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Em 88 a. C. o mundo parece estar em guerra - de Roma à Grécia, passando ainda pelo Egito, a civilização está à beira do conflito. Gordiano, um jovem romano que vive em Alexandria, quando não está a resolver quebra-cabeças, passa o seu tempo com Bethesda, a sua escrava, enquanto espera que o mundo volte à normalidade. No entanto, no dia em que Gordiano faz vinte e dois anos, Bethesda é raptada por bandidos que a confundem com a amante de um homem rico. Para salvar Bethesda, que afinal significa mais para si do que suspeitava, Gordiano tem de encontrar os raptores antes que eles se apercebam do seu erro e arranjem maneira de minimizar as suas perdas. Usando tudo aquilo que aprendeu com o seu pai, Gordiano tem de encontrá-los e convencê-los de que pode oferecer-lhes algo em troca da sua libertação.
À medida que as ruas de Alexandria mergulham lentamente no caos e os cidadãos começam a revoltar-se, depois de rumores sobre uma iminente invasão por parte do irmão do rei Ptolomeu, Gordiano vê-se envolvido numa perigosa trama - o saque do sarcófago de Alexandre, o Grande.
I
Como qualquer jovem romano que estivesse a viver na cidade mais
entusiasmante da terra - Alexandria, capital do Egito -, eu tinha uma
longa lista de coisas que desejava fazer, mas participar num assalto para roubar o sarcófago dourado de Alexandre, o Grande, nunca havia sido
uma delas.
E, no entanto, ali estava eu, numa manhã do mês a que nós, romanos, chamamos Maius, a fazer precisamente isso.
Como qualquer visitante de Alexandria sabe, o túmulo do fundador da cidade encontra-se num edifício gigantesco e muito ornamentado no coração da cidade. Um friso
muito alto, de um dos lados, representa os feitos do conquistador do mundo. O momento de inspiração que
deu origem à própria cidade, há cerca de duzentos e quarenta anos,
encontra-se vividamente representado nesse friso: Alexandre ergue-se
no cimo de uma duna, olhando para a costa e para o mar mais além,
enquanto os seus arquitetos, agrimensores e engenheiros fixam os
olhos nele, maravilhados, empunhando os seus vários instrumentos.
Este friso enorme estava esculpido e pintado de forma tão realista que eu quase esperava que a imagem gigante do conquistador virasse de repente a cabeça e olhasse
para nós enquanto passávamos, a correr, por baixo dele em direção à entrada do edifício. Não teria ficado surpreendido se o tivesse visto a erguer uma sobrancelha
e a perguntar num tom de voz trovejante e divino: "Por Hades, onde é que vocês pensam que vão? Porque brandem alguns espadas? E o que é que os restantes empunham:
um aríete?"
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Mas Alexandre manteve-se imóvel e mudo, enquanto eu e os meus companheiros passávamos por ele, apressados, e invadíamos a entrada cheia de colunas.
Nesse dia, o túmulo estava encerrado a visitantes; um portão em ferro obstruía a entrada para o vestíbulo. Eu estava entre aqueles que transportavam o aríete. Colocámo-nos
em formação, perpendicularmente ao portão. Enquanto Artemon, o nosso líder, contava até três, balançámos o aríete para a frente, depois para trás, depois novamente
para a frente com toda a nossa força. O portão tremeu e deformou-se com o impacto.
- Outra vez! - gritou Artemon. - Aos três! Um, dois, três!
Cada vez que o aríete batia contra o portão, este gemia e guinchava como se fosse uma coisa com vida. Por fim, começou a ceder. Na quarta vaga, o portão abriu de
rompante. Os que carregavam o aríete recuaram para a rua e atiraram-no para o lado, enquanto a vanguarda do nosso grupo, encabeçada por Artemon, se apressava a entrar
pelo portão partido. Desembainhei a espada e segui-os até ao vestíbulo. Mosaicos deslumbrantes, que celebravam a vida de Alexandre, decoravam cada superfície, desde
o chão até ao teto abobadado onde uma abertura permitia que a entrada da luz do sol se disseminasse pelos milhões de pedaços de vidro e pedra coloridos.
À minha frente, vi que apenas uma mão-cheia de homens armados ofereciam resistência. Estes guardas do túmulo pareciam surpreendidos, assustados e prontos a fugir
- e quem os poderia culpar? Éramos muito mais numerosos do que eles. Também pareciam demasiado velhos para estarem armados: os rostos gastos e enrugados, e as sobrancelhas
grisalhas.
Porque estavam ali tão poucos guardas e porque eram de tão baixo posto? Artemon tinha-nos dito que a cidade se encontrava mergulhada no caos, devastada por motins
diários. Todos os soldados mais capazes tinham sido convocados pelo rei Ptolomeu para protegerem o palácio real, deixando apenas esta mão-cheia de soldados, insignificantes
e fracos, a defender o Túmulo de Alexandre. Talvez o rei tenha pensado que nem a mais violenta multidão se atreveria a violar um local tão sagrado, especialmente
à luz do dia. Mas Artemon tinha sido rnais
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esperto do que ele. "A nossa maior vantagem será o elemento surpresa", dissera-nos e parecia ter razão.
Ouvi o choque de espadas, seguido de gritos. Tinha-me voluntariado, deliberadamente, para manobrar o aríete, de forma a evitar ficar na linha da frente de uma qualquer
batalha que pudesse ocorrer. Não queria ter sangue nas mãos, se o pudesse evitar. Mas seria realmente menos culpado do que os meus camaradas que seguiam à frente
e que esgrimiam alegremente as suas espadas?
Talvez o leitor queira saber por que razão me encontro a participar deste ato criminoso e sacrílego. Fui levado a juntar-me a estes bandidos contra a minha vontade.
Ainda assim, não me poderia ter esgueirado em determinada altura e fugido? Porque permaneci com eles? Porque continuei a seguir as ordens de Artemon? Fi-lo devido
ao medo, à lealdade mal atribuída ou à simples ganância por uma parte do ouro que nos fora prometido a todos?
Não. Fiz o que fiz por ela - pela saúde daquela escrava maluca que, não sei como, conseguira ser raptada por estes bandidos.
Que tipo de romano se rebaixaria à prática de um comportamento criminoso por causa de uma rapariga e, ainda para mais, uma escrava? O ofuscante sol egípcio deve
ter-me deixado louco, para que eu me colocasse em tal posição!
Enquanto avançava pelo vestíbulo, em direção ao corredor largo que levava ao sarcófago, apercebi-me de que estava a sussurrar o nome dela: "Bethesda!" Estaria ela
bem e ilesa? Será que a voltaria a ver?
Escorreguei numa poça de sangue. Enquanto abanava os braços para me equilibrar, olhei para baixo e vi a cara pálida de um guarda caído. Os seus olhos sem vida estavam
bem abertos e a sua boca esboçava uma careta. O pobre velhote podia ter sido o avô de alguém!
Um dos meus companheiros ajudou-me a recuperar o equilíbrio. "Tolo descuidado!", pensei. "Podias ter partido o pescoço! Podias ter caído sobre a tua própria espada!
O que aconteceria então a Bethesda?"
Ouvi os sons de uma outra batalha à nossa frente, mas a sua duração foi breve. Quando cheguei à câmara, apenas um guarda se encontrava de pé e, enquanto eu observava,
Artemon esfaqueou-o na barriga. O pobre desgraçado desabou sem vida no duro chão de granito.
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A espada caiu ao seu lado com estrondo e, em seguida, o silêncio abateu-se sobre a sala cheia de gente.
As lâmpadas colocadas em nichos nas paredes eram a única fonte de iluminação. Embora no exterior brilhasse a luz do dia, ali tudo eram sombras e luz fraca. À nossa
frente, erguido sobre um estrado baixo, encontrava-se o enorme sarcófago. Na forma e no estilo, era parcialmente egípcio, como os sarcófagos angulares dos antigos
faraós, e parcialmente grego, com entalhes nos lados que representavam os feitos de Alexandre - a domesticação do garanhão Bucéfalo, a entrada triunfal pelos Portões
da Babilónia, a horrível batalha contra a cavalaria de elefantes dos hindus. O sarcófago reluzente, que se dizia ser feito de ouro maciço, tinha incrustadas pedras
preciosas, incluindo a deslumbrante pedra verde a que chamavam esmeralda, extraída das montanhas que se encontravam no extremo sul das fronteiras do Egito. O sarcófago
resplandecia na luz trémula das lâmpadas, um objeto cujo esplendor era de cortar a respiração e cujo valor era incalculável.
- Então, o que pensas disto?
Tremi, como se tivesse sido acordado de um sonho. Artemon encontrava-se a meu lado. Os seus olhos claros brilhavam e os seus
belos traços pareciam brilhar na luz avermelhada.
- É magnífico - sussurrei. - Mais magnífico do que tinha imaginado.
Artemon abriu um sorriso rasgado, mostrando uns dentes brancos perfeitos e, depois, ergueu a voz.
- Ouviram isto, homens? Até o nosso camarada romano está impressionado! E o Pecúnio - era esse o nome pelo qual ele me conhecia - não se impressiona facilmente,
pois não visitou ele as Sete Maravilhas do Mundo como nunca se cansa de nos dizer? O que dizes, Pecúnio, será este sarcófago semelhante a essas Maravilhas?
- Será realmente feito de ouro maciço? - murmurei. - Deve pesar imenso!
- No entanto, temos os meios necessários para o deslocar. Enquanto Artemon falava, alguns dos homens traziam guinchos,
roldanas, rolos de corda e calços de madeira. Outro grupo surgiu vindo
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do vestíbulo, empurrando uma robusta carroça através do corredor amplo. A carroça estava carregada com um caixote com tampa em madeira concebido especialmente para
a nossa carga. Artemon tinha pensado em tudo. De súbito, parecia-se com o jovem Alexandre representado no friso do edifício, um visionário rodeado por arquitetos
e engenheiros que o adoravam. Artemon sabia o que queria e tinha um plano para o conseguir. Inspirava medo nos seus inimigos e confiança nos seus seguidores. Sabia
como vergar os outros à sua vontade. Tinha sido bem-sucedido, isso era certo, em obrigar-me a fazer o que queria, contra todo o meu bom senso.
A carroça foi empurrada para o sítio certo, ao lado do estrado. A parte de cima da caixa foi levantada. O interior estava acolchoado com cobertores e palha.
Um mecanismo concebido para o efeito foi usado para remover a tampa do sarcófago.
- Devemos abrir o sarcófago? - perguntei, sentindo um arrepio de receio supersticioso.
- A tampa e o sarcófago são ambos muito pesados - disse Artemon. - Serão mais fáceis de manusear se os separarmos e os levantarmos um de cada vez.
À medida que a tampa começava a erguer-se sobre o sarcófago, ocorreu-me um pensamento.
- O que será do corpo? - perguntei.
Artemon olhou para mim de lado mas não disse nada.
- Não vais ficar com ele para pedir um resgate, pois não? Artemon riu-se da expressão que me marcava o rosto.
- Claro que não. Os restos mortais de Alexandre serão manuseados com todo o respeito e ele será deixado aqui, onde pertence, no seu túmulo.
"Privar um cadáver mumificado do seu sarcófago dificilmente é um ato de respeito", pensei. Artemon parecia divertido com a minha desconfiança.
- Anda, Pecúnio, porque não dás uma olhadela à múmia antes de a retirarmos do sarcófago? Dizem que o estado de conservação é bastante notável.
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Artemon agarrou-me no braço e, juntos, subimos para o estrado. À medida que a tampa era içada para o vagão, espreitámos os dois por sobre o topo do sarcófago.
E então aconteceu que eu, Gordiano de Roma, com vinte e dois anos de idade, na cidade de Alexandria e na companhia de assassinos e de bandidos, dei comigo cara a
cara com o mais famoso dos mortais que algum dia viveu.
Para um homem que já estava morto há mais de duzentos anos, os traços do conquistador estavam espantosamente bem preservados. Tinha os olhos fechados, como se estivesse
a dormir, mas as pestanas estavam intactas. Quase conseguia imaginar que pudesse pestanejar, de repente, e olhar também para mim.
- Cuidado! - gritou alguém.
Virei-me para trás para ver que companhia tínhamos - não eram soldados reais, mas sim uma mão-cheia de cidadãos normais, sem dúvida ultrajados com a profanação do
monumento mais sagrado da cidade. Alguns tinham adagas. Os restantes estavam armados apenas com paus e pedras.
À medida que os homens de Artemon caíam sobre os recém-chegados, ferindo-os e repelindo-os, um dos cidadãos enraivecidos ergueu o braço e fez pontaria para mim.
Vi uma pedra afiada a voar na minha direção.
Artemon agarrou-me o braço e puxou-me bruscamente para o lado, mas era demasiado tarde. Senti um forte golpe na cabeça. O mundo virou-se de pernas para o ar, enquanto
eu caía do estrado para a carroça, batendo com a cabeça num canto da caixa. Cambaleante, recuei e vi sangue - o meu sangue - na madeira. Então, ficou tudo preto.
Como é que eu tinha chegado a tão triste destino?
Deixem-me contar a história.
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II
Tudo começou no dia em que completei vinte e dois anos de idade.
Corria o vigésimo terceiro dia do mês a que os romanos chamam Martius; no Egito, corria o mês de Phamenoth. Em Roma, o clima estava provavelmente cortante e húmido
ou, na melhor das hipóteses, fresco e vivificante, mas em Alexandria o dia do meu aniversário amanheceu sem uma única nuvem no céu. O ar quente do deserto enchia
a cidade, aliviado por uma brisa ocasional vinda do mar.
Eu vivia no último de cinco andares de um edifício de apartamentos, no bairro de Rhakotis. O meu pequeno quarto tinha uma janela virada para norte, na direção do
mar, mas qualquer vista que eu pudesse ter para o porto e para a água estava bloqueada pelas frondes de uma alta palmeira, do lado de fora da janela. A brisa que
soprava fazia com que a folhagem fizesse uma dança apática; os movimentos das frondes, enquanto deslizavam umas contra as outras, produziam uma música langorosa
e repetitiva. A folhagem brilhante refletia os raios do sol nascente, fazendo com que pontos de luz dançassem sobre as pálpebras dos meus olhos.
Acordei, tal como tinha adormecido, com Bethesda nos meus braços.
Pode perguntar-se o que fazia a minha escrava comigo na cama. Posso chamar a atenção para o facto de que o pobre quartinho em que vivíamos era tão pequeno que mal
havia espaço para uma pessoa se virar, quanto mais duas. A cama, embora estreita, ocupava a maior parte do espaço. Sim, podia obrigar Bethesda a dormir no chão,
mas e se eu
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me levantasse durante a noite? Tropeçaria nela, certamente, cairia e partiria a cabeça.
Claro que não foi por causa de considerações como esta que convidei Bethesda a partilhar a cama comigo. Bethesda era mais do que a minha escrava.
Quando eu era pequeno e o meu pai me ensinou os factos da vida, deixou bem claro o que pensava sobre os donos partilharem a sua cama com escravos. "Uma má ideia
em todos os aspectos", lembro-me de ele ter dito. A minha mãe morreu quando eu era pequeno e o único escravo na nossa casa era um tipo velho chamado Damon, por isso
não tenho a certeza se falava por experiência própria.
- Porquê, pai? É contra a lei um senhor dormir com um escravo? Lembro-me de o meu pai sorrir com a pergunta ingénua.
- Se um homem dormir com a escrava de outro homem, sem sua permissão, isso seria contra a lei. Mas, com a sua própria propriedade, um cidadão romano pode fazer o
que quiser. Até pode matar um escravo, tal como pode matar um cão, uma cabra ou outro animal que seja seu.
- Então é adultério, se um homem casado tiver relações com um escravo?
- Não, porque para que se dê o adultério deve existir a possibilidade de ocorrer o nascimento de um filho livre; um tal nascimento poderia ameaçar o estatuto da
mulher e o estatuto dos seus filhos, percebes? Mas uma vez que uma escrava não tem existência legal e qualquer criança que nasça de uma escrava é também escrava,
nenhuma união com uma escrava pode ameaçar o casamento ou os seus herdeiros. E por isso que muitas mulheres não levantam qualquer tipo de objeção se o marido se
quiser divertir com os seus escravos, masculinos ou femini nos. É bem melhor que o faça em casa, sem despesas e sem que se trate de uma mulher livre ou da esposa
de alguém.
Franzi o sobrolho.
- Então porque dizes que é uma má ideia? O meu pai suspirou.
- Porque, pela experiência, o ato de união sexual produz, invariavelmente, não só uma reação física, mas também uma reação emocional
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(quer seja boa ou má), tanto no senhor como no escravo. E isso leva a problemas.
- Que tipo de problemas?
- Oh, uma caixa de Pandora cheia de angústia! Ciúmes, chantagem, traição, engodo, logro... até homicídio.
A experiência que o meu pai tinha do mundo era mais vasta do que a da maior parte dos homens. Autointitulava-se o Descobridor e ganhava a vida a descobrir os segredos
das outras pessoas, frequentemente de natureza escandalosa ou criminosa. "Descobrir os podres", chamava-lhe. Já tinha visto toda a extensão do comportamento humano,
desde o melhor ao pior - mas sobretudo o pior. Se a sua experiência o levara a acreditar que um conhecimento carnal entre o senhor e o escravo era uma coisa má,
provavelmente sabia do que estava a falar.
- Consigo ver que seja, talvez, imprudente, mas errado um senhor dormir com um escravo? - perguntei.
- É certo que a lei não lhe coloca objeções. Nem a religião; um tal ato não ofende os deuses. Nem os filósofos têm muito a dizer acerca
do modo como um homem usa os seus escravos.
- Mas o que é que tu pensas, pai?
O meu pai fitou-me com um olhar penetrante e baixou a voz, para que eu soubesse que falava com o coração.
- Penso que quando duas pessoas têm relações carnais, quanto maior a diferença dos seus estatutos, maiores as probabilidades de que um deles esteja a ser forçado
a agir contra a sua vontade. Quando isso acontece, o ato é aviltante para ambas as partes. Por outro lado, pode ocorrer uma inversão das posições. Já vi supostos
filósofos a comportarem-se como tolos, homens abastados falidos, homens poderosos humilhados... e tudo por amor a um escravo. É certo que nem todas as uniões podem
ser entre iguais. Nem todos os relacionamentos podem ser como o que existia entre mim... e a tua mãe.
Calou-se e virou a cara.
Foi o fim da conversa, mas as palavras que o meu pai proferira mantiveram-se na minha memória.
Na minha viagem de Roma a Alexandria, fizera várias coisas de que o meu pai se orgulharia, ou pelo menos assim o esperava. Também fiz
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algumas coisas que o meu pai, provavelmente, desaprovaria. Dormir com Bethesda recairia na última categoria.
Vagos pensamentos sobre o meu pai deviam estar na minha mente quando acordei naquela manhã - talvez tivesse sonhado com ele -, mas qualquer consideração sobre o
que ele pensava ou deixava de pensar rapidamente se transformou na coisa mais distante da minha mente. O meu pai estava muito longe, em Roma, mas Bethesda encontrava-se
muito perto. com o seu corpo encostado ao meu e os nossos membros entrelaçados, era difícil pensar em qualquer outra coisa.
Dos pontos onde os nossos corpos se tocavam emanava a sensação mais delicada que se possa imaginar - carne quente contra carne. Aquelas poucas áreas do meu corpo
que não tocavam no dela sentiam uma espécie de ciúmes e gritavam-me que corrigisse a situação de uma vez. Todo o meu ser queria estar encostado a todo o ser dela,
simultaneamente. Pela forma como Bethesda respondeu, não tinha dúvidas de que sentia o mesmo. Seria possível dois corpos mortais fundirem-se num só? Bethesda e eu
esforçávamo-nos frequentemente para que isso acontecesse, por vezes em várias ocasiões por dia.
Os nossos corpos brilhavam com o suor. Enquanto nos virávamos de um lado para o outro, a ténue brisa que entrava pela janela secava suavemente o suor da nossa pele.
Os nossos suspiros e gemidos juntavam-se à música das folhas de palmeira que se agitavam, depois erguiam-se sobre ela em tom e volume até os vendedores na rua em
baixo e os trabalhadores a caminho do trabalho nos conseguirem, decerto, ouvir a gritar. Por fim - a nossa união consumada e atingido o prazer absoluto - afastámo-nos.
- Foi este um bom início para o teu aniversário, senhor? - perguntou Bethesda.
A pergunta pareceu-me tão desnecessária que me ri à gargalhada. Nenhum de nós falou durante muito tempo. Ficámos deitados lado a lado, quase sem nos tocarmos. O
sol matutino refletia-se cada vez mais nas frondes oscilantes da palmeira, espalhando pelo quarto fragmentos de luz. Ouvi o grito das gaivotas e o toque das trombetas
de navegação do distante Farol de Faros. Fechei os olhos e dormitei um bocado, voltando a acordar lentamente mais uma vez.
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Os dedos de Bethesda caminharam pelo meu joelho acima até à minha coxa, chegando depois a uma parte ainda mais íntima do meu corpo.
- Talvez pudéssemos tornar o início do dia duplamente melhor disse ela.
E transformámo-lo, muito devagar, levando o nosso tempo. O seu corpo era uma paisagem na qual me perdia desesperadamente - a floresta do seu longo cabelo preto,
o labirinto dos seus compridos membros castanho-claros, a topografia em constante mudança dos seus ombros. As suas ancas e seios transformavam-se em dunas de areia
ondulantes enquanto se esticava, torcia e virava. A sua boca era um oásis, a zona entre as suas ancas, um delta.
Quando acabámos, senti-me completamente acordado.
- Acho que nunca me cansarei disto - disse, em grande parte para mim mesmo, já que falei em latim.
Apesar de Bethesda saber hebraico, grego e egípcio, ainda só lhe tinha conseguido ensinar umas poucas palavras de latim. Ela ergueu uma sobrancelha, não compreendendo
claramente, por isso repeti o meu comentário em grego, a língua que tínhamos em comum.
- Penso que nunca me poderei cansar disto.
- Nem eu - respondeu Bethesda.
- Mas por vezes...
- Temos de comer.
Foi a fome que nos forçou, finalmente, a sair da cama. Vesti a minha túnica azul - a melhor que possuía, apesar de já ter algumas manchas e de o linho coçado me
ficar um pouco apertado nos ombros; ainda na noite anterior Bethesda tinha cosido um rasgão na manga e arranjado a bainha gasta. Deixei-a vestir a minha segunda
melhor túnica, que era verde, uma cor que lhe ficava muito bem. Devido à sua estrutura muito mais pequena, nela a túnica simples constituía um vestido bastante modesto;
cobria-lhe os ombros e os joelhos e, apertada com um cinto de cânhamo, envolvia-lhe os seios que tinham crescido consideravelmente desde o dia em que a comprara.
Bethesda colocou-se à janela e passou um pente de ébano pelo cabelo, que se tinha embaraçado enquanto nos amávamos. Fez uma
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careta e murmurou uma maldição quando o pente encontrou um nó particularmente teimoso. Ri-me.
- Podias sempre rapar a cabeça, como fazem as mulheres ricas. Dizem que é mais confortável neste clima. Mantém os piolhos à distância.
- As mulheres ricas têm perucas que usam quando saem de casa
- disse ela. - Perucas muito finas. Uma diferente para cada ocasião.
- É verdade, mas nenhuma peruca podia ser tão encantadora como isto.
Passei por trás dela e, com a ponta dos dedos, desfiz-lhe o nó no cabelo. Peguei no pente e passei-o devagar pelos fios ondulados. O seu cabelo era grosso, pesado
e absolutamente preto, reluzente, com madeixas da cor do arco-íris, como as asas de uma libelinha. Toda ela era bela, mas eu sentia um fascínio especial pelo seu
cabelo. Sentado como estava, senti uma nova onda de desejo.
Afastei-me dela, pousei o pente e respirei fundo. Usei a minha força de vontade para acalmar a excitação - algo que o meu pai me disse que um homem podia e devia
ser capaz de fazer. Estava na altura de me aventurar no mundo para lá do meu pequeno quarto.
Diz-se que o bairro de Rhakotis é a parte mais antiga de Alexandria, construído sobre a pequena povoação pesqueira que já aí existia mesmo antes de Alexandre ter
fundado a cidade. A maior parte da cidade de Alexandria está disposta numa grelha elegante de avenidas largas e grandes pórticos, mas Rhakotis manteve o seu labirinto
de becos sinuosos, como se o espírito caótico da velha aldeia não pudesse ser domesticado e forçado a submeter-se à metrópole moderna que crescera à sua volta. Rhakotis
faz-me lembrar a Subura de Roma, com os seus altos edifícios de apartamentos, as suas tavernas e casas de jogo. As cordas para secar a roupa cruzavam-se no espaço
sobre as nossas cabeças, enquanto crianças esfarrapadas corriam, aos ziguezagues, rua acima e rua abaixo. Ao virar da esquina, mulheres seminuas solicitavam clientes
a partir das janelas mais acima; se continuar a andar a olhar para
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cima é provável que tropece num gato que esteja a dormir a sesta no meio da rua. Os gatos fazem o que querem, em Alexandria. Apesar da fusão entre os deuses gregos
e egípcios que teve início com a conquista de Alexandre, os habitantes locais ainda adoram animais, insetos e divindades estranhas que são parte homem, parte animal.
Como convinha a um senhor e ao seu escravo, eu ia à frente e Bethesda seguia-me a curta distância. Se caminhássemos lado a lado, o que pensariam as pessoas? A minha
primeira paragem foi numa pequena taverna onde a mulher do dono preparava o meu pequeno-almoço preferido - fécula quente com um pouco de leite de cabra e puré de
tâmaras, servido numa tigela de barro. Comi um pouco mais de metade do conteúdo, despejando a tigela com a ajuda de um pedaço de pão, depois dei o que restava do
pão a Bethesda e deixei-a acabar a tigela. Ela devorou-a tão depressa que me perguntei se quereria mais.
Ela sorriu e abanou a cabeça.
- Agora que já comeste, o que mais deseja fazer no teu dia especial, senhor?
- Oh, não sei. Podia buscar um bom livro na Grande Biblioteca e lê-lo em voz alta. Ou talvez pudéssemos ir ver a coleção de jóias fabulosas do Museu. Ou subir ao
topo do Farol de Faros para apreciar a vista.
Estava a brincar, claro. A Biblioteca e o Museu só estavam abertos a académicos e visitantes com as credenciais adequadas, não a um romano de baixa condição que
ganhava a vida fazendo uso da sua inteligência; e a ilha de Faros estava interdita a todos exceto os trabalhadores do farol e os guardas que o protegiam.
Encolhi os ombros.
- Neste belo dia, antes que fique demasiado quente, proponho que façamos uma longa caminhada e vejamos até onde nos leva. Certamente que alguma grande aventura me
espera no meu aniversário.
Sorri, não fazendo a mínima ideia do que nos esperava.
Era certo que havia sempre a hipótese de me deparar com algum tipo de violência quando passeava em Alexandria. Nem sempre foi assim. Quando cheguei pela primeira
vez à cidade, conseguia andar por todo o lado, a qualquer hora do dia ou da noite, sem qualquer
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preocupação com a segurança. Mas nos dois anos e oito meses desde a minha chegada, Alexandria tinha-se transformado numa cidade cada vez mais perigosa e desordeira.
As pessoas estavam infelizes e culpavam o rei Ptolomeu pelo seu descontentamento. De vez em quando, rebentava um motim, normalmente pequeno mas por vezes assustadoramente
grande. O motim levava a pilhagens e talvez a um ou dois incêndios, depois chegavam os soldados reais, ao que se seguia, inevitavelmente, o derrame de sangue. Poderia
pensar-se que os habitantes de Alexandria receavam estes surtos de caos e fugiam deles. Em vez disso, pareciam ficar satisfeitos. Sempre que rebentava um motim,
centenas ou até milhares de pessoas convergiam para o local, como traças atraídas por uma chama.
Porque odiavam as pessoas tão amargamente o seu rei? Alguns anos antes, Ptolomeu chegara ao poder escorraçando o irmão mais velho do trono; tanto quanto sei, fizera-o
com o apoio da população de Alexandria. Depois, como forma de remendar as coisas, casou com a filha do irmão deposto. (Estes soberanos egípcios casavam-se sempre
com membros da família, até mesmo com irmãs.) Em seguida matou a mãe, que, ao que parecia, se achava merecedora de ser o verdadeiro poder por detrás do trono. Agora
as pessoas estavam inquietas e, para demonstrar o seu desejo de mudança, revoltavam-se. Assim era a política no Egito!
Para um romano que crescera com eleições anuais, magistrados e leis escritas, tentar perceber a política e a história egípcia podia provocar uma dor de cabeça terrível.
Todos os reis e rainhas pareciam ser irmãos e irmãs, mães e filhos, tios e sobrinhas e estavam sempre a casar-se uns com os outros e, depois, a matarem-se uns aos
outros, enviando os sobreviventes para o exílio, sendo que os que se encontravam no exílio conspiravam, incessantemente, em busca de uma forma de regressarem e matarem
aqueles que os tinham exilado, perpetuando deste modo o ciclo.
O primeiro rei Ptolomeu, o fundador da dinastia, fora um dos generais de Alexandre. Quando o Grande morreu, Ptolomeu autoproclamou-se rei do Egito e os seus descendentes
têm governado o país desde então, tornando-se na maior dinastia soberana do mundo.
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Para aqueles que gostavam de romance e intriga reais (o que pareceu ser o caso de todos os habitantes do Egito), os Ptolomeus eram uma fonte fascinante e interminável,
como personagens num palco. O drama pessoal e público das suas vidas divertia, cativava e enraivecia a populaça. Nas tavernas e nas lojas, fora dos templos e dos
tribunais
- onde quer que se fosse em Alexandria -, as pessoas falavam pouco de outra coisa.
Como um típico habitante de Alexandria, Bethesda sabia o nome de todos os Ptolomeus por ordem cronológica, os bons e os maus, os mortos e os vivos, até Ptolomeu
L Ao ouvi-la, ficava desesperadamente confuso, uma vez que os mesmos nomes ressurgiam em cada geração: Berenice, Arsínoe, Cleópatra (nome da mãe falecida do rei)
e, claro, Ptolomeu - por vezes, viviam vários deles ao mesmo tempo e em todos os ramos da família. com todo o entusiasmo de um romano a narrar
batalhas famosas ou de um grego que se deixa arrebatar pelos atletas olímpicos, Bethesda tentava explicar-me quem fez o quê a quem, quando, onde e porque é que isso
era tão importante, mas eu nunca consegui acertar com os nomes. Para mim um Ptolomeu era o mesmo que qualquer outro.
Eu sabia apenas que, de vez em quando, se me aventurasse a sair de casa, era provável que me deparasse com gritos e debandadas, talvez algum fumo e cinzas e quiçá
algum massacre. Tudo porque as pessoas odiavam o rei Ptolomeu.
No entanto, num dia tão esplêndido, nem a ameaça de um tumulto me ia manter dentro de portas. com vinte e dois anos de idade, sentimo-nos invulneráveis. Eu tinha
um espírito sagaz e pés rápidos. Que poderia eu temer? A crescente desordem na cidade fora, quando muito, uma bênção para mim. Quando a ordem pública falha, aumenta
a má conduta privada; e, quando as pessoas deixam de confiar nas autoridades para desvendar a verdade, viram-se para pessoas como eu. O Descobridor, como o meu pai
se chamava a si próprio, e as habilidades que tle me ensinara já se tinham revelado bastante úteis. Conseguia abrir qualquer fechadura e seguir um homem sem ser
visto, era capaz de ler nas sobrancelhas de uma mulher se ela lhe estava a mentir e sabia quando falar e quando estar calado. O facto de eu ser um forasteiro
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aumentava, na verdade, a minha utilidade; era um agente independente, sem qualquer ligação a uma família ou facção em particular. Não estava a enriquecer desempenhando
o ofício do meu pai em solo estrangeiro, mas conseguia ganhar para o meu sustento.
Acontece que era possuidor de algumas moedas suplementares naquela manhã, com as quais planeara comprar algo especial.
- E se hoje fingíssemos que somos visitantes? - sugeri. - Tenho estado tão ocupado ultimamente, comendo em tavernas de baixa condição e em casas de jogo desonrosas,
que me esqueci de quão bela pode ser esta cidade. Vamos apreciar a paisagem.
Por isso, partimos. Deixámos a zona de Rhakotis e seguimos por uma avenida larga, ladeada de palmeiras, fontes, obeliscos e estátuas. O nosso trajeto levou-nos até
ao recinto do túmulo sagrado, mesmo no centro da cidade, onde edifícios magníficos, rodeados de jardins luxuriantes, abrigavam os restos mumificados dos Ptolomeus.
Num cruzamento muito largo, deparámo-nos com uma estrutura muito alta que dominava a linha do horizonte - o Túmulo de Alexandre. As suas paredes estavam decoradas
com extraordinários relevos esculpidos que representavam a carreira do conquistador. Embora não fosse tão grande, a estrutura lembrava-me o Mausoléu de Halicarnasso,
uma das Sete Maravilhas do Mundo. Mas enquanto a câmara funerária do rei Mausolo se encontrava selada, a divisão que continha os restos mumificados de Alexandre
estava aberta aos visitantes pagantes. Nessa manhã, apesar de o túmulo ainda não se encontrar aberto, a fila para entrar dava uma volta completa ao edifício, até
se perder de vista. Pela sua roupa, os visitantes pareciam vir de todas as partes do mundo - astrólogos persas envergando chapéus zigurate e sapatos bicudos, etíopes
da cor do ébano, nabateus de túnicas leves e até alguns romanos de toga. Estavam todos ali para desfilar pelo famoso sarcófago dourado de Alexandre e para lhe prestar
a sua homenagem - algo que eu próprio, em todos os meses em que vivi na cidade, ainda não tinha feito.
Bethesda encheu-se de coragem e colocou-se a meu lado.
- Talvez, senhor, no teu dia especial, queiras visitar o túmulo do Grande.
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- E ficar na fila, debaixo do sol quente, a manhã inteira? Penso que não. Por muito grande que seja, ou elaboradamente decorado, é pouco provável que um mero sarcófago
dourado impressione um viajante que já viu as Sete Maravilhas do Mundo.
- Preferes ir num dos dias em que os visitantes podem olhar para o rosto de Alexandre?
- isso seria mais interessante - admiti.
O sarcófago só era aberto e a múmia exibida ao público dois dias por ano, no aniversário de Alexandre e no aniversário da fundação da cidade. Nessas ocasiões, o
preço da entrada duplicava e as filas de espera eram dez vezes maiores.
Ao desviar o olhar da fila de espera composta por visitantes à espera de que o mausoléu abrisse, fiquei chocado com o enorme número de guardas reais à nossa volta,
ainda mais do que era habitual no recinto dos túmulos reais. Segurando as suas lanças ao alto, um contingente de soldados exibia-se, marchando para cima e para baixo
ao longo da avenida. Mais soldados formavam um cordão ao longo da fila de espera de visitantes que aguardavam a sua vez para verem o sarcófago de Alexandre. Erguendo
os olhos, vi ainda mais soldados posicionados nas varandas, parapeitos e no topo dos telhados dos túmulos dos Ptolomeus. Os soldados eram quase mais numerosos do
que as pessoas comuns que se juntavam na rua. Sem dúvida estavam ali para proteger os visitantes e manter a ordem num dos mais proeminentes locais públicos da cidade,
mas ver tantos guardas reais deixava-me pouco à vontade. Conhecendo os habitantes de Alexandria, sabia que uma tal demonstração de força tinha maiores probabilidades
de dar início a um motim do que de o evitar.
Prosseguimos, entrando num bairro de casas grandes e elegantes edifícios de apartamentos. Viviam aqui muitos dos oficiais de menor patente militar e muitos dos burocratas
que serviam no enorme complexo do palácio real, incluindo a Biblioteca e o Mausoléu, mas que não eram suficientemente importantes para terem aposentos dentro do
próprio palácio. Algumas das melhores e mais caras lojas de Alexandria estavam localizadas naquela zona. Em passeios anteriores tinha reparado no fascínio de Bethesda
pelos artigos de luxo exibidos no exterior
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das lojas, quando olhava de relance para um colar feito de lápis-lazúli e ébano, ou para uma pulseira de prata com pequenos rubis. Tais artigos estavam bem além
das minhas possibilidades, como qualquer pessoa podia perceber olhando para mim; os criados bronzeados, colocados como guardas no exterior de cada loja, olhavam
para mim de forma estranha mal eu abrandava o passo.
Não obstante, em frente a uma das lojas, atrevi-me a parar completamente.
- Porque estás a parar aqui, senhor? - perguntou Bethesda.
- Porque é o meu aniversário e tenho intenção de gastar algum dinheiro. - Puxei da bolsa das moedas que trazia comigo, enfiada numa dobra da túnica.
- Aqui, senhor? - Bethesda franziu o sobrolho, pois encontrávamo-nos em frente a uma loja que não vendia outra coisa senão roupa de mulher.
Pendurados num prego na parte da frente da loja, pelo lado de fora, encontravam-se vestidos em linho que flutuavam na brisa leve. Alguns eram tão simples e puros
que não pareciam mais resistentes do que pedaços de gaze. Outros estavam cortados numa variedade de estilos, tingidos em tons brilhantes e decorados com bordados
ao longo das bainhas e gola. Alguns dias antes, tínhamos passado por esta loja e reparei que Bethesda abrandara a passada e deitara um vislumbre prolongado a um
vestido em particular. Era verde-escuro com bordados amarelos e mais comprido do que a maioria, com mangas plissadas em forma de leque.
Analisei os vestidos expostos, depois sorri quando vi aquele de que estava à procura. Quando avancei para a loja, um criado bronzeado cruzou os braços e fitou-me,
tendo recuado quando ergui a bolsa do dinheiro e fiz tilintar as moedas.
Só então surgiu a dona da loja. Tratava-se de uma mulher velha e marreca que olhou fixamente para mim com o rosto engelhado.
- Vês alguma coisa de que gostes, jovem? .
- Talvez.
Atrevi-me a tocar no vestido verde com a ponta dos dedos. O linho era de muito melhor qualidade do que aquilo a que estava habituada
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Mesmo nos dias mais quentes, um tal tecido pareceria suave e fresco contra a pele de quem o usasse.
Bethesda sussurrou-me ao ouvido.
- Senhor, em que estás a pensar? Virei-me para ela e sorri.
- Estou a pensar que é o meu aniversário e que deveria comprar algo que me agrade.
- Mas...
- E o que me agradaria mais do que ver-te com este vestido?
Pouco depois, deixei a loja com a bolsa das moedas consideravelmente mais leve.
Bethesda seguiu-me. O linho verde luzia à luz do sol. Os bordados amarelos tinham um brilho quase metálico como o do ouro. O vestido transformou-a, agarrando-se
elegantemente às linhas flexíveis dos seus braços e pernas e acentuando, em vez de esconder, a sensualidade das suas ancas e seios. Quando ergueu a mão para esconder
os olhos do sol brilhante, a longa manga plissada abriu-se como um leque e ondulou ao sabor da brisa. com o rosto escurecido, poderia não a reconhecer. Poderia tratar-se
da filha privilegiada de um bom lar de Alexandria, o tipo de jovem que fazia regularmente compras naquele lugar, comprando tudo o que desejasse.
Até a engelhada dona da loja ficou impressionada. Quando Bethesda se retirou para o provador, tentei regatear um preço mais baixo, mas a mulher recusou-se a ceder
- até Bethesda surgir. Ao vê-la, a velha amoleceu. Os seus olhos brilharam. Bateu palmas, suspirou e pediu um preço que era metade do que começara por pedir.
Até a postura de Bethesda se transformou. Parecia mais alta do que antes, com os ombros para trás. Ao olhar para ela, concluí que aquele vestido verde era a melhor
compra que tinha feito desde há muito.
Um movimento repentino chamou-me a atenção. Vinha alguém a correr na nossa direção, gritando e rindo.
À medida que a silhueta se aproximava, reparei em várias coisas em rápida sucessão.
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Era uma jovem.
Não estava propriamente a correr, mas sim a saltar, a rodopiar e a dançar à medida que avançava, rindo e gritando.
Também parecia estar completamente nua.
E, se Bethesda não estivesse em pé ao meu lado, podia jurar que a mulher despida e a rir era... Bethesda!
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III
- Sigam-me! Sigam-me! - gritou a rapariga.
Ao passar pela loja dos vestidos, olhou-me nos olhos e deu-me um toque brincalhão no queixo, depois deu um salto mortal mesmo à minha frente, sem nunca abrandar
o passo, e continuou o seu caminho, abanando as mãos no ar. Se estivesse realmente nua, o salto mortal ter-me-ia oferecido um regalo para os olhos, mas, em vez disso,
permitiu-me constatar que estava envolta numa espécie de vestido apertado, muito simples, que condizia com a cor da sua pele morena. Onde acabava exatamente a rapariga
e começava o vestido era um mistério, que só poderia ser resolvido com uma observação mais próxima.
Comecei a segui-la pela rua.
- Senhor!
Voltei-me e vi que Bethesda permanecia no mesmo sítio. Olhava para mim com um olhar felino e vazio.
- Anda - disse-lhe eu. - Ouviste a rapariga. Ela quer que a sigamos!
- Ela quer que toda a gente a siga - sussurrou Bethesda e, certo e sabido, uma multidão considerável vinha a subir a rua. - Deve estar a reunir uma multidão para
um espetáculo de mimos.
- Um espetáculo de mimos? Fantástico! Um espetáculo de mimos seria perfeito. - Rime e acenei para que Bethesda me seguisse.
Como ela continuava a hesitar, apressei-me a voltar para trás e puxei-a para que me acompanhasse. A multidão já quase que nos alcançara e eu queria manter-me à sua
frente.
- Além disso - disse eu -, reparaste na cara dela?
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- Era para a cara dela que estavas a olhar? - Bethesda parecia cética.
- Entre outras coisas! Mas a sério, reparaste com quem é que ela se parecia?
- Tenho a certeza de que não sei o que quer dizer.
- Ela parece-se contigo, Bethesda. A semelhança é espantosa.
- Não creio que assim seja.
- Disparate. São suficientemente parecidas para serem irmãs. Até gémeas.
- Não tenho irmãs - disse ela, com bastante firmeza.
Apesar de ter nascido escrava e apesar de ambos os pais terem morrido jovens - o pai primeiro e depois a mãe -, Bethesda tinha-os conhecido a ambos, ou pelo menos
foi isso o que me disse. Saberia se tivesse irmãos.
- Não quero sugerir que seja literalmente a tua irmã - disse eu, depois encolhi os ombros e desisti da discussão.
Nada me fazia sentir mais absurdo do que aperceber-me de que estava a esforçar-me para me explicar a Bethesda, que era, apesar de tudo, minha propriedade e que,
segundo todas as leis e costumes, deveria aceitar tudo o que eu dissesse sem me questionar.
Não muito longe da rua de lojas de artigos de luxo, mas mais perto do porto, chegámos a uma pequena praça decorada com fontes, arbustos floridos e palmeiras muito
altas. No meio da praça, encontrava-se uma trupe de mimos que tinha montado uma pequena tenda e estava a preparar-se para realizar um espetáculo. Já se tinha reunido
uma multidão considerável. Um malabarista musculoso, que usava um nemes e pouco mais, estava a dizer piadas e a aquecer os espectadores, que pareciam encontrar-se
com uma disposição exuberante.
- É uma parte da cidade bastante elegante para um espetáculo de mimos - comentei. - Daqui até se consegue ver um pouco do palácio real por cima dos telhados. A maior
parte dos espetáculos de mimos a que assisti realizava-se em bairros mais pobres, onde as autoridades não parecem muito preocupadas com o que por lá se passa.
Bethesda não respondeu, mas percebi que tinha relaxado e estava a entrar no espírito da coisa. Creio que estava a aproveitar a oportunidade para exibir o seu novo
vestido. Vários espectadores, em
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especial os homens, olhavam demoradamente para ela. Quem os poderia culpar?
Os espetáculos de mimos eram característicos de Alexandria; nas minhas viagens, não vi nada parecido em mais lado nenhum. As peças são diferentes; as peças são encenadas
por todo o mundo grego e romano, porque as tragédias e as comédias com guião são parte integrante dos festivais religiosos e cívicos, pagos pelas autoridades e representados
por atores profissionais, todos eles homens. Os espetáculos de mimos em Alexandria são muito diferentes. Não são apenas os homens a representar, mas também as mulheres
- que escândalo isso provocaria em Roma! -, e dificilmente poderíamos chamar peças às representações. Um espetáculo de mimos é um conjunto de paródias locais, canções
marotas e danças indecentes, com piadas, atuações de homens fortes e acrobacias nos intervalos. Nenhuma autoridade civil controla ou regula os mimos e, embora os
alvos das suas paródias satíricas sejam frequentemente personagens tipo - a dona de casa metediça, o tutor sádico, o advogado fala-barato, o negociante mentiroso
-, os mimos também são conhecidos por transformarem em alvos aqueles que se encontram no poder, ainda que os nomes e as circunstâncias sejam alterados para evitar
acusações de difamação ou insubordinação.
Nós, os romanos, gostamos de pensar que somos mais livres do que os outros povos, uma vez que elegemos os nossos líderes, mas seria difícil imaginar as autoridades
a permitirem qualquer coisa que se assemelhasse ao espetáculo de mimos nas ruas de Roma. Entre outras razões, porque as pessoas se oporiam à indecência e os romanos
poderosos não gostam que se goze com eles, especialmente em público. Se um magistrado romano não banisse tal atuação, um bando de políticos kritados acabaria certamente
com ele e partiria algumas cabeças ao fazê-lo. Por isso, ainda que sejam governados por um rei, parece-me a mim que os habitantes de Alexandria são mais livres do
que os romanos, pelo menos quanto a isto, já que quase tudo pode ser dito acerca de qualquer pessoa, incluindo o rei, desde que o ridículo ocorra num espetáculo
de mimos e ninguém seja identificado pelo seu nome verdadeiro.
Este espetáculo de mimos não só estava a ser exibido numa parte mais simpática da cidade do que o habitual, como parecia estar a atrair
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uma audiência mais fina. Enquanto observava, chegou uma magnífica padiola. O ocupante estava escondido dentro de uma caixa protegida por uma cortina de linho amarelo.
A caixa estava pousada sobre postes de madeira compridos, elaboradamente esculpidos e pintados de cores vivas, como se duas colunas de lótus de um templo egípcio
tivessem sido deitadas lado a lado. Os postes assentavam nos ombros de portadores que eram verdadeiros gigantes, tinham uma vez e meia a minha altura, eram duas
vezes mais largos e eram escuros como a noite; diz-se que tais gigantes vêm da terra onde começa o Nilo. A abrir caminho para a padiola, seguiam os guarda-costas,
também eles gigantes, que cortaram através da multidão, para que a padiola pudesse conseguir um lugar mesmo à frente. Alguns dos espectadores que foram afastados
pela força resmungaram e agitaram os punhos, mas os guarda-costas limitaram-se a olhá-los de alto a baixo. As cortinas da padiola abriam-se cerca de um dedo em todos
os lados, permitindo que o ocupante visse sem ser visto.
Dois jovens rapazes andavam pelo meio da multidão, segurando taças para solicitar ofertas para a trupe. Um dos rapazes parou à minha frente e agitou a sua taça.
- Não deveria eu ver um pouco do espetáculo antes de decidir o que desejo pagar? - perguntei.
- É melhor pagar agora - sorriu o rapaz. - Nunca se sabe o que poderá acontecer.
Não sabia se gostava do que estava a ouvir, mas, ainda que contrariado, puxei pela mais pequena moeda de cobre da minha bolsa quase vazia e deitei-a para a taça.
O barulho que fez pareceu satisfazer o diabrete, que foi importunar as pessoas que estavam ao meu lado.
Alguns momentos mais tarde, os dois rapazes desapareceram de vista, esgueirando-se para a parte mais distante da tenda. com a sua entrada escondida e as traseiras
voltadas para a multidão, a tenda servia tanto de camarim como de pano de fundo para a representação. Os dois rapazes depressa reapareceram, ambos com flautas de
Pa, e colocaram-se um de cada lado da tenda, usando o corpo como delimitação de um palco imaginário. Enquanto tocavam umas notas estridentes, a multidão acalmou-se
e o espetáculo teve início.
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Tudo começou de forma bastante inocente, com uma paródia sobre um confuso encarregado de um bordel, todo ele movimentos de sobrancelha e sorrisos devassos, e a sua
"rapariga" mais velha, uma atriz com rugas desenhadas a kohlno rosto e um enorme par de seios falsos, pendurados. Aquela não era apenas a prostituta mais velha do
patrão, mas também a primeira que ele descobrira em Alexandria - ou algo do género. O diálogo grego continha muitos trocadilhos que pareciam aproveitar o dialeto
local. Bethesda percebia mais piadas do que eu, rindo de passagens que, para mim, não eram mais do que grego.
Quando não estava a recitar as suas deixas, a atriz virava-se de um lado para o outro, derrubando pequenos adereços (cadeiras, uma mesa, um candeeiro de pé) com
os seios enormes. A acompanhar esta palhaçada, os dois rapazes tocavam notas rudes nas suas flautas. Alguns dos homens e mulheres à minha volta riam-se tanto que
até choraram e tiveram de se assoar. Um espetáculo de mimo nunca é demasiado obsceno para o gosto dos alexandrinos.
De repente, apesar da maquilhagem e do fato, reconheci a atriz.
- Bethesda, olha! E ela. A tua sósia.
Bethesda dirigiu-me um olhar pouco satisfeito.
- Não, a sério. É aquela rapariga que estava a correr nua pelas ruas... bem, praticamente nua. Mal se consegue reconhecer, mas é a rapariga. Tenho a certeza. É espantoso
como estes mimos se conseguem transformar!
Bethesda revirou os olhos e abanou a cabeça, ainda não convencida da sua semelhança.
A paródia atingiu o clímax com mais um trocadilho que me foi absolutamente incompreensível, mas que desencadeou uivos de riso na audiência e conseguiu uma enorme
ronda de aplausos. A medida que os dois atores faziam uma vénia, pareceu-me que a atriz fazia um gesto especial para o ocupante oculto da elegante padiola.
Seguiu-se um interlúdio musical, depois uma combinação de acrobacias, comédia e um número com animais, em que quatro homens subiam para cima dos ombros uns dos outros
e um macaco treinado tentava tirar o pano de linho que cingia os rins do homem que se encontrava por baixo.
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Seguiram-se mais paródias. O tema abordado parecia tornar-se cada vez mais local à medida que o espetáculo avançava, até chegar a uma sátira sobre um mercador grotescamente
gordo que virava taças de vinho e ia ficando deveras bêbado, enquanto ditava cartas a um escriba. Quando o mercador gordo sentiu a necessidade de se aliviar e teve
de chamar dois criados só para o levantarem da cadeira, até eu percebi quem era suposto estar a representar: o rei Ptolomeu. Toda a gente em Alexandria conhecia
a história - o rei tinha ficado imensamente gordo e já não se conseguia aliviar, pela frente ou por trás, sem ajuda.
Enquanto a assistência uivava de riso, o ator no fato de gordo atravessava o palco, bamboleando-se, em direção a uma latrina imaginária (representada por uma cadeira
com um buraco). A ajudá-lo estavam os dois tocadores de flauta, cada um agarrando um cotovelo e mostrando dificuldade em aguentar o seu peso enorme. Quando os três
chegaram à latrina, um dos rapazes procurou e procurou, com gestos exagerados, entre os fatos volumosos pendurados sobre a enorme barriga do mercador. Por fim, com
um gritinho de triunfo, o rapaz revelou um pequeno falo que parecia ser feito de couro e bronze e estava, evidentemente, preso a um odre escondido ou um qualquer
recipiente semelhante, pois um momento mais tarde o mercador atirava a cabeça para trás e soltava um suspiro ruidoso de alívio enquanto o líquido dourado jorrava
da goteira. De início, o rapaz apontou cuidadosamente para a latrina, mas, depois, atacou sem vergonha o público, lançando o fluxo de um lado para o outro e armando,
deliberadamente, uma terrível confusão. O mercador, com a cabeça para trás e os olhos fechados, permanecia alheado de tudo.
Por fim, com a bexiga vazia e o falo arrumado, o mercador começou a recuar, bamboleante, em direção à sua cadeira - mas, de repente, ergueu as sobrancelhas alarmado
e gritou aos seus criados que regressassem à latrina. No meio de uma atabalhoada confusão, os três conseguiram, por fim, voltar-se para trás e regressar à latrina.
O que se seguiu foi um espetáculo incrivelmente vulgar, com o mercador a tentar repetidamente encostar o traseiro na latrina e os seus dois criados a debaterem-se
freneticamente para afastarem as suas enormes e ocultas nádegas (que se mantinham escondidas pelas dobras
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da sua roupa). Quando finalmente o mercador se sentou, com uma grande dose de grunhidos, arfares e uma cacofonia de guinchos gasosos (produzidos fora do palco, dentro
da tenda, penso eu), começou a projetar um bizarro conjunto de detritos pela parte de trás, detritos esses que os criados se inclinaram para apanhar, um por um.
Estes detritos incluíam vários bocados de louça e de artigos em bronze lâmpadas, tigelas e talheres -, que os criados exibiam primeiro à audiência, e oferecendo
depois ao mercador, que torcia o nariz e gesticulava para que os afastassem dele, como qualquer pessoa faria a algo que saísse do seu traseiro. O riso da audiência
estava carregado de troça.
De início tomei este espetáculo como se se tratasse de um humor sem sentido, até que um espectador ali perto, até então tão alheio quanto eu, percebeu de repente
e murmurou em voz alta.
- Ah! Vieram todos de Cirene!
Observando a louça com mais atenção, até eu reconheci o distinto padrão azul e amarelo das oficinas de Cirene, uma cidade a cerca de oitocentos quilómetros a oeste
de Alexandria - e então compreendi a piada. Desde os tempos de Alexandre, Cirene e o território circundante, chamado Cirenaica, faziam parte do reino do Egito, uma
fronteira ocidental tradicionalmente administrada por um irmão mais novo ou por um primo do rei. Até há oito anos, o regente de Cirene fora o irmão bastardo do rei
Ptolomeu, chamado Apião; porém, quando Apião morreu sem filhos, deixou a Cirenaica em testamento ao povo romano. O rei Ptolomeu, fortemente endividado junto dos
banqueiros romanos e receoso das armas romanas, nem se atreveu a contestar o testamento
- e, assim, o reino perdeu uma das suas principais cidades e foi permitido aos romanos estabelecerem uma província que fazia fronteira com o Egito, a poucos dias
de marcha da capital.
O povo de Alexandria reagira violentamente a estes acontecimentos. Foi necessário recorrer à força das armas para acabar com os tumultos. Embora tivessem decorrido
já oito anos, o ressentimento da população ainda fervia e a sua convicção de que o rei Ptolomeu traíra o seu património apenas se aprofundara. Do seu ponto de vista,
Cirene tinha tanta importância para o rei como as próprias fezes tinham para o mercador.
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Esvaziado de ambos os lados e assistido a cada passo pelos dois rapazes, o mercador suspirou de alívio e regressou, bamboleando-se, à sua cadeira. Iniciou uma conversa
com o escriba que se prendia com dois rivais que estavam envolvidos numa competição feroz. Um era romano e o outro um parente afastado, do Ponto, sendo que o mercador
estava dividido, sem conseguir decidir que lado apoiar.
Se o mimo no fato de gordo representava o rei Ptolomeu, então os mercadores rivais representavam, claramente, Roma e o rei Mitrídates do Ponto, que (através de uma
reviravolta genealógica que nunca desemaranhei) era um primo do rei Ptolomeu. No último ano, Mitrídates tinha invadido a Ásia, forçando a saída dos magistrados provinciais
e dos homens de negócios romanos. O impacto desta guerra estava a ser sentido por todo o mundo mediterrânico, mas até agora o Egito tinha conseguido manter-se neutro.
- Se ao menos eu não devesse tanto dinheiro àquela escória romana
- queixou-se o mercador -, espetava-lhe uma faca nas costas agora mesmo!
- Porque não lhe paga, simplesmente, e se livra dele? - perguntou o escriba.
- Pagar-lhe com o quê? O meu primo do Ponto levou o resto do meu dinheiro. E ainda por cima também me levou o meu pequeno rapaz!
Tratava-se de uma referência à conquista, por parte do rei Mitrídates, da ilha de Cós, onde o Egito guardava a maior parte do tesouro e onde o filho do rei Ptolomeu,
ainda adolescente, vivia, presumivelmente a uma distância segura das intrigas do palácio de Alexandria. (Tratava-se do filho do primeiro casamento do rei, não do
seu atual casamento com a sobrinha.) Mitrídates apoderara-se não só da ilha, mas também do tesouro e do príncipe egípcios, tratando o rapaz como um convidado de
honra, mas mantendo-o, de facto, como refém.
- E não te esqueças da capa que ele levou! - disse o escriba.
- Migalhas! O que é uma velha capa comida pelas traças para alguém que veste seda? - com isto, a multidão vaiou ruidosamente o gordo mercador.
A referência era a um dos tesouros de que Mitrídates se apoderara, uma capa que pertencera a não outro senão Alexandre, o Grande.
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- Dizem que o teu primo anda por aí com ela posta, dando-se ares
- disse o escriba. - Não a queres de volta?
- Creio que não me serviria! - disse o mercador, agitando os braços roliços e arrancando uma gargalhada à assistência. - Oh, se ao menos a minha mãe aqui estivesse
para me dizer o que fazer!
- Mas não está - respondeu o escriba. - Não te lembras? - Emitiu um som rouco e realizou um gesto universal de um dedo a cortar uma garganta.
- E o meu irmão mais velho? Onde está ele? Ele saberia o que fazer! O escriba revirou os olhos.
- Tu e a velhota correram com ele! Também te esqueceste disso?
- Tratava-se de uma referência ao irmão mais velho do rei, que tivera a sua hipótese no trono até ter sido enviado para o exílio, alguns anos antes.
- Se ao menos o meu irmão mais velho voltasse para casa!
- A sério? A maior parte dos maridos receia a visita dos sogros!
- Ele já era meu irmão antes de ser meu sogro.
- E senhor da casa antes de teres corrido com ele!
- Se ao menos o meu irmão mais velho viesse, tenho a certeza de que ele resolveria as coisas.
- Cuidado com o que desejas. - O escriba abanou a cabeça. - Dois de vós são dois a mais. E no entanto, desejava que houvesse três de vós.
- Três?
- Três crias do ninho da tua mãe para que eu pudesse escolher outro senhor. Tens a certeza de que não tens um irmão bastardo escondido algures?
- Um bastardo?
- Sabes, um filho do cuco, enfiado num outro ninho quando ninguém estava a olhar? - O escriba fez caretas para a assistência.
- Claro que não. Somos só dois.
- Ah, bom! Então, suponho que o teu irmão mais velho terá de bastar. Ouvi um rumor de que já vem a caminho daqui.
- J á vem?
-Já vem! - O escriba olhou diretamente para o público e enunciou com uma voz lenta e dramática. - E poderá chegar... a qualquer... minuto!
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O mercador bateu com as palmas das mãos nas bochechas, numa expressão de terror. Os dois rapazes pegaram nas flautas e tocaram umas notas esganiçadas que representavam
o seu estado de alarme. Em seguida, repentinamente, a música dissonante mudou para um tom alegre, tão contagiante que o gordo mercador esqueceu todas as suas preocupações
e se levantou de um salto. com várias partes do corpo a abanar levemente em várias direções ao mesmo tempo, esboçou uma dança absurda, girando, saltando, escoiceando
e agitando os braços. Tratava-se de um novo golpe ao rei Ptolomeu. Apesar da sua preguiça embriagada e a sua incapacidade para urinar sozinho, também era conhecido
pelos seus surtos de danças selvagens no meio das orgias.
Tocando tambores e agitando chocalhos, outros membros da trupe de mimos surgiram vindos de trás da tenda para se juntarem ao mercador na sua dança. Entre eles consegui
ver a sósia de Bethesda, desta feita já não arranjada para parecer velha, mas parecendo deveras encantadora, num vestido de linho verde; com pulseiras de madeira
a adornar os braços bronzeados, que faziam um som seco enquanto ela se divertia. Encorajados pelos atores, os membros da assistência juntaram-se à dança. A música
tornou-se mais alta e esganiçada e a atmosfera foi ficando cada vez mais cacofónica. Até os esculturais portadores da elegante padiola se juntaram, batendo as mãos
e os pés.
Depois, num piscar de olhos, o estado de espírito alterou-se. Ouvi berros e gritos. Um tremor de pânico irrompeu pela assistência. Erguendo-me em bicos dos pés e
espreitando por cima da multidão, vi o clarão das espadas a serem desembainhadas no lado mais afastado da praça. Um mar de semblantes aterrorizados virou-se abruptamente
na minha direção.
Motim!
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IV
- Está na hora de sairmos daqui! - disse eu, pegando na mão de Bethesda.
Toda a gente parecia ter pensado o mesmo em simultâneo, pois, de repente, estávamos todos a correr na mesma direção, para longe das tropas armadas. Mesmo no meio
do pânico, vi que alguns homens se dobravam sobre si mesmos e apanhavam pedras ou outro tipo de objetos que por ali encontrassem, como se se estivessem a armar para
um confronto.
Pelo canto do olho, vi a tenda a colapsar. Enquanto os macacos amestrados gritavam e saltavam como loucos, a trupe de mimos enrolava a tenda e juntava os seus adereços.
Agiram tão depressa e de forma tão eficaz que ficou bem patente que já o tinham feito antes.
Comigo e com Bethesda a abrir caminho, a multidão fugiu por uma rua estreita que ia até ao porto. com um estremecimento de temor interroguei-me se não seria isto
o que os homens do rei desejavam conduzir os espectadores para a frente marítima, onde ficaríamos presos e seríamos fáceis de chacinar -, mas, ao olhar para trás,
vi que nem sequer tinham tentado seguir-nos. A sua intenção parecia ser apenas acabar com o espetáculo de mimos e dispersar a multidão reunida na praça.
A multidão chegou à frente marítima. Quando as pessoas se aperceberam de que já não estavam a ser seguidas, o pânico diminuiu. Algumas pessoas começaram a rir e
a brincar. Outras debatiam se deveriam voltar para trás e juntar-se à mão-cheia que tinha escolhido lutar contra os soldados. O seu entusiasmo desvaneceu-se com
a chegada
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de indivíduos de cabeça partida e feridas sangrentas. Cheguei-me para o lado e mantive a boca calada. A contenda entre o rei egípcio e o seu povo não tinha nada
a ver comigo.
Pouco a pouco, a multidão dispersou.
O dia estava quente e o céu limpo, com apenas algumas nuvens esparsas. A frente marítima tinha um ar de calma silenciosa, quebrado apenas pelo restolhar das palmeiras
sob a brisa, pelos gritos das gaivotas e pelo toque ocasional da corneta do Farol de Faros.
Sentei-me no cimo de um lance de escadas que desciam até à água e olhei fixamente para lá do porto até ao farol, uma vista magnífica que sempre me pareceu surreal,
independentemente de quantas vezes a visse. Bethesda sentou-se ao meu lado, ignorando os protocolos do nosso estatuto, e eu não a corrigi. Que homem colocaria objeções
a ser visto na companhia de uma rapariga tão bela com um vestido tão bonito?
- Aquilo foi divertido! - disse eu.
- Disseste que querias uma aventura no teu aniversário, senhor.
- Sim, bem, esperemos que tenha sido só isto.
Olhei fixamente para as ilhas no porto, que pertenciam ao rei Ptolomeu e que estavam cobertas de templos, jardins e palácios. Mas onde estavam os navios? Nesta altura
do ano, reaberta que estava a época da navegação, o porto deveria estar repleto de navios mercadores, oriundos de terras distantes, carregados com todo o tipo de
mercadorias, a entrar e a sair do porto de Alexandria. Contei apenas um punhado de navios e a maior parte deles não passavam de barcos de pesca locais e navios de
recreio. A guerra entre Roma e Mitrídates tinha gerado incerteza e caos e transformara o mar num local perigoso. Agora, sempre que um navio estrangeiro entrava no
porto, o mais provável era que não fosse um navio mercante carregado de mercadorias, mas sim um barco cheio de refugiados e exilados, em busca de um porto seguro,
trazendo consigo todos os tesouros que possuíssem na esperança de comprar o favor do rei Ptolomeu e dos seus ministros.
- O que achaste do espetáculo dos mimos, senhor?
Ri-me, quando me veio à ideia a imagem do mercador na latrina.
- Muito divertido. F. chocante! Não consigo imaginar como é que aqueles atores pensaram que podiam levar a sua avante, colocando em
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cena um espetáculo daqueles, praticamente à sombra do palácio real. Em alguns becos de Rhakotis, talvez, mas não numa parte melhor da cidade, onde os soldados patrulham
todas as ruas. Acho que isso demonstra bem quão longe já foram as coisas. A última paródia... parecia indicar que o irmão do rei estará a caminho de Alexandria...
com um exército ao seu lado, sem dúvida. Pergunto-me, será que vai haver uma guerra no Egito? Guerra aqui e ali e por todo o lado...
Parecia que todo o mundo tinha sido, ao longo destes últimos anos, mergulhado na guerra. Primeiro, houve guerra em Itália, entre Roma e as confederações italianas.
Depois, ao ver a fraqueza de Roma, o rei Mitrídates varreu a Ásia e as ilhas gregas, expulsando os romanos. Agora parecia que também o Egito se podia transformar
num campo de batalha entre o rei e o seu irmão. Pensei em como era estranho que a assistência mostrasse simpatia pela ideia do regresso do irmão mais velho do rei;
talvez levassem a sério o título que ele atribuíra a si próprio quando se encontrava no trono, Sofer, que significa "Salvador". Mas não o tinham expulsado já do
trono e da cidade uma vez? Agora queriam expulsar o irmão mais novo e dar de novo as boas-vindas ao mais velho. Como era
inconstante a multidão de Alexandria e como tinha a memória curta!
Se a guerra chegasse à cidade, o que significaria isso para mim e para Bethesda?
Uma explosão de riso juvenil interrompeu os meus pensamentos: dois indivíduos passaram a correr pelas escadas ao nosso lado. Reconheci-os como sendo os dois flautistas
do espetáculo de mimos. No último degrau, os rapazes descalçaram as finas sandálias e entraram na água, refrescando os pés.
Após alguns instantes, correram de novo pelas escadas acima. Vi-os dirigirem-se a um banco de pedra próximo, debaixo de uma grande palmeira, onde se tinham juntado
outros membros da trupe de mimos.
- Bem, fico feliz por aqueles dois terem sobrevivido à escaramuça e não parecerem ter sido afetados por ela - disse eu. - O resto dos atores também está a sorrir
e a rir. Pergunto-me se estará ali o grupo todo. Conto apenas oito, incluindo os dois rapazes. O que pensas, Bethesda? Vamos dizer-lhes olá?
- A eles?
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- Sim, podemos dizer-lhes o que achámos do espetáculo e ver se conseguiram escapar todos ilesos.
- Ees? - Olhou para mim de lado.
- A trupe de mimos. - Tentei manter o rosto inexpressivo, mas era impossível enganar Bethesda.
Entre os atores, debaixo da palmeira, conseguia ver a sósia de Bethesda. Era ela e só ela que tinha curiosidade em conhecer.
Levantei-me, agarrei na mão de Bethesda e puxei-a para o meu lado.
- Anda. É o meu aniversário e hei de satisfazer todos os meus caprichos.
Bethesda seguiu-me contrariada.
Tentei pensar numa maneira de interromper a conversa deles, mas não precisava de me ter preocupado com isso. Um dos dois jovens flautistas viu-nos aproximar, olhou
melhor para nós e deu uma cotovelada ao seu parceiro, que fez o mesmo.
- Olha, Axiothea! - gritou um dos rapazes. - És tu
A atriz, que se encontrava sentada no banco, olhou na nossa direção, depois olhou para o rapaz.
- Que queres dizer?
- Aquela rapariga... parece-se imenso contigo, Axiothea. Até tem um vestido verde, como tu.
A atriz levantou-se do banco e avançou na nossa direção, olhando fixamente para Bethesda, até ficarem cara a cara.
E certo que não eram o reflexo uma da outra num espelho. Bethesda era ligeiramente mais baixa, tinha o cabelo mais comprido e uma silhueta com mais contornos. Os
semblantes não eram de todo idênticos - Bethesda era claramente a mais nova das duas -, mas apenas um cego é que não conseguiria ver a semelhança. A cor verde da
sua roupa era tão parecida que os vestidos poderiam ter sido feitos do mesmo tecido, embora - mesmo descontando a minha parcialidade no que a isso dizia respeito
- o vestido de Bethesda fosse mais elegante, com bordados mais finos.
Axiothea deu um passo atrás. Abanou a cabeça.
- Não vejo a semelhança.
- Nem eu - disse Bethesda.
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Um homem elegante, de ombros largos, também estava sentado no banco, envergando uma túnica de linho fino que o cobria da cabeça aos pés. Bateu no joelho e riu-se,
o que fez com que o macaco empoleirado nos seus ombros guinchasse ruidosamente e começasse a correr para trás e para a frente.
- Não é mesmo típico de uma mulher? - O homem sorriu. - Não consegue ver o que está mesmo à sua frente, nem sequer quando se vê ao espelho!
Os outros riram e o macaco mostrou os dentes e bateu as palmas das mãos compridas e magras. Pela deferência com que os outros o tratavam, presumi que aquele tipo
fosse o líder da trupe de mimos.
- A sério, Melniak - disse Axiothea com um suspiro -, não vejo qualquer semelhança. - Até os seus modos e a modulação da sua voz me faziam lembrar Bethesda.
- Nem eu - repetiu Bethesda.
As duas voltaram a olhar-se, olhos nos olhos, e quase parecia que estavam a fazer um concurso de olhares, como dois gatos egípcios. Depois, ao mesmo tempo, as duas
começaram a rir.
- Mas tu és muito bonita - disse Axiothea.
- E tu também - respondeu Bethesda.
- Vaidade, vaidade! - gritou Melmak. - Não estão a fazer mais do que a elogiar-se a si próprias, se ao menos pudessem ver.
- Então e quem és tu? - perguntou Axiothea dirigindo-se a mim.
- O meu nome é Gordiano. Venho de...
- Roma - disse Axiothea. - com um nome desses e com essa pronúncia, não podias ser de mais lado nenhum. Mas devo dizer que falas melhor grego do que a maior parte
dos romanos que conheci.
Agradeci o elogio com um aceno de cabeça.
- E esta é Bethesda, a minha escrava.
- Ah, a rapariga é então tua propriedade? - Melmak levantou-se e aproximou-se de nós. Vi quão alto era o homem de ombros largos. O macaco veio com ele, agarrando-se
às madeixas do seu cabelo preto
e espesso.
- Ela tem alguma experiência de representação?
- Porque perguntas?
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- Sendo ela e a Axiothea tão parecidas... talvez conseguíssemos tirar partido disso. Fazer uma troca sem que a assistência repare.
- Uma troca?
- Fazer desaparecer uma e aparecer a outra. Tu sabes, um pouco de magia. Como poderá estar uma mulher em dois sítios ao mesmo tempo? A assistência adora esse tipo
de coisas.
- Este é o meu Melmak, sempre a pensar - disse Axiothea.
- Mesmo sem qualquer truque, a visão de gémeas (e, ainda por cima, belas gémeas) será em si mesma entusiasmante para os homens na assistência - disse Melmak. - Não
pensas assim, Gordiano?
Olhei para Bethesda e para Axiothea, senti um formigar na imaginação e depois desimpedi a garganta enquanto as duas olhavam fixamente para mim.
- O que achas, Gordiano? - perguntou Melmak. - Não estou a propor a compra da rapariga, mas pagaria pelo aluguer dos seus serviços como parte da minha trupe.
Abanei a cabeça.
- Daquilo que vi, o teu trabalho é demasiado perigoso.
- Perigoso? - interrogou Melmak.
- Eu estava lá, na assistência. Eu podia ter sido morto... e todos vocês podiam ter sido detidos e atirados para uma masmorra, por terem ridicularizado o rei. Tanto
quanto sei, alguns de vocês foram detidos.
- Não, estamos todos aqui - disse Melmak.
- Apenas oito, na trupe toda? Decerto serão mais. Como podem apenas oito pessoas representar tantos papéis?
- Maquilhagem, fatos, adereços e chumaços.
Olhei de cara em cara. Para além de Melmak, Axiothea e dos dois rapazes, estavam ali quatro homens, todos de tamanho normal e um pouco mais velhos do que eu.
- Mas qual de vocês era o mercador gordo?
- Era eu, claro - respondeu Melmak.
- Impossível! Apercebi-me de que o fato do mercador tinha chumaços, mas ele tinha uma cara gorda. E a voz dele era completamente diferente da tua.
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- Chama-se a isso representar, meu bom rapaz. Eu sei que Roma é um deserto cultural no que toca ao teatro, mas...
- E havia outro acrobata que não se encontra aqui. O homem musculado, com um toucado nemes, que fez malabarismo antes do espetáculo.
- Era eu, uma vez mais - respondeu Melmak. Cerrou o punho e ergueu-o em frente à testa, depois arregaçou a manga comprida e larga da túnica para exibir o seu bíceps.
- Como podes ver, os músculos são verdadeiros e não um fato. Todos nós representamos muitos papéis. Atualmente, a Axiothea é a única mulher na trupe, por isso alguns
de nós têm, ocasionalmente, de representar o papel de matrona.
- A prostituta velha na primeira paródia?
- Isso era a Axiothea. Já tentámos com um homem, mas não tinha tanta piada.
- Muito impressionante - disse eu, maravilhado com o facto de tão poucos conseguirem representar tantos papéis.
- Ah! Representar, chama-lhe ele!
Um dos homens deu um passo em frente. Em alguns aspectos era um dos membros mais impressionantes da companhia, pois embora o seu físico fosse normal e as suas feições
nada tivessem de especial, o cabelo escuro e comprido e a barba cuidadosamente aparada estavam divididos, de um lado ao outro, por uma risca branca. Uma tal marca
teria parecido mais provável num animal peludo do que num homem, mas a curiosa coloração parecia natural.
- O meu nome é Lycos e não sou ator. E por muito fervorosamente que o Melmak e os outros possam pensar que os seus talentos enquanto atores criam as ilusões de um
espetáculo de mímica, sou eu quem faz a maior parte do trabalho nesse capítulo.
Melmak dirigiu ao homem um sorriso contrariado.
- O Lycos é o nosso artífice e suponho que mereça algum crédito.
- Algum crédito? Bem, é mais do que costumo receber.
- Artífice? - perguntei.
- O Lycos faz os fatos e as perucas - respondeu Axiothea.
- Fatos e perucas? É tudo isso o que eu sou, um costureiro exaltado e um mestre de perucas? - resmungou Lycos. - Eu concebo e crio os
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adereços. Supervisiono a maquilhagem. Sou eu quem transforma o Melmak no rei gordo, eu quem consegue fazer da Axiothea uma velha feia. O artífice, não os atores,
é o verdadeiro mestre da ilusão teatral, o milagreiro dos mimos!
Tossi para desobstruir a garganta.
- Bem, é decerto um milagre que todos tenham conseguido escapar àqueles soldados.
- Aí não esteve envolvido nenhum deus ou magia - disse Melmak.
- Apenas cuidadoso planeamento e reflexos rápidos. Concebemos um sistema para realizarmos fugas rápidas. Mudanças de cenário de urgência, é o que lhes chamo. Ainda
não nos demos mal.
- Mas um destes dias, se continuares a dar espetáculos como este, vais ter problemas. Estás a tentar o Destino.
- Somos uma trupe de mimos, Gordiano. Temos de dar às pessoas o que as pessoas querem. E damos! Atraímos as maiores multidões e enchemos mais as bolsas do que qualquer
outra trupe da cidade. Oh, credo, não deveria admiti-lo. Agora vais querer ainda mais dinheiro para que eu possa usar a tua tão encantadora escrava.
- Tal como já disse, não está disponível. -Tive uma visão repentina de Bethesda à mercê de um grupo de guardas reais e estremeci. - Não importa o preço.
- Ah, bem. - Melmak suspirou e dirigiu um olhar melancólico a Bethesda. - O teu senhor está-te a negar uma maravilhosa carreira como atriz, minha querida.
Axiothea riu.
- Deixa lá isso, Melmak! O jovem romano já disse o que tinha a dizer. Mas acho a sua companhia agradável, não achas? Gostarias de partilhar connosco a refeição do
meio-dia, Gordiano? A nossa comida é simples: um pouco de tilápia do Nilo em salmoura, azeitonas, palmito, tâmaras e pão ázimo. Não temos vinho, mas temos um pouco
de cerveja egípcia, se gostares dela. Juntas-te a nós?
E assim foi que comi a minha refeição de aniversário com um círculo de novos e inesperados amigos, sentado à sombra de uma palmeira na cidade mais entusiasmante
do mundo, olhando para uma das paisagens mais espetaculares, o porto de Alexandria e o Farol de Faros.
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A comida estava deliciosa e a companhia era encantadora. Todos os atores tinham viajado bastante e tinham muitas histórias para contar. Tendo eu próprio viajado,
não me senti desenquadrado entre eles e pude contar algumas das minhas histórias. Senti-me bastante feliz, pensando que era assim que um aniversário devia ser celebrado,
até que o tema da conversa se virou para Roma.
-Já saíste de Roma há muito tempo? - perguntou Axiothea.
- Saí de Roma há exatamente quatro anos, no meu décimo oitavo aniversário. Ainda não regressei.
- Tens saudades?
- Às vezes.
- Ouvem-se coisas tão terríveis sobre a guerra em Itália, entre Roma e as cidades rebeldes. Tens tido novidades de casa? - perguntou Melmak.
- Cartas do meu pai. Já lá vai algum tempo desde que recebi a última. - De facto, há já vários meses que tinha recebido a sua última carta. Começava a preocupar-me
com ele.
Axiothea leu-o na minha expressão.
- Tantas cartas e mensagens que se extraviam nestes tempos ou demoram uma eternidade a chegar. A guerra em Itália, a guerra na Ásia, a guerra no mar... é um espanto
que qualquer navio chegue ao porto. Tudo é escasso. Tudo é mais caro. São os tempos em que vivemos.
- E graças à deusa que todos temos quem culpar! - disse Melmak com um riso.
- Quem? - perguntei. Melmak abanou a cabeça.
- Obviamente não és de Alexandria ou nem sequer precisavas de perguntar. Quem é que culpamos por tudo o que corre mal? Devo voltar a vestir o meu fato de gordo e
bambolear-me de um lado para o outro na frente marítima para te relembrar?
- Será verdadeiramente por culpa do rei Ptolomeu que os preços estão tão altos? - perguntou Bethesda.
Senti-me algo incomodado ao ver a minha escrava a juntar-se à conversa de forma tão livre, mas para os atores, todos eles nascidos livres, o seu estatuto de escrava
era indiferente. O meu pai tinha-me
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dito que os atores de Roma não eram como as outras pessoas, que tendiam a viver fora das restrições e expectativas da sociedade normal. Pelos vistos, o que era verdade
sobre os atores em Roma, também era verdade ali.
- Será verdadeiramente culpa do rei? É provável que não - respondeu Melmak. - Mas ainda assim culpamo-lo a ele. E se as coisas piorarem, culpá-lo-emos ainda mais.
- E se as coisas melhorarem? - perguntei.
- Então devemos dar crédito aos deuses e oferecer-lhes as nossas
orações de agradecimento!
- Parece impossível que o rei consiga fazer alguma coisa como deve ser.
- E graças aos deuses por isso, caso contrário, nós, atores, ficaríamos sem trabalho!
- É verdade o que insinuaste no espetáculo, sobre o irmão do rei estar a caminho de Alexandria?
Melmak encolheu os ombros.
- Quem sabe? É o que se diz por aí. Teremos a certeza se e quando ele chegar.
- Mas se isso acontecer, é provável que seja o caos, não? Antes de os invasores chegarem e depois...
Eu nunca tinha estado numa cidade debaixo de cerco. A ideia era
perturbadora, mas os atores pareciam impassíveis.
- Caos? - inquiriu Melmak. - De certeza que haverá caos. Caos antes, caos durante e caos depois. Caos a toda a hora e por todo o lado; é esse o estado natural do
Egito. Mas os espetáculos de mimos continuarão, aconteça o que acontecer. A trupe do Melmak nunca falta a uma atuação, faça chuva ou faça sol.
- Ao ritmo a que as coisas estão a avançar, pode não ser preciso um exército invasor para derrubar o rei - disse Axiothea.
- Que queres dizer com isso? - perguntou Bethesda.
- Reparaste na notória falta de entusiasmo daqueles soldados que acabaram com o espetáculo de hoje? Apáticos, chamar-lhes-ia eu.
- Praticamente sonâmbulos! - exclamou Melmak. - Há dois meses, com uma companhia de guardas reais a morderem-nos os calcanhares,
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teríamos sido obrigados a correr pelas nossas vidas. Hoje, pegámos simplesmente nas nossas coisas e saímos a passo, nem sequer vieram atrás de nós!
- Sim, isso surpreendeu-me - respondi. -Temia que pudesse haver um banho de sangue.
Melmak abanou a cabeça.
- Um banho de sangue dá muito trabalho: todo aquele esquartejar e, depois, é preciso limpar a confusão causada. Simplesmente não vale a pena o dispêndio de tempo
de um soldado. Suspeito que o seu comandante lhes ordenou que acabassem com o espetáculo escandaloso e dispersassem a multidão, e foi exatamente isso que fizeram,
nada mais, nada menos.
- Mas porquê?
- Porque o rei não lhes paga! Já não paga a ninguém, nem aos trabalhadores na Biblioteca, nem aos funcionários do Museu ou aos operários do Farol de Faros, nem sequer
aos tratadores de animais dos jardins reais. Acabou-se-lhe o dinheiro e toda a gente sabe. Em vez de ouro, de prata ou mesmo de cobre, as pessoas na folha de pagamento
real têm recebido notas de promessa de pagamento sobre o tesouro real. Foi assinado um decreto real que determina que todos os comerciantes devem vender a crédito
tendo por base essas notas, mas cada vez mais comerciantes se recusam a fazê-lo. Por isso toda a gente que se encontra no serviço real está a fazer o mínimo possível...
incluindo os soldados. Alexandria está a entrar em estagnação.
- Não me tinha apercebido de que as coisas estavam tão más - disse eu.
Axiothea acenou com a cabeça.
- Más e a piorar, provavelmente. É o que diz... - A sua voz perdeu-se. Ergui uma sobrancelha.
- Ias citar alguém?
Melmak exibiu um sorriso conhecedor.
- A Axiothea ia citar o seu misterioso benfeitor.
- Benfeitor? - perguntei.
- Talvez tenhas reparado naquela padiola fina na parte da frente da assistência?
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- Sim. Vi-a chegar.
- Parece que o indivíduo no seu interior simpatizou bastante com a nossa Axiothea.
- Não o consegui ver.
- Nem nós! Ninguém sabe quem é... exceto a Axiothea, claro. De vez em quando, ela desaparece durante um dia ou dois e, depois, regressa a cheirar a um novo perfume
caro e todos ficamos a saber que ela foi visitar o seu amigo rico. Mas achas que ela nos convida? Ou achas que nos diz, sequer, o nome do indivíduo, para onde vai
ou durante quanto tempo ficará longe? Não!
- Quer acredites, quer não, Melmak, algumas coisas não te dizem respeito. - Axiothea sorriu, mas pareceu-me que se estava a esforçar por manter um tom de voz constante.
- O Melmak está apenas com ciúmes - disse Lycos. - Ele queria que uma senhora rica o escolhesse como seu preferido e o afogasse em presentes, como o benfeitor da
Axiothea faz com ela.
Um dos atores acenou com a cabeça.
- É por isso que o Melmak insiste em realizar o seu número de malabarismo antes do espetáculo, saltitando praticamente nu e exibindo os seus músculos, na esperança
de que alguma potra rica lamba os lábios e o convide para sua casa. Arranjar assim um bom e confortável lugar como garanhão de serviço e depois... adeus à representação!
Todos partilharam uma gargalhada, até Melmak. Axiothea estava visivelmente relaxada.
O sol estava quente, mas a sombra era agradável. Os nossos estômagos estavam cheios. Toda a gente tinha ingerido uma quantidade generosa de cerveja, bebendo todos
da mesma taça - incluindo o macaco. Sendo o meu aniversário, todos insistiram para que bebesse o dobro e não recusei.
Enquanto as duas mulheres se afastavam para um lado, conversando, nós, os homens, sentámo-nos em círculo em torno da grande palmeira, virados para o exterior, recostados
contra o tronco e de pernas esticadas. Comecei a dormitar. Quando Bethesda se agachou ao meu lado e tocou na minha mão, tive dificuldade em manter os olhos abertos.
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- Senhor, a Axiothea quer ir ao mercado ao ar livre na frente marítima. Consegue-se ver um pouco dele mesmo ali à frente.
- Sim, e eu queria saber se a Bethesda pode ir comigo - disse Axiothea. Esta erguia-se por cima de mim, com as mãos nas ancas e uma expressão que dizia que não aceitaria
um não como resposta. Se Bethesda fosse uma mulher livre, seria tão assertiva e teimosa como a sua sósia?
Tartamudeei e acenei com a cabeça, meio a dormir.
- Não vejo porque não.
Depois sorri porque sabia que Bethesda tinha poupado recentemente algumas moedas, ficando, por vezes, com o troco quando a mandava às compras. Devia ter trazido
essas moedas consigo, pensei, e agora tinha intenções de gastar o seu magro tesouro para me comprar um presente de aniversário. Fechei novamente os olhos e lembrei-me
de como ela era doce... tão, tão doce...
