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Uma mulher que parte sozinha para férias vai inquieta. Afigura-se-lhe que, durante a sua ausência, vão acontecer ao marido as mais absurdas infelicidades.
A Sra. Mónica Martin partia nessa manhã. Era o dia 15 de Julho de 1956, uma data memorável. O dia 15 de Julho, segundo o calendário eslavo, é a festa de S. Vladimiro, o santo que evangelizou os Russos. O comboio partia às nove da manhã, mas Mónica estava a pé desde as cinco. O professor José Martin tinha-se levantado às sete, como de costume. Eram então oito horas menos um quarto. O professor vestia-se. Estava ainda completamente ensonado.
- Não parto tranquila - disse a Sra. Martin. - Quem sabe o que pode acontecer-te durante a minha ausência?
- Que poderia acontecer-me ? - retorquiu o professor.
Era a décima vez que a mulher lhe repetia essa frase. Ele continuou:
- Nada me acontecerá, absolutamente nada.
Enervado, puxou pelo atacador do sapato. O atacador partiu-se. A mulher trouxe-lhe outro. Observou, cheia de compaixão, o marido desajeitado e cheio de sono que punha o atacador novo e atirava o velho para cima do tapete.
O professor José Martin estava casado havia dez anos.
Durante esse tempo, nunca se tinha separado da mulher.
- A ti é que poderiam acontecer coisas extraordinárias - disse ele. - é a primeira vez que viajas sozinha, e ainda por cima no estrangeiro: a primeira vez que atravessas mar.
O professor José Martin e a mulher instalaram-se à mesa. Mónica serviu o café. Eles habitavam naquela casa havia dez anos, uma casa pequenina e modesta, mas situada no centro de Sofia.
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Ao tomar o café, pareceu estranho ao professor Martin, pela primeira vez, o achar-se nessa casa, nessa cidade, nesse país. Até então, tudo lhe tinha parecido normal. Até aquele instante nunca tinha perguntado a si próprio se era normal que ele vivesse na Bulgária. Até ali tinha vivido na Bulgária sem perguntar a si próprio se não teria sido mais normal viver noutro recanto do mundo, na sua pátria, por exemplo. Agora perguntava-o. Encontrava-se na Bulgária por acaso. Onze anos mais cedo, em 1945, tinha sido desmobilizado. Acabava de se pôr termo à guerra. Ele procurava uma situação. José Martin fizera estudos brilhantes na metrópole, no Ocidente. Desde o início dos seus estudos, ele sabia com certeza que viria a ser professor. Um jovem que é doutor em Filosofia (especialidade: Psicologia) só pode vir a ser professor. Mas as coisas tinham levado outro rumo. Um dia lera na edição europeia do New York Herald Tribune que procuravam jovens com menos de trinta anos, que tivessem estudos adequados, para missões antropológicas, mediante um salário muito bom. O anúncio provinha de um Instituto de História Natural dos Estados Unidos. José Martin propôs os seus serviços, no mesmo dia em que lera o anúncio. Foi aceite. As missões de antropólogos organizadas pelos Americanos eram enviadas a todos os povos atrasados do mundo para os medir, pesar, fotografar, penetrar nos segredos da sua vida e nos da sua alma. Era uma actividade puramente científica.
Ao mesmo tempo que o contrato, José Martin recebeu a lista destes povos atrasados. Pediam-lhe que dentre eles escolhesse um para estudar mais particularmente. Havia quatro páginas impressas, que continham os nomes dos povos atrasados, quatro páginas impressas em caracteres minúsculos, que enumeravam as tribos negras da Austrália, os Esquimós, canibais, a Grécia, os Pigmeus, as tribos indianas, a Roménia, a índia: várias centenas de povos atrasados. José Martin poderia ter partido para o pólo norte ou para as florestas equatoriais. Partiu para a, Bulgária. Os outros povos atrasados, para onde ele teria tido prazer de ir, a Grécia, por exemplo, tinham já as suas missões antropológicas completas. Tinha sido assim que o professor José Martin tinha chegado à Bulgária. Isto passava-se em 1945 e no dia de S. Vladimiro, 15 de Julho. Fazia exactamente onze anos. S. Vladimiro, como ele então viria a ouvir dizer, era um dos maiores santos russos. Por uma curiosa coincidência, também a mulher partia no dia de S. Vladimiro, o mesmo dia da sua chegada a Sofia.
O contrato de José Martin fora estabelecido por dois anos. Mas onze anos tinham passado e ele permanecia na Bulgária. O professor José Martin casara com uma rapariga búlgara.
Ela estava sentada nesse momento em frente dele, e segurava na mão a chávena de café. José Martin era agora professor na Universidade de Sofia e director do Instituto de Antropologia Búlgara. O professor José Martin falava a língua búlgara como todos os Búlgaros, Vestia-se como os Búlgaros e levava a mesma vida que eles.
A mulher partia nessa mesma manhã, após dez anos de casamento, para travar conhecimento com a sogra, que apenas conhecia por fotografia. Mónica partia para o Ocidente, para a grande metrópole do Norte onde o marido nascera e onde vivia a sogra. O professor José Martin devia partir por sua vez duas semanas mais tarde. As férias no Instituto só começavam daí a duas semanas. Havia onze anos que o professor José Martin não saía da Bulgária. Durante todo esse tempo não voltara a ver a mãe, nem a pátria. Ele poderia ter partido, mas as autoridades não concediam o visto de saída a Mónica. Ela casara, tinha adquirido a nacionalidade do marido, e as autoridades búlgaras recusavam dar-lhe o visto de saída do país. O professor José Martin poderia ter partido só para ver a mãe e a pátria, mas não queria. Queria partir com a mulher. Queria levá-la consigo. E, como ela não podia partir, ele não tinha querido ir durante onze anos.
Desta vez a mulher tinha o visto de partida, e não só o tinha, mas partia duas semanas antes do marido.
- Não te esqueças do que me prometeste- disse o professor, afastando a chávena de café. - Assim que chegares, vai ao dentista. Escrevi à minha mãe. Ela respondeu-me que tinha um excelente dentista. Daqui a duas semanas, quando eu lá chegar, quero ver-te com dentes novos e bonitos...
Mónica era uma bela mulher morena, bem nutrida. Quando o seu olhar apaixonado fixava um objecto, envolvia-o com um tal ardor que se tinha a impressão de que o faria derreter-se ou acabaria por incendiá-lo. Apesar da sua vitalidade, os dentes de Mónica estavam negros e furados. Um dente da frente, do maxilar inferior, tinha caído. Quando Mónica se ria, via-se o lugar vazio, deixado pela falta do dente. Ao lado desta falta, semelhante a uma janela arrancada, os outros dentes estavam cariados. Muitas mulheres búlgaras tinham assim perdido os dentes. A maior parte dos Búlgaros tinha os dentes estragados. Havia onze anos que a Bulgária estava sob a ocupação soviética. Quando as pessoas vivem sob a ocupação soviética perdem os dentes.
Viajaria num navio mercante. Desde a ocupação da Bulgária pelos Sovietes que os barcos ocidentais de passageiros não sulcavam o mar Negro.
A mulher do professor Martin era a primeira mulher búlgara que partia para o Ocidente como turista. Este acontecimento era conhecido por toda a Sofia. Toda a Bulgária sabia que Mónica partia. As amigas vieram, em peregrinação, vê-la e perguntar-lhe se o facto era verdadeiro. Invejavam-na. Dir-se-ia que Mónica partia para o paraíso, para o país das maravilhas. A mulher do professor Martin mostrou às amigas o passaporte com o visto de saída. O facto era certo. No entanto, ela tinha medo. Até ao último momento teve medo que lhe acontecesse alguma coisa. Teve medo que lhe tirassem o passaporte. Era belo de mais para durar. Era o que lhe fazia medo.
Agora o comboio aproximava-se de Varna. Avistava-se o mar. O sonho de Mónica estava prestes a realizar-se. O passaporte estava na sua mala. Não lho tinham tirado. Mónica estava sentada junto do marido e olhava para o mar mais azul que o céu. Tinham ainda dez minutos, antes de chegarem a Varna. Mónica era feliz, tão feliz que começou a chorar. Encostou a cabeça ao ombro do marido e chorou. As lágrimas deslizavam sobre a fazenda cinzenta e usada do casaco que, havia muitos anos, o professor José Martin usava. Chorando, Mónica apertou a mão esquerda do marido e perguntou :
- José, lembras-te?
O próprio professor estava comovido. Estava mais comovido que a mulher, embora não partisse.
- Lembrar-me de quê, Mónica?
- Foi aqui, perto de Varna, nas costas do mar Negro, na aldeia de Lipova, que o nosso amor começou. Era também em Julho. Há onze anos... - disse ela.
Os dedos do professor afagaram os cabelos da mulher, que tinha pousado a cabeça no seu ombro esquerdo. O comboio avançava pela planície. Avistava-se o barco em que Mónica devia partir, como se ele estivesse mesmo por detrás da janela do comboio. Era um barco do país de José Martin, um barco que hasteava a bandeira da sua pátria. Perto do navio, como num postal, havia dois escaleres brancos. Também eles tinham bandeiras. Um desses escaleres viria perto da costa e levaria Mónica.
- Porque não voltámos nunca mais a Varna? - perguntou ela. - Foi aqui que o nosso amor começou. Nós deveríamos ter voltado. Não é longe de Sofia. Dize, José, porque é que nunca mais tornámos a estes lugares onde começou o nosso amor?
O professor José Martin calava-se. Ele não queria ouvir falar destes lugares. O facto de voltar agora a Varna fazia-o sofrer. O mar, o cenário, o barco que se via pela janela, tudo suscitava nele um grande sofrimento. Ele teria dado fosse o que fosse para não estar ali. Mas o professor tinha de levar a mulher, falar ao comandante do barco. Teria preferido que lhe arrancassem um bocado de carne, a ter de voltar a ver este local. Este local estava ligado ao seu "pecado mortal", como ele próprio dizia. Varna era o lugar onde o professor José Martin tinha cometido o grande erro da sua vida. Por causa desse erro apaixonara-se por Mónica. Por causa desse erro tinha ficado na Bulgária.
O professor Martin não era um místico. Era um homem de ciência, um homem lógico. Um místico, um homem que tem fé, pode libertar-se do pecado. Um homem lógico leva o pecado até à morte. Um homem de ciência, se cometeu um pecado, guarda-o na memória tanto tempo quanto dura a sua existência terrestre.
O professor José Martin tinha de viver noite e dia com a falta aqui cometida, nas margens do mar Negro, na aldeia de Lipova, perto de Varna. Varna, onde precisamente o comboio parava...
Lipova é uma aldeia situada no litoral do mar Negro, a três quilómetros ao norte do porto de Varna. No decurso do Verão de 1945, o professor José Martin tinha chegado a esta aldeia com um grupo de estudantes búlgaros, para estabelecer estatísticas. O professor José Martin tinha nessa época vinte e oito anos. Não era como hoje professor da Universidade, nem director do Instituto de Antropologia Búlgara. Era apenas o chefe de um grupo de estudantes. Agora, recebia o ordenado do Ministério de Educação Nacional Búlgara, mas em 1945 o professor Martin recebia o dinheiro do Instituto de História Natural dos Estados Unidos. com este dinheiro dos Estados Unidos, ele tinha vindo medir, interrogar, fotografar e estudar os camponeses e pescadores de Lipova. As estatísticas, as entrevistas e as mensurações eram efectuadas pelos estudantes contratados por Martin na Universidade de Sofia. O trabalho dos estudantes búlgaros era simples. Recebiam questionários impressos, iam para o campo e preenchiam-nos. José Martin não tinha relações de amizade com estes jovens búlgaros. Distribuía-lhes de manhã as fichas e os questionários, que vinham impressos da América, explicava-lhes como completá-los e em seguida recebia-os preenchidos, para os arrumar em ficheiros metálicos, vindos também da América. O escritório de José Martin era situado na periferia da aldeia de Lipova. Ele tinha uma casa rústica; dois quartos caiados, com um chão de terra batida. Estava um calor terrível. A sua secretária era uma mesa de pinho feita pelo marceneiro de Lipova.
Uma tarde, ele estava no escritório e arrumava uns cigarros numa cigarreira, presente dum camponês. Era uma cigarreira de cerejeira, cortada a canivete. Uma cigarreira de cerejeira conserva os cigarros secos. Além disso, a madeira de cerejeira tem um cheiro agradável, sobretudo quando a madeira é verde. O professor Martin aspirava a madeira da cigarreira e arrumava lentamente os cigarros. Enquanto se entregava a esta ocupação, alguém bateu à porta. Era um estudante com uma estudante do seu grupo, dois estudantes búlgaros da Universidade de Sofia. A estudante era Mónica, sua futura mulher. O estudante chamava-se Ivanoff. Hoje ele tinha-se tornado o director do Instituto Antropológico de Sofia. Naquela época, tinham ambos menos de vinte anos.
O professor José Martin lembrava-se de todos os pormenores da cena. Há acontecimentos na vida que se fixam na memória com os mais íntimos pormenores. O professor lembrava-se que ele trazia uns calções. Mónica tinha tranças, uma blusa branca guarnecida de renda e uma saia azul, ampla, como as que usam as mulheres e as filhas de pescadores de Lipova.
Mónica era bronzeada e tinha faces rosadas de saúde.
O professor José Martin tinha continuado a arrumar os cigarros na cigarreira e a aspirar a madeira de cerejeira, depois da chegada dos estudantes búlgaros ao seu quarto. Hoje ainda, tinha nas narinas o perfume da madeira de cerejeira. Não tinha convidado os dois estudantes a sentarem-se, embora diante da mesa de pinho, coberta de revistas, de fichas e de questionários, tivesse duas cadeiras. Tinha deixado os dois estudantes de pé. Sem abrir a boca o professor tinha-lhes perguntado com o olhar e com um trejeito do rosto o que queriam.
- Nós vimos pedir-lhe um favor, um favor muito grande - disse Ivanoff. - ? Trata-se duma coisa grave.
- Estou a ouvir - tinha dito José Martin.
Ele era irónico. Aos vinte anos, qualquer rapaz está convencido, logo que abre a boca, de que diz alguma coisa de importante e de grave.
- O senhor é um homem de coração - disse Ivanoff. - O que lhe pedimos é urgente e grave. é uma coisa que diz respeito à nossa colega Mónica.
Ivanoff tinha pegado na colega pela mão para mostrar que era ela, Mónica, e que o seu pedido lhe dizia respeito.
- Isto não diz directamente respeito a Mónica - continuou o estudante -, mas a alguém da sua família. O senhor deve ter ouvido falar do Prof. Leónidas Andréev.
-Nunca ouvi falar de Leónidas Andréev - tinha respondido José Martin, repetindo o nome.
A resposta era seca. Ele não tinha vontade de falar.
- O Prof. Leónidas Andréev é membro da Academia Búlgara. uma sumidade- disse o estudante.
José Martin tinha sorrido. As palavras "sumidade" e "búlgaro" não condiziam. Não ligavam. Ser búlgaro significa não ser uma sumidade, e ser uma sumidade significa não ser búlgaro. Não existem sumidades búlgaras. Nunca existiram. A Bulgária não contribuiu em nada para o progresso da cultura e da civilização universal. Não existe um Beethoven búlgaro. Não existe um Edison búlgaro. Não existe uma catedral de Chartres búlgara. Não existe um Shakespeare búlgaro, nem um Goethe búlgaro. Não há nenhuma invenção búlgara. Os Búlgaros não inventaram nada, nem sequer a bicicleta. Os Búlgaros nem sequer inventaram o passador de legumes. Nada. Não há contribuição búlgara na cultura e na civilização universais, excepto o yaourt. Eis a única contribuição búlgara ao património universal da humanidade: o yaourt. Postos de parte o yaourt e as rosas (porque eles possuem os roseirais mais vastos da Europa) os Búlgaros nada produziram. uma aberração falar de sumidades quando no decurso da História se não foi capaz de produzir senão yaourt e rosas.
- Além do facto de que ele é uma sumidade, um grande sábio e uma "grande cabeça" búlgara- continuou o estudante-, Leónidas Andréev é também tio da nossa colega Mónica.
O facto de Leónidas Andréev ser o tio desta rústica estudante não constituía mais um título de glória aos olhos de José Martin. Não há nenhuma glória em ser tio duma rapariga de vinte anos como se encontra em todas as aldeias búlgaras.
- Em conclusão - disse José Martin-, que posso fazer por esta sumidade, por esta "grande cabeça" búlgara?
A ironia do professor Martin não desencorajou Ivanoff. Os Búlgaros estão habituados à ironia dos estrangeiros. Todos os povos atrasados estão habituados a esta ironia das pessoas vindas do Ocidente.
- Há ainda outra coisa - disse Ivanoff. - O Prof. Leónidas Andréev foi durante muito tempo Ministro da Educação Nacional.
- Está bem - disse José Martin, enervado -, mas não vejo a relação entre todos estes factos e o objecto da vossa visita.
- O senhor não vê a relação porque é estrangeiro - disse Ivanoff. - Se fosse búlgaro, saberia que todos os que foram ministros antes da ocupação da Bulgária pelos Sovietes foram condenados à morte e enforcados...
- Enforcados unicamente pelo facto de terem sido ministros? - perguntou José Martin.
- Sim, unicamente por terem sido ministros - respondeu Ivanoff.
- Visto isso, o seu tio foi enforcado?b - perguntou Martin. (Desta vez ele olhava para Mónica).
- Não foi - respondeu Ivanoff. - O Prof. Andréev é respeitado por todos os búlgaros. Todos os búlgaros lhe deram abrigo e o esconderam, até hoje.
- Ele está preso agora? - perguntou Martin.
-A polícia descobriu o seu rasto - continuou Ivanoff. -Ainda não o prenderam mas logo que a polícia descobre o rasto de alguém, a sua captura é iminente. Inevitável. A polícia descobriu o rasto de Andréev. Foi por isso que nós viemos. é urgente. Suplicamos-lhe que nos ajude. Temos de salvá-lo.
- Eu não tenho nenhum poder - disse José Martin.
- O senhor tem poder - disse Ivanoff. - o senhor tem o poder de o salvar.
Dentro de dois dias, um barco do seu país vai chegar a Varna. Fale ao comandante. é um dos seus compatriotas. Diga-lhe que embarque Leónidas Andréev, que o faça sair daqui. Salvá-lo-á da morte.
- Pede-me uma coisa impossível - disse José Martin.
- Se o senhor falar ao comandante, ele levá-lo-á. é tão simples, para si... Fala nisso ao comandante, nada mais.
- Recuso - disse José Martin. - Praticando tal acção, cometeria uma dupla ilegalidade. Primeiramente, seria incorrecto para com o governo búlgaro, que me ofereceu hospitalidade gratuita. em segundo lugar, sê-lo-ia para com o meu próprio governo, que mantém relações de amizade com o governo búlgaro. Supondo que o tio da sua companheira tenha sido injustamente condenado, foi, no entanto, condenado legalmente. O meu governo reconhece o governo búlgaro, e por consequência a legalidade dos seus actos. Aos olhos do meu governo, Leónidas Andréev é um condenado à morte. Nada posso fazer. Recuso.
- Desejamos-lhe uma boa noite - disse o estudante.
Disse-o calmamente, sem ódio, com simplicidade. Tomou Mónica pela mão e ambos se dirigiram para a porta. Andavam com um passo igual, tranquilo. Logo que deixaram o quarto de José Martin, os dois estudantes continuaram a andar com a mesma simplicidade, como se não tivessem pisado o chão, como se avançassem na eternidade. Intervindo junto do professor José Martin, não tinham alimentado nenhuma ilusão. Por consequência nada tinham perdido. Não tinham ilusões. Não tinham nada a perder.
A história tinha ensinado aos Búlgaros a não se iludirem no que diz respeito a estrangeiros, no que respeita aos estrangeiros civilizados.
Dois dias depois da intervenção dos estudantes búlgaros a favor do académico Leónidas Andréev, um barco que vinha da pátria de José Martin atracou em Varna.
Era um navio mercante que trazia para Varna armas automáticas para as tropas soviéticas da Bulgária. Hasteava a bandeira do país de José Martin. Tinha vindo com o seu carregamento de armas automáticas. O cônsul de Varna deu uma recepção em honra dos oficiais do navio. José Martin foi para ela convidado como compatriota e porque se encontrava na região. Tal é o protocolo em ocasiões semelhantes. Serviram-se bebidas nacionais. Durante a recepção, o cônsul disse aos oficiais de marinha:
- Não há processo de me inebriar pelo facto de estar em Varna. É muito desagradável ser cônsul aqui, extremamente desagradável.
