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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS SEIS SIGNOS DA LUZ / Susan Coope
OS SEIS SIGNOS DA LUZ / Susan Coope

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

— Demais! — gritou James batendo a porta atrás de si.

— O quê? — perguntou Will.

— Tem garotas demais nesta família, é isso. Demais mesmo. — James ficou parado furioso no alto da escada como uma pequena locomotiva enlouquecida, depois foi batendo os pés até o banco da janela e se demorou olhando atentamente o jardim. Will deixou seu livro de lado e puxou as pernas para dar-lhe espaço.

— Eu consegui ouvir todos os gritos — disse ele, com o queixo nos joelhos.

— Não foi nada — disse James. — Só a idiota da Bárbara de novo. Mandando. Pegue isso, não toque naquilo. E Mary se juntando a ela, tagarelando, tagarelando, tagarelando. Você pode até pensar que essa casa é grande o bastante, mas sempre tem gente.

Ambos olharam pela janela. A neve se estendia fina e apologética sobre o mundo. Aquela área ampla e cinzenta costumava ser o gramado, com as árvores espalhadas do pomar adiante ainda verdejantes; os quadrados brancos eram os telhados da garagem, do antigo celeiro, do viveiro dos coelhos e do galinheiro. Mais atrás, havia apenas os campos planos da fazenda dos Dawson, vagamente listrados de branco. O vasto céu estava escuro, cheio de neve que se recusava a cair. Não havia outra cor em lugar nenhum.

— Quatro dias para o Natal — disse Will. — Eu queria que nevasse direito.

— E seu aniversário é amanhã.

— Hum. — Ele também ia dizer isso, mas soaria muito mais como um lembrete. E o presente que mais desejava em seu aniversário era uma coisa que ninguém poderia lhe dar: a neve, linda, profunda, como um cobertor, e isso nunca acontecia. Pelo menos, neste ano, caía aquele chuvisco acinzentado; melhor do que nada.

Lembrando-se de uma obrigação, perguntou:

— Eu ainda não alimentei os coelhos. Quer me acompanhar?

Com botas e bem agasalhados, caminharam ruidosamente pela cozinha espaçosa. Uma orquestra sinfônica completa avolumava-se do rádio; Gwen, a irmã mais velha dos garotos, cortava cebolas e cantava, e a mãe, debruçada sobre o forno, com o rosto avermelhado, estava bastante sorridente.

— Os coelhos! — gritou ela, quando os avistou. — E mais alguns fenos da fazenda.

— Estamos indo! — gritou Will. Repentinamente, o rádio emitiu um chiado horrível de estática, logo que o menino passou pela mesa. Isso o fez pular.

A sra. Stanton gritou: — Abaixe essa coisa!

 

 

 

 

 

Do lado de fora, tudo se encontrava subitamente muito quieto. Will despejou um balde de grânulos do depósito no celeiro cheirando a fazenda. Na realidade não era um celeiro propriamente dito, mas uma construção enorme e baixa, coberta de telhas, que já tinha sido um estábulo. Andaram pela fina camada de neve até a fileira de gaiolas pesadas de madeira, deixando pegadas escuras no solo muito gelado.

Ao abrir as portinholas para encher as caixas de ração, Will parou, franzindo a testa. Normalmente, os coelhos estariam amontoados calmamente nos cantos; somente os mais famintos se aproximariam mexendo o nariz para comer. Hoje, pareciam agitados e inquietos, ronronando de um lado para o outro, batendo-se contra as paredes de madeira; um ou dois até saltaram para trás quando as portinholas foram abertas. O menino se aproximou de Chelsea, seu coelho favorito, e o pegou como de costume para afagá-lo carinhosamente atrás das orelhas, mas o animal lutou para escapar e se encolheu num dos cantos, os olhos rosados direcionados fixamente para o alto, inexpressivos, mas aterrorizados.

— Ei! — disse Will, incomodado. — Ei, James, olhe isto. O que há com ele? Com todos eles?

— Pra mim, estão todos bem.

— Bem, mas não para mim. Eles estão todos saltitantes. Mesmo Chelsea. Ei, venha cã coelhinho. — Mas não adiantou.

— Engraçado — disse James com pouco interesse, observando. — Ouso dizer que suas mãos cheiram mal. Você deve ter tocado em alguma coisa de que eles não gostam. Igual aos cachorros e sementes de anis, mas ao contrário.

— Não toquei em nada. Na verdade, tinha acabado de lavar as mãos quando vi você.

— Aí está então — disse James imediatamente. — Esse é o problema. Eles nunca cheiraram você limpo antes. Provavelmente todos estão morrendo de susto.

— Ha! Ha! Ha! Que engraçado! — Will atacou, e eles se engalfinharam sorrindo, enquanto o balde vazio caía chacoalhando-se no chão duro. Mas quando Will voltou a olhar atentamente para as gaiolas, os animais continuavam a se mover distraidamente e também sem comer, olhando fixamente para ele com aquele estranho olhar, arregalado e assustado.

— Acho que pode ser a presença de alguma raposa por aí de novo — disse James. — Lembre-me de contar à mamãe.

Nenhuma raposa poderia se aproximar dos coelhos em seu sólido viveiro, mas as galinhas eram mais vulneráveis; uns poucos dias antes do período de venda, no inverno passado, uma matilha de raposas invadiu um dos galinheiros e conseguiu levar seis aves boas e gordas. A sra. Stanton, que dependia do dinheiro das galinhas todo ano para ajudar a pagar os onze presentes de Natal, ficou tão furiosa que permaneceu de guarda depois disso, no celeiro frio, por duas noites seguidas, mas os vilões não voltaram. Will pensava que se fosse uma raposa, ele tentaria esclarecer o fato também; sua mãe podia até ser casada com um joalheiro, mas com a geração de fazendeiros de Buckinghamshire em seus antepassados, ela não brincava em serviço quando seus velhos instintos eram despertados.

Puxando o carrinho de mão, uma geringonça feita em casa com uma barra unindo as hastes, ele e James retomaram a caminhada descendo a curva coberta de mato ao longo da rua, em direção à fazenda dos Dawson. Rapidamente deixaram para trás o cemitério da igreja, com seus teixos, grandes e escuros, inclinados sobre o muro desmantelado; vagarosamente passaram pelo Bosque das Gralhas, na esquina da Church Lane. O alto matagal de castanheira-da-índia, rouco com o grito das gralhas e cheio de telhados sujos pela desordem de seus ninhos esparramados, era um de seus lugares conhecidos.

— Ouça as gralhas! Alguma coisa as perturbou. — O coro irregular e áspero era ensurdecedor, e quando Will olhou para o topo das árvores, viu o céu escurecido com o vôo em círculo dos pássaros. Eles batiam as asas e moviam-se lentamente de um lado para o outro; não havia alvoroço de movimentos repentinos, somente aquele amontoado barulhento de gralhas em ziguezague.

— Uma coruja?

— Elas não estão caçando nada. Venha, Will, logo já vai anoitecer.

— É por isso que é tão estranho ver as gralhas em tão grande alvoroço. Todas elas deveriam estar empoleiradas agora. — Will virou a cabeça relutantemente para baixo, mas em seguida saltou e agarrou o braço de seu irmão; tinha percebido um movimento numa travessa escura que conduzia para longe da rua onde se encontravam, Church Lane: corria entre o Bosque das Gralhas e o cemitério até a pequenina igreja local, e continuava pelo rio Tâmisa.

— Ei! O que foi?

— Tem alguém ali. Ou tinha. Olhando para nós. James suspirou.

— E daí? Era apenas alguém fazendo uma caminhada.

— Não, não estava. — Will forçou a vista nervosamente, espiando a pequena rua lateral. — Era um homem com olhar estranho, todo encurvado, e quando viu que eu observava escondeu-se atrás de uma árvore. Ligeiro, como um besouro.

James empurrou o carrinho e seguiu rápido pela rua, obrigando Will a se apressar para acompanhá-lo.

— Era apenas um andarilho, então. Não sei, parece que todos estão ficando doidos, hoje. Barb, os coelhos, as gralhas e agora você como um nervosinho tagarela. Qual é? Vamos pegar logo esse feno. Eu quero meu chã.

O carrinho sacudia pelos buracos congelados do quintal dos Dawson, o melhor pedaço de chão cercado por construções dos três lados que cheiravam ao conhecido aroma de fazenda. O estrume do estábulo deve ter sido removido naquele dia; o velho George, o pecuário sem dentes, estava empilhando estéreo pelo quintal. Ele ergueu a mão para cumprimentá-los. Nada escapava ao Velho George; podia ver um falcão cair a quase dois quilômetros de distância. Em seguida, o sr. Dawson surgiu de um celeiro.

— Ah! — disse o fazendeiro. — Feno para a fazenda dos Stanton? — Ele costumava brincar com a mãe dos meninos, por causa dos coelhos e das galinhas.

James respondeu: — Sim, por favor.

— Já está vindo — informou o sr. Dawson. O velho George desapareceu dentro do celeiro. — Passem bem. Diga à mãe de vocês que eu buscarei dez aves amanhã. E quatro coelhos... Não olhe assim, jovem Will. Se não for um Natal feliz para eles, será para o pessoal, tão logo que eu tenha os animais em mãos. — Olhou para céu, e Will percebeu algo de estranho na expressão de seu rosto moreno e enrugado. Em direção ao alto, nas nuvens carregadas que pairavam nas regiões mais baixas, duas gralhas pretas batiam suas asas lentamente em um círculo amplo sobre a fazenda.

— As gralhas estão fazendo uma barulheira terrível hoje — disse James. — Will viu um andarilho no bosque.

O sr. Dawson fitou Will com atenção. — Qual era a aparência dele?

— A de um homenzinho velho. Ele se escondeu rápido.

— Então o Andarilho está por aí — disse o fazendeiro baixinho para si mesmo. — Ah! Ele só podia estar.

— Tempo bastante desagradável para ficar zanzando por aí — acrescentou James alegremente. E balançou a cabeça rumo ao céu setentrional sobre o telhado da casa da fazenda; as nuvens pareciam cada vez mais escuras, amontoando-se chuvosas e sinistras com um tom amarelado. O vento soprava mais forte também, agitando seus cabelos; e ouvia-se um farfalhar distante do topo das árvores.

— Mais neve chegando — disse o sr. Dawson.

— Que dia horrível — falou Will de repente, surpreso com sua própria veemência; além do mais, ele desejava a neve. Mas de alguma maneira, algo perturbador estava sendo engendrado dentro dele. — É muito sinistro, de certa forma.

— Será uma noite ruim — acrescentou o sr. Dawson.

— Lá está Velho George com o feno — falou James. — Vamos lá, Will.

— Vá você — disse o fazendeiro. — Eu quero que Will pegue algo para sua mãe lá na casa. — Disse isso mas permaneceu imóvel, enquanto James se afastava com o carrinho em direção ao celeiro; o sr. Dawson ficou ali com as mãos enfiadas dentro dos bolsos de sua jaqueta velha, olhando para o céu escurecido.

— O Andarilho está por aí — disse novamente. — Esta será uma noite ruim, e amanhã será além de nossa imaginação. — Fitava Will, e o menino fixava-se cada vez mais alarmado naquele rosto envelhecido; os olhos negros e brilhantes estavam cercados de rugas por terem décadas a fio observado o sol, a chuva e o vento. Ele nunca tinha percebido como os olhos do fazendeiro Dawson eram estranhos, em sua cor azulada.

— Seu aniversário está chegando — acrescentou o fazendeiro.

— Hum, hum — confirmou Will.

— Eu tenho algo pra você — disse, olhando rapidamente ao redor do quintal e retirando uma mão do bolso; nela, Will viu o que parecia ser um tipo de ornamento, feito de metal negro, um círculo achatado dividido por duas linhas cruzadas. Curiosamente tocou o objeto com os dedos. Tinha quase o tamanho da palma da mão, e era bem pesado; forjado rusticamente em ferro, imaginava ele, embora sem qualquer ponta ou borda afiada. O ferro era frio ao contato da mão.

— O que é isto? — perguntou.

— Por enquanto — começou o sr. Dawson —, chame-o apenas de algo para se guardar. Para manter com você sempre, o tempo todo. Coloque-o no bolso, agora. E mais tarde, passe o seu cinto nele e use-o como uma fivela extra.

Will enfiou o círculo de ferro no bolso.

— Muito obrigado — agradeceu bastante trêmulo. O sr. Dawson normalmente era um homem animador, mas não estava ajudando especialmente a melhorar em nada aquele dia.

O fazendeiro olhou para o menino com a mesma atenção, de forma enervante, e Will chegou a sentir os cabelos se arrepiarem atrás de seu pescoço; depois, esboçou um meio sorriso, não divertido, mas revelando certa ansiedade.

— Guarde-o em segurança, Will. E quanto menos falar sobre isso, melhor. Você precisará dele logo que a neve chegar. — E começou a se apressar. — Venha agora, a sra. Dawson tem um pote de frutas secas e cristalizadas que ela preparou para sua mãe.

Dirigiram-se para a casa da fazenda. A mulher do fazendeiro não estava lá, mas Maggie Barnes os aguardava na porta de entrada. A leiteira da fazenda, de face rosada e redonda, sempre fazia Will lembrar-se de uma maçã. Sorria para ambos, segurando um pote branco de louça amarrado com uma fita vermelha.

— Obrigado, Maggie — disse o fazendeiro Dawson.

— A patroa disse que o senhor ia querer isto pronto para o jovem Will levar — disse Maggie. — Ela desceu ao vilarejo para ver o vigário por alguma razão. Então, como anda o seu irmão já crescido, Will?

Ela sempre perguntava isso, toda vez que o via; era sobre seu irmão mais velho, Max. Uma brincadeira constante da família Stanton dizia que Maggie Barnes dos Dawson, sentia alguma coisa por Max.

— Bem, obrigado — respondeu Will de maneira cortês. — Ele deixou o cabelo crescer, tá parecendo uma garota.

Maggie deu um gritinho de alegria.

— Pare com isso! — disse contendo o riso e acenando em despedida. Somente no último instante, Will percebeu o olhar da moça elevar-se acima de sua cabeça. Enquanto se virava, longe de sua vista, pensou ter visto um breve movimento no portão do pátio da fazenda, como se alguém estivesse se esquivando rapidamente da visão de outra pessoa. Mas quando olhou, ninguém estava lá.

Com o grande pote de frutas secas espremido entre dois fardos de feno, Will e James empurraram o carrinho para fora do pátio. O fazendeiro permaneceu na entrada logo atrás deles; Will podia sentir os seus olhos, observando, lutou ansiosamente as crescentes e ameaçadoras nuvens, e quase indesejavelmente deslizou uma mão para dentro de seu bolso a fim de tocar o estranho círculo de ferro com os dedos. — Depois que a neve chegar. —Tinha-se a impressão de que o céu estava prestes a cair sobre eles. Ele pensava: O que estaria acontecendo?

Um dos cachorros da fazenda surgiu ainda amarrado, abanando o rabo; em seguida, parou abruptamente alguns metros ao longe, olhando-os.

— Ei, Corredor! — chamou Will.

O rabo do cachorro parou, e ele começou a rosnar, mostrando os dentes.

— James! — disse Will.

— Ele não vai machucar você. Qual é o problema? — Em seguida, continuaram em direção a rua.

— Não se trata disso. Alguma coisa está errada, só isso. Alguma coisa terrível. O Corredor, Chelsea, os animais, estão todos com medo de mim. — Até ele começava a ficar realmente assustado naquele momento.

O barulho das gralhas estava cada vez mais alto, mesmo com a luz do dia começando a se extinguir. Era possível avistar os pássaros negros amontoando-se sobre o topo das árvores, mais agitados do que antes, batendo as asas e virando-se de um lado para o outro. E Will estava certo; havia um estranho no caminho, de pé ao lado do cemitério.

Era um maltrapilho, caminhando sem firmeza, mais parecido com uma trouxa de roupas velhas do que com um homem; e ao avistá-lo, os garotos diminuíram o passo e ambos se aproximaram instintivamente do carrinho. O homem virou o rosto com os cabelos desgrenhados para olhá-los.

Então, de repente, em um borrão terrível, inimaginável, um ruído rouco e agudo surgiu apressadamente vindo do céu, e duas gralhas enormes mergulharam sobre o homem fazendo-o cambalear para trás aos gritos. Ele levantava as mãos para proteger o rosto, mas os pássaros batiam suas grandes asas em um rodopio negro e brutal, e partiram logo em seguida, subindo velozmente para o céu, depois de passar pelos garotos.

Will e James estavam imóveis, atônitos, pressionados contra os fardos de feno.

O estranho se agachou contra o portão.

— Caaaaaaak... Caaaaaak... — soava o barulho agudo do bando frenético sobre o bosque; então, três outras formas escuras em um rodopio recomeçaram a atacar depois das duas primeiras, investindo incontrolavelmente contra o homem e depois partindo. Naquele momento, o estranho gritou de terror e saiu aos tropeções em direção à rua, erguendo ainda os braços para proteger a cabeça e o rosto. Os garotos ouviam a respiração ofegante causada pelo medo enquanto o homem passava por eles correndo e subia a estrada depois do portão da fazenda dos Dawson, rumo ao vilarejo. Os meninos ainda avistaram nele cabelos grisalhos, cheios e oleosos, embaixo de um velho chapéu sujo, um casaco marrom rasgado, amarrado com uma corda, e alguma outra peça de roupa que se agitava por debaixo do traje; as botas eram velhas; uma, sem solado, obrigava o homem a puxar estranhamente a perna para o lado, fazendo-o quase saltitar enquanto corria. Mas não conseguiram ver o seu rosto.

O redemoinho de aves bem acima de suas cabeças estava diminuindo, formando círculos de pequenos vôos, e as gralhas começaram a pousar uma por uma no topo das árvores. Ainda se comunicavam ruidosamente entre si em um longo e embaralhado crocito, mas a loucura e a violência já haviam sido abrandadas. Atordoado, movendo a cabeça pela primeira vez, Will sentiu sua face roçar em alguma coisa, e ao colocar a mão no ombro encontrou uma pena longa e escura. Enfiou-a dentro do bolso da jaqueta, num movimento lento, como alguém semi-acordado.

Juntos, voltaram a empurrar o carrinho abastecido estrada abaixo em direção a casa, e os crocitos atrás deles esmoreceram em um sinistro murmúrio, como o Tâmisa cheio na primavera.

Finalmente, James disse:

— Gralhas não fazem esse tipo de coisa. Elas não atacam pessoas. E não descem tão baixo quando não há muito espaço. Simplesmente não fazem isso.

— Não — aquiesceu Will. Ainda se movia como se estivesse em um devaneio, parcialmente consciente de alguma coisa, exceto pela vaga curiosidade despertada em sua mente. Em meio a toda barulheira e alvoroço, repentinamente o garoto teve um estranho pressentimento, mais forte do que todos os que já tivera: sabia que alguém estava tentando lhe dizer alguma coisa, algo que não compreendia, pois não conseguia entender a linguagem. Não eram propriamente palavras; era antes um tipo de grito silencioso. E ele era incapaz de assimilar a mensagem, não sabia como fazê-lo.

— É como um rádio que não está sintonizado na estação certa — disse ele alto.

— O quê? — perguntou James, que de fato não o estava ouvindo. — Que coisa — continuou. — Acho que o mendigo estava tentado pegar uma gralha. E elas ficaram enlouquecidas. Aposto com você que ele irá xeretar as galinhas e os coelhos. Mas o fato de ele não ter uma arma é estranho. É melhor falar pra nossa mãe deixar os cachorros no celeiro esta noite.

Aos poucos, Will percebeu, com espanto, que todo o choque em relação ao ataque selvagem e enlouquecedor já estava se dissipando na mente de James como água, e que em questão de minutos até mesmo o ocorrido já teria sido esquecido.

Alguma coisa apagou perfeitamente todo o acontecido da memória de James; algo que não queria que isso fosse relatado. Alguma coisa que sabia que isso impediria Will também de relatar o fato.

— Aqui, pegue as frutas secas da mamãe — disse James. — Vamos logo antes de congelarmos. O vento está mesmo aumentando, ainda bem que nos apressamos para voltar.

— Sim — concordou Will. Ele sentia frio, mas não era por causa da ventania que aumentava. Seus dedos se fecharam em torno do círculo de ferro guardado no bolso e ele o segurou apertado. Naquele momento, o ferro parecia quente.

 

O mundo acinzentado foi tomado pela escuridão até o momento em que chegaram à cozinha. Do lado de fora da janela, a pequena e desgastada caminhonete do pai dos meninos situava-se sob uma luz rupestre amarelada. A cozinha estava ainda mais barulhenta e quente do que antes. Gwen colocava a mesa, quando passou pacientemente por um trio encurvado onde a sra. Stanton olhava para algumas peças mecânicas, pequenas e desconhecidas, juntamente com os gêmeos, Robin e Paul; e com a forma rechonchuda de Mary vigiando o rádio naquele momento, só se ouvia música pop em alto volume. Quando Will se aproximou, o aparelho emitiu novamente um som agudo, de modo que todos começaram a fazer caretas e retrucar.

— Desligue essa coisa! — gritou a sra. Stanton desesperadamente da pia. Mas embora Mary, emburrada, tivesse desligado a interferência e a música, o volume do barulho havia diminuído muito pouco. De certa maneira, nunca di-havia diminuído quando mais da metade da família estava em casa. Vozes e risos enchiam a enorme cozinha pavimentada de pedra enquanto todos se sentavam em volta da mesa simples de madeira; os dois collies escoceses, Raq e Ci, cochilavam na outra extremidade perto do fogo. Will ficou longe deles; não poderia suportar se seus próprios cães rosnassem para ele. Por isso, sentou-se calmamente à mesa do chá — mesa do chá se a sra. Stanton a preparasse antes das cinco; do jantar se ficasse pronta mais tarde, mas sempre com a mesma abundância de iguarias — e manteve sua boca e prato cheios de salsicha para evitar falar. Não que alguém fosse provavelmente sentir falta de sua conversa no alvoroço alegre da família Stanton, especialmente quando se era o membro mais novo.

Acenando para ele da outra extremidade da mesa, sua mãe chamou.

— O que poderíamos ter para o chá de amanhã, Will? Ele respondeu indistintamente.

— Fígado e bacon, por favor. James resmungou em voz alta.

— Fique calado — retrucou Bárbara, a irmã mais velha de dezesseis anos. — É aniversário dele, ele pode escolher.

— Mas fígado — disse James.

— Bem feito pra você — disse Robin. — Em seu último aniversário, se me lembro bem, todos nós tivemos que comer aquela revoltante couve-flor gratinada.

— Fui eu quem fez — falou Gwen, — e não estava revoltante.

— Sem querer ofender — acrescentou Robin rapidamente. — Eu não suporto couve-flor. De qualquer maneira, você me entendeu.

— Entendi sim. Eu só não sei se James também.

Robin, com sua voz ampla e profunda, era o mais musculoso dos gêmeos e não era alguém para se menosprezar.

James disse apressadamente: — Tudo bem, tudo bem.

— Uma dobradinha amanhã, Will — disse o sr. Stanton da cabeceira da mesa. — Nós deveríamos realizar algum tipo especial de cerimônia. Um ritual tribal. — E sorriu para o filho mais novo; seu rosto redondo e enrugado, bastante rechonchudo, revelava imenso carinho.

Mary resmungou: — Em meu aniversário de onze anos, levei uma surra e ainda me mandaram pra cama.

— Deus do céu — respondeu a mãe da menina. — Vê se pode você se lembrar disso. E que maneira de descrever a data. Para deixar claro, você ganhou uma boa palmada nas nádegas e bem merecida também, até onde me lembro.

— Era meu aniversário — replicou Mary, sacudindo seu rabo de cavalo. — E eu nunca me esqueci.

— Dê tempo ao tempo — acrescentou Robin animadamente. — Três anos é muito pouco.

— E você era muito imatura aos onze anos — disse a sra. Stanton, pensando sobre o assunto.

— Hah! — resmungou Mary. — E imagino que Will não seja?

Por um momento, todos olharam para Will. Ele piscou alarmado sob o olhar das faces contemplativas, e virou-se de cara feia para o prato de modo que não deixasse visível nada de si mesmo, exceto uma fina mexa de cabelos castanhos. Era muito perturbador ser observado por tantas pessoas de uma só vez. Sentia como se estivesse sendo atacado. E ficou repentinamente convencido de que poderia, de algum modo, ser perigoso ter tantas pessoas pensando a seu respeito, todas ao mesmo tempo. Como se alguém nada amigável pudesse ouvir...

― Will — disse Gwen, lentamente — é mesmo um velho de onze anos.

― Eterno, quase — acrescentou Robin. Ambos soaram solenes e distantes, como se estivessem discutindo algo demasiado estranho.

― Sosseguem, agora — disse Paul inesperadamente. Ele era o irmão mais tranqüilo dos gêmeos, e o gênio da família, talvez o único: ele tocava flauta e zelava pelos irmãos menores. — Alguém virá para o chá amanhã, Will?

― Não. Angus Macdonald foi passar o Natal na Escócia, e Mike está passando uns dias com sua avó em Southall. Mas não me importo.

De repente, percebeu-se uma agitação na porta dos fundos e uma rajada de ar frio; era o som de batidas de pés e o ruído alto de causar calafrios. Max enfiou a cabeça no vão da passagem; seus cabelos longos estavam molhados e brilhantes.

— Desculpe o atraso, mãe. Tive que andar desde a Câmara dos Comuns. Uau, vocês deveriam ver lá fora; é como uma nevasca. — Contemplou a fileira de rostos inexpressivos, e sorriu. — Vocês não sabiam que está nevando?

Esquecendo-se de tudo por um momento, Will deu um alegre grito e correu com James até a porta.

— Neve de verdade? Muita?

— Eu diria — começou Max, respingando-lhes gotas de água enquanto desenrolava seu cachecol. Era o irmão mais velho, sem contar Stephen que servia a Marinha há anos e raramente vinha para casa. — Veja. — Abriu a porta com um estalo, e o vento assoviou pelo vão novamente; Will viu um nevoeiro branco cintilante do lado de fora, com espessos flocos de neve; nenhuma árvore ou arbusto estava visível, nada além do rodamoinho de neve. Um coro de protestos veio da cozinha: — Feche essa porta!

— Lá está a sua cerimônia, Will — disse seu pai. — Bem a tempo.

 

Bem mais tarde, quando foi se deitar, Will abriu as cortinas do quarto e pressionou o nariz contra a vidraça gelada; ficou ali observando a neve cair ainda mais espessa do que antes. Cinco ou dez centímetros já cobriam o parapeito da janela, e ele quase podia perceber o nível subindo enquanto o vento investia contra a casa. Era possível ouvir o vento, também, ganindo ao redor do telhado sobre o quarto e em todas as chaminés. Will dormia em um sótão de telhado inclinado no topo da velha casa; passara a ocupar o lugar há alguns meses, quando Stephen, que sempre dormira ali, voltou para o navio depois de uma licença. Antes disso, Will costumava dividir outro quarto com James — assim como todos da família faziam.

— Mas meu sótão deve ser ocupado — dissera o irmão mais velho, sabendo como Will amava o lugar.

Agora, em uma estante instalada em um dos cantos do quarto, havia um retrato do tenente Stephen Stanton, da Marinha Real, parecendo, sobretudo, desconfortável no uniforme, e ao lado uma caixa talhada de madeira com um dragão esculpido na tampa, repleta de cartas que ele enviara para Will, de algum lugar distante e inimaginável de qualquer parte do mundo. Ambos tinham criado um tipo de santuário particular.

A neve surrava a janela, emitindo um som semelhante ao de dedos arranhando a vidraça. Outra vez, Will ouviu o vento gemendo no telhado, mais alto do que antes; aquilo estava se tornando uma verdadeira tempestade. Pensou então no mendigo, e perguntou-se onde o homem conseguira abrigo. — O Andarilho está por aí... esta noite será num... — Ele segurou sua jaqueta e pegou o estranho objeto de ferro, passando os dedos pelo círculo, para cima e para baixo da cruz interna que o quartejava. A superfície de ferro era irregular, mas embora não mostrasse qualquer sinal de ter sido polida, era completamente lisa; lisa de uma maneira que o fazia se lembrar de certo lugar no áspero piso de pedra da cozinha, onde toda a aspereza havia sido desgastada por gerações de pés passando pelo canto da porta. Era um tipo estranho de ferro: escuro, absolutamente negro, sem nenhum brilho e sem qualquer mancha causada por descoloração ou ferrugem. E mais uma vez agora se tornava frio ao toque; tão frio nesse momento que Will se assustou ao perceber os dedos dormentes. Às pressas, soltou o objeto. Em seguida, puxou o cinto de suas calças, penduradas desajeitadamente Sobre o espaldar de uma cadeira, e como o sr. Dawson lhe dissera para fazer, pegou o círculo e o enfiou no cinto como uma fivela extra. Recolocou-o na calça e a jogou sobre a cadeira. O vento continuava cantando na armação da janela.

Foi então que, sem avisar, o medo surgiu.

A primeira onda de medo o atingiu enquanto cruzava o aposento para chegar à cama, fazendo-o parar quieto no meio do quarto; o uivo do vento lá fora tampava seus ouvidos. A neve açoitava a janela. Will ficou repentinamente frio como um cadáver, porém com o corpo todo formigando. Estava tão assustado que não conseguia mover um dedo sequer. Num lampejo da memória, relembrou novamente o céu cada vez mais baixo sobre o matagal, escuro como as gralhas, os enormes pássaros negros voando em círculo acima de sua cabeça. Depois dessa lembrança, viu apenas o rosto aterrorizado do mendigo e ouviu o grito do homem enquanto fugia. Por um momento houve apenas uma escuridão terrível em sua mente, uma sensação de estar olhando para dentro de um enorme fosso negro. Em seguida, o uivo mais alto do vento desvaneceu, e ele se sentiu liberto.

O menino continuou tremendo, olhando incontrolavelmente pelo quarto. Nada estava errado. Tudo estava igual. A perturbação, dizia para si mesmo, surgiu por causa da lembrança. Estaria tudo certo se pudesse ao menos parar de pensar e fosse dormir. Ele puxou seu pijama, subiu na cama, e deitou-se olhando para a clarabóia instalada no telhado inclinado, que estava coberta de neve.

Apagou o pequeno abajur ao lado da cama, e a noite envolveu todo o quarto. Não havia qualquer indício de luz, mesmo quando seus olhos se acostumaram à escuridão. Era hora de dormir. Vamos lá, durma. Mas embora se virasse para o lado, puxasse os cobertores até o queixo e ficasse numa posição relaxada, contemplando o estimulante fato de que seria seu aniversário logo que acordasse, nada acontecia. E isso não era bom. Algo estava errado.

Will rolou na cama ansiosamente. Nunca havia sentido algo daquele tipo. E ficava muito pior a cada minuto. Era como se um peso enorme estivesse comprimindo sua mente, ameaçando, tentando assumir o controle, transformando-o em algo que não queria ser. É isso, pensava: fazendo-me ser outra pessoa. Mas isso era uma estupidez. Quem desejaria isso? E transformar-me em quê? Naquele momento, alguma coisa rangeu do lado de fora da porta entreaberta, fazendo-o saltar. Então, voltou a ranger novamente, e ele sabia o que era: certa tábua que freqüentemente rangia sozinha durante a noite, com um som tão familiar que normalmente ele nunca percebia. Contra a própria vontade, continuou deitado, ouvindo. Um tipo diferente de rangido surgiu de um local mais distante, no outro sótão, e ele estremeceu novamente, quase num solavanco, de modo que o cobertor roçou o seu queixo. Você está apenas assustado, dizia para si mesmo, fica aí recordando o que ocorreu nessa tarde, mas na realidade não há muito do que se lembrar. Tentava pensar no andarilho como uma pessoa insignificante, um homem comum vestido com um casaco sujo e botas surradas; mas contrária a tudo o que ele podia visualizar, mais uma vez surgiu em sua mente a imagem do brutal mergulho das gralhas no ar. "O Andarilho está por aí..." Então, ouviu-se outro barulho estranho de rangido, que naquele momento vinha do teto, logo acima de sua cabeça, e o vento uivou repentinamente alto, a ponto de obrigar Will a se sentar em disparada na cama e, em pânico, tentar alcançar o abajur.

O quarto foi agradavelmente iluminado, e o menino se deitou novamente envergonhado, sentindo-se um idiota. Assustar-se com o escuro, pensava: que horror. Como um bebezinho. Stephen nunca teria medo do escuro, aqui em cima. Olhe bem, há a estante, a mesa, as duas cadeiras e o assento da janela; olhe, há as seis caravelas pequenas do móbile pendurado no teto e suas sombras passeando pela parede. Tudo está normal. Vá dormir.

Apagou a luz novamente, e instantaneamente tudo ficou pior do que antes. O medo saltou sobre ele pela terceira vez como um grande animal que estivera aguardando para atacar de repente. Will permaneceu aterrorizado, tremendo, sentindo o próprio tremor, embora continuasse incapaz de se mover. Para ele, só podia estar ficando louco. Do lado de fora, o vento gemia, parava, erguia-se em um repentino uivo; e de novo o barulho, um baque ou rangido abafado contra a clarabóia no teto de seu quarto. Em seguida, em um momento terrível de fúria, o horror o envolveu como um pesadelo que se tornara real; ouviu-se um estrondo deplorável, com o uivo do vento de repente ainda mais alto e próximo, e uma grande rajada de frio; a sensação de pavor irrompeu contra ele com tanta força que o fez se jogar na cama curvando-se de medo.

Will gritou de susto. E só percebeu que gritara depois, pois estava tão profundamente amedrontado que fora incapaz de ouvir a própria voz. Por um momento horrível, negro como o breu, permaneceu quase consciente, perdido em algum lugar do mundo, em um espaço escuro. E então, passos rápidos vindos da escada foram ouvidos do outro lado da porta, depois uma voz o chamou demonstrando preocupação, e uma luz reconfortante inundou o quarto trazendo-o de volta à vida mais uma vez. Era a voz de Paul.

— Will? O que foi? Está tudo bem com você? Lentamente, Will abriu os olhos. Percebeu que estava encurvado no formato de uma bola, com os joelhos apertados contra o queixo. Depois, viu Paul de pé ao seu lado, piscando ansiosamente por trás de seus óculos de aros escuros. O menino aquiesceu, sem encontrar voz para falar. Paul virou a cabeça, e Will seguiu o olhar do rapaz para ver que a clarabóia no telhado estava aberta, ainda balançando com a força de sua queda; havia um quadrado negro de noite vazia no telhado, e através dele podia-se perceber o vento trazendo o frio glacial do solstício de inverno. Sobre o carpete, a clarabóia havia depositado uma pilha de neve. Paul espiou a borda da estrutura da clarabóia.

— O fecho está quebrado; imagino que a neve estivesse pesada demais para que pudesse suportar. E já devia estar muito velha de qualquer maneira, o metal estava todo enferrujado. Eu pegarei algum arame e o consertarei amanhã.. Isto acordou você? Senhor! Que susto terrível. Se eu tivesse sido acordado desse jeito, você teria me encontrado em algum lugar debaixo da cama.

Will olhou para o irmão em gratidão calada, e tentou dar um sorriso sem graça. Cada palavra na voz profunda e tranqüilizadora de Paul o trazia de volta à realidade. Ele se sentou na cama e puxou as cobertas de volta.

― Nosso pai deve ter algum arame que sirva no outro sótão — disse Paul. — Mas vamos tirar essa neve daqui antes que derreta. Olhe, tem mais neve caindo. Aposto que não há muitas casas onde se pode observar a neve caindo sobre o carpete.

Ele estava certo; flocos de neve caíam rodopiando através do espaço negro no teto, espalhando-se para todo lado. Juntos, os irmãos reuniram o que podiam numa revista antiga, fazendo o formato de uma bola de neve. Enquanto Will corria até o andar de baixo para jogá-la na banheira, Paul passava o arame na clarabóia prendendo-a em seu fecho.

— Prontinho — disse rapidamente e, embora não olhasse para Will, por um momento ambos se compreenderam muito bem. — Digo uma coisa pra você, está um gelo aqui em cima... Por que não desce para o nosso quarto e dorme em minha cama? Eu acordarei você quando me levantar mais tarde... ou eu posso dormir aqui se você puder sobreviver aos roncos do Robin. Tudo bem?

— Tudo bem — respondeu Will rapidamente. — Obrigado.

Pegou suas roupas, com o cinto e seu novo ornamento, depositando-os sobre o braço; depois parou na porta enquanto saíam, olhando para trás. Não havia nada para se ver agora, exceto a escura mancha úmida sobre o carpete onde estivera a pilha de neve. Mas o menino sentia mais frio do que o ar podia lhe fazer sentir, e enjôo, o sentimento vazio de medo ainda permanecia em seu peito. Se não houvesse nada errado além do medo do escuro, por nada no mundo teria ido se refugiar no quarto de Paul. Mas da maneira como estavam as coisas, sabia que não poderia ficar sozinho no quarto onde deveria ficar. Pois enquanto limpavam aquela pilha de neve, Will havia visto algo que passara despercebido para Paul. Era impossível, em uma ruidosa tempestade de neve, que alguma coisa Vivente tivesse causado aquele baque surdo inconfundível no vidro, que havia ouvido logo antes da clarabóia despencar. Mas enterrado na pilha de neve, encontrou uma pena da asa negra de uma gralha.

Ouviu a voz do fazendeiro mais uma vez: — Esta será uma noite ruim, e amanhã será além de nossa imaginação.

 

Ele foi acordado com uma música que o chamava, alegre e insistente; era uma música delicada, tocada por instrumentos igualmente delicados que não podia identificar, acompanhada por uma frase semelhante à reverberação de um sino que repicasse através dela em um reluzente fio de prazer. Nessa música havia um encantamento profundo, comparado a todos os sonhos e imaginações que o fazem acordar sorrindo em pura felicidade ao seu ressoar. No momento em que despertava, o som começou a desvanecer, chamando-lhe a atenção enquanto desaparecia, e quando abriu os olhos, a música já se fora. O menino tinha apenas a lembrança daquela frase reverberante que ainda ecoava em sua cabeça, mas desapareceu tão rápido que ele se sentou abruptamente na cama esticando os braços no ar, como se pudesse trazê-la de volta.

O quarto estava muito calmo, e não se ouvia mais o som de música; mesmo assim Will sabia que não havia sido apenas um sonho.

Ainda estava no quarto dos gêmeos e podia ouvir a respiração de Robin, lenta e profunda, da outra cama. A luz fria brilhava pela extremidade das cortinas, mas não se ouvia o barulho de ninguém se mexendo em outro lugar; era muito cedo ainda. Will vestiu suas roupas amarrotadas do dia anterior e saiu logo do quarto. Cruzou o patamar da escada até a janela central para olhar lá embaixo.

No primeiro momento de claridade, pôde ver todo um mundo estranhamente familiar, brilhando de tão branco; os telhados das construções externas amontoavam-se em torres quadradas de neve, além delas, todos os campos e cercas vivas estavam enterrados e submersos em uma enorme e plana extensão, absolutamente brancos até o fim do horizonte. Will respirou de forma longa e feliz, regozijando-se silenciosamente. Então, bem vagamente, voltou a ouvir a música, a mesma frase. Moveu-se em vão procurando pelo som no ar, como se pudesse avistá-lo em algum lugar, como se fosse uma luz bruxuleante.

— Onde está você?

A música se foi novamente. E quando tornou a olhar pela janela, percebeu que seu próprio mundo havia partido junto com ela. Aquela perspectiva fazia tudo mudar. A neve estava ali como estivera alguns momentos antes, mas não amontoada, agora encontrava-se sobre os telhados, seguindo plana sobre campos e gramados. Não havia mais telhados, não havia mais campos. Havia apenas árvores. Will estava olhando uma grande floresta branca: uma floresta de árvores enormes, resistentes como torres e antigas como as rochas. Elas estavam descobertas de folhas, revestidas apenas pela profunda quantidade de neve que se depositava intocável por todos os ramos, desde os menores gravetos. Estavam em todos os lugares. E começaram a cair perto da casa; ele observava os ramos mais altos da árvore mais próxima, e poderia esticar o braço e sacudi-los se ousasse abrir a janela. Todas as árvores ao redor se alongavam até o plano horizonte do vale. A única discrepância naquele mundo branco de galhos encontrava-se logo ao sul, onde o Tâmisa corria; ele podia ver a curva do rio marcada como uma única onda silenciosa naquele oceano branco de florestas, e tinha-se a impressão de que o rio era mais largo do que deveria ser.

Will olhava e olhava atentamente, e quando por fim se mexeu, percebeu que estava apertando o círculo liso de ferro em seu cinto. O ferro estava quente sob seu toque.

Voltou para o quarto.

— Robin! — disse ele alto. — Acorde! — Mas Robin respirava lenta e ritmicamente como antes, e nem se mexeu.

Ele correu para o próximo quarto, o pequeno e familiar aposento que costumava dividir com James. Balançou o irmão bruscamente pelo ombro. Mas quando parou, James continuou imóvel, profundamente adormecido.

Will saiu novamente para a escada, tomou bastante fôlego, e gritou com todas as suas forças: — Acordem todos! Acordem todos, pessoal!

Não esperava receber alguma resposta, e ela realmente não veio.

Tudo permaneceu em completo silêncio, tão profundo e eterno como o cobertor de neve; a casa e todos nela mantinham-se num sono que não podia ser interrompido.

Will foi para o andar de baixo para vestir suas botas e a velha jaqueta de couro de cabra que já pertencera, antes dele, a dois ou três de seus irmãos. Depois, saiu pela porta dos fundos, fechando-a atrás de si sem fazer barulho, e ficou ali contemplando através do vapor branco de sua respiração.

O estranho mundo branco permanecia tomado pelo silêncio. Nem os pássaros cantavam. O jardim já não existia, nessa terra arborizada. Nem se via mais as construções externas nem as antigas paredes desmoronadas. Havia apenas uma estreita clareira ao redor da casa agora, elevada com infindáveis montes de neve causados pelo vento, antes que as árvores começassem a surgir em um estreito caminho conduzindo adiante. Vagarosamente, Will partiu descendo pelo túnel branco da trilha, pisando alto para manter a neve longe de suas botas. Tão logo ele se afastou da casa, sentiu-se muito sozinho, mas obrigou-se a continuar sem olhar para trás, pois sabia que quando olhasse, descobriria que a casa não estava mais ali.

O menino aceitava tudo o que vinha à sua mente, sem pensar ou questionar, como se estivesse sendo conduzido através de um sonho. Mas bem lá no fundo, sabia que não estava sonhando. Tinha convicção de estar acordado, no dia do solstício de inverno que o estava aguardando acordar desde o dia de seu nascimento e, de alguma forma, ele sabia disto há séculos. Amanhã será além de nossa imaginação... Will saiu da trilha na estrada em arco branco, pavimentada lisamente com neve e ladeada em todos os lugares por grandes árvores. E olhando acima entre os galhos, viu uma única gralha negra bater as asas, voando alto no céu da manhã.

Virando à direita, subiu a estrada estreita que no seu tempo chamava-se Trilha do Vale do Caçador. Era o caminho que ele e James tinham tomado para chegar à fazenda dos Dawson, a mesma estrada que havia pisado quase todos os dias de sua vida, mas que estava diferente agora. Nesse momento, nada mais era do que uma passagem através da floresta, com grandes árvores cobertas de neve cercando-a por todos os lados. Will movia-se com os olhos brilhantes e atentos através do silêncio, até que repentinamente ouviu um ruído indistinto à sua frente.

Preferiu ficar quieto. O som foi ouvido novamente, abafado através das árvores: uma leve batida rítmica, dissonante, como um martelo golpeando um metal. O ruído surgia em estalos curtos e irregulares, como se alguém estivesse martelando pregos. Enquanto continuava ouvindo, o mundo à sua volta parecia brilhar um pouco mais; os bosques pareciam menos densos, a neve cintilava, e quando olhou para cima, a faixa de céu sobre a Trilha do Vale do Caçador tinha uma cor azul clara. Percebeu que o Sol havia se levantado finalmente fora do sinistro aglomerado de nuvens escuras.

O menino caminhou com dificuldade em direção ao som do martelo, e logo chegou a uma clareira. Não havia mais o vilarejo do Vale do Caçador, apenas isto. Todos os seus sentidos se abriam para a vida, sob uma chuva de sons, vistas e odores inesperados. Ele avistou duas ou três construções baixas de pedra cobertas espessamente com neve, uma fumaça azulada de madeira subindo e sentiu o cheiro disto ainda e, ao mesmo tempo, o aroma voluptuoso de pães recentemente assados que lhe dava água na boca. Viu que a construção mais próxima das três tinha três muros, e estava aberta para a trilha, com um fogo amarelado queimando em seu interior como um sol cativo. Enormes chuvas de faísca eram espalhadas de uma bigorna onde se encontrava um homem martelando. Ao lado da bigorna podia-se avistar um cavalo preto bem alto, um animal bonito e reluzente; Will nunca havia visto um cavalo tão esplendidamente escuro em sua cor, sem qualquer mancha branca em nenhum lugar.

O cavalo ergueu a cabeça e olhou-o diretamente e, passando a pata no chão, relinchou baixo. A voz do ferreiro retumbou em protesto e outra figura surgiu das sombras atrás do cavalo. A respiração de Will ficou cada vez mais rápida ao avistá-lo, e sentiu um aperto em sua garganta. Mas não sabia o motivo.

O homem era alto, e trajava um manto preto que caía como uma veste; seu cabelo, que se estendia abaixo do pescoço, brilhava num tom curiosamente avermelhado. Bateu levemente no pescoço do cavalo, murmurando em seu ouvido; depois deu a impressão de ter percebido a causa da inquietação do animal e, virando, ao avistar Will, deixou os braços caírem abruptamente ao longo do corpo. Deu um passo à frente, permaneceu ali, aguardando.

A claridade fugiu da neve e do céu, e a manhã se escureceu um pouco, como se uma camada de nuvens longínquas cobrisse o sol.

Will atravessou a estrada pela neve, suas mãos estavam enfiadas no fundo dos bolsos. Não olhava para a figura alta de casaco que o encarava. Era vez disto, fixou firmemente outro homem curvado sobre a bigorna, percebendo que o conhecia; era um dos homens da fazenda dos Dawson. John Smith, o filho do Velho George.

— Bom dia, John — cumprimentou.

O homem de ombros largos, portando um avental de couro, o olhou de relance. Franziu a testa brevemente, mas depois cumprimentou com a cabeça em boas-vindas.

— Ei, Will. Você levantou cedo.

— É meu aniversário — respondeu o menino.

— Um aniversário de solstício de inverno — acrescentou o estranho de casaco. — Venturoso, de fato. E você fará onze anos completos. — Era uma afirmação e não uma pergunta. Agora, Will precisava olhar. Os olhos azuis brilhantes passaram pelos cabelos castanho-avermelhados, e o homem falava com uma curiosa pronúncia que não era a do sudeste.

— Isso mesmo — confirmou Will.

Uma mulher apareceu de um dos chalés mais próximos dali, carregando uma cesta com pequenos pães em seu interior, e com eles o aroma de recém-saídos do forno que havia inebriado o menino antes. Ele sentiu o cheiro, seu estômago o fez se lembrar de que ainda não havia tomado o café-da-manhã. O homem de cabelos vermelhos pegou um pão, dividindo-o em duas partes e entregou uma metade para o menino.

— Aqui. Você está com fome. Quebre o jejum matinal de seu aniversário comigo, jovem Will. — E mordeu a outra metade, no que Will pôde ouvir o som das cascas do pão se esfarelando de forma convidativa. Estendeu a mão, mas, enquanto isso, o ferreiro tirou uma ferradura do fogo e bateu rapidamente no objeto sobre o casco do cavalo colocado firmemente entre seus joelhos. Sentiu-se um cheiro de queimado, destruindo o aroma do pão assado; em seguida, a ferradura já voltava ao fogo e o ferreiro olhava minuciosamente o casco do animal. O cavalo negro permaneceu imóvel e paciente, mas Will deu um passo atrás, deixando os braços caírem.

— Não, obrigado — disse ele.

O homem deu de ombros, mordendo vorazmente o pão; a mulher, com a face oculta pela borda do xale, saiu novamente com sua cesta. John Smith retirou a ferradura do fogo mais uma vez e a levou até um balde de água fazendo-a chiar e cobrir-se de fumaça.

— Vamos lá, vamos lá — disse o cavaleiro irritadamente, erguendo a cabeça. — O dia está passando. Quanto tempo mais vai demorar?

— Não apresse seu ferro — disse o ferreiro. Entretanto, naquele momento ele já estava martelando a ferradura com batidas certeiras e rápidas. — Terminei! — informou, finalmente, aparando o casco do animal com uma faca.

O homem de cabelos avermelhados fez o cavalo marchar ao redor, numa circunferência apertada, e depois montou em sua sela, rápido como um gato veloz. Erguendo-se acima de todos, com as vestes negras flutuando pelos flancos de seu cavalo negro; parecia uma estátua esculpida da noite. Mas os olhos azuis olhavam atenta e imperiosamente para Will.

— Suba, garoto. Eu levarei você aonde deseja ir. Cavalgar é a única maneira, em neve tão densa quanto esta.

— Não, obrigado — respondeu Will. — Eu saí para procurar o Andarilho. — Ele ouvia suas próprias palavras com assombro. Então é assim, pensava ele.

— Mas agora é o Cavaleiro que está por aí — disse o homem; e em um movimento ligeiro, virou a cabeça de seu cavalo, curvou-se na sela e agarrou fortemente o menino. Will puxou bruscamente o braço para o lado, mas teria continuado preso se o ferreiro, de pé no muro aberto da ferraria, não tivesse saltado adiante e o arrastado para fora de alcance. Para um homem tão largo, ele se moveu com impressionante rapidez.

