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OS SEGREDOS MAIS SECRETOS DAS PRETTY LITTLE LIARS
OS SEGREDOS MAIS SECRETOS DAS PRETTY LITTLE LIARS

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Eis uma bela cena de globo de neve para você:
É dezembro do primeiro ano do ensino médio de Hanna, Emily, Aria e Spencer. Está nevando, e uma camada branca vai cobrindo os gramados bem cuidados e o teto dos luxuosos utilitários esportivos. Brilham luzinhas de Natal em cada janela, e crianças com rosto de querubins estão ocupadas fazendo suas listinhas para o Papai Noel. Toda a cidade está em paz, especialmente quatro garotas belas e mentirosas.
Agora que o assassino de Alison DiLaurentis está na cadeia e A está morta, essas garotas podem enfim relaxar um pouco. Mas mal sabem elas: eu continuarei de onde A parou. Serei uma nova versão de A, e já fiz minha própria listinha. Adivinhe quem está no topo da coluna das malvadas? É isso mesmo: Hanna, Emily, Aria e Spencer.
E como essas mentirosinhas têm sido más! Hanna foi pega furtando e deu perda total no carro do ex-namorado. Emily desafiou os pais tantas vezes que eles a mandaram para Iowa. Os beijos trocados entre Aria e seu professor de inglês depois da aula renderam a ele uma demissão. E Spencer talvez seja a mais perversa do grupo. Roubar o noivo da irmã não foi o suficiente; ela também pôs as mãos em seu trabalho escolar de economia e a empurrou escada abaixo quando Melissa descobriu o que andara aprontando. Tsc, tsc. Essas meninas maldosas merecem o pior presente de Natal possível. Felizmente, estou aqui para garantir que recebam tudo a que têm direito.
É só uma questão de tempo até que essas meninas más sujem as mãos de novo – ainda mais agora que acreditam que A está morta. Então, qual será o próximo problema em que irão se meter? Bem, eu só preciso esperar com calma... E observar. Vou observar com atenção até entender com que tipo de vadias estou lidando. Descobrirei tudo.
E uma vez que eu descubra, saberei como pegá-las de jeito.
Vamos começar com... Hanna. Essa menina passou por uma séria reviravolta. A mãe a trocou por Cingapura. O pai ausente veio morar em sua casa com sua noiva certinha e a filha perfeita dela, Kate. Pelo menos, Hanna pode contar com seu fiel namorado, Lucas. Bem... Será mesmo?
Que as espiadinhas comecem!

 

 


 

 


1
FIM DE ANO EM CASA
Ventava naquela quarta-feira no início de dezembro em Rosewood, Pensilvânia, um subúrbio bucólico a trinta e dois quilômetros da Filadélfia. Enquanto muitos moradores escolhiam e cortavam suas árvores de Natal na fazenda de pinheiros local ou enfeitavam a fachada de suas casas com guirlandas de pinha, um furgão seguia em direção a uma casa vitoriana com o nome MARIN estampado na caixa de correio. Três homens desceram e abriram a porta traseira do veículo, revelando dúzias de caixas. Tom Marin, sua noiva Isabel Randall e a filha dela, Kate, esperavam no jardim enquanto os carregadores transportavam suas coisas pela porta da frente. Hanna Marin, que vivia naquela casa desde os cinco anos, observava do corredor, roendo as unhas.
– Tenha cuidado com isso! – gritou Isabel para o homem corpulento que erguia uma caixa não muito grande. – Nessa caixa está minha coleção de bonecas antigas!
– E essa caixa vai para o andar de cima – avisou Kate a outro carregador, parecendo bem nervosa. – Aí estão todas as minhas bolsas.
Hanna disfarçou e deu uma espiada em sua futura meia-irmã, Kate, que tinha um corpo esguio, cabelo castanho brilhante e longo e grandes olhos azuis. Trazia consigo uma bolsa Chloé que Hanna tinha visto apenas nas páginas da Vogue. Quando perguntou onde Kate conseguira a bolsa, a menina vibrou dizendo que tinha sido um presente de Natal antecipado, e disparou um sorriso agradecido ao pai de Hanna. Arg.
– Hanna? – O sr. Marin passou para a filha uma caixa pequena onde se lia FRÁGIL. – Você pode levar isso até o quarto de sua mãe, ah, quero dizer, até o nosso quarto?
– Claro – murmurou Hanna, ansiosa para se afastar de Isabel e de Kate (uma das duas estava usando um perfume que a fazia espirrar o tempo todo).
Hanna subiu as escadas seguida de perto por Dot, seu pinscher miniatura. Há apenas algumas semanas, antes do Dia de Ação de Graças, sua mãe Ashley soltara a bomba: tinha aceitado um emprego em Cingapura; e Hanna não poderia acompanhá-la.
Hanna teria adorado recomeçar em outro lugar. O ano dela havia sido horrível. Fora assediada por mensagens de texto assinadas pela maligna A. Sua antiga melhor amiga, Alison DiLaurentis, desaparecida havia três anos, fora encontrada morta debaixo de uma laje de concreto, no quintal dos fundos de sua antiga casa, em setembro. Descobrira-se que Ian Thomas, o namorado secreto de Ali – por quem Hanna e as outras amigas, Spencer Hastings, Aria Montgomery e Emily Fields tiveram uma queda quando ele estava no último ano –, tinha assassinado Ali na noite da festa de pijama das garotas, no último dia de aula no sétimo ano. A polícia o prendera havia algumas semanas, e a revelação fora um enorme choque para as meninas.
Mas, em vez de estar com a mãe em um novo lugar, vivendo uma nova vida, Hanna estava presa ali, vendo o pai se mudar com sua nova família – sua esposa substituta, Isabel, a ex-enfermeira de pronto-socorro que não era, nem de longe, tão bonita e interessante quanto a mãe de Hanna, e sua espetacular enteada, Kate, que odiava Hanna e havia tomado o lugar de filha no coração do seu pai.
Hanna entrou no quarto principal, que estava vazio. Cheirava um pouco a naftalina, e tinha quatro marcas profundas sobre o carpete no lugar onde a cama de sua mãe, um móvel de fabricação dinamarquesa, moderno e elegante, costumava ficar. Quando largou a caixa em que estava escrito FRÁGIL, uma das abas de papelão abriu e deixou à mostra um estojo de joia azul com um cartãozinho em branco preso a ele.
Olhando por cima do ombro para se certificar de que ninguém estava observando, Hanna abriu o estojo. Dentro havia um medalhão de ouro branco incrustado de diamantes pequenos no centro.
Hanna respirou fundo. Aquele era o medalhão Cartier, que pertencera à sua avó, a quem todos, inclusive gente de fora da família, chamavam de Bubbe Marin. Bubbe usava-o religiosamente quando era viva, vangloriando-se de que não o tirava nem para tomar banho. Ela morreu quando Hanna estava indo para o sétimo ano, logo depois que seus pais se divorciaram. Naquela época, Hanna e seu pai não estavam se falando. Ela nunca ficara sabendo o que havia acontecido com o medalhão, ou quem o havia herdado.
Mas agora sabia. Tocou o cartão em branco e sentiu raiva. Seu pai provavelmente o daria de Natal a Isabel ou a Kate.
– Hanna? – Uma voz vinda do térreo a alcançou.
Hanna enfiou o estojo de volta, fechou a caixa e saiu para o corredor. Seu pai estava parado no pé da escada.
– A pizza chegou!
O aroma tentador de queijo derretido alcançara o nariz de Hanna. “Vou comer só meia fatia”, decidiu. Claro, seus jeans da Citizens não haviam fechado com tanta facilidade naquela manhã, mas talvez só tenham ficado na máquina de secar por tempo demais. Hanna desceu as escadas no mesmo instante em que Isabel levava a caixa de pizza para a cozinha. Já estavam todos acomodados em volta da mesa – a mesa de Hanna –, e o sr. Marin distribuiu pratos e talheres. Era estranho ele saber com exatidão qual armário e qual gaveta abrir. Mas Isabel não deveria estar sentada na cadeira de sua mãe, nem usar os guardanapos da Crate & Barrel, que eram também dela. E Kate não deveria beber da xícara de estanho que a mãe de Hanna trouxera para ela de uma viagem a Montreal.
Hanna deixou escapar outro espirro, com o nariz coçando graças ao perfume adocicado vindo de alguém. Ninguém disse “Saúde” quando ela espirrou.
– Então, quando será a nova fase de exames para admissão no colégio Rosewood Day, Kate? – perguntou o sr. Marin, que se servia de uma fatia de pizza. Infelizmente, Kate estava indo para a mesma antiga escola de Hanna.
Kate mordeu delicadamente a borda de seu pedaço de pizza.
– Daqui a alguns dias. Tenho estudado geometria e ortografia.
Isabel acenou com desdém.
– Bem, não são como as provas para entrar na faculdade. Tenho certeza de que você vai se sair muito bem.
– Vão ficar muito felizes por terem você lá. – O sr. Marin olhou para Hanna. – Sabia que Kate ganhou o prêmio Renaissance Student no ano passado? Ela foi a melhor aluna da turma em todas as matérias.
Você só me disse isso oito milhões de vezes, Hanna queria responder. Ela mordeu um pedaço de pizza para manter sua boca ocupada.
– E as notas dela eram excelentes na escola Barnbury – completou Isabel, referindo-se à antiga escola de Kate em Annapolis. – Barnbury tem melhor reputação que Rosewood Day. Pelo menos lá os alunos não ficam obcecados uns com os outros nem usam seus carros como uma arma.
Ela deu uma olhada ferina para Hanna, que buscou sem perceber outro pedaço de pizza e o enfiou na boca. Era bacana observar como Isabel no fundo culpava Hanna pelas maluquices de A, a maníaca que quase arruinara sua vida no último outono, e por manchar a reputação impecável da Rosewood Day.
Kate se inclinou e olhou para Hanna com os olhos arregalados. Hanna tinha a sensação de saber de cor qual pergunta estava por vir.
– Você deve estar arrasada por ter descoberto que sua melhor amiga era... você sabe – disse Kate, com uma voz falsamente preocupada. – Como está aguentando? – Um pequeno sorriso cruzou os lábios dela, e era óbvio que a verdadeira pergunta era: Como está lidando com o fato de sua melhor amiga ter tentado matar você?
Hanna olhou desesperada para o pai, esperando que ele pudesse acabar com aquele interrogatório, mas o sr. Marin também estava olhando para ela, preocupado.
– Estou aguentando bem – murmurou, meio rabugenta.
Não que fosse verdade. Hanna estava muito confusa com relação a Mona Vanderwaal, sua melhor amiga desde o oitavo ano, que no final se revelou como A, a pessoa que ameaçara contar todos os seus segredos, que a envergonhara em público mais vezes do que poderia contar e, sim, que ainda por cima tinha tentado atropelá-la. Ainda havia dias em que Hanna acordava, pegava o celular e começava a digitar uma mensagem de texto para Mona sobre os sapatos que usaria para a escola, antes de lembrar tudo o que acontecera. No funeral de Mona, Hanna tinha chorado de verdade, provocando assombro em seus amigos. Ela sabia que devia odiar Mona com todo o coração, e grande parte dela odiava, mesmo. Mas outra parte não podia simplesmente esquecer todo o tempo que haviam passado juntas fofocando, planejando se tornar mais populares e dando festas fabulosas. Antes de tudo o que aconteceu, Mona tinha sido uma amiga muito melhor para ela do que Ali. Hanna e Mona se viam como iguais. Mas agora ela sabia que fora tudo uma mentira.
Hanna olhou para seu prato vazio. Duas bordas devastadas de pizza repousavam em um lago de gordura, mas ela não conseguia se lembrar de ter comido o resto. Seu estômago fez um barulho pouco atraente.
O sr. Marin limpou os lábios.
– Bem, temos muito para desencaixotar. – Ele tocou o braço de Kate. – Vocês deviam fazer uma pausa. Por que você e Hanna não vão ao shopping que acabou de abrir? Qual é o nome, mesmo?
– Devon Crest – respondeu Hanna.
– Oh, ouvi dizer que esse lugar é muito agradável – arrulhou Isabel.
– Na verdade, já estive lá – disse Kate.
Isabel pareceu surpresa.
– Quando?
– Hum, ontem. – Kate brincou com a pulseira de prata da David Yurman, que ela disse ter sido um presente que ganhara da mãe por ter ganhado um concurso de redação no ano anterior. – Vocês estavam ocupados.
– Vocês duas podiam ir juntas, conhecer melhor uma à outra. – O sr. Marin olhava as duas. – Vão às compras! Comprem alguma coisa bonita para vocês! Deixem a arrumação conosco. O que acham?
Kate deu um longo gole de sua garrafa de água.
– Obrigada, Tom. Parece uma ótima ideia.
Hanna olhou de esguelha para Kate. Surpreendentemente, ela parecia ter sido sincera. Seria possível que tivesse mudado desde que Hanna a encontrara pela última vez em um jantar na Filadélfia, quando Kate contara para todos que Hanna tinha roubado comprimidos de uma clínica? Hanna tinha voltado a falar com suas antigas melhores amigas, Emily, Aria e Spencer, mas nenhuma delas gostava tanto de moda, e ela meio que estava morrendo de vontade de ter uma nova melhor amiga para substituir Mona. Mais ainda agora que ela e suas antigas amigas tinham começado a frequentar um grupo de terapia de luto. Hanna precisava de uma pausa de tudo aquilo que envolvia Ali e A.
– Acho que tenho algum tempo livre hoje – disse Hanna.
– Ótimo. Então, vão! – O sr. Marin se levantou da mesa e limpou os pratos de todo mundo. – Izz? Por qual cômodo você quer começar?
– Ugh, vamos começar com a cozinha. Não quero mais ter que beber nisso. – Ela franziu o nariz para uma das canecas favoritas de Hanna, feita de cerâmica, trazida por seus pais de uma viagem à Toscana.
Os dois deixaram a cozinha debatendo sobre a caixa em que estariam as taças de vinho. Hanna se levantou.
– Bom, posso ir quando você quiser – disse a Kate. – Você viu se a Nordstrom tem alguma coisa boa? É verdade que lá tem uma Uniqlo? Esse lugar tem suéteres de caxemira incríveis e muito baratos.
Kate soltou um grunhido.
– Meu Deus, Hanna – falou, sua expressão repentinamente venenosa. – Eu só disse que ia ao shopping para tirar seu pai e minha mãe do meu pé. Você pensou mesmo que eu iria a algum lugar com você?
Kate rebolou para fora da cozinha, seu rabo de cavalo castanho balançando. O queixo de Hanna caiu. Kate armara uma armadilha, e Hanna agira como um animalzinho idiota caminhando direto para suas mandíbulas de aço.
Kate parou no corredor, pressionou alguns botões no celular e então o levou até a orelha.
– Oi – murmurou a quem quer que estivesse do outro lado. – Sou eu. – Kate riu de maneira sedutora.
Meu Deus, ela estava ali havia apenas dois dias e já tinha um namorado! Hanna torceu o guardanapo com tanta força que ficou surpresa por não ter rasgado o tecido. “Que seja.” De qualquer modo, ela e Kate provavelmente teriam passado horas infernais no shopping mesmo. Então, ouviu uma risada vinda de algum lugar por perto. Por instinto, Hanna voltou seu olhar para as janelas, certa de que tinha visto um vulto louro deslizando por entre as árvores. Aquilo, claro, era loucura. A – Mona – estava morta.
2
ECA-TAN-BRONZE
Poucos dias depois, Hanna sentou no confortável sofá de microfibra na casa de seu namorado, Lucas Beattie, diante do brilho dourado suave da grande árvore de Natal da família. A televisão exibia a propaganda de um novo aparelho de abdominais – “Deixe seu corpo em forma no ano-novo!”, berrava o vendedor. No colo, tinham uma tigela de metal cheia de pipoca com coberturas de manteiga, queijo e caramelo.
– A adoração por Kate foi ainda pior do que de costume no jantar de ontem – murmurou Hanna, colocando outro punhado de pipoca com queijo na boca. – O único assunto de meu pai e Isabel era o maravilhoso discurso que Kate fez ano passado, na sua formatura do ensino fundamental. E Kate ficou só ali, radiante, pensando ah, sim, eu sei que sou incrível.
– Sinto muito, Han. – Lucas tomou um gole de seu refrigerante. – Será que vocês duas não podem mesmo ser amigas?
– Com certeza, não. – Hanna tinha decidido não contar a Lucas que Kate se recusara a ir ao shopping com ela. Não queria acreditar no quanto fora ingênua, caindo nos truques baratos de Kate. – Eu não quero nada com aquela garota. E acho que sou alérgica ao perfume dela; espirrei umas quinhentas vezes desde que ela se mudou pra minha casa. Aposto que vou ficar com urticária.
Ela se recostou no sofá dando um suspiro dramático e fixou o olhar no calendário do Advento com personagens da Disney, do outro lado da sala. Hanna não crescera rodeada de enfeites natalinos. Sua família era judia, e depois que seu pai se fora, ela e a mãe mal celebravam o Hanuca. Mas a mãe de Lucas era fanática por calendários do Advento – eles tinham três diferentes pendurados na geladeira, um de tecido, com animais de pelúcia em cada um de seus vinte e cinco bolsos presos ao corrimão da escada, e um pequenino, de papel brilhante, pendurado no lavabo. Lucas passou o braço em volta dela e começou a acariciar seus cabelos. Hanna fechou os olhos e suspirou, sentindo-se um pouquinho melhor.
Quando Hanna e Mona eram as melhores amigas uma da outra e governavam a escola juntas, Lucas não era bem o tipo de garoto que estaria no topo da lista de possíveis namorados de Hanna. Ele não andava com o grupo certo, não praticava um esporte popular como futebol ou lacrosse, e preferia participar de atividades extracurriculares e escotismo a frequentar baladas com o restante do pessoal nos fins de semana. Além disso, no sexto ano Ali espalhara um boato de que Lucas era hermafrodita, o que fizera com que todos o enquadrassem no grupo dos esquisitos. Mais recentemente, Mona tinha zombado da amizade de Hanna com Lucas e ainda dissera que aquilo afetaria a popularidade delas.
Mas Mona e Ali tinham morrido, e Lucas acabara se revelando o melhor dos namorados. Quantos caras ouviriam, por horas, as lamúrias dela sobre como Mona a apavorara, ou sobre o quanto sua nova situação familiar era horrível? Quantos caras abririam a porta para ela numa noite como aquela, veriam seus jeans justos demais e sua camiseta enorme dos Philadelphia Eagles, e mesmo assim diriam que ela estava atraente?
– Posso me refugiar na sua casa? – implorou Hanna. – Não sei se consigo voltar para lá.
– Isso seria incrível – disse Lucas –, mas...
– Vai ser incrível – cortou Hanna, ajeitando-se no sofá. – Nós podíamos fazer um monte de coisas depois da escola, ir ao Rive Gauche toda noite, vestir umas roupas chiques e entrar de fininho na festa de Natal do Rosewood Country Club...
Lucas mordeu o lábio inferior.
– Hanna, eu...
– Talvez meu pai até me deixe passar a noite aqui! – acrescentou Hanna, ficando cada vez mais animada. – Posso dizer que minha alergia ao perfume de Kate é muito séria. Você acha que seus pais acreditariam? Eu podia dormir no quarto de hóspedes... E, então, talvez você pudesse ir lá escondido no meio da noite! – Ela deu uma piscadinha.
– Hanna. – O cabelo louro-pálido de Lucas caiu no rosto quando ele se sentou. – Calma. A verdade é que... Bem, estou indo viajar. Amanhã.
Hanna piscou.
– Viajar?
– Meu pai me contou agora. É um presente adiantado de Natal. Ele vai levar a família toda em uma viagem de quatorze dias pela península Iucatã. Iremos com o melhor amigo de faculdade do meu pai e a família.
De repente, Hanna sentiu um gosto amargo na boca.
– Quatorze dias? Você quer dizer... duas semanas?
– Hã-rã. – Lucas lançou-lhe um pequeno sorriso. – Estou muito empolgado.
– Mas ainda temos aula! – disse Hanna com a voz um pouco esganiçada, comendo outro punhado de pipoca. Ainda era dia 7 de dezembro. O feriado de Natal dos alunos de Rosewood Day só começaria dali a semanas. – Por que seu pai não espera até as férias de inverno?
Lucas deu de ombros.
– Ele e o amigo conseguiram um ótimo desconto nas passagens de avião e nas diárias do hotel. E meu irmão vai voltar da faculdade por alguns dias também. Meu pai conversou sobre isso com o pessoal de Rosewood Day, e ficou decidido que farei os exames entre o Natal e o ano-novo. Pelo menos, estarei de volta para passar a maior parte do feriado com você. – Lucas pegou as mãos dela entre as dele com carinho. – E então, poderemos passar cada minuto juntos.
Hanna saltou suas mãos, sentindo um enorme nó na garganta.
– Mas preciso de você agora.
Lucas jogou as mãos para cima, impotente.
– Me desculpe, mas faz anos que eu quero ir a Iucatã. Há trilhas incríveis por lá. Ótimas praias. E não tem como meus pais mudarem as passagens agora.
Antes que ela pudesse dizer mais alguma coisa, a campainha tocou ao som de “Jingle Bells”.
Lucas se levantou e abriu as cortinas da janela da frente. Um utilitário azul estava estacionando na entrada de carros.
– São os Rumson, a família com a qual viajaremos. Foram eles que bolaram a viagem. Você vai gostar deles, Hanna, e aposto que você e Brooke têm muito em comum.
– Brooke? – perguntou Hanna com cautela, sem se levantar do sofá.
O sr. Beattie, vindo da cozinha, abriu a porta e deixou uma corrente de ar frio entrar.
– Wade! Patricia! Quanto tempo!
A sra. Beattie veio do andar de cima, sorrindo para os convidados.
– Estamos tão animados! – gritou ela para o casal, que tinha acabado de entrar. – Lucas também! – Ela empurrou Lucas na direção deles. O marido, Wade, que usava um casaco Burberry e tinha dentes branquíssimos, apertou a mão de Lucas. A esposa, Patricia, cuja magreza dos braços era evidente mesmo debaixo de seu confortável casaco de caxemira, beijou Lucas no rosto.
– Ah. Meu. Deus! – disse uma voz vinda da varanda. Os adultos se afastaram, e uma adolescente superbronzeada, assustadoramente magra, mascadora de chiclete, com cabelo preto longo e provocante, gloss vermelho e seios arrebitados marchou até Lucas e colocou as mãos e as unhas compridas em seus ombros. – Lukey! – gritou ela com uma voz nasalada. – Você está maravilhoso, uau!
Lukey?
– Caramba. Brooke. – Lucas sorriu trêmulo. – Você está... diferente.
Os Rumson cutucaram os Beattie.
– Vocês dois cresceram um pouco desde a última vez que nos vimos, não é? – disse a sra. Rumson.
– Lembram o tipo de encrenca em que esses dois costumavam se meter? – cacarejou a mãe de Lucas. – Lembram todos aqueles clubes secretos que eles criavam?
– Eles eram inseparáveis. Eu sempre disse que se casariam algum dia – murmurou a sr. Rumson, e então os adultos foram para a cozinha.
A cabeça de Hanna se ergueu depressa. Casar?
Brooke cutucou o ombro de Lucas.
– Quando você disse que eu parecia diferente, espero que tenha me achado maravilhosa! – Ela deslizou suas unhas pela camiseta de Lucas e depois deixou suas mãos se pendurarem na cintura da calça dele. – Ei, parece que alguém por aqui tem malhado, não é? E onde você conseguiu essas novas roupas sexy?
– Hã-hã – Hanna se levantou e foi até o corredor. Aquela paquera já tinha ido longe demais. Ela é que tinha encorajado Lucas a comprar aqueles jeans True Religion e aquela camisa polo Armani Exchange que ele estava vestindo.
– Ah. – Lucas olhou para Hanna. – Brooke, essa é minha namorada, Hanna.
– E aí? – Brooke analisou o cabelo ainda por lavar de Hanna, sua velha camisa dos Eagles, e a suja e velha calça Sevens. O pensamento que cruzou seu rosto dizia: ela não é nenhuma ameaça. Brooke chegou ainda mais perto de Lucas. – Você não está empolgado com a nossa viagem, Lucas? Ouvi dizer que as festas na praia são incríveis. E mal posso esperar para cuidar do meu bronzeado.
Hanna apertou os lábios para não rir. Aquela garota já estava tão alaranjada que parecia ter nascido em uma cabine de bronzeamento.
– Acho que vai ser o máximo – disse Lucas. – Eu estava falando sobre isso com Hanna. Eles têm as melhores trilhas, vistas lindas, e a comida...
– ...e uma praia de nudismo – acrescentou Brooke, passando a língua nos lábios.
– Hum, como é? – perguntou Hanna.
Brooke se pendurou no ombro de Lucas.
– Vai ser a melhor viagem da sua vida, Lukey; todo mundo se bronzeando nu na praia. Você e eu faremos drinques de gelatina toda noite.
A pipoca com queijo pareceu estacionar na garganta de Hanna. Ela precisava dar um basta naquilo.
– Hum, eu preciso falar com você, Lucas – disse ela, arrastando o namorado pelo braço para um canto da sala cheio de caixas de videogames, revistas velhas e mais três calendários do Advento, cada um deles parecendo ter sido pintado inteiramente com tinta puff.
Havia um sorriso inocente no rosto de Lucas.
– Tudo bem, Hanna?
Se estava tudo bem? Hanna respirou fundo algumas vezes para se acalmar.
– O que você acha, Lukey?
Lucas passou a mão pelo cabelo.
– É, Brooke costumava me chamar assim quando era pequena. Ela não conseguia falar “Lucas”.
– É horrível. Parece nome de doença – disse ela. Lucas estava indo, Hanna pensou, para a península de Eca-tan com a própria princesa Eca-Bronze.
Lucas deu de ombros.
– É só um apelido besta.
Hanna entrefechou os olhos.
– Você está mesmo indo passar as férias com... ela?
– Você está com ciúmes? De mim? – Lucas sorriu como se aquela fosse a coisa mais divertida que ele já tivesse ouvido. – Hanna, você não tem com que se preocupar. Brooke é como uma prima.
“Tem gente que namora os próprios primos, ainda mais quando eles tomam banho de sol pelados”, pensou Hanna cheia de ressentimento.
Ela olhou para Brooke na outra sala. A menina se olhava no espelho perto da porta, franzindo os lábios e passando mais gloss. Se Mona estivesse ali, elas poderiam se unir para tirar sarro do adesivo brega das unhas de Brooke. Se Ali estivesse ali, ela daria um gelo em Brooke e a faria se sentir a maior idiota do universo.
Um peso se instalou no coração de Hanna. Namorar um garoto popular vinha com seus perigos e incertezas, mas ela nunca havia imaginado que teria de se preocupar com outras garotas dando em cima de um nerd como Lucas. E o pior, por não estar acostumado a ter vadias se jogando regularmente sobre ele, tirando suas blusas e o tentando com bebidas, Lucas não tinha imunidade contra esse tipo de coisa. Muitas pessoas tinham saído da vida de Hanna nos últimos anos; seu pai, seu ex-namorado Sean Ackard, Ali, Mona, sua mãe. Tudo o que ela queria era alguém estável, que ficasse por perto para sempre. Mas agora até mesmo Lucas parecia tão incerto... e não havia nada que ela pudesse fazer para impedi-lo de ir.
3
VELHOS HÁBITOS SÃO DIFÍCEIS DE MUDAR
Hanna desviou de Brooke, saiu pela porta sem olhar para trás e acelerou seu carro elétrico o máximo que pôde para deixar a entrada de carros da família Beattie. Ela não queria ouvir nem mais um segundo sobre planos para bronzeamentos perfeitos, drinques de gelatina ou frases que davam a entender que Brooke tentaria ir para a cama com Lucas.
Seu celular tocou assim que ela virou a esquina no fim da rua de Lucas. O nome dele apareceu na tela. Hanna pensou em não atender, mas suspirou, apanhou o aparelho e disse alô.
– Você não tem com o que se preocupar – disse Lucas, aflito. – Eu juro.
Hanna não respondeu, apertando o volante com tanta força que achou que ia acabar com bolhas nas mãos.
– Meu pai acabou de me dizer que o hotel onde vamos ficar tem internet wireless. Podemos conversar pelo Skype todo dia, e vou mandar montes de fotos e dizer o quanto adoro você no Facebook a toda hora.
– Que tal toda hora mesmo, de hora em hora? – Se Lucas estivesse o tempo todo em contato com ela, não poderia arrumar muita encrenca, poderia? – E prometa me trazer um presente; algo bom. E não ouse olhar para os peitos de nenhuma garota nessa tal praia de nudismo.
Alguns minutos depois, quando eles se despediram e desligaram, ela se sentiu um pouco melhor. Hanna dirigiu pelas ruas de Rosewood, e o barulhinho do aquecedor era o único som no carro. Ao entrar no centro de compras lotado, notou faróis entrando na rua atrás dela. Eles a seguiram enquanto ela passava pela escola, pelas vitrines iluminadas do Otto – o restaurante italiano chique – e o mercado Fresh Fields. A cada esquina em que Hanna virava, observava que o outro carro continuava lá, bem atrás dela. Olhou pelo retrovisor para a silhueta escura atrás do volante, seu coração começando a bater mais rápido. Será que estava sendo seguida? E se fosse Ian? E se ele tivesse escapado da prisão? Estacionou perto de um cruzamento e esperou. O outro carro foi em frente, sem reduzir, e ela respirou aliviada.
Hanna olhou para a placa da rua e percebeu onde havia parado. Era a antiga rua onde Mona morava. Ali também vivera naquele lugar.
Algumas casas no quarteirão já estavam decoradas para as festas de fim de ano. A propriedade dos Hastings tinha luzinhas piscando em torno de todo o telhado. A casa de Jenna Cavanaugh tinha velas solenes nas janelas. A antiga casa de Ali, onde agora vivia outra família, tinha uma guirlanda iluminada na porta. O santuário de Ali, que amigos e desconhecidos haviam montado pouco depois que o corpo dela fora encontrado, ardia na calçada. Ninguém sabia quem mantinha as velas acesas.
A casa dos Vanderwaal estava escura. Hanna mal podia distinguir a enorme garagem para cinco carros, aquela que ela e Mona haviam subido e em cujo telhado escreveram HM + MV + MMMMM APS, em grandes letras brancas.
– Jure que nós nunca seremos nada menos que as melhores amigas – pedira Mona quando acabaram e estavam lavando a tinta branca das mãos com a mangueira verde do jardim.
– Eu juro. – Hanna fizera um juramento solene. Ela acreditava em Mona de todo coração.
Agora Hanna queria jogar uma bomba naquela garagem. Ou subir lá e deixar um buquê de flores em memória de Mona. Suas emoções oscilavam tanto de uma hora para outra que era difícil saber o que ela sentia.
E então, involuntariamente, a lembrança do carro que avançara sobre ela no estacionamento dois meses antes surgiu em sua mente. Hanna tentou escapar, mas o carro vinha depressa demais. Ela se lembrou do terror intenso e opressivo que sentira quando soube que o carro ia atingi-la. Que Mona ia atingi-la.
– Não pense nisso – sussurrou para si mesma.
Hanna dirigiu devagar pelo restante do caminho até em casa, respirando fundo para se acalmar. Ao partir em direção à garagem da família, quase bateu em uma fila de carros desconhecidos. Devia haver uns quinze sedãs, utilitários e off-roads parados na entrada circular. Então ela notou alguma coisa piscando perto da garagem. Luzes de Natal. E seriam aquelas coisas no jardim um Papai Noel fosforescente e um biscoito de gengibre gigante, de plástico inflável?
Hanna deu passos cautelosos na direção da casa. Dot, usando algum tipo de chapéu bizarro, ganiu aos seus pés quando ela entrou. Espere aí. São chifrinhos de rena na cabeça de Dot? Hanna pegou o cãozinho e olhou fixamente para os dois galhinhos de pelúcia em sua cabeça. Cada um tinha um guizo na ponta.
– Quem fez isso com você? – sussurrou Hanna, arrancando os chifrinhos. Dot só lambeu seu rosto.
Ela olhou em volta, na sala de estar, e ficou sem fôlego. Havia folhas de azevinho enroscadas na balaustrada. Uma Mamãe Noel mecânica acenando de um aparador onde antes costumavam ficar os austeros vasos de cerâmica da mãe dela. Uma árvore alta e coberta de festões ocupava um canto, e a lareira, que Hanna não se lembrava de já ter sido usada, estava acesa. “Rudolph, a rena do nariz vermelho” tocava no último volume, e a casa toda cheirava a tender caramelado.
– Olá? – gritou.
Risos vindos da cozinha a alcançaram, primeiro o grasnido de ganso de Isabel, depois a gargalhada estrondosa do pai de Hanna. Ela entrou na cozinha. Estava lotada de pessoas segurando taças de champanhe e pratinhos de petiscos cheios de miniquiches e pedaços de queijo Brie. Muitas usavam gorros de Natal, inclusive seu pai. Isabel estava em um canto, de vestido de veludo vermelho com detalhes de pele nos punhos e na bainha, como se fosse a Mamãe Noel, e Kate usava um vestido vermelho colante e sapatos Kate Spade de salto alto, parte pretos, parte brancos. Havia azevinho pendurado num lustre, uma jarra de cidra temperada em cima do balcão, e pratos e mais pratos enchiam a ilha no centro da cozinha, repletos de deliciosos biscoitos de Natal e de aperitivos.
Isabel viu Hanna e deslizou até ela.
– Hanna! ¡Feliz Navidad! O Tannembaum! Feliz Natal!
Hanna fungou.
– Hã, na verdade eu sou judia. E meu pai também.
Isabel piscou, com ar tolo, como se não pudesse entender que alguém, ainda mais seu próprio noivo, pudesse celebrar alguma coisa que não fosse o Natal.
O sr. Marin se materializou ao lado de Isabel.
– Oi, meu bem – disse ele, bagunçando o cabelo de Hanna. Ela olhou para ele, incrédula.
– Desde quando você comemora o Natal? – perguntou ela, pronunciando a palavra como se fosse O aniversário de Satã.
O sr. Marin cruzou os braços sobre o peito, na defensiva.
– Venho comemorando com Isabel e Kate nos últimos anos. Eu disse a Kate para contar a você.
– Bem, ela não contou – disse Hanna, sem emoção.
– Celebramos os Doze Dias de Natal todo ano. Sempre começamos com uma festa. – Isabel tomou um gole de champanhe. – É uma tradição maravilhosa. Começamos cedo este ano, hoje estamos comemorando a nova casa e o início da temporada natalina.
– E gostaríamos que você também se juntasse à tradição, é claro – acrescentou o sr. Marin.
Hanna olhou para toda a parafernália verde e vermelha. Sua família nunca havia sido muito religiosa, mas acendia as velas da menorá a cada noite de Hanuca. No Natal, pediam comida chinesa, viam uma porção de filmes e davam longos passeios de bicicleta em família, se o tempo estivesse bom. Ela gostava dessas tradições.
A campainha tocou, e Isabel e o sr. Marin foram para a porta da frente. Hanna foi até a mesa de bebidas, perguntando-se se seria repreendida se tomasse um copo gigante de uísque. Então, uma figura conhecida, encapsulada em vermelho, flutuou para dentro de seu campo de visão.
– Roupa interessante para uma festa. – Kate mediu com os olhos o pulôver largo dos Eagles que Hanna estava usando. – Essa festa é importante para Tom, sabe? Vários de seus novos colegas do trabalho estão aqui. Você podia ter se esforçado um pouco mais.
Hanna queria bater na cabeça de Kate com um dos bastões de salaminho do bufê.
– Eu não sabia que haveria uma festa.
– Ah, não? – Kate ergueu uma sobrancelha perfeitamente desenhada. – Eu soube há uma semana. Acho que me esqueci de contar para você.
Dito isso, ela se virou e se afastou. Hanna agarrou um canapé e enfiou na boca sem nem sentir o gosto, observando o pai do outro lado da sala. Ele estava conversando com um homem grisalho de terno preto e uma mulher esguia com enormes brincos de brilhantes. Quando Kate se aproximou deles, o sr. Marin pôs a mão em seu ombro e a apresentou, orgulhoso. Mas ele não se virou para gesticular para Hanna, para apresentá-la também.
Ela era apenas uma grande e indesejada massa disforme num pulôver dos Eagles. Uma garota que não era convidada para as festas de sua própria casa. Hanna se sentiu como a Dama, de A Dama e o Vagabundo, um de seus filmes favoritos na infância. Quando Jim e Querida tiveram um bebê, deixaram Dama de lado. Só que Hanna nem tinha um vira-lata rebelde e despenteado com quem pudesse fugir e comer espaguete, porque seu suposto namorado estava prestes a viajar centenas de quilômetros de distância para pegar sol em uma praia de nudismo com uma oferecida.
Ela se deixou cair numa cadeira no canto mais distante, perto de Edith, uma senhora idosa do fim da rua, que usava óculos gigantescos e sempre parecia que tinha acabado de engolir a dentadura.
– Quem é? – perguntou Edith, inclinando a cabeça na direção da cadeira de Hanna. Ela cheirava levemente a violeta.
– Hanna Marin – disse Hanna, bem alto. – A senhora se lembra de mim?
– Oh, Hanna, sim, claro. – Edith tateou em busca da mão de Hanna e lhe deu palmadinhas amistosas. – Bom ver você, querida. – Ela deslizou pela mesa um prato de biscoitos com gotas de chocolate enrolados em filme plástico. – Coma um biscoito. Eu mesma fiz. Tentei colocar na mesa com as outras coisas, mas a nova mulher que vive aqui pareceu não querê-los lá. – Ela enrugou o nariz como se tivesse cheirado algo estragado.
– Obrigada – murmurou Hanna, com vontade de beijar Edith por ela também não gostar de Isabel. Ela colocou um biscoito na boca, quase desmaiando com o sabor do açúcar, manteiga e chocolate. – Estão uma delícia.
– Fico feliz que você tenha gostado. – Edith empurrou outro biscoito em sua direção. – Coma outro. Você está muito magrinha.
Edith já dizia que Hanna estava muito magrinha quando ela era uma fracassada gorda e feia, mas, ainda assim, aquela era uma coisa boa de se ouvir. O açúcar a acalmou. Um terceiro biscoito talvez até a fizesse se sentir eufórica. Você não devia, Hanna!, disse uma voz em sua cabeça. Você comeu um monte de pipoca na casa do Lucas. Está usando seus jeans de gorda, e até eles estão apertados.
Mas os biscoitos tinham um cheiro tão bom... Hanna olhou para a sala e viu Kate sorrindo para outro dos colegas de seu pai, e algo dentro dela se quebrou. Não faça isso, ela tentou dizer a si mesma, mas suas mãos pareciam se mover por vontade própria, embrulhando seis biscoitos num guardanapo. Suas pernas também estavam se movendo sozinhas, levantando-a da cadeira e fazendo com que passasse entre os convidados. Hanna só chegou até a escada deserta para então abrir o guardanapo e começar a enfiar os biscoitos na boca, um por um. Ela mastigava e engolia com desespero. Migalhas caíam em seu peito. Chocolate derretido sujava seus dedos e sua boca. Era como se houvesse algo dentro de seu peito dizendo que ela só poderia parar de comer quando terminasse o último biscoito. Que só assim estaria satisfeita.
Era exatamente isso que acontecera quando Hanna conheceu Kate e Isabel em Annapolis: ficara tão nervosa e sem jeito que a única coisa que a acalmara foram as enormes quantidades de comida que devorou. Kate e Ali, que Hanna convidara para a viagem, olhavam para ela como se não fosse humana. E quando Hanna se dobrou com dor de estômago, o sr. Marin disse, querendo fazer graça: Minha porquinha comeu demais?
Aquela fora a primeira vez que Hanna se obrigara a vomitar – a primeira de muitas. Ao longo dos anos ela se esforçara de verdade para parar com aquilo, mas às vezes era difícil abandonar velhos hábitos.
Uma gargalhada aguda veio do corredor, e Hanna ficou de pé num pulo. Pareceu o riso de Ali. Quando olhou pela janela, podia jurar ter visto algo se movendo nos arbustos.
Hanna olhou para a escuridão. Então sentiu olhos fixos em suas costas e se virou. Seu pai e Kate estavam olhando para ela da cozinha.
Seus olhos foram da boca suja de chocolate de Hanna às migalhas em seu peito e aos biscoitos em suas mãos. Kate sorriu com desprezo. O sr. Marin franziu as sobrancelhas. Por fim, ele levou as mãos ao rosto e fez um gesto indicando que ela limpasse a boca. Hanna limpou um pedaço de chocolate preso à sua bochecha. Kate virou o rosto e tampou a boca, abafando uma risada.
Os biscoitos que restavam caíram de sua mão. Com o rosto ardendo, Hanna fugiu escada acima e bateu a porta do quarto, dando o dedo médio para os gritos de alegria dos convidados e para a música de Natal de Bing Crosby. Ela havia acabado de ter comemoração de Natal o suficiente para o resto da vida.
4
VOCÊ NUNCA MAIS VAI TRABALHAR NESTE SHOPPING
Terça-feira, depois da escola, Hanna empurrou as portas duplas com uma saudação pintada no vidro: BEM-VINDOS À GRANDE INAUGURAÇÃO DO SHOPPING CENTER DEVON CREST! Ela entrou no enorme átrio e respirou fundo. O ar ali cheirava a uma mistura de pretzels da Auntie Anne’s, café da Starbucks e uma variedade de perfumes. Uma fonte grande gorgolejava, e garotas bem-vestidas desfilavam por ali, carregando sacolas da Tiffany & Co., Tory Burch e Cole Haan. Era parecido com o shopping King James, o lugar que Hanna costumava frequentar, porém diferente o bastante para não despertar nenhuma lembrança das muitas vezes em que ela fizera compras com Mona.
Só de estar cercada por lojas, Hanna já se sentiu melhor. Ela devia ter visitado o shopping novo antes, mas não tivera tempo. No dia anterior, como parte das celebrações dos Doze Dias de Natal, tinha ido com o pai, Isabel e Kate a uma apresentação do “Messias” de Händel em Villanova. Zzzzzzzz. No dia anterior, toda a família participara de uma degustação de gemada na loja Williams-Sonoma local, e, para a tristeza de Hanna, ela e Kate só puderam beber a versão sem álcool, que tinha gosto de leite de soja rançoso. Esta noite, o pai e Isabel tinham a intenção de levá-las a uma loja de departamentos na Filadélfia para ver alguma iluminação de Natal idiota, mas a loja tinha sido fechada por causa de uma infestação de carrapatos. Ah, que perda irreparável.
Agora, Hanna estava passando por uma área com cadeiras, um pequeno café que vendia 208 diferentes tipos de chá e uma padaria com produtos sem glúten. Ela checou o celular de novo para ver se Lucas havia ligado ou mandado mensagem, mas não havia um único e-mail, mensagem de voz ou tweet. Ele tinha viajado dois dias antes e já esquecera sua promessa de dar notícias todos os dias.
Bem, que fosse. Podia confiar em Lucas. Certo? Hanna levantou a cabeça, tentando ficar calma, e parou para olhar a lista de lojas do shopping. Havia uma Otter, sua butique favorita. Ela afogaria suas frustrações comprando a roupa mais incrível do universo.
– Ei, bonitinha.
Hanna virou a cabeça para procurar o universitário que certamente teria feito o comentário, mas não havia ninguém lá. Em vez disso, viu uma réplica da casa do Papai Noel, repleta de bengalinhas de caramelo infláveis, uma casa de pão de mel e uma porção de elfos parecendo entediados e com idade suficiente para estarem na universidade, usando sapatos e chapéus pontudos e caras de tédio.
Papai Noel estava sentado num trono dourado, com o gorro torto.
– Belo sorriso, princesa – disse a voz outra vez, e Hanna percebeu que era o Papai Noel quem estava falando. Ele acenou com sua luva branca, chamando-a: – Quer sentar no meu colo?
– Credo! – sussurrou Hanna, saindo dali rapidinho. Ela continuou ouvindo seu ho-ho-ho até chegar à escada rolante.
A entrada da Otter brilhava no fim do corredor, como um redentor farol da moda. Hanna entrou decidida, balançando a cabeça ao ouvir o som lounge daquele ambiente. Pegou uma echarpe de seda e a pressionou contra o rosto. Depois sentiu o cheiro dispendioso das bolsas Kooba de couro amanteigado e passou os dedos pelos leggings e vestidos de chiffon de amarrar na cintura, da Marc Jacobs. Seu coração já batia mais devagar. Ela podia praticamente sentir seus níveis de estresse caindo.
– Posso ajudar? – cantarolou alguém. Uma vendedora lourinha, usando saia lápis de cintura alta e com a mesma blusa de seda de poá que Hanna estava paquerando na arara, surgiu a seu lado. – Procurando alguma coisa específica?
– Sem dúvida, eu preciso de jeans novos. – Hanna deu palmadinhas em um par de skinny jeans J. Brands em cima da mesa. – E talvez este vestido, e isto – disse, mostrando um cardigã de gola xale em caxemira, da Alice + Olivia.
– Ah, ele é lindo – derramou-se a vendedora. – Você tem muito bom gosto. Quer que eu separe algumas coisas e prepare um provador enquanto você dá uma olhada no restante da loja?
– Claro – disse Hanna.
– Ótimo. – A vendedora olhou Hanna de cima a baixo, e meneou a cabeça. – Deixe tudo comigo. Aliás, eu sou Lauren.
– Hanna – sorriu ela. Parecia o início de uma bela amizade. Talvez Lauren pudesse separar as peças novas para ela experimentar antes que outras garotas tentassem colocar suas mãozinhas sujas nelas, como Sasha, a vendedora da loja Otter do shopping King James, costumava fazer para Hanna.
Ela percorreu toda a loja escolhendo vários suéteres e vestidos. Lauren escolheu outras coisas que achou que Hanna iria gostar, inclusive uma pilha de jeans, e levou tudo para os fundos da loja. Quando Hanna estava pronta para provar as roupas, ela notou que Lauren havia escolhido o maior provador para ela. Três outros estavam ocupados, mas eram bem menores, como se as garotas neles não fossem tão importantes quanto ela.
Hanna fechou a cortina, ajeitou o cabelo e olhou para as belezinhas penduradas em cabides no provador. Estava na hora de fazer um belo estrago nos cartões de crédito. Mas de repente seu olhar congelou na etiqueta de uma das leggings que Lauren escolhera para ela, e que estava em cima da cadeira estofada com tecido xadrez.
Tamanho quarenta e dois.
Ela franziu a testa e examinou o próximo par na pilha de Lauren. Também era quarenta e dois. Hanna olhou as etiquetas dos vestidos que Lauren havia selecionado. Também eram quarenta e dois. Não há nada errado em ser tamanho quarenta e dois – para a maioria das garotas –, mas Hanna não usava esse número desde a época de sua grande mudança, junto com Mona, no oitavo ano.
– Hã, Lauren? – Hanna pôs a cabeça para fora do provador. Lauren apareceu no final do corredor, e Hanna sorriu para ela, tentando parecer calma. – Acho que houve um engano. Eu visto trinta e oito.
Uma expressão desconfortável apareceu no rosto de Lauren.
– Eu acho que você devia experimentar o tamanho quarenta e dois, sério. As leggings da J. Brand são bem apertadas.
Hanna se irritou.
– Tenho três pares de calças J. Brand. Sei exatamente como são os tamanhos delas.
Lauren apertou os lábios. Um longo instante passou, e alguém em um dos outros provadores fungou.
– Tudo bem – disse Lauren depois de um momento, dando de ombros. – Vou ver se temos tamanho trinta e oito e quarenta no estoque.
A cortina se fechou de novo. Enquanto Lauren caminhava pelo corredor, Hanna jurou ter ouvido uma risadinha. Será que Lauren estava rindo dela? As garotas nos provadores vizinhos tinham ficado muito caladas, quase como se estivessem escutando – julgando.
Lauren voltou em poucos segundos com os novos jeans. Hanna os tomou de suas mãos e fechou a cortina de novo, com um tranco. Como aquela vendedora idiota ousara rir dela! E como tinha olhado Hanna de cima a baixo e apenas presumido que ela usava quarenta e dois? As vendedoras não deviam ter uma noção exata do manequim de cada cliente? Não passavam por algum tipo de treinamento? Hanna nunca havia sido tratada com tamanha falta de consideração na outra Otter. Assim que saísse dali, ia ligar para a diretoria da rede para reclamar.
O brim dos jeans tamanho trinta e oito era macio em torno de seus tornozelos. Hanna os puxou pernas acima, mas, quando chegou às coxas, o tecido de algodão não cedia. Hanna se olhou no espelho. Era óbvio que aquele par estava com defeito.
Ela se desvencilhou da calça trinta e oito e experimentou a tamanho quarenta. Esta ela conseguiu vestir até cobrir o traseiro, mas não abotoava de jeito nenhum. Que diabos estava acontecendo?
Como último recurso, Hanna provou o tamanho quarenta e dois que Lauren escolhera para ela. Fechou o botão e olhou para si mesma no espelho. Suas pernas pareciam inchadas. Uma minúscula porção de gordura se debruçava por sobre o cós. As costuras se esticavam, tão tensas que pareciam que iriam explodir a qualquer momento. O coração de Hanna começou a bater forte. Será que todos esses jeans poderiam estar defeituosos?
Ou será que ela engordara?
Hanna pensou nos biscoitos que comera na festa de Natal. E nas sobras da festa com que ela havia se empanturrado na noite anterior enquanto via televisão em seu quarto, escondida do pai, de Isabel e de Kate. E nos pedaços de bolo de chocolate que pegara da caixa aberta em cima da ilha da cozinha, quando passou por lá.
Sua pele começou a se arrepiar. Ela se sentiu a um passo de voltar a ser a pobre coitada feia, gordinha e boboca que tinha sido antes que Ali ficasse sua amiga, no sexto ano. Olhou de novo para seu reflexo no espelho e, por meio segundo, viu uma menina com cabelo marrom-cocô, elásticos de borracha cor-de-rosa no aparelho dos dentes e espinhas na testa. Era a antiga Hanna, a garota que ela havia jurado nunca, nunca voltar a ser.
– Não – disse Hanna, num sussurro abafado, cobrindo os olhos com as mãos e se afundando na cadeira.
– Hanna? – Os saltos plataforma de Lauren apareceram sob a cortina. – Está tudo bem?
Hanna conseguiu produzir um Sim espremido, mas tudo estava muito, muito longe de estar bem. De repente, parecia que tudo em sua vida estava saindo do controle. E ela precisava fazer algo a respeito. Rápido.
5
DESCENDO DO MONTE OLIMPO
Na manhã seguinte, Hanna fez vários ciclos de elíptico na Body Tonic, a academia chique que ela frequentava desde o oitavo ano. Cada aparelho de ginástica tinha uma televisão embutida com zilhões de canais a cabo, um bar de sucos e um Spa ficavam ao lado da recepção, e nos vestiários havia uma sauna a vapor de eucalipto, uma banheira de hidromassagem e produtos da Kiehl’s em todos os chuveiros. Ao redor dela, homens e mulheres em forma, e um ou outro estudante de uma das muitas escolas particulares de elite na área corriam nas esteiras, pedalavam nas bicicletas reclinadas ou faziam agachamentos de aparência ligeiramente vulgar em bolas suíças. Uma aula de ioga estava acontecendo na sala de exercício nos fundos, e naquele exato momento a turma estava tentando fazer a posição de meia-lua, seus corpos assumindo formas de cruz, as pernas tremendo.
O suor escorria para os olhos de Hanna, seus braços e pernas queimavam, e ela acabara de ver uma notícia preocupante na televisão, que mostrava Ian Thomas na cadeia alegando inocência. Mas não podia parar de se exercitar agora. De forma alguma iria permanecer em um manequim quarenta e dois. Hanna nunca mais permitiria que uma vendedora risse dela outra vez.
Seu celular vibrou, e ela se apressou em atender, checando mais uma vez para ver se Lucas havia ligado, mandado uma mensagem de texto, postado no Facebook, qualquer coisa, mas era apenas Aria, pedindo para pegar emprestadas as anotações que Hanna fizera na aula de inglês.
Ela sentiu o peito apertado. Isso a fazia se sentir uma coitada, mas sentia falta de Lucas, e não parecia que ele sentia falta alguma dela. Jogou o celular de volta no pequeno suporte plástico usado para garrafas de água e aumentou a resistência do aparelho mais alguns pontos. Não importava. Iria perder uns cinco quilos, ficar fabulosa de novo, e não demonstraria nenhum afeto quando Lucas voltasse.
Por outro lado, pensou, e se Lucas nem ligasse para ela quando voltasse? E se ele tivesse decidido trocá-la pela princesa Eca-Bronze?
– Você está mesmo correndo atrás, hein?
Hanna deu um pulo, olhou para baixo e viu um rapaz forte em uma camiseta justa da academia, bermudas DryFit e tênis New Balance cinza, de pé ao lado do aparelho em que estava. Ele tinha os olhos mais azuis que ela já vira, cabelo escuro bem curtinho e pele linda e bronzeada, e seus músculos saltavam, mas sem fazer com que ele parecesse um marombeiro fanático. Hanna o reconheceu na hora; quando ela e Mona iam juntas à Body Tonic, tinham apelidado esse garoto de Apolo, por motivos óbvios. Ele passeava pela sala, sorrindo para as garotas, de vez em quando levantando um peso ou fazendo um abdominal, e treinando toda a clientela feminina super-rica de Main Line, como era chamado o grupo de subúrbios esnobes da Filadélfia. Mas o melhor havia sido quando elas o tinham flagrado sentado dentro do carro no estacionamento, ouvindo “Stairway to Heaven” e fazendo de conta que o volante era a bateria. Apolo era um panaca reformado, igualzinho a Hanna e Mona.
Hanna olhou para trás para ver se Apolo estava falando com alguma outra pessoa, mas ela era a única na fileira de elípticos.
– Hum, o que você disse? – perguntou, tentando parecer à vontade. Desejou ter trazido uma toalha de mão para enxugar o rosto.
Apolo sorriu e mostrou o visor de LCD no aparelho de Hanna.
– Você está se exercitando faz oitenta minutos. É bem pesado.
– Ah. – Hanna continuou pedalando. – Estou tentando retomar a forma. Fui a muitas festas de fim de ano. – Ela riu, sem jeito, e ficou se xingando em silêncio por ter chamado a atenção dele para seu traseiro de devoradora de biscoitos de Natal.
– Fim de ano é uma época complicada mesmo. – Apolo encostou-se ao aparelho ao lado do dela. – Estou montando um retiro de fitness que começa hoje. Foi criado especificamente para ajudar as pessoas nesta época do ano. É focado em exercícios, nutrição e bem-estar mental.
– Parece incrível – disse Hanna. Kirsten Cullen, uma garota que ela conhecia da escola, tinha ido para um retiro desses em St. Barts nas férias entre o nono e o décimo anos e voltado cinco quilos e meio mais leve e com a pele mais perfeita de todos os tempos.
– Um retiro onde?
– Ah, lugar nenhum – Apolo sorriu para ela, sem jeito. – Nós fazemos aqui mesmo na academia. Mas você vai se sentir viajando. E ótima, no final. Você quer se inscrever?
Hanna olhou para seu reflexo suado no espelho em frente.
– Não sei. – Ela não era muito de aulas em grupo.
Apolo lhe deu um sorriso ofuscante.
– Tem certeza? Aposto que você ia achar muito legal, muito mesmo. Seu nome é Hanna, certo?
Hanna ficou boquiaberta.
– Como é que você sabe?
– Já vi você aqui antes. – Desta vez, quando ele sorriu, apareceram duas covinhas adoráveis nas bochechas dele. – Adoraria ter você nas minhas aulas.
Ela se arrepiou por dentro. Será que ele estava flertando com ela? Por uma fração de segundo, mal podia esperar para pular do aparelho, ligar para Mona e contar que o garoto da academia Body Tonic, que elas chamavam de Apolo, estava praticamente implorando para ela participar do seu retiro de fitness – até se lembrar, mais uma vez. Sempre que lembrava que Mona era A, e que estava morta agora, era como se uma bola de peso tivesse sido jogada em seu peito.
– Os quilos a mais vão derreter rapidinho – prometeu Apolo –, e você vai ficar na melhor forma da sua vida. Diga que vai participar, por favor.
Com ele pedindo dessa forma, como é que ela podia dizer não? Os olhos azuis cintilantes dele também não atrapalhavam nada.
– Tudo bem, já que insiste... – disse ela, dando uma pausa no aparelho. – Pode contar comigo.
– Ótimo. – Apolo sorriu de novo. Só de ficar perto dele, Hanna já se arrepiava toda. E ele a havia notado. Ele sabia seu nome. Todos os pensamentos sobre Lucas e Brooke Eca-Bronze sumiram de sua cabeça. Se Lucas podia flertar, então ela também podia.
– Meu nome é Vince – acrescentou ele –, e a aula começa às cinco horas da tarde de hoje. Vamos nos encontrar de manhã e à noite durante todo o fim do ano. Estou muito animado em saber que você vai participar, Hanna.
– Eu também estou – respondeu Hanna, olhando profundamente nos olhos de Apolo, ou melhor, de Vince.
E ela, sem dúvida, estava mesmo.
6
OS GRANDES PERDEDORES
Naquele dia, depois da escola, Hanna se sentou nos degraus da frente da academia Body Tonic e colocou o celular entre o ombro e a orelha.
– Sinto muito, pai. Eu podia jurar já ter dito a você que eu tinha planos para esta noite.
– Mas você vai perder a casa do Papai Noel em Longwood Gardens – disse o sr. Marin, soando muito desapontado. – Vai ser demais.
Hanna resistiu à vontade de vomitar. No sétimo ano, ela, Ali e as outras garotas tinham ido a Longwood Gardens, que era só isso – um jardim grande e tedioso. Lá dentro estava quente, lotado e totalmente horrível, então elas haviam passado a maior parte do tempo no estacionamento, fofocando sobre qual garoto de Rosewood Day elas mais queriam beijar e quais celebridades convidariam para suas festas de aniversário imaginárias.
– Sinto muito mesmo – repetiu Hanna –, mas fiz planos antes de saber dessa coisa de Doze Dias de Natal de vocês.
O sr. Marin suspirou.
– Isso não é porque você não fica à vontade com Isabel e Kate, é? Kate diz que quer conhecer você melhor, mas que você se mantém a distância. Ela também mencionou que você preferiu não ir ao shopping com ela no dia em que nós nos mudamos para cá.
Hanna abriu a boca, depois a fechou de novo. Kate era muito cara de pau.
– Isso não tem nada a ver com elas – mentiu.
Quando desligou, Hanna deixou o celular no colo, desejando que tocasse mais uma vez e ela ouvisse a voz de Lucas do outro lado da linha. Mas o celular continuou mudo. Ela ficou olhando os carros passando de um lado para o outro na estradinha rural remota. Estava nevando de leve, e a calçada brilhava. Hanna ouviu um barulho de algo se arrastando e se endireitou. O som parecia ser o de alguém se esgueirando por trás da parede da esquina.
Hanna deu de ombros – não havia ninguém atrás dela, não mais – e se levantou de um pulo. Ela entrou na academia, com um arrepio de excitação. Talvez tivesse resistido à ideia de um grupo de fitness no começo, mas agora estava animada. Era provável que todo mundo lá fosse bonito, haveria garotas da região de Main Line e talvez ela até fizesse uma ou duas novas amigas. E Vince tinha dito que a aula englobava fitness, nutrição e bem-estar; talvez isso significasse massagens no final de cada sessão, feitas por Vince, é claro. De forma estritamente profissional, para Lucas não ficar muito enciumado.
Um cartaz que dizia RETIRO DE FITNESS DAS FESTAS DE FIM DE ANO estava colado à porta de uma das salas de exercícios. Hanna tinha esperado que a aula acontecesse em um espaço secreto da Body Tonic – um lugar realmente reservado para os VIPs –, mas não importava. Ela respirou fundo e empurrou a porta, um sorriso enorme no rosto, meio que esperando que todos os lindos participantes se virassem e lhe dessem boas-vindas de braços abertos, tipo uma terapia de grupo, só que muito mais glamorosa.
Mas as luzes, que eram muito claras, quase fluorescentes, revelaram uma cena bem diferente. Dez pessoas estavam sentadas no chão com diversos colchonetes, bolas, elásticos, aparatos de equilíbrio e blocos de ioga à frente delas. Todos de fato se viraram e a encararam, mas não abriram os braços para acolhê-la num abraço grupal. Não que ela quisesse tocá-los. Aquelas pessoas estavam tão longe quanto possível de serem glamorosos viciados em exercícios.
Havia uma mulher ali com queixo triplo. Um homem cuja barriga se debruçava sobre o cós da calça. Mães suburbanas sem cintura. Pais suburbanos sem graça. Garotas adolescentes do tipo que estudam teatro, tocam na banda da escola ou que passam a hora do lanche na sala de arte, não ligando a mínima para a própria aparência. Uma garota tinha os maiores seios que Hanna já vira. Parecia ter a mesma idade que Hanna e era cheinha de um jeito sexy, com quadris largos e bunda grande, feito uma pin-up dos anos cinquenta. Tinha um estilo meio punk – cabelo alto, preto e lustroso, muito delineador nos olhos amendoados, muito batom vermelho nos lábios de boneca e uma adaga sinuosa tatuada no ombro. Hanna não costumava gostar desse estilo, mas na garota caía bem. Não que ela fosse admitir isso em voz alta.
Aquele não era um retiro de fitness glamoroso. Estava mais para uma versão de baixo orçamento de um reality show sobre gordos. Hanna não tinha visto uma só daquelas pessoas na Body Tonic, nunca. Era como se a academia as tivesse escondido para não assustar os frequentadores habituais. E cada um deles estava usando uma camiseta vermelha enorme que dizia PONHA SEU TRASEIRO NA LINHA! em enormes letras brancas na frente e RETIRO DE FITNESS DAS FESTAS DE FIM DE ANO! nas costas.
– Hanna! – Vince apareceu por detrás de um aparelho de som num canto e deu um sorriso largo para ela. Ele também estava usando uma camiseta com a frase PONHA SEU TRASEIRO NA LINHA!, só que a dele era bem mais justa. – Que bom que você veio! Aqui, pegue uma camiseta!
Ele jogou uma na direção de Hanna, mas ela não fez o menor esforço para pegá-la, permitindo que a peça apenas batesse em seu peito e caísse no chão. Ela ouviu uma risada baixa e aguda atrás de si e congelou. Um vulto deslizou virando uma esquina, os cabelos longos e louros flutuando. Será que alguém a tinha visto? Será que achariam que ela era parte... disso?
– Vamos começar nos apresentando e dizendo de onde somos – começou Vince. Ele apontou para a pin-up.
Ela balançou os seios para ele e ronronou:
– Eu sou Dinah Morrissey. Não me preocupo em perder peso, mas quero mesmo me comprometer a ficar mais saudável. – Ela bateu as pestanas para Vince, que sorriu de volta para ela.
– Prazer em conhecê-la, Dinah. Hanna, que tal você falar agora? – perguntou ele.
A boca de Hanna estava hermeticamente fechada. Ela olhou de novo para os desajustados disformes no chão, deu um pequeno ganido e se virou. Correu o mais rápido que pôde na direção das salas comuns da academia, onde todo mundo era bonito, esbelto e normal.
– Hanna! – chamou Vince enquanto ela circundava os aparelhos e as esteiras. Ele a interceptou no corredor entre a sala de ioga e a lanchonete macrobiótica. – O que houve?
Hanna deu de ombros, sem jeito, notando que Vince a havia seguido levando a camiseta vermelha escrita PONHA SEU TRASEIRO NA LINHA! que ela havia rejeitado.
– Eu acho que essa aula não é para mim.
– O retiro? Por quê?
Será que ele estava chapado? Em primeiro lugar, era um quartel, não um retiro de fitness. Em segundo, como podia Vince achar que o lugar de Hanna era em uma aula daquelas? Será que ele a tinha notado no elíptico hoje e a rotulado como alguém fora de forma, alguém comum? Alguém de quem vendedoras riam, a quem pais rejeitavam e melhores amigas desprezavam?
– Porque é uma turma cheia de gordos! – Hanna enfim deixou escapar.
Vince deu alguns passos atrás, a boca formando um pequeno círculo.
– Você está brincando, certo?
A versão tecno de uma canção de Rihanna começou ao fundo. Como Hanna não respondeu, Vince balançou a cabeça.
– Os outros alunos não são gordos. Tudo bem, talvez alguns deles estejam um pouco acima do peso mais saudável, mas você não acha ótimo que eles queiram voltar a ficar em forma? Eu acho que realmente posso ajudá-los.
Você é uma espécie de Madre Teresa musculosa, Hanna queria rosnar.
– Bem, acho que vou dispensar.
– Vai dispensar uma aula de fitness que vai detonar? Por quê, porque os outros alunos não parecem ter saído de uma revista Vogue?
Ele estava falando bem alto. Hanna olhou em volta, com cautela. A garota da recepção, magra feito um palito, escaneou dois cartões de alunos, a máquina fazendo dois pequenos bipes eficientes. Um rapaz que já devia estar na universidade disparou a correr na esteira, seu cabelo louro balançando. E se alguém tivesse escutado, alguém de Rosewood Day? Se alguém de lá suspeitasse disso, ela seria a maior perdedora da escola, e de várias maneiras.
Vince deu a Hanna um olhar de quem estava entendendo tudo.
– Acho que sei o que está acontecendo. Você não tem garra. Isso não é para ser fácil. Você não tem força mental para ir até o fim com um programa tão rígido.
Hanna fungou, indignada.
– Não tem nada a ver com minha força mental.
– Ah, esqueça. – Vince balançou a mão. – Eu devia ter enxergado os sinais. Nem todo mundo serve para essa aula. Você tem de querer mesmo bem-estar, estar verdadeiramente pronto para correr atrás. Não se preocupe, Hanna. Pensei que você era durona o bastante para isso, mas tudo bem.
– Eu sou durona o suficiente – disse Hanna, tão alto que uma garota de vinte e poucos anos com uma camiseta da universidade Hollis, perto dos colchonetes, ergueu os olhos, assustada. – Tenho certeza de que sou muito mais durona do que todos aqueles... Aquelas pessoas.
Vince fez uma cara séria.
– Está bem, então. Prove para mim. Mostre que você está falando sério.
Sua voz soou ríspida e séria, mas seus olhos estavam suaves, quase suplicantes. Mais uma vez, Hanna sentiu uma minúscula impressão de que talvez ele estivesse interessado nela. E só imaginar que alguém gostava dela acalmava a solidão que sentia quando pensava no sumiço de Lucas. Se saísse dali, condenando o retiro e seus participantes acima do peso, Vince provavelmente nunca mais falaria com ela. E ela odiaria deixá-lo pensando que era o tipo de garota que desistia fácil. Isso era quase sinônimo de fracassada – e por nada no mundo ela seria uma fracassada de novo.
– Tudo bem – grunhiu ela. – Acho que posso tentar de novo. Mas tenho uma condição. Eu não vou vestir esses troços – disse, apontando para a camiseta que Vince segurava.
Vince deu de ombros e apertou o braço de Hanna.
– Negócio fechado.
7
MAZEL TOV!
Duas horas mais tarde, Hanna se enfiou dentro do Prius, mal conseguindo se mover. Vince estava certíssimo em uma coisa: o retiro era tudo menos uma experiência relaxante em um Spa. Ela nunca havia se agachado, chutado, corrido no lugar, flexionado os bíceps ou suado tanto na vida. Vince encheu a sessão com tantas atividades que Hanna mal tinha notado as outras pessoas na aula, a não ser quando uma delas caía de exaustão ou choramingava que não conseguia fazer mais um abdominal com bicicleta. A única pessoa que se destacava era Dinah. Ela ficava empurrando os seios na cara de Vince e perguntando se sua postura estava correta. Tinha até mesmo conseguido que ele ficasse atrás dela enquanto fazia agachamento, com a mão em suas costas e perigosamente perto do seu traseiro, só para garantir que ela estava exercitando o grupo muscular certo. Seu flerte desavergonhado lembrou Hanna de Brooke, o que fez com que pensasse em Lucas e se sentisse enjoada de novo.
Estacionou na entrada da garagem, não querendo nada além de ficar na cama e assistir a programas ruins na televisão por horas e horas. Estranhamente, o carro de seu pai ainda estava na garagem, e não em Longwood Gardens. E as decorações de Natal que haviam enfeitado a frente da casa tinham sumido. Quando ela abriu a porta da frente, a casa não cheirava mais a pinheiro e a palitos de canela, mas a... panquecas de batata?
– Hanna! – O sr. Marin apareceu na porta da cozinha. – Aí está você! Entre, entre! Temos uma surpresa para você!
Ele empurrou Hanna pela sala de estar, mas não antes de ela notar que a Mamãe Noel mecânica desaparecera, que a árvore de Natal estava apagada e que as meias penduradas sobre a lareira – havia três com monogramas para Isabel, Kate e para o pai de Hanna, e uma sem, presumivelmente para ela – tinham sido tiradas de lá. A velha menorá de prata que Bubbe Marin dera aos pais de Hanna estava sobre o console, com três velas acesas.
– O que está havendo? – perguntou Hanna, desconfiada.
O sr. Marin virou Hanna na direção da sala de jantar. Havia uma enorme quantidade de comida na mesa, e Kate e Isabel estavam sentadas em cadeiras de espaldar alto, sorrindo sem entusiasmo.
– Surpresa! – gritou o sr. Marin. – Feliz Hanna-ca!
Hanna piscou, olhando a mesa. Havia todas as comidas tradicionais de Hanuca que sua avó costumava servir: latkes, rosquinhas de geleia chamadas sufganiyot, kugel, moedas de chocolate e um grande brisket. De um lado estavam os velhos dreidels, mistura de dado e pião, que ela e os primos costumavam girar por horas, transformando o jogo em um tipo de “verdade ou desafio”: se o dreidel caísse no lado da letra gimel, Tamar, sua prima mais nova, tinha que roubar um dólar da carteira da mãe, e assim por diante. Uma bandeira de papel laminado azul com a estrela de Davi havia sido colocada sobre as janelas, e velas acesas iluminavam toda a sala. Pequenos presentes embrulhados em papel prateado decoravam cada prato.
– Achei que vocês estavam indo para a casa do Papai Noel – disse Hanna devagar.
– Ah, nós podemos fazer isso qualquer dia – disse o sr. Marin –, achei que você podia estar um pouco chateada por estarmos fazendo tantas atividades de Natal, então pensamos em celebrar o nosso feriado esta noite! Hanuca, ou Hanna-ca! – Ele apontou a comida na mesa. – Kate e Isabel cozinharam um pouco esta noite, mas alguns desses pratos vieram da delicatessen kosher perto do Ferra’s Cheesesteaks.
– Seu pai diz que você sabe todas as histórias do Hanuca, Hanna – disse Isabel educadamente. – Eu adoraria ouvi-las.
– Isso é tão legal! – O coração de Hanna se expandiu, igualzinho ao do Grinch. Esta era sem dúvida a coisa mais legal que seu pai havia feito por ela em muito, muito tempo.
Seu pai foi passando os pratos, e todos começaram a se servir de latkes e de pedaços de carne banhados em molho. Hanna comeu uma porção moderada, sentindo-se virtuosa depois do treinamento. Vinho foi servido. Até Hanna e Kate tomaram um pouco, e todos abriram seus presentes. Kate e Hanna ganharam cartões-presente para o Spa Fermata. Isabel ganhou um berloque em forma de árvore de Natal para acrescentar à sua pulseira Pandora. O sr. Marin deu a si mesmo um novo canivete suíço. Ele na mesma hora abriu as tesourinhas do canivete e cortou a etiqueta do presente de Isabel.
Depois, começou a contar histórias sobre Bubbe Marin, que costumava fazer as melhores panquecas de batata do planeta.
– Nós íamos lá toda noite de Hanuca – explicou. – Ela sempre dava presentes enormes a Hanna.
– Que meigo – trinou Isabel, parecendo surpresa, como se nunca pudesse imaginar que alguém quisesse cobrir Hanna de presentes.
– E vovó tinha aquele papagaio africano cinzento, Morty – continuou o sr. Marin, espetando uma latke –, que sabia todos os palavrões do mundo.
– Ele era louco! – gargalhou Hanna. – Acho que aprendi alguns com ele!
– E ele adorava assistir àquele programa de fofocas, qual era o nome? – perguntou sr. Marin, corando.
– E! News – disse Hanna. – Ele era obcecado com a Giuliana Rancic, lembra? Dizia que ela era uma safada tão bonita, com aquela voz maluca de pássaro!
– Quem é Giuliana Rancic? – perguntou Isabel, piscando rapidamente.
O pai de Hanna estava ocupado demais gargalhando para responder. Hanna também riu, também não se preocupando em incluir Isabel na conversa. Era bom ter uma piada particular com seu pai de novo, algo que vinha de suas vidas antes de Isabel e Kate.
Eles continuaram comendo, compartilhando histórias sobre as obsessões da avó de Hanna com vendas de garagem, enfeites em forma de animais e sua paixonite por Bob Barker, do programa O preço certo. Até a refeição acabar, Hanna e o pai continuaram explodindo em gargalhadas sem se dar ao trabalho de se explicar. Isabel se levantou para limpar a mesa, mas o sr. Marin gesticulou para que ela se sentasse.
– Eu posso limpar tudo – disse ele.
– Eu ajudo – ofereceu-se Kate, rapidamente.
Hanna ficou firme.
– Não, eu vou ajudar você, papai. – A última coisa que ela queria era ver Kate usurpando o amor de seu pai outra vez.
O sr. Marin sorriu.
– Bom, se vocês duas vão arrumar tudo, acho que não precisam de mim! – Ele empilhou os pratos e os entregou a Hanna. – Que tal você lavar e Kate secar?
Hanna encarou a latke fria em seu prato, perguntando-se se isso era um truque de seu pai para fazer com que ela e Kate passassem um tempo juntas.
Kate já estava enchendo a pia com sabão quando Hanna entrou na cozinha com todos os pratos.
– Então, gostou da sua celebraçãozinha? – perguntou Kate com voz gélida, entregando uma esponja a Hanna.
– Foi muito bom – respondeu Hanna com igual frieza.
– Minha mãe e eu cozinhamos por horas – disse Kate, enxugando suor imaginário da testa. – Você podia ao menos ter ajudado. Então, aonde você foi, afinal?
Hanna enfiou as mãos na água pelando.
– Só... por aí. Fazendo compras. Indo à academia. Eu não sabia que vocês iam fazer isso para mim.
Kate ergueu uma sobrancelha.
– Durante quatro horas? Ei, maratona de compras e tanto. Ou devo dizer maratona de exercícios?
Ela encarou Hanna por um longo instante. Hanna sustentou seu olhar, tentando ao máximo não deixar escapar nada. Não havia a menor chance de ela contar a Kate sobre o retiro de fitness. Seria motivo para Kate atormentá-la para sempre.
Kate se inclinou sobre o balcão e semicerrou os olhos.
– Acho que alguém está escondendo algo.
– Não estou, não – rebateu Hanna, um pouco depressa demais –, mas talvez você esteja escondendo algo.
Kate congelou.
– Eu... – Ela jogou o pano de prato na ilha da cozinha. – Eu também não – respondeu tensa, e então se virou rapidamente e foi para o corredor.
Hanna ouviu seus passos na escada, e depois a porta do quarto de Kate batendo com força. Tuuuudo bem. O abrupto desaparecimento de Kate significava que ela teria que limpar tudo sozinha, mas talvez isso fosse bom. Era como se tivesse acabado de ganhar uma discussão sem nem fazer esforço. E em se tratando de Kate, isso era nada menos que um milagre.
