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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS ROUBOS DE RUTHLAND PLACE / Anne Perry
OS ROUBOS DE RUTHLAND PLACE / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

Pitt é chamado para investigar uma morte que a principio parece ser um suicídio por envenenamento e depois se revela como um assassinato. A mulher morta é vizinha da mãe de Charlotte que já a tinha chamado para desvendar o roubo de um medalhão comprometedor.

Esse e outros roubos misteriosos misturam-se com a investigação do assassinato. Teriam alguma coisa a ver com a morta? Seria esta uma olheira que descobriu algo muito comprometedor de alguém? E a morte de outra das vizinhas teria alguma coisa a ver com o caso? E o que tem a ver a paixão da mãe de Charlotte por um homem atraente?

Emily e Charlotte novamente se enredam na investigação de Pitt principalmente por causa da paixonite de sua mãe.

O acidente com um dos moradores complica mais ainda o caso e finalmente há uma reviravolta, uma acusação bem fundada e um final surpreendente!

 

 

 

 

Charlotte Pitt pegou a carta e, surpreendida, olhou ao mensageiro. O moço lhe sustentou o olhar com olhos inteligentes. Aguardava possivelmente uma gorjeta?

Charlotte esperou que não fosse assim. Fazia pouco que Thomas e ela mudaram àquela nova casa, maior e espaçosa, com dormitório suplementar e um pequeno jardim. A mudança lhes tinha exigido gastar todas suas economias.

—Haverá resposta, senhora? -perguntou o menino, divertido pela lenta reação de Charlotte. Estava acostumado a trabalhar em zonas mais abastadas da cidade, onde as pessoas tinham seus próprios mensageiros. Contudo, suas longínquas aspirações como adulto se pareciam com aquilo: uma casa encostada de sua propriedade, com uma bela escada de acesso, cortinas nas janelas, flores e uma mulher formosa que lhe abrisse a porta e lhe desse as boas-vindas ao termo da jornada de trabalho.

—OH! -Charlotte suspirou aliviada-. Um momento. -Rasgou o envelope, tirou uma única folha e leu:

 

Rutland Place, 12, Londres

3 de março de 1886

Querida Charlotte:

Acaba de acontecer algo estranho e inquietante, e agradecer-lhe-ia que me aconselhasse. Tendo em conta sua experiência e demonstrada habilidade em assuntos de aparência trágica ou criminosa, talvez inclusive esteja disposta a me ajudar.

Não é que isto tenha relação com os atrozes casos em que se viu envolvida no passado, no Paragon Walk ou naquilo tão horrível do Resurrection Row. Graças a Deus, trata-se de um simples roubo.

Não obstante, dir-lhe-ei que o objeto roubado possui para mim um grande valor sentimental. Daí que sua perda me aflija mais do que o normal, e que esteja tão ansiosa por recuperá-lo.

Quererá me ajudar, querida? Poderá pelo menos me aconselhar? Sei que agora dispõe de uma criada capaz de ocupar-se da Jemima em sua ausência. Se me permitir, enviar-lhe-ei minha carruagem amanhã as onze para que almoce; assim falaremos deste desventurado incidente. Espero com impaciência o momento de vê-la.

Sua mãe que te quer,

CAROLINE ELLISON

 

Charlotte dobrou a carta e voltou a olhar o moço.

—Aguarda um momento e escreverei a resposta - disse com um amável sorriso.

Pouco depois lhe enviou uma resposta afirmativa.

—Obrigado, senhora. -O moço partiu; ao que parecia não esperava nada mais dela.

Sem dúvida era costume que a gorjeta corresse a cargo do remetente. De todo modo, era um menino suficientemente ardiloso para saber com exatidão do que dispunha cada qual, e até que ponto estavam dispostos a lhe dar uns pennies.

Charlotte fechou a porta e cruzou o corredor em direção à cozinha, onde sua pequena filha Jemima, de dezoito meses de idade, mordiscava um lápis sentada em seu berço. Charlotte o tirou das mãos e entregou um cubo de cores.

—Disse-lhe que não lhe dê lápis, Gracie - disse a jovem criada, que estava cortando batatas-. Não sabe para que servem. A única coisa que faz com eles é comê-los.

—Não sabia que o tivesse pego, senhora. Esses barrotes permitem-na esticar muito os braços. Ao menos assim se mantém longe da carvoeira ou o forno.

No corrimão do berço havia um ábaco com contas de vivas cores. Charlotte se agachou para agitá-lo suavemente; Jemima, imediatamente interessada, ficou em pé. Sua mãe começou a passar as contas uma a uma, enquanto a menina, muito concentrada, repetia os números olhando alternativamente ao Charlotte e ao ábaco, esperando atrás de cada palavra um sinal de aprovação.

Charlotte não estava muito atenta a sua filha. Pensava sobre tudo em sua mãe.

Em Cater Street, tanto ela como seu pai tinham reagido muito bem ante a notícia de que ia casar se e nada menos que com um policial. Edward tinha tentado discutir um pouco, perguntando-lhe se tinha certeza total do que ia fazer. Caroline, em troca, deu-se conta a princípio de que a mais inquieta de suas filhas tinha encontrado finalmente a um homem a quem amar, e que as dificuldades que pudesse suportar semelhante descida em escalão social e possibilidades econômicas seriam para ela mais fáceis de superar que um matrimônio de conveniência com alguém que não lhe inspirava amor nem interesse nem respeito.

Entretanto, e apesar do muito que seus pais continuavam querendo-a, não deixava de ser estranho que Caroline chamasse Charlotte por um motivo tão insignificante como um roubo de pouca importância. No fim de contas era algo que acontecia diariamente. Se se tratava de uma jóia sem valor, sem dúvida uma das criadas a tinha tomado emprestada por uma noite. Com a ajuda de uma ou duas insinuações bem dirigidas, voltaria a aparecer imediatamente. Caroline tinha tido criada durante toda sua vida, e teria sido de esperar que soubesse enfrentar sem ajuda com um assunto desse tipo.

Apesar de tudo, Charlotte decidiu ir. Seria uma maneira agradável de passar o dia, sobre tudo depois de tantas semanas de trabalho duro pondo ordem na nova casa.

—Amanhã sairei, Gracie -disse-. Minha mãe me convidou a almoçar.

Deixaremos as cortinas do patamar para outro dia. Você se ocupe da Jemima, e limpe o chão e a despensa de madeira do canto. Use muito sabão. Continua me parecendo que cheira um pouco estranho.

—Sim, senhora. Também há roupa que lavar. Quer que leve a Jemima de passeio se fizer bom tempo?

—Sim, por favor. É uma idéia excelente.

Charlotte se levantou. Como no dia seguinte ia estar fora até tarde, mais valia apressar-se com o pão, e depois ver que aspecto tinha o melhor de seus vestidos de dia depois de todo um inverno no guarda-roupa. Gracie tinha só quinze anos, mas era uma garota habilidosa e adorava fazer-se encarregada de Jemima.

Charlotte já lhe tinha avisado que em uns seis meses ia haver outro bebê que cuidar.

Nas condições do emprego estava especificada sua obrigação de lavar a roupa do novo bebê, além das usuais trabalhos de cozinha e os afazeres domésticos.

Longe de intimidar-se ante aquela perspectiva, Gracie parecia tomá-la com entusiasmo.

Provindo de uma família numerosa, sentia falta das constantes exigências e ruidosa companhia das crianças.

Um pouco antes das seis, Pitt chegou à casa do trabalho, bastante cansado.

Tinha passado o dia perseguindo infructuosamente a um par de ladrões especializados em roubar das carruagens. Não tinha conseguido mais que uma dúzia de descrições diferentes. Um inspetor com seu histórico não se teria visto misturado nesse assunto a não ser porque uma das vítimas era um cavaleiro de título, sem muita vontade de ter entendimentos com a polícia.

O cavalheiro tinha perdido um relógio de bolso de ouro, herança de seu padrasto.

 

Charlotte deu as boas-vindas a seu marido com aquela mescla de carinho e ternura que sentia sempre ao ver seu desalinhado aspecto, a gola torcida de sua camisa, a jaqueta cheia de rugas. abraçaram-se durante um longo minuto.

Depois lhe serviu um prato de sopa quente, e em seguida o resto do jantar. Não quis incomodá-lo com um assunto tão corriqueiro como o do desaparecido objeto de sua mãe.

Na manhã seguinte, em seu dormitório, Charlotte ficou frente ao espelho para ajustar o lenço ao pescoço, ocultando a marca que tinha ficado ao tirar o colarinho do ano anterior. Depois colocou seu melhor broche de camafeu. Achou-se atraente.

Apesar da gravidez de três meses, ainda não se apreciava nenhuma mudança em sua silhueta; com o costumeiro espartilho de baleias, capaz de impor às cinturas mais recalcitrantes sua elegante curva (espartilho muito incômodo, entretanto, para as mulheres de formas mais generosas, e quase insuportável para as gordinhas),

Charlotte parecia tão esbelta como sempre. O vestido de lã verde escuro ressaltava seu suave tom de pele e seu brilhante cabelo. O lenço atenuava a severidade do vestido, lhe dando um toque um pouco mais feminino. Charlotte não queria que ninguém pensasse que tinha descuidado de seu aspecto, e menos que ninguém sua mãe.

A carruagem chegou às onze. Em meia hora esteve do outro extremo da cidade e, depois de percorrer ao trote toda a aprazível extensão do Lincolnshire Road, chegou ao Rutland Place, tranqüila praça ladeada de árvores.

Deteve-se frente ao número 12. O lacaio abriu a porta e ajudou ao Charlotte a descer à calçada molhada.

—Obrigado - disse ela sem olhar ao redor, como se estivesse perfeitamente acostumada a aquele lugar; de fato o tinha estado até só alguns anos atrás.

O mordomo abriu a porta antes que ela chegasse a tocá-la.

—Bom dia, senhorita Charlotte - disse com uma leve inclinação da cabeça.

—Bom dia, Maddock. -Charlotte lhe sorriu. Conheciam-se desde que ela tinha dezessete anos, quando ele começou a trabalhar como mordomo da família no Cater Street, antes da série de crimes durante os quais tinha conhecido ao Pitt e se apaixonara.

—A senhora Ellison está no salão, senhorita Charlotte. -Maddock a precedeu com passo ágil para lhe abrir a porta.

Caroline estava de pé em meio da sala. Atrás dela, um fogo chispava na lareira. Um ramo de narcisos enchia de reflexos dourados a polida superfície da mesa.

Caroline usava um vestido de tom pêssego, suave como as cores do entardecer; sem dúvida um vestido caro para sua atual situação econômica.

Em seu escuro cabelo não se viam mais de uma dúzia de fios brancos. Em seguida se adiantou.

—Querida, me alegro de vê-la! Tem um aspecto esplêndido. Aproxime-se e esquente-se um pouco. Não entendo que sendo primavera continue fazendo este frio. Tudo está florido e cheio de vida, mas o vento corta, como uma faca. Obrigado, Maddock.

Almoçaremos dentro de uma hora.

—Muito bem, senhora. -O mordomo fechou a porta atrás dele. Caroline rodeou com seus braços ao Charlotte, estreitando-a com força.

—Deveria vir mais freqüentemente, Charlotte. Sinto sua falta. Ultimamente Emily está tão ocupada com seu círculo social que mal a vejo.

Charlotte respondeu ao abraço e logo retrocedeu. Emily, sua irmã menor, casara-se com um membro da aristocracia, e desfrutava de todos seus privilégios. Ninguém queria falar da terceira irmã, Sarah, que tinha morrido de forma tão espantosa no Cater Street.

—Enfim! Sente-se, querida. -Caroline se instalou no sofá, enquanto Charlotte se sentava em uma poltrona frente a ela-. Como está Thomas?

—Muito bem, obrigado. E também Jemima. -Charlotte se antecipou à esperada fileira de perguntas-. A casa é muito agradável e a nova criada é muito satisfatória.

Caroline sorriu.

—Alguma vez mudará, não é, Charlotte? Continua dizendo o que lhe ocorre sem refletir nem um segundo. Tem a sutileza de uma locomotiva! Não sei o que teria feito com você se não tivesse se casado com o Thomas Pitt.

Charlotte lhe dedicou um amplo sorriso.

—Ainda me estaria arrastando de festa em festa, cada uma mais sofisticada, esperando convencer à mãe de algum desafortunado jovem de que em realidade sou melhor do que pareço.

—OH, por favor!

—O que lhe roubaram, mamãe?

—Querida, asseguro-lhe que não entendo como acaba sempre averiguando tudo. Se parece incapaz de convencer a um policial de que te dê à hora!

—Não estranharia, mamãe. Os policiais estão sempre dispostos a dar a hora, no improvável suposto de que saibam. Quando quero posso ser muito sutil.

—Então mudou muito ultimamente!

—O que perdeu, mamãe?

O rosto de Caroline mudou e seu sorriso se apagou. Vacilou procurando as palavras exatas.

—Uma jóia. Um pequeno medalhão pendendo de uma argola de ouro. Não tinha grande valor, naturalmente. Era bem pequeno, e nunca pensei que fosse de ouro maciço. Mesmo assim era muito formoso. Tinha uma pérola engastada e, como é lógico, abria-se.

Charlotte disse a primeira coisa que lhe ocorreu.

—Talvez uma das criadas o tenha tomado emprestado com a intenção de devolvê-lo e tenha esquecido.

—Mas querida, acha que não pensei nisso? -Por seu tom, Caroline parecia mais inquieta que irritada-. Nenhuma das garotas tinha a tarde livre desde o momento em que o vi por última vez até que senti falta dele. Além disso, não acredito que o fizessem. Para ajudante de cozinha não teria apresentado a oportunidade, sem contar que tem só quatorze anos e não me parece que pense nessas coisas. A copeira –esboçou um débil sorriso- é tão formosa como costumam ser as de seu ofício.

Não sabia que Maddock tivesse tão bom gosto para escolher ao pessoal! A natureza foi bastante generosa com ela e não precisa polir-se com jóias roubadas. Quanto a minha criada pessoal, merece-me total confiança. Tive a Mary a meu lado desde que nos mudamos aqui. Veio de parte de lady Buxton, que a conhecia desde menina. É a filha de seu cozinheiro. Não - voltou a franzir o sobrecenho-, receio que foi alguém alheio a casa.

Charlotte experimentou em outra direção.

—Alguma de suas criadas tem noivo, ou pretendentes?

Caroline arqueou as sobrancelhas.

—Não que eu saiba; Maddock é muito estrito. Em todo caso, custa-me imaginar que entrassem aqui e chegassem até meu quarto de vestir.

—Suponho que terá perguntado ao Maddock.

—Naturalmente! Charlotte posso me ocupar do mais claro sem sua ajuda. Se fosse tudo tão simples, não te teria incomodado. -Aspirou profundamente, e depois exalou pouco a pouco, movendo ligeiramente a cabeça-. Perdoe-Me. É que se trata de um assunto tão lamentável! Não concebo que o tenha feito um de meus amigos, ou alguém de sua família.

E, entretanto, que outra possibilidade fica?

Charlotte olhou a sua mãe: tinha os dedos entrelaçados no regaço e espremia o lenço com tal força que o tecido parecia a ponto de rasgar-se. Agora se dava conta do dilema. Se se decidisse pôr uma denúncia (ou inclusive se se limitava a fazer pública a perda da jóia), semearia a dúvida entre seus conhecidos. Todos os vizinhos do Rutland Place acreditariam que Caroline suspeitava deles e mais de uma velha amizade podiam turvar-se.

Talvez alguns criados perdessem seu emprego ou, pior ainda, sua reputação. Como quando se atira uma pedra à água, a onda expansiva daquele desagradável assunto se estenderia até envenenar tudo.

—Trata de esquecê-lo, mamãe -se apressou a dizer Charlotte e lhe pegou a mão-. Recuperar a jóia não te compensaria do dano ocasionado por uma investigação. Se alguém te perguntar, diga que o alfinete estava frouxo e que deve ter se soltado. Em cima do que o levava?

—Na jaqueta que faz jogo com meu vestido de rua arroxeado.

—Então não é de estranhar. Pode ter caído em qualquer lugar, inclusive na rua.

Caroline negou com a cabeça.

—O alfinete era excelente. Além disso, tinha uma correntinha com um pequeno fechamento suplementar de segurança que eu nunca esquecia de ajustar.

—Por Deus, não há necessidade de que mencione isso se lhe perguntarem!

Embora duvide que o façam. Quem lhe deu de presente isso? Papai?

O olhar de sua mãe se deslocou levemente por cima do ombro do Charlotte e contemplou como, depois da janela, o sol primaveril salpicava de luz o arbusto de louro.

—Não; a ele não teria reparo em explicar, Foi sua avó, num Natal passado. E já sabe que memória tem!

Charlotte teve a estranha sensação de que algo importante lhe escapava.

—Tenho certeza de que a avó perdeu algo alguma vez em sua vida - respondeu. - Explique-lhe antes que saiba. Provavelmente reaja de forma irada, como se fosse impossível que lhe acontecessem tais coisas; mas poderá suportar, tenho certeza.

Além disso, de qualquer modo acabaria por ficar de mau humor em algum momento -sorriu-.

Assim terá uma boa desculpa.

—Sim - disse Caroline piscando, sem muita convicção.

Charlotte passeou seu olhar pelo aposento: cortinas verde pálido, tapete macio, um ramo de narcisos, quadros nas paredes... Em uma esquina, o piano que Sarah costumava tocar, coberto com fotografias da família. Sua mãe estava sentada na beira do sofá, como se se achasse em um lugar desconhecido e se mantivesse em guarda.

—O que ocorre, mamãe? -perguntou Charlotte com certa brutalidade-. Por que lhe importa tanto esse medalhão?

Caroline contemplou as mãos, fugindo o olhar de sua filha.

—Dentro havia uma lembrança, uma lembrança... bastante pessoal. Seria muito... grave para mim se caísse em mãos de... alguém. Era algo de índole sentimental. Certamente me entende. O mau é ignorar quem o tem! É como saber que um desconhecido lê suas cartas.

Charlotte suspirou com alívio. Embora não soubesse bem o que tinha temido, de repente seus músculos relaxaram. Agora que o entendia, compreendia que tudo era muito simples.

—Ah. Por que não começou por aí? -Não tinha sentido sugerir que possivelmente o ladrão não o tivesse aberto. O primeiro que faz qualquer um ao achar um medalhão é olhar seu conteúdo-. Talvez naquele dia esquecesse de fechá-lo. E se caiu, a fim de contas? Suponho que terá examinado a fundo a carruagem...

—Sim, fiz isso imediatamente.

—Quando recorda tê-lo visto pela última vez?

—À tarde em que fui a uma reunião em casa do Ambrosine Charrington. Vive no número dezoito. Uma mulher encantadora! -Caroline sorriu-. Gostaria muito dela, é uma excêntrica.

—Seriamente? Em que sentido?

Caroline a olhou com surpresa.

—OH, é uma pessoa de tudo respeitável! Seu avô era conde e seu marido é Lovell Charrington, um homem notável. A própria Ambrosine foi apresentada na Corte quando fez sua apresentação. Isso faz muito, claro, mas segue tendo bons contatos.

—Não parece muito excêntrica - disse Charlotte, pensando que provavelmente para sua mãe a palavra "excêntrica" tivesse um significado muito diferente que para ela.

—Gosta de cantar - explicou Caroline-. Canções muito estranhas. Não me ocorre onde pôde aprendê-las. Também é exageradamente desorientada. Esquece inclusive coisas que uma mulher de boa posição deve ter sempre pressente: quem foram às visitas da última semana, quem está aparentado com quem... de vez em quando comete os mais assombrosos equívocos.

Charlotte sentiu imediata simpatia por aquela mulher.

—Melhor para ela. Deve ser divertido. -Recordou as intermináveis tardes anteriores a seu matrimônio, quando Caroline levava a suas três filhas para visitar as mães de homens casadouros. Sentadas em poltronas acolchoadas, bebiam chá morno enquanto as mães comparavam ganhos, elegância no vestir, brancura de pele e simpatia.

Enquanto isso, as filhas se perguntavam quem seria o próximo jovem a quem iriam ser apresentadas, e quem a próxima candidata a sogra que, com olhar agudo, ia examiná-las. A lembrança a estremeceu. Imaginou ao Pitt em seu escritório com chão de linóleo, frente a sua escrivaninha carregada de papéis; imaginou por becos e casas de vizinhos, perseguindo falsificadores e traficantes de objetos roubados, e só muito de vez em quando em bairros elegantes atrás de ladrões de bancos e desfalcadores, talvez inclusive de algum assassino.

—Charlotte? -A voz de sua mãe a devolveu a aquela confortável sala de estar do Rutland Place.

—Sim, mamãe. Talvez seja preferível que não o mencione a ninguém. No fim de contas, se alguém o roubou será difícil que o admita. Mas se o encontra uma pessoa decente e decide devolvê-lo, não acredito que lhe ocorra examinar algo tão pessoal. E se o fizesse não lhe prestaria muita atenção. Não temos assuntos privados?

Caroline sorriu forçadamente, passando por cima do fato de que o ladrão seria incapaz de identificar à proprietária sem a prévia abertura do medalhão em busca de um nome gravado.

—Sim, claro. -ficou em pé-. Bem, já é hora de almoçar. Está estupenda, querida, mas tem que vigiar sua alimentação. Recorde que o que come não é só para você!

O almoço foi delicioso, muito mais que o que Charlotte teria comido em casa – já que ao meio dia costumava contentar-se com algo leve. Comeu com apetite. Depois saíram para o jardim para tomar ar. Ao amparo das fachadas, o clima era muito agradável.

Pouco antes das três voltaram para o salão. A primeira visita da tarde se apresentou passada uma meia hora.

—A senhora Spencer-Brown - anunciou à copeira. - Devo dizer que está em casa?

—Sim, naturalmente - assentiu Caroline. Quando a moça saiu da sala, disse à Charlotte-: Vive justo em frente, no número onze. Seu marido é um autêntico chato, mas ela é muito vivaz e bonita.

A porta voltou a abrir-se e a copeira fez passar à convidada. Teria uns trinta e quatro anos. Era muito esbelta, de traços agradáveis. Charlotte jamais tinha visto um pescoço tão longo e estilizado. Seus loiros cabelos estavam recolhidos sobre a nuca em um coque à última moda. Estava vestida de renda clara.

—Mina, querida, que alegria vê-la! -disse Caroline com jovialidade, como se nada a tivesse inquietado em todo o dia-. Sua visita é muito oportuna.

Mina se voltou para Charlotte, com um brilho no olhar.

—Acredito que não conhece minha filha, a senhora do Thomas Pitt. –Caroline efetuou as apresentações de rigor-. Charlotte, querida, esta é minha amável vizinha, a senhora Spencer-Brown.

-Como está, senhora -Charlotte inclinou levemente a cabeça.

Mina respondeu com o mesmo gesto.

—Tinha tanta vontade de conhecê-la! -disse, esquadrinhando Charlotte.

Parecia tomar nota mentalmente de todos os detalhes do vestido, das botas levemente desgastadas até o bonito penteado do cabelo, como querendo julgar a perícia de sua criada (e daí deduzir o nível geral de sua vida).

Acostumada a semelhantes exames, Charlotte o suportou sem pestanejar.

—É muito amável - respondeu com um sorriso-. Estou convencida de que se tivesse ouvido falar mais de você estaria igualmente impaciente por conhecê-la. -Sabia que Caroline a estava observando com inquietação. Charlotte continuou sorrindo, cada vez com maior descaramento-. Mamãe é muito afortunada de ter como vizinha a uma pessoa tão simpática. Ficará para tomar o chá conosco, não é?

Mina certamente pensava ficar, mas ficou perplexa ao ver que falavam do assunto quando mal acabava de entrar.

—Pois... sentir-me-ia honrada, senhora Pitt; agradeço. -sentaram-se todas de uma vez, Mina em frente à Charlotte a fim de poder observá-la com dissimulação-. É a primeira vez que a vejo no Rutland Place. Vive muito longe?

Charlotte tomou cuidado de não mencionar a Jemima como desculpa, pois as mulheres da posição de Mina não eram obrigadas a cuidar de seus filhos.

Primeiro se ocupava deles uma ama, aos cinco ou seis anos uma babá, e finalmente uma governanta ou preceptora.

—Não muito longe -respondeu-. Mas já sabe, sempre se acaba freqüentando seu círculo mais próximo.

Caroline fechou os olhos. Charlotte ouviu em seus lábios um tênue suspiro.

Mina ficou perplexa por uns instantes. A resposta não a tinha satisfeito e tampouco dava alguma pista.

—Sim, claro -disse. Respirou fundo, alisou as saias e voltou ao ataque-. Tivemos o prazer de conhecer sua irmã, Lady Ashworth. Uma pessoa encantadora.

Insinuava deste modo que se uma pessoa como Emily, de tão alta categoria social, conseguia achar tempo, também Charlotte deveria ser capaz de fazê-lo.

—Tenho certeza de que minha irmã também o pensa de você - Charlotte sabia que sua irmã se teria aborrecido como uma ostra, mas Emily sempre tinha tido talento para dissimular suas emoções.

—Assim o espero - respondeu Mina-. O senhor Pitt tem interesses no centro?

—Sim - disse Charlotte, fiel à verdade-. Suponho que agora estará lá.

Caroline se afundou um pouco mais na poltrona, como querendo fingir que estava ausente.

O rosto de Mina se iluminou.

—Seriamente? Muito sensato de sua parte! Um homem ocioso é presa fácil para companhias pouco recomendáveis, e pode acabar esbanjando tempo e dinheiro. Não acha?

—Não tenho a menor duvida -disse Charlotte, perguntando-se o que teria ocasionado aquele comentário.

—A cidade também tem suas armadilhas, claro - prosseguiu Mina-. Nesta mesma praça há gente de costumes estrambóticos. Sempre estão ocupados nas ruas do centro. Mas é natural que os jovens façam essas coisas, e em segundo os quais até é de esperar. Já se sabe, os antecedentes familiares sempre influem!

Charlotte ignorava totalmente a que se referia.

Sua mãe se levantou e, com tom quase inaudível e expressão serena, disse:

—Se se referir ao Inácio Charrington, consta-me que tem amigos no centro. Sem dúvida gosta de almoçar com eles de vez em quando, ou possivelmente ir ao teatro, a concertos...

Mina arqueou as sobrancelhas.

—Certamente. Só espero que tenha escolhido com prudência, e que essas pessoas mereçam sua amizade. Você não conheceu a pobre Ottilie, não é?

—Não - disse Caroline.

Mina enrugou o rosto em uma careta de comiseração.

—A pobrezinha morreu no verão anterior antes que você se instalasse aqui, se minha memória for boa. Era jovenzíssima, não mais de vinte e três anos.

Charlotte passeou seu olhar de uma a outra interlocutora, na espera de alguma elucidação.

—Não, vocês não a conheceram... -disse Mina, agarrando na hora a oportunidade-. Era a filha do Ambrosine Charrington, a irmã do Inácio. Uma história trágica olhe-se por onde se olhe. No verão foram ao campo passar algumas semanas. Ottilie estava em perfeito estado de saúde quando partiram, ou pelo menos o parecia. Então, nessas duas semanas, morreu. Que espanto!

Todos ficamos aniquilados!

—Quanto o sinto! -Charlotte o disse sinceramente. Aquela história de uma vida truncada em sua plenitude impressionava, entre tanto palavrório vão de alta sociedade-. Deve ter sido muito doloroso. Para sua família, quero dizer...

Os finos dedos de Mina voltaram a passear por sua saia, alisando-a ainda mais sobre os joelhos.

—Suportaram-no com a maior integridade. -Suas formosas sobrancelhas se levantaram, como se o fato seguisse a surpreendessem. - É impossível não admirá-los, particularmente ao Ambrosine, a senhora Charrington. Viveu a tragédia com tanta dignidade... Se não tivesse presenciado os acontecimentos, asseguro-lhe que chegaria a duvidar de que tivesse acontecido. Jamais ouvirá sua família falar dela, sabe?

—Mas a ferida continua aberta -respondeu Charlotte-. É impossível esquecer, por muito que se finja ser valente.

—OH, céus! -Mina perdeu a compostura-. Espero não havê-la incomodado, senhora Pitt! Não era minha intenção despertar lembranças dolorosas.

Charlotte lhe sorriu, afastando Sarah de seu pensamento e esperando que sua mãe tivesse feito outro tanto.

—Jamais me ocorreria tal coisa - disse com suavidade-. Suponho que todos perdemos a alguém em um momento ou outro. Duvido que exista uma só família britânica que não tenha visto como a morte arrebatava a um dos seus.

Antes que Mina tivesse encontrado uma fórmula adequada para mostrar sua conformidade de parecer, a porta do salão se abriu. Uma mulher de avançada idade entrou na sala com expressão de irritação. Um bonito xale de renda caía sobre seus ombros, e suas negras botas brilhavam como espelhos.

—Boa tarde, senhora Spencer-Brown -disse secamente-. Não sabia que recebia visitas esta tarde, Caroline. -Olhou ao Charlotte e, dando um passo à frente, exclamou-: Valha-me Deus! Se é Charlotte! Decidiu-se por fim a se rodear outra vez de companhias decentes?

—Boa tarde, avó. -Charlotte ficou em pé, oferecendo a anciã a poltrona mais cômoda, que tinha estado ocupando.

A anciã aceitou a gentileza. Depois de mover as almofadas e sacudir o pó do assento, sentou-se. Charlotte pegou uma cadeira de espaldar rígido.

—Isso é o que lhe convém -disse a anciã, assentindo com a cabeça-. Na sua idade pode danificar a coluna sentando-se nestas poltronas. Em minha época, as garotas se sentavam sempre corretamente erguidas. Não como agora, com esta mania de sair sem acompanhante, ir ao teatro e todo o resto! E eletricidade por toda parte! Não pode ser saudável. Só Deus sabe que porcarias flutuam no ar! Bastante más já são as luzes de gás. Se o bom Deus tivesse querido que a noite fosse igual ao dia, deixaria que a lua brilhasse tanto como o sol.

Sem fazer conta, Mina se voltou para Charlotte com entusiasmo.

—Vai sozinha ao teatro, senhora Pitt? Que excitante! Conte-nos, ocorrem-lhe muitas aventuras?

A avó tirou um lenço e assoou ruidosamente.

Charlotte sopesou a possibilidade de fingir que fazia essas coisas, só para desgostar a sua avó, mas decidiu que não valia à pena incomodar a sua mãe.

—Não, nunca fiz nada semelhante - disse com tom de pesar-. É perigoso?

—Valha-me Deus! -exclamou Mina com assombro-. Não tenho nem idéia. Ouvem-se histórias, claro, mas... -de repente sufocou uma risada-. Terei que perguntar à senhora Denbigh! Se quisesse, atrever-se-ia; é desse tipo de mulheres que têm a coragem de fazê-lo.

—Sim, é muito provável. -A anciã olhou cuidadosamente a Mina-. Sempre pensei que a moralidade do Amaryllis Denbigh deixa que desejar, embora sendo viúva deveria saber melhor que lugar lhe corresponde. Caroline! Servir-nos-ão o chá esta tarde ou teremos que continuar falando até o anoitecer?

Caroline pegou a campainha.

—Claro que o servirão, mamãe. Só estávamos esperando a que se unisse a nós. -Com os anos, foi-se acostumando a chamar "mamãe" a aquela mulher, apesar de em realidade ser a mãe do Edward.

—Seriamente? -respondeu a anciã com cepticismo-. Espero que haja bolachas.

Não suporto esse pão que faz constantemente a cozinheira. Essa mulher é uma possessa do pão. Meus criados sabiam muito bem como preparar saborosas bolachas. Ensinei-lhes como é devido. Disso depende tudo. Basta que não lhes consinta tudo e terá bolachas quando quiser.

—Mamãe, tenho todas as bolachas que gosta! -A paciência de Caroline começava a fraquejar-. Além disso, hoje em dia é muito difícil conseguir bom pessoal. Os tempos mudam!

—E não para melhor! -A avó olhou exaltadamente à Charlotte, mas se absteve de fazer comentários sobre mulheres respeitáveis que se casam com um policial.

Conteve-se só por achar-se em presença de uma estranha que, graças a Deus, nada sabia do assunto.

Se chegasse a inteirar-se, em poucos dias estaria na boca de toda a vizinhança! Então, sabe Deus que comentários iriam escutar se, e o que iam pensar as pessoas. - E não para melhor - repetiu à anciã.

Mulheres ganhando seu salário em escritórios, como simples empregadas, quando deveriam trabalhar como criadas em uma boa casa! Quando se viu algo assim? E quem vigia sua moralidade, se pode saber-se? Não há mordomos nos escritórios. Nem tampouco muitas mulheres, graças ao céu! As mulheres devem ficar em casa! A sua, ou, se não tiverem, na de seus familiares.

Ocorria mais de uma resposta, à Charlotte, mas mordeu a língua. A conversa derivou então para uma enxurrada de banalidades a respeito da moda e o clima, com referências ocasionais a outros habitantes do Rutland Place, severamente julgados pela anciã. Quase tinham acabado quando Edward entrou na sala, esfregando-as mãos por causa do frio.

—Charlotte, querida! -Seu rosto se iluminou de alegria e surpresa-. Não sabia que viria; teria voltado antes. -Charlotte se levantou para lhe dar um beijo na face-. Tem um aspecto estupendo.

—Obrigado, papai. Estou muito bem. -Charlotte deu uns passos atrás, e Edward reparou em Mina. Seu vestido de renda destacava-se contra o brocado do sofá e as almofadas.

—Me alegro de vê-la, senhora Spencer-Brown. -Edward fez uma reverência.

—Boa tarde, senhor Ellison - respondeu Mina, olhando alternativamente ao Edward e Charlotte. Parecia muito interessada pelo fato de que ele não esperava ver sua filha aí-. Tem frio -observou-. Deseja sentar-se junto à lareira? –Apartou suas saias para lhe fazer lugar no sofá.

Teria sido descortês dizer que não. De todo modo, Edward considerava como seu o lugar junto ao fogo. Tomou assento com movimentos cautelosos.

—Obrigado. Não há dúvida de que o tempo mudou. Receio que choverá.

—Nesta época do ano não pode esperar-se nada melhor - respondeu Mina.

Por cima da mesinha, Caroline olhou a sua filha com expressão de impotência.

Depois fez soar a campainha para pedir o chá do Edward, e também mais bolachas.

Edward acolheu as bolachas com evidente satisfação e durante vários minutos se encetaram em uma conversa corriqueira.

—Encontrou o broche que tinha perdido, querida? -perguntou Edward, voltando-se para Caroline, mas sem afastar seu olhar das bolachas.

Caroline se ruborizou ligeiramente.

—Ainda não, mas logo aparecerá.

—Não sabia que tivesse perdido algo! -exclamou a avó-. Não me disse isso!

—Não havia motivo, mamãe - replicou Caroline, evitando olhá-la nos olhos-. Tenho certeza de que se o tivesse encontrado o teria mencionado.

—Do que se trata? -A anciã não tinha intenção de soltar sua presa tão facilmente.

—Ah, sinto muito! -Mina se somou à discussão-. Espero que não seja nada de valor!

—Estou convencida de que aparecerá - respondeu Caroline com crescente dureza na voz. Charlotte ergueu o olhar e viu que as mãos de sua mãe voltavam a espremer o lenço, brancas pela pressão do tecido.

—O mais provável é que o tenha perdido - disse com um sorriso artificial-. Estará em alguma roupa que já não recorda ter levado.

—Isso espero - disse Mina meneando a cabeça. Seus grandes olhos azuis destacavam em seu frágil rosto-. Eu não gosto de ter que falar disso, querida, mas ultimamente no Rutland Place alguém tem...se apropriado mais de um objeto. -ficou olhando aos assistentes.

—Se apropriado? -disse Edward com incredulidade-. A que se refere?

—Pois é isso. Se apropriado- repetiu Mina-. Odiaria ter que usar outras palavras.

—Quer dizer que os roubaram? -perguntou a avó com voz imperiosa-. Já o dizia eu! Quando não se costuma bem aos criados nem se leva a casa como é devido, não é estranho que aconteçam essas coisas. Semeia ventos e recolherá tempestades! Sempre o disso.

—Não o inventou você, avó -respondeu Charlotte-. Essa frase está na Bíblia.

-Não seja impertinente - replicou a anciã.

Edward não parecia dar-se conta da angústia de sua mulher, nem dos esforços de Charlotte de dar o tema por resolvido.

—Diz você que houveram mais roubos? -perguntou a Mina.

—Receio que sim. É realmente horrível! A pobre Ambrosine perdeu uma magnífica correntinha de ouro, de sua própria penteadeira.

—Criados! -grunhiu a anciã-. Sua classe está degenerando. Levo anos dizendo-o! Nada tornou a ser igual desde a morte do príncipe Alberto em sessenta e um. Esse sim era um homem de princípios! Não estranho que nossa pobre rainha esteja sempre de luto.

Eu faria o mesmo se meu filho se comportasse como o príncipe do Gales. -Voltou a soprar de indignação-. O país inteiro sabe de suas correrias!

—... E meu marido perdeu uma caixinha de rapé com tampa de cristal que estava no suporte da lareira - continuou Mina, sem fazer caso à anciã-.

E a pobre Eloise Lagarde, uma abotoadura de prata que levava na bolsa. Pobre moça! -Olhou à anciã com ingenuidade-. Que oportunidades teria um criado para roubar todas essas coisas? No fim de contas, os criados não entram em casa de outra pessoa.

As sobrancelhas da anciã se arquearam, e seu nariz se dilatou.

—Pois, é evidente que há mais de um criado desonesto no Rutland Place! O mundo inteiro se encaminha ao desastre. Só Deus sabe como acabará.

—Acabará com que todos voltarão a achar o que perderam – disse Charlotte, ficando em pé-. Foi um prazer conhecê-la, senhora Spencer-Brown.

Espero ter mais ocasiões de lhe falar, mas a tarde se está pondo feia e parece que vai chover. Deverá me desculpar. Tentarei voltar para casa antes de acabar empapada. -Sem esperar resposta fez uma reverência, deu a sua avó um leve beijinho na face, acariciou a seu pai de passagem e estendeu o braço a sua mãe, convidando-a a que a acompanhasse até a porta.

Depois de uns murmúrios perplexos de despedida, Caroline aproveitou a oportunidade. Ia atrás de Charlotte quando saíram ao saguão. Fechou a porta do salão atrás delas.

—Maddock! -chamou Caroline-. Maddock! O mordomo apareceu em seguida.

—Sim, senhora. Aviso ao cocheiro para a senhorita Charlotte?

—Sim, faça-o. Por certo, Maddock, diga ao Polly que corra as cortinas, por favor.

—Faltam ainda umas horas para que anoiteça, senhora -disse o mordomo, um pouco surpreso.

—Não discuta, Maddock! -Caroline respirou com força, tranqüilizando-se um pouco-. Começa a levantar-se vento e não demorará para chover. Faça o que lhe peço, por favor.

—Muito bem, senhora. -Maddock se retirou, rígido e erguido com seu impecável traje negro. Charlotte se voltou para sua mãe.

—Mamãe, por que é tão importante esse medalhão? E por que quer que se corram as cortinas às quatro da tarde?

Caroline ficou olhando-a. Charlotte tocou suavemente a sua mãe. Seu corpo se notava tenso sob o delicado vestido.

Caroline deixou escapar o fôlego pouco a pouco, olhando atrás do Charlotte, para a luz que entrava pelas janelas.

-Não estou muito certa... Parecer-te-ei uma histérica, mas sinto como se alguém me estivesse vigiando... e esperando!

Charlotte não soube o que responder. Sua mãe tinha razão: soava a puro histerismo.

—Sei que são tolices - continuou, abraçando o corpo e tiritando um pouco, apesar do saguão estar bem quente-. Mas não consigo separar de minha mente esta sensação.

Tentei me convencer de que não terá que ser tão fantasiosa, me dizer que a gente está muito ocupada para dedicar-se a vigiar meus movimentos. E, entretanto, continua aí a sensação de uns olhos que vigiam, de uma mente que sabe e espera o momento!

Por certo era uma idéia horrível.

—Que espera o que? -perguntou Charlotte que tentava devolver um pouco de bom senso ao assunto.

—Não sei! Um falso movimento? Sim, espera a que dê um passo em falso.

Charlotte sentiu um calafrio. Tudo aquilo soava insalubre, mórbido inclusive, como um repentino sopro de loucura. Se sua mãe estava tão nervosa, como não se dera conta Edward? Como não tinha chamado a suas duas filhas para pensar em alguma solução? Ou, em último extremo, que tivesse chamado ao médico.

Havia a avó, claro, sempre à espreita e disposta a criticar o que fosse; mas Charlotte não recordava tê-la visto de outro modo, e ninguém se preocupava que fosse assim.

Comportava-se igual com todo mundo. Sentir-se por cima de outros era seu maior estímulo para continuar viva, agora que tantos de seus velhos amigos tinham morrido.

Caroline fez um esforço por controlar-se.

—Acredito que poderá chegar a casa antes que comece a chover. Pensando bem, duvido que caia alguma gota.

Para Charlotte era indiferente que chovesse ou nevasse.

—Sabe quem pegou o medalhão e todo o resto, mamãe?

—Não, claro que não! Pelo amor de Deus, como me pode perguntar isso? Se soubesse, acha que lhe teria pedido ajuda?

—Por que não? Poderia ter querido recuperá-lo sem intervenção da polícia, em caso de tratar-se de um amigo ou um criado, ou de qualquer outra pessoa.

—Pois já lhe disse que não tenho a menor idéia a respeito!

De repente Charlotte entreviu o evidente. Perguntou-se como tinha sido tão cega, como não se dera conta antes.

—O que há dentro do medalhão, mamãe?

—O que há... - engoliu em seco - dentro?

—Sim, mamãe, o que contém? -Quase se arrependia de tê-lo perguntado.

Caroline estava pálida e por uns momentos guardou silêncio. Na rua se ouvia o relinchar das rodas da carruagem, e o soprar de um cavalo.

—Uma fotografia - disse finalmente.

Charlotte a olhou. Pronunciou as seguintes palavras quase contra sua vontade, ouvindo sua voz como se fosse alheia:

—De quem?

—De um... um amigo. Só um amigo. Mas preferiria que não o visse ninguém mais. Poderiam interpretar mal-se meus sentimentos e me pôr em um apuro, ou inclusive... -Vacilou.

—Inclusive o que, mamãe? -perguntou Charlotte em voz baixa.

Maddock tinha voltado para o saguão levando a capa e o lacaio esperava na porta.

—Inclusive, quem sabe... que me pressionassem -murmurou Caroline.

Charlotte estava acostumada a palavras e pensamentos desagradáveis. O crime fazia parte da vida diária do Pitt, e Charlotte compartilhava suas penas e inquietações.

—Está falando de chantagem? -perguntou.

Caroline fez uma careta de dor.

—Sim, suponho que sim.

Charlotte a rodeou com seus braços e por um momento a abraçou estreitamente.

Aos olhos do Maddock e do lacaio, sem dúvida se tratava de uma afetuosa despedida.

—Então teremos que recuperá-lo - sussurrou Charlotte-, e nos assegurar de que não cause nenhum dano. Não se preocupe, conseguiremo-lo. -Depois deu um passo atrás e disse-: Obrigada por uma tarde tão agradável, mamãe. Espero não demorar tanto em voltar.

Caroline pestanejou e respirou fundo.

 

Três dias depois, Charlotte recebeu uma nova mensagem de Caroline, relacionado com o mesmo tema. Desta vez comentou com Pitt. Sentaram-se em frente à lareira, depois de deitar a Jemima, e estava costurando enquanto Pitt contemplava as chamas e se reclinava cada vez mais em sua poltrona.

—Thomas... -Charlotte afastou o olhar de seus trabalhos, sustentando a agulha no ar.

Pitt voltou à cabeça e se endireitou um pouco, até apoiar os pés no ferro da lareira. As chamas chispavam e oscilavam calidamente, pulverizando seus amarelos reflexos pela sala.

—O que?

—Recebi uma carta de mamãe. Está inquieta porque recentemente sentiu falta de uma jóia.

O olhar do Pitt se aguçou. Conhecia a Charlotte mais do que ela mesma suspeitava.

—Devo entender que não refere a um simples extravio?

Charlotte titubeou.

—Não tenho muita certeza. Possivelmente o é. Retomou seu trabalho para dar um pouco de tempo e meditar suas palavras. Não se esperava uma reação tão sagaz. De fato, achava que Pitt estava meio adormecido.

Depois de uns instantes levantou de novo a cabeça, e topou com um olhar brilhante e indagador, como escondida atrás das pestanas. Charlotte respirou fundo, deixando de lado todo esforço de ser sutil.

—Trata-se de um medalhão que contém o retrato de uma pessoa -explicou-.

Mamãe não me disse de quem, mas deduzi que é alguém sobre cuja identidade prefere não dar detalhes. -Sorriu com certa gravidade. - Possivelmente um velho amigo, um homem a quem conheceu antes de casar-se com papai.

Pitt se endireitou, afastando seus pés do ferro. Começava a sentir seu calor, e se não tomasse cuidado lhe iriam chamuscar as pantufas.

—E ela acredita que o roubaram? -perguntou, embora a resposta fosse evidente.

—Sim, acredito que sim.

—Algum suspeito?

Charlotte negou com a cabeça.

—Em todo caso não me quis contar, Naturalmente, se informasse do caso os problemas seriam maiores que o prazer de voltá-lo para achar.

Pitt não necessitava mais explicações. Estava perfeitamente familiarizado com a opinião da alta sociedade a respeito de receber à polícia em casa, com a vulgaridade que indevidamente a acompanhava. Se os ladrões entravam em casa, podia se apresentar uma denúncia; era muito lamentável, mas ao menos se tratava de algo procedente do exterior, uma desgraça que podia ocorrer a todo aquele que possuísse bens cobiçáveis.

Um roubo doméstico era outra coisa. Supunha possíveis e molestos interrogatórios aos conhecidos da vítima. Daí que fosse impensável ir à polícia.

—E espera de você que faça-se discretamente de detetive? -perguntou Pitt com um sorriso.

—Não o faço mal - se defendeu Charlotte-. No Paragon Walk descobri a verdade antes de você! -Assim que disse essas palavras, foram a sua mente imagens desagradáveis e dolorosas. Em contraste com elas, sua vaidosa reação lhe pareceu ridícula, quase uma indecência.

—Mas se tratava de um assassinato - indicou Pitt com sensatez-. E sua sagacidade podia lhe custar muito cara. Não pensará ir perguntando a todos os amigos de sua mãe "roubou você por acaso o medalhão de mamãe? E, nesse caso, incomodaria-se-lhe devolvê-lo sem abrir?"!

—Não me está ajudando muito! -replicou Charlotte com mau humor-. Se fosse tão fácil não lhe teria comentado isso.

Pitt se endireitou na poltrona e, inclinando-se para sua esposa, pegou-lhe a mão.

—Querida, se esse medalhão contiver algo íntimo, o melhor que pode fazer-se é não falar disso. Deixá-lo estar!

Charlotte franziu o sobrecenho.

—Não é só isso, Thomas. Mamãe acredita que alguém a está... espreitando.

Pitt fez uma careta.

—Quer dizer que alguém está esperando a oportunidade de submetê-la a chantagem?

—Suponho que sim. -A mão de Charlotte estreitou a de seu marido-. É uma situação horrível e acredito que a pobre está realmente assustada.

—Se intervier não farei mais que piorar as coisas - disse Pitt suavemente-. Além disso, não posso fazê-lo de forma oficial, a menos que ela mesma me chame.

—Sei. -Os dedos de Charlotte se crisparam.

—Tome cuidado, Charlotte. Sei que tem boa intenção, mas seu rosto é um livro aberto, querida, e sua língua é tão sutil como uma avalanche.

—É injusto! -protestou Charlotte, embora sabia que não o era-. Serei extremamente cuidadosa.

—Continuo pensando que é melhor não intrometer-se, a menos que realmente se produza uma chantagem. Possivelmente não é nada grave, só as apreensões de sua mãe projetando sombras na parede. Uma consciência um pouco intranqüila, possivelmente?

—Não posso permanecer à margem - disse Charlotte com tristeza-. Me pediu que vá vê-la. Tenho que procurar ajudá-la em todo o possível.

—Suponho que tem razão -concedeu Pitt-. Mas seja precavida, pelo amor de Deus! As perguntas não farão mais que atrair a curiosidade, e são o meio mais eficaz para provocar os rumores que ela tanto teme.

Charlotte assentiu, consciente de que Pitt tinha razão; entretanto, já estava fazendo planos para visitar Rutland Place no dia seguinte.

Encontrou Caroline em casa, esperando-a com ansiedade.

—Querida, me alegro de que tenha podido vir! -disse, dando-lhe um beijo na face-. Planejei algumas visitas para esta tarde. Desse modo conhecerá outros vizinhos da praça, sobretudo a aqueles com quem mantenho relação e a quem visitei em suas casas, ou que vieram à minha.

Ao Charlotte lhe caiu a alma aos pés. Sua mãe estava disposta a empreender a busca.

—Mamãe, não acha que seria melhor agir mais discretamente? -perguntou-.

Não quererá que se dêem conta de como é importante é para você, não é? Poderia despertar sua curiosidade. Em troca, se não disser nada possivelmente a coisa passe inadvertida.

Caroline apertou os lábios.

—Queria compartilhar sua opinião, mas tenho certeza de que, seja quem for, já

sabe...-interrompeu-se.

—Sabe o que? -perguntou Charlotte.

—Sabe que o medalhão é meu, e que para mim é importante... Já lhe disse isso, sinto sua presença, seu olhar me espiando. E não me diga que são tolices! Tenho a absoluta certeza de que há uma pessoa... me vigiando, vigiando e rindo! - estremeceu-se-. E cheia de ódio! Inclusive... inclusive em duas ocasiões senti que me seguiam, ao anoitecer. -Suas faces se ruborizaram de confusão.

—Isso soa como se se tratasse de um louco -indicou Charlotte com calma-. Seria muito desagradável, mas mais digno de compaixão que de medo.

Caroline sacudiu a cabeça.

—Preferiria sentir piedade a uma distância um pouco maior.

Charlotte saltou como uma mola.

—Como todo mundo -disse-. O refrão diz "passar ao largo e afastar a vista"... -Se deteve, consciente de que estava sendo injusta.

Sentia-se desconcertada, temerosa de que sua mãe estivesse em um estado de nervosismo fora de controle.

Uma expressão de assombro cruzou fugazmente pelo rosto de Caroline, seguida de uma ira repentina.

-Acaso sugere -replicou- que tenho um dever cristão que cumprir com um ser que não só me roubou o medalhão, mas também se dedica agora a me espiar e me seguir?

Charlotte recriminou-se por ter expresso seus pensamentos com palavras tão francas, sobretudo quando pouco tinham que ver com o problema. Palavras que dificilmente podiam servir de consolo em um assunto que começava a ser mais complexo do que tinha suposto.

—Não -respondeu gravemente-, só tento que perceba que não é tão importante como acredita. Se a pessoa que roubou ou achou o medalhão está espiando-a e zombando de você, então não está em seu são julgamento. Mais que medo, deve lhe inspirar repugnância, e também certo tipo de piedade.

Não é como se um inimigo pessoal quisesse lhe fazer mal e tivesse a habilidade para consegui-lo.

—Não entende! -Caroline fechou os olhos, exasperada-. Não é preciso ser inteligente para me prejudicar! Até um louco de atar seria capaz de abrir um medalhão e ver o retrato.

Charlotte, sentada em silêncio, tentou reorganizar suas idéias. Sem dúvida havia muitas coisas que Caroline não queria revelar. O retrato devia ser algo mais que uma vaga lembrança romântica. Ou aquele sonho continuava dolorosamente vivo, ou se tratava do retrato de alguém que vivia em Rutland place.

—De quem é o retrato, mamãe?

—De um amigo. -Caroline não a olhava-. Um cavalheiro que conheço. Não é mais que uma... lembrança, mas é fácil que se interprete mal.

Um flerte. A surpresa de Charlotte não durou muito. Desde os crimes do Cater Street tinha perdido sua inocência e tinha aprendido muitas coisas. Poucas pessoas são imunes às adulações, a um pingo de aventura que compense a rotina diária.

Edward não o tinha sido. Por que ia ser Caroline?

Assim, guardava um retrato em um medalhão. Uma tolice, mas muito humana.

Outros guardavam flores secas, programas de teatro ou de baile, velhas cartas...

Qualquer marido ou esposa prudente permitia uma margem de intimidade naqueles assuntos, e se abstinha de fazer perguntas ou desenterrar sonhos em busca de respostas. Charlotte sorriu e tentou mostrar-se mais amável.

—Não se preocupe, mamãe. Todos temos nossos assuntos privados. E se não lhe der muita importância, tampouco o farão outros. De fato, não acredito que tenham desejos de fazê-lo. Não só porque a apreciam, mas sim porque também eles terão provavelmente medalhões ou cartas que prefeririam não extraviar.

Caroline sorriu palidamente.

—É muito caridosa, querida. Está há tanto tempo fora dos círculos sociais que vê as coisas da distância, e lhe escapam os detalhes.

Charlotte a pegou pelo braço.

—Acima de tudo, mamãe, a alta sociedade tem senso do prático. Sabe o que pode e que não pode permitir-se. Enfim, a quem quer que visitemos? Me diga algo deles, para me economizar errar e pô-la em apuros.

—Deus santo, que perspectiva! -Caroline tocou o braço de Charlotte em sinal de agradecimento. Primeiro visitaremos os Charrington, para ver o Ambrosine. Já lhe falei dela. Depois, possivelmente à Eloise Lagarde. Acredito que ainda não lhe falei nada sobre ela.

—Não mencionou a senhora Spencer-Brown esse nome?

—Não me lembro. Eloise é uma mulher encantadora, mas um pouco retraída. Cresceu entre algodões. Rogo que se modere em sua presença, Charlotte. É muito delicada.

Para o Charlotte, todos os residentes do Rutland Place viviam entre algodões, incluindo a sua mãe, mas se absteve de mencioná-lo. O pitoresco e febril mundo do Pitt, com suas grandezas e suas misérias, seus ingredientes de farsa e tragédia, não faria mais que assustar ao Caroline. Naquele mundo, a realidade não se suavizava com evasivas e palavras de bom tom.

O espetáculo ao natural da vida e da morte horrorizaria aos habitantes do Rutland Place, do mesmo modo que as inescrutáveis e rígidas normas da boa sociedade aterrariam a um estranho.

—Eloise tem problemas de saúde? -perguntou Charlotte.

—Não me consta que tenha nenhuma enfermidade em concreto, mas há uma série de temas que uma pessoa com tato não tem que mencionar. Às vezes cheguei a pensar que é tísica. Tem um aspecto frágil, e já a vi desfalecer.

Mas, com a moda atual, custa dizer se uma mulher é robusta ou não. Confesso que, quando Mary se esforça em me reduzir a cintura com cordões e baleias aos cinqüenta centímetros de minha juventude, às vezes eu mesma estou a ponto de desmaiar! -Sorriu com contrição.

Charlotte sentiu uma nova pontada de inquietação. Seguir a moda estava bem, mas na idade de sua mãe não havia por que fazê-lo a todo custo.

—Não vi muito ao Eloise ultimamente - continuou Caroline-. Possivelmente o clima inclemente não lhe assente bem, em particular estes frios espantosos.

É bastante bonita. Tem a pele absolutamente branca e os olhos negros, e se move com absoluta elegância. Recorda-me os versos de Lorde Byron: "Caminha bela qual a noite". - Sorriu-. Frágil e delicada como a lua.

—Também escreveu sobre a lua?

—Não, isso é de minha colheita. Enfim, já a verá você mesma e poderá formar uma opinião. Seus pais morreram quando era muito pequena, não mais de oito ou nove anos. Foi educada junto a seu irmão por uma tia. Também a tia morreu, e ambos vivem aqui a maior parte do ano. Só passam algumas semanas em sua casa de campo, quanto muito um mês.

—A senhora Spencer-Brown se referiu a ela como a uma mocinha – disse Charlotte.

—OH, é a maneira de falar de Mina. Eloise deve ter vinte e dois anos, ou possivelmente mais. Tormod, seu irmão, é mais velho três ou quatro anos. -Pegou a campainha e chamou à criada para que lhe trouxesse o casaco-. Bem, é hora de sairmos.

Queria que conhecesse o Ambrosine antes de que sua casa se encha de visitas.

Charlotte teve medo de que o assunto do medalhão voltasse à tona. Mas abotou o casaco e seguiu a sua mãe.

A distância era muito curta. Ambrosine Charrington deu as boas-vindas com um entusiasmo que surpreendeu ao Charlotte. Era uma mulher atraente, de finos traços e pele suave, com apenas algumas leves rugas nos lábios e olhos. Tinha maçãs do rosto bem perfiladas, emoldurados por um escuro cabelo.

Observou ao Charlotte com interesse, reconhecendo instintivamente nela a outra mulher de forte personalidade.

—Como vai, senhora Pitt? -disse com um amplo sorriso-. Estou encantada de que finalmente tenha vindo. Sua mãe me falou muito de você.

Não tinha ocorrido à Charlotte que Caroline falasse dela em sociedade, e menos ainda com freqüência. Sentiu um repentino prazer, inclusive um pingo de orgulho, e se deu conta de que estava sorrindo mais do que exigia a ocasião.

A sala era ampla e estava mobiliada com certa austeridade, pelo menos em comparação com os maciços e recarregados adornos que estavam em voga.

Não se viam os habituais animais dissecados em sinos de cristal, nem composições de flores secas; tampouco quadros de bordados, nem elaboradas toalhas no espaldar das poltronas.

Comparado com outros salões, dava uma impressão espaçosa, quase de nudez.