- No entanto o litoral é encantador - disse o comandante.
- A região é bela - continuou o cônsul -, mas quem vive aqui é obrigado a assistir a todas as calamidades. O que habita em Varna é obrigado a ver com os seus próprios olhos os piores horrores.
É muito desagradável, terrivelmente desagradável. Esta manhã, por exemplo, saí a buscar o caviar para a recepção. No caminho, a cinco quilómetros de Varna, em pleno centro de uma aldeia, fui obrigado a passar com o carro sob um cadáver enforcado entre duas árvores, como um lampião, por cima da estrada. Tive de passar com o meu carro por debaixo. Eu teria querido dar meia volta, mas tinha encomendado o caviar na véspera, e não podia trazê-lo senão com o carro do consulado. Foi pois preciso que eu passasse sob o cadáver enforcado por cima da estrada. Ele roçou, sem dúvida, o tejadilho do carro com os pés. Eis o que significa ser cônsul em Varna... Mas não é tudo. O cônsul em Varna está condenado a ouvir também os horrores. Os ouvidos como os olhos são maltratados pelos horrores daqui. Cinco pessoas pelo menos contaram-me, apesar dos meus protestos, como tinha morrido o enforcado. O fornecedor não tinha ainda acabado de acondicionar o caviar nas caixas guarnecidas de gelo. Tive de esperar alguns dez minutos.
E durante dez minutos não me falaram senão do assassínio da noite. O enforcado tinha sido apanhado na véspera pela milícia. Procurava certamente uma barca ou um navio para fugir. Em resumo, escondia-se aqui, no rio, esperando a salvação, como qualquer homem acossado pela polícia. A milícia prendeu-o. Durante a noite os milicianos cortaram-lhe o nariz. Depois, cortaram-lhe a língua e as orelhas. Esfolaram-no vivo, arrancando-lhe a pele aos pedaços, com as baionetas. Toda a aldeia estava ali presente. Quando o infeliz morreu, a mutilação continuou. Em seguida este corpo mutilado foi pendurado, como uma lanterna, em pleno centro da rua, entre duas árvores. Deixá-lo-ão pendurado lá em cima, até à putrefacção completa, e o vento levá-lo-á bocado por bocado, é o costume. Ninguém tem o direito de despendurar um cadáver enforcado pelas autoridades. O enforcamento de Mussolini, com a cabeça para baixo, não é nada ao lado disto. Comparados aos Búlgaros, os Italianos são humanos... Os Búlgaros deixam os cadáveres pendurados, até que os próprios ossos apodreçam, até que não exista nem sequer um bocadinho de corda. Só o vento e as intempéries têm o direito de arrancar à corda um cadáver enforcado pelas autoridades...
Contaram-me estes horrores, com todos os pormenores, e eu tinha vontade de levar o meu caviar sem gelo, sem nada, para não ouvir mais nada. Mas com estes calores é preferível não levar o caviar sem a embalagem de gelo. O caviar é muito bom, mas é delicado. é sobretudo o seu transporte que é delicado.
O cônsul continuou:
- Sabe que crime tinha cometido este homem, para assim ser posto aos bocados a golpes de baioneta, depois enforcado? Tinha sido ministro antes da ocupação da Bulgária pelos Sovietes. Foi tudo. Nada mais... Não me felicite por ser cônsul em Varna. é horrível viver aqui...
Precisamente antes da sua chegada... (Quem pois chegou primeiro? Creio que foi o imediato do barco). Pois bem, precisamente no momento em que o imediato batia à porta, anunciavam na rádio a prisão de Leónidas Andréev. é o nome do enforcado. Encontrava-me aqui, neste mesmo salão. Verificava se os criados tinham arrumado bem o aparador, se cada coisa estava no seu lugar. Tenho esta mania... Antes de cada recepção verifico as garrafas, as travessas de sanduíches, tudo. A rádio estava a trabalhar. Davam o comunicado oficial. E o comunicado anunciava que o Prof. Leónidas Andréev, antigo ministro, se tinha suicidado no momento da sua captura... Ele tinha sido massacrado a golpes de baionetas, e as autoridades oficiais diziam que se tinha suicidado. Se eu fosse marinheiro, meus caros amigos, nunca poria os pés nesta margem. é horrível ser cônsul aqui.
O cônsul fez um brinde com o comandante do navio que tinha trazido as armas automáticas para a milícia búlgara e para as tropas russas de ocupação.
- Serei em breve nomeado para outro posto - disse ele. - Depois de vinte anos de carreira nestas paragens selváticas, tenho direito a um lugar em Nice ou em Monte Carlo.
No momento de brindar com José Martin, o cônsul disse:
-Que se passa consigo, jovem sábio?
O professor Martin desculpou-se. Estava um pouco fatigado. Foi pelo menos o que ele disse. Depois perguntou:
-Tem a certeza de que o homem que viu enforcado era o académico Leónidas Andréev? O senhor tem a certeza?
- Conhece-o? - perguntou o cônsul. - Não me admira. Os homens de ciência conhecem-se uns aos outros. Era um grande sábio, uma sumidade. O azar, para ele, foi ter sido ministro antes da ocupação do país pelos Sovietes. Aqui, todos os que foram ministros antes da chegada dos Russos foram enforcados. São as leis actuais. Que podemos nós fazer? Dura lex, sed lex. Onde conheceu o infeliz Leónidas Andréev?
-Não o conheci pessoalmente - disse José Martin. - Não o conheci pessoalmente, mas ouvi falar dele.
- Isso não me admira absolutamente nada - disse o cônsul. - Seja qual for o intelectual europeu, ouviu falar de Leónidas Andréev.
O cônsul continuou a avançar e a brindar. Um criado em libré servia as sanduíches de caviar. Era um caviar realmente excepcional. José Martin sentia-se pouco à vontade. Desculpou-se de não poder comer. Estava muito pálido.
- Nem mesmo uma sanduíche ? - disse o cônsul. - Não se encontra um caviar semelhante, a não ser no nosso consulado.
Toda a gente esteve de acordo em reconhecer que era um caviar excepcional, digno do consulado da pátria de José Martin.
A recepção estava no fim. As pessoas começavam a ir-se embora. O professor José Martin aproximou-se do comandante do navio que tinha trazido as armas automáticas aos Russos e aos Búlgaros, um homem jovem, extremamente simpático.
- Comandante, um intelectual búlgaro pediu-me que interviesse junto de si para que o embarcasse clandestinamente. Devo frisar que se trata dum condenado político, dum condenado à morte.
-Traga-o com urgência - disse o comandante. - O senhor indica-me o sítio e eu mando o escaler buscá-lo. Não é preciso insistir, traga-o. é tudo. Nem sequer precisa de me dizer obrigado.
O comandante dizia-lhe que trouxesse, como se se não tratasse dum condenado à morte, mas duma encomenda inofensiva, dum objecto. Ele dizia-o com simplicidade.
--Eu não ousava falar-lhe nisso - disse o professor.
- Porquê, professor? - retorquiu o comandante.
- Trata-se dum condenado, dum embarque clandestino - acrescentou José Martin. - é ilegal...
- Que vão para o diabo mais a legalidade- disse o comandante. - A legalidade deles, mijo-lhe em cima. Compreende-me? Sou marinheiro. Um marinheiro sabe o que é legal e o que não é. Que os da terra não venham quilhar-nos, a nós, marinheiros, com a legalidade. Quando um homem se afoga, professor, a única lei válida é lançar-lhe um cinto salva-vidas. Eis o que é legal. E isto todos os marinheiros o fazem, em todos os mares. Quando um homem está em perigo de se afundar, o senhor não se ocupa de teorias. Ocupar-se de teorias seria criminoso. Lança-lhe imediatamente um cinto salva-vidas, sem nenhuma hesitação. A hesitação é criminosa, é o primeiro mandamento dum marinheiro. Os homens destes países infelizes, ocupados pelos Sovietes, afogam-se em terra, sufocam. Afundam-se... Estão em perigo de morte. O estado policial é mais terrível que as vagas do mar. Nesses infelizes países, as pessoas têm mais necessidade de cintos salva-vidas do que se estivessem debaixo da água, no meio do oceano. Há na Bulgária, na Roménia, mais pessoas que se afogam na terra que no meio do oceano em plena tempestade. É na terra que se encontram os verdadeiros náufragos.
Nesses infelizes países, dever-se-iam constituir grupos de salvadores para os náufragos da terra, como se constituem grupos de salvamento na marinha. Nos países ocupados pelos Sovietes, o perigo de naufrágio é maior que na água. Cada vez que aqui vimos, ao mar Negro, nós pescamos de novo quatro ou cinco destes náufragos nas vagas do progresso soviético. Metemo-los a bordo, professor, num estado de esgotamento e de desespero que os náufragos do mar não conhecem senão depois de dois ou três dias de luta contra as vagas... Verdadeiros destroços, estes náufragos, nas vagas do terror do progresso eslavo. Estão completamente esgotados. Apanhamo-los onde se encontram, umas vezes um estudante, outras um padre, um oficial, um camponês, ou um mineiro. Lançamos-lhe pura e simplesmente um cinto salva-vidas. é esta a lei dos marinheiros. Os da terra deveriam aprender com os marinheiros o que é legal... A legalidade é salvar um homem que se encontra em perigo. O senhor ouviu falar do que aconteceu a este académico ? Porquê ? Porque ele tinha sido ministro antes da ocupação da Bulgária pelos Russos... Traga-me o seu homem. Diga-me onde é o lugar do encontro para que eu lá envie o escaler. Os meus marinheiros sabem livrar-se de apuros. Quando mo manda ?
--Por agora queria apenas perguntar-lhe se seria possível - disse Martin.
- Não hesite - disse o comandante. - Onde está o seu homem neste momento?
Martin calava-se. O seu homem, tinham-no enforcado em cima da estrada.
- Responda, professor, onde está o seu homem ? Onde se encontra neste momento ?
O comandante tinha uma maneira estranha de pronunciar a palavra homem. Quando dizia homem, tinha-se a impressão de que pronunciava um nome próprio. Quando pronunciava a palavra homem, parecia que o comandante se referia ao único homem que existia sobre a terra. E ele pedia a José Martin que lhe dissesse onde estava o seu homem. O homem de José Martin era o velho académico. E José Martin tinha deixado morrer o homem, tinha deixado morrer o seu homem. Tinha-o deixado cortar em bocados pelos milicianos, tinha deixado os milicianos cortarem-lhe o nariz, a língua, as orelhas, arrancar-lhe os olhos, com as baionetas. Eis o que José Martin tinha feito pelo seu homem, pelo velho académico Leónidas Andréev. Ivanoff e Mónica tinham vindo a casa dele, José Martin, para lhe pedir um cinto salva-vidas para o velho em perigo, e José Martin tinha recusado. E, agora, o comandante pedia a José Martin que lhe dissesse onde estava o seu homem. Dir-se-ia que lhe pedia contas.
- Eu não posso trazê-lo desta vez - disse José Martin. - Será para a próxima.
- Não hesite nunca - disse o comandante. - Aprenda isso com um marinheiro.
José Martin desculpou-se, pretextando uma indisposição. Partiu. Tinha nos ouvidos a pergunta do comandante: "Onde está o seu homem? O seu homem..."
José Martin nunca mais tinha falado a Mónica da morte do velho académico. Mas agora, como se encontrava outra vez em Varna, tinha-lhe confessado o drama da sua alma.
-Não nos esquecemos nunca dos nossos crimes - disse ele. - Aquele que matou um homem tem, toda a sua vida, a voz e o olhar da vítima na memória. O pecado é mais doloroso para a memória que para a carne. Cada Outono, quando as folhas caem, fico apavorado. Cada folha que me cai no chapéu ou no ombro me enche de medo. Tenho a impressão de que são bocados do corpo supliciado de Leónidas Andréev, o enforcado, que deixei apodrecer no espaço. O cônsul dizia: "Ninguém tem o direito de despendurar o corpo dum enforcado. Só o vento e as intempéries têm o direito de despendurar o corpo dum cadáver enforcado pela polícia." Cada vez que o vento sopra e cada vez que vejo um papel ou uma folha levados pelo vento, tenho a sensação de que é um pedaço do corpo de Andréev. Do seu corpo que o vento quer arrancar à corda. O corpo do meu homem, como dizia o comandante do navio...
O escaler do barco dirigia-se para teira. Dentro de alguns instantes tornaria a partir. Mónica era a única passageira a bordo do barco que partia de Varna. A noite caía. Era die blaue stunde (1). O professor José Martin esperava no porto a chegada do escaler. As vagas do mar Negro eram sombrias como a tinta. O mar parecia ser um imenso pássaro negro decapitado e que se debatia, tocando a costa com cada uma das vagas, "como se elas tivessem sido asas.
- A tua mãe não estará muito zangada comigo? - perguntou de repente Mónica.
* (1) A hora azul, a hora crepuscular e quase irreal. *
O escaler que devia levá-la aproximava-se.
- Porquê? - perguntou o professor.
- Poderias ter tido no teu país uma carreira brilhante. Ficaste na Bulgária por minha causa. Não voltaste a ver a tua pátria desde há dez anos por minha causa. A tua mãe sabe que, se ela não te pôde ver durante dez anos, foi por minha causa. Estará com certeza zangada. Fui eu que retive o filho longe dela.
- A minha mãe não estará zangada - disse o professor. - A minha mãe sofre por não me ver, mas imagina que o filho é um herói. Em todas as minhas cartas eu lhe disse que ela se enganava, que eu não sou um herói. E ela tem a mesma opinião de ti. Pensa que nós somos salvadores de homens, que ambos praticamos feitos extraordinários. Peço-te: acaba com essa imagem que ela faz de nós. É falsa. Diz-lhe como são as coisas. Eu não deixei a Bulgária porque teria sido insensato partir e deixar-te só entre as mãos deles. É tudo. Diz-lhe que seja justa. Não parti daqui porque os Russos e os Búlgaros não te davam o visto de saída. Não há nenhum heroísmo nisto. é muito simples. Um de nós não tinha o visto de saída, nada mais. E depois ela persuade-se que fazemos parte duma organização clandestina que salva os homens nas prisões. Orgulha-se disso. Qualquer mãe fica orgulhosa de saber que o filho é um herói, que a nora é uma heroína. Diz-lhe francamente, Mónica, para que ela não se iluda. Diz-lhe que fazemos o que fazem todos os marinheiros do mundo. Quando um homem se afoga, lança-se-lhe um cinto de salvação. A nossa atitude não tem nada de heróico. Fazemos o que fez Verónica, quando Jesus subia ao Gólgota. Ela enxugou a testa de Jesus com um lenço porque Jesus tinha a testa coberta de suor, e porque não podia enxugar sozinho esse suor. é tudo. Não há acto mais simples, é o acto mais simples que um homem pode praticar neste mundo. Por causa disto Verónica nem sequer é mencionada nas Escrituras. Nenhum evangelista fala dela, Dize à minha mãe que nós apenas fizemos o que fez Verónica no Gólgota. A coisa mais simples da terra. Tenta convencer minha mãe de que nós não somos heróis, mas simplesmente homens.
O professor acendeu um cigarro. Tinha a mesma cigarreira que no dia em que em Lipova recusara o favor a Mónica e Ivanoff. Tinha-a guardado. Nunca se havia separado dela. Por cada homem que ajudara a ficar com vida, tinha gravado um traço a canivete. Cada traço representava uma vida salva, um homem embarcado, um homem escondido e que atravessara clandestinamente a fronteira, um bilhete de avião. A cigarreira de cerejeira ostentava centenas de traços gravados. Era isto a obra de José Martin: centenas de vidas salvas.
-Não há aí heroísmo - disse ele, olhando para a cigarreira. - Os homens sabiam que nós não recusaríamos. E vinham a nós. Onde podiam eles ir? Os outros, os do estrangeiro, sabiam que ajudávamos estes homens e ofereceram-nos bilhetes de avião, de caminho de ferro, dinheiro. As sociedades de beneficência, as companhias de navegação, as agências de viagem do estrangeiro deram-nos a sua ajuda. Não temos nenhum mérito especial. Os estudantes ajudaram-nos e ajudam-nos ainda. Todo o mérito lhes cabe a eles. Dize à minha mãe que se não zangue, mas o filho não é um herói. Somos como Verónica, não merecemos ser mencionados. Praticamos os actos mais simples que pode praticar um homem.
O escaler estava no cais. Mónica subiu para ele, ajudada por dois marinheiros.
- Toma cuidado que te não aconteça nada - disse ela. - Toma muito cuidado. Escreve-me todos os dias. E toma cuidado...
O escaler arrancou Mónica de terra. Ela afastou-se dizendo:
- Toma cuidado, José, muito cuidado.
Não se ouviu mais a sua voz. O escaler afastava-se. Mas as vagas repetiam para o homem que tinha ficado na praia: "Cuidado, cuidado, toma muito cuidado..."
As vagas do mar Negro não repetiam isto para Mónica, a mulher que partia sozinha por mar. As ondas repetiam: "Cuidado, cuidado" para o homem que ficava na terra. Porque, desde a vinda dos Russos às costas do mar Negro, a vida é terrivelmente perigosa na terra, mais perigosa que no mar. E era por isso que o mar Negro repetia ao professor que ficava na terra: "Cuidado, cuidado, cuidado..."
A POLíCIA Há-DE PROCURá-LO.
O professor José Martin dirigiu-se para a estação. Tinha exames no dia seguinte. O comboio para Sofia partia às 21.30h. Na estação de Varna, centenas de viajantes esperavam-no. Não havia bancos suficientes na sala de espera. Os viajantes esperavam nos cais sentados no próprio cimento com a cabeça encostada à parede.
Logo que chegou à estação, José Martin foi invadido por uma sensação terrível. Tinha medo. Tinha sem cessar no espírito as palavras da mulher: "Cuidado, que não te aconteça nada, José, toma cuidado." Estava transido de angústia. Tinha medo que o comboio descarrilasse. Tinha medo duma catástrofe de caminho de ferro.
"É fadiga", disse ele para consigo.
Para esquecer o medo, começou a passear no cais, a passos largos. Lembrava-se da obra dum dos seus colegas antropólogos, que tinha feito pesquisas nos trópicos, na América do Sul.
O colega de José Martin tinha estudado os índios das florestas tropicais. Estes índios viviam completamente nus, apenas cobrindo a cabeça. Quando uma criança nascia, penteavam-na com uma espécie de capacete feito de casca de árvore, muito incómodo. As crianças, os homens, as mulheres usavam na cabeça este capacete de casca desde o berço até à tumba. Estavam nus, mas de cabeça coberta. Dormiam com capacete, trabalhavam com capacete, entregavam-se ao amor com capacete, alegravam-se e entristeciam-se com capacete. Era um capacete sólido, semelhante aos que traziam os cavaleiros na Idade Média. é que nesta região há um insecto cuja picada não produz nenhum efeito se atinge o braço, as pernas, os olhos, o peito. Esta mosca tem uma trompa comprida como a agulha duma seringa. Mas se o insecto consegue picar na cabeça, é perigoso. Pica a pele do crânio.