8
UM ALONGAMENTO SENSUAL FAZ BEM AO CORPO
Na manhã seguinte, antes da escola, Hanna se olhou no espelho de corpo inteiro da Body Tonic e ajustou as alças de seu top preto Lululemon. Depois se contorceu para olhar o próprio traseiro no short curtinho preto e rosa, feliz ao ver que suas pernas pareciam durinhas e sensuais. Passou hidratante colorido nas bochechas e no nariz, um pouco de gloss nos lábios, rearranjou o cabelo castanho-avermelhado e brilhante em um rabo de cavalo e aspergiu um pouco de Aveda Chakra 4 em seus pontos de pressão. Todos os caras que já havia conhecido eram loucos pelo perfume. Lucas adorava. Bom, pelo menos até ir para uma praia de nudismo com a Eca-Bronze e se esquecer completamente dela. Hanna ainda não havia recebido uma única mensagem dele. Ela havia colocado de cara para baixo todos os porta-retratos com a foto dele que estavam em seu quarto, para não ter que olhar em seus olhos azuis e imaginar se Brooke estaria olhando para eles naquele momento.
Hanna estava realmente ansiosa para a aula começar. Pelo menos, enquanto Vince gritava ordens, ficava ocupada demais para se entristecer por causa de Lucas. Quando abriu as portas da sala de fitness, ouviu gemidos.
– Isso é tão gostoso – disse alguém.
Hanna parou, perguntando-se se um casal tinha entrado na sala para uma sessão de amassos matinal. Ugh. Mas então notou um movimento de uma camiseta vermelha conhecida. Uma das alunas estava deitada no chão, com as pernas para cima. Vince estava de pé acima dela, empurrando seu pé para alongar o bíceps da coxa.
– Isso está soltando o músculo? – murmurou Vince, sorrindo para a garota.
– Oh, sim – respondeu ela, sonhadora –, é incrível.
Hanna se irritou. Era Dinah Morrissey, a garota apalpe-minha-bunda.
– Quer que eu alongue a outra perna? – perguntou Vince.
– Claro – ronronou Dinah com voz rouca, levantando uma sapatilha quadriculada Vans. Ela não podia nem usar tênis Nike ou Reebok, como faz uma pessoa normal quando vai à academia.
Hanna cruzou a sala quase de um salto, tão depressa quanto suas pernas podiam carregá-la. Talvez não pudesse competir com Brooke a milhares de quilômetros de distância, mas estava bem ali, na frente de Vince, e a escolha entre ela e Dinah era óbvia.
– Hum, Vince? – sorriu, fazendo charme. – Eu ia pedir para você me alongar também. O treino de ontem foi de matar. – Ela enrolou uma mecha de cabelo entre os dedos. – Você se importa? Eu estou com tanta dor...
Vince se endireitou e olhou de Dinah para Hanna.
– Hum, claro, acho que sim – disse ele, soltando a perna de Dinah. – Ainda temos alguns minutos antes de o pessoal chegar.
Dinah sentou-se e cruzou os braços sobre seu peito amplo.
– E eu?
– Eu alongo você depois da aula – prometeu Vince.
“Rá!”, pensou Hanna, triunfante.
– Deite-se – instruiu Vince, e Hanna obedeceu. Ele lhe disse para levantar a perna esquerda, joelho dobrado, e por cima dela cruzar a perna direita. Ele se inclinou sobre ela, suas mãos tocando as pernas de leve, e empurrou.
– Qual é a sensação?
– Muito boa – sussurrou Hanna, olhando dentro dos olhos de Vince, que eram de um tom estonteante de turquesa. Quando Hanna e Mona se matricularam na academia pela primeira vez, no oitavo ano – no tempo em que estavam apenas começando sua transformação em garotas bonitas e populares –, Mona tinha ficado atrás de Vince no bar de sucos e deixado seu troco cair no chão, tentando conseguir a atenção dele. Quando Vince a olhou com aqueles olhos azuis, ela se sentiu hipnotizada.
– Eu não consegui dizer uma palavra – derretera-se ela –, ele era simplesmente lindo demais.
Hanna esperava que Mona estivesse olhando para ela agora, do inferno ou de onde quer que estivesse, morta de inveja.
– Você está mesmo dolorida de ontem, hein? – murmurou Vince.
– Hã-rã – respondeu Hanna baixinho –, mas é uma dor boa, sabe?
– Também estou dolorida – intrometeu-se Dinah, sentando-se ao lado deles, de pernas cruzadas. A garota tinha o tipo de decote no qual homens poderiam enfiar notas de dinheiro. – E você teria ficado tão orgulhoso de mim, Vince. Eu comi frango grelhado e legumes no jantar ontem, como você recomendou no plano de refeições.
– Isso é ótimo – disse Vince, encantado. “Puxa-saco”, pensou Hanna.
– Então, há quanto tempo você trabalha na academia? – perguntou Hanna, alto, chamando a atenção dele de volta para si.
Vince pôs as mãos em concha em torno do joelho de Hanna.
– Um bocado, acho. O suficiente para notar você correndo na esteira. Você tem um corpo ótimo. – Ele riu, tímido. – Desculpe. Espero não ter soado esquisito.
– Claro que não – disse Hanna rapidamente. – E você sempre quis ser treinador?
– Bom, sim e não – disse Vince. – Na verdade eu queria começar meu próprio Spa. Teria personal training, mas também uma porção de outros serviços de cuidados com o corpo.
– Parece incrível – derreteu-se Hanna –, eu adoro Spas.
Dinah riu daquele jeito bem-humorado que soava amigável, mas que Hanna sabia ser sarcástico.
– Todo mundo adora Spas – disse ela.
Hanna desejou poder empurrá-la para fora da sala com a barra de cinco quilos que estava apoiada em um canto. Será que ela não sabia que era falta de educação ficar ouvindo a conversa dos outros?
Vince ia dizer mais alguma coisa, mas a porta da sala de fitness se abriu e o restante dos alunos entrou, todos eles usando camisetas vermelhas.
Hanna torceu para que eles as tivessem lavado no dia anterior.
– Muito bem – disse Vince, soltando a perna de Hanna e caminhando empertigado até a frente da sala.
O grupo se reuniu em torno dele. Hanna olhou por cima do ombro, para garantir que ninguém estava se esgueirando pelo corredor. Ela pensou nas suspeitas de Kate no dia anterior, depois do jantar. Kate não iria segui-la até lá, iria? A última coisa de que Hanna precisava era ter fotos suas, suando e se agachando com um bando de fracassados, espalhadas pela internet.
– Então, eu queria falar com vocês hoje sobre nutrição e bem-estar completo – dizia Vince, sentando-se no chão em posição de lótus. – Estar em forma não é apenas se exercitar. Tem a ver com se alimentar direito, também. Com fazer escolhas saudáveis. Sentir-se bem na própria pele. E eu quero que todo mundo aqui se comprometa a ser saudável e se sentir bem na própria pele durante este retiro.
Ele distribuiu folhas de papel que diziam Compromisso do Retiro de Fitness no cabeçalho. Era uma longa lista, cada item começando com Eu me comprometo. Eu me comprometo a comer somente comidas saudáveis. Nada de açúcar refinado, nada de xarope de milho com altos níveis de frutose, nada de sabores artificiais. Eu me comprometo a não beber álcool nem fumar. No pé da página havia um espaço para assinatura.
– Quando estas aulas terminarem, meu objetivo é que todos vocês estejam se sentindo bem na própria pele, não importa a forma do seu corpo ou quantos quilos vocês tenham perdido – disse Vince. – E uma coisa que pode ajudá-los a se sentir bem é isso.
Ele exibiu uma garrafa de água com um rótulo que dizia AminoSpa em letras minúsculas.
– Esta é a água vitaminada mais incrível que eu já experimentei. Ela dá energia, joga as toxinas para fora... acho até que ela me ajuda a me concentrar melhor. Sou representante credenciado, mas vou dar amostras grátis para vocês.
Ele tirou mais garrafas de AminoSpa de sua sacola de academia e jogou uma para cada aluno.
– Acho que vocês vão gostar – incentivou. – Se quiserem mais, posso conseguir uma caixa para vocês por um preço ótimo.
– Você disse que vende isso, também? – perguntou Dinah, inclinando a cabeça e juntando os lábios carnudos.
Vince fez que sim com a cabeça.
– É um emprego de meio expediente muito bom. Dá para trabalhar em casa. Se vocês tiverem interesse, posso mostrar os folhetos de vendas.
O modelo de negócio lembrou Hanna da época, no nono ano, em que a mãe de Chassey Bledsoe tinha começado a vender imitações de facas Ginsu de porta em porta, contando vantagem sobre como estava trabalhando praticamente em casa e ganhando um monte de dinheiro. Ela convencera Chassey a trazer amostras para Rosewood Day para fazer demonstrações durante o almoço. Assim que os membros da diretoria descobriram que Chassey tinha aquela mala cheia de facas dentro da escola, acabaram com a brincadeira na mesma hora.
Mas Vince estava tão entusiasmado com a AminoSpa que parecia de fato acreditar que ela deixaria todo mundo mais saudável e feliz. Hanna pegou a garrafa que ele tinha lhe jogado, destampou-a e tomou um grande gole. Depois, lutou contra a vontade de cuspir tudo fora. Parecia um drinque de margarita diluída em água.
Vince bateu palmas uma vez.
– Certo. Vamos começar a suar, então? As próximas duas semanas vão ser mesmo muito intensas. Vocês vão ser empurrados até seus limites. Muitos dos nossos exercícios vão envolver lutas, competições e alongamentos em duplas, então vou dividir vocês em pares. A pessoa com a qual eu colocar vocês vai ser sua parceira pelo restante das aulas. Vocês vão passar um bocado de tempo juntas. Ela vai ajudar com suas metas nutricionais, e, espero, pode acabar se tornando uma amiga para toda a vida.
Neste ponto, Vince olhou rapidamente, de um jeito tímido, para Hanna, e ela ficou toda ouriçada. Aquilo, com toda certeza, tinha sido um sinal. Era ele quem ia fazer dupla com ela. Ela já podia até ver: os dois lutando boxe, Vince a estimulando a continuar. Os dois correndo na trilha Marwin, os outros lentinhos ficando para trás. Depois de cada sessão, eles iriam beber lattes – ou AminoSpas – juntos, agradavelmente exaustos. Então, quando Lucas voltasse, ela iria lhe mostrar o quanto estivera bem enquanto ele estava fora.
– Tara, quero você com Josie – disse Vince, apontando para duas mulheres de meia-idade no fundo da sala. Elas sorriram uma para a outra. – Ralph, você vai ser parceiro de Jerome. – Dois homens de peito em formato de barril e pernas tortas concordaram com um aceno de cabeça. Vince continuou a andar pela sala, juntando os alunos de camiseta vermelha em pares. Seu olhar continuava passando por Hanna sem se deter. Porque ele a estava deixando para si próprio, é claro.
Por fim, Vince apontou para Hanna e sorriu.
– Hanna. Você vai fazer par com...
Hanna esperava que ele batesse no próprio peito e triunfantemente dissesse comigo, então quando ele apontou para alguém do outro lado da sala, ela não entendeu. Ela achou que era a única pessoa deixada sem par àquela altura, mas outra aluna permanecera sozinha. As mãos da garota estavam em seus quadris largos. Ela transferiu o peso de um pé para o outro, ambos calçados em Vans quadriculados. Seus olhos muito maquiados estavam apertados, e seus lábios vermelhos estavam curvados numa expressão de desprezo.
Era Dinah.
9
NAMORADOS DE MENTIRINHA SÃO TÃO DIVERTIDOS
No sábado à tarde, no shopping Devon Crest, Hanna deu uma caminhada rápida até a Momma’s Sweet Shoppe, uma sorveteria novinha em folha, mas feita para parecer antiga. O chão era quadriculado de preto e branco, como um tabuleiro de xadrez; havia bancos antiquados de couro e cromados junto do balcão e um quadro-negro, listando os tipos de vaca-preta, milk-shakes e os vários sabores de sorvete do dia, pendurado sobre as máquinas de milk-shake. Os atendentes usavam camisas brancas engomadas, coletes riscadinhos de branco e vermelho e chapéus brancos de papel, e música dos anos cinquenta, alta, enchia o ambiente.
Seu pai, Isabel e Kate a seguiram, fazendo brrrr por causa do vento forte e das temperaturas abaixo de zero que haviam tido que enfrentar no estacionamento.
– Expliquem mais uma vez por que é que vamos tomar sorvete justo agora? – pediu Hanna, ainda batendo o queixo.
O sr. Marin tirou o pesado cachecol vermelho do pescoço.
– Porque isso é o que Kate e a mãe dela faziam depois de cada apresentação de O Quebra-Nozes em que Kate dançou. Não é isso, meninas?
– Certo – disse Isabel, orgulhosa, dando palmadinhas no ombro de Kate. – E sempre são duas bolas de sorvete de menta com pedacinhos de chocolate para minha pequena Clara.
Hanna abafou um grunhido. Era a mesma frase melosa que Isabel vinha dizendo o dia todo, da jornada até a Filadélfia para ver a matinê de O Quebra-Nozes na Academia de Música até a volta do elenco ao palco para receber aplausos, no final do balé, e até a longa busca por uma vaga de estacionamento no shopping. Kate era sua pequena Clara, a protagonista-mirim em O Quebra-Nozes. Ela dançara o papel por quatro anos com sua trupe de balé local em Annapolis, e que tinha sido o balé favorito de Kate desde então. Honestamente, Hanna não entendia a fascinação. A casa de uma garota rica é infestada com camundongos; bengalas de doce, flocos de neve e estranhos homens russos não a deixam dormir; depois ela e um Rei Camundongo vestindo um colete muito feio desaparecem em uma colmeia gigante. Aquilo tudo parecia uma longa viagem de ácido.
– Aposto que você ainda é uma bailarina incrível. – Isabel tirou o cabelo de Kate de seus olhos. – Você devia vê-la dançando, Tom. Ela é tão graciosa.
– Talvez você devesse voltar a ter aulas – sugeriu o sr. Marin. – Você provavelmente voltaria à forma no ato.
– Você é muito gentil. – Kate girou sua pulseira David Yurman no pulso. – Mas eu estou enferrujada.
“Você só não quer voltar porque não seria mais a melhor da classe”, pensou Hanna, com amargor, lembrando sua primeira e única experiência com balé. Ela e Ali tinham tido uma aula na Associação Cristã de Moços, e quando todas as alunas fizeram grand jetés pela sala, Ali tinha caído na risada, dizendo que Hanna estava igualzinha a um hipopótamo de tutu.
Hanna suspirou. Depois que sua nova família tinha lhe jogado uma esmola em forma de comemoração de Hanuca algumas noites antes, as coisas logo voltaram ao normal. A bobagem de Doze Dias de Natal tinha recomeçado, mas Hanna conseguira escapar dela várias vezes por causa do retiro de fitness. Ainda mentia sobre aonde ia, mas até agora seu pai não tinha implicado com ela por isso, provavelmente porque não a queria mesmo por perto. Ela havia tentado fazer uma piada com o pai sobre Bubbe Marin e Morty, o papagaio africano cinzento e sem-vergonha, durante o intervalo do balé, mas Kate havia falado mais alto, contando ao pai de Hanna sobre como Tchaikovsky tinha baseado O Quebra-Nozes em uma velha historinha para crianças. Seu pai tinha balançado a cabeça como se aquela fosse a história mais interessante do mundo. Enquanto isso, apesar de Hanna checar a página de Facebook de Lucas a toda hora, de modo obsessivo, ele não dera um pio. Ela estava meio tentada a telefonar para o hotel onde ele estava hospedado e lhe dar uma bronca por ignorá-la.
Enquanto esperavam na fila pelo sorvete, Isabel começou de novo com outra lembrança de como Kate era uma linda bailarina. De repente, ouvir essa conversa de O Quebra-Nozes de novo era demais para Hanna.
– Eu tenho que ir ao banheiro – interrompeu ela, saindo da fila. – Peguem só uma água para mim – disse, lembrando-se do compromisso que havia assinado no retiro de fitness.
– Vamos andar por aí e olhar as vitrines com nossas casquinhas – seu pai gritou para ela. – Procure por nós na Sharper Image, está bem?
– Hã-rã – respondeu ela, desatenta, serpenteando por entre as mesinhas e as enormes sacolas da Saks, Build-A-Bear e Apple Store.
Seu peito estava apertado, como se estivesse a ponto de chorar. Seu pai havia feito de tudo por ela alguns dias antes, rido e brincado como costumava fazer nos velhos tempos. Mas agora tudo aquilo parecia esquecido. Será que ele não tinha notado o quanto ela ficara feliz com o gesto dele?
– Hanna – chamou alguém, e Hanna se virou para ver quem era. Sentado a uma pequena mesa de canto, com uma tigelinha de sorvete e uma garrafa de AminoSpa à sua frente, estava Vince, da Body Tonic. Por um instante, Hanna quase não o reconheceu. Ele estava usando jeans, suéter e pesadas botas marrons de caminhada.
– Oi – disse Hanna, passando instintivamente a mão no rosto para se assegurar de que não havia lágrimas correndo ali. – O que está fazendo aqui?
– Compras – sorriu Vince.
– E tomando sorvete. – Hanna olhou para a tigelinha quase vazia, com uma sobrancelha erguida.
Vince levantou as mãos, rendendo-se.
– Você me pegou. Nozes amanteigadas são meu calcanhar de aquiles. Este lugar vai ser o meu fim. – Ele gesticulou convidando-a a se sentar.
– Nunca pensei que você tivesse uma fraqueza alimentar – disse Hanna, sentando-se em uma cadeira em frente a ele. Ela apontou para o monte de sacolas de compras na cadeira ao lado dele. – Você comprou tudo da sua lista?
Vince fez que sim com a cabeça.
– A sacola da Toys ‘R’ Us tem um presente para um garoto no abrigo dos sem-teto. E o restante é para minha família. Aquela lá é a sua? – perguntou, apontando para Isabel, Kate e o pai de Hanna.
Ela fez uma careta.
– São o meu pai, minha madrasta e... Kate. – Ela preferia morrer a chamar Kate de família.
Ela olhou de novo para a sacola da Toys ‘R’ Us na cadeira.
– É legal da sua parte dar um presente para alguém no abrigo dos sem-teto. É aquele em Yarmouth? – Ela se lembrava de Spencer fazendo trabalho voluntário lá no sétimo ano porque pegaria bem quando fosse se candidatar à universidade. Só mesmo Spencer para pensar em universidade no começo do ensino médio.
Vince tomou um gole de sua garrafa de AminoSpa.
– É algo que faço todo ano. Uma porção de nós, da Body Tonic, vai até lá na segunda-feira para embrulhar os presentes que todo mundo doou. É uma experiência gratificante de verdade.
– Isso é tão legal. – Vince era tipo um Brad Pitt em sua cruzada pós-Furacão Katrina.
O sr. Marin acabou de pagar, e ele, Isabel e Kate saíram da sorveteria. Nesse momento, um homem com uma roupa de Papai Noel foi passando. Ele olhou para dentro da sorveteria e sorriu lascivamente para Hanna.
Hanna agarrou a mão de Vince.
– Rápido. Finja que você é meu namorado.
– Perdão? – A voz de Vince mudou de tom.
– Só até o Papai Noel ir embora. – Ela indicou a janela muito de leve com a cabeça. Papai Noel ainda estava lá. Ela não tinha certeza de para onde ele estava olhando por causa dos óculos escuros, mas tinha um bom palpite. – Ele me cantou uns dias atrás, disse para eu me sentar no colo dele. Não quero que ele pense que estou disponível.
Vince deu uma risadinha e segurou a mão de Hanna. Suas palmas encaixaram perfeitamente, e ela se sentiu calma e feliz.
– Tudo bem, faça de conta que eu acabei de dizer algo muito engraçado – sugeriu Vince.
– Ha ha! – fingiu rir Hanna, jogando a cabeça para trás. – Você é muito fofo! – Ela estendeu a mão e tocou a ponta do nariz dele.
– Não, você é que é – disse Vince, tocando o nariz dela de volta.
Ela desejou que ele estivesse falando sério, e que não estivessem apenas fingindo.
Eles continuaram com isso por mais alguns instantes, até que o Papai Noel deu de ombros e foi embora.
– Obrigada – disse Hanna, voltando a respirar enfim.
– Sem problema – respondeu Vince. – Sabe, tem uma amiga minha que trabalha na Gap daqui, e ela também disse alguma coisa sobre esse Papai Noel ser meio tarado. Ele está virando um problemão para o shopping. Mas eu não estou surpreso de ele ter dado em cima de você.
O rosto de Hanna ficou quente. Ela mordeu o lábio e baixou os olhos, fingindo estar fascinada com o padrão em mosaico do tampo da mesa. Será que aquilo significava que Vince a achava bonita?
A máquina de milk-shake foi ligada atrás do balcão. Uma garotinha bateu a colher contra o prato vazio. Por fim, Vince tossiu, sem jeito.
– Então, estou contente que você tenha decidido continuar com o retiro. Você está indo muito bem.
Hanna sorriu.
– Também estou contente. Mas fiquei meio surpresa por você ter me colocado em dupla com Dinah.
Vince franziu a testa
– Achei que vocês duas ficariam perfeitas juntas.
Hanna resistiu à vontade de rir com sarcasmo. Na manhã anterior, quando Dinah havia segurado as pernas de Hanna durante os abdominais, ela havia sussurrado:
– Só para você saber, daqui dá para ver sua calcinha.
Ao que Hanna havia respondido que o batom escuro de Dinah a deixava parecendo um cadáver.
Depois, durante os alongamentos, Dinah havia reclamado para Vince que Hanna a estava alongando errado, fingindo de tal forma que Vince acabou indo alongá-la em seu lugar. E durante a sessão da noite, Vince tinha proposto uma competição de agachamento para a turma, com um prêmio especial para o vencedor. Determinada a vencer, Hanna havia se agachado repetidamente, até que os músculos de suas pernas pareceram ter derretido e saído por seus joelhos. Um a um, os outros alunos caíram no chão, gemendo. A única outra pessoa que continuou, bem ao lado de Hanna, foi Dinah. Para cima e para baixo iam as duas. Inspirando e expirando.
– Incrível, garotas! – berrava Vince. – Continuem!
Por fim, a vista de Hanna tinha começado a escurecer. Ela havia caído no chão, e Dinah deixara escapar um gritinho. Seu prêmio tinha sido uma garrafa de AminoSpa – grande coisa. Mas ela havia olhado para Hanna, e então lambera um dedo, encostara-o no traseiro e fizera um barulho de fervura.
– Vocês duas são jovens e famintas – explicou Vince agora. – Mas, mais do que isso, eu acho que você é uma enorme inspiração para Dinah. Eu não tenho certeza de que ela já tenha levado fitness a sério antes, enquanto você parece estar se cuidando há anos. Acho que você pode mesmo ajudá-la a alcançar suas metas.
Hanna se empertigou. Aquilo fazia sentido. Ela nunca havia pensado em si mesma como uma inspiração para que outras pessoas se cuidassem, mas talvez fosse. Podia ser exatamente como Jillian Michaels ou aquele cara louro e forte, de cabelo comprido, nos DVDs de ioga de sua mãe, dando a Dinah amizade sem paparicação e com muito encorajamento.
– Bem, estou feliz de poder ajudar – disse, cruzando os braços sobre a mesa. – Na verdade, se você quiser sair algum dia para que possamos conversar sobre como eu posso ser... mais inspiradora, eu adoraria ouvir.
Vince assentiu com a cabeça, contemplativo.
– Claro. Seria ótimo.
– Eu gostaria de ouvir mais sobre a AminoSpa também – acrescentou Hanna, apontando para a garrafa quase vazia. Isso fez os olhos dele se iluminarem.
– Sem a menor dúvida. Posso dar a você o curso completo.
Depois disso, Vince disse que era melhor ele ir indo. Os dois ficaram de pé e se despediram, e Hanna se afastou esperando que ele estivesse dando uma boa olhada em seu traseiro já mais firme. Seu coração estava acelerado, as bochechas coradas, e ela se sentia linda, radiante e desejada.
Mas assim que ela saiu da sorveteria, viu algo do lado de fora da janela. BREVE AQUI, dizia uma placa grande, na fachada da loja do outro lado da passarela. RIVE GAUCHE.
Ela sentiu uma pontada de culpa. Rive Gauche era o restaurante no shopping King James que ela e Mona costumavam frequentar o tempo todo, e também era o lugar onde Lucas trabalhava. Eles haviam se reencontrado lá – na verdade, Lucas tinha corrido atrás de Hanna quando Mona a deixara sozinha para pagar a conta, e os dois começaram uma amizade que acabara virando namoro.
Talvez fosse errado fingir estar de mãos dadas com outro cara quando Hanna tinha um namorado de verdade e perfeitamente ótimo em férias do outro lado do continente. O fato de Brooke ser uma piranha viciada em bronzeamento não significava de verdade que Lucas iria cair em sua lábia. Talvez houvesse até uma justificativa para ele ainda não ter escrito para ela. Talvez a família Beattie tivesse sido raptada por mexicanos reis do tráfico, e eles tivessem tomado o iPhone de Lucas. Ela já havia visto isso antes, na série Férias na prisão.
Pegou o celular para procurar notícias da península de Iucatã, mas mesmo antes de a CNN carregar, um alerta pipocou em sua tela. “Lucas Beattie foi marcado em uma nova foto”, dizia ele. O coração de Hanna ficou mais leve. Então Lucas estava vivo!
Ela clicou no link, e o navegador chamou sua página no Facebook. A foto de Lucas estava bem no topo do feed de notícias; tinha sido Brooke quem a havia postado. Não havia texto, apenas uma foto dele e Brooke sentados numa linda praia de areia branca, os braços em volta da cintura um do outro. Seus corpos estavam bem juntinhos. Pele tocando pele. O sorriso de Lucas tomava praticamente todo o quadro.
Hanna ficou olhando para a foto durante o que pareceram horas. Foi pior do que a mais horrorosa dor de cabeça causada por sorvete de todos os tempos. Por fim, ela saiu do Facebook e checou sua caixa de entrada mais uma vez atrás de mensagens ou e-mails dele, mas não havia nada. Ele também não tinha twittado ou, imagine só, ligado. A mensagem era bastante clara. Lucas tinha se esquecido dela, trocando Hanna pela princesinha Eca-Bronze.
O que significava apenas uma coisa. Hanna iria trocar Lucas, também – por Vince.
10
TUDO EMBRULHADO
Na segunda-feira, depois da aula, Hanna parou no pequeno estacionamento de um prédio baixo em frente à secretaria dos transportes de Yarmouth. Em uma placa acima da porta, estava escrito ABRIGO PARA OS SEM-TETO DE YARMOUTH em letras azuis desbotadas. Uma patética guirlanda de plástico fora pendurada em uma das janelas, e alguém tinha enrolado umas poucas luzes de Natal em volta das plantas raquíticas do jardim da frente.
– Tem certeza de que este é o lugar onde você foi voluntária? – perguntou Hanna pelo celular. – Parece que ele vai desabar a qualquer momento.
– Certeza absoluta – respondeu Spencer Hastings do outro lado da linha. – E que legal você estar fazendo trabalho voluntário, Han.
– É, talvez todo o sofrimento com A tenha me transformado em uma pessoa melhor – murmurou Hanna antes de desligar. Mas na verdade não tinha sido a atitude de A que a encorajara a vir ao abrigo. Hanna estava ali porque sabia que um certo treinador lindo também estaria lá.
Estava operando com força total na frequência Fazer-Com-Que-Vince-me-Queira. Ela não tinha se permitido pensar sobre Lucas e a Eca-Bronze desde que havia visto aquela foto no Facebook no sábado. Na verdade, também tinha evitado o Facebook desde então, não querendo se arriscar a ver mais postagens de Lucas e Brooke se acariciando na praia. Mas se ela estivesse levando um fora, pelo menos queria voltar à escola depois das férias com um corpo sarado e um namorado mais velho.
Endireitando os ombros, atravessou a entrada e virou a maçaneta da porta. O abrigo cheirava a madeira velha, ligeiramente mofada, e a suor. Uma mesa desocupada foi a primeira coisa que ela viu, depois uma miniárvore de Natal giratória no chão. A distância, ouviu os sons de papel sendo amassado, tesouras cortando e risadas.
– Olá? – chamou Hanna.
Uma mulher de rosto redondo, usando um suéter com estampa de renas, apareceu vinda de porta onde se lia BANHEIRO e sorriu.
– Ei, olá! E você é...?
– Hanna. – Ela fez um gesto na direção das vozes. – Estou aqui para embrulhar os presentes.
– Excelente. Você chegou bem na hora. Nós temos um monte de presentes este ano, então precisamos de muita ajuda. Eu sou Bette.
A mulher guiou Hanna por um longo corredor iluminado por feios painéis fluorescentes até uma sala grande, com uma porção de mesas e uma cozinha no fundo. Havia vários presentes no chão, numa pilha alta, e tubos de papel de presente, laços, fitas e etiquetas para todo lado. “Rockin’ Around the Christmas Tree” tocava em um rádio portátil, e uma porção de gente estava empacotando os presentes e bebendo algo que cheirava a chocolate em copos de isopor.
– É só pegar um presente e começar a embrulhar – disse Bette, e voltou para a recepção.
Hanna olhou em volta para a multidão. A maioria deles parecia ser de estudantes da Hollis, usando jeans rasgados, botas Ugg e jaquetas de tecido reciclado. Ela não viu Vince em lugar nenhum. Este era o lugar onde ele estava trabalhando como voluntário, não era? Mas então uma porta à esquerda se abriu e ela viu seu cabelo escuro, ombros largos e sorriso branco. Sim.
Hanna ergueu a mão para acenar, mas Vince parecia distraído, sorrindo para alguém do outro lado da sala. Uma garota estava sentada em cima de uma das mesas, colocando um laço lustroso em um presente já embrulhado. Vince foi até ela, disse alguma coisa, e os dois começaram a rir. Então ele saiu de novo, desaparecendo em uma das salas dos fundos. O olhar de Hanna continuou preso à garota. Quando ela reconheceu o penteado colmeia no cabelo preto da menina, respirou fundo.
Era Dinah.
Hanna foi até ela e bateu no seu ombro.
– O que você está fazendo aqui?
Dinah se virou para ela, o sorriso desaparecendo. Ela cruzou os braços.
– Vince mencionou que ia embrulhar presentes para o abrigo dos sem-teto uns dias atrás. Achei que era uma ideia meiga, então resolvi vir também.
Hanna semicerrou os olhos.
– Você acha mesmo que ele vai cair na sua?
– Eu sei que vai – fungou Dinah.
Então ela olhou Hanna de cima a baixo, de um jeito que a fez se sentir desconfortável. Ela havia trocado o uniforme da Rosewood Day por um par de jeans skinny da Madewell – em tamanho quarenta, obrigada por perguntar –, combinado com um top de seda folgado, amarrado no pescoço, e um par de botinhas de camurça macia. Dinah, por outro lado, estava usando um vestidinho caseiro xadrez, evasê a partir da cintura, muito decotado, e um par de sapatos-boneca. O único acessório que se salvava era uma bolsinha Chanel matelassê, que estava na mesa ao lado dela. Era igualzinha à que todas as estrelas carregavam na Us Weekly e InStyle. Com certeza a de Dinah era uma imitação, certo?
Vince voltou com um monte de presentes ainda sem embrulhar nas mãos. Quando viu Hanna, seu queixo caiu.
– Ei! – disse ele, um sorriso se espalhando em seu rosto. – Que bom ver você aqui!
“Rá”, pensou Hanna. Ele provavelmente não tinha dito isso a Dinah.
– Só queria ajudar – disse ela, tentando parecer humilde.
– Vocês são ótimas, garotas – disse Vince, passando um tubo de papel de presente e tesouras para Hanna. – Estou muito feliz por vocês duas terem resolvido vir. Fazer esse tipo de coisa faz bem para a alma, sabiam?
– Claro – gorjeou Dinah, baixando seus longos cílios. – Eu sou super a favor de voluntariado. Minha escola nos encoraja a fazê-lo.
– Trabalho voluntário é obrigatório na minha escola – disse Hanna. – Qual escola você frequenta, Dinah? – Tinha quase certeza de que Dinah diria Escola Pública de Rosewood, ou talvez uma das religiosas quacres, alternativas, nas quais os alunos eram obrigados a trabalhar na fazenda da escola.
– Larchmont Academy – respondeu Dinah, com ar superior. – Fica em Haverford.
– Eu sei onde é – disparou Hanna, tentando esconder sua surpresa. Antes de ficar amiga de Ali no sexto ano, ela havia implorado à mãe para matriculá-la na Larchmont Academy. Não só porque toda pessoa famosa que crescera no bairro chique de Main Line tinha se formado por lá, mas também porque a escola tinha aulas como história da moda e deixava os alunos fazerem estágios em lugares como Nova York ou Washington, no último ano.
Se Dinah fosse qualquer outra pessoa, Hanna teria adorado fazer mil perguntas sobre Larchmont. Sempre havia a opção de ir para lá no próximo ano, se continuar frequentando a mesma escola que Kate ficasse insuportável. Mas ela não queria dar esse gostinho a Dinah.
– A Larchmont nos patrocina em voluntariado nos lugares mais incríveis – disse Dinah a Vince, cortando uma longa folha de papel de presente. – Ano passado fui para a Somália trabalhar num hospital. Era basicamente uma tenda sem paredes. No ano anterior, reconstruí casas arruinadas pelo terremoto no Haiti.
– Isso é incrível – derreteu-se Vince, enquanto cortava um pedaço de fita adesiva.
Hanna abriu a boca, querendo se vangloriar de algum trabalho voluntário sensacional que ela também havia feito, mas não conseguiu se lembrar de nenhum. Ela olhou para Vince, que sorria para Dinah como se ela tivesse acabado de inventar a penicilina.
Hanna se concentrou em seu presente, uma grande estação espacial de Lego, e começou a embrulhar o papel nas laterais, desejando ser a melhor empacotadora de presentes da história. Os outros voluntários paravam por ali de vez em quando para pegar fita adesiva ou deixar um rolo de fita colorida, conversando brevemente com Vince. Hanna reconheceu duas garotas da Body Tonic. Uma delas, Yolanda, era a instrutora de Pilates, e a outra trabalhava como salva-vidas. Cerca de meia hora mais tarde, Dinah desceu da mesa e disse que ia ao banheiro. Era a chance de Hanna.
– E aí, você teve que fazer um zilhão de abdominais para gastar as calorias do sorvete de nozes do outro dia? – provocou Hanna, deslizando para mais perto dele.
Vince olhou para ela.
– Shhh. – Ele olhou de esguelha para os outros treinadores da Body Tonic. – Se eles descobrirem que sou viciado em sorvete, vão me atormentar para sempre.
Hanna riu.
– O que é que eu ganho se não contar?
Vince ergueu uma sobrancelha, flertando com ela.
– Hmmm. Bem, o que você quer?
Certo, agora estava melhor. Hanna limpou a garganta e chegou mais perto, sentada na mesa, pressionando a coxa contra a cintura de Vince.
– Vamos tomar um café algum dia. Falar sobre... Sabe como é. Fitness. Papais Noéis safados.
Vince riu:
– Parece ótimo.
– Que bom. Que tal quarta-feira? – perguntou Hanna.
Os olhos de Vince ficaram mais sombrios.
– Ah, na quarta eu não posso – disse ele, evitando seu olhar.
Antes que Hanna pudesse sugerir outro dia, Bette chamou Vince para ajudá-la com uma doação pesada. Enquanto Vince ia, a mente de Hanna acelerou em busca de respostas. Será que fizera algo errado? Dissera algo errado? Ela ouviu uma risadinha de escárnio emergindo das sombras. Ela se virou rápido, certa de que seria Dinah, mas Dinah não estava à vista em lugar nenhum.
Alguém pigarreou. Hanna olhou e viu Yolanda, a instrutora de Pilates, olhando para ela da mesa ao lado.
– Eu não queria me intrometer, mas não pude deixar de ouvir vocês – disse ela baixinho. – Não leve para o lado pessoal. Vince sempre está ocupado nas quartas à noite.
Hanna piscou, intrigada.
– Aonde ele vai? – Opções desagradáveis vieram-lhe à mente. Um encontro dos Viciados em Sexo Anônimos. Se reunir com um bando de caras para jogar EverQuest. Um encontro com sua namorada por correspondência, uma loba cinquentona com peitos de silicone.
Yolanda deixou de lado o presente que estava embrulhando e chegou mais perto.
– Ele canta com o pessoal da igreja toda quarta-feira à noite. Vão de porta em porta em Hollis, cantando hinos religiosos e, tipo, lendo a bíblia, ou algo assim. Não é bem o tipo de coisa sobre a qual ele goste de falar com garotas.
– Oh – disse Hanna baixinho. Cantar na igreja não parecia tão ruim.
– Ele só está procurando uma boa moça católica com quem possa sossegar.
Yolanda olhou na direção de Vince com ar maternal. Ele estava conversando com Bette e apontando para sua garrafa de AminoSpa.
Hanna concordou com a cabeça, subitamente mais animada. Ela podia ser a boa moça católica que Vince procurava – bem, a boa moça judia, mas qual era a diferença? Era hora de aquecer suas cordas vocais. Na quarta, ela ia cantar um pouco. E pelo menos desta vez, Dinah não estaria lá para estragar o clima.
11
ELA ESTAVA MESMO ESCONDENDO ALGO
Na tarde de quarta-feira, depois da aula, Hanna entrou pelas portas duplas do shopping Devon Crest, passou direto pela Otter e sua malévola Lauren e foi para o pavimento superior da Saks. Se ir cantar de porta em porta naquela noite era sua única chance de ganhar ou perder com Vince, precisava encontrar a roupa perfeita para conquistá-lo. Alguma coisa recatada, mas bonita, como um casaco de lã Diane von Furstenberg acinturado. Ou talvez uma daquelas jaquetas com pele no capuz e nos punhos. Algo que parecesse santo, e não vulgar.
– Sino de Belém... – cantarolou Hanna baixinho junto com a música ambiente que saía dos alto-falantes.
Na noite anterior, ela havia desencavado os CDs de Natal mais religiosos de Isabel e aprendido as letras das músicas, inclusive todos os versos de “Joy to The World”, a versão latina de “Adeste Fidelis” e “Ó, Pinheiro de Natal” – por que será que toda música de Natal começava com Ó? – em alemão. Ela também tinha memorizado a Ave-Maria e o ato de contrição católicos só para garantir, mas conseguiu parar antes de encomendar um rosário pela Amazon. Em algum momento da noite, Isabel havia parado na porta do quarto de Hanna, erguendo as sobrancelhas ao ouvir a música que vinha do aparelho de som.
– Ah! – dissera ela, com a mão no coração. – É tão bom ver que você está entrando no espírito do Natal, Hanna!
Uma nuvem fresca de Chanel Nº 5 flutuou para dentro das narinas de Hanna quando ela entrou na loja. Uma vendedora no balcão da MAC a cumprimentou, e depois de acenar desatenta para ela e de dar uma olhada nas novas cores de sombras, Hanna vagueou até a seção de roupas. Manequins vestidas em saias lápis e suéteres de caxemira estavam colocadas ao lado de mesas com camisetas dobradas, feitas do mais macio algodão imaginável. O ar cheirava a Envy, da Gucci, e quando Hanna se olhou no espelho não pôde deixar de notar que seu traseiro estava menor e seus braços estavam certamente menos estufados. As viagens matutinas e noturnas ao retiro de fitness estavam fazendo mágica. Até Vince tinha comentado sobre sua ótima aparência naquela manhã – se bem que ele dissera o mesmo a Inez, que tinha ombros de zagueiro, e a Richard, cuja barriga balançava acima do cós do short.
Seu olhar se fixou em um vestido trespassado verde-esmeralda, da Elizabeth and James, pendurado em uma arara. Ela inspirou, já se imaginando vestida nele – seria a roupa perfeita para ir cantar com Vince. O único daquele modelo que havia sobrado na arara era tamanho quarenta, mas ela estava certa de que caberia nele. Ela foi em sua direção, mas alguém passou à sua frente, agarrando o vestido primeiro.
– Ei! – gritou Hanna. – Eu ia pegar isso!
– Lamento – disse uma voz conhecida. Então a pessoa se virou. – Hanna?
– Dinah – rosnou Hanna, olhando para a garota de cabelos escuros no casaco de lã feio, estilo anos cinquenta, saia-poodle e bolsa Chanel falsa de matelassê. Era como se Dinah fosse sua nova A.
O olhar de Hanna caiu sobre o vestido nas mãos de Dinah.
– Este não é seu tamanho – disse ela, incapaz de esconder o desprezo na voz. – E não é muito seu estilo também.
Dinah apertou o vestido contra o peito.
– Como é que você sabe qual é meu estilo? E eu sou menor do que pareço, Hanna. Nem todo mundo tem bunda chata e peito inexistente.
Nem todo mundo tem cintura pelancuda também, Hanna queria contra-atacar. Ela apontou o vestido.
– Onde você está planejando usá-lo?
Um sorriso astuto apareceu no rosto de Dinah.
– Em certo lugar – disse ela, misteriosa, e instantaneamente o coração de Hanna começou a bater mais forte. Será que ela teria marcado um encontro com Vince? Será que eles iam fazer alguma outra atividade voluntária juntos?
– Além disso, como é que você conhece a Elizabeth and James? – perguntou Hanna.
Dinah soltou o ar pelo nariz com força, impaciente.
– Minha tia trabalha na Bazaar em Nova York. Eu fui ao desfile da Elizabeth and James na Fashion Week do ano passado.
– Você foi? – baliu Hanna, sem conseguir evitar. Ela estava morrendo para ir a um dos desfiles organizados pela 7 on Sixth, mesmo que fosse de um dos designers menos famosos. Que diabos, até no de um dos vencedores do Project Runway já estaria bom. E devia ser uma experiência incrível ter uma tia que trabalhava na revista Harper’s Bazaar.
Hanna fraquejou, pensando em deixar Dinah ficar com o vestido, mas aí se lembrou de Vince sorrindo para ela do outro lado da mesa na sorveteria.
– Eu vi o vestido primeiro – insistiu ela.
– Eu peguei primeiro – disse Dinah, apertando o vestido contra o peito. – E além do mais, ele vai ficar melhor em mim.
– Não vai ficar melhor em você de jeito nenhum. Seu busto é grande demais.
– É, bom, e o seu corpo é muito reto. – Dinah levantou o cabide acima da cabeça de Hanna para que ela não o alcançasse. Hanna tentou agarrá-lo.
– Você vai ficar ridícula com ele.
– E você vai enjoar dele em uma semana. – Dinah escondeu o vestido atrás de si. – Dá para ver que você é uma vaquinha volúvel.
– Eu não sou volúvel! – estrilou Hanna. – Você é uma chata! E sua tatuagem é horrorosa! Não vai combinar!
As duas se encararam com ódio.
– Dê logo o vestido para mim! – Hanna tentou puxar o vestido detrás de Dinah. – Ele não é seu tipo, entendeu?
Dinah desviou dela. Hanna respirou fundo e atacou de novo, arrancando o vestido de suas mãos.
– Rá! – gritou ela, agitando o vestido acima da cabeça como se fosse uma bandeira e correndo para os provadores.
Um casal que fazia compras olhou para ela, surpreso. Uma vendedora ficou parada no balcão, olhando para elas, de boca aberta.
– Volte aqui! – gritou Dinah, logo atrás de Hanna.
Hanna serpenteou em volta das araras, mirando na entrada dos provadores. De repente, ela sentiu dois braços pesados se enroscarem ao redor de sua cintura e a puxarem para baixo. Dinah caiu em cima dela, e por um momento Hanna ficou com o rosto esmagado contra a tatuagem de seu braço. Ela sentiu o vestido começando a ser arrancado de seus dedos.
– Como você se atreve! – disse ela indignada. – Saia já de cima de mim!
Para sua surpresa, Dinah obedeceu, deixando o vestido ainda seguro nas mãos de Hanna. Dinah não estava nem mesmo olhando para ela, em vez disso encarava fixamente algo nos provadores.
– Shh! – sussurrou ela.
Hanna apurou os ouvidos, com medo de ouvir a risadinha aguda e estranha que a estivera assombrando nos últimos tempos. Em vez disso, ela ouviu sons de beijos vindo de um dos provadores.
– O que foi isso? – disse Hanna, ficando aos poucos de pé. Ela chegou mais perto dos provadores, que estavam vazios exceto por um, de onde vinha o barulho. Dois pares de calçados apareciam por sob a porta, um deles formado por botas pretas, o outro por saltos altos em preto e branco, que lhe pareceram mais ou menos conhecidos.
Hanna trocou um olhar cúmplice com Dinah. Com um leve aceno de cabeça, Dinah a encorajou a chegar mais perto. Hanna foi na ponta dos pés até junto do provador. Os sapatos e botas se moveram. Os sons ficaram mais intensos.
De repente, a porta se abriu num tranco, e duas pessoas quase caíram no corredor. Hanna se espremeu contra a parede, puxando Dinah com ela. Dali, refletido nos espelhos triplos, viram um homem vestido com uma roupa vermelha de Papai Noel, gorro de Papai Noel, barba de Papai Noel e botas pretas reluzentes.
– Você é tão sexy – disse o Papai Noel, com voz lasciva. Ele estava beijando o pescoço de uma garota magrela, e ela estava acariciando a barba dele. Hanna prestou mais atenção nela. O cabelo castanho da garota estava preso em um coque francês desarrumado, seu traseiro era inexistente, e em seu pulso fino de bailarina estava uma pulseira de prata David Yurman, velha conhecida de Hanna.
Era Kate.
Hanna agarrou o celular, que estava convenientemente no bolso da frente de sua bolsa, e tirou uma foto. Então ela e Dinah saíram correndo dos provadores. Sem fôlego, elas caíram em cima de uma mesa cheia de jeans e olharam uma para a outra durante um segundo. Então, exatamente ao mesmo tempo, as duas explodiram em gargalhadas.
12
ALMAS GÊMEAS
Algumas horas depois, Hanna estava sentada num banco rasgado no Snooker’s, um bar de universitários em Hollis. Havia camisas de times de vários esportes em todas as paredes, e atrás do balcão ficavam feias luminárias verdes, do tipo usado em agências bancárias. O ar cheirava a palitos fritos de queijo e a cerveja choca. Um antigo sucesso de Bruce Springsteen tocava na jukebox, e o salão estava lotado de universitários barulhentos.
– Então, com quem você preferia ficar? – disse Hanna, analisando a multidão. – Com o sr. Vou Dirigir a Empresa do Papai em Cinco Anos, ou o sr. A Única Coisa Interessante em Mim é que Sou Irlandês?
Ela apontou dois rapazes em um canto, bebendo cerveja no gargalo. O primeiro usava uma camisa social toda arrumadinha e tinha uma expressão arrogante no rosto, do tipo que somente alguém com uma herança superpolpuda poderia sustentar. O segundo tinha feições massudas, cabelo vermelho, usava uma camiseta onde se lia DUBLIN e estava bebendo, é claro, uma Guinness.
– Ugh, nenhum dos dois. – Dinah jogou a azeitona do martíni na boca. – Olhe as garotas que estão com eles! Aquilo que ela está usando é uma bolsa da Burberry? Isso é tão 2001!
– Disse a garota que usa saias com estampa de poodle – provocou Hanna, cutucando o braço de Dinah.
Dinah fingiu estar ofendida.
– Saias com poodle aplicado são retrô – disse ela, empertigada.
– Eu a perdoo – disse Hanna. – Afinal, você tem uma bolsa incrível. Ela apontou para a Chanel de matelassê em cima do banco. Não era mesmo uma imitação. A tia de Dinah que trabalhava na Bazaar tinha posto seu nome no topo da lista de espera e conseguido uma para ela na loja principal da grife, em Nova York.
O bartender serviu outro martíni para Dinah e outra vodca com cranberry para Hanna, e as duas fizeram um brinde. Uma sensação morna de felicidade cobriu Hanna assim que ela tomou o primeiro gole. Depois que ela e Dinah haviam fugido de Kate e do Papai Noel no provador, abandonaram o vestido da Elizabeth and James em uma mesa qualquer, declararam uma trégua e decidiram ir aos bares de faculdade. Dinah deixara o carro no shopping, e enquanto iam no Prius de Hanna conversavam sobre moda, produtos de beleza, celebridades e suas butiques favoritas, os assuntos preferidos de Hanna. A conversa tinha fluído naturalmente, como se elas fossem amigas de muitos anos.
Mas quando se aproximaram do Snooker’s, Hanna havia ficado preocupada. Ela não tinha uma identidade falsa, e depois de ter sido pega furtando em lojas no último outono, não queria a polícia atrás dela de novo. Dinah havia apertado sua mão e dito:
– Deixe tudo comigo.
Parecendo tranquila, ela foi até o porteiro, que tinha o cabelo cortado à escovinha e uma corrente de ouro pesada no pescoço, e disse:
– Oi, Jake! Você se lembra de mim?
O porteiro sorriu para Dinah, mas logo depois pediu para ver as identidades das garotas. Dinah tinha feito beicinho.
– Ah, pare com isso, Jakiezinho. Não faça assim.
Ela subiu e desceu os dedos pelo braço dele. Por fim, o porteiro apenas deu de ombros e abriu a porta para elas. Lá dentro, Hanna fez sinal de positivo para Dinah. Aquele era definitivamente o tipo de coisa que Ali teria feito.
Dinah pegou uma batatinha frita do prato que elas tinham pedido.
– Nós estamos saindo tanto do nosso compromisso do retiro de fitness... Aposto que Vince vai saber e nos fazer treinar por cinco horas seguidas na próxima aula.
– É, eu posso sentir a gordura escorrendo de volta para as minhas coxas – brincou Hanna.
Dinah abanou a mão.
– Como se você tivesse tido gordura aí algum dia. Para que você entrou no retiro, afinal?
Hanna revirou os olhos.
– Hum, porque eu estou terrivelmente fora de forma e nenhuma das minhas roupas serve em mim?
Dinah olhou para ela como se ela fosse louca.
– Você é uma dessas garotas que se olham no espelho e veem uma vaca?
– Eu não sou assim – garantiu Hanna. Ou será que era? Toda vez que ela olhava para seu reflexo, achava algo de errado. Seu cabelo parecia oleoso. Os braços eram gordos. O rosto, redondo demais. Na maior parte do tempo, ela mal notava os resultados de todo o trabalho duro que tivera no oitavo ano com Mona. Tudo o que via era a antiga Hanna, a pobre coitada que havia sido durante o ensino médio.
Hanna enfiou uma batatinha frita na boca.
– Sabe, eu já tive uma amiga linda. Ela era maravilhosa, popular, o tipo de garota que todas queriam ser. Eu estava no grupinho dela, mas ela sempre deixou bem claro que eu vivia por um fio. Ela zombava do meu jeito de comer, de como meus jeans não caíam bem, tudo. Depois de alguns anos ouvindo isso direto, fica meio difícil esquecer.
Dinah apoiou os cotovelos no balcão.
– E o que aconteceu com essa garota? Você a dispensou, certo?
Hanna manteve os olhos fixos nas garrafas de Absolut atrás do balcão.
– Na verdade... ela morreu. O nome dela era Alison DiLaurentis. Talvez você já tenha ouvido falar dela.
– Talvez eu tenha ouvido? – Os olhos de Dinah se arregalaram. – Isso foi tipo simplesmente a maior história de Rosewood. Eles encontraram o corpo dela não faz muito tempo, certo?
Hanna assentiu com a cabeça.
– Uau. – Dinah virou o resto do martíni. – Sabe, eu conheci Alison.
– Mesmo? – disse Hanna, se virando rápido para Dinah.
– Hã-rã. – Uma expressão distante tomou o rosto de Dinah. – Nós nos conhecemos num acampamento de hóquei. Eu costumava jogar no ensino fundamental, antes de resolver admitir para meus pais que odiava. Alison estava no acampamento, também. Ela liderava um grupo de garotas de lá, e as obrigava a fazer tudo o que ela queria. Durante um tempo, eu fui o alvo. Elas me chamavam de Dinah Vagina. Eu nem tinha feito nada contra elas.
– Isso é horrível – disse Hanna. – Ali costumava me chamar de Hanna Montanha. E uma porção de outros apelidos que eu nem quero lembrar. Parte de mim queria que ela pudesse ver quanto eu emagreci desde então, o quanto eu mudei.
Hanna suspirou.
– Na verdade, o que é que eu estou dizendo? Ali provavelmente acharia alguma coisa em mim para criticar, se ela ainda estivesse por aí hoje.
– Só que agora você não seria mais amiga dela, certo? – disse Dinah, entrelaçando seu braço no de Hanna. – Você agora é independente e forte demais para aguentar desaforos daquela vaca.
– Claro – disse Hanna, trêmula, apesar de não ter muita certeza de que isso seria verdade.
As palavras de desprezo de Ali ainda a assombravam, em particular quando reencarnadas através de Mona, no tempo em que fingira ser A. Mas ela se sentia ainda mais próxima de Dinah agora. Ali havia tocado as duas, para o bem ou para o mal. Ambas haviam sido as garotas que Ali adorava provocar.
Gritos de torcida se elevaram atrás delas, e Hanna se virou para ver o sr. Irlandês virando uma porção de cervejas em uma das mesas dos fundos.
– Que sexy – murmurou ela, tocando Dinah com o cotovelo. – Talvez eu vá para casa com ele esta noite.
Dinah deu uma risadinha.
– Achei que você estivesse se guardando para Vince.
– Achei que você estivesse – retrucou Hanna. Houve uma pausa desconfortável, mas de repente as garotas explodiram em risadas.
Dinah suspirou.
– Eu não sei qual é a daquele cara. Eu o vi fora da academia uns dias atrás, e ele não parava de falar no quanto estava contente de que eu e você estávamos treinando em dupla. Ele achava que eu podia realmente ajudar você e lhe ensinar alguma coisa.
Hanna deu um tapa no balcão.
– Não acredito. Ele disse a mesmíssima coisa para mim, sobre você!
Uma das sobrancelhas de Dinah se ergueu.
– Você acha que ele quer nós duas competindo pela atenção dele? Esse talvez fosse o plano dele o tempo todo.
– Que babaca – cuspiu Hanna. – Ele age feito um santinho, mas na verdade só está tentando fazer com que nós nos joguemos em cima dele. – Ela odiava pensar essas coisas de Vince, mas talvez fosse verdade.
– E aquela porcaria de água vitaminada que fica tentando nos empurrar? – Dinah revirou os olhos. – Toda vez que eu olho para ele, está tomando um gole.
– Aposto que nem tem vitamina nenhuma naquilo – disse Hanna –, e deve ter um zilhão de calorias. Alguém fez lavagem cerebral nele.
– Sabe de uma coisa? – Dinah tinha um ar determinado. – Ele é um coitado. Nós estamos melhor sem ele.
– Concordo! – cacarejou Hanna, de pileque, sentindo uma onda de autoconfiança. – E ele é mesmo um coitado. Sabe o que ele está fazendo esta noite? Está indo de porta em porta cantando canções de Natal com um grupo de pessoas da igreja. Eles cantam músicas super-religiosas e talvez recriem cenas do nascimento de Jesus ou algo assim. É uma tradição das quartas-feiras.
– Sério? – Dinah fez uma careta.
– Hã-rã. E eu ia aparecer por lá. – Hanna fez uma pausa para beber o resto da vodca com cranberry. – Parece que Vince está procurando por uma boa moça religiosa para sossegar. Mas esqueça. Ele não vale a pena.
– Boa ideia – concordou Dinah, determinada. – Vamos jantar em vez disso. Vince vai cantar, e nós vamos nos divertir.
– Combinado – disse Hanna, erguendo a mão para um cumprimento. Depois ela riu. – Sabe, provavelmente Vince vai fazer todos os cantores beberem AminoSpa entre uma música e outra.
Dinah quase cuspiu sua bebida de tanto rir.
– Ele provavelmente compôs uma música sobre AminoSpa!
– E provavelmente vai tentar vender a água de porta em porta enquanto cantam em alemão! – gargalhou Hanna, ao imaginar a cena.
As duas se dobraram ao meio de tanto rir, recebendo olhares estranhos das pessoas em torno. Mas Hanna não se importou. Não se importou em desistir de Vince, também. Fizera uma nova amiga. Talvez fosse isso o que ela queria de verdade, desde o começo.
13
PEGUEI VOCÊ!
– Hanna? Hanna?
Hanna abriu um olho e viu o pai de pé na porta do seu quarto. Ela se sentou de uma vez. Sua boca estava com gosto de meia suja, e sua cabeça parecia pesar mil toneladas. Também suspeitava de que estivesse cheirando a álcool – ela não se lembrava de ter tomado banho depois de voltar do Snooker’s na noite anterior.
– Seu despertador está tocando há meia hora. – O sr. Marin apontou para o celular de Hanna, piscando sobre a mesinha de cabeceira. – Alguns de nós estão tentando dormir um pouco mais.
Hanna olhou para seu celular, tonta, e então apertou um botão para fazer o som do despertador parar.
– Sinto muito – murmurou ela. Seu pai resmungou alguma coisa e fechou a porta.
Ela olhou para o relógio. Eram cinco e meia, hora de acordar para a sessão matutina do retiro de fitness. Hanna grunhiu e rolou para fora da cama, lamentando toda a tequila que tomara com Dinah na noite anterior para comemorar o fato de que Vince era um coitado. A dose de tequila havia interrompido a noitada – depois de virar o copo, o rosto de Dinah tinha ficado verde, e ela correra para o banheiro. Ao voltar, tinha dito que era melhor ir para casa. Depois daquilo, a única coisa de que Hanna se lembrava era de ter enfiado dinheiro suficiente no parquímetro de Hollis para deixar o Prius estacionado lá a noite inteira, de ter chamado um táxi e chegado em casa meio cega. Felizmente, Isabel, seu pai e Kate estavam fora, fazendo alguma atividade dos Doze Dias de Natal, então ninguém a viu chegando naquele estado.
Ela conseguiu se vestir, enfiar os pés nos tênis, chamar um táxi para recuperar seu carro em Hollis, e depois dirigir para a academia. Enquanto caminhava pela entrada da Body Tonic, mandou uma mensagem de texto para Dinah.
Você está aqui hoje? Sentindo-se tão péssima quanto eu? Se pelo menos eu tivesse uma AminoSpa, ha, ha.
Ela apertou ENVIAR, esperando que Dinah respondesse de imediato, mas não teve resposta. Talvez Dinah tivesse resolvido matar a aula e ainda estivesse dormindo.
O interior da Body Tonic cheirava a óleo de massagem e flores frescas, o que revirou o estômago de Hanna. A garota da recepção acenou para ela, alegrinha, e Hanna se arrastou para o vestiário sem cumprimentá-la de volta. Checou o celular mais uma vez antes de jogá-lo no armário, mas Dinah ainda não havia respondido. Dando de ombros, foi para a sala onde o pessoal do retiro sempre se encontrava. Quando empurrou as portas e viu Dinah de pé contra o espelho, a cabeça jogada para trás, rindo, Hanna parou de repente.
Dinah parecia descansada e saudável, como se não tivesse bebido uma gota de álcool na noite anterior. Ela estava de pé ao lado de Vince, uma garrafa de AminoSpa na mão, sorrindo para ele como se ele fosse o Messias. Vince também sorria para ela.
– Sua versão de “Na Manjedoura” foi sensacional – arrulhou Dinah. – Tanto sentimento.
– É, bem, todo mundo adorou o jeito que você improvisou a peça do nascimento de Jesus no gramado do sr. Larsen – respondeu Vince. – O que fez você pensar naquilo?
– Ah, não sei. – Dinah baixou os olhos. – Eu venho cantando de porta em porta desde minha primeira comunhão. Eu sei como fazer as pessoas entrarem no clima.
Ela pegou a mão de Vince. Ele entrelaçou os dedos nos dela e apertou sua mão. Então olharam nos olhos um do outro como se fossem almas gêmeas, aproximaram-se e se beijaram.
O queixo de Hanna caiu. Ela queria sair correndo dali, mas as solas de seus tênis pareciam coladas ao chão. Quer dizer que Dinah tinha ido... cantar? Como Hanna havia lhe contado que Vince faria? A conversa delas na noite anterior passou voando por sua mente. Como Dinah dissera que Vince era um coitado. Como Dinah dissera que elas estavam melhor sem ele. Como havia ido embora pouco depois de Hanna contar sobre a missão secreta de cantoria de Vince, dizendo que a dose de tequila a deixara enjoada.
Será que tudo havia sido um truque?
Um ganido torturado escapou de seus lábios, e Dinah e Vince se viraram. Assim que Dinah viu Hanna, os cantos de seus lábios em forma de coração se viraram para cima, num sorriso maléfico. Vince acenou timidamente para Hanna. Hanna agarrou o braço de Dinah.
– Precisamos conversar.
Ela arrastou Dinah para a entrada, parando ao lado de uma pilha de Círculos Mágicos de Pilates.
– Que diabo foi isso?
Dinah balançou para a frente e para trás sobre os calcanhares.
– Que diabo foi o quê? – Sua voz não se parecia nada com a da garota incrível, amigável e cúmplice que havia sentado ao lado de Hanna no Snooker’s na noite anterior.
– Eu achei que nós havíamos declarado trégua! Pensei que nós duas tínhamos decidido que ele era um pobre coitado!
Dinah começou a rir.
– Eu disse a você que ele iria preferir a mim. Na guerra e no amor vale tudo.
A cabeça de Hanna girou, tirando seu equilíbrio.
– Não acredito em você – sussurrou ela, sentindo a garganta apertada e os olhos se enchendo de lágrimas.
Mais imagens da noite anterior passaram por sua mente. Como Dinah havia falado, sem nem pensar, que adoraria que Hanna fosse para Larchmont Academy. Que seria bom ter alguém legal como Hanna por lá. Como Dinah prometera apresentar Hanna à sua tia editora da Bazaar quando ela viesse para o Natal. Como Dinah dera um grande abraço em Hanna quando elas estavam indo embora, dizendo que iria vê-la no dia seguinte.
– Eu achei que éramos amigas – balbuciou Hanna.
– Ah, por favor! – Dinah revirou os olhos. – Você só está irritada porque eu a enganei. Como se você não fosse fazer o mesmo comigo!
– Eu não faria. Eu não fiz – guinchou Hanna, sua voz soando bem mais patética e vulnerável do que gostaria.
E aí, antes que as lágrimas pudessem descer pelo seu rosto, ela se virou e foi para o vestiário. Seus dedos tremiam enquanto tentava se lembrar do segredo do cadeado em seu armário. Pegou a sacola e saiu da academia sem sequer vestir o casaco.
Assim que saiu no ar gelado, deixou escapar o soluço que estivera prendendo. As lágrimas desceram quentes e rápidas por seu rosto. Cambaleou até o carro e se apoiou no capô, sentindo como se um enorme balão de água tivesse se rompido dentro dela. Chorou pela morte de Ali. Pelo horror de Mona. O pesadelo que era sua nova família. Por não ter tido nenhuma notícia de Lucas. Porque havia ido atrás de Vince, quando tudo o que ela queria realmente era Lucas. Tudo parecia tão... errado.
– Oh, alguém está arrasadinha?
Hanna olhou para o outro lado do estacionamento através do borrão das lágrimas. Um vulto estava do outro lado de seu carro, com um sorriso sorrateiro no rosto. Por um instante, Hanna teve medo de que fosse Ali. Mas então sua visão ficou mais nítida. Esta garota tinha o cabelo castanho, não louro. Era Kate quem estava de pé ali, encostada na porta de seu Honda Civic, olhando para Hanna em seu pior momento.
14
DESTRUIÇÃO MÚTUA GARANTIDA
– O q-que você está fazendo aqui? – gaguejou Hanna, endireitando as costas.
Kate riu.
– O retiro de fitness foi demais para você hoje, Hanna? – Ela estendeu o braço, mostrando algo que trazia na mão. Era uma camiseta vermelha extragrande, onde se lia PONHA SEU TRASEIRO NA LINHA!
Hanna sentiu-se mal.
– Eu... Eu não sei do que você está falando.
– O programa parece mesmo incrível. – Kate balançou a camiseta provocativamente sob o nariz de Hanna. – Tenho certeza de que todo mundo em Rosewood Day ia adorar saber o que você anda fazendo.
Ela pegou o celular e mostrou a Hanna uma série de fotos. Hanna e os outros alunos, de camiseta vermelha, correndo em uma pista de obstáculos feitos de pneus atrás da Body Tonic, todos eles gordos e de rosto vermelho, parecendo ridículos. Os alunos reunidos em um círculo, em uma das palestras de Vince sobre a AminoSpa. E o golpe de misericórdia: Dinah e Vince se beijando, e Hanna parada na porta agora há pouco, parecendo arrasada.
Ela vira tudo.
– Dê isso para mim! – disse Hanna, tentando tomar o celular de Kate.
Kate o ergueu acima da cabeça de Hanna.
– Calma aí!
– Você tem me seguido? – perguntou Hanna, com voz esganiçada. – Você não tem nada melhor para fazer?
– O que posso dizer? Adoro um bom segredo. – Kate se balançou para a frente e para trás em suas botas Ugg forradas de pele. – E alguém me deu uma dica incrível, então eu segui você até aqui, sim.
Um arrepio percorreu a espinha de Hanna. Quem poderia ter feito aquilo? Imediatamente, A veio à sua lembrança... mas A não existia mais.
– Não fique envergonhada por estar indo ao acampamento de gordos! – continuou Kate. – Pelo menos você está fazendo uma mudança positiva, sabe? – Ela digitou alguma coisa no celular. – Eu acho que isso daria um lindo post no seu mural do Facebook. E talvez as pessoas fiquem com peninha de você, perdendo o cara para aquela outra garota!
O coração de Hanna bateu forte.
– Eu não estou interessada em Vince!
Kate a olhou como se soubesse de tudo.
– Continue se enganando, Hanna. Mas as fotos não mentem. Agora, o que seria uma boa legenda para a foto no Facebook? O quartel-general de fitness é tão incrível, e olhem só meus novos amigos maravilhosos? Ou que tal algo mais simples, tipo Colocando minha bunda enorme na linha?
Hanna deixou escapar um ganido. Ela era “amiga” de todo tipo de gente no Facebook. Naomi Ziegler e Riley Wolfe, duas vaquinhas populares que adorariam saber disso. Garotas mais velhas que a convidavam para festas incríveis. Mason Byers, James Freed, Noel Kahn, e seu ex, Sean Ackard. Mona ter tentado matar Hanna já era ruim o suficiente. Um post sobre o retiro iria cristalizar seu status de pobre coitada para sempre. Ela já podia se ver sentada sozinha no refeitório, na hora do almoço. Passando todo sábado à noite no quarto. Nunca mais sendo convidada para outra festa de novo.
– Por favor, não publique isso – gritou Hanna. – Estou implorando. Eu faço qualquer coisa.
Uma das sobrancelhas de Kate se ergueu.
– O que eu ganho com isso?
Um vento gelado soprou, adormecendo as orelhas e a ponta do nariz de Hanna. Ela olhou para a rua vazia na frente da Body Tonic e tentou pensar. O que ela poderia ter que Kate quisesse? Ela já não tinha desistido de coisas suficientes? Desde que Kate botara o pé na casa de Hanna, sua vida tinha ido de mal a pior. Kate já havia usurpado toda a atenção do pai de Hanna. Assim que começasse a estudar em Rosewood Day, ela provavelmente se tornaria a garota mais popular do ano, tomando o lugar de Hanna. Quanta tortura mais Hanna ainda poderia aguentar?
O que ela não daria para ter Mona a seu lado agora – a Mona que conhecera antes que aquela história de A começasse. As duas, juntas, poderiam rir da cara de Kate, dizer a ela que não devia ousar contrariá-las, e então fazer uma curva fechada e ir embora em uma nuvem de fumaça de escapamento. Se Ali estivesse ali seria ainda melhor. Ela passaria o braço pelo de Hanna, se inclinaria bem perto e cochicharia: “Você sabe algo sobre ela também, Han. É isso que é ótimo em segredos. Você pode usá-los como moeda de troca.”
De repente, Hanna ergueu a cabeça. Era como se Ali tivesse falado com ela do além-túmulo. Ela sabia, sim, algo sobre Kate, algo que ela quase havia esquecido.
Ela começou a rir.
– Que foi? – Kate franziu a testa, intrigada.
As risadas continuaram vindo. Hanna procurou pelo celular dentro da bolsa.
– Você não vai publicar nada no Facebook. Porque se você fizer isso, eu vou contar a todo mundo sobre o Papai Noel.
Kate franziu a testa ainda mais. Por um instante, uma expressão de puro terror passou por seu rosto.
– Hã?
– Você sabe – zombou Hanna, ampliando a foto na tela do celular e quase enfiando o aparelho na cara de Kate. Papai Noel acariciando o pescoço de Kate. Kate enfiando as mãos na barba de algodão do Papai Noel. – Uma boa legenda seria Certa menina foi má este ano. E você não sabia que o cara é o maior tarado? Ele dá em cima de meninas de doze anos!
Kate saiu de perto de Hanna, andando para trás, sua boca abrindo e fechando feito a de um peixe.
– Por favor, não – foi só o que ela sussurrou.
– Acho que chegamos a um acordo, então – disse Hanna, abrindo o carro com o controle remoto. Se você publicar as fotos do retiro de fitness, eu publico isto. Certo?
Kate não respondeu, mas Hanna sabia que ela estava neutralizada. De cabeça erguida, ela se sentou no banco do motorista, virou a chave na ignição e saiu fácil e rapidamente da vaga.
– Tchauzinho! – trinou ela, agitando os dedos num aceno para a meia-irmã. Kate continuou onde estava, segurando a camiseta vermelha.
Hanna foi embora sem olhar para trás. Quando deixou o estacionamento, uma frase que Ali sempre dizia e que Hanna havia adotado lhe veio à cabeça: Sou Ali, e sou fabulosa. Hanna também estava se sentindo bastante fabulosa naquele momento.
15
NOSSAS OPERADORAS ESTÃO AGUARDANDO SUA LIGAÇÃO!
De volta em casa, Hanna encontrou a cozinha silenciosa e vazia. O chuveiro estava ligado no andar de cima, e ela podia ouvir o som abafado da televisão sintonizada no noticiário matutino no quarto do pai. Pela janela, viu os gêmeos de seis anos que moravam na casa ao lado saírem para o jardim como pequenos demônios, os dois usando chapéus idênticos aos dos elfos do Papai Noel.
Hanna tomou dois comprimidos de Advil e começou a fazer café. Por alguns minutos, o único som no ambiente era o da água pingando na jarra de vidro. Ela olhou desatenta para a capa do Philadelphia Sentinel, desejando que a dor de cabeça fosse embora. “Ian Thomas insiste em sua inocência”, dizia a manchete. Ela virou o jornal rapidamente. Aquela era a última coisa sobre a qual queria pensar agora. Ian tinha de ser o culpado. Quem mais teria motivos para matar Ali?
Hanna olhou para o jornal de novo e se encolheu. No canto inferior esquerdo havia um anúncio gigantesco da Body Tonic Academia e Spa. Lá, em preto e branco, estava o rosto sorridente de Vince, dizendo a alunos em potencial que até o ano-novo as taxas de matrícula seriam de apenas cinquenta dólares.
Hanna não podia acreditar no que Dinah tinha feito, e não podia acreditar que Vince escolhera aquela esquisita em vez dela. Se ela tivesse aparecido para cantar músicas de Natal, em vez de Dinah, será que Vince a teria escolhido? Por que ele tinha agido como se estivesse tão a fim de Hanna, para começar? Será que parte do que Dinah dissera era verdade? Que ele estava só tentando fazer com que as duas competissem por ele?
Depois de tudo que havia passado com A, ela devia saber que Dinah iria apunhalá-la pelas costas. Uma imagem passou por sua mente. Ela viu mais uma vez o carro de Mona avançando em sua direção. Sentiu o impacto, seu corpo voando pelo ar, o grito preso em sua garganta. Uma pessoa depois da outra, o mundo todo continuava a traí-la.
Hanna massageou as próprias têmporas e tentou respirar lenta e profundamente. Será que ainda havia alguém em quem ela pudesse confiar? Olhou para o celular em cima da mesa e passou pela lista de contatos, perguntando-se se deveria ligar para Spencer. Ou talvez Emily. Ou Aria. Ela se lembrou de uma troca de presentes que fizeram na sétima série, logo antes dos feriados de fim de ano. Aria tinha tricotado sutiãs de mohair para todas, e elas os tinham provado por cima das roupas e dançado na sala de estar de Ali. Até Ali estava de bom humor naquele dia, sem zombar do modo pelo qual o sutiã de Hanna se esticava de forma não muito atraente sobre seu peito. O irmão de Ali, Jason, entrara na sala no meio da dança. Ele tinha ficado perplexo, olhando para elas naquelas roupas bizarras, e todas tinham caído na gargalhada.
Alguém tossiu no corredor, e Hanna olhou para cima no momento em que seu pai entrou na cozinha, de robe e chinelos.
– Oi – disse ele, com voz cansada, bagunçando o cabelo dela. – Você se importa se eu tomar um pouco desse café?
– Fique à vontade – disse Hanna.
O sr. Marin despejou parte do conteúdo da jarra na caneca de Dobermann que ele usava desde que Hanna era criança. Ele se sentou ao lado dela, soltou um longo suspiro de cansaço e esfregou os olhos.
– Está tudo bem? – perguntou Hanna.
A cabeça dele balançou para cima e para baixo.
– Só estou cansado. Essas atividades de Doze Dias de Natal estão meio malucas este ano. Isabel está me fazendo correr para todo lado.
– Lamento não estar participando de todas elas – disse Hanna, sentindo-se um pouco culpada.
O sr. Marin balançou a mão.
– Talvez tenha sido inteligente da sua parte perder algumas. – Ele lhe deu uma olhada disfarçada por cima do ombro. – Só aqui entre nós? Acho que eu gostava mais quando celebrávamos o Hanuca. Ao menos eram só oito dias. E bem mais tranquilos.
Hanna mordeu o lábio.
– Eu também gostava mais.
O sr. Marin abriu a boca, como se fosse dizer mais alguma coisa, mas então pareceu mudar de ideia e só tomou mais um longo gole do café. O silêncio caiu entre eles. O relógio em forma de bengalinha de caramelo que Isabel havia pendurado em um canto tiquetaqueou alto. Um motor foi ligado lá fora.
Então o sr. Marin deu uma palmadinha na perna de Hanna.
– Na verdade, isso me lembra de algo. Tenho uma coisa para você.
Ele ficou de pé, arrastou os chinelos até sua pasta, ao lado da porta, e de lá puxou um estojo de veludo.
Hanna olhou para ele, reconhecendo-o de imediato. Ela levantou a tampa e achou o mesmo relicário Cartier que encontrara no dia em que seu pai, Isabel e Kate tinham se mudado para lá. Ela havia pensado que nunca mais seguraria a joia.
– Isto é... para mim?
– Claro que é para você. Era da sua avó.
– Eu sei – murmurou Hanna, tirando o colar da caixinha. Ele cintilou sob a lâmpada. – É lindo – sussurrou. – Eu sempre quis isto.
– Eu sei – disse o sr. Marin, escondendo um sorriso. – Sua avó iria querer que fosse seu. Eu também quero.
Hanna ficou de pé e deu um abraço apertado no pai.
– Obrigada. – Hanna queria acrescentar por não ter dado isso a Kate ou Isabel, mas teve medo de que fosse estragar o momento. De repente, tudo pareceu um pouco melhor. Talvez seu pai não tivesse se esquecido dela, afinal. Talvez ele ainda lembrasse, de alguma forma, que ela estava ali, que ainda tinha importância.
Ela se virou para que o pai pudesse prender o fecho do colar em seu pescoço. O relicário ficava perfeitamente pendurado logo abaixo de sua garganta, e Hanna não podia resistir a tocar a forma oval e lisa repetidamente. O sr. Marin terminou o café e puxou uma garrafa de água da pasta, tomando um longo gole.
– Bem, acho que eu devo começar a me arrumar.
– Espere um pouco. – Hanna olhou a garrafa na mão dele. O rótulo dizia AminoSpa. – Onde você arrumou isso?
O sr. Marin rosqueou a tampa de volta na garrafa.
– Tem um cara vendendo isso no escritório. Ele disse que essa água tem um monte de vitaminas e que eu iria me sentir melhor quando começasse a tomar umas duas por dia. Mas eu não sinto diferença nenhuma, para falar a verdade. E o gosto parece um pouco com suco de limão estragado.