 

Charlotte o achou agradável, salvo pela coleção de fotografias que cobria uma parede, assim como a tampa do piano e o suporte da lareira. Todas elas mostravam pessoas mais velhas, e a julgar pelo vestuário tinham sido tomadas muitos anos atrás. Evidentemente não eram do Ambrosine nem de seus filhos, mas sim de uma geração anterior.

Charlotte supôs que o homem que aparecia em muitas delas fosse o marido de Ambrosine. Um homem presunçoso, pensou, a julgar pela quantidade de retratos.

Em cima da lareira pendia meia dúzia de armas exóticas.

Ambrosine percebeu o olhar do Charlotte.

—Horríveis, não é? Mas meu marido insiste. Seu irmão mais novo caiu na primeira guerra do Afeganistão, faz quarenta e cinco anos. Estas armas são uma espécie de monumento fúnebre. As criadas sempre se queixam do quão endiabradamente difícil que é limpá-las. Aí em cima não fazem mais que acumular pó.

Charlotte contemplou a coleção de facas em suas bainhas e capas douradas, sentindo-se solidária com as pobres moças.

—Não é verdade? -disse Ambrosine com ardor, observando a expressão de Charlotte-. E estão em perfeitas condições. Bronwen assegura que alguém acabará com o pescoço talhado um dia destes; embora naturalmente não seja sua coisa limpá-las. "Armas bárbaras", chama-as.

Suponho que o são.

—Bronwen? -perguntou Caroline.

—Minha criada. -Ambrosine as convidou a que se sentassem com um gesto-. Essa estupenda moça ruiva.

—Pensava que se chamava Louisa - disse Caroline.

—Assim é. -Ambrosine adotou uma postura elegante no divã-. Mas a melhor criada que tive se chamava Bronwen, e eu não gosto de mudar as coisas boas.

Agora todas minhas criadas se chamam Bronwen. Além disso, assim evito confusões. Há Lilies, Roses e Marys a dúzias!

Não havia nada que objetar. Charlotte se voltou para olhar pela janela para ocultar seu sorriso.

—Encontrar a uma boa criada é toda uma façanha - disse Caroline-.

Freqüentemente as mais competentes deixam a desejar quanto à honradez. Em troca, as que merecem confiança não são tão eficientes como caberia esperar.

—Querida, vejo você muito pessimista -disse Ambrosine com simpatia-. Teve algum problema recentemente?

—Ainda não tenho certeza. -Caroline foi direta ao ponto. - perdi uma pequena jóia, e não sei se se trata de um roubo ou de um simples extravio. É uma sensação muito desagradável. Não queria agir injustamente, quando fica a possibilidade de que tenha sido um acidente.

—É de muito valor? -perguntou Ambrosine franzindo o sobrecenho.

—Nada especial, só que era um presente de minha sogra. Poderia ofender-se, pensar que o tratei com descuido.

—Ou sentir-se adulada, ao ver que entre todas as jóias alguém escolheu a sua-indicou Ambrosine.

Caroline riu com entusiasmo.

—Agradeço-lhe a sugestão. Se fizer algum comentário lhe responderei com este argumento.

—Continuo pensando que o perdeu, mamãe - disse Charlotte, tratando de lhe tirar importância-. Possivelmente aparecerá em alguns dias. Se permitir que a avó pense que o roubaram, começasse a lançar acusações infundadas, e não descansará até que impute alguém como culpado.

Percebendo a aspereza de sua filha, Caroline se deu conta do perigo que estava provocando com suas palavras.

—Tem razão - disse-. O mais prudente é não dizer nada.

—Os que não têm bastante com seus assuntos se apressarão a ocupar-se dos seus se mencionar algo como um roubo - sentenciou Charlotte.

—Compreendo, senhora Pitt, que seu conceito da caridade alheia coincide com o meu. -Ambrosine pegou a campainha e a fez soar-. Quererão me acompanhar a tomar o chá? Além de boa criada, também disponho de excelente cozinheira.

Empreguei-a por sua habilidade em confeitaria. Suas sopas são horríveis, mas como eu não gosto da sopa faço vista grossa.

—Meu marido adora sopas - indicou Caroline.

—Também o meu -disse Ambrosine-. Mas não pode se ter tudo.

A copeira entrou na sala, e Ambrosine pediu que servisse o chá.

—Sabe, senhora Pitt? -continuou-. Seus comentários sobre a curiosidade alheia vêm muito a propósito. Ultimamente tive a inquietante sensação de que alguém se interessa por mim. E por pura bisbilhotice. Até diria que com más intenções.

Charlotte guardou silêncio. A seu lado, sua mãe ficou tensa.

—Que desagradável -disse Charlotte depois de breves momentos-. Tem algum indício de quem pode ser?

—Não, absolutamente; isso é o que o torna inquietante. Trata-se de uma mera, mas recorrente sensação.

A porta se abriu. A copeira entrou com o chá e uma variedade de bolachas e bolos, muitos com creme.

—Obrigado - disse Ambrosine, observando com satisfação um bolo de frutas-.

Possivelmente me esteja deixando levar pela fantasia - continuou quando a moça voltou a sair-. Duvido que alguém tenha tanto interesse em minha pessoa como o que pressupõe o que digo.

Caroline pareceu disposta a dizer algo, mas finalmente desistiu.

—Tem razão - disse Charlotte, apressando-se a romper o silêncio, com o olhar posto no serviço de chá-. Sua cozinheira conhece o ofício muito bem. Se eu contasse com seus serviços certamente não caberia em meus vestidos.

Ambrosine observou a silhueta ainda esbelta de Charlotte.

—Espero que isso não signifique que não pensa voltar a me visitar!

Charlotte sorriu.

—Ao contrário, significa que já tenho duas razões para vir, não só uma. - Pegou o chá que lhe oferecia e um doce de nata. Ninguém se esforçou por observar o cortês preliminar de começar com pão e manteiga.

Apenas cinco minutos depois que começassem a tomar o chá, a porta se abriu de novo e deu passagem a um homem de meia idade e cabelos cinzas. Charlotte reconheceu naquele cavalheiro de nariz chato e traços severos ao homem das fotografias.

Levava inclusive o mesmo modelo de gola rígida e gravata negra que nelas. Não podia ser senão Lovell Charrington.

As apresentações confirmaram sua hipótese.

—Não há canapés? -O homem estudou com cenho a bandeja.

—Não sabia que pensava se reunir conosco - respondeu Ambrosine-. Se quer, posso pedir à cozinheira que os prepare.

—Sim, por favor! Não acredito que todo esse creme seja bom para sua saúde, querida. Além disso, não deveríamos obrigar a nossas convidadas a compartilhar seus excêntricos gostos.

—OH, nós somos igualmente excêntricas! -disse Charlotte impulsivamente-. Estou encantada de poder comê-los em tão agradável companhia.

Ambrosine lhe dedicou um sorriso de agradecimento um tanto surpreendida.

-Sem querer ofendê-la, senhora Pitt, recorda-me a minha filha Ottilie.

Desfrutava das coisas e não tinha reparos em admiti-lo.

Charlotte duvidou se falava que já sabia da morte da jovem, ou se poderia dar a impressão de ter estado falando muito dos assuntos dos Charrington. Lovell a tirou do dilema.

—Nossa filha morreu, senhora Pitt. Sem dúvida me compreenderá se lhe digo que falar do tema nos é muito triste.

Para Charlotte aquele comentário foi pouco cortês, tendo em conta que ela não havia dito nada.

—Naturalmente - disse-. Eu mesma falo muito raramente dos seres queridos que perdi, pela mesma razão.

Viu que o homem ficava um pouco desconcertado. Obviamente não lhe tinha ocorrido que Charlotte tivesse experiências próprias tão trágicas.

—Com efeito - disse Lovell precipitadamente-, com efeito!

Charlotte tomou outro doce de nata e por uns momentos se viu obrigada a concentrar-se em comê-lo sem que lhe caísse a nata em cima.

A conversa tomou roteiros puramente corteses e afetados. Falaram do clima, dos assuntos de sociedade que comentavam os jornais, e da possibilidade -inexistente a julgamento do Lovell- de que houvesse tesouros perdidos na África, como os que descrevia o senhor Rider Haggard em sua novela As minas do Rei Salomão, publicada no ano anterior.

—Tolices! - disse Lovell-. Meras fantasias. Esse indivíduo deveria empregar seu tempo em algo de maior proveito. Para um homem de sua idade, ganhar a vida assim é ridículo, urdindo fantasias para enrolar a mulheres sem miolo ou moças impressionáveis.

Superexcitar a essas pessoas é mau para sua saúde. E também para sua moralidade!

—Eu acho que é um ofício estupendo - disse, entrando na sala, um homem de uns trinta anos que saudou com a mão. apoderou-se da última bolacha e, depois de engoli-la quase inteira, dirigiu à Charlotte um sorriso deslumbrante, e depois à Caroline. Pegou o bule para servir-se-. Não prejudica a ninguém e diverte a milhares de pessoas. Põe um toque de cor em vigas desprovidas de aventura e sonho, vidas que de outro modo seriam absolutamente tediosas.

—Nunca ouvi coisa mais absurda! -replicou Lovell-. Isso não é mais que aproveitar-se de imaginações febris, ávidas de sensações fortes. Inácio, se quiser chá chama à criada e peça-lhe mas por favor deixa de sacurdir o bule. Para isso existe a criadagem. Acredito que não conhece a senhora Pitt...

 

Inácio olhou para Charlotte.

-Claro que não. Asseguro-lhe que me lembraria dela. Encantado, senhora Pitt.

Não lhe pergunto como está, pois salta à vista que sua saúde é excelente, e também seu humor.

—Assim é. -Charlotte tratou de manter a dignidade que sua mãe esperava dela-. E me custaria acreditar se me dissesse que não está na mesma situação -acrescentou.

—Ah! -As sobrancelhas do jovem se arquearam com jovialidade-. Uma mulher com opiniões próprias! teria se dado bem com minha irmã Tillie, ela tinha opiniões sobre tudo. Algumas delas, devo dizer, um pouco estranhas; mas sempre tinha as idéias claras, e geralmente as expunha.

—Inácio! -Lovell se tinha ruborizado-. Sua irmã morreu. Faça o favor de não falar dela com tanta ligeireza e confiança! -deu a volta-. Lhe peço desculpas, senhora Pitt, por semelhante falta de tato. -Seu tom delatava escassa convicção.

Não parecia acreditar que Charlotte fosse muito melhor que seu filho.

—Ao contrário -Charlotte se acomodou em seu assento-. Compreendo muito bem que se recorde com intensidade e afeto a um ser querido. Todos agüentamos nossas perdas a nosso modo, como nos é mais suportável, e permitimos a outros que façam outro tanto.

Lovell empalideceu, mas antes de que respondesse Caroline ficou em pé, deixando sobre a mesa xícara e pires.

—Foi um prazer - disse sem dirigir-se a ninguém em concreto-. Por desgraça, ainda temos outras visitas pendentes. Confio que saberão nos desculpar. Espero vê-la logo, querida Ambrosine. Senhor Charrington, Inácio...

Lovell se levantou e fez uma leve reverencia.

—Boa tarde, senhora Ellison. Boa tarde, senhora Pitt. Me alegro de tê-la conhecido.

Inácio as acompanhou até o saguão.

—Lamento tê-la incomodado, senhora Pitt - disse franzindo o sobrecenho-. Não era minha intenção.

—Claro que não -respondeu Charlotte-. Pelo que ouvi dela, estou certa de que com efeito teria gostado de sua irmã. E sua mãe é a pessoa mais agradável que conheci em muito tempo.

—Agradável? -respondeu Inácio com assombro-. As pessoas estão acostumadas a pensar o contrário.

—Questão de gostos, suponho. Asseguro-lhe que me parece estupenda.

No rosto do Inácio se desenhou um amplo sorriso, apagando todo rastro de inquietação. Estreitou calidamente a mão de Charlotte.

O lacaio já estava ajudando Caroline a vestir o casaco. Charlotte aceitou o seu.

Pouco depois se acharam na rua, expostas ao cru vento de março.

Uma calesa passou a seu lado. Seu passageiro as saudou com o chapéu.

Caroline viu fugazmente um rosto moreno e distinto, belamente emoldurado por negros e brilhantes cabelos que chegavam quase até a nuca, e um olhar escuro e sereno. A carruagem seguiu seu caminho, mas aquela breve impressão bastou para despertar no Caroline uma lembrança tão viva que sentiu um estremecimento.

Aquele homem era muito parecido ao Paul Alaric, o cavalheiro francês que tinha vivido no Paragon Walk perto da casa do Emily e que tantas paixões tinha provocado durante aquele trágico verão. A pobre Selena se obcecou tanto com ele que quase tinha perdido o juízo.

Inclusive Charlotte, desobedecendo a todo seu bom senso, sentira-se atraída pela suave ironia do Alaric, por seu natural encanto, e pelo fato de seu enigmático passado e posição social. Nem sequer Emily, com toda sua graça e ímpeto, mostrara- se de todo insensível.

Tratava-se realmente da mesma pessoa?

Charlotte se voltou para sua mãe e a viu tensa, com a cabeça muito erguida e as faces coradas de frio.

—Conhece-o? -perguntou Charlotte com incredulidade.

—Um pouco. É monsieur Paul Alaric.

Charlotte sentiu que o pulso lhe acelerava. Assim, era ele...

—Tem contato com muita gente do Rutland Place -continuou Caroline.

Charlotte esteve a ponto de indicar que sua mãe era uma dessas pessoas, mas, sem saber por que, absteve-se.

—Parece um homem abastado- optou por dizer. Era um comentário vão, mas de repente a acuidade a tinha abandonado.

—Tem negócios no centro. -Caroline apertou o passo, e o vento impediu de continuar a conversa.

Trinta metros mais à frente se achava a entrada principal da casa dos Lagarde.

—São franceses? -perguntou Charlotte enquanto se abria a porta.

—Não -respondeu Caroline em voz baixa quando a criada foi anunciá-las-.

Seu bisavô, ou algo assim chegou em tempos da Revolução.

-A Revolução? Isso faz cem anos! -respondeu Charlotte em um sussurro.

 

Depois adotou uma expressão de conveniente espera no momento de serem acompanhadas ao salão.

—Bom, pois então fará ainda mais tempo. Graças a sua avó tenho os ouvidos repletos de história -replicou sua mãe-. Boa tarde, Eloise. Apresento a minha filha, a senhora Pitt -disse mudando de tom e expressão mas sem parar para tomar fôlego.

A garota era com efeito muito bonita, tal como havia dito Caroline: morena, com a transparência do reflexo da lua sobre a água, e um cabelo sedoso, frondoso e opaco (a diferença da Charlotte, que reluzia como madeira brunida e resistia a ser recolhido por causa de seu volume).

—Que amáveis são ao vir! -Eloise, sorridente, deu um passo atrás convidando-as a sentar-se-. Tomarão chá?

Era um pouco tarde. Possivelmente a pergunta era mera cortesia.

—Muito obrigado, mas não queríamos dar trabalho - disse Caroline, declinando o oferecimento com uma fórmula convencional. Dizer que acabavam de tomar o chá em outra casa teria constituído uma falta de tato. Voltou-se para a lareira-. Que magnífica pintura! Não recordo havê-la visto antes.

Charlotte teria preferido não ter em casa um quadro semelhante, mas cada qual com seus gostos.

—Gosta? -Eloise olhou o quadro com uma faísca de diversão em seu rosto-.

Sempre tive a impressão de fazer com que a casa pareça escura, coisa que em realidade não é. Mas, como ao Tormod gosta, deixei-o em seu lugar.

—É o retrato de sua casa de campo? -Charlotte perguntou, uma obviedade, pois não lhe ocorria nada mais que dizer. Pelo menos a resposta ia dar pé a vários minutos de afável conversa. Continuavam falando das diferenças entre campo e cidade quando se abriu a porta e apareceu um jovem em quem Charlotte reconheceu ao irmão do Eloise.

Tinha a mesma frondosa cabeleira, os mesmos olhos grandes e a mesma pele pálida. Em troca, os traços não eram tão semelhantes. A fronte do jovem era mais alta, coroada por grandes ondas de cabelo. Seu nariz era mais aquilino, e sua boca larga, de sorriso fácil. Também pronta a torcer-se em caretas de mau humor, pensou Charlotte.

O jovem se aproximou com desenvoltura e graça naturais.

—Me alegro de vê-la, senhora Ellison! -Rodeou ao Caroline com o braço-. Acredito que não conheço sua acompanhante...

—Minha filha, a senhora Pitt. -Caroline lhe devolveu o sorriso-. Charlotte, o senhor Tormod Lagarde.

O jovem se inclinou ligeiramente.

—Bem-vinda ao Rutland Place, senhora Pitt. Espero ter freqüentemente o prazer de sua visita.

—É muito amável.

Tormod se sentou junto ao Eloise, em um amplo sofá.

—Tenho intenção de visitar minha mãe mais freqüentemente, agora que se aproxima a primavera -acrescentou Charlotte.

—Receio que este inverno não está sendo muito benigno -respondeu o jovem-. É preferível ficar ao lado da lareira e adiar as visitas. De fato nos retiramos freqüentemente a nossa casa de campo; simplesmente nos encerramos durante janeiro e fevereiro.

O rosto de Eloise se iluminou, como se recordasse algo agradável. Não disse nada, mas Charlotte acreditou ver refletidas em seus olhos luz de festa, árvores de Natal e lanternas acesas, fogueiras de dentes, torradas quentes e alegre companhia que não necessitava de palavras.

Tormod mexeu em um bolso e extraiu um pequeno pacote.

—Pegue. - Estendeu-o ao Eloise-. Para substituir ao que perdeu.

Eloise o pegou, olhou para Tormod e depois para o pacotinho.

—Abre-o! -pediu seu irmão-. Tampouco é nada do outro mundo.

Eloise o fez cheia de prazer.

O pacote continha uma pequena abotoadura de prata.

—Obrigada, querido! -disse docemente Eloise-. É muito delicado de sua parte, sobre tudo podendo ter sido perfeitamente por minha culpa. Agora sentirei remorsos se aparecer o outro e não foi mais que um descuido. -Voltou o olhar para Caroline, como pedindo desculpas, ao mesmo tempo um pouco apurada-. Perdi uma abotoadura que tinha durante anos. Acredito que estava em minha bolsa, mas também é possível que o tenha esquecido em qualquer lugar.

A curiosidade de Charlotte se sobrepôs ao bom senso de não fazer comentários.

—Quer dizer que poderiam havê-lo roubado? -disse com fingida surpresa.

Tormod rechaçou a idéia.

—Coisas assim costumam acontecer. Não é agradável pensar, mas terá que confrontar-se com a realidade: às vezes os criados cometem pequenos roubos.

Entretanto, como aparentemente ocorreu em casa de outra pessoa, é melhor não mencioná-lo. Seria de péssimo gosto pôr em apuros a algum amigo fazendo correr a voz.

 

Além de que, como diz Eloise, a abotoadura pode aparecer a qualquer momento.

Caroline pigarreou com nervosismo.

—Mas como se pode tolerar que alguém roube? -disse-. Quero dizer, não é imoral?

Tormod manteve seu tom despreocupado e sorriu com um matiz de pesar.

—Suponho que sim -disse-, se soubéssemos com segurança quem é o culpado e houvesse provas disso. Mas não as há. Só conseguiríamos levantar suspeitas, possivelmente totalmente injustas. Mais vale deixá-lo estar. Assim que fica alguém a aprofundar-se no mal, corre o risco de pôr em marcha uma cadeia de circunstâncias que depois é difícil deter. Custa-me acreditar que uma abotoadura de prata justifique toda a irritação, o medo e as dúvidas que suscitaria uma investigação.

—Acredito que tem razão -se apressou a dizer Charlotte-. No final de contas, não é o mesmo ter perdido algo que ter a certeza de que uma pessoa determinada o roubou.

—Um julgamento muito prudente. -Tormod lhe dedicou um rápido sorriso-. Gritar "ao ladrão" não é sempre o melhor modo de ajudar à justiça.

Sem dar tempo ao Caroline para defender sua postura, a criada entrou anunciando uma nova visita.

—A senhora Denbigh - disse ao Eloise-. Faço-a entrar?

O rosto de Eloise se contraiu levemente. Se estivesse menos exposta à luz da janela, possivelmente sua mudança de expressão teria passado inadvertida.

—Sim, claro, Beryl. Faça-a entrar.

Amaryllis Denbigh era o tipo de mulher que incomodava ao Charlotte.

Entrou na sala com passo firme, com expressão de quem está sempre segura de causar boa impressão. Não era formosa, mas seus grandes olhos e lábios ligeiramente carnudos não careciam de encanto. Mostrava a inocência da qual como adolescente não conhece ainda sua capacidade de seduzir e incitar o desejo.

Seu loiro e ondulado cabelo era abundante, arrumado do modo preciso para não parecer artificioso. Aquilo requeria uma criada muito competente. O vestido que levava era caro; nada ostentoso, mas Charlotte sabia o preço daqueles sutis toques que realçavam o busto e faziam parecer o talhe um par de centímetros mais estreitos.

As apresentações foram formais. Amaryllis inspecionou ao Charlotte e logo a despachou, voltando-se para o Tormod.

—Virá na quinta-feira ao recital da senhora Wallace? Espero que queira unir-se a nós. Ouvi que convidaram um pianista estupendo. Com certeza adorará. E também Eloise, naturalmente - acrescentou com mais educação que sinceridade.

Ao ouvir aquele tom, Charlotte tirou suas próprias conclusões.

—Penso que iremos - respondeu Tormod. Voltou-se para Eloise-. Não tem outros planos, não é, querida?

—Não, absolutamente. Se o pianista for bom será um prazer. Só espero que as pessoas não façam barulho e deixe escutar.

—Querida, não esperará você que as conversas se interrompam só para ouvir um pianista, ao menos em um recital como esse -respondeu Amaryllis com suavidade-. No fim de contas se trata de um acontecimento social. A música é uma mera diversão, algo para amenizar.

Além disso, proporciona um pretexto para a conversa e assim evita a alguns o esforço de procurar outro tema adequado. Há gente muito torpe, já sabe. -Sorriu para Charlotte-. Não acha assim, senhora Pitt?

—Com efeito, estou convencida disso - reconheceu Charlotte-. Há os que não conseguem dizer nada adequado, e os que falam muito e no momento inoportuno. Eu aprecio sobre tudo aos que sabem calar sem sentir-se incômodos, especialmente quando há boa música.

Amaryllis se enrijeceu, mas não fez caso da indireta.

—Toca, senhora Pitt? -perguntou.

—Não, desgraçadamente não. E você?

Amaryllis a olhou com frieza.

—Pinto - respondeu-. Eu gosto mais. É menos indiscreto, no meu entender.

Pode-se olhar ou não, como se preferir. OH! -Abriu os olhos e mordeu o lábio-. Quanto o sinto, Eloise! Esqueci que você toca. Naturalmente não referia a você!

Jamais interveio em nenhum recital.

—Não; acredito que me poria muito nervosa - disse Eloise-. Entretanto, consideraria uma grande honra ser convidada. De qualquer modo, penso que me zangaria se a conversa das pessoas impedisse de escutar - enfatizou-.

A música deveria ser respeitada, não tratada como uma espécie de som de fundo. Isso faz com que alguns se aborreçam com ela sem chegar a apreciar sua beleza.

Amaryllis soltou uma risada aguda e harmoniosa que irritou ao Charlotte.

Talvez porque teria gostado de ter uma risada assim.

 

—Que filosófica é você! -disse alegremente-. Advirto-a, querida, que se começar a dizer coisas como essa no recital, far-se-á muito impopular. As pessoas não saberão como tratá-la!

Charlotte deu a sua mãe um leve chute no tornozelo. Quando Caroline se agachou pensando que algo lhe tinha caído em cima, sua filha fingiu entender que se dispunha a partir.

—Ajudo-a, mamãe? -disse ficando em pé e lhe oferecendo o braço.

Caroline a olhou.

—Ainda me arrumo sozinha, querida -disse secamente.

Apesar de ler claramente em seus olhos a intenção de voltar a sentar-se, depois de uns momentos se despediram e poucos minutos depois estavam de novo na rua.

—Desagrada-me a senhora Denbigh - disse Charlotte-. E muito!

—Já me dei conta. -Caroline levantou a gola do casaco e sorriu-.

A mim também, confesso-o. É injusto, porque não tenho nenhuma razão concreta, mas a acho irritante.

—Propôs-se conquistar ao Tormod Lagarde - observou Charlotte a modo de explicação parcial-, e o faz sem dissimulações.

—De verdade?

—Claro que sim! Não me diga que não o notou.

—Claro que o notei! -Caroline tiritou-. Mas conheço muitos casos de mulheres que seduzem a homens, querida, e Amaryllis não me pareceu especialmente torpe.

Ao contrário, acredito que é muito paciente.

—Pois continuo sem gostar dela!

—Isso é porque você gosta de Eloise, e a inquieta pensar o que será dela se Tormod se casar, visto que Amaryllis não lhe é simpática. Talvez também Eloise se case, e isso soluciona o problema.

—Nesse caso, seria mais ardiloso por parte do Amaryllis procurar um bom partido para Eloise, em vez de dedicar-se a denegri-la. Não lhe custaria muito: a moça é absolutamente encantadora. O que lhe passa, mamãe? Está curvada como se fizesse vento.

—Há alguém atrás de nós?

Charlotte se virou.

—Não. Esperava que o houvesse?

—Não... Só tenho a sensação de que nos vigiam. Não olhe assim, Charlotte, pelo amor de Deus! Fará que pensem que somos umas bisbilhoteiras, que olhamos através das cortinas.

—Quem? -Charlotte se forçou a sorrir para ocultar sua inquietação por sua mãe-. Se não há ninguém!

—Não seja tola! Sempre há alguém, um mordomo ou uma criada correndo as cortinas, ou um lacaio apostado na porta.

—Então não há motivo para inquietar-se. -Charlotte desprezou os temores de sua mãe, mas em seu interior vacilou. A sensação de ser observada (não por pessoas ocupadas em outras tarefas, mas deliberada e sistematicamente) era muito desagradável. Imaginações do Caroline, sem dúvida... Quem ia fazer uma coisa semelhante? Que razões podia ter?

Caroline tinha acelerado o passo, seguida por sua filha. Caminhavam tão rápido que as saias de Charlotte lhe açoitavam os tornozelos. Temeu tropeçar com um paralelepípedo e cair de bruços, se não vigiasse seus passos.

Rodeando como um torvelinho o poste da entrada, Caroline subiu rapidamente os degraus que a afastavam da porta de sua casa.

Plantou-se na porta antes de que o lacaio tivesse reparado em sua chegada, e teve que esperar, impaciente, olhando de tanto em tanto para a rua.

—Abordaram-na na rua, mamãe? -perguntou Charlotte.

—Claro que não! O que ocorre é que... -Caroline estremeceu-. Tenho a sensação de não estar sozinha, inclusive quando tudo indica que o estou. Há alguém, alguém a quem não consigo ver e que, entretanto, me vigia, tenho certeza.

A porta se abriu. Caroline não demorou nem um segundo em entrar, seguida por Charlotte.

—Por favor, Martin, feche as cortinas - disse ao lacaio.

—Todas, senhora? -Restam algumas horas de luz, e o dia é bom.

—Sim, por favor! Em todas os aposentos que vamos ocupar. -despojou-se do casaco e do chapéu e os entregou ao Martin.

Charlotte a imitou.

No salão se encontraram com a avó, sentada junto ao fogo.

—E então? -A anciã as examinou dos pés a cabeça-. Alguma novidade?

—Sobre o que, mamãe? -perguntou Caroline, dirigindo-se para a mesa.

—Sobre o que seja, moça! Como vou perguntar algo concreto se não sei ainda o que é? Se soubesse não seria uma novidade, não acha?

O argumento era rebuscado, mas fazia tempo que Charlotte se convencera da inutilidade de discutir com sua avó.

—Visitamos a senhora Charrington e à senhorita Lagarde - disse-. Ambas me pareceram estupendas.

—A senhora Charrington é uma excêntrica. -A voz da anciã soava áspera, como se acabasse de morder uma ameixa verde.

—Por isso gostei dela. -Charlotte não pensava deixar-se avassalar-. Se comportou com muita educação. No final de contas, isso é o principal.

—E a senhorita Lagarde? Também te pareceu estupenda? Seu acanhamento a prejudica. Essa moça parece incapaz de paquerar com um pouco de destreza - comentou mordazmente a anciã-. Por muito bonita que seja, nunca achará marido se for por aí dessa maneira, como caminhando em cima das nuvens. Os homens se casam com algo mais que um rosto bonito, asseguro-lhe!

—O que é uma sorte para a maioria de nós - respondeu Charlotte com não menos acidez, notando no nariz levemente curvado de sua avó, e depois em suas pesadas pálpebras.

Fingindo não ter entendido, a anciã se voltou para sua filha e, com voz glacial, disse:

—Teve visita enquanto estava fora.

—Seriamente? -Caroline não se mostrou muito interessada. O habitual era que ao menos uma pessoa passasse durante a tarde, do mesmo modo que ela e Charlotte tinham visitado outras pessoas. Essas atividades formavam parte do ritual social-. Suponho que deixariam um cartão e que Maddock a trará dentro de pouco.

—Não quer saber de quem se trata? -indagou à anciã, contemplando as costas de Caroline.

—Não especialmente.

—Era esse cavalheiro francês de maneiras estrangeiras. Sempre esqueço seu nome. - Por não tratar-se de um inglês, o esquecimento era voluntário. – Em todo caso, tem o melhor alfaiate que vi em trinta anos.

Caroline ficou tensa. O silêncio se apropriou da sala e se ouviu o ruído das carruagens duas ruas mais longe.

—Seriamente? -repetiu Caroline com forçada naturalidade. Em sua voz se percebia certa ansiedade, como se morresse de vontades de acrescentar algo, e entretanto se forçasse a fazer uma pausa a fim de não falar atropeladamente-. Disse algo?

—Claro que disse algo! Acaso acha que ficou plantado aí, como um bobo?

Sempre de costas a sua mãe, Caroline pegou um narciso, recortou-lhe o caule e o devolveu a seu lugar.

—Alguma coisa interessante?

—E quem diz coisas interessantes hoje em dia? -respondeu a anciã com desgosto. - Já não restam grandes homens. O general Gordon foi assassinado por esses selvagens de Kartum. Até o senhor Disraeli morreu.

Não era um herói, naturalmente, nem sequer um cavalheiro, mas era inteligente. Já não restam homens com estilo.

—Acaso o senhor Alaric não se comportou com a devida cortesia? –perguntou Charlotte, surpreendida. No Paragon Walk, Alaric se tinha movido como peixe na água, com inata correção, apesar dela ter ficado desconcertada mais de uma vez pelo cinismo que se insinuava debaixo de suas palavras.

—Não -admitiu a avó a contragosto-. Foi muito correto, mas por ser estrangeiro não resta outro remédio. Se tivesse nascido quarenta anos atrás provavelmente teria chegado longe, apesar de não ser inglês; mas hoje em dia já não fica nenhuma mísera guerra onde um homem tenha a oportunidade de demonstrar seu valor. Em tempos do Edward pelo menos tínhamos Criméia. E não é que ele fosse!

—Criméia está no mar Negro -indicou Charlotte-. Não vejo o que tem que ver conosco.

—Falta-lhe patriotismo e visão do Império! -acusou-a sua avó. Isso é o mau dos jovens. Não têm sentido da grandeza!

—Deixou o senhor Alaric alguma mensagem? -Caroline se tinha dado a volta, finalmente. Estava ruborizada, mas sua voz já não denotava tanta agitação.

—Esperava que o fizesse? -A anciã arqueou uma sobrancelha.

Caroline aspirou fundo antes de responder.

—Como ignoro a razão de sua visita - disse enquanto se encaminhava para a porta-, perguntava-me se teria deixado algo dito. Perguntarei ao Maddock. –Saiu rapidamente da sala, deixando a sua filha a sós com a anciã.

Charlotte titubeou. Devia formular as perguntas que lhe buliam na cabeça? Sua avó, que tinha má vista, não se tinha dado conta da tensão que embargava ao Caroline, nem do modo lento e contido com que havia virado a cabeça.

Entretanto, continuava tendo muito bom ouvido, e sua mente se conservava tão ágil e incisiva como sempre. Não obstante, decidiu que quanto pudesse lhe dizer sua avó já o tinha adivinhado ela sem necessidade de ajuda.

—Irei perguntar a mamãe se me empresta sua carruagem para voltar para casa antes que anoiteça - disse depois de breves instantes.

—Como quiser. Em realidade, ainda não sei a que veio; nada mais que para ir fazer visita, suponho.

—Para ver mamãe.

—Duas vezes em uma mesma semana?

Charlotte não sentia vontade de discutir.

—Adeus, avó. Alegrou-me ver-te tão saudável.

A anciã soltou um grunido.

—Sempre tão arrogante - disse com secura-. Nunca aprendeu a te comportar.

Foi melhor que tenha se casado com alguém de classe inferior. Não teria tido nenhum êxito em nossos círculos.

De caminho a casa, enquanto percorria as ruas na carruagem de cavalos de seu pai, Charlotte esteve muito absorta em seus pensamentos para desfrutar da diferença entre a carruagem e o ônibus.

Era penosamente claro que o interesse de Caroline por Paul Alaric não tinha nada de circunstancial. Charlotte recordava suficientes detalhes de sua própria obsessão por seu cunhado Dominic -antes de conhecer o Thomas- para deixar-se enganar.

Conhecia o significado daqueles ares fingidos por trás da indiferença, do nó no estômago, do modo em que se acelerava o pulso ante um sorriso ou simplesmente ao ouvir o nome da pessoa amada ou às pessoas mencioná-los a ambos em uma mesma frase.

Agora tudo aquilo lhe parecia incrivelmente estúpido, e se ruborizava só em recordar.

Mas continuava sendo capaz de reconhecer os mesmos sentimentos em outras pessoas. Já tinha visto antes, e mais de uma vez, ao Paul Alaric provocar uma reação similar.

Entendia o motivo da ansiedade de Caroline, forçada-a naturalidade de sua voz, e aquela pretendida falta de interesse, incapaz, entretanto, de evitar que saísse quase correndo da sala só para averiguar se Alaric tinha deixado uma mensagem.

Assim, o retrato do medalhão era o do Paul Alaric. Com razão sua mãe queria recuperá-lo! Não se tratava de um admirador anônimo de tempos passados, mas sim de um rosto que qualquer do Rutland Place poderia reconhecer, para não falar dos engraxate e as criadas...

E não havia explicação possível. Nada podia justificar que levasse num medalhão o retrato daquele homem.

Ao chegar a casa, Charlotte já tinha decidido contar tudo ao Pitt, e lhe pedir conselho. Sentia-se simplesmente incapaz de carregar a sós com aquela responsabilidade. Entretanto, não especificou de quem era o retrato do medalhão.

—Não faça nada - disse Pitt com gravidade-. Com um pouco de sorte o terá perdido pela rua. Cairia por uma boca-de-lobo, ou o ladrão o terá vendido ou dado a alguém. Em qualquer caso já não voltará a aparecer pelo Rutland Place; os que o tenham sob seus olhos nada saberão de sua proprietária nem do homem do retrato.

—Mas e mamãe? -disse Charlotte-. Está claro que esse homem a corteja, e que ela por sua vez se sente atraída, e não faz nada por mantê-lo longe.

Pitt mediu suas palavras, olhando ao Charlotte.

—Possivelmente de momento não, mas saberá ser discreta. -Vendo que Charlotte se dispunha a contradizê-lo, pegou-a pelas mãos. - Querida, não pode fazer nada, e embora pudesse não tem direito a se intrometer.

—É minha mãe!

—Sim, e é normal que se preocupe. Mas mesmo que seja sua mãe não a autoriza a intervir em seus assuntos, que pelo resto não faz mais que entrever.

—Vi-a! Thomas. Sou perfeitamente capaz de relacionar o que vi esta tarde com o medalhão, e com o que acontecerá se papai se inteirar!

—Pois tenta impedir que se inteire. Aconselha a sua mãe que atue com prudência e se esqueça do medalhão; mas não passe daí. Só conseguiria piorar as coisas.

Charlotte enfrentou os claros e inteligentes olhos de seu marido. Desta vez Pitt se equivocava. Sabia muito dos homens em geral, mas Charlotte conhecia melhor às mulheres.

Sua mãe necessitava algo mais que uma advertência: necessitava ajuda e, dissesse o que dissesse Pitt, ela a ia oferecer.

Baixou o olhar.

—De acordo, avisá-la-ei... Com respeito ao de procurar o medalhão -disse.

Pitt lhe lia os pensamentos mais do que ela imaginava.

Não tinha intenção de forçar as coisas até o ponto de obrigá-la a mentir.

Reclinou-se em sua poltrona, resignado mas descontente.

 

Pitt estava muito enrascado em seu trabalho para perder o tempo inquietando-se por Caroline. Seus casos anteriores lhe tinham posto em contato mais de uma vez com membros da alta sociedade; mas, como os tinha conhecido em circunstâncias não usais, era consciente de que conhecia bem pouco suas crenças e valores.

Menos ainda se atrevia a julgar o que estavam dispostos a permitir em suas relações sociais, e que outras coisas, ao contrário, estavam destinadas a causar danos irreparáveis.

Embora Pitt intuísse que sua esposa correria perigo ao mesclar-se com os roubos do Rutland Place, dava-se conta de que essa impressão se apoiava mais em emoções que em argumentos. Acima de tudo temia que Charlotte saísse maltratada do assunto.

Ao deixar Cater Street e afastar-se de seus pais, muitas de suas convicções tinham mudado, às vezes sem consequências. Sem dúvida tinha esquecido muitos dos princípios que antes assumia com naturalidade, como faziam ainda seus pais.

Charlotte tinha mudado e Pitt temia que não fosse consciente disso, ou supusera que outros tinham mudado tanto como ela. Aquela intromissão nos assuntos de sua mãe supunha lealdade e comiseração. Entretanto, feito às cegas, podia acabar prejudicando a todos.

Apesar disso, não lhe ocorria como convencê-la. Charlotte estava muito perto das coisas para vê-las com clareza.

Naquela manhã, Pitt estava na delegacia de polícia, sentado em frente a sua mesa de madeira; revisava, com a mente posta no Charlotte, uma lista de objetos roubados, quando entrou um agente de nariz aquilino, pálido e com os olhos brilhantes.

—Uma morte, inspetor.

Pitt levantou a cabeça.

—Pois não é algo incomum, por desgraça. No que nos interessa esta em concreto? -Por sua mente desfilaram imagens de labirínticas casas de apartamentos, cambaleantes construções de madeira meio podres, tugúrios ocultos atrás das sólidas e espaçosas moradias da gente respeitável.

Dentro delas morria gente diariamente, toda hora: alguns de frio, outros de fome ou enfermidade, e uns poucos assassinados.

Pitt se ocupava só destes últimos, e nem sempre-. De quem se trata? -perguntou.

—Uma mulher. -Aquele agente era tão miserável com suas palavras como com seu dinheiro-. De boa posição, bairros altos. Casada.

O interesse do Pitt se avivou.

—Assassinato? -disse, meio esperançado e meio perturbado.

O assassinato era uma dupla tragédia. Não só para a vítima e seus próximos, mas também para o próprio assassino e para quem quisesse, dependessem ou tivessem piedade daquele ser atormentado.

Não obstante, sempre era um acontecimento menos cinza, menos relacionado com problemas inabarcáveis que as mortes causadas pela violência de ruas e a pobreza, marcas inseparáveis do mundo dos subúrbios.

—Não sei. -Os olhos do agente seguiam cravados nos do Pitt-. Terá que investigar. É possível.

Pitt lhe cravou um frio olhar.

—Quem morreu? E onde?

—Uma tal senhora Wilhelmina Spencer-Brown -respondeu o policial com tom monocórdio, no qual apareceu em final um débil matiz de interesse-. Rutland Place, número onze.

Pitt se ergueu.

—Disse Rutland Place, Harris?

—Sim, senhor. Conhece o lugar, senhor? -Acrescentou o segundo "senhor" para evitar ser impertinente. Habitualmente não usava tantas voltas, mas Pitt era seu superior, e ele estava interessado em trabalhar no caso.

Mesmo que não se tratasse de um assassinato, uma morte na alta sociedade não deixava de ser mais interessante que os crimes vulgares dos quais costumava ocupar-se. Em poucas ocasiões enfrentava um mistério de verdade.

—Não - respondeu Pitt cuidadosamente. Depois ficou em pé e afastou a cadeira, fazendo-a chiar contra o chão-. Mas suponho que não demoraremos para fazê-lo. O que pode me dizer sobre essa senhora Wilhelmina Spencer-Brown?

—Não muito. -Harris seguiu a seu chefe enquanto pegavam chapéus, casacos e cachecóis e desciam pelos degraus da delegacia de polícia para enfrentar o vento de março.

—E então? -apressou-lhe Pitt, procurando uma carruagem livre com a vista.

Harris apertou o passo para ficar a sua altura.

—Trinta e poucos, muito respeitável, reputação irrepreensível; e embora não o fosse -acrescentou com mordacidade-, vivendo onde vive tudo se passa por cima.

Aspecto de ter um montão de criados e de dinheiro, embora o aspecto nem sempre significa grande coisa. Viram-se casos de gente com três criados, cortinas de seda e nada que comer salvo pão molhado em molho. Pura aparência.

—A senhora Spencer-Brown tinha cortinas de seda? -inquiriu Pitt, enquanto se afastava do passo de uma veloz carruagem que salpicou a calçada com barro e esterco. Imprecou baixo e depois vociferou-: Chofer!

Harris fez uma careta.

—Não sei, senhor, acabam de me dar o informe. Não o vi por mim mesmo. Quer que peguemos uma carruagem, senhor?

—Claro que sim! -Pitt lhe dirigiu um olhar fulminante. - Grande estúpido! - murmurou; mas teve que engolir suas palavras, quando Harris saltou com destreza ao centro do meio-fio e deteve um cabriolé quase no vôo.

Pouco depois estavam comodamente sentados em seus assentos, deslocando-se em trote em direção ao Rutland Place.

—Como morreu? -continuou Pitt.

—Veneno -respondeu Harris.

Pitt ficou surpreso.

—Como sabe?

—Disse-o o médico. Chamou-nos. Tem um desses aparelhos novos.

—Que aparelhos? Do que está falando?

—Telefones, senhor. Aparelhos que se penduram na parede e...

—Sei o que é um telefone! -replicou Pitt com rudeza-. Assim, o médico telefonou. A quem? Na delegacia de polícia não há telefone.

—A um amigo dele que vive justo na porta contigüa à delegacia de polícia. Um tal senhor Wardley. Wardley nos comunicou isso.

—Entendo. E o médico disse que a tinham envenenado?

—Sim, senhor. Essa era sua opinião.

—Algo mais?

—Ainda não, senhor. Envenenaram-na esta tarde. Encontrou-a a copeira.

Pitt extraiu seu relógio de bolso. Eram três e quinze.

-A que hora?

-Por volta das dois e quinze.

Assim, pensou Pitt, devia ter ocorrido quando a copeira ia informar se esperavam visitas para o chá, ou se a senhora Spencer-Brown pensava sair. Pitt sabia o suficiente sobre os costumes da alta sociedade para estar familiarizado com o ritual que se repetia todas as tardes.

Momentos depois chegaram ao Rutland Place. Pitt contemplou as plácidas e graciosas fachadas das casas, um pouco afastadas da calçada, com imaculados acessos aos porões cobertos pela sombra das árvores, e janelas que recolhiam a luz solar. Uma carruagem esperava em frente à porta de uma casa.

O lacaio estava ajudando uma dama a descer. Outra carruagem empreendeu seu caminho um pouco mais à frente, com os arreios reluzindo sob o sol. Uma daquelas casas era a de sua sogra Caroline. Pitt nunca tinha estado aí; por consenso tácito renunciava a uma visita que não teria sido agradável nem para ele nem para os habitantes da casa.

De vez em quando se reuniam, mas sempre em território neutro, onde não surgissem comparações - embora nem uns nem outros tivessem intenção de fazê-las.

A carruagem se deteve. Desceram e pagaram ao cocheiro.

—Onze - disse Harris enquanto subiam pelos degraus.

A porta se abriu antes que chegassem a ela e um lacaio convidou-os a entrar sem perda de tempo. Não podia tolerar ter à polícia esperando na soleira à vista de todos os vizinhos! Suas esperanças de ascensão lhe exigiam tratar expeditivamente um assunto como esse.

—Inspetor Pitt - se apresentou em voz baixa, sentindo em torno a presença da tragédia, fosse qual fosse finalmente sua explicação.

Pitt estava acostumado à morte, mas nem por isso deixava de se sobressaltar.

Continua sem saber como comportar-se ante quem tinha sofrido a perda de um ser querido. De nada serviam as palavras. Odiava adotar um tom banal e insensível, mas temia acabar fazendo-o, pela simples razão de ver tudo de fora. Era um intruso que devia recordar as facetas mais escuras do ser humano, as hipóteses mais sinistras a respeito de seus atos.

—Sim, senhor - disse o lacaio cerimoniosamente-. Sem dúvida desejam falar com o doutor Mulgrew. Uma carruagem foi procurar o senhor Spencer-Brown, mas ainda não voltou.

—Sabe onde está?

—Sim, senhor. Foi ao centro, como sempre. Soube que tem aí interesses diversos. Pertence à junta diretiva de várias importantes empresas, e de um jornal. Se quer me seguir, senhor, mostrar-lhe-ei a sala onde espera o doutor Mulgrew.

Pitt e Harris seguiram ao criado através do saguão, em direção à parte traseira da casa. Pitt examinou o mobiliário, dando-se conta de que, fosse ou não por amor às aparências, haviam custado muito dinheiro. Se chegasse o caso de que os Spencer- Brown sofressem problemas financeiros, os quadros que pendiam junto à escada podiam lhes proporcionar uma renda que para Pitt teria dado para viver sem trabalhar muitos anos.

Seus contatos profissionais com o mundinho artístico o tinham convertido em bom juiz do valor de uma pintura.

O Doutor Mulgrew estava sentado junto à lareira, a tão curta distância que Pitt imaginou perceber o aroma de chamuscado de suas calças. Era um homem rechonchudo, de frondosa cabeleira branca e bem cuidado bigode. Naquele momento lhe lacrimejavam os olhos, e seu nariz estava de um vermelho forte. Espirrou com estrépito justo quando entraram, e tirou de seu bolso um grande lenço.

—Um maldito resfriado - explicou desnecessariamente-. Não tem cura, nem teve nunca. Meu nome é Mulgrew. São da polícia, não é?

—Sim, senhor. Inspetor Pitt e agente Harris.

—Bem; odeio os resfriados primaveris. Não há nada pior, salvo os do verão.

—Soube que a copeira achou o cadáver da senhora Spencer-Brown quando entrou para informar-se dos planos para a tarde - disse Pitt-. Foi ela quem o chamou, doutor?

—Não exatamente. -Mulgrew guardou o lenço-. Disse-o ao mordomo. Uma reação natural, suponho. O mordomo deu uma olhada, e depois enviou ao lacaio para me buscar. Vivo ao lado mesmo. Vim imediatamente mas não havia nada que fazer. A pobre estava rígida. Utilizei o telefone para chamar um amigo, William Wardley. Ele enviou a vocês uma mensagem. -Voltou a espirrar e tirar o lenço.

—Deveria tomar algo -disse Pitt, retrocedendo um passo-. Uma bebida quente e um cataplasma de mostarda.

—Não tem remédio. -Mulgrew meneou a cabeça e fez um gesto com as mãos-. Não há cura. Fizeram-no com veneno, embora ainda ignoro de que classe e em que dose exata.

— Tem certeza? -Pitt não desejava ofender ao Mulgrew pondo em dúvida sua competência profissional-. Não poderia tratar-se de alguma enfermidade?

Mulgrew entreabriu as pálpebras e olhou ao Pitt.

—Não estou em condições de jurar, mas não era questão de esperar para comprová-lo. Se o tivesse feito, vocês não teriam tido tempo de inspecionar o lugar dos fatos. Não sou tão tolo, sabe?

Pitt conteve a ira e se esforçou em manter uma expressão adequada às circunstâncias.

—Obrigado -Era o mais cortês que se podia dizer-. Suponho que era você o médico de cabeceira da senhora Spencer-Brown.

—Naturalmente, por isso me chamaram. Uma mulher de saúde de ferro.

Pequenos achaques de vez em quando, mas quem não os tem?

—Tomava algum remédio que, em dose excessivas pudesse ter causado sua morte acidentalmente?

-Eu não lhe receitei nada. Só padecia de algum ou outro resfriado, ou acessos de tosse. Coisas sem remédio, já sabe. São inevitáveis, e o melhor é resignar-se de bom grado.

Um pouco de compaixão, se for possível, e muitas horas de sono.

Pitt sorriu.

—E os outros habitantes da casa? -perguntou.

—Como? Ah! Não acredito que fosse tão estúpida para tomar medicamentos de outra pessoa. Não era nada idiota, para uma mulher! Embora imagine que não é impossível. A pessoa não se comporta de forma sensata quando se trata de sua saúde. -Espirrou outra vez-. Receitei ao senhor Spencer-Brown algo para a dor de estômago, embora acredite que em grande parte o provoca ele mesmo.

Tratei de dizer-lhe mas me rechaçou com palavras destemperadas.

—Dor de estômago? -inquiriu Pitt.

—Má alimentação, já sabe. -Mulgrew se soou, movendo a cabeça-. Come loucamente. Não estranho que logo sofra! É um tipo curioso. Tampouco isso tem remédio! -Olhou ao Pitt com a extremidade do olho, como se esperasse uma réplica.

—Já - disse Pitt-. E havia nessa receita algo capaz de matar com uma dose excessiva?

Mulgrew fez uma careta.

—Suponho que sim... se se misturar tudo e se beber de um gole.

—Alguma possibilidade de overdose acidental? Possivelmente a senhora Spencer-Brown sentisse dor de estômago e pensasse nos medicamentos de seu marido.

—Disse a seu marido que os guardasse em seu estojo de primeiro socorros.

Mesmo assim pôde não fazê-lo, e ela tê-los tomado. Mas continuo pensando que não é possível que se administrasse uma overdose mortal por acidente.

—O frasco levava indicações?

—A caixa. São uns pós. Sim, claro que as leva. Acredita que tenho costume de manipular substâncias venenosas ao acaso?

—Substâncias venenosas?

—Leva beladona.

—Entendo. Mas continuamos sem saber do que morreu. Em todo caso, se souber não me disse... -Pitt arqueou uma sobrancelha e olhou ao doutor.

Mulgrew lhe sustentou o olhar por cima do lenço, e depois se soou com solenidade. Remexeu em seus bolsos em busca de outro lenço.

Pitt tirou o seu e o ofereceu com gesto sóbrio.

—Obrigado. É um cavalheiro. -Mulgrew o pegou-. Bem, ainda não posso assegurar, mas tenho a intuição de que a matou a beladona. Sofreu os sintomas típicos. Aparentemente ninguém a ouviu queixar-se de que se sentisse mal.

Acabava de voltar de uma visita matinal a um vizinho. Entrou no salão e, em coisa de quinze ou vinte minutos, morreu. De repente, sem vômitos nem sangue.

Tampouco convulsões, conforme pude apreciar. Tinha as pupilas dilatadas e a boca seca, precisamente os sintomas da beladona. Parada cardíaca.

De repente Pitt pareceu estar presenciando a cena: uma mulher morrendo a sós, respirando cada vez com maior dificuldade, a dor, o mundo que se perde de vista, a crescente escuridão, a paralisia, o terror...

—Pobre mulher- disse Pitt, surpreendendo-se a si mesmo.

Harris pigarreou.

O rosto do Mulgrew se suavizou e em seus olhos brilhou uma faísca de avaliação pelo Pitt.

—Em teoria pode ser um suicídio -disse-. Não me ocorre nenhuma razão, mas assim costuma ser. Só Deus é testemunha da íntima agonia que se esconde atrás da máscara cortês da gente. Eu não, que o Senhor me ampare!

O silêncio era a única resposta adequada. Pitt pensou que não devia esquecer de mandar Harris atrás do estojo de primeiro socorros do senhor Spencer-Brown. Tinha que ver se faltava muita quantidade de medicamento.

—Deseja vê-la? -perguntou Mulgrew depois da pausa.

—Suponho que é meu dever -disse Pitt.

Mulgrew se encaminhou lentamente para a porta. Pitt e Harris o seguiram até o saguão, passando junto ao lacaio, e entraram no salão, cujas cortinas estavam corridas em sinal de morte recente.

Era uma sala espaçosa, com elegantes cadeiras de cores claras, ao estilo francês: pernas curvadas e madeira profusamente esculpida. Por toda parte se viam bordados em petit-point, entre complexos acertos florais com flores artificiais de seda e algumas aquarelas, cenas pastoris de correta feitura.

Em outras circunstâncias teria sido uma sala acolhedora, embora um pouco recarregada.

Wilhelmina Spencer-Brown jazia sobre o divã com a cabeça para trás, olhos e boca abertos. Nada nela recordava o aprazível abandono de uma mulher adormecida.

Pitt se aproximou e a examinou sem tocá-la. Já não havia perigo de profanar sua intimidade, nem ficavam naquele corpo sentimentos que pudesse ser feridos.

Mesmo assim, contemplou-o como se conservasse uma faísca de vida. Nada sabia daquela mulher, se tinha sido amável ou cruel, generosa ou mesquinha, valente ou covarde. Entretanto, desejava lhe conceder certa dignidade, em interesse tanto dela como dele mesmo.

—Viu já tudo o que tinha que ver? -perguntou ao Mulgrew, sem virar-se.

—Sim -respondeu o médico.

Pitt endireitou levemente o corpo, lhe outorgando uma aparência de descanso.

Depois, incapaz de afrouxar as mãos, as cruzou sobre o peito, e lhe fechou os olhos.

—Só estava há um quarto de hora na sala quando a achou a criada? - perguntou.

—Isso diz a garota.

—Então, fosse qual fosse à causa de sua morte, agiu com rapidez. -Pitt se voltou para examinar a sala. Não viu taças nem copos-. O que comeu ou bebeu? - Franziu o sobrecenho-. Pelo visto já não está aqui. Tocou algo a copeira?

—Já o perguntei. -Mulgrew negou com a cabeça-. Disse que não. Parece uma garota séria. Não acredito que tenha motivos para mentir. Em minha opinião, a garota estava muito impressionada para ficar ordenando a sala.

—Em definitivo, não o trouxe até aqui -concluiu Pitt-. Lástima, tudo seria mais fácil. Enfim, terá você que fazer a autópsia; já me informará das causas da morte e seus detalhes.

—Naturalmente.

Pitt olhou de novo o cadáver: já não podia proporcionar mais informação. Não havia indícios de violência, coisa que por outro lado era de esperar, estando sozinha.

Tinha tomado o veneno por iniciativa própria. Ficava por saber se ao fazê-lo era ou não consciente do perigo.

—Voltemos para a saleta -sugeriu ao Mulgrew-. Aqui não resta nada que possa nos ser de ajuda.

Aliviados, os três homens voltaram junto à lareira. Em realidade não fazia frio na casa; os calafrios que sentiam os policiais eram fruto de sombrios pensamentos.

—Que tipo de mulher era? -perguntou Pitt quando a porta se fechou.- Por favor, não se defenda no segredo profissional. Tenho que saber se foi suicídio, acidente ou assassinato.

Quanto antes chegue a uma conclusão, menos terei que importunar aos familiares com perguntas.

Já têm bastante com a tragédia.

O rosto do Mulgrew se encheu de pesar. Depois de soar-se com o lenço do Pitt disse, olhando ao chão:

—Não acredito que fosse um acidente. Não era uma mulher torpe. A seu modo era muito competente, ágil de reflexos e perspicaz. Não vi mulher menos distraída.

Pitt não gostava de fazer certas perguntas, mas era sua obrigação. Não havia maneira de evitá-las ou disfarçá-las.

—Ocorre-lhe algum motivo para que se suicidasse?

—Não. Do contrário o haveria dito.

—Dá a impressão de ter sido uma mulher atraente, muito feminina e delicada. Acha possível que tivesse um amante?

—Se tivesse se proposto, sem dúvida que sim. Mas se o que pergunta é se sei de algum, a resposta é não. Jamais ouvi nenhum tipo de fofocas a respeito, nem sequer em privado. -Mulgrew olhou ao Pitt com toda franqueza.

—E seu marido? -insistiu o inspetor-. Talvez ele sim tivesse uma amante.

Poderia ser essa a causa do suicídio?

—Alston? -As sobrancelhas do Mulgrew se arquearam com assombro-. Me parece muito improvável. É um tipo muito insípido. Mas claro, nunca se sabe. A carne é fraca e sempre dá surpresas! Neste tema, as preferências do ser humano são de qualquer ponto imprevisíveis.

Tenho cinqüenta e dois anos e levo vinte e sete exercendo como médico. Já não deveria me surpreender nada, e entretanto...

Ocorriam, para Pitt, possibilidades ainda mais desagradáveis: outros homens, ou moços, inclusive meninos. Alguns descobrimentos eram capazes de fazer a vida insuportável a uma esposa. Mas só eram especulações fantasiosas.

Existiam outras opções, possivelmente mais verossímeis. Pitt recordou o que lhe tinha contado Charlotte: os roubos e a sensação de que alguém estava espiando em Rutland Place.

E se aquela mulher tinha sido a autora dos roubos? E se, dando-se conta de que alguém estava a par de suas maldades e a vigiava, tirou-se a vida por medo a frear-se com aquela terrível vergonha? A alta sociedade era cruel.

Poucas vezes perdoava, e jamais esquecia.

Pitt estremeceu sob um sopro de angústia, mais frio que uma nevada de janeiro.

Pobre mulher...

Tomou uma decisão: se descobrisse que a verdade era essa, acharia o modo de não ter que revelá-la.

Não me faça muito caso, inspetor. -Mulgrew lhe olhava com seriedade-.