O meu sonho também foi doce, duplamente doce, pois estava de volta ao meu pequeno quarto em Rhakotis, o qual se encontrava salpicado pela luz do sol, e nuas, comigo
na cama, encontravam-se não uma, mas duas Bethesdas, igualmente belas, igualmente amorosas, igualmente encantadoras. O sonho estendeu-se por bastante tempo, sendo
cada desenvolvimento mais excitante do que o anterior, até que alguém me bateu à porta. Embora as duas Bethesdas se tenham rido e na brincadeira me tenham tentado
impedir, insisti em ir ver quem era. Saí da cama e abri a porta, mas o corredor estava vazio. Estaria mesmo vazio? A passagem tinha pouca luz, mas, do outro lado,
quase perdido na escuridão, pareceu-me ter visto uma silhueta. A sua forma era indistinta, mas parecia estar a usar uma toga romana. Houve algo na sua postura que
me alarmou. Movia-se de uma forma que não era natural, agarrando-se a si próprio como se estivesse com dores. Ouvi-o gemer. O meu coração começou a bater depressa.
- Pai? - murmurei. - És tu?
Acordei com suores frios, gelado pela brisa vinda do porto. Durante um longo período de tempo, olhei fixamente para o longínquo Farol de Faros, com a mente incapaz
de o compreender. Era algo que me acontecia de tempos a tempos, em Alexandria; acordava sem saber
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onde estava e sentia-me confuso, como se nunca tivesse saído de Roma e, de repente, desse comigo num lugar que me era completamente estranho.
Mas claro, o local não me era estranho. Já conhecia a frente marítima de Alexandria melhor do que conhecia muitas zonas de Roma. A minha desorientação aguda desvaneceu-se.
Tinha uma ligeira dor de cabeça - devido à cerveja, sem dúvida. O frio passou rapidamente, à medida que a brisa soprava o suor do meu corpo; a luz do sol era quente
sobre a minha pele. Estava em Alexandria, numa bela tarde e tudo estava bem. Bocejei, espreguicei-me e olhei à minha volta.
Estava sozinho.
Os membros da trupe de mimos tinham desaparecido.
Bethesda também.
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v
- Bethesda! - chamei, pensando que se encontrasse ali por perto. Levantei-me, sentindo-me um pouco perro. Tinha a cabeça a latejar. Olhei para um lado e para o outro
da frente marítima.
- Bethesda! - chamei de novo, mais alto.
Não houve resposta. Por cima da minha cabeça uma gaivota soltou um grito áspero. Para os meus sentidos confusos, o ruído parecia-se estranhamente com um riso.
Durante quanto tempo estivera a dormir? A julgar pela posição do Sol, não podia ter passado mais de uma hora. Estaria ela ainda no mercado próximo, às compras?
E para onde tinham ido os atores? Procurei-os e não vi sinal deles, com exceção de alguns caroços de tâmara espalhados e outros detritos do nosso banquete do meio-dia.
Analisei novamente a área, assegurando-me de que não havia nenhum sinal de Bethesda e prosseguindo em seguida para o mercado.
O mercado era um labirinto de pequenas tendas e divisórias, criadas propositadamente para abrandar o avanço e confundir o olhar. Se uma pessoa se quisesse esconder,
um mercado cheio de gente e de tralha como aquele, seria o local ideal. Estaria Bethesda a meter-se comigo, a brincar às escondidas? Não parecia dela.
Atravessei o mercado tentando não me distrair com todas as bugigangas, pequenas jóias, tachos e panelas. Quase todos os vendedores me ofereceram uma seleção de recordações
para visitantes, incluindo pequenas imagens do Farol de Faros para todas as bolsas, feitas em
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olaria barata, vidro ou marfim. Num vendedor de roupa, avistei um vestido verde, que se parecia com o que eu tinha comprado para Bethesda, por um preço muito mais
reduzido, mas, quando o vi mais de perto, percebi que o linho era de qualidade inferior e estava mal cosido.
Cheguei ao fim do mercado sem ver Bethesda. Voltei para trás passando de novo pelas divisórias e uma vez mais não a vi. Regressei à palmeira, pensando que talvez
tivesse regressado na minha ausência, mas não estava lá.
Comecei a sentir-me inquieto.
Andei de divisória em divisória no mercado, interrogando os vendedores. Alguns mostraram-se tão antipáticos que nem me responderam, provavelmente devido à minha
pronúncia romana - um preconceito com que me deparava de tempos a tempos em Alexandria -, mas alguns lembravam-se de ver duas raparigas bonitas com um vestido verde.
- Pareciam gémeas! - disse um vendedor de tapetes de bigode e com um brilho lascivo nos olhos. - Decididamente não me esqueceria daquelas duas. Aos risinhos, a murmurarem
uma para a outra e a fazerem tolices, como fazem todas as raparigas. - Aquilo não parecia descrever a Bethesda que eu conhecia e que agia sempre com uma graça calma
e felina. Longe de mim, na companhia de outra mulher, comportar-se-ia com menos limitações?
- Oh, mas isso deve ter sido há uma hora - disse o vendedor de tapetes. - Deram uma vista de olhos rápida às minhas mercadorias, disseram algo rude sobre o meu bigode
(raparigas tolas!) e seguiram caminho. Não as voltei a ver desde então.
Nem nenhum dos outros vendedores, quis-me parecer. Bethesda e Axiothea tinham, seguramente, visitado o mercado e tinham sido vistas por vários vendedores, mas isso
acontecera há uma hora, enquanto eu adormecia debaixo da palmeira. Ninguém sabia quando tinham partido ou que direção tinham tomado.
Bethesda e Axiothea pareciam ter passado a maior parte do tempo na banca de roupa, comparando os seus próprios vestidos às versões inferiores que ali se encontravam
à venda, para descontentamento da velha encarregada da banca, que, por isso, tinha razão para se lembrar
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delas. Ofereceu-me respostas secas a todas as minhas perguntas, mas, quando me estava a ir embora, baixou a voz.
- Mas agora que me lembraste, reparei em algo um pouco estranho...
- Sim? - disse eu virando-me para trás.
- Estou a tentar pensar. Sim, foi na altura em que as raparigas vieram ver a minha roupa. Reparei em dois tipos ali especados na passagem, a olhar para um lado e
para o outro. Não gostei do aspecto deles.
- Como eram esses homens? Como estavam vestidos?
Ela encolheu os ombros.
- Túnicas vulgares, nada de especial. Não foi na sua roupa que reparei; foi na expressão dos seus rostos. Estavam a tramar alguma.
- Que quer isso dizer?
- Quando se trabalha num mercado como este, aprende-se a ver quem é cliente e quem não é. Também se aprende a ver quem para aqui vem para roubar qualquer coisa.
Esses tipos não estavam aqui para fazer compras. Não eram de cá. Nem eram visitantes de passagem. E não tinham ar de serem pequenos larápios ou carteiristas, a meu
ver. Então, porque estariam eles aqui, a passar o tempo e o que se preparavam para fazer? Nada de bom, isso é certo.
- Estavam a seguir as raparigas? - ouvi a minha voz irromper.
- É isso que eu me pergunto a mim mesma. Estava prestes a enxotar as raparigas da banca quando reparei nesses dois homens. As raparigas foram-se embora muito divertidas
com os olhares maldosos que eu lhes lançava, presumo.
- E os dois homens?
A mulher abanou a cabeça.
- Não me lembro de os voltar a ver depois disso. Devem ter seguido caminho, mas não sei para que lado foram. Talvez tenham seguido as raparigas. Ou talvez não. -
Encolheu os ombros.
Regressei finalmente à frente marítima, sentindo-me completamente desnorteado.
Deveria eu regressar ao meu quarto em Rhakotis? A hipótese de Bethesda ter regressado sem mim parecia remota. Ainda assim, caso tivesse regressado, conseguiria entrar,
pois a porta não tinha nem fechadura, nem chave. (A única tranca era um simples bloco de madeira que
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rodava para bloquear a porta pelo lado de dentro, para assegurar a nossa privacidade enquanto dormíamos ou nos dedicávamos a qualquer outra atividade; a segurança
era dada pelo senhorio e pela sua mulher, que viviam no piso térreo e que mantinham sob vigilância as pessoas que entravam e saíam.)
Havia outra possibilidade: que Melmak a tivesse levado à força. Ele tinha dito que a queria usar na sua trupe e tinha-se oferecido para me pagar. Recusei e isso
pareceu acabar com a conversa. Melmak tinha-me parecido um tipo bastante simpático, mas o que sabia eu, realmente, sobre ele ou sobre Axiothea?
E se Melmak tivesse colocado uma qualquer droga na minha cerveja, fazendo com que eu adormecesse e Axiothea tivesse atraído Bethesda para longe de mini? Isso teria
permitido que toda a trupe fugisse, escondendo a minha escrava e deixando-me sozinho, para que acordasse uma hora mais tarde.
Depois lembrei-me de que todos tínhamos bebido a cerveja da mesma taça; parecia improvável que Melmak pudesse ter drogado apenas a minha parte. Ainda assim, tinha-me
encorajado a beber mais do que os outros e a cerveja podia ser, só por si, responsável por pôr um homem a dormir num dia quente.
De repente, senti-me certo disso: Melmak tinha-me levado Bethesda. O patife! Bem, pensei, em breve se aperceberia do seu erro. A única razão pela qual eu a conseguira
comprar fora por Bethesda ser uma escrava altamente problemática, provocando problemas a todos os seus donos antes de mim. Muitos a tinham possuído durante menos
de um dia antes de a devolverem ao mercado. Ela era o exato oposto do escravo complacente e obediente que a maior parte dos homens queria. Bethesda era conhecida
por conseguir dar uma boa luta...
Mas conseguiria mesmo? Se Melmak e a trupe a levaram pela força, contra a sua vontade, porque é que o rapto tinha passado despercebido pelos vendedores no mercado?
IMM, Porque a confundiram com cerveja, pensei, pois também ela tinha bebido uma pequena parte. E porque lhe mentiram, dizendo que eu tinha ido a algum lado e que
a levavam para ir ter comigo ou lhe contaram uma outra história qualquer para a atrair para longe em silêncio. Ou porque
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Teria ela ido com eles de livre vontade?
Este pensamento perturbou-me mais do que qualquer outro. Ter-me-ia Bethesda deixado para ir com a trupe de mimos por sua própria vontade? Se assim fosse, porquê?
Seria a vida de atriz assim tão apelativa para ela? Ou... ter-se-ia cansado de mim? Ou - o pensamento mais arrepiante de todos - nunca teria gostado de mim? Terão
sido todos os seus suspiros e gemidos, durante as longas horas das nossas trocas amorosas, um mero fingimento, uma encenação para agradar a um senhor que, secretamente,
desprezava tanto quanto desprezara todos os seus senhores anteriores? Seria essa a emoção que ela escondia por detrás da sua aparência felina e ilegível - desprezo
pelo fraco e jovem senhor que ela fizera passar por tolo?
Não, era impossível.
Seria mesmo?
Os temores e dúvidas que me assaltavam eram sentimentos deveras desadequados a um romano, independentemente do muito ou pouco bonita, atraente e especial que uma
escrava pudesse ser. Sentia muitas emoções conflituosas e confusas ao mesmo tempo, mas acima de tudo senti-me ansioso.
Onde estava Bethesda?
Decidi que o meu passo seguinte seria localizar a trupe de mimos. Os atores eram conhecidos por não terem residência fixa, andando de um lado para o outro para satisfazerem
os seus caprichos - e para se manterem um passo à frente das autoridades que não os aprovavam -, mas certamente alguém seria capaz de me dar uma pista relativa ao
seu paradeiro. Tinha passado os últimos dois anos em Alexandria a exercer o ofício do meu pai, estabelecendo contactos e descobrindo os podres de outros. Agora iria
colocar essas capacidades ao meu serviço.
Por isso, passei o resto do meu aniversário a percorrer Alexandria, de um lado para o outro, fazendo perguntas acerca da trupe de mimos de Melmak. As pessoas sabiam
de imediato sobre quem estava eu a falar. "Ah, a trupe com o macaco treinado", diziam alguns, ou "aquela
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com os dois tocadores de flauta adoráveis", ou ainda (e mais frequentemente) "aquela da jovem e deslumbrante atriz que corre nua pelas ruas!". Muitas pessoas também
assentiam, quando eu descrevia um homem com uma faixa branca que lhe dividia o cabelo e a barba, apesar de poucos conhecerem pelo nome o artífice Lycos.
Todos conheciam a trupe de Melmak, mas ninguém sabia onde viviam ou como poderiam ser contactados. Era uma coisa curiosa, numa cidade fervilhante como Alexandria,
que sete homens, uma mulher e um macaco, todos tão visíveis quando o desejavam, pudessem ser tão invisíveis fora do palco.
Ao mesmo tempo que fazia perguntas acerca da trupe de mimos, também me assegurava de mencionar, como que por acaso, o mercado da frente marítima, só para ver se
alguém lá tinha estado naquele dia. Como acabou por se revelar, alguns dos meus contactos tinham ido, de facto, fazer compras ao mercado ou, pelo menos, passado
por lá. Infelizmente, não encontrei ninguém que tivesse visto duas raparigas que correspondessem à minha descrição de Bethesda e de Axiothea
- até que, mais para o fim do dia, me deparei com dois eunucos idosos que se tinha reformado do serviço real e viviam juntos num apartamento maravilhosamente mobilado
não muito longe do palácio.
Chamavam-se Kettel e Berynus. Nunca me tinham pedido que pagasse pelas suas informações, sempre parecendo felizes por me ver, conduzindo-me para um sofá confortável,
acendendo um pouco de incenso e acarinhando-me como se fossem minhas tias e eu um sobri-
nho preferido. Os dois eunucos eram uma excelente fonte de informação sobre as vidas privadas de quem quer que fosse que tivesse ligações ao palácio, mas a experiência
tinha-me ensinado que não eram inteiramente fiáveis; tinham tendência para se deixar levar pela imaginação. Uma vez que os boatos palacianos eram a sua especialidade,
não tinha razão para pensar que soubessem alguma coisa sobre Melmak e, de facto, não sabiam. Mas quando mencionei o mercado na frente marítima, as suas sobrancelhas
ergueram-se de súbito.
- Oh, têm por ali as jóias mais encantadoras! - Kettel, que era extremamente gordo, ergueu um braço. Pergunto-me porque me mostrava ele aquela grande massa de carne
que se encontrava pendurada
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do braço como se fosse uma barbela de galinha, até que agitou a sua mão gordinha, chocalhando as pulseiras que tinha no pulso. - Comprei esta adorável bracelete
de bronze no mercado, hoje mesmo.
- E pagou demasiado por ela! - disse Berynus, que era tão magro como o seu companheiro era gordo. Tocou num pedaço de lápis-lazúli que se encontrava pendurado numa
corrente à volta do pescoço ossudo. - Eu comprei este belo colar por metade do preço daquela horrível bracelete.
- As duas peças são muito bonitas - disse eu.
Kettel deu uns risinhos ao ouvir o elogio. Berynus bateu as pestanas e levantou os braços para endireitar a peruca. Tomara como certo que os dois eunucos rapavam
a cabeça mas, mesmo na privacidade do seu lar, nunca vi nenhum deles sem uma peruca elaborada e de aspecto dispendioso.
- A que horas foram lá, ao mercado? - perguntei, tentando parecer descontraído.
- Oh, um pouco antes de meio do dia - respondeu Kettel. - Um pouco mais cedo e os preços seriam demasiado elevados. Um pouco mais tarde e era provável que já não
encontrássemos coisas boas.
- Compreendo. Por acaso repararam numa jovem bela, vestida de verde, com cabelo preto...?
- Bem, sim, vimos - disse Berynus.
- E verdade, vimos - disse Kettel. O meu coração parou.
- Parecem estar bastante certos disso.
Berynus ergueu uma sobrancelha.
- Porque tivemos uma discussão por causa dela.
- Uma discussão? Falaram com ela?
- Não, não, não. Não foi uma discussão com ela; foi uma discussão por causa dela. Nenhum de nós falou com ela. Apenas a vimos. Só que não vimos a mesma coisa - disse
Kettel.
- Que queres dizer com isso?
Olharam um para o outro, como se estivessem a decidir quem falaria primeiro. Kettel começou.
- Eu tive de sair do mercado durante um momento, para responder a uma chamada da natureza. No cimo da rua, um quarteirão para lá do
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mercado, dobrando uma esquina, há uma latrina pública. Quando acabei e vim para o exterior, um pouco mais acima na rua, vi precisamente a rapariga que acabaste de
descrever. Estava a ser arrastada por dois tipos de aspecto duro e a dar uma grande luta. O meu coração batia-me no peito.
- Ninguém os impediu?
- Isto aconteceu a alguma distância do mercado; não havia assim muitas pessoas por perto. Eu ainda os chamei, mas os tipos disseram-me para estar calado e para não
me meter na vida deles. Disseram que a rapariga era uma escrava que tinha fugido e iam devolvê-la ao dono.
- E acreditaram neles?
- Porque não? Embora as coisas não fossem bem o que pareciam ser... bem, nos dias que correm, quando alguém vê um qualquer tipo de tumulto na rua, nunca se sabe
bem o que pensar. Nunca se sabe quem poderá estar na folha de pagamentos real, independentemente de terem ou não a aparência de um bruto, quem poderá ser um criminoso
ou, inclusivamente, quem poderá ser um espião! Está tudo tão fora de controlo. Nada como nos bons velhos tempos, quando a rainha Cleópatra se encontrava firmemente
no poder. Hoje em dia, o melhor é metermo-nos na nossa própria vida e não nos envolvermos com nada.
- Então ninguém ajudou a rapariga? - Tentei manter a minha voz estável. - Os dois homens partiram simplesmente?
Kettel encolheu os ombros.
- Suponho que sim. Não pensei muito nisso até ter chegado perto do Berynus no mercado e de lhe ter referido o que acabara de ver. Ele disse-me que eu devia estar
a imaginar coisas!
- Porque é que disseste isso, Berynus?
O eunuco fechou as mãos, longas e magras.
- Porque eu tinha acabado de ver a mesma rapariga e sem qualquer rufia. A rapariga de verde estava a dirigir-se na direção oposta, para a
frente marítima e não estava nada aflita. Um rapazinho conduzia-a pela mão.
- Um rapazinho?
- Um mensageiro de uma casa abastada, suponho. Bem vestido por tanto, de uma casa abastada, mas sozmho, suponho que não nasceulivre
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mas sim escravo. A beldade de cabelo preto, vestida de verde, estava a seguir o rapaz, mantendo-se um pouco atrás e ia bastante satisfeita consigo mesma.
- O que te faz pensar que era a mesma rapariga que o Kettel viu? Berynus apertou os lábios finos.
- Quanto mais pormenorizadamente o Kettel descrevia a rapariga que vira, mais se parecia com a rapariga que eu vi, e, realmente, quais são as hipóteses de duas jovens
morenas deslumbrantes vestidas de verde estarem ambas no mercado ao mesmo tempo? Tenho a certeza de que o Kettel viu alguma coisa, mas provavelmente percebeu mal
o que se estava a passar. Está-lhe sempre a acontecer. É triste, mas na idade dele a mente começa-lhe a pregar partidas.
- Oh, seu filho de um crocodilo! - interrompeu Kettel. - És tu quem anda a ver coisas! Muito provavelmente nem sequer viste a tal rapariga. Foi só depois de eu ta
ter descrito que, de repente, te "lembraste" de a ter visto. É a tua mente que te prega partidas!
- Ou talvez ambos tenham visto o que pensam ter visto - disse eu, sentindo o coração a afundar-se.
- Como pode ser isso? - Berynus ergueu uma sobrancelha. - Porque nos estás a perguntar coisas acerca de uma rapariga, Gordiano? Quem é ela e o que é que ela te é?
Abanei a cabeça, não respondi e saí dali depressa.
Fugindo às nuvens de incenso que perfumavam o apartamento dos eunucos, desesperava por ar fresco, mas não senti qualquer alívio. O meu peito estava tão apertado
que mal conseguia respirar.
O Sol começava a afundar-se no horizonte e lançava sombras compridas. À hora do jantar os sons e os cheiros da comida a ser preparada erguiam-se no ar, mas eu não
tinha fome.
Quando, por fim, me dirigi para casa, tentei compreender o que os eunucos me tinham dito. Se a suas histórias fossem de fiar, um tinha visto Axiothea e o outro tinha
visto Bethesda, exatamente ao mesmo tempo. Uma das raparigas tinha sido raptada, enquanto a outra era conduzida por um rapaz escravo - mas qual seria qual?
Se Bethesda tivesse ido com o pequeno rapaz, quem seria essa criança e como a conhecia Bethesda? Se o oposto fosse o caso e fosse Bethesda a ser arrastada por rufias...
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Mal podia aguentar um tal pensamento. Talvez nada daquilo fosse verdade e os velhos eunucos estivessem simplesmente confusos. Mas onde é que isso me levava? E onde
estava Bethesda?
Cheguei ao edifício de apartamentos, sentindo-me mais inseguro e ansioso do que nunca. Entrei no edifício, passei pelo apartamento do senhorio e subi as escadas.
No fundo do meu coração, tinha a esperança de que, quando chegasse ao último andar e abrisse a porta do meu quarto, Bethesda se encontrasse no interior, esperando
por mim.
Que explicação poderia ela apresentar para o seu desaparecimento? Não interessava. Só queria que ela ali estivesse.
Abri a porta. Entrei.
O quarto estava vazio.
Fechei a porta e tranquei-a com o pequeno bloco de madeira, depois deixei-me cair na cama, pensando que nunca mais adormeceria. Mas o dia longo tinha dado cabo de
mim. Fechei os olhos e mergulhei num sono sem sonhos.
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VI
Quando acordei, no dia seguinte, o quarto pareceu-me mais vazio do que nunca.
Onde estava Bethesda? O que lhe teria acontecido?
Reiniciei a minha busca por Melmak e respetiva trupe. Tinha esgotado os meus recursos habituais, por isso comecei tudo de novo, abordando os estranhos de forma descarada.
Arrependi-me de ter gastado tanto dinheiro no novo vestido de Bethesda. As moedas podem soltar línguas, mas a minha bolsa estava quase vazia. No entanto, não havia
quantidade de moedas que conseguisse comprar a informação de que precisava, se ninguém a conseguisse dar.
No final daquele dia, comprido e infeliz, não sabia mais do que ao acordar.
Passou-se mais um dia e não tinha conseguido descobrir nada de novo. Ondas de raiva e de desespero varriam-me, alternando com uma sensação de entorpecimento. Cada
vez que regressava ao meu quarto, parte de mim tinha esperança de que Bethesda se encontrasse à minha espera. Mas o quarto estava sempre vazio.
Foi por acaso que, certa tarde, entrei numa taverna em Rhakotis, localizada a alguns passos do edifício onde vivia, pensando em gastar algumas das minhas últimas
moedas numa taça de vinho grego decente - mas eis que, ao fundo da sala mal iluminada, vi Melmak.
As sombras escondiam-lhe o rosto, mas só podia ser ele. Tinha um macaco sentado no ombro.
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Recuei para um canto escuro e, durante alguns momentos, limitei-me a observá-lo, assegurando-me de que se encontrava sozinho. Depois, analisei cuidadosamente a sala,
detetando todas as saídas possíveis. Agora que o encontrara não queria que me escapasse. Ocorreu-me que não tinha qualquer arma a não ser uma pequena faca, mais
adequada a intimidar um macaco do que um homem. Melmak também devia ser mais forte do que eu; era sem dúvida maior. No entanto, eu tinha a vantagem do elemento surpresa,
já para não falar da raiva que sentia.
Por fim, inspirando fundo, emergi das sombras, avancei pela sala e parei à sua frente, cerrando os punhos e preparando-me para bloquear a sua passagem caso tentasse
fugir.
Contudo, quando Melmak ergueu os olhos e me viu, não fez nada do que eu estava a espera. Mostrou-me um sorriso rasgado, soltando em seguida um arroto ruidoso. O
seu hálito fedia a cerveja. Usei a mão para afastar o cheiro e torci o nariz.
- Gordiano! - exclamou. - Meu jovem amigo romano! Senta-te e junta-te a mim. Eu e o macaco estávamos mesmo a falar de ti.
Ergueu os olhos para mim. Sem receber resposta e vendo o meu ar sério, franziu o sobrolho.
- Bem, não estávamos realmente a falar de ti - disse. - Estávamos a falar da Axiothea e da última vez em que estivemos todos juntos: o macaco, a Axiothea e eu. Mas
acontece que também estavas lá, era o teu aniversário, não era? Por isso, de certa forma, estávamos a falar de ti. De uma forma indireta, quero dizer. Muito indireta.
Se é que me entendes.
- Quanta cerveja é que já bebeste? - perguntei.
- Não sei. As criadas não param de trazer mais e eu bebo-a toda. O macaco insiste em partilhar. Não olhes para mim assim! Ele está mais bêbado do que eu. Não estás?
- Apontou para o macaco que lhe agarrou no dedo e soltou um pequeno arroto.
- Onde está a Bethesda?
- Quem?
- Bethesda. A minha...
- Ah, sim, a rapariga escrava que se parece com a Axiothea. Já me lembro. Claro que me lembro. Bem, não sei. Onde está ela? - Pareceu
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confuso, virando a cabeça de um lado para o outro. - É suposto ela estar aqui? Vern ter connosco?
O seu alheamento parecia ser genuíno. Mas recordei a mim mesmo que se tratava de um ator.
- Penso que sabes exatamente onde está, Melmak. Acho que ma levaste.
As suas sobrancelhas ergueram-se subitamente.
- Levá-la? Levá-la para onde? Onde é que a punha se a levasse? Nesse momento pareceu tão sincero como o macaco e não muito
mais esperto.
Seria possível que Melmak não estivesse a mentir? Se fosse esse o caso, as alternativas eram ainda mais alarmantes. Bethesda tinha fugido por vontade própria - essa
era a melhor das possibilidades por que poderia esperar. A ideia de que dois homens desconhecidos a tivessem raptado, por motivos desconhecidos, era insuportável.
De repente, sentia as pernas fracas. Toda a indignação acumulada jorrou de mim, como vinho de uma ânfora estalada. Senti-me vazio por dentro. Afundei-me no banco
junto a Melmak e enterrei o rosto nas mãos.
- Pronto, pronto! - Melmak deu-me palmadinhas no ombro. É assim tão mau?
- Ela desapareceu - respondi. - Desapareceu.
- A rapariga escrava? E depois? Compras outra. Abanei a cabeça.
Melmak suspirou.
- Sei como te sentes. A Axiothea também desapareceu.
- O quê? - Olhei para ele, subitamente alerta. Se as duas desapareceram, o que quereria isso dizer? Seria uma coisa boa ou má? A Axiothea desapareceu?
- Bem, não desapareceu propriamente. Ou seja, sei onde ela poderá estar. Só que não é comigo. Esse é o problema.
- Que queres dizer? Onde está?
- com aquele seu benfeitor abastado, claro. Eu deveria saber que isto ia acontecer, depois de ele ter achado por bem estar presente no nosso último espetáculo, naquela
sua padiola fina. O tipo estala os
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dedos e a Axiothea vai logo a correr, sem sequer nos avisar. Ela é como um felino, pensa que pode desaparecer durante dias e depois regressar e fingir que nunca
partiu. E exasperante.
- Então, a Axiothea está bem? Não está preocupado com ela?
- Preocupado? Claro que não. Quando decidir voltar, regressará toda elegante com as maravilhas que ele lhe oferece e com algumas peças de joalharia novas, suponho.
Fingindo que é uma princesa, toda mimada e pensando que pode mandar em nós todos. O que, claro está, pode, porque eu deixo, rapariga malandra! Posso pagar-te uma
bebida, Gordiano?
Olhei para ele de lado.
- Não tenho a certeza se devo aceitar uma bebida do homem que me abandonou na frente marítima naquele dia. Tu e os outros deixaram-me entregue a mim mesmo.
- Abandonámos-te? Não estavas propriamente em maus lençóis quando te vimos pela última vez. Estavas a dormir a sesta de forma muito pacífica, com o estômago cheio
de comida e a barriga cheia de cerveja, tudo coisas que eu muito generosamente te ofereci.
- Eu estava inconsciente. Qualquer ladrão que por ali passasse podia roubar-me tudo.
- Se tivesses algo que valesse a pena roubar. Mas para ser sincero, o teu bem-estar não era a minha principal preocupação naquele momento. A verdade é que saímos
todos dali um pouco à pressa.
- Porquê?
- Porque estavas a ressonar muito alto!
Ele riu-se com a sua piada e depois viu a expressão de desespero
no meu rosto.
- Muito bem, Gordiano, eis o que realmente aconteceu. Mandei um dos jovens flautistas fazer o reconhecimento, como faço de forma regular, mas quando estava prestes
a adormecer, o rapaz regressou a correr, todo corado e alarmado. "Dirige-se para aqui um grupo de guardas reais!", disse-me ele. "E...?", perguntei, porque a maior
parte desses tipos em uniformes reais é tão estúpida, que nunca adivinharia quem éramos desde que mantivéssemos o macaco em silêncio. Mas o rapaz reconheceu o líder
deste contingente, um comandante que tem um enorme ressentimento para connosco.
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- Ressentimento?
- Sou conhecido por fazer uma imitação de um tipo (espantosa, se me permites dizê-lo) e, por uma qualquer razão, ele acha-a insultuosa. Por isso juntámos as nossas
coisas e saímos dali num piscar de olhos. E sim, deixámos-te onde estavas, a ressonar tão alto que parecia que estavas a competir com aquelas cornetas de navegação
do farol.
- E a Axiothea? E a Bethesda?
- A Axiothea é perfeitamente capaz de se defender sozinha. Presumi que mais cedo ou mais tarde ela e a tua escrava regressariam do mercado e te acordariam, provavelmente
muito depois de os soldados passarem.
- E o que diria eu à Axiothea quando ela perguntasse onde estavas? Não fazia a mínima ideia de que tinhas partido, nem o porquê.
Melmak encolheu os ombros.
- A Axiothea não teria ficado zangada. Por vezes a trupe tem de se dispersar e desaparecer sem aviso, como ela tão bem sabe.
- Mas a Axiothea nunca regressou - disse eu. - Ou, se regressou, não me acordou. E eu nunca... - Senti a garganta apertada. - Nunca mais voltei a ver a Bethesda.
- Oh, compreendo. Foi então que desapareceu a rapariga escrava? Acenei com a cabeça.
Melmak pareceu pensativo.
- Também já não vejo a Axiothea desde esse dia. Não a viste, pois não?
- Não. Mas falei com alguém que a pode ter visto deixar o mercado naquele dia.
- Na companhia da tua escrava?
- Não.
- Sozinha?
- Não propriamente. Ela poderia estar a seguir um rapazinho. Melmak sorriu.
- Ah, bem, aí tens. Acabaste de confirmar a minha suspeição, que a Axiothea recebeu uma convocatória do seu benfeitor. Há um miúdo que ele envia para entregar mensagens
e que conhece a Axiothea de vista. Sem dúvida que era esse o rapazinho e que a levava ao seu senhor.
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Senti um arrepio.
- Mas isso deve significar... -Sim?
"A mulher raptada pelos dois rufias era de facto a Bethesda, não a Axiothea", pensei.
- Então, depois de me deixares na frente marítima, não voltaste a ver nem a Axiothea nem a Bethesda?
- Correto.
- Então a Axiothea foi a última pessoa do grupo a ver a Bethesda. Tenho de falar com ela. Onde está ela, Melmak?
- Não faço a mínima ideia.
- Dizes que ela deve estar com o seu benfeitor.
- Sim, mas não sei onde vive. Nem sequer sei o seu nome.
- Como pode isso ser? Não tens curiosidade?
- Tenho. Mas sempre que a pergunta surge, a Axiothea deixa bem claro que qualquer que seja a relação que mantém com esse homem, pretende mantê-la privada. Eu mordo
a língua e meto-me na minha vida. Não me é uma coisa fácil de fazer, admito-o.
- Mas eu tenho de falar com a Axiothea. Tenho de a encontrar.
Melmak encolheu os ombros.
- Conseguiste encontrar-me.
- Após dias de busca... e tratou-se, simplesmente, de um golpe de sorte!
Melmak acenou com a cabeça vagamente e depois animou-se.
- E vê bem quem mais encontraste... o Lycos!
Virei-me e vi o artífice com a inusitada faixa branca no cabelo.
- Lycos, lembras-te do nosso amigo Gordiano?
O homem olhou para mim com um olhar vazio, depois reconheceu-me e acenou. Virou-se para Melmak.
- Tens novidades da Axiothea? Suponho que não tenha aparecido? Melmak fez beicinho com os lábios.
- Não. Ainda está desaparecida. Lycos abanou a cabeça.
- Mais cedo ou mais tarde, Melmak, vamos ter de a substituir Ela não nos deixa outra escolha. Depois de todo o trabalho que tive com
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a maquilhagem e com os fatos dela! Os fatos podem ser usados por outra pessoa, claro... se encontrarmos uma rapariga com as mesmas medidas. - Olhou para mim e ergueu
uma sobrancelha. - Tu tens aquela rapariga escrava encantadora... como é que ela se chama?
- Bethesda - sussurrei.
- Só que ela também desapareceu - disse Melmak.
- Desapareceu? - Lycos franziu o sobrolho. - Que azar. Senti-me engolido pelo desespero. E, no entanto, a sorte e a mera
persistência tinham-me levado até aqui. Será que também me poderiam levar até a Axiothea?
Olhei fixamente para as sombras.
- Deve haver uma maneira - sussurrei, pensando em voz alta. Depois pensei nos dois eunucos.
Virei-me e deixei a taverna sem proferir nem mais uma palavra.
Uma hora depois, encontrava-me no apartamento deles, sentado entre os dois. Kettel ocupava mais de metade do sofá, com Berynus e eu entalados no espaço que restava.
Os eunucos recusavam-se a deixar-me dizer o que me levava até ali até me terem enchido de tâmaras recheadas com amêndoas e pão ázimo barrado com geleia de romã e
regado com um vinho muito bom de Cós ("O último dos vintage a conseguir escapar da ilha antes daquele monstro Mitrídates a ter invadido!", disse Berynus.)
Finalmente deixaram-me descrever a padiola que vira no espetáculo da trupe de mimos com os seus postes ornamentados de lótus e os seus portadores escuros como a
noite.
- Tafhapy - disse Kettel.
- Sem sombra de dúvida - concordou Berynus.
- É esse o dono da padiola? - perguntei. - Têm a certeza?
- Oh, sim - respondeu Kettel, com uma gota de geleia no canto da boca. - O Tafhapy comprou a padiola e os portadores ao mesmo tempo, há alguns meses, a um rival
de negócios que levou à falência. Que tipo implacável! O que queres saber acerca dele, Gordiano?
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- Onde vive, para começar.
- Na Rua dos Sete Babuínos, numa grande casa cor de açafrão com uma varanda com vista para a rua. Não há como não dar com ela. Mas, por favor, diz-nos que não tens
nenhum problema com este tipo.
- Porquê?
- Porque ele é um patife! Não tem qualquer tipo de escrúpulos. Extremamente perigoso.
- Um criminoso?
Berynus inspirou e bateu com os dedos compridos e magros no joelho.
- O Tafhapy nunca foi detido, se é isso o que queres dizer, mas isso não significa que não tenha partido algumas cabeças e não tenha feito desaparecer alguns rivais
de negócios pelo caminho. Homens como o Tafhapy não se submetem a juizes reais, subornam-nos. Ninguém te pode chamar criminoso, se estiveres acima da lei. Agora,
ele é um dos homens mais ricos de Alexandria, tão rico e poderoso que até dizem que ele tem a atenção do próprio rei.
- De onde lhe vem o dinheiro?
- Herdou o negócio de transporte de mercadorias do pai. Tem uma frota que comercializa todo o tipo de mercadorias, Nilo acima e Nilo abaixo e pelo mar fora. Pelo
que sei, foi um dos seus navios que entregou este mesmo vinho de Cós. Mais, Gordiano?
- Não, obrigado.
- Qual é o teu interesse no Tafhapy? - perguntou Kettel. Não vi qualquer razão para não lhes dizer.
- Devem lembrar-se de que, quando vos visitei pela última vez, estava a tentar descobrir os membros de uma determinada trupe de mimos. Entre eles encontrava-se uma
jovem atriz chamada Axiothea. Esse Tafhapy parece ter-se encantado pela rapariga.
- Ter-se encantado, dizes? - Kettel olhou para lá de mim, para Berynus, que lhe devolveu o olhar cético.
- Porque não? A Axiothea é bastante atraente. Na verdade, é muito bonita. Ela parece-se com... - Engoli em seco.
Berynus acenou com a cabeça.
- Deve ser bonita, tendo em consideração o nome.
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- Porquê? Berynus riu.
- Gordiano, sei que o teu grego é encantadoramente rudimentar, mas decerto até tu consegues desvendar isto. Axiothea: "Vale a pena olhar." Trata-se, provavelmente,
de um nome artístico.
- Não tinha pensado nisso. - Para uma atriz bonita que corria pelas ruas praticamente nua a atrair tanta atenção quanto possível, o nome Axiothea encaixava na perfeição.
- Mas vocês os dois trocaram um olhar, há pouco, quando mencionei a atração do Tafhapy por ela.
Berynus desimpediu a garganta.
- Bem, por aquilo que sei sobre o Tafhapy, parece mais provável que ele se encante por ti, Gordiano, do que por essa jovem atriz, por mais que "valha a pena olhar"
para ela. O Tafhapy nunca teve mulher. Nem sequer tem filhos, tanto quanto sei.
Kettel apertou os lábios e acenou em forma de concordância. Contorci-me um pouco, sentindo-me aprisionado entre as banhas de Kettel e os cotovelos ossudos de Berynus.
- Ainda assim, o líder da trupe de mimos parece ter quase certeza absoluta de que a Axiothea está com esse Tafhapy agora mesmo. E eu preciso de falar com ela. Urgentemente.
- Se ela se encontrar na casa da Rua dos Sete Babuínos e quiseres entrar para a ver, vais precisar de sorte - disse Berynus. - Aquele lugar é como uma fortaleza.
- Talvez eu consiga convencê-los a deixarem-me entrar, se conseguir pensar num qualquer pretexto... - Franzi o sobrolho. Porque é que tinha tudo de ser tão difícil?
O universo tinha-me levado Bethesda e tudo o que eu queria era tê-la de volta.
- Sim, és um rapaz esperto - disse Kettel, apertando a minha anca com uma das suas mãos grandes e suadas. - Vais pensar em alguma coisa. Queres mais uma tâmara?
- Tirou uma das iguarias da travessa que se encontrava numa mesa ali perto e, mantendo o pequeno dedo estendido, empurrou-a através dos meus lábios.
Afastei-a e saltei do sofá.
- Tenho de me ir embora.
- Mas onde vais? - Berynus fez má cara.
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Kettel olhou para mim, depois para a tâmara que tinha atirado ao ar em direção à boca. Parecia que tinha expandido, preenchendo o espaço vazio que eu deixara no
sofá, por isso era difícil perceber como é que eu tinha cabido entre os dois.
- vou a essa casa na Rua dos Sete Babuínos - disse eu. - Deve
haver alguma maneira de conseguir falar com a Axiothea.
Berynus desdobrou-se como um inseto-pau e seguiu-me até à porta. com uma dificuldade considerável, Kettel ergueu-se do sofá, agarrou noutra tâmara e seguiu-o, bamboleando-se.
Quando estava de saída, Berynus agarrou-me o cotovelo.
- Gordiano, faças o que fizeres, tem cuidado! Não faças nada que ofenda o Tafhapy. Como te disse, é um homem perigoso.
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VII
A Rua dos Sete Babuínos tinha o comprimento de apenas alguns quarteirões. O nome provinha de uma fonte circular localizada numa das pontas. Esta tinha no centro
sete babuínos esculpidos em mármore vermelho, todos virados para fora, com jatos de água a jorrar da boca aberta.
A casa de Tafhapy era a maior da rua, com paredes cor de açafrão que se erguiam, em altura, acima das outras casas. Tratava-se, de facto, de uma verdadeira fortaleza,
tal como dissera Berynus. Antes de me atrever a aproximar-me da entrada - duas portas altas, de madeira pesada, com uma tranca de ferro que as mantinha fechadas
-, analisei a estrutura a partir de todos os ângulos e pontos altos que me estavam disponíveis. Vi, pelo menos, dois guardas a patrulhar os telhados e nenhuma forma
fácil de entrar, apenas muros altos e janelas inacessíveis. Nenhum edifício vizinho oferecia os meios para saltar para o telhado; nenhuma palmeira adjacente podia
ser escalada para ter acesso à varanda. Teria de entrar pela porta.
Como poderia eu entrar, ou fazer com que Axiothea viesse cá fora falar comigo? Deveria passar por um familiar desesperado por vê-la? Ela podia não gostar de tal
logro, ou pior, o seu benfeitor poderia não gostar. "A menos que seja inevitável", ensinara-me o meu pai, "nunca se deve mentir descaradamente a pessoas poderosas.
Elas não gostam disso."
Deveria eu limitar-me a bater à porta, esperar que o olho mágico se abrisse e depois dizer a quem quer que fosse a verdade - que era
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Gordiano de Roma e que queria falar com a atriz Axiothea, que eu pensava encontrar-se no interior da casa? "Por vezes a abordagem direta é a melhor opção", ensinara-me
o meu pai. Mas a impenetrabilidade da casa deixou-me preocupado e os avisos dos dois eunucos tinham-me erguido a guarda. Pedir, simplesmente, o que queria pareceu-me
demasiado fácil.
Finalmente, acabei por ganhar coragem, aproximei-me da porta e bati, com a ajuda de um grande anel de ferro que também servia de puxador. Um momento depois, o olho
mágico abriu-se e uma cara escura espreitou para o exterior, fitando-me. Era um dos portadores da padiola que eu vira na praça.
- Quem és tu e o que queres? - perguntou, falando grego com uma pronúncia cerrada e desconhecida.
- O meu nome é Gordiano...
- Um romano? - O nome traía-me sempre.
- Sim. Quero falar com a Axiothea.
- com quem?
- A atriz da trupe de mimos chamada Axiothea. Creio que se
encontra na casa e...
- Tens alguma coisa a discutir com o senhor?
- Não. Apenas quero ver...
- O senhor sabe?
Respirei fundo.
- Não. Mas...
- Então vai-te embora!
O olho mágico fechou-se.
- Podes ao menos dizer-me se a Axiothea se encontra aqui? - gritei.
- Conheces a mulher de quem falo? - Levantei o anel de ferro e bati com ele contra a porta.
- Segue viagem! - disse uma voz áspera por cima de mim. Levantei a cabeça e vi um guarda no cimo do telhado, a olhar para
mim.
- Segue viagem, antes de eu te obrigar a seguir. - Brandiu uma lança.
Segui viagem.
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A uma distância segura, continuei a vigiar a casa. Talvez visse Axiothea a entrar ou a sair e tivesse uma hipótese de falar com ela, longe da casa e dos olhos observadores
e preocupados dos criados do seu benfeitor.
Vigiei a casa durante quatro horas. As pessoas chegavam e partiam
- escravos a entregarem encomendas, mercadores egípcios de aparência abastada, até alguns homens de negócios romanos em togas - mas não vi Axiothea.
Finalmente, uma das portas abriu-se e um rapazinho saiu; não tinha mais de sete ou oito anos de idade. Poderia este ser o mensageiro de quem eu tinha ouvido falar,
aquele que fora buscar Axiothea ao mercado? Ele tinha certamente o ar de ser um escravo enviado numa mis-
são, pois avançava pela rua com um passo rápido e constante, com os ombros para trás e a cabeça bem erguida, exibindo uma confiança que contradizia a sua idade e
baixa condição.
Segui-o.
Mal nos afastávamos alguns quarteirões da casa e me assegurei de que ninguém nos seguia, alcancei-o e coloquei-me à sua frente, bloqueando-lhe o caminho.
O rapazinho colocou as mãos nas ancas e ergueu os olhos para mim.
- Quem és tu?
Não estando com disposição para que mais um egípcio me identificasse como sendo romano antes mesmo de me conseguir identificar, mantive a boca fechada e olhei-o
de cima.
- Podemos os dois jogar a esse jogo - disse ele, cruzando os braços e devolvendo-me o olhar fixo. Se eu tinha pensado que ele podia ser facilmente intimidado, ia
ficar desiludido. - Talvez não saibas quem eu sou - disse ele. - Sou Djet, escravo de...
- Sei bem quem é o teu dono. Um homem chamado Tafhapy.
- É isso. E tu, estranho, estás a bloquear-me o caminho. Queres realmente interferir nos assuntos de um escravo que leva uma mensagem do senhor Tafhapy? Pensa bem,
romano. - Eu mal dissera uma palavra e, ainda assim, ele conseguira detetar a minha pronúncia!
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- Sacaninha precoce, ha? - disse entre dentes. Djet enrugou a testa e franziu o sobrolho, incapaz de compreender o que acabara de dizer a mim mesmo em latim. Continuei
em grego. - Ouve, rapazola, deixo-te passar se me disseres uma coisa.
- Vais-me deixar passar e mais nada.
Isto não ia ser fácil. Analisei as minhas opções. Seria seguramente capaz de o subjugar pela força, mas quereria eu magoar ou ameaçar a propriedade de um homem como
Tafhapy? Provavelmente não. Talvez o pequenote pudesse ser subornado.
- Ouve - disse eu - aposto que és guloso. O que dizes de irmos àquela padaria mais abaixo na rua e...
- Estás a tentar subornar-me, romano? -Bem...
- O último mensageiro da casa de Tafhapy que aceitou um suborno foi fortemente chicoteado, pendurado de cabeça para baixo durante três dias e depois dado como alimento
a um crocodilo. Se pensas que me podes subornar, romano, estás a perder o teu tempo. Agora, sai-me da frente.
Suspirei.
- Djet, só te quero fazer uma simples pergunta. Está uma mulher na casa do teu senhor chamada...
- O último rapaz mensageiro da casa de Tafhapy que respondeu a perguntas de um estranho também foi fortemente chicoteado, pendurado de cabeça para baixo...
- Sim, compreendo. - Respirei fundo. Inclinei-me na sua direção e baixei o rosto até ao seu, de modo a ficarmos olhos nos olhos. - E se eu te disser apenas um nome...
Axiothea?
Djet pestanejou. Um ténue e quase impercetível tremor de reconhecimento perturbou a sua atitude rígida.
- Ah-ha! Então sempre a conheces - disse eu.
- Não disse isso! Estás a tentar enganar-me! - Num piscar de olhos, já não era um servo inabalável do seu senhor, mas apenas um rapaz.
- A Axiothea está na casa, neste momento?
Djet tentou não fazer qualquer expressão, mas as suas bochechas ficaram vermelhas e apertou os lábios.
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- Ah-ha! A resposta é sim, a Axiothea está na casa.
- Eu não disse isso! - gritou. - Estás a tentar meter-me em sarilhos e eu não vou deixar!
- Podes falar como um homem, Djet, mas tens a força de vontade de uma criança. Podes controlar as palavras, mas não consegues controlar os pensamentos, que consigo
ler facilmente no teu rosto. Ainda tens de viver muitos anos antes de conseguires dominar um semblante sem expressões. Alguns homens nunca aprendem a fazê-lo.
- Isso não é justo! Estou a fazer tudo o que é possível para ser fiel ao meu senhor e ainda assim estás a conseguir descobrir as coisas que queres saber. Se o senhor
descobrir...
- Mas ele nunca descobrirá, Djet. Prometo-to. Agora, diz-me como posso fazer com que a Axiothea saia da casa para falar comigo... ou, se ela não puder sair de casa,
como é que um romano de baixa condição como eu pode entrar.
- Chamas-te Gordiano e vives no andar de cima de um edifício de
apartamentos em Rhakotis! - arrotou ele, tapando de seguida a boca com as duas mãos.
Fiquei quase tão surpreendido como ele.
- O que disseste?
Ele manteve as mãos sobre a boca e abanou a cabeça.
- Como conheces o nome Gordiano? Como sabes onde vive Gordiano?
Ele não respondeu.
Senti um arrepio. Que tipo de coincidência seria esta? O que poderia significar?
- Deixa-me adivinhar, Djet. Foste enviado pelo teu senhor para ires buscar esse Gordiano. Estou certo?
Ele abanou a cabeça, mas os seus olhos traíram-no.
- Bem, não precisas de fazer o caminho todo até Rhakotis para o encontrares. Estou aqui.
Djet destapou lentamente a boca e olhou fixamente para mim, com a prudência a substituir a sua mortificação.
- Tu? Tu és o romano chamado Gordiano? Não acredito em ti.
- Leva-me ao teu senhor e deixa-o julgar por si.
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- Se não fores o tal Gordiano... se fores simplesmente um outro romano qualquer a tentar meter-me em sarilhos... ou a tentar meter esse Gordiano em sarilhos... ou
a pensar que consegues enganar o meu senhor... Aviso-te...
- Deixa-me adivinhar: serei fortemente chicoteado, pendurado de cabeça para baixo durante três dias e depois atirado aos crocodilos.
- No mínimo!
Levantei-me, puxei os ombros para trás e respirei fundo.
- Suponho que não saibas porque é que o teu senhor me quer ver? Semicerrou os olhos. Consegui ver que ele já não tinha tanta certeza
do que achar de mim.
- Não faço a mínima ideia.
O seu rosto e voz não mostravam sinais de estar a mentir.
- Como é que serias capaz de me convencer a acompanhar-te? Um rapazola aparece à minha porta e diz que eu tenho de ir ver o seu senhor, um homem de quem nunca ouvi
falar. Porque faria eu isso? Ias oferecer-me dinheiro?
-Não.
- Ameaçar-me? -Não.
- Então, como?
- Era suposto eu dizer um nome. Um nome estranho, nem egípcio, nem grego, nem romano, penso. O nome de uma mulher...
Inspirei repentinamente.
- Bethesda?
- Sim, é isso. - Escrutinou-me durante um momento longo, vendo que eu tinha baixado todas as minhas defesas. - És realmente o Gordiano, não és?
- Sim, sou eu.
Ele assentiu com a cabeça, aceitando a minha palavra.
- Leva-me até ao teu senhor - disse eu.
Djet virou-se e regressou à casa na Rua dos Sete Babuínos. Eu segui-o.
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VIII
Quando transpusemos a porta de entrada e penetrámos no pátio que se escondia atrás dela, soube que aquela era a casa do homem que tinha ido ver o espetáculo de mimos
na padiola elegante, pois o meio de transporte em questão repousava sobre grandes blocos de madeira contra a parede do pátio.
Até poderiam existir duas padiolas daquelas em Alexandria, com postes de lótus e um dossel amarelo, mas certamente que haveria dois conjuntos de tais portadores.
Os gigantes núbios encontravam-se sentados ao lado da padiola numa zona iluminada pelo sol, a jogar aos dados. Alguns deles ergueram o rosto quando passámos, lançando-me
um olhar curioso antes de sorrirem e de acenarem a Djet.
Nunca antes tinha estado numa casa tão grande e tão sumptuosamente decorada. Mesmo as casas mais finas que visitara durante a minha viagem pelas Sete Maravilhas,
como a de Possidónio em Rodes, pareciam modestas quando comparadas com aquela. Segui Djet através de uma e de outra sala, todas elas repletas de tapetes sumptuosos,
belas mobílias, belas pinturas e esculturas maravilhosas. Chegámos finalmente a outro pátio, com um luxuriante jardim de flores e limoeiros. Um caminho pavimentado
com mosaicos coloridos conduzia a um local à sombra onde se encontrava um homem de meia-idade sentado numa cadeira feita de ébano com pedaços de marfim e de turquesa
embutidos.
A cabeça do homem estava rapada, mas o barbeiro esquecera-se de lhe aparar as sobrancelhas pretas e espessas, que se eriçavam como as
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patas de uma tarântula. Apesar deste traço chocante, não era um homem feio; nem era assim tão velho como eu esperava que fosse, embora fosse suficientemente velho
para ser o pai de Axiothea. Envergava uma túnica de linho elaboradamente bordada e calçava umas sandálias de couro elegantes, usando um anel coberto de jóias em
cada dedo e muitos colares de prata e de ouro. Em todas as minhas viagens nunca conhecera um homem tão faustoso como Tafhapy.
Um escriba munido de ferramentas de escrita sentou-se, de pernas cruzadas, no chão de mosaico ao seu lado - um rapaz jovem e belo sem nada vestido para além de um
pano de linho a cingir-lhe os rins, que eu tenha reparado. Pelo menos dois guarda-costas vigiavam-nos a partir dos recantos à sombra do jardim. De frente para Tafhapy,
encontravam-se duas cadeiras de ébano vazias, menos grandiosas do que aquela em que o próprio se encontrava sentado.
O meu anfitrião dirigiu-me um olhar avaliador, virando em seguida o seu olhar para Djet.
- Isso foi rápido - disse. - Demasiado rápido. Não podes ter ido a Rhakotis e regressado no intervalo de tempo desde que te enviei.
- Foi um sinal dos deuses, senhor - disse Djet. - Choquei contra o homem que queria a alguns quarteirões da casa.
- Ah, sim? - Tafhapy ergueu uma sobrancelha eriçada, olhando em seguida para mim de lado. - O meu porteiro disse-me que um romano veio à porta hoje. Presumo que
tenhas sido tu, Gordiano... se fores Gordiano?
- Sim, Tafhapy. Fui eu quem lhe bateu à porta. E sou Gordiano.
- Que curioso. Tu queres ver-me e eu quero ver-te. Talvez os deuses queiram, de facto, que nos encontremos.
- A vontade dos deuses é manifesta em tudo o que acontece - disse eu, tendo aprendido nas minhas viagens que este tipo de comentário é apropriado em quase todas
as ocasiões e, normalmente, levado em boa conta por aqueles a quem os deuses parecem favorecer de modo especial.
Tafhapy limitou-se a assentir com a cabeça. Mandou Djet sentar-se à sombra de um limoeiro do outro lado do jardim e indicou com um gesto que eu me devia sentar numa
das cadeiras vazias. Apesar da tarde estar quente, não me ofereceu qualquer refresco. Durante um longo
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período de tempo, limitou-se a olhar para mim. Ao contrário de Djet, tinha a capacidade de banir qualquer expressão do seu rosto. Não fazia a mínima ideia do que
estava a pensar.
Por fim, sem desviar de mim o olhar, estendeu uma mão na direção do escriba. O jovem colocou um pedaço de papiro enrolado na sua mão.
- Sabes ler grego? - perguntou Tafhapy.
- Ainda melhor do que falo.
Tafhapy fungou, trocista, mas estendeu-me o papiro indicando que deveria pegar nele.
- Lê em voz alta - disse. Desobstruí a minha garganta.
- "Ao estimado Tafhapy, abençoado muitas vezes por Serápis, saudações. Temos a nosso cargo a rapariga chamada"... - Inspirei fundo, mas esforcei-me por ocultar todas
as minhas emoções. - "chamada Axiothea. Nada de mal lhe acontecerá. Mas não a voltarás a ver até que recebamos uma oferta proporcional à grandeza do teu afeto por
ela. Deixa um seixo preto na Fonte dos Sete Babuínos para mostrar que recebeste esta mensagem. Depois, enviaremos mais instruções."
Olhei para cima.
- A mensagem parece não estar assinada.
- O que pensas disto? - perguntou Tafhapy.
O que pensar, de facto? Se Axiothea tivesse sido realmente raptada, fora Bethesda quem fora vista a partir com o pequeno rapaz? E seria o rapaz que tinha sido visto,
de facto, Djet? E se assim fosse, Bethesda estaria ali na casa de Tafhapy? O meu coração martelava dentro do peito.
Enquanto não soubesse mais, não me sentia preparado para revelar a Tafhapy a razão por que fora a sua casa, nem o meu conhecimento de Axiothea. Para ganhar tempo,
segurei na correspondência e examinei-a mais de perto. Respirei fundo.
- O papiro e a tinta são de má qualidade. As cartas gregas são feitas de forma competente, mas não de forma elegante; isto não foi escrito por um escriba que ouviu
um ditado. Mas o indivíduo que a escreveu é um homem com educação, tal como se pode deduzir pelo
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facto de a mensagem não conter erros gramaticais nem erros de ortografia, ou pelo menos nenhum que eu consiga detetar. De facto, o estilo do discurso é bastante
elevado. Tafhapy sorriu ligeiramente.
- És um jovem observador. Observa isto também.
Pegou num segundo papiro que se encontrava na posse do escriba e deu-mo.
Este era mais pequeno e a mensagem mais curta. Li-o em voz alta:
- "Não havia nenhuma pedra preta na fonte. Não recebeste a nossa mensagem anterior? A Axiothea tem saudades tuas. Coloca uma pedra preta na fonte se desejares voltar
a vê-la."
Tafhapy acenou com a cabeça.
- O que achas destas duas mensagens, Gordiano?
- A rapariga Axiothea foi raptada. Estão a pedir um resgate por ela. E no entanto...
- Continua.
- Pedem um sinal que ainda não lhes deu. Tem intenções de pagar ou não?
- Porque devo pagar-lhes? Encolhi os ombros.
- Não me cabe a mim, Tafhapy, dizer o que esta mulher é para si...
- Não percebeste, Gordiano. Porque devo eu pagar um resgate por uma mulher que...
A voz de Tafhapy desvaneceu-se. A partir do seu lugar de descanso debaixo do limoeiro, do outro lado do jardim, Djet levantou-se para cumprimentar alguém - uma mulher,
a julgar pela silhueta. Tão escura estava a sombra naquela parte do jardim que eu não conseguia ver o seu rosto, apenas a sua silhueta. A mulher afastou-se de Djet
e veio na nossa direção, mantendo-se à sombra de um caramanchão cheio de folhas. À medida que se aproximava, um pouco da luz do sol penetrou pelas folhas batendo-lhe
no rosto e eu vi que era...
- Bethesda - murmurei, tendo o meu coração parado por um instante. Deixei cair o papiro e levantei-me da minha cadeira.
Mas a mulher saiu das sombras para a luz e vi que estava enganado. O meu coração voltou a bater.
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- Como eu estava a dizer - prosseguiu Tafhapy -, porque devo eu pagar um resgate por uma mulher que nunca foi raptada?
Levantando-se da sua cadeira, pegou nas mãos de Axiothea e deu-Ihe um beijo na testa. Sorriram um para o outro durante um longo momento e depois Axiothea sentou-se
na cadeira ao meu lado.
- Senta-te, Gordiano - disse Tafhapy.
Assim fiz, agarrando os braços da cadeira para me apoiar.
- Não vieste já a minha casa hoje, pedir para falar com a Axiothea? Aqui está ela.
Olhei para ela mas tive de afastar os olhos. A sua semelhança com Bethesda divertira-me quando a vi pela primeira vez e encantara-me em sonhos. Agora, trazia-me
dor olhar para ela. No entanto, os meus olhos foram atraídos para ela uma vez mais e, depois, não mais fui capaz de desviar o olhar.
Por que magia dos deuses é que um determinado rosto humano, aquele rosto e mais nenhum, se torna tão importante para nós, o centro dos nossos desejos mais profundos,
a resposta a todas as perguntas? Olhar para aquele rosto, e para mais nenhum, é encontrar a quietude por entre o desespero, o prazer por entre toda a dor ou confusão
que a vida possa lançar no nosso caminho. O rosto de Axiothea era quase esse rosto - quase, mas não era bem. Ao olhar para ela, senti muitas coisas em simultâneo
e os meus pensamentos tornaram-se confusos.
Axiothea inclinou-se para mim e colocou a mão no meu braço. Olhei para Tafhapy, pensando que ele pudesse não gostar da sua demonstração de afeto, por ténue que fosse,
mas o seu comportamento permaneceu reservado. Quando muito, pareceu aprovar o gesto de compaixão de Axiothea.
- Porque mandaste o Djet buscar-me? - murmurei.
- Responde primeiro à minha pergunta. Porque quiseste ver a Axiothea? Tinhas uma pergunta para lhe fazer?
- Sim.
- Pergunta-lhe agora.
Olhei para os olhos dela. Curiosamente, eram a parte dela que menos se parecia com Bethesda; jamais poderia confundir os olhos de
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uma com os de outra. Olhando para os olhos de Axiothea, conseguia manter a minha compostura.
- Quando viste a Bethesda pela última vez? Como é que se afastaram? Sabes o que lhe aconteceu?
- Vi a Bethesda pela última vez no mercado na frente marítima. Ela disse que precisava de se aliviar. Sabia onde ficava a latrina pública. Ofereci-me para ir com
ela, mas ela insistiu que não havia necessidade disso. Enquanto se afastava, apareceu o Djet, enviado pelo seu senhor à minha procura. O Tafhapy assistira ao nosso
espetáculo, sentado na sua padiola. Quando os soldados do rei chegaram, os seus próprios guarda-costas formaram um cordão à sua volta, pelo que não viu a fuga da
trupe de mimos e não sabia o que nos tinha acontecido. Estava terrivelmente preocupado comigo. Não o podia deixar em suspense. Tinha de ir ter com ele.
- Então deixaste a Bethesda para trás?
- Não imediatamente. Esperei por ela... durante um bocado... mas acabei por partir com o Djet. Tu, o Melmak e o resto da trupe estavam a uma curta distância e o
mercado estava cheio de pessoas. Nunca imaginei que lhe acontecesse algo de mal. Certamente que nunca imaginei isso...
Ela baixou-se para apanhar o pedaço de papiro que eu deixara cair e devolveu-mo.
- Eles dizem que me capturaram, Gordiano, no entanto estou aqui sentada. Quando deixaram a primeira mensagem à entrada há alguns dias, o Tafhapy não me disse nada.
Mas insistiu para que eu ficasse em casa, pensando proteger-me desses raptores enganados, enquanto tentava descobrir quem eram e o que estavam a tramar. Para me
impedir de partir, assediou-me com todos os prazeres. Achei que estava a ser demasiado carinhoso para comigo! Mas hoje, quando esta segunda nota chegou, ele mostrou-ma
juntamente com a primeira. Achei as mensagens tão desconcertantes quanto ele... até que percebi o que deve ter acontecido. Os raptores deviam ter uma ideia da minha
aparência e de onde me poderiam encontrar; talvez até soubessem que eu estava vestida de verde. Mas a mulher com que se depararam foi a Bethesda. Pensando que ela
era eu, levaram-na. Enviaram a primeira mensagem
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ao Tafhapy, pensando que me tinham a mim em seu poder. A segunda mensagem indica que, mesmo hoje, ainda detêm a Bethesda, pensando
que sou eu.
- A não ser... - A minha língua transformou-se em pedra e recusou-se a dar voz ao pensamento.
Axiothea baixou os olhos.
- Sim, pensei nisso. E se... se eles mataram a rapariga que pensavam ser eu e mentem quando dizem que o seu prisioneiro ainda se encontra vivo. Sim, isso é possível,
mas...
- Mas não é provável - disse Tafhapy. - Este tipo de rapto é bastante comum por estes dias. As pessoas com bens têm de lidar com estas situações desagradáveis de
forma regular. Mas aplicam-se quase sempre determinadas regras.
- Regras? - perguntei.
- Sim. Primeiro e mais importante de tudo é que o refém seja mantido vivo... de facto, muitas vezes é mimado, como se se tratasse de um gato sagrado num templo...
e devolvido ileso depois de pago o resgate. É assim que este tipo de coisas é feito. Só um raptor muito estúpido ou descuidado mataria o seu refém... especialmente
quando o homem que tenta extorquir sou eu.
Axiothea sorriu.
- Tafhapy, o 'Terrível, é o que lhe chamam.
- Quem lhe chama isso? - inquiri.
- Todos os que se atreverem a enganar-me! - respondeu Tafhapy.
- Presumo que esta rapariga chamada Bethesda esteja a ser mantida viva e bem de saúde pelo seus captores que pensavam tratar-se da Axiothea quando a raptaram e que
continuam a pensar da mesma forma.
- A Bethesda está a fazer-se passar deliberadamente pela Axiothea?
- perguntei.
- Porque não? A rapariga é muito parecida com a Axiothea, não? E se tiver metade da esperteza da Axiothea, já deve ter percebido o que aconteceu e deve ter concluído
que o melhor que tem a fazer é manter os seus captores a acreditar no erro. Muito provavelmente, deve estar a ser mantida com algum conforto, dado o elevado valor
que atribuem
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ao seu prémio. Talvez a rapariga esteja a viver em melhores circunstâncias do que está habituada. Até se pode estar a divertir. Se estiver a ser suficientemente
mimada, pode até preferir a companhia desses salteadores, por oposição a ser tua prisioneira.
- Prisioneira?
- Não será todo o escravo prisioneiro, falando francamente, por muito brando que seja o seu senhor?
Senti-me assaltado por emoções poderosas... aflição perante a probabilidade de que Bethesda tivesse sido raptada em vez de Axiothea, alívio por Tafhapy acreditar
que ela se encontraria em segurança, pelo menos por enquanto, e ainda mais aflição quanto à sua sugestão de que ela talvez estivesse a gostar da separação que tanto
mal me estava a provocar.
- O que devo fazer? - murmurei.
- Ir atrás dela, claro - respondeu Tafhapy.
- O quê?
- Vai atrás dela e recupera-a. Isto é, se estiveres tão perturbado pela ausência da rapariga como pareces estar.
- Perturbado? Claro, estou chateado. A Bethesda é propriedade minha. Foi-me roubada. Não tinham o direito...
- Ah, então isto é um caso de honra e de justiça. - Tafhapy sorriu.
- Quaisquer que sejam as tuas motivações, se quiseres a rapariga, tens de encontrar uma maneira qualquer de a recuperar. Consegues pagar o tipo de resgate que estes
bandidos provavelmente vão pedir?
Abanei a cabeça.
- Não, suponho... que o senhor...
- Que eu pudesse pagar o resgate? - Tafhapy atirou a cabeça para trás e riu-se.
- Talvez... talvez pudesse comunicar com os raptores e fazer-lhes saber que têm a pessoa errada. Quando soubessem que a Bethesda é a escrava de um homem pobre, talvez
compreendessem o que ela vale e talvez a pudesse comprar de volta.
- E em que é que isso seria vantajoso para mim? Enquanto estes homens pensarem que detêm a Axiothea, deixarão a verdadeira Axiothea em paz. Contra a minha vontade
(porque a Axiothea insistiu que o
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fizesse), fiz-te um favor dizendo-te o que aconteceu à tua escrava, Gordiano. Nem sequer isso te devia.
- Mas como a posso encontrar?
- Ah, nisso posso ajudar-te. Quando estava a tentar perceber esse primeiro pedido de resgate idiota, fiz algumas perguntas por aí e acho que sei quem são os culpados.
Mais ninguém, nesta altura, se atreveria a encetar um tão arriscado empreendimento, apontado a uma pessoa tão poderosa como eu. Todos os sinais indicam que estamos
a lidar com o gangue do Filho do Cuco.
- O Filho do Cuco?
- É isso o que chamam ao seu líder. Trata-se de um gangue particularmente descarado de criminosos implacáveis que operam a partir de uma base algures no Delta do
Nilo. Navio algum viaja rio acima ou rio abaixo, nem por nenhum dos seus braços, e nenhum grupo percorre as rotas terrestres do Delta sem recear um encontro com
estes salteadores. Até há pouco tempo, as suas operações estavam confinadas ao Delta, e aqui, em Alexandria, nada tínhamos a temer. Mas à medida que o controlo da
cidade (e do exército) pelo rei Ptolomeu vai enfraquecendo, os bandidos e os rebeldes por todo o Egito ganham nova coragem. O Delta transformou-se num lugar sem
lei. - Abanou a cabeça.
- Agora até o Tafhapy, que não se mete com ninguém, na sua casa em Alexandria, é alvo de pedidos de resgate por um rapto. Isto só pode ser obra do Filho do Cuco
e do seu gangue.
Onde é que eu tinha ouvido a frase "Filho do Cuco" recentemente? Fora no espetáculo dos mimos, em referência a um fictício irmão bastardo do rei, mas isso não parecera
relevante na altura.
- Quem é esse Filho do Cuco de que fala? Porque é que lhe chamam isso, qual é o seu nome verdadeiro? E como é que ele se tornou no chefe de um tal gangue?
- Ah, são perguntas muito boas, Gordiano, para as quais o rei Ptolomeu e os seus agentes gostariam muito de saber as respostas. Tanto quanto sei, ninguém fora do
gangue sabe o verdadeiro nome do Filho do Cuco. Esses bandidos fazem um juramento, sob pena de morte, de nunca revelarem o verdadeiro nome do seu líder, nem o de
nenhum outro membro. - Sorriu. - Talvez tu possas encontrar as respostas a
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essas perguntas junto do próprio Filho do Cuco, quando o encontrares e lhe pedires para te devolver a tua escrava.
- Está a gozar comigo, Tafhapy? O seu sorriso apagou-se.
- Não, não estou. Embora possa parecer indiferente à tua infelicidade, Gordiano, também eu conheço o poder do desejo do coração, mesmo sobre o mais forte dos homens.
- Olhou para Axiothea. É verdade, foi a Axiothea que insistiu para que eu te trouxesse até aqui, com o desejo de ajudar os seus novos amigos, tu e essa rapariga
Bethesda. Mas também eu te desejo a bênção da Fortuna, se essa deusa romana se dignar a influenciar o desfecho de tão peculiar demanda... o resgate de uma escrava
raptada por engano.
Abanei a cabeça.
- O Delta é enorme ou, pelo menos, foi o que ouvi dizer.
- É-o, de facto - disse Tafhapy.
- Não é uma região povoada, com aldeias, quintas e estradas?
- Muitas áreas são povoadas, sim. E há estradas por todo o Delta e barcos para transportarem viajantes e respetivos camelos através das muitas vias marítimas, de
uma estrada à seguinte. Mas muitas partes do Delta são selvagens e não estão cartografadas e tem sido assim desde os tempos dos faraós. À medida que se aproxima
do mar, o Nilo divide-se em inúmeros canais, criando inúmeras ilhas, grandes e pequenas. Os mapas do Delta são insignificantes porque durante uma tempestade noturna
ou uma cheia a água pode transformar-se em terra e a terra em água. Trata-se de pântanos que cavalo ou camelo algum consegue atravessar, extensões de areias movediças
que engoliram exércitos inteiros sem deixar rasto, pântanos e lagoas carregadas de crocodilos comedores de homens. Vastas extensões absolutamente planas, cobertas
de vegetação espessa e baixa e desprovidas de pontos de referência, fazem com que até mesmo os guias mais experientes se percam desesperadamente. Estas regiões inóspitas
do Delta têm sido, desde há muito, um paraíso para todo o tipo de patifes e de inadaptados... bandos de criminosos, escravos foragidos, desertores do exército e
ex-soldados caídos em dificuldades, cortesãos fora-da-lei e membros da família real exilados. Os homens mais desesperados de todo o Egito vivem no
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Delta. Fazem o que querem com impunidade, mantendo-se fora do alcance de qualquer lei.
- De certeza que nenhum homem no seu perfeito juízo se aventuraria em tal lugar - disse eu.
- Decerto que não - concordou Tafhapy.
Pensei nisto. Poderia eu ser descrito como um homem no seu perfeito juízo? Não, desde o desaparecimento de Bethesda.
- Se algum louco tivesse de viajar até lá, como é que alguma vez poderia encontrar este gangue do Filho do Cuco?
- O braço mais a leste do Nilo chama-se Pelúsio. O mais ocidental, mais próximo de Alexandria, chama-se Canopo. Entre os dois, juntamente com inúmeras outras vias
aquáticas, existem mais cinco braços do Delta. Os meus informadores acreditam saber em qual destes braços e a que distância aproximada do mar, o Filho do Cuco estabeleceu
a sua última fortaleza... chama-se o Ninho do Cuco. Se algum louco decidir realizar a viagem, posso fornecer direções mais detalhadas.
Engoli em seco.
- Mas... e se a Bethesda estiver presa não no Delta, mas aqui em Alexandria? Tanto quanto sabemos, pode estar a pouca distância desta casa.
- É pouco provável - disse Tafhapy. - Não é assim que estes raptores operam. Devem tê-la levado para o local onde se sentem mais seguros e onde ela terá menores
hipóteses de lhes escapar: o Ninho do Cuco.
Pensei em tudo o que me dizia.
- Para tentar encontrar esse lugar, preciso de ganhar tempo. Estes raptores devem continuar a pensar que ainda há hipóteses de receberem um resgate. Se os pudesse
empatar, Tafhapy... se pudesse responder à sua última mensagem e a outras que possam chegar... fazendo-os acreditar que está disposto a pagar...
- Não, Gordiano. Pensei ter sido claro: não haverá comunicação nenhuma entre mim e esses patifes. Ainda assim, não acredito que descartem esta rapariga assim tão
rapidamente. Em raptos desta natureza, é bastante comum as negociações arrastarem-se durante meses.
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Os raptores serão pacientes. Mas de mim não terão qualquer resposta. Isto diz respeito à tua propriedade. Passei o assunto para ti. Deixo tudo inteiramente nas tuas
mãos.
- Mas eu não consigo enfrentar um bando de patifes sozinhos!
- Contrata guarda-costas.
- com o quê? Não tenho dinheiro.
- Então arranja dinheiro, Gordiano! - grunhiu Tafhapy, cada vez mais impaciente. - Ou então compra outra escrava.
- Mas não se quer vingar, você próprio, destes vilões, Tafhapy? Não os quer punir por lhe terem demonstrado desrespeito? Ajude-me a dar cabo deles. Empreste-me alguns
dos seus guarda-costas. Deixe-me levar alguns daqueles gigantes de ébano que estão sentados no pátio. Mal daria pela sua falta...
- Ai, Gordiano, não tenho guarda-costas para dispensar. Muito em breve precisarei de toda a protecão que consiga arranjar.
- Que queres dizer com isso?
- Podes ser estrangeiro e demasiado jovem para que isto faça sentido, mas certamente até tu fazes alguma ideia do que se aproxima. Não percebes que o Egito está
prestes a entrar em guerra civil? O Delta caiu numa absoluta falta de lei, uma revolta em grande escala estalou mais acima no rio, em Tebas, e o rei pode perder
o controlo do exército a qualquer momento. Tudo pode acontecer. Tudo! Sou um homem de posses, Gordiano, que enfrenta um futuro incerto. Eu fugiria, mas nenhum porto,
em parte alguma, me oferece segurança; tudo por causa da guerra entre Mitrídates e os romanos. Independentemente do que possa acontecer em Alexandria, permanecerei
aqui. A minha casa é a minha fortaleza, os meus guarda-costas são os meus soldados, e não tenho nenhum para ceder. E, antes que me perguntes, também não tenho dinheiro
que te possa dispensar, nem uma moeda de cobre para te dar. Estás por tua conta.
Absorvi tudo aquilo e senti-me bastante desanimado.
- Mas tem em consideração as tuas vantagens, jovem romano disse Tafhapy. - Inteligência rápida, reflexos rápidos, um corpo forte e a ausência de medo da juventude,
nascida possivelmente da ignorância e da inexperiência. Desejo-te tudo de bom, Gordiano.
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Axiothea colocou uma mão no meu ombro e lançou-me um olhar consolador, depois levantou-se da cadeira, chegou-se perto de Tafhapy e sussurrou-lhe ao ouvido.
O velho ouviu o que ela lhe disse, assentindo em seguida com a cabeça. Chamou Djet. O rapaz veio a correr.
- Não posso despender nenhum dos meus guarda-costas, Gordiano, mas posso emprestar-te este rapaz.
- O quê! É apenas uma criança. - "E ainda por cima mal-educada", pensei. - Será apenas um fardo para mim. Uma boca para alimentar.
- Eu acho que o Djet é razoavelmente inteligente, bastante fiável e adequadamente leal. Vais achá-lo mais útil do que pensas. Caso contrário, se se revelar um fardo,
atira-o aos crocodilos... desde que me pagues um substituto. Esta é a minha oferta: durante o tempo que demorares a encontrar a tua escrava desaparecida e a trazê-la
de volta a Alexandria, concedo-te a utilização deste escravo, gratuitamente. Aceita ou recusa.
Abanei a cabeça.
- Não seria justo para o rapaz. Existe a certeza do perigo... grande perigo. Tirá-lo da segurança da sua casa para o levar numa viagem até às zonas selvagens do
Delta, onde os bandidos e os salteadores dominam...
- O Delta! - gritou Djet com um brilho nos olhos. - Sempre ouvi falar dele. Um lugar selvagem, cheio de monstros e de fora-da-lei!
Tafhapy riu.
- Só o entusiasmo do rapaz deve valer alguma coisa, Gordiano. Suspirei. A ideia de um romano fraco e de uma criança ainda mais
fraca a viajarem para uma terra cheia de assassinos e de crocodilos encheu-me de receio. Mas a alternativa era ficar em Alexandria e ver o
mundo a ruir - sem Bethesda.
- Obrigado, Tafhapy. Aceito a tua oferta. Bem, então... onde fica esse Ninho do Cuco?
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IX
Depois de cobrar todas as dívidas que os outros tinham para comigo e aceitando um empréstimo surpreendentemente generoso da parte de Berynus e de Kettel, dirigi-me,
no dia seguinte, juntamente com Djet, para a porta mais a sul de Alexandria.
A norte, Alexandria volta-se para o mar, mas a sul depara-se com um enorme corpo de água chamado lago Mareotis. Um canal liga este lago ao longínquo Nilo, permitindo
que as barcas fluviais viajem diretamente para a capital sem se aventurarem no mar. Muitos dos cereais cultivados ao longo da planície aluvial do Nilo chegam aos
desembarcadouros a sul de Alexandria através do canal e do lago Mareotis.
Os viajantes também utilizam o canal, que pode ser mais rápido e mais barato do que viajar de camelo ou de cavalo, em especial porque as estradas no Egito são notoriamente
más. Certo é que as barcas podem transportar muita gente... tanta gente que, por vezes, se viram ao contrário. Dei comigo a pensar sobre isto quando eu e Djet fomos
levados, com muitos outros, de um cais no lago Mareotis até um navio comprido e estreito com uma tripulação não de remadores, mas de quatro homens com paus compridos,
dois na proa e dois na popa. Os poucos lugares para sentar tinham sido dados aos mais velhos e mais adoentados, os restantes tinham de ir em pé.
Quando já não cabiam mais passageiros na barca, os barqueiros ergueram os paus e empurraram-nos contra a lama do fundo do lago. O navio deixou a doca, balançando
de um lado para o outro, tão abruptamente que Djet se agarrou à minha perna para se equilibrar e vários
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dos nossos companheiros de viagem murmuraram o que tomei por orações, não em grego, mas sim na língua nativa dos egípcios.
Bethesda dissera-me que a todos aqueles que se afogavam no Nilo era concedida a imortalidade. Será que o mesmo privilégio se estendia àqueles que se afogavam no
canal? No final de contas, a água era a mesma. Não tinha qualquer desejo de descobrir; afogar-me, com ou sem imortalidade, não me reuniria com Bethesda. Afastei-me
da beira do barco e cheguei-me mais para o meio.
Olhei para trás, para os estaleiros cheios de pessoas e para as docas da cidade, depois voltei-me lentamente, observando as velas muito coloridas dos navios de pesca
que salpicavam o lago. Palmeiras muito altas rodeavam a linha costeira. Dirigimo-nos com constância para uma abertura entre as árvores, a leste; esta era a boca
do canal, marcada por pórticos decorativos de ambos os lados. O canal era mais largo do que eu pensava. Enquanto olhava, duas barcas passaram uma pela outra seguindo
em direções opostas, uma a entrar no canal e a outra a sair. Quando esta segunda barca, que se dirigia ao cais, passou por nós, vi que o convés estava tão cheio
de pessoas como o nosso e os passageiros tinham um aspecto ainda mais miserável. Alguns vinham em pé, provavelmente, desde Canopo.
Canopo! Que histórias ouvi desse lugar! Como se as oportunidades para divertimento não fossem muitas em Alexandria, os mais ricos da cidade (e aqueles que conseguiam
juntar dinheiro suficiente para fingirem que eram ricos, nem que fosse por um dia) afluíam regularmente à cidade de Canopo, que se encontrava a apenas um dia de
viagem, e onde, por um preço, todos os seus caprichos podiam ser satisfeitos. Alimentos ricos e bons vinhos, lojas que ofereciam mercadorias requintadas, casas de
jogo, entretenimentos representados por dançarinas exóticas e acrobatas e todos os prazeres carnais imagináveis - podia obter-se tudo em Canopo, por um preço. A
cidade tinha-se tornado sinónimo não só de diversão e de devassidão, mas também de discrição. Daí o ditado: o que acontece em Canopo, fica em Canopo.
Durante todos os meses que passei em Alexandria, nunca me aventurei a ir até Canopo, não vendo necessidade disso; para desfrutar de Canopo, um homem precisava de
dinheiro e, para mim, este era sempre
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pouco. Agora que, finalmente, tinha uma razão para fazer a viagem, mais valia que me estivesse a aventurar numa aldeia adormecida no meio de lado nenhum, pois tudo
o que poderia fazer era apreciar as paisagens e os sons. É verdade, a minha bolsa não estava vazia; de facto, estava mais recheada do que estivera em bastante tempo,
graças ao empréstimo que os dois eunucos me tinham concedido. Mas eu pretendia guardar todas as moedas na minha posse, abdicando delas apenas em caso de necessidade
extrema. Quem poderia saber com que tipo de despesas me iria deparar durante a viagem ou quanto poderia ter de pagar para voltar a comprar Bethesda aos seus raptores?
Mal entrámos no canal, as mulas que se encontravam na estrada paralela ao barco foram presas a este e obrigadas a puxar-nos. Os barqueiros continuaram a fazer uso
dos seus paus para evitarem os bancos de areia e os barcos que se aproximavam. Durante um bom bocado, prestei alguma atenção ao seu trabalho e à observação das barcas
que passavam por nós. No entanto, o trabalho dos barqueiros era repetitivo e o mesmo acontecia com os barcos; uma e outra vez passámos por um reflexo da nossa imagem,
da nossa própria embarcação, carregada de passageiros e cargas indeterminadas - pilhas de ânforas castanhas para serem enchidas de tâmaras ou figos secos, molhos
de folhas de papiro ou com colchões feitos de juncos entrançados.
Ocasionalmente surgia uma barca de recreio decorada com muitos enfeites. Passageiros elegantemente vestidos viajavam sentados em cadeiras com toldos para lhes fazer
sombra e com escravos que abanavam leques de penas de pavão, criando uma brisa artificial. Os homens e mulheres nesses navios pareciam entediados ou sonolentos e
não prestavam atenção à nossa barca quando passávamos por eles. No seu encalço, respirando o ar quente vindo daqueles leques de penas de pavão, sentia lufadas de
vários perfumes - jasmim e espicanardo, mirra e incenso. Estes egípcios indolentes e perfumados eram os ricos exaustos de Alexandria, que regressavam à cidade depois
de passarem alguns dias e noites a saciar-se com os prazeres de Canopo.
Entretanto, eu e Djet estávamos expostos à brilhante luz do dia. Eu tinha-me esquecido de trazer um chapéu, mas, a certa altura, surgiu um vendedor na margem do
canal, que caminhava ao lado das mulas.
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A cada passageiro que lhe atirasse uma moeda, arremessava um chapéu de abas largas feito de junco entrançado. Aceitei a sua oferta. Quando Djet se queixou de que
não tinha nenhum chapéu, aconselhei-o a manter-se debaixo da minha sombra.
O chapéu protegia-me os olhos e dava-me algum alívio do sol inclemente, mas o cheiro a trampa de mula que vinha da margem era incontornável, tal como o cheiro dos
restantes passageiros. Após algumas horas debaixo do sol quente, aquele perfume que pairava no ar, vindo das barcas de recreio, fazia falta a todos. As moscas e
os mosquitos incomodavam-me as pálpebras e faziam-me cócegas nos lábios; mal enxotava um, aparecia outro para retomar o tormento.
Pensei que a barca fizesse uma paragem para permitir que os passageiros comessem, mas não era esse o caso. Em vez disso, a comida era fornecida por vendedores na
margem, tal como os chapéus; compensava ter alguma destreza, a menos que não se fizesse qualquer objeção a comer algo que tivesse caído no convés. Deste modo, comprei
um pouco de pão ázimo recheado com queijo de cabra. Depois de o ter devorado, Djet queixou-se de também ter fome. Comprei outro pão ázimo e, contrariado, observei-o
a comê-lo todo. Ainda não estava convencido de que os seus serviços compensariam o inconveniente de o ter trazido comigo.
Também não havia paragens para que os passageiros se aliviassem. Essa necessidade podia ser satisfeita atrás de um pequeno painel nas traseiras da barca, usando
um buraco no convés. Quando resmunguei contra a bizarria de tal acordo, um companheiro de viagem disse-me que era um melhoramento significativo em relação à última
barca em que seguira, a qual não possuía o dito buraco; tanto os homens como as mulheres tinham de fazer as suas necessidades pela borda, agarrando-se com força
à amurada ao mesmo tempo que arregaçavam a roupa e tentavam não cair.
A viagem parecia interminável, mas, finalmente, quando o dia entrava no seu declínio, o canal abriu-se para o porto mais pequeno de Canopo, localizado na margem
norte do canal.
Mal desembarcámos, fomos rodeados por um grupo de rapazes, todos eles enaltecendo as virtudes de determinada taverna ou antro de
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jogo e insistindo para que os seguíssemos. Apesar de lhes ter dito que não tinha dinheiro para gastar, os rapazes eram tão insistentes quanto os mosquitos que me
atormentaram na barca. Foi Djet quem, por fim, se livrou deles. Era um pouco mais velho e maior do que a maior parte dos rapazes, mas parecia saber exatamente que
atitude tomar ou que ameaça proferir para os dissuadir. Por fim, dispersaram e seguiram caminho para incomodar outro pobre passageiro. Concluí que Djet talvez valesse,
afinal de contas, o custo da sua passagem.