O garanhão escuro empinou, e o cavaleiro em sua capa foi quase arremessado da sela. Gritou furioso, restabelecendo-se em seguida; ao sentar-se, olhava para baixo em uma gélida contemplação, algo que parecia ser mais terrível do que ódio. — Isto foi uma tolice, meu caro ferreiro — disse calmamente. — Nós não esqueceremos. — Em seguida, girou o garanhão e cavalgou na mesma direção de onde Will havia chegado; os cascos de seu enorme cavalo faziam apenas um abafado sussurro na neve.

John Smith cuspiu, ironicamente, e começou a guardar suas ferramentas.

— Obrigado — disse Will. — Eu espero que... — fez uma pausa.

— Eles não podem me fazer mal — disse o ferreiro. — Eu descendo de outra raça. E neste tempo, eu pertenço à estrada, assim como meu oficio pertence a todos os que usam a estrada. O poder deles não pode causar mal algum na estrada através do Vale do Caçador. Lembre-se disso, para si mesmo.

O estado de sonho oscilou, e o menino sentiu que seus pensamentos começavam a vacilar.

— John — ele chamou. — Sei que preciso encontrar o Andarilho, mas não sei a razão. Você poderia me dizer?

O ferreiro se virou e pela primeira vez olhou-o diretamente, com uma espécie de compaixão em seu rosto envelhecido.

— Ah, não, jovem Will. Você simplesmente acabou de acordar? Você deve aprender por si mesmo. E, além disso, este é seu primeiro dia.

― Primeiro dia? — perguntou Will.

― Coma — disse o ferreiro. — Não há perigo nisso, agora que não compartilhará do pão com o Cavaleiro. Viu como você percebeu rápido o perigo disso? Assim como sabia que haveria grande perigo em cavalgar cora ele. Siga seus instintos durante o dia, garoto, siga apenas os seus instintos,, Ele gritou em direção à casa — Martha!

A mulher saiu novamente com a cesta. Naquele momento, retirou seu xale e sorriu para o menino que vislumbrou olhos azuis como os do Cavaleiro, mas de uma luz mais suave. Agradecido, ele mastigou o pão quente e crocante, partido naquela mesma hora e com recheio de mel. Em seguida, além da clareira, ouviu-se um novo som de passos abafados na estrada, e ele se virou temerosamente ao redor.

Uma égua branca, sem cavaleiro ou arreio, trotava para dentro da clareira na direção deles: uma imagem inversa do garanhão negro do Cavaleiro, alto e esplêndido e sem quaisquer marcas. Uma fraca luz dourada, contra a neve ofuscante, cintilante enquanto o Sol ressurgia das nuvens, surgia em sua alvura e em sua longa crina que caía sobre o pescoço arqueado. O animal parou ao lado de Will, curvou o nariz subitamente e tocou o ombro do menino como um cumprimento, depois balançou a enorme cabeça branca, exalando uma nuvem esfumaçante de respiração no ar frio. Will estendeu o braço e colocou uma mão reverente no pescoço do animal.

— Você chegou em boa hora — disse John Smith. — O fogo está bem quente.

Voltou para dentro da ferraria e encheu uma ou duas vezes o fole, de modo que o fogo emitiu um grande estalo. Em seguida, desenganchou uma ferradura de uma parede escondida pelas sombras mais adiante e colocou-a no calor.


— Olhe bem — disse, estudando o rosto de Will. — Você nunca viu um eqüino como este antes. Mas não será a última vez.

— Ela é linda — completou Will, e mais uma vez, a égua roçou gentilmente seu pescoço.

— Suba — redargüiu o ferreiro.

O menino riu. Seria obviamente impossível; sua cabeça mal alcançava os ombros do animal, e mesmo se houvesse um estribo, estaria muito longe do alcance de seus pés.

— Não estou brincando — disse o ferreiro, e de fato não parecia o tipo de homem que sorri freqüentemente, sem falar de fazer brincadeiras. — É um privilégio seu. Segure na crina que pode alcançar e você verá.

Para fazer a vontade dele, Will estendeu o braço e passou os dedos das duas mãos nos longos fios da crina do animal, bem na altura do pescoço. No mesmo instante, ficou atordoado; sua cabeça zumbia como uma fiação, e por trás do som, ouviu com bastante clareza, mas muito distante, aquela frase tocada como um sino que ele ouvira antes de sair naquela manhã. Gritou. Seus braços se moviam de forma brusca e estranha; o mundo girava; e a música desapareceu. Sua mente ainda tentava recobrá-la desesperadamente quando percebeu que se encontrava mais perto dos galhos das árvores, cobertos pela neve, do que jamais estivera antes, sentado bem alto às largas costas da égua branca. Olhou para baixo, para o ferreiro, e sorriu alto de prazer.

— Depois que estiver ferrada — disse o ferreiro, — ela o levará, se pedir.

Subitamente, Will se restabeleceu do torpor, pensando. Depois alguma coisa conduziu seu olhar através dos arcos das árvores em direção ao céu, e ele viu duas gralhas negras batendo as asas preguiçosamente, lá no alto.

— Não — disse. — Eu acho que preciso ir sozinho. — E tocou no pescoço da égua, girou suas pernas para um lado, escorregou para o chão, preparando-se para um impacto. Mas, percebeu que havia caído suavemente em terra, com os dedos dos pés na neve. — Obrigado, John. Muito obrigado. Adeus.

O ferreiro acenou rapidamente com a cabeça, depois passou a se ocupar do animal, e Will saiu caminhando com certo desapontamento; esperava uma palavra de despedida pelo menos. Chegando às árvores, olhou para trás. John Smith tinha prendido um dos pés da égua entre seus joelhos, e estendia suas mãos enluvadas para pegar suas pinças, E o que Will viu em seguida o fez esquecer-se de qualquer palavra ou despedida. O ferreiro não removeu nenhuma ferradura velha, ou aparou o casco; aquele animal nunca havia sido ferrado antes. E a ferradura que estava sendo preparada para ela, como a fileira das três outras que podia vislumbrar cintilando sobre o muro mais afastado da Ferraria, não era uma ferradura, mas algo com outra forma, uma forma que ele conhecia muito bem. Todas as quatro ferraduras da égua branca eram réplicas do círculo quartejado pela cruz que ele usava em seu cinto.

 

Will se afastou estrada abaixo, sob o estreito céu azul. Colocou a mão dentro de sua jaqueta para tocar o círculo em seu cinto, e o ferro estava frio como o gelo. Ele começava a conhecer o significado do objeto, naquele momento. Não havia qualquer sinal do Cavaleiro, nem era possível ver a trilha deixada pelas pegadas do cavalo negro. Por isso, o menino não pensava em encontros malévolos. Podia apenas sentir que alguma coisa o conduzia cada vez mais forte em direção ao lugar onde, em seu próprio tempo, ficava a fazenda dos Dawson.

Encontrou o estreito caminho lateral e fez a curva para descê-lo. A trilha seguia por um longo trecho, serpenteando cm curvas suaves. Esta parte da floresta parecia abrigar um grande matagal; o topo dos galhos das árvores pequenas e arbustos mostravam a quantidade de neve acumulada sobre elas, como chifres brancos dos cervos em suas cabeças. Em seguida, na próxima curva, Will avistou uma cabana quadrada baixa, com paredes rudimentarmente revestidas de argila e um telhado alto com um chapéu de neve; era como uma torta espessa de gelo. Na entrada, parado irresoluto com uma mão sobre a porta desconjuntada, encontrava-se o velho mendigo desgrenhado do dia anterior, com os mesmos longos cabelos grisalhos, as mesmas roupas e o mesmo o rosto enrugado e astucioso.

Will se aproximou do velho homem e falou da mesma maneira como ouvira o fazendeiro Dawson falar, no dia anterior:

— Então o Andarilho está por aí.

— Somente o único — respondeu o velho. — Eu apenas. E que relação isso tem com você? — Fungou, olhando de soslaio para Will e esfregando o nariz na manga da roupa engordurada.

— Eu quero que me conte algumas coisas — respondeu Will, mais audacioso do que se sentia propriamente. — Eu quero saber por que ontem você esteve andando por aí. Por que estava observando? Por que as gralhas atacaram você? Eu quero saber — acrescentou em uma franca urgência repentina — o que quer dizer ser o Andarilho?

Ao mencionar as gralhas, o velho recuou para dentro da cabana, seus olhos piscavam nervosamente para o topo das árvores; mas, neste instante, olhava para Will com uma desconfiança mais forte do que antes.

— Você não pode ser ele! — disse o homem.

— Não posso ser o quê?

— Você não pode ser... você deveria saber de tudo isso. Especialmente sobre aqueles pássaros infernais. Tentando me enganar, hein? Tentando enganar um pobre velho. Você está com o Cavaleiro, não está? Você é o garoto dele, não é, hein? Ê claro que não — retrucou Will. — Eu não sei o que você quer dizer. — E olhou para a cabana deplorável; o caminho terminara ali, mas mal havia uma clareira apropriada. As árvores se estendiam próximas, ao redor deles, escondendo boa parte do sol. De repente, falou desolado:

― Onde está a fazenda?

― Não tem fazenda nenhuma — respondeu o velho andarilho impacientemente. — Não ainda. Você deveria saber.

Fungou novamente de forma brusca e murmurou algo para si mesmo; então seus olhos se estreitaram e ele se aproximou de Will, fitando atentamente o rosto do menino e deixando escapar um cheiro repugnante de suor velho e de pele, sem asseio. — Mas você poderia sê-lo, você poderia se estivesse carregando o primeiro sinal que o Ancião entregou para você. Você o tem aí com você, tem? Mostre. Mostre o sinal para o velho Andarilho.

Tentando se afastar com dificuldade, em sinal de repulsa, Will tateou os botões de sua jaqueta. Sabia que sinal seria esse. Mas enquanto empurrava o couro de cabra para o lado a fim de mostrar o círculo colocado em seu cinto, sua mão deslizou pelo ferro liso e o sentiu queimando, ardente como o gelo; ao mesmo tempo, viu o velho saltar para trás, encolhendo-se de medo, fitando, não ele, mas o que havia atrás dele, sobre seus ombros. Will olhou ao redor e avistou o Cavaleiro ocultado pelo manto, assentado sobre seu cavalo negro como a noite.

― Bem encontrado — disse o Cavaleiro, calmamente. O velho gritou como um coelho amedrontado e virando-se correu, esbarrando nos montes de neves em direção as arvores. Will permaneceu onde estava, olhando para o Cavaleiro; seu coração batia tão violentamente que ficou difícil respirar.

— Não foi prudente sair da estrada, Will Stanton — disse o homem no manto; seus olhos resplandeciam como estrelas azuis. O cavalo negro avançou um pouco, e um pouco mais; Will se encolheu contra a lateral da cabana esfarrapada, fitando aqueles olhos, e então, com grande esforço, enfiou o braço entorpecido em sua jaqueta de modo que o círculo em seu cinto ficasse visível. Segurou o cinto de lado; a frieza do signo era tão intensa que podia sentir a força do objeto, como a radiação de um calor profundo e em chamas. O Cavaleiro parou, e seus olhos piscaram.

— Então você já tem um deles. — Mexeu os ombros de forma estranha, e o cavalo sacudiu a cabeça; ambos pareciam ganhar força e ficar cada vez mais altos. — Um não o ajudará, não sozinho, não ainda — acrescentou o Cavaleiro, crescendo, crescendo, eminente contra o mundo branco, enquanto seu garanhão relinchava triunfantemente, empinando os seus pés dianteiros e açoitando o ar. Diante disso, Will podia apenas pressionar seu próprio corpo contra a parede, inutilmente. Cavalo e cavaleiro se ergueram sobre ele como uma nuvem negra, tapando sua visão tanto da neve quanto do Sol.

E então, ele vagamente ouviu novos sons, e a forma negra pareceu abaixar as patas levantadas, atormentado pelo esplendor de uma luz áurea, brilhante com a força-padrão dos círculos fulgurantes das estrelas e do Sol. Will piscava, e de repente viu que se tratava da égua branca da ferraria, erguendo por sua vez as patas dianteiras sobre ele. Agarrou desesperadamente a crina esvoaçante, e assim como antes, encontrou-se montado num solavanco sobre o dorso do animal. Curvou-se sobre o pescoço da égua, agarrando-se em prol da própria vida. A grande égua branca emitiu um relincho alto e saltou para a trilha através das árvores, passando pelas nuvens negras sem forma que permaneciam imóveis na clareira como fumaça, cruzando tudo em um crescente galope, até que chegaram por fim à estrada, à Trilha do Vale, a estrada através do Vale do Caçador.

O movimento da grande égua ficou cada vez mais lento, mantendo o trote vigoroso, e Will ouvia as batidas do próprio coração em seus ouvidos, enquanto o mundo passava voando em um borrão branco. Então, ao mesmo tempo, as sombras os cercaram, e o Sol escureceu. O vento irrompia pelo colarinho, mangas e botas do menino, agitando seus cabelos. Nuvens imensas se aproximavam rapidamente do norte, fechando-se ao redor deles, enormes nuvens escuras de tormenta; o céu reverberava e rugia. A única fresta de névoa branca ainda se encontrava ali, com um leve indício de azul atrás de si, mas já estava se fechando, fechando. A égua branca saltou em sua direção, desesperadamente. Sobre os ombros, Will pôde ver que investia contra eles uma forma mais escura do que as nuvens gigantes: o Cavaleiro, erguendo-se, imenso, os olhos como dois pontos terríveis de fogo branco-azulado. Relâmpagos e trovões cortavam o céu, e a égua saltou rumo ao estrondo das nuvens enquanto a última fresta se fechava.

E ali permaneceram seguros. O céu estava azul sobre eles e diante deles; o Sol resplandecia, aquecendo a pele do menino que acabava de perceber que tinham deixado seu Vale do Tâmisa para trás. Agora, eles se encontravam entre as encostas inclinadas das colinas de Chiltern, cobertas por grandes árvores como faias, carvalhos e freixos. E estendendo-se como fileiras pela neve, encontravam-se as cercas vivas que eram as marcas de antigos campos — muito antigos — segundo o que Will sempre soube; mais antigo do que qualquer coisa neste mundo, exceto as próprias colinas e as árvores. Então, em um morro embranquecido, avistou uma marca diferente. A forma estava talhada pela neve e encoberta no calcário embaixo do solo; teria sido difícil descobri-la se não fosse familiar. Mas Will a conhecia. A marca era um círculo, quartejado por uma cruz.

Então, suas mãos soltaram abruptamente a crina espessa a que se agarrara firmemente, e a égua branca emitiu um longo relincho esganiçado que soou alto em seus ouvidos para então em seguida esmorecer estranhamente com algo longínquo. Will estava caindo, caindo; porém, não sentiu nenhum choque com a queda; só percebia que se encontrava com o rosto na neve. Levantou-se cambaleando, sacudindo-se. A égua branca já não estava mais ali. O céu estava claro, e os raios do Sol aqueciam seu pescoço. Ficou de pé sobre um monte de neve, com um bosque denso de árvores altas cobrindo toda uma extensão ainda bem mais adiante, e dois pássaros pretos moviam-se lentamente de um lado para o outro sobre as árvores.

Diante dele, levando a lugar nenhum, encontravam-se sozinhos e altaneiros, sobre a encosta embranquecida, dois portais enormes talhados em madeira.

 

Will colocou suas mãos frias nos bolsos, e ficou olhando os painéis talhados das duas portas fechadas que se erguiam diante dele. Não lhe diziam nada. E não conseguia encontrar qualquer significado no ziguezague de símbolos repetidos várias vezes, variações intermináveis, sobre cada painel. Nunca havia visto uma madeira como aquela, trincada e fendida, porém polida pelos anos, de modo que quase não se poderia dizer se era madeira, exceto por uma curvatura aqui e ali, onde alguém não foi suficientemente capaz de evitar os vestígios dos nós. Não fosse por isso, Will teria achado que as portas eram uma pedra.

Os olhos do menino passearam pelo contorno enquanto observava, e ele pôde ver que tudo ao redor era uma agitação de coisas, um movimento como o tremor do ar sobre uma fogueira ou sobre uma estrada pavimentada aquecida pelo sol do verão. Porém, não havia diferença de calor para explicar o que se via ali.

Não havia maçaneta nas portas. Will esticou os braços à sua frente, deixando a palma de cada mão encostada sobre as portas, e empurrou. Enquanto se abriam sob suas mãos, o menino pensava ter ouvido a frase do sino surgir rapidamente — como uma música novamente; mas logo parou, na fresta enevoada entre a memória e a imaginação. Atravessou a entrada e sem um murmúrio sequer de som, as duas portas enormes se fecharam atrás dele; e a luz, o dia e o mundo mudaram de tal modo que o menino se esqueceu totalmente do que haviam sido.

Encontrava-se agora em um Grande Salão. Não havia luz do Sol ali. De fato, não havia sequer janelas nas imponentes paredes de pedra, somente uma série de fendas bem finas. Entre elas, de ambos os lados, via-se pendurada uma série de tapeçarias tão estranhas e belas que podiam cintilar à meia-luz. Will deslumbrou-se com os animais brilhantes, as flores e os pássaros que foram tecidos ou bordados ali em ricas cores, como vidro colorido pela luz do Sol.

Certas imagens lhe saltavam à mente; viu um unicórnio prateado, um campo de rosas vermelhas, um reluzente sol dourado. Acima de sua cabeça, a viga abobadada do telhado mais alto arqueava na sombra; outras sombras ocultavam o fim do aposento. Prosseguiu como num sonho, seus pés não faziam barulho sobre os tapetes de couro de cabra que cobriam o chão de pedra, e continuou olhando adiante. Tudo ao mesmo tempo faiscava e o fogo crepitava na escuridão, iluminando uma enorme lareira situada na parede mais distante; o menino viu portas, cadeiras de encosto alto e uma pesada mesa talhada. Nos dois lados da lareira, podia-se avistar a silhueta de duas pessoas de pé aguardando por ele: uma velha dama com uma bengala e um homem bem alto.

— Bem-vindo, Will — saudou a velha dama; sua voz era suave e gentil, porém vibrava pelo salão abobadado como o som agudo de um sino. Ela estendeu uma mão fina na direção dele, e a luz do fogo brilhou em um enorme anel que se projetava como um mármore em cima de seu dedo. Era muito pequena, frágil como um pássaro e, embora estivesse ereta e alerta, ao olhar para a mulher, Will tinha a impressão de que a idade dela era incalculável.

Não podia ver-lhe o rosto. Ficou parado onde estava e, inconscientemente, sua mão moveu-se discretamente para o cinto. Depois, a silhueta mais alta do outro lado da lareira se moveu, curvou-se e acendeu um longo círio no fogo e, indo em seguida até a mesa, começou a colocá-lo em um círculo de velas compridas que estavam ali. A luz da chama amarela esfumaçante passeava pelo rosto dele. Will pôde perceber a cabeça de ossatura forte com olhos profundos e nariz arqueado, como o bico de um falcão; volumosos cabelos brancos e ouriçados emergiam da fronte altiva, deixando aparentes as sobrancelhas cheias e o queixo sobressalente. E embora não soubesse o motivo, enquanto olhava para as linhas misteriosas e severas daquele rosto, o mundo que ele havia habitado desde que nascera pareceu rodopiar, romper e atingir novamente padrões que não eram os mesmos de antes.

Endireitando-se, o homem alto olhou-o através do círculo de velas reluzentes sobre a mesa, dentro de uma moldura semelhante à do aro de um pneu furado. Sorriu discretamente; a boca sombria inclinava-se nos cantos, e um repentino leque de linhas franzia cada lado de seus olhos profundos. Ele apagou o círio queimado com um sopro ligeiro.

— Venha, Will Stanton — disse, e a voz profunda também parecia saltar na memória do menino. — Venha e aprenda. E traga essa vela com você.

Confuso, Will olhou ao redor. Perto de sua mão direita, encontrou um suporte de ferro forjado escuro, da mesma altura dele, erguendo-se em três pontos; dois desses pontos tinham no topo uma estrela de cinco pontas de ferro e o terceiro, um castiçal com uma fina vela branca. Levantou a vela, pesada o suficiente para necessitar das duas mãos, e atravessou o salão até os dois vultos que o esperavam na outra extremidade. Piscando com a luz, viu quando se aproximou deles que o círculo de velas sobre a mesa não era uma círculo completo afinal; um orifício de encaixe encontrava-se vazio. Debruçou-se sobre a mesa, segurando os lados lisos inflexíveis da vela, e acendeu-a com a chama das outras ali dispostas, fixando-lhe cuidadosamente no orifício vazio. Fez o mesmo com o restante. Eram velas muito estranhas, irregulares em largura, mas frias e rígidas como o mármore branco; elas queimavam com uma longa chama brilhante e sem fumaça e exalavam um perfume ligeiramente impregnante, como os pinheiros.

Foi somente quando se voltou para se colocar de pé que Will percebeu os dois braços de ferro cruzados dentro do anel do castiçal. Aqui mais uma vez, como todo lugar, havia um signo: a cruz dentro do círculo, a esfera quartejada. Era possível ver agora outros encaixes para velas na moldura: duas ao longo de cada braço da cruz, e uma no ponto central onde eles se encontravam. Mas estes ainda estavam vazios.

A velha dama relaxou, e sentou-se na cadeira de encosto alto ao lado da lareira.

— Muito bem — disse confortavelmente, com aquela mesma voz musical. — Obrigada, Will.

Sorriu, sua face pregueada como uma teia de rugas; e Will sorriu incondicionalmente de volta. Não sabia por que estava repentinamente tão feliz; e parecia tão natural para ser questionado. Ele se sentou em um banco que estivera ali claramente aguardando por ele, em frente ao fogo, entre as duas cadeiras.

— As portas — disse ele —, as grandes portas pelas quais passei, como podem elas permanecer ali por si mesmas?

— As portas? — perguntou a dama.

Alguma coisa em sua voz fez Will se voltar para trás, sobre os ombros, para a parede na outra extremidade de onde acabara de vir: a parede com as duas portas altas, e o orifício do qual ele havia tirado a vela. Olhou; havia algo errado. As grandes portas de madeira tinham desaparecido. A parede acinzentada se estendia em branco, suas maciças pedras quadradas estavam quase descaracterizadas, exceto por um escudo dourado redondo, solitário, pendurado bem no alto, cintilando opacamente na luz do fogo.

O homem alto riu suavemente.

— Nada é o que parece, garoto. Espere nada e não tema nada, aqui ou em qualquer outro lugar. Eis a sua primeira lição. E eis seu primeiro exercício... Então, nós temos diante de nós Will Stanton; diga-nos, o que tem acontecido com ele nestes últimos dois dias.

Will olhou as chamas insistentes, quentes e bem-vindas em seu rosto naquele ambiente gelado. Foi necessário grande esforço para levar sua mente de volta ao momento quando ele e James saíram de casa em direção à fazenda dos Dawson para buscar feno — feno! — na tarde de ontem. Ele pensou, desconcertado, sobre tudo o que ocorrera entre aquele momento e o presente. Depois de um tempo:

— O signo. O círculo com a cruz. Ontem o sr. Dawson deu-me o signo. Depois, o Andarilho me perseguiu, ou tentou, e depois disso eles, seja lá quem for e se são eles, tentaram me pegar. — Engoliu seco, sentindo frio ao se lembrar do medo que vivera à noite. — Para pegar o signo. Eles o querem, só se trata disto. É por isso que hoje é dessa maneira, mesmo assim é muito mais complicado, pois agora não é agora, é outro tempo, eu não sei quando. Tudo é como um sonho, mas real... Eles ainda o procuram. Eu não sei quem são, exceto o Cavaleiro e o Andarilho. Eu não conheço vocês também, só sei que são contra eles. Vocês, o sr. Dawson e John Wayland Smith.

Parou.

— Continue — disse a voz profunda.

— Wayland? — continuou Will, perplexo. — É um nome estranho. Não faz parte do nome de John. O que me fez dizer isto?

— As mentes guardam mais do que sabem — disse o homem alto. — Particularmente a sua. E o que mais tem a dizer?

— Eu não sei — respondeu Will. Ele olhava para baixo e deslizava um dedo pela borda de seu banco que havia sido talhado em suaves ondas regulares, como um mar tranqüilo. — Bem, sim, eu tenho. Duas coisas. Uma é sobre algo engraçado com relação ao Andarilho. Eu não acho que ele seja um deles, já que tremeu de medo do Cavaleiro quando o viu, e fugiu.

— E a outra coisa? — perguntou o homem.

Em algum lugar nas sombras do Grande Salão soou um relógio, com uma nota grave como um sino abafado: uma única nota, de meia hora.

— O Cavaleiro — acrescentou Will. — Quando o Cavaleiro viu o signo, disse: "Então você já tem um deles". Ele não sabia que eu o tinha. Mas ele me perseguiu. Veio atrás de mim. Por quê?

— Sim — disse a velha dama. Ela o olhava de maneira bastante triste. — Ele estava perseguindo você. Temo que a suposição de sua mente esteja correta, Will. Não é o signo que eles querem acima de tudo. É você.

O homem alto se levantou, passou por trás de Will, e colocou uma mão sobre o encosto da cadeira da velha dama e a outra no bolso do paletó escuro de gola alta que vestia.

— Olhe para mim, Will — pediu ele. A luz do anel ardente das velas sobre a mesa brilhava em seus cabelos brancos; depois os olhos indistinguíveis e taciturnos tornaram-se ainda mais sombrios, como um poço de escuridão em seu rosto magro. — Meu nome é Merriman Lyon — disse. ― Receba meus cumprimentos, Will Stanton. Estivemos esperando por você há muito tempo.

— Eu conheço você — disse Will. — Quero dizer... você parece... eu senti que... não conheço você?

Em certo sentido — respondeu Merriman. — Você e eu somos, podemos dizer, semelhantes. Nós nascemos com o mesmo dom, e pelo mesmo importante propósito. E você, Will, está aqui neste momento, para começar a compreendei qual é este propósito. Mas, primeiro, deverá ser ensinado a respeito de seu dom.

Tudo parecia se mover para muito longe, e muito rápido. — Eu não entendo — disse Will, observando alarmado o rosto forte e determinado. — Eu não tenho dom nenhum, de verdade, eu não tenho. Quero dizer, eu não lenho nada de especial. — Olhava de um para o outro, as silhuetas alternadamente iluminadas e ocultadas pela dança das chamas das velas e do fogo, e começou a sentir o medo crescer, um sentimento de estar caindo numa armadilha. E disse: — Apenas as coisas que têm acontecido comigo, só isso.

— Tente recordar, e lembre-se de alguma destas coisas — pediu a velha dama. — Hoje é seu aniversário. Dia de solstício de inverno, seu décimo primeiro dia de solstício de inverno. Pense sobre ontem, sua décima véspera de solstício de inverno, antes de ver o signo. Não houve algo de especial, então? Nada novo?

Will pensava. — Os animais tinham medo de mim — informou relutantemente. — E os pássaros talvez. Mas não parecia significar alguma coisa naquele momento.

— E se você tivesse um rádio ou uma televisão ligada em sua casa? — perguntou Merriman. — Por acaso, os aparelhos agiam de modo estranho quando passava perto deles?

Will o olhava atentamente. — O rádio realmente ficava fazendo uns ruídos. Como você sabe disso? Eu achava que era uma coisa magnética ou outra coisa.

Merriman sorriu. — De certo modo. De certo modo. — E então ficou sério novamente. — Ouça agora. O dom do que falo é um poder que mostrarei a você. É o poder dos Anciãos , que são tão antigos quanto esta terra e até mesmo mais antigos do que ela. Você nasceu para herdá-lo, Will, quando chegasse ao final de seu décimo ano. Na noite que antecedeu o seu aniversário, o dom começou a despertar e agora, no dia do seu aniversário, já está livre, desabrochou, completamente desenvolvido. Mas ainda está confuso e não canalizado, pois você não tem o controle apropriado disto, ainda. Deve ser treinado para lidar com ele, até que possa tomar sua devida forma e cumprir a busca pela qual você está aqui. Não fique tão nervoso, garoto. Levante-se. Eu lhe mostrarei o que seu dom pode fazer.

O garoto se levantou, e a velha dama lhe sorriu de modo incentivador. E Will perguntou-lhe de repente: — Quem é você?

— A dama — começou Merriman.

A dama é muito velha — disse ela em sua clara voz juvenil — e tinha em seu tempo muitos, muitos nomes. Talvez fosse melhor por agora, Will, que você pensasse em mim apenas como a velha dama.

— Sim, senhora — aceitou Will, e ao som da voz dela, a felicidade dele transbordava novamente, o crescente alarme se desfez, e o menino ficou ereto e ansioso, olhando as sombras atrás da cadeira para onde Merriman tinha retrocedido alguns passos. Ele podia enxergar o brilho dos cabelos brancos do vulto alto, nada mais.

A voz profunda de Merriman surgiu das sombras: — Fique parado. Olhe o que quiser ver, mas não muito, não se concentre em nada. Deixe sua mente divagar, finja que está entediado na escola.

Ele riu, e ficou ali, relaxado, inclinando sua cabeça para trás. Sem preocupação, olhou de soslaio, tentando distinguir entre as vigas negras cruzadas em forma de cruz no Alto do telhado e os contornos escuros de suas sombras.

Merriman disse com naturalidade: — Estou colocando uma imagem em sua mente. Diga-me o que vê.

A imagem se formou na mente do menino tão natural mente como se tivesse decidido pintar uma paisagem imaginaria e estivesse tentando visualizá-la antes de colocar no papel. E então falou, descrevendo os detalhes como se lhe apareciam.

— Vejo uma encosta verdejante, acima do mar, como um tipo de penhasco moderadamente inclinado. O céu é muito azul, e o fundo do mar possui uma tonalidade de azul ainda mais escura. Bem mais adiante, bem mais abaixo, lá onde o mar se encontra com a terra, há uma faixa de areia, uma areia dourada agradavelmente reluzente. E na terra, desde o verdejante promontório, estão as colinas, colinas enevoadas; não se pode avistá-las daqui, exceto pelo canto de seu olho. Elas são um tipo de roxo suave, e suas extremidades se dissolvem em uma névoa azulada, do mesmo modo que as cores numa pintura se dissolvem em outra cor se molharmos o quadro. E... — o menino saiu de seu estado semiconsciente de visão e olhou fixamente para Merriman, observando com atenção as sombras com um interesse inquisitivo. — É uma imagem triste. Você sente falta de lá, você sente falta de casa, seja ela onde for. Onde é?

— Basta — completou Merriman apressadamente, mas ele parecia satisfeito. — Você foi bem. Agora, é sua vez. Dê-me uma imagem, Will. Apenas escolha alguma cena comum, qualquer coisa, e pense com o que ela se parece, como se estivesse olhando para ela.

Will pensou na primeira imagem que lhe surgiu na cabeça. Era a mesma imagem, percebia agora, com a qual estivera se preocupando no fundo de seus pensamentos durante todo esse tempo: a imagem das duas grandes portas, isoladas sobre a encosta coberta de neve, com todas as suas gravuras intricadas, e o estranho borrão em suas extremidades.

Merriman disse ao mesmo tempo: — As portas não. Nada tão perto. Algum lugar de sua vida antes do inverno chegar.

Por um segundo, Will o fitou, desconcertado; em seguida, engoliu seco, fechou os olhos e pensou na joalheria que seu pai dirigia na pequena cidade de Eton.

Merriman lentamente retomou a palavra: — A maçaneta da porta é um tipo de alavanca, como uma barra redonda, para ser empurrada para baixo, talvez dez graus de abertura. Uma pequena campainha toca enquanto a porta se move. Você desce alguns centímetros para tocar o chão, e o solavanco da descida é surpreendente sem ser perigoso. Há vitrines de vidro em todas as paredes ao redor, e embaixo do balcão de vidro... é claro, só pode ser a loja do seu pai. Com lindas coisas em seu interior. Um relógio do avô, muito antigo, no canto do fundo, com uma face pintada e um tique profundo e lento. Um colar azul-turquesa exibido na vitrine central com um conjunto de serpentes de prata: trabalho Zuni, penso eu, muito distante de casa. Um pingente de esmeralda como uma grande fenda verde. Um pequeno modelo encantador de um castelo medieval dos Cruzados, em ouro... talvez num saleiro... do qual você deve ter gostado muito, acho, desde que era um garotinho. E aquele homem atrás do balcão, baixo, satisfeito e gentil, deve ser o seu pai, Roger Stanton. É interessante vê-lo tão claramente afinal, sem nenhum impedimento... Está usando óculos de relojoeiro, e observa um anel: um antigo anel de ouro com nove pedras minúsculas fixadas em três filas, três de diamante no centro, três rubis de cada lado, e uma curiosa escrita rúnica as cercando... acredito que devo olhá-las mais perto futuramente.

― Você viu até o anel! — disse o garoto, fascinado. — É ― O anel da minha mãe. Papai o estava examinando na última vez que estive na loja. Ela achava que uma das pedras havia le perdido, mas ele disse que se tratava de uma ilusão de ótica... Mas, você faz isso?

― Faço o quê? — Havia uma leveza sinistra na voz profunda.

― Bem, aquilo. Colocar uma imagem na minha mente. E então vê aquele que eu tenho comigo. Telepatia, não é assim que se chama? É fantástico. — Mas um mal-estar começava a surgir em sua mente.

— Muito bem — disse Merriman com impaciência. — Eu lhe mostrarei de outra maneira. Há um círculo de velas ali ao seu lado, sobre a mesa, Will Stanton. Agora... você conhece qualquer maneira possível de apagar alguma daquelas chamas, além de soprar, respingar água, abafar ou colocar a mão sobre elas?

— Não.

— Não. E não há. Mas vou contar uma coisa. Você, por causa de quem você é, pode fazer isso simplesmente desejando que aconteça. Pois para o dom que possui, esta é uma tarefa das mais simples, na realidade. Se em sua mente você escolher urna destas chamas e pensar nela sem mesmo olhá-la e dizer-lhe para se apagar, então a chama se apagará. E isso é algo possível a qualquer garoto normal?

— Não — disse Will de forma triste.

— Faça — ordenou Merriman. — Agora.

Houve um momento de silêncio no salão, pesado como veludo. Will podia sentir que os dois o observavam. Pensava desesperadamente: Apagarei a vela, pensarei na chama, mas não será uma daquelas; será algo maior, alguma coisa que não poderia ser apagada exceto por uma mágica fantástica e impossível, que mesmo Merriman não conhece... Olhou ao redor, para a luz e as sombras dançando lado a lado na rica tapeçaria sobre as paredes de pedra, e pensou com afinco, em uma concentração furiosa, na imagem da lenha de fogo queimando na enorme lareira atrás de si. Sentia o calor da madeira na parte de trás de seu pescoço; pensava no centro alaranjado cintilante da grande pilha de lenha e nas línguas de fogo amareladas e crepitantes. Apague-se, fogo, ordenava em sua mente, sentindo-se seguro e livre dos riscos do poder, pois é claro que nenhum fogo tão grande quanto aquele poderia possivelmente se apagar sem uma verdadeira razão. Pare de queimar, fogo. Apague-se.

E o fogo se apagou.

De repente, o quarto ficou frio e mais escuro. O anel das chamas das velas sobre a mesa continuou queimando, na pequena e fria reserva de sua própria luz. Will virou-se, fitando consternado a lareira; não havia sequer vestígio de fumaça, ou água, ou qualquer coisa com a qual o fogo poderia ter se extinguido. Mas estava bem extinto, frio e negro, sem qualquer faísca. O menino se moveu naquela direção, vagarosamente. Merriman e a velha dama não diziam uma palavra, e não se mexiam. Will se curvou e tocou as lenhas enegrecidas na lareira; estavam frias como pedras, porém incrustadas com a camada de cinzas novas que caíram dentre os dedos em um pó esbranquiçado. Levantou-se, esfregando as mãos lentamente para cima e para baixo em sua calça, depois olhou impotente para Merriman. Os olhos profundos do homem queimavam como as chamas escuras da vela, mas havia compaixão neles. Em seguida, Will olhou nervosamente para a velha dama; percebeu um tipo de ternura em sua face também, e ela disse gentilmente: — Está um pouco frio, Will.

Por um período infinito de tempo que não durou mais do que um formigamento de nervos, Will sentiu uma centelha gritante de pânico, a lembrança do medo que tivera no pesadelo noturno durante a tempestade de neve; mas, em seguida, acabou e, na paz de seu desaparecimento, sentiu que de alguma maneira estava mais forte, maior, mais relaxado. Sabia que de algum modo havia aceitado o poder, seja lá o que fosse, a que estava resistindo, e sabia o que deveria fazer. Tomando fôlego, mexeu os ombros e se posicionou firme e ereto onde estava no Grande Salão. Sorriu para a velha dama; depois passou a olhar o nada, concentrando-se na imagem do fogo. Volte, fogo, dizia ele em sua mente. Queime novamente. E logo a luz estava dançando sobre a tapeçaria das paredes mais uma vez; e a sensação do calor das chamas voltava a ser sentida atrás de seu pescoço, e o fogo queimava.

— Obrigada — disse a velha dama — Muito bem! — Merriman concluiu com suavidade, e Will sabia que ele não falava apenas da extinção e do reacendimento do fogo.

— Trata-se de um fardo — disse Merriman. — Não se engane quanto a isso. Todo grande dom, poder ou talento é um fardo, e este mais do que qualquer outro. Você com freqüência desejará se livrar dele. Mas não há nada que se possa fazer. Se nascer com o dom, então deve servi-lo, e nada neste mundo ou fora dele pode ficar no caminho deste serviço, pois foi para isso que nasceu e esta é a Lei. E é assim mesmo, jovem Will; você faz apenas uma leve idéia do dom que está em seu interior, pois até as primeiras experiências do aprendizado acabarem, você correrá grande perigo. E quanto menos souber do sentido de seu poder, melhor será para protegê-lo, como aconteceu nestes últimos dez anos.

Ele olhava fixamente para o fogo durante um momento, com o cenho franzido.

— Devo contar-lhe apenas isto: você é um dos Anciãos, o primeiro que nasceu em quinhentos anos, e o último. E como todos eles, está destinado por natureza a devotar-se ao longo conflito existente entre a Luz e as Trevas. Seu nascimento, Will, completou o círculo que estava se desenvolvendo durante quatrocentos anos nas partes mais antigas desta terra: o círculo dos Anciãos. Agora que descobriu o seu poder, sua tarefa é tornar esse círculo indestrutível. É sua busca encontrar e guardar os seis grandes Signos da Luz, produzidos durante séculos pelos Anciãos, para serem reunidos em poder somente quando o círculo estiver completo. O primeiro signo já se encontra em seu cinto, mas para encontrar os restantes não será fácil. Você é o Descobridor dos Signos, Will Stanton. Este é o seu destino, sua primeira busca. Se puder realizar isto, poderá trazer à vida uma das três grandes forças que os Anciãos deverão instigar, em breve, para vencer os poderes das Trevas que estão se estendendo agora constante e furtivamente por todo este mundo.

O ritmo de sua voz, que se elevava e decrescia em um padrão crescentemente formal, mudara subitamente para um tipo de clamor de guerra cantado, um chamado — pensou Will, com um calafrio percorrendo sua pele — para coisas além do Grande Salão e além do tempo do chamado.

— Pois as Trevas, as Trevas estão se rebelando. O Andarilho está por aí, o Cavaleiro está cavalgando; eles acordaram, as Trevas estão se rebelando. E o último do Círculo já chegou para reivindicar o seu, e os círculos devem ser reunidos agora. A égua branca deve encontrar o Caçador , e o rio deve tomar o vale; deve haver fogo na montanha, fogo sob a pedra, fogo sobre o mar. Fogo para queimar as Trevas para sempre, pois as Trevas, as Trevas estão se rebelando!

Ele permaneceu ali, alto como uma árvore no aposento assombreado, sua voz profunda soava como um eco, e Will não conseguia tirar os olhos dele. As Trevas estão se rebelando. Era exatamente daquela maneira que ele se sentira na noite passada. Era o que ele começava a sentir agora novamente, uma consciência sombria do mal formigando na ponta de seus dedos e pela sua espinha; mas pela própria vida, ele não poderia pronunciar uma só palavra. Merriman dizia, em um tom de canção que soava estranho em vista de sua silhueta enorme, como se fosse uma criança recitando:

Quando as Trevas se rebelarem, seis devem fazê-la recuar, 

Três do círculo, três da trilha;

Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;

Cinco retornarão, e um deve sozinho continuar.

Então saiu das sombras, passou pela velha dama, assentada serena e com olhos brilhantes em sua cadeira de encosto alto; com uma das mãos, Merriman retirou uma das espessas velas brancas do anel em chamas, e com a outra conduziu Will em direção às altas paredes laterais.

— Olhe bem, em cada momento, Will — disse ele. — Os Anciãos mostrarão algo de si mesmos, e lembrarão a sua parte mais profunda. Por um momento, olhe cada um. — E com o menino ao seu lado, ele atravessou o salão a passos largos, segurando a vela no alto para cada tapeçaria da parede. A todo o momento, como se fosse ordenado, uma imagem viva reluzia por um instante de cada motivo bordado, tão viva e profunda quanto uma imagem iluminada pelo Sol através de uma janela. E o garoto viu.

Ele viu uma árvore de maio branca em floração, crescendo do telhado de sapê de uma casa. Viu quatro pedras acinzentadas enormes sobre o verde promontório acima do mar. Viu o crânio branco sem olhos de um cavalo, com um único chifre espesso, porém quebrado, na fronte óssea, e fitas vermelhas cingindo as longas mandíbulas. Ele viu relâmpagos atingindo uma enorme faia e, depois do lampejo, vislumbrou um grande fogo queimando uma encosta sem vegetação sob o céu escuro.

Viu ainda o rosto de um garoto, apenas um pouco mais velho que ele, observando curiosamente o seu: um rosto sombrio embaixo dos cabelos escuros raiados de luz; seus olhos eram estranhos como os de um gato, as pupilas claras nas bordas, mas quase amareladas em seu interior. Viu também um rio vasto transbordante e ao lado um homem velho cheio de rugas curvado sobre um enorme cavalo. Enquanto Merriman o conduzia inexoravelmente de uma imagem a outra, avistou, num lampejo de terror, a imagem mais iluminada de todas: um homem mascarado com uma face humana, a cabeça de um veado, os olhos de uma coruja, os ouvidos de um lobo e o corpo de um cavalo. A figura saltou, puxando alguma lembrança perdida no fundo de sua mente.

— Lembre-se deles — disse Merriman. — Eles serão poder.

Will aquiesceu, ficando tenso logo depois. De repente, ouviu ruídos que ficavam cada vez mais altos do lado de fora do salão e soube com um choque de certeza terrível o motivo que o levara a sentir aquele desconforto um pouco antes. Enquanto a velha dama permanecia imóvel em sua cadeira, e ele e Merriman ficavam novamente do lado da lareira, o Grande Salão foi envolvido repentinamente com uma mistura horrenda de lamentações, murmúrios e gemidos estridentes, como o de vozes enjauladas em um zoológico malévolo. Era o som mais puramente grotesco que ele já ouvira.

O cabelo se eriçou na parte de trás do pescoço do menino, e então, subitamente, veio o silêncio. Uma lenha caiu, estalando, no fogo. Will ouvia a pressão sangüínea em suas veias. E invadindo o silêncio, um novo som surgiu de algum outro lugar do lado de fora, além das paredes mais afastadas: de desconsolo, de ganidos suplicantes de um cão abandonado, gritos de pânico por socorro e afabilidade. Era exatamente como faziam Raq e Ci, seus cães, quando eram filhotinhos, latindo por conforto na escuridão; Will se sentiu amolecer em compaixão, e virou-se instintivamente na direção do som.

— Ai, onde é isto? Pobre coitadinho.

Enquanto ele olhava para as paredes de pedra vazias ao longe, viu uma porta tomar forma no lugar. Não era uma porta como aquelas enormes desaparecidas pelas quais ele havia entrado, mas bem menores; uma porta estranha, pequena, apertada, que parecia destoar totalmente do lugar. Mas ele sabia que poderia abri-la para ajudar o suplicante animal. O cão ganiu novamente revelando uma penúria ainda pior; mais alto, ainda mais suplicante, em um desesperado uivo. Will se virou impulsivamente para correr até a porta; mas foi paralisado no meio do passo pela voz de Merriman, suave, mas fria como uma pedra no inverno.

— Espere. Se você visse a forma desse pobre e triste cão, ficaria grandemente surpreso. E seria a última coisa que veria em sua vida.

Incrédulo, Will parou e aguardou. O ganido cessou novamente, em um último e longo uivo. E o silêncio voltou por um momento. Então, subitamente, ouviu a voz de sua mãe atrás da porta.

— Will? Wiiiiill... Venha, ajude-me, Will! — Sua voz era inconfundível e cheia de uma emoção desconhecida: havia nela um tom de pânico quase controlado que o aterrorizava. E soou novamente. — Will? Preciso de você... Onde você está, Will? Ai, por favor, Will, venha e ajude-me. — E então uma pausa infeliz, como um soluço.

Ele não conseguia suportar. Deu um impulso e correu em direção à porta. A voz de Merriman ecoou atrás dele como um açoite.

— Pare!

— Mas eu devo ir, não consegue ouvi-la? — gritou o menino irritadamente. — Eles pegaram a minha mãe: eu tenho que ajudar.

— Não abra essa porta! — Havia um indício de desespero na voz profunda que falava com Will, através do instinto, de que em último caso Merriman seria incapaz de detê-lo.

— Não é sua mãe, Will — a velha dama disse claramente.

— Por favor, Will! — a voz de sua mãe implorava.

— Estou indo! — alcançou a pesada tranca da porta, mas com a pressa cambaleou, batendo-se contra o enorme castiçal de modo que seu braço foi luxado de um lado. Sentindo uma repentina dor no antebraço, gritou e caiu ao chão encarando a parte interna do pulso onde o signo do círculo quartejado foi marcado agonizantemente como uma mancha vermelha em sua pele. Mais uma vez, o símbolo do ferro em seu cinto o atingiu com seu intenso toque gelado; a pele queimou desta vez com a temperatura do frio extremo, em um furioso alerta resplandecente contra a presença do mal — a presença que Will havia sentido, mas esquecido. Merriman e a velha dama ainda não se mexiam. O menino se levantou pisando em falso e continuou ouvindo, enquanto do lado de fora da porta a voz de choro de sua mãe tornou-se furiosa e ameaçadora, para, em seguida, suavizar-se novamente, persuasiva e bajuladora; e então, finalmente, cessou desaparecendo em um soluço que o dilacerava, embora sua mente e razão lhe dissessem que não era real.

E a porta desapareceu com ela, desmanchando como a névoa, até que a parede de pedra acinzentada ficasse sólida e intacta como antes. Do lado de fora, o terrível coro inumano de gemidos e lamentações recomeçaram.

A velha dama ficou de pé e atravessou o salão; seu longo vestido verde farfalhava suavemente a cada passo. Ela segurou o antebraço machucado do menino em suas mãos e colocou a palma fria de sua mão direita sobre ele, deixando-o logo depois. A dor no braço desapareceu, e onde houvera a mancha vermelha de queimado que tinha visto encontrava-se agora uma pele lustrosa e sem pêlos, pois também havia sido curada. Mas o formato da cicatriz era bem nítido, e ele sabia que o carregaria até os últimos dias de sua vida.

Era como uma marca. Os ruídos do pesadelo além das paredes cresciam e diminuíam em ondas irregulares. Sinto muito — disse Will lamentando-se. - Estamos cercados, como pode ver — disse Merriman, avançando para se juntar a eles. — Eles esperam obter controle sobre você enquanto ainda não desenvolveu todo o seu poder. E isso é apenas o início do perigo, Will. Por todo este solstício de inverno, o poder deles se tornará cada vez mais forte, e a Velha Magia só será capaz de mantê-los à distância na véspera do Natal. Porém, mesmo depois do Natal, o poder continuará crescendo, sem perder sua força máxima até o Décimo Segundo Dia. A Décima Segunda Noite já foi certa vez o Dia do Natal e, antes disso, há muito tempo, era o principal festival de inverno de nosso tempo antigo.

— O que acontecerá? — perguntou Will.

— Devemos pensar apenas naquilo que devemos fazer — disse a velha dama. — E a primeira é libertá-lo do círculo do poder sombrio que ainda paira ao redor deste salão.

Merriman disse, ouvindo atentamente: — Fique alerta. Contra tudo. Eles falharam com uma emoção; mas tentarão enganá-lo com alguma outra da próxima vez.

— Mas não tema — disse ela. — Lembre-se disso, Will. Com freqüência você sentirá medo. No entanto, nunca se deixe intimidar. Os poderes das Trevas podem realizar muitas coisas, mas não podem destruir. Eles não podem matar os que pertencem à Luz. A não ser que obtenham uma dominação final sobre toda a Terra. E é tarefa dos Anciãos, sua tarefa e nossa, impedir isto. Então, não deixe que eles lhe coloquem medo e desespero.

Ela continuou dizendo mais coisas, mas sua voz foi abafada como uma rocha submersa em ondas da maré alta, quando o horrível coro que lamentava e chorava do lado de fora das paredes soou mais alto, rápido e irritadiço, em uma cacofonia de gritos estridentes e risos sobrenaturais, gritos de terror e gargalhadas de alegria, uivos e rugidos. Enquanto Will ouvia, sua pele se arrepiava e transpirava cada vez mais.

Como num sonho, ouviu a voz grave de Merriman ecoar através do barulho terrível chamando por ele. Ele não teria se movido se a velha dama não lhe tivesse tomado as mãos, conduzindo-o pelo aposento, de volta à mesa e à lareira, a única cavidade de luz naquele salão escuro. Merriman falava próximo ao seu ouvido, rápido e insistente.

— Sustente o círculo, o círculo da luz. Fique de costas para a mesa, e segure nossas mãos. É uma união que eles não podem romper.

