. Se ele teria apreciado a presença de uma figura masculina que pudesse admirar, se espelhar, se orgulhar e sentir respeito? Sim, claro. Teria sido maravilhoso não crescer numa casa onde o som de chinelos sobre o piso de mármore ou o cheiro de cigarro não o obrigasse a procurar um lugar para se esconder. Óbvio. Poderia ter se beneficiado de conselhos paternos, ainda mais em tempos como aquele?
Sim, poderia.
Entretanto, não foi assim para ele. E ele teve que se acostumar com isso para não enlouquecer negociando com um fracasso que jamais conseguiria mudar ou melhorar.
Seguindo o mesmo raciocínio, se Lizzie King de fato acreditasse que havia a mínima possibilidade de ele ter botado as mãos numa mulher daquela forma, que ele tivesse mentido descaradamente a respeito de Chantal, que qualquer bebê que aquela mulher tivesse pudesse ser seu… então não havia esperanças para eles dois. Não importaria o que ele lhe dissesse ou como tentasse explicar as coisas… ela não o conhecia de verdade e, mais importante, não confiava nele.
E o fato de aquilo tudo ser uma mentira, de Chantal, mais uma vez, ter lhe roubado a mulher que ele amava…
Bom, a vida é dura.
Buá, buá, buá.
Peça um pai novo para o Papai Noel. Peça à Fada do Dente que te dê uma nova ex-esposa.
Tanto faz.
Deixando Easterly, entrou na estrada e dobrou o limite de velocidade a caminho do Aeroporto Internacional de Charlemont, não porque estivesse com pressa ou atrasado, mas porque podia. O carro aguentaria o tranco e, naquele exato instante, ele estava sóbrio e no controle.
A entrada para as chegadas e partidas particulares era a primeira saída do caminho que cercava a enorme construção. Lane estacionou à direita das portas duplas e deixou o motor ligado.
Jeff Stern já estava próximo do espaço luxuoso. Só tinham se passado poucos dias, mas parecia um século desde aquele jogo de pôquer em que a loira burra o incomodava, quando ele se levantou para atender ao telefone.
Como era de se esperar, seu colega de apartamento estava vestido como o homem de Wall Street que era: óculos, terno escuro e camisa branca engomada. Até estava com a poderosa gravata vermelha.
– Poderia ter vindo de bermuda – Lane comentou quando se cumprimentaram batendo as mãos.
– Estou vindo do escritório, idiota.
Aquele sotaque, ao mesmo tempo estranho e familiar, era exatamente o que ele precisava naquele instante.
– Deus, você está com uma aparência péssima – Jeff comentou, enquanto sua bagagem chegava num carrinho. – A vida familiar evidentemente não combina com você.
– Não a minha, pelo menos. Me diz uma coisa, o seu avião ainda está aqui?
– Não por muito tempo. Está sendo reabastecido. Por quê? – Quando Lane apenas olhou para a pista, o amigo praguejou. – Não. Não, não, não, não, não. Você não me arrastou para cá, abaixo da Mason-Dixie, para atender um alarme falso e agora quer voltar para Manhattan. Sério, Lane.
Por um instante, Lane hesitou. Queria ficar, só para ferrar o pai em múltiplas instâncias, mas também queria partir, porque estava cansado de tanta insanidade.
Parecia que ele e Lizzie, no fim, tinham algo em comum.
Os dois queriam se afastar.
– Lane?
– Vamos – convidou, dando uma gorjeta para o carregador e pegando as duas malas de couro do amigo. – Quando foi a última vez que veio a Easterly?
– Num Derby, há um milhão de anos.
– Nada mudou.
Colocou as malas no Porsche e saíram de lá, acelerando para longe do aeroporto e entrando na estrada.
– Então, vou ou não conhecer essa sua mulher, Baldwine?
– Provavelmente não. Ela pediu demissão.
– Puxa, que rápido. Lamento muito.
– Não finja que não leu as notícias.
– Pois é, está em todos os lugares. Acho que você é o responsável por ressuscitar os jornais impressos. Parabéns.
Lane praguejou e ultrapassou um carro.
– Não era um prêmio que eu queria, eu garanto.
– Espere um instante. Você disse “se demitindo”? Quer dizer que ela trabalha para a sua família? Isso é tipo Sabrina, meu velho?
– Lizzie é a horticultora-chefe da propriedade. Ou era.
– Não uma simples jardineira, hein… faz sentido. Você odeia mulheres burras.
Lane o encarou.
– Sem ofensas, mas podemos falar sobre outra coisa? Talvez sobre o fato de a minha família estar perdendo todo o seu dinheiro? Preciso me alegrar.
Jeff balançou a cabeça.
– Você, meu amigo, leva uma vida e tanto.
– Quer trocar de lugar? Por que, neste exato instante, estou procurando uma saída.
QUARENTA E SEIS
Naquela noite, Lizzie chegou em casa e não havia nenhuma árvore caída no seu quintal.
Saindo da caminhonete da fazenda, olhou ao redor. O Yaris ainda estava esmagado no mesmo lugar, destroçado, com as janelas quebradas e o interior molhado e cheio de folhas, e parecia ter saído de um jogo de videogame. Mas o galho tinha sumido, e não restava nada além de serragem fresca e perfumada espalhada por lá.
Não ouse, Lane, ela pensou.
Não ouse tentar cuidar de mim agora.
Levantou o olhar e viu que o corte onde o galho se partira do tronco fora feito com cuidado, selado de modo que cicatrizaria e o bordo maravilhoso sobreviveria aos estragos.
– Maldito.
Pelo menos ele tinha deixado o carro no lugar. Se tivesse cuidado disso também, ela teria que procurá-lo para descobrir onde deveria recuperar a carcaça.
Devia ter desconfiado que as coisas entre eles estavam inacabadas.
Ao marchar rumo à varanda, ficou discutindo mentalmente com ele o tempo inteiro… Mas parou no primeiro degrau. Na tela da porta, um bilhete fora afixado à moldura.
Maravilha. Agora isso. Algum tipo de “Agora que nossas cabeças esfriaram, blá-blá-blá…”.
Ele era um homem doentio.
E ela estava agindo bem partindo dali. Por mais que estivesse sofrendo por ir embora, precisava se afastar dele, de Easterly, daquela parte bizarra da sua vida que só podia ser descrita como um pesadelo.
Forçou-se a se mover, subiu e arrancou o papel da porta. Queria jogar fora aquela coisa maldita, mas algum impulso masoquista tornou isso impossível. Abrindo o bilhete, ela…
Olá, vizinha. As vacas se espalharam pelo seu quintal. Estragaram as moitas de flores dos fundos. Como sou péssimo com flores, cuidei da sua árvore. Minha mulher te mandou uma torta. Deixei na bancada.
Buella e Ross
Expirou, sendo acometida por uma onda de exaustão, e em vez de entrar na casa, atravessou a varanda e se sentou no balanço. Empurrando as tábuas do piso com um pé, ficou atenta aos grilos e aos rangidos das correntes afixadas no teto acima da sua cabeça. Sentiu a brisa suave e cálida no rosto e observou as luzes alaranjadas do entardecer criarem sombras alongadas sobre a terra.
Precisava replantar os canteiros…
Não, não precisava.
Bem, pelo menos teria uma bela sobremesa; Buella fazia tortas de outro mundo. Talvez fosse de pêssego. Ou, quem sabe, de mirtilos.
Lizzie se descobriu enxugando os olhos e fitando as lágrimas nas pontas dos dedos.
Era horrível ter que sair dali para se salvar… Era bem parecido com… serrar um galho doente.
Estava dando tudo certo.
Mas Lane tinha que chegar e estragar tudo.
– Foi tudo o que Edward conseguiu tirar de lá – disse Lane ao andar de um lado para o outro no quarto de hóspedes em que acomodara Jeff.
Era a melhor suíte, com vista para os jardins e o rio, e também tinha uma escrivaninha com tampo tão comprido que poderia ser qualificada como balcão de cozinha. Na verdade, um bilhão de anos antes, aqueles aposentos tinham sido do avô de Lane, e depois da morte do homem, nada fora tocado a não ser nas faxinas regulares.
O comentário de Jeff ao entrar foi típico dele. Algo relacionado à possibilidade de a Guerra Civil ter sido comandada de lá.
Contudo, conforme esperado, assim que o cara acessou os dados financeiros, deixou de lado as brincadeiras e se tornou totalmente profissional.
– Bem, já está quase na hora do jantar. – Lane olhou para seu relógio de pulso. – Nos vestimos formalmente. Bem, todos fazem isso, menos eu. Então o seu terno vai estar de acordo.
– Mande me trazer alguma coisa aqui mesmo – Jeff murmurou ao arrancar a gravata, sem despregar os olhos da tela do computador. – E vou precisar de papel e caneta.
– Está querendo me dizer que não quer testemunhar a troca de olhares furiosos entre mim e o meu pai por sobre o suflê? – Sim, porque Lane estava mais do que ansioso para isso. – Você também poderia aproveitar para conhecer o novo e fabuloso noivo da minha irmã. O cara é tão charmoso quanto um tumor.
Quando Jeff não respondeu, Lane andou e espiou por cima do ombro dele.
– Diga-me que isso faz algum sentido para você.
– Ainda não, mas vai fazer.
É o homem certo para este trabalho, Lane pensou ao finalmente se retirar. Já no corredor, descobriu-se encarando a porta do quarto da mãe. Talvez Edward estivesse certo. Talvez se tudo virasse pó, a mãe deles nem ficaria sabendo. Todas aquelas drogas a mantinham encasulada e segura em seu delírio. Algo que, pela primeira vez, estava começando a entender.
Falando nisso, que tal um pouco de bourbon?
Seguindo para as escadas da frente, resolveu que também pularia o jantar. Ainda estava louco de vontade de socar o pai, mas, com Jeff cuidando de tudo, ele tinha, quem sabe, chances muito maiores de pegar o homem de jeito.
E depois seguiria o exemplo de Lizzie e iria embora daquele lugar de uma vez por todas.
Tudo ali era demais, bizantino demais, poluído demais.
Talvez voltasse para Nova York. Ou talvez estivesse na hora de alargar seus horizontes. Quem sabe ir para o exterior…
Lane parou na metade da escada.
Mitch Ramsey e dois policiais estavam parados no átrio de entrada logo abaixo, sem os chapéus. Seus rostos pareciam saídos de um texto de justiça criminal: estavam totalmente impassíveis.
Merda, Lane pensou ao fechar os olhos.
Pelo visto, Samuel T. tinha conseguido tirar vantagem da boa e velha camaradagem masculina só até certo ponto.
– Vou pegar a minha carteira – Lane avisou. – E vou ligar para o meu advogado…
Mitch levantou o olhar bem quando o senhor Harris vinha da sala de jantar.
– Ah, senhor Baldwine – disse o mordomo –, estes cavalheiros vieram vê-lo.
– Foi o que imaginei. Só vou pegar a…
Mitch falou:
– Podemos conversar reservadamente?
Lane franziu a testa.
– Quero a presença do meu advogado.
Quando Mitch sacudiu a cabeça, Lane encarou os outros policiais. Nenhum deles o olhava de frente.
Lane terminou de descer e indicou a sala com a mão.
– Na sala de estar.
Enquanto os quatro seguiam para o elegante cômodo, o senhor Harris deslizou as portas duplas que davam para o vestíbulo. E, num acordo tácito, ninguém disse nada até que o homem atravessasse a sala e fechasse as outras portas.
Lane cruzou os braços diante do peito.
– O que foi, Mitch? Está querendo completar um trio? Primeiro Gin, depois eu… e agora, que tal o meu pai?
– É com muito pesar que preciso informar que…
Uma pontada fria de medo perpassou seu corpo.
– Não o Edward, ah, Deus, por favor não o Edward…
– … um corpo foi encontrado no rio duas horas atrás. Temos motivos para acreditar que seja o seu pai.
A expiração que escapou dos pulmões de Lane foi estranhamente lenta e controlada.
– O quê… – Ele limpou a garganta. – Onde ele foi encontrado?
– Na parte oposta à cachoeira. Precisamos que nos acompanhe para identificar o corpo. Um parente é preferível, mas eu jamais peço à esposa, se puder evitar.
Como resposta, Lane se aproximou do carrinho de bebidas e se serviu de uma bela dose do Reserva de Família. Depois de tomá-la, acenou para Mitch e para os outros dois membros da força policial.
– Me dê um minuto. Eu já volto.
Ao passar por Mitch, o homem esticou a mão e o segurou pelo braço.
– Eu sinto muito, Lane.
Lane franziu a testa.
– Sabe, não consigo dizer o mesmo.
QUARENTA E SETE
Lane não contou a ninguém onde estava indo e nem o motivo.
Voltou do quarto com seu celular e sua carteira, e tomou cuidado para ficar longe das vistas das pessoas que comiam e conversavam baixo na sala de jantar.
Não, não contaria nada a ninguém. Não até ter certeza.
Entrando na parte traseira do SUV do delegado Mitch, fechou a porta e fitou adiante, através do para-brisa.
Quando o policial se colocou atrás do volante, Lane perguntou: – Alguém já sabe?
– Mantive em segredo por enquanto. O corpo apareceu num ancoradouro coberto a uns quinhentos metros da catarata. As pessoas que o encontraram são gente boa. Estão assustadas e não querem a atenção da mídia nem repórteres em sua propriedade. Mas isso não vai durar para sempre.
O trajeto até o necrotério foi meio bizarro. O tempo se arrastava, tudo era muito brilhante, claro demais, volumoso demais. E assim que entrou naquele prédio sem graça, frio, a sensação piorou até ele sentir como se estivesse aos tropeços, o surrealismo de tudo aquilo fazendo com que parecesse algo saído de um desenho animado de Jerry Garcia.
A única coisa que conseguia fazer era acompanhar Mitch onde quer que o cara fosse. Não muito tempo depois, Lane se viu numa saleta de espera do tamanho de uma despensa.
No meio da parede diante dele havia uma cortina que cobria, segundo ele imaginava, uma grande janela. Havia uma porta ao lado.
– Não – Lane disse a Mitch. – Quero vê-lo cara a cara.
Houve um instante de constrangimento.
– Veja bem, Lane, o corpo não está nada bonito. Caiu da cascata e pode ter se chocado num barco maior. Seria mais fácil…
– Não estou interessado em nada fácil. – Lane estreitou o olhar na direção do delegado. – Quero entrar.
Mitch praguejou.
– Me dá um minuto.
Enquanto o delegado desaparecia pela porta, Lane ficou satisfeito que o homem não tivesse se oposto. Não queria admitir que o motivo pelo qual necessitava chegar perto era por querer ter certeza de que o pai estava de fato morto.
O que era estupidez.
Como se todos aqueles policiais fossem perder tempo inventando a história.
Mitch retornou e segurou a porta aberta.
– Pode entrar.
Entrar naquela sala azulejada se tornou algo de que Lane se recordaria pelo resto da vida. E, Jesus, era igualzinho aos filmes: no meio do recinto, sobre uma mesa de aço com rodinhas, havia um saco mortuário.
Absurdamente, notou que era do mesmo tipo em que Rosalinda fora colocada.
Ao lado da maca, uma mulher de jaleco branco estava de pé com luvas descartáveis e uma prancheta nas mãos.
– Está pronto, senhor?
– Sim. Por favor.
Ela esticou a mão e puxou o zíper. Desceu-o até os pés e afastou a lona.
Lane se inclinou, mas o cheiro da água e da podridão o fez se retrair.
Não esperava encontrar os olhos do pai abertos.
– É ele – Lane disse, com uma voz partida.
– Lamento pela sua perda – a médica legista disse ao voltar a subir o zíper.
Quando ela terminou, deduziu que quisessem que ele se retirasse, mas ele só conseguiu ficar ali parado olhando para o saco mortuário.
Todos os tipos de imagem invadiram seus pensamentos, uma mistura de coisas do passado e do presente.
Mas não há mais futuro algum, pensou. Não haveria mais nada com aquele homem.
Deus, dentre todos os modos como as coisas entre eles poderiam terminar… aquele momento silencioso, naquela fria sala médica, com Mitch Ramsey de um lado e uma completa estranha do outro… não tinha imaginado nada daquilo.
– E agora? – ouviu-se perguntar.
Mitch pigarreou.
– Extraoficialmente, e não me obrigue a sustentar isso, temos quase certeza de que foi suicídio. Considerando tudo o que tem acontecido… bem, você entende.
– Sim. Sim, claro. – E a polícia nem desconfiava da questão financeira.
Que covarde filho da puta, Lane pensou. Primeiro ele provoca toda essa confusão, e depois resolve fugir se jogando de uma ponte.
Cretino.
– Gostaríamos do consentimento para realizar a autópsia – disse Mitch. – Só para excluir a possibilidade de um crime. Mas, repito, não é nisso que acreditamos.
– Claro. – Lane olhou para o delegado. – Escute, preciso de um tempo antes que isso chegue à imprensa. Tenho que contar à minha mãe e aos meus irmãos. Nem sei como localizar Maxwell, mas não quero que ele fique sabendo disso no noticiário das seis. Ou pior, na TMZ.
– A polícia está determinada a trabalhar com você e com a sua família.
– Serei o mais rápido que puder.
– Isso facilitaria tudo para nós também.
Uma prancheta surgiu de sabe-se lá onde, e ele assinou uma variedade de coisas. Quando devolveu a caneta ao delegado, pensou: “Merda, vamos ter que planejar um funeral”.
Ainda que, sendo bem franco, a última coisa que o interessava era honrar o pai de qualquer maneira.
– Não estou com fome.
Edward se acomodou na sua poltrona no chalé, bem ciente de que parecia um garotinho de quatro anos se recusando a jantar, mas não se importou.
O fato de o aroma vindo da sua cozinha embutida fazer sua boca salivar não era relevante.
Shelby, contudo, sofria de audição seletiva.
– Aqui está.
Ela colocou uma tigela de cozido na mesinha ao lado da sua garrafa de… o que era mesmo que estava bebendo? Ah, tequila. Ora, vejam só se não combinava à perfeição com o molho de carne.
– Coma – ela ordenou, num tom que sugeria que ou ele mesmo cuidava disso ou ela amassaria tudo e o forçaria a comer por meio de um canudo.
– Sabe, você pode ir quando quiser – ele murmurou.
Pelo amor de Deus, a mulher ficou na sua casa o dia inteiro, limpando, lavando a roupa, cozinhando. Ele lhe disse algumas vezes que ela tinha sido contratada para cuidar dos cavalos, e não do proprietário deles, mas, de novo, a audição dela era seletiva.
Maldição, isso aqui está muito bom, pensou ao encher a boca.
– Quero marcar um horário com o seu médico.
O som de um carro chegando foi uma interrupção bem-vinda. Esforçou-se para se lembrar que dia era, e desejou que, de algum modo, já fosse sexta-feira de novo, pois até gostava da ideia de ela ver uma prostituta vindo servi-lo. Inferno, ela até podia ficar olhando se quisesse. Não que fosse um bom espetáculo…
Por uma fração de segundo, lembrou-se de Sutton sobre ele, movendo-se para cima e para baixo, fitando-o nos olhos.
Uma dor afiada em seu peito o fez comer mais rápido só para se livrar da sensação.
A batida foi alta.
– Você se importaria de fazer as honras? – disse a Shelby. – Se for uma mulher, convide-a a entrar. Se não, diga que vá para o inferno. E use a palavra “inferno”, sim? Nós dois sabemos que ela faz parte do seu vocabulário agora.
O olhar furioso que ela lhe lançou provavelmente o teria derrubado se ele já não estivesse sentado.
Mas ela foi até a porta.
Abrindo-a, disse:
– Ah, nossa.
– Quem é? – Edward murmurou. – A sua fada madrinha?
Só que não era. Era Lane.
Enquanto seu irmão entrava no chalé, Edward já meneava a cabeça.
– O que quer que seja, você vai ter que ir para outro lugar. Já disse, não vou mais ajudar…
– Podemos falar em particular.
Não era uma pergunta.
Edward revirou os olhos.
– Não importa o que você vai dizer.
– É assunto de família.
– E não é sempre? – Quando Lane não cedeu, Edward praguejou. – O que quer que tenha a dizer, pode falar na frente dela.
A presença de Shelby talvez apressasse o assunto.
Lane olhou para a mulher. Voltou a olhar para ele.
– Nosso pai está morto.
Enquanto Shelby arfava, Edward lentamente abaixou a colher. Depois disse, numa voz grave: – Shelby, você pode, por favor, nos dar licença? Muito obrigado.
Engraçado como os bons modos surgiam nele em momentos de crise.
Depois que Shelby saiu rapidamente, Edward limpou a boca no guardanapo de papel.
– Quando?
– Em algum momento na noite passada, é o que estão acreditando. Ele se jogou de uma ponte, provavelmente. O corpo apareceu do outro lado da cascata.
Edward se recostou na poltrona.
Tinha a intenção de dizer alguma coisa. Tinha mesmo.
Só… não se lembrava o que era.
Lane, evidentemente, se sentia do mesmo modo, porque seu irmão caçula se aproximou da única outra cadeira no cômodo e se sentou.
– Contei para mamãe antes de vir para cá. Não acho que ela entendeu o que eu disse. Ela não está acompanhando nada. E também contei para a Gin. A reação dela foi igual à sua.
– Confirmaram se é ele?
Por algum motivo, aquilo parecia de importância vital. Ainda que… Como seria possível cometer um erro dessa magnitude?
– Fui eu quem identificou o corpo.
Edward fechou os olhos. E, por um breve instante, aquela luz piloto dele se acendeu novamente.
– Não deveria ter sido você. Eu deveria ter feito isso.
– Tudo bem. Eu não… – Lane inspirou fundo. – Acho que não estou tendo reação alguma. Tenho certeza de que ficou sabendo o que aconteceu ontem.
Edward olhou para o irmão.
– O que aconteceu ontem?
Lane teve que gargalhar.
– Às vezes não ter TV a cabo é uma coisa muito boa, não? Tudo bem, não importa. Não mesmo.
Ficaram sentados em silêncio por um bom tempo. Edward percebeu que estava esperando por algum tipo de reação emocional de si mesmo. Tristeza. Diabos, talvez até alegria.
Mas não sentiu nada. Apenas um torpor ressonante.
– Tenho que encontrar Max – disse Lane. – A polícia vai segurar a informação até estarmos prontos para dar uma declaração, mas não pode demorar muito.
– Não sei onde ele está – Edward murmurou.
– Fico ligando para o número que ele tinha há dois anos. Também mandei um e-mail, o último que ele tinha. Acho que ele deve estar mesmo fora do radar.
Mais silêncio.
– Gin está bem? – Edward perguntou.
Lane meneou a cabeça, depois percorreu o cômodo com o olhar.
– Algum de nós está?
Infelizmente, Edward pensou, a resposta é não.
QUARENTA E OITO
Na manhã seguinte, quando subiu pelas escadas dos fundos com um arranjo floral nas mãos, Lizzie tentou se encorajar.
Tudo bem ficar escondida nas estufas, mas convenhamos, ela ainda tinha treze dias no emprego em Easterly e não pretendia fazer corpo mole até lá. Sempre fora a responsável pelas flores dos quartos. Tinha seu cronograma e ia fazer muito bem o seu trabalho.
No segundo andar, aprumou os ombros e se encaminhou para a segunda melhor suíte de hóspedes. O senhor Harris lhe dissera que um hóspede tinha chegado inesperadamente e que também não havia mais a necessidade de trocar as flores no quarto de Chantal.
Muito bom saber disso, senhor Harris. Muito obrigada.
Pelo menos, era uma pessoa a menos na sua lista de “Pessoas a não encontrar”.
Uma pena que o número um ainda estivesse sob o teto de Easterly.
– Treze dias – disse baixinho. – Apenas treze dias.
Bateu à porta e esperou. Um momento depois, uma voz masculina disse: – Entre.
Empurrando a porta, viu um homem sentado à escrivaninha do avô de Lane, com as costas curvadas como uma vírgula enquanto trabalhava sobre o laptop. Ao lado dele, uma impressora cuspia páginas com tabelas e colunas e, aos seus pés, bolas de papel amarelo amassado salpicavam o chão.
Ele não levantou a cabeça.
– Só vim colocar um vaso de flores – explicou.
– Ã-hã.
Ao lado dele, sobre o peitoril da janela, havia uma bandeja de café da manhã vazia. Ao ajeitar o vaso sobre uma cômoda antiga, ofereceu: – Posso levar essa bandeja para baixo para você?
– O quê? – ele murmurou, ainda concentrado na tela.
– A bandeja?
– Sim, claro. Obrigado.
Concluiu que ele estava ali para examinar os arquivos que Rosalinda tinha deixado para trás.
Mas se lembrou que não era da sua conta.
Dando a volta na escrivaninha, viu duas malas caras. Uma estava aberta e remexida, mas ainda assim tinha a impressão de que o homem não tinha trocado de roupa desde a sua chegada. A camisa branca estava toda amassada, bem como as calças.
Também não era da sua conta.
Pegando a bandeja, ela…
– Ah, meu Deus.
Quando ele falou, ela quase deixou de olhar na direção dele, imaginando que ele tivesse encontrado algo no que quer que estivesse examinando. Mas logo percebeu que ele estava olhando para ela.
– O que foi? – perguntou.
– Você é a Lizzie. Certo?
Retraindo-se, ela olhou ao redor. O que foi meio ridículo, pois não havia ninguém atrás dela, não é?
– Hum… sim.
– A Lizzie do Lane. A horticulturista.
– Não – ela negou. – Não dele.
O homem esticou os braços acima da cabeça, e seu corpo todo estalou; ela notou que ele era muito bonito, com cabelos e olhos escuros – poderiam ser castanhos ou azuis.
O sotaque definitivamente era de Nova York.
– Uau – murmurou ele. – Pensei que você fosse de mentira.
– Se me der licença, tenho trabalho a fazer.
– E agora eu entendo por que ele não foi atrás de mais ninguém por dois anos.
Não pergunte, Lizzie se ordenou, não pergunte.
– O que disse? – ouviu-se perguntar.
Droga.
– Por dois anos, nada. Quero dizer, fizemos faculdade juntos, por isso vi em primeira mão como ele conquistou sua reputação. Mas nos dois últimos anos, ele não chegou perto de nenhuma mulher. Pensei que ele fosse gay. Até perguntei se ele era gay. – Ele mostrou as palmas num gesto defensivo. – Não que exista algo de errado com isso.
Isso faz parte de algum diálogo do Seinfeld?,23 ela se perguntou.
– Eu… hum…
– Agora estou entendendo. – O homem deu um amplo sorriso. – Mas ele disse que você está de partida? Não é da minha conta, mas… por quê? Ele é um bom homem. Não é perfeito, mas é bom. Só não sugeriria que você jogasse pôquer contra ele. Não a menos que tenha dinheiro sobrando para perder.
Lizzie franziu a testa.
– Eu… hum…
– A propósito, eu nem sabia que ele era casado. Ele nunca falou dela. Eu, por certo, nunca a vi… E agora, pensando bem, foi tudo por sua causa… Bem, de todo modo, tenho que voltar a trabalhar.