Apesar de não ter feito nada senão estar de pé o dia todo, sentia-me exausto e estava pronto para encontrar alojamento para passar a noite, quanto mais barato melhor.
As acomodações mais baratas, segundo me dissera Tafhapy, encontravam-se na vertente mais distante do centro da cidade, na estrada que conduzia ao ramo mais ocidental
do Nilo. Para aí chegar, tínhamos de passar pelo próprio coração de Canopo, com as suas ruas cheias de gente, apinhadas de lojas e de estabelecimentos de prazer.
Parti, sentindo-me um pouco intoxicado pelo carácter vibrante do local. Belas dançarinas acenavam a partir de algumas portas. Noutras, homens com mais jóias do que
seria adequado chocalhavam dados nas mãos fechadas e garantiam que uma fortuna nos esperava no interior. Passei por lojas de perfumes e fornecedores de maravilhosos
artigos em bronze, padarias e mercadores de vinho, vendedores de boas peças de mobiliário e tecidos sumptuosos e até de um mercado de escravos, pequeno e de aparência
muito dispendiosa, cujo encarregado anunciava que era possível alugar qualquer tipo de escravo por uma hora ou um dia, do humilde escravo físico ao escriba altamente
treinado, "caso tenha deixado o seu em Alexandria e não consiga passar sem ele". Lojas de curiosidades vendiam amuletos para afastar o mau-olhado, juntamente com
recordações da Grande Pirâmide e do Farol de Faros.
A simples travessia de Canopo revelou-se um desafio maior do que o esperado. Em vez de serem a direito, as ruas apinhadas serpenteavam e davam meia-volta sobre si
mesmas, como labirintos. Uma e outra vez, passámos pela mesma loja de curiosidades, pelas mesmas dançarinas à porta, pelo mesmo mercado de escravos. Havia tantos
candeeiros acesos, que o crepúsculo parecia arrastar-se indefinidamente, antecipando a noite que se aproximava. Daí o ditado: Canopo nunca dorme. À medida
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que o meu estômago roncava, a minha fadiga aumentava e os meus pés se cansavam, este avanço circular assumia a forma de um pesadelo. Parecia estar preso num lugar
onde estava à venda tudo o que se podia imaginar, no entanto eu não tinha dinheiro para gastar; onde o sol nunca se punha e, no entanto, eu ansiava apenas por uma
cama onde pudesse dormir.
Por fim cheguei a um impasse, sem saber se havia de avançar ou voltar para trás, uma vez que ambas as direções me levariam para o mesmo lugar. Foi Djet quem tomou
as rédeas da situação.
- Dá-me três moedas de cobre - disse ele.
- O quê?
- Queres sair deste lugar ou não? Dá-me as moedas.
Após alguma hesitação, acedi e Djet desapareceu pelo meio da multidão.
Desapareceu durante muito tempo. Comecei a pensar que me tinha abandonado, mas até onde conseguiria ele ir com apenas três moedas de cobre? Regressou, por fim, e
com ele um dos rapazes que nos importunara nas docas.
- Quem é este? - perguntei.
- O mais honesto do grupo, se não me tiver enganado.
- Para que serve ele?
- Para nos levar daqui para fora!
O recém-chegado colocou as mãos nas ancas e ergueu os olhos na minha direção. Senti-me pouco à vontade, pois encontrava-me em desvantagem numérica, perante rapazes
precoces e obstinados, mas acenei com a cabeça e fiz um gesto para que nos indicasse o caminho.
Logo a seguir à loja de curiosidades, o rapaz fez uma curva que eu não fizera repetidamente. Aquilo que eu presumi ser uma porta recuada era, de facto, uma passagem
estreita entre dois edifícios. À medida que o caminho ia serpenteando, deixámos o brilho dos candeeiros para trás. A escuridão repentina fez com que me sentisse
desconfortável, embora aliviado por estar longe das multidões e dos circuitos infinitos e enlouquecedores de Canopo.
A passagem ia ficando menos estreita. De cada um dos lados, os edifícios mais altos davam lugar a edifícios mais pequenos. O espaço
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entre edifícios ia ficando cada vez maior. Passámos por casebres e por currais de cabras. A vaga luz do luar mostrava os arredores daquilo que poderia ser qualquer
outra pequena cidade algures no Egito.
Partimos por uma estrada que seguia em direção a este, em direção ao Nilo. Chegámos ao limite da cidade. O espaço que se abria à nossa frente era árido e seco, calmo
e silencioso, com apenas uma palmeira aqui e ali. Depois, chegámos a uma parte da estrada com grandes propriedades em ambos os lados, estando a maior parte delas
rodeada de muros altos, atrás dos quais era possível ouvir o som fraco de conversas e risos e, por vezes, chapinhar na água. Aquelas deviam ser as estâncias de férias
onde as classes mais altas de Alexandria se refugiavam do rebuliço de Canopo. As propriedades eram cada vez mais afastadas e, finalmente, parecia que tínhamos deixado,
por completo, a civilização para trás.
Eu estava exausto, mantendo com imensa dificuldade os olhos abertos, mas Djet parecia estar bem acordado, assim como o nosso guia.
- Isto é tudo muito bonito - disse eu. - Mas não sei porque nos trouxeste para aqui. A menos que eu vá dormir no chão. Ou...
"A menos que tenhas intenções de nos entregar a bandidos que me roubarão a bolsa, nos cortarão as gargantas e deixarão os nossos corpos para os abutres", pensei.
Que bela capacidade para avaliar o carácter das pessoas esta do Djet!
- É mesmo ali à frente - disse o rapaz.
- O quê?
- A estalagem.
- Não vejo nenhuma estalagem. - Semicerrei os olhos na escuridão à nossa frente.
- É mesmo ali em cima, onde vês aquelas palmeiras. Conseguia discernir a silhueta das palmeiras, ainda que muito mal,
mas não vi qualquer luz ou sinal de uma estrutura.
- Tens a certeza?
- A estalagem mais afastada da cidade, foi isso o que o teu rapaz me disse que querias.
- Era mais a estalagem mais barata.
- Oh? Estou a ver. - O rapaz parecia algo mortificado. Virou-se para Djet. - Mas tu disseste...
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- Esquece o que eu disse. Tu é que és o guia local!
- E tu és o cliente, seu tolo!
- Parem de refilar - disse eu. - Agora, meu jovem, se eu te dissesse que queria as acomodações mais baratas...
- Compreendo. Bem isso seria a estalagem no Pôr do Sol Vermelho, do outro lado da cidade, na vertente voltada para Alexandria...
- Não, não, não. Depois de andar tudo isto até aqui, não vou voltar à cidade. Que lugar é este ali à frente? Que tipo de estabelecimento é aquele?
- Oh, tenho a certeza de que vai adorar!
- Isso não responde à minha pergunta.
- Bem... Não é a estalagem mais barata nos arredores de Canopo, isso é certo. Mas é a estalagem mais a este e está a viajar em direção ao Nilo, não está? Quando
acordar de manhã, verá que o rio está praticamente à porta! Vamos. Sigam-me. Venham ver!
Arrastei-me atrás dele com relutância.
As palmeiras erguiam-se, enormes. Havia tantas, com tão grandes aglomerados de arbustos sob elas que presumi tratar-se de um oásis. Por fim, avistei dois pontos
de luz que acabaram por se revelar duas lâmpadas colocadas no exterior da porta de uma estalagem, precisamente onde o rapaz tinha dito que se encontravam.
- Chegámos - disse o rapaz.
O edifício não parecia ter janelas. Sobre as nossas cabeças, as frondes de uma palmeira restolhavam ao sabor da fraca brisa noturna.
- Não tenho a certeza de gostar do aspecto deste lugar. Como é que se chama?
- A Estalagem do Crocodilo Faminto. Franzi o sobrolho.
- Não gosto do nome. Mas suponho que, tendo vindo até aqui... Quando chegámos à porta, levei a mão à aldraba e depois afastei-a
sobressaltado. A aldraba em bronze parecia a cabeça de um crocodilo, embora fosse uma cabeça pequena, com o nariz a apontar para o chão, e era tão real que podia
ter sido feita a partir de um crocodilo verdadeiro. Estava presa por uma dobradiça em dois pontos, com o fundo da mandíbula fixa à porta e o topo a servir de aldraba.
As narinas
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serviam para colocar os dedos. Quando levantei a aldraba, filas de afiados dentes de bronze cintilaram à luz das lâmpadas.
Deixei cair a aldraba. O som reverberou no silêncio. Não houve qualquer resposta. Voltei a erguer a aldraba mas, antes que a pudesse largar, ouvi a partir do interior
o som de um ferrolho a ser destrancado.
A porta abriu-se e eu fiquei cara a cara com o mortal mais estranho que alguma vez vira.
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X
Durante um longo momento o homem que tinha aberto a porta ficou ali, a olhar para nós. Primeiro, olhou para mim, depois baixou os olhos para Djet e para o companheiro
de Djet, altura em que vi um vislumbre de reconhecimento nos seus olhos de pálpebras pesadas, e o rosto do homem abriu-se - não consigo pensar numa melhor forma
de o dizer - para exibir um sorriso rasgado.
A tez do homem era bastante escura. Isso em si não era invulgar, pois muitos egípcios eram oriundos de uma região próxima do local onde nasce o Sol e, consequentemente,
adquirem uma aparência ligeiramente chamuscada. Não era a cor da sua tez, mas a textura que parecia tão estranha, pois tinha uma aparência seca e escamosa, quase
reptiliana. Nos locais onde refletia a luz das lâmpadas, esta tez parecia ser do tom de verde mais escuro possível. O seu rosto projetava-se para o que poderia ser
descrito como um focinho, com um pequeno nariz e uma boca muito, muito grande. O seu sorriso abria-se de uma orelha a outra, revelando duas filas de dentes invulgarmente
afiados.
Uma vez que não parecia disposto a falar, eu disse por fim.
- Chamo-me Gordiano.
Ele continuou a estudar-me durante um momento.
- Romano?
- Sim, mas a viver em Alexandria. É de lá que venho. O rapaz que viaja comigo chama-se Djet. O outro rapaz...
- Sim, este eu conheço. Um dos nossos rapazes locais.
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- Ele trouxe-nos até aqui, em busca de alojamento para esta noite.
- Ah, sim? Trouxe mesmo? Então, bem-vindo à estalagem do Crocodilo Faminto. Sou o vosso anfitrião. - Fez uma vénia.
- E tu és o Crocodilo Faminto? - perguntei, pensando ter piada.
- Bem, sssim! - silvou. Quase esperei ver a língua de um réptil a agitar-se entre os seus finos lábios, mas o homem manteve a língua dentro da boca, escondida atrás
daqueles dentes pontiagudos. - Consegues imaginar como arranjei tal nome?
Perplexo, abri a boca e gaguejei.
- Porque tenho uma fome famosa! Estou sempre com fome. E sabes de que tenho fome?
O seu sorriso era irritante. Antes que conseguisse responder, apresentou um par de moedas de cobre, uma entre cada indicador e polegar e segurou-as à luz da lâmpada
durante um momento antes de as morder, uma de cada vez, como se não fossem feitas de cobre, mas sim de ouro e as desejasse testar.
- Tenho fome destas, sempre! Sempre e quero sempre mais. Tens de me dar umas como estas se quiseres passar aqui a noite. - Virou o sorriso sorridente na minha direção.
- Posso fazer isso - disse eu, esforçando-me por não pestanejar.
- Mas estas duas moedas serão para o rapaz que vos trouxe até aqui. Aqui tens, rapaz, leva as minhas.
O rapaz esticou a mão direita e abriu-a, revelando já duas moedas na sua pequena palma. O Crocodilo acrescentou mais duas, deixando cair uma de cada vez.
- Uma consideração, rapazola, por me trazeres clientes. O rapaz sorriu.
- Obrigado! E agora tenho quatro!
- Sssim! Duas mais duas fazem quatro. Ah, que beleza! Franzi o sobrolho.
- Djet! Não te dei três moedas, quando te mandei à procura do rapaz?
Djet olhou na minha direção e cruzou os braços.
- Deste. F. eu dei-lhe duas.
- E a outra?
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- Não mereço uma... o que é que lhe chamou, estalajadeiro? Uma consideração!
- Sssim, pois tudo o que fazemos, tal como isto, deve merecer a nossa consideração. É certo e adequado. - Deu umas palmadinhas na cabeça de Djet com a mão escura
e escamosa. As unhas eram negras, baças e tão pontiagudas como os dentes. - Este pequeno é como o seu anfitrião, um esfomeado, esfomeado por estas. - Apontou para
as moedas, que se encontravam agora na posse do rapaz local, fortemente apertadas na sua mão. - Vai-te embora, tu, e deixa-me receber os meus hóspedes.
O rapaz virou-se e correu. Vi-o a deixar o brilho emitido pelas lâmpadas e desaparecer na escuridão.
- Mas não fiquem aqui à porta. Entrem!
Entrámos para um vestíbulo mal iluminado. O Crocodilo fechou a porta atrás de nós.
O lugar estava muito silencioso.
- A estalagem está vazia? - perguntei.
- Não, de todo, não, de todo!
- Então, os outros hóspedes já estão deitados?
- Não, de todo! Estão na sala comum, a desfrutar da companhia uns dos outros.
- Olhei de um lado para o outro. O vestíbulo abria-se para um corredor, mas a passagem conduzia apenas para sombras em ambos os lados.
- Não vejo nenhuma sala comum - afirmei.
- Fica lá em baixo. É mais fresco lá em baixo, especialmente no calor do verão.
- Ainda não é verão.
- Está sempre fresco lá em baixo, em qualquer altura do ano. Agradável e fresco na sala comum por baixo de terra. Anda, vou mostrar-te.
- Apontou para um corredor que se abria na direção de uma escada que descia.
- Só quero um quarto para passar a noite, para mim e para o rapaz. Podemos partilhar com outros se for mais barato...
- Aqui não há quartos baratos. Todos os quartos são iguais.
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- Muito bem. Quanto custa passar a noite? E por onde vou para o quarto? Estou muito cansado...
- Mas decerto que precisas de comida e bebida no final de cada dia, antes de ires dormir. Está incluído no preço!
- Sim, bem, então... - Ouvi o estômago de Djet rosnar. - Se está incluído. Mas qual é o preço? Se o disseste, não ouvi...
Enquanto eu falava, o homem ia-nos conduzindo pelas escadas. Djet seguia à minha frente, chegou a um patamar e desapareceu numa curva do corredor. Quando cheguei
ao local, vi uma luz fraca que se erguia do andar inferior, ouvi música baixa e o som de vozes. O ar estava fresco e desagradavelmente húmido, cheirava a cerveja
egípcia.
- Para baixo, vamos para baixo - disse o Crocodilo, seguindo-me.
- Limita-te a seguir o rapaz.
Dobrei mais uma esquina e dei comigo num quarto subterrâneo. A dimensão da sala era impossível de calcular, uma vez que as paredes laterais desapareciam na escuridão.
Na zona entre a sombra e a luz, uma rapariga estava sentada no chão, de pernas cruzadas, a tocar um qualquer instrumento de corda. Mesmo sob a luz inconstante, percebi
que não era bonita. Na realidade, parecia-se tão desconcertantemente com o meu anfitrião que cheguei a pensar que fosse sua filha.
No meio da divisão, com um candeeiro pendurado por cima deles, estavam cinco homens e um rapaz, sentados em círculo sobre tapetes. O rapaz não era mais velho do
que Djet. Envergava uma túnica vermelha e tinha cabelo preto e encaracolado, tão comprido que era possível que nunca tivesse sido cortado. Um dos homens era um tipo
grande que presumi que fosse um guarda-costas. Enquanto este e o rapaz olhavam, os restantes quatro homens pareciam estar concentrados num qualquer tipo de jogo.
Enquanto os observava, um dos jogadores, soltando um grito numa língua bárbara, deixou voar uma mão-cheia de dados. O lançamento deve ter sido bom, pois as suas
feições rudes mas atraentes, fracamente iluminadas pelo candeeiro, abriram-se num sorriso de triunfo, ao mesmo tempo que o homem se chegava à frente para erguer
um peão de madeira colorida do tabuleiro de jogo perfurado e a colocar noutro buraco.
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A envolver o rosto barbeado do homem estava um toucado elaborado, feito de tecido e de corda atada, como usam os nabateus que vivem no deserto. Embora não lhe conseguisse
ver o cabelo, presumi que contivesse alguns fios grisalhos. Usava uma túnica branca, larga, com um cinto a envolver-lhe a cintura, e mangas compridas decoradas nos
punhos com coloridos bordados. Trazia anéis em vários dedos, todos eles com pedras preciosas. De um colar de grossos elos de prata, que cintilavam à luz das lâmpadas,
pendia o maior rubi que eu alguma vez vira.
- Consegues acreditar que aquele tipo viajou pelo Delta assim? sussurrou o Crocodilo ao meu ouvido.
- Vestido como um nabateu? Não é nabateu?
- É, de facto. Chama-se Obodas e é um comerciante de incenso em busca de rotas comerciais terrestres para Alexandria, ou pelo menos é isso que diz. Quando os estrangeiros
viajam pelo Egito, quem sabe o que estarão a tramar?
Será que também me incluiu naquela pergunta? Os seus olhos de pálpebras pesadas e o seu focinho sorridente não me deram nenhuma indicação.
- Mas quando eu digo "assim", não me estou a referir à roupa de nabateu, mas aos anéis e ao colar, ao facto de ele os usar tão abertamente. Quantas moedas não valerão?
- O Crocodilo bateu os dentes.
- Não viaja ele com guarda-costas?
- Dois e apenas dois! Um é aquele tipo corpulento e barbudo que está sentado atrás dele. O outro guarda-costas vigia os seus camelos lá fora.
- E o rapaz da túnica vermelha que está sentado a seu lado? É o filho?
O Crocodilo resfolegou.
- Não me parece! com apenas dois guarda-costas e um tão belo rapaz como companheiro de cama, de Petra até à minha estalagem, o nabateu viajou vestido assim, exibindo
aquelas jóias e fazendo de si um alvo sabe-se lá para quantos bandidos? Algum deus nabateu deve olhar por este Obodas, para um tal tolo ter atravessado o Delta sem
cair vítima do Filho do Cuco.
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Virei-me para olhar para o meu anfitrião.
- O que sabes acerca...?
- Os outros três hóspedes são egípcios do Delta - prosseguiu. Líderes da cidade de Sais. - Os homens a quem se referia estavam vestidos de forma menos ostentosa
do que o nabateu. Tinham a aparência de agricultores que envergavam as suas melhores roupas, nas quais não se sentiam tão confortáveis. - O seu líder, aquele com
a comprida barba grisalha, chama-se Harkhebi e estão a regressar a casa de uma missão em Alexandria. Tentaram conseguir uma audiência com o rei Ptolomeu, para lhe
pedirem que fossem feitas obras na estrada que atravessa o Delta; a inundação do Nilo, no último verão, levou consigo grandes bocados. Quantas moedas seriam precisas
para arranjar a estrada, pergunto-me? Mas o rei recusou-se a recebê-los e regressam a Sais sem nada. Por isso, não lhes perguntes como correu a viagem, a menos que
queiras ouvir uma mão-cheia de adjetivos relativos ao rei! Mas olha, o nabateu está a apontar para ti. Está a convidar-te para te juntares ao jogo.
Virei-me e constatei que os quatro jogadores tinham erguido os rostos e olhavam para mim, a partir dos seus lugares no chão coberto por um tapete.
Abanei a cabeça.
- Obrigado, cavalheiros, mas nunca jogo.
Era verdade. Desde pequeno que o meu pai me ensinara que o jogo era um passatempo ruinoso, um vício que devia ser obrigatoriamente evitado. Ao longo da sua carreira
como Descobridor, vira muitos homens (e até algumas mulheres) de todos os estratos sociais, desde os mais humildes lojistas até aos mais arrogantes senadores, destruídos
pelo jogo. "Todos os homens arriscam e invocam a Fortuna de tempos a tempos", dissera-me. "Mas o jogador abusa da paciência da deusa, até praticamente implorar para
que a Fortuna retire o seu favor."
O meu pai vivia os seus ensinamentos e, até agora, tinha seguido o seu exemplo.
- Fazemos apenas pequenas apostas - disse o nabateu. - Um jogo amigável para passar o tempo.
- Faria melhor em passar o tempo a dormir - respondi.
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- Dormir! - O Crocodilo mordeu a língua e abanou a cabeça. Nenhum homem dorme à noite em Canopo. Aqui dormimos durante o dia e divertimo-nos à noite. Deves pelo
menos comer e beber alguma coisa. Vá, senta-te no chão com o teu rapaz. Junta-te ao círculo e observa enquanto os outros jogam.
Enquanto eu e Djet nos instalávamos no chão, o nosso anfitrião bateu palmas. Surgiram dois jovens rapazes. Pela sua aparência escura e escamosa, presumi que fossem
filhos do Crocodilo. Um deles trouxe -me um pequeno prato de comida - pão, tâmaras e azeitonas -, enquanto o outro trazia uma grande taça de cerveja. Quanto à comida,
senti-me obrigado a partilhá-la com Djet, mas este não tinha nada que beber cerveja, por isso guardei-a para mim mesmo. A taça tinha mais do que teria desejado,
mas o líquido espumoso ajudou-me a aliviar a fome e depressa dei comigo a olhar para uma taça vazia.
- Pode trazer mais? - pedi, referindo-me à comida. Um dos filhos trouxe outra porção minúscula de comida, enquanto o outro insistia em voltar a encher a minha taça.
Entretanto, ia observando os outros a jogar. O jogo chamava-se a Barba do Faraó, porque o tabuleiro de jogo estava esculpido de forma a parecer-se com as barbas
ornamentais que se vêem nas velhas estátuas dos Faraós. Cada jogador lançava um par de dados - não do tipo romano, feitos de ossos de ovelha, mas cubos esculpidos
em madeira, com marcas em cada uma das seis faces - e depois movia o peão para cima ou para baixo no tabuleiro de jogo um determinado número de espaços; os lançamentos
ímpares moviam o peão para cima, enquanto os lançamentos pares o moviam para baixo. As regras permitiam a um jogador ignorar um determinado número de lançamentos
e passar a vez ou lançar de novo os dados. Também se podia substituir o peão do adversário ao cair na mesma casa; umas vezes isto era desejável, outras, nem por
isso.
O jogo não parecia ser particularmente difícil - de início. Gradualmente comecei a aperceber-me de que implicava alguma estratégia e de que alguns dos participantes
eram melhores jogadores do que outros, não devido a algo relacionado com a Fortuna, mas devido às suas próprias capacidades ou falta delas.
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Quanto mais tempo observava - e mais cerveja bebia - mais fascinado ficava ao observar os outros a jogar. Algumas jogadas eram tão inteligentes e inesperadas que
todos batiam palmas e tagarelavam com entusiasmo. Outras jogadas eram tão descabidas que todos lamentavam e abanavam a cabeça. Em momentos críticos, observávamos
com grande excitação ou riamo-nos com um entusiasmo nervoso.
Sempre que se iniciava uma nova ronda, eu era convidado para me juntar a eles, algo que recusava sempre, até à ronda em que disse que sim. Para jogar, tinha de fazer
uma aposta, mas a bolsa das moedas escondida no interior da minha túnica encontrava-se tranquilizadoramente pesada.
Olhei para a taça cheia de cerveja ao meu lado. Quando é que a tinham voltado a encher? Era a minha quarta taça? Ou a minha quinta?
Abanei a cabeça para a limpar de pensamentos que não estivessem relacionados com o jogo, pois o meu primeiro jogo de Barba do Faraó estava prestes a começar.
111
XI
Ganhei o primeiro jogo. A vitória deu-me uma sensação de inebriamento. De cada um dos outros quatro jogadores, tomei um brilhante dracma alexandrino. Não era uma
grande quantia, mas as moedas eram uma boa adição à minha bolsa.
Também ganhei o jogo seguinte e acumulei mais quatro moedas. Congratulei-me silenciosamente por me ter mantido de fora durante tantas rondas, para observar o jogo
e aprender a dominar a sua estratégia. Se os meus dois primeiros jogos pudessem servir de indicação, eu era um jogador melhor e mais inteligente do que os outros
- e porque não? Não era eu o filho do Descobridor, um dos homens mais inteligentes de Roma? E não eram os romanos os mestres estrategas do mundo?
Enquanto os jogadores faziam uma pausa antes da ronda seguinte, Djet sussurrou-me ao ouvido:
- Aumenta a parada!
- Não sejas tolo. E não tires mais nenhuma azeitona do meu prato. Essas são para mim.
- Mas esta noite a Fortuna sorri-te. Devias aproveitar o seu favor.
- O que sabes da Fortuna?
- Não é a deusa que olha pelos romanos como tu?
- Por vezes, ela olha por nós. Outras vezes, não.
- Mas esta noite é uma das vezes em que olha. Não o consegues sentir?
Djet tinha razão. Ouvindo a música aguda tocada pela filha do nosso anfitrião, petiscando as escassas iguarias e bebendo a cerveja
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inesgotável servida pelos seus filhos, saboreei as minhas pequenas vitórias no jogo da Barba do Faraó e senti uma sensação de bem-estar como não sentia há algum
tempo. Afinal de contas, o que sabia o meu pai sobre o jogo, se nunca tinha jogado? Se um homem mantivesse a cabeça limpa e, mais importante ainda, se tivesse a
Fortuna do seu lado, qual seria o perigo? E se uma pequena vitória podia dar tanto prazer, uma vitória ainda maior não poderia oferecer um prazer ainda maior?
Na ronda seguinte do jogo, propus que duplicássemos as apostas. Obodas, Harkhebi e os outros concordaram. E ganhei outra vez.
Depois, na ronda seguinte de apostas duplicadas, perdi. Ah, bem, disse para mim mesmo, ainda tinha ganhado mais do que tinha perdido e nem mesmo o melhor jogador
podia ganhar sempre. Também me ocorreu que, se triplicássemos as apostas originais, numa só ronda conseguiria recuperar o dinheiro todo que tinha perdido e ainda
ganhar algum. E assim foi.
Pouco a pouco, as apostas foram crescendo. Por vezes, perdia. com maior frequência, ou pelo menos assim me parecia, ganhava. Deliciava-me com cada vitória e desculpava
as minhas perdas como meros acidentes. Até uma lamparina absolutamente cheia de óleo pode tremeluzir de tempos a tempos; assim acontece quando o brilho da Fortuna
ilumina o caminho de um homem, disse a mim mesmo, nas ocasiões em que a minha sorte falhava.
Em todos os momentos sentia que estava no controlo não só das minhas ações, mas também do normal decorrer do jogo, enquanto avançávamos, de ronda em ronda, apostando
um número cada vez maior de moedas. Porque me tornei tão ganancioso? Fazia-o por Bethesda, dizia a mim mesmo. Quanto mais gorda a minha bolsa, maiores hipóteses
teria de conseguir pagar o seu resgate, independentemente do preço pedido.
Depois comecei a perder.
Perdi uma aposta, depois outra e outra. Sempre que começava uma nova ronda, eu pensava que a minha sorte corrigiria o seu curso e me devolveria os ganhos que tinha
obtido apenas há momentos. Como uma folha presa na maré, não conseguia parar. Durante algum tempo parecera-me que eu controlava o jogo; agora era o jogo que me controlava
a mim.
De repente, quase todo o meu dinheiro tinha desaparecido.
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Peguei na minha bolsa de moedas e vi que estava tristemente mirrada, quase sem peso, tão vazia que, quando a agitei, ouvi apenas um tilintar fraco e patético, não
a rica música metálica da bolsa de moedas quase a rebentar com que deixei Alexandria.
Quando deixei Alexandria... há quanto tempo fora isso? Parecia ter-se passado uma vida inteira. Naquele quarto sem janelas debaixo de terra, o tempo perdera o seu
significado. E eu tinha perdido quase todo o meu dinheiro.
O meu rosto ardia. O meu coração batia violentamente no peito. Senti-me, de repente, bem desperto. Teria estado a dormir, antes? Pestanejei e olhei à minha volta.
Via agora, claramente, as dimensões do quarto, que era mais pequeno e mais pobre do que tinha imaginado. O dissonante som agudo da suposta música tornou-se, de súbito,
intolerável. A cerveja que tinha bebido azedara-me na barriga.
Os líderes da cidade de Sais pareciam tão atordoados quanto eu. Também eles tinham perdido uma grande soma. O seu líder, Harkhebi, mexia na barba comprida, enquanto
murmuravam entre si, depois acenou com as mãos por forma a mostrar que os três não queriam jogar mais.
O nabateu tinha um sorriso fino no rosto, tal como o barbudo guarda-costas sentado atrás dele. Em frente a Obodas encontrava-se uma grande pilha de moedas - muitas
das quais, há apenas alguns instantes, tinham sido minhas. Encostado a Obodas, com ar sonolento, encontrava-se o seu jovem companheiro de viagem. com uma mão, o
nabateu tocava, distraidamente, numa pilha de moedas, enquanto com a outra acariciava as madeixas espessas do cabelo negro como azeviche do rapaz.
Tinha perdido praticamente todo o meu dinheiro e não tinha forma de o ganhar de volta, pois já não tinha nada para apostar. As poucas moedas que me restavam, provavelmente,
não chegariam sequer para pagar o alojamento de uma noite. Rosnei e escondi a cara nas mãos.
Djet inclinou-se na minha direção, como se fosse sussurrar qualquer coisa. Eu recuei, depois levei a mão a uma das suas orelhas e torci-a com força.
- Não te atrevas a falar-me, fedelho! - murmurei. - Isto é tudo culpa tua! Maldito sejas, Djet, e maldito seja o teu senhor por te ter enviado comigo!
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O meu rosto corou ainda mais, pois embora o culpasse e amaldiçoasse, sabia que estava a ser injusto. O que acontecera não era culpa de mais ninguém para além de
mim. No entanto Djet surpreendeu-me ao concordar que a culpa era sua.
- Tens razão - murmurou. - A culpa é minha. Vi o meu senhor jogar, vi como ele ganha e pensei que o mesmo aconteceria contigo. Mas tu não és o Tafhapy! Nunca te
deveria ter dito para apostares mais. Quem diria que a tua deusa romana seria tão inconstante?
- Também não é culpa da Fortuna - disse eu, abanando a cabeça e sentindo-me terrivelmente estúpido. Larguei-lhe a sua orelha.
- Mas ainda temos a possibilidade de corrigir isto - murmurou Djet, esfregando a sua orelha vermelha e inchada.
- O quê? Como?
- Aposta-me a mim.
- A ti? - funguei. - Não sejas ridículo. Um escravo minúsculo como tu dificilmente valerá alguma parte daquele monte de moedas. És pequeno, fraco e não tens habilidades...
- Mas o nabateu quer-me. Fiz uma expressão de dúvida.
- Não reparaste, romano? Tem estado a olhar para mim durante toda a noite, como um falcão observa um pardal. Pensei que pudesse ser essa a razão para ter perdido
durante algum tempo, o facto de estar a prestar demasiada atenção a mim e tão pouca ao jogo.
Olhei de relance para Obodas. Ao mesmo tempo que acariciava o cabelo do rapaz ao seu lado, o seu olhar de pálpebras pesadas estava fixo em Djet - que pestanejava
rapidamente e lhe sorria, modestamente, depois aproximou as sobrancelhas, como se estivesse a estremecer por causa da dor provocada pela orelha inchada. O nabateu
fez beicinho para lhe mostrar a sua simpatia.
Franzi o sobrolho.
- Acho que és capaz de ter razão - murmurei.
- Claro que tenho. Pensas que um mensageiro como eu, que vai a todo o lado em Alexandria, não aprende a reparar em quem olha para si e durante quanto tempo e porquê?
Posso ser pequeno e jovem, mas não sou estúpido nem cego.
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O seu tom conferia-me claramente os dois últimos atributos, mas ignorei o insulto.
- Muito bem, vejo que podes ter razão. Mas que utilidade tem isso para mim?
- Já te disse. Usa-me como tua aposta. Suspirei.
- Em primeiro lugar, tu não és propriedade minha, Djet...
- O nabateu não sabe isso.
- E em segundo lugar, e se ele ganhar?
Enquanto pensava nesta pergunta, Djet apagou as expressões do seu rosto e olhou fixamente para o nabateu. Obodas também olhou fixamente para ele. Como um falcão
a olhar para um pardal, tinha dito Djet, e, na verdade, tão concentrado estava o olhar do homem que me pareceu que poderia apanhar metade das moedas e fugir com
elas sem que ele reparasse. No entanto, teria de me haver com o guarda-costas.
Por fim, Djet virou-se para trás e murmurou-me ao ouvido.
- Ele não vai ganhar.
- Como é que sabes?
- Consigo vê-lo nos olhos dele. Não se preocupa com o dinheiro, é por isso que consegue jogar tão descontraidamente e ganhar. Mas vai querer ganhar-me, e muito.
Por isso, vai perder.
- Isso não faz sentido.
- O que sabes tu, romano? Não és um jogador.
Isso era verdade. E se eu queria recuperar o meu dinheiro - sem o qual não teria hipóteses de chegar ao coração do Delta e a Bethesda -, tinha de fazer algo arrojado.
Os egípcios de Sais tinham-se retirado do círculo, mas ainda estavam na sala, a comer, a beber e a ver o que iria acontecer a seguir. A rapariga continuava a tocar
e os criados andavam pela sala. O Crocodilo mantinha-se nas sombras, com o seu semblante estranho e sério impossível de ler. Obodas fez um sinal ao guarda-costas,
que se levantou e, em seguida, se debruçou para ajudar o seu senhor a levantar-se.
- Este rapaz - disse eu apontando para Djet. Obodas estava a levantar-se.
- O que disseste?
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- Aposto este rapaz.
Obodas olhou para mim de lado, depois voltou a acenar para o guarda-costas e, lentamente, voltou a instalar-se no tapete.
- Chama-se Djet. É o meu escravo - disse, tentando não me engasgar com a mentira. - E é um escravo muito talentoso. Muito talentoso e esperto e... agradável... se
é que entendes o que quero dizer. Será teu se venceres a próxima ronda.
O homem dirigiu-me um olhar astuto.
- E se não ganhar?
- Eu fico com toda a pilha de moedas... e... - Observei cuidadosamente o seu rosto. - E... o colar de rubi que trazes ao pescoço.
Os três egípcios riram-se. O Crocodilo silvou. Os dedos da rapariga desafinaram o seu toque nas cordas, agredindo os nossos ouvidos com notas dissonantes. Até Djet
deve ter pensado que eu tinha avaliado mal o momento, pois ouvi-o soltar um suspiro profundo. Mas o guarda-costas do nabateu, que conhecia bem o seu senhor, lançou-me
um olhar curioso, ergueu uma sobrancelha e apertou os lábios.
Obodas olhou para Djet e depois para mim, depois novamente para Djet e para a pilha de moedas. Retirou os dedos das madeixas encaracoladas do rapaz que se encontrava
ao seu lado e tocou no rubi que lhe pendia sobre o peito.
- O que são as moedas? - disse por fim e encolheu os ombros. E o que é um rubi? - Todos os que estavam presentes na sala inspiraram abruptamente. Obodas tinha aceitado
a aposta. - Mas tens de mandar sair o rapaz da sala, enquanto jogamos.
- Porquê, Obodas?
- Porque ele me distrai. Manda-o sair da sala.
- Não.
Obodas franziu o sobrolho. Não estava habituado a ser desafiado.
- O que disseste, jovem romano?
- O rapaz fica. Mandarias as moedas ou o rubi para fora da sala? Quando os homens jogam, as suas apostas permanecem à sua frente, à vista de todos. Não é essa a
regra? Por isso, o Djet fica. Além disso, não seria justo mudar o curso da sua vida num instante e impedi-lo de ver como tal facto ocorreu.
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- Injusto? - Obodas olhou para mim com um olhar ameaçador.
- O rapaz é teu escravo. Como podes falar sobre tratar algo que é tua propriedade de forma justa?
Por um momento, pensei que se tivesse apercebido de que eu o estava a enganar e de que Djet não era um escravo meu que pudesse apostar. Mas estava apenas a censurar
a minha forma de pensar incompreensível e estrangeira. Por fim, acenou bruscamente mostrando que concordava. Disse algo ao rapaz de cabelo comprido, que alcançou
o colar de prata e o desapertou por baixo do toucado de Obodas. ( ) próprio Obodas retirou o colar e colocou-o ao lado da pilha de moedas. O rubi cintilava por baixo
do candeeiro.
- Muito bem, romano. O rapaz pelas moedas e pelo colar com o rubi. Começamos?
Enquanto os outros assistiam - até mesmo a filha do Crocodilo parou de tocar para ver -, demos início ao jogo.
De início, parecia que a Fortuna me sorria. Os meus lançamentos eram bons e o meu progresso no tabuleiro de jogo constante, ao passo que o nabateu tinha começado
de forma lenta. A meu lado, Djet contorcia-se de entusiasmo. O Crocodilo silvou e bateu nervosamente
as mãos negras e escamosas. Os três viajantes egípcios, sentindo-se em segurança fora do jogo, bebiam mais cerveja e incentivavam-me, felizes por verem o nabateu
a ser derrotado.
Depois, tudo mudou. Lancei os dados e obtive a pior soma possível. O meu progresso no tabuleiro de jogo foi revertido, enquanto Obodas passava por mim rapidamente.
De cada vez que lançava os dados, Djet movia os lábios, sussurrando uma prece silenciosa ou um encantamento, mas sem qualquer utilidade. Fui vítima de um terrível
lançamento a seguir ao outro, enquanto o nabateu acelerava em direção ao final.
Faltava apenas um lançamento. Lancei os dados. Desastre! Obodas lançou pela última vez e venceu o jogo.
com um sorriso lascivo, curvou um dedo e chamou Djet até si.
- Não! - gritei. No entanto, ao mesmo tempo que me começava a erguer do chão, os dois filhos do Crocodilo detiveram-me. Eram mais fortes do que pareciam e, provavelmente,
estavam habituados a lidar com hóspedes truculentos.
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Obodas levantou-se, bocejou e esticou os braços, enquanto o guarda-costas e o rapaz de cabelo comprido recolhiam as suas coisas.
- Vem, rapaz - disse, pois Djet, franzindo o sobrolho e abanando a cabeça, não se tinha mexido.
- Djet! - murmurei. O rapaz olhou para mim com uma expressão desolada. - Perdoa-me - disse-lhe.
Obodas, que começava a ficar impaciente, ordenou ao guarda-costas que fosse buscar a sua nova aquisição. O pesado bruto atravessou a área de jogo, agora vazia, pegou
em Djet pela mão e puxou o rapaz para si, usando mais força do que o necessário.
- Cuidado - disse Obodas. Fez sinal ao guarda-costas para que recuasse, colocando em seguida o braço em torno de Djet. O gesto pareceu gentil de início, mas reparei
que a mão apertava com firmeza o ombro de Djet.
- Vem, rapa?.. O teu novo senhor está exausto e o meu anfitrião prometeu-me a cama mais macia de Canopo inteira, cheia com penas de ganso.
Tentei levantar-me novamente. Uma vez mais os filhos do Crocodilo impediram-mi
Obodas e a sua pequena comitiva subiram as escadas. Os viajantes egípcios, envergonhados por mim, rapidamente deixaram a sala. A rapariga pousou o seu instrumento
e desapareceu. Os dois filhos largaram-me os ombros, recuaram e seguiram a irmã.
Não estava ninguém no quarto a não ser eu e o Crocodilo.
- É altura de apagar o candeeiro - disse ele.
- Mas...
- Não estás cansado e desejoso de descanso? Abanei a cabeça.
- Não serei capaz de dormir esta noite.
- Não te preocupes - disse o Crocodilo. - Dar-te-ei uma poção para dormir, feita com ervas que crescem nos pântanos do Nilo. Vais dormir que nem um bebé, prometo-te.
Por fim, levantei-me. Sentia as pernas perras. Doía-me a cabeça. Toquei na bolsa quase vazia.
- Não tenho a certeza de ter dinheiro suficiente para...
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- Oh, esquece isso! Posso andar sempre com fome de moedas, mas também consigo ser generoso. Terás um bom quarto e uma boa cama, esta noite, sem qualquer custo.
Suspirei, confuso com a sua gentileza. Ou, talvez não tão confuso. Tendo mantido um rico cliente divertido durante toda a noite, o quarto e as refeições eram uma
pequena concessão. O nabateu iria para a cama feliz e, provavelmente, deixaria ao seu anfitrião uma generosa gratificação antes de partir.
Mal me conseguia manter em pé. O Crocodilo ajudou-me a subir as escadas, a atravessar o vestíbulo mal iluminado e a percorrer um pequeno corredor, que conduzia ao
meu quarto. Ajudou-me a deitar na cama e apareceu com a poção para dormir que me prometera, destapando um pequeno frasco de vidro e revelando a mistura verde com
um cheiro estranho no seu interior.
Após um momento de hesitação, bebi-a na esperança de que me ajudasse a esquecer, pelo menos durante algumas horas, a triste confusão que tinha provocado.
Mergulhei no esquecimento.
A certa altura, durante a noite, ouvi um grito esganiçado. Tratar-se-ia de alguma ave noturna - ou seria um rapaz, gritando de terror e dor? Seria Djet?
Ou tratar-se-ia apenas de um sonho? Embora agitado pelo grito, a mistura tinha-me estupidificado de tal forma, que nunca cheguei a acordar completamente, antes parecendo
pairar na escuridão do meu pequeno quarto, semiconsciente, incapaz de me mexer, com aquele grito pueril a ecoar à minha volta, enquanto tudo ficava cada vez mais
silencioso e Somnus me puxava de novo para o esquecimento.
120
XII
- Acorda! Acorda!
Alguém me sussurrava de forma audível ao ouvido e me abanava o ombro.
- Acorda, romano pateta!
As minhas pálpebras pareciam estar coladas. com um enorme esforço, consegui abri-las; depois, vi, através da luz ténue de uma lamparina tremeluzente, o rosto que
assombrava os meus sonhos desconfortáveis. Ainda estaria a sonhar ou já teria acordado? Seria aquilo que estava a ver aparição ou o próprio rapaz?
- Djet? - perguntei.
- Chiu! Baixa a voz!
- És realmente tu?
Semicerrou os olhos e fitou-me, como se se sentisse ofendido pela simples estupidez de tal pergunta.
- Mas... o que estás aqui a fazer? - inquiri.
- A acordar-te, para que possamos sair daqui tão depressa quanto possível. Sai da cama, agora, se queres salvar a pele!
Apesar do meu medo crescente, parecia não conseguir acordar por completo. Foi a poção para dormir, pensei, que me encheu a cabeça de teias de aranha e me recheou
os membros de chumbo. Consegui rebolar para fora da cama, quase caindo ao chão e erguendo-me cambaleante.
Djet fez o melhor que pôde para me manter de pé.
- És tão pesado quanto um hipopótamo - queixou-se -, mas não és tão gracioso quanto eles! Agora, anda!
121
- Ando para onde?
- Para qualquer lado, desde que seja longe daqui. Pega nessa bolsa e trá-la contigo. É demasiado pesada para mim. Trouxe-a tão longe quanto me foi possível.
Djet referia-se a uma bolsa de tecido praticamente do tamanho da cabeça dele, atada no cimo com uma corda de cânhamo. Peguei nela. O peso era considerável, mas não
era demasiado pesada para ser transportada por um homem adulto, se atirada por cima do ombro. Do interior da bolsa bojuda, chegou-me o som sibilante e tilintante
de metal a deslizar sobre metal.
- O que tem lá dentro?
- O que é que achas?
- Moedas?
- Sim. Tudo o que perdeste e mais um pouco. Agora, vem! Deixei cair a bolsa sobre a cama. Pestanejei e esfreguei os olhos.
Devagar, aos poucos, os meus sentidos estavam a voltar.
- Djet! Uma coisa é escapulir-me contigo a meio da noite. Nunca te deveria ter usado como aposta. Nunca deveria ter permitido que aquele homem te levasse da sala!
Em que é que eu estava a pensar? Se lhe conseguiste escapar, bom para ti! Farei o que puder para te tirar daqui. Mas se o roubaste...
- As moedas são tuas!
- Não, Djet. Perdi-as no jogo. Que tolo que fui...
- Vens ou não?
Olhei fixamente para a bolsa.
- Talvez... se tirar apenas algumas moedas e deixar o resto. Temos de ter dinheiro para comer...
- Faças o que fizeres, fá-lo depressa!
Tentei desfazer o nó e abrir a bolsa, mas a corda estava bem apertada. A minha cabeça ainda estava algo zonza da poção para dormir e os meus dedos trapalhões recusavam-se
a obedecer-me. Resmunguei com frustração e desisti de tentar desfazer o nó.
- Que horas são, Djet?
- Quase de madrugada, penso eu.
Suspirei:
122
- Se tenho de fugir como um ladrão, levar-te a ti e ao dinheiro, seria melhor que o fizesse a meio da noite, para que pudéssemos ter algum avanço. E se o nabateu
se levanta com o nascer do Sol? Verá que tu e o dinheiro desapareceram e enviará os guarda-costas atrás de nós.
- Não, não enviará.
- Porque não?
- Porque estão todos mortos.
Por um momento, olhei fixamente para ele.
- Quem está morto?
- O nabateu e os seus guarda-costas. E o rapaz também. Senti o sangue a gelar.
- Djet! Em nome de todos os deuses, o que é que tu fizeste? Djet olhou uma vez mais para mim de forma a mostrar o seu desagrado perante tão tola pergunta.
- Não fui eu quem os matou, pateta! Olha para mim. Achas que um tipo pequeno como eu poderia dominar dois guarda-costas e um homem adulto? O rapaz de cabelo comprido
podia vencê-lo numa luta, talvez...
- Então, quem...? - não acabei a pergunta, pois a resposta era óbvia.
- O Crocodilo e os seus filhos - respondeu Djet. - Não me perguntes como mataram os guarda-costas. Não vi. Estava no quarto com o Obodas e com o rapaz e os guarda-costas
estavam lá fora algures. Mas percebi que deviam estar mortos quando os dois filhos irromperam pelo quarto a dentro, seguidos pelo Crocodilo, porque vi que todos
tinham adagas e essas mesmas adagas já tinham sangue.
- Viste o Crocodilo e os seus filhos a entrarem no quarto? - sussurrei.
- Porque era o único que estava acordado.
- E o Obodas?
- A dormir profundamente. O rapaz também. O Obodas nem sequer acordou quando o degolaram. Deve ter sido aquela coisa verde que o Crocodilo lhe deu antes de ele ir
para a cama.
- Coisa verde?
- O Crocodilo disse que era uma poção do amor. Quando ouviu tal coisa, o Obodas não hesitou em bebê-la, mas em vez de o deixar excitado, pô-lo logo a dormir. Nem
sequer tirou o toucado.
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- A poção para dormir - disse eu. - O Crocodilo deu-me uma dose da mesma mistura.
- Mas o rapaz acordou. Estava acordado quando eles... - Djet tremeu. - Não o ouviste gritar?
Respirei fundo.
- O grito a meio da noite! Sim, ouvi-o. Mas pensei que terias sido... tu. Mas como é que ainda estás vivo, Djet?
- Estavam prestes a matar-me, mas o Crocodilo disse que me deviam interrogar primeiro, para saberem mais sobre ... de onde vinhas, o que estavas a tramar e por aí
em diante. Enquanto o Crocodilo retirava as jóias ao Obodas e guardava os valores, os dois filhos amordaçaram-me e amarraram-me. Depois deixaram-me ali, deitado
no chão, enquanto arrastavam os corpos para fora do quarto. E foi a última vez que os vi.
- Mas como é que escapaste?
- Não me ataram assim muito bem. Consegui libertar-me.
- E trouxeste a bolsa contigo...
- Exato. É provável que o Crocodilo e os seus filhos regressem a qualquer momento. Verão que desapareci e que a bolsa desapareceu e virão atrás de ti. Compreendes
finalmente, romano pateta? Temos de ir, já!
Eu estava, por fim, completamente acordado. O meu coração batia dentro do peito. Peguei na bolsa e atirei-a por cima do ombro.
- Mostra-me o caminho, Djet.
Segurando a lamparina à sua frente, conduziu-me desde o quarto através do corredor. No vestíbulo, apagou a lamparina. Abri, silenciosamente, a porta. O mundo lá
fora estava fracamente iluminado pela primeira e fraca promessa de uma madrugada.
O ar era fresco e cortante. Um labirinto de silhuetas frondosas rodeava-nos, não revelando qualquer caminho para fora do oásis. Tínhamo-nos aproximado da estalagem
na escuridão com o rapaz local como guia. Não me conseguia lembrar do caminho. ;.
- Por aqui - murmurou Djet. ';
- Tens a certeza?
- Sim. Isto vai levar-nos de volta à estrada principal. "
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Eu tinha as minhas dúvidas, mas dado que não tinha nenhuma ideia melhor, segui-o - e um momento mais tarde tropecei em algo grande e carnudo que se encontrava no
nosso caminho. Quando tropecei, o suave tilintar da bolsa que eu trazia sobre o ombro pareceu-me francamente audível no silêncio.
Voltei a equilibrar-me e olhei para baixo. Tinha tropeçado num corpo deitado de costas. O rosto do cadáver estava escondido pelas sombras profundas, mas a julgar
pela barba, presumi que fosse o guarda-costas que se mantivera sentado atrás de Obodas enquanto jogávamos. O sangue derramado pelo corte na garganta brilhava sombriamente.
Levado a calar-se pelo susto, Djet agarrou na minha mão e puxou-me para a frente com um enorme sentido de urgência.
O caminho estava delimitado por frondes e folhas que praticamente não emitiram qualquer som quando passámos por elas. A areia por baixo dos nossos pés estava batida
e firmemente calcada. Ainda assim, sustive a respiração para não fazer barulho e segurei a bolsa de forma tão estável quanto possível.
Emergimos de uma área de densas sombras e fomos, de repente, confrontados com o brilho suave de um candeeiro, o mesmo que se encontrava pendurado por cima do jogo
da Barba do Faraó, e que o Crocodilo segurava agora para iluminar a escavação de uma campa rasa.
Praticamente aos nossos pés, um por cima do outro, encontravam-se os cadáveres de Obodas e do rapaz. O rapaz ainda usava a túnica vermelho-viva, que se encontrava
coberta de nódoas de um vermelho mais escuro, em especial na zona do pescoço, mas Obodas tinha sido privado da sua roupa de nabateu e do seu toucado. Um dos filhos
do Crocodilo tinha-a vestido... roupa estranha para usar enquanto se cavava um buraco.
O outro filho usava as próprias mãos para raspar a areia do buraco, enquanto o Crocodilo se erguia sobre ambos com o candeeiro. Sob o seu brilho sórdido, via os
rostos dos três e quase não consegui suprimir um grito. Os seus traços já não eram sequer remotamente humanos. Eram pesadelos com cabeças de animal.
- Mais fundo do que isso! - disse o Crocodilo. Emitiu um som entre o risinho e o silvo. - Tem de ser suficientemente grande para os quatro.
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Mais fundo, rapazes! Mais depressa! Assim que acabarmos aqui, regressaremos à estalagem e trataremos do romano dorminhoco e do seu pequeno escravo irrequieto. Mal
chegue a luz do dia, enviaremos aqueles três simplórios de Sais de volta às suas vidas. E depois...
- Depois contamos as moedas, não é, papá? - disse o filho com a pá.
- E colocaremos os anéis nos nossos dedos e usaremos à vez aquele belo colar de rubi? - perguntou o outro.
- O rubi é para a vossa irmã, rapazes. com um dote daqueles, ela poderá casar com algum membro da família mais rica de Canopo. Mas por ora, continuem a cavar. Mais
fundo! Mais rápido!
Djet agarrou-me a mão, tentando puxar-me de volta para o caminho por onde tínhamos vindo. Lentamente, em silêncio, com o coração a bater dentro do peito, recuei
da zona iluminada pelo candeeiro brilhante.
Eu e Djet recuámos pelo mesmo caminho até termos encontrado outro trajeto, que se separava daquele. Quando avançámos por uma pequena clareira, tropecei noutro corpo
- o cadáver do segundo guarda-costas. Amarrados a uma palmeira ali próxima encontravam-se os camelos do nabateu, despojados dos seus arreios para melhor passarem
a noite, os quais se encontravam cuidadosamente reunidos e empilhados nas proximidades. Também havia alguns odres de pele cheios de água e alguma comida, pronta
a ser carregada nos camelos.
Nunca tinha visto um camelo de que gostasse, ou um camelo que gostasse de mim. Mas tinha aprendido a montá-los. Rapidamente preparei o animal de aspecto mais resistente,
e entre os arreios, encontrei um belo local para esconder a bolsa das moedas. Proferindo as palavras que me tinham ensinado, convenci o animal a ajoelhar-se. Montei-o
e, depois, estendi o braço para Djet, que recuou para fora do meu alcance.
- O que se passa? - perguntei.
- Nunca andei num desses.
- Então, esta vai ser a tua primeira viagem de camelo. Rapaz sortudo.
- Não mordem?
- Nunca. Nem cospem. O camelo é a mais bondosa e dócil de todas as criaturas.
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- Estás a mentir!
- Preferes ficar por aqui e acabares como eles? - Apontei para o cadáver do guarda-costas. A luz do sol que despontava revelava agora, em todo o seu terror, a ferida
aberta na garganta.
Djet trepou apressadamente para cima do camelo e sentou-se atrás de mim.
- Hat!Hut!- resmunguei e agarrei nas rédeas. O camelo resfolegou e ergueu-se em toda a sua altura. Djet guinchou e agarrou-se a mim, segurando-se com força. - Hut!
Hut! - repeti e partimos num trote constante, deixando o oásis e a estalagem do Crocodilo Faminto para trás.
As últimas estrelas tinham desaparecido. A estrada à nossa frente e a vegetação rasteira de ambos os lados iam ficando mais claras a cada instante que passava. com
o sol pronto para se erguer à nossa frente, dirigimo-nos para o Nilo.
127
XIII
Nesse dia esforcei-me por colocar tanta distância quanto possível entre nós e o Crocodilo Faminto.
Senti o cheiro do rio muito antes de termos chegado junto dele - o cheiro rico, fecundo, húmido, a juncos e peixe do Nilo e do solo aluvial da sua foz imensa, tão
poderoso e penetrante que, enquanto estivemos no Delta, o cheiro me envolvia em todo o lado e a todo o momento, de dia e de noite. Todo eu - a minha roupa, o meu
cabelo, até a minha pele - acabaria por ficar impregnado com o seu cheiro.
Seguindo a estrada que Tafhapy me indicara, virei para sul quando chegámos ao primeiro braço do Nilo e tomei a estrada na direção de Sais.
Havia pouco trânsito na estrada. Quando parámos para comer numa estalagem à beira da estrada, fomos os únicos clientes. Quando fomos obrigados a atravessar as águas,
fomos os únicos passageiros do ferry. Não era época de colheitas nem de comércio, tratava-se antes da altura mais calma do ano. O medo crescente de bandidos também
desencorajava as viagens. Sentia que dava bastante nas vistas, a saltitar sobre o camelo, com Djet sentado atrás de mim - mas para quem? Durante longos períodos,
não havia ninguém à vista.
Não muito longe de Sais, durante uma pausa para esticarmos as pernas e nos aliviarmos, à beira rio, decidi abordar um tema delicado.
- Sabes, Djet, lamento ter-te apostado. Djet encolheu os ombros.
- A ideia foi minha.
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- Sim, Djet, mas és apenas uma criança, e um escravo, ao passo que eu sou um homem livre. A decisão foi minha e foi uma má decisão.
- No entanto, correu tudo bem, no fim.
- Correu?
- Claro. Não estamos aqui, longe daquele sítio horroroso, sob a sombra agradável deste sicómoro, a acrescentar mais água ao Nilo? Continuo um escravo, sim. E tu
continuas um romano e um pateta, sim. Mas não estamos os dois vivos? E tu não tens uma bolsa cheia de tesouros?
Acenei lentamente.
- Sim, isso é tudo verdade...
- Até a parte sobre seres um pateta? - Djet riu. Mordi a língua.
- Mas tenho de me perguntar...
- Queres saber se o nabateu se aproveitou de mim? Suspirei.
- Sim.
- Porque se foi esse o caso, tal aconteceu sem o conhecimento ou a autorização do meu senhor e o Tafhapy ficará muito zangado contigo.
- Não, Djet. Não é com o Tafhapy que estou preocupado.
- Oh, é comigo que estás preocupado? Eu, um simples objeto que apostaste para deitar a mão ao rubi?
Voltei a morder a língua.
- Sim, Djet.
-Já te disse o que aconteceu. O Obodas bebeu a poção para dormir, pensando ser uma poção de amor, e mais nada.
- Adormeceu de imediato?
- Num minuto estava a beber a poção e no outro estava a roncar, deitado, completamente vestido, com a baba a deslizar pelo canto da boca.
- Então, não te fez qualquer mal. Quando ouvi aquele grito a meio da noite...
- Foi o outro rapaz, a quem cortaram a garganta.
- Sei isso agora. Mas na altura...
- Achaste que era eu. - Ergueu uma sobrancelha. - No entanto não vieste a correr para me salvar.
- Tinha sido drogado, Djet, tal como o Obodas.
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Djet sorriu.
- Suponho que pudesse inventar uma longa e arrepiante história sobre as torturas a que ele me sujeitou e todas as coisas terríveis que me obrigou a fazer, só para
ver a tua cara. Mas seria mentira. - Atirou a cabeça para trás e riu. - Como deve ser espantosa esta deusa Fortuna e como te deve amar!
Depois do meu tolo comportamento na estalagem e com Bethesda ainda desaparecida, julgava-me o mais infeliz dos homens, não o mais afortunado.
- Porque é que dizes uma coisa dessas, Djet?
- Pensa nisso. Se tu tivesses ganhado aquela última ronda e com ela todas as moedas e o colar de rubi, então o Crocodilo e os seus filhos ter-iam matado durante
a noite... e a mim também, já que teria estado no quarto contigo. Em vez disso, o nabateu está morto, tu estás vivo, e aqui estamos nós, seguindo alegremente o nosso
caminho, com um tesouro maior do que alguma vez sonhaste possuir. Se tivesses ganhado, terias perdido tudo. Ao perder, ganhaste.
Acenei, depois sobressaltei-me.
- O que é que acabaste de dizer sobre o tesouro?
- Mais do que alguma vez sonhaste possuir!
Espreitei para o outro lado do rio, analisando a margem oposta. Subi a estrada e olhei em todas as direções. Fui buscar a bolsa que se encontrava presa aos arreios
do camelo, depois corri para o local reservado junto à água onde tínhamos estado a conversar. Desatei a corda e olhei para o interior da bolsa.
Inspirei fundo, depois gemi de desalento.
No meu estado de desorientação e na nossa correria desesperada para fugir da estalagem, não compreendi exatamente o que continha a bolsa. Por alguma razão, pensara
que, no seu interior, encontraria muitas moedas. De facto, continha muitas moedas - mas isso não era tudo.
com os dedos trémulos, levei a mão ao seu interior e retirei dela o colar de rubi. Tinha parecido espantoso sob a luz das lâmpadas; era-o ainda mais sob a luz do
sol. A pedra carmesim brilhou sob os salpicos de luz do sol, com tamanha força que parecia conter uma chama bailante no seu interior.
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Espreitei para dentro da bolsa e vi mais jóias - lápis-lazúli e turquesas, cornalinas e safiras - incrustados nos anéis que o Crocodilo e os seus filhos tinham tirado
dos dedos do homem morto.
Sentei-me na margem do rio, a abanar a cabeça.
- Desgraça! - sussurrei. - Maldição e desgraça!
- O que se passa? - perguntou Djet. - Porque é que não estás feliz? És um homem rico!
- Um homem morto, é o mais provável. Djet franziu o sobrolho.
- Não percebes, Djet? Se eu só tivesse trazido as moedas era uma coisa. Qualquer homem pode ter uma bolsa cheia de moedas, até eu. Mas um rubi? E todos estes anéis?
Marcam-me como ladrão, tão certo como se tivesse sido marcado a ferros na testa. Há homens que perderam as mãos, ou pior, por roubarem nada mais que pão. O que será
de mim se um agente do rei ou um qualquer magistrado local nos parar e encontrar as jóias?
- Não te preocupaste com isso quando me apostaste em troca do rubi.
- Porque não estava a pensar como deve ser. Estes tesouros são uma maldição, não uma bênção.
Puxei a mão para trás para lançar o colar de rubi ao rio, mas Djet agarrou-me o antebraço com as duas mãos pequenas.
- Dá-mo, então, se não o queres! - gritou.
- E passar a maldição a uma criança?
- Porque é que dizes que traz má sorte?
- Que tipo de sorte é que trouxe ao nabateu?
Djet libertou lentamente o meu braço e recuou. Pela expressão no seu rosto, soube que estava a pensar em Obodas tal como o tínhamos visto pela última vez, jazendo
nu, com a garganta cortada, ao lado da campa que estava a ser cavada para ele.
- Porque haveria um agente do rei de te parar e interrogar?
- O Crocodilo pode enviá-los atrás de nós. com o dinheiro e as jóias desaparecidos, o que o impede de relatar o roubo às autoridades, mostrando-lhes os cadáveres
e culpando-me pelos homicídios?
- Mas... ele não sabe para onde vais.
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- Sim, isso é verdade. Mas... - Senti um arrepio de medo. - Sabe o meu nome! Não te lembras? Apresentei-me junto à porta da frente.
Djet franziu o sobrolho.
- Sim, fiquei a pensar nisso, na altura.
- Como assim?
- Bem, em todas as lendas e fábulas, os viajantes quando param em estalagens dão sempre um nome falso e inventam uma história sobre si mesmos. Até uma criança escrava
como eu sabe isso. Não me perguntes porquê, já que eu nunca contei uma mentira, mas nas histórias é assim. Por isso quando te ouvi dizer "Chamo-me Gordiano e venho
de Alexandria", pensei: "Isto é muito estranho. Pergunto-me se o romano faz a mínima ideia do que está a fazer." Mas claro que não disse nada. Quem sou eu? Apenas
o Djet, uma criança e um escravo, como não paras de me recordar.
Não pela primeira vez durante a nossa viagem, senti vontade de o estrangular.
Durante um longo momento fiquei sentado à beira do rio e fitei o rubi, fascinado pelo movimento bailante do fogo vermelho no interior, enquanto virava a pedra de
um lado para o outro de forma a captar o cintilar da luz do sol na água.
Semicerrei os olhos até não conseguir ver mais para além da ardente cintilação do rubi, e vi, de súbito, Bethesda a usar o colar, uma fantasia tão bela que me encheu
os olhos de lágrimas e tão irresistível que me perguntei se não poderia ser uma premonição.
Decidi-me. Levaria o rubi a Bethesda - ou deixaria que o rubi me levasse até ela.
Voltei a guardar o colar na bolsa, atei o cordão e voltei a guardar o tesouro no seu esconderijo, por entre os arreios do camelo.
Assim chegámos, pouco depois, à sonolenta cidade de Sais. Parecer-nos-íamos nós com dois fora-da-lei desesperados e em fuga, levando consigo as jóias roubadas a
um homem morto? Ou apenas como dois viajantes cansados, um jovem romano ligeiramente divertido e um
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escravo ainda mais jovem? Não tinha razão para me sentir culpado, repetia incessantemente para mim mesmo, e tentei que a minha expressão traduzisse isso mesmo, quando
parámos para comprar comida e provisões no mercado.
Quando chegou a hora de encontrar alojamento para passar a noite, escolhi a estalagem menos movimentada que consegui encontrar. Tratava-se de uma estrutura modesta,
feita de tijolos de barro cobertos de lama. Para meu alívio, a mulher que nos foi receber à porta parecia-se mais com um hipopótamo amigável do que com um crocodilo
faminto. A viúva Teti era uma mulher de meia-idade com um sorriso cheio de dentes. Como o dia estava a chegar ao fim e parecíamos ser os únicos hóspedes naquela
noite, convidou-nos a ficar à vontade. A única pessoa na estalagem para além de nós era uma jovem criada tão esguia e silenciosa como a sua senhora era roliça e
conversadora.
Tendo em mente a observação de Djet, apresentei-me, não como Gordiano, mas como Marco Pecúnio, filho mais novo de um homem de negócios romano a viver em Alexandria,
e disse-lhe que estava numa viagem de lazer, a subir o rio para ver as pirâmides. Se te vais fazer passar por alguém que não és, dissera-me certa vez o meu pai,
é preferível que a tua história seja simples, plausível e fácil de recordar.
- Porquê "Pecúnio"? - sussurrou-me Djet, enquanto levávamos o camelo para o local onde passaria a noite, entre os currais de ovelhas e cabras, e o pequeno galinheiro
nas traseiras da estalagem. Havia moscas por todo o lado.
- Foi um nome que acabei de inventar, a partir da palavra latina para rico.
- Inventaste-o?
- Se tens de indicar um nome falso, disse-me certa vez o meu pai, assegura-te de que não pertence a alguém que possa estar em maiores apuros do que tu. O que poderia
ser mais seguro do que um nome que não existe? Creio que nenhum egípcio se aperceberá da diferença. Além disso, Pecúnio é um bom nome para o portador do rubi. O
que levanta uma pergunta: o que hei de fazer à bolsa esta noite? Poderá parecer suspeito andar com ela a todo o momento. Suponho que a poderei deixar no nosso quarto
enquanto a viúva nos serve o jantar e, quando
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for para a cama, usá-la-ei como almofada, embora por norma prefira algo mais macio.
- Acho que uma almofada destas te deve trazer belos sonhos com a deusa Fortuna - disse Djet. - Tens de me falar mais sobre ela e sobre como devo fazer para a adorar.
- Tu, Djet?
- Ela não nos salvou a ambos do Crocodilo e a mim das garras de... Ergui o dedo para o silenciar, pois a viúva vinha na nossa direção.
Os seus seios fartos oscilavam numa direção ao passo que as ancas oscilavam noutra. Pendurada na mão fechada, trazia uma galinha morta. Teti parou à nossa frente
e exibiu orgulhosamente a carcaça. As moscas esvoaçavam à sua volta.
- Esta deixou de por ovos, por isso chegara a hora de lhe dar descanso - disse.
- Foste tu quem lhe torceu o pescoço? - perguntou Djet.
- Fui. Ter-te-ia deixado assistir, rapazinho, se soubesse que estavas interessado. O que é que preferes, Marco Pecúnio, a perna suculenta ou o peito farto? Prometo
que estarão ambos igualmente suculentos e deliciosos. - Teti dirigiu-me um olhar tímido e começou a arrancar as penas da galinha.
- O que quer que prepares, receberei com gratidão.
- Oh, que jeito tens com as palavras! Já tinha ouvido falar dos romanos e das vossas línguas traiçoeiras.
- Nós somos conhecidos pelos nossos discursos - admiti.
- Bem, deixa-me ver o que é que consigo arranjar para ti e para o rapaz. - Voavam penas para todos os lados. - O meu falecido marido gabava-se de ter por mulher
a melhor cozinheira de Sais. Um jovem como tu deve ter bastante apetite, sentado no cimo desse camelo o dia todo, apertando a sua bossa com as coxas fortes.
- Sim, tenho bastante fome - disse eu.
- Uma boa refeição vai devolver-te as forças. Podes muito bem precisar.
- Para quê? ?.'' Teti lançou a cabeça para trás e riu, depois afastou-se por entre uma
nuvem de penas e um enxame de moscas.
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Djet dirigiu-me um olhar de relance.
- O que foi? - perguntei.
- Eu escapei do Obodas, graças à Fortuna. Mas não tenho a certeza de que, mesmo ela, seja capaz de te proteger desta Teti.
Franzi o sobrolho.
- O que estás a sugerir? A viúva tem idade para ser minha mãe.
- Alguma vez conheceste o toque de uma mulher mais velha?
- Por acaso... - Recordei a minha visita a Halicarnasso e o tempo que passei com uma outra viúva; mas Teti não se parecia em nada com a bela e sedutora Bitto. -
De qualquer forma, o que sabes tu sobre essas coisas? - Bati-lhe na cabeça. - Agora cala-te e ajuda-me a cuidar do camelo. Há por aqui muitas moscas, não achas?
- Mal enxotava uma, já outra tomava o seu lugar.
- Sim, quando me devolveres ao meu senhor e ele pedir que lhe relate a viagem, chamarei a este local a Estalagem das Mil e Uma Moscas.
Ri e baixei a voz.
- Estava a pensar que lhe poderíamos chamar a Estalagem do Hipopótamo Amigável.
Mais tarde, Teti juntou-se a nós, na pequena sala comunal da estalagem, enquanto a rapariga silenciosa nos servia a galinha, que tinha sido cortada em pequenos pedaços
e afogada num delicioso molho de tâmaras moídas e pasta de amêndoa. Teti fez-me muitas perguntas. Às mais pessoais fugi o melhor que pude, nunca esquecendo o meu
disfarce como Marco Pecúnio. Nunca tendo saído de Sais, Teti parecia conhecer pouco do mundo e fiquei com a sensação de que praticamente tudo o que lhe dissesse
sobre mim mesmo, verdadeiro ou falso, decerto a satisfaria.
Por outro lado, Teti sabia muito sobre a família real e ansiava por quaisquer notícias ou rumores que lhe pudesse oferecer. O rei era mesmo tão gordo quanto todos
diziam? As pessoas tinham perdido todo o amor por ele? Era verdade que o filho que residia na ilha de Cós tinha sido raptado pelo primo Mitrídates? Teria eu ouvido
o rumor de que existia mais um membro da família real, criado em segredo, e que poderia apresentar-se às pessoas, a qualquer momento, e reclamar o
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trono? Acabei por confessar que ela devia saber muito mais sobre os Ptolomeus e as suas andanças do que eu, um estrangeiro, desatento e pouco observador.
Depois da refeição, Teti ofereceu-se para pedir à criada que cantasse para nós - ao que parece esta nem sempre se mantinha em silêncio mas aleguei cansaço e, com
Djet, segui diretamente para o quarto.
Tirei toda a minha roupa e reclinei-me, nu, na cama estreita, tapando-me com o lençol de linho e usando a bolsa do tesouro como almofada. Djet ficou com a verdadeira
almofada e dormiu no chão, mesmo em frente à porta. Acontecia muitas vezes na história, disse-me ele, que um escravo servisse para bloquear a porta. Aquela simples
precaução pareceu-me deveras sensata.
E no entanto, de alguma forma, a altas horas da noite, uma outra pessoa juntou-se a nós no quarto. Acordei perturbado de um sonho, com a testa perlada de suor, e
deparei-me com uma silhueta pesadona que se inclinava sobre mim.
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XIV
- Teti! - sussurrei. - O que é que estás a fazer aqui? Como é que entraste? Onde está o Djet? - Tentei sentar-me, mas sentia a cabeça estranhamente enublada.
- Não sei para onde foi o rapaz- - respondeu ela. - Mas vi-o sair do quarto há alguns instantes e deduzi que seria a minha deixa.
- A tua deixa?
- Para me juntar a ti, Marco Pecúnio. Ou devo chamar-te apenas Marco? Não é esse o costume romano, usar o primeiro nome quando duas pessoas se tornam... amigas chegadas?
Quanto a mim, já se tinha chegado o suficiente. Uma vez mais tentei sentar-me e uma vez mais fui impedido por uma estranha sensação na cabeça e uma fraqueza dos
membros. Teria sido drogado mais uma vez, desta feita por Teti? Seria prática corrente dos estalajadeiros egípcios sedar os seus hóspedes para se aproveitarem deles?
- Teti, não me sinto bem.
- Ah, estás cansado, mais nada. O ar fresco vai reanimar-te. - Teti dirigiu-se a uma pequena janela, destrancou as portadas e abriu-as. Sob a luz da lua vi-a com
maior clareza.
Estava completamente nua.
Engoli em seco. Sentia a garganta seca e arranhada.
- Fechei a janela para que as moscas não entrassem - disse.
- Moscas? - Teti riu. - As moscas estão todas a dormir, tolo.
- Vais deixar entrar o ar quente e húmido da noite. - Eu estava habituado a dormir numa cidade junto ao mar, refrescado pela sadia
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brisa marítima. O ar do Delta era abafado e húmido, especialmente durante a noite, quando os vapores opressivos se erguiam das margens do rio e dos pântanos. Seria
por isso que me sentia tão mole e estranho?
Apesar das minhas objeções, Teti deixou as portadas abertas. Afastou-se da janela e aproximou-se, implacavelmente.
Para ser sincero, e para ser justo, não fiquei completamente indiferente aos seus avanços. A sua figura, nua sob o luar, tinha, de facto, acordado algo em mim -
ainda que não fosse exatamente luxúria, seria pelo menos uma centelha de curiosidade. Teti não era nenhuma Vénus, pelo menos tal como os gregos e os romanos gostavam
de retratar a deusa do amor, com uma cintura esguia e seios elegantes. Parecia-se mais com aquelas imagens arcaicas que tinha visto em certos templos durante as
minhas viagens, deusas da fertilidade, de ancas, seios e nádegas voluptuosas. Vendo Teti despida, ninguém podia dizer que não se tratasse de um robusto exemplo de
feminilidade. E, para quem gostasse desse tipo de coisas, ela tinha muito para se gostar.
No entanto, aquilo que ela tinha em mente simplesmente não era possível. Por duas razões.
A primeira razão era Bethesda.
Como um ator numa peça, senti o impulso de agarrar o fino lençol, puxá-lo até ao queixo e gritar: "Não, Teti! Não posso! O meu coração pertence a outra!" Mas não
me tapei com o lençol e mantive a boca fechada. Sendo um romano sóbrio, todos os meus instintos se opunham a que declarasse publicamente os meus sentimentos por
um escravo, mesmo que Teti fosse a única pessoa a ouvi-lo.
De onde vinha este impulso para me manter fiel a Bethesda? A castidade dificilmente se poderia considerar uma virtude romana, pelo menos no caso dos homens; a fidelidade,
talvez, quando a mulher é sua esposa, mas Bethesda não o era e, decerto, nunca o poderia ser. Eu era um homem - um cidadão de Roma, nascido livre e solteiro -, então
o que me impedia de me entregar a algum divertimento inofensivo com uma mulher disponível, se eu o desejasse?
Aí residia o problema: eu não desejava fazè-lo, nem o desejaria se Teti se parecesse com Helena de Tróia. Na verdade, quanto mais bela a sedutora, mais teria fugido
dela. Tal era o estado da minha masculinidade.
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Quaisquer sinais de interesse que sentisse ao ver uma mulher desejável
- tinha visto bastantes em Canopo - transformavam-se de imediato em pensamentos sobre Bethesda e tais pensamentos não traziam prazer, mas dor.
Estaria ela a manter-se fiel a mim durante a nossa separação? Mesmo que esse fosse o seu desejo, tê-la-ia algum bruto tomado pela força? Ter-me-ia Bethesda esquecido?
Ter-me-ia esquecido? Estaria a fazer algum esforço para regressar para mim? Voltaria a vê-la? Ainda estaria viva?
Um pensamento torturante conduzia ao seguinte: todos eles tinham o seu início com a imagem de uma mulher atraente. Assim, a mais ténue centelha de desejo conduzia-me
não à luxúria, mas à infelicidade. Não conseguia sequer aliviar-me a mim mesmo. Os meus instintos naturais tinham-se pervertido e tudo por causa de algo a que os
poetas chamam "amor". O amor tinha feito de mim um eunuco.
Não havia como explicar isto a Teti, quando ela se erguia, nua e a sorrir para mim. Por isso, não disse nada.
Havia uma segunda razão para que a união que Teti desejava não pudesse ser consumada. Eu ia vomitar, violentamente, a qualquer instante.
Novas contas de suor irrompiam-me na testa. As veias das minhas fontes latejavam e um milhão de moscas zumbiam dentro da minha cabeça. As minhas mãos estavam pegajosas.
A minha barriga apertada pelas cólicas. O meu peito subia e descia. Comecei a sentir espasmos na garganta.
A medida que ondas de náusea me varriam, soube que tinha sido envenenado. Teria Teti deitado uma poção de amor na minha comida e errado na dose? Seria uma assassina
fria e uma ladra como o Crocodilo?
O mais provável, pensei, era que a culpa fosse da galinha.
"Nunca comas galinha na cozinha de um estranho", dissera-me o meu pai. Parecia que quanto mais tempo passava longe dele, menos seguia os seus sábios conselhos e
em mais problemas me metia.
Afastei o lençol de linho. Vendo-me nu e coberto de suor, Teti tomou erradamente o meu gesto por um convite. Enquanto tentava
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subir para a cama, lutei por escapar dela e os nossos membros emaranharam-se. Um qualquer deus que nos visse de cima daria, decerto, uma boa gargalhada ao ver uma
tão grotesca paródia do ato do amor, todo ele carnes agitadas e gemidos desesperados.
Consegui, por fim, libertar-me e corri para a janela. Coloquei a cabeça de fora mesmo a tempo. Todo o meu corpo se agitava em convulsões.
Logo por baixo de mim, ouvi um gemido de pânico. Era Djet. Este desviou-se do caminho, apressando-se de gatas. Quando ficou a salvo, ergueu os olhos para mim, com
uma expressão infeliz.
- Também tu? - perguntou, E depois, como que para troçar de mim, também ele começou a vomitar.
Então fora por isso que abandonara o seu posto junto à porta, a indisposição devia tê-lo atingido instantes antes de me atingir a mim.
Durante bastante tempo, entregámo-nos impotentes à náusea que se apoderara de nós. Djet deixou-se ficar onde estava, de gatas, enquanto eu me inclinava pela janela.
Gradualmente, os ataques desvaneciam-se, depois regressavam, desvanecendo-se de novo em seguida.
Limpando a boca, Djet falou com uma voz fraca.
- Achas que foi... ?
- A galinha - disse eu.
Djet acenou, depois voltou a ser assolado por convulsões. Parecia espantoso que um tipo tão pequeno pudesse ter tanto dentro de si que precisasse de sair.
Por fim as minhas náuseas desvaneceram-se, deixando-me fraco e exausto. Virei-me e reparei que Teti tinha desaparecido do quarto. Teria sentido repulsa da minha
indisposição ou também fora afligida pelo mesmo mal?
Fosse qual fosse o caso, estava contente por me ter deixado em paz, enquanto cambaleava através do quarto e voltava a cair na cama. Fiz uma careta quando a minha
cabeça aterrou não numa almofada macia, mas na bolsa dura e cheia do tesouro. Pelo menos o problema do rubi dava-me outra coisa em que pensar que não a minha infelicidade
física, e dei por mim a abraçar a bolsa, enquanto regressava, de forma gradual e inconstante, ao reino dos sonhos inquietos.
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Acordei de madrugada. Djet tinha regressado ao quarto e retomado o seu lugar no chão em frente à porta. Abanei-o para o acordar e disse-lhe que preparasse o camelo
para que pudéssemos partir de imediato.
- Mas eu não sei preparar o camelo - queixou-se.
- Viste-me a colocar-lhe os arreios ontem e ajudaste-me a tirá-los. Podes, pelo menos, encher de água os odres.
- E se o animal me morder?
-Já te disse, os camelos nunca mordem. Agora despacha-te.
Dirigi-me à cozinha, onde já zumbia um grande número de moscas. A criada estava a pé e perguntou-se se eu queria tâmaras ou uma tigela de farinha com leite de cabra.
O meu estômago roncava que o alimentassem, mas só me atrevi a comer algumas côdeas de pão seco e a beber um pouco de água fresca.
Teti apareceu, envergando uma camisa de noite larga, de um linho tão fino que conseguia ver cada curva e recesso voluptuoso do seu corpo. Tendo em conta o seu comportamento,
não ficara, afinal, nada indisposta. Da mesma forma, a rapariga não parecia ter ficado doente.
- Marco Pecúnio - disse ela, abrindo os seus braços para me dirigir um abraço piedoso. - Estás-te a sentir melhor esta manhã?
- Fraco, mas bem.
- E ficarás mais uma noite, para que tenha a oportunidade de fazer com que deixes Sair com melhor opinião da minha casa? - As palavras eram formais, mas o bater
das suas pálpebras falava uma língua diferente.
- Infelizmente, Teti, tenho de partir de imediato. As pirâmides chamam por mim.
- E como é que me posso comparar a elas? - Teti suspirou, pousando a mão sobre os seios que subiam e desciam.
- Não te preocupes com a noite passada - disse. - Não podia ter pedido recepção mais calorosa.
- Ah, que eloquente este romano! Talvez, no teu regresso...?
- Talvez.
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- Serás sempre bem-vindo, Marco Pecúnio. Agora, tu e o rapaz vão precisar de comida para a vossa viagem. Talvez ainda haja algum resto da galinha da noite passada
no pote de barro...
O meu estômago deu um salto.
- Não, não, Teti, comprei algumas provisões simples, ontem, e estou certo de que encontraremos muita comida pelo caminho.
- Como queiras, Marco Pecúnio.
Saldei a minha conta, dirigindo-me, em seguida, às traseiras para ajudar Djet. Para minha surpresa, este já tinha colocado os arreios no camelo. Verifiquei todas
as correias e outras ataduras e vi que ele tinha feito um excelente trabalho. Djet também enchera os odres de água. Bastava-me guardar o tesouro em segurança e podíamos
partir.
A partir do local onde nos encontrávamos, atrás da estalagem, podia ver uma pequena parte da rua que passava à frente da estalagem. Enquanto nos aprontávamos, vi
uma figura que se aproximava da estalagem, mas esta não me viu. Fora apenas um rápido vislumbre do homem, mas havia algo familiar na sua longa barba branca. Ouvi-o
bater à porta da frente.
- Teti! - chamou. - Teti, estás a pé?
Reconheci de imediato a sua voz. Tratava-se de Harkhebi, o mais importante dos líderes da cidade de Sais, com quem tinha jogado à Barba do Faraó, na Estalagem do
Crocodilo Faminto.
Virei-me para Djet.
- Não faças barulho e fica onde estás - sussurrei.
- O que se passa?
- Não interessa. Fica aqui até eu voltar.
Esgueirei-me em redor da estalagem e aproximei-me tanto da entrada quanto possível, mantendo-me escondido. Teti tinha saído para receber o visitante. Pela forma
como falava, compreendi que Harkhebi e Teti eram vizinhos e se conheciam bem.
- Como correu a tua viagem a Alexandria? - perguntou Teti. Harkhebi emitiu um ruído indelicado. ?'
- O rei não nos deu nada! E um inútil... e a acreditar nos rumores, não ficará durante muito tempo no trono.
- Ah, por falar em Alexandria... ti
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Inspirei abruptamente, pensando que estava prestes a mencionar-me. No entanto, Harkhebi interrompeu-a.
- Regressámos a Sais já tarde, a noite passada, depois de termos viajado todo o dia.
- Mas aqui estás, acordado bem cedo.
- Porque há algo que tenho de dizer a toda a gente e vou começar por ti, Teti. Na viagem de volta da cidade, parámos num local chamado Canopo. Que nojento esgoto
de vício se revelou aquela cidade! Repleto de prostitutas, casas de bebida e antros de jogo.
Que hipócrita! Quando se tratara de virar cervejas e fazer apostas, Harkhebi tinha-me acompanhado sempre. Agora que estava de volta a Sais, fazia-se passar pelo
líder da cidade íntegro.
- Deve ser um sítio terrível - disse Teti, num tom de voz que indicava que teria todo o gosto em ouvir mais.
- Pior do que possas imaginar... pois quando acordámos, depois de ter passado a noite num desses locais, o que descobrimos nós senão que um dos hóspedes tinha sido
assassinado?!
- Assassinado? Santa Isis! Diz-me mais.
- A vítima era um rico mercador da Nabateia. Não foi o único a
ser morto, o mesmo aconteceu ao rapaz que com ele viajava e aos seus dois guarda-costas. Todos os quatro viram as gargantas cortadas.
Teti arquejou.
- Mas quem faria tal coisa? E porquê?
- O assassino foi outro dos hóspedes. Fugiu num camelo roubado, de madrugada, levando consigo todo o dinheiro do nabateu, bem como os anéis do pobre homem. Além
disso, levou um colar com um rubi.
- Um rubi?
- Uma pedra fabulosa, que vale uma fortuna. O crime foi tão audacioso que os líderes da cidade de Canopo puseram a cabeça do assassino a prémio e prometeram uma
recompensa pela devolução do rubi.
- "O assassino", dizes, era apenas um homem? Como é que um homem conseguiu dominar quatro vítimas?
- Não se trata apenas de um homem. É um romano! Sinceramente, devem ser o povo mais sanguinário à face da terra. Jamais voltarei a ficar sob o mesmo teto que um
romano.
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- Um romano, dizes? - O tom de Teti tornou-se subitamente monocórdico.
- Sim, um jovem romano vindo de Alexandria, que viaja com um rapaz.
- com... um rapaz, dizes? Os dois viajando num camelo?
- Sim. Ninguém sabe ao certo para que lado foram, mas é possível que se dirigisse para aqui, para Sais. Estou a avisar todos os habitantes da cidade, em especial
os estalajadeiros, para que fiquem atentos.
- E se ele aparecer?
- O meu conselho é que o mates mal o vires, como farias a uma cobra perigosa! Depois manda a cabeça para Canopo e reclama o prémio. Também há uma recompensa muito
generosa pela recuperação do rubi.
- Ah, é?
- Sim. Claro que ele pode nunca vir para Sais; não te quero assustar sem motivo, Teti. Mesmo que ele venha para aqui, quais são as hipóteses de ele ficar na tua
estalagem?