Will permaneceu ali, com os braços bem estendidos, enquanto fora de vista, ao seu lado, cada um deles segurava uma de suas mãos. A luz do fogo na lareira apagou, e ele ficou consciente de que logo atrás as chamas do círculo de velas sobre a mesa ficaram mais altas, gigantescas, tão altas que, ao virar sua cabeça, pode vê-las se elevando bem acima de si, em um pilar branco de luz. Não havia calor nesta enorme árvore de chamas, e embora irradiasse com grande brilho, não lançava qualquer luz além da mesa. Will não podia ver o restante do salão, nem as paredes nem as pinturas nem qualquer porta. Ele não enxergava nada além da escuridão, um vasto vazio negro de uma terrível noite eminente.

Eram as Trevas, rebelando-se, rebelando-se para tragar Will Stanton antes que ele pudesse se fortalecer o suficiente para lhes causar dano. À luz das velas estranhas, Will segurava firmemente os dedos frágeis da velha dama e o pulso como madeira vigorosa de Merriman. O grito das Trevas crescia atingindo seu auge de forma intolerável, era um ganido triunfante; e Will soube sem olhar que diante dele, na escuridão, o grande garanhão negro tinha empinado suas patas dianteiras como havia feito do lado de fora da cabana ao bosque, com o Cavaleiro aguardando para o abater, caso os cascos recém-ferrados não fizessem o trabalho. E nenhuma égua branca naquele momento poderia surgir do céu para socorrê-lo.

Ele ouviu o grito de Merriman.

— A árvore de chamas, Will! Ataque com as chamas! Como você ordenou ao fogo, ordene à chama, e ataque!

Em desesperada obediência, Will encheu toda a sua mente com a imagem do grande círculo de altas, altas chamas atrás de si, crescendo como uma árvore branca e, enquanto fazia isso, sentia a mente de seus dois companheiros fazendo o mesmo; sabia que os três juntos poderiam realizar mais do que ele jamais imaginou. Sentiu certa pressão de cada mão que o segurava, e concentrou-se na coluna de luz, sacudindo-a como se fosse um chicote gigante. Acima de sua cabeça, surgiu um vasto clarão de luz branca, enquanto as altas chamas se erguiam para a frente e para baixo em um parafuso de luzes, e logo se ouviu um tremendo grito da escuridão mais além, quando algo — o Cavaleiro, o garanhão negro, ambos — apostatou, abandonou, prosternou, eternamente prosternou.

E no vazio da escuridão diante deles, enquanto ele ainda piscava os olhos ofuscados, encontravam-se as duas grandes portas de madeira pelas quais o menino havia entrado no salão.

No silêncio repentino, Will ouviu a si mesmo gritando triunfante. Então, saltou à frente, ficando livre das mãos que lhe seguravam, para correr até as portas. Ambos, Merriman e a velha dama gritaram em alerta, mas era tarde demais. Will quebrara o círculo, ele estava sozinho. Tão logo percebeu isso, o menino se sentiu atordoado e pasmo, segurando a cabeça, enquanto um som estranho começava a grunhir em seus ouvidos. Forçando suas pernas a se moverem, ele deu um impulso até as portas, inclinou-se contra elas e as golpeou debilmente com os punhos. Elas não se moveram. O som sinistro em sua cabeça aumentou. Ele viu Merriman movendo-se até ele, caminhando com grande esforço, inclinando-se para a frente como se estivesse lutando contra o vento forte.

— Que tolice — dizia Merriman ofegante. — Que tolice, Will. — Agarrou as portas e as golpeou, empurrando para a frente com a força de seus dois braços de modo que as veias laterais em sua fronte apareceram sob a pele como um arame espesso; e enquanto fazia isto, ergueu a cabeça e bradou uma longa frase de ordenança que Will não compreendia. Mas as portas não se moveram, e o menino sentiu a fraqueza lhe abater, como se fosse um boneco de neve derretendo ao Sol.

O que o despertou, logo quando estava começando a mergulhar em um tipo de transe, foi algo que nunca seria capaz de descrever, ou mesmo de lembrar-se muito bem. Era como o fim da dor, como a mudança do desacordo para a harmonia, como o alívio para os ânimos que se pode sentir repentinamente no meio de um dia chuvoso e monótono, algo incalculável até que se perceba que o Sol começara a brilhar. Essa música silenciosa que entrou na mente de Will e tomou seu espírito veio, ele soube imediatamente, da velha dama. Sem palavras, ela lhe falava. Falava para ambos — e para as Trevas. Ele olhou para trás deslumbrado; ela parecia maior, mais alta, mais ereta do que antes, uma figura sem precedentes. E via-se uma nuvem dourada ao redor de sua silhueta, um brilho que não se originava da luz das velas.

Will piscava, mas não podia enxergar claramente; era como se um véu os separasse. Então, ouviu a voz profunda de Merriman, mais suave do que já havia escutado, porém distorcida por alguma repentina e forte tristeza.

— Senhora — disse Merriman deploravelmente. — Cuide-se, cuide-se.

Não houve resposta, no entanto Will tinha a sensação de uma benção. Então passou, e a forma alta e cintilante que era, e também não era, a velha dama, moveu-se lentamente adiante na escuridão em direção às portas, e por um Instante Will ouviu novamente a frase recorrente da música que ele nunca assimilava em sua memória, e as portas lentamente se abriram. Do lado de fora, havia uma luz acinzentada, o silêncio, e o ar estava frio.

Atrás dele, a luz do círculo de velas se esvaecera, e havia apenas a escuridão. Uma escuridão vazia e perturbadora, de modo que ele soube que o salão já não estava lá. E, repentinamente, percebeu que a luminosa silhueta dourada diante dele estava desaparecendo também, sumindo, como Fumaça que se ergue cada vez mais espessa, até que não possa ser mais vista. Por um momento, viu-se um lampejo do brilho na cor rosa do enorme anel que a velha dama portava em sua mão, e então essa imagem também diminuiu, e a sua luminosa presença desapareceu deixando apenas o nula. Will sentia uma desesperada dor de perda, como se lodo o mundo tivesse sido tragado pelas Trevas, e por isso gritou.

Uma mão tocou seu ombro. Merriman estava ao seu Indo. Eles passaram pelas portas. Lentamente, os grandes portais talhados de madeira se fecharam atrás deles, dando o tempo suficiente para que Will pudesse ver claramente que se tratavam na realidade dos mesmos portais estranhos que se lhe abriram, na inexplorada encosta bronca da Colina de Chiltern. E, no momento em que se fecharam, as portas também já não estavam mais lá. Não via nada: somente a luz acinzentada da neve que refletia o céu chuvoso. Encontrava-se de volta no mundo de florestas suprimidas pela neve, onde caminhara naquela manhã.

Ansiosamente, virou-se para Merriman:

— Onde ela está? O que aconteceu?

— Foi demais para ela. A tensão era grande demais, mesmo para ela. Nunca, eu nunca vi algo assim antes. Sua voz era grave e amarga; ele olhava irritado para o nada.

— Eles a pegaram? — Will não sabia que palavras poderia usar por causa do medo.

— Não! — disse Merriman. A palavra em resposta veio tão rápida e com tanto desprezo que poderia ter sido uma risada. — A Dama está além dos poderes deles. Além de qualquer poder. Você não fará uma pergunta dessa quando tiver aprendido um pouco. Ela partiu por um tempo, só isso. Foi a abertura das portas, diante de tudo o que as desejava fechadas. Embora as Trevas não pudessem destruí-la, elas teriam drenado suas forças, deixando-a como uma casca. Ela deve se recuperar, em um lugar distante, sozinha, e isto é ruim para nós caso precisemos dela. Como precisaremos. Como o mundo sempre precisará. — E olhou para Will sem afeição; de repente, parecia distante, quase ameaçador, como um inimigo; ele acenou com uma mão impacientemente. — Feche o casaco, garoto, antes que se congele.

Will se atrapalhou com os botões de sua pesada jaqueta; Merriman, ele via, estava agasalhado com um longo e surrado casaco azul de colarinho alto.

— Foi minha culpa, não é? — perguntou, infeliz. — Se eu não tivesse corrido, quando avistei as portas, se eu tivesse continuado segurando suas mãos e não tivesse quebrado o círculo...

Merriman respondeu rispidamente.

— Sim — depois, cedeu um pouco. — Mas isso é o que eles fazem, Will, não você. Eles influenciaram você, aproveitando de sua impaciência e esperança. Eles gostam de distorcer a boa emoção para realizar o mal.

Will permaneceu de ombros caídos, com as mãos nos bolsos, olhando para o chão. No fundo de sua mente, um canto surgiu em forma de zombaria em sua cabeça: você perdeu a Dama, você perdeu a Dama. A tristeza comprimia sua garganta; ele engoliu seco; não conseguia falar. Uma brisa soprou através das árvores, levando cristais de neve ao seu rosto.

— Will — chamou Merriman. — Eu estava zangado, perdoe-me. Rompendo o círculo dos Três ou não, os fatos seriam os mesmos. As portas são nossos portões para o Tempo, e você saberá mais sobre a utilização deles muito em breve. Mas, naquele momento, você não poderia tê-las aberto, nem eu, e talvez ninguém do círculo. Pois a força que estava pressionada contra elas era todo o poder do solstício de inverno das Trevas, que ninguém, além da Dama, poderia vencer sozinho; e mesmo ela somente o fez pagando um alto preço. Anime-se; no devido tempo, ela retornará.

Merriman puxou o colarinho alto de seu casaco, que se tornou um capuz, e cobriu a cabeça. Com os cabelos brancos escondidos, era uma figura sombria, alta e inescrutável.

— Venha — disse conduzindo o menino pela neve profunda, entre grandes faias e carvalhos carregados de folhas. Depois de certa distância, pararam numa clareira.

— Você sabe onde está? — perguntou Merriman.

Will olhou ao redor, para os bancos de neve aplainados, e para as árvores altaneiras.

— É claro que não sei — respondeu. — Como saberia?

— Porém antes de se completarem três quartos do inverno — disse Merriman — você virá de mansinho neste  pequeno vale isolado para olhar as lágrimas brancas que se amontoam em todos os lugares entre as árvores. E depois, na primavera, você retornará para ver os narcisos. Todos os dias, por uma semana, a julgar pelo último ano. Will o olhava boquiaberto.

— Você quer dizer o Solar? — perguntou. — O terreno do Solar?

Em seu próprio século, o solar do Vale do Caçador era a principal casa do vilarejo. A casa propriamente dita não podia ser vista da estrada, mas seu terreno ficava ao longo da Trilha do Vale em frente à casa dos Stanton, e estendia-se ao longo do caminho em todas as direções, rodeada alternadamente por grades altas de ferro e muros de tijolos antigos. Era propriedade da srta. Greythorne, como foi de sua família durante séculos, mas Will não a conhecia direito; raramente a via ou a seu Solar, do qual ele se lembrava vagamente como uma massa de tijolos altos em forma de coruchéu e chaminés no estilo Tudor. As flores de que Merriman falara foram um marco especial naquele ano. Pois até onde conseguia se lembrar, ele havia passado pelas grades do Solar no final do inverno para ficar naquela mágica clareira e olhar as lágrimas brancas que afugentavam o inverno, e posteriormente o crescimento dos narcisos dourados na primavera. Não sabia quem havia plantado aquelas flores e nunca vira alguém visitando o local. Nem mesmo tinha certeza se alguma outra pessoa sabia da existência delas. A imagem das flores irradiava alegria em sua mente.

Mas o surgimento de certas questões logo a rechaçou.

— Merriman? Você quer dizer que esta clareira está aqui há centenas de anos, antes de eu a ter visto pela primeira vez? E o Grande Salão, é um Solar antes do Solar, há centenas de anos? E a floresta ao nosso redor, que eu atravessei quando vi o ferreiro e o Cavaleiro... que se estende por todo lugar, tudo isso pertence...

Merriman olhou para o menino e riu, uma risada alegre, repentinamente sem o peso que pairava sobre eles — Deixe-me mostrar mais uma coisa — acrescentou, conduzindo Will pelas árvores, para longe da clareira, até que terminava a seqüência de troncos e montes de neve. E diante dele, Will pôde ver não a trilha estreita daquela manhã que esperava avistar, serpenteando o caminho através da interminável floresta de antiga multidão de árvores, mas o sentido familiar do século 21 da Trilha do Vale do Caçador e, além dele, uma trilha curta para a estrada, um vislumbre de sua própria casa. As grades do Solar encontravam-se diante deles, mas de alguma maneira reduzidas pela neve profunda; Merriman passou a perna rígida sobre elas e Will moveu-se furtivamente pelo vão que costumava usar; logo ambos já se encontravam na estrada coberta pela neve.

Merriman recolocou seu capuz novamente, e ergueu sua cabeça grisalha como se desejasse sentir o cheiro do ar deste novo século.

— Percebe, Will — disse-lhe —, nós do Círculo temos liberdade dentro do tempo. As portas são uma passagem por ele, para qualquer direção que desejarmos tomar. Pois todos os tempos coexistem, e o futuro pode algumas vezes afetar o passado, mesmo se o passado for uma estrada que conduz ao futuro... Mas os homens não podem compreender isto. Nem você compreenderá por enquanto. Nós podemos viajar pelos anos por outros meios também; um deles foi usado nesta manhã para trazê-lo de volta através de cinco séculos ou mais. Lá é onde você estava, no tempo das Florestas Reais que se estendiam sobre toda a parte sudeste desta terra desde Southampton Water até aqui no vale do Tâmisa.

Apontou da estrada até o horizonte plano, e Will se lembrou de como havia enxergado o Tâmisa duas vezes naquela manhã: a primeira vez nos campos de sua família, a segunda escondido entre as árvores. Reparava na intensidade da recordação no rosto de Merriman.

— Há quinhentos anos — continuou Merriman — os reis da Inglaterra escolheram deliberadamente preservar estas florestas, destruindo vilarejos inteiros e vilas em seu interior; assim os animais selvagens, os cervos, os javalis e mesmos os lobos poderiam se reproduzir por lá para a caça. Mas as florestas não são lugares negociáveis, e os reis estavam, sem saber disto, estabelecendo um refúgio também para os poderes das Trevas que, de outra forma, poderiam ter sido rechaçados para as montanhas e outros lugares remotos do norte... Então, lá é onde você esteve até agora, Will. Na floresta de Anderida, como costumavam chamá-la. Num passado bem distante. Você esteve por lá no início do dia, quando andava pela floresta, na neve; e na encosta vazia de Chiltern; e também quando passou pela primeira vez pelos portais... eles simbolizavam sua primeira caminhada, seu aniversário como um dos Anciãos. E lá, naquela época, foi onde deixamos a Dama. Eu gostaria de saber onde e quando a veremos novamente. Mas certamente ela voltará, quando puder. — Deu de ombros, como se desejasse se livrar do peso novamente. — E agora você pode ir para casa, pois já se encontra em seu próprio mundo.

— E você está nele também — disse Will. Merriman sorriu.

— Mais uma vez. Com uma mistura de sensações.

— Para onde você vai?

— Tratarei de alguns assuntos por aí. Eu tenho um lugar nesta época atual, assim como você. Vá para casa agora, Will. O próximo estágio nessa busca depende do Andarilho, e ele encontrará você. E quando o círculo dele estiver em seu cinto, ao lado do primeiro, eu voltarei.

— Mas — Will de repente desejava agarrar-se a ele, implorar-lhe para que não partisse. Sua casa não parecia mais uma fortaleza inacessível como sempre havia sido.

— Você ficará bem — disse Merriman gentilmente. — Viva cada coisa ao seu tempo. Lembre-se de que o poder lhe protege. Não faça nada que possa lhe causar problemas e você ficará bem. Logo deveremos nos encontrar, eu prometo.

— Tudo bem, então — aquiesceu Will sem convicção. Uma estranha rajada de vento os cercou naquela manhã tranqüila, e os flocos de neve respingaram das árvores na beira da estrada. Merriman apertou seu casaco ao redor do corpo, a barra de sua vestimenta roçava a neve; deu um olhar cortante para o menino, um misto de advertência e encorajamento; depois puxou o capuz sobre o rosto e saiu descendo a estrada sem dizer uma palavra. Logo desapareceu pela curva ao lado do Bosque das Gralhas, a caminho da Fazenda dos Dawson.

O garoto tomou bastante fôlego e correu para casa. O caminho estava silencioso na neve profunda e na manhã cinzenta; nenhum pássaro se movia ou pipilava; em todos os lugares, nada se mexia. A casa também se encontrava totalmente silenciosa. Desvencilhou-se de algumas roupas e subiu as escadas silenciosas. Ao alcançar o patamar, ficou mirando o lado de fora da casa, os telhados brancos e os campos. Nem mesmo uma grande floresta se estendia pela terra agora. A neve estava muito profunda, mas uniforme sobre os campos aplainados do vale, por todo o caminho até a curvatura do Tâmisa.

— Tá bom, tá bom — dizia James, sonolento, de seu quarto.

Por trás da porta ao lado, Robin deu um tipo de rosnado indefinível e murmurou.

— Só um minuto, estou indo.

Gwen e Margaret saíram tropeçando para fora do quarto que compartilhavam, vestindo ainda as suas camisolas e esfregando os olhos.

— Não há necessidade de berrar — disse Bárbara de forma reprovadora para Will.

— Berrar? — Olhava atentamente para a irmã.

— Acordem todos vocês! — ela repetiu num grito zombeteiro. — Quero dizer, é feriado, pelo amor de Deus.

— Mas eu... — falou Will.

— Não tem problema — disse Gwen. — Você pode perdoá-lo por querer nos acordar hoje de manhã. Afinal, tem um bom motivo para isso. — Então, avançou alguns passos e deu um beijo rápido na cabeça do menino.

— Feliz aniversário, Will — acrescentou.

 

— Dizem que vem mais neve por aí — a mulher rechonchuda com a bolsa de crochê sugeriu ao motorista do ônibus.

Ele, que era caribenho, aquiesceu com a cabeça e lançou um olhar para toda a vista ao redor.

— Tempo mais louco — exclamou. — Mais um inverno desses, eu volto para Porto de Espanha.

— Anime-se, meu bem — falou a mulher rechonchuda. — Você não verá mais neve como esta. Há sessenta e seis anos, eu vivo no Vale do Tâmisa e nunca vi desse tanto, não antes do Natal. Nunca.

— Mil novecentos e quarenta e sete — disse o homem sentado ao lado dela, um homem magro com um longo nariz pontudo. — Aquele sim foi um ano de neve. Dou minha palavra que foi. Montes mais altos que a sua cabeça, por toda a Trilha do Vale do Caçador e da Vereda do Pântano até a Câmara dos Comuns. Não se pôde sequer cruzar a Câmara por duas semanas. Precisaram recolher a neve. Ah, aquele foi um ano de neve.

— Mas não antes do Natal — disse a mulher rechonchuda.

— Não, foi em janeiro. — Aquiesceu o homem pesarosamente. — Não antes do Natal, não...

Eles poderiam ter continuado assim por todo o caminho até Maidenhead, e talvez o fizeram, mas Will subitamente percebeu que seu ponto de ônibus estava se aproximando, e logo desceria naquele indistinto mundo branco lá fora. Ficou de pé em um salto, agarrando suas caixas e sacolas. O motorista lhe apertou a campainha.

— Compras de Natal — observou.

— Ahã. Três... quatro... cinco... — Will espremeu os pacotes contra o peito e segurou firme no corrimão do ônibus que sacolejava pelo caminho. — Eu terminei as compras agora — disse. —já era tempo.

— E eu queria ter terminado — disse o motorista. — A véspera do Natal já é amanhã. Minha nossa, isso é um problema para mim, eu preciso de um clima quente para acordar.

O ônibus parou, e ele ajudou Will a se firmar enquanto descia.

— Feliz Natal, rapaz — disse o condutor. Conheciam-se das idas e vindas de Will da escola.

— Feliz Natal — disse Will. Em um impulso, gritou, enquanto o ônibus partia: — Você terá um clima quente no dia do Natal!

O motorista abriu um largo sorriso branco.

— Você vai arrumar isso? — gritou ele de volta. Talvez eu possa, pensava Will enquanto andava pela estrada principal em direção à Trilha do Vale do Caçador. Talvez eu possa. A neve era profunda até mesmo sobre as calçadas; poucas pessoas saíram de casa para pisar sobre ela nos últimos dois dias. Para Will aqueles foram dias de paz, apesar das recordações sobre o que acontecera antes. Havia passado um aniversário bem alegre, com uma festa de família tão agitada que ao cair na cama adormeceu pensando pouquíssimo sobre as Trevas. Depois disso, experimentou um dia de briga de bola de neve e tobogãs improvisados com seus irmãos, nos campos inclinados atrás da casa. Dias cinzentos, com mais neve pairando sobre suas cabeças, mas inexplicavelmente sem cair. Dias de silêncio; dificilmente um carro descia por aquele caminho, exceto a caminhonete do leiteiro e do padeiro. E as gralhas estavam quietas, somente uma ou duas voavam lentamente de um Lado para o outro sobre o bosque.

Will achava que os animais já não tinham mais medo dele. Na verdade, eles pareciam mais afeiçoados a ele do que antes. Somente Raq, o mais velho dos collies, que gostava de se sentar com o queixo descansando sobre os joelhos do menino, afastava-se bruscamente de perto dele algumas vezes sem nenhum motivo aparente, como se impulsionado por um choque elétrico. Depois, o cão saía inquieto rondando o lugar por alguns minutos, para então voltar, olhar curiosamente para o rosto do menino, e ajeitar-se confortavelmente como antes. Will não sabia o que fazer sobre isto. Tinha consciência de que Merriman saberia, mas Merriman estava fora de seu alcance.

O círculo cruzado em seu cinto permanecia quente ao toque desde que havia chegado em casa há duas manhãs. Deslizou a mão sob o casaco, naquele momento, enquanto andava, para conferir, mas o círculo estava frio; achava que isso acontecia simplesmente porque estava ao ar livre, onde tudo estava frio. Passou a maior parte da tarde comprando os presentes de Natal em Slough, a maior das cidades próximas; tratava-se de um ritual anual, no dia precedente à véspera de Natal, pois nesse dia era certo que teria ganhado dinheiro como presente de aniversário de vários tios e tias para gastar. Este, no entanto, foi o primeiro ano que ele fez compras sozinho. E estava gostando disso; era possível considerar melhor as coisas por si mesmo. O presente mais importante de todos para Stephen — um livro sobre o Tâmisa — foi comprado há bastante tempo e postado para Kingston, na Jamaica, onde seu barco estava ancorado num lugar conhecido como a Caribbean Station. Will achava que isso soava mais como um trem e decidiu que deveria perguntar ao seu amigo motorista do ônibus como Kingston era; ainda que o condutor tivesse vindo de Trinidad, talvez pudesse expressar sua sensação sobre as outras ilhas.

Sentiu novamente seus ânimos se abaterem um pouco como ocorrera nos últimos dois dias, pois, neste ano, pela primeira vez que podia se lembrar, não houve presente de aniversário de Stephen. Mas ele se desvencilhou daquela frustração pela centésima vez, com o argumento de que os correios devem tê-lo extraviado, ou o navio de repente zarpou em alguma missão urgente entre as verdejantes ilhas. Stephen sempre se lembrava e deve ter se lembrado desta vez, se algo não o impediu. Possivelmente, ele não poderia ter esquecido.

À sua frente, o Sol já estava se pondo, visível pela primeira vez desde a manhã de seu aniversário. Ardia, enorme, como uma laranja de ouro, através das frestas nas nuvens, e tudo ao redor, o mundo de neve prateada cintilava com os pequenos raios dourados de luz. Depois das acinzentadas ruas de neves derretidas da cidade, tudo ficava bonito de novo. Will se arrastou ao longo do caminho, passando pelos muros do jardim, pelas árvores e então pelo topo de uma pequena trilha sem pavimentação, quase uma estrada, conhecida como o Beco do Vagabundo, que se afastava da rua principal e finalmente se curvava para se ligar à Trilha do Vale do Caçador, perto da casa dos Stanton. As crianças a usavam como um atalho, em algumas circunstâncias. Will a olhava naquele momento e viu que ninguém usou aquele caminho desde que a neve começara a cair; mais abaixo, a trilha permanecia intacta, lisa, branca e convidativa, marcada apenas pela figura de pegadas dos pássaros. Um território inexplorado. Will achou isso irresistível.

Então, virou-se para o Beco do Vagabundo e seus passos rangiam com prazer através da clara e suave camada de neve, de modo que uma quantidade dela se agarrava , como uma franja às calças enfiadas em suas botas. Perdeu a visão do Sol em um determinado momento, bloqueado por um bosque que se encontrava entre a pequena trilha e algumas casas beirando o topo da Trilha do Vale do Caçador.

Enquanto pisava duro sobre a neve, apertou seus embrulhos no peito, contando-os novamente: a faca de Robin;  couro de camurça para Paul, para limpar sua flauta; o diário para Mary; os sais de banho para Gwennie; as canetas pilot superespeciais Max. Todos os outros presentes já haviam sido comprados e embalados. Natal é uma festa complicada quando se tem oito irmãos.

Não demorou, o caminho pelo beco se tornou menos divertido do que esperava. Os tornozelos de Will doíam devido à força empreendida para andar chutando a neve do caminho. Os embrulhos eram inoportunos para carregar. O brilho dourado-avermelhado do Sol já se extinguira em um Céu nublado. Sentia fome e frio.

Àrvores surgiam altas à sua direita, principalmente olmos e algumas faias. Do outro lado da trilha havia um extenso terreno baldio, transformado pela neve de bagunçada coleção de erva daninha e mato em uma paisagem de brancas encostas íngremes e depressões abrigadas do Sol. Tudo ao redor dele, depositado e espalhado sobre a trilha coberta de neve, os gravetos e os pequenos ramos, foi derrubado das árvores pelo peso da neve. Logo adiante, Will viu um ramo caído pelo caminho e olhou apreensivo para cima, perguntando-se quantos outros galhos mortos dos grandes olmos estavam aguardando pelo vento ou pelo peso da neve para despencar no chão. Uma boa época para recolher madeira para a lareira, pensava, e subitamente teve uma imagem tentadora do fogo crepitante que ardia na lareira do Grande Salão: o fogo que havia mudado seu mundo, ao se extinguir pelas palavras de sua ordem e ao voltar obedientemente a arder para a vida novamente.


Enquanto se arrastava ao longo da neve fria, uma repentina e alegre idéia surgiu em sua mente sob o pensamento daquele fogo e parou, sorrindo para si mesmo. Você vai arrumar isto? Bem, não, amigo, eu provavelmente não posso providenciar um dia quente de Natal, mas eu posso aquecer as coisas por aqui, agora. Olhou confiante para o galho seco diante dele e, com um simples comando do dom que sabia possuir em si mesmo, disse de forma suave e travessa: — Queime!

E lá sobre a neve, o galho caído da árvore envolveu-se em chamas. Cada centímetro, da espessa base apodrecida ao menor graveto, ardia sob uma língua de fogo amarelada. Ouviu-se um som sibilante e um longo raio de luz brilhante se ergueu do fogo como um pilar. Nenhuma fumaça era emitida das partes queimadas e as chamas eram constantes; alguns gravetos que deveriam ter incendiado e crepitado rapidamente e então virado cinza persistiam em queimar, como se alimentados por outro combustível em seu interior. Ficando ali, sozinho, Will se sentiu repentinamente pequeno e assustado; não se tratava de um fogo comum, que poderia ser controlado por meios comuns. Não agia de maneira nenhuma do mesmo modo como o fogo da lareira. E o menino não sabia como agir em relação a isso. Em pânico, concentrou-se sobre as chamas novamente e ordenou que apagassem, mas a madeira continuou queimando, constantemente como antes. Ele sabia que havia agido de maneira tola, inapropriada, e talvez perigosa. Olhando pelo pilar que tremulava luz, pôde ver lã no alto, no céu cinzento, quatro gralhas batendo suas asas lentamente em um círculo.

Ai, Merriman, pensava descontente, onde você está? Então, soltou um grito sufocado, quando por trás alguém o agarrava bloqueando o chute de seus pés em um amontoado de neve, e trazendo seus braços pelos pulsos para as costas. Os pacotes se espalharam pela neve. Gritava sentindo dor em seus braços. A pressão sobre o punho do menino relaxou, como se o agressor estivesse relutante em causar- lhe realmente algum mal; mas Will continuava ainda firmemente preso.

― Apague o fogo! — disse uma voz rouca em seus ouvidos, urgentemente.

― Eu não consigo! — disse Will. — Sinceramente, eu tentei, mas não consigo.

O homem praguejou e murmurou de forma estranha, e instantaneamente Will soube quem ele era. O terror que sentia se dissipou como se tivesse ficado livre de um peso.

― Andarilho — disse ele —, deixe-me em paz. Você não deve me segurar desse jeito.

A pressão se intensificou novamente: — Ah, não, não você, garoto. Eu conheço seus truques. Você é aquele, tudo bem, eu sei agora, você é um Ancião, mas eu não confio na sua espécie tanto quanto não confio nas Trevas. Você acabou de despertar, sim, e não pode fazer nada a ninguém a menos que possa vê-lo com seus olhos. Então, você não me verá, disso eu sei.

Will replicou.

— Eu não quero fazer nada a você. Realmente existem pessoas dignas de confiança, você sabe.

— Pouquíssimas — disse o Andarilho amargamente.

— Eu poderia fechar meus olhos, se me soltasse.

— Ora! — reagiu o velho. Will então falou:

— Você carrega o segundo Signo. Entregue-o para mim. — Ambos ficaram em silêncio. O menino sentia as mãos do homem desvencilharem-se de seus braços, mas permanecia no mesmo lugar e não se virou. — Eu já tenho o primeiro Signo, Andarilho — continuou. — Você sabe que eu tenho. Olhe, eu estou desabotoando a minha jaqueta e vou afastá-la, e você poderá ver o primeiro círculo em meu cinto.

Afastou a jaqueta e sem mover a cabeça tinha consciência da forma corcunda do Andarilho passando para o seu lado. O fôlego do homem sibilava por entre seus dentes em um longo suspiro enquanto ele olhava, e logo virou-se para Will sem cautela. Na luz amarelada do galho continuamente em chamas, o menino viu o rosto contorcido por emoções conflitantes: esperança, medo, alívio ligados firmemente pela angustiante incerteza.

Quando o homem falou, sua linguagem era simplória e deficiente como a de uma pequena e triste criança.

— É tão pesado — disse melancolicamente. — Eu o tenho carregado por tanto tempo. E eu já nem me lembro por quê. Sempre amedrontado, sempre tendo que fugir. Se pelo menos eu pudesse me livrar disto, se pelo menos eu pudesse descansar. Ah, se pelo menos acabasse. Mas não ouso dar isto à pessoa errada, não ouso. As coisas que aconteceriam comigo se eu fizesse isso seriam terríveis, e não podem ser colocadas em palavras. Os Anciãos podem ser cruéis, cruéis... Acho que você é a pessoa certa, garoto, e tenho procurando por você há muito tempo... hã muito tempo... para entregar o Signo. Mas como eu posso ter certeza? Como eu posso ter certeza de que você não é um truque das Trevas?

O homem viveu amedrontado por tanto tempo, pensava Will, que havia se esquecido de como parar de sentir medo. Que horror, ficar tão absolutamente sozinho. Ele não sabe como confiar em mim; faz tanto tempo que confiou em alguém, que se esqueceu como...

— Olhe — disse gentilmente. — Você deve saber que eu não faço parte das Trevas. Pense. Você viu o Cavaleiro tentando me abater.

Mas o velho balançava a cabeça lamentavelmente, e Will se lembrou de como ele se alarmara gritando na clareira no momento em que o Cavaleiro apareceu.

― Bem, se isso não ajuda — disse o menino. — O fogo não diz nada pra você?

― O fogo, quase — respondeu o Andarilho. Olhou para as chamas, esperançoso; em seguida, seu rosto se contorceu alarmado. — Mas o fogo, o fogo os trará, garoto, você sabe disso. As gralhas já estão dando a direção. E como eu saberei se você acende o fogo porque é um Ancião que acabou de despertar fazendo brincadeirinhas, ou porque está fazendo um sinal para trazê-los até mim? — Gemia para si mesmo em agonia, e apertou os braços em volta de seu ombro. O homem era uma coisa deplorável, pensava Will com compaixão. Mas, de alguma maneira, ele precisava ser convencido.

Will olhou para cima. Havia mais gralhas circulando preguiçosamente, e podia ouvi-las chamando asperamente umas pelas outras. Teria o velho razão, seriam os pássaros pretos mensageiros das Trevas? — Andarilho, por tudo o que é mais sagrado — dizia impaciente —, você deve confiar em mim. Se não confiar em alguém apenas uma vez e por tempo suficiente para lhe entregar o Signo, terá que carregá-lo para sempre. É o que deseja?

O velho mendigo gemeu e murmurou, olhando para o menino com seus pequenos olhos ensandecidos; parecia preso em séculos de desconfiança como uma mosca em uma teia. Mas a mosca ainda tinha asas que podiam romper a teia, dando-lhe forças para se agitar, apenas uma vez... Levado por alguma parte desconhecida de sua mente, sem saber bem o que estava fazendo, Will segurou o círculo de ferro em seu cinto, endireitou-se o mais ereto e alto possível, apontou o objeto para o Andarilho e o chamou:

O último dos Anciãos chegou, Andarilho, e é chegada a hora. O momento de entregar o Signo é agora, agora ou nunca. Pense somente que nenhuma outra oportunidade surgirá. Agora, Andarilho. A menos que você carregue isto para sempre; obedeça aos Anciãos agora. Agora.

Foi como se aquelas palavras liberassem uma mola. Em um instante, todo o medo e desconfiança no rosto velho e contorcido relaxaram em uma obediência infantil. Com um sorriso quase de uma ansiedade tola, o Andarilho se atrapalhava com a alça larga de couro que portava na diagonal de seu peito, retirando um círculo quartejado idêntico àquele que Will carregava em seu cinto, mas resplandecendo com o brilho opaco nos tons marrom-dourado do bronze; colocou o objeto nas mãos de Will e soltou uma gargalhada alta e curta de estupefata satisfação.

O galho flamejante sobre a neve diante deles incendiou-se de repente ainda mais brilhante e depois apagou. Permaneceu caído assim como estava quando Will chegou ao beco: cinza, sem qualquer indício de queima, frio, como se nenhuma parte dele tivesse sido tocada por uma centelha de chama. Apertando o círculo de bronze, Will olhava para a rígida casca da madeira, deitada ali sobre a neve intacta. Agora que seu fogo se extinguira, o dia parecia subitamente muito mais escuro, cheio de sombras, e ele percebeu com um choque o quão pouco da tarde ainda restava. Já estava tarde. Deveria partir. Mas uma voz ecoou nitidamente das sombras adiante: — Olá, Will Stanton.

O Andarilho gritou aterrorizado, emitindo um som agudo e feio. Will enfiou o círculo de bronze rapidamente em seu bolso e adiantou-se, rígido. Depois, quase se sentou aliviado sobre a neve quando viu que o recém-chegado era apenas Maggie Barnes, a leiteira da fazendo dos Dawson. Nada de sinistro sobre Maggie, a admiradora de Max, com bochechas como maçã. Sua silhueta rechonchuda estava toda escondida pelo casaco, botas e cachecol; ela carregava uma cesta tampada e dirigia-se para a rua principal. Ela sorriu para Will e depois olhou acusadoramente para o Andarilho.

— Por que — disse ela, com seu sotaque de Buckinghamshire — estaria este velho mendigo andando por aí nestes últimos quinze dias? O dono da fazenda disse que Queria vê-lo pelas costas, velho. Ele estava importunando você, jovem Will? Aposto que estava. — Ela observava o Andarilho, que se encolheu de repente em sua capa suja, semelhante a um casaco.

― Ah, não — disse Will. — Eu só tinha acabado de saltar do ônibus de Slough e topei com ele. Realmente topei. E dei- xei cair todas as minhas compras de Natal — acrescentou asperamente, inclinando-se para recolher os embrulhos e pacotes que ainda permaneciam espalhados pela neve.

O Andarilho fungou, encolhendo-se ainda mais dentro de sua capa, e tentou atravessar para o outro lado de Maggie, em direção ao alto da trilha. Mas quando ficou à mesma altura dela, parou abruptamente, fazendo um movimento brusco para trás como se tivesse batido contra uma barreira invisível. Ele abriu a boca, mas não emitiu som nenhum. Will endireitou-se lentamente, observando, com os braços cheios de embrulhos. Uma sensação terrível de apreensão começou a surgir dentro dele, como a triagem de uma brisa gelada.

Maggie Barnes disse amavelmente: — Faz tempo que o último ônibus de Slough passou, jovem Will. Na realidade, estou indo pegar o próximo. Você sempre leva meia hora para caminhar os cinco minutos de caminhada do ponto do ônibus, Will Stanton?

― Não acho que seja assunto seu saber quanto tempo eu levo para fazer alguma coisa — respondeu Will. Observava o Andarilho paralisado, e algumas imagens muito confusas rodopiavam em sua cabeça.

― Modos, modos — disse Maggie. — Para um garotinho tão bem-educado como você, também. — Os olhos dela brilhavam muito, fitando atentamente Will de seu cachecol enrolado na cabeça.

— Bem, adeus, Maggie — disse Will. — Tenho que ir pra casa. O chá já deve estar pronto.

— O problema com mendigos sujos e desagradáveis, como este aqui com o qual você acabou de se encontrar, mas que não o está incomodando — prosseguiu Maggie Barnes com suavidade, sem se mover —, o problema com eles é: eles roubam coisas. E este aí roubou uma coisa, dias atrás, da fazenda, jovem Will, uma coisa que me pertencia. Um ornamento. Um tipo grande de ornamento de cor marrom-dourada com o formato de um círculo que eu usava em uma corrente em volta do pescoço. Quero isso de volta. Agora. — As últimas palavras soaram ameaçadoras e, depois, a moça retomou a suavidade, como se sua voz gentil nunca tivesse sofrido alteração. — Eu quero de volta, quero sim. E eu realmente acho que ele pode ter enfiado isso no seu bolso quando não estava olhando, quando esbarrou nele, caso ele tivesse me visto chegar, como poderia ter feito muito bem sob a luz dessa pequena e divertida fogueira aqui. O que você acha disso tudo, jovem Will Stanton, hein?

Will engoliu seco. Seus cabelos se arrepiavam na parte de trás do pescoço enquanto a ouvia. E ela continuava ali, fitando com o mesmo olhar de sempre, com as bochechas rosadas, como uma garota de fazenda sem complicações que manuseava a máquina de ordenha dos Dawson e criava os bezerros menores; e além do mais, a mente de onde surgiam aquelas palavras podia ser nada menos do que a mente das Trevas. Teriam eles roubado Maggie? Ou Maggie sempre foi uma deles? Se fosse assim, o que mais ela poderia fazer?

Ele permaneceu encarando a moça, uma mão apertando seus embrulhos e a outra deslizando cautelosamente por seu bolso. O Signo do Bronze estava frio, frio ao toque. Ele convocou todo o poder que achava que pudesse encontrar para afastá-la e, mesmo assim, ela ainda continuava lá, sorrindo-lhe friamente. Will ordenava que ela partisse era nome de todos os poderes que podia lembrar sendo usados por Merriman: da Dama, do Círculo, dos Signos. Mas sabia que não tinha as palavras certas para dizer. E Maggie riu alto .avançando deliberadamente, encarando-o; e Will percebeu que não conseguia mover um músculo sequer.

Foi pego, paralisado assim como o Andarilho; fixo, imóvel numa posição que não conseguia mudar nem mesmo um centímetro. O menino olhava furiosamente para Maggie Barnes, agasalhada pelo cachecol vermelho e casaco preto modesto, enquanto a moça calmamente deslizava a mão pelo bolso do casaco do menino e retirava o Signo de Bronze. Depois, ela ficou de frente para o rosto dele, e então rapidamente desabotoou-lhe o casaco e ligeiramente arrancou o cinto de suas calças, para em seguida alinhar o círculo de bronze próximo ao de ferro.

— Segure as calças, Will Stanton — disse ela zombeteiramente. — Ah, meu Deus, agora você não pode, ou pode... mas então você realmente não usa o cinto para segurar as calças, usa? Você o coloca para guardar esta pequena... decoração... a salvo. — Will percebeu que a moça segurava os dois Signos tão levemente quanto possível, e estremeceu quando ela precisou tocá-los com mais firmeza; o frio que deles emanava deveria certamente estar queimando até seus ossos.

Ele observava em total desespero. Não havia nada que pudesse fazer. Todo o seu esforço e busca estavam chegando ao fim antes mesmo de ter começado de maneira apropriada, e não havia nada que pudesse fazer. Desejava tanto gritar de raiva quanto chorar. E então, lá no fundo, alguma coisa causou um alvoroço em sua mente. Algum detalhe de sua memória que surgia, mas ainda não conseguia assimilar o que era. Lembrou-se apenas no momento em que Maggie Barnes estendeu o cinto diante dele com o primeiro e o segundo círculos alinhados, ferro opaco e reluzente bronze lado a lado. Fitando avidamente os dois objetos, Maggie irrompeu em um gorgolejo de gargalhada desdenhosa que soava ainda mais malévolo pela boca de sua face rosada. E Will se lembrou:

.... quando o círculo dele estiver em seu cinto, ao lado do primeiro, eu voltarei...

Naquele momento, as labaredas do fogo ressurgiram no galho do olmo caído, o qual Will havia rapidamente acendido antes, e as chamas crepitavam de lugar nenhum em um círculo de luz branca queimando por todos os lados de Maggie Barnes — um círculo de luz mais alto que sua cabeça. Ela se agachou subitamente na neve, encolhendo-se, boquiaberta de medo. O cinto com os dois Signos alinhados caiu de sua mão frouxa.

E lá estava Merriman. Alto em seu longo casaco preto, com a face escondida nas sombras de seu capuz; lá estava ele na margem da rua, um pouco distante do círculo flamejante e da garota agachada.

— Leve-a desta estrada — disse ele com a voz nítida e alta, e o círculo ardente de luz moveu-se lentamente para um lado, forçando a garota Maggie a mover-se cambaleando com ele, até que pairou sobre o solo firme próximo à estrada. Em seguida, com um abrupto estalo, desapareceu; e Will notou no lugar uma grande barreira de luz reluzindo dos dois lados do caminho, margeando o lugar com o fogo flamejante, estendendo-se em uma longa distância em ambas as direções — mais longa do que a própria extensão da trilha que Will conhecia como Beco do Vagabundo. Continuou olhando, um pouco assustado. Longe da claridade, podia ver Maggie Barnes rastejando deploravelmente na neve, com os braços protegendo seus olhos da luz. Mas ele, Merriman e o Andarilho se encontravam em um interminável túnel de chamas frias e brancas.

Will se curvou para recolher o cinto e, num tipo de retribuição pelo alívio, apertou os dois Signos em suas mãos, ferro na mão esquerda, bronze na direita. Merriman aproximou-se do seu lado, ergueu o braço direito de modo que o casaco balançou como a asa de um pássaro enorme e apontou um dedo longo para a moça. Gritou um nome comprido e estranho, que Will nunca havia ouvido antes e não pôde guardar em sua mente, e Maggie gemeu alto.

Merriman bradou, com desprezo cortante em sua voz:

Volte e diga-lhes que os Signos estão fora de alcance. E Be você permanecer ilesa, não tente novamente fazer a sua vontade enquanto estiver em um de nossos Caminhos. Pois as antigas estradas estão acordadas e seus poderes ressurgiram novamente. Neste momento, elas não terão misericórdia nem remorso. — Falou o estranho nome mais uma vez, e as chamas margeando a estrada subiram ainda mais alto, e a garota gritou alto e esganiçado como se estivesse sentindo imensa dor. Então, ela partiu se arrastando pelos campos cobertos de neve, como um animal pequeno e encurvado.

Merriman olhou para Will. — Lembre-se de duas coisas que salvaram você — disse-lhe, a luz cintilando agora sobre seu nariz bicudo e olhos profundos sob o capuz, protegidos da luz. — Primeiro, eu conhecia o nome verdadeiro dela. A única maneira para desarmar uma das criaturas das Trevas é chamando-a pelo seu nome verdadeiro: nomes que elas mantêm em grande segredo. E, assim como o nome, havia a estrada. Você sabe o nome desta trilha?

— Beco do Vagabundo — respondeu Will automaticamente.

— Este não é o verdadeiro nome — retrucou Merriman com desagrado.

— Bem, não. Minha mãe nunca o usou, e nós não devíamos usá-lo. É feio, disse ela. Mas nenhuma outra pessoa que eu conheço já a chamou de outra coisa. Eu me sentiria um idiota se a chamasse de Velha Estrada. — Will parou de repente, ouvindo e provando o nome apropriadamente pela primeira vez em sua vida. E retomou lentamente: — Se eu a chamasse por seu nome verdadeiro, Trilha da Velha Estrada...

— Você se sentiria um idiota — disse Merriman desalentado. — Mas o nome que o fez se sentir um idiota ajudou a salvar sua vida. Trilha da Velha Estrada. Sim. E não foi nomeada Velha Estrada por algum distante senhor. O nome simplesmente nos diz o que a estrada é, como os nomes das ruas e lugares de terras antigas fazem com muita freqüência, se os homens ao menos lhes dessem mais atenção. Foi sorte você se encontrar justamente em uma das Estradas Velhas, pisadas pelos Anciãos por três mil anos, quando você fazia suas brincadeirinhas com o fogo, Will Stanton. Se você estivesse em qualquer outro lugar, em seu estado despreparado quanto ao seu poder, você teria se colocado numa situação tão vulnerável que as Trevas presentes nestas terras teriam sido conduzidas até você. Assim como a garota-feiticeira foi conduzida pelos pássaros. Olhe atentamente para esta estrada agora, garoto, e não a chame por nomes comuns novamente.

Will engoliu seco e fitou a estrada com suas margens em chamas se estendendo em distância como algum nobre caminho do Sol e, num impulso repentino, fez-lhe uma pequena e desajeitada reverência, curvando-se desde a cintura, da maneira como seus braços cheios de pacotes o deixavam. As chamas aumentaram novamente, e se inclinavam para dentro, quase como se o estivessem reverenciando em resposta. Depois se apagaram.

— Muito bem — disse Merriman, com surpresa e um toque de divertimento.

Will falou então: — Eu nunca, nunca novamente farei qualquer coisa com o... o poder, a menos que haja uma razão. Eu prometo. Pela Dama e o mundo antigo. Mas... — ele não conseguia resistir — Merriman, foi o fogo que acendi que trouxe o Andarilho até mim, não foi? E o Andarilho tinha o Sinal.

— O Andarilho estava esperando por você, garoto estúpido — disse Merriman irritado. — Eu disse que ele o encontraria e você não se lembrou. Lembre-se agora. Nesta nossa magia, cada palavra, por menor que seja, tem um peso e um significado. Cada palavra que eu digo, ou que Algum outro Ancião possa dizer. O Andarilho? Ele estava aguardando pelo seu nascimento e pelo momento em que ficasse sozinho com ele para lhe entregar o Signo, e isto ocorreu por mais tempo do que possa imaginar. Você agiu bem, eu diria, foi um problema convencê-lo a entregar o Signo quando chegou a hora. Pobre alma. Ele traiu os Anciãos certa vez, há muito tempo, e esta foi sua sentença. — A voz dele suavizou um pouco. — Foi uma era difícil para ele, carregar o segundo Signo. Ele tem mais uma parte em nosso trabalho, antes que possa descansar, caso prefira isso. Mas não é para agora.

Ambos viram a figura imóvel do Andarilho, que continuava paralisado em seus movimentos do lado da estrada, como Maggie Barnes o havia deixado.

— Esta é uma posição terrivelmente desconfortável — disse Will.

— Ele não sente nada — disse Merriman. — Nem mesmo um músculo ficará dolorido. Os Anciãos e o povo das Trevas têm alguns pequenos poderes em comum, e um deles é este de prender um homem fora do Tempo, pela duração que for necessária. Ou no caso das Trevas pela duração que eles acharem divertida.

Ele apontou um dedo para a silhueta sem forma e imóvel e falou algumas suaves e rápidas palavras que Will não ouviu, e o Andarilho relaxou de volta à vida como uma figura em um filme que teve uma pausa e recomeçou novamente. Observando com os olhos esbugalhados, olhou para Merriman, abriu a boca e emitiu um curioso e seco som sem palavras.

— Vá — disse Merriman. O velho partiu encolhido, apertando a roupa ao redor do corpo, atrapalhado em uma quase corrida, subindo a passagem estreita. Observando-o partir, Will piscou, depois fixou com mais atenção e esfregou os olhos, pois o Andarilho parecia estar desaparecendo, dissipando-se cada vez mais, de modo que era possível ver as árvores através de seu corpo. Então, de uma só vez, desapareceu, como uma estrela ocultada pelas nuvens.

Merriman acrescentou: — Meu dever, não o dele. Ele merece paz por enquanto, eu acho, em outro lugar. Este é o poder das Estradas Velhas, Will. Você teria usado este segredo para escapar da garota feiticeira, tão facilmente, se soubesse como. Mas ainda vai aprender isso, e os nomes corretos e muitas outras coisas logo, logo.

Will perguntou com curiosidade: — Qual é o seu nome correto?

Os olhos negros brilharam-lhe para de dentro do capuz.

— Merriman Lyon. Eu disse quando nos conhecemos.

— Mas eu acho que se este fosse seu nome verdadeiro, como um Ancião, você não teria me contado — replicou Will. — De forma alguma, não tão alto.

— Você já está aprendendo — disse Merriman com alegria. — Venha, está ficando escuro.

Partiram juntos descendo o caminho. Segurando firmemente suas sacolas e caixas, Will andava apressado ao lado da figura vestida com um manto, que insistia em andar a passos largos. Conversaram pouco, mas a mão de Merriman estava sempre atenta para pegá-lo caso tropeçasse em algum buraco ou depressão. Enquanto saíam, na curva afastada da trilha de maior largura da Trilha do Vale do Caçador, Will avistou seu irmão Max vindo rapidamente na direção deles.

— Olhe, é o Max!

— Sim — disse Merriman. Max chamou, acenando alegremente, e então se aproximou.

— Eu já estava indo encontrá-lo do ponto de ônibus — Nossa mãe já estava quase enlouquecendo porque seu bebezinho estava atrasado.