Sob a pele desenvolve-se uma larva que fura os ossos do crânio. Esta larva não manifesta interesse algum pela pele
ou carne do homem. Procura unicamente ; o cérebro. é uma larva que apenas pode viver na massa cinzenta do cérebro humano. O cérebro humano é a mais bela e a mais tenra de todas as matérias que existem no universo, a mais bela, a mais nobre. É somente nesta matéria que a larva pode viver. Por ela não poder viver senão no cérebro, denominaram-na "a larva racionalista". Uma vez no cérebro, multiplica-se com uma rapidez assombrosa. Um só verme chega para multiplicar centenas doutros. Para isso apenas tem necessidade de uma coisa: a massa cinzenta do cérebro humano. £ tudo. Ele multiplica-se. Centenas e milhares destes vermes racionalistas aparecem então. Roem o cérebro humano por porções, por compartimentos. O homem, em cujo cérebro, por desgraça, um destes vermes penetrou, perde primeiro a alegria. Depois perde a tristeza. Nunca mais está alegre, nem triste. O verme racionalista devora em seguida outro fragmento de cérebro: o homem fica sem nenhuma espécie de ideal, sem nenhuma esperança. Depois o homem que tem este verme na cabeça torna-se indiferente à noção de direcção. Todas as direcções lhe são indiferentes. A vontade começa a fatigar-se, por sua vez. Tudo o que pode acontecer a este homem lhe é indiferente. Já não tem frio, nem fome, nem calor, nem sede. Este homem tem uma força de resistência terrível. Pode viver muitíssimo tempo, no meio dos outros homens. Mas vive como um objecto indiferente. E é o mais obediente dos homens. Já não tem nenhuma preferência, e se lhe ordenardes que se lance à fogueira, lança-se à fogueira. O verme roeu as ilusões, e até o desejo de viver... Desde que vive na Bulgária, Martin está obcecado por este verme do cérebro. Quando os Sovietes aparecem em algum lado, começam, à semelhança da mosca, por introduzir um verme no cérebro humano. é o medo, a inquietude e a insegurança, combinadas de maneira muito hábil. Nas florestas tropicais, os homens protegem a cabeça sob um capacete de casca. Num país ocupado pelos Sovietes, é impossível aos homens salvarem a cabeça. O verme penetra-lhes no cérebro. O medo introduzido pelos Sovietes no cérebro dos cidadãos tem precisamente os mesmos efeitos que aquele que é produzido pelo verme dos trópicos. O homem perde a alegria, subitamente. No lugar em que aparecem os Sovietes, os homens já não sorriem, como se tivessem o "verme racionalista" no cérebro. Depois os homens perdem as ilusões e a vontade. A morte, a vida, tornam-se-lhes indiferentes.
O professor José Martin tinha um medo horrível de que este verme soviético penetrasse no seu cérebro. A maior parte dos estudantes, a maior parte dos búlgaros tinham-no no cérebro. O que é desesperante no homem que tem o verme no cérebro é o seu olhar: é neutro e cinzento. Se lhe pousardes a mão no ombro, ou se andardes atrás dele, o homem volta-se e levanta os braços, pronto a dizer: "Rendo-me". é a única expressão que conhece o homem que tem o verme no cérebro. "Rendo-me". Desde o nascimento até à morte, ele apenas espera uma coisa: levantar os braços e gritar: "Rendo-me".
O professor José Martin tinha-se defendido ferozmente, com obstinação, para não deixar o verme soviético instalar-se-lhe no cérebro. Teria preferido apanhar a poliomielite. A paralisia do corpo é menos grave que a paralisia da alegria, da tristeza, da vontade, do desejo de viver, das ilusões. O homem que tem este "verme racionalista" no cérebro já não tem nem bom, nem mau humor. Não tem mais nada. é semelhante a um bocado de madeira, a um bocado de ferro, ou uma pedra. Não conhece senão os gestos automáticos, os gestos precisos, e a submissão. Submete-se a tudo. Desde que o exército soviético ocupe um país, injecta, por intermédio de todos os postos de polícia, pela milícia, pelos comissários políticos, este verme nos cérebros. Depois organizam os planos de progresso. Mas primeiro inoculam o verme a todos os cidadãos.
O professor parou bruscamente. Os alto-falantes anunciavam que nenhum comboio de passageiros abandonaria a estação enquanto as mercadorias que se encontravam no porto não fossem carregadas. Os passageiros foram convidados a ajudar primeiramente o carregamento destas mercadorias.
Os homens sentados nos cais levantaram-se uns atrás dos outros. Achavam normal responder ao convite. Queriam todos partir, mas nenhum comboio de passageiros partiria sem que as mercadorias do porto estivessem carregadas. Era normal que todos os passageiros colaborassem no carregamento das mercadorias, para poderem partir. Era lógico, tão lógico como comprar um bilhete antes de partir, perfeitamente lógico. A lógica é capital para um homem a quem o "verme racionalista" invadiu o cérebro. O homem com o cérebro cheio de vermes não deseja na vida senão a "pequena lógica". Ela chega-lhe. Ela substitui o pão. Ela substitui a água. Ela é vital, e os Sovietes servem-na regularmente. Não se trata da lógica pura e simples. Essa não é necessária. O que é preciso servir aos homens com o cérebro recheado de vermes, para que possam viver, é uma pequena lógica, uma lógica quotidiana, que deixa de ser válida dum dia para o outro. Como os alimentos, como a sopa, esta lógica deve ser fresca. Não resiste dum dia para o outro. No dia seguinte, haverá outra. O principal é que ela seja servida quente como uma iguaria, a certas horas, a pequena lógica, como a sopa. Ela conserva a vida. Porque a lógica sem mais nada, a verdadeira lógica, a que se pode conservar inalterada durante anos, é devorada pelo verme do cérebro.
Agora servia-se aos passageiros a explicação lógica do facto: se não carregarem as mercadorias, os comboios de passageiros não partem. Os passageiros deixaram pois a estação uns atrás dos outros.
As mercadorias encontravam-se num recinto vedado ao público, na própria costa. O porto não ficava longe da estação. As mercadorias para carregar eram caixotes brancos. À luz dos faróis, a coluna de passageiros dirigiu-se para os caixotes brancos, no porto. Eram caixotes descarregados do barco em que Mónica tinha partido.
O professor José Martin dirigiu-se para o porto com os outros passageiros. Havia milhares e milhares de caixotes brancos. Numa extensão de perto de um quilómetro, os caixotes brancos, semelhantes a imensos cubos de açúcar, estavam alinhados uns ao pé dos outros.
Surpreendemo-nos por vezes por ver quantas mercadorias podem caber dentro dum barco. Todos estes caixotes tinham sido trazidos pelo navio em que Mónica acabava de partir. Tinham sido descarregados em embarcações especiais. O mar não era suficientemente profundo para permitir ao navio vir até terra; agora os caixotes tinham de ser transportados em carrinhos até às carruagens bagageiras.
Os passageiros foram divididos em grupos de seis. Além dos passageiros, havia outras pessoas, cidadãos de Varna mobilizados para efectuar este trabalho de "interesse colectivo". Seis homens carregavam um caixote de pinho. Colocavam-no num carrinho. Empurravam em seguida o carrinho numa avenida asfaltada. Empurrar era fácil. Quando alcançavam o cais e quando o carrinho tinha de subir, era preciso empurrar com muito mais força. Do cais, doze braços içavam o caixote e colocavam-no na carruagem bagageira. Não era um trabalho difícil. Os homens executavam-no em silêncio.
Em pouco tempo, tinham-se formado duas filas, semelhantes a filas de formigas que se deslocassem em sentido contrário. A fila com os carrinhos vazios dirigia-se para o porto e a fila com os caixotes brancos dirigia-se para o cais onde estavam estacionados os vagões.
Sob a Lua, o espectáculo era belo. José Martin deu a primeira volta. De quando em quando alguém gritava:
- Cuidado, frágil. Cuidado, frágil.
Também este grito dos guardas e dos polícias não deixava de ter poesia.
O principal para um homem está em saber encontrar a poesia e apreciá-la. com boa vontade, podia achar-se poesia, mesmo nestas duas filas de homens, uma com carregamentos negros e vazios, outra com carregamentos brancos, com os caixotes. José Martin podia encontrar poesia nas vagas do mar que martelavam: "Cuidado, cuidado, cuidado..." e nos gritos dos polícias que diziam: "Cuidado, frágil".
O grupo de José Martin carregou um caixote, o primeiro.
- No outro sentido - gritou o fiscal.
Efectivamente, tinham escrito no caixote, na língua de José Martin e em búlgaro, em que sentido se tinha de colocar. Martin e cinco companheiros seus tinham-no colocado ao contrário no vagão.
Desfizeram o engano. No caixote tinham escrito na língua materna do professor Martin: "Natureza da mercadoria: Projectores. Data do fabrico: Fevereiro de 1956. Lugar do fabrico:...".
Martin estava extremamente contente.
Tinha lido o nome da cidade onde tinha nascido, onde tinha passado a infância, onde tinha feito os estudos universitários, a cidade onde vivia sua mãe, a cidade para onde Mónica tinha partido e onde ele estaria, por sua vez, daí a duas semanas. Seja que homem for se alegra, ao ler, no estrangeiro, o nome da sua cidade. José Martin alegrava-se do mais íntimo de si. A sua cidade tinha fabricado estes projectores e enviava-os para iluminar a Bulgária. A pátria de José Martin enviava a luz. é a mais bela dádiva que homens podem fazer aos outros homens.
O professor José Martin trabalhou com entusiasmo no carregamento dos caixotes. Agora sabia o que havia lá dentro. Eram caixotes que continham luz. Eram fabricados no seu país, e isso dava-lhe coragem.
À meia-noite o trabalho estava quase terminado. Deram aos passageiros pão e água. Era uma recompensa. Depois carregaram-se os últimos caixotes. Os reflectores dos caixotes de pinho eram imensos, reflectores de um metro de diâmetro.
A pátria de José Martin tinha descoberto, sem dúvida, um novo sistema de iluminação das cidades. Os Búlgaros servir-se-iam dele para iluminar Sofia e Varna. A pátria de José Martin era a campeã das invenções. No curso da História a pátria de José Martin tinha enviado a luz, pelos seus filósofos, pelos seus escritores, pelos seus inventores, a todos os povos da terra. A missão da sua pátria era de difundir a luz por toda a parte, sob todas as formas. E agora que os Sovietes já não permitiam a vinda sob outra forma, a pátria de José Martin tinha, assim, achado o meio de enviar a luz aos países ocupados, por esses projectores. Era, sem dúvida, uma forma inferior de luz, mas era, ainda assim, luz. Quanto mais não fosse por esse significado simbólico, o facto era magnífico, digno da sua pátria. O professor desejou compartilhar a sua alegria com alguém. Disse ao companheiro:
- Estes projectores vêm do meu país. São fabricados na minha cidade natal.
O búlgaro não respondeu. De resto, ninguém falava. Somente os guardas gritavam de quando em quando: "Cuidado, cuidado..." Os homens trabalhavam em silêncio. Quando se não ouvia a voz dos guardas, ouviam-se as vagas do mar Negro. Também elas gritavam: "Cuidado..." O mar não gritava "cuidado" aos projectores, mas aos homens.
Os passageiros continuavam a trabalhar em silêncio. Cada um tinha pressa de acabar o trabalho, o mais rapidamente possível. Enquanto estes caixotes não estivessem carregados, os comboios não partiriam, e os passageiros queriam partir. Era para isso que tinham vindo à estação. E para partir tinham de carregar os caixotes. Então carregaram-nos com. aplicação. Sabiam todos que faziam uma coisa lógica, porque a maioria tinha no cérebro o "bicho racionalista".
- Toda a Bulgária será iluminada pelos projectores da minha pátria - disse José Martin. - é bonito enviar aparelhos de iluminação.
- é para os campos de trabalho - disse o búlgaro. - Para o trabalho de noite. para alumiar os prisioneiros, e fazê-los trabalhar no canal mesmo de noite...
A tua pátria teria feito melhor em os guardar nela.
A Bulgária construía com efeito um canal. Nele trabalhavam um milhão de homens, só prisioneiros. Tinham instaurado o trabalho de noite. Foi para os trabalhos de noite destes prisioneiros que a Bulgária encomendou estes projectores ao país de José Martin: a fim de prolongar os trabalhos forçados mesmo de noite. No país de José Martin trabalhavam com método. Tinham provavelmente calculado quantos prisioneiros podiam ser iluminados e vigiados por um projector. Deviam ter com certeza utilizado manequins, nas fábricas da sua cidade natal, a fim de saber quantos homens podiam ser contidos sob o terror de um só reflector. Martin leu de novo a etiqueta. A sua cidade natal, uma das metrópoles mais civilizadas do mundo, a sua cidade que, no decorrer dos séculos, tinha espalhado tanta luz sobre a terra, a sua cidade fabricava agora esta nova luz: projectores para iluminar os corpos descarnados dos prisioneiros, para iluminar os campos de concentração dos Russos. A luz fabricada pela pátria de José Martin em 1956, a última forma de luz que enviava agora sobre a terra a sua grande pátria civilizada do Ocidente...
O comboio partiu por volta das duas da manhã. Logo que se instalou no banco de madeira da carruagem, José Martin amodorrou-se, mas somente por um instante. Acordou aterrado. Havia pessoas de toda a espécie. Diante dele, estavam duas pessoas que ele já tinha visto: rostos que o professor José Martin teve a impressão de já ter encontrado, no comboio da manhã, quando tinha vindo com Mónica a Varna, bem como na praia de Varna: rostos que lhe parecia ter já visto na sala de espera. Eram dois jovens pálidos.
- Creio que carregámos os caixotes juntos - disse a um dos dois o professor José Martin.
O jovem fechou os olhos, lentamente. Fingiu não ouvir. O comboio avançava para Sofia. Eram dois rostos conhecidos, muito conhecidos. Tinham qualquer coisa que afastava as pessoas, alguma coisa que as conservava acordadas, prontas para o que desse e viesse.
"Polícias", disse para consigo o professor.
E ficou com os olhos abertos. O seu medo era fundado.
No dia seguinte, no Instituto, o professor José Martin achou um convite do embaixador Palatos, pedindo-lhe que passasse pela Embaixada naquela mesma manhã. Para o professor José Martin, embora ele já tivesse os cabelos grisalhos, o embaixador era "Sua Excelência o Estado". - Sua Excelência o Estado. Ele tinha aprendido isto na infância, e a designação tinha ficado. A mãe do professor Martin tinha nascido nas colónias, nas ilhas do mar do Sul. Embora falasse perfeitamente a língua oficial, misturava de tempos a tempos algumas palavras do seu país natal às suas frases. Estas palavras eram como os seixos de cores que se encontram nas praias. Nas suas frases, as palavras das ilhas soalheiras eram outras tantas pérolas de cores. Para ela, por exemplo, as pessoas estavam divididas em duas categorias, como na sua ilha natal, Havia os homens verdadeiros, os homens sem mais nada, e havia os funcionários do Estado: os "Estados" (sic). Para a mãe do professor, qualquer homem fardado era um "Senhor Estado", Signor Estado. Um polícia era um Senhor Estado. Até os empregados do gás e electricidade que levavam os recibos pela escada de serviço da sua elegante residência particular eram Senhores Estados. O empregado das carruagens-camas ou o dos caminhos de ferro eram Senhores Estados. Um embaixador era um Estado, um cônsul também. Eram o Estado - com uma galantaria de mulher muito bela, muito elegante e muito admirada, a mãe do professor perguntava em Paris a um agente de circulação: "Signor Estado, a Rua da Paz, se faz favor ?" Achava normal dizer ao polícia, ao oficial, ao cônsul: "Obrigado, Senhor Estado. Adeus, Senhor Estado..." Na infância, quando passeava nos parques públicos da sua metrópole e quando queria colher uma flor, a mãe dizia-lhe:
- Não colhas flores, José, o Estado vê-te.
O Estado era o jardineiro fardado.
- Não atravesses a rua, José, o Estado vai ver-te.
José Martin tinha conservado este costume. Para ele o embaixador do seu país em Sofia era Sua Excelência o Estado.
José Martin chamou Ivanoff, que se tinha tornado seu assistente, e a mulher Roxane.
- Tome conta dos exames. Fui convidado a ir a "Sua Excelência o Estado".
José Martin teria gostado de dizer-lhes que, na véspera, durante a sua viagem a Varna, tinha sido espiado por dois polícias.
Ivanoff e a mulher eram seus amigos e colaboradores. Mas não lhes quis meter medo.
- Roxane encarregar-se-á do arranjo de sua casa, durante o tempo que estiver sozinho. Mónica pediu-lhe que se ocupasse da sua casa. Ela deu-lhe a chave. Se o senhor vir que alguém entrou em sua casa, na sua ausência, não tenha medo. Não é a polícia. é Roxane.
- Obrigado - disse o professor. Depois, bruscamente, perguntou a Ivanoff:
- Você já teve medo?
- Na minha infância - disse Ivanoff. --Ontem à noite, na estação de Varna,
e durante a viagem de regresso, tive medo. Tinha a sensação de que me ia acontecer alguma coisa.
- É a fadiga - disse Ivanoff. - O senhor está esgotado. Deveria ter recusado trabalhar no carregamento desses caixotes. Se o senhor se tivesse dado a conhecer, se tivesse dito que era o professor José Martin, eles não o teriam obrigado a trabalhar.
- Não é o cansaço. Tenho estado muitas vezes fatigado na minha vida - disse o professor. - Tenho estado fatigado muitíssimas vezes, sem ter medo. Ontem à noite tive medo - é esgotamento.
- Não - disse o professor. - Leste Estrabão? Há na geografia de Estrabão a descrição de um povo que se chamava "os homens sem boca". Denominavam-nos assim porque eles nunca comiam nem bebiam. Alimentavam-se exclusivamente do perfume das plantas, dos legumes, das flores, do leite, do mel, dos frutos. Um povo admirável. Nunca um "homem sem boca" pôde ser capturado. Logo que um polícia, um soldado, um embaixador se aproximavam dele, o homem sem boca morria subitamente. O cheiro dos Estados, o cheiro de polícia, de diplomata ou de um soldado matavam-no dum modo fulminante...
O professor sorriu. ?
- A minha mãe afirmava que um dos seus antepassados devia ser um "homem sem boca", e que toda a nossa família tinha alguma coisa dos "homens sem boca". Quanto a mim, creio que qualquer homem tem alguma coisa da raça dos "homens sem boca". Jesus, durante a Ceia, era semelhante a um "homem sem boca" que adivinha a aproximação dum Estado. Judas tinha naquela noite o cheiro dum Estado. Tinha concluído a aliança com a polícia, com os Estados. Jesus não podia suportar este cheiro. Era por causa disto que ele estava triste, e que disse, com o pressentimento da morte, que alguém o trairia. Foi aquele medo que eu senti ontem à noite, como Jesus, um medo semelhante ao que sentiam os "homens sem boca" quando se aproximavam deles os polícias, os soldados ou os diplomatas... José Martin viu as horas. Levantou-se.
- é tempo de partir. Sua Excelência o Estado espera-me. Obrigado e adeus.
- Passarás a ferro os seus fatos - disse Ivanoff à mulher. - Os fatos do professor estão bastante amarrotados.
O professor dirigiu-se para a Embaixada num passo apressado.
O salão da Embaixada de Sofia ornamentava-se com uma multidão de espelhos, de grandes espelhos, de espelhos de molduras douradas de estilo "Queen Anne".
O professor José Martin entrou no salão. O criado fechou a porta e desapareceu. Agora o professor José Martin achava-se sozinho, com os espelhos. Mirou-se neles. Havia muito tempo que o professor não se mirava em tão grandes espelhos. Mirar-se no espelho de barbear, na parede da casa de banho, é uma coisa, mas é outra o mirar-se nestes imensos espelhos de cristal onde nos vemos da cabeça aos pés. Vêem-se os movimentos, vêem-se mesmo as intenções. Quando nos olhamos em tais espelhos, temos a impressão de ver até aos pensamentos.
Nos onze anos em que tinha estado na Bulgária, o professor José Martin estudara este povo a fundo. José Martin tinha examinado dezenas de milhares de cabeças búlgaras. Tinha-as fotografado, estudado. Tinha-se ocupado da alma búlgara, do olhar dos Búlgaros, da fé e do carácter dos Búlgaros. Cada povo ri e chora de uma certa maneira que lhe é peculiar. O professor José Martin conhecia tão perfeitamente o "homem búlgaro" que teria reconhecido um búlgaro, a distância, nas maiores aglomerações, nas avenidas de Paris, de Londres ou de Nova Iorque. A maneira dos Búlgaros de conservar a cabeça e de olhar era-lhe familiar. Mas ele olhava para si próprio no espelho com surpresa, e dizia para consigo: "Tenho uma cabeça búlgara..." Os espelhos da Embaixada de Sofia eram espelhos de cristal fino, espelhos de toda a confiança, e mostravam claramente que o professor José Martin tinha uma cabeça búlgara, tipicamente búlgara.
"Tenho incontestavelmente uma cabeça búlgara", disse para consigo o professor José Martin, olhando atentamente para os seus olhos, para o nariz, para a testa, para o queixo. (Exactamente semelhante aos milhares de cabeças búlgaras das minhas fichas do Instituto. Uma cabeça búlgara como aquela a que se referem as minhas comunicações aos Institutos de antropologia do estrangeiro.)