Não estou sugerindo nada. Só falo em geral.

Pitt piscou.

—Não pensei outra coisa -mentiu-. Tal como há dito você, nada está claro em um assunto como esse.

Ouviram-se vozes e alvoroço no saguão. A porta se abriu bruscamente.

Viraram-se todos ao mesmo tempo, adivinhando o que acontecia, e temerosos disso. Harris foi o único a levantar-se. Sabia que, a diferença de outros, não ia ter que falar.

Alston Spencer-Brown estava ali, tremendo de emoção e ira.

—Quem demônios é você? -Olhou ao Pitt-. O que está fazendo em minha casa?

Pitt compreendia a indignação daquele homem, mas também era consciente de que nenhum subterfúgio ia evitar as reações de dor ou desconcerto.

—Inspetor Pitt -disse-. O doutor Mulgrew me chamou.

Alston se voltou para o Mulgrew.

—Nesta casa, cavalheiro, o único responsável sou eu! É minha mulher que morreu! -Engoliu em seco. - Que Deus dela tenha piedade. Não é assunto seu! Já não pode ajudá-la. Pobrezinha, deve ter sofrido um enfarte. Meu mordomo me disse que tinha morrido antes que você chegasse.

Não entendo por que continua aqui. A menos que seja com a cortês intenção de me informar pessoalmente, o que agradeço. Considere-se livre de toda obrigação, como médico ou amigo. Estou em dívida com você.

Ninguém moveu um dedo.

—Não foi o coração -respondeu Mulgrew lentamente. Em seguida espirrou e rebuscou seu lenço-. Ou sim foi, mas não por sua conta. -soou-se o nariz-.

Receio que a matou uma dose de veneno.

Uma palidez mortal tingiu o rosto do Alston e por breves segundos pareceu a ponto de desabar-se. Pitt pensou que ninguém era capaz de fingir uma reação como essa.

—Veneno? -balbuciou Alston-. Pelo amor de Deus, do que está falando?

—Sinto muito. -Mulgrew ergueu lentamente a cabeça para enfrentar seu olhar. - Sinto muito. Comeu ou bebeu algo que lhe causou a morte.

No meu entender, beladona ou outra substância muito parecida. Ainda não posso dizer com

certeza. Não tive mais remédio que avisar à polícia.

—Isso é absurdo! Mina jamais... -Alston não achou mais palavras. Vendo que tudo escapava à razão, abandonou todo intento de compreender.

—Descanse um momento. -Mulgrew lhe ajudou a sentar-se em uma ampla poltrona acolchoada.

Pitt foi até a porta e ordenou ao lacaio que trouxesse brandy. Cumprida a ordem, Pitt serviu uma taça e a deu ao Alston, quem a engoliu mecanicamente, sem saboreá-la.

—Não entendo - repetiu-. É ridículo. Não pode ser verdade!

Pitt odiou ter que intervir.

—Suponho que não estará à corrente de nenhuma tragédia ou inquietação que pudesse ter levado a sua esposa a tal grau de angústia - disse.

Alston ficou olhando-o.

—O que está sugerindo, senhor? Que minha esposa se suicidou? Como... como se atreve? -Sua boca tremeu de ira.

Pitt baixou o tom de voz e foi incapaz de olhar ao Alston nos olhos.

—Lhe ocorre alguma situação em que sua esposa pudesse tomar veneno de forma acidental? -perguntou.

Alston abriu a boca, mas na hora voltou a fechá-la. Deu-se conta das implicações da pergunta e deixou correr os segundos enquanto procurava uma resposta.

—Não -disse ao cabo-. Nenhuma. Mas sou ainda mais incapaz de pensar que o fizesse conscientemente. Era uma mulher feliz. Tinha tudo que desejava, e seu comportamento era o de uma esposa perfeita.

Eu me alegrava de lhe proporcionar todos seus desejos: bem-estar, situação social, viagens, vestidos, jóias...Tudo o que queria me pedir.

Além disso, sou um homem aprazível. Nunca me irrito nem me permito o menor excesso. Wilhelmina gozava de todo o carinho e o respeito que merecia.

—Então a solução se acha em outra parte, em algo que ainda desconhecemos. -Pitt expôs seu raciocínio com toda a suavidade possível-. Espero que entenda, senhor, que nossa obrigação é descobri-lo.

—Não... Não, não entendo! Por que não deixam minha pobre esposa em paz? -Alston se endireitou e deixou a taça de brandy sobre a mesa-. Nada do que façamos poderá ajudá-la. Ao menos poderíamos permitir que seu repouso fosse digno. Rogo! Exijo!

Pitt odiava chegar a esse ponto. Esperava isso: era uma reação natural, mas isso não a tornava menos difícil.

Tratava-se de uma situação habitual, um papel que Pitt sabia de cor de tanto participar dela. Em troca, para a outra pessoa sempre era a primeira vez.

—Lamento-o, senhor Spencer-Brown, mas sua esposa morreu em estranhas circunstâncias. Pode ter se tratado de um acidente, embora você mesmo disse que lhe parece difícil. Ou possivelmente um suicídio, apesar de que a ninguém lhe ocorre um motivo. Fica também a hipótese do assassinato. -Olhou em direção ao Alston e se chocou com seu olhar-. Devo saber. A lei deve saber.

—Isso é ridículo. -Alston permaneceu imóvel, muito consternado para irritar-se-. Quem, por todos os Santos, ia querer fazer mal a Mina?

—Não tenho a menor idéia, mas se alguém o fez devemos encontrá-lo e submetê-lo à justiça.

Alston contemplou o espelho que tinha em frente. Todas as respostas lhe pareciam igualmente inverossímeis. Entretanto, sua inteligência lhe obrigava a aceitar que uma delas era a correta.

—Muito bem - disse-. Mas lhe agradeceria que recordasse que esta casa está de luto. Rogo-lhe que, dentro do possível, atue com respeito e prudência. Sem dúvida estará acostumado às mortes violentas; além disso, não conhecia Mina.

Eu em troca não estou, e Mina era minha esposa.

Desde o princípio, Pitt não havia sentido especial simpatia por Alston. Era um homenzinho afetado e meticuloso, enquanto que Pitt, pelo contrário, era generoso e impulsivo. Entretanto, havia naquele homem uma dignidade que merecia ser respeitada.

—Sim, senhor -disse com gravidade-. Me encontrei freqüentemente com a morte, mas espero não chegar nunca a aceitá-la com frieza, nem deixar de participar um pouco da dor dos afetados por ela.

—Obrigado. -Alston ficou em pé-. Suponho que quererá interrogar à criadagem.

—Sim, por favor.

Os criados foram chamados um por um. Nenhum deu mais que dados básicos: Mina tinha voltado para casa a pé, pouco depois das duas em ponto. O lacaio lhe tinha aberto a porta. Tinha subido a seu toucador para arrumar-se. Passadas as duas e quinze, a garçonete a tinha encontrado sem vida no divã do salão, no mesmo lugar em que a tinham visto Pitt e Mulgrew.

Ninguém conhecia nenhum motivo que lhe provocasse angústia.

E ninguém lhe conhecia inimigos.

E, certamente, ignoravam que tivesse comido ou bebido algo desde o café da manhã, tomado no meio da manhã, quer dizer, muito cedo para ingerir o veneno.

Quando partiu o último, e enquanto Harris procurava o estojo de primeiros socorros que continha os medicamentos estomacais do Alston e efetuava uma inspeção de rotina na cozinha e demais dependências, Pitt perguntou ao Mulgrew:

—Poderia ter tomado algo em uma das casas que visitou entre a hora do café da manhã e a de sua volta?

Mulgrew rebuscou em seu bolso em busca de um novo lenço.

—Depende das causas da morte. Se não foi a beladona terá que se começar de novo. Se foi, então minha resposta é que não. A beladona tem efeitos rápidos. É impossível que tomasse e depois voltasse tranqüilamente para casa, subisse as escadas, arrumasse-se, baixasse de novo e de repente se sentisse mal.

De momento será melhor dar por sentado que tomou aqui.

—Um dos criados, pois? -aventurou Pitt-. Não será difícil averiguar qual deles lhe levou algo ao salão. Mas e o motivo?

—Felizmente não é meu trabalho averiguá-lo. -Mulgrew contemplou com cenho seu lenço. Pitt lhe ofereceu um dos seu-. Obrigado. O que se propõe fazer agora?

Pitt amarrou o cachecol ao pescoço e colocou as mãos nos bolsos.

—Farei algumas visitas. Harris se ocupará de que se levem o corpo. A autópsia, naturalmente, correrá a cargo do legista da polícia. Atrevo-me a lhe sugerir que ajude ao senhor Spencer-Brown. Parece muito afetado.

—Sim. -Mulgrew lhe estendeu a mão e Pitt a estreitou.

Cinco minutos depois estava na rua, invadido pelo frio e tristeza. O próximo passo estava claro. Não lhe ocorriam motivos para adiá-lo. Se Charlotte estava certa, algo muito desagradável acontecia no Rutland Place. Estavam-se cometendo pequenos roubos, e possivelmente alguém se dedicava a espiar a vida de outros.

Provavelmente a morte de Mina não era mais que o trágico corolário de um dos aspectos daquele assunto.

Com mão trêmula bateu na porta de sua sogra. As perguntas que tinha que lhe fazer seriam necessariamente desagradáveis. Ela teria a sensação de que se estavam intrometendo em sua vida, e o fato de tratar-se do Pitt não melhoraria as coisas.

A criada não o reconheceu.

—Sim, senhor? -Parecia surpreendida. Não era habitual que um cavalheiro batesse na porta a essas horas, e menos ainda tratando-se de um estranho. Aquele indivíduo desajeitado, desalinhado e despenteado pelo vento, com seu casaco puído, era uma aparição certamente inesperada.

—Por favor, diga à senhora Ellison que o senhor Pitt deseja vê-la. –Entrou no saguão sem dar tempo à criada para protestar-. É um assunto urgente.

O nome não era desconhecido a jovem, mas não foi capaz de relacioná-lo com aquele indivíduo. Vacilou entre deixá-lo seguir adiante ou pedir ajuda a um criado.

—Bem, senhor. Se fizer o favor de esperar na saleta... -disse, não muito convencida.

—Naturalmente. -Pitt se deixou guiar até a silenciosa habitação. Caroline demorou pouco em chegar, com expressão de estar a ponto de ter um sufoco.

—Thomas! Aconteceu- algo à Charlotte? Está doente?

—Não; está perfeitamente. -Pitt estendeu suas mãos para ela, querendo tranqüilizá-la, mas em seguida recordou sua posição-. Receio que se trata de algo muito diferente.

A ansiedade desapareceu do rosto de Caroline.

Entretanto, como alarmada por algum sinal, voltou a ruborizar-se. Para Pitt não foi preciso explicações para adivinhar o motivo: Caroline temia que Charlotte lhe tivesse contado o do medalhão e retrato.

Seu instinto de polícia lhe dizia que o medo facilitaria algum deslize, mas não fez caso dele e preferiu explicar tudo.

—Tenho o dever de lhe informar que a senhora Spencer-Brown morreu esta mesma tarde, e que ainda desconhecemos as causas.

—Meu deus! -Caroline levou a mão à boca, horrorizada-. Que espanto!

Sabe o pobre Alston... O senhor Spencer-Brown?

—Sim. Encontra-se bem? -Caroline tinha empalidecido, embora não perdesse a compostura-. Deseja que chame à criada?

—Não, obrigada. -sentou-se no sofá-. Foi muito amável ao vir me informar, Thomas. Sente-se, por favor. Ter que olhá-lo de baixo acima põe nervosa. -Respirou fundo enquanto alisava meticulosamente o vestido-. A morte não foi natural? Um acidente possivelmente causado por alguma imprudência?

Pitt tomou assento em frente a ela. -Não sabemos ainda. Em todo caso não morreu que um acidente de tráfico nem de uma queda, se a isso se refere. Ao que parece foi envenenada.

Caroline ficou sobressaltada e seus olhos se abriram com incredulidade.

—Envenenada? É atroz, além de ridículo! Não; deve ter sido um enfarte, algum tipo de ataque... -interrompeu-se, com as mãos presas aos joelhos.

—Insinua que foi assassinada, Thomas?

—Não sei. Talvez, ou possivelmente um acidente, um suicídio... -Não teve mais remédio que continuar. quanto mais o adiar, mais artificial ia ser. - Charlotte me falou de uma série de roubos de pouca monta na vizinhança. Disse-me, além disso, que você teve a desagradável sensação de ser espiada.

—Disse-lhe isso? -Tensa, endireitou-se em seu assento-. Teria preferido que guardasse o segredo, mas suponho que já não importa. Com efeito, várias pessoas sentiram falta de pequenos objetos. Se pensa em me repreender por não ter ido à polícia...

—Absolutamente! -disse Pitt com mais ênfase do que pretendia. A crítica implícita de Caroline tinha ferido-o. - Entretanto, agora que as coisas se agravaram com uma morte, tenho interesse em que me diga se acha possível que a senhora Spencer-Brown fosse a responsável por esses roubos.

—Mina? -Ante o inesperado da idéia, Caroline arregalou os olhos.

—Isso daria um motivo para a hipótese do suicídio -argumentou Pitt-. Possivelmente percebeu que era incapaz de reprimir seus impulsos.

Caroline franziu o sobrecenho.

—Não sei a que se refere... Incapaz de reprimir...? Nada justifica o roubo.

Entendo aos que roubam obrigados por sua extrema pobreza, mas Mina tinha quanto desejava. Além disso, nenhum desses objetos tem valor. Só são quinquilharias, coisas como um lenço, uma abotoadura, uma caixa de rapé... Para que ia querê-los Mina?

—Às vezes a pessoa se apodera de coisas simplesmente porque é incapaz de conter-se. -Pitt sabia que as explicações eram inúteis.

Tinham inculcado em Caroline certos valores desde menina, critérios absolutos do bem e do mal. A vida lhe tinha ensinado como era complexo o comportamento humano, mas o direito à propriedade era um dos fundamentos da ordem social, marco de toda moralidade. Nunca tinha questionado esses preceitos.

Para ela não existiam mais impulsos irreprimíveis que os devidos ao medo e à fome, ou, no limite, certos apetites carnais que eram aceitos -não consentidos- nos homens e jamais obviamente, nas mulheres. - Mas falar de problemas graves de solidão ou falta de adaptação, de frustrações e outras enfermidades sem nome, era de todo impensável.

—Continuo sem saber do que está falando - disse Caroline sem alterar-se-.

Talvez Mina soubesse quem era o culpado. De vez em quando dava a entender que sabia bastante mais do que achava conveniente dizer. Mas duvido que haja alguém capaz de cometer um assassinato com a única finalidade de ocultar uns poucos roubos mesquinhos. Quero dizer que é fácil despedir uma criada ladra, mas levar o caso ante a justiça é mais delicado.

Mais vale evitar a perturbação de uma investigação e as perguntas graves da polícia. Em troca, tratando-se de um assassinato não há escolha: pendura-se ao culpado. A polícia se encarrega disso.

—Sim, desde que o apanharmos. -Pitt não estava com ânimo para enrascar-se em uma discussão sobre a moralidade do sistema penal. Teria sido impossível chegar a um acordo, pois nem sequer teriam falado do mesmo. Os mundos em que se moviam um e outra não tinham nada em comum.

Ela não tinha visto jamais aos detentos fazendo a roda no pátio ou trabalhando na pedreira.

Desconhecia o aroma dos corpos cheios de piolhos ou prostrados pela febre, as mãos ensangüentadas pela estopa, para não falar da cela da morte e da forca...

Caroline se afundou ainda mais no sofá. Sentiu calafrios ao pensar em seus recentes temores, e na morte de Sarah.

—Desculpe-me -disse Pitt, dando-se conta disso-. Ainda não temos dados para suspeitar de um assassinato. Acima de tudo devemos indagar os possíveis motivos de suicídio. É uma pergunta delicada, mas o suicídio não tem em conta os sentimentos. Acha possível que estivesse metida em alguma relação sentimental capaz de mergulhá-la no desespero? -Pitt pensava em como estava convencida Charlotte da importância das aventuras de sua mãe.

Tão presente tinha suas palavras que quase esperava de Caroline uma confissão pessoal, mais que uma resposta à morna pergunta que acabava de lhe formular. Sentiu-se culpado, como se tivesse sido caçado espiando pela janela de um salão.

Se Caroline se surpreendeu com a pergunta, não deu mostra disso. Talvez depois de tantas preliminares já esperava algo do gênero.

—Eu, em todo caso, não me dava conta de nada - respondeu-. Deveria ter sido extraordinariamente discreta! A menos que...

—O que?

—A menos que se tratasse do Tormod -disse, pensativa. - Rogo, Thomas, que leve em conta que não faço mais que expressar possibilidades muito remotas.

—Levo isso em conta. Quem é Tormod?

—Tormod Lagarde. Vive no número três da praça. Sarah o conhecia desde há anos e o apreciava muito.

— É casado?

—OH, não! Vive com sua irmã mais nova. São órfãos.

—Que tipo de pessoa é?

Caroline refletiu um momento antes de responder, sopesando os detalhes que podiam interessar ao Pitt.

—É muito bonito -disse-, de uma atitude muito romântica. Há algo nele que o faz parecer inacessível e reservado. É esse tipo de homens que apaixonam as mulheres porque nunca as deixam aproximar-se o suficiente para que se desvaneça a ilusão. Sempre se mantém distante. Amaryllis Denbigh está apaixonada por ele, e não é a primeira.

—E ele alguma vez... ? -Pitt não sabia como formular a pergunta em termos aceitáveis.

Caroline sorriu, fazendo-o sentir de repente torpe e ingênuo.

—Que eu saiba, nunca -respondeu-. E acredito que saberia, se se tivesse dado o caso. Movemo-nos em círculo muito reduzido, sabe? Sobretudo aqui, no Rutland Place.

—Entendo. -Pitt sentiu um calor repentino no rosto-. Então não é impossível que a senhora Spencer-Brown sofresse por um amor não correspondido.

—Não, não é impossível.

—O que sabe do senhor Spencer-Brown? -perguntou Pitt, passando à segunda via principal de investigação-. É desses homens capazes de ter aventuras com outras mulheres e causar a sua esposa tanto dano que, uma vez inteirada se tire a vida?

—Quem, Alston? Não, Por Deus! Para mim é quase impossível. Claro que, a sua maneira, é muito agradável, mas lhe asseguro que não é homem de grandes paixões. -Caroline sorriu com tristeza-. Pobre Alston! Imagino que estará afetadíssimo, tanto pela morte de sua esposa como pelo modo em que aconteceu.

Solucione o caso quanto antes possível, Thomas. Não sei se percebe o dano que podem fazer as conjeturas e suspeitas.

Pitt não respondeu. Como podia saber-se até que ponto alguém entendia a onda expansiva da dor, o modo em que um sofrimento gerava outro, e outro mais?

—Fá-lo-ei -prometeu-. Há algo mais que possa me dizer? -Ficava por falar, evidentemente, da suposta espionagem. Pitt deveria ter perguntado à Caroline se pensava que o espião podia estar à corrente da hipotética relação entre Mina e Tormod Lagarde, ou de que Mina era a responsável pelos roubos.

Ou a outra grande possibilidade: sabia Mina algo daqueles roubos? Era essa a causa porque tivesse sido assassinada?

Restavam ainda outras opções. Talvez Mina fosse à ladra e, em um de seus inocentes roubos, tomou um objeto comprometedor, tão comprometedor que seu proprietário tinha preferido o assassinato a ver descoberto seu segredo.

Por exemplo, um medalhão com uma reveladora fotografia, ou alguma prova ainda mais irrefutável. Que outra coisa podia ter roubado? Acaso se tinha dado conta e tinha tratado de fazer chantagem, nem tanto por dinheiro como pelo puro prazer de ter a alguém a sua mercê?

Contemplou o rosto de Caroline, a pele de pêssego de suas faces, suas maçãs do rosto marcadas, o esbelto pescoço que recordava ao do Charlotte. Olhou suas mãos, tão longas e delicadas, tão semelhantes às de sua filha. E não foi capaz de lhe fazer aquelas perguntas.

—Não - disse Caroline, inconsciente da batalha que Pitt travava em seu foro interno-. Receio que de momento não.

De novo Pitt deixou escapar sua oportunidade.

—Se se lembrar de algo, me mande uma mensagem e acudirei em seguida. -levantou-se-. Como acaba de dizer, quanto antes saibamos a verdade menos doloroso será para todos. -encaminhou-se para a porta e, voltando-se, disse: — Por acaso tem idéia de onde foi à senhora Spencer-Brown a primeira hora da tarde? Pois como o fez caminhando, teve que visitar um vizinho próximo.

Caroline apertou a mandíbula e aspirou fundo, consciente do alcance de suas palavras.

—Não sabe? A casa dos Lagarde. Acabo-o de ouvir de alguém em casa dos Charrington, embora não lembro de quem.

—Obrigado -disse Pitt-. Talvez isso explique tudo. Pobre mulher! E pobre homem! Por favor, não o mencione a ninguém. É questão de decência deixar que passe inadvertido, dentro do possível.

—Naturalmente. -Caroline avançou uns passos para ele-. Obrigada, Thomas.

 

Charlotte não andou com tantos cuidados como Pitt ao falar com Caroline.

Em grande parte porque estava assustada, e a intensidade e urgência do medo se sobrepunham à prudência que de outro modo teria suavizado suas palavras. Velhas lembranças iam a sua mente, como se a surpresa e a decepção fossem coisas de ontem mesmo.

Não obstante, o impulso de proteger a sua mãe se fez maior. Agora percebia as coisas com maior nitidez, e as via de fora, sem que suas próprias emoções entorpecessem, como então, seu raciocínio.

—Acho que é pouco razoável manter a esperança de que o envenenamento de Mina fosse um acidente -disse no dia seguinte, sentada no salão de sua mãe.

Tinha decidido ir vê-la assim que soube do Pitt as notícias. As fofocas não iriam demorar. Podiam cometer-se enganos ao primeiro encontro.

"Seria trágico chegar a pensar que a pobre mulher se sentia desventurada até o ponto de tirar a vida - continuou-, e ainda pior supor que alguém a odiasse tanto para chegar ao assassinato. Mas por muito que fechemos os olhos não conseguirão fazer desaparecer a verdade.

—Já contei ao Thomas o pouco que sei - disse Caroline com pesar-. Até me atrevi a fazer algumas hipóteses muito aventurosas, e agora me arrependo delas. Provavelmente tenha sido totalmente injusta.

—Além de pouco honesta - acrescentou Charlotte com dureza-. Não lhe disse nada do retrato de monsieur Alaric no medalhão roubado.

Caroline ficou rígida, apertando os dedos como em um espasmo repentino.

—Fez isso? -disse lentamente.

Charlotte percebeu sua raiva contida, mas estava muito preocupada para perder o tempo em ofensas.

—Claro que não! -Rechaçou a acusação sem sequer defender-se-. Mas isso não muda o fato de que, se você perdeu um objeto desse tipo, talvez a outros passasse o mesmo.

—E o que tem que ver com a morte de Mina? -Caroline continuava crispada pelo medo.

—Não se faça de idiota! -estalou Charlotte, exasperada. Por que se mostrava Caroline tão obtusa?-. Se Mina fosse à ladra, é possível que a assassinassem para recuperar o objeto em questão. E se, ao contrário, era ela a vítima dos roubos, talvez se tratasse de algo tão importante e perigoso que não teve forças para suportar que se fizesse público.

 

Fez-se o silêncio. Na cozinha caiu uma frigideira, e o ruído chegou atenuado até o salão. A raiva desapareceu pouco a pouco do rosto de Caroline, à medida que começava a compreender. Charlotte a contemplou sem falar.

—E o que seria pior que a morte? -perguntou Caroline finalmente.

—É o que devemos averiguar. -Charlotte relaxou por fim seu corpo, o suficiente para sentar-se adequadamente em sua cadeira e apoiar-se no espaldar-. Thomas rastreará as provas, mas possivelmente lhe faça falta nossa ajuda para interpretá-las.

No fim de contas não pode esperar-se da polícia que compreenda os sentimentos de uma pessoa como Mina. O que lhes pareceria corriqueiro pode ter sido entristecedor para ela.

Não havia necessidade de explicar todas as diferenças de classe, sexo e a de costumes e valores que afastavam ao Pitt e Mina. Tanto Charlotte como Caroline entendiam que nem a acuidade do Pitt nem sua imaginação lhe serviriam para ver com os olhos de Mina, nem lhe iriam guiar até o motivo de sua morte.

—Preferiria não ter que averiguá-lo - disse Caroline com tom fatigado-. Quanto eu gostaria de deixá-la descansar em paz! Não me incomoda aceitar um mistério.

Aprendi que averiguar todas as respostas não nos faz necessariamente mais felizes.

Charlotte se dava conta de que os sentimentos que expressava sua mãe nasciam em grande parte de seu desejo de proteger sua própria intimidade e seus segredos.

O prazer da paquera residia em grande parte em que outros o presenciassem, e o saber o assustava ainda mais ao Charlotte. O interesse de Caroline por Paul Alaric devia ser muito forte, se preferia que sua relação passasse inadvertida. Significava que era algo mais que um jogo.

Naquela relação havia algo muito importante para Caroline, algo mais que pura admiração.

—Não pode se permitir não saber! -disse Charlotte com dureza, tentando despertar em sua mãe um medo suficientemente agudo para devolvê-la à realidade-. Se Mina era a ladra, possivelmente seu medalhão continue em sua casa! Quando se investigarem suas posses, Alston o achará, ou Thomas!

A mutreta funcionou. O rosto de Caroline adquiriu a rigidez de uma máscara.

Engoliu em seco com dificuldade.

—Se Thomas o achar... -deu-se conta da terrível conclusão-. Meu Deus! Pensará que eu matei Mina! Alguma vez acreditaria em tal coisa, não é, Charlotte? Ou sim?

O perigo era muito real para andar-se com afetações e dissimulações.

—Thomas provavelmente não, mas possivelmente outros membros da família. Tem que haver uma explicação para a morte de Mina, e mais vale que a encontremos logo, antes que apareça o medalhão e as pessoas comecem a murmurar.

—Mas qual? -Caroline, desesperada-, fechou os olhos, procurando uma explicação nas trevas de sua mente-. Nem sequer sabemos se foi suicídio ou assassinato! Falei com o Thomas do Tormod Lagarde.

—O que acontece com Tormod? -Thomas não tinha mencionado que Tormod estivesse comprometido.

—Talvez Mina estivesse apaixonada por ele - respondeu Caroline-.

Não há dúvida de que o admirava; possivelmente mais do que pensávamos. E visitou os Lagarde justo antes de morrer. Talvez estivesse interessada pelo Tormod, e sua rejeição lhe foi insuportável.

A idéia de que para uma mulher casada o final de uma aventura pudesse dar pé ao suicídio perturbava ao Charlotte. Era algo espantoso e patético, que lhe provocava repulsão, sobre tudo porque não podia afastar de sua mente Caroline e Paul Alaric.

Não obstante, ignorava até que ponto a vida de casal dos Spencer-Brown era desagradável ou vazia. Não tinha direito a julgar. Havia tantos matrimônios de conveniência! E inclusive os que eram fruto do amor podiam azedar-se. Repreendeu-se por fazer julgamentos tão à ligeira, tendência que criticava em outros.

—Imagino que Eloise Lagarde saberá algo -disse Charlotte-. Teremos que ir com muito tato ao fazer perguntas. Ninguém gostará de pensar que pode ter provocado um suicídio, embora seja involuntariamente. Além disso, Eloise quererá proteger a seu irmão.

A esperança se apagou do rosto de Caroline.

—Sim, querem-se muito. Suponho que é por não ter tido a ninguém depois da prematura morte de seus pais.

—Restam muitas possibilidades além dessa –respondeu Charlotte-. Houve roubos.

Talvez furtaram de Mina uma lembrança amorosa do Tormod, e a pobre não pôde agüentar o medo a que se fizesse público. Até é possível que a ameaçassem diretamente dando-lhe ao Alston se não lhes pagava, com dinheiro ou com qualquer outra coisa que desejassem. -Sua imaginação começou a procurar motivos que pudessem fazer uma pessoa pensar na morte-.

Talvez esse outro homem a desejasse, e o preço de seu silêncio fosse...

—Charlotte! -Caroline se ergueu de um salto-. Que detestável imaginação, filha! Nos tempos em que vivia comigo não teria sido capaz de pensamentos como esses.

À Charlotte ocorreram algumas palavras irritadas sobre Caroline, Paul Alaric e o assunto da moralidade, mas se conteve.

—No mundo real acontecem coisas detestáveis, mamãe - se limitou a dizer-. Além disso, fiz alguns anos depois.

—E também parece ter esquecido que classe de pessoas somos. No Rutland Place não há um só homem capaz de rebaixar-se tanto!

—Talvez não abertamente -disse Charlotte. Tinha idéias próprias sobre que coisas chegavam a fazer-se, e como se disfarçavam com amáveis palavras-. Mas não tem por que tratar-se de um dos seus.

Por que não um lacaio, ou inclusive um engraxate? Atreve-te a responder deles com a mesma segurança?

—Deus santo! Não fala a sério!

—Por que não? Acaso não seria suficiente para empurrar a Mina, ou a qualquer outra mulher, ao suicídio? Não o faria você?

—Eu...? -Caroline se sentiu surpreendida. Deixou escapar o fôlego muito lentamente, como se se desse por vencida-. Não sei. Parece-me uma dessas coisas que, de tão horríveis, fazem impossível prever sua reação até que aconteçam de verdade. -Baixou o olhar e contemplou o chão-. Pobre Mina! Odiava tudo o que pudesse parecer indecoroso. Isso que diz a haveria... a teria consumido até as entranhas!

—Não sabemos se aconteceu, mamãe. Pode ter sido algo muito diferente. Talvez Mina fora a autora dos roubos e não se atreveu a confrontar a vergonha de ser descoberta.

—Mina? OH, é impossível que... -Caroline se deteve; em sua expressão lutavam incredulidade e suspeita.

—Há um ladrão - indicou Charlotte sensatamente-, e tendo em conta onde foram roubados os objetos, não parece que possa ser um criado. Em troca sim, alguém como Mina.

—Mas se lhe roubaram algo - argumentou Caroline-, uma caixa de rapé...

—Quererá dizer que se queixou disso - a corrigiu Charlotte-. Além disso, não era dela, pertencia a seu marido. O melhor modo de afastar as suspeitas é roubar-se a si mesmo. Não é preciso ser muito inteligente para saber isso.

—Não, suponho que não. E acha que esse indivíduo que nos espiona estava à corrente?

—É uma possibilidade.

Caroline meneou a cabeça.

—É, para mim, muito difícil de acreditar.

—Há algo que não o seja? Ontem mesmo Mina estava viva.

—Sei! É tudo tão desagradável, inútil e estúpido! Às vezes me faz impossível aceitar que todas estas mudanças irrevogáveis tenham acontecido em algumas horas.

Charlotte provou uma nova direção.

—Continua tendo a sensação de ser vigiada?

Caroline pareceu surpreendida.

—Não tenho a menor idéia! Nem sequer pensei nisso! O que importa um simples olheiro frente à morte de Mina?

—Poderia estar relacionado. Só tento esgotar todas as possibilidades.

—Pois não parece que haja nenhuma capaz de justificar a morte de uma pessoa. -Caroline ficou em pé-. Mas é hora de que almocemos. Encarreguei que sirvam a comida a uma menos quarto, e já passa da hora.

Charlotte seguiu a sua mãe à sala do café da manhã, onde a criada, com a mesa posta, estava preparada para servir.

Assim que a moça saiu da sala, Charlotte começou a tomar a sopa, enquanto tratava de recordar partes de sua conversa com Mina uma semana atrás. Mina tinha feito alguns comentários sobre o Ottilie Charrington, sobre sua morte, sugerindo inclusive que havia algo misterioso nisso. Era uma idéia desagradável, mas Charlotte se decidiu a explorá-la.

—Mamãe, Mina estava á tempo vivendo aqui, não é?

—Vários anos, sim. Por que o pergunta?

—Nesse caso devia conhecer bastante bem a seus vizinhos. O bastante para, se fosse ela a ladra e tivesse roubado algo valioso, dar-se perfeita conta de seu significado. Não acha?

—Por exemplo?

—Não sei. A morte do Ottilie Charrington, possivelmente? Falou muito disso quando a visitou. Parecia suspeitar de um segredo encoberto, algo que a família preferia ocultar.

Caroline deixou a colher no prato.

—Quer dizer que não foi uma morte natural?

Charlotte franziu o sobrecenho.

—Não, não me refiro a isso. Entretanto, talvez Ottilie não fosse tão respeitável como teria desejado o senhor Charrington. Mina disse que era muito alegre e frívola, e insinuou claramente que também era um pouco indiscreta.

Possivelmente se não tivesse morrido nesse momento se teria feito algum escândalo...

Caroline partiu uma parte de pão e ficou outra vez a comer.

—É uma idéia muito desagradável - disse-, mas suponho que tem razão. Mina se despachou com algumas coisas que a gente não sabia. Nunca o perguntei, porque gostava tanto de Ambrosine que preferiria não respirar as fofocas. Mas admito que por culpa de Mina cheguei a sentir também certa curiosidade com respeito à Theodora.

Charlotte estava desorientada.

—Quem é Theodora?

—Theodora Von Schenck, a irmã de Amaryllis Denbigh. É viúva, com dois filhos.

Não a conheço muito, mas tenho que reconhecer que gosto dela também.

Charlotte custava entender que uma pessoa aparentada com Amaryllis Denbigh pudesse ser simpática.

—Seriamente? -disse, sem dar-se conta de seu tom cético.

Caroline sorriu.

—Não se parecem em nada. Para começar, aparentemente Theodora não sentiu desejo de casar-se outra vez, apesar de que, pelo que se sabe, não dispõe de muitos recursos. E não é pouco o que se sabe, asseguro-lhe! De fato, quando há uns anos se mudou a este bairro, suas posses se limitavam à casa que tinha herdado de seus pais.

Agora, em troca, tem um casaco novo, com goal e guarnição até o chão, e eu juraria que é de Marta. Lembro que, quando o estreou, comentei com Mina. Envergonha-me reconhecê-lo, mas não posso evitar me perguntar de onde o tirou.

—Algum amante, possivelmente? -Charlotte sugeriu o mais claro.

—Pois nesse caso o leva com uma discrição incrível!

—Aparecer com um casaco de Marta da noite para o dia não me parece o mais discreto -replicou Charlotte-. Não será tão ingênua para esperar que passe desapercebido.

Com certeza qualquer mulher do Rutland Place seria capaz de lotear as roupas das demais. E certamente também o nome do alfaiate, e a data de confecção.

—OH, Charlotte, que injusta é! Não somos tão... tão maliciosas e frívolas como parece pensar.

—Maliciosas não, mamãe. Simplesmente práticas, e com um excelente olho crítico.

—Sim, suponho que sim... -Caroline tomou as últimas colheradas de sopa.

A criada voltou a entrar para servir o prato seguinte. Charlotte e sua mãe tomaram pausadamente. O prato consistia em um peixe de suave sabor e bem cozido.

Em outras circunstâncias, Charlotte o teria desfrutado a fundo.

—Salta à vista que agora Theodora dispõe de mais dinheiro que antes -continuou Caroline-.

Em certa ocasião Mina sugeriu que para consegui-lo tinha feito algo não de todo correto; mas tenho certeza de que brincava. Às vezes fazia brincadeiras de péssimo gosto. -Ergueu o olhar-. Acha que poderia ser verdade? Acha que Mina sabia algo?

—Quem sabe... -Charlotte sopesou a hipótese-. Ou também pode ser que Mina o dissesse com má intenção, ou pelo gosto de chamar a atenção. As intrigas mais estúpidas às vezes começam assim.

—Mas Mina não era dessas -argumentou Caroline-. Raramente falava de outras pessoas, ou se limitava a fazer os mesmos comentários que todo mundo.

Preferia escutar.

—Então começo a pensar que a coisa tem que ver com o Tormod –refletiu Charlotte-, ou com outro homem que não conhecemos. Ou possivelmente com o Alston. Também pudesse ser, simplesmente, que fosse ela a ladra.

—Um suicídio, então? -Caroline afastou o prato-. Me horroriza pensar que uma mulher da mesma condição que eu, em nada diferente de mim, e que vivia a poucos metros de distância, sentisse-se desgraçada até o ponto de preferir o suicídio a viver um dia mais... e sem que eu tivesse o menor indício!

E passa-se o dia ocupada nas trivialidades cotidianas, pensando no menu, assegurando-se de que o jogo de mesa seja remendado, programando as visitas... Como se não houvesse nada mais que fazer!

Charlotte tocou a sua mãe para consolá-la.

—Embora o tivesse sabido, duvido que pudesse fazer algo - disse-. Mina não deu sinais de estar tão desesperada. Não se pode remexer na intimidade de outros em busca da verdade. Às vezes a dor se agüenta mais facilmente a sós; a humilhação é a última coisa que a gente desejaria compartilhar.

O mais amável que podemos fazer é fingir que não nos damos conta de nada.

—Suponho que tem razão. Entretanto não posso deixar de me sentir culpada.

Com certeza teria podido fazer algo.

—Já é muito tarde. A única coisa que pode fazer é falar bem dela.

Caroline suspirou.

—Enviei uma carta ao Alston, naturalmente, mas é muito cedo para lhe fazer uma visita. Sem dúvida estará muito afetado.

Mas também a pobre Eloise se encontra mal. Pensei que poderíamos ir vê-la esta tarde e lhe oferecer nossa ajuda. Sofreu uma comoção muito forte. Começo a acreditar que sua saúde é mais frágil do que pensava.

A perspectiva não entusiasmava ao Charlotte, mas se deu conta de que se tratava virtualmente de uma obrigação. Além disso, os Lagarde tinham sido os últimos em ver Mina viva, além de seus próprios criados. Talvez pudessem proporcionar nova informação.

Charlotte ficou surpreendida quando entrou no salão dos Lagarde atrás de sua mãe. Eloise não parecia à mesma mulher que tinha visto na semana anterior. Em um primeiro momento quase esperou que a apresentassem. Eloise estava pálida e seus gestos eram tão lentos que dava a impressão de mover-se em sonhos. A jovem forçou um sorriso tênue e apagado.

A morte tinha feito sua aparição no Rutland Place. As formalidades e cortesias de sempre, a fingida alegria de rigor, pareciam deslocadas.

—Foram muito amáveis ao vir -disse Eloise lentamente-. Por favor, fiquem à vontade. Deve fazer muito frio ainda. -Sobre o vestido levava um grosso xale.

Charlotte tomou assento em uma cadeira do outro lado da sala, tão longe da lareira como lhe permitiu a boa educação; o fogo crepitava como se fosse pleno inverno. No exterior fazia um agradável dia de primavera, ainda um pouco frio, mas ensolarado.

Caroline parecia ter ficado muda. Talvez sua própria ansiedade a impediu de formular comentários corteses. Charlotte se apressou a tomar a palavra, antes de Eloise se dar conta.

—Sim, temo que o verão sempre demora mais do que uma espera –disse corriqueiramente. - Assim que vemos que os dias se fazem mais longos, parece- nos que o sol tem que ser mais quente, mas poucas vezes é assim.

—Ah- disse Eloise, com o olhar posto no retângulo azul da janela-. Com efeito, é fácil enganar-se. Brilha com força, mas até que não se sai não se dá conta do frio que faz.

Caroline recordou o propósito de sua visita.

—Ficaremos pouco tempo - disse-, porque não é momento de reuniões sociais.

Charlotte e eu estávamos preocupadas com você, e queríamos saber como se achava. Se houver algo que possamos fazer para lhe dar ânimo...

Por uns instantes Eloise deu a impressão de não entender. Finalmente caiu na conta e mudou de expressão.


—São muito amáveis. -Dedicou-lhes um sorriso-. Não acredito que me tenha afetado mais que aos outros vizinhos. Pobre Mina! Com que rapidez mudam às vezes as coisas! Parece-nos que tudo vai como de costume, e em um minuto se produziram as mais espantosas mudanças, de forma tão completa que se diria que passaram anos.

—Às vezes tais mudanças não são mais que o resultado de lamentáveis acidentes. -O assunto era muito importante para que Charlotte desperdiçasse a oportunidade de surrupiar informação-. Em troca, outros estão aí, escondidos, durante muito tempo. Acontece simplesmente que não soubemos reconhecê-los.

Eloise, desorientada, abriu os olhos, esforçando-se por compreender o estranho comentário de Charlotte.

—A que se refere?

—Nem eu mesma sei- escapuliu-se Charlotte. Não devo dar a impressão de estar bisbilhotando-. Pensava simplesmente que, se a pobre senhora Spencer- Brown se tirou a vida, então é que a tragédia tinha tomado proporções cada vez mais grandes durante um tempo, sem que nós soubéssemos. -propôs-se ser mais sutil, mas a ingenuidade de Eloise a impedia de brincar com as palavras, como teria feito com uma interlocutora mais sagaz.

Eloise ficou olhando as dobras de sua saia.

—Acredita que se tirou a vida? -Pronunciou as palavras uma a uma com clareza, sopesando-as. - Me parece uma covardia por parte de Mina. Sempre a considerei uma pessoa de sólida força interior.

Suas palavras surpreenderam ao Charlotte. Teria esperado da jovem mais piedade e compreensão.

—Não sabemos com que classe de sofrimentos teve que lutar -disse, com um tom não muito amável-. Pelo menos, eu não sei.

—Não... -Eloise deu sinais de arrepender-se, e não levantou o olhar-. Tem razão, apenas adivinhamos até onde chega o sofrimento de outros. Ignoramos até que ponto é intenso... -Meneou a cabeça-. Não obstante, continuo pensando que suicidar-se é uma espécie de capitulação.

—Há quem se cansa tanto que já não pode seguir lutando, ou sofre de uma ferida impossível de suportar -insistiu Charlotte, perguntando-se no fundo por que defendia com tanto calor a Mina. Em vida não lhe tinha sido muito simpática, a diferença de Eloise.

—Não sabemos se a pobre Mina se tirou a vida – interveio Caroline finalmente. Pode haver-se tratado de algum terrível acidente. Resisto a acreditar que não nos déssemos conta de nada, se seus sofrimentos eram tão horríveis.

—Não estou de acordo, mamãe -replicou Charlotte-. Diga, senhorita Lagarde, em sua opinião foi isso o que aconteceu? Você a conhecia bem, não é?

Eloise demorou um momento em responder.

—Não sei. Antes me parecia estar à corrente de tudo. Conseguia me inteirar de todas as fofocas, e me sentia capaz de julgar seu alcance. Mas agora... -Sua voz se apagou. Ficou em pé e, dando-lhes as costas, caminhou até a janela que dava para o jardim-. Agora me dou conta de que quase não sabia nada.

Charlotte se dispunha a seguir interrogando-a quando, de repente, a porta se abriu deixando passar ao Tormod. Seu olhar posou em Eloise, e depois em Charlotte e Caroline. Parecia tenso, preocupado.

—Boa tarde -disse-. Que amável visita! -Voltou a olhar ao Eloise com olhos inquietos-. Me entristece dizê-lo, mas minha irmã reagiu muito mal ante esta horrível tragédia. Pôs-se virtualmente doente. -Sua voz sugeria que devia ir-se com cuidado e escolher bem as palavras sob pena de piorar o estado do Eloise.

Caroline murmurou uma frase compreensiva.

—O fato é realmente espantoso -disse Charlotte-. É lógico que uma pessoa sensível se compadeça dos afetados. Além disso, soube que foram vocês os últimos em vê-la.

Tormod lhe dedicou um olhar intenso.

—Com efeito... E é normal que Eloise se sinta consternada, ao pensar que possivelmente teríamos podido ajudá-la de uma forma ou outra. Embora naturalmente seus criados...

—Oh, os criados! -disse Charlotte, relegando-os a seu lugar com um pequeno gesto dos dedos-. Nunca é o mesmo que ter amigos. Aos amigos pode contar tudo.

—Exato! -disse Tormod-. Por desgraça, ela não o fez. Sinceramente, acredito que se tratou de um acidente; talvez uma dose equivocada de medicamentos.

—É possível -disse Charlotte-. Eu não a conhecia muito. Seriamente era tão distraída?

—Não. -Eloise se deu a volta-. Sempre a via perfeitamente consciente de seus atos. Se cometeu uma imprudência tão fatal, significa que estava aturdida. Do contrário antes de bebê-lo-teria percebido que tinha pego o frasco ou a caixinha equivocada.

Tormod se aproximou de sua irmã e a rodeou carinhosamente com o braço.

—Deve deixar de pensar nisso, querida - disse-. Já não podemos ajudá-la. Só conseguirá se atormentar. Ficará doente, e não ajudará a ninguém com isso.

Ao contrário, me entristecerá muito. Amanhã partiremos para o campo, ao Five Elms.

Ali pensaremos em coisas diferentes. O tempo está melhorando dia a dia. No bosque já despontarão os primeiros narcisos. Pegaremos a carruagem e iremos vê-los. Se fizer calor poderíamos levar comida. Gosta da idéia?

Eloise sorriu a seu irmão, e sua expressão se suavizou. Qualquer um diria que era ela quem se esforçava em consolá-lo.

—Claro que sim! -Puxou-o pela mão-. Obrigado.

Tormod se voltou para o Caroline.

—Senhora Ellison, senhora Pitt, foram muito atentas nos visitando. Amostras de amizade como a sua ajudam a que as coisas sejam mais suportáveis.

Sem dúvida vocês estão tão afetadas como nós. No fim de contas, Mina era também amiga sua.

—Tem razão, sinto-me totalmente confundida - disse Caroline com certa ambigüidade.

Charlotte refletia ainda sobre o significado daquelas palavras quando a criada abriu a porta e anunciou à senhora Denbigh. Amaryllis seguia à moça a tão pouca distância que não deu tempo para responder se a visita era bem recebida ou não.

Eloise a olhou com tristeza, como se visse através dela. Tormod sorriu cortesmente, sem soltar a sua irmã.

O rosto de Amaryllis ficou tenso, e seus redondos olhos faiscaram com acuidade.

—Encontra-se mau, Eloise? -disse com uma mescla de compaixão e impaciência-. Está enjoada. Deixe que a ajude a subir as escadas e estender-se em sua cama. Se precisa de sais, eu tenho.

—Obrigado, não estou enjoada. Mas seu oferecimento é muito amável.

—Tem certeza? -Amaryllis lhe deu um repasse com frio ar protetor-. Seu aspecto não é nada bom, querida. Parece francamente abatida. Já sabe que sou a última pessoa do mundo com vontade de fatigá-la em excesso com minha visita.

—Não estou doente! -disse Eloísa com certa brutalidade.

Tormod aumentou a pressão de seu braço, quase carregando com todo o peso do corpo de sua irmã, embora para Charlotte parecia que a jovem podia manter-se em pé sem problemas.

—Claro que não, querida -disse-, mas sofreu uma terrível impressão...

—...E não é você forte -acrescentou Amaryllis-. O que lhe parece se ordenar que tragam uma infusão? Quer que chame à criada?


—Obrigada - se apressou a aceitar Tormod-. É uma boa idéia. Sem dúvida à senhora Ellison e a senhora Pitt gostarão também de uma xícara de infusão. São momentos duros para todos. Tomarão um pequeno refrigério, verdade?

—Muito obrigado -disse Charlotte. Não estava muito segura de ganhar algo ficando, mas queria tentar obter alguma informação, visto que de momento não tinha conseguido nada. - Mal conhecia a pobre senhora Spencer-Brown, mas mesmo assim sua morte me entristece profundamente.

—Quão bondoso de sua parte - disse Amaryllis com secura.

Charlotte afetou uma expressão de inocência.

—Não sente o mesmo, senhora Denbigh? Asseguro-lhe que compreendo os sentimentos da senhorita Lagarde, e que me sinto de tudo solidária. Saber que alguém foi à última pessoa em ver uma amiga, em falar com ela antes de que um estado de desespero extremo lhe fizesse insuportável a idéia de continuar vivendo...

Tampouco eu me sentiria muito bem, não o duvide.

Amaryllis arqueou as sobrancelhas.

—Se a entendi bem, senhora Pitt, sugere você que a senhora Spencer-Brown tirou a vida com suas próprias mãos.

—Meu Deus! -Charlotte pôs em sua voz toda a fingida consternação de que foi capaz-. Não pensará você que outra pessoa...? Santo Deus, que horror!

Por uma vez Amaryllis foi incapaz de responder. Seu desconcerto indicava que aquela idéia era a última que se propôs insinuar.

—Não, claro que não! Quer dizer... -Depois de uma breve hesitação voltou a guardar silêncio. Ruborizada, com o olhar frio, dava-se conta de que a tinham deixado fora de jogo.

—Não me parece muito verossímil - disse Tormod, indo em seu resgate (possivelmente no do Charlotte)-. Mina não era não mulher capaz de provocar uma inimizade tão violenta. Até duvido que entre seus conhecidos houvesse alguém capaz de um ato tão abominável.

—Exatamente! -disse Amaryllis com gratidão-. Não me tinha expresso com a devida clareza. Uma coisa assim é impensável. Se você tivesse conhecido melhor -olhou ao Charlotte- a que tipo de gente pertenciam suas amizades, não me teria interpretado mal até esse extremo.

Charlotte esboçou um sorriso de circunstância.

—Estou convencida de que tem razão. Mas, dado que estou em desvantagem, terá que me perdoar. Assim queria dizer que foi um acidente?

Apresentada desse modo, ao nu, a idéia de caminhar até a casa e tomar tranqüilamente uma dose fatal de veneno por puro descuido era tão ridícula que não havia resposta verossímil. Amaryllis olhou com olhos grandes e frios ao Charlotte, expressando uma profunda antipatia.

—Simplesmente ignoro como aconteceu, senhora Pitt. Além disso, para ser sincera, penso que deveríamos evitar falar disso em presença de Eloise. -Pôs uma nota protetora em sua voz-. Se deu conta sem dúvida de quão frágil é, de sua marcada hipersensibilidade. Seria de mau gosto continuar angustiando-a com nossos comentários.

—Eloise, querida... -aproximou-se da jovem com um sorriso tão rutilante que Charlotte sentiu calafrios, e se apoderou dela tal repugnância que esteve a ponto de traduzir-se em palavras-. Eloise -continuou Amaryllis-, tem certeza de não querer subir para descansar um pouco? Está muito pálida.

—Obrigada -disse Eloise inexpressivamente-, mas não desejo me retirar.

Prefiro ficar aqui embaixo, seriamente. Devemos compartilhar esta dor e nos consolar mutuamente.

Entretanto, Tormod não estava satisfeito.

—Venha. - Afastando Amaryllis, levou Eloise até o divã, estendeu-a e lhe pôs os pés no alto.

Charlotte percebeu no rosto do Amaryllis um relâmpago de raiva tão ardente que teria causado queimaduras ao Eloise, e experimentou uma aguda satisfação da qual não se sentiu orgulhosa mas que não fez nada por reprimir.

Ao contrário, desfrutou dela com singular intensidade, e saboreou o gesto com que Tormod deu meia volta e alisou suavemente o vestido de Eloise, enquanto Amaryllis olhava a suas costas.

Abriu-se a porta, e a criada entrou com uma bandeja carregada de xícaras e uma infusão quente. Amaryllis a deixou em cima da mesa e imediatamente serviu uma xícara à Eloise. Ao mesmo tempo que a dava, colocou-lhe uma almofada para que descansasse mais comodamente.

Charlotte fez um comentário comum a respeito de um acontecimento social que tinha visto mencionado no Illustrated News de Londres. Tormod, agradecido, aproveitou a ocasião e se espraiou sobre o tema.

Depois de uns goles de infusão, Charlotte e Caroline se despediram, seguidas por Amaryllis.

—Pobre Eloise! -disse Amaryllis assim que pisaram na rua-. Seu aspecto é deplorável. Não esperava que tomasse tão a peito.

Não tenho a menor idéia do que pode ter provocado esta tragédia, mas, tendo em conta que Eloise foi a última em ver a pobre Mina antes de morrer, pergunto-me se saberá algo. -Abriu ainda mais os olhos-. Mina o haveria dito no tom mais confidencial, claro! E isso a coloca em um terrível dilema, pobrezinha. Imaginem-se, saber algo de vital importância e não poder dizer nada! Francamente, não a invejo.

Charlotte tinha começado a fazer as mesmas perguntas, sobretudo ao ouvir a decisão do Tormod de levar a sua irmã ao campo, longe do Rutland Place, longe também do alcance do Pitt e suas perguntas.

—Com efeito -disse, sem comprometer-se muito-. As confidências sempre são um assunto delicado, sobre tudo quando existem razões poderosas para julgar que o mais correto moralmente é dá-las a conhecer. O peso é ainda maior se quem nos confiou está morto e, portanto, não pode nos liberar da responsabilidade. É uma posição pouco invejável; desde que as coisas tenham acontecido assim, claro.

Não devemos apressar conclusões nem respirar fofocas. -Charlotte dirigiu à Amaryllis um gélido sorriso-. Seria uma imperdoável irresponsabilidade. Talvez Eloise simplesmente era mais compreensiva que nós. Eu me sinto muito penalizada, mas mal conheci a senhora Spencer-Brown. -A indireta ficou flutuando no ar.

Amaryllis não foi insensível a ela.

—Sem dúvida. E enquanto alguns fazem ostentação de suas emoções outros preferem manter certa reserva, uma atitude digna e contida, receosa com a morte de um ser querido.

No fim das contas, ninguém deseja converter-se no centro de atenção. É a pobre Mina quem morreu, não uma de nós!

Charlotte sorriu ainda mais amplamente. Sentia-se como uma fera mostrando os dentes.

—Que delicado de sua parte, senhora Denbigh! Não duvido que será um grande consolo para todos. Me alegro de havê-la conhecido. -Acabavam de chegar à casa do Amaryllis.

—É muito amável -respondeu Amaryllis-. Espero que me acredite se lhe digo que eu também me alegro. -voltou-se e, recolhendo-se levemente o vestido, subiu pelas escadarias.

—Charlotte! -exclamou Caroline em um sussurro-. Às vezes me põe em apuros. Achei que o matrimônio a teria corrigido!

—Pois sim, melhorei -replicou Charlotte sem deixar de andar-. Agora minto muito melhor. Antes titubeava mas agora sei sorrir como o melhor, e dizer mentiras sem pestanejar. Não suporto essa mulher!

—Já me dei conta! -respondeu Caroline secamente.

—E você tampouco a suporta.

—Mas sou capaz de me controlar muito melhor que você!

Charlotte lhe dirigiu um olhar indecifrável, antes de descer da calçada para cruzar o meio-fio.

Foi então quando, de repente, reparou na elegante silhueta de um homem que saía de uma casa do outro extremo da rua. Já antes que se voltasse reconheceu-o, por suas costas erguidas, seu gracioso porte e o modo como lhe assentava o casaco.

Era Paul Alaric, o francês do Paragon Walk que levantava tanta curiosidade e de quem, entretanto, tão pouco se sabia.

Aproximou-se delas com passo elegante e um meio sorriso em seu rosto.

Saudou-as com o chapéu. Seus olhos pousaram nos do Charlotte com um matiz de surpresa seguido por uma expressão que podia ser tanto de agrado como de diversão, ou possivelmente só de cortesia, ao reconhecer a uma pessoa de agradável lembrança com quem se compartilhou emoções intensas de perigo e piedade.

Mas naturalmente falou primeiro com o Caroline, sendo como era a de mais idade.

—Boa tarde, senhora Ellison. -Sua aveludada voz continuava tal como a recordava Charlotte. Sua pronúncia, esquisitamente correta, superava em formosura a da maioria de homens para quem o inglês era a língua materna.

Caroline permaneceu imóvel. Engoliu em seco antes de falar e sua voz soou um pouco forçada.

—Boa tarde, monsieur Alaric. Que dia tão agradável! Acredito que não conhece minha filha, a senhora Pitt.

Por um instante Alaric vacilou, com o olhar cravado no Charlotte, que sentiu como uma multidão de lembranças invadia sua mente: lembranças de medos e paixões encontradas. Finalmente Alaric fez uma ligeira reverência.

—Como está, senhora Pitt?

—Muito bem, obrigado, monsieur -respondeu Charlotte com tom inexpressivo. - Embora penalizada pela recente tragédia.

—A senhora Spencer-Brown... -A banal expressão de cortesia se apagou do rosto do Alaric, e seu tom se fez mais tênue-. Sim, declaro-me incapaz de achar uma solução que não seja trágica. Estive espremendo os miolos em busca de um motivo, algo que explicasse tão lamentável e inútil fato, mas foi em vão.

Charlotte sentiu o impulso de insistir no assunto, embora a urbanidade lhe ditava que mudasse de assunto depois de uma ou duas frases compassivas.

—Assim, não acredita que fosse um acidente? -perguntou. Tinha a seu lado Caroline, e era consciente de sua tensão e do modo em que olhava fixamente para Alaric.

A atitude do francês era de grande amabilidade, com certo toque de humor amargo, como se a franqueza do Charlotte lhe tivesse provocado emoções desencontradas.

—Não, senhora Pitt -disse-. Tomara pudesse! Mas é impossível tomar uma dose de medicamento que não foi prescrita, ou ficar a beber de um frasco sem etiqueta, a menos que se seja muito estúpido. E a senhora Spencer-Brown não tinha um pingo de estupidez. Era uma mulher com grande pragmatismo. Não é certo, senhora Ellison? -voltou-se para Caroline com um sorriso.

A mãe do Charlotte se ruborizou.

—Sim, certamente! De fato não recordo que Mina cometesse jamais um só ato...irrefletido.

Charlotte se surpreendeu. Mina não lhe tinha dado a impressão de ser particularmente inteligente. A conversa que tinham mantido se resumiu a quatro banalidades e comentários corriqueiros.