— Ah, pelo amor de Deus — disse Will. — Por que você está vindo por este caminho? — acenou Max na direção do Beco do Vagabundo.

— Nós estávamos apenas... — começou Will, e enquanto virava sua cabeça para incluir Merriman em seu comentário, parou tão abruptamente que chegou a morder a língua.

Merriman havia partido, sem deixar qualquer tipo de vestígio na neve onde se encontrava alguns momentos antes. E quando Will olhou o caminho que tinham atravessado pela Trilha do Vale do Caçador e para o topo da curva abaixo da trilha menor, conseguiu ver apenas uma trilha de pegadas — as suas próprias.

O menino pensou ter ouvido uma música cristalina e distante, em algum lugar no ar, mas mesmo enquanto erguia sua cabeça para escutar, também já não estava mais lá.


 

                                               VÉSPERA DE NATAL 

 

Véspera de Natal. Era o dia em que as alegrias do Natal realmente pegavam fogo na família Stanton. Pistas, promessas e esperanças de coisas especiais, que surgiram subitamente e iluminaram as semanas anteriores, agora de repente floresciam em uma expectativa alegre e constante. A casa estava cheia de maravilhosos cheiros de coisas assadas que exalavam da cozinha, em um canto onde Gwen poderia ser encontrada dando os toques finais ao glacê do bolo de Natal. Sua mãe havia feito o bolo há três semanas e o pudim de Natal, três meses antes disto. Imutáveis, as músicas natalinas conhecidas permeavam a casa sempre que alguém ligava o rádio. A televisão nunca era ligada; e havia se tornado, naquela época, algo irrelevante. Para Will, o dia conferia a si mesmo um enfoque natural desde cedo. Logo depois do café-da-manhã — um assunto ainda mais que o normal — seria dado andamento ao duplo ritual da lenha Yule e da árvore de Natal.

O sr. Stanton estava terminando sua última torrada. Will e James ficavam um de cada lado dele à mesa do café, sem parar quietos. O pai pegou uma casquinha esquecida em uma das mãos enquanto folheava as páginas de esporte do jornal. Will também era fervorosamente interessado na sorte do Clube de Futebol Chelsea, mas não na manhã da véspera do Natal.

— O senhor gostaria de mais torrada, papai? — disse ele em voz alta.

— Hum — murmurou o sr. Stanton.

— Ah! — disse James. — Quer mais chá, papai?

O sr. Stanton olhou para cima, girou o rosto redondo de olhar terno de um lado para o outro e sorriu. Colocou o papel sob a mesa, terminou a xícara de chá e enfiou o pedaço de torrada na boca.

— Vamos lá, então — disse ele indistintamente, tomando cada filho por uma orelha. Eles uivaram alegremente e correram para pegar as botas, jaquetas e lenços.

Logo estavam descendo a estrada com o carrinho de mão: Will, James, o sr. Stanton e o alto Max, mais alto que seu pai, mais alto que qualquer outra pessoa, deixando sobressair de um velho e vergonhoso boné seu longo cabelo preto em uma franja um tanto engraçada. O que Maggie Barnes pensaria disto, perguntou-se Will alegremente, quando a moça surgisse, maliciosamente como sempre, perto da cortina da cozinha para flagrar os olhos de Max; e então, no mesmo instante, ele se lembrou de Maggie Barnes e pensou com pressa, alarmado: O fazendeiro Dawson é um dos Anciãos, ele deve ser avisado sobre ela — e estava desesperado por não ter pensado nisto antes.

Eles pararam no quintal dos Dawson; o Velho George Smith veio saudá-los com seu enorme sorriso. A ida havia sido mais fácil pela estrada naquela manhã, desde que a retirada de parte da neve foi executada, mas, para todos os lados, ela ainda permanecia constantemente imóvel em um gelo cinzento, desprovida de vento.

— Arrumei uma árvore para abater! — informou Velho George alegremente. — Reta como um mastro, igual à do dono da fazenda. As duas são árvores Reais, eu reconheço uma.

— Reais como de onde vêm — disse o sr. Dawson, tirando seu casaco apertado enquanto saía. Ele quis dizer exatamente isso, sabia Will: todo ano, um número de árvores de Natal era vendido da plantação da Coroa ao redor do Castelo de Windsor e várias delas eram transportadas no caminhão da fazenda dos Dawson para o vilarejo.

— Bom dia, Frank — disse o sr. Stanton.

— Dia, Roger — disse o fazendeiro Dawson, e sorriu para os garotos. — Ei, rapazes! Dêem a volta com o carrinho. — Seus olhos passaram impessoais sobre Will, sem nada mais do que um lampejo de percepção, mas o garoto deixou sua jaqueta aberta de propósito, de forma que ficasse claro que naquele momento havia dois Signos do círculo cruzado em seu cinto, não apenas um.

— Bom vê-los tão vivazes — disse o sr. Dawson para todos, enquanto eles colocavam o carrinho atrás do celeiro; sua mão descansou brevemente no ombro de Will com uma discreta pressão, dizendo-lhe que o fazendeiro Dawson fazia uma boa idéia do que estava acontecendo nos últimos dias. Ele pensou em Maggie Barnes e buscou insistentemente palavras que pudessem mascarar o aviso.

— Onde está a sua namorada, Max?— disse-lhe, cuidadosamente alto e claro.

— Namorada? — Max perguntou indignado. O rapaz estava profundamente envolvido com uma estudante de sua Escola de Arte de Londres que usava os cabelos loiros em uma trança, e de quem chegava uma enorme quantidade de cartas em envelopes azuis pelo correio todos os dias, o que o deixava totalmente desinteressado pelas garotas locais.

— Ora, ora, ora — disse Will, esforçando-se. — Você sabe.

Felizmente, James era fã desse tipo de coisa e se juntou a ele com entusiasmo.

— Maggie-maggie-maggie — cantava jocoso. — Oh, Maggie. A doce ordenhadora e Maxie, o grande artista, oooh-oooh... — Max socou o irmão na costela e caiu numa risada fungando.

— A jovem Maggie precisou nos deixar — disse o sr. Dawson friamente. — Doença na família. Precisavam dela em casa. A moça fez as malas e partiu cedo pela manhã. Desculpe desapontá-lo, Max.

— Não estou desapontado — o menino retrucou, ficando vermelho. — Isso é coisa desse estúpido...

— Oooooh-oooooh — cantava James, dançando ao redor, fora do alcance dos braços cumpridos de Max. — Oooh, pobre Maxie, perdeu sua Maggie.

Will não disse nada. Estava satisfeito com o que ouvira.

O enorme pinheiro, com seus galhos amarrados para baixo pelas faixas de corda branca de pêlos, foi transportado para dentro do carrinho de mão, junto da velha raiz torcida de uma faia que o fazendeiro Dawson tinha cortado mais cedo naquele ano, partido ao meio e separado para fazer lenha de Yule, para si mesmo e para os Stanton. Tinha que ser a raiz de uma árvore, não um galho, sabia Will, embora ninguém jamais tivesse explicado o motivo. Em casa, naquela noite, eles depositariam a lenha no fogo, na enorme lareira de tijolos da sala de estar, e ela iria queimar lentamente até a madrugada, quando todos iriam para a cama. Em algum lugar estocado, encontrava-se um pedaço da lenha de Yule do ano anterior, guardado para ser usado como cavaco para acender o fogo para seu sucessor.

— Aqui — disse Velho George, aparecendo de repente do lado de Will enquanto eles empurravam o carrinho para fora da porteira. — Vocês precisam ter alguns destes aqui.

— Ele acrescentou um enorme ramo de azevinho, cheio de frutinhas.

— Muita gentileza sua, George — agradeceu o sr. Stanton.

— Mas nós temos desta árvore de azevinho na frente da porta de casa. Se souber de alguém que não tenha...

— Não, não, pode levar. — O velho acenou negativamente com o dedo. — Não tem nem metade de tanta frutinha nesse seu arbusto. Este é o azevinho especial. — Ele deitou o ramo cuidadosamente no carrinho, depois partiu rapidamente um broto e o enfiou na última casa de botão do casaco de Will. — E uma boa proteção contra as Trevas — a velha voz disse baixinho nos ouvidos do menino —, se pregada sobre a janela e sobre a porta. — Então, o sorriso de gengivas rosadas dividiu seu rosto moreno e enrugado em um grasnido de gargalhada antiga e o Ancião voltava a ser o Velho George novamente, acenando-lhes. — Feliz Natal!

— Feliz Natal, George!

Enquanto eles carregaram a árvore cerimonialmente à frente da casa, os gêmeos a fixaram com tábuas cruzadas e chave de fenda, fornecendo assim uma base de apoio. Na outra extremidade do aposento, Mary e Bárbara estavam sentadas sobre um monte de papéis coloridos, cortando-os em faixas vermelhas, amarelas, azuis e verdes, para depois colá-las em círculos interligados pelas correntes de papel.

— Vocês deveriam ter feito isso ontem — disse Will. — Elas precisam de tempo para secar.

— Você deveria ter feito isto ontem — respondeu Mary ressentida, jogando para trás seus cabelos longos. — Isto deveria ser trabalho do mais novo.

— Eu cortei um monte de faixas dias atrás — disse Will. — Nós as usamos há algumas horas.

— Eu sim as cortei, todas iguais.

— Além disso — disse Bárbara tranqüilamente —, ele estava fazendo compras de Natal ontem. Então é melhor você se calar, Mary, ou ele pode decidir tomar seu presente de volta.

Mary murmurou, mas cedeu, e Will não muito entusiasmado colou algumas correntes de papel. Entretanto, mantinha um olho sobre a porta de entrada e, quando viu seu pai e James aparecerem com seus braços cheios de velhas caixas de papelão, saiu furtivamente atrás deles. Nada o impediria de decorar a árvore de Natal.

De dentro das caixas surgiam todos os enfeites conhecidos que transformariam a vida da família em uma festa por doze noites e dias: a figura de cabelos dourados para o topo da árvore; as faixas de luzinhas coloridas. Depois havia as três frágeis bolas de vidro de Natal, cuidadosamente guardadas durante anos. Meias esferas espiraladas como conchas marinhas vermelhas e verde-douradas; elegantes lanças de vidro e teias de aranha feitas de gotas e fios de vidro cintilante e todos eles seriam gentilmente pendurados e ligados sobre os ramos escuros da árvore, para reluzir no ambiente.

Havia outros tesouros. Pequenas estrelas douradas e círculos de palha trançada, luzes e sinos de papel prateado plissado. Em seguida, uma miscelânea de enfeites feitos por diversas crianças Stanton, variando desde a rena do limpador de cachimbo de Will até uma linda cruz filigranada que Max havia fabricado de fio de cobre em seu primeiro ano na escola de artes. E havia as faixas natalinas para serem pregadas em algum espaço livre, e só então a caixa estaria vazia.

Mas não tão vazia assim. Passando seus dedos cautelosamente pelo amontoado de papel de embalagem esfarelado, Will encontrou em um recipiente de papelão aproximadamente tão alto quanto ele uma caixa plana pequena, não tão mais larga que sua mão. E que chacoalhava.

— O que é isto? — disse ele curiosamente, tentando abrir a tampa.

— Bons céus — disse a sra. Stanton de sua poltrona situada no centro da sala. — Deixe-me ver isso um instante, querido. Seria... sim, é sim! Estava na caixa grande? Eu pensei que a tinha perdido há alguns anos. Olhe só pra isso, Roger. Veja o que seu filho mais novo encontrou. É a caixa de letras do Frank Dawson.

Ela pressionou o fecho sobre a tampa da caixa, de modo que ela oscilou e Will pôde ver em seu interior uma quantidade de pequenas peças talhadas e ornamentadas, feitas com alguma madeira clara que o garoto não conseguia identificar. A sra. Stanton segurou uma para cima: um S curvado, com a cabeça lindamente detalhada e o corpo escamoso de uma serpente, rodopiando em uma linha quase imperceptível. Então outra: um M arqueado, com picos semelhantes às agulhas gêmeas de uma catedral surreal. Os entalhes eram tão delicados que seria impossível ver onde elas se juntavam à linha que as prendia.

O sr. Stanton desceu as escadas e colocou cuidadosamente um dedo dentro caixa. — Ora, ora — disse. — Muito esperto, velho Will.

— Eu nunca vi isso antes — disse o menino.

— Bem, na realidade já viu sim — disse sua mãe. — Mas hã tanto tempo que você não se lembraria. Elas desapareceram anos e anos atrás. Engraçado estarem no fundo daquela caixa durante todo esse tempo.

— O que são?

— Enfeites de árvore de Natal, é claro — concluiu Mary, espiando sobre os ombros de sua mãe.

— O fazendeiro Dawson as fez para nós — explicava a sra. Stanton.

— Elas foram impecavelmente talhadas, como pode ver. E são exatamente tão antigas quanto esta família... em nosso primeiro dia de Natal nesta casa, Frank fez um R para. Roger — disse recolhendo a letra da caixa — e um A para mim.

O sr. Stanton retirou duas letras que estavam penduradas juntas na mesma linha. — Robin e Paul. Este par chegou um pouco mais tarde do que o normal. Nós não esperávamos que fossem gêmeos... Realmente, Frank foi muito amável. Fico pensando se ele tem tempo para essas coisas agora.

A sra. Stanton ainda girava as pequenos espirais de madeira em seu queixo, com dedos fortes. — M para Max, outro M para Mary... Frank ficou muito zangado conosco por termos repetido, eu me lembro... Ah, Roger, — ela chamou com a voz subitamente mais branda. — Olhe esta aqui.

Will ficou ao lado de seu pai. Era uma letra T, talhada com uma pequena e belíssima árvore que se estendia em dois galhos largos.

— T? — perguntou. — Mas ninguém aqui começa com T.

— Era Tom — respondeu sua mãe. — Eu não sei realmente por que eu nunca falei para vocês, os mais novos, sobre Tom. Já faz tanto tempo... Tom foi seu irmãozinho que faleceu. Ele tinha alguma coisa errada nos pulmões, uma doença que alguns bebês novos adquirem, e viveu somente por três anos. Frank já tinha a inicial talhada para ele, pois foi nosso primeiro bebê e já tínhamos os dois nomes escolhidos: Tom se fosse um menino e Tess se fosse uma menina.

A voz dela soava levemente abafada, e Will de repente se arrependeu de encontrar as letras. Bateu nos ombros de sua mãe, constrangido. — Não faz mal, mamãe — disse ele.

— Ah, meu menino gentil — disse a sra. Stanton rapidamente. — Não estou triste, querido. Foi há muito tempo. Tom já seria um homem agora, mais velho do que Stephen. Além disso — ela lançou um olhar engraçado pela sala, amontoada de gente e caixas —, nove filhos seriam demais para qualquer mulher.

— Você pode dizer isso de novo — disse o sr. Stanton.

— Isso resultou de ter ancestrais fazendeiros, mamãe — disse Paul. — Eles acreditavam em famílias grandes. Muita mão-de-obra grátis.

— Falando em mão-de-obra grátis — disse seu pai —, por onde andam James e Max?

— Pegando as outras caixas.

— Bom Deus. Quanta iniciativa!

— Espírito de Natal — disse Robin da escada portátil.

— "Alegrai-vos, povos crentes", e tudo o mais. Por que alguém não coloca uma música?

Bárbara, sentada ao lado de sua mãe, pegou a pequena letra talhada T da mão dela e a colocou junto com uma fileira que havia feito sobre o carpete de cada inicial pela ordem. — Tom, Steve, Max, Gwen, Robin e Paul, eu, Mary, James — disse ela. — Mas onde está o W de Will?

— A letra do Will estava junto com as demais. Dentro da caixa.

— Não era um W na realidade, se você se lembrar — disse o sr. Stanton. — Era um tipo de desenho. Ouso dizer que Frank ficou cansado de fazer iniciais àquela altura. — Disse sorrindo para Will.

— Mas não está aqui — continuou Bárbara. Ela segurou a caixa de cabeça para baixo e balançou. Depois, olhou para o irmão mais novo como o rosto sério. — Will — disse — você não existe.

Mas Will estava sentindo um crescente desconforto que parecia surgir de alguma parte muito profunda de sua mente.

— O senhor disse que era um desenho, não um W— disse como quem não quer nada. — Que tipo de desenho, pai?

— Uma mandala, se me recordo — respondeu o sr. Stanton.

— Uma o quê?

Seu pai riu baixinho. — Não dê atenção a isso. Eu estava apenas dando um exemplo. Eu não imagino Frank chamando o desenho disso. Uma mandala é um tipo de símbolo muito antigo que data da época da adoração do Sol e esse tipo de coisa... qualquer desenho feito de um círculo com linhas radiantes externas e internas. Seu pequeno enfeite de Natal era um modelo básico... exibia um círculo com uma estrela em seu interior, ou uma cruz. Acho que era uma cruz.

— Eu não consigo imaginar por que não o encontramos na caixa com o resto — disse a sra. Stanton.

Mas Will conseguia. Se havia poder em conhecer o nome próprio das pessoas das Trevas, talvez as Trevas, por sua vez, executassem a magia sobre os outros usando algum Signo que era símbolo de um nome, como uma inicial talhada... Talvez alguém tenha retirado o seu símbolo para tentar obter poder sobre ele daquela maneira. E talvez, na realidade, tenha sido este o motivo que levou o fazendeiro Dawson a lhe talhar, não uma inicial, mas um símbolo que ninguém das Trevas poderia usar. De qualquer maneira, eles o roubaram, para tentar...

Um pouco depois, Will esgueirou-se da decoração da árvore em direção ao andar superior, fixou um ramo sobre a porta e cada janela de seu quarto. Então inseriu um pedaço de ramo dentro do fecho recentemente consertado da clarabóia também. Depois, fez o mesmo nas janelas do quarto de James que seria compartilhado por ambos os meninos na véspera de Natal, voltando em seguida para o andar de baixo e fixando com cuidado um pequeno ramo sobre as portas da frente e dos fundos da casa. E teria feito o mesmo em todas as janelas, se Gwen não tivesse passado pela sala e percebido o que ele estava fazendo.

— Oh, Will — disse ela. — Não em todo lugar. Coloque isso pela cornija da lareira ou em algum outro lugar, para que fique controlável. Quero dizer, de outra forma, pisaremos nas frutinhas do azevinho toda vez que alguém abrir ou mexer nas cortinas.

Um atitude tipicamente feminina, pensava Will revoltado; mas ele não estava inclinado a chamar atenção para o azevinho fazendo algum tipo de protesto. De qualquer maneira, refletia enquanto colocava a planta artisticamente sobre a cornija da lareira, até ali teria proteção, a única entrada na casa de que ele havia se esquecido. Tendo deixado seus dias de Papai Noel para trás, ele não havia pensado nas chaminés.

A casa encontrava-se reluzente, com cores e a animação. A véspera de Natal já estava quase consumada. Mas por último, chegou a hora dos cânticos natalinos.

Depois do chá naquele dia, quando as luzes de Natal foram ligadas, e quando o último farfalhar de embrulhos de presentes chegou ao fim, o sr. Stanton alongou-se em sua poltrona surrada de couro, pegou seu cachimbo e sorriu suntuosamente para todos.

— Bem — disse —, quem fará a jornada neste ano?

— Eu — disse James.

— Eu — falou Will.

— Bárbara e eu — respondeu Mary.

— Paul, é claro — acrescentou Will. O estojo da flauta do irmão já estava separado na mesa da cozinha.

— Eu não sei se eu deveria — disse Robin.

— Sim, você deve sim — falou Paul. — Nada fica bom sem um barítono.

— Ah, tudo bem então — disse o gêmeo com relutância. Essa breve interação era repetida anualmente há três anos. Por sua compleição larga e raciocínio lógico, e sendo um excelente jogador, Robin sentia que não era adequado se mostrar ansioso por qualquer atividade tão feminina quanto as cantigas natalinas. Na realidade, ele se dedicava genuinamente à música, como o restante da família, e tinha uma voz grave bastante agradável.

— Ocupada demais — disse Gwen. — Desculpem-me.

— O que ela quer dizer — acrescentou Mary a certa distância — é que precisa lavar seus cabelos caso Johnnie Penn possa passar por aqui.

— O que quer dizer com possa? — disse Max da poltrona do lado de seu pai.

Gwen olhou-o feio. — Bem — interpelou —, e o que acha de você ir cantar?

— Ainda mais ocupado do que você — respondeu Max preguiçosamente. — Desculpe.

— E o que ele quer dizer é — disse Mary, agora rondando a porta — que precisa se sentar em seu quarto e escrever outra carta enorme para seu passarinho verde de Southampton.

Max arrancou um de seus chinelos para atirar, mas ela já tinha saído.

— Passarinho? — perguntou seu pai. — Qual seria a próxima palavra?

— Nossa, pai! — James o interpelou com horror. — O senhor realmente vive na Idade da Pedra. Garotas são chamadas de passarinho verde desde o início dos tempos. Quase tanto inteligência quanto passarinho também, se quiser saber.

— Alguns pássaros de verdade são muito inteligentes — disse Will de forma reflexiva. — Você não acha? — Mas o episódio das gralhas foi tão efetivamente apagado da mente de James que ele nem percebeu; as palavras não surtiram efeito.

— Fora todos vocês — disse a sra. Stanton. — Botas, casacos quentes, e voltem lã pelas oito e meia.

— Oito e meia? — disse Robin. — E se cantarmos três canções natalinas para a srta. Bell, e se a srta. Greythorne convidar a todos para um ponche?

— Bem, nove e meia e já bem atrasados — disse ela.

 

Estava muito escuro na hora em que saíram; o céu não ficava claro, nem a Lua ou mesmo uma única estrela brilhavam na noite. A lamparina que Robin carregava em uma vara lançava um círculo de luz cintilante sobre a neve, mas cada um carregava uma vela em um dos bolsos do casaco. Quando chegassem ao Solar, a idosa srta. Greythorne insistiria para que entrassem e ficassem em seu enorme salão de entrada revestido de pedra, com todas as luzes acesas. Daí cada um seguraria a vela enquanto cantassem.

O ar estava gelado, e a respiração do grupo exalava uma fumaça branca e densa. Aqui e ali caíam esparsos flocos de neve do céu, e Will pensava nas predições da mulher rechonchuda do ônibus. Bárbara e Mary conversavam afastadas do grupo, tão confortavelmente como se estivessem sentadas em casa, mas por trás da conversa, os passos de todo o grupo soavam frios e rígidos sobre o caminho de neve. Will sentia-se feliz, aconchegado pelos pensamentos do Natal e o prazer dos cânticos natalinos; prosseguia caminhando em um estado sonhador bastante satisfeito, segurando a grande caixa de arrecadação que levavam para ajudar a menor, a mais antiga e famosa igreja Saxônia do Vale do Caçador, que rapidamente se deteriorava. Bem adiante situava-se a fazenda dos Dawson, com um enorme ramo de muitos azevinhos frutíferos pendurados sobre as portas do fundo. E logo as canções natalinas começaram.

Saíram pela cidade cantando: "Nowell " para o pároco; "God Rest Ye Merry, Gentlemen ", para o alegre sr. Hutton, o enorme homem de negócios que vivia na nova casa de estilo Tudor no final do vilarejo, e que sempre olhava como se estivesse muito alegre mesmo; "Once in Royal David's City", para o sr. Pettigrew, o viúvo da agente do correio, que tingira os cabelos com folhas de chá e mantinha um cãozinho coxo que parecia um novelo de lã cinza. Eles ainda cantaram "Adeste Fideles " em latim, e "Les Anges dans nos Campagnes " em francês para a pequenina srta. Bell, a professora aposentada do vilarejo, que havia ensinado todos eles a ler e escrever, adicionar e subtrair, falar e pensar, antes que fossem para escolas de outros lugares. A pequenina srta. Bell disse roucamente: — Lindo, lindo — e colocou algumas moedas das quais eles sabiam que ela não tinha condições financeiras para se desfazer em favor da caixa de arrecadação, e ofereceu a cada um deles um abraço e seus votos: — Feliz Natal! Feliz Natal! — e assim eles partiram para a próxima casa da lista.

Faltavam mais quatro ou cinco casas, uma delas era o lar da taciturna sra. Homiman, que "trabalhava" para a mãe deles uma vez por semana, e que nascera e fora criada no leste de Londres até que uma bomba explodisse sua casa hã trinta anos. Ela sempre dava para cada um seis pêni de prata, e mais uma vez lhes deu, ignorando calmamente a troca de moedas. — Não seria Natal sem os seis pêni — disse a sra. Homiman. — Eu separei um bom estoque delas antes de aterrissarmos, com todos os decimais. Assim as terei em todo Natal do jeito que eu costumava fazer, meus queridos, e calculo que meu estoque me abastecerá até que eu vá para a cova e vocês estejam cantando para alguma outra pessoa nesta porta. Feliz Natal! E então era a vez do Solar, a última parada antes de casa.

Aqui vamos nós brindando, entre folhas tão verdejantes Tão formosos, vamos nós errantes Eles sempre começavam com a antiga Wassail para a srta. Greythorne, e naquele ano, os trechos sobre as folhas verdes, para Will, eram menos apropriadas do que o normal. E continuaram a entoar o cântico mas, na última estrofe, Will e James elevaram muito a voz num contraponto, que não costumavam fazer para o término da música, pois desta vez eles precisaram de muito fôlego:

Bom senhor e boa senhora,

Enquanto estão sentados no calor da chama 

Rogamos que pensem em nós,

pobres crianças que vagam pela lama...

Robin puxou o longo metal do sino, cujo tinido profundo sempre causava em Will a sensação de um alarme sombrio e, enquanto eles entoavam os últimos versos, a enorme porta se abriu e lã se encontrava o mordomo da srta. Greythorne, com o fraque que ele sempre vestia nas vésperas de Natal. Não se tratava de um exímio mordomo; o seu nome era Bates, um homem alto, magro e moroso que freqüentemente podia ser visto na horta ajudando um jardineiro mais velho, perto do portão dos fundos do Solar, ou discutindo sobre suas artrites com a sra. Pettigrew no Correio.

Venha sobre vós o amor e alegria

E saúde também 

O mordomo sorriu e lhes acenou educadamente, mantendo a porta aberta; então, Will engoliu a última nota alta da canção, pois o mordomo não era Bates, era Merriman.

Os cânticos natalinos chegaram ao fim e todos relaxaram, caminhando com dificuldade pela neve.

— Encantador — disse Merriman com voz grave, examinando-os de forma impessoal. E o tom imperioso da srta. Greythorne surgiu atrás dele.

— Traga-os para dentro! Traga-os para dentro! Não os deixe esperando na porta da casa!

Ela estava ali, na enorme entrada do salão, na mesma cadeira de encosto alto que eles viam em todas as vésperas de Natal. Estava impossibilitada de andar hã anos, desde um acidente ocorrido quando era ainda bem jovem — seu cavalo havia caído e rolado sobre ela, contava o vilarejo — mas ela decididamente se recusava ser vista em uma cadeira de rodas. Tinha o rosto magro e olhos brilhantes e seus cabelos grisalhos estavam sempre levantados no topo de sua cabeça como um tipo de nó: era uma figura totalmente misteriosa no Vale do Caçador.

— Como está sua mãe? — perguntou a srta. Greythorne para Paul. — E seu pai?

— Muito bem, obrigado, srta. Greythorne.

— Passando um bom Natal?

— Esplêndido, obrigado. Espero que a senhorita também. — Paul, que sentia pena da srta. Greythorne, sempre se metia em encrenca por ser entusiasticamente cordial; ele tentava assegurar que seus olhos não passeariam pelo alto salão enquanto falava. Pois embora a governanta-cozinheira e a criada estivessem sorrindo no fundo do aposento e, é claro, houvesse o mordomo que abrira a porta, de outra maneira não havia quaisquer indícios de outros visitantes, árvores, enfeites ou outro sinal das festas de Natal naquela casa, exceto por um ramo gigantesco de azevinho fixado sobre a cornija da lareira.

— Uma época estranha — disse a srta. Greythorne, olhando para Paul pensativamente. — Tão cheia de uma quantidade enorme de coisas, como aquela odiosa garotinha disse no poema. — Ela se virou repentinamente para Will. — E você anda muito ocupado neste ano, hein, jovem rapaz?

— Certamente — disse Will com franqueza, pego de surpresa.

— Luz para suas velas — disse Merriman em tom baixo e respeitoso, aproximando uma caixa com enormes palitos de fósforo. Apressadamente, todos eles puxaram as velas de seus bolsos. O mordomo acendeu um fósforo e moveu-se cuidadosamente entre o grupo. A luz tornava suas sobrancelhas em uma cerca viva e fantástica de pêlos, e as linhas do nariz até a boca em ravinas profundas e sombrias. Will olhou pensativamente para o fraque dele, cortado na altura do quadril, e com um tipo de babado no pescoço em vez de uma gravata branca. Sentia certa dificuldade em pensar em Merriman como um mordomo.

Alguém no fundo do salão apagou as luzes, deixando o enorme aposento iluminado apenas pelas chamas bruxuleantes na mão de cada membro do grupo. Ouviu-se uma leve batida de pé; depois começaram a entoar a doce cantiga de Natal Lullay lullay, thou little tiny child... — terminando com a última estrofe sem as vozes, apenas com o instrumento tocado por Paul. O som claro e áspero da flauta envolveu o ar como barras de luz e encheu Will com um estranho saudosismo, a sensação de alguma coisa esperando, algo que não conseguia compreender. Depois, para variar, eles cantaram God Rest Ye Merry, Gentlemen; em seguida, The Holly and the Ivy. E então voltaram a entoar Good King Wenceslas, que sempre foi um grand finale para a srta. Greythorne e sempre fazia Will sentir pena de Paul, pois certa vez o rapaz comentou que esse hino não se adequava ao tipo de música dele e que provavelmente deveria ter sido composto por alguém que odiava flauta.

Mas era divertido ser o pajem, tentando combinar com exatidão a sua voz com a de James, de modo que quando cantassem juntos soasse uma só voz.

Senhor, a léguas daqui, ele faz sua morada ...

e Will pensava: estamos realmente cantando bem desta vez, eu juraria que James não estaria cantando se...

no sopé da montanha ...

se sua boca não estivesse de fato se mexendo...

Bem diante da floresta isolada

... e olhou para a penumbra enquanto cantava, e viu, com um espanto tão brutal quanto se alguém o tivesse golpeado no estômago, que de fato a boca de James não estava se mexendo, nem qualquer outra parte de James, nem Robin ou Mary ou qualquer um dos Stanton. Eles estavam imóveis, todos presos no Tempo como havia ficado o Andarilho na Velha Estrada quando a garota das Trevas lançou o encantamento sobre ele. E as chamas de suas velas não bruxuleavam mais, mas cada uma queimava na mesma coluna de ar, estranha e inconsumível, branca e luminosa que se erguera do galho que Will havia queimado no outro dia. Os dedos de Paul não mais se moviam pela flauta; também estava imóvel, segurando o instrumento em sua boca. Porém, a melodia, muito semelhante, ainda mais suave do que a tocada pela flauta, prosseguia ecoando, assim como Will continuava cantando contra a sua vontade, terminando a estrofe...

... perto da fonte de Santa Agnes ...

E bem quando ele começava a se perguntar, ao longo da melodia doce e singular que lhe acompanhava e que parecia surgir do ar, bem como a próxima estrofe foi cantada — exceto se esperassem que um garoto tenor cantasse como o bom rei Wenceslau, em sua partitura — uma voz linda e grave envolveu o aposento com as palavras conhecidas; uma voz ampla e profunda que Will nunca havia ouvido numa canção, mas já a reconhecia.

... Traze carne e traze o vinho;

a lenha do pinheiro, traze pra cá;

Tu e eu o veremos cear

Quando os trouxermos de lá 

A cabeça do menino rodava um pouco, o aposento parecia crescer e se encolher de novo, mas a música continuava e os pilares de luz permaneciam sobre as chamas das velas, e, quando a próxima estrofe começou, Merriman aproximou-se naturalmente, tomou sua mão e eles andaram adiante cantando juntos:

Partiram rei e pajem partiram juntos no indômito vento de audazes lamentos no tempo que mordaz vem Ambos desceram a enorme entrada do salão, para longe da presença dos Stanton ainda imóveis, da srta. Greythorne em sua cadeira, da governanta-cozinheira e da criada, vivos, mas suspensos da vida. Will sentia como se caminhasse no ar, sem tocar o chão, pelo salão escuro; não havia luz adiante deles agora, mas somente o brilho que reluzia atrás. E entraram na escuridão...

Senhor, a noite agora mais escura está 

E o vento forte aumenta mais;

Não sei como, meu coração desfalecendo está, 

Já não posso mais....

Will ouviu sua voz tremer, pois as palavras eram as palavras certas para o que havia em sua mente.

Marque meus passos, meu bom pajem;

Ande tu sobre eles corajoso como convém...

Merriman cantava, e de repente mais coisas se encontravam diante de Will do que somente a escuridão.

Adiante dele erguiam-se os grandes portais, as enormes portas talhadas que ele havia visto na encosta coberta de neve de Chiltern, e Merriman ergueu seu braço esquerdo e apontou para eles os cinco dedos abertos e retos. Lentamente as portas se abriram e a elusiva música cristalina dos Anciãos surgiu rapidamente em ondas para se juntar ao acompanhamento da cantiga de Natal, e logo desapareceu novamente. Will prosseguiu juntamente com Merriman rumo à luz, em uma época diferente e em um Natal diferente, cantando como se pudesse derramar toda a música no mundo mediante aquelas notas — e cantava tão confiante que o maestro do coro da escola, que era muito exigente quanto às cabeças erguidas e maxilares bem movidos, ficaria mudo de estupefato orgulho.

 


                                     O LIVRO DA MAGIA 

 

Eles se encontravam em um aposento claro agora, um aposento diferente de tudo o que Will já havia visto. O teto era alto, pintado com imagens de árvores, bosques e montanhas; as paredes continham painéis feitos de madeira dourada reluzente, iluminados aqui e ali por estranhos globos brancos cintilantes. E o ambiente estava repleto de música, a mesma canção natalina que haviam iniciado era agora entoada por muitas vozes, em uma junção de pessoas vestidas como se tivessem sido extraídas da cena fantástica de um livro de história. As mulheres, com os ombros despidos, usavam vestidos longos com saias elaboradamente rodadas e esvoaçantes; os homens vestiam fraques não como o de Merriman, de casaca cortada na forma retangular, longas calças retas, babados brancos ou gravatas de seda preta. De fato, agora que Will se aproximava novamente para olhar Merriman, percebia que as roupas que ele usava nunca haviam sido na realidade as de um mordomo, mas pertenciam completamente a outro século, seja lá qual fosse.

Uma senhora em um vestido branco avançava em sua direção para cumprimentá-lo; enquanto ela se movia, as pessoas ao redor se afastavam respeitosamente para dar-lhe passagem e, quando a canção natalina chegou ao fim, ela exclamou: — Lindíssimo! Lindíssimo! Aproxime-se, aproxime-se! — Seu timbre era exatamente o mesmo da voz da srta. Greythorne ao serem recebidos na porta do Solar um pouco mais cedo e, quando Will olhou para sua face, viu que de certa maneira era a srta. Greythorne também. Eram os mesmos olhos e rosto magro, as mesmas maneiras imperiosas, porém amigáveis, só que a srta. Greythorne era muito mais jovem e bonita, como uma flor que se abriu, mas que não havia ainda sido maltratada pelo Sol, ventania e dias.

— Venha, Will — disse ela, sorrindo e tomando-lhe as mãos. O menino a seguiu tranqüilamente; estava muito claro que aquela senhora o conhecia e todos ao redor, homens e mulheres, jovens e velhos, sorridentes e descontraídos, também. A maior parte da multidão iluminada estava deixando o aposento naquele momento e partindo na direção de um cheiro delicioso de comida que claramente significava a ceia oferecida em algum outro lugar da casa. Mas um grupo de poucos permaneceu no local.

— Estávamos esperando por você — disse a srta. Greythorne e o conduziu até os fundos do salão onde o fogo crepitava quente e convidativo, numa decorada lareira. Ela olhava para Merriman também, incluindo-lhe em suas palavras. — Estamos todos prontos, não existem quaisquer obstáculos.

— Estão certos disto? — A voz de Merriman soou rápida e grave como uma batida de martelo, e Will olhou-o com curiosidade. Mas o rosto de nariz de falcão estava tão misterioso como sempre.

— Definitivamente certos — disse a senhora. E depois, de repente, ajoelhou-se ao lado de Will; o seu vestido ondulava ao seu redor como uma grande rosa branca; ela ficou na mesma altura dos olhos dele agora e segurou-lhe ambas as mãos, observando e falando suave e insistentemente. — Trata-se do terceiro Signo, Will. O Signo da Madeira. Algumas vezes, nós o chamamos de o Signo do Aprendizado. Chegou a hora de refazer este Signo. Will, em todos os séculos, desde o princípio, a cada cem anos, o Signo da Madeira deve ser renovado, pois este é o único dentre os seis que não pode manter sua natureza imutável. A cada cem anos nós temos que o refazer, do mesmo modo como fomos ensinados. E agora esta será a última vez, pois quando o seu século voltar, você o levará para todo o sempre, para a junção, e por isso não haverá mais necessidade de renovação.

Ela se ergueu, dizendo claramente.

— Estamos felizes em vê-lo Will Stanton, o Descobridor dos Signos. Muito, muito felizes. — Então, ouviram um rumor de vozes, baixo e alto, suave e profundo, todas em consentimento e aprovação; era como um muro, pensava Will, do qual é possível aprender e receber apoio. De maneira muito intensa, ele pôde sentir a força da amizade que emanava desse pequeno grupo de pessoas vestidas de modo diferente e elegante e, perguntava-se se todos eles eram Anciãos. Olhando para Merriman ao seu lado, sorriu com alegria, e Merriman retribuiu o sorriso com um olhar relaxadamente mais prazeroso que Will já havia visto naquele rosto severo e principalmente lúgubre.

— Já está quase na hora — disse a srta. Greythorne.

— Um pequeno refresco para os recém-chegados primeiro, talvez — disse um homem ao lado deles: um homem pequeno, quase da mesma altura de Will. Ele estendeu uma taça. Will a pegou olhando para cima e percebeu que fitava um rosto magro e vivaz, quase triangular, bastante enrugado, mas não velho, com olhos brilhantes como estrelas que o fitavam atentamente e de alguma maneira dentro dele. Era um rosto perturbador, com muitas coisas a ocultar. Mas o homem moveu-se para longe dele, para oferecer uma taça a Merriman, deixando o menino apenas com a visão das costas vestidas com impecável veludo verde.

— Meu senhor — disse ele com reverência enquanto erguia a bebida, curvando-se. Merriman o olhou com uma curva divertida nos lábios, sem dizer nada, mas continuava olhando zombeteiramente e esperando. Antes que Will tivesse a chance de começar a refletir sobre o cumprimento, o homenzinho piscou e parecia ter subitamente recuperado o bom humor, como alguém sonhando que desperta abruptamente. Rompeu numa gargalhada.

— Ah, não — disse gaguejando. — Pare. Eu tenho mantido este hábito há anos, afinal. — Merriman riu com afeição, depois ergueu a taça para ele e bebeu; já que não conseguia decifrar aquela estranha troca, Will bebeu também e ficou estupefato com a bebida irreconhecível que, além de saborosa, era como um esplendor de luz, a explosão da música, alguma coisa forte e maravilhosa que envolvia todos os seus sentidos ao mesmo tempo.

— O que é isto?

O homenzinho virou-se e riu; seu rosto erguia todas as rugas de expressão. — Metheglin costuma ser o nome mais parecido — disse recolhendo a taça vazia. Soprou dentro dela e falou inesperadamente: — Os olhos de um Ancião podem ver — estendendo a taça. Olhando dentro da base, Will de repente sentiu que podia ver um grupo de pessoas em vestes marrons fazendo aquilo que acabara de beber. Mirou o homem no casaco verde que o fitava de perto, com uma expressão perturbadora que era quase uma mistura de inveja e satisfação. Depois, o homem riu e levou a taça rapidamente; a srta. Greythorne chamava por ele para que se aproximasse dela; os globos brancos para iluminação do aposento emitiam uma luz mais fraca e as vozes se acalmaram. Will pensava que ainda podia ouvir música de algum lugar na casa, mas não tinha certeza.

A srta. Greythorne permaneceu perto do fogo. Por um momento, ela baixou a cabeça, observou Will e depois Merriman. Em seguida, virou-se para as paredes. Ficou observando atentamente por um longo tempo. Os painéis, a lareira e o console eram uma peça única, toda talhada da mesma madeira dourada: muito plana, sem qualquer curva ou arabescos, apenas algumas rosas simples de quatro pétalas dispostas aqui e ali. Colocou a mão em uma dessas pequenas rosas talhadas no topo do canto esquerdo da lareira, pressionando seu centro. Ouviu-se um estalido, e embaixo da rosa, no nível de seu quadril, apareceu uma abertura escura e quadrada no painel. Will não viu nenhum painel se movendo; a abertura simplesmente apareceu ali de maneira repentina. Então a srta. Greythorne pegou um objeto no formato de um pequeno círculo. Era a mesma imagem dos que ele já tinha em seu cinto, e logo percebeu que sua mão, como antes, havia se movido de livre e espontânea vontade e os segurava protetoramente. O aposento ficou em total silêncio. Do lado de fora das portas, Will podia certamente ouvir uma música agora, mas não conseguia identificar a natureza daquele som.

O círculo do Signo era muito fino e escuro, e um dos braços cruzados em seu interior se quebrou enquanto observava. A srta. Greythorne o estendeu para Merriman, e mais um pouco caiu como poeira. Will podia ver agora que era de madeira, endurecida e extenuada, mas apresentando ainda alguns veios.

— Tem apenas cem anos? — perguntou ele.

— Em cada cem anos, a renovação — disse ela.

— Sim — Will rebateu impulsivamente, no aposento em silêncio. — Mas madeira dura muito mais do que isso. Eu vi no Museu de Londres. Partes de velhas embarcações que eles retiraram do Tâmisa. Pré-históricos. Com milhares de anos.

— Quercus Britannicus — disse Merriman, severa e abruptamente, parecendo um professor zangado. — Carvalho. As canoas às quais se refere foram feitas de carvalho. E mais ao sul, as pilhas de carvalho sobre as quais a atual Catedral de Winchester foi fundada foram cortadas há novecentos anos e continuam tão firmes hoje como eram naquela época. É verdade, carvalhos duram muito tempo, Will Stanton, e chegará o dia em que a raiz de um carvalho desempenhará um importante papel em sua jovem vida. Mas o carvalho não é uma madeira apropriada para o Signo. Nossa madeira é uma de que as Trevas não gostam. Sorveira-brava, Will; essa é a nossa árvore. O freixo da montanha. A sorveira tem certas qualidades que não são encontradas em nenhuma outra madeira, e de que precisamos. Mas também há pressões sobre o Signo que a sorveira não poderia suportar como um carvalho, ou o ferro, ou o bronze. Por isso, o Signo deve renascer — ele o estendeu, entre um dedo longo e um polegar profundamente curvado e escuro — a cada cem anos.

Will aquiesceu sem dizer nada, percebendo que estava muito consciente da presença das pessoas no aposento. Era como se todos eles se concentrassem com afinco em um único propósito, tornando sua concentração até mesmo audível. Parecia que haviam se multiplicado, num número sem fim, uma vasta multidão que se estendia além da casa e além daquele século ou qualquer outro.

Ele não compreendeu completamente o que aconteceu logo em seguida. Merriman puxou a mão subitamente, quebrou o Signo de Madeira facilmente em duas partes e o jogou no fogo, onde uma enorme e única lenha como a lenha Yule de sua casa encontrava-se queimando pela metade. As chamas se ergueram. Então, a srta. Greythorne se aproximou do homenzinho no casaco de veludo verde, recebeu dele a botija de prata da qual versava as bebidas e jogou o conteúdo da botija sobre o fogo. Ouviu-se um grande assovio juntamente com a fumaça e o fogo se apagou. Ela se inclinou em seu longo vestido branco e colocou o braço na fumaça e nas cinzas queimando sem chamas, recolhendo um pedaço queimado da grande lenha. Parecia com um disco irregular.

Segurando o pedaço da madeira no alto, de modo que todos pudessem ver, ela começou a retirar as partes embranquecidas da peça como se estivesse descascando uma laranja; seus dedos se moviam rapidamente, e as bordas queimadas caíam enquanto a parte reduzida da madeira era mantida: um círculo nítido e liso, contendo uma cruz. Não havia qualquer irregularidade, como se nunca tivesse t ido outra forma além daquela. E em seguida, as alvas mãos da srta. Greythorne não apresentavam um traço sequer de fuligem ou cinza.

— Will Stanton — ela disse, virando-se —, aqui está o terceiro Signo. Eu não devo entregá-lo para você neste século. Sua busca deve ser realizada em seu próprio século. Mas a madeira é o Signo de Aprendizado, e quando tiver completado todo o seu aprendizado em especial, você o encontrará. Eu posso deixar em sua mente os movimentos que serão necessários para descobri-lo. — Fixou-o firmemente e depois se ergueu e deslizou o estranho círculo de madeira dentro da abertura escura no painel. Com a outra mão, pressionou a rosa talhada no alto da parede, e com a mesma rapidez, para não ser vista, assim como antes, repentinamente, a abertura já não estava mais lã. A parede de painéis de madeira encontrava-se lisa e absoluta como se não tivesse passado por qualquer mudança.

Will observou. Lembre-se de como foi feito, lembre-se... Ela havia pressionado a sua mão na primeira rosa talhada no topo do canto esquerdo. Mas agora havia três rosas em um grupo naquele canto; qual delas seria? Enquanto ele prestava mais atenção, viu com temeroso espanto que agora toda a parede de painéis estava coberta com quadrados de madeira talhada, cada um contendo uma única rosa de quatro pétalas. Teriam se multiplicado naquele momento, sob seus olhos? Ou estariam ali desde sempre, invisíveis por causa da ilusão da luz? Balançou a cabeça alarmado e olhou ao redor para Merriman. Mas já era tarde. Ninguém estava próximo dele. A solenidade já havia desaparecido no ar; as luzes estavam mais claras novamente e todos conversavam animadamente. Merriman murmurava alguma coisa para a srta. Greythorne, curvando-se muito para falar ao seu ouvido. Will sentiu um toque em seu braço e virou-se.

Era o homenzinho no casaco verde, acenando para ele. Perto das portas na outra extremidade do aposento, o grupo de músicos que havia acompanhado a canção natalina começou a tocar novamente: o som suave de flauta doce e violinos e outro instrumento que parecia uma harpa. Era outro cântico que tocavam naquele momento, e antigo, muito mais antigo do que o próprio século daquele aposento. Will queria ouvir, mas o homem do casaco verde segurava seu braço e o conduzia insistentemente em direção à porta lateral.

Will permaneceu firme, rebelde, e virou-se para Merriman. A silhueta alta se levantou abruptamente, girou ao redor procurando por ele. Mas, quando viu o que estava acontecendo, Merriman relaxou, erguendo apenas uma das mãos em consentimento. Will sentiu uma reafirmação sendo colocada em sua mente: pode ir, está tudo bem. Eu estarei junto.

O homenzinho pegou uma lamparina, olhou com naturalidade sobre ele, depois rapidamente abriu a porta lateral o suficiente para que ele e Will passassem. — Você não confia em mim, não é? — perguntou com sua voz aguda e descontrolada. — Bom, não confie em ninguém a menos que seja necessário, garoto. Assim, você realizará tudo o que está aqui para fazer.

— Parece que conheço as pessoas agora, em sua maioria — disse Will. — Quero dizer, de alguma maneira, identifico aqueles em quem posso confiar. Geralmente. Mas você... — interrompeu sua fala.

— Sim? — disse o homenzinho.

Will continuou: — Você não se encaixa.

O homenzinho gritou dando uma gargalhada, seus olhos desapareciam nas rugas de seu rosto; então ele parou abruptamente e ergueu a lamparina. No círculo da luz bruxuleante, Will percebeu que o lugar parecia um pequeno aposento desprovido de móveis, exceto por uma poltrona, uma mesa, uma pequena escada móvel e uma estante alta com a frente de vidro no centro voltada para cada parede. Ouviu o som de um tique e viu, escondido nas sombras, um enorme relógio de pêndulo situado em um canto. Se o cômodo estivesse dedicado apenas à leitura, como parecia, então mantinha um controlador do tempo que avisava em alto som quando se lia por tempo demais.

Will recebeu a lamparina das mãos do homenzinho. — Eu acho que deve haver outra por aqui... ah. — Logo começou um som sibilante indefinível que Will havia percebido uma ou duas vezes no aposento ao lado; em seguida, ouviu-se o estalo de um palito de fósforo, outro som alto "pop!" e uma luz surgiu na parede, queimando a princípio com uma chama avermelhada e depois expandindo-se em um círculo branco cintilante bem maior.

— Mantos — disse ele. — Algo ainda muito recente em casas particulares e muitíssimo chique. A srta. Greythorne está notavelmente chique pra este século.

Will não estava ouvindo. — Quem é você?

— Meu nome é Hawkin — respondeu o homem animadamente. — Nada mais, apenas Hawkin.

— Bem, olhe aqui Hawkin — começou Will. Ele estava tentando entender algo e isso o deixava bastante ansioso. — Você parece saber o que está acontecendo. Diga-me uma coisa, eu estou aqui no passado, num século que já aconteceu, que faz parte dos livros de história. Mas o que aconteceria se eu fizesse algo para alterá-lo? Eu poderia, eu conseguiria? Qualquer coisinha... que tornasse alguma coisa diferente na história, como se realmente eu estivesse lá?

— Mas você esteve — disse Hawkin e depois tocou no cordão torcido para aumentar a chama na lamparina que Will segurava.

Will perguntou impotente: — O quê?