Hanna deu um sorriso triste.
– Eu acho que isso é uma armação.
– É provável – disse o sr. Marin, dando de ombros. – Acho que a única razão de venderem esse troço é recrutar outras pessoas para vendê-lo também. O cara me fez um longo discurso sobre como eu poderia ser um associado AminoSpa em meio período. Eu poderia ganhar rios de dinheiro sem nem precisar trocar o pijama. – Ele riu, bem-humorado. – As pessoas que são recrutadas para vender isso são feito membros de seitas, parecem ter passado por uma lavagem cerebral completa. E depois que eles pegam você, não há meio de escapar.
Ele colocou a garrafa de AminoSpa em cima do balcão e deu um beijo no topo da cabeça de Hanna. Seus chinelos fizeram um barulhinho macio no chão enquanto ele saía da cozinha. Hanna ficou sentada imóvel por alguns instantes, olhando de maneira fixa para a garrafa. Era loucura pensar que ela havia ficado a fim de um cara que estava enrolado em um esquema de pirâmide. Dinah podia ficar com ele todinho para ela.
De repente, uma ideia lhe ocorreu. Ela ficou de pé, correu para a garrafa e olhou a informação da empresa na parte de trás do rótulo. Estava escrito Para se juntar à nossa equipe, ligue agora! sob um número 0800 e um endereço de site.
Com o coração disparado, Hanna pegou o telefone de casa e ligou.
– Indústrias AminoSpa! – atendeu uma voz animada, quase imediatamente. – Você tem interesse em se juntar à nossa equipe?
– Hã, sim – disse Hanna, em sua voz mais profissional. – Meu namorado vende AminoSpa, e eu adoraria fazer parte disso também.
– Isso é ótimo! – arrulhou a operadora. – Qual é o seu nome?
– Dinah Morrissey – disse Hanna, sorrindo para seu reflexo na janela. Ela soletrou, e depois deu à operadora o endereço de Dinah, que estava na folha do retiro de fitness que Vince dera a todos no primeiro dia. – Por favor, mande-me cem caixas.
– Cem?! – A voz da operadora ficou mais aguda. – Ai, querida, isso é muito para quem só está começando.
– Eu dou conta – insistiu Hanna, passando os dedos pelo colar novo.
– Você sabe que não aceitamos devoluções, certo? Você é responsável por todas as garrafas. E nós vamos cobrar por essas caixas no começo do mês que vem.
– Eu sei – disse Hanna. – Como eu disse, estou muito entusiasmada para me juntar à equipe!
Depois de dar mais alguns detalhes à operadora, Hanna desligou, sorrindo. Pegou a garrafa de AminoSpa pela metade que seu pai deixara para trás, fechou mais a tampa, bem apertada, e a deixou cair na lixeira de recicláveis. Abrindo o celular, escreveu uma nova mensagem para Dinah. Eu perdoo você! Estou certa de que vocês dois serão muito felizes juntos em TODOS os desafios! Se Dinah queria Vince, podia ficar com ele, mas tinha que ser ele, o esquema de pirâmide idiota e tudo o mais.
Seu celular apitou menos de um minuto depois, e na hora ela pensou que fosse Dinah mandando uma resposta. Mas, para sua surpresa, foi o número de Lucas que piscou na tela.
Voltamos antes da hora. Você pode passar aqui antes da escola?
16
ÓCULOS DE BRONZEAMENTO ESTÃO NA MODA
Depois de vestir seu uniforme de Rosewood Day e pegar seus livros para a escola, Hanna seguiu pelo meio-fio até a casa de Lucas. O Ford Explorer da família dele estava de volta à garagem, o porta-malas ainda estava aberto. O utilitário da Mercedes que Hanna tinha visto na noite em que os Rumson chegaram estava ali também – o que significava que Brooke também estava lá. Hanna imaginou se Lucas a tinha convidado para ir até lá apenas para terminar com ela pessoalmente. Não que ela fosse permitir que ele a humilhasse dessa maneira. Ela terminaria com ele antes.
“Bem, vamos acabar com isso”, ela pensou, grata por ao menos estar maravilhosa depois do retiro de fitness. Suspirando com tristeza, bateu a porta do Prius e começou a andar na calçada da frente. Quando ela estava prestes a tocar a campainha, viu uma cintilação fraca entre a cerca de arbustos que rodeavam a propriedade. Era quase como se alguém estivesse se escondendo ali, mas isso era loucura. Quem poderia ser às oito horas da manhã com um frio de nove graus? Quando Hanna pararia de pensar que havia alguém atrás dela?
Lucas atendeu a porta quase imediatamente. Sua pele estava dourada, seu cabelo louro estava quase branco e parecia que ele tinha perdido uns dois quilos.
– Ei! – disse ele, puxando-a para dentro e dando-lhe um enorme abraço. – Eu senti tanto sua falta.
Hanna recuou.
– Bem, não pareceu, Lucas. Acho que você estava se divertindo muito para me mandar uma mensagem, não é?
Lucas fez uma careta.
– Sinto muito. Pensei que teríamos internet wireless, mas o servidor caiu. Na verdade, essa é uma das razões por estarmos em casa mais cedo: o sr. Rumson estava pirando por não poder checar seu BlackBerry. Brooke conseguiu entrar no Facebook por um instante, mas nenhum de nós conseguiu ficar on-line.
– Sim, eu vi o que ela postou no Facebook. – Hanna não estava conseguindo disfarçar sua irritação. – Você e Brooke pareciam bem felizes juntos.
Lucas a encarou.
– Você não acha que nós... – Ele parou e apertou os olhos. – Oh, Hanna, sinto muito. Juro que não foi nada do que você está pensando.
– Hã-rã – respondeu Hanna sem convicção. Estava certa de que Lucas estava fazendo cena agora que Brooke voltaria para casa.
– Estou falando sério. – Lucas a guiou para dentro e a sentou no sofá. – Depois daquele primeiro dia, Brooke e eu mal nos vimos. Fui caminhar naquelas trilhas incríveis e fiz um passeio sensacional de caiaque, mas tudo que Brooke queria era se bronzear. – Ele se aproximou dela, a voz dele em seu ouvido. – Ela espalhava óleo de bebê em si mesma de manhã até a noite. O que causou a outra razão de termos voltado para casa.
Nisso, o olhar dele se moveu para o corredor. O sr. e a sra. Rumson vieram da cozinha, trazendo suas malas com eles. Brooke apareceu depois, vestindo um vestido ultracurto mais compatível com climas quentes e um par de anabelas de ráfia. Sua pele estava descamando, tinha terríveis marcas de óculos de sol ao redor de seus olhos e algum tipo de pomada branca espalhada nos dois braços. A pele sob a pomada parecia pedaços queimados de carne, iguais ao que o pai de Hanna fazia toda vez que tentava usar a churrasqueira. Hanna não sabia se ria ou cobria os olhos.
– O que aconteceu com ela? – sussurrou.
– Ela teve queimaduras de terceiro grau por causa do sol – respondeu Lucas em voz baixa. – Foram tão feias que tivemos que levá-la ao hospital. Que foi o lugar mais amedrontador onde eu já estive, Hanna; havia baratas na sala de espera, ninguém tinha uma cama adequada e, eu juro, nenhum dos médicos tinha um diploma de verdade. O cara que tratou Brooke disse a ela que se voltasse para o sol por um minuto que fosse, a pele dela cairia; literalmente. A mãe dela a vigiou como um falcão depois disso. Brooke rodou pelo quarto dia e noite, lamentando-se de que estava de fato entediada. No fim da viagem, eu já queria esganá-la. Acho que todo mundo queria, também.
Hanna abraçou uma almofada contra o peito.
– Então... você não tomou sol nu? Vocês não tomaram drinques de gelatina juntos?
Lucas olhou para ela como se ela fosse louca.
– Você já tomou esse negócio? De qualquer forma, nós não poderíamos fazer gelatina mesmo que quiséssemos; a água de Iucatã era horrível.
Só nesse momento é que Brooke percebeu que Lucas e Hanna estavam sentados no sofá e deu um meio sorriso.
– Ei, Lukey – disse ela com sua voz estridente, caminhando para ele com a postura dura de alguém que estava muito, muito queimado pelo sol. – Eu acho que estamos indo agora. Mas foi tão incrível vê-lo. Temos que tirar outras férias juntos em breve. Talvez no feriado da primavera?
Brooke abriu os braços para dar um abraço em Lucas. Hanna levantou-se do sofá e bloqueou o caminho dela.
– O Lukey disse tchau – disse Hanna bruscamente. – E boa sorte tratando das queimaduras.
Brooke a olhou como se nunca a tivesse visto antes. Hanna manteve-se firme. Não havia chance de ela deixar aquela vaca se aproximar de Lucas de novo. Essa fora uma lição que aprendera da maneira mais dura com Vince. Se você quer um cara, precisa lutar duro por ele.
Depois de um instante, Brooke recuou, murmurou adeus e se esgueirou até seus pais. Todos pareciam cansados quando deram tapinhas uns nas costas dos outros, dizendo que se veriam em breve. Quando os pais de Lucas fecharam a porta, o sr. Beattie se encostou no batente e pressionou o rosto contra suas mãos.
– Espero nunca mais ver aquela menina enquanto eu viver.
Hanna não poderia concordar mais.
O motor rugiu na garagem, e logo o utilitário Mercedes fez a curva para longe da vizinhança. Lucas chegou mais perto de Hanna.
– Estou muito triste porque não pudemos conversar nem uma vez enquanto eu estive fora. Pensei em você todos os dias. E, olha, agora nós podemos sair durante todo o feriado! O que quer que você queira fazer, estou aqui para isso; mesmo que seja apenas para ir naquele novo shopping.
– Pois eu vou cobrar isso, Lucas – disse Hanna, resolvendo ser gentil com ele. – Mas não temos que ir ao shopping, é uma droga.
Lucas começou a esfregar os ombros de Hanna.
– Então, perdi alguma coisa enquanto estive fora?
Ela fingiu pegar um fio da saia xadrez de Rosewood Day enquanto pensava nas aulas de ginástica, e em Vince e Dinah. O que tinha de errado em ela ter flertado com Vince? Não era como se algo tivesse acontecido entre eles. E dificilmente faria sentido contar a Lucas sobre o retiro; não era como se ela ainda fosse frequentar as aulas. Antes de vir até a casa do namorado naquela manhã, havia experimentado seus jeans mais justos, e eles vestiram bem. Isso a fez pensar se ela tinha mesmo muito peso para perder.
– Oh, não realmente – respondeu ela, parecendo despreocupada. – Só que você não deve nunca, jamais, me levar para ver O Quebra-Nozes. Aquilo ainda me dá pesadelos.
Lucas riu.
– Entendido.
A sra. Beattie colocou o rosto para fora da cozinha e sorriu para Hanna.
– Nós não temos nenhum cereal, então farei algumas torradas. Vocês querem? Temos o suficiente para todos.
– Claro. – Lucas olhou para Hanna. – Quer ficar para o café da manhã?
– Oh, tudo bem. – Hanna sorriu de modo educado para a mãe de Lucas. – Tomei café, estou satisfeita.
Lucas franziu a testa e olhou Hanna de cima a baixo.
– Você devia comer uma torrada. Está de fato... magra.
Hanna colocou suas mãos no quadril.
– Isso não é uma coisa boa?
– Não exatamente. – Lucas segurou o pulso de Hanna entre seus dedos. – Eu meio que gostava mais de você do jeito que era antes. Por favor, coma algumas torradas por mim?
A promessa no acampamento brilhou na mente de Hanna, junto com todos os sacrifícios que havia feito nas últimas semanas. Mas então pensou em uma pilha de torradas, escorrendo manteiga e melado. Tinha passado muito tempo desde que comera comida de verdade.
– Certo – admitiu Hanna, ficando em pé e puxando Lucas para ela. – Acho que posso comer uma ou duas.
– Excelente – disse Lucas, levando-a para a cozinha.
Hanna seguiu atrás dele, tocando distraidamente o colar Cartier em seu pescoço. Uma sensação de calma e bem-estar instalou-se nela como um cobertor quente. Os pedaços de sua vida pareciam estar em seus lugares de novo. E o melhor de tudo, a única pessoa que conhecia o segredo sobre o retiro de fitness, sobre Dinah e Vince era Kate; e ela não daria um pio.
INFELIZ HANNA-CA
Para uma menina que se acha tão popular, Hanna devia se esforçar mais. As falhas em sua estratégia para tentar parecer gostosa e descolada são mais óbvias do que o perfume de lavanda de Kate. Seu desespero pela atenção do papai, insegurança sobre sua vida amorosa e sua enorme necessidade de chamar alguém – qualquer uma – de nova melhor amiga (é, ela tentou isso até com Kate) são lamentáveis. Mas seu maior, pior e mais delicioso medo: de que ela fará um movimento errado e se torne a perdedora gordinha e feia que já foi um dia, no primário.
Talvez eu faça seu pior pesadelo se tornar realidade. Kate pode ter um motivo para manter seus lábios natalinos selados, mas eu não. E há tanto sobre o que falar: o flerte dela com Vince, a perda da afeição do rapaz para Dinah, as aulas de ginástica para gordos, o incidente dos biscoitos. E essa é apenas a ponta do iceberg. Se eu revelar tudo – o vômito, as mentiras, a ilusão paranoica de que Mona ainda está por aí esperando para atropelá-la novamente – todos em Rosewood veriam o quanto Hanna está perturbada. E todos sabemos onde os loucos devem ficar: na clínica psiquiátrica Preserve Addison-Stevens. Aproveite o tamanho trinta e oito de seus jeans enquanto você ainda os tem, Hannakins, porque a camisa de força é tamanho único...
Uma já foi, faltam três. Agora, vamos à srta. Emily Fields, que está presa na fria Rosewood com sua família, amante do Natal. E enquanto Emily enfeita as salas, cheia de disposição, seu Natal está prestes a ficar menos alegre. Ho, ho, ho!
1
TUDO O QUE EMILY QUER DE NATAL
Na tarde de sexta-feira, Emily Fields estava na sala de sua casa, tirando enfeites de Natal das caixas que sua mãe tinha trazido do porão. Canções natalinas saíam das caixas de som, o fogo ardia na lareira, e o cheiro de pinho da árvore que sua família comprara na fazenda local enchia o ar. Os irmãos mais velhos de Emily, Jake e Beth, vieram da faculdade para passar o feriado em casa, e toda a família estava reunida na sala para ajudar na decoração.
– Oh, Emily, não coloque o Snoopy aí. – A sra. Fields correu para a árvore e pegou a bola decorada com o Snoopy em relevo que Emily colocara em um galho baixo. – Ele precisa ficar ao lado do Garfield, viu? – Ela apontou para um Garfield de cerâmica que estava perto do topo.
A irmã de Emily, Carolyn, riu, tirando um enfeite feito de papel e coberto com glitter e rabiscos de giz de cera da caixa caindo aos pedaços.
– O que é isso?
– Esse é o tambor que Jake fez na pré-escola! – A sra. Fields quase esfregou o enfeite no rosto de Jake. – Lembra-se disso, querido?
Jake olhou fixamente para a sra. Fields por baixo de seu boné de beisebol ARIZONA SWIMMING e puxou as pontas de seu cabelo vermelho descolorido.
– Hum, não.
Emily disfarçou a vontade de rir. Sua mãe era uma espécie de Godzilla natalino, querendo que tudo fosse perfeito como em um cartão de Natal. Todo ano, eles iam à missa da meia-noite e participavam da cerimônia do incenso. E no dia de Natal, a família fazia um enorme almoço, que incluía peru assado recheado, dois tipos de molho de cranberry; uma tigela de molho de cranberry fresco com laranja e outra, com molho enlatado; inhame, purê de batata e também quatro tipos diferentes de tortas. Então, eles se acomodavam na frente da televisão e assistiam a todos os especiais de Natal que pudessem, incluindo A Very Brady Christmas, To Grandmother’s House We Go (com as gêmeas Olsen) e um show de Justin Bieber em que ele cantava todas as canções natalinas existentes.
A sra. Fields desabou no sofá e admirou a árvore de Natal.
– Este será o melhor Natal de todos!
– Não vamos exagerar. – O sr. Fields colocou as mãos sobre sua enorme barriga. – Meu bônus foi menor que o habitual este ano.
Uma expressão dura passou pelo rosto da sra. Fields.
– Nós vamos fazer funcionar. Precisamos de uma festa especial este ano. Todos passamos por muita coisa.
Ela olhou diretamente para Emily, que baixou os olhos para seus chinelos Ugg, beges e gastos, que ganhara de sua melhor amiga, Alison DiLaurentis, no Natal anterior ao desaparecimento de Ali. Sua família tinha mesmo passado por muita coisa naquele ano; especialmente ela. A primeira emergência familiar acontecera quando Emily declarou que deixaria a natação, o esporte em que todos os Fields se destacavam. Enquanto brigavam sobre isso – aliás, Emily acabou permanecendo na natação –, seus pais também descobriram que ela estava namorando Maya St. Germain, uma caloura do colégio Rosewood Day. O sr. e a sra. Fields eram o tipo de pessoa que estranhava até quando um aluno da Rosewood Methodist namorava alguém do colégio Rosewood Abbey, então é desnecessário dizer que a reação deles não foi das melhores.
Emily precisou sofrer com um programa para torná-la uma ex-gay, uma temporada estilo Purifique a si mesmo no cinturão da Bíblia, com a estada com seus parentes em Iowa e uma viagem interminável de ônibus, durante a qual os pais pensaram que Emily tivesse fugido de casa para sempre, mas eles enfim a aceitaram como ela era.
– Ei, Em, nós temos algo para você. – Beth sorriu de forma gentil para Emily. Ela correu até a cozinha e voltou com um presente embrulhado. – Um presente adiantado de Natal para o qual Jake, Carolyn e eu contribuímos.
Emily deslizou seu dedo pela fita e abriu o pacote. Dentro tinha uma caixa de DVD da série The L Word. Duas mulheres se beijavam na capa.
Quando levantou os olhos, todos estavam sorrindo para ela ansiosamente, mesmo seu irmão, que, Emily estava quase certa, nunca havia falado com ninguém gay em sua vida. Ela teve uma sensação de que a sra. Fields tinha dito a todos os filhos que aceitassem as escolhas de Emily.
– Uma amiga da escola assiste à série – comentou Beth, colocando mechas de seu cabelo louro-avermelhado atrás das orelhas. – Ela disse que é muito boa. Podemos ver com você, se quiser.
– Imagina – disse logo Emily, um leve rubor envergonhado subindo por seu rosto. – Mas obrigada.
– Falando nisso, há uma menina na igreja que você devia conhecer. – A sra. Fields parou de desembaraçar dois enfeites feitos de palitos de sorvete. – Ela dirige um dos grupos de jovens. Falei de você para ela. Ela tem um cabelo bem curto – acrescentou a sra. Fields.
Era divertido observar como, segundo a mãe de Emily, garotas com cabelo curto tinham de ser gays.
– Parece legal – disse Emily, tentando não soar ingrata. Mas, de repente, toda aquela atenção de nós a aceitamos do jeito que você é estava se tornando um pouco sufocante. – Hum, eu volto em um instante – murmurou, saindo da sala.
Pegou seu casaco e saiu para a varanda. O sol estava baixo no céu, brilhando diretamente sobre os olhos de Emily. Ela soltou um longo suspiro até seus pulmões se esvaziarem por completo. Sabia que devia estar feliz agora. A, a responsável pela mensagem diabólica que expusera o relacionamento de Emily com Maya, estava morta. O assassino de Ali, Ian Thomas, estava atrás das grades. Ela voltara a sair com suas velhas amigas Spencer, Aria e Hanna; depois da última sessão de terapia em grupo, todas tinham ido jogar boliche juntas. Não havia mais perigo na cidade de Rosewood, nem mais problemas à espreita em cada esquina, e sua família parecia comprometida a não mais discutir suas escolhas e preferências.
Então, por que ela se sentia tão... vazia? Talvez fosse loucura, mas mesmo depois que o corpo de Ali fora encontrado debaixo de uma laje em sua antiga casa, Emily desejava, sem lógica nenhuma, que a amiga estivesse em algum lugar, viva, só esperando ser encontrada. Ah, Emily sonhava tanto com Ali, e podia jurar que a vira no dia da acusação de Ian, no banco de trás de um Lincoln Town Car. Mesmo agora, era como se houvesse alguém em um lugar próximo, quase uma presença fantasmagórica, observando-a dia e noite do milharal.
Emily espiou pela janela da sala. Sua família ainda estava decorando a árvore, parecendo um quadro de Norman Rockwell. Era gentil da parte deles apoiarem sua sexualidade, mas a última coisa em que ela conseguia pensar agora era um relacionamento.
Depois de olhar outra vez para a sala de estar, Emily tirou sua bicicleta da garagem e desceu a rua. Quatro minutos e trinta e nove segundos depois – ela cronometrara anos antes –, entrou na rua onde Ali morava.
A casa se destacava no final da rua sem saída, com suas janelas escuras. Velas acesas, fotos amassadas, bichos de pelúcia rasgados, gorros de Papai Noel e pequenos presentes embrulhados enchiam o meio-fio, ofertas para o santuário de Ali. Na parte de trás da propriedade estava o buraco onde Ali fora encontrada. A fita amarela da polícia pendia flacidamente em torno do perímetro, e um estranho e translúcido nevoeiro pairava sobre a abertura do solo. Era desconfortável pensar que Ian, na noite da festa do pijama do sétimo ano, jogara lá o corpo sem vida de Ali poucas horas depois que elas tinham falado sobre ele.
Emily pedalou até o gramado, parou perto de uma árvore gigantesca e olhou para os restos frágeis da velha casa na árvore, que ainda sobrevivia nos galhos mais altos. Foi lá, em todos aqueles anos passados, que Ali havia dito a Emily que tinha um namorado secreto. Antes que ela pudesse revelar que era Ian, Emily se inclinara e lhe dera um beijo.
Emily tateou a árvore e encontrou o lugar onde ela e Ali haviam deixado suas iniciais. O desespero se apossou dela de novo, como se tudo tivesse ocorrido naquele instante. Ela amara Ali. Muito. Quando voltaria a sentir aquilo?
Um galho quebrou à sua esquerda, e Emily congelou. Um vulto surgiu entre as árvores.
– Olá – disse Emily, tremendo, pensando em Ian. O pai dele tinha todo tipo de contatos e era grande a chance de que ele conseguisse sair da cadeia sob fiança. Se isso acontecesse, Ian provavelmente ia querer punir as pessoas que o denunciaram à polícia. E se ele estivesse ali agora?
– Emily?
Aria Montgomery parecia tão surpresa por ver Emily quanto Emily estava por vê-la. Ela vestia um casaco com um capuz grande e forrado de pele, uma calça jeans bem justa e botas também forradas de pelo marrom. Parecia que Aria arrastava cãezinhos de pelúcia em seus pés.
– Ei. – O coração de Emily começou a desacelerar. – O-o que você está fazendo aqui?
– Venho aqui de vez em quando, mas estou com medo de ir até lá – respondeu Aria apontando para o buraco. Emily concordou, sabendo exatamente o que a amiga queria dizer. Ela também não tinha olhado dentro do buraco.
Elas ficaram em silêncio por alguns instantes. O sol afundou abaixo das árvores, tingindo o céu de um roxo lúgubre. Luzes de Natal acionadas por temporizadores automáticos acenderam de repente nas janelas de toda a rua.
Aria se arrastou até uma enorme pedra no quintal de Ali e se sentou.
– É estranho, sabe? Que tudo tenha... terminado. Eu sinto como se estivesse esperando algo mais.
– Eu sei – sussurrou Emily.
– Quero dizer, estou feliz que tenha terminado – completou Aria depressa. – Mas não parece real, entende?
Emily entendia, sim. Ali ficara desaparecida por anos sem qualquer indicação de onde estaria. E A – Mona Vanderwaal – havia incorporado Ali tão bem que elas até pensaram que a amiga estava de volta, até seu corpo ser encontrado.
– E ainda assim é real – disse Emily calmamente, mexendo os pés na grama fria e áspera.
Ela sentiu vontade de chorar quando as palavras saíram de sua boca. Por mais que quisesse Ali de volta, não havia nada que ela pudesse fazer para mudar o passado. Ali estava morta. Ponto final.
2
AFASTADO DA MANJEDOURA
Quarenta e cinco minutos depois, Emily estacionou sua bicicleta na garagem e entrou em casa. A carne que a sra. Fields havia preparado para o jantar estava em cima do fogão, mas a cozinha estava vazia.
A mãe de Emily andava de um lado para o outro da sala, com os cabelos desarrumados e os olhos verdes parecendo assustados. O pai de Emily a seguia, massageando seus ombros e dizendo:
– Está tudo bem. Acalme-se. Por favor.
– O que está acontecendo? – perguntou Emily.
A sra. Fields parou no meio de seu tapete redondo trançado.
– Algo terrível aconteceu.
O coração de Emily acelerou. Ian tinha saído da prisão? Alguém mais estava morto?
– Oh, não... – sussurrou.
A sra. Fields desabou sobre o sofá e segurou a cabeça com as mãos.
– Meu menino Jesus foi roubado! Era uma antiguidade preciosa!
Levou alguns instantes até as palavras a atingirem. Emily lembrou-se de sua mãe tirando um bebê Jesus de cerâmica do sótão no Dia de Ação de Graças e ajeitando-o com muito cuidado no banco de trás do carro. Depois disso, todos os domingos a sra. Fields mostrava a peça a todos, exibindo-a no presépio montado no gramado da igreja.
– Estou tão chateada – continuou a sra. Fields. – Era uma herança de sua avó.
O telefone tocou, e a mãe de Emily correu para atender.
– Judith? – perguntou ela, levantando-se e indo para a outra sala. Emily e seu pai trocaram olhares. – Era Judith Meriwether na igreja – disse quando voltou. – Ela e algumas outras pessoas da igreja têm um palpite sobre quem roubou o menino Jesus. Acham que é um grupo de garotas da faculdade que vieram para casa nas férias de inverno. Elas aterrorizam a vizinhança, roubam decorações e esburacam os gramados. Aparentemente, elas chamam a si mesmas de Elfas Felizes.
Sem pensar em se conter, Emily deu uma risadinha ao ouvir o nome do grupo, e a sra. Fields olhou irritada para ela.
– Isso não é engraçado, Emily. Judith disse que elas se chamam assim porque trabalham como elfas na Terra do Papai Noel no shopping Devon Crest, em West Rosewood. Judith trabalha lá como assistente da gerência, e ela as ouviu dizer algumas coisas que chamaram sua atenção. – Uma nova ruga brotou na testa da sra. Fields. – Eu não acredito que elas pegaram o menino Jesus. Talvez o tenham quebrado em pedaços!
– Calma, calma, meu bem... – disse o sr. Fields, esfregando as costas de sua esposa.
– Eu sinto muito mesmo, mamãe – disse Emily, sentando-se no braço do sofá. – Há alguma coisa que eu possa fazer?
A sra. Fields secou os olhos com o lenço bordado que sempre carregava consigo.
– Precisamos acabar com essa blasfêmia. Alguém precisa se infiltrar no grupo e pegá-las no ato para conseguir a prova de que precisamos. – Ela colocou a mão no ombro de Emily. – A Terra do Papai Noel no Devon Crest está procurando um novo Papai Noel; o antigo foi demitido por mexer com as meninas. – A sra. Fields estremeceu ligeiramente. – De qualquer forma, eu disse à Judith que você poderia ser o novo Papai Noel. É um modo perfeito de espionar essas meninas.
– Eu? Uma espiã? – reclamou Emily.
Não havia como ela se empregar como Papai Noel. Ela pensara em conseguir um emprego durante as férias, ainda mais depois que seu pai disse que seu bônus de Natal seria menor este ano, mas estava pensando em algo como empacotadora na Macy’s, ou como vendedora na FrogLand, a loja especializada em produtos para natação. Bancar o Papai Noel soava tão desafiador quanto ser o Mickey Mouse na Disneylândia. Se você erra, arruína o ano inteiro de uma criança. Sem mencionar que ela não tinha bem o tipo físico certo para o papel.
– Por favor, querida. – O queixo da sra. Fields estremeceu. – Preciso muito da sua ajuda.
– Mas eu não tenho nenhuma experiência com crianças – protestou Emily. – E não acho que seria uma boa espiã.
As sobrancelhas da sra. Fields se curvaram.
– Você tem bastante experiência com crianças. Foi babá muitas vezes quando era mais nova. E o que dizer sobre quando você foi guia de caminhada na mata em um acampamento do colégio?
Como se alguma daquelas coisas contasse! Emily e Ali tinham se oferecido para serem guias no acampamento de verão entre o sexto e o sétimo anos, sobretudo porque Ali tinha uma queda pelo instrutor de canoagem. Na primeira hora de caminhada, uma garotinha fez xixi no pé de Emily, um garoto a mordeu e um grupo de crianças a empurrou para um trecho com hera venenosa. Depois disso tudo, Ali descobriu que o instrutor de canoagem tinha namorada. Elas foram embora depois do almoço e riram da experiência por todo o verão. Sempre que Emily ou Ali estavam de mau humor, elas diziam que estavam tendo um dia de caminhada na mata.
– E você será uma excelente espiã – completou a sra. Fields. – As elfas são apenas alguns anos mais velhas que você, e eu sei que você pode se infiltrar entre elas e tirar alguma boa informação.
– Por que Carolyn não faz isso?
A sra. Fields se impacientou.
– Porque Carolyn já tem um emprego para as férias. Ela vai trabalhar como garçonete no Applebee’s.
Emily se ofereceria de bom grado para trocar de lugar com a irmã e só ter que lidar com panelas fumegantes de fajitas e pedidos de margaritas de clientes bêbados.
– Mas o Papai Noel geralmente é um cara. As crianças não ficarão confusas com a minha voz? – perguntou, fazendo um último esforço.
O pai de Emily, que estava sentado no sofá, deu de ombros.
– Basta fazer sua voz soar mais rouca. Isso de fato significa muito para sua mãe, Em.
Emily cerrou os dentes. Isso era tão típico: a sra. Fields tomava decisões por Emily sem realmente consultá-la antes. Como quando presumiu que ela faria parte, ano após ano, da equipe de natação. Ou quando comprou para Emily jeans da Gap, mesmo que essas calças não a vestissem bem há anos. Ou como quando fez reservas em um restaurante cujo tema era a Broadway para o aniversário de Emily, mesmo que ela não gostasse do restaurante desde que tinha nove anos. Às vezes, Emily pensava que sua mãe preferia a Emily naquela idade; obediente, doce, sem vontade própria.
Mas o olhar de Emily voltou-se para o DVD da série The L Word que estava em cima do aparelho. Bem abaixo do DVD da série, estava o DVD da animação Procurando Nemo, que a sra. Fields tinha comprado para Emily quando ela voltou de Iowa. A mãe escolhera a animação porque Ellen DeGeneres dublava a voz de um dos peixes. Era a forma de a sra. Fields dizer que aceitava Emily como ela era. E se ela estragasse tudo e sua mãe voltasse a não querê-la por perto? Emily não tinha certeza de que aguentaria passar por tudo aquilo de novo.
– Tudo bem – concordou Emily. – Acho que, pelo menos, posso ir a uma entrevista.
– Oh, que absurdo, meu bem! – A sra. Fields deu tapinhas na mão de Emily. – O emprego já é seu. Você já está na escala de amanhã. Sábado é um dos dias mais cheios na Terra do Papai Noel, então você terá bastante trabalho. – Ela fez uma pausa e colocou seus braços ao redor de Emily. – Muito obrigada, querida. Eu sabia que podia contar com você.
Sem jeito, Emily retribuiu o abraço, sua mente trabalhando a todo vapor. Era melhor que começasse a trabalhar em seu ho ho ho, porque estava parecendo que ela seria mesmo o Papai Noel naquele ano, estivesse pronta ou não.
3
É MELHOR VOCÊ ANDAR NA LINHA, É MELHOR VOCÊ NÃO FAZER MANHA
No dia seguinte, Emily levou quase vinte minutos para achar uma vaga no estacionamento do novo shopping Devon Crest, uma fênix de mármore, aço, elevadores e lojas de departamentos de luxo que tinha surgido das cinzas das feiras e mercados de pulgas de West Rosewood. Quando enfim conseguiu estacionar o Volvo Wagon de sua mãe em um ponto muito distante do estacionamento, era quase meio-dia, o horário em que devia se apresentar para o trabalho de Papai Noel.
Emily correu na direção das portas duplas, desviou de um grupo de mulheres com carrinhos de bebê, quase bateu de frente com uma mulher que distribuía amostras de um creme antirrugas e finalmente viu a Terra do Papai Noel no final do corredor, uma visão de bengalinhas de caramelo gigantescas, neve artificial, uma casa de pão de mel e um trono dourado vazio com um mural atrás dele que mostrava o Papai Noel, a Mamãe Noel e suas oito renas em volta. Já havia uma fila de crianças esperando em um tapete listrado como bengalinhas de caramelo. A maioria delas chorava de forma histérica.
O horóscopo de Emily para aquela manhã no jornal Philadelphia Sentinel dizia: esteja preparada para enfrentar uma situação desconfortável hoje. Bem, tinham acertado em cheio.
Acima da música natalina alta, Emily ouviu uma fraca e assombrosa risada. Ela parou e olhou para a esquerda, observando os compradores que passavam. Alguém a seguira até ali?
– Emily? – Uma mulher alta e grisalha usando um vestido vermelho e um gorro de Papai Noel correu até ela. Mesmo vestida de Mamãe Noel, Emily reconheceu Judith Meriwether da igreja; ela sempre estava lendo ou anunciando doações de comida. – É você mesmo! – sussurrou a sra. Meriwether, tomando as mãos de Emily. As mãos dela estavam geladas. – Graças a Deus você está aqui. É tão gentil de sua parte fazer isso por sua mãe. Por todos nós.
Emily apertou os lábios para evitar dizer que realmente não tivera escolha.
A sra. Meriwether levou Emily até a pequena casa de pão de mel para que ela preenchesse alguns formulários. Quando terminou de escrever seu endereço, olhou para a janela em forma de losango. A Terra do Papai Noel estava presa entre uma Aéropostale, uma BCBG e dois quiosques. Um vendia celulares brilhantes e capas para iPad, enquanto o outro oferecia um tipo de água engarrafada. DESCUBRA O INCRÍVEL PODER DA AMINOSPA!, dizia uma faixa estendida sobre o quiosque. Um garoto pálido de feições bem-feitas e uma menina punk com cabelos bem pretos estavam tentando atrair os passantes com amostras grátis. Os lábios verme lhos da garota caíam desanimados, e ela praticamente atacava qualquer um que passava.
– Aqui estamos nós! – A sra. Meriwether entrou alvoroçada na casinha de pão de mel, segurando uma roupa de Papai Noel nos braços. – Chegou agora da lavanderia. Nosso antigo Papai Noel a usava, mas ele era muito maior do que você. Teremos que enchê-la com algumas almofadas. – Ela colocou uma barba branca e cacheada no rosto de Emily. Parecia cabelo de boneca ao redor de sua pele. – Perfeito! Ninguém saberá que você é uma garota!
Emily vestiu a roupa de Papai Noel por cima de suas roupas. Quando olhou seu reflexo no pequeno espelho atrás da casa de pão de mel, ela se parecia, bem, com o Papai Noel.
– Agora deixe-me explicar as regras – disse a sra. Meriwether depois de colocar um punhado de almofadas debaixo do casaco de Emily e também das calças. – Tente despachar as crianças o quanto antes, mas sempre dê a elas alguns ho, ho, ho e deixe-as contar algumas coisas que querem para o Natal. Segure-as firme para a fotografia; muitas delas vão querer pular de seu colo; e se alguém fizer xixi em você, apenas sorria. Nosso Papai Noel anterior ficou irritado, o que deixou muitos pais chateados. – Ela fez uma careta. – E ele também mexeu com garotas de treze anos. Pelo menos você não fará isso.
Emily caminhou com suas enormes botas pretas em direção à porta da casa, cuja maçaneta em forma de jujuba não parecia muito firme. – Então, onde estão essas elfas que eu preciso espionar?
Os olhos da sra. Meriwether percorreram com rapidez a Terra do Papai Noel.
– Ainda não chegaram – sussurrou. – Por favor, seja discreta em sua missão. O pai de Sophie é gerente do shopping. Ele não pode descobrir o que estamos fazendo até termos provas; não posso me dar o luxo de ser demitida. Mas essas meninas precisam ser pegas. A sra. Ulster, da igreja, jura que elas levaram a estátua do Papai Noel de seu jardim. E um dos meus vizinhos acordou dias atrás e encontrou o seu boneco de neve inflável em uma... posição muito comprometedora com o Ho-Ho-Homer Simpson inflável. – Ela fez uma careta.
– Bem, farei o meu melhor – assegurou Emily. Seu celular tocou. Era uma mensagem de Spencer: Quer ver o novo filme de Ryan Gosling?
Emily respondeu: Eu queria, mas estou trabalhando. Depois disso, abriu a porta da casa de pão de mel e saiu. Todas as crianças viraram a cabeça quando Papai Noel apareceu.
– É o Papai Noel! – gritou uma delas.
– Papai Noel, Papai Noel! – gritaram as outras crianças, pulando para cima e para baixo.
Antes que Emily pudesse se sentar, uma garotinha correu em sua direção e se agarrou às suas pernas.
– Oi, Papai Noel! – gritou a menininha. – Eu sou a Fiona!
– Olá, Fiona – disse Emily, em uma voz rouca. Ela se acomodou no trono, e a menina subiu em seu colo. Fiona tinha cerca de cinco anos, seus cabelos louros estavam presos em marias-chiquinhas e tinha o mesmo cheiro do cereal Lucky Charms. – O que você quer ganhar de Natal?
– Uma boneca da Pequena Sereia – respondeu a garota prontamente.
Emily não podia fazer nada a não ser sorrir.
– A pequena sereia é um dos meus filmes favoritos também! – Emily tinha uma queda por Ariel.
O rosto de Fiona se iluminou.
– Sério? – Era como se ela tivesse um Papai Noel exclusivo.
– Sério – disse Emily. – Ho ho ho!
A sra. Meriwether tirou uma foto. Fiona deu-lhe um grande abraço, o que encheu Emily com uma surpreendente sensação de felicidade. Aquilo foi mesmo fofo. Depois que a garotinha se foi, Emily espiou a fila. Uma criança já fora. Ainda faltava um zilhão.
A próxima criança, um garoto de uns sete anos, queria um Lego de Guerra nas estrelas. A garota depois dele não disse uma palavra, mas Emily a fez sorrir, fingindo que puxava um pirulito da orelha dela. Quinze ou mais crianças depois, um homem vestido de policial, com um distintivo que dizia O’NEAL, colocou a filha no colo de Emily. A garota, cujo nome era Tina, recitou uma longa lista de pedidos de Natal, que ia de várias bonecas até um carro motorizado. Emily tinha visto em um catálogo da FAO Schwarz que aquilo custava mil e quinhentos dólares. O pai dela concordava com a cabeça depois de cada pedido, dizendo:
– O Papai Noel lhe trará isso, querida. E isso, e isso, e isso.
Emily queria repreendê-lo. Com um salário de policial? Tina ficaria desapontada na manhã de Natal.
Algumas crianças choraram, limpando suas melecas na manga do casaco de Emily. Havia um garoto poucos anos mais jovem que Emily; ele estava lá com seus irmãos menores, e queria sentar em seu colo também, percebendo talvez que ela era uma garota. Inevitavelmente, uma menina fez xixi no colo de Emily, de tanta excitação. A mãe dela a levou embora no mesmo instante, pedindo montes de desculpas.
– Está tudo bem – disse Emily, lembrando o conselho da sra. Meriwether. Ela cobriu o lugar quente e úmido em seu joelho e tentou não gaguejar.
– Você está muito mais bonzinho do que no outro dia, Papai Noel – disse a menina que tinha feito xixi, deixando à mostra o espaço de um dente que havia caído. – Você foi mau comigo, tinha dito que eu era suja.
– Oh, aquilo foi só uma brincadeira – disse logo Emily. – Eu acho você uma graça.
Quando houve uma trégua na fila, a sra. Meriwether saiu da casinha de pão de mel e foi até Emily.
– Você está fazendo um ótimo trabalho – disse ela. – Com certeza melhor do que nosso outro Papai Noel, de qualquer modo.
– É divertido – respondeu Emily. Era verdade. O trabalho era pesado, mas foi divertido ouvir o que as crianças queriam de Natal. Foi melhor ainda quando gritaram e a abraçaram como se a adorassem.
De repente, a sra. Meriwether engasgou. Emily virou-se para onde ela estava olhando e viu quatro garotas se dirigindo à Terra do Papai Noel. Estavam usando chapéus pontudos, vestidos verdes, meias listradas e sapatos com as pontas viradas. Quando passaram pelo trono do Papai Noel, Emily sentiu um forte cheiro de cigarro e licor de hortelã.
Eram as elfas. Só que elas, definitivamente, não pareciam felizes.
– Meninas – chamou a sra. Meriwether, acenando. – Vocês podem vir aqui um minuto?
A elfa mais alta, que tinha um cabelo azul brilhante, usava um monte de maquiagem e parecia um pouco familiar, virou os olhos e começou a andar. As outras a seguiram. Uma delas tinha dreads e uma argola no nariz, outra era uma garota asiática com tranças hippies e uma expressão dura, enquanto a última garota era pequena, com cabelos curtos e uma tatuagem de um coringa sorridente no punho. Seus olhos brilharam enquanto cuidadosamente examinavam Emily, como se não tivessem gostado do que viam.
– Garotas, esse é nosso novo Papai Noel. Seu nome é Emily Fields. – A sra. Meriwether colocou a mão sobre o braço de Emily.
A garota de cabelo azul gargalhou.
– Uma menina Papai Noel?
– Ela está fazendo um trabalho muito bom, Cassie. – A sra. Meriwether subiu um pouco o tom. – Emily, essa é Cassie Buckley. E Lola Alvarez – disse ela, indicando a menina que tinha dreads. – Sophie Chen. – A dona das tranças hippies. – E Heather Murtaugh. – A última garota, com uma tatuagem de coringa. – Elas irão ajudar no que você precisar.
As elfas riram e cutucaram uma à outra, como se dissessem Até parece. O olhar de Emily voltou para Cassie, a garota de cabelo azul. De repente, percebeu por que ela parecia tão familiar: Cassie Buckley fizera parte da equipe júnior no time de hóquei com Ali. Mas o que tinha acontecido? Ela costumava ser como todas as outras garotas da equipe: cabelos longos e louros, pele bronzeada e um imenso guarda-roupa cheio de peças da J. Crew. Agora tinha argolas em seus lábios e sobrancelhas, e encarava Emily com uma espécie de animosidade que na mesma hora a fez sentir como se estivesse fazendo algo muito, muito errado.
– O que você está olhando? – perguntou Cassie de forma brusca, percebendo o olhar de Emily.
Emily abaixou a cabeça.
– Nada.
– É melhor que esteja olhando para nada – ameaçou Lola.
Emily olhou ao redor, procurando pela sra. Meriwether, mas ela desaparecera. Seria melhor se Emily tivesse sido deixada sozinha com quatro cães raivosos e soltos.
– E é melhor nos deixar em paz, Papai Noel – respondeu Sophia em uma voz baixa e irritada de fumante.
– É, a coisa por aqui funciona muito bem – resmungou Heather. – Trate de não estragar nosso esquema. Entendeu?
– Entendi – sussurrou Emily.
As elfas riram ruidosamente, deram-se os braços e saíram provocantes, deixando um rastro de álcool por onde passavam. O coração de Emily afundou até a sola de suas botas de Papai Noel. No que tinha se metido? Não havia modo de se infiltrar entre as elfas. Aquilo fazia entrar para o grupo de amigas de Ali, no sexto ano, parecer fácil.
4
AS ELFAS TAMBÉM TÊM SENTIMENTOS
No dia seguinte, Emily estava em sua cadeira de Papai Noel de novo, saudando crianças com roucos ho ho hos. Fazia meia hora que ela começara seu turno quando ouviu os sussurros.
– Aquele ali sem dúvida vomitará nela. Ele comeu um balde inteiro de frango frito enquanto esperava na fila.
– Eu devia mandar a garota com a camiseta de Dora, a aventureira puxar a barba dela.
– Eu devia dizer a ela que não existe essa coisa de Papai Noel.
– Garotas? – A voz mansa da sra. Meriwether soou atrás da câmera. – Alguém poderia, por favor, ficar na caixa registradora?
As quatro elfas saíram de trás de uma grande estátua de boneco de neve, empurrando uma mãe e duas crianças na fila sem se incomodarem em pedir desculpas, e praticamente se jogaram sobre a máquina. Um homem e duas crianças que tinham acabado de passar por Emily estavam lá esperando. O homem se encolheu um pouco quando viu as elfas e puxou seus filhos para mais perto dele.
– São 19,95 dólares, senhor – disse Cassie em um tom monótono, olhando para o pedido de fotos do homem.
– Boas festas – disse Heather em uma voz sibilante, que ela poderia usar para entregar um pedido de resgate.
– Na verdade, acho que prefiro a foto deles naquela moldura.
O homem apontou uma moldura prateada presa na parede atrás da registradora. Era uma edição limitada da Terra do Papai Noel, um item de colecionador que custava 79,95 dólares. Quando a sra. Meriwether estava cuidando da registradora, sempre oferecia a moldura para os compradores.
Sophie olhou para a moldura e fez cara feia.
– Ai. Meu. Deus. Isso significa que teremos de encontrá-la em uma caixa lá nos fundos.
– Olha, ela é realmente bem feia quando vista de perto – disse Cassie ao homem. – E não é prata de verdade. Seus dedos ficarão verdes assim que o senhor tocar nela.
– E é provável que tenha sido feita na China – completou Lola, parecendo muito triste. – Por uma menininha escrava em uma fábrica que lhe paga um centavo por dia.
– Papai? – O menininho mais novo olhou horrorizado para ele, parecendo que iria chorar.
O homem afrouxou o colarinho parecendo nervoso.
– Certo. Apenas a moldura comum, eu acho.
As elfas resmungaram como se mesmo aquilo já fosse esforço demais. Cassie tomou o cartão de crédito da mão do homem, o sino na ponta de seu chapéu tilintando.
A sra. Meriwether abafou um suspiro e saiu disparada em direção a Emily.
– Alguma sorte? – sussurrou.
Emily olhou para ela. Era seu segundo dia, e as elfas mal tinham falado com ela. Tudo que Emily fazia parecia divertido para as elfas, e não no bom sentido.
– Estou tentando – respondeu.
Depois de as elfas se livrarem do homem, praticamente empurrando a moldura para ele e enxotando-o, desabaram juntas no sofá peludo em forma de rena, ao lado da casa de pão de mel, como se tivessem completado um turno de vinte e quatro horas em um pronto-socorro.
– Eu acho que é hora de Starbucks – anunciou Cassie sem fôlego. – Não sei quanto a vocês, garotas, mas minha cabeça está a ponto de explodir por causa de toda essa música natalina.
– Concordo – disse Lola.
As quatro meninas pegaram suas bolsas atrás de um elevado em forma de boneco de neve e passaram pelo portão da cerca branca.
– Meninas, esperem – protestou Emily, odiando como sua voz soou irritante. – Nós ainda temos clientes! – Ela fez um gesto indicando a fila enorme que esperava para falar com o Papai Noel.
Lola olhou de modo fixo para os clientes como se tivesse acabado de notá-los. Heather e Sophie continuaram andando.
– Puxa vida – disse Cassie, dando os braços para as outras meninas e puxando-as em direção à Saks.
– Por que você mesma não lida com eles, Papai Noel? – perguntou Heather por cima do ombro. – A sra. Meriwether amará você por isso.
– Papai Noel e Mamãe Noel sentados em uma árvore – vibrou Cassie.
Elas estouraram em risadas e foram embora, parando um momento para bater na garrafa inflável gigante de AminoSpa, a bebida vitaminada, que estava parada em frente ao quiosque, no meio do passeio.
Emily apertou o punho no trono de Papai Noel, desejando que uma das estrelas gigantes penduradas no teto do shopping caísse sobre as cabeças das elfas. Como ela seria amiga daquelas garotas? O que Ali faria em uma situação como aquela? Jogaria conforme as regras delas? Bancaria a difícil? Ah, Ali nunca seria pega numa situação como aquela.
Suspirando profundamente, ela acenou para que a fila de crianças andasse. Um garotinho e uma menina subiram no colo de Emily e olharam para ela com uma expressão esperançosa.
– E o que vocês querem para o Natal? – perguntou Emily a eles, tentando parecer alegre.
– Eu quero ver o show do Pantera Prateada em Atlantic City. – O garoto pulou. – Parece ser muito, muito incrível.
– E eu quero ir para Atlantic City apostar – completou a garota, dizendo como se fosse uma única palavra, Lanti-City.
– Eu acho que você é muito nova para apostar – disse Emily, olhando para a mãe das crianças, que estava digitando em seu iPhone, é óbvio.
A boquinha da menina fez um U invertido.
– Eu não sou tão nova! Minha mãe disse que eu podia jogar no caça-níqueis!
A fila diminuía aos poucos, e as elfas voltaram do Starbucks. Não que elas ajudassem quando estavam por ali. Heather colocou um par de fones de ouvido Bose em suas orelhas e pegou duas bengalinhas de caramelo que estavam em uma cesta de vime, perto da registradora. Sophie conversava com um dos vendedores da Aéropostale. Lola foi para trás da casa de pão de mel e atendeu a um telefonema.
– Então você ficará fora por quatro dias? – disse ela para alguém do outro lado da linha. – Não, tudo bem, mãe. Eu disse tudo bem. É só que, tipo, eu acho que tem algo errado com o carro e... – Ela parou de falar. – Não, eu entendo. Rocco precisa de você. Entendi.
Ela estapeou o celular para desligá-lo e choramingou. Quando se virou e viu que Emily estava olhando, seus olhos se estreitaram. Emily decidiu que não era uma boa hora para perguntar se Lola estava bem.
A única garota que não tinha voltado da Starbucks era Cassie. Emily tinha observado cuidadosamente a líder das elfas, tentando imaginar como Cassie tinha passado de uma menina superpopular e certinha de Rosewood para alguém que parecia ter acabado de sair de um reformatório. Pela primeira vez, desejou que Cassie a reconhecesse das fotos nos jornais publicadas depois que Ali desapareceu ou de quando Ian foi preso. Se Cassie soubesse quem ela era, talvez se interessasse em ser sua amiga.
Como se lesse os pensamentos de Emily, a sra. Meriwether surgiu de dentro da casa de pão de mel e deu uma olhada na Terra do Papai Noel.
– Onde está Cassie?
Heather tirou seu fone de ouvido.
– Fazendo uma pausa.
A sra. Meriwether apertou os lábios.
– Mas ela fez uma pausa há uma hora.
– Não, lá está ela. – Emily apontou para o corredor. Cassie caminhava sem pressa em direção à Terra do Papai Noel, com um copo da Starbucks na mão.
A sra. Meriwether correu até ela.
– Cassie! Você não pode fazer uma hora de intervalo!
Cassie deu um sorriso.
– Lamento, eu estava ocupada.
– Estava ocupada? – A sra. Meriwether colocou as mãos nos quadris, parecendo prestes a explodir.
– Sim, ocupada. – Cassie trocou a bolsa de ombro, sem deixar de encarar a sra. Meriwether. Elas pareciam prontas para um combate de proporções épicas.
– Um momento. – Emily pulou do trono do Papai Noel e foi rebolando em direção à sra. Meriwether e Cassie, segurando a almofada em sua barriga. – Hum, sra. Meriwether, sou culpada por Cassie ter tirado um intervalo mais longo. Pedi a ela que procurasse por um novo gorro de Papai Noel. O meu está pinicando demais.
Ela coçou a cabeça para provar, nem ousando encarar Cassie. É claro que era uma mentira, mas a sra. Meriwether precisava manter seu emprego, e Emily precisava se enturmar com as elfas.
As sobrancelhas da sra. Meriwether se ergueram.
– Isso é verdade, Cassie?
– Hum, sim – admitiu Cassie. – Eu percorri o shopping procurando por isso. Mas lamento, Papai Noel, não encontrei um único gorro.
– Tudo bem – disse Emily rapidamente. – Eu sobrevivo.
Os olhos da sra. Meriwether passavam de Emily para Cassie e ela parecia não acreditar em nenhuma delas.
– Voltem ao trabalho, então – resmungou, voltando para a casa de pão de mel.
Cassie olhou de cima para Emily.
– Obrigada, Papai Noel.
– De nada – respondeu Emily.
– Sabe... – Cassie umedeceu os lábios. – Tem uma festa na minha casa hoje. Talvez você queira ir.
Emily piscou sem acreditar.
– Hum, é claro. Seria ótimo.
– O quê? – Heather tirou seus fones de ouvido das orelhas e cutucou Cassie. – Por que você está...
– Cala a boca. – Cassie cutucou-a de volta, então se virou novamente para Emily. – Eu moro na Emerson Road, em Old Hollis. Você saberá o lugar por causa de todos os carros estacionados em volta.
– Certo. – Emily tentou parecer indiferente. – A gente se vê por lá.
Cassie se dirigiu para os fundos da Terra do Papai Noel. As outras elfas a seguiram, sussurrando. Emily voltou para seu trono, sentindo-se mais leve, um pouco tonta e nervosa também. Cassie estava sendo sincera? E se fosse tudo uma armação? Ela olhou para a multidão que pululava no shopping. “Se alguém passar no próximo minuto com uma bolsa Neiman Marcus, tudo isso acabará bem”, apostou.
Nem cinco segundos depois, uma mulher desfilou bem na frente dela, não com uma bolsa Neiman Marcus, mas com três. Se isso não fosse um bom presságio, Emily não sabia o que era.
5
TODO BOM ESPIÃO PRECISA DE UM PLANO
Quando Emily voltou da Terra do Papai Noel naquela tarde, desabou no sofá com um antigo caderno no colo. Ali costumava manter um diário, e como Emily queria fazer tudo do jeito exato como a amiga fazia, começara um diário no meio do ano letivo. Havia pouco tempo, ela descobrira que Mona Vanderwaal tinha pegado o velho diário de Ali de uma pilha de lixo colocado na calçada pela família de Maya, quando o antigo quarto de Ali foi limpo. Mona usara as informações daquele diário – incluindo os segredos mais sombrios de Emily e suas antigas amigas – para se transformar em A.
À luz cintilante da agora totalmente decorada árvore de Natal, Emily folheou as páginas antigas de seu diário. No começo, havia escritos simples sobre coisas cotidianas que ela e suas novas amigas tinham feito juntas: viagens à casa de férias da família de Ali em Poconos, unhas no shopping King James, uma festa do pijama na qual Ali se atreveu a fazer uma brincadeira desafiando Aria a fazer uma ligação anônima para Noel Kahn, seu paquera na época. Quando Aria ligou, Ali deixou escapar um “Ela ama você!” antes que Aria desligasse.
Em abril daquele ano, o tom dos escritos começou a mudar. A Coisa com Jenna tinha acontecido, e elas ficaram tão amedrontadas e preocupadas! Emily não tinha se referido de modo direto ao incidente nas páginas do diário – tinha medo de que sua mãe pudesse ler – mas havia colocado uma carinha triste perto do dia em que aconteceu. Muitos escritos depois disso também eram desesperadores e inquietantes.
No ano seguinte, as coisas pareciam ainda mais complicadas. Ali conseguiu uma vaga no time júnior de hóquei, mesmo estando apenas no sétimo ano, escrevera Emily no final de agosto. Ela contou sobre a festa do time à qual foi hoje e disse o quanto as garotas mais velhas eram legais. Emily não desenhou uma carinha triste nesse dia, mas lembrava que era exatamente isso que estava sentindo: logo Ali perceberia que ela não era uma companhia descolada como suas novas amigas e se afastaria. O tempo que passavam juntas sempre parecia emprestado e precário, e, em sua mente, ela sempre esperava que a vida de fantasia ruísse.
Alguns dias depois, ela mencionava que Ali e Emily tinham ido a uma festa do time de hóquei, onde Emily encontrara ninguém menos que Cassie Buckley. Cassie se gabou de como a vodca e os Red Bulls estavam bons, Emily tinha escrito. Quando perguntei se podia experimentar, Cassie me ignorou, e Ali disse: “Não, Em, acho que a mistura de vodca com Red Bull é um pouco mais do que você pode aguentar.” Ela e Cassie riram como se aquela fosse a coisa mais engraçada do mundo.
Emily ainda se lembrava da festa como se fosse ontem. Cassie atendera a porta com seu longo cabelo louro trançado e preso na nuca com um grampo; apenas alguns dias depois, Ali apareceu na escola com o mesmo penteado, e então todas as outras garotas da turma delas a copiaram. Durante a festa, Cassie bebera todo tipo de bebida sem esforço, como uma adulta. Passou o braço pelo ombro de Ali e a convidou para uma festa “secreta” no andar de cima, deixando claro que Emily não podia ir. Emily vagou pela festa mais um tempo, mas ninguém falou com ela. Então foi embora, segurando as lágrimas até estar a meio quarteirão de distância.
Ela fechou o diário, puxou seu laptop para o colo e digitou o nome de Cassie Buckley no Facebook. O perfil de uma garota com piercings e cabelo colorido apareceu. Emily passou pelas fotos dela; Cassie não estava sorrindo em nenhuma. Nem tinha incluído fotos dos seus dias de estudante loura e membro da equipe de hóquei. O que teria motivado aquela dramática transformação? Se Ali estivesse viva e ainda fosse amiga de Cassie, também teria mudado tanto?
– Quem é essa?
Emily deu um pulo. Carolyn estava apoiada no batente, com um cesto de roupas em seus braços.
– Hã, ninguém – respondeu Emily.
Carolyn colocou o cesto de roupas no sofá e estudou a imagem.
– É uma nova paquera?
Aquelas palavras soaram forçadas saindo da boca de Carolyn. Emily imaginou o que Carolyn pensava de verdade sobre sua sexualidade; ela não era exatamente do tipo que aceitaria uma coisa daquelas.
– Emily tem uma nova namorada? – perguntou Beth, entrando na sala com uma tigela de pipocas de micro-ondas.
– Talvez. – Carolyn dobrou uma camiseta da equipe de natação de Rosewood Day e a colocou sobre a cadeira. – Mostre-a, Em.
– Deixe-me ver, deixe-me ver! – Beth sentou-se ao lado de Emily e virou o laptop em sua direção. Quando viu a foto de Cassie, franziu a testa.
– Uau. Ela parece durona.
– É só uma garota que está trabalhando na Terra do Papai Noel comigo – protestou Emily, imaginando que sua mãe tinha contado às suas irmãs sobre sua missão. – Ela definitivamente não é uma namorada.
– E ela? Ela é uma graça. – Beth clicou em outro perfil. Esse era da pequena, magra e de cabelos curtos Heather, da Terra do Papai Noel. Na seção de informações sobre Heather, dizia que ela gostava do South Street Philadelphia, Ken Kesey e dos Merry Pranksters, e do The Anarchist Cookbook.
– O que vocês estão fazendo? – Jake encheu a mão de pipoca da tigela ao entrar na sala.
– Tentando encontrar uma nova namorada para Emily. – Beth clicou no perfil de uma menina chamada Polly, que Emily não reconheceu.
– As garotas são gostosas? – Os olhos de Jake brilharam. – Eu ajudo vocês.
– Ei, parem com isso!
Emily tomou o laptop de Beth e o fechou. De repente, sentiu como se seus irmãos a tivessem transformando em um projeto ou em um animal de estimação. Isso a lembrou de quando era pequena e eles decidiram que ela era meio menina, meio gato, porque era novinha, pequena e ágil. Felina, foi como a chamaram, como se ela fosse uma super-heroína mutante. Eles inventaram um programa de treinamento para Emily de modo que ela ficasse cada vez mais parecida com um gato, espremendo-a para que passasse por cercas, trancando-a dentro de armários e obrigando-a a andar sobre uma trave de equilíbrio que montaram perto da lagoa no final da rua. Emily se sujeitava a isso porque gostava da atenção; era difícil ser a mais nova e deixada de fora de tudo. Foi só quando eles começaram a falar em deixar Emily pular do telhado para verem se ela caía de pé que a sra. Fields ficou sabendo de tudo e colocou um ponto final naquela história.
– Eu não quero uma namorada – disse Emily.
– Claro que você quer! – provocou Beth.
Emily gemeu, levantou-se e invadiu a cozinha, onde sua mãe estava em frente ao fogão vigiando a panela de macarrão com a mão escondida em uma luva estampada com a figura de um frango. Quando ela viu Emily, largou a colher na panela e correu em sua direção.
– Como foi hoje? – disse ela em um sussurro excitado.
– Hum, não tão ruim. – Emily passou a mão pelos cabelos. – Elas me convidaram para uma festa.
A sra. Fields deu um gritinho animado, como se Emily tivesse anunciado ter sido premiada com uma bolsa de estudos integral para Harvard.
– Isso é maravilhoso. E você vai, não é?
Tão irônico. Emily costumava ter que implorar para que a mãe permitisse que fosse a uma festa.
– Você não se importa que eu vá a uma festa em um domingo à noite? – perguntou.
– Você pode chegar atrasada na escola se quiser – disse a sra. Fields.
Emily quase engoliu o chiclete. Quem era essa mulher, e o que havia feito com sua mãe super-rigorosa?
A sra. Fields começou a enumerar uma lista de obrigações nos dedos.
– Não se esqueça de me dizer tudo que elas falarem, inclusive as brincadeiras que elas quiserem fazer daqui para a frente. Na verdade, tente gravar em seu celular se puder. Ou anote em algum lugar, para não esquecer. E não beba. – Ela apontou um dedo para Emily.
– Entendido – disse Emily.
O cronômetro da cozinha tocou, e a sra. Fields ficou de pé de novo.
– É melhor você subir e ver o que irá vestir. Pedirei a Beth que arrume a mesa no seu lugar. Vá.
Ela empurrou Emily para fora da cozinha, e a menina correu escadas acima, foi para seu quarto e abriu o guarda-roupa. Camisetas de manga longa quase idênticas no estilo marinheiro, jeans não muito claros e suéteres de tricô da Banana Republic pendurados em um amontoado desorganizado. O que vestir para uma festa das elfas travessas? Ela puxou um par de jeans pretos justos e um top de um ombro preto que comprara por impulso fazendo compras com Maya.
Então, um brilho do lado de fora da janela chamou sua atenção. Ela correu para a janela e olhou com atenção. Algo estava se movendo atrás do milharal, bem longe. Definitivamente, era uma pessoa. E tinha mesmo visto cabelos louros?
Emily pressionou tanto o rosto contra a janela que o vidro logo ficou embaçado. Mas, quando terminou de limpá-lo e olhou de novo, o vulto desaparecera.
6
COITADINHA DA MENINA INVISÍVEL
Algumas horas depois, Emily subiu os degraus de uma enorme casa vitoriana, toda branca, na rua Emerson, em Old Hollis, um bairro sofisticado perto da universidade de Hollis. Era a única casa no quarteirão com música alta, luzes em todas as janelas e carros estacionados no gramado, e Emily deduziu que fosse a casa de Cassie. Alguns garotos brincavam de fazer anjos bêbados sobre a camada fina de neve. Todos pareciam se conhecer, e Emily já estava se sentindo deslocada. Ela pedira a Aria para vir à festa com ela, mas Aria precisava ajudar o pai a preparar as flores, troncos ou algo parecido para o solstício de inverno.
A porta da frente estava fechada. Emily tentava decidir o que fazer – bater?, entrar sem pedir licença? – quando a porta se abriu e uma garota, usando um vestido muito curto e botas de inverno até as coxas, e um menino com barba de Papai Noel e uma camiseta com os dizeres RONDA PELOS BARES DE HOLLIS cambalearam porta afora, rindo muito, e vieram para a varanda. Eles deixaram a porta aberta para Emily, e ela entrou.
Emily sentiu o cheiro de cerveja choca de imediato. Todos os cômodos da casa estavam lotados de gente falando muito alto. Uma pequena árvore de Natal, decorada com luzinhas brancas, girava devagar em um pedestal de plástico. Um equipamento de som de última geração tocava música no volume máximo, e uma televisão de tela plana pendurada na parede estava ligada em um programa do Comedy Central, ainda que ninguém estivesse assistindo. Um gato cinzento estava deitado nas escadas, lambendo as patas. Quando uma menina desceu correndo do segundo andar entornando o copo de cerveja pelo caminho, o gato soltou um miado agudo e fugiu.
Não havia ninguém que Emily conhecesse sequer de vista na festa. Ela passou pela sala de estar, entrou na sala de jantar, na qual uma mesa antiga estava coberta de garrafas, e então foi para a cozinha, cuja geladeira de aço inoxidável e panelas penduradas sobre a ilha central deviam ter custado uma fortuna. Colado na geladeira, um post-it amarelo dizia Cassie é uma fera assanhada! Havia bananas maduras em uma cesta pendurada sobre o fogão, e uma tonelada de pratos estava empilhada dentro da pia. Emily se perguntou se Cassie estaria tomando conta da casa enquanto seus pais viajavam de férias.
Quando seus olhos caíram sobre a vista da espiral de Hollis pela janela dos fundos, seu cérebro fez uma conexão. A festa do time de hóquei à qual ela e Ali tinham ido, tantos anos atrás, acontecera naquela mesma casa. Fora na sala de jantar atrás dela que Cassie embebedara Ali com vodca e Red Bull, e ignorara Emily completamente.
– Oops! – disse uma voz atrás de Emily. Ela se virou no exato momento em que um garoto grandalhão, usando uma camiseta com o desenho de um pênis, derramou metade do copo de cerveja em seu braço.
– Ei! – gritou Emily, recuando. Sua manga estava ensopada.
– Desculpe – disse o garoto, arrotando. Ele se afastou.
Aumentaram o volume do hip hop que estava tocando, o que fez a cabeça de Emily doer. Depois de enxugar a manga, ela escapuliu de volta para a sala de jantar, um pouco menos lotada. Havia um cara atrás da mesa servindo vodca em um copo de plástico vermelho. Ele ergueu os olhos para Emily.
– O que você quer beber? Cassie me designou como barman, para que ninguém se aposse da bebida.
– Oh, bem, eu só quero um suco de laranja. – Emily apontou para a primeira bebida não alcoólica que viu, pensando na ordem que sua mãe lhe dera para não beber.
Um sorrisinho apareceu no rosto do rapaz.
– Eu não vou contar para ninguém, pode beber o que quiser.
– Suco de laranja está ótimo – insistiu Emily, sentindo-se a garota mais careta do universo.
Ela apanhou o copo vermelho que o rapaz lhe entregou – pelo menos, agora tinha o que fazer com as mãos – e se misturou à multidão, procurando por Cassie e as elfas. As pessoas olhavam para Emily com expressões apáticas, como se ela nem estivesse ali.
Então, a multidão se abriu e ela viu quatro vultos deitados em espreguiçadeiras de plástico, ao lado do aquecedor na sala da frente. Um deles era Cassie, usando saia de couro e camiseta baby-look tingida. Ela pintara os cabelos antes azuis de um louro platinado, nada parecido com o tom de louro de seus dias de jogadora de hóquei. Heather, Sophie e Lola, usando roupas também provocantes, permaneciam próximas a ela, cochichando e parecendo muito satisfeitas.
Emily atravessou a multidão e se aproximou delas. Já estava bem perto quando um garoto alto se inclinou sobre Cassie, sorrindo de jeito misterioso.
– Ouvi falar que vocês andam aprontando por toda a cidade. É verdade?
Cassie deu um sorriso misterioso.
– Não é isso que as elfas fazem?
– Isso é algo que cabe a nós saber e a você, apenas imaginar – completou Heather.
– Vocês são demais – disse o garoto, batendo o punho fechado no de Lola.
Então, Cassie se levantou e olhou diretamente para Emily. Ela sentiu um aperto no estômago e acenou, mas Cassie parecia não vê-la. Lola também olhou na direção de Emily, mas também tinha a mesma expressão fria e indiferente.
Emily se encolheu. Uma risada alta encheu o ar, e ela soube que era dela que estavam rindo.
Bebeu o suco de laranja, fingindo que era álcool. Então, aquilo tudo era mesmo apenas uma grande brincadeira de mau gosto. As elfas só queriam deixar bem claro a grande perdedora que Emily era. Ela se esgueirou para o banheiro vazio no corredor, sentindo as lágrimas lhe encherem os olhos. Depois de lutar com a maçaneta antiga de bronze para fechar a porta, sentou-se na beirada da banheira e colocou as mãos na cabeça. Trancara-se naquele mesmo banheiro durante a festa no sétimo ano, pouco depois de Ali desaparecer pelas escadas com Cassie. A dor que sentira então ainda era palpável. Parecia que Ali estava terminando tudo com ela, e de certo modo foi isso mesmo que aconteceu.
Emily se levantou, foi até o espelho e olhou com firmeza seu próprio reflexo.
– Supere isso – disse ao espelho. – Você não é mais aquela menininha do sétimo ano. Você é mais forte agora.
Jogou água fria no rosto e voltou para a sala. A multidão ainda era grande, mas ela usou os cotovelos para atravessá-la até estar diante das elfas. Emily deu uma batidinha no ombro de Cassie. Ela apertou os olhos ao ver Emily, e seus lábios se contorceram em um sorriso irônico.
– Obrigada por me convidar – disse Emily com sarcasmo. – Eu me diverti muito.
Cassie olhou para Emily por debaixo da franja loura.
– Quem diabos é você?
Emily sentiu vontade de grunhir.
– Você sabe quem eu sou. Emily.
– Emily? – Cassie se virou para Heather, Sophie e Lola, que estavam agora olhando curiosamente para ela, também. – Soa familiar, meninas?
– Eu não convidei ninguém chamada Emily – disse Lola, arrastando de leve as palavras.
– Nem eu – completaram Sophie e Heather.
Cassie revirou os olhos.
– Foi o meu irmão quem convidou você? Eu disse a ele que já tínhamos gente demais.
– Você me convidou! – exclamou Emily. – Sou Emily Fields! Papai Noel!
Foi como se uma lâmpada tivesse se acendido na cabeça de Cassie. Ela sorriu.
– Papai Noel? Eu não reconheci você sem a barba! Meninas, é o Papai Noel!
– Ei, Noel! – sorriu Heather. – E aí?
– Oi, Noel! – disse Sophie.
– Você devia ter vindo com o gorro – disse Lola, parecendo aborrecida. – Como iríamos saber que era você?
– Só um segundo. – Cassie se levantou e desapareceu por uma porta. Momentos depois, ela voltou com outra espreguiçadeira e a colocou ao lado da sua. – Aqui está, Noel. Fique aqui conosco. O que posso lhe oferecer para beber?
Emily olhou para a espreguiçadeira vazia, e então para os dois dedos de suco de laranja que sobraram em seu copo.
– Hum, que tal uma vodca com energético?
– Excelente escolha – disse Cassie, piscando para ela. – Costumava ser meu drinque favorito.
Eu sei, Emily teve vontade de responder. Ela se sentou na espreguiçadeira, sentindo-se subitamente maravilhosa. De repente, a festa ficara muito, muito mais interessante.
7
A GALERA LEGAL
– Mais vodca, alguém? – Cassie ergueu uma garrafa de Absolut no ar e a sacudiu. O líquido chacoalhou no fundo.
– Eu, eu! – Lola levantou a mão. Heather e Sophie fizeram o mesmo. Em vez de completar os copos delas, Cassie foi direto para Emily e despejou o equivalente a três doses em seu copo.
– Você mal deu um gole na bebida, Noel!
Já havia passado mais ou menos uma hora, e embora a festa ainda estivesse a todo vapor dentro da casa de Cassie, as elfas e Emily haviam formado um pequeno grupo VIP no quintal, que tinha uma piscina enorme e vários aquecedores para espantar o frio. Estava tudo muito tranquilo lá fora, com as estrelas no céu escuro formando um candelabro sobre suas cabeças, e as luzes do quintal oferecendo um calor reconfortante para a pele.
As elfas conversavam sobre as melhores festas de faculdade a que já haviam ido, o quanto o shopping Devon Crest era horrível e histórias sobre o antigo Papai Noel, cujo nome era Fletcher e que aparentemente dera em cima das quatro elfas no mesmo dia.
– Aquele cara estava louco para se dar bem – gemeu Cassie, com a mão sobre os olhos. – Para ele, qualquer uma estava bom.
– Vocês se lembram daquela garota morena com cara de santinha que caiu na lábia dele? – riu Lola. – Tenho certeza de que aqueles dois foram se agarrar em algum lugar.
– Tá legal – zombou Cassie. – Ela não teria ficado com ele. Nem ela poderia ser tão burra.
– Um horror, hein, Noel? – riu Lola, cutucando Emily com o pé. Emily assentiu.
– E por falar em caras nojentos... – Cassie apoiou os pés na grade da piscina. – Não posso acreditar em como o Colin está sendo babaca esta noite. Ele não me dirigiu uma palavra sequer, nem ao menos obrigado por me convidar para a sua festa. Vocês acham que eu devia tentar falar com ele, ou é melhor deixar para lá?
– Esqueça-o. – Heather abanou a mão como se estivesse espantando uma mosca.
– Estamos no mesmo barco. – Lola se afundou na cadeira. – Eu vi o Brian desaparecer pelas escadas com a Chelsea. Acho que foi o jeito dele de me dizer que está tudo acabado entre nós.
– Pelo menos ele não terminou com você em um post no Facebook – disse Sophie, acendendo um cigarro. – Eu nunca vou perdoar o James por fazer aquilo comigo.
– Aí está um típico garoto de Yale. – Cassie estalou a língua. – E você nunca deve sair com alguém do seu dormitório.
Emily olhou para Sophie.
– Você estuda em Yale?
Sophie sacudiu os ombros.
– Sim, mas não por muito tempo, eu acho.
Cassie deu uma risadinha.
– Oh, por favor. A Sophie foi oradora da turma na Prichard. Ela ainda deve fazer todos os trabalhos na mesma noite em que os professores os passam. E os trabalhos para créditos extras.
– Não, não. – As tranças de Sophie balançaram quando ela sacudiu a cabeça. – Eu caí muito de rendimento.
– Certo, seu pai faz os trabalhos – corrigiu Cassie.
– E você ainda vai ser médica, como seu pai quer? – provocou Heather.
Sophie soprou um anel de fumaça.
– Minhas notas deste semestre foram horríveis. Eu provavelmente não vou conseguir entrar no programa preparatório para medicina se continuar assim. Meus pais vão me matar quando descobrirem. – Ela disse isso com voz firme, mas, quando virou a cabeça, havia um ar aterrorizado em seu rosto.
Heather deve ter percebido o medo dela, porque deu uma risadinha e disse:
– Pobrezinha da Sophie, com toda essa pressão. Você tinha de estourar algum dia.
Sophie se virou outra vez e bateu a mão no braço da cadeira.
– Pelo menos os meus pais percebem quando eu estou estragando tudo. Com quem o seu pai passa todo o tempo livre nos últimos tempos? Uma das Pussycat Dolls?
Cassie deixou escapar uma gargalhada alta. Heather correu os dedos pelos cabelos muito curtos, zangada.
– Ha, ha, muito engraçado – disse ela em voz baixa, parecendo sóbria de repente.
– Seu pai conhece as Pussycat Dolls? – perguntou Emily, para quebrar a tensão.
As elfas voltaram a atenção para Emily, quase como se houvessem esquecido que ela estava ali.
– Na verdade, não – respondeu Heather, irritada. – Mas ele é produtor musical, e conhece muitos outros artistas.
– Conhece intimamente – provocou Lola. – Ele levou uma das finalistas do American Idol para a festa de formatura de Heather e estava se derretendo todo para ela. Você devia ter visto a cara da Heather!
Heather deu um chute na cadeira de Lola.
– E você tem que contar ao mundo inteiro, não é? Como se sua vida fosse tão perfeita! Como vai seu irmão? Em que clínica de reabilitação ele está trancado agora?