O professor José Martin sabia com certeza que não tinha nas veias a menor gota de sangue búlgaro. Era certo que a mãe, durante toda a sua existência, nunca tinha visto nenhum búlgaro. Os seus pais tinham vivido em lugares onde nunca um búlgaro tinha passado. Nem eles, sequer, tinham alguma vez passado em locais onde se encontrassem búlgaros. Sabe-se que não existe certeza em questão de paternidade, mas era certo que a mãe nunca tinha visto um búlgaro, mesmo de longe, durante toda a sua vida. Era impossível.
Contudo quanto mais atentamente o professor Martin se olhava nos espelhos mais verificava que tinha uma cabeça búlgara, tipicamente búlgara. Não há mimetismo em matéria de conformação do crânio ou do rosto. Ele não podia ter adquirido uma cabeça búlgara unicamente pelo facto de viver havia onze anos na Bulgária ou de ter desposado uma rapariga búlgara. Nestas matérias o mimetismo é impossível. Um branco pode viver toda a sua vida entre os Japoneses, não terá nunca uma cor amarela. Por mais que um branco viva entre os Mongóis, não terá, por tanto, maçãs do rosto salientes. Um amarelo não terá nunca a pele escura mesmo que tenha vivido entre os pretos de África. Ele tinha desposado uma búlgara, é certo, mas um branco pode amar até à loucura uma mulher amarela, pode desposá-la no maior registo civil do mundo, pode dar-lhe uma dúzia de filhos, que não adquirirá por tanto a cor amarela. A sua pele ficará sempre branca, e a da sua mulher sempre amarela, seja qual for o seu amor.
E todavia o professor José Martin descobria nesse momento que tinha uma cabeça búlgara. O professor José Martin tinha uma cabeça tipicamente búlgara que teria podido fotografar e colocar a foto nos seus álbuns onde havia outros milhares de cabeças búlgaras...
Examinando as suas fontes grisalhas, cujos cabelos não eram cortados desde há muito, examinando a sua testa alta e pálida, examinando as faces, o queixo e o nariz, examinando-os atentamente no espelho de moldura dourada, o professor José Martin sorriu. Não, ele não tinha uma cabeça búlgara... Não existe mimetismo em matéria de raça. Ele parecia-se com os Búlgaros como um doente atingido de tuberculose pulmonar se parece com um outro doente atingido de tuberculose pulmonar. O professor José Martin tinha uma cabeça búlgara como um homem sem orelhas se parece com outro homem sem orelhas. Parecia-se com os Búlgaros como um homem sem dentes se parece com um outro homem sem dentes. é a ocupação soviética, todos os homens adquirem rostos semelhantes. Os dentes do professor José Martin estavam cariados. Eram negros, como eram negros os dentes dos Búlgaros desde a chegada dos Russos. Um homem com dentes negros e cariados parece-se fatalmente com outro homem com dentes negros e cariados, mesmo se entre os seus rostos não existe nenhuma semelhança. O professor José Martin tinha uma cabeça submetida aos mesmos tratamentos que as cabeças búlgaras. é por isso que ele se parecia com eles. As faces de José Martin eram pálidas, duma palidez característica, própria de todos os intelectuais de Sofia. Nesta pele pálida, havia arranhões. Desde a chegada dos Russos que as lâminas de barbear eram raras. Os homens barbeavam-se com velhas lâminas enferrujadas e amoladas várias vezes. De manhã todos os Búlgaros tinham faces esfoladas pelas lâminas de barbear, como também José Martin. E estes arranhões e esta cor baça faziam-nos assemelharem-se entre si. A cor dos cabelos era a mesma em todos os homens, mesmo que uns fossem loiros e outros morenos. O sabão fabricado segundo a receita soviética dava aos cabelos, lavados com água fria e com um sabão pegajoso, uma cor semelhante à da terra pisada. Os cabelos eram tristes. Os colarinhos das camisas estavam gastos, em todos os homens. Os ombros dos casacos eram quadrados, como os ombros dos casacos que traziam todos os Búlgaros desde a ocupação do país. A cor do casaco era a mesma para todos: a cor duma fazenda usada há demasiado tempo. As calças de José Martin eram semelhantes às calças dos outros búlgaros. O corte das calças russas é único no mundo. As calças trazidas pelos Soviéticos e introduzidas nos países que eles ocuparam são largas. Afastam-se constantemente das pernas. Quando a perna direita avança, a perna direita das calças vai para trás. Quando a perna direita fica atrás, a perna direita das calças vai para a frente. A perna e as calças nunca vão na mesma direcção. A perna vai sempre numa direcção e as calças que a vestem vão na direcção contrária. Tais são as calças soviéticas. E tinham sido introduzidas na Bulgária. E neste momento, avançando o pé, o professor Martin via a perna das calças ficar atrás. Quando se postou direito diante do espelho, as calças ficaram paralelas ao corpo. Queriam ficar separadas das pernas do professor. Dir-se-ia que as suas calças eram as de um estranho. Havia também o cinto das calças, um cinto de celulóide, da mesma matéria com que se faziam os pentes. Todos os cintos eram feitos desta matéria. Não existiam cintos de couro.
Mas o que dá expressão a um rosto são os olhos. Numa fotografia basta ver os olhos. Conforme os olhos, pode-se reconstituir todo o rosto. Segundo os olhos, pode-se reconstituir todo o homem. Os olhos são a quinta-essência de toda a criatura humana. Os olhos de José Martin eram negros. A maior parte dos Búlgaros têm os olhos castanhos. Mas, embora os olhos de José Martin fossem negros e não castanhos como os dos Búlgaros, ele olhava para o seu rosto no espelho como se tivesse olhado com olhos búlgaros. Era a única mudança fundamental no ser de José Martin: os olhos. Tinha os olhos dos Búlgaros. O olhar de José Martin era o olhar de todos os homens da Bulgária. Este olhar era tão tipicamente búlgaro que parecia idêntico à cor dos olhos. O olhar dos índios da América do Sul que tinham o verme racionalista no cérebro devia ser semelhante. Os Búlgaros, e o professor Martin como eles, olhavam para o universo como os índios dos trópicos, estes índios cujo verme instalado no cérebro lhes roía a matéria cinzenta, devorando-lhes as alegrias, as tristezas, as ilusões e as esperanças. O professor José Martin olhou para a boca e para os lábios. Tinha os lábios crioulos da mãe. Mas agora, no espelho com hábeis douraduras, a sua boca já não era nada da boca crioula da mãe. Era uma boca de búlgaro, e era a boca dos índios cujo cérebro era roído pelo verme racionalista, guloso de matéria cinzenta. O sorriso estava morto nos lábios de José Martin. Porque aquele que traz no cérebro o verme racionalista, injectado pela trompa em forma de seringa da mosca dos trópicos ou pela polícia soviética, esse nunca mais pode sorrir. Não se trata mais disso. O sorriso fica paralisado, como o corpo de um doente atingido de poliomielite. Os olhares e os lábios de José Martin eram olhares e lábios que já perderam o gosto do sorriso e da ilusão. Os olhares e os lábios que provam o sorriso e a ilusão são reconhecíveis. Os olhares e os lábios de José Martin contentavam-se unicamente com a pequena lógica. Era tudo o que provavam: a lógica quotidiana, a lógica do dia a dia, como a sopa que não é boa senão no momento em que se serve. Os seus lábios não podiam provar senão a lógica quotidiana, a lógica efémera. Aquele que não se alimenta senão de lógica quotidiana, de logicazinha, tem lábios e sorriso tristes. Naqueles onze anos em que tinha vivido com os Búlgaros sob a ocupação soviética, tinha-se infiltrado no cérebro do professor o verme racionalista, o verme que rói a bela matéria cinzenta do cérebro. Tinha o mesmo olhar que os homens aos quais a mosca dos trópicos tinha injectado, com a trompa em forma de seringa, o verme na cabeça, um olhar atento e neutro. O professor Martin deu dois passos. Esse verme, uma vez no cérebro, dá aos homens a mesma maneira de andar, de colocar a cabeça e olhar, prestes a virarem-se a todo o instante e a dizerem: "Eu não fiz nada. Não fui eu o culpado. Eu tive cuidado". Aqueles que tinham o cérebro ainda mais ferido pelo verme, estavam prontos, de noite como de dia, a levantar o braço e a dizer: "Fui eu o culpado, rendo-me, rendo-me..."
Nesse instante o embaixador entrou.
O professor Martin teve vontade de dizer: "Não fiz nada, absolutamente nada. Estava somente a ver-me ao espelho. Nada mais fiz. Via-me somente a este espelho..."
- Os Búlgaros querem enforcá-lo, caro professor - disse o embaixador. - Querem enforcá-lo, nem mais nem menos. Não estou a brincar. Digo-lho o mais seriamente possível: os Búlgaros querem enforcá-lo.
O embaixador Pilatos convidou José a sentar-se numa poltrona. Martin andou com precaução no sobrado do salão. Tinha solas de borracha.
Desde a ocupação da Bulgária pelos Russos, toda a gente tinha solas de borracha. As solas de borracha mancham os sobrados. O sobrado da Embaixada de Sofia era mais brilhante que os espelhos aos quais o professor se tinha visto. O sobrado da Embaixada de Sofia era feito duma madeira do Brasil, cor de mel. Toda a sinfonia das tintas douradas, desde o ouro mais doce e mais pálido até ao ouro cheio, consistente. Era o amarelo diáfano do mel fundido e o amarelo do ouro maciço. Encontravam-se nele todas as cores douradas que existem no universo, e eram cores naturais. Esta madeira trazida do Brasil era madeira odorífera. Exalava constantemente mais agradável perfume que o das flores, por permanente, uniforme e extremamente discreto.
- Sou seu embaixador - disse Sua Excelência Pilatos. - O senhor é um valoroso filho da nação. Vive na Bulgária. Sou o seu embaixador na Bulgária, tenho de o defender. Tenho de defender todos os filhos da nação.
O professor corou.
- O senhor está em grande perigo - disse o embaixador. - Sabia?
José Martin recordou-se da insistência de Mónica antes da partida:
- Toma cuidado, José. Toma muito cuidado, José. Podem acontecer-te tantos aborrecimentos...
O professor recordou-se que em Varna tinha tido medo, e que também no comboio tinha tido medo, e que havia confessado a Ivanoff ter tido medo.
- Tenho a impressão de que o senhor se não dá conta da gravidade da sua situação- disse Sua Excelência Pilatos--A sua vida está em perigo. Foi por esta razão que o chamei. Para o pôr de sobreaviso; numa palavra: para o salvar.
O embaixador tinha olhos azuis, como os olhos do falecido pai de José Martin. Estava vestido com a mesma elegância que o pai de José Martin.
- É uma sorte para si que eu o possa ajudar - disse o embaixador. - Ainda não há um ano, eu não lhe teria podido valer. Agora, em 1956, posso. E faço-o com prazer. Até aqui, vivia em Sofia como em estado de guerra com os Búlgaros. Hoje, o gelo quebrou-se, começamos a tornar-nos amigos. O alvorecer da coexistência pacífica entre os Sovietes e o Ocidente já se anuncia. Depois das visitas dos novos chefes da Rússia soviética ao Ocidente, depois das visitas dos chefes ocidentais à Rússia, as relações entre o mundo ocidental e o mundo soviético mudaram de aspecto. Daqui a pouco, poderemos estabelecer uma coexistência pacífica. é um grande êxito para a diplomacia ocidental. é uma vitória que nos deve ser atribuída somente a nós, os diplomatas. Mas voltemos ao nosso caso. Nesta fase nova de amizade e de sinceridade nas relações, foram trocadas certas confidências entre os meios oficiais búlgaros e os representantes ocidentais. No quadro dessas confissões e dessas confidências, repito-o, no quadro dessas manifestações de amizade recíproca, o Ministro dos Negócios Estrangeiros búlgaro confiou-me que o seu dossier estava completo. Sabe de que é acusado? De crime. Sabia que era perseguido por crime ?
Porque já está a ser perseguido... Não notou talvez que a polícia o seguia passo a passo?
- Não sabia - respondeu o professor José Martin.
Procurou no bolso a cigarreira de cerejeira e, antes de a abrir, olhou para os traços nela gravados. Eram as marcas de todas as vidas que tinha salvo.
Era por isso que a polícia o procurava. Certamente.
- Fume um cigarro - disse Sua Excelência Pilatos. - A sua detenção está iminente. O seu dossier, com todas as provas abonatórias, está completo. Os Búlgaros dizem que têm a prova não só de um crime mas de vários. Esperavam a partida de sua esposa para o prenderem. Não sei porque esperaram que ela partisse primeiro. Vão prendê-lo imediatamente.
José Martin acendeu o cigarro.
- A sua detenção estava prevista para o dia da partida da sua mulher. Não sei, repito, porque esperavam que ela partisse primeiro, mas eles queriam prendê-lo logo a seguir, logo a seguir à partida do barco, quer dizer, ontem.
O professor José Martin lembrou-se dos dois jovens que estavam no comboio quando ele tinha acompanhado Mónica a Varna. Os que se encontravam no porto de Varna, que estavam na sala de espera e em seguida no comboio de regresso. Lembrou-se do seu medo terrível. Era o medo da polícia. Ele descobria-a, como os homens sem boca. Era a primeira vez que ele tinha medo, e o seu medo era fundado. Era a proximidade dos dois Estados. Não era a fadiga, como dizia Ivanoff. Era o "cheiro" dos polícias.
-Se eles ainda o não prenderam, a mim o deve. Nós servimos afinal para alguma coisa - disse o embaixador Pilatos. - Os embaixadores servem, apesar de tudo, para alguma coisa, embora os senhores, os intelectuais, nos desprezem. Como lhe dizia, falava ontem dos acontecimentos com o Ministro dos Negócios Estrangeiros búlgaro. Durante a discussão, como falávamos de amizade, ele interrompeu-me e confiou-me: "Sabia que o seu distinto concidadão, o professor José Martin, foi preso, ou vai sê-lo se ainda não foi? Está iminente." Pedi-lhe que não tomasse nenhuma medida sem que eu lhe tivesse falado. Ele prometeu-me, a prova é que o senhor está aqui, e livre. Os Búlgaros acusam-no de toda uma série de crimes contra o regime. Toda uma série de crimes, torno a dizer-lho.
- A palavra "crime" é abusiva - disse o professor José Martin. - Se é um crime dar a um infeliz um bilhete de caminho de ferro, um pão ou uma cama para dormir, então todos os conventos, todos os templos deveriam mudar de nome, e nunca mais se chamarem conventos, e nunca mais se chamarem igrejas, porque socorreram os que estavam na desgraça. Deveriam chamar-se antros de bandidos, lugares de reunião dos criminosos.
- Meu caro professor, quod licet Jovis, non licet bovis - disse o embaixador Pilatos. - A caridade permitida aos conventos não é permitida aos indivíduos. Além disso até as igrejas já não têm o direito de albergar alguém sem o comunicar às autoridades. O senhor não tem autorização de dar assistência aos criminosos.
- Não tenho a intenção de pedir a ninguém a autorização de me portar humanamente- disse José Martin.
Tinha tomado um tom seco. Parecia-se agora com o pai, ao nórdico, ao ocidental. Já não era como os homens sem boca, como a mãe.
- As leis búlgaras consideram a sua actividade como criminosa. Ela é punível com a morte - disse o embaixador. - Os Búlgaros informaram-me que o condenaram à morte, sem nenhuma circunstância atenuante.
José Martin calava-se.
- Além disso, meu caro professor, essa actividade é pueril. Pergunte a opinião de qualquer homem razoável. Dir-lhe-á a mesma coisa. São procedimentos de criança, é dom-quixotismo. Porá a sua vida em perigo por uma acção desprovida de senso. Os seus estudantes também não têm o direito de agir assim. São demasiado crescidos para isso. São brincadeiras de criança, como essas que numa praia querem esvaziar o mar com os seus pequeninos baldes. E não é lógico.
- Não pretendo ser lógico - disse o professor -, mas a minha natureza humana não me permite recusar assistência a alguém que esteja em perigo.
- Não resolverá nada ajudando alguns indivíduos - disse o embaixador Pilatos.
- Não chegará a nenhum resultado. O único resultado é que a sua vida está em perigo. Que solução esperará o senhor, no que respeita ao povo búlgaro, ajudando em cada ano vinte ou trinta indivíduos a escapar à morte ou à deportação. Sim, pois o senhor não salva mais. Isto contará alguma coisa, em relação aos sete milhões de búlgaros? Não, não é nada. Eles continuam a viver na escravidão. compreendo que goste dos búlgaros, a sua mulher é búlgara. Além disso é um povo bravo e afável. Eu também gosto deles. Eles sofrem. Compreendo a sua compaixão para com eles. Mas não é esse o meio lógico de os ajudar. Pode até fazer-lhes mais mal do que bem procedendo como procede. Os que o senhor salva vão morrer ou sofrer de fome no exílio, e os outros continuam a viver sob a ocupação. O mundo deveria compreender. Se algo de positivo pode ser feito pela Bulgária e pelos outros países ocupados pelos Russos, não pode ser alcançado senão por via diplomática, à volta dum tapete verde, por meio de negociações com os Russos. Toda a acção individual é estúpida e ilógica. A sua actividade não tem nenhum sentido. Para levar a cabo uma grande obra, digna dum homem, devemos salvar todos os búlgaros. O resto é sem valor. Que significa salvar trinta, trezentos ou três mil búlgaros ? é a nação toda que é preciso salvar. Compreende ? E não só a nação búlgara, todas as nações. Há milhões de pessoas sob a ocupação soviética.
- Nós temos pontos de vista diferentes - disse o professor José Martin. - Para mim há palavras que se não podem utilizar no plural.
- Não percebo - disse o ministro.
- A palavra homem, Excelência, a palavra homem e a palavra mulher não podem ser utilizadas no plural. Estas palavras apenas têm singular. Cada ser humano é único e insubstituível. Cada um é criado em exemplar único. Não existem homens, mulheres, seres humanos, no plural. Existem no singular apenas, como Deus não existe senão no singular. Porque são criados à imagem de Deus e com esta característica divina que é a excepção.
- Não percamos tempo com pormenores - disse o embaixador Pilatos. - Existe uma virtude, a nossa, esta virtude do Ocidente que consiste em não ter piedade quando a piedade é prejudicial... Ontem, por exemplo, a minha mulher entrou em casa de Liubov, sabe, o confeiteiro. Ele é muito bom. A filha de Liubov pediu à minha mulher que entrasse no compartimento vizinho, no quarto deles. Ali lançou-se-lhe aos pés. É uma rapariga com cerca de vinte anos, conhece-a certamente. Está sempre na caixa. Disse que o velho Liubov, o confeiteiro, o pai, foi condenado ao exílio. Pediu à minha mulher que levasse o velho no carro e o conduzisse à Embaixada, para que a polícia o não prendesse. Isto teria sido simples. Mas que resolveríamos procedendo assim ? Teríamos estragado a amizade que nos liga ao governo búlgaro, uma amizade difícil de manter. Porque estes homens novos, os comunistas, são verdadeiros ursos. A filha de Liubov lançou-se aos pés de minha mulher, abraçou-lhe os joelhos, os sapatos. A minha mulher teve a força, a virtude de não se enternecer. Que teríamos nós ganho salvando o velho Liubov ? Que conta um velho búlgaro ? Recusando, damos uma prova de amizade aos búlgaros. Fazemos adiantar as conferências de confiança mútua. E no fim salvaremos todos os búlgaros, em vez de salvarmos apenas o velho Liubov. Qual é a sua opinião, professor?
- A perfeição não pertence a este mundo. Não há ideal que valha ser pago pela morte dum homem, seja ela, como na ocasião presente, a do velho Liubov.
-Professor, é indispensável não ter piedade durante um certo tempo. Na hora actual não é um segredo para ninguém: o regime imposto pelos Soviéticos nos países que eles ocupam é mais terrível que o regime de Gengis-Khan. O plano dos poderes ocidentais é libertar estes povos. E nós libertamo-los, mas por vias pacíficas, por conferências, por negociações diplomáticas. é lamentável estragar esta obra de libertação por intervenções individuais, pequenas, pueris. Agora os Russos aceitam a discussão. é muito. Estaline morreu. Eles estão dispostos a discutir connosco. Graças às discussões e às negociações, realizaremos a obra de libertação de todos os povos oprimidos. Porque retardar, porque comprometer esta obra de libertação, esta obra grandiosa, por causa de alguns velhos, por causa de alguns indivíduos ? É lógico. Nem Dom Quixote teria procedido como o senhor - o senhor e os seus estudantes. Tanto mais que o senhor arrisca a vida, e arrisca-a para nada.