— Você esteve-está neste século quando ocorreu. Se alguém tivesse escrito uma história relatando a realização da festa de hoje à noite, você, eu e meu senhor Merriman estaríamos nela descritos. Ainda que improvável. Um Ancião dificilmente deixa seu nome ser registrado em algum lugar. Geralmente, pessoas como vocês, conseguem afetar a história de uma maneira desconhecida a qualquer homem.

Ele igualou a chama flamejante nas três velas sobre a mesa colocada ao lado de uma das poltronas; o couro preto da cadeira brilhou sob a luz amarelada.

Will continuou: — Mas eu não consigo... eu não vejo.

— Venha — disse Hawkin sem demora. — É claro que não. É um mistério. Os Anciãos podem viajar no Tempo conforme desejarem; você não está ligado a essas leis do Universo como nós as conhecemos.

— Você não é um?— perguntou Will. — Eu pensei que fosse.

Hawkin balançou a cabeça, sorrindo. — Não — respondeu. — Apenas um simples pecador. — Olhou para baixo e deslizou sua mão sobre a manga verde de seu casaco. — Mas o mais privilegiado de todos. Pois como você, eu também não pertenço a este século, Will Stanton. Fui trazido aqui somente para fazer certas coisas, e então meu senhor Merriman me mandará de volta para o meu tempo.

— Onde — soou a voz grave de Merriman depois do clique suave da porta fechada — eles não possuem coisas como o veludo, o motivo que o leva a sentir tanto prazer neste bonito casaco. Preferível a um casaco afetado, dos padrões atuais, devo-lhe dizer, Hawkin.

O homenzinho olhou para cima com um sorriso ligeiro, sentindo a mão de Merriman afetuosamente apoiada em seus ombros. — Hawkin é uma criança do século treze, Will — disse ele. — Setecentos anos antes de você nascer. Ele pertence àquela época. Por minha intervenção, ele foi trazido para o dia atual e depois voltará novamente. Como poucos homens comuns o fizeram.

Will passou a mão distraidamente pelos cabelos; sentia como se estivesse tentando entender o horário de uma via férrea.

Hawkin riu suavemente. — Eu falei, Ancião. É um mistério.

— Merriman? — disse Will. — A que tempo você pertence?

O rosto escuro e pontudo de Merriman o fitou sem expressão, como uma imagem esculpida. — Você logo compreenderá — respondeu. — Nós três temos outro propósito aqui além do Signo da Madeira. Eu pertenço a lugar nenhum e a todos os lugares, Will. Eu sou o primeiro dos Anciãos e estive em todas as eras. Eu existi e existo no século de Hawkin. Lá, Hawkin é meu vassalo. Eu sou seu senhor, e mais do que senhor, pois ele esteve comigo durante toda a sua vida, criado como se fosse um filho, desde que eu o peguei quando seus pais faleceram.

— Nenhum filho recebeu um cuidado melhor — disse Hawkin, bastante rouco; ele olhou para os próprios pés e puxou a jaqueta para baixo. Will então percebeu que apesar de todas as rugas em seu rosto, Hawkin não era muito mais velho do que seu irmão Stephen.

Merriman acrescentou: — Ele é o meu amigo que me serve, e tenho profunda afeição por ele. E nele tenho grande confiança. Tão grande que lhe dei um papel vital para desempenhar nesta busca que devemos todos realizar neste século, a busca para seu aprendizado, Will.

— Ah — disse Will debilmente.

Hawkin lhe sorriu; depois saltou adiante e o abraçou, rompendo deliberadamente o mau humor. — Eu tenho que agradecê-lo por ter nascido, Ancião — disse — e por ter me dado a oportunidade de correr como um rato para outro tempo que não é o meu.

Merriman relaxou, sorrindo. — Você percebeu, Will, como ele gosta de acender as lamparinas a gás? No tempo dele, usam velas esfumaçantes que exalam cheiro e que não são velas na realidade, mas juncos colocados no sebo.

— Lamparinas a gás? — Will olhava para o globo branco fixado na parede. — É o que elas são?

— É claro. Não existe eletricidade ainda.

— Bem — disse Will na defensiva. — Eu nem sei que ano seria este, afinal.

— Mil oitocentos e setenta e cinco Anno Domini — respondeu Merriman. — Não é um ano ruim. Em Londres, o sr. Disraeli está fazendo o possível para comprar a Companhia do Canal de Suez. Mais da metade dos barcos mercantes ingleses que irão atravessá-lo são barcos de navegação. A Rainha Victoria está no trono inglês há trinta e oito anos. Na América, o presidente tem o nome esplendido de Ulysses S. Grant, e Nebraska é o mais novo dos trinta e quatro estados da União. E num remoto solar situado em Buckinghamshire, distinto e notório aos olhos do público, somente por seu acervo referente à coleção mais valiosa do mundo de livros sobre necromancia, uma senhora chamada Mary Greythorne está realizando uma festa de véspera de Natal, com cânticos natalinos e música para seus amigos.

Will se moveu para perto da estante mais próxima. Os livros estavam todos atados em couro, em sua maioria de tonalidade marrom. Havia volumes novos com as lombadas brilhando em folhas douradas e havia livros mais espessos e pequenos, tão antigos que o couro estava gasto chegando a apresentar a espessura de um rígido tecido. Leu os títulos de alguns exemplares: Culto aos Demônios, Liber Poenitalis, Descoberta da Bruxaria, Malleus Maleficarum — e assim por diante em diversos idiomas como o francês e o alemão, e outros dos quais ele não conseguia reconhecer o alfabeto. Merriman acenou desdenhoso com a mão para aqueles livros e para todas as prateleiras ao redor.

— Vale uma pequena fortuna — disse —, mas não para nós. Estes são os contos de pessoas pequenas, alguns sonhadores e alguns homens loucos. Contos de bruxaria e de coisas terríveis que os homens certa vez fizeram às pobres e simples almas a quem chamavam de bruxas. A maioria dentre elas eram seres humanos comuns, inofensivos; um ou dois verdadeiramente estiveram lidando com as Trevas... Nenhuma delas, é claro, tinha algo a ver com os Anciãos; pois quase todo conto que os homens relatam sobre magia e bruxas nasceu da ignorância, da tolice e da enfermidade da mente, ou era uma maneira de explicar coisas que eles não compreendiam. A única coisa de que eles não sabem nada, a maioria deles, é sobre o que somos. E isto está contido, Will, em um único livro neste aposento. O restante é útil agora e depois como um lembrete do que as Trevas podem realizar e os métodos obscuros que podem usar algumas vezes. Mas há um livro que é a razão pela qual você voltou a este século. Trata-se do livro do qual você aprenderá sobre o seu lugar como um Ancião e não há palavras para descrever o quanto isto é precioso. O livro de coisas ocultas, da verdadeira magia. Há muito tempo, quando a magia era o único conhecimento escrito, nossas atividades eram chamadas simplesmente de Conhecimento. Mas há muito que conhecer em seu tempo, sobre todos os assuntos debaixo do Sol. Então, nós empregamos uma palavra quase esquecida, assim como nós Anciãos somos quase esquecidos. Nós a chamamos de "Magia".

Atravessou o lugar em direção ao relógio, fazendo-lhe um sinal. Will olhou para Hawkin e viu seu rosto magro e confiante expressando certa apreensão. Eles seguiram. Merriman ficou de frente para o grande relógio no canto, que era mais alto que a cabeça dele uns sessenta centímetros, pegou uma chave de seu bolso e abriu o painel frontal. Will podia ver o pêndulo interno movendo-se lenta e hipnoticamente de um lado... para o outro, de um lado... para o outro.

— Hawkin — chamou Merriman. Sua voz era muito gentil, até mesmo amável, no entanto uma ordem. O homem no casaco verde, sem uma palavra, ajoelhou-se à esquerda dele, ficando lã bem quieto. Disse em um sussurro suplicante: — Meu senhor — mas Merriman não lhe deu atenção. Antes colocou a mão esquerda sobre o ombro de Hawkin e estendeu a mão direita dentro do relógio. Muito cuidadosamente, deslizou seus dedos longos por um lado, mantendo-os o mais estendidos possível para não tocar no pêndulo, e com um giro rápido retirou um livro pequeno de capa preta. Hawkin desabou; com a garganta sufocada e com um terrível alívio, Will olhava-o espantado. Mas Merriman o afastou dali. Ele fez Will assentar-se em uma das cadeiras e colocou o livro em suas mãos. Não havia titulo na capa.

— Este é o livro mais antigo do mundo — disse simplesmente. — E quando o tiver lido, deverá ser destruído. Este é o Livro da Magia, escrito na Linguagem Antiga. E não pode ser compreendido por ninguém, exceto pelos Anciãos e, mesmo que um ser humano ou criatura pudesse compreender qualquer encanto de poder que nele possa conter, não poderia usar tais palavras de poder a menos que fosse um Ancião. Por isso, não houve perigo no fato de sua existência em todos estes anos. Porém não seria bom manter uma coisa como esta depois da data marcada para o seu fim, pois sempre estaria em perigo com relação às Trevas, e a infinita engenhosidade das Trevas ainda encontraria um meio de usá-la com as próprias mãos. Neste aposento agora, no entanto, o livro cumprirá seu propósito final, que é o de conceder a você, o último dos Anciãos, o dom da magia... e depois disto deverá ser destruído. Quando obtiver o conhecimento, Will Stanton, não haverá mais necessidade de mantê-lo, pois com você o círculo estará completo.

Will permaneceu bem quieto, observando as sombras se moverem sobre o rosto severo e austero acima ele; então sacudiu a cabeça como se quisesse acordar e abriu o livro. E disse: — Mas não está em meu idioma! Você disse...

Merriman riu. — Esta não é sua língua, Will. E quando falamos um ao outro, você e eu não usamos o seu idioma. Usamos a Linguagem Antiga. Nós nascemos com ela em nossa língua. Você acha que está falando em que idioma agora? Pois seu senso comum diz a você que a língua materna é a única que compreende, mas se sua família o ouvisse agora, eles ouviriam apenas uma linguagem inarticulada. O mesmo ocorre com esse livro.

Hawkin já se colocara de pé, ainda que não houvesse cor em seu rosto. Respirando irregularmente, recostou-se na parede e Will o olhou com preocupação.

Mas Merriman o ignorou e prosseguiu: — No momento em que alcançou seu poder em seu aniversário, você pôde falar como um Ancião. E o fez, sem saber o que estava fazendo. Foi por isso que o Cavaleiro o reconheceu; quando se encontraram na estrada, você saudou John Smith na Linguagem Antiga, e ele, no entanto, teve que responder para você do mesmo modo e correr o risco de ficar marcado como um Ancião, mesmo que o ofício de um ferreiro não estivesse sob sujeição. Mas homens comuns podem falá-la também, como Hawkin aqui, e outros nesta casa que não fazem parte do Círculo. E do mesmo modo os Senhores das Trevas, embora nunca sem o sotaque próprio que os trai.

— Eu me lembro — disse Will lentamente. — O Cavaleiro parecia ter um sotaque, um sotaque que eu não conhecia.

Mas, é claro, eu pensei que ele estivesse falando minha língua e que deveria ser alguém de alguma outra região do país. Não é de surpreender que ele tenha vindo atrás de mim logo depois.

— Tão simples assim — disse Merriman. Olhou para Hawkin pela primeira vez e colocou a mão em seu ombro, mas o homenzinho não se mexeu. — Ouça agora, Will. Nós deveremos deixá-lo até que tenha lido todo o livro. Não será uma experiência semelhante como a de ler um livro comum. Quando tiver terminado, eu voltarei. Onde quer que eu esteja, eu sempre sei quando o livro é aberto e quando é fechado. Leia-o agora. Você é um Ancião e por isso deverá lê-lo apenas uma vez, ficando em você os ensinamentos por todo o Tempo. Depois disso, nós terminaremos com isto.

Will perguntou: — Está tudo bem com Hawkin? Ele parece doente.

Merriman olhou para baixo, para a pequena figura abatida, com a dor atravessada em seu rosto. — É demais como pergunta — disse incompreensivelmente, levantando Hawkin. — Mas o livro, Will. Leia-o. Ele aguarda você há muitos anos.

Merriman saiu, apoiando Hawkin, na direção da música e das vozes do aposento ao lado, e Will ficou sozinho com o Livro de Magia.

 

Depois disso, Will nunca foi capaz de contar quanto tempo passou com o Livro da Magia. Reteve tanta coisa daquelas páginas em seu interior e mudou tanto, que a leitura pode ter levado um ano inteiro; porém sua mente foi tão absorvida que, quando ele chegou ao fim, tinha a impressão de que acabara de começar. Realmente, não se tratava de um livro como os outros. Havia títulos simples o bastante para cada página: Sobre Voar; Sobre Desafios; Sobre as Palavras de Poder; Sobre Resistência; Sobre o Tempo Através dos Portais. Mas em vez de lhe apresentar uma história ou instrução, o livro lhe proporcionava apenas um trecho de um verso ou uma imagem viva, que de alguma maneira o envolvia instantaneamente, seja lá como fosse, naquela experiência.

Ele lia nada mais do que uma linha — Eu viajei como uma águia — e logo se encontrava voando bem alto como se batesse asas, aprendendo por intermédio das sensações; sentindo o modo de pousar sobre o vento e de inclinar-se pelas colunas elevadas do ar, de movimentar-se impetuosamente e voar em grandes altitudes, de olhar as colinas bem abaixo parecendo um pedaço de retalho esverdeado, cobertos com árvores escuras, e rios que as serpenteiam com suas águas cristalinas. Soube enquanto voava que a águia era um dos únicos cinco pássaros que podiam avistar as Trevas, e instantaneamente conheceu a quarta ave, e alternadamente ele se tornou cada uma delas...

Depois leu: ... você chegou ao lugar onde se encontra a criatura mais antiga que vive neste mundo, e foi ela que chegou aos lugares mais longínquos, a Águia de Gwemabwy... e Will foi erguido sobre o penhasco de uma rocha no topo do mundo, apoiado sem medo sobre um recife de granito reluzente; seu lado direito inclinava-se sobre a coxa macia de penas douradas e sobre uma asa dobrada, e sua mão estava ao lado das garras cruéis, duras como aço, enquanto em seus ouvidos uma voz rouca sussurrava as palavras que controlariam o vento e a tempestade, o céu e o ar, as nuvens e a chuva, a neve e o granizo — e tudo o que há no céu, exceto o Sol e a Lua, os planetas e as estrelas.

Em seguida, viu-se voando novamente em um amplo céu azul escuro, com as estrelas cintilando infinitas sobre sua cabeça, e o feitio de cada estrela deixou de ser conhecido por ele, tanto as iguais quanto as diferentes formas e poderes atribuídos a elas pelos homens com o passar dos anos. O Pastor passou, acenando com a cabeça, acompanhado da brilhante estrela Arcturo em seus joelhos; o Touro rugia, suportando o grande sol de Aldebarã e o pequeno aglomerado estelar de Plêiades cantando em pequenas vozes melódicas, como nunca havia ouvido antes. Voando mais acima e adiante, através do espaço negro, avistou as estrelas mortas, as estrelas esplendorosas, a vida dispersa e escassa que povoava o vazio infinito mais além. E quando terminou, conhecia cada estrela do céu, tanto pelo nome como pelos pontos astronômicos registrados, e principalmente como algo muito maior do que tudo isso; e conhecia cada encantamento do Sol e da Lua; e ainda conhecia o mistério de Urano e o desespero de Mercúrio; depois de tudo, montou na calda de um cometa.

Então, lá para baixo, longe dos céus, o Livro o guiou com uma frase:

... o mar encolhido sob ele se move lentamente...

E para baixo ele mergulhou verticalmente, em direção à superfície azul rasteira e encolhida, conforme ia se aproximando cada vez mais, em uma seqüência de ondas enormes fustigantes. Em seguida, ele se encontrou no mar, lá embaixo no caos, pelas brumas esverdeadas, em um espantoso e translúcido mundo de beleza, impiedade e desolada sobrevivência. Cada criatura alimentava-se de outra, nada estava totalmente a salvo. E o Livro lhe ensinou os meios de sobrevivência contra a malevolência, e os encantamentos do mar, do rio, dos córregos, dos lagos, riachos e fiordes, e mostrou-lhe como as águas eram o único elemento que podia, de certo modo, desafiar toda magia; pois águas em movimento não tolerariam a magia fosse ela do bem ou do mal, antes a varreria para longe como se nunca tivesse sido feita.

Através de corais afiados e letais, o Livro o conduziu nadando entre notáveis e agitadas algas marinha de tonalidades verde, vermelha e roxa, entre peixes brilhantes nas cores do arco-íris que emergiam de baixo até ele, com olhos atentos, balançando uma barbatana ou calda. Will passou pelos espinhos escuros dos inclementes ouriços-do-mar, depois por criaturas macias tremulantes que não pareciam plantas nem peixes; e finalmente subiu até as areias brancas, respingando pela superfície rasa e dourada até as árvores. Ao redor dele, uma densa quantidade de árvores se estendia como raízes até a água do mar, num tipo de selva sem folhas, e num piscar de olhos, Will já se encontrava fora daquele emaranhado e retornando rapidamente para alguma página do Livro da Magia:

... Eu sou o fogo descontente e eu brinco com o vento...

Via-se entre as árvores então; árvores da primavera com a combinação esverdeada das novas folhas e um sol claro que as manchava; as árvores de verão estavam cheias de folhas, sussurrando em massa; os pinheiros escuros de invernos que não temiam qualquer mestre não deixavam a luz resplandecer em seus bosques. Aprendeu sobre a natureza de todas as árvores, sobre as mágicas em especial que se encontram nos carvalhos, nas faias e nos freixos. Depois, havia uma estrofe sozinha na página do Livro:

Ele que vê assoviando, a árvore do bosque silvestre,

E abibes circundando suas águas cintilantes,

Sonhos sobre Estranhos que ainda podem ser

Trevas aos nossos olhos.

Que fazer!

E na mente de Will, subindo no turbilhão de um vento que o levava ao redor e por todo o Tempo, surgiu a história dos Anciãos. Ele os viu desde o princípio quando a magia era generalizada no mundo; a magia que era o poder das rochas, do fogo, da água e dos seres viventes, de modo que os primeiros homens viviam nela e com ela, como um peixe vive na água. Ele viu os Anciãos, através das eras dos homens que trabalhavam com a pedra, com o bronze, com o ferro, com um dos seis grandes Signos nascidos em cada era. Ele viu um povo depois do outro atacando a ilha de seu país, e trazendo toda vez a malevolência das Trevas com eles; uma agitação após agitação de navios se apressando inexoravelmente nas praias. Cada movimentação de homens, alternadamente, tornou-se pacífica na medida em que conheciam e amavam essa terra, de modo que  a Luz passava a resplandecer novamente. Mas as Trevas sempre estiveram por lá, inchando e diminuindo, ganhando um novo Senhor das Trevas sempre que um homem escolhia deliberadamente ser transformado em uma coisa mais temível e poderosa que seus companheiros. Tais criaturas não nasceram para cumprir seu destino, como os Anciãos, mas optaram por ele. O menino viu o Cavaleiro Negro em todas as épocas desde o princípio dos tempos.

Viu também uma época em que chegou a hora do primeiro grande teste da Luz, e os Anciãos se consagraram por três séculos em rechaçar as Trevas de suas terras, cora a ajuda no final de seu maior líder, perdido no processo de redenção, a menos que algum dia ele acorde e volte novamente.

Uma encosta se ergueu daquele tempo, verdejante e iluminada pelo Sol, diante dos olhos de Will, com o Signo do círculo e da cruz cortada em sua relva verde, reluzindo enorme e branca no calcário de Chiltern. Ao redor de um braço alvo da cruz, usando ferramentas diferentes como machados com longas lâminas para esmagá-la, viu um grupo de pessoas vestindo roupas verdes: homens pequenos, ainda menores diante da largura do grande Signo. Observou um deles rodopiar como num sonho para fora do grupo em sua direção: um homem vestido numa túnica verde, com um casaco pequeno na cor azul-escura, e um capuz colocado sobre a cabeça. O homenzinho abriu, amplamente os braços, segurando uma pequena espada de lâminas de bronze em uma das mãos e um cálice cintilante semelhante a um copo na outra; girou e desapareceu de repente. Em seguida, atraído pela próxima página, Will encontrou-se caminhando através de uma densa floresta, sentindo a maciez de ervas verde-escuro perfumadas sob seus pés; era um caminho que se alargava e calejava até se tornar pedregoso, pedras onduladas bem polidas como o calcário que o conduziu para fora da floresta até que se viu caminhando por  uma cordilheira alta e ventosa sob um céu cinzento, de onde pôde avistar o vale escuro quase coberto pela névoa lá embaixo. E durante todo esse tempo em que andava, embora ninguém lhe fizesse companhia, firmemente era sua mente, em progressão, emergiam as palavras secretas de poder para serem usadas nas Velhas Estradas, e as sensações e sinais pelos quais ele saberia, doravante, em qualquer lugar do mundo, onde corria a Velha Estrada mais próxima dali, seja literalmente ou como o fantasma de uma estrada...

E assim se sucedeu, até que Will percebeu que chegava ao fim do Livro. Uma estrofe estava escrita diante dele:

Eu despojei a samambaia.

Através de todos os segredos que espionei;

O Velho Math ap Mathonwy 

Não sabia mais do que eu.

Olhando para a capa, na última página, havia o desenho de seis Signos de cruzes circuladas, todos reunidos em um círculo. E era tudo.

 

Fechou o Livro e ficou absorto em direção ao nada. Sentia como se houvesse vivido por uns cem anos. Para saber tanto assim agora e para ser capaz de realizar tantas coisas; isto deveria animá-lo, mas melancolicamente tinha a sensação de estar sobrecarregado ao pensar em tudo o que já passou e tudo o que estava por vir.

Merriman entrou pela porta, sozinho, e ficou observando-o. — Ah, sim — falou baixinho. — Como eu disse, trata-se de uma responsabilidade, um fardo. Mas é assim, Will. Nós somos os Anciãos, nascidos no círculo, e nada pode mudar isso. — Recolheu o livro e tocou no ombro do menino. — Venha.

Enquanto atravessava o aposento até o alto relógio de pêndulo, Will o seguia observando-o retirar a chave do bolso novamente e abrir o painel frontal. O pêndulo ainda estava lá, longo e lento, num balanço como a batida do coração. Mas naquele momento, Merriman não se preocupou em evitar tocá-lo. Tocou-o com o Livro em sua mão, mas moveu-se com um estranho solavanco, como um ator encenando um homem desajeitado; e quando Merriman empurrou o Livro para dentro, uma das bordas roçou o longo braço do pêndulo. Will teve apenas o lampejo de um momento para ver a interrupção do balanço. Em seguida, cambaleava para trás, cobrindo os olhos com as mãos; o aposento foi preenchido com alguma coisa que ele nunca pôde descrever — uma explosão silenciosa, um estouro ofuscado de luz escura, um grande rugido de energia que não poderia ser visto ou ouvido e mesmo assim o fez sentir por um instante que o mundo inteiro havia explodido. Quando tirou as mãos do rosto, piscando, descobriu-se pressionado contra a lateral de uma poltrona, há uns três metros de onde estava. Merriman encontrava-se encostado contra a parede ao lado dele, com braços e pernas estendidos. E o lugar onde o relógio havia sido instalado, no canto do aposento, encontrava-se vazio. Não havia qualquer dano, nem qualquer sinal de violência ou explosão. Simplesmente, não havia nada.

— Era isto, percebe? — disse Merriman. — Esta era uma proteção do Livro da Magia, desde que o nosso tempo começou. Se o que o protegia era tão grandioso quando tocado, ele e o Livro e o homem que o tocasse se tornariam nada. Somente os Anciãos são imunes a esta destruição, e como você pôde ver — esfregou o braço pesarosamente —, mesmo nós, na ocasião, podemos ser feridos. A proteção tomou várias formas, é claro... o relógio destinava-se simplesmente a este século. Então, agora nós destruímos o Livro, pelo mesmo propósito que através de todas essas eras nós o preservamos. Como você deve ter aprendido, esta é a única maneira adequada de se usar a magia.

Will falou trêmulo: — Onde está Hawkin?

— Ele não era necessário agora — respondeu Merriman.

— Ele está bem? Pois parecia...

— Bastante bem. — Havia um tom estranho na voz de Merriman, como o de tristeza, mas nenhuma de suas novas habilidades poderia revelar ao menino a emoção colocada naquelas palavras.

Depois disso, eles voltaram para a confraternização do aposento ao lado, onde as canções natalinas que haviam recomeçado quando saíram chegavam naquele momento ao fim; e onde ninguém se comportava como se eles estivessem ficado fora por mais de um momento, ou por algum tempo real. Mas então, pensava Will, nós não estamos no tempo real. Pelo menos, estamos no passado, e mesmo assim parecemos capazes de nos delongar o quanto desejarmos, mesmo agilizar ou tornar mais lento...

A multidão tinha aumentado, e mais pessoas ainda se moviam para o salão de ceia. Will percebia agora que a maioria delas era constituída de pessoas comuns, e que somente o pequeno grupo que tinha permanecido antes no salão era de Anciãos. É claro, pensava o menino: somente eles poderiam testemunhar a renovação do Signo.

 

Outras pessoas estavam lá, e ele já estava se virando para estudá-las quando foi tomado pelo espanto e horror de todas as suas reflexões. Seus olhos descobriram um rosto bem no fundo do aposento, uma moça, que não o olhava, mas estava entretida em uma conversa com alguém despercebido. Enquanto observava, ela sacudiu a cabeça em uma risada autocontrolada. Depois, inclinou-se para ouvir novamente, logo sumiu de vista, quando outros convidados bloquearam a visão do grupo. Mas já foi o suficiente para Will ver que a moça sorridente era Maggie Barnes, a Maggie da fazenda dos Dawson, do outro século. Ela não era nem mesmo uma antevisão, como a vitoriana srta. Greythorne era um tipo de eco recente da srta. Greythorne que ele conhecia. Aquela era a Maggie que ele tinha visto em seu próprio tempo.

Virou-se em consternação, mas tão logo encontrou os olhos de Merriman, viu que o fato também era de seu conhecimento. Não havia a expressão de surpresa no rosto de nariz de falcão, somente o início de um tipo de sofrimento.

— Sim — disse ele cansado. — A moça feiticeira está aqui. E eu acho que você deve ficar ao meu lado, Will Stanton, pelos próximos instantes, e observar comigo, pois não me interesso muito em observar sozinho.

Admirado, Will se juntou a ele em um canto, sem serem vistos. A moça Maggie ainda estava escondida na multidão, em algum lugar. Eles esperaram; então, viram Hawkin, em seu casaco verde garboso, passando pela multidão para se aproximar da srta. Greythorne, e ficando reverencialmente ao lado dela, da maneira pela qual um homem se acostumara a se colocar à disposição para ajudar. Merriman enrijeceu-se um pouco, e Will o olhou atentamente; a expressão de dor se aprofundou no rosto forte, como se Merriman estivesse prevendo uma grande mágoa futura. Olhou novamente para Hawkin e viu seu sorriso divertido por alguma coisa que a srta. Greythorne teria dito; sem mostrar qualquer sinal de que algo o tivesse afligido na biblioteca, o homenzinho tinha um brilho, semelhante a uma pedra preciosa, que traria alegria a qualquer tristeza. Will podia perceber por que ele se tornou tão querido por Merriman.

Mas ao mesmo tempo, sentia uma terrível convicção de um desastre iminente pairando no ar.

Ele perguntou roucamente: — Merriman! O que é?

Merriman olhou acima dos convidados na direção do rosto pontudo e disse sem expressão: — É o perigo, Will, que está por vir por intermédio de minhas ações. Um grande perigo, para toda esta busca. Eu cometi o pior erro que um Ancião poderia fazer, e o erro está prestes a cair sobre a minha cabeça. Depositar mais confiança em um mortal, além de suas forças para suportar, é algo que, há séculos, todos nós aprendemos a não fazer, desde antes do Livro da Magia se tornar minha responsabilidade. Porém, num momento de tolice, eu cometi esse erro. E agora não há nada que possamos fazer para corrigir, somente observar e aguardar os resultados.

— Trata-se de Hawkin, não é? Alguma coisa a ver com o motivo que o fez trazê-lo aqui?

— O encantamento de proteção para o Livro — disse Merriman dolorosamente — ocorreria em duas partes, Will. Você viu a primeira, a proteção contra os homens... o pêndulo os destruiria se tentassem tocá-lo, mas não destruiria a mim ou qualquer outro Ancião. Mas eu entrelacei outra parte dentro deste encantamento que seria uma proteção contra as Trevas. Estabeleci que eu poderia recolher o Livro atrás do pêndulo somente se eu estivesse tocando em Hawkin com minha outra mão. Sempre que o Livro foi retirado para o último Ancião que o viu, em qualquer século, Hawkin tinha que ser trazido de seu próprio tempo para participar.

Will perguntou: — Não teria sido mais seguro se um Ancião fizesse parte do encantamento e não um ser humano comum?

— Ah, não, todo o propósito era ter um ser humano envolvido. Esta é uma batalha insensível na qual estamos, Will, e nela devemos fazer algumas coisas insensíveis. Este encantamento foi entrelaçado à minha volta como o protetor do Livro. As Trevas não podem me destruir, pois eu sou um Ancião, mas poderiam talvez com magia ter me enganado para pegar o Livro. Caso isso acontecesse, deveria haver um meio pelo qual outro Ancião pudesse me deter antes que fosse tarde demais. Eles também não poderiam me destruir, para me impedir de fazer a obra das Trevas. Mas um homem pode ser destruído. Se ocorresse o pior, e as Trevas me forçassem pela magia a entregar-lhes o Livro, então antes que eu começasse, a Luz teria que tirar a vida de Hawkin. Isto teria mantido o Livro a salvo para sempre, pois neste caso, eu não poderia usar o encantamento de liberação por tocá-lo enquanto retirasse o Livro. E por isso, eu não seria capaz de apanhar o Livro. Nem as Trevas, nem qualquer outra pessoa.

— Então ele arriscou a própria vida — disse Will lentamente, observando os passos animados de Hawkin enquanto ele atravessava o aposento até os músicos.

— Sim — disse Merriman. — Em nosso serviço, ele estava seguro contra as Trevas, mas sua vida corria risco de todo jeito. Ele concordou porque era meu vassalo e sentia orgulho disso. Espero ter deixado claro que ele sabia do risco que corria. Um risco duplo, pois ele também poderia ter sido destruído hoje, por mim, se eu tivesse acidentalmente tocado o pêndulo. Você viu o que aconteceu quando no final eu o toquei. Você e eu, como Anciãos, fomos meramente sacudidos; mas se Hawkin estivesse lá, sob o meu toque, ele teria sido morto em um único lampejo, destruído como o próprio Livro.

— Ele não deve ser apenas corajoso, como realmente deve amá-lo muito, como se fosse seu filho — disse Will — para fazer coisas como estas por você e pela Luz.

— Mas ainda assim, ele é apenas um ser humano — disse Merriman, sua voz estava rouca e a expressão de dor profunda em seu rosto. — E ama como um ser humano,  exigindo provas de amor em retribuição. Meu erro foi ignorar o risco que poderia haver. E como resultado, neste aposento nos próximos minutos, Hawkin me trairá e trairá a Luz, moldando todo o curso de sua busca, jovem Will. Na verdade, o choque, justo agora, de ter arriscado sua vida por mim e pelo Livro da Magia, foi demais para a sua lealdade. Talvez você tenha visto o rosto dele quando segurei seu ombro e retirei o Livro de seu lugar perigoso. Foi apenas naquele momento que Hawkin entendeu completamente que eu estava preparado para deixá-lo morrer. E agora que tem esse entendimento, nunca me perdoará por não amá-lo... em seus termos... como ele me amou, seu senhor. E ele se voltará contra nós — disse Merriman apontando pelo aposento. — Veja como isso começa.

A música tocou envolvente, e os convidados começaram a formar pares para dançar. Um homem que Will reconheceu como um Ancião aproximou-se da srta. Greythorne, inclinou-se e ofereceu-lhe o braço; todos os casais em volta se juntaram a eles em grupos de oito para uma dança que o menino desconhecia. Ele avistou Hawkin irresoluto, movendo a cabeça levemente conforme o compasso da música; e viu uma moça em um vestido vermelho aparecer ao lado dele. Era a feiticeira Maggie Barnes.

Ela disse alguma coisa para Hawkin, rindo, e fez-lhe uma pequena reverência. Hawkin sorriu educadamente, em dúvida, e balançou a cabeça. O sorriso da moça se ampliou; ela jogou os cabelos faceiramente e lhe falou novamente, olhando em seus olhos.

— Ah — disse Will. — Se pudéssemos ouvir! Merriman o olhou sombriamente por um momento, com o rosto ausente e pensativo.

— Ah — continuou Will, sentindo-se tolo. — É claro. — Levaria certo tempo, naturalmente, até que ele se acostumasse a usar seus próprios dons. Olhou novamente para Hawkin e a moça e desejou ouvi-los, e pôde ouvi-los.

— Realmente, senhora — dizia Hawkin —, não tenho nenhuma intenção de parecer rude, mas eu não danço.

Maggie segurou-lhe as mãos. — Por que está fora de seu século? Eles dançam aqui com as pernas, assim como você fazia cinco séculos atrás. Venha.

Hawkin a fitava horrorizado enquanto ela o conduzia até um grupo de casais. — Quem é você? — sussurrou ele. — Você é uma Anciã?

— Nem por tudo no mundo — disse Maggie Barnes na Linguagem Antiga, e Hawkin ficou pálido, permanecendo em silêncio. Ela sorriu discretamente, dizendo em seu idioma: — Uma única dança, ou as pessoas vão perceber. É bem fácil. Olhe para o cavalheiro ao lado, quando a música começar.

Hawkin, pálido e aflito, tropeçava durante a primeira parte da dança; aos poucos, conseguiu aperfeiçoar os passos. Merriman disse aos ouvidos de Will: — Ele foi informado que nenhuma alma aqui presente o conheceria e que sob pena de morte ele deveria falar na Linguagem Antiga somente com você.

Então, a conversa recomeçou:

— Você parece bem, Hawkin, para um homem que escapou da morte.

— Como você sabe dessas coisas, garota? Quem é você?

— Eles teriam deixado você morrer, Hawkin. Como pôde ser tão estúpido?

— Meu mestre me ama — afirmou Hawkin —, mas havia fraqueza nessas palavras.

— Ele o usou, Hawkin. Você não é nada para ele. Você deveria seguir mestres melhores, que se importassem com sua vida. E que alongassem os seus dias pelos séculos e não que o deixassem confinado em seu próprio tempo.

— Como a vida de um Ancião? — perguntou Hawkin, a ansiedade nascendo em sua voz pela primeira vez. Will se lembrou do tom de inveja quando Hawkin havia falado com ele sobre os Anciãos; agora, era perceptível um indício de ganância também.

— As Trevas e o Cavaleiro são mestres mais gentis do que a Luz — afirmava Maggie Barnes com brandura em seus ouvidos quando a primeira parte da dança acabou. Hawkin permaneceu calado novamente, fitando a moça com atenção, até que ela olhou ao redor e disse claramente: — Acho que preciso de uma bebida gelada. — E Hawkin partiu conduzindo-a para longe dali, de modo que agora, com toda a atenção dele e a oportunidade de lhe falar a sós, a feiticeira das Trevas teria um ouvinte bem disposto. Will sentia-se repentinamente com náuseas pela abordagem traiçoeira e não os ouviu mais. Percebeu Merriman ao seu lado, ainda olhando para o espaço.

— Então, assim será — disse Merriman. — Ele terá uma doce imagem das Trevas para atraí-lo, como os homens sempre têm e, além disso, ele se livrará de todas as exigências da Luz, que são pesadas e sempre serão. Enquanto isso, alimentará seu ressentimento pela maneira como eu o fiz desistir de sua vida sem a promessa de recompensa. Você pode ter certeza de que as Trevas não dão sinais de exigências. Na verdade, seus senhores nunca arriscam exigindo a morte, mas somente oferecem uma vida sombria... Hawkin — disse baixinho, de forma lúgubre. — Vassalo, como pode fazer o que está prestes a realizar?

De repente, Will sentiu medo, e Merriman percebeu. — Chega disso — disse ele. — Já está claro como a história acabará. Hawkin agora será como um informante, uma passagem secreta obscura. E assim como as Trevas não podiam tocá-lo quando ele era meu vassalo, agora que ele se tornou o vassalo das Trevas não poderá ser destruído pela Luz. Ele será os ouvidos das Trevas em nosso meio, nesta casa que tem sido nossa fortaleza. — A sua voz era fria, já aceitava o inevitável e a dor desaparecera. — Mediante a forma como a feiticeira conseguiu entrar aqui, ela não poderia realizar uma fagulha sequer de magia sem ser destruída pela Luz. Mas agora, sempre que Hawkin as chamar, as Trevas poderão nos atacar, aqui ou em outro lugar. E o perigo só aumentará com os anos.

Levantou-se, deslizando os dedos pela gravata branca; havia uma terrível dureza em seu perfil severo, e por um momento o seu olhar fez o sangue de Will correr denso e lento em suas veias. Era o rosto de um juiz, implacável, condenador.

— E a sentença que Hawkin trouxe sobre si mesmo, por seu ato — disse Merriman inexpressivo —, é algo apavorante, que o fará muitas vezes desejar a própria morte.

Will ficou atordoado, tomado pela pena e pelo assombro. Não perguntou o que aconteceria com o homenzinho de olhos brilhantes, que lhe havia sorrido, auxiliado e sido seu amigo por tão pouco tempo; não queria saber. A música da segunda parte da dança retinia prestes a finalizar, e os pares fizeram um ao outro uma divertida corte. Will continuava imóvel e infeliz. O olhar implacável de Merriman suavizou-se, para depois voltar e examinar o centro do aposento.

Will via apenas um vazio na multidão, com o grupo de músicos atrás dela. Enquanto ficava ali, eles começaram a cantar novamente Good King Wenceslas, a canção natalina que entoavam quando entraram no aposento, pelos Portais. Alegremente, todos se reuniram para cantar, e então as próximas estrofes se iniciaram e a voz profunda de Merriman soou pelo aposento; logo Will percebeu, num lampejo, que as estrofes eram as suas.

Tomou fôlego e e ergueu a cabeça:

Senhor, a léguas daqui, ele faz sua morada no sopé da montanha...

E não houve um momento de despedidas, um momento no qual ele viu o século 19 desaparecer, mas de repente, sem consciência da mudança, enquanto cantava, soube que o Tempo havia piscado, e outra voz jovem cantava com ele; ambos de forma tão simultânea que qualquer pessoa que pudesse ver os lábios se movendo teria jurado que se tratava da voz de um único menino...

... perto da fonte de Santa Agnes....

.... Bem diante da floresta isolada ...

mas Will sabia que estava perto de James, Mary e dos outros, e que ele e James cantavam juntos, e aquela música acompanhando suas vozes era o som da flauta doce de Paul. Continuou ali na entrada escura do salão, com as mãos erguidas diante do peito, segurando a vela iluminada. Logo percebeu que a vela não havia queimado um milímetro a mais desde a última vez que a viu.

Eles terminaram de entoar a canção natalina.

A srta. Greythorne disse então: — Muito bom, muito bom, de fato. Nada como Good King Wenceslas. Este sempre foi o meu cântico favorito.

Will espiou através da chama de sua vela, observando a silhueta imóvel na enorme cadeira talhada; a voz dela soava mais velha, mais grave com os anos, assim como seu rosto, mas por outro lado, ela era muito parecida com sua avó... e se aquela srta. Greythorne mais jovem teria sido sua avó? Ou sua bisavó?

A srta. Greythorne continuou: — Sabem, os constas natalinos do Vale do Caçador têm cantado Good King Wenceslas nesta casa há mais tempo do que vocês ou eu mesma poderíamos lembrar. Bom, agora, Paul, Robin e todos vocês, o que acham de um pouco de ponche de Natal? A pergunta era clássica, assim como a resposta.

— Bem — disse Robin com voz grave —, obrigado srta. Greythorne. Talvez um pouquinho.

— Até mesmo o jovem Will, este ano — disse Paul. — Ele tem onze anos agora, srta. Greythorne, a senhorita sabia?

A governanta estava se aproximando com uma bandeja, trazendo taças cintilantes e uma grande poncheira com a bebida marrom-avermelhada, e quase todos os olhos se voltaram para Merriman, que se adiantava para servir as taças. Mas o olhar de Will estava fixo na figura determinada, com olhos mais jovens sentada na cadeira de encosto alto.

— Sim — disse a srta. Greythorne suavemente, quase ausente em pensamento. — Eu me recordo. Foi aniversário de Will Stanton. — Ela se virou para Merriman, que já se aproximava, e segurou duas taças em suas mãos. — Um feliz aniversário para você, Will Stanton, sétimo filho de um sétimo filho — disse a srta. Greythorne. — E sucesso em todas as suas buscas.

— Obrigado, senhora — disse Will, admirado. Então, eles ergueram as taças solenemente em um brinde e beberam, como os filhos dos Stanton sempre faziam no Natal, no único dia do ano quando era permitido o vinho no jantar.

Merriman andava ao redor, e naquele momento todos tinham suas taças cheias de ponche e bebiam com satisfação. O ponche de Natal do Solar sempre foi delicioso, embora ninguém nunca tenha descoberto o que havia na bebida. Como os membros mais velhos da família, os gêmeos foram conversar com a srta. Greythorne; Bárbara, com Mary a tiracolo, foi direto até a srta. Hampton, a governanta, e Annie, a criada, ambas eram membros relutantes de um grupo de drama do vilarejo que ela tentava animar. Merriman disse para James: — Você e seu irmão mais novo cantam muito bem.

James sorriu. Embora rechonchudo, ele não era mais alto que Will, e não era freqüente que um estranho o agradasse reconhecendo-o como o irmão mais velho e superior entre eles. — Nós cantamos no coral da escola — disse ele.

— E executamos solos em festivais artísticos. Até mesmo um em Londres, no ano passado. O regente gosta muito de festivais artísticos.

— Eu não gosto — disse Will. — Todas aquelas mães olhando.

— Bem, você era o primeiro de sua classe em Londres — disse James. — Então, é claro que todas elas odiavam você, vencendo seus queridinhos. Eu era apenas o quinto da minha sala — disse ele em tom pragmático para Merriman.

— Will tem a voz muito melhor do que a minha.

— Ah! Pare com isso — retrucou Will.

— Sim, você tem. — James era um menino de mente equilibrada; e genuinamente preferia a realidade aos devaneios. — Até que paremos de cantar, de alguma maneira. Nenhum de nós pode ser bom então.

Merriman disse com a mente ausente: — Na realidade, você se tornará um tenor muito realizado. Quase nível profissional. A voz de seu irmão será um barítono... agradável, mas nada de especial.

— Suponho que poderia ser possível — disse James, educado, mas incrédulo. — É claro, embora não há como ter certeza, ainda.

Will retrucou beligerante: — Mas ele... — sentiu o olhar sombrio de Merriman e parou. — Hum, aaah — murmurava, e James olhou para ele com espanto.

A srta. Greythorne chamou Merriman pelo salão: — Paul gostaria de ver a antiga coleção de flautas transversais e flautas doces. Leve-o, sim?

Merriman inclinou a cabeça em uma pequena reverência e disse, como quem não quer nada, para Will e James:

— Gostariam de nos acompanhar?

— Não, obrigado — respondeu James de pronto. Seus olhos estavam fixos na porta dos fundos, pela qual a governanta entrava com outra bandeja. — Estou sentindo o cheiro das tortas de carne da srta. Hampton.

Will respondeu, compreendendo: — Eu bem que gostaria de ver.

Ele saiu com Merriman em direção à cadeira da srta. Greythorne, onde Paul e Robin se encontravam tensos e bastante constrangidos, um de cada lado, como guardiões.

— Vão todos vocês! — disse a srta. Greythorne rapidamente. — Você irá também, Will? É claro que sim, você é outro músico, já ia me esquecendo. Um ótimo acervo de instrumentos e outras coisas por lá. Ficarei surpresa se nunca os tiver visto antes.

Embalado por aquelas palavras, Will falou sem pensar:

— Na biblioteca?

Os olhos atentos da srta. Greythorne brilharam para ele. — A biblioteca? — replicou ela. — Você deve estar nos confundindo com outra pessoa, Will. Não existe biblioteca aqui. Havia uma pequena, certa vez, com alguns livros muito valiosos, acredito eu, mas foram queimados há quase um século. Aquela parte da casa foi atingida por um relâmpago e, segundo dizem, causou muitos estragos.

— Minha nossa — disse Will um tanto confuso.

— Bem, mas isso não é conversa para o Natal — acrescentou a srta. Greythorne acenando para que fossem. Olhando-a de volta, enquanto ela se virava para Robin com sorriso amplo e cordial, Will ficou se perguntando se as duas srtas. Greythorne não eram uma só afinal.

Merriman o conduziu com Paul para a porta lateral, e eles atravessaram uma estranha passagem pequena que cheirava a mofo em direção a um aposento alto e claro que Will não reconheceu de imediato. Somente quando avistou a lareira foi que percebeu onde estava. Lá estava a ampla lareira e a imensa cornija com seus painéis quadrados e  talhados com emblemas de rosas no estilo Tudor. Mas em volta de todo o restante do aposento, os painéis haviam sumido; as paredes estavam pintadas de branco e decoradas alegremente aqui e ali por paisagens marinhas pintadas nos tons pálidos de azul e verde. No lugar onde Will se dirigiu certa vez para a pequena biblioteca já não existia mais porta.

Então, Merriman abriu um armário alto com a frente de vidro instalado na parede lateral.

— O pai da srta. Greythorne era um cavalheiro muito musical — disse ele com sua voz de mordomo. — E com dons artísticos também. Ele pintou todos aqueles desenhos sobre as paredes do lado de lá. Nas índias Ocidentais, acredito eu. Este aqui, no entanto... — ergueu um instrumento pequeno e bonito como uma flauta doce, produzido em marchetaria escura e prata — dizem que ele na realidade não tocava, apenas gostava de ficar olhando para ele.

Paul foi absorvido pela descrição, olhando, examinando cada uma das flautas antigas enquanto Merriman as tirava do armário. Ambos eram muito solenes ao lidar com elas, colocando-as cuidadosamente de volta antes de retirar um novo instrumento. Will se virou para examinar os painéis ao redor da lareira, mas teve um sobressalto quando ouviu Merriman silenciosamente chamá-lo. Ao mesmo tempo, podia ouvir a voz sonora de Merriman falando com Paul: era uma estranha combinação.

— Rápido, agora! — disse a voz em sua mente. — Você sabe onde procurar. Rápido, enquanto você tem chance. Já é hora de pegar o Signo!

— Mas... — disse a mente de Will.

— Prossiga! — disse Merriman silenciosamente.

Will olhou de volta rapidamente sobre seus ombros. A porta pela qual eles entraram ainda estava entreaberta, mas seus ouvidos certamente o avisariam se alguém estivesse vindo pela passagem entre aquele aposento e o outro.

Ele se moveu furtivamente até a lareira, ergueu o braço e colocou sua mão sobre o painel. Fechando os olhos por um instante, apelou para todos os seus dons e o mundo antigo do qual eles vieram. Qual painel havia sido? Qual rosa talhada? Estava confuso com a ausência da parede de painéis ao redor; a cornija parecia menor do que antes. Estaria o Signo perdido, murado por tijolos em algum lugar atrás daquela parede branca e plana? Pressionou cada rosa que conseguia ver no topo do canto esquerdo da lareira, mas nenhuma delas se moveu, nem mesmo a fração de um centímetro. Então, no último instante, reparou, bem lá no canto, uma rosa parcialmente enterrada no reboco, projetando-se da parede que claramente havia sido reparada assim como alterada nos últimos cem anos ou dez minutos, pensou ele, desde que a viu.

Às pressas, Will alongou-se para alcançá-la e pressionou seu polegar o mais forte possível contra o centro da flor talhada, como se fosse o botão de uma campainha. E enquanto ele ouvia o suave clique, deparou-se olhando para um buraco escuro no formato de um quadrado na parede, exatamente na altura de seus olhos. Ele estendeu a mão e tocou o círculo do Signo de Madeira e, quando já suspirava aliviado, seus dedos se fechando em volta da madeira lisa, ouviu Paul começando a tocar uma das flautas antigas.

Foi uma tentativa para tocar: um lento arpejo primeiro, depois um compasso rápido, porém hesitante e, em seguida, muito suave e gentilmente, Paul começou a tocar a melodia Greensleeves. E Will ficou transfixado, não apenas pela adorável cadência da canção antiga, mas pelo som do instrumento propriamente dito. Pois embora a melodia fosse diferente, aquela era a sua música, seu encantamento, o mesmo tom distante e estranho que ele sempre ouvia, e então sempre perdia, naqueles momentos de sua vida que eram os mais importantes. Qual era a natureza daquela flauta que seu irmão estava tocando? Faria parte dos Anciãos, pertenceria à magia deles, ou era simplesmente algo muito comum feito por mãos humanas? Retirou a mão do vão na parede, que se fechou instantaneamente antes que ele pudesse pressionar a rosa novamente e, enquanto deslizava o Signo da Madeira em seu bolso, virou-se extasiado pela canção.

Mas, então, ficou paralisado.

Paul continuava tocando pelo quarto, ao lado do armário. Merriman estava de costas e com as mãos descansando nas portas de vidro. Mas, naquele momento, o aposento revelava a presença de duas outras figuras também. Na porta de entrada pela qual eles passaram, encontrava-se Maggie Barnes, olhando não para Will, mas para Paul, com um olhar terrível de malevolência. E perto, ao lado de Will, muito perto, no local onde a porta para a antiga biblioteca estivera certa vez instalada, erguia-se o Cavaleiro Negro. Estava na proximidade da largura dos braços de Will, embora não se movesse, permanecendo transfixado, como se a música o tivesse detido no meio de um ataque. Seus olhos estavam fechados, os lábios moviam-se silenciosamente; as mãos estendidas apontavam sinistramente para Paul, enquanto a música suave e sublime continuava tocando.