O rosto de Lola empalideceu. Ela não disse nada, mas Emily se lembrava do nome Rocco, da conversa que Lola tivera ao celular atrás da casinha de pão de mel, mais cedo.
Um silêncio pesado caiu sobre o grupo. Sophie deu uma tragada em seu Marlboro Light, olhando para longe. Heather batia os pés contra a grade da varanda. Emily se mexia de um lado para o outro na espreguiçadeira desconfortável, desejando poder encontrar as palavras certas para dizer, para melhorar as coisas. Aquilo a fazia se lembrar da dinâmica entre Ali, ela mesma e suas velhas amigas, no final do sétimo ano, ainda mais quando Ali dava a entender que sabia de um segredo sobre uma delas que as outras desconheciam. Talvez houvesse alguma animosidade profunda naquele grupo também.
Mas, de um modo estranho, ouvir os segredos das elfas também era um tanto reconfortante. Como Emily, as meninas eram humanas. Falíveis. Vulneráveis. Tinham segredos que A poderia usar contra elas se ainda estivesse por perto. Aquilo a fazia se sentir menos sozinha.
Cassie se esticou em sua espreguiçadeira.
– Então, o que você acha, Noel? Todos os caras são uns imprestáveis?
Emily enfiou as mãos nos bolsos do casaco.
– Mais ou menos isso. É por isso que eu gosto de garotas.
As quatro cabeças se viraram para ela. Havia uma longa cinza na ponta do cigarro de Sophie, mas ela não se mexeu.
– Tá legal – disse Cassie.
– É verdade. – Emily tentou soar displicente. – Eu namorei uma menina chamada Maya no outono. – Parecia estranho dizer aquilo em voz alta; era quase como se estivesse contando vantagem. Mas se havia um grupo a quem ela podia contar aquilo sem ser julgada, provavelmente era o das elfas.
Cassie arregalou os olhos.
– Você saiu do armário?
– Posso dizer que sim. – Emily não se deu o trabalho de contar que A havia revelado tudo contra a sua vontade.
– O que seus pais disseram? – perguntou Sophie, meio engasgada.
– Eles piraram – admitiu Emily. – Mas já se acostumaram com a ideia, eu acho.
– Uau. – Heather cruzou os braços sobre o peito. – Talvez eu devesse tentar dizer isso aos meus pais. Isso provavelmente os forçaria a permanecer juntos por um tempo na mesma sala.
Cassie se inclinou para a frente e olhou com curiosidade para Emily.
– O que você faria na minha situação com o Colin? Se ele fosse uma garota e não estivesse falando com você, agindo de modo estranho, você a confrontaria ou apenas a mandaria para o inferno?
Emily se recostou na cadeira, espantada porque Cassie estava pedindo um conselho a ela.
– Eu conversaria com ele – decidiu ela. – Mas não seria muito insistente. Aja como se não precisasse mesmo dele. – Se ao menos ela própria tivesse feito aquilo com Ali, quando tivera a chance...
Cassie assentiu, pensativa.
– É, era isso mesmo que eu estava pensando, também. – Ela deu um tapinha no ombro de Emily.
Um som alto reverberou de repente de dois alto-falantes invisíveis na varanda. Então, uma música de Jay-Z começou a tocar, e Lola se levantou, torcendo os lábios.
– Oh, meu Deus, eu quase esqueci – disse ela. – Eu trouxe uma coisa para nós.
Ela desapareceu dentro da casa, voltando alguns segundos depois com uma sacola de papel amassada e despejando o conteúdo no chão. Um monte de fogos de artifício, em forma de cones, se esparramou pela varanda.
– Sobraram do último verão. Achei que seria divertido soltá-los esta noite.
– Legal. – Cassie apanhou um, em forma de foguete, sem hesitação, colocando-o no chão e acendendo o pavio. Faíscas começaram a escapar do pequeno tubo, e as meninas se afastaram. O coração de Emily disparou. Ela sempre associaria fogos de artifício com A Coisa com Jenna.
Um barulho alto cortou o ar, e o cone subiu pelo céu e explodiu por sobre os telhados.
– Isso! – gritaram Lola e Heather, batendo as mãos espalmadas. Emily olhou ao redor, nervosa. Elas não podiam se meter em encrencas com aquilo?
Mas as elfas não pareciam preocupadas. Uma a uma, todas as meninas soltaram fogos, que subiram rasgando o céu. Luzes se acenderam nos andares superiores das casas vizinhas, e alguém gritou “Calem essas bocas!” de uma janela. Os convidados da festa foram para fora ver o que estava causando tanto barulho. Cassie passou um cone em forma de foguete e uma caixa de fósforos para Emily.
– Sua vez, Noel.
Emily revirou o objeto em suas mãos, pensando em como sua mãe reagiria ao receber um telefonema da polícia no meio da noite, dizendo-lhe que Emily estava presa. Mas ela fizera tanto progresso com as elfas. Não podia recuar agora. E estaria mentindo se dissesse que não estava se divertindo.
Ela colocou o foguete no chão e riscou o fósforo. O pavio se acendeu imediatamente, queimando mais rápido do que esperava. Ela deu um passo para trás ao mesmo tempo em que o foguete disparou para o céu com um barulho ensurdecedor. Ele explodiu no ar, e uma chuva de faíscas caiu sobre o solo.
As elfas gritaram e bateram palmas. O coração de Emily martelava com a adrenalina. Era incrível fazer um bastão de dinamite explodir no céu. E o que era ainda melhor eram os olhares que as elfas lhe dirigiam, batendo-lhe nas costas e sorrindo para ela. Era como se pertencesse ao grupo.
A porta dos fundos se abriu mais uma vez, e um garoto de cabelos arrepiados colocou a cabeça para fora.
– O seu vizinho está ao telefone, Cassie. Ele parece furioso.
– Merda. – Cassie olhou para as outras elfas. – É melhor a gente entrar. Se for o sr. Long, ele já chamou os tiras.
As elfas assentiram e entraram em casa. Os convidados da festa já estavam se dirigindo, trôpegos, para a porta, e a animação diminuía aos poucos. Mesas, balcões e prateleiras estavam cobertos de copos vermelhos e garrafas vazias, e a casa cheirava como o fundo de um barril mofado. Emily disse a Cassie que provavelmente já era hora de ir, e Cassie e as elfas a acompanharam até a porta da frente.
– Obrigada por me convidar esta noite – disse Emily, quando elas chegaram à varanda.
– Tudo bem. – Cassie girou a maçaneta. – Foi divertido.
– Talvez a gente possa repetir, uma hora dessas? – perguntou Emily, ansiosa. Ela se divertira muito no quintal. Havia séculos que não conversava com um grupo de garotas como aquele.
Uma sombra atravessou o rosto de Cassie. Ela trocou um olhar ambíguo com as outras elfas.
– Hum, vamos ver, Noel.
8
MISSÃO IMPOSSÍVEL
– Emily Fields? – chamou uma voz cheia de estática pelo sistema de som de Rosewood Day, na tarde de segunda-feira. – Dirija-se à diretoria, por favor.
Emily ergueu os olhos do teste de literatura inglesa, que era sobre o livro Adeus às armas. Alguns dos outros alunos se viraram e olharam para ela com curiosidade.
– Você pode ir depois de terminar o seu teste – disse a sra. Quentin, a professora de inglês. Ela estava sentada em sua escrivaninha, lendo uma cópia amassada de Rumo ao farol, com os óculos apoiados na ponta do nariz.
– Na verdade, já acabei.
Emily se levantou da cadeira e colocou o teste na caixa de metal na frente da sala de aula. Ela não tinha a menor ideia do motivo de estar sendo chamada à diretoria, e sentiu um nó no estômago. Será que alguém tinha descoberto que soltara fogos de artifício na festa, na noite passada? Será que poderia se meter em encrenca na escola por causa daquilo?
Cada passo sobre o chão de mármore soava como uma bomba explodindo na cabeça de Emily. Sua visão estava um tanto embaçada, como frequentemente acontecia quando ela não dormia o suficiente. Talvez fosse porque ela havia se virado de um lado para o outro na cama até alta madrugada, tentando entender por que Cassie e as elfas haviam sido tão simpáticas em um momento e tão frias no momento seguinte. Vamos ver? O que queria dizer aquilo?
O corredor de Rosewood Day estava cheio de alunos. Alguns pôsteres anunciando um baile de três semanas atrás ainda estavam afixados nas paredes, e um enfeite de vidro rachado estava caído ao lado da porta do banheiro das meninas. Pelas janelas das salas de aula, Emily podia ver professores com expressões cansadas tentando manter seus alunos concentrados nas tarefas. Havia um ar jovial, um clima de não-vamos-mais-estudar-nada – as férias de duas semanas começariam em apenas quatro dias.
Ela passou pelo saguão, onde o santuário pela morte de Ali permanecia junto ao auditório. Era uma grande colagem de fotografias, velhos desenhos e lembranças dos alunos, com as palavras SENTIREMOS SAUDADES em letras prateadas em volta. Emily estava em várias das fotografias na colagem, de braço dado com Ali, com a cabeça apoiada no ombro de Ali, rindo alto com Ali no auditório.
Ela tocou no vidro que protegia o santuário com as pontas dos dedos, e seu reflexo fantasmagórico pareceu piscar para ela. A fotografia de Ali no quinto ano estava bem no meio da montagem, e por um momento pareceu que ela estava olhando nos olhos de Emily, de dentro do vidro. De repente, um segundo reflexo lhe chamou a atenção. Ela se virou com rapidez, certa de que veria alguém de pé no saguão, olhando para ela, mas o saguão estava vazio. A porta da frente se fechou devagar, entretanto, como se alguém tivesse acabado de sair.
A sala da direção ficava do outro lado do saguão. Emily entrou e ficou ali, silenciosamente, até que a sra. Albert, a recepcionista, ergueu os olhos e a viu.
– Oh, Emily. – Ela revirou alguns papéis. – Sua mãe está aqui. – Ela apontou para um pequeno escritório que os conselheiros estudantis costumavam usar.
O coração de Emily disparou. A mãe estava ali? Sua mente começou a pensar em todo tipo de possibilidade aterradora. Algo acontecera com um de seus irmãos. O melanoma de sua avó voltara. Ian tivera um ataque homicida.
Emily entrou no escritório correndo e deu de cara com a mãe sentada calmamente em frente a uma mesa redonda, organizando alguns cupons que sempre carregava na bolsa.
– O que está acontecendo?
A sra. Fields lhe deu um sorriso plácido.
– Oi, querida. Eu estava aqui pensando se você não gostaria de matar a última aula e ir até a manicure antes de trabalhar hoje. Eu ganhei alguns cupons do comitê Welcome Wagon como presente de Natal. Se você não tiver algo muito importante para fazer na última aula, é claro. – Ela voltou os olhos para a recepcionista na escrivaninha e sorriu com malícia. – Eu disse para a sra. Albert que você tinha uma consulta médica – cochichou.
Emily olhou espantada para ela. Sua mãe viera tirá-la da escola, algo que jamais acontecera, nem mesmo quando Beth fora internada no hospital com pneumonia dupla. Aquilo já era chocante o suficiente, mas um dia de mulherzinha em um Spa não era algo que as duas fizessem juntas. Emily sempre quisera que a sra. Fields fosse aquele tipo de mãe, mas a sra. Fields considerava um dia no Spa uma indulgência frívola. Ela chegava a censurar as filhas quando iam ao cabeleireiro antes das festas da escola, insistindo que poderiam arrumar os cabelos em casa com bobes, chapinhas e laquê.
– Isso seria muito legal – gaguejou ela. – A minha última aula é história, mas provavelmente vamos apenas ver um vídeo. – A turma só assistira a vídeos durante a última semana, enquanto a sra. Weir, a professora, sentava-se no fundo da aula e fazia as compras de Natal em seu iPad.
– Ótimo – disse a sra. Fields, levantando-se e colocando os cupons de volta em sua bolsa Vera Bradley. – Vamos, então.
Emily seguiu a mãe pelas portas duplas do saguão. Um vento frio soprava, fazendo os galhos das árvores baterem uns contra os outros e uma embalagem de chiclete voar pelo estacionamento. Ela olhou em volta, pensando sobre o vulto que jurava ter visto atrás de si no saguão, mas o estacionamento estava vazio. Devia ter sido um truque de sua imaginação.
– O que é isso nos seus braços? – A manicure no Spa Fermata segurou os pulsos de Emily e examinou seus antebraços. Pequenas brotoejas vermelhas se espalhavam por toda a pele.
Emily olhou para seus braços, alarmada. A sra. Fields deu uma olhada e estalou a língua.
– Oh, querida. Eu lavei os seus lençóis com um novo sabão em pó ontem. Aposto que foi por isso.
Emily grunhiu. Sua mãe estava sempre comprando marcas de sabão em pó diferentes, a primeira que visse em promoção. Sua pele sensível não conseguia se adaptar a todas aquelas mudanças. Parecia que havia contraído algum tipo de bactéria carnívora.
Ela se recostou na cadeira de manicure e tentou relaxar. A água do escalda-pés borbulhava um pouco. O ar tinha um cheiro fresco e reconfortante, como sândalo misturado a laranjas. As esteticistas andavam de um lado para o outro com seus jalecos pretos, sorrindo placidamente para Emily e sua mãe. O único aspecto deprimente era a “Blue Christmas” tocando no aparelho de som: aquela talvez fosse a música de Natal mais triste já escrita.
A mãe de Emily estava sentada ao seu lado, e fez uma careta quando a manicure lhe cortou as cutículas. Emily suspeitava de que aquela fosse a primeira vez que sua mãe ia à manicure: ela ficara olhando as prateleiras de esmaltes por uma eternidade, antes de enfim escolher um rosa quase translúcido.
– Então – murmurou a sra. Fields –, conte-me sobre a festa, ontem à noite.
Emily estava mesmo se perguntando quando sua mãe ia lhe pressionar por informações sobre as elfas.
– Foi muito boa – respondeu ela, enquanto a manicure polia suas unhas. – As elfas se abriram um pouco comigo. Uma das meninas, Sophie, está para ser expulsa de Yale. Ela me faz lembrar de Spencer; está sob pressão demais. Heather parece estar passando por problemas de família; acho que os pais dela não se dão muito bem. Lola também está enfrentando dificuldades; parece que o irmão está em uma clínica de reabilitação. Ainda não sei muito a respeito de Cassie; só que a festa foi na casa dela, e os pais, sem dúvida, não estavam lá. Parece que todas elas têm de se virar sozinhas. Talvez elas estejam aprontando para chamar atenção.
– Sim, mas o que você descobriu sobre as tais brincadeiras? – perguntou a sra. Fields. – Elas estão planejando alguma coisa grande para logo? Disseram alguma coisa sobre o menino Jesus?
Emily mordeu o lábio inferior.
– Elas não mencionaram nenhum plano concreto – admitiu. – E na verdade, quando eu as pressionei sobre nos divertirmos juntas novamente, elas começaram a agir de modo estranho. Eu nem consegui uma confirmação expressa de que as meninas são as responsáveis. Elas não falaram nada sobre o assunto.
A sra. Fields apertou os lábios até a pele ao redor ficar enrugada.
– Claro que elas são as responsáveis; nós sabemos disso. Você tem de tentar de novo. Isso é muito importante.
– Eu sei que é importante – disse Emily, com petulância. – Mas não posso ir mais rápido do que isso. Acho que elas ainda não confiam em mim.
– Bem, ganhe a confiança delas, então. – A sra. Fields puxou as mãos que a manicure segurava, vasculhou na bolsa e colocou uma caixinha no colo de Emily. – Todos nós, na igreja, fizemos uma vaquinha para lhe comprar isto, para que você as pegue em flagrante.
Emily abriu a caixa. Era um iPhone novinho em folha.
– Tem vários aplicativos de vídeo – explicou a mãe dela.
– Você quer que eu filme a conversa delas? – perguntou Emily, atônita.
– E como você espera documentar o que elas estão fazendo, para levar à polícia? – A sra. Fields estendeu as mãos de novo, e a manicure pintou suas unhas com esmalte. O cheiro do produto químico encheu o ar.
Sininhos soaram quando um grupo de mulheres entrou no salão. Elvis continuava a cantar com tristeza sobre como o amor de sua vida o abandonara no Natal. Emily abaixou os olhos para o colo. Ela pensou em como Cassie puxara uma cadeira para ela na festa, e em como todas haviam comemorado quando ela soltara os fogos.
– Olhe, eu sei que você não quer fazer isso – murmurou a mãe de Emily, como se estivesse lendo a mente da filha. – Mas vou ser honesta com você. O menino Jesus que elas roubaram vale muito dinheiro. Eu estava pensando em vendê-lo e usar o dinheiro para comprar presentes de Natal, já que o bônus do seu pai não foi o que esperávamos. – Ela fungou. – Só quero que as festas sejam especiais este ano.
– Eu entendo – disse Emily, baixinho. – Mas e se eu não conseguir recuperar o menino Jesus?
– Você consegue – insistiu a sra. Fields. – Você só precisa ganhar a confiança delas. Conquistá-las. Faça o que for preciso.
Ela estendeu as mãos sobre a mesa, examinando as unhas pintadas. Emily mexeu os pés nervosamente, e uma dor incômoda surgiu em seu estômago. Mas, como a boa menina que sempre foi, assentiu e disse que faria o que sua mãe mandara. O problema era que Emily ainda não fazia ideia de como se infiltrar no grupinho fechado de Cassie. Se não arrumasse um jeito bem depressa, aquele seria um Natal muito triste para todos.
9
FORMIGAS NAS CALÇAS
Uma hora depois, com as unhas pintadas de um tom festivo de vermelho, Emily correu para a Terra do Papai Noel para começar seu turno de trabalho, passando por uma grande promoção na Hermès, pela multidão aglomerada junto ao balcão de diamantes da Tiffany & Co. e por uma apresentação de mágica na frente de uma loja de brinquedos. Já havia uma longa fila de crianças esperando na entrada da Terra do Papai Noel, decorada com doces e pirulitos, e muitas delas pareciam cansadas e birrentas. A sra. Meriwether cumprimentou Emily na casinha de pão de mel.
– Você viu as elfas? – perguntou ela, com uma voz uma oitava mais alta do que o normal.
– Hum, eu acabei de chegar – lembrou Emily a ela.
– Elas sumiram – disse a sra. Meriwether, olhando ao redor freneticamente. – Deviam ter chegado há uma hora, e está uma confusão lá fora! – Em seguida, ela se afastou, falando sozinha. Emily vestiu sua fantasia, imaginando se as elfas tinham faltado ao trabalho pelos excessos na festa de Cassie, na noite anterior.
Em questão de minutos, estava sentada no trono do Papai Noel. Uma garotinha familiar, com marias-chiquinhas castanhas, adiantou-se e pulou no colo de Emily. O pai dela, um homem corpulento com um corte de cabelo militar, usando um uniforme de policial, apareceu a seu lado. Emily olhou para o distintivo brilhante. O’NEAL. Aquela era a garotinha que pedia todos os presentes do mundo.
– A Tina gostou tanto de você que quis vir visitá-lo de novo, Noel – disse o oficial O’Neal, piscando para Emily. Seu distintivo brilhava sob as luzes fortes das câmeras.
– Quero pedir mais presentes – declarou Tina. Ela começou a recitar a lista, contando nos dedos. Seus novos pedidos incluíam a Casa da Barbie, o Jato Executivo da Barbie e a Barbie Princesa da Neve, Edição Limitada. Emily não achava que uma criança da idade de Tina devesse sequer conhecer o termo Edição Limitada.
– Você não acha que já é o suficiente? – perguntou Emily, depois de Tina listar cerca de vinte itens.– O Papai Noel precisa de algum espaço em seu saco para trazer os presentes das outras crianças do mundo, também.
Tina fez beicinho.
– Papai disse que o Papai Noel me traria tudo.
Emily lançou um olhar para o oficial O’Neal, mas ele simplesmente encolheu os ombros, meio constrangido.
– Ela se comportou muito bem este ano.
A fila de crianças continuou a andar. Uma delas derramou um milk-shake de morango no colo de Emily, e outra começou a chorar. No momento em que uma garotinha entregava a Emily uma carta grossa em um envelope que dizia Para o Papai Noel em uma caligrafia trêmula, Emily finalmente viu Cassie, Lola, Heather e Sophie atravessando o corredor. Os gorros das elfas estavam tortos, e suas fantasias estavam mal ajustadas. Cassie e Sophie nem tinham se dado o trabalho de colocar os sapatos pontudos; estavam usando tênis. Mesmo de longe, parecia que estavam curtindo uma gigantesca ressaca. Emily se perguntou até que horas elas teriam continuado na festa, depois que ela foi embora.
O mágico entregou a Cassie um balão em forma de flor.
– Meninas, vocês parecem estar precisando de um estímulo – disse ele para as elfas, estendendo um balão para cada uma.
– Vá para o inferno – retrucou Cassie. Lola derrubou o chapéu do mágico de sua cabeça. Ele se sentou de novo no banquinho, desolado.
A sra. Meriwether correu na direção das elfas.
– Por onde vocês andaram? – O rosto dela estava muito vermelho, e seus punhos estavam cerrados. – Vocês deviam estar aqui há uma hora.
As elfas apenas olharam para ela, parecendo exaustas demais para responder.
A sra. Meriwether ergueu uma das mãos.
– Eu quero vocês quatro limpando o interior da casinha de pão de mel. – Ela apontou na direção da casinha. – Uma criança acabou de vomitar lá dentro. E o banheiro está imundo. – As elfas abriram as bocas para protestar, mas a sra. Meriwether bateu o pé. – Vão, agora – disse ela, por entre os dentes. Até mesmo Heather se encolheu.
Resmungando, as elfas foram para a casinha de pão de mel.
– O que eu não daria para não ter de trabalhar hoje – grunhiu Cassie.
– Vamos rezar para um asteroide atingir o shopping – concordou Lola.
– Ou ao menos a Terra do Papai Noel – disse Sophie.
– Você pode nos trazer isso de Natal, Noel? – Heather olhou para Emily, reconhecendo a presença dela pela primeira vez naquele dia.
Emily coçava distraidamente as marcas vermelhas em seu braço, com a cabeça girando. Conquiste-as, ouviu a voz de sua mãe dizer. Faça o que for preciso. Ela olhou para a urticária em seu braço, e uma ideia lhe surgiu na mente.
Colocando a placa que dizia PAPAI NOEL SAIU PARA ALIMENTAR AS RENAS sobre o trono, Emily atravessou o carpete decorado com pirulitos e deu um tapinha no ombro da sra. Meriwether, que estava conferindo alguns recibos no caixa e logo se virou, lançando-lhe um olhar raivoso.
– Não me diga que você também vai me causar problemas agora.
– Não quero causar problemas – disse Emily. – Mas preciso dizer que acabei de encontrar um inseto na minha barba.
As sobrancelhas da sra. Meriwether se ergueram.
– Vamos ver.
Emily fingiu procurar por entre os fios sedosos em seu queixo.
– Acho que ele escapuliu.
– Como era esse inseto?
Emily fingiu pensar um pouco, e então descreveu a criatura sobre a qual lera no jornal havia algumas semanas.
– Era... marrom-avermelhado? Em formato oval? Parecia um besouro, mas acho que não era.
O rosto da sra. Meriwether perdeu a cor.
– Meu Deus. Isso parece ser um carrapato.
Bingo! Emily ficou feliz por ter feito a descrição correta. Uma loja de departamentos na Filadélfia tivera de ser fumigada porque tinha carrapatos, e os noticiários haviam feito muito barulho a respeito. Ela fingiu surpresa.
– A senhora acha que era um carrapato? Esses bichos não são impossíveis de matar?
– Você tirou a fantasia de Papai Noel do shopping? – A sra. Meriwether parecia furiosa. – Esteve em algum lugar que pudesse ter carrapatos?
– Claro que não. – Emily cruzou os braços sobre o peito. – Eu deixo a fantasia de Papai Noel aqui toda noite. Mas, agora que a senhora mencionou o assunto, notei essas coisinhas na minha pele e...
Ela arregaçou as mangas para revelar as marcas vermelhas em seus braços. Pareciam exatamente as mordidas de carrapatos que um funcionário da loja de departamentos mostrara a um repórter na televisão.
Um som estrangulado, de nojo, emergiu da garganta da sra. Meriwether.
– Ó, céus. – Ela levou as mãos à cabeça. – Há carrapatos na Terra do Papai Noel! Há carrapatos no shopping!
Cabeças começaram a se virar. Murmúrios se ouviram. O boato se espalhou como um incêndio, e em minutos todas as famílias com crianças esperando para sentar no colo de Emily haviam desaparecido do carpete decorado com pirulitos. Vendedores e clientes saíram de lojas como Aéropostale e J. Crew, conversando em grupinhos. Todos começaram a coçar seus braços, pescoços e couros cabeludos. Pais examinavam com cuidado a pele dos filhos.
Um segurança puxou a sra. Meriwether para um canto e começou a falar com ela. Logo depois, um grupo de homens de terno saiu de um corredor nos fundos e se dirigiu para a Terra do Papai Noel.
– Eu sou Jeffrey Allen, chefe de operações – disse um deles, estendendo a mão para a sra. Meriwether. – A senhora disse que achou um carrapato?
– Isso mesmo. – A sra. Meriwether apontou para as marcas nos braços de Emily. O sr. Allen as inspecionou cuidadosamente, e então foi discutir com os outros executivos. Emily conseguiu ouvir as frases fumigação total, grandes prejuízos e talvez haja algum tipo de engano.
– Carrapatos! – gritou uma mãe que passava.
Mais mães e pais cercaram os executivos, gritando que teriam que queimar todas as roupas e que iriam processar o shopping se seus filhos apresentassem marcas de mordidas no dia seguinte.
– Acalmem-se, acalmem-se – disse o sr. Allen, fazendo gestos com as mãos. – Eu estou chamando a segurança neste momento. O shopping será fechado até amanhã, para que possamos resolver o problema.
Minutos depois, as alegres músicas natalinas pararam de tocar, e os alto-falantes anunciaram que todos precisavam sair do shopping naquele momento. Hordas de consumidores correram para as saídas. Como se tivessem ensaiado, as elfas saíram da casinha de pão de mel.
– Acabei de ouvir que o shopping está fechando? – perguntou Cassie, com uma expressão confusa, olhando para as pessoas que corriam na direção das portas.
– Isso mesmo – disse a sra. Meriwether, em um tom de voz severo. – Peguem as suas coisas. Vai haver uma investigação sobre infestação de carrapatos.
Cassie afastou uma mecha de cabelos louro-platinados para trás da orelha.
– Mas seremos pagas por hoje, não é?
– Suponho que sim – disse a sra. Meriwether, contrariada. – Mas deixem suas fantasias aqui; teremos que mandar lavá-las e desinfetá-las esta noite. Emily encontrou um carrapato em sua barba de Papai Noel.
Quatro pares de olhos se voltaram para Emily, e ela piscou. O queixo de Lola caiu. Heather deixou escapar uma risadinha incrédula. Quando a sra. Meriwether virou as costas, Cassie se aproximou.
– Um carrapato na sua barba, hein?
Emily olhou ao redor, com uma expressão cínica.
– Que falta de sorte, não é?
– Caramba – sussurrou Cassie, agarrando o braço de Emily e apertando-o. – Você é fantástica!
– Você acabou de salvar as nossas peles, Noel – disse Lola. – Eu acho que não teria aguentado até o fim do dia. Estou morta.
Emily tirou o gorro de Papai Noel.
– Eu também não estava a fim de trabalhar.
– Devíamos fazer algo para comemorar nossa folga inesperada – disse Cassie, parecendo reavivada. Ela dirigiu um olhar conspirador para as outras elfas. Depois de uma série de gestos silenciosos e acenos de cabeça, ela se voltou para Emily. – E você vem conosco, Noel.
– Mesmo? – guinchou Emily, esquecendo-se de bancar a indiferente.
– Mesmo. – Cassie deu o braço a Emily. – Você parece estar precisando se divertir um pouco.
Ela puxou Emily na direção da saída, junto com outros clientes, que se coçavam em pânico. Algumas pessoas lançaram olhares curiosos para Emily, provavelmente imaginando por que ela estaria sorrindo daquele jeito no meio de uma infestação de carrapatos. Mas o que eles não sabiam não poderia feri-los.
10
TIRE TUDO, GAROTÃO
– O Ursinho Pooh e o Tigrão estão em um trenó à sua direita – disse Cassie, algumas horas depois, colocando a mão enluvada para fora da janela entreaberta do lado do motorista. – E, Jesus, aquele ali é o Bisonho, bancando a rena?
– Pobrezinho. – Sophie deu uma longa tragada em seu cigarro. Emily se pendurou na janela para ver melhor. De fato, havia um burrinho azul inflável puxando o trenó com o ursinho e o tigre do desenho animado no jardim da casa de alguém. Bisonho parecia realmente muito triste.
Emily afundou de novo no banco de trás do carro de Cassie, espremida entre Lola e Heather. O interior do veículo cheirava a uma mistura enjoativa de fumaça de cigarro, chiclete de canela e balas de hortelã que haviam apanhado na cesta de doces da Terra do Papai Noel. Elas estavam passeando sem pressa por um bairro em West Rosewood, observando as decorações sofisticadas, ouvindo música e dividindo uma garrafa de rum. Emily sentia uma pressão nervosa no peito, mas não por culpa do álcool, que tentava evitar o máximo possível; era porque tinha o iPhone que sua mãe lhe dera bem ali, na palma da mão. Alguma coisa iria acontecer naquela noite, ela podia sentir. Antes de sair do Spa, aprendera a usar a função de câmera, que botões apertar e como aproximar ou afastar a imagem. Mas parte dela queria jogar o aparelho pela janela. Ou, pelo menos, enfiá-lo de volta na bolsa.
– É aqui que o Colin mora.
Cassie se aproximou do meio-fio e parou o carro, olhando para uma casa enorme, em estilo colonial holandês, em meio a um grupo de árvores. Luzes de Natal brilhavam no telhado, e renas desfilavam pela longa entrada. As janelas estavam escuras, e parecia não haver ninguém em casa.
– Ele falou com você depois da festa? – perguntou Heather.
– Não – respondeu Cassie, cerrando os dentes.
Lola se inclinou para a frente.
– Você quer...? – Ela se interrompeu, olhando de forma maliciosa para Emily.
Cassie esfregou o queixo, e as luzes pisca-pisca de Natal se refletiam em seu rosto.
– Não – decidiu ela. – Ele não vale a pena. – De repente, Cassie olhou para alguma coisa na direção oposta. – Mas o que é aquilo?
Todas as meninas seguiram o olhar dela até uma casa do outro lado da rua. Todas as janelas estavam iluminadas. Uma fila interminável de carros enchia a rua, e um som profundo e constante de contrabaixo vibrava das paredes. Silhuetas se moviam na frente da enorme janela da frente, e um vulto se destacava entre as outras. Alguém estava girando loucamente, sacudindo os quadris e o traseiro de forma exibicionista.
– Uau – disse Sophie, mastigando a ponta de uma trança.
Cassie abriu a porta do carro.
– Isso é algo que precisamos ver.
Ela saiu correndo pelo jardim. Lola, Sophie e Heather também saíram do carro.
– Vamos, Noel. – Heather olhou para Emily por sobre o ombro. – Você não vai se acovardar agora, vai?
Emily não soube o que fazer, a não ser seguir as outras garotas pelo jardim, com o iPhone na mão. Elas pararam atrás de um grande arbusto, espiando por entre os galhos. Uma luz estroboscópica pulsava contra uma das janelas. Elas ouviram um gritinho quando a pessoa que dançava tirou a blusa e a atirou para a multidão. Emily não conseguia ver muitos detalhes, apenas que a pessoa em questão usava um gorro vermelho de Papai Noel.
– Vocês acham que é uma despedida de solteiro? – cochichou Sophie.
– Talvez seja apenas uma festa de Natal com strippers – sugeriu Lola.
– Se o Colin estiver lá dentro, eu vou matá-lo – grunhiu Cassie.
Heather se agachou na neve.
– Eu a desafio a tirar uma foto, Cass.
Cassie se levantou, tirando o celular da bolsa.
– Isso nem é um desafio. – Ela marchou na direção da janela, endireitando os ombros. Um galho estalou alto no mato, e ela parou. – Foi uma de vocês?
Todas sacudiram as cabeças e olharam em volta. A calçada estava vazia. Também não havia ninguém perto dos carros estacionados. Emily olhou para a casa vizinha, com o coração disparado. Ela podia jurar que vira alguma coisa se movendo no quintal. E se fosse a polícia?
– Alguém está atrás de nós. – Cassie marchou de volta para o grupo. Ela lançou um olhar zangado para Emily, como se a culpa fosse dela.
Heather fungou.
– Não tem ninguém lá. Você só está assustada.
– Tudo bem. Vá você – desafiou Cassie, entregando o celular a Heather.
Heather virou o celular de um lado para outro, e então inclinou a cabeça, como se estivesse ouvindo alguma coisa. Nenhum galho estalou, mas havia algo ameaçador e perigoso no ar.
Sophie olhou para Emily.
– E se Noel for no meu lugar?
O coração de Emily martelava.
– Hum, tudo bem.
As elfas se viraram e olharam para ela.
– Que bom para você, Noel – disse Cassie, irritada. – Vá em frente.
O volume da música aumentava à medida que ela se aproximava da janela. Aplausos irromperam dentro da casa, seguidos de alguém gritando:
– Tire tudo!
Ela estava a apenas alguns metros da janela, agora. Emily se agachou. Os espinhos dos arbustos arranhavam sua pele. A neve encharcava os joelhos de seu jeans. Quando olhou para trás, quase esperou ver o carro de Cassie se afastando, com as elfas rindo histericamente, mas elas ainda estavam escondidas atrás dos arbustos, observando.
Ela se esgueirou por entre as folhagens debaixo da janela da frente. Um vulto passou poucos metros acima de sua cabeça, e ela ficou imóvel, prendendo a respiração.
A música mudou, e a batida rápida do tecno deu lugar a um som de metais. Mais aplausos se ouviram, e Emily ergueu a cabeça até conseguir ver o interior da sala. Uma multidão de mulheres lotava um espaço amplo, cheio de sofás com estofamento floral, candelabros da Tiffany’s e prateleiras repletas de bonecas de porcelana antigas. Todas estavam segurando taças com coquetéis cor-de-rosa e olhando para a stripper, que subira no balcão sobre a lareira e estava rebolando o traseiro.
Mas por que diabos um grupo de mulheres iria assistir ao show de uma stripper? Era de se duvidar que houvesse tantas lésbicas em West Rosewood. Os olhos de Emily se voltaram para a figura sobre a lareira, e ela mordeu a língua com força para não começar a rir. A stripper não era uma mulher. Era um homem.
Ele já havia tirado quase todas as roupas, e estava usando apenas o gorro vermelho de Papai Noel e uma cueca fio dental. As mulheres, que pareciam mães de família comportadas, soltavam ooohs e aaahs, e de vez em quando uma delas enfiava uma nota dentro da cueca do rapaz.
Com as mãos trêmulas, Emily ergueu o celular até a janela e apertou o botão para tirar algumas fotos. De repente, a porta da frente se abriu, e a música invadiu o jardim. Uma mulher saiu para a varanda e olhou em volta.
– Tem alguém aí?
O coração de Emily pareceu bloquear sua garganta. Ela enfiou o celular no bolso rapidamente e começou a correr pelo jardim.
– Ei! – gritou a mulher, mas Emily continuou a correr. As elfas a seguiram, e todas entraram depressa no carro de Cassie, rindo histericamente.
– Pisa fundo! – gritou Emily, olhando para a mulher, que já estava chegando à calçada.
Cassie saiu cantando pneus, afastando-se rápido daquela vizinhança. Foi só quando elas já haviam alcançado a avenida Lancaster que o coração de Emily começou a desacelerar. De um modo estranho, a aventura fora excitante. Ela se sentia uma criminosa.
– Conseguiu tirar alguma foto, Noel? – perguntou Heather.
Lola deu uma risadinha sarcástica.
– Aposto que não.
Emily passou o celular para Heather. As sobrancelhas dela se ergueram quando ela clicou nas fotos.
– A stripper era um cara?
Sophie agarrou o celular.
– Oh, meu Deus, essa é a coisa mais estúpida que eu já vi.
– Alguém sabe quem ele é? – Lola também tinha os olhos fixos nas fotos. – Aposto que a mulher dele não sabe que ele faz isso.
Cassie estacionou o carro para poder dar uma olhada nas fotos, e então estourou na gargalhada.
– Você é demais, Noel. E esse tempo todo nós pensávamos que você fosse uma espiã infiltrada. Acho que estávamos enganadas.
Sophie passou a língua pelos dentes.
– Talvez nós até devêssemos contar a ela sobre... vocês sabem.
– Acho que isso pode ser providenciado. – Os olhos dela percorreram o grupo. – Estamos todas de acordo?
– Eu estou. – Heather levantou a mão.
– Eu também – disse Sophie. Lola encolheu os ombros e disse que achava que também estava.
Cassie estendeu a mão para Emily.
– Parabéns, Noel. Bem-vinda.
– Bem-vinda a quê, exatamente? – perguntou Emily, embora temesse saber exatamente o que as elfas estavam querendo dizer.
– Você vai ver – provocou Cassie, manobrando o carro por entre o trânsito e fazendo uma curva acentuada depois de um semáforo. As outras elfas sorriram para Emily como se ela tivesse acabado de ganhar na loteria, e, de certo modo, tinha mesmo.
Mas uma parte dela se sentia mais nojenta do que o gorro do Papai Noel stripper. E esse tempo todo nós pensávamos que você fosse uma espiã infiltrada. Ela se encolheu ao pensar em Cassie e nas outras descobrindo o quão certas estavam a seu respeito.
Talvez ela devesse abrir o jogo. Mas se o fizesse, as elfas jamais falariam com ela outra vez. E de repente algo ficou claro na mente de Emily: ela queria que as elfas continuassem a falar com ela. Queria ser amiga delas, de verdade. Durante três longos anos ansiara por fazer parte de outro grupo, de ter outras amigas em quem confiar. Ela ainda tinha suas velhas amigas, claro, mas as coisas nunca mais foram como antes. E talvez as elfas fossem rebeldes e um tanto doidas, mas eram divertidas e leais.
Emily colocou o celular na bolsa. Decidiu deixar para lá o menino Jesus de sua mãe. Ela iria para o lado negro da força.
11
O VERDADEIRO SIGNIFICADO DO NATAL
– Ei, Noel! – Emily ouviu a voz de Cassie quando estava tirando sua fantasia de Papai Noel no dia seguinte. Ela enfiou a cabeça para dentro da casinha de pão de mel. – Quer ir comer alguma coisa comigo?
– Hum, claro! – respondeu Emily, chutando as botas horrendas de sua fantasia de Papai Noel para longe. Elas tinham um leve cheiro de produto químico, depois de serem pulverizadas com carrapaticida, como absolutamente tudo dentro do shopping. Todo tipo de aviso fora afixado nos corredores, com dizeres como LIVRE DE CARRAPATOS! e TRATADO COM PRODUTOS AMIGOS DO MEIO AMBIENTE!
Ainda assim, embora o shopping estivesse livre de carrapatos – não que tivesse havido carrapatos, para começo de conversa –, as filas na Terra do Papai Noel estavam pequenas naquele dia. Havia apenas umas poucas pessoas circulando pelo shopping, e algumas delas ainda coçavam a cabeça e o pescoço, desconfiadas.
Emily saiu da casinha de pão de mel no momento em que a sra. Meriwether estava trancando as estátuas gigantes do boneco de neve e de Rudolph, a rena do nariz vermelho, para que não fossem roubadas. Cassie estava esperando por ela no portão da Terra do Papai Noel. Trocara de roupa e agora vestia um par de jeans pretos, uma camisa desbotada da banda AC/DC e sapatos John Fluevog vermelhos. Aquilo tudo fazia seus cabelos louros platinados parecerem ainda mais desbotados.
– Onde estão as outras? – perguntou Emily, olhando ao redor.
Cassie deu de ombros.
– O Bellissima está bom?
– Está ótimo – respondeu Emily, sentindo-se agradavelmente surpresa ao ver Cassie querendo sair com ela a sós.
Quando Emily saiu pelo portão, olhou por sobre o ombro. Por sorte, a sra. Meriwether ainda estava ocupada com Rudolph, e não percebeu que Emily estava saindo com Cassie. Emily não podia dizer a ela e a sua mãe que havia desistido de espionar. Se tudo corresse bem, em uma ou duas semanas, ela apenas explicaria que não fora convidada para participar dos trotes das meninas. Pareceria que tentara e fracassara, em vez de deliberadamente desistir.
Quanto ao menino Jesus para pagar pelos presentes de Natal, bem, Emily também tinha algumas ideias sobre aquilo. Recebera seu primeiro contracheque pelo trabalho na Terra do Papai Noel no dia anterior, e ficara atônita ao ver que recebia quinze dólares por hora, muito mais do que teria ganhado em qualquer outro trabalho de férias. Se sua família estivesse mesmo com dificuldades financeiras, Emily entregaria seu salário para sua mãe, e ela poderia comprar os presentes.
O Bellissima, um pequeno bistrô italiano, ficava no final do corredor. Uma música suave e romântica saía pelos alto-falantes, uma mudança bem-vinda depois de um dia inteiro ouvindo canções de Natal. O interior do restaurante era revestido de azulejos de terracota rústicos, as paredes eram de um amarelo-dourado, e as pequenas mesas eram cobertas com toalhas em xadrez preto e branco. Diferentemente do restante do shopping, o Bellissima estava cheio de fregueses. Talvez eles não acreditassem que carrapatos podiam infestar restaurantes.
Uma garçonete baixinha, com um rabo de cavalo alto, levou as meninas até uma mesa de canto e lhes serviu taças de água mineral com gás.
– Acho que só vou pedir uma salada – disse Cassie, abrindo o grande cardápio com capa laminada.
– Ah, eu também – disse Emily, embora ela não fosse o tipo de garota que pedia saladas em restaurantes.
Elas se sentaram por um momento, estudando o cardápio, e então Cassie começou a bater o dedo indicador contra os lábios.
– Embora os cannolis também pareçam deliciosos.
– Ooh, vamos pedir esses, então – guinchou Emily.
– Ufa. – Cassie apertou a mão contra o peito. – Eu estava com medo de que você fosse um daqueles tipos obcecados por dietas.
– Eu? – Emily segurou uma gargalhada. – Hum, com certeza não.
As meninas fizeram seus pedidos, e a garçonete se afastou. Emily olhou em volta, reconhecendo algumas pessoas da escola no restaurante. Mason Byers e Lanie Iler estavam em uma mesa de canto, bebericando limonadas italianas. Kirsten Cullen e sua família estavam encarando belas travessas de massa, sem medo.
– Então, você se divertiu ontem à noite? – perguntou Cassie, mexendo o gelo na água com um canudo.
– Sem dúvida – admitiu Emily. – Aquelas fotos do Noel Stripper ficaram impagáveis.
– Totalmente – sorriu Cassie.
– Então, há quanto tempo você conhece as outras meninas? – perguntou Emily. – Vocês são amigas há muito tempo?
Cassie olhou para a direita, pensando.
– Nós nos conhecemos no ano passado. Éramos as elfas na Terra do Papai Noel do shopping White Birch, onde o pai de Sophie era gerente, e decidimos trabalhar juntas de novo este ano. É um tipo de piada interna entre nós. Mas não estudamos na mesma escola nem nada assim. Eu estudei em Rosewood Day.
– Eu também estudo lá – balbuciou Emily.
Um sorrisinho apareceu no rosto de Cassie.
– Eu sei. Você era amiga de Alison DiLaurentis, não era?
Emily apertou os lábios. Só ouvir o nome de Ali já fazia seu coração disparar.
– Eu juntei as peças durante a minha festa – explicou Cassie. – Eu me lembro de você. Eu costumava jogar hóquei com Ali no time de Rosewood Day. Ela era muito boa.
– Eu também me lembro de você – disse Emily, brincando com o guardanapo de linho em seu colo. – Ali achava você fantástica. Ela falava de você o tempo todo.
Cassie apertou a língua entre os dentes, parecendo um pouco constrangida.
– Nós nos divertíamos juntas. Ali era definitivamente muito madura para a idade, todas nós achávamos. Não conseguíamos acreditar que ela estivesse no sétimo ano. – Ela girava uma pulseira grossa de couro ao redor do braço. – E eu não consegui acreditar quando descobri o que Ian havia feito com ela. Ele estava um ano à minha frente. Eu só o conhecia de vista, mas ele sempre pareceu tão legal com todo mundo. Não o tipo de cara que seria capaz de... você sabe. Mas que tipo de esquisitão está no ensino médio e namora uma menina do sétimo ano? Isso é... errado.
– Eu sei.
Os olhos de Emily de repente se encheram de lágrimas. Ela queria dizer que era culpa do cheiro forte dos temperos italianos no ar, mas sabia que não era verdade.
– Sabe, ela costumava falar sobre você – disse Cassie.
Emily ergueu a cabeça.
– Sério?
– Hã-rã. Dizia que você era a favorita entre todas as amigas dela. Vocês duas tinham uma ligação especial.
– Tínhamos, sim – disse Emily, sentindo as faces quentes. – Eu sinto tanta saudade dela...
– Eu também – disse Cassie, colocando a mão sobre a de Emily. – Eu mudei muito desde que Ali desapareceu.
Uma sirene soou na cozinha. Um grupo de mulheres em uma mesa próxima estourou na gargalhada. Emily enxugou os olhos com um guardanapo e olhou para os cabelos louros de Cassie, sua maquiagem carregada e os muitos piercings em suas orelhas. Seria possível que o desaparecimento de Ali tivesse feito Cassie abandonar sua imagem de patricinha perfeita e se transformar em uma garota rebelde? É claro que o acontecimento fizera Emily repensar muitas coisas.
– Eu nunca tive outra amiga como Ali – admitiu Emily. – Embora às vezes ela pudesse ser cruel. Eu teria feito qualquer coisa por ela.
A garçonete apareceu com dois pratos de cannoli, e Emily e Cassie atacaram a comida na mesma hora. O creme espesso escorreu pelo prato quando Emily cortou a massa com o garfo.
– Isso é simplesmente delicioso – murmurou Cassie.
– Muito melhor do que salada – disse Emily.
Então, Cassie colocou seu garfo na mesa, inclinou-se para a frente, apoiada nos cotovelos, e lançou um olhar sério para Emily.
– Agora me escute. Nós temos nos divertido muito com você, Noel. No começo, não estávamos muito certas a seu respeito; achamos muito estranho que a sra. Meriwether tivesse escolhido uma garota para fazer o papel de Papai Noel, e ela cochichava o tempo todo com você, e tínhamos certeza de que havia alguma coisa estranha acontecendo. Mas você provou que estávamos erradas. Então, queremos convidá-la para fazer algo muito especial esta noite.
Emily quase se engasgou com o cannoli em sua boca. Seu coração disparou. Uma pequenina voz dentro dela rezou: Não deixe que isso seja mais uma brincadeira de mau gosto. Tudo, menos isso.
Cassie lambeu o creme da colher.
– Você ouviu as histórias sobre alguém em Rosewood que está mexendo com as decorações de Natal das casas?
Emily sentiu um aperto no coração.
– Acho que sim.
– Bem, somos nós. – Cassie apontou para si mesma com orgulho. – Eu, Lola, Sophie e Heather. Nós chamamos o nosso grupo de Elfas Felizes. E esta noite vamos aprontar nossa maior travessura. – Ela arrastou a cadeira para a frente, e sua voz era apenas um sussurro. – Vamos roubar todos os presentes da árvore de Natal do Rosewood Country Club. E todas as decorações, também. É o momento perfeito, porque amanhã de manhã vai acontecer o almoço anual, quando todos abrem seus presentes. Vai ser igual ao filme do Grinch! Vamos ver se aqueles ricaços arrogantes vão cantar ao redor da árvore se ela estiver vazia. – Ela revirou os olhos. – E nós gostaríamos de que você nos ajudasse.
Emily manteve os olhos fixos em seu cannoli.
– Não sei como me sinto diante da ideia de roubar.
– Oh, mas nós não vamos roubar nada. – Cassie agitou o garfo no ar. – Vamos apenas levar tudo para as quadras de tênis. Eles podem pegar tudo de volta no dia seguinte. Só queremos provocar aquela gente. Bagunçar a perspectiva deles. Tipo, há algumas semanas, roubamos o menino Jesus do presépio na frente de uma igreja. Queríamos que as pessoas vissem a manjedoura vazia e pensassem realmente sobre as coisas, sobre o significado das festas, dos símbolos. – Ela fez uma pausa. – E também é muito divertido. Heather teve que trazer o menino Jesus no colo, no carro. Ela ficou falando sobre carma ruim e achava que Deus iria atingi-la com um raio.
Emily precisou de toda a sua força de vontade para não confessar a Cassie que era do menino Jesus de sua mãe que ela estava falando. Pensando pelo lado positivo, não parecia que Cassie e as outras tivessem quebrado o menino Jesus em pedacinhos.
– Então, as travessuras não são para arruinar as festas das pessoas? – perguntou ela de um jeito tímido.
Cassie enfiou o último pedaço de cannoli na boca.
– Não necessariamente. São mais para chamar atenção para o consumismo disso tudo. Todos os bons brincalhões têm um objetivo com suas ações. Quero dizer, não somos criminosas. – Ela tocou a mão de Emily. – Vamos nos divertir muito, prometo. Pense nisso como uma cruzada natalina.
O cannoli começou a revirar o estômago de Emily, e ela olhou para os corredores do shopping, com sua enorme árvore de Natal e milhões de lojas. Talvez Cassie tivesse razão. Ela pensou na fila de crianças na Terra do Papai Noel pedindo todos aqueles presentes, com o encorajamento dos pais. E havia todas aquelas histórias nos jornais, sobre pessoas brigando nas lojas Target ou Wal-Mart, para conseguir o último brinquedo da moda. Todos aqueles comerciais que faziam você se sentir horrível se não pudesse comprar um anel de diamantes, um Lexus zero quilômetro ou uma bolsa de marca para as pessoas que ama no Natal. E até mesmo o desespero da mãe dela para conseguir o Menino Jesus de volta: ela planejava vendê-lo para comprar presentes de Natal, para que aquele Natal fosse o melhor de suas vidas. Isso importaria de verdade, quando eles tinham o que era mais precioso, uma família feliz e saudável comemorando o Natal junta?
O garfo de Emily caiu no prato com um ruído alto.
– Tudo bem – decidiu ela. – Estou dentro. Vamos fazer isso.
12
QUEM É QUEM NA CIDADE DO SR. GRINCH
– Será que devemos preparar o nosso peru costumeiro para a ceia de Natal, ou experimentar algo novo, como um filé? – perguntou a sra. Fields, colocando porções de lasanha nos pratos de seus filhos, no jantar daquela noite. – E que tal se fôssemos jantar fora, na véspera de Natal? Isso seria especial, não seria?
– Não sei se devíamos gastar dinheiro em restaurantes caros – disse o sr. Fields, enchendo as garrafas d’água para colocá-las na geladeira.
– É só uma vez por ano – interrompeu a sra. Fields, erguendo o queixo. – E, de qualquer forma, acho que encontraremos um jeito de arrumar o dinheiro.
Ela ergueu as sobrancelhas para Emily, mas Emily manteve os olhos fixos no prato vazio. Dali a uma hora, ela estaria se juntando às elfas em mais uma travessura, mas não como uma espiã.
A sra. Fields começou a prece familiar costumeira, e depois todos começaram a comer.
– Precisamos decidir logo a respeito do jantar da véspera de Natal – disse ela, colocando colheradas de feijão-verde no prato e retomando o assunto. – Todos os restaurantes provavelmente esgotarão as reservas bem depressa.
– Eu voto no Chris Steak House – disse Jake, dando uma garfada na lasanha.
– Ugh, aquele lugar é tão chato – disse Beth, provando um pedaço de rolinho primavera. – Vamos a algum restaurante mais chique. Algum lugar na cidade, talvez.
– Eu ficaria feliz com o Applebee’s – opinou com discrição Carolyn, sempre a mais sensata de todos.
Eles debateram durante o resto do jantar. Emily não se atreveu a dizer uma palavra, sentindo-se como um vulcão prestes a entrar em erupção. Por fim, temendo confessar tudo se continuasse sentada à mesa, ela se levantou da cadeira.
– Hã, eu preciso ir até a biblioteca. Tenho uma tonelada de lição de casa.
– Numa terça-feira, antes dos feriados? – Beth parecia surpresa. – Rosewood Day está pegando pesado.
– Ah, é um teste de última hora – gaguejou Emily, levando o prato para a pia.
A sra. Fields se levantou também, e segurou o braço de Emily.
– Você mal tocou no seu jantar. – Os olhos dela estavam arregalados e preocupados. – Está tudo bem?
Emily manteve os olhos fixos no pano de prato com estampa de galinha ao lado do fogão.
– Estou bem – balbuciou ela, colocando o prato sobre o balcão. – Até mais tarde.
Enquanto atravessava a sala de estar, Emily podia sentir os olhos da mãe em suas costas. “Não se vire”, disse em silêncio a si mesma. Ela se forçou a pensar em letras de canções de Natal, mas a única que lhe vinha à mente era “You’re a Mean One, Mr. Grinch”. Só quando chegou às escadas, Emily teve a coragem de olhar por sobre o ombro de novo. Quando o fez, sua mãe já tinha se virado, como se não desconfiasse de nada.
– Não vá nos atirar dentro de uma vala! – gritou Heather, quando Cassie desviou o carro para o acostamento de uma estrada escura e escondida que corria em paralelo ao Rosewood Country Club. O carro pendeu para o lado, definitivamente sem equilíbrio, e Emily, Sophie e Lola, que estavam no banco de trás, foram espremidas contra a porta.
– Eu sei o que estou fazendo. – Cassie colocou a marcha em ponto morto e desligou o motor. Quando os faróis se apagaram, a escuridão desceu ao redor delas. Uma luz fraca brilhava nas colinas onde ficava o campo de golfe, mas, fora isso, Emily não conseguia enxergar um palmo à sua frente.
Cassie vasculhou os bancos da frente, encontrou uma lanterna e a acendeu. Todas apertaram os olhos quando a luz dourada os atingiu.
– Tudo bem, vadias. Estamos todas prontas?
– Prontíssimas – sussurrou Lola, colocando uma máscara de esqui sobre a cabeça. As outras meninas a imitaram, e Emily fez o mesmo. Em seguida, elas subiram o morro.
Cada nervo no corpo de Emily parecia eletrizado. Havia um gosto amargo em sua boca, e seu estômago roncava, depois de ter comido apenas alguns pedacinhos de lasanha no jantar. Ela precisara esconder as mãos sob o traseiro durante toda a viagem, para que as elfas não vissem o quanto ela estava tremendo.
A lanterna de Cassie desenhava faixas douradas no solo. As meninas correram pelo campo de golfe, contornando o lago artificial gigante e alguns bancos de areia. As colinas a distância eram sombras escuras contra o céu arroxeado. Ela não via uma alma.
As luzes do clube brilhavam no horizonte. O medo dominou Emily quando ela viu as grandes janelas e a fachada de pedra. Aquele fora o lugar onde Mona Vanderwaal organizara uma festa para Hanna depois de seu acidente de carro... O acidente que Mona causara. E fora naquela mesma festa que Hanna descobrira que Mona era A, e que Mona queria matar todas elas.
As meninas contornaram a sede do clube, e por fim encontraram a porta dos fundos que dava para a cozinha.
– Voilà – sussurrou Lola, tirando do bolso uma chave em um chaveiro dos Philadelphia Eagles, que conseguira com uma amiga que trabalhara na cozinha naquele dia. A chave girou na fechadura, e a porta se abriu. Emily se preparou para ouvir alarmes, mas nenhum alarme soou.
Elas acenderam as luzes da cozinha, e Emily protegeu os olhos com as mãos. Os pratos e as panelas estavam organizados, os balcões de aço inoxidável brilhavam, e havia uma torneira de longo alcance que pendia sobre a pia.
– Vamos – sibilou Cassie, andando nas pontas dos pés até uma porta à direita. Ela a abriu com o ombro, revelando a sala de jantar onde Emily fizera inúmeras refeições com as famílias de Ali e Spencer. Cerca de trinta mesas redondas, com cadeiras pesadas de madeira, estavam espalhadas pela sala. Um tapete oriental cobria o chão, e um bar de carvalho ocupava toda a extensão da parede dos fundos. Havia uma enorme árvore de Natal em um dos cantos da sala, com luzinhas piscando, e uma tonelada de presentes sob ela.
As elfas começaram a trabalhar depressa, arrancando as bolas e os enfeites da árvore e colocando tudo em caixas de papelão que Cassie trouxera da cozinha. Emily ajudou Lola a levar os presentes para um carrinho de mão que a amiga de Lola havia deixado ao lado da porta para elas, de vez em quando examinando os cartõezinhos que apareciam sob as fitas. Ela encontrou uma caixa para a família Hastings. Havia outra para os Kahn, e uma para os pais de James Freed. Um quarto cartãozinho lhe chamou a atenção, e ela quase engasgou. FAMÍLIA DILAURENTIS, dizia. Emily ouvira boatos sobre a família de Ali voltar a morar ali; eles tinham ido à audiência de acusação formal de Ian. Será que já haviam chegado?
Pouco depois, Emily e Lola estavam empurrando um carrinho cheio de presentes para as quadras de tênis, no alto da colina.
– Isso não é demais, Noel? – riu Lola.
– Definitivamente – disse Emily, mas parecia que uma bomba iria explodir em seu peito. A escuridão tinha seus truques, e um arbusto pareceu se mover para a esquerda. O vento soava como uma gargalhada.
Elas colocaram os presentes no chão, perto da rede, e levaram o carrinho de volta para a sede do clube. Emily ajudou Cassie e Heather a retirar todos os ornamentos da árvore de Natal. Elas apanharam bola após bola, junto com uma variedade de estrelas prateadas e douradas. Emily tentou embrulhar tudo com cuidado em guardanapos, mas as outras meninas atiraram tudo com descuido no carrinho. Em seguida, as meninas retiraram todas as guirlandas e os ramos de visco pendurados pela sala, colocando tudo no carrinho, também. Pouco antes de a última leva sair, Cassie pediu que as meninas posassem juntas para uma foto na frente da árvore de Natal.
– Digam giz! – gritou Cassie, programando o timer em sua câmera digital e correndo para sair na foto também. Ela tirou fotos com os celulares de todas as meninas, inclusive Emily.
Então, elas se afastaram um pouco e contemplaram seu trabalho.
– Isso é maravilhoso – arfou Cassie.
Emily não tinha certeza se o efeito era maravilhoso, mas sem dúvida era chocante. A árvore parecia esquelética sem todos aqueles ornamentos. Vários ramos de pinheiro estavam espalhados pelo chão, e havia marcas empoeiradas nos locais onde os presentes estavam antes. Sem as guirlandas festivas, as velas e as decorações, a sala parecia sem graça e triste, como as casas em Quemlândia depois que Grinch roubara todos os enfeites. O que os proprietários do country club fariam quando descobrissem o que havia acontecido, na manhã seguinte? Será que cantariam em paz ao redor da árvore, como os Quem? Claro. Aquele era o Rosewood Country Club.
As meninas abriram a porta mais uma vez e empurraram o carrinho para o exterior frio. O carrinho estava particularmente cheio desta vez, e foi preciso a força combinada das cinco para empurrá-lo até o alto da colina. A cada ranger das rodas, a cada risada das elfas, Emily ficava mais tensa. Estavam tão perto agora. Emily não queria que alguém as ouvisse.
Elas chegaram às quadras de tênis, deixaram o resto dos presentes lá e abandonaram o carrinho sem problemas. As elfas começaram a subir a colina, passando pelo campo de golfe, para voltar para o carro. E foi então que Emily percebeu: elas haviam conseguido. Estavam correndo para a liberdade.
O coração de Emily ficou mais leve enquanto ela corria atrás das outras. Ela nunca se sentira tão excitada em toda a sua vida. Agarrou a mão de Cassie e deixou escapar um grito de alegria, e Cassie gritou também.
– Viva as Elfas Felizes! – berrou Heather.
Quando as luzes dos refletores se acenderam, Emily pensou que fosse apenas um timer automático e continuou a correr. Mas um megafone soou em meio à noite fria de inverno.
– Para o chão! Estamos vendo vocês, meninas! A polícia está aqui! Eles já cercaram o seu carro! Vocês não têm para onde fugir!
Emily ficou paralisada. De repente, luzes azuis e vermelhas começaram a piscar sobre as meninas. O coração de Emily se apertou.
– Não! – sussurrou ela.
– Para o chão, já disse! – gritou uma segunda voz.
Ambas as vozes eram familiares. Emily se virou na direção delas. Dois vultos, vestindo pesados casacos de inverno, estavam parados junto das quadras de tênis, olhando severamente para Emily, Cassie e as outras. Um dos vultos era alto e tinha cabelos grisalhos. O outro vestia um casaco de feltro com a letra R bordada na frente. Embora Emily não tivesse visto as costas, ela sabia intuitivamente que as palavras NATAÇÃO ROSEWOOD estariam lá, em grandes letras azuis. Era o antigo casaco de Jake, da época em que ele participava da equipe de natação na escola; agora, a peça servia para qualquer membro da família Fields, quando estavam fazendo algum trabalho duro ao ar livre: tirar a neve da calçada, limpar a lama do quintal ou subir e descer colinas em um campo de golfe, perseguindo vândalas.
O queixo de Emily caiu. O primeiro vulto era a sra. Meriwether. O segundo vulto era sua mãe.
13
UMA ESPIÃ ENTRE NÓS
– Para o chão! – gritou mais uma vez a sra. Fields, pelo megafone. Aos poucos, as elfas se ajoelharam e levantaram as mãos. Emily fez o mesmo. A sra. Meriwether e a mãe de Emily correram como agentes do FBI em uma batida antidrogas e as cercaram.
A sra. Fields agarrou o braço de Cassie e a forçou a se levantar novamente.
– Você se acha tão esperta – sibilou ela, em um tom de voz raivoso que Emily jamais ouvira antes. – Os seus dias de travessuras terminaram.
– Nós temos tudo gravado – disse a sra. Meriwether, mostrando-lhes uma câmera digital. – Temos uma boa meia hora de imagens de vocês destruindo aquela árvore de Natal e roubando todos os presentes. Não sabiam que alguns daqueles presentes são para crianças? Vocês deviam se envergonhar!
– Nós não roubamos os presentes – retrucou Cassie, tentando se libertar. – Eles estão nas quadras de tênis. Vocês não veem? Os donos do country club podem colocar tudo de volta no lugar amanhã!
– Isso é vandalismo de propriedade privada – disse a sra. Fields, segurando o braço de Cassie com força. – E é muito triste que vocês, meninas, não entendam como é errado.
Um policial vestindo um uniforme do Departamento de Polícia de West Rosewood subiu a colina na direção oposta, com a lanterna brilhando e o walkie-talkie ligado. Emily olhou para ele. Era o oficial O’Neal, o mesmo cara que levara sua filha até a Terra do Papai Noel algumas vezes, prometendo-lhe todos os presentes imagináveis.
– São estas as meninas que andam causando tantos problemas? – O’Neal correu até a sra. Fields, tirou Cassie de suas mãos e prendeu os braços da garota atrás das costas. Ela gemeu e ficou imóvel.
– Isso mesmo – interferiu a sra. Meriwether. – Elas invadiram o country club. Estas também são as meninas que vandalizaram todas as outras propriedades. A Igreja Sinal da Pomba. Todos os quintais. Elas andam espalhando o pânico há semanas.
O policial olhou para as meninas e sacudiu a cabeça.
– Vamos, senhoritas – disse O’Neal, encurralando as meninas contra os carros. As elfas começaram a andar, de cabeças baixas, sem dizer uma palavra. Emily começou a segui-las, sem ousar olhar para sua mãe.
A sra. Fields segurou-a pela manga.
– O que está fazendo, Emily? Você pode ir para casa conosco.
Emily se encolheu. As elfas se viraram e olharam para ela e sua mãe.
– Espere. Como você sabe o nome dela? – perguntou Heather.
– Por que ela pode ir para casa? – interrompeu Sophie.
– Ela roubou as coisas junto com a gente – retrucou Lola.
A sra. Meriwether se mexeu, incomodada. A mãe de Emily sorria, satisfeita. Emily percebeu quando cada uma das meninas chegou lentamente à mesma conclusão.
– Puta merda – sussurrou Sophie.
– Eu disse a vocês! – gritou Lola. – Eu disse que ela era uma espiã infiltrada! Eu pude ver, no dia em que ela apareceu vestida de Papai Noel! Mas vocês não me ouviram!
Heather cuspiu na direção de Emily, o que lhe rendeu um puxão no braço de um dos policiais. Cassie olhou para Emily, com os olhos faiscando.
– Isso é verdade? – perguntou ela, em voz baixa e com um tom desapontado. – Você armou para nós?
Emily sacudiu a cabeça desesperadamente.
– Eu não disse uma palavra sobre isso a ninguém. Juro. – Ela se virou para a mãe, que estava apoiada contra o Volvo, com os braços cruzados. – Como vocês sabiam que nós estávamos aqui?
– Rastreamos o seu iPhone. – A sra. Fields parecia orgulhosa de si mesma. – O oficial O’Neal deu a ideia. Eu suspeitei de que alguma coisa ia acontecer esta noite, então telefonei para Judith e para o oficial O’Neal, e nós as seguimos.
Emily pensou no iPhone ainda guardado em sua bolsa.
– Vocês estavam me espionando... espionando a todas nós? – balbuciou ela.
– Você estava carregando esse celular para nos espionar? – gritou Cassie.
– Não foi bem assim! – implorou Emily. – Quero dizer, sim, elas me deram um iPhone, mas eu nunca o usei contra vocês! Eu juro! Você me conhece, Cassie! Por que eu faria uma coisa dessas?
Cassie tinha uma expressão incrédula no rosto.
– Na verdade, Noel, eu não tenho certeza se conheço você de verdade.
– Cassie... – As lágrimas rolavam pelas faces de Emily. – Eu sinto muito.
– Ah, Emily, por que se importa com o que essas criminosas pensam de você? – A sra. Fields abriu a porta do carro. – Elas merecem uma punição severa, e você nos ajudou a pegá-las em flagrante. Talvez nós consigamos recuperar o meu menino Jesus.
De repente, Emily achou que fosse explodir.
– Você nem se importa com o seu menino Jesus! – gritou ela para a mãe. – Você vai vendê-lo para comprar presentes de Natal idiotas, presentes dos quais nem vamos nos lembrar no ano que vem! Por que você se importa tanto com um Natal de capa de revista? Por que o que temos não é suficiente?
As palavras lhe escaparam da boca antes que ela tivesse tempo de pensar no que estava dizendo. A mãe de Emily ficou tensa, e uma expressão magoada surgiu em seu rosto. Sem dizer uma palavra, ela marchou na direção do carro, tomou o banco do motorista e bateu a porta.
O policial empurrou as elfas para a viatura, uma a uma. Antes de O’Neal colocar Cassie no veículo, ela se virou mais uma vez e lançou um olhar furioso a Emily.
– Ali a teria odiado por isso, sabia?
Um pequeno gemido escapou dos lábios de Emily. O’Neal bateu a porta do carro. O motor rugiu, e a viatura se afastou, com as sirenes a todo o volume.
Emily não se moveu de seu lugar no campo de golfe até não ver mais as luzes ou ouvir as sirenes. Foi só então que ela entendeu de verdade: estava sozinha novamente. Não tinha ninguém.
14
A OPERAÇÃO RESGATE DO NOEL
Mais tarde, naquela mesma noite, Emily escapuliu pela porta da frente, trancou-a e empurrou o Volvo para fora da garagem, para que seus pais não a ouvissem ligar o motor. Ela não devia sair tão tarde, mas não conseguiria ficar deitada em sua cama por mais nenhum segundo, ouvindo Carolyn roncar e relembrando a expressão magoada no rosto de Cassie.
Uma neve fraca começou a cair, pintando de branco as ruas, os telhados e os galhos das árvores. Ela passou pelo colégio Rosewood Day, que estava todo iluminado, com luzinhas em seus muros de pedra, e depois seguiu até a entrada da rua de Ali. Mas não teve coragem de dirigir até a casa da amiga naquela noite. Sentia-se muito envergonhada pelo que fizera. Era quase como se tivesse que agir de certa forma para honrar a memória de Ali; como se Ali a estivesse observando do além-túmulo.
Emily não conseguia tirar as palavras de Cassie da cabeça. Ali a odiaria por isso. Era a mais absoluta verdade: Ali podia ter provocado as quatro amigas, podia ter se afastado delas no final do sétimo ano, mas ela nunca as traíra por vontade própria. As cinco sempre respeitaram seu pacto, protegendo umas às outras quando se metiam em encrencas. Fora por isso que Emily, Aria, Spencer e Hanna haviam contado todo tipo de história aos pais de Ali sobre onde ela poderia estar, na manhã seguinte ao seu desaparecimento. Haviam imaginado que seria aquele o desejo de Ali. Nunca, nem em seus sonhos mais loucos, pensaram que ela pudesse estar morta.
Emily chegou ao cruzamento e seguiu as placas que indicavam West Rosewood. Então, que tipo de pessoa havia se tornado? Teria ela sabido, lá no fundo, que sua mãe e a sra. Meriwether a estavam rastreando? Teria ela, por livre e espontânea vontade, levado as duas direto para as meninas? Ela devia ter contado a Cassie e às outras exatamente o que sua mãe a estava obrigando a fazer. Mesmo que aquilo significasse que não participaria da travessura, mesmo que significasse que elas não a recebessem de braços abertos no grupo. Emily sabia agora que devia ter se afastado da situação antes de fazer mal às garotas. Mas do jeito como tudo acontecera, ela parecia uma conspiradora. Uma traidora. Uma espiã.
A placa verde indicando a saída para West Rosewood brilhava a distância. Emily ligou a seta e tomou a direção da saída. Minutos depois, estava estacionando o carro na frente da delegacia de polícia de West Rosewood, que procurara no Google Mapas antes de sair de casa. Era uma antiga casa de fazenda. Algumas viaturas estavam paradas no estacionamento, e uma única luz brilhava em uma das janelas do térreo.
As elfas estavam presas em uma das celas lá dentro. Se ao menos houvesse algo que Emily pudesse fazer, algum meio de ela poder tirá-las dali... Mas como? Dizendo para a polícia que fora ela quem planejara toda a operação? Confessando ter invadido o country club e roubado todas aquelas coisas sozinha? Sua mãe e a sra. Meriwether haviam registrado tudo com a câmera. As elfas pareciam definitivamente culpadas.
Ela tirou o celular da bolsa e olhou para sua foto com as elfas, reunidas em volta da árvore de Natal destruída, dentro do country club. Cassie estava de braço dado com Emily, como se elas fossem melhores amigas. Ela clicou nas outras fotos que tirara das elfas naquela semana. Lola e Emily fingindo uma luta de espadas com dois enormes pirulitos na Terra do Papai Noel, naquela tarde. Cassie e Emily descansando na casinha de pão de mel, durante um intervalo. Havia uma foto das meninas no carro, depois de haver espionado o Papai Noel Stripper. E então, as fotos do próprio Papai Noel Stripper, girando uma camiseta no ar, enquanto as donas de casa colocavam notas de dólar em sua cueca fio dental.
E esse tempo todo nós pensávamos que você era uma espiã infiltrada, dissera Cassie naquela noite. Acho que estávamos enganadas. A porta da frente se abriu, e Emily afundou no banco do motorista. Um policial de uniforme saiu da delegacia, acendeu um cigarro e se recostou no muro de tijolos. Quando ele se virou de perfil, Emily percebeu que era o oficial O’Neal. Ele fechou os olhos, dando uma longa tragada após a outra, parecendo muitíssimo satisfeito, talvez até orgulhoso. Era talvez uma grande vitória capturar as Elfas Felizes. Talvez ele ganhasse um bônus por aquilo; talvez fosse assim que ele pretendesse pagar pela lista crescente de presentes de Natal para a filha. De que outro jeito poderia comprar todos aqueles brinquedos com o salário de um policial?
Uma luzinha se acendeu na cabeça de Emily. Ela observou a figura que fumava por mais um minuto. Havia algo familiar nele, o formato de seus ombros largos, o contorno anguloso de seu queixo. Sob o uniforme, Emily estava quase certa de que ele tinha uma barriga de tanquinho e um peito largo e bem definido.
Ela procurou o celular na bolsa novamente, e clicou mais uma vez nas fotos do Papai Noel Stripper. Emily observou O’Neal outra vez, apertando os olhos. Ela examinou as fotos e o policial até ter absoluta certeza.
– Ah, meu Deus – sussurrou ela, deixando o celular cair em seu colo e começando a rir.
O Papai Noel Stripper era... o oficial O’Neal.
15
UM MILAGRE DE NATAL
Emily saltou do carro e caminhou com firmeza até o oficial O’Neal.
– Preciso falar com o senhor!
O’Neal apertou os olhos, tentando vê-la melhor.
– Quem está aí?
Emily parou ao lado dele, na entrada de pedra. A neve rodopiava ao redor dos dois. Havia um cinzeiro cheio de bitucas de cigarro à esquerda deles, as cinzas ainda fumegantes do cigarro de O’Neal no topo da pilha.
– Sou Emily Fields – respondeu ela. – Eu estava no country club.
– Ora, mas é claro! – disse O’Neal, sorrindo. – Você é a garota que nos levou até elas. Bom trabalho; elas nem souberam o que as atingiu.
– Na verdade, eu não ajudei vocês a pegá-las. E, para ser sincera, acho que o senhor devia soltar as elfas.
O’Neal olhou para ela sem entender.
– Como?
– O senhor me ouviu. Deixe-as sair. Elas já aprenderam a lição.
Ele se endireitou e soltou uma gargalhada.
– Essa foi muito boa, srta. Fields. Mas eu já comecei a preencher a papelada. Elas são maiores de idade, sabe? Podem ser presas. Ou pelo menos condenadas a um serviço comunitário bem rigoroso.
– Elas não estavam fazendo nada de errado – disse Emily. – Tudo bem, não deviam ter invadido o country club e mexido com a propriedade alheia. Mas estavam apenas tentando mandar uma mensagem. Não queriam magoar ninguém.
O’Neal cruzou os braços sobre o peito e examinou Emily. Alguns flocos de neve caíram sobre a ponta de seu nariz, mas ele não os enxugou.
– Não sei por que você se importa com elas. Elas roubaram coisas da sua família, também. Elas confessaram tudo.
Em seguida, ele se virou nos calcanhares, pretendendo voltar para a delegacia.
– Espere! – gritou Emily, apanhando o celular. – Há algo que o senhor precisa ver.
Ela empurrou o celular para as mãos dele. Quando ele viu a foto, a cor sumiu de seu rosto.
– Onde diabos você conseguiu isso?
– E o que importa? – Emily arrancou o celular dele antes que ele pudesse apagar a imagem. – Mas não acho que o senhor queira essa foto circulando por aí.
O’Neal arregalou os olhos. Ele pareceu diminuir um pouco de tamanho.
– Você não seria capaz.
– Acredite em mim, não quero fazer isso. – Emily se aproximou um pouco. Pela expressão apavorada nos olhos de O’Neal, ela soube que ele estava em suas mãos.
– O que você quer que eu faça? – perguntou O’Neal, em tom derrotado.
– Apague a confissão das elfas dos registros – disse Emily, pensando rapidamente. – Dê uma bronca nelas por terem invadido o country club, faça-as ir até lá e colocar tudo de volta no lugar, mas diga que não tem provas das outras travessuras e não pode acusá-las. Deixe-as ir.
As narinas de O’Neal tremeram.
– Então, você quer que eu minta?
– Não... só que use sua memória seletiva. Faça as elfas devolverem tudo o que roubaram; isso deve acalmar as vítimas, certo? Faça com que tudo seja esquecido. Ah, e você não precisa avisar minha mãe sobre a minha visita. Ou... – Ela sacudiu o celular no ar, com a foto de O’Neal em sua fantasia de Papai Noel ainda na tela.