—Seriamente? -disse com um ceticismo em parte involuntário. Não desejava ser descortês-. Talvez não cheguei a conhecê-la-o suficiente, mas me parecia possível que, com a mente ocupada em outros assuntos, tivesse cometido um engano.

—Confunde a inteligência com bom senso, Charlotte -disse sua mãe-.

Mina não gostava de estudar, nem se ocupava de temas tão estranhos como os que interessam a você. -Caroline era muito discreta para mencionar esses temas, mas o modo como baixou as pestanas enquanto olhava de soslaio a sua filha convenceu a esta de que se referia a suas opiniões políticas, a suas idéias sobre os projetos do rei reformista ou as leis para a pobreza, entre outros assuntos.

Mas era muito consciente de suas habilidades - continuou-, e do melhor modo de usá-las. Além de que, por natureza, era muito judiciosa para permitir-se falhas de qualquer tipo.

Não acha, monsieur Alaric?

Antes de voltar-se para o Charlotte, Alaric olhou por uns instantes além de suas interlocutoras, para algum ponto longínquo da rua, invisível para elas.

—Estamos tratando, senhora Pitt, de achar um modo elegante para dizer que a Senhora Spencer-Brown tinha um sólido instinto de sobrevivência -respondeu-.

Conhecia bem as regras, o que pode dizer-se e o que está permitido fazer. Nunca agia irreflexivamente, movida pela paixão antes que pelo julgamento.

Parecia superficial às vezes, certo, mas só porque o exigiam as normas sociais.

Em uma mulher, tratar com inteligência tema sérios não se considera atraente. –Sorriu levemente. Caroline não podia saber que já tinham falado antes entre eles-. Em todo caso, não para a maioria dos homens. Entretanto, atrás de tanto falatório, Mina era uma mulher prudente e hábil, que sabia com precisão o que queria e o que podia alcançar.

Charlotte olhou-o.

—Apresenta-a de forma um pouco inquietante -disse lentamente-. Uma mulher calculista?

Caroline a pegou pelo braço.

—Tolices! Para sobreviver deve-se agir com sensatez. Monsieur Alaric só quer dizer que Mina não era caprichosa, que não era uma dessas atordoadas que não põem atenção no que fazem. Equivoco-me? -Olhou ao Alaric com olhos brilhantes.

Charlotte se surpreendeu ao mesmo tempo que cresceu sua inquietação ao ver quão bonita era ainda sua mãe. Nem a cor da pele, nem seu brilho, nem aquele rubor tinham nada que ver com o vento de março. A causa era a presença daquele homem de tez morena e ombros erguidos que, de pé em meio da rua, falava cortesmente da morte, e expressava sua piedade pela tragédia que implicava.

—Então, receio muito que se trate de um suicídio! -disse de repente Charlotte em voz bastante alta-. Possivelmente a pobre mulher se meteu em um enredo sentimental, travou relação com outro homem, e a situação se fez insustentável. Não me custa nada imaginar o modo em que aconteceu. -Não teve a ousadia de olhar a sua mãe nem ao Alaric.

Na rua reinava um silêncio absoluto, nem sequer perturbado pelos pássaros ou por um longínquo ruído de cascos.

Esse tipo de aventuras acaba freqüentemente de forma desastrosa - continuou, depois de respirar rapidamente-, em um sentido ou outro. Talvez preferiu morrer antes que presenciar o escândalo que, uma vez público o assunto, teria sido inevitável.

Caroline ficou como paralisada.

—Seriamente acredita que ela, ou o homem em questão, teriam consentido que se soubesse o seu? -perguntou Alaric com expressão impenetrável.

—Não tenho a menor idéia -disse desafiante Charlotte. Imediatamente se arrependeu, mas teve que continuar adiante. Alaric sempre conseguia fazê-la perder as precauções-. Possivelmente uma carta indiscreta, ou um objeto de amor? Os apaixonados costumam ser imprudentes, embora quando na vida normal sejam gente sensata.

Sua mãe estava tão rígida que Charlotte a sentia a seu lado como uma coluna de gelo.

—Tem razão -sussurrou Caroline-. Mas a morte me parece um preço muito alto para essa classe de deslizes.

—É sim! -Pela primeira vez Charlotte olhou com franqueza a sua mãe. Depois se voltou para o Alaric, encontrando seu olhar escuro e penetrante; um olhar inescrutável que lia nela como se tivesse o poder de penetrar em sua mente.

Mas quando alguém embarca em semelhante assunto -continuou com um nó na garganta-, não costuma dar-se conta do preço até que chega o momento de pagar. -Engoliu e seco e tratou de adotar um tom mais ligeiro, como se se estivesse limitando a fazer conjeturas sem relação com a realidade.

Isso ao menos é o que observei. -Sem dúvida Alaric também estava recordando seu primeiro encontro no Paragon Walk. Continuaria vivendo ali?

Os lábios do francês se relaxaram um pouco e esboçaram um tênue sorriso.

—Esperemos não estar certos, e que a explicação seja menos trágica. Não me agrada ter que imaginar um sofrimento tão grande.

Charlotte voltou para o presente. Aquilo tinha passado tempo atrás.

—A mim tampouco. Estou segura de que estará de acordo, mamãe. –Estreitou a mão do Caroline-. Mas será melhor que voltemos para casa, agora que cumprimos com as visitas. Papai nos estará esperando para tomar o chá.

Caroline pareceu disposta a dizer algo, mas não o fez. Mesmo assim Charlotte teve que arrastá-la pela mão.

—Bom dia, monsieur Alaric -disse-. Foi um prazer conhecê-lo.

Alaric fez uma reverência, tirando o chapéu.

—O mesmo digo, senhora Pitt. Boa tarde, senhora Ellison.

—Boa tarde, monsieur Alaric.

Caminharam uns passos. Charlotte continuava puxando o braço de Caroline com firmeza.

—Às vezes me desespera! -Caroline fechou os olhos para rememorar a cena.

—De verdade? -respondeu Charlotte com aspereza, sem reduzir a velocidade-.

Mamãe, não é necessário que nos entretenhamos em palavras que não fariam mais que nos zangar. Conhecemo-nos o suficiente. Tampouco é preciso que me diga que papai não está em casa porque já sei.

Caroline não replicou. Subiu a gola do casaco, pois o vento se pôs a soprar com mais força.

Charlotte se dava conta de sua brutalidade, crueldade inclusive; mas estava realmente assustada. Paul Alaric não era homem de paqueras frívolas. Não era um pálido sedutor cheio de frases bonitas e pequenas amostras de amizade, válido apenas para adornar a monotonia de trinta anos de matrimônio. Era um homem com força e presença, poderoso e excitante.

Sugeria a existência de coisas inalcançáveis, emocionantes, talvez inclusive imensamente belas. A própria Charlotte não se recuperara ainda do encontro.

 

Charlotte não revelou ao Pitt seus sentimentos a respeito de sua mãe e Paul Alaric. Nem sequer lhe disse que já conhecia antes ao Alaric. De fato, embora tivesse querido lhe teriam faltado palavras. Tinha saído daquele encontro mais desorientada que nunca. Recordava a cálida onda de emoções e invejas que a presença do francês tinha levantado no Paragon Walk, e a confusão que tinha suscitado inclusive nela.

Não lhe custava compreender os sentimentos do Caroline. Alaric era algo mais que um homem bonito e encantador capaz de dar pé a românticos devaneios. Possuía o dom de surpreender, inquietar e permanecer na lembrança muito depois de haver partido. Teria sido uma amostra de cegueira reduzir aquilo a uma mera paquera, algo que se apagaria por si mesmo.

Não podia explicar ao Pitt, e tampouco tinha vontade de tentá-lo.

Em troca, teve que lhe dizer que Tormod e Eloise Lagarde pensavam partir do Rutland Place no dia seguinte. Se Pitt queria interrogá-los sobre a morte de Mina, teria que agir com presteza.

Havia muitas perguntas que Pitt desejava lhes fazer, já que pelo que se sabia tinham sido os últimos em ver mina com vida.

Entretanto, ainda não tinha achado as palavras adequadas para expressar seus pensamentos, que continuavam sendo confusos e se limitavam à consciência de uma tragédia inexplicável. Mas não havia tempo de fazer malabarismos com frases corteses e sugestões encobertas.

As nove e quinze, o mais cedo que permitiam as boas maneiras, plantou-se ante a porta, transido.

Abriu-lhe um assombrado lacaio, com a gravata torcida e as botas cheias de barro.

—Senhor? -disse, ficando boquiaberto.

—Inspetor Pitt. Posso falar com o senhor Lagarde, por favor? E se não for muita perturbação, com a senhorita Lagarde?

—É bastante de perturbação. -A surpresa fez esquecer ao lacaio os ensinos de gramática que o mordomo lhe tinha inculcado com esforço-. Hoje partem ao campo. Não desejam... não desejam receber visitas. A senhorita Lagarde está bastante indisposta.

—Lamento que a senhorita Lagarde se encontre mal - disse Pitt, que não tinha intenção de ceder-, mas pertenço à polícia e minha obrigação é investigar a morte da senhora Spencer-Brown. Soube que era amiga do senhor e a senhorita Lagarde.

Estou seguro de que quererão ajudar em todo o possível.

—OH! Bom... -Evidentemente o lacaio não tinha previsto aquela situação, nem o mordomo o tinha preparado para enfrentar a ela.

—Talvez chame menos a atenção se esperar em outro lugar, não ante a porta - ajudou-o Pitt. Olhou a rua, sugerindo que todos no lugar conheciam sua identidade, e portanto, seu trabalho.

—OH! -O lacaio tomou consciência da iminente catástrofe-. Sim, claro, será melhor que espere na saleta. A lareira está apagada... -Recordou de repente que Pitt era da polícia, com cujos membros não era preciso explicações, e menos ainda lareiras acesas.

—Espere aqui. -Abriu a porta e observou como Pitt entrava na sala-. Avisarei ao senhor que está aqui. Não se mova. Volto já mesmo e lhe digo o que - acrescentou, enredando a sintaxe mais elementar.

Quando fechou a porta, Pitt sorriu para si mesmo. O emprego do moço dependia de que soubesse comportar-se segundo as normas da conveniência social, e que um mordomo irritável e descontente lhe podia custar muito caro.

Não lhe dariam direito a réplica, nem ocasião de explicar-se; os enganos raramente eram tolerados. Que a polícia se metesse em casa era muito lamentável, mas deixá-la esperando na porta à vista de todos teria sido imperdoável. Pitt conhecia bem a vida da criadagem, começando por seu próprio pai, que tinha trabalhado um tempo como guarda-florestal em uma grande propriedade rural.

De menino, Pitt fazia esfarela com o herdeiro da casa, filho único, contente de ter um companheiro de brincadeiras, fosse quem fosse. Pitt tinha aprendido com rapidez a imitar suas maneiras e acento, e a copiar as lições do colégio. Conhecia as regras vigentes nos dois níveis das casas elegantes.

Tormod não demorou para acudir.

Pitt, que mal tinha começado a examinar as agradáveis paisagens que pendiam das paredes e a velha escrivaninha de palisandro com adornos de marchetaria, ouviu passos no corredor.

Tormod era tal como esperava: um homem de largas costas, vestido com uma jaqueta de elegante corte e gola um pouco alta. Sua escura cabeleira coroava uma branca e espaçosa fronte.

Sua boca era carnuda, com o lábio inferior muito marcado.

—Pitt? -disse-. Não sei o que lhe dizer. Não tenho a menor idéia do que aconteceu a pobre Mina, quero dizer a senhora Spencer-Brown. Se a atormentava alguma classe de temor, por desgraça não nos revelou isso nem a minha irmã nem a mim.

Aquilo era uma barreira infranqueável. Não ocorria a Pitt como superá-la.

Entretanto, era a única pista humana que tinha.

—Não obstante, visitou a vocês aquele mesmo dia e partiu uma hora antes de morrer, não é assim? -disse enquanto sua mente trabalhava com frenesi em busca de uma pergunta pertinente e capaz de alterar a compostura do Tormod, de dar indícios daquela paixão que tinha albergado. A menos que realmente se tratasse de um acidente fortuito e ridículo...

—OH, sim -disse Tormod com um leve encolhimento de ombros- mas até com a perspectiva que dá saber-se o que aconteceu depois, não consigo recordar nela nada que fizesse suspeitar um suicídio.

Parecia tranqüila e de bom ânimo. Tentei me lembrar do que falamos, mas não me ocorrem mais que trivialidades. -Olhou ao Pitt com sorriso de pesar-. A moda, menus para o almoço, alguma ou outra piada tola sobre nossos conhecidos... As coisas que uma pessoa fala habitualmente quando se trata de matar o tempo.

Uma conversa agradável, mas que se escuta só pela metade.

Pitt sabia perfeitamente a que se referia. A vida estava cheia de bate-papos sem objetivo. O que importava era dizer algo, mais que as palavras concretas.

Era possível que Mina não tivesse a menor suspeita de que restava menos de uma hora de vida? Tinha sido um acidente repentino, um relâmpago caído sem tormenta prévia, sem rumor de trovões longínquos nem crescente sensação de opressão? O assassinato não costumava golpear desse modo.

Até um louco tinha suas razões para matar. A loucura se cozinha a fogo lento, como a primavera derrete as neves invernais até que de repente uma gota enche a represa e o dique explode com violência destruidora.

Entretanto, Pitt recordava casos de mortes causadas por lunáticos: não costumavam utilizar veneno, e menos ainda com uma mulher só no salão de sua casa, lindamente estendida no divã.

 

Se Mina tinha sido assassinada, o assassino era alguém em seu são julgamento; e os motivos eram também perfeitamente sensatos.

—Pergunto-me... -disse Pitt, voltando para o assunto-. E se a senhora Spencer Brown estava inquieta por algo e tivesse vindo para consultar-se com vocês?

Possivelmente se sentiu incapaz de expor com clareza seus problemas, e justamente por isso não disse mais que banalidades.

Tormod pareceu sopesar a hipótese com olhar inexpressivo.

—É possível -disse-. Pessoalmente não acredito. Parecia à mesma de sempre; quero dizer que não a lembro especialmente agitada nem indiferente à conversa, como teria estado em caso de estar procurando uma oportunidade para mudar de assunto.

—Mas acaba de dizer que você mesmo só escutava pela metade –indicou Pitt.

Tormod sorriu.

—Bom... -Estendeu as Palmas para cima-. E quem escuta as conversas das mulheres sem perder uma palavra? Para falar a verdade, minha intenção era me ausentar, mas meus planos se cancelaram no último momento; de outro modo não teria estado em casa.

Não tenha dúvida de que devia guardar as maneiras, mas, me diga, como é possível interessar-se pela cor do vestido da senhora Zutana, ou pelo que disse a duquesa de Beltrano no serão? Isso é assunto de mulheres.

Em qualquer caso, tudo me pareceu igual à sempre. Não percebi mudanças de tom nem matizes de ansiedade. A isso me refiro.

Pitt o compreendeu perfeitamente. Devia ser todo um exercício de disciplina manter a compostura constantemente. Só aquelas rígidas convicções que punham as boas maneiras por cima de tudo permitiam ao Tormod fazê-lo sem esforço aparente.

Essas convicções lhe tinham sido inculcadas desde que estava no regaço de sua babá, passando pelos tutores e a escola privada. Pitt aproveitou de todos os modos a oportunidade que lhe dava.

—Nesse caso, talvez sua irmã se deu conta de algo, ou percebeu algum desses matizes que só uma mulher compreende -sugeriu.

Tormod arqueou levemente as sobrancelhas, por causa da pergunta ou talvez do modo de falar do Pitt.

—Preferiria que não a incomodasse, inspetor - disse depois de certa vacilação. - Está muito afetada. De fato levá-la-ei longe de Rutland Place durante um tempo, para que se recupere. As lembranças são muito desagradáveis. Minha irmã e eu somos órfãos. A morte nos golpeou duramente em tempos passados, e temo que para Eloise continua sendo difícil de suportar. Suponho que não é impossível que Mina lhe fizesse alguma confidência nesse dia; não estive com ela todo o tempo.

Talvez Eloise se sinta culpada por não ter sabido entender o desespero daquela pobre mulher, e não ter agido em conseqüência. Isso a atormenta ainda mais. Embora, para falar a verdade, quando uma pessoa está decidida a tirar a vida, não se pode fazer nada, exceto adiar o inevitável. -De repente seu rosto se alegrou.

—Sabe o que? Perguntarei eu mesmo. Se houver algo Eloise me dirá. E se tiver relação com a morte de Mina, informarei a você imediatamente. Parece-lhe bem? Tenho certeza de que não quererá afligi-la mais do que o necessário.

Pitt vacilou. Recordava outros casos em que tinha visto gente recém saída de um enfrentamento com a morte, especialmente com uma morte repentina. Seus rostos, pálidos e ansiosos, voltavam-lhe a a memória cada vez que algo semelhante voltava a ocorrer.

Primeiro aparecia à surpresa, depois a dor, e finalmente a lenta aceitação de que a verdade não pode ser esquivada, de que, enquanto a primeira impressão se desvanece, a realidade se impõe penetrando profundamente em nós.

Entretanto, não podia arriscar-se que Tormod Lagarde o suplantasse em seu trabalho.

—Receio que não é possível.

Viu como Tormod mudava de expressão. Sua boca se endureceu e seu olhar se fez frio.

—Agradecer-lhe-ei que esteja presente - continuou Pitt, sem modificar o tom de sua voz e mantendo um impassível sorriso em seus lábios-. De fato, não me oponho que você mesmo lhe faça as perguntas, se o preferir. Compreendo que o preocupe preservá-la de lembranças dolorosas.

Mas eu possuo mais dados que você sobre a morte da senhora Spencer-Brown e por isso tenho que ouvir pessoalmente as respostas da senhorita Lagarde.

Não posso me conformar com a interpretação que você me oferece de boa fé.

Tormod olhou nos olhos por uns momentos, surpreso. Depois retrocedeu uns passos e alcançou o puxador da campainha.

—Por favor, Bevan, diga à senhorita Lagarde que desça a saleta -disse quando apareceu o mordomo.

—Obrigado -disse Pitt.

Tormod não respondeu. Voltou-se para olhar pela janela. Uma garoa cinza começava a carregar o ar, apagando os contornos das casas que rodeavam a praça.

Da ponta das folhas de louro caíam pequenas e reluzentes gotas.

Eloise fez sua entrada, pálida, mas perfeitamente serena. Embrulhada em seu xale, enfrentou Pitt com olhar franco.

Assim que se abriu a porta, Tormod correu para sua irmã e lhe rodeou os ombros com um braço.

—Eloise, querida, o inspetor Pitt tem umas perguntas para lhe fazer sobre a pobre Mina. Compreenderá que, tendo sido nós os últimos em vê-la, o inspetor acha que podemos lhe proporcionar dados sobre seu estado de ânimo imediatamente antes de morrer.

—Naturalmente -disse Eloise com quietude. Sentou-se no sofá e examinou ao Pitt, sem mais interesse que o que ditava a cortesia. Aparentemente a brutal realidade da morte prevalecia sobre toda curiosidade.

—Não tem nada que temer -disse Tormod com doçura.

—Temer? -Eloise pareceu surpreendida-. Não temo nada. -Endireitou a cabeça para olhar ao Pitt. -Entretanto, não acredito que tenha nada importante que lhe dizer.

Tormod dirigiu ao Pitt um olhar de advertência e em seguida voltou a concentrar-se no Eloise.

—Recorda que saí uns minutos? -perguntou-lhe com tom muito suave, quase como se estivesse falando com uma menina-. Até aquele momento só tinham falado de coisas corriqueiras, moda e fofocas. Fez-lhe alguma confidência quando ficaram a sós? Algo relacionado com seus sentimentos? Amor, medo? Falou-lhe de alguém em particular?

A boca de Eloise se torceu em um esboço de sorriso.

—Se referir-se a se amava a alguém mais que a seu marido – disse inexpressivamente-, não tenho razões para acreditar nisso. Em todo caso não me disse nada, nem então nem em nenhum outro momento. Não tenho certeza de que acreditasse nesse tipo de amor novelesco. Acreditava nas paixões: desejo, compaixão, solidão... Mas isso é muito diferente ao amor.

O desejo cessa quando foi satisfeito, e a compaixão quando já não tem motivos; e também a solidão acaba por morrer, de puro esgotamento. Nada disso tem que ver com o amor.

—Eloise! -Tormod pegou a mão de sua irmã e a apertou com tanta força que deixou marcas brancas em sua pele-. Quanto o lamento! -Sua voz era quase um sussurro-. Se tivesse sabido que Mina falava com você dessas coisas, nunca as teria deixado a sós. -voltou-se para Pitt. - Eis aqui sua resposta, inspetor!

A senhora Spencer-Brown era uma mulher desiludida por algum trágico fracasso, e queria compartilhar sua carga com alguém. Desgraçadamente escolheu a minha irmã, uma garota solteira. Acho isso imperdoável, a menos que estivesse realmente desesperada! Que Deus dela tenha piedade!

Acho que já lhe dissemos muitas coisas. Levo Eloise longe daqui, longe do Rutland Place, até que supere um pouco a impressão. No campo poderá descansar e afastar essas idéias de sua mente. Ignoro até que ponto a senhora Spencer-Brown lhe explicou suas agonias privadas, mas não vou consentir que você continue interrogando-a.

Evidentemente se trata de um... um assunto íntimo e extremamente doloroso. Confio em que, como cavalheiro, você saiba compreendê-lo.

—Tormod... -começou Eloise.

—Não, querida. O inspetor pode conseguir a informação que lhe falta por outros caminhos. Parece indiscutível que a pobre Mina-se suicidou. Não estava em sua mão evitá-lo, e não consentirei que se sinta culpada. Talvez nunca cheguemos a saber o que a atormentou até esse ponto, e possivelmente seja melhor assim.

Os sofrimentos mais graves de uma pessoa devem ser enterrados com ela. Há coisas tão íntimas que a decência humana e divina exige mantê-las em segredo. -Levantando a cabeça, cravou seu olhar em Pitt, como desafiando a que lhe contradissesse.

Pitt contemplou aos dois irmãos juntos no sofá. Não ia conseguir nada mais de Eloise; de fato, compartilhava a opinião de que o sofrimento de Mina, fosse qual fosse, devia ser enterrado junto com ela, em vez de ser examinado, sopesado e medido por mãos alheias, embora fossem as impessoais mãos da polícia.

Levantou-se.

—Sem dúvida -disse-. Assim que nos asseguremos de que foi simplesmente uma tragédia, sem nenhuma implicação criminosa, nem sequer por negligência, o melhor para todos será relegar os detalhes ao esquecimento, e conservar uma lembrança mais grata.

Tormod se tranqüilizou e relaxou os ombros. Ficando a sua vez em pé, estreitou a mão do Pitt com vigor.

—Me alegro de que estejamos de acordo. Que passe um bom dia, inspetor.

—O mesmo digo, senhor Lagarde. Senhorita Lagarde, espero que sua estadia no campo lhe seja agradável.

Eloise lhe sorriu com indecisão. Algo a fazia vacilar, como um temeroso presságio.

—Obrigado - disse com um sussurro.

Já na rua, Pitt pôs-se a caminhar pausadamente enquanto tentava ordenar suas idéias.

Até o momento todo apontava a problemas pessoais, alimentados na intimidade; à longo prazo, esses problemas tinham transbordado a Mina Spencer-Brown, impulsionando-a a administrar uma overdose de um medicamento que já possuía.

Provavelmente fosse o de seu marido, aquele que tinha mencionado o doutor Mulgrew e que continha beladona.

Mas antes de arquivar o caso era necessário interrogar a outras mulheres que tinham conhecido Mina. Se alguém estava à corrente do segredo, tinha que ser uma delas, ou através de uma confidência, ou por pura dedução. A experiência tinha demonstrado a Pitt que com que perspicácia sabia ler nas vidas alheias.

Uma mulher ociosa, por causa precisamente de não ter nada em que ocupar-se. Todo seu interesse se concentrava nas pessoas: relações pessoais, segredos que se compartilham e que se guardam para si.

Decidiu ir primeiro a casa do Ambrosine Charrington, porque, sendo a mais afastada, satisfazia sua vontade de caminhar. Apesar da pertinaz garoa, Pitt ainda não se sentia capaz de enfrentar outra pessoa. Em um momento dado parou.

Um gato de cor avermelhada caminhava pela calçada; o animal se sacudiu, irritado pela chuva, e logo se escondeu entre os arbustos. Pitt pensou que talvez fosse preferível deixar repousar a dor.

Possivelmente aquele não era assunto para a polícia; em tal caso já podia partir, pegar o primeiro ônibus para a delegacia de polícia e, uma vez ali, ocupar-se de algum roubo ou falsificação, até que Mulgrew e o legista apresentassem seus informes.

Com essas idéias na cabeça, pôs-se de novo a caminhar. A chuva, que começava a aumentar, lhe escorria pelo pescoço da camisa e lhe provocava calafrios. alegrou-se de chegar à entrada dos Charrington.

O mordomo o recebeu com tênues mostras de desagrado, e o contemplou como a um animal extraviado que se refugiasse das inclemências do tempo, mais que como a uma pessoa com motivos para estar aí.

Dando-se conta de seu aspecto, com o cabelo grudado sobre a testa, as calças empapadas nos tornozelos e o cordão roto de um sapato, Pitt chegou à conclusão de que o olhar reprovador do mordomo não era injustificado.

Fazendo um esforço por sorrir, apresentou-se.

—Inspetor Pitt, da polícia.

A expressão de cortês paciência se desvaneceu do rosto do mordomo, como o sol atrás de uma nuvem.

—Queria ver a senhora Charrington, por favor - prosseguiu Pitt-. É com respeito à morte da senhora Spencer-Brown.

—Não acredito que... -respondeu o mordomo; mas, examinando mais atentamente ao Pitt, percebeu que seus protestos só iriam conseguir prolongar a entrevista-. Passe a saleta. Irei ver se a senhora Charrington está em casa. –Pitt estava acostumado a aquela comedia.

Teria sido uma falta de cortesia dizer "vou perguntar se quer recebê-lo", embora mais de uma vez se achou com aquela resposta.

Acabava de sentar-se quando o mordomo voltou para acompanhá-lo ao salão.

Um bom fogo crepitava na lareira. Junto à parede havia três jardineiras cheias de flores.

Ambrosine se endireitou em seu canapé de brocado verde, olhando ao Pitt de acima a baixo com interesse.

—Bom dia, inspetor. Tenha a gentileza de se sentar e tirar o casaco. Ao que parece se molhou um pouco.

Pitt o fez com prazer, estendendo ao mordomo o inapresentável traje. Depois se acomodou em uma poltrona, de maneira a receber o máximo calor da lareira.

—Obrigado, senhora -disse.

O mordomo se retirou, fechando a porta atrás de si. Ambrosine arqueou suas formosas sobrancelhas.

—Disseram-me que está investigando a morte da pobre senhora Spencer-Brown -disse-. Temo não saber nada que possa lhe ser de interesse. De fato, eu mesma me assombro do pouco que sei. Teria esperado ouvir alguma coisa. Em nossos círculos terá que ser excepcionalmente hábil para guardar um segredo, sabe você?

Apesar de se supor que há muitas coisas que seriam de mau gosto mencionar, ao fim uma pessoa se dá conta de que todo mundo sabe isso.

E essas caras de suficiência! -Olhou ao Pitt para certificar-se de que a entendia e se alegrou ao ver que assim era.

É um prazer indescritível estar a par de um segredo, sobre tudo quando outros se dão conta de que alguém sabe, e eles não. -Franziu o sobrecenho-. Mas ultimamente não vi essa atitude em ninguém, exceto em Mina.

E nunca soube se sabia algo importante, ou só queria que nós acreditássemos...

Pitt estava tão perplexo como ela.

—Não acredita que, agora que se produziu uma morte, alguém poderia estar disposto a falar para evitar mal-entendidos, ou inclusive injustiças?

Ambrosine respondeu com um sorriso afetado.

—É um otimista, inspetor. Faz-me sentir muito mais velha, ou como se fosse você muito jovem. A morte é a melhor desculpa para ocultar para sempre muitas coisas. Há poucos que se oponham à injustiça; de fato o mundo está governado por ela. No fim de contas é parte do credo: De mortuis nil nisi bonum.

Pitt esperou a que se explicasse, embora achava saber a que se referia.

—"Não fale mal dos mortos" -disse a senhora Charrington sombriamente-.

Me refiro, claro, ao credo da boa sociedade, não ao da Igreja. A primeira vista parece uma idéia muito caridosa, mas no fundo translada todo o peso das críticas sobre os vivos. Essa é a intenção, claro. Que diversão tem caçar uma raposa morta?

—Que críticas? -perguntou Pitt sobriamente, fazendo um esforço por não afastar-se do assunto principal, Mina.

—Depende do que estejamos discutindo. Se se referir a Mina, não sei. Esperava que você estivesse melhor informado que eu a respeito. No fundo, por que se interessam tanto? Morrer não é nenhum crime. Dou-me conta, claro está, que suicidar-se sim o é; mas, tendo em conta que já não se pode castigar ao culpado, não consigo ver o que pretendem.

—Minha única intenção é me certificar de que efetivamente não foi mais que isso -respondeu Pitt-, um caso de suicídio. Ninguém parece capaz de indicar um só motivo que explique que o fizesse.

—Não... -disse, pensativa, a senhora Charrington-. Nos conhecemos tão pouco os uns aos outros, que às vezes até me pergunto se sabemos o porquê das decisões mais importantes.

Não acredito que a resposta se encontre nos motivos mais evidentes, como o dinheiro ou o amor.

—A senhora Spencer-Brown não parecia ter problemas de dinheiro. -Pitt tentou uma estratégia mais direta-. Pensa que pode estar relacionado com um sentimento amoroso?

A boca do Ambrosine se curvou em um sorriso de surpresa.

—Com que delicadeza se expressa, inspetor! Sinto muito, tampouco posso dizer nada sobre isso. Se tinha um amante, então era mais discreta do que eu imaginava.

—Possivelmente amasse a alguém sem ser correspondida -sugeriu Pitt.

—É possível. De qualquer forma, se toda a gente que estiver na mesma situação se suicida, a metade de Londres estaria ocupada enterrando à outra metade. - Rechaçou a idéia com um gesto da mão. - Olhe, Mina não era uma pessoa romântica nem melancólica. Era uma mulher com praticamente, plenamente familiarizada com a vida real. Além disso, tinha trinta e cinco anos, não dezoito.

—Também há quem se apaixona com trinta e cinco anos. -Pitt sorriu levemente.

A senhora Charrington o olhou dos pés a cabeça, deduzindo sua idade com uma margem de engano de não mais de um ano.

—Claro que sim. -Expressou sua conformidade, matizada por um sorriso-. Uma pessoa pode apaixonar-se a qualquer idade. Entretanto, é provável que aos trinta e cinco a pessoa já tenha vivido essa experiência repetidas vezes, e se lhes sai mal não tomam como se fosse o fim do mundo.

—Então, senhora Charrington, porquê acha que se suicidou a senhora Spencer-Brown? -Pitt se surpreendeu a si mesmo ouvindo-se falar tão abertamente.

—Eu? Seriamente quer que lhe diga minha opinião, inspetor?

—Sim.

—Inclino-me a pensar que não o fez. Mina era uma mulher prática para achar solução a seus problemas, fossem quais fossem. Não era uma sentimental, e não conheci a ninguém menos propenso à histeria.

—Um acidente, então?

—Não por sua culpa. Possivelmente uma criada idiota manipulou frascos ou caixas, ou mesclou duas coisas para economizar espaço, criando um veneno por descuido. Duvido que você o averigúe, a menos que seus agentes se apoderem de todos os recipientes da casa antes que os criados tenham oportunidade de destruí-los ou esvaziá-los.

—Eu se fosse você não espremeria os miolos; não há nada a fazer, nem para repará-lo nem para evitar que volte a ocorrer a outras pessoas.

—Um acidente doméstico.

—Acredito nisso. Se alguma vez tivesse tido você a seu cargo uma casa grande, inspetor, teria comprovado até que ponto acontecem coisas extraordinárias.

Se soubesse o que chegam a fazer alguns cozinheiros e que estranhos objetos acabam na despensa, possivelmente até se negaria a continuar comendo!

Contendo um indecoroso impulso de rir, Pitt ficou em pé. Na senhora Charrington havia algo que lhe atraía.

—Obrigado, senhora. Se sua explicação for correta, suponho que tem razão ao dizer que nunca o averiguaremos.

Ambrosine fez soar o sino, avisando ao mordomo para que acompanhasse Pitt à porta.

—É sinal de sabedoria deixar de lado o que não se pode mudar – disse amavelmente-. Se ficar passando pela peneira toda a palha para descobrir um só grão de verdade, fará mais mal que bem. Muita gente sentirá medo, mais de um ficará sem trabalho para sempre, e mesmo assim não terá ajudado a ninguém.

Pitt visitou depois Theodora Von Schenck, uma mulher muito distinta. Era formosa, mas carecia do toque aristocrático de Ambrosine e de matiz etéreo e delicado de Eloise.

Entretanto, mais que seu aspecto lhe surpreendeu encontrá-la ocupada, como Charlotte, em tarefas domésticas bastante vulgares. Quando Pitt a viu pela primeira vez, estava classificando a roupa branca, amontoando as peças que precisavam ser remendadas ou substituídas.

Não parecia sentir vergonha de afastar a um lado as que, desgastadas pelo uso, podiam ser recortadas em peças de menor tamanho, como capas de travesseiro ou trapos para secar e dar brilho.

Mas, apesar de toda sua afabilidade, Theodora não soube ajudá-lo a descobrir os motivos da morte de Mina. A idéia do suicídio a entristecia; causava-lhe pena que a gente caísse em tais abismos de desespero. Por outro lado, por não ter muita intimidade com Mina, não tinha percebido nela nenhum sinal de que tivesse chegado a esse ponto.

Theodora era viúva, com dois filhos, e isso limitava grandemente sua atividade social. Preferia dedicar seu tempo aos filhos e a casa, em lugar de visitar suas vizinhas ou assistir a serões e atos sociais. Daí que não estivesse a par das fofocas.

Pitt partiu tal como tinha chegado, e certamente não mais animado. Se, como Tormod Lagarde, pudesse ter a certeza de que se tratava de uma tragédia não resolvida, contentar-se-ia deixando o assunto em paz, como ditava a decência.

Ambrosine Charrington, em troca, estava convencida de que algo assim era impossível. Se não tinha sido mais que um acidente absurdo, era sua obrigação insistir até dar com a causa precisa? O devia à própria Mina? Ser enterrada como suicida era uma desonra, um estigma duro de agüentar para seus familiares. Tinha o dever de demonstrar ao Alston Spencer-Brown que sua mulher não tinha sido tão desgraçada para escolher voluntariamente a morte?

De outro modo, o mais provável seria que Alston não deixasse de torturar-se pensando que Mina amava a outro homem, e que a vida lhe tinha sido insuportável longe dele.

E os outros? Não iriam pensar que Alston ocultava algum escuro segredo que tinha levado a sua esposa a esse trágico final?

A verdade, por desagradável que fosse, ou cara que custasse, parecia com o fim e ao cabo preferível. A verdade golpeia só uma vez, mas a suspeita o faz infinitas vezes.

Sabendo pela Theodora que Amaryllis Denbigh e ela eram irmãs, Pitt ficou desconcertado ao conhecer Amaryllis. Tinha esperado achar a uma mulher da mesma classe. Teve que reajustar suas expectativas, com certo desagrado, ante aquela mulher bastante mais jovem, não só em anos mas também, sobre tudo, em modo de vestir, maneiras e porte.

Amaryllis o recebeu com morna cortesia. Entretanto, seus olhos traíam uma faísca de interesse, e também o fazia sua tensão contida. Nem por um momento temeu que Pitt que se negasse a falar. Havia nela uma espécie de avidez, uma curiosidade que se mesclava não obstante com certo ar depreciativo, pois não tinha esquecido que estava frente a um policial.

—Claro que compreendo sua situação, inspetor... Pitt? -sentou-se, arrumando o vestido com seus estilizados dedos, que percorreram a seda com delicadeza. Pitt quase sentiu deslizar-se sobre sua própria pele a suavidade e frescura do tecido.

—Obrigado, senhora. -acomodou-se em uma cadeira ao outro extremo da pequena mesa.

—Sente-se obrigado a comprovar que não aconteceu nada de delito – raciocinou Amaryllis-; e isso, naturalmente, requer que se averigúe a verdade. Eu gostaria de poder ajudá-lo. -Não afastava os olhos do Pitt, que teve a sensação de que estava memorizando todos seus traços. - Mas receio que não sei grande coisa. -Sorriu-. Só vagas impressões que seria injusto apresentar como fatos.

—Compreendo. -Por algum motivo ao Pitt custou pronunciar aquela palavra.

Fez um esforço por concentrar-se em Mina e nos motivos que o tinham levado até ali-. Sem dúvida se teria evitado a tragédia se alguém tivesse estado à corrente dos fatos. Mas a causa de que aconteçam coisas tão inesperadas é, justamente, que ninguém tem mais que impressões, coisas que se intuem, mas, só se compreendem depois, refletindo sobre o ocorrido.

Uma morte como a de Mina só deixa um rio de mistérios e hipóteses, injustas possivelmente. -Esperava não parecer sentencioso. Só tentava desenvolver o raciocínio de Amaryllis, e assim convencê-la de que falasse.

Sentia-se capaz de discernir entre o que era digno de confiança e o que devia descartar-se como mal-intencionado ou desconexo.

—Não me tinha exposto isso desse modo. -Os olhos do Amaryllis eram grandes e azuis, e olhavam de forma muito direta. Sem dúvida tinha tido já esse mesmo aspecto na época em que usava tranças e vestido até os joelhos: a mesma franqueza, a mesma curiosidade ligeiramente atrevida, e a mesma suavidade da pele em suas faces e seu pescoço-. Tem toda a razão, é claro.

—Então, será amável de me contar suas impressões? - Pitt se desprezou a si mesmo por atuar desse modo. Desagradava-lhe aquela classe de especulações malévolas que estava fomentando; mais ainda, que estava a ponto de escutar com a mesma avidez com que uma comadre se dispunha a fazer provisão de falatórios para degustar e refinar antes de sussurrá-los entre risadas e desqualificações ao ouvido de outro ávido periquito.

Amaryllis era muito sutil para voltar a pedir desculpas. Fazê-lo teria significado que necessitava delas. Em vez disso, fixou seu olhar no ramo de uma mesa cantoneira e começou a falar.

—Naturalmente Mina, quero dizer a senhora Spencer-Brown, tinha muita amizade com o senhor Lagarde. Suponho que sabe. -Não olhou ao Pitt e parecia tensa-. Nada mais longe de minha intenção que sugerir algo indecoroso.

Entretanto, sempre há pessoas dispostas a interpretar mal uma sincera amizade.

Mais de uma vez me perguntei se alguém interpretaria mal os sentimentos de Mina, e como resultado disso se sentiria desventurado.

—Alguém? -perguntou Pitt com certa surpresa. Não lhe tinha ocorrido essa possibilidade: um simples mal-entendido que desembocasse em uma crise de ciúmes. Até agora se tinha limitado à hipótese de um amor não correspondido.

—Bom, imagino que o candidato mais claro é o senhor Spencer-Brown - respondeu Amaryllis, cravando finalmente seus olhos no Pitt-. Mas nem sempre o mais claro é o certo, não é?

—Não - se apressou a admitir Pitt-. Mas, se não ele, quem então?

Amaryllis suspirou e por uns momentos pareceu refletir.

—Não sei. -de repente levantou a cabeça, como se acabasse de tomar uma resolução-. Suponho que não é impossível que... -interrompeu-se-. Bom, o que costuma acontecer. Outros casos? Pois, por exemplo, sei que Inácio Charrington esteve muito apaixonado por Eloise em outros tempos.

Não lhe fazia caso, não sei por que! Parece uma pessoa bastante agradável, mas para Eloise, nesse sentido, era como se não existisse. Tratava-o com a devida cortesia, claro.

Mas isso é o normal.

—Não vejo que relação tem isso com a morte da senhora Spencer-Brown - disse Pitt.

—Não? -Amaryllis o olhou com seus grandes olhos azuis-. Eu tampouco.

Suponho que não a há. Limito-me a procurar qualquer possibilidade, gente que, em um momento ou outro, pudesse haver dito algo que desse pé a mal-entendidos. Já lhe disse, inspetor, que não sei nada! Pediu-me minhas impressões.

—Assim, pois, sua impressão é que a senhora Spencer-Brown estava com bom ânimo? -Sem dar-se conta, Pitt usou as palavras do Tormod.

—OH, sim! Se algo a afligiu, deve ter acontecido muito de repente, sem avisar.

Possivelmente soube de uma coisa terrível.

—O senhor Lagarde assegura que estava tranqüila quando partiu de sua casa - indicou Pitt-. E, pelo que dizem os criados da senhora Spencer-Brown sobre à hora de sua morte, deve ter ido diretamente a casa.

—Talvez se encontrou com alguém na rua. Ou possivelmente houvesse uma carta esperando-a...

Pitt não tinha pensado em uma carta. Deveria ter perguntado aos criados se alguém tinha deixado uma mensagem. Talvez Harris tivesse pensado nisso.

Era muito tarde para dissimular seu engano; Amaryllis o tinha lido em seu rosto.

Seu sorriso adquiriu mais segurança.

—Se se desfez dela, como cabe supor -disse afavelmente-, nunca conheceremos seu conteúdo. Pode ser que seja o melhor, não acha?

—Não se se tratava de uma chantagem, senhora -respondeu Pitt com dureza.

Estava zangado consigo mesmo, e também com ela, por ter visto o que lhe tinha passado por cima. E porque tinha a sensação de que ria um pouco dele.

—Chantagem! -Amaryllis parecia assombrada-. Uma idéia horrível! Não suportaria pensar nisso. Pobre Mina! Pobrezinha... -Respirou fundo e encolheu com força as coxas através do vestido-. Mas suponho que você sabe mais disso que nós. Seria uma criancice negar-se a ver a realidade.

Inspetor, tenha paciência se nos vir reticentes ou lerdos em reconhecer a verdade. Acostumamo-nos a uma vida fácil.

Custa-nos admitir a primeira a existência de coisas tão desagradáveis. Ou talvez nos deva forçar um pouco?

Pitt sabia que Amaryllis estava certa, e seu bom senso aplaudiu aquelas palavras. Talvez a tivesse julgado injustamente.

Os preconceitos não eram patrimônio exclusivo dos ricos.

Pitt conhecia por experiência o gosto amargo das opiniões que depois se revelam injustas, nascidas da inveja ou medo, da necessidade de racionalizar nossos temores.

—Naturalmente. -ficou em pé. Não esperava nada mais da entrevista. Amaryllis lhe tinha dado já muitos elementos para refletir. Quanto ao da chantagem, Pitt o tinha mencionado para assustá-la, mas ao final se viu obrigado a reconhecê-lo.

—De momento não tenho dados seguros, nem agradáveis nem desagradáveis. Assim, quanto menos se fale mais sofrimentos se evitarão. Não deixa de ser possível que estejamos ante um trágico acidente, sem mais.

O rosto de sua interlocutora estava bastante tranqüilo, plácido quase, com sua tez branca e rosada e seus traços infantis.

—Assim o espero. Qualquer outra solução não faria mais que aumentar a angústia de todas as pessoas afetadas. Bom dia, inspetor.

—Bom dia, senhora Denbigh.

Pitt tinha afastado o assunto de sua mente, e se ocupava de diversos incêndios - dois dos quais, provavelmente intencionais, caíam em sua jurisdição-, quando, às quatro e meia da tarde, bateu na porta um agente de cabelo negro cuidadosamente penteado. Devia anunciar a visita de um distinto cavalheiro.

—Quem é? -Pitt não esperava a ninguém e pensou que aquele cavalheiro tinha sido mal orientado no escritório do guarda. Umas poucas palavras de ajuda bastariam para desfazer-se dele.

—Um tal Charrington, senhor -respondeu o agente-. O senhor Lovell Charrington, do Rutland Place.

Pitt deixou de barriga para baixo o documento que estava lendo.

—Diga-lhe que entre - ordenou com certa apreensão. Não lhe ocorria nenhum motivo que explicasse a presença do Lovell Charrington na delegacia de polícia, a menos que fosse algo ao mesmo tempo confidencial e urgente.

Se tratava-se se de um assunto sem importância, poderia ter mandado chamar Pitt, ou inclusive esperado que o curso de sua investigação o fizesse voltar à praça.

Lovell Charrington entrou com o chapéu ainda posto, salpicado de chuva. Um guarda-chuva pendia de sua mão. Estava pálido. Da ponta de seu nariz pendia uma gota de água.

Pitt se levantou.

—Boa tarde, senhor. No que posso ajudá-lo?

—Soube que você é o inspetor Pitt -disse Lovell entorpecido.

Pitt teve a impressão de que aquele homem não desejava ser grosseiro, mas sim se sentia violento, como esmigalhado entre o desejo de dizer algo que lhe era difícil expressar, e uma compreensível repugnância por aquele lugar. Havia poucas dúvidas sobre o fato de que era a primeira vez que pisava em uma delegacia de polícia. Terríveis idéias de pecado e miséria deviam bulir em sua imaginação.

—Com efeito, senhor. Deseja sentar-se? -Assinalou uma cadeira de madeira com espaldar rígido, a um lado da mesa-. Se trata da morte da senhora Spencer- Brown?

Lovell se sentou.

—Sim. estive... considerando... sopesando até que ponto seria correto falar com você. -Era notável a habilidade que possuía para parecer ao mesmo tempo alarmado e ligeiramente empolado, cheio de uma aguda consciência de si mesmo, como um galo que se surpreendesse cacarejando em pleno meio-dia. - Uma pessoa deseja cumprir com seu dever, por muito doloroso que seja. -Cravou no Pitt um olhar solene.

Pitt se sentiu desconfortável por ele. Pigarreou, tratando de pensar em alguma frase inócua que não lhe engasgasse à força de hipocrisia.

—Naturalmente - respondeu-. Nem sempre é fácil.

—Com efeito. -Lovell tossiu-. Tem muita razão.

—O que quer me contar, senhor Charrington?

Lovell tossiu outra vez e remexeu em seus bolsos em busca de um lenço.

—Não é a palavra mais adequada. Não "quero" explicar-lhe inspetor. Sinto-me na obrigação de fazê-lo, o que é muito diferente.

—Certamente. -Pitt suspirou-. Muito diferente. Perdoe minha estupidez. O que se sente no dever de me explicar?

—A senhora Spencer-Brown... -Lovell assoou o nariz, dobrou o lenço entre os dedos e o meteu no bolso-. Inspetor, a senhora Spencer-Brown não era uma mulher feliz. Falando com franqueza, atrever-me-ia a dizer que era um pouco neurótica. -

Pronunciou aquela palavra como se tivesse conotações obscenas, e devesse limitar-se a conversas de homens.

Pitt teve dificuldades para não deixar transparecer a surpresa que sentia. Todos haviam dito, ao contrário, que Mina era uma mulher pragmática e perfeitamente adaptada à realidade.

—Seriamente? O que o faz dizê-lo, senhor Charrington?

—O que? Bom... pelo amor de Deus, inspetor! -Começava a impacientar-se. Tive anos para observar de perto a essa mulher. Vivíamos na mesma rua, sabe? Era amiga de minha esposa. Tínhamo-nos visitado mutuamente. Conheço seu marido.

Uma mulher muito instável, propensa a emoções caprichosas. Muitas mulheres o são, naturalmente; e não o critico. Faz parte de sua natureza.

A experiência dizia ao Pitt que as mulheres, sobre tudo na alta sociedade, tinham uma imaginação solidamente prática, e estavam muito bem dotadas para distinguir a fantasia da realidade. Eram os homens quem se casavam com um rosto bonito ou uma boca aduladora. As mulheres, em troca - e Charlotte lhe tinha mostrado mais de um exemplo-, costumavam inclinar-se por um caráter agradável e uma carteira bem provida.

—São mais românticas?

—Efetivamente -disse Lovell-. Vivem nas nuvens, sem contato com a dura realidade. Não são feitas para ela. Os homens são diferentes. A pobre Mina Spencer-Brown se engraçou romanticamente do jovem Tormod Lagarde, um homem decente e honesto, claro. Consciente de que Mina era uma mulher casada, e além disso muito mais velha que ele...

—Pensava que a senhora Spencer-Brown tinha uns trinta e cinco anos.

—Sim, acredito que sim. -Lovell abriu muito os olhos-. Pelo amor de Deus, inspetor, Lagarde tem só vinte e oito! Quando quiser casar-se buscará uma de dezenove ou vinte. É o indicado.

Não convém casar-se com uma mulher de caráter já formado, pois não há maneira de mudá-la. O homem tem que guiar à mulher, sabe? Moldar seu caráter na boa direção. Mas me estou afastando do tema.

A senhora Spencer-Brown já estava casada. É claro que se deu conta de que estava fazendo uma tolice; teve medo de que seu marido o descobrisse, e não pôde suportar mais tempo. -Pigarreou-. tive que dizer-lhe Tudo, muito desagradável, mas não podia permitir que você andasse colocando o nariz por aí com suas perguntas, levantando suspeitas sobre gente inocente.

Um assunto funesto, patético, muito sofrimento... Pobre mulher! Cometeu uma grande imprudência, e a pagou a preço muito alto. Não sairá nada bom daí. -Fez um leve ruído com o nariz, tampando-o com o lenço.

—Costuma ser assim -disse Pitt secamente-. Mas como se inteirou do amor da senhora Spencer-Brown pelo senhor Lagarde?

—O que?

Pitt repetiu a pergunta.

O rosto do Lovell se azedou.

—Esse é um ponto muito delicado, inspetor.

—Não tenho mais remédio que perguntar-lhe senhor. -Pitt sentia vontade de sacudir a aquele homem, de tirá-lo de sua estreita e estúpida casca de ovo; em parte, entretanto, era consciente de que teria sido inútil, além de cruel.

—Por dedução, naturalmente! -disse Lovell com impaciência-. Já lhe disse que conhecia a senhora Spencer-Brown desde há anos. Encontramo-nos em inumeráveis acontecimentos sociais. Acha acaso que vou por aí com os olhos fechados?

Pitt evitou a pergunta.

—Deu-se conta alguém mais dessa... relação, senhor Charrington?

—Se ninguém o disse ainda, inspetor, foi por delicadeza, não por ignorância.

Não é costume trazer à tona os assuntos alheios ante um desconhecido, especialmente se se trata de algo desagradável. -Um pequeno músculo se contraiu em sua face. - Eu mesmo acho muito violento lhe contar tudo isto, mas sei que é meu dever economizar sofrimentos a quem está ainda em vida. Esperava de você que o entendesse, e me agradecesse isso. -Depois de ficar em pé, ajustou-se a jaqueta puxando as lapelas-. Confio em que acabe por compreender isso e cumpra com suas responsabilidades no assunto.

—Espero que assim seja, senhor. -Pitt se levantou também-. O agente Mclnnes o acompanhará até a saída. Obrigado por vir e por sua franqueza.

Ficou olhando um momento a porta fechada, sem tocar nos informes que continuavam de barriga para baixo sobre a mesa, até que, vinte minutos mais tarde, o agente Mclnnes entrou no escritório.

—O que acontece? -disse Pitt com irritação. Charrington o tinha desconcertado. O que havia dito sobre Mina contradizia todo o ouvido até então.

Certo que Caroline tinha insinuado aquele afeto por Tormod Lagarde, mas acompanhando-o com a certeza de que Mina era uma mulher sensata e judiciosa.

Agora, em troca, Charrington lhe vinha com que era uma mulher volúvel e romântica-. E bem, o que acontece? -voltou a perguntar.

—O informe do médico, senhor. -Mclnnes mostrou um dossiê de documentos.

—O médico? -Por um momento Pitt não soube a que se referia.

—A propósito da senhora Spencer-Brown. Morreu envenenada. Com beladona, senhor; uma quantidade considerável.

—Assim lê os informes? -disse Pitt, assinalando o papel.

Mclnnes se ruborizou.

—Só uma olhada, senhor. Simples curiosidade por... só... -Renunciou a seguir, incapaz de dar com uma boa desculpa.

Pitt estendeu a mão.

—Obrigado.

Concentrou a vista no papel, percorrendo rapidamente a caligrafia. O exame demonstrava que a morte da Wilhelmina Spencer-Brown se devia a uma parada cardíaca produzida por uma dose maciça de beladona. Como não havia tornado a comer nada depois de um ligeiro café da manhã, a dose devia ter sido consumida mesclada em um cordial com aromas de gengibre, única substância que se achou em seu estômago.

Harris se tinha expropriado da caixa de remédio em pó receitada ao senhor Spencer-Brown pelo doutor Mulgrew. Estava cheia três quartos. A quantidade que faltava, incluindo as dose que Spencer-Brown dizia ter tomado, era grandemente menor que a detectada na autópsia.

O que tinha matado a Mina não era uma dose de medicamento tomado acidental ou intencionalmente. Sua procedência era outra.

 

Charlotte passou um dia terrível, dando voltas ao que devia fazer com respeito à Caroline e Paul Alaric. Por três vezes chegou à conclusão definitiva de que a coisa não era tão grave, e que o mais aconselhável era fazer caso ao dito por Pitt e não intrometer-se. Caroline não lhe ia agradecer que interferisse em seus assuntos, e provavelmente Charlotte não conseguiria mais que incomodar a ambos, fazer que tudo parecesse mais importante do que realmente era.

Mas uma e outra vez lhe aparecia à imagem do Caroline com as faces ardendo, o corpo em tensão, e aquele momento em que, ao falar com o Paul Alaric em meio da rua, a agitação a tinha obrigado a travar saliva. Também recordava o aspecto de Alaric naquele dia, com sua elegante e erguida compostura, seus olhos claros e harmoniosa voz.

Não lhe tinha impressionado sua dicção, irrepreensível mas nada afetada, em que cada consoante se distinguia da outra, como se suas palavras se ajustassem a um guia preestabelecido.

Sim, decididamente terei que fazer algo, e rápido... a menos que naquele momento fosse já muito tarde!

Tinha cozinhado já toda uma fornada de pão sem sal, e depois tinha ofendido ao Gracie lhe pedindo que limpasse o chão quando acabava justamente de fazê-lo.

Eram três da tarde.

Pegou uma das golas de camisa do Pitt e, depois de lhe dar uma volta, costurou-o na mesma posição. Arrancou-o com raiva, murmurando uma série de palavras que em boca de outro a teriam escandalizado. Decidiu então escrever a sua irmã Emily, lhe pedindo que a visitasse assim que recebesse a mensagem, fosse ou não adequado o momento.

Provavelmente Emily, que se tinha casado com Lorde Ashworth em datas muito próximas às do matrimônio do Charlotte com Pitt, teria que cancelar algum interessante compromisso; em troca, a viagem em si não tinha mais dificuldade que chamar o cocheiro e subir à carruagem.

Além disso, Charlotte tinha ido à casa do Emily sem tardança quando aquele horrível assunto do Paragon Walk, na época em que Emily estava grávida. Não era muito delicado recordar-lhe mas o momento não era para convites corteses.

Procurou papel de carta e ficou a escrever.

 

Querida Emily:

Durante as duas últimas semanas visitei mamãe com freqüência. Ocorreram coisas terríveis, que poderiam lhe causar um dano irreparável se não intervir. Posto que o assunto é longo e complexo, preferiria não lhe explicar isso por escrito.

Considero melhor lhe contar isso pessoalmente.

Queria pedir-lhe conselho a respeito de como agir, antes de que seja muito tarde e se produza uma tragédia.

Sei o ocupada que está, mas novos acontecimentos nos exigem que obremos sem demora.

Portanto, peço-lhe que adie todos seus planos e venha para ver-me assim que leia estas linhas. Ambas sabemos, por nossa passada experiência no Paragon Walk e outros lugares, que os desastres não esperam decentemente a que finalizem os acontecimentos sociais para fazer sua aparição.

Produziu-se já uma morte.

Sua irmã que a quer, CHARLOTTE

 

Dobrou a nota, meteu-a em um envelope e, depois de escrever o endereço, ordenou à Gracie que jogasse imediatamente no correio.

Era consciente de ter exagerado as coisas. Talvez Emily se zangasse. Não havia motivo para supor que a morte de Mina estivesse relacionada com sua mãe, nem que esta estivesse em perigo.

Não obstante, se Charlotte se limitasse a escrever que Caroline corria o grave risco de perder a cabeça por um homem, até tratando-se do Paul Alaric, suas palavras não teriam sortido grande efeito.

Evidentemente seu pai, caso de inteirar-se, sentir-se-ia profundamente ferido e incapaz de compreensão. O fato de que, pelo menos em uma ocasião, ele mesmo tivesse levado mais longe suas aventuras extramatrimoniais, parecia-lhe irrelevante. O que era aceitável em um homem enquanto o fizesse com discrição, não estava permitido à esposa desse mesmo homem.

E, para falar a verdade, Caroline não estava sendo precisamente discreta. Tudo isso, entretanto, não teria conseguido mobilizar Emily, pela simples razão de que teria resistido a acreditar.

Em troca, a menção de uma morte, acompanhada por uma alusão aos horrendos acontecimentos do Paragon Walk, garantia que Emily acudisse tão rápido como o permitisse o tráfico.

E assim foi, em efeito. Emily bateu energicamente à porta no dia seguinte, antes de meio-dia.

Charlotte foi abrir.

Apesar da hora que era, Emily mostrava um aspecto muito elegante. Seus loiros cabelos se ocultavam sob um delicioso chapéu na moda. Trazia um vestido verde, a cor que mais a favorecia.

Dirigiram-se à cozinha, onde estava Gracie, que fez uma rápida reverência e subiu ao piso de cima para fazer limpeza no quarto da menina.