Will agiu bem em uma coisa, aproveitando o instinto de seu novo aprendizado. Imediatamente, ele criou uma parede de resistência em volta de Merriman, Paul e de si mesmo, de modo que os dois adversários das Trevas vacilaram para trás diante da força da barreira. Mas ao mesmo tempo, ele gritou assustado: — Merriman! — E quando a música foi interrompida, e ambos, Paul e Merriman, viraram-se com horror imediato, ele soube o que havia feito de errado. Ele não gritou como um Ancião chamaria o outro, através da mente. Ele havia cometido um erro muito grave ao gritar tão alto.

O Cavaleiro e Maggie Barnes desapareceram imediatamente. Paul atravessava o aposento preocupado. — Mas o que está acontecendo, Will? Você se machucou?

Merriman disse rápido e discretamente atrás dele: — Ele tropeçou, eu acho — e Will foi sagaz em fazer uma careta de dor, curvando-se como se estivesse aflito, segurando firme um dos braços.

Ouviu-se o som de passos correndo, e Robin irrompeu pela passagem, com Bárbara logo atrás dele. — O que foi? Nós ouvimos um grito horrível...

Ele olhou para Will e parou confuso. — Você está bem, Will?

— Ui — disse Will. — Eu... ai... acabei de bater o nervo do meu cotovelo. Desculpem-me, é que doeu.

— Parecia que alguém estava prestes a matá-lo — repreendeu Bárbara.

Envergonhado, Will se refugiou na indelicadeza. Seus dedos se encresparam pelo bolso em busca do terceiro Signo para saber se estava a salvo. — Bem, desculpe-me por desapontá-la — disse ele petulante — mas realmente eu estou bem. Eu apenas dei uma pancada em mim mesmo e gritei, é isso. Sinto muito se você ficou assustada. Eu não vejo o porquê desse alvoroço todo.

Robin olhava-o. — Espere que venha correndo em seu socorro da próxima vez — disse rispidamente.

— Fica brincando de o Menino e o Lobo pra ver — disse Bárbara.

— Eu acho — disse Merriman gentilmente, fechando o armário e girando a chave — que deveríamos todos sair e oferecer à srta. Greythorne mais uma canção natalina. — E esquecendo-se totalmente que ele era nada mais do que um mordomo, todos eles saíram obedientemente para fora do aposento atrás dele.


Will o chamou, em apropriado silêncio desta vez: — Mas eu preciso falar com você! O Cavaleiro estava aqui! E a garota!

Merriman respondeu em sua mente: — Eu seu. Mais tarde. Eles sempre têm meios para ouvir este tipo de conversa, lembre-se disto. — E continuou andando, deixando Will tremendo de exasperação e alarme.

Na porta de entrada, Paul parou segurando firmemente o irmão pelo ombro e o virou para olhá-lo de frente. — Você está realmente bem?

— Sinceramente. Desculpe-me por causa do barulho. Aquele flauta soava magnífica.

— Uma coisa fantástica. — Paul o soltou, virando-se para olhar desejosamente para o armário. — Verdade. Eu nunca ouvi nada como o som daquela flauta. E, é claro, nunca toquei uma assim também. Você não faz idéia, Will, eu não tenho como descrever, tremendamente antiga, e ainda em condições de uso; poderia ser quase nova. E o timbre dela... — Havia certa dor em sua voz e em seu rosto, e alguma coisa dentro de Will reagia a este respeito com uma compaixão antiga e profunda. Ele repentinamente soube que um Ancião estaria fadado a sentir sempre aquele mesmo desejo inominável e informe por alguma coisa além de seu alcance, como uma parte infinita da vida.

— Eu daria qualquer coisa — dizia Paul — para ter uma flauta como aquela um dia.

— Quase qualquer coisa — corrigiu Will gentilmente. Paul olhou-o espantado, e o Ancião dentro dele percebeu subitamente atrasado que esta talvez não fosse a resposta de um garotinho; então sorriu e mostrou a língua de forma travessa para Paul, e saiu pulando pela passagem, de volta às relações normais do mundo normal.

Eles cantaram The First Nowell para encerrar a cantata natalina e se despediram; o grupo se encontrava do lado de fora novamente, pisando na neve e sentindo o ar gelado; olhavam o sorriso impassível e educado de Merriman atrás das portas do Solar. Will parou nos largos degraus de pedra e observou as estrelas. As nuvens haviam se dissipado finalmente, e, naquele momento, as estrelas reluziam como fagulhas de fogo branco no buraco negro do céu noturno, em todas as estranhas formas que foram um mistério complicado para ele em toda a sua vida, mas que finalmente tinham um significado agora.

— Veja como as plêiades estão brilhantes hoje à noite — disse baixinho.

Mary o olhou estarrecida e disse — As o quê?

Então, Will passou a prestar atenção nos céus escuros e faiscantes e em seu pequeno mundo, amarelo e de tochas acesas, em que os cantores de Natal da família Stanton percorriam até seu lar. Caminhou entre eles em silêncio, como se estivesse em um sonho. Seus irmãos achavam que estivesse cansado, mas estava flutuando maravilhado. Ele tinha os três Signos de Poder agora. E tinha, também, o conhecimento para usar o Dom da Magia: uma vida longa de descoberta e sabedoria, oferecida a ele em um momento suspenso no tempo. Não se tratava mais do antigo Will Stanton de alguns dias atrás. Sabia que, agora e sempre, habitaria numa escala de tempo diferente daquela vivida por todos que conhecia e amava... Mas conseguiu parar de pensar nessas coisas, mesmo naquelas duas figuras invasoras e ameaçadoras das Trevas. Pois era Natal, uma época que sempre foi mágica, para ele e para todos no mundo. Esta era uma festa esplendorosa e reluzente e, enquanto seu encanto estivesse sobre o mundo, o círculo encantado de sua família e lar estariam protegidos contra qualquer invasão externa.

No interior da casa, a árvore cintilava e brilhava, a música de Natal pairava no ar junto com os aromas picantes da cozinha. E na ampla lareira da sala de estar, a grande lenha de Yule retorcida bruxuleava e flamejava enquanto queimava suavemente. Will deitou-se de costas no tapete da lareira, olhando para a fumaça subindo pela chaminé, e ficou repentinamente sonolento. James e Mary também estavam tentando não bocejar, e mesmo Robin já parecia ter pálpebras pesadas.

— Ponche demais — disse James, enquanto seu irmão se estendia pelo espaço desocupado da poltrona.

— Cai fora! — disse Robin amavelmente.

— Quem quer torta de carne? — perguntou a sra. Stanton, carregando uma enorme bandeja trazendo canecas com chocolate quente.

— James já comeu seis — disse Mary de forma afetada mostrando desaprovação. — No Solar.

— Agora são oito — disse James, com uma torta em cada mão. — Ora!

— Você vai engordar — disse Robin.

— Melhor do que já ser gordo — respondeu James, com a boca cheia, olhando para Mary, cuja forma rechonchuda recentemente se tornara sua preocupação mais desalentadora. Mary ficou boquiaberta, depois a fechou, avançando sobre ele e fazendo um som de rosnado.

— Ei, ei, ei — disse Will sepulcralmente do chão. — Boas criancinhas nunca brigam no Natal. — E visto que Mary se encontrava irresistivelmente perto dele, ele a agarrou pelo calcanhar. Ela caiu sobre ele, uivando alegremente.

— Cuidado com o fogo — disse a sra. Stanton, por força do hábito adquirido pelos anos.

— Ei — disse Will, quando sua irmã o socou no estômago, rolando para longe de seu alcance. Mary parou e ficou olhando para ele com curiosidade. — Por que raios você tem tantas fivelas em seu cinto? — questionou ela.

Will puxou seu pulôver apressadamente para baixo, escondendo o cinto, mas era tarde demais: todos já tinham visto. Mary estendeu o braço e puxou o pulôver para cima novamente.


— Que coisas engraçadas. O que são?

— Apenas um ornamento — disse Will bruscamente.

— Eu as fiz num trabalho em metal da escola.

— Eu nunca vi você lá — disse James.

— Você nunca olhou então.

Mary cutucou com um dedo o primeiro circulo no cinto de Will e puxou a mão de volta com um gritinho. — Isso me queimou! — gritou.

— Muito provável — disse a mãe deles. — Will e seu cinto, ambos estão perto do fogo. E logo vocês dois estarão lá dentro se continuarem rolando desse jeito. Venham agora, é hora da bebida de véspera de Natal, da torta de carne de véspera de Natal... e de irem para a cama na véspera de Natal.

Will ficou de pé rapidamente, agradecido. — Eu pegarei meus presentes enquanto o chocolate esfria um pouco.

— Eu também. — Mary o seguiu. Nas escadas ela disse:

— Aquelas coisas de fivela são bonitas. Você faria uma para mim para um broche no próximo semestre?

— Acho que sim — disse Will, e sorriu para si mesmo. A curiosidade de Mary nunca foi algo para se preocupar: sempre levava ao mesmo lugar.

Saíram ruidosamente para os respectivos quartos e desceram carregados de pacotes que deveriam ser acrescentados ã crescente pilha já embaixo da árvore. Will estivera tentando com esforço não olhar para aquela montanha mágica de presentes desde que haviam chegado da cantata natalina, mas era arduamente difícil, especialmente desde que ele pôde ver uma caixa gigantesca etiquetada com um nome que claramente começava com W. Quem mais começaria com W, afinal...? Forçou-se a ignorar e resolutamente empilhou seus próprios pacotes em um espaço ao lado da árvore.

— Você está olhando, James! — gritou Mary, atrás dele.

— Não estou — disse James. Depois confirmou, porque era véspera de Natal. — Bem, sim. Eu acho que sim. Desculpe-me. — E Mary ficou tão espantada que colocou todos os seus embrulhos em silêncio, incapaz de pensar em algo para dizer.

Na noite de Natal, Will sempre dormia com James. As camas iguais ainda estavam no quarto de James desde a época que precedia a mudança de Will para o sótão de Stephen. A única diferença agora era que seu irmão havia mantido a antiga cama de Will empilhada com almofadas de arte abstrata, referindo-se a isto como "minha chaise longue". Ambos sentiam que havia alguma coisa sobre vésperas de Natal que exigia companhia; alguém precisava de outro para sussurrar, durante os momentos de sonho caloroso e lindo entre o pendurar a meia vazia na extremidade da cama e cair no agradável esquecimento que floresceria para uma maravilhosa manhã de Natal.

Enquanto James respingava água no banheiro, Will tirou seu cinto, afivelou o terceiro Signo e o colocou debaixo de seu travesseiro. Parecia prudente, mesmo sabendo, sem dúvida, que nada ou ninguém o perturbaria ou a seu lar durante a noite. Naquela noite, talvez, pela última vez, ele era um menino comum novamente.

Partes de música e o suave rumor de vozes eram ouvidos do andar de baixo. Em um ritual solene, Will e James enrolaram suas meias de Natal sobre a ponteira da cama: meias marrons preciosas, mas desprovidas de beleza, feitas de uma material grosso e macio, e que foram usadas por sua mãe há um tempo distante inimaginável e deformadas agora pelos anos de serviços como sacola de Natal. Quando ficavam cheias, era impossível se manter por causa do peso; então, na manhã seguinte, seriam descobertas acomodadas magnificamente aos pés da cama.

— Aposto que eu sei o que a mamãe e o papai vão dar pra você — disse James baixinho. — Aposto que é...


— Não ouse — sussurrou Will, e seu irmão tentou conter o riso afundando-se sob os cobertores.

— Boa noite, Will.

— Boa noite. Feliz Natal.

— Feliz Natal.

E aconteceu como sempre, quando ele se deitou alegremente como um caracol em seu aconchegante invólucro, prometeu a si mesmo que permaneceria acordado, até, até....

... até que acordasse, no quarto mal iluminado pela manhã, com a luz tênue surgindo furtivamente ao redor do quadrado escuro da janela fechada pela cortina, e visse e ouvisse nada além de um espaço encantado cheio de expectativa, pois todos os seus sentidos se concentravam na forte sensação, sobre e ao redor de seus pés cobertos, de estranhos estalidos, cantos e formas que não estavam ali quando caiu adormecido. E já era dia de Natal.

 

Quando Will se ajoelhou ao lado da árvore de Natal e rasgou o papel colorido que embrulhava a gigante caixa etiquetada com o nome "Will", a primeira coisa que descobriu foi que não se tratava de uma caixa, mas de um caixote de madeira. Enquanto isso, um coro natalino soava distante e alegre do rádio na cozinha; tratava-se da meia de Natal, antes do encontro para o café-da-manhã da família, quando cada membro abria apenas um de seus "presentes da árvore". O restante da reluzente pilha permaneceria lá até o jantar, torturando de alegria.

Will, sendo o mais jovem, foi o primeiro. Ele foi direto até a caixa, em parte porque parecia tão impressionantemente larga e em parte porque suspeitava que tivesse sido enviada por Stephen. Logo descobriu que alguém havia retirado os pregos da tampa de madeira, de modo que ele pudesse abri-la com facilidade.

— Robin retirou os pregos, e Barb e eu colocamos o papel por cima — disse Mary sobre seu ombro, toda impaciente. — Mas não olhamos dentro dela. Abre logo, Will, abre logo.

Ele retirou a tampa. — Está cheia de folhas secas! Ou juncos, ou outra coisa.

— Folhas de palmeira — disse seu pai, olhando. — Para embalar, eu suponho. Cuidado com os dedos, elas podem ter as bordas afiadas.

Will jogou fora um punhado das folhagens sussurrantes, até que a primeira forma rígida de algo começou a aparecer. Tinha um estranho formato. Tinha um aspecto encurvado, fino, marrom, liso como um galho e parecia ser feito de um tipo duro de papel machê. Era um chifre, parecido e diferente ao mesmo tempo de um chifre de cervo. Will parou de repente. Um sentimento forte e totalmente inesperado o envolveu assim que tocou o objeto. Não era um sentimento que já havia sentido na presença de seus familiares antes; era uma mistura de excitação, segurança e alegria que o envolvia sempre que se encontrava com um dos Anciãos.

Viu um envelope saindo do caixote ao lado do chifre e o abriu. Aquele papel continha o exato cabeçalho do navio de Stephen:

Querido Will, Feliz aniversário. Feliz Natal. Eu sempre jurei não conciliar os dois, não foi? E agora, estou fazendo isso. Eu não sei se você compreenderá; especialmente depois que ver o presente. Mas talvez sim. Você sempre foi um pouco diferente de todos os outros. Não estou dizendo idiota! Apenas diferente.

Foi assim, eu estava na parte velha de Kingston certo dia, durante o carnaval. Carnaval nestas ilhas é uma época muito especial de grande diversão, com ecos repercutindo por um longo, longo caminho. Bem, eu me misturei no meio de uma folia, com pessoas rindo e bandas fazendo o som de aço tilintando, e dançarinos vestidos com fantasias muito loucas, e então eu conheci um homem velho.

Era um homem velho, bastante impressionante, com a pele muito escura e cabelos muito brancos, e ele parecia que tinha surgido do nada; daí, ele me levou pelo braço e tirou-me da agitação. Eu nunca o tinha visto antes em minha vida, de qualquer maneira. Tenho certeza disto. Mas ele olhava para mim e dizia: "Você é Stephen Stanton, da Marinha de Sua Majestade. Tenho algo pra você. Não para você mesmo, mas para seu irmão mais novo, o sétimo filho. Você enviará para ele como um presente, por seu aniversário deste ano e pelo Natal, as duas datas conciliadas em uma. Será um presente seu, irmão dele, e ele saberá o que fazer com isso no devido tempo, embora você não saiba".

Foi tudo tão inesperado que eu fiquei desnorteado. Tudo o que eu pude dizer foi: "Mas quem é você? Como me conhece?" e o velho somente me olhou novamente com um olhar sombrio e intenso que parecia me atravessar por inteiro, e disse: "Eu conheceria você de qualquer maneira. Você é irmão de Will Stanton. Há um olhar que nós Anciãos temos. Nossas famílias têm algo disto também".

E foi isso que aconteceu, Will. Ele não disse nenhuma outra palavra. Estas últimas não fazem qualquer sentido, eu sei, mas foi o que ele disse. Depois, ele apenas se moveu para dentro da folia de carnaval e partiu novamente; e quando voltou estava carregando... vestindo, na realidade, a coisa que você encontrará nesta caixa.

Então, estou aqui enviando isto pra você. Do jeito que me pediram. Parece loucura, e eu consigo imaginar um monte de coisas de que você gostaria mais. Mas aí está. Havia algo de extraordinário sobre aquele velho, e eu simplesmente tive que fazer o que ele me solicitou.

Espero que goste de seu presente maluco, companheiro. Pensarei em você, nas duas datas.

Com. amor, Stephen 

Lentamente Will dobrou a carta e a colocou de volta no envelope. "Um olhar que nós Anciãos temos..." Então o círculo se estende ao redor de todo o mundo. Mas é claro que sim; não teria razão de ser de outra forma. Ele estava feliz por Stephen participar daquele arranjo; estava certo, de alguma maneira.

— Ah, anda logo, Will! — pedia Mary com curiosidade, agitando seu penhoar. — Abra, abra!

Will subitamente percebeu que sua tradicional e preocupada família permanecia aguardando, pacientemente imóvel, esperando por cinco minutos enquanto ele lia a carta. Utilizando a tampa do caixote como uma bandeja, começou a retirar apressadamente mais e mais folhas de palmeira até que finalmente o objeto ficasse visível. Ao retirá-lo, admirou-se quando sentiu o peso, e todos prenderam a respiração.

Era uma cabeça gigante de carnaval, brilhante e grotesca. As cores eram claras e grosseiras, as feições audaciosamente feitas e facilmente reconhecíveis, tudo feito da mesma substância lisa, luminosa de um papel machê ou um tipo de madeira sem veios. E não era a cabeça de um homem. Will nunca havia visto nada como aquilo antes. A cabeça de onde surgiam os chifres tinha o formato da cabeça de um veado, mas as orelhas ao lado dos chifres eram de cachorro ou lobo. E a face era a face de um humano, mas com os olhos rodeados por penas de um pássaro. Tinha um nariz reto e forte de um humano, a boca firme de um humano, disposta em um leve sorriso. Não havia puramente muito mais de um ser humano naquela coisa. O queixo era barbado, mas a barba tinha tal formato que poderia facilmente ser tanto do queixo de um bode ou cervo como de um homem. A face poderia ser vista como assustadora. Quando todos ofegaram, o som que Mary deixou escapar e apressadamente abafou foi algo mais parecido com um grito. Mas Will sentia que o efeito do objeto dependia de quem estivesse olhando pra ele. A aparência não significava nada. Não era feio nem bonito, nem assustador nem divertido.

Era uma coisa feita para provocar profundas reações da mente. Era mesmo uma coisa de Anciãos.

— Meu Deus! — disse seu pai.

— É um tipo engraçado de presente — disse James. Sua mãe não disse nada.

Mary não disse nada, mas afastou-se um pouco.

— Lembra alguém que eu conheço — disse Robin, rindo. Paul não disse nada.

Gwen não disse nada.

Max falou baixinho: — Olha aqueles olhos!

Bárbara disse: — Mas para que serve isso?

Will deslizou os dedos pela face estranha e grande. Demorou apenas um instante para encontrar o que estava procurando: estava quase imperceptível, a menos que alguém estivesse esperando encontrá-lo, esculpido na fronte, entre os chifres. A impressão de um círculo, quartejado pela cruz.

Então disse: — É uma cabeça de carnaval das índias Ocidentais. É antiga. É especial. Stephen a encontrou na Jamaica.

James estava ao seu lado agora, olhando o interior da cabeça.

— Há um tipo de armação de arame que fica sobre os ombros. E uma fenda onde a boca está um pouquinho aberta. Eu acho que você olha através disto. Vamos lá, Will, tente colocá-la.

Ergueu-a sobre a cabeça para passá-la sobre os ombros de Will que se afastou, como se alguma parte de sua mente lhe desse um silencioso aviso.

— Não agora — disse ele. — Outra pessoa deve abrir seu presente.

E logo Mary esqueceu a cabeça e sua reação a ela, no feliz instante em que descobriu que era sua vez. Ela mergulhou na pilha de presentes perto da árvore, e as alegres descobertas recomeçaram.

Um presente cada; eles estavam quase terminando, e já estava quase na hora do café-da-manhã, quando soou uma batida na porta. A sra. Stanton que estava prestes a alcançar seu pacote, deixou o braço cair e olhou para cima inexpressivamente.

— Quem poderia ser uma hora dessas?

Todos fitaram um ao outro, e então para a porta, como se ela pudesse falar. Estava tudo errado, como o compasso de uma música mudando no meio da melodia. Ninguém nunca os visitava naquela hora no dia do Natal, não estava no esquema.

— Será que... — disse o sr. Stanton, com uma leve suspeita despertando em sua voz; ele enfiou os pés com mais firmeza em seus chinelos, levantou e foi abrir a porta da frente.

Eles ouviram a porta se abrir. As costas dele preenchiam o espaço e os impedia de ver o visitante, mas a voz se ergueu em óbvio contentamento. — Meu prezado amigo, como é bom ver você... entre, entre... — E quando ele se virou em direção à sala de estar, estava segurando uma pequena embalagem em uma das mãos que não tinha sido vista antes, definitivamente um produto que chegava com aquela figura alta que agora surgia na soleira da porta, seguindo seu pai. O sr. Stanton estava radiante e feliz, ocupado com as apresentações: — Alice, querida, este é o sr. Mitothin... tão gentil, fazer todo esse caminho no Natal só para entregar... não deveria ter tomado... Mitothin, meu filho Max, minha filha Gwen.... James, Bárbara...

Will ouvia sem atenção aquela cordialidade de adultos; somente quando ouviu a voz do estranho que o olhou atentamente. Havia algo familiar naquela voz grave e levemente nasalada que revelava certo sotaque, ao repetir cuidadosamente os nomes.

— Como tem passado, sra. Stanton.... Meus cumprimentos da estação, Max, Gwen...

Então, Will viu o perfil do rosto, os cabelos castanhos-avermelhados um tanto longos, e ficou imóvel. Era o Cavaleiro. Esse tal de sr. Mitothin, o amigo de seu pai de sabe Deus onde, era o Cavaleiro Negro de algum lugar fora do Tempo.

Will agarrou a coisa mais próxima de sua mão, um casaco jovial que tinha sido um presente da Jamaica enviado por Stephen para sua irmã Bárbara, e o colocou rapidamente sobre a cabeça de carnaval para ocultá-la. Quando se virou novamente, o Cavaleiro erguia a cabeça para olhar com mais detalhes pela sala e o viu. Fixou Will em um aberto desafio triunfante, revelando um pequeno sorriso em seus lábios. O sr. Stanton fez um sinal, acenando com a mão.

— Will, venha cá um minuto... meu filho mais novo, sr... Instantaneamente, Will se tornou um Ancião furioso, tão furioso que não parou para pensar sobre o que deveria fazer. Ele podia sentir cada centímetro de si mesmo, como se tivesse aumentado de tamanho, ficando três vezes maior. Estendeu a mão direita com os dedos esticados em direção à sua família, e os viu presos no tempo, paralisados de todos os movimentos. Como peças de cera, eles ficaram rígidos e imóveis pela sala.

— Como ousa vir aqui? — gritou ele para o Cavaleiro. Os dois ficaram se encarando pela sala, as únicas coisas móveis e viventes no lugar: nenhum humano se mexia, os ponteiros do relógio sobre a cornija da lareira não se movia, e mesmo as chamas bruxuleantes do fogo não consumiam as lenhas que queimavam.

— Como ousa? No Natal, na manhã de Natal! Saia daqui! — Era a primeira vez em sua vida que ele sentia tanta raiva, e isso não era nada agradável, mas ele se sentia indignado com a ousadia das Trevas de interromper o ritual mais precioso de sua família.

O Cavaleiro disse suavemente: — Contenha-se. — Na Linguagem Antiga, seu sotaque era muito mais acentuado. Ele sorria para Will sem qualquer nuance de mudança em seus frios olhos azuis. — Eu posso cruzar a sua soleira e passar por seu azevinho, já que fui convidado. Se pai, de boa-fé, convidou-me a entrar pela porta. E ele é o senhor desta casa, e não há nada que você possa fazer sobre isso.

— Sim, há sim — disse Will. Olhando fixamente para o sorriso confiante do Cavaleiro, concentrou todos os seus poderes em um esforço para ler a sua mente, descobrir o que ele pretendia fazer ali. Mas acabou se deparando com muro negro de hostilidade, intransponível. O menino achava que isso não deveria ser possível e ficou chocado. Procurou irado em sua memória palavras de destruição com as quais, em último caso, mas somente em último caso mesmo, um Ancião poderia quebrar o poder das Trevas. E o Cavaleiro Negro riu.

— Ah, não, Will Stanton — disse ele tranqüilamente. — Isso não funcionará. Você não pode usar armas desse tipo aqui, a menos que você deseje lançar toda a sua família fora do Tempo. — Ele olhou sarcástico para Mary, que permanecia imóvel perto dele, boquiaberta, presa fora da vida, no meio de uma frase que dizia ao seu pai.

— Isto seria uma pena — disse o Cavaleiro. Então, voltou a olhar para Will, e o sorriso desapareceu de seu rosto como se o tivesse lançado fora, e seus olhos se estreitaram. — Seu jovem tolo, você acha que por causa de todos os seus Dons da Magia pode me controlar? Coloque-se no seu lugar. Você não é um dos mestres ainda. Você pode fazer muitas coisas tão bem quanto pode inventar, mas os altos poderes não são para seu senhorio ainda. E eu também não.

— Você tem medo dos meus mestres — disse Will de repente, sem saber muito bem o que queria dizer, mas sabendo que era uma verdade.

O rosto pálido do Cavaleiro enrubesceu. E ele falou baixinho: — As Trevas estão se rebelando, Ancião, e desta vez nós não deixaremos que alguma coisa atrapalhe o nosso caminho. Chegou a nossa hora de nos rebelarmos, e os próximos doze meses verão finalmente o nosso estabelecimento. Diga aos seus mestres. Diga-lhes que nada poderá nos deter. Diga-lhes que todos os Artefatos de Poder que eles esperam possuir, nós os tiraremos deles, o graal, a harpa e os Signos. Nós quebraremos o seu Círculo antes mesmo que possa ser reunido. E nada poderá deter as Trevas de se rebelarem.

As últimas palavras soaram penetrantes em um grito alto de triunfo, e Will estremeceu. O Cavaleiro olhou-o, seus olhos pálidos cintilavam; então, desdenhosamente, ele estendeu suas mãos em direção aos Stanton, e ao mesmo tempo eles voltaram à vida, e a animação do Natal também voltou; e não havia nada que Will pudesse fazer.

— ... pertence essa caixa? — continuava Mary.

— Mitothin, este é o nosso Will. — O sr. Stanton colocou a mão sobre os ombros de Will.

Will cumprimentou friamente: — Como tem passado?

— Os cumprimentos da estação para você, Will — disse o Cavaleiro.

— Desejo-lhe o mesmo que me desejar — disse Will.

— Muito lógico — disse o Cavaleiro.

— Muito pomposo, se quiser saber minha opinião — disse Mary, sacudindo a cabeça. — Ele é assim, algumas vezes. Papai, a quem pertence essa caixa, que ele trouxe?

— Sr. Mitothin, não "ele" — corrigiu seu pai, automaticamente.

— Para sua mãe, uma surpresa — disse o Cavaleiro. — Algo que não estava pronto ontem à noite para que seu pai pudesse trazer para casa.

— Do senhor?

— Do papai, eu presumo — disse a sra. Stanton, sorrindo para seu marido. Ela seu virou para o Cavaleiro. — Gostaria de tomar o café-da-manhã conosco, sr. Mitothin?

— Ele não pode — disse Will. —- Will!

— Ele vê que estou com pressa — disse o Cavaleiro educadamente. — Não, eu lhe agradeço, sra. Stanton, mas estou indo passar o dia com uns amigos e não posso cancelar.

Mary perguntou: — Onde o senhor está indo?

— Ao norte daqui... que cabelos longos você tem, Mary. Muito bonitos.

— Obrigada — ela disse satisfeita, agitando os longos cabelos para trás de seus ombros. O Cavaleiro estendeu a mão e removeu delicadamente alguns fios soltos na manga de sua roupa. — Permita-me — disse cordialmente.

— Ela está sempre os exibindo — disse James calmamente. Mary colocou a língua para fora.

O Cavaleiro olhou novamente a sala. — Esta é uma árvore magnífica. É do local?

— É uma árvore Real— disse James. — Do Great Park.

— Venha e veja! — Mary agarrou a mão do Cavaleiro e o puxou pela sala. Will mordeu os lábios e deliberadamente limpou todos os pensamentos sobre a cabeça de carnaval de sua mente concentrando-se fervorosamente sobre o que ele comeria no café-da-manhã. Estava certo de que o Cavaleiro poderia ler muito bem a sua mente, mas talvez não aqueles pensamentos enterrados lá no fundo dela.

Mas não havia perigo. Embora o enorme caixote vazio e sua pilha de embrulhos exóticos estivessem ao lado dele, o Cavaleiro, rodeado pelos Stanton, apenas olhava obedientemente e admiravelmente para os enfeites da árvore. Parecia, em particular, envolvido com as minúsculas iniciais talhadas da caixa do fazendeiro Dawson.

— Lindo — ele disse, de forma ausente, girando a peça gêmea do M de Mary, que estava de cabeça para baixo, conforme Will havia notado.

Então, ele se voltou para o sr. e sra. Stanton. — Eu realmente preciso ir, e vocês devem tomar seu café-da-manhã. Para mim, Will parece bastante faminto. — Havia um lampejo de malícia enquanto eles se entreolhavam, e Will soube que agira certo ao limitar a visão das Trevas.

— Estou imensamente grato a você, Mitothin — disse o sr. Stanton.

— Sem problemas, você estava bem no meu caminho. Cumprimentos da estação para todos vocês. — Com uma salva de despedidas, ele se foi, atravessando o caminho a passos largos. Will lamentou que sua mãe houvesse fechado a porta antes que tivesse a chance de ouvir o motor de um carro ligado. Ele não achava que o Cavaleiro chegara ali de carro.

— Bem, minha querida — disse o sr. Stanton, dando um beijo em sua esposa e entregando-lhe o embrulho. — Aqui está o seu primeiro presente da árvore. Feliz Natal!

— Oh — exclamou a mãe, quando abriu a embalagem. — Oh, Roger!

Will se espremeu entre seus alvoroçados irmãos para dar uma olhadinha. Acomodado em veludo branco, em uma caixa marcada com o nome da loja de seu pai, encontrava-se o anel antigo de sua mãe: o anel que ele tinha visto o sr. Stanton examinar para conferir as pedras perdidas hã algumas semanas; o anel que Merriman viu na imagem que ele extraíra da mente de Will. Mas, cercando o objeto, havia outra coisa: uma pulseira produzida como uma ampliação do anel, exatamente igual. Uma faixa de ouro, fixada com três diamantes no centro, três rubis de cada lado, e gravada com um modelo estranho de círculos, linhas e curvas ao redor dela. Will examinou a jóia, desejando saber por que o Cavaleiro quisera ter aquele objeto nas mãos. Pois, seguramente, isso deveria estar por trás de sua visita naquela manhã; nenhum Senhor das Trevas precisava entrar em qualquer casa somente para ver o que havia dentro dela.

— Foi o senhor que fez, pai? — perguntou Max. — Um trabalho adorável.

— Obrigado — agradeceu seu pai.

— Quem era aquele homem que o trouxe? — perguntou Gwen com curiosidade. — Ele trabalha com o senhor? Que nome engraçado.

— Ah, ele é um negociante — disse o sr. Stanton. — Precisamente, de diamantes. Um camarada estranho, mas muito agradável. Eu o conheço já há alguns anos, eu acho. Nós compramos muitas pedras de certas pessoas, inclusive estas. — Ele tocou suavemente na pulseira. — Eu precisei sair mais cedo ontem enquanto o jovem Jeffrey estava ainda fixando um dos desenhos... e aconteceu que Mitothin estava na loja e se ofereceu para deixá-lo aqui para poupar-me de voltar. Como ele disse, passaria por aqui nesta manhã de qualquer maneira. Ainda assim, foi muita gentileza, ele não precisava se oferecer.

— Muito amável — disse sua esposa. — Mas você é mais amável. E achei linda.

— Estou com fome — disse James. — Quando iremos comer?

Somente depois que os ovos e bacon, torradas e chás, geléias e mel acabaram, e os destroços dos primeiros prementes abertos liberaram o caminho, Will foi perceber que a carta de Stephen não se encontrava em lugar nenhum. Procurou pela sala de estar, verificou nos pertences de cada um, engatinhou no chão ao redor da árvore e da pilha de presentes ainda sem abrir, mas não estava lá. Poderia, é claro, ter sido jogada fora sem perceber, por engano como papel de embrulho; tais coisas às vezes já aconteceram nos tumultuados dias de Natal de sua casa.

Mas Will achava que sabia o que havia acontecido com a carta. E ele se perguntava se, afinal, havia sido a oportunidade de examinar o anel de sua mãe que trouxera o Cavaleiro Negro à sua casa, ou a busca por alguma outra coisa.

 

Pouco depois, eles perceberam que a neve estava caindo novamente. Suave mas inexoravelmente, os flocos caíam trêmulos ao chão, sem titubear. As pegadas do sr. Mitothin, do lado de fora, no caminho da porta até o carro, foram logo encobertas como se nunca tivessem estado ali. Os cães, Raq e Ci, que pediram para sair antes que a neve começasse, voltaram humildes arranhando a porta dos fundos.

— Sempre gostei do Natal todo branco — disse Max, olhando morosamente para fora —, mas isso é ridículo.

— Extraordinário — disse seu pai, olhando sobre os ombros. — Eu nunca a vi dessa forma no Natal, em toda a minha vida. Se mais neve cair ainda hoje, realmente haverá problemas no transporte por todo o sul da Inglaterra.

— Era nisso que eu estava pensando — disse Max. — Eu deveria ir para Southampton depois de amanhã para ficar com Deb.

— Oh, ai, ai — exclamou James, abraçando o tórax. Max olhou-o.

— Feliz Natal, Max — disse James.

Paul chegou ruidosamente na sala de estar calçado com botas e abotoando seu sobretudo. — Com ou sem neve, estou saindo para tocar o sino. Eles tocarão os sinos da torre e não esperarão ninguém. Algum de vocês, seus pagãos, cogitam ir à igreja nesta manhã?

— Os rouxinóis irão — disse Max, olhando para Will e James, que dentre eles constituíam um terço do coro da igreja. — Isso já conta pra você, não acha?

— Se você fosse apresentar seu ato da temporada — disse Gwen, passando adiante — mas com algumas tarefas úteis como descascar as batatas... Então talvez a mamãe possa ir. Ela realmente gosta de ir, quando pode.

O pequeno grupo discreto que finalmente saiu na neve cada vez mais espessa consistia de Paul, James, Will, a sra. Stanton e Mary, que estava, conforme James havia dito indelicadamente, mas falando a verdade, provavelmente mais interessada em evitar as tarefas domésticas do que em fazer sua devocional. Eles se arrastaram ao longo da estrada, os flocos de neve agora caíam rigorosamente e começavam a queimar suas bochechas. Paul saiu na frente para se juntar aos outros sineiros, e logo as notas acrobáticas dos seis sinos antigos e sonoramente agradáveis que pendiam na pequena torre quadrada começaram a soar pelo mundo cinzento e rodopiante ao redor deles, trazendo a alegria de volta ao Natal. Os ânimos de Will ressurgiram um pouco com as badaladas, mas não muito: a presença intensa e persistente da neve o incomodava. Ele não conseguia afastar a terrível suspeita de que caía como uma precursora de alguma outra coisa, como uma mensageira das Trevas. Ele enfiou as mãos dentro dos bolsos de sua jaqueta de couro de cabra, e a ponta dos dedos de uma mão circulavam pela pena da gralha, esquecida ali desde a noite terrível da véspera do solstício de inverno, antes do seu aniversário.

Na rua coberta de neve, quatro ou cinco carros encontravam-se estacionados do lado de fora da igreja. Geralmente, as manhãs de Natal contavam com mais veículos, mas poucos habitantes que foram vistos caminhando ao ar livre haviam optado por desbravar aquele nevoeiro branco. Will observava os flocos brancos e espessos que se acomodavam determinados e indissolúveis sobre a manga de sua jaqueta; estava muito frio. Mesmo dentro da pequena igreja, os flocos de neve continuavam a cair obstinadamente e demoravam muito para derreter. Ele seguiu James e um punhado de outros coristas até o estreito corredor do vestiário, onde puseram com dificuldade a sobrepeliz. Então, os sinos se fundiram ao início do culto, para indicar a procissão dos garotos pelo corredor até a galeria no fundo da pequena nave da igreja. De lá, era possível ver todas as pessoas, e estava evidente que a igreja de St. James the Less não estava lotada naquele Natal, mas quase cheia.

A liturgia da Oração Matutina, como acontecia nesta Igreja da Inglaterra, pela Autoridade do Parlamento, no segundo ano do reinado do Rei Eduardo VI, foi iniciada nobremente segundo os arranjos natalinos, sendo conduzida pelo teatral reverendo que, por meio de sua voz de baixo-barítono, a entoou sem qualquer constrangimento.

— Oh! Vós, Friúme e Frio, bendizei ao Senhor, louvai-O, exaltai-O para sempre — cantava Will, refletindo que o sr. Beaumont havia mostrado certa ironia ao escolher aquele cântico.

— Oh! Vós, Gelo e Neve, bendizei ao Senhor, louvai-O, exaltai-O para sempre.

De repente, Will notou que estava tremendo, mas não por causa das palavras, nem por qualquer sensação de frio. Sua cabeça girava; segurou firme na beirada da galeria por um momento. A música parecia se tornar, por um breve momento, horrendamente dissonante, irritante aos ouvidos. Então, ela sumiu novamente e continuou como antes, deixando Will trêmulo e com calafrios.

— Oh! Vós, Luz e Trevas — cantava James, olhando para ele... você está bem? Sente-se... exaltai-O para sempre.

Mas Will balançava a cabeça impacientemente e, durante o restante do culto, manteve o vigor, cantou, sentou-se, ou ajoelhou-se, e convenceu a si mesmo que não acontecera nada de errado, apenas uma vaga sensação de torpor, trazida pelo que seus irmãos mais velhos gostavam de chamar de "excesso de animação". E então a estranha impressão de iniqüidade e desarmonia voltou.

Aconteceu só mais uma vez, bem no final do culto. O sr. Beaumont estava clamando a oração de São Crisóstomo: "... Tu que prometeste, que quando dois ou três estivessem reunidos era teu nome, Tu os atenderias...". O ruído irrompeu repentinamente na mente de Will, um uivo horrível e agudo no lugar das cadências conhecidas. Ele já tinha ouvido aquilo antes. Era o som das Trevas assediando, que ele ouvira do lado de fora do Salão do Solar onde estivera com Merriman e a Dama, em algum século desconhecido. Mas numa igreja? Perguntava-se Will, o corista anglicano, incrédulo: você com certeza está sentido isso dentro da igreja? E respondeu Will, o Ancião, tristemente: qualquer igreja de qualquer região está vulnerável aos ataques deles, pois lugares como estes são os locais onde os homens se dedicam aos assuntos da Luz e das Trevas. Ele arqueou a cabeça entre os ombros a ponto de ser tocado pelo próprio nariz, e então tudo passou novamente, e a voz do reverendo soava solitária, como antes.

Will olhou rapidamente à sua volta, mas estava claro que nenhuma outra pessoa mais havia notado alguma coisa errada. Pelo desdobramento de seu suplício, ele segurou firme os três Signos em seu cinto, mas não sentia calor nem frio sob seus dedos. Para o poder de alerta dos Signos, uma igreja seria um tipo de terra de ninguém; já que nenhum mal poderia de fato entrar em suas paredes, por isso, nenhum aviso contra o mal seria necessário. Porém, se o mal estivesse rondando do lado de fora...

O culto acabou naquele momento e todos cantavam alto "Oh Vinde Fiéis" desejando feliz Natal, enquanto o coral descia da galeria e subia até o altar. Então, a bênção do sr. Beaumont se estendeu sobre as cabeças da congregação: "... que o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo...". Mas as palavras não puderam trazer paz ao coração de Will, pois ele sabia que alguma coisa estava errada, alguma coisa surgindo iminente das Trevas, alguma coisa esperando, lá fora, e quando chegasse o momento, ele teria que encarar isto sozinho, sem estar fortalecido.

Observava todos caminhando sorridentes para fora da igreja, sorrindo e acenando uns para os outros enquanto recolhiam suas sombrinhas e subiam a gola do casaco para se proteger da neve caindo com um rodamoinho. Ele avisou o jovial sr. Hutton, o regente aposentado, girando a chave do carro, abraçando a pequenina srta. Bell, a antiga professora, e oferecendo-lhe calorosamente uma carona para casa; e atrás dela a jovial sra. Hutton, uma mulher enorme num casaco peludo, fazendo o mesmo com a franzina sra. Pettigrew, a agente do correio. Diversas crianças do vilarejo deixaram suas mães adornadas com chapéu para correr em disparada para fora a fim de fazer bolas de neve, ansiosas pelo peru de Natal. A lúgubre sra. Horniman parou aturdida perto da sra. Stanton e Mary, mostrando-se ocupada em prever algum destino fatal. Will viu Mary, tentando não rir, recorrer à sra. Dawson e sua filha casada que deixava o filho de cinco anos de idade pavoneando alegremente com suas brilhantes botas novas de vaqueiro.

Os componentes do coral, já preparados e agasalhados, começavam a sair também com gritos de "Feliz Natal" e "Vejo o senhor no Domingo, reverendo!" para o sr. Beaumont, que realizaria somente aquele culto hoje e o restante em suas outras paróquias. O regente, falando de música com Paul, sorria e acenava vagamente. A igreja começava a ficar vazia, enquanto Will aguardava seu irmão. Sentia um arrepio no pescoço, como a eletricidade que cai fortemente opressiva no ar antes de uma enorme tempestade. Conseguia sentir isso em todos os lugares; o ar dentro da igreja estava carregado dessa energia. O regente, ainda conversando distraidamente, estendeu a mão e desligou as luzes dentro do templo, deixando o ambiente escuro, cinzento e frio, com a luz brilhando através do reflexo propiciado pelos espectadores da neve situados ã porta. Will, avistando algumas pessoas se moverem naquela direção, para longe da escuridão, percebeu que a igreja não estava totalmente vazia. Lá embaixo, perto da pequena fonte do século 12, avistou o fazendeiro Dawson, o Velho George, o filho do Velho George e John, o ferreiro, com sua esposa silenciosa. Os Anciãos do Círculo estavam esperando por ele, para apoiá-lo contra seja lá o que estivesse escondido lá fora. Will se sentiu fraco por um momento enquanto o alívio era derramado sobre ele em uma maravilhosa onda de calor.

— Tudo pronto, Will? — perguntou o regente cordialmente, vestindo seu sobretudo. Ele continuou, ainda preocupado, falando com Paul. — É claro, eu realmente concordo que o concerto duplo é um dos melhores. Eu só gostaria que ele gravasse a suíte desacompanhada de Bach. Eu o ouvi tocá-la certa vez numa igreja em Edimburgo, no Festival... maravilhoso.

Paul, com os olhos mais atentos, disse: — Há algo errado, Will?

— Não — respondeu ele. — Isto é... não. — Estava tentando pensar desesperadamente em alguma maneira de levar os dois para fora do templo antes de se aproximar sozinho da porta.

Mas antes, antes mesmo que qualquer coisa pudesse acontecer, aconteceu. Pela porta da igreja ele podia sentir os Anciãos se moverem lentamente em um grupo fechado, apoiando uns aos outros. Podia sentir uma força muito resistente naquele momento, muito próxima, por todos os lados; o ar estava denso; fora do templo, havia destruição e caos, o coração das Trevas, e ele não conseguia pensar era nada que pudesse fazer para remediar isto. Então, quando o regente e Paul se viraram para caminhar pela nave, ele viu ambos ficarem imóveis no mesmo instante, e suas cabeças se ergueram como a cabeça de um cervo em sinal de alerta. Era tarde demais; a voz das Trevas era tão alta que mesmos os humanos puderam perceber seu poder.

Paul cambaleou, como se alguém o tivesse empurrado no peito, e segurou-se num banco procurando apoio. — O que foi isto? — perguntou ele roucamente. — Reverendo? Que raios foi isto?

O sr. Beaumont virou-se muito pálido. Havia um brilho de suor em sua testa; a igreja estava muito fria novamente. — Nada de mais, eu acho, talvez — disse ele. — Deus me perdoe. — E ele saiu tropeçando perto da porta, como um homem lutando através das ondas do mar, e, inclinando-se levemente, fez um rápido sinal da cruz. Gaguejava. — Proteja-nos, seus humildes servos, de todos os ataques de nossos inimigos; pois certamente confiamos em sua proteção e não temeremos o poder de quaisquer adversários...

O fazendeiro Dawson falou muito calmamente, mas com intensidade, ao grupo do lado da porta: — Não, Reverendo.

O pastor parecia não ouvi-lo. Seus olhos estavam arregalados, fitando a neve; ele permaneceu transfixado e tremia como um homem febril; o suor escorria por seu rosto. Ele conseguiu erguer parcialmente um braço e apontou para trás de si: — .... a sacristia... — dizia sem fôlego. — ... o livro, sobre a mesa... exorcismo...

— Pobre e corajoso amigo — disse John Smith na Linguagem Antiga.

— Esta batalha não é para ele lutar. Provavelmente ele acha que sim, é claro, estando em sua igreja.


— Calma, Reverendo — disse a esposa do ferreiro no idioma que ele podia entender; a sua voz era suave e gentil, com o forte sotaque da região. O pastor olhou-a como um animal assustado, mas naquele instante todo seu domínio da fala e movimento lhe foram arrancados.

Frank Dawson disse: — Venha aqui, Will.

Lutando contra a barreira das Trevas, Will avançou lentamente; tocou os ombros de Paul quando passou por ele, olhando dentro dos olhos confusos da face tão perturbada e impotente como a do pastor. E disse suavemente: — Não se preocupe. Logo tudo ficará bem.

Cada um dos Anciãos o tocou calmamente quando se aproximou do grupo, como se estivessem se unindo a ele; e o fazendeiro Dawson o segurou pelo ombro, dizendo: — Nós devemos fazer algo para proteger esses dois, Will, ou suas mentes irão sofrer sérios danos. Eles não podem suportar a pressão, as Trevas os enlouquecerão. Você tem o poder que o resto de nós não tem.

Foi a primeira intimação de que ele poderia fazer alguma coisa que os outros Anciãos não poderiam, mas não havia tempo para perguntas; com o Dom da Magia, ele fechou a mente de seu irmão e do pastor colocando uma barreira que nenhum poder de qualquer tipo poderia romper. Tratava-se de um perigoso empreendimento, já que o realizador era o único que poderia remover a barreira, e, se alguma coisa lhe acontecesse, os dois protegidos ficariam como vegetais, incapazes de se comunicar para sempre. Mas tinham que correr o risco; não havia mais nada que pudessem fazer. Os olhos deles se fecharam suavemente como se caíssem em um sono profundo e permaneceram bem quietos. Depois de uns momentos, seus olhos se abriram novamente, mas estavam tranqüilos e vazios, inconscientes.

— Tudo bem — disse o fazendeiro Dawson. — Agora.


Os Anciãos se posicionaram na porta da entrada do templo, de braços dados. Ninguém falava uma só palavra. Ruídos enlouquecidos e turbulências eram ouvidos do lado de fora; a luz escureceu, o vento uivava e gemia, a neve chicoteava e rodopiava em suas faces como raspas de gelo branco. E, repentinamente, as gralhas se amontoaram na neve, centenas delas, uma onda negra de malevolência grasnando e crocitando roucamente; algumas voando, mergulhavam sobre o pórtico em um ataque assustador, e então, levantando vôo, afastavam-se para longe. Elas não conseguiam se aproximar o suficiente para arranhar ou rasgar; era como se uma parede invisível as fizesse cair em retrocesso a milímetros de distância de seu alvo.

Mas isso durou somente até quando a força dos Anciãos pôde impedir. Em um temporal furioso branco e negro, as Trevas atacavam, surrando suas mentes e seus corpos, e acima de tudo se dirigindo ao Descobridor dos Signos, Will. E o menino soube que se estivesse sozinho na luta de sua mente, mesmo com todos os dons de proteção, teria sofrido um colapso. Era a força do Círculo dos Anciãos que o mantinha ágil agora.

Mas pela segunda vez em sua vida, o Círculo não podia fazer nada mais do que manter o poder das Trevas afastado. Mesmo juntos, os Anciãos não podiam rechaçá-lo. E a Dama não se encontrava com eles, para propiciar um tipo grandioso de socorro. Will percebia mais uma vez, impotente, que para ser um Ancião deveria ser muito velho antes do tempo apropriado, pois o medo que ele começava a sentir naquele momento era pior do que o terror às cegas vivenciado em sua cama no sótão, e pior do que o medo que lhe fora infligido pelas Trevas no Grande Salão. Desta vez, era um medo adulto, propiciado por experiências, imaginação e zelo pelos outros, e isso era o pior de tudo. No momento em que descobriu isto, percebeu também que ele, Will, era o único que poderia vencer seus próprios medos, e com isso o Círculo seria fortalecido e as Trevas rechaçadas. Quem é você? Perguntava ele para si mesmo e respondia: você é o Descobridor dos Signos que possui três de todos os Signos, metade dos círculos dos Artefatos de Poder. Use-os.