Como se o cara não tivesse acabado de lançar uma bomba no meio do quarto.
Quando o coração de Lizzie começou a bater forte, ela perguntou: – Desculpe. Mas você disse… que não sabia que ele era casado?
Ele voltou a olhar para ela.
– Não, ele nunca mencionou. Nenhuma vez nos dois anos em que dormiu no meu sofá. Só fiquei sabendo quando ele me ligou uns dias atrás.
– Mas você deve tê-la conhecido, não? Quando ela o visitou.
– Quando o visitou? Querida, ele nunca recebeu nenhuma visita, e eu sei disso porque ele nunca saía da minha casa. Jogávamos pôquer à noite e eu saía para trabalhar, só para voltar à noite e encontrá-lo no meu sofá na exata posição da manhã. Ele não via ninguém. Não atendia a telefonemas. Nunca voltou para cá. Nunca viajou. Só ficava trancado no meu apartamento, bebendo. Pensei que a próxima parada seria numa unidade de diálise.
– Nossa.
O cara arqueou uma sobrancelha, como se quisesse saber se ela precisava de alguma outra informação.
– Obrigada.
– Obrigado pelas flores. Nunca recebi flores de uma mulher antes.
E voltou a trabalhar, concentrado na tela.
Lizzie saiu do quarto num estado de torpor e teve que se lembrar de fechar a porta.
Depois de parada por um instante, virou a cabeça e olhou na direção do quarto do senhor Baldwine.
Nenhuma visita. Nenhum telefonema. Dois anos em Nova York no sofá do amigo.
E, supostamente, Chantal estava grávida.
De Lane.
Lizzie não teve ciência de quando se decidiu a andar. Mas, antes que se desse conta, deixou a bandeja no chão ao lado do quarto de hóspedes e andou nas pontas dos pés sobre a passadeira. Ao chegar ao quarto do senhor Baldwine, encostou a orelha na porta.
Depois bateu com suavidade.
Quando não obteve resposta, entrou sorrateiramente e se fechou ali dentro.
Havia algo de estranho no ar. Pensando bem, estava invadindo o lugar, visto que não tinha nenhum motivo válido para estar ali.
Bem, nenhum motivo profissional válido.
Relanceando para se certificar de que não havia ninguém no banheiro adjacente, apressou-se para junto da enorme cama, arrumada com precisão militar.
Ajoelhando-se, estendeu o pescoço debaixo do criado-mudo, debaixo da própria cabeceira da cama.
O tecido de seda ainda estava ali, no chão.
Lizzie esticou o braço e…
Toc, toc, toc.
– Serviço de quarto, senhor Baldwine.
Mergulhando rapidamente, Lizzie se enfiou embaixo da cama, encolhendo as pernas enquanto a criada abria a porta e entrava no quarto.
Um assobio suave e passadas leves sobre o carpete anunciavam o progresso da mulher conforme ela ia para o banheiro.
Por favor, não limpe, Lizzie suplicou em pensamentos, deitada no escuro. Só deixe as toalhas e siga com a sua vida.
Deixe as toalhas.
Siga em frente.
Deus, seu coração batia tão forte que foi um milagre a criada não ouvir nada.
Momento depois, um milagre aconteceu e as passadas recuaram para a porta, fechando-a novamente.
Lizzie relaxou e cerrou os olhos. Certo, riscaria ladra de galinhas da lista das suas possíveis escolhas de carreira para quando partisse de Easterly.
Segurando a lingerie, enfiou a peça no cós dos seus shorts e a cobriu, soltando a blusa por cima. Depois saiu dali, ficou de pé e tratou de se apressar.
Junto à porta, ouviu…
Caramba, o aspirador de pó estava ali no corredor bem na sua frente.
Nos aposentos da senhorita Aurora, Lane se esforçava para terminar o bacon com ovos.
– Você não precisa terminar, se não quiser – ela lhe disse ao seu lado.
– Nunca pensei ouvir isso da senhora.
– As regras estão suspensas hoje.
Recostando-se na poltrona reclinável, ele observou a pequenina cozinha embutida. Todos os pratos estavam lavados, já secando no escorredor. A esponja estava na pia. O pano de pratos estava dobrado com esmero sobre o puxador do fogão.
– Acha que o reverendo Nyce faria o funeral? – perguntou. – Na igreja batista de Charlemont?
A senhorita Aurora o fitou, curiosa.
– Mesmo?
– É a minha igreja. De Edward, Gin e Max também. – Olhou para ela. – A senhora foi a única pessoa que nos levou para rezar.
– Acho que ele ficaria honrado.
– Que bom. Vou ligar para ele.
Quando se calaram, Lane ficou olhando para a frente, sem ver nada, se concentrando no vazio. Também não havia nada na cabeça dele. Estava entorpecido, era um receptáculo vazio reagindo ao mundo ao seu redor, sem viver de verdade.
– Não vou te dar a minha bênção, menino.
Ele estremeceu e voltou a olhar para ela.
– O que disse?
– Não vou dizer que vai ficar tudo bem se você for embora.
Lane franziu o cenho e abriu a boca. Depois a fechou.
Engraçado, não se lembrava de ter dito isso em voz alta, mas ela o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa.
– Não deu certo com a Lizzie. De novo. Papai morreu. Edward se mudou. Mamãe está… bem, você sabe como ela está. Gin vai se casar com aquele idiota e provavelmente vai levar Amelia com ela. Esta era chegou ao fim, senhorita Aurora. E o que é pior: já não sei o que o futuro nos reserva. Easterly… – Moveu a mão no ar, pensando na propriedade e em todas as pessoas que dependiam dela. – Easterly faz parte do passado. Sabe, não posso viver aqui. É venenoso. Esta família, esta casa, este estilo de vida… tudo isso é simplesmente venenoso.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Você está encarando do jeito errado.
– Não estou, não.
Ela se colocou mais para a frente na poltrona e se esticou para tocar-lhe as mãos.
– Este é o seu momento, Lane. Deus lhe deu o dever sagrado de manter esta família unida. Você é o único que pode fazer isso. Tudo vai se ajeitar porque é o seu destino unir o seu sangue uma vez mais. É o tipo de coisa que acontece com algumas gerações. Está acontecendo agora. Esta é a sua hora.
Lane ficou encarando suas mãos juntas, o preto e o branco entrelaçados, e disse: – Era para ser Edward, sabe?
– Não, ou ele não estaria onde está agora. – A voz da senhorita Aurora demonstrou força. – Eu não te criei como um covarde, Lane. Não te criei para que abandonasse o seu dever e saísse correndo. Se quiser me honrar quando eu tiver partido, vai cumprir o seu dever fazendo com que esta família siga em frente, juntos. Cumpri o meu dever sagrado com você. Agora, você, filho do meu coração, vai fazer o mesmo com eles.
Lane fechou os olhos e sentiu um peso repentino cair sobre seu corpo, como se as paredes e o teto de Easterly tivessem se afundado sobre ele.
– Você vai fazer isso por mim, Lane. Porque se não fizer, tudo o que eu fiz por você não vai ter significado nada. Se não fizer, terei fracassado no meu dever.
Por dentro, ele gritava.
Por dentro, ele já estava num avião, indo para qualquer lugar distante de Charlemont.
– Deus não nos dá mais do que podemos suportar – disse ela com seriedade.
Mas e se Deus não nos conhece de verdade?, Lane pensou consigo. Ou pior… e se os planos de Deus estiverem simplesmente errados?
– Não sei, senhorita Aurora.
– Bem, eu sei. E você não vai me desapontar, filho. Simplesmente não vai.
Seinfeld foi uma série de TV produzida pela NBC. Tendo sido transmitida entre 1989 e 1998, foi eleita pelo TV Guide, em 2002, como "melhor programa de todos os tempos". (N.E.)
QUARENTA E NOVE
A verdadeira definição da eternidade, Lizzie concluiu, é quando se está preso num lugar em que não se deveria estar.
Com um babydoll que não é seu enfiado no cós dos seus malditos shorts.
Quando os sons por fim cessaram, ela aguardou mais uns cinco ou dez minutos antes de dar uma espiada.
Hora do almoço, deduziu. Graças a Deus.
Foi para o meio do corredor, deixou que a porta se fechasse atrás de si e ficou ali, com os ouvidos aguçados.
A próxima parada ficava além do quarto de Gin: o quarto de Chantal.
Bateu à porta. Nenhuma resposta. A mulher tinha ido embora, certo?
Esgueirando-se para dentro, fechou-se ali e…
– Ai, meu Deus! – murmurou, agitando a mão diante do nariz.
A fragrância do perfume caro fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas, mas como tinha peixes maiores para pescar, foi rapidamente para o closet de Chantal, parando diante de um armário grande o suficiente para rivalizar com o departamento feminino inteiro da Nordstrom. Ou da Saks. Ou quaisquer outros lugares elegantes onde mulheres como Chantal compravam suas roupas.
Puxa, seria capaz mesmo de fazer aquilo?
Concluiu que era provavelmente uma ideia bem idiota, enquanto procurava em meio aos cabides, passando por todo tipo de seda, cetim e renda. E terninhos, jaquetas, vestidos de gala…
– Onde está a sua lingerie, Chantal?
Claro, na cômoda.
No meio do closet, como uma ilha de organização, havia um móvel com gavetas dos dois lados. Começou a puxá-las aleatoriamente.
Ok, isso é uma idiotice, pensou. Achou mesmo que encontraria a parte de baixo d…
Estava na terceira gaveta, de baixo para cima, à esquerda do lado que dava para o norte quando encontrou o que procurava.
Mais ou menos.
No meio dos conjuntos de calcinha e sutiã perfilados e separados por papel de seda, encontrou… um babydoll roxo idêntico àquele encontrado debaixo da cama do quarto do senhor Baldwine.
Só para ter certeza de que não estava imaginando coisas, pegou o que trazia consigo, cor de pêssego, e os colocou lado a lado sobre o carpete branco e fofo. O mesmo tamanho, a mesma marca… La Perla? Tudo idêntico, a não ser a cor.
Sentou-se e ficou olhando para as peças.
E foi então que viu a mancha no tapete.
Do outro lado do quarto, havia uma penteadeira alinhada a uma alcova com janelas com vista para o jardim. Era o lugar ideal para fazer a maquiagem – ou para que alguém fizesse em você – sob a luz natural.
E debaixo das pernas de marfim, num canto, havia uma mancha amarela, redonda, meio escondida.
O tipo de coisa que se encontra em casas com cachorros.
Só que não existiam cachorros em Easterly.
Engatinhando até lá, enfiou-se debaixo da segunda peça de mobília e colocou o dedo sobre a mancha. Estava seca. Mas, ao aproximar os dedos do nariz… isso mesmo, aquela era a origem de todo o perfume no ar.
Franzindo o cenho, Lizzie se ajoelhou.
– Ai, meu Deus.
O tampo de vidro da penteadeira estava rachado no meio. E o espelho estava partido.
Com sangue bem no centro.
Hora de sair daqui, disse a si mesma.
Voltando para o closet, pegou a lingerie que deixara no chão, devolveu a roxa na gaveta e depois, numa inspiração, usou a cor de pêssego para limpar suas impressões digitais dos puxadores. De todos eles.
A última coisa que precisava era que a polícia fosse até ali e descobrisse que ela estivera bisbilhotando, por assim dizer…
Ficou imóvel ao ouvir uma voz masculina vinda do quarto ao lado, de Gin.
Ouviu duas pessoas conversando. Bem alto.
Indo até a parede, encostou a orelha ao lado da pintura de uma mulher francesa basicamente nua.
– Não me importo – Gin disse. – Vai ser apenas no cartório.
– O seu pai está morto.
Lizzie se retraiu, cobrindo a boca com a mão. O quê?
Richard Pford prosseguiu:
– Vamos esperar, nos casaremos depois do enterro.
– Não estou de luto por causa dele.
– Claro que não está. Para isso, você precisaria ter um coração, e nós dois sabemos que essa é sua anomalia física.
Lizzie recuou e tropeçou. Caiu sobre a cômoda.
Depois de um instante, continuou a limpar suas impressões e voltou para a porta que dava para o corredor. Como seu coração batia acelerado e forte, ela não estava conseguindo ouvir direito, mas mandou tudo às favas. Se fosse descoberta, o que fariam com ela?
Ela podia muito bem dizer que estava verificando as flores.
Mas não havia ninguém ali.
Seguiu às cegas para a escada dos empregados, com a mente num torvelinho, os pensamentos se debatendo, dissonantes, se partindo.
No meio de tudo aquilo, contudo, chegou a uma conclusão inescapável.
Tinha cometido um erro terrível.
Do tipo que seria impossível obter perdão.
Já no primeiro andar, parou de súbito. E percebeu que, de todos os lugares em que poderia ter se detido, escolhera parar diante do escritório de Rosalinda.
William Baldwine também estava morto.
Como?, ficou se perguntando. O que tinha acontecido?
Numa série de flashes, viu Lane parado na estufa, com a expressão fechada, a voz sem nenhuma emoção. Ouviu o amigo dele dizendo que, em vez de transar alegremente com Chantal às escondidas, ele não recebera ninguém e não fizera nada por dois anos.
E depois veio a bomba com aquele espelho quebrado no andar de cima. E a lingerie.
Lembrou-se da última imagem de Chantal à piscina, pedindo uma limonada.
Naquela hora, o fato de ela estar usando uma saída de seda não lhe parecera muito significativo. Mas agora…
Ela estava grávida e a barriga começava a aparecer. Motivo pelo qual ela pedira a bebida virgem, ou seja, sem álcool.
Chantal estava dormindo com William Baldwine. Traindo o filho com o pai. E tinha engravidado.
Ela deve ter contado a William, Lizzie concluiu. Depois do Derby.
E o homem perdeu as estribeiras. E bateu nela perto da penteadeira.
E depois a expulsou da casa. Ou algo assim.
Balançando a cabeça, Lizzie levou as mãos ao rosto rubro e tentou respirar.
Seu único pensamento foi o de precisar se acertar com Lane. Tinha o condenado com base em seu próprio medo de se magoar novamente…
Quando, na verdade, existia uma possibilidade muito, mas muito grande, de ele não ter nada a ver com todo o alvoroço.
Abaixando os braços, soube que palavras não bastariam. Não naquele caso.
Quando a solução surgiu, ela consultou o relógio. Se corresse…
Atravessou a cozinha às pressas, e a senhorita Aurora ergueu o olhar da panela no fogão.
– Aonde vai? – a mulher perguntou. – O que está pegando fogo?
Lizzie derrapou junto à porta que dava para a garagem.
– Preciso ir para Indiana. Se vir Lane, diga que vou voltar. Eu vou voltar!
CINQUENTA
Lane pensou que a área externa estava bem agradável, ao se sentar no jardim.
Olhando para os muros cobertos de heras e os canteiros de flores ao longo da piscina azul e das portas francesas do centro de negócios, imaginou todo o árduo trabalho necessário para manter aquela beleza “natural”.
Era impossível não visualizar Lizzie ali, mas refreou o impulso rapidamente.
Não havia motivo para se aborrecer com esse tipo de coisa.
Curvando a cabeça, esfregou os olhos. Samuel T. tinha telefonado para falar da situação de Chantal, e sabia que tinha que retornar a ligação. Mitch também tinha deixado uma mensagem, provavelmente a respeito dos resultados preliminares da autópsia. Nesse meio-tempo, lá no segundo andar, Jeff avaliava todos os relatórios financeiros.
As decisões quanto ao funeral precisavam ser tomadas.
Mas não tinha forças para lidar com nada daquilo.
Maldição, senhorita Aurora, pensou. Deixe-me ir. Só me deixe fugir de tudo.
Amava tanto aquela mulher. E devia-lhe muito mais. Ela era sua mãe, e mesmo que estivesse lhe dando uma surra moral, ele simplesmente já não estava mais envolvido naquela luta.
Erguendo os olhos para a incrível extensão branca de Easterly, fitou a mansão como um corretor imobiliário o faria. Não obstante a hipoteca de Sutton Smythe, poderia quitar boa parte da dívida junto à Fundos Prospect apenas com a venda do lugar.
Inferno. Com o pai morto, talvez pudessem procurar Sutton e pedir que ela não depositasse o dinheiro e rasgasse o documento.
Pensou em Edward. Deveria mandar Edward resolver esse assunto.
Ou talvez não. Talvez devesse simplesmente lavar as mãos.
Talvez, em vez de tentar pilotar o avião danificado no qual todos estavam, devesse deixar que a maldita aeronave se chocasse com a montanha.
Podia morrer como um covarde, podia desapontar sua mãe, mas, pelo menos, terminaria mais rápido do que se tentasse adivinhar os controles numa tentativa de aterrissar numa pista longe, muito longe dali…
Lane?
Fechou os olhos. Maravilha. Estava começando a alucinar.
Como se Lizzie fosse mesmo procurá-lo…
– Lane?
Virando-se no banco de pedra, ele viu… bem, hipoteticamente, ele a viu parada a poucos metros de distância.
E, vejam só, sob a luz do entardecer, ela estava mais linda do que nunca. Natural, adorável, com os límpidos olhos azuis e os cabelos iluminados pelo efeito do sol, e aquele uniforme de Easterly, que na verdade não deveria deixá-la sexy, mas que nela era simplesmente demais.
– Lane, posso falar com você?
Ele limpou a garganta. Sentou-se ereto.
Ao que tudo levava a crer, não era fruto da sua imaginação.
– Sim, claro. Do que precisa? Se for uma carta de referência, posso pedir ao mordomo que…
– Desculpe. – Quando a voz dela se partiu, ela respirou fundo. – Sinto muito, muito mesmo.
O que ela estava…
– Ah, meu pai. – Encolheu os ombros. – Acho que deve ter ficado sabendo. Sim, ele morreu. O enterro será na semana que vem. Obrigado pelas palavras gentis.
– Não estou falando disso. Embora, sim, eu lamente que você tenha perdido o seu pai. Sei que o relacionamento entre vocês não era dos melhores, mas ainda assim deve ser difícil.
– Bem, acontece que me supero em relacionamentos que não são bons. Parece uma habilidade minha.
Até para os próprios ouvidos, sua voz soou falsa. As palavras não eram as que normalmente usaria.
Edward, pensou, entorpecido. Estava parecendo Edward.
Lizzie se aproximou, e ele ficou mais do que surpreso por vê-la se ajoelhar diante dele. E ela estava…
– Por que está chorando? – perguntou. – Você está bem?
– Deus, como você pode perguntar isso? Depois de tudo o que eu fiz…
– Do que você está falando?
Então começaram a falar um por cima do outro, do modo típico deles. Mas como Lane não tinha forças para tentar decifrar nada, calou-se, na esperança de que ela explicasse e esclarecesse as coisas.
– Eu errei – disse, emocionada. – Sinto muito por não ter acreditado em você. A respeito de Chantal. Eu só… Eu não queria me magoar de novo, e me precipitei em tirar conclusões. E, ah, meu Deus, eu sei que foi o seu pai. Eu sei que foi ele. Foi ele quem bateu nela, foi ele quem a engravidou. Sinto muito.
Lágrimas rolaram pelo rosto dela, uma chuva de lágrimas, aterrissando na grama aos pés dele.
Lane piscou. Foi só o que ele conseguiu…
Jesus, seu cérebro não seria capaz de processar tantas informações. Ele literalmente não entendia o que ela estava dizendo…
Levando a mão às costas, ela pegou algo. Um maço de papéis dobrados ao meio?
– Lamento que não baste – ela disse. – Magoei você demais. Então preciso fazer algo concreto, para provar que estou ao seu lado, que eu te amo e que… que estou ao seu lado mesmo.
Entregou as folhas para ele.
– Eu preciso te mostrar, e não te dizer.
Lane balançou a cabeça.
– Lizzie, eu não sei o que…
– Pegue – ela disse.
Fez o que ela pediu porque não tinha motivos para não fazê-lo. Alisando a dobra, olhou para…
Um monte de palavras. Seguidas de alguns números.
A segunda folha era um mapa?
– É a escritura da minha fazenda – ela sussurrou. – Sei que não é nada comparado ao que você tem. Mas é tudo o que tenho neste mundo.
– Não estou entendendo…
– Sei dos problemas financeiros que você está enfrentando, e sei que não vai ajudar a saldar a dívida, mas vale o bastante para ajudá-lo a pagar bons advogados, pessoas que podem ajudá-lo a resolver a questão. – Apontou para o documento. – Quitei o empréstimo ontem. Não devo mais nada. E já fui abordada várias vezes para que a vendesse. A terra é boa. Vale bastante. E agora é sua.
O ar saiu do corpo dele.
O coração parou de bater.
A alma se partiu ao meio.
– Eu te amo, Lane. Desculpe por ter duvidado de você. Eu sinto que… Deus, você não faz ideia de como estou me sentindo mal. Deixe-me recompensá-lo do único modo que posso. Ou jogue esses documentos na minha cara, se quiser. Não vou te culpar. Mas eu tinha que fazer alguma coisa relevante. Eu tinha que… te oferecer tudo o que sou e tudo o que tenho…
Lane não se deu conta de que estava se aproximando dela.
Mas soube no instante em que ela foi de encontro ao seu peito.
Envolvendo-a com os braços, descontrolou-se por completo, as represas se abriram, e tudo saiu aos soluços.
E Lizzie, com seu corpo forte e coração grande, abraçou-o pelo tempo que foi necessário.
– Vai ficar tudo bem – ela lhe disse. – Eu te prometo. De algum modo, tudo vai ficar bem.
Quando, por fim, ele conseguiu se controlar o suficiente para se afastar, sentiu uma súbita vontade de se apalpar entre as pernas só para ver se ainda era homem. Mas Lizzie não parecia se importar por ele estar fragilizado.
Enxugou o rosto dela com os polegares e a beijou.
– Eu te amo, Lizzie. – Depois balançou a cabeça. – Mas não sei quanto a Deus.
– O que disse?
Lane expirou, estremecendo.
– É só uma coisa que a senhorita Aurora sempre me disse.
– E o que era?
Ele beijou sua mulher uma vez mais.
– Não sei se tenho Deus. Mas tenho certeza de uma coisa: eu tenho você. E isso me torna mais rico do que preciso ser.
Trazendo-a de volta para junto de si, ele a abraçou e ficou olhando para Easterly.
Ao diabo com a ideia de jogar o avião numa montanha, pensou.
A partir daquele instante, ele seria o chefe da família, a seu modo.
E ele estaria ferrado caso as coisas ruíssem na sua vigília.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
TRINTA E SETE
A chuva imprevista começou pouco depois das cinco da tarde. Enquanto dobrava a última das mesas debaixo da tenda, Lizzie sentiu o cheiro da mudança no ar e olhou para as heras no muro de tijolos do jardim. Como esperado, as folhas dançavam ao vento, reluzentes, encarando o céu cinzento.
– Não era para chover – murmurou para ninguém em especial.
– Você sabe o que dizem sobre o clima por estas partes – um dos garçons replicou.
É, pois é, ela sabia.
Onde estaria Lane?, perguntou-se. Estava sem notícias dele desde a conversa ao lado da picape, seis horas atrás.
O senhor Harris se aproximou.
– Você disse para eles que tudo isso vai para a área de carga e descarga?
– Sim – ela respondeu. – É sempre ali que ficam as coisas alugadas e, antes que pergunte, os copos e talheres também.
Já que o homem estava parado ali sem fazer nada, ela ficou tentada a pedir que ele a ajudasse segurando uma das pontas da mesa para carregá-la até a parte oposta do deque. Mas estava bem evidente que ele não era alguém que metia a mão na massa.
– Qual o problema?
– A polícia está aqui de novo. Estão tentando respeitar o evento, mas querem me interrogar mais uma vez.
Lizzie abaixou a voz.
– Quer que eu cuide das coisas?
– Sinto que eles não querem esperar.
– Pode deixar, tudo será feito da maneira correta.
O mordomo limpou a garganta. Em seguida, que Deus o abençoasse, ele se curvou levemente na sua direção.
– Agradeço imensamente. Obrigado. Não deve demorar muito.
Ela o viu se afastar, depois voltou ao trabalho.
Levantando a mesa, atravessou o espaço cavernoso e prosseguiu a céu aberto, onde o início de um chuvisco a molhou nos ombros e na cabeça. A área de carga e descarga ficava na parte oposta da casa. O sotaque carregado de Greta ressoava pelo lugar, enquanto dois empregados, um entrando com o lixo da festa, o outro saindo de mãos vazias, se apressavam.
Lizzie se dirigiu para junto deles, aproximando-se das mercadorias a serem devolvidas.
A tenda maior seria desarmada em vinte minutos, e a equipe de limpeza já estava trabalhando no chão, recolhendo guardanapos amassados, garfos perdidos e copos.
Os ricos não eram diferentes de qualquer outro rebanho de animais, capazes de deixar uma trilha de detritos depois de abandonarem o local de alimentação.
– Última mesa – disse, assim que se viu debaixo da tenda.
– Que bom. – Greta apontou para uma pilha. – Fica ali, ja?
– Isso mesmo. – Lizzie ergueu a mesa na altura da cintura e a deslizou no alto da pilha. – O senhor Harris teve que cuidar de umas coisas, por isso vou supervisionar a limpeza.
– Logo terremos tudo em orrdem. – Greta apontou o outro canto para dois rapazes com seis engradados de copos cada um. – Ali. Deixem debaixo da coberrturra, sim?
– Vou dar uma olhada na cozinha.
– Vamos terrminarr dentrro de uma horra.
– Como planejado.
– Semprre.
E Greta estava certa. Terminaram às seis em ponto; a tenda grande foi desmontada, a casa e os jardins foram liberados e o quintal estava limpo. Como de hábito, o esforço tinha sido tremendo. Os empregados se retiravam; a maioria se reuniria para beber e se livrar das dores, desconfortos e “Oh, meu Deus” do dia, mas não Lizzie nem sua colega. Casa. As duas iriam para suas respectivas casas. Lizzie esperaria por Lane, e Greta seria recebida por uma refeição preparada pelo marido.
As duas se encaminharam para o estacionamento dos funcionários, não disseram nenhuma palavra e, junto aos carros, abraçaram-se rapidamente.
– Mais uma vencida – Lizzie disse ao se separarem.
– Agorra vamos nos preparrarr parra a festa de aniverrsárrio da Pequena V.E.
Ou a festa de casamento de Gin, Lizzie ponderou.
– Eu te vejo amanhã? – perguntou.
– Domingo? Não – Greta gargalhou. – Não haverrá uma alma se-querr se movendo aqui, nem um marrtíni, nem um rato.
– Ah, é mesmo. Desculpe, a minha cabeça já pifou. Te vejo na segunda, então.
– Está bem parra dirrigirr?
– Claro!
Com um aceno, Lizzie entrou no seu Yaris e depois se juntou à fila de carros e caminhões que saía pelo caminho dos funcionários.