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual sustive a respiração. Por fim, ouvi Teti suspirar.
- Bem, não passou ninguém assim pela minha estalagem.
- Pela tua segurança, fico feliz por ouvi-lo. Mas fica atenta, Teti. Este romano já matou uma vez e pode voltar a fazê-lo.
- Parece um homem e tanto.
- Um homem perigoso, Teti!
- Sim, de facto.
- Bem, tenho de partir, para avisar todos os habitantes da cidade. Adeus, Teti.
- Adeus, Harkhebi.
Esgueirei-me rapidamente para as traseiras do edifício. Tirei a bolsa do tesouro dos arreios da cidade, meti a mão no seu interior, depois voltei a guardá-lo.
- O que se passa? - perguntou Djet.
- Conto-te mais tarde. Agora mantém a boca fechada! Teti apareceu nas traseiras.
- Marco Pecúnio... - começou, com uma expressão de pavor no rosto.
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- Não digas nada, Teti! - Corri para ela e encostei um dedo aos seus lábios. - Não há palavras para esta despedida. Infelizmente, o que poderia ter acontecido a
noite passada, não aconteceu: os deuses olharam para nós e sentiram ciúmes, Teti! Mas juro que nunca te esquecerei. E para que não me esqueças, quero dar-te algo.
- Uma prenda... para mim?
- Sim, Teti. Gostas? - Apresentei o anel que tinha tirado da bolsa. O anel em si era de prata e a pedra de lápis-lazúli.
- Oh, Marco, é lindo!
- Pensa em mim quando o usares, Teti.
- Oh, Marco, pensarei. - O seu rosto brilhava e as lágrimas encheram-Ihe os olhos. Ela escondeu o rosto e virou-se para a porta. - Não me podes ver a chorar, Marco.
Tens de partir... imediatamente! Em breve, toda a Sais estará à tua procura. Vai, Marco! - Correu para o interior da estalagem.
Djet dirigiu-me um olhar que parecia perguntar: "Por Hades, o que foi isto?"
Levei o camelo a ajoelhar-se, montei o animal e ajudei Djet a trepar para trás de mim.
-Hut! Hut! -gritei.
Djet, que já não conseguia manter a boca fechada, guinchou de riso, enquanto o camelo se levantava.
- A Fortuna mostra uma vez mais o quanto te ama! - gritou.
- De que é que estás a falar?
- A noite passada, pensei: "Que coisa terrível, o romano ficar tão doente." Que visão nojenta que eras! Mas essa foi a forma de a Fortuna te salvar.
- De quê?
- Daquele hipopótamo! Não foi isso que lhe chamaste ontem? Um hipopótamo amigável! Como teria sido terrível se a Teti, o hipopótamo, tivesse levado a sua avante.
Mas a Fortuna deixou-te doente e, assim, escapaste a um terrível destino. No entanto, não percebo porque lhe disseste todos aqueles disparates e lhe deste aquele
anel...
- Por Hércules, Djet, fala baixo! E se ela te ouve?
Quando nos afastávamos, olhei de relance para trás e vi Teti, que se erguia nos degraus da frente. Tinha os braços cruzados com força e
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um franzir de sobrolho no rosto manchado pelas lágrimas. Teria ela ouvido o insulto? Talvez não, disse a mim mesmo. Talvez só estivesse perturbada por me ver partir.
No entanto, enquanto dobrávamos uma esquina e saíamos do seu campo visual, vi-a tirar o anel de lápis-lazúli do dedo e atirá-lo ao chão.
- Harkhebi! - gritou ela. - Harkhebi, volta!
- Hut! Ha f! - gritei e estalei as rédeas, impelindo o camelo a andar mais depressa.
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XV
Assim me tornei um homem procurado e um fora-da-lei, correndo através do Delta com a cabeça a prémio.
Harkhebi deve ter sido lento a organizar a minha perseguição ou talvez tenha enviado os homens de Sais na direção errada, pensando que me dirigia rio acima, como
eu dissera a Teti. Seja como for, conduzindo um camelo a passo rápido, escapámos de Sais sem qualquer incidente.
Mal me foi possível, deixei a estrada principal e, a partir desse momento, mantive-me, tanto quanto possível, por estradas secundárias. Evitei as cidades, considerando
que seria mais seguro pedir indicações e comprar provisões em entrepostos comerciais isolados. Temia procurar abrigo numa estalagem, pelo que dormia num qualquer
local reservado que conseguisse encontrar. Felizmente, as noites eram secas e amenas, mas todas as manhãs acordava desesperado. A necessidade fizera com que me afastasse
das indicações que Tafhapy me dera e, consequentemente, descobria-me muitas vezes perdido e sem saber o que fazer a seguir. Encontrar o Ninho do Cuco sempre fora
uma tarefa difícil; agora temia que nunca o conseguisse encontrar.
Que confusão tinha eu feito!
E, no entanto, dia após dia avançávamos a bom ritmo, penetrando cada vez mais no coração do Delta. O ambiente lânguido da região começou a acalmar-me. Os montes
baixos, desolados, alternavam com pântanos e lodaçais. Rios lentos e poças de água estagnadas fervilhavam de insetos. Os hipopótamos tornaram-se uma presença constante,
tal
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como os crocodilos. Como o Nilo se aproximava do seu nível mais baixo, as travessias que, noutras alturas do ano, exigiriam a utilização de barcos, podiam facilmente
ser realizadas a camelo, desde que conseguíssemos não ficar atolados na lama.
A monotonia do Delta alternava com um esplendor inesperado. Uma manhã, no meio do nada, chegámos a um grande lago de águas pouco profundas habitado por milhares
de pássaros de pernas compridas e bicos magníficos. Enquanto observávamos, um grande número deles ergueu-se no ar, voou em círculos sobre as nossas cabeças e, depois,
regressou à água, altura em que um outro grupo levantou voo. O lago transformou-se numa arena de movimento constante, com alguns dos pássaros a realizarem a sua
dança aérea, enquanto outros se reuniam na água. As suas asas eram de um cor-de-rosa delicado, como a parte de dentro das conchas.
- Flamingos! - gritou Djet.
-Já tinhas visto estas criaturas antes?
- Só nas imagens do templo de Ra. Nunca pensei que veria um verdadeiro. Pergunto-me se também veremos uma fénix?
- Decerto a fénix só existe nas lendas.
- Não é verdade! Vivem no Delta. Toda a gente o diz.
Quem era eu para o contradizer? Até essa manhã, nem sequer sabia que existia um pássaro como o flamingo.
- Lindo - sussurrei e, enquanto estava a observar os pássaros cor-de-rosa, senti-me em paz naquele local estranho e longínquo.
À medida que íamos avançando e nenhuma das pessoas com quem nos cruzávamos parecia indevidamente alarmada pela presença de um jovem romano e de um rapaz que viajavam
de camelo, comecei a baixar a guarda. Eu parecia estar a ser mais rápido do que as notícias sobre mim. Se os meus perseguidores achassem que eu tinha viajado para
sul, a notícia dos homicídios em Canopo podia nunca chegar ao Delta profundo.
O meu desespero também começou a diminuir, pois comecei a pensar que, na verdade, poderíamos estar a aproximar-nos do Ninho do Cuco. Sempre que falava com os locais
tentava abordar o tema dos bandidos de forma casual, exprimindo a curiosidade natural e absolutamente inocente de um estranho de passagem. Muitas das pessoas com
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quem me cruzava recusavam-se a falar sobre os bandidos, como se temessem sofrer represálias se o fizessem, mas outras falavam livremente sobre os salteadores, piratas,
ladrões e raptores que habitavam o Delta. Muitos falavam desses vilões em tom de admiração ou mesmo reverência, como se fossem uma espécie de heróis.
Certo dia, dei por mim num pequeno e sonolento entreposto comercial localizado no braço do Nilo, ao longo do qual, de acordo com Tafhapy, poderia encontrar o Ninho
do Cuco. O dia estava quente, mas um toldo de um dos lados do edifício degradado oferecia a sua sombra e alguns bancos simples permitiam que nos sentássemos. Como
é normal nestes entrepostos, para além do proprietário, estavam presentes vários habitantes locais, clientes habituais que, provavelmente, passavam a maior parte
de cada dia sentados, ociosamente, na sombra, bebericando cerveja, felizes por tagarelar com qualquer viajante que, por acaso, passasse por ali. Entre eles estava
um egípcio desdentado, de cabelo grisalho, tão curtido pelo sol que parecia ter sido esculpido a partir de um bloco de ébano, e tão enrugado que eu quase não conseguia
distinguir os olhos do resto da cara. Chamava-se Hepu e tinha muito para dizer acerca dos bandidos.
- Desde a minha juventude que os bandos errantes de fora-da-lei vivem no Delta - disse-me Hepu. Virou o olhar para Djet. - Quando eu era um rapazito, não mais velho
do que tu, pequeno, sonhava juntar-me a eles e viver a vida de um bandido. Mas o meu pai depressa me arrancou essa ideia do couro! - A recordação fê-lo dar uma gargalhada.
- Mas porque haveria um homem de desejar ser um fora-da-lei? perguntei. Não era uma questão inocente, tendo em conta a situação em que me encontrava.
- Melhor seria perguntar porque é que um homem haveria de desejar a vida respeitadora de um agricultor ou comerciante, com crianças famintas para alimentar, uma
esposa para o censurar e os cobradores de impostos do rei para tornarem a sua vida miserável? Os bandidos vivem como homens livres, sem essas preocupações.
O dono do entreposto riu-se. Menkhep era um homem atarracado, de membros grossos e ombros largos. O cimo da cabeça estava absoluta-
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mente careca, mas a faixa de cabelo por cima das orelhas era cinzenta como o ferro e tão encaracolada como a lã de ovelha.
- O velho Hepu está sempre a dizer disparates sobre quão maravilhosa é a vida dos bandidos. No entanto, fica aqui sentado, dia após dia. Não te vejo a correr para
te ires juntar ao Gangue do Cuco, Hepu.
Arrebitei as orelhas.
- Isso é porque estou demasiado velho - disse Hepu. - Não me aceitariam. O Gangue do Cuco só recruta os mais jovens e capazes ou homens que possuam alguma competência
útil. Ah, mas um tipo como tu, Menkhep... tu talvez lhes interessasses.
- Eu? Que utilidade teria um lojista para os bandidos?
- Sabes contar dinheiro! - Hepu riu-se. - E desde que a tua esposa morreu que não tens mulher que te prenda. Ainda és jovem e forte.
- Talvez assim pareça a um velho homem como tu. - Menkhep suspirou. - Aos meus olhos, este romano parece jovem e forte. - Deu-me um murro amigável no ombro.
Hepu acenou.
- E deve falar latim. Eis uma capacidade que os bandidos poderiam aproveitar.
- Como assim? - perguntei.
- Imagine que um navio encalha na costa, os naufrágios acontecem com mais frequência do que possas pensar, e os bandidos roubam a carga e levam consigo os sobreviventes.
Entre os seus cativos estão alguns romanos ricos. Os raptores precisariam de alguém que traduzisse os pedidos de resgate.
Outro dos conversadores, quase tão velho como Hepu, dirigiu-me um olhar lúbrico.
- E se alguns desses prisioneiros romanos forem mulheres, os bandidos precisarão de alguém que as convença a tirar a roupa... em latim!
Hepu ergueu o nariz.
- Pelo contrário, por norma os bandidos são muito respeitosos em relação a qualquer mulher que capturem.
- A sério? - perguntei, pensando em Bethesda.
- Se a mulher é pobre, o mais certo é que os bandidos a libertem, por misericórdia. Se for uma escrava, é tratada como parte do saque e
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vendida à primeira oportunidade... até pode ser libertada. Se parecer ser rica e puderem pedir por ela um bom resgate, os bandidos mantêm-na cativa, mas tratam-na
com grandes cuidados. Há um código de conduta entre estes homens e esse código determina que mulher : alguma, escrava ou livre, rica ou pobre, seja maltratada. Qualquer
bandido que viole esse código vê-se expulso.
Será que Hepu sabia do que estava a falar? Quero acreditar nele.
- Como é que os bandidos fazem para ter a companhia das mulheres? - perguntei.
- Passam sem ela... os sortudos! - Hepu deu uma gargalhada. - l Não vivem quaisquer mulheres com os bandidos nem viajam ao seu
lado. Só é permitida a presença de homens... e que paraíso não deve ser! Oh, atrevo-me a dizer que alguns deles têm as suas namoradas numa e noutra aldeia e fazem
visitas regulares aos bordéis quando se aventuram a visitar a cidade para gastar dinheiro. No entanto, não é permitido a mulher alguma viver entre eles... nem a
rapazinhos. - Dirigiu um olhar de relance a Djet. - Mulheres e rapazinhos só trazem problemas.
- Quer-me parecer que haverá sempre problemas entre homens desses - disse eu. - Sem leis que os guiem, devem estar em luta constante, discutindo por causa do saque,
agredindo-se uns aos outros, os mais fortes dominando os mais fracos.
Hepu abanou a cabeça.
- Se quisessem esse tipo de vida, manter-se-iam no mundo comum! Não estavas a ouvir quando eu disse que os bandidos seguem um estrito código de conduta? Não há lutas
por causa dos despojos. Dividem tudo aquilo a que deitam as mãos, em partes iguais... essa é a norma.
- Todos ficam com parte igual? - perguntou Djet.
- Precisamente.
- Até o líder? - Djet parecia simultaneamente perplexo e fascinado com uma tal ideia.
- Em especial o líder! Como é que achas que um homem se torna líder de um grupo de bandidos? Os outros escolhem-no, por votação. Se o líder os enganar, maltratar
ou reclamar privilégios especiais, depressa se descobre sem cabeça e os bandidos escolhem um novo homem
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para os liderar. Não é como no mundo normal, onde um homem que te seja superior, te será superior durante toda a tua vida, porque foi assim que nasceste e nada poderás
dizer sobre o assunto. Ah, os bandidos têm uma vida mais livre do que a maior parte de nós consegue imaginar.
- Mas pagam um preço - disse eu. - São párias. Não têm família. Se forem capturados, são enforcados ou crucificados. E as coisas que fazem? Matam e roubam pessoas
inocentes e... e também raptam pessoas.
- Nunca disse que não violavam a lei - respondeu Hepu. - Porque é que achas que o meu pai me arrancou a ideia do couro, quando lhe falei de me juntar a eles?
Assenti, pensativamente.
- Falas como se a vida perfeita fosse aquela que permitisse a um homem saltar entre o mundo normal e o dos bandidos. Ter o melhor
dos dois mundos.
- De facto, existem homens assim - disse Hepu. - Espiões, batedores, intermediários. Homens que vivem entre nós, com esposas, famílias e trabalhos normais, mas que
levam uma vida dupla, associando-se aos bandidos. E esses homens não vivem apenas no Delta. Dizem que o Gangue do Cuco está tão disseminado que tem informadores
e afiliados até Pelúsio, a leste, e Alexandria, a oeste... e até mais longe, em Cirene.
- Mas Cirene agora é romana - disse eu, sem pensar. Vinda de um romano, a afirmação suscitou olhares frios dos homens que me rodeavam. - Quer dizer, desde que o
velho Apião morreu... o irmão bastardo do rei Ptolomeu... e deixou Cirene aos romanos... por testamento... - Ao continuar a falar estava apenas a cavar um buraco
ainda mais fundo.
- Seja como for - disse Hepu -, dizem que a influência do Gangue do Cuco se estende até Cirene.
Limpei a garganta.
- Ouvindo-te falar, é como se este Gangue do Cuco fosse um verdadeiro estado dentro do estado. O rei Ptolomeu tem um governo e os bandidos têm outro, invisível,
mas que opera lado a lado com as autoridades legítimas.
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- Romanos! Sempre tão legalistas - rosnou o mesmo conversador que me lançara olhares lúbricos enquanto especulava sobre mulheres romanas cativas.
- Então este Gangue do Cuco está em todo o lado e em lado nenhum - disse eu. - Mas decerto têm algum tipo de base.
- Chama-se Ninho do Cuco - disse Hepu.
- Sim? E onde fica este Ninho do Cuco?
Hepu riu, tal como os outros.
- Essa, jovem romano, é uma boa pergunta, para a qual muitos gostariam de saber a resposta... incluindo os agentes do rei Ptolomeu.
- Tu sabes onde fica, Hepu? - perguntei.
- Na verdade, não. Nem nenhum dos homens aqui presentes, atrevo-me a dizer, ou já teriam perdido as cabeças.
- É perto?
- Fica a menos de um dia de viagem daqui, ou pelo menos é o que dizem.
- Sim, mas onde? - Tentei não parecer demasiado ansioso.
- Tudo o que sei é isto: se virares para sul, naquele caminho ali, e seguires ao longo deste pequeno braço do Nilo, não tardarás a ver os sinais de aviso.
- Sinais de aviso?
- Indicações claras de que não deves continuar. O crânio de um crocodilo espetado num pau... um pedaço de corrente ferrugenta atravessado no caminho... paus afiados
que se erguem da estrada. E depois, se te atreveres a prosseguir, existem armadilhas e ratoeiras: fossos repletos de estacas, cordas para tropeçar, fisgas carregadas,
objetos que caem. É o que dizem. Homem algum encontra o caminho para o Ninho do Cuco por acidente.
- Acho que homem nenhum encontra o caminho vivo! - disse Djet. Hepu deu uma gargalhada.
- Rapaz esperto!
Pensei em tudo o que o velho me dissera e senti uma mistura de esperança e temor. Bethesda podia estar viva e bem, podia estar até muito perto, mas como é que haveria
de chegar até ela com tão pavorosos obstáculos pela frente?
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A conversa foi desviada para outros assuntos: o tempo, as colheitas, coscuvilhices locais. Perguntei a Menkhep se me poderia recomendar um local onde Djet, o camelo
e eu pudéssemos passar a noite. Ele disse-me que havia uma aldeia a cerca de quilómetro e meio para leste onde poderia encontrar alojamento, mas por um baixo preço,
oferecia-se para partilhar o seu jantar e para nos deixar dormir num pequeno alpendre por detrás do entreposto. Como eu tencionava viajar para sul, no dia seguinte,
e a aldeia ficaria fora de caminho, aceitei a sua oferta.
Para agradecer a toda a gente pela sua hospitalidade, incluindo o meu anfitrião, paguei uma rodada de cerveja a todos os presentes. A cerveja de Menkhep parecia
bastante fina e ligeiramente amarga, mas os habitantes locais pareciam apreciá-la, em especial o velho Hepu. Quando a sede de todos foi saciada, pedi licença e parti
com Djet para tratar do camelo e preparar um local confortável para dormir no chão de terra batida do alpendre.
Menkhep serviu-me mais uma cerveja com o nosso jantar frugal. Foi decerto a cerveja que me permitiu dormir nessa noite, apesar de toda a excitação que eu sentia.
De manhã, seguiria para sul, mantendo-me atento aos sinais de que Hepu falara; ao fim do dia teria chegado ao Ninho do Cuco - ou estaria a flutuar, sem vida, no
Nilo, tendo falhado na minha tentativa.
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XVI
Ainda não era madrugada quando fui acordado pela voz familiar mas inesperada de Hepu, que repetia a mesma coisa com urgência.
- Acorda, romano! Acorda!
Abri os olhos mas não vi nada para além de uma figura escura que pairava sobre mim. Hepu, ele mesmo da cor da noite, era praticamente invisível na escuridão. Pensei
que talvez ainda estivesse a dormir e a sonhar, até ele me ter dado um pontapé. O velho não era tão fraco quanto parecia.
Sentei-me. Ao meu lado, Djet rebolou para o lado e continuou a ressonar.
- Hepu! - sussurrei. - O que é que estás a fazer aqui? O que é que queres?
- Caminhei na escuridão desde a minha casa nos arredores da aldeia, pisando sei lá quantos escorpiões e cobras e é assim que me agradeces?
- Porque é que te devia agradecer? Por me teres acordado a meio da noite?
- Não estamos a meio da noite. É quase de madrugada. E isso significa que te devem estar a vir buscar a qualquer momento.
Senti um arrepio de medo.
- De que estás a falar, Hepu?
- Tu és o ladrão, não és? O jovem romano que matou o homem em Canopo e fugiu com o seu rubi?
-Eu...
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- Não negues! Quantos jovens romanos estão a viajar pelo Delta de camelo, sem outra companhia que um rapaz? Só podes ser tu!
- E se for? O que é que me estás a tentar dizer?
Djet balbuciou, depois mandou-nos calar sonoramente. Eu dei-lhe um empurrão firme, mas ele abraçou o próprio corpo e agarrou-se ao sono.
- Eles vêm atrás de ti muito em breve, jovem romano. Vêm atrás de ti e do rubi, para poderem reclamar a recompensa.
- Quem é que vem? E como é que sabes do rubi?
- Ontem, depois de ter deixado o entreposto, regressei a casa. Depois de já estar escuro, um vizinho veio visitar-me. Disse que tinham chegado uns homens vindos
de Sais à aldeia enquanto eu estava na loja do Menkhep.
- Homens... de Sais?
- Sim. Eram encabeçados por um homem de barba comprida, chamado Harkhebi.
Levantei-me e dei um pontapé a Djet. Este pestanejou e esfregou os olhos.
- Continua, Hepu.
- Os homens de Sais chamaram toda a gente para uma reunião, onde este Harkhebi contou uma história curiosa, sobre um terrível assassinato em Canopo, e um fora-da-lei
romano que se pensava estar algures no Delta, a viajar de camelo com um rapaz. Segundo disse, há uma generosa recompensa pela cabeça do romano e pela devolução do
tesouro com que fugiu.
Djet levantou-se, por fim, atabalhoadamente, com os olhos muito abertos.
- Tudo isto me contou o meu vizinho - disse Hepu -, só porque gosta de falar. Nem ele, nem nenhum outro dos aldeões que se encontravam na reunião sabiam sobre ti;
apenas aqueles que se encontravam ontem no entreposto comercial do Menkhep te conheceram e nenhum de nós esteve presente na reunião. A notícia do meu vizinho apanhou-me
de tal forma de surpresa que quase deixava escapar: "O romano vai passar a noite em casa do Menkhep!" Mas antes que as palavras me saíssem, pensei melhor e fechei
a boca. Quem sou eu para trair um
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bandido como tu, depois de todas as coisas que te disse ontem? Só gostava de ter sabido, na altura, quem eras na verdade. Que histórias me podias ter contado, sobre
ti e os bandidos teus amigos! Abanei a cabeça.
- Não sou realmente um bandido, Hepu.
- Oh, pois, claro que tens de dizer isso, não é? O juramento de honra do bandido? - Dirigiu-me um sorriso sem dentes. - Depois de o meu vizinho ter saído, fui para
a cama. Mas o sono recusava-se a chegar. Dei voltas e voltas. Certamente, pensei, um dos homens que ontem aqui esteve contigo trair-te-á. O velho Rabi fá-lo-á, se
mais ninguém o fizer.
- Rabi?
- Foi aquele que disse a piada rude sobre as mulheres romanas e te dirigiu um olhar tão azedo quando falaste de Cirene. O Rabi não gosta de estrangeiros e é um sacana
ganancioso. Se não teve conhecimento da reunião quando chegou a casa a noite passada, decerto ouvirá falar dela logo pela manhã e correrá de imediato atrás desse
Harkhebi para o lançar no teu encalço. Eu não consegui dormir, só de pensar nas coisas terríveis que te farão quando te capturarem. As horas de tortura, a dor horrível,
a morte, lenta e agonizante...
- Sim, sim, eu compreendo!
- Por isso acabei por desistir de dormir, levantei-me da cama e vim até aqui para te avisar. Como me doem os meus velhos pés! Mas porque é que ainda estamos a falar?
Tens de partir de imediato, jovem romano. Suponho que, de qualquer forma, te encaminhes para o Ninho do Cuco, não é? Que outra razão poderias ter para passar por
este fim de mundo esquecido pelos deuses? - Sob a primeira luz fraca da madrugada, vi uma centelha de admiração nos seus olhos aquosos.
- Sim, eu... eu vou a caminho do Ninho do Cuco. - Não fiz mais do que falar a verdade.
- Tens de partir imediatamente, se te quiseres manter à sua frente. Ah! E ali estava eu, ontem, a contar-1 sobre todas as armadilhas e ratoeiras mortais que impedem
que se chegue ao Ninho do Cuco! Decerto sabes tudo sobre esses perigos e como ultrapassá-los em segurança.
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- Se ao menos soubesse! - murmurei baixinho.
Djet, que tinha compreendido a nossa situação, não precisou de receber qualquer ordem minha para começar a juntar as nossas coisas. Correu para o camelo, que estava
preso a uma palmeira próxima e começou a acordar o animal, que abanou a cabeça sonolenta e lhe cuspiu.
Corri para ajudar Djet a selar o camelo, mas o animal estava irritadiço por ter sido acordado tão cedo e tornou o nosso trabalho duas vezes mais difícil do que deveria
ter sido. À medida que a luz da madrugada se tornava mais forte e o camelo ainda não estava pronto para ser montado, senti uma onda de pânico crescente.
Por fim estávamos prontos para partir. Olhei uma última vez para o saco dos tesouros, depois retirei do seu interior um anel de prata incrustado com uma fila de
minúsculas safiras.
Virei-me para Hepu e coloquei o anel na palma estragada da sua mão.
- Obrigado, Hepu.
Os seus olhos aquosos iluminaram-se.
- Nunca eu tinha visto algo tão belo! Nunca tive na mão tanta riqueza!
Fechei-lhe os dedos em redor do anel.
- Faças o que fizeres, não deixes que eles encontrem este anel na tua posse. Esconde-o algures e recupera-o mais tarde.
Hepu acenou e depois, para minha surpresa, meteu o anel na boca e engoliu-o.
- Um velho truque de bandidos - disse ele. - Mas claro que tu sabes isso.
Quando me virei para montar o camelo, tocou-me no braço. -Jovem romano, um último favor!
- O que é, Hepu?
Nesse mesmo momento, Djet agarrou o meu outro braço. Espetou uma orelha, como se a sua audição mais apurada tivesse detetado um som demasiado ténue para que eu dele
me apercebesse. Ergueu as sobrancelhas em sinal de alarme.
- O rubi - disse Hepu. - Nunca vi um rubi. Mostras-mo? Só um olhar...
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- Aquele som - sussurrou Djet. - Não o ouves? Um raminho que se parte... e algo a restolhar... naquela direção...
Tão depressa quanto pude, tirei o colar de rubi do saco e ergui-o à frente de Hepu. Este emitiu um arquejo. De dedos trémulos, tocou na pedra carmesim.
Ocorreu-me uma ideia: porque não dar o rubi a Hepu e livrar-me dele? Um gesto tão arrojado poderia agradar à Fortuna, de cujo favor eu necessitava agora, mais do
que nunca. Mas e se o rubi fosse o preço requerido pela libertação de Bethesda? E se estivesse realmente amaldiçoado, porque haveria de passar o meu infortúnio para
um homem que me estava a tentar salvar?
O debate na minha cabeça terminou abruptamente quando uma voz gritou.
- Vejam! O rubi!
Girei sobre mim mesmo e vi, por entre os arbustos baixos, a cerca de nove metros de mim, o rosto de Harkhebi. Pareciam estar outros homens reunidos atrás dele, em
grande parte escondidos pela vegetação.
Harkhebi estava parado, a olhar, como que enfeitiçado pelo rubi. Eu tinha sido apanhado em flagrante.
Num movimento contínuo, enfiei o colar no saco, montei o camelo, puxei Djet para a minha frente e estalei as rédeas. O animal endireitou-se com um agitar súbito
dos membros que fez com que Hepu cambaleasse para trás.
- Hut! Hut! - gritei, e partimos, com Harkhebi e o seu grupo a tentarem seguir-nos, atabalhoadamente.
159
XVII
Galopando tão depressa quanto podíamos, seguimos para sul, ao longo do caminho que corria paralelo ao rio. As árvores e os arbustos marcavam o caminho, de tal forma
que eu parecia voar através de um túnel de folhas, encandeado pelos raios oblíquos do sol, à medida que a manhã nascia ao longo do Delta.
Porque é que não parti de imediato quando Hepu me avisou? Qualquer que fosse o avanço que eu pudesse ter, estava perdido. Atrás de mim ouvia homens a gritar e o
balido dos seus camelos. Poderiam os seus camelos ser mais velozes do que o meu?
Foram-se aproximando cada vez mais, até eu ser capaz de compreender o que estavam a gritar.
- Ele está a seguir em direção ao Ninho do Cuco?
- Deve fazer parte do bando!
- O perigo...
- Pensem no rubi!
- Talvez devêssemos voltar para trás... i
- Pensem na recompensa!
Passei tão rapidamente pelo crânio do crocodilo espetado numa
estaca, que a minha mente só registrou a estranha imagem depois de ter passado por ela. De acordo com Hepu, aquele era o primeiro aviso de que estávamos a penetrar
no território do Gangue do Cuco. Todo eu estava em estado de alerta - o meu coração batia acelerado, as minhas mãos suavam, os meus pensamentos eram confusos -,
no entanto, apesar de tudo isso, senti um arrepio de medo.
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O crânio do crocodilo teve um efeito ainda maior sobre os meus perseguidores, pois o bater dos cascos atrás de mim desvaneceu-se abruptamente. Olhei de relance e
vi que os homens de Harkhebi tinham parado e discutiam freneticamente, abanando as cabeças e gesticulando como loucos. Os habitantes locais que se encontravam entre
eles tinham reconhecido o aviso e recusavam-se a continuar.
Aproveitei a oportunidade para aumentar a distância e estalei as rédeas.
-Hut! Hut! -gritei.
O vento assobiava-me nos ouvidos. A luz ofuscante do sol transformou-se num borrão. Depois, num piscar de olhos, dei por mim a agarrar desesperadamente Djet e tudo
o mais que conseguisse. Ao fazer uma curva, tínhamo-nos deparado com o tronco de uma palmeira caído a cortar a passagem. O camelo saltou sobre ele desajeitadamente,
depois cambaleou para a frente, quase nos lançando ao chão no seu esforço para recuperar o equilíbrio.
Hepu tinha falado daqueles perigos. Tratava-se apenas do primeiro. Quão depressa encontraríamos o próximo? O que aconteceria se nos deparássemos com espigões no
chão ou com uma corda esticada a cortar a passagem? Puxei as rédeas, fazendo com que o camelo estacasse de repente. A partir daquele ponto não tínhamos outra escolha
senão avançar lentamente, pensei - depois sobressaltei-me, quando uma voz próxima repetiu os meus pensamentos em voz alta.
- Se queres continuar vivo, vais ter de abrandar.
À minha esquerda, um caminho secundário convergia com o que eu estava a seguir. Ali, sobre um camelo, estava Menkhep. O lojista atarracado e a sua montada estavam
a respirar com dificuldade, como se tivesse corrido até àquele local, numa tentativa para me intercetar e tivessem acabado de chegar. Preparei-me para estalar as
rédeas e fugir, mas Menkhep ergueu a mão.
- Tem calma, romano. Inspira fundo. Pensa! Vais precisar de toda a tua esperteza se quiseres sair disto vivo. E vais ter de confiar em mim.
- Confiar em ti? Para quê?
- Para te levar até ao Ninho do Cuco, seu tolo! Ou isso ou terás de enfrentar aquela turba sedenta de sangue.
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Olhei para trás. Não havia sinal dos meus perseguidores.
- Mas... tu, Menkhep? - perguntou Djet, fitando-o de olhos muito abertos e roubando-me as palavras da boca. Hepu falara de intermediários e informadores que viviam
no mundo da lufa-lufa quotidiana mas que também faziam parte do Gangue do Cuco. Jamais teria desconfiado do simpático e despreocupado Menkhep.
- Desde que a minha esposa morreu. Foi o Filho do Cuco que me recrutou pessoalmente. O meu entreposto comercial fica nos arredores do território do gangue. Eu sou
os seus olhos e ouvidos. Vejo bem todos os que passam por aqui. A maior parte dos viajantes é inofensiva. Alguns são perigosos. Poucos valem a pena ser roubados.
E muito, muito poucos valem a pena recrutar.
-E eu?
- Vales a pena recrutar, sem dúvida... e vales a pena roubar! Menkhep riu. - Acho que o Filho do Cuco vai ficar muito satisfeito quando eu lhe levar o famoso ladrão
sanguinário de Canopo.
Abanei a cabeça.
- Mas eu não sou...
- Tenho de admitir, jamais teria adivinhado que eras tão perigoso. Quando aquela multidão vinda da aldeia chegou de madrugada e o tipo de Sais me disse quem eras,
mal podia acreditar. Depois convidou-me a juntar-me a eles e a partilhar da recompensa. Em vez disso, segui por este atalho... e aqui estamos. Trazes mesmo contigo
um rubi tão grande quanto um ovo de galinha?
Suspirei.
- É mais bpequeno do que isso.
- Ainda assim, o Filho do Cuco ficará muito feliz por vos ver a ambos, a ti e ao teu tesouro. És uma bela pescaria, jovem romano.
Ericei-me.
- Serei teu convidado, Menkhep, ou teu prisioneiro? Menkhep sorriu. ,-
- Talvez os dois. '. Abanei a cabeça, desejando desesperadamente ter outra escolha -
depois saltei. Do cimo do caminho ouvi um grito de reunião, seguido de aplausos.
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- Decidiram-se a vir atrás de ti, apesar do perigo - disse Menkhep.
- A ganância triunfa sobre o bom senso, como sempre. Agora escutem! Segue-me e faz exatamente o que eu fizer. Vai à mesma velocidade do que eu, nem mais depressa,
nem mais devagar. Quando me vires passar para um lado do caminho, faz o mesmo. Caso contrário acabarás com a cabeça cortada ou com uma seta na barriga. Compreendes?
- Sim. - Ouvi o martelar dos cascos e lancei um olhar nervoso para trás de nós. O primeiro dos homens que nos perseguiam tornou-se visível.
Menkhep virou o camelo e partiu sem mais uma palavra.
- Agarra-te bem, Djet - sussurrei e segui-o.
Menkhep manteve um ritmo constante, nem rápido nem lento. Cerrei os dentes com impaciência, enquanto os nossos perseguidores se aproximavam. Será que Menkhep não
se apercebia de quão depressa estavam a ganhar terreno? Depois ouvi um grito de terror e olhei para trás. O homem que liderava o grupo saiu disparado do camelo,
quando o animal tropeçou no tronco da palmeira que se encontrava no caminho.
Menkhep olhou de relance para trás.
- Menos um! - gritou.
Assim foi. As minhas capacidades enquanto condutor de camelos foram levadas ao limite enquanto eu seguia Menkhep, guinando de um lado para o outro, imitando os seus
movimentos de forma tão precisa quanto me era possível, confiando que ele conhecia as armadilhas e ratoeiras ao longo do caminho e como evitá-las. Atrás de nós,
os nossos temerários perseguidores revelaram-se menos afortunados, à medida que iam encontrando um perigo depois do outro. Alguns destes perigos eram meramente inconvenientes.
Outros eram mortíferos.
Aquela longa, confusa e difícil cavalgada assumiu a qualidade de um estranho pesadelo cómico. Por várias vezes quase fomos alcançados por algum dos nossos perseguidores,
que se aproximavam de tal forma que conseguia ouvi-los a gritar atrás de mim e ver claramente o seu rosto, se me atrevesse a olhar por cima do ombro. Por várias
vezes, um destino terrível abateu-se sobre estes perseguidores.
Chegámos a um local onde o caminho bifurcava em redor de um aglomerado de folhagem que crescia como uma ilha. Guinámos para a
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esquerda. O perseguidor mais próximo de nós guinou para a direita - e mergulhou, com camelo e tudo, para um fosso não muito fundo, escondido por ramos de palmeira.
O camelo baliu de dor. O cameleiro voou pelo ar.
O caminho tornou-se mais largo. Mantivemo-nos do lado direito. O perseguidor que seguia no meu encalço avançou pelo meio e acionou um gatilho que fez com que uma
barreira, colocada sobre uma dobradiça, se erguesse no caminho, atirando tanto o camelo como o homem que o montava ao chão. O perseguidor seguinte, estando demasiado
próximo, chocou com o cameleiro caído.
com tamanho obstáculo a bloquear o caminho, a perseguição chegava ao fim, pelo menos durante algum tempo. Menkhep aproveitou a oportunidade para abrandar o nosso
passo, o que me agradou bastante, já que as armadilhas eram cada vez mais frequentes e mais perigosas, e precisava de toda a minha força e atenção para o acompanhar
e seguir os seus movimentos de forma exata.
Por fim, o caminho atrás de nós foi limpo, pois os homens que nos perseguiam lançaram-se de novo atrás de nós e um a um foram-se perdendo, derrubados por uma variedade
de armadilhas engenhosas setas libertadas por gatilhos escondidos, fisgas acionadas por fios -, até restar apenas um obstinado perseguidor. Aproveitando as curvas
e contracurvas do caminho, tentei ver melhor o homem e, por fim, vislumbrei a sua longa barba a bater como um galhardete sob as manchas de luz. Era Harkhebi.
Podia tratar-se do mais velho dos perseguidores, mas talvez também fosse o cameleiro mais experiente e o mais cauteloso, o que explicava que tivesse sobrevivido
até ali. No entanto, se Harkhebi era cauteloso, porque é que não desistia da sua perseguição? Tendo-me localizado - e ao rubi - tão longe de Canopo e tendo chegado
tão perto de me apanhar, o velho devia ter julgado impossível abandonar a caçada. Até os homens mais sábios perdem todo o bom senso quando se vêem mergulhados na
excitação da caça.
Se Harkhebi tivesse levado a sua avante, a minha cabeça teria sido cortada e enviada para Canopo como trofeu. O meu corpo teria sido profanado e a memória de mim
apagada, e quem sabe o que seria de
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Bethesda, ou de Djet, já agora? Não tinha razões para derramar uma lágrima que fosse por Harkhebi. Ainda assim, o seu destino deixou-me arrepiado.
O caminho tornou-se mais largo. O túnel de folhas abriu-se e vi o céu azul por cima de nós. A estrada ergueu-se à minha frente, assumindo uma ligeira inclinação.
Atrás de mim, ouvi Harkhebi gritar palavras de encorajamento ao camelo. A sua voz rouca soava muito próxima.
À minha frente, Menkhep guinou subitamente para a esquerda, saindo por completo do caminho, e deu um pequeno salto para uma saliência na rocha, sem quebrar o passo.
Conseguiria a minha montada fazer o mesmo, a tal velocidade e com tão pouca antecedência? Parecia uma loucura seguir Menkhep, mas puxei com força as rédeas para
levar o camelo para a esquerda.
Senti o animal a resistir. Não tinha tempo para pensar. Puxei as rédeas com mais força. No último momento, o camelo deu o salto e continuou o seu caminho atrás de
Menkhep.
Harkhebi talvez tenha tentado realizar igual manobra - eu ouvi-o a gritar qualquer coisa -, mas, se assim foi, o seu camelo não pôde ou não quis responder a tempo
e, em vez disso, seguiu em frente aos tropeções.
Imediatamente depois do cume do baixo monte, uma trincheira funda e estreita cortava a estrada de um lado ao outro. Se o camelo
fosse mais devagar poderia ter visto a trincheira a tempo e passado por ela sem dificuldade. No entanto, a engenhosa colocação tornava a trincheira invisível a qualquer
pessoa que viajasse a galope até ser demasiado tarde. As patas traseiras do camelo enfiaram-se na trincheira, fazendo-o tropeçar e inclinar-se violentamente para
a frente.
Harkhebi foi lançado do animal e voou pelo ar. Não aterrou na estrada, pois era aqui que a estrada terminava. No local onde deveria estar a estrada, havia um fosso
comprido e largo, tão fundo quanto um homem é alto, repleto de estacas de madeira colocadas próximas umas das outras e afiadas na ponta.
Não o vi aterrar no fosso, mas ouvi o seu grito quando foi lançado pelo ar e, depois, quando aterrou nos espigões, juntamente com os sons do seu corpo a ser furado
em vários locais - rasgar, arquejar, sons
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líquidos francamente diferentes de qualquer coisa que alguma vez ouvira ou quereria voltar a ouvir.
Menkhep fez parar o camelo, depois voltou para trás. Segui-o. À beira do fosso, os camelos viraram as cabeças e bateram, nervosos, com as patas da frente. Era curioso,
pensei, que dois animais burros se melindrassem mais do que as criaturas que os montavam.
Djet gritou perante a imagem pavorosa. Demasiado tarde, tapei-lhe os olhos com a mão.
Como Harkhebi caíra de frente, fomos, pelo menos, poupados à visão do seu rosto. As estacas que o empalavam brilhavam de sangue. Ainda viveu durante um curto período
- a menos que, como por vezes acontece, o chocalhar da respiração e a convulsão dos membros fossem os espasmos de um homem já morto. Depois os seus braços e pernas
contraíram-se, o peito esvaziou-se de ar, as mãos encarquilharam-se em garras, e Harkhebi não mais se mexeu.
Vi que muitas das estacas estavam escurecidas por manchas de sangue mais antigas. Harkhebi não era a primeira vítima do fosso.
Senti-me impelido a chamar pelo seu nome.
- Harkhebi?
Não houve resposta. Engoli a bílis que me invadia a garganta e falei mais alto.
- Harkhebi?
O silêncio foi quebrado pelo choro do seu camelo, que jazia de lado, à frente do fosso, agitando os membros e incapaz de se levantar. O pobre animal tinha partido
as duas patas traseiras.
Menkhep fungou.
- Um líder da cidade de Sais, era o que se dizia. Supostamente, um velho sábio. Devia saber que não nos podia seguir até aqui, o tolo! Que confusão teremos de limpar
- não apenas aqui, mas ao longo de todo o caminho.
- Limpar? - perguntei.
- Temos de retirar os objetos de valor dos cadáveres e livrarmo-nos deles. Os camelos devem ser salvos ou abatidos. vou tratar já deste animal. - Sacou o punhal
da bainha que trazia presa à cintura. - Que trabalheira para o Gangue do Cuco! Espero que valhas o incómodo, romano.
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Menkhep fitou-me, de maxilar tenso e com olhos decididos. Onde estava o lojista despreocupado com quem tinha jantado na noite anterior? Que tipo de homem tinha eu
seguido até àquele local de morte implacável, de onde já não podia regressar?
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XVIII
Tínhamos chegado ao fim da estrada. Quando virei as costas ao fosso, com as suas estacas mortíferas, e me ergui o mais possível sobre o camelo, vi à nossa frente
uma floresta impenetrável.
Menkhep prendeu a sua montada a uma árvore não muito distante e fez-me sinal para que desmontasse e fizesse o mesmo.
- Reúne as tuas coisas e leva-as contigo - disse ele. - E não te esqueças do rubi! - Dirigiu-me um sorriso de esguelha. - A partir daqui seguimos a pé.
- Ainda falta muito? - Espreitei para a mata e escutei o silêncio. Parecia impossível que se encontrasse por perto algum acampamento ou povoação.
Menkhep ignorou a minha pergunta.
- Tens tudo? Acenei.
- Então segue-me.
Menkhep pareceu desaparecer na parte mais espessa da folhagem, mas, quando cheguei a esse mesmo local, vi uma abertura por entre as folhas. O caminho, por assim
dizer, serpenteante tornava-se de tal forma estreito em alguns locais, que eu tinha de avançar de lado. Para Djet era mais fácil, embora a certa altura tivesse tropeçado
e caído num emaranhado de raízes.
Fomos descendo gradualmente o monte, até o carreiro terminar nas margens de uma pequena lagoa imersa em sombras. A nossa chegada sobressaltou um casal de íbis de
bico comprido. As aves bateram as grandes asas brancas e levantaram voo.
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Puxados para a margem lamacenta e presos a estacas, estavam vários barcos. Menkhep puxou um desses barcos, compridos e estreitos, para a água rasa e segurou-o enquanto
Djet e eu subíamos a bordo. O barco era tão estreito que tínhamos de nos sentar em fila. Eu estava no meio, Djet à frente e Menkhep atrás.
- Sabes como remar? - perguntou ele.
- Suficientemente bem - respondi. Menkhep riu.
- Um lojista aprende a ver quando é que as pessoas estão a mentir. Nunca seguraste um remo na tua vida, pois não?
-Bem...
- Mergulha o remo de um lado, depois do outro, assim. - Menkhep demonstrou enquanto eu esticava o pescoço para ver. - Eu navego. Quanto mais fortes e rápidas as
tuas remadas, mais depressa chegaremos e comeremos alguma coisa. Não sei quanto a ti, mas eu estou faminto.
com Menkhep a observar a forma como eu remava e a dar-me conselhos, viajámos de uma lagoa para a outra, abrindo caminho através de jardins de lótus flutuantes e
altos paus de juncos que oscilavam na brisa, ocasionalmente protegidos do sol por pequenas florestas de papiros, que se misturavam com as margens pantanosas. As
libelinhas esvoaçavam à nossa volta. Meigas, mosquitos e uma multiplicidade de outros insetos alados dançavam em enxames sobre as águas. Para onde quer que olhasse,
o mundo parecia zumbir, suspirar e latejar de vida. Encontrei o ritmo necessário a remar e observei o fervilhante espetáculo com uma perplexidade despreocupada -
até as meigas me começarem a zumbir aos ouvidos e os mosquitos a pousarem nos meus lábios e nas minhas pálpebras e a voarem pelo meu nariz acima. Pestanejei, funguei
e sacudi-os sem sucesso, quase perdendo o remo.
Rindo perante o meu tormento, Menkhep deu instruções a Djet para que se virasse para trás e afastasse os insetos soprando sobre eles e sacudindo-os.
Voltei a remar e acabei por recuperar o ritmo constante, sentindo a pressão da cintilante água verde contra o meu remo, equiparando a minha força à do rio. A rotina
deu lugar à monotonia e a monotonia
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ao aborrecimento e, depois, ao cansaço, até que, a certa altura, me pareceu que estávamos a andar em círculos, passando pela mesma lagoa, uma e outra vez, atravessando
uma paisagem aquosa sem marcos discerníveis. Talvez Menkhep me tenha, de facto, levado a atravessar a mesma extensão de água mais do que uma vez, para me confundir
e tornar mais difícil para mim encontrar o caminho de ida e volta.
Por fim, virámos para uma enseada estreita, com pântanos relvados de ambos os lados. Menkhep disse-me que parasse de remar. O barco parou e, durante alguns instantes,
ficámos a flutuar sem sair do mesmo sítio, fitando o cintilar da luz do sol sobre a superfície das águas e ouvindo o zumbir dos insetos. Depois, a partir das ervas
altas à nossa direita, ouvi uma série de assobios que não se pareciam com pássaro algum que eu tivesse ouvido no Delta. Levando os dedos à boca, Menkhep respondeu
com uma série de assobios semelhantes. Depois de uma pausa, ouvimos ainda mais assobios.
- E o sinal para avançarmos - disse Menkhep. - Começa a remar outra vez, enquanto nos faço contornar aquela pequena curva. Depois vê-lo-ás.
- Verei o quê? - comecei por perguntar, mas, um instante depois, a minha pergunta foi respondida. No lado mais distante da lagoa estreita vi uma pequena aldeia de
cabanas. As cabanas eram feitas de lama seca e ramos, com telhados de colmo. Parecia-se com a Cabana de Rómulo no monte Palatino, que o meu pai me tinha mostrado
quando eu era pequeno. A própria cidade de Roma tinha começado como uma povoação de cabanas, tal como esta.
Projetando-se na lagoa estava um cais comprido e baixo, ao qual estavam presos muitos barcos. Estes barcos tinham o dobro da largura daquele em que me encontrava
e eram muito mais compridos, suficientemente grandes para acomodar vinte homens ou mais. Da direção de onde tínhamos vindo, um jovem corria ao longo da margem da
lagoa à nossa frente, segurando um assobio junto à boca e soprando uma série de notas. Tratava-se do vigia que nos tinha dado ordem para avançar e que agora alertava
os camaradas para a nossa chegada.
Os homens começaram a emergir das cabanas e da vegetação em volta. Que aparência esperava eu que os membros do Gangue do Cuco
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tivessem? Selvagens de olhos loucos, suponho eu. De facto, tratava-se de um grupo heterogéneo. A maior parte já tinha vinte e muitos, trinta anos, mas alguns tinham
a minha idade ou menos. Não havia velhos entre eles e os poucos que tinham fios grisalhos nas barbas pareciam numa forma excecional.
Alguns tinham o rosto por barbear e o cabelo emaranhado, mas
outros estavam bem arranjados. Uns usavam túnicas rasgadas ou panos de linho a cingir os rins, mas outros estavam bem vestidos e todos usavam jóias - exibindo as
riquezas que tinham roubado às suas vítimas, sem dúvida. Alguns, com exceção das jóias, estavam completamente nus.
Isto sobressaltou-me, pois na minha terra, fora dos banhos apenas os escravos e as crianças eram vistas nuas em público. Claro que aquele não era um espaço público,
bem pelo contrário; tínhamos chegado a um dos locais mais reservados e secretos à face da terra. Os membros do bando eram todos homens - com uma curiosa e surpreendente
exceção, como estava prestes a descobrir -, e se um homem estava vestido ou não era irrelevante para eles. Os que preferiam andar nus, andavam.
Alguns franziram o sobrolho quando nos viram, mas outros
olhavam-nos com rostos inexpressivos ou sorriam. Vários homens dirigiram a Menkhep um aceno amigável.
Foram-se juntando cada vez mais homens. De onde estava sentado era difícil estimar o seu número, mas deviam ser bem mais de cem, talvez até duzentos.
Quando nos aproximámos do cais, Menkhep fez-me sinal para parar de remar. Orientou o barco, virando-o de forma a pararmos perpendicularmente à ponta do cais. As
minhas pernas estavam rígidas do tempo que passara sentado e doíam-me os braços de tanto remar. Estava ansioso por sair do barco. O mesmo se passava, pelos vistos,
com Djet, que saltou de imediato.
- Senta-te! - gritou Menkhep. Djet dirigiu-me um olhar intrigado.
- Faz o que ele diz - sussurrei. - Espera que nos convidem. De rosto vermelho, Djet voltou a instalar-se na proa do barco. Provindos da multidão na outra ponta do
cais, ouvi gritos e murmúrios. Um nome era repetido uma e outra vez.
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- Onde está o Artemon?
- Vai chamar o Artemon!
- O Artemon tem de vir aqui!
Virei a cabeça e olhei para Menkhep.
- Quem é o Artemon?
- O Filho do Cuco, claro. O nosso líder. Deve ser ele quem lá vem. A multidão afastou-se. Os gritos e murmúrios desvaneceram-se. De
súbito, a pequena lagoa ficou tão silenciosa que eu não ouvia mais do que o coaxar de um sapo entre os juncos próximos - e depois um outro som, que parecia vir de
muito mais longe, o rugido de um animal enorme. Este fez-me recordar os sons que ouvira em Alexandria, vindos do outro lado do muro do jardim zoológico que estava
ligado ao palácio real, onde o rei Ptolomeu guardava um conjunto privado de criaturas exóticas. Que tipo de animal pavoroso emitia um rugido tão profundo e ameaçador?
E porque é que ninguém na multidão parecia sobressaltar-se com ele?
Não tive mais tempo para pensar no estranho som, pois nesse momento uma figura emergiu da multidão e subiu para o cais. Como a maior parte dos homens, estava vestido
em cores baças, verdes e castanhos que se confundiam com a paisagem, mas ao contrário dos restantes usava um lenço vermelho-vivo em redor da cabeça. Lembrei-me de
algo que o meu pai me contara sobre como os generais romanos eram famosos por usarem capas vermelhas que permitiam destacá-los dos restantes e tornarem-se visíveis
para as tropas.
Gesticulando para que eu e Djet ficássemos no barco, Menkhep passou habilmente por nós e saltou para o cais. Avançou para a figura na outra ponta. Os dois conversaram
durante algum tempo, mas as vozes estavam demasiado baixas para que os ouvisse. O homem com o lenço vermelho na cabeça começou a avançar na nossa direção, seguido
por Menkhep.
Artemon era alto e de ombros largos. Os seus passos sobre o cais soavam pesados e sólidos. Tudo na sua postura transmitia confiança e uma aura de comando, mas, quando
se aproximou o suficiente para que distinguisse com clareza as suas feições, fiquei em choque.
Estava à espera de que o líder dos bandidos fosse um veterano grisalho e coberto de cicatrizes, um bruto de feições rudes capaz de
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inspirar o terror com um olhar. Em vez disso, vi um jovem elegante de maçãs do rosto altas, uma testa lisa, brilhantes olhos azuis e lábios tão vermelhos que poderiam
ter sido pintados, como fazem as mulheres. A sombra insignificante que lhe cobria o maxilar quadrado era mais uma sugestão de barba do que uma barba verdadeira.
Era, certamente, mais jovem do que eu, talvez ainda fosse um adolescente.
Por um momento pensei que este tipo não devia ser Artemon, mas talvez o mensageiro de Artemon. Depois, mantendo o olhar fixo em mim, chegou ao final do cais e apresentou-se.
- Chamo-me Artemon. Quem és tu?
Mantendo-me sentado no barco, tive de inclinar consideravelmente a cabeça para que a minha garganta não estivesse tapada e as palavras que me saíram da boca soaram
estranhamente abafadas.
- Chamo-me Marco Pecúnio - disse, decidindo manter o nome falso que tinha usado desde que chegara a Sais.
- És romano? - perguntou, falando, para minha surpresa, em latim. Respondi em latim.
- Agora vivo em Alexandria. Mas sim, venho de Roma. Artemon acenou. Menkhep colocou-se ao seu lado e ele voltou a
falar grego.
- O meu camarada diz-me que tens uma reputação e tanto. Diz que toda a aldeia veio atrás de ti, encabeçada por um velho pateta de Sais. Mas diz que conseguiste escapar
a todos eles. Que os deixaste a comer o pó... aqueles que sobreviveram às armadilhas do caminho.
- Tivemos uma manhã entusiasmante - disse eu. Artemon sorriu.
- O Menkhep diz que o líder da cidade de Sais realizou contra ti uma acusação deveras chocante, a de que assassinaste um grupo de viajantes em Canopo, sozinho, tendo
fugido em seguida com um saco cheio de jóias. - Ergueu uma sobrancelha e espreitou para mim por cima do nariz. - Não me pareces um assassino frio, Marco Pecúnio.
- E tu não pareces o líder de um grupo de bandidos. Artemon atirou a cabeça para trás e riu.
- E quantos líderes de grupos de bandidos é que conheceste? Não respondi.
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- Tal como eu pensava - continuou. - Ao passo que eu vejo assassinos frios todos os dias. - Acenou para a multidão na outra ponta do cais. - Como tal, neste caso,
quem será um melhor avaliador de carácter, Pecúnio, tu ou eu?
O seu olhar impassível fez-me tremer. Podia ser jovem, e também belo, mas percebi que Artemon não era homem com quem se brinque. Além disso, sentia-me confuso. Um
jovem egípcio que falava latim e que conseguia apresentar os seus argumentos em termos tão elegantes tinha, certamente, recebido uma educação formal. Como é que
um jovem assim se tinha tornado o líder do grupo de bandidos mais famoso do Delta?
Artemon viu a consternação no meu rosto e pareceu divertido.
- Não te preocupes, Pecúnio, não vou ficar aqui a colocar-te questões embaraçosas. Se o Menkhep responde por ti, isso basta... pelo menos, para já. Neste local,
descobrirás que não fazemos demasiadas perguntas. Aqui, o importante é o que um homem faz e como se relaciona com os seus camaradas; não de onde vem, que língua
fala, quem eram os seus pais... ou se matou ou não algumas pessoas. Mas vou querer espreitar para esse saco que trazes contigo. Se estiver cheio de jóias, como o
Menkhep parece pensar, serás autorizado a manter parte; por ísis, mereceste-o se vieste a fugir de Canopo com uma multidão no teu encalço! Mas espera-se que partilhes.
Essa é regra aqui: partilhar e partilhar em partes iguais. Se quiseres pisar este cais, tens de aceitar isto.
Encolhi os ombros.
- Compreendo. Se não fosse pelo Menkhep, seria agora um homem morto. Estou grato pela vossa hospitalidade.
Artemon acenou, depois olhou para Djet.
- E o rapaz? É teu filho?
- Não.
- Teu escravo?
- Não.
- Então o que é que te é?
- Isso é... algo complicado.
Artemon cerrou os lábios e encolheu os ombros.
- Quanto a esse tipo de coisas, também não fazemos perguntas. Ainda assim, não é uma boa ideia trazer um rapaz para um sítio como
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este. Para começar, um rapaz não consegue fazer o trabalho de um homem.
- O que lhe falta em tamanho e força, compensa em esperteza disse eu. Djet acenou e riu.
Artemon parecia hesitante.
- Além disso, alguns dos homens podem distrair-se com um rosto tão belo.
"Não é mais belo do que o teu rosto", pensei.
- Chama-se Djet. Assumirei toda a responsabilidade por ele.
- É melhor que o faças. Bem, nesse caso, Pecúnio... e Djet... bem-vindos ao Ninho do Cuco. Porque é que não saem do barco? Devem estar com fome, depois de uma tão
animada viagem. Estamos prestes a comer. Terei todo o gosto de que se juntem a nós, como meus convidados pessoais.
Djet saltou habilmente para o cais. Quando me levantei, o barco oscilou e eu oscilei perdendo o equilíbrio. Artemon agarrou-me o braço e puxou-me para o cais ao
seu lado. Tinha força e era bem mais alto do que eu.
Quando nos aproximámos da multidão no final do cais, olhei com mais atenção para os rostos que me fitavam. A maior parte dos homens parecia bastante normal, mas
não estava eu entre os criminosos mais perigosos da terra, a escumalha da sociedade, os mais miseráveis entre os mais miseráveis? Senti um súbito arrepio de pânico.
"Onde é que te foste meter?", pensei. "Por Hades, o que é que estás a fazer num lugar tão esquecido como este?"
Depois vislumbrei uma figura que se erguia algo afastada da multidão, só e reservada. Não a pude ver com clareza, mas pelo cabelo, pela roupa e pela forma como se
comportava, soube que se tratava de uma mulher.
Poderia ser Bethesda?
O meu coração saltou-me no peito. Queria empurrar Artemon para o lado e correr à sua frente, usar os cotovelos para abrir caminho através da multidão e erguer-me
à sua frente. E,m vez disso, sustive a respiração, cerrei os punhos e avancei com um passo tão firme quanto me era possível. Olhando para lá da multidão, tentei
ver melhor.
A mulher tinha desaparecido.
175
XIX
Segui Artemon - e o meu nariz - até à cova onde se faz o fogo para assar a comida e aos fornos de barro que estavam localizados numa clareira, a alguma distância
das cabanas, onde a multidão se tinha alinhado para comer.
Pensei que Artemon fosse servido primeiro, mas parecia não existir regra alguma em relação a isso, a não ser que quem chegava primeiro era servido primeiro. Troncos
de árvore derrubados serviam de assento. Como estes estavam colocados em círculo na periferia da clareira, não havia um lugar de honra e todos pareciam sentar-se
onde quisessem. O lugar que Artemon escolheu tinha a vantagem de ficar na direção contrária à do vento, em relação à cova onde se assava a comida, longe do fumo.
A refeição era muito melhor do que o esperado. Havia tilápia acabada de pescar no rio, cortada em pedaços e assada no espeto, um caldo feito com um feijão que me
era desconhecido, pedaços generosos de pão ázimo e até um molho para o peixe feito com picles de coração de palmeira, tudo servido sobre pedaços de casca de palmeira
alisados.
A comida era deliciosa, mas eu tinha pouco apetite. Estava demasiado entusiasmado com a possibilidade de Bethesda estar por perto. Quando e como deveria eu revelar
o propósito da minha vinda, sem nos colocar a ambos em grande perigo? De momento, parecia-me mais sensato manter a boca fechada.
- Deixa que te diga, ele come como um adulto - disse Artemon, reparando no saudável apetite de Djet.
- Acho que nenhum de nós gozou de uma boa refeição desde que deixámos Alexandria - admiti.
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- Por acaso, temos entre nós alguns cozinheiros muito bons.
- Também acho que nunca comi num prato como este. Bastante engenhoso.
- Também temos entre nós hábeis artesãos.
- Se estes homens são tão hábeis, porque é que...
- Porque é que estão aqui, em vez de viverem uma vida normal, respeitadora da lei, vendendo o seu trabalho numa aldeia normal? Era isso que estavas a pensar?
Assenti.
- Mas calaste-te antes de terminar a questão, por isso suponho que compreendas: esse não é o tipo de pergunta que devas fazer a nenhum destes homens, mas vejo que
tens uma mente inquisitiva, Pecúnio, e a curiosidade, em doses moderadas, é uma virtude. - Fez uma pausa para comer um pedaço de peixe, depois prosseguiu. - tu e
eu somos jovens, Pecúnio... mais jovens do que a maior parte dos homens que aqui está. Eles já viram mais da vida do que nós. Sejam livres ou escravos, a vida de
todos os homens é cheia de perigos: doenças, a morte de entes queridos, provações, fome. Quando um homem passa por dificuldades, a sua melhor escolha pode ser deixar
para trás a sua velha vida e ver o que uma vida diferente pode ter para oferecer.
Aquela era a melhor desculpa que alguma vez ouvira para cair numa vida de banditismo. Sentia-me cético, mas mantive a boca fechada. Djet, por outro lado, começou,
de súbito, a tremer de excitação.
- Mas que homem não ficaria curioso com a vida dos bandidos? disse, atabalhoadamente. Apercebi-me do ar estupefacto com que olhava para Artemon.
- A cabeça do rapaz está cheia de histórias - disse.
- Como a cabeça de todos os rapazes, ha? - Artemon despenteou Djet. - Mas o rapaz tem razão. Nem todos os homens se juntam a nós por causa de um coração partido
ou de provações. Alguns juntam-se simplesmente porque o querem fazer. Já estavam fartos de seguir a lei e lançaram-na para trás das costas, como quem deita fora
um par de sapatos que magoam os pés. A vida que levamos não é adequada para todos os homens, mas para aqueles a quem se adequa não há melhor vida.
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Artemon ficou em silêncio durante algum tempo, sentado, direito, no tronco ao meu lado, e a comer a sua refeição, levando à boca pedaços pequenos e mastigando-os
bem antes de engolir. Eu olhei em redor da clareira e vi que muitos dos homens não tinham melhores maneiras que os porcos, mas as de Artemon eram bastante elegantes
- quase ridiculamente elegantes, tendo em conta as circunstâncias.
- E tu, Pecúnio? Pelo que o Menkhep me contou, não escolheste propriamente vir para aqui, pois não?
Sentia-me relutante em mentir-lhe diretamente.
- Cheguei aqui devido a uma estranha cadeia de acontecimentos, isso é certo. Creio que talvez tenha sido a deusa Fortuna quem me guiou até aqui.
- A sério? A maior parte das vezes os deuses nada querem connosco, ou nós com eles... um acordo que satisfaz todos os interessados.
- Falas como um filósofo, Artemon.
- E o que sabes tu de filósofos, Pecúnio? "Mais do que líderes de bandidos", pensei.
- Tive, de tempos a tempos, por tutor um homem sábio, quando estava a crescer em Roma. Foi assim que aprendi grego. Era mais um poeta do que um filósofo, se é que
existe alguma diferença. E tu, Artemon? Como é que aprendeste a falar latim? Ou é uma pergunta proibida?
Artemon não respondeu. Em vez disso, pousou o prato vazio, levantou-se e olhou para norte.
- Aquilo é uma tempestade - disse.
O céu sobre as nossas cabeças estava azul, mas nuvens negras amontoavam-se ao longo do horizonte a norte.
- Aquelas nuvens não estavam lá há pouco - disse eu.
- Não. Estão sobre o mar aberto, para lá da foz do Delta. As tempestades podem surgir de forma muito repentina nesta altura do ano.
Encolhi os ombros.
- As vossas cabanas parecem-me bastante resistentes. O vento e a chuva podem não chegar aqui tão longe.
Artemon sorriu.
- Não estou preocupado com a tempestade, Pecúnio. Bem pelo contrário.
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Apercebi-me de que vários homens se tinham juntado a Artemon, olhando para norte. Alguns acenavam, com gravidade. Outros davam cotoveladas aos companheiros do lado,
apontavam para o céu e sorriam.
Abanei a cabeça, sem compreender.
- Isto é um augúrio?
- O que te parece, Pecúnio? Não estão os romanos constantemente a ler o céu em busca de sinais e portentos?
- Os homens que o fazem chamam-se augures. Treinam durante anos.
- Então não tens quaisquer capacidades como augure? Abanei a cabeça.
- Ah, bem. Felizmente temos entre nós videntes de confiança. Olhei à minha volta, duvidando que algum membro daquele bando
heterogéneo pudesse possuir uma centelha sequer de presciência divina. Artemon não acabara de admitir que o bando nada queria com os deuses?
- Não comeste quase nada, Pecúnio. Pensei que tinhas gostado da comida.
Encolhi os ombros.
- A excitação do dia...
- Bem, se já terminaste, não desperdices a comida. O Menkhep está ali, a comer com amigos. Dá-lhe a tua dose. Djet, anda comigo. Vamos lavar os pratos no rio e colocá-los
de novo na pilha. Depois sugiro que nos retiremos para a minha cabana.
Vista do exterior, a cabana de Artemon era impossível de distinguir das restantes. No interior, sobre o chão de terra, uma base erguida sustinha um colchão de palha.
Ao seu lado estava um baú com uma fechadura, que, tanto quanto eu sabia, podia estar repleto de tesouros roubados.
O resto da cabana, desconfiei, era diferente das restantes, pois todos os espaços disponíveis estavam repletos daquilo a que nós romanos chamamos capsae, recipientes
de couro portáteis para armazenar pergaminhos. Sobre todas as superfícies planas, estava um pergaminho, desenrolado e mantido aberto por pequenos pesos de chumbo.
A maior
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parte destes pergaminhos estavam repletos de escritos em grego mas alguns pareciam ser mapas. Aproximei-me de um dos mapas, que estava aberto sobre uma mesinha baixa,
ao lado da cama, e vi que representava Alexandria. Fitei os símbolos dos marcos familiares - a Porta da Lua e a Porta do Sol, o Templo de Serápis, o túmulo de Alexandre
- e senti saudades de casa.
Até Djet, que não sabia ler, reconheceu o mapa. Pousou o dedo na imagem do Farol de Faros e disse, de forma, a meu ver, deveras astuta.
- Pergunto-me se a tempestade chegará a Alexandria?
- Provavelmente não - respondeu Artemon, seguindo-nos para o interior e prendendo o pedaço de pano que tapava a entrada, de forma a permitir a entrada de mais luz.
- O vento parece estar a soprar mais para este do que para oeste, e sobretudo para sul.
Olhei de novo para o mapa. Alguém tinha traçado um círculo vermelho em redor da Rua dos Sete Babuínos e um ponto vermelho marcava a localização exata da casa de
Tafhapy. A minha respiração acelerou e senti o coração a bater com força no peito. Decerto isso significava que a suposição de Tafhapy estava correta - aquele era,
de facto, o bando que tinha tentado raptar a sua querida Axiothea, mas levara antes Bethesda. Estaria ela entre aqueles homens ou não?
- És leitor de livros, Pecúnio?
- Quando consigo deitar a mão a um.
- Pareces ter ficado sem fôlego! É bom encontrar um homem que se entusiasma ao ver pergaminhos. Deve ser frustrante para ti viver em Alexandria. Não há cidade sobre
a terra que possua mais livros, mas apenas os que recebem autorização dos bibliotecários reais podem vê-los. Ainda assim, não é escasso o comércio de cópias contrafeitas
divulgadas pelos escribas reais ansiosos por fazer mais algum dinheiro. Um homem consegue encontrar praticamente qualquer coisa em Alexandria, desde que procure
com afinco suficiente.
Acenei tolamente.
- A maior parte destes pergaminhos não passam de entediantes documentos antigos: cartas administrativas, registos de impostos, autorizações de viagem... o tipo de
coisas que encontramos quando assaltamos uma caravana ou pilhamos um navio naufragado. Ainda assim,
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nunca deito nenhum pergaminho fora, pelo menos não sem o estudar bem. Podemos aprender algumas coisas interessantes com estes velhos e entediantes documentos. E,
por vezes, encontramos um verdadeiro tesouro. Os poemas completos de Mosco estão nessa capsa aos teus pés. Mas por falar em tesouro... vamos dar uma olhadela a essa
bolsa que trazes contigo.
Artemon retirou o mapa da mesa baixa, enrolou-o e arrumou-o, depois estendeu a mão e tirou-me a bolsa.
Sentou-se na cama, abriu-a, depois espreitou para o interior e assobiou baixinho. Primeiro retirou as moedas e separou-as, dividindo-as em pilhas cuidadosas. Em
seguida retirou os anéis, um a um, examinando cuidadosamente todos eles, como um joelheiro que avalia o seu valor. Tudo isto sem qualquer comentário, mas quando
retirou da bolsa o último objeto, o colar de prata com o rubi, arquejou. Ergueu a jóia na direção de um raio de sol que entrava, enviesado, pela porta, fazendo com
que a pedra brilhasse com uma ardente luz vermelha, como uma brasa incandescente.
- Então foi por causa disto que o velho pateta de Sais te seguiu até aqui e até à sua morte. De facto, é magnífica.
Durante muito tempo, Artemon pareceu incapaz de afastar os olhos do rubi. Por fim, agarrou-me na mão e largou a jóia na palma desta.
- Infelizmente, vais ter de abdicar dos anéis, Pecúnio, e de metade das moedas. Mas podes ficar com o colar de rubi.
- O quê?
- Opões-te a entregar os anéis?
Pelo contrário, estava chocado com o facto de ele me deixar ficar com o rubi.
Artemon não compreendeu.
- Pensa, Pecúnio! Comparados com o rubi, os anéis são banais, tal como as moedas. O seu maior valor é a boa vontade que poderás comprar aqui quando os partilhares
com os outros. Ninguém é mais amado do que um ladrão generoso.
- Bem... se insistes.
- Garanto-te que é a coisa certa a fazer. Mas não exibas o rubi. Todos os homens gostam de usar o seu saque, mas ninguém possui
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nada que se pareça com isto. O simples facto de verem um tal tesouro pode levar um dos homens a fazer algo de que todos nos arrependamos.
Apertei o rubi na mão fechada. Se Artemon o achava tão raro e belo, então poderia certamente usá-lo para comprar a liberdade de Bethesda, se ela estivesse de facto
ali. Teria chegado a hora para perguntar a Artemon por ela? Deveria ser circunspecto e começar por perguntar pela mulher que tinha visto ao chegar, ou perguntar
simplesmente se viviam mulheres no Ninho do Cuco? Ou deveria ser mais direto?
Enquanto estava a pensar nisto e antes que pudesse tomar uma decisão, Artemon levantou-se e fez-me sinal de que era hora de deixar a cabana. Agarrei na minha metade
das moedas e voltei a guardá-las, juntamente com o rubi, na bolsa, depois prendi-a firmemente à cintura. Reparei que Artemon tomou um dos anéis - o mais pequeno,
incrustado com uma cornalina vermelho-sangue, que Obodas provavelmente usara no mindinho - e guardou-o dentro da túnica, mas os restantes anéis e moedas foram deixados
à vista de todos, sobre a mesa baixa. Não se deu sequer ao trabalho de tapar a entrada com o pano. A sua confiança nos restantes bandidos espantou-me.
Conduziu-nos a uma cabana próxima.
- Tu e o rapaz podem dormir aqui.
- Está vazia? - perguntei. Artemon acenou lugubremente.
- Os homens que aí costumavam dormir já não estão entre nós. Por vezes, como hoje, o nosso número aumenta. Por vezes, sofremos uma perda.
Qualquer outra explicação foi interrompida pela chegada de Menkhep.
- És preciso, Artemon.
Artemon suspirou. De súbito, pareceu mais velho do que era na realidade, um homem com muitas solicitações.
- O que foi agora? Outra discussão?
- Não. Ela está a chamar por ti.
Inspirei fundo. Artemon pareceu não responder.
- Sobre o que achas que seja? A tempestade? O recém-chegado?
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- Não sei. Mas ela insiste em ver-te.
Artemon assentiu. Pareceu esquecer-se de mim, enquanto seguia Menkhep.
- Artemon! - chamei.
Este parou e olhou por cima do ombro.
- Instala-te na cabana, Pecúnio, podes explorar à vontade. Ainda resta alguma luz do sol.
- Posso ir contigo?
Artemon considerou a pergunta. Por fim, assentiu.
- Se quiseres. Terás de a conhecer, mais cedo ou mais tarde. com o coração acelerado, aprecei-me a segui-lo com Djet no meu
encalço.
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XX
Segui Menkhep e Artemon através da pequena aldeia de casebres e através da clareira com a cova onde se assava a comida. Um carreiro estreito e sinuoso conduzia até
à beira da água e, depois, através dos arbustos espessos ao longo das margens da ilha. Por fim, à nossa frente, por entre as plantas, obtive alguns vislumbres de
uma cabana solitária, localizada bastante longe das outras.
Menkhep tinha-se deixado ficar para trás em relação a Artemon. Toquei-lhe no braço e falei-lhe ao ouvido.
- Esta mulher... quem é ela, Menkhep? Como é que se chama? Embora eu tivesse mantido a minha voz baixa, Artemon ouviu-me.
Parou e virou-se, permitindo que o alcançássemos.
- Chama-se Metrodora - disse.
Senti-me desanimar. Estava à espera de ouvir o nome Axiothea, talvez até Bethesda. Tentei esconder a minha deceção.
- Metrodora? É um nome grego.
- Sim. Não é egípcia. Vem de Delfos. Quando era jovem, foi treinada para ser a Pítia. Sabes o que é a Pítia, Pecúnio?
- Claro. A princesa de Delfos que profere as profecias inspirada por Apoio. Até em Roma, já todos ouvimos falar do Oráculos de Delfos.
- Foi o que pensei.
- Estás-me a dizer que uma princesa de Delfos está a viver aqui, no Delta? - A ideia era absurda.
Artemon sorriu.
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-Já aconteceram coisas mais estranhas. Mas, na verdade, a Metrodora nunca se tornou sacerdotisa. A viagem da sua vida seguiu um rumo diferente. Já viveu em muitos
locais, já fez muitas coisas. Mas tal como acontece com os homens que para aqui vêm, não a pressionamos com demasiadas perguntas.
- Pensei que não permitiam mulheres entre vocês - disse.
- A Metrodora é diferente. Possui dons especiais. Não sei o que faríamos sem ela.
- Quando disseste que havia entre vocês um vidente, estavas a falar desta Metrodora?
- Sim.
- Ela vê o futuro?
- Por vezes. E, por vezes, vê eventos distantes enquanto estão a acontecer. Cura os doentes. Lança feitiços para atrair a boa sorte e também maldições contra os
nossos inimigos.
- É uma bruxa?
Artemon abanou a cabeça.
- Isso seria uma palavra demasiado simples para descrever a Metrodora. Quando chegarmos à cabana dela, ficarás à espera no exterior. Entra apenas se eu te chamar.
- Artemon virou-se e continuou a andar.
A estrutura isolada erguia-se numa pequena clareira ao lado da água. Tinha o dobro do tamanho das outras cabanas que vira e parecia ser composta por duas cabanas,
construídas traseiras com traseiras e unidas por uma sala comunicante ou passagem. Artemon ergueu-se à frente do pano que cobria a porta mais próxima e chamou o
nome da vidente.
Quando esta lhe respondeu, no interior, sobressaltei-me. A voz da mulher despertou em mim uma memória distante, tentadora mas demasiado ténue para ser agarrada.
Uma coisa era certa: não era a voz de Bethesda.
Artemon entrou na cabana. Eu e os restantes esperámos. Menkhep sentou-se no toco de uma árvore próxima e fechou os olhos. Djet divertiu-se a observar um sapo à beira
de água. À medida que o sol se afundava atrás das árvores, lançando os seus raios oblíquos, começou a levantar-se vento, trazendo consigo o cheiro da chuva. O céu,
a norte, foi escurecendo. A densa vegetação à nossa volta foi inundada por um estranho crepúsculo.
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Por fim, Artemon emergiu da cabana. Dirigiu-me um olhar perplexo.
- Ela quer falar consigo, Gordiano.
Acenei e entrei. Só quando deixei que o pano caísse atrás de mim é que me apercebi de que ele usara o meu nome verdadeiro.
A sala circular estava tenuemente iluminada por uma lâmpada solitária que pendia do teto. Num pequeno tapete, estava sentada uma mulher, de pernas cruzadas.
Olhei para a tralha à minha volta. Sob a luz fraca vi o brilho do ouro, da prata e das jóias. Objetos preciosos enchiam a divisão. Tratar-se-ia das ofertas deixadas
pelos bandidos pelos seus serviços? Também vi vários utensílios de feitiçaria: lamparinas e incensários, frasquinhos de líquidos e pós, pedaços de osso, tabuinhas
de chumbo para escrevinhar as maldições. Por detrás da mulher vi uma cortina que, presumi, daria acesso à cabana adjacente.
A mulher falou.
- Pareces perplexo, jovem romano.
- Como é que o Artemon soube...
- O teu nome verdadeiro? Gordiano é o teu nome, não é?
- Sim. - Não valia a pena negá-lo. Mas como é que ela o podia saber?
- Não te preocupes. O Artemon não te censurará por lhe teres dado um nome falso. A maior parte dos homens que para aqui vêm fazem o mesmo. Ele continuará a chamar-te
Pecúnio, se for esse o teu desejo.
- E tu? - Espreitei para o seu rosto encapuzado, mas só vi sombras.
- Metrodora é o teu nome verdadeiro?
Ela riu. Como acontecia com a voz, o seu riso era irritantemente familiar.
- Atravessaste muitos perigos para chegar aqui, Gordiano.
- Sim.
- Pensaste que estavas finalmente fora de perigo, agora que chegaste ao Ninho do Cuco? O perigo maior ainda agora começou!
Apesar do calor húmido da divisão, senti um arrepio.
- Como é que sabes o meu nome? Como é que podes saber o que quer que seja sobre mim?
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- Sei que vieste até aqui em busca da coisa que te é mais querida em todo o mundo.
Arquejei, pois ela parecia ter penetrado os meus pensamentos mais profundos. Mas teria mesmo? Não poderia estar tão-só a adivinhar, usando os truques conhecidos
de todos os videntes de esquina de Alexandria? Não chegavam todos os homens àquele lugar em busca dos desejos do seu coração, fosse este liberdade, aventura ou uma
vida nova?
- Irei encontrar a coisa que mais procuro?
- A coisa que procuras está muito perto.
- Isso não é resposta.
- Muito perto - repetiu.
- Quão perto?
A mulher apontou para a passagem atrás de si.
- Do outro lado desta cortina. A poucos passos... e, no entanto, ainda muito longe de ti.
O que quereria ela dizer com aquilo? Estaria Bethesda na sala ao lado? O meu coração deu um tal salto que eu pensei que o meu peito ia rebentar. Sentia a cabeça
leve. A minha respiração tornou-se entrecortada.
Avencei na direção da cortina. A mulher permaneceu sentada no chão, mas acenou-me para que recuasse e sibilou.
- Se entrares agora, Gordiano, morrerás de certeza! Eu tremia de frustração.
- A Bethesda está ali ou não? - disse por entre os dentes cerrados.
- Porque é que não a posso ver?
A mulher levou um dedo aos lábios.
- Baixa a voz ou poderão ouvir-te.
- Quem é que me poderá ouvir? - sussurrei. - Porque é que me estás a atormentar?
Ela ergueu os olhos para mim, colocando a cabeça numa posição tal, que, por um instante, a lâmpada lhe iluminou claramente o rosto.
- Ismene!
Não podiam restar dúvidas. A mulher que estava sentada à minha frente era a bruxa de Corinto.
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Durante a minha grande viagem para ver as Sete Maravilhas, realizara várias viagens paralelas. Uma das mais memoráveis tinha sido uma visita às ruínas de Corinto.
Quando vi Ismene pela primeira vez, esta não me parecera nada mais que uma empregada de uma taberna, mas os eventos subsequentes revelaram tratar-se de uma praticante
de bruxaria. Muitos homens tinham morrido naquela taberna, durante a nossa estadia, às mãos de outro culpado que não Ismene; no entanto, a sua feitiçaria parecera
desempenhar um papel nos homicídios e, quando da última vez que a vira, estava a fugir de Corinto, carregada com uma grande quantidade de tesouros retirados das
ruínas.
Tínhamos seguido caminhos diferentes e eu murmurara uma oração, pedindo para não me voltar a cruzar com a bruxa de Corinto. Contudo, graças a uma estranha reviravolta
do destino, os nossos caminhos tinham convergido no Delta egípcio.
- Foste tu quem eu vi quando cheguei... a mulher que se erguia para lá da multidão - disse, mantendo a voz baixa.
Ela acenou.
- Também me deves ter visto, e com maior clareza do que eu a ti, pois pareces ter-me reconhecido. De que outra forma poderias ter dado o meu nome ao Artemon?
Ismene encolheu os ombros.
- Não tenho a certeza de que te teria reconhecido, romano, passado todo este tempo. No entanto, a chegada de um romano chamado Gordiano não era de todo inesperada.
- Previste a minha chegada? Como? Através da feitiçaria?
- Isso é o que pensa o Artemon. Ficou bastante impressionado com o facto de eu ter sido capaz de lhe dizer o teu nome verdadeiro.
Acenei, conseguindo, por fim, um vislumbre da verdade.
- Mas, na verdade, sabes quem eu sou e esperavas que viesse, por causa de... - Senti-me sem fôlego, de súbito incapaz de pronunciar o
seu nome.
- Sim, por causa dela. Sim, Gordiano, a Bethesda está aqui.
Senti uma tão grande torrente de emoções que não conseguia falar. Ismene afastou o capuz do rosto. Estendeu as duas mãos, indicando-me que a deveria ajudar a levantar.
Ela era uma mulher baixa, sem nada de
188
especial, já não era nova, mas ainda não era velha, nem feia nem bela, as suas feições tinham sido gravadas na minha memória pelos eventos extraordinários que rodeavam
o nosso primeiro encontro. Os seus modos eram grosseiros e os seus poderes assustadores - caso fossem verdadeiros -, mas, tanto quanto eu sabia, nunca me tinha enganado
ou feito qualquer mal.
- No dia em que a Bethesda chegou, o Artemon colocou-a ao meu cuidado. Chamava-a por outro nome: Axiothea. Disse-me que era sua prisioneira, mas que era muito preciosa,
muito valiosa. Pediu-me que tomasse conta dela e que não permitisse que lhe acontecesse mal algum.
- E foi o que fizeste? Ela está incólume? Ilesa? Ismene ergueu uma sobrancelha.
- O que é que pensas, romano? Os homens que por aqui vivem morrem de medo de mim e das minhas pragas. Nem um se atreveria a entrar nesta cabana sem ser convidado.
Ninguém tocou num fio de cabelo que fosse da cabeça da rapariga. Desde que chegou, a tua escrava tem sido tratada como uma princesa.
Senti uma nova vaga de emoções, desta vez de alívio.
- Bethesda! - sussurrei.
- Nunca a poderás chamar por esse nome, não se outros te puderem ouvir. Os homens que a trouxeram pensavam que se tratava de uma mulher chamada Axiothea e é essa
mulher que o Artemon acredita que ela é. Foi esse o nome que atribuiu a si mesma quando chegou e manteve o fingimento, mesmo comigo, até ter visto que não valia
a pena tentar esconder o que quer que fosse da Metrodora, a Vidente, e me contou a verdade. Por fim, acabou por me revelar que era uma escrava e que o seu senhor
se chamava Gordiano. O nome era-me familiar. Fiz-lhe mais perguntas e depressa se tornou evidente que o jovem romano que a comprara no mercado de escravos de Alexandria
era o mesmo jovem romano que atravessara o Peloponeso há alguns anos, um viajante de seu nome Gordiano que eu tinha visto pela última vez nas ruínas de Corinto.
A Bethesda tinha a certeza de que acabarias por vir à sua procura... e assim foi. Quando te vi sair do barco e percorrer o cais, hoje, pensei ter-te reconhecido.
Quando o Artemon confirmou que o homem que se juntara a nós era um jovem romano, soube que tinhas de ser tu.
189
- E agora mesmo, disseste-lhe o meu nome verdadeiro como uma espécie de truque, para o impressionares com as tuas capacidades de vidente?
Ismene sorriu. ;
- Será realmente importante como um vidente obtém o seu conhç cimento, desde que fale a verdade?
Pensei em tudo o que ela me tinha dito.
- Sabes que a Axiothea é, na verdade, a Bethesda, mas ela sabe que a Metrodora é, na verdade, a Ismene?
Ela riu.
- De todas as pessoas no Egito, apenas tu sabes que um dia me chamei Ismene. E o que é que te leva a pensar que esse é o meu nome verdadeiro? O que é que sabes,
de facto, sobre mim, Gordiano? Achas que fui sempre uma criada de uma taberna perto de Corinto?
- Mas o que estás a fazer aqui? Que estranho caminho trouxe a bruxa de Corinto para este local?
- Terá o meu caminho sido mais estranho do que o teu, Gordiano? Chegámos ao mesmo local, no mesmo momento.
- O Artemon disse que, outrora, recebeste treino para te tornares a Pítia do Templo de Apoio em Delfos.
- Achas isso assim tão difícil de acreditar?
- Um pouco.
O rosto dela perdeu qualquer vestígio de humor.
- De onde venho e como aqui cheguei são coisas que não te dizem respeito. Não sabes nada de certo sobre mim, romano, e, se sabes o que é bom para ti, sugiro que
não digas nada sobre mim. Aqui não sou Ismene, mas Metrodora. Lembra-te disso.