- Lamento, mas não sou diplomata - disse o professor José Martin. - Não posso pensar como o senhor. Não contesto que este futuro salvamento em massa, por via militar ou diplomática, seja sublime, grandioso. Mas esta obra grandiosa exige, para a sua realização, que eu renuncie por um mês, por um dia, por uma hora, ou mesmo por um minuto, à minha natureza humana; por isso recuso-me a colaborar nesta obra grandiosa. Sem a dignidade da minha natureza humana, não colaboro convosco... por mais grandiosa que seja a obra projectada.
- Ninguém lhe pede que renuncie à sua humanidade. Pedem-lhe apenas que não pratique acções pueris - disse o embaixador.
- Prestar socorro a alguém que está em perigo de morte não é um acto pueril. Pedir-me que renuncie a praticar esta acção de socorro é o mesmo que pedir-me que renuncie à minha natureza e à minha dignidade humana. E a isso me recuso eu, obstinadamente. Prefiro deixar de existir a não existir como homem.
- Repito-lhe que é unicamente graças a mim que eles o não prenderam ontem - disse o embaixador Pilatos. - Ordenaram a sua prisão. Será condenado à morte, ou, pelo melhor, a vinte anos de Sibéria.
- Que tenho de fazer para não ser condenado? - perguntou o professor.
- Acabar com toda essa acção quixotesca até à sua partida. Julgo que parte dentro de duas semanas? Eles prometeram-me que o deixam sair da Bulgária se o não apanharem em flagrante delito desde agora até à sua partida. Doutro modo...
- Doutro modo? - perguntou o professor.
- Doutro modo condenam-no à morte. E, apesar de todos os meus esforços, não penso poder salvá-lo, sem falar dos efeitos desagradáveis que pode ter um tal processo. Pense em tudo isso. Pense que tem uma pátria, que tem uma mãe e que a sua vida está em jogo.
José Martin apertou na mão a cigarreira de cerejeira. Levantou-se bruscamente.
- Está prometido, Excelência - disse ele. - Cessarei toda a actividade até à minha partida. Agradeço-lhe a sua intervenção.
- Continuar seria absurdo. Salvaria um búlgaro e mataria de desgosto a sua mãe e sua mulher. Daria com uma das mãos para ir buscar com a outra.
- Obrigado, Excelência - disse José Martin. - Está prometido, nenhuma actividade. Dou-lhe a minha palavra de honra.
- Nesse caso os Búlgaros não lhe causarão aborrecimentos - disse o embaixador. - Prometeram-me não fazer nada contra si. Mas eles vão espiá-lo. Não se assuste se vir que eles o espiam até de noite. A polícia andará sempre atrás de si, por toda a parte, até que parta. Mas não lhe farão nada. Apenas o seguirão passo a passo...
A CHAGA DO LADO
"A polícia segui-lo-á permanentemente". Esta frase ficou nos ouvidos de José Martin.
O embaixador tinha dito a verdade. Diante da Embaixada, encostados à grade da casa defronte, estavam dois jovens. Eram os polícias. José Martin dirigiu-se para a Universidade. Os polícias seguiram-no. Na escada do Instituto, encontrou um dos seus amigos, o padre Lourenço. Era um jovem padre, alto, magro. A sua sotaina flutuava ao vento enquanto ele descia os degraus do Instituto de Antropologia. O padre Lourenço veio ao encontro do professor Martin.
- Procurei-o no Instituto - disse o padre Lourenço. -Não o encontrei e estava para voltar amanhã. Venho apresentar-lhe as minhas despedidas. Já não estou no Patriarcado.
O padre Lourenço era o exemplar humano mais completo que o professor José Martin tinha jamais encontrado. O padre Lourenço era o primeiro barítono da Bulgária. Entre as paredes do Patriarcado de Sofia, a sua voz ressoava como uma orquestra. Era formado em Física. Era belo como um arcanjo e levava a vida dum santo. O padre Lourenço não comia senão uma vez por dia, por volta das cinco horas da tarde, fruta, legumes, um pouco de pão, ao mesmo tempo que bebia uma pouca de água. Dormia quatro horas por noite. Só tinha uma sotaina que ele próprio havia feito, mas que caía no seu corpo alto e delgado tão bem como se tivesse sido obra do melhor contramestre de Paris. O padre Lourenço ainda não tinha trinta anos. Era a glória do clero búlgaro e o adorno mais precioso do Patriarcado de Sofia.
- Eles nomearam-me capelão das prisões - disse o padre Lourenço. - Parto daqui a alguns dias. Não sei precisamente para onde.
O padre Lourenço era moreno. Tinha olhos grandes, longas pestanas e dentes brancos. Não tinha a palidez dos Búlgaros, mas a palidez dos santos dos ícones bizantinos, uma palidez com reflexos cor de azeitona, como uma patina de nobreza, como a patina de estátuas de madeira antiga.
- O facto de as cadeias terem finalmente um capelão é uma vitória para a Igreja - disse ele. - Desde a chegada dos Russos, o cargo de capelão das cadeias tinha sido suprimido. Os prisioneiros sofriam e morriam sem padre. Sou o primeiro capelão das prisões. Julgo que nomearão outros. Por agora sou o único capelão, para toda a Bulgária.
O padre Lourenço sorria com melancolia. Sabia porque tinha sido nomeado capelão das prisões. Desde a ocupação da Bulgária pelos Russos, os bispos, os padres, os diáconos tinham sido deportados, presos ou mortos. Polícias tinham vestido sotainas e tinham sido colocados nos tronos episcopais. No Patriarcado de Sofia, o padre Lourenço era o único verdadeiro padre. Tinha sido poupado unicamente pela sua voz. O padre Lourenço tinha recebido ofertas de contratos de óperas estrangeiras. Recusara, para ficar no Patriarcado, para continuar padre. Agora o governo havia descoberto o meio de o afastar do Patriarcado, também a ele: tinham-no nomeado capelão de todas as prisões da Bulgária. Não ficariam mais no Patriarcado senão polícias com sotainas de bispos, de padres e de diáconos.
- Não haverá mais padres no Patriarcado- disse o padre lourenço. - Mas o Patriarcado será guardado pelos anjos. Cada igreja tem os seus anjos a guardada. Mesmo quando os padres faltam, os anjos são fiéis. O governo pode pôr polícias de sotaina no lugar dos prelados e dos padres. Mas não pode pôr polícias no lugar dos anjos.
- Eu ando espiado pela polícia - disse o professor. - Eles querem prender-me. -E mostrou os dois polícias. - O embaixador convocou-me. Disse-me que nada mais pode fazer por mim se os polícias me prenderem.
- Os Comunistas cumprem as promessas quando se trata de prisões - disse o padre Lourenço. - Conserve-se na sombra até à sua partida e não lhes dê ocasião a que o prendam.
- Quando deixa Sofia ? - perguntou o professor.
Queria mudar de assunto.
- Daqui a uma semana - respondeu o padre. - Voltarei amanhã para o ver.
Despediram-se. Teriam querido falar mais, mas os polícias estavam perto deles. O padre Lourenço voltou a cabeça. O professor subiu os degraus do Instituto. Os polícias seguiram-no. entraram atrás dele no edifício do Instituto. O padre Lourenço implorou: "Senhor, não abandoneis o professor Vós, Jesus, Vós sabeis o que é a tortura ! Vós sofrestes no Gólgota! Cada homem é à Vossa imagem e semelhança. Quando um homem é torturado sois Vós que de novo sois preso e torturado. Fazei que o professor não caia nas mãos dos polícias, Senhor! Que ele não caia nas mãos deles, que ele não caia...".
O padre Lourenço tinha conhecido o professor José Martin durante o inverno de 1950. Foi logo a seguir ao Natal. Os invernos são muito rigorosos na Bulgária. O padre Lourenço celebrava as Vésperas na igreja metropolitana.
A cerimónia das Vésperas celebrava-se às dez horas da noite. Estava escuro. Havia vários dias que a polícia fazia importantes rusgas: um dos homens presos pelos polícias, e que fazia parte dum comboio de deportados para a Rússia, tinha fugido. Refugiara-se na catedral. Entrara ali como um homem perseguido. Passara junto de algumas dúzias de fiéis empurrando-os. Entrara no santuário pelas portas imperiais (1). Só o padre tem direito de entrar no santuário por essas portas, durante o ofício, mas este jovem,
* (1) Nas igrejas ortodoxas, o santuário é separado do resto da igreja por um tabique decorado com cenas piedosas, a iconostase. Entra-se no santuário pelas portas imperiais. *
um antigo oficial, entrara no santuário também por elas e agarrara o padre Lourenço por um braço e dissera-lhe: "Sou um evadido, esconda-me".
Sob o pórtico da igreja havia algazarra. A polícia acabava de chegar. O padre Lourenço tinha olhado para este homem jovem, de olhos azuis e cabelos loiros. Tinha-lhe pousado a mão na cabeça. Os fiéis tinham visto o jovem ajoelhar-se. Quando ele estava de joelhos, o padre Lourenço levantara a borda da sua alva. Os padres búlgaros, quando celebram um ofício, estão vestidos com alvas extremamente largas e muito compridas. O padre tinha levantado a alva, e cobrira o fugitivo com ela, como com as bordas de uma saia. Toda a gente tinha visto cobrir o homem com a sua alva. Poderiam encontrar-se comunistas na sala. Deviam, sem dúvida, encontrar-se. Mas ninguém disse uma palavra. A polícia tinha entrado. O padre Lourenço disse ao sacristão:
- Chame o chefe.
O chefe dos polícias entrou no santuário, com o olhar voltado para a nave. O fugitivo estava debaixo da alva. O fugitivo apertava os joelhos do padre lourenço.
- Eu sou o padre Lourenço- disse o padre. - é a mim que procura, tenente?
- Procuramos um evadido - informou o oficial da polícia. - Desculpe o incómodo. Nós guardaremos as saídas e esperaremos pelo fim da cerimónia.
- A cerimónia vai durar ainda duas horas - disse o padre Lourenço. - O Senhor perdoar-nos-á se a interrompermos para a polícia cumprir o seu dever. Procurem, façam favor, procurem por toda a parte.
- Poderemos esperar pelo fim - disse o polícia.
Ele estava embaraçado. Por vezes, até um polícia pode ficar embaraçado.
Os assuntos terrestres devem seguir o seu curso. Os polícias tinham rebuscado a igreja. Tinham procurado atrás dos ícones. Tinham perguntado aos fiéis se não tinham visto o fugitivo. Tinham procurado no santuário. Tinham rebuscado o campanário. Depois tinham agradecido ao padre e tinham partido. Então o padre Lourenço levantou a sua alva. O fugitivo estava torcido a seus pés, como um cão aos pés do dono.
- Que o Senhor o tenha em Sua santa graça - disse ele. - Eu não tenho o direito de o julgar. Aquele que se refugia numa igreja refugia-se na Casa de Deus, e a Casa de Deus está aberta a todos os homens. Vá em paz.
Roxane Ivanoff estava na igreja. Ela havia conduzido o jovem a casa do professor José Martin. O professor tinha-o ajudado a passar a fronteira. Era um prisioneiro alemão. Tinha mulher e filhos. Chamava-se Fritz Stendle. Depois, ele escrevia regularmente ao padre Lourenço e a José Martin. Graças a Fritz, o padre Lourenço e o professor Martin tinham-se tornado amigos. Depois de Fritz, outros tinham vindo refugiar-se na igreja. O padre abrigava-os e levava-os em seguida a José Martin. Graças a eles algumas dúzias de homens tinham salvo a vida. Agora eles separavam-se. O professor voltava para a pátria. O padre tornava-se capelão das prisões. E separavam-se num momento crítico. O padre Lourenço estava decidido a voltar no dia seguinte e a ficar algumas horas com o professor. Ser perseguido pela polícia é terrível. O padre Lourenço queria ajudar o professor a nunca mais ver a polícia, nem que fosse apenas por algumas horas.
Eram oito horas da noite quando o professor deixou o Instituto. Os dois polícias esperavam-no, fumando. Seguiram-no. José Martin estava decidido a não fazer nada que pudesse provocar a sua prisão. O aviso do ministro era útil. Agora ele pensava na sua vida, registada na polícia. Inscrita numa ficha, a vida dum homem torna-se a coisa mais estúpida do universo. A polícia tinha anotado que hoje ele se levantara tarde. (Pois certamente, toda a noite ele havia carregado, em Varna, os caixotes de luz...) Ela tinha anotado que ele apenas ficara uma hora no Instituto e que se tinha dirigido à Embaixada. Que encontrara um padre diante do Instituto, e que almoçara na cantina da Universidade e que tinha voltado para casa pelas 8 horas. Os polícias anotaram em seguida: À 9 horas, o professor apagou a luz. Durante a noite, ninguém entrou em casa dele e ninguém saiu do seu quarto.
Eis o que pensava o professor. Mas as coisas não deviam passar-se assim. No seu quarto estavam Ivanoff e Roxane, esperando-o na escuridão. Acolheram-no no limiar da porta.
- Está alguém em sua casa - disse-lhe gravemente Roxane.
- A polícia? - perguntou José Martin. - Eles vieram rebuscar?
- Não é a polícia - informou Roxane.
- Graças a Deus, não é a polícia. São três infelizes: o marido, a mulher e um filho. O homem está mortalmente ferido. Foi por isso que o trouxemos para aqui. Não podíamos levá-lo mais longe.
José Martin empalideceu. Compreendeu que estava perdido.
- Ninguém os viu entrar aqui ?
- Julgo que não - disse Ivanoff. - A rua estava deserta. Nós apagámos a luz, para que ninguém suspeitasse de que estava alguém no seu quarto.
O professor acendeu a luz. Dirigiu-se a Roxane:
- Fez muito mal em trazer alguém aqui. Olhe para a rua.
Por uma pequena abertura dos cortinados, mostrou os dois polícias a Roxane e a Ivanoff.
- Fez mal em os trazer aqui. Sou espiado. Olhem. Mas não podiam saber. Se tivessem estado na Faculdade esta tarde, ter-lhes-ia dito. Sou seguido passo a passo. Agora eles vão prender-vos também a vós. E a eles também os prenderão. Eles procuram um asilo, e nós oferecemos-lhe, com os braços abertos, a prisão. Onde estão eles ?
Roxane começou a chorar. Disse:
- Se eles o prenderem por nossa causa,
Mónica nunca mais no-lo perdoará. Não
deveríamos tê-los trazido aqui.
O professor passou para o quarto. No quarto de dormir, na cama, havia uma mulher estrangeira, muito nova, uma mulher que ainda não tinha vinte anos. Estava estendida, descalça, sobre a coberta verde. A cama não estava desfeita. A mulher trazia um vestido preto muito justo e muito desbotado. Os cabelos, os cabelos negros, estavam dispersos na almofada, nos ombros. O peito estava nu, uma criancinha mamava. A criança continuou a mamar. A mulher estava deitada de lado. Olhou para o professor. Não disse nada. Contentou-se em deslocar um pouco o seio com a mão direita e em atrair para ele a rósea criança. Disse qualquer coisa à criança.
---Ela só sabe algumas palavras de francês - disse Ivanoff. - Não consigo compreendê-la. é romena. O marido está quase morto.
- Ele também não é búlgaro? - perguntou José Martin. - Como conseguiram chegar aqui?
-È um engenheiro dos petróleos - disse Ivanoff. - Um engenheiro romeno de Ploesti. Eram sete. Disse que desde a explosão de há três semanas todos os dias há execuções. Os Russos pretendem que se trata de sabotagem. Procuram os cúmplices dos Ocidentais, e fuzilam-nos. Fuzilam operários, contramestres, engenheiros. Todos lhes servem. Esses sete, dois operários, três contramestres, dois engenheiros, fugiam para a Grécia. No momento em que atravessavam o Danúbio, a polícia disparou. O engenheiro foi atingido. Há oito dias que está ferido. Vieram a Sofia para procurarem um médico. Tiveram que abandoná-lo. Já não podiam levá-lo. Os companheiros partiram e continuaram o seu caminho. é muito grave.
- Porque é que o deixaram no tapete? - perguntou o professor.
Ao pé da cama, havia um homem jovem, com uma barba negra e sedosa. Dormia de boca aberta, estendido no tapete de cores vivas, com desenhos geométricos, um tapete tipicamente búlgaro, um belo tapete. O homem chamava-se Ionesco.
- Não quis que o puséssemos na cama - disse Ivanoff. - Nós tentámos, mas ele não quis. Deitou-se no chão, ali onde o vê. Deixou a cama para a mulher e para a filha, para que descansassem. A ferida fá-lo sofrer. Torce-se com dores. Virando-se e revirando-se na cama, teria incomodado a mulher e a filha. Não quis a cama.
Sob a cabeça de Ionesco havia uma mochila. O colarinho da camisa era aberto. Usava um fato completamente novo, cinzento, um fato comprado feito, que ele devia usar pela primeira vez, mas que estava muitíssimo gasto.
- Antes de fugir, deve ter vestido o seu melhor fato, o fato de domingo - disse José Martin.
- Eles andam, desde há oito dias, apenas através dos campos, através dos bosques, evitando as cidades e as aldeias. Os companheiros foram obrigados a abandoná-lo. Não podiam levá-lo mais.
- Tinham uma estrada directa para a Grécia - disse o professor Martin. - Foi uma loucura terem vindo a Sofia.
- Era em Sofia apenas que pensavam encontrar um médico, professor. Nos bosques, nos campos, nas montanhas, não há médicos. O homem tem uma urgente necessidade de cuidados. Para fugitivos é difícil encontrar um médico em Sofia. Mas a esperança de o encontrar é maior em Sofia que nos bosques. Por isso eles vieram. Se o abandonaram, significa que o seu estado é muito grave. Não se mente em tais casos. é provavelmente grave. Isso dura há oito dias. As balas devem ter ficado na ferida. Quem pode saber quantas lá estão ? Os companheiros não o examinaram. Um homem dos petróleos não sabe procurar balas nas carnes. lamentavam profundamente terem de o abandonar, mas não podiam transportá-lo mais. A única coisa a fazer era levá-lo a um médico. Que podiam eles fazer mais ? Abatê-lo ?
- Pensaram em abatê-lo - disse Roxane. - Eles próprios o disseram. Quando viram que não podiam já levá-lo, pensaram em abatê-lo. Mas não puderam. Não tiveram coragem para o fazer. A mulher e a filha estavam lá... Não podiam abatê-lo sob os seus olhos.
- Se não fosse a mulher e a filha, os companheiros tê-lo-iam abatido. Já não tinham forças. Então vieram a Sofia. É tudo - disse Ivanoff. - Não encontraram nenhum médico, então deixaram-no-lo.
José Martin olhava para a mulher estendida na cama. A criança continuava a ter entre os lábios o bico do peito desta mãe adolescente. Era uma criancinha, uma criancinha muito pequenina. Mais se parecia com uma boneca.
-Chama-se Flora. Não quis continuar o caminho com os companheiros. Os companheiros insistiram, mas ela não quis disse Ivanoff. - Prefere ser presa, mas estar com ele. Diz que fugiu para estar com o marido. O seu cuidado era o marido, o seu fim era o marido, não quer separar-se dele, eis tudo.
O professor olhou para o homem estendido no tapete. Embora ferido, tinha-se deitado no chão para deixar a cama à mulher e à filha. Havia grandeza nesta ternura quase animal.
- Se mandarmos vir um médico, mandamos vir a polícia ao mesmo tempo que o médico - disse o professor. - é preciso renunciar a isso.
pela janela avistavam-se os dois homens que esperavam diante da casa.
Roxane, Ivanoff e o professor levantaram a cabeça de Ionesco da mochila. Queriam despi-lo. José Martin estava ajoelhado perto do homem que dormia. O ferido tinha os lábios violáceos e inchados como beringelas. Os olhos estavam fechados. O professor levantou a cabeça, de cabelos pretos. A respiração de Ionesco tocou no rosto do professor. Ele deixou cair a cabeça. O hálito de Ionesco cheirava mal. Não era o cheiro dum hálito de doente, dir-se-ia mesmo que as entranhas de Ionesco estavam podres. O seu hálito tinha o mesmo cheiro que o cadáver dum cavalo em putrefacção, no verão, à beira duma estrada. Era um odor mortal, que fazia vacilar. A carne de Ionesco teria arrancado fosse quem fosse do mais profundo sono, apenas pelo cheiro. Teria acordado o universo inteiro, pelo seu cheiro de podridão, um cheiro que parecia clamar: "Nós apodrecemos, nós apodrecemos, apodrecemos vivos, nós apodrecemos..." Mas o universo dormia. Só o professor José Martin vacilava, atordoado pelo cheiro do engenheiro romeno que apodrecia vivo. Quis abrir a janela, mas diante da janela estavam os polícias; então deixou a janela fechada. No quarto havia o cheiro do homem que apodrecia vivo. José Martin respirou este cheiro, até ao fundo dos pulmões. Se abrisse a janela, a polícia vê-lo-ia; então continuou a respirar o cheiro das carnes de Ionesco, que apodreciam vivas.