O’Neal olhou para o estacionamento ao longe, mordendo a parte interna das bochechas. O coração de Emily martelava contra suas costelas, enquanto ela pensava no que havia se metido; no fundo, estava chantageando um policial. Ela voltou os olhos para o estacionamento, com uma certeza súbita de que havia alguém observando. Uma sombra passou por detrás de uma das viaturas estacionadas. Um suspiro fraco soou perto de uma fila de latas de lixo.
– Tudo bem. – O’Neal ergueu as mãos. – Acho que posso dar um jeito. – Ele apontou um dedo na direção do rosto de Emily. – Mas se mais alguma coisa for roubada em Rosewood, mesmo algo pequeno como a lâmpada de um jardim, eu vou atrás de você e vou querer respostas, entendeu? E vou contar tudo para a sua mãe.
– Entendi – disse Emily. Ela estendeu a mão, e O’Neal a apertou. Pouco antes de ele voltar para a delegacia, ela disse: – Só mais uma coisa. Não conte para as elfas que fui eu quem negociou a libertação delas.
O’Neal ergueu uma sobrancelha.
– Você não quer que elas lhe agradeçam? Elas são garotas ricas. Provavelmente, lhe dariam um presente fantástico.
Emily olhou para a camada de neve que agora cobria o estacionamento. Um presente fantástico não era a mesma coisa que pertencer ao grupo das elfas... e ela nunca mais seria bem-vinda no grupo delas. Aos olhos delas, ela sempre seria uma traidora, uma garota que não queriam conhecer. Aquele poderia ser o seu presente de Natal anônimo para elas; sua maneira de compensar o que fizera. Ela sacudiu a cabeça.
O’Neal voltou para a delegacia. Emily ficou parada junto à janela, e o observou atravessar o corredor, tirar alguns papéis de sua escrivaninha, rasgando-os em seguida, e colocá-los na máquina de triturar papel no canto da sala. Depois que ele terminou, foi até uma das celas e deu uma pancadinha nas barras.
Quatro figuras apareceram. Cassie, Lola, Heather e Sophie ainda estavam vestindo os casacos pesados que usavam no country club. Seus cabelos estavam desalinhados, e seus olhos e narizes estavam vermelhos, como se elas tivessem chorado. A neve estava se acumulando sobre os cílios de Emily, mas ela não piscou, sem querer perder um momento. O’Neal disse algumas palavras para as meninas, e então vasculhou os bolsos, procurando as chaves. Ele abriu a porta da cela e se afastou para que as meninas pudessem sair. Elas olharam para ele, sem acreditar, e então os sorrisos iluminaram seus rostos. Mas, desta vez, não eram sorrisos cínicos, autoconfiantes ou maliciosos. Eram sorrisos de gratidão. De alívio.
Emily se afastou da janela, sentindo que tudo estava certo mais uma vez no mundo. Entrou silenciosamente no carro, ligou o motor e saiu da vaga de ré. Quando O’Neal acompanhou as elfas até uma viatura no estacionamento, Emily já partira havia muito tempo. Elas nunca saberiam quem as havia libertado. Mas seus sorrisos agradecidos já eram recompensa suficiente.
16
E O MUNDO INTEIRO ESTAVA EM PAZ
Na tarde seguinte, Emily estava na cozinha, amassando um grande pedaço de massa para fazer os biscoitos doces de Natal. Aquela era a sua tradição natalina favorita, principalmente porque ela adorava lamber o glacê açucarado da tigela. Era a primeira chance que Emily tinha de fazer biscoitos naquele Natal: bancar o Papai Noel havia tomado muito de seu tempo. Entretanto, a sra. Meriwether telefonara para ela naquela manhã, dizendo que Emily não precisava mais ir trabalhar na Terra do Papai Noel; ela encontrara um substituto adequado e estava dispensando Emily, em agradecimento. Emily ficara surpresa ao perceber que estava desapontada por não voltar ao trabalho; terminara gostando de verdade de ser o Papai Noel.
Alguém tossiu atrás dela. A mãe de Emily estava parada à porta, com as mãos na cintura. Ela olhou para as travessas ainda vazias que Emily colocara junto ao forno.
– Quer me ajudar? – perguntou Emily, evitando olhar nos olhos da mãe. Ela e a sra. Fields não conversavam desde que Emily tivera aquela explosão de raiva na frente de todos, na noite anterior. Emily sabia que devia pedir desculpas, mas não sabia de fato o que dizer. Cada palavra que dissera era verdade. Por que devia voltar atrás?
A sra. Fields não respondeu, sentando-se reta em uma das cadeiras da cozinha e examinando dramaticamente um fio solto em um jogo americano, que trazia a estampa de uma galinha com uma tiara festiva na cabeça. Emily continuou a sovar a massa, sentindo-se cada vez mais desconfortável.
Por fim, a sra. Fields deixou escapar um suspiro.
– Você estava certa, sabe?
Emily ergueu a cabeça de repente.
– Como?
– O que você disse ontem à noite, sobre o menino Jesus – disse a mãe de Emily, roendo a unha de um polegar. – Talvez eu tenha perdido a noção das coisas. Talvez fosse uma loucura querer o menino Jesus de volta só para poder vendê-lo e comprar presentes. É que... eu queria que o Natal fosse superespecial este ano. Porque passamos por tantas coisas... Eu o queria assim por você, pelo que você teve que enfrentar com aquela tal de A. Eu o queria assim pelo que você passou com Alison.
Quando a sra. Fields ergueu os olhos, eles estavam cheios de lágrimas, o que fez Emily querer chorar, também.
– Eu sei o quanto ela significava para você – disse a sra. Fields, em voz entrecortada. – Sei o quanto tem sido difícil para você aceitar que ela foi... – Ela se interrompeu, sem ousar dizer a palavra assassinada. – E pensar que foi alguém que conhecíamos, alguém tão próximo de vocês, meninas... Não posso suportar a ideia de que podia ter sido você no lugar dela. O seu pai e eu estamos tão agradecidos por você estar aqui. Eu só queria que você soubesse disso.
Emily se afastou do balcão e foi se sentar ao lado da mãe, colocando a mão de leve sobre o braço dela.
– Não preciso de uma tonelada de presentes para entender isso – disse ela, de maneira gentil. – Você só precisa me dizer.
– Eu sei – disse a sra. Fields, encostando a cabeça no ombro de Emily.
Emily fechou os olhos e pensou em como o assassinato de Ali devia ter afetado cada mãe e pai em Rosewood. Aquilo deve ter sido aterrador para todos. Mas, de certo modo, talvez a morte de Ali pudesse aproximar pais e filhos. Talvez pudesse ajudar aqueles que ainda estavam vivos.
– Sinto muito por ter envolvido você naquela confusão – murmurou a sra. Fields. – Eu não devia tê-la colocado naquela posição desconfortável.
– Na verdade, estou feliz por você ter feito aquilo – balbuciou Emily, sentindo-se subitamente esgotada. – Foi divertido. E mesmo que você não acredite, elas são boas garotas.
Ela se perguntou o que as elfas estariam fazendo naquele momento; a sra. Meriwether mencionara que também encontrara novas elfas para a Terra do Papai Noel. Será que estariam descansando em casa, agora? Tentando se reconectar com suas famílias distantes e disfuncionais? De repente, Emily sentiu um pouco de pena delas. Os problemas delas eram enormes. Sophie estava para ser expulsa de Yale. O irmão de Lola era viciado em drogas. E elas tinham que encontrar uma forma de lidar com tudo aquilo.
A mãe de Emily enxugou as lágrimas com um guardanapo, levantou-se e saiu da cozinha de cabeça baixa, como sem pre fazia quando demonstrava muita emoção. Emily voltou aos biscoitos de Natal, sentindo-se muito melhor. Quando a campainha tocou, alguns minutos depois, ela enxugou as mãos em um pano de prato e atravessou a sala de estar para atender a porta. A sombra de quatro cabeças era visível por detrás das cortinas. Emily prendeu o fôlego. As elfas.
Engolindo em seco, ela abriu a porta, fazendo os sininhos tilintarem na maçaneta. As quatro garotas na varanda olhavam para ela. Nenhuma delas estava sorrindo. O coração de Emily começou a martelar em seu peito.
– Nós sabemos o que você fez – disse Cassie, em um tom de voz rígido.
A garganta de Emily estava seca.
– Eu sei que vocês sabem – disse ela. – Mas não foi bem assim. Eu não participei da armadilha, eu juro.
As quatro meninas continuaram a olhar para ela, com expressões fechadas. Emily tinha certeza de que elas podiam ouvir seu coração disparado. Ela estava prestes a pedir desculpas, mas Cassie estourou na gargalhada, deu um passo para a frente e envolveu Emily em um abraço apertado. Heather também passou os braços ao redor de Emily, e então Lola e Sophie se juntaram ao grupo. Emily ficou tensa por alguns momentos, mas finalmente as abraçou de volta, um tanto tímida.
– Nós sabemos que foi você quem nos libertou – disse Cassie. – Nós vimos você pela janela, conversando com O’Neal. Mas como você fez aquilo?
Emily se afastou das meninas e piscou com força. Depois de todo o seu esforço para continuar anônima...
– Ele era o stripper que vimos pela janela naquela noite – disse ela, trêmula. – Eu tinha as fotos.
As elfas trocaram olhares, e então todas ergueram as mãos, cumprimentando-se e a Emily.
– Você é ninja, Noel – disse Heather. – O’Neal nos deixou ir sem sequer pagar multa. A única coisa que tivemos que fazer foi arrumar o country club esta manhã, e colocar os presentes de volta debaixo da árvore.
– Eu sinto muito pelo que aconteceu. – Emily se encostou contra a parede de sua casa. – Juro que não sabia que a minha mãe estava nos seguindo. Não fazia ideia de que ela estava nos rastreando pelo meu celular. Aceitei o emprego de Papai Noel para espionar vocês, no começo. Vocês estavam certas. Mas desisti da ideia logo que conheci vocês direito. Não fui feita para ser espiã.
– Sabemos disso, Noel – disse Cassie, tocando levemente no pulso de Emily. – Você é legal.
– E, na verdade, temos uma coisa para você. – Lola desapareceu por entre os arbustos e trouxe de lá algo embrulhado em uma grande manta azul. Ela colocou o objeto na soleira da porta, descobrindo-o: era o menino Jesus da mãe de Emily. Estava intacto, sem um arranhão. O bebê de cerâmica dormia em paz, como sempre.
– Achamos que sua mãe iria querê-lo de volta – disse Cassie, com uma piscadela. – Ela estava bem irritada ontem à noite.
Emily tocou a cabeça do menino Jesus com a ponta dos dedos.
– Obrigada, meninas. Isso vai significar muito para ela.
– Sem problemas – disse Sophie, olhando para o relógio. – Precisamos ir, gente. Temos aquele... negócio para resolver.
As elfas assentiram misteriosamente. Emily sentiu um aperto no coração, desejando que elas lhe contassem aonde estavam indo, mas talvez isso fosse pedir demais.
Cassie desceu um degrau e apontou o dedo para Emily.
– Não conte a ninguém sobre isso, certo, Noel?
– Claro que não – disse Emily. – Não contem nada para a minha mãe, também.
– Nós prometemos.
– Talvez nos encontremos no ano que vem, na Terra de Noel. – Lola sufocou uma risada. – Eu até gosto de ser uma elfa, para dizer a verdade.
– Combinado! – disse Emily.
As elfas voltaram rebolando para o carro de Cassie. Emily passou os braços ao redor do próprio corpo, para se esquentar, observando enquanto elas se afastavam. Um galho se quebrou a distância, e ela olhou para os campos de milho, sentindo aquela velha e familiar sensação de desconforto. Aquilo era coincidência demais.
Havia alguém lá fora. Alguém a estava observando.
– Olá? – chamou ela, descendo os degraus da varanda.
Mas ninguém respondeu. O que ou quem quer que fosse tinha desaparecido.
PAPAI NOEL MALVADO
Eu posso ter desaparecido no milharal, Em, mas não vou a lugar nenhum. Tenho que admitir, estou um tanto impressionada com o quanto a nossa pequena Emily cresceu. Chantagear um oficial da polícia? Quem imaginaria que ela teria essa coragem? Mas, por outro lado, essa menina sempre teve um ponto fraco: as amigas. Se eu aprendi alguma coisa é que a chave para o coração de Emily é a melhor amiga que ela amava e perdeu. Se Emily imaginasse que haveria alguma chance de sua querida Ali voltar, ela iria ao fim do mundo para encontrá-la.
É uma fraqueza cheia de possibilidades. Eu poderia fazer Emily ir contra a lei por mim. Eu poderia fazê-la acusar as pessoas de todo tipo de coisa, e tudo em nome de Alison. E quando eu finalmente der o meu passo decisivo, será tão fácil atrair Emily para a minha armadilha... Tudo de que vou precisar são algumas simples palavras... e um simples beijo. Só espero que as outras sejam tão fáceis de manipular...
A seguir: Aria. Ela, Mike e Byron estão se preparando para boas diversões natalinas, mas eu tenho uma leve desconfiança de que a surpresa que os aguarda no Bear Claw Lodge não é a lã para tricotar que Aria queria de presente. E isso não é tudo o que vai se desenrolar na vida de Aria neste Natal.
Chuac!
1
QUANTO MAIS GENTE NO DIA DO SOLSTÍCIO, MELHOR
– Você não adora a música dos aborígenes australianos? – perguntou Byron Montgomery, usando os joelhos para manter o carro em linha reta enquanto colocava um CD no aparelho de som do Subaru. A música das flautas australianas, os didjeridus, começou a tocar, e ele balançou a cabeça para a frente e para trás. – É tão... espiritual. A trilha sonora perfeita para o solstício de inverno.
– Hã-rã – respondeu Aria Montgomery distraidamente, examinando o cachecol de lã cinzenta que estava tricotando. O carro passou por uma lombada, e ela quase se espetou com a agulha de madeira.
– Acho essa música didjeridu muito chata. – O irmão de Aria, Mike, chutou o encosto do assento dela. – Eles soam como a combinação do ruído de uma casa de vespas e de um velho soltando um peido.
Byron franziu o cenho e correu a mão pelos cabelos já arrepiados.
– Vocês, crianças, precisam entrar no clima. Eu não quero ser o único cantando durante a celebração do solstício.
Aria resistiu à tentação de revirar os olhos. Era dezembro, e a família estava a caminho do Bear Claw Lodge, nas montanhas Poconos, onde Byron iria esquiar, Mike iria praticar snowboarding, e Aria iria tricotar e escrever em seu diário. Cada carro na Extensão Nordeste estava carregado com presentes lindamente embrulhados, caixas de vinho e talvez um presunto congelado ou um bolo de frutas. O carro dos Montgomery, por sua vez, levava três colchões de ioga, incensos, um pote de hidromel que Byron fabricara no porão e um enorme tronco de árvore. A família de Aria celebrava o solstício de inverno em vez do Natal, do Hanuca ou do Kwanza. Embora seu pai e sua mãe tivessem sido criados na religião episcopal, eles nunca mencionavam o Papai Noel, iam à igreja ou cantavam canções natalinas. Enquanto todas as outras pessoas ganhavam presentes em dezembro, tudo o que Aria recebia, ano após ano, era uma guirlanda feita de urzes.
Aria nunca se incomodara com as comemorações do solstício de inverno antes; já aceitara, havia muito tempo, o fato de que sua família era meio... diferente. No entanto, mas naquele ano, depois da morte de sua antiga amiga Ali, das mensagens da maldosa A e de descobrir que o assassino de Ali era o menino de ouro de Rosewood, Ian Thomas, ela ansiava pelas reconfortantes tradições de Natal que sua família ignorava. Todos juntos ao redor de uma árvore decorada. Trocando presentes. Ficando em casa e assistindo a filmes natalinos bobos em vez de se aventurarem pela natureza selvagem, esmurrando o peito como babuínos.
Enquanto olhava pela janela para os carros que passavam, Aria sentia uma ponta de inveja dos rostos animados das crianças nos bancos de trás. Quando passaram por uma placa indicando uma fazenda de árvores de Natal, pensou em pedir a Byron para comprarem uma. Mas Aria sabia exatamente o que ele iria dizer: Aquela árvore tem uma alma! Ela odiaria que nós a violássemos de modo tão fútil!
– Estou pensando no que Ella estará fazendo neste momento – disse Aria, quando o Subaru ultrapassou um Volkswagen Jetta com vidros escuros.
Byron enfiou o dedo em um buraco no punho de seu suéter, com uma expressão estranha no rosto.
– Tenho certeza de que sua mãe está em algum lugar sobre o oceano Atlântico agora.
Aria se virou e olhou pelo vidro para um outdoor que anunciava a recente inauguração do shopping Devon Crest. TEMOS A MAIOR TERRA DO PAPAI NOEL DA REGIÃO DOS TRÊS ESTADOS!, dizia o rodapé do anúncio.
Ella estava a caminho da Suécia naquele momento, preparando-se para um Natal com almôndegas, passeios de Volvo e excursões turísticas. Aria esperara que Ella a levasse na viagem; os Montgomery haviam morado em Reykjavík, na Islândia, durante três anos, e Aria chorara durante todo o voo de volta para a cidade de Rosewood naquele outono. Viajar para a Europa teria sido o modo perfeito de relaxar depois de todo o drama do primeiro semestre, mas Ella dissera a Aria que precisava ir sozinha. Aria compreendia a necessidade que a mãe tinha de ir para longe. Seu casamento com Byron havia se esfacelado naquele ano, quando Ella descobrira que ele estava tendo um caso com Meredith Stevens, sua antiga aluna. Fora A, mais conhecida como Mona Vanderwaal, quem revelara o segredo, acrescentando que Aria sabia das escapulidas de Byron. Ella ficara tão furiosa com Aria que a expulsara de casa, mas as duas haviam feito as pazes. Byron ainda estava morando com Meredith em um apartamento caindo aos pedaços em Old Hollis, mas por sorte ela estava passando as festas com os pais, em Connecticut. Não fazia muito tempo que Meredith havia soltado a grande bomba: estava grávida de dez semanas... e pretendia ter o bebê. Ela também anunciara que se casaria com Byron logo que o divórcio dele estivesse finalizado.
Byron estendeu o braço e colocou a mão no joelho de Aria.
– Sei que você está triste porque sua mãe não está aqui. Mas esta é a nossa chance de passarmos algum tempo juntos. Prometo que vamos nos divertir.
– Eu sei – disse Aria suavemente, dando um tapinha carinhoso na mão do pai. Por mais que quisesse desprezar Byron por ter separado a família, Aria não conseguia. Ele ainda era o pai distraído, afetuoso e pateta que ela amava. Seria legal para eles passar algum tempo juntos, ainda mais porque Meredith não estaria lá. Quando Aria ficara hospedada com Byron e Meredith, na época em que não estava falando com a mãe, não havia se aproximado nem um pouco de Meredith.
A música de didjeridu acabou, e outra, que soava exatamente como a primeira, começou a tocar. Aria apanhou suas agulhas de tricô e olhou para o cachecol. Já tinha quase dois metros de comprimento. Ela pretendia dá-lo de presente a Ezra Fitz, o cara que conhecera em um bar de universidade no dia em que chegara da Islândia, e que, como ela só descobrira depois que eles haviam se beijado, era seu professor de inglês em Rosewood Day. Logo após eles declararem sua afeição um pelo outro, A expusera seu relacionamento. Ezra pedira demissão da escola imediatamente e se mudara para Rhode Island.
Desde que ele partira, Aria parecia sofrer da síndrome do stress pós-Ezra. Não conseguia parar de pensar nele. Escrevera toneladas de e-mails, mas Ezra não respondera. Será que encontrara outra pessoa? E quanto a todas aquelas coisas que ele lhe dissera, sobre como Aria era incrível, e como ele nunca conhecera ninguém como ela? E se nunca conseguisse esquecê-lo? E se nunca mais beijasse outro cara? Aria tivera outros namorados antes; seu primeiro fora um garoto chamado Hallbjorn Gunterson, na Islândia, e ela saíra com o Menino-Modelo de Rosewood, Sean Ackard, no semestre anterior. Mas ela nunca sentira por ninguém o que sentia por Ezra.
Depois de uma parada rápida, durante a qual Byron comprou alguns lanches e deu um telefonema, eles tomaram uma estradinha secundária indicada por uma grande placa dizendo BEAR CLAW. Byron acelerou o motor pela longa entrada do hotel, que logo apareceu a distância. Não era um local modesto; era uma linda e gigantesca mansão de pedra. O terreno estava coberto por uma camada branca de neve. Um teleférico levava os esquiadores até o topo da montanha. Havia mais placas de madeira, indicando a direção de um Spa, das quadras cobertas de tênis, de um ginásio, da lojinha de aluguel dos equipamentos de esqui, de um rinque de patinação no gelo e das excursões de trenó.
O queixo de Aria caiu. O de Mike também.
– Eu com certeza vou praticar um pouco de snowboarding esta tarde – disse ele.
– Por que não nos contou como este lugar era legal? – balbuciou Aria. Ela imaginara que o Bear Claw Lodge seria um hotel de quinta categoria, com encanamento externo, gambás vivendo no forro das paredes e um zelador esquisito, como o do filme O iluminado.
– Pensei que devíamos ir a algum lugar especial para o solstício este ano. Vocês merecem, crianças. – Byron parou o carro no girador na entrada, e vários manobristas apareceram na mesma hora, fingindo não notar o farol rachado do Subaru, a fita durex que prendia o espelho retrovisor do passageiro no lugar e os inúmeros adesivos que Aria e Mike colaram no para-choque traseiro. Também não fizeram nenhum comentário sobre o tronco, colocando-o alegremente no carrinho de bagagens junto com o resto das malas da família.
Aria saiu do carro e esticou os braços, cheia de um repentino otimismo. O ar tinha um cheiro fresco, e todos os turistas tinham as faces rosadas e um sorriso no rosto. Havia uma linda e enorme árvore de Natal junto à janela da frente. Ela poderia fingir que a árvore lhe pertencia. Talvez ela pudesse mesmo aprender a esquiar.
Passos soaram às suas costas, e ela se virou. Uma sombra deslizou por detrás do edifício, como se não quisesse ser vista.
Os pensamentos de Aria se voltaram de imediato para A, que a perseguira durante meses. Mas ela só estava sendo paranoica. A, ou Mona, se fora.
– Tenho outra surpresa para vocês – disse Byron, apontando para a entrada do hotel. – Querem saber o que é?
Aria e Mike o seguiram pelas portas duplas até um saguão confortável, todo revestido de madeira. Vários hóspedes, vestindo suéteres da marca Fair Isle, relaxavam junto ao fogo. Uma mulher com ar bondoso e maternal acenou para Aria por detrás do balcão da recepção.
– Talvez a surpresa seja algo fantástico, como irmos andar de tobogã – sussurrou Aria para o irmão. – Ou um passeio de helicóptero sobre as montanhas.
– Ou talvez presentes de verdade este ano – respondeu Mike, com os olhos brilhando. – Estou louco por um iPad. Ou um daqueles carros com tração nas quatro rodas, como o de Noel Kahn.
Byron parou no meio do saguão e apontou com o dedo.
– Olhem!
Aria seguiu a direção do olhar dele, até o bar. Um homem e uma mulher estavam sentados de costas para eles, bebendo Bloody Marys. Dois universitários, usando óculos de esqui como faixas na testa, terminavam de beber suas Heinekens. Uma menina magricela, de jeans apertados e um suéter preto grande demais para ela, tomava um drinque, jogada em um banquinho de canto. Quando ela se virou e revelou a barriga meio distendida, o coração de Aria se apertou. Não. Aquilo não podia estar acontecendo.
– Oi! – Os olhos de Meredith se iluminaram, e ela escorregou do banquinho. – Estou tão feliz em ver vocês! – Ela correu para a família, passou direto por Aria e Mike, ignorando-os completamente, e deu um longo beijo em Byron.
Um nó do tamanho de um tronco de árvore se formou na garganta de Aria. Lá se iam suas esperanças de passar um feriado agradável, só com seu pai e Mike.
2
CONFORTÁVEL COMO A CASA DA VOVÓ
Enquanto o sol se punha no horizonte e uma névoa etérea, cor de violeta, caía sobre as montanhas, Aria, Mike, Byron e Meredith estavam sentados ao redor de uma enorme mesa quadrada, na sala de jantar do hotel. Uma harpista, usando um vestido de baile, tocava músicas de Natal suaves. Famílias por todos os lados bebiam vinho e eggnog, trocando presentes e relembrando os Natais anteriores.
E sobre o que os Montgomery estavam conversando?
Vômito.
– É incrível como a ânsia vem rápido – dizia Meredith, tomando um golinho de seu refrigerante. Havia uma linda salada de beringelas, cogumelos, brócolis e quinoa à sua frente, mas ela não ousava dar sequer uma garfada. – Num minuto estou ótima, e no seguinte, bam!, estou abraçando o vaso sanitário ou parando o carro no acostamento para vomitar. Já tive que vomitar em um copo de papel no shopping.
– Fascinante – disse Mike, apoiando-se nos cotovelos e inclinando-se para a frente. – E o vômito é como um projétil?
– Às vezes – respondeu Meredith, levando as mãos à cabeça, com ar cansado.
Hã, sabia que nós estamos comendo?, Aria teve vontade de dizer, olhando para o prato de ravióli que o garçom lhe servira. O ravióli parecia vômito, agora.
– Pobrezinha. – Byron afastou uma mecha de cabelo da testa de Meredith. – Há alguns rituais de cura fantásticos durante o solstício que podem ajudar. E eu também trouxe um bom estoque de ervas calmantes.
Meredith estendeu as mãos ao redor de seu copo.
– Mal posso esperar para celebrar o solstício. Parece tão mágico e espiritual.
– E estamos encantados por tê-la aqui, também. Não estamos, Aria? – perguntou Byron, olhando deliberadamente para ela.
Aria brincava com um fio solto imaginário em sua saia. Era óbvio que Byron queria que ela recebesse Meredith de braços abertos, e até mesmo Mike estava se comportando bem, talvez até porque Byron lhe prometera um passe ilimitado para a pista de snowboarding. Mas Aria estava magoada demais. Depois que Meredith aparecera, Byron explicara que os planos dela em Connecticut haviam mudado de última hora; seus pais haviam decidido ir visitar seu irmão no Maine. Então, ele se adiantara e convidara Meredith para ir ao hotel, em vez de deixar que Aria e Mike participassem da decisão.
– Sei que havíamos planejado uma viagem só para nós três, mas eu detestei a ideia de deixá-la sozinha em casa – dissera Byron, em um tom de voz tão afetuoso e preocupado que Aria quase se solidarizou com Meredith, também. Mas, naquele momento, ela olhara para Meredith e vira o sorriso satisfeito em seu rosto, e parecia que tudo fazia parte de um plano, só para tornar a vida de Aria miserável.
O gerente se desculpara em profusão porque os quartos deles não estariam prontos antes do final do jantar, e os quatro decidiram ir explorar o local por algumas horas, passando pela pista de trenó, pelos tobogãs e pelos estandes de tiro. Meredith se comportara como uma velhinha enquanto caminhava pelas passarelas do resort, temendo escorregar no gelo inexistente. Ela fizera Byron passar quarenta e cinco minutos na lojinha de presentes, escolhendo o modelo perfeito de macacãozinho unissex para o bebê. E pedira que ele a acompanhasse até o banheiro feminino todas as onze vezes em que tivera que urinar.
Enquanto esperavam no corredor, durante a enésima Parada para Urinar, Byron dera um abraço rápido em Aria.
– Você está bem?
– Nunca estive melhor – respondera Aria, em um tom de voz gélido, resistindo à tentação de arrancar os próprios cabelos.
Agora, Byron erguia sua taça de vinho, segurando-a no ar.
– Um brinde ao solstício.
Meredith encostou sua taça na dele, e Aria e Mike a imitaram relutantemente com seus copos de Sprite.
– Vamos repassar a nossa agenda para os próximos dias – continuou Byron, depois de tomar um gole generoso. – Amanhã, pensei que podíamos partir numa trilha ecológica e fazer o Círculo da Confiança. – Ele se voltou para Meredith. – É quando unimos nossas mãos na floresta e respiramos juntos, como se fôssemos um só, dando as boas-vindas para a mudança de estação.
– Claro! – disse Meredith, como se celebrasse o solstício havia anos.
– Iremos queimar o tronco amanhã, sem falta. – Byron cortou um pedaço de lasanha de tofu e o enfiou na boca. Ele não era vegetariano, exceto durante a época do solstício. – De acordo com o folclore escandinavo, a queima do tronco faz o sol brilhar mais forte. E na manhã seguinte, faremos a corrida dos pelados.
– A corrida dos pelados? – Meredith franziu a testa. – Você quer dizer, ao ar livre?
Mike riu lascivamente, e então olhou ao seu redor, para as pessoas na sala de jantar.
– Eu devia recrutar aquela ali para isso. – Ele apontou para uma loura bonita jantando com os pais.
Byron limpou a boca com o guardanapo.
– A corrida dos pelados é muito revigorante. Em geral, fazemos logo cedo, pela manhã, para que ninguém nos incomode. E nós costumamos ficar de roupas de baixo – disse ele, com um sorriso. – Americanos não têm a mente muito aberta em relação a esses rituais.
– Não tenho certeza se seria uma boa ideia correr. – Meredith deu uma palmadinha no estômago. – O frio pode prejudicar o bebê. Ou eu posso tropeçar e cair sobre a minha barriga.
Aria se inclinou para a frente.
– Ella sempre adorou a corrida dos pelados. Ela me contou uma vez que participou quando estava grávida de seis meses, esperando Mike. – Ela olhou para o rosto de Meredith, que parecia desolada. Ótimo.
Byron torceu a boca.
– Bem, isso é verdade, mas talvez Meredith tenha razão.
Meredith abaixou sua taça em uma atitude desafiadora.
– Não tem problema. Estou dentro. – Ela lançou a Aria um olhar rápido e irritado que parecia dizer: Você não vai se livrar de mim tão facilmente.
Aria se virou, e seu olhar se deteve na árvore de Natal no canto da sala. Estava decorada com pequenos passarinhos de vidro, correntes feitas com pipoca e laços de fita brancos. Os presentes estavam empilhados sob a árvore, e um trenzinho de brinquedo circulava por todo o perímetro. Um jovem casal e seus dois filhos, um menino e uma menina de mais ou menos quatro e seis anos de idade, estavam de mãos dadas na frente da árvore. O pai ergueu o filho nos braços para que ele visse melhor um dos enfeites em forma de pássaro. Aria não conseguia ouvir a conversa, mas entendeu quando a mãe disse as palavras Papai Noel.
Os olhos de Aria se encheram de lágrimas. Aquela família estava construindo lembranças maravilhosas. Não fazia muito tempo, a família dela também construía lembranças parecidas; tudo bem, lembranças do solstício, o que era um tanto esquisito, mas pelo menos eles estavam todos juntos. Eram tão felizes na Islândia... Parecia que seus pais haviam se apaixonado novamente quando moravam lá, mas tudo se esfacelara quando voltaram a Rosewood.
Eles terminaram de comer as entradas e pediram um combinado de sobremesas para dividir, que incluía pudim de tapioca e crème brûlée. Aria detestava ambos. Quando os pedidos chegaram, Meredith respirou fundo, seu rosto ficou verde, e ela empurrou sua cadeira para trás.
– Eu preciso... – balbuciou ela, inflando as bochechas. Ela disparou na direção do banheiro e passou correndo pela porta. O barulho que ela fazia enquanto vomitava podia ser ouvido no salão inteiro. Todos olhavam para a porta do banheiro, alarmados.
– Nojento – disse Mike.
Um porteiro, vestindo um uniforme vermelho, apareceu ao lado de Byron.
– Senhor, os quartos estão prontos. Já levamos as suas bagagens para lá.
– Excelente. – Byron apertou a testa com as mãos, parecendo subitamente exausto. – Acho que todos nós estamos precisando descansar, agora.
O porteiro lhe entregou uma chave e disse que os quartos ficavam no quarto andar. Depois que Byron pagou a conta, foram buscar Meredith no banheiro. Ela se apoiou no braço de Byron durante a caminhada até o elevador, bufando como se já estivesse em trabalho de parto.
– O controle remoto da televisão é meu – disse Mike a Aria no elevador. – Vai passar uma luta de vale-tudo esta noite.
– Tudo bem – disse Aria, cansada. Àquela altura, ela concordaria em assistir a qualquer um dos programas de televisão idiotas de Mike; ficar longe de Byron e Meredith já era recompensa suficiente. – Mas o frigobar é meu.
– Byron, depressa! – gritou Meredith do corredor, enquanto Byron procurava as chaves nos bolsos. Ela se virou e segurou a barriga, com o rosto branco como papel. – Acho que vou vomitar de novo.
– Tudo bem, tudo bem. – Byron colocou a chave na fechadura e abriu a porta. Meredith correu para dentro, bateu a porta do banheiro, e os barulhos nojentos começaram de novo.
Byron colocou as mãos na cintura, observando o quarto.
– Bem, isto parece ótimo.
– E quanto ao nosso quarto? – perguntou Aria.
Byron inclinou a cabeça para o lado.
– Este é o seu quarto.
Aria olhou ao redor. Devagar, ela percebeu o que se passava.
– Vamos todos ficar no mesmo quarto, juntos? – Ela imaginara que, como Meredith viera também, Byron teria mudado a reserva.
Byron piscou, aturdido.
– Querida, este lugar é muito caro. E, de qualquer forma, o hotel já estava totalmente lotado. – Ele acendeu as luzes, revelando dois quartos grandes, uma quitinete, e a porta fechada que dava para o banheiro. Meredith tossia de leve lá dentro. – Isto é uma suíte, e vocês podem ter sua privacidade, se você dormir no sofá-cama na sala de estar.
O estômago de Aria revirou. O sofá-cama não era suficiente. Ela ainda poderia ouvir Byron e sua Meredith grávida do outro lado da porta.
Aria se sentia como um gêiser prestes a entrar em erupção. Aquele era o momento dela com o pai. O momento deles. Será que Byron não compreendia aquilo? Será que não sabia o quanto os últimos meses haviam sido difíceis? Ele podia ter dito a Meredith para não vir. Ele podia ter decidido, só desta vez, que Aria e Mike vinham primeiro.
– Eu preciso ir – disse ela. Aria apanhou sua mochila no carrinho de bagagens e foi direto para a porta.
– Ir para onde? – Byron a chamou, mas Aria não respondeu. Ela disparou pelo corredor, desceu correndo as escadas e chegou ao saguão revestido de madeira. Uma mulher estava tocando “Jingle Bells” no piano de cauda em um dos cantos do salão. Alguns hóspedes bebiam sidra, oferecida em uma bandeja no balcão da recepção. Crianças faziam anjinhos sobre a neve recém-caída. Era um lugar lindo, e Aria queria muito ficar, mas sabia que não podia, de jeito nenhum.
Ela ia dar o fora dali.
3
OUTRA SURPRESA
O celular de Aria marcava 21h57 quando o ônibus parou no estacionamento da estação rodoviária de Rosewood. Sentindo-se grogue e cansada, ela desceu os degraus cambaleando, apanhou a bagagem no compartimento sob o veículo e atravessou o pátio coberto de gelo na direção de sua velha amiga, Emily Fields, para quem telefonara pedindo que fosse buscá-la. Aria tirou o celular da bolsa mais uma vez.
Estou em Rosewood, sã e salva, ela escreveu para Byron. Divirtam-se amanhã.
Depois que Aria saíra correndo da suíte do hotel, Byron a seguira até o saguão e tentara convencê-la a ficar. Mas Aria batera o pé. Com o coração pesado, Byron a levara de carro para apanhar o próximo ônibus para Rosewood. Antes de Aria embarcar, ele colocara a mão em seu ombro, olhando para ela bem sério. Aria pensara que ele iria lhe dizer algo importante, profundo. Ou se desculpar.
– Não se esqueça de espalhar manteiga na porta da frente da casa da sua mãe – dissera ele, entretanto. – Do contrário, você não vai ser protegida contra os maus espíritos pelo resto do ano.
A neve começou a cair quando Aria entrou no carro de Emily.
– Obrigada por vir me buscar – disse Aria.
– De nada. – Emily conduziu o carro para fora da estação, começando a descer a avenida Lancaster. – Mas você tem certeza de que não quer ficar lá em casa? Não vai se sentir solitária passando as festas na casa da sua mãe?
– Eu não quero atrapalhar – respondeu Aria. Emily iria deixá-la na casa de Ella; não ficaria no velho apartamento que seu pai dividia com Meredith em Old Hollis de jeito nenhum. – E, sinceramente, depois de tudo o que aconteceu, talvez eu precise mesmo passar algum tempo sozinha.
Não havia quase nenhum trânsito, e todos os semáforos de Rosewood estavam com a luz verde. Emily passou pela rua principal da cidade, pelo campus Hollis e pela entrada para a antiga rua de Alison DiLaurentis, chegando à casa da mãe de Aria em tempo recorde. Aquela era a única propriedade no quarteirão inteiro que não estava iluminada pelas decorações de Natal. Parecia um dente faltando em uma boca perfeita.
Depois de se despedir de Emily, Aria destrancou a porta da frente e colocou sua mochila no vestíbulo. Os únicos ruídos na casa eram o barulho suave do refrigerador e o ar sibilando pelos canos do radiador. Quando ela olhou pela janela, a neve já havia formado uma camada fina no gramado.
Segundo a previsão do tempo, devia cair perto de meio metro de neve até a manhã seguinte. “I’m dreaming of a white Christmas...”, cantarolou Aria baixinho. Sua voz ecoava na casa vazia, enchendo-a de arrependimento. O que ia fazer sozinha, durante os próximos dias, com aquela casa enorme só para si? O que ia preparar para a ceia de Natal: macarrão orgânico congelado com queijo? Talvez devesse ter trazido Mike, mas ele não parecera muito incomodado em dividir o quarto com Byron e Meredith. Ele talvez passasse o feriado esquiando, praticando snowboarding, pescando no gelo e treinando tiro ao alvo.
Aria subiu as escadas e se jogou em sua cama, derrubando um livro no chão. Era seu adorado livro de desenhos. Ela o apanhou, com uma sensação desconfortável. Aria tinha quase certeza de que deixara o livro na escrivaninha, e não na cama. Será que Ella tinha mexido nele antes de partir para a Suécia?
Será que mais alguém estivera ali?
Aria abriu o livro na primeira página, fazendo a capa ranger. Tinha aquele livro desde o começo do sexto ano; um dos primeiros desenhos que ela fizera fora um retrato de Ali, no dia em que ela saíra de Rosewood Day anunciando que seu irmão lhe contara onde o pedaço da bandeira da Cápsula do Tempo estava escondido. Era impressionante o quanto a Aria mais jovem havia capturado precisamente as curvas do rosto perfeito de Ali, seu sorriso malicioso, o brilho em seu olhar. Era como se Ali estivesse olhando para ela do papel.
Aria virou as páginas com desenhos de Ali, Spencer, Emily e Hanna; ela as desenhara centenas de vezes antes mesmo de elas se tornarem amigas. Em seguida, vinham os desenhos da Islândia; as lindas fileiras de casinhas, um homem idoso dormindo em uma cafeteria, um rascunho de seus pais sentados juntos no muro de pedra na frente de sua casa, parecendo apaixonadíssimos, e um retrato de Hallbjorn, o primeiro namorado de Aria na Islândia.
Aria continuou a folhear o livro, deixando que ele se abrisse naturalmente em uma página específica. Ela respirou fundo. Era um desenho de perfil de Ezra Fitz, ao lado do quadro-negro, durante a aula de inglês. Aria olhou por algum tempo para as pequenas orelhas de abano de Ezra, e aquele incrível peito largo, que ela adorava acariciar com os dedos.
Aqueles lábios cheios que beijara inúmeras vezes.
Ela se atirou de volta no travesseiro. Onde estaria Ezra naquele momento? Celebrando as festas com sua família? Passeando sob o luar, na véspera de Natal, com uma nova namorada? Lágrimas encheram os olhos de Aria. Uma parte dela queria checar sua caixa de e-mails novamente para ver se Ezra lhe mandara um cartão de Natal, mas por que se incomodar? Não haveria nenhum. Aria não era mais importante para ele.
A casa rangeu, e um barulho alto se seguiu. Aria sentou-se depressa e olhou em volta. Aquilo não parecera o som do vento.
Outro barulho alto, e ela se levantou. Andou em silêncio pelo corredor, chegou à sala e olhou pela grande janela quadrada que dava para o jardim da frente.
Não havia carros estacionados na frente da casa, e ninguém andando pela rua.
E então, alguma coisa começou a sacudir.
Aria se debruçou por sobre as escadas e soltou um som sufocado. A maçaneta da porta da frente estava girando, como se alguém estivesse tentando forçar a entrada.
– Olá? – chamou ela, em uma voz muito fina, apanhando o bastão de lacrosse no quarto de Mike. Ela devia chamar a polícia? E se fosse Ian, fugido da cadeia? Durante a audiência de acusação, ele se virara e olhara para Aria e suas antigas amigas com uma expressão de profundo ódio.
– Olá? – chamou Aria outra vez, balançando o bastão de lacrosse como se fosse uma espada, enquanto descia as escadas. – Quem está aí?
Do vestíbulo, ela olhou para o painel de vidro do lado esquerdo da porta da frente, com o coração na garganta. Uma sombra se moveu na varanda. Sem dúvida, era uma pessoa.
Toc, toc, toc.
Aria agarrou o telefone sem fio no corredor.
– Eu vou chamar a polícia! É melhor você dar o fora daqui!
A sombra não se moveu. Aria apertou o botão TALK no telefone.
– Estou discando! – Ela apertou, com dedos trêmulos, os botões do número de emergência. O tom de discagem soou em seu ouvido.
– Aria? – chamou uma voz abafada, da varanda.
Aria abaixou o bastão de lacrosse um centímetro. A sombra se moveu na janela.
– Departamento de polícia, qual é a emergência? – perguntou a voz da telefonista, do outro lado da linha.
– Aria? – Quem quer que estivesse lá fora chamou novamente. Aria franziu a testa. Era uma voz masculina familiar. E aquele não era um sotaque islandês?
– Alô? – disse a telefonista, um pouco mais impaciente agora. – Tem alguém aí?
Aria se aproximou da janela. De pé, na varanda, estava um jovem alto e louro, com ombros largos e maxilar quadra do, vestindo um casaco de inverno azul-marinho com um emblema da SELEÇÃO ISLANDESA DE ESQUI no peito. Ela soltou uma risada incrédula.
– ...Hallbjorn?
– Sim! – disse a voz. – Pode me deixar entrar? Estou congelando aqui fora!
Aria abriu a porta. Uma figura alta estava parada em sua varanda, com a cabeça, o ombro e o rosto cobertos de neve. Ela apertou o botão OFF no telefone.
– Hallbjorn – sussurrou ela novamente. Ele estava ali... em Rosewood. Em sua casa.
Aria não teria ficado mais surpresa se fosse o Papai Noel.
4
GAROTOS ISLANDESES SÃO QUENTES
Hallbjorn entrou no vestíbulo da casa dos Montgomery, tirando as botas sujas de neve.
– Eu não sabia que fazia tanto frio na Pensilvânia – disse ele, no sotaque forte de que Aria sentia saudade desde que deixara a Islândia. – Isso aqui parece a minha casa!
– O... O que está fazendo aqui? – gaguejou Aria, sem se mover de sua posição junto à porta.
Hallbjorn mordeu o lábio inferior, num gesto brincalhão.
– Eu senti sua falta. E queria saber como você estava.
– Às dez horas da noite, na véspera de Natal?
– O meu avião foi desviado para cá por culpa do mau tempo. Estou tentando chegar a Nova York, mas houve uma tempestade pesada. Os voos de amanhã também foram cancelados. Tentei telefonar para a sua casa do aeroporto, mas ninguém atendeu, e eu não sabia o número do seu celular. Pensei que valeria a pena correr o risco e vir. – Ele olhou em volta. – Eu não estou interrompendo nada, estou? Acordei a sua família?
Aria encostou-se à parede, sentindo-se tonta.
– Estão todos fora da cidade. Estou sozinha.
Havia um milhão de perguntas que gostaria de fazer a ele, mas seus lábios não conseguiam formar as palavras. Aria não via Hallbjorn havia dois anos, e ele estava ainda melhor do que ela se lembrava. Seu corpo alto e esbelto estava um pouco mais musculoso. Seus cabelos louros platinados haviam crescido e chegavam ao queixo. Ele ainda tinha o mesmo rosto belo e anguloso, mas seus olhos pareciam mais azuis e penetrantes do que nunca. E quando sorriu, mostrou seus dentes brancos e perfeitos, que pareciam merecer seu próprio comercial de pasta de dentes. Só olhar para ele fazia o coração de Aria palpitar.
Ele usava aparelho quando Aria o conhecera. Uma semana depois de sua família ter se mudado para Reykjavík, Aria fora dar uma volta de bicicleta pela cidade, sentindo-se sozinha, deslocada e confusa. Fazia apenas alguns meses que Ali desaparecera, e aquilo ainda era um grande peso em sua mente. Ela esperava que o afastamento de Rosewood fosse ajudá-la a se recuperar do que havia acontecido, mas tudo ainda parecia muito recente e doloroso.
Aria ouvira música tocando em uma cafeteria próxima e resolvera entrar. Uma banda tocava em um pequeno palco nos fundos, e um grupo de pessoas se aproximara para assistir. Durante um intervalo entre as músicas, um rapaz louro se virara para Aria e lhe perguntara algo em islandês. Aria corara e dissera as únicas palavras em islandês que aprendera até então: Em inglês, por favor.
O rapaz sorrira.
– Você é americana? – perguntara ele, em um inglês perfeito.
Quando Aria dissera que sim, ele lhe dera as boas-vindas à Islândia e lhe dissera que seu nome era Hallbjorn. Depois de alguns minutos comparando gostos musicais e de ouvir as impressões iniciais de Aria sobre Reykjavík, Hallbjorn insistira em lhe mostrar o lugar. No dia seguinte, ele chegara à casa de Aria no maior utilitário que ela já vira; todos na Islândia dirigiam veículos com pneus enormes capazes de ultrapassar campos de lava, geleiras e neve. Ele a levara para ver importantes pontos turísticos do país, como as lindas e transparentes cachoeiras que pareciam ter saído da trilogia O senhor dos anéis, crateras gigantes, vulcões borbulhantes e a ilha Akureyri, onde as colônias de papagaios-do-mar passavam parte do ano antes de migrarem para a Grécia. Eles conversaram durante todo o passeio, nunca ficando sem assunto; Aria descobrira que Hallbjorn era dois anos mais velho que ela e queria estudar arquitetura, que aprendera a pilotar um snowmobile quando tinha cinco anos, que era DJ nas horas vagas e viciado em reality shows americanos como Big Brother. Por sua vez, Aria contara sobre o subúrbio pequeno e entediante de onde viera, que seu pai estava na Islândia fazendo uma pesquisa sobre as crenças locais em huldufólk, os elfos, e que no último verão sua melhor amiga havia desaparecido misteriosamente.
No fim do dia, Aria sugerira um passeio até a Lagoa Azul, as fontes naturais de água quente e salgada que as revistas de viagem não se cansavam de discutir, mas Hallbjorn dera risada e dissera que aquilo era para turistas. Ele a levou para uma piscina quente secreta, e enquanto eles relaxavam na água escaldante, cheirando a enxofre – ele dissera que ela se acostumaria com o cheiro –, Hallbjorn se inclinou para a frente, tomou a mão de Aria e a beijou. Aquele fora o primeiro beijo de Aria.
Eles namoraram durante quatro meses, indo a shows, exposições de arte e exibições de pôneis islandeses. Hallbjorn ensinou a Aria a pilotar um snowmobile, e ela o ensinou a tricotar e usar sua preciosa câmera de vídeo. Tudo aquilo parecia um sonho. Aria podia ter feito parte da turma popular de Ali em Rosewood, mas os meninos não prestavam atenção nela; eles só queriam Ali. Em Reykjavík, entretanto, não havia Ali para fazê-la se sentir sempre em segundo plano. Mais do que isso, não havia Ali para lhe dizer que ela estava sendo muito exigente, muito distante, muito... Aria. Aria não mudara nada em seu jeito de ser na Islândia; ela continuara a usar as mechas cor-de-rosa nos cabelos e o piercing falso no nariz, e Hallbjorn gostava dela mesmo assim. Na verdade, ele parecia gostar ainda mais dela por sua singularidade.
Em fevereiro daquele ano, algo horrível acontecera: Hallbjorn ganhara uma bolsa de estudos em um colégio interno especial na Noruega, para alunos que queriam estudar arquitetura. Ele partira no Dia dos Namorados, e Aria chorou durante meses. Eles haviam se correspondido no início, mas depois de algum tempo, as cartas de Hallbjorn pararam de chegar. Aria namorara outros garotos islandeses depois dele, mas nenhum daqueles relacionamentos fora tão especial.
– Como descobriu meu endereço? – perguntou Aria, agora. Quando sua família deixara a Islândia, Hallbjorn ainda estava na Noruega.
Hallbjorn tirou as luvas.
– Quando voltei do colégio interno no outono, fui procurar você, mas as pessoas que estavam morando na sua casa me disseram que você tinha voltado para os Estados Unidos. Elas me deram o seu endereço.
– Quem você vai visitar em Nova York?
Hallbjorn olhou para Aria com uma expressão vaga, quase como se não esperasse pela pergunta.
– Hum, alguns parentes – disse ele distraidamente, esfregando com vigor o nariz vermelho. – Mas, como eu disse, o avião foi desviado por culpa do mau tempo. – Ele deu um sorrisinho constrangido. – Você se importa se eu ficar aqui por duas noites? O próximo voo para Nova York só sai no dia 26. Eu posso pagar.
– Você não precisa me pagar – disse Aria, rindo. – Vou ficar feliz pela companhia.
Ela o levou pelo corredor, disse-lhe para sentar-se no sofá da sala de estar e foi preparar um chá para os dois. Enquanto esperava a água ferver, ela perguntou:
– Então, como vão as coisas na Islândia nos últimos tempos? Eu sinto tanta saudade...
– Está tudo bem. – Hallbjorn parecia indiferente. – Nada de muito excitante.
Aria apanhou duas xícaras em uma prateleira alta.
– Os seus pais não se importam de você estar longe no Natal?
– Hum, eu não tenho certeza.
– Está tudo bem com eles? – Os pais de Hallbjorn eram dois islandeses altos e atléticos que se vestiam de forma parecida e corriam em supermaratonas juntos. Aria pensou, por um breve momento, que os pais de Hallbjorn pudessem estar passando pela mesma situação de Ella e Byron, mas não conseguia imaginar aquilo.
– Não, não, está tudo bem. É que eu decidi viajar de última hora. – Um sininho tilintou na outra sala. – Ei! – exclamou Hallbjorn. – Você ainda tem o mensageiro dos ventos, daquela lojinha em Laugavegur!
Aria levou as xícaras de chá fumegante para a sala de estar. Hallbjorn estava estirado no sofá, com as longas pernas apoiadas em um banquinho. Uma onda de excitação a percorreu quando se sentou ao lado dele no sofá.
– E como vai a sua família? – perguntou Hallbjorn.
– Um pouco bagunçada, neste momento – admitiu Aria. Ela explicou que seus pais não estavam mais juntos. – O meu pai e o meu irmão estão viajando, celebrando o solstício de inverno. Lembra-se de quando costumávamos fazer isso?
Os olhos de Hallbjorn se iluminaram.
– Vocês abraçaram todas aquelas árvores em Hallormsstadarskógur! E nadaram pelados no lago do sr. Stefansson!
Aria soltou um grunhido; ela bloqueara aquele incidente infeliz da memória.
– É, e o meu pai não havia pedido permissão ao sr. Stefansson. Graças a Deus você apareceu e explicou tudo a ele. – A família de Hallbjorn morava a algumas centenas de metros de distância, e quando o sr. Stefansson surgira com um rifle, ameaçando atirar nos Montgomery enquanto comemoravam o solstício no lago, Aria correra para pedir ajuda a Hallbjorn.
Hallbjorn retirou o saquinho de chá da xícara.
– Lembra quando o seu pai tentou convencer o sr. Stefansson a participar do ritual do solstício com ele?
– Oh, Deus, sim. – Aria deu um tapa na própria testa. – O sr. Stefansson olhou para ele como se ele fosse doido. E papai dizia: “Mas, sr. Stefansson, o senhor acredita em huldufólk! Por que não pode acreditar no solstício, também?”
– Ele leva as suas crenças em huldufólk muito a sério – disse Hallbjorn. – Lembra aquele santuário que ele construiu nas pedras?
Aria riu. O sr. Stefansson estava convencido de que elfos islandeses viviam nos fundos de sua propriedade.
– Ele costumava gritar conosco, se chegássemos muito perto. – Aria sorriu para Hallbjorn.
Os olhos deles se encontraram, enquanto o vapor das xícaras de chá intocadas aquecia suas faces. Então, Aria abaixou os olhos para o colo.
– Chorei tanto quando você foi para a Noruega...
– Você podia ter ido me visitar no colégio – disse Hallbjorn, tocando na mão de Aria.
– Eu não sabia se você queria que eu fosse.
Na verdade, ela havia visitado a Noruega com Ella, alguns meses depois de Hallbjorn partir para o colégio interno, e passara pelo pequeno vilarejo onde o colégio ficava. Ella insistira para que Aria perguntasse sobre Hallbjorn na recepção, mas Aria era muito tímida e tivera medo. E se Hallbjorn aparecesse para vê-la com uma nova namorada a seu lado? E se risse dela?
– Claro que eu queria que você fosse. – Hallbjorn se aproximou mais dela. – Eu pensei muito em você, quando estava longe.
Quando ela ergueu os olhos, Hallbjorn estava olhando para ela com determinação. Parecia tão natural que os dois recomeçassem de onde haviam parado...
Aria sorriu para si mesma. Ela pensara que precisava de um tempo sozinha para esquecer Ezra e todo aquele drama com A, mas talvez precisasse mesmo de um novo romance.
5
GINÁSTICA SEXY
Na manhã seguinte, enquanto todos estavam abrindo presentes – ou, no caso de Byron, Meredith e Mike, brincando com cervos –, Hallbjorn cozinhava panquecas orgânicas e salsichas de tofu para Aria, para o desjejum de Natal. Depois, ele decorou o cacto na sala de estar com vários objetos vermelhos da casa: uma luva, uma colher de plástico, uma fita que encontrara em uma gaveta.
– Como sabia que eu queria uma árvore de Natal? – perguntou Aria, atônita.
Hallbjorn apenas sorriu.
– Eu tive uma intuição.
Mais tarde, Aria enviou mensagens de Feliz Natal para Emily e Spencer – Hanna era judia – e depois foi dar um passeio com Hallbjorn, até a rua South, na Filadélfia. Ao chegarem lá, eles tiveram que desviar de grandes blocos de neve que já estavam amarelos de xixi de cachorro. O ar estava gélido, e o vento, cortante, e não havia quase ninguém na rua, exceto alguns corredores obsessivos e poucos turistas trazendo câmeras caras penduradas no pescoço. Os únicos estabelecimentos abertos eram umas poucas sex shops e uma loja Walgreens, que já estava anunciando descontos nas decorações de Natal.
– Olhe, aquela loja vende roupas de cannabis! – Aria apontou para uma butique com um adesivo gigante na vitrine, representando uma folha de maconha. – Isso é ecologicamente correto, não é?
– Desde que não sejam fabricadas em uma confecção. – Hallbjorn torceu a boca. – Você deve tomar muito cuidado com tecidos orgânicos.
Aria assentiu, de um jeito esperto, como se já soubesse daquilo. Eles passaram a manhã inteira jogando a versão ecologicamente correta de “Espião”, apontando para todos os restaurantes vegetarianos na rua South, as muitas latas de lixo reciclado da cidade e alguns dos ônibus movidos a gás natural. Hallbjorn havia dito a Aria que há pouco tempo começara a se dedicar a salvar o meio ambiente. Ele parecia tão sexy e honesto falando sobre emissão de carbono, e Aria quis mostrar-lhe o quão ecologicamente correta também era.
– Então, o que o fez se tornar tão preocupado com o meio ambiente? – perguntou Aria, quando eles passaram por uma loja vintage que ela adorava. – Não me lembro de você ser tão comprometido com a ecologia quando eu morava na Islândia.
– Eu comecei a me conscientizar da situação quando estava na Noruega, mas só me envolvi mesmo com a causa quando entrei na universidade, este ano – admitiu Hallbjorn. – Eu me juntei a um grupo ativista que estava tentando impedir que uma grande corporação despejasse lixo no rio perto da escola. Uma garota chamada Anja era a líder do grupo. Ela organizou alguns protestos incríveis. – Havia uma expressão saudosa em seu rosto.
– Anja era... sua namorada? – perguntou Aria, tentando não parecer ciumenta nem bisbilhoteira.
Hallbjorn caminhou ao redor de um grande parquímetro azul no qual alguém pendurara uma guirlanda natalina de plástico.
– Era. Mas há um mês ela embarcou em um navio do Greenpeace que combate a pesca de baleias na costa do Japão. Eu queria ir também, mas ela me disse que precisava ir sozinha.
– Sinto muito por Anja – disse Aria, enquanto um carro que passava tocava a buzina no compasso de “Santa Claus is Coming to Town”. – Também partiram o meu coração recentemente.
– É mesmo? – Hallbjorn ergueu uma sobrancelha. – O que aconteceu?
Aria lhe contou alguns detalhes a respeito de Ezra, omitindo o fato de que ele fora seu professor.
– Eu fiquei muito magoada quando ele partiu. Pensei que nunca ia esquecê-lo. Mas ele já deve ter uma nova namorada, agora.
– É, é assim que eu me sinto a respeito de Anja – disse Hallbjorn com tristeza. – Ela mudou a minha vida. Ela me motivou a fazer coisas com as quais eu nunca havia sonhado. E agora... puf. – Ele colocou a palma da mão sob o queixo e soprou, imitando uma semente de dente-de-leão flutuando ao vento. – Agora, ela está com outro cara, que, quando não está salvando baleias, acorrenta-se a árvores que estão prestes a serem cortadas em florestas tropicais.
Aria deu uma risadinha.
– Talvez ele nem seja tão legal assim. Aposto que ele faz xixi no saco de dormir todas as noites.
– Ou talvez ele coma daqueles macaquinhos tropicais ameaçados de extinção – disse Hallbjorn, entrando na brincadeira.
– E talvez ele nem mesmo recicle!
– Qual será o defeito da nova namorada do seu ex-namorado? – Hallbjorn deu uma batidinha no queixo. – Será que ela é, na verdade, um homem?
Aria gargalhou.
– Talvez ela não saiba ler. Ou talvez seja incrivelmente peluda, até mesmo no traseiro!
– Mas, falando sério – disse Hallbjorn, olhando no fundo dos olhos de Aria –, nós nunca tivemos esse tipo de problema. Tudo entre nós era sempre tão... fácil.
– Eu sei – disse Aria, sentindo-se tímida de repente. – Nós combinávamos tão bem.
De repente, Hallbjorn pareceu congelar na calçada. Sua pele já muito branca ficou ainda mais pálida, e ele dobrou a esquina correndo, entrando em uma pequena viela.
– Hallbjorn? – Aria o seguiu até o beco. O lugar cheirava a lixo podre e bitucas de cigarro. Alguns pneus de bicicleta estavam encostados ao muro. – Qual é o problema?
– Shh.
Hallbjorn colocou a mão sobre a boca de Aria. Ele olhava de um lado para o outro, da esquina da rua para o semáforo. Um carro da polícia passou de modo lento pelo cruzamento. Uma mulher conduzindo um cão dinamarquês caminhava pelo outro lado da rua. Por fim, Hallbjorn saiu devagar do beco e olhou ao redor. A cor voltara a seu rosto, e ele estava respirando com mais facilidade agora.
– O que foi que aconteceu? – perguntou Aria, seguindo-o.
– Pensei ter visto alguém que eu conheço.
– Alguém... da Islândia? Ou algum dos seus parentes de Nova York?
– Não importa. – Hallbjorn deu mais alguns passos pela rua South e então parou outra vez. Aria olhou em volta para tentar descobrir o que o estaria assustando tanto. Os dois velhinhos, passeando pela rua? O esquilo que espreitava na patética arvorezinha na esquina?
Ele entrou correndo por uma porta aberta. Aria o seguiu. Estava escuro e frio dentro do prédio, e o cheiro de óleos essenciais deixou Aria tonta. Uma cachoeira borbulhava, e mensageiros dos ventos tilintavam na janela. Uma placa em uma das paredes dizia ESTÚDIO DE IOGA DOUBLE MOON. Havia pôsteres de pessoas muito magras em várias poses, em todas as paredes. Vários pares de sapatos haviam sido colocados em compartimentos cúbicos do lado esquerdo da sala, e algumas pessoas esperavam calmamente pelo início da próxima aula em uma sala grande e arejada do lado direito.
Uma garota usando um gorro de Papai Noel sorriu para eles por detrás da mesa da recepção.
– Namaste – disse ela, em um tom de voz zen. – Boas festas. Vocês estão aqui para a aula para casais?
– Hum, sim – disse Hallbjorn. Ele olhou para Aria. – Tudo bem?
Aria olhou para ele como se ele estivesse louco. Eles não haviam falado em praticar ioga. Ela se virou e olhou de novo pela janela. O que ele pensara ter visto lá fora?
E então, ela percebeu que a garota do gorro de Papai Noel dissera aula para casais. O que significava um alongamento sexy... com Hallbjorn.
– Tudo ótimo – respondeu ela, abrindo a carteira e colocando vinte dólares sobre o balcão.
Depois de trocarem de roupas e vestirem os moletons limpos do estúdio, Aria e Hallbjorn saíram de seus respectivos vestiários. Hallbjorn parecia muito mais calmo, mas Aria tocou em seu braço mesmo assim.
– Você está bem? Você estava agindo estranho lá fora.
– Estou bem – respondeu Hallbjorn. – Eu só estava um pouco estressado. Ioga sempre me faz sentir melhor.
Eles apanharam os colchões e foram para a sala de exercícios. A garota com o gorro de Papai Noel, que cuidava da recepção, estava de pé na frente do espelho. Um cara alto com uma barba ao estilo Jesus Cristo e olhos melancólicos, vestindo leggings de spandex e sem camisa, juntou-se a ela e se virou para Aria, Hallbjorn e os dois outros casais na sala.
– Estou feliz por vocês poderem estar conosco hoje. Esta é uma aula para casais muito especial, porque hoje é dia de Natal – disse ele. – Deitem-se no chão. Inspirem e expirem no mesmo ritmo. Sintam-se como um só.
Hallbjorn deitou-se em seu colchão. Aria deitou-se de costas também, tentando ignorar o fato de que o colchão cheirava a chulé. Ela olhou para Hallbjorn a seu lado. O peito dele subia e descia em uma cadência rítmica.
– Este exercício é sobre estarmos juntos em aceitação, união e amor – disse a garota do gorro de Papai Noel, depois que eles praticaram a respiração por mais alguns minutos. – Ele vai levar vocês a serem mais abertos e produtivos como casais. Primeiro, vamos fazer algo que chamamos de a árvore dupla.
Ela disse aos três casais na sala para se levantarem, ficarem lado a lado e passarem os braços pela cintura um do outro. Aria obedeceu, dando um sorriso nervoso para Hallbjorn. O braço dele era forte e firme em suas costas.
– Agora, levantem as pernas opostas, na posição da árvore – disse o cara com a barba estilo Jesus Cristo, demonstrando a pose com a garota do gorro de Papai Noel. – Toquem a palma da sua mão livre na de seu parceiro. Estão vendo? Isto os mantém unidos.
Aria sentiu o ponto de equilíbrio de Hallbjorn oscilar quando ele dobrou o joelho e colocou o pé no lado interno da coxa. Ela fez o mesmo, pressionando a mão contra a de Hallbjorn. Em vez de simplesmente encostar sua palma na dela, como os instrutores e os outros casais na sala estavam fazendo, ele entrelaçou seus dedos aos dela e os apertou.
– Muuuuuuuuito bem. – Os olhos do cara com a barba de Jesus estavam fechados. – Sintam a energia. Sintam a igualdade. Vocês são duas árvores na natureza, uma sustentando a outra.
– Isto se parece muito com os seus rituais do solstício, não é? – perguntou Hallbjorn.
Aria deu uma risadinha.
– Agora vão dizer para corrermos nus pela rua South.
Hallbjorn ergueu as sobrancelhas.
– Eu faria isso, se você também fizesse.
Aria precisou de toda a sua força de vontade para não corar.
– Agora, vamos fazer a abertura dupla. – A garota com o gorro de Papai Noel abaixou o joelho dobrado até o chão. – Isto realmente ajuda você e seu parceiro a superar todos os constrangimentos e inseguranças que tiverem em relação ao outro. Sentem-se em seus colchões. Abram suas pernas em um V, de frente um para o outro, e deem as mãos. Assim.
Os instrutores fizeram a pose. Ambos eram flexíveis ao extremo, e suas pernas se abriram em ângulos quase perfeitos. Eles se aproximaram até que suas virilhas estavam quase se tocando.
Aria riu de nervoso. Hallbjorn já estava abrindo as pernas na posição correta. Aria fez o mesmo, e então segurou as mãos de Hallbjorn. Aos poucos, eles se aproximaram mais e mais, inclinando-se para a frente até que seus rostos quase se tocaram. Aria olhou nos olhos de Hallbjorn e não desviou o olhar. Hallbjorn também não. Ela endireitou a espinha, inclinou-se para a frente e encostou os lábios nos dele. A boca de Hallbjorn era quente e firme, e tinha gosto de mel. E pela primeira vez em meses ela não pensou em Ezra, ou em Ali, e nem em A.
6
SOEM OS ALARMES
– Você se lembra desta foto? – Aria ergueu o laptop e apontou para uma foto dela e Hallbjorn na beira da Laugardal, uma das maiores piscinas públicas de Reykjavík. A neve flutuava ao redor deles, colando-se às suas peles nuas. Na Islândia, as piscinas públicas ao ar livre permanecem abertas o ano inteiro, porque são geotermicamente aquecidas. – Aquele lugar tinha o escorregador mais assustador do mundo!
– Você é que se acovardou. – Hallbjorn deu-lhe um cutucão. – Todos aqueles garotos esperando atrás de você, congelando, implorando para que você escorregasse logo.
– Eu sei, eu sei – disse Aria, encolhendo-se com a lembrança. Ela ficara assustada demais para descer pelo enorme escorregador, e preferira voltar pela escada de madeira.
Era a noite de Natal, e eles estavam aconchegados sob as cobertas na cama de Aria. Sem dúvida, aquele havia se transformado no melhor Natal de sua vida. Hallbjorn beijava melhor do que ela se lembrava, e durante os últimos vinte minutos ele estivera fazendo massagem em seu pescoço, o que a fazia estremecer de alegria e desejar nunca ter de sair daquele quarto.
Aria passou para a foto seguinte e começou a rir.
– Os pôneis! – Era uma foto dos cavalos islandeses de Hallbjorn, Fylkir e Fyra. Aria montava Fylkir, o mais baixo, mais gordo e mais dócil dos dois, mas havia uma expressão aterrorizada em seu rosto. Hallbjorn estava a seu lado, montando Fyra, que tinha cor de canela e narinas gigantes.
– Você me fez cavalgar por aquele penhasco íngreme da primeira vez em que montamos – ralhou Aria. – Eu quis matar você. Tinha certeza de que íamos despencar da beirada.
– Pôneis islandeses são confiáveis – protestou Hallbjorn.
– Bem, eu não acreditava em você na época. – Aria olhou para a versão mais jovem de si mesma na foto. – Não era de se espantar que meu irmão tivesse medo deles. Eles parecem tão pequenos e instáveis...
Hallbjorn começou a rir.
– Mike tinha medo dos cavalos islandeses?
Aria se encolheu sob as cobertas. Oops. Aquele era um dos maiores segredos de Mike.
– Hum, esqueça que eu lhe disse isso.
– Quem é esse cara? – Hallbjorn passou para a foto seguinte no laptop. As fotos de Aria não estavam organizadas em uma ordem específica, e a próxima imagem era de Noel Kahn, em uma das festas de Ali durante o sétimo ano. Aria tirara a foto discretamente, escondendo-se detrás de uma parede e pressionando o disparador quando viu que Noel não estava olhando. Ali zombara dela sem misericórdia, quando descobrira que Aria estava bancando a paparazza.
– Ah, alguém de quem eu gostava antes de me mudar para a Islândia – respondeu Aria com displicência.
– Acho que você me falou dele. – Hallbjorn observou de forma atenta a imagem de Noel. – Alison o roubou de você, não foi?
– Ele nunca foi meu, na verdade. – Aria olhou para a fotografia de Noel. Ele estava vestindo sua camisa da sorte, o uniforme de lacrosse da Universidade da Pensilvânia. Típico. – Além disso, todos os meninos eram apaixonados pela Alison. Mas eu achei que foi maldade dela sair com Noel. Ela sabia que eu gostava dele.
Pior que isso, Ali havia saído com Noel apenas uma vez antes de dar o fora nele. Aria teve a impressão de que ela fizera aquilo só para provar que podia ter qualquer garoto que quisesse, ou qualquer garoto que Aria quisesse.
Ele se ergueu, apoiado em um cotovelo.
– Ele foi um idiota por perder a chance de sair com você. Você é incrível. Eu gostava muito de Anja, mas nunca me esqueci de você. Você foi o meu primeiro amor.
– Amor? – guinchou Aria; a palavra era quase palpável no ar entre eles.
Duas manchas vermelhas apareceram nas faces de Hallbjorn.
– Sim, amor.
De repente, um galho se quebrou do lado de fora da janela, e o ruído foi seguido por uma gargalhada. Aria desceu da cama e abriu as cortinas. O céu da noite estava enevoado, e havia uma camada fina e brilhante de gelo sobre a neve. Contornando o perímetro da propriedade, havia marcas frescas de pegadas levando diretamente para a porta dos fundos.
– Ah, meu Deus – disse Aria, afastando-se da janela. – Acho que tem alguém lá fora!
Ela desceu as escadas correndo, e Hallbjorn foi logo atrás dela. Quando chegaram ao foyer, houve um barulho alto nos fundos, como se alguém tivesse derrubado uma das latas de lixo de metal. Aria agarrou o braço de Hallbjorn e apertou-o.
– Está tudo bem. – Hallbjorn puxou-a para mais perto de si. – Provavelmente é só algum animal.
– Não é só um animal. – O coração de Aria batia tão depressa que ela se sentiu tonta. – Tem alguém me seguindo. Tentando entrar aqui.
– Por que está dizendo isso?
– Alguém andou me perseguindo por meses, lembra? – Ela contara a Hallbjorn todo o drama sobre A naquela tarde.
– Sim, mas você não disse que sua perseguidora estava morta? – Hallbjorn andou na ponta dos pés até o pátio. – Deve ser um animal. Eu vou espantá-lo.
– Não vá lá fora! Eu vou chamar a polícia – disse Aria, apanhando o telefone do corredor.
Todo o sangue desapareceu do rosto de Hallbjorn, e ele arrancou o telefone das mãos de Aria, colocando-o de volta no gancho.
– Não! Não chame a polícia!
Aria deu um passo para trás, chocada.
– Opa. O que está havendo com você?
Por um momento, pareceu que Hallbjorn ia protestar, dizendo que não havia nada errado, mas ele abaixou os ombros e decidiu confessar.
– Sinto muito. Eu não queria ter de contar... Estou sendo procurado pela polícia na Islândia. Acho que a polícia daqui também já sabe. É por isso que eu tenho me escondido e evitado as viaturas. Eles podem estar atrás de mim. Então, por favor, não ligue para a polícia. Vou verificar o barulho, e então explicarei tudo. – Hallbjorn foi para a porta dos fundos.
Uma sensação ruim revirou o estômago de Aria, e ela voltou para a sala de estar, onde se afundou no sofá. Ela se perguntou se devia chamar a polícia assim mesmo. Mas aquele era Hallbjorn. Devia haver um bom motivo para ele estar sendo procurado.
– Era só um gambá – anunciou Hallbjorn, voltando para a sala. – Eu o vi fugir.
Aria olhou para ele.
– Por que a polícia está atrás de você?
– Eu liderei um protesto contra a destruição de um santuário de papagaios-do-mar perto de Reykjavík. Eu levei você até lá uma vez.
– Eu lembro – disse Aria lentamente. – Era o local onde os bebês papagaio se reproduziam. – Ela se apaixonara pelos bebês papagaio logo que os vira, e ficara louca para roubar um e levar para casa.
Hallbjorn ergueu a cabeça e lançou-lhe um olhar suplicante.
– Eles iam destruir tudo para construir um shopping. Deixar todos aqueles papagaios sem um hábitat. Eu não podia deixar aquilo acontecer. Então, fiz um protesto, e fui preso. Mas armei uma confusão e escapei da custódia. A polícia me procurou por dias. Eu me escondi na casa de um amigo, e aí percebi que teria que sair do país. Peguei um barco para a Noruega e apanhei um avião de lá. Meu passaporte não estava listado na Noruega, já que ninguém estava me procurando internacionalmente, ainda.
Aria piscou, tentando compreender aquilo tudo.
– Então... você não veio aos Estados Unidos para visitar sua família?
Hallbjorn balançou sua cabeça loura.
– Tenho alguns amigos em Nova York que me disseram que eu podia ficar com eles. Mas quando meu avião foi desviado para a Filadélfia, pensei em você. – Ele segurou as mãos dela. – Desculpe por não ter lhe contado tudo de cara; estava com medo do que você podia pensar de mim. Eu estava desesperado. Não podia apenas voltar para a Islândia. Eles me atirariam na cadeia. Você pode me perdoar?
Aria soltou as mãos das dele, cruzando-as no colo. Ela não gostava do fato de Hallbjorn ter mentido; tantas pessoas a haviam decepcionado nos últimos meses... Mas, pensando bem, ela teria deixado Hallbjorn entrar se soubesse que ele estava sendo procurado pela polícia? Ela já tivera contato suficiente com a polícia pouco tempo atrás.
Aria ergueu os olhos.
– Você foi atirado na cadeia só porque protegeu alguns papagaios-do-mar?
No país dela, era provável que ele levasse uma boa bronca e ficasse em liberdade condicional. Grupos de proteção ambiental como o PETA e o Greenpeace fariam dele seu garoto-propaganda.
– A Islândia é um país muito rigoroso – insistiu Hallbjorn. – Organizar um protesto e fugir da polícia é quase tão sério quanto cometer um assassinato. – Uma expressão contrita passou pelo rosto de Hallbjorn, e ele escondeu o rosto com as mãos. – Eu não sei o que vou fazer.
Aria se aproximou dele e passou os braços ao redor de seus ombros.
– Você só estava tentando salvar os papagaios; eu também teria protestado contra as pessoas que queriam destruir o santuário. Talvez você possa ficar nos Estados Unidos por algum tempo, conseguir um visto de estudante e frequentar a universidade aqui.
Logo que as palavras escaparam de sua boca, um plano começou a surgir na cabeça de Aria. Talvez Hallbjorn pudesse ir para Hollis ou para o Moore College of Arts, na Filadélfia; Aria poderia visitá-lo todos os finais de semana. Os dois dirigiriam até Nova York, e ela mostraria a ele os pontos turísticos, como ele lhe mostrara Reykjavík. Seria maravilhoso ter alguém com quem conversar, com quem sair nos fins de semana, e uma conexão com a Islândia mais uma vez.
Mas Hallbjorn sacudiu a cabeça.
– Eu não posso ficar aqui. O meu visto de turista expira daqui a uma semana. A única maneira de eu ficar aqui é me esconder, e não sei se quero fazer isso.