Havia suor em sua testa agora como havia na fronte do pastor que, naquele momento, juntamente com Paul permaneciam em sorridente paz, obviamente, ignorantes de tudo o que estava se passando. Will podia ver a tensão nos rostos de seus companheiros, sobretudo na face do fazendeiro Dawson. Lentamente, ele moveu sua mão para o interior do círculo visando aproximar as mãos de cada um deles; a mão esquerda de John Smith ficara bem próxima da mão direita do fazendeiro Dawson. E quando eles estavam perto o suficiente, Will juntou as mãos de seus companheiros, isolando-se. Por um momento de pânico, ele as segurou firmemente de novo, como se estivesse apertando um nó. Então ele saiu, ficando sozinho.

Desprotegido agora pelo Círculo, embora defendido por trás, ele vacilava sob o impacto dos maus desejos que vinham de fora da igreja. Então, movendo-se propositalmente, desapertou o cinto com seus três preciosos fardos e o colocou firmemente sobre o braço; retirou de seu bolso a pena da gralha e a entrelaçou no centro do Signo: o círculo quartejado de bronze. Em seguida, pegou o cinto com ambas as mãos, segurando-o diante de si, e moveu-se lentamente ao redor até que ficou sozinho no vestíbulo da igreja, enfrentando os uivos e gritos das gralhas negras e geladas adiante. Will nunca se sentira tão sozinho antes. Ele não fez nada, não pensou em nada, só ficou ali, deixando que os Signos agissem por si mesmos.

E, de repente, o silêncio.

Os pássaros agitados partiram. O vento não uivava mais. O zumbido louco e horrível que enchia o ar e a mente desapareceu completamente. Cada músculo e cada nervo do corpo dele relaxaram quando a tensão esvaeceu. Do lado de fora, a neve caía calmamente, mas os flocos eram menores agora. Os Anciãos olhavam um para o outro e riam.

— O círculo completo fará o verdadeiro trabalho — disse Velho George —, mas a metade de um círculo pode fazer muito, hein, jovem Will?

Will fitava os Signos em sua mão e balançava a cabeça, admirado.

O Fazendeiro Dawson disse suavemente: — Em todos os meus dias, desde o desaparecimento do graal, esta é a primeira vez que presenciei algo além da mente de um dos grandes, o rechaçar das Trevas. As coisas, desta vez, agiram sozinhas, por toda nossa disposição. Nós temos os Artefatos de Poder novamente. Já fazia tempo, muito tempo.

Will ainda olhava os Signos, como se eles segurassem seus olhos por algum propósito. — Espere — disse de forma abstrata. — Não se mexam. Fiquem assim por um momento.

Todos pararam, assustados. O ferreiro perguntou: — Hã algum problema?

— Olhem para os Signos — disse Will. — Há algo acontecendo com eles. Eles estão... estão radiantes.

Virou-se lentamente, ainda segurando o cinto com os três Signos como antes, até que seu corpo estivesse bloqueando a luz cinzenta que surgia da porta e suas mãos estivessem na penumbra da igreja; então, os Signos brilharam cada vez mais, cada um deles irradiando uma estranha luz interna.

Os Anciãos olharam atentamente.

— Seria o poder de rechaçar as Trevas? — indagou a esposa de John Smith em sua fala alegre e suave. — Seria alguma coisa neles que estivera adormecida e começa a despertar neste momento?

Will tentava em vão sentir o que os Signos estavam lhe dizendo. — Eu acho que é uma mensagem, que significa algo. Mas não consigo entender.

A luz propagou-se pelos três Signos e preencheu a metade escura da pequena igreja como muito brilho; era uma luz como um raio de sol, quente e forte. Ansiosamente, ele estendeu um dedo para tocar o círculo mais próximo, o Signo de Ferro, mas o objeto não estava quente nem frio.

O fazendeiro Dawson falou de repente: — Olhe lá!

Seus braços estavam erguidos, apontando para cima da nave, em direção ao altar. No instante em que se viraram, avistaram o que ele tinha visto: outra luz, resplandecendo da parede, do mesmo modo como ao lado deles a luz resplandecia dos Signos. Brilhava como a chama de uma grande tocha.

E Will compreendeu. E disse feliz: — Então este é o motivo.

Andou na direção do segundo trecho resplandecente, carregando o cinto e os Signos, de modo que as sombras sobre os bancos e os fachos de luz do telhado se moviam com ele enquanto caminhava. Quando as duas luzes se aproximaram, parecia que haviam ficado ainda mais esplendorosas. Devido à altura de Frank Dawson e à pesada silhueta iminente atrás dele, Will parou no meio de um raio de luz emitido da parede. Era como se uma fenda estivesse deixando a luz passar de algum aposento inimaginavelmente iluminado do outro lado. Ele viu que a luz era irradiada de alguma coisa muito pequena, assim como um de seus dedos estendidos ao lado.

Convicto, Will comunicou ao sr. Dawson: — Eu devo retirá-lo rápido, você sabe, enquanto a luz ainda resplandece de dentro dele. Se a luz deixar de brilhar, não poderá ser encontrado. — E colocando o cinto com o Signo de Ferro, o Signo de Bronze e o Signo de Madeira nas mãos de Frank Dawson, avançou em direção à parede com fenda de luz e estendeu a mão dentro da pequena fonte de raio de luz encantado.

O objeto cintilante saiu facilmente da parede de estuque fendida, de onde se via a pederneira de Chiltern. O objeto foi acomodado em sua palma: um círculo quartejado por uma cruz. Não havia sido cortado naquele formato. Mesmo com o resplendor do objeto, Will pôde ver a forma circular e lisa dos lados que lhe diziam se tratar de uma pedra natural, feita do calcário de Chiltern há quinze milhões de anos.

— O Signo de Pedra — disse o fazendeiro Dawson. A sua voz soava reverente e tranqüila e seus olhos eram escuros e ilegíveis. — Nós encontramos o quarto Signo, Will.

Juntos, voltaram para se reunir aos outros, portando as reluzentes Coisas de Poder. Os três Anciãos observavam em silêncio. Paul e o pastor agora se encontravam sentados tranqüilos em um banco, como se dormissem. Will continuou com seus companheiros e pegou o cinto, colocando nele o Signo de Pedra para que permanecesse junto dos outros três. Foi necessário cerrar os olhos para impedir que a luz o cegasse. Então, quando o quarto Signo já estava acomodado com os outros, toda a luz que resplandeciam se dissipou. Eles ficaram escuros e imóveis, como antes, e o Signo da Pedra revelou-se um objeto liso e bonito, apresentando a superfície branco-acinzentada de uma pedra intacta.

A pena das gralhas negras ainda estava entrelaçada no Signo de Bronze. Will a retirou. Ele não precisava dela agora.

Quando a luz se dissipou de dentro dos Signos, Paul e o pastor se mexeram. Abriram os olhos, admirados de ver a si mesmos sentados em um banco quando hã alguns instantes, conforme lhes parecia, estavam de pé. Paul se reergueu de pronto instintivamente; sua cabeça girava, cheia de perguntas. — Acabou! — disse o rapaz. Olhava para Will, e uma expressão peculiar de confusão, surpresa e admiração surgiu em seu rosto. Seus olhos passearam pelo cinto nas mãos de Will. — O que aconteceu? — ele perguntou.

O pastor se levantou, seu rosto liso e rechonchudo enrugou-se pelo esforço de dar sentido ao incompreensível. — Certamente acabou — disse, olhando lentamente ao redor da igreja. — Qualquer que tenha sido a influência. O Senhor seja louvado. — Ele também olhou para os Signos no cinto de Will e olhou para cima novamente, sorrindo de repente, um sorriso quase infantil de alívio e alegria. — Ela fez seu trabalho, não fez? A Cruz. Não a da igreja, mas a cruz cristã, todavia.

— Muito antigas, as cruzes deles são, pastor — disse Velho George inesperadamente, firme e claro —, feitas muito tempo antes do cristianismo. Muito antes de Cristo.

O pastor sorriu para ele. — Mas não antes de Deus — disse ele com simplicidade.

Os Anciãos olharam-no. Não havia resposta que não pudesse ofendê-lo, então ninguém tentou dar-lhe uma. Exceto Will, depois de um momento.

— Não existe nada realmente antes e depois, existe? — perguntou ele. — Tudo o que importa está além do Tempo. E vem de lá e pode ir para lá.

O sr. Beaumont virou-se para ele surpreso. — Você quer dizer a eternidade... é claro, meu garoto.

— Não exatamente — disse o Ancião que era Will. — Eu quero dizer a parte de todos nós e de todas as coisas que pensamos e cremos e que não tem nada a ver com o ontem, o hoje ou o amanhã, pois pertence a um nível diferente. O ontem ainda está lá, naquele nível. O amanhã também está lá. E é possível visitar ambos. E todos os deuses estão lá, e todas as coisas que eles sempre apoiaram. E — ele acrescentou com tristeza — o oposto também.

— Will — disse o pastor, mirando-o diretamente —, eu não sei se você deveria ser exorcizado ou ordenado. Você e eu precisaremos ter longas conversas, muito em breve.

— Sim, precisaremos — disse Will igualmente. Afivelou o cinto, pesado com seus preciosos fardos. E pensava com afinco e rapidamente enquanto fazia isso, e a principal imagem diante de sua mente não eram as suposições teológicas distorcidas do sr. Beaumont, mas o rosto de Paul. Will viu seu irmão olhando-o com um tipo de temor distante que lhe impingia dor como uma chicotada. Era mais do que ele poderia suportar. Os dois mundos de Will não podiam ser tão próximos. Ele ergueu a cabeça, reunindo todos os seus poderes, estendeu os dedos alongados de suas mãos e apontou uma mão para cada um deles.

— Vocês esquecerão — declarou ele suavemente na Linguagem Antiga. — Esqueçam, esqueçam.

— ... certa vez numa igreja em Edimburgo, no Festival... maravilhoso — dizia o pastor para Paul, estendendo a mão para abotoar o casaco até em cima — sarabanda da quinta suíte literalmente me levou às lágrimas. Ele é o maior violoncelista de todo o mundo, sem dúvida.

— Ah sim — concordou Paul. — Ah, sim. Ele é. — O rapaz colocou seu casaco sobre os ombros. — A mamãe já foi, Will? Ei, sr. Dawson, olá, feliz Natal! — Ele sorriu e acenou para o restante, enquanto voltavam para o vestíbulo da igreja e para os flocos de neve espalhados ao redor.

— Feliz Natal, Paul, sr. Beaumont — cumprimentou o fazendeiro Dawson com seriedade. — Bom culto, reverendo, muito bom.

— Ah, o calor da época, Frank — disse o pastor. — Uma estação maravilhosa também. Nada pode interferir em nossos cultos natalinos, nem mesmo a neve.

Rindo e conversando, saíram pelo mundo branco ao redor, onde a neve se amontoava sobre as lápides invisíveis e os campos brancos estendendo-se até o Tâmisa congelado. Não havia qualquer som, nenhuma perturbação, somente o murmúrio de vez em quando de um carro passando na distante Rodovia Bath. O pastor virou-se para o lado para encontrar sua motocicleta. O restante deles partiu, em uma forte caminhada, para seus respectivos lares.

Duas gralhas negras estavam empoleiradas sobre o portão quando Will e Paul passaram por perto. Elas se ergueram lentamente no ar, quase num pulo, em suas formas escuras e deslocadas sobre a neve alva. Uma delas passou perto dos pés de Will deixando algo cair ali e emitindo um ruído rouco reprovativo enquanto passava. Will recolheu: era uma lustrosa castanha do bosque das gralhas, tão fresca como se tivesse amadurecido ontem. Ele e James sempre recolhiam tais castanhas do bosque no início do outono para o jogo de conker da escola, mas eles nunca tinham visto uma como aquela.

— Olha só — disse Paul, divertido. — Você arranjou um amigo que trouxe um presente extra de Natal.

— Uma oferta de paz, talvez — disse Frank Dawson atrás dele, sem qualquer traço de expressão em seu profundo sotaque de Buckinghamshire. — Mas por outro lado, talvez não. Feliz Natal, rapazes. Aproveitem o jantar. — Depois disso, os Anciãos partiram, subindo a estrada.

Will recolheu a castanha. — Bem, eu nunca — disse. Fecharam o portão da igreja, derrubando um amontoado de neve de suas barras de ferro. Na curva da esquina soou o ruído do ronco da motocicleta quando o pastor tentou fazê-la funcionar. Então, hã alguns centímetros adiante, sobre a neve pisoteada, a gralha saltou para o chão novamente. O pássaro pisava irresolutamente para a frente e para trás e observava Will.

— Caak — fez a gralha, emitindo um som muito suave para uma gralha. — Caaack, caak, caak. — Então, o pássaro avançou alguns passos até a cerca do cemitério da igreja, pulou para o outro lado do cemitério e andou para trás como antes. O convite não poderia ser mais óbvio. — Caak — chamava a gralha novamente, mais alto.

Os ouvidos dos Anciãos sabiam que as aves não falavam com a mesma precisão das palavras; em vez disso, elas transmitiam emoções. Hã muitos tipos e níveis de emoção, muitos tipos de expressão mesmo na linguagem dos pássaros. Entretanto, embora Will pudesse notar que a gralha estava obviamente lhe pedindo para segui-la e olhar algo, não poderia dizer se a ave estava sendo usada pelas Trevas ou não.

Parou, pensando sobre o que as gralhas tinham feito; então tocou a minúscula castanha marrom em sua mão.

— Tudo bem, pássaro — disse ele. — Uma olhada bem rápida.

Voltou pelo portão, e a ave, gralhando como uma porta velha, andava estabanadamente à sua frente, subindo o caminho da igreja perto dali. Paul observava, sorrindo. Mas logo viu Will subitamente se enrijecer quando chegou à curva; o menino desapareceu por um momento e reapareceu.

— Paul! Venha rápido! Tem um homem na neve.

Paul gritou pelo pastor, que começava a empurrar sua moto estrada acima para tentar ligá-la de lá, e juntos começaram a correr. Will estava curvado sobre uma figura corcunda, estendida entre a parede da igreja e a torre; não se viam movimentos e a neve já tinha coberto a roupa do homem quase alguns centímetros com seus flocos frios e leves. O sr. Beaumont moveu Will gentilmente para o lado e ajoelhou-se, virando a cabeça do homem para tentar sentir seu pulso.

— Ele está vivo, graças a Deus, mas está muito frio. O pulso não está bom. Ele deve estar aqui há tempo suficiente para que outros homens tivessem falecido numa exposição desta. Olhem para a neve! Vamos levá-lo para dentro.

— Dentro da igreja?

— Sim, é claro que sim.

— Vamos levá-lo para nossa casa — disse Paul impulsivamente. — Fica logo ali, afinal. É quente e muito melhor, pelo menos até a ambulância chegar ou até que outra coisa venha ajudá-lo.

— Uma ótima idéia — disse o sr. Beaumont calorosamente. — Sua boa mãe é uma samaritana, eu sei. Pelo menos até que o dr. Armstrong possa ser chamado... nós certamente não poderíamos deixar o pobre camarada aqui. Acho que ele não tem nenhum osso quebrado. Problemas do coração, provavelmente. — Ele colocou suas pesadas luvas sob a cabeça do homem para protegê-lo da neve, e Will viu o seu rosto pela primeira vez.

Disse alarmado: — É o Andarilho! Eles se viraram para ele: — Quem?

— Um velho mendigo que andava por aí... Paul, não podemos levá-lo para nossa casa. Não seria melhor o levarmos para o consultório do dr. Armstrong?

— Desse jeito? — Paul indicou o céu cada vez mais escuro; a neve rodopiava ao redor deles, mais densa novamente, e o vento soprava mais alto.

— Mas não podemos levá-lo conosco! Não o Andarilho! Ele trará de volta... — Ele parou de repente, no meio de um grito. — Ah — disse impotente —, é claro, você não pode se lembrar, não é?

— Não se preocupe, Will, sua mãe não se importará... pobre homem in extremis. — O sr. Beaumont estava alvoroçado agora. Ele e Paul carregavam o Andarilho até o portão, como uma pilha de roupas velhas. E ao conseguirem finalmente dar partida na motocicleta, eles de alguma maneira apoiaram sobre ela a silhueta inerte; então, metade empurrando, metade dirigindo, o estranho e pequeno grupo tomou o rumo da casa dos Stanton.

Will olhou para trás uma ou duas vezes, mas a gralha já não se encontrava em nenhum lugar em que pudesse ser vista.

 

— Ora, ora — disse Max fastidiosamente, quando desceu para a sala de jantar. — Agora, realmente, nós encontramos um velho sujo.

— Ele cheirava — disse Bárbara.

— Você é quem está dizendo. Nosso pai e eu demos um banho nele. Meu Deus, você deveria tê-lo visto. Bem, não, não deveria. Teria-lhe desanimado da ceia do Natal. De qualquer maneira, ele é um bebê recém-nascido e limpo agora. O papai até lavou os cabelos e a barba dele. E a nossa mãe está queimando as suas roupas horríveis, logo que teve certeza de que nada valia a pena nelas.

— Nada de muito perigoso nisso, eu acho — disse Gwen, saindo da cozinha. — Preste atenção, tire o braço daí, esta travessa está quente.

— Nós deveríamos trancar toda prataria — disse James.

— Que prataria?— perguntou Mary secamente.

— Bem, as jóias da mamãe então. E os presentes de Natal. Mendigos sempre roubam coisas.

— Esse aí não roubará nada por um bom tempo — disse o sr. Stanton, sentado-se em seu lugar na cabeceira da mesa com uma garrafa de vinho e um saca-rolhas. — Ele está enfermo. E já adormeceu, roncando feito um camelo!

— O senhor já ouviu um camelo roncar? — perguntou Mary.

— Sim — confirmou seu pai. — E já montei em um. Viu só! Quando o médico chega, Max? Foi uma pena interromper o jantar dele, pobre homem.

— Nós não interrompemos — disse Max. — O doutor estava fora fazendo um parto e sua família não sabia dizer quando ele voltaria. A mulher estava esperando gêmeos.

— Ai, Senhor.

— Bem, o velho garoto deve estar bem se estiver dormindo. Só precisa descansar, eu espero. Embora eu deva dizer que ele parecia um tanto delirante, com toda aquela conversa sinistra.

Gwen e Bárbara trouxeram mais travessas com vegetais. Na cozinha, a mãe estava fazendo um barulho impressionante ao chocar algum objeto com o forno.

— Que conversa sinistra? — indagou Will.

— Sei lá! — disse Robin. — Foi quando o levamos para cima pela primeira vez. Parecia uma língua desconhecida aos ouvidos humanos. Talvez ele seja de Marte.

— Eu só queria que sim — disse Will. — Assim, nós poderíamos mandá-lo de volta.

Mas um grito de aprovação saldou a entrada de sua mãe que sorria portando o peru lustroso e por isso ninguém o ouviu.

 

Eles ligaram o rádio da cozinha enquanto lavavam a louça:

A neve pesada está caindo novamente sobre o sul e o oeste da Inglaterra — informava a voz impessoal. —A nevasca que tem prosseguido violentamente por doze horas no Mar do Norte está ainda imobilizando todo o carregamento de navio para as costas do sudeste. As docas londrinas fecharam esta manhã, devido à queda de energia e às dificuldades com o transporte, causadas pela neve intensa e temperaturas se aproximando de zero grau. A massa de neve acumulada pelo vento que bloqueia as vias expressas isolou vilarejos de muitas áreas remotas; e a ferrovia britânica está lutando contra numerosas quedas de energia e descarrilamentos causados pela neve. Um porta-voz das autoridades responsáveis disse nesta manhã que o público foi aconselhado a não viajar de trem, exceto em caso de emergência.

Ouviu-se o som de papel farfalhando e a voz continuou:

Não se espera que as tempestades inusitadas que têm prosseguido violentas e intermitentes pelo sul da Inglaterra nos últimos dias diminuam até o término do feriado de Natal, conforme informado pelas autoridades meteorológicas nesta manhã. A escassez de combustível se agravou no sudeste, por isso está sendo solicitado aos chefes de família que não usem qualquer forma de aquecimento elétrico entre as nove horas da manhã e o meio-dia, ou três e seis da tarde.

— Pobre e velho Max — disse Gwen. — Nada de trens. Talvez ele possa viajar de carona.

— Ouça, ouça!

Um porta-voz da Associação Automobilística disse hoje que as viagens por vias expressas no momento são extremamente desaconselháveis em todas as estradas, exceto nas autopistas. Ele acrescentou que os motoristas retidos em tempestades intensas de neve devem, se possível, permanecer dentro de seus veículos até que a neve pare de cair. O porta-voz ressaltou: a menos que o condutor esteja realmente certo sobre sua localização e saiba como chamar ajuda dentro de dez minutos, ele não deverá em hipótese alguma sair de seu carro.

A voz continuou, mas entre exclamações e assovios Will desligou o aparelho: já tinha ouvido o bastante. Estas tempestades não podiam ser interrompidas pelos Anciãos sem o poder do círculo completo dos Signos, e ao enviar as tempestades, as Trevas esperavam impedi-lo de completar O círculo. Estava preso numa cilada; as Trevas estavam estendendo suas sombras não apenas sobre sua busca, mas também sobre todo o mundo comum. Desde o momento em que o Cavaleiro invadiu seu aconchegante Natal naquela manhã, Will percebeu que os perigos aumentaram, mas não havia previsto esta ameaça mais abrangente. Durante dias, esteve atento demais quanto aos seus próprios riscos para reparar naqueles do mundo exterior. Entretanto, tantas pessoas estavam ameaçadas agora pela neve e o frio: os mais jovens, os mais velhos, os fracos, os enfermos... De uma coisa o menino tinha certeza, o Andarilho não teria um médico nesta noite. Ainda bem que não estava morrendo...

O Andarilho. Por que ele estava aqui? Tinha que haver algum significado por trás disso. Talvez ele estivesse simplesmente rondando o lugar por razões pessoais e tenha sido atingido pelo ataque das Trevas na igreja. Mas se fosse isso, por que a gralha, um agente das Trevas, chamou sua atenção para salvá-lo de congelar até a morte? Quem era o Andarilho, afinal? Por que todos os poderes da Magia não lhe diziam nada a respeito do velho homem?

Novamente, ouviam-se canções natalinas no rádio. Will pensou com amargura: Feliz Natal, mundo.

Seu pai, passando por ali, bateu em suas costas. — Anime-se, Will. Provavelmente vai parar esta noite, e você estará brincando de tobogã amanhã. Venha, é hora de abrir o restante dos presentes. Se fizermos Mary esperar mais um pouco, ela vai explodir.

Will foi se juntar à sua animada e barulhenta família. De volta à brilhante e aconchegante caverna do longo aposento com o fogo e a árvore reluzente, o Natal seria intocável por enquanto, como sempre havia sido. Além disso, sua mãe, seu pai e Max economizaram juntos para lhe dar uma nova bicicleta, com guidão de corrida e onze marchas de velocidade.

 

Will nunca teve certeza se o que aconteceu naquela noite foi um sonho.

Na parte mais escura da noite, nas horas mais frias que são as primeiras do dia seguinte, ele acordou, e Merriman estava lá. Ergueu-se ao lado da cama sob uma luz suave que parecia surgir de dentro de sua própria silhueta; o rosto dele estava sombrio, inescrutável.

— Acorde, Will. Acorde. Há uma cerimônia da qual precisamos participar.

Em um instante, Will estava de pé e viu que já estava completamente vestido, com os Signos e seu cinto já colocados ao redor de seu quadril. Foi com Merriman até a janela. Estava empilhada com neve até a metade de sua altura, e mesmo assim os flocos caíam calmamente. Ele disse de repente, desolado: — Existe algo que eu possa fazer para parar isto? Metade do país está congelando, Merriman, pessoas morrerão.

Merriman sacudiu a cabeleira branca lenta e pesadamente. — As Trevas têm seu poder mais forte de todos se levantando entre agora e o Décimo Segundo Dia. Isto é só uma preparação. É deles a força fria e o inverno os alimenta. Eles pretendem quebrar o círculo para sempre, antes que seja tarde demais para eles. Logo, todos nós deveremos enfrentar um teste muito difícil. Mas nem tudo se move conforme a vontade deles. Muita magia ainda flui, porém sem ser usada, pelos Caminhos dos Anciãos. E podemos ficar mais esperançosos em breve. Venha.

A janela diante deles se abriu, espalhando toda a neve. Um caminho levemente iluminado como uma faixa larga se estendia adiante, alongando-se no ar salpicado de neve. Will podia ver através dele, ver o contorno dos montes de neve nos telhados, cercas e árvores lá embaixo. Porém, o caminho era real também. Em uma passada, Merriman o alcançou pela janela e saiu em grande velocidade, em um movimento estranho como um planador, desaparecendo na noite. Will saltou depois dele, e o estranho caminho o fez deslizar pela noite, sem a sensação de velocidade ou frio. A noite ao redor dele era escura e densa; nada deveria ser visto, exceto o brilho dos caminhos etéreos dos Anciãos. E então, ao mesmo tempo, eles se encontravam num tipo de bolha do Tempo, pairando, inclinando-se no vento como Will havia aprendido de sua águia do Livro da Magia.

— Observe — disse Merriman, e seu casaco girou em volta de Will como se tentasse protegê-lo.

Will viu no céu escuro, ou em sua própria mente, um grupo de árvores grandes, sem folhas, erguendo-se sobre uma cerca viva sem folhas, invernal, porém sem neve. Ouviu uma música estranha e aguda, uma flauta acompanhada pela batida curta, mas constante, de um tambor, tocando continuamente a mesma canção melancólica. E fora da escuridão profunda e no fantasmagórico bosque pequeno de árvores, surgiu uma procissão.

Era uma procissão de garotos, com roupas de alguma época do passado: túnicas e calças rústicas; os cabelos atingiam a altura dos ombros e usavam um capuz semelhante a bolsas, num formato que nunca havia visto antes. Eram mais velhos do que ele: tinham por volta dos quinze anos, imaginava. E mantinham a mesma expressão quase solene dos participantes de jogos de charada, misturando o sério propósito com uma borbulhante sensação de diversão. Na frente, surgiam garotos com varas e feixes de gravetos de vidoeiro; no fim, encontravam-se os músicos das flautas e tambores. Entre eles, seis garotos carregavam um tipo de plataforma feita de junco e galhos entrelaçados, com um ramo de azevinho em cada canto. Era como uma maca, pensava Will, exceto pelo motivo de que eles a estavam segurando na altura dos ombros. Pensou a princípio que se tratava apenas disso e que estava vazia; então, percebeu que sustentava alguma coisa. Uma coisa muito pequena. Em um colchão de folhas de hera, no centro do ataúde entrelaçado, encontrava-se o corpo de um pássaro minúsculo: um pássaro marrom, empoeirado, com um bico perfeito. Era um uirapuru.

A voz de Merriman soou suavemente sobre sua cabeça, fora da escuridão: — É a Caça ao Uirapuru, realizada todo anos, desde que os homens podem se lembrar, no solstício. Mas este é um ano especial, e nós poderemos ver mais, se tudo correr bem. Tenha esperança em seu coração, Will, de que poderemos ver mais.

E quando os garotos e sua música triste se moveram pela imensidão de árvores que não parecia poderem transpor, Will percebeu com a respiração entrecortada que, em vez de um pequeno pássaro, via-se emergindo a forma indistinta de uma silhueta diferente sobre o ataúde. A mão de Merriman segurou firme o ombro do menino como uma braçadeira de aço, embora o homem alto não emitisse qualquer som. Deitado sobre a cama de junco entre os quatro azevinhos, agora não existia mais um minúsculo pássaro, mas uma pequena e bem constituída mulher, muito velha, delicada como um pássaro, vestida em trajes cerimoniais azuis. As mãos estavam dobradas sobre o peito e em um dedo cintilava um anel com uma pedra enorme de tonalidade rosa. No mesmo instante, Will avistou sua face e soube que era a Dama.

Gritou de dor: — Mas você disse que ela não estava morta!

— E não está mais — disse Merriman.

Os garotos caminharam até a música; o ataúde com a silhueta silenciosa deitada ali se aproximou e depois se afastou, desaparecendo com a procissão em direção à noite, e a canção triste da flauta e as batidas do tambor diminuíram depois disso. Mas no auge do desaparecimento, os garotos que tocavam pararam, deixaram seus instrumentos e se viraram para olhar sem expressão para Will.

Um deles disse: — Will Stanton, cuidado com a neve!

O segundo gritou: — A Dama retornará, mas as Trevas estão se rebelando.

O terceiro, em uma rápida canção, entoou algo que Will reconheceu logo que começou:

Quando as Trevas se rebelarem,

seis devem fazê-la recuar, 

Três do círculo, três da trilha;

Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;

Cinco retornarão, e um deve sozinho continuar.

Mas o garoto não parou, assim como Merriman havia feito. Prosseguiu dizendo:

Ferro para o aniversário, bronze depois de muito carregar;

Pedra sem a música; madeira das chamas, 

Água do degelo, fogo no círculo de velas;

Seis Signos formam o círculo, e o graal não mais estará.

Então, um vento intenso surgiu do nada e, sob um temporal de neve e escuridão, os garotos partiram, rodopiando para longe. Will também se sentiu rodopiando para trás, voltando através do Tempo, ao longo do reluzente caminho dos Anciãos. A neve surrava seu rosto. A noite estava em seus olhos, ardente. Longe da escuridão, ele ouviu Merriman chamando por ele, com urgência, mas com uma nova esperança e ressonância em sua voz profunda: "O perigo se levanta com a neve, Will, cuidado com a neve. Siga os Signos, cuidado com a neve...".

E Will se encontrou de volta em seu quarto, de volta em sua cama, adormecendo com uma palavra sinistra soando em sua cabeça, como o repicar mais intenso dos sinos da igreja sobre os montes de neve. "Cuidado... cuidado...”

 

                                           A CHEGADA DO FRIO

 

No dia seguinte, a neve continuou caindo durante o dia inteiro. E no posterior também.

— Eu realmente queria que isto parasse — disse Mary descontente, fitando a janela encoberta. — É horrível a maneira como continua caindo sem parar, odeio neve.

— Não seja tola — disse James. — Trata-se apenas de uma tempestade mais demorada. Não precisa ficar histérica.

— É diferente. É sinistra.

— Bobagem. É só um monte de neve.

— Ninguém nunca viu tanta neve antes. Olha a altura disso, seria impossível sair pelas portas dos fundos se não tivéssemos limpando o lugar desde quando a neve começou a cair. Estaríamos soterrados, isso sim. Parece que quer nos comprimir, chegou até a quebrar a janela da cozinha, você sabia disso?

Will perguntou asperamente: — O quê?

— A janelinha dos fundos, perto do aquecedor. Gwennie desceu esta manhã e a cozinha estava fria como gelo, com neve e cacos de vidro pra todo lado. A neve pressionou a janela com seu peso.

James suspirou alto. — Peso não empurra. A neve foi se acumulando pelo vento naquele lado da casa, é só isso.

— Não me interessa o que você diz, é horrível. E como se a neve estivesse tentando entrar. — A menina parecia prestes a chorar.

— Vamos subir e ver se o Anda... o velho mendigo já acordou — disse Will. Já era hora de fazer Mary parar antes que estivesse perto da verdade. Quantas outras pessoas no país estavam sendo tão atemorizadas desse jeito pela neve? Ele pensava irritado nas Trevas e desejava saber o que fazer.

O Andarilho havia dormido durante todo o dia anterior, raramente se mexia, exceto quando murmurava ocasionalmente algo sem significado, e uma ou duas vezes emitiu um pequeno grito rouco. Will e Mary subiram para o quarto dele, carregando uma bandeja com cereais, torradas, leite e geléia.

— Bom-dia! — disse Will alto e claro assim que entraram. — Gostaria de tomar o café-da-manhã?

O Andarilho abriu o canto de um olho e espiou quem estava ali através de seu cabelo grisalho desgrenhado, mais cheio e longo do que nunca agora que estava limpo. Will estendeu a bandeja em sua direção.

— Fora! — falou o Andarilho com a voz rouca. Era um ruído parecido com alguém cuspindo.

Mary disse: — Oro!

— Gostaria de outra coisa então? — perguntou Will. — Ou apenas não está com fome?

— Mel — respondeu o Andarilho.

— Mel?

— Mel e pão. Mel e pão. Mel e...

— Tudo bem — disse Will. Eles levaram a bandeja embora.

— Ele sequer disse por favor — disse Mary. — Ele é um velho antipático. Não vou chegar perto dele de novo.

— Faça como quiser — disse Will. Deixado sozinho, ele encontrou o que sobrara de mel em um pote no fundo de uma despensa, bastante cristalino nas bordas, e o espalhou abundantemente sobre três fatias de pão. Depois, levou os pães com um copo de leite para o Andarilho que se sentara ávido na cama e devorava todos os alimentos. Enquanto comia, o velho não era uma visão muito agradável.

— Bom — ele disse. Tentou limpar o mel caído em sua barba e lambeu a mão, dando uma espiada em Will. — Nevando ainda? Está caindo ainda, não é?

— O que você estava fazendo na neve?

— Nada — disse o Andarilho de repente. — Não me lembro. — Os olhos dele se estreitaram atentos, e fazendo um gesto para sua fronte, disse em um resmungo intransigente: — Bati minha cabeça.

— Não se lembra de onde o encontramos?

— Não.

— Lembra-se de mim?

Prontamente, ele balançou a cabeça. — Não.

Will falou suavemente de novo, desta vez na Linguagem Antiga: — Lembra-se de mim?

O rosto barbudo do Andarilho não revelava qualquer expressão. Will começou a pensar que talvez o homem realmente tivesse perdido a memória. Inclinou-se sobre a cama para recolher a bandeja com os pratos e copo vazio, e o Andarilho deixou escapar um grito agudo e recuou para longe do menino, escondendo-se do outro lado da cama. — Não! — gritava ele. — Não! Vá embora! Leve-os daqui!

Com os olhos arregalados e aterrorizados, ele fitava o menino com ódio. Por um momento Will ficou perplexo; depois percebeu que seu pulôver havia se erguido enquanto ele levantava os braços, e o Andarilho avistou os quatro Signos em seu cinto.

— Leve-os daqui! — uivava o velho. — Eles queimam! Tire-os daqui!

Era muita informação para alguém com perda de memória, pensava Will. Ouviu passos de preocupação subindo as escadas e saiu do quarto. Por que o Andarilho estaria tão aterrorizado pelos Grandes Signos, visto que ele carregou um deles por tanto tempo?

 

Seus pais estavam sérios. As novidades do rádio ficavam piores a cada dia enquanto o frio envolvia o país e uma restrição seguia outra. Em todos os recordes da temperatura inglesa, nunca esteve tão frio; os rios que nunca haviam congelado antes encontravam-se sólidos como o gelo, e todo porto em toda costa estava congelado também. As pessoas só podiam esperar pelo fim da neve, mas a neve persistia em cair.

Eles prosseguiam com a vida enclausurada e desassossegada "como os homens das cavernas no inverno", disse o sr. Stanton, indo para a cama a fim de poupar o fogo e o combustível. O dia do Ano-novo veio e passou, e quase não foi percebido. O Andarilho permanecia deitado na cama irrequieto, murmurando e recusando-se a comer qualquer outra coisa além de pão e leite, que naquelas alturas era leite em pó dissolvido em água. A sra. Stanton dizia gentilmente que o pobre velho estava recuperando suas forças. Will ficava ao longe. E se desesperava mais a cada dia enquanto o frio aumentava e a neve caía, caía. Sentia que se não saísse de casa logo, descobriria que as Trevas o enclausuraram para sempre. Sua mãe lhe forneceu um álibi, no final. Seu estoque de farinha, açúcar e leite enlatado tinha acabado.

— Eu sei que ninguém deveria sair de casa, exceto em casos de emergência — disse ela, ansiosamente — mas isto conta como uma. Nós precisamos de coisas para comer.

Os garotos levaram duas horas para remover a neve do caminho de seu próprio jardim até a estrada, onde um tipo de túnel sem teto, na largura de um limpa-neve, encontrava-se desobstruído. O sr. Stanton havia anunciado que somente ele e Robin sairiam para o vilarejo, mas durante as duas horas que se seguiram, Will, cavando e escavando, implorava pela permissão de acompanhá-los, e, no final, a resistência de seu pai se enfraqueceu tanto, que acabou concordando.

Vestiam lenços para proteger as orelhas, luvas grossas e três pulôveres cada um sob o casaco. E levavam uma tocha. Estava na metade da manhã, mas a neve continuava caindo tão incessante quanto antes, e ninguém sabia quando eles poderiam voltar para casa. Desde a encosta íngreme no topo de uma estrada para o vilarejo, alguns caminhos irregulares e minúsculos foram forçados e removidos da neve até as lojas menores e principais casas centrais; podiam ver pelas pegadas que alguém havia trazido cavalos da fazenda dos Dawson para ajudar a trinchar uma passagem até os chalés de pessoas como a srta. Bell e a sra. Homiman, que nunca poderiam fazer isso por si mesmas. Na loja do vilarejo, o minúsculo cãozinho da sra. Pettigrew estava enrolado como um novelo cinzento e trêmulo em um dos cantos, olhando mais murcho e infeliz do que nunca; Fred, o filho gordo da sra. Pettigrew, que a ajudava a conduzir a loja, havia torcido o pulso ao cair na neve e por isso seu braço estava numa tipóia, e a sra. Pettigrew estava muito nervosa. Ela agia de forma agitada e confusa por causa de seu nervosismo, deixando cair coisas, procurando açúcar e farinha nos lugares errados e não os encontrando e, no final, se sentava repentinamente numa cadeira, como uma marionete que se soltara de suas cordas, e disparava a chorar.

— Ai — soluçava. — Desculpe-me, sr. Stanton, é essa neve terrível. Estou tão assustada, eu não sei... Tenho tido esses sonhos que estamos isolados e ninguém sabe onde estamos...

— Nós já estamos isolados — disse o filho dela, de forma lúgubre. — Nenhum carro entrou no vilarejo durante toda esta semana. E sem suprimentos, todos estão partindo... não temos manteiga, nem mesmo leite em pó. A farinha está acabando; só temos apenas mais cinco pacotes além deste aqui.

— E ninguém tem qualquer combustível — resmungou a sra. Pettigrew. — O pequeno bebê Randall está doente com febre, e a pobre sra. Randall não tem um pedaço de carvão, e sabe Deus quantos outros mais estão em dificuldade.

A campainha da loja soou quando a porta se abriu, e, automaticamente como um velho costume do vilarejo, todos se viraram para ver quem estava entrando. Um homem muito alto, em um volumoso sobretudo preto, tirava seu chapéu de abas largas revelando os cabelos brancos; então, olhos profundos e sombrios sobre um nariz severo na forma de um gancho voltaram-se para eles.

— Boa-tarde — disse Merriman.

— Olá — disse Will, sorrindo. Seu mundo ficou repentinamente mais claro.

— Tarde — disse a sra. Pettigrew e assoou forte o nariz. Em seguida, disse com a voz abafada pelo lenço: — Sr. Stanton, o senhor conhece o sr. Lyon? Ele está no Solar.

— Como tem passado? — disse o pai de Will.

— Mordomo da srta. Greythorne — acrescentou Merriman, inclinando a cabeça respeitosamente. — Até que o sr. Bates volte de férias. Isso quer dizer, quando a neve parar de cair. No momento, é claro, eu não posso sair, e Bates não pode chegar.

― Isso nunca vai parar — gemeu a srta. Pettigrew e irrompeu em lágrimas novamente.

— Ai, mãe — disse o gordo Fred desgostoso.

Tenho algumas novidades para a senhora, sra. Pettigrew — disse Merriman em alta e tranqüilizante voz. Ouvimos um pronunciamento pela rádio local... nosso telefone está mudo, é claro, como o seu... que combustível e alimentos serão entregues nas terras do Solar, visto que o lugar pode ser visivelmente encontrado do ar, nesta neve. E a srta. Greythorne pergunta se todos no vilarejo não gostaria de se mudar para o Solar, durante essa emergência. Ficará lotado de gente, naturalmente, mas quente. E reconfortante, talvez. O dr. Armstrong estará lá... ele já está a caminho, creio eu.

— Isso é empreendedor — disse o sr. Stanton pensativamente. — Quase feudal, como se diria.

Os olhos de Merriman se estreitaram levemente. — Mas não com essa intenção.

— Ah, não. Eu percebo isso, sim.

As lágrimas da sra. Pettigrew cessaram. — Que idéia adorável, sr. Lyon! Ah, meu Deus, seria um grande alívio ficar com outras pessoas, especialmente à noite.

— Eu sou outra pessoa — disse Fred.

— Sim, querido, mas...

Fred replicou de maneira insensata: — Eu vou pegar uns cobertores. E embalar algumas coisas da loja.

— Isso seria prudente — disse Merriman. — O rádio diz que a tempestade ficará muito pior nesta noite. Portanto, tão logo todos possam ficar juntos, melhor.

— O senhor gostaria de ajuda a avisar as pessoas? - perguntou Robin, já puxando sua gola para cima novamente.

— Excelente. Isso seria excelente.

— Todos nós ajudaremos — confirmou o sr. Stanton.

Will havia se virado para olhar pela janela enquanto comentava-se sobre a tempestade, mas a neve caindo do céu firme e cinzento parecia como antes. As janelas estavam tão embaçadas que era difícil enxergar além das vidraças. Mas ele podia visualizar naquele momento alguma coisa se movendo do lado de fora. Era alguém caminhando pela Trilha do Vale do Caçador que havia se transformado numa estrada coberta de neve tranchada. Foi uma visão muito rápida, que durou somente enquanto a figura atravessava o caminho dos Pettigrew, mas durou o necessário para que ele reconhecesse o homem sentado ereto sobre um enorme cavalo negro.

— O Cavaleiro passou por aqui! — disse ele apressada e claramente na Linguagem Antiga.

A cabeça de Merriman girou rapidamente ao redor; depois, ele se recompôs e ostentosamente recolocou o chapéu. — Eu ficaria muito grato por receber ajuda.

— O que você disse, Will? — Robin, distraído, olhava para o irmão.

— Ah, nada. — Will foi até a porta, fazendo um grande estardalhaço para abotoar o casaco. — Só acabei de ver alguém.

— Mas você disse algo numa língua esquisita.

— É claro que não. Eu acabei de perguntar: "Quem é aquele lá fora?" Mas não era ninguém de qualquer maneira.

Robin ainda olhava atentamente para ele. — Você parecia o velho mendigo, quando ele ficava balbuciando no dia em que o colocamos na cama pela primeira vez... — Mas ele não estava disposto a gastar tempo com imprevistos; balançou sua cabeça realista e abandonou o assunto. — Está bom então.

Merriman conseguiu andar bem atrás de Will, enquanto deixavam os Pettigrew para avisar e espalhar a notícia pelo restante do povo do vilarejo. E disse baixinho na Linguagem Antiga: — Leve o Andarilho para o Solar, se puder. Rápido. Ou ele o impedirá de sair. Mas você pode ter problemas com o orgulho de seu pai.

Na hora em que os Stanton chegaram em casa, depois de rodarem pelo vilarejo com muita dificuldade, Will quase esqueceu do que Merriman dissera sobre seu pai. Estava ocupado demais descobrindo uma maneira de como poderiam levar o Andarilho para o Solar sem, na verdade, ter que o carregar. E lembrou-se do assunto somente quando ouviu o sr. Stanton conversando na cozinha, enquanto se despiam de seus casacos e entregavam os novos suprimentos.

— ... bondade da senhorita aceitar todos em sua casa. Naturalmente, eles possuem espaço e lareiras para isso; e aquelas velhas paredes são tão espessas que podem manter o frio mais longe do que as de qualquer um. Foi a melhor coisa para as pessoas dos chalés, como a pobre srta. Bell que não duraria muito nessa situação.... Nós ainda, é claro, estamos todos bem por aqui. Protegidos. Sem razão para partirmos e sobrecarregarmos o Solar.

— Ah, pai — disse Will impulsivamente —, o senhor não acha que deveríamos ir também?

— Acho que não — respondeu seu pai, com a tênue garantia de que Will já deveria saber que ele era mais difícil de ceder do que qualquer fé.

— Mas o sr. Lyon disse que mais tarde ficaria muito perigoso, já que a tempestade vai piorar.

— Eu acho que posso julgar o clima por mim mesmo, Will, sem a ajuda do mordomo da srta. Greythorne — disse o sr. Stanton amigavelmente.

— Uau! — disse Max com uma grosseria animada. — Você é um velho esnobe horrível. Ouça só o que está dizendo.

— Qual é, não é isso que eu quis dizer — disse seu pai lançando um cachecol sobre ele. — É, sobretudo, o contrário de esnobismo. Eu simplesmente não vejo uma boa razão para sairmos em bando a fim de compartilharmos da generosidade da senhora do Solar. Estamos perfeitamente bem aqui.

— Bem colocado — disse a sra. Stanton rapidamente.

— Agora, saiam da cozinha, todos vocês. Eu quero fazer alguns pães.

A única esperança, decidiu Will, era o próprio Andarilho. Ele saiu furtivamente e subiu para o minúsculo quarto onde o Andarilho continuava na cama. — Eu quero falar com você.

O velho virou a cabeça sobre o travesseiro. — Tudo bem — disse dando a impressão de estar triste e comedido. De repente, Will sentiu pena dele.

— Você está melhor? — perguntou o menino. — Quero dizer, realmente está doente agora, ou apenas se sente fraco?

— Não estou doente — respondeu o Andarilho indiferente. — Não além do normal.

— Consegue andar?

— Você quer me jogar de volta na neve, não é?

— É claro que não — falou Will. — Mamãe nunca deixaria você sair num tempo desses, nem eu; não que eu tenha muito a opinar quanto a isso. Eu sou o mais novo nesta família, você sabe disto.

— Você é um Ancião — disse o Andarilho, olhando para ele com desgosto.

— Bem, isso é diferente.

— Não é diferente nada. Apenas significa que não há motivos para conversar sobre você comigo como se fosse apenas o filhotinho de uma família. Eu conheço bem como é isso.

Will acrescentou: — Você foi guardião de um dos Grandes Signos... eu não vejo razão que o levaria a nos odiar.

— Eu fiz o que me obrigaram fazer — replicou o velho. — Você me achou... você me identificou... — As sobrancelhas se enrugaram, como se ele estivesse tentando se lembrar de alguma coisa de muito tempo atrás; em seguida, voltou a ser vago novamente — ... me obrigaram fazer.

― Bem, olhe, eu não quero obrigá-lo a fazer nada, mas há uma coisa que todos nós temos que fazer. A neve está I.....ando tanto, que todos no vilarejo estão indo viver no Solar, como um tipo de albergue, pois lá será mais seguro e quente. — Enquanto falava, Will sentia como se o Andarilho já soubesse o que ele estava para dizer, mas era impossível entrar na mente do velho; sempre que tentava, sentia certa obstrução, como se batesse contra o enchimento de um colchão.

— O médico estará lá também — acrescentou. — Se você fizesse todos pensarem que precisa de cuidados médicos, todos nós iríamos para o Solar.

— Quer dizer que de outra forma você não iria? — disse o Andarilho olhando-o de soslaio com desconfiança.

— Meu pai não nos deixaria ir. Mas devemos partir, é mais seguro...

— Eu não irei também — replicou o Andarilho e virou a cabeça para o lado. — Vá embora. Deixe-me assim.

Will disse suavemente, em tom de advertência, na Linguagem Antiga: — As Trevas virão atrás de você.

Houve uma pausa. Então, muito lentamente, o Andarilho virou a cabeça grisalha desgrenhada novamente, e Will estremeceu horrorizado quando viu o rosto do homem. Por apenas um momento, a história estava evidente. Havia grande profundidade de dor e terror em seus olhos, as rugas obtidas pelas más experiências faziam um vinco nítido e terrível; em algum lugar, aquele homem conheceu um medo e angústia tão terríveis que nada poderia, realmente, sensibilizá-lo outra vez. Os olhos do velho estavam arregalados pela primeira vez, bem abertos, pelo conhecimento que tinha do horror procurando por algo.

E o Andarilho disse inexpressivo: — As Trevas já vieram atrás de mim.

Will respirou profundamente o ar. — Mas chegou agora o círculo da Luz — disse ele. Retirou o cinto com os Signos e o estendeu diante do Andarilho. O velho estremeceu afastando-se, contraindo o rosto, gemendo como um animal assustado; Will se sentia enojado, mas nada podia ser feito. Aproximou os Signos do rosto velho e enrugado até que, como se ele fosse um pedaço de arame quebrado, o Andarilho perdeu o autocontrole. Gritava e começava a babar e a se debater pedindo socorro. Will correu para fora do quarto e chamou seu pai, e metade da família veio correndo.

— Eu acho que ele está tendo algum tipo de convulsão. Terrível. Não deveríamos levá-lo para o dr. Armstrong no Solar, pai?

O sr. Stanton respondeu incerto: — Talvez pudéssemos trazer o médico até aqui.

— Mas ele ficará muito melhor lá — disse a sra. Stanton, olhando para o Andarilho com preocupação. — O velho, quero dizer. Com o doutor disponível para assisti-lo... e terá mais conforto e comida. Realmente, isso é alarmante, Roger. Eu não sei o que fazer por ele aqui.

O pai de Will cedeu. Deixaram o Andarilho ainda esbravejando e se sacudindo, ficando Max perto dele para evitar acidentes, e saíram para transformar o grande tobogã da família em uma maca móvel. Só uma coisa afligia a mente de Will: talvez tenha sido sua imaginação, mas no momento em que o Andarilho perdeu o controle ao avistar os Grandes Signos, enlouquecendo mais uma vez, tinha pensado ter visto um lampejo de triunfo em seus olhos bruxuleantes.

 

O céu mantinha-se cinzento e pesado, esperando o momento para nevar, quando eles partiram para o Solar levando o Andarilho. O sr. Stanton levou os gêmeos e Will consigo. Sua esposa os observava partindo com um nervosismo desconhecido. — Realmente, espero que isso acabe. Você realmente acha que Will deveria ir?

― Algumas vezes, é uma mão na roda ter alguém mais leve nesta neve — disse seu pai, enquanto Will gaguejava. — Ele ficará bem.

— Você não ficará por lá, não é?