Acenei.
- A Bethesda - disse - está realmente do outro lado desta cortina? Porque é que não a posso ver?
- Oh, podes vê-la, romano. Mas não podes falar com ela, ainda não.
- Porque não?
- Isso ser-te-á evidente quando a vires.
Avancei, mais uma vez na direção da cortina, mas Ismene agarrou-me o braço para me fazer parar.
190
- Há um preço a pagar.
- O que é que queres de mim, bruxa?
- Baixa a voz! - sibilou. - Decerto preço algum será demasiado elevado, para voltares a ver a Bethesda. Dá-me o objeto de maior valor
que possuas.
Fitei-a, confuso, depois compreendi. Levei a mão à bolsa que trazia à cintura e retirei do seu interior o colar de rubi.
- Se eu te der isto, o que poderei usar para pagar ao Artemon como resgate?
- Ouço o tilintar de moedas nessa bolsa.
- Não serão suficientes.
- Ainda assim, se queres ver a Bethesda, tens de me dar o rubi. Já!
- Ismene estendeu a mão.
Olhei para o rosto sério de Ismene, depois para a porta e de novo para ela. Senti um desejo súbito de voltar a guardar o rubi na bolsa, empurrá-la para o lado, abrir
a cortina e avançar. No entanto, lembrei-me da magia mortífera que Ismene revelara possuir em Corinto e também que, até aqui, ela nunca a usara para me magoar. Seria
loucura da minha parte fazer dela um inimigo. E será que ver Bethesda, depois de todo este tempo, não valeria o preço?
Coloquei o colar de rubi na palma da mão aberta de Ismene. Ela ergueu a jóia na direção da lâmpada que pendia do teto. Círculos de luz vermelha brincaram no seu
rosto.
- Esta jóia está amaldiçoada, tal como o Artemon desconfiava, mas encontrarei uma forma de anular a maldição. O teu pagamento é suficiente, romano. Podes atravessar
a cortina. Avança devagar e não digas nada. Seguirei mesmo atrás de ti.
191
XXI
A passagem tapada pela cortina não se abria diretamente para a cabana adjacente, mas para uma passagem entre as duas. O corredor, pequeno e escuro, estava repleto
de baús, caixas e pilhas de roupa que chegavam ao teto - mais do saque de Ismene, presumi. A tralha acumulada de ambos os lados criava uma passagem ao meio, de tal
forma que tive de me ir virando, para um lado e para o outro, para seguir caminho. Também servia para abafar o ruído, de tal forma que o som proveniente de uma das
cabanas quase não era ouvido na outra. O vento também abafava qualquer ruído que eu fizesse. Tinha começado a levantar-se e assobiava através do telhado de colmo
sobre a minha cabeça.
Ainda assim, quando me aproximei de outra passagem tapada com uma cortina - igual à que tinha acabado de atravessar -, ouvi vozes que provinham do quarto do outro
lado. Primeiro ouvi a voz de um homem; falava tão baixinho que não consegui discernir mais do que o sexo do falante e, depois - o meu coração saltou uma batida -,
uma voz que teria reconhecido em qualquer lado, embora também ela falasse tão baixinho que eu não conseguia compreender as palavras.
Levei a mão à cortina, tencionando afastá-la, mas Ismene colocou-se ao meu lado e impediu o movimento. Mantendo um dedo encostado aos lábios, abanou a cabeça, depois
ergueu a palma da mão, indicando que eu devia ficar onde estava e não fazer nada. Lenta e silenciosamente, afastou a cortina, mas apenas um dedo, e fez-me sinal
para que aproximasse um olho da abertura estreita e espreitasse.
192
Mesmo de costas viradas para mim, reconheci Bethesda de imediato, pelo seu longo cabelo preto mas também pela sua postura, os ombros para trás e a cabeça erguida,
fitando o homem muito mais alto que se erguia à sua frente. A sua postura desafiante era-me muito familiar. Não tive qualquer problema em reconhecer Artemon, cujo
rosto estava claramente iluminado pela lâmpada que pendia do teto por cima deles.
Sempre que pensava em Bethesda, nos dias que se tinham passado desde o seu desaparecimento, imaginara-a como a vira pela última vez, envergando o vestido verde que
eu lhe oferecera pelo seu aniversário. Era algo desconcertante ver que vestia algo completamente diferente
- uma túnica de muitas cores, feita de um qualquer tecido rico que brilhava sob a luz quente da lâmpada, apertado em redor da cintura por um cinto de cabedal ornamentado
com pedras preciosas e medalhões de prata. Raramente vira seda, ainda para mais em tão grande quantidade, mas era decerto desse material que o vestido era feito.
De acordo com Ismene, Bethesda tinha sido tratada como uma princesa durante o seu cativeiro. Também tinha sido vestida como uma.
Artemon voltou a falar. Encostado à estreita abertura, quase não conseguia compreender as suas palavras.
- Quando, Axiothea? - perguntava, a voz quebrada pela emoção.
- Quando é que vais abandonar a esperança de que o velho te quer de volta? Se ele tencionasse pagar o resgate, já o teria feito. Teria, pelo menos, respondido às
nossas mensagens.
Bethesda baixou a cabeça.
- Ainda não, Artemon. Ainda não chegou a hora.
- Mas chegará... é isso que queres dizer?
Embora não o conseguisse ouvir, pelo movimento dos ombros de Bethesda, soube que ela tinha suspirado.
- Dá-me um sinal, Axiothea... algo que me mostre que aquilo por que anseio não está fora do meu alcance. Partilhas os meus sentimentos, ou não? - O tom da sua voz
tornara-se estridente.
No seu rosto vi uma expressão que misturava a esperança e o desespero. Eu bem que podia estar a olhar para o espelho. O seu sofrimento era igual ao meu. Eu tinha
sido privado da coisa que me era mais
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querida, separado por quilómetros de zonas selvagens e água. Também Artemon via negado aquilo que mais desejava - embora estivesse mesmo à sua frente.
A partir da expressão do seu rosto, das palavras que pronunciara, da forma como se erguia à frente dela, como um suplicante mais do que como um captor, não podiam
restar quaisquer dúvidas. Artemon estava apaixonado por Bethesda.
- Se não me dás um sinal, então deixa que eu to dê - sussurrou. Levou a mão à túnica, retirou dela o pequeno anel de safira que eu o vira tirar antes e segurou-o
à sua frente, como uma oferta. - Para ti, Axiothea.
- Outro? - disse Bethesda. Pela exasperação na sua voz, pude perceber que aquele era apenas o presente mais recente numa longa lista de presentes.
- Toma, deixa que to ponha no dedo. - Artemon aproximou-se dela. Os seus olhos iluminaram-se e o rosto corou. Parecia tão jovem e indefeso que eu tive mais dificuldade
do que nunca em imaginá-lo como o líder de um perigoso bando de salteadores. Parecia apenas um mero rapaz, e mais do que isso, um rapaz apaixonado, sem fôlego perante
a simples ideia de tocar na mão da sua amada.
- Cabe perfeitamente no teu dedo! Tem de ser um sinal, não achas? Anda, ergue-o para a luz. Vê como cintila.
Artemon ergueu a não dela na direção da lâmpada. A jóia apanhou a luz e brilhou como uma estrela no espaço entre ambos, mas apenas por um momento. Bethesda afastou
a mão da dele.
- Perfeita e bela, sim - admitiu. - Como este vestido, os meus sapatos e o colar que estou a usar. Como todas as coisas adoráveis que me deste. Ainda assim, Artemon,
não posso...
- Imagino que tais presentes não te impressionem, depois de tudo o que aquele Tafhapy te deu, certamente. Suponho que ele te tenha estragado com mimos.
- Não, Artemon, não é isso...
- Um beijo! - disse ele. - É tudo o que peço. Só um beijo. Só um. Artemon aproximou-se ainda mais. Como ele era mais alto do que
ela, fui capaz de ver os seus olhos até ao momento em que baixou a
194
cabeça, tomou o rosto dela entre as suas mãos e o virou para o seu. Bethesda baixou os braços ao longo do corpo. Fechou os dedos.
Sobressaltei-me. O meu corpo parecia agir sozinho, sem pensar. Num instante teria atravessado a cortina, mas Ismene enterrou as unhas no meu braço, com tanta força
que arquejei de dor. Não fosse o vento cada vez mais forte e a chuva que, de súbito, começou a bater no telhado, Artemon e Bethesda ter-me-iam, decerto, ouvido.
Ou não teriam? De súbito, pareciam estar num mundo completamente alheado de mim, totalmente concentrados um no outro. Estaria ele a beijá-la? Quase de certeza que
sim, mas tudo o que eu conseguia ver era a parte de trás da cabeça dela e um bocadinho da testa dele logo a seguir. Estaria ela a responder ao beijo? Era impossível
de dizer. O corpo dela parecia tenso, os ombros estavam rígidos, mas apenas os olhos teriam revelado o que estava a sentir. Estaria Artemon a olhar para os olhos
dela naquele preciso momento? O que veria neles?
O tempo pareceu parar. O beijo parecia interminável, suspenso no tempo, como todos os beijos entre verdadeiros amantes. Senti que o chão desaparecia debaixo dos
meus pés. Como que pairava no espaço vazio, rodeado pela escuridão, vendo apenas aqueles dois através da estreita abertura.
com um súbito e sonoro estalar, o momento terminou. O som fora provocado pelo estalo que Bethesda aplicara no rosto dele.
A violência do golpe deixou-me chocado. Nunca Bethesda exibira um tal comportamento comigo. Jamais a julgaria capaz de tal coisa.
Fiquei rígido, temendo que Artemon lhe batesse também. Em vez disso, ele recuou, tocando na bochecha quente. Fitou-a com uma expressão destroçada e limitou-se a
ficar ali, a olhar para ela, durante muito tempo. Por fim virou-lhe as costas, endireitou os ombros e pareceu inspirar fundo várias vezes como que para se recompor.
Afastou o pano que tapava a entrada e saiu da cabana.
Levei a mão à cortina, ansioso por penetrar na divisão e juntar-me a Bethesda, mas Ismene impediu-me de o fazer.
- Não! - sussurrou, encostando a boca ao meu ouvido, para se fazer ouvir sobre o vento que aumentava de intensidade. - Não podes ir ter
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com ela agora. O Artemon ainda pode regressar. Já viste o que precisavas de ver. Volta para a minha sala. Anda, romano! Segue-me!
Ismene apertou-me o braço, como um falcão aperta a sua presa e puxou-me para trás. A sua força era estranha. Ou estaria eu fraco, privado da força de vontade pelo
que tinha visto? Permiti que me arrastasse pela passagem repleta de tralha e me levasse de volta à sua sala.
A lâmpada tinha ardido quase por completo. A sala estava ainda mais escura do que antes. O vento uivava no exterior.
- Vês agora porque é que eu não te podia levar até ela? - frisou Ismene. - Compreendes porque é que não podes ir ter com ela, mesmo agora? Se o Artemon tomasse conhecimento
da verdade (de que vieste até aqui para encontrar a Bethesda e para a levar de volta) não há como saber o que poderia fazer.
- O Artemon é um rapaz! - disse eu. - Um rapaz apaixonado. Ismene assentiu.
- Sim, isso é verdade. Mas se achas que isso é tudo o que ele é, se achas que isso o torna ridículo e inofensivo, então és mais tolo do que eu imaginava. O Artemon
é muito mais do que tu possas imaginar.
- Mas quando ele se aperceber de que a Bethesda não é a Axiothea, que é apenas a escrava de um outro homem...
- Perderá o interesse nela? Conheces mesmo assim tão mal o amor? Não, romano, no que a todos diz respeito, tens de ser o Pecúnio e ela tem de ser a Axiothea e os
dois nunca antes se cruzaram.
- E a Bethesda? Ela sabe que estou aqui?
- Ainda não.
- Dir-lhe-ás?
- Suponho que terei de o fazer, quanto mais não seja para que não
se sobressalte e vos entregue a ambos da primeira vez que te vir k
- Quando será isso? Quando é que a posso ver?
Ismene abanou a cabeça.
- Não sei. Ainda não. Por ora, tens de manter a distância. Aquela não era a resposta que eu estava à procura. Comecei a objetar, mas um raspar na porta interrompeu-me.
Artemon gritou do exterior.
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- Metrodora, já estás despachada com o romano? Precisamos de regressar às nossas cabanas.
- Vai - disse Ismene, empurrando-me para a saída.
De súbito, deparava-me com a perspetiva de ficar frente a frente com Artemon. Seria eu capaz de esconder o que estava a sentir? Preparei-me, mas antes que os nossos
olhos se pudessem encontrar, ele virou-me o rosto e voltou a seguir o caminho por onde tínhamos vindo, andando a passo muito rápido. Menkhep, Djet e eu seguimo-lo.
Por cima das nossas cabeças, as nuvens ameaçadoras eram tenuemente iluminadas pelo derradeiro brilho prateado do crepúsculo. As gotas de chuva difusa batiam-me no
rosto. A vegetação à nossa volta estremecia e agitava-se como bacantes que interpretam uma qualquer dança extática. Até as águas do Nilo estavam agitadas e frenéticas.
Nuvens repletas de espuma batiam contra a costa enlameada e, quando chegamos às nossas cabanas, olhei por entre elas para as cristas espumosas que dançavam sobre
a superfície da lagoa.
Artemon virou o rosto para o céu, semicerrando os olhos, por causa do vento e da chuva.
- A Metrodora previu que a tempestade desceria até chegar a sul. Ela sabia que haveria ventos fortes e chuva.
- Que mais é que ela te disse? - perguntou Menkhep. - Haverá alguma expedição? - Os seus olhos iluminaram-se.
- Amanhã veremos - disse Artemon. - Por ora, abriguemo-nos. Descansem bem... se conseguirem dormir por entre este estridor.
Como que para confirmar as suas palavras, um relâmpago ofuscante cortou através de, céu, seguido de perto pelo estrondo de um trovão que fez estremecer o solo.
Menkhep afastou-se a correr. Por um breve instante, os olhos de Artemon fixaram-se nos meus, depois ele regressou à sua cabana.
De súbito, por cirna do som da tempestade cada vez mais forte, ouvi o rugido do animal que me sobressaltara quando ali chegara. Ou teria eu imaginado aquele som
entre tantos outros sons? Pensei que já tinha visto, ou pelo menos sido avisado, em relação a todas as criaturas perigosas que residiam no Delta, mas nenhum que
eu conhecesse podia produzir um som capaz de gelar daquela forma o sangue.
197
- Ouviste isto, Djet?
- Se ouvi o quê?
- Aquele rugido. Uma espécie de animal...
- É apenas a tempestade. Anda! Despacha-te! - Djet pegou-me na mão e puxou-me para a nossa cabana.
Aos apalpões, na escuridão da pequena divisão, encontrámos as nossas camas. Sentei-me para tirar os sapatos e despir a túnica, mas deixei o pano de linho que me
cingia os rins. Recostei-me, tapei-me com a manta fina e escutei a tempestade no exterior. Perto de mim, na sua própria cama, Djet começou a ressonar baixinho; aquele
rapaz era capaz de dormir em qualquer lado. Deixei-me ficar acordado, fitando a escuridão, sentindo o estremecer e o abanar da cabana, que era fustigada pelo vendo,
obtendo vislumbres dos relâmpagos por entre as aberturas no colmo, apertando a manta enquanto os trovões martelavam a terra como um malho. Embora balbuciasse enquanto
dormia, nada parecia acordar Djet.
O tempo ia passando. Minutos, horas - eu não tinha forma de o saber. A tempestade não mostrava qualquer sinal de abrandar.
Por fim, retirei a manta e levantei-me da cama. Calcei os sapatos, mas não a túnica. Avancei até à entrada e saí para o exterior.
A chuva caía com constância, mas era tépida, não fria. Olhei à minha volta e não vi sinal de que mais alguém estivesse acordado. As cabanas estavam todas fechadas
e escuras. Se o Ninho do Cuco tinha
sentinelas, estas tinham-se, decerto, abrigado. com exceção da folhagem que dançava à minha volta, eu era o único ser vivo que se movia.
E o rugido que eu tinha ouvido antes? Que tipo de animal selvagem se escondia na floresta? Estaria acordado e atento, pronto para caçar e matar qualquer homem que
se aventurasse lá fora? Ou teria também aquela criatura se abrigado da tempestade? Será que a criatura existia sequer? Djet achava que eu só tinha imaginado o som
do seu rugido e talvez tivesse razão.
Inspirei fundo, deixei para trás a segurança da cabana e saí para a escuridão selvagem e molhada.
No caminho de regresso da cabana de Ismene, tinha prestado atenção às curvas e contracurvas do caminho. Ainda assim, foi difícil
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encontrar o caminho. Por algumas vezes, virei para o lado errado e dei por mim junto à beira da água ou perante uma muralha de vegetação impossível de transpor.
Por fim, cheguei à pequena clareira e vi as cabanas adjacentes à minha frente. Todo eu estava ensopado da chuva. O pano de linho que me cingia as ancas estava pesado
e ensopado.
Estudei a porta da cabana de Ismene por um instante. Não vi qualquer brilho de luz nem qualquer sinal de que pudesse estar acordada. Depois contornei a estrutura,
a entrada para o lado oposto. Também essa porta estava escura.
A tempestade soprava mais violenta do que nunca, no entanto, não conseguia ouvir mais nada para além do bater do meu próprio coração e não via nada para além da
cortina que cobria a porta. Depois de tantos dias de alarme, confusão, desespero, busca e esperança - sempre a esperança -, aquela cortina era a única coisa que
ainda me separava de Bethesda.
Afastei-a para o lado e penetrei na cabana.
A sala estava escura mas, imediatamente antes de a cortina cair, um relâmpago tremeluziu atrás de mim. Vi a sala apenas por um instante
- o suficiente para vislumbrar uma imagem de Bethesda, rígida e onírica, sentada muito direita na sua cama, virada para mim. Estava acordada, de olhos muito abertos,
não mais envergando o vestido de muitas cores com que recebera Artemon, mas uma simples túnica de dormir.
O que terá ela visto? A figura da silhueta de um homem, ensopado pela chuva, não envergando nada mais do que um pano de linho. Não era de estranhar que tivesse arquejado.
O tremeluzir do relâmpago desapareceu. A divisão transformou-se num buraco escuro. Avancei na direção dela.
- Para trás! - disse ela. As suas palavras foram seguidas pelo ribombar de um trovão.
Tentei falar mas a voz não me saía. A imagem dela na minha cama continuava gravada nos meus olhos, inalterada enquanto eu avançava na escuridão. Os meus joelhos
bateram na cama. Apalpei o ar. Os meus dedos tocaram na pele quente. Estiquei-me, às cegas, agarrei-a e puxei-a para mim.
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Os seus punhos esmurravam-me o peito.
- Não, Artemon! - sussurrou.
Abri a boca, mas parecia ter algo espesso e pesado alojado na garganta. Não conseguia falar. Também não a conseguia largar, por muito que ela se contorcesse e virasse
nos meus braços. Quanto mais ela se debatia, mais desesperadamente a agarrava.
Os meus lábios encontraram os dela. Tapei-lhe a boca com um beijo. Bethesda resistiu, mas eu segurei-a com força. O gosto da sua boca, tão desejada e docemente familiar,
lançou um arrepio de desejo através de mim. Nesse mesmo instante, senti um golpe de dor e o gosto do sangue do meu lábio aberto.
Os meus membros agiam como se tivessem vontade própria. Quase não sei como é que ficámos na horizontal, na cama, a túnica dela rasgada, o meu pano de linho molhado
e atirado para o lado. A cada momento ela resistiu-me e a cada momento foi derrotada por mim, até me ter descoberto a prendê-la contra a cama e prestes a penetrá-la.
Foi então que recuperei o controlo sobre mim mesmo - lentamente, como se estivesse a emergir de um torpor. Permaneci naquela posição, imóvel por cima dela, arquejando
e tentando respirar. Nesse mesmo instante, de alguma forma - pelo gosto, pelo cheiro, pelo toque, pelo som da minha respiração? -, Bethesda também se apercebeu de
quem eu era.
- Não! - sussurrou. - Não pode ser verdade. Isto é um sonho.
- Não é um sonho - disse, finalmente capaz de falar. Bethesda inspirou abruptamente. As suas mãos, que me agarravam
os braços para me afastar, relaxaram por um momento, depois apertaram-me com mais força do que antes.
- A Ismene não te disse que eu estava cá?
- Quem é a Ismene?
Quase me ri. Num mundo onde todos pareciam ter dois nomes, não era de admirar que houvesse tanta confusão.
- Não importa - disse. Depois ri; de facto, uma gargalhada de pura alegria, quando Bethesda aproveitou, de súbito, uma falha na minha concentração e se libertou,
apenas para inverter as nossas posições, de tal forma que eu fiquei deitado de costas e ela em cima de mim.
200
Nesse instante, o êxtase engoliu-me e manteve-me em seu poder, tão firme e completamente que eu pensei que não mais me libertaria.
Enveredámos por um longo e tumultuoso caminho através do turbilhão. No final, quem gritou mais alto, Bethesda ou eu? No exterior, o vento continuava a uivar e os
trovões a rebentar. Caso contrário, Artemon e os outros ter-nos-iam ouvido lá longe, junto à lagoa.
201
XXII
- Por onde andaste? - quis saber Djet quando regressei à nossa cabana. A tempestade tinha amainado um pouco, mas o mundo ainda estava escuro. - Desapareceste durante
metade da noite.
- Não importa. - Deixei-me cair na minha cama, absolutamente exausto. Adormeci de imediato.
- Acorda! - ouvi Djet dizer.
Parecia-me que tinha passado apenas um instante, mas agora a luz brilhante do sol penetrava através dos contornos da cortina que tapava a entrada.
- Acorda - repetiu Djet, espetando-me o dedo indicador em vários locais, de uma forma deveras irritante. - Menkhep diz que tens de vir de imediato.
A minha cabeça ainda estava de tal forma baralhada pelo sono, que, por um momento, me perguntei se os eventos da noite anterior não teriam sido nada mais que um
sonho.
Sentei-me. Não, não tinha sido um sonho. Nenhum sonho poderia ter sido tão estranho, tão perfeito - tão onírico.
- De que te estás a rir? - perguntou Djet. - E para onde é que desapareceste a noite passada?
- Não tens nada a ver com isso. - Estiquei um braço e despenteei-Ihe o cabelo.
202
Djet afastou-se e franziu o sobrolho.
- Estás com um estranho bom humor.
- Estou? Vou-te dizer o que estou: com fome. É melhor que haja por aí comida.
- Vais ter de te apressar, se ainda quiseres alguma. Os outros já comeram. Estão-se todos a aprontar.
- Aprontar para quê?
- Como queres que saiba? É por isso que o Menkhep diz que tens de ir e depressa.
Limpei o sono dos olhos e levantei-me. Tinha os braços e os ombros rígidos de tanto remar no dia anterior e as minhas costas estavam rígidas devido a uns outros
esforços, mas não havia desconforto físico capaz de arruinar o meu bom humor. Vesti-me e segui Djet para a luz brilhante do sol. O mundo frio e húmido à nossa volta
parecia ter sido limpo pela chuva. As gotas de água que se agarravam às pontas das plantas de papiro próximas eram transformadas em meias-luas cintilantes pela luz
inclinada do sol. O vapor erguia-se da terra e um véu de neblina pairava sobre a lagoa.
- Aí estás tu! - Menkhep apareceu e bateu-me nas costas. Estava de bom humor. - Toma, guardei-te um pedaço de pão ázimo. Come! Vamos levar alguma comida connosco,
é claro, mas não pararemos para tomar uma refeição até...
- Quem somos "nós" e para onde é que vamos?
- Ah, não estavas acordado para ouvir o anúncio do Artemon. Como sabes, a Metrodora previu a tempestade que nos atingiu ontem...
- Não previmos todos? - murmurei muito baixinho.
- ... e a noite passada, por entre os trovões e os relâmpagos, ela teve uma visão. Era aquilo por que tínhamos esperado. O navio naufragado deve estar à nossa espera
quando lá chegarmos.
- Que navio naufragado? E onde? Ele abanou a cabeça e riu.
- Ainda bem que hoje não vais ter de pensar muito, só remar. Não te preocupes, ficarás no meu barco. Eu tomarei conta de ti.
Alguns dos homens já tinham subido a bordo dos barcos compridos e esguios presos ao cais. Outros puxavam mais barcos escondidos por entre a folhagem ao longo da
margem da lagoa.
203
- Vai toda a gente?
- Quase toda a gente. O Artemon vai deixar algumas sentinelas, claro, mas também eles receberão uma parte do saque.
- É um ataque? - perguntou Djet. - Vai haver muito derramamento de sangue? Preciso de levar uma arma?
Menkhep sorriu.
- Lamento dizer que não nos podes acompanhar, meu jovem. Isto é trabalho para homens.
Djet cruzou os braços e espetou o queixo.
- Mas eu...
- Silêncio, Djet! - Franzi o sobrolho. - Ele vai ficar seguro aqui, sozinho?
- Não te preocupes. O Artemon deu instruções a todos para deixarem o rapaz em paz. Ninguém desobedece ao Artemon. Agora come esse pão ázimo e vamos embora. Não te
esqueças de trazer um chapéu contigo... e uma faca. E um lenço.
- Um lenço?
- Para tapar o rosto, claro está. - Menkhep demonstrou puxando o lenço que lhe envolvia o pescoço até ao nariz. - Para que ninguém te reconheça. E para o teu próprio
bem. Caso contrário terás de os matar. - Baixou o lenço.
- Acho que não tenho nenhum.
- Não faz mal, tenho um a mais que te posso dar. Agora anda.
Momentos depois, juntei-me a vinte outros homens num dos barcos na lagoa, sentei-me na parte de trás, ao lado de Menkhep, cujas ordens os restantes acatavam. Alguns
dos homens deveriam remar enquanto outros descansavam e, de momento, eu estava entre os últimos. com o barco de Artemon a abrir caminho, uma a uma, as embarcações
dirigiram-se para a neblina, deixando para trás o Ninho do Cuco. Virei a cabeça e vi Djet, de pé, na ponta do cais, parecendo abandonado e, depois, a neblina engoliu-o.
- Como é que alguém consegue ver para onde vamos no meio da neblina? - perguntei a Menkhep.
- Não te preocupes, há homens em cada um dos barcos que conhecem o caminho. Poderíamos seguir esta rota na escuridão, e já o fizemos,
204
por vezes. A neblina é, na verdade, uma coisa boa. Esconde-nos de todos os que se encontram na margem. Podes falar, mas mantém a voz baixa.
- Vamos para longe?
- Viajaremos a maior parte do dia. Aproveita para descansar enquanto podes. Em breve será a tua vez de remar.
- Ainda estou rígido de tudo o que remámos ontem.
- Sorte a tua! A melhor forma de soltares os músculos é remares
um pouco mais.
Seguíamos rio abaixo. Os barcos deslizavam quase em silêncio através das águas calmas. Os sapos a chapinhar nas margens faziam mais barulho do que nós. A neblina
era tão espessa que eu quase não conseguia ver o barco que seguia à nossa frente ou atrás de nós. Ocasionalmente, eram transmitidas instruções da parte da frente
da fila para a sua retaguarda, com o encarregado de cada barco a passá-las baixinho para o barco atrás de si.
Ocorreu-me um pensamento.
- Não vão dar pela tua falta no entreposto, Menkhep? Este abanou a cabeça.
- O meu irmão gere o espaço comigo. Revezamo-nos.
- Ele também é membro do gangue? Menkhep assentiu com a cabeça.
- Felizmente para mim, tenho a oportunidade de participar nesta expedição, hoje, enquanto ele fica para trás e faz de lojista. Vai ter de fazer cara de parvo e manter
a boca fechada enquanto todos tagarelam sobre o terrível destino daquele velho pateta de Sais e da sua turba.
A névoa foi-se levantando gradualmente. Os raios do sol da manhã foram-se tornando cada vez mais quentes, à medida que o astro se levantava, mas as nuvens que por
nós passavam ofereciam alguma sombra. Por vezes, percorríamos canais tão estreitos que eu era capaz de tocar a folhagem de ambos os lados. Noutras ocasiões, atravessávamos
águas abertas, tão longe de terra que as margens distantes não eram mais do que meras manchas no horizonte.
Passámos por bandos de íbis e flamingos, pequenas manadas de hipopótamos, libelinhas bailantes e crocodilos a dormitar. Quando não
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estávamos ocupados a remar, Menkhep não se importava nada de conversar.
- Estava a pensar em algo que disseste esta manhã, sobre o Artemon
- comecei.
-Sim?
- "Ninguém desobedece ao Artemon." Porquê? Porque é que os homens o temem e respeitam tanto? Ele é tão...
- Jovem?
- Sim. Ainda mais jovem do que eu.
- Alexandre era jovem, não era, quando liderou os seus homens até à Babilónia e mais além?
- Estás a comparar o Artemon a Alexandre, o Grande? - reagi, tentando não soar sarcástico.
- Alguns homens têm uma determinada qualidade. Nasceram para ser líderes. Outros homens vêem e respondem a isso. A idade não importa.
- Mas Alexandre nasceu príncipe e tornou-se rei.
- Achas que apenas aqueles que são de sangue real podem ser líderes? Pensei que os romanos se tinham livrado há muito dos vossos reis. Vocês não votam para escolher
os homens que vos lideram? O mesmo se passa entre os bandidos, quando se torna necessário. - Menkhep trauteou e assentiu com a cabeça. - Mas talvez tenhas razão.
Talvez isso o explique...
- Explique o quê?
- Ninguém sabe de onde vem o Artemon realmente. O mesmo se poderia dizer acerca de muitos de nós, claro, mas no caso do Artemon...
- Sim? Continua.
Menkhep encolheu os ombros.
- Como estava a dizer, nenhum de nós sabe realmente a verdade. A não ser, talvez, a Metrodora...
- De que é que estás a falar?
- Chamam-lhe o Filho do Cuco. Tem de haver uma razão.
- Falas por enigmas, Menkhep.
- O que é que faz o cuco? Põe o ovo no ninho de outro pássaro, de tal forma que, quando a cria sai do ovo, a mãe, sem nada desconfiar, é levada a criar o pequeno
como seu.
206
- Estás a dizer que o Artemon é um filho bastardo? Não é isso que se costuma querer dizer quando se chama a um homem filho do cuco?
- Por vezes. Quando uma criança parece nunca se adaptar à família, as pessoas pensam que um estranho a deve ter gerado. No entanto, "filho do cuco" pode querer dizer
outra coisa. Há uma velha história contada pelos judeus, sobre um dos seus líderes aqui no Egito, nos tempos muito antigos dos faraós. Chamava-se Moisés.
- Já ouvi falar dele - disse eu, e quase acrescentei "pela Bethesda". A sua mãe judia tinha-lhe contado muitas histórias sobre os antigos hebreus, tal como o meu
pai me contara as histórias da Roma antiga.
- Então sabes que Moisés nasceu de mãe hebraica, que o lançou à deriva no Nilo quando o faraó ordenou que todos os recém-nascidos hebreus fossem mortos. No entanto,
a filha do faraó encontrou o bebé e criou-o como se fosse seu. Moisés era o filho de um cuco: um escravo educado para ser príncipe.
- Então agora estás a comparar o Artemon a Moisés?
- Só que a história do Artemon seria o oposto. Um príncipe criado entre os indigentes.
- Estas a dizer que o Artemon tem sangue real?
- Muitos dos homens acham que sim.
- Então como raio é que ele acabou aqui?
- Não chegámos todos aqui por estranhos caminhos... até tu, Pecúnio? Pensei naquilo.
- Que tipo de sangue real? Estás a dizer que o Artemon provém da família do rei Ptolomeu?
- Não da sua família direta. Conheces a situação em Cirene? Lembrei-me da mímica encenada por Melmak e a sua trupe, na qual
um gordo mercador, que deveria representar o rei Ptolomeu, expelira do traseiro um artigo precioso depois do outro, todos eles de origem cirenaica. A ideia era recordar
às pessoas que, durante o reinado do rei Ptolomeu, o Egito perdera a cidade de Cirene para os romanos, graças a um testamento deixado pelo falecido regente.
- Sei que Cirene era administrada por Apião, que era o irmão bastardo do rei, e que, ao morrer, Apião deixou toda a Cirenaica a Roma.
- E porque é que ele fez isso?
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- Porque devia muito dinheiro aos banqueiros romanos e muitos favores aos senadores romanos. - Nos últimos anos, os políticos romanos tinham feito destas conquistas
sem derramamento de sangue uma arte, levando os soberanos estrangeiros a deixarem os seus territórios ao povo romano.
- Ainda assim, a maior parte dos homens tende a favorecer os filhos
em testamento.
- Mas Apião morreu sem filhos.
- Ah, morreu mesmo?
- O que é que estás a dizer, Menkhep?
- O próprio Apião era um bastardo, gerado pelo pai do rei Ptolomeu numa das suas concubinas. Durante muito tempo, Apião não teve lugar na casa de Ptolomeu, mas a
bem ou a mal deitou as mãos à Cirenaica e governou-a como se fosse sua. Depois, no leito de morte, deu-a para que nenhum outro Ptolomeu pudesse reinar sobre ela.
- Os membros da vossa família real não morrem de amores uns pelos outros - disse eu. - Mãe e filhos, irmãos e bastardos... todos se atiram às gargantas uns dos outros.
- E dizem que nós, bandidos, é que somos selvagens! - Menkhep riu. - Mas e se o bastardo Apião tivesse o seu próprio bastardo... e se tivesse recusado a reconhecê-lo?
E se esse filho, de sangue Ptolomeu, tivesse sido criado como um plebeu? Poderíamos dizer que uma tal criança seria filha do cuco a dobrar, em ambos os sentidos
da expressão: um bastardo, sim, mas também, como Moisés, um homem nascido numa determinada posição social mas criado por pessoas de outra.
- E este filho do cuco seria o Artemon?
- Se assim fosse, o Artemon teria, por nascimento, o direito a reclamar a Cirenaica... e talvez mais do que a Cirenaica; muito mais, tendo em consideração o caos
que fervilha em Alexandria.
Abanei a cabeça.
- Isto é tudo deveras fantástico, Menkhep.
- Se o rei Ptolomeu for forçado a fugir de Alexandria, talvez até um sobrinho bastardo do rei possa arriscar-se a reclamar o trono.
- Não, a menos que tenha um exército atrás de si! Penso que o quente sol egípcio te provocou alucinações, meu amigo. O Artemon
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como filho bastardo de Apião, onde é que foste buscar tal ideia? Ao próprio Artemon?
- Não. O Artemon nunca fala das suas origens. Sabemos que deve ser egípcio porque fala a língua perfeitamente e sabemos que passou algum tempo na Síria antes de
vir para o Delta. Mas ele nunca fala da sua família.
- Então quem é que diz que ele é um bastardo ptolomaico? Como é que o rumor começou?
Menkhep baixou a voz.
- Há quem diga que a Metrodora teve uma visão e viu a verdade sobre o Artemon. Nunca a revelou diretamente, mas graças a alguns enunciados, aqui e ali, alguns de
nós conseguiram montar as peças da história.
- Estes "enunciados" da Metrodora... estão sempre certos?
- Se os soubermos interpretar.
- Esse é o problema com os oráculos, não é? Basta interpretar mal uma palavra e o mais certo é obtermos o contrário do que tínhamos esperado.
Era, de novo, a nossa vez de remar e isso pôs fim à nossa conversa.
Menkhep estava certo em relação a uma coisa: quanto mais eu remava, mais a rigidez dos meus ombros e braços diminuía. Havia algo entusiasmante sobre o facto de estar
ao ar livre, sobre as águas, na companhia de outros homens, unindo os nossos esforços em prol de um objetivo comum. Pouco a pouco, comecei a sentir-me parte do grupo.
Os fragmentos de diálogo que ouvia aos outros não eram tão sérios como a minha troca de palavras com Menkhep. Consistiam em comentários rudes, provocações bem-humoradas
e algumas das piadas mais porcas que alguma vez ouvira. Pensei que me tinha exaurido bastante nas minhas viagens e que já nada me podia chocar, mas a vulgaridade
rude destes homens teria feito corar Melmak e a sua trupe de mimos.
Um dos homens era ainda mais vulgar do que os restantes, e mais ruidoso. Embora estivesse sentado na parte da frente do barco, conseguia ouvir tudo o que dizia.
Era um gabarolas, falando sem parar de todos os homens que tinha matado, de todos as mulheres com quem
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tinha dormido e do tamanho prodigioso do seu membro. Vendo-me estremecer perante a linguagem vil do homem, Menkhep sussurrou-me ao ouvido que o nome daquela personagem
era Osor e que este vinha de Mênfís.
- De certa forma, ainda é um recém-chegado - disse Menkhep. Um bocado exibicionista. Não é especialmente popular entre os outros.
- Todos parecem rir das suas piadas.
- Mas não tão alto e tão demoradamente como ele. Pelas costas, chamam-lhe Ombros Peludos, por razões óbvias.
O homem despira a túnica e, embora só conseguisse alguns vislumbres de perfil do seu rosto barbudo, podia ver claramente os ombros nus, que estavam cobertos pelo
mesmo tipo de pelo espesso e hirsuto que lhe cobria o maxilar.
Quando chegou a nossa vez de descansar outra vez, perguntei a Menkhep sobre algo que este dissera.
- É verdade que os homens votam para escolher o seu líder?
- Sim.
- Então os homens escolheram o Artemon para os liderar?
- É verdade. Não foi muito depois de ele se ter juntado a nós, há cerca de dois anos.
- Devia parecer ainda mais novo nessa altura!
- Mesmo assim, desde o primeiro dia que passou entre nós, deu provas de grande valor, realizando um ato ousado atrás do outro. Quando o nosso velho líder foi morto
durante um assalto, a escolha do Artemon para o substituir foi unânime.
- Realizaram mesmo uma votação, como nós realizamos votações para os magistrados, em Roma?
- Suponho que sim. Só que o voto de cada homem, aqui, é igual, ao passo que em Roma, segundo me dizem, o voto de um homem rico conta mais do que o de um homem pobre.
Não o contradisse nesse aspecto.
- E se um homem desejasse substituir o Artemon?
- Porque é que perguntas? Tens ambições nesse campo, romano?
- Menkhep parecia achar a ideia divertida.
- Claro que não. Mas e se isso acontecesse? i;
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- Aconteceu uma vez. Um sidónio chamado Ephron desafiou o Artemon para um combate. O Ephron era um tipo enorme e bruto, ruidoso e de maus fígados, e ainda maior
do que o Artemon. Os dois lutaram taco a taco. Foi algo digno de se ver! Quando tudo terminou, não restava nada do Ephron para além de uma pilha de carne estropiada.
Só de o ver fiquei com o sangue gelado. Nunca mais ninguém desafiou o Artemon.
- Mas poderia acontecer?
- Qualquer homem pode desafiar o líder quando desejar. Um sobreviverá e o outro morrerá.
- Mas não tinhas dito que vocês elegiam o vosso líder?
- Se um desafiador conseguisse matar o Artemon, então realizaríamos uma votação para determinar se deveria ser o nosso líder. Mas os homens gostam tanto do Artemon,
que acho que votariam antes para banir o desafiador.
- Os homens poderiam votar por uma sentença de morte?
- Um homem nunca é condenado à morte por votos, apenas por ordem do líder e apenas por violar uma regra com tal impunidade que só a sua morte pode sanar a situação.
- Quem faz estas regras?
- O líder, com o consentimento dos homens. Abanei a cabeça.
- Soa tudo muito arbitrário.
- Soa? No mundo lá fora, estes homens não têm qualquer influência sobre as leis sob as quais vivem ou sobre que homens os governam. Aqui, todos os homens são iguais
entre si e qualquer um deles pode ser líder, se tiver o que é preciso. Serão os costumes romanos melhores?
Não tinha uma resposta pronta.
Teria Artemon matado um homem usando apenas as mãos? Artemon, o rapaz apaixonado que eu vira na noite anterior? Não era de admirar que Ismene fosse tão insistente
em relação à necessidade de eu não declarar o meu direito sobre Bethesda.
Havia mais em relação àquele a quem chamava Filho do Cuco do que parecia à primeira vista, isso era claro. No entanto, poderiam as ideias rocambolescas de Menkhep
sobre as origens reais de Artemon ser verdadeiras?
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Menkhep tinha comparado o seu amado líder a Alexandre e a Moisés, mas ocorria-me uma outra comparação: Rómulo, o primeiro rei de Roma. O meu primeiro vislumbre das
cabanas em redor da lagoa fizera-me pensar na Cabana de Rómulo, esse marco venerável no coração de Roma, carinhosamente mantido ao longo de incontáveis gerações
para que os romanos nunca esquecessem as suas origens humildes. Roma tinha começado como uma aldeia de cabanas. Na verdade, como uma aldeia de bandidos, pois no
início os dois irmãos gémeos, Rómulo e Remo, eram marginais que tinham ganhado ainda maior riqueza e poder ao atrair mais e mais marginais para o seu bando, até
existirem tantos homens em Roma que acabaram por roubar as mulheres sabinas
- um derradeiro ato de banditismo -, e depois instalaram-se para se transformarem nos respeitosos seguidores de um rei respeitável. Ou talvez não tão respeitável,
já que o primeiro ato do rei Rómulo foi matar o seu irmão gémeo. As rivalidades assassinas no interior da família real egípcia eram chocantes, mas não se passara
o mesmo quando Roma tinha reis?
As origens de Roma estavam mergulhadas em fratricídio e banditismo. Seria, afinal de contas, assim tão implausível, que Artemon, o Filho do Cuco, pudesse ser descendente
de reis ou que um futuro rei do Egito pudesse surgir de um esconderijo de bandidos no Delta?
O Sol ergueu-se até ao zénite, brilhou sobre nós e iniciou a sua descida. Entrei no ritmo do dia, remando e descansando, remando e descansando, distraído pelas conversas
vulgares dos bandidos e pelas ideias loucas que Menkhep me metera na cabeça.
Por fim, já tarde, aproximámo-nos do nosso destino.
212
XXIII
Ao cheiro ubíquo do Delta juntava-se outro: o odor forte e salgado do mar.
- Estamos a aproximar-nos da costa? - perguntei a Menkhep. De forma impercetível, a paisagem à nossa volta tinha-se alterado
gradualmente. Os grandes atoleiros com a sua vegetação rasteira e as lagoas interiores com os seus jardins de lótus flutuantes tinham ficado para trás. Agora erguiam-se,
de ambos os lados, margens arenosas, dunas ondulantes cortadas, aqui e ali, por formações de pedra e salpicadas por plantas cinzentas varridas pelo vento e molhos
de catos floridos.
- Não chegaremos de facto à costa, mas vê-la-emos ao longe - disse Menkhep. - O nosso destino é uma enseada onde os navios se costumam abrigar quando há tempestade.
A enseada é mais segura do que o mar aberto, mas ainda assim perigosa, devido às rochas pontiagudas escondidas abaixo da linha da água na costa sul. Quando o vento
sopra de norte, como na noite passada, pode atirar um navio contra essas rochas. Mesmo os capitães experientes que conhecem o risco nem sempre o conseguem evitar.
- E achas que um navio encalhou aí durante a tempestade da noite passada?
- Não é o que eu acho. A Metrodora viu-o acontecer.
- E se lá chegarmos e não encontrarmos nenhum navio naufragado?
- Suponho que isso não seja impossível. A Metrodora pode ter interpretado mal a sua visão; talvez tenha visto um naufrágio noutro
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local. Mas em breve o descobriremos. Queres fazer uma aposta? O meu entreposto comercial contra esse teu rubi?
Fiquei rígido, não lhe querendo revelar para onde tinha ido o meu rubi.
- Olha para a tua cara! - riu Menkhep. - Não te preocupes, romano. Só estou a brincar. Não sou um homem de apostas.
Momentos depois, o barco que seguia na frente da fila fez uma curva e desapareceu para lá da alta e arenosa margem à nossa direita. O barco ficou fora do alcance
dos nossos olhos mas não dos nossos ouvidos, pois, passado um instante, ouvi o som de vivas. Uma onda de excitação percorreu toda a fila de barcos. À medida que
cada barco fazia a curva, os homens no seu interior juntavam-se aos aplausos entusiasmados. Por fim chegou a nossa vez e vi a razão de tal celebração.
Tínhamos penetrado na enseada de que Menkhep falara. O grande círculo de água estava rodeado de dunas baixas por todos os lados, com exceção de um estreito canal
através do qual entrávamos e de outro, mais largo, para norte, para lá do qual podia vislumbrar a vastidão do mar iluminado pelo sol. Na margem sul da enseada, logo
à nossa direita, vi o navio naufragado. O navio estava de lado, meio dentro de água e meio na praia, com o seu mastro partido arrastando uma vela esfarrapada. O
casco exposto exibia um buraco aberto.
Os destroços do navio estavam espalhados pela praia, bem como vários corpos. Os corpos não mostravam quaisquer sinais de vida. Era fácil imaginar que tinham sido
lançados borda fora, sugados pelas águas agitadas pela tempestade e lançados para a praia.
Artemon dirigiu o primeiro barco para que pudessem desembarcar perto do navio naufragado. Os homens tinham saltado para a zona da rebentação e puxavam para a praia
o escaler quando uma figura emergiu do navio próximo. Primeiro, tomei-o por um sobrevivente, mas a sua túnica comprida e escura e o toucado de pano eram mais adequados
a andar de camelo do que a velejar num navio. O homem assustou-se, regressou para junto do navio naufragado e gritou. Vários outros homens, vestidos de forma semelhante,
emergiram do que restava do navio. Vendo a aproximação da nossa flotilha, viraram-se e correram na direção de uma duna próxima, onde estavam presos vários camelos.
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Empilhados perto dos camelos estavam diversos artigos que, obviamente, tinham sido retirados do navio.
- Parece que alguém chegou antes de nós - disse a Menkhep.
- Tolos! Toda a gente sabe que esta enseada é território do Gangue do Cuco. Qualquer navio que aqui naufrague é nosso para pilhar e de mais ninguém.
- Estes tipos parecem não ter recebido a mensagem.
- Recebê-la-ão bem depressa. Remadores, rápido! Redobrem a velocidade!
Os homens do barco de Artemon já se tinham lançado em sua perseguição, de facas desembainhadas. O pilhante mais veloz conseguiu saltar para cima de um camelo e sair
a todo o galope, mas os seus companheiros, mais lentos e menos ágeis, não tiveram igual sorte. Ainda se esforçavam por montar os seus camelos quando os homens de
Artemon caíram sobre eles num frenesim. Serpentinas de sangue carmesim erguiam-se da confusão. Durante alguns instantes ouvi gritos e pedidos por misericórdia, depois
apenas o silêncio.
Menkhep conduziu o nosso barco para o lado dos outros que já tinham sido puxados para a praia.
- Maldição! Perdemos a batalha!
- Terminou mesmo antes de começar - disse eu. - Mas um deles escapou. Ninguém parece ir atrás dele.
- O Artemon permite sempre que um dos homens fuja, para contar aos outros o que aconteceu. Outros pilhantes miseráveis como ele pensarão melhor antes de roubarem
o saque do Gangue do Cuco! Assim, estes idiotas limitaram-se a fazer parte do trabalho por nós, escolhendo os artigos de maior valor e empilhando-os cuidadosamente
na praia.
Depois de todos os homens terem trazido os seus barcos para a praia, reunimo-nos num grupo perto dos destroços. Artemon erguia-se à nossa frente. O seu lenço vermelho
tinha sido atado de forma a esconder-lhe o rosto e aqueles entre nós que ainda não o tinham feito seguiram-lhe o exemplo.
- Tal como nos revelou a vidente - disse. - A noite passada a tempestade trouxe a morte e a desgraça a alguns, mas a sua perda é o nosso ganho. Por nos ter enviado
para aqui, podemos agradecer à Metrodora.
215
Os homens à minha volta acenaram. Alguns traçaram gestos supersticiosos com as mãos, afastando o poder ciumento do mau-olhado que rouba a sorte dos homens.
- Escondemos os nossos rostos porque um qualquer sobrevivente pode encontrar-se ainda escondido dentro do navio naufragado ou a vaguear pela praia. Parece pouco
provável. Qualquer pessoa que tenha visto aqueles homens ou que nos tenha visto a nós terá fugido para as dunas. E, se ainda se encontrasse algum sobrevivente a
bordo do navio, desconfiei que aqueles pilhantes o mataram. Logo, acho improvável que encontremos quaisquer sobreviventes. Mas se assim for...
Fez uma pausa para deslizar os olhos pelos homens reunidos à sua frente, fixando o olhar em cada um de nós. com a metade inferior do rosto escondida pelo lenço,
os seus olhos ganhavam uma intensidade peculiar. Quando o seu olhar se fixou no meu, estremeci. Que poder era este que Artemon projetava sobre os outros homens e
de onde viria?
- Se encontrarmos sobreviventes, estes não devem ser maltratados. Nem nenhuma mulher deve ser violada. Somos bandidos, não somos assassinos, soldados ou violadores.
Todos os homens compreenderam? Todos os homens concordam?
Assenti com a cabeça, pensando que isso seria suficiente. Mas todos os homens à minha volta disseram "sim" em voz alta. Alguns repararam no meu silêncio e viraram-se
para olhar para mim, até também eu ter dito que sim. Pelos vistos, tratava-se de um ritual deles, no qual todos tinham de participar.
- Se algum dos homens aqui presentes não concordar, se achar que conhece uma forma melhor, se achar que seria um melhor líder e que criaria regras melhores, então
que avance agora e me desafie.
Artemon andava de um lado para o outro do grupo, olhando de um rosto para outro. Ninguém se mexeu.
- Muito bem. Recordo-vos de outra regra. Quando uma tempestade atinge o mar, algumas pessoas a bordo dos navios preparam-se para o seu destino prendendo a si próprias
quaisquer objetos de valor que possuam. Fazem-no como sinal a qualquer um que encontre os seus corpos: tomem estes bens terrenos em troca do favor de tratarem com
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respeito estes restos mortais. Trata-se de um laço sagrado entre os mortos e os vivos, entre a vítima da tempestade e o salteador. Honramos e observamos esse laço.
Usando a madeira seca que conseguirmos reunir da praia e do navio, construiremos uma pira. Todos os corpos que encontrarmos, aos quais esteja presa a riqueza do
falecido como oferta, serão despidos dos seus valores e, em seguida, colocados na pira e queimados para que nem peixe nem abutre os possa devorar. Todos os homens
compreenderam? Todos os homens concordam?
- Sim - disse, juntamente com todos os outros.
Artemon fitou-nos durante um longo momento. Pelas rugas em redor dos olhos, percebi que tinha sorrido.
- Então comecemos!
Seguindo as instruções de Artemon, os homens lançaram-se às diferentes tarefas. Uns foram buscar o saque já recolhido pelos homens que nos tinham precedido e começaram
a transportá-lo para os barcos. Outros aventuraram-se no interior do navio naufragado, levando consigo machados para atravessar quaisquer obstáculos; mais tarde
emergiram do seu interior transportando baús, trouxas de tecido e até algumas ânforas de vinho que tinham sobrevivido intactas ao naufrágio. Outros ainda começaram
a juntar madeira e a erguer a pira funerária.
Um outro grupo começou a percorrer a praia, vasculhando por entre os destroços em busca de cadáveres. Entre este último grupo vi o Ombros Peludos, que, pelos vistos,
tinha deixado a túnica e o pano de linho no barco, pois realizava a sua tarefa completamente desnudo. Nunca eu tinha visto um homem com tanto pelo sobre o corpo.
Ergui os olhos e vi abutres a voar em círculos sobre nós. Os seus voos circulares convergiam sobre a pequena duna onde os pilhantes tinham sido chacinados. Enquanto
eu observava, os abutres atreveram-se um após outro a pousar e a picar os cadáveres.
- Menkhep! - disse Artemon, avançando na nossa direção. - Tu e o Pecúnio vão tratar daqueles corpos.
- Não esperas que os arrestemos até à pira, pois não? - perguntou Menkhep.
- Claro que não. - Artemon aproximou-se e baixou a voz. - Mas alguém precisa de afugentar aqueles abutres, procurar e retirar quaisquer
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objetos de valor dos corpos. Confio que o farás sem profanar os cadáveres. Alguns dos homens... são pouco melhores do que animais, como bem sabes.
- Vem, Pecúnio. - Menkhep, claramente, não estava satisfeito com a nossa missão.
Os abutres assustadiços foram fáceis de dispersar. Primeiro vasculhámos os arreios dos camelos, mas encontrámos pouca coisa de valor. Tinham sido presos em círculo,
as suas rédeas presas a um arbusto rasteiro. Menkhep começou a soltá-los e fez-me sinal para que o imitasse.
- Tens a certeza de que os devemos deixar ir? - perguntei.
- Não os podemos levar connosco. Preferias deixá-los ficar aqui sob o sol quente a morrer à fome?
Por fim, voltámo-nos para os cadáveres.
Nessa altura da minha vida ainda tinha visto poucos cadáveres e tocara ainda em menos com as minhas próprias mãos. Os corpos ainda estavam quentes e as feridas molhadas
do sangue. Tendo em conta as semelhanças nas suas feições e a variação de idades - o mais velho tinha a barba branca e o mais novo era pouco maior do que Djet -,
apercebi-me de que aqueles pilhantes poderiam ser, todos eles, membros de uma só família. Se fosse esse o caso, o sobrevivente estaria de regresso a uma casa repleta
de mulheres que, em breve, seria devastada pelo sofrimento.
Alguns dos homens tinham anéis e colares, mas nada de grande valor. Entre eles, obtivemos apenas uma mão-cheia de moedas. Em várias delas, o perfil sereno do rei
Ptolomeu estava manchado de sangue. Menkhep limpou as moedas antes de as deitar para o saquinho que trazia à cintura.
Menkhep fez uma pausa e inclinou a cabeça erguendo um ouvido.
- Ouves?
Pus-me à escuta. Por cima do calmo bater das ondas, do estalar do navio encalhado e do som de homens a gritar para trás e para a frente, ouvi um som que se assemelhava
ao do choro de um animal, muito ténue mas próximo. O som desvaneceu-se, depois voltei a ouvi-lo, mais forte e mais lamentoso do que antes.
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- É uma mulher - disse Menkhep, baixando a voz.
- Tens a certeza?
- Anda! - Indicou-me por gestos que ficasse em silêncio e o seguisse.
Avançámos com dificuldade pela areia até ao cimo da duna. Na rasa depressão logo abaixo, sob uma cama de plantas carnudas, com as gotas de suor a cintilar sob o
sol quente, vi as costas palpitantes e hirsutas de Ombros Peludos. O que ele estava a fazer era óbvio, mas o corpo sob o dele era tão mais pequeno que quase não
a conseguia ver. Por fim, Ombros Peludos afastou-se e vi o rosto exangue de uma jovem rapariga envolto num nimbo de cabelos castanhos encaracolados. Os olhos estavam
fechados e a boca fixa numa careta. Era difícil perceber se estava ou não consciente, mas era óbvio que estava em sofrimento.
Ao meu lado, Menkhep levou dois dedos à boca e produziu um assobio agudo.
Um instante depois, Artemon corria pelo pequeno monte, seguido por vários homens. Interrompido pelo assobio, Ombros Peludos tinha-se afastado da sua vítima e rebolara
para o lado. Fitava-nos, boquiaberto. O seu peito peludo estava coberto de sangue e, por um momento, pensei que deveria estar ferido. Depois compreendi que o sangue
tivera a sua origem no golpe profundo que atravessava os seios da rapariga. Os restos esfarrapados da sua roupa estavam colados, pelo suor e pelo sangue, ao seu
corpo imóvel.
- Não fui eu quem a apunhalou! - gritou Ombros Peludos. - Foram decerto os pilhantes. Eles devem-se ter divertido com ela antes de começarem a pilhar o navio, depois
deixaram-na aqui para morrer. - Havia uma nota de pânico na sua voz. Quando vi a expressão no rosto de Artemon, compreendi o medo do homem. O olhar de Artemon era
como o de um basilisco: silenciosamente furioso, implacável, sem misericórdia.
- Não ouviste o que eu disse antes de começarmos, Osor? - o tom baixo e arrepiante de Artemon era mais assustador do que se tivesse gritado.
- Claro que ouvi. Mas não fui eu quem magoou a rapariga. Já te disse, encontrei-a assim. Pergunto-te: que homem não se teria aproveitado de uma tal situação, ha?
- Conseguiu dirigir-nos um sorriso torto.
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Enquanto falava, a sua masculinidade, que parecera tão prodigiosa quanto afirmara antes, tinha encolhido até quase desaparecer por entre a floresta de pelos no meio
das pernas.
- Tens de compreender que não me deixas outra escolha - disse Artemon.
- O quê? Porque é que dizes isso? - A voz de Ombros Peludos fraquejava. - Não é o que estás a pensar, garanto-te! Ela estava a gostar. Não vês? - Virou-se para a
rapariga, mas, quando lhe tocou, afastou a mão e soltou um gritinho abafado.
A rapariga estava morta.
- Tragam-no para a praia, onde todos o poderão ver - disse Artemon. Os outros lançaram-se sobre Ombros Peludos e levaram-no consigo, a contorcer-se e a gritar, subindo
e descendo a duna e encaminhando-se para a praia.
Artemon olhou para Menkhep.
- Tu e o Pecúnio, levem a rapariga para a pira funerária.
Era um dever estranho e repugnante, ter de tocar num corpo que até há tão pouco tempo estivera vivo. Quando a movemos, o ar quente saiu pela boca da rapariga de
tal forma que quase parecia um suspiro, mas o som rouco e oco era diferente de tudo o que alguma vez ouvira sair dos lábios de um mortal vivo. O seu corpo estava
mole e pesava muito pouco. Facilmente a teria carregado sozinha, se a tivesse querido tomar nos meus braços, como tomara por vezes Bethesda, pela simples alegria
de a segurar e de a transportar de um lado para o outro. Em vez disso, Menkhep e eu partilhámos o fardo, transportando-a como uma saca ou um qualquer outro objeto,
e o nosso progresso ao longo da areia foi lento e dolorosamente desajeitado. Menkhep, que vasculhara os corpos dos pilhantes sem qualquer sinal de suscetibilidade,
parecia bastante enervado pela tarefa. Ambos suspirámos de alívio quando, por fim, lenta e cuidadosamente, depusemos o corpo da rapariga sobre a pira improvisada
com os destroços e a madeira que dera à costa.
Entretanto, os tornozelos de Ombros Peludos tinham sido presos e os pulsos atados atrás das costas. Tinha sido instalado sobre uma caixa retirada do navio naufragado
e a sua cabeça pendia para diante. Chorava baixinho.
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Vindos de toda a praia, os homens reuniram-se em frente ao navio. O seu bom humor desaparecia, à medida que se iam aproximando e compreendiam o que se estava a passar.
Artemon erguia-se à frente do prisioneiro. Numa das mãos, como o bordão de um camareiro ou um estandarte militar, segurava um machado de cabo comprido.
- Foste apanhado no ato de violar um dos sobreviventes do navio, Osor. Nega-lo?
Ombros Peludos esforçou-se por erguer a cabeça e conseguiu olhar Artemon nos olhos.
- Qualquer outro homem teria feito o mesmo! A rapariga ia morrer, de qualquer maneira, por isso que diferença é que isto faz?
- Eu vi o que tu fizeste. Tal como os homens que te trouxeram até aqui. Algum dos presentes deseja falar em defesa do Osor?
Artemon percorreu a multidão com o olhar. Ninguém falou.
- Então declaro-te culpado e estipulo que o castigo seja levado a cabo de imediato. Algum dos homens aqui presentes se opõe à minha sentença?
- Isto é uma loucura! - gritou Ombros Peludos. - Porque é que ninguém diz nada? Que bando de cobardes que vocês me saíram, a acatar as ordens desta cria de alto
nascimento!
- O castigo é a morte - disse Artemon.
Seguiu-se um longo momento de silêncio, quebrado apenas pelo som baixo das ondas e pelos gritos das gaivotas.
- De acordo com as leis do mundo exterior, do mundo governado pelo rei Ptolomeu, serias sujeito a uma morte terrível, Osor. Poderias ser crucificado, enforcado ou
apedrejado até à morte. No entanto, como és um de nós, receberás a morte que o resto do mundo reserva aos homens de classe alta e de honra, a mais rápida e misericordiosa
forma de execução. Serás decapitado, Osor.
Ombros Peludos virou o rosto e começou a soluçar.
- Quem levará a cabo a sentença? Deverá ser administrado um só golpe, rápido e seguro. A tarefa pede um assassino experiente. Artemon olhou de um rosto para outro,
até que os seus olhos se pousaram em mim. - Temos um recém-chegado entre nós, um homem de
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quem se diz ter feito a sua quota-parte de mortos. E, como é novo, não terá qualquer rancor pessoal contra o Osor. - Avançou na minha direção e estendeu-me o machado.
- Esta é a tua oportunidade para nos mostrares do que és feito, romano.
Olhei para Ombros Peludos, atado e a chorar sobre o cepo improvisado. Olhei para o machado. A lâmina afiada brilhava à luz do sol. Olhei para o rosto de Artemon.
Tinha a expressão firme, determinada, de um líder, mas nos seus olhos vi um brilho de excitação estranhamente infantil.
com dedos trémulos, levei a mão ao machado.
222
XXIV
Eu já tinha matado homens antes.
O primeiro fora em Efeso, sob circunstâncias muito diferentes. Aí, fizera o que era preciso, mas mesmo assim sentira um estremecimento de dúvida. Algo semelhante
acontecera em Rodes, embora dessa feita a morte do homem tivesse sido o resultado de uma luta - uma escolha dos deuses mais do que minha.
Artemon achava que eu era um assassino de sangue frio, um homem capaz de matar homens enquanto estes dormiam - ou não acharia? Teria ele visto para lá do meu fingimento?
Tratar-se-ia de um teste para ver se eu hesitava e me denunciava?
Ombros Peludos era, sem dúvida, uma criatura desprezível, mas eu não estava certo de que merecesse morrer. Se eu me recusasse a levar a cabo a sentença, representaria
essa recusa um desafio à autoridade de Artemon? Ser-me-ia exigido que lutasse contra ele, de homem para homem?
Durante um instante de loucura, imaginei o que aconteceria se eu vencesse um tal desafio, Gordiano de Roma: líder do gangue de bandidos mais perigoso do Delta! Seria
uma forma de garantir a libertação de Bethesda.
No entanto, um outro resultado parecia bem mais provável: Artemon matar-me-ia com as próprias mãos. Engoli em seco e senti a cabeça zonza. Acontecesse o que acontecesse,
pelo menos a Fortuna já me tinha permitido gozar uma última noite de felicidade com Bethesda!
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Cortar a cabeça de Ombros Peludos seria, sem dúvida, mais fácil do que desafiar Artemon. Ou não seria? Matar um homem que eu mal conhecia, perante uma multidão de
espectadores, a sangue frio - a ideia lançou através de mim uma onda de repulsa. Levei a mão ao machado, mas o gesto ficou a meio. Os meus dedos tremiam, imobilizados.
Senti os olhos de Artemon e de todos os outros fixos em mim.
- Deixa-me ser eu a fazê-lo! - disse Menkhep. Este avançou e
agarrou no punho do machado.
Artemon manteve o machado preso e dirigiu a Menkhep um olhar
inquisitivo.
- O Ombros Peludos veio no meu barco. Devia ser da minha responsabilidade.
- Sabes que as coisas não são assim entre nós - disse Artemon. - Não somos o exército do rei Ptolomeu, em que todos estão divididos por postos e em que alguns homens
mandam nos outros.
- Ainda assim, estou disposto e pronto para o fazer. - Dirigiu-me um olhar de esguelha. - Além disso, o romano ainda não é um de nós, não plenamente. Os homens ainda
não votaram para o aceitar. Não realizou o ritual de iniciação.
Vários homens murmuraram e acenaram, mostrando que concordavam com Menkhep. Vendo a minha oportunidade, baixei a mão e
recuei. Artemon largou o machado e permitiu que Menkhep o tomasse.
- O Menkhep fala com sabedoria - disse. - Fá-lo depressa, então.
Eu tinha sido poupado à tarefa macabra, mas desviar os olhos
revelaria demasiada fraqueza. Obriguei-me a olhar, enquanto Menkhep assumia uma posição firme, agarrava com segurança o machado, o erguia acima da cabeça e o descia.
Seguiu-se uma série de sons que jamais esquecerei: o silvar do
machado, um baque surdo quando atingiu a carne, o estalar do osso e da carne a serem separados, o bater da cabeça na areia macia, o esguichar do sangue, o coro de
homens que gemiam e arquejavam contra a sua vontade.
Outro homem qualquer teria atamancado o trabalho, não se mostrando capaz de cortar o pescoço ou falhando por completo o alvo,
224
mas a pontaria de Menkhep era boa e a sua força bastante. A quantidade de sangue que jorrou para a areia era chocante, mas o corte era limpo. A vida de Ombros Peludos
terminara tão rapidamente quanto um homem poderia desejar. Nesse mesmo instante, decidi que, se alguma vez me deparasse com semelhante destino - e enquanto permanecesse
com o Gangue do Cuco, era uma possibilidade sempre presente -, pediria que fosse Menkhep a levar a cabo a tarefa.
Quando o fluir do sangue abrandou, alguns homens levaram o corpo para a pira funerária e deitaram-no ao lado do da rapariga morta. O próprio Artemon agarrou na cabeça,
fitou durante um longo momento as feições sem vida, depois levou-a para a pira e colocou-a sobre o corpo, reunificando as partes separadas.
Os homens retomaram a tarefa de vasculhar o navio e de limpar os cadáveres que se encontravam espalhados pela praia.
O Sol ainda se detinha no céu, restando-nos talvez uma hora de luz, quando Artemon declarou que o nosso dia de trabalho chegara ao fim. Os barcos foram carregados
e preparados para o embarque. Sobre a pira funerária estavam empilhados os corpos de Ombros Peludos, da rapariga e de vários passageiros e elementos da tripulação
que tinham pagado pelo privilégio, prendendo os objetos de valor que possuíam aos corpos antes de morrerem.
Artemon acendeu o fogo. Os homens observaram em silêncio, enquanto ele incendiava a pira. Não foram realizadas orações pelos mortos nem oferecidos sacrifícios aos
deuses. Como Artemon dissera, os homens do Gangue do Cuco não eram soldados. Não havia entre nós oficiais ou sacerdotes que pudessem levar a cabo tais rituais.
Os barcos estavam tão cheios de objetos de valor que os homens mal cabiam no seu interior, e estávamos de tal forma afundados nas águas que os remadores tinham de
ser muito cuidadosos. Deixámos a enseada quando o Sol se afundava no horizonte e o meu último vislumbre da praia desolada foi do navio naufragado e da pira, a partir
da qual as chamas se erguiam no ar. Depois, dobrámos a curva e regressámos para onde tínhamos vindo.
Mesmo quando a luz crepuscular desapareceu e as águas ficaram escuras, continuámos a remar. Os homens encarregados de cada barco
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estavam tão familiarizados com o caminho que podiam navegar no escuro.
No entanto, os homens estavam demasiado cansados para remar durante demasiado tempo. Quando a Lua se começou a erguer, chegámos a um local resguardado, puxámos os
barcos para a margem e montámos o acampamento para passar a noite. Os homens comeram rações frias enquanto conversavam e brincavam com os eventos do dia, espalharam
os cobertores por onde podiam e adormeceram.
Eu dormitei durante um bocado, mas de forma irregular. Acordei de um sonho vago sobre fogo e sangue e dei por mim completamente desperto.
Levantei-me e espreguicei-me, sentindo os membros mais rígidos do que antes. Segui o som do coaxar dos sapos até à beira da água, onde me deparei com Menkhep. Este
estava sentado no tronco de uma palmeira caída, fitando a Lua e as estrelas refletidas na água.
- Importas-te que me junte a ti? - perguntei. Menkhep apontou para um lugar no tronco ao seu lado.
- Não consegues dormir? - disse-lhe.
- Matar um homem tem esse efeito em mim. - Menkhep olhou para mim de lado. Sob o luar incerto, os dois pontos de luz que marcavam os seus olhos pareciam tão distantes
como as estrelas.
- Também não consigo dormir. Pensei que me podia voluntariar para ficar de sentinela - disse eu.
Menkhep abanou a cabeça.
- Não te vão pedir que o faças enquanto não fores realmente um de nós.
- Quando será isso?
- Depois de o Artemon convocar uma votação e teres sido submetido à iniciação.
Era a segunda vez, naquele dia, em que ele falava de tal coisa. Aquilo não me soava bem.
- Que tipo de iniciação?
- Ficarás a saber, a devido tempo. - Fitou as águas. - Depois do que fiz hoje, acho que me deves mais um favor, romano.
- Devo?
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- Vi a expressão melindrada no teu rosto quando o Artemon te ofereceu o machado. Tu, o assassino de todos aqueles homens em Canopo! Perguntei-me a mim mesmo: que
tipo de assassino é este Pecúnio, afinal?
Encolhi os ombros.
- Talvez seja do tipo cobarde, que prefere que as suas vítimas estejam a dormir.
- Será isso, romano? Ou terá sido outra coisa o que te fez hesitar? Pareceu-me ter visto algo próximo da piedade no teu rosto... piedade por aquele miserável Ombros
Peludos! Por um momento, pensei que te ias recusar a levar a cabo a ordem do Artemon. Pensei que estavas prestes a desafiá-lo. Creio que ele pensou o mesmo. Não
foste o único a parecer aliviado quando eu me apoderei do machado.
- O Artemon ficou aliviado? - Consumido pelos meus próprios pensamentos, na altura, fora algo de que não me apercebera.
- Pude vê-lo no seu rosto.
- O Artemon, aliviado, porque tinha medo de lutar comigo? - Senti-me lisonjeado por um momento, até Menkhep ter dado uma gargalhada rouca.
- Não, estúpido! Porque ele não queria ter de te matar. Pelo menos, não para já. Acho que ele gosta de ti.
Menkhep estava tenso e mal-humorado quando me juntei a ele. Agora parecia mais relaxado. Decidi arriscar uma pergunta.
- Quando fomos visitar a Metrodora, ontem, fiquei com a ideia de que havia uma mulher a partilhar a cabana com ela.
- O que te faz pensar isso? Encolhi os ombros.
- Deve ter sido algo que a Metrodora disse. Menkhep hesitou por um momento, depois acenou.
- Sim, está lá alojada uma jovem. Já está há tanto tempo com a Metrodora, que os homens chamam àquela cabana os "aposentos das mulheres", como se pudesse existir
tal coisa no Ninho do Cuco! Ainda me lembro de um tempo, antes da chegada da Metrodora, quando a mulher alguma teria sido permitido residir entre nós, nem mesmo
a uma bruxa.
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- A Metrodora conquistou um lugar entre vocês, mas a jovem decerto não está aqui de sua livre vontade.
- É uma cativa, que aqui tem sido mantida para se poder cobrar um resgate. O Artemon diz que há um homem rico, em Alexandria, capaz de pagar uma fortuna para ter
a rapariga de volta. Até aqui, o homem ainda nem se deu ao trabalho de responder às mensagens do Artemon.
- A rapariga é filha do velho? - perguntei, aparentando ignorância. Menkhep abanou a cabeça.
- É a sua amante, dizem. Uma atriz numa trupe de mimos.
- A amante de um homem rico? Deve ser muito bela.
- É-o, sem dúvida. -Já a viste?
- Só algumas vezes e apenas por um instante. Desde o dia em que chegou ao Ninho do Cuco, o Artemon tem-na mantido longe de nós. Diz que é melhor que os homens não
a vejam de todo, não se vão sentir tentados.
- Tentados a fazer o quê?
- O que é que achas? O Ombros Peludos não era o único bode lúbrico entre nós, embora eu goste de pensar que era mais estúpido do que a maioria. - Menkhep abanou
a cabeça. - Uma rapariga assim tão bonita pode causar todo o tipo de problemas, mesmo que ninguém lhe meta um dedo em cima.
- Como assim?
- Basta-lhe bater as pestanas, namoriscar um bocadinho, mostrar-se indefesa: imagina as lutas que poderão estalar se ela decidir pôr uns homens contra os outros.
Em pouco tempo convenceria um idiota ingénuo a ajudá-la a fugir. - Menkhep suspirou, depois baixou a voz. - Quem me dera que o Artemon tivesse seguido as suas próprias
regras sobre não ver a rapariga. Quem me dera que nunca lhe tivesse posto a vista em cima!
- Porque dizes isso?
- Conheces a história de Alexandre e da esposa do rei da Pérsia?
- Refresca-me a memória.
- Quando Alexandre matou o rei Dario e conquistou a Babilónia, todos esperaram que ele chamasse a esposa de Dario à sua presença, porque a sua beleza era lendária.
No entanto, o mais importante para
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Alexandre era que os persas o amassem e violentar a sua rainha representaria um mau começo. Além disso, queria manter as ideias claras e temia que uma beldade tão
arrebatadora lhe toldasse os sentidos. Por isso, embora a rainha desejasse conhecê-lo, Alexandre recusou-se a autorizá-la a comparecer à sua presença, temendo que
fosse obrigado a tocar com as mãos aquilo que tocasse com os olhos. Comportou-se como um rei, não como um conquistador, e resistiu à tentação. Assenti.
- Contam uma história semelhante sobre Cipiao Africano. Menkhep fitou-me com um olhar vazio. - Decerto já ouviste falar dele.
Menkhep abanou a cabeça. Suspirei. Eu era, sem dúvida, um estranho em terras estranhas, para me descobrir entre homens que nunca tinham ouvido falar de Cipiao Africano.
- Foi só o maior general romano que alguma vez viveu, o homem que se mostrou mais esperto e que venceu Aníbal de Cartago.
- Aníbal... ora desse ouvi falar. Resmunguei.
- Isso é tudo muito bonito, mas esta história é sobre Cipiao. Quando este estava a combater em Espanha, Cipiao conquistou a cidade de Nova Cartago. A filha do seu
inimigo foi trazida à sua presença. A sua beleza deixou-o sem fôlego. Podia tê-la tomado ali mesmo, mas, em vez disso, afastou os olhos e devolveu a rapariga ao
pai. Os poetas têm-lhe cantado louvores desde então.
Menkhep assentiu com a cabeça.
- Até ver, o Artemon resistiu à rapariga, mas quem sabe durante quanto tempo? Estás a dizer que a rapariga é uma bruxa, como a Metrodora?
- Ah! Não me surpreenderia que a Metrodora tivesse ensinado alguns feitiços à rapariga desde que esta ficou aos seus cuidados. Mas a feitiçaria da Metrodora não
é nada comparada com a magia de Hathor.
- Este era o nome pelo qual os egípcios adoravam Vénus.
- Se o Artemon a deseja assim tanto e se ela é sua cativa, se está à sua mercê... o que aconteceria, se ele tomasse a rapariga pela força?
- Isso violaria a sua regra mais importante, a de que as mulheres e os rapazes cativos nunca poderão ser molestados. Todos nós ternos de
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obedecer a essa regra, sob risco de sermos banidos ou mortos, e isso inclui o próprio Artemon. Caso contrário, revelar-se-ia um hipócrita e os homens virar-se-iam
contra ele.
- E se não for uma violação? E se ele tiver conquistado a rapariga com doces palavras?
- Alguns dos homens poderão ficar contentes por ele, mas muitos sentirão ciúmes. Porque haveria o líder de ter uma amante ou uma esposa a viver com ele no Ninho
do Cuco, quando nós não temos? E se ele a tomar para si, isso significa que o gangue terá de esquecer o resgate que o rico alexandrino ainda poderá estar disposto
a desembolsar. O Artemon sabe tudo isto, no entanto, parece incapaz de se libertar do feitiço. Ontem, quando estavas com a Metrodora, ele estava com a rapariga.
- A tentar seduzi-la? - Cerrei os dentes, recordando o beijo.
- Provavelmente. Mas sem sucesso. Imediatamente antes de o Artemon
a ter deixado, ouvi um sonoro estalo. E quando ele saiu da cabana, uma das suas bochechas estava vermelha como um carvão quente.
- A rapariga bateu-lhe? E ele deixou que ela o fizesse? A sua beleza é assim tão grande?
Menkhep sorriu.
- Não sou um rico alexandrino nem um eunuco do palácio real. Não vejo mulheres bonitas todos os dias. No entanto, tanto quanto consigo imaginar, sim, a rapariga
é excecional. Não é de espantar que se chame Axiothea! Mas mais do que isso... - Menkhep ficou em silêncio por um momento, procurando as palavras certas. - Há nela
um certo fogo. Ela é especial. Qualquer pessoa o poderia ver, bastando para isso um olhar. De facto...
-Sim?
- Ela faz-me pensar um pouco no Artemon. Até se parece um pouco com ele. E muito mais baixa, claro, mas ainda assim, quando os vi pela primeira vez, lado a lado,
poderia tê-los tomado por irmão e irmã, o mesmo cabelo escuro, as mesmas feições finas. De facto, fazem um casal adorável.
"Se ao menos o Artemon a pudesse amar como a uma irmã!", pensei. De súbito, bocejei e apercebi-me de que estava de novo com sono. Deixei Menkhep e regressei ao meu
cobertor.
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Pensei em tudo o que tinha visto nesse dia e no que tinha testemunhado das capacidades de Artemon enquanto líder.
A viagem até à enseada decorrera sem incidentes. Os intrusos no local do naufrágio tinham sido despachados de imediato e sem perdas da parte do Gangue do Cuco. O
navio tinha sido despojado dos seus valores tão depressa quanto se poderia desejar. Quando um dos homens violou a lei comum, Artemon ordenou que o culpado fosse
executado no local, sem uma palavra sequer da parte de qualquer homem presente. No final do dia, escapámos sem problemas, carregados de despojos. Em todos os momentos,
Artemon detinha total controlo sobre tudo o
que acontecera.
Os seus pontos fortes, enquanto líder, eram indiscutíveis. Parecia ter apenas uma fraqueza: o seu desejo por Bethesda. No que a mim dizia respeito, isso fazia dele
o homem mais perigoso à face da terra.
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XXV
No dia seguinte os homens que tinham ficado para trás, no Ninho do Cuco, saudaram o nosso regresso. Erguiam-se no cais e ao longo da margem, gritando vivas à medida
que cada barco entrava na lagoa carregado com o saque. Djet encontrava-se no fim do cais e acenou loucamente quando me viu.
Quando todos os barcos estavam ancorados, os homens que tinham ficado foram incumbidos de descarregar o saque e de o transportar para a clareira ao lado da cova
onde se assa a comida, enquanto aqueles que tinham feito parte da expedição esticavam os membros e descansavam.
Esta divisão do trabalho ajudava a dividir a sua carga entre os homens, mas tinha um outro objetivo para além desse, pois assim todos os habitantes do Ninho do Cuco
podiam ver o saque e tocar-lhe com as próprias mãos. Deste modo, todos os homens tinham uma ideia do que poderia constituir uma parte igual quando o tesouro fosse
dividido entre nós, como aconteceu mais tarde, nesse dia.
Primeiro, uma refeição foi preparada e consumida, juntamente com uma quantidade considerável de vinho. Depois de saciado o apetite de todos, os homens reuniram-se
em círculo.
Artemon apontou para as pilhas de tesouro no meio da clareira.
- Olhem, homens do Ninho do Cuco, vejam como estamos mais ricos hoje do que éramos ontem!
Os homens bateram palmas, assobiaram e saudaram.
- Todos os homens fizeram a sua parte - disse Artemon. - Todos os homens merecem a sua parte.
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Ouviram-se mais vivas roufenhos.
- A tarefa de dividir o tesouro cabe-me a mim. Há aqui algum homem que duvide do meu juízo? Há aqui algum homem que duvide da minha justiça? Algum homem me desafia?
Ouviu-se apenas o silêncio, até Menkhep ter falado.
- Confiamos em ti, Artemon. Agora despacha-te com isso!
Tal afirmação foi recebida com uma gargalhada geral e mais vivas.
- Então muito bem - disse Artemon.
Este começou com várias sacas cheias de moedas. Supusera que a sua divisão seria bastante simples, mas, por as moedas provirem de muitos sítios diferentes e serem
de qualidades e pesos variados, dividi-las em partes iguais não era tão simples quanto eu havia pensado. Entre os bandidos estavam alguns homens que tinham trabalhado
em casas de contabilidade ou de câmbio e Artemon pediu-lhes que o ajudassem a avaliar e dividir as moedas. Este processo foi levado a cabo à vista de todos os que
quiseram assistir e, no final, cada homem recebeu, tanto quanto era possível calcular, uma parte igual a todos os outros, incluindo Artemon, e eu, já agora.
Os bens que podiam ser consumidos, como as ânforas de vinho, seriam partilhados entre os homens ao longo do tempo; estes ficavam em local público, para que todos
pudessem desejar o prazer que lhes estava reservado. Os bens que podiam ser vendidos para obter algum dinheiro, como as jóias e os objetos de prata, seriam colocados
no tesouro comum, para serem vendidos mais tarde; também estes eram exibidos perante todos. Enquanto estes objetos preciosos eram exibidos na clareira, recordei-me
das procissões triunfais que tinha visto quando era jovem, em Roma, nas quais os despojos de guerra mais fabulosos eram exibidos perante os habitantes de Roma pelos
generais conquistadores.
O próprio Artemon, sem que qualquer homem objetasse, reclamou para si alguns papiros que tinham sobrevivido ao naufrágio; estes prendiam-se, acima de tudo, com os
assuntos do navio, embora entre eles se contassem também os restos ensopados de uma peça de Menandro. Outros bens, de natureza mais pessoal, como roupa, sapatos,
cintos, sacolas, bolsas para moedas, caixas, facas, lâmpadas, unguentos, escovas
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e pentes, foram distribuídos entre os homens de acordo com a sua necessidade de tais itens ou dados aos que tinham sido menos favorecidos em partilhas anteriores
e que ocupavam o lugar seguinte na lista. Pelos vistos, Artemon mantinha um registo para saber a quais dos homens era devido mais ou menos; tratava-se de uma tabuinha
de cera com marcas que seguiam um código de sua própria invenção. O facto de só ele conseguir decifrar este registo parecia não ser importante, já que todos os homens
confiavam nas suas contas e eram, na sua grande maioria, iletrados.
No final do dia, todos os homens no Ninho do Cuco tinham o estômago cheio e uma bolsa de moedas mais recheada do que no dia anterior e regressaram às suas cabanas
com um novo tesouro, por muito pequeno que fosse. Djet não foi incluído na divisão das moedas mas teve bastante sorte quando foram distribuídos os bens, porque o
saque incluía vários brinquedos de madeira e roupa adequada a um rapaz da sua idade. Como estas coisas não eram úteis a mais ninguém, Djet recebeu-as todas.
Eu recebi um par de sapatos de fabrico muito delicado, que me serviam como se tivessem sido feitos para os meus pés. Artemon escolheu-os para mim e insistiu para
que ficasse com eles, notando que os meus próprios sapatos tinham ficado bastante gastos e maltratados durante as minhas viagens. Tentei não pensar de onde tinham
vindo aqueles sapatos ou imaginar o destino do homem que os usara.
- Todos os homens podem usar um bom par de sapatos para proteger os pés - disse Artemon, quando mós entregou. - Em especial um homem prestes a enfrentar a sua iniciação.
Engoli o nó que tinha na garganta.
- Quando será?
-Já amanhã, se tudo correr bem.
- E o que é... - comecei a dizer, pois queria saber mais acerca desta suposta iniciação. Mas ouvi o homem que estava atrás de mim, e que se sentia tão impaciente
por receber a sua parte do saque como os homens atrás dele, a resmungar. Agarrei nos meus sapatos e parti.
Durante o resto do dia, conversando com Menkhep e com alguns dos outros homens com quem me começava a relacionar, tentei saber
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mais sobre a iniciação. Todos fugiam às minhas perguntas, uns mais desajeitadamente do que outros. Nenhum deles me dava uma resposta clara. Tornou-se óbvio que eu
não deveria ficar a saber mais do que já sabia - apenas que o ritual decorreria no dia seguinte e que era melhor realizá-lo calçado do que descalço.
Nessa noite, na minha cabana, enquanto ouvia Djet a ressonar suavemente, deixei-me ficar deitado, fitando a escuridão durante muito tempo. Não eram as preocupações
em relação à iniciação que me mantinham acordado. Era um desejo avassalador de ver Bethesda.
Tinha ido até ela antes. Atrever-me-ia a fazê-lo outra vez?
Não, disse a mim mesmo; uma segunda visita seria demasiado perigosa. Na primeira noite a violenta tempestade permitira-me realizar a curta viagem até à sua cabana
sem ser detetado, mas nesta noite o céu estava límpido e o silêncio era absoluto. Seria visto, sem dúvida. Artemon seria informado dos meus movimentos. Seguir-se-ia
o desastre.
E, no entanto, não conseguia pensar em mais nada. Lembrei-me da minha visita anterior. Lembrei-me de cada pormenor, demorando-me nos momentos de maior prazer, recordando
as imagens, os sons, o cheiro, o gosto e o toque dela. Tais recordações nada fizeram para me acalmar ou para aquietar o meu desejo. Apenas aumentaram a minha agitação.
Fiz o que pude para me satisfazer fisicamente, mais do que uma vez. Ainda assim, não conseguia pensar em mais nada.
Por fim, fui vencido pelo cansaço.
Contudo, no preciso momento em que penetrava no mundo dos sonhos, ouvi mais uma vez aquele rosnido como que de um animal selvagem que se erguia dos bosques densos
para lá do Ninho do Cuco. Aquele som conseguiu o que mais nada conseguira: afastou Bethesda dos meus pensamentos e, no seu lugar, deixou uma premonição de terror,
fria e paralisante.