– Tem que haver outro modo. – Aria se recostou no sofá e pensou por um momento. Seus olhos percorreram a sala, notando a pilha de roupas para lavar no chão, o olho de Deus pendurado no espelho e o porta-retratos vazio na mesinha. Não havia muito tempo, aquele porta-retratos exibia uma foto de Byron e Ella no dia de seu casamento, abraçados afetuosamente sob a sombra das árvores. Quando Aria era pequena, costumava olhar para aquela foto durante horas, pensando que seus pais eram as pessoas mais românticas do planeta.
Foi como se um raio de repente atingisse seu cérebro. Ela se endireitou no sofá.
– Hallbjorn, e se nós nos casarmos?
Hallbjorn sufocou uma risada.
– Como?
– Estou falando sério. Se nos casarmos, o seu visto será estendido sem limite. Você poderia ir para a universidade aqui. Arrumar um emprego. E no fim, quando tiver passado tempo suficiente e nós conseguirmos um bom advogado, talvez você possa resolver as coisas com a polícia islandesa, voltar para lá e visitar sua família.
Hallbjorn passou a língua pelos dentes.
– E isso é legal? Quero dizer, nós nos casarmos aqui?
– Acho que a idade legal é dezesseis ou dezessete. – Aria deu de ombros. – E mesmo que precisemos forjar o consentimento de um de nossos pais, eu posso falsificar a assinatura da minha mãe. Tenho certeza de que ninguém vai prestar atenção, desde que paguemos as taxas. – Ela segurou as mãos de Hallbjorn, seu coração subitamente batendo rápido. – É a melhor ideia. Resolve todos os seus problemas. E não seria divertido sermos marido e mulher? Nós podemos ir para Atlantic City! Passar um final de semana por lá, e nos casarmos em uma daquelas pequenas capelas nos cassinos! Tenho algum dinheiro economizado; podemos ficar em um hotel fantástico. Pedir serviço de quarto. Beber champanhe. Jogar vinte e um. Viver um pouco.
Hallbjorn não parecia convencido.
– Estamos falando de um casamento. É um compromisso muito sério. Tem certeza de que quer fazer isso?
Aria colocou os pés sob o corpo. Era verdade que, às vezes, ela se atirava de cabeça nas situações sem pensar primeiro; seu romance com Ezra fora um bom exemplo. Mas aquilo era diferente. Hallbjorn era praticamente da sua idade. Eles se divertiam tanto juntos, tinham tanto em comum, e podiam conversar por horas. O que mais era necessário em um casamento, além daquilo? Era só olhar para Byron e Meredith: o que diabos eles tinham para conversar? O casamento de Aria e Hallbjorn talvez durasse mais do que o deles.
E não era só a Hallbjorn que o casamento ia beneficiar. Aria tinha a sensação de que seria maravilhoso para ela, também. Casar-se com Hallbjorn significaria que ele jamais a deixaria, como tantas outras pessoas fizeram. Ele seria seu salva-vidas em um mar agitado. Ela cuidaria para que seu casamento desse certo, fazendo o contrário de tudo o que seus pais haviam feito.
– Isso é o que eu quero fazer, com certeza – decidiu ela. – Mas e você? Está dizendo que não quer se casar comigo?
A expressão no rosto de Hallbjorn se suavizou. Ele se inclinou para a frente e afastou uma mecha de cabelos do rosto de Aria.
– Eu amo você mesmo. Mas este é um grande sacrifício que você está fazendo, para que eu não precise voltar para a Islândia.
– Não é um sacrifício. – Com cada palavra, a convicção de Aria ficava cada vez mais forte. – Eu acredito nisso com todo o meu coração. Eu juro.
Ela olhou nos olhos de Hallbjorn, tentando expressar tudo o que queria e sentia. Hallbjorn retribuiu, seus olhos de um azul gélido muito abertos. Finalmente, um sorriso terno iluminou seu rosto.
– Vamos fazer isso. – Ele caiu de joelhos. – Aria Montgomery, você quer se casar comigo?
– Sim! – exclamou Aria, caindo nos braços de Hallbjorn. – Atlantic City, lá vamos nós!
7
FESTEJANDO COMO ASTROS DO ROCK
– Sejam bem-vindos! – disse um porteiro a Aria e a Hallbjorn, na tarde seguinte, quando atravessaram as portas giratórias do Borgata Hotel Casino & Spa, em Atlantic City. – Aproveitem a estada!
– Obrigada – respondeu Aria alegremente, puxando sua mala com rodinhas atrás de si. Ela e Hallbjorn haviam feito uma longa viagem para chegar a Atlantic City; ele insistira em esperar seis horas na estação de ônibus gelada, para pegar o único Greyhound movido a gás natural. Mas nada daquilo importava agora. Aria olhou ao seu redor no saguão, e seu coração parou por um milésimo de segundo. Era um espaço imenso, de mármore e vidro, que cheirava a uma mistura de perfumes caros e filé grelhado do restaurante no final do corredor. Depois de um grande arco, havia máquinas de caça-níquel a perder de vista, e o ruído que emitiam juntas parecia o de um enorme enxame de abelhas. Algumas velhas senhoras estavam sentadas na frente das máquinas, puxando as alavancas mecanicamente. Uma onda de aplausos veio de uma mesa de vinte e um, e um crupiê girou uma roleta. Tudo parecia muito glamoroso, e de repente a enormidade do que eles estavam para fazer atingiu Aria mais uma vez. Eles iam se casar!
– Reserva para Montgomery – disse Aria para uma mulher na recepção, que usava os cabelos presos em um coque francês e um broche de lapela que dizia MAUREEN, AGENTE DE RESERVAS.
– Pois não. – Maureen deslizou os dedos de unhas compridas pelo teclado. – Aí está você, no quarto 908. A suíte tem vista para o mar. E incluído na sua diária está um jantar no restaurante de Wolfgang Puck e dois ingressos para o show desta noite.
Aria pagou pelo quarto em dinheiro, usando as economias que juntara com alguns artigos pagos que escrevera há pouco tempo sobre sua experiência com Mona-A. Ela se sentira um pouco desconfortável explorando aquela situação, mas estava feliz por ter o dinheiro agora, ainda mais porque a maior parte dele seria necessária para a licença de casamento e as taxas administrativas do pedido de visto permanente de Hallbjorn.
Outro porteiro, que mais parecia a personificação de Humpty Dumpty, colocou a bagagem deles em um carrinho e fez um gesto para que eles o seguissem até os elevadores. Quando as portas se fecharam, Aria deu um sorriso para Humpty.
– Com licença, você sabe se há alguma capela de casamento nesta área?
Humpty ergueu as sobrancelhas.
– Sim, sei. Se quiserem, posso pedir ao nosso gerente para cuidar de tudo.
Aria e Hallbjorn trocaram sorrisos.
– Isso seria ótimo – disse Hallbjorn. – Talvez amanhã à noite?
– Certamente. – Humpty sorriu e puxou o colarinho, que parecia apertado demais. – Podemos também pedir que uma limusine venha buscar vocês e levá-los até lá.
– Uma limusine não – disse Hallbjorn com rapidez. – Uma bicicleta para dois.
Aria hesitou; pedalar na neve? Mas Humpty não piscou um olho.
– Sem problemas. Posso dizer só de olhar para os dois pombinhos que vocês serão muito, muito felizes juntos.
Aria tomou a mão de Hallbjorn e a apertou com força.
As portas do elevador se abriram com um tilintar. Humpty carregou a bagagem deles e destrancou a porta da suíte, que ficava no final do corredor. Dentro dela havia um quarto enorme, com janelas do chão ao teto oferecendo uma visão deslumbrante do oceano Atlântico. Havia uma garrafa de champanhe gelada sobre a mesa de vidro no canto da sala, além de uma cesta cheia de salgadinhos e doces. Uma televisão gigante de tela plana estava presa à parede. A cama de casal era enorme e tinha um zilhão de travesseiros, e a banheira antiga era maior do que a de hidromassagem da casa de Spencer.
– Isso é incrível – arfou Aria.
– Fico feliz por você estar satisfeita. Avise-nos se houver alguma coisa que pudermos fazer por vocês. – Humpty colocou a bagagem deles em um banquinho ao pé da cama. Aria lhe entregou uma nota de dez dólares, e ele fez uma mesura, saindo do quarto.
Então, ela se virou para Hallbjorn e deu pulinhos de excitação.
– Nós vamos nos casar amanhã! – guinchou ela.
– Sim, vamos. – Hallbjorn se aproximou dela e tomou suas mãos. – Você vai ser a sra. Gunterson.
– Sra. Montgomery-Gunterson – corrigiu Aria. Ela arregalou os olhos. – Eu preciso encontrar um vestido! – Com a pressa em fazer as malas, ela havia se esquecido de trazer um. – E flores! E o que vamos fazer quanto ao bolo de casamento?
– Podemos encomendar um bolo em um dos restaurantes – sugeriu Hallbjorn. – E pedir que eles entreguem pelo serviço de quarto.
– Aposto que o serviço de quarto é bem caro. – Aria olhou pela janela. – Acho que vi um Wawa no caminho. Provavelmente, eles têm Tastykakes.
– Eu sou a favor de biscoitos orgânicos sem glúten, se pudermos encontrar alguns – disse Hallbjorn.
Aria apertou os lábios. A ideia de biscoitos orgânicos sem glúten como alternativa a um bolo de casamento cheio de açúcar e manteiga a deixava um pouco triste. Não que ela tivesse imaginado seu bolo de casamento com tanta obsessão; mas sempre pensara que seria uma obra de arte, com três camadas e dois bonequinhos no topo. Mas em vez de um noivo e uma noiva, eles seriam um cavalo e um porquinho. Ou dois astronautas de Lego. Ou um garfo e uma faca.
Ela se sentou na beirada da cama e folheou a brochura que encontrara no quarto, tentando descobrir se o hotel tinha um Spa. Seria legal poder arrumar os cabelos para o casamento – não que ela tivesse dinheiro para aquilo.
Hallbjorn a puxou para a cama, que era macia e confortável como Aria imaginara. Eles se beijaram por um longo tempo, com o som das ondas do mar ao fundo.
– Vou tirar um monte de fotos – murmurou Aria, quando Hallbjorn a virou de costas. – E vou espalhá-las por todo o meu quarto, para me lembrar deste final de semana pelo resto da minha vida.
Hallbjorn soltou uma risadinha.
– Seu quarto? Não será o nosso quarto, depois que nos casarmos? Ou você espera que eu vá morar em outro lugar?
Aria franziu a testa. Ela não pensara realmente sobre a logística do que iria acontecer depois que eles se casassem. Ela teria que contar tudo a seus pais? Iria se meter em encrencas? Mas pensando bem, o que eles podiam dizer? Byron e Ella haviam se casado escondidos, no último ano da faculdade; os pais deles acabaram aceitando a situação. Mas o que Mike iria pensar? E se as pessoas na escola descobrissem? Elas jamais entenderiam. Não que Aria se importasse com o que pensavam dela, é óbvio, mas as fofocas às suas costas já estavam se tornando cansativas.
– Vamos nos preocupar com onde vamos morar mais tarde – disse Aria, com voz trêmula. – Teremos muito tempo para decidir isso.
– Como você quiser. – Hallbjorn se inclinou para a frente e beijou a testa de Aria. Ela ergueu o queixo para que seus lábios se encontrassem. Eles se beijaram por mais um longo tempo, desaparecendo por entre a montanha de travesseiros, e, como num passe de mágica, todas as preocupações de Aria se dissiparam. Aquilo era para eles, e não dizia respeito a suas famílias ou às pessoas em Rosewood Day.
Hallbjorn tirou a camiseta de Aria, e ela fez o mesmo com ele, soltando um gemido de satisfação quando suas peles nuas se tocaram. Ela rolou na cama, acionando sem querer o controle remoto e ligando a televisão no volume máximo.
Aria ergueu os olhos. O canal interno do hotel, que anunciava os vários restaurantes, cassinos e opções pay-per-view do resort, estava sintonizado automaticamente. E então, duas panteras prateadas apareceram na tela.
– Agora, no Borgata, Biedermeister e Bitschi vão fazer você perder o fôlego! – dizia uma voz entusiasmada demais, seguida de um solo de guitarra ao estilo anos oitenta. Dois mágicos entraram de modo solene no palco, agitando suas capas como toureiros. As panteras rugiram, e a multidão observava fascinada.
Aria deu uma risadinha.
– Você acha que os nossos ingressos são para esse show?
– Espero que não – disse Hallbjorn, parando de beijá-la para observar a tela. De repente, o som distante de uma gargalhada se ouviu por detrás da porta. Aria apertou o botão MUTE do controle remoto.
– Você ouviu isso?
– O quê? – Hallbjorn ergueu a cabeça.
Ouviu-se o som de outra gargalhada, pelo vão da porta.
– Isso. – Os cabelos na nuca de Aria se arrepiaram.
– É só alguém rindo. – Hallbjorn massageou os ombros de Aria. – Você está sendo paranoica.
– Não é só alguém rindo – disse Aria, levantando-se e aproximando-se da porta, enquanto as risadas aumentavam. Parecia que a pessoa estava parada do lado de fora, esperando o momento de entrar. Ela colocou um robe, respirou fundo e abriu a porta.
O corredor estava vazio. Todas as portas estavam fechadas, e havia apenas uma bandeja, com duas taças vazias de vinho tinto, sobre o carpete do lado de fora do quarto.
Aria encostou-se à porta e esfregou as têmporas, pensando se Hallbjorn não estaria certo. Talvez ela estivesse apenas sendo paranoica. Talvez estivesse ouvindo coisas que não existiam de verdade.
8
PANTERAS EXPLORADAS
– Mais uma taça de champanhe? – perguntou uma garçonete, usando um vestido justo de lantejoulas e um chapeuzinho enfeitado com penas, quando Aria e Hallbjorn foram se sentar no saguão naquela noite.
– Eu não me importaria. – Aria estendeu sua taça. A garçonete colocou alguns morangos dentro do líquido, que borbulhou dramaticamente.
Aria tomou um gole e fechou os olhos, sentindo-se, de repente, muitíssimo relaxada. O dia fora absolutamente adorável. Eles haviam ficado na cama por horas, e então tiveram um jantar delicioso, romântico e gratuito no restaurante de Wolfgang Puck. Quando terminaram, Aria decidira ir a uma pequena butique vintage no final do quarteirão, que ainda estava aberta. Encontrara um lindo tubinho vermelho de bolinhas, que estava vestindo naquela noite, e um vestido branco longo maravilhoso, com renda no pescoço e minúsculos botões de pérolas nas costas, para o casamento no dia seguinte. A peça tinha um pequeno rasgo no decote, mas nada que agulha e linha não pudessem resolver. Com um pouco de sorte, ela poderia tingir o vestido de verde e usá-lo no baile de formatura.
E agora, ela e Hallbjorn estavam esperando na frente do teatro, para ver o show das panteras prateadas com Biedermeister e Bitschi. Era aquele mesmo o show incluído em sua diária. Um verdadeiro enxame de outros hóspedes, a maioria já idosos, esperava também. De repente, as portas do teatro se abriram, e os que já tinham seus ingressos na mão se apressaram para entrar.
Aria ficou parada, tomando cuidado para não derramar o champanhe.
– Vamos?
Hallbjorn olhou para o pôster do show, que estava emoldurado em um display ao lado das portas duplas. Os mágicos, cujos rostos esticados pareciam ter passado por muitas cirurgias plásticas, tinham mullets idênticos nos cabelos e olhavam intensamente para a lente da câmera. As panteras prateadas estavam sentadas junto a eles, como cãezinhos obedientes; a diferença era que elas mostravam de jeito ameaçador suas enormes e afiadas presas.
– Isso não é bem a minha praia – murmurou Hallbjorn, parecendo desconfortável. – Esses caras parecem uns idiotas. E eu já disse que fui traumatizado por um mágico quando era criança? Foi um palhaço que estava animando a festa de aniversário de oito anos do meu amigo Krisjan. Ele tinha uma risada aterrorizante.
– Claro que você teve medo dele; era um palhaço. – Aria deu um tapinha afetuoso no braço de Hallbjorn. – Shows de mágica também não são a minha praia, mas, ei, é de graça. Devemos aproveitar todas as vantagens, não acha? – Ela apertou a mão dele. – Além disso, teremos uma história engraçada para contar sobre o que fizemos na véspera do nosso casamento, daqui a vinte anos.
Hallbjorn deu de ombros e bebeu o resto de seu champanhe. Juntos, entraram no teatro, que tinha carpete de cores psicodélicas, assentos de veludo nas poltronas lotadas e, sobre o palco, retratos de outras estrelas que haviam visitado o lugar – estrelas da música country que Aria mal reconhecia e comediantes como Jerry Seinfeld – e uma dúzia de espetáculos diferentes do Cirque du Soleil. As luzes diminuíram no exato instante em que eles se acomodaram em duas poltronas próximas ao corredor.
– O Sven Biedermeister é tão lindo! – comentou uma mulher loura e gorducha, que se parecia muito com a bibliotecária de Rosewood Day, sentada na fileira à frente deles.
– Eu sou mais fã do Josef Bitschi – suspirou sua companheira, uma mulher grisalha com os dentes manchados de batom. – Eu só quero agarrá-lo e enchê-lo de beijos!
Aria e Hallbjorn se cutucaram e tentaram não rir alto. Um segundo depois, as cortinas prateadas se abriram. Uma fileira de bailarinas com chapéus extravagantes, quase nenhuma roupa e saltos altos brilhantes marchou pelo palco com sorrisos enormes nos rostos. Elas fizeram um número de dança ao som de alguma banda dos anos oitenta, a mesma do comercial que Aria vira naquela tarde, e todos aplaudiram. Aria olhou para Hallbjorn, deu de ombros e começou a aplaudir também.
Uma névoa branca apareceu, e os tambores rufaram. Em seguida, duas panteras brancas entraram no palco. Bieder meister e Bitschi montavam os animais, acenando os braços como caubóis. Eles haviam chegado ao ponto de colocar selas nas panteras, como se elas fossem pôneis.
O público ficou louco. As duas senhoras sentadas à frente de Aria e de Hallbjorn pareciam prestes a desmaiar. Os mágicos desmontaram das panteras e fizeram uma reverência para a plateia.
– Olá! – disse o mágico moreno, em um sotaque parecido com o de Arnold Schwarzenegger. – Vocês estão prontos para a diversão?
– Sim! – respondeu o público.
Aria tentou trocar um olhar com Hallbjorn, mas os olhos dele estavam fixos nos mágicos. As bailarinas começaram a dançar de novo, e então o show começou. Biedermeister e Bitschi agitaram suas capas e fizeram as panteras desaparecerem.
Com um gesto das mãos dos mágicos, uma das bailarinas começou a levitar. Eles enfiaram as cabeças nas bocas das panteras e provocaram os animais, fazendo-os rugir. Depois disso, as luzes se acenderam e os mágicos se sentaram em banquinhos altos, assobiando para as panteras. Dois assistentes as prenderam em longas correntes de metal, e elas se sentaram obedientemente ao lado dos mágicos, como se fossem gatinhos.
– Nós salvamos Arabelle e Thor de caçadores na África – disse Biedermeister... ou seria Bitschi? Aria não conseguia distinguir um do outro. – Foi uma missão dramática, mas nós sabíamos que a coisa certa a fazer era salvá-los de seu destino cruel – continuou ele, em tom exagerado.
Uma tela apareceu atrás dos mágicos, mostrando a foto de um helicóptero descendo na área de Serengeti. A foto seguinte exibia um grupo de pessoas correndo pela selva, presumivelmente para capturar os animais. Havia mais fotos das panteras prateadas na selva, das covas onde elas viviam e da pele de uma pantera prateada à venda em um mercado africano. O público vaiou.
– Elas eram apenas filhotes quando nós as resgatamos – disse o outro mágico, acariciando o pelo de alabastro de uma das panteras. – Nós cuidamos delas até recuperarem a saúde, e as criamos como se fossem nossos próprios animais de estimação.
Mais fotos mostravam as panteras, ainda filhotes, nos braços de Biedermeister e Bitschi, brincando em um quintal com um golden retriever e uma criança de ar distraído.
– Oooooooooh – reagiu o público. As mulheres sentadas à frente de Aria enxugaram as lágrimas dos olhos.
Os mágicos continuaram a falar por algum tempo sobre como amavam as panteras, e então voltaram ao show. Eles prenderam uma bailarina em uma caixa, enfiaram facas falsas no corpo de um espectador voluntário e fizeram uma das panteras desaparecer por um arco de fogo. Ela reapareceu em uma jaula de vidro na passarela junto ao público. Uma menininha se aproximou para abraçar a criatura, mas um dos assistentes se adiantou e interveio.
Quando um dos mágicos fez uma das panteras se equilibrar nas patas traseiras para dançar com ele, Aria começou a aplaudir; aquilo era mesmo bonitinho.
Hallbjorn lhe deu um chute. Quando ela se virou, ele estava olhando para ela horrorizado.
– O que foi? – sussurrou ela.
Hallbjorn apenas continuou a olhar para Aria, que se afundou em sua poltrona. Por que ele estava tão aborrecido?
Depois de mais meia hora de solos ruins de guitarra e reações exageradas da plateia, Biedermeister e Bitschi desapareceram por entre uma cortina de fumaça.
Todos aplaudiram. Hallbjorn agarrou a mão de Aria e a puxou de sua poltrona antes mesmo que os mágicos voltassem ao palco para os agradecimentos finais. Ele saiu do teatro tão depressa que ela mal conseguiu acompanhá-lo. No saguão, Hallbjorn olhou enraivecido para o pôster dos mágicos, e deu um chute na moldura, derrubando-o no chão.
– Por que você fez isso? – gritou Aria.
– E você ainda pergunta? – Os olhos de Hallbjorn estavam cheios de raiva. – Aquilo não foi a coisa mais nojenta que você já viu? Aqueles caras deviam ser presos por crueldade contra os animais!
Aria olhou para a porta fechada do teatro. O público ainda estava aplaudindo.
– Você acha que eles tratam as panteras mal? – perguntou ela, lentamente. – Mas e quanto àquela história que eles contaram, sobre tê-las salvado na África? Os caçadores iriam transformá-las em tapetes! Biedermeister e Bitschi as alimentaram com mamadeiras e as deixaram dormir em suas camas!
Hallbjorn soltou uma risada de escárnio.
– Eles não salvaram aquelas panteras, eles as roubaram de seu hábitat natural. E para quê? Para ficarem acorrentadas vinte e duas horas por dia? Para serem forçadas a andar nas patas traseiras? Eles estavam montados nelas, como se elas fossem cavalos! Onde está a dignidade?
– Como você tem tanta certeza de que as panteras ficam acorrentadas vinte e duas horas por dia?
– É só um palpite – disse Hallbjorn, enojado. – Eu decidi dar uma chance a este show; pensei que eles seriam bondosos e compassivos com os animais. Mas foi nojento. Aposto quanto dinheiro você quiser que aquelas panteras vivem em jaulas minúsculas, dormem sobre os próprios excrementos e não têm nenhuma chance de andar livremente. As pessoas não deviam aplaudir aqueles mágicos. Deviam atirar neles.
Aria se encolheu. Mas antes que pudesse protestar, as portas do teatro se abriram e a multidão começou a se dispersar. Aria levou Hallbjorn para longe das pessoas, com medo de que ele dissesse a alguém que tivera uma noite divertida que os mágicos não eram diferentes de Michael Vick, o astro do futebol americano indiciado por maus-tratos a animais.
– Não imaginei que elas fossem tratadas tão mal – disse Aria, baixinho. – Se isso for verdade, desculpe-me por ter trazido você ao show. É de fato nojento.
– É nojento mesmo. – Hallbjorn bateu o punho cerrado contra a palma da outra mão. – Deve haver algo que possamos fazer. Não posso só ficar olhando isto acontecer.
Aria lançou um olhar preocupado a Hallbjorn.
– Eu também não, mas vamos apenas relaxar esta noite, certo? Vamos nos divertir um pouco. – Ela se aproximou e encostou os lábios nos dele. Ele pareceu se acalmar um pouco. – Você não me disse que era um especialista em roletas? Aposto que consigo ganhar mais dinheiro do que você.
Hallbjorn parou para pensar um pouco. Ele olhou com uma expressão furiosa para as pessoas que saíam do teatro, e para o pôster de Biedermeister e Bitschi. Então, respirou fundo, segurou a mão de Aria e sorriu.
– Vamos lá – disse ele, e levou-a para o cassino.
9
OS GRANDES VENCEDORES!
Algumas horas depois, Aria e Hallbjorn estavam junto à roleta, observando enquanto ela girava. O ar estava pesado de fumaça de cigarro, e a cabeça de Aria já começava a rodar com os sons enlouquecedores de um zilhão de máquinas caça-níquel funcionando ao mesmo tempo.
– Estou dizendo, acho que o número dezessete está amaldiçoado – murmurou ela, quando a bolinha caiu novamente no zero-zero e o crupiê recolheu as fichas de todos. – Não ganhamos nenhuma vez. Talvez fosse melhor apostar em outro número.
– Mas dezessete é um número de sorte – argumentou Hallbjorn. – O meu aniversário é dezessete de agosto. Minha família mora na Bergstadastrati, dezessete. E a cafeteria onde nos conhecemos? O endereço é Laugavegur, duzentos e dezessete. Eu acho que isso é um sinal. – Ele misturou as fichas que haviam sobrado em sua pilha. – Só mais uma aposta no dezessete? Por favor?
Aria apertou os lábios, olhando para o feltro verde da mesa. Como não havia janelas no lugar, ela não tinha ideia de que horas eram, mas ela e Hallbjorn haviam passado pelas mesas de vinte e um, pôquer e dados, às vezes ganhando um pouco, mas perdendo na maior parte do tempo. Eles estavam se divertindo muito; Aria se preocupara no começo, pensando que Hallbjorn se oporia a jogar, dizendo que era uma perda de tempo ou que as fichas eram feitas de material não biodegradável, mas ele parecera tão envolvido no jogo quanto ela própria, usando suas próprias economias para apostar. O problema era que eles já haviam perdido cerca de cem dólares, um dinheiro que eles não podiam se dar ao luxo de desperdiçar.
– É sério. Acho que devíamos parar. Precisamos de dinheiro para a nossa licença de casamento e o seu visto. – Aria procurou novamente por um relógio na parede, antes de lembrar que não havia nenhum. – Além disso, está ficando tarde.
– Mas eu estou com uma sensação muito boa sobre isto. – Hallbjorn reuniu as fichas que restavam em suas mãos. – Só mais uma vez no número dezessete. E se eu não ganhar, vou arrumar um jeito de conseguir o dinheiro de volta. Posso trabalhar lavando pratos.
Ele apostou todas as fichas que eles ainda tinham, cerca de duzentos dólares, no número dezessete outra vez. Aria fechou os olhos, incapaz de observar a roleta girando.
– Façam suas apostas, façam suas apostas – gritou o crupiê. De repente, a pele de Aria se arrepiou. Ela olhou por cima do ombro, sentindo os olhos de alguém em suas costas, mas todos estavam concentrados nos jogos. Até mesmo as atenciosas garçonetes estavam preocupadas.
A roleta emitia sons altos ao girar. Começou a desacelerar, e Aria ouviu a bolinha cair. Hallbjorn agarrou a mão dela.
– Veja! Eu disse a você!
Aria olhou e quase engasgou. A bolinha tinha caído no número dezessete.
Todos ao redor da mesa começaram a aplaudir.
– Os grandes vencedores! – anunciou o crupiê. Uma senhora idosa, vestindo um casaco de mink, piscou para Hallbjorn do outro lado da mesa.
O crupiê empurrou uma pilha de fichas na direção de Hallbjorn, e então mais uma. Algumas das fichas eram pretas, no valor de cem dólares, mas nove delas eram azuis, de um tipo que Aria nunca vira antes. Ela apanhou uma das fichas e prendeu o fôlego. Mil dólares, dizia a inscrição na ficha. Hallbjorn havia ganhado mais de dez mil dólares com apenas um giro da roleta.
Aria apanhou as fichas de Hallbjorn e as colocou no pequeno balde de plástico com o nome BORGATA gravado.
– Já chega de jogar por hoje – sussurrou ela para Hallbjorn. – Não vamos correr o risco de perder todo esse dinheiro.
– Como você vai gastar tudo isso, querido? – suspirou a senhora idosa de casaco de mink. – Férias com sua namorada? Uma motocicleta nova?
Aria se perguntou o que eles iriam fazer com o dinheiro, também; já que eles iam se casar, tecnicamente o dinheiro pertencia aos dois. Com certeza, seria o bastante para pagar alguns meses do aluguel de um bom apartamento. E talvez fosse o suficiente para resolver os problemas legais de Hallbjorn na Islândia.
Hallbjorn sorriu para a senhora idosa.
– Eu sei exatamente no que vou gastar o dinheiro. Será por uma boa causa.
Ele tirou o balde das mãos de Aria e se dirigiu ao caixa, iluminado por luzes neon, no canto do salão. Aria o seguiu, e toda a sua excitação pareceu desaparecer de repente. Ele iria doar o dinheiro para uma boa causa?
Ela o alcançou no momento em que Hallbjorn entregava o balde a uma caixa de cabelos louros desbotados.
– Então, hum, você vai doar o dinheiro para o Salve as Baleias ou o World Wildlife Fund? – perguntou ela, tentando manter um tom de voz neutro.
Hallbjorn se encostou ao balcão enquanto a caixa contava as fichas.
– Eu não me referia a esse tipo de boa causa. Vou comprar um anel de compromisso para você.
– O quê? – Aria deu um passo para trás. Pareceu que levara um choque elétrico. – Por que você faria isso?
Ele sorriu.
– Porque você merece. E eu não vou aceitar não como resposta.
Hallbjorn assinou a papelada no caixa, recebeu o dinheiro e arrastou Aria pelo cassino, passando por algumas showgirls, turistas usando pochetes e um grupo de garotas com roupas muito bregas no bar, chegando a um arco que dizia LOJAS em letras douradas. Luzes brilhavam em todas as lojas, e as portas estavam escancaradas. Depois de passarem por uma chocolataria Godiva, uma butique que vendia smokings e vestidos de festa e uma loja de vinhos que oferecia degustação, Hallbjorn entrou em uma joalheria chamada Hawthorne & Sons, que exibia um diamante em forma de losango na vitrine.
– Você não precisa me comprar um anel – insistiu Aria.
– Claro que preciso – disse Hallbjorn, por sobre o ombro. – Nós vamos nos casar. Um homem tem que comprar um anel para sua mulher.
– Eu não sou tão tradicional – disse Aria, mas de repente uma onda de excitação a invadiu. Seria legal ter um anel de compromisso, algo para girar ao redor do dedo durante as aulas. Aquilo faria o casamento parecer muito mais oficial.
Uma vendedora, que parecia pouco mais velha do que Aria, aproximou-se deles.
– Estão procurando alguma coisa especial?
– Precisamos de um anel de noivado. – Hallbjorn fez um gesto na direção de Aria.
– Certo – disse a vendedora alegremente, trazendo uma bandeja de veludo com solitários de diamantes. Cada um brilhava mais que o outro. Aria tinha até medo de tocar neles.
– Este aqui está com um preço ótimo. – A vendedora apontou para um enorme diamante redondo em um anel grosso de ouro branco. – Tamanho máximo por um preço mínimo. Todas as meninas gostam de chamar atenção – acrescentou ela, sorrindo para Hallbjorn.
Aria estendeu a mão, e a garota colocou o anel em seu dedo. Era bem pesado. Aria abriu os dedos, virando a mão para um lado e para o outro, observando enquanto o diamante espalhava prismas pela loja. Aquela não era uma pedra muito diferente da que Jessica DiLaurentis usava. E a mãe de Spencer tinha um anel que se parecia muito com aquele. Mas será que Aria queria mesmo se parecer com a mãe de alguém?
Hallbjorn limpou a garganta, um tanto desconfortavelmente, e fez uma careta como se estivesse sentindo um cheiro ruim.
– Aria, não acho que devíamos apoiar o comércio de diamantes.
– Concordo. – Ela tirou o anel e o devolveu para a vendedora, afastando-se para dar uma olhada no resto da loja. Ela examinou as pérolas artificiais, os pingentes de safira e as pulseiras de diamantes cor-de-rosa. Devia haver algo naquele lugar que não gritasse Sou Rica, Suburbana e Insuportavelmente Chata.
E então, ela viu algo perfeito.
Em uma vitrine no canto da loja, havia um anel de ouro branco desenhado para parecer uma cobra engolindo sua própria cauda. Duas safiras formavam seus olhos, e as escamas eram feitas de ônix. Aria atravessou a loja correndo, encostando o rosto contra o vidro.
– Posso ver aquele ali? – perguntou ela, apontando com o dedo.
A vendedora franziu o rosto.
– Aquele não é um anel de noivado.
– Quem se importa? – Hallbjorn se aproximou de Aria, examinando o anel também. – Aquele anel é incrível. E olhe! As pedras foram vendidas segundo as leis do mercado justo!
Parecia destino. O anel serviu no dedo de Aria com a mesma perfeição que o sapatinho de cristal no pé de Cinderela. A cobra parecia olhar para ela, seus olhos de safira ao mesmo tempo ameaçadores e protetores. Era como um talismã, um amuleto de boa sorte. Enquanto Aria o usasse, nenhum mal poderia lhe acontecer. Aquela cobra garantiria que o casamento de Aria e Hallbjorn fosse feliz. Ela afastaria o azar e os maus espíritos.
E faria tudo para que A nunca, nunca mais voltasse.
10
ACEITO
– Você tem uma pele incrível – disse a maquiadora para Aria, enquanto espalhava pó em seu rosto. Ela se chamava Patricia, tinha um monte de tatuagens e cheirava a xampu Head & Shoulders. – Não preciso usar quase nada em você.
– Só faça os meus olhos parecerem esfumados e dramáticos – pediu Aria a ela. – Quero ficar maravilhosa nas fotos.
– Pode deixar. – Patricia vasculhou sua maleta. – Então, você vai se casar, não é?
– Isso mesmo – respondeu Aria, fazendo biquinho para aplicar mais gloss.
– Você está animada?
– É claro. – Ela encolheu os ombros, sentindo um súbito calafrio.
Era a tarde seguinte, e Hallbjorn surpreendera Aria mais uma vez ao oferecer a ela massagem no quarto (com óleos ecologicamente corretos, claro), uma visita de Patricia, a maquiadora, e um penteado profissional com Lars, que usava as calças mais justas que Aria já vira. O quarto do hotel fora transformado em um salão de beleza, com Adele tocando ao fundo, sanduíches de pepino e uma jarra de mimosas em uma bandeja, pilhas de revistas de fofocas sobre a cama e o cheiro dos óleos de massagem se espalhando pelo ar. Hallbjorn desaparecera assim que Patricia e Lars haviam cruzado a porta, dizendo que esperaria para ver a transformação de Aria quando eles tivessem terminado tudo. Aria tirara uma foto dele com sua câmera digital quando ele saía do quarto. Ela estava tentando documentar tudo naquele dia, da maleta de maquiagem bagunçada de Patricia aos sete piercings nas orelhas de Lars, e não queria perder nem um único detalhe.
– Você vai ser uma noiva tão linda – murmurou Patricia. – Quantos anos você tem? Vinte e um, vinte e dois?
Aria assentiu com displicência, sem querer dizer que tinha apenas dezessete anos. A idade dela era um problema; quando o porteiro viera lhe entregar a papelada da licença de casamento naquela manhã, Aria precisara da assinatura do pai ou da mãe para que o estado de Nova Jersey permitisse que ela se casasse. Ela forjara a assinatura de Ella e incluíra o número de seu próprio telefone celular, imaginando que poderia fingir ser Ella se alguém do juizado resolvesse verificar.
Aria olhou para o celular sobre a mesinha, sentindo uma pontada de culpa. Será que devia ligar para Ella e contar para a mãe o que estava para fazer? Ou talvez devesse ligar para uma de suas antigas amigas. Parecia estranho fazer aquilo sem que ninguém soubesse. Mas aquilo era entre ela e Hallbjorn, e a última coisa de que Aria precisava era de alguém tentando convencê-la a desistir.
Logo, Patricia terminara a maquiagem de Aria e Lars penteara seus cabelos com perfeição. Ela se trancou no banheiro, colocou o vestido que comprara no dia anterior e observou o resultado no espelho. Aria costurara o pequeno rasgo no pescoço, e o vestido se ajustara perfeitamente bem à sua cintura e a seus quadris. Com seus cabelos lisos e olhos esfumados, ela parecia uma versão estrela de cinema de si mesma.
Quando saiu do banheiro e abriu os braços, em uma pose “tchan-tchan-tchan-tchan”, Patricia deu um gritinho.
– Você está maravilhosa!
– Estonteante – concordou Lars, encostando-se ao birô de modo coquete. – Você tem uma coisa nova, uma coisa velha, uma coisa emprestada e uma coisa azul, certo?
Aria olhou para eles com um ar confuso. Patricia e Lars levaram as mãos à boca.
– Uma coisa nova, uma coisa velha, uma coisa emprestada e uma coisa azul? – repetiu Lars. – Nunca ouviu falar disso? Uma noiva tem que usar tudo isso no dia de seu casamento! Para dar boa sorte!
Aria ouvira falar, mas havia se esquecido daquilo. Ela olhou para o vestido.
– Bem, isto é velho – disse ela. – Mas também é novo... para mim.
– Aqui está algo emprestado. – Lars tirou um bracelete de couro de seu pulso. O bracelete tinha tachinhas e a inscrição DURÃO, mas aquele era o toque roqueiro perfeito.
– E espere um minuto... – disse Patricia, indo até o corredor e voltando com um buquê de violetas.
– Onde foi que você arranjou isso? – perguntou Lars, colocando uma das mãos na cintura.
– No vaso perto do elevador. – Patricia colocou o dedo sobre os lábios, e prendeu uma violeta atrás da orelha de Aria. – Perfeito.
Era hora de ir, e eles correram com Aria até o saguão. Alguém vestindo um smoking esperava perto das portas giratórias, de costas para eles. Aria não percebeu que era Hallbjorn até que ele se virou e sorriu para ela.
– Uau – disse ela, perdendo o fôlego.
– Eu ia dizer a mesma coisa de você – respondeu Hallbjorn, tomando a mão de Aria.
Eles ficaram em silêncio por um momento, e então começaram a rir. “Isto está mesmo acontecendo”, pensou Aria. “Eu vou mesmo me casar.”
Aria colocou o casaco, e Humpty, o porteiro do dia anterior, os levou até o lado de fora, mostrando-lhes a bicicleta para dois que alugara. A bicicleta tinha selins banana, serpentinas amarradas no guidão e nenhuma alavanca de marcha à vista.
– Eu só consegui encontrar uma bicicleta de passeio – disse ele, meio envergonhado. – Espero que seja suficiente.
– É mais do que suficiente. – O selim estava coberto de areia da praia, e as marchas estavam um pouco enferrujadas, mas Aria não podia imaginar um transporte melhor para seu casamento.
A temperatura estava muito mais alta do que no dia anterior, e toda a neve fora retirada das ruas. Hallbjorn assumiu o banco da frente da bicicleta e começou a pedalar, badalando o sininho. Não era fácil para Aria pedalar de saltos, e ela teve que deixar os pés balançando na maior parte do percurso. Algumas pessoas acenaram quando eles passaram, e alguns motoristas buzinaram. Aria pensou ter notado alguém à espreita atrás deles, mas quando olhou por sobre o ombro, quem quer que fosse já havia se escondido atrás de uma esquina... ou talvez nem estivesse lá. Ela tentou esquecer as preocupações. Nada iria estragar o dia de seu casamento.
Eles chegaram à capela, um pequeno prédio branco espremido entre uma loja de penhores e um estúdio de tatuagens. Uma placa com letras vermelhas acima da porta dizia CAPELA DO AMOR, e havia cortinas com estampas de coração nas janelas. Hallbjorn ajudou Aria a descer da bicicleta, e então lhe dirigiu um olhar longo e profundo.
– Você é tão linda, Aria Montgomery – disse ele.
– E você também, Hallbjorn Gunterson – respondeu Aria, e sua voz tremeu um pouquinho.
Ele se inclinou e a beijou.
Eles subiram os degraus juntos. O interior da capela era decorado com cortinas vermelhas, colunas altas pintadas de branco e vasos repletos de rosas vermelhas e brancas. Um candelabro reluzente pendia do teto, e algumas fileiras de cadeiras estavam posicionadas dos dois lados de um corredor acarpetado de vermelho. A sala cheirava a uma mistura de perfume e flores, e uma música suave vinha dos alto-falantes. Uma porta se abriu nos fundos da capela, e alguém vestindo um traje completo de Elvis Presley, com a jaqueta de lantejoulas, calças boca de sino, um topete bufante e óculos de aviador, saiu rebolando e sorriu para eles.
– Olá, pombinhos – cantarolou ele, em uma imitação perfeita da voz de Elvis. – Sou eu quem vai casar vocês hoje.
Aria riu. Aquilo era perfeito demais.
Elvis pediu para ver a papelada da licença, e Aria a entregou a ele. Ele enfiou tudo no bolso sem sequer olhar.
– Vocês têm testemunhas, garotos?
Aria olhou para Hallbjorn.
– Hum, não...
– Nós seremos as testemunhas deles – disse uma voz vinda da esquerda. Uma dançarina alta e magra, usando uma pluma na cabeça, estava sentada ao lado de uma mulher que era a imagem de Cher.
Elvis voltou para a frente da capela e instruiu Hallbjorn para segui-lo. Cher saltou de sua cadeira e levou Aria para uma pequena antessala perto do corredor, onde havia algumas poltronas e um espelho de corpo inteiro. Aria olhou para si mesma, observando seu vestido vintage e as flores em seus cabelos. Cher estava atrás dela, arrumando a parte de trás de seu penteado.
– Obrigada por serem nossas testemunhas – sussurrou Aria.
– Ah, eu adoro casamentos, querida – respondeu Cher, com uma voz profunda.
Aria viu suas mãos enormes refletidas no espelho e sorriu. “Claro que Cher tinha que ser uma drag queen.”
“Canon in D” começou a tocar nos alto-falantes. Depois de alguns acordes, Cher ofereceu o braço a Aria. Aria aceitou, como se fosse perfeitamente normal que uma drag queen a estivesse levando para o altar em vez de Byron. Seus olhos se ancoraram nos de Hallbjorn, esperando na frente da capela, o tempo todo. Havia um sorriso radiante em seu rosto. Suas mãos estavam fechadas, na altura da cintura, e ele batia um dos pés no chão.
Ela parou ao lado de Hallbjorn quando a música parou. Cher lhe deu um beijo no rosto, murmurou “Boa sorte” e se sentou ao lado da bailarina. Elvis estava de frente para os dois; ele abriu um grande livro com capa de couro e páginas com bordas douradas e limpou a garganta.
– Estamos reunidos aqui hoje para unir Aria Marie Montgomery e Hallbjorn Fyodor Gunterson.
Ele hesitou um pouco ao dizer o nome de Hallbjorn, e Aria riu de nervoso. Elvis continuou com o texto típico dos casamentos, que Aria ouvira em incontáveis filmes e lera em centenas de livros. Ele os fez repetir que aceitavam um ao outro para o melhor e para o pior, na doença e na saúde, na alegria e na tristeza, pelo tempo que vivessem. As mãos de Aria tremiam quando Hallbjorn colocou o anel de cobra em seu dedo. Ela apanhou a aliança simples de ouro que comprara para Hallbjorn na mesma loja e colocou-a no dedo dele.
– Eu os declaro marido e mulher – Aria ouviu Elvis dizer, e então de repente Hallbjorn a estava beijando, e Cher e a bailarina estavam aplaudindo.
O coração de Aria batia rápido; tudo aquilo parecia um sonho. Quando ela abriu os olhos, uma chuva de confete estava caindo do teto. Uma banda apareceu nos fundos da capela, ligando os instrumentos em amplificadores, e Elvis agarrou o microfone que usara para realizar a cerimônia e começou a cantar “All Shook Up”. A capela virou uma festa. Hallbjorn tomou as mãos de Aria, balançando-as para a frente e para trás. Cher pegou Aria no colo e a girou. A bailarina sacudiu o busto e fez algumas piruetas. Alguns turistas idosos, vestindo casacos pesados, entraram na capela, e Elvis os convidou para se juntarem às comemorações. Aria parou por um momento, tentando absorver tudo aquilo. Tudo era tão... Aria, desde as flores roubadas em seus cabelos até o fato de Hallbjorn ter se esquecido de alugar sapatos junto com o smoking e ainda estar usando suas botas de escalada. Uma onda de felicidade invadiu Aria, e ela deu um sorriso largo, eufórico. Ela jamais poderia ter imaginado um casamento tão perfeito.
11
O CASAL QUE DESOBEDECE ÀS LEIS UNIDO...
Quando Aria e Hallbjorn saíram da Capela do Amor, uma hora e meia depois, com as vozes roucas depois de cantar músicas de Elvis e os pés doendo de tanto dançar com Cher, encontraram sua bicicleta com uma faixa amarrada na traseira, com as palavras RECÉM-CASADOS escritas com letras cor-de-rosa. Um monte de latas vazias também estava amarrado à bicicleta.
– Este foi o melhor casamento de todos os tempos – disse Aria, subindo na bicicleta. – Agora, mal posso esperar para voltar para o nosso quarto de hotel, marido.
– Eu concordo, esposa. – Hallbjorn girava sua aliança de casamento no dedo. – Mas quero lhe mostrar uma coisa primeiro.
– Outra surpresa? – perguntou Aria, cuja cabeça começava a rodar. Talvez Hallbjorn tivesse planejado um jantar incrível. Ou reservado passagens para eles viajarem em uma pequena lua de mel.
– Você vai ver quando chegarmos lá.
Hallbjorn jogou a perna por sobre o selim e começou a pedalar. Eles desceram a rua com as latinhas balançando. Em vez de virar na entrada principal do Borgata, Hallbjorn passou direto por ela e tomou a esquerda, entrando em uma ruazinha estreita. Passaram por alguns estacionamentos e zonas de carga e descarga antes de pararem na frente da grande porta de metal de uma garagem. Hallbjorn desceu da bicicleta e limpou o smoking, que estava manchado com o sal espalhado nas ruas.
Aria olhou ao redor. Não havia uma alma à vista, e eles estavam cercados de pilhas enormes de neve suja. Havia alguns caminhões estacionados por perto, com as cabines vazias. Ela pensou ter escutado alguém tossir, e ficou imóvel por um momento, mas não ouviu nenhum som.
– Por que estamos aqui? – perguntou ela, tremendo.
– Vou mostrar.
Hallbjorn caminhou até a porta da garagem e puxou o trinco na base. Antes que Aria pudesse impedi-lo, ele já erguera a porta, revelando um galpão pequeno e escuro. O cheiro de urina de gato invadiu as narinas de Aria de imediato, e ela controlou o enjoo. Quando conseguiu ajustar sua visão, Aria viu duas jaulas pretas de lados opostos do galpão. Ela viu duas grandes sombras por detrás das barras. E então ouviu um rugido alto e ameaçador.
Ela se virou para Hallbjorn, momentaneamente atordoada.
– Essas são as panteras do show?
– Sim. – Hallbjorn acendeu uma luz, o que só fez as feras rugirem mais alto. Elas pareciam ainda maiores vistas de perto; seus corpos eram puro músculo, e seus olhos amarelos brilhavam. Estavam trancadas em duas jaulas minúsculas, que mal tinham espaço para que se virassem ou se deitassem. Suas vasilhas de comida e água estavam vazias. Havia fezes por todo o chão, e o galpão parecia frio demais para um animal se sentir confortável.
– Como você as encontrou? – balbuciou Aria.
– Eu fiz algumas investigações enquanto você se maquiava – explicou Hallbjorn. – Foi mais fácil encontrá-las do que eu imaginava. Ninguém cuida delas, na maior parte do dia. Elas só são importantes quando precisam se apresentar. – Ele apontou para uma das panteras. Ela estava encolhida em um canto da jaula, tremendo.
Os olhos de Aria se encheram de lágrimas.
– Pobrezinhas.
Hallbjorn se virou para ela, com o rosto subitamente animado.
– Mas nós podemos ajudá-las. Eu quero libertá-las. Dar a elas a vida que merecem.
Aria olhou para as jaulas das panteras. Havia vários cadeados enormes nas portas.
– E como nós vamos fazer isso?
– Acho que sei como. Entre as sete e as oito da manhã, o tratador abre as jaulas para elas fazerem um pouco de exercício, que no caso se limita a uma caminhada pelo galpão, presas em correntes. Amanhã de manhã, eu poderia distrair o tratador e você poderia entrar, abrir as portas e soltar as panteras.
– Eu tenho que soltá-las? – Um dos felinos bocejou, e Aria apontou para seus caninos enormes. – E me arriscar a ter um braço arrancado?
– Então eu abro as jaulas. Você distrai o tratador. – Hallbjorn parecia exasperado. – O ponto principal é que nós as soltaremos. Nós as libertaremos de seus opressores.
– Para que elas possam andar por Atlantic City? – Aria deu um passo para longe dele. – Hallbjorn, este não é exatamente o hábitat natural delas. Onde elas vão viver? Debaixo da ponte? O que vão fazer se nevar? Como vão se alimentar?
– Qualquer coisa é melhor do que a situação que elas têm aqui. – Hallbjorn estendeu o braço na direção das jaulas. As panteras soltaram rugidos altos, como se estivessem respondendo.
– Mas uma pantera à solta pode machucar alguém! – gritou Aria. – Pense naquelas pessoas idosas na capela, agora há pouco. Você acha, sinceramente, que elas poderiam fugir de uma pantera?
Hallbjorn colocou as mãos na cintura.
– Tenho certeza de que elas são muito dóceis. E não vão tentar ferir ninguém; elas só querem ser livres. Elas devem correr direto para o pântano, fora da cidade.
Aria olhou para ele, incrédula, esperando pelo momento em que Hallbjorn começaria a rir e diria que só estava brincando, e que ia chamar a Sociedade Protetora dos Animais e deixá-los cuidar da situação. Mas a gargalhada não veio. Ele olhava para ela de maneira fixa, com uma expressão muitíssimo séria.
– Eu quero dividir tudo com você, agora que estamos casados – disse Hallbjorn. – E também quero que o nosso casamento seja maior do que nós dois. Juntos, nós podemos conquistar o mundo.
Aria deu outro passo para fora da garagem, e seu salto afundou em uma pilha de neve derretida.
– Mas não desse jeito. Nós podemos nos meter numa grande encrenca. Pensei que você tivesse vindo para cá para fugir de encrencas.
Hallbjorn pareceu triste de repente.
– Bem, eu pensei que você ia gostar da ideia. Pensei que você se importasse.
– Eu me importo. Eu amo a maneira como você se compromete com causas como esta, e quero compartilhar essa paixão com você. Mas não desobedecendo à lei.
Aria olhou por sobre o ombro. Eles podiam se meter em sérios apuros só por estarem ali. Biedermeister e Bitschi podiam processá-los por invasão de propriedade. E aquele lugar era tão sombrio... Todas aquelas pilhas de neve, pretas com a fumaça dos caminhões... E o cheiro de fezes de animais fazia os olhos de Aria arderem. Ela olhou para o anel de cobra em seu dedo. De repente, a descontração da cerimônia do casamento deles lhe pareceu muito distante.
– Talvez nós devêssemos pensar mais um pouco a respeito disso – disse Aria, passando o braço pela cintura de Hallbjorn. – Se você realmente quer ajudar as panteras, devíamos chamar alguma autoridade, alguém que possa levá-las para um lugar seguro. Além disso, esta é a nossa noite de núpcias. Você não preferiria fazer as coisas tradicionais de uma noite de núpcias, em vez de planejar como soltar panteras?
Hallbjorn torceu os lábios. Aria podia ver que ele estava cedendo.
Ela acariciou as costas dele.
– Pense. Amanhã de manhã nós podemos acordar como marido e mulher, assistir ao nascer do sol, tomar café na cama... – Ela deslizou os dedos pelas costas dele e afastou uma mecha de cabelos de seus olhos. Hallbjorn olhou outra vez para as panteras em suas jaulas. Aria puxou o rosto dele pelo queixo, fazendo-o desviar o olhar, e beijou seu pescoço. – Por favor?
Por fim, Hallbjorn suspirou.
– Como posso dizer não para você?
– Você não pode. Eu sou sua esposa. Você tem que fazer tudo o que eu disser.
Rindo, Hallbjorn fechou a porta da garagem e montou novamente na bicicleta. Aria subiu na garupa, e eles pedalaram até a entrada do hotel. Quando viraram a esquina, Aria ouviu outro rugido atormentado. Os músculos nas costas de Hallbjorn ficaram tensos, mas ele continuou pedalando, até que finalmente o rugido triste e solitário silenciou.
12
PÂNICO GERAL
Aria abriu os olhos. Ela estava de pé no meio de um gramado, do lado de fora de um tribunal. Uma cidade inteira se estendia à sua frente, para além do monte. Era Rosewood.
De sua posição privilegiada, podia ver o colégio Rosewood Day e a espiral de Hollis. Ela também podia ver o topo da casa dos Hastings, com seu cata-vento antigo. Mas como chegara até ali? Aquilo teria alguma coisa a ver com seu casamento com Hallbjorn? Estaria encrencada por falsificar a assinatura de Ella? Aria olhou novamente para o solo e franziu o nariz. A neve desaparecera. Na verdade, o gramado parecia um tanto... verde. Como meio metro de neve podia ter derretido tão depressa?
As portas do tribunal se abriram, e uma multidão de pessoas e repórteres com câmeras e microfones invadiu as escadas.
– Sr. Thomas, sr. Thomas! – Ian Thomas desceu os degraus correndo com seu advogado, e entrou depressa em um carro que já esperava na esquina.
A cabeça de Aria começou a latejar. Ela já testemunhara aquela cena antes. Aquela era a audiência de acusação formal de Ian. No mês passado.
– Oi.
Aria se virou. Quando ela viu a figura loura com o rosto em formato de coração à sua frente, um grito ficou preso em sua garganta.
– Ali? – sussurrou ela.
– Em carne e osso – disse a garota, fazendo uma mesura. – Sentiu saudade de mim?
Aria olhou para ela, atônita. Era Ali... mas também não era. Ela estava mais alta. Mais velha. Seus seios estavam maiores, e seu rosto mais magro, mas sua voz, estranhamente, estava como antes. Do mesmo jeito que aqueles assustadores olhos azuis, aqueles olhos que sempre brilhavam com malícia sempre que ela propunha um novo desafio, aqueles olhos que sempre se estreitavam toda vez que Aria ou as outras diziam algo que ela não considerava legal.
Aria colocou as mãos na cabeça, como se quisesse impedir que seu cérebro explodisse dentro do crânio. Ela olhou mais uma vez para a multidão na frente do tribunal. Os repórteres estavam cercando o carro de Ian, batendo nos vidros das janelas. Mas eles deviam estar falando com Ali, não com Ian. Por que eles não conseguiam vê-la?
– Não perca seu tempo chamando a atenção deles. – Ali colocou a mão no bolso da jaqueta e apanhou um cigarro. – Só você pode me ver.
Aria arregalou os olhos.
– O que você quer dizer?
– Só estou aqui por sua causa. – As palavras poderiam soar como um elogio, mas o tom de voz de Ali as transformava em algo ameaçador e soturno. – Estou de olho em você, Aria. Estou observando cada movimento seu.
– Por quê? – disse Aria, piscando com força.
Ali acendeu o cigarro e soltou um anel de fumaça.
– Você sabe por quê. – Ela ofereceu uma tragada a Aria, mas Aria sacudiu a cabeça.
– Ele não a ama de verdade, você sabe disso.
Parecia que Ali havia despejado um balde de água fria sobre a cabeça de Aria.
– Como? – gaguejou ela.
Ali jogou o cigarro no chão e o apagou com o salto da bota.
– Ninguém nunca poderia amar uma idiota como você. Noel não a queria. Ezra mal podia esperar para ficar bem longe de você. E Hallbjorn só está usando você. – Ela saiu rebolando, entrando em um carro que aparecera do nada, e foi para o banco de trás. – Eu era a sua única amiga verdadeira, e você me deixou morrer. Você não merece ser amada.
– Ali? – gritou Aria, dando alguns passos na direção do carro. – Espere! Para onde você vai?
Ali não respondeu. O carro se afastou do meio-fio, cuspindo gases tóxicos pelo cano de escape. A fumaça foi direto no rosto de Aria, que cambaleou para trás. Parecia que havia cacos de vidro em seus pulmões. Uma risada alta ecoou por entre as árvores.
Aria sentou-se na cama, respirando com dificuldade. Seu coração martelava em seus ouvidos. Seus pés se enrolaram nos lençóis molhados de suor. Ela olhou ao redor. Estava em seu quarto, no Borgata. O sol entrava pelas janelas, e o relógio na mesinha de cabeceira marcava 9h03.
Ela esfregou os olhos por algum tempo. As imagens tinham sido tão vívidas... A risada de Ali, sua marca registrada. Aqueles assustadores olhos azuis. Mas tudo fora uma criação da imaginação de Aria, não fora?
Os detalhes da noite anterior lhe voltaram à mente, graças a algumas pistas ao seu redor. Os restos do jantar, trazido pelo serviço de quarto, que ela e Hallbjorn haviam dividido ainda estavam em uma bandeja perto da janela. Uma garrafa vazia de champanhe estava virada no chão. O smoking de Hallbjorn estava atirado sobre uma cadeira, junto com o vestido vintage de Aria. A plaquinha dizendo RECÉM-CASADOS, que eles haviam apoiado contra o espelho, havia caído. Depois de jantarem, os dois haviam desabado na cama, ainda segurando as taças de champanhe. O álcool os afetara rapidamente, e eles desmaiaram antes de poder tornar o casamento, enfim, oficial. A televisão estava ligada, ainda sintonizada no canal interno do resort. O comercial para o show das panteras prateadas reapareceu, com os mágicos desfilando pelo palco em suas roupas ridículas com ombreiras. Aria apertou o botão MUTE, sem querer lembrar Hallbjorn daquelas pobres panteras.
Mas onde estava Hallbjorn? O lado dele da cama estava vazio. Ele não estava sentado à pequena mesa de jantar. Também não havia nenhum barulho vindo do banheiro, e as botas de escalar que ele atirara perto do frigobar haviam desaparecido.
Aria apanhou o iPhone antes de se lembrar que não havia como entrar em contato com Hallbjorn, que deixara seu celular na Islândia, temendo que a polícia pudesse rastreá-lo. Ela telefonou para a gerente do hotel, perguntando-lhe se alguém havia visto um rapaz muito louro circulando pelo saguão. Talvez ele tivesse acordado cedo e ido tomar o café da manhã.
– Não vi ninguém com essa descrição – disse a mulher que atendeu na recepção, com um tom de voz sério. – Mas posso tentar avisá-lo para você. Qual é mesmo o sobrenome dele?
– Gunterson. – Aria soletrou o nome. – Sim, por favor, avise-o. Diga a ele que sua esposa o está procurando. – Parecia estranho dizer a palavra esposa.
– Eu avisarei se ele vier à recepção – disse a gerente, e desligou o telefone com um clique.
Aria andou de um lado para o outro da suíte, de vez em quando afastando as cortinas e olhando pela janela para a praia vazia. Depois de alguns minutos, não suportava mais ficar no quarto e apanhou suas chaves. O corredor estava estranhamente vazio. Uma porta se fechou rapidamente, como se alguém não quisesse ser visto. Os cabos do elevador rangiam e estalavam, soando como gritos. O sonho girava na cabeça de Aria. Ele só está usando você, dissera Ali.
Ela tomou o elevador até o térreo e checou a sala de ginástica, mas havia apenas algumas mulheres gorduchas nas esteiras, bebendo algo chamado AminoSpa. Ela verificou também o pequeno restaurante que servia o café da manhã, mas Hallbjorn não estava lá. Aria passou pelas portas giratórias que levavam até a área do estacionamento. E se a polícia da Islândia tivesse seguido Hallbjorn até ali e o tivesse levado enquanto Aria dormia?
De repente, a coisa que Aria mais queria na vida era ver a cabeça loura de Hallbjorn aparecer por entre as dunas. Ela esticou o pescoço, esperando. Quando alguém apareceu, seu coração se alegrou, mas era apenas uma mulher de meia-idade vestindo um casaco pesado. Ela estava correndo a toda a velocidade.
– Proteja-se! – gritou a mulher, passando por Aria e pelas portas giratórias, entrando depressa no hotel.
Um homem saiu correndo das dunas em seguida, olhando nervosamente por sobre o ombro. Outras pessoas os seguiram, com expressões aterrorizadas nos rostos. Todos olhavam por sobre os ombros, como se estivessem tentando fugir de um tsunami.
Um rapaz da idade de Mike agarrou o braço de Aria.
– Volte lá para dentro! – gritou ele. – É perigoso ficar aqui fora!
– Por quê? – perguntou Aria, apertando os olhos.
– Você não soube?
O rapaz olhava para Aria como se um galho de árvore tivesse nascido da cabeça dela. Ele puxou Aria para dentro e apontou para uma tela de televisão sintonizada na CNN, em um dos cantos do saguão. O horizonte de Atlantic City aparecia no vídeo, e um âncora falava com animação para a câmera.
– Ao que parece, o incidente aconteceu há apenas alguns minutos, e estamos registrando as primeiras imagens do caos em Atlantic City – dizia a repórter.
Caos? Atlantic City? Aria chegou mais perto da televisão. Estaria um assassino em série agindo na cidade? Ela olhou pela janela mais uma vez, temendo pela vida de Hallbjorn. O que fizera, arrastando-o para lá? E se ele estivesse ferido?
Então, ela olhou de novo para a televisão. Uma legenda aparecera no rodapé da tela.
Felinos mortíferos à solta em Atlantic City, NJ.
Aria abriu a boca para gritar, mas não conseguiu emitir nenhum som.
Uma imagem das duas panteras prateadas apareceu, junto com uma foto de Biedermeister e Bitschi, usando suas capas de mágicos.
– Panteras são animais muito perigosos – disse a correspondente da CNN. – Elas podem atacar seres humanos, portanto pedimos a todos em Atlantic City que fiquem em casa.
Aria desabou em uma poltrona, sentindo-se tonta. A imagem seguinte na tela mostrava as pequenas jaulas onde as panteras eram mantidas, e que Aria vira na noite anterior. As duas portas estavam escancaradas, os cadeados arrebentados. Alguém pintara algumas palavras com tinta spray, no chão de cimento na frente das jaulas. Panteras também têm direitos. Crueldade contra os animais é errado.
– Não acredito que alguém fosse capaz de fazer uma coisa dessas – disse uma mulher que parara para assistir ao noticiário ao lado de Aria. – Você acha que é a al-Qaeda?
Uma onda de bílis subiu à garganta de Aria. Ela se afastou da mulher como se também fosse culpada. Ela sabia exatamente quem fizera aquilo. Sem sombra de dúvida. Hallbjorn.
13
ERROS COMETIDOS
Em uma questão de minutos, todos os hóspedes do Borgata estavam refugiados no saguão, apavorados demais para irem para o lado de fora e se arriscarem a enfrentar as panteras soltas. Rumores sobre aparições das panteras em diferentes pontos da cidade começaram a se espalhar. As pessoas as viram na praia, perto da lanchonete local que era famosa pelas panquecas de amora e rugindo na frente do Trump Taj Mahal. Aparentemente, uma das panteras encurralara uma criança sob uma ponte; algumas pessoas atiraram carne de hambúrguer na areia, distraindo o animal e permitindo que a criança escapasse. A outra pantera havia aparecido em um clube de strip-tease. Todas as dançarinas e clientes foram forçados a evacuar o local, e as garotas ficaram no meio do estacionamento, vestindo quase nada. Transmissões ao vivo do caos causado pelas panteras apareciam em todas as telas de televisão do saguão, dos bares e dos restaurantes do Borgata. Furgões de emissoras de televisão, vindos de todos os pontos da área dos três Esta dos, lotavam o estacionamento do Borgata, e o saguão logo se transformou em um estúdio improvisado. Biedermeister e Bitschi estavam dando uma entrevista perto do quiosque da Starbucks, parecendo desolados e atordoados.
– Não sei quem poderia ter feito isso conosco – disse Biedermeister, balançando a cabeça. – Nós não temos inimigos.
Aria voltou para o quarto e se atirou na cama, ainda sem acreditar no que estava acontecendo. Ela não conseguia acreditar que Hallbjorn tivesse feito aquilo. Será que ele planejava voltar para Aria e lhe contar o que fizera? Será que esperava que ela estivesse orgulhosa? Ela olhou outra vez para o smoking amassado no chão e sentiu uma saudade inesperada. A cerimônia do casamento deles fora tão perfeita; uma lembrança que ela pensara que iria guardar para sempre. Agora, tudo estava arruinado. Apanhou o smoking do chão e o pendurou em um cabide. A rosa que a bailarina colocara na lapela de Hallbjorn ainda estava no lugar. Quando Aria apertou o smoking contra o rosto, sentiu o cheiro de Hallbjorn, uma mistura de chocolate, menta e ar fresco.
Sob o smoking, ela encontrou a camisa, o cinto e as meias, mas as calças, que tinham uma faixa lateral de cetim, haviam desaparecido. Aria olhou ao redor, procurando a mala de Hallbjorn, pensando que ele podia tê-las guardado lá. Ela podia jurar que o vira colocar a mala no armário, mas não conseguiu encontrá-la. Não estava no banheiro, nem na poltrona perto da janela, e nem sobre a escrivaninha.
Aria parou no meio do quarto, percebendo tudo de repente. Hallbjorn levara a mala consigo. Ele jamais tivera a intenção de voltar. Aparentemente, a recusa de Aria em ajudá-lo a libertar as panteras era motivo para abandono. Então era assim? Ele tinha mesmo abandonado sua esposa por algumas panteras? Ela pensou em como ele dissera que a amava. Em como ele estivera excitado a respeito do casamento no dia anterior. Teria sido tudo mentira?
As lágrimas escorreram pelo rosto de Aria. Ela arrancou o anel de cobra do dedo e colocou-o sobre a escrivaninha; então, mudou de ideia e atirou-o longe. O anel bateu no aquecedor e caiu no chão, sobre algumas folhas de papel. Era a licença de casamento deles. Aria se abaixou e olhou para o selo vermelho do estado de Nova Jersey. Tudo parecia tão oficial... Definitivo. Mas então ela olhou para a assinatura de Ella, cheia de floreios, nada parecida com a assinatura verdadeira de sua mãe. Aria havia assinado o papel com uma caneta roxa cintilante. O documento fez um som parecido com algo que se rachava, quando ela o enfiou na bolsa. Ela calçou os sapatos, apanhou as chaves do quarto e saiu correndo pela porta, subitamente movida por um propósito. Havia algo que ela precisava fazer.
Não havia uma única alma nas ruas, e quando Aria subiu os degraus do fórum de Atlantic City, os guardas que operavam os detectores de metal olharam para ela, espantados.
– Você saiu de casa com aquelas panteras à solta? – balbuciou um deles.
Aria colocou a bolsa sobre a esteira sem responder. Uma mulher na mesa da recepção indicou-lhe um pequeno escritório no segundo andar, que estava abarrotado de papéis e cheirava a cigarros velhos. Aria se aproximou de uma funcionária, atrás de uma janela protegida por vidros à prova de balas, que estava assistindo a uma reportagem sobre as panteras prateadas em uma minitelevisão.
– A última vez em que as panteras foram vistas foi em uma pequena rua atrás do Caesars – dizia a voz de um repórter. Alguns homens vestindo macacões que diziam CONTROLE DE ZOONOSES apareceram na tela. Eles apontavam enormes pistolas de dardos anestésicos para uma lata de lixo verde.
– Com licença. – Aria passou os documentos do casamento pela pequena abertura na janela. – Eu preciso confessar uma coisa. Estes documentos não são válidos.
A mulher desviou os olhos da televisão e olhou para a papelada.
– Por quê?
– Eu tenho dezessete anos. – Aria mostrou a ela sua carteira de motorista. – E falsifiquei a assinatura da minha mãe. Ela não faz a menor ideia de que me casei. E duvido que permitisse.
A mulher ajeitou os óculos no nariz e olhou longa e severamente para Aria.
– Você sabe que é ilegal falsificar a assinatura de outra pessoa, não sabe?
– Sei. – Aria abaixou a cabeça. – Eu não estava raciocinando. – Ela de repente se perguntou se não estaria encrencada. Qual seria a pena por falsificação? Uma multa? Cadeia?
A mulher deu de ombros e carimbou a licença.
– Vou ter que anular isto. – Então, ela estalou a língua. – Quem ia querer se casar aos dezessete anos? Por que carregar o peso de um marido? Eles não passam de problemas. Uma mulher moderna deve ser livre e desimpedida.
Aria quase riu. Aquilo soava como os argumentos de Hallbjorn para libertar as panteras.
A funcionária do fórum sacudiu a cabeça.
– O cara com quem você se casou sabe que você falsificou a assinatura da sua mãe?
A tela da televisão atrás da mulher chamou a atenção de Aria. Os homens do Controle de Zoonoses ainda estavam cercando a lata de lixo. De repente, uma das panteras prateadas apareceu. Eles tentaram acertá-la com um dardo tranquilizante, mas ela avançou e eles saíram correndo. O câmera também começou a correr. Ele conseguiu registrar uma última imagem da pantera enquanto fugia. Ela parecia ansiosa e assustada. Nada feliz, como Hallbjorn imaginara. Nem livre.
Por uma fração de segundo, Aria pensou em contar para a funcionária que Hallbjorn soltara as panteras. Afinal de contas, a cidade inteira estava procurando por ele. Ele precisava ser punido pelo que fizera. Mas Aria não conseguiu formar as palavras. Hallbjorn podia ser um lunático, mas ainda era seu marido; pelo menos por mais alguns segundos, de todo modo. E lá no fundo, Aria sabia que as intenções dele eram boas.
– Não acho que nosso casamento seja uma prioridade para ele neste momento – respondeu ela tristemente.
O barulho do carimbo de NULO atingindo o papel foi ensurdecedor. A mulher perguntou a Aria se ela gostaria de guardar a licença de casamento como lembrança, e ela apanhou o papel com relutância pela janelinha, virando-se na direção da porta.
– Ei, garota! – chamou a mulher, e Aria olhou por sobre o ombro. A expressão rabugenta da mulher havia se suavizado. – Você vai se casar quando chegar a hora certa. Eu trabalho meio expediente como vidente. Entendo dessas coisas.
– Obrigada – disse Aria. E por alguma razão insana, aquilo a fez se sentir melhor.
Ela se aconchegou ao casaco quando saiu do edifício do fórum. O ar estava ficando mais frio, e nuvens escuras se aproximavam. Talvez fosse melhor se saísse de Atlantic City antes de começar a nevar outra vez. Aria olhou de um lado para o outro da avenida. As luzes dos cassinos brilhavam a distância. O oceano rugia ao longe, enchendo o ar com um aroma salgado. A algumas ruas dali, sirenes uivavam.
Aria colocou a mão na bolsa e retirou dela a licença do casamento anulado. Aria Marie Montgomery está casada com Hallbjorn Fyodor Gunterson.
Lenta e metodicamente, ela o rasgou em pedacinhos, até que o documento se transformou em pedacinhos minúsculos de confete, não muito diferentes dos confetes atirados sobre ela e Hallbjorn na Capela do Amor. Ela abriu as mãos e deixou que o vento soprasse os pedaços de papel para longe. Eles voaram para debaixo dos carros, para cima das árvores, virando esquinas, perdendo-se para sempre.
– Adeus, Hallbjorn – sussurrou Aria, sabendo que também o perdera para sempre.
14
FLUTUANDO AO VENTO
Aria acabara de pagar o taxista e estava entrando na garagem da casa de Ella quando ouviu um barulho atrás de si. O Subaru estava subindo a rua, com Byron ao volante. Meredith ocupava o banco do passageiro, e Mike estava sentado atrás. Quando viu Aria, ele acenou. Ela levou um instante para acenar de volta. Ela se esquecera dos dias, e esquecera que Byron e Mike voltariam da viagem do solstício naquela tarde.
Byron viu Aria na garagem, desligou o motor e saiu do carro.
– Por onde você andou? Estou tentando ligar para você há horas.
– Hum, eu saí para dar uma volta de bicicleta – respondeu Aria, dizendo a primeira coisa que lhe veio à mente. Byron olhou para a bicicleta de Aria, que estava sob alguns pneus velhos e sacolas plásticas pretas cheias de roupas para serem doadas. Era uma mentira descarada, mas Aria estava cansada demais para se explicar.
– Byron? – Meredith abriu a porta do carro. – Seria muito constrangedor se eu usasse o banheiro aqui? Se eu não fizer xixi, vou explodir.
Byron olhou para Aria, como se estivesse pedindo permissão, e ela deu de ombros, apontando para a porta de entrada da casa; a última coisa que ela queria ver era Meredith explodindo. Meredith entrou correndo, dando passinhos curtos e praticamente mergulhando no banheiro.
Todos foram para dentro, também. Byron ficou na lavanderia, parecendo um pouco hesitante em entrar em sua velha casa. Mike, por outro lado, entrou como um rolo compressor na cozinha e abriu a geladeira.
– Não tem comida aqui – choramingou ele. – O que você comeu a semana inteira, Aria? E por que está tão gelado aqui?
– Está mesmo frio aqui. – Byron atravessou a cozinha e examinou o termostato. – Não houve queda de energia, houve?
Aria pendurou o casaco em um gancho perto da máquina de lavar, para não ter que olhar nos olhos do pai.
– Eu só desliguei o aquecedor por alguns dias. Estava tentando economizar eletricidade.
– Esta é uma causa muito nobre, ainda mais na época do solstício. – O rosto de Byron tinha uma expressão desolada. – Foi uma pena você ter perdido a nossa celebração, Aria. Nós fizemos algumas caminhadas incríveis. E a queima do tronco foi mesmo mágica. Vários outros hóspedes se juntaram a nós nas festividades, e nos conectamos de verdade.
Mike, que estava bebendo suco de laranja direto da caixa, pareceu se engasgar, ou rir, Aria não tinha certeza. Ela olhou para ele, que fez uma careta.
– Claro que eu gostaria que Mike tivesse passado mais tempo ao ar livre conosco, em vez de ficar vendo televisão. – Byron olhou para o filho e balançou a cabeça.
– Mas aí eu teria perdido a maior cobertura jornalística da história! – Mike colocou a caixa de suco de laranja sobre o balcão, ligou a pequena televisão no canto da mesa e sintonizou a CNN. – Você ouviu falar disso, Aria? Das panteras?
Aria passou a língua pelos dentes.
– Hum, não – respondeu ela, esperando soar convincente.
– Olhe só. – Mike apontou para a tela. Havia uma imagem do saguão do Borgata. Viaturas da polícia estavam estacionadas no pátio. Biedermeister e Bitschi estavam perto do bar, parecendo nervosos, falando ao celular. Panteras ainda à solta, dizia a legenda no rodapé da tela. – Duas panteras se soltaram em Atlantic City – explicou. – Foi isso que causou esse pânico em massa.
– Que loucura – disse Aria, como se aquela fosse a primeira vez em que ouvia falar no assunto.
Meredith apareceu na soleira da porta e olhou para a tela.
– Ah, Mike, desligue isso. É terrível.
– Está brincando? – Mike se aproximou ainda mais da televisão. – Essa é a coisa mais louca que eu vejo em muito tempo! Parece que uma delas entrou em um clube de strip-tease – disse ele, sorrindo maliciosamente. – Eu podia ter salvado aquelas dançarinas.
O logotipo do plantão de notícias apareceu na tela. A câmera se desviou da repórter, focando um rapaz louro algemado. Quando o câmera deu um close no rosto dele, Aria quase deu um grito. Era Hallbjorn. A expressão nos olhos dele era frenética, ele estava resistindo, e gritava algo por entre os sons das sirenes da polícia e das perguntas dos repórteres.
– Aquelas panteras merecem ser livres! Elas estavam sendo torturadas naquelas jaulas! Apoiem os direitos das panteras!
Meredith se aproximou da televisão.
– Esse foi o cara que soltou as panteras?