Tomando a esquerda na estrada River, a garoa se transformou em chuva de verdade, e o dilúvio a fez pensar na corrida. Caramba, perdera a corrida. Esticando a mão para o rádio, sintonizou na estação local. Quando conseguiu ouvir comentários sobre a corrida, já estava no entroncamento, passando por cima do rio Ohio.
Mas não acompanhou o relato – e não só porque não entendia nada do esporte.
Franzindo o cenho, aproximou o rosto do para-brisa.
– Meu Deus…
Mais à frente, o horizonte estava carregado de nuvens negras pairando alto no céu. E o pior? Havia uma coloração meio esverdeada em tudo aquilo. E mesmo um olhar desacostumado perceberia que aquilo parecia estar girando.
Olhou por cima do ombro. Atrás dela, não viu nada anormal. Havia até uma faixa de céu azul.
Enfiando a mão na bolsa, pegou o celular e ligou para Easterly. Quando aquela voz carregada de sotaque inglês atendeu, ela disse: – O tempo está piorando. Você vai ter que…
– Senhorita King?
– Escute, você vai ter que cobrir a piscina e os vasos…
– Mas o tempo não está piorando. Na verdade, a previsão deixou bem claro que deveríamos esperar apenas uns chuviscos esta noite.
Quando um raio cortou uma nuvem logo adiante, ela pensou que pelo menos se entendera com o homem uma hora antes.
– A previsão do tempo que se dane. Estou te contando o que está bem na minha frente: há uma tempestade maior que o centro da cidade de Charlemont atravessando o rio, e a colina de Easterly é a primeira coisa que ela vai atingir.
Droga, será que se lembrara de fechar as janelas da sua casa?
– Eu desconhecia os seus talentos de metereologista – o senhor Harris comentou com secura.
E o senhor é um cretino.
– Muito bem, mas depois você vai ter que explicar o seguinte assim que ela passar por aí: um, por que o abrigo ao lado da piscina saiu voando; dois, por que os quatro vasos da varanda da parte oeste caíram e terão que ser replantados; três, onde foi parar a mobília do jardim, porque, a menos que garanta que ela esteja na casa da piscina, ela acabará voando pelos canteiros do jardim. O que me leva ao número quatro, ou seja, quando as heras, as rosas e as hidrângeas serão reparadas. Ah, e depois você pode concluir isso fazendo um cheque de sete mil dólares para a família para cobrir todo o material de jardinagem que terá que ser reposto.
Tic, tac, tic, tac…
– Qual era o segundo item? – ele perguntou.
Te peguei.
Lizzie repassou todo o procedimento que ela e Greta desenvolveram, resultado do trabalho de vários anos com Gary McAdams, preparando-se para as grandes tempestades de primavera e de verão. O pior era que não era necessário um tornado F5 caindo diretamente em Easterly para criar o caos. Algumas tempestades eram mais do que capazes de estragar bastante coisa, se fossem atingidos por ventos diretos.
Era uma das coisas que aprendera rapidamente ao se mudar para Charlemont.
Como se provando que estava certa, ela logo atravessou uma cortina de chuva, que atingiu seu para-brisa com tanta força que pareceu uma dupla de sapateadores dançando “The Star-Spangled Banner”.
Aumentando a velocidade dos limpadores, tirou o pé do acelerador porque seu Yaris era bem capaz de hidroplanar na estrada mesmo na mais ínfima quantidade de água sob os pneus finos.
– Entendeu? – ela perguntou. – Preciso desligar e dirigir no meio desta coisa.
– Sim, sim, claro… ah, meu Deus – o homem sussurrou.
– Então, está vendo a tempestade agora? – Divirta-se, ela pensou. – Melhor começar a se mexer.
– Sim, de fato.
Desligou e jogou o celular dentro da bolsa. Depois, só lhe restou se dobrar em cima do volante, segurar firme… e rezar para que nenhum exibido numa SUV a jogasse para fora da estrada.
A situação piorou bem rápido.
E, puxa, depois de um dia atarefado e longo como o que tivera, a última coisa que precisava era enfrentar aquele aguaceiro reduzindo sua visibilidade para um metro e meio de distância, somado a trovões ensurdecedores e raios. O clima parecia disposto a acompanhar lado a lado o que acontecia em Easterly. Quase como se o drama na casa estivesse afetando o tempo.
Ok, talvez aquilo fosse exagero.
Mas, mesmo assim…
Levou uns quinhentos anos para chegar à sua saída. E mais setecentos ou oitocentos para chegar à entrada da sua casa. Nesse meio-tempo, a tempestade se transformou em Tempestade, com T maiúsculo: raios cruzavam o céu, parecendo querer atingir seu carro, e trovões rugiam. Ela foi atingida por uma rajada de granizo que poderia ter derrubado Fenway Park. Já com os nós dos dedos embranquecidos, irritada, preocupada com Lane e toda dolorida, finalmente chegou em casa, toda esbaforida e…
O dedo de Deus.
Foi só no que pensou.
Num momento, estava estacionando em seu lugar de costume próximo à casa. No seguinte? Um raio desceu do céu e atingiu a sua enorme e linda árvore bem no topo.
Faíscas se formaram, como se fosse 4 de julho.
E ela gritou, pisando no freio:
– Não!
Os pneus do Yaris derraparam no piso seco. Ou na estrada lamacenta e escorregadia.
E foi nessa hora que descobriu que Lane estava na sua casa.
Porque acabou batendo com tudo no para-choque traseiro do Porsche dele.
Lane já estava havia duas horas sentado à mesa da cozinha de Lizzie, lendo os relatórios financeiros da CBB, quando a chuva chegou. Enquanto a tempestade dava seu primeiro show, com trovões e raios sacudindo a casa, ele nem se deu ao trabalho de desviar o olhar do laptop, mesmo quando os antigos vidros tremeram e o telhado rangeu.
A quantidade de informação era tremenda.
E ele estava em pânico por entender apenas uma fração dela.
Mas, pensando bem, tinha sido muita ingenuidade da parte dele pensar que poderia lidar com os negócios do pai com algum tipo de diligência. Fora a quantidade incrível de arquivos, ele não tinha o conhecimento necessário para entender tudo aquilo.
Ainda bem que Edward tinha se preparado para algo assim, criando aquelas contas fantasmas, senhas e e-mails. Sem tais coisas, teria sido impossível exportar as informações sem disparar algum alerta interno.
Se bem que isso ainda poderia acontecer.
Ele não sabia de quanto tempo dispunham até que o pai deles descobrisse o vazamento de informações.
Fazendo uma pausa, recostou-se na cadeira e esfregou os olhos. Foi nesse instante que o segundo round da tempestade começou. Seja pelo cochilo forçado devido aos seus olhos cansados ou pelo fato de que suas células T estavam alertas, ele logo percebeu que a casa de Lizzie estava sendo atacada.
Levantou-se, deu a volta e fechou todas as persianas do andar de cima e de baixo. Enquanto corria de cômodo em cômodo, os raios iluminavam tudo como estrobos enlouquecidos, lançando sombras velozes sobre o piso de Lizzie, a mobília, o piano. O céu estava tão escuro como se fosse meia-noite, a chuva açoitava a fazenda, e Lane sentiu como se estivesse numa zona de guerra.
Tinha esquecido como aquelas tempestades de primavera vindas do leste podiam ser furiosas, as colisões das frentes frias e quentes correndo à solta por quilômetros e quilômetros da planície no centro-oeste.
De volta ao primeiro andar, relanceou para a varanda e praguejou. As mesinhas e as cadeiras de balanço de vime estavam todas amontoadas, numa agitação nervosa provocada pelas rajadas de vento.
Quando foi abrir a porta, a força da corrente fez com que ele tivesse que usar força para fechá-la novamente depois que saiu. Ao segurar tudo o que encontrava, moveu os objetos de Lizzie para o canto oposto da varanda, distante dos ventos mais fortes.
Estava voltando para apanhar a última cadeira quando viu faróis fazendo a curva na estrada principal. Só podia ser ela, e ele ficou aliviado. Tivera a intenção de telefonar, mandar uma mensagem, sinal de fumaça ou um pombo-correio, mas sua mente acabara se concentrando em…
Tudo aconteceu numa estranha combinação de câmera lenta com a velocidade do som: um raio surgiu no céu, seguido por um barulho de explosão e uma bomba de iluminação.
Um galho do tamanho de uma viga se partiu e caiu no chão.
Bem onde Lizzie acabava de estacionar.
O som de metal se retorcendo fez o coração dele parar de bater.
– Lizzie! – ele berrou e voou para fora da varanda.
A chuva o atingiu no rosto e o vento parecia uma matilha de cães atacando suas roupas, mas ele seguiu em frente.
A morte vem em três.
– Não! – ele berrou na tempestade. – Nããããooo!
O Yaris cedeu sob o peso, o teto amassou, a capota afundou, e a vida dele passou pela sua mente quando ele parou de súbito, descalço. Galhos com folhas novas atrapalhavam sua visão, assim como a chuva e o vento, e os raios e trovões continuaram, como se nada de importante tivesse acontecido.
– Lizzie!
Ele se enfiou na confusão verde, se contorcendo. Mesmo com todo aquele vento, ele sentia o cheiro de gasolina e óleo, e ouvia o sibilo do motor mortalmente atingido.
Talvez toda aquela umidade impedisse uma explosão?
Resolveu mudar de tática e começou a subir no carro, até dar a volta e chegar à frente do veículo. Por fim, sentiu algo molhado e escorregadio nas mãos, e começou a bater, para que ela soubesse que ele estava ali.
– Lizzie, vou te tirar daí!
Com puxões frenéticos, arrancou galhos e folhas até encontrar o vidro do para-brisa todo rachado. Fechando o punho, socou com força, e faltou pouco para que ele inteiro passasse pela abertura.
Lizzie estava de lado, com a cabeça apoiada no banco do passageiro, mexendo os braços como se estivesse tentando se orientar. Os dois airbags tinham sido acionados, e o pó branco e seco do interior contrastava com a umidade da tempestade.
– Lizzie!
Pelo menos ela estava se mexendo.
Merda. Ele não tinha como abrir as portas. Teria que puxá-la.
Esticando o braço, tocou-a no rosto.
– Lizzie?
Ela piscou, e havia sangue em sua testa.
– Lane…?
– Estou com você. Vou te tirar daí. Está machucada? O pescoço, como está? As costas?
– Desculpe, bati no seu carro…
Ele fechou os olhos por uma fração de segundo e murmurou uma oração. Em seguida, voltou a agir.
– Vou ter que te arrastar para fora.
Abrindo caminho pelo interior do carro, conseguiu, de algum modo, soltar o cinto dela, segurá-la pelos braços…
E parou.
– Lizzie? Presta atenção, tem certeza de que não está machucada? Consegue mover as pernas e os braços? – Quando ela não respondeu, ele sentiu uma onda de pânico. – Lizzie? Lizzie!
TRINTA E OITO
De volta a Charlemont, Edward não estava prestando atenção em seu último cavalo no Derby. Não estava sequer na pista.
Não, ele estava tentando um novo papel.
O de perseguidor.
Atrás do volante do caminhão do Haras Vermelho & Preto, olhou pela janela do passageiro para a enorme mansão de tijolos aparentes diante da qual estava parado.
Construída no início dos anos 1900, a grande casa georgiana era propositadamente maior do que Easterly. Já fazia quase um século que os Sutton eram arrivistas bem-sucedidos, e quando a fortuna da família por fim superou a dos Bradford, aquela casa transformou-se num troféu para o seu triunfo. Com seus vinte ou trinta quartos e um vilarejo para os empregados, a mansão era quase uma cidade, na segunda melhor colina com a segunda melhor vista do rio e o segundo melhor jardim.
Mas, sim, vencia Easterly em relação ao tamanho.
Assim como a Destilaria Sutton Corporation, que era um terço maior que a CBB.
Edward meneou a cabeça e relanceou para o relógio barato que passara a usar. Caso Sutton se ativesse aos seus costumes, não tardaria a chegar.
Pelo menos, nenhum funcionário uniformizado acompanhado por um pastor alemão a ladrar veio incomodá-lo pedindo para que fosse embora. A segurança da propriedade da família de Sutton Smythe era tão rigorosa quanto a de Easterly, mas ele tinha duas vantagens. A primeira era o logotipo em seu veículo; a marca registrada V&P era como uma garantia real, e mesmo que fosse um serial killer parado no vestíbulo do tribunal de justiça no centro da cidade, existia uma grande possibilidade que a polícia o deixasse em paz. A segunda coisa que tinha a seu favor era o Derby. Sem dúvida, todos ainda estavam comentando sobre a corrida, acertando apostas, deliciando-se com suas glórias.
Em breve. Muito em breve ela estaria em casa.
Depois que Lane o levou de volta à fazenda, ele tomou alguns remédios e um drinque. Em seguida, releu os papéis da hipoteca… E ficou só mais dez minutos ali antes de apanhar a bolsa de festa de Sutton e claudicar até um dos caminhões.
Moe e Shelby e o resto dos ajudantes estavam na pista junto aos treinadores e aos cavalos. Ao se afastar dirigindo, pensou que era uma lástima desperdiçar todo o silêncio e a tranquilidade da fazenda, mas aquilo era uma coisa que ele tinha que resolver pessoalmente.
A chuva começou a cair – primeiro uns pingos, depois um chuvisco.
Voltou a olhar para o relógio.
Treze minutos. Estava apostando que ela chegaria em treze minutos. Enquanto as outras 200 mil pessoas em Steeplehill Downs teriam que caminhar pelo longo trajeto até seus carros, para em seguida enfrentar um congestionamento na tentativa de entrar na autoestrada, pessoas como os Bradford e os Sutton tinham escolta policial, o que os fazia entrar e sair rápido dos lugares.
E ele estava certo.
Doze minutos e alguns segundos mais tarde, um dos Mulsannes pretos da família parou diante da casa. O motorista saiu de trás do volante, abriu um guarda-chuva e seguiu para a porta de trás. Um segundo segurança fez o mesmo do outro lado.
O pai de Sutton saiu primeiro, e precisou do braço do motorista para chegar à casa.
Sutton, por sua vez, saiu lentamente, com os olhos fixos no caminhão. Depois de conversar com o motorista, pegou o guarda-chuva dele e veio caminhando, sem se dar conta de que estava estragando os sapatos de salto alto.
Edward abaixou o vidro quando ela se aproximou, tentando ignorar o seu perfume conforme ela chegava cada vez mais perto.
– Entre – disse, sem olhar.
– Edward…
– Não vou discutir o que você assinou com o meu pai aí na sua casa. Nem no seu jardim.
Ela emitiu um xingamento agressivo e marchou para a frente do caminhão. Com um grunhido, ele tentou se esticar como um cavalheiro teria feito para lhe abrir a porta, mas ela chegou antes. Além disso, seu corpo não permitiria que ele se esticasse tanto assim.
Depois de se acomodar no banco, Sutton ficou imóvel ao ver sua bolsa.
Ligando o veículo, ele murmurou:
– Pensei que você gostaria de ter a sua habilitação de volta.
– Tenho que estar no baile em quarenta e cinco minutos – ela disse quando ele começou a descer a colina.
– Você odeia ir a esses eventos.
– Tenho um encontro.
– Tem? Que bom, parabéns. – Uma fugaz fantasia de raptá-la para impedi-la de ir se passou em sua mente. Como num filme, a fantasia culminaria numa Síndrome de Estocolmo, pois ela se apaixonaria pelo seu sequestrador. – Quem é ele?
– Ninguém que te interesse.
Edward virou à esquerda e apenas continuou dirigindo.
– Então você está mentindo.
– Veja as colunas sociais amanhã – ela argumentou num tom enfastiado. – Você poderá ler tudo a respeito.
– Eu não assino mais o Charlemont Courier Journal.
– Escute, Edward…
– Que diabos você está aprontando? Fazendo um hipoteca da minha própria casa?
Mesmo que não estivesse olhando para ela, ele sentia o olhar gélido cravado em seu rosto.
– Primeiro, foi seu pai quem me procurou. Segundo, se voltar a falar nesse tom comigo, executarei a hipoteca imediatamente.
Edward a encarou.
– Como pôde fazer isso? Você é mesmo tão gananciosa assim?
– Os juros são mais do que justos! Você queria que ele tivesse ido a um banco, que fosse exposto? Manterei tudo em segredo, desde que os pagamentos sejam feitos.
Ele apontou um dedo para os documentos no banco.
– Quero que suma com isso.
– Você não tem parte no acordo, Edward. E, ao que tudo leva a crer, o seu pai precisa do dinheiro. Ou não teria me procurado.
– Aquela casa pertence à minha mãe!
– Sabe, se eu fosse você, estaria me agradecendo. Não sei ao certo o que anda acontecendo debaixo daquele seu teto, mas dez milhões não deveriam ser nada para a grande e gloriosa família Bradford!
Edward virou à esquerda e estacionou num dos parques públicos do rio Ohio. Cruzando o estacionamento deserto, ele parou ao chegar ao atracadouro, e desligou o motor. Àquela altura, a tempestade caía a valer, e os raios no céu inflamavam a raiva dentro dele.
Virando-se no banco, ele engoliu um gemido de dor.
– Ele não precisa do dinheiro, Sutton.
Claro, era uma mentira. Mas a última coisa que a família precisava era de boatos. Por mais que ele estivesse frustrado com Sutton, sabia que poderia confiar nela, só que deviam haver outras pessoas envolvidas. Advogados, banqueiros. Pelo menos ela poderia negar essa conversa, caso fosse mencionada.
– Então por que ele assinou aquele documento? – ela inquiriu. – Por que o seu pai se desdobrou para me desviar de uma reunião de negócios para propor isso?
Enquanto ela o confrontava, ele teve uma rápida imagem mental da noite anterior, dela em seu colo, montando sobre ele, sendo gentil com seu corpo alquebrado.
Logo se lembrou do pai tentando abraçá-la no escritório.
Aquilo tinha como ficar mais confuso?, perguntou-se enquanto seu ódio por William Baldwine ressurgia.
Edward se concentrou nos lábios dela e pensou na esposa do irmão.
– Ele já te beijou?
– O que disse?
– O meu pai. Ele já te beijou?
Sutton meneou a cabeça em descrença.
– Vamos nos concentrar na questão da hipoteca de Easterly, está bem?
– Responda a maldita pergunta.
Ela levantou as mãos.
– Você me viu no escritório com ele. O que acha?
Então, sim, Edward pensou com uma onda de fúria.
– Escute – Sutton disse –, não sei o que está acontecendo com a sua família, ou por que ele quis fazer isso. Só o que sei foi que era um bom negócio para mim… e pensei que poderia ajudá-los. Fui idiota, pensei que manter isso em segredo poderia beneficiá-los.
Depois de um momento, ele murmurou:
– Bem, você está errada. E é por isso que quero que rasgue o documento.
– O seu pai também tem uma cópia – ela observou, seca. – Por que não vai falar com ele?
– Ele fez o acordo com você porque me odeia. Ele o fez porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Pelo menos isso não era mentira, ele pensou quando ela arfou.
Deus bem sabia que ele já se sentia apenas meio homem perto dela…
Sutton se mexeu no banco, absorvendo as palavras de Edward. Não conseguiu esconder sua ansiedade.
O orgulho fez com que quisesse atingi-lo, mas as palavras iradas se atropelaram em sua cabeça, e só o que ela acabou fazendo foi contemplar o rio agitado e lamacento.
Os limpadores de para-brisa estavam ligados, movendo-se em intervalos, clareando a vista da margem oposta temporariamente. E, engraçado, a vida era meio assim também, não era? Você segue em frente, cuidando da sua vida, sem conseguir ver exatamente onde se encontra por causa dos tantos detalhes demandando atenção, quando, subitamente, as coisas se cristalizam e você recebe uma breve visão que a faz pensar “Ah, é aqui que estou”.
Sutton pigarreou, mas não adiantou muito, pois, quando falou, as palavras saíram meio roucas.
– Sabe, acho que nunca vou entender por que me considera tão pouco. É um mistério para mim.
Edward disse algo, mas ela falou por cima dele:
– Você deve saber que me apaixonei por você há muito tempo.
Isso fez com que ele se calasse.
– Você deve saber. Como não saberia? Eu o segui por anos… É por isso que me odeia? – Olhou na direção dele, mas não conseguiu ver muito por causa do boné. O que era bom, provavelmente. – Você me despreza por isso? Sempre pensei que você foi deixando porque pensou que os meus sentimentos poderiam lhe ser úteis de algum jeito, mas é algo mais doentio do que isso? Sei que desprezo a mim mesma pela minha fraqueza. – Ela acenou para os documentos. – Quero dizer, esses papéis são um exemplo perfeito de como sou patética. Eu não teria feito um negócio assim, às escondidas, com ninguém mais. Mas imagino que seja um problema meu, e não seu.
Ela voltou a fitar além do para-brisa.
– Sei que não gosta de falar sobre o que aconteceu na América do Sul, mas… Eu não dormi o tempo todo que você estava lá, e tive pesadelos nos meses seguintes. E depois você voltou a Charlemont e não quis me ver. Disse a mim mesma que era porque você não estava recebendo ninguém, mas não é verdade, é?
– Sutton…
– Não – interrompeu-o com firmeza. – Não vou livrá-lo dessa hipoteca. Seria apenas mais uma estupidez nessa coisa que tenho com você.
– Você entendeu tudo errado, Sutton.
– Entendi? Não tenho tanta certeza assim. Então, que tal se terminarmos tudo aqui, agora? Você pode ir se foder, Edward. Agora me leve de volta para a minha casa antes que eu ligue para a polícia.
Ela esperou que ele discutisse. Depois de um instante, porém, ele engatou a marcha a ré e deu a volta.
Na estrada, ela o encarou de perfil.
– É melhor rezar para que aquele seu pai faça os pagamentos dentro do prazo. Se ele não fizer, não hesitarei em pôr a sua família no olho da rua. E se acha que isso não vai fazer as pessoas desta cidade comentarem a respeito, você perdeu o juízo.
Foi a última coisa dita no caminho de volta para a casa dela.
Quando ele parou diante da mansão, ela fez questão de pegar a bolsa de festa e levá-la consigo, e o caminhão mal tinha parado quando ela abriu a porta.
Sutton tinha quase certeza de que ele disse seu nome uma última vez antes de ela sair, mas talvez não.
Quem se importava?
Enquanto corria debaixo da chuva, o mordomo lhe abria a porta de entrada.
– Senhorita! – ele exclamou. – A senhorita está bem?
Ela não se dera ao trabalho de abrir o guarda-chuva, e uma rápida olhada no antigo espelho ao lado da porta mostrou que ela parecia tão exausta e abatida quanto se sentia.
– Na verdade, não estou me sentindo muito bem. – Não era nenhuma mentira. – Por favor, avise Brandon Miller que vou me deitar. Eu deveria me encontrar com ele para irmos ao baile de hoje.
Ele se curvou.
– Devo telefonar para o doutor Qalbi?
– Não, não. Só estou exausta.
– Eu lhe levarei uma bandeja com chá.
A ideia lhe pareceu nauseante.
– Quanta gentileza. Muito obrigada.
Enquanto o homem se afastava na direção da cozinha, ela seguiu para o elevador. Felizmente, ele já estava parado no térreo e ela pôde entrar imediatamente. A última coisa que queria era se encontrar com o pai ou com o irmão.
Tirou os sapatos e caminhou descalça pelo corredor, entrando sorrateiramente no quarto e batendo a porta atrás de si.
Fechou os olhos, mas continuou ouvindo a voz de Edward em sua mente.
Ele fez isso porque sabe muito bem que a última pessoa na face da terra que eu gostaria de ficar devendo é você.
Inacreditável.
E era engraçado. Mesmo com todo o dinheiro que ela tinha, toda a posição social e autoridade, o respeito e a adulação… Ela ainda podia ser reduzida a uma criança devastada.
Só era preciso ficar num local fechado com Edward Baldwine.
Por dez minutos.
Não mais, ela jurou. A obsessão doentia que tinha por aquele homem precisava cessar agora.
Nos recessos da mente, às vezes ela se perguntava se ele também não combatia uma obsessão por ela, a competição centenária entre as duas famílias impedindo-o de se aproximar. Mas isso, evidentemente, fora uma projeção injusta da parte dela, algum tipo de fantasia romântica nascida dos seus próprios sentimentos.
As únicas coisas gentis que ele lhe dissera foram quando ele pensou que ela era uma prostituta a seu serviço.
No entanto, a realidade estava visivelmente clara agora. Ele tinha acabado de apresentá-la num outdoor na proverbial praça central da sua cidade. Deixara tudo evidente, sem margem para dúvidas.
Ela podia ser patética.
Mas não era burra.
TRINTA E NOVE
Atingida na cabeça.
Enquanto Lizzie escorregava para o lado da cabine esmagada de seu Yaris, sentiu como se tivesse levado uma pancada na cabeça.
Por uma combinação de Wolverine, The Rock e talvez por Schwarzenegger em seus tempos de glória.
E, como resultado, nada estava sendo muito bem processado – o fato de ter batido na traseira do carro de Lane, o motivo pelo qual seu rosto estava molhado, o barulho alto…
– Lizzie!
O som do seu nome dissipou parte da sua confusão, e ela olhou ao redor, tentando descobrir por que Deus, de repente, estava com a voz muito parecida com a de Lane.
– Lane? – ela disse, piscando repetidas vezes.
Por que ele estava entrando pelo para-brisa? Seria aquilo um sonho? – … machucada em algum lugar? – ele dizia. – Preciso saber antes de tentar te mover.
– Desculpe, o seu carro…
– Lizzie, você tem que me dizer se está machucada!
Caramba, quando ele ficava ansioso aquele sotaque sulista ficava mais evidente, não? Ela estava confusa. Machucada? Por que ela estaria…
E foi então que ela viu toda a folhagem.
Dentro do carro.
Muito bem, aquilo devia ser um sonho ruim, mas ela podia seguir a correnteza. Testou os braços, as pernas, inspirou fundo, moveu a cabeça… Tudo parecia funcionar bem.
– Eu estou bem – murmurou. – O que aconteceu?
– Vou te puxar para a frente, ajude se puder, ok?
– Claro. Eu…
Uau. Ai!
Mas ela estava determinada a participar daquele esforço. Mesmo quando seus músculos ficaram meio esticados demais, parecendo querer saltar para fora das juntas, ela apoiou os pés em qualquer coisa que conseguiu, se empurrando enquanto Lane a puxava e fez força para seguir em frente.
A chuva atingiu seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Arranhões. O vento a cegou.
Mas ele a arrancou para fora.
E ela logo se viu nos braços dele, ao encontro do seu peito, sentindo-o estremecer.
– Ai, Deus – ele disse, rouco. – Ah, graças a Deus, você está viva…
Lizzie se segurou nele, ainda sem entender por que estavam sentados numa árvore. Como é que os carros tinham subido na…
Um raio espocou no céu tão perto deles que ela sentiu os ouvidos explodindo.
– Temos que entrar – Lane rugiu. – Venha.
Em algum momento no processo de tropeçar e cair no chão, o cérebro dela voltou à ativa, e o que ela viu quase a paralisou.