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Na manhã seguinte, levantei-me ainda antes do nascer do Sol.
Comi um pedaço de pão seco e uma mão-cheia de tâmaras, depois procurei um lugar resguardado junto à lagoa, à vista das cabanas mas a alguma distância, e assisti
enquanto o mundo acordava gradualmente para o novo dia. A superfície das águas mudou de um verde-escuro para um azul-pálido, à medida que a luz do dia se ia tornando
mais forte. Os pássaros começaram a chilrear e a cantar. Alguns dos homens emergiram das suas cabanas, mas muitos ficaram a dormir até tarde, aproveitando um merecido
descanso depois da expedição. Os que me viram junto à água não me chamaram nem acenaram e nenhum se juntou a mim, nem mesmo Menkhep, que quase de certeza me viu,
mas depressa desapareceu do meu campo visual. Comecei a pensar que aquilo devia fazer parte do ritual de iniciação, que ninguém falasse comigo ou me olhasse nos
olhos.
Por fim, parecia que todos os homens se tinham levantado e, no entanto, com exceção da minha pessoa, o perímetro da lagoa estava deserto. De súbito, da direção da
clareira onde estava o fosso para assar, ouvi o som de muitas vozes que gritavam em uníssono. Compreendi que estava a decorrer uma reunião: para a qual eu não fora
convidado.
O som dos gritos acordou, por fim, o último dos dorminhocos. Do outro lado da lagoa, vi Djet que emergia da nossa cabana. Este bocejou, espreguiçou-se e esfregou
os olhos, viu-me e contornou a lagoa para se juntar a mim. De tempos a tempos, ainda se erguiam alguns gritos da clareira.
- O que é que estão a fazer? - perguntou-me.
- Desconfio que estão a falar de mim.
Os olhos dele abriram-se mais.
- Porquê? Fizeste alguma coisa de errado? Consegui um sorriso fraco.
- com alguma sorte, fiz alguma coisa certa. Descobriremos em breve.
Menkhep apareceu do outro lado da lagoa, na base do cais. Acenou-me e gesticulou indicando que me deveria juntar aos outros, depois voltou para trás. O seu rosto
não dava qualquer sinal do que eu deveria esperar.
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Avancei para a clareira. O meu coração começou a acelerar, embora eu dissesse a mim mesmo que nada tinha a temer. Djet seguiu-me. Olhei de relance para ele, apenas
uma vez, e evitei voltar a fazê-lo, pois os seus olhos estavam muito abertos de medo.
A clareira tinha mais gente do que alguma vez antes. Todos os homens do Ninho do Cuco tinham comparecido. Artemon elevava-se sobre a multidão, numa das extremidades
da clareira, erguendo-se num estrado feito a partir do tronco cortado de uma palmeira. Viu-me e fez-me sinal para que me juntasse a ele. Djet avançou para a frente
da multidão.
O rosto de Artemon era grave mas a sua voz bastante amigável.
- Estás pronto para a iniciação?
Se não fazia ideia do que a iniciação envolvia, como poderia responder a essa pergunta? Limitei-me a acenar. Ele ergueu uma sobrancelha.
- Para mim, basta um aceno, Pecúnio, mas quando te fizer a mesma pergunta em nome dos homens, sugiro que mostres um pouco mais de entusiasmo. - Ele virou-se para
a multidão e dirigiu-se a ela com uma voz sonora e ribombante. - Estimados camaradas, temos perante nós um recém-chegado. Chama-se a si mesmo Marco Pecúnio.
- Um nome romano! - gritou um dos homens, num tom que não era muito amigável.
- O Pecúnio é, de facto, romano - disse Artemon. - Mas muitos chegaram ao Ninho do Cuco vindos de terras para lá do Egito e mesmo os que são egípcios vêm de terras
para lá do Delta. Ter um romano connosco poderá ser uma coisa boa. Para começar, fala latim. Nunca se sabe quando é que isso pode dar jeito. E para chegar aqui vindo
de Roma deve ter viajado bastante. Um homem que já viu o mundo pode revelar-se útil.
Os homens acenaram e murmuraram o seu acordo.
- O Pecúnio também chegou com presentes para nós: uma soma em dinheiro que não era de ignorar e jóias também. Já doou uma parte bastante generosa ao nosso fundo
mutuário.
Dito aquilo, os homens aplaudiram e gritaram o seu apoio.
- Como podem ver, não aparenta ser coxo ou doente. Está fisicamente tão apto quanto parece? Pergunto-te, Menkhep. O Pecúnio remou ao teu lado ontem, não foi assim?
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Menkhep emergiu da frente da multidão. Virou-se para falar com
os outros.
- O romano fez a sua quota-parte do trabalho. Não é nenhum preguiçoso.
- E pode ter outras habilidades úteis, que ainda não o vimos demonstrar - disse Artemon. Tendo em conta o olhar de lado que me lançou, soube que se estava a referir
à minha alegada reputação como assassino. Isto suscitou novos acenos e murmúrios da multidão.
- O que pensa a vidente? - gritou alguém.
- A Metrodora já deu a sua aprovação - disse Artemon. Muitos foram aqueles que, no meio da multidão, acenaram pensativos. - Em suma, acho que o Pecúnio seria uma
valorosa adição ao nosso pequeno bando - disse Artemon. - Mas, antes de votarmos no assunto, asseguremo-nos de que ele se quer juntar a nós. O que dizes, Pecúnio?
Desejas tornar-te um membro do Gangue do Cuco? Desejas viver entre nós e partilhar uma porção igual do que quer que seja lançado no teu caminho, seja boa sorte ou
azar, fartura ou pobreza, vida ou morte? Concordas em honrar as leis do grupo, tal como são determinadas pelos seus membros? Seguirás as ordens do homem escolhido
para ser teu líder, quer esse homem seja eu ou outro?
Quando hesitei, ele olhou para mim, com uma expressão astuciosa.
- Há uma alternativa, claro. Se achares o nosso estilo de vida repugnante, se não concordares com as nossas leis, se não conseguires obedecer às ordens do homem
que nos lidera, seja ele qual for, então não precisas de unir a tua sorte à nossa. Nem todos os homens querem fazer parte do Gangue do Cuco; compreendemos isso.
Mas não podes esperar que te libertemos, simplesmente. Serás despojado das moedas e jóias que guardaste para ti. Serás acorrentado, mas não serás magoado. Se conseguires
pensar em alguém que esteja disposto a pagar pela tua libertação e se nos parecer suficiente o lucro, manter-te-emos refém. Se não, serás levado connosco da próxima
vez que nos aventuremos numa cidade com mercado de escravos. Expor-te-emos em leilão e logo veremos quanto vales. Assim, ficaremos livres de ti e tu ficarás livre
de nós.
- E serei um escravo! - disse eu.
Artemon encolheu os ombros.
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- Não é grande escolha, admito. Mas é a que tens.
O meu objetivo era libertar Bethesda e isso jamais aconteceria se eu ficasse cativo. Ainda assim, senda repulsa pela ideia de me tornar membro do Gangue do Cuco,
em especial porque me parecia ser exigido um voto de lealdade. Isso não era algo que eu encarasse de ânimo leve, já que a palavra de um romano é a sua honra. Quão
vinculativo seria exatamente um voto feito sob pressão, em especial de um gangue de salteadores?
O que teria feito o meu pai? O que me teria aconselhado o meu velho tutor, Antípatro? Tanto quanto conseguia ver, não me restava qualquer escolha. Fitei Artemon
nos olhos e fiz o meu melhor para fingir entusiasmo.
- Não nasci para ser um escravo - disse eu. - Nem nenhum dos homens aqui presentes, aposto. Escolho juntar-me a vocês.
Artemon sorriu.
- Não me digas a mim. Diz-lhes a eles.
Virei-me para a multidão. Olhei de um rosto para outro. Alguns pareciam amigáveis, ao passo que outros pareciam céticos e distantes, mas nenhum deles parecia desejar-me
mal. Pela primeira vez, apercebi-me de quão heterogéneo era o grupo. Não havia uma cor predominante por entre a variedade de tons de pele, do ébano ao alabastro,
com todos os tons pelo meio. Alguns tinham o cabelo fortemente encaracolado e a pele negra dos núbios; uns poucos o cabelo cor de fogo e a pele cor de marfim das
raças do Norte. De alguma forma, todos eles tinham encontrado o seu caminho até ali, e eu também.
- Quero juntar-me a vocês... - comecei e, depois, compreendi a partir dos rostos vazios à minha frente, que estava a balbuciar. Pensei em Bethesda, engoli em seco,
e ergui a voz para gritar. - Quero juntar-me a vocês... se me aceitarem!
- O que dizem, homens do Ninho do Cuco? - perguntou Artemon.
- Sim ou não?
- Sim! - gritou Menkhep. - Sim! Sim! - Ergueu os braços no ar e encorajou os restantes a juntarem-se-lhe.
- Sim! - gritaram, inicialmente em gritos dispersos. Contudo, rapidamente, os gritos se uniram e se transformaram num canto. Alguns
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dos homens aplaudiam e batiam com os pés. Outros erguiam os braços no ar. - Sim! Sim! Sim!
Na frente da multidão, vi Djet. Apanhado pelo entusiasmo, começou a saltar e a rodopiar.
Olhando para o mar de rostos e braços erguidos, ouvindo o entusiasmo nas suas vozes, senti uma excitação inesperada e uma espécie de orgulho perverso. Nunca na minha
vida tinha sido destacado para me erguer perante um grupo tão grande, nem alguma vez rne tinham feito sentir como se fosse, de alguma forma, especial - pouco me
importava que aqueles homens fossem criminosos e eu estivesse a desempenhar um papel. Seria assim que todos os novos membros eram recebidos no Gangue do Cuco? Compreendi
que cada homem ali presente tinha vivido o seu próprio momento único e excitante sobre o estrado.
Por fim, os gritos esmoreceram.
- Bem, então, está decidido. - Artemon deu-me uma palmada no ombro. - Agora só tens de prestar juramento e enfrentar a iniciação.
Não sabia ao certo o que me assustava mais, se fazer uma jura falsa ou se realizar uma prova desconhecida, mas não podia voltar atrás.
- Preciso de realizar a minha jura de acordo com algum deus em particular?
Artemon abanou a cabeça.
- Não há deuses aqui... será que não reparaste? "Por todos os deuses que não existem", é assim que começa o nosso juramento. Muitos dos homens riram com sinceridade.
- Olhas para os homens à tua frente enquanto prestas juramento. É com eles que te comprometes. São eles que garantirão que o cumpres e te punirão se não o fizeres.
Acenei para mostrar que compreendia.
- Então muito bem, Pecúnio, põe as mãos sobre os testículos.
- O quê?
- Fá-lo!
Abri as pernas e agarrei-me por cima da roupa, depois corei um pouco perante o riso animado que o gesto provocou.
- Pela tua honra como homem e sob pena de perderes as preciosas orbes entre as tuas pernas, bem como a cabeça, juras que serás leal aos
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homens reunidos à tua frente, aos homens rijos e corajosos do Gangue do Cuco?
Limpei a garganta.
- Juro!
-Juras que nada farás para nos trair ou lesar e que nos alertarás de imediato para qualquer ameaça que nos possa prejudicar? -Juro!
- Juras obedecer às leis do Gangue do Cuco, tal como são determinadas pelos seus membros e aplicadas pelo seu líder?
- Juro!
- Juras que, mesmo que te separes de nós, sejas capturado pelos nossos inimigos ou nos deixes por tua própria vontade, continuarás a respeitar este juramento e nada
farás que possa prejudicar qualquer um dos membros do Gangue do Cuco?
- Juro!
- Então, muito bem, pelos deuses que não existem, declaro-te membro do Gangue do Cuco. Podes tirar as mãos dos testículos.
Assim fiz, sob grandes gritos de alento e gargalhadas da multidão.
- Agora, Pecúnio, és realmente um de nós... se sobreviveres à tua iniciação.
241
XXVI
Como que a pedido, de algures nas profundezas do bosque cerrado, para lá da clareira, ergueu-se o rugido estranho e assustador que eu tinha ouvido ao chegar.
O meu coração saltou uma batida.
- Que barulho é este? - perguntei.
Artemon dirigiu-me um sorriso fraco.
- Vamos descobrir? Segue-me, Pecúnio.
Artemon desceu do estrado e avançou até um carreiro quase escondido pela vegetação nos limites da clareira. O caminho estreito seguia numa direção que me era nova.
O carreiro era pouco usado, tendo em conta a vegetação que o transformara num túnel verde salpicado pelo sol. Olhando por cima do ombro, vi que os outros homens
nos seguiam, em fila única, encabeçados por Djet e Menkhep.
Depois de várias curvas e contracurvas, emergimos noutra clareira, tão semelhante na forma e no tamanho à que tínhamos deixado, que, por um momento, pensei que tínhamos
voltado para trás. Depois vi o fosso comprido que corria de um lado ao outro da clareira, um fosso tão profundo que eu não lhe conseguia ver o fundo. Artemon parou
ao meu lado, permitindo que os outros passassem por nós e entrassem na clareira. Estes rodearam o fosso comprido e alinharam-se ao longo dos seus limites.
Ismene apareceu, erguendo-se a poucos metros de mim. Envergava uma volumosa túnica escura, num padrão de céu noturno salpicado de estrelas amarelas. A roupagem ficava-lhe
demasiado grande e parecia algo
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roubado a um astrólogo babilónio. Não usava maquilhagem alguma, mas os seus dedos estavam carregados de anéis garridos e, em redor do seu pescoço, encontrava-se
uma corrente de onde pendiam pedaços de âmbar brilhante. Vendo-a sob a luz forte do dia, com um traje tão extravagante, o cabelo selvagem, despenteado, formando
um halo irregular em redor da sua cabeça, não conseguia decidir se parecia ridícula ou assustadora.
Os homens que rodeavam o fosso comprido repararam nela. Tendo em conta as expressões temerosas, quase reverentes nos seus rostos, era claro que nada viam de absurdo
na mulher a quem chamavam Metrodora.
Menkhep avançou na direção dela, depois caiu sobre um joelho e curvou a cabeça.
- Obrigado, vidente! A missão para que nos enviaste ontem foi frutuosa e todos nós (quase todos nós) regressámos em segurança. A tua previsão revelou-se, uma vez
mais, verdadeira.
Os restantes seguiram o exemplo de Menkhep, caindo sobre um joelho, curvando as cabeças na direção dela e murmurando palavras de agradecimento. Até Artemon o fez.
Não me restou outra escolha senão seguir o seu exemplo. Depois de ter curvado a cabeça, ergui os olhos e vi que Ismene me observava com uma expressão de ligeiro
divertimento.
Qualquer divertimento que eu pudesse ter sentido foi interrompido por um súbito rosnar. Era mais sonoro do que nunca e muito mais próximo. De facto, parecia erguer-se
do fosso.
O sangue gelou-me nas veias. Levantei-me. Os outros fizeram o mesmo. Afastaram os olhos de Ismene. Alguns olharam para o fundo do fosso. Outros olharam para mim,
com expressões graves. Uns quantos exibiram sorrisos que me pareceram maldosos, algo que me chocou, pois até àquele momento, acreditara que ninguém no Gangue do
Cuco me desejava mal.
Artemon conduziu-me a uma das extremidades do fosso. Os homens que se apinhavam ao longo do fosso afastaram-se para que pudéssemos passar. Vi o que se encontrava
à minha frente e prendi a respiração.
O fosso tinha, pelo menos, três metros de profundidade, com paredes de terra de todos os lados. Calculei que tivesse seis metros de lado e pelo menos o dobro do
comprimento. Pelo meio corria um estreito
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muro de madeira da altura do fosso, que começava mesmo à minha frente, dividindo o fosso em dois espaços fechados, um à minha esquerda e outro à minha direita. O
muro parecia ser bastante improvisado, formado por pedaços e pedacinhos de madeira.
Folhas de palmeira e outra vegetação seca tinham sido espalhadas sobre o fundo dos dois recintos. Por entre a folhagem vi crânios humanos e outros ossos. Inicialmente,
tinha-me parecido que o recinto da direita estava desocupado; depois um movimento súbito chamou-me a atenção, quando um crocodilo, meio escondido por uma folha de
palmeira, saltou e correu com uma rapidez assustadora de uma ponta à outra do recinto, espalhando ossos pelo caminho, abanando furiosamente a cauda e abrindo e fechando
ruidosamente a boca.
Nada poderia ser mais aterrorizante do que um crocodilo, pensei, até o meu olhar ter caído sobre a criatura que ocupava a outra metade do fosso.
Tendo crescido em Roma, vira muitos animais exóticos nos jogos de gladiadores e noutros espetáculos montados pelos magistrados. Nas minhas viagens, vira criaturas
ainda mais estranhas, algumas em carne e osso e outras em pinturas ou mosaicos. No entanto, nunca me tinha deparado, ou sequer imaginado, um monstro como aquele.
Na sua forma básica assemelhava-se a um leão, com quatro patas, uma cauda e uma juba, no entanto, a semelhança ficava-se por aí. Os leões são acobreados e dourados,
mas aquela criatura era multicolorida
- as pernas eram de um laranja-vivo, o tronco púrpura e a juba de um vermelho fogo com manchas pretas. A juba não caía para trás a partir da testa do bicho, como
no caso de um leão, antes radiava para fora, como se uma explosão de chamas rodeasse o rosto da criatura - um rosto que terminava não num focinho de leão, mas num
estranho corno, como o de um rinoceronte. A sua cauda parecia-se mais com a de um escorpião do que com a de um leão, uma coisa horrível, segmentada, que estalava
quando era agitada de um lado para o outro. A cauda terminava num ferrão hediondamente inchado e farpado.
A criatura erguia-se na extremidade mais distante do recinto. Enquanto a observava, lançou a cabeça para trás e rugiu. Havia uma sonoridade penetrante, uivante,
que me arrepiou os dentes.
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Tal como os movimentos repentinos e reptilianos do crocodilo suscitavam em mim um arrepio de repulsa, também o aparecimento desta criatura me repugnou. Havia nela
algo de não natural, como se vários animais tivessem sido cortados aos pedaços e cosidos uns aos outros. Que tipo de monstro era aquele e de onde teria vindo? compreendi
que Ismene estava perto de mim e assustei-me. Teria aquela abominação sido criada pela magia?
Ismene aproximou-se mais. Sussurrou-me ao ouvido.
- Escolhe a esquerda, não a direita. Não fujas, luta.
Que dito macarrónico era aquele? Estava pronto para lhe pedir que me repetisse, quando Artemon pousou uma mão entre as minhas omoplatas e me empurrou com força.
Uivando o meu protesto, cambaleei para a frente e dei por mim, subitamente, sobre o muro que dividia o fosso. Sobre este tinham sido colocados uma série de estreitos
troncos de palmeira, alinhados, como um corrimão. Estes troncos tinham a largura do meu pé, mas eram redondos, pelo que era difícil manter-me firmemente sobre eles.
Enquanto lutava por me equilibrar, ouvi o som de algo a estalar e senti todo o muro a estremecer e vacilar por baixo de mim. Recuei instintivamente, mas senti algo
afiado contra a base das minhas costas.
- Não podes voltar para trás, Pecúnio. Só podes seguir em frente. Olhei por cima do ombro e vi que Artemon segurava uma lança
comprida, cuja ponta estava firmemente encostada às minhas costas. Virei-me para olhar em frente, lutando sempre por manter o equilíbrio. Dos homens que rodeavam
o fosso ergueu-se uma sonora gargalhada. Estariam eles à espera de que eu percorresse todo o comprimento daquele muro instável, de uma ponta à outra do fosso?
- Impossível! - silvei, por entre os dentes cerrados. - Isto é uma loucura!
Ninguém me ouviu. Todos estavam a rir demasiado.
Eu pensara que os homens do Gangue do Cuco eram meus amigos ou, pelo menos, que não eram meus inimigos. Tinham-me recebido nas suas fileiras; tinham desejado que
eu me tornasse um deles. Agora os aplausos e os vivas que ouvira uns instantes antes pareciam-me uma piada cruel. Nenhum homem seria capaz de percorrer todo o
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comprimento daquele muro estreito e instável sem cair para um lado ou para o outro. E se eu caísse...
com o ouvido direito ouvi o bater dos maxilares do crocodilo e o matraquear dos ossos quando ele varreu o chão com a sua poderosa cauda. com o ouvido esquerdo ouvi
o uivo aterrorizante do monstro.
- E melhor que te ponhas a andar, Pecúnio - disse Artemon. Este deu uma gargalhada e espetou ao de leve a lança nas minhas costas.
Erguendo-me ali, encurralado sobre o muro, sem forma de voltar atrás, rodeado pelo riso dos mirones, assolado pela ideia de que a minha vida poderia chegar a um
fim terrível numa questão de segundos, senti um daqueles momentos absolutamente bizarros pelos quais um homem passa apenas algumas vezes na sua vida. Os meus sentidos
nunca tinham estado tão aguçados; todas as imagens e sons pareciam, simultaneamente, aumentados e, no entanto, destilados até à sua essência. Também os cheiros me
eram acessíveis com uma intensidade sem precedentes. Cada uma das criaturas no fosso por baixo de mim exsudava um cheiro próprio. O monstro emitia um cheiro azedo,
pútrido, como o de uma ferida putrefacta. O crocodilo tinha um odor fétido, bolorento, como algas a apodrecer sob o sol quente.
E, no entanto, nesse momento não senti medo. De facto, não parecia sentir nada, como se fosse um mero observador de uma cena que era bizarra e ligeiramente interessante
mas que nada tinha a ver comigo.
Olhei para os rostos dos que assistiam e analisei as suas expressões. Sim, estavam a rir, mas de uma forma bem-humorada, não escarneciam nem gritavam insultos. Pareciam
muitíssimo divertidos com a minha provação, no entanto, não mostravam quaisquer sinais de malícia, como se estivessem a reagir a uma anedota, não como se se deliciassem
com a perspetiva de ver um homem feito em pedaços. Que tipo de homens eram aqueles? Ou, para ser mais exato, em que tipo de situação é que me encontrava? Aquele
foi o primeiro sinal de que nem tudo era o que parecia.
Entre eles, erguendo-se mesmo à beira do fosso, sobre o recinto onde estava o monstro, vi Djet. Apenas este parecia não compreender a piada. Os seus olhos estavam
muito abertos e o rosto pálido. Oscilava, instável, como se pudesse desmaiar, mas não temi que pudesse cair,
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pois conseguia ver que Menkhep o estava a segurar com firmeza pelos ombros.
Fui buscar algures a motivação necessária - dificilmente lhe poderia chamar coragem, já que o medo me tinha abandonado - para erguer o pé direito e para o pousar
à frente do esquerdo.
- Assim é que é! - gritou Artemon.
- Assim mesmo! - disse Menkhep. - Segue! Vai! Os homens começaram a bater palmas e a cantar.
- Vai! Vai! Vai!
Agora pareciam estar a encorajar-me, não a cair mas a continuar sobre o muro, como se um tal feito fosse, de facto, possível. Ocorreu-me um pensamento: se aquele
era o ritual de iniciação normal do gangue e não um qualquer truque malvado, então muitos, a maior parte ou todos os homens ali presentes tinham passado pela mesma
provação e sobrevivido. Se eles tinham conseguido, então também eu conseguiria.
Dei mais um passo.
- Vai! Vai! Vai! - gritavam.
Olhei de relance para Djet. Os seus olhos ainda estavam muito abertos, mas ergueu lentamente as mãos e começou a bater palmas ao ritmo dos outros.
Dei mais um passo e mais outro. Depois mais uns quantos. O meu equilíbrio era impecável. Inspirei fundo e senti-me em paz. Afinal de contas, atravessar o cimo do
muro não era mais difícil do que andar em linha reta, no chão.
Depois, no meu passo seguinte, o muro inclinou-se ligeiramente para um lado, depois para o outro, parecendo em seguida abanar loucamente para trás e para a frente.
O riso e as palmas cessaram abruptamente. Fui rodeado por um coro de arquejos. Agitei os braços e mantive os olhos em frente, fixos em Artemon e Ismene, que tinham
avançado para a extremidade oposta, como que para me receber, caso eu chegasse tão longe.
Através de um qualquer processo para lá da compreensão racional, o meu corpo endireitou-se. Lentamente, o muro parou o seu movimento e tornou-se de novo direito.
A oscilação tinha sido mínima, compreendi, não mais de um dedo, mas tinha-me parecido enorme.
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Dei mais um passo. Estava agora para lá de meio do caminho. Por cima do bater do meu coração, conseguia ouvir os homens que recomeçavam a rir, a cantar e a bater
palmas.
No meu estado de espírito absorto e tremendamente concentrado, quase me esquecera das criaturas nos recintos em baixo. Teriam estado a andar de um lado para o outro
e a fazer barulho durante todo aquele tempo? Se assim fosse, não me apercebera, mas, de súbito, ouvi o bater dos maxilares do crocodilo à minha direita e o rugido
do monstro à minha esquerda, como se ambos estivessem mesmo por baixo de mim. O fedor das duas criaturas combinava-se para criar um cheiro imensamente nauseabundo
que me deixou a cabeça a andar à roda. O meu coração batia ainda mais alto nos meus ouvidos e senti um arrepio de medo indesejado.
- Sai! - disse em voz alta, não para os dois monstros, mas para o medo. Por um momento, pelo menos, o feitiço pareceu resultar, pois fui capaz de dar mais alguns
passos.
Depois cheguei ao buraco no muro.
Por alguma razão, não o vira antes. Do ponto de vista do meu local de partida, o cimo do muro parecera correr continuamente de uma ponta à outra sem interrupções.
Esta ilusão tinha persistido, enquanto eu dava um passo após o outro. No entanto, agora, olhando para baixo, vi que o muro descia ao longo de alguns metros, voltando
a subir para a sua anterior altura depois de uma abertura de tamanho considerável.
Como é que eu havia de continuar? Inicialmente, pensei que teria de descer até ao nível mais baixo do muro, dar alguns passos e, depois, de alguma forma, subir de
novo para a zona mais alta por forma a terminar a viagem. Depois vi que a parte mais baixa do muro não estava coberta por troncos de palmeira ou por qualquer outro
passadiço. Era composta por um conjunto de estacas afiadas, impossíveis de percorrer.
Agora via outra coisa de que não me apercebera ao partir. Logo por baixo de mim, estavam duas extensões de corda. Uma seguia em diagonal para a minha direita, a
outra para a minha esquerda. Tratava-se, na sua essência, de cordas bambas, uma estendida sobre o recinto com o crocodilo, a outra sobre aquele onde se encontrava
o monstro.
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Os homens que assistiam viram que eu tinha, por fim, compreendido a minha situação e rugiam de riso.
- E agora, Pecúnio?
De uma distância que era ainda considerável, Artemon fitava-me, de braços cruzados e uma expressão irónica estampada no rosto. Eu pensara que ele tinha dado a volta
para a extremidade oposta para me receber, mas agora parecia-me que o tinha feito para poder ver a expressão do meu rosto neste preciso momento. Ao seu lado, erguia-se
Ismene. O seu rosto era imperscrutável, mas quando os nossos olhos se encontraram, ela acenou ao de leve e moveu os lábios, como que para me recordar das palavras
que tinha sussurrado ao meu ouvido. "Escolhe a esquerda, não a direita. Não fujas, luta."
Nem fugir nem lutar me pareciam uma opção, naquele momento, mas eu tinha de escolher entre passar para a corda bamba da direita ou da esquerda. Ismene dissera-me
para escolher a última, mas porquê? Não me parecia que tivesse grandes hipóteses com o crocodilo, mas a ideia de cair no recinto com a monstruosidade não natural
do outro lado agradava-me ainda menos. Estava inclinado a correr o risco de atravessar o recinto do crocodilo - em especial depois de ter visto algo que me parecia
um cutelo entre as folhas de palmeira espalhadas pelo chão do espaço onde se encontrava o animal. Provavelmente não passava de um pedaço de madeira que se tinha
soltado do muro, mas parecia capaz de dar uma arma pesada, útil para manter o crocodilo à distância. Até me imaginava a prendê-lo entre os maxilares do animal, mantendo-os
abertos e tornando-os inofensivos.
Avaliei rapidamente o outro lado do muro, mas não vi cutelo semelhante nem qualquer outro objeto que pudesse ser usado como arma contra o monstro. Até os ossos humanos
que conspurcavam o fosso da criatura tinham sido espezinhados ou roídos até não passarem de fragmentos inúteis.
Deveria seguir os meus instintos e tentar atravessar a corta bamba por cima do recinto do crocodilo? Ou devia obedecer às instruções de Ismene e andar sobre o covil
do monstro? Como que para tornar a escolha ainda mais difícil, as duas criaturas tornaram-se ativas. O crocodilo agitava-se. O monstro andou impaciente, de um lado
para o
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outro, lançou a cabeça para trás e emitiu mais um dos seus rugidos de gelar o sangue. O fedor quente e malcheiroso da sua respiração ergueu-se no ar e envolveu-me
como uma nuvem venenosa.
Faria realmente assim tanta diferença que caminho escolhia? Eu não era nenhum equilibrista e os dois animais pareciam suficientemente selvagens para me fazerem em
pedacinhos.
O estranho desprendimento que me tinha, até aqui, isolado do medo evaporou-se de súbito. Eu tinha medo - muito medo. As minhas pernas tremiam. O meu peito estava
tão apertado que quase não conseguia respirar.
- Não podes parar agora! - gritou Artemon.
- Vai! - chamou Menkhep.
- Vai! Vai! Vai! - Os homens cantavam e batiam palmas em uníssono.
Ismene olhou para mim e moveu os lábios sem emitir qualquer som.
Pousei um pé na corda do lado esquerdo.
Quase impercetivelmente, Ismene assentiu com a cabeça.
A corda cedeu ligeiramente sob o meu pé, mas parecia suficientemente firme para suportar o meu peso. Calculei que a distância até ao fim do fosso não ultrapassasse
os três ou quatro metros. Quão difícil seria andar sobre uma corda? Seria melhor se o fizesse rapidamente, disse a mim mesmo. Olhei em frente e vi que os homens
que se encontravam junto à ponta do fosso se afastavam, para me dar espaço quando eu chegasse ao outro lado. Estes aplaudiam, cantavam e batiam os pés para me encorajar.
- Vai! Vai! Vai!
Olhei de relance para Djet e vi no seu rosto uma expressão de puro horror. Ele tapou os olhos.
Não andei na corda. Corri. Era mais fácil do que antecipara. O meu equilíbrio era perfeito.
Depois, alguns passos à minha frente, vi uma zona onde a corda estava muito gasta. Enquanto olhava para ela, os fios desemaranharam-se. Ocorreu-me que um tal ponto
fraco na corda dificilmente poderia ser considerado um acidente. O mais provável era que alguém tivesse
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cortado deliberadamente a corda, quase de um lado até ao outro, para que cedesse caso algum louco a tentasse atravessar.
A corta estalou.
Um instante depois, caí ao chão. Os meus tornozelos cederam e eu aterrei com força sobre o traseiro. O fedor do monstro encheu-me as narinas. O rugido horrível ressoou-me
aos ouvidos. Por cima de mim, os homens batiam palmas, gritavam e riam mais do que nunca.
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XXVII
Ergui-me atabalhoadamente - não era tarefa fácil, pois as folhas de palmeira eram escorregadias e as minhas pernas pareciam gelatina. O monstro estava tão perto
que eu lhe poderia ter tocado. Recuei freneticamente, escorreguei em mais folhas de palmeira e caí de novo sobre o traseiro.
Preparei-me, esperando que a criatura saltasse para cima de mim, mas, em vez disso, esta correu para trás. Aparentemente, os monstros também se assustavam.
Aproveitei a consternação momentânea da criatura para rebolar, ficando de gatas, me virar e correr para a extremidade do recinto. Levantei-me, virei-me de novo e
apoiei as costas à parede de terra húmida. O monstro erguia-se na extremidade oposta do recinto, agitando a sua cauda de escorpião e mostrando as presas. Mesmo por
cima do monstro, pairando na beira do fosso, estavam Artemon e Ismene. Os homens que tinham estado do lado direito do fosso, por cima do crocodilo, corriam agora
para o outro lado, para poderem ver melhor. Alguns riam tanto que estavam dobrados ao meio, quase não sendo capazes de se aguentar. Artemon também ria, mas de forma
mais controlada e discreta do que os restantes. Ismene mantinha-se direita e impávida, olhando para mim por cima do nariz.
Sobre as gargalhadas ruidosas, ouvi a voz aguda e guinchada de Djet.
Localizei o seu rosto por entre a multidão. Apontava freneticamente para algo muito próximo de mim. Analisei o chão sob os meus pés,
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depois olhei para a secção do muro improvisado logo à minha direita. Continuava sem perceber o que Djet estava a dizer, mas vi para onde estava, decerto, a apontar.
Cortada na parede estava uma pequena porta montada sobre rudes dobradiças e com um simples ferrolho a mantê-la fechada.
A porta levar-me-ia do recinto do monstro para o recinto adjacente, onde se encontrava o crocodilo.
Fitei o monstro, que agora me olhava de frente, de tal forma que me via confrontado com o pleno esplendor da sua flamejante juba vermelha e pela terrível ameaça
do seu aterrorizante corno. Recuperado da surpresa da minha queda, o monstro espreitava-me com os seus olhos felinos. Rosnou e deu um passo deliberado na minha direção,
depois outro.
Levei a mão ao ferrolho da porta e agachei-me, preparando-me para a abrir e saltar através dela. Em seguida ouvi um som proveniente do outro lado. Estaria o crocodilo
já à minha espera? Conseguiria chegar à moca a tempo de a usar?
Lembrei-me da segunda metade do conselho de Ismene: "Não fujas, luta."
Olhei de relance para o rosto dela. Uma vez mais, vi-a mexer os lábios, como que para me recordar das palavras que me dissera.
Abanei a cabeça e cerrei os dentes. Tinha acabado de seguir as instruções da bruxa, virando à esquerda e não à direita, e para onde é que isso me tinha atirado?
O que haveria eu de pensar, a não ser que Ismene me estava a tentar matar deliberadamente? E, no entanto, se essa era a sua intenção e se a triste e precária condição
em que me encontrava lhe estava a dar prazer, tinha uma estranha forma de o mostrar. Não vi qualquer satisfação no seu rosto, apenas uma insistência ávida e inquebrantável
para que eu fizesse o que me dissera. Uma vez mais, escutei as suas palavras no meu ouvido, não como quem ouve o eco de algumas palavras na sua memória, mas como
se ela estivesse, de facto, ao meu lado, a falar em voz alta: "Não fujas, luta!" Tratar-se-ia de um ato de bruxaria audível ou apenas a minha mente a pregar-me partidas?
Se não fugisse, como haveria de lutar? Sem nada mais do que as minhas mãos nuas contra uma criatura de garras e presas afiadas, já
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para não falar do corno e da cauda de escorpião? com tantas formas de me matar, talvez o monstro me permitisse, pelo menos, uma morte rápida, ao passo que um combate
contra o crocodilo poderia ser longo, sangrento e doloroso. Seria esse o propósito de Ismene, não salvar-me, mas conduzir-me para um fim mais misericordioso?
Nesse momento, fiz a minha escolha. Não procuraria escapar para o recinto adjacente. Manter-me-ia firme e enfrentaria o monstro.
Levantei-me. Puxei os ombros para trás. Cerrei os punhos.
O monstro inclinou a cabeça, como que surpreendido pela minha arrogância, depois deu mais um passo na minha direção. O movimento da sua cauda de escorpião emitiu
um som estalado que me fez cerrar os dentes. Quando abriu a boca para rugir, o odor horrível que dela saiu quase me fazia cair de joelhos.
Decidi que não valia a pena esperar que o monstro me atacasse. Como já me fora permitido ver, era possível assustar a criatura. Se eu desse o primeiro passo, talvez
tivesse, pelo menos, a vantagem da surpresa.
Corri na direção do monstro. Para meu espanto, este recuou.
O corno era a minha principal preocupação e agarrá-lo o meu objetivo. A uma dentada ou a uma arranhadela eu poderia sobreviver, pelo menos durante um bocado; até
a picada do seu ferrão poderia ser suficientemente leve para me permitir continuar a lutar. Mas se o monstro me conseguisse furar a barriga com aquele corno, tudo
estaria terminado para mim.
Por cima de mim, ouvi o súbito rugido das vozes dos homens. Num piscar de olhos, os gritos de incentivo tinham substituído os risos. Nunca tinha ouvido tais gritos,
a não ser nos jogos de gladiadores em Roma, quando um combate chegava ao seu clímax e o público explodia de excitação.
Antes que o monstro pudesse reagir, agarrei o corno com a mão direita. Nesse mesmo instante, porque me apercebi de que estava ao meu alcance, com a mão esquerda,
agarrei a cauda, perto do ferrão. Se eu tivesse força suficiente para manter presas aquelas duas armas mortíferas e a destreza para evitar as suas garras, talvez
me conseguisse lançar, de alguma forma, para cima da criatura e montá-la ou forçá-la a cair ao chão.
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Isso, pelo menos em retrospetiva, teria sido a minha intenção. Ou talvez eu tivesse agido meramente por instinto ou impulso, sem qualquer plano.;'
O que quer que eu pudesse ter esperado fazer, não se assemelhou ; em nada com o que aconteceu, pois no instante seguinte, dei por mim .' a cair de cabeça para o
outro lado do monstro, sobre o chão coberto v de folhas de palmeira, agarrando com uma mão o corno do monstro e com a outra parte da sua cauda. Ambos se tinham soltado
da criatura :.. quase sem oferecer resistência.
Por cima de mim, o rugido dos gritos de incentivo voltara a transformar-se numa onda de gargalhadas.
Uma das vozes erguia-se sobre as restantes. Pertencia a Menkhep.
- Esta é a nossa melhor iniciação até hoje!
Menkhep gritava sobre o fosso para Artemon, que se encontrava agora diretamente por cima de mim, espreitando para o recinto com um sorriso sereno e um sábio aceno
de cabeça. Ao seu lado, erguia-se Ismene, cujo rosto traía por fim um ligeiríssimo traço de emoção, uma expressão simultaneamente convencida e satisfeita, para além
de ligeiramente compreensiva em relação à confusão que me esmagava. Quando recuou do precipício e desapareceu, soube que ela estava a deixar a reunião, como se o
drama - ou a comédia - tivesse chegado ao seu fim.
Virei-me de novo para o monstro que, num piscar de olhos, se tinha transformado num simples leão.
As cores não naturais - os membros cor de laranja, o tronco púrpura, a juba vermelha - eram precisamente isso, não naturais. Alguém tinha pintado o pelo da criatura
e também aparara e penteara a sua juba, enrijecendo-a de alguma forma para que mantivesse aquela forma radiante. A cauda segmentada não era mais que um adereço feito
a partir de cabaças ocas e preso à cauda do leão. O corno parecia verdadeiro, mas tinha sido cavado de tal forma que pesava muito pouco; de que animal provinha,
eu não sabia, mas era certo que não tinha crescido ao leão.
Eu estava preso no fosso, não com uma hedionda criatura mágica, mas com um leão. Esse facto deveria ter sido aterrorizante em sim
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mesmo - mas que raio de leão era aquele que permitia que o tingissem, penteassem e aplicassem uma cauda e um corno falsos?
Enquanto o riso se desvanecia, Artemon dirigiu-se a mim a partir da beira do fosso.
- Vejo que já conheceste o Cheelba.
O leão pintado sentou-se sobre os quartos traseiros e fitou-me com um ar de dignidade ofendida. Mantive os olhos fixos no animal, não me sentindo ainda pronto para
baixar a guarda. Deitei fora a cauda falsa mas mantive na mão o corno que me poderia servir de arma.
- O leão tem nome? - perguntei.
- Certamente. O Cheelba está connosco há quase um ano. Estava entre o saque que tirámos da caravana de um mercador núbio. O mercador pretendia oferecer o animal
de presente ao rei Ptolomeu. Um leão tão bem domado como o Cheelba é, de facto, muito raro, um presente digno de um rei.
- Mas... o fedor que lhe sai da boca! - Apertei o nariz entre os dedos, pois nesse momento o leão deu um grande bocejo que lançou o seu bafo tóxico na minha direção.
Artemon suspirou.
- O Cheelba parece ter um dente podre. O que o deixa de mau humor, daí o rugido lamentoso que emite de tempos a tempos, nada que se pareça com o seu rugido normal.
O Cheelba pode estar domado, mas até ver nenhum homem entre nós mostrou coragem suficiente (ou loucura) para meter o braço na boca do leão e arrancar o dente estragado.
O leão dobrou as patas da frente e instalou-se sobre todos os membros. Continuava a olhar para mim com uma expressão inquisitiva.
- Estas cores... a juba absurda... a cauda e o corno falsos...
- Estás a perguntar-te sobre o disfarce do Cheelba - Artemon riu.
- A ideia foi de um dos nossos confederados, um homem com considerável habilidade para a criação de tais artifícios e que trabalha com elevada qualidade. Mesmo à
luz do dia, a ilusão era deveras convincente, não era? O artífice já não está entre nós (partiu para Alexandria), por isso tem cuidado com a forma como manuseias
esse corno. Receio que possas ter danificado a cauda de escorpião, deitando-a fora tão descuidadamente. - Ele viu a minha reação irritada. - Não sejas palerma,
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Pecúnio! Todos os homens aqui presentes que conheceram o Cheelba nas mesmas circunstâncias foram enganados pelo... disfarce do leão, se é que lhe podemos chamar
disfarce. E atrevo-me a dizer que quase todos os iniciados fizeram maior figura de parvos do que tu.
Erguendo os olhos para a multidão, reparei em alguns sorrisos parciais e em alguns rostos vermelhos entre o contentamento geral.
O leão pestanejou. Bocejou uma vez mais, enchendo o ar de mau cheiro, depois rebolou para o lado, pousou a cabeça numa pata e fechou os olhos. Apenas a sua cauda
se movia, agitando o ar e as folhas de palmeira.
Inspirei fundo e apercebi-me de que era a primeira vez que enchia completamente os pulmões desde que aquela provação começara. Os meus ombros relaxaram. Senti-me,
de súbito, exausto e fraco como uma criança. Até o corno oco me parecia pesado. Por fim, virei as costas ao leão para poder erguer os olhos para Artemon, esticando
o pescoço.
- E o outro lado do fosso? E se eu tivesse escolhido atravessar o
recinto do crocodilo?
Artemon ergueu uma sobrancelha. -Já outros o fizeram antes de ti.
- A corda também está alterada por forma a partir? Artemon abanou a cabeça.
- Não, a corda sobre o recinto do crocodilo está intacta. Se um homem a conseguir atravessar, passa na iniciação. Mas muito poucos homens o conseguiram fazer.
- Caíram no fosso com o crocodilo?
- Sim.
- Algum desses homens sobreviveu?
- Como és curioso, Pecúnio! Mas, já que perguntas, só me lembro de um candidato. Ele sobreviveu, sim, mas não lhe foi permitido juntar-se a nós. Tratámo-lo o melhor
que podíamos e mandámo-lo embora. A Metrodora disse que nos traria azar. De que nos serve um bandido que perdeu as mãos?
Estremeci.
- Então o crocodilo não é nenhum animal de estimação?
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Artemon riu.
- O Glutomem não é o animal de estimação de ninguém, embora já esteja connosco há mais tempo do que o Cheelba. O Glutomem parece estar sempre de mau humor.
Como que para o provar, no outro recinto o crocodilo bateu violenta e ruidosamente contra o muro central.
O barulho fez-me cerrar os dentes, mas não teve qualquer efeito no leão, que parecia estar a dormir profundamente. Até a sua cauda parara de se mover.
A ponta de uma corda fina caiu abruptamente aos meus pés. Ergui os olhos e vi Menkhep a segurar a outra ponta, que estava enrolada várias vezes em redor do seu punho.
- Está na hora de trepares daí para fora - disse.
Olhei para a corda, depois para o leão. Este começara a ressonar. Choramingava e movia as patas, como se sonhasse.
Bethesda adorava gatos. Não os gatos gigantes como este, mas a variedade muito mais pequena que encontramos por todo o lado em Alexandria e em todas as outras cidades
do Egito que eu visitara. Para os habitantes do Nilo, os gatos eram animais sagrados, protegidos pela lei e pelos costumes contra todos os males. Era-lhes permitido
ir e vir a seu belo prazer, vivendo em templos, arcadas públicas e até nas casas das pessoas, onde as famílias os veneravam como deuses e deusas. Enquanto jovem
rapaz a viver em Roma, tinha visto os leões ao longe, nos espetáculos de gladiadores, mas nunca vira nenhum gato doméstico egípcio. Nunca imaginara que as pessoas
pudessem coexistir e até coabitar com tais criaturas, mas Bethesda ensinara-me que não só nos podíamos aproximar deles com segurança, como podíamos lidar com eles
de forma a trazer prazer tanto ao humano quanto ao felino.
Ocorreu-me uma ideia. Uma ideia louca, certamente, e no entanto...
Talvez estivesse inebriado devido à provação por que acabara de passar, bêbado de alívio e, como um bêbado, a padecer de uma deficiente capacidade de avaliar a situação.
Ou talvez a experiência me tivesse limpado a mente e esta estivesse mais aguçada do que nunca. Fosse qual fosse o meu estado mental, mal a ideia me ocorreu, senti
um impulso avassalador para a pôr em prática.
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com os dedos desfiei a ponta da corda fina, para que esta terminasse numa série de fios fortes mas maleáveis. Quando fiquei satisfeito com o trabalho, aproximei-me
lentamente do leão adormecido.
Agachei-me ao lado do animal e, cuidadosamente, pousei a mão no seu flanco. O animal respondeu com um suspiro. Senti o subir e descer da sua caixa torácica ao ritmo
da respiração. Embora tivesse a boca fechada, o cheiro do seu dente podre, tão próximo de mim, fez-me estremecer.
Por cima de mim, os homens silenciaram-se.
- O que é que ele está a fazer? - murmurou Menkhep.
Afaguei lentamente o peito do leão, depois o rosto, sentindo um arrepio de medo e excitação. O pelo tingido era mais áspero do que o de um gato doméstico egípcio.
- Cheelba... é esse o teu nome? - sussurrei. - Lindo Cheelba. Bonito
Cheelba.
Movendo-me muito devagar, toquei no maxilar do leão, depois nos seus lábios escuros. As pálpebras pestanejaram, mas continuava a dormir. Enfiei os dedos por entre
os lábios e toquei-lhe nos dentes, que pareciam duros, grandes e muito afiados sob as pontas dos meus , dedos.
Engoli em seco e inspirei fundo, rapidamente. Pousei a ponta da corda ao meu lado e usei as duas mãos para afastar os maxilares do leão. Para meu espanto, o animal
deixou que eu fizesse o que queria, embora fungasse baixinho e as suas pálpebras se agitassem.
Vi uma presa afiada com um enorme buraco preto. Era aquela cárie que emitia o fedor pavoroso. Agarrei o dente e senti que se movia, como se estivesse quase pronto
para se soltar das gengivas.
Mantendo o maxilar aberto apenas com recurso ao polegar e ao indicador, agarrei na corda. Nesta altura, ter-me-ia dado jeito uma terceira mão, mas ainda assim consegui
atar, lenta e cuidadosamente, vários fios da corda em redor do dente danificado.
Por cima de mim, ouvi os homens a sussurrar e a arquejar, mas nenhum deles riu ou ergueu a voz.
Quando terminei, a corda estava firmemente presa ao dente.
Levantei-me lentamente e recuei, afastando-me do leão adormecido.
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- Menkhep - chamei, mantendo os olhos fixos no leão e a voz baixa -, consegues dar-me corda suficiente para que possa subir sem perturbar o Cheelba?
Menkhep baixou mais corda, depois os homens de ambos os lados juntaram-se a ele para a seguraram com firmeza na outra ponta. Agarrei a corda e subi pela parede de
terra do fosso, usando o que restava das minhas forças para colocar um pé à frente do outro. Cheguei, por fim, ao topo, onde mãos prestáveis me ergueram e ajudaram
a atingir terra firme.
Sem uma palavra, Menkhep e os outros homens largaram a corda e recuaram, pelo que apenas eu a segurava ainda.
Olhei para Cheelba, que ainda dormitava, e depois para Artemon, do outro lado do fosso. Este já não sorria; a sua expressão era de difícil leitura. Estaria impressionado
ou desagradado com a minha iniciativa? Ocorreu-me que lhe poderia dar a corda, para que fosse ele a realizar o passo seguinte, mas, quando a ergui ligeiramente,
como que para lha oferecer, ele pareceu compreender de imediato o gesto e rejeitou-o com um pequeno aceno de cabeça e um leve movimento da mão.
Menkhep deu-me uma palmadinha nas costas.
- Vamos lá a ver isso, então - disse. Um murmúrio percorreu a multidão como um eco.
- Sim, fá-lo! - disse Djet, que se erguia agora ao meu lado, fitando-me. Os seus olhos estavam maiores do que nunca.
Olhei para Artemon. Este acenou levemente.
Enrolei o excesso de corda no antebraço, puxei lentamente a corda até ficar tensa e dei-lhe um leve sacão. Os nós que eu atara em redor do dente mantiveram-se firmes.
Cheelba torceu o nariz, fechou os olhos com mais força e ergueu uma pata, como se o movimento da corda lhe tivesse feito cócegas nos lábios.
- A melhor forma de fazer é fazer depressa - sussurrei, citando o antigo provérbio etrusco. - Afastem-se todos. - Durante vários segundos mantive a corda tensa,
depois dei-lhe um puxão forte.
O dente não se soltou.
Em vez disso, num instante, Cheelba estava de pé, rugindo bem alto e batendo na corda com as patas da frente. A corda estava enrolada
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com força no meu antebraço; não se soltava. Cheelba recuou, puxando a corda com força. A minha única opção era puxar para trás, mas depressa compreendi que um leão
é mais forte do que um homem. Vacilei no limite do fosso, prestes a cair lá para dentro.
Menkhep agarrou um dos meus braços. Djet agarrou-me as pernas. Outros avançaram para me agarrar e, depois, no instante seguinte, estávamos todos a cair para trás.
Djet correu rapidamente para longe - ainda bem, caso contrário, eu tê-lo-ia esmagado. Caí com força sobre o traseiro.
Como um chicote estalado, a extremidade oposta da corda saiu disparada do fosso. O dente do leão, ainda preso à corda, avançava na minha direção como um projétil.
Vi-o e pensei que vinha direito aos meus olhos, mas bateu um pouco mais acima.
A dor foi tão forte que gritei e ergui as mãos para agarrar a testa. A presa estava apenas ligeiramente enterrada na carne. Soltou-se com o toque. Segurei-a à frente
dos olhos e torci o nariz perante o cheiro. Tinha sangue nos dedos, mas se era meu, do leão ou de ambos, não poderia dizer.
Os rostos preocupados de Menkhep e Djet pairavam sobre mim, depois afastaram-se os dois, quando o de Artemon tomou o seu lugar. O sorriso deste tinha regressado.
Apontou para a minha testa.
- Lamento dizer-te que isto te vai deixar uma cicatriz. Ah! Podes dizer que foste mordido por um leão e não estarias propriamente a mentir.
Artemon agarrou uma das minhas mãos e puxou para que me levantasse. Oscilei, pouco seguro.
- E esse dente fará um excelente trofeu, depois de limpo. Dá-mo, Pecúnio, deixa que o leve. vou fazer com que o engastem e o pendurem numa corrente. Poderás usá-lo
em redor do pescoço como recordação.
A partir do fosso ouvi o rugido de Cheelba - um som muito diferente, mais robusto e menos choroso, agora que o dente tinha sido arrancado.
O rugido do leão foi abafado pelo dos homens que me ergueram em ombros e transportaram de regresso ao Ninho do Cuco.
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XXVIII
O resto do dia da minha iniciação foi marcado pelo consumo de grandes quantidades de vinho e cerveja. As minhas recordações são turvas. Lembro-me de que Ismene não
estava em parte alguma. Nem, claro, Bethesda, a pessoa que eu mais ansiava ver e tocar depois de ter passado tão perto da morte. Mesmo no meu torpor ébrio consegui
refrear o desejo de ir até ela e nada disse que me pudesse entregar.
Ensinaram-me vários cumprimentos secretos que eram usados pelo Gangue do Cuco. Uns correspondiam a versos macarrónicos: eu devia dizer a primeira parte de uma frase
disparatada e, se um estranho fosse, por algum acaso, membro do gangue, responder-me-ia o resto da frase. Outros cumprimentos envolviam gestos secretos, uns bastante
claros mas outros deveras subtis. Estes eram úteis, segundo me disseram, se tivesse de me encontrar com um outro membro num local cheio de
gente ou se precisasse de lhe fazer sinal de um lado para o outro de uma sala.
Quanto mais eu bebia, mais tolo tudo aquilo me parecia, em especial um sinal que implicava enfiar o mindinho no ouvido, primeiro de um lado, depois do outro. A resposta
certa correspondia a bater com o polegar no queixo três vezes. Depois de termos realizado o gesto várias vezes, Menkhep e eu ficámos lavados em lágrimas de tanto
rir.
A certa altura, Cheelba entrou na clareira. O leão parecia tão dócil quanto Artemon indicara, pois nenhum dos homens recuou. Vários atreveram-se fazer festas ao
animal, como se faria a um gato doméstico egípcio. Cheelba parou docilmente para receber as carícias, mas foi
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avançando na minha direção. Se estivesse sóbrio, talvez tivesse fugido, mas no meu estado de embriaguez limitei-me a fitar, maravilhado, o leão que avançava majestosamente
por entre a multidão. Quando este chegou junto de mim, olhou-me nos olhos durante um longo momento, depois tocou-me com o focinho na mão. Senti a sua respiração
quente na palma da mão e depois a aspereza da sua língua quando me lambeu os dedos.
Djet olhava, espantado. Os outros festejaram. Até Artemon aplaudiu. Cheelba ergueu a cabeça e deu um poderoso rugido.
Assim terminou o dia em que me tornei membro do Gangue do Cuco.
Nos dias que se seguiram, entrei na rotina do Ninho do Cuco, tanto quanto se pode dizer que marginais e vagabundos têm uma rotina. Ocorreram vários incidentes de
maior ou menor significado, nenhum dos quais com influência direta nesta história. Confesso que participei em alguns pequenos assaltos, mas pela graça da Fortuna
fui capaz de percorrer um precário caminho intermédio: nem provoquei o mal a qualquer vítima inocente, nem quebrei o meu juramento de lealdade para com os meus companheiros
bandidos.
com Menkhep e alguns outros, baixei a guarda o suficiente para revelar fragmentos do meu passado, como o facto de ter visitado todas as Sete Maravilhas do Mundo.
Um homem que visitou as Sete Maravilhas nunca tem falta de um público atento, mesmo entre criminosos.
Talvez noutra altura, noutro local, possa contar o meu dia-a-dia com os bandidos. Na sua maioria, foram dias muito infelizes, já que estava a fingir ser algo que
não era e, ao mesmo tempo, esperava, atento mas em vão, por uma oportunidade de salvar Bethesda e escapar. Se eu estivesse disposto a atacar e dominar o guarda colocado
no exterior da cabana de Bethesda, poderia tê-la libertado e fugido do Ninho do Cuco quase em qualquer momento, mas não teríamos chegado muito longe. O interesse
de Artemon em Bethesda era demasiado grande e o seu alcance demasiado extenso.
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Durante este período de vigia, apercebi-me de que chegavam visitantes ao Ninho do Cuco quase todos os dias. Tendo em consideração os seus modos apressados e secretos,
presumi que se tratava de mensageiros; alguns eram, mas outros, como vim a perceber mais tarde, descrever-se-iam melhor como conspiradores de uma mesma trama. Em
alguns dias chegavam dois ou três visitantes destes. Tais homens eram conduzidos de imediato a Artemon, com quem conferenciavam em privado. Tais visitantes não ficavam,
por norma, mais do que uma noite. A maior parte das vezes partiam, poucas horas depois de terem chegado, apressando-se como se Artemon os tivesse incumbido de uma
qualquer missão urgente.
Perguntei a Menkhep se todo este ir e vir e todas estas comunicações secretas eram normais. Ele abanou a cabeça.
- O Artemon sempre foi um planeador e um maquinador, sempre a pensar no futuro, mas isto é diferente. Está a preparar algo grande. O quê exatamente, não sei. O maior
ataque de sempre, dizem os homens... um ataque tão grande que mudará tudo.
- O que poderá ser?
- Só o Artemon sabe. Ele está a tratar de todos os preparativos. Quando estiver pronto, dir-nos-á.
Senti um arrepio de temor. Seria eu obrigado a participar numa terrível emboscada ou massacre? Ou este plano de Artemon perturbaria de tal forma a ordem normal do
Ninho do Cuco que eu teria uma oportunidade de fugir com Bethesda?
Certa tarde, consegui um vislumbre de um dos visitantes de Artemon, precisamente quando o homem estava a subir para bordo de um barco, no cais, preparando-se para
partir. Só vi a parte de trás da cabeça dele mas foi o suficiente para o reconhecer. Quantos homens têm uma risca branca que lhes corre pelo meio do cabelo?
O surgimento de Lykos, o artífice - o membro da trupe de mimos alexandrinos que se gabava de ter feito Melmak parecer tão gordo quanto o rei e de transformar a bela
Axiothea numa velha enrugada -,
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surpreendeu-me tanto que, por um momento, não consegui compreendê-lo. Pensando que só podia estar enganado, avancei na direção do cais, na esperança de lhe ver o
rosto. No entanto, precisamente quando ele se voltava no barco, recuei e escondi-me. Embora ainda não tivesse analisado bem o significado da sua presença, compreendi
que se ele me visse as consequências seriam desastrosas... não para ele, mas para mim.
Menkhep estava de passagem e viu-me a esconder-me.
- Estás a jogar às escondidas com o rapaz? - perguntou.
- Algo do género. Viste aquele tipo que acabou de zarpar? Ele acenou.
- Outra das visitas do Artemon?
- Chegou bem cedo, esta manhã, antes do raiar do Sol. Passou o dia inteiro na cabana do Artemon. Os dois homens tiveram, decerto, muito sobre o que conversar! Agora
partiu apressadamente. Regressa a Alexandria, suponho eu.
- Alexandria?
- "Os meus olhos e ouvidos no capitólio", chama-lhe o Artemon. Mas devia-lhe chamar antes mãos... mãos que fazem coisas tão inteligentes!
- Como é que ele se chama?
- Chama-se Chacal.
- Tens a certeza?
- Claro que tenho. Porque é que perguntas?
- Pensei que já o tinha visto antes, em Alexandria. Mas o homem em que estou a pensar tinha um nome diferente.
Menkhep riu.
- Já devias saber que os homens do Gangue do Cuco são conhecidos por muitos nomes, em especial quando andam por esse mundo fora. É uma pena que não tenhas tido a
oportunidade de conhecer o Chacal enquanto ele aqui estava. Ter-lhe-ias dado os parabéns.
- Porquê?
- Por ter feito um tão bom trabalho com a máscara do Cheelba! Enganou-te, não foi? A ideia foi do Chacal. Ele produziu as tintas e criou o ferrão e o corno falso.
É muito inteligente quando se trata de
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fazer com que uma coisa se pareça com outra, este tipo. É especialista em falsificações e disfarces.
- A sério? Então e raptos?
Menkhep dirigiu-me um olhar perspicaz.
- Pareces saber sempre mais do que dizes, romano. Como poderias saber que o Chacal esteve por detrás do rapto da bela jovem na cabana da Metrodora?
- Foi por isso que ele veio falar com o Artemon, por causa do resgate que continuamos à espera de receber?
Menkhep riu-se.
- Estás ansioso por receber a tua parte, ha? Sim, isso foi uma das coisas sobre as quais falaram, estou certo.
- Foi o Chacal quem a trouxe para aqui?
Menkhep abanou a cabeça.
- Não, isso foi feito por outros dois elementos do gangue, que receberam as suas ordens do Chacal. Ele não poderia ser visto pela rapariga, porque os dois conhecem-se.
- Estou a ver! Por isso, se esta rapariga, Axiothea, é como se chama? Se ela visse o Chacal e compreendesse que ele está por detrás do rapto, isso comprometeria
a sua identidade secreta em Alexandria. Logo, desde o seu rapto, ela nunca viu o Chacal e ele nunca a viu a ela.
- Exatamente. Acredito que estás a começar a apanhar o jeito desta coisa dos bandidos, Pecúnio. Embora por vezes me pareça que talvez sejas demasiado curioso para
o teu próprio bem.
Deixei-o e fui para a minha cabana, precisando de passar algum tempo sozinho a pensar.
A última vez que vi Lykos foi no dia em que encontrei Melmak na taberna de Alexandria. Lykos tinha-se juntado a nós perto do fim da conversa.
- Há notícias da Axiothea? - perguntara a Melmak, parecendo absolutamente inocente. O homem troçava dos atores, mas era, ele mesmo, um intérprete e tanto. Não só
me tinha enganado a mim, mas também a Melmak.
E se Lykos me tivesse visto, durante a sua breve visita ao Ninho do Cuco, e me tivesse reconhecido? Tal como a sua presença não era
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uma coincidência, poderia ter calculado que também a minha não
o era.
Recordei a nossa última e breve troca de palavras em Alexandria. Lykos dissera: "Tens aquela linda rapariga escrava... como é que se chama?"
E eu sussurrara: "Bethesda."
Ao que Melmak revelara: "Só que também ela desapareceu."
Podia imaginar Lykos a compreender a situação num instante, apercebendo-se de que tinha raptado a rapariga errada - uma desconfiança que poderia confirmar facilmente,
bastando-lhe um só olhar para a falsa Axiothea. Lykos tê-lo-ia contado a Artemon e o meu objetivo ao viajar até ali teria sido exposto. Eu estaria morto antes do
cair da noite.
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XXIX
A partir desse dia, passei a viver com medo de que Lykos pudesse regressar. No entanto, pouco depois, outros eventos afastaram essa preocupação, pois por fim era
chegado o dia do anúncio de Artemon.
Fomos todos chamados à clareira. Sobre a multidão reunida pairava a excitação. Os homens sentiam que aquele era o dia por que tinham esperado. Quando Artemon subiu
ao estrado e ergueu as mãos, os outros pararam de conversar e caíram em silêncio.
- Homens do Ninho do Cuco, aproxima-se uma grande mudança. Não podemos fazer nada para a impedir. Mas temos uma escolha a fazer. Podemos ser destruídos por esta
mudança ou encontrar uma forma de lucrar com ela.
Artemon deixou que as suas palavras assentassem por um momento, depois ergueu a voz sobre os murmúrios excitados que os seus comentários tinham desencadeado.
- Sabem que o Gangue do Cuco tem olhos por todo o Egito. Tal inclui confederados nos ramos mais orientais do Nilo, em Pelúsio. Esses agentes trazem notícias alarmantes.
Um exército prepara-se para marchar através do Delta. Quando digo um exército não estou a falar de um grupo exploratório ou de um pequeno destacamento, como aqueles
com que já nos deparámos e que destruímos. Estou a falar de um verdadeiro exército: uma força disciplinada e bem armada de milhares de soldados endurecidos pela
guerra que estão determinados a destruir ou conquistar tudo o que estiver no seu caminho... incluindo o Ninho do Cuco.
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- De quem é este exército? - gritou um homem. - Porque vêm para
cá?
- Os homens deste exército servem Soter, o irmão do rei Ptolomeu, que até agora tem vivido no exílio. O objetivo deste exército é varrer o Egito, derrubar o rei
do seu trono e instalar Soter no seu lugar. A caminho de Alexandria erradicarão toda e qualquer resistência. Também lidarão com todo e qualquer problema que encontrem.
O banditismo é um desses problemas. O novo rei quer gabar-se de ter posto fim à ausência de lei do Delta. Tal significa a erradicação do Ninho do Cuco e a execução
de todos os presentes.
- O que é que podemos fazer? - gritou alguém.
- Podemos lutar contra eles! - disse outro. Ouviram-se alguns gritos de apoio.
- Ou talvez... talvez nos possamos juntar a eles? - disse outro, algo timidamente. Seguiram-se alguns apupos e assobios.
Artemon ergueu as mãos.
- Estamos em grande desvantagem numérica. Lutar significa a morte certa, morte pela espada para os que tenham sorte, morte por crucificação ou enforcamento se não
tiverem. Lutar não é a solução. Nem juntarmo-nos a este exército, ainda que o desejássemos fazer. Soter prometeu não aceitar fora-da-lei nas suas fileiras. Não quer
que a pretensão ao trono seja manchada pelo alistamento de homens como nós.
- Soter já foi rei. O Egito merece um novo rei! - gritou alguém. Muitos rosnaram o seu acordo e acenaram. Estariam a pensar em Artemon?
- O que havemos de fazer? - perguntou um dos homens. - Devemos fugir e abandonar o Ninho do Cuco?
- É precisamente isso que temos de fazer.
- Mas para onde podemos ir? Como lá chegaremos?
- Tenho um plano... não um esquema apressado e improvisado, mas um plano que há muito está a ser delineado. Há meses, antevi a chegada desta invasão...
- Queres dizer que a Metrodora o previu! - exclamou um dos homens.
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Artemon sorriu.
- Talvez. O importante não é quem previu o perigo ou como, mas que este tenha sido previsto e que tenham sido feitos preparativos para que todos sobrevivam. Não
estamos sós, nós, os sortudos que vivem como homens livres no Ninho do Cuco. Temos os nossos recursos.
Temos os nossos amigos. O Gangue do Cuco é maior do que o Ninho do Cuco. O Gangue do Cuco é uma rede que atravessa todo o Egito e mais além, uma rede suficientemente
grande e forte para apanhar todos os homens aqui presentes e os manter em segurança. Nunca enfrentámos maior ameaça, mas, se concordarem em seguir-me, em levar a
cabo as minhas ordens, em obedecer sem questionar, então todos os homens aqui presentes têm boas hipóteses de sobreviver... e não só de sobreviver, mas também de
saírem deste aperto mais ricos do que nunca! Viraremos o desaire a nosso favor. Riremos na cara do azar. Mas para que isso aconteça terão de confiar em mim. Todos
vocês terão de confiar em mim, completamente e sem reservas.
- Claro que confiamos em ti! - gritou Menkhep. - Nunca houve um líder como tu. Faremos o que quer que nos digas, Artemon. Não faremos? O que dizem, homens? - Menkhep
virou-se e lançou as mãos no ar para puxar pelos outros. Depressa se ouviu o som de pés a bater, de palmas e vivas.
Limpei a garganta. Para o melhor e para o pior, eu era agora um membro do gangue e tinha tanto direito a falar como os outros.
- O que vai acontecer a seguir, Artemon? - gritei, mas as minhas palavras perderam-se no meio do burburinho. À medida que o barulho diminuía, voltei a gritar a minha
pergunta, mais alto, para que a minha
voz ressoasse no ar.
Artemon percorreu a multidão com o olhar para ver quem tinha feito a pergunta.
- Hoje fazemos os preparativos para abandonar o Ninho do Cuco, para sempre. Amanhã partiremos nos escaleres e nunca mais regressaremos.
Enquanto os restantes assimilavam a notícia num silêncio chocado, eu pensei em Bethesda. Quais seriam os planos de Artemon para ela?
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- O que acontece depois disso? - gritei. - Partimos nos escaleres e depois? Para onde vamos? O que acontece quando lá chegarmos?
Artemon sorriu.
- Parece que o nosso membro mais novo também é o mais ansioso por me pressionar com perguntas. Pedi-vos a todos que confiassem em mim, mas Pecúnio é incapaz de refrear
a sua curiosidade romana.
Os homens à minha volta riram. Apercebi-me de que estavam presos numa torrente de excitação. Tudo no seu mundo estava prestes a mudar. com Artemon a liderá-los,
estavam prontos para dar um salto, desesperado e perigoso, em direção ao futuro.
- Chamem-me metediço, mas gostaria de saber para onde vamos
- disse. - Porque é que não nos podes contar mais, Artemon?
A partir do seu posto sobre o estrado, olhou para mim, por cima do nariz.
- Porque é que devo manter o segredo? Porque podem existir espiões entre nós, homens que nos trairiam aos nossos inimigos. Os romanos são estrategas tão famosos,
Pecúnio, decerto compreendes a necessidade de manter o segredo, em especial numa tal conjuntura.
Esta afirmação suscitou resmungos e acenos de concordância.
- Por ora, posso dizer-vos o seguinte - disse Artemon. - Viajaremos rio abaixo até à enseada onde pilhámos o navio naufragado. Aí nos esperará um navio: um navio
grande, suficientemente grande para acomodar todos os homens e todos os tesouros que conseguirmos levar connosco. A bordo encontrar-se-á uma equipa de marinheiros
e remadores, homens que prestaram o mesmo juramento que vocês.
- Vamos viajar em mar aberto? - reagi. - Deixar o Egito? - Para onde me levaria uma tal viagem? O que significaria para Bethesda?
- Demasiadas perguntas, Pecúnio! - reclamou Artemon. - Isto é tudo o que vos posso dizer, por ora. O que dizem, homens do Gangue do Cuco? Estão comigo? Seguir-me-ão?
Se algum homem se opõe à ideia, agora é a hora de...
O que quer que possa ter dito a seguir foi abafado pelo ribombar das aclamações. Os homens sem raízes e inquietos que me rodeavam estavam prontos para seguir Artemon
para qualquer lado.
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Durante o resto do dia, os homens do Gangue do Cuco foram consumidos pelo trabalho de desmantelar o seu forte e escolher os valores, decidindo o que levar e o que
deixar para trás. Tanto do saque quanto possível foi enfiado em sacas e baús e transportado para os escaleres. O excesso foi armazenado em caixas e enterrado, para
que o pudessem vir buscar no futuro. O próprio Artemon dirigiu a maior parte deste trabalho. Os homens estavam constantemente a solicitar as suas indicações e os
seus conselhos.
À primeira oportunidade, escapuli-me e dirigi-me para a cabana de Ismene e Bethesda. Levei Djet comigo, pensando que ele poderia servir de vigia.
Na minha mente começara a formar-se um plano vago. No dia seguinte, todo o Gangue do Cuco se dirigiria para norte, em direção à costa. E se Bethesda e eu seguíssemos
em direção oposta, rio acima? com um navio pronto a zarpar e um exército de invasores a caminho, decerto nenhum dos elementos do gangue de Artemon se daria ao trabalho
de nos perseguir. Parecia-me que chegara, por fim, a nossa oportunidade para escapar.
No entanto, quando vislumbrei a cabana por entre uma falha na folhagem, refreei um gemido. Artemon não colocara um homem de guarda, mas vários. Observando por entre
os arbustos, contei pelo menos quatro. Por entre o burburinho súbito e a excitação geradas pelo seu anúncio, parecia que Artemon não queria correr qualquer risco
de que algo pudesse acontecer à sua amada.
Tal significava, quase de certeza, que ele planeara levar Bethesda consigo e também que a cabana estaria sob constante vigilância até serem horas de partirmos. Senti
um aperto no coração.
- Desesperas, romano - disse uma voz baixa. Espreitei por entre o emaranhado de vides e folhas e, de súbito, vi Ismene, que se erguia a poucos metros. Djet arquejou
de surpresa. A bruxa aproximara-se sem emitir qualquer som. Ou teria estado sempre ali?
- O que é que vai ser de nós, Ismene? - sussurrei.
- De nós? Se te referes aos homens do Gangue do Cuco...
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- Sabes o que quero dizer! - interrompi, esforçando-me por manter a voz baixa. - De mim e da Bethesda. Para onde nos leva o Artemon? O que é que vai fazer com ela?
- Por ora, está tão segura como sempre esteve. E como uma jóia que o Artemon mantém guardada numa caixa. Mal algum lhe acontecerá.
- Mas o Artemon...
- Nem ele se atreve a tirar a jóia da caixa. Não ainda.
- Mas amanhã partimos para a costa. O que acontecerá então? Ismene não respondeu.
- A Bethesda sabe o que está a acontecer? Ela sabe que ainda cá estou?
- Ela sabe.
- Dizem que consegues ver o futuro, Ismene. O que prevês para mim e para a Bethesda? Voltará ela a ser minha algum dia?
- Não estou certa de que alguma vez tenha sido tua, independentemente do facto de seres seu dono.
- Falas por enigmas! Porque é que me atormentas?
Falei demasiado alto. O guarda mais próximo, sentado num tronco em frente à cabana da Bethesda, virou a cabeça na nossa direção e franziu o sobrolho. Levou a mão
à sua lança e levantou-se, olhando sempre na nossa direção.
Ismene dirigiu-me um olhar desagradado, depois agitou ruidosamente a folhagem e saiu para a clareira.
O guarda olhou para ela, depois espreitou para longe, para os arbustos.
- com quem estavas a falar? Está aí alguém?
- Como te atreves a questionar-me, homenzinho? - Ismene estava de costas viradas para mim, mas eu podia imaginar facilmente a sua expressão séria. O guarda curvou
a cabeça e recuou.
- Perdoa-me, Metrodora!
Sem olhar para trás, Ismene desapareceu para o interior da sua cabana.
Tão silenciosamente quanto nos era possível. Djet e eu regressámos ao Ninho do Cuco.
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O dia longo aproximava-se do fim. Os homens tinham feito tudo o que podiam para se aprontar. Estavam cansados mas exultantes. Nenhum deles mostrava qualquer sinal
de ansiedade ou arrependimento perante a perspetiva de abandonar o Ninho do Cuco. Para beber havia cerveja e vinho, o que deu um ar festivo à hora crepuscular.
Sentei-me no cais ao lado de Djet, fitando as águas e os barcos apinhados ao longo da costa, afundados na água pela carga pesada. Um íbis solitário voou por cima
de nós; quando ergui os olhos, vi a primeira estrela no céu que escurecia. Da clareira atrás de nós chegavam os ecos de risos e canções. A felicidade dos outros
fazia com que o meu estado de espírito parecesse ainda mais soturno.
Ouvi passos na base do cais e olhei por cima do ombro, vendo Menkhep. Este segurava uma taça de madeira numa mão e tinha no rosto um sorriso tolo.
- Pareces alegre - disse eu.
- E tu não. Porque é que não estás a beber, Pecúnio? Encolhi os outros.
- Vais partir com os outros amanhã, Menkhep?
- Claro.
- Então e o teu entreposto comercial?
- O meu irmão vai ficar para trás, por ora.
- Suponho que vá ter muitos clientes no entreposto, com um exército de passagem.
O rosto de Menkhep ficou sério.
- O mais certo é que pilhem o entreposto e o incendeiem. Os soldados são uns porcos. - Bebeu um gole da sua taça. O sorriso regressou ao seu rosto. - Mas se tudo
correr bem, em breve todos os homens terão mais riquezas do que aquelas com que alguma vez sonharam. Serei capaz de comprar todos os entrepostos comerciais do Delta,
se quiser.
Olhei para ele intensamente.
- Sabes mais do que o que me disseste, não é? Sabes para onde
vamos. ? ;.
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- Talvez.
- Homem de sorte. O Artemon confia em ti.
- Ele tem de partilhar os seus planos com alguns de nós; não pode fazer tudo sozinho. Mas mesmo eu não sei sequer metade. Dir-te-ei tudo o que sei, só que...
- Eu compreendo.
- Talvez o Artemon tencione contar-te pessoalmente. Inclinei a cabeça.
- Foi por isso que vim à tua procura. O Artemon quer ver-te.
- Agora? Menkhep acenou.
- Está sozinho na sua cabana, a olhar para mapas e pergaminhos. Quer que vás até lá. Deixa o rapaz comigo. Tomarei conta dele.
Levantei-me. As minhas pernas estavam inseguras. Porque é que Artemon me queria ver? com uma sensação de temor, avancei na direção da sua cabana.
275
XXX
Sozinho na sua cabana, Artemon estava sentado, rodeado por candeeiros que pendiam de bases metálicas. Todas as superfícies estavam cobertas de pergaminhos abertos,
cartas e mapas. Deslizei rapidamente os olhos de um documento para o outro, tentando ler os pergaminhos de pernas para o ar e os mapas, na esperança de obter alguma
pista quanto ao nosso destino, mas não encontrando nenhuma.
Artemon viu-me a olhar para os pergaminhos.
- É uma pena que tenha de deixar tantos deles para trás. Só posso levar comigo os mais importantes. vou ficar acordado metade da noite a escolhê-los.
Apercebi-me da espantosa quantidade de documentos enfiados nos muitos buracos na parede e nas muitas caixas de couro.
- Quando o exército de Soter marchar por aqui, o que irá pensar de uma tal biblioteca, aqui, no meio do nada?
- Os invasores não encontrarão qualquer vestígio disto. Não vai haver vestígios de nada que esteja relacionado com o Ninho do Cuco, a não ser as cinzas. Tudo será
queimado. Não restará nada que nos ligue a este local.
- E nada para que regressar... a não ser todas estes baús de tesouros enterrados.
Artemon fungou.
- As coisas que enterrámos hoje não merecem que voltemos por elas: não passam de berloques e bugigangas. Os invasores que as desenterrem, caso queiram. O importante
é não deixar qualquer vestígio da identidade de nenhum dos nossos homens, nenhuma recordação, carta ou qualquer
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outra coisa que possa ter o nome do seu proprietário. Será como se o Ninho do Cuco e o Gangue do Cuco nunca tivessem existido.
Pensei no meu velho tutor, Antípatro, que tinha fingido a própria morte em Roma e dedicado grande esforço a esconder o seu rasto antes de partirmos na nossa viagem
pelas Sete Maravilhas. Será que algum homem fazia uma coisa dessas a menos que tivesse um motivo malicioso? A determinação de Artemon em apagar qualquer traço da
nossa residência deixava-me inquieto.
- O que será de todos nós? - sussurrei.
Artemon dirigiu-me um olhar inquisitivo. Abanou a cabeça.
- Porque é que não podes ser como os outros, Pecúnio? Nunca os vi tão felizes e despreocupados. Estão cansados deste local. Afinal de contas, o que é o Ninho do
Cuco senão um aglomerado de cabanas mal isoladas, no meio de nenhures, rodeado de lama e crocodilos? Os homens estão entusiasmados por deixarem este local para trás
e partirem numa grande aventura. Não querem saber para onde vão, desde que seja para longe daqui. Mas tu não, Pecúnio. Tu pareces ter sempre mais alguma coisa em
mente.
Encolhi os ombros.
- O Menkhep disse que me querias ver.
- Sim. Tenho algo para ti. - Abriu uma pequena caixa de madeira, retirou dela um colar de prata e deu-mo. Preso à corrente estava o dente que eu arrancara a Cheelba.
A parte estragada fora raspada e a cavidade preenchida de prata. O dente tinha sido limpo, polido e colocado numa base de prata. A forma era simples, mas o trabalho
soberbo.
- Temos entre nós um ourives bastante talentoso. Acho que fez um bom trabalho, não te parece?
Assenti.
- Não o vais pôr?
Prendi a corrente em redor do pescoço. Toquei no dente do leão, que ficava logo acima do externo.
- Fica-te bem. Pecúnio. Talvez te dê boa sorte.
- Se não der, pelo menos terei uma recordação do dia mais aterrorizante da minha vida.
Artemon riu.
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- Obrigado, Artemon. É um belo presente. Se for tudo, sei como deves estar atarefado...
- Não, Pecúnio, não vás. Fica. Pensei que pudesses partilhar uma bebida comigo, na véspera da nossa partida. Tenho aqui o que resta do melhor vinho que retirámos
do navio naufragado. De acordo com o selo na ânfora, veio do monte Falerno. Fica em Itália, não é? E uma pena que as taças de prata já tenham sido embaladas.
Artemon serviu o vinho de um simples jarro de barro para duas taças de barro. Cheirou com grande pompa o vinho antes de o beber e eu segui-lhe o exemplo. Por pouco
que soubesse de tais assuntos, até eu conseguia perceber que o vinho era extraordinário. Bebi-o de bom grado e senti o seu calor a espalhar-se através de mim.
Artemon voltou a encher as taças.
- Este pode ser o nosso último momento de sossego durante bastante tempo. A partir de amanhã, será tudo uma louca correria. Sucederão grandes eventos, um atrás do
outro.
- Quanto vinho é que já bebeste, Artemon?
- Ah! Achas as minhas palavras grandiosas, não é? Suponho que para um tipo que viu tanto do mundo quanto tu, o Ninho do Cuco seja um local tão sórdido que nem consigas
imaginar que dele resultasse algo grandioso ou nobre.
- Não quis ofender...
- Talvez devêssemos rebatizar este local como o Ninho da Fénix.
A fénix é nativa do Nilo, sabias? Nunca vi nenhuma, mas se essa ave mágica existe em algum lado, é aqui, no Egito. A fénix termina a sua vida numa explosão de chamas,
uma morte chocante. Mas depois agita-se e ergue-se das cinzas, renascida, mais bela e resplandecente do que antes. - Artemon fitou o espaço, sonhadoramente.
Que estranho estado de espírito o dele. Como os restantes, Artemon parecia revigorado pela perspetiva de uma grande aventura. O entusiasmo dos outros homens era
aberto e ruidoso. O dele era calmo e concentrado, no entanto, ardia com igual paixão. Tinha o rosto corado e os olhos pareciam ligeiramente desfocados, como se tivesse
febre.
- Isso é que foi digno de se ver! - referiu, apontando para o meu colar e mudando abruptamente de assunto.
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- O quê?
- Quando arrancaste o dente do Cheelba Os homens ficaram pasmados! Eu também. Mais ninguém se teria atrevido a fazer tal coisa. Não foste apenas esperto e engenhoso.
Foste destemido.
Abanei a cabeça.
- Só porque não viste medo, isso não significa que eu não estivesse a senti-lo.
Artemon riu.
- Ah, Pecúnio, não fazes ideia de quão diferente foi a tua iniciação da maior parte dos homens! O ritual termina, por norma, com a completa humilhação do iniciado.
O homem no fosso mija-se, tenta trepar pelas paredes de terra, grita, implora e chora como uma criança. E os homens que assistem riem-se tanto que também se mijam.
É uma comédia, uma farsa. Quando tudo é revelado, o homem é retirado do fosso, todos riem mais um pouco e ninguém ri mais do que o iniciado no seu pano de linho
ensopado em mijo. Mas tu, Pecúnio, tu ofereceste-nos um espetáculo diferente.
Artemon fitou-me, pensativo.
- Há algo que te distingue dos outros. Até os melhores entre eles, como o Menkhep, não conseguem pensar senão alguns dias mais à frente. Movem-se como que numa espécie
de torpor, governados pelas emoções e apetites mais básicos: o medo, a fome, a luxúria, a vingança. Precisam de um homem como eu para os guiar. Mas tu, Pecúnio,
tu pareces ser guiado por uma potência superior, por um propósito maior. Será por seres romano? Serão os romanos realmente diferentes? Ou será algo mais? És um enigma,
Pecúnio.
Encolhi os ombros.
- Digo-te uma coisa: ninguém beneficiou mais da tua rapidez de pensamento do que o Cheelba. Aquele leão adora-te, Pecúnio. Fizeste um amigo para toda a vida.
- Cheelba! - ri, lembrando-me do disfarce absurdo do leão. Também eu começava a sentir os efeitos do vinho. - O que será feito dele? Decerto não o vais deixar à
mercê dos soldados?
- Claro que não. O Cheelba virá connosco.
- Um leão num barco! Ridículo.
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- Realmente ridículo. Mais uma razão para o levarmos connosco.
- E o crocodilo? Não tencionas levar connosco essa criatura mal cheirosa?
- Certamente que não! Amanhã, mesmo antes de partirmos, farei descer uma prancha até ao fosso do Glutomem. Se tiver algum juízo, o animal pôr-se-á a andar e abrigar-se-á
na lagoa. com alguma sorte, quando chegarem os soldados, arrancará o pé a qualquer homem que se atreva a procurar os tesouros enterrados.
Partilhámos uma gargalhada e bebemos mais vinho.
- Sabes, Pecúnio, nunca me tinha embebedado com um romano.
- Nem eu com um rei bandido.
Em vez de se rir, Artemon ficou pensativo.
- É verdade que, em Roma, por lei, todo o pai tem poder de vida e de morte sobre os seus filhos?
-É.
- Como é isso?
- Para o pai ou para o filho? Acho que já sabes como é ter o poder de vida ou de morte sobre os outros, Artemon. - Lembrei-me do triste fim de Ombros Peludos.
- E o teu pai, Pecúnio?
- O meu pai?
- Ainda é vivo?
- Sim - respondi baixinho. - Está em Roma. Pelo menos espero que ainda esteja vivo...
- Eras próximo dele? Amavam-se?
Suspirei e estendi a minha taça.
- Sim.
Artemon serviu mais vinho a ambos.
- Nunca conheci o meu pai. Enquanto estava a crescer, sabia quem ele era, mas o tipo não queria ter nada a ver comigo. Renunciou a ter qualquer conhecimento em relação
a mim. Rejeitou-me. Renegou-me.
Pestanejei. O vinho começara a turvar os limites das coisas, de tal forma que até o chão sob os meus pés parecia instável.
- Não sei o que dizer, Artemon.
- Agradece aos deuses por teres um pai e por ele te amar.
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Assenti.
- Nunca contei a nenhum dos homens o que te acabei de contar, Pecúnio. i
- Porquê a mim?
Artemon encolheu os ombros.
- Porque não? És o homem que arrancou o dente a um leão. Ambos sorrimos.
Sob o feitiço do vinho, as preocupações que me mantinham tenso como barras de ferro pareceram soltar-se um pouco. Sentia-me feliz com a pausa, ainda que temporária.