—E então? -disse Emily imperativamente-. Que demônios se passou? Conta-me pelo amor de Deus!

Charlotte se alegrava de vê-la - fazia certo tempo que não passavam um bom momento juntas- e de repente a rodeou com seus braços.

Emily correspondeu ao abraço, carinhosa, mas impacientemente.

—O que aconteceu? -apressou-. Quem morreu? E o que tem que ver com mamãe?

—Sente-se. -Charlotte lhe indicou uma das cadeiras da cozinha-. É uma longa história, e não lhe verá muito sentido se não lhe explicar desde o começo. Quer comer algo?

—Se insistir... Mas me diga quem morreu, antes de que estale! E que relação tem com mamãe. Pelo que deduzi de sua nota, está em perigo.

—Morreu uma mulher chamada Mina Spencer-Brown. A princípio parecia um suicídio, mas agora Thomas acredita que foi um assassinato. Tenho sopa de cebola.

Quer um pouco?

—Não. Que coisa lhe deu para fazer sopa de cebola?

—Gosto. Estou há dias com vontade de tomar sopa de cebola.

Emily a contemplou com perplexidade.

— Já que tem desejos por causa de seu estado, não poderia ter escolhido algo um pouco mais civilizado? As cebolas, Charlotte, são socialmente inaceitáveis! A quem diabos quer que visitemos depois de tomar sopa de cebola?

—Não posso evitá-lo. Ao menos não é algo fora de temporada, nem está a um preço ridiculamente alto. Talvez você possa se permitir desejos de damascos frescos ou faisão polido, mas eu não.

O rosto de Emily se retesou.

—Quem é Mina Spencer-Brown? O que tem que ver com mamãe? Charlotte, se me fez vir até aqui só porque quer se entremeter em um dos casos do Thomas... -respirou fundo e fez uma careta- eu adorarei ter uma desculpa para intervir! Os assassinatos são mais apaixonantes que a vida social, embora às vezes me ponha doente de medo ou me faça chorar a horrível solução. -Apoiou o punho fechado sobre a mesa-. Confio em que me haja dito a verdade, e não uma fileira de tolices sobre mamãe.

Renunciei a um delicioso almoço para vir aqui, e a única coisa que encontro é... sopa de cebola!

Por uns momentos Charlotte evocou imagens do passado: aqueles horríveis cadáveres no jardim do Callander Square, e o momento em que Paul Alaric as tinha encontrado, paralisadas de medo, ao cabo dos assassinatos do Paragon Walk. Depois voltou para o presente, enquanto seu pulso recuperava a normalidade.

—Está relacionado com mamãe - disse com seriedade. Depois de servir a sopa e o pão, sentou-se-. Falta-lhe sal, sinto muito. Lembra-se de monsieur Alaric?

—Não seja tola! -disse Emily arqueando as sobrancelhas. Agarrou o saleiro e jogou um pouco em seu prato-. Acha que poderia tê-lo esquecido, embora não continuasse sendo meu vizinho? É um dos homens mais encantadores que conheci. É capaz de falar sobre qualquer assunto, e parecer interessado.

Por que será que nas reuniões sociais se considera elegante adotar uma pose de aborrecimento? É algo francamente tedioso. -Sorriu-. Nunca cheguei a saber com certeza se se dava conta de como fascinava a todas.

Até que ponto pensa que não foi mais que o desafio do mistério, uma espécie de competição por ver quem conseguia primeiro ganhar sua atenção?

—Só em parte. -Inclusive nesse momento, em sua própria cozinha, Charlotte tinha em sua mente uma imagem tão nítida do Alaric que a explicação tinha que ser outra-. Tinha a capacidade de tomar a brincadeira e, entretanto, nos fazer acreditar de uma vez que nos apreciava.

—Seriamente? -Emily abriu muito os olhos, e seu fino nariz deu um pulo-. Me parece uma mescla desajustada. Além disso, estou convencida de que pelo menos Selena queria dele algo mais que ser "apreciada". A pura amizade não provoca em ninguém tanta agitação e inquietação!

—Ele e mamãe se conheceram. -Charlotte esperava de Emily uma reação clara, mas sua irmã não deu amostras de interesse.

—Com um pouco de sal esta sopa está muito boa! -respondeu Emily-. De qualquer modo, terei que me sentar ao outro extremo do salão e falar com gritos com as pessoas. Podia ter pensado nisso! O que tem de estranho que mamãe tenha conhecido ao Alaric? Movem-se em círculos muito reduzidos.

—Mamãe leva seu retrato em um medalhão.

Desta vez se produziu o efeito desejado: Emily deixou cair a colher e ficou boquiaberta.

—O que disse? Não acredito! Não seria capaz de semelhante... idiotice!

—Foi.

Emily fechou os olhos, aliviada.

—Então já não o leva!

—Não. O medalhão se extraviou, provavelmente foi roubado. Houve uma série de pequenos roubos no Rutland Place: uma abotoadura de prata, uma correntinha de ouro, uma caixa de rapé...

—Isso é terrível! -Emily arregalou os olhos, cheios de angústia-. Simplesmente espantoso, Charlotte! Já sei que o assunto dos criados está muito mal, mas isto é ridículo.

Todos temos o dever, por atenção a nossas amizades, de nos assegurar de que sejam honrados. E se alguém encontra o medalhão? E se se inteira de que pertence a mamãe, com o retrato desse... desse francês? O que diriam? O que pensaria papai?

—Exatamente -disse Charlotte-. E agora, a poucos passos de casa de mamãe, Mina Spencer-Brown morreu, provavelmente assassinada.

Mesmo assim mamãe não tem intenção de deixar de vê-lo. Tentei dissuadi-la, mas foi como falar com uma parede.

—Mas não a advertiu que...? -respondeu Emily com incredulidade.

—claro que sim! Mas quando viu que uma pessoa apaixonada faça caso dos conselhos?

Emily perdeu a compostura.

—Não diga ridicularias! Mamãe tem cinqüenta e dois anos, e está casada!

—O que importam os anos? -Charlotte desprezou com um gesto o argumento da idade-. Não acredito que alguém se sinta diferente. Quanto a pensar que o matrimônio seja um antídoto contra o amor, não é preciso que lhe diga quão ingênuo é.

Se pensa se colocar de cheio na alta sociedade, Emily, o menos que pode fazer é adotar seu realismo, tanto como sua sofisticação e tolas maneiras!

Emily, com os olhos fechados, afastou o prato de sopa.

—Charlotte, é espantoso! -disse com voz tensa e angustiada-. Seria um absoluto desastre. Tem idéia do que acontece com uma mulher com reputação de...imoral? OH, não haveria problema se se tratasse da esposa de algum conde ou duque, uma pessoa importante! Mas para alguém como mamãe... Papai inclusive poderia divorciar-se! OH, céus! Seria o final de todos nós. Nunca voltariam a me receber em nenhuma parte!

—Isso é a única coisa que lhe importa? -replicou Charlotte com aspereza-. Que a convidem ou não? Não poderia pensar em mamãe? E como acha que se sentiria papai? Para não falar das causas da morte de Mina Spencer-Brown!

Emily empalideceu, repentinamente envergonhada de seus pensamentos.

—Não pensará que mamãe está relacionada com um assassinato, não é? -

murmurou-. É inconcebível!

—Claro que não penso -disse Charlotte-, mas o que é perfeitamente verossímil, e até provável, é que o assassinato de Mina tenha relação com os roubos.

E isso não é tudo. Mamãe me disse que de um tempo a esta parte tem a sensação de que alguém a espiona. Também isso poderia ter que ver com o assassinato.

Dois pontos vermelhos apareceram nas faces de Emily.

—Por que esperou tanto para me contar isso A indignação voltou à sua voz, uma vez superada a vergonha-. Deveria me ter avisado em seguida. Por muito esperta que se acha, não tinha razão para tentar sozinha. Note em como se complicou tudo! Tem um conceito pretensioso de você mesma, Charlotte.

Acha que é tão inteligente que ninguém pode enganá-la, só porque em um ou dois dos casos do Thomas topaste com a verdade.

Agora já vê o que aconteceu sem que pudesse impedi-lo!

—Não soube que se tratava de um assassinato até o dia antes de lhe escrever. -Charlotte se controlou com esforço. Emily estava assustada. Admitiu para si ter confiado muito em suas habilidades. Provavelmente teria feito melhor em pedir conselho à Emily, ao menos com respeito à Caroline e Paul Alaric.

Emily voltou a aproximar o prato de sopa.

—Está fria. Não entendo que não possa ter desejos razoáveis, por exemplo pepinos japoneses. Quando eu estava grávida, morria pela geléia de framboesa.

Comia-a, contudo. Pode me servir um pouco de sopa quente, por favor?

Charlotte se levantou e serviu um par de colheradas em ambos os pratos.

—O que fazemos? -perguntou logo.

Emily a olhou, e toda sua raiva se diluiu. Era consciente de seu egoísmo, embora não havia necessidade nem para ela nem para sua irmã de dizê-lo.

—Bom, o melhor é que esta mesma tarde convençamos a mamãe de que está em perigo, e a dissuadamos de voltar a ver monsieur Alaric, salvo em um encontro casual e inevitável. Não nos interessa nos pôr em evidência. Produzir-se-iam rumores.

Depois, se por acaso há alguma relação com os roubos e o maldito medalhão está em mãos de alguém, deveremos tentar averiguar a identidade do assassino da senhora Spencer-Brown. Tenho dinheiro suficiente para resgatar o medalhão em caso de chantagem.

Charlotte expressou surpresa.

—Fá-lo-ia?

Os olhos azuis de Emily se abriram com incredulidade.

—Naturalmente que sim! Primeiro pagaríamos pelo medalhão, e em seguida avisaríamos à polícia. O que dissessem depois não teria importância. Sem o medalhão ninguém acreditará. Só conseguiriam piorar sua condenação, por delito de calúnia. Destruiríamos o retrato e mamãe negaria tudo. Não acredito que monsieur Alaric pretenda contradizê-la! Apesar de ser estrangeiro, é um cavalheiro.

Uma sombra passou fugazmente por seu rosto.

—A menos, claro, que quem matou a senhora Spencer-Brown seja ele.

A idéia de que Paul Alaric pudesse ser um assassino repugnava particularmente Charlotte. Nunca tinha pensado nele desse modo, nem sequer no Paragon Walk, e não era leal nem amável fazê-lo agora.

—OH, não acredito! -disse impulsiva.

Emily a olhou com acuidade.

—Por que não?

Então deu mostras de entendê-lo. Conhecia bem a sua irmã; de fato, sempre tinha demonstrado uma aguda capacidade de julgamento sobre outros, tanto sobre o que pretendiam como, sobre por que o pretendiam. Essa facilidade natural, unida ao marcado pragmatismo de seus desejos e à capacidade de manter em silêncio seus pensamentos, tinha-lhe proporcionado um êxito social considerável.

Charlotte era mais fantasiosa, mas lhe faltava controle sobre si mesma. Muitos dos motivos das pessoas lhe escapavam, por sua incapacidade de ter em conta as convenções sociais.

Só quando entravam em cena as paixões mais escuras, elementares e trágicas, dava provas de uma compreensão instintiva, acompanhada freqüentemente por um doloroso sentimento de piedade.

—Por que não? -repetiu Emily enquanto acabava a sopa-. Acha que ser bonito o faz automaticamente decente? Não seja criança! Terá que ser muito idiota para imaginar que as pessoas atraentes são incapazes de cometer os atos mais ligeiros ou repugnantes. A beleza freqüentemente torna egoístas às pessoas. A capacidade de seduzir pelo aspecto é perigosa para o caráter.

Essa gente se surpreende quando lhes negam algo, e às vezes não conseguem aceitá-lo. Não seria o primeiro em optar simplesmente por agarrá-lo à força!

Se o tiverem feito acreditar que basta um sorriso para que as pessoas façam o que ele espera... Por Deus, Charlotte, lembre-se da Selena! De tanto ouvir como era bonita lhe quebraram o caráter!

—Não é necessário que se instigue -respondeu Charlotte-. Compreendo-a perfeitamente. Eu também conheci a gente mimada! Não esqueci como todas borboleteavam ao redor do Alaric. Basta sua presença para que a metade das mulheres do Paragon Walk se voltem para ele!

Emily a olhou com azedume. Suas próprias lembranças não deixavam de incomodá-la.

—Então -disse-, ponha seu melhor vestido e vamos agora mesmo ver mamãe, antes de que saia ou receba alguma visita.

Caroline reagiu com surpresa e júbilo ante sua chegada.

—Queridas, que alegria! Entrem e sentem-se. Que estupendo é ver às duas!

Trazia um vestido lavanda, com um lenço de suave renda.

Em outras circunstâncias, Charlotte o teria invejado. Um vestido como esse lhe teria sentado às mil maravilhas; mas, sobre tudo, a teria feito sentir-se formosa, o que importava muito mais que o mero aspecto. Agora, em troca, não conseguiu pensar mais que em como estava acalorada Caroline, e como seu corpo respirava alegria e inclusive entusiasmo por todos seus poros.

Olhou de esguelha ao Emily, lendo em seus olhos surpresa e confusão.

—Emily, sente-se onde possa ver-te - disse sua mãe carinhosamente-. Faz séculos que não passa por aqui! Ou pelo menos me parece isso. É muito cedo para o chá, e suponho que já almoçaram.

—Sopa de cebola -disse Emily, enrugando um pouco o nariz.

Sua mãe franziu o sobrecenho.

—OH, querida! Para que?

Emily pegou sua bolsa, abriu-o e tirou um frasco de perfume. Deu-se uns toques antes de oferecê-lo à Charlotte.

—Mamãe, Charlotte diz que ultimamente aconteceram fatos trágicos por aqui -disse, evitando a pergunta a respeito da sopa-. Lamento muito. Deveria me ter escrito. Eu gostaria de lhe ter oferecido meu apoio.

Tendo em conta o aspecto radiante do Caroline, o comentário parecia algo deslocado. Charlotte não tinha visto jamais uma pessoa menos angustiada.

Caroline recuperou rapidamente a compostura.

—OH, sim, Mina Spencer-Brown! Muito triste, com efeito. Mais ainda, francamente trágico. Não me ocorre como pôde chegar tão longe. Teria gostado de poder ajudá-la. Sinto-me terrivelmente culpada, mas não tinha a menor idéia de que algo andasse mal.

Charlotte seguia mentalmente o passar do tempo, minuto a minuto, consciente de que a partir das três as primeiras visitas podiam chegar a qualquer momento.

—Não se suicidou -disse bruscamente. - Foi assassinada.

O silêncio foi total. Caroline empalideceu e seu corpo se contraiu.

—Assassinada? -repetiu-. Como pode sabê-lo? Tenta me assustar, Charlotte?

Isso era justamente o que pretendia, mas reconhecê-lo teria atenuado o efeito.

—Disse-me Thomas -respondeu-. Morreu envenenada com beladona, mas a dose utilizada era maior da que tinham em casa. Teve que vir de fora. Ninguém lhe teria dado veneno para suicidar-se, de modo que só fica o assassinato, não acha?

—Não o entendo. -Caroline meneou a cabeça-. Quem quereria matar a Mina? Não fazia mal a ninguém. Não deixou dinheiro, nem era candidata a nenhuma herança, que eu saiba. -Parecia perplexa-. Não tem sentido. Alston seria o último em... em ter uma aventura com outra mulher e querer... Não, isso é ridículo! -

Levantou a cabeça e sua voz recuperou a convicção-. Thomas deve estar em um engano. A explicação é outra. Simplesmente não nos ocorreu ainda. -endireitou- se em seu assento-. Deve tê-lo trazido de algum lugar. Estou segura de que se olhe em...

—Thomas é um policial excelente e não comete enganos -disse Emily, para assombro de Charlotte. Era uma afirmação muito cortante e não de todo certa; não obstante, Emily continuou-: Já teria pensado em tudo. Se disser que foi assassinada, é que foi. Mais vale que o aceitemos e atuemos em conseqüência. -

Fixou os olhos em sua mãe; depois os afastou um pouco, incapaz de olhá-la enquanto atirava o golpe de graça-. Obviamente, isso significa ter à polícia por toda parte, investigando tudo, e a todo mundo. Não ficará em pé um só segredo em toda a vizinhança.

Caroline demorou um pouco em compreender. O primeiro que imaginou foram os aborrecimentos conseguintes; dificilmente podia ter esquecido o acontecido no Cater Street. Previa os perigos que comportava uma investigação para os mais amealhados a Mina, mas não o que corria ela mesma.

Emily se reclinou no assento com o rosto contraído de piedade e certo sentimento de culpa.

—Mamãe -murmurou-, Charlotte me disse que perdeu um medalhão, e que por suas características preferiria perdê-lo a que caísse em mãos alheias. Neste momento devemos guardar a maior discrição. Inclusive os atos mais inocentes podem parecer suspeitos se fizerem-se de domínio público, e começam a comentar- se nas reuniões. Já sabe que as histórias crescem de boca em boca.

Sempre crescem de boca em boca, pensou Charlotte com pesar, e quase sempre para pior; a menos, claro, que seja a própria pessoa quem as conta! perguntou-se se tinha feito bem em levar ao Emily até ali. Possivelmente em seu lugar ela haveria dito o mesmo, mas de seu posto de observadora e ouvinte tudo lhe soava mais cruel do que tivesse desejado.

E com um toque, além disso, de egoísmo, como se o primeiro motivo de inquietação fosse a reputação do Emily, e Charlotte atuasse motivada por seus sonhos de detetive, de forma farisaica e inquisitiva.

Decididamente, não faziam demonstração de muita sutileza.

Lançou uma olhada a sua irmã: lhe tinham subido as cores até as orelhas. Emily também tinha tomado repentina consciência disso.

Charlotte se inclinou para sua mãe e tomou as mãos. Estavam rígidas.

—Mamãe! -disse-. Devemos averiguar tudo o que possamos sobre o assassinato de Mina. Desse modo a investigação terá concluído antes de que a polícia tenha tempo de ocupar-se das vidas de outros. Sem dúvida foi assassinada por algum motivo: amor, ódio, inveja, avareza... Algum motivo! -Suspirou com um leve assobio-. O mais provável é que fosse por medo. Disse que Mina era preparada; uma mulher de mundo e muito observadora.

Talvez soubesse algo sobre outras pessoas, algo que justificasse assassiná-la antes de que falasse. Há um ladrão na praça, isso é inegável. Possivelmente Mina sabia quem era, e foi bastante imprudente para dar amostras disso à pessoa em questão. Ou poderia ser que fosse ela mesma a ladra, que roubasse algo comprometedor e fora assassinada por seu dono.

Emily colocou palavra na conversa para cobrir aquele tumulto de emoções.

—Pelo amor de Deus, acaso Thomas não revistou a casa? Deveria ter pensado nisso! Não é muito complicado!

—Claro que o fez! -replicou Charlotte, reparando no brusco de seu tom.

Não era preciso que defendesse ao Thomas. Emily tinha boa opinião dele e, a seu modo, apreciava-lhe muito-. Não acharam nada. Pelo menos nada que possa considerar-se importante.

Mas se nós fizermos algumas perguntas e investigamos por nossa conta, talvez distingamos matizes que lhes escaparam. A gente não dirá à polícia mais que o estritamente necessário, verdade?

—Naturalmente! -disse Emily com impaciência-. Mas conosco falarão! E, como os conhecemos, daremo-nos conta de detalhes que Thomas seria incapaz de perceber, inflexões de voz, dissimulações... Sim, definitivamente isso devemos fazer!

Mamãe, esta tarde a acompanharemos em suas visitas, a partir de agora mesmo.

Por onde começamos?

Caroline sorriu fracamente. Não tinha sentido discutir.

—Pelo Alston Spencer-Brown -respondeu Charlotte-. Lhe daremos o pêsames e lhe ofereceremos nosso apoio. Parece-me bastante apropriado. Mostraremo-nos aflitas pela tragédia, incapazes de pensar em outra coisa.

—É claro - disse Emily, ficando em pé e arrumando o vestido-. Eu me sinto profundamente desolada.

—Se nem sequer a conhecia! -respondeu sua mãe.

Emily a olhou.

—Temos que ser práticos, mamãe. Encontrei-a em diversas reuniões.

Apreciava-a muito. Seriamente, estávamos no início de uma longa e íntima amizade.

Não se dará conta de nada. Que aspecto tinha? Por-me-ei em evidência se não for capaz de reconhecê-la em retrato ou fotografia. Embora sempre posso dizer que sou curta de vista... Mas prefiro não fazê-lo. Teria que me pôr a tropeçar com tudo para que parecesse verossímil.

Caroline fechou os olhos, tampando-os com seus dedos em gesto de cansaço.

—Era mais ou menos de sua estatura -disse-, mas muito esbelta, quase magra; e tinha um pescoço muito longo. Não aparentava sua idade. Tinha uma esplêndida cútis branca.

—E seus traços, seu cabelo...?

—OH, seus traços eram muito regulares; um pouco pequenos possivelmente. E cabelos finos. Quando queria era encantadora.

Além disso, vestia-se com gosto; quase sempre cores pálidas, com predileção pelos tons pastel. Uma boa escolha. Dava-lhe esse toque de frágil inocência que atrai aos homens.

—Bem - disse Emily-. Vamos, então? Não nos convém encontrar uma multidão de visitantes. Temos que ficar pouco tempo, para não levantar suspeitas.

Mas terá que falar com ele a sós. Santo Deus! Espero que nos receba! Não estará guardando cama, ou algo assim?

—Não acredito. -Caroline ficou em pé a contra gosto-. Me teria informado. Os criados costumam comentar essas coisas.

Charlotte percebeu sua indecisão, seu desejo de escapar ao indesculpável.

—Tem que vir, mamãe. Não podemos ir sozinhas. Seria um pouco violento. É a única que o conhece.

—De acordo -disse Caroline com pesar. - Mas não quererá que finja que gosto. Tudo isto é muito desagradável. Tomara não tivesse nada que ver conosco!

Preferiria que tivesse sido um suicídio; assim poderíamos deixá-la descansar em paz, compadecendo dela, mas sem pensar mais nisso.

—Já - respondeu Emily com certa rudeza-. Mas não podemos. E se nossa intenção é ajudar a que o assunto tenha um final decoroso, teremos que nos ocupar nós mesmas. Charlotte tem toda a razão.

Esta se sentiu ofendida pela implicação de que tudo era idéia dela.

Entretanto, não iriam ganhar nada discutindo. Seguiu-as submissamente para a saída.

Alston Spencer-Brown as recebeu em uma sala em penumbra, como mandava a tradição. As persianas estavam baixadas até a metade, e havia braçadeiras de luto negros junto ao espelho e várias fotografias e também sobre o piano. O próprio Alston estava vestido com traje escuro e sóbrio, severidade aliviada só pelo branco da camisa.

—São muito amáveis me visitando - murmurou. Dava a impressão de estar atordoado, e era mais baixo e enxuto do que tinha imaginado Charlotte.

—É o mínimo -respondeu Caroline com tristeza, enquanto se sentavam nos assentos que lhes tinha oferecido. - Apreciávamos muito a Mina.

Alston olhou ao Emily com expressão interrogante; obviamente não estava certo de quem era ou que fazia ali.

Emily mentiu sem piscar. Era uma perita.

—Com efeito -disse com um sorriso de pesar-, muito. Eu a encontrei em muitas reuniões, e a considerava encantadora. Mal começávamos a nos conhecer e a descobrir quanto tínhamos em comum. Era uma pessoa realmente inteligente.

—É certo -disse Alston com um matiz de surpresa-. Uma mulher muito inteligente.

—Exatamente. -Emily aprofundou essa via-. Se dava conta de muitas coisas, coisas que outros menos agudos que ela passavam por cima.

—Pensa você o mesmo? -Charlotte olhou a um e outra.

—OH, sim! -assentiu Alston-. Receio que a pobre Mina fosse freqüentemente muito aguda, e que isso atuasse contra sua própria felicidade. Era capaz de perceber em outros, traços e qualidades não sempre agradáveis. -Meneou a cabeça-. Costume que não deixavam muito bem contentes essas pessoas. -Suspirou, passeando o olhar do Emily ao Caroline, e vice-versa.

—Naturalmente. -Emily se apoiava contra o espaldar em uma postura quase afetada-. Mas é inevitável adquirir certo... -titubeou delicadamente- conhecimento da conduta humana se a uma pessoa permite-o sua inteligência.

Contudo, estou certa de não ter ouvido nunca a Mina falar mal de ninguém.

—Certamente -disse Alston sinceramente-. Sabia guardar silêncio, pobrezinha.

Talvez isso fosse sua ruína.

Charlotte se misturou na conversa antes que se precipitasse à pura suscetibilidade. A Mina não tinha faltado malícia, embora a astúcia do Emily não tivesse chegado a adivinhá-lo.

—Entretanto, é impossível não inteirar-se de certas coisas. -Charlotte se surpreendeu ao ouvir que sua própria voz continuava precisamente com o mesmo tom-.

Ou não vê-las, se uma pessoa viver em uma vizinhança reduzida, onde tudo está à vista de todos. Lembro que a senhora Spencer-Brown se referia com funda compaixão - quase se engasgou com as hipócritas palavras - no falecimento da filha da senhora Charrington.

Deve ter lhe causado uma impressão terrível. É inevitável perguntar-se como aconteceu, embora só seja para saber que tipo de consolo devemos oferecer.

Uma cotovelada do Emily fez Caroline dar um pulo.

—Assim é - disse esta-. Ninguém sabe bem como pôde morrer tão de repente. Deve ter sido espantoso! Sim, lembro que Mina o mencionou.

—Era muito perspicaz -repetiu Alston-. Se dava conta de que ali se escondia algo terrível, muito mais do que estava à vista. A maioria de pessoas se deu por satisfeita, mas Mina não. -Havia em sua voz um toque perverso de orgulho-. Não lhe escapava nada. -Adotou uma expressão severa. Claro está que não comentava com ninguém, salvo comigo; mas tinha certeza de que algo trágico tinha ocorrido aos Charrington, algo que não ousavam revelar.

Mais de uma vez a ouvi dizer que não lhe surpreenderia que Ottilie tivesse morrido de forma violenta.

Evidentemente, se aconteceu em algum lugar longe daqui a família se apressou a jogar terra ao assunto. Quero dizer em caso de que tivesse sido algo... vergonhoso!

Charlotte deu rédea solta a seus pensamentos. Queria dizer outro assassinato?

Assassinada por um amante, possivelmente? Ou talvez Ottilie tinha morrido com um filho ilegítimo em suas entranhas? Ou, pior ainda, do resultado de um aborto mal realizado! Ou acaso a acharam em um lugar inominável, o dormitório de um homem, ou um bordel? Era possível morrer tão jovem de uma enfermidade socialmente inaceitável? Não acreditava.

Provavelmente as enfermidades desse tipo demoravam anos a chegar a um desenlace fatal. Entretanto, cabia a possibilidade de que a família se inteirasse e optasse por uma solução drástica antes que os sintomas fossem muito evidentes.

Eram idéias obscenas, mas não impossíveis. E justificavam perfeitamente um assassinato, em caso de que Mina tivesse cometido a imprudência de revelar o que sabia.

Emily havia tornado a tomar a palavra, com o fim de surrupiar mais dados sem parecer muito curiosa. Tinham deixado de lado o tema do Ottilie Charrington, para não pecar como indiscretas; agora falavam da Theodora Von Schenck. Charlotte e Caroline tinham preparado Emily.

—Indiscutivelmente - disse Emily assentindo com a cabeça-, todo o mistério dá pé a fofocas. É natural. Seria incapaz de criticar a Mina. Eu mesma confesso me haver perguntado pela repentina prosperidade da Theodora.

Admitirá você que é inexplicável! -inclinou-se com expectativa. - Especular é humano! Não deve sentir-se mal por isso.

Charlotte sentiu certa vergonha alheia, mas ao mesmo tempo um pingo de orgulho. Emily era muito hábil.

Alston mordeu o anzol à primeira.

—OH, nisso Mina se mostrava realmente perspicaz! -disse com ar de triste satisfação-. De tão discreta que era não abria a boca, já sabe; além disso, não era nada severa. Mas observava muito, e estou convencido de que conhecia a verdade sobre muitos assuntos. -reclinou-se em seu assento, olhando a suas interlocutoras.

Emily abriu exageradamente os olhos, maravilhada.

—Acha - seriamente? Já sabe que nunca lhe escapava uma palavra indiscreta! OH, que autodomínio admirável!

Uma idéia vil e repugnante rondou ao Charlotte. Também ela se inclinou para o Alston, ruborizada pelos repulsivos pensamentos que a assaltavam.

—Sem dúvida era uma mulher muito observadora - disse suavemente-. Devia ver muitas coisas.

—OH, sim! -disse Alston-. Se dava conta de tudo. Receio muito que um montão de detalhes passaram por meu lado sem que eu reparasse neles. –de repente as lembranças o afligiram.

Um sentimento de culpa o embargou, por ter sido tão cego e não ter previsto o trágico desenlace. Ah, se tivesse sido capaz de ver, de entender! Possivelmente então Mina não teria sido assassinada.

Todos esses pensamentos se liam em seu rosto, na forma como torceu a boca, no esquivo de seu olhar, alagado em graves lágrimas.

Charlotte não pôde suportar. Embora achava saber a verdade, e sentia por Mina tanta raiva como compaixão, inclinou-se para o Alston e apoiou a mão em seu braço.

—Entretanto, - disse com firmeza-, tal como indicou você e sabemos todos, não era uma fofoqueira. Era muito prudente para comentar suas observações. Estou convencida de que é você o único que estava a par de sua... perspicácia.

—Seriamente acredita? -Alston a olhou com ansiedade, impaciente por ser absolvido da acusação de cegueira-. Não gostaria de saber que... fofocava! São coisas que deveriam... evitar-se.

—Claro que sim -o tranqüilizou Charlotte-. Não está de acordo, mamãe? Emily?

—OH, sim! -responderam ao uníssono. Seus olhos, entretanto, revelavam que não sabiam muito com o que tinham que estar de acordo.

Afastando a mão da manga do Alston, Charlotte se levantou. Já tinha toda a informação que desejava; agora queria partir.

Parecia-lhe indecente permanecer aí mais tempo, murmurando palavras compassivas que não serviam de nada, sabendo, além disso, que a nenhuma das três lhes importava grande coisa, salvo em abstrato, como se teriam de penalizar por qualquer pessoa.

Emily não dava sinais de querer mover-se.

—Deve você cuidar-se - disse olhando ao Alston nos olhos-. Naturalmente, terá que esperar um tempo antes de sair. Não seria oportuno, além de que duvido que se sinta com vontade. -Emily era uma perita em urbanidade-. Mas deve tentar não ficar doente.

Caroline aferrou os braços da poltrona e olhou ao Charlotte, que sentiu um estremecimento. Acaso Emily estava aludindo a outro assassinato?

Alston abriu os olhos e toda sua dor se permutou em medo.

Antes que alguém pudesse pensar em alguma frase decorosa com que apagar o efeito de tão terrível sugestão, a criada abriu a porta e anunciou a visita do Alaric. Perguntou ao senhor Spencer-Brown se devia fazê-lo entrar.

Alston murmurou uma resposta incoerente, que a moça interpretou como um sim. Transcorreram uns momentos de agônico silêncio. Charlotte mantinha a vista fixa em Emily, sem atrever-se a olhar a sua mãe.

Finalmente Paul Alaric entrou na sala.

—Boa tarde... -Titubeou. Obviamente a criada não lhe tinha advertido de que havia mais visitas. - Senhora Ellison, senhora Pitt. -voltou-se para Emily, mas, antes de que pudesse falar, Alston se apressou a fazer-se responsável pela situação, aliviado e refeito ante a oportunidade de poder cumprir com seus deveres de anfitrião.

—Lady Ashworth, me permita lhe apresentar a monsieur Paul Alaric -disse, e depois, dirigindo-se ao Alaric-: Lady Ashworth é a filha menor da senhora Ellison.

Alaric cravou em Charlotte um rápido olhar interrogativo. Depois, com perfeita compostura, pegou a mão que Emily lhe estendia.

—Encantado, Lady Ashworth. Como está?

-Muito bem, obrigada -respondeu Emily tibiamente-. Viemos dar os pêsames ao senhor Spencer-Brown. Como já o fizemos, economizaremos-lhes a obrigação de manter conosco uma conversa de mera cortesia. -ficou em pé com elegância, acompanhando seu gesto com um sorriso de puro compromisso.

Charlotte se levantou também. Já tinha estado a ponto de empreender a retirada quando a criada tinha anunciado ao Alaric.

—Vamos, mamãe -disse-. O que lhe parece se visitarmos a senhora Charrington? Achei-a muito simpática.

Mas Caroline não se moveu.

—Francamente, querida -se reclinou em seu assento com um sorriso-, se partirmos agora que monsieur Alaric acaba de chegar, tomar-nos-á por mal educadas.

Resta muito tempo para as demais visitas.

Emily e Charlotte se olharam, avaliando a teima de sua mãe. Depois Emily se voltou para Caroline.

—Tenho certeza de que monsieur Alaric não pensará tal coisa. -Desta vez o sorriso que dirigiu ao Alaric foi mais sedutor-. Se nos retirarmos, é por atenção para o senhor Spencer-Brown, não porque nos desagrade sua companhia.

Temos que pensar antes em outros que em nós mesmas. Não é verdade, Charlotte?

—Certamente - se apressou a dizer esta-. É nos momentos de abatimento quando mais agradeceria ter companhia do mesmo sexo que eu. -voltou-se para o Alaric e lhe sorriu. Desconcertou-a um pouco achar-se com ele a olhar fixamente, com olhos brilhantes e ligeiramente perplexos.

—Senhora, considerar-me-ia adulado além do razoável se me dissesse que há um homem que prefere minha companhia a de vocês -disse, embora fosse difícil saber se se tratava de ironia ou de um mero traço de humor.

—Que tal um pouco de cada coisa, então? -sugeriu Charlotte, arqueando as sobrancelhas-. Inclusive o mais doce se faz aborrecido durante muito tempo, e a gente acaba por desejar certa variação.

—O mais doce... -murmurou Alaric.

Charlotte já não teve dúvidas de que estava zombando dela, embora nada no rosto do francês o revelasse, razão pela qual acreditou ser a única em haver-se dado conta.

—Para não falar do que tem um gosto ácido -disse.

Embora Alston não tinha seguido a conversa, suas boas maneiras inatas foram mais fortes que sua perplexidade. As convenções sociais permitiam certo desafogo, a segurança que proporcionava o respeitar as normas.

—Me é difícil aceitar que alguma de vocês queira partir. -Fez um gesto que os abrangeu a todos-. Fiquem um pouco mais, por favor; foram tão amáveis...

Caroline aceitou na hora, e suas filhas não puderam fazer outra coisa que voltar para seus assentos e preparar-se para reatar a conversa com toda a paciência de que foram capazes.

Caroline tornou isso fácil. De repente, depois de haver-se mostrado meramente cortês e silenciosamente compassiva, mostrou-se radiante, e falou com uma intensidade desmedida.

—Acabávamos de dizer ao senhor Spencer-Brown que devia cuidar-se muito - disse olhando ora ao Alston ora ao Alaric-. É tão fácil cair no abandono depois da morte de um ser querido! Sem dúvida você poderá lhe ajudar melhor que nós.

—Esse é o motivo de minha visita - disse Alaric-. Assistir a reuniões sociais seria impensável, claro, mas se alguém fica em casa só, tudo se torna mais difícil. -dirigiu-se ao Alston-. Agradaria que fizéssemos uma excursão em carruagem um destes dias? Com bom tempo seria muito agradável. Além disso, economizar-lhe-ia achar-se com gente conhecida.

—Acredita que me conviria? -Alston parecia indeciso.

—Por que não? Cada qual deve agüentar a dor a seu modo. Quem o estima não o criticará porque procura algum modo de aliviar a sua. Eu, pessoalmente, amo a música, e também contemplar as grandes obras de arte, aquelas cuja beleza sobrevive a seus criadores e se oferece como bálsamo aos sofrimentos e aspirações de todos nós.

Eu adoraria acompanhá-lo a uma galeria, a que você prefira, ou se não a qualquer outro lugar.

—Não acredita que a gente esperará de mim que fique em casa? –Alston franziu o sobrecenho-. Pelo menos até o funeral. Não falta muito, sabe? Na sexta-feira. Sim. -Piscou-. Claro que sabe! Que idiota sou.

—Deseja que o acompanhe? -ofereceu-se Alaric-. Não me ofenderá se prefere estar só. Entretanto, se eu me achasse em sua situação preferiria não estar.

O cenho do Alston se suavizou.

—Seriamente o faria? É muito amável de sua parte.

Charlotte pensava o mesmo, sem que isso a alegrasse muito. Teria preferido ter motivos para censurar ao Paul Alaric. Olhou de esguelha para Caroline, percebendo a radiante expressão de seus olhos e a complacência com que assentia.

Depois olhou ao Emily. Também ela percebera.

—Que amável! -disse Emily com uma aspereza que, mais que preocupação pelo Alston, expressava medos mais íntimos-. Tenho certeza de que será o melhor.

É em momentos como estes quando se vê que a amizade não tem preço. Em meus momentos de aflição, o apoio de minha mãe e minha irmã foi o que mais me ajudou.

Charlotte não sabia do que estava falando. Sem dúvida não se referia à morte de Sarah, que tinha afetado a todas por igual. Não obstante, não sabia de nenhuma outra grande aflição.

Emily continuou.

—Além disso, não vejo por que não ia dar um passeio, se monsieur Alaric tiver a generosidade de lhe oferecer sua companhia. Ninguém com um pouco de sensibilidade se atreverá a pensar mal; ao menos entre as pessoas que podem lhe importar. -Ergueu a cabeça.

Claro, às vezes a gente interpreta mal determinadas amizades, mas isso passa quando se trata de uma dama e um cavalheiro. Coisas assim sempre dão pé a falações, até nos casos em que a relação é do todo inocente.

Não acha, monsieur Alaric?

Charlotte escrutinou o rosto do Alaric em busca de algum sinal, algo que revelasse que compreendia o alcance daquelas palavras, na aparência superficiais.

Mas Alaric não se alterou. Aparentemente sua atenção continuava concentrada no Alston.

—Nunca falta gente malpensada, Lady Ashworth -respondeu-. Em todas as circunstâncias. Seria inútil procurar contentar a todos. Devemos agir segundo os ditados de nossa consciência, sem deixar de respeitar as normas elementares que nos economizam ofensas desnecessárias. Isso é tudo, no meu entender.

A partir daí, terá que estar em paz consigo mesmo. -voltou-se para o Charlotte com olhar penetrante, como se de algum modo adivinhasse que, se falasse com sinceridade, Charlotte haveria dito exatamente o mesmo-. Não opina você como eu, senhora Pitt?

Charlotte se achou em um dilema. Detestava os equívocos, e sua própria língua tinha provocado muitos desastres sociais para que fosse conveniente contradizê-lo.

Também a empurrava a mostrar-se de acordo aquela qualidade que havia no Alaric além de seu verniz de elegância e inteligência, uma reserva de emoção secreta que a fascinava, como um dia de tormenta ou o esplendor do vento levantando-se no meio do oceano.

Algo perigoso e, ao mesmo tempo, de irresistível beleza.

Fechou os olhos por um breve instante e em seguida respondeu.

—Acredito que isso pode ser uma amostra de egoísmo complacente, monsieur Alaric -disse com uma afetação que a surpreendeu-. Não se pode fechar os olhos à sociedade, embora às vezes nos sintamos tentados a fazê-lo.

Seria diferente se o preço de ofender a sensibilidade do próximo o pagasse unicamente a gente mesmo, mas não é assim. As fofocas prejudicam quase sempre gente inocente.

Não estamos sós. A menor mancha pode acabar recaindo sobre uma família inteira.

A idéia de que podemos fazer o que nos agrade sem prejudicar a ninguém é uma ilusão, e das mais imaturas. Muita gente o utiliza como desculpa para seu cômodo egoísmo.

Depois alegam ignorância, e se assombram de que outros sejam arrastados por sua culpa, como se não tivessem podido prevê-lo com um pingo de bom senso! -Fez uma pausa para tomar ar. Não se atrevia a olhar aos assistentes, e menos ao Alaric.

—Bravo - sussurrou Emily, em voz tão baixa que outros a confundiram provavelmente com um suspiro.

—Charlotte... -Caroline estava assombrada, incapaz de achar as palavras precisas.

—Falou muito sensatamente. -Emily se apressou a romper o tenso silêncio-. E com que propriedade! Já era hora de que alguém opinasse com franqueza sobre o assunto.

Muito freqüentemente chegamos a nos enganar a nós mesmos com o fim de nos perdoar isso tudo. Embora sendo minha irmã possivelmente não devesse fazê-lo, felicito-a por sua honestidade.

Tendo em conta que Charlotte tinha sido sempre a última em fazer caso a tais conceitos, o comentário do Emily era necessariamente irônico, apesar de que seus olhos azuis só traduzissem boa fé.

—Obrigado - respondeu Charlotte-. Me adula. -ficou em pé-. Agora terei que partir; ainda tenho que visitar a senhora Charrington. Quer me acompanhar, mamãe? Ou prefere que lhe diga que considerou que seu dever era ficar com o senhor Spencer-Brown... e com monsieur Alaric?

Evidentemente teria sido ridículo por parte de Caroline preferir tal coisa.

Assim, não teve mais remédio que levantar-se também.

—Claro que não -disse secamente-. Será um prazer acompanhá-la.

Gosto muito de Ambrosine, e me alegra visitá-la. Além disso, apresentarei Emily. Ou também a conhece? -acrescentou mordazmente.

Emily não se alterou.

—Não, acho que não. Mas Charlotte me falou tão bem dela que faz tempo que sinto vontade de conhecê-la.

Outra mentira. Charlotte jamais tinha mencionado ao Ambrosine em presença do Emily. Entretanto, era uma boa desculpa.

Alaric se levantou, muito erguido e largo de ombros. Em seu olhar ficavam traços de brincadeira. Parecia ler nelas com toda clareza, como sabem fazer às vezes os estrangeiros.

—Parecer-lhe-á uma pessoa excepcional - disse com uma ligeira reverência-. E, o mais importante, não se aborrecerá nem um minuto.

—Uma estranha virtude -murmurou Charlotte, ruborizando-se-, não ser nunca aborrecida.

A frustração fez Caroline perder a compostura e deu um pulo e tentou dar um chute em Charlotte através da saia, mas falhou. A segunda vez, em troca, deu-lhe em pleno tornozelo e esboçou um sorriso de satisfação.

—Sem dúvida - disse. Depois olhou ao Alston, quem se tinha levantado também para despedir-se. - Não duvide em me chamar se acreditar que podemos lhe ajudar em algo. Curiosamente não mencionou ao Edward, salvo por implicação-. Somos vizinhos próximos, e nos agradaria lhe dar nosso apoio em qualquer assunto prático.

—É muito amável - respondeu Alston-. Agradeço.

Charlotte olhou sem dissimulação pra Alaric e encontrou seu olhar. Respirou fundo.

—Não duvide que meu pai estará encantado de lhe ajudar no que toca a sua assistência ao funeral. -Ergueu a cabeça-. O que lhe parece se o visitar e decidem a melhor solução? Também nós sofremos uma grave perda, e meu pai é uma pessoa sensível.

Estou convencida de que você saberá lhe apreciar no que vale. -Não afastou o olhar, apesar do calor que pouco a pouco subia a seu rosto.

Finalmente foi recompensada por uma faísca de compreensão no fundo do olhar do Alaric, acompanhada por um imperceptível rubor.

—Certamente - disse Alaric com serenidade-. Pensarei nisso com a devida seriedade.

Charlotte fracassou em seu esforço de sorrir.

—Obrigada -disse.

Acabadas as despedidas formais, mãe e filhas caminharam para a porta principal, onde as esperava a criada, avisada pelo Alston.

Abriram-se ambas as portas, a fim de que pudessem passar amplamente sem ter que ficar em fila.

Ao sair ao saguão, Charlotte se voltou e, com confusão, viu que Paul Alaric seguia de frente a elas. Seus olhos, grandes e negros, não olhavam ao Caroline nem ao Emily - que também tinha dado uma olhada para trás - mas à própria Charlotte.

Olhar para sua mãe era a última coisa que Charlotte desejava; entretanto, acabou por ceder à curiosidade e topou com um olhar de mulher a mulher, como se nem sequer se conhecessem. A única nota perceptível era a súbita e total tomada de consciência de sua rivalidade.

 

Charlotte esperava com impaciência a chegada de Pitt. Preparou um jantar simples, que meteu no forno; logo borboleteou de tarefa em tarefa sem acabar nenhuma.

As seis e quinze ouviu por fim como se abria a porta de entrada.

Instantaneamente deixou cair à toalha que tinha entre mãos e saiu a seu encontro.

Habitualmente esperava que Pitt se esquentasse um pouco junto ao fogo, tirasse o casaco e se sentasse, antes de começar a comentar as coisas do dia. Desta vez, em troca já antes de que Pitt pusesse seus pés no saguão Charlotte exclamou:

—Thomas, hoje vi Alston Spencer-Brown e fiz uma descoberta! -

Atravessou correndo o corredor e lhe pegou pelas mãos-. Acredito que sei algo sobre Mina. Possivelmente a razão porque fosse assassinada!

Pitt estava empapado, cansado e de um humor não precisamente radiante.

Seus superiores continuavam obstinados à hipótese do suicídio, causado supostamente por um desequilíbrio devido a problemas privados.

Desse modo tudo era mais fácil de arrumar, sem comprometer o decoro, sem necessidade de escavar na vida de numerosas pessoas para trazer à luz assuntos que convinha deixar em paz.

Desentupir motivos de inimizade era um trabalho sempre desagradável e impopular, além de pouco proveitoso para a carreira da pessoa que o empreendia, se o elevado status dessa pessoa o impedia de alegar que se limitava a cumprir ordens.

O chefe do Pitt, o ambicioso Dudley Athelstan, era o irmão menor da família e tinha melhorado sua posição através do matrimônio. Athelstan se tinha passado a tarde tratando de convencer ao Pitt de que não havia caso que investigar.

Se o propusesse, disse, uma mulher desequilibrada tinha a seu alcance muitas maneiras de conseguir veneno para tirar a vida.

Depois de Pitt partir, o mau humor do Athelstan foi crescendo; nem sequer conseguia convencer-se a si mesmo - e menos ainda ao Pitt, ou ao sargento Harris- de que o assunto estava resolvido, pois, apesar da diligência das investigações, não se tinha encontrado a nenhum farmacêutico ou boticário que tivesse em venda aquela substância.

Mais difícil ainda era que um médico a tivesse receitado.

Pitt começou a tirar o casaco, salpicando de água o chão do vestíbulo.

Justamente no dia anterior tinha sido objeto por parte do Gracie de uma dura crítica sobre quão difícil era manter bem encerado o chão quando pessoas descuidadas se dedicavam a salpicá-lo.

—Por que foi à casa do Alston Spencer-Brown? -perguntou ao Charlotte com certa aspereza-. Não acredito que tenha nada que ver com você nem com sua mãe.

Charlotte percebeu um tom irritado, como se Pitt houvesse trazido consigo todo o frio da rua. Entretanto, estava muito agitada para fazer caso disso.

—O assassinato está relacionado com mamãe - disse com ênfase, enquanto, em vez de levar o casaco para secar na cozinha, deixava-o gotejar no varal-.

Temos que achar o medalhão. O caso é que Emily queria visitar mamãe, e eu a acompanhei. -Se o lampião do saguão tivesse brilhado com chama mais forte, Pitt teria podido ver como sua esposa se ruborizava de sua meia mentira.

Dando à volta, Charlotte voltou para a cozinha, junto ao fogo-. Mamãe decidiu visitá-lo para lhe dar o pêsames -explicou-. Enfim, não importa. -voltou-se para o Pitt.

Conheço uma boa razão que explica o assassinato de Mina, e talvez inclusive duas! - Esperou, vermelha de entusiasmo, a reação de seu marido.

—Me ocorre uma dúzia - disse Pitt sobriamente-. Mas não tenho provas de nenhuma. Nunca faltaram hipótese, mas não basta tê-las. O superintendente Athelstan quer arquivar o caso.

O suicídio permitirá deixar tranqüila às pessoas.

Charlotte estalou de impaciência.

—Não falo de hipótese mas sim de fatos! Lembra-se quando lhe disse que mamãe se sentia observada e seguida?

—Não -disse Pitt com franqueza.

—Sim, disse-lhe isso! A maior parte de tempo mamãe se sentia espiada. E Ambrosine Charrington disse o mesmo. Pois bem, acredito que se tratava de Mina! Espiava as pessoas; era o que se costuma chamar uma olheira. Alston o admitiu indiretamente, embora sem conseguir entender o que significava, claro.

Não percebe, Thomas? Se começou a seguir a uma pessoa que guardava um segredo, um segredo de verdade, pôde inteirar-se de algo comprometedor, e ser assassinada por isso. E, pelo que disse Alston, me ocorrem ao menos duas possibilidades.

Pitt se sentou, tirando-as botas molhadas.

—Quais?

—Não me acredita? -Charlotte tinha esperado que Pitt acolhesse com mais entusiasmo as notícias; em troca, ele parecia escutar pela metade, só para agradá-la.

Pitt estava muito cansado para andar com rodeios.

—Minha opinião é que sobre sua mãe é menos importante do que imagina.

Muita gente se permite pequenas aventuras, sobretudo entre as ociosas mulheres da alta sociedade. A estas alturas deveria sabê-lo. Duvido que passe de alguns lenços caídos e um par de Ramos de flores; algo com tão pouca entidade como um bonito bordado. E acrescentaria que, se alguém a observava, seria por puro aborrecimento.

Está tomando isso muito a sério, Charlotte. Se não se tratasse de sua mãe não prestaria atenção ao caso.

Charlotte se dominou com esforço. Por uns momentos quase perdeu a paciência, replicar sem rodeios que, embora por suas manifestações externas o assunto parecia trivial, atrás dele se ocultavam sentimentos tão reais e potencialmente violentos como os que reinavam nos subúrbios, ou em outros estratos sociais menos marginalizados.

Mas em seguida se deu conta de quão cansado estava seu marido, de quanto lhe tinham desanimado os esforços por parte do Athelstan de ocultar ou evitar o que não convinha a suas ambições. A indignação não a conduziria a nenhum lado.

—Quer uma xícara de chá? -perguntou, observando os pés molhados do Pitt e a pele branca de suas mãos ali onde o frio tinha entorpecido a circulação. Sem esperar resposta, encheu de água a chaleira e a pôs sobre o fogo.

Passaram uns momentos de silêncio, enquanto Pitt vestia meias três-quartos secas; finalmente levantou o olhar.

—Quais são essas duas possibilidades?

Charlotte esquentou o bule e verteu o chá.

—Ultimamente Theodora Von Schenck goza de uns ganhos que ninguém consegue explicar. Seu marido não lhe deixou nada, nem tampouco outras pessoas, que se saiba. Quando se instalou no Rutland Place não possuía mais que a casa.

Agora tem casacos de Marta e outras coisas valiosas. Possivelmente Mina chegasse a algumas hipóteses interessantes sobre a procedência desse dinheiro.

—Por exemplo?

Charlotte sacudiu com impaciência o bule enquanto a chaleira desprendia débeis baforadas de vapor. A água estava quente, mas não fervia ainda.

—-Um bordel -respondeu Charlotte-. Ou um amante. Ou talvez um caso de chantagem. Quando o que está em jogo é o dinheiro muitas coisas podem justificar um assassinato. Possivelmente Theodora estava chantageando a algumas pessoas com a ajuda dos dados de Mina, e tivessem uma briga pelo dinheiro.

Pitt sorriu com amargura.

—Ah! Sua Mina parece ter tido uma maneira de pensar muito pouco caridosa, e uma língua que não ia atrás. Tem certeza de que dizia essas coisas? Não lhe estará emprestando sua própria voz?

—Alston fez vários comentários a respeito de quão perspicaz era sua esposa na hora de julgar o caráter da pessoa, em especial os aspectos menos agradáveis.

Entretanto, disse também que unicamente confiava suas impressões a ele. –Chegou o momento de afastar a água do fogo-. De todo modo, acredito que esta possibilidade é a menos verossímil.

A outra a ouvi da boca da própria Mina; saboreava tanto suas palavras que me fez pensar que realmente sabia algo. -

Mesclou a água com o chá, colocou a tampa e levou o bule à mesa, colocando-o sobre a base de estanho. Enquanto a infusão repousava, continuou-. Tem que ver com a morte do Ottilie Charrington, que ocorreu repentinamente e sem explicação.

Poucos dias antes a garota estava em perfeito estado de saúde, e da noite para o dia sua família voltou do campo com a notícia de que tinha morrido.

Assim, sem mais! Não se mencionou causa alguma, nem houve convites a nenhum funeral, nem se voltou a falar dela. Mina pareceu sugerir que atrás disso se escondia algo vergonhoso. Um aborto mal realizado, talvez? -estremeceu-se pensando na Jemima, que dormia no piso de cima em seu berço rosa-. Ou possivelmente foi assassinada por algum amante, ou em um lugar inominável, um bordel por exemplo.

Inclusive é possível que cometesse um ato tão terrível que sua própria família preferisse assassiná-la a que chegasse a saber-se.

Pitt, muito sério, olhava-a sem dizer uma palavra.

Charlotte lhe serviu uma xícara de chá.

—Já sei que parece violento e inverossímil - continuou-, mas o assassinato sempre é inverossímil, até o momento em que acontece. E Mina foi assassinada, não é verdade? Agora tem certeza de que não se suicidou.

—Não. -Pitt sorveu o chá e queimou a língua. Suas mãos estavam muito intumescidas para perceber o calor-. Não, acredito que alguém pôs veneno no cordial que achamos em seu estômago ao fazer a autópsia.

Encontramos um sedimento na garrafa vazia que tinha deixado em seu dormitório, e também no copo.

Foi simples casualidade que tomasse justo então. Poderia ter querido mais cedo ou mais tarde. Quem o pôs ali pôde ser qualquer pessoa, em qualquer momento.

—Não se o que queriam era silenciá-la - indicou Charlotte-. Quando se tem medo de alguém, quer vê-lo morto antes que fale, e isso significa quanto antes.

—Thomas, Mina era uma olheira. Quanto mais voltas lhe dou, mais sentido lhe vejo. Espiou quando não devia, e o que viu lhe custou à vida. -Concentrou o olhar no chá, nas voltas de fumaça que se desprendiam da xícara. - Me pergunto se as vítimas de assassinatos costumam ser pessoas desagradáveis, se houver algo em seu modo de ser que convida a acabar com elas.

Não me refiro, claro, a quem é assassinado por dinheiro. É como nos personagens trágicos do Shakespeare: uma má formação fatal da alma que corrompe todo o resto. - Mexeu seu chá, apesar de não levar açúcar. A fumaça se fez mais densa-. A curiosidade pode ser fatídica. Se Mina não tivesse querido saber tantas coisas das pessoas...

Saberia o de monsieur Alaric e o medalhão de mamãe? -Curiosamente, Charlotte não estava inquieta.

Caroline era um pouco amalucada, mas carecia da ferocidade e do medo necessários para chegar ao assassinato. E Paul Alaric não tinha motivos para isso.

Pitt a olhou com olhos escrutinadores. Charlotte se deu conta, muito tarde, de que não tinha mencionado ao Alaric até então. Era impossível que Pitt tivesse esquecido sobre Paragon Walk.

Naquele tempo Alaric tinha chegado a ser suspeito de assassinato... ou de algo pior!

—Alaric? -pronunciou lentamente Pitt, esquadrinhado o rosto de Charlotte.

Charlotte sentiu com raiva como se ruborizava. Era Caroline quem se estava comportando imprudentemente; ela não tinha cometido nenhuma indiscrição.

—Monsieur Alaric é o homem cujo retrato tem mamãe em seu medalhão – disse para defender-se, sustentando o olhar do Pitt. Mas este era muito nítido, muito lúcido.

Baixou a cabeça e voltou a mexer o chá energicamente. Tentou adotar um tom ligeiro-. Não lhe tinha falado disso?

—Não. -Pitt a estava observando-. Não, não o fez.

—OH...-Charlotte manteve seu olhar fixo nos redemoinhos do chá.

—Bom, pois já o ouviu.

Produziu-se um longo silencio.

—Seriamente? -disse Pitt finalmente-. Pois sinto dizer que não encontramos o medalhão, nem outros objetos roubados. E se Mina era uma olheira, alguém que roubava para satisfazer uma necessidade mórbida de intrometer-se na vida de outros, de fazer-se com alguma de seus pertences... -Vendo que Charlotte estremecia, suspirou-. Não é isso o que está dizendo, que era uma mulher anormal, uma pervertida?

—Suponho que sim.

Pitt voltou a provar o chá.

—E até existe outra possibilidade - acrescentou-: que conhecesse ladrão.

—Trágico e ridículo! -respondeu Charlotte com repentina irritação-. Que alguém morra por algo tão insignificante como um medalhão ou uma abotoadura!

—Muitos morreram por menos disso -disse Pitt. As miseráveis casas de vizinhança dos subúrbios voltaram à sua mente, formigueiros de miséria e necessidade-. Alguns por um xelim, outros de forma acidental, enquanto procuravam o que necessitavam, ou por culpa do engano de outra pessoa.

Charlotte tomou um gole de chá.

—Vais investigá-lo? -perguntou finalmente.

—Não tenho outra opção. Verei o que posso averiguar a respeito da Ottilie Charrington. Pobre criatura! Detesto remexer nas tragédias e desgraças das pessoas.

Já deve ser bastante horrível perder uma filha, para por cima ter que suportar que a polícia examine com lupa amores e ódios. Ninguém gosta que o examinem tão a fundo!

 

Chegou à manhã seguinte, e continuava sendo claro que não havia outra opção.