Metade da magnífica árvore que crescia ao lado da sua casa tinha esmagado seu carro.
No fim, ela não colidira com o Porsche.
A batida que ouviu era o seu sedãzinho sendo esmagado por todo aquele peso.
– Lane, o meu carro…
Foi tudo o que conseguiu dizer antes de ele a pegar nos braços e sair correndo na direção da casa. Quando ele saltou na varanda, ela o empurrou e saiu dos braços dele, recusando-se a ir mais longe. Cobrindo a boca com a mão ao ver seu carro daquele jeito, ela…
Sangue. Havia sangue por toda parte sobre ela.
Uma súbita tontura a acometeu, fazendo-a cambalear ao olhar para si mesma.
– Lane… Estou machucada?
– Para dentro – ele ordenou, conduzindo-a.
Enquanto a empurrava para dentro e empenhava todas as suas forças para fechar a porta, o coração dela começou a bater forte quando deu uma bela olhada no seu salvador: ele também estava todo molhado e ensanguentado.
Mas isso importava?
Os dois se abraçaram com tanta pressa que as roupas ensopadas se grudaram, os corpos voltando a se ligar, partilhando calor, segurando-se firmes um ao outro.
– Pensei que tivesse te perdido – ele disse ao ouvido dela. – Ah, meu Deus, pensei que…
– Você me salvou, você me salvou…
Ambos falavam apressadamente, tropeçando sobre as palavras, trêmulos pelo que quase acontecera. Ele a beijou e ela retribuiu.
Só que, depois de um tempo, ela se afastou.
– Acho que quem está sangrando é você.
– São só uns arranhões…
– Oh, Deus! Olhe para os seus braços, as suas mãos!
Ele estava todo machucado; sua pele tinha vários cortes por ter brigado com os galhos para chegar até ela, e havia contusões no rosto e no pescoço.
– Não estou nem aí – ele disse. – É com você que estou preocupado.
– Você precisa de um médico?
– Ora, por favor… A árvore caiu em cima de você, lembra?
E foi então que as luzes se apagaram.
Lizzie ficou imóvel um segundo, mas logo começou a rir com tanta intensidade que seus olhos arderam. Eram emoções demais, coisas demais para lidar… E, antes que se desse conta, Lane estava gargalhando também. Os dois se abraçaram, libertando-se de toda a tensão, dos problemas da família dele, do estresse do Brunch… até aquele horrendo acidente de carro.
– Banho? – ela sugeriu.
– Pensei que nunca fosse pedir.
Normalmente, ela ficaria irritada com as marcas dos pés na sala e nos degraus, mas não agora. A lembrança de todo aquele peso sobre seu carro a fazia priorizar o que era importante.
– Juro que pensei ter batido no seu carro – ela disse ao chegarem ao segundo andar.
– Não teria sido um problema, se tivesse mesmo.
Ah, as alegrias de ser um Bradford, ela pensou.
– Tenho certeza de que você tem um Porsche reserva.
– Mesmo se eu não tivesse, não teria tido importância, contanto que você estivesse bem.
Passaram ao mesmo tempo pelo batente do banheiro dela e se apertaram dentro do box, e quando ela ligou o chuveiro, ele partiu para cima dela, desabotoando sua roupa, abrindo zíperes, tirando tudo o que a deixava fria e molhada.
Arrepios se formaram nos braços e nas pernas dela, provocados mais pelo calor do olhar dele que pelo frio do ar. Logo Lane também se despiu, deixando as roupas caídas junto às dela.
– Para a água – ela grunhiu quando ele a acariciou no pescoço com o nariz, beijando um caminho até a boca.
Ele soltou um xingamento quando se colocaram debaixo do jato quente e suave. E quando a água os lavou, ela ficou aliviada: eram apenas arranhões, nada sério.
E esse foi seu último pensamento antes que as mãos grandes dele começassem a viajar pelos seus seios escorregadios, e a boca descesse com avidez sobre a dela, e aquele desejo erótico tão conhecido se reacendesse entre eles.
Eu te amo, ela pensou.
Eu te amo tudo de novo, Lane.
Algum tempo depois, quando a eletricidade voltou, depois de Lane ter feito amor com sua Lizzie duas vezes no chuveiro e mais uma na cama, depois que desceram e comeram os restos da lasanha congelada e boa parte do sorvete de pêssego, depois que voltaram para cima e foram para a cama de novo… todos os problemas do dia voltaram para ele.
Felizmente, Lizzie estava adormecida no escuro, por isso qualquer que fosse sua expressão, que já não tinha forças para esconder, não seria um problema.
Fitando o teto, sua mente começou a girar, e ele mal percebeu que o sol se levantava no horizonte. Deu uma rápida olhada para o rádio-relógio de Lizzie e se surpreendeu ao ver que ficara acordado a noite inteira.
Deslizando para fora dos lençóis, pôs-se de pé e foi para o banheiro. Suas roupas não tinham salvação; pegou-as no chão e jogou-as no lixo. A única coisa que ainda podia ser usada era a cueca.
Era melhor que dirigir nu para casa no dia do Senhor.
De volta ao quarto, aproximou-se de Lizzie.
– Tenho que ir.
Ela despertou de pronto, e ele a acariciou até que ela voltasse a apoiar a cabeça no travesseiro.
– Tenho um encontro com uma linda mulher e não posso faltar – ele disse.
Lizzie sorriu de uma maneira sonolenta, que fez com que ele desejasse ficar olhando para ela para sempre.
– Mande um oi.
– Pode deixar. – Ele a beijou na boca. – A propósito, hoje eu trago o jantar.
– Congelado?
– Não, vai estar mais quente que o inferno.
O sorriso que ela lhe lançou o atingiu direto no sangue, excitando-o, apesar de não haver tempo para fazer nada a respeito.
– Eu te… – Lane se deteve, sabendo que ela não gostaria daquela despedida. – Eu te vejo às cinco da tarde.
– Estarei aqui.
Ele a beijou uma vez mais e foi para a porta.
– Espere. E as suas roupas? – ela disse em voz alta.
– Não podem me prender. As partes ofensivas estão cobertas.
O riso dela o acompanhou até a escada e a saída da casa. E a visão de metade da copa daquela árvore fez o coração dele saltar.
Quando inspirou fundo, seu primeiro instinto foi o de pegar o telefone e ligar para Gary McAdams para que ele retirasse o galho e levasse aquela lata amassada que era o carro dela para um pátio de demolição. Mas se conteve. Lizzie não era do tipo de mulher que apreciaria esse tipo de manobra. Ela devia ter os próprios contatos, ideias de como lidar com aquele problema, planos para seu Yaris.
Conhecendo-a, ela tentaria fazer com que ele voltasse a funcionar.
Sacudiu a cabeça e foi até seu carro. O Porsche quase foi destruído também, sendo oupado por pouco. Depois de tirar alguns galhos do teto, entrou, ligou o carro e seguiu seu caminho lentamente ao largo dos galhos caídos e faixas de terra cheias de água. Assim que chegou ao asfalto, acelerou na direção de Charlemont, atravessando o rio e subindo a colina de Easterly.
Estava na metade do caminho quando teve que desacelerar porque outro carro vinha descendo.
Um sedã Mercedes preto S550.
E, atrás do volante, com imensos óculos escuros e um véu preto como se estivesse de luto, sua futura ex-mulher.
Chantal não olhou para ele, mesmo sabendo muito bem quem estava passando.
Tudo bem. Com um pouco de sorte, ela estaria de mudança e poderiam deixar que os advogados cuidassem de tudo, dali por diante. Deus bem sabia que ele tinha outras coisas para se preocupar.
Estacionou o Porsche na frente da casa, entrou pela porta principal e parou quando viu bagagem no vestíbulo.
Não era de Chantal. Ela tinha conjuntos da Louis Vuitton. Aquelas eram Gucci, marcadas com as iniciais RIP.
Richard Ignatius Pford.
Uma cretina saindo, ele pensou. E outro entrando.
Que diabos Gin estava pensando?
Ah, espere. Ele sabia a resposta. Para uma mulher com pouca formação acadêmica e nenhuma experiência profissional, sua irmã tinha um talento incontestável: saber cuidar de si mesma.
Assustada com a questão financeira, ela seguiu as orientações do pai e se agarrou ao tolo endinheirado a fim de que, não importando o que acontecesse com a família, seu estilo de vida não fosse afetado. Ele só desejava que o custo para ela não se provasse alto demais. Richard Pford era um filho da puta odioso.
Só que aquele circo não era seu, tampouco os macacos que nele se apresentariam. Por mais que o entristecesse, fazia tempo que aprendera a deixar que Gin seguisse sua cabeça e fosse em frente. Na verdade, não havia uma estratégia para lidar com a sua irmã.
Subiu os degraus rapidamente, foi para o quarto, tomou banho, se barbeou e vestiu o terno risca de giz. Precisou de duas tentativas para acertar a gravata borboleta.
Caramba, como odiava aquelas coisas.
Desceu pela escada dos empregados, cortou caminho pela cozinha e foi parar diante da porta da senhorita Aurora. Como fizera na primeira vez em que fora visitá-la quando ali chegou, verificou se estava com a camisa bem enfiada dentro da calça antes de bater à porta.
Mas parou antes de bater. Por algum motivo, sentiu um medo insano de que desta vez ela não atenderia. Que ele esperaria… e repetiria, e esperaria um pouco mais…
E então teria que invadir, forçando a porta como fizera no escritório de Rosalinda… E encontraria mais uma morta.
A porta se abriu, e a senhorita Aurora mostrou uma carranca.
– Está atrasado.
Lane se sobressaltou, mas logo se recobrou.
– Desculpe.
A senhorita Aurora resmungou e deu um tapinha em seu chapéu azul-claro de igreja. O conjunto dela era tão brilhante quanto um céu primaveril, e ela usava luvas e sapatos combinando, e uma perfeita bolsa do tamanho de uma raquete de tênis. O batom era vermelho-cereja, os brincos, os de pérola que ele lhe dera três anos atrás, e ela também usava o anel de pérola que lhe dera no ano anterior a esse.
Ofereceu-lhe o braço quando ela fechou a porta, e ela o aceitou.
Juntos, caminharam até a porta da frente, passando pelo senhor Harris, que sabia que não deveria comentar sobre a porta que estavam usando.
Lane acompanhou a senhorita Aurora até o Porsche e a acomodou no carro. Depois deu a volta e colocou-se atrás do volante.
– Vamos chegar atrasados – ela disse com rispidez.
– Farei com que cheguemos a tempo. Fique só observando.
– Não gosto de alta velocidade.
Ele se viu olhando para ela, piscando.
– Então feche os olhos, senhorita Aurora.
Ela deu um tapa no braço dele e o encarou.
– Você não está velho demais para levar uma surra?
– Sei que quer se sentar num dos bancos da frente.
– Tulane Baldwine, não ouse infringir a lei.
– Sim, senhora.
Com um sorriso maroto, ele pisou no acelerador, voando colina abaixo. Quando relanceou para a senhorita Aurora, viu que ela estava sorrindo.
Por um momento, tudo estava certo em seu mundo.
QUARENTA
A Igreja Batista de Charlemont ficava no West End e suas tábuas brancas se destacavam em meio aos quarteirões e quarteirões de unidades residenciais de baixa renda. Pense em algo imaculado. Desde o gramado muito bem aparado, o estacionamento recém-varrido, os vasos de plantas ao lado das portas duplas até as quadras de basquete nos fundos, o lugar era tão bem cuidado que parecia ter saído de um cartão postal dos anos 1950.
E às 9h20 da manhã de domingo, a igreja estava lotada.
No instante em que Lane se aproximou com o carro, as saudações surgiram tão rápido e de tantos lados que ele teve que desacelerar. Abaixando os dois vidros, ele apertou mãos, cumprimentou as pessoas pelos seus nomes, aceitou desafios para algumas partidas. Estacionou nos fundos, ajudou a senhorita Aurora a sair e depois a conduziu pela calçada que ladeava a igreja.
Havia crianças por toda parte, com vestidinhos florais e terninhos, tão coloridos quanto uma caixa de lápis de cor; o comportamento delas era muito melhor que o do grupo de adultos que participava das festas em Easterly. Todas as pessoas, todas mesmo, pararam para falar com ele e com a senhorita Aurora, querendo saber como estavam, colocando a conversa em dia. Nesse processo, ele se deu conta do quanto sentia falta daquela comunidade.
Engraçado, ele não era de frequentar a igreja, mas sempre que estava em casa, nunca deixava de acompanhar a senhorita Aurora.
Lá dentro, devia haver umas mil pessoas; as fileiras de bancos estavam repletas pelos féis, todos conversando, se abraçando, rindo. Era muito cedo ainda para que ligassem os ventiladores, mas isso logo aconteceria, bastava chegar junho. Lá na frente, havia uma banda com guitarras elétricas, bateria e baixos, e ao lado dela os cantores que compunham o coro. Atrás disso tudo, estava o admirável órgão – do tipo capaz de arrebentar as portas e as janelas e até mesmo o telhado –, ligando a congregação diretamente aos céus.
Max deveria estar aqui, Lane pensou. Seu irmão tinha participado do coro por diversos anos antes de partir para a faculdade.
Mas era uma tradição perdida. Ao que tudo levava a crer, para sempre.
A duas filas a partir da frente, havia espaço para eles, pois uma família de sete se espremeu para que coubessem.
– Muito obrigado – disse Lane, apertando a mão do pai. – Ei, você não é irmão de Thomas Blake?
– Sou, sim – o homem assentiu. – Sou Stan, o mais velho. E você é o menino da senhorita Aurora.
– Sim, senhor.
– Por onde andou? Faz tempo que não o vejo aqui.
Enquanto a senhorita Aurora erguia uma sobrancelha na sua direção, Lane pigarreou.
– Estive no norte.
– Meus sentimentos – disse Stan. – Mas, pelo menos, agora voltou.
– Aqueles são os meus sobrinhos. – A senhorita Aurora apontou para o outro lado do corredor. – D’Shwane está jogando para os Colts de Indiana agora. É recebedor. E Qwentin, ao lado dele, é atacante no Miami Heat.
Lane ergueu a mão quando os dois homens perceberam o olhar da senhorita Aurora.
– Lembro de quando jogavam na faculdade. Qwentin foi um dos melhores atacantes que os Águias já tiveram, e eu estava lá quando D’Shawne nos ajudou a ganhar o Sugar Bowl.
– São bons meninos.
– Toda a sua família é.
O órgão deu a primeira nota e a banda começou a tocar, e do nártex, o coral com beca vermelho-sangue entrou, cinquenta homens e mulheres andando lado a lado, cantando durante a procissão. Atrás deles, o reverendo Nyce seguia com a Bíblia junto ao peito; o homem era alto e distinto e fitava o seu rebanho com afeto. Ao ver Lane, estendeu o braço e apertou-lhe a mão.
– É bom tê-lo de volta, filho.
Quando chegou a hora de todos voltarem a se sentar, Lane sentiu uma sensação estranha. Perturbado, esticou o braço e segurou a mão da senhorita Aurora na sua.
Só conseguia pensar naquele galho de árvore caindo na noite anterior. A visão do carro amassado de Lizzie. O medo eletrizante que sentira ao se arrastar pelos galhos no meio da tempestade, gritando o nome dela.
Quando a banda começou o seu hino gospel predileto, ele olhou para o altar e só balançou a cabeça.
Claro que tinha que ser essa música, pensou.
Como se a própria igreja o estivesse acolhendo em casa também.
Levantou-se com a senhorita Aurora, e começou a se mover com o resto da congregação, para a frente e para trás, para a frente e para trás.
E se viu cantando junto:
– Quero que saiba que Deus está ao meu lado…
Uma hora e meia mais tarde, o culto terminou e era hora do lanche. A congregação se dirigiu para o andar inferior para tomar ponche, comer uns cookies e conversar.
– Vamos descer – Lane disse.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Preciso voltar. Tenho trabalho.
Ele franziu o cenho.
– Mas nós sempre…
Ele se deteve. Não havia nada que requeresse cuidados em Easterly. Portanto, a única explicação era a que o fazia querer ligar para a emergência.
– Não olhe para mim assim, menino – ela murmurou. – Não é uma emergência médica, e mesmo que fosse, não vou morrer na minha igreja. Deus não faria isso com esta congregação.
– Vamos, apoie-se no meu braço.
Pareceram despreocupados ao andarem contra a maré e, puxa, ele preferiria levá-la nos ombros tal qual um bombeiro, abrindo caminho como um jogador da linha de defesa. Na metade do trajeto até a porta, teve que parar para conversar com Qwentin e D’Shwane – além dos dezessete outros membros da família da senhorita Aurora. Normalmente, ele teria adorado as conversas, mas não naquele dia. Não queria ser rude, só estava muito ciente do quanto a senhorita Aurora se apoiava em seu braço.
Quando, por fim, chegaram à porta da igreja, ele disse: – Espere aqui. Vou trazer o carro. E não, não tem discussão, pode parar já.
Ele meio que esperou que ela se opusesse, e quando ela não o fez, afastou-se correndo, indo para a parte mais distante do estacionamento.
Voltando com o Porsche, quase esperou encontrá-la desmaiada.
Nada disso aconteceu. Ela estava conversando com uma mulher magra, muito majestosa, que tinha o rosto de Nefertiti, um simples terno preto e um par de óculos sem aro diante de olhos muito aguçados.
Ah, uau, ele pensou. Aquilo sim era podia ser chamado de vento do passado.
Lane saiu do carro.
– Tanesha?
– Lane, como está? – Tanesha era a filha mais velha do reverendo. – É bom ver você.
Abraçaram-se e ele assentiu.
– Também é bom te ver. Já virou médica?
– Estou fazendo residência aqui na UC.
– No que vai se especializar?
– Oncologia.
– Ela está fazendo o trabalho do Senhor – disse a senhorita Aurora.
– Como está Max? – Tanesha perguntou.
Lane pigarreou.
– Eu é que não sei. Não falo com ele desde que ele foi para a costa oeste. Você sabe como ele é, imprevisível.
– Sim, ele era mesmo.
Momento. Embaraçoso.
– Bem, vou levar a senhorita Aurora de volta para casa – ele disse. – Foi bom te ver.
– Você também.
As duas mulheres falaram num tom baixo por um instante, e depois a senhorita Aurora permitiu que ele a conduzisse pelos degraus até o carro.
– Sobre o que falavam? – ele perguntou quando se afastaram.
– Sobre o ensaio do coral na semana que vem.
– A senhora não está no coral. – Olhou para ela quando ela não disse nada. – Senhorita Aurora? Quer me contar alguma coisa?
– Sim.
Ai, Deus…
– O quê?
Ela o segurou pela mão, mas não olhou para ele.
– Quero que se lembre do que lhe disse antes.
– E o que foi?
– Tenho Deus. – Apertou a mão dele com força. – E tenho você. Sou mais rica do que poderia imaginar.
Ela o segurou pela mão durante todo o trajeto de volta a Easterly, e ele soube… ele soube. Ela estava tentando prepará-lo para o que estava por vir. Também percebeu que era por isso que ele tinha insistido que Edward a visse no dia anterior, quando o irmão estivera na casa.
Se ao menos houvesse um modo de localizarem Max.
– Não quero que você parta – Lane disse, emocionado. – Vai ser duro demais.
A senhorita Aurora ficou calada até chegarem à base da colina de Easterly.
– Falando em partir – ela disse –, fiquei sabendo que Chantal foi embora.
– Sim, estou pondo um fim nisso.
– Bom. Talvez você e Lizzie finalmente voltem a ficar juntos. Ela é a mulher para você.
– Sabe, senhorita Aurora, eu concordo. Agora só preciso convencê-la.
– Eu ajudo.
– E eu aceito a sua ajuda. – Olhou para ela de relance. – A propósito, ela mandou um oi.
A senhorita Aurora sorriu.
– Isso quando você a deixou hoje cedo?
Enquanto Lane gaguejava e ficava vermelho como o Mercedes que lhe dera, a senhorita Aurora riu dele com gosto.
– Você é um menino levado, Lane.
– Sei disso. É por isso que a senhora precisa ficar por perto, para me fazer andar na linha. Não canso de lembrá-la.
Em vez de parar na frente da casa, ele deu a volta até os fundos para parar mais perto dos aposentos dela. Aproximando-se da porta de trás, freou, desligou o motor… e não saiu.
Olhando para ela, sussurrou:
– Estou falando sério. Preciso da sua ajuda aqui, na Terra… Nesta casa, na minha vida.
Deus, foi impossível ignorar o fato de que três dias atrás ela estivera berrando com ele, dizendo que não iria a parte alguma, mas, agora, algo mudara. Havia alguma coisa diferente.
Antes que ela conseguisse dizer qualquer coisa, a porta da garagem subiu e o motorista saiu com o Phantom. O carro de 500 mil dólares passou por eles e seguiu até a frente da casa.
– Ele é maligno – Lane disse. – Esse meu pai…
A senhorita Aurora ergueu as mãos.
– Amém.
– Onde diabos ele vai hoje cedo?
– Pra igreja é que não.
– Talvez tenha ido atrás de Chantal.
No instante em que proferiu as palavras, soltou um xingamento.
– Do que está falando?
Lane sacudiu a cabeça e saiu.
– Venha, vamos entrar.
Mas não entraram. Quando ele deu a volta e abriu a porta dela, ela continuou sentada com a bolsa no colo, com as mãos enluvadas uma sobre a outra.
– Pode contar.
– Senhorita Aurora…
– O que ele fez com você?
– Isso não é sobre mim.
– Se é sobre aquela sua esposa horrível, pode apostar o seu traseiro como é da sua conta.
Lane combateu o desejo de bater a cabeça no capô do Porsche.
– Não tem nenhuma importância.
– Eu sei que ela se livrou do seu bebê.
Quando aqueles olhos negros se ergueram para ele, Lane xingou uma vez mais.
– Senhorita Aurora. Não faça isso. Deixe estar. Existem muitas outras coisas com as quais vale a pena se preocupar.
Só o que ela fez foi erguer uma sobrancelha.
Lane se acomodou sobre os calcanhares. Deus, como ele amava aquele rosto, cada uma das rugas e marcas de expressão, cada curva e todas as linhas. E ele amava o fato de ela ser uma dama no comportamento, mas forte como um homem.
Ela e Lizzie eram muito parecidas.
– Existem algumas coisas que não valem a pena saber.
– E outras que você não deveria guardar para si.
Por algum motivo, ele se viu abaixando o olhar, como se tivesse algo de que se envergonhar.
– Ela está grávida, senhorita Aurora. E o filho não é meu.
– De quem é? – ela inquiriu.
O resto da história foi transmitido silenciosamente. E o mais engraçado foi que ela não se mostrou totalmente surpresa.
– Tem certeza? – ela perguntou baixinho.
– Foi o que ela disse. E quando o confrontei, a resposta apareceu na cara dele.
A senhorita Aurora fitou adiante, com a testa crispada e a cabeça tão baixa que ele já não enxergava os olhos dela.
– Deus o punirá.
– Eu não esperaria sentado, se fosse a senhora. – Ele se levantou e lhe estendeu a mão. – Está ficando quente aqui fora. Venha.
A senhorita Aurora voltou a fitá-lo nos olhos.
– Eu te amo.
Foi o jeito de ela se desculpar pelo que sabia que todos eles tiveram que aguentar por causa do pai. Não apenas aquela história hedionda com Chantal, mas todas as décadas de tudo o que se passara, desde que eram crianças.
– Sabe – ele disse –, eu nunca te agradeci. Por todos estes anos em que esteve presente, eu nunca… Foi a senhora quem nos manteve nos trilhos, especialmente eu. Sempre esteve ao meu lado. Sempre está ao meu lado.
– Deus me deu esse trabalho sagrado quando cruzou a minha vida com a de todos vocês.
– Eu te amo, mãe – disse emocionado. – Para sempre.
QUARENTA E UM
O som da serra elétrica nas mãos de Lizzie era tão alto que ela não ouviu a aproximação do carro. E foi só depois que deixou de acelerar e o motor da máquina silenciou que ela ouviu uma voz muito sensual e máscula anunciar que ela já não estava mais sozinha.
– Você é a mulher mais sexy que eu já vi.
Girando e olhando para baixo, ela encontrou Lane encostado no seu Porsche, de braços cruzados, pés fincados no chão e expressão intensa.
Do seu ponto de vista vantajoso – de cima do capô amassado do seu Yaris –, ela suspendeu a serra elétrica acima da cabeça e deu umas duas aceleradas.
– Ouça o meu urro.
– Ouça a minha súplica.
Ela teve que rir ao pular para o chão.
– Fiz algum progresso, mas não acho que…
Lane a interrompeu encostando a boca na dela, e o beijo rapidamente se tornou tão erótico que ele quase a dobrou para trás. Quando se separaram um pouco, os dois arfavam.
– Então, oi – ele disse.
– Você, por acaso, sentiu a minha falta?
– Todos os segundos. Deus, como eu amo v… amo o modo como você maneja essa serra.
Foi impossível não perceber o que ele quis dizer, e ela também teve que se bloquear mentalmente quando o instinto quase fez com que deixasse escapar a mesma declaração.
Contudo, Lane encobriu o desconforto com desembaraço.
– Como prometi, trouxe o jantar. Comida do clube. Peguei aquela salada que espero que ainda goste, e uma montanha de lombo fatiado. Sabe, para o caso de termos que nos recobrar.
– Do quê? – perguntou, com malícia, abaixando a serra.
– Ah, você sabe do que… – Só que ele franziu o cenho. – A menos que… bem, você esteja dolorida por causa da noite passada.
Lizzie sacudiu a cabeça.
– Nem um pouco.
– Uma pena.
– Como é?
Aproximando-se, deixou a boca pairar sobre a dela e lambeu seus lábios.
– Pensei que eu poderia dar uns beijinhos para melhorar.
– Você ainda pode fazer isso.
Quando ele a girou e a encostou contra o carro, ela sentiu o coração começar a flanar e pensou que podia muito bem se soltar. Uma árvore tinha destruído seu carro, seu quintal estava uma bagunça, e havia galhos espalhados em toda a sua propriedade… mas Lane estava ali, e se lembrava que ela gostava de salada Cobb e, maldição, ele era o melhor beijador do planeta.
Amanhã ela voltaria a andar nos trilhos. Amanhã ela se lembraria de tomar cuidado…
Lane se afastou um tantinho.
– Me diz uma coisa: o que você acha de fazer sexo a céu aberto?
Ela acenou para as três vacas que estavam perto da varanda.
– Acho que a nossa plateia pode duplicar quando o meu vizinho descobrir que essas senhoras vieram explorar minha terra de novo.
– Então vamos entrar agora mesmo antes que eu fique louco.
– Longe de mim me colocar entre você e a sua sanidade mental.
Ele tinha até uma maleta de roupas, ela percebeu, levando as coisas para dentro.
– Tenho novidades – ele disse ao fechar a porta da frente.
– O quê?
– Chantal saiu de casa hoje cedo.