Mas e Artemon? Que preocupações o mantinham preso? Quem era ele e de onde viria? Que sonhos o inspiraram? Que pesadelos assombravam o seu sono? Naquela noite, sentado
numa cabana que em breve não passaria de um monte de cinzas, sentia a necessidade de descarregar. Mostrei a minha simpatia e escutei, atento. Mesmo no meu estado
de entorpecimento pelo vinho, sabia que quanto mais soubesse sobre o captor de Bethesda, melhores seriam as nossas oportunidades de sobreviver e escapar.
- Vou-te contar mais uma coisa que ninguém sabe - disse Artemon.
- Tenho um irmão gémeo.
- É verdade?
- É. Vocês romanos descendem de gémeos, não é?
- Rómulo e Remo foram os fundadores da cidade. Não tenho a certeza de que Remo tenha tido filhos antes de Rómulo o matar.
- Um gémeo que mata o outro: imagine-se! Que estranho início para uma raça que quer dominar o mundo.
- vou ignorar essa calúnia contra o meu povo - disse. - Então, Artemon e Rómulo têm ambos gémeos. Haverá algum líder famoso com que não te pareças?
- O que queres dizer com isso?
- Os homens comparam-te a Alexandre.
- A sério?
- E a Moisés. Eu próprio comparei-te a Cipião Africano, quando estava a falar com o Menkhep, um destes dias. Agora descubro que és mais parecido com Rómulo do que
teria imaginado.
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- Ao contrário de Rómulo, eu não matei o meu irmão gémeo disse Artemon baixinho.
- Vocês os dois cresceram juntos?
- Sim.
- O teu pai também rejeitou...?
A pergunta era delicada. Artemon baixou os olhos e não respondeu. Aproveitei a vantagem do silêncio incómodo para mudar de assunto.
- Dizes que planeias levar o Cheelba connosco, mas não o Glutomem. Então e... a Metrodora?
Ele sorriu ao de leve.
- O que fariam os homens do Ninho do Cuco sem a sua vidente? Claro que ela virá connosco... pelo menos durante parte da viagem.
- Então e... a outra mulher? - perguntei, com a voz a tremer. Artemon ergueu uma sobrancelha.
- Refiro-me à cativa; a que está escondida na cabana com a Metrodora.
Ele franziu o sobrolho.
- Foi a Metrodora quem te falou dela? Encolhi os ombros.
- Todos os homens sabem que ela cá está, mesmo que a maior parte nunca a tenha visto. Comecei a perguntar-me se não seria uma lenda ou um fantasma invocado pela
Metrodora.
- A rapariga é bastante real, garanto-te - disse ele, com um estremecimento no canto da boca.
- É tão bela quanto dizem?
- Porque és tão curioso, Pecúnio?
- Que homem não seria? com exceção da bruxa, não vejo uma mulher desde...
- Se, por acaso, vires a Axiothea durante a nossa partida, amanhã, sugiro que desvies o olhar. De qualquer forma o seu rosto estará tapado por um véu.
- É perigoso olhar para ela? É uma bruxa, como a Metrodora?
- Ela não tem qualquer necessidade de lançar feitiços - murmurou ele. - O seu poder é maior do que isso.
- Falas como se ela fosse uma rainha - disse eu.
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Os olhos dele iluminaram-se. O seu discurso tornou-se arrastado.
- Uma rainha? Não. Ainda não. Mas podia transformá-la numa. E transformarei! Se ao menos ela me deixasse...
Artemon levou a mão ao jarro. Restavam apenas algumas gotas. Despejou-as na sua taça, depois atirou o jarro para o lado. Este bateu em algo duro e partiu-se em pedaços.
Estremeci. Artemon fitou-me por cima da borda da taça, subitamente desconfiado.
- Se sentes falta de companhia feminina, Pecúnio, tem paciência. Quando tudo isto terminar, terás os meios para te dedicares a todos os prazeres que desejares. Confias
em mim, não confias?
- Claro que confio, Artemon. Este acenou.
- O vinho acabou. Tenho de regressar ao trabalho. Dorme bem, Pecúnio.
Deixei-o na sua cabana, debruçado sobre pergaminhos e mapas.
283
XXXI
O dia seguinte amanheceu brilhante e limpo, com um ofuscante sol amarelo num céu azul-claro. Os homens comeram uma última refeição na clareira, depois Artemon ordenou
que as cabanas fossem incendiadas.
Menkhep acendeu as tochas e distribuiu-as pelos homens. De início dedicaram-se lentamente ao seu trabalho, quase com relutância. Mas à medida que uma estrutura após
outra eram incendiadas, o ato de incineração assumiu um ar festivo e, em breve, os homens corriam de um lado para o outro num frenesim de destruição. Até a Djet
foi permitido empunhar uma tocha. Quando ele incendiou a nossa cabana, vi as chamas a dançar nos seus olhos muito abertos.
As cabanas transformaram-se em fogueiras, primeiro ardendo brilhantes e repletas de chamas, depois abatendo-se sobre si mesmas e libertando grandes nuvens de fumo.
Colunas negras erguiam-se no ar, espalhando-se e misturando-se em seguida, até todo o céu estar repleto de fumo. Não havia azul do céu ou raio de luz dourada que
penetrasse a escuridão. O céu transformara-se numa grande e pintalgada nódoa negra, castanha e roxa, por entre a qual o sol parecia uma mancha de sangue carmesim.
Quando não restava nada para queimar, os homens reuniram-se ao longo da costa. Tossindo e esfregando os olhos lacrimejantes, tomaram os seus lugares nos barcos carregados
de tesouros. Lençóis de névoa misturada com fumo pairavam sobre a lagoa, escondendo os barcos uns dos outros. Para lá de uma curta distância, tudo estava escondido
por uma neblina carregada.
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De onde estava sentado, no barco de Menkhep, que ainda se encontrava atado à costa, apercebi-me da alta figura de Artemon que avançava pelo cais em direção ao navio
que nos guiaria. Era seguido por uma forma encapuzada que presumi ser Metrodora. Atrás dela seguia uma figura velada, tão completamente coberta da cabeça aos pés
que jamais a teria tomado por uma mulher, se não soubesse que só podia ser Bethesda. Desejava chamar por ela, quanto mais não fosse para ver a sua cabeça a virar
na minha direção, mas mordi a língua.
Ouvi o rosnar de um leão. Sentado ao meu lado, Djet ficou rígido e apertou-me o braço; nunca ficara inteiramente convencido da docilidade do leão. Cheelba trotou
ao longo do cais. O disfarce do leão tinha quase desaparecido; as tintas tinham-se esbatido e a juba recuperara a sua glória natural. Quando o leão passou por ela,
Bethesda pareceu" sobressaltar-se. Metrodora virou-se para ela, como que para a acalmar. Cheelba chegou junto de Artemon, que estendeu a mão e permitiu que o animal
a lambesse.
Por um breve instante, preparando-se para subir para o barco, Artemon e os outros ficaram imóveis; até a cauda do leão estava parada. A névoa transformara-os a todos
em figuras de um jogo de sombras. Depois uma cortina de fumo rebolou através do cais e engoliu-os, escondendo-os completamente. Quando o fumo se dissipou, Artemon
e os restantes tinham desaparecido, bem como o barco.
Um a um, os outros barcos seguiram-no. Enquanto zarpávamos da praia e saíamos, virei-me para olhar para o que restava do Ninho do Cuco. As cabanas tinham colapsado
em montes fumegantes, mas o fogo espalhara-se pela vegetação em volta. Muitas das árvores mais esguias estavam coroadas por chamas e, aqui e ali, também os arbustos
baixos se tinham incendiado. O incêndio que se espalhava deu origem a um vento que cuspia fagulhas e cinza, e chicoteava as árvores.
Se ninguém o parasse, o incêndio continuaria descontrolado. Ao cair da noite, toda a ilha teria sido consumida, um vasto monte fumegante por entre as águas do Delta.
Os homens do Gangue do Cuco não deixariam nada para trás.
Tão rápido foi o correr do fogo que enquanto o nosso barco avançava em direção à boca da lagoa, para lá da qual se encontrava o mar
285
aberto, as chamas aproximavam-se de ambos os lados, como que para convergir e se despedir de nós. Enquanto continuássemos no meio do rio, mantendo-nos tão longe
quanto possível das duas margens, a água proteger-nos-ia. A ilusão de que os maxilares ardentes se encerravam à nossa volta não deixava de ser perturbadora.
Djet gritou. Pensando que o incêndio o tinha assustado, abracei-o, mas ele contorceu-se para se libertar e começou a apontar freneticamente para a água.
Nas redondezas surgiram dois olhos redondos, logo acima das águas. Atrás dos olhos, uma cauda poderosa e ondulante impulsionava Glutomem, o crocodilo, rapidamente
na nossa direção.
Djet voltou a gritar. O mesmo fizeram vários homens, que ergueram os remos e, num frenesim, bateram na água, tentando afastar a criatura. Glutomem acelerou o passo,
de tal forma que uma colisão entre o barco e o crocodilo se tornou inevitável. Os olhos da criatura brilhavam com a luz das chamas.
Glutomem chegou ao barco e tentou subir para bordo.
Aterrorizados, alguns dos homens recuaram. Outros agitaram desajeitadamente os remos, tentando desesperadamente atingir o crocodilo. Em vez disso, os remos batiam
uns nos outros e Glutomem permanecia incólume. com o animal determinado a abordar-nos e os homens a lutarem histericamente uns contra os outros, o barco carregado
abanava com tal violência de um lado para o outro que eu tinha a certeza de estar prestes a virar-se.
Nesse momento, no meio do caos, atravessámos os portões do fogo. À nossa volta, as águas picadas tremeluziam, brilhantes, como se flutuássemos num mar de chamas.
De súbito, Glutomem perdeu o equilíbrio. com as pernas curtas a agitarem-se no ar e os maxilares a baterem ruidosamente, caiu para trás, para dentro de água. O barco
oscilou violentamente na direção oposta. Ficámos a milímetros de nos virarmos.
- Para baixo, para baixo! - gritou Menkhep. Os homens baixaram-se. Agarrei Djet e sustive a respiração. O barco aquietou-se.
A alguma distância, contra o pano de fundo da água vermelha, da névoa redemoinhante e dos bancos de chamas, vi a cauda poderosa
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de Glutomem a bater na água, ao mesmo tempo que o crocodilo se afastava.
Os homens no barco atrás de nós, usando os remos para travar mas incapazes de parar por completo, chocaram contra nós. Djet gritou. Até Menkhep relinchou como um
cavalo.
Os homens no outro barco, que tinham testemunhado tudo antes de nos pregarem aquele último susto, soltavam grandes gargalhadas, ao mesmo tempo que mergulhavam os
remos e passavam por nós. Não haveria medo tão grande que não divertisse os homens, desde que estivesse a acontecer a outro?
Uma hora depois, vimo-nos de novo num mundo de céu azul e sol dourado. O fumo do Ninho do Cuco ficara para trás de nós, espesso como uma nuvem de tempestade na linha
do horizonte, para sul. O cheiro a fumo agarrava-se a nós como um perfume.
Os homens estavam mais conversadores do que era costume, partilhando histórias passadas e sonhos futuros. Recordavam casas perdidas e esposas abandonadas. Queixavam-se
das indignidades infligidas por prestamistas gananciosos, soldados brutamontes, cobradores de impostos sem coração e capatazes implacáveis.
Os seus sonhos para o futuro eram simples. Num futuro distante, depois de terem gozado a sua quota-parte de prostitutas, álcool e jogo, a maior parte dos homens
imaginava para si mesmo não uma vida de luxo num palácio, apaparicada por escravos, mas em paz e sossego, numa casa simples, na cidade ou aldeia de onde eram naturais.
A possibilidade de envelhecer era, em si mesma, uma fantasia para estes homens, que continuavam vivos contra todas as probabilidades.
À medida que o Sol se erguia sobre nós, a minha mente ia vagueando. Estudei a monótona extensão aquosa do Delta. Pensei no meu pai, em Roma. Perguntei-me o que seria
feito do meu velho tutor, Antípatro. Mas quando a conversa se virou para "a rapariga", os meus ouvidos ficaram atentos.
- Chama-se Axiothea - disse Menkhep.
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- Como é que sabes? - perguntou um dos homens. Chamava-se Ujeb. Tinha reputação de tímido (mostrara um pânico absoluto quando o crocodilo aparecera), mas era do
tipo capaz de usar a lábia para se libertar de qualquer aperto.
- Sei bastante sobre a jovem - disse Menkhep, orgulhoso de exibir o seu conhecimento privilegiado como um dos homens de maior confiança de Artemon. - Vem de Alexandria
e é atriz.
- Não! - disse Ujeb. - Ouvi dizer que era uma princesa.
- Não, é apenas uma atriz.
- Uma atriz, raptada para obtermos um resgate? - escarneceu Ujeb. - Podemos encontrar mulheres dessas em qualquer esquina de Alexandria!
- Ela é a favorita de um homem muito rico.
- Oh, estou a ver. Aposto que é linda! Pensei que a íamos conseguir ver esta manhã, mas tudo o que vi foi um monte de trapos no meio da neblina.
- Trapos? - Menkhep riu. - A roupa que trazia vestida é mais cara do que tudo o que consigas roubar durante a tua vida.
Ujeb encolheu os ombros.
- Tal como eu disse, quase não a conseguia ver. Tanto quanto sei, até podia estar nua.
- Eu gostava de ver isso! - exclamou um dos homens.
Isto levou a uma série de comentários lascivos, cada um mais vulgar que o último. Mexi-me nervosamente e fiquei aliviado quando Menkhep falou.
- Basta! A rapariga está sob a proteção do Artemon, por isso não há necessidade de conversas tão nojentas.
- Sob a proteção do Artemon? Isso significa que ele a está a comer?
- perguntou Ujeb.
- Claro que não, palhaço! Que pena o Glutomem não te ter levado do barco e comido para o pequeno-almoço.
Ujeb ficou pálido.
- Não te quis ofender. ??.-.;?
- Então fecha a boca! Ninguém tocou na rapariga desde que ela chegou e isso inclui o Artemon. Ele segue as regras, tal como nós.
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- Mas ela já está cativa há muito tempo, no entanto, não ouvi nada sobre a chegada de resgate algum - disse Ujeb.
- Estas coisas demoram o seu tempo - disse Menkhep -, em especial com todo o Egito em tamanho tumulto.
- Bem, se agora aparecer alguém no Ninho do Cuco para pagar o resgate, só lá encontrará o Glutomem para receber o pagamento! - disse Ujeb. Os outros riram-se.
- O Ujeb tem razão - disse eu baixinho. - Talvez o Artemon tenha desistido do resgate. O que aconteceria então à rapariga?
Menkhep franziu o sobrolho.
- Talvez tencione libertá-la. Suponho que tudo dependa do nosso destino.
- Acho que nos dirigimos para Creta - disse um dos homens. Dizem que, desde que estalou a guerra entre Roma e Mitrídates, não há ninguém a governar a ilha. Ouvi
dizer que é um paraíso para os piratas.
- Pode ser Creta - disse outro -, mas aposto em Cirene.
- Cirene está sob controlo dos romanos - disse Ujeb.
Os outros olharam de relance na minha direção. Eu mantive a boca fechada.
- A perda de Cirene é a vergonha do Egito - disse Ujeb. - O sacana do Apião entregou-a aos banqueiros romanos sem luta, enquanto o rei Ptolomeu estava demasiado
ocupado a encher a mula para reparar.
- Sim, talvez nos estejamos a dirigir para Cirene - disse Menkhep.
- Se isso acontecer, um falante romano nativo como o nosso amigo Pecúnio poderá revelar-se útil. Ele sabe como pensam os romanos.
Ujeb olhou de lado para Menkhep.
- Pareces saber sempre mais do que os restantes. É verdade o que alguns homens dizem sobre o Artemon, que é filho bastardo do Apião? Se assim for, porque não haveríamos
de viajar para Cirene e reclamar o que é seu por nascimento?
Como Menkhep hesitou, senti-me obrigado a falar.
- Acham mesmo que o Gangue do Cuco era capaz de derrotar um exército romano?
- Tanto quanto sei - disse Ujeb -, os romanos estão ocupados a lutar contra Mitrídates, para além de guerrearem os vossos próprios
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aliados em Itália. Tanto quanto sabemos, os romanos retiraram de Cirene. E provável que seja fácil de tomar!
- Não pode ser assim tão simples - disse eu.
Se Ujeb estivesse certo e Artemon nos levasse numa louca expedição para reclamar um reino, o que nos aconteceria, a Bethesda e a mim? Ocorreu-me uma ideia bizarra:
se Artemon sonhasse em tornar-se rei, era possível que fizesse de Bethesda sua rainha - o que faria de mim seu súbdito! Nessa altura, o mundo estaria, de facto,
virado de pernas para o ar. Mas antes que tal coisa pudesse acontecer, parecia mais provável que o Gangue do Cuco perecesse por inteiro numa ataque temerário e mal
calculado, levando-me juntamente consigo.
Ujeb prosseguiu com a sua elaborada fantasia de um Artemon real.
- Se o Artemon fosse rei, isso torná-lo-ia igual a Mitrídates. Pensem nisso! Os dois poderiam unir forças contra os romanos. E nós, homens do Gangue do Cuco, seríamos
como os seguidores de Alexandre, presentes no momento do nascimento de algo grande, muito maior do que nós mesmos e, provavelmente, obteríamos por isso um belo lucro.
Imaginem só...
Ujeb prosseguiu e os outros ouviam, enfeitiçados. Abanei a cabeça. Tinham partido para o reino a que os argumentistas gregos chamavam Cidade da Nuvem dos Cucos e
não valia a pena chamá-los de volta à terra. Olhei para os barcos que seguiam à nossa frente e atrás de nós e perguntei-me em quantos desses navios estariam a decorrer
conversas semelhantes, enquanto os homens especulavam em relação à aventura que tinham pela frente.
Ainda que as fantasias de Ujeb fossem absurdas, quais seriam as intenções de Artemon?
Olhei para a paisagem aquática do Delta, pensando no longo caminho que percorrera desde o meu quarto acolhedor em Alexandria. Teria eu perdido o norte, ao longo
do caminho? E se Ujeb e os outros tivessem razão e fosse eu quem estava a usar as palas?
Afinal de contas, o que sabia eu sobre como eram feitos os reinos ou de onde vinham os reis? Não tinham Rómulo e Remo sido pouco mais do que pequenos bandidos quando
fundaram a cidade? O que era Alexandre senão o líder de um bando enorme e sedento de sangue que,
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por acaso, tinha amor aos deuses, pelo menos durante algum tempo? Talvez o melhor caminho fosse seguir o exemplo dos homens à minha volta - confiar por completo
em Artemon e agradecer à Fortuna por o meu destino estar preso ao de um tal homem.
Talvez. No entanto, o meu instinto dizia-me que nos esperava algo terrível.
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XXXII
O navio esperava por nós na enseada, tal como Artemon tinha dito. O Sol estava a afundar-se no horizonte quando nos aproximámos, iluminando tudo com um brilho cor
de laranja garrido que lançava longas sombras.
Era, de longe, o maior navio em que eu alguma vez embarcara. Nas minhas viagens pelas Sete Maravilhas, tinha viajado, acima de tudo, em pequenos navios mercantes
que velejavam de porto em porto, contornando de perto a linha da costa. Esses barcos, com pouca tripulação e carregados de carga, mal tinham espaço para passageiros.
Medusa - o navio que tirara o seu nome de uma estátua de madeira pintada de cores vivas que exibia na proa - era uma verdadeira ilha flutuante.
O navio já tinha a sua tripulação quando subimos a bordo, com uma equipa de pelo menos vinte marinheiros e talvez uns sessenta remadores, no entanto, o convés era
tão grande que todos os homens a bordo se podiam reunir sob o mastro enorme. com Cheelba atrás de si, Artemon subiu um curto lance de escadas que dava acesso à cabine
da popa. Colocou-se junto ao corrimão onde todos o podiam ver.
Onde estavam Bethesda e Ismene? Não as tinha visto a bordo, mas presumi que estivessem no interior da estrutura sobre a qual se erguia Artemon, já que nesta se encontravam
os únicos aposentos seguros e isolados no navio.
Enquanto Artemon falava, o leão sentou-se ao seu lado, sobre os quartos traseiros, e abanou a cauda.
292
- Bem-vindos a bordo do Medusa - disse. - Não é uma beldade? Esta será a nossa casa durante um breve período. Os homens que já se encontram a bordo são nossos camaradas,
fazem parte do Gangue do Cuco como qualquer outro dos homens aqui presentes, independentemente de a maior parte ter vindo de muito longe. Quando zarparmos, esperamos
de todos os homens que se revezem nos remos. Se nunca fizeram tal trabalho, descobrirão que não é muito diferente de remar nos escaleres, com exceçào de que vos
nascerão bolhas em novos locais.
Artemon apresentou o capitão, um homem escuro, de pele curtida e uma barba preta e eriçada. Faltava-lhe um dos olhos e, no seu lugar, estava uma massa de cicatrizes.
O sorriso mostrou uma boca cheia de dentes tortos e amarelos, com falhas nos locais onde devia ter perdido vários. Chamava-se Mavrogenis e era, em tudo, a imagem
de um pirata
- tanto, que se teria sentido em casa no grupo de Melmak, assustando crianças e fazendo rir os seus pais. Quando o capitão nos dirigiu um sorriso de esguelha, Djet
agarrou-me a perna e encolheu-se atrás de mim.
Sob a última luz do dia, os homens transportaram rapidamente a carga dos escaleres para o Medusa. Quando terminaram, os barcos foram atados uns aos outros e incendiados.
Enquanto a cadeia flamejante de barcos deslizava para longe de nós, o espelho de água criava a ilusão de que o próprio mar estava em chamas. Em seguida, nuvens de
vapor sibilantes coroaram o espetáculo, enquanto as chamas esmoreciam e se apagavam, tremeluzindo. Depois disso, a noite pareceu muito escura, mas, por fim, consegui
distinguir as estrelas sobre nós e os seus reflexos nas águas negras à nossa volta.
Djet encontrou um cobertor. Eu localizei um espaço vago no convés, suficientemente grande para que nos pudéssemos deitar os dois. Da extremidade oposta do navio,
erguia-se um rosnido baixo: Cheelba, que rosnava baixinho nos seus sonhos. O ligeiro abanar do navio embalou-me rapidamente e adormeci.
293
Na manhã seguinte, o Medusa contornou lentamente a enseada, enquanto o capitão Mavrogenis explicava aos recém-chegados os pormenores essenciais do funcionamento
do navio. Os seus modos eram bruscos, mas parecia menos ameaçador à luz do dia. :' Tornou-se claro que alguns dos homens nunca tinham estado a
bordo de um navio à vela - alguns pareciam verdadeiramente aterrorizados -, mas a maioria parecia entusiasmada com o facto de estarmos prestes a zarpar e gritaram
de alegria quando o Medusa velejou, por fim, pela boca da enseada e para o mar aberto. Seguimos para oeste, mantendo a costa ligeiramente visível à nossa esquerda.
Um vento desfavorável abrandava o nosso progresso e dava aos remadores trabalho constante. Estive algumas vezes nos remos. Como Artemon prometera, no fim do dia
tinha uma nova bolha em cada polegar.
Lançámos âncora suficientemente perto da margem para a podermos alcançar a nado, não muito longe de um recife traiçoeiro que corria ao longo da costa. Outros navios,
cujos capitães conheciam o recife, mantinham sempre a sua distância. À medida que a luz desaparecia, vi um ponto de luz brilhante a sudoeste. A luz era demasiado
baixa no horizonte para ser uma estrela. Tinha de ser a luz do Farol de Faros: Alexandria! A cidade estava tão perto que um titã poderia estender a mão e tocar-lhe.
Apenas alguns quilómetros de água e areia me separavam do local onde mais desejava estar, se ao menos lá pudesse estar
; com Bethesda. Sofria perante a proximidade de ambos - a cidade à
vista e Bethesda quase ao meu alcance, separada de mim pelas paredes da cabine e pela vontade de Artemon.
; O fim do dia era fresco e limpo. Os homens instalavam-se tão confortavelmente quanto podiam no convés apinhado. Foi distribuída comida e bebida entre nós. Quando
Artemon subiu para a cabine, na popa, com Cheelba ao seu lado, os homens ficaram em silêncio e deram-lhe toda a sua atenção.
Falando com clareza, num tom objetivo, Artemon informou-nos que, no dia seguinte, velejaríamos até ao porto de Alexandria. Aí, depois de o Medusa parar junto a um
dos embarcadouros de águas profundas,
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a maior parte dos homens desembarcaria. Desde que os preparativos na cidade tivessem sido realizados de forma a satisfazer Artemon - e este não tinha razão para
pensar que assim não fosse -, um grupo seguiria a cavalo até ao Túmulo de Alexandre. Dali roubariam o sarcófago dourado de Alexandre, transportá-lo-iam até ao porto,
colocá-lo-iam a bordo do Medusa e zarpariam antes do cair da noite.
O anúncio era de tal forma espantoso que ninguém disse uma palavra. De olhos e bocas muito abertas, os homens olhavam uns para os outros, perguntando-se se teriam
ouvido bem.
Levantei-me. Artemon acenou, convidando-me a falar.
- Teremos tempo para comprar algumas coisas, enquanto estivermos na cidade? - perguntei.
Depois de uma pausa, o silêncio foi quebrado por gargalhadas tão sonoras que temi que nos conseguissem ouvir em Alexandria.
Enquanto os homens iam sossegando, devagar, Artemon dirigiu-me um olhar sério e abanou a cabeça. Compreendeu a minha piada e respondeu-me à altura.
- Teremos de deixar o porto de forma algo apressada, Pecúnio. Sinto muito, mas não teremos tempo de negociar com os mercadores locais.
A minha pergunta tola deu aos outros coragem para falar. Ujeb levantou-se.
- Decerto deveremos ir armados. O que usaremos como armas?
- Há um armazém de armas, aqui, a bordo do Medusa - disse Artemon. - Todos os homens que participarem do grupo de assalto estarão adequadamente equipados.
- Teremos de combater contra os soldados de Ptolomeu? - perguntou outro. - Pensei que tínhamos deixado o Ninho do Cuco para evitar uma tal batalha.
- Ah, mas a situação em Alexandria não é o que esperam - disse Artemon. - Os nossos espiões têm mantido a cidade sob apertada vigilância; viram os mensageiros a
chegar com os seus relatórios. Já desertaram tantos soldados do exército do rei, que este já não é capaz de manter a ordem. As pessoas saqueiam as lojas e há tumultos
nas ruas, sem que ninguém o impeça. A maior parte dos soldados que restam retiraram-se para o palácio, onde ergueram barricadas. Os túmulos reais
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foram trancados e fechados aos visitantes, mas estão pouco guardados. Todos esses túmulos contêm tesouros fabulosos, mas nenhum é mais grandioso do que o sarcófago
dourado de Alexandre. Em peso e volume é a maior massa de ouro de toda a Alexandria. E está ao nosso dispor.
- Mas temos de invadir o túmulo? - perguntou um homem. E como carregaremos uma coisa tão pesada até ao navio?
- Chegaremos ao túmulo com um aríete. Também teremos guinchos para erguer e mover o sarcófago, especialmente concebidos para o efeito, e uma carroça suficientemente
forte e larga para o transportar.
- Talvez não haja soldados suficientes para nos impedir - disse eu -, mas e se os cidadãos comuns descobrirem o que estamos a fazer? O sarcófago de Alexandre é o
seu maior tesouro. Uns quantos lojistas furiosos a agitar os punhos não nos farão parar, mas uma multidão sedenta de sangue poderá consegui-lo.
- Apresentas um argumento válido, Pecúnio. Precisamos de uma distração. E teremos uma. Pouco depois de o Medusa chegar ao porto, alguns dos nossos confederados irão
instigar um motim no canto oposto da cidade, perto do Templo de Serápis. Uma criança fingirá ter sido mutilada e culpará os soldados do rei, enquanto os nossos homens
agitam a multidão até ocorrer um motim em grande escala. Isso deverá atrair os tipos mais violentos: os incendiários, os saqueadores e os agressores. Também deverá
manter ocupados os soldados suficientemente corajosos ou tolos para percorrerem as ruas, tentando manter a ordem.
- Mas decerto as pessoas repararão se andarmos a arrastar um sarcófago de ouro pelas ruas - disse eu.
- O sarcófago será colocado numa caixa de madeira e a sua tampa será pregada. Ninguém que nos veja saberá o que está no seu interior.
Artemon fixou o olhar em mim, como se me desafiasse a pensar em mais algum argumento. Inspirou fundo.
- Todos os pormenores foram pensados. Todos os preparativos realizados. Compreenderão agora porque é que eu não podia dizer nada sobre este ataque até hoje e porque
é que todo o planeamento teve de ser feito em segredo. Não podia arriscar que um eventual traidor
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pudesse revelar o nosso plano ao rei Ptolomeu ou que um bêbado falador nos pudesse entregar. Todos os mensageiros e todos os nossos confederados em Alexandria sabiam
apenas o que precisavam de saber. Nem mesmo os homens que se irão encontrar connosco com o aríete e os guinchos sabem para que serão usados. Agora tudo o que nos
falta é levar a cabo a tarefa. E amanhã, depois de terminada, zarparemos do porto com o sarcófago de ouro e não seremos apenas homens ricos. Seremos lendas.
Olhei para os homens à minha volta. Os seus olhos cintilavam com as ideias que Artemon lhes punha na cabeça.
Limpei a garganta.
- Mesmo que tudo corra de acordo com o plano, decerto será derramado algum sangue.
- Sangue deles, não nosso! - gritou Ujeb. Em seguida uivou e agitou os braços sobre a cabeça com grande alarido e muitos foram os homens que os seguiram.
Artemon acalmou-os.
- O Pecúnio tem razão. É possível que alguns de nós fiquem feridos. Alguns até podem ser mortos ou capturados pelos homens do rei, dos quais não podemos esperar
qualquer misericórdia. Acredito que não encontraremos quase nenhuma oposição e seremos capazes de levar a cabo o ataque com muito pouco derramamento de sangue. Ainda
assim, há sempre uma hipótese de que algo corra mal. Talvez tenhamos de lutar a caminho do túmulo e, depois, no regresso do navio.
- Nenhum dos homens aqui presentes tem medo de um pequeno combate! - gritou Ujeb.
- A não ser tu, Ujeb! - ripostou Menkhep, suscitando grandes gargalhadas.
Artemon esperou que os homens se acalmassem.
- Se algum homem achar que as hipóteses de falharmos são demasiado grandes, é livre de nos deixar. Se for essa a sua escolha, amanhã, quando o navio chegar ao porto,
pode juntar os seus bens que conseguir transportar consigo. Terá de esperar a bordo até ao regresso do grupo de assalto, pois não podemos permitir que alguém corra
para o
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palácio ou arranje problemas. Mas assim que os homens tiverem subido a bordo e o sarcófago tiver sido carregado, serão livres de deixar o navio e seguir o seu próprio
caminho, enquanto os restantes navegam. Deixarão de fazer parte do Gangue do Cuco e terão abdicado do maior tesouro do mundo, mas homem algum pensará mal de vocês.
Chamar-lhe-ei tolo, mas não lhe chamarei cobarde.
- Abandonar o Gangue do Cuco? - disse Ujeb. - No dia da nossa maior aventura? Isso seria como sair de um espetáculo de mimos imediatamente antes da chegada das bailarinas!
Ah!
No mar de rostos que me rodeavam, vi alguns homens que pareciam estar a ponderar a oferta de Artemon em deixar o gangue, mas a grande maioria partilhava o entusiasmo
de Ujeb.
- E depois, Artemon? - gritei. - Para onde iremos depois de Alexandria?
- Isso ainda não o posso revelar, Pecúnio, por razões óbvias. E se alguém decidir partir? E se alguém for capturado? Nenhum homem aqui presente trairia por vontade
própria os seus camaradas, mas não podemos arriscar. Enquanto não estiver terminado o assalto, o nosso destino terá de permanecer secreto.
Assenti.
- É justo. Mas os navios do rei não nos seguirão? E o que te faz pensar que permitirão que um navio cheio de bandidos entre sequer no porto?
- Como o resto de Alexandria, o porto está quase desguarnecido. O rei precisa de usar todos os seus recursos para manter o Farol de Faros em operação. Ser-nos-á
dada autorização para entrar e para parar na doca. Foram feitos preparativos nesse sentido.
- Foram pagos subornos, queres tu dizer! - riu Ujeb. Artemon sorriu.
- E foram realizados outros preparativos para garantir que ninguém nos perseguira quando partirmos.
- Mais subornos! - disse Ujeb.
- E se um capitão mais temerário da frota real decidir perseguir-nos ainda assim? - perguntei.
Artemon cruzou os braços.
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- Se isso acontecer, teremos de ser mais rápidos do que eles a chegar a...
Artemon inspirou de súbito e mordeu a língua, mas apenas fingia ter estado tão perto de se descair, provocando-nos com o mistério do nosso destino. Por ora, os homens
podiam deixar que as suas imaginações corressem livremente.
Nessa noite, agitei-me e virei-me no convés, incapaz de dormir. Muitos eram os que permaneciam igualmente acordados. Ouvia os seus sussurros à minha volta. Ninguém
falava de tudo o que podia correr mal. Em vez disso, falavam do que aconteceria depois do ataque, quando navegássemos para longe de Alexandria e para as lendas.
Esta era uma versão de um futuro possível: com uma fortuna em ouro e a companhia de homens leais, Artemon poderia tornar-se rei da Creta sem lei, navegando em seguida
com um exército de piratas e fora-da-lei para Cirene, expulsar os romanos e colocar-se no trono que deveria ser seu por direito. E depois, mestre de Creta e Cirene,
o Filho do Cuco tomaria também o Egito e, depois, aliar-se-ia com esse outro líder audaz, o rei Mitrídates de Ponto, e os dois, juntos, empurrariam os romanos de
volta a Roma e dividiram entre si o mundo...
Ao ouvir essas ideias pronunciadas em voz alta, mordi a língua e mantive o silêncio, pensando que não havia ideia tão louca que os homens não a abraçassem.
Dei por mim a fitar a cabine na popa. Estaria Bethesda no seu interior, e com ela Ismene? Estaria a dormir ou acordada? Saberia quão perto eu estava? Teria sido
capaz de ouvir o discurso de Artemon? Saberia que, no dia seguinte, estaríamos em Alexandria?
Vi uma sombra aproximar-se da porta. Pela forma e pelo tamanho, soube que só podia ser Artemon.
Durante muito tempo, ele manteve-se à porta, com a mão no trinco. Por que razão hesitaria? Não conseguia ver o seu rosto, que estava escondido na escuridão. Por
fim, ele abriu a porta e entrou.
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O meu coração bateu com mais força. A minha mente disparou. O que estaria a acontecer dentro daquele quarto? Levantei os pés e estava prestes a atravessar o convés,
quando a porta da cabine se abriu silenciosamente e Artemon saiu, fechando-a atrás de si.
Viu-me de pé por entre o mar de homens tapados e dirigiu-me um vago aceno de reconhecimento. Voltei a deitar-me no convés ao lado de Djet.
E se eu decidisse não participar no assalto e ficasse antes no barco? Artemon tinha oferecido essa escolha. Conseguiria eu encontrar uma forma de salvar Bethesda
e escapar com ela? Parecia pouco provável. Seriam deixados homens a bordo para proteger o navio e para guardar Bethesda. Quando o grupo regressasse, eu seria escorraçado
do navio, expulso do Gangue do Cuco. Eles navegariam para o seu destino desconhecido, levando Bethesda consigo.
A ideia de que podia ter dado uma volta completa, regressando a Alexandria, apenas para voltar a perder Bethesda, e para sempre, era intolerável.
O que aconteceria se eu participasse no assalto? Presumindo que sobrevivia e regressava ao navio, que oportunidade teria de salvar Bethesda? Imaginei um cenário
louco: no momento em que o Medusa deixasse o porto e passasse pelo Farol de Faros, correria para a cabine, agarraria em Bethesda e puxá-la-ia para o convés. Segurando-a
com força, saltaria para a água. Enquanto Artemon abanava o punho e o Medusa navegava para longe, Bethesda e eu nadaríamos para a costa.
Havia apenas um problema: eu não sabia nadar. Seria Bethesda capaz de nos levar aos dois até à Ilha de Faros, vivos? Imaginei-nos a arrastarmo-nos para a margem,
arquejantes e esfarrapados, mas, por fim, livres.
E se esse cenário rocambolesco se revelasse impossível, o que fazer? Bethesda e eu navegaríamos com os outros, ainda mais sob o poder de Artemon do que nunca. Também
essa perspetiva era intolerável.
Parecia-me que Ismene era a minha única esperança. Esta tinha mostrado simpatia pelo meu sofrimento. Tinha-me ajudado a sobreviver à iniciação. Que planos teria
ela para si mesma? Que plano, se é que houvesse algum, teria para Bethesda e para mim?
Fitei o céu estrelado sobre mim e murmurei uma oração à Fortuna, pedindo que uma bruxa me pudesse salvar.
300
XXXIII
Pouco antes do nascer do Sol fui acordado por um grito capaz de gelar o sangue.
Pensei em Bethesda e levantei-me num ápice.
No entanto, o grito não viera de Bethesda. Viera de Ismene. Sob a luz fraca que antecede a madrugada, vi-a no cimo da cabine da popa, no local onde Artemon se erguera
para se dirigir a nós. Tinha os olhos fechados. Erguia as mãos sobre a cabeça, as palmas unidas e a apontar para cima, como os de um mergulhador, e depois começou
a girar, cada vez mais depressa. O tecido e as borlas do manto cortavam o ar.
Os que estavam acordados despertaram os que ainda dormiam e, em breve, todos olhávamos para Ismene enquanto esta rodopiava. Dificilmente pareceria possível que um
mortal se pudesse mexer daquela forma por vontade própria. Uma qualquer força externa devia estar à controlá-la, a fazê-la girar como uma criança poderia fazer girar
uma boneca.
À medida que ia girando cada vez mais depressa, Ismene produzia estranhos sons ululantes que faziam levantar os pelos do pescoço.
- Apoderou-se dela um qualquer demónio - disse Djet. Erguera o cobertor até ao rosto e espreitava por cima dele.
- Rapaz estúpido! - gritou Ujeb. - Isto é o que acontece quando uma profecia se apodera dela. Quando regressa a si, conta-nos o que os escuros poderes lhe mostraram.
Os sons ululantes pararam. O rodopiar abrandou e depois parou. Ismene cambaleou mas não caiu. Abriu os olhos.
301
- Ananke ergueu o véu! Moira soprou para longe a neblina! O Egípcio Ufer do Nome Poderoso mostrou-me o livro do que irá ser!
Os homens gritaram.
- Diz-nos o que viste, Metrodora!
- Metrodora, o que acontecerá hoje?
- Metrodora...
- Calem-se todos! - uivou ela.
Alguns dos homens recuaram, como se ela os tivesse atingido.
- Tem de haver um sacrifício! Para que tudo corra bem, é exigido um sacrifício vermelho-sangue!
Os homens olharam de relance uns para os outros, ansiosos. Alguns deles olhavam para Djet de uma forma que me deixava inquieto. Puxei o cobertor para cima da sua
cabeça e apertei-o contra mim.
Artemon apareceu nos degraus que conduziam ao telhado da cabine, mas parou antes de se juntar a Ismene. Parecia contrariado e desorientado.
- O que é que estás a dizer, Metrodora? - perguntou. - O que é que os escuros poderes querem de nós?
- Um sacrifício vermelho-sangue! Artemon ficou pálido.
- Alguém tem de morrer? - sussurrou. Ao meu lado, Ujeb começou a balbuciar.
- Isto nunca tinha acontecido antes! Nunca houve nenhum sacrifício humano entre nós! Porquê agora? Porquê agora?
- A maldição! - gritou Ismene. - Temos de nos libertar de todas as maldições! Todos têm de ser purificados!
Artemon abanou a cabeça.
- Que maldição, Metrodora? De que é que estás a falar?
- A maldição do rubi! - Metrodora ergueu o punho no ar, depois abriu-o para revelar o rubi que eu lhe dera, liberto da sua base no colar nabateu. Nesse instante
o primeiro raio de sol foi projetado do horizonte e atingiu a jóia. Parecia que Ismene segurava uma pequena bola de fogo.
- De que maldição falas? - a voz de Ujeb estalava. - De onde veio esse rubi?
302
- Homem estúpido! - gritou Ismene. - As tuas perguntas são inúteis. Tudo o que importa é que temos de nos livrar da maldição. A menos que isso seja feito, este navio
nunca chegará a Alexandria.
Os homens começaram a falar atabalhoadamente e caíram de joelhos. Artemon parecia chocado. Aquilo, claramente, não fazia parte dos seus planos.
- Quem tem de morrer, Metrodora? - uivou Ujeb. - Serei eu? Oh, por favor, deuses, que não seja eu!
- Cala-te, idiota! - Ismene dirigiu-lhe um olhar fulminante. - Ninguém tem de morrer. Mas todos os homens aqui presentes têm de tocar no rubi. O rubi já encerra
em si uma maldição. O rubi pode receber mais maldições: todas as maldições que existam entre nós, grandes e pequenas. Para que tudo corra bem, todo o navio e todos
os que nele se encontram têm de ser purificados. Todos têm de segurar o rubi!
Ismene aproximou-se de Artemon, fitou-o até este lhe estender a mão, depois pressionou o rubi contra a palma da mão.
- Todos os homens a bordo do navio têm de lhe tocar! - gritou. Artemon desceu ao convés. Passou o rubi ao primeiro homem que
encontrou, Menkhep. Este segurou a pedra com o braço esticado, depois passou-a ao homem seguinte.
O rubi foi passando de homem em homem. Alguns fitavam-no, espantados. Outros afastavam os olhos assustados. Alguns afagavam-no com uma espécie de cobiça antes de
o passarem ao seguinte. Outros ainda tremiam e guinchavam quando lhe tocavam, como se a pedra lhes queimasse os dedos.
Quando chegou a minha vez de o segurar, fitei atentamente a jóia que já tinha sido minha. Estaria realmente amaldiçoada? O seu dono anterior, um nabateu, tinha,
sem dúvida, encontrado um triste fim, tal como o Crocodilo e os seus cúmplices que a tinham tentado roubar. No entanto, o facto de eu estar em posse do rubi tinha
suscitado o respeito de Artemon, e por o ter oferecido a Ismene, pudera ver Bethesda.
- O rapaz também tem de a segurar - disse Ismene, que tinha avançado lentamente por entre a multidão até ficar à minha frente.
Passei o rubi a Djet. Este fitou-o de olhos vesgos por um momento antes de o passar.
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Ismene aproximou-se mais. Os outros recuaram. Enquanto todos os olhos seguiam o rubi, ela aproximou-se tanto que, quando sussurrou, só eu a podia ouvir.
- Houve outra que tocou o rubi antes de eu vos ter acordado.
- Bethesda! - murmurei o nome, quase sem mover os lábios. Ismene acenou.
- Deixa-me vê-la! - sussurrei.
- Isso não é possível - sussurrou Ismene.
- Mas quando...
- Segue o Artemon, hoje. Participa no assalto. Mas não regresses ao navio. Fica em Alexandria. Aconteça o que acontecer, não reembarques no Medusa.
- E a Bethesda? Como é que ela...? Ismene virou-se abruptamente e afastou-se.
O rubi foi passado de mão em mão, até todos os homens a bordo lhe terem tocado. O último a segurá-lo foi o capitão Mavrogenis, que espreitou para ele com o seu olho
bom, virando-o de um lado para o outro. Quando Ismene se aproximou, ele ficou rígido e entregou-lho.
Ismene ergueu o rubi. Este cintilou na luz do sol que se erguia.
- Coisa amaldiçoada! - gritou ela. - Coisa bela que guarda em si todas as maldições e partículas de má sorte de todos os mortais a bordo deste navio! Fora contigo!
Que Posídon te engula! Só todas as águas do mar te poderão limpar!
Ismene puxou o braço atrás e lançou o rubi com toda a sua força. Um risco carmesim cortou o ar e desapareceu por entre as ondas, num pequeno chapinhar.
Artemon pareceu chocado. Depois, lentamente, um sorriso iluminou-lhe o rosto. Creio que antecipou a reação dos homens. Por um momento todos ficaram imóveis, tão
chocados como Artemon, em seguida alguns começaram a estremecer e a arquejar, e alguns a chorar. Toda a ansiedade que tinham silenciado pareceu jorrar deles naquele
momento. Durante toda a noite tinham suprimido os seus receios, afastando as palavras de mau augúrio, falando apenas de sucesso e de glória. De que escuros sonhos
os teria acordado o grito de Ismene? Ainda meio adormecidos e confusos, tinham sido arrastados por ela
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para um ritual que nenhum esperara, nem mesmo Artemon, mas por que todos ansiavam.
Tínhamos sido purificados - não pela água ou pela oração, mas pela magia. Desaparecidos estavam os detritos das ofensas de todos os homens contra deuses e mortais.
Desaparecida estava a dúvida.
Estávamos prontos para o dia que tínhamos pela frente.
Quando a âncora foi içada e o Medusa zarpou, Artemon anunciou aqueles que, entre nós, iriam desembarcar e quais os que ficariam no navio. Eu estava no primeiro grupo.
Todos os homens receberam uma arma. Os que iam participar no assalto receberam escudos e armaduras. Tínhamos trazido connosco
alguns destes artigos desde o Ninho do Cuco, mas as melhores peças vinham de um depósito no navio. O estilo e o trabalho destes objetos assemelhavam-se aos dos armamentos
usados pelos soldados do rei Ptolomeu. De onde teria vindo tanto equipamento e de tão boa qualidade? Perguntei-me se os confederados de Artemon não teriam assaltado
um arsenal real.
Artemon desenrolou um grande e muito detalhado mapa da cidade de Alexandria - um dos tesouros que ele escolhera trazer da sua biblioteca. Nele estava marcado o desembarcadouro
onde ficaria o Medusa e o caminho que iríamos percorrer até ao túmulo de Alexandre e de regresso. Todos os homens foram encorajados a estudar o mapa e a familiarizar-se
com os pontos de referência. Graças à rígida disposição em grelha que Alexandre aplicara à sua cidade, até os mais burros entre nós foram capazes de compreender
o mapa. Quando chegou a minha vez de olhar para ele, os nomes e as marcas evocaram uma torrente de recordações e uma vaga de excitação. Dentro de poucas horas, voltaria
a ver Alexandria.
Artemon explicou o seu plano para o ataque. Alguns dos homens fizeram perguntas, que ele respondeu aprofundadamente. Parecia ter pensado em todos os pormenores e
antecipado todas as eventualidades. Até os mais hesitantes entre nós foram conquistados.
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Os homens do Gangue do Cuco navegaram em direção a Alexandria num estado de espírito otimista. As águas estavam calmas, a espuma da proa concedia ao ar um toque
salgado e as gaivotas por cima das nossas cabeças pareciam incitar-nos a continuar.
Mesmo de dia, a luz no cimo do Farol de Faros brilhava forte, graças aos espelhos enormes que apanhavam e refletiam a luz do sol. À medida que nos aproximávamos
da cidade, o feixe de luz ia-se tornando maior e mais brilhante.
Da primeira vez que navegara até ao porto de Alexandria, alguns anos antes, tinha ficado espantado com o esplendor da cidade. Voltava-me a acontecer o mesmo. Que
visitante, por familiarizado que estivesse com o local, poderia não se espantar com o edifício mais alto do mundo, o farol, que se erguia por entre as ondas? Para
lá do farol encontravam-se as ilhas do porto, cintilando com os seus templos e palácios. Ao longo da frente marítima estendia-se o porto movimentado e os terraços
esplêndidos do palácio real.
Enquanto passávamos pelo farol, olhei em frente para a margem distante e vi o local onde Bethesda e eu tínhamos comido com Melmak e a trupe de mimos no meu aniversário,
onde eu tinha adormecido e, depois, acordado sozinho, com Bethesda desaparecida. Esse dia fatídico parecia tão distante.
Todos os navios que entram no porto têm, primeiro, de receber autorização e nós não éramos exceção. com o Farol de Faros a surgir à nossa direita, um pequeno barco
veio receber-nos. Aos remos seguiam escravos e transportava um só oficial, que parecia ligeiramente absurdo no seu fato elaborado, que incluía um elmo que lhe ficava
demasiado grande e uma enorme quantidade de tiras de cabedal e fivelas de bronze que pareciam não ter qualquer objetivo prático.
Teria o oficial sido subornado de antemão? Seriam os documentos que o capitão Mavrogenis lhe apresentava genuínos ou uma falsificação convincente? Não estava suficientemente
perto para ouvir a conversa que travaram, mas, ao fim de alguns instantes, o pequeno barco partiu
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e o Medusa continuou em direção ao maior dos desembarcadouros que se projetavam através das águas.
Eu nunca vira porto tão vazio. Mavrogenis tinha espaço suficiente para manobrar, mas ainda assim demonstrou uma velocidade e uma perícia impressionantes quando conduziu
o grande navio, parando-o com o lado de borordo paralelo ao desembarcadouro.
Antes de o Medusa entrar no porto, os homens tinham escondido as suas armas sob os cobertores que usavam para dormir. Agora, com grande rapidez, afastamos os cobertores
e vestimos as armaduras que nos tinham sido oferecidas, pegámos em armas e reunimo-nos no convés. Menkhep andava por entre nós, assegurando-se de que todos os homens
estavam adequadamente equipados.
Senti um dedo que batia insistentemente na minha coxa e baixei os olhos, vendo Djet.
- Então e eu. - perguntou. - Onde está a minha armadura e a minha espada?
Fiquei grato pela gargalhada que suscitou em mim, uma distração dos nos que me Apertavam o estômago. Menkhep, que, por acaso, estava a passar, tambem se riu.
- Não sejas ridículo, rapaz - disse. - Tu vais ficar no barco até regressarmos.
Djet pareceu dsanimado, depois sorriu. ?.
- vou subir para o cimo do mastro e manter-me de vigia! 'A; -Já temos um vigia lá em cima - disse Menkhep. Fez-lhe uma festa
afetuosa na cabeça e prosseguiu.
Espreitei para o rapaz, apercebendo-me de que não pensara no que seria dele. Agachei- -me ao seu lado e falei em voz baixa.
- Vais ncar aqui, no barco quando partirmos, Djet. Mas se tiveres uma oportunidade (se seja seguro para ri, te ninguém te estiver a observar), sai do navio, És bom
nesse tipo de fugas. Também és bom a esconder-te. Sai do desembarcadouro se puderes, mas, se não puderes, encontra algum recanto ou tenda na casa da alfândega e
esconde-te até o Medusa zarpar.
- E espero lá por ti?
- Não. talvez. Quer dizer... - Abanei a cabeça. - Se me vires regressar com os restantes, não te reveles. Não me chames nem venhas
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ter comigo, mesmo que eu entre no navio... especialmente se eu entrar no navio. Fica escondido. Depois, mal possas, parte para a Rua dos Sete Babuínos. - Consegui
um sorriso malandro. - Diz a Tafhapy que regressaste, por fim, daquele longo recado em que ele te enviou.
- Então e tu? O que devo dizer ao mestre sobre ti? Suspirei e uma vez mais senti os nós no meu estômago.
- Diz-lhe que me serviste bem, Djet, e que fiquei muito satisfeito. Diz-lhe que te dei isto, como sinal da minha gratidão. - Da bolsa para as moedas que prendera
à cintura, pois decidira levar comigo toda a riqueza que tinha acumulado desde que partira de Alexandria, não deixando nada no navio, retirei um siclo de prata de
Tiro, uma moeda linda, com uma imagem de Hércules de um lado e uma águia a agarrar uma folha de palmeira do outro, e meti-lha na mão. Senti o impulso de o abraçar,
e assim fiz, com tanta força que o deixei sem fôlego.
- Ora, se não é comovente? - disse Ujeb. Ergui os olhos e vi um sorriso no seu rosto. - O romano está a despedir-se calorosamente do seu pequeno Ganimedes!
Teria respondido a Ujeb, mas Artemon apareceu no cimo da cabine. Envergava uma couraça de prata que refletia a luz do sol e trazia consigo uma espada maravilhosamente
trabalhada. Quando colocou na cabeça um elmo igualmente magnífico, um objeto antigo de cunho grego com uma ornamentada proteção para o nariz e brilhantes placas
que cobriam as bochechas, parecia um retrato de Aquiles.
O elmo também servia para lhe esconder o rosto. Para os restantes não havia elmos, pelo que teríamos de nos satisfazer com o tradicional disfarce dos bandidos. Como
os outros, observando o ritual que marcava o início de qualquer assalto, atei o meu lenço em redor da metade inferior do rosto.
Como um general antes da batalha, Artemon ergueu-se à nossa frente e pronunciou um breve discurso. De início, a minha mente estava de tal forma agitada e o meu coração
batia tão alto que eu quase não conseguia ouvir uma palavra do que ele dizia. Presumo que estivesse a tentar animar a nossa coragem, suscitar a nossa cobiça ou ambos.
Mas, à medida que fui ficando mais calmo e o comecei a ouvir com mais clareza, apercebi-rne de que o discurso que ele estava a fazer não era o esperado.
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- Que tipo de homem é este rei Ptolomeu? Porque haveríamos de o temer? Há quem lhe chame um palhaço gordo. A vergonha do Egito. Agora as pessoas estão prontas para
se verem livres dele e a sua única escolha é substituí-lo pelo irmão, um homem que já teve a sua oportunidade para governar e foi corrido para o exílio. E o que
acontece quando se deixa que o sangue determine quem será rei. Os homens nascem para o trono em vez de o merecerem e não há forma de nos vermos livres deles.
" É bem melhor ser o rei dos bandidos do que o rei do Egito, digo eu! O rei deles começa a vida numa cama de almofadas púrpura, a brincar com chocalhos de ouro,
rodeados por escravos aduladores. Têm tudo desde o nascimento e não sabem o valor de nada. É melhor ser o filho bastardo de uma prostituta, digo eu, e tornar-me
um salteador que vive na floresta com vinte ou trinta companheiros ajuramentados, homens em quem posso confiar em absoluto, cheios de vida e sem medo de nada. Deixai
que esse grupo cresça até cem homens livres, depois duzentos, depois milhares, espalhados por todo o Egito. Um dia atingirão as dezenas de milhares! E o homem que
tiver a honra de os liderar será o maior rei de todos, porque terá sido o líder por eles escolhido, um homem que mereceu a sua coroa, não por herdar algo que foi
conquistado pelos seus antepassados mas pelo seu trabalho e pelo seu mérito.
" Disse-vos a noite passada que o que vamos realizar hoje fará de nós lendas. Mas o Gangue do Cuco já faz parte das lendas. Não há homem no Egito que não nos conheça
e não nos inveje: a nossa liberdade, a nossa coragem, a nossa temeridade! Mas o tempo avança e nós também. Ontem fechámos o pergaminho do passado. Hoje desenrolamos
o pergaminho do futuro... e esse futuro será uma história gravada em letras douradas e salpicada de jóias, cheia até rebentar de glória!
" A noite passada eu disse que qualquer homem que o desejasse poderia ficar para trás e deixar o navio aquando do nosso regresso, para arriscar como homem livre
em Alexandria. Há algum homem que escolha deixar-nos? Se assim for, deponha as armas e afaste-se agora.
Ninguém se mexeu. Por uma vez, Ujeb não tinha resposta pronta. Em vez disso, o seu queixo estremeceu e uma lágrima correu-lhe pelo rosto. Olhei para Menkhep. Este
não chorou mas os olhos brilhavam-lhe.
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Até eu estava enfeitiçado pelas palavras de Artemon. Não queria saber do bando de bandidos nem da sua falsa glória, no entanto, fiquei pregado ao chão.
Olhei para a cabine. A porta estava fechada. Estaria Bethesda no interior? Estaria lá aquando do meu regresso?
Artemon olhou de um rosto para o outro e acenou, como que para reconhecer e registar a escolha de todos os presentes.
Virou-se e desceu os degraus que conduziam ao convés e, depois, para meu espanto, pegou numa coleira comprida, na ponta da qual se encontrava Cheelba. Artemon planeara
conduzir-nos através das ruas de Alexandria com um leão ao seu lado - e porque não? O rugido de Cheelba faria fugir de medo até os homens mais corajosos.
Equipados, armados e prontos, com Artemon e Cheelba à nossa frente, percorremos em fila a larga prancha de embarque e avançámos a passo rápido pelo molhe.
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XXXIV
Eu nunca olhara atentamente para o desenho destes desembarcadouros, nem para a parafernália com que estavam equipados. Agora, tudo o que eu via parecia realçado,
incluindo as carroças vazias e os guinchos parados, espalhados por todo o lado. Num dia normal, em tempos normais, estas ferramentas de transporte e carga estariam
a ser utilizadas, mas, naquele dia, tudo estava em silêncio.
A meio caminho entre a área de atracagem e a costa, chegámos ao edifício da alfândega. O edifício ocupava toda a largura do embarcadouro, pelo que não tínhamos alternativa
que não fosse atravessá-lo. As portas largas estavam destrancadas e abriram-se quando empurradas.
O interior da estrutura estava dividido em gabinetes, postos de controlo e salas de armazenamento. Todos os artigos que chegavam e saíam do porto de Alexandria estavam
sujeitos a vistoria, 'avaliação e taxação, pelo que não era de surpreender que a alfândega tivesse sido construída de forma algo labiríntica, repleta de divisórias
e becos. Tivemos de virar para um lado e para o outro e atravessar vários conjuntos de portas. Felizmente, Artemon parecia saber o caminho. Não encontrámos nem um
guarda armado, apenas alguns funcionários ociosos que fugiram de nós em pânico.
Ocorreu-me que, quando chegasse a hora de transportar o tesouro roubado através da alfândega, as várias divisórias e desvios abrandariam sem dúvida o nosso progresso.
Uma das passagens era tão comprida e estreita que levantaria sem dúvida um problema para qualquer carroça
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suficientemente grande para transportar um sarcófago. No entanto, decerto Artemon tivera em consideração todos esses fatores, disse a mim mesmo.
Uma vez atravessado o edifício da alfândega, depressa percorremos o que restava do embarcadouro até à costa. Longe, por cima dos telhados da cidade, a sudoeste,
vi uma coluna de fumo preto. O motim perto do Templo de Serápis estava adiantado.
Seguindo o plano de Artemon, tomámos o caminho mais rápido e mais direto até ao recinto dos túmulos reais. Alguns dos homens do Gangue do Cuco nunca tinham estado
em Alexandria e, apesar dos lenços que lhes escondiam os rostos, conseguia ver que os seus olhos estavam esbugalhados perante os magníficos edifícios, as estátuas,
os obeliscos e as fontes.
Não encontrámos qualquer resistência. À medida que as pessoas com que nos cruzávamos fugiam do nosso caminho, fui começando a sentir aquela excitação que advém de
fazer parte de um grupo de homens armados face ao qual todos se acobardam e fogem. Via a cidade de uma forma completamente diferente, pelos olhos de um exército
conquistador. Sempre que Cheelba rosnava, os restantes imitavam o som, transformando-o numa espécie de grito de batalha.
Já descrevi, no início da minha história, como nos aproximámos do edifício gigantesco onde se encontrava o túmulo, tornado pequeno pela enorme figura de Alexandre
no friso que percorria uma das paredes. Aí encontrámos um pequeno grupo de homens que puxava uma carroça. Na carroça estava uma caixa de madeira, com tampa, no interior
da qual colocaríamos o sarcófago.
A carroça também tinha guinchos, roldanas, cordas e outros equipamentos para içar o sarcófago, bem como um aríete feito a partir de um só tronco gigantesco. Quando
Artemon pediu voluntários para o aríete, larguei alegremente a minha espada e agarrei uma das pegas. Mais valia participar no sacrilégio de partir a porta do túmulo
do que derramar sangue inocente, pensei.
Como os túmulos reais estavam fechados aos visitantes, devido à falta de soldados do rei, havia poucos cidadãos por perto e ainda menos turistas. Apenas uma mão-cheia
de pessoas nos viu e nenhuma se
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atreveu a opor-se-nos, quando derrubámos o portão e corremos para o túmulo.
Guardas de cabelos grisalhos ofereceram a única resistência. Artemon e os seus homens derrubaram-nos implacavelmente. Quando chegámos à câmara interior, o último
guarda, apunhalado pelo próprio Artemon, caiu sem vida ao chão.
A carroça foi puxada para o local. O guincho foi usado para remover a tampa do sarcófago. Antes que o corpo mumificado fosse retirado e colocado a um canto, Artemon
convidou-me a subir ao estrado e a fitar o rosto de Alexandre.
Assim foi que eu, Gordiano de Roma, aos vinte e dois anos de idade, na cidade de Alexandria e na companhia de assassinos e bandidos, me vi cara a cara com o mais
famoso mortal que alguma vez viveu.
Contudo, foi apenas por breves instantes, pois passados alguns segundos, uma pequena multidão de cidadãos ultrajados entrou na câmara. Os bandidos repeliram-nos,
mas um deles, antes de ser derrubado, conseguiu atirar uma pedra contra mim. Artemon puxou-me para o lado, mas a pedra acertou-me na fonte. Caí do estrado para a
carroça, batendo com a cabeça num canto da caixa de madeira.
Zonzo, afastei-me e vi sangue - o meu sangue - na madeira.
Depois tudo ficou escuro.
Sonhos de escuridão e confusão, de ser atirado de um lado para o outro, de homens a gritar, rodas a chiar, espadas a bater, o cheiro do sangue, o odor do mar, o
grito das gaivotas...
Gradualmente, por entre desmaios e despertares, recuperei os sentidos. Abri os olhos e vi vigas de madeira por cima de mim.
Estava deitado de costas, entalado nurn espaço estreito entre a caixa e um dos lados da carroça. A carroça tinha estado em movimento, mas parara.
- Não vai caber! - gritou alguém.
- Tem de caber! - respondeu outra pessoa. Depois ouvi a voz familiar de Ujeb.
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- Acho que o romano acordou. Os seus olhos estão abertos.
- Ainda bem. Começava a pensar... - O rosto de Artemon surgiu, de súbito, por cima de mim. - Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos, Pecúnio. Consegues levantar-te?
Já estamos cansados de te puxar.
Antes que pudesse responder, ele puxou-me pelas mãos, obrigando-me a sentar e, depois, para a frente, para fora da carroça e para uma posição ereta. Estávamos dentro
de um edifício - o edifício da alfândega. Tal significava que tinha regressado ao embarcadouro.
Doía-me a cabeça. Toquei na fonte e senti o sangue seco.
- Um ferimento muito superficial - disse Artemon bruscamente.
- Muitos homens sofreram pior.
Olhei à minha volta. O grupo exuberante e invencível que tinha partido do Medusa fora transformado num bando de homens ensanguentados e maltratados de aspecto desesperado.
Faltavam vários.
Artemon viu a minha confusão.
- Quando saíamos do túmulo, deparámo-nos com mais resistência do que estava à espera. Malditos alexandrinos! Sempre tão imprevisíveis.
Pelo contrário, pensei, era inteiramente previsível que a multidão alexandrina pegasse em armas - ou pedras, paus e mocas - contra um grupo de salteadores que tentavam
escapar com o seu tesouro mais sagrado.
- O Menkhep? - perguntei quando não o vi.
- Fizeram-no em pedaços! - disse Ujeb de repente. - Foi o primeiro a cair. Tiraram-lhe a espada e lançaram-se sobre ele num frenesim, em especial as mulheres. Foi
horrível! Mas vingámo-nos deles, não foi? Nem um elemento daquela ralé estava vivo quando partimos. Mostrámos-lhes de que são feitos os homens do Gangue do Cuco!
Ninguém voltará a chamar cobarde ao Ujeb. - Ergueu a espada. Estava coberta de sangue.
Pensei em Menkhep, que me tinha salvado a vida e me conduzira em segurança até ao Ninho do Cuco e, depois, me protegera de diferentes formas. Tendo-lhe ocultado
tanta coisa, dificilmente me poderia considerar seu amigo, no entanto, pensar que tinha tombado de forma tão horrível fazia-me gelar o sangue.
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Olhei à minha volta e apercebi-me da falta de outro elemento do grupo de assalto.
- Onde está o Cheelba?
- Algures no edifício da alfândega - disse Artemon. - Escapou-se e fugiu há alguns instantes. Não há tempo para procurar por ele. Agora, o nosso problema é como
fazer passar esta maldita carroça através de uma tão estreita passagem. - Artemon soava perplexo mas determinado.
- É tão pesada! - queixou-se Ujeb.
- Não faz diferença - disse Artemon. - Ainda nos restam homens suficientes para mover a carroça. Se a colocarmos na posição correta, vai caber na porta. Empurramo-la
pela passagem, até a traseira ficar junto à porta. Depois deixamo-la ali e damos a volta, aquele corredor levar-nos-á até ao lado oposto. - Apontou para uma passagem
seis metros para a direita; esta abria-se para um corredor que seguira paralelamente à passagem através da qual a carroça tinha de passar. - Pelo outro lado seremos
capazes de puxar a carroça ao longo do caminho. Sim, tenho a certeza de que vai funcionar.
- Alguns de nós deviam ficar aqui e continuar a empurrar - sugeriu Ujeb.
- Não, empurrar é inútil. Se a carroça se desviar mesmo que pouco, ficaremos presos. Se, em vez disso, puxarmos, podemos corrigir o caminho enquanto avançamos e
fazer avançar a carroça de uma só vez. Para fazer isso, precisaremos de todos os homens. Do outro lado, atamos cordas ao cambão da carroça.
- Mas não seria melhor...
- Cala-te, Ujeb! Basta de discutir! Tens de fazer como te digo. Agora vamos trabalhar.
Avancei para me juntar ao esforço. Depois vi a mancha de sangue
- o meu sangue - no canto da caixa e quase desmaiei. Ver a espada ensanguentada de Ujeb quase não me afetara, no entanto, a imagem do meu próprio sangue deixou-me
doente.
Artemon empurrou-me para o lado.
-Vai andando, Pecúnio. Não farás mais do que atrapalhar. Regressa ao navio. - Resmungou enquanto encostava o ombro à carroça. - Diz ao Mavrogenis que vamos a caminho
e que tenha tudo a postos.
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Senti a cabeça a latejar. O embarcadouro parecia oscilar debaixo dos meus pés. Avancei pela passagem que ele indicara e percorri o longo corredor. Como é que Artemon,
que tanto se gabava de planear com antecedência todas as contingências, não fora capaz de prever a óbvia complicação de uma passagem demasiado estreita para uma
carroça?
Abanei a cabeça, pensando que Artemon não era tão esperto quanto queria que os outros pensassem.
Cheguei ao fim da longa passagem e vi, à minha esquerda, o final da passagem por onde a carroça precisava de passar. Era provável que Artemon tivesse razão quanto
ao facto de ser mais fácil puxar do que empurrar a carroça, usando cordas presas ao cambão.
Estava prestes a correr quando me pareceu ouvir alguma coisa. Um som restolhado, depois o chocalhar de metal, por fim o som de vozes abafadas. De onde viriam os
sons? com o seu teto alto, de traves, a acústica da alfândega era muito estranha, embotando alguns sons e fazendo com que outros ecoassem. Olhei para cima de mim
e pareceu-me ver movimento por entre as traves.
Estaria algum funcionário assustado ali escondido? Ou viria o som de alguma câmara escondida nas paredes à minha volta? O golpe que sofrera na cabeça deixara tudo
incerto.
Apressei-me - sem correr, porque correr provocava um doloroso latejar dentro da minha cabeça -, mas movendo-me tão depressa quanto podia.
Longe dos outros, por fim só, apercebi-me por fim de que Artemon me tinha oferecido a melhor hipótese de escapar. Bastava-me encontrar um esconderijo e esperar que
o Medusa zarpasse.
Mas onde estava Bethesda? Ismene tinha-me dito que em circunstância alguma deveria reembarcar no Medusa. Isso significaria que também Bethesda tinha deixado o navio
enquanto decorria o assalto? Ou ter-me-ia Ismene dado o conselho da serpente, agindo em nome de Artemon e planeando separar-me de Bethesda para sempre? O latejar
que sentia na cabeça impedia-me de pensar com clareza.
Decidi regressar ao navio. Sem conhecer o paradeiro de Bethesda não tinha outra escolha. Se me apressasse e ela estivesse o
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talvez a conseguisse ver, antes da chegada de Artemon e dos restantes. Apesar do latejar dentro do meu crânio, fiz o caminho todo a correr. O capitão Mavrogenis
viu-me aproximar-me e baixou a prancha de embarque. Franziu o sobrolho ao ver o meu rosto ensanguentado.
- Que notícias trazes, romano?
- Vêm a caminho. Chegarão a qualquer momento.
- Correu tudo bem?
- Têm aquilo que fomos buscar, mas morreram muitos homens. () capitão ergueu uma sobrancelha.
- Não vejo sangue na tua espada.
- Perdi o confronto. Fui atingido na cabeça...
- Mas o Artemon está bem, sim?
- O Artemon está incólume. - Passei por Mavrogenis. Este chamou os homens, dizendo a uns que preparassem o guincho da carga e a outros que preparassem a vela.
Djet não estava em parte alguma. Atravessei o convés e olhei por cima das águas, para o Farol de Faros e para a entrada do porto. Numa questão de momentos, Artemon
e os outros chegariam, o tesouro seria descarregado e o Medusa partiria.
Virei os olhos para a cabine na proa. Todos os homens estavam ocupados. Ninguém estava de guarda à porta. Avancei rapidamente na sua direção, com o coração a bater
feroz. Pousei a mão no ferrolho. A porta estava destrancada. Abri-a.
A cabine estava tenuemente iluminada pela luz que penetrava pelas pequenas janelas com portadas, abertas muito alto nas paredes. A divisão estava mobilada com mais
conforto do que teria imaginado. Havia candeeiros pendurados, armários, tapetes e sofás para dormir. Mas não estava lá ninguém.
Saí da cabine. Mavrogenis estava por perto, de mãos nas ancas, orientando o içar da vela. Agarrei-o pelos ombros da túnica, apanhando-o de surpresa. Era um homem
grande, mas ergui-o do convés. O seu rosto ficou pálido e os olhos abriram-se muito. Eu estava possuído pelo poder das Fúrias.
- A rapariga! - gritei. - Onde está ela?
- Que rapariga? - cuspiu.
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Abanei-o violentamente.
- Sabes a quem me refiro. A rapariga que estava na cabine com a Metrodora. Onde está ela?
O capitão apontou para o edifício da alfândega.
Larguei Mavrogenis, corri para a prancha de embarque e apressei-me a descer, mesmo a tempo de encontrar Artemon e os outros que chegavam com a carroça.
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XXXV
Uma corda, usada para puxar a carroça, pendia do ombro de Artemon e este estava ensopado em suor. Devia ter conduzido os restantes a um passo furioso. Os homens
largaram as cordas e cambalearam para longe da carroça, arquejando num esforço por respirar. Ujeb parecia prestes a desmaiar.
Os homens que se encontravam no navio correram pela prancha de embarque e empurraram-me ao passar. Prepararam o guincho que ergueria a caixa da carroça para o navio.
A loucura que se tinha apoderado de mim começava a desaparecer. A minha cabeça latejava de dor. O embarcadouro parecia oscilar. Se eu corresse na direção do edifício
da alfândega, alguém se daria ao trabalho de me seguir? Artemon tinha dito que qualquer homem podia deixar o navio se o desejasse.
Por um momento, senti-me demasiado zonzo para me mexer. Mal me conseguia aguentar direito. Dei por mim a olhar para a caixa no interior da carroça. Reparei em algo
muito estranho em relação à caixa.
- Não é a mesma caixa - disse eu, tão baixinho que apenas os que estavam mais próximos de mim o ouviram.
Entre eles estava Ujeb, que inclinou a cabeça.
- O que é que disseste, romano?
- Esta não é a caixa que trouxemos do túmulo de Alexandre. Esta não é a caixa que estava na carroça quando recuperei a consciência.
- O quê? Isso é impossível! - Ujeb emitiu um som rude com os lábios. - Eu é que faço as piadas parvas, romano, não és tu.
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- Não é uma piada. - Os outros tinham-nos ouvido e estavam agora a prestar atenção, incluindo Artemon, que tinha uma expressão muito estranha no rosto.
Aproximei-me da carroça.
- Quando a pedra me bateu na cabeça, caí na carroça. Bati com a cabeça no canto da caixa, aqui. - Toquei no local com os dedos. - Havia sangue na madeira e bastante.
Sangue meu. Vê-lo deixou-me maldisposto. Mas agora... não há sangue nenhum.
Artemon abanou a cabeça.
- Confundiste os cantos, Pecúnio.
- Não há sangue em nenhum dos cantos. Vê por ti mesmo. Ujeb contornou freneticamente a carroça.
- Ele tem razão! O romano tem razão! O que é que isto significa?
- Não significa nada - disse Artemon. - Esta é a carroça e esta é a caixa que retirámos do túmulo.
Abanei a cabeça.
- Não, não pode ser. Aconteceu alguma coisa estranha. Vejam o interior da caixa.
- A tampa foi pregada - disse Artemon. - Não temos tempo para isto. Os soldados podem chegar a qualquer momento. Abriremos a caixa depois de partirmos.
- Não, temos de a abrir agora! - gritou Ujeb.
- Ele tem razão - disse o capitão Mavrogenis, que nos observava a partir da amurada do navio. - Abre a caixa, Artemon. Depressa! Atirou um pé-de-cabra a Artemon,
que o apanhou com destreza mas lançou um olhar furioso ao capitão. Fixaram os olhares um no outro por um momento. Depois, com o maxilar tenso, Artemon saltou para
dentro da carroça e começou a puxar uma das tábuas da tampa. Estremeci perante o estalar da madeira e o guinchar dos pregos de ferro.
Artemon afastou a prancha. A ponta inferior do sarcófago foi revelada, a parte que fora moldada para mostrar o contorno dos pés. Sob a luz da tarde, vi o brilho
do ouro e um conjunto de esmeraldas que cintilavam com o seu fogo verde.
- Pronto, já viram todos? - perguntou Artemon. - Agora despachem-se e levem esta coisa para bordo!
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Mavrogenis dirigiu-me um olhar fulminante, certo de que eu estava completamente louco. Os outros voltaram ao trabalho. Mas eu não estava convencido.
Trepei para a carroça. Fitei o ouro e as esmeraldas visíveis através da abertura na tampa. Algo não estava bem.
- Tirem-no dali! - gritou Artemon.
Antes que alguém me pudesse impedir, desembainhei a espada. Soltei uma das esmeraldas e atirei-a contra o chão de madeira do embarcadouro. A pedra estilhaçou-se.
- Vidro - disse eu. - Nada mais que vidro verde. E isto...
com a ponta da espada, raspei a superfície dourada. A folha fina rasgou-se e engelhou, revelando algo cinzento e macio por baixo.
- Chumbo - disse eu. - O sarcófago dentro desta caixa não passa de chumbo, coberto de folha de ouro e pedaços de vidro.
Todos olharam para Artemon. O seu rosto não mostrava qualquer emoção. Fitava a caixa na carroça com a expressão absorta e abstrata de um homem que realiza diversos
cálculos mentais.
- Alguém nos traiu - acabou por dizer.
- Não, nunca! - exclamou Ujeb. - Prestámos juramento. Todos o prestámos. Todos os homens do Gangue do Cuco prestaram juramento, do Artemon ao mais baixo. Homem algum
trairia o juramento!
- Como é que fomos traídos e quando? - questionei, ignorando Ujeb. - O sarcófago que vi no túmulo era, sem dúvida, genuíno. Não podia ser falso. Todos o vimos. Todos
lhe tocámos.
- Sim, o sarcófago que carregámos na carroça era, sem dúvida, genuíno - referiu Artemon. - O que só pode significar que, de alguma forma, algures no caminho, esta
caixa foi substituída por outra.
- Não só a caixa, mas toda a carroça - concluiu Ujeb. - Olha, não há gota de sangue em parte alguma. Pecúnio lembrou-se de ter visto o seu próprio sangue na caixa,
mas de certeza que também havia bastante sangue na carroça. Tinha de haver, depois da batalha que travámos no exterior do túmulo. A carroça não tem sangue algum.
- Tudo isto é falso? - perguntou Mavrogenis. - A carroça, a caixa, o sarcófago? Como é isto possível? Não estiveram sempre junto da carroça?
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- Não - sussurrou Ujeb. - Deixámo-la apenas por um momento, quando a empurrámos pela passagem estreita e demos a volta. Só pode ter acontecido ali. Mas como?
Todos olhámos de novo para Artemon. Este fechou os olhos por um longo momento. Quando os voltou a abrir parecia ter ocorrido uma profunda transformação, quase como
se ele fosse um homem diferente. Não teria sido capaz de explicar o que havia nele de tão diferente, no entanto, quase não o reconhecia. Havia nos seus olhos uma
determinação fria, impiedosa.
- Os mesmos confederados de confiança que nos forneceram a caixa e a carroça devem ter, de alguma forma, planeado este logro - disse Artemon. - Como é que o fizeram,
não sei. Descobri-lo-emos mais tarde. No entanto, se a substituição ocorreu no edifício da alfândega, então o sarcófago verdadeiro ainda se deve encontrar no seu
interior. Temos de o ir buscar. - Olhou para os homens armados que tinham ficado a guardar o navio e que agora se juntavam ao longo da amurada.
- Vocês, venham todos!
Os homens que se encontravam no navio empurravam-se uns aos outros enquanto desciam a prancha de embarque. Mavrogenis batia os pés.
- Depressa, idiotas! Vão buscar aquela coisa! Caso contrário sairemos daqui sem nada. Rápido!
Artemon, de espada desembainhada, já ia a meio do caminho de volta para o edifício da alfândega. Os restantes seguiam-no tão depressa quanto lhes era possível. Até
Ujeb respirou fundo e correu atrás deles.
Eu deixei-me ficar onde estava e vi-os desaparecer no edifício da alfândega.
Mavrogenis olhava fixamente para mim.
- O que é que achas que estás a fazer, aí especado? Vai ajudá-los! Abanei a cabeça.
- Algo não está bem.
- Claro que não está bem! Fomos traídos. Porque é que não estou surpreendido? Uma e outra vez, disse ao Artemon: "Os teus homens em Alexandria têm de ser de absoluta
confiança, caso contrário..."
- O que te faz pensar que não eram?
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- Como assim?
- () que te faz pensar que não eram de confiança? O que te faz pensar que os cúmplices do Artemon não faziam exatamente o que o Artemon lhes disse para fazerem?
Mavrogenis abanou a cabeça e franziu o sobrolho.
- Romano cobarde!
Passados alguns momentos, a partir do edifício da alfândega, ouvimos o som de gritos e o chocar de armas. A batalha continuou durante algum tempo.
Os homens do Gangue do Cuco apareceram, puxando atrás de si uma cópia exata da carroça. Alguns cambaleavam e coxeavam, mas outros pareciam revigorados pela excitação
do combate. Quando a carroça chegou ao fim do embarcadouro, enquanto os marinheiros de Mavrogenis carregavam a caixa, o próprio capitão descia do navio, saltava
para a carroça e, com um pé-de-cabra, abria a tampa. Rapidamente retirou uma tábua após outra, até que toda a tampa se encontrava em pedaços no embarcadouro.
A luz enviesada do sol refletia-se no ouro do sarcófago e banhava o rosto do capitão. Os seus olhos tremeluziam com o verde fogo das muitas esmeraldas.
Saltei para o seu lado na carroça. À minha frente vi o sarcófago de Alexandre, de ouro maciço. Não restavam dúvidas quanto à sua autenticidade. A beleza, vista à
luz do dia, era de tirar o fôlego.
Depois a caixa foi içada no ar e os homens de Mavrogenis trataram de a transportar para o porão do Medusa.
Mavrogenis olhou à sua volta.
- O Artemon não está aqui. Onde é que ele está?
Olhei na direção do edifício da alfândega. Um instante depois, surgiu Artemon. Não estava sozinho. Numa mão segurava a espada ensanguentada e, com a outra, agarrava
o pulso de Bethesda, arrastando-a atrás de si. Esta trazia o vestido verde que eu lhe dera no meu aniversário e os braços estavam esticados em direções opostas,
pois agarrada ao outro pulso de Bethesda, para a segurar, estava Ismene. Artemon era mais forte do que as duas mulheres juntas. Puxava Bethesda com firmeza, na direção
do navio.
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Como se a imagem não fosse suficientemente assustadora, trotando atrás do trio que se debatia, estava Cheelba, o leão, com a cabeça erguida e a trela a arrastar
atrás dele.
Ismene largou de súbito Bethesda. Virou-se e desapareceu no interior do edifício da alfândega. A resistência de Bethesda não estava à altura da força e da determinação
de Artemon. Este começou a correr na direção do navio, arrastando-a atrás de si.
No preciso momento em que chegavam ao navio, o sarcófago era, descido para o porão. A vela do Medusa estalava na brisa. Mavrogenis corria de uma ponta à outra do
convés, gritando as suas ordens a remadores e marinheiros.
Ansiosos por zarpar, alguns homens começaram a puxar a prancha de embarque, mas Artemon gritou-lhes que a deixassem em paz e lançou-se na sua direção, puxando Bethesda
atrás de si, indefesa como se fosse uma boneca. Tentei agarrá-lo de lado, mas o seu impulso era demasiado forte. Atirou-me para o lado, de tal forma que tropecei
e quase caí no espaço entre o navio e o embarcadouro.
Quando me endireitei, Artemon e Bethesda já estavam a bordo do Medusa.
Os homens iriam, quase de certeza, puxar a prancha de embarque nesse momento, deixando-me para trás, não fosse pelo facto de Cheelba, que vinha a correr atrás de
Artemon, ter, de súbito, parado quando ia para entrar no navio e ter recuado. Os homens ao longo da amurada chamaram o leão e deixaram a prancha onde estava.
- Puxem a prancha de embarque! - gritava Artemon. - Esqueçam o leão! Puxem-na, já! - Havia uma inusitada nota de medo na sua voz.
Por um instante pensei que eu o assustara e que queria que a rampa fosse puxada para que eu não o pudesse seguir. Depois ouvi uma grande confusão na direção do edifício
da alfândega e, quando me virei, constatei que os soldados tinham, de súbito, emergido do edifício e corriam na direção do navio, com os elmos e as armas rutilando
um tom vermelho-sangue, sob a luz inclinada do sol.
De onde tinham vindo tão depressa? Parecia impossível que tantos homens tivessem deixado o palácio real e corrido ao longo da margem, até ao embarcadouro, sem terem
sido vistos pelo vigia colocado no
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mastro do Medusa. Teriam os soldados vindo do interior da alfândega? Teriam lá estado durante todo aquele tempo? Se assim fosse, porque é que não os tínhamos visto
e porque é que não se nos tinham oposto desde o início?
Cheelba continuava a recusar-se a subir a bordo. Os homens que seguravam a prancha de embarque desistiram, por fim, do leão e prepararam-se para obedecer a Artemon.
Mas a rampa era mais pesada do que tinham pensado e a tarefa necessitava de mais homens, que correram para os ajudar. A prancha de embarque começou a erguer-se do
embarcadouro. Ao mesmo tempo, o Medusa inclinou-se ligeiramente e começou a afastar-se, lentamente.
No último momento possível, saltei para a prancha de embarque. O meu peso soltou-a das mãos dos homens que a erguiam e a rampa bateu de novo no embarcadouro.
Subi atabalhoadamente a bordo e corri na direção de Artemon, arremessando-me contra ele e apanhando-o de surpresa. Ele era maior do que eu, mas, ainda assim, consegui
atirá-lo ao chão e rebolámos os dois pelo convés. Artemon estava, decerto, muito cansado, quase exausto, pois de outra forma não teria sido capaz de o derrubar.
Assim sendo, lutámos como dois homens de forças equivalentes, trocando golpes e lutando corpo a corpo.
Alguns dos homens à nossa volta começaram a assobiar e a gritar. Os combates, fossem quais fossem as circunstâncias, entusiasmavam-nos.
No entanto, nem todos estavam divertidos.
- Parem-nos! - ouvi Ujeb a gritar.
- Porquê? - disse um dos homens. - O romano tem o direito de desafiar o líder.
- Alguém quer apostar no resultado? - perguntou outro, rindo.
- Onde está a Metrodora? - gritou outro. - Porque é que ela voltou para trás?
Senti que o barco se agitava por baixo de nós. Pelo canto do olho, vi uma mancha verde - Bethesda, que nos via combater de olhos muito abertos. Vê-la distraiu-me
e Artemon foi capaz de me atingir na cabeça.
- Corre! - gritei-lhe. - Sai do navio!
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- Não! Agarrem a rapariga! - berrou Artemon.
Antes que Bethesda fosse capaz de se mover, o capitão Mavrogenis agarrou-a por trás. Vê-la a debater-se encheu-me de raiva. Ripostei cegamente contra Artemon e rebolámos
os dois na direção oposta. Acabámos, de alguma forma, no cimo da prancha de embarque e, depois, rebolámos por ela abaixo, caindo do navio para o embarcadouro.
Ao mesmo tempo que a minha energia começava a desaparecer, Artemon parecia ganhar novas forças. Virou-me de costas, prendeu-me os braços com os joelhos, sacou de
um punhal e ergueu-o por cima da minha cabeça. Já manchada de sangue, a lâmina cintilou na luz do sol poente.
A minha cabeça latejava. Manchas bailavam em frente aos meus olhos. Não me restavam forças. Artemon tinha-me vencido. Eu falhara
- falhara completamente, pois não conseguira sequer salvar Bethesda. Os bandidos zarpariam com ela e a sua última imagem de mim seria a do meu cadáver sem vida e
ensanguentado, jazendo no embarcadouro.