– Ele parece um psicopata – disse Mike.
Byron apertou os olhos, fitando a tela.
– É impressão minha ou ele parece familiar?
Aria apertou os lábios, com medo de vomitar. Os tiras empurraram Hallbjorn para dentro de uma viatura. A voz da repórter interrompeu a conversa.
– A polícia prendeu o ecoterrorista confesso hoje, depois que ele tentou fugir em uma bicicleta – explicou ela. – Tenho informações de que ele acredita que as panteras eram “oprimidas” e incapazes de viver uma existência de panteras.
– Existência de panteras? – zombou Mike.
– Eu podia jurar que já o vi em algum lugar. – Byron apertou os olhos novamente, sem tirá-los da tela. Hallbjorn havia enfiado a cabeça para fora da janela da viatura.
– Panteras também têm almas! – berrava ele, agitando os braços.
Seu nome apareceu no rodapé da tela. Hallbjorn Gunterson, Ecoterrorista, dizia a legenda em grandes letras amarelas.
Byron esfregou o queixo.
– Esse é um nome islandês.
A repórter reapareceu em frente à câmera.
– Estamos recebendo os últimos detalhes sobre o sr. Gunterson. Ele chegou a este país há apenas alguns dias, fugindo da custódia da polícia na Islândia. Ele é procurado lá porque tentou explodir o escritório de uma empresa de demolições contratada para destruir um santuário de papagaios-do-mar.
– O quê? – exclamou Aria, em voz alta. Todos se viraram para olhar para ela, e ela deu de ombros, constrangida, para disfarçar sua reação. Hallbjorn sem dúvida omitira aqueles detalhes. De repente, todo o arrependimento e a nostalgia que ela ainda sentia desapareceram. Hallbjorn era mesmo um lunático.
Mike colocou a mão no queixo.
– Pensando bem, você não namorou um rapaz na Islândia chamado Hallbjorn, Aria?
– Hum, sim. – Aria enrolava uma mecha de cabelo nos dedos. – Mas esse é um nome bem comum por lá.
– É mesmo? – Mike parecia cético.
– Claro que é.
Aria jogou os cabelos para trás dos ombros e saiu rebolando da cozinha. Ela não conseguiria, de jeito nenhum, assistir a mais um minuto do noticiário sem confessar seu segredo. E aquilo, decidiu ela, estava absolutamente fora de questão. Era como a lenda da árvore que cai na floresta: se ninguém soubesse que Aria se casara, se ninguém tinha visto, então aquilo jamais acontecera. Ela anulara o casamento antes que ele fosse registrado nos arquivos permanentes. Ninguém seria capaz de ligar Hallbjorn a ela. A única prova real que Aria possuía de que um casamento acontecera era o anel de cobra. Ela tocou nele, dentro de seu bolso, enquanto subia as escadas. Alguma loja de penhores o compraria. Ela iria até a Filadélfia na semana seguinte, a um bairro onde nunca seria reconhecida, e se livraria dele de uma vez por todas. E quanto ao dinheiro que ganhasse, talvez ela o desse para a pobre criança que fora encurralada por uma das panteras embaixo da ponte. Ou para uma das dançarinas que tivera que sair correndo do clube, seminua, porque uma pantera estava à solta lá dentro. Ou talvez ela o usasse para tirar férias de verdade, durante a primavera. Mas não importava; aquilo era algo sobre o qual ela jamais teria que pensar novamente. Ninguém sabia, afinal de contas, e ela planejava manter as coisas assim para sempre.
UM FELIZ NATAL CASADO
Leões, tigres e panteras prateadas, céus! Os gatinhos de estimação de Biedermeister e Bitschi não eram as únicas coisas perigosas correndo por Atlantic City.
Aria acha que as únicas testemunhas de seu casamento anulado são alguns imitadores de celebridades e uma funcionária pública rabugenta, mas eu tive assentos na primeira fila para assistir ao drama todo. E, ao contrário do estado de Nova Jersey, não vou fingir que nada aconteceu... sobretudo por ter aprendido tanto com o casal infeliz.
Por exemplo... Hallbjorn pode saber como detonar explosivos, mas é Aria quem tem o botão de autodestruição. Ela acaba com tudo em que toca: a carreira de Ezra, o casamento de seus pais, seus próprios relacionamentos. E mesmo assim, para alguém que se queima tão facilmente, Aria continua brincando com fogo; ela se apaixona e desapaixona mais depressa do que consegue dizer “Aceito”. Nem posso imaginar com quem ela terá seu próximo relacionamento: outro artista, outro Típico Garoto de Rosewood? E nem como isso vai acabar. A menos, claro, que eu acabe com tudo para ela.
Esse é o problema das garotas metidas a artistas. Elas tratam a vida como uma tela em branco, cobrindo seus erros com tinta e nunca aprendendo com eles. Cada garoto novo, cada cidade nova é apenas uma oportunidade de experimentar uma nova persona. Mas uma mudança para a Islândia não conserta uma família despedaçada; tingir um vestido de casamento de verde-limão não o torna um fabuloso vestido de baile; e nada, absolutamente nada vai fazer com que Aria e suas amigas escapem do castigo pelo que fizeram.
A lua de mel acabou, Aria. E a realidade vai mostrar os dentes.
Isso é algo que Spencer também precisa descobrir. Ela ainda espera poder começar de novo com sua família disfuncional. Mas não se preocupem, minhas lindas.
Spencer vai aprender que nem todo mundo merece, ou tem, um feliz ano-novo...
1
CONGELANDO AO SOL DA FLÓRIDA
No dia seguinte ao Natal, Spencer Hastings estava sentada no banco de couro estreito de um jatinho particular que pousava no aeroporto de Longboat Key, na Flórida. Pela janela, ela via o calor que desprendia do asfalto da pista, fazendo as palmeiras parecerem dançar e brilhar ao sol. O sol castigava cruelmente os controladores de tráfego, que andavam de um lado para o outro usando camisetas, shorts e óculos escuros. Era uma mudança enorme, comparada com as temperaturas negativas e meio metro de neve em Rosewood. Spencer não podia pensar em um momento melhor para tirar férias na casa de praia da vovó Hastings, mas já que sua família estava, como de costume, sem falar com ela, sem dúvida a garota podia pensar em grupos melhores para acompanhá-la em uma viagem.
A mãe de Spencer, sentada na frente do avião e vestida com seu costumeiro uniforme de voo, um moletom de caxemira e calças de ioga, tirou a máscara de cetim dos olhos.
– Peter, você se lembrou de alugar um carro?
O pai de Spencer parou de digitar por um momento em seu celular Android e respirou fundo, exasperado.
– Claro que sim. Aluguei um utilitário Mercedes.
– O classe G?
– Não. – Ele se levantou e apanhou as bagagens de todos nos compartimentos sobre os assentos. – O ML.
A mãe de Spencer fez uma careta.
– Mas o classe G tem mais espaço.
– Veronica, dá para ir andando a qualquer lugar em Longboat Key. Nós nem mesmo precisamos de um carro. – Ele colocou a mala de viagem Louis Vuitton da mãe de Spencer no banco vazio ao lado dela.
O comandante interrompeu a conversa, informando a família que eles haviam pousado – dããããã – e que Gina, a comissária de bordo, iria abrir a porta para eles desembarcarem. Spencer levantou-se e esperou no corredor, atrás dos pais. Sua irmã, Melissa, entrou na fila atrás dela, mantendo a cabeça abaixada e os fones de seu iPhone nos ouvidos. Ela não dissera uma única palavra durante todo o voo, o que era estranho; em geral, Melissa não calava a boca um só minuto, tagarelando sem parar sobre alguma casa que estava reformando, como estava indo bem na Wharton School of Business da Universidade da Pensilvânia, ou como era mesmo fabulosa.
Spencer sabia o motivo do silêncio de Melissa. Um mês e meio antes, o namorado de Melissa, Ian Thomas, fora preso pelo assassinato da antiga melhor amiga de Spencer, Alison DiLaurentis. Aparentemente, Ian e Ali eram amantes secretos; Ali o pressionara para assumir o relacionamento, e Ian a matara em um ataque de fúria e frustração. Como os namorados de Melissa costumavam ser rapazes de sangue azul, destinados a se tornarem sócios nas firmas de advocacia de seus pais ou os próximos senadores do governo, as circunstâncias envolvendo Ian representavam um retrocesso. Melissa não acreditava que Ian fosse culpado de verdade, mas não fazia diferença: o resto de Rosewood todo acreditava.
A situação se complicara ainda mais devido ao fato de Spencer ter denunciado Ian; ela se lembrara de vê-lo na noite em que Ali desaparecera. Durante o mês que se passara desde que Ian fora para a cadeia, Melissa agira de forma superfria com Spencer, um feito impressionante, já que as duas irmãs não tinham um bom relacionamento. Durante os últimos meses, as coisas iam de mal a pior: elas haviam brigado feio por um garoto, lavado toda a roupa suja na frente de um terapeuta e tido uma briga colossal, que acabara com Spencer acidentalmente empurrando Melissa pelas escadas. Sem mencionar o fato de que Spencer roubara um trabalho de economia de Melissa e o entregara como se fosse seu, vencendo um prestigiado concurso de redação.
Gina abriu a porta, e a família desceu pela escadinha estreita do avião até chegar à pista. O calor e a umidade da Flórida atingiram Spencer, e ela tirou a jaqueta da North Face na mesma hora. A família Hastings caminhou firme e em silêncio para o terminal, sendo seus passos sincronizados a única indicação de que eles se conheciam.
Do lado de dentro, um homem de uniforme segurava uma pequena placa dizendo HASTINGS. Ele os levou até o carro, que fora alugado na locadora perto dali. O pai de Spencer assinou alguns papéis, colocou as bagagens da família no porta-malas, e todos entraram no veículo, batendo as portas. O pai de Spencer pisou no acelerador com tanta força que ela foi impelida para trás, contra o encosto de couro macio.
– Ugh, o interior do carro está cheirando a cigarro. – A mãe de Spencer abanou o rosto com a mão, quebrando o silêncio. – Você não podia ter mandado limpar o carro, Peter?
O pai de Spencer suspirou alto.
– Não estou sentindo cheiro de nada.
– Eu também não – disse Spencer, querendo ficar do lado do pai. Sua mãe andava importunando-o havia dias.
Mas aquilo só lhe rendeu um olhar frio dos dois. E Spencer sabia a razão. Contra a vontade deles, ela havia recusado o prêmio de redação no mês anterior, confessando para o comitê julgador que havia plagiado o trabalho da irmã. Seus pais queriam que ela mantivesse silêncio e aceitasse o prêmio, mas lidar com a morte de Ali, descobrir a identidade do assassino, ser perseguida por Mona Vanderwaal-ou-A e quase empurrada de um penhasco havia colocado as coisas sob uma nova perspectiva para Spencer.
Ela se afundou no banco e olhou pela janela, enquanto seu pai fazia a curva e entrava na avenida principal. Ela viera tantas vezes à casa da avó que poderia andar por aquela rua de olhos vendados. Primeiro, havia a marina, com seus enormes iates particulares, e depois vinha o iate clube, em cuja fachada uma placa de bom gosto anunciava:
LUAU, 20 DE DEZEMBRO, 21h.
Em seguida, havia uma ponte, erguida sempre que um barco particularmente alto passava, e logo após as muitas lojas elegantes e restaurantes sofisticados. Por toda parte, havia mulheres usando chapéus de palha e óculos escuros enormes andando pelas calçadas, e homens de uniforme de golfe estacionando seus conversíveis e exibindo seus sorrisos pós-branqueamento.
O sr. Hastings continuou dirigindo até chegar ao condomínio fechado onde a vovó Hastings morava. Um guarda bronzeado, com a pele curtida pelo sol e usando um uniforme de poliéster, anotou a chegada deles em uma prancheta e os deixou entrar. Depois de passarem por um campo de golfe verdejante, uma piscina na qual Spencer passara muitas horas nadando, uma área privativa de lojas e um Spa de primeira classe, eles entraram na Sand Dune Drive e por fim se aproximaram do grande edifício branco que lembrava, a um só tempo, a Casa Branca e o castelo da Cinderela, na Disneylândia. Colunas dóricas enfeitavam a fachada, e havia varandas nos lados e nos fundos da casa. Uma torre alta se erguia em direção ao céu. O jardim era elegantemente projetado; não havia uma única flor que não pudesse estar em um arranjo de casamento. Quando o pai de Spencer abriu a porta do carro, ela pôde ouvir o rugido do oceano. Os fundos da casa davam para o mar, e um deque particular fora construído na praia.
– Agora sim. – O sr. Hastings colocou as mãos na cintura, arqueou um pouco as costas e olhou para o brilhante céu azul.
Eles destrancaram a porta da frente e colocaram as malas no saguão, criando uma minifortaleza de bagagens com etiquetas de marca. A casa cheirava a lustra-móveis e sabão em pó de lavanda. Havia um total silêncio lá dentro, e Spencer já ia perguntar onde sua avó estava, mas se lembrou de que ela viajara para Gstaad, na Suíça, com seu novo namorado, Lawrence, na manhã anterior. A vovó Hastings não se interessava muito em interagir com a família, e quase nunca estava presente quando eles visitavam a casa. Ela nunca gostara muito de Spencer. Devia ser genético.
Spencer carregou as malas pela escadaria em estilo fazenda sulista até o quarto onde sempre ficava, que estava banhado pelo sol e tinha um papel de parede alegre, com listras amarelas e brancas, um tapete branco fofinho e uma velha cama de bronze. O quarto tinha cheiro de lugar fechado, como se ninguém tivesse entrado ali por muito tempo.
Ela colocou a mala sobre a cama, abriu o zíper e começou a organizar seu guarda-roupa de verão: vestidos leves, calças de marinheiro de cintura alta e camisetas polo justas, que dobrou novamente e colocou nas gavetas vazias. Ela apanhou sua nécessaire de joias enquanto ia até a penteadeira branca, pronta para arrumar seus colares e anéis na antiga caixa de madeira que a avó abandonara havia muito tempo. Spencer a abriu, percebendo que havia um par de brincos de pingente na gavetinha de cima. Ela soltou um som sufocado quando os segurou, reconhecendo-os na mesma hora. Ela os deixara lá da última vez em que visitara a casa, que fora no fim de semana do Memorial Day, no sétimo ano. Mas os brincos não pertenciam a ela; eram de Ali.
A família de Ali também tinha uma casa naquela área, do outro lado do lago artificial, e ela e Spencer dividiam seu tempo entre as duas casas, passando os dias deitadas na areia, trocando de roupas, roubando goles das garrafas de uísque dos pais de Spencer e flertando com os meninos da cidade.
Ali emprestara os brincos a Spencer na noite em que elas foram convidadas para uma festa, a algumas ruas da casa da vovó Hastings. Spencer começara a conversar com um cara chamado Chad, que namorara Melissa durante um feriado prolongado; depois de algum tempo, ela sentira os olhos de Ali sobre si.
– Você está se comportando como uma vadia – sussurrara Ali com uma ponta de maldade quando Chad se afastara. – Já não é ruim o suficiente que você tenha ficado com um dos namorados da sua irmã?
Ali estava se referindo à ocasião em que Spencer beijara Ian Thomas pelas costas de Melissa, algumas semanas antes. Mas Spencer não queria ficar com Chad; só estava conversando com ele. Spencer e Ali tiveram uma enorme briga, e não se falaram pelo resto do feriado. Ali começara a andar com algumas garotas mais velhas da cidade, sempre rindo exageradamente quando Spencer passava por perto. E Spencer ficou sozinha, orgulhosa demais para pedir desculpas.
Spencer afundou na cama, segurando os brincos nas mãos. Ela devia ter se desculpado. Se ao menos soubesse, na época, que Ali estava saindo com Ian; era por isso que ela agira de maneira tão estranha quando Spencer o beijara. Talvez ela pudesse, de alguma forma, ter afastado Ali de Ian. Talvez pudesse ter impedido o assassinato de Ali.
Colocando os brincos na mesinha de cabeceira, Spencer se levantou, vestiu um par de shorts, uma camiseta da American Apparel e sandálias Havaianas e desceu as escadas. Um cheiro doce e quente vinha da cozinha de azulejos brancos.
– Oi? – chamou Spencer, olhando em volta. Sua voz ecoou pelo andar térreo, que estava vazio.
Ela ouviu vozes no pátio e espiou pelas portas de correr. Sua família estava reunida em volta da mesa com vista para a piscina e para o mar; havia pratinhos com batatinhas e nozes, uma bandeja de mármore contendo vários tipos de queijo e uma garrafa aberta de vinho branco sobre a mesa. A boca de Spencer se encheu de água.
O oceano rugia alto quando ela abriu a porta, no exato momento em que sua mãe gesticulava de modo exagerado. Melissa parecia ter comido alguma coisa azeda – mas Melissa sempre parecia ter comido alguma coisa azeda. Spencer olhou para o pai, que estava concentrado no iPad que elas haviam lhe dado de presente de Natal, provavelmente jogando Angry Birds. Ele tinha o aparelho havia apenas um dia, e já estava obcecado.
Ela arrastou outra cadeira para perto da mesa, enquanto Melissa colocava um pedaço de cheddar com aparência ressecada na boca.
– Mamãe, quer um pedaço de queijo? Está muito bom – ofereceu Melissa.
– O que eu quero, Melissa, é que o seu pai largue o brinquedinho dele por alguns minutos e converse um pouco conosco – disse a mãe delas, irritada.
Spencer ficou imóvel. Melissa parecia ter sido estapeada. Sua mãe reservava aquele tom de voz para Spencer. O pai delas simplesmente suspirou e continuou concentrado na tela.
– Ei, que tal alugarmos um filme esta noite? – sugeriu Spencer, tentando aliviar a tensão.
– Um filme seria legal – concordou Melissa. – Boa ideia, Spencer.
Spencer olhou para Melissa, de olhos arregalados, sem saber o que responder. Desde quando Melissa usava a palavra legal em relação a Spencer?
Mas a sra. Hastings soltou uma risada irônica, como se a ideia de um filme em família fosse absurda, e como se Spencer fosse uma idiota por tê-la sugerido. A família foi mais uma vez envolvida pelo silêncio, e seus pais, armados por detrás de suas fortalezas invisíveis, nutriam sua própria raiva particular.
Spencer sufocou um suspiro. Depois de tudo o que acontecera naquele outono – Ali, Ian, até mesmo A –, ela esperava passar alguns dias ao sol, fazendo tratamentos de beleza no Spa e reconquistando sua família. E quando voltasse a Rosewood Day para enfrentar o resto do ano letivo, ela se sentiria restaurada e rejuvenescida.
Mas com a Terceira Guerra Mundial prestes a estourar na casa de praia da vovó Hastings, Spencer teria muita sorte se encontrasse alguma paz.
2
MENINOS BONITOS TORNAM TUDO MAIS FÁCIL
Na manhã seguinte, Spencer saiu do mar, correu até sua toalha e torceu os cabelos molhados. Ela se deitou de costas e fechou os olhos, deixando que o sol aquecesse seus ombros enquanto pensava no que faria a seguir. Ela imaginou que poderia começar a leitura de O sol também se levanta, sobre o qual teria que escrever uma resenha para a aula de inglês. Ou poderia ir correr; uma corrida na praia sempre dava uma boa definição aos músculos de sua panturrilha. Uma sombra pairou sobre ela, e Spencer abriu os olhos.
– Oi. – Melissa estava parada ao lado de Spencer, protegendo os olhos do sol com a mão.
– Oi – respondeu Spencer, desconfiada. Tudo bem, elas haviam trocado olhares à mesa na noite anterior, mas Spencer não conseguia mais se lembrar da última vez em que Melissa falara com ela espontaneamente.
– Então, a mamãe e o papai estão meio fora de controle, hein? – disse Melissa, sentando-se ao lado de Spencer. Ela apanhou um punhado de areia e deixou os grãos caírem sobre seus dedos.
– E eles não estão sempre assim? – perguntou Spencer, bebendo um gole de sua garrafa de Nalgene. Eram só dez da manhã, mas a temperatura já subira para mais de trinta graus e estava muito úmido.
– Bem, normalmente eles não são ríspidos comigo – comentou Melissa.
Spencer revirou os olhos, mas tinha que admitir que era verdade. Seus pais acreditavam que Melissa era perfeita em todos os aspectos.
– Eu estava pensando – disse Melissa, brincando com uma conchinha cor-de-rosa – que, se nós quisermos nos divertir um pouco nestas férias, vamos ter que fazer isso juntas.
Spencer sentou-se, atônita.
– Você quer sair? – perguntou ela, incrédula. – Comigo?
– Não faça uma cara tão chocada. Com quem mais eu poderia sair aqui? – perguntou Melissa.
Uma onda quebrou tão alto na praia que a água espirrou na toalha de Spencer. Ela puxou os óculos de sol para o alto da testa e examinou a irmã.
– Pensei que você me odiasse por ter denunciado Ian.
– Olhe, eu não acho que você esteja certa... – Ela abriu a boca como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas mudou de ideia. – Não importa. O que importa é que preciso de uma distração para não pensar nesse assunto, e você é tudo o que eu tenho.
– Puxa, obrigada – disse Spencer, seca.
Melissa deu uma cotovelada em Spencer.
– Não seja tão sensível. Você sabe que também está entediada – disse ela, levantando-se e tirando a areia das pernas. – Quer caminhar até o clube comigo? Podemos passar o dia no Spa.
Spencer hesitou. Um homem passou correndo na praia com um labrador amarelo, e duas menininhas estavam construindo um castelo de areia perto da água. Melissa estava certa. Spencer estava se sentindo sozinha. E se Melissa estava pronta para fazer as pazes, pelo menos por algumas horas, talvez Spencer devesse lhe dar uma chance.
– Hum, tudo bem.
Spencer vestiu a saída de praia e colocou a toalha em sua sacola. Juntas, elas andaram pela areia, decidindo ir até o clube pelo caminho de sempre. Havia algumas pessoas na rua, e todas as portas das lojas estavam abertas, com o ar-condicionado ligado no máximo. Cada uma das lojas era uma viagem no tempo: ali estava Samantha’s, a butique onde Spencer comprara um vestido para sua festa de aniversário do quinto ano. Melissa apontou para a doceria onde as duas irmãs participaram de uma competição para ver quem comia mais doces, quando Spencer tinha oito anos; Melissa vencera, obviamente. Havia também a loja onde o pai de Spencer comprara uma prancha para tentar aprender a surfar. Ele passara uma semana nadando nas ondas, amedrontado demais para tentar surfar em uma única delas.
Spencer estava olhando para as camisetas Quiksilver e os chapéus Billabong na vitrine de uma loja, quando de repente uma sombra chamou sua atenção. Quando ela se virou, alguém se escondeu em uma esquina. O estômago de Spencer se contraiu.
– Você está bem? – perguntou Melissa, com um ar preocupado.
– Estou – respondeu Spencer, forçando a voz a permanecer firme. Era difícil se livrar da sensação de que alguém a estava seguindo. Respirando fundo algumas vezes, ela lembrou a si mesma de que Mona estava morta. A se fora.
Depois de aceitarem uma amostra grátis do Ye Olde Saltwater Taffy Emporium e comprarem iced lattes na Blue Dog Pancake House, Spencer e Melissa foram até o clube Longboat Key, um edifício branco deslumbrante na beira da baía. Vinte carrinhos de golfe estavam estacionados na frente do clube. Rapazes vestindo camisas polo e shorts cáqui carregavam bolsas de golfe, e garotas com óculos escuros enormes fofocavam em grupinhos.
As irmãs seguiram o barulho das bolas batendo nas raquetes nas quadras de tênis. Pôsteres anunciando o próximo torneio, que começaria no dia de ano-novo, estavam colados nas cercas, e dois rapazes estavam concentrados em um jogo difícil. Ambos pareciam ter vinte e poucos anos e estavam vestindo camisas e shorts brancos. O clube era tão rigoroso quanto Wimbledon e proibia uniformes coloridos. Um rapaz de cabelos escuros, com um rosto anguloso, membros ágeis e um bumbum altamente beliscável era sem dúvida o mais talentoso deles, executando golpes impressionantes e voleios cruzados. Um grupo de garotas se reunira ao redor da quadra, suas cabeças se movendo de um lado para o outro, acompanhando a bolinha amarelo-fluorescente.
– Sabia que Colin é o número noventa e dois do ranking mundial? – sussurrou uma garota, usando um vestido Lacoste marrom e sandálias, para uma amiga que escolhera um vestido também muito curto e saltos estratosféricos. – Ele me contou.
– Ele contou para mim que vai participar do torneio de ano-novo – respondeu a Saltos Estratosféricos.
A Vestido Lacoste revirou os olhos.
– Claro que ele vai participar do torneio! E vai arrasar!
Spencer se sentou contra a cerca de arame, ao lado de Melissa, resistindo à tentação de revirar os olhos. Groupies eram criaturas desprezíveis.
Mas Colin, o cara com o bumbum bonitinho, era divertido de assistir, sobretudo porque estava acabando com seu oponente. Seu saque era rapidíssimo, e a bola passava na frente do outro jogador antes que ele tivesse tempo de reagir. A cada vez que marcava um ponto, ele girava sua raquete e fingia não estar muito satisfeito consigo mesmo, mas Spencer o flagrou sorrindo com discrição.
– Vou entrar e dar uma olhada no catálogo do Spa – disse Melissa, abanando-se. – Você quer manicure e pedicure?
– Claro – respondeu Spencer de modo distraído, mantendo os olhos no jogo. – Encontro você no Spa daqui a pouco.
Quando o jogo terminou, em uma vitória arrasadora, Colin e seu amigo apertaram as mãos, foram até a lateral da quadra, beberam duas garrafas de algo chamado água vitaminada AminoSpa e tiraram as camisas. Spencer examinou distraidamente suas cutículas, sem querer olhar de forma muito descarada para o abdômen mais do que perfeito de Colin. Ele era sem dúvida lindo, talvez ainda mais bonito que Wren, o cara que Spencer roubara de Melissa naquele outono. Se ele não estivesse tão cercado de fãs, poderia ser o namorado per feito das férias de inverno. Havia muito tempo que Spencer não ficava tão interessada em um garoto.
– Ei, Colin – suspirou a Vestido Lacoste, enrolando uma mecha de cabelos louros no dedo. – Esse foi um jogo incrível.
– Você é tãoooooo talentoso – disse outra menina. – Você treina todos os minutos do dia?
– Mais ou menos. – Colin enxugou o suor da testa e abriu outra garrafa de AminoSpa. – O meu treinador está aqui este inverno, e às vezes jogamos com os profissionais. Outro dia, eu vi o Andy Roddick na quadra.
As meninas se cutucaram.
– Isso é incrível – disse uma delas. – A Nike devia patrocinar você.
Colin apenas sorriu. Ele terminou de guardar seu equipamento em uma enorme bolsa verde da Adidas e começou a andar na direção do clube. De repente, ele parou e olhou diretamente para Spencer. Ela podia sentir os olhos dele sobre si, enquanto fingia desamassar a saída de praia.
– Oi.
Todas as meninas viraram as cabeças na direção de Spencer.
– Oi – respondeu ela, erguendo os olhos e tentando parecer confiante.
Colin deu alguns passos até ela.
– Você é o mais novo membro do meu fã-clube?
Spencer inclinou a cabeça.
– Eu não participo de fã-clubes... a menos que eu seja a atleta em questão. Mas talvez eu possa abrir uma exceção.
As groupies começaram a se cutucar novamente.
– Quem é essa? – sussurrou uma delas.
– Aposto que ela nem é membro do clube. – A Saltos Estratosféricos nem sequer se preocupou em abaixar a voz.
Spencer olhou feio para elas, e todas as groupies desviaram o olhar. De repente, elas a fizeram lembrar-se de seus pais. Excluindo-a. Agindo como se ela não pertencesse ao grupo. Agindo como se ela não fosse boa o suficiente para estar ali.
Ela se virou outra vez para Colin.
– Como disse, prefiro jogar a torcer. Gostaria mesmo de jogar com você qualquer hora. Se você precisar de uma parceira, claro.
Colin ergueu uma sobrancelha.
– Você joga?
Spencer jogou os cabelos para trás dos ombros.
– Claro que jogo. – Seus pais a fizeram ter aulas de tênis desde os quatro anos de idade.
Colin deu um passo para trás e examinou melhor Spencer. Depois de alguns instantes, ele tirou um BlackBerry da bolsa.
– Tudo bem. Qual é o seu nome?
Spencer disse a ele, e as garotas começaram a cochichar de novo.
– Vamos jogar esta noite – decidiu Colin, digitando algo no celular. Ele não se incomodou em dizer seu nome a Spencer; talvez tenha deduzido que ela já soubesse. Ele estava certo, e ela gostava da autoconfiança dele.
Spencer fingiu rever mentalmente sua agenda.
– Acho que estarei livre.
– Ótimo. – Colin atirou a garrafa vazia de AminoSpa na lata do lixo, descrevendo um arco perfeito no ar. – Vejo você às cinco e meia. Mesma quadra. O vencedor paga as bebidas.
Spencer sufocou um sorriso e colocou os óculos escuros. Eles tinham acabado de marcar um encontro? E ele imaginara que Spencer tinha idade suficiente para beber. Ponto marcado.
Colin piscou para ela e se afastou. Spencer estava louca para observá-lo subir as escadas na direção do vestiário, mas se controlou, sem querer parecer interessada demais. Quando ela se virou para o portão, ficou cara a cara com as groupies de Colin, que ainda estavam olhando para ela.
Spencer as encarou.
– Algum problema?
As meninas se encolheram. Seus queixos caíram, as bocas formando Os perfeitos.
– Foi o que pensei – disse Spencer alegremente.
Ela ajeitou a bolsa no ombro e saiu da quadra, indo encontrar Melissa no Spa. Podia sentir os olhares das meninas em suas costas durante todo o percurso pela calçada. O sol parecia mais brilhante, o ar mais perfumado, e, quando olhou para o céu azul, ela viu uma nuvem que formava um coração quase perfeito. Tinha um jogo de tênis marcado com um garoto lindo, e já sabia qual seria o resultado: empate.
3
ALGUMAS GAROTAS ACERTAM TODOS OS SAQUES
Smack!
Spencer não podia deixar de observar, encantada, enquanto a bola descrevia um arco pelo ar frio da noite, percorrendo um caminho perfeito sobre a rede, como uma estrela cadente. Ela acabara de sacar.
Mas quando Colin ergueu a raquete, preparando-se para devolver a bola, ela voltou sua atenção para algo mais importante: o modo como uma faixa de pele bronzeada aparecia entre o short e a camisa dele, enquanto ele rebatia. Spencer respirou fundo quando o voleio de Colin, que parecera tão forte e preciso de seu lado da quadra, atingiu a bola em um ângulo errado, fraco, fazendo-o perder o ponto. Ela escondeu um sorriso. Colin estava, obviamente, deixando-a ganhar.
– Bom trabalho, Spencer – bufou Colin, colocando a raquete na bolsa e sorrindo para ela. Ela podia sentir os olhos de Colin percorrendo-a de cima até embaixo quando se aproximou da rede para apertar a mão dele, e ficou feliz por ter escolhido sua saia mais curta e sua camisa mais justa.
– Você também – elogiou ela, estendendo a mão. Suas palmas se tocaram, e Colin segurou a mão de Spencer só um pouquinho mais do que o costume. Tinha que ser de propósito.
– Você não estava brincando. É uma boa jogadora – disse ele, ainda respirando pesado.
Ela abaixou a cabeça e sorriu.
– Os meus pais insistiram que eu tivesse aulas quando era criança. Minha irmã e eu começamos a disputar torneios assim que entramos para a escola. – Ela retirou o elástico dos cabelos e rezou para que a luz do sol refletisse seu brilho quando eles lhe caíram sobre os ombros. – E você? Quando foi que pegou o vírus?
– Opa – riu ele. De perto, ela percebeu o quanto as maçãs do rosto dele eram bem esculpidas, e a minúscula covinha em sua face esquerda quando ele sorria. – Esta é uma conversa muito séria para uma quadra de tênis. Você está com fome?
– Morrendo de fome – admitiu ela.
– Bem, então foi sorte eu ter trazido um pequeno piquenique. – Os olhos de Colin brilharam quando ele a levou até o gramado do lado sul das quadras e estendeu uma toalha.
Spencer respirou fundo, sentindo o cheiro suave do perfume de Colin, misturado ao ar marinho e ao aroma de peixe e carne grelhados que vinha do restaurante do outro lado do pátio. Colin abriu a bolsa e tirou dela duas saladas de frutas, um prato de queijo enrolado em plástico e duas garrafas de AminoSpa. Ele espetou um palito diretamente no centro de cada cubinho de queijo e, em seguida, colocou as duas garrafas de água lado a lado, com os rótulos virados para fora.
Spencer riu.
– Você é tão obsessivo-compulsivo quanto eu – disse ela, apontando para a refeição meticulosamente organizada.
– Confesso que sim. Eu organizo minhas camisas de tênis por cor – disse Colin, com um sorriso tímido. – Acho que é coisa de atleta. Como Nadal, que tem toda aquela rotina antes de sacar, ou Sharapova, que não pisa nas linhas da quadra quando a bola não está em jogo.
– Um modo simples de manter o controle em uma situação tensa, imagino – disse Spencer, pensando em como a organização sempre a fazia se sentir mais calma em momentos de estresse. Ela abriu uma garrafa de AminoSpa, deu um grande gole e engasgou.
– O que é isso? – A bebida tinha gosto de laranja podre.
– Isso está cheio de vitaminas. – Colin apontou para as informações nutricionais no rótulo. – Eu posso jurar que isso me tornou um jogador mais forte. Havia um cara tentando me convencer a vender esse produto; ele disse que eu podia convencer com facilidade os meus colegas e o meu treinador a consumi-lo, mas eu respondi que estou ocupado demais para aceitar patrocínios.
– Então, é verdade o que as suas groupies disseram? Você está mesmo treinando para se tornar profissional?
Colin assentiu de maneira humilde.
– Bem, meu treinador acha que eu tenho boas chances de conseguir um lugar no US Open este ano. Vou disputar o torneio local na semana que vem, e estou inscrito em vários outros; preciso subir no ranking. Quero chegar aos cinquenta primeiros.
Spencer estava impressionada.
– E você mora aqui, em Longboat Key? Ou só está aqui para treinar?
Colin colocou uma uva na boca e sorriu misteriosamente.
– Se nós continuarmos a falar sobre mim, como é que eu vou saber mais sobre você? De onde veio a garota misteriosa com um sério talento para o tênis?
Spencer afastou uma mecha de cabelos para trás da orelha, exibindo as unhas recém-feitas; ela e Melissa haviam passado uma tarde divertida, ainda que um tanto estranha, juntas no Spa. Ela se encheu de excitação ao ver que Colin estava tão curioso a respeito dela quanto ela sobre ele.
– Bem, é certo que não sou uma tenista profissional, nem nada muito excitante. Moro perto da Filadélfia. Estou hospedada na grande casa branca no final da Sand Dune Drive.
Os olhos de Colin se arregalaram.
– Você está na casa de Edith Hastings?
– Sim. Ela é minha avó.
Ele riu.
– Ouvi falar que ela é bem exuberante.
Spencer fez uma careta.
– Vovó? Exuberante? – Sempre que pensava em sua avó, tudo o que Spencer podia imaginar era uma mulher irritável que gritava com ela por deixar o chão molhado quando voltava da piscina.
Colin deu de ombros.
– Eu estive no country club uma ou duas vezes desde que cheguei, e ela é bem popular nas aulas de dança de salão que eles oferecem toda semana. Ela sempre aparece com um novo namorado. Parece que os homens não se cansam dela.
“Eles não se cansam do dinheiro dela”, pensou Spencer de um jeito maldoso.
– Então, vovó é saidinha, hein? Acho que ela está mesmo muito bem para a idade.
– Ela é linda. – Colin deu uma piscadinha. – Não é de estranhar que a neta seja deslumbrante.
Spencer escondeu um sorriso, esperando que ele não percebesse o rubor que suas palavras causaram no rosto dela.
– Então, quantos garotos já a convidaram para o luau? – perguntou Colin.
O iate clube sempre organizava uma pré-festa de ano-novo; naquele ano, seria um luau havaiano. Quando eram crianças, Spencer e Melissa costumavam se esconder sob as mesas decoradas com elegância, e ficavam maravilhadas com as esculturas de gelo cuidadosamente entalhadas e o show de fogos de artifício.
– Hum, nenhum – admitiu Spencer, baixando os olhos.
Colin inclinou a cabeça, examinando-a por um instante.
– Acho isso difícil de acreditar.
Spencer não conseguiu evitar o rubor.
– Por quê?
– Porque você é sem dúvida impressionante, Spencer Hastings. – Ele deu um tapinha brincalhão no braço dela. – E não estou falando apenas do seu ótimo saque!
– E impressionante é uma coisa boa? – perguntou Spencer, flertando às claras, ainda sentindo o efeito do toque dele.
– Eu diria que sim. – Então, a expressão dele ficou séria. – Exceto na minha família, claro.
– O que quer dizer? – perguntou Spencer.
Uma coruja piou em uma árvore próxima, e o som distante de uma gargalhada se ouviu na direção do restaurante do clube.
– Bem, eu sou um tipo de ovelha negra na minha família – admitiu Colin.
– Eu também – confessou Spencer, seu coração apertado por ele. – Eu me sinto como se estivesse vivendo naquele jogo da Vila Sésamo, “uma dessas coisas é diferente da outra”. Não importa o que eu faça, nunca sou boa o suficiente para os meus pais.
Colin se inclinou para a frente e apertou a mão dela.
– Eu também. Meu pai pega tão pesado comigo, principalmente em relação ao tênis. Acho que é por isso que eu treino tanto.
– Mas você é um jogador incrível – protestou Spencer. – O que mais ele pode querer?
Colin sacudiu a cabeça.
– Quando eu era criança, meu pai me fazia ficar na quadra toda vez que eu perdia um jogo. Eu tinha que praticar cem saques antes de ter permissão para ir para casa jantar.
– Isso é horrível! – gritou Spencer.
De repente, Colin pareceu constrangido.
– Eu sinto muito. Não posso acreditar que lhe contei isso. Na verdade, nunca contei isso para ninguém, mas... – Ele hesitou por um momento. – Eu me sinto bem à vontade com você.
Spencer sorriu.
– Também me sinto à vontade com você.
Na verdade, Colin era o primeiro garoto com quem Spencer sentia uma conexão em muito tempo. Talvez aquilo pudesse se transformar em algo mais sério. Ela se imaginou tomando um avião todas as sextas-feiras, para visitar Colin nos finais de semana. E talvez Colin conseguisse um lugar no US Open ou outro grande torneio de tênis. Ela se imaginou sentada na arquibancada, com um grande par de óculos escuros no rosto e um chapéu elegante na cabeça. Quando as câmeras a filmassem, os comentaristas falariam sobre como ela era linda e simpática. Ela parece muito inteligente, também, diriam eles. Muito determinada. Uma garota que sabe aonde quer chegar. Eles parecem o casal perfeito.
A luz dos faróis de um par de Vespas cruzou o gramado, colocando o rosto de Colin em evidência por um segundo; tempo suficiente para Spencer ver o quão incrivelmente azuis seus olhos eram.
De repente, a atenção de Colin se desviou para a esquerda, como se ele estivesse vendo através de Spencer, na direção das quadras de tênis. Ele se levantou de um pulo, quase derramando o que restava de sua garrafa de AminoSpa. Ela deu um gritinho e seguiu o olhar dele. As luzes das quadras ainda estavam acesas, e uma garota de cabelos escuros apareceu, usando um vestido preto que delineava cada curva, protegendo os olhos com a mão.
– Ei, Colin! – gritou ela, descendo o pequeno morro para chegar até eles.
Spencer cerrou os dentes: outra groupie? Aquela garota tinha olhos de gato, e o corpo mais anguloso que Spencer já vira. Ela parecia uma modelo.
Colin se aproximou da garota. Spencer imaginou que ele fosse tentar se livrar dela, mas quando a alcançou, ele a cumprimentou com um longo beijo na boca.
Spencer piscou, sem acreditar; seu estômago pareceu descer até os pés. Que diabos...
A garota se afastou dele.
– Eu vim para lhe dizer que consegui as reservas para o Culpeper esta noite. Conheço o chef de Nova York, e ele vai nos oferecer a melhor mesa do restaurante. Você precisa ir tomar um banho!
Spencer se levantou e pendurou a bolsa de tênis no ombro, tentando manter a maior dignidade possível.
– Hã... Colin?
Colin olhou por sobre o ombro, como se só então tivesse lembrado que Spencer estava ali.
– Spencer, esta é Ramona. Minha namorada.
4
ESPÍRITO DE EQUIPE
Uma hora depois, Spencer estava sentada na cozinha, tentando controlar as lágrimas enquanto a vergonha e a humilhação daquela noite a atingiam mais uma vez. Depois que Colin a apresentara para sua namorada – sua namorada! –, Ramona examinara Spencer de forma bastante indiscreta e dissera:
– Colin me disse que você o desafiou para um jogo. Que gracinha!
Spencer olhara para seus tênis sujos e sua saia infantil, subitamente sentindo-se suada, imatura e errada.
– Isso mesmo – dissera Colin, com um sorriso fácil. – Spencer é uma grande jogadora. Nós estávamos conversando um pouco, relaxando depois do jogo.
Ele falara com o mesmo tom alegre e condescendente que o pai de Spencer usava quando se dirigia às gêmeas de cinco anos que moravam em sua rua, como se Spencer não fosse nada além de uma criança irritante, pedindo-lhe algumas dicas sobre tênis.
Spencer afundou a cabeça nas mãos. Tivera tanta certeza de que ele estava flertando com ela, tanta certeza de que eles tinham uma conexão verdadeira. Como podia ter interpretado tão mal o comportamento de Colin?
A mãe de Spencer apareceu, sentando-se na cadeira vazia a seu lado. Ela consultou o relógio Cartier em seu pulso e soltou um suspiro frustrado.
– A que horas mesmo é a nossa reserva? – perguntou Spencer. A família fizera reservas para o Culpeper, a mesma churrascaria onde Colin e Ramona jantariam naquela noite. Spencer só podia rezar para que eles se sentassem bem longe de sua mesa.
– Oito e meia – disse a mãe de Spencer, irritada. – Nós realmente devíamos sair logo, se não quisermos perder nossa reserva. Eu vou matar o seu pai. – Ela digitou o número dele no celular mais uma vez, mas, quando desligou alguns segundos depois, Spencer soube que a ligação tinha caído na caixa postal. – Ele não atendeu ao celular o dia inteiro.
– Talvez esteja no campo de golfe.
– Ele não ia jogar hoje. Eu telefonei para o clube. – Ela tirou uma taça de vinho do armário e se serviu de um pinot grigio. A expressão em seu rosto dizia que ela estava mal-humorada e queria ficar sozinha.
Spencer saiu à francesa, para deixar sua mãe curtir a raiva em paz. Ela subiu as escadas até o segundo andar e percebeu que a porta do quarto da avó, no final do corredor, estava entreaberta. Quando Spencer era pequena, adorava bisbilhotar no quarto da avó, que guardava sua incrível coleção de joias em uma caixinha incrustada de cristais, na penteadeira. E o vestido azul-marinho que Spencer estava usando poderia ficar ainda melhor com um bom acessório.
Ela entrou no quarto. A enorme cama de dossel king-size estava coberta por toneladas de travesseiros de renda fofinhos. Havia uma poltrona forrada de seda em um canto, e a penteadeira da vovó, que continha mais cremes, loções, pós, sombras e batons do que uma loja Sephora, ficava bem na frente das janelas de cortinas dramaticamente drapeadas. Para a decepção de Spencer, a caixa de joias, que costumava ficar no centro da penteadeira, havia desaparecido. Ela foi até o banheiro da suíte, para ver se sua avó a deixara lá.
O quarto de sua avó era digno de um Spa. Os balcões do banheiro eram de mármore, uma sauna havia sido instalada em um dos cantos, e todo o chão era aquecido. A banheira de imersão era oval, funda, e não tinha uma barra de segurança, um assento plástico ou qualquer equipamento usado por pessoas idosas para prevenir escorregões ou quedas; sua avó era orgulhosa e vaidosa demais para aceitar aquele tipo de coisa. A sra. Hastings tinha um verdadeiro estoque das toalhas mais macias e fofas, as melhores que o dinheiro podia comprar, e até mesmo sua própria mesa de massagem; ela fazia uma esfoliação completa a cada duas semanas.
Spencer examinou sua aparência no enorme espelho emoldurado. Seus olhos azuis estavam límpidos. Sua pele estava perfeita. Seus cabelos louros, que lavara durante o banho de espuma que tomara depois do jogo, brilhavam, e ela parecia sofisticada no lindo vestido Tibi que usava para o jantar. Mas não era nem de longe tão glamorosa como Ramona.
As lágrimas encheram os olhos de Spencer. A porta do quarto rangeu, e ela se virou. Melissa havia entrado no banheiro.
– O que está fazendo aqui?
– Nada – respondeu Spencer, enxugando os olhos. – Só olhando.
Melissa se encostou ao balcão, percebendo o rosto e o nariz vermelhos de Spencer.
– Você está bem?
– Hã-rã. – Spencer fingia estar fascinada com os perfumes da avó. A maioria deles eram os clássicos que as senhoras de sociedade em geral usam: Joy, Fracas, Chanel Nº 5, e uma fragrância feita sob encomenda por um perfumista parisiense. Mas Spencer notou o Fantasy, de Britney Spears, no final da prateleira. Ela não podia imaginar sua avó indo até uma farmácia e comprando aquele perfume.
– Para que servem todas essas escovas de dente? – perguntou Melissa, atrás de Spencer, apontando para uma gaveta aberta.
Havia cerca de quinze escovas de dente na gaveta, e todas elas haviam obviamente sido usadas. Alguém escrevera iniciais nos cabos com caneta preta: JL, AW, PO, e assim por diante. Spencer não viu as mesmas iniciais duas vezes.
– Ah, meu Deus – gaguejou Melissa, voltando a atenção para outra coisa. Era um pequeno frasco cheio de comprimidos azuis. A receita era para Edith Hastings, e o rótulo dizia VIAGRA.
– Coloque isso de volta! – sibilou Spencer, arrancando o frasco das mãos de Melissa e atirando-o de volta na gaveta, como se sua avó pudesse voltar a qualquer momento e flagrá-las ali. Ela fechou a gaveta com força e estremeceu. – Você acha que a vovó toma aquilo, ou que o remédio é para o Lawrence?
– E quem sabe? – Um dos cantos dos lábios de Melissa se ergueu. – Acho que a vovó é mais assanhada do que imaginávamos.
Aquilo certamente combinava com a vovó Hastings que Colin descrevera. Spencer pensou nas escovas de dente mais uma vez. Seria possível que elas pertencessem a diferentes homens que haviam dormido ali? Eca.
Melissa se sentou no balcão.
– Então, o seu mau humor tem alguma coisa a ver com aquele cara com quem eu a vi mais cedo?
Spencer ergueu a cabeça.
– Como você sabe disso? – Ela não contara nada a Melissa a respeito de Colin durante o tratamento no Spa. As duas pareciam estar se entendendo, e, desde que Spencer roubara Wren de Melissa, garotos eram um assunto complicado.
– Eu deixei o meu suéter no clube. Quando voltei para buscá-lo, você estava jogando tênis com aquele cara que estávamos observando quando chegamos – disse Melissa. – Ouvi dizer que ele é mesmo lindo. – Ela apanhou uma escova com cabo de prata na penteadeira e correu os dedos pelas cerdas.
Spencer abaixou a cabeça, envergonhada.
– Não é nada. Eu nem o conheço de verdade. E ele tem uma namorada.
– Uma namorada? – repetiu Melissa sem acreditar. – Bem, não pode ser nada sério, se ele a convidou para um encontro.
– Não foi um encontro.
– Ah, não? – Melissa deu um empurrãozinho no ombro de Spencer. – Pelo que eu vi, era bem óbvio que ele estava flertando com você, Spence. Por que um cara faria isso, se estivesse comprometido com sua namorada?
Porque ele é um jogador, Spencer quis dizer. Mas, apesar de seus protestos, Melissa havia plantado uma semente de esperança em sua mente. Ela recapitulou os acontecimentos do dia.
– Foi mesmo um pouco estranho que ele não tenha me contado nada sobre ela, até ela aparecer.
– É isso. Ele está interessado em você. – Melissa limpou a garganta.
– Na verdade, ele e a namorada vão jantar no Culpeper esta noite – disse Spencer.
Os olhos de Melissa brilharam.
– Ótimo. Vamos ver como eles são juntos.
Sininhos de alarme começaram a tocar na cabeça de Spencer.
– Melissa, por que você está sendo tão legal comigo?
Melissa ergueu uma sobrancelha.
– Não estou. Só estou comentando um fato. Ele gosta de você. Você gosta dele. A vida é curta. Você tem que aproveitar enquanto pode. Nunca se sabe quando o amor da sua vida vai, por exemplo, ser atirado na cadeia.
Spencer abriu a boca para se desculpar mais uma vez por ter denunciado Ian. Ela não fizera aquilo para magoar sua irmã; só queria fazer justiça para sua amiga.
– Mas... – começou ela.
Melissa abanou a mão.
– Nada de “mas”. Só confie em mim.
Spencer olhou para a irmã, incrédula, esperando que Melissa começasse a rir maldosamente e lhe dissesse que tudo era uma grande brincadeira, que Spencer jamais teria um cara como Colin, e que Melissa ainda a odiava, como de costume. Mas Melissa continuou a olhar para ela com um ar excitado. Ela puxou os cabelos de Spencer para trás das orelhas, correu os dedos por suas sobrancelhas e a borrifou com perfume Joy.
– Agora está melhor – decidiu ela. – Vamos. Temos um casal para separar.
5
SE A COSMOPOLITAN DIZ, DEVE SER VERDADE
A churrascaria Culpeper tinha um cheiro sufocante de carne, servia taças de vinho do tamanho de tigelas de sopa e ostentava nas paredes caricaturas das celebridades que já haviam passado pelo local. A maioria delas era de jogadores de golfe, cantores como Jennifer Lopez e Marc Anthony e homens de negócios, retratados fumando charutos de formato fálico.
O pai de Spencer finalmente aparecera, depois de passar o dia sumido, e a família se dirigiu em silêncio para a mesa. O sr. e a sra. Hastings haviam tido uma discussão em voz baixa, ainda no estacionamento, sobre onde ele havia passado o dia, e agora não estavam se falando, exceto para decidir o vinho que pediriam. Spencer e Melissa faziam o melhor que podiam para ignorá-los, examinando o salão e procurando por Colin e Ramona.
De repente, Spencer agarrou o braço de Melissa.
– Lá estão eles!
Melissa se virou para olhar bem no instante em que a figura alta e musculosa de Colin atravessava a porta da frente. Ele havia trocado de roupa e vestia uma camisa preta de botões, calças pretas com risca de giz e um par de sapatos que Spencer seria capaz de jurar que eram Prada. Ramona estava com ele, ainda usando o vestido preto sexy de antes.
Colin disse algumas palavras para o maître, mas Ramona o interrompeu. Colin franziu a testa, parecendo irritado, e Ramona revirou os olhos.
– Hummm – murmurou Melissa. – Parece que há problemas no paraíso!
– Talvez – sussurrou Spencer, sem parecer convencida, enquanto observava o maître acompanhar o casal pelo salão e acomodá-los perto de uma janela, que graças a Deus não era perto da mesa de Spencer.
Melissa deu um gole na taça de vinho tinto que o garçom acabara de lhe servir.
– Levante-se e passe ao lado deles agora mesmo. Você está supergostosa.
– Agora? – Spencer entrou em pânico. Aquele lugar era público demais. Seus pais, que estavam olhando para direções opostas para não terem que conversar, certamente iriam notar.
– Mantenha a cabeça erguida. Diga oi para o Colin, empine o busto e continue andando. Não pare para conversar. Deixe-o querendo mais – instruiu Melissa.
Empinar o busto? Melissa era a rainha das puritanas. Corriam boatos de que, quando um garoto colocara a mão em seu traseiro, durante uma dança lenta no nono ano, ela lhe dera uma bofetada e o denunciara para o diretor.
– Onde você aprende essas coisas? – perguntou Spencer.
– Na Cosmopolitan – respondeu Melissa.
– Está falando sério? Pensei que você só lesse a Vogue e a W.
Melissa deu de ombros.
– Pode ser uma revista bem útil quando se trata de homens. – Ela cutucou a coxa de Spencer. – Agora vá!
Tuuuuudo bem. Spencer levantou-se da mesa. Ela podia sentir os olhos de Melissa em suas costas, encorajando-a. Na verdade, parecia um tanto familiar o modo como Melissa a estava ajudando. Se não fosse pelo fato de elas estarem conspirando para separar um casal, em vez de organizar elaborados chás da tarde e pensar em maneiras de convencer seus pais a deixá-las usarem as coroas de princesa na escola, era quase como nos velhos tempos. Quando elas eram irmãs de verdade.
Spencer avançou na direção de Colin e Ramona, tentando se equilibrar nos sapatos.
– Acho que devíamos ter uma aula de iatismo amanhã – Colin estava dizendo.
Ramona fez biquinho, seus lábios brilhantes se contorcendo numa careta.
– Eu só quero me bronzear e relaxar.
– Você sempre quer se bronzear e relaxar. Se você não quiser, eu vou sem você.
– Eu vou sem você – imitou Ramona, torcendo os lábios de forma nada atraente.
Spencer respirou fundo e começou a andar um pouco mais depressa. Quando ela estava a poucos passos da mesa de Colin, ele ergueu a cabeça e a viu. Ela fingiu estar distraída, rebolando os quadris e empinando o busto o mais que podia. Podia sentir seus cabelos ondulando atrás de si. Estava se sentindo fantástica.
– Oi, Spencer – chamou Colin.
Ela diminuiu o passo e fingiu surpresa.
– Ah, oi! Que bom ver você!
Ele respirou fundo, como se fosse dizer mais alguma coisa, esperando talvez que Spencer parasse para conversar. Mas ela não o fez. Continuou a andar, de cabeça erguida. Depois que passou por ele, Spencer não conseguiu resistir e olhou por sobre o ombro. Ele ainda estava olhando para ela.
Foi então que sua perna atingiu algo com força, e ela ouviu um “Uf!” alto. Ela se virou e viu uma garçonete tentando impedir que uma bandeja cheia de pratos fumegantes caísse no chão. Mas era tarde demais; os pratos escorregaram da bandeja um a um, espatifando-se a seus pés. Naquele mesmo instante, Spencer se desequilibrou nos saltos e sentiu suas pernas fraquejarem. Antes que ela pudesse pensar, já estava no chão, com as pernas dobradas sob o corpo, o vestido levantado até o traseiro e o cotovelo atingindo algo pegajoso que havia caído de um dos pratos. Pelo cheiro, era creme de espinafre.
Um murmúrio percorreu a multidão. Todos se viraram para olhar. A garçonete estava ao lado de Spencer no chão, apanhando bem rápido um monte de pratos de filé que haviam caído da bandeja.
– Ótimo. Você provavelmente acabou de me fazer perder o emprego – sibilou ela.
Spencer se levantou depressa e correu para o banheiro. Mas, ao abrir a porta do toalete feminino, ela ouviu risadinhas e olhou para o salão de jantar. Colin e Ramona estavam olhando para ela, divertidos, suas mãos entrelaçadas sobre a mesa. “Perfeito.”
O tombo de Spencer fora, provavelmente, um bom quebra-gelo.
Estratégia número um da Cosmopolitan: uma bomba gigantesca.
6
VENHA VELEJAR COMIGO
Na manhã seguinte, depois de sofrer com pesadelos sobre comensais rindo dela e sapatos Manolo Blahnik saindo de seus pés, Spencer pediu um expresso duplo para viagem na cafeteria e foi encontrar Melissa no píer de Longboat Key, sob a marquise que dizia AULAS DE IATISMO GRÁTIS. Spencer queria ficar na cama a manhã inteira; não, na verdade, ela queria ficar na cama pelo resto de suas férias. Mas Melissa fora muito insistente.
Várias pequenas embarcações do tipo Hobie Cat, com velas de todas as cores, já flutuavam na água. Gaivotas circulavam no céu, grasnando alto, e um grupo de estudantes de vinte e poucos anos, vestindo camisetas da universidade de Harvard, passou em um deslumbrante iate Beneteau. Spencer não tinha certeza, mas pensou ter visto um dos rapazes apontar para ela, fazendo com que todos os outros estourassem na risada. Ela se encolheu e bebeu seu café. Já era ruim o suficiente ela ter descoberto um feio hematoma roxo em sua coxa, no ponto onde esbarrara na bandeja. Agora, Spencer tinha de lidar com toda Longboat Key rindo dela.
– Colin já está aqui – disse Melissa, espalhando protetor solar nos braços. – Há mais duas pessoas tomando aulas conosco hoje, e ambas são homens: Colin DeSoto e Merv alguma coisa. Ramona não está na lista.
Spencer roeu a unha do dedão, sentindo-se nervosa. Não a respeito das aulas de iatismo; ela aprendera a velejar quando tinha oito anos, e tinha uma licença júnior. Mas nunca se atirara tanto em cima de um garoto antes. Além disso, e se Colin olhasse para ela ao chegar e a ignorasse? Agora, ele devia se lembrar dela como uma garota desastrada que conseguira arruinar cinco pratos enormes de filé de primeira, e não como a garota que conseguira jogar de igual para igual com ele na quadra de tênis.
Melissa espirrou mais protetor solar na palma da mão.
– Quer que eu espalhe nas suas costas?
Spencer se virou, sentindo-se surpreendentemente comovida. Havia anos que Melissa não se oferecia para aplicar protetor solar em suas costas.
Então, Melissa respirou fundo e ergueu o queixo na direção de uma figura que se aproximava pelo píer. Era Colin. Ele estava vestindo uma camiseta justa que mostrava cada músculo em seu abdômen e um par de shorts estampados. Até mesmo seus dedos, à mostra em um par de sandálias, eram bonitinhos.
Colin viu Spencer e parou.
– Spencer? – Ele sorriu, sem acreditar. – Você está aqui para a aula?
– Sim! Ah, esta é a minha irmã, Melissa. – Ela tocou no braço de Melissa.
– Prazer em conhecê-lo. – Melissa estendeu a mão, e Colin a apertou. Ele sorriu para Melissa, e depois para Spencer. O coração de Spencer se alegrou. Se Colin pretendia fingir que a noite anterior jamais acontecera, estava tudo perfeitamente bem para ela.
O segundo aluno, um cara gordo e quase careca chamado Merv, apareceu no píer, seguido pelo instrutor, Richard.
– Bem-vindos ao iatismo – disse Richard a eles, em um adorável sotaque australiano. Spencer notou que Melissa o examinava, e sorriu. Talvez ela também pudesse ter um romance de férias.
Richard perguntou os nomes deles e de onde todos vinham, e Spencer ficou surpresa quando Colin respondeu “Connecticut”; era tão perto de Rosewood! Em seguida, ele começou a checar uma lista de regras de segurança para velejar. Ele explicou como um barco Hobie Cat funcionava, e informou ao grupo que eles iriam levar os barcos em duplas naquele dia.
– Escolham um parceiro – disse ele.
Spencer se voltou para Melissa, mas sua irmã olhou feio para ela e tocou o braço de Merv.
– Quer velejar comigo?
Os lábios grossos de Merv se abriram, e ele examinou a figura esguia de Melissa, seu rosto bonito e seu biquíni minúsculo.
– Claro.
Aquele era o sacrifício mais nobre que Melissa já fizera por Spencer. Ela se virou para Colin.
– Acho que sobramos nós dois. Você se importa?
– Está brincando? – Colin sorriu. – Algo me diz que você já velejou antes. Você tem um ar de quem frequenta iate clubes.
– Eu sou tão óbvia assim? – perguntou ela, em tom leve. – E quanto a você?
Colin sacudiu a cabeça.
– Eu nunca velejei, o que é uma coisa idiota, considerando a quantidade de tempo que passo aqui. – Ele colocou um colete salva-vidas em Spencer e então vestiu o seu. – Segurança em primeiro lugar – disse ele, sorrindo.
Spencer e Colin subiram em um barco e desamarraram a corda que o prendia ao píer. Spencer moveu o leme, de forma que a frente do barco estivesse apontando para o centro da baía, como Richard instruíra; Colin se encarregou de içar a vela. Depois de cerca de vinte minutos aprendendo como se virar a favor e contra o vento, eles começaram a velejar em paz pela água. Spencer se inclinou para trás e virou o rosto para o sol, amaldiçoando as sardas que sabia que iriam aparecer ao final do dia.
– Eu bem que podia me acostumar com isso. – Colin se apoiou na beirada do barco, entrelaçando as mãos atrás da cabeça. Spencer abriu os olhos, protegendo-os do sol. – Tentei convencer Ramona a ter aulas, mas ela não estava a fim. Não sabe o que está perdendo.
– Ela não faz o tipo esportivo, não é? – perguntou Spencer com displicência.
– Não exatamente – disse Colin, dando de ombros.
Spencer queria pressionar Colin para obter mais informações, mas algo lhe disse para relaxar e esperar que Colin tomasse a iniciativa.
Ele abriu uma garrafa de AminoSpa e deu um gole. Spencer observava a baía. Melissa conversava animadamente com Merv no outro barco.
E então, ela ouviu uma risadinha vinda da praia. Spencer se virou e estreitou os olhos na direção do píer, certa de que acabara de ver alguém se escondendo atrás de um barco. Ou seria apenas a sua imaginação?
Por fim, Colin suspirou e quebrou o silêncio.
– Para ser sincero, Ramona não anda a fim de nada nos últimos tempos. Não sei qual é o problema dela.
Bingo. Spencer dirigiu a ele um olhar cheio de simpatia fingida.
– Vocês estão juntos há muito tempo?
Ele sacudiu a cabeça.
– Ramona e eu... É complicado.
Spencer assentiu, séria.
– Eu entendo coisas complicadas – disse ela, pensando em si mesma e em Wren. Ela girou o leme, para que eles não colidissem com um jet-ski que se aproximava. O jato d’água veio na direção dela, e ela se abaixou. – Meu último namorado e eu brigávamos o tempo todo.
Colin se inclinou para a frente e olhou para a água em silêncio. Spencer não pôde deixar de notar como a cor da água combinava com a dos olhos dele. Ele parecia tão triste e dividido... Spencer podia quase sentir o quanto ele queria terminar tudo com Ramona para ficar com ela.
– Não posso imaginar alguém querendo brigar com você, Spencer – disse ele. – Você parece tão fácil de conviver, e tão cheia de vida... Queria que Ramona tivesse o seu senso de aventura.
De repente, o sol pareceu quente demais sobre a cabeça de Spencer. Colin ajustou seu assento, casualmente chegando mais perto dela. Havia um pequeno grão de areia no rosto dele; Spencer estendeu a mão e o retirou. Ao mesmo tempo, ele se aproximou dela, talvez para beijá-la. Spencer fechou os olhos e esperou.
E então, um apito soou no píer.
– Vamos trazer os barcos de volta! – gritou Richard. – Está começando a ventar demais!
O clima romântico foi logo arruinado. Colin se sentou nos calcanhares, e Spencer se virou para o leme, sufocando um grunhido.
Eles amarraram o barco no píer e desembarcaram. Melissa e Merv vinham logo atrás deles, e Richard estava ocupado ajudando-os a sair da água. Spencer encarou Colin, querendo recomeçar de onde eles haviam parado.
– Então – começou ele.
– Então. – Ela mordeu o lábio.
Uma Mercedes conversível parou no estacionamento e buzinou. Colin olhou para Spencer, um olhar muito rápido, e suspirou.
– Preciso ir – disse ele, com relutância. – Vejo você mais tarde, no luau?
Spencer forçou um sorriso.
– Sim, vejo você por lá!
Ela o observou caminhar pelo píer e entrar no carro. Spencer podia estar apenas imaginando, mas tinha quase certeza de que ele estava olhando para ela com carinho. E pelo sinal de positivo que Melissa fez para ela, parecia que sua irmã também havia percebido.
7
COMPRAS, COM UMA PITADA DE ESTRANHEZA
A casa da vovó Hastings estava fresca e cheirava a laranjas quando Spencer entrou pela porta lateral naquela manhã.
– Ah – disse ela, parando de súbito na soleira.
Sua mãe estava sentada em um banquinho junto ao balcão da cozinha, olhando fixamente para a televisão. Spencer já ia se afastando quando a manchete na tela chamou sua atenção. Panteras Prateadas aterrorizam Atlantic City. Havia uma imagem de dois felinos selvagens enormes caminhando pela rua repleta de cassinos.
– Isso é alguma brincadeira? – balbuciou Spencer.
Sua mãe sacudiu a cabeça.
– Alguém soltou duas panteras adestradas das jaulas, em Atlantic City. Parece que uma delas quase arrancou o braço de uma mulher.
Ela acabara de dizer mais palavras a Spencer do que nos últimos dias somados, e Spencer se atreveu a sentar-se num banquinho junto ao dela e assistir ao restante da reportagem. Equipes do controle de zoonoses estavam trabalhando para recapturar as panteras, mas as criaturas eram furtivas ao extremo.
Quando o noticiário foi interrompido pelos comerciais, Spencer sentiu os olhos de sua mãe sobre si. Ela desceu do banquinho, preparada para ir para o quarto, de forma que sua mãe não tivesse de suportar sua presença. Então, a sra. Hastings soltou um suspiro de arrependimento.
– Sinto muito sobre a maneira como agi com você nos últimos dias, Spencer.
Spencer parou de andar.
– Tudo bem – disse ela rapidamente.
– As coisas andam... tensas. – Ela colocou a mão na testa. – O seu pai e eu tivemos uma discussão séria, que não foi resolvida ainda. Mas eu não devia ter descontado em você.
– É sério, está tudo bem. – Spencer se ocupou com a cópia do jornal Miami Herald que estava sobre o balcão, agitada demais com aquela súbita mudança de humor para olhar sua mãe nos olhos.
Sua mãe desceu do banquinho e desligou a televisão.
– Queria me desculpar com você. Há uma butique nova, chamada Astrid, que acabou de abrir na cidade. Quer ir até lá?
– Eu adoraria ir com você. – O coração de Spencer se encheu de alegria. Elas não faziam compras juntas havia muito tempo. Elas não faziam nada juntas havia muito tempo.
– Ótimo. Esteja pronta em dez minutos.
Sua mãe pendurou a bolsa no ombro e deu um sorriso para Spencer. Podia ser um sorriso forçado e tenso, e ainda um pouco frio, mas pelo menos não era uma careta.
* * *
A boutique Astrid era uma mistura do estilo chic de Miami e de moda praia, exibindo uma grande variedade de vestidos floridos, jeans brancos e sandálias de borracha que custavam mais de cem dólares. Uma música dos Rolling Stones tocava no aparelho de som, e as vendedoras estavam ocupadas dobrando mercadorias, quando Spencer e sua mãe entraram pela porta.
Spencer foi direto para a seção de jeans, e sua mãe a seguiu. Depois de examinar as pilhas de calças, a sra. Hastings limpou a garganta.
– Então, você e Melissa parecem estar se dando bem.
– Acho que sim – disse Spencer, surpresa por sua mãe ter notado.
– Como ela está reagindo com toda essa situação envolvendo o Ian?
Spencer se encolheu.
– Sinceramente, eu não sei. Nós não conversamos sobre esse assunto. – Ela e Melissa continuaram mantendo o tom de suas conversas leve; na maior parte do tempo, falavam sobre Colin ou zombavam das roupas que as groupies usavam.
– Você fez a coisa certa denunciando Ian, sabia? – disse ela. – Nós não temos ideia do que aquele garoto é capaz de fazer. E pensar que nós o recebemos em nossa casa de braços abertos. – Ela sacudiu a cabeça. – Estou pensando em processá-lo por danos psicológicos. Seu pai acha que fiquei louca.
– É por isso que vocês andam brigando? – perguntou Spencer.
Uma expressão de espanto invadiu o rosto da mãe. Ela correu os dedos pela costura do bolso de um par de jeans azuis desbotados.
– Não – respondeu ela, baixinho. – Foi outra coisa.
Endireitando-se, ela tirou uma saia curta de um cabide e a aproximou de Spencer.
– Isso ficaria bem em você.
Spencer olhou para a peça, desconfiada.
– Isso não vai me fazer parecer muito nova?
– Não há nada de errado em parecer jovem. – Ela dobrou a peça sobre o braço. – Acho que você devia experimentar. É linda.
– Bem, então você também tem de experimentar alguma coisa. – Spencer tirou um vestido longo estampado de azul e branco de um cabide. – O papai ia adorar ver você vestindo isso.
Sua mãe torceu os lábios.
– Não tenho certeza se tenho corpo para esse vestido.
Spencer agitou um dedo na frente do rosto da mãe.
– Nada de negatividade! Vá experimentar.
As duas acharam provadores desocupados. Spencer tirou os shorts e os sapatos, olhando para suas pernas nuas no espelho, e colocou a saia. Surpreendentemente, a peça não a fazia parecer tão nova quanto ela imaginara. O corte alto fazia suas pernas parecerem longas e bronzeadas, e o caimento estava ótimo na cintura.
Na frente da loja, os sininhos na porta da frente tilintaram. As vendedoras murmuraram algo, e Spencer ouviu passos no corredor próximo aos provadores. Ela olhou por debaixo da cortina e viu duas panturrilhas magras, terminando em tornozelos esguios e sandálias prateadas estilo gladiador. Quem quer que fosse, ficou parado ali, sem se mover.
Um arrepio percorreu a espinha de Spencer. Ela sentia que quem quer que fosse era capaz de vê-la através da cortina. Ela já estava prestes a dizer algo quando os pés calçados com as sandálias de gladiador se viraram e se afastaram.
– Spence? – chamou-a sua mãe, do provador ao lado. – Acho que você estava certa sobre este vestido.
– Quero ver, quero ver! – gritou Spencer. Ela afastou a cortina e viu sua mãe de pé no corredor. O vestido longo valorizava seus quadris estreitos e iluminava sua pele. – É lindo. Você devia levá-lo.
Sua mãe caminhou descalça até o espelho triplo no salão principal. Ela virou o corpo de um lado para o outro, e examinou seu traseiro.
– Acho que é mesmo bonito. – Ela olhou nos olhos de Spencer e sorriu. – Boa escolha.
O coração de Spencer se aqueceu. Quando fora a última vez em que sua mãe a elogiara?
E então, a expressão no rosto da sra. Hastings mudou, ao ver algo refletido no espelho. Uma mulher loura, alta, magra e elegante, estava examinando as araras atrás delas. Uma bolsa cáqui Chanel pendia de seu ombro, sua pele era perfeitamente bronzeada, não havia um grama de gordura em seu corpo, e seu rosto era inconfundível, em forma de coração. Será que era...? Não poderia ser.
A mulher ergueu a cabeça e as viu. Suas feições registraram a surpresa, e ela olhou por sobre o ombro, na direção da calçada, por uma fração de segundo antes de se virar mais uma vez para elas.
– Veronica? – perguntou ela, em um tom de voz muito familiar.
– Jessica – disse a mãe de Spencer, em voz rouca.
Spencer resistiu ao impulso de gritar. Era Jessica DiLaurentis. A mãe de Ali.
– Minha nossa, mas que surpresa boa! – Jessica DiLaurentis se aproximou e deu beijos rápidos em Spencer e em sua mãe. – É tão bom ver vocês!
A mãe de Spencer voltou a se comportar como de costume, e todos os traços de desconforto desapareceram.
– É tão bom ver você! – cantarolou ela, no tom de voz alto e alegre que ela reservava para seus vizinhos, membros das suas instituições de caridade, e os pais de Rosewood Day que ela considerava inadequados para participarem dos comitês escolares. – O que está fazendo aqui?
– Nós temos uma casa aqui, esqueceu? – Quando a sra. DiLaurentis deu um meio sorriso, era como estar vendo o fantasma de Ali. – Decidimos vir para passar o ano-novo aqui. Relaxar um pouco antes do julgamento de Ian. – Ela empurrou os enormes óculos de sol da Gucci para o alto da cabeça.
– É claro – disse a mãe de Spencer. A voz dela não traía nenhuma emoção, mas quando Spencer prestou atenção, percebeu que sua mãe tinha uma das mãos escondida atrás das costas. Ela estava arrancando furiosamente a pele ao redor do polegar. – Sinto muito por não termos nos falado melhor durante a audiência. Foi tudo muito confuso.
A sra. DiLaurentis fez um gesto com a mão.
– Não se preocupe, teremos muito tempo para colocar a conversa em dia. Nós compramos uma casa perto de Rosewood, em Yarmouth. Queremos ficar por perto, para acompanhar o julgamento. – O celular dela emitiu um ruído, e ela olhou para dentro de sua bolsa Chanel. – Ah, eu preciso ir. Foi ótimo rever vocês duas. Deem lembranças minhas a Peter e a Melissa!
– Sim, tudo de bom para a sua família, também – disse a mãe de Spencer, sorrindo.
A mãe de Ali saiu da butique, ainda olhando para a tela do celular. Quando Spencer se virou para a mãe, a expressão perfeitamente composta em seu rosto desaparecera mais uma vez. Ela corria as mãos pelos quadris. A pele de seu polegar estava em carne viva.
– Mamãe? – Spencer tocou no braço da mãe. – Você está bem?
A sra. Hastings piscou com força.
– Claro que sim. Mas nós precisamos ir. Acho que o calor está me afetando.
Ela estava prestes a se dirigir à porta quando Spencer segurou seu braço.
– Mamãe. Você ainda está...
Ela fez um gesto indicando o vestido longo que sua mãe ainda vestia. A etiqueta de preço pendia sob o braço da sra. Hastings.
A mãe de Spencer olhou para baixo e estremeceu.
– Minha nossa. Certo.
Ela voltou para o provador como se nada tivesse acontecido. Spencer ficou imóvel por um instante, com uma sensação incômoda no estômago. Era natural que Spencer se sentisse desconfortável na presença da sra. DiLaurentis: ela fora uma das últimas pessoas a ver Ali com vida. Mas por que motivo sua mãe perderia o controle daquele jeito, na frente de sua antiga vizinha?
8
COMO SE DAR BEM
Quando Spencer chegou ao estacionamento do iate clube naquela noite, para a prévia de ano-novo, pôde sentir os cheiros típicos de um luau: abacaxi grelhado com creme de taro e coco, além da fumaça das tochas havaianas. Como os convidados deviam se vestir a caráter para o luau, Spencer usava um vestido curto florido e uma orquídea atrás da orelha, que espalhava ondas românticas de perfume a cada vez que ela movia a cabeça. Melissa trazia um vestido longo estampado e um colar de flores no pescoço. A mãe de Spencer se recusara terminantemente a usar qualquer coisa diferente de um vestido Calvin Klein branco, embora tivesse concordado com os sapatos de salto alto e o colar de flores. Assim como todos os outros homens acima de quarenta anos presentes na festa, seu pai vestia uma pavorosa camisa havaiana cor-de-rosa e laranja sob a jaqueta esportiva da Armani.
Enquanto a família caminhava pela entrada do clube, cumprimentando alguns membros que conheciam aqui e ali, os dedos do pai de Spencer voavam sobre o pequeno teclado do celular. Sua mãe lhe deu uma pequena cotovelada.
– Você não ia deixar isso em casa?
– Só estou enviando uma mensagem – disse ele distraidamente.
– Para quem? E desde quando você sabe enviar mensagens?
– Eu sempre soube enviar mensagens. – O celular tocou. Ele atendeu com um grunhido, e sussurrou algo que parecia Ela está? e depois Tudo bem, ótimo.
Quando desligou, a mãe de Spencer estava olhando para ele.
– Quem era?
– Assuntos do trabalho – murmurou seu pai com pressa.
A mãe de Spencer apertou os lábios e passou os dedos pelo colar. Melissa se aproximou de Spencer.
– Qual será o motivo desse súbito ar misterioso do papai? – cochichou ela.
Spencer deu de ombros. Ela não fazia ideia, mas não gostava daquilo.