Lizzie parou e o fitou. Ele estava vestindo sua roupa casual: bermuda e uma camisa polo IzOD, mocassins Gucci, óculos escuros Ray Ban, e o relógio Cartier, o conjunto fazendo com que ele parecesse saído de uma foto cuja legenda era “Os belos e os ricos”. Até o cabelo estava alisado para trás, embora se devesse ao fato de ele ter acabado de sair do banho e ainda estar úmido.
O coração dela oscilou, e ela sentiu um medo momentâneo. Lindo como estava, ele parecia o pôster de um homem em quem não se podia confiar, ainda mais no que se referia a mulheres como Chantal…
Como se ele pudesse ler sua mente, Lane tirou os óculos escuros, revelando seus olhos. Em contraste com tudo o que sua aparência dizia, eles eram límpidos, firmes e tranquilos.
Honestos.
– É mesmo? – ela sussurrou.
– Mesmo. – Ele se aproximou e a virou na sua direção. – Lizzie, acabou. Tudo acabou. E antes que me pergunte, não é só por sua causa. Eu deveria ter metido uma bala nesse casamento há muito tempo. Falha minha.
Fitando seu rosto, ela xingou baixinho.
– Desculpe, Lane. Desculpe ter duvidado de você, eu só…
– Psiu. – Ele a silenciou com os lábios. – Não vivo no passado. É perda de tempo. Só me importo com o presente.
Passando os braços ao redor do pescoço dele, ela curvou o corpo.
– Entãããooo… Não consegui ficar naquela coisa de sermos só amigos, consegui?
– Estou perfeitamente de acordo.
– Acho que esse foi o melhor jantar da minha vida.
Lane fitou-a da outra ponta do sofá e viu quando Lizzie se largou sobre as almofadas, pousando a mão sobre a barriga. Quando as pálpebras dela começaram a pesar, ele a visualizou sobre aquele galho como um anjo vingador, cortando os galhos que mataram seu carrinho.
Mesmo tendo passado a primeira hora desde a sua chegada um em cima do outro, Lane sentiu a ereção engrossar de novo.
– É um milagre – murmurou.
– Eu ter gostado tanto assim do lombo? Acho que não.
– Quero dizer, estar aqui com você.
Os olhos azuis voltaram a se abrir lentamente.
– Sinto a mesma coisa. – Quando ele começou a rir no fundo da garganta, ela o deteve, levantando as mãos. – Não, você não pode dormir sobre os louros da vitória.
Deixando o guardanapo de lado, ele pairou sobre seu corpo, e montou nela.
– Sabe, tenho outras opções de comemoração.
Movendo os quadris, ele sentiu uma pontada de desejo quando ela mordeu o lábio inferior, como se estivesse pronta para mais dele.
– Quer que eu demonstre? – perguntou, esfregando o nariz no seu pescoço.
As mãos dela o afagaram nas costas.
– Quero sim.
– Hummm…
O som do telefone sobre a mesinha lateral fez com que ele saltasse para pegá-lo, assustado.
– Não a senhorita Aurora… Por favor, que não seja sobre a senhorita Aurora…
– Ah, meu Deus… Lane, ela está…
Assim que ele viu que a ligação começava com o código de área 917, relaxou, aliviado.
– Graças a Deus. – Olhou para ela. – Tenho que atender. É um amigo de Nova York.
– Vá em frente.
Ele atendeu e disse:
– Jeff.
– Sentiu minha falta? – seu velho colega de quarto disse. – Sei que é por isso que deixou recado.
– Não chegou nem perto.
– Bem, não vou mandar aqueles bolinhos de canela que você come de manhã, à tarde e à noite pelo correio…
– Preciso saber quanto tempo você tem de férias.
Silêncio absoluto. Em seguida:
– A Série Mundial de Pôquer não está acontecendo agora. Por que está me perguntando isso?
– Preciso da sua ajuda. – Distraído, ele se encostou nas almofadas e posicionou as pernas de Lizzie sobre o seu colo. Depois do banho, ela tinha vestido shorts, e ele adorava ficar alisando aquelas panturrilhas macias e musculosas. – Estou com um problema sério aqui.
Jeff deixou a brincadeira de lado.
– Que tipo de problema?
– Preciso que alguém me diga se o meu pai está desviando dinheiro da empresa. Algo em torno de cinquenta milhões de dólares.
Jeff assobiou baixinho.
– É muita grana, cara.
– O meu irmão conseguiu me dar acesso a… sei lá, umas quinhentas páginas de relatórios financeiros e planilhas, mas eu não faço a mínima ideia do que tenho nas mãos. Quero que você venha para cá e me diga o que aconteceu, e isso tem que ser feito agora, antes que ele descubra que estou de olho e se livre de tudo o que possa incriminá-lo.
– Escuta aqui, Lane, você sabe que eu te amo como o irmão que nunca tive, mas o que você precisa é de um perito contábil. Existem pessoas que se especializaram nisso, e por um bom motivo. Deixe que eu encontre alguém em quem você possa confiar…
– É exatamente essa a minha preocupação, Jeff. Não posso confiar em ninguém com relação a esse assunto. Estamos falando da minha família.
– Podemos blindar todos os documentos. Posso ajudá-lo com isso, de modo que quem for fazer o…
– Quero você.
– Porra, Lane.
Por conhecer o homem há anos, Lane sabia muito bem que sua tarefa agora era se calar e deixar que Jeff ruminasse o assunto sozinho. Nada o convenceria nem o persuadiria, e se ele continuasse a falar, o tiro sairia pela culatra.
Em vez disso, Lane sabia que, se ficasse calado, todos aqueles anos de amizade resolveriam a questão.
Bingo!
– Insisto para que depois alguém revise o meu trabalho – Jeff murmurou. – Cacete, isso não é negociável. Não vou me responsabilizar por ferrar com tudo só porque você tem uma noção romântica de que sou brilhante com números.
– Mas você é.
– Maldição, Baldwine.
– Não posso mandar o meu avião. Chamaria muita atenção.
– Tudo bem. Um da minha família está na costa leste. Viajo amanhã de manhã e, não, não posso ir antes. Vou ter que ajeitar umas coisas no trabalho.
– Fico te devendo.
– Claro que fica. E pode começar a me pagar amanhã. Quero bebida grátis e mulheres à vontade, se vou ter que fazer isso.
– Cuido de tudo. Vou até te pegar no aeroporto, é só me dizer que horas vai chegar.
Jeff estava murmurando obscenidades quando desligou sem nem se despedir.
Quando Lane abaixou o aparelho, soltou um longo suspiro.
– Graças a Deus.
– Quem era?
– Acho que posso chamá-lo de meu melhor amigo. Foi com ele que me hospedei enquanto estive no norte. Jeff Stern. Financista brilhante. Se existe alguém que pode entender o rastro do dinheiro, Jeff é o cara. E, depois… – Lane esfregou os olhos. – Deus, acho que vou ter que procurar a polícia. Talvez a Comissão de Valores Imobiliários. O que eu queria mesmo era lidar com tudo isso sem alarde.
– E se o seu pai tiver infringido a lei?
Uma súbita imagem de William Baldwine num macacão laranja o deixou aliviado, de uma maneira doentia, por sua mãe estar desconectada da realidade.
– Não vou interferir com as autoridades. O que me preocupa é ele ter usado seu poder como procurador da minha mãe para secar as contas dela, mas não tenho acesso aos registros. Está tudo em poder da Fundos Prospect.
– Se a polícia ou o FBI se envolverem, eles vão conseguir descobrir isso.
Lane assentiu, lembrando-se do saco com o corpo de Rosalinda saindo de Easterly.
– Se Rosalinda cometeu suicídio por causa disso, o meu pai tem o sangue de outra pessoa nas mãos. Ele precisa ser levado à Justiça.
– Sabe, sempre tento olhar o lado positivo de tudo, mas… – Lizzie balançou a cabeça. – Bem, não importa o que aconteça, estou do seu lado, está bem?
Olhando para ela, ele disse, sério:
– É só disso que preciso. Não importa como tudo vai terminar, se eu tiver você…
O telefone tocou novamente, e ele riu ao apanhar o aparelho.
– Lá vem ele se arrependendo… Não, Jeff, não vai poder recuar agor…
– Você está perto de alguma TV?
Lane se endireitou.
– Samuel T.?
– Está ou não?
– Não. O que está acontecendo?
– Preciso que venha para a minha casa imediatamente. A polícia está à sua procura, e quando não o encontraram em Easterly, Mitch me ligou.
– O que… do que você está falando? – Depois pensou… ah, merda. – Olha só, sei que Edward e eu tecnicamente invadimos o centro de negócios sob falso pretexto, mas o maldito escritório está dentro da nossa propriedade, pra começo de conversa. E quanto aos documentos…
– Não sei do que você está falando e, neste instante, pouco me importo. Chantal foi parar no pronto-socorro hoje cedo, toda surrada. Ela disse às autoridades que você fez isso com ela assim que entrou com o pedido de divórcio, quando descobriu que ela estava grávida. Estão te acusando de violência doméstica, e eles podem ter o suficiente para acusá-lo de tentativa de homicídio também.
– O quê? – Lane se levantou. – Ela está louca!
– Não, ela está na sala operatória. Estão reparando o maxilar dela neste instante.
– Nunca toquei em Chantal! E posso provar! Eu nem estava em casa ontem à noite…
– Apenas venha para a minha casa. Vou intermediar a sua entrada no meio da noite para que não haja nenhuma foto sua indo para a delegacia, e depois te libero com uma fiança…
– Isso tudo é uma grande idiotice – Lane ralhou. – Não vou dançar de acordo com a música dela…
– Não é nenhuma brincadeira. E, a menos que compareça na delegacia, vai ser considerado fugitivo da justiça.
Lane olhou para Lizzie. Ela estava ereta, alarmada, preparada para receber más notícias.
De repente, lembrou-se de Chantal passando naquele Mercedes ao sair de Easterly. O rosto estava coberto com óculos escuros e um véu preto.
Até onde ele sabia, ela podia ter dado uma de Garota Exemplar e provocado os ferimentos ela mesma. Nunca colocara a mulher no campo da patologia antes, mas talvez tivesse subestimado a loucura dela.
– Muito bem. Estou a caminho. Chego na sua fazenda em vinte minutos.
Desligando, ouviu-se dizer:
– Tenho que ir.
– Lane, o que está acontecendo?
Os pratos do lindo jantar que tinham partilhado ainda estavam sobre a mesa, as almofadas do sofá afundadas no lugar em que ele estava recostado, alisando as pernas dela.
No entanto, tais momentos já pareciam pertencer a um passado muito, muito distante.
– Vou cuidar do assunto – ele disse. – Vou dar um jeito. Ela está mentindo. De novo, ela está mentindo.
– O que posso fazer para ajudar?
– Fique aqui. E não ligue o rádio. Ligo assim que puder para explicar tudo. – Segurou o rosto dela entre as mãos. – Eu te amo. Preciso que acredite. Preciso que se lembre disso. E vou cuidar de tudo, juro pela vida da minha mãe.
– Você está me assustando.
– Vai ficar tudo bem. Prometo.
Dito isso, saiu da casa dela.
Em disparada.
QUARENTA E DOIS
Enquanto o Porsche de Lane voava pela escuridão que se avolumava, Lizzie ficou por um bom tempo sentada onde ele a havia deixado. Só conseguia pensar que não deveriam estar surpresos. Chantal Baldwine não era flor que se cheirasse, e de jeito nenhum ela perderia sua posição social e o acesso ao estilo de vida dos Bradford sem lutar bastante.
Portanto, o que quer que fosse aquilo seria apenas o começo.
Pondo-se de pé, juntou os pratos e pensou que não era bem assim que tinha imaginado sua noite.
Mas talvez ele ainda voltasse. Tinha deixado a mala ali.
Maldita seja Chantal.
De volta à cozinha, deixou tudo na pia e despejou um pouco de detergente sobre a bagunça, depois abriu a torneira de água quente.
Então seu celular tocou sobre a bancada.
– Graças a Deus – disse, esticando a mão sobre os azulejos. – Lane? Pode me contar o q…
– Lizzie? Você está em casa?
– Greta? – Havia um zumbido na ligação, como se a mulher estivesse ao volante. – Greta? Não estou conseguindo te ouvir direito.
– … em casa?
– Sim, sim, estou em casa. Você está bem?
– … a caminho – buzz, brrrr, quick – … em dez minutos.
– Ok, mas não vou terminar de cortar os galhos agora. Já quase anoiteceu e, pra falar a verdade, não estou com vontade…
– … o telefone.
– O que foi?
A interferência sumiu e o sotaque carregado se fez alto e claro: – Você prrecisa desligarr o telefone.
– Por quê? Não. – Lane poderia telefonar. – Olha só, não estou com muita vontade de ter companhia e…
Houve um estalido alto e a ligação foi interrompida.
– Maravilha.
Enfiando o celular no bolso, voltou para junto da pia, lavou os pratos e os talheres, secou e guardou tudo.
Estava na sala de estar, sentada no sofá, folheando nervosamente a última edição da revista Garden & Gun, quando luzes de faróis brilharam na frente da sua casa e os pedriscos da sua entrada fizeram barulho.
Pondo-se de pé, ajeitou a blusa e deu uma segunda olhada para ver se o seu cabelo não estava todo bagunçado. Não havia motivos para parecer que tinha acabado de sair da cama com Lane.
Ainda mais porque boa parte do sexo que fizeram foi sobre o tapete do corredor. E nas escadas. E de pé no chuveiro.
Ao abrir a porta, ela…
Conforme Greta saía do Mercedes, Lizzie viu que o rosto de sua colega estava muito sério e que ela tinha os ombros encurvados. E ela parecia estar enxugando lágrimas debaixo daqueles óculos.
– Ai, meu Deus – disse Lizzie. – Aconteceu alguma coisa com seus filhos?
A mulher não respondeu, apenas subiu até a varanda e entrou direto na casa. Lizzie a seguiu, fechando a porta.
– Greta?
Ela deu uns passos. Depois parou, por fim.
– Você esteve com ele ontem à noite?
– O que disse?
– Lane. Só… Apenas diga, esteve ou não? A noite inteirra?
– Do que você está falando?
– Chantal está acusando Lane de surrá-la a ponto de mandá-la parra o hospital.
– O QUÊ?
E foi assim que ficou sabendo de tudo. Chantal. O hospital. A polícia. A imprensa.
Lane.
Quando Greta finalmente se calou, Lizzie se deixou cair sobre uma cadeira, às cegas.
– Eu…
– Aquele homem pode serr um monte de coisas – disse Greta –, mas nunca soube de ele terr levantado a mão parra uma mulherr.
– Claro que não. Deus, não. Absolutamente não.
– Ele ficou aqui ontem à noite?
– Ficou. Cheguei em casa durante a tempestade e ele já estava aqui. E não foi embora até hoje de manhã para levar a senhorita Aurora para a igreja. – Levantou-se de um salto. – Tenho que ajudá-lo! Tenho que contar à polícia que ele estava comigo e…
– Tem mais uma coisa.
– Pode me levar? Estou tão atarantada que acho que eu não deveria…
– Lizzie.
Ante o seu nome, ela parou, um medo gélido se instalando em seu peito.
– O quê…?
Agora os olhos de Greta estavam ficando marejados.
– Sinto muito.
– O quê? Fale de uma vez antes que a minha cabeça exploda!
– Chantal está grrávida. E ela disse à polícia… que Lane é o pai.
Lizzie piscou enquanto tudo freava de repente: seus pensamentos, seu coração, seus pulmões… até mesmo o tempo e as leis da física.
– Ela disse que é porr isso que ele bateu nela. Quando ela contou. Ela disse que ele ficou furrioso.
Uma onda de náusea a atingiu no meio do estômago. Mas não… Não, ela não poderia estar revivendo tudo. Não poderia estar exatamente na mesma situação com Chantal e Lane.
Já vivi isso, ela pensou. Já vivi esse pesadelo.
Deus, não. Por favor, não.
– Quando… – Lizzie pigarreou. – Quando ela procurou a polícia?
– Logo cedo. Lá pelas nove ou dez.
Se estivesse muito machucada, não esperaria para ser receber cuidados médicos, Lizzie pensou.
Se a mulher estava grávida, e contou a ele quando ele voltou para Easterly… ele poderia muito bem…
Com uma náusea absurda, Lizzie fugiu para o corredor e mal chegou ao banheiro a tempo antes de vomitar todo o lombo.
Quando chegou à fazenda de Samuel T., Lane estava tão irado que poderia morder latas e cuspir pregos.
Afundando o pé no freio, parou diante da mansão do amigo e quase deixou o motor ligado ao sair.
Samuel T. abriu a porta antes de ele dar a volta no carro.
– Liguei para o Mitch. Ele vai estar aqui em quarenta e cinco minutos, sem viatura. Não querem esperar para te levar para interrogatório, mas vão te deixar entrar por uma porta lateral. Ninguém com câmera tem acesso a essa parte, então vai ficar tudo bem.
Lane passou pelo cara.
– Isso é a mais absoluta mentira! Ela é louca e vai… – Ele parou e ficou confuso ante o olhar do amigo. – O que foi? Por que está olhando assim para mim?
Em vez de responder, Samuel T. esticou a mão e segurou o braço de Lane.
– Como conseguiu todos esses arranhões nas suas mãos, nos braços, no rosto e no pescoço?
Lane olhou para si mesmo.
– Jesus Cristo, Sam, isso foi de ontem à noite. Fui para a casa da Lizzie e um galho caiu no carro dela. – Quando o amigo apenas o encarou, ele perdeu as estribeiras. – Ela pode testemunhar, se quiser. Eu a tirei daquele maldito Yaris. Pensei que ela tivesse morrido.
– Você está saindo com ela de novo?
– Sim, estou.
– E acha que ela vai querer te ajudar quando descobrir que Chantal está grávida de um filho seu? De novo? Vocês dois não passaram por todo esse drama dois anos atrás?
Lane sentiu noventa por cento do seu sangue abandonar a sua cabeça.
– Não é meu, Sam. Eu te disse quando assinei todos aqueles papéis. Não estive com Chantal desde que fui embora.
– Não é o que ela contou para a polícia. Ela disse que tem ido e vindo de Manhattan no último ano, tentando fazer o relacionamento de vocês dar certo.
– Não é meu. – Ele abaixou a voz, mesmo não havendo mais ninguém por perto. – É do meu pai.
Foi a vez de Samuel T. ficar chocado.
– Do seu… pai?
– Você ouviu.
– Tem certeza?
– Tenho, falei com os dois.
Samuel T. tossiu no punho fechado.
– Sabe, essa sua família é uma coisa do outro mundo.
– É o que as pessoas me dizem. – Lane cruzou os braços sobre o peito. – Posso me submeter a um teste de detecção de mentiras. Juro sobre a Bíblia… Inferno, eles deveriam verificar debaixo das unhas dela. Não vão encontrar nada de mim nela. Nem dentro dela. Não toquei nela, Sam.
– Ela disse que tem uma testemunha.
– Rá! Só nos sonhos dela. Diabos, ela mesma deve ter feito isso consigo…
– É uma criada chamada Tiffany.
Lane se retraiu.
– Uma criada? Tiff… Espere, é “p-h-a-n-i-i”?
Visualizou a moça das toalhas, que se apresentara com aquele olhar de interesse.
Samuel T. deu de ombros.
– Não sei como se soletra o nome dela. Ainda tenho que ver os detalhes com Mitch. Mas a mulher disse que ouviu você e Chantal discutindo, e que você a ameaçou. E, segundo a criada, você jurou “acabar com a vida dela”.
– Eu nunca disse isso!
– Vocês estavam no segundo andar e a criada apareceu no meio da discussão.
– Ela está mentindo… – Lane parou e meneou a cabeça, uma lembrança retornando. – Espere, não, não. Não foi assim, eu disse isso porque Chantal havia desrespeitado a senhorita Aurora. Fiquei irritado. Mas não falei pra valer.
Samuel olhou para os cortes nos braços dele.
– Vou ser bem franco. Você parece ter respostas bem convenientes…
– É a verdade! Não estou inventando nada!
– Escuta só, não quero brigar com você.
– Samuel T. – ele disse, num tom controlado. – Você já me viu ser violento? Ainda mais com uma mulher?
Samuel T. o encarou longamente. Depois, levantou as mãos.
– Não, nunca o vi assim. E quero acreditar em você, quero mesmo. Mas mesmo que esteja dizendo a verdade, temos dois problemas aqui: um legal e outro publicitário. A parte legal pode ser facilmente resolvida, caso Lizzie testemunhe a seu favor e não houver nenhuma evidência forense no seu corpo ou no de Chantal. Agora, o problema publicitário será muito mais difícil de controlar. A notícia vai se espalhar, Lane. Ainda mais se você estiver certo e o seu pai tiver um filho com a sua esposa. Diabos, isso vai virar notícia nacional… E você sabe como a imprensa nunca deixa a verdade atrapalhar uma boa história. E esse tipo de coisa afeta o preço das ações e o valor intrínseco dos produtos da sua família. Não estou dizendo que seja certo, mas é a realidade. Você é a Cia. Bourbon Bradford. A sua família é a Cia. Bourbon Bradford. Posso ter conseguido apagar a passagem da sua irmã pela cadeia, mas isso aqui… Não tem como. A história já está no noticiário local.
Lane andou em círculos no átrio da casa do amigo. Depois olhou para ele.
– Falando em família, você tem bourbon nesta casa?
– Sempre. E só me sirvo do melhor, portanto é um Bradford.
Lane pensou em Mack e nos silos fechados. E depois no pai… E em tudo o que o homem tinha aprontado.
– Veremos por quanto tempo mais – Lane murmurou.
QUARENTA E TRÊS
Seis horas mais tarde, enquanto ainda estava na sala de interrogatórios da delegacia do condado, Lane tentou ligar para o celular de Lizzie pela sexta vez, e concluiu que ela devia ter ficado sabendo da situação. Talvez alguém tivesse ligado para ela. Ou, quem sabe, ela tinha ligado o rádio, pois não tinha televisão.
Inferno, talvez alguém tivesse colocado uma placa luminosa no centro de Charlemont e ela conseguia ver lá de Indiana.
– Estamos quase terminando aqui – Samuel T. disse quando voltou à saleta cinza. – A boa notícia é que você foi rebaixado a apenas uma pessoa de interesse, mas as coisas ainda vão ficar no limbo até a investigação ser concluída. Mas, pelo menos, agora você pode voltar para casa e não vai ser fichado.
Lane desligou o telefone e esfregou os olhos cansados. Tinham lhe entregado a carteira e o celular uns quinze minutos antes, e a primeira coisa que fez foi tentar falar com Lizzie.
Visto a maneira como saíra da casa dela, não havia a menor possibilidade de ela não atender, caso quisesse falar com ele.
Evidentemente, ela não tinha interesse nenhum em ouvir a sua versão dos fatos.
– Quanto tempo mais? – perguntou, esfregando a cabeça dolorida. – Posso ir embora agora?
– Quase. Só estamos verificando com o promotor público, que, por acaso, é um companheiro meu de caçada. – Samuel T. se sentou. – Sei que é politicamente incorreto, mas graças a Deus a rede de amizades masculinas ainda vai muito bem, obrigado, nesta cidade. Ou você estaria sendo submetido a uma revista pessoal neste exato minuto.
– Você faz milagres – Lane disse, entorpecido.
– Ajuda o fato de a história de Chantal ter alguns buracos. Ela, evidentemente, estava trabalhando sozinha quando teve essa brilhante ideia. Quem é que toma banho logo depois de ser atacada? E toma tanto cuidado para limpar as unhas quebradas? Não faz o mínimo sentido. E também há o pequenino detalhe de ela ter ligado tanto para a imprensa quanto para dois canais de TV… do leito hospitalar.
– Eu te disse. – Olhou para o telefone para ver se Lizzie tinha retornado a ligação sem ele perceber. – Essa aí está arruinando a minha vida.
– Não se eu puder impedir.
Lane tentou falar com Lizzie pela sétima vez. Depois abaixou o celular.
– Como ela estava? Chantal, quero dizer. Quando chegou ao hospital.
– Tem certeza de que quer ver as fotos?
– Tenho, preciso saber a gravidade da situação.
Samuel T. voltou a se levantar.
– Vou ver o que posso fazer.
Enquanto a porta da sala de interrogatórios se abria e se fechava uma vez mais, Lane ficou mexendo no telefone. Pensou em mandar uma mensagem de texto, mas duvidou que fizesse alguma diferença.
Inacreditável. Literalmente, custava a acreditar que aquilo estivesse acontecendo de novo com ele: duas mulheres, as mesmas palavras… onde isso ia parar?
Estava morrendo de medo de já ter a resposta. Lizzie o excluíra uma vez. Claramente, era daquela maneira que ela pretendia lidar com o assunto de novo.
Samuel T. voltou uns dez minutos depois com um envelope pardo.
– Aqui está.
Lane o pegou e levantou a aba. Segurou quatro fotos, e franziu a testa ao ver a de cima.
Dois olhos roxos. Hematomas dos dois lados do rosto. Marcas de estrangulamento no pescoço.
– Isso é muito ruim – disse com voz partida. – Jesus…
Ele não sentia o menor afeto por Chantal, porém não gostava de ver ninguém naquelas condições, ainda mais uma mulher. E ele ponderou que não havia como ela ter feito aquilo sozinha. Alguém devia ter batido nela, repetidamente e com força.
Será que ela pagou para que alguém fizesse aquilo?, ficou imaginando.
A segunda e a terceira fotos eram close ups. A quarta…
Lane voltou para a terceira. Aproximando-se, estudou um detalhe na face, um corte profundo debaixo do olho.
De repente, deixou as fotos na mesa e se recostou na cadeira, fechando os olhos.
– O que foi? – Samuel T. perguntou.
Demorou um pouco para ele poder responder. Mas, por fim, virou a foto e apontou para o corte aberto na face de Chantal.
– Meu pai fez isso com ela.
– Como você sabe?
Com uma claridade impressionante, Lane se lembrou mais uma vez daquela terrível noite de Ano Novo, quando era criança e seu irmão mais velho foi surrado.
– Quando ele batia em Edward, o anel de sinete deixava exatamente essa marca. O meu pai estapeava com o dorso da mão… e o ouro provocava o corte.
Samuel T. xingou baixinho.
– Está falando sério?
– Muito sério.
– Espere um instante, deixe-me ver se consigo fazer o investigador voltar. Eles vão querer saber disso.
Enquanto dirigia para o trabalho, ao romper do dia, Lizzie não conseguiu deixar de se lembrar daquele mesmo trajeto poucos dias atrás, quando a ambulância a ultrapassou antes da colina para Easterly.
Sentia o mesmo mau presságio de então. E o mesmo medo de ver Lane.
Nada de rádio ligado desta vez. Não queria se arriscar a ouvir a estação local com a grande notícia sobre como um dos mais proeminentes homens de Charlemont tinha mandado sua esposa gestante para o hospital. Detalhes adicionais sobre a situação não mudariam a história, e ela já estava se sentindo bem mal com tudo aquilo.