Se Charlotte estava certa, se Mina tinha estado bisbilhotando em vidas alheias, então era mais que provável que certa informação solicitada dessa forma tivesse sido a causa de sua morte.

Não era a primeira vez que Pitt ouvia falar de pessoas que, sob uma aparência de absoluta e respeitável normalidade, viviam dominadas por um mórbido impulso de espiar os outros, de misturar-se em assuntos privados, seguir às pessoas às escondidas, afastar as cortinas e até abrir cartas e escutar atrás das portas.

Semelhante obsessão provocava sempre medo e rechaço, e freqüentemente acabava no cárcere. Era inevitável que um dia ou outro conduzisse também ao assassinato.

Ir falar com os Charrington era impossível. De momento não dispunha de desculpas que fizessem aceitável trazer à luz o tema da morte de Ottilie, depois de tanto tempo.

A menos que lhes comunicasse suas suspeitas, coisa que de momento era inadmissível. Poderiam acusá-lo no mínimo de calúnia. E, em situação tão delicada, nem sequer teriam por que responder a suas perguntas.

Em lugar disso, foi visitar o Mulgrew. O doutor tinha atendido a quase todas as famílias do Rutland Place. Se ele não tinha conhecido pessoalmente a Ottilie, saberia de alguém que o tivesse feito.

-Grande dia! -Mulgrew lhe deu boas-vindas entusiastas. - Lhe devo um par de lenços. Muito agradecido. Um gesto cavalheiresco. Como vai? Entre e seque-se. -Agitou os braços, assinalando o corredor-. As ruas parecem rios, inclusive esgotos! O que acontece agora? Não estará doente, não é verdade? Não se podem curar os resfriados, já sabe.

Nem a dor de costas. Ninguém pode fazê-lo! Eu ao menos não conheci ninguém que o tenha conseguido. -Guiou ao Pitt até uma sala abarrotada de fotografias e lembranças, com prateleiras em todas as paredes, montanhas de papéis e notas desmoronando de mesas e cadeiras.

Diante da lareira dormitava um grande cão lavrador.

—Não, não estou doente. -Pitt o seguiu, invadido por um sentimento de alívio e leve euforia. De repente o desagradável lhe parecia mais fácil de suportar, e a escuridão que devia sondar lhe figurava cheia não já de medos difusos, mas sim de coisas conhecidas e das quais alguém podia enfrentar.

—Sente-se. -Mulgrew fez um gesto com o braço-. OH, afaste à gata! Assim que dou a volta sobe à poltrona. Lástima que seja tão branca. Seus malditos pêlos grudam a minhas calças! Mas não me incomoda. E a você?

Pitt tirou com cuidado ao animal do assento. Depois se sentou, sorridente.

—Absolutamente. Obrigado.

Mulgrew se sentou em frente a ele.

—Então, se não está doente, o que o traz por aqui? Não me virá outra vez com o de Mina Spencer-Brown? Pensei que tínhamos provado que a matou a beladona.

A pequena gata se esfregou pelas pernas do Pitt com um suave ronronar.

De repente saltou sobre seus joelhos, fez-se um novelo e dormiu na hora.

Pitt a acariciou com prazer. Charlotte queria um gato. Teria que lhe conseguir um como esse.

—É também médico de cabeceira dos Charrington? -perguntou.

Mulgrew abriu os olhos, surpreso.

—Tire-a de cima se quiser - disse apontando à gata-. Sim, sou. Por que?

Não terá acontecido nada a um membro da família, não é?

—Não que eu saiba, salvo a sua filha, que morreu. Conhecia-a você?

—A Ottilie? Sim; uma jovem encantadora. -Subitamente seu rosto se escureceu de pesar. - Sua morte é a mais triste que lembro. Sinto falta dela. Era uma garota adorável.

Pitt se dava conta de que a dor do Mulgrew ultrapassava com acréscimo o do médico que perde a um paciente. Era uma aflição mais pessoal, a nostalgia de uma alegria que se desvanecera. Foi-lhe violento ter que continuar. Não tinha previsto tais emoções.

Preparou-se unicamente para o exercício mental e a investigação acadêmica. O mistério do assassinato era algo anômalo, inclusive mesquinho. O único real eram as emoções, a ardente dor, as vastas e ermas estepes que deixava a sua passagem.

Suas mãos apalparam de novo o quente corpinho da gata; acariciou-a suavemente, confortando-se a si mesmo tanto como ao animal.

—Do que morreu? -perguntou.

Mulgrew ergueu o olhar.

—Não sei. Não morreu aqui, mas no campo. Em Herfordshire.

—Mas você era o médico da família. Não o disseram?

—Não. Mal fizeram comentários. Não pareciam querer falar disso. Muito natural, suponho. Nem todo mundo reage igual ante a dor.

—Soube que foi muito rápido.

Mulgrew contemplava as chamas da lareira sem olhar ao Pitt; o que via não podia ser compartilhado.

—Sim. De improviso.

—Então não lhe disseram qual foi à causa?

—Não.

—E você não perguntou?

—Suponho que devia tê-lo feito. Só recordo a impressão que causou, e que ninguém disse uma palavra, como se pudessem repará-lo só em não mencionar o assunto. Como se não fosse real. Não quis pressioná-los. Que direito tinha eu?

—Mas quando a garota deixou Rutland Place sua saúde era boa, pelo que você sabia, não é assim? -inquiriu Pitt.

Mulgrew olhou-o.

—Das melhores que vi. Por que? Evidentemente está interessado; do contrário não me faria tantas perguntas. Pensa que tem alguma relação com a morte da senhora Spencer-Brown?

—Não sei. É uma de tantas hipóteses.

—Que tipo de hipótese? -A careta de dor do Mulgrew se fez mais intensa-.

Ottilie era excêntrica, inclusive de mau gosto para alguns, mas não havia nada mau nela. Era uma das pessoas mais generosas que conheci.

Generosa com seu tempo, quero dizer; nunca estava muito ocupada para escutar quem precisasse falar. E generosa também em seus julgamentos. Não procurava elogios nem invejava o êxito de outros. Assim, de algum modo Mulgrew a tinha querido. Pitt não necessitava mais.

O calor que gotejava a voz do Mulgrew revelava que a dor continuava aí, como um persistente vazio em seu interior.

Tudo isso fazia mais penosos os pensamentos do Pitt, induzidos pelo Charlotte.

Era-lhe muito difícil para preferir a mentira. Precisava pensar com tempo, chegar passo a passo à conclusão. Falou sem olhar ao Mulgrew.

—Pelos dados que acabam de me dar - disse, medindo suas palavras-, é possível que Mina Spencer-Brown fosse uma mulher que sentisse uma indevida curiosidade pelos assuntos alheios. Aparentemente escutava, espiava. Acredita que pode ser verdade?

Mulgrew cravou o olhar no Pitt. Sua resposta se fez esperar. O fogo chispava.

Sobre os joelhos do Pitt, a gata despertou e começou a lhe cravar suavemente suas garras. Pitt a colocou com gesto ausente em cima de sua jaqueta, onde não pudesse lhe fincar as garras.

—Sim - disse Mulgrew finalmente-. Não me tinha ocorrido, mas sim; era uma pessoa que observava sem perder detalhe. Há gente assim. Suponho que o conhecimento lhes dá uma ilusão de poder.

Converte-se em algo obsessivo.

Talvez Mina fosse uma delas. Uma mulher inteligente, mas de vida vazia; de festa em festa, cada qual mais estúpida e cheia de intrigas. Pobrezinha. -inclinou-se para colocar mais carvão no fogo-. Dia após dia, sem perder detalhe, e sem que houvesse nenhuma necessidade disso. Que maneira mais idiota de morrer! Por causa de alguma informação solicitada por estúpida curiosidade, sem que em realidade lhe servisse de nada. -Afastou seu rosto da luz da lareira-. E você acredita que tem algo que ver com Ottilie Charrington?

—Não sei. Ao que parece Mina opinava que sua morte era um mistério, sugerindo que atrás dessa morte se escondiam mais coisas do que se haviam dito, e que ela sabia do que se tratava.

—Estúpida, triste, cruel mulher... -disse Mulgrew com pesar. – Que demônios imaginaria?

—Ignoro-o. Há toda uma série de possibilidades. -Não queria causar pena ainda mais a aquele homem explicando-lhe em detalhe, mas tinha que mencionar uma, embora só fosse para descartá-la-. Um aborto mal realizado, por exemplo.

Mulgrew permaneceu imóvel.

—Duvido-o -disse com tom monocórdio-. Não poria a mão no fogo, mas duvido. Você tem que seguir essa pista?

—Pelo menos até confirmar que é falsa.

—Pergunte então a seu irmão Inácio Charrington. Tinham muita intimidade. Não o pergunte ao Lovell; é um idiota presunçoso, incapaz de ver além da qualidade tipográfica de um cartão de visita.

Ottilie o punha frenético. Costumava entoar canções das que cantam nos teatros. Sabe Deus onde as aprenderia! Um domingo cantou uma sobre brinde e cerveja... Nem sequer sobre um clarete decente! Ambrosine me chamou. Pensava que Lovell ia ter um ataque. O pobre idiota estava vermelho até as orelhas.

Em outras circunstâncias Pitt teria posto-se a rir, mas a consciência de que Ottilie tinha morrido, e possivelmente assassinada, despojava à anedota de todo seu humor.

—Uma pena -disse com calma-. Nos damos tão pouca conta de que coisas importam de verdade! Não saímos de nosso engano até que é muito tarde, até que já não importa. Obrigado, falarei com Inácio. -levantou-se, colocando a gatinha no assento que acabava de esquentar com seu corpo. O animal se espreguiçou, e em seguida voltou a fazer-se um novelo.

Mulgrew ficou em pé de um salto.

—Mas tem que haver algo mais! Se Mina, essa desventurada mulher, era uma olheira, deve ter visto outras coisas, sabe Deus o que! Alguma ou outra aventurazinha!

Conheço mais de um mordomo nesta zona que deveria perder seu trabalho... e mais de uma criada, se sua chefe soubesse como gasta seu tempo!

Pitt fez uma careta.

—Sem dúvida. Terei que investigá-los a todos. A propósito, sabe que pelo Rutland Place ronda um ladrão?

—Meu deus, ainda por cima isso! Não, não sabia, mas tampouco estranho. Acontece de quando em quando.

—Não é um criado, mas um dos vizinhos.

—Mas o que...! -Mulgrew perdeu a compostura-. Tem certeza?

—Além de toda dúvida razoável.

—Grande assunto desgraçado. E suponho que não cabe que fosse a própria Mina...

—Sim cabe. Ou seu assassino.

—Pensava que meu trabalho era um asco. Pois o prefiro mil vezes ao dele!

—Neste momento compartilho sua opinião - disse Pitt-. Mas, por desgraça, não podemos trocá-los. Embora estivesse você disposto, eu não poderia ocupar seu lugar. Obrigado por sua cooperação.

—Não duvide em voltar se acreditar que posso lhe ser de ajuda. –Mulgrew estendeu a mão e Pitt a estreitou com firmeza.

Minutos mais tarde estava outra vez na rua, sob a chuva.

Demorou duas horas e meia para encontrar Inácio Charrington. Localizou-o passadas as onze do meio-dia, em seu clube, a ponto de almoçar.

Pitt teve que esperar na sala de fumantes, sob o olhar de reprovação de um garçom dispéptico, que pigarreava com irritante freqüência; ao final se surpreendeu contando os segundos que o homem demorava para voltar a fazê-lo.

Finalmente Inácio fez sua aparição, sendo informado entre sussurros da presença do Pitt. O jovem se aproximou com uma expressão peculiar que combinava a diversão produzida pelo dilema do garçom -e também dele, tendo em conta como começavam a olhá-lo- com a apreensão que lhe produzia o ignorar o que queria Pitt.

—Inspetor Pitt? -Inácio se deixou cair com certa brutalidade na poltrona de frente-. Da polícia?

—Sim, senhor. -Pitt o observou com interesse. Era magro, trinta anos no máximo, cabelo castanho avermelhado e um rosto peculiar, impreciso e cambiante como o mercúrio.

—Aconteceu algo de novo? -perguntou Inácio ansiosamente.

—Não, senhor. -Pitt sentia tê-lo assustado. Por alguma razão lhe era impossível imaginá-lo assassinando a sua irmã, ou a Mina, só para evitar um escândalo. Seu rosto traduzia muito bom aspecto-. Nada que eu saiba. Mas continuamos sem ter nenhuma explicação satisfatória sobre como morreu a senhora Spencer-Brown.

Por agora nenhuma das hipóteses contempla a possibilidade de um acidente ou um suicídio.

—OH. -Inácio se reclinou no espaldar-. Suponho que em tal caso só fica o assassinato. Pobre mulher.

—Assim é. E me atrevo a adiantar que, antes de que o assunto possa dar-se por fechado, provocará ainda grandes sofrimentos.

Inácio o olhou com gravidade.

—Sim, suponho que sim. Para que veio ver-me? Não acredito que possa lhe dizer nada. Não é que conhecesse muito a Mina. -Sua boca se torceu em um amargo sorriso-. Não tinha nenhum motivo para matá-la, mas imagino que não se conformará com minha palavra. Embora se fosse o autor do crime, diria exatamente o mesmo!

Pitt reprimiu um sorriso.

—Ah. O que esperava de você eram certas informações. -Não podia permitir-se ser franco. Inácio era muito arguto para não adiantar-se a qualquer suspeita, e jogar terra sobre toda pista valiosa.

—A respeito de Mina? Faria melhor em dirigir-se às demais mulheres; a minha mãe, inclusive. Às vezes mais despista e distorce os falatórios que ouça por aí, mas atrás de tudo isso se esconde uma grande sagacidade para julgar às pessoas.

Pode ser que não entenda bem os dados concretos, mas suas intuições são invariavelmente exatas.

—Irei vê-la -disse Pitt-. Mas talvez se falar antes com você sua mãe responda a minhas perguntas com maior liberdade. Não é muito habitual que mulheres como à senhora Charrington confiem à polícia a opinião que lhes merecem seus vizinhos.

O rosto do Inácio se suavizou com um sorriso fugaz.

—Disse com muito tato, inspetor. Suponho que tem razão. Entretanto, mamãe tem certo gosto pelo estranho. Comentarei isso esta mesma tarde. Talvez lhe dê uma surpresa, e comece a lhe contar de tudo; embora, para falar a verdade, não é uma pessoa fofoqueira.

Não tem suficiente má fé. Em jovem costumava divertir-se escandalizando as pessoas de vez em quando. Aborrecia-se de ouvir todo mundo repetir as mesmas sandices dia após dia, sempre nas mesmas festas; vestidos e casas diferentes, mas idênticas conversas. Um pouco como Tillie.

—Tillie? -Pitt se tinha perdido.

—Minha irmã Ottilie. Melhor não o repetir. Meu pai costumava ficar à beira da apoplexia quando em crianças me ouvia chamá-la Tillie.

—Gostava de escandalizar as pessoas? -perguntou Pitt.

—Adorava. Nunca ouvi risada como a de Tillie. Era formosa, plena; a classe de risada que te arrasta embora não tenha a menor idéia do que é tão divertido.

—Pelo que diz, devia ser encantadora. Lamento não ter podido conhecê-la. -Aquilo era algo mais que uma banal amostra de simpatia. Pitt o dizia de coração. Ottilie era uma das coisas boas que se perdeu.

Os olhos do Inácio se abriram por uns instantes, como se não compreendesse.

Depois emitiu um pequeno suspiro.

—OH! Sim, Teria gostado dela. Agora que já não está, tudo parece mais frio e ninguém se vê da mesma cor. Mas você não veio por isso. O que quer saber?

— Soube que morreu repentinamente.

—Com efeito. Por que?

—Deve ter sido uma grande tragédia para sua família. Sinto muito.

—Obrigado.

—Essas febres costumam chegar de repente, sem avisar. -Pitt estava tentando diversas estratégias.

—Como? Ah, sim; com efeito. Mas não queria fazê-lo perder seu tempo. O que tem a ver com Mina Spencer-Brown? Ela não morreu de febre, não há dúvida. Asseguro- lhe além disso que Tillie não tomou nenhum fármaco com beladona. Posso jurar. Seja como for, aquele dia nós não estávamos na cidade, mas no campo.

—Têm casa de campo?

—No Abbots Langley, Herfordshire. -Inácio sorriu-. Mas não achará beladona por lá. Em nossa família ninguém tem problemas de digestão.

Forçosamente, com os cozinheiros que tivemos! Se os escolhe papai, tudo são sopas e molhos; se mamãe, bolos e confeitaria.

Pitt se sentiu como um intrometido. Quem demônios podia gostar de exercer de olheiro?

—Não pensava na beladona - disse-. Devo achar motivos. Algo teve que fazer a senhora Spencer-Brown para que quisessem assassiná-la. Encontrar beladona é muito fácil.

—Seriamente? -Inácio arqueou as sobrancelhas-. Não prefere saber quem foi antes que por que o fez?

—Naturalmente, mas qualquer um é capaz de destilar o veneno a partir de uma planta de beladona. Estes velhos jardins estão repletos dela. Podem-se arrancar em qualquer parte. Não como a estricnina ou o cianeto, que em geral têm que se comprar.

Inácio estremeceu.

—Que terrível idéia! Sair para pegar plantas para matar alguém! -Fez uma breve pausa-. Mas lhe asseguro que não me ocorre nenhum motivo para que alguém assassinasse a Mina. Pessoalmente não gostava dela; sempre a achei muito... -demorou um pouco em achar o termo preciso- muito intencionada e perspicaz. Sem coração, todo cérebro.

Não parava de pensar. Nada passava por cima. Eu prefiro às pessoas menos inteligente, ou que não esteja tão à espreita.

Assim, se cometer alguma tolice, sei que se esquecerão dela na hora. Sorriu com um pingo de malícia-. Mas daí a destilar veneno para matar a uma pessoa, só porque não simpatiza com ela...! Nem sequer pode dizer-se que me desagradasse.

Simplesmente não estava à vontade em sua companhia, que por outro lado não era muito freqüente.

Tudo se ajustava com a precisão de um quebra-cabeças ao esquema do Charlotte: uma olheira que o escutava tudo, depois o relacionava em sua mente e formulava teorias, achando estreitas correspondências entre as coisas.

Mas como, e para quem, transformou-se o "não estar à vontade" em "não poder suportar"?

Pitt tratou de pensar em alguma pergunta útil, que fizesse Inácio acreditar que se interessava por Mina e não pelo Ottilie.

—Não a conheci em vida. Era uma mulher atraente para os homens?

Inácio esteve a ponto de pôr-se a rir.

—Não muito sutil, inspetor. Não, não o era, pelo menos não para mim. Prefiro mulheres menos enrijecidas, com mais senso de humor. Se perguntar pelo Rutland Place, sem dúvida lhe responderão que costumo me entreter com mulheres de temperamento cordial, ligeiramente excêntricas; e se tivesse que me casar não tenho a menor idéia de quem seria a escolhida.

Alguém que eu gostasse seriamente, mas não Mina, em todo caso!

—Interpretou-me mal -disse Pitt com um leve sorriso-. Pensava em algum amante, inclusive não correspondido. Dizem que todas as torturas do inferno não podem comparar-se com uma mulher que foi rejeitada, mas eu vi freqüentemente homens que não se levavam muito melhor, especialmente pessoas vaidosas e de pouco êxito.

Muitos acreditam que, quando se apaixonam por alguém, a pessoa em questão contrai algum tipo de dívida com eles e lhes confere certos direitos.

Mais de um homem matou a uma mulher só porque pensava que estava dedicando seu tempo a outro que não a merecia. Conheci a homens que se achavam donos da virtude de uma mulher; qualquer mancha em sua reputação era para eles não uma ofensa a ela mesma ou a Deus, mas uma ofensa pessoal.

Inácio ficou olhando a polida superfície da mesa, enquanto sorria por causa de uma lembrança ao mesmo tempo graciosa e amarga, algo que não estava disposto a explicar ao Pitt.

—Absolutamente certo -disse-. Soube que na época do feudalismo, quando uma mulher perdia sua virgindade tinha que pagar uma multa ao suserano; com efeito, não ser virgem baixava grandemente o preço que um possível pretendente teria que pagar a seu senhor para casar-se com ela.

Não mudamos tanto! Somos muito refinados para pagar com dinheiro, claro está, mas mesmo assim continuamos pagando.

Pitt quereria saber a que se referia; perguntar-lhe, entretanto, teria sido vulgar, além de que provavelmente não teria respondido.

—Talvez tinha um amante? -disse, retomando o tema principal-. Ou um admirador?

Inácio meditou sua resposta.

—Mina? Não o tinha pensado, mas sim, suponho que é possível. Inclusive a pessoa mais estranha tem suas aventurazinhas.

—Por que diz isso? Deu-me a impressão de ter sido pelo menos atraente, e possivelmente até formosa.

O próprio Inácio pareceu surpreso.

—Por sua personalidade. Não se apreciava nela a menor faísca de entusiasmo, de... doçura. Mas disse admiradores, não é? Era delicada, com um ar muito feminino que sem dúvida atraía a mais de um, uma espécie de austera pureza. E seu modo de vestir realçava essas qualidades. -Sorriu como pedindo perdão-. Mas é inútil que me pergunte quem; não tenho nem idéia.

—Obrigado. -Pitt ficou em pé-. Não me ocorrem mais perguntas. Foi muito cortês ao aceitar me receber, especialmente neste lugar.

—Não achei. - Inácio se levantou também-. Não me dava muitas opções apresentando-se aqui intempestivamente. Se me tivesse negado, teria dado a impressão de ser um idiota pretensioso. Ou, pior ainda, que tinha algo que ocultar.

Essa tinha sido a intenção. Pitt não pensava negá-lo.

 

No dia seguinte, em vez de visitar Ambrosine Charrington, Pitt colocou uma camisa limpa e um par de meias três-quartos em uma maleta e pegou o trem que saía da estação do Euston para o Abbots Langley. Sua intenção era conseguir detalhes sobre a morte de Ottilie Charrington.

Passou dois dias ali, e quanto mais informação lhe davam mais desorientado se sentia. Não teve problemas em localizar a casa, pois os Charrington eram personagens populares e muito respeitados.

Depois de um abundante almoço na hospedaria, dirigiu-se ao cemitério paroquial: nem rastro de Ottilie. Nem ela nem nenhum Charrington repousavam ali.

—Bom, só levam uns vinte anos vindo por estes lados- foi à razoável explicação do sacristão-. São novos aqui. Não achará ninguém da família enterrado neste cemitério. Provavelmente estão em algum lugar de Londres.

—Mas e a filha? -perguntou Pitt-. Morreu aqui mesmo, fará alguns anos.

—É possível, mas não a enterraram aqui - assegurou o sacristão-.

Comprove você mesmo. E assisti a todos os funerais nos últimos vinte e cinco anos. Nem um só Charrington.

Pitt teve uma idéia repentina.

—E entre os católicos ou os protestantes? -perguntou-. Que outras igrejas há pelos arredores?

—Estou à corrente de todos os funerais que se produzem nesta vizinhança - respondeu o sacristão-. É meu trabalho. E os Charrington não pertencem a nenhuma crença extravagante dessas. São gente de bem. Anglicanos, como todo o que sabe o que lhe convém. Todo domingo na missa, quando estão no povoado. Se a enterraram nesta zona, teve que ser neste cemitério. Acredito que se equivoca, e que morreu lá por Londres.

Ou em todo caso, se morreu aqui, a levariam a Londres para enterrá-la.

No panteão familiar, certamente. É o que sempre digo: "Descansa perto dos teus." A eternidade é longa.

—Não acredita na ressurreição? -perguntou Pitt.

O sacristão fez expressão de desagrado ante uma idéia de tão mau gosto: introduzir questões abstratas, de doutrina, na realidade cotidiana da vida e da morte.

—A que vem essa pergunta? Você tem idéia de quando chegará isso? Na tumba nos toca estar um longo tempo, muito, mas que muito longo.

As coisas têm que fazer-se como é devido. Será nossa morada durante muito mais anos que qualquer luxuosa mansão aqui na terra!

Isso estava fora de discussão. Pitt lhe agradeceu e se dispôs a procurar o médico local.

O doutor conhecia os Charrington, mas não tinha atendido ao Ottilie em sua agonia, nem tinha escrito nenhum certificado de falecimento.

No dia seguinte, ao meio dia, depois de entrevistar a criados, vizinhos e a chefe de correios, Pitt tomou o trem de volta a Londres, convencido de que Ottilie Charrington tinha estado em Abbots Langley na semana em que morreu, mas que não havia falecido ali.

O empregado da bilheteria recordava havê-la visto uma ou duas vezes pela estação, mas não estava muito seguro das datas; e, em que pese a que Ottilie tinha comprado um bilhete para Londres, aquele homem não sabia dizer se havia tornado.

Parecia inevitável concluir que Ottilie não tinha morrido no Abbots Langley, mas em outro lugar desconhecido, tão desconhecido como as causas de sua morte.

 

Pitt já não podia permitir-se adiar mais a entrevista com o Ambrosine e Lovell Charrington. Até o próprio superintendente Athelstan, por muito que lhe pesasse, foi incapaz de aduzir razão alguma para continuar demorando.

Consertou-se uma entrevista seguindo o protocolo social, como se se tratasse de uma visita de cortesia.

Pitt teria preferido apresentar-se de improviso e entrevistar ao Lovell e Ambrosine por separado. Mas Athelstan tinha decidido tomar o assunto em suas mãos depois de ouvir o informe da viagem ao Abbots Langley.

Lovell recebeu ao Pitt no salão. Ambrosine não estava com ele.

—Sim, inspetor? -disse com desapego-. Não me ocorre que mais posso lhe dizer sobre esse desafortunado incidente. Já cumpri com meu dever lhe informando de tudo que sabia. A pobre senhora Spencer-Brown era muito instável, embora me doa ter que dizê-lo. Não estou interessado na vida privada das pessoas, daí que não saiba que tipo de crise em concreto precipitou a tragédia.

—Não, senhor -disse Pitt. Ambos continuavam de pé, Lovell em posição tensa e sem mostra de estar disposto a fazer concessões à comodidade-. Não, mas neste momento já não há dúvida de que a senhora Spencer-Brown, longe de suicidar-se, foi assassinada.

—Sério? -Lovell empalideceu. Bruscamente tomou a cadeira que havia atrás dele-. Estará de todo certo, imagino! Não terá precipitado as conclusões? Por que a assassinaram? É absurdo! Era uma mulher respeitável!

Pitt se sentou.

—Não tenho motivos para duvidar disso, senhor. -Decidiu mentir, ao menos indiretamente. Não lhe ocorria nenhuma outra maneira de introduzir o tema-. Às vezes, inclusive os mais inocentes são vítimas de um assassinato.

—Algum perturbado? -Lovell se aferrou à hipótese mais cômoda. Como toda enfermidade, a loucura golpeava indiscriminadamente. Acaso o príncipe Albert não tinha morrido de tifo-. Claro, tem que ser essa a resposta. Receio que não vi estranhos por esta zona, e nossos criados foram escolhidos com o maior cuidado.

Sempre nos guiamos por referências.

—Muito prudente de sua parte. -Pitt se ouviu mentir hipócritamente-.

Soube que perdeu a sua filha em circunstâncias trágicas, senhor.

O rosto do Lovell adotou uma hermética expressão de defesa quase hostil.

—Com efeito. Sobre esse assunto preferiria não falar.

Não tem nenhuma relação com a morte da senhora Spencer-Brown.

—Então sabe mais da morte da senhora Spencer-Brown que eu, senhor - não retrocedeu Pitt-. De minha parte, continuo sem ter o menor dado a respeito das causas, quem o fez, e menos ainda o motivo.

Lovell estava branco como o papel, com a boca e a mandíbula em dolorosa tensão. Sob os músculos suspensórios, a alta gola de sua camisa se torceu estranhamente.

—Senhor, minha filha não foi assassinada, se imagina tal coisa. Isso está fora de discussão. assim, qualquer tipo de relação é impossível. Não deixe que suas ambições profissionais o façam ver um assassinato onde não há mais que uma simples tragédia.

—Do que morreu, senhor? -Pitt controlou o tom de sua voz, consciente de até que ponto estava provocando intensos sofrimentos. A consciência disso era mais forte que o abismo que afastava os sentimentos e crenças de ambos os homens.

—Uma enfermidade repentina -respondeu Lovell-. Mas não foi envenenada.

Se lhe ocorreu essa idéia como conexão entre as duas, está totalmente equivocado.

Faria melhor em empregar seu tempo investigando a senhora Spencer-Brown, em vez de misturar-se nas tragédias familiares de outras pessoas. E o proíbo que incomode a minha esposa com perguntas idiotas. Já sofreu bastante. Não sabe o que está fazendo!

—Tenho uma filha, senhor.

Pitt estava pensando em si mesmo, tanto como no orgulhoso homenzinho que tinha em frente.

E se Jemima tivesse morrido de repente, sem lhes dar tempo a fazer à idéia? E se um dia estivesse cheia de vida e no seguinte não fosse mais que uma formosa, vivida e agônica lembrança?

Opor-se-ia tanto como Lovell a que se mencionasse o assunto? Não podia assegurar. Semelhantes tragédias estavam fora do alcance da imaginação.

E, entretanto, também Mina era filha de alguém.

—Onde faleceu, senhor?

Lovell o olhou fixamente.

—Em nossa casa do Herfordshire. Que interesse pode ter isso para você?

—E onde foi enterrada, senhor?

Lovell se ruborizou de ira.

—Nego-me a responder uma pergunta mais! Sua rabugice é monstruosa, e extremamente ofensiva! Pagam-lhe para que descubra como morreu Mina Spencer-Brown, não para que exerça sua infernal curiosidade a minha família e seus padecimentos.

Se tiver alguma pergunta que me fazer em relação ao primeiro, faça-a! Tentarei responder o melhor que possa, como é meu dever. De outro modo, peço-lhe que abandone esta casa e não volte a menos que tenha motivos legítimos.

Entendeu-me, inspetor?

—Sim, senhor Charrington -disse Pitt com extrema suavidade-, entendo-o perfeitamente. Sua filha e a senhora Spencer-Brown eram amigas?

—Não especialmente. Acredito que se limitavam a tratar-se com cortesia. Havia uma considerável diferencia de idade.

Ocorreu a Pitt uma idéia completamente ao acaso.

—Como se dava sua filha com o senhor Lagarde?

—Conheciam-se desde há tempo - respondeu Lovell tenso-, mas não havia nenhuma... -vacilou ao escolher suas palavras- amizade entre eles. Uma lástima. Teria sido um excelente matrimônio.

Minha esposa e eu tentamos convencê-la, mas Ottilie não... -interrompeu-se, novamente aborrecido-. Isso não tem muito que ver com sua investigação, inspetor. De fato, não é absolutamente pertinente. Me perdoe, mas acredito que está esbanjando seu tempo e o meu.

Não posso lhe dizer nada mais. Que tenha um bom dia.

Pitt pensou em discutir e seguir insistindo. Mas supôs que Lovell não lhe ia explicar nada mais.

Ficou em pé.

—Obrigado por sua ajuda. Confio em que não haverá necessidade de voltar a incomodá-lo. Bom dia, senhor.

—Assim o espero. -Lovell se levantou-. O lacaio o acompanhará à saída.

Rutland Place brilhava desvaidamente sob a pálida luz solar. Em algum ou outro jardim o narciso erguia suas folhas, erguidas como baionetas, com amarelas bandeiras de flores na ponta.

Pitt teria preferido que as pessoas não os plantassem em fileiras, como se fossem batalhões armados.

Até no caso de serem falsas as conjeturas sobre a perversa natureza de Mina Spencer-Brown, certamente havia algo misterioso na morte do Ottilie Charrington. Nem sua morte nem seu enterro se produziram onde dizia sua família.

O que os tinha levado a mentir? O que a tinha matado em realidade, e onde?

Só havia uma resposta: a causa tinha sido tão dolorosa ou atroz que não se atreviam a revelar a verdade.

 

Transcorreram três dias sem nenhum progresso. Pitt seguiu a pista de todo indício material que teve a seu alcance. O sargento Harris interrogou aos criados, tanto aos da cozinha como aos do resto da casa. Ninguém revelou nenhum dado importante.

Se fazia cada vez mais evidente que Mina, tal e como tinha aventurado Charlotte, tinha sido uma olheira obsessiva. Confirmavam-no pequenos retalhos de informação, impressões recolhidas aqui e lá. Mas o que tinha visto? Sem dúvida algo mais comprometedor que a mera identidade de um ladrão de pouca monta.

Chegou à tarde do quarto dia. Charlotte estava de pé no salão, pouco depois da uma. Abriu os biombos que davam ao pequeno jardim traseiro e aspirou um pouco de ar fresco, por fim cheio de calor e aromas primaveris. De repente Gracie chegou pressurosa, raspando com seus saltos o tapete recém estreado.

—Senhora Pitt, há uma mensagem para si enviada expressamente por um lacaio com limusine e tudo, e diz que é muito urgente! Por Deus, senhora, a limusine continua aí no meio da rua, grande como uma casa, uma maravilha! -Estendeu o envelope à Charlotte.

Bastou uma olhada para dar-se conta de que era a letra de sua mãe. Charlotte o rasgou e leu.

Querida Charlotte:

Aconteceu o mais horrível que possa imaginar. Mal sei como lhe contar isso É profundamente trágico.

Como sabe, estando Eloise Lagarde tão aflita pela morte de Mina e pelas circunstâncias em que ocorreu, Tormod a levou a sua casa de campo para que descansasse e recuperasse ânimo.

Querida Charlotte, esta manhã retornaram, depois de ter sofrido o acidente mais atroz de que tive jamais notícia! Ponho-me doente só de pensar nisso. Uma tarde, enquanto voltavam de carruagem de um picnic com uns amigos, o pobre Tormod, que levava as rédeas, caiu do assento, justo sob as rodas.

Como se isso não fosse bastante horrível, atrás mesmo vinham seus amigos. Já tinha anoitecido, de modo que não se deram conta do que acontecia. Pois passaram por cima dele! Cavalos e carruagem!

Esse pobre jovem, pouco mais velho que você, ficou aleijado por toda vida! Está estendido em sua cama do Rutland place. Ao que parece continuará aí durante o resto de seus dias.

Estou tão afetada que não me ocorre o que fazer ou dizer. Como ajudá-lo?

Como reagir ante uma tragédia tão entristecedora?

Pensei que devia sabê-lo o antes possível; enviei-lhe a carruagem se por acaso decide vir esta mesma tarde. Agradeceria muito sua companhia, embora só fosse para compartilhar com alguém a impressão que me causa tão doloroso acontecimento.

Seu pai está ocupado em seus assuntos e não virá para casa a comer. Quanto à avó, não é um grande consolo.

Escrevi também à Emily, e enviei o recado por mensageiro.

 

Sua mãe que a quer,

CAROLINE ELLISON

 

Charlotte leu a missiva duas vezes, não porque não a entendesse mas para dar tempo a que o significado, com toda sua carga de dor, penetrasse até o mais fundo de sua consciência.

Tratou de imaginar a noite, a estrada às escuras. Viu o Tormod Lagarde agarrando as rédeas, tal como o tinha visto pela última vez, com sua longa e pálida fronte e sua onda de negros cabelos.

Depois, talvez o brusco movimento de um cavalo, ou uma curva repentina; e de repente aí estava Tormod, atirado no barro junto à carruagem, no meio do ruído e o estalo continuado, e as rodas esmagando carne e ossos.

Depois, um breve silêncio sob o céu estrelado, e de repente o violento ruído de cascos da outra carruagem, esmagando com todo seu peso, e a agonia do corpo destroçado...

Santo céu! Quanto melhor, quão imensamente misericordioso teria sido para ele morrer na hora, não voltar a sentir nada, não ver mais a luz do dia!

—Senhora? -A voz de Gracie irrompeu, premente-. Se encontra bem, senhora? Está palidíssima! Venha, sente-se. Trarei os sais e uma boa xícara de chá! - deu- à volta em seguida, decidida a ficar à altura da situação e fazer algo útil.

—Não! -disse Charlotte finalmente-. Não, Gracie, muito obrigada. Estou bem, não vou desmaiar. São notícias terríveis, mas se trata de um conhecido, não de um membro da família nem de um amigo íntimo. Esta tarde irei à casa de minha mãe; é amigo seu.

Não sei quanto tempo estarei fora. Terei que pôr algo mais adequado que este vestido, é muito alegre. Tenho um negro, muito elegante. Se o senhor chegar antes que eu, mostre-lhe esta mensagem. Deixo-a em cima da escrivaninha.

—Está terrivelmente pálida, senhora -disse Gracie com inquietação-. Acredito que lhe convém uma boa xícara de chá antes de sair para qualquer lugar. Pergunto ao lacaio se quer uma também?

Charlotte se tinha esquecido do lacaio. Sua mente tinha retrocedido ao passado e nem sequer recordava que a carruagem não era sua.

—Sim, por favor. Boa idéia. Eu vou lá em cima me trocar; pode subir a xícara de chá.

Diga ao lacaio que não demorarei muito.

—Está bem, senhora.

Charlotte achou a sua mãe em um estado de ânimo lúgubre. Pela primeira vez desde a morte de Mina se pôs um vestido negro, sem adornos de renda na gola desta vez.

—Obrigado por vir tão logo -disse, assim que a criada fechou a porta-.

O que está acontecendo no Rutland Place? Uma tragédia atrás de outra! –Parecia incapaz de sentar-se. Com as mãos estreitamente enlaçadas, permanecia de pé no meio da sala. - Talvez seja uma maldade dizê-lo, mas pressinto que de algum modo isto é pior que o de Mina! Só tenho informação dos criados; já sei que não deveria escutá-los, mas é o único modo de inteirar-se de algo.

Segundo Maddock, o pobre Tormod está... -fez uma pausa para tomar ar- completamente destroçado!

Tem as costas e as pernas fraturadas.

—Não é nenhuma maldade, mamãe. -Charlotte moveu levemente a cabeça, enquanto estendia o braço para tocar Caroline-. Quando se tem fé, a morte não tem por que ser tão terrível; só o é, às vezes, o modo como acontece. E se Tormod estiver tão ferido gravemente como diz, não há dúvida de que teria sido melhor para ele morrer rapidamente! E se não se recupera? De qualquer modo, eu não confiaria muito em Maddock.

Tenho certeza de que ouviu isso da cozinheira, quem por sua vez o escutou das criadas, e estas de um mensageiro, etcétera, etcétera. Pensa lhes oferecer seu apoio?

Caroline levantou a cabeça com vivacidade.

—OH, sim! Acredito que é o menos que posso fazer. Não ficarei muito, naturalmente, mas se trata de demonstrar que alguém está disponível para qualquer ajuda que necessitem. Pobre Eloise! Estará destroçada. São tão unidos! Sempre foram inseparáveis.

Charlotte tratou de imaginar como se sentiria se, querendo profundamente a uma pessoa, tivesse que vê-la dia após dia mutilada além de toda esperança de recuperação, e entretanto acordada, em seu são julgamento.

E não poder fazer nada para ajudar! Mas coisas assim estavam mais à frente do alcance da imaginação.

Naturalmente se lembrava da morte de Sarah, mas isso tinha sido rápido, violento e horrível, mas graças a Deus não teve de suportar uma longa agonia, os espasmos de dor dia após dia.

—O que poderíamos fazer? -perguntou com impotência-. Dizer que o sentimos me parece de uma banalidade tão terrível...

—Não há outra possibilidade - respondeu Caroline com calma-. Não tente solucionar tudo de repente. Talvez no futuro possamos ajudar em algo; embora só seja lhe fazendo companhia.

Charlotte não respondeu. O sol, que acariciando o tapete fazia ressaltar as grinaldas de flores, parecia algo remoto, mais uma lembrança que uma presença viva.

Em cima da mesa, a terrina de tulipas de cor rosa dava uma impressão de rigidez, como se não fosse mais que um artificioso adorno, hierático e alheio.

A criada abriu a porta.

—Lady Ashworth, senhora. -Esboçou uma reverência, e atrás dela apareceu Emily, pálida, sem a seriedade e a impecável presença habitual nela.

—Que espantosa desgraça, mamãe! Como pôde acontecer? -Agarrou o braço de Charlotte.

Como soube? Thomas não está aqui, não é? Quero dizer, não é nada...

—Não, claro que não! -apressou-se a dizer Charlotte-. Mamãe me enviou sua carruagem.

Caroline meneou a cabeça, aturdida.

—Foi um acidente. Estavam em excursão. Fazia bom dia e voltavam ao anoitecer depois de um picnic, dando um agradável passeio. É tudo tão absurdo! - Pela primeira vez sua voz se encheu de ira, dando-se conta das circunstâncias-.

Não tinha por que acontecer! Um cavalo assustadiço, suponho, ou algum animal selvagem que os sobressaltou atravessando o caminho. Ou talvez um ramo que pendia de uma árvore.

—Pois para isso tem um guarda-florestal! -disse Emily em um estalo de impaciência-. Para cuidar de que não pendam ramos sobre os caminhos transitáveis! -A irritação se esfumou com a mesma rapidez-.

Como poderíamos ajudá-los? Não me ocorre nada, salvo oferecer nosso apoio. E não é que isso sirva de muito!

—Em todo caso é melhor que nada. -Caroline se aproximou da porta-. Pelo menos Eloise não pensará que somos indiferentes. E, se chegar o momento de que necessite algo, embora seja só um pouco de companhia, saberá que nos tem ao seu dispor.

Emily suspirou.

—Suponho que sim. Mas é como oferecer um balde a quem quer esgotar toda a água do mar!

—Há vezes em que saber que não se está sozinha já é um consolo – indicou Charlotte, um pouco para si mesma. Fora, no saguão, esperava Maddock.

—As senhoras estarão de volta para o chá? -perguntou enquanto segurava o casaco de Caroline.

—OH, sim - assentiu esta, permitindo que lhe colocasse o abrigo sobre os ombros-. Só vamos ver a senhorita Lagarde. Não acredito que demoremos.

—Entendo - disse Maddock gravemente-. Uma terrível tragédia. Às vezes os jovens conduzem com muita precipitação. Sempre pensei que fazer corridas é um esporte perigoso e imprudente. Os veículos não costumam estar preparados para isso.

—Estavam fazendo corridas? -perguntou Charlotte, voltando-se para o mordomo.

Os traços de Maddock continuaram impassíveis. Era um membro da criadagem e conhecia seu lugar; mas também tinha estado ao serviço dos Ellison desde que Charlotte era uma menina. Dificilmente podia surpreendê-lo quanto viesse dela.

—Ao menos é o que se diz, senhorita Charlotte - respondeu com a mesma inexpressiva entonação-. Parece um ato muito imprudente em uma estrada rural; quase é inevitável que alguém saia maltratado, embora só sejam os cavalos.

Mas não sei lhe dizer se é certo ou só especulações dos criados. Não podemos evitar que sua imaginação dispare em torno de semelhante desastre. Nenhum castigo os faria calar.

—Não, claro -disse Caroline-. Eu não perderia o tempo tentando-o, enquanto não chegue à irresponsabilidade. -Arqueou um pouco as sobrancelhas-.

Além disso, isso não os faz descuidar de suas tarefas!

Maddock pareceu ressentir-se um pouco.

—Eu, naturalmente, nunca permiti tais coisas nesta casa, senhora.

—Não, naturalmente - disse Caroline, desculpando-se em certo modo por ter ofendido sua integridade sem dar-se conta.

Emily estava junto à porta. O lacaio a abriu. Fora, a carruagem as estava esperando.

Só algumas centenas de metros as separavam de casa dos Lagarde, mas o dia era chuvoso, e as calçadas estavam molhadas; além disso, tratava-se de uma visita da mais alta formalidade.

Charlotte subiu ao veículo e se sentou em silêncio. Que demônios poderia dizer ao Eloise? Acaso era possível franquear o abismo que se abria entre sua felicidade pessoal e o sofrimento da jovem?

Ninguém disse uma só palavra até que a carruagem se deteve e o lacaio as ajudou a descer. Depois ficou de pé junto aos cavalos, esperando em plena rua, como sinal para outras visitas de que estavam aí.

A copeira, sem sua habitual toca branca, abriu-lhes a porta; com um fio de voz lhes disse que ia informar se a senhorita Lagarde podia recebê-las. Voltou ao cabo de cinco minutos para acompanhá-las até a saleta traseira, com vistas ao jardim alagado pela chuva. Eloise se levantou do sofá para saudá-las.

Era insuportável ter que olhá-la. Sua pele translúcida estava tão branca como um papel de seda, e igualmente inerte. Seus olhos, imensos e afundados, pareciam formar um tudo com as olheiras que os rodeavam. Seu cabelo apresentava um aspecto imaculado, mas isso obviamente era mérito da criada, que também se ocupou de vesti-la.

Eloise trazia um conjunto bonito e delicado, mas parecia artificial, uma mortalha que envolvesse um corpo que o espírito tinha abandonado. Até parecia mais magra, sua fina cintura mais quebradiça ainda. Já não se tampava com o xale que Charlotte lhe tinha visto posto dias antes. Não parecia lhe importar já ter frio ou calor.

—Senhora Ellison... -Sua voz soou completamente neutra-. Que amável visita. -Falava como se lesse um idioma estrangeiro, sem entender palavra-. Lady Ashworth, senhora Pitt... Sentem-se, por favor.

As três o fizeram, desconfortáveis. Charlotte tinha as mãos geladas; em troca o rosto lhe ardia, pelo apuro de ter interrompido uma dor muito íntima para amoldar-se ao costumeiro ritual do orgulho e das obrigadas reservas. Afligia-a aquela angústia que enchia a sala.

Aturdida, ficou sem palavras. Inclusive Caroline titubeou, incapaz de articular uma frase pertinente. Só Emily conseguiu sair do passo graças a sua inquebrável disciplina social.

—Nada do que possamos dizer estaria à altura da aflição que carrega sobre seus ombros -disse com calma-. Mas tenha a plena certeza de que compartilhamos de sua dor, e de que nos agradaria poder ajudá-la de algum modo.

—Obrigado -respondeu Eloise inexpressivamente-. São muito generosas. -

Mal parecia dar-se conta de sua presença. Só era consciente da obrigação de responder ou dar algum sinal cada vez que alguém lhe falava. Eram frases de pura formalidade, palavras preparadas de antemão.

Charlotte espremeu o cérebro em busca de algum comentário que não fosse muito estúpido.

—Talvez neste momento queira um pouco de companhia - sugeriu-. Ou, se tiver que ir a alguma parte, preferirá talvez ir com alguém. –Ao dizer aquilo pensava mais no Emily ou Caroline que nela mesma, pois raras eram suas oportunidades de visitar Rutland Place, não dispondo de carruagem.

O olhar do Eloise se posou nela por uns momentos; depois deslizou para uma espécie de vazio absoluto, como se tudo que lhe era familiar se achasse dentro de sua cabeça.

—Obrigado. Sim, é muito possível. Entretanto, temo que minha companhia não seja muito agradável.

—Equivoca-se, querida -disse Caroline. Levantou as mãos para tocá-la, mas uma espécie de barreira isolava Eloise, uma distância quase tangível. Deixou-as cair de novo-. Sempre achei-a extremamente gentil -acrescentou com impotência.

—Gentil! -repetiu Eloise. Pela primeira vez certa emoção se apoderou de sua voz, mas com dureza, com uma sombra de ironia-. Seriamente acha?

Caroline não teve mais remédio que assentir.

O silêncio voltou a apoderar-se da reunião, disposto a durar até que se fizesse insuportável.

Os minutos passaram um a um. Haver-se-ia dito que a sala se fazia larga e enorme enquanto a chuva ficava à distância, apenas audível.

O pesadelo do galope dos cavalos ressoou em todas as mentes, unido ao ranger das pesadas rodas.

Finalmente, justo quando Charlotte se dispunha a dizer algo para aliviar a tensão -sem se importar se o comentário seria ou não absurdo-, a criada reapareceu anunciando Amaryllis Denbigh.

Apesar do muito que Amaryllis lhe desagradava, Charlotte se sentiu cheia de gratidão por ela por lhe tirar aquele peso de cima.

Amaryllis seguia de perto à criada. De pé no marco da porta, ficou olhando com expressão de espanto, embora dificilmente podia lhe haver passado por cima a carruagem que esperava fora.

Seu olhar se cravou em Charlotte acusadoramente. Estava lívida; seu cabelo, habitualmente lustroso, estava mal penteado, e o carmim de seus lábios um pouco deslocado.

—Senhora Pitt, não esperava encontrá-la aqui.

Não havia forma de responder cortesmente. Atribuindo a pergunta a uma natural angústia, Charlotte preferiu ignorá-la.

—Sem dúvida vem oferecer seu apoio, igual a nós – disse impassível. Esperou alguns segundos para que Eloise dissesse algo.

Como não o fez, acrescentou-: Sente-se, por favor. Este sofá é muito cômodo.

—Como pode falar de comodidade em um momento como este? –perguntou Amaryllis em um repentino acesso de ira-. Tormod se recuperará, não há dúvida! Mas agora está prostrado pela dor. -Fechou os olhos; ardentes lágrimas escorregavam por suas faces-. Uma terrível dor! E você aqui sentada, como se estivesse em uma reunião social, e falando de comodidade!

Charlotte sentiu brotar uma onda de raiva e angústia. Amaryllis dava rédea solta a seus próprios sentimentos, sem pensar na dor que podia causar ao Eloise.

—Continue de pé então, se o prefere -disse com aspereza-. Se acredita que isso pode ser de alguma ajuda, tenho certeza de que ninguém se oporá.

Amaryllis pegou uma cadeira e se sentou, com sua saia de seda pendendo amplamente.

—Se for certo que vai se recuperar, isso ao menos é uma esperança –disse Emily para suavizar a tensão.

Amaryllis abriu a boca e voltou a fechá-la.

Eloise continuava imóvel, enfraquecida, com o semblante pálido e as mãos inertes posadas no regaço.

—Não se recuperará - disse sem o menor matiz de expressão, como se tivesse visto a morte frente a frente e, acostumada a ela, aceitasse-a já sem esperanças-.

Jamais voltará a levantar-se.

—Não é certo! -respondeu Amaryllis, quase gritando-. Como se atreve a dizer algo tão horrível? É mentira! Mentira! Levantar-se-á e com o tempo voltará a andar. Fá-lo-á! Tenho certeza. -ficou em pé, foi para o Eloise e se deteve diante dela, tremendo de emoção.

Mas Eloise não levantou a cabeça, nem se alterou.

—Está sonhando -disse com uma calma absoluta-. Um dia se dará conta da verdade. Por muito que tarde, a verdade sempre está aí, e acabará por alcançá-la.

—Equivoca-se! Equivoca-se! -O sangue afluiu ao rosto do Amaryllis-. Não entendo por que diz essas coisas. Terá você suas razões... Sabe Deus quais! - Eram palavras acusadoras, pronunciadas com um tom desagradável e gritante, e também assustado-. ficará bem. Não me renderei! Nego-me a me render!

Eloise ficou olhando como se fosse transparente, ou um obstáculo insignificante, algo irreal, inconsciente como uma projeção de lanterna mágica.

—Se prefere acreditar assim - disse sem alterar-se-, faça-o. A ninguém importará. Só lhe peço que não vá por aí repetindo-o, sobretudo se chegar o dia em que Tormod se encontre em condições de recebê-la.

Amaryllis ficou rígida, com o peito erguido e os braços rígidos como se fossem de madeira.

—Quer-lhe sempre aí estendido! -exclamou atropeladamente-. É uma malvada! Quer tê-lo prisioneiro! Só ele e você para toda a vida! Está louca! Nunca o deixará mover-se daí... não...

De repente Charlotte, sacudindo-se de sua inércia, levantou-se com presteza e deu um bofetão em Amaryllis.

—Deixe de comportar-se como uma idiota! -disse com fúria-. Que incrível egoísmo! Pensa que ajuda em algo ficar a gritar como uma criada histérica? Por todos os Santos, acalme-se! Recorde que é Eloise quem tem que suportar o pior, não você!

É ela quem se ocupou dele toda a vida! Acredita que o pobre senhor Lagarde se alegraria de ver sua irmã insultada, para cúmulo de tudo? Só o médico pode dizer se se recuperará.

As falsas esperanças são mais dolorosas que o ir aprendendo com paciência a aceitar a verdade, seja qual for, e esperar que o tempo diga a última palavra.

Amaryllis ficou olhando. Provavelmente era a primeira vez que alguém a esbofeteava, mas estava muito consternada para reagir. E a acusação de que se comportava como uma criada era um insulto mortal!

Emily se levantou por sua vez, puxando o braço de Charlotte; depois acompanhou Amaryllis de volta a seu assento. Eloise tinha ficado quieta enquanto acontecia tudo, como se absorta em seus pensamentos não tivesse visto nem ouvido nada. Por sua reação, o mesmo poderia ter sido tênues sombras.

—É natural que esteja impressionada -disse Emily ao Amaryllis, em um esforço supremo por manter a calma-. Mas estas coisas afetam às pessoas de forma variável. Deve ter em conta, além disso, que Eloise viu ao médico, e fala com conhecimento de causa.

O melhor será que esperemos seu veredicto. O senhor Lagarde necessita da maior tranqüilidade possível. -voltou-se para Eloise-. Não é assim?

Eloise continuava contemplando o chão.

—Sim. -Arqueou um pouco as sobrancelhas, quase surpreendida-. Sim, não devemos perturbá-lo com nossas emoções.

Repouso absoluto, isso prescreveu o doutor Mulgrew. O tempo o dirá.

—Disse se voltaria logo? -inquiriu Caroline-. Quer que alguém a acompanhe quando vier o doutor, querida?

Pela primeira vez Eloise sorriu, como se finalmente tivesse ouvido palavras inteligíveis.

—É muito amável. Não será um aborrecimento? Espero-o de um momento a outro.

—Claro que não é aborrecimento. Alegramo-nos de poder ficar -assegurou Caroline com entusiasmo, ao fim contente de poder ajudar em algo.

Amaryllis vacilou, enquanto todos os olhares posavam nela. Finalmente mudou de idéia.

—Acredito que a cortesia nos obriga a fazer outras visitas pela zona – disse Emily-. Charlotte pode ficar aqui. Talvez a senhora Denbigh queira me acompanhar. -Falava com deliciosa desenvoltura-. Eu adorarei desfrutar de sua companhia.

Amaryllis abriu desmesuradamente os olhos. Não tinha previsto uma situação como aquela, e estava a ponto de protestar quando Caroline pegou no ar a ocasião.

—Excelente idéia. -ficou em pé, alisando o vestido-. Charlotte estará encantada de ficar aqui. Eu irei com vocês para continuar as visitas. Sem dúvida Ambrosine se alegrará de nos ver. Fá-lo-á com gosto, não é verdade, querida? -Olhou nervosamente ao Charlotte.

—É claro -assentiu Charlotte. Por uma vez o mistério da morte de Mina não ocupava seus pensamentos, concentrados em Eloise-. Penso que é a melhor solução.

Além disso, estou a quatro passos de casa. Quando for hora de voltar irei caminhando.

Amaryllis ficou uns momentos mais, tratando ainda de achar alguma desculpa aceitável para continuar ali. Mas não lhe ocorreu nada, e teve que seguir Emily até o saguão quando Caroline lhe ofereceu seu braço. A criada fechou a porta atrás delas.

—Não se desgoste por sua culpa - disse Charlotte ao Eloise, passados uns instantes. Não seria tão néscia de sugerir que não pensava o que havia dito. Saltava à vista que suas palavras tinham sido de todo intencionais-. Eu diria que a impressão lhe afetou o julgamento.

Pelo rosto de Eloise passou uma sombra de humor amargo.

—Possivelmente sim -respondeu-, mas só na medida em que antes teria pensado o mesmo, e só por educação não se atreveu a dizê-lo.

Charlotte se reclinou em seu assento. O doutor Mulgrew ainda podia demorar um bom tempo.

—Não é uma pessoa precisamente agradável - comentou.

Eloise a olhou. Pela primeira vez parecia vê-la realmente, e não alguma cena desenvolvida em sua mente.

—Não lhe tem você simpatia. -Era uma afirmação.

—Não muita -admitiu Charlotte-. Possivelmente se a conhecesse melhor... -Deixou a sugestão no ar, como uma fórmula de pura cortesia.

Ficando em pé, Eloise caminhou lentamente até os biombos para contemplar a chuva.

—Parece-me que grande parte do que apreciamos nas pessoas consiste em coisas que não vimos, mas que supomos que estão aí. Desse modo podemos imaginar que o que não conhecemos corresponde a nossos desejos.

—Seriamente podemos fazer isso? -Charlotte deu uma olhada às costas da jovem, grácil, de ombros marcados-. Provavelmente seja impossível acreditar no que não é certo, a menos que, deixando de lado a realidade, alguém se abandone à loucura.

—É possível. -de repente Eloise perdeu todo interesse. Cansativamente, acrescentou-: Mas pouco importa.

Charlotte sentiu o impulso de discorrer, por puro princípio, mas a profunda dor que reinava na sala a afligia. Estava procurando ainda algum comentário oportuno quando voltou a entrar a criada, anunciando a chegada do doutor Mulgrew.

Pouco depois, quando já o doutor estava em cima junto ao Tormod e sua irmã esperava no patamar, a criada perguntou ao Charlotte se desejava receber a monsieur Alaric até que Eloise voltasse.

—OH! -Lhe cortou a respiração. Naturalmente, era impossível negar-se.

Sim, por favor... Faça-o entrar. Tenho certeza de que isso é o que quereria a senhorita Lagarde.

—Sim, senhora. -A moça se retirou. Passados uns instantes fez sua entrada Paul Alaric, sobriamente vestido, com expressão grave.

—Boa tarde, senhora Pitt. -Não houve demonstração de surpresa. Sem dúvida o tinham informado de sua presença-. Como está?

—Bastante bem, monsieur, obrigada. A senhorita Lagarde está acima, com o médico; mas suponho que já sabe.