Depois ouvi um rosnido, vi uma mancha de movimento e senti um impacto súbito de um dos lados. Artemon já não estava em cima de mim. Em vez disso, no instante seguinte,
era Artemon quem estava preso, deitado de costas no embarcadouro, com Cheelba em cima dele. O punhal saltitou ruidosamente pelo embarcadouro e desapareceu borda
fora. Cheelba rosnou.
Os soldados convergiam sobre nós. Estavam tão perto que eu conseguia ver o sangue nas suas armas e a feroz determinação nos seus olhos - não se tratava de homens
fracos como os que tínhamos encontrado no túmulo -, mas o repentino e assustador espetáculo de um homem a lutar contra um leão com as mãos desarmadas fê-los estacar.
Olhei para o Medusa que se continuava a afastar. A prancha de embarque ainda estava estendida, mas abria-se um golfo cada vez maior entre o embarcadouro e o navio.
Por entre os bandidos e os marinheiros que se erguiam boquiabertos na amurada, vislumbrei o rosto de Bethesda. Mavrogenis ainda a agarrava.
Lutei por me levantar. Corri para a prancha de embarque. Por um momento, como Mercúrio, parecia que tinha asas nos pés. Ainda assim,
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o salto foi curto. Mergulhei para as águas - depois agarrei a beira da prancha com a ponta dos dedos. Não sei onde é que fui buscar a força para me içar para cima
da rampa. Corri por ela acima e saltei para o navio, depois deixei-me cair de lado, arquejando num esforço para respirar.
Por cima de mim, a vela agitava-se e estalava, tensa, enchida pelo vento. O céu azul-escuro parecia afastar-se e respirar num movimento oposto ao das ondas por baixo
de mim. Fechei os olhos por um instante, depois senti que mãos fortes me agarravam os braços e ajudavam a levantar.
Olhei na direção do embarcadouro, que parecia girar para um dos lados e se tornava rapidamente mais distante. Cheelba desaparecera. Os soldados tinham apanhado Artemon
e levantavam-no, de tal forma que ele e eu éramos o reflexo um do outro, não fosse pelo facto de Artemon estar coberto de sangue.
- Temos de o ir buscar! - gritou um dos homens.
- Impossível - ouvi dizer Mavrogenis. - O rei dos homens apoderou-se de Artemon.
Olhei para o capitão. Este reduzira a força com que agarrava Bethesda. Ela libertou-se e correu na minha direção. Os homens que me seguravam recuaram, permitindo
que ela me abraçasse.
- Mas o que faremos sem Artemon? - lamentou um dos homens. Mavrogenis espetou o queixo com uma expressão sombria.
- Por ora, acatarão as minhas ordens. - Fitou desafiante os rostos um a um, terminando no meu e fitando-me.
Puxei Bethesda para mais perto. Ela escondeu o rosto no meu peito. Mavrogenis inclinou a cabeça.
- O Artemon ordenou que a rapariga fosse levada para terra durante o assalto e trancada numa sala no edifício da alfândega. Tencionava deixá-la para trás, então
porque mudou de ideias no último momento e a trouxe de novo para aqui? E como é que este romano a conhece?
- Franziu o sobrolho. - Até sabermos o que estão a tramar estes dois, tranquem-nos na cabine!
Apertei Bethesda com força. Os homens convergiam sobre nós, vindos de todos os lados. Numa questão de segundos seríamos derrotados,
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arrastados pelo convés e trancados. Sem Artemon ou Ismene a bordo para proteger Bethesda, o que seria dela? O que seria de mim?
- Não, esperem! - gritou Ujeb. - Que ninguém toque no romano com um dedo! Não compreendem, idiotas? O Pecúnio é agora o nosso líder.
- O quê? - Mavrogenis arregalou os olhos.
- O Pecúnio derrotou o Artemon numa guerra justa.
- Nem pensar! - disse Mavrogenis. - O leão intercedeu.
- Talvez seja assim, mas o Pecúnio fez o que homem algum teve a coragem de fazer: enfrentou o Artemon. E agora o Artemon está preso no embarcadouro, ferido por um
leão e capturado pelos homens do rei, e o Pecúnio está entre nós, quase sem um arranhão. Eu diria que isso significa que o Pecúnio ganhou. Pelo menos merece que
seja feita uma votação. E até que nos libertemos desta confusão e possamos realizar uma votação como deve ser, eu digo que o Pecúnio devia ser o nosso líder. Não
podemos ficar sem um líder!
Muitos dos homens acenaram com as cabeças e resmungaram a sua concordância. Os murmúrios transformaram-se em gritos.
- O Pecúnio derrotou o Artemon!
- Os deuses mostraram preferir o romano!
- O Pecúnio deve ser o nosso líder!
- Loucura! - sussurrei baixinho. E no entanto...
Estranhos eram os caminhos traçados pelas Parcas. Imprevistas e, por vezes, confusas são as ofertas da Fortuna. Momentos antes, pensei que Bethesda estava perdida
e eu era um homem morto. Agora, estava de novo com Bethesda, segurando-a com força, e os homens à minha volta gritavam os seus elogios.
As portas do porão ainda estavam abertas. com o braço a envolver a cintura de Bethesda, aproximei-me do porão. Os homens recuaram para nos deixar passar. Erguendo-me
na beira da abertura, espreitei para o sarcófago de ouro. O sol estava demasiado baixo, a oeste, para lançar a sua luz diretamente para o porão. Ainda assim, quão
forte era o brilho do ouro! Quão ofuscantes eram as esmeraldas e as restantes pedras preciosas!
Jamais, naquela distante manhã em que me levantei da cama, pronto para celebrar o meu vigésimo segundo aniversário, poderia ter previsto
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que as Parcas me conduziriam para um tal momento: erguer-me no convés de um navio pirata e ser proclamado rei dos bandidos! Ainda mais espantoso, o sarcófago dourado
de Alexandre, o Grande, estava em minha posse. Isso significava - por ora, pelo menos - que eu devia ser um dos homens mais ricos do mundo.
Pensei na minha educação em Roma e em todas as lições que o meu pai me ensinara. Pensei na minha viagem para ver as Sete Maravilhas. Pensei na minha existência,
sem propósito mas agradável, na ferviIhante cidade de Alexandria. Teriam todos os elementos da minha vida conduzido inexoravelmente a este momento, esta encruzilhada,
este destino?
Levantei os olhos e olhei à nossa volta. O Medusa chegara a meio do porto e aproximava-se rapidamente do Farol de Faros. Estávamos rodeados de água por todos os
lados, longe da costa mais próxima. Teria sido melhor se eu tivesse tomado a minha decisão mais cedo, quando a costa estava mais próxima, mas não havia nada que
pudesse fazer agora. Inspirei fundo.
- Afastem-se todos! - gritei.
Para meu espanto, os homens obedeceram-me. Senti a excitação do comando. Não era de admirar que Artemon gostasse tanto do seu estatuto como rei dos bandidos, rodeado
por lacaios para fazerem a sua vontade. Aquilo era algo a que me poderia habituar, pensei - e depois abanei a cabeça perante tamanho disparate.
Sussurrei ao ouvido de Bethesda. Ela acenou para me mostrar que compreendia.
Contei até três e depois, de mãos dadas, corremos até à amurada, saltámos e mergulhámos nas ondas em baixo.
329
XXXVI
- Pensei que sabias nadar. Chamavas a ti mesma filha do Nilo! Ao meu lado, Bethesda cuspia e agitava os braços, desesperada por
manter a cabeça à tona de água. Por muito mal que eu pudesse nadar, ela nadava ainda pior.
Eu tinha conseguido, de alguma forma, encontrar o ritmo certo para percorrer as águas, batendo as pernas e dando aos braços para me manter a flutuar, mas Bethesda
estava a sentir dificuldades. Uma boa medida do perigo em que se encontrava foi o seu silêncio em resposta à minha resmunguice. Numa situação normal, ter-me-ia respondido
à altura, mas gracejar estava fora das suas possibilidades. Encontrava-se em grandes apuros.
Contornei-a e envolvi-a com um braço.
- Recosta-te contra mim. Relaxa e para de te debater! Posso manter-te à tona - prometi, embora não tivesse a certeza de ser capaz de o fazer.
Olhei à minha volta. As ondas eram tão altas que, por vezes, não conseguia ver a costa, olhasse para onde olhasse. O meu único ponto de orientação era o alto Farol
de Faros, que, apesar da sua imensidão, parecia deveras distante. As ondas pareciam bater umas contra as outras, aleatoriamente, viajando em todas as direções ao
mesmo tempo. Estávamos a ser empurrados para o embarcadouro ou para o mar alto? Eu não fazia ideia e faltava-me a capacidade para me conduzir numa direção específica.
Pior de tudo, a minha energia estava a desvanecer-se rapidamente. A excitação do combate com Artemon tinha despertado o que restava
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da minha força, mas essa explosão de energia já se tinha esgotado há muito. A água, mais fria do que estava à espera, apagara qualquer faísca que restasse em mim.
Pela segunda vez naquele dia, preparei-me para encontrar os meus antepassados. Pelo menos a minha morte não seria uma morte sangrenta e pavorosa às mãos de outro
homem. Neptuno levar-me-ia, como levara tantos homens no passado. Os peixes devorar-me-iam e nenhum túmulo guardaria os meus restos mortais senão o vasto sarcófago
do mar.
Bethesda parou de dar aos braços e encostou-se a mim, tal como eu lhe pedira. Agora tinha um objetivo: manter a cabeça dela à tona de água tanto tempo quanto possível.
Lutei contra as ondas para manter um ritmo constante, batendo as pernas e usando a mão livre como um leme. Até aqui, tudo bem - mas quase conseguia contar o número
de braçadas que ainda tinha. Sentia frio, estava exausto e pronto para dormir.
Bethesda sussurrou qualquer coisa. Virei o meu ouvido na direção dela, mas as palavras não me eram dirigidas.
- Invoco-te, Moira - murmurava. - Invoco-te, Ananke. Egípcio Ufer do Nome Poderoso, ajuda-nos!
Magia! A pobre rapariga, no seu desespero, estava a apelar às mesmas forças negras a que recorria Ismene. Que encantamentos e que feitiçarias teria Ismene ensinado
a Bethesda durante os seus longos dias de ócio, juntas naquela cabana nos arredores do Ninho do Cuco? De que serviriam tais feitiços a dois mortais que não sabiam
nadar, mas que se encontravam no meio de um porto enorme? Que rapariga simples e tola era Bethesda, e como eu ansiava por beijá-la e abraçá-la nesse momento, mas
tudo o que conseguia fazer era manter um braço à sua volta, enquanto lutava desesperadamente por me manter à tona. O fim estava muito próximo.
- Bethesda - sussurrei, pois não tinha fôlego suficiente para falar mais alto. - Bethesda, deixa os teus encantamentos e ouve-me.
Antes que ambos morrêssemos, queria falar com ela, aberta e sinceramente, para lhe expressar uma certa emoção que nenhum romano com amor-próprio devia sentir por
uma escrava, quanto mais pronunciar
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em voz alta, mas que no entanto eu sentia, sem dúvida, e sobre a qual não mais podia manter-me em silêncio.
Ela pareceu não me ouvir, pois continuou a murmurar.
- Moira... Ananke... Ufer do Nome Poderoso...
- Bethesda! - Seria ela capaz de me ouvir ou não? - Bethesda, eu.
- Usa o gancho, tolo! - gritou alguém.
O barco pareceu materializar-se, vindo de lado nenhum. De súbito pairava atrás de mim, tão perto que pensei que o casco me ia bater na cabeça. Depois senti que algo
se prendia na minha túnica e me erguia. Agarrei Bethesda com força, depois apercebi-me de que um segundo gancho tinha sido enfiado na gola do vestido dela e a erguia
ao meu lado. Fomos agarrados por mãos e puxados sobre a amurada, para o convés do navio.
Por um momento, deitado de costas, senti-me completamente desorientado, pois parecia que não estávamos a bordo de um navio, mas que tínhamos sido transportados para
outro mundo - um mundo onde todas as superfícies tinham sido feitas de ouro e prata brilhantes, pintadas de cores garridas ou incrustadas de lápis-lazúli e marfim,
e cada imagem era mais bela e refinada que a anterior... um mundo de botões de lótus belíssimos e suplicantes, de vestes brancas, de águas azuis cintilantes e torrentes
douradas, de pavões iridescentes e flamingos espantosos. Sobre a nossa cabeça, oscilavam ao de leve na brisa finas cortinas e a primeira estrela da noite brilhava
no céu que escurecia.
- Tens a certeza de que saltaram do navio pirata? - perguntou alguém.
- Estou certo.
- Mas este não pode ser o Filho do Cuco. Não corresponde de todo à descrição. E ninguém falou de uma rapariga.
- Ainda assim, vi-os saltar do navio.
De súbito, um rosto pouco amigável pairou sobre mim, encimado por um toucado como os que utilizariam os oficiais reais.
- Tu! Quem és e porque é que saltaste do navio? E onde é que está o Filho do Cuco?
Fitei os olhos fixos do homem. Pelas vestes brancas e pelas jóias elaboradas que lhe envolviam o pescoço e o pulso, bem como pelas
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elaboradas marcas de kohl e outros cosméticos no rosto comprido e severo, soube que tinha de ser um camareiro de elevado posto no governo do rei.
- Onde estou? - perguntei.
- Responde-me! Sustive a respiração.
- Se se refere ao Artemon...
- Sim, sim, o Filho do Cuco! Devíamos recolhê-lo das águas. ;;; Inspirei abruptamente, sobressaltado pelo que me acabara de dizer.-
- Deixámos o Artemon no embarcadouro. Foi atacado pelo leão. Cbeelba. Depois os soldados do rei capturaram-no...
- O quê? - O camareiro ergueu o lábio num esgar. - Não era assim que as coisas deviam correr. Santa Isis, que raio de confusão é que os bandidos fizeram?
Consegui sentar-me. Bethesda também. Olhei para ela, para ter a certeza de que estava bem e, depois, pousei as minhas mãos nas dela.
- Não sou um bandido - disse. - Sou um cidadão romano, chamo; -me Gordiano.
- Ah, sim? Foste visto a saltar daquele navio, que está repleto de' bandidos. ,;
"Sim e eu era o seu rei!", quis dizer, mas contive-me. ;.
- É verdade que estava no navio, mas apenas por ter sido capturada pelos bandidos e obrigado a viajar com eles. s
O camareiro espreitou por cima do nariz.
- E a rapariga? Quem é ela? ; ;
- Chama-se Bethesda. É minha escrava. Também ela foi capturada; pelos bandidos. '?
Outra voz, masculina mas aguda e de sotaque elegante, entrou na conversa. - Um jovem e encantador casal capturado por bandidos! Oh, céus, parece algo saído daqueles
sórdidos espetáculos de mimos! Que delicioso!
O camareiro virou-se alarmado. ;
- Vossa Majestade, não podeis ser visto no convés. Por favor, regressai à cabine...
333
- Oh, cala-te, Zenon! E continua com o interrogatório deste atraente casal de jovens. Mesmo ensopados, acho-os deveras encantadores. Em especial ensopados!
O camareiro revirou os olhos.
Pestanejei e voltei a pestanejar. Decerto estava morto, a sonhar ou a ser transportado para um plano de existência diferente. Qualquer explicação parecia mais plausível
do que a impossível realidade de que me encontrava a bordo de uma barca real, na presença do Rei do Egito.
A minha frente erguia-se um dos seres humanos mais gordos que eu alguma vez vira. Também era, de longe, o mortal mais elaboradamente vestido em que alguma vez pousara
os olhos. Na cabeça, erguendo-se como o píncaro de uma cabaça, estava a coroa atef, ridiculamente alta. Ele tinha muitos queixos e cada um deles parecia enfeitado
com o seu próprio colar fabuloso. A sua simples estatura exigia uma grande quantidade de linho para se cobrir e as enormes vestes estavam tão ricamente salpicadas
de jóias, pedras preciosas e ornamentos de ouro, todos eles iluminados pelo sol poente, que tive de proteger os olhos para olhar para ele.
Para descansar os olhos de tanto brilho, olhei à minha volta. O navio estava à altura do seu dono, pois nunca eu vira nada feito pelo homem que pudesse rivalizar
com a sua magnificência. Todas as superfícies estavam elaboradamente decoradas com os materiais mais dispendiosos e a mestria mais apurada. O resultado era tão belo
e ornamentado que o navio não parecia um barco, mas um templo ou palácio flutuante. Seria assim que um deus se lançaria às águas, se os deuses precisassem de barcos.
Apesar da minha fraqueza e tontura, tentei levantar-me, mas o camareiro indicou com um toque do seu bastão encastrado de jóias que devia ficar onde estava.
- O Filho do Cuco ficou no embarcadouro, dizes?
- Sim. E acho que essa não foi a única parte do vosso esquema a sofrer uma inesperada reviravolta - acrescentei. Embora me sentisse bastante confuso, começava a
perceber a verdade.
- O que queres dizer com isso?
- O falso sarcófago está no embarcadouro. O verdadeiro sarcófago no navio pirata.
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Zenon ficou branco, como se, num instante, todo sangue lhe tivesse sido roubado, até à última gota, e sido transferido para o rei Ptolomeu, cujo rosto redondo e
carnudo ficara vermelho como um rubi. Os lábios do rei começaram a agitar-se. Deles saiu uma série de sons, mas nada que se assemelhasse a um discurso.
O camareiro também cuspiu e tartamudeou antes de encontrar a
sua voz.
- Majestade, não sabemos nada sobre este homem. Porque haveríamos de acreditar nele?
- Porque não haveriam? - perguntei calmamente. - Não tenho razão para mentir ao Rei do Egito.
- Para o embarcadouro! - gritou o rei. - Imediatamente e a toda a velocidade. Veremos se o que o romano diz é verdade.
O navio abanou e deu a volta, impelido a enorme velocidade por remadores invisíveis. Atrás de nós, vi o Farol de Faros e a vela do Medusa que ainda não saíra do
porto. À nossa frente, o embarcadouro pairava cada vez mais próximo. O rei Ptolomeu colocou-se atrás de um abrigo de finas cortinas, como que para se proteger dos
olhares dos mortais indignos. Ouvi um som de mastigação e apercebi-me de que o rei comia ruidosamente qualquer coisa.
No embarcadouro, Artemon estava deitado de costas. À sua volta ajoelhavam-se vários soldados, como se tratassem das suas feridas. Não havia sinal de Cheelba. A carroça
com o sarcófago falso estava por perto, no local onde os homens de Artemon a tinham deixado. Quando a barca real se aproximou o suficiente para que pudessem comunicar,
o oficial em comando avançou e bateu continência. Parecia carrancudo.
- Relatório! - gritou Zenon.
- O sarcófago foi levado - disse o oficial. - Fizemos o melhor que podíamos mas os bandidos eram em maior número...
- Eram melhores do que vocês, queres tu dizer! - interrompeu Zenon. - Não deveria ter ocorrido batalha alguma. Como é que isto aconteceu? Façam avançar o artífice!
De entre os soldados emergiu uma figura. Fiquei de boca aberta. Pela risca branca que lhe dividia a barba e o cabelo, reconheci o nome que uns conheciam como Lykos
e outros como Chacal. ,
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O camareiro apontou para o artífice com o bastão..
- A culpa é tua, aposto. A tua falsificação não os enganou! ',; Lykos apontou para a carroça e para a caixa onde se encontrava a
falsificação de chumbo e folha de ouro. ,-
- A minha réplica era perfeitamente adequada. Vós mesmo a haveis visto e aprovado, tal como Sua Majestade. Não, foi o Filho do Cuco quem nos traiu. A substituição
decorreu no edifício da alfândega tal como planeado. Nenhum dos bandidos suspeitou de nada. Estavam prestes a carregar o falso sarcófago, quando o Artemon mudou
de ideias. Conduziu os homens de volta ao edifício da alfândega. Eles caíram sobre nós, massacraram os soldados e apoderaram-se da carroça. Quanto chegaram mais
soldados, os bandidos já tinham levado o sarcófago para o navio e zarpado. O Artemon foi, de alguma forma, deixado para trás. O leão atacou-o, depois fugiu. O Artemon
desmaiou dos seus ferimentos antes que o pudéssemos interrogar. Caso contrário, seria capaz de vos dizer...
- Não importa! - gritou Zenon. - O porquê, o quando e o como não importam agora. Temos de impedir o que está prestes a acontecer e temos pouco tempo.
Zenon gritou as suas ordens ao capitão da barca. Enquanto o barco virava, Lykos viu-me sentado no convés e Bethesda ao meu lado. Vi uma centelha de reconhecimento
nos seus olhos, seguida por um franzir de sobrolho de confusão. Não consegui resistir à tentação de lhe oferecer um dos sinais secretos do Gangue do Cuco, espetando
o mindinho nas orelhas, primeiro de um lado, depois do outro. Como que por reflexo ele ergueu a mão para me responder - três toques do polegar no queixo -, depois
parou.
A barca real deu rapidamente a volta e lançou-se através das ondas. O embarcadouro ia desaparecendo atrás de nós. À nossa frente, o farol erguia-se cada vez maior.
Primeiro pensei que nos íamos lançar em perseguição do Medusa e, de facto, a vela distante dos piratas começou a crescer, vi que a velocidade da barca era mais do
que suficiente para o navio dos bandidos. Depois compreendi que o nosso destino não era o mar alto, mas a ilha de Faro.
Parámos ao lado de um pequeno mas muitíssimo decorado cais, que estava sem dúvida reservado para uso real. O rei, que se tinha
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mantido por detrás das cortinas de gaze durante a viagem, reapareceu no convés estalando os lábios e segurando numa mão os restos gordurosos de um frango assado.
- Não é necessário que Vossa Majestade vá a terra - disse Zenon.
- Eu mesmo...
- Tu só fizeste porcaria até agora! - gritou o rei. - Claro que vou. Tragam a carruagem real!
Alguns instantes depois, com grande estrondo de cascos, um veículo magnífico, puxado por cavalos alegremente ajaezados, chegava ao cais. Auxiliado por criados de
ambos os lados, o rei desceu, vacilante, a prancha de embarque até ao cais e, depois, subiu uma pequena rampa até à carruagem sumptuosa. Os criados tiveram de se
colocar atrás do rei e empurrá-lo ao longo dos últimos degraus. Um processo bizarro que era doloroso de assistir, em especial porque o rei não parava de gritar aos
criados para se despacharem.
Ao meu lado, ouvi Bethesda suprimir uma risada. Num gesto impulsivo, tapei-lhe a boca com um beijo para a silenciar.
O rei, que acabara de cair sobre um monte de almofadas, viu-nos.
- Tragam também os jovens amantes.
- Mas, Majestade, não é preciso...
- Como é que sabes? Este romano pode saber algo que nós não sabemos. Parece bastante provável, já que houve muita coisa que não foste capaz de prever neste triste
caso! E traz também comida. Sabes como fico faminto quando estou nervoso. Agora despachem-se, tão depressa quanto puderem! Para o farol!
com um matraquear de cascos, a carruagem do rei acelerou, seguindo ao longo da comprida rampa que conduzia à entrada do farol. Um instante depois, surgiu uma segunda
carruagem, esta bem menos magnífica do que a primeira. Vários criados subiram rapidamente para ela, incluindo um que transportava um grande recipiente de prata repleto
de acepipes.
O camareiro agarrou-me o braço, ajudou-me a levantar e empurrou-me na direção da carruagem. Segurei a mão de Bethesda e puxei-a atrás de mim, recusando-me a voltar
a afastar-me dela. Mal subimos para a carruagem, o veículo acelerou atrás do rei.
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Voámos ao longo da comprida rampa, com os cavalos a correr a um ritmo frenético. Numa questão de segundos tínhamos chegado à entrada.
Eu já antes visitara o farol, mas tinha sido há muito tempo. Mesmo no meio de toda a confusão e clangor, fitei-o espantado. Não havia outra torre na terra que se
lhe assemelhasse em altura. Um nível sobrepunha-se a outro em três segmentos distintos, cada um recuado em relação ao inferior, até ao ponto mais alto onde brilhava
a luz mais forte da terra.
Não tive tempo para o admirar, pois a carruagem não parou na entrada. As portas enormes estavam abertas. A carruagem entrou, subindo para a larga rampa em espiral
que subia de um nível para o seguinte. Os trabalhadores aterrorizados corriam à nossa frente. As carroças puxadas por mulas que levavam o combustível para o farol
foram viradas. O cheiro da nafta e do esterco encheram-me as narinas.
Subimos e subimos, passando pelas altas janelas viradas para quatro direções diferentes, permitindo-nos ver o mar, o Sol a pôr-se, a cidade e o porto, nesta ordem,
e depois a mesma sequência - mar, Sol, cidade, porto - uma e outra vez, mais e mais alto, até termos chegado a um nível a mais de meio da torre e a carruagem se
ter detido. O rei já se dedicava ao laborioso trabalho de descer da carruagem, assistido pelos criados ansiosos que pareciam temer em igual medida a possibilidade
de deixarem cair o rei e de serem por ele esmagados.
com o rei Ptolomeu a abrir caminho, atravessámos uma passagem que dava acesso a um parapeito que contornava as paredes exteriores. Inspirei para encher os pulmões
de ar fresco. À nossa frente e mais abaixo, até onde a vista alcançava, cintilava a vasta extensão do mar.
Por entre o brilho das ondas ao pôr do Sol, era difícil distinguir qualquer coisa no mar. Só depois de procurar durante algum tempo, consegui distinguir a vela do
Medusa que já deixara bem para trás a entrada do porto e seguia para norte. Aquela distância o navio era do tamanho de um brinquedo na palma da minha mão.
Depois distingui, a oeste do Medusa, um outro navio maior e depois outro a este. Eram navios de guerra. Os seus esporões de bronze refletiam a luz do sol. Pareciam
estar a convergir sobre o Medusa.
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- Usem os espelhos! - gritou o rei, ao mesmo tempo que enfiava a mão na tigela de prata repleta de acepipes que um criado lhe estendia e metia na boca uma mão-cheia
de tâmaras. O que se seguiu foi um balbuciar indecifrável.
Zenon falou pelo rei.
- Façam sinal aos navios, indicando uma mudança de ordens. Eles não devem abalroar o navio pirata! Devem capturar o navio e trazê-lo de volta ao porto, mas não devem
deixá-lo afundar! Compreendem?
Falava com o capitão da equipa que controlava o enorme espelho de sinalização montado na parede, a meio caminho entre os cantos do parapeito. Havia quatro desses
espelhos, um de cada lado da torre. O capitão parecia assustado.
- Vamos, idiota! - ladrou Zenon. - De que estás à espera? A mensagem é demasiado complicada?
- Não, não, excelência, podemos transmitir os sinais. Mas a luz do sol...
- Consigo ver o sol ali mesmo! - Zenon apontou para o meio círculo vermelho que brilhava sobre o horizonte ocidental.
- Sim, excelência, mas receio que a luz não seja suficientemente forte. E o ângulo...
- Façam o que puderem! Agora! Imediatamente!!
A equipa que controlava os espelhos lançou-se ao trabalho, inclinando as enormes lentes de metal polido, tentado captar os raios do sol e lançá-los na direção do
navio de guerra mais próximo. De facto, consegui ver uma mancha de luz vermelha a tremeluzir na vela do navio, o que significava que os homens a bordo teriam sido
capazes de ver o brilho do espelho.
O navio, que tinha estado a acelerar na direção do Medusa, abrandou de repente. Pude ver a fila de pequenos remos a mudar de direção, em simultâneo, e a empurrar
contra as ondas.
- Conseguiram, conseguiram! - gritou o rei, cuspindo uma boca cheia de tâmaras mastigadas. - Agora o outro. Agora o outro! - Apontou para o segundo navio, que vinha
de este e que continuava a acelerar na direção do Medusa.
A equipa movia o espelho, mas a posição do Sol a pôr-se tornava impossível capturar e refletir os seus raios.
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- Não é possível! - uivou o capitão. Estremeceu de medo perante o olhar penetrante do rei, que mastigava loucamente uma nova mão-cheia de tâmaras. - Simplesmente
não é possível!
Incapazes de interceder, observámos enquanto o navio de guerra acelerava, sem parar, para o Medusa. Senti uma pontada de dó, imaginando o pânico que tal devia gerar
por entre os bandidos. O capitão Mavrogenis devia estar a gritar as suas ordens à tripulação, mas em vão, pois o Medusa não estava à altura de um navio de guerra
egípcio. Estaria Ujeb a tremer de medo ou estaria a enfrentar o seu fim com uma coragem inesperada? Pobre Ujeb, que me tinha salvado! Se Ujeb não me tivesse declarado
o novo líder, Bethesda e eu ainda estaríamos a bordo do Medusa, trancados na cabine e a enfrentar a morte certa.
E o sarcófago dourado? Percebi, de súbito, porque é que o rei e o seu camareiro estavam a tentar impedir o afundamento do navio pirata. Contra as suas expectativas,
à revelia do seu plano, o sarcófago - e não a sua réplica inútil - tinha sido colocado a bordo do Medusa. Se o Medusa se afundasse, o sarcófago estaria perdido para
sempre.
Foi isso que aconteceu, enquanto observávamos aterrorizados. O esporão do navio de guerra atingiu o Medusa. Alguns segundos depois, ouvi um estrondo tremendo. O
navio pirata partiu-se ao meio. A vela desabou. O mastro caiu na água. com uma rapidez estonteante, as duas metades do navio rodopiaram e ergueram-se nas ondas,
desaparecendo em seguida.
Arquejei. Bethesda tapou o rosto. O camareiro baixou a cabeça. O capitão encarregado do espelho vacilou como se pudesse cair. O rei engasgou-se com as tâmaras que
estava a engolir e começou a tossir como um gato doméstico egípcio com uma bola de pelo.
Os criados correram para bater com os punhos nas costas do rei, até que, por fim, um enorme molho de tâmaras mastigadas lhe saiu disparado da boca, voou para lá
do parapeito e mergulhou no mar vermelho-sangue.
340
XXXVII
Quando o Sol nasceu na manhã seguinte descobri-me, uma vez mais, separado de Bethesda.
E, não por escolha minha, voltei a ver-me na companhia de Artemon.
com grilhões nos pulsos e tornozelos, e acorrentados a paredes opostas, estávamos sentados à frente um do outro, no chão coberto de palha de uma sala de pedra. Bem
alto, acima das nossas cabeças, uma pequena janela tapada por barras de ferro deixava passar a única luz. Eu tinha sido levado para esta sala húmida com uma saca
a tapar-me a cabeça, mas tinha alguma ideia da sua localização, pois, de tempos a tempos, através da pequena janela, ouvia as vozes dos animais - o guincho de um
macaco, o zurrar de um elefante -, o que significava que tínhamos de estar perto do jardim zoológico, no interior do palácio real.
Durante várias horas, depois de me terem agrilhoado, estivera só naquela cela. Caiu a noite e, com ela, a escuridão absoluta. Depois abrira-se a porta e os soldados
trouxeram um novo prisioneiro. Enquanto o acorrentavam à parede oposta, sob a luz dos seus archotes pude constatar que se tratava de Artemon.
Os soldados partiram e a sala ficou de novo em total escuridão. Dirigi algumas palavras a Artemon, mas ele não respondeu. Estava tão silencioso que nem o ouvia respirar.
Esmagado pelo cansaço, dormi como um morto. Quando acordei sob os primeiros raios fracos do sol da madrugada, que entravam pela
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janela gradeada, vi que Artemon também estava acordado. Parecia macilento e abatido, como se não tivesse dormido toda a noite. Tomei as ligaduras ensanguentadas
que lhe envolviam um ombro como resultado do ataque de Cheelba, bem como uma ferida de um dos lados do rosto, que deixaria uma grande e feia cicatriz.
- Achas que somos os únicos que ainda estão vivos? - perguntei. Artemon estava sentado, imóvel, com as costas contra a parede e
os olhos fechados.
- De todos os homens que seguiam a bordo do Medusa, digo eu. Achas que todos os outros estão mortos?
Artemon abriu os olhos, mas não olhou para mim. Fitava o vazio. Tossi e limpei a garganta, ansiando por um gole de água.
- Pergunto, porque poderá ter alguma influência sobre quanto tempo o rei me deixará viver. A minha vida não terá, decerto, grande valor para ele, a não ser na medida
em que ainda lhe possa oferecer algumas pistas quanto ao que correu mal em relação aos seus planos para o sarcófago de ouro. Só espero que aquele camareiro carrancudo
não insista em torturar-me para obter respostas, já que estou disposto a contar-lhe tudo. No entanto, suponho que não terei grande escolha quanto a isso...
- Estão todos mortos - disse Artemon, quebrando por fim o silêncio. Continuava a não olhar para mim e a sua voz era tão sem ânimo e fria que senti arrepiar-me os
pelos do pescoço. - Os capitães dos dois navios de guerra tinham ordens para matar quaisquer sobreviventes.
- E os homens que caíram durante o assalto? É possível que alguns estivessem apenas feridos...
- Qualquer homem que deixássemos na cidade, que conseguisse, de alguma forma, sobreviver, também deveria ser morto. - Os lábios de Artemon contorceram-se num sorriso
que mais parecia uma careta.
- Fui eu quem insistiu que assim fosse, mas Ptolomeu concordou prontamente. Não deveria haver quaisquer sobreviventes, quaisquer testemunhas.. ninguém que pudesse
compreender o que tinha acontecido e viesse, mais tarde, à minha procura em busca de vingança... e ninguém que soubesse onde estavam enterrados todos os tesouros,
no local onde se erguera o Ninho do Cuco.
342
- Disseste-me que não havia nada naquelas caixas que valesse a pena desenterrar.
- Menti.
Artemon falava sem emoção. A sua falta de remorsos no rescaldo de tamanho logro e tão grande chacina era chocante, mas tentei esconder a minha reação. O importante
era mante-lo a falar, para poder saber tanto quanto possível.
- E a Metrodora? - perguntei. - A última vez que a vi, estava viva, no embarcadouro, agarrada à rapariga raptada. Depois pareceu desaparecer.
- Porque não? Ela é uma bruxa. - Uma vez mais, fitando o vazio, exibiu aquele sorriso sombrio. - Apenas a Metrodora deveria sobreviver. Ela... e a rapariga. Seguindo
as minhas ordens, o capitão Mavrogenis levou-as para terra enquanto decorria o assalto. Ele trancou a rapariga numa sala do edifício da alfândega e deu a chave à
Metrodora.
- Então tencionavas ir buscar a rapariga. Depois de o falso sarcófago ter sido levado para bordo e o navio ter zarpado, ias saltar do Medusa e nadar até à barca
real, enquanto o Medusa navegava para o seu fim. Depois, tu e a Metrodora podiam receber o pagamento do rei e seguir os vossos caminhos, levando tu a rapariga contigo.
É assim?
Artemon acenou.
- A Metrodora foi tua parceira desde o início?
- Quase desde o dia em que nos conhecemos. Ela ajudava-me e eu ajudava-a a ela. Viste como geríamos os dois o Ninho do Cuco. Eu dava as ordens, mas era a Metrodora
quem sabia como usar os seus medos e esperanças para os controlar. Ela chamava-lhe bruxaria. Talvez fosse. Em parceria, parecíamos capazes de levar aqueles idiotas
a acreditar em tudo e a fazer qualquer coisa.
Uma vez mais, refreei a minha repulsa. Nunca tinha conhecido homem tão calculista ou tão insensível.
- Mas no fim, algo correu mal entre ti e a Metrodora. Vi-a a agarrar a rapariga, a tentar tirar-ta.
- Quando disse à Metrodora que houvera uma mudança de planos, que eu ia seguir a bordo do navio, levar a rapariga e o sarcófago de ouro
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comigo e tentar fugir, ela recusou-se a acompanhar-me. Pensou que eu estava louco. Suponho que estivesse.
Artemon encarou-me, finalmente, com um olhar tão cheio de ódio que me gelou o sangue. Engoli em seco e estudei as correntes que o seguravam, assegurando-me de que
seria impossível ele chegar até mim.
- Foste tu quem provocou todos os problemas - disse ele. - Tu forçaste a mudança de planos quando te apercebeste da troca. Mais ninguém reparou, só tu... e depois
tinhas de o mostrar a toda a gente. Para piorar as coisas, atacaste-me quando entrei no navio. Quem és tu, romano? Dizes chamar-te Pecúnio, mas a Metrodora revelou-me
que o teu nome é Gordiano. Porque é que vieste para o Ninho do Cuco? E como é que ainda estás vivo?
Compreendi porque é que Artemon decidira falar comigo. Tal como eu queria encerrar certas questões que só ele podia responder, também ele queria compreender o homem
que arruinara todos os seus planos cuidadosamente traçados.
- Perguntas quem sou, Artemon, e dir-te-ei. Mas primeiro, deixa-me ver se compreendo exatamente o que aconteceu. De quem foi a ideia de roubar (ou fingir roubar)
o sarcófago de Alexandre? Foi tua ou veio de Ptolomeu?
- Tudo começou quando o camareiro do rei, aquele inseto, Zenon, me contactou há alguns meses, através dos seus intermediários. As mensagens que trocámos foram hesitantes
de início, enquanto nos estudávamos. Depois o plano pareceu surgir sozinho e nós lançámo-nos a ele. Havia noites em que eu mal conseguia dormir, tal a excitação.
O facto de ter de manter o plano em segredo de todos os habitantes do Ninho do Cuco fazia com que as coisas fossem ainda mais entusiasmantes. Mesmo a Metrodora conhecia
apenas as linhas mais gerais.
- Qual era o papel do rei nisto? O que é que ele esperava ganhar?
- Ouro suficiente para pagar as suas tropas! - Artemon riu rudemente. - O rei está desesperado. As forças do irmão são muito mais numerosas do que as dele e estão
quase a chegar. Os seus homens há meses que desertam. Isso deve-se ao facto de estar a ficar sem dinheiro. Ah, mas como arranjar mais? Derretendo parte dos seus
tesouros fabulosos: mas que parte? Para satisfazer as necessidades do rei, apenas o
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maior de todos os tesouros seria suficiente: o sarcófago de ouro de Alexandre.
- As pessoas jamais aceitariam um tal sacrilégio - disse eu.
- Exatamente. Mas e se o sarcófago fosse roubado? E se ocorresse um ataque temerário e os piratas fugissem com ele? Melhor ainda, e se os piratas fossem conduzidos
por um traidor saído da própria família do rei, um malvado primo bastardo e pretendente ao trono?
- As pessoas continuariam furiosas.
- Sim, mas nesse caso a sua fúria seria dirigida para outro que não o rei. Se lhe faltavam soldados para proteger o sarcófago, de quem era a culpa? Ele poderia dizer:
"Talvez tivesse conseguido impedir os patifes, se os poucos soldados que me restam não estivessem ocupados a reprimir o motirn no Templo de Serápis!" No final, a
culpa seria de todos menos do rei: do seu irmão, por marchar sobre a cidade e provocar o caos, das suas próprias tropas, por terem abandonado os seus postos, e das
pessoas em si, por se lançarem num motim a seguir a outro, distraindo os poucos soldados que restavam e que deveriam estar a defender o maior tesouro da cidade,
em vez de a apagar incêndios.
- Mas, na verdade, o sarcófago não seria levado. Ficaria em Alexandria...
- Onde o rei lhe poderia retirar as jóias e fundir o ouro. Como que por magia, o tesouro real voltaria a encher-se. O rei poderia voltar a pagar ao seu exército
e ainda lhe restaria tanto ouro que também poderia comprar os invasores.
- E se o plano fosse descoberto? - perguntei. - E se algo corresse mal, como foi o caso?
- Era arriscado, claro. Mas o rei tinha pouco por onde escolher. Uma jogada de risco era a única coisa que o poderia salvar.
- E tu, Artemon? O que é que tinhas a ganhar?
Pela primeira vez, as suas feições suavizaram-se um pouco. Artemon fitou o vazio e suspirou.
- Os dias do Gangue do Cuco estavam contados. Independentemente de quem fique com o trono de Alexandria, fará da destruição dos bandos de marginais do Delta a sua
prioridade. Durante algum tempo, pensei em fugir para Creta e levar o bando comigo. Creta está
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completamente vulnerável, dizem, mas isso significa que todos os reis dos bandidos e capitães dos piratas se encaminham para lá, pensando tornar-se mestres da ilha.
É demasiada competição. - Artemon abanou a cabeça. - Apesar de todos os seus encantos, o banditismo é uma profissão perigosa. Estava farto. Queria uma saída, de
preferência uma saída que me mantivesse a cabeça sobre os ombros, um perdão real e ouro suficiente para uma vida inteira.
" Então, quando Zenon me contactou e apresentou o seu plano, parecia que as minhas orações tinham sido respondidas. Fui cauteloso, a início, mas depois cada vez
mais entusiástico. Era um trabalho fascinante, planear os pormenores do assalto. Fui eu quem sugeriu que o Chacal seria o homem perfeito para fazer a cópia da carroça
e da caixa, bem como o sarcófago falso para colocar no seu interior.
" E, quando tudo terminasse, com um perdão integral do rei e um belo pagamento para mim e para a Metrodora, poderia viajar para onde quisesse. Poderia começar uma
vida nova com...
- com a Axiothea?
Artemon baixou a cabeça.
- Sim. Mas depois tu tinhas de estragar tudo. Tu e aquele leão estúpido!
Artemon fitou-me de olhos muito abertos e puxou pelas correntes. Eu estremeci e encostei-me à parede, mas as correntes mantiveram-no preso.
- O rapto da Axiothea - disse eu. - De quem foi a ideia? Do Chacal? Uma expressão de confusão somou-se à de ódio que lhe marcava
o rosto.
- Como é que soubeste que o Chacal estava envolvido nisso?
- Responde primeiro às minhas perguntas, Artemon, e depois responderei às tuas. Porque é que raptaste a rapariga?
- Por dinheiro, claro. O amante dela é muito rico. E... por vingança.
- Vingança contra quem?
- O seu rico amante, claro! Chama-se Tafhapy. Não queria apenas o seu dinheiro. Queria fazê-lo tão infeliz quanto possível, roubando-lhe a pessoa que lhe era mais
querida.
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- Mas porquê? Que ressentimento tens em relação ao Tafhapy?
- Não tens nada a ver com isso, romano!
- Mas o rapto foi um falhanço. O Tafhapy nunca respondeu às tuas exigências.
Artemon franziu o sobrolho.
- Isso foi uma deceção. O Chacal tinha-me garantido que a Axiothea era preciosa. Porque é que nunca respondeu?
"Porque os capangas do Chacal apanharam a rapariga errada", poderia eu ter-lhe dito. Contudo, não vi qualquer necessidade em dizer mais sobre Bethesda do que era
preciso.
- Porque é que mudaste de ideias? - perguntei. - Porque é que levaste a rapariga para o Medusa e tentaste subir a bordo do navio, sabendo que os barcos de guerra
do rei o iam afundar?
- Porque tu expuseste o falso sarcófago! O que haveria de fazer depois disso, com todos os homens a observarem-me e presos às minhas palavras? Se se apercebessem
de que os tinha enganado, até aqueles idiotas teriam o bom senso de se virarem contra mim. Decidi seguir o exemplo do rei Ptolomeu: fazer uma jogada arriscada. Decidi
roubar o sarcófago. Depois atravessaríamos os mares e faria o que os homens esperavam de mim: tornar-me-ia rei de Creta, com a Axiothea como minha rainha!
Os seus olhos cintilavam perante as delícias daquele sonho impossível. Nos meus últimos momentos a bordo do Medusa, também eu, ainda que apenas por um instante,
tinha vislumbrado esse mesmo sonho. Senti alguma simpatia por ele.
- E os navios de guerra? Sabias que eles estavam lá, do outro lado do porto, à espera para abalroar o Medusa.
- Teríamos de ser mais rápidos do que eles! Atacaram Mavrogenis aproveitando o fator surpresa, mas eu sabia que eles estavam lá e teríamos passado por eles. Não
teria sido fácil, mas era possível, tenho a certeza! E se assim tivesse sido, agora estaria a agradecer-te em vez de te amaldiçoar, romano, por me teres guiado para
um destino que sempre deveria ter sido o meu. Em vez disso... vou perder tudo, incluindo a minha própria cabeça.
Senti um novo assomo de pena por ele. Suprimi-o. Por causa dele, Menkhep, Ujeb, o capitão Mavrogenis e tantos outros homens tinham
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enfrentado uma morte horrível. Artemon estava disposto a sacrificá-los a todos em troca de alguns sacos de ouro e de um novo começo.
- Porquê Creta? - perguntei. - Porque não Cirene? Porque não viajar até lá para reclamar o que te pertence por direito, enquanto filho de Apião?
Artemon fitou-me por um momento, sem palavras, depois lançou a cabeça para trás e riu.
- Oh, Pecúnio, quando deixarás de me surpreender? Pensei que tinhas visto através de todas as minhas mentiras e enganos, no entanto, ainda acreditas que sou primo
do rei!
- Então não és o filho bastardo de Apião?
- Claro que não!
- Mas Menkhep disse-me... e todos os homens pareciam pensar...
- Eles acreditavam no que a Metrodora e eu queríamos que acreditassem. E tu também, ao que parece.
- Quem és tu, afinal, Artemon? De onde vieste?
- Sou exatamente aquilo que te disse e aos outros no pequeno discurso que fiz antes do assalto. "O filho bastardo de uma prostituta" foi o que chamei a mim mesmo
e é isso que sou.
- Mas não o filho de Apião?
- Desiste, Pecúnio! - Artemon abanou a cabeça. - Nasci em Alexandria, filho de uma prostituta e de um egípcio livre que nunca me quis reclamar. Cresci pobre mas
livre, ao lado da minha irmã gémea.
- Então é verdade que tinhas um irmão gémeo.
- Chamava-se Artemísia. Era linda e inteligente, muito mais inteligente do que eu, e sempre foi muito amorosa comigo. Quando a nossa mãe morreu, a Artemísia seguiu
o seu caminho e eu segui o meu. Um mercador que estava de visita, vindo da Síria, engraçou comigo e levou-me para Damasco com ele. Eu tinha aprendido a ler e a escrever
sozinho e ele pensou treinar-me como escriba. Como eu adorava todos aqueles livros que enchiam a sua biblioteca! Mas enquanto ele brincava comigo, eu brincava com
as suas contas. Quando descobriu quantos siclos eu lhe roubara, ficou furioso. Poderia ter-me mandado torturar e matar, não tenho qualquer dúvida. Em vez disso,
fui eu quem o rnatou. O sírio foi o primeiro homem que matei, mas não seria o último. Quando cheguei
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ao Delta, era bastante experiente no que diz respeito aos meandros do crime. Integrei-me naquele bando de tolos, que precisavam desesperadamente de um líder, e tudo
funcionou às mil maravilhas. O resto, já sabes.
Artemon semicerrou os olhos.
- Agora é a tua vez de falar, Pecúnio. Quem és tu e porque é que te juntaste ao Gangue do Cuco? Como é que conheces o Chacal? Porque é que me atacaste quando eu
subi a bordo do Medusa e como é que conseguiste escapar? E a Axiothea... ainda estava a bordo... quando o Medusa se afundou?
Tencionara responder às suas perguntas, tal como ele respondera às minhas, mas agora hesitava. Embora Artemon estivesse acorrentado, ainda o temia. Ele revelara
ser um assassino vingativo e sem remorsos. Já me odiava por lhe ter arruinado os planos. Como reagiria se soubesse que o tinha enganado desde o início e que viajara
para o Delta para recuperar a rapariga que ele conhecia como Axiothea?
- Vamos, Pecúnio. Fala! O que tens a perder? Dentro em breve, estaremos ambos mortos.
As suas palavras lançaram um arrepio através de mim. Artemon traíra o rei e era responsável pela perda do sarcófago, mas qual era o meu crime? Eu dissera repetidamente
a Zenon que Bethesda e eu éramos prisioneiros dos bandidos, mas porque haveria ele de acreditar em mim? Artemon tinha razão. O meu destino era ser interrogado sob
tortura e, depois, despachado. O que é que Artemon tinha dito? "Não deveria haver quaisquer sobreviventes, quaisquer testemunhas." Como todos os que tinham participado
do assalto, por vontade própria ou não, eu iria morrer.
E Bethesda? Decerto o seu destino seria igual ao meu. Ao tentar salvá-la, provocara a sua destruição.
- Fala, Pecúnio! - gritou Artemon.
Cerrei os dentes. Fechei os olhos. Não queria ter mais nada a ver com ele.
De algures nas redondezas, distorcido pelos ecos nos corredores de pedra, ouvi o som de um riso infantil. Tê-lo-ia imaginado ou estaria uma criança nas masmorras
do rei? Ouvi o som mais uma vez, mais perto do que antes. A menos que estivesse completamente louco, tinha reconhecido aquele riso. Era Djet!
349
Ouvi de novo o riso, logo à porta da cela. Um instante depois, ouvi os sons metálicos da porta a ser destrancada e desaferrolhada. A porta abriu-se gemendo nas dobradiças.
Djet surgiu na passagem. Sorrindo e rindo, correu até mim e envolveu-me com os seus braços.
- Djet, o que é que te aconteceu?
O rapaz falou tão depressa que quase não conseguia compreender as palavras.
- Deixei o navio tão depressa quanto pude, tal como me disseste, e depois escondi-me nas traves do teto do edifício da alfândega, depois subi para o telhado e vi
o Medusa a partir e depois vi o barco do rei... e tu estavas lá! Corri para o meu senhor e contei-lhe que ainda devias estar vivo. E tinha razão!
- Mas Djet, o que é que estás a fazer aqui?
- Ela insistiu para que o senhor viesse à tua procura e implorasse pela tua libertação.
-Ela?
- Tu sabes! Quem mais consegue que o senhor faça o que ela quer? Djet olhou por cima do ombro para Axiothea - a verdadeira
Axiothea -, que se erguia à porta. Num local tão sombrio, a sua beleza era ainda mais delicada. Parecendo algo desconfiada, penetrou na cela fracamente iluminada,
seguida um instante depois por Tafhapy.
Os seus olhares foram primeiro atraídos para Djet e depois para mim. Ambos acenaram, reconhecendo que Djet estava certo: ali estava eu, de regresso das minhas viagens,
mas sob prisão real. Depois, quando olharam para o resto da cela, os seus olhos pousaram-se em Artemon, que os fitava com uma expressão de espanto absoluto.
Axiothea arquejou. Tafhapy ficou rígido e cambaleou para trás.
- Irmão! - gritou Axiothea.
- Filho! - sussurrou Tafhapy.
Pasmado, olhei de um rosto para o outro. Djet parecia tão confuso quanto eu.
Um momento depois, Zenon entrou na cela, seguido pelo rei Ptolomeu, que quase não conseguia passar pela porta. A minha consternação era total.
350
XXXVIII
Axiothea correu para Artemon e caiu de joelhos por entre a palha imunda. Envolveu-o com os braços magros e começou a chorar.
- Meu querido, doce irmão, há tanto tempo! Como senti a tua falta! Pensei que nunca mais te veria.
- Antes assim fosse - murmurou Artemon, com a voz embargada pela emoção. Tentou corresponder ao seu abraço, mas as correntes impediam-no. - Amada Artemísia! Porque
é que estás aqui? E porque é que estás com eé? - Fitava Tafhapy, que mantinha a sua distância, desviando o olhar e contorcendo as mãos.
- Esta mulher... - sussurrei. - Esta mulher é a Artemísia, a tua irmã gémea? E o Tafhapy é o pai de ambos?
O camareiro bateu com o bastão no chão de pedra, exigindo atenção.
- Afaste-se do prisioneiro, jovem! Para sua própria segurança...
- Não seja ridículo. - Axiothea dirigiu a Zenon um olhar fulminante. - O meu irmão nunca me magoaria.
Pela expressão azeda do seu rosto, podia ver que o camareiro estava tão confuso quanto eu. Não se tratava de um homem que gostasse de surpresas.
- Seja qual for a relação que possas ter com o Filho do Cuco, jovem, não foi por isso que o rei aqui veio. Lidaremos primeiro com as questões mais prementes. Tafhapy,
abordaste o rei esta manhã com uma súplica urgente pela libertação deste prisioneiro, o romano que clá pelo nome de Gordiano. E este, de facto, o homem a quem te
referias? -
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Apontou com o bastão. Afastei-me rapidamente para o impedir de me bater no nariz.
com um ar espantado, Tafhapy olhou para mim de relance e acenou.
- Dizes que o Gordiano veio ter contigo há algum tempo, em busca de informações sobre a escrava que lhe foi roubada: a rapariga com quem foi retirado das águas do
porto. - Face àquela informação, vi que os olhos de Artemon se iluminavam. - Dizes que o colocaste no encalço do Gangue do Cuco e que lhe enviaste por companheiro
este rapaz escravo. É verdade?
Tafhapy acenou.
- Sendo assim, quando o Gordiano nos diz que o seu único propósito ao abordar o Gangue do Cuco era a recuperação da sua propriedade, está a dizer a verdade? ;- Tanto
quanto sei - sussurrou Tafhapy.
- No entanto, há um fator que complica as coisas - disse Zenon.
- Achei que o nome "Gordiano" me era familiar e, de facto, entre os documentos do meu gabinete está um mandado de captura deste homem emitida pelos líderes da cidade
de Canopo, acusando-o de roubo e assassinato. Diz-se que estava envolvido um rubi...
- Isso é mentira! - disse Djet. - O romano nunca matou nem roubou ninguém.
- Estás a ser inconveniente, escravo! - Zenon fitava Djet, que erguia calmamente os olhos para ele. O devastado Tafhapy parecia incapaz de interceder e, durante
um longo momento, todos os que se encontravam na sala testemunharam o peculiar espetáculo do escravo e do camareiro do rei do Egito envolvidos num jogo de olhares.
Foi Zenon quem pestanejou primeiro.
- Viajaste ao lado deste romano? Fala, rapaz!
- De dia e de noite - disse Djet. - É o homem mais corajoso que alguma vez conheci. Salvou-nos do Crocodilo Faminto, depois do Hipopótamo Amigável! Levou a melhor
sobre o Glutomem e fez do leão Cheelba seu amigo...
- Não estamos interessados nos animais que encontraram nas vossas viagens. Este homem assassinou um mercador nabateu em Canopo? Juntou-se ao Gangue do Cuco? Participou
em atos criminosos?
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Sustive a respiração. Um instante antes tinha-me parecido que Djet era o meu salvador, tendo trazido Tafhapy consigo para suplicar em meu nome. Agora, com uma palavra
descuidada, Djet poderia apressar a minha execução.
Djet endireitou os ombros, deixou tenso o maxilar e pousou as mãos nas ancas. Falava não para o camareiro, mas diretamente para o rei, olhando-o nos olhos.
- Foi o dono da estalagem de Canopo quem assassinou o nabateu, não o romano. Sim, ele fingiu juntar-se ao Gangue do Cuco, isso é verdade. Mas fê-lo apenas para salvar
a sua vida e a minha. O seu único objetivo era recuperar a rapariga que lhe fora roubada. Não é um maior fora da lei ou bandido do que eu!
Zenon gemeu e trauteou.
- Isso é o que dizes. Mas uma criança, e para mais escrava, como testemunha de carácter dificilmente...
- Oh, parem com este disparate! - O rei deu um passo em frente. O seu tamanho era suficiente para obrigar o camareiro a desviar-se. É óbvio que o romano é exatamente
quem alega ser. Tu viste-o com a escrava, ontem, depois de os termos tirado das águas. Pareceram-te criminosos perigosos? Não me parece, a menos que o amor seja
um crime.
O camareiro revirou os olhos.
- Vossa Majestade já considerou que este Gordiano pode ser um espião, enviado por Roma?
- Oh, não me parece, Zenon. E se for? Os romanos são nossos amigos, não são? Estão-se constantemente a oferecer para me ajudar a manter o trono, com uma só condição:
que deixe o Egito ao Senado Romano no meu testamento, como Apião fez com Cirene! Lata têm eles, isso é verdade. Não, não, quando olho para este rapaz não vejo nem
um assassino, nem um espião.
- Mesmo que o romano não seja nem mais nem menos do que parece ser, Majestade, num caso tão delicado, há outras considerações...
- Vais anular o mandado de captura do romano e libertá-lo e à escrava imediatamente, Zenon. Compreendes?
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O camareiro suspirou e baixou a cabeça.
- Será como decretou Vossa Majestade. Guardas! Tragam a chave e retirem os grilhões ao prisioneiro. Libertem a rapariga da cela adjacente.
Só podia estar a falar de Bethesda. Toda a noite, estivera a poucos metros de mim.
Em poucos instantes, eu estava livre das minhas correntes e pude levantar-me, ainda que me sentisse algo vacilante. Esfreguei os pulsos onde os grilhões me tinham
ferido. Um momento depois, Bethesda surgiu à entrada, depois correu para o meu lado.
- Bethesda, eles magoaram-te?
- Não, senhor. E a ti? Tens os pulsos todos vermelhos e em sangue.
- Não importa, agora que estás de volta...
- Oh, calem-se, os dois, antes que eu mude de ideias - disse o rei.
- Agora, Tafhapy... nem que seja para meu divertimento, vais explicar a tua relação com estes outros jovens encantadores. A rapariga que está agarrada ao Filho do
Cuco. Chama-se Axiothea ou Artemísia?
O maxilar de Tafhapy estremeceu.
- As duas coisas. A sua mãe chamou-lhe Artemísia, mas há vários anos, quando começou a atuar, tomou o nome artístico de Axiothea. É assim que, agora, todos a conhecem.
- E este jovem, o famoso Filho do Cuco... é irmão dela?
- Irmão gémeo - sussurrou Tafhapy.
- Estou a ver. Artemon e Artemísia, irmãos gémeos. Sim, são muito parecidos. E tu és o pai deles?
- Sou.
- Pelo sangue, talvez - rosnou Artemon -, mas de nenhuma outra forma é este homem meu parente. Nunca tive um pai!
O rei franziu os lábios.
- O que é que ele quer dizer com isto, Tafhapy? Como é que geraste estas crianças e qual é a tua relação com elas, agora? Ordeno-te que expliques!
Tafhapy uniu as sobrancelhas farfalhudas. Primeiro falou com dificuldade, mas depois as palavras começaram a sair de rompante.
- O meu filho está a dizer a verdade. Como é que gerei estas crianças, pergunta, Sua Majestade? Quando eu era jovem, o meu pai começou a
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sentir-se ansioso devido à minha falta de interesse pelo sexo oposto. Por isso, levou-me ao mais dispendioso bordel de Alexandria. Para evitar que eu me assustasse
com a natureza um pouco rude ou a voluptuosidade demasiado madura da mulher que me havia calhado, insistiu para que me dessem uma virgem, uma rapariga ainda mais
jovem do que eu, como veio a revelar-se. De uma forma ou de outra, consegui consumar o ato, o que agradou muito ao meu pai, mas apenas confirmou que algo assim jamais
voltaria a acontecer comigo.
" Contudo, não foi o fim da questão. Alguns meses mais tarde, a rapariga veio ver-me. Disse-me que eu a engravidara. Podem perguntar-se como uma rapariga da sua
posição podia estar tão certa de que eu era o pai. De facto, ela não era uma mera escrava, nem se podia dizer com toda a certeza que fosse uma prostituta. Era a
filha de um liberto que estava a passar por grandes dificuldades, sendo que a sua única experiência no bordel ocorrera na noite da minha visita. Recorrendo a diversos
meios, concluí que a sua história não só era credível, como quase de certeza verdadeira. Os seus modos eram tão humildes e sinceros que eu não tinha qualquer motivo
para duvidar dela.
" Contei ao meu pai o que tinha acontecido e sugeri casar com a rapariga. A mim, parecia-me uma solução prática para a insistência do meu pai em casar e dar-lhe
netos. No entanto, o meu pai disse-me que não fosse absurdo, que casar com uma rapariga em tão sórdidas circunstâncias estava fora de questão.
" Alguns meses mais tarde, solteira e destituída, a rapariga deu à luz não um filho, mas dois. Conseguiu visitar-me e levou os gémeos com ela. Quando os vi, quaisquer
dúvidas sobre a minha paternidade desapareceram. Olhem para os meus olhos e olhem para os deles. Verão as semelhanças.
" Abordei de novo o meu pai e, uma vez mais, ele deixou claros os seus sentimentos. Eu não podia ter qualquer relação com a rapariga ou com os seus filhos. No entanto,
ao longo dos anos, senti-me obrigado a dar-lhe algum dinheiro, de vez em quando. De tempos a tempos, via as crianças a crescer nas ruas de Alexandria, selvagens
e indomadas...
- Fizemos o melhor que podíamos - disse Artemon, por entre dentes -, tal como a nossa mãe.
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Axiothea abraçou-o com mais força e escondeu o rosto no peito do irmão.
- Seja como for - disse Tafhapy -, a cada ano que passava, era cada vez mais irrealizável proclamar a minha paternidade sobre tais crianças. Eu vivia num mundo e
elas noutro. No entanto, eu sabia quem eram e acho que eles sabiam quem eu era, pois eu tinha visto a sua mãe a apontar para mim quando a minha padiola passava na
rua.
- Oh, sim, sabíamos quem eras - disse Artemon. - O pai que nos gerara e depois abandonara. Tafhapy, o Terrível, era o que te chamavam os adversários de negócios.
Essas palavras tinham um significado diferente quando a nossa mãe as pronunciava. Como te odiávamos e desprezávamos e tudo o que representavas.
- Oh, quem vos teria culpado? - disse Tafhapy, incapaz de olhar para Artemon, olhos nos olhos. - A determinada altura, deixei de ver a vossa mãe na esquina onde
costumava pedir...
- Porque morreu! - gritou Artemon. - Doente e miserável, a sua vida destruída por ti!
- Foi o que presumi. De facto, pensei que deviam ter morrido os três, pois não mais te voltei a ver ou à tua irmã. Os três pareceram desaparecer. Reprimi as minhas
memórias. com o tempo, deixei de pensar em vocês. Até que...
Tafhapy soluçou e prendeu a respiração.
- Até aquele dia, há um ano, quando por acaso vi uma trupe de mimos a atuar na rua e gritei aos portadores da padiola que parassem para eu poder assistir. Entre
os atores reparei numa bela jovem. Havia nela algo de terrivelmente familiar. Depois percebi quem era. A minha filha! "Foge! Afasta-te dela!", gritou uma voz dentro
da minha cabeça, e quase pedi aos portadores da padiola que me levassem embora. Depois, compreendi que a voz que estava a ouvir era a do meu pai, o meu pai que já
está morto e não mais controla a minha vida. "Idiota!", disse a mim mesmo. "Nunca terás outros filhos. Esquece o que o teu pai queria e reclama os teus filhos!"
Tafhapy olhou carinhosamente para Axiothea.
- Dei-me a conhecer. Inicialmente, ela afastou-me, mas insisti. A pouco e pouco, fui tentando ganhar a sua confiança. Continuo a tentá-lo.
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- As pessoas pensavam que ela era sua amante - disse eu.
- Elas que pensem o que quiserem. A Artemísia preza a sua liberdade, a sua independência e a vida que criou para si, mas, mal concorde, tenciono reclamá-la legalmente
como minha filha e fazer dela minha herdeira. Pretendia fazer o mesmo pelo Artemon, mas quando lhe perguntei onde estaria o irmão, ela disse-me que este tinha desaparecido
de Alexandria há vários anos. Não fazia ideia do que tinha sido feito dele, nem para onde fora. - Tafhapy abanou a cabeça. - Eu não fazia ideia... nunca imaginei...
que o homem a quem chamavam Filho do Cuco, rei dos bandidos do Delta... fosse o meu filho!
Olhei de pai para filho, de irmão para irmã, de filha para pai.
- Assim foi que o Artemon, sem o saber, tentou raptar a própria irmã e exigir um resgate do próprio pai!
Todos os olhos se viraram para Artemon, que nos fitava, desafiante.
- A ideia começou com o Chacal...
- O homem que a tua irmã conhece como Lykos - disse eu. Axiothea ergueu as sobrancelhas.
- Lykos, o artífice?
O rei franziu o sobrolho e olhou para Zenon, que explicou num sussurro.
- O homem com a risca branca no cabelo.
O rei acenou.
- Ah, sim, esse tipo.
- Muito bem, chamar-lhe-ei Lykos, se preferirem - disse Artemon.
- Numa das visitas ao Ninho do Cuco, disse-me que havia uma bela rapariga numa trupe de mimos alexandrina chamada Axiothea, um nome que não significava nada para
mim. Lykos disse que a rapariga se tornara amante de um mercador notoriamente rico chamado Tafhapy, um nome que eu conhecia muitíssimo bem e que desprezava. Quando
Lykos sugeriu que raptássemos a atriz e exigíssemos um resgate do seu rico amante, sem nunca suspeitar que Tafhapy era o pai que eu mantinha em segredo, concordei
prontamente. O dinheiro nada significava para mim, mas a oportunidade de sujeitar o homem que eu mais odiava no mundo a alguma infelicidade, isso era irresistível.
Lykos tratou do rapto e contratou os capangas, que, obviamente, levaram a rapariga
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errada! - Artemon fitou Bethesda que se apertava contra mim. - Agora compreendo porque é que o Tafhapy nunca respondeu aos meus bilhetes pedindo o resgate e porque
é que tu, romano, vieste em segredo procurar pela rapariga. - Suspirou e fechou os olhos. - Se ao menos os raptores tivessem levado a rapariga que deviam, se ao
menos eles tivessem levado a Artemísia para o Ninho do Cuco, eu ter-me-ia voltado a reunir com a minha irmã há muito perdida e quem sabe o que poderia ter acontecido?
Tafhapy caiu abruptamente de joelhos. Aproximou-se humildemente do rei Ptolomeu, arrastando-se pelo chão de pedra. Apertou as mãos num gesto suplicante e ergueu
os olhos para o rei.
- Majestade! Vim até aqui para salvar a vida de um homem que não significa nada para mim: este romano chamado Gordiano. Na vossa grande sabedoria e misericórdia,
Vossa Majestade achou por bem libertá-lo, e por isso vos agradeço. Mas agora peco-vos pela vida de outro, até esta hora nem sequer o sabia vivo... o meu único filho!
Eu sei que é um criminoso famoso, mas o que quer que possa ter feito, imploro-vos, pela minha saúde, poupai-lhe a vida!
O rei espreitou por cima da barriga enorme para Tafhapy, que se deixou cair de quatro no chão e se rebaixou na palha imunda.
- Realmente, Tafhapy, não fazes ideia da magnitude da traição do teu filho, nem da enormidade dos seus crimes. Ele não é apenas um ladrão e um assassino, mas um
traidor da pior espécie. A sua traição lançou sobre mim um enorme desastre. Não há qualquer possibilidade de perdão pelos seus crimes, qualquer possibilidade!
Zenon limpou audivelmente a garganta. O rei ergueu a sobrancelha.
- O que foi, Zenon?
O camareiro encolheu os ombros e fez uma série de gestos, cada um mais adulador que o anterior.
- Sua Majestade sabe sempre o melhor, e como diz, não pode existir perdão possível para tamanha escumalha, a menos, claro...
- A menos que o quê?
- A menos que a parte que procura o perdão pudesse oferecer uma quantia de ouro, não igual à que acaba de ser irreversivelmente perdida em
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resultado da traição de Artemon, pois isso seria impossível, mas suficiente para pagar pelas... digamos... despesas próximas com a viagem do rei.
- Referes-te aos custos com subornos, guarda-costas e transportadores para me levarem de Alexandria antes da chegada do meu irmão Soter?
- Para ser franco, Majestade, sim, é precisamente a isso que me refiro. O rei suspirou.
- E qual estimas que será a quantia necessária?
- Em termos genéricos... - O camareiro indicou uma soma tão espantosa que todos os presentes inspiraram ruidosamente.
O rei fitou a figura espojada a seus pés.
- Então, Tafhapy, o que dizes? Consegues arranjar esse dinheiro nos próximos dias? E a vida do teu bastardo há tanto perdido vale essa soma?
Todos os olhos se viraram para Tafhapy. Este permanecia de quatro, mas ergueu a cabeça. Roía o lábio inferior. As sobrancelhas farfalhudas moviam-se de um lado para
o outro, exprimindo uma sucessão de emoções contraditórias.
- Então, pai? - perguntou Axiothea. Fitava Tafhapy e cruzara os braços. - O que dizes?
Artemon também tentou cruzar os braços, mas as correntes impediram-no. Teve de se contentar em duplicar o olhar frio da irmã.
- Sim... pai. Será que valho tamanho resgate? Tafhapy engoliu em seco.
- Dê-me até ao pôr do Sol de amanhã, Majestade. Creio conseguir reuni-la até então.
Axiothea começou a chorar. Artemon tremeu como um homem com febre; as suas feições duras suavizaram-se e olhava para o pai com uma expressão que eu não conseguia
compreender. Também Tafhapy começou a chorar e o mesmo aconteceu com Djet. Apanhados na torrente de emoções, Bethesda e eu abraçámo-nos com força. Até o sério camareiro
parecia satisfeito consigo mesmo.
O rei bateu palmas e chamou um criado que se mantinha invisível no corredor.
- Traz-me algo para comer, de imediato! Os finais felizes fazem-me fome.
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Pouco depois, o rei e o seu camareiro deixaram a cela e juntaram-se à comitiva real no corredor. Nós seguimo-los. Apenas Artemon ficou para trás, aguardando a entrega
do resgate.
À saída, passámos pelo jardim zoológico real. Quem quer que
tivesse desenhado aquela parte do palácio, tinha concluído que os homens e os animais enjaulados deviam estar próximos uns dos outros, embora os animais tivessem
melhores aposentos, mais limpos e com o céu azul sobre eles.
Enquanto passámos pelas várias jaulas, fossos, aviários e recintos a céu aberto, eu fitava boquiaberto a espantosa variedade de animais, pássaros e répteis, como
nunca tinha visto. As minhas narinas enchiam-se com os cheiros estranhos e os meus ouvidos com os gritos, grasnidos e silvos estranhos. Depois ouvi um rugido familiar.
Do lado mais longínquo de uma
grande jaula, o leão Cheelba veio saltitante ter comigo. Gritei o seu nome. Lancei o braço por entre as grades. Cheelba abriu a boca num bocejo, esfregou o focinho
na minha mão e lambeu-me os dedos.
O rei virou-se e observou, maravilhado.
- Então é verdade o que me disseram, que este leão está domado.
- Sim, em grande medida é verdade - disse, pensando no ataque de Cheelba a Artemon. Através da túnica, apertei com os dedos o dente dele. Mas o Cheelba defenderá
um amigo, se necessário.
- Que esplêndida adição ao jardim zoológico! - exclamou o rei.
- Nada diverte tanto um desfile real como um animal exótico ou uma besta selvagem. Na próxima parada do género este leão poderá abrir a procissão. Impressionaremos
a populaça e traremos crédito à casa
de Ptolomeu! Quando poderemos usar o leão, Zenon? Talvez...
O rei mterrompeu-se e ficou em silêncio. O mais provável, pensei, seria que a próxima procissão real em Alexandria servisse para comemorar a ascensão do irmão ao
trono. O rei engoliu em seco.
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- Quem quer que beneficie deste animal, que fique registado que fui eu quem o juntou ao jardim zoológico. Escreve-o!
Um dos escribas que compunha a comitiva apressou-se a raspar com um estilete numa tabuinha de cera.
Enquanto avançávamos pelos jardins, Djet deixou-se ficar para trás, para se colocar ao lado de Bethesda e de mim. Viu-me a franzir o sobrolho e perguntou-me em que
estava eu a pensar.
- Só há um pormenor a incomodar-me, algo que tencionava perguntar ao Artemon.
- Diz-me.
Falava mais para mim do que para Djet, já que não tinha razão para pensar que ele soubesse de que estava eu a falar.
- Como é que a carroça com o sarcófago falso foi trocada pela outra? O Artemon enganou toda a gente, levando-os a deixar a carroça sem ninguém por um momento, essa
parte compreendo, mas de onde saiu a outra carroça? Não podia estar já na passagem estreita, não pode ter vindo dos lados e era demasiado grande e pesada para vir
de cima ou de baixo...
Djet riu.
- Posso dizer-te!
- Podes?
- Claro. Eu vi tudo.
- Como?
- Estava escondido nas traves.
- Ah, sim, estou a ver. Conta-nos, então.
- Trata-se do truque de magia mais velho que existe. Mal tu, Artemon e os restantes desapareceram, os soldados saíram de uma sala por onde tinham passado ao entrar,
puxando a segunda carroça. Rapidamente puxaram para trás a primeira carroça, retirando-a da estreita passagem, e empurraram a nova para tomar o seu lugar. Depois
levaram a primeira carroça para a sala onde tinham estado escondidos. Parecia ser o fim. Mas algum tempo depois, o Artemon e os seus homens vieram a correr, e o
Artemon sabia exatamente onde procurar a primeira carroça. Houve uma luta terrível, todos os soldados foram mortos e o Artemon e os seus homens partiram com a primeira
carroça.
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Foi então que subi para o telhado. Vi a tua luta com o Artemon e, depois, o Cheelba salvou-te e apareceram mais soldados, depois o Medusa zarpou e depois o barco
do rei veio até ao embarcadouro e tu estavas lá! Quando voltei para casa, disse ao meu senhor que tu devias estar prisioneiro do rei e a Axiothea disse que tínhamos
de ir à tua procura. Acenei.
- Ao vires aqui hoje, salvaste-me a vida, Djet. De facto, salvaste a vida de todos nós, de uma forma ou de outra, até do rei.
- Sim, eu sei - disse ele, como se fosse algo insignificante. Depois correu para se colocar ao lado de Axiothea e do seu senhor.
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XXXIX
- Os amotinados estão a queimar qualquer coisa... outra vez! Berynus descruzou as pernas compridas, levantou-se e dirigiu-se ao parapeito. Protegeu os olhos contra
a luz forte do sol do fim da manhã e semicerrou-os na direção de Alexandria. - Olhem para aquela enorme coluna de fogo.
Eu estava no terraço da nova casa do eunuco, numa pequeníssima aldeia piscatória a alguns quilómetros a oeste da capital. A figura gigantesca de Kettel estava sentada
ao meu lado, num sofá comprido repleto de almofadas. Nas redondezas, Bethesda sentou-se de pernas cruzadas num tapete, no chão.
- Quando terminará o caos? - perguntei.
- Só quando o rei Ptolomeu partir, de preferência de barco, e os homens de Soter chegarem e começarem a partir algumas cabeças respondeu Kettel. - No entretanto,
o mais certo é que a ausência de lei fique pior, não melhor. Tomaste uma sábia decisão, Gordiano, vindo ficar aqui durante algum tempo. Os teus aposentos são confortáveis?
O quarto de hóspedes que me tinham dado estava mobilado de forma muito mais elegante do que o meu miserável apartamento na cidade - demasiado elegante para o meu
gosto, na verdade, com todo o tipo de bugigangas -, mas o ambiente que me rodeava era irrelevante. Bethesda estava de novo comigo e isso era tudo o que importava.
Por mim, podíamos estar a dormir numa tenda ou na praia, sob o céu estrelado, desde que ela estivesse ao meu lado.
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- O quarto é muito confortável - respondi. - Ainda assim, custa-me a acreditar que vocês tenham abdicado do vosso esplêndido apartamento em Alexandria.
Kettel fez uma careta que lhe deixou todo o rosto enrugado.
- Na nossa idade, já estamos algo fartos dos aborrecimentos da vida na cidade. Esta última série de motins foi a palha que vergou as costas do camelo, como dizem
os nabateus. Enquanto andavas a passear pelo Delta, nós os dois fizemos as malas e deixámos a cidade. Na verdade, o Berynus já andava a planear a nossa mudança para
esta aldeia encantadora há algum tempo. Aqui temos muito mais espaço e a praia fica logo à porta. Neste terraço, sob este encantador toldo às riscas, podemos passar
horas lendo, escrevendo as nossas memórias e inspirando a fresca brisa do mar. E Alexandria fica apenas a um dia de ? viagem, caso fiquemos suficientemente tolos
para desejar visitá-la.
Olhei na direção da cidade. O Farol de Faros erguia-se no horizonte, não mais alto do que o meu polegar. A coluna de fogo tinha o dobro da altura.
Berynus enrugou a testa alta.
- Não achas que é a Biblioteca que está arder, pois não? Tanto fumo...
- O mais provável é que se trate dos armazéns no porto sul - sugeriu Kettel. - Os rolos de linho podem produzir um fumo preto como aquele e arder durante horas.
Passei apenas alguns dias em Alexandria antes de ter viajado para a aldeia, aceitando um convite que estava à minha espera, no apartamento, sob a forma de uma carta
deixada pelos eunucos à guarda do meu senhorio. Deixar-me ficar só, com Bethesda, no meu antigo quarto, sem qualquer perigo imediato a pairar sobre nós, ficando
deitados durante horas na nossa cama, aventurando-nos a sair apenas para arranjar comida quando precisávamos dela, foi um prazer - de início. Depois comecei a sentir-me
inquieto. O cheiro frequente do fumo e os sons da violência que se erguiam das ruas recordavam-me que a cidade estava a ficar cada vez mais perigosa. Também me ocorreu
que enquanto o rei Ptolomeu não partisse de verdade, podia mudar de ideias sobre a minha libertação a qualquer momento e arrastar-me de novo Para as
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suas masmorras. Quanto mais pensava no convite dos eunucos para me retirar durante algum tempo para uma sonolenta aldeia piscatória, mais gostava da ideia. Por isso
ali estávamos nós, relativamente seguros mas sem saber o que fazer, à espera, como o resto do Egito, para ver o que aconteceria a seguir.
- Senhor...
Virei-me para Bethesda. Na presença dos nossos anfitriões, respeitávamos o decoro de mestre e escravo, sentando-nos afastados um do outro e com Bethesda a mostrar-me
deferência. O que fazíamos na privacidade do nosso quarto era outra questão.
- Sim, Bethesda?
- Senhor, tinhas dito que poderíamos ir dar um passeio ao longo da praia antes da tua refeição do meio-dia.
- Ah, sim, pois disse. Um belo passeio vai reforçar o meu apetite.;;
- O passeio tinha sido ideia de Bethesda, mas eu tinha todo o prazer em fazer-lhe a vontade.
- Não te demores. O Kettel fez a sua especialidade: salada de polvo e coração de palmeira - disse Berynus, enquanto descíamos a escadaria exterior que nos conduzia
diretamente até à praia.
Enquanto andávamos ao longo da costa, peguei na mão de Bethesda. As ondas batiam gentilmente na areia. As gaivotas voavam em círculos e grasnavam por cima de nós.
As dunas baixas escondiam a aldeia piscatória de um lado e a cidade distante do outro. Num local assim tão
isolado, podíamos fingir que não existia mais ninguém.
- O que acontecerá ao Artemon? - perguntou Bethesda.
Senti uma pontada de ciúme pelo facto de um outro homem ocupar o seu pensamento num momento como aquele.
- Creio que a intenção do rei era que ele fosse banido do Egito. Como é que o rei irá aplicar um tal decreto, se o próprio rei for para o exílio, não sei. O Artemon
tem muita, muita sorte por ainda estar vivo.
- Achas que ele se vai reconciliar com o pai como fez a Axiothea? Encolhi os ombros.
- Quem o poderá dizer? O Tafhapy pagou um preço alto pela liberdade do filho, mas não tenho a certeza de que o Artemon saiba o que é gratidão. Uma coisa é certa,
não tem qualquer sentido de lealdade
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ou mesmo de decência comum. - Artemon quebrara escandalosamente o seu juramento como bandido, levando a destruição a todos aqueles a quem jurara lealdade, ao passo
que eu, que não gostava de bandidos, nunca lhes causara mal algum, por atos ou palavras.
Olhei para Bethesda de lado.
- Ele alguma vez... Bethesda sorriu, muito levemente.
-Já me perguntaste isso antes, senhor. Não, nunca me tocou a não ser por aquele beijo, que tu mesmo testemunhaste. Creio que a pena que sentia da mãe e o amor que
sente pela irmã fizeram dele um homem que respeita as mulheres, ainda que pareça não ter qualquer respeito pelos outros homens.
Durante algum tempo, enquanto andávamos pela praia, pensei no enigma que era Artemon, pois ainda estava a tentar separar as verdades das mentiras. Apesar do meu
ceticismo, a determinada altura, aceitara a ideia de que Artemon era um grande líder, capaz de controlar os destinos dos outros e orquestrar eventos distantes, e
que o Gangue do Cuco era um verdadeiro estado sombra. Até que ponto o poder de Artemon era real e até que ponto era ilusão, tão falsa quanto os disfarces criados
por Lykos? O alcance de Artemon nunca fora tão vasto quanto me tinham levado a pensar. Sim, o Gangue do Cuco tinha homens em Alexandria e noutros locais; Lykos era
um desses homens. No entanto, a vasta rede de espiões e confederados necessária à realização do assalto - sem o apoio do rei - nunca existira. Até as armas e armaduras
que encontrámos no Medusa provinham, decerto, do rei Ptolomeu.
- () que acontecerá à Axiothea? - perguntei, para mudar de assunto.
- Agora que foi reconhecida pelo Tafhapy, voltará a juntar-se à trupe de mimos? Parece pouco provável que o Tafhapy permita que a filha corra nua pelas ruas ou se
case com um homem como o Melmak.
Bethesda sorriu.
- Acho que a Axiothea fará o que quiser, sem se importar com o que pensa o Tafhapy.
- Provavelmente tens razão. E o Melmak e a sua trupe? O que será deles?
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Bethesda encolheu os ombros.
- Se o rei Ptolomeu perder o trono para o irmão, o Melmak não mais terá de usar aquele fato pesado, pois dizem que o Soter é um homem mais magro. Ainda assim, a
trupe terá material suficiente. Um rei é tão suscetível de ser ridicularizado quanto outro qualquer. Não são todos eles ridículos?
Assenti.
- O teu cérebro nunca para, pois não, Bethesda?
- Tal como o teu, senhor.
- Deves ter-te sentido terrivelmente aborrecida naquela cabana no Ninho do Cuco, dia após dia, com tanto tempo disponível.
- Nem fazes ideia! Mas nem todas as minhas horas eram ociosas.
A Ismene e eu tínhamos as nossas tarefas e rotinas. E aprendi muitas coisas com ela.
Franzi o sobrolho.
- Que tipo de coisas?
Bethesda encolheu os ombros e não respondeu, mas eu soube que devia estar a falar de magia e senti-me algo inquieto com o facto de a minha escrava ter sido ensinada
por uma bruxa do calibre de Ismene. Um homem gosta de pensar que as suas decisões e ações têm origem na sua própria vontade, em vez de serem provocadas por uma qualquer
poção que tenha bebido ou por palavras escrevinhadas numa tabuinha de chumbo.
- Bethesda, estas coisas que a Ismene te ensinou, tu... tu nunca usarias esse conhecimento para fazer com que eu, o teu senhor...
- Ah, olha! Ali está ela. Ela disse que se encontraria aqui comigo, uma hora antes do meio-dia e ali está ela!
Bethesda libertou a mão da minha e correu para a extremidade oposta da duna mais próxima, onde Ismene se erguia, apoiada numa bengala como se fosse uma mulher muito
mais velha, envergando não a roupa elegante que usara enquanto Metrodora, mas as vestes andrajosas da esposa de um pescador.
As duas mulheres abraçaram-se. Avancei ao longo da areia para me juntar a elas.
- Ismene, o que fazes aqui?
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Ismene dirigiu-me um olhar demorado e avaliador.
- vou deixar o Egito em breve. Antes de partir, queria despedir-me de vocês os dois.
- A última vez que te vi foi no embarcadouro, em Alexandria. Estavas lá num instante, tinhas desaparecido no seguinte. Calculo que tenhas corrido de novo para o
edifício da alfândega, mas, por essa altura, o local já estava repleto de soldados do rei. Como é que fugiste?
- Tornando-me invisível, claro.
- A sério, Ismene...
- Se não queres a resposta, não faças a pergunta! - gritou ela.
De facto, havia muitas outras perguntas que eu lhe queria fazer, mas Ismene voltou a sua atenção para Bethesda. As duas começaram a tagarelar, enquanto percorriam
a praia, abraçadas uma à outra. Eu seguia atrás delas.
De súbito Ismene emitiu um grito abafado e apontou para a zona da rebentação.
- Ali! Viste aquilo?
- O quê? - Não via nada mais do que espuma e pedaços de algas.
- Ali, aquele brilho vermelho! - Libertou-se dos braços de Bethesda e penetrou alguns passos na água, depois dobrou-se e pareceu apanhar qualquer coisa.
- O que é? - perguntou Bethesda.
- Vê por ti mesma. - Ismene estendeu a mão na nossa direção. Pousado na palma aberta da sua mão estava um rubi incrível.
Olhei da pedra para Ismene e de novo para a pedra.
- Não pode ser o mesmo rubi que...
- Voltou para mim! - declarou Ismene. - Lancei-o ao mar, dei-o a Posídon... mas agora volta para mim, lavado de todas as suas maldições.
Por um momento fiquei espantado perante tal coincidência. Depois ocorreu-me que Ismene podia ter apenas fingido atirar o rubi do Medusa e agora ter fingido encontrá-lo.
Viu a dúvida no meu rosto e guardou a jóia.
- Conheces o provérbio hebraico sobre rubis, Gordiano? Tu conhece-lo, decerto, Bethesda. Não? - Ismene tocou afetuosamente
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no rosto de Bethesda, depois olhou diretamente para mim, ao mesmo tempo que recitava. "Quem será capaz de encontrar uma esposa virtuosa? Pois esta valerá mais do
que um rubi." Sabias palavras para ti, Gordiano.
Limpei a garganta.
- Como acho que sabes, Ismene, não tenho esposa.
A bruxa sorriu.
- Ainda não, Gordiano. Ainda não.
Steven Saylor
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