Passando pelo portão principal da PFB, tomou o caminho dos empregados e seguiu em meio a campos abertos e estufas até o estacionamento na parte superior. Era tão cedo que não havia mais ninguém por perto, nem mesmo Gary McAdams.
Era assim que tinha planejado.
No piloto automático, manobrou sua caminhonete e se virou para trás para pegar a bolsa.
– Droga.
Deixara-a em casa. O que significava que ficaria sem óculos de sol, protetor solar, nem chapéu.
Tanto faz. Não voltaria para casa.
E devia ser muito bom o fato de também estar sem telefone. Lane não parara de ligar desde as quatro da manhã.
A caminhada até a porta dos fundos de Easterly levou algum tempo, e ela refletiu se não era apenas um indício do seu cansaço. Depois que Greta finalmente foi embora lá pela uma da manhã, ela ficou acordada vendo o nascer do sol acima da bagunça do quintal.
Uma metáfora da sua vida.
Entrando na cozinha, encontrou a senhorita Aurora diante do fogão.
– Bom dia – disse, com o que esperava ser sua voz normal. – Viu o senhor Harris?
A senhorita Aurora girou os ovos com a sua espátula.
– Ele está no quarto. Não tenho nenhum pedido da família hoje, então isso aqui é para mim, para você e para quem estiver por perto. Levo tudo para a saleta de descanso em dez minutos.
– Desculpe, mas tenho que…
– Te vejo lá.
Lizzie inspirou fundo.
– Vou tentar ir.
– Faça isso. – A senhorita Aurora olhou por sobre o ombro, seus olhos negros reluziam. – Senão, vou ter que ir atrás de você e falar até você entender que a gente não pode acreditar em tudo o que ouve.
Abaixando os olhos, Lizzie saiu da cozinha e foi até a porta do senhor Harris. Antes de bater, olhou para a de Rosalinda. Uma fita isolante fora colocada em toda a volta da porta, assim como uma amarela de “atenção” entre os batentes.
Mais uma cena de crime na casa, pensou. Como será que está o quarto de Chantal?
O mordomo abriu a porta e recuou um passo.
– Senhorita King?
Lizzie se recompôs.
– Ah, desculpe… Hum, preciso falar com o senhor.
Ele franziu a testa, mas algo na postura dela deve ter afetado sua atitude pomposa.
– Entre, por favor.
Previsivelmente, a decoração era bastante inglesa, com todo tipo de livros com capa de couro, cadeiras antigas e artigos orientais preenchendo os espaços. Além da área de estar, havia uma cozinha embutida e, como nos aposentos da senhorita Aurora, na parte oposta havia uma porta fechada, onde ela imaginava que deviam ficar o quarto e o banheiro dele.
O cheiro era agradável, cítrico e de limpeza, nada abafado.
– Estou apresentando o meu pedido de demissão – disse abruptamente. – Com duas semanas de aviso prévio. Eu teria informado Rosalinda, mas…
O senhor Harris a encarou por um momento; depois se afastou e se sentou atrás de uma escrivaninha entalhada. Havia uma pilha de papéis sobre o tampo, mas nenhum computador.
– É uma surpresa.
– Está no meu contrato. Só preciso avisar duas semanas antes.
– Posso perguntar o motivo?
– Apenas uma mudança de objetivos. Tenho cogitado já há algum tempo.
– De fato. – Ele cruzou as mãos. – Então isso não está nada relacionado aos noticiários da noite passada?
– Lamento muito que a família tenha que lidar com assuntos tão desagradáveis.
O senhor Harris ergueu uma sobrancelha.
– Não há nada que eu possa fazer para convencê-la a ficar?
– Já tomei minha decisão, mas obrigada.
Ela saiu depois disso, voltando para o corredor e fechando a porta atrás de si. Sozinha, piscou para afastar as lágrimas, erguendo a cabeça enquanto rezava para que o nariz não começasse a escorrer.
Dentre todas as maneiras que imaginara sair um dia de Easterly, nada nunca se parecera com aquilo. Mas não havia volta. Chegara à decisão de se demitir enquanto ela e Greta acabavam com um litro de sorvete de flocos, depois do seu primeiro acesso de choro e antes do segundo.
No fim, não acreditava que Lane tivesse machucado Chantal daquela maneira, era simplesmente impossível. Mas a questão não era essa.
Não importava se a mulher estava ou não grávida, ou quem seria o pai, caso ela estivesse mesmo.
A verdade nua e crua era que, depois de quase uma década com aquela família, Lizzie percebeu que eles eram diferentes de uma maneira fundamental, e não porque os Bradford tinham mais dinheiro do que ela conseguiria ver em toda a sua vida. A questão era que, de onde ela vinha, as pessoas se casavam e tinham filhos, planejavam suas aposentadorias, saíam de férias uma vez ao ano para lugares como Disney ou Sandals. Pagavam seus impostos em dia e comemoravam casamentos e nascimentos com festas triviais, e não traíam seus maridos e suas esposas.
Tinham vidas dignas e modestas, sem serem afetadas pelos dramas loucos que aconteciam com os Bradford.
E a questão era que, por mais que se sentisse atraída por Lane – diabos, talvez se sentisse atraída pela mesma loucura que a repelia –, ela simplesmente não tinha mais as forças e os recursos para continuar com ele de qualquer maneira possível. Tinha se apaixonado rápido demais, intensamente e, assim como no passado, o que ele trouxe para a sua vida foi um buraco no estômago, mais noites insones… e uma sensação de profunda tristeza.
Alguns riscos é melhor não correr. Doenças, acidentes ou outros tipos de tragédias são imprevisíveis… nem sempre é possível reduzir as chances de se machucar, porque estamos vivos, e é a realidade dos seres vivos neste planeta.
Já para outros problemas, questões ou perigos, havia uma certa liberdade para se afastar, para recuar. E quando se é um adulto responsável, que deseja viver uma existência meio que saudável, é uma obrigação cuidar de si próprio, se proteger… amar a si mesmo.
Obviamente, ela não confiava em si mesma para agir com sensatez no que se referia a Lane Baldwine, por isso resolveria o problema da sua falta de autocontrole com a falta de proximidade.
Era hora de partir.
Como uma viciada no período de abstinência, ela simplesmente se afastaria. E não, não pretendia conversar com ele sobre o assunto. Seria o mesmo que um viciado querendo bater papo com uma seringa de heroína. Sem dúvida, Lane apresentaria o seu lado, mas não importava qual fosse, não mudaria o fato de que o coração dela se estilhaçara de novo e que a sua decisão de deixar o trabalho não estava sujeita a negociações.
E agora, ela daria o seu melhor para chegar ao fim do dia.
Descendo até as estufas, entrou na primeira e se sentiu mais do que pronta para trabalhar com as mudas, que no momento nem eram mudas ainda. Mas, antes de seguir para a estação de suprimentos para juntar o necessário, parou e pegou o celular.
O que fez em seguida não levou mais do que um momento.
E, provavelmente, foi uma estupidez.
Mas transferiu 17 mil, 486 dólares e 79 centavos da sua poupança… para a conta da hipoteca.
Terminando de pagar a sua fazenda.
Bom, aquela não devia ser uma decisão muito sensata, considerando-se que a colocaria à venda. O orgulho, contudo, fez com que aquela transação fosse necessária. Orgulho e a sensação de que precisava alcançar o objetivo estabelecido ao comprar aquele lugar.
Sempre quisera algo só seu no mundo, um lar que ela mesma estabelecesse, pagasse e sustentasse, sem a ajuda de mais ninguém.
O fato de agora não ter um centavo sequer era um contrapeso para tudo o que estava sentindo.
Prova de que fracassara completamente ao tentar cuidar de si própria.
Lane voltou a Easterly assim que foi liberado.
Isto é, depois de voltar à casa de Samuel T. para pegar o seu Porsche.
Entrou na propriedade da família pelos fundos, atravessando os campos e as estufas, porque queria evitar a imprensa no portão principal e porque queria saber se Lizzie estava ali.
Estava. A caminhonete marrom da fazenda estava no estacionamento junto aos veículos dos outros empregados.
– Droga – exalou.
Subiu até a garagem, estacionou o carro debaixo da magnólia e foi diretamente para a entrada dos fundos do centro de negócios. Depois de inserir a senha que Edward lhe fornecera, escancarou a porta e foi abrindo caminho até a recepção, cruzando escritórios, a sala de reuniões e a sala de jantar.
Homens e mulheres em ternos levantaram as cabeças, alarmados, mas ele os ignorou.
Não parou até se ver dentro do escritório envidraçado da assistente do pai.
– Vou vê-lo agora.
– Senhor Baldwine, o senhor não pode…
– Até parece que não.
– Senhor Baldwine…
Lane abriu a porta e…
Parou no lugar. O pai não estava atrás da escrivaninha.
– Senhor Baldwine, não sabemos onde ele está.
Lane olhou por sobre o ombro.
– Como assim?
– O seu pai… Era para ele ter viajado hoje de manhã, mas ele não apareceu no aeroporto. O piloto o esperou por uma hora.
– Você ligou para a casa, claro.
– E para o celular dele. – A mulher cobriu a boca com a mão. – Ele nunca fez isso antes. Ninguém na mansão o viu.
– Merda.
Bom Deus, o que fazer agora?
Enquanto Lane saía do escritório, a voz da assistente o acompanhou.
– Pode, por favor, pedir que ele ligue para mim?
De volta à luz matutina, disparou na direção da porta da cozinha de Easterly. Assim que entrou, passou pelas bancadas de aço inoxidável e empurrou a porta que dava para o corredor dos empregados. Subiu a escada dos fundos de dois em dois degraus, quase atropelando uma criada que passava aspirador no corredor do segundo andar.
Passou pelo seu quarto e pelo de Chantal.
Chegou ao do pai.
Parou diante da porta e pensou que não estava pronto para um “Rosalinda, parte II” com seu próprio pai. Não por não desejar ver o cadáver de um dos seus progenitores.
Não, era mais porque, se o homem precisasse de um caixão, Lane queria se responsabilizar por colocar a cabeça do maldito sobre o travesseiro acolchoado.
Abriu a porta.
– Pai! – exclamou. – Onde você está?
Marchando quarto adentro, aguçou os ouvidos e fechou a porta atrás de si – só para o caso de o homem estar vivo. Pois iria machucar o filho da puta, que os céus o ajudassem, mas estava preparado para machucá-lo muito.
Chantal podia ser uma vadia e uma mentirosa, mas nenhuma mulher merecia apanhar. Não importavam as circunstâncias.
– Onde diabos você está? – exigiu saber ao abrir a porta do banheiro.
Quando não encontrou a toalha sobre o box do banheiro, refez seus passos e foi para o closet.
Nada ali também.
Não, espere.
A mala do pai, aquela com monograma que ele costumava usar, estava aberta e parcialmente cheia. Mas mal arrumada. As roupas estavam mal acomodadas, jogadas às pressas por alguém com pouca experiência em fazer aquele tipo de tarefa.
Vasculhando o conteúdo, Lane não percebeu nada de extraordinário.
Mas notou que o relógio predileto do pai, o Audemars Piguet Royal Oak, não estava junto aos perfilados na gaveta forrada. E a carteira também estava faltando.
Retornando para o quarto, perscrutou a mobília, os livros, a mesa, mas não fazia ideia se havia algo fora do lugar. Estivera ali apenas um punhado de vezes… e não voltava havia uns belos vinte anos.
– O que está aprontando, pai? – perguntou baixinho, no ar parado.
Seguindo seus instintos, saiu, fechou a porta e voltou correndo pelas escadas até o primeiro andar. Levou menos de um minuto para entrar na garagem e contar os carros. O Phantom ainda estava ali, mas faltavam dois Mercedes. Chantal, evidentemente, estava com um.
O pai devia ter saído com o outro.
A pergunta era… para onde?
E quando?
QUARENTA E QUATRO
– Você não pode estar fazendo isso de novo. Vamos lá, acorda.
Edward bateu na mão que o puxava.
– Me deixa em paz.
– Eu não. Tá frio aqui fora e você não vai aguentar.
Edward abriu os olhos lentamente. A luz entrava pela porta aberta da baia no fundo do estábulo, ressaltando a poeira do feno e o perfil de um dos gatos vadios que perambulavam por lá. Uma égua relinchou do lado oposto, e outra coiceou a baia. Ao longe, ele percebeu o ronco de um dos tratores.
Puta merda, como a sua cabeça doía. Mas não era nada comparado ao seu traseiro. Engraçado como uma parte do corpo conseguia estar absolutamente entorpecida e dolorida ao mesmo tempo.
– Você vai ter que se levantar, inferno.
Toda aquela conversa o fez praguejar… e tentar focar a vista.
Ora, ora, vejam só. Havia duas Shelbys falando com ele. Sua nova empregada estava parada de pé como uma professora severa, com as mãos nos quadris estreitos, as pernas cobertas pela calça jeans e os pés com botas afastados, como se estivesse considerando a possibilidade de chutar sua cabeça tal qual uma bola de futebol.
– Pensei que você não falasse palavrão – ele murmurou.
– Não falo.
– Ora, mas acho que você acabou de falar.
Os olhos dela se estreitaram.
– Você vai se levantar ou vou ter que te varrer para fora daqui com o resto da sujeira?
– Você não sabia que “inferno” é apenas o primeiro passo? É como maconha. Sem se dar conta, logo, logo, você vai estar lançando bombas de “cacete” a torto e a direito.
– Tudo bem. Pode ficar aí. Espera pra ver se me importo.
Quando ela se virou para sair, ele a chamou.
– Como foi o seu encontro ontem à noite?
Ela girou sobre os calcanhares.
– Do que você tá falando?
– Com o Moe.
Dito isso, ele se esforçou para se erguer do piso de concreto do estábulo. Quando não conseguiu, ela levantou uma sobrancelha.
– Sabe, acho que vou mesmo te deixar aí.
Acima da cabeça dele, Neb relinchou, como se estivesse rindo.
– Não pedi a sua ajuda – Edward disse entre dentes.
Sem aviso, sua mão escorregou e seu corpo se chocou no concreto com tanta força que seus dentes bateram.
– Você vai acabar se matando – ela resmungou ao marchar de volta.
Shelby o ergueu com todo o cuidado que alguém dispensaria com uma forquilha caída, mas ele tinha que dar a mão à palmatória. Mesmo ela chegando apenas na metade do peito dele, era forte o suficiente para levá-lo pelo corredor, para fora do estábulo, e pela grama até o chalé.
Uma vez lá dentro, ele indicou sua poltrona com a cabeça.
– Ali já está…
– Você vai ficar com hipotermia. Isso não vai acontecer, não.
Em seguida, ele a viu sentando-o sobre o vaso sanitário e começando a aquecer a água da banheira.
– Pode deixar comigo a partir daqui – ele disse, pendendo para o lado e deixando que ela o segurasse. – Obrigado.
Ele estava fechando os olhos quando ela lhe deu um tapa.
– Acorda.
O ardor da batida o fez despertar e esfregar a face.
– Gostou de fazer isso?
– Gostei. E posso fazer de novo. – Enfiou uma escova de dentes na boca dele. – Use isso.
Era difícil falar com aquela maldita coisa na boca, portanto ele obedeceu, limpando o lado esquerdo, o direito, a frente e as partes inferiores. Depois se inclinou sobre a pia e cuspiu.
– Não está tão frio assim – ele disse.
– Como é que você sabe? Está pra lá de bêbado.
Na verdade, não estava, não. E isso era parte do problema. Pela primeira vez em muito tempo, ele não tinha tomado nenhuma bebida alcoólica na noite anterior.
– O que está fazendo? – ele perguntou quando as mãos dela se apossaram da sua malha.
– Tirando a sua roupa.
– É mesmo?
Enquanto ela se ocupava com as roupas dele, ele olhou para o corpo dela. Era difícil ver grande coisa, já que ela estava com uma blusa larga de moletom, então ele resolveu esticar a mão e testar a cintura dela.
Ela parou. Recuou.
– Não estou interessada.
– Então por que está tirando as minhas roupas?
– Porque os seus lábios estão roxos.
– Desliga isso. – Ele apontou para a torneira. – Assumo daqui.
– Você vai se afogar.
– E daí? Além do mais, não quero que você veja o que tenho debaixo da roupa.
– Vou ficar esperando lá fora, perto da sua poltrona.
– Ah, maravilha – ele disse baixinho.
Ela fechou a porta ao sair, e ele não fez mais nada. Só se encostou na parede e ficou olhando para a água fumegante.
– Não estou ouvindo barulho de água – ela comentou do lado de fora.
– Não está fundo o bastante ainda para eu nadar.
Toc. Toc. Toc.
– Entre logo, senhor Baldwine.
– Esse é o meu pai. E ele é um idiota. Atendo por Edward.
– Cale a boca e entre na banheira.
Mesmo na névoa do seu estupor, ele sentiu algo chamejar por ela. Achou que fosse respeito.
Mas quem se importav…
Bum, bum, bum!
– Você vai acabar derrubando a maldita porta – ele exclamou acima de todo aquele barulho. – E pensei que você não quisesse me ver nu.
– Água. Agora! – ela ralhou. – E não quero mesmo, mas melhor do que te encontrar morto.
– É apenas uma questão de opinião, minha cara.
No entanto, por algum motivo inexplicável, ele resolveu fazer como ela mandava.
Apoiando os braços na pia e na parte traseira do vaso sanitário antigo, suspendeu o corpo. Suas roupas eram um estorvo, mas conseguiu tirá-las e logo se colocou na banheira. Estranho, mas a água quente provocou o efeito contrário ao esperado. Em vez de aquecê-lo, fez com que ele sentisse frio, e começou a tremer tanto que criou ondulações na superfície da água.
Cruzando os braços diante do peito, seus dentes tiritaram, e seu coração saltou.
– Você está bem aí dentro? – ela perguntou.
Quando ele não respondeu, Shelby o chamou mais alto: – Edward?
A porta se escancarou e ela invadiu o banheiro como se estivesse preparada para bancar a salva-vidas, resgatando-o de cinquenta centímetros de profundidade de água. E foi horrível… Quando ela o fitou, só o que ele conseguiu fazer foi ficar encarando a água agitada, na esperança de que ela cobrisse suas pernas raquíticas, seu sexo flácido e sua pele branca coberta de cicatrizes.
Ele teve quase certeza de que ela arquejou.
Sorrindo-lhe, ele disse:
– Bonito, não sou? Mas acredite ou não, eu funciono muito bem. Bem, digamos que um pouco de Viagra ajude. Seja boazinha, sim? E me traga alguma bebida… Acho que estou me desintoxicando, e é por isso que estou tremendo tanto.
– Você… – Ela pigarreou. – Você precisa de um médico?
– Não, só de um pouco de Jim Beam. Ou Jack Daniel’s.
Quando ela simplesmente continuou olhando para ele, Edward apontou para a porta aberta.
– Estou falando sério. O que eu preciso é de álcool. Se quer me salvar, vá buscar um pouco. Agora.
Quando saiu do banheiro e fechou a porta, Shelby Landis tinha toda intenção de fazer o que Edward lhe pedira. Afinal, ela tinha muita experiência com alcoólatras, e por mais que não aprovasse nada daquilo, ela levara bebida ao pai milhares de vezes, e isso também costumava ser pela manhã.
Pelo menos, esse era o plano. Só que ela não parecia capaz de se mexer, de pensar… sequer de respirar.
Não estava preparada para ver aquele homem lá dentro, com a cabeça pensa como se ele tivesse vergonha de ser magro demais, do seu corpo alquebrado, do seu orgulho masculino tão esfarrapado e maltratado quanto suas carnes. Um dia ele fora uma grande força; seu pai tinha lhe contado histórias sobre o domínio de Edward nos negócios, nas pistas, na sociedade. Puxa, ouvira falar dos Bradford desde que era criança. Seu pai se recusava a beber qualquer outra coisa que não o no 15 deles, assim como boa parte das pessoas que lidavam com cavalos que ela conhecia.
Levando as mãos ao rosto, sussurrou:
– O que fez comigo, pai?
Por que ele a mandara ali?
Por que…
– Shelby? – exigiu a voz de lá de dentro.
Deus, ele era como seu pai. O modo como Edward pronunciara seu nome com uma pontada de desespero… era exatamente igual ao pai quando estava desesperado por uma bebida.
Fechando os olhos, praguejou bem baixinho. Depois sentiu culpa.
– Perdoe-me, Senhor. Não sei o que estou dizendo.
Ao procurar pelo cômodo, encontrou uma fila de garrafas na parte da frente de uma das prateleiras de troféus, e a ideia de lhe entregar o veneno a deixou nauseada. Mas ele mesmo acabaria saindo e pegando… e provavelmente caindo e batendo a cabeça no processo. Então, em que pé estariam? Além disso, ela sabia como aquelas coisas funcionavam. Aquele tremor terrível não cessaria até que a fera dentro dele fosse alimentada de acordo com sua necessidade, e o corpo dele já parecia tão frágil…
– Já estou indo – disse em voz alta. – O que prefere?
– Tanto faz.
Direcionando-se para as garrafas às cegas, pegou uma de gim e voltou para a porta fechada do banheiro. Não se deu ao trabalho de bater, simplesmente entrou.
– Pronto. – Tirou a tampa. – Pode beber direto do gargalo.
Só que as mãos dele tremiam tanto que não havia um modo de ele conseguir erguer a garrafa sem derrubar tudo.
– Deixa que eu seguro pra você – ela murmurou.
Houve um instante de hesitação por parte dele, mas logo ele ergueu a boca como um potrinho recém-nascido abandonado pela mãe.
E deu umas duas ou três belas goladas.
– Isso sim é que esquenta.
Deixando o gim ao lado da banheira onde ele conseguiria alcançar caso quisesse, ela pegou uma toalha de banho e submergiu na água, atrás dele. Quando ficou encharcada, ela a passou pela protuberância da coluna e das costelas dele. Depois tratou de cuidar da cabeça com uma esponja de banho, molhando o cabelo, alisando-o para trás.
Sem que ele pedisse, ela ergueu a garrafa mais uma vez e ele bebeu, sorvendo direto do gargalo.
Banhá-lo com sabonete e xampu fez com que ela se lembrasse dos cuidados oferecidos a um animal recém-resgatado. Ele estava assustado. Desconfiado.
Meio morto.
– Você precisa comer – ela disse numa voz partida.
Não tenho isso dentro de mim, Senhor. Não vou conseguir fazer isso de novo.
Não conseguira salvar o pai alcoólatra. Perder dois homens numa vida só parecia um fracasso grande demais para superar.
– Vou te preparar o café da manhã depois, Edward.
– Você não tem que fazer isso.
– É – respondeu, rouca –, eu sei.
QUARENTA E CINCO
– Então, vamos repetir tudo de novo?
Ante o som da voz máscula, Lizzie parou no meio do transplante de uma Hedera helix para um vaso novo. Fechando os olhos, inspirou fundo e ordenou às mãos que não tremessem e nem derrubassem nada.
Estava à espera que Lane a procurasse para conversar. Ele não demorou muito.
– E então? – disse ele. – Voltamos aos dias em que você ouve alguma coisa que não gosta e me exclui? Porque se for o roteiro que vamos seguir, e é bem isso o que está parecendo, acho que só me resta subir num avião e voltar para Nova York e pôr um fim à história. Vai ser muito mais eficiente, e não vou acabar com uma conta telefônica quilométrica por deixar mensagens na sua caixa postal.
Forçando as mãos a continuarem a trabalhar, enfiou as raízes no buraco que cavara no vaso e começou a transferir terra nova para enchê-lo.
– Algo que eu não queria ouvir – ela repetiu. – Sim, acho que podemos dizer que descobrir que a sua esposa está grávida de novo é uma notícia que eu preferiria não ouvir. Especialmente porque fiquei sabendo logo depois de termos feito sexo. Em seguida, veio a notícia maravilhosa de que você estava sendo preso por mandá-la para o pronto-socorro.
Quando ele não respondeu, ela se voltou na direção dele. Lane estava parado na entrada da estufa, junto à estação de trabalho em que Greta deveria estar, caso Lizzie não tivesse avisado à mulher que precisava ficar um tempo sozinha.
– Acha mesmo que eu seria capaz de fazer uma coisa do tipo? – ele perguntou num tom baixo.
– Não cabe a mim decidir nada disso. – Ela voltou a se concentrar no que estava fazendo e odiou as próprias palavras. – Mas uma coisa que eu posso dizer é que o melhor indicador de um futuro comportamento é o modo como a pessoa se comportou no passado. E eu não posso… Não posso mais fazer isso com você. Não importa se os boatos são verdadeiros ou não, não é essa a questão.
Depois de colocar a terra nova, ela pegou o regador e o inclinou sobre o vaso de trepadeira. Em três meses, a planta estaria pronta para ser levada para o lado externo, para o muro ou para um dos vasos do terraço. Tinham muita sorte com aquela variedade, mas era bom planejar reposições antes que elas fossem necessárias.
Limpando as mãos na frente do avental, virou-se para ele.
– Entreguei meu pedido de demissão. Portanto, não precisa se preocupar em voltar para Nova York.
Não teve dificuldades para sustentar o olhar dele. Para encará-lo. Enfrentá-lo.
É incrível como você fica determinado com os outros quando sabe em que pé está.
– Você acha mesmo que eu faria aquilo com uma mulher? – ele repetiu.
Claro que não, ela pensou. Mas permaneceu em silêncio porque sabia que, se quisesse mesmo que ele a deixasse em paz, a insinuação feriria seu orgulho masculino e isso, infelizmente, agiria em seu favor.
– Lizzie, responda.
– Não é da minha conta. Não é.
Depois de um instante, ele assentiu.
– Ok. Muito justo.
Quando ele se virou e se dirigiu para a porta, ela teve que admitir que ficou um pouco surpresa. Esperava ouvir algum tipo de explicação demorada. Uma torrente de persuasão da qual ela teria que se esquivar. Algum tipo de “Eu te amo, Lizzie, de verdade”.
– Desejo tudo de bom para você, Lizzie – ele disse. – Cuide-se.
E foi… só isso.
A porta se fechou sozinha. E, por uma fração de segundo, ela sentiu o impulso absurdo de ir atrás dele e gritar na sua cara que ele era um cretino colossal por tê-la seduzido do jeito como seduziu, que era um mau caráter, que era exatamente quem ela temia que ele fosse, um usurpador de mulheres, um mentiroso, um elitista enganador e sádico que não saberia…
Lizzie forçosamente se afastou desse precipício.
Se aquela despedida significava alguma coisa, o fato de ela permanecer ou não na vida dele parecia não importar nem um pouco para ele.
Bom saber disso, ela pensou com amargura. Bom saber.
Colocando-se atrás do volante do 911, Lane pensou que havia momentos na vida em que, por mais que você quisesse lutar, era melhor simplesmente desistir.
Você não precisava gostar do fracasso.
Não tinha que se sentir maravilhoso com relação ao resultado das coisas.
E, por certo, não se afastava de tudo sem arranhões, sem ficar seriamente ferido pela perda, aleijado, até.
Mas você precisava abrir mão de tudo, porque desperdiçar energias não o levaria a parte alguma, e você poderia muito bem já ir se acostumando com a perda.