As mãos de José Martin, as mãos de Roxane e as mãos de Ivanoff procuravam os botões da camisa, do casaco, das calças de Ionesco e desapertavam-nos. Estavam todos três de joelhos, no belo tapete búlgaro, perto do corpo de Ionesco, e procuravam os botões para os desapertar, Ionesco deixava-se virar e revirar. Flora, a romena, continuava estendida, imóvel, na cama. Segurava a criança contra o seio. O vestido estava muito desfeito. Flora tinha grandes olhos negros. Os seus grandes olhos negros olhavam atentamente para os três seres que despiam o marido. Dir-se-ia que ela olhava para uma cena no cinema. Parecia meio ausente. A criança deixara-se adormecer conservando o seio da mãe entre os lábios, a face colada contra o seio quente da mãe.
- Os companheiros contaram que em Ploesti é um verdadeiro matadouro - disse Ivanoff. - Diziam que há centenas de fuzilados na hora actual, e o massacre continua.
-Não vejo nenhum traço de bala - disse o professor. - A bala deveria ter atravessado o vestuário, mas não há buraco no fato.
Roxane pegou no casaco de Ionesco e colocou-o perto dele no tapete. Agora Ionesco estava em camisa. Via-se-lhe o peito. Não devia ter ainda trinta anos. Tinha um corpo delgado, uma pele branca, um corpo de adolescente.
- Voltemo-lo - disse Ivanoff. - A ferida é de lado.
O tecido das calças e o tecido das cuecas estavam cheios de sangue. Estavam tensos, colados à pele, semelhantes à casca duma árvore. Mas o buraco feito pela bala ou pelas balas na fazenda das calças era invisível. O orifício de entrada da bala na fazenda das calças tinha sido tapado pelo sangue. O sangue tinha transformado tudo numa casca dum vermelho-escuro, violáceo.
Ivanoff quis voltar Ionesco de barriga para baixo, a fim de poder descolar as calças que estavam agarradas à pele. A chaga devia estar a alguns milímetros abaixo da cintura, mas não se via.
No momento em que eles quiseram voltá-lo, com o rosto virado para o chão, Ionesco mexeu-se pela primeira vez. Não queria estar de barriga para baixo.
Ionesco não queria por nenhum preço deixar-se voltar de barriga para baixo. O professor José Martin pôde verificar o que tinha aprendido: os fugitivos têm medo de dormir de barriga para baixo. Durante o sono, eles procuram o ar, procuram a vida. Todos os homens que têm medo de alguma coisa dormem de costas. Todos os homens perseguidos pelos guardas, pela polícia, pela milícia, dormem de costas, tanto tempo quanto dura a sua perseguição. Era por isso que Ionesco não queria deixar-se voltar. Tinha medo de sufocar, que lhe faltasse o ar. Durante o sono, o ar é sinónimo de vida, de liberdade, e ele não queria por nenhum preço deixar-se voltar de barriga para baixo. Na meia inconsciência, deixar-se assim voltar significa deixar-se agarrar, deixar-se matar.
- Traz água, Roxane, e põe-lhe sal, muito sal.
Roxane trouxe uma tigela cheia de água. Era uma tigela na qual a sua amiga Mónica, a mulher do professor, preparava a salada, uma grande tigela de porcelana. Estava cheia de água salgada. Roxane embebeu de água salgada a fazenda das calças e a das cuecas. O tecido das calças e das cuecas descolou-se mais facilmente das ilhargas.
Agora via-se a chaga de Ionesco. Só havia uma, uma chaga redonda. Era a marca duma bala soviética, imediatamente abaixo da cintura. À volta da chaga, redonda como uma moeda, a pele era branca e limpa. Não havia uma gota de sangue à volta. A pele à volta da chaga, nas ilhargas de Ionesco, era branca como uma folha de papel, branca como a neve. Nesta pele branca, havia a chaga redonda, o buraco por onde a bala russa tinha entrado na carne de Ionesco.
Ionesco estava deitado de lado. A camisa estava levantada, as calças para baixo. O professor José Martin, Roxane e Ivanoff olhavam para a chaga do lado. Era uma chaga que conheciam bem. Em todos os ícones do universo, em todas as igrejas, via-se esta chaga. Era a chaga de Jesus na cruz. Mas nos ícones corre sangue da chaga de Jesus. A chaga da ilharga de Ionesco não sangrava. Era uma bela chaga. O buraco na carne era redondo, perfeitamente redondo. Os lábios da chaga redonda como uma moeda estavam endurecidos. Era uma chaga cor-de-rosa de caramelo.
- Desde há quanto tempo está ele ferido? - perguntou José Martin.
Sabia que Ionesco estava ferido havia oito dias, que não tinha sido tratado havia oito dias, que havia oito dias a chaga não tinha sido desinfectada. Os homens tinham vivido nos bosques. Não tinham desinfectantes.
- é um milagre que uma chaga se conserve tão limpa durante oito dias - disse o professor.
Olhava para a carne leve e cor-de-rosa, da cor das Virgens de Rubens e da cor dos botões de rosa.
Roxane lavou o contorno da chaga com a toalha branca ensopada na tigela de água salgada. Era inútil. Não havia traços de sangue. Nada. Apenas o branco imaculado da pele, um branco de açúcar ou de papel, e ao meio a chaga cor-de-rosa como uma rosa em botão.
Ivanoff pegou na toalha com que Roxane tinha limpo a ferida. Ensopou-a na água salgada. A água salgada desinfecta. Apertou a pele com os dedos da mão direita. Os dedos de Ivanoff entreabriram a chaga redonda e rósea e deitaram-lhe água salgada, que caía gota a gota da toalha. O professor e Roxane olhavam-no atentamente. As mãos de Ivanoff eram hábeis. Não provocavam nenhuma dor. Os dedos eram suaves. As mãos dum homem podem aliviar a dor como pensos. As mãos humanas têm qualquer coisa de divino. De repente as mãos de Ivanoff deitaram fora a toalha. Ele pôs-se de pé. Correu para a porta. Apoiou a testa contra a madeira da porta, virando as costas a Ionesco, virando as costas a José Martin, virando as costas a Flora que dormia, com o seio descoberto, virando as costas ao mundo inteiro, a todo o mundo. E apertava as fontes com os punhos e apoiava a testa contra a porta.
- Tem lá vermes ! -gritou ele. - Ele está cheio de vermes...
O professor e Roxane inclinaram-se sobre a chaga rosada da ilharga branca do engenheiro Ionesco. Era verdade ! Excitados pela água salgada, os bichos da chaga de Ionesco subiam à superfície. Até ali tinham ficado enterrados na carne viva de Ionesco. Agora saíam. Por causa da água salgada. Eram brancos, na carne rosada da chaga, e numerosos, grossos como grãos de arroz, de tal modo gordos que pareciam redondos. Eram inumeráveis, como os grãos dum punhado de arroz, como um arroz vivo. Os vermes surgiam da carne rosada, da chaga feita pelas balas dos Russos.
Roxane e o professor recuaram, apavorados, horrorizados. Ionesco continuava imóvel, com a ferida a descoberto, as ilhargas cheias de vermes. Parecia ausente. A mulher, Flora, olhava para a cena, com os olhos negros desmesuradamente abertos. Estava demasiado fatigada.
estava como os homens dos trópicos, a quem o verme racionalista devorou a curiosidade. Estava passiva. E os vermes comiam a carne rosada e saíam desta carne. Flora, a romena, olhava e não dizia nada.
-Não podemos deixar os vermes devorarem um ser vivo - disse José Martin, apertando o braço de Ivanoff. - Temos de chamar um médico.
Ivanoff não o escutava. Ivanoff não queria escutar mais nada.
- vou buscar um médico - disse o professor.
Olhou pela janela. Os dois polícias estavam diante da casa.
- Os polícias e os vermes nunca dormem- disse o professor. - Nem os Sovietes.
Enfiou o casaco. Queria partir. ? - Os polícias virão com o médico - disse Roxane. - Não vá.
- Não podemos deixar os bichos comerem um homem sob os nossos olhos - disse José Martin. - Não podemos.
- Não podemos também entregá-lo à polícia. Se o senhor chamar o médico, os polícias virão com ele e eles devorá-lo-ão juntos, os bichos e os polícias, os polícias e os bichos. e devorar-nos-ão a nós também.
Os polícias moviam-se diante da janela. Os bichos moviam-se dentro da carne viva do homem. Toda a gente dormia em Sofia, mas os bichos e os polícias moviam-se. Eles não dormiam.
- A única coisa que posso fazer é ir à Embaixada - disse José Martin. - Tenho de pedir auxílio ao embaixador. Um embaixador pode muito. Pode ajudar-nos.
José Martin deixou a casa. Um dos polícias caminhou-lhe nas pegadas. O professor andava depressa. De vez em quando voltava a cabeça. O polícia seguia-o. O outro tinha ficado diante da casa.
"É a única solução, pensava o professor. Não posso chamar um médico. Os polícias postados diante do edifício entrariam em minha casa ao mesmo tempo que o médico. Prenderiam Ionesco, a mulher, a filha. Eles deixaram-se devorar pelos vermes para escapar aos Russos, para não caírem nas mãos dos Russos. é por isso que estão cheios de vermes. Não tenho o direito de os entregar aos Russos. A única solução é o embaixador".
José Martin disse para consigo que ser i a difícil convencer o embaixador, mas não via outra solução.
Agora ele corria. Tinha a impressão de que cada segundo que passava representava um novo bocado de carne, da carne viva de Ionesco, devorada pelos vermes. Tinha vontade de gritar. José Martin não podia suportar que um homem vivo fosse devorado pelos vermes, na sua própria casa, perto da sua cama.
Impossível, dizia para consigo. Não sou um diplomata, capaz de ver as pessoas deixarem-se devorar pelos vermes. Não sou um Estado.
Bateu à porta de ferro forjado, à porta maciça da Embaixada. Tocou com força. Era meia-noite.
ESPERO A RESSURREIÇÃO DA CARNE
Roxane e o marido tinham ficado na casa do professor José Martin. Ivanoff não conseguia voltar a si. Apertava a cabeça entre os punhos. Roxane olhava para as ilhargas descobertas de Ionesco. Olhava para a chaga cor-de-rosa e cheia de bichos. Flora, a romena, tinha adormecido, como se o que acontecia lhe fosse estranho. A filha, uma menina de algumas semanas, dormia contra o seu seio. O rosto da criança era rosado, da mesma cor que a chaga da ilharga do pai.
O professor José Martin tinha apagado a luz antes de partir, para que os polícias não vissem que havia alguém no quarto. Roxane, Ivanoff, Ionesco, Flora e a menina, que ainda não tinha nome porque não tinham tido tempo de a baptizar, estavam na obscuridade. A cidade de Sofia dormia. Ter-se-ia dito que o universo inteiro dormia. Mas Ivanoff não conseguia acalmar-se.
- Este silêncio é pesado de mais - disse Ivanoff. - Este silêncio é demasiado profundo. Diz alguma coisa.
- Que dizer? - perguntou Roxane. Ela era mais corajosa que o marido.
Em tais ocasiões, as mulheres têm uma resistência superior. Sabem melhor suportar as coisas.
- Diz alguma coisa ! -gritou Ivanoff.
- Roxane, diz alguma coisa! Diz seja o que for. Contanto que não haja um tal silêncio!
- É melhor o silêncio - disse Roxane.
- Não quero deste silêncio ! Faz barulho. Oiço os vermes roerem a carne dele. Diz alguma coisa, para que eu não os oiça mais. Oiço-os roer a carne viva! Diz alguma coisa, suplico-te !...
Roxane cobriu as ilhargas de Ionesco.
- Vamos rezar, Vlad - disse Roxane ao marido. - Vamos rezar juntos, queres ?
- Porquê rezar ? - perguntou ele. Que podemos nós pedir? Nada temos a pedir, nada, absolutamente nada. Diz alguma coisa...
- Um cristão deve sempre rezar.
- Um cristão ! - disse Ivanoff. - Sou um cristão, é verdade! Sou cristão, Ionesco também é cristão. Milhões de pessoas são cristãs, a maior parte. Jesus disse que devemos esperar a ressurreição da carne. Ionesco também deve esperar a ressurreição da carne, e depois o Julgamento Final. Mas Jesus não disse que antes da ressurreição da carne nós devemos deixar os vermes roerem esta carne. Jesus disse somente que devemos esperar a ressurreição da carne. Ele não disse que devemos deixar as balas russas atravessarem a nossa carne, e depois esperarmos que os vermes devorem a nossa carne viva. Jesus não nos pediu isso. Disse que devemos esperar a ressurreição da carne, depois da morte. Foi tudo. Não nos pediu que esperássemos a ressurreição da carne no corpo dos vermes. Jesus não pediu isso a Ionesco...
- Cometes um pecado - disse Roxane.
- Cala-te.
- É duro esperar a ressurreição da carne na moela dos corvos, na barriga dos cães. É duro esperar a ressurreição da carne e o Julgamento Final no corpo dos vermes...
- é um pecado - disse de novo Roxane. --Tu não és cristão.
--Eu sou cristão ! --gritou Ivanoff. Ouve, espero com fé a ressurreição do corpo de Ionesco do ventre dos vermes que o devoram vivo. Julgo que cada bocado da carne de Ionesco, roído vivo por estes vermes grossos como grãos de arroz, ressuscitará do corpo dos vermes que o devoram. E julgo que Ionesco, com o corpo devorado pelos vermes e ressuscitado do corpo dos vermes, se apresentará no Julgamento Final. Julgo que Ionesco esperará. Assim o creio, Roxane. Assim o creio. Sou ou não cristão, Roxane ? Creio que a carne inteira de Ionesco e a de todos os romenos devorados pelos vermes ressuscitará e se apresentará na sua integridade ao Julgamento Final.
Roxane chorava.
- Chora com mais força, Roxane, chora o mais fortemente que puderes... Para que eu não oiça mais os vermes que formigam na carne de Ionesco. Chora, Roxane, chora. Se não choras, eu oiço-os. Suplico-te, chora, chora, chora...
A CHAGA DO LADO
- Que se passa, meu caro professor ? - perguntou o embaixador Pilatos, em roupão de seda preta.
De noite, o soalho de madeira do Brasil do salão da Embaixada espalhava um perfume ainda mais delicado que de manhã.
- Venho pedir-lhe auxílio - disse o professor.
Acendeu um cigarro. Estava ofegante.
--Penso - disse o embaixador, penteando com os dedos os belos cabelos prateados-, penso que se deve tratar duma coisa grave, para que o senhor venha a uma tal hora? Fale.
- Excelência, quando voltei para casa, encontrei no meu quarto uma família de fugitivos: o marido, a mulher e uma filha.
O embaixador Pilatos levantou-se. Um diplomata nunca põe fim a uma discussão, mas ele queria pôr fim a esta. Era de mais.
- O senhor tinha-me prometido esta manhã acabar com toda a actividade deste género - disse o embaixador. - Quem falta à sua palavra deve sofrer-lhe as consequências. Não lhe posso prestar nenhum auxílio. Além disso não quero. Deu-me a sua palavra de honra, e não a cumpriu.
O embaixador mostrou a porta a José Martin, com elegância, mas com firmeza.
- O senhor prometeu e não cumpriu. Nada mais temos a dizer-nos.
- Não fui eu que os levei - disse o professor. - Não me pode expulsar, Excelência. é preciso que o senhor me ajude. O homem foi ferido pelos Russos. Eles dispararam sobre ele no momento em que atravessavam o Danúbio. A sua chaga formiga de vermes. Este homem está a ser devorado vivo pelos vermes, no meu quarto.
- É horrível o que diz, meu caro! disse o embaixador.
- Vi-os com os meus olhos. Há...
dir-se-ia arroz, um número incalculável de grãos de arroz ! O senhor deve ajudar-me.
- Fale mais baixo, para que a minha mulher não o ouça - recomendou o embaixador. - é uma coisa horrível!
Fechou a porta do gabinete.
- O senhor deve ajudar-me, Excelência... Pouco me importa o risco. Suportarei tudo, mas apenas depois de ter limpo a chaga dele de todos esses vermes.
- Que posso fazer, meu caro ? - perguntou o embaixador.
- Deve ajudar-me, dar-me alguma coisa para tirar os bichos da sua chaga. Preciso de desinfectantes, de desinfectantes muito fortes.
- A Embaixada não é uma farmácia, meu caro - disse Sua Excelência. - A Embaixada não possui medicamentos, nem desinfectantes. Chame um médico.
- Se o médico vier, a polícia virá também- disse José Martin. - Não posso chamar um médico, é impossível.
- Exceptuando a água-de-colónia, não há nenhum desinfectante em toda a Embaixada- disse Sua Excelência Pilatos.
- Excelência, vista-se e vá buscar medicamentos, desinfectantes. O senhor deve ajudar-me.
- São coisas que se não devem pedir
- disse o embaixador. - Posso dar-lhe um frasco de água-de-colónia, dois, digamos. é tudo.
-Excelência, os vermes devoram Ionesco por vossa causa, por causa dos diplomatas ocidentais. Os diplomatas ocidentais deixaram vir os Russos para a Roménia, para a Polónia. Os senhores entregaram aos Russos os Romenos, os Búlgaros para salvar Roma, Paris, Londres. Entregaram-nos aos Russos no decurso das vossas conferências de Teerão, de Yalta, de Potsdam. E era justo entregá-los, porque era preciso salvar o Ocidente, salvar a cultura. Mas os senhores sabiam que, entregando os Búlgaros e os Romenos aos Russos, os vermes os devorariam vivos. Os senhores sabiam-no muito bem. Deixemo-los pois devorar para que vivam os Ocidentais. Mas quanto a Ionesco, o homem que os vermes devoram vivo na minha casa, esse, deve ajudá-lo.
Venha ver como os bichos o roem. Os senhores sabiam isso quando entregaram estes países aos Russos, mas não viram com os próprios olhos. Venha vê-lo, e então ajudar-nos-á. Não podemos deixar que os vermes devorem um homem sob os nossos olhos.
A porta do gabinete abriu-se. Um criado surgiu. O embaixador tinha tocado. José Martin não o tinha visto tocar. O embaixador disse ao criado:
- Traga-me dois frascos grandes de água-de-colónia, dois frascos de João-Maria-Farina. é a mais forte. Traga-os, e em seguida acompanhe o senhor professor.
- Excelência, suplico-lhe que me ajude. Não pode mandar-me embora assim
- disse José Martin.
- é tudo o que posso fazer - respondeu o embaixador. - Dois frascos de água-de-colónia.
- Os vermes na carne não se matam com água-de-colónia - disse José Martin.
- Excelência, a água-de-colónia é boa para as prostitutas, para os tagarelas de conferências diplomáticas. A água-de-colónia não vale nada para as pessoas que têm vermes no corpo. Não se podem curar chagas atacadas de vérmina com água-de-colónia, Excelência, não, com água-de-colónia, não.
O criado de quarto voltou com dois frascos de água-de-colónia. Apresentou-os a José Martin, que pegou neles.
- Os homens são roídos pelos vermes. Milhões de pessoas são roídas por vermes. E os diplomatas do Ocidente propõem-lhes água-de-colónia... é tudo o que pode oferecer a civilização do Oeste: água-de-colónia e nada mais!
A pátria de José Martin contava entre os seus filhos os maiores diplomatas da História. O embaixador Pilatos, de Sofia, era um desses grandes diplomatas. Sabia dizer apenas o que queria, fosse qual fosse o assunto abordado pelo interlocutor. Fingiu não ouvir o que dizia o professor desesperado que se conservava diante dele.
- Meu caro professor, aconselho-o a que seja muito prudente - disse o embaixador. -- O senhor é um homem de grande valor. Seria pena que cometesse uma imprudência.
O embaixador Pilatos tinha pousado paternalmente uma mão no ombro de José Martin.