Os Hastings enfim chegaram ao local do luau. Arranjos de flores coloridas e palmeiras cobertas por lâmpadas pisca-pisca transformavam o restaurante em geral abafado em uma perfeita fantasia havaiana. Uma garota de cabelos compridos, vestindo um biquíni feito de coco e uma saia de palhas, entregou a todos, inclusive a Spencer, uma piña colada.
– Aloha! – disse ela de modo festivo, sem perceber que os pais de Spencer pareciam prestes a atirar um ao outro na fogueira. – Apanhem seus cartões e encontrem suas mesas! Divirtam-se!
A mãe de Spencer apanhou seu cartão na mesa grande no saguão.
– Estamos na mesa número três – disse ela, com um tom agudo, e começou a atravessar o salão de jantar, enquanto a família a seguia. No meio do caminho, ela parou bruscamente. A sra. DiLaurentis e seu marido estavam sentados à mesa seis, usando colares de conchas idênticos. A mãe de Ali ergueu os olhos e percebeu a chegada dos Hastings, mas, em vez de acenar, ela franziu a testa e desviou o olhar.
Quando eles se acomodaram na mesa designada, a mãe de Spencer já tinha terminado sua piña colada e chamou o garçom para pedir outra. Seu pai ainda estava digitando no celular, com uma expressão estranha no rosto. Spencer olhou ao redor, tentando ver Colin no salão. Uma árvore de Natal de dois metros de altura, decorada com abacaxis e flores frescas, fora colocada em um canto. A banda, usando fantasias havaianas, já se apresentava no palco. Os garçons circulavam oferecendo aperitivos e saladas, e havia um grupo de pessoas na pista de dança. Mas Spencer não viu Colin ou Ramona em lugar algum.
Estar naquele lugar lembrava Spencer da ocasião em que ela participara daquela festa, no quinto ano. Os DiLaurentis também estavam lá, e Ali usara um vestido curto com franjas na barra; o tema daquele ano eram os anos vinte. Ali fizera amizade com um grupo de meninas de uma escola preparatória de Nova York, e as cinco dançaram como loucas todas as músicas rápidas que a banda tocara. Spencer ficara dançando perto do grupo, pensando que Ali ia convidá-la para juntar-se ao círculo, mas é óbvio que ela não o fizera.
Quando Spencer enfim deixou a pista de dança, sentindo-se um fracasso, encontrou seu pai e a mãe de Ali conversando no corredor. Ela não se lembrava de tê-los visto interagir antes. Ela experimentou uma sensação desconfortável no estômago, e recuou cautelosamente, tentando esquecer a cena.
Alguém limpou a garganta atrás de Spencer, trazendo-a de volta ao presente, e ela ergueu os olhos.
– Oi. – Os olhos de Colin fitavam ora Spencer, ora Melissa. Ele estava usando uma camisa havaiana, jeans justos e sapatos pretos. – Então vocês vieram!
– Claro que sim – disse Spencer, e seu coração começou a galopar. Ela se endireitou na cadeira e ajustou a orquídea em seus cabelos. Melissa sorriu para Colin e deu um gole em sua bebida, voltando a atenção para o palco e passando os dedos de forma distraída pelos cabelos.
– Colin, vamos. – Ramona, que estava muito elegante com um minivestido prateado e sandálias de salto douradas (nada de fantasia havaiana para ela), puxou o braço de Colin. – Precisamos achar nossa mesa.
Colin deu a Spencer um sorriso de desculpas, enquanto Ramona o arrastava até uma das mesas nos fundos. Com o coração apertado, Spencer se afundou em sua cadeira, mandando um pedido de desculpas mental ao seu instrutor de ioga pela má postura. O que quer que Colin tivesse sentido no barco, estava claro que já passara.
Melissa tocou no braço dela.
– Vá convidá-lo para dançar.
– E para quê? – perguntou Spencer de um jeito triste. – Ele ainda está com ela. Eu não tenho chance.
Melissa mordeu um tomate-cereja da salada que acabara de ser servida.
– Pensei que você fosse mais forte do que isso, Spence. Se você o quer, tem de correr atrás dele. A Cosmopolitan diz que os caras de hoje adoram uma garota com iniciativa.
Spencer respondeu com um grunhido. Durante a meia hora seguinte, ela brincou com a comida, mal engolindo alguma coisa. Quando os garçons vieram recolher os pratos e todos se levantaram para dançar, os pais de Spencer haviam trocado de lugar e estavam sentados de lados opostos da mesa, conversando com qualquer pessoa, exceto um com o outro. Melissa fora bater um papo com uma antiga amiga que conhecera na Penn, e Colin e Ramona estavam dançando uma música lenta ali perto. Spencer os estudou com calma. Eles pareciam felizes até a metade da música, mas de repente Ramona se afastou de Colin e deu um passo para trás.
– Eu não entendo – disse ela, em voz arrastada. – Por que você nunca me convida para ir a Connecticut?
Spencer levantou-se de sua cadeira e fingiu examinar a mesa de queijos, que fora convenientemente colocada junto à pista de dança e de onde ela poderia ouvir a conversa entre Colin e Ramona. O queijo manchego parecia tentador, mas a briga que se anunciava era ainda mais.
– Será que precisamos fazer isso aqui? – sibilou Colin, olhando com desconforto na direção do salão. Spencer logo abaixou a cabeça.
Mesmo sob a luz suave da festa, Spencer podia ver Ramona franzindo a testa.
– Já estamos namorando há mais de um ano, e eu nunca vi o seu apartamento em Darien. – Ramona bateu o pé. – E agora você vai cancelar a viagem para me visitar em Nova York. O que eu devo pensar? Você está interessado em outra?
– Jesus, Ramona. – Colin levantou as mãos, derrotado. – Pensei que nós íamos passar uma noite divertida juntos.
Ele se afastou de Ramona e saiu do clube, empurrando as portas da frente com tanta força que elas bateram contra as paredes. Ramona ficou parada na pista de dança, de boca aberta, e então abaixou os ombros e saiu andando na direção do bar.
Spencer procurou Melissa, mas ela desaparecera. Melissa lhe dissera para correr atrás do que queria, e ela queria Colin.
Virando o resto da taça de vinho abandonada de seu pai, deixada na mesa agora vazia, Spencer passou por um grupo de mulheres de meia-idade vestindo saias de hula e homens bronzeados bebendo coquetéis com guarda-chuvinhas, empurrou as portas duplas e saiu para o ar frio da noite.
Cigarras cantavam nas árvores. Carros buzinavam na rua. Spencer ouviu passos atrás de si, e então uma risadinha suave, baixa. Ela se virou, mas não havia ninguém por perto.
Continuou andando pelo terreno do iate clube, até que encontrou Colin encostado na grade do píer, contemplando a água.
Endireitando os ombros, Spencer se aproximou dele e tossiu baixinho. Colin se virou.
– Ah. Oi.
– Oi, Colin – disse ela, alegremente. – Tomando um pouco de ar?
Ele ergueu um ombro.
– Acho que sim. E você?
– Eu também.
Spencer caminhou até ele. Eles não disseram nada por alguns instantes. As luzes da festa se refletiam com beleza na superfície da água, e os barcos flutuavam, majestosos. Então, Colin deu um longo suspiro.
– Você está bem? – perguntou Spencer inocentemente.
Colin deu um chute na grade.
– Acho que tenho algumas decisões importantes para tomar esta noite. Algumas... resoluções.
– Bem, esta é a época perfeita para isso.
– É – assentiu Colin com tristeza.
Spencer cutucou Colin nas costelas.
– Vamos, ânimo. Já é quase ano-novo. O tempo está lindo. E estamos em um luau de mentirinha. Você precisa ficar feliz durante as festas de ano-novo!
Um dos cantos da boca de Colin se ergueu.
– Isso é uma regra?
– É. Uma regra que eu acabei de inventar. – Spencer observou enquanto um barco passava pelo porto. – Também estou pensando em tomar algumas resoluções de ano-novo.
– Spencer, traçando metas pessoais? Isso não me surpreende em nada. – Ele lhe deu um sorriso cúmplice, e Spencer sentiu que seus ombros relaxavam, enquanto ela própria ficava menos tensa. – Você se importa em me contar sobre eles?
– De jeito nenhum – disse ela, decidida. – Assim eles não se realizariam.
Colin abriu a boca como se quisesse dizer alguma coisa. As águas da baía batiam contra a amurada, e o ar cheirava a sal e a orquídeas. Uma rajada de vento soprou sobre a água. Então, Colin estendeu a mão e afastou uma mecha de cabelos do rosto de Spencer, prendendo-a com carinho atrás de sua orelha.
“Anda”, pensou Spencer. “Me beija. Por favor.”
De repente, Colin afastou a mão e começou a andar outra vez na direção do iate clube.
– Para onde você vai? – guinchou Spencer.
Ele parou sob um poste, e a luz dourada da lâmpada formava um halo sobre sua cabeça.
– Há uma coisa que eu preciso fazer, Spencer – disse ele, baixinho. – Algo que eu acabei de perceber.
E assim, desse jeito, ele se virou e caminhou de volta para o clube; sem dúvida, pensou Spencer animadamente, para terminar tudo com Ramona. Ela correu as mãos pelo rosto, tentando convencer seu coração a se acalmar. Naquele momento, fogos de artifício explodiram no céu, por sobre a água. Eles brilhavam sobre o rosto de Spencer, como se fossem um show particular, só para ela. Spencer se sentiu grata pelo barulho. Apenas algo tão alto poderia abafar o martelar de seu coração.
9
ELA NUNCA SOUBE O QUE A ATINGIU
Uma hora depois que Colin a deixou no píer, Spencer percebeu que ele não ia voltar. Provavelmente ele estava consolando Ramona; Colin era o tipo de cara que faria isso. Melissa ainda estava desaparecida, e Spencer voltou para a casa da vovó Hastings, com um sorriso secreto brincando em seus lábios. Ela mal podia esperar pelo dia seguinte, para ver como seu novo relacionamento ia se desenvolver.
As janelas da casa da vovó Hastings estavam escuras, e a Mercedes alugada estava estacionada na entrada. Spencer girou a maçaneta e deu um pulo quando Melissa saiu da escuridão da sala de visitas e acendeu o candelabro do corredor, lançando feixes de luz sobre o chão de mármore.
– Oi – disse Spencer. Ela colocou a bolsa no último degrau da escada e chutou os sapatos para longe, massageando os calcanhares.
Melissa lhe deu um sorriso radiante.
– Oi! Então... como foram as coisas?
– Ótimas! – respondeu Spencer, sentando-se em um banquinho ornamental antigo. Melissa se sentou ao lado dela. – Muito obrigada por me encorajar a falar com ele!
Melissa arregalou os olhos.
– Vocês ficaram juntos?
Spencer sacudiu a cabeça.
– Mas ficaremos em breve. Ele me disse que tomou uma decisão importante. Ele vai terminar com ela, Melissa, eu sei. – Ela deu um abraço apertado na irmã, e as lágrimas encheram seus olhos inesperadamente. Spencer apertou as mãos de Melissa. – Prometa que as coisas vão continuar assim.
– Continuar como? – perguntou Melissa.
– Entre nós. Prometa que nós... – Spencer se interrompeu, para escolher suas próximas palavras com cuidado. – Nós não vamos mais brigar. Vamos ajudar uma à outra. Eu sinto muito a sua falta.
De repente, a campainha tocou. Spencer sentiu uma onda de excitação. Poderia ser...?
Ela deu um pulo, umedecendo os lábios e ajeitando os cabelos, enquanto corria para a porta.
– Fique calma – lembrou Melissa.
Ela abriu a porta e deu um sorriso. Era Colin. Seu maxilar bem esculpido e seu nariz afilado lançavam sombras em seu pescoço, sob a luz do pórtico.
– Oi. – A boca de Colin se abriu em um sorriso lento. Encantada, Spencer o convidou para entrar. – Ramona e eu terminamos tudo.
Aquelas palavras deviam ter feito Spencer desmaiar de alegria. Só que Colin passara direto por ela e estava agora junto a Melissa, com uma expressão apaixonada no rosto. Spencer ficou petrificada. Por que ele estava contando aquilo a Melissa? Ela não se importava. Spencer se importava.
– Mesmo? – sussurrou Melissa.
– Eu não conseguia parar de pensar em você – disse Colin em voz rouca, tomando a mão de Melissa.
Spencer recuou como se tivesse sido esbofeteada. O relógio antigo sobre a estante da sala tocou duas vezes. O que estava acontecendo? Aquilo era alguma brincadeira?
– Podemos dar uma volta? Está uma noite linda – sugeriu Colin.
– Deixe-me apanhar minha bolsa. Espere aqui – disse Melissa.
Ela se virou e subiu as escadas correndo. Spencer olhou para Colin, que olhava de forma sonhadora para sua irmã. Ela soltou um gritinho e saiu atrás de Melissa, subindo os degraus de dois em dois, sentindo-se grata por todos os exercícios que seus professores de ginástica a forçavam a fazer.
Entrou correndo no quarto de Melissa, que estava passando gloss calmamente nos lábios, com a bolsa pendurada no ombro.
– O que você está fazendo? – gritou Spencer, sem sequer se importar em abaixar a voz.
Spencer observou um sorriso maldoso surgir no rosto de Melissa, no espelho.
– O que você acha, Spence?
– Mas... – Spencer tentou falar, mas as palavras não lhe vinham. – Mas você me deu todos aqueles conselhos para conquistá-lo.
Melissa deu de ombros.
– Todo mundo sabe que, se você quer mesmo que um cara preste atenção em você, deve fingir que ele não existe.
O estômago de Spencer se contraiu tão violentamente que ela pensou que fosse vomitar seu jantar havaiano.
– Mas eu pensei que nós fôssemos amigas! – choramingou ela, e as lágrimas encheram seus olhos.
– Nós nunca fomos amigas – disse Melissa, jogando o gloss sobre a penteadeira. O tubo rolou e caiu sobre o tapete fofinho. Ela olhou com raiva para Spencer. – Eu nunca a perdoei por tudo o que você me fez. E nunca vou perdoar.
Ela deu um sorriso cruel para Spencer e saiu do quarto, descendo as escadas para aproveitar a noite com Colin, deixando Spencer para trás.
10
ANO-NOVO, GAROTA NOVA
Na manhã seguinte, Spencer abriu os olhos para a luz do sol que entrava pela janela. Os pássaros cantavam nas árvores. O sininho de uma bicicleta tocou na rua. As ondas do mar batiam com força na praia, e o cheiro confortador de café recém-passado e de torradas francesas enchia o ar. Era mais uma gloriosa manhã em Longboat Key.
E então Spencer lembrou. Melissa. Ela se sentou na cama, e os detalhes da noite anterior voltaram como água jorrando de uma torneira. Como Colin chegara em sua casa, tão lindo e cheio de intensidade, para professar seu amor por Melissa. A expressão no rosto da irmã quando ela disse a Spencer que jamais a perdoara. Spencer os ouvira conversar no pátio até muito tarde, e tivera que aumentar o volume de seu aparelho de som para não ouvir suas risadas.
Era como um soco no estômago. Melissa nunca quisera ser sua amiga. Ela odiava Spencer, como sempre. O pior de tudo era que Spencer começara a esperar que as coisas pudes sem de fato mudar entre elas; na verdade, ela esperara que as coisas já tivessem mudado. Ela calçou as pantufas e desceu as escadas, rezando para Melissa não estar na cozinha. Feliz mente, apenas sua mãe estava sentada à mesa, folheando o jornal.
– Bom dia, querida. – A mãe de Spencer quebrou o silêncio. – Você se divertiu ontem à noite?
Spencer olhou para ela. A sra. Hastings ainda vestia robe e pijamas. Havia algo de muito vulnerável nela quando estava sem maquiagem. Spencer sentiu o queixo tremer.
– Na verdade, não – balbuciou ela, antes de poder se controlar.
– O que aconteceu?
Spencer tentou manter a boca fechada, mas a necessidade de desabafar era muito grande. Ela contou para a mãe toda a história sobre Colin, explicando que conhecera um garoto incrível naquelas férias, e que parecia que ele gostava mesmo dela, mas alguém o roubara dela no último minuto. O único detalhe que ela omitiu foi que aquele alguém fora Melissa.
Quando Spencer chegou ao final da história, narrando como vira Colin sair com outra menina, sua mãe cruzou as mãos sobre a mesa.
– E então, o que você vai fazer a respeito disso?
Spencer piscou para evitar as lágrimas.
– O que é que eu posso fazer? – A decisão fora tomada. Melissa vencera mais uma vez. – Eu perdi. Vou lamber minhas feridas e seguir em frente.
As sobrancelhas da mãe se uniram.
– E desde quando essa é a sua visão do mundo? Onde está a garota que faz tudo e qualquer coisa para vencer?
Spencer deu de ombros.
– Isso não me levou muito longe, no passado.
A sra. Hastings estalou a língua.
– Se você acha que esse garoto é o certo para você, tem de lutar por ele.
Havia uma expressão séria e desafiadora no rosto de sua mãe, e o punho esquerdo dela estava cerrado, como se ela estivesse prestes a esmurrar alguém.
– Você acha? – perguntou Spencer, com a voz trêmula.
– É claro que sim. – Os cabelos louros da mãe, cortados rente ao queixo, balançaram quando ela assentiu. – Você precisa fazer tudo o que estiver ao seu alcance para tirar a outra garota de cena. Você tem de lutar pelo que quer.
Algo no tom de voz de sua mãe fez Spencer se perguntar se ela não estaria falando por experiência própria.
– Isso tem alguma coisa a ver com você e o papai? – perguntou ela, com um fio de voz.
A mãe de Spencer se virou, parecendo de repente encantada com o bebedouro de pássaros no pátio. Depois de alguns segundos, ela respirou fundo, e pareceu que ia dizer alguma coisa, mas mudou de ideia e ficou calada.
– Vocês dois estão tendo... problemas? – tentou Spencer de novo.
– Não há nada com que se preocupar, querida. – Sua mãe se levantou e lhe deu um sorriso. – Agora, você quer um croissant? Quer que eu prepare umas torradas francesas? Seu pai trouxe aquele pão challah delicioso da padaria do Tommy...
Spencer murmurou que não estava com fome, e então observou enquanto sua mãe saía discretamente da cozinha. Era difícil saber se seus pais estavam tendo problemas de verdade ou se era só a tensão depois de tudo o que acontecera naquele outono. Olhou para a xícara de café de sua mãe, que ela deixara sobre a mesa, e para um suéter pendurado em uma das cadeiras.
Era de Melissa; ela o usara durante o jantar no Culpeper na outra noite. Ela o tomou nas mãos, amassando a caxemira macia. As palavras de sua mãe lhe voltaram à mente. Você tem que lutar pelo que quer. Talvez houvesse alguma verdade nelas. Antes de Melissa entrar em cena, Colin estava interessado em Spencer; tinha certeza disso.
Ela se levantou, sentindo que os efeitos das palavras da mãe lhe corriam pelas veias. Danem-se os conselhos idiotas de Melissa; Spencer ia reconquistar Colin ao seu próprio modo. Ia jogar sujo. Seria cruel. Usaria todos os meios necessários.
Ela saiu da cozinha, subiu as escadas até seu quarto e se sentiu subitamente rejuvenescida. Melissa não sabia, mas o ano-novo traria uma nova Spencer. E ela ia jogar para vencer.
11
GUERRA NA PRAIA
Quando Spencer chegou à praia naquela manhã, a temperatura subira para quase trinta e cinco graus. Embora a casa da vovó Hastings ficasse à beira-mar, não estava no melhor local para tomar banho de mar ou de sol; era para isso que a praia pública, a cerca de meio quilômetro dali, servia.
Se Colin e Melissa tivessem ido nadar hoje, era lá que eles estariam. Quando Spencer desceu os degraus de madeira e examinou a areia, viu os dois à esquerda da torre do salva-vidas, abraçados sobre uma toalha listrada. Bingo.
Ela se escondeu atrás da torre do salva-vidas para que eles não a vissem. Melissa estava usando um biquíni de bolinhas, e passava protetor solar nas costas de Colin. Ela disse algo no ouvido dele, e os dois começaram a rir. Spencer se perguntou se estariam falando sobre ela. Talvez Melissa estivesse contando a ele como enganara Spencer com todas aquelas regras idiotas da Cosmopolitan para conquistá-lo. Ou talvez Melissa estivesse rindo de como roubara Wren de volta de Spencer, ou de como sua irmãzinha era burra demais para escrever seu próprio trabalho de economia. Bem, ela também podia jogar aquele jogo.
Ela estendeu sua toalha na areia quente. A praia estava lotada, com uma multidão na água, empinando pipas ou jogando vôlei perto das dunas. Uma grande onda quebrou na areia, e de repente Spencer ouviu uma risadinha atrás de si. Ela olhou por sobre o ombro, sentindo uma pontada de preocupação. Aquela risadinha parecia tão familiar, como um sonho ruim. Mas não podia ser A.
Spencer tirou o celular da bolsa. Ela conhecia a pessoa certa para lembrar-lhe de que tudo era justo no amor e na guerra, e enviou uma mensagem curta para Hanna, pedindo conselhos. Mas mesmo depois de alguns minutos, Hanna não respondeu. Spencer teria que agir sozinha. “Como sempre”, pensou ela com amargura.
Ela se levantou e foi até a toalha de Melissa. Lançou uma sombra sobre a irmã, mas Melissa não ergueu os olhos de sua Vanity Fair, nem mesmo quando Spencer limpou a garganta. Por fim, Colin protegeu os olhos com as mãos, notando a presença dela.
– Ah, oi, Spencer. – Ele coçou o alto da cabeça, com uma expressão envergonhada no rosto.
– Oi – respondeu Spencer secamente. Ela mostrou o celular para Melissa. – Saiu outra reportagem sobre o Ian. Seu namorado.
Melissa virou uma página e ajeitou os óculos sobre o nariz, sem mover um músculo.
– O criminoso que está na cadeia – completou Spencer, balançando o celular sob o nariz de Melissa. Ela encontrara o artigo no jornal Philadelphia Inquirer. – Os advogados dele acabaram de dar uma declaração para a imprensa.
Colin olhou para o celular, e depois para Melissa, com um ar inquisitivo. Melissa apenas virou para o lado e tomou um gole de sua lata de Diet Coke. Depois de alguns momentos, Colin deu de ombros e se deitou ao lado dela, ignorando Spencer também.
Spencer continuou ali por mais alguns segundos, segurando o celular, mas começou a se sentir constrangida. Era possível que Melissa tivesse alertado Colin de que Spencer ficaria com ciúme e procuraria se vingar. Não acredite em uma palavra do que ela diz, talvez lhe tenha dito.
Spencer colocou o celular de volta na bolsa, tirou os óculos e foi para o mar esfriar a cabeça. Depois de passar por um grupo de crianças brincando na areia e alguns rapazes jogando bola, mergulhou de cabeça em uma onda. A água estava fria, refrescante e salgada, e ela emergiu, olhando de novo para a areia. Melissa e Colin estavam de pé na beira da praia, molhando os pés.
Melissa olhou para Spencer entre as ondas enormes, mas quando percebeu que Spencer a estava observando, virou a cabeça.
– Oi. – Um garoto gorducho, que parecia ter uns treze anos e usava uma camiseta ensopada e uma enorme máscara de mergulho, olhava para Spencer, a alguns passos de distância. – Você é linda.
– Obrigada. – Spencer boiou sobre uma onda. Naturalmente, o único garoto que prestava atenção nela era um pré-adolescente tímido. Ela só podia imaginar as gargalhadas que Aria, Emily e Hanna dariam quando ela lhes contasse.
O menino tirou algo translúcido e gelatinoso da água.
– Quer brincar com a minha água-viva?
Spencer deu um grito e começou a nadar para longe.
O menino riu.
– É de mentirinha! Viu? – Ele se aproximou dela, e antes que Spencer pudesse impedi-lo, atirou a coisa pegajosa em Spencer.
Anos antes, uma água-viva que se parecia exatamente com aquela havia queimado a perna de Melissa. Ela gritara e gritara, e seu pai lhe dissera que o melhor remédio era urinar na ferida. Aquilo só serviu para fazer Melissa gritar mais alto. Ela ficara deitada no sofá, de mau humor pelo resto do dia. Spencer lhe fizera companhia, fazendo desenhos da água-viva malvada no estilo dos antigos cartazes de PROCURADO, e espalhando-os por toda a casa da vovó.
– Hum, você pode me emprestar isso por um minuto? – perguntou ela ao garoto da máscara, que ainda estava ao seu lado.
O rosto dele se iluminou.
– Só se você me der um beijo.
Spencer soltou um grunhido. Mas momentos de desespero pedem medidas desesperadas.
– Tudo bem – disse ela, pressionando os lábios no rosto dele. No último instante, o garoto virou a cabeça e beijou-a na boca. Spencer se afastou e limpou a boca, lutando contra a vontade de vomitar. – Eu já volto – resmungou ela, apanhando a água-viva falsa e nadando até a praia.
Melissa e Colin ainda estavam na parte rasa, examinando uma pequena piscina. Havia tanta gente na água que Melissa não notou que Spencer se aproximava. De modo lento e furtivo, ela empurrou a água-viva na direção de Melissa e mergulhou em uma onda. Quando emergiu, Melissa estava olhando para sua perna, na qual a criatura estava grudada. De repente, ela começou a sacudir a perna com força, gritando.
– Tire isso de mim, tire isso de mim! – uivava Melissa.
A água-viva permaneceu grudada a sua pele, e ela gritava cada vez mais alto. Colin franziu a sobrancelha, e por uma fração de segundo pareceu irritado.
Spencer nadou na direção deles, pronta para arrancar a água-viva da perna de Melissa e dizer que era apenas um brinquedo, quando Colin se ajoelhou, arrancou a coisa da perna da garota e a atirou nas ondas. Ele pegou Melissa, que estava soluçando, no colo e a carregou para longe da água, para as dunas.
– Está tudo bem – disse ele. – Vou cuidar de você. Não se preocupe. – Melissa deitou a cabeça no ombro dele.
Algo bateu nos pés de Spencer, e ela olhou para baixo e viu que a água-viva falsa voltara para ela. Ela apanhou o brinquedo pelo tentáculo e o devolveu ao garoto da máscara, que a estava observando a alguns passos de distância.
– Eu também prego peças como essa na minha irmã – disse ele alegremente.
“Ótimo”, pensou Spencer, saindo da água e voltando para sua toalha. As estratégias de guerra dela eram iguais às de um garoto de escola.
12
ALGO AZUL
Estava chovendo na manhã seguinte quando Spencer foi para o pátio com uma xícara de café, uma tigela de cereal dietético e uma toranja fresca. Sua mãe estava sentada à mesa, cercada por vários pincéis, um copo cheio de água turva e um vaso de cerâmica terracota que Spencer imaginou que ela comprara na loja de artesanato da cidade. Tinha o costume de pintar uma peça de cerâmica toda vez que visitava Longboat Key, e sempre guardava o produto final no armário da vovó, mas Spencer duvidava de que sua avó os usasse.
– Oi, Spence. – A sra. Hastings pintou uma faixa azul ao redor do vaso. – Quer pintar um desses? Eu comprei alguns vasos extras.
– Hum, claro. Só um segundo.
Spencer apurou os ouvidos ao ouvir a irmã se movimentar no andar de cima. Melissa tinha uma rotina matinal muito rigorosa: quando estava pronta para o banho, carregava uma cestinha com todos os seus produtos para a pele e para os cabelos; ela devia imaginar que Spencer poderia roubar um pouquinho aqui e ali, se deixasse tudo no quarto. Spencer havia elaborado um novo plano de sabotagem, e precisava pôr as mãos naquela cestinha em um período muito curto de tempo.
Ela colocou o café e a tigela de cereal na mesa e subiu outra vez as escadas. O chuveiro estava ligado no banheiro do corredor, mas Melissa voltara para apanhar as roupas no quarto, como fazia toda manhã. Spencer entrou em silêncio no banheiro, encontrou a cestinha de Melissa e apanhou o frasco de xampu Pureology. Abrindo a tampa, ela derramou no frasco várias gotas da tintura azul que encontrara no armário da avó. Não era um azul discreto; era um azul profundo, tipo Katy Perry, do tipo que Aria usara para tingir uma mecha de seus cabelos no sétimo ano, numa atitude de desafio. Quem poderia saber por que a Vovó Hastings possuía uma tintura azul daquelas? Spencer provavelmente não iria querer saber.
Havia acabado de recolocar a tampa no frasco de xampu e saído do banheiro quando a porta do quarto de Melissa se abriu e ela apareceu no corredor. Ela olhou para Spencer, desconfiada.
– O que está fazendo aqui em cima?
Spencer não se abalou.
– O meu quarto também fica nesse andar.
Ela estava prestes a se virar quando Melissa deu um sorriso açucarado.
– Olhe, Spencer, eu sei que você está aborrecida por causa do Colin. Mas ele e eu combinamos muito mais. Estamos no mesmo ponto da vida. Não há motivo para você ficar com tanta raiva. Aquele truquezinho de ontem, usando o Ian? Não foi nada legal.
Spencer precisou reunir todas as suas forças para não sufocar Melissa com um dos travesseiros de monograma de sua avó. Não foi nada legal? Será que Melissa entendia que também não fora nada legal roubar o garoto por quem Spencer estava interessada? E será que ela não sabia que não fora nada legal fingir estar do lado de Spencer, antes de esfaqueá-la pelas costas?
Antes que Spencer pudesse dizer mais uma palavra, Melissa entrou no banheiro cheio de vapor e bateu a porta. Segundos depois, Spencer ouviu a cortina do boxe se fechando. Ela desceu as escadas e voltou para o pátio. Sua mãe havia feito uma pausa na pintura e estava olhando para uma fotografia em seu iPad. Era uma foto da sra. DiLaurentis e de Ali. Elas estavam de pé no quintal dos Hastings durante um churrasco da família. O pai de Spencer aparecia no canto da foto, entregando um hambúrguer grelhado para a mãe de Ali.
– Por que está olhando isso? – perguntou Spencer.
Sua mãe deu um salto e minimizou a janela.
– Ah, eu só estava olhando algumas fotos antigas na nossa página da Kodak. Há tantas que precisamos apagar.
– Mamãe... – Spencer brincou com um pincel sobre a mesa. – Há alguma coisa a respeito dos DiLaurentis que está incomodando você?
A boca da sra. Hastings se abriu e se fechou, no exato momento em que um grito cortou o ar. Um instante depois, Melissa entrou correndo no pátio, vestindo um robe com um bordado sobre o peito que dizia WALDORF ASTORIA, NEW YORK CITY. Seus olhos tinham uma expressão furiosa, sua pele ainda estava molhada, e seus cabelos ensopados exibiam um tom brilhante de safira. Era ainda mais vibrante e radical do que Spencer imaginara.
– Melissa! – A mãe de Spencer estava tão surpresa que se levantou bruscamente. – Que diabos...
Melissa apontou para Spencer.
– Você fez isso. Você colocou alguma coisa no meu xampu.
Spencer sacudiu a cabeça de um jeito inocente.
– Não sei do que você está falando. Você deve ter apanhado um dos xampus da vovó por engano.
– Você é uma mentirosa. – Melissa sacudiu a cabeça azul, e suas mãos tremiam de raiva. – Uma mentirosa ciumenta e patética.
– Esse visual fica bem em você – provocou Spencer, brincando com seu pincel. – E, quem sabe, talvez Colin seja um fã dos Smurfs.
Melissa deu um grito histérico. Virando-se para a direita, ela agarrou um vaso na mesa e atirou-o em Spencer. Ela se abaixou na hora exata, e o vaso se espatifou contra o chão de pedra.
– Sua vadia! – berrou Spencer. Ela agarrou o copo com água que sua mãe estava usando para limpar os pinceis e atirou a água no rosto de Melissa. O líquido verde escorreu pelas faces dela.
Melissa enxugou os olhos e mostrou os dentes. Ela avançou sobre Spencer, estendendo os braços.
– Eu vou matar você – rosnou ela.
– Meninas! – O sr. Hastings apareceu do nada, vestindo uma camisa de golfe e um par de shorts xadrez. – Que diabos está acontecendo aqui?
– Ela colocou tintura azul no meu xampu! – choramingou Melissa.
– Ela roubou o garoto de quem eu gostava! – retrucou Spencer.
Um ar de compreensão passou pelo rosto da mãe de Spencer.
– Espere um pouco. Melissa roubou o garoto de quem você gostava?
Melissa deu uma risada sarcástica.
– Eu não o roubei. Ele me escolheu.
– Isso é mentira! – gritou Spencer, batendo o pé. Suas sandálias Havaianas fizeram um barulho seco contra o chão.
– Vocês duas estão sendo ridículas – disse o pai. – Já estão muito crescidinhas para brigar desse jeito.
– Seu pai tem razão – disse a sra. Hastings, com as mãos na cintura. Ela foi para o lado do marido. – Melissa, você tem vinte e dois anos. Devia ter vergonha de si mesma.
Spencer lançou um olhar satisfeito para a irmã. Fazia anos que Melissa não era repreendida.
– Não que você seja muito melhor do que ela. – O pai de Spencer se virou para ela, como se tivesse lido sua mente. – Vocês duas já deviam ter aprendido a lição sobre estarem interessadas no mesmo garoto. Não há desculpa para colocar tintura no xampu da sua irmã. – Os pais de Spencer trocaram olhares exaustos, soltando suspiros idênticos.
Melissa refez o nó no robe e abriu a porta do pátio.
– Preciso ligar para o salão agora mesmo e ver se é possível consertar esse desastre – disse ela, e se foi. Seus passos podiam ser ouvidos enquanto ela subia as escadas. O pai de Spencer começou a juntar os cacos de cerâmica com uma pá.
A mãe de Spencer se virou para ela e sacudiu a cabeça.
– Quando eu lhe disse para fazer o que fosse preciso para recuperar aquele garoto, eu não imaginei que você fosse arruinar os cabelos da sua irmã.
– Mamãe, eu...
Mas sua mãe a interrompeu com um gesto da mão.
– Esqueça.
Então, ela e o sr. Hastings caminharam na direção da piscina, murmurando baixinho um para o outro. Spencer observou quando sua mãe se encostou a seu pai, e seu pai passou um braço pelos ombros da sra. Hastings. Spencer não pôde deixar de sorrir. Era o mais próximo que eles chegavam de um abraço em dias.
Nada como duas filhas em guerra para unir um casal novamente.
13
UM SALTO PARA O DESCONHECIDO
Algumas horas depois, Spencer estava de pé no píer, perto da sorveteria Finger Lickin’ e da joalheria, cuja vitrine exibia relógios Rolex e pulseiras Cartier elegantes. Um enorme guindaste se estendia por sobre a baía, e uma grande faixa dizendo BUNGEE JUMP – LONGBOAT KEY fora estendida entre dois postes, cercada de bandeirinhas vermelhas, brancas e azuis.
Assim como a prévia de ano-novo, o bungee jump era uma tradição anual: a família de Spencer sempre ia até a praia, balançando a cabeça ao ver pessoas loucas o suficiente para se atirarem sobre a baía com apenas uma corda separando-as da morte certa. Naquele ano, Spencer tinha idade suficiente para saltar sem precisar da permissão de seus pais, e era exatamente o que planejava fazer. Aquilo parecia o tipo de coisa que interessaria a Colin, e como Melissa passaria o dia inteiro no salão para se livrar da tintura azul, talvez assim Spencer tivesse a chance de ficar a sós com ele. Pelo menos era o que esperava.
Ela olhou para a multidão de universitários, viciados em adrenalina e homens em plena crise de meia-idade, que faziam fila para saltar. No quinto ano, da última vez em que sua família e a de Ali haviam visitado Longboat Key durante as férias de inverno, o irmão de Ali, Jason, esperara ansiosamente na fila, segurando nas mãos a permissão assinada pelos pais. Ali e seu grupinho de amigas ficaram ao lado dele o tempo todo, perguntando se ele estava nervoso, se não tinha medo que a corda arrebentasse ou se já ouvira o boato sobre o bungee jump fazer os testículos de alguns garotos explodirem. Spencer rira daquela última brincadeira, e Ali se virara, lançando-lhe um olhar raivoso.
Spencer continuou a examinar a fila. Como ela imaginara, Colin estava esperando lá na frente. Ela sentiu um frio no estômago ao vê-lo. Ele estava digitando algo no celular, com a testa franzida.
Spencer respirou fundo e foi até ele.
– Tudo bem?
Colin ergueu a cabeça.
– Ah, oi. Eu estava mandando uma mensagem para Melissa. Ela me disse que se encontraria comigo aqui, mas não tive notícias dela. Você sabe onde ela está?
– Ela lhe disse que o encontraria aqui? – Spencer franziu o rosto. – Isso não é a praia dela, de jeito nenhum. Ela está no salão, arrumando os cabelos. Deve ficar lá o dia todo.
Colin colocou o celular de volta no bolso, com uma expressão estranha no rosto.
– No salão? É mesmo? Ela não me parece esse tipo de garota.
– Não? – Spencer se recostou em um dos postes de madeira e observou enquanto uma pessoa se atirava do guindaste. A multidão aplaudiu. – Ela é viciada em salões. Ela depila os braços, faz luzes nos cabelos, limpeza de pele todo mês. E há também a manicure, tratamentos Reiki, a câmara de bronzeamento... Ela é uma garota superexigente.
– Hum. – Colin passou a mão no queixo e olhou para Spencer.
Um longo momento se passou. Colin não desviou os olhos dela até o guindaste começar a ranger e o elevador levar o próximo saltador até o alto. Colin olhou novamente para o celular.
– Então, aquilo que você disse ontem na praia é verdade? Melissa tem mesmo um namorado criminoso?
Spencer abriu a boca, pronta para contar a ele toda a história sobre Ian, mas algo de repente a fez mudar de ideia. Falar sobre Ian sem Melissa presente para se defender parecia um pouco demais, mesmo para Spencer. Não era como se Melissa tivesse sabido que ele matara Ali, afinal de contas. Ela não sabia sequer que eles estavam juntos.
– Colin?
Melissa estava descendo a rampa do píer; seus cabelos exibiam um tom brilhante de louro-mel. Quando ela viu Spencer, seus olhos faiscaram, mas passou direto pela irmã, passou os braços ao redor de Colin e lhe deu um beijo demorado.
– Desculpe pelo atraso.
Colin segurou uma mecha dos cabelos de Melissa e a soltou.
– Spencer me disse que você estava no salão.
– Ah, só para uns retoquezinhos – disse Melissa. Ela segurou a mão de Colin. – Eu não perderia o seu grande salto por nada!
– O meu grande salto? – O sorriso de Colin era um ponto de interrogação. – Você não vai saltar também?
Melissa piscou com força. Seu olhar se voltou para o guindaste, e então para o bungee jump pendendo sobre a baía.
– Hã...
– Vamos lá, você chegou bem na hora. – Colin fez um gesto indicando que eles eram os próximos da fila. – Pode saltar antes de mim. Você vai adorar, prometo.
Um dos funcionários do bungee jump, um rapaz magricela usando trancinhas nos cabelos, olhou para as pessoas na fila.
– Tudo bem, pessoal, quem é o próximo?
O rosto de Melissa estava branco como um lençol.
– Colin, acho que não vou conseguir – disse ela, na mesma voz de donzela em perigo que usara durante o incidente com a água-viva no dia anterior.
Colin deu uma risadinha zombeteira.
– Não seja boba. É muito divertido, e totalmente seguro. Você devia viver um pouco.
– Hum, quem é que vai subir? – perguntou o Trancinhas, impaciente, balançando a corrente em sua carteira.
Os joelhos de Melissa estavam paralisados, e ela mordia os lábios com tanta força que eles estavam brancos.
– Estou falando sério, Colin – disse ela, tremendo. – Odeio altura.
Colin passou a língua pelos dentes. Ele olhou para Melissa por quase todo o refrão da música de heavy metal que saía dos alto-falantes.
Spencer prendeu o fôlego, observando as feições de Colin mudarem, enquanto a imagem que Melissa havia pintado de si mesma se transformava em algo menos interessante. Aquilo fez Spencer se lembrar da ocasião em que seu pai estava para comprar uma Ferrari vintage de um cara que morava em uma cidade vizinha, até descobrir que a carenagem estava enferrujada e o motor não funcionava.
Ela passou direto pelo casal.
– Eu vou saltar.
– Você? – Melissa parecia chocada.
– Ótimo. – O Trancinhas se afastou para que Spencer pudesse entrar no pequeno elevador que a levaria até o topo do guindaste. Ela fez o melhor que pôde para permanecer tranquila quando ele a fechou dentro do compartimento e o elevador começou a se mover. Melissa olhou com fúria para ela. Colin, por outro lado, parecia impressionado.
– Boa sorte – sussurrou ele, sem emitir um som.
O percurso até o topo durou cerca de um minuto. Spencer observou enquanto as pessoas no píer ficavam cada vez menores, e sua visão da baía se expandia.
Quando ela chegou ao ponto do salto, um instrutor a ajudou a vestir o colete de segurança e lhe explicou o básico sobre o salto: tentar permanecer calma, estender os braços e dar um salto aberto, para não machucar as costas. E então, era hora de ir.
Spencer se aproximou da beirada com o pulso acelerado. As ondas quebravam pacificamente na praia, um zilhão de metros lá embaixo. A água parecia tão escura e infinita lá do alto... De repente, Spencer se lembrou de quando estava pendurada na beira da pedreira, com Mona Vanderwaal. De como aquele abismo era escuro. De como ela tivera certeza de que ia despencar para a morte. Dos gritos agudos, desesperados de Mona quando ela caíra, e da eternidade que parecera se passar até ela atingir o solo.
Uma risadinha fraca quebrou o silêncio, e Spencer virou a cabeça para a direita. As pessoas no píer erguiam as cabeças para vê-la saltar. Uma gaivota pousou em uma boia branca e vermelha.
Spencer sacudiu a cabeça. Não havia como alguém estar rindo dela, ali tão alto.
– Está pronta? – perguntou o instrutor, dando outro puxão na corda para se certificar de que estava segura.
A boca de Spencer parecia estar cheia de algodão. Suas mãos começaram a ficar úmidas, e o suor escorria sob seus braços. Mas não podia se acovardar agora.
– Estou pronta – respondeu ela, trêmula.
Os instrutores fizeram a contagem regressiva a partir do três. Spencer engoliu em seco, empinou o queixo e saltou. No começo, ela se sentiu muito leve, e então seu estômago pareceu se alojar em sua garganta. Ela ouviu gritos, e só percebeu frações de segundo depois que era ela quem gritava. A água lá embaixo se aproximava cada vez mais rápido, seu corpo ficava cada vez mais pesado, até que vupt! A corda atingiu o limite e ricocheteou para cima. Logo, o movimento cessou, e Spencer estava pendurada sobre a água. Ela conseguira. Estava viva.
Spencer respirou fundo, ouvindo o som das batidas aceleradas de seu coração. Uma onda de aplausos veio do píer.
– Isso! – Spencer estendeu os braços. Ela se sentia excitada e livre, como se tivesse deixado todo o seu passado no alto do guindaste. Ela virou a cabeça na direção do píer, procurando por Colin e Melissa, mas não os viu em lugar algum. E, de repente, não se importava mais.
O guindaste puxou-a devagar de volta ao topo. O instrutor apareceu na beirada da plataforma e tirou o colete de Spencer.
– Isso foi incrível – disse ela, sem fôlego.
– Eu disse que seria incrível! – declarou uma voz atrás dela.
Spencer olhou por cima do ombro do instrutor. Colin estava de pé na plataforma, já usando o equipamento de segurança. Eles eram os únicos saltadores ali.
– Então, acho que Melissa não quis pular, não é?
Colin torceu as mãos.
– Na verdade, ela foi embora. – Ele deu uma risadinha desconfortável. – Acho que ela não quis ficar, depois do que eu disse a ela.
O coração de Spencer parou por um milésimo de segundo.
– O que foi que você disse?
Os olhos azuis de Colin se fixaram nos dela.
– Que os meus sentimentos mudaram. Que eu escolhi a irmã errada.
A mesma onda de excitação que Spencer acabara de sentir durante o salto a invadiu mais uma vez. Ela tentou manter uma expressão neutra no rosto, mas podia sentir que seus lábios já formavam um sorriso.
Colin se aproximou e tomou-lhe a mão. Spencer podia sentir o cheiro de mar e protetor solar dele, e tentou não desmaiar. E simplesmente assim, na frente dos instrutores, a dezenas de metros do chão, ele se inclinou para a frente e encostou os lábios nos dela. Spencer fechou os olhos. O coração dela disparou em seu peito. Ela podia sentir a impaciência dos instrutores atrás deles, mas não se importou.
O beijo terminou depressa demais, e Colin se afastou dela.
– Quer saltar comigo?
– Podemos fazer isso? – Spencer olhou para o instrutor, e ele assentiu, entediado. Ela correu os dedos sobre seu colete e deu de ombros.
– Claro. Por que não?
O instrutor terminou de conectar os equipamentos de Colin ao bungee jump, conectou os de Spencer, e os dois foram até a beirada da plataforma juntos. Enquanto eles faziam a contagem, Colin se virou para Spencer e tocou em seu rosto.
– Não sei por que levei tanto tempo para entender, Spencer. Você pode me perdoar?
Spencer sentiu todo o seu corpo estremecer. Em vez de dizer alguma coisa, ela segurou a mão de Colin, apertando-a com força.
E então, juntos, eles saltaram para o abismo.
14
MESA PARA DOIS
– Por aqui. – Uma garçonete latina, que não devia ter mais que um metro e meio de altura, levou Spencer e Colin por um caminho ladeado por palmeiras até um jardim mediterrâneo privado nos fundos do Mia Vista, um dos restaurantes mais concorridos de Longboat Key. Lindas flores roxas, azuis e amarelas estavam arranjadas nas treliças brancas de uma pérgula de madeira. Havia uma lareira em forma de colmeia a um canto, gerando a quantidade exata de calor para compensar o ar frio, e a banda de jazz tocava suavemente em outro canto. Eles pararam na frente da mesinha lateral coberta por uma toalha branca, sobre a qual havia uma vela branca acesa, taças de champanhe e, é óbvio, uma garrafa de AminoSpa gelado para Colin. Em todas as fantasias de Spencer, ela jamais imaginara um lugar mais perfeito do que aquele para um primeiro encontro. Ela se acomodou em sua cadeira, desamassando a saia do vestido novinho em folha que comprara naquela mesma tarde. Colin se sentou à sua frente, parecendo superbronzeado em sua camisa polo da Lacoste.
– Não podíamos ter escolhido lugar melhor – disseram Colin e Spencer exatamente ao mesmo tempo. Ambos caíram na gargalhada.
A garçonete retornou com as bebidas e com os cardápios. Colin bebericou seu AminoSpa com gelo e então começou a rir.
– Lembra o quanto você odiou isto, no nosso primeiro encontro?
Ele estendeu o braço por sobre a mesa e tomou a mão de Spencer. Ela podia sentir que corava. Então ele considerava o jogo de tênis um encontro! Aquela situação toda era tão surreal... Uma vez na vida, ao que parecia, ela vencera.
Melissa não estava em casa quando Spencer voltara da sessão de bungee jump, e Spencer não a vira na cidade. Spencer não tinha certeza do que teria feito se as duas tivessem se encontrado. Ela sabia que devia se sentir vitoriosa por ter roubado Colin de volta, mas parte dela se sentia... mal.
Era uma sensação bem parecida com a que Spencer tivera quando beijara Ian na entrada de casa; por mais excitada que estivesse por ficar com o garoto mais quente de Rosewood Day, não podia deixar de se sentir culpada, ainda que Melissa sempre agisse com ela como uma vadia. Mas aquilo não mudava o que sentia por Colin, que estava olhando para ela com uma expressão terna, olhos suaves e um sorriso no rosto.
– No que você está pensando? – perguntou ela.
Ele deu de ombros, acariciando a palma da mão dela.
– Só que você está linda.
Spencer sentiu um arrepio percorrendo sua espinha.
– Você também não está nada mal – disse ela, abaixando as pálpebras.
A garçonete reapareceu e anotou os pedidos. Quando ela se foi, Colin suspirou.
– É uma pena que você tenha que ir para casa em breve.
– Eu sei. – Spencer fez um biquinho. – Mas talvez eu possa voltar para uma visita. Por quanto tempo você fica aqui? – A mente dela trabalhava a toda a velocidade, imaginando cenas dos dois mergulhando, velejando e tomando limonadas na praia depois dos treinos de tênis.
– Vou ficar até fevereiro. Mas o problema é que estarei treinando muito – disse ele, parecendo desconfortável na cadeira. – Quero participar de alguns torneios importantes este ano, lembra?
– Ah, claro. – Spencer se endireitou na cadeira. – Eu nunca o distrairia de seu treinamento. Posso treinar com você, se quiser, embora você provavelmente prefira um adversário mais forte.
– Não, acho que isso seria incrível. – Colin usou o canudo para esmagar um pedaço de gelo no fundo de seu copo. – Quem sabe? Se as coisas correrem bem, talvez você possa ir comigo a alguns jogos. – Ele se recostou na cadeira, e cruzou os braços sobre o peito. – Nós podemos ir para a Austrália juntos. Para Roland Garros, na França. Podemos ir passear em Nova York durante o US Open.
– E eu posso me sentar no camarote dos convidados, e acenar para as câmeras da ESPN – disse Spencer, animada.
– Você vai ficar deslumbrante na arquibancada – sussurrou Colin.
– Você vai ficar deslumbrante na quadra – respondeu Spencer.
Eles se inclinaram para a frente e se beijaram de leve. Spencer sentiu uma corrente elétrica percorrendo seu corpo. Ela se recostou de novo na cadeira.
– E, Deus nos livre, mas, se você não conseguir disputar um torneio importante este ano, vai voltar para Connecticut, não vai? Posso dirigir até lá para visitar você. Rosewood não é tão longe.
Um músculo no queixo de Colin tremeu.
– Bem, não sei.
– Por quê?
Ele ergueu um ombro.
– O meu apartamento é meio... – ele se interrompeu.
– O quê? – Constrangedor? Bagunçado? Ou talvez ele morasse com um tio esquisito ou com um monte de gatos.
– Não importa. Não vamos nos preocupar com isso agora. – Colin segurou o rosto de Spencer nas mãos. – Vamos falar de você. Quando foi que você percebeu pela primeira vez que gostava de mim?
– Provavelmente quando descobri que ambos temos compulsão por organização – brincou Spencer.
Colin apontou um dedo para ela.
– Fique longe do meu armário. Eu o arrumei do jeito que gosto.
Spencer fingiu fazer biquinho.
– Mas armários são o que eu mais gosto de arrumar!
Quando as entradas chegaram, Colin começou a contar uma história sobre um jogo de tênis que se estendera por sete break points, história que durou até o momento em que Spencer espetou o último bocado de caranguejo com seu garfo. Ela riu e grunhiu nos momentos certos, e tentou contar sobre um jogo de hóquei que fora para a prorrogação e para a morte súbita, mas Colin estava tão entusiasmado que continuou falando. “Ele deve estar nervoso”, pensou ela, sorrindo para ele. Era tão bonitinho.
A garçonete apareceu.
– Sobremesa para os pombinhos?
Spencer abriu a boca para pedir café e o cardápio, mas Colin se adiantou.
– Acho que não – disse ele rapidamente, olhando para o celular. Ele deu de ombros, virando-se para Spencer. – Você conhece a rotina. Preciso de uma boa noite de sono.
Spencer se esforçou para sorrir.
– Claro que sim. Mas talvez só um rápido...
– Queremos a conta – interrompeu Colin.
A garçonete olhou para Spencer, balbuciou um “Sinto muito” e se foi, levando o cardápio de sobremesa consigo. Colin colocou o guardanapo na mesa e deu um sorriso vencedor para Spencer.
– Vou passar no banheiro.
– Tudo bem – respondeu Spencer, tentando esconder sua decepção. Ela checou o celular; havia uma mensagem de Emily, perguntando quando ela voltaria para Rosewood. Em seguida, examinou as unhas, que ainda estavam perfeitas. Ela cruzou e descruzou as pernas, tamborilando os dedos sobre a toalha.
A garçonete voltou para trazer a conta, e Spencer a deixou onde estava, no centro da mesa, ligeiramente voltada para o lugar ainda vazio de Colin.
Ele estava demorando demais. “Deve haver uma fila”, concluiu. Ela checou o celular mais uma vez e leu vários posts do blog Go Fug Yourself. Ela retocou o gloss. A garçonete voltou e estendeu a mão para apanhar a conta. Spencer colocou a mão sobre o envelope de couro.
– Hum, nós ainda não pagamos – disse ela, com as faces flamejando.
Quinze minutos se passaram. O casal que estava sentado na mesa ao lado foi embora, de mãos dadas, e outro casal se sentou. Não havia sinal de Colin. Spencer se perguntou se não o entendera mal. Será que Colin dissera para eles se encontrarem na frente do restaurante, perto dos banheiros? Pensando ser esse o caso, ela chamou a garçonete mais uma vez e lhe entregou seu cartão de crédito com a maior autoconfiança que conseguiu reunir. A garçonete olhou para ela com simpatia, mas Spencer apenas sorriu.
O saguão estava vazio. Spencer hesitou na frente da porta do banheiro masculino, e seu estômago começou a revirar. Quando um homem mais velho e grisalho saiu, Spencer lhe perguntou se havia mais alguém lá dentro.
– É um tanto urgente – explicou ela, com voz tensa.
O homem olhou para ela, achando aquilo estranho.
– Não vi mais ninguém lá dentro – disse ele por fim.
Spencer correu para a porta da frente, com uma sensação incômoda que ficava cada vez mais forte.
Do lado de fora, ela deu uma volta rápida pelo prédio. Quando chegou ao estacionamento, parou abruptamente. Um homem com os mesmos ombros largos de Colin, seus cabelos escuros e bumbum firme estava abraçado a uma mulher de cerca de trinta anos, usando um vestido de linho deslumbrante. Seus cabelos louros e lisos estavam presos em um rabo de cavalo, e sua mão estava pousada em um carrinho de bebê sofisticado.
– Diga oi para o papai, Brady! – exclamou a mulher, e sua voz podia ser ouvida por todo o estacionamento.
Spencer soltou um grito sufocado.
Papai?
O casal se virou para ela. O rosto de Colin registrou uma ponta de surpresa e choque, mas ele se recuperou depressa, e sorriu de novo aquele sorriso ultrabranco.
– Spencer! – Ele acenou para ela. – Venha até aqui!
De alguma forma, Spencer conseguiu colocar os pés um na frente do outro e caminhar na direção de Colin. Ela olhou para ele e para a mulher loura e para a criança no carrinho. Tinha ouvido direito? Ele era mesmo... pai?
Quando Spencer estava a apenas alguns passos de distância, Colin sorriu, seus olhos ainda parecendo nervosos.
– Yvette, esta é Spencer. Ela é a garota da qual lhe falei, que está tendo aulas de tênis comigo.
– Eu sou Yvette DeSoto – disse a mulher loura, com um tom de voz quente. Ela estendeu a mão esquerda, onde havia um anel de casamento cravejado de safiras e com um grande diamante. – Espero que meu marido não esteja pegando muito pesado com você.
As palavras pareceram ecoar na cabeça de Spencer. Ela apertou a mão de Yvette rapidamente, e o champanhe em seu estômago voltou-lhe até a garganta. Meu marido.
Colin tinha uma esposa. Mas se Yvette era sua esposa, o que isso fazia de Ramona? Ou de Melissa? Ou dela? Spencer olhou para o bebê, que mexia as perninhas e gorgolejava. Colin não tinha apenas uma esposa. Ele tinha um filho.
Por uma fração de segundo, os olhos de Spencer voltaram a fitar o rosto de Colin. Ela imaginara que ele acabara de sair da faculdade, mas sob a luz forte da lâmpada do estacionamento, parecia diferente. Mais velho. As linhas em torno de seus olhos estavam mais profundas, e alguns pelos grisalhos eram visíveis na barba que nascia em seu queixo. Era como se de repente ele fosse uma pessoa totalmente diferente.
Depois de um longo momento, Spencer recuperou a voz.
– Hã, bem, foi muito bom conhecer você, mas eu tenho que... – Ela se interrompeu, se virou e saiu correndo, passando por Range Rovers e BMWs.
Quando enfim chegou à calçada vazia atrás do clube, sem fôlego e atônita, uma risadinha fraca ecoou pelas árvores. Ela estava cansada demais para tentar descobrir quem era. E merecia que rissem dela por tudo aquilo. Não tinha conquistado Colin, afinal de contas. Não vencera. Como sempre, Spencer Hastings terminara sem nada.
15
PARE DE CHORAR
Na manhã da véspera de ano-novo, Spencer estava deitada na rede nos fundos da casa, virando as páginas de Moby Dick sem realmente compreender as frases. Quando chegou à palavra vil, apanhou a esferográfica azul e a circulou. Em seguida, circulou as palavras asqueroso, enganador e mentiroso. Nas últimas vinte páginas, envolvia cada palavra que a fazia lembrar-se de Colin. Aquilo a fazia se sentir um pouquinho melhor.
Spencer estava sofrendo de ressaca moral. Sua cabeça latejava, e seus olhos estavam tão vermelhos que usava os óculos escuros na cozinha, ignorando a expressão estranha no rosto de seu pai. Ela chorara até dormir na noite anterior, e no chuveiro naquela manhã, e durante o café, quando deixara sua torrada queimar.
Colocou o livro sobre o peito e olhou para o celular que pusera sobre a mesinha, ao lado da rede. Nenhuma nova mensagem. Claro que não havia nenhuma. Claro que Colin não havia enviado uma mensagem para ela. Ele era um jogador, pura e simplesmente. E um traidor. Ele não se importava com Spencer, jamais se importara.
Mesmo assim, as mentiras dele a magoavam. Será que alguém dizia a verdade pelo menos uma vez? Ali mentira para ela, omitindo de maneira conveniente o fato de que estava saindo com Ian às escondidas, e ao mesmo tempo repreendendo Spencer por não contar a Melissa sobre suas transgressões. Até mesmo as antigas amigas de Spencer haviam mentido para ela, e vice-versa, guardando grandes segredos durante sua longa amizade, que só Ali conhecia. E, é claro, havia Melissa.
– Aham.
Spencer ergueu os olhos. Melissa estava à sua frente, com uma xícara de café em uma das mãos e o jornal debaixo do outro braço. Spencer se encolheu, pronta para um novo confronto, mas a expressão no rosto da irmã era surpreendentemente neutra.
– Oi – disse Melissa, com voz cansada.
– Oi – respondeu Spencer baixinho.
Melissa se sentou na espreguiçadeira ao lado da rede e colocou seu café na mesinha de canto, junto ao celular de Spencer. Ela examinou o rosto da irmã.
– Você descobriu que Colin tem uma esposa, não foi?
Spencer franziu o rosto.
– Você sabia?
Melissa balançou sua cabeça loura.
– Fui até a quadra hoje de manhã, e ela estava na arquibancada, contando para as groupies quem era. E a cada intervalo no jogo, ela o fazia vir até a arquibancada, para ajeitar a camisa dele e fazer massagem em seu pescoço.
– Eu descobri ontem à noite, depois que ele me largou no jantar – admitiu Spencer.
– Ele é um mentiroso, e de várias maneiras. – Melissa se aproximou de Spencer. – Sabe o que mais eu descobri? Ele não é o número noventa e dois do ranking mundial. É o oitocentos e alguma coisa. Com certeza não é o bastante para jogar um Grand Slam. – Ela apanhou a xícara de café, deu um gole e balançou a cabeça com desprezo. – Ele me disse: “Vou levar você para a Austrália e para a França. Você vai ser a garota mais linda no US Open.” E eu caí direitinho.
– Ele disse a mesma coisa para mim! – exclamou Spencer.
Melissa estalou a língua.
– Ele deve ter dito isso para um milhão de garotas. Ele tem a situação perfeita: uma esposa rica em Connecticut e as garotas que quiser em Longboat Key. É nojento. Mas tem algo ainda pior. – Melissa cobriu a boca com a mão, parecendo um pouco verde. – Ele está inscrito na categoria Masters do torneio.
Spencer estreitou os olhos.
– E o que isso significa?
– Torneios Masters são para jogadores de uma faixa etária específica. Spencer, ele tem trinta e três anos.
– O quê? – Spencer saltou da rede, jogando Moby Dick no chão. Ela tremia violentamente. – Tem certeza?
– Certeza absoluta. – Melissa assentiu, com uma expressão grave.
Spencer correu as mãos pelo rosto.
– Não acredito que o beijei! Ele é tão velho!
Melissa deu um soco no braço da espreguiçadeira.
– Ele nos enganou por completo. E agora precisamos fazê-lo pagar.
Nós? Spencer olhou para a irmã, prestes a dizer que não ia cair na conversa de “melhores amigas” de Melissa mais uma vez.
– Poupe seu fôlego – Melissa a interrompeu antes que ela pudesse dizer qualquer coisa. – O que aconteceu entre nós duas são águas passadas, certo? Neste momento, há duas coisas que precisamos fazer. Uma: nunca contar a ninguém que isso aconteceu. Até onde eu sei, você nunca saiu com um cara de trinta e três anos, casado e com um filho. Nem eu.
– Concordo – assentiu Spencer. Graças a Deus ninguém de Rosewood vira o que acontecera.
– E a segunda. – Melissa ergueu um dedo. – Antes de irmos embora amanhã, precisamos nos vingar.
Spencer encostou-se à grade do pórtico.
– Como?
– Tem que ser algo muito bom. – Melissa virou o rosto para o céu. – Talvez algo que possa arruinar as chances de ele vencer o torneio amanhã. Seria uma boa forma de darmos o troco por todas as garotas que ele enganou em Longboat Key.
Spencer brincava com um pedaço de madeira solta na grade, pensando em todas as groupies que se reuniam nas arquibancadas das quadras para ver Colin jogar. Com quantas delas ele teria saído? E com quantas mais sairia, depois que Yvette voltasse para casa?
Ela se perguntou como ele gerenciava todas aquelas namoradas, imaginando o banheiro de Colin cheio de diferentes escovas de dente usadas, uma para cada garota, igual à vovó. Colin provavelmente ficara impressionado com a vovó Hastings e com sua coleção de namorados por ser igualzinho a ela. Ela se perguntou se na verdade ele também não teria uma receita para comprar Viagra.
E de repente, Spencer levantou a cabeça.
– Ah, meu Deus, Melissa. Eu sei o que podemos fazer.
Um sorriso excitado iluminou o rosto de Melissa.
– O quê?
Spencer estendeu o braço para puxar a irmã.
– Venha. Eu vou mostrar.
16
A MELHOR VINGANÇA
O dia de ano-novo raiou fresco e brilhante. Era o clima perfeito para um torneio de tênis, e a julgar pelo tamanho e pelo guarda-roupa da multidão presente no Clube de Tênis de Longboat Key, todos pensavam a mesma coisa. Spencer, ainda usando os óculos escuros, bebericava uma soda diet e fingia assistir aos jogos da divisão júnior, enquanto esperava pelo sinal de Melissa. Ela estava observando as quadras, certificando-se de que Colin, seu treinador, Yvette e até mesmo o bebê Brady estivessem lá.
– Vamos agir – murmurou Melissa no ouvido de Spencer, ao passar rapidamente por ela.
Spencer girou nos calcanhares e a seguiu, abaixando a cabeça e sentindo-se grata porque o chapéu de palha – que tomara emprestado do armário da avó – ocultava sua identidade das groupies de Colin, posicionadas ao lado da barraquinha de lanches.
A caminhada até o vestiário foi rápida e silenciosa, a não ser pelo ocasional aplauso da multidão a distância sempre que alguém marcava um ponto.
De repente, um grupo de meninas em uniformes de tênis passou pelo corredor. Melissa começou a rir.
– Shh! – Spencer agarrou o braço de Melissa. – Você quer que sejamos apanhadas?
– Isso é tão engraçado – sussurrou Melissa, enxugando os olhos.
A porta do vestiário se abriu com um rangido, e um rapaz alto, que não devia ter mais de dezoito anos, saiu para o corredor. Melissa espiou pela fresta da porta.
– Tem certeza de que as coisas de Colin estão aqui?
Spencer assentiu. Quando elas chegaram, naquela manhã, checaram todas as quadras usadas para os torneios. Uma partida feminina estava acontecendo na quadra principal naquele momento, mas Colin estava praticando em uma das quadras reserva.
– A bolsa não está com ele. E também não está com Yvette. Não sei onde mais poderia estar.
– Tudo bem, então. – Melissa empurrou Spencer pela porta. – É agora ou nunca.
Respirando fundo, as meninas abriram a porta do vestiário masculino e entraram. O lugar felizmente estava vazio. Spencer examinou os corredores, procurando desesperada pela bolsa Adidas verde-limão de Colin. Ela pensou ter visto a bolsa e se abaixou, pronta para apanhá-la, quando um rangido alto reverberou, vindo de um dos armários de metal. Ela ficou paralisada. O som de passos se afastando se ouviu, seguido pelo som de uma porta abrindo e fechando. Ela soltou a respiração, esperou mais alguns segundos e então agarrou a bolsa, que estava marcada com as iniciais de Colin. As mãos de Spencer tremiam enquanto ela abria o zíper e procurava entre as camisetas, meias, tubo de creme para contusões e várias bolas de tênis. Por fim, ela encontrou o que procurava no fundo da bolsa: uma garrafa de AminoSpa de limão. Isso.
– Achei – disse a Melissa.
Melissa apanhou o frasco de Viagra que elas haviam roubado da gaveta da avó e retirou um comprimido.
– Devíamos usar mais de um – sussurrou Spencer. – Talvez dois. Ou três.
Melissa assentiu e retirou mais dois comprimidos do frasco. Elas usaram o fundo da garrafa de AminoSpa para esmagá-los até virarem um pó muito fino, e o misturaram no líquido cítrico.
– Quando é mesmo que o Colin vai jogar? – murmurou Melissa.
– Daqui a uma hora, eu acho – respondeu Spencer.
– Perfeito.
Depois que a missão foi cumprida, elas tomaram seus lugares na arquibancada da quadra onde Colin ia jogar e esperaram o show começar.
O jogo feminino terminou rapidamente. Os fãs deixaram as arquibancadas, e um novo grupo de torcedores chegou. As groupies de Colin ocupavam a primeira fila.
Yvette apareceu também, segurando o bebê e parecendo muito irritada. Os juízes de cadeira e de linha tomaram seus lugares, e por fim as portas dos vestiários se abriram e os dois jogadores entraram na quadra.
Melissa agarrou a mão de Spencer quando Colin caminhou orgulhoso até a sua cadeira, com a bolsa verde pendurada em um ombro e a garrafa de AminoSpa em uma das mãos. AminoSpa de lima-limão, para ser exata. Spencer teve que colocar a mão na frente da boca, para não começar a rir.
Colin deixou a bolsa cair no chão da quadra e olhou para as arquibancadas, acenando para sua esposa e dando um sorriso encantador para as groupies. Em seguida, ele se virou e tomou um grande gole de AminoSpa, jogando a cabeça para trás e deixando o líquido escorrer por sua garganta. Spencer enterrou as unhas na palma de Melissa.
Colin e seu oponente jogaram a bola de um lado para o outro da quadra por alguns minutos, até estarem prontos para jogar. Ele venceu os primeiros games sem esforço, com um saque preciso, golpes de backhand impossíveis de defender e paralelas brilhantes. As groupies estavam enlouquecidas. Spencer se perguntou se Yvette sabia que seu marido era um mulherengo, mas, ainda que soubesse, ela simplesmente ergueu os bracinhos de Brady e o fez bater palmas, sorrindo orgulhosa para o marido.
Spencer olhou para Melissa, preocupada.
– Por que não está acontecendo nada?
– Espere mais um pouco – murmurou Melissa.
Quatro outros games se passaram da mesma forma. Colin venceu o primeiro set com facilidade, e seus torcedores aplaudiram. As esperanças de Spencer começaram a vacilar. Talvez Viagra não fizesse efeito depois de dissolvido. Ou talvez Colin tivesse bebido de uma garrafa diferente de AminoSpa.
Mas de repente, no primeiro game do segundo set, algo começou a acontecer. Colin não parava de olhar para sua vi rilha, com um ar preocupado no rosto. Seus movimentos se tornaram mais lentos, desconfortáveis. Ele errou alguns golpes fáceis, virando-se de costas para o público. Quando era sua vez de sacar e ele atirava a bola no ar, seus shorts deixavam bem claro que o Viagra dissolvido tinha... bem, funcionado.
Melissa deu uma cotovelada em Spencer. Um murmúrio percorreu as arquibancadas. Algumas garotas trocaram sorrisinhos incrédulos. Colin tentou dar outro saque, e desta vez seus shorts não esconderam nada. Algumas pessoas começaram a rir alto. Os juízes de linha estavam de queixo caído. O juiz de cadeira parecia constrangido. Quando Colin cometeu uma dupla falta e cobriu a virilha com a toalha, o juiz perguntou pelo megafone:
– O senhor precisa de um minuto, sr. De Soto?
– Hã-rã – grunhiu Colin, caminhando com dificuldade até sua cadeira.
As risadas aumentaram. Yvette cobriu os olhos com as mãos. Colin olhava para sua virilha, horrorizado, o rosto muito vermelho.
– Vamos. – Melissa pendurou a bolsa no ombro e se levantou. – Não precisamos ver o resto disso, não é?
– Acho que não – concordou Spencer. Elas desceram a arquibancada, passando pelas garotas que não paravam de rir e pelos torcedores horrorizados. Naquele exato momento, Colin olhou para cima e viu as duas.
As irmãs estouraram na gargalhada. Spencer estendeu o dedo médio para ele. Melissa fez o mesmo. Talvez Colin jamais descobrisse se haviam sido elas a batizar sua bebida, mas elas sabiam, e isso era tudo o que importava.
17
FIQUE DO MEU LADO, MANINHA
Spencer e Melissa riram histericamente durante todo o percurso de quatro quarteirões até a casa de sua avó. Melissa imitava o modo tenso como Colin andara; Spencer olhava para a virilha, fingindo estar horrorizada.
– Essa foi a melhor vingança da história. – Melissa deu um empurrãozinho em Spencer. – Eu devia saber que você pensaria em algo de fato cruel, como aquilo.
Spencer se encolheu.
– Não foi tão cruel assim.
– Eu não quis dizer isso – disse Melissa. E então, ela torceu os lábios. – Tudo bem. Talvez sim. Eu não sei.
Elas ficaram em silêncio. Um forte cheiro de flores atingiu o nariz de Spencer, fazendo-a sentir enjoo.
– Eu lamento muito mesmo por tudo – disse ela, baixinho, quando elas chegaram à entrada da casa.
– Eu sei. Eu também.
Spencer parou ao lado de uma hortênsia que desabrochava.
– Nós sempre... fazemos isso. Competimos como loucas. Tentamos superar uma à outra. Isso não está certo.
Melissa deu de ombros.
– Não fui eu quem começou.
Spencer olhou para ela.
– Foi você, sim. Eu fiquei interessada no Colin primeiro. Foi você quem quis me ajudar, e então...
– Foi você quem denunciou o Ian – lembrou Melissa a ela.
Spencer torceu as mãos.
– Eu não quis magoar você! Eu juro!
– Bem, você me magoou. – Melissa apertou os lábios. Ela olhou para a casa da avó. – E eu sinto muito, Spencer, mas você me feriu muitas vezes este ano. Você me empurrou da escada, lembra?
– E quantas vezes eu disse que sinto muito por isso?
Melissa suspirou e colocou as mãos nos bolsos. Uma brisa fresca soprava, secando o suor na nuca de Spencer. Ela apertou os olhos sensíveis com os dedos e suspirou também. Havia apenas alguns minutos, elas estavam rindo e brincando. Tudo estava perfeito. Agora, tudo parecia arruinado novamente.
– Eu só queria ter uma varinha mágica e fazer tudo voltar ao que era antes – choramingou Spencer.
Melissa olhou para ela.
– Antes quando?
– Quando éramos pequenas. Quando éramos amigas. Quando costumávamos brincar de castelo e espionar mamãe e papai.
Melissa franziu o rosto.
– Spence, quantos anos você tinha? Cinco? Seis? A vida é um pouco mais complicada agora. As coisas mudaram.
Os olhos de Spencer se encheram de lágrimas. Tudo o que Melissa estava dizendo era a mais pura verdade. Não havia como voltar. Muita coisa havia acontecido. Mas aquilo significava que elas tinham que sabotar uma à outra o tempo todo? Melissa estaria dizendo que a peça que elas haviam pregado em Colin era um acontecimento isolado, e não uma indicação de que elas poderiam formar um laço mais forte?
O rosto de Melissa se suavizou, como se ela pudesse ler os pensamentos de Spencer.
– Ouça, Spence. Eu também não quero brigar com você. E talvez algum dia encontremos um modo de fazer as coisas funcionarem entre nós. Mas não acho que exista uma solução simples, e não acho que isso possa acontecer do dia para a noite. Eu sinto muito. – Ela deu um tapinha no ombro de Spencer e se virou para entrar em casa.
Uma mistura de vários sentimentos invadiu Spencer de uma só vez. Arrependimento. Tristeza. Decepção. Mas esperança, também. Talvez, com o tempo, as coisas melhorassem mesmo entre ela e Melissa. Elas só precisavam aprender a trabalhar juntas. Porque, quando agiam assim, eram uma equipe sensacional. Afinal de contas, elas podiam deixar astros do tênis de joelhos, literalmente.
Uma risadinha fraca soou, e Spencer olhou para os arbustos. Ela ouvira aquela risadinha tantas vezes que já estava virando rotina. Mas sua pele se arrepiou mesmo assim, e ela teve um mau pressentimento tão grande que seu estômago se contraiu. E se alguém a estivesse observando? E se aquele pesadelo não tivesse acabado?
Mas era impossível. Jogando os cabelos para trás dos ombros, ela se virou e entrou em casa também, deixando A e todo o horror do último semestre para trás, de uma vez por todas.

FELIZ ANO-NOVO PARA MIM!
Agora que eu já visitei todos os pontos turísticos, minhas férias estão completas. E como as nossas belas mentirosinhas andaram ocupadas! Hanna levou um toco da academia de ginástica. Emily chantageou um policial. Aria se casou, e com um ecoterrorista, ainda por cima. E Spencer... bem, vamos apenas dizer que ela sabe como fazer o sangue de um homem correr mais rápido.
Pobre Spencer. O que ela mais quer no mundo é uma família que não a odeie. Uma irmã que a ajude sem esfaqueá-la pelas costas. Pais que escutem os seus problemas e estejam sempre por perto. Mal sabe ela que existe um motivo para eles a tratarem como uma estranha. A família perfeita de Spencer não é tão perfeita quanto parece. Os Hastings guardam alguns segredos enormes. E quem melhor para contar a Spencer que moi?
Mas, por mais excitantes que essas aventuras de férias tenham sido, a minha diversão só está começando. Meus planos vão fazer a brincadeira de espionagem de Mona parecer mais amadora do que os sutiãs que Aria tricota. Graças a mim, Hanna vai descer tanto que nunca conseguirá achar o caminho de volta. A vida amorosa de Aria vai ficar muito mais complicada. Emily vai partir o coração de sua mãe em um milhão de pedaços. Spencer vai destruir sua família de uma vez por todas. E logo, logo Ali não será a única garota de Rosewood a morrer tragicamente, jovem demais. Isso soa cruel? Bem, o que eu posso dizer? Aquelas vadias arruinaram a minha vida. E eu acredito em olho por olho. Ou, no meu caso, as vidas delas pela minha.
Quem sou eu? Vocês saberão em breve. Mas, até lá, eu sou a sombra na janela, o sussurro no vento, aquela sensação incômoda de que alguém está observando, esperando. Spencer e suas amigas podem decidir ser boas neste ano-novo, mas eu estarei por perto para ajudá-las a voltar a suas rotinas de pecadoras.
Apertem os cintos, senhoritas. No que depender de mim, este ano-novo será o seu último.

 

 

                                                   Sara Shepard         

 

 

 

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