Era a única lição que o seu relacionamento com o seu pai lhe ensinara. Se ele teria apreciado a presença de uma figura masculina que pudesse admirar, se espelhar, se orgulhar e sentir respeito? Sim, claro. Teria sido maravilhoso não crescer numa casa onde o som de chinelos sobre o piso de mármore ou o cheiro de cigarro não o obrigasse a procurar um lugar para se esconder. Óbvio. Poderia ter se beneficiado de conselhos paternos, ainda mais em tempos como aquele?
Sim, poderia.
Entretanto, não foi assim para ele. E ele teve que se acostumar com isso para não enlouquecer negociando com um fracasso que jamais conseguiria mudar ou melhorar.
Seguindo o mesmo raciocínio, se Lizzie King de fato acreditasse que havia a mínima possibilidade de ele ter botado as mãos numa mulher daquela forma, que ele tivesse mentido descaradamente a respeito de Chantal, que qualquer bebê que aquela mulher tivesse pudesse ser seu… então não havia esperanças para eles dois. Não importaria o que ele lhe dissesse ou como tentasse explicar as coisas… ela não o conhecia de verdade e, mais importante, não confiava nele.
E o fato de aquilo tudo ser uma mentira, de Chantal, mais uma vez, ter lhe roubado a mulher que ele amava…
Bom, a vida é dura.
Buá, buá, buá.
Peça um pai novo para o Papai Noel. Peça à Fada do Dente que te dê uma nova ex-esposa.
Tanto faz.
Deixando Easterly, entrou na estrada e dobrou o limite de velocidade a caminho do Aeroporto Internacional de Charlemont, não porque estivesse com pressa ou atrasado, mas porque podia. O carro aguentaria o tranco e, naquele exato instante, ele estava sóbrio e no controle.
A entrada para as chegadas e partidas particulares era a primeira saída do caminho que cercava a enorme construção. Lane estacionou à direita das portas duplas e deixou o motor ligado.
Jeff Stern já estava próximo do espaço luxuoso. Só tinham se passado poucos dias, mas parecia um século desde aquele jogo de pôquer em que a loira burra o incomodava, quando ele se levantou para atender ao telefone.
Como era de se esperar, seu colega de apartamento estava vestido como o homem de Wall Street que era: óculos, terno escuro e camisa branca engomada. Até estava com a poderosa gravata vermelha.
– Poderia ter vindo de bermuda – Lane comentou quando se cumprimentaram batendo as mãos.
– Estou vindo do escritório, idiota.
Aquele sotaque, ao mesmo tempo estranho e familiar, era exatamente o que ele precisava naquele instante.
– Deus, você está com uma aparência péssima – Jeff comentou, enquanto sua bagagem chegava num carrinho. – A vida familiar evidentemente não combina com você.
– Não a minha, pelo menos. Me diz uma coisa, o seu avião ainda está aqui?
– Não por muito tempo. Está sendo reabastecido. Por quê? – Quando Lane apenas olhou para a pista, o amigo praguejou. – Não. Não, não, não, não, não. Você não me arrastou para cá, abaixo da Mason-Dixie, para atender um alarme falso e agora quer voltar para Manhattan. Sério, Lane.
Por um instante, Lane hesitou. Queria ficar, só para ferrar o pai em múltiplas instâncias, mas também queria partir, porque estava cansado de tanta insanidade.
Parecia que ele e Lizzie, no fim, tinham algo em comum.
Os dois queriam se afastar.
– Lane?
– Vamos – convidou, dando uma gorjeta para o carregador e pegando as duas malas de couro do amigo. – Quando foi a última vez que veio a Easterly?
– Num Derby, há um milhão de anos.
– Nada mudou.
Colocou as malas no Porsche e saíram de lá, acelerando para longe do aeroporto e entrando na estrada.
– Então, vou ou não conhecer essa sua mulher, Baldwine?
– Provavelmente não. Ela pediu demissão.
– Puxa, que rápido. Lamento muito.
– Não finja que não leu as notícias.
– Pois é, está em todos os lugares. Acho que você é o responsável por ressuscitar os jornais impressos. Parabéns.
Lane praguejou e ultrapassou um carro.
– Não era um prêmio que eu queria, eu garanto.
– Espere um instante. Você disse “se demitindo”? Quer dizer que ela trabalha para a sua família? Isso é tipo Sabrina, meu velho?
– Lizzie é a horticultora-chefe da propriedade. Ou era.
– Não uma simples jardineira, hein… faz sentido. Você odeia mulheres burras.
Lane o encarou.
– Sem ofensas, mas podemos falar sobre outra coisa? Talvez sobre o fato de a minha família estar perdendo todo o seu dinheiro? Preciso me alegrar.
Jeff balançou a cabeça.
– Você, meu amigo, leva uma vida e tanto.
– Quer trocar de lugar? Por que, neste exato instante, estou procurando uma saída.
QUARENTA E SEIS
Naquela noite, Lizzie chegou em casa e não havia nenhuma árvore caída no seu quintal.
Saindo da caminhonete da fazenda, olhou ao redor. O Yaris ainda estava esmagado no mesmo lugar, destroçado, com as janelas quebradas e o interior molhado e cheio de folhas, e parecia ter saído de um jogo de videogame. Mas o galho tinha sumido, e não restava nada além de serragem fresca e perfumada espalhada por lá.
Não ouse, Lane, ela pensou.
Não ouse tentar cuidar de mim agora.
Levantou o olhar e viu que o corte onde o galho se partira do tronco fora feito com cuidado, selado de modo que cicatrizaria e o bordo maravilhoso sobreviveria aos estragos.
– Maldito.
Pelo menos ele tinha deixado o carro no lugar. Se tivesse cuidado disso também, ela teria que procurá-lo para descobrir onde deveria recuperar a carcaça.
Devia ter desconfiado que as coisas entre eles estavam inacabadas.
Ao marchar rumo à varanda, ficou discutindo mentalmente com ele o tempo inteiro… Mas parou no primeiro degrau. Na tela da porta, um bilhete fora afixado à moldura.
Maravilha. Agora isso. Algum tipo de “Agora que nossas cabeças esfriaram, blá-blá-blá…”.
Ele era um homem doentio.
E ela estava agindo bem partindo dali. Por mais que estivesse sofrendo por ir embora, precisava se afastar dele, de Easterly, daquela parte bizarra da sua vida que só podia ser descrita como um pesadelo.
Forçou-se a se mover, subiu e arrancou o papel da porta. Queria jogar fora aquela coisa maldita, mas algum impulso masoquista tornou isso impossível. Abrindo o bilhete, ela…
Olá, vizinha. As vacas se espalharam pelo seu quintal. Estragaram as moitas de flores dos fundos. Como sou péssimo com flores, cuidei da sua árvore. Minha mulher te mandou uma torta. Deixei na bancada.
Buella e Ross
Expirou, sendo acometida por uma onda de exaustão, e em vez de entrar na casa, atravessou a varanda e se sentou no balanço. Empurrando as tábuas do piso com um pé, ficou atenta aos grilos e aos rangidos das correntes afixadas no teto acima da sua cabeça. Sentiu a brisa suave e cálida no rosto e observou as luzes alaranjadas do entardecer criarem sombras alongadas sobre a terra.
Precisava replantar os canteiros…
Não, não precisava.
Bem, pelo menos teria uma bela sobremesa; Buella fazia tortas de outro mundo. Talvez fosse de pêssego. Ou, quem sabe, de mirtilos.
Lizzie se descobriu enxugando os olhos e fitando as lágrimas nas pontas dos dedos.
Era horrível ter que sair dali para se salvar… Era bem parecido com… serrar um galho doente.
Estava dando tudo certo.
Mas Lane tinha que chegar e estragar tudo.
– Foi tudo o que Edward conseguiu tirar de lá – disse Lane ao andar de um lado para o outro no quarto de hóspedes em que acomodara Jeff.
Era a melhor suíte, com vista para os jardins e o rio, e também tinha uma escrivaninha com tampo tão comprido que poderia ser qualificada como balcão de cozinha. Na verdade, um bilhão de anos antes, aqueles aposentos tinham sido do avô de Lane, e depois da morte do homem, nada fora tocado a não ser nas faxinas regulares.
O comentário de Jeff ao entrar foi típico dele. Algo relacionado à possibilidade de a Guerra Civil ter sido comandada de lá.
Contudo, conforme esperado, assim que o cara acessou os dados financeiros, deixou de lado as brincadeiras e se tornou totalmente profissional.
– Bem, já está quase na hora do jantar. – Lane olhou para seu relógio de pulso. – Nos vestimos formalmente. Bem, todos fazem isso, menos eu. Então o seu terno vai estar de acordo.
– Mande me trazer alguma coisa aqui mesmo – Jeff murmurou ao arrancar a gravata, sem despregar os olhos da tela do computador. – E vou precisar de papel e caneta.
– Está querendo me dizer que não quer testemunhar a troca de olhares furiosos entre mim e o meu pai por sobre o suflê? – Sim, porque Lane estava mais do que ansioso para isso. – Você também poderia aproveitar para conhecer o novo e fabuloso noivo da minha irmã. O cara é tão charmoso quanto um tumor.
Quando Jeff não respondeu, Lane andou e espiou por cima do ombro dele.
– Diga-me que isso faz algum sentido para você.
– Ainda não, mas vai fazer.
É o homem certo para este trabalho, Lane pensou ao finalmente se retirar. Já no corredor, descobriu-se encarando a porta do quarto da mãe. Talvez Edward estivesse certo. Talvez se tudo virasse pó, a mãe deles nem ficaria sabendo. Todas aquelas drogas a mantinham encasulada e segura em seu delírio. Algo que, pela primeira vez, estava começando a entender.
Falando nisso, que tal um pouco de bourbon?
Seguindo para as escadas da frente, resolveu que também pularia o jantar. Ainda estava louco de vontade de socar o pai, mas, com Jeff cuidando de tudo, ele tinha, quem sabe, chances muito maiores de pegar o homem de jeito.
E depois seguiria o exemplo de Lizzie e iria embora daquele lugar de uma vez por todas.
Tudo ali era demais, bizantino demais, poluído demais.
Talvez voltasse para Nova York. Ou talvez estivesse na hora de alargar seus horizontes. Quem sabe ir para o exterior…
Lane parou na metade da escada.
Mitch Ramsey e dois policiais estavam parados no átrio de entrada logo abaixo, sem os chapéus. Seus rostos pareciam saídos de um texto de justiça criminal: estavam totalmente impassíveis.
Merda, Lane pensou ao fechar os olhos.
Pelo visto, Samuel T. tinha conseguido tirar vantagem da boa e velha camaradagem masculina só até certo ponto.
– Vou pegar a minha carteira – Lane avisou. – E vou ligar para o meu advogado…
Mitch levantou o olhar bem quando o senhor Harris vinha da sala de jantar.
– Ah, senhor Baldwine – disse o mordomo –, estes cavalheiros vieram vê-lo.
– Foi o que imaginei. Só vou pegar a…
Mitch falou:
– Podemos conversar reservadamente?
Lane franziu a testa.
– Quero a presença do meu advogado.
Quando Mitch sacudiu a cabeça, Lane encarou os outros policiais. Nenhum deles o olhava de frente.
Lane terminou de descer e indicou a sala com a mão.
– Na sala de estar.
Enquanto os quatro seguiam para o elegante cômodo, o senhor Harris deslizou as portas duplas que davam para o vestíbulo. E, num acordo tácito, ninguém disse nada até que o homem atravessasse a sala e fechasse as outras portas.
Lane cruzou os braços diante do peito.
– O que foi, Mitch? Está querendo completar um trio? Primeiro Gin, depois eu… e agora, que tal o meu pai?
– É com muito pesar que preciso informar que…
Uma pontada fria de medo perpassou seu corpo.
– Não o Edward, ah, Deus, por favor não o Edward…
– … um corpo foi encontrado no rio duas horas atrás. Temos motivos para acreditar que seja o seu pai.
A expiração que escapou dos pulmões de Lane foi estranhamente lenta e controlada.
– O quê… – Ele limpou a garganta. – Onde ele foi encontrado?
– Na parte oposta à cachoeira. Precisamos que nos acompanhe para identificar o corpo. Um parente é preferível, mas eu jamais peço à esposa, se puder evitar.
Como resposta, Lane se aproximou do carrinho de bebidas e se serviu de uma bela dose do Reserva de Família. Depois de tomá-la, acenou para Mitch e para os outros dois membros da força policial.
– Me dê um minuto. Eu já volto.
Ao passar por Mitch, o homem esticou a mão e o segurou pelo braço.
– Eu sinto muito, Lane.
Lane franziu a testa.
– Sabe, não consigo dizer o mesmo.
QUARENTA E SETE
Lane não contou a ninguém onde estava indo e nem o motivo.
Voltou do quarto com seu celular e sua carteira, e tomou cuidado para ficar longe das vistas das pessoas que comiam e conversavam baixo na sala de jantar.
Não, não contaria nada a ninguém. Não até ter certeza.
Entrando na parte traseira do SUV do delegado Mitch, fechou a porta e fitou adiante, através do para-brisa.
Quando o policial se colocou atrás do volante, Lane perguntou: – Alguém já sabe?
– Mantive em segredo por enquanto. O corpo apareceu num ancoradouro coberto a uns quinhentos metros da catarata. As pessoas que o encontraram são gente boa. Estão assustadas e não querem a atenção da mídia nem repórteres em sua propriedade. Mas isso não vai durar para sempre.
O trajeto até o necrotério foi meio bizarro. O tempo se arrastava, tudo era muito brilhante, claro demais, volumoso demais. E assim que entrou naquele prédio sem graça, frio, a sensação piorou até ele sentir como se estivesse aos tropeços, o surrealismo de tudo aquilo fazendo com que parecesse algo saído de um desenho animado de Jerry Garcia.
A única coisa que conseguia fazer era acompanhar Mitch onde quer que o cara fosse. Não muito tempo depois, Lane se viu numa saleta de espera do tamanho de uma despensa.
No meio da parede diante dele havia uma cortina que cobria, segundo ele imaginava, uma grande janela. Havia uma porta ao lado.
– Não – Lane disse a Mitch. – Quero vê-lo cara a cara.
Houve um instante de constrangimento.
– Veja bem, Lane, o corpo não está nada bonito. Caiu da cascata e pode ter se chocado num barco maior. Seria mais fácil…
– Não estou interessado em nada fácil. – Lane estreitou o olhar na direção do delegado. – Quero entrar.
Mitch praguejou.
– Me dá um minuto.
Enquanto o delegado desaparecia pela porta, Lane ficou satisfeito que o homem não tivesse se oposto. Não queria admitir que o motivo pelo qual necessitava chegar perto era por querer ter certeza de que o pai estava de fato morto.
O que era estupidez.
Como se todos aqueles policiais fossem perder tempo inventando a história.
Mitch retornou e segurou a porta aberta.
– Pode entrar.
Entrar naquela sala azulejada se tornou algo de que Lane se recordaria pelo resto da vida. E, Jesus, era igualzinho aos filmes: no meio do recinto, sobre uma mesa de aço com rodinhas, havia um saco mortuário.
Absurdamente, notou que era do mesmo tipo em que Rosalinda fora colocada.
Ao lado da maca, uma mulher de jaleco branco estava de pé com luvas descartáveis e uma prancheta nas mãos.
– Está pronto, senhor?
– Sim. Por favor.
Ela esticou a mão e puxou o zíper. Desceu-o até os pés e afastou a lona.
Lane se inclinou, mas o cheiro da água e da podridão o fez se retrair.
Não esperava encontrar os olhos do pai abertos.
– É ele – Lane disse, com uma voz partida.
– Lamento pela sua perda – a médica legista disse ao voltar a subir o zíper.
Quando ela terminou, deduziu que quisessem que ele se retirasse, mas ele só conseguiu ficar ali parado olhando para o saco mortuário.
Todos os tipos de imagem invadiram seus pensamentos, uma mistura de coisas do passado e do presente.
Mas não há mais futuro algum, pensou. Não haveria mais nada com aquele homem.
Deus, dentre todos os modos como as coisas entre eles poderiam terminar… aquele momento silencioso, naquela fria sala médica, com Mitch Ramsey de um lado e uma completa estranha do outro… não tinha imaginado nada daquilo.
– E agora? – ouviu-se perguntar.
Mitch pigarreou.
– Extraoficialmente, e não me obrigue a sustentar isso, temos quase certeza de que foi suicídio. Considerando tudo o que tem acontecido… bem, você entende.
– Sim. Sim, claro. – E a polícia nem desconfiava da questão financeira.
Que covarde filho da puta, Lane pensou. Primeiro ele provoca toda essa confusão, e depois resolve fugir se jogando de uma ponte.
Cretino.
– Gostaríamos do consentimento para realizar a autópsia – disse Mitch. – Só para excluir a possibilidade de um crime. Mas, repito, não é nisso que acreditamos.
– Claro. – Lane olhou para o delegado. – Escute, preciso de um tempo antes que isso chegue à imprensa. Tenho que contar à minha mãe e aos meus irmãos. Nem sei como localizar Maxwell, mas não quero que ele fique sabendo disso no noticiário das seis. Ou pior, na TMZ.
– A polícia está determinada a trabalhar com você e com a sua família.
– Serei o mais rápido que puder.
– Isso facilitaria tudo para nós também.
Uma prancheta surgiu de sabe-se lá onde, e ele assinou uma variedade de coisas. Quando devolveu a caneta ao delegado, pensou: “Merda, vamos ter que planejar um funeral”.
Ainda que, sendo bem franco, a última coisa que o interessava era honrar o pai de qualquer maneira.
– Não estou com fome.
Edward se acomodou na sua poltrona no chalé, bem ciente de que parecia um garotinho de quatro anos se recusando a jantar, mas não se importou.
O fato de o aroma vindo da sua cozinha embutida fazer sua boca salivar não era relevante.
Shelby, contudo, sofria de audição seletiva.
– Aqui está.
Ela colocou uma tigela de cozido na mesinha ao lado da sua garrafa de… o que era mesmo que estava bebendo? Ah, tequila. Ora, vejam só se não combinava à perfeição com o molho de carne.
– Coma – ela ordenou, num tom que sugeria que ou ele mesmo cuidava disso ou ela amassaria tudo e o forçaria a comer por meio de um canudo.
– Sabe, você pode ir quando quiser – ele murmurou.
Pelo amor de Deus, a mulher ficou na sua casa o dia inteiro, limpando, lavando a roupa, cozinhando. Ele lhe disse algumas vezes que ela tinha sido contratada para cuidar dos cavalos, e não do proprietário deles, mas, de novo, a audição dela era seletiva.
Maldição, isso aqui está muito bom, pensou ao encher a boca.
– Quero marcar um horário com o seu médico.
O som de um carro chegando foi uma interrupção bem-vinda. Esforçou-se para se lembrar que dia era, e desejou que, de algum modo, já fosse sexta-feira de novo, pois até gostava da ideia de ela ver uma prostituta vindo servi-lo. Inferno, ela até podia ficar olhando se quisesse. Não que fosse um bom espetáculo…
Por uma fração de segundo, lembrou-se de Sutton sobre ele, movendo-se para cima e para baixo, fitando-o nos olhos.
Uma dor afiada em seu peito o fez comer mais rápido só para se livrar da sensação.
A batida foi alta.
– Você se importaria de fazer as honras? – disse a Shelby. – Se for uma mulher, convide-a a entrar. Se não, diga que vá para o inferno. E use a palavra “inferno”, sim? Nós dois sabemos que ela faz parte do seu vocabulário agora.
O olhar furioso que ela lhe lançou provavelmente o teria derrubado se ele já não estivesse sentado.
Mas ela foi até a porta.
Abrindo-a, disse:
– Ah, nossa.
– Quem é? – Edward murmurou. – A sua fada madrinha?
Só que não era. Era Lane.
Enquanto seu irmão entrava no chalé, Edward já meneava a cabeça.
– O que quer que seja, você vai ter que ir para outro lugar. Já disse, não vou mais ajudar…
– Podemos falar em particular.
Não era uma pergunta.
Edward revirou os olhos.
– Não importa o que você vai dizer.
– É assunto de família.
– E não é sempre? – Quando Lane não cedeu, Edward praguejou. – O que quer que tenha a dizer, pode falar na frente dela.
A presença de Shelby talvez apressasse o assunto.
Lane olhou para a mulher. Voltou a olhar para ele.
– Nosso pai está morto.
Enquanto Shelby arfava, Edward lentamente abaixou a colher. Depois disse, numa voz grave: – Shelby, você pode, por favor, nos dar licença? Muito obrigado.
Engraçado como os bons modos surgiam nele em momentos de crise.
Depois que Shelby saiu rapidamente, Edward limpou a boca no guardanapo de papel.
– Quando?
– Em algum momento na noite passada, é o que estão acreditando. Ele se jogou de uma ponte, provavelmente. O corpo apareceu do outro lado da cascata.
Edward se recostou na poltrona.
Tinha a intenção de dizer alguma coisa. Tinha mesmo.
Só… não se lembrava o que era.
Lane, evidentemente, se sentia do mesmo modo, porque seu irmão caçula se aproximou da única outra cadeira no cômodo e se sentou.
– Contei para mamãe antes de vir para cá. Não acho que ela entendeu o que eu disse. Ela não está acompanhando nada. E também contei para a Gin. A reação dela foi igual à sua.
– Confirmaram se é ele?
Por algum motivo, aquilo parecia de importância vital. Ainda que… Como seria possível cometer um erro dessa magnitude?
– Fui eu quem identificou o corpo.
Edward fechou os olhos. E, por um breve instante, aquela luz piloto dele se acendeu novamente.
– Não deveria ter sido você. Eu deveria ter feito isso.
– Tudo bem. Eu não… – Lane inspirou fundo. – Acho que não estou tendo reação alguma. Tenho certeza de que ficou sabendo o que aconteceu ontem.
Edward olhou para o irmão.
– O que aconteceu ontem?
Lane teve que gargalhar.
– Às vezes não ter TV a cabo é uma coisa muito boa, não? Tudo bem, não importa. Não mesmo.
Ficaram sentados em silêncio por um bom tempo. Edward percebeu que estava esperando por algum tipo de reação emocional de si mesmo. Tristeza. Diabos, talvez até alegria.
Mas não sentiu nada. Apenas um torpor ressonante.
– Tenho que encontrar Max – disse Lane. – A polícia vai segurar a informação até estarmos prontos para dar uma declaração, mas não pode demorar muito.
– Não sei onde ele está – Edward murmurou.
– Fico ligando para o número que ele tinha há dois anos. Também mandei um e-mail, o último que ele tinha. Acho que ele deve estar mesmo fora do radar.
Mais silêncio.
– Gin está bem? – Edward perguntou.
Lane meneou a cabeça, depois percorreu o cômodo com o olhar.
– Algum de nós está?
Infelizmente, Edward pensou, a resposta é não.
QUARENTA E OITO
Na manhã seguinte, quando subiu pelas escadas dos fundos com um arranjo floral nas mãos, Lizzie tentou se encorajar.
Tudo bem ficar escondida nas estufas, mas convenhamos, ela ainda tinha treze dias no emprego em Easterly e não pretendia fazer corpo mole até lá. Sempre fora a responsável pelas flores dos quartos. Tinha seu cronograma e ia fazer muito bem o seu trabalho.
No segundo andar, aprumou os ombros e se encaminhou para a segunda melhor suíte de hóspedes. O senhor Harris lhe dissera que um hóspede tinha chegado inesperadamente e que também não havia mais a necessidade de trocar as flores no quarto de Chantal.
Muito bom saber disso, senhor Harris. Muito obrigada.
Pelo menos, era uma pessoa a menos na sua lista de “Pessoas a não encontrar”.
Uma pena que o número um ainda estivesse sob o teto de Easterly.
– Treze dias – disse baixinho. – Apenas treze dias.
Bateu à porta e esperou. Um momento depois, uma voz masculina disse: – Entre.
Empurrando a porta, viu um homem sentado à escrivaninha do avô de Lane, com as costas curvadas como uma vírgula enquanto trabalhava sobre o laptop. Ao lado dele, uma impressora cuspia páginas com tabelas e colunas e, aos seus pés, bolas de papel amarelo amassado salpicavam o chão.
Ele não levantou a cabeça.
– Só vim colocar um vaso de flores – explicou.
– Ã-hã.
Ao lado dele, sobre o peitoril da janela, havia uma bandeja de café da manhã vazia. Ao ajeitar o vaso sobre uma cômoda antiga, ofereceu: – Posso levar essa bandeja para baixo para você?
– O quê? – ele murmurou, ainda concentrado na tela.
– A bandeja?
– Sim, claro. Obrigado.
Concluiu que ele estava ali para examinar os arquivos que Rosalinda tinha deixado para trás.
Mas se lembrou que não era da sua conta.
Dando a volta na escrivaninha, viu duas malas caras. Uma estava aberta e remexida, mas ainda assim tinha a impressão de que o homem não tinha trocado de roupa desde a sua chegada. A camisa branca estava toda amassada, bem como as calças.
Também não era da sua conta.
Pegando a bandeja, ela…
– Ah, meu Deus.
Quando ele falou, ela quase deixou de olhar na direção dele, imaginando que ele tivesse encontrado algo no que quer que estivesse examinando. Mas logo percebeu que ele estava olhando para ela.
– O que foi? – perguntou.
– Você é a Lizzie. Certo?
Retraindo-se, ela olhou ao redor. O que foi meio ridículo, pois não havia ninguém atrás dela, não é?
– Hum… sim.
– A Lizzie do Lane. A horticulturista.
– Não – ela negou. – Não dele.
O homem esticou os braços acima da cabeça, e seu corpo todo estalou; ela notou que ele era muito bonito, com cabelos e olhos escuros – poderiam ser castanhos ou azuis.
O sotaque definitivamente era de Nova York.
– Uau – murmurou ele. – Pensei que você fosse de mentira.
– Se me der licença, tenho trabalho a fazer.
– E agora eu entendo por que ele não foi atrás de mais ninguém por dois anos.
Não pergunte, Lizzie se ordenou, não pergunte.
– O que disse? – ouviu-se perguntar.
Droga.
– Por dois anos, nada. Quero dizer, fizemos faculdade juntos, por isso vi em primeira mão como ele conquistou sua reputação. Mas nos dois últimos anos, ele não chegou perto de nenhuma mulher. Pensei que ele fosse gay. Até perguntei se ele era gay. – Ele mostrou as palmas num gesto defensivo. – Não que exista algo de errado com isso.
Isso faz parte de algum diálogo do Seinfeld?,23 ela se perguntou.
– Eu… hum…
– Agora estou entendendo. – O homem deu um amplo sorriso. – Mas ele disse que você está de partida? Não é da minha conta, mas… por quê? Ele é um bom homem. Não é perfeito, mas é bom. Só não sugeriria que você jogasse pôquer contra ele. Não a menos que tenha dinheiro sobrando para perder.
Lizzie franziu a testa.