—Com efeito. Como a achou?

—Terrivelmente afetada -respondeu Charlotte-. Não acredito ter visto nunca ninguém tão angustiado. Tomara pudéssemos dizer ou fazer algo para consolá-la...-Teve medo de que Alaric fizesse algum comentário trilhado; mas não foi assim.

—Sim, sei. -Alaric falava com grande calma, enquanto sua mente se esforçava por compreender a dor-.

Confesso que não me sinto capaz de ajudar em nada, mas não vir me teria parecido uma imperdoável amostra de indiferença.

—É muito amigo do Tormod Lagarde? -inquiriu Charlotte. Não lhe tinha ocorrido que na vida do Alaric houvesse lugar para uma amizade com alguém como Tormod Lagarde, mais jovem e frívolo. - Sente-se, por favor - ofereceu com toda a compostura de que foi capaz-. Eu diria que ainda demora.

—Obrigado - disse ele, afastando as abas da jaqueta para não sentar-se em cima-. Não, não pode dizer-se que tivéssemos muito em comum. Não obstante, tragédias como esta se sobrepõem a todas as diferenças superficiais, não é?

Charlotte levantou o olhar, topando com os olhos do Alaric que a observavam com curiosidade. Não havia neles nada daquela impessoal frieza que Charlotte lhe conhecia das reuniões sociais. Sorriu-lhe levemente, para mostrar que estava serena e guardava a compostura. Depois sentiu o impulso de sorrir outra vez.

—A você, por exemplo, vejo que não a retiveram -continuou Alaric-. Teria sido muito compreensível de sua parte alegar outras obrigações, esquivando-se de um dever indevidamente doloroso. Pelo que sei, não conhece muito aos Lagarde. Mesmo assim, sentiu o impulso de vir.

—Uma visita bem pouco útil, receio -disse Charlotte com súbita tristeza-. Salvo que mamãe e Emily conseguiram afastar à senhora Denbigh.

Alaric sorriu. Toda sua ironia apareceu em seu olhar.

—Ah, Amaryllis! Sim, suponho que isso foi efetivamente uma gentileza.

Não sei por que, mas não parece existir um grande afeto entre ela e Eloise. Se tivesse acabado por ser cunhadas, não teriam faltado problemas na casa.

—Diz que não sabe por quê? -Charlotte se surpreendeu. Não podia ser tão cego. Amaryllis era fortemente possessiva; seus sentimentos para o Tormod eram de uma devoradora intensidade. A idéia de ter que viver na mesma casa com o Eloise lhe teria sido insuportável. Quando duas mulheres compartilhavam uma casa, uma delas sempre tomava o mando; que o fizesse Eloise era pouco provável, e para o Amaryllis intolerável.

Mas, no caso de Eloise ser relegada, até de modo sutil, a uma posição secundária, Tormod acabaria por sentir-se em dívida com ela, compadecer-se-ia dela, e isso não faria mais que piorar as coisas.

Decididamente, se Paul Alaric não fosse capaz de entender os sentimentos de Amaryllis, era sinal de que possuía uma imaginação decepcionantemente limitada.

Mas, ao lhe olhar no rosto, deu-se conta de que não lhe tinha ocorrido que Eloise ficasse a viver com eles. Mas Tormod não podia deixá-la sozinha. Eloise era jovem e vulnerável. Não, teria sido impossível, até no caso de que fosse algo socialmente aceitável, o que por outro lado não era certo.

—Desde o começo tive a sensação de que a senhora Denbigh sente grande apreço pelo senhor Lagarde -disse Charlotte. Que ridiculamente mornas eram suas palavras frente à violenta paixão que tinha visto em Amaryllis, o anseio espiritual e corporal que bulia a tão pouca distância da superfície!

Alaric esboçou lentamente um esvaído sorriso.

—Também ele se deu conta.

—Talvez seja por falta de perspicácia, mas não me parece que ter esposa e irmã sejam coisas incompatíveis.

—Francamente, monsieur... -de repente aquele homem a impacientava-. Imagine você loucamente apaixonado, se é que tal coisa está ao alcance de sua imaginação. -A raiva que sentia pelo comportamento do Caroline envenenava suas palavras-. Gostaria de viver dia a dia junto a alguém que conhecesse a pessoa amada imensamente melhor que você? Que compartilhasse com ela as lembranças de toda uma vida, as risadas, os segredos, os amigos, as reminiscências da infância...?

—Está bem, Charlotte, entendi-o. -De repente Alaric tinha voltado para os tempos de sua fugaz amizade com Charlotte, quando viveram juntos os terríveis dias do Paragon Walk; Também aí uma trama de invejas e ódios tinha levado a assassinato-. Falei como um estúpido insensível. Dou-me conta de que para alguém como Amaryllis isso seria insuportável.

De todo modo, se Tormod estiver tão ferido gravemente como dizem, não se falará já de matrimônio.

Não fazia mais que verbalizar uma verdade óbvia a essas alturas; Entretanto, suas palavras caíram como blocos de gelo na sala. Guardaram silêncio, pensando cada qual a seu modo na atroz revelação, até que Eloise retornou.

Olhou ao Alaric sem interesse, como se não visse nele mais que um objeto, um conjunto de traços que lhe exigia dar demonstração de reconhecimento.

—Boa tarde, monsieur Alaric. foi muito amável ao vir.

O aspecto do Eloise, com a rigidez de seu rosto e os olhos fundos de espanto, impressionou ao Alaric além de quanto lhe dissera Charlotte. Esqueceu suas maneiras, todas as frases corteses que lhe tinham inculcado durante anos, e lhe embargou uma emoção espontânea e incontrolável.

Estendeu sua mão para pegar a de Eloise; com a outra lhe acariciou o braço suavemente, como se sua pele corresse perigo de irritar-se.

—Eloise, sinto-o tanto... Querida, não abandone as esperanças. Ninguém sabe o que pode chegar a acontecer com o tempo.

Eloise permaneceu em seu lugar sem retroceder um passo, embora não estivesse muito claro se a proximidade do Alaric a reconfortava ou, simplesmente, não a percebia.

—Não sei o que devo esperar -se limitou a dizer-. É mau que me sinta assim?

—Não, não é nada mau -disse Charlotte rapidamente-. Para saber o que é melhor, terei que ser onisciente. Não deve culpar-se. Não pense sequer nisso, por favor.

Eloise fechou os olhos e se virou, obrigando ao Alaric a soltar seu braço.

Ele ficou confuso, sabendo que aquele tremendo sofrimento que via era impossível de alcançar ou compartilhar.

Charlotte teve piedade dele, mas acima de tudo devia pensar em Eloise.

Levantou-se e foi a seu lado, rodeando-a fortemente com o braço. O corpo de Eloise estava inerte, sem vida; mesmo assim, Charlotte seguiu estreitando-o. Pela extremidade do olho via o Alaric, tenso e compassivo. Viu como se voltava e partia em silêncio, fechando a porta atrás dele. Com um "clique" quase inaudível, o fechamento da porta voltou para seu lugar.

Eloise não se moveu nem se pôs a chorar.

Charlotte se sentia como se estivesse abraçando a uma sonâmbula, prisioneira de um pesadelo que lhe raptava a mente e o espírito.

Entretanto, pensou que sua presença, o quente contato de seu corpo, não careciam de valor.

Passaram os minutos. Ouviram-se passos na escada de trás. Uma rajada de chuva açoitou as janelas. Entretanto, continuaram sem pronunciar palavra.

Finalmente se abriu a porta e entrou a criada. Ruborizada, disse:

—O senhor Inácio Charrington, senhora. Digo-lhe que não está em casa?

—Diga-lhe que a senhorita Lagarde não se encontra bem - disse Charlotte-. Faça-o entrar na saleta. Não demorarei para ir junto a ele.

—Sim, senhora. -A garota se retirou agradecida, sem esperar que Eloise confirmasse a ordem.

Charlotte ficou ainda uns instantes. Depois levou Eloise ao sofá e a fez sentar-se, ajoelhando-se a seu lado.

—Não acha que seria melhor que se deitasse um pouco? -sugeriu-. Quer uma taça de chá, ou uma infusão a base de ervas?

—Como quiser. -Eloise assentiu por pura apatia.

Charlotte vacilou, perguntando-se se podia ajudar em algo mais. Finalmente se

convenceu de que era inútil, e foi para a porta.

—Charlotte...

Virou-se e pela primeira vez viu vida no rosto de Eloise, e inclusive em seu olhar.

—Obrigada. Foi muito atenciosa. Talvez lhe pareça que não a valorizo, mas não é assim. Tem razão, talvez deva tomar algo e dormir um pouco. Estou muito cansada.

Charlotte sentiu alívio, como se em seu interior se desfizesse um forte nó.

—Darei instruções à criada de que ninguém mais seja recebido por hoje.

—Obrigada.

Uma vez dadas às ordens à criada e ao lacaio, Charlotte entrou na sala onde esperava Inácio Charrington. O jovem estava de pé junto à lareira, com o anseio gravado no rosto. Levava ainda seu casaco pendurado no braço, como se ainda duvidasse em ficar ou não.

—Eloise se encontra bem? -disse, saltando-as fórmulas de rigor.

—Não -respondeu Charlotte-. Não, não está bem, mas duvido que possamos ajudá-la muito.

—Você não deveria ficar com ela? -Inácio fez expressão de preocupação-. A última coisa que quero é piorar as coisas com minha visita.

—Enviei à criada para fazer uma infusão. Depois me parece que descansará um pouco.

Não é que dormir mude as coisas; quando despertar continuará tendo que enfrentar os fatos.

Mas possivelmente aumente suas forças.

—Maldição! -disse Inácio com repentina impotência. Primeiro a pobre Mina, e agora isto!

Charlotte se ouviu dizer a si mesma, consternada:

—E sua própria irmã...

—Como? -O impreciso rosto de Inácio ficou branco, quase comicamente inexpressivo.

A vergonha impediu ao Charlotte dizer algo mais.

—OH. -Finalmente o jovem compreendeu-. OH, sim. Refere-se à Ottilie.

Charlotte queria pedir desculpas, pôr remédio a sua indiscrição, mas sabia quão relacionado podia estar aquilo com a morte de Mina, com o assassinato. Sua experiência lhe tinha ensinado dolorosamente como um assassinato podia levar ao seguinte, e este a outro. Mina não era necessariamente a última vítima.

—Soube que sua morte foi muito repentina... Inesperada, quero dizer.

Deve ter lhes causado uma impressão devastadora. -propôs-se ser sutil, e acabou sendo tosca.

—Inesperada? -repetiu Inácio. - Claro, que idiota fui. Você é a esposa do inspetor Pitt! Mas por que tanto interesse no Ottilie? Era uma garota excêntrica, mas lhe asseguro que nunca fez mal a ninguém, e menos a Mina!

—É a terceira vez que me descrevem ela como excêntrica - disse Charlotte pensativa-. Seriamente saía tanto do corrente?

—OH, sim! -Inácio sorriu ao recordar-. Fazia algumas coisas tremendas. Em uma ocasião subiu à mesa durante o almoço e cantou uma canção de taverna.

Achei que papai morreria de desgosto. Felizmente só estava a família e um par de meus amigos! -A lembrança fez que seus olhos brilhassem com vivacidade, risonhos e cheios de ternura.

—Um pouco violento, com efeito, se fosse repetido. -Charlotte estava desorientada; sem dúvida era impossível fingir com tal perfeição o carinho-. Mais vale não fazer coisas assim se a gente pretende continuar nesses círculos.

A expressão do Inácio era zombadora, mas sem má intenção. Parecia considerar-se ele mesmo como parte da brincadeira.

—Sabe, senhora Pitt, tenho a clara sensação de que, apesar de suas maneiras afetadas, é muito mais esposa de seu marido que filha de sua mãe! Acredita que nos desfizemos de Ottilie silenciosamente, não é? Ou que a encerramos em nossa casa de campo, em uma ala desabitada, com um velho criado para custodiá-la.

Charlotte sentiu como o sangue afluía a seu rosto. Estava agindo mal e, entretanto, devia continuar. Era sua única oportunidade.

—É certo, pensei que vocês a tinham assassinado - disse secamente, furiosa consigo mesma por sua estupidez-. E talvez Mina se inteirara. Já sabe, era uma olheira. E talvez uma ladra, também!

Inácio abriu desmesuradamente os olhos.

—Uma olheira sim, mas... uma ladra? O que a faz pensar assim?

—Ultimamente desapareceu certo número de objetos no Rutland Place.-Charlotte continuava ruborizada-. Nenhum de grande valor, mas um deles pelo menos contém um segredo que poderia ser muito prejudicial se viesse à luz. Possivelmente os tinha roubado Mina, e a mataram para recuperar algo.

—Não - disse Inácio com convicção-. Seja qual for o motivo de seu assassinato, não tem nada que ver com os roubos. De qualquer modo, quase tudo foi devolvido. Como sempre.

Charlotte o olhou fixamente.

—Devolvidos? Como sabe?

Inácio respirou fundo, levando tempo.

—Sei. Aceite-o tal qual. Vi-os. Pergunte a seus proprietários, eles o dirão.

—Minha mãe perdeu algo, e não me disse que o devolveram.

—Trata-se presumivelmente do objeto que tem o grave segredo que acaba de mencionar, pois está ao corrente. Talvez ela tenha medo de que pense que o conseguiu pela força. Suspeita de tudo, senhora Pitt!

—Dificilmente poderia chegar a pensar que minha mãe... -interrompeu-se.

—Matasse a Mina? - Inácio acabou em seu lugar -.Possivelmente não, mas seria a polícia igualmente indulgente?

—Onde morreu Ottilie? Não foi em sua casa de campo, como disseram vocês.

—OH... -Inácio emudeceu, apoiado em um só pé, enquanto Charlotte esperava-. Sabe o que vamos fazer? -disse finalmente-. Me acompanhe, mostrar-lhe-ei algo!

Charlotte deu rédea solta a sua frustração.

—Não diga tolices! Se é tão secreto...

—Pegue sua própria carruagem - interrompeu-a Inácio - e seu próprio lacaio, se quiser.

—Os policiais não têm carruagem própria! -replicou Charlotte-. Nem lacaios!

—Não, suponho que não. Me perdoe. Pegue o de sua mãe. Demonstrar-lhe-ei que não matamos Ottilie.

Charlotte procurou febrilmente uma desculpa que lhe permitisse aceitar sem ser alocadamente imprudente. Se Inácio, ou sua família, tinham assassinado primeiro ao Ottilie e logo a Mina, não teriam reparos em matá-la com a mesma facilidade. Entretanto, talvez lhe estivessem oferecendo a solução numa bandeja.

Se efetivamente os objetos roubados tinham sido devolvidos, como sabia Inácio Charrington?

Que motivos podia ter o ladrão para roubá-los e depois devolvê-los? Era absurdo... A menos que tivesse relação com o crime! Se Mina era a ladra, talvez seu assassino tivesse restituído todo o roubado a fim de afastar a atenção do único objeto que podia condená-lo.

De repente lhe ocorreu a solução. Emily não teria permitido que lhes escapasse aquela oportunidade. Ela podia proporcionar ao Charlotte os meios para aceitar a proposta.

—Tomarei a carruagem de minha irmã - disse com uma convicção que esperou poder justificar-. E, naturalmente, comunicarei a ela com que intenção o faço, e quem vai acompanhar-me.

—Estupendo! Pensou alguma vez entrar no corpo de polícia?

—Deixe de rabugices! -replicou Charlotte, embora em seu foro interno tremia de emoção.

Inácio sorriu.

—Penso que o passaria muito bem. E eu também, de fato. Virei procurá-la as seis em ponto. Não é preciso que troque de roupa, desde que se tire isso que leva no pescoço.

—Às seis? -disse Charlotte com assombro-. Por que não agora mesmo?

—Porque apenas são três e meia. É muito cedo.

Charlotte não entendia nada, mas o trato lhe convinha. Ao menos assim teria tempo de arrumar as coisas com o Emily, de modo de tomar emprestado a carruagem e ao mesmo tempo assegurar-se de que Inácio Charrington não tivesse oportunidade de tentar algo contra ela impunemente.

Quando, na chegada à casa de sua mãe, Charlotte explicou tudo à Emily - nas costas de Caroline, naturalmente-, sua irmã ficou de pedra. Sua primeira reação foi acreditar que indubitavelmente Inácio tinha matado a sua própria irmã, e agora se propunha fazer o mesmo com Charlotte.


—Não é possível que seja tão idiota - respondeu esta, tratando de pôr convicção em suas palavras-. No fim de contas, se algo me acontecesse em sua companhia, sabendo-o você, seria sua condenação.

Estou convencida de que pensa me explicar como morreu Ottilie, e me mostrar alguma prova. Não esperará que acredite nele sem provas!

—Nesse caso vou com você -disse Emily.

Custou trabalho à Charlotte persuadir a de que sua presença podia estragar tudo.

Se as circunstâncias da morte do Ottilie tivessem permitido a sua família fazê-las públicas, então Pitt teria descoberto elas já a essas alturas. Não lhe ocorria nenhuma razão satisfatória para que Inácio se decidisse a revelar-lhe a menos que fosse por medo de que recaísse sobre eles uma suspeita de assassinato, o que a fim de contas era pior.

Em todo caso, se o segredo consistia em algo inauditamente vergonhoso, ou inclusive humilhante, quanto menos gente soubesse menor seria o dano para a família. Por outro lado, como Charlotte não pertencia a mesmo círculo, não ia prejudicá-los tanto se conhecesse a verdade.

Emily aceitou o raciocínio a contra gosto, obrigada a reconhecer que era plausível. Aceitou sem reservas a prestar sua carruagem e lacaio; quanto a ela, voltaria para casa com o de sua mãe.

Inácio chegou justo as seis em ponto, vestido com uma formosa jaqueta verde escura e elegante cartola.

Charlotte sentiu a urgência de lhe perguntar onde diabos iriam, mas, recordando a sacrossanta discrição, mordeu a língua. Caroline já se espraiara bastante sobre o comportamento de sua filha, e se absteve de mais comentários diante do Inácio.

Este, uma vez dentro da carruagem e depois de comprovar que Charlotte estava confortável, ficou calado com um sorriso nos lábios, sem fazer nenhum comentário.

Percorreram ruas iluminadas com luzes de gás, quase desconhecidas para Charlotte e que aparentemente estavam próximas ao coração da cidade.

A viagem esfumou nela a noção do tempo. As intermináveis voltas a fizeram perder todo sentido da orientação, que por outro lado não era seu forte. Quando finalmente a carruagem se deteve, Charlotte não tinha o menor indício de onde estavam.

Inácio saiu para ajudá-la a descer. As luzes brilhavam com força; algumas, em frente de um grande edifício, eram de distintas cores.

—São elétricas -disse Inácio afavelmente-. Já começa a haver muitas.

Charlotte olhou ao redor. Ouvia-se música em alguma parte. Na calçada se amontoava uma dúzia de pessoas ou mais, homens sobre tudo, alguns vestidos de gala.

—Onde estamos? -perguntou com perplexidade-. O que é isto?

—Um teatro de variedades, querida - disse Inácio com uma repentina e explêndido sorriso-. Um dos melhores. Esta noite atua Ada Church. Vai encher absolutamente!

—Um teatro de variedades? -Charlotte estava atônita. Esperava um cemitério, uma clínica, um manicômio inclusive... mas, um teatro de variedades! Era absurdo, uma espécie de piada macabra.

—Venha. -Inácio a puxou pelo braço, empurrando-a para a porta.

Charlotte sentiu o impulso de resistir; estava ao mesmo tempo assustada e cheia de curiosidade.

Tinha ouvido falar da Ada Church. dizia-se que era muito formosa, e que seu número musical era um dos melhores. Até o Pitt tinha comentado em uma ocasião como eram bonitas suas pernas. Havia-o dito sorrindo, e Charlotte, dando- se conta de que procurava provocá-la, tinha contido o impulso de lhe perguntar como sabia.

—Boa tarde, senhor Charrington. -O porteiro levantou a mão em sinal de saudação, embora seu olhar traduzia a surpresa de ver Charlotte-. É um prazer vê-lo de novo, senhor.

—Esteve antes aqui -disse Charlotte acusadoramente-. E freqüentemente!

—OH, certamente!

Charlotte se deteve, puxando o braço de seu acompanhante.

—E tem a desfaçatez de me trazer para este lugar? Já sei que estou casada com um policial, mas não estou acostumada a freqüentar lugares deste tipo.

Recordo-lhe que há muitas coisas que fazem os homens, mas não as mulheres! Bem, já fez sua brincadeira de mau gosto. Admito que foi grosseiro e cruel de minha parte lhe perguntar sobre sua irmã. Já se vingou, já tem minhas desculpas. Agora me leve a casa, por favor.

Inácio continuou segurando-a pelo braço com força, impedindo que partisse.

—Não seja tão orgulhosa - disse com calma-, não lhe sai nada bem.

—Queria você saber o que aconteceu com Ottilie. Pois o vou mostrar.

Assim, deixe de armar um escândalo e entre comigo. Provavelmente até o passe bem, se se relaxar um pouco. Em todo caso, se não desejar ser vista aqui, será melhor que se afaste da entrada, onde todos a estão vendo dar o espetáculo.

Sua lógica era irrefutável. Erguendo a cabeça com arrogância, Charlotte avançou pelo braço de Inácio sem olhar aos lados, e deixou que a instalasse frente a uma das numerosas mesas no centro da sala. Percebeu de modo empanado fileiras de camarotes e galerias, igual a um teatro normal.

Havia também um cenário de matizadas cores, brilhantemente iluminado. Vestidos de babados muito decotados e elegantes trajes em branco e negro se mesclavam com os tons marrons das pessoas menos enriquecidas, e inclusive com as jaquetas a quadros dos homens que chegavam das ruas adjacentes.

Os garçons abriam caminho entre a multidão. As taças cintilavam ao ser elevadas em brinde, entre o contínuo murmúrio de vozes e cadências da música.

Inácio não disse nada, mas Charlotte percebeu seu brilhante olhar fixo nela, com mal contida curiosidade e uma expressão divertida.

Quando chegou o garçom, Inácio pediu champanha, idéia que aparentemente lhe era engraçada. Depois serviu duas taças, levantou a sua e propôs um brinde.

—Pelos detetives! -disse com olhos faiscantes-. Tomara Deus tivesse disposto que todos os mistérios fossem assim simples.

—Começo a pensar que os que são um pouco simples são os detetives! - respondeu Charlotte com mordacidade. Não obstante, aceitou o champanha e o bebeu.

Era agradavelmente seco, nem ácido nem doce, e ao bebê-lo diminuiu sua irritação.

Não pôs objeções a que Inácio servisse outra taça.

Nesse momento saiu à cena um malabarista. Charlotte o olhou sem grande interesse; o que fazia era certamente difícil, mas não lhe pareceu que valesse o esforço.

Seguiu-lhe um cômico que contou várias piadas bastante estranhas, embora a audiência parecia achá-las hilariantes. Charlotte temeu que lhe escapava a graça.

O garçom trouxe mais champanha. Charlotte se deu conta de que cada vez se divertia mais naquele ambiente colorido e com aquela música.

Um grupo de coristas cantou uma canção que lhe era familiar. Depois saltou a cena um homenzinho que começou a retorcer-se nas mais inverossímeis contorções.

Finalmente se fez o silêncio e um rufo de tambor precedeu ao mestre de cerimônias.

—Damas e cavalheiros! -disse levantando as mãos-. Exclusivamente para vocês, o ponto culminante da noite, a quinta essência da formosura, da ousadia, da mais pura e faiscante diversão... a encantadora senhorita Ada Church!

Depois de uma salva de aplausos, gritos e assobios, ergueu-se o pano de fundo.

Sobre o cenário não havia mais que uma esbelta mulher, de estreita cintura e pernas longas, muito longas, vestidas em calças negras. Trazia um fraque e uma camisa branca que não dissimulavam sua silhueta. Uma cartola, inclinada com desenvoltura, rematava seus chamejantes cabelos avermelhados.

De seu sorriso parecia desprender-se suficiente alegria para encher toda a sala.

—Bravo, Ada! -exclamou alguém. Seguiu um novo turno de aplausos. A orquestra começou a tocar, e a profunda e matizada voz da cantor atacou uma pegajosa e alegre canção subindo de tom. Apesar de sua vulgaridade, havia nela um toque de sensualidade cheio de sugestões.

O público emitiu um rugido de aprovação e acompanhou a Ada no estribilho. À altura da terceira canção, Charlotte se deu conta, horrorizada, de que também ela estava cantando, e que a música lhe provocava um agradável e jovial formigamento.

Rutland Place parecia estar a quilômetros de distância; nada gostava mais do que esquecer seu mistério e suas desgraças. Não havia nada melhor que aquelas luzes e aquele calor, enquanto cantavam todos com a Ada Church e uma efervescente vitalidade se apoderava do público.

Caroline se teria escandalizado se tivesse visto Charlotte entoar em voz alta o simpático estribilho: "Champagne Charlie, esse sou eu!"

Finalmente, quando depois do último número caiu o pano de fundo e acabaram os aplausos, Charlotte se voltou para Inácio, que a estava olhando. Deveria haver-se sentido irritada; entretanto, estava eufórica.

Inácio levantou a última garrafa de champanha. Estava vazia. Fez gestos ao garçom para que trouxesse outra. Acabava apenas de abri-la quando Charlotte viu que Ada Church em pessoa se aproximava de sua mesa, saudando o público com um gesto da mão, mas evitando com garbo as mãos que se estendiam para tocá-la.

Deteve-se ante eles. Inácio ficou em pé para lhe oferecer assento.

Ada o beijou na face, enquanto Inácio lhe passava o braço pela cintura.

—Olá, querido - disse, e em seguida deslumbrou Charlotte com um sorriso.

Inácio fez uma reverência quase imperceptível.

—Senhora Pitt, permita que a apresente a minha irmã Ottilie. Tillie, esta é Charlotte Pitt, a filha de minha vizinha. Traiu a sua família casando-se com um policial.

Imaginou que nos tínhamos desfeito de você, e por isso a trouxe aqui, para que comprove quão boa é sua saúde.

Charlotte ficou absolutamente muda de assombro.

—Desfazerem-se de mim? -disse Ottilie com incredulidade-. Incrível!

Estupendo! Sabe, acredito que a papai ocorreu à idéia. Só lhe faltou ter mais coragem! -Pôs-se a rir com ressonantes gargalhadas.

Soberbo! -pegou o braço de Inácio. - Quer dizer que a polícia está interrogando papai para saber o que fez comigo? Suspeitam que é um assassino? Eu adoraria ver sua expressão enquanto tenta sair da situação! Quase preferiria morrer antes que revelar a alguém no que me converti.

Inácio continuou rodeando sua cintura, mas de repente o humor se desvaneceu de seu rosto.

—Não é só isso, Tillie. Houve um assassinato, um de verdade. Mina Spencer-Brown foi envenenada. Era uma olheira obsessiva, e aparentemente se inteirou de um segredo capaz de justificar um crime. Ocorreu a policia, não sem certa lógica, que seu desaparecimento podia ser esse segredo.

A risada de Ottilie se truncou na hora. Segurou mais fortemente a manga de seu irmão com mãos longas e esbeltas.

—Meu deus! Não acreditará que...

—Não -se adiantou Inácio - não é isso. Papai não tem nem idéia, e a mamãe duvido que se importe. De fato, pela cara que faz quando estamos sentados à mesa, cheguei a pensar que uma parte dela preferiria que todos soubessem, em particular papai.

—Mas os devolveu! -disse Ottilie com obrigação-. Me prometeu que...

—Claro que o fiz, assim que averigüei de onde vinham. Ninguém mais sabe. -dirigiu-se à Charlotte-. Receio que nossa mãe tem o lamentável costume de apoderar-se de pequenos objetos que não lhe pertencem. Eu faço o possível por devolvê-los a seu lugar assim que posso.

Também receio ter demorado mais do que o habitual com o medalhão de sua mãe; como não mencionou havê-lo perdido, não pude saber a quem pertencia. Suponho que não é preciso que explique as razões...

—Não - disse Charlotte-, melhor que não. -Estava desconcertada. Simpatizava com Ambrosine Charrington . - Por que diabos se dedica a esses pequenos roubos?

Inácio aproximou outra cadeira, e Ottilie e ele se sentaram. Ao vê-los juntos Charlotte comprovou que a semelhança era considerável. Não podia duvidar-se da identidade da Ada Church.

—Uma via de escapamento - disse simplesmente Ottilie, olhando ao Charlotte. - Talvez não seja capaz de entendê-lo, mas se tivesse vivido trinta anos com papai seria.

Às vezes alguém se sente tão aprisionado pelas idéias, costumes e expectativas de outras pessoas que uma parte de nosso ser chega a odiá-los. Dá vontade de romper seus ideais, de esmagá-los, de mostrar de repente a essas pessoas quem somos seriamente.

Obrigá-los a atravessar o cristal e, por uma vez, nos tocar de verdade em carne e osso.

—De acordo. -Charlotte meneou a cabeça-. Não tem que me explicar nada mais. Eu mesma quis em mais de uma ocasião saltar em cima da mesa para dizer gritando o que penso. Talvez depois de trinta anos o teria feito. Encontra-se você bem aqui? -Jogou uma olhada às mesas repletas.

Ottilie sorriu com simplicidade.

—Sim. Eu adoro. Tive dias de chorar até me cansar, e longos dias de solidão... e também noites. Mais de uma vez cheguei à conclusão de que sou uma estúpida, ou algo pior. Mas assim que ouço a música, assim que vejo às pessoas cantar comigo e ouço os aplausos... Eu gosto, sim.

Provavelmente dentro de dez ou quinze anos já só ficarão a vaidade e as lembranças.

Talvez desejarei ter ficado em casa e me casar com o homem adequado... Mas não, não acredito.

Charlotte se surpreendeu sorrindo também. O champanha seguia lhe alegrando o ânimo.

—De qualquer modo, ainda pode obter um bom matrimônio - disse, mas de repente lhe travou a língua e a seguinte frase não saiu como se propusera: - A gente da farândula às vezes o faz, há quem diz...

Ottilie olhou a seu irmão.

—Encheu-a de champanha -acusou-o.

—Naturalmente. Isso lhe dará uma desculpa para amanhã pela manhã. E ajudará a que não se lembre muito bem de como desfrutou alternando com a chusma! -levantou -. Tome uma taça, Tillie. Devo levar Charlotte a casa antes de que seu marido envie em sua busca meio corpo de polícia!

Charlotte não ouviu suas palavras. Sentia-se enjoada e a música ressoava de novo em sua cabeça. Alegrou-se de que Inácio a levasse até a porta, recolhesse a capa e fizesse trazer a carruagem. Fora fazia frio. O ar fresco a limpou um pouco.

Depois de ajudá-la a subir, Inácio fechou a porta. Os cavalos trotaram suavemente, percorrendo ruas silenciosas.

Charlotte ficou a cantar para si mesma; entoava pela sétima vez o estribilho quando Inácio a ajudou a descer em frente mesmo de sua casa.

—Champagne Charlie, esse sou eu! -cantarolou alegremente, em voz bastante alta- Beber champanha é minha diversão! Que vivam as borbulhas! Me dêem uma taça e até o fundo bebo isso! Das garçonetes... -titubeou, mas acabou por recordar- sou o preferido! Charlie é meu nome e Champagne meu sobrenome!

A porta se abriu de repente. Olhou para ela, e se encontrou com o olhar furioso do Pitt; estava pálido, e o lampião de gás do corredor punha uma auréola em torno de sua cabeça.

—Não lhe acontece nada -disse Inácio sobriamente-. Levei-a para conhecer minha irmã.

A propósito, acredito que estão vocês investigando seu paradeiro!

—Eu... -Charlotte soltou um hipido e se desabou.

—Sinto muito - disse Inácio com um leve sorriso-. Boa noite!

Charlotte nem sequer se deu conta de que Pitt se agachava para agarrá-la.

Depois levou a sua mulher dentro de casa, entre pragas que a teriam escandalizado se tivesse ouvido.

 

Charlotte despertou com a mais espantosa dor de cabeça de que tinha memória.

No outro extremo da sala, Pitt estava abrindo as cortinas. Charlotte nem sequer foi capaz de discernir as flores vermelhas do estampado. A luz lhe doía nos olhos; fechou-os e em seguida se virou, tampando o rosto com a almofada. Foi um engano.

De repente sentiu um martelar na cabeça, golpes que lhe retumbavam na fronte, como se o próprio crânio estivesse a ponto de explodir.

Não havia sentido nada parecido quando estava grávida da Jemima! Recordava algumas náuseas matutinas, sim, mas... aquela terrível sensação de estar a ponto de explodir o cérebro!

—Bom dia. -A voz do Pitt rasgou o espesso silêncio, uma voz fria e decididamente pouco amigável.

—Sinto-me mal - balbuciou Charlotte.

—Não o duvido.

Charlotte se sentou lentamente, com a cabeça entre as mãos.

—Acho que vou ficar doente.

—Não estranharia nada. -Evidentemente não o tinha comovido.

—Thomas! -Charlotte desceu a rastros da cama, com vontade de chorar ao sentir-se tão abatida e inexplicavelmente rejeitada. De repente recordou tudo: o teatro de variedades, Ottilie, Inácio Charrington, o champanha, e aquela estúpida canção.

—OH, Meu Deus! -Lhe dobraram as pernas, e ficou sentada incomodamente na beira da cama. Estava ainda em roupa interior. Sentia desagradáveis espetadas na cabeça, provocadas pelas forquilhas que levava no cabelo-. OH, Thomas! Sinto muito!

—Vai vomitar? -perguntou Pitt com leve interesse.

—Acredito que sim.

Pitt se aproximou da cama, tirou de baixo o urinol e o colocou no regaço de Charlotte, lhe afastando o cabelo.

—Suponho que se dará conta do risco que correu! -disse, passando do desapego à ira-. Se Inácio Charrington, ou seu pai, tivessem assassinado Ottilie, teria sido uma brincadeira de meninos matá-la também!

Tiveram que passar vários minutos antes que Charlotte estivesse em condições de defender-se e explicar suas precauções.

—Tomei emprestados a carruagem e o lacaio de Emily! -disse finalmente, respirando com esforço-. Não sou imbecil de tudo!

Pitt afastou o urinol e lhe ofereceu um copo de água, junto a uma toalha.

—Eu se fosse você deixaria essa discussão para mais tarde –disse com azedume. - Encontra-se melhor?

—Sim, obrigada. -Charlotte teria querido adotar uma atitude digna, distante inclusive, mas as circunstâncias tornavam isso impossível. - Todo mundo sabia que estava com ele! Não poderia ter feito nada impunemente. Além disso, assegurei-me de que se desse perfeita conta disso.

—Todo mundo? -disse Pitt arqueando as sobrancelhas e com um tom perigoso.

Charlotte se deu conta do mal-entendido antes que seu marido lhe perguntasse a respeito.

—Quero dizer mamãe e Emily -precisou. Pensou em lhe dizer que tinha enviado ao lacaio com uma mensagem para ele; entretanto, nunca lhe se dado bem em mentir ante o Pitt, e estava muito espessa para manter a coerência, virtude essencial de toda boa mentira-. Não lhe disse isso porque pensei estar de volta em casa antes de você. -Seu tom começou a encrespar-se-.

Não tinha idéia de que ia a um teatro de variedades! Só disse que me ia mostrar o que tinha acontecido à Ottilie, como prova de que não lhe tinham feito mal!

—Um teatro de variedades? -Por um momento Pitt esqueceu mostrar-se zangado.

Charlotte se endireitou na beira da cama. Finalmente as náuseas tinham cedido, facilitando a tarefa de adotar uma postura digna.

—É, pois? Onde achava que tinha ido? Não estive em uma taverna, se é isso o que está pensando!

—E que necessidade tinha que procurar o Ottilie Charrington em um teatro de variedades? -grunhiu Pitt.

—Porque aí é onde estava -respondeu Charlotte com certa satisfação-. Escapou de casa para trabalhar no teatro! Ela é Ada Church. -Uma lembrança a assaltou repentinamente-. Já sabe, a das pernas bonitas! -acrescentou com ironia.

Pitt teve a gentileza de ruborizar-se.

—Vi-a em horas de serviço - disse com aspereza.

—Seu serviço, ou o dela? -inquiriu Charlotte.

—Pelo menos cheguei sóbrio a casa! -Pitt ergueu a voz com a indignação do justo que foi ofendido.

A cabeça de Charlotte estava a ponto de partir-se e não tinha vontade de continuar discutindo.

—Sinto muito, Thomas. Sinto seriamente. Não me dei conta de que ia me afetar até este ponto. Simplesmente estava delicioso, cheio de borbulhas. Fui lá para achar ao Ottilie Charrington. -recolheu-se o cabelo para trás e começou a retirar a forquilha que mais machucava. - Afinal de contas, alguém matou a Mina! Se não foram os Charrington, talvez Theodora Von Schenck...

Pitt se sentou no extremo da cama, com as abas da camisa pendendo e a gravata desfeita.

—De verdade que Ada Church é Ottilie Charrington? -perguntou-. Está totalmente certa, Charlotte? Não seria alguma brincadeira estranha?

—Não. Tenho certeza pela simples razão de que se parece com Inácio. Adivinha-se que são parentes. Ah, e outra coisa que esqueci! Ambrosine é a ladra!

Ao que parece esteve fazendo isso faz tempo. Inácio costuma devolver as coisas quando sabe a quem pertencem. Suponho que desta vez ninguém admitiu tê-los perdido por medo de que suspeitasse deles como assassinos de Mina.

—Ambrosine Charrington? -Pitt a olhou fixamente, confuso e desconfiado-. Mas por quê? Que motivo teria para dedicar-se a roubar, justamente ela?

Charlotte respirou fundo.

—Importa-se se voltar a me deitar? Gracie se ocupará da Jemima; eu não me vejo capaz. Se me levantar a cabeça explodirá.

—Que motivos teria Ambrosine Charrington para roubar? -repetiu Pitt.

Charlotte tentou recordar as palavras do Ottilie. Parecia-lhe que no momento de ouvi-las tinha entendido perfeitamente.

—Por causa do Lovell. -esforçou-se por achar uma maneira de explicá-lo-. Está paralisada! - estendeu-se com supremo cuidado, mas parte da dor subsistiu.

—Que está o que?

—Paralisada- repetiu Charlotte. Gostava da palavra. - Feito um osso. Não escuta nem olha. Penso que uma parte sua odeia. A fim de contas sua filha se escapou, e têm que fingir que está morta...

—Santo céu, Charlotte, a gente desta classe não tem a suas filhas trabalhando em teatros de variedades! Para ele seria impensável!

—Já sei! -Charlotte se cobriu com as mantas até o queixo. De repente sentia frio-. Mas isso não faria que Ambrosine deixasse de querer ao Ottilie.

Conheci-a, e é muito simpática, o tipo de pessoa que convida a sorrir. Faz que tudo pareça um pouco melhor do que é.

Possivelmente não teria acabado no teatro se Lovell não fosse tão enrijecido.

Possivelmente se teria contentado fazendo-se de rebelde em casa de vez em quando.

Pitt guardou silêncio por uns instantes.

—Pobre Ambrosine -disse ao cabo.

Ocorreu uma idéia espantosa à Charlotte. Levantou-se de um salto, arrastando com ela todos os lençóis.

—Não pensará prendê-la?

Pitt reagiu com consternação.

—Não, claro que não! Embora quisesse não poderia. Não há provas. E sem dúvida Inácio negaria tudo. Não é que lhe vá perguntar... -Fez uma careta-. Mas isso acaba com a hipótese de que os roubos fossem o motivo da morte de Mina; embora suponha que continua sendo possível que os Charrington a matassem.

—Por que? Ottilie está viva!

Pitt fez cara de absoluto desprezo.

—Como acha que tomaria Lovell se todo mundo em seu círculo soubesse que Ada Church, rainha do musical, é sua filha? Provavelmente preferisse que o acusassem de tê-la assassinado! Pelo menos não seria tão condenadamente risível!

O rosto de Charlotte se retorceu dolorosamente, debatendo-se entre a ironia e a irritação. Sentia vontade de rir, mas a idéia lhe parecia intolerável.

—O que vai fazer? -perguntou.

—Escrever ao doutor Mulgrew.

Charlotte não entendeu. Era uma resposta absurda.

—Ao doutor Mulgrew? por quê?

Pitt acabou por sorrir.

—Porque está apaixonado por Ottilie. Sem dúvida gostará de saber que continua viva. Duvido que lhe importe muito saber que ganha à vida cantando nos cabarés. Seja como for, deve dar-se o a ocasião de comprová-lo por si mesmo.

Charlotte se deitou de novo na cama com um longo suspiro de satisfação.

—Está se intrometendo - disse com alegria. Gostava da idéia de que Ottilie tivesse quem a amasse.

Pitt grunhiu, enquanto se metia a camisa na calça com estupidez.

—Sei.

Justo antes das onze, Charlotte, ainda adormecida, ouviu fracamente que alguém batia na porta. Pouco depois viu que Emily estava a seu lado.

—O que tem? -perguntou-. Gracie não queria me deixar entrar! Está doente?

Charlotte abriu os olhos.

—Não se pode dizer que a garota tenha sido muito eficaz! -Lançou um olhar de soslaio ao Emily, sem mover-se-. Tenho uma terrível enxaqueca.

—Nada mais? Não se preocupe. -Emily se sentou na cama-. O que ocorreu?

O que tem sobre Ottilie Charrington? Como morreu? Fez isso sua família? Se não me disser isso em seguida sacudi-la-ei até que adoeça de verdade!

—Não me toque! Já estou doente! Não morreu. Está vivinha e abanando o rabo, e canta nos teatros de variedades.

—Não diga tolices! -Emily fez uma careta de incredulidade-. Quem te soltou esse conto?

—Ninguém. Eu mesma fui a um desses teatros, e a vi com meus próprios olhos.

Por isso me sinto tão mal.

—Que fez o que? -Emily não dava crédito a seus ouvidos-. Foi a um teatro de variedades? E como demônios o tomou Thomas? Diga a verdade!

—Pois sim, fiz isso, e Thomas não se alegrou muito. -Então ficou a recordar, com um sorriso nos lábios-. Fui, com efeito. Com Inácio Charrington, e bebi champanha.

De fato, assim que me acostumei passei muito bem.

Uma cômica mescla de expressões cruzou o rosto do Emily: surpresa, risada e inclusive inveja.

—Merece estar doente -disse, não sem certa satisfação-. Tomara tivesse acompanhado você! Como é ela?

—Maravilhosa. Canta realmente bem, de um modo que a obriga a cantar com ela. Está tão... tão cheia de vida!

Emily se sentou em uma postura mais cômoda.

—Assim, ninguém a assassinou. E, portanto, não pode ser o motivo da morte de Mina.

—Sim que poderia sê-lo. -Charlotte se lembrou do argumento do Pitt-. Poderiam querer mantê-lo em segredo. Afinal de conta ela é Ada Church!

—E então? Quem é Ada Church? -Emily estava perplexa.

—Ottilie! Não seja estúpida!

—O que se supõe que significa isso? -Emily sentia muita curiosidade para mostrar-se ofendida.

—Ada Church é uma das mais famosas cantoras de variedades.

—Seriamente? Eu não sigo tanto como você o programa dos teatros de variedades -respondeu com acidez-. Mas, com efeito, seria um bom motivo para guardar o segredo. E sempre fica por investigar o patrimônio da Theodora.

Suponho que Thomas se encarregará disso. Mas continuamos tendo que fazer algo com respeito à mamãe e monsieur Alaric!

—OH, sim, tinha-me esquecido do medalhão. Já o devolveram.

—Não me disseram! -Emily se sentiu ofendida por semelhante amostra de insensibilidade.

Charlotte se endireitou lentamente, surpreendendo-se da considerável melhoria de sua cabeça.

—Tampouco a mim. Inácio Charrington me disse isso. Tinha-o pego sua mãe, e ele o devolveu a seu lugar.

—Ambrosine Charrington o pegou? Para que? Charlotte, não se embebedou, não é verdade?

—Sim, acredito que sim, com champanha. Mas Inácio me disse isso quando ainda estava lúcida. -Explicou em detalhe tudo o que foi capaz de recordar-. Não obstante, isso não significa que mamãe vá interromper sua relação com monsieur Alaric.

—Não, claro -disse Emily-. Será melhor que façamos algo e, se pode ser, antes que as coisas piorem. Estive pensando muito nisso ultimamente, e cheguei a uma conclusão.

Devemos convencer a papai que lhe preste mais atenção, que a cuide mais e passe mais tempo com ela. Assim não necessitará de monsieur Alaric.

Olhou ao Charlotte, desafiando-a. O tema do Ambrosine Charrington e a champanha do Charlotte podiam esperar.

Esta refletiu por uns instantes. Persuadir ao Edward de que aquilo era importante, de que tinha que aceitar todas as mudanças que suporia em seu comportamento, não ia ser fácil; sobre tudo tendo em conta que não podiam informá-lo dos motivos que as levavam a preocupar-se tanto, nem tampouco mencionar o perigo de que o vínculo entre o Caroline e Paul Alaric se transformasse em algo sério, algo que, além da paixão contida, pudesse acabar no quarto.

Respirou fundo, franzindo o sobrecenho.

—Não, você não! -disse Emily-. De você não necessito mais que apoio moral, e que me dê seu consentimento. Mas não diga nada, se não quiser que tudo acabe em um completo desastre.

Não era a ocasião de discussões. Chegariam momentos mais apropriados para defender-se.

—Quando pensa ir? -perguntou Charlotte.

—Assim que se tenha vestido. Ah, e aconselho-a que lave a rosto com água fria e belisque um pouco as faces. Está muito pálida.

Charlotte a olhou com cara de poucos amigos.

—E ponha cores brilhantes - continuou Emily-. Tem algum vestido vermelho?

—Naturalmente que não! -Charlotte saiu a rastros da cama-. Onde quer que use um vestido vermelho? Tenho uma saia e um casaco granadas.

—Bom, pois ponha isso e tome uma xícara de chá. Depois iremos ver papai. Já arrumei isso. Sei que hoje está em casa, e mamãe citou que ia almoçar com uma amiga minha.

—Também se ocupou disso?

—Claro que sim! -Emily falava com afetada paciência, como se tivesse diante um menino curto de entendimento. - Não podemos nos expor que nos interrompa! Agora se apresse, arrume-se já!

Edward se sentiu encantado de ter a suas duas filhas em casa. Com um sorriso radiante ocupou seu assento na cabeceira da mesa da sala de jantar.

—Considero-me afortunado de vê-la, querida! -disse à Charlotte-. Me alegro de que Emily a encontrasse em casa, e de que tenha podido acompanhá-la. Parece que tenha passado uma eternidade desde a última vez.

—Ultimamente nunca estava em casa quando vinha. -Charlotte introduziu o assunto sem esperar a que Emily desse o sinal.

—Não, suponho que não -disse Edward sem lhe dar importância.

—Viemos muito freqüentemente -atravessou Emily enquanto trespassava com o garfo uma parte de frango-, e acompanhamos a mamãe em suas visitas. É uma maneira agradável de passar o tempo, sempre que não se cometerem excessos.

Pode chegar a ser muito aborrecido. Sempre as mesmas conversas...

—Pensava que o passavam bem. -Edward pareceu um pouco surpreso. Não tinha refletido muito sobre o assunto; simplesmente o tinha dado como certo.

—Sim, sim nós gostamos! -Emily comeu a parte de frango e depois olhou seu pai com serenidade-. Mas os estímulos da companhia feminina são bastante limitados, sabe? Tenho certeza de que, se George não me gratificasse com sua presença toda tarde, nem me levasse a comer fora de vez em quando, acabaria por desejar a companhia de algum outro cavalheiro.

Uma mulher não dá tudo o que pode de si até que não tenha como público um homem que mereça sua admiração.

Edward sorriu com indulgência. Sempre tinha pensado que, de suas filhas, Emily era a mais fácil de tratar, sem dar-se conta de que boa parte do mérito se devia a sua peculiar habilidade para perceber as mudanças de humor de seu pai e amoldar-se a eles.

À Sarah tinha faltado paciência e, sendo a mais velha e a mais bonita, tinha um pouco de egoísmo. Quanto ao Charlotte, tinha a língua muito solta e costumava falar de assuntos inconvenientes que o punham em apuros.

—George é um homem afortunado, querida - disse enquanto se servia de mais verdura-. Espero que saiba apreciá-lo.

—Eu também espero. -de repente Emily adotou uma expressão severa. - Papai, uma das coisas mais tristes que podem acontecer a uma mulher é que seu marido perca interesse nela, que deixe de procurar sua companhia e de ocupar-se de seu bem-estar.

Não imagina quantas mulheres conheci que, dando-se conta de que seus maridos as ignoravam, acabaram procurando a atenção perdida em outra parte.

—Em outra parte? -repetiu Edward com certa perplexidade-. Francamente, Emily, espero que não queira dizer o que acreditei entender. Eu não gosto da idéia de que se relacione com mulheres desse tipo. Outros poderiam pensar o mesmo de você!

—Isso me causaria fundo pesar. -Emily falava com absoluta gravidade-.

Nunca dei ao George o menor motivo de queixa, particularmente nesses assuntos. - Abriu muito seus olhos azuis-.

Entretanto, com o coração na mão, não me atreveria a ser severa com uma mulher que, tendo um marido que a trata com crescente indiferença, conhecesse outro homem de boas maneiras e caráter agradável que a achasse atraente e o dissesse; se essa mulher, digo, em sua vazia solidão, sentisse-se igualmente atraída por ele...

—Emily! -Edward se sentiu escandalizado-. Não estará justificando o adultério! Infelizmente, isso é o que se deduz de suas palavras.

—OH, não, não! -disse Emily-. O adultério é sempre imperdoável. Mas existem situações ante as quais é difícil não mostrar-se compreensiva.- Sorriu a seu pai-. Tomemos como exemplo esse francês, monsieur Alaric.

Um homem francamente bonito, de deliciosas maneiras, com um ar de grande distinção. Não está de acordo, Charlotte? Cheguei-me a perguntar se a pobre Mina não estaria apaixonada por ele, e não do Tormod Lagarde. Monsieur Alaric é incomparavelmente mais maduro, não é?Até goza de uma aura de mistério que é muito interessante.

Mais de uma vez me perguntei se será realmente francês, como demos por sentado.

—Bom, pois imaginemos que Alston Spencer-Brown se dedicou exageradamente a seus negócios, e que a sua esposa apenas dedicava algum elogio, mas nenhum pequeno gesto romântico como dar de presente flores, ou levá-la ao teatro. –Fez uma pausa para tomar ar-.

Nesse caso, a monsieur Alaric teria bastado umas adulações e alguma ou outra amostra de admiração para que Mina caísse rendida a seus encantos.

Aí estaria por fim o remédio a sua tristeza, o modo de acabar com essa sensação de já não servir para nada...

—Isso não é desculpa... -replicou Edward; entretanto, estava pálido e esqueceu do frango-. E não deveria especular sobre as pessoas de forma tão vergonhosa, Emily! A pobre mulher está morta, e não pode defender-se!

Emily não se alterou.

—Não digo que seja uma desculpa, papai. Não é preciso desculpa, só raciocínio. -Depois de acabar com o que ficava no prato, posou o garfo e a faca-.

Agora que a pobre Mina morreu, observei que monsieur Alaric mostra grande simpatia por mamãe, e busca freqüentemente sua companhia para dar um passeio ou conversar um pouco. -Sorriu com vivacidade-. O que demonstra que seus gostos vão melhorando! De fato, Charlotte comentou comigo que parece muito bem disposto.

Parece-me que também Charlotte se sentiu bastante atraída por ele.

Charlotte dirigiu a sua irmã um olhar assassino. Tinha percebido no tom de Emily um matiz malicioso.

—Um homem encantador - concordou, evitando olhar a seu pai-. Mas suponho que mamãe não se achará na desgraçada situação da senhora Spencer-Brown.

Edward olhou a suas filhas alternativamente. Duas vezes abriu a boca para exigir que se explicassem com mais clareza, e outras tantas decidiu que não lhe interessava saber mais.

A criada entrou para recolher a mesa e depois serviu a sobremesa.

—Já passou muito tempo desde que fomos ao teatro por última vez - comentou Edward finalmente, como se não tivesse nada que ver com o anterior-.

Devem ter estreado algo novo do Gilbert e Sullivan. Possivelmente deveríamos ir.

—Excelente idéia - disse Emily com o mesmo tom despreocupado-. Posso lhe recomendar um bom joalheiro, se tiver vontades de dar a mamãe algum presentinho.

É um homem que dá a tudo o que faz um toque romântico, e não é excessivamente caro. Tem alguns medalhões muito bonitos, que sempre são um presente muito pessoal.

—Não me organize a vida, Emily!

—Sinto muito, papai. -Emily lhe dedicou um encantador sorriso-. Só era uma sugestão. Não duvido de que saberá fazê-lo muito melhor.

—Obrigado. -Edward a olhou com expressão mordaz, mas seguia amassando o guardanapo, e sua postura era tensa.

Emily se serviu de outra porção de sobremesa.

—Está deliciosa, papai -disse docemente-. Foi muito amável ao nos convidar.

Edward se absteve de comentar que era Emily quem se convidara a si mesma.

À uma e meia Edward voltou para seus negócios.

—O que vai fazer com respeito à Mina? -perguntou Emily assim que ficou a sós com Charlotte-. Continuamos sem saber quem a matou nem por que.

—Bom, a razão mais óbvia é que bisbilhotou muito -respondeu Charlotte.

—De acordo -admitiu Emily com tom cáustico-. Mas bisbilhotar onde, espiar a quem?

—Talvez aos Charrington; se não pelo Ottilie, possivelmente pelos roubos de Ambrosine -refletiu Charlotte em voz alta-. Pessoalmente me inclino pela Theodora Von Schenck. Lembro os comentários de Mina sobre a fortuna da Theodora e sua procedência.

Penso que sabia algo, e que se divertia excitando nossa perspicácia. Possivelmente com algo mais de tempo nos teria contado.

Seu rosto se escureceu ante a desagradável hipótese que se abria-. Patético, não é verdade? Tentar causar impressão sobre outros divulgando falatórios, dar a entender que se está a par de terríveis segredos só para fazer-se interessante.

—Terrivelmente perigoso! -Emily apertou a boca em uma severa careta de reprovação-. Pensa no dano que podia ter causado a outras pessoas, além do que aconteceu a ela mesma. Imagino que mesmo assim não merecia a morte, mas de qualquer modo agiu com perversidade.

—E também de forma patética - insistiu Charlotte-. Se precisava farejar em tudo o que a rodeava e investigar as vidas de seus vizinhos, significa que tinha um grande vazio interior.

—Não acredito assim - replicou Emily-. Todo mundo se sente infeliz em algum momento, mas nem por isso nos dedicamos a nos entremeter e fofocar!

Charlotte não fez conta.

—Pior que isso - disse-. Mina inventava histórias, semeava suspeitas, combinando todos os vícios imagináveis.

Suponho que a imaginação humana tem sempre um lado perverso. -de repente mudou de registro e disse: - esteve estupenda com papai, mas ainda nos falta dissuadir um pouco a monsieur Alaric.

Soube que conhece bastante bem a Theodora. Esta mesma tarde lhe farei uma visita para averiguar se souber de onde procede o dinheiro.

Emily arqueou as sobrancelhas.

—Sério? E que desculpa se propõe dar para justificar sua visita, para não falar de lhe surrupiar a informação?

—Submeter-me-ei totalmente a sua mercê - disse Charlotte, tomando uma rápida decisão.

—Fará o que?

Com respeito à mamãe, tola! -replicou Charlotte-. Imaginarei algo para dar a entender a ela, sutilmente, que papai está à corrente da...amizade, e que não o vê com bons olhos.

—Nunca deu a entender nada sutilmente!

—Bom, talvez não sutilmente! Depois lhe falarei de Mina, do quão preocupados que estamos todos. O que pensa fazer você?

—Pois eu visitarei a Theodora, sem dar a monsieur Alaric a oportunidade de acautelá-la, se se desse o caso de que fossem cúmplices. Se é que há algo no que ser cúmplices! Será um pouco difícil, porque não a conheço.

Mas se você pode ir a um teatro de variedades com Inácio Charrington, como não vou atrever-me a visitar sem prévio aviso à madame Von Schenck!

—Não tinha por que trazer à tona outra vez o assunto do teatro! -disse Charlotte com amargura.

—Não se preocupe, não direi ao Thomas que foi ver a sós o monsieur Alaric.

De fato, acredito que seria prudente não lhe dar nenhum sinal de que continua interessada no assunto.

—Se acredita que imaginará que o esqueci, é que não conhece o Thomas. - Charlotte franziu o sobrecenho-. Nem lhe ocorreria!

—Nesse caso, tenha um pouco de sensatez e se assegure de permanecer sóbria - respondeu Emily-. Pode usar minha carruagem para ir à casa de monsieur Alaric; eu irei andando. Desse modo parecerá ligeiramente mais respeitável, dentro do que cabe.

—Obrigada!

As dúvidas assaltaram ao Charlotte assim que a carruagem saiu do Rutland Place.

Se não fosse pelo temor ao ridículo, teria dito ao cocheiro que desse meia volta.

Mas já se comprometera. ia cometer um ato bastante ousado, e talvez Alaric interpretasse mal seus motivos.

Ruborizou-se só de pensar nisso. Sua mãe não era a única mulher que se vira cativada por ele até o ponto de perder todo sentido das proporções!

Quando a carruagem se deteve no Paragon Walk e o lacaio a ajudou a descer, Charlotte rogou que Paul Alaric não estivesse em casa. Isso lhe economizaria o compromisso, e poderia voltar para casa com a cabeça bem alta.

Mas os fados não lhe foram propícios: não só estava em casa, mas também recebeu sua visita com agrado.