-O sofrimento é grande, nós sabemos
- continuou o embaixador-, mas desde a morte de Estaline que as coisas mudaram. As desgraças causadas pelos Sovietes terminarão. Uma nova era foi agora iniciada. Não se exponha para nada. Vá dormir, acalmar-se-á. Verá que tudo correrá bem.
O criado conservava a porta aberta. José Martin estava no limiar. Ia partir, mas esta palavra "dormir" encolerizou-o.
- Os vermes, esses, não dormem nunca, Excelência - disse ele. - Venha ver como os vermes roem a carne viva de Ionesco. É assim que eles roem, desde há doze anos, no sentido próprio e no figurado, a carne de milhões de homens. Desde há doze anos, que os vermes devoram a carne viva dos homens que o senhor lhes entregou à volta da mesa de conselho. Os senhores deram aos vermes esta carne ainda viva, nas vossas conferências, em Teerão, em Yalta, em Genebra, em Potsdam, em Londres; em todas as cidades onde se encontraram, houve conferências para alimentar os vermes de carne humana, conferências para alimentar os corvos, para alimentar os cães. Eis o que é o vosso campo de acção. É a este tráfico que os senhores se entregam à volta da mesa de conselho, os senhores, os diplomatas. São os fornecedores da vérmina em carne humana. E agora que lhe peço uma ajuda para curar ao menos um homem devorado pelos vermes, a carne de um só homem, o senhor oferece-me água-de-colónia. Adeus, Excelência.
o professor José Martin subiu para um fiacre, com os dois frascos de água-de-colónia. Não viu se o polícia o seguia ou não. Os polícias eram-lhe indiferentes agora, do mesmo modo que o ser seguido, e tudo o resto. A cada segundo os vermes penetravam mais profundamente na carne de Ionesco. Os vermes nunca dormem. Os vermes são como os polícias, sempre acordados. José Martin sentiu-se sufocar.
-Pare! - gritou ele ao cocheiro. Era um lipovan (1), forte como uma montanha, com olhos azuis.
- A que cheira o seu carro? - perguntou José Martin. - O seu carro cheira mal. O seu fato cheira, tudo cheira, toda a cidade, toda a Bulgária. A que é que cheira ?
Era a hora em que não há clientes para os fiacres de Sofia. As praças e as ruas eram iluminadas à giorno, para que a polícia pudesse ver tudo o que se passava, como em pleno dia. Os cocheiros de Sofia aproveitam então a falta de clientes para fazer o arranjo dos carros e dos cavalos.
- Limpámos os arranhões dos cavalos - disse o cocheiro. - De noite temos tempo, por isso desinfectámos os arranhões dos cavalos.
* (1) Membro duma seita religiosa.
é a isso que lhe cheira. Não há mal nisso. Se não desinfectarmos cada arranhadela, no verão as chagas enchem-se de vermes. A menor esfoladela enche-se de vermes no espaço de um dia, quando está calor. é a isso que cheira. Não é mau.
O cocheiro desculpava-se. O cheiro era o de cresil, com que os cocheiros desinfectavam as chagas dos cavalos.
- O cavalo tem uma pele delicada - prosseguiu o cocheiro. - Os vermes metem-se lá se ela não for tratada. Desculpe o cheiro, é o cheiro do cresil.
O cocheiro quis partir. José Martin falou-lhe de cresil. Disse-lhe o que queria. O cocheiro vendeu-lhe o que tinha: uma garrafa de um litro, com três quartos vazia. Era um líquido preto, espesso como o sangue e o azeite e que tinha um cheiro muito activo, apesar de a garrafa estar rolhada.
- Não encontrará nada de semelhante à venda - disse o cocheiro. - Sou eu que o preparo, eu pessoalmente. É tão bom como antes da ocupação soviética.
José Martin entrou em casa com a garrafa de cresil e os dois frascos de água-de-colónia. Os polícias olharam para ele, e viram que ele trazia garrafas. No dia seguinte testemunhariam que o professor se tinha dirigido à Embaixada perto da meia-noite, para ir buscar bebidas. Contariam que ele trazia três garrafas - provavelmente whisky ou champanhe.
Em casa ninguém se tinha mexido. Começaram imediatamente a desinfectar a chaga de Ionesco com o cresil. Ionesco acordou. Deixou matar os vermes. Não protestou. Não gritou. O cresil matava os vermes imediatamente. Assim que eles eram tocados por este líquido semelhante ao azeite, a acção era imediata. Em compensação o cresil libertava um cheiro terrível que acordou Flora. Ela inclinou-se para ver José Martin, Ivanoff e Roxane tirar os vermes do corpo do seu marido.
Via-os proceder como se se tratasse de um espectáculo indiferente. E, no entanto, este corpo, tinha-o amado, tinha-o afagado, tinha-o abraçado. Era o corpo do homem pelo qual tinha preferido morrer a separar-se dele, o corpo do homem pelo qual tinha recusado continuar a viagem. Deste corpo que ela tinha amado, afagado e abraçado, os outros três arrancavam agora vermes. E ela não estava atemorizada. Ionesco também não estava atemorizado. O verme inoculado no cérebro pela mosca dos trópicos faz que os homens já não se assustem de nada. Os homens dos trópicos, a quem o verme racionalista rói o cérebro, devem ser assim. Nem sequer já sentem espanto.
Ionesco olhava para a chaga da sua ilharga como se estivesse a olhar para um filme. Estava também indiferente, e disse simplesmente:
- Se tivesse sabido que um dia teria vermes, ter-me-ia munido dum cantil de petróleo. Nunca pensei nisso. com petróleo tê-los-ia morto.
Houve um silêncio. Ionesco levantou a cabeça. Disse à mulher:
- Terias pensado, tu, que um dia eu teria vermes?
--Não - respondeu ela.
E continuou a olhar.
A DESCIDA DO CORPO
Agora, a chaga de Ionesco estava limpa. Ivanoff fez-lhe um penso. Logo que Ionesco adormeceu, o professor José Martin e Ivanoff foram-se embora. Ao partir, Ivanoff disse a Roxane:
--Fecha a porta e não abras a ninguém. Fica com eles. Nós voltaremos amanhã de manhã. Não acendas a luz, para que não vejam que há gente em casa.
O professor Martin contava ir dormir em casa de Ivanoff. Diante da casa os polícias olharam para ele atentamente. O professor aproximou-se deles, pediu-lhes lume, e depois disse:
- Onde poderíamos encontrar alguma coisa para beber, a esta hora?
-Já lhe disse que tenho de beber lá em casa - disse Ivanoff.
Tomou o professor pelo braço, e mandaram parar um fiacre. Ivanoff deu a morada de sua casa com voz forte, para ser ouvido pelos polícias. com efeito, os polícias tomaram outro fiacre e seguiram-nos. Depois instalaram-se defronte da casa de Ivanoff. E ali ficaram toda a noite. Tinham ordem para seguir o professor noite e dia, sem descanso, para toda a parte.
Roxane não podia dormir por causa do cheiro do cresil. Levantou-se, desarrolhou um frasco de água-de-colónia e borrifou o tapete, os cobertores, tudo. A janela estava aberta, mas apesar disso a água-de-colónia não conseguia expulsar o cheiro do cresil. Era uma excelente água-de-colónia, uma das melhores, mas não conseguia afastar o cheiro do cresil, do mesmo modo que os comunicados das conferências diplomáticas não conseguiam destruir o terror. Embora publicassem todas as semanas os comunicados das conferências de paz dos quatro grandes, dos cinco grandes, dos cinquenta grandes, metade do globo terrestre sentia a carne torturada, maltratada, macerada. As conferências dos quatro grandes, dos cinco grandes, dos cinquenta grandes não serviam para nada. O cheiro de carne torturada persistia em toda a terra. As conferências nada conseguiam, como nada conseguia a água-de-colónia. A água-de-colónia oferecida pelo embaixador não tinha poder. O cheiro do cresil tinha impregnado as paredes e a madeira. O cheiro do cresil tinha impregnado a casa.
No dia seguinte de manhã, pelas cinco horas, Roxane cobriu Ionesco com um cobertor mais espesso: durante a noite, ele tinha-se deitado sobre o lado ferido. Ela quis voltá-lo de costas. Mas Ionesco não se deixava voltar. Tinha deixado matar os vermes. Agora já não tinha vermes, mas não queria deixar-se voltar.
Roxane tomou-o nos braços e fê-lo rolar sobre as costas. Ionesco, que já não tinha vermes, deixou-se por fim voltar por Roxane sem protestar, porque Ionesco estava morto. Estava morto desde há muito. Devia estar morto havia algumas horas porque estava inteiriçado e frio. Embora liberto dos vermes, ele tinha morrido na mesma. A mulher dormia na cama, profundamente, a filha contra o seio. Ionesco tinha o mesmo rosto que quando chegara. Estava como na véspera, só com a diferença de que estava morto.
Flora, a mulher de Ionesco, dormia. Dormia na cama, com o seio nu, a criança contra o peito. Aos pés da cama, Ionesco jazia, morto.
Roxane esforçou-se por acordar Flora, a romena. Acordou-a com brusquidão, como na caserna. Fê-la lavar-se. Deu-lhe um vestido de Mónica para se vestir.
Deu-lhe um par de meias, um par de sapatos. Tudo pertencia a MÓnica. Depois, abordou o essencial. Roxane juntou todas as suas forças, e disse a Flora, a romena:
- Aqui está entre amigos. Deve ser forte. Nós ajudá-la-emos... O seu marido morreu. Morreu esta noite.
Estavam no vestíbulo. Roxane tinha pousado a mão no ombro de Flora. A romena tinha um ombro redondo e forte, mas agora aquele ombro amolecia-se, como se ela fosse de cera. Toda a carne de Flora, a romena, se amolecia, e ela caía suavemente para o chão. O seu corpo sucumbia, engelhado como um vestido que escorregasse duma cruzeta. Tinha caído sem uma palavra, sem ruído, suavemente, exactamente como um vestido, todo de uma vez. - disse-lhe que estava entre amigos - disse Roxane. - Deve ser corajosa.
Flora, a romena, foi corajosa. Beijou o marido na testa. Enxugou-lhe os lábios com o lenço. Havia marcas nos seus lábios, as marcas do combate que ele tinha travado com a morte. Flora apagou-as. Beijou-o. Pediu um pente a Roxane, e ajoelhada, penteou demoradamente o marido morto.
Depois arranjou a filha, e desceu para a rua, com a filha e Roxane. com a filha nos braços, ela andava por entre as pessoas precisamente como as restantes mulheres.
Roxane e Flora entraram para a sala de curso do Instituto de Antropologia. Roxane queria anunciar imediatamente ao professor a morte de Ionesco.
O professor José Martin, Ivanoff e outro dos seus colegas estavam sentados a uma mesa ao meio da sala. Era a época dos exames finais. O professor José Martin presidia ao júri.
Roxane e Flora arranjaram lugar entre os estudantes. A filha de Ionesco começou a chorar. Os estudantes voltaram-se para Flora. Ela corou. Tinha vergonha que a filhinha chorasse numa Faculdade.
desabotoou o corpete. Tirou um seio e deu de mamar à pequenina. A filhinha de Ionesco não chorou mais.
O júri interrogava uma rapariga, uma bela estudante. Ela tinha escolhido como assunto um tema oficial. O Partido impunha para os exames uma lista de assuntos políticos a todas as Faculdades. A estudante interrogada tinha escolhido como assunto: As primeiras sociedades russas e o Ocidente. Tinha na mão um caderno e lia:
"O Ocidente tentou transformar a Rússia numa colónia ocidental ainda antes da formação do Estado russo. Não tendo conseguido conquistar a Rússia pelas armas, o Ocidente tentou colonizá-la pela astúcia: tentou cristianizar os Russos, a fim de poder submetê-los. Os Russos recusaram ferozmente a evangelização. Sabiam que, uma vez tornados cristãos, seriam confiados, com os pés e mãos ligados, aos missionários, bispos, padres do Ocidente, que se apoderariam de todos os bens e de todas as riquezas russas.
A Rússia, cristianizada, teria deixado de existir. Teria sido governada, no seu próprio solo, pelos agentes religiosos ocidentais. Pouco antes do ano 1000 o Ocidente desencadeou uma nova ofensiva com o fim de conquistar a Rússia. Fez o bloqueio económico da Rússia e proibiu aos navios russos o acesso do Mediterrâneo. O príncipe Vladimiro viu que não podia resistir a este bloqueio. Encetou negociações com o Ocidente pedindo autorização para fazer comércio nos mares. O Ocidente respondeu aos Russos que o bloqueio seria suspenso mediante duas condições:
"Os Russos teriam de renunciar ao feiticismo e à adoração do seu ídolo, que se chamava Peroun. Este ídolo russo tinha a sua estátua em todas as cidades. O Ocidente pedia que as estátuas de Peroun fossem destruídas, lançadas à água e que todos os Russos viessem escarrar nas estátuas do seu ídolo. Era a primeira condição do Ocidente.
"A segunda condição era que os Russos se baptizassem e se tornassem cristãos. Depois da realização destas duas Condições, não só o Ocidente suspenderia o bloqueio económico, mas, além disso, ofereceria à Rússia as vantagens financeiras mais importantes. Os Russos aceitaram pelo bem da pátria. No ano 968 destruíram todas as estátuas de Peroun. O ídolo foi quebrado, coberto de escarros, calcado e lançado ao Volga. Os Russos que ousavam ainda pronunciar o nome do seu ídolo sem escarrar e dizer: "Peroun era um criminoso e um celerado" eram condenados à morte. O Ocidente estava satisfeito. O Ocidente pensava ter ganho uma grande batalha e ter posto a pata na Rússia. Depois da destruição do ídolo russo, o Ocidente organizou um verdadeiro exército de missionários, bispos, diáconos, metropolitas que tinham de ir à Rússia para a evangelizar. O Ocidente preparava-se para invadir a Rússia com este exército de evangelistas. Mas Vladimiro fechou as fronteiras. Nenhum missionário pôde entrar na Rússia. Os Ocidentais disseram aos Russos que não podiam tornar-se cristãos sem padres e sem objectos do culto. Vladimiro não respondeu, mas não permitiu aos missionários a entrada nas suas terras. Organizou uma expedição ao Sul e conquistou alguns conventos e igrejas. Tomou, como despojo de guerra, todos os objectos de culto necessários à cristianização. Fez prisioneiros algumas dúzias de padres que levou para Kiev, carregados de grilhões. O Ocidente não compreendeu o que os Russos queriam fazer. O Ocidente nunca compreendeu o que os Russos queriam fazer.
"Um dia Vladimiro fez sair um decreto: no dia seguinte todos os Russos tinham de se apresentar nas margens do Dniepre para se tornarem cristãos. O que se não apresentasse para receber o baptismo teria a cabeça cortada. O cronista Nestor conservou o texto dessa proclamação:
Aquele que amanhã, pela manhã, não aparecer à beira do rio, rico ou pobre, mendigo ou jornaleiro, será considerado rebelde e tratado como tal.
"Na manhã seguinte, todos os Russos, mesmo os recém - nascidos vindos ao mundo durante a noite, até os doentes levados em macas, estavam nas margens do rio Dniepre. Vladimiro ordenou ao povo russo que se pusesse completamente nu. Os Russos despiram-se e ficaram completamente nus. Em seguida, Vladimiro ordenou-lhes que entrassem na água. O Dniepre encheu-se de corpos nus. Os padres cativos foram levados para as margens do rio. Foram vestidos com hábitos apanhados como despojo de guerra e Vladimiro ordenou-lhes que baptizassem os Russos que esperavam, na água. E os padres cativos celebraram na margem a cerimónia do baptismo. Em menos de meia hora, todos os Russos se tinham tornado cristãos. Em toda a Rússia apenas havia cristãos.
Vladimiro disse aos Ocidentais que estavam realizadas as duas condições. O ídolo estava destruído, os Russos cristianizados. O Ocidente compreendeu então que os Russos eram inteligentes. Nenhum padre ocidental tinha licença para entrar na Rússia, mas não se podia dizer que a Rússia não era cristã. As formalidades tinham sido respeitadas. Além disso o próprio Vladimiro, que a seguir foi canonizado e cuja festa se celebra em 15 de Julho, conservou as duas mil esposas e concubinas. A Rússia tornou-se cristã sem se tornar escrava do Ocidente. A Rússia é além disso um dos últimos povos atraídos pelo Cristianismo, no ano 1000 depois de Jesus Cristo, e foi o primeiro povo a separar-se dele, em massa, em 15 de Outubro de 1917. A entrada da Rússia no mundo cristão foi ditada por motivos económicos. Tenho dito".
O professor José Martin escutou a leitura com desânimo. Os embaixadores ocidentais que, no ano 1000 depois de Jesus Cristo, tinham querido cristianizar a Rússia assemelhavam-se aos embaixadores ocidentais que, em 1956, queriam democratizá-la. Tratava-se, desta vez ainda, de ídolo quebrado, de conversão. Outrora, era a estátua de Peroun, desta vez a de Estaline. O Ocidente pede sem cessar aos Russos que destruam estátuas. No ano 1000, tratava-se de conversão ao cristianismo. Em 1956, fala-se de conversão à democracia. No ano 1000, os Russos tinham respeitado à risca a convenção, mas a seu modo. Hoje, os Russos respeitam as convenções assentes nas conferências com os Ocidentais, mas sempre a seu modo. E entretanto as pessoas são invadidas pelos vermes. Publicam-se comunicados afirmando que a Rússia é uma democracia. Os diplomatas congratulam-se. Foi assim que no ano 1000 os comunicados anunciavam que a Rússia se tinha tornado cristã, omitindo que os padres que tinham celebrado o baptismo eram prisioneiros, que os objectos do culto faziam parte dum despojo de guerra e que os Russos tinham entrado na água sob pena de morte.
- Pode emprestar-me esse texto? perguntou José Martin. - é um texto notável. Gostaria de oferecê-lo a um amigo...
Escreveu numa folha de papel:
"Excelência, o texto que juntamente lhe envio é obra duma estudante. Poderá ser-lhe útil na sua empresa de conversão dos Russos à democracia. As datas e os factos são rigorosamente exactos. Foi assim que as coisas se passaram. Tal como hoje. Poderá encontrar os pormenores e examiná-los na Crónica Russa, que encontrará em todas as bibliotecas. Para lhe facilitar as pesquisas, aponto-lhe a edição francesa desta crónica, intitulada a Crónica de Nestor, traduzida segundo a edição imperial de Petersburgo (manuscrito de Koenigsberg) editada em Paris por Heideloff e Campe em 1834. As passagens relativas à conversão dos Russos e à destruição dos ídolos encontram-se no tomo I, página 118 e seguintes..."
Confiou o bilhete a um fâmulo do Instituto.
Agora era um estudante que se encontrava diante do júri. Flora, a romena, não percebia nada do que ouvia. Não conhecia o búlgaro. Pensava no marido morto. Perguntou a Roxane:
- Poderemos enterrá-lo sem papéis de identificação ?
- Falaremos nisso com o professor e com meu marido - disse Roxane.
- Seria terrível se não pudéssemos enterrá-lo- disse a romena. - Não creio que possamos enterrá-lo sem papéis. Os mortos devem ter certificados de identidade. Ele não tem.
Flora pôs-se a chorar. Os estudantes voltaram-se para ela. Não sabiam por que motivo chorava aquela mulher. Mas Flora tinha razão para chorar. Não se pode enterrar um morto sem papéis de identificação. Por isso o seu morto não seria enterrado. Era impossível...
- Silêncio ! - gritou um estudante.
Flora ficou muito perturbada. Não se
chora numa Faculdade !
Roxane, Ivanoff, Flora e o professor José Martin discutiram demoradamente, na biblioteca do Instituto. No quarto, havia esse morto que esperava. Tinham que enterrá-lo. Todos os mortos esperam que os enterrem.
- Os polícias estavam diante da casa, quando partiram? - perguntou o professor.
Roxane não sabia. Não sabia se os polícias as tinham seguido, a ela e à romena, até à Universidade.
- Em todo o caso eles estão aqui - disse Ivanoff. - Fumam e passeiam na rua, diante da Faculdade.
Fazer sair Ionesco da casa seria difícil. A descida do andar seria mais difícil que a descida da cruz. Quando Jesus estava na cruz, o outro José, o de Arimateia, dirigiu-se a casa do Estado, a casa de Pilatos, e pediu-lhe licença para descer o morto da cruz, e Estado-Pilatos tinha permitido a José de Arimateia enterrar o morto. José Martin, se se dirigisse ao Estado, seria preso. Não teria licença para trazer o seu morto para baixo. O seu morto devia ficar lá em cima.