– Eu… hum…
– A propósito, eu nem sabia que ele era casado. Ele nunca falou dela. Eu, por certo, nunca a vi… E agora, pensando bem, foi tudo por sua causa… Bem, de todo modo, tenho que voltar a trabalhar.
Como se o cara não tivesse acabado de lançar uma bomba no meio do quarto.
Quando o coração de Lizzie começou a bater forte, ela perguntou: – Desculpe. Mas você disse… que não sabia que ele era casado?
Ele voltou a olhar para ela.
– Não, ele nunca mencionou. Nenhuma vez nos dois anos em que dormiu no meu sofá. Só fiquei sabendo quando ele me ligou uns dias atrás.
– Mas você deve tê-la conhecido, não? Quando ela o visitou.
– Quando o visitou? Querida, ele nunca recebeu nenhuma visita, e eu sei disso porque ele nunca saía da minha casa. Jogávamos pôquer à noite e eu saía para trabalhar, só para voltar à noite e encontrá-lo no meu sofá na exata posição da manhã. Ele não via ninguém. Não atendia a telefonemas. Nunca voltou para cá. Nunca viajou. Só ficava trancado no meu apartamento, bebendo. Pensei que a próxima parada seria numa unidade de diálise.
– Nossa.
O cara arqueou uma sobrancelha, como se quisesse saber se ela precisava de alguma outra informação.
– Obrigada.
– Obrigado pelas flores. Nunca recebi flores de uma mulher antes.
E voltou a trabalhar, concentrado na tela.
Lizzie saiu do quarto num estado de torpor e teve que se lembrar de fechar a porta.
Depois de parada por um instante, virou a cabeça e olhou na direção do quarto do senhor Baldwine.
Nenhuma visita. Nenhum telefonema. Dois anos em Nova York no sofá do amigo.
E, supostamente, Chantal estava grávida.
De Lane.
Lizzie não teve ciência de quando se decidiu a andar. Mas, antes que se desse conta, deixou a bandeja no chão ao lado do quarto de hóspedes e andou nas pontas dos pés sobre a passadeira. Ao chegar ao quarto do senhor Baldwine, encostou a orelha na porta.
Depois bateu com suavidade.
Quando não obteve resposta, entrou sorrateiramente e se fechou ali dentro.
Havia algo de estranho no ar. Pensando bem, estava invadindo o lugar, visto que não tinha nenhum motivo válido para estar ali.
Bem, nenhum motivo profissional válido.
Relanceando para se certificar de que não havia ninguém no banheiro adjacente, apressou-se para junto da enorme cama, arrumada com precisão militar.
Ajoelhando-se, estendeu o pescoço debaixo do criado-mudo, debaixo da própria cabeceira da cama.
O tecido de seda ainda estava ali, no chão.
Lizzie esticou o braço e…
Toc, toc, toc.
– Serviço de quarto, senhor Baldwine.
Mergulhando rapidamente, Lizzie se enfiou embaixo da cama, encolhendo as pernas enquanto a criada abria a porta e entrava no quarto.
Um assobio suave e passadas leves sobre o carpete anunciavam o progresso da mulher conforme ela ia para o banheiro.
Por favor, não limpe, Lizzie suplicou em pensamentos, deitada no escuro. Só deixe as toalhas e siga com a sua vida.
Deixe as toalhas.
Siga em frente.
Deus, seu coração batia tão forte que foi um milagre a criada não ouvir nada.
Momento depois, um milagre aconteceu e as passadas recuaram para a porta, fechando-a novamente.
Lizzie relaxou e cerrou os olhos. Certo, riscaria ladra de galinhas da lista das suas possíveis escolhas de carreira para quando partisse de Easterly.
Segurando a lingerie, enfiou a peça no cós dos seus shorts e a cobriu, soltando a blusa por cima. Depois saiu dali, ficou de pé e tratou de se apressar.
Junto à porta, ouviu…
Caramba, o aspirador de pó estava ali no corredor bem na sua frente.
Nos aposentos da senhorita Aurora, Lane se esforçava para terminar o bacon com ovos.
– Você não precisa terminar, se não quiser – ela lhe disse ao seu lado.
– Nunca pensei ouvir isso da senhora.
– As regras estão suspensas hoje.
Recostando-se na poltrona reclinável, ele observou a pequenina cozinha embutida. Todos os pratos estavam lavados, já secando no escorredor. A esponja estava na pia. O pano de pratos estava dobrado com esmero sobre o puxador do fogão.
– Acha que o reverendo Nyce faria o funeral? – perguntou. – Na igreja batista de Charlemont?
A senhorita Aurora o fitou, curiosa.
– Mesmo?
– É a minha igreja. De Edward, Gin e Max também. – Olhou para ela. – A senhora foi a única pessoa que nos levou para rezar.
– Acho que ele ficaria honrado.
– Que bom. Vou ligar para ele.
Quando se calaram, Lane ficou olhando para a frente, sem ver nada, se concentrando no vazio. Também não havia nada na cabeça dele. Estava entorpecido, era um receptáculo vazio reagindo ao mundo ao seu redor, sem viver de verdade.
– Não vou te dar a minha bênção, menino.
Ele estremeceu e voltou a olhar para ela.
– O que disse?
– Não vou dizer que vai ficar tudo bem se você for embora.
Lane franziu o cenho e abriu a boca. Depois a fechou.
Engraçado, não se lembrava de ter dito isso em voz alta, mas ela o conhecia melhor do que qualquer outra pessoa.
– Não deu certo com a Lizzie. De novo. Papai morreu. Edward se mudou. Mamãe está… bem, você sabe como ela está. Gin vai se casar com aquele idiota e provavelmente vai levar Amelia com ela. Esta era chegou ao fim, senhorita Aurora. E o que é pior: já não sei o que o futuro nos reserva. Easterly… – Moveu a mão no ar, pensando na propriedade e em todas as pessoas que dependiam dela. – Easterly faz parte do passado. Sabe, não posso viver aqui. É venenoso. Esta família, esta casa, este estilo de vida… tudo isso é simplesmente venenoso.
A senhorita Aurora meneou a cabeça.
– Você está encarando do jeito errado.
– Não estou, não.
Ela se colocou mais para a frente na poltrona e se esticou para tocar-lhe as mãos.
– Este é o seu momento, Lane. Deus lhe deu o dever sagrado de manter esta família unida. Você é o único que pode fazer isso. Tudo vai se ajeitar porque é o seu destino unir o seu sangue uma vez mais. É o tipo de coisa que acontece com algumas gerações. Está acontecendo agora. Esta é a sua hora.
Lane ficou encarando suas mãos juntas, o preto e o branco entrelaçados, e disse: – Era para ser Edward, sabe?
– Não, ou ele não estaria onde está agora. – A voz da senhorita Aurora demonstrou força. – Eu não te criei como um covarde, Lane. Não te criei para que abandonasse o seu dever e saísse correndo. Se quiser me honrar quando eu tiver partido, vai cumprir o seu dever fazendo com que esta família siga em frente, juntos. Cumpri o meu dever sagrado com você. Agora, você, filho do meu coração, vai fazer o mesmo com eles.
Lane fechou os olhos e sentiu um peso repentino cair sobre seu corpo, como se as paredes e o teto de Easterly tivessem se afundado sobre ele.
– Você vai fazer isso por mim, Lane. Porque se não fizer, tudo o que eu fiz por você não vai ter significado nada. Se não fizer, terei fracassado no meu dever.
Por dentro, ele gritava.
Por dentro, ele já estava num avião, indo para qualquer lugar distante de Charlemont.
– Deus não nos dá mais do que podemos suportar – disse ela com seriedade.
Mas e se Deus não nos conhece de verdade?, Lane pensou consigo. Ou pior… e se os planos de Deus estiverem simplesmente errados?
– Não sei, senhorita Aurora.
– Bem, eu sei. E você não vai me desapontar, filho. Simplesmente não vai.
Seinfeld foi uma série de TV produzida pela NBC. Tendo sido transmitida entre 1989 e 1998, foi eleita pelo TV Guide, em 2002, como "melhor programa de todos os tempos". (N.E.)
QUARENTA E NOVE
A verdadeira definição da eternidade, Lizzie concluiu, é quando se está preso num lugar em que não se deveria estar.
Com um babydoll que não é seu enfiado no cós dos seus malditos shorts.
Quando os sons por fim cessaram, ela aguardou mais uns cinco ou dez minutos antes de dar uma espiada.
Hora do almoço, deduziu. Graças a Deus.
Foi para o meio do corredor, deixou que a porta se fechasse atrás de si e ficou ali, com os ouvidos aguçados.
A próxima parada ficava além do quarto de Gin: o quarto de Chantal.
Bateu à porta. Nenhuma resposta. A mulher tinha ido embora, certo?
Esgueirando-se para dentro, fechou-se ali e…
– Ai, meu Deus! – murmurou, agitando a mão diante do nariz.
A fragrância do perfume caro fez com que seus olhos se enchessem de lágrimas, mas como tinha peixes maiores para pescar, foi rapidamente para o closet de Chantal, parando diante de um armário grande o suficiente para rivalizar com o departamento feminino inteiro da Nordstrom. Ou da Saks. Ou quaisquer outros lugares elegantes onde mulheres como Chantal compravam suas roupas.
Puxa, seria capaz mesmo de fazer aquilo?
Concluiu que era provavelmente uma ideia bem idiota, enquanto procurava em meio aos cabides, passando por todo tipo de seda, cetim e renda. E terninhos, jaquetas, vestidos de gala…
– Onde está a sua lingerie, Chantal?
Claro, na cômoda.
No meio do closet, como uma ilha de organização, havia um móvel com gavetas dos dois lados. Começou a puxá-las aleatoriamente.
Ok, isso é uma idiotice, pensou. Achou mesmo que encontraria a parte de baixo d…
Estava na terceira gaveta, de baixo para cima, à esquerda do lado que dava para o norte quando encontrou o que procurava.
Mais ou menos.
No meio dos conjuntos de calcinha e sutiã perfilados e separados por papel de seda, encontrou… um babydoll roxo idêntico àquele encontrado debaixo da cama do quarto do senhor Baldwine.
Só para ter certeza de que não estava imaginando coisas, pegou o que trazia consigo, cor de pêssego, e os colocou lado a lado sobre o carpete branco e fofo. O mesmo tamanho, a mesma marca… La Perla? Tudo idêntico, a não ser a cor.
Sentou-se e ficou olhando para as peças.
E foi então que viu a mancha no tapete.
Do outro lado do quarto, havia uma penteadeira alinhada a uma alcova com janelas com vista para o jardim. Era o lugar ideal para fazer a maquiagem – ou para que alguém fizesse em você – sob a luz natural.
E debaixo das pernas de marfim, num canto, havia uma mancha amarela, redonda, meio escondida.
O tipo de coisa que se encontra em casas com cachorros.
Só que não existiam cachorros em Easterly.
Engatinhando até lá, enfiou-se debaixo da segunda peça de mobília e colocou o dedo sobre a mancha. Estava seca. Mas, ao aproximar os dedos do nariz… isso mesmo, aquela era a origem de todo o perfume no ar.
Franzindo o cenho, Lizzie se ajoelhou.
– Ai, meu Deus.
O tampo de vidro da penteadeira estava rachado no meio. E o espelho estava partido.
Com sangue bem no centro.
Hora de sair daqui, disse a si mesma.
Voltando para o closet, pegou a lingerie que deixara no chão, devolveu a roxa na gaveta e depois, numa inspiração, usou a cor de pêssego para limpar suas impressões digitais dos puxadores. De todos eles.
A última coisa que precisava era que a polícia fosse até ali e descobrisse que ela estivera bisbilhotando, por assim dizer…
Ficou imóvel ao ouvir uma voz masculina vinda do quarto ao lado, de Gin.
Ouviu duas pessoas conversando. Bem alto.
Indo até a parede, encostou a orelha ao lado da pintura de uma mulher francesa basicamente nua.
– Não me importo – Gin disse. – Vai ser apenas no cartório.
– O seu pai está morto.
Lizzie se retraiu, cobrindo a boca com a mão. O quê?
Richard Pford prosseguiu:
– Vamos esperar, nos casaremos depois do enterro.
– Não estou de luto por causa dele.
– Claro que não está. Para isso, você precisaria ter um coração, e nós dois sabemos que essa é sua anomalia física.
Lizzie recuou e tropeçou. Caiu sobre a cômoda.
Depois de um instante, continuou a limpar suas impressões e voltou para a porta que dava para o corredor. Como seu coração batia acelerado e forte, ela não estava conseguindo ouvir direito, mas mandou tudo às favas. Se fosse descoberta, o que fariam com ela?
Ela podia muito bem dizer que estava verificando as flores.
Mas não havia ninguém ali.
Seguiu às cegas para a escada dos empregados, com a mente num torvelinho, os pensamentos se debatendo, dissonantes, se partindo.
No meio de tudo aquilo, contudo, chegou a uma conclusão inescapável.
Tinha cometido um erro terrível.
Do tipo que seria impossível obter perdão.
Já no primeiro andar, parou de súbito. E percebeu que, de todos os lugares em que poderia ter se detido, escolhera parar diante do escritório de Rosalinda.
William Baldwine também estava morto.
Como?, ficou se perguntando. O que tinha acontecido?
Numa série de flashes, viu Lane parado na estufa, com a expressão fechada, a voz sem nenhuma emoção. Ouviu o amigo dele dizendo que, em vez de transar alegremente com Chantal às escondidas, ele não recebera ninguém e não fizera nada por dois anos.
E depois veio a bomba com aquele espelho quebrado no andar de cima. E a lingerie.
Lembrou-se da última imagem de Chantal à piscina, pedindo uma limonada.
Naquela hora, o fato de ela estar usando uma saída de seda não lhe parecera muito significativo. Mas agora…
Ela estava grávida e a barriga começava a aparecer. Motivo pelo qual ela pedira a bebida virgem, ou seja, sem álcool.
Chantal estava dormindo com William Baldwine. Traindo o filho com o pai. E tinha engravidado.
Ela deve ter contado a William, Lizzie concluiu. Depois do Derby.
E o homem perdeu as estribeiras. E bateu nela perto da penteadeira.
E depois a expulsou da casa. Ou algo assim.
Balançando a cabeça, Lizzie levou as mãos ao rosto rubro e tentou respirar.
Seu único pensamento foi o de precisar se acertar com Lane. Tinha o condenado com base em seu próprio medo de se magoar novamente…
Quando, na verdade, existia uma possibilidade muito, mas muito grande, de ele não ter nada a ver com todo o alvoroço.
Abaixando os braços, soube que palavras não bastariam. Não naquele caso.
Quando a solução surgiu, ela consultou o relógio. Se corresse…
Atravessou a cozinha às pressas, e a senhorita Aurora ergueu o olhar da panela no fogão.
– Aonde vai? – a mulher perguntou. – O que está pegando fogo?
Lizzie derrapou junto à porta que dava para a garagem.
– Preciso ir para Indiana. Se vir Lane, diga que vou voltar. Eu vou voltar!
CINQUENTA
Lane pensou que a área externa estava bem agradável, ao se sentar no jardim.
Olhando para os muros cobertos de heras e os canteiros de flores ao longo da piscina azul e das portas francesas do centro de negócios, imaginou todo o árduo trabalho necessário para manter aquela beleza “natural”.
Era impossível não visualizar Lizzie ali, mas refreou o impulso rapidamente.
Não havia motivo para se aborrecer com esse tipo de coisa.
Curvando a cabeça, esfregou os olhos. Samuel T. tinha telefonado para falar da situação de Chantal, e sabia que tinha que retornar a ligação. Mitch também tinha deixado uma mensagem, provavelmente a respeito dos resultados preliminares da autópsia. Nesse meio-tempo, lá no segundo andar, Jeff avaliava todos os relatórios financeiros.
As decisões quanto ao funeral precisavam ser tomadas.
Mas não tinha forças para lidar com nada daquilo.
Maldição, senhorita Aurora, pensou. Deixe-me ir. Só me deixe fugir de tudo.
Amava tanto aquela mulher. E devia-lhe muito mais. Ela era sua mãe, e mesmo que estivesse lhe dando uma surra moral, ele simplesmente já não estava mais envolvido naquela luta.
Erguendo os olhos para a incrível extensão branca de Easterly, fitou a mansão como um corretor imobiliário o faria. Não obstante a hipoteca de Sutton Smythe, poderia quitar boa parte da dívida junto à Fundos Prospect apenas com a venda do lugar.
Inferno. Com o pai morto, talvez pudessem procurar Sutton e pedir que ela não depositasse o dinheiro e rasgasse o documento.
Pensou em Edward. Deveria mandar Edward resolver esse assunto.
Ou talvez não. Talvez devesse simplesmente lavar as mãos.
Talvez, em vez de tentar pilotar o avião danificado no qual todos estavam, devesse deixar que a maldita aeronave se chocasse com a montanha.
Podia morrer como um covarde, podia desapontar sua mãe, mas, pelo menos, terminaria mais rápido do que se tentasse adivinhar os controles numa tentativa de aterrissar numa pista longe, muito longe dali…
Lane?
Fechou os olhos. Maravilha. Estava começando a alucinar.
Como se Lizzie fosse mesmo procurá-lo…
– Lane?
Virando-se no banco de pedra, ele viu… bem, hipoteticamente, ele a viu parada a poucos metros de distância.
E, vejam só, sob a luz do entardecer, ela estava mais linda do que nunca. Natural, adorável, com os límpidos olhos azuis e os cabelos iluminados pelo efeito do sol, e aquele uniforme de Easterly, que na verdade não deveria deixá-la sexy, mas que nela era simplesmente demais.
– Lane, posso falar com você?
Ele limpou a garganta. Sentou-se ereto.
Ao que tudo levava a crer, não era fruto da sua imaginação.
– Sim, claro. Do que precisa? Se for uma carta de referência, posso pedir ao mordomo que…
– Desculpe. – Quando a voz dela se partiu, ela respirou fundo. – Sinto muito, muito mesmo.
O que ela estava…
– Ah, meu pai. – Encolheu os ombros. – Acho que deve ter ficado sabendo. Sim, ele morreu. O enterro será na semana que vem. Obrigado pelas palavras gentis.
– Não estou falando disso. Embora, sim, eu lamente que você tenha perdido o seu pai. Sei que o relacionamento entre vocês não era dos melhores, mas ainda assim deve ser difícil.
– Bem, acontece que me supero em relacionamentos que não são bons. Parece uma habilidade minha.
Até para os próprios ouvidos, sua voz soou falsa. As palavras não eram as que normalmente usaria.
Edward, pensou, entorpecido. Estava parecendo Edward.
Lizzie se aproximou, e ele ficou mais do que surpreso por vê-la se ajoelhar diante dele. E ela estava…
– Por que está chorando? – perguntou. – Você está bem?
– Deus, como você pode perguntar isso? Depois de tudo o que eu fiz…
– Do que você está falando?
Então começaram a falar um por cima do outro, do modo típico deles. Mas como Lane não tinha forças para tentar decifrar nada, calou-se, na esperança de que ela explicasse e esclarecesse as coisas.
– Eu errei – disse, emocionada. – Sinto muito por não ter acreditado em você. A respeito de Chantal. Eu só… Eu não queria me magoar de novo, e me precipitei em tirar conclusões. E, ah, meu Deus, eu sei que foi o seu pai. Eu sei que foi ele. Foi ele quem bateu nela, foi ele quem a engravidou. Sinto muito.
Lágrimas rolaram pelo rosto dela, uma chuva de lágrimas, aterrissando na grama aos pés dele.
Lane piscou. Foi só o que ele conseguiu…
Jesus, seu cérebro não seria capaz de processar tantas informações. Ele literalmente não entendia o que ela estava dizendo…
Levando a mão às costas, ela pegou algo. Um maço de papéis dobrados ao meio?
– Lamento que não baste – ela disse. – Magoei você demais. Então preciso fazer algo concreto, para provar que estou ao seu lado, que eu te amo e que… que estou ao seu lado mesmo.
Entregou as folhas para ele.
– Eu preciso te mostrar, e não te dizer.
Lane balançou a cabeça.
– Lizzie, eu não sei o que…
– Pegue – ela disse.
Fez o que ela pediu porque não tinha motivos para não fazê-lo. Alisando a dobra, olhou para…
Um monte de palavras. Seguidas de alguns números.
A segunda folha era um mapa?
– É a escritura da minha fazenda – ela sussurrou. – Sei que não é nada comparado ao que você tem. Mas é tudo o que tenho neste mundo.
– Não estou entendendo…
– Sei dos problemas financeiros que você está enfrentando, e sei que não vai ajudar a saldar a dívida, mas vale o bastante para ajudá-lo a pagar bons advogados, pessoas que podem ajudá-lo a resolver a questão. – Apontou para o documento. – Quitei o empréstimo ontem. Não devo mais nada. E já fui abordada várias vezes para que a vendesse. A terra é boa. Vale bastante. E agora é sua.
O ar saiu do corpo dele.
O coração parou de bater.
A alma se partiu ao meio.
– Eu te amo, Lane. Desculpe por ter duvidado de você. Eu sinto que… Deus, você não faz ideia de como estou me sentindo mal. Deixe-me recompensá-lo do único modo que posso. Ou jogue esses documentos na minha cara, se quiser. Não vou te culpar. Mas eu tinha que fazer alguma coisa relevante. Eu tinha que… te oferecer tudo o que sou e tudo o que tenho…
Lane não se deu conta de que estava se aproximando dela.
Mas soube no instante em que ela foi de encontro ao seu peito.
Envolvendo-a com os braços, descontrolou-se por completo, as represas se abriram, e tudo saiu aos soluços.
E Lizzie, com seu corpo forte e coração grande, abraçou-o pelo tempo que foi necessário.
– Vai ficar tudo bem – ela lhe disse. – Eu te prometo. De algum modo, tudo vai ficar bem.
Quando, por fim, ele conseguiu se controlar o suficiente para se afastar, sentiu uma súbita vontade de se apalpar entre as pernas só para ver se ainda era homem. Mas Lizzie não parecia se importar por ele estar fragilizado.
Enxugou o rosto dela com os polegares e a beijou.
– Eu te amo, Lizzie. – Depois balançou a cabeça. – Mas não sei quanto a Deus.
– O que disse?
Lane expirou, estremecendo.
– É só uma coisa que a senhorita Aurora sempre me disse.
– E o que era?
Ele beijou sua mulher uma vez mais.
– Não sei se tenho Deus. Mas tenho certeza de uma coisa: eu tenho você. E isso me torna mais rico do que preciso ser.
Trazendo-a de volta para junto de si, ele a abraçou e ficou olhando para Easterly.
Ao diabo com a ideia de jogar o avião numa montanha, pensou.
A partir daquele instante, ele seria o chefe da família, a seu modo.
E ele estaria ferrado caso as coisas ruíssem na sua vigília.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
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Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
UMA PRÉVIA DO PRÓXIMO LIVRO DA SAGA BOURBON KINGS
A bomba seguinte caiu um dia depois.
Na verdade, depois de tudo, Lane não poderia estar nem um pouco surpreso. Graças ao modo como as coisas vinham acontecendo em Easterly, os dominós ainda estavam caindo, o caminho para a destruição ou a glória da família ainda estava sendo definido nas retas e curvas que apenas o destino ou a sina – ou Deus, caso você acredite Nele – diria.
Lane estava na sala de estar, servindo-se de uma dose do Reserva de Família para se preparar para a reunião com seu advogado, Samuel T., quando ouviu um barulho vindo de fora. Alguém gritando. Uma voz de mulher. Alguém estava…
Andou até a porta da frente e abriu, percebendo, então, que as palavras estavam sendo ditas em alemão.
– … Scheisse! Oh mein Gott ein Finger! Ein Finger…
Disparando e derramando o bourbon do copo, correu para a lateral da casa com vista para o rio.
Sua amada Lizzie estava de pé ao lado da sua colega horticultora, Greta, enquanto a alemã apontava para a terra e gritava toda sorte de impropérios.
– Está tudo bem? – perguntou.
Entendeu a resposta quando viu que os olhos de Lizzie estavam arregalados debaixo do chapéu de abas largas.
– Lane… – ela disse sem olhar para ele. – Lane, temos um problema.
Ela esticou a mão e afastou Greta até que a mulher caísse de bunda no chão sobre a grama recém-cortada.
– Não toque em nada. Lane, venha até aqui, por favor.
Aproximando-se dela, passou o braço ao redor da sua cintura, mais preocupado com a sua mulher do que com qualquer verme ali na terra.
– O que quer que seja, estou certo de que…
– É um dedo. – Lizzie apontou para uma parte remexida da hera. – Aquilo é um dedo. Na terra.
Os dois joelhos estalaram quando ele se agachou. Apoiando as mãos no chão, inclinou-se para dar uma olhada no buraco raso que…
Sim, era um dedo. Um dedo humano.
A pele estava suja de terra, mas dava para ver que o dedo estava intacto… E, Deus, era grosso, como se a coisa estivesse inchada desde que fora cortada fora… ou sabe-se lá. A unha estava bem aparada, e a base mostrava um corte preciso, a carne de dentro estava acinzentada, e o osso circular no meio era visível.
Mas nada disso interessou-lhe de fato.
A questão era o círculo de ouro ao redor dele.
– Esse é o anel de sinete do meu pai – ele disse, num tom neutro.
Tateando o bolso, sacou o celular, mas não ligou para ninguém.
Em vez disso, levantou o olhar. Olhou para cima, observando a janela do quarto da mãe.
O corpo do pai fora encontrado do lado das cascatas no rio Ohio, poucos dias antes. A opinião não oficial, pré-autópsia, do médico legista era que tratava-se de um suicídio, e graças a tudo o que Lane vinha descobrindo a respeito da situação abismal das finanças da família, ele teve que concordar.
Uma dívida superior a 50 milhões de dólares não era motivo para piada quando se supunha que você tivesse uma renda líquida de quase um bilhão de dólares.
Mas parecia muito improvável que alguém cortasse o próprio dedo anular e o enterrasse debaixo da janela da futura viúva. Ainda mais se o marido em questão tivesse acabado de engravidar outra mulher.
– Meu Deus – sussurrou.
Naquele instante, o som de alguém se aproximando pelo caminho de pedriscos interrompeu o silêncio.
– Posso me juntar à festa? – Samuel T. disse ao sair do seu Jaguar vintage. – Ou essa pequena reunião só aceita convidados?
Quando a mão de Lizzie apertou o ombro de Lane, ele olhou para ela, se dirigindo ao advogado: – Ligue para a polícia, Sam. Agora.
– Por quê? Se encontraram um tesouro escondido, seria melhor mantê-lo em segredo…
– Não acredito que o meu pai tenha cometido suicídio.
Samuel T. parou de falar.
– O que disse?
– Eu acho… – Lane olhou para seu advogado e depois voltou a se concentrar em Lizzie, porque mais uma vez precisava da força dela. – Acho que alguém pode ter matado o meu pai.
E o pior? Ele seria o principal suspeito.
Afinal, a esposa da qual estava se divorciando… era a mulher que o pai engravidara.
J. R. Ward
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