—Quanto me alegro de sua visita, Charlotte. -Permaneceu a certa distância dela, sorrindo. Se estava surpreso, dissimulava-o muito bem. Mas era natural. Não fazê-lo teria sido uma descortesia.

—É você muito amável, monsieur Alaric - respondeu Charlotte, e em seguida se sentiu desconfortável. Mal tinha atravessado a soleira, e já a conversa tomava roteiros que não eram os esperados. Possivelmente na França, ou lá de onde viesse -pois ninguém lhe tinha ouvido dizer que era francês, embora todos o dessem é claro-, o uso do nome de batismo não implicava tanta confiança.

Alaric continuava sorrindo. Charlotte fez um esforço por pôr seus pensamentos em ordem.

—Rogo-lhe que me perdoe por visitá-lo de forma inoportuna, nem deixar previamente meu cartão de visita. -Soava ridículo, e ela sabia, mas ao menos era uma maneira de começar.

—Tenho certeza de que as circunstâncias saem do comum-disse amavelmente Alaric-. Quer uma xícara de chá?

Era uma boa desculpa para manter as mãos ocupadas, além de uma garantia de que a visita ia durar no mínimo meia hora.

—Obrigada - disse Charlotte-, Agradeço. -sentou-se na poltrona de aspecto mais confortável.

Depois de fazer soar a campainha e dar instruções à criada, Alaric se sentou em um simples sofá de veludo escuro frente a ela.

A sala era austera em adornos de forma não usual. Havia uma estante de mogno, cheia de volumes encadernados em couro e letras douradas. Sobre o suporte da lareira pendia uma marinha de suaves tons cinza. No chão, um tapete turco.

Era uma decoração estranha e formosa.

Alaric estava comodamente sentado com as pernas cruzadas, sorrindo ainda, mas com olhar sério. Sabendo que Charlotte não tinha ido por motivos corriqueiros nem de puro compromisso, esperava uma explicação.

Charlotte notou ressecados os lábios. Foi impossível entreter-se em formalismos.

—Emily e eu almoçamos com papai -disse.

Alaric continuou olhando-a, sem interrompê-la.

Charlotte respirou fundo e foi direta ao assunto.

—Vimo-nos obrigados a tratar de um tema espinhoso, além da morte de Mina e o acidente do pobre Tormod.

Uma sombra de preocupação cruzou o rosto do Alaric.

—Sinto muito.

Charlotte não tinha indícios de até que ponto aquela relação descansava só em Caroline. Devia ser prudente, pois até o momento não tinha visto no Alaric outra coisa que demonstrações de extrema cortesia.

Ou era mais discreto que Charlotte, ou -e isso era o mais provável- desconhecia a intensidade dos sentimentos de Caroline. Afinal, não a conhecia tão bem como sua filha.

Charlotte pigarreou. Chegado o momento de decidir entre comprometer-se ou deixar o assunto de lado e falar de outra coisa, topava com dificuldades inesperadas.

Era muito consciente da presença do Alaric diante dela, a muito pouca distância.

Em uma ocasião o tinha tomado pelo chefe de uma seita dedicada à magia negra. Agora isso era absurdo.

Mas, possivelmente tinha dele a imagem de um homem menos vaidoso e mais compassivo do que em realidade era. Não era desatinado supor que Alaric desfrutava daquela fascinação que, sem aparente esforço, provocava nas mulheres.

Charlotte engoliu em seco e voltou a começar, com um tom muito mais pomposo do que se propunha.

—Ultimamente papai esteve muito ocupado em seus negócios, e descuidou a vida de família. Acredito que a pobre mamãe se sentiu um pouco abandonada.

Não se queixou disso, naturalmente. Seria absurdo que alguém pedisse a seu marido mais demonstrações de afeto. Até no caso de que ele o fizesse, esses detalhes deixariam de ter valor desde que foi ela mesma quem os exigiu.

—Assim, você e sua irmã decidiram convencê-lo... -disse Alaric, dando demonstração de começar a entender.

—Com efeito - assentiu Charlotte-. Entristeceria-nos muito ver nossa família afetada por um mal-entendido. De fato, não pensamos permitir que aconteça. Essas coisas saem de seu leito muito facilmente. Criam-se novos afetos, outras pessoas entram em jogo, e antes que possa evitar-se...

Alaric a olhava fixamente. Charlotte não pôde continuar. A essas alturas era evidente do que falava.

—Uma tragédia doméstica - concluiu Alaric em seu lugar.

Charlotte se deu conta de que estava ligeiramente ruborizado, como se de repente se desse conta da desagradável verdade. Sentiu uma repentina simpatia por ele, dando-se conta de que aquele homem não era consciente de seu poder, e de que até aquele momento tinha subestimado o alcance de seus próprios encantos.

Ou em tempos passados não tinha sabido entender as reações das mulheres, ou as tinha atribuído à própria natureza feminina, reservando-se a si mesmo o papel de mero e desafortunado catalisador.

—Sim, a palavra "tragédia" me parece a mais adequada - disse Charlotte-. Talvez devêssemos prestar mais atenção ao que podem provocar as paixões.

Tomemos, por exemplo, à senhora Denbigh. Viu-a você? Está tão desesperada pelo acidente do senhor Lagarde que dificilmente poderíamos descrever seus sentimentos com uma palavra tão morna como "tristeza", não acha?

Alaric guardou silêncio. Charlotte começou a sentir-se desconfortável, consciente de que ele a estava olhando. Incomodava-a estar a sós com ele naquela sala.

Tinha sido uma idéia ridícula visitá-lo em sua própria casa. Deveria ter insistido em que Emily a acompanhasse. Sem dúvida alguém a tinha visto; sempre havia algum criado à espreita. Ia dar motivo a falatórios! Pessoalmente, Charlotte não tinha nenhuma reputação que cuidar, pois Paragon Walk não se interessava por ela absolutamente.

Mas e sua irmã? Alguém podia reconhecer em Charlotte à pessoa que acompanhava ao Emily durante a época dos assassinatos do Paragon Walk.

E o que dizer do próprio Paul Alaric?

Charlotte se ruborizou, pensando em seu irrefletido comportamento. E pensar que se negara que Emily a acompanhasse!

Ergueu o olhar lentamente e se achou com o do Alaric. Assombrou-se ao ver em seus olhos tanta acuidade, além de uma espécie de intimidade, como se acabassem de tocar-se, como se sua pele houvesse sentido um repentino comichão.

Devia partir. Já havia dito o que tinha que dizer. A carruagem do Emily a esperava, preparada para levá-la de retorno ao Rutland Place. Tinha tempo ainda de reunir-se com a Emily em casa da Theodora Von Schenck.

Pensar na Theodora lhe fez recordar o outro propósito de sua visita. Era necessário perguntar ao Alaric agora mesmo.

A criada serviu o chá e se retirou. Charlotte bebeu alguns goles com gratidão. Tinha a boca seca e a garganta em tensão.

—Emily foi ver madame Von Schenck - comentou com toda a espontaneidade de que foi capaz-. Soube que você a conhece bastante bem.

Alaric, surpreso, abriu seus olhos negros.

—Moderadamente. Nossa relação tem que ver com negócios embora de todo modo a acho muito agradável.

Agora era Charlotte a surpreendida. Não esperava tanta franqueza.

—Negócios? A que tipo de negócios se refere? -Em seguida reparou na brusquidão de sua pergunta-.

Não sabia que madame Von Schenck se ocupasse de negócios. Ou talvez conhecia você a seu marido? Quero dizer...

—Não. -Alaric sorriu ligeiramente-. Não o conhecia, embora acredite que era um homem encantador. Até o ponto de que sua esposa não quis voltar a casar-se.

Charlotte fingiu que lhe custava entendê-lo, apesar da idéia de voltar a casar-se, em caso de acontecer algo ao Pitt, ser-lhe impensável.

—Nem sequer pela segurança que proporciona um marido? -Tratou de parecer sincera-. No fim de contas, tem dois filhos que manter.

—E uma cabeça muito bem organizada para os negócios. -Alaric se mostrou divertido-. Não é algo que se valore muito por aqui, e suponho que por isso o leva com tanta discrição.

Sobretudo quando seus interesses se concentram no setor do mobiliário para o banho. -Seu sorriso se alargou-. O desenho das banheiras e outros artefatos semelhantes não é exatamente o ideal das damas do Rutland Place.

Além disso, suas táticas de venda são muito imaginativas, e leva as finanças com toda precisão. Eu diria que está começando a obter benefícios consideráveis.

Charlotte se deu conta de que estava sorrindo de forma um pouco idiota. Era tudo tão ridiculamente inofensivo, cômico inclusive, que sentia vontade de pôr-se a rir.

Entretanto, manteve a compostura e se dispôs a levantar-se, mas, antes que pudesse pronunciar as palavras de despedida apareceu à criada com uma bandeja de bolachas.

Atrás dela vinha Caroline.

Charlotte ficou gelada, posta de pé pela metade, com um sorriso rígido em seus lábios.

A princípio sua mãe não a viu. Olhava ao Alaric, cheia de entusiasmo e satisfação.

De repente percebeu a presença de sua filha e empalideceu. Ficou olhando como se fosse uma criatura surgida das profundidades do inferno.

Um silêncio absoluto se apropriou da sala. A criada estava muito assustada para deixar a bandeja.

Com esforço, Caroline respirou fundo várias vezes.

—Peço-lhe perdão, monsieur Alaric - disse com voz trêmula-. Ao que parece interrompi-o. Desculpe-me. -Passou junto à criada e saiu da sala.

Charlotte olhou ao Paul Alaric. Estava tão pálido e horrorizado como ela mesma, e afligido pelo mesmo sentimento de culpa. Sem perder mais tempo, Charlotte se levantou, atravessou pressurosa o salão e abriu a porta com brusquidão.

—Mamãe!

Caroline se achava no saguão, e não podia ter deixado de ouvi-la. Entretanto, não se voltou.

—Mamãe!

O lacaio abriu a porta principal, e Caroline saiu à luz do dia. Charlotte a seguiu.

Agarrando no ar sua capa de mãos do lacaio, desceu a escadaria como uma ventania e se plantou na rua.

Alcançou a sua mãe e a pegou pelo braço. Caroline sacudiu sua mão com força. Manteve seu rosto afastado.

—Como pôde? -disse com solenidade-. Minha própria filha! Tão grande é seu orgulho que não tem reparos em me fazer isto?

Charlotte voltou a agarrá-la pelo braço.

—Não me fale. -Caroline escapou bruscamente-. Não me fale, por favor. Nunca mais. Não a conheço.

—Está se comportando como uma estúpida! -disse Charlotte com toda a virulência que lhe permitiu o estar em meio da rua, ao alcance do ouvido de todos-. Vim para comprovar se Alaric sabia de onde obtém o dinheiro Theodora Von Schenck.

—Não minta, Charlotte. Posso ver por mim mesma o que está acontecendo.

—Ah sim? -respondeu Charlotte. Estava furiosa com sua mãe, não porque a julgasse mau, mas sim por ser tão vulnerável, por deixar-se arrastar por sonhos e não querer que chegasse o momento de despertar-. Seriamente, mamãe? Parece-me que, se pudesse se dar conta de algo veria tão claramente como eu que ele não a ama absolutamente.

Viu seus olhos inundados em lágrimas, mas tinha que continuar-. Não tem nada que ver comigo nem com nenhuma outra mulher! Esse homem simplesmente não percebe que seus sentimentos por ele são algo mais que pura simpatia, ou um modo de matar o aborrecimento.

Construiu em torno dele uma fantasia romântica que não tem relação com o tipo de pessoa que ele é em realidade. Nem sequer o conhece! Só vê o que quer ver!

Segurou o braço de Caroline com força.

—Sei exatamente como se sente-continuou-. Passou-me o mesmo com o Dominic. Adornei-o com todos meus românticos ideais, até ocultar toda semelhança com a realidade.

—Não é justo! Não temos direito a imputar a uma pessoa nossos sonhos e esperar que atue em conseqüência! Isso não é amor! É um capricho, um capricho infantil... e perigoso! Acaso você gostaria de viver com uma pessoa que nem a olhasse nem a escutasse, que só a quisesse como cabide para sua fantasia? Ser protagonista de seus sonhos e que a fizesse responsável por seus sentimentos? Não tem direito a fazer isso a ninguém.

Caroline se deteve e olhou fixamente a sua filha. As lágrimas escorregavam por suas faces.

—Suas palavras são terríveis, Charlotte - sussurrou roucamente-. Verdadeiramente terríveis.

—Não, não o são. -Caroline sacudiu a cabeça-. É a verdade, a pura e dura verdade. Quando refletir nisso acabará se alegrando de que seja assim! –Tomara Deus permitisse que fosse assim!

—Me alegrar? Diz-me que estive fazendo o ridículo com um homem a quem não importo um nada, e que inclusive meus sentimentos não eram mais que uma ilusão, uma ilusão egoísta sem nada que ver com o amor. E agora tenho que me alegrar!

Charlotte a rodeou com os braços para consolá-la.

Além disso, olhar para seu rosto justo naquele momento teria sido uma imperdoável intromissão em sua intimidade.

—Talvez "alegrar-se" tenha sido um modo estúpido de dizer. Mas quando se der conta de que é certo quererá esquecê-lo quanto antes.

Acredite-me, toda pessoa capaz de sentir paixão passou por isso cedo ou tarde. Todos nos apaixonamos alguma vez de uma miragem. A questão é saber despertar e seguir amando.

Durante longos instantes ambas guardaram silêncio. Permaneceram na calçada, abraçadas. Depois, lentamente, Caroline se foi relaxando, e toda sua dor e contrariedade se diluíram simplesmente em pranto.

—Sinto-me tão envergonhada! -disse com um fio de voz-. Tão terrivelmente envergonhada!

Charlotte a estreitou com mais força. Não havia mais que dizer. O tempo conseguiria o que as palavras não podiam conseguir.

Na distância se ouviu um som de cascos. Outra visita cedo.

Caroline se endireitou e aspirou com força. Por uns momentos sua mão continuou agarrando a do Charlotte. Finalmente a retirou e extraiu um lenço de sua bolsa.

—Acredito que não vou fazer mais visita por hoje - disse-. Quererá vir para casa para tomar o chá?

—Obrigada - respondeu Charlotte, e puseram-se a andar lentamente-. Sabe, Mina se equivocava de cabo a rabo com respeito à Theodora. Sua fortuna não procede de nenhum bordel nem da chantagem. Tem um negócio de venda de mobiliário de banho!

Caroline ficou assombrada. Suas sobrancelhas se arquearam.

—Quer dizer...

—Sim, de privadas!

—OH, Charlotte!

 

Dois dias mais tarde, Pitt continuava sabendo tão pouco como antes sobre o assassino de Mina Spencer-Brown. Os dados eram abundantes, mas faltava uma conclusão que pudesse sustentar-se com provas; pior ainda, faltava uma conclusão que a seus olhos resultasse verossímil.

Achava-se de pé, imóvel, na ensolarada calçada do Rutland Place. Fazia calor, graças aos altos edifícios que o resguardavam do vento do este. Aquela pausa lhe servia para pôr ordem em suas idéias, antes de submeter ao Alston a um novo interrogatório.

Tinha falado com o Ambrosine Charrington, mas ao sair da entrevista tinha mais duvida que antes.

Mantinha-se em pé a possibilidade de que Mina tivesse surpreendido Ambrosine em um de seus roubos, em uma atitude que fizesse impossível negá-lo.

Nesse caso, Mina podia tê-la ameaçado divulgar o segredo. Mas acaso teria importado à Ambrosine? A julgar pelo que Charlotte lhe tinha contado, não, nem muito menos.

Talvez, inclusive se deleitara perversamente em sua desgraça. Segundo Ottilie, o motivo daqueles roubos era o desejo do Ambrosine de escandalizar e angustiar a seu marido, escapando do molde que este lhe tinha imposto.

Não havia necessidade de que fosse consciente disso, naturalmente; ao menos não de todo.

Mas para Pitt era impossível acreditar que Ambrosine tivesse chegado ao assassinato para proteger um segredo que quase desejava fazer público.

Chegava seu ódio contra Lovell até o extremo de permitir que Mina lhe chantageasse? Em teoria era possível. Havia um toque de ironia nisso, Ambrosine podia achar isso atraente.

Mas então Pitt teria notado algo ao falar com o Lovell, algum indício de tensão e raiva, um matiz de amarga satisfação em sua esposa. Não tinha sido assim.

Ambrosine se tinha mostrado tão prisioneira de suas maneiras como sempre, e Lovell encastelado em sua imperturbável e inexpugnável segurança. Ao mencionar Ottilie, a compostura do Lovell tinha fraquejado visivelmente. Pálido e suarento esforçou-se em ocultar o assunto.

Em troca, diante do Ambrosine, Pitt se havia sentido totalmente a gosto.

Possivelmente o culpado, no fim de contas, fora Alston Spencer-Brown. A duradoura relação de Mina com o Tormod Lagarde tinha acabado por exasperá-lo.

Ao saber que sua esposa continuava apaixonada, conseguiu beladona de algum médico da cidade e, depois de vertê-la no cordial, tinha deixado que fizesse seu efeito.

As indagações do Pitt o tinham levado a conclusão de que a teimosia de Mina pelo Tormod tinha sido discreta, mas muito real.

Mais de um marido tinha matado a sua esposa por menos que isso. A anódina fachada do Alston podia ocultar um temperamento violentamente possessivo, um sentido da dignidade que lhe fizesse entender o assassinato como um ato de justiça.

Os dados objetivos devolveram ao Pitt à realidade. O cordial tinha sido preparado em casa, com uma mescla de groselhas e bagos de saúco. Os habitantes do Rutland Place não preparavam eles mesmos seus licores.

Naturalmente, era impossível saber quem o tinha encarregado; além disso, se tinha servido para dissimular o veneno, era improvável que continuasse em mãos da pessoa em questão.

Qualquer um podia ter destilado a essência de beladona, ou inclusive tê-la tirado da planta mesma, muito menos comum que a dulcamara -planta aparentada de vivas cores- mas imensamente mais letal.

Não era preciso nem sequer o fruto, que amadurecia no outono; bastava as folhas. Podia achar-se entre as sebes e bosques de qualquer zona silvestre do sudeste. Certamente, ainda era cedo para uma planta bianual, mas possivelmente em algum lugar resguardado... Inclusive podia ter sido cultivada em jardim ou estufa. Os primeiros brotos teriam sido suficientes.

Os dados não levavam a nenhuma parte. Qualquer pessoa podia lhe ter dado a garrafa, e em qualquer momento. Os criados de Mina não tinham visto essa garrafa, nem nenhuma que lhe parecesse; mas as garrafas de cordial nem sempre se deixam à vista dos criados. Não é bebida de sobremesa. Qualquer um podia ter pegado a planta para espremer as folhas. Não requeria especial habilidade nem conhecimentos.

Era sabedoria popular que aquela erva matava; qualquer menino recebia a advertência. Até seu nome o deixava bem claro1.

 

1 - Em inglês, o nome da planta (deadly nightshade) tem incorporada a palavra deadly, quer dizer "mortal". (N. do T.)

 

Concentrou-se de novo nos motivos, embora não pudesse condenar-se a um suspeito só porque os tivesse. Uma pessoa matará por quatro pennies, ou porque se sentiu insultada, mas outra sacrificará reputação, fortuna e amor antes de chegar ao assassinato.

Continuava de pé sob o sol quando de repente uma carruagem de cavalos dobrou a esquina e avançou pela praça, freando ante a casa dos Lagarde.

Pitt viu o doutor Mulgrew sair bruscamente com sua maleta, e logo subir pela escadaria. A porta se abriu antes que chegasse a ela, e Mulgrew entrou na casa.

Pitt vacilou. Seu instinto natural lhe pedia para ficar ali, à espera de novos acontecimentos. Entretanto, dado que naquela casa se achava um homem gravemente ferido, uma visita urgente do médico era normal.

Que relação podia ter com a morte de Mina? Para ser honesto consigo mesmo, Pitt teria tido que admitir que utilizava a chegada do doutor como desculpa para adiar a seguinte ronda de perguntas.

Quando chegou a casa dos Spencer-Brown soube que Alston estava fora.

De certo modo era um alívio, embora no fundo não passasse de uma simples trégua antes do inevitável. Contentou-se seguindo interrogando aos criados: uma interminável enxurrada de lembranças, impressões e opiniões.

Continuava ainda na cozinha, e acabava de aceitar o convite feito pela cozinheira de almoçar com a criadagem, quando a porta se abriu de repente e entrou correndo uma criada. O aroma do guisado e o pudding foram dissipados por uma rajada de vento carregada de aroma de verduras.

—Por Deus, Elsie, fecha essa porta! -replicou-lhe a cozinheira-. Não lhe ensinaram nada, moça?

Elsie fechou a porta de um chute, obedecendo por puro costume.

—O senhor Lagarde morreu, senhora Abbotts! -disse, arregalando os olhos. Esta mesma manhã! Isso me disse Mai, a criada de frente.

Viu ao médico chegar e partir. Sorte para ele, digo eu! Pobre cavalheiro, tão bonito que era.

Como se estivesse destinado a morrer. Algumas pessoas o estão. Fecho as persianas?

—Não, não o faça! -respondeu a cozinheira com aspereza-. Não morreu nesta casa. O falecimento do senhor Lagarde não é nosso assunto. Já temos bastante com nossas próprias penas. Continue com seu trabalho. Se chegar tarde ao almoço passará fome, menina!

Elsie saiu correndo e a cozinheira se deixou cair em seu assento.

—Morto... -Olhou ao Pitt de esguelha. - Suponho que não são coisas que devam dizer-se, mas possivelmente tenha sido o melhor, pobrezinho. Perdoar-me-á, senhor Pitt, mas foi à misericórdia divina, se realmente estava tão mal como diziam. -enxugou a testa com o avental.

Pitt a olhou. Era uma mulher roliça, com uma cabeleira cinzenta e rosto simpático, imersa no alívio e nos remorsos.

—Mesmo assim é uma surpresa desagradável - disse Pitt com calma-. Com todo o ocorrido ultimamente... É normal que se desgoste. Tem mau aspecto.

Quer um cálice de brandy? Tem alguma garrafa na cozinha?

A cozinheira lhe olhou entrecerrando os olhos, com suspicácia.

—Eu estou acostumado a estas coisas - disse Pitt, lhe lendo os pensamentos-, mas você não. Deixe que lhe sirva uma taça.

A mulher se encrespou um pouco, como uma galinha cavando as penas.

—Bom... Se acredita que... Nessa estante daí de cima, atrás das ervilhas secas.

Não se arrisque que o veja o senhor Jenkins, ou colocará a garrafa na dispensa antes que tenha podido pigarrear.

Dissimulando um sorriso, Pitt se levantou, serviu uma ração generosa em um copo e o estendeu.

—E você?

—Não, obrigado, estou de serviço - disse Pitt, devolvendo a garrafa a seu lugar e colocando depois as ervilhas-. Isso lhe acalmará a impressão. Em meu ofício, infelizmente, deve se estar preparado para enfrentar a morte em mais de uma ocasião.

A cozinheira acabou o brandy de um só gole. Pitt pegou o copo e o limpou na pia.

—É muito amável, senhor Pitt -disse a senhora Abbotts-. Pena que não possamos ajudá-lo; mas assim é, não há volta de folha. É a primeira vez que vemos uma garrafa de cordial como essa. E tampouco sabemos de ninguém que tivesse motivos para matar a senhora. Continuo pensando que foi algum louco!

Pitt vacilava entre o dever de seguir com as perguntas -que até agora não tinham trazido nada de positivo- e uma intensa vontade de esquecer o assunto e abandonar-se aos prazeres do almoço da senhora Abbotts. Decidiu-se pelo almoço.

Depois de comer, pensou em continuar o interrogatório, mas a impressão causada pela morte do Tormod tomou conta de tudo. Muitas casas tinham as persianas fechadas, e o espesso silêncio fazia parecer indecente até as mais habituais fórmulas de cortesia.

Passadas as duas, Pitt renunciou e voltou para a delegacia de polícia.

Tirou dois informes com todas as provas reunidas até a data e ficou a relê-los desde o começo, com a vaga esperança de que aparecessem novas perspectivas, algum modo de relacionar os fatos que lhe tivesse escapado anteriormente.

Às cinco menos quarto continuava sem descobrir nada de novo.

Nesse momento Harris anunciou a chegada de Amaryllis Denbigh.

Pitt deu um pulo de assombro. Conhecendo, pela boca de Charlotte, a angustiada reação de Amaryllis depois do acidente, tinha previsto que a morte do Tormod a prostraria no mais negro desespero, até o ponto de necessitar assistência médica.

Tinha plena confiança nos julgamentos de Charlotte, apesar de nem sempre aprovar seu comportamento. Embora para falar a verdade, agora que o via com perspectiva, o incidente do teatro de variedades indignava-o menos do que tinha dado a entender.

Mas que demônios tinham levado ao Amaryllis à delegacia de polícia?

—Faço-a entrar, senhor? -perguntou Harris com cenho-. Parece bastante mal. Será melhor que a trate com cuidado.

—Sim, faça-a entrar. E fique por aqui, se por acaso desmaie ou fique histérica -disse Pitt. A idéia lhe era muito desagradável, mas não impossível.

Talvez sua presença fosse o catalisador tão esperado, talvez lhe proporcionasse a prova que tão desesperadamente necessitava.

—Sim, senhor. -Harris se retirou com formalidade, dando a entender que não aprovava sua decisão. Pouco depois fez entrar Amaryllis.

Estava pálida, com olhos brilhantes. Suas mãos remexiam nervosamente nas dobras do vestido. No momento de entrar levava um véu negro sobre o rosto, mas o descobriu.

—Inspetor Pitt! -Tremia-lhe todo o corpo.

—Sim, senhora Denbigh? -Pitt não lhe tinha simpatia, mas não pôde evitar compadecer-se dela. - Sente-se, rogo. Quer beber alguma coisa, uma xícara de chá?

—Não, obrigada. -Amaryllis se sentou dando as costas ao Harris-. Desejaria falar com você em privado. O que tenho que lhe dizer é muito doloroso.

Pitt vacilou. Não queria ficar a sós com aquela mulher. Evidentemente estava à beira da histeria, e Pitt assustava-se em ter que enfrentar uma corrente de lágrimas sem parar.

Pensou em chamar o médico de guarda e seu olhar se desviou para o Harris.

—Por favor! -chiou Amaryllis com crescente desespero-. É meu dever, inspetor.

Trata-se do assassinato da senhora Spencer-Brown. E preferiria que não me mortificasse ainda mais me obrigando a falar diante de um sargento.

—Naturalmente -se apressou a dizer Pitt. Já não podia retroceder-. O sargento Harris esperará lá fora.

Harris se levantou com cara de poucos amigos, lançando em Pitt um olhar carrancudo; saiu, fechando a porta atrás de si.

—E então, senhora Denbigh? -perguntou Pitt. Era um momento estranho. Sabia tudo sobre aquela gente, tinha-os investigado até o ponto de sonhar com eles, e, entretanto era ela quem espontaneamente ia a ele com a intenção possivelmente de lhe dar a chave para resolver o caso.

Amaryllis falou com voz crispada, quase inaudível, como se as palavras lhe fizessem mal.

—Sei quem matou a senhora Spencer-Brown, senhor Pitt. Não disse antes para não trair a um amigo. Estava morta e já não podíamos fazer nada por ela. Agora é diferente. Também Tormod morreu.

—Seu rosto, pálido e inexpressivo, parecia o de uma boneca sem pintar-. Não há motivo para continuar mentindo. Tormod era muito nobre, protegeu-a durante toda sua vida. Mas eu não o farei! Ainda pode fazer-se justiça.

—Será melhor que se explique, senhora Denbigh. -Pitt tentava lhe dar ânimo, mas algo indescritível flutuava na sala; sentia-o com tanta certeza como se sente a umidade no ar-. Quais são essas mentiras? A quem protegia o senhor Lagarde?

Os olhos de Amaryllis cintilaram, abrindo-se ainda mais.

—A sua irmã, claro está! -Tremeu- a voz-. À Eloise.

Pitt ficou atônito, mas fez uma pausa antes de falar, dissimulando sua surpresa e olhando para Amaryllis com tranqüilidade.

—Eloise matou a senhora Spencer-Brown?

—Sim.

-Como sabe, senhora Denbigh?

Amaryllis respirava com inquietação e Pitt via como se erguia e descia seu busto.

—Suspeitei-o desde o começo, porque sabia como se sentia. Adorava a seu irmão, queria ser sua proprietária absoluta; construiu toda sua vida ao redor dele.

Seus pais morreram quando ambos eram muito jovens e Tormod sempre se ocupou dela.

A princípio tudo foi muito natural, claro. Mas com o passar do tempo, e enquanto se foram fazendo maiores, ela não renunciou à dependência infantil.

Continuou aferrando-se a ele, acompanhando-o a todas as partes, lhe exigindo toda sua atenção. E, quando Tormod se interessava por outras coisas ela ficava ciumenta, fingia estar doente... Algo, para fazê-lo voltar junto a seu lado.

Amaryllis aspirou profundamente. Tinha o olhar fixo no Pitt.

—Quando Tormod mostrava interesse por alguma mulher, Eloise saía do sério-continuou-. Não descansava até ter afastado a essa mulher, mediante artimanhas, ou simulando estar doente, ou inclusive acossando ao Tormod até que o pobre cedia.

Mas era tão bondoso que continuava protegendo-a, a pesar do preço que tinha que pagar.

—"Sem dúvida todos lhe terão dito que Mina sentia uma intensa atração por Tormod. De fato estava apaixonada por ele. Seria estúpido continuar disfarçando-o com eufemismos. Já não podemos feri-la.

—"Como era de esperar, Eloise enlouqueceu de ciúmes. A idéia de que Tormod pudesse dedicar suas atenções a Mina era mais do que podia suportar. E decidiu jogar veneno no cordial que você esteve procurando.

Ofereceram-me isso em sua casa. Trazem-no do campo quando voltam de suas estadias no Hertfordshire. Em mais de uma ocasião tomei um cálice.

Amaryllis estava rigidamente sentada na cadeira, com o olhar ainda cravado em Pitt.

—Como sabe, Mina visitou Eloise naquele mesmo dia. Esta lhe deu o cordial como presente ao partir. Assim que chegou a casa Mina o bebeu... e morreu. Tal como tinha planejado Eloise.

—"Tormod, naturalmente, protegeu-a. Tinha cuidado dela desde menina. Eu diria que se sentia responsável, sabe Deus por que. Com o tempo se teria visto obrigado a interná-la em um sanatório ou em algum lugar similar. Penso que no fundo era consciente disso, mas incapaz de aceitá-lo.

—"Pergunte a qualquer um que os tenha conhecido. Dir-lhe-ão que Eloise me odiava...

Porque Tormod se interessava por mim.

Pitt permaneceu imóvel. Tudo encaixava. Recordou o rosto de Eloise, seus olhos negros cheios de estranhas visões, absortos em sua dor. Era o tipo de mulher que pede a gritos para ser protegida.

Ela mesma parecia frágil como um sonho, como se fosse desvanecer-se ao menor grito ou movimento brusco. Pitt resistia a pensar que se afundara na loucura e chegara ao assassinato.

Entretanto, não lhe ocorriam argumentos contra, nenhum ponto fraco no relato de Amaryllis.

—Obrigado, senhora Denbigh -disse friamente-. Hoje é tarde, mas amanhã mesmo irei ao Rutland Place e investigarei a fundo o que me disse. -Não pôde conter-se e acrescentou-: Pena que não fora tão sincera antes.

Amaryllis se ruborizou levemente.

—Não podia. E tampouco teria servido de algo. Tormod teria negado tudo.

Sentia-se responsável por ela. Com os anos, sua irmã o tinha levado a esse extremo.

Eloise é uma parasita! Propôs-se não deixar que seu irmão levasse uma vida independente, e o conseguiu!

Dedicou-se durante toda sua vida, dia a dia, hora após hora, a assegurar-se de que Tormod se sentisse culpado cada vez que fazia algo sem ela, ou ia só a algum lugar... Até de rir de uma brincadeira que não lhe fazia graça! -De novo sua voz se tornava nervosa e estridente-. Está louca! Não imagina você tudo o que lhe fez. Destruiu-o! Merece que a encerrem... para toda a vida!

—Senhora Denbigh. -Pitt desejou fazê-la calar e não ver aquele rosto suarento de traços infantis, que lançava faíscas de ódio por seus olhos vazios-. Senhora Denbigh, não volte a alterar-se, por favor! Amanhã falarei com a senhorita Lagarde.

Levarei o sargento Harris, e procuraremos essas provas que segundo você se encontram lá. Se acharmos algo, agiremos em conseqüência. Agora o sargento a acompanhará a sua carruagem.

Sugiro-lhe que tome algum sedativo, e que se deite cedo.

Foi um dia terrível para você. Deve estar exausta.

Amaryllis ficou olhando-o, como se avaliasse as possibilidades de que o inspetor cumprisse o que tinha prometido.

—Irei amanhã mesmo -repetiu Pitt.

Amaryllis se virou sem responder, e saiu fechando a porta atrás de si.

Pitt ficou a sós, incompreensivelmente abatido.

 

Não houve maneira de evitar aquele dever tão penoso.

De todo modo, lá onde se produzia um assassinato, era inevitável a tragédia.

Mas antes enviou ao Harris para que inspecionasse a casa a fundo, concentrando-se nos dormitórios e quartos de vestir em busca de algum cordial semelhante ao que Mina tinha tomado, ou alguma garrafa vazia igual à encontrada em sua sala.

Tomou a precaução de mostrar antes ao Harris um desenho da planta de beladona, para que pudesse procurá-la no jardim de inverno e nas edificações anexas.

Nem sua presença nem sua ausência provariam grande coisa, salvo pelo fato de que se tratava de uma planta silvestre, pouco habitual no coração de Londres.

Os Lagarde, entretanto, tinham uma casa de campo; talvez no Hertfordshire a beladona se encontrasse em todas as sebes e bosques.

Eloise o recebeu totalmente de negro. As persianas estavam fechadas pela metade, segundo as normas do luto. Os criados perambulavam pálidos e sombrios.

Eloise descansava em um divã junto à lareira, mas não parecia que pudesse voltar a sentir calor em sua vida.

—Sinto muito - disse Pitt, desculpando-se não só por sua intromissão, mas também por todo o resto: a solidão, a morte, sua incapacidade de fazer outra coisa que aumentar a dor da jovem.

Eloise não respondeu. Pouco lhe importava o que pudesse fazer Pitt, e provavelmente tampouco o resto das pessoas. Sua desolação a situava em um lugar inacessível, para bem ou para mal.

Pitt tomou assento. De pé se sentia ridículo, como se suas mãos ou seus pés fossem atirar algo ao chão.

Não tinha sentido tentar explicar o assunto pouco a pouco, com tato.

Isso não faria mais que piorar as coisas. Seria um gesto obsceno, como negar-se a reconhecer a presença da morte.

—A senhora Spencer-Brown veio vê-la no dia em que morreu. -Era uma afirmação. Ninguém até então o tinha negado.

—Sim. - Eloise não mostrou nenhum interesse.

—Deu-lhe você uma garrafa de cordial?

Eloise contemplava as chamas.

—Cordial? Não, acredito que não. Não o tinha perguntado já antes?

—Sim.

—É importante?

—Com efeito, o é, senhorita Lagarde. O veneno estava misturado no cordial.

Um sorriso cruzou fugazmente o rosto da jovem, tão leve como uma onda de água provocada pelo vento.

—E acredita que fui eu quem o mesclou? Não, não o fiz.

—Mas lhe deu o cordial?

—Não me lembro. É possível. Pode ser que estivesse pálida, que dissesse que estava cansada ou algo assim. Estamos acostumados a ter cordial, com efeito. Dá-nos isso um vizinho do Hertfordshire.

—Conserva ainda algo?

—É de supor. Eu não gosto, mas Tormod o bebia. Guardamo-lo na dispensa, bem guardado. É uma bebida forte.

—Senhorita Lagarde... -Eloise não parecia dar-se conta do alcance do assunto.

Falava disso com desapego, como se se tratasse de uma história alheia-. Senhorita Lagarde, trata-se de algo muito sério.

Finalmente Pitt conseguiu que lhe olhasse, mas sofreu uma comoção ao ver o sofrimento e o horror que traduziam os olhos de Eloise. Não por causa de suas palavras, mas sim de algo diferente que só ela via. Aquele rosto não expressava nem raiva nem ódio; só horror, um horror infinito, incomensurável.

Acaso era um sinal de loucura? Ou possivelmente a percepção da loucura por parte de alguém ainda o suficientemente cordato para dar-se conta do que se avizinhava, a inexorável queda aos negros abismos da demência?

Com razão Tormod tinha tratado de protegê-la! Pitt mesmo sentia desejos de fazê-lo, de evitar que caísse e fazê-la voltar para o mundo. Não lhe ocorria nada que dizer. Qualquer frase ficaria pequena ante a enormidade do que tinha vislumbrado.

Não pôde suportar e ficou em pé. Não era necessário continuar remexendo na ferida. O que importava eram as provas. Sem elas nada podiam fazer, por muito que Pitt acreditasse saber... Ou intuir.

—Sinto havê-la incomodado -disse torpemente-. Irei ajudar ao sargento Harris. Se me ocorre algo mais, perguntarei aos criados. Tentarei não importuná-la outra vez.

—Obrigada.

Eloise continuou imóvel no divã. Nem sequer olhou ao Pitt quando este se encaminhou para a porta e a abriu. Não olhava a lareira nem as flores brancas da mesa, mas algo que ninguém salvo ela podia ver.

Não demoraram para achar pelo menos uma resposta. O sargento Harris tinha levado a garrafa achada no dormitório de Mina, para mostrá-la aos criados. O mordomo a reconheceu.

—Deu você uma destas garrafas à senhorita Lagarde antes da visita da senhora Spencer-Brown o dia de sua morte? -perguntou Pitt.

O mordomo não era tolo e se deu conta do alcance da pergunta. Empalideceu e um pequeno músculo palpitou em sua mandíbula.

—Não, senhor. À senhorita Eloise nunca gostou.

—Senhor Bevan... -começou Pitt.

—Não, senhor. Compreendo o que está dizendo. Cada vez que voltamos do campo trazemos meia dúzia de garrafas, mas a senhorita Eloise jamais o prova.

Desagrada-lhe. Tampouco tem as chaves da copa. Há dois jogos; um conservo eu, e o senhor Tormod tinha o outro, mas o deixou no Abbotts Langley o ano passado, pelo Natal, e continuam ali.

Pitt respirou fundo. De nada serviria gritar com aquele homem.

—Senhor Bevan... -disse de novo, pacientemente.

—Sei o que vai dizer, senhor - interrompeu-o Bevan. – Costumava dar as garrafas uma a uma ao senhor Tormod, quando me pedia isso. Entreguei- lhe uma a noite antes da visita da senhora Spencer-Brown.

Costumava tomar um cálice de vez em quando, e eu não vi nada estranho.

Pitt não podia culpá-lo de nada. Quando ele e Harris tinham revistado a casa anteriormente tinham feito isso com discrição, mas, temendo que um criado -sentindo- se culpado ou protetor- se desfizesse da garrafa, não a haviam descrito nem haviam trazido a que havia em casa de Mina.

—O que aconteceu a garrafa? Sabe? -perguntou-. Posso falar com a criada?

—Não será necessário, senhor. Fiz isso assim que chegou o sargento Harris. Não sabe, senhor. Não tornou a vê-la.

—Então poderia ser a que deram à senhora Spencer-Brown ?

—Sim, senhor. Suponho que é assim.

—Não falta nenhuma garrafa mais?

—Não, senhor. É uma bebida forte, assim a controlo.

—Por que não o mencionaram quando o perguntamos a outra vez, senhor Bevan?

—Não é um vinho de mesa, senhor; não acredito que os criados o vissem.

São coisas que costumam guardar-se no estojo de primeiro socorros, ou na mesinha de noite.

Como era a última garrafa, não teriam podido achar outra por muito que revistassem a casa.

Ao Pitt irritava ter que escutar de boca do mordomo uma explicação tão meticulosa de seu trabalho. Ou possivelmente pensasse ainda no Eloise, sozinha, inacessível.

Aquele homem não tinha nenhuma culpa. Não podia conhecer a composição do licor com que tinha sido envenenada Mina.

—Assim, o senhor Tormod tinha a última garrafa?

—Sim, senhor.

—Em seu dormitório?

—Sim, senhor. -O rosto do mordomo expressava solenidade.

—Queixou-se de que tivesse desaparecido?

—Não, senhor. Teria chegado a meus ouvidos se o tivesse feito. Somos muito restritos com os licores fortes.

—Então, quando tinha podido Eloise jogar o veneno e dá-lo a Mina?

Bevan oscilou sobre seus pés.

—Se me permitir, senhor, o que o faz pensar que a senhorita Eloise tivesse o cordial ou o desse à senhora Spencer-Brown?

—Informações-disse Pitt secamente.

—Não de alguém da casa, senhor.

—Da senhora Denbigh. -De nada servia mostrar-se evasivo.

O rosto do Bevan mudou.

—A senhora Denbigh... Uma mulher muito rica, senhor, e perdão por fazer um comentário deslocado. Realmente rica, e de grande beleza também. Apreciava muitíssimo ao senhor Tormod, e até acredito que poderiam ter chegado a casar-se.

Desde que o senhor Tormod não tivesse outros compromissos, naturalmente.

Pitt entendeu a insinuação.

—Senhor Bevan, está sugerindo que foi o senhor Tormod, e não a senhorita Eloise, quem assassinou a senhora Spencer-Brown?

Bevan sustentou seu olhar sem fraquejar.

—Isso parece, senhor. Por que ia matá-la a senhorita Eloise?

—Por ciúmes, por medo a perder o afeto de seu irmão -respondeu Pitt.

—A relação do senhor Tormod com a senhora Spencer-Brown tinha acabado fazia tempo, senhor.

Se tivesse decidido casar-se, em nenhum caso teria sido com a senhora Spencer-Brown; sim, em troca, com a senhora Denbigh, uma mulher rica e bela, viúva e, com perdão, mais que disposta.

Entretanto, a senhora Denbigh está viva e goza de perfeita saúde.

Pitt se dirigiu ao Harris.

—Revistou o jardim de inverno, Harris?

—Sim, senhor. Nem rastro de beladona. Mas isso não significa que nunca a tenha havido. Não posso imaginar a um assassino tão idiota para não desfazer da arma do delito.

—Ah. -Pitt apertou a mandíbula-. Provavelmente tem razão.

—Posso lhe servir em algo mais, senhor? -perguntou Bevan.

—Não, obrigado. De momento não. -Pitt era resistente a dizê-lo, mas aquele homem o merecia-: Obrigado por sua ajuda.

Bevan fez uma ligeira reverência.

—Não há de que, senhor.

—Maldição! -exclamou Pitt assim que julgou que o mordomo não podia ouvi-lo-. Por todos os diabos, maldição!

—Apostaria que o tipo tem razão -disse Harris-. Parece verossímil.

Uma viúva rica e formosa, como diz ele. A velha amante se mete no meio e ameaça arejar tudo. Muito grave. O único obstáculo no caminho para conseguir uma boa soma de dinheiro.

Não seria a primeira vez. Quem o ia provar?

—Sei! -disse Pitt, furioso-. Maldição já sei!

Cruzaram o saguão e se acharam com o doutor Mulgrew, que descia pelas escadas. Tinha os olhos empanados e o cabelo encrespado no cocuruto. Sem dúvida se tinha ocupado de Eloise.

—Bom dia -disse Pitt laconicamente.

—Grande dia -respondeu Mulgrew-. perdemos ao Tormod. As seqüelas do acidente acabaram com ele; finalmente o coração lhe falhou. -Sorriu, entristecido-.

Necessito de uma taça. Estou em dívida com você, Pitt. É um bom homem.

Acompanha-me a tomar uma taça? Chamemos o Bevan. Necessito algo que me tire de cima à dor de cabeça. Na minha idade não deveria tomar champanha e depois me levantar cedo.

—Champanha? -Pitt ficou olhando ao médico.

—Sim, já sabe, isso com borbulhas! "Que vivam as borbulhas!" – cantarolou suavemente, com uma interessante voz de barítono-. "Dêem-Me uma taça e até o fundo bebo isso!"

Pitt não pôde evitar sorrir amargamente.

—Obrigado -disse Mulgrew, agarrando Pitt pelo braço-. É um homem generoso.

 

Quando Pitt chegou em casa à tarde, sua mulher o estava esperando.

Assim que transpassou a soleira, Charlotte leu em seu rosto que algo tinha acontecido, algo que o entristecia e enchia de confusão.

Tinha sido um dia quente, e o salão estava orientado para o sul. Charlotte tinha aberto as janelas que davam ao jardim, enchendo o ambiente de aroma a erva fresca.

Uns poucos narcisos brancos, dispostos em um esbelto vaso, gotejavam uma fragrância fresca e limpa como a chuva da primavera.

—O que acontece? -Em outro momento possivelmente Charlotte teria esperado um pouco antes de perguntar, mas aquela tarde não-. O que aconteceu, Thomas?

—Tormod morreu. -tirou o casaco e o deixou cair sobre o sofá-. Esta manhã.

Charlotte não se preocupou de pô-lo em seu lugar.

—OH. -Olhou-lhe o rosto, compreendendo o abatimento de seu marido. Intuiu que havia algo mais-. E que mais?

Pitt sorriu com repentina doçura. Estendeu a mão para agarrar a do Charlotte.

Ela a estreitou com força.

—E que mais? -repetiu.

—Amaryllis Denbigh foi à delegacia de polícia. Disse-me que Eloise matou a Mina. Diz que o suspeitava fazia tempo, mas que não o disse para proteger ao Tormod.

Agora que morreu já não lhe importa.

—Você acredita nela? -perguntou Charlotte. Ela mesma sentia impulsos de rechaçar a idéia, mas o assassinato nem sempre tinha uma explicação fácil nem agradável. Às vezes a escuridão se esconde sob a mais luminosa aparência.

—Fui dar uma olhada. -Pitt tomou assento e suspirou, e forçou ao Charlotte a sentar-se a seu lado-. Encontrei provas. Não sei se bastarão para um julgamento.

Mas não importa, porque o único que sei com certeza é que foi alguém da casa; o mordomo assegura que foi Tormod, e o manterá, mas ignoro se diz a verdade ou só é um modo de proteger ao Eloise. Provavelmente nunca saberei.

—Por que ia Eloise matar a Mina?

—Por ciúmes. Sentia um carinho possessivo por Tormod.

—Então teria matado ao Amaryllis. Ela é a mulher com quem se teria casado Tormod -alegou Charlotte-. Não com Mina, ela não representava nenhum perigo. Nunca teria passado de sua amante, e até duvido que chegasse a tanto!

—Isso disse Bevan.

—O mordomo?

—Sim.

—A única possessiva é Amaryllis. -Charlotte refletiu um momento-. Odeia Eloise o bastante para lhe contar uma mentira semelhante. Inclusive depois da morte do Tormod continua odiando-a.

—Bom, não se preocupe. Não penso prender Eloise. -Estreitou-a com força. - Não tenho provas.

Charlotte se afastou, olhando-o fixamente.

—O que acha que aconteceu?

Pitt meditou sem afastar o olhar do Charlotte, como se tentasse lhe ler os pensamentos.

—Penso que foi Tormod -respondeu finalmente-. Acredito que Mina lhe estava causando problemas, importunando-o.

Ele queria casar-se com Amaryllis, entre outras coisas pelo dinheiro. Portanto, matou a Mina para que não falasse.

Possivelmente estava recebendo ameaças dela.

Charlotte se reclinou no sofá, refletindo. A pobre Amaryllis se obcecou tanto com o Tormod que seu caráter tinha perdido toda doçura e capacidade de simpatia.

Já não cabia nela nenhum outro amor, nem sequer um pouco de consideração. Agora, Eloise e ela já não podiam consolar-se mutuamente.

—É estranho até onde pode levar uma obsessão - disse Charlotte-. Dá medo pensar nisso. É como se devorasse qualquer outro sentimento. A escala de valores se desmorona. -Pensou no Caroline e Paul Alaric, embora se abstivesse de mencionar isso.

Convinha esquecer-se disso, inclusive Pitt, agora que Edward dava sinais de querer emendar-se. Na noite anterior tinha acompanhado ao Caroline ao teatro Savoy; tinham visto o Mikado, e Edward lhe tinha dado um broche de granadas.

Tinha chegado Paul Alaric a compreender, ou ao menos vislumbrar, a atração que exercia sobre as mulheres? Tinha um desses rostos que sugeriam grandes paixões contidas; uma aparência a que se aferravam com facilidade certo tipo de mulheres românticas que, com o estímulo do mistério, tratavam de escapar do domínio de seus maridos, a quem consideravam simples e aborrecidos.

Era impossível para o Charlotte saber se Alaric tinha experimentado efetivamente paixões de tal intensidade.

Entretanto, no momento em que ela e Caroline o tinham deixado a sós, impotente, seu rosto tinha expresso autêntica comoção. Isso bastava ao Charlotte para conservar uma boa opinião dele.

Tormod tinha despertado em Amaryllis sentimentos ainda mais poderosos. Algo teve que ver nele, uma qualidade em seu espírito ou seu corpo que a tinha cativado até o ponto de ser incapaz de pensar em nada e ninguém mais.

Sem dúvida havia possuído um carisma atraente, um magnetismo que se impunha a todo o resto.

E, naturalmente, Eloise o tinha querido, depois de passar suas vidas um junto ao outro. Com razão sentia ciúmes Amaryllis, sentindo-se excluída de todo esse passado...

De repente uma idéia atroz cruzou sua mente, uma idéia inominável e que lhe dava calafrios.

—O que ocorre? -perguntou Pitt-. Está tremendo!

Aquela idéia tinha sido tão horrível que Charlotte não estava preparada para traduzi-la em palavras, nem sequer a seu marido. Agora que lhe tinha ocorrido, devia falar com o Eloise para comprovar se era certa. Mas não em seguida. E possivelmente não o dissesse ao Pitt.

—Nada, o alívio de que tudo tenha acabado - respondeu, aninhando-se mais em seus braços. Voltou a lhe agarrar a mão. Não lhe importava mentir. Era só uma idéia.

 

Pela manhã, Charlotte colocou seu vestido mais escuro e pegou o ônibus.

Desceu na parada mais próxima ao Rutland Place, e caminhou o lance que lhe faltava.

Não passou por casa de sua mãe; de fato não tinha intenção de visitá-la, a menos que a vissem.

O lacaio atendeu a sua chamada.

—Bom dia, senhora Pitt - disse em um sussurro, afastando-se para lhe deixar passagem.

—Bom dia - respondeu ela gravemente-. Devo dar os pêsames. Está à senhorita Lagarde em condições de me receber?

—Vou informar-me, senhora. Por favor, entre... O senhor Tormod está na saleta, mas faz muito frio ali.

Por uns instantes ficou perplexa ao ouvi falar do Tormod como se estivesse vivo, mas na hora compreendeu que se referia ao cadáver, exposto para as pessoas que queriam render uma última homenagem dando uma olhada ao morto.

Esperavam possivelmente que ela fizesse o mesmo?

—Obrigada. -depois de certa vacilação, decidiu ir ver o falecido.

A sala estava em penumbra, tão fria como havia dito o lacaio, com aquele frio peculiar da morte. As paredes e os pés da mesa estavam festoneadas de braçadeira de luto, e o aparador tinha sido coberto com um tecido negro.

Tormod jazia em um ataúde negro e brilhante, no centro da sala. Os lampiões de gás estavam apagados. Os raios do sol, filtrados pelas persianas, esfumavam uma luz bastante intensa. Charlotte se sentiu impulsionada a aproximar-se do cadáver e olhá-lo.

Tinham-lhe fechado os olhos, e, entretanto, a expressão parecia muito pouco natural. Não havia paz naquele rosto.

A morte se levou todo resto de espírito, mas os traços indicavam inequivocamente que a última emoção do Tormod tinha sido o ódio, um ódio impotente e corrosivo.

Charlotte afastou o olhar, cheia de espanto. Sentia-se embargada por algo frio e penetrante que crescia em sua mente, lançando raízes cada vez mais grosas.

A porta se abriu silenciosamente. Eloise se deteve um momento antes de entrar.

Agora estavam frente a frente, uma a cada lado do cadáver, e para Charlotte era mais difícil do que esperava.

—Sinto muito - disse torpemente-. Sinto muitíssimo, Eloise.

Eloise não respondeu, mas seu olhar se cravou nela quase com curiosidade.

—Odiava-o também? -As palavras saíram da boca do Charlotte com mais facilidade do previsto. A compaixão foi mais forte que a vergonha ou o medo.

Desejava tocar ao Eloise, abraçá-la, transmitir calor e um pouco de vitalidade àquele corpo gelado.

Eloise emitiu um pequeno suspiro.

—Como conseguiu saber isso-?

Charlotte não soube responder. Tinha-o adivinhado por uma série de impressões diversas, um olhar, uma palavra... Coisas que voltam para a mente por escuros caminhos, inacessíveis à razão porque pertencem ao proibido, ao que se rechaça por inominável.

—Esse era o segredo que Mina conhecia, não é verdade? -perguntou Charlotte-, Esse foi o motivo pelo qual ele a matasse. Não tinha que ver com suas velhas relações, nem se casando com o Amaryllis.

—Teria se casado com o Amaryllis -disse Eloise suavemente-. Não me teria importado, nem sequer pelo fato de que... tivesse deixado de me amar.

—Mas ela não teria aceitado casar-se - replicou Charlotte-. Não se Mina tivesse contado a todo mundo que você e Tormod eram amantes, ao mesmo tempo que irmãos. -Uma vez as palavras pronunciadas já não eram tão terríveis.

Era possível dizê-las, era possível confrontar a verdade.

—Talvez não. -Eloise contemplava o rosto do morto. Não parecia lhe importar.

Charlotte se deu conta de que ainda não tinha chegado à medula do assunto.

Ficavam ainda outras revelações, ainda piores.

O ódio de Eloise por si mesma, seu desespero, devia-se a algo mais que a consciência do incesto e posterior rechaço.

Era mais profundo que tudo isso.

—Que idade tinha você quando começou tudo? -perguntou Charlotte.

—Treze anos.

Charlotte sentiu as lágrimas brotar de seu interior, junto com um ódio tão intenso por Tormod que pôde olhar o cadáver sem sentir compaixão alguma.

—Você não matou a Mina, não é verdade?

Eloise negou com a cabeça.

—Não, mas não me importa se a polícia acredita, porque de qualquer forma sou culpada.

Charlotte abriu a boca, mas voltou a fechá-la.

—Deixei que Tormod matasse meu filho -sussurrou Eloise-. Estava grávida, de uns quatro meses. Demorei muito em compreendê-lo; era muito ignorante.

Depois, assim que percebi isso, disse-o ao Tormod. Foi quando conheci você.

Não fomos ao campo pela morte de Mina. Levou-me para que me praticassem um aborto.

Não soube até o momento de chegar. Tormod me disse que devia fazê-lo porque não era casada, e que o que fazíamos era algo mau.

Disse que a criatura ainda não estava formada, que não seria mais que... mais que um pouco de sangue.

Eloise estava tão lívida que Charlotte temeu que fosse desmaiar; mesmo assim não se atrevia a fazer nada. Aquelas palavras surgiam de um desespero tão grande que devia deixar que explodisse.

—Mentiu-me. Era meu filho!

Charlotte sentiu como as lágrimas afloravam a seus olhos. Inconscientemente levou as mãos ao regaço, ao lugar onde pulsava o coração de seu próprio filho.

—Era meu filho -disse Eloise-. Não me deixaram tocá-lo. Simplesmente se desfizeram dele!

O silêncio se apoderou da sala. Mas nada podia conter tanto sofrimento.

—Por isso o matei -admitiu Eloise finalmente-. Assim que me senti um pouco recuperada, levou-me a dar um passeio em carruagem. Empurrei-o do assento, e a carruagem que nos seguia o enrolou. Mas não morreu. Ficou destroçado, mas não morreu.

Trouxemo-lo de volta aqui, para que ficasse nessa cama de cima, atormentado pela dor, consciente de que não voltaria a caminhar.

Estava paralisado, sabia você? Não podia mover-se, nem sequer falar. Só me olhava, com um ódio tão grande que parecia consumi-lo. Meu próprio irmão, a quem tinha querido toda minha vida.

Eu ficava junto ao leito, sustentando seu olhar.

Não estava arrependida. Odiava a mim mesma, e odiava a ele. Cheguei a pensar em suicidar-me. Não sei por que não o fiz.

Mas não sentia piedade por ele, era incapaz de me compadecer dele.

—"Ainda sonho com meu filho. O doutor há dito que não poderei voltar a ter crianças. Fizeram alguma coisa má.

Finalmente Charlotte foi capaz de mover-se. Rodeou o ataúde e desceu a tampa.

Depois, com suavidade, tomou a mão de Eloise entre as suas.

—Pensa dizer à polícia? -perguntou Eloise.

—Não, não o farei - Charlotte a rodeou com seus braços e a estreitou com força, com um nó na garganta e lágrimas aparecendo em seus olhos. Devia controlar-se. Respirou com força-. Assassinou a Mina.

Teriam o pendurado por isso de qualquer modo. Matá-lo não esteve bem, mas já aconteceu. Nunca voltarei a falar disso.

Pouco a pouco Eloise se relaxou, descansando a cabeça sobre o ombro de Charlotte. Finalmente, e pela primeira vez desde que tinha visto o diminuto corpinho inerte de seu filho, pôs-se a chorar.

Durante longos, incontáveis minutos permaneceram abraçadas junto ao ataúde fechado, deixando que fluíssem as lágrimas, compartilhando a dor.

De repente Inácio Charrington apareceu na porta, com um olhar de simpatia e afeto. E foi então, só então, que Charlotte se afastou de Eloise.  

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

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