- Deveremos tirá-lo hoje de lá - disse Ivanoff. - A descida será fácil, mas temos de achar um meio para o enterrar. Precisamos de um cemitério e de um padre.
Os três pensavam que seria uma grande felicidade se pudessem achar um cemitério e um padre. Sobretudo um cemitério: será o mais difícil.
- O padre Lourenço ajudar-nos-á - disse José Martin. - Um padre é mais entendido nestes assuntos que um leigo. O padre Lourenço ajudar-nos-á a encontrar um cemitério para enterrar Ionesco. Está calor. Se o não tirarmos lá de cima, o cheiro atrairá os vizinhos.
Saíram. Os polícias seguiram-nos, mas eles já não se preocupavam com os polícias. Tinham retomado coragem.
Dirigiram-se os quatro para o Àrquiepiscopado, em silêncio, com os polícias atrás. Estava calor. Ivanoff desabotoou o casaco.
- O padre Lourenço partiu em missão
- disse um jovem padre do Arquiepiscopado. - Sou o seu substituto. Pode falar-me como a um confessor.
O substituto do padre Lourenço era um dos padres nomeados pelo governo, um polícia de sotaina. Em nenhum outro sítio melhor que na igreja se podem recolher informações mais preciosas para segurança do Estado progressista. O principal é nomear confessores polícias especializados na obtenção de informações. Via-se na sua maneira de pedir informações que o substituto do padre Lourenço era um especialista.
- O padre Lourenço tinha dito que partiria dentro de uma semana - disse o professor Martin. - Falei-lhe ontem ao meio-dia. Tinha-me dito que não partiria antes de oito dias.
O polícia de sotaina sorriu. -Tratava-se duma coisa urgente disse ele. - O senhor sabe que tudo mudou, agora. A Igreja retomou o seu lugar, o lugar que deve ser o seu. Depois da morte de Estaline, a Igreja voltou a ser livre. Ninguém mais morre sem a assistência eclesiástica. O padre Lourenço é o capelão das prisões.
- Eu sei - disse José Martin. - Mas se ele tivesse partido, ter-me-ia avisado.
- Era urgente - disse o padre. - Houve algumas execuções esta manhã. Era preciso um padre, de acordo com os compromissos assumidos pelo Estado búlgaro para com as potências ocidentais, respeitantes à liberdade do culto. Partiu de noite. As execuções realizaram-se às cinco horas da manhã. Ele teve que partir com urgência.
O professor José Martin despediu-se. Não tinha mais nada a dizer. O padre Lourenço podia continuar ausente vários dias. Ele era o único capelão das prisões. Tinha de assistir a todas as execuções da Bulgária. Esse artista, esse santo, tinha de assistir a todas as execuções, onde quer que se realizassem, porque agora a liberdade do culto reinava em toda a Bulgária de acordo com as convenções estabelecidas com os países ocidentais. Por enviar o padre Lourenço a assistir a todas as execuções a Bulgária recebia das potências ocidentais projectores, armas, coca-cola e champanhe. De acordo com as convenções da coexistência pacífica, uma era nova começava. A paz mundial estava consolidada. Os comunicados oficiais anunciavam os grandes êxitos do Ocidente e a compreensão de que davam prova os Russos. Era um triunfo da democracia ocidental. A Rússia tinha-se convertido à democracia. As missões do padre Lourenço eram a prova disso.
Logo que deixaram o Arquiepiscopado, os dois polícias cumprimentaram o padre. Era um dos colegas. Um colega que não usaria mais um casaco de couro, como os outros. Depois de ter cumprimentado o colega de sotaina, os polícias seguiram o grupo.
-Não devemos continuar juntos - disse José Martin a Roxane. - Leve a romena para sua casa. Tome conta dela. Eu parto com Ivanoff.
Roxane tomou Flora pelo braço e alcançaram juntas a estação do autocarro.
Os polícias ultrapassaram Ivanoff e o professor. Sorriram para o professor.
- Um homem vivo é mais fácil de deslocar- disse José Martin. - Os vivos, podemos escondê-los. Eu tenho escondido muitos. Não sabia que era tão difícil esconder um morto.
Ivanoff reflectia. Procurava uma solução.
- E, no entanto, existe uma solução - disse o professor José Martin. - Uma única solução. Temos de aceitá-la. Não podemos escolher. com coragem, com dignidade.
O professor José Martin e o amigo Ivanoff subiram de novo a escada de casa. Através das frinchas da porta, o cheiro de cresil e o cheiro de carne apodrecida tinham alcançado já o corredor.
- É um cheiro que chama a atenção - disse Ivanoff. - Temos de o fazer descer daqui. Qualquer dos locatários poderia queixar-se à polícia do cheiro esquisito que vem da sua casa.
No quarto, além do cheiro de cresil, flutuava um cheiro adocicado, enjoativo, de água-de-colónia. Era o mais difícil de suportar. Misturado ao cheiro da putrefacção de Ionesco e ao cheiro do cresil, o perfume da água-de-colónia far-vos-ia vomitar as tripas. José Martin abriu a janela de par em par. Aspirou o ar de fora e olhou para os dois polícias. As janelas da casa de José Martin estavam agora abertas de par em par. Um cheiro a sol, um cheiro a árvores penetrava no compartimento. Um vendedor de yaourt passou diante da casa.
O professor pegou em Ionesco pela cabeça.
- Pega-lhe pelos pés - disse José Martin.
Ivanoff pegou no morto pelos pés. Colocaram-no na cama. A chaga estava pensada, como eles a tinham deixado. Não tiraram o penso, embora Ionesco já não tivesse necessidade do penso na ferida - é preciso abotoar-lhe as calças, é preciso vesti-lo convenientemente - disse o professor.
O professor e Ivanoff puxaram as cuecas para cima do penso. Abotoaram-lhe as calças. Ionesco tinha um cinto em plástico, como os que usavam José Martin e Ivanoff. Também na Roménia os homens usavam esta espécie de cintos. As calças de Ionesco tinham o mesmo corte soviético. Ivanoff fechou o colarinho da camisa. Tornou a vestir o morto com o seu casaco. Agora, que estava morto, Ionesco não cheirava tão mal. Cheirava menos que na véspera. Era a vida que cheirava. Agora que a vida sufocante, macerada, se tinha ido, a carne cheirava menos. Puseram as pernas de Ionesco bem direitas, como no exército, depois cruzaram-lhe os braços sobre o peito. O professor tomou o ícone da Virgem Mãe da parede de este e colocou-o no peito de Ionesco. Ionesco tinha o rosto sossegado. Tudo tinha terminado.
O professor fez o sinal-da-cruz. Ivanoff imitou-o. O professor pegou na pasta. Tirou os livros e os papéis que lá estavam.
E em seu lugar colocou uma escova de dentes, uma caixinha de pó dentífrico. Pôs também um pijama, uma camisa, um par de sapatos, o retrato de Mónica, o retrato da mãe. Olhou para a casa na qual tinha vivido durante seis anos com Mónica. Ia deixá-la para sempre. Cedia-a a Ionesco. O morto precisava mais dum quarto do que ele.
O professor José Martin instalou-se à mesa, pegou numa folha de papel e escreveu:
"Senhor Comissário, há um cadáver na minha casa. Peço-lhe que faça o que é preciso. - Professor Doutor José Martin, director do Instituto de Antropologia búlgaro" .
Pôs a carta num sobrescrito.
- Deste modo, Ionesco será retirado cá de cima - disse José Martin. -Tomarás conta de Flora e da criança. Eu envio a carta ao comissariado e em seguida desapareço. Eu, que salvei tantas pessoas, conseguirei salvar-me...
Ivanoff era um homem, um homem forte.
Mas pôs-se a chorar. Lembrava-se de ter já ouvido esta frase: "Se tu és o Salvador, salva-te a ti próprio. Desce da tua cruz, e nós acreditar-te-emos... Mas Jesus não desceu da cruz. No entanto tinha salvo o mundo. Mas não se tinha salvo a Ele próprio.
- Se o padre Lourenço estivesse aqui - disse Ivanoff - nós teríamos podido enterrar Ionesco. Agora Ionesco não será enterrado. Eles levá-lo-ão para a morgue, farão primeiramente a autópsia, depois guardarão o esqueleto na Faculdade de Medicina. Ionesco esperará a ressurreição dos mortos e a ressurreição da carne numa vitrina da Faculdade. Esperará numa vitrina que a carne ressuscite. Ser-lhe-á preciso paciência ...
"Jesus foi descido da cruz por José e posto no túmulo. Ionesco será descido pelos polícias para o subsolo da morgue. Não são mãos humanas, mas mãos de polícias que o tirarão cá de cima. Eles não o untarão com aromatos. Cortá-lo-ão ao fazerem a autópsia. Depois, pô-lo-ão a ferver, para separar as carnes e se apoderarem do esqueleto. Há para isso panelas especiais...
José Martin não tinha força para se separar de Ionesco e da casa.
- É tudo o que posso fazer por ti, Ionesco - disse ele. - José de Arimateia pôde fazer mais por um amigo morto. José Martin não pode fazer mais. Não pode senão entregar-te à polícia para que, morto, sejas fervido, e em seguida fugir...
José Martin disse ainda:
- Sou um homem civilizado. Não posso fugir sem dizer adeus a Sua Excelência o Estado.
Escreveu:
"Excelência, a água-de-colónia que me ofereceu não me serviu para nada. O homem morreu. Morreu no meu quarto. Informei, pois, a polícia, para que o venham retirar. Não saberia onde enterrá-lo e não posso ficar com ele. Fujo. Tenho de me esconder. O comunicado oficial que anunciar a morte dum homem em minha casa conterá sem dúvida uma alusão à minha responsabilidade. Poderei ser acusado do assassínio de Ionesco. Vão encontrá-lo na minha cama, morto por uma bala. Oficialmente, poderei pois ser acusado. Mas o senhor, o senhor sabe que Ionesco morreu porque não pôde ser salvo com água-de-colónia. Não empregue nunca água-de-colónia em casos graves, Excelência. Há ocasiões para a água-de-colónia e ocasiões em que ela não deve ser utilizada. Quando se trata de vermes, de chagas profundas, a água-de-colónia é tão ineficaz como as conferências diplomáticas... Adeus-".
Os dois polícias seguiram José Martin, que pôs as duas cartas no marco e se dirigiu em seguida à Faculdade, com o amigo Ivanoff e a pasta.
- Amanhã de manhã, talvez mesmo esta tarde, a polícia tirará Ionesco lá de cima - disse o professor. -Põe a romena em segurança. Eles vão fazer uma busca em tua casa. Toma cuidado.
Ivanoff estava no cume da emoção. Mal podia reter as lágrimas.
- Eu também fugirei, com Roxane - disse ele.
Chegaram ao Instituto. O professor tomou um corredor que o levou ao subsolo, depois desembocou num pátio pela escada de serviço. Ali, não havia polícias. Apertou a mão de Ivanoff, e estendeu-lhe a cigarreira de cerejeira coberta de traços gravados.
- Continua a proceder como Santa Verónica e como os marinheiros - disse ele. - é tudo. é o único caminho da grandeza e da pureza. é o único caminho humano, o único caminho bom. Aquele que salvar um homem salva todo o universo. Só os Estados, só os diplomatas crêem que é preciso salvar primeiro o universo para poder em seguida salvar um homem. Adeus. Não pudemos salvar Ionesco. Não há traço gravado por ele na cigarreira. Mas salva Flora e a filha. Ainda restam dois traços para gravar. Grava-os.
O professor José Martin partia com a intenção de deixar a Bulgária e de alcançar a sua capital do Ocidente, onde as pessoas não são devoradas pelos vermes em vida. Queria chegar ao Ocidente, onde as pessoas esperam a ressurreição da carne em mausoléus de pedra, em panteões, sob blocos de mármore, e não no ventre dos vermes.
PILATOS LAVA AS MÃOS com ÁGUA-DE-COLÓNIA
José Martin foi detido na fronteira. era acusado de vários crimes. Como lhe tinha dito o embaixador, os Búlgaros tinham constituído contra ele um dossier volumoso. Era entre outras coisas acusado do assassínio de Ionesco. O comunicado oficial que relatava a morte de Ionesco era claro: O professor José Martin desaparece depois de ter morto um desconhecido.
O professor José Martin, algemado, foi transferido para a prisão de Jilava, cujo nome significa "Humidade".
O professor José Martin não tinha medo da morte, mas tinha um medo terrível da tortura.
Depois que o guarda o levou para a cela e fechou a porta de ferro, disse-lhe através do postigo:
-Tu, que salvaste tantas pessoas da prisão e da morte, salva-te agora a ti próprio !
- Não é necessário - respondeu José Martin.
- Quando a raposa não pode apanhar as uvas, diz que estão verdes de mais - disse o guarda. - Daqui, ninguém sai vivo. Estás no sector dos condenados à morte, embora não fosses ainda condenado. Mas sê-lo-ás. O teu meteco, o teu Ionesco, porque o fizeste descer ? Por que motivo não salvaste o teu último amigalhaço ?
Enquanto o guarda falava assim com José Martin, o padre Lourenço encontrava-se no gabinete do comandante da prisão ! O padre Lourenço era um santo. Os santos também têm vertigens, como os outros homens. Os santos tremem por vezes de medo, como os outros homens. O padre Lourenço tinha assistido naquela manhã a seis execuções, no forte Jilava.
Tinha rezado pelos condenados, tinha-os confessado, tinha-lhes dado a comunhão, mas tremia.
Neste momento, estava no gabinete do comandante, um gabinete de caserna com uma mesa de madeira, cadeira de madeira, um telefone, os retratos de Lenine e de Karl Marx.
- Vi, há dez minutos, um amigo pessoal- disse ele. - Foi preso. Foi trazido para aqui. Poderei falar-lhe alguns instantes ?
- com certeza, capelão - disse o comandante. - Como se chama ele?
- José Martin - disse o padre Lourenço.
O comandante chamou um furriel: ? - O recém-chegado é um condenado à morte ?
- Um momento, que eu verifico - disse o furriel. -Ainda não. Será julgado daqui a quarenta e oito horas. com certeza será a morte.
O furriel foi-se embora. O padre Lourenço olhou para o comandante. Esperava saber onde poderia encontrar José Martin - é um dos seus amigos pessoais ?
- Um amigo pessoal. um grande sábio - disse o padre Lourenço.
- bom - disse o comandante. - Poderá falar-lhe durante toda a noite. Autorizo-o a falar com ele durante oito horas, precisamente.
O comandante levantou-se. Apertou a mão do padre Lourenço.
- Não sei onde é a cela - disse com candura o padre Lourenço. - Poderia mandar-me acompanhar?
- Virão buscá-lo - disse o comandante. - Amanhã à noite, às nove horas, alguém virá e conduzi-lo-á. É perfeitamente legal.
- Não poderei, portanto, vê-lo agora?
O comandante franziu o sobrolho. Olhou para o padre Lourenço com um ar de censura.
- Oito horas não lhe chegam? Quer ainda por cima vê-lo imediatamente?
O padre Lourenço recebeu uma repreensão severa. Depois da morte de Estaline, o governo tinha feito algumas concessões pedidas pelo Ocidente. Entre outras coisas o governo tinha aceitado que todos os condenados à morte fossem assistidos pela Igreja, se o desejassem.
- O senhor foi contratado para aqui unicamente para assistir os condenados à morte. Isso basta. Concedendo-se-lhe este favor, provou-se que a liberdade religiosa existe. Não se deve pedir mais. Queixa-se talvez por não ter bastantes fiéis Quer mais clientes ?
- um amigo pessoal - disse o padre Lourenço. - Não lhe peço isto como capelão.
- Espere que o seu amigo seja condenado. De resto, ele sê-lo-á com certeza. Poderá falar com ele durante oito horas, conforme ao regulamento. Amanhã, entre as nove da noite e as cinco da manhã, poderá dormir perto dele, na sua cela. De que se queixa? Os padres não têm o direito de constituir adeptos senão entre os condenados à morte, oito horas antes da execução. Se o seu amigo tivesse sido condenado a trabalhos forçados em vida, poderia ter-se queixado, porque neste caso não poderia tê-lo visto. Mas desta vez ele estará à sua disposição a partir de amanhã à noite. A partir de amanhã à noite, ele será um homem a quem restam ainda oito horas para viver, e o senhor pode conservá-lo nos braços durante essas oito horas, como faz um verdadeiro amigo. Adeus. A liberdade religiosa, sim, mas com medida... Há um limite em tudo. Nós demos-lhes os condenados à morte, e agora vós, padres, quereis também os outros? é de mais, é de mais...
O padre Lourenço deixou a pasta com os objectos de culto na cela e pediu um carro para ir a Sofia. Queria pedir a ajuda do embaixador Pilatos. O embaixador tinha o dever de intervir em favor de José Martin. Era a sua obrigação. Devia pedir o adiamento do processo. Devia pedir a comunicação do dossier, pedir um advogado estrangeiro. Um embaixador tem tantos poderes ! Ele devia servir-se da sua influência para salvar José Martin da morte.
- O carro está à espera - disse o intendente. - O senhor parte com um comboio de prisioneiros. Deixá-lo-ão em Sofia. E esta noite, às nove horas, trá-lo-ão. Amanhã, teremos outros pacotes a abrir, outras cabeças a separar. Esta noite terá ainda trabalho... Não sabia que um cura tinha um trabalho tão difícil...
O intendente continuou:
- A propósito de trabalho, antes de partir, venha receber os seus honorários.
- Que honorários ? - perguntou o padre Lourenço.
- Por cada execução, os que tomam parte nela têm direito a uma gratificação e ao pagamento das horas suplementares.
- Não quero gratificação - disse o padre Lourenço.
- Todos os que tomam parte efectiva numa execução têm direito ao pagamento das horas suplementares e à gratificação especial. Ao capelão é atribuída uma gratificação quase igual à do carrasco. O senhor tem sorte: é uma bela gratificação, mais as oito horas suplementares de trabalho nocturno! Vi que passou toda a noite na cela, oito horas inteiras, pelo que tem direito à sua remuneração. É normal. O carrasco e o senhor são os que de mais perto lidam com o condenado, até ao último momento...
- Eu não quero salário - repetiu o padre Lourenço.
- Tem de o aceitar - disse o intendente. - Se não o aceitar, ouviremos dizer em Rádio-América, em Rádio-Londres ou em Rádio-Paris que os padres são maltratados na Bulgária, que não existe liberdade religiosa, que o trabalho dos padres não é remunerado. Entre nós o trabalho é pago, mesmo o dos curas.
- Não quero nada.
-Fará o que quiser desse dinheiro e da gratificação. Pode-o atirar fora. Mas tem de assinar o recibo, para que o documento que prova que o seu trabalho foi pago fique arquivado no gabinete do intendente.
O padre Lourenço recebeu duas garrafas de aguardente, dois maços de cigarros, dois pães, um quilo de açúcar, uma libra de manteiga e uma grande soma em dinheiro. Teve de assinar o recibo da paga.
Ao chegar à Embaixada, o padre Lourenço tinha vertigens. Pôs o embaixador Pilatos ao corrente da situação.
Era tarde. O embaixador dirigia-se a uma recepção. Estava com pressa. Apesar disso, escutou pacientemente o padre Lourenço e depois disse:
- Fiz o meu dever. Avisei José Martin. Nada mais posso fazer já por ele. Agora está entre as mãos dos Búlgaros. Eles que façam dele o que quiserem.
- Esse homem não fez mal nenhum, Excelência ! - disse o padre Lourenço. Esse homem salvou da morte algumas centenas dos seus semelhantes. Atirou-lhes um cinto de salvação. Estendeu-lhes a mão que os socorreu. Não cometeu nenhum crime.
- Os Búlgaros pretendem que, segundo as suas leis, é um crime - disse o embaixador.
- Mas o senhor sabe muito bem que não é um crime.
- Caiu nas mãos dos Búlgaros, o meu papel terminou. Lavo daí as minhas mãos.
O embaixador Pilatos tinha dito com uma tal convicção que lavava daí as suas mãos, que, depois da partida do padre Lourenço, entrou na casa de banho e lavou-as efectivamente.
Lavou-as primeiro com água e sabão. Depois, quando lhe pareceram lavadas, o embaixador lavou-as mais uma vez com água-de-colónia.
Deitou muita água-de-colónia.
Nas duas mãos.
Virgil Gheorghiu
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