— É claro que não. A única razão desta empreitada é deixar o velho sob os cuidados do doutor. O que foi, Alice, essa não se parece com você. Não há perigo, você sabe.

— Eu acho que não — disse a sra. Stanton.

Eles partiram, empurrando o tobogã com o Andarilho afivelado no aparelho, tão enrolado em cobertores que era impossível vê-lo: parecia uma grossa salsicha humana. Will Foi o último a sair; Gwen entregou-lhe as tochas e uma garrafa térmica. — Devo dizer que não sinto pena ao ver sua descoberta partir — disse ela. — Ele me assusta. Mais parecido com um animal do que um velho homem.

Parecia que havia passado muito tempo até que por fim eles chegaram ao portão do Solar. A entrada havia sido desobstruída e pisoteada por muitos pés, e duas lamparinas estavam fixadas na grande porta, iluminando a entrada da casa. A neve caía novamente, e o vento começava a soprar gelado em suas faces. Antes que Robin esticasse a mão para tocar a campainha, Merriman já abria a porta. Olhou primeiro para Will, embora ninguém tenha percebido o lampejo de urgência em seus olhos. — Bem-vindos — completou.

— Boa-noite — cumprimentou Roger Stanton. — Não ficaremos. Estamos bem em casa. Mas há um velho camarada aqui que está doente e precisa do médico. Depois de considerarmos todas as possibilidades, pareceu melhor trazê-lo aqui; melhor do que fazer o dr. Armstrong ficar andando de um lado para o outro. Então, esperamos partir antes que a tempestade comece.

— Já está começando — disse Merriman, olhando para fora. Sendo assim, abaixaram-se e ajudaram os gêmeos a carregar a forma imóvel do Andarilho para dentro da casa. Na soleira, a trouxa de cobertores sacudia convulsivamente, e o Andarilho se fazia ouvir abafadamente por seus gritos contidos: — Não! Não! Não!

— O médico, por favor — disse Merriman para uma mulher que estava próxima dali, e ela correu apressada. O salão enorme onde tinham realizado a cantata natalina, normalmente vazio, estava cheio de pessoas agora, além de quente e cheio de animação, de maneira irreconhecível.

O dr. Armstrong apareceu, acenando rapidamente ao redor; era um homem pequeno e vigoroso com uma franja de cabelos grisalhos, semelhante à de um monge, fazendo um círculo em sua cabeça careca. Os Stanton, como todos do Vale do Caçador, conheciam-no bem; o doutor curava toda enfermidade da família já bem antes mesmo de Will nascer. Ele olhou para o Andarilho, que naquele momento se contorcia e gemia em protesto.

— O que é isso, hein?

— Choque, talvez? — disse Merriman.

— De fato, ele se comporta de forma muito estranha — disse o sr. Stanton. — Ele foi encontrado inconsciente na neve alguns dias atrás, e pesávamos que estivesse se recuperando, mas agora...

A enorme porta da frente bateu sozinha, calando o vento emergente, e o Andarilho gritou.

— Hum — murmurou o médico e fez um sinal para dois ajudantes jovens e robustos carregá-lo para algum aposento. — Deixe-o comigo — disse ele animado. — Até agora, temos uma perna quebrada e dois tornozelos torcidos. Ele deve ter uma diversidade de coisas.

O doutor caminhou apressadamente atrás de seu paciente. O pai de Will se virou para olhar pela janela e ver que o tempo escurecia. — Minha esposa começará a se preocupar — disse ele. — Nós devemos ir.

Merriman respondeu gentilmente: — Se o senhor partir agora, acredito que sairá daqui, mas não chegará ao seu lar. Provavelmente, durante um bom tempo.

— As Trevas estão se rebelando, percebe? — disse Will. Seu pai o olhou com um meio sorriso: — Você anda mui- to poético de uma hora para outra. Tudo bem, esperaremos um pouco. Eu voltaria depois de uma pausa de descanso, para dizer a verdade. É melhor dizer olá à srta. Greythorne, enquanto isso. Onde ela está, Lyon?

Merriman, o mordomo reverente, abriu caminho pela multidão. Era o ajuntamento mais estranho que Will havia visto. De repente, metade do vilarejo estava vivendo com muita intimidade numa minúscula colônia de camas, bagagens e cobertores. As pessoas os chamavam de seus pequenos ninhos espalhados pelo enorme salão: uma cama ou um colchão enfiado num canto ou cercado por uma ou duas cadeiras. A srta. Bell acenou alegremente de um sofá. Parecia um hotel bagunçado com todos acampando no saguão. A srta. Greythorne encontrava-se sentada ereta e firme em sua cadeira de rodas ao lado do fogo, lendo A Fênix e o tapete mágico para um grupo de crianças em absoluto silêncio. Como todos no aposento, ela parecia diferentemente alegre e animada.

— Engraçado — disse Will, enquanto se aproximavam pelo caminho —, as coisas estão absolutamente horríveis, e mesmo assim as pessoas parecem muito mais felizes do que o normal. Olhe para elas. Tão animadas.

— São ingleses — disse Merriman.

— Bem, certo — disse o pai de Will. — Esplêndidos na adversidade, tediosos quando estão seguros. Nunca contentes de fato. Somos um povo estranho. Você não é inglês, é? — perguntou repentinamente para Merriman, e Will ficou impressionado ao ouvir o tom levemente hostil em sua voz.

— Um mestiço — disse Merriman insipidamente. — É uma longa história. — Seus olhos profundos brilharam para o sr. Stanton, e então a srta. Greythorne os avistou.

— Ah, aí estão vocês! Boa-noite, sr. Stanton, meninos, como vão vocês? O que acham disto, hein? Não é uma folia?

— Enquanto ela deixava o livro de lado, o círculo de crianças se separou para saldar os recém-chegados, e os gêmeos e seu pai foram absorvidos pela conversa.

Merriman disse baixinho para Will, na Linguagem Antiga:

— Olhe dentro do fogo, pelo tempo que for necessário para traçar a forma de cada Grande Signo com sua mão direita. Olhe dentro do fogo. Faça-o seu amigo. Não mova os olhos durante todo esse tempo.

Cheio de questionamentos, Will se aproximou do fogo como se desejasse se aquecer e fez o que lhe pediram. Olhando para as chamas da enorme lenha crepitando na lareira, deslizou seus dedos gentilmente sobre o Signo de Ferro, o Signo de Bronze, o Signo de Madeira e o Signo de Pedra. E falava ao fogo, não como fizera hã algum tempo quando desafiado a apagá-lo, mas como um Ancião depois da Magia. Falava sobre o fogo vermelho no salão do rei, do fogo azul que dançava sobre os pântanos, do fogo amarelo resplandecente sobre o farol das colinas para o festival Beltane e o Dia das Bruxas; do fogo indômito, do fogo necessário e do fogo frio do mar; e falava do Sol e das estrelas. As chamas se ergueram. Seus dedos estendidos chegaram ao fim da jornada em volta do último Signo. Depois olhou para cima. Ele olhou e viu...

.... ele viu, não os simpáticos membros do vilarejo reunidos em um alto e moderno aposento de painéis, iluminado pelas lâmpadas elétricas comuns, mas o Grande Salão de pedra sombreado pelas velas, com suas tapeçarias penduradas e teto alto abobadado que ele havia visto antes em um mundo distante. Olhou para a lenha queimando que mantinha o mesmo fogo, mas crepitando agora em uma lareira diferente, e viu como antes, além do passado, as duas pesadas cadeiras talhadas, uma de cada lado da lareira. Na cadeira à direita, sentava-se Merriman vestido com uma capa, e na cadeira à esquerda, sentava-se uma silhueta, a mesma que ele havia visto pela última vez, não no dia anterior, deitada sobre um ataúde como se estivesse morta. Inclinou-se rapidamente e ajoelhou-se aos pés da velha dama.

— Senhora — disse.

Ela tocou-lhe os cabelos gentilmente: — Will.

— Desculpe-me por ter rompido o círculo aquela vez — disse ele. — A senhora está bem agora?

— Tudo está bem — disse ela com sua voz clara e suave. - E ficará, se conseguirmos vencer a última batalha pelos Signos.

— O que devo fazer?

— Destrua o poder do frio. Pare a neve, o frio e o gelo. Liberte nossa pátria do domínio das Trevas, com o próximo do círculo, o Signo do Fogo.

Will a olhava impotente. — Mas eu não o tenho. E não sei como...

— Você já tem um Signo de Fogo. O outro espera. Ao conquistá-lo, você destruirá o frio. Mas antes disso, o nosso círculo das chamas deve se completar, o que já é um eco do Signo; e para fazer isso, você deve tirar o poder das Trevas. — Ela apontou para o grande círculo forjado em ferro dos encaixes da velas sobre a mesa, o círculo quartejado por uma cruz. Enquanto erguia o braço, a luz cintilou sobre o anel rosado em sua mão. O círculo mais afastado de velas estava completo, doze colunas brancas queimando da mesma maneira como haviam feito quando Will estivera no salão, da última vez. Mas os braços da cruz ainda permaneciam vazios em seus encaixes; nove espaços para serem preenchidos.

Will as olhava com tristeza. Esta parte de sua busca o deixava desesperado. Nove grandes velas encantadas que deveriam surgir de algum lugar. O poder que deveria ser apreendido das Trevas. Um Signo que ele já tinha, sem conhecê-lo. Outro que deveria ser encontrado sem saber onde ou como procurar.

— Tenha coragem — a velha dama lhe dizia. Sua voz soava cansada e distante; quando Will a viu, percebeu que ela mesma parecia distante, como se fosse nada mais do que uma sombra. Estendeu-lhe a mão preocupado, mas ela afastou o braço. — Ainda não... Ainda há outro tipo de trabalho a ser realizado, também... Você deve perceber como as velas queimam, Will. — A voz dela esvaeceu e em seguida se reergueu. — Elas lhe mostrarão.

Will olhava para as chamas brilhantes das velas; o alto círculo de luz capturava seus olhos. Enquanto as percebia, sentiu a estranha sensação de um solavanco, como se todo o mundo tivesse estremecido. Inclinando a cabeça para cima, viu...

.... viu, quando ergueu os olhos, que se encontrava de volta ao Solar, na época da srta. Greythorne, no tempo de Will Stanton, com as paredes em painéis e o murmúrio de muitas vozes, e uma voz falava ao seu ouvido. Era o dr. Armstrong.

— ... chamando por você — dizia ele. O sr. Stanton estava de pé ao seu lado. O médico parou e olhou estranhamente para Will. — Você está bem, jovem rapaz?

— Sim, sim, estou bem. Desculpe. O que foi que disse?

— Eu estava dizendo que seu amigo mendigo está chamando por você. "O sétimo filho", como ele liricamente colocou, embora, como sabia disso, não podemos dizer.

— Sou eu então, não sou? — disse Will. — Eu não sabia até dias atrás sobre um irmão que faleceu. Tom.

O olhar do dr. Armstrong ficou distante por um momento.

― Tom — disse ele. — O primeiro bebê. Eu me lembro. Há muito tempo. — E seu olhar voltou. — Sim, você é. Assim como seu pai, se isso interessa.

Will girou a cabeça e viu o sorriso de seu pai. — Você foi o sétimo filho, pai?

— Certamente — respondeu Roger Stanton, com seu rosto redondo e rosado, recordando o fato. — Metade da família foi assassinada na última guerra, mas éramos doze. Você sabia disso, não? Uma tribo propriamente dita, isso sim. Sua mãe amava isso, ser filha única. Ouso dizer que é essa a razão que a levou a ter todos vocês. Horrorizando, nesta era superpopulosa. Sim, você é o sétimo filho de um sétimo filho... nós costumávamos brincar sobre isso quando você era bebê. Mas não depois, para o caso de você ter idéias sobre uma segunda visão, ou seja lá o que eles dizem sobre isso.

— Ah, ah — disse Will com certo esforço. — Você descobriu o que está errado com o mendigo, dr. Armstrong?

— Para falar a verdade, ele me confundiu bastante — disse o médico. — Ele deveria tomar um sedativo nesse estado de perturbação, mas tem a pressão sangüínea e a pulsação menores que eu já vi em toda a minha vida, por isso estou em dúvida... Não há nada fisicamente errado com ele, até onde posso afirmar. Provavelmente, ele tem a mente delirante, como tantos desses velhos andarilhos; não que seja possível ver muitos deles hoje em dia, eles praticamente desapareceram. De qualquer forma, o homem continua gritando para vê-lo, Will, então, se puder suportar isso, eu o levarei até lá por um momento. Ele é bastante inofensivo.

O Andarilho fazia muito barulho. E parou quando viu Will estreitando os olhos. Seu humor mudou nitidamente; estava mais confiante agora, e o rosto triangular cheio de rugas bem claro. Olhou sobre o ombro de Will para o médico e o sr. Stanton. — Vão embora — disse.

— Hum — resmungou o dr. Armstrong, mas saiu levando o pai de Will para perto da porta, dentro do alcance da visão, mas muito longe para ouvi-los. No pequeno aposento que servia como uma área para enfermos, sua perna quebrada estava esticada sobre a cama, mas ele parecia estar dormindo.

— Você não pode me manter aqui — sussurrou o Andarilho. — O Cavaleiro virá me buscar.

— Você já esteve com muito medo do Cavaleiro certa vez — disse Will. — Eu vi você. Já se esqueceu disso também?

— Eu esqueço de tudo — disse o Andarilho com desdém.

— Aquele medo se foi. Partiu quando o Signo me deixou. Deixe-me ir, deixe-me voltar para o meu povo. — Uma formalidade firme e curiosa parecia surgir em seu discurso.

— Seu povo não se importou em deixá-lo morrer sobre a neve — disse Will. — De qualquer maneira, não estou mantendo você aqui. Só o trouxe para ver o médico e ele precisa vê-lo novamente; não posso deixar você sair no meio de uma tempestade.

— Então, o Cavaleiro chegará — disse o velho. Seus olhos cintilavam e ele ergueu a voz novamente de modo que gritava para todos no aposento. — O Cavaleiro chegará! O Cavaleiro chegará!

Will o deixou quando seu pai e o médico vieram rapidamente em direção à cama.

— Mas o que está acontecendo aqui? — perguntou o sr. Stanton. O Andarilho, com o doutor inclinando-se sobre ele, reclinou-se novamente e caiu murmurando furiosamente mais uma vez.

— Só Deus sabe — disse Will. — Ele não falava coisa com coisa. Eu acho que o dr. Armstrong está certo, ele está um pouco pirado. — Will olhou em volta do quarto, mas não viu sinal de Merriman.

— O que aconteceu com o sr. Lyon?

— Está por aí — disse seu pai de forma vaga. — Encontre os gêmeos, sim, Will? Irei ver se a tempestade já passou um pouco para que possamos ir.

O garoto permaneceu no salão alvoroçado, enquanto as pessoas entravam e saíam com cobertores e travesseiros, copos de chá, sanduíches e pratos vazios indo e voltando da cozinha. Sentia-se estranho, distante, como se estivesse em suspenso no meio deste mundo preocupante e não fizesse parte dele. Olhou para a grande lareira e mesmo o crepitar das chamas não conseguiam abafar o uivo do vento lá fora e as rajadas de neve gelada contra a janela.

As chamas cresciam, mantendo o olhar de Will. De algum lugar fora do tempo, Merriman dizia em sua mente: — Cuidado. É verdade. O Cavaleiro virá buscá-lo. Este é o motivo que nos fez trazê-lo aqui, para um lugar fortalecido pelo Tempo. De outra maneira, o Cavaleiro teria ido à sua casa, e tudo o que o acompanha também...

— Will! — soou a voz imperiosa de contralto da srta. Greythorne. — Venha aqui! — E Will olhou novamente para o tempo presente e foi até ela. Viu Robin ao lado de sua cadeira e Paul se aproximando com uma caixa plana e comprida, em um formato familiar, em suas mãos.

— Nós pensamos em promover um tipo de concerto até que a neve pare de cair — disse a srta. Greythorne rapidamente. — Todos fazendo um pouquinho. Todos que gostarem da idéia, é isso. Uma cailey, ou qualquer outra coisa que os escoceses possam chamar isso.

Will via a felicidade brilhar nos olhos de seu irmão. — E Paul irá tocar aquela flauta antiga de que tanto gosta.

— No momento oportuno — disse Paul. — E você cantará.

— Tudo bem — Will olhava para Robin.

— Eu — começou Robin — liderarei os aplausos. Haverá muitos deles... nosso vilarejo parece ser extremamente talentoso. A srta. Bell recitará um poema, os três garotos de Domey têm uma banda de música folclórica... dois deles até chegaram a trazer seus violões. O velho sr. Dewhurst fará um monólogo, mas tente detê-lo. A filhinha de alguém quer dançar. Não há fim pra isso.

— Eu pensei, Will — disse a srta. Greythorne —, que talvez você pudesse começar. Se começasse apenas cantando algo de que goste, então pouco a pouco as pessoas parariam para ouvir e logo haveria completo silêncio... muito melhor do que me ver tocando um sino ou outra coisa, ou falando, "todos nós teremos um concerto", você não concorda?

— Acho que sim — disse Will, embora nada pudesse estar mais distante de seus pensamentos naquele momento do que a idéia de apresentar uma música tranqüila. Ele pensou subitamente e em sua mente surgiu uma pequena canção melancólica que o mestre de música da escola havia transposto para a voz dele, no semestre anterior, como um experimento. Sentindo-se bastante exibido, Will abriu a boca e começou a cantar:

Brancas sob a Lua, estendem-se as longas estradas,

E a lua acima permanece alva;

Brancas sob a Lua, estendem-se as longas estradas 

Que me afastam de minha amada, 

Tranqüilas, longe do temporal, as margens vão permanecer 

Tranqüilas, tranqüilas em meio às sombras constantes:

Na poeira enluarada, onde meus pés podes ver 

Prosseguem, prosseguem pelo caminho incessante.

A conversa ao redor foi diminuindo até cair o silêncio, Ele percebeu os rostos virando-se em sua direção e quase se perdeu numa nota quando reconheceu algumas das pessoas que esperava ver, mas que não as havia encontrado antes. Lá estavam elas agora, discretamente ao fundo: o fazendeiro Dawson, o Velho George, John Smith e sua esposa; os Anciãos prontos novamente para se juntar ao círculo, se necessário. Perto dali, encontrava-se o restante da família Dawson, e o pai de Will estava perto deles:

O mundo dá voltas, assim dizem os viajantes,

Mas direto a rota encontrará,

Marche, marche, logo tudo acabará

O caminho o guiará atento.

De soslaio, ele viu, chocado, a figura do Andarilho com o cobertor enrolado ao redor de seu corpo como se fosse uma capa; o velho estava de pé na porta do quarto dos enfermos, ouvindo. Por um instante, Will avistou o seu rosto, e era impressionante. Todo logro e terror tinham desaparecido de sua face triangular; havia apenas tristeza e anseios impossíveis. Era possível perceber até mesmo um brilho de lágrimas em seus olhos. Era o rosto de um homem revelando algo imensamente precioso que havia perdido.

Por um segundo, Will sentiu que mediante sua música ele poderia atrair o Andarilho para a Luz. Fitava-o enquanto cantava, fazendo de cada nota um apelo, e o Andarilho continuou fraco e infeliz, olhando para o passado:

Mas antes que o círculo corra para casa.

Muito, muito, há para remover;

Brancas sob a lua, estendem-se as longas estradas 

Que me afastam de minha amada.

O aposento se acalmou dramaticamente enquanto ele cantava; a voz soprano do garoto, que sempre parecia pertencer a um estranho, subiu alta e distante pelo ar. Naquele momento houve um pequeno silêncio, a única parte da apresentação que significava alguma coisa para ele, e, depois disso, muitos aplausos. Will os ouviu por um longo tempo. A srta. Greythorne chamou a todos: — Nós tivemos uma idéia para passar o tempo, todos que se sentirem dispostos poderiam fazer algo divertido. Algo para afastar a tempestade. Quem gostaria de participar?

Ouviu-se um alegre cochichar, e Paul começou a tocar a flauta antiga do Solar, de forma lenta e não muito alto. A graça suave do som encheu o aposento, e Will ficou mais confiante enquanto ouvia e pensava sobre a Luz. Mas no instante seguinte, a música não pôde mais fortalecê-lo. Não conseguia mais ouvi-la. Seus cabelos estavam arrepiados, seus ossos doíam; sabia que alguma coisa, alguém estava se aproximando, desejando o mal para o Solar, para todos lá dentro e principalmente para ele.

O vento aumentou. E gemia guinchando na janela. Ouviu-se uma tremenda batida na porta. O Andarilho saltou; sua face estava contorcida novamente, tensa com a espera. Paul tocava, sem precedentes. A pancada na porta soou mais uma vez. De repente, Will percebeu que ninguém entre eles podia ouvi-la. Embora o vento estivesse prestes a ensurdecê-los, não se tratava de seus ouvidos, nem saberiam o que estava acontecendo naquele instante. O baque soou pela terceira vez, e ele soube que provavelmente iria atender ao chamado. Caminhou sozinho pelas pessoas desatentas até a porta, segurou o grande círculo de ferro da maçaneta, murmurou algumas palavras, em um fôlego só, na Linguagem Antiga, e escancarou a porta.

A neve chuviscava sobre ele, a chuva de granizo cortava seu rosto, os ventos assoviavam pelo salão. Lá fora, na escuridão, o grande cavalo negro erguia suas patas acima da cabeça de Will, com os cascos se agitando no ar, os olhos brancos desassossegados e os dentes à mostra, espumando. E sobre ele cintilavam os olhos azuis do Cavaleiro e o avermelhado luminoso de seus cabelos. Contra a sua vontade, Will gritou, levantando um braço instintivamente em autodefesa.

E o garanhão negro relinchou e correu para as Trevas com o Cavaleiro; a porta se fechou, e não havia mais nada nos ouvidos de Will, exceto a doce cadência da flauta antiga que Paul continuava tocando. As pessoas se sentaram esparramadas tranqüilamente como tinham feito antes. Lentamente, Will abaixou o braço, ainda encurvado defensivamente sobre sua cabeça, e, enquanto fazia isso, percebeu algo de que havia esquecido completamente. Na parte inferior do antebraço, que usara para enfrentar o Cavaleiro Negro quando ele havia segurado seu braço, encontrava-se a cicatriz queimada do Signo de Ferro. No início de tudo, naquele outro Grande Salão, ele havia se queimado no Signo quando as Trevas fizeram sua primeira investida contra ele. Uma queimadura que tinha sido curada pela Dama. Will esqueceu que foi ali. Você já tem um signo do fogo.

Então era isso que ela queria dizer...

Um Signo de Fogo havia mantido as Trevas ao longe, rechaçando seu ataque mais forte, talvez. Will se reclinou debilitado contra a parede e tentou respirar lentamente. Mas enquanto observava a multidão tranqüila ouvindo a música, avistou novamente a figura que jogara toda a sua confiança no nada, e o instinto rápido da Magia lhe disse que havia caído numa armadilha. Pensou que estivera apenas enfrentando um desafio, e realmente estava. Mas ao fazer isso, abriu a porta entre as Trevas e o Andarilho, e assim, de alguma maneira, fortaleceu o velho mendigo a ponto de fazê-lo ganhar o poder pelo qual tanto esperara.

Pois o Andarilho encontrava-se mais alto agora, seus olhos estavam brilhantes, sua cabeça altiva e suas costas eretas. Ele ergueu um braço bem alto e gritou forte e claramente:

— Venha lobo, venha cão, venha gato, venha rato, venha Held, venha Holda, eu os convido para entrar! Venha Ura, venha Tann, venha Coll, venha Quert, venha Morra, venha Mestre, eu os faço entrar!

As invocações continuaram, uma longa lista de nomes, todos conhecidos de Will pelo Livro da Magia. No salão da srta. Greythorne, ninguém podia ver ou ouvir; tudo continuava como antes e, com o final da música de Paul e o começo determinado e alto do monólogo do velho sr. Oewhurst, todo olhar lançado na direção de Will parecia não enxergá-lo ali. Ele se perguntava se seu pai, ainda conversando com os Dawson, teria rapidamente percebido que seu filho mais novo não estava sendo visto.

Mas logo, enquanto o soar das invocações do Andarilho continuavam, ele parou de pensar sobre isso, pois sob as suas sensações o salão começou a mudar subitamente; o antigo salão da Dama começava a voltar em sua consciência e passou a absorver cada vez mais a aparência do salão do tempo presente. Amigos e família se desvaneceram; somente o Andarilho permanecia nítido como antes, de pé agora, no fundo do Grande Salão, longe do fogo. E enquanto Will olhava para o grupo com o qual seu pai estava, mesmo enquanto sumiam, ele pôde ver a troca pela qual os Anciãos eram capazes de se mover dentro e fora do Tempo. Viu uma forma de Frank Dawson sair facilmente da primeira, deixando este outro eu como parte do presente; a segunda forma ficou cada vez mais nítida enquanto caminhava na direção dele e, depois disso, o mesmo aconteceu com o Velho George, o jovem John e a mulher de olhos azuis. Will sabia que aquela foi a sua maneira de chegar até lá também.

Logo, os quatro se reuniram ao seu redor, no centro do salão da Dama, cada um afrontando um dos quatros cantos de um quadrado. E enquanto o Andarilho invocava sua longa lista das Trevas, o próprio Salão começou a mudar. Luzes estranhas e chamas bruxuleavam pelas paredes, turvando a visão das janelas e maçanetas. Aqui e ali, ao som de um nome em particular, o fogo azul se lançava impetuosamente no ar e se apagava novamente. Em cada uma das três paredes diante da lareira, três grandes chamas sinistras cresciam rápidas e não se apagavam depois disso, mas permaneciam dançando e se curvando em um brilho medonho, preenchendo o salão com uma luz fria.

Diante da lareira, na grande cadeira talhada que ele havia ocupado desde o princípio, Merriman permanecia imóvel. Havia uma terrível força contida na forma como se sentara; Will olhava para os ombros largos com mau pressentimento, como se estivesse olhando para uma fenda gigantesca que poderia a qualquer momento romper.

O Andarilho entoava ainda mais alto: — Venha, Bath, venha, Truta, venha, Feriu, venha, Lota! Venha, Burgo, venha, Calais, eu os faço entrar...

Merriman se levantou, era como um grande pilar branco e negro. Seu manto o envolvia. Apenas seu rosto impassível estava à vista, deixando a luz resplandecer nos volumosos cabelos brancos. O Andarilho olhou-o e titubeou. Em volta do salão, o fogo espesso e as chamas das Trevas dançavam e murmuravam, nos tons de branco, azul e preto, sem tonalidades dourada, avermelhada ou quente neles. As nove chamas mais altas permaneciam eretas como árvores ameaçadoras.

Mas o Andarilho parecia ter perdido a voz novamente. Olhou mais uma vez para Merriman e encolheu-se em seguida. E através do misto de anseio e medo em seus olhos brilhantes, Will o reconheceu subitamente.

— Hawkin — disse Merriman suavemente —, ainda há tempo para voltar para casa.

 

O Andarilho respondeu num sussurro: — Não.

— Hawkin — continuou Merriman, gentilmente —, todo homem tem uma última escolha depois da primeira, uma chance de perdão. Não é tarde demais. Volte. Venha para a Luz.

A voz era quase inaudível, um mero sussurro rouco: — Não.

As chamas ainda se erguiam e, imponentes, rodeavam o Grande Salão. Ninguém se movia.

— Hawkin — dizia Merriman, e não havia tom de ordem em sua voz, porém apenas conforto e súplica. — Hawkin, vassalo, abandone as Trevas. Tente se lembrar. Certa vez, havia amor e confiança entre nós.

O Andarilho o fitava como um homem sentenciado, e agora, no rosto pontudo e enrugado, Will podia enxergar claramente os traços do homenzinho alegre que fora Hawkin, trazido de seu próprio tempo para o resgate do Livro da Magia, e lembrar do choque que o fez enfrentar a morte e trair os Anciãos em prol das Trevas. Ele se lembrava da dor que havia visto no olhar de Merriman enquanto observavam o início daquela traição e da terrível certeza que o fez contemplar o destino de Hawkin.

O Andarilho ainda olhava fixamente para Merriman, mas seus olhos não enxergavam. Eles olhavam o passado, enquanto o velho redescobria tudo o que havia esquecido, ou retirado de sua mente. E disse lentamente, com um tom de reprovação:

— Você me fez arriscar minha própria vida por um livro. Por um livro. Depois, porque olhei para mestres mais gentis, você me enviou para o meu próprio tempo, mas não como eu havia sido antes. Você me deu, então, o fardo de carregar o Signo. — A sua voz se intensificava cada vez mais pela dor e ressentimento enquanto se lembrava. — O Signo de Bronze, através dos séculos. Você me transformou de um homem para uma criatura sempre em fuga, sempre a procura, sempre caçada. Você me impediu de envelhecer decentemente em meu próprio tempo, como todos os homens fazem, ficando velhos, cansados e enfim mergulhando no sono da morte. Você me tirou o direito de morrer. Você me colocou em meu próprio século com o Signo, hã tanto tempo, e você me fez carregá-lo através de seiscentos anos até a era atual.

Os olhos dele piscaram na direção de Will e refletiram um lampejo de ódio. — Até que o último dos Anciãos nascesse, para tirar o Signo de mim. Você, garoto, tudo por você. Esta mudança no tempo, que tirou minha vida boa como homem, tudo isso é por sua causa. Antes de você nascer, e depois. Por causa de seu maldito dom da Magia, perdi tudo o que eu amava.

— Deixe-me dizer uma coisa — gritou Merriman —, você pode voltar para casa, Hawkin! Agora! É sua última chance: você pode voltar para a Luz e ser como era antes. — Sua silhueta ereta e orgulhosa se inclinou para a frente, suplicante, e Will se condoeu por ele, pois sabia que, para Merriman, foi seu julgamento equivocado que levara seu servo Hawkin à traição e à vida de um deplorável Andarilho, uma carapaça lamuriosa comprometida com as Trevas.

Merriman disse roucamente: — Eu imploro, meu filho...

— Não — disse o Andarilho. — Eu encontrei mestres melhores do que você. — As nove chamas das Trevas rodearam as paredes espalhando o frio e queimavam com a luz azul, tremulando. Ele apertou ainda mais o cobertor escuro que o envolvia e olhava furiosamente pelo salão. Depois disso, gritou de maneira esganiçada e desafiadora: — Mestres das Trevas, eu os faço entrar!

E as nove chamas se moveram das paredes, aproximando-se do centro do aposento, ficando mais perto de Will e dos quatro Anciãos. Will foi ofuscado pelo brilho azul e branco e não avistava mais o Andarilho. Em algum lugar atrás das grandes luzes, a voz aguda soou gritando novamente, alta e ensandecia pela amargura. - Você arriscou a minha vida pelo Livro! Você me obrigou a carregar o Signo! Você deixou as Trevas me rondarem através dos séculos, mas nunca me deixou morrer! Agora é sua vez!

"Sua vez! Sua vez!" ecoava o grito pelas paredes. As nove chamas moviam-se lentamente para mais perto, e os Anciãos permaneceram no centro do pavimento observando sua aproximação. Ao lado da lareira, Merriman virou-se vagarosamente para o centro do aposento. Will viu que seu rosto estava impassível novamente; os olhos profundos e vazios e as rugas perfeitamente delineadas; e soube que ninguém veria qualquer emoção intensa auto-reveladora naquele rosto por muito tempo. A oportunidade do Andarilho de resgatar a mente e o coração de Hawkin veio e foi rejeitada, e agora se foi para sempre.

Merriman ergueu ambos os braços e a capa caiu como asas. A voz profunda soou no silêncio crepitante: — Pare!

As nove chamas pararam e permaneceram imóveis.

— Em nome do Círculo dos Signos — disse Merriman, com nitidez e firmeza —, ordeno que saia desta casa.

A luz fria das Trevas que rodeava todas as paredes atrás das grandes chamas bruxuleou e crepitou como o grito. E além da escuridão, soou a voz do Cavaleiro Negro.

— Seu círculo não está completo e você não tem esse poder — gritou ele com zombaria. — E seu vassalo nos convocou para dentro desta casa, como fez antes e pode fazê-lo novamente. Nosso vassalo, meu senhor. O falcão está nas Trevas... Você não pode mais nos afugentar daqui. Nem com chama, nem pela força, nem com o poder reunido. Nós quebraremos seu Signo do Fogo antes que possa ser libertado, e seu Círculo nunca se juntará. Antes, será quebrado no frio, meu senhor, nas Trevas e no frio...

Will estremeceu. De fato, estava ficando mais frio no Salão, muito frio. O ar era como uma corrente de água gelada, vindo sobre eles de todos os lados. O fogo na grande lareira não emitia calor agora; qualquer calor era sugado pelas chamas frias e azuis das Trevas ao redor. As nove chamas tremularam novamente, enquanto as olhava, o menino podia jurar que não se tratava de chamas, mas de estalactites de gelo gigantes, azuis e brancas, como antes, porém sólidas, ameaçadoras: grandes pilares prontos para serem derrubados e esmagá-los sob seu peso e frio.

— ... frio — disse o Cavaleiro Negro suavemente das sombras — ... frio...

Will olhava assustado para Merriman. Sabia que cada um deles, cada Ancião no aposento, estava investindo contra as Trevas com todo o poder que possuíam desde que a voz do Cavaleiro soou pela primeira vez e sabia que nenhum esforço empreendido surtiu qualquer efeito.

Merriman disse suavemente: — Hawkin os deixa entrar, como ele fez em sua primeira traição, e não podemos impedir isso. Durante certa vez, ele teve minha confiança e isto lhe proporcionou este poder mesmo depois que a confiança já não existia mais. Nossa única esperança está no que era desde o princípio: Hawkin nada mais é do que um homem... Quando os encantos do frio profundo são criados, há pouco o que se pode fazer contra eles.

Ele continuou no tom de desaprovação enquanto o círculo de fogo azul e branco tremulava e dançava; ele mesmo parecia frio, com um olhar sombrio no rosto. — Eles trouxeram o frio profundo — disse ele, em parte para si mesmo.

O frio do vazio, do buraco negro.

E o frio ficou ainda mais intenso, investindo contra o corpo e a mente. Porém as chamas das Trevas pareciam ao mesmo tempo diminuir, e Will percebeu que seu próprio século estava novamente ressurgindo ao seu redor, e já se encontravam de volta no solar da srta. Greythorne.

E lá também se sentia o frio.

Tudo estava mudando agora; o murmúrio de vozes havia alterado de um alegre burburinho para um murmúrio de ansiedade, e o alto aposento encontrava-se fracamente iluminado por velas dispostas em castiçais, copos e pratos, onde quer que houvesse espaço. Todas as lâmpadas elétricas estavam apagadas, e os grandes radiadores de metal que aqueciam a maior parte do salão não emitiam calor.

Merriman correu intrigantemente para perto do Cavaleiro Negro com a velocidade de alguém retornando de um rápido serviço de rua; sua capa estava subitamente diferente, havia mudado para o casaco que ele vestia mais cedo naquele dia. Disse para a srta. Greythorne: — Não há muito que podemos fazer aqui embaixo, senhora. A fornalha já se extinguiu, é claro. Todas as linhas de energia elétrica quase não funcionam mais. E também o telefone. Eu peguei todos os cobertores e edredons da casa, e a srta. Hampton está preparando uma enorme quantidade de sopa e bebidas quentes.

A srta. Greythorne aquiesceu em aprovação. — Foi bom termos mantido os antigos fornos a gás. Sabe Lyon, eles queriam que eu os trocasse quando fizemos a instalação dos aquecedores centrais. Eu não faria isso. A eletricidade, bem... sempre soube que a velha casa não resistiria a ela.

— Estou providenciando o máximo de madeira possível para manter o fogo aceso — disse Merriman, mas, no mesmo instante, como numa zombaria, um som sibilante e uma quantidade de fumaça surgiram da lareira ampla, fazendo aqueles que estavam perto sair rapidamente dali, engasgados e gaguejando. Através da repentina nuvem de fumaça soprada, Will pôde avistar Frank Dawson e Velho George esforçando-se para remover alguma coisa do fogo.

Mas o fogo apagou.

— A neve está caindo na chaminé! — gritou o fazendeiro Dawson, tossindo. — Precisaremos de baldes, Merry, rápido. Isto aqui está uma bagunça.

— Eu pego — gritou Will e correu para a cozinha, contente de ter a chance de se mover. Mas antes que pudesse alcançar a porta através dos grupos encolhidos de pessoas amedrontadas e geladas, uma figura se ergueu diante dele bloqueando o caminho, e duas mãos seguraram seus braços numa garra tão apertada que ele emitiu um grito sufocado de dor. Os olhos brilhantes perscrutavam os seus, cintilando com um triunfo selvagem, e o volume mais alto da voz do Andarilho soou esganiçada em seus ouvidos.

— Ancião, Ancião, último dos Anciãos, você sabe o que vai acontecer com você? O frio está entrando, e as Trevas vão congelá-lo. Frio e rigor e todos vocês estão impotentes. Ninguém protegerá os pequenos Signos em seu cinto.

— Solte-me! — contorcia-se Will com raiva, mas o velho segurando seus pulsos era um fecho de loucura.

— E você sabe quem irá pegar esses Signozinhos, Ancião? Eu irei. O pobre Andarilho, e os vestirei. Eles me foram prometidos como uma recompensa pelos meus serviços... nenhum senhor da Luz jamais me ofereceu uma recompensa assim. Ou qualquer outro... eu serei o Descobridor dos Signos, serei, e tudo o que foi seu, no final, virá para mim...

Ele agarrou o cinto de Will, seu rosto estava distorcido pelo triunfo, a boca salivava como espuma, e Will gritou por socorro. Em um instante, John Smith estava ao seu lado, com o dr. Armstrong logo atrás; o enorme ferreiro prendeu as mãos do Andarilho pelas costas. O velho praguejava e tremia, seus olhos resplandeciam o ódio que sentia por Will e os homens precisaram se esforçar para segurá-lo. Depois de um tempo, ele se encontrava preso e inofensivo. E o dr. Armstrong afastou-se com um suspiro exasperado.

— Este camarada deve ser a única coisa quente em todo o país — comentou ele —, por causa de todas as vezes em que ficou fora de si, com pulso ou sem pulso. Eu vou colocá-lo para dormir por enquanto. Ele é um perigo para a comunidade e para si mesmo.

Will pensou, esfregando o punho dolorido: "se você soubesse o tipo de perigo que ele é...". Então, repentinamente, começou a perceber o que Merriman queria dizer com: Nossa única esperança está no que era desde o princípio: Hawkin nada mais é do que um homem...

— Mantenha-o lá, John, enquanto pego minha valise — disse o médico e desapareceu. John Smith, com um punho enorme segurando o ombro do Andarilho e o outro os dois pulsos, piscou incentivadoramente para Will olhando rapidamente para a cozinha; subitamente, Will se lembrou do serviço que se dispusera a fazer e correu. Quando voltou apressado com dois baldes vazios em cada mão, havia uma nova comoção na lareira; um novo assovio começava a soar e a fumaça se espalhava fazendo Frank Dawson cambalear para trás.

— Inútil! — disse ele furiosamente. — Inútil! A gente limpa a lareira por um momento, e mais neve é derramada aqui embaixo. E o frio... — Ele parecia desesperado. — Olhe para eles, Will.

O aposento estava no caos e na miséria: os bebezinhos gemiam, os pais abraçavam seus filhos para mantê-los aquecidos o suficiente para respirar. Will esfregou as mãos geladas e tentava sentir os pés e o rosto através da dormência causada pelo frio. O salão se tornava cada vez mais gélido e, do mundo congelante lá fora, não se ouvia sequer o barulho do vento. A sensação de estar dentro de dois níveis do Tempo, de uma só vez, ainda pairava em sua mente, embora tudo o que pudesse sentir naquele momento em relação ao solar antigo era a consciência das grandes velas geladas brilhando sinistras e persistentes ao redor dos três lados do salão. Elas eram como fantasmas, quase invisíveis, desde quando ele se viu, pela primeira vez, trazido de volta pelo frio de seu tempo real; mas, como o frio se intensificava, as luzes ficavam mais nítidas. Will as olhava atentamente. E sabia que, de alguma maneira, elas personificavam o poder das Trevas no auge de seu solstício de inverno; porém, ele também sabia que as velas faziam parte de uma magia independente aproveitada pelas Trevas, a qual, como tantas outras coisas naquela longa batalha, poderia ser rechaçada pela Luz, bastando apenas que a coisa certa fosse feita no tempo certo. Como? Como?

O dr. Armstrong já retornava ao quarto dos enfermos com sua valise preta. Talvez pudesse haver, afinal, um meio de deter as Trevas antes que o frio pudesse atingir o ponto de destruição. Um homem, sem querer, oferecendo ajuda a outro: este poderia ser o pequeno evento para revirar toda a força sobrenatural das Trevas... Will esperou, tomado repentinamente pela tensão da empolgação. O médico se moveu na direção do Andarilho, que ainda praguejava incoerentemente sob a firmeza do pulso de John Smith, e então deslizou uma agulha habilidosamente no braço do velho errante antes que ele soubesse o que estava sendo feito com ele. — Pronto — disse ele tranquilizadoramente. — Isso o ajudará. Durma bem.

Instintivamente, Will avançou alguns passos, caso precisassem de ajuda, e viu que assim como ele, Merriman, o fazendeiro Dawson e o Velho George estavam se aproximando também. O médico e o paciente encontravam-se fechados pelo círculo dos Anciãos, todos ao redor, protegendo contra possíveis interferências.

O Andarilho avistou Will e rosnou como um cachorro, revelando seus dentes quebrados e amarelados. — Congelar, você vai congelar — disse cuspindo nele — e os Signos serão meus, sem dúvida alguma... — Mas logo titubeou e piscou, sua voz ficava mais baixa conforme o medicamento espalhava a sonolência pelo corpo dele, e mesmo quando a desconfiança começou a aparecer em seus olhos, suas pálpebras se fecharam. Cada um dos Anciãos avançou um ou dois passos, apertando o círculo. O velho piscou novamente, mostrando a parte branca de seus olhos horríveis num instante repentino e então ficou inconsciente.

E com a mente do Andarilho fechada, os meios utilizados pelas Trevas para entrar na casa foram fechados também.

Instantaneamente, foi perceptível a diferença no aposento pelo relaxamento das tensões. O frio não era mais tão intenso, a infelicidade e o assombro ao redor deles começaram a se dissipar como uma névoa. O dr. Armstrong se ergueu, com uma pergunta e uma expressão confusa no olhar; os olhos dele se arregalaram quando percebeu o círculo de rostos determinados ao redor. E começou a perguntar indignado: — O que...?

Mas o restante das palavras dele não foi escutado por Will, pois, ao mesmo tempo, Merriman os chamava da multidão, com urgência, silenciosamente, num discurso da mente que nenhum homem poderia ouvir. — As velas! As velas do inverno! Pegue-as, antes que desapareçam!

Os quatro Anciãos se dispersaram rapidamente pelo salão, onde os estranhos cilindros azuis e brancos ainda queimavam fantasmagoricamente pelas três paredes, queimando com suas chamas frias e mortais. Voltando a atenção diretamente para as velas, eles as seguraram, duas em cada mão; Will, sendo o menor, subiu rapidamente em uma cadeira para alcançar a última. Era fria, pesada e lisa ao toque, como gelo que não derreteu. No momento que a tocou, ficou atordoado, sua cabeça começou a girar...

.... e logo ele se encontrava novamente no Grande Salão dos tempos antigos como os outros quatro e, ao lado da lareira, a Dama estava sentada em sua cadeira de encosto alto, acompanhada da esposa do ferreiro sentada aos seus pés, olhando através dos límpidos olhos azuis.

Estava claro o que deveria ser feito. Tomando as velas das Trevas, eles avançaram em direção aos encaixes do grande anel de ferro, semelhante a uma mandala, acomodado sobre a mesa maciça, e cada um deles encaixou as velas nos nove soquetes que permaneciam vazios na peça central da cruz. Cada vela mudou subitamente enquanto era colocada em seu devido lugar, a chama crescia mais espessa e alta, assumindo a tonalidade dourada e branca no lugar do frio e ameaçador azul. Will, com sua única vela, foi o último. Ele estendeu o braço para encaixá-la no último soquete, situado bem no centro do desenho e, enquanto fazia isso, as chamas das velas se ergueram em um triunfante círculo de fogo.

A voz frágil da velha dama soou: — Aí está o poder apreendido das Trevas, Will Stanton. Pela mágica fria, eles invocaram as velas do inverno para a destruição. Mas, agora que as apreendemos para um propósito melhor, as velas se fortalecerão e serão capazes de levá-lo ao Signo do Fogo. Veja.

Retrocederam alguns passos, observando, e a última vela central que Will colocara no lugar começou a crescer. Quando sua chama se estendeu acima das outras, ela assumiu uma tonalidade nova: amarela, laranja e vermelha; como continuava a crescer, alterou sua forma transformando-se numa estranha flor sobre uma estranha haste. Um botão curvado, cheio de pétalas que resplandecia ali; cada pétala possuía um tom diferente das cores das chamas; lenta e graciosamente, cada pétala abriu e caiu, flutuando e desmanchando-se no ar. E finalmente, no topo da longa haste curvada da planta de chama avermelhada, um reluzente broto foi deixado, ondulando suavemente por um momento, e numa explosão rápida e silenciosa se abriu: os cinco lados desabrocharam ao mesmo tempo como pétalas rijas. Em seu interior, havia um círculo vermelho dourado na forma que todos conheciam.

A Dama ordenou: — Pegue-o, Will.

Will, admirado, deu dois passos em direção à mesa, e o elegante pedúnculo se curvou para ele; enquanto o menino estendia a mão, o círculo dourado se depositou sobre ela. Instantaneamente, uma onda de poder invisível o atingiu, um eco daquilo que ele havia sentido no momento da destruição do Livro da Magia... e enquanto cambaleava e se equilibrava novamente, percebeu que a mesa se encontrava vazia. Num piscar de olhos, tudo o que estava sobre ela havia desaparecido: a flor estranha, as nove velas resplandecentes e o Signo na forma de um encaixe de ferro que continha todas elas. Sumiram. Tudo desapareceu: tudo, exceto o Signo do Fogo.

Estava na palma de sua mão, quente ao toque, uma das coisas mais belas que ele já tinha visto. Ouro de várias e diferentes tonalidades foi batido com grande habilidade artesanal para gerar a forma do círculo cruzado; em todos os lados, foram colocadas minúsculas gemas de rubis, esmeraldas, safiras e diamantes, num desenho estranho e rúnico que parecia estranhamente familiar aos olhos de Will. O objeto cintilava e reluzia em sua mão como todos os tipos de fogo que já existiram. Olhando de perto, viu algumas palavras escritas com letras bem pequenas ao redor da extremidade mais afastada:

LIHT MEC HEHT GEWYRCAN 

E disse Merriman suavemente: — A Luz ordenou que eu Tosse criado. Exceto por um, eles tinham todos os demais Signos agora. Com júbilo, Will estendeu os braços, agitando-os alegremente no ar, segurando o Signo no alto para que todos pudessem vê-lo, e o círculo de ouro trabalhado capturou o brilho de todas as luzes do salão, bruxuleando como se fossem feito de chamas.

De algum lugar externo, ouviu-se um estrondoso rugido revelando um longo gemido de raiva em seu interior. O som retumbava, rosnava e surgia como um estrondo novamente...

... e quando soou em seus ouvidos, Will estava de volta ao salão da srta. Greythorne, com todos ao redor dele; todos os rostos conhecidos do vilarejo virados para o telhado em sinal de indagação e para o resmungo que rugia no céu adiante.

— Um trovão? — perguntou alguém, intrigado.

Luzes azuis bruxuleavam em todas as janelas, e o trovão soava tão próximo aos ouvidos que todos estremeceram. Novamente surgiram os relâmpagos, e novamente o trovão rugiu. Em algum lugar, uma criança começou a chorar alto e estridente. Mas enquanto todo o aposento lotado aguardava pelo próximo estrondo, não se ouviu mais nada. Nenhum relâmpago, nenhum trovão, nada mais do que um murmúrio longínquo. No lugar, depois de um silêncio curto de respiração entrecortada, preenchido apenas pelo sussurro das cinzas na lareira, ouviu-se o som leve de uma batida na porta do lado de fora, intensificando sutilmente e pouco a pouco até se tornar um inconfundível staccato contra as janelas, portas e telhados.

A mesma voz anônima gritou de alegria: — Chuva!

E as vozes irromperam ao redor animadas, e as faces sombrias brilharam; várias pessoas correram para olhar pela janela, fazendo um sinal de alegria para os outros. Um velho que Will nunca se lembrou de ter visto em sua vida virou-se para ele com um sorriso desdentado e disse: — A chuva derreterá a neve, de uma vez por todas!

Robin surgiu dentre a multidão. — Ah, aqui está você. Estou ficando maluco, ou este aposento de repente parece quente?

— Está mais quente — disse Will, tirando o pulôver. Embaixo dele, o Signo de Fogo encontrava-se em seu cinto, seguro com os outros.

— Engraçado, ficou tão horrivelmente frio por um tempo. Eu acho que eles conseguiram ligar o aquecedor central novamente...

— Vamos ver a chuva! — Dois garotos apressados correram até a porta principal. Mas, enquanto eles ainda mexiam na maçaneta, uma série de batidas, rápidas e audíveis, soou do lado de fora; e lá na escada, quando a porta foi aberta, com os cabelos alisados na cabeça pela chuva suave que caía, encontrava-se Max.

Ele estava sem fôlego e era possível perceber que tentava respirar urgentemente para conseguir falar. — A srta. Greythorne está? Meu pai?

Will sentiu uma mão em seu ombro e viu Merriman ao seu lado. Subitamente soube pela preocupação nos seus olhos que de alguma maneira tratava-se do atual ataque das Trevas. Max o avistou e se aproximou; a chuva escorria por seu rosto e ele se sacudia como um cachorro.

— Chame nosso pai, Will — disse ele. — E o médico, se ele puder vir. A mamãe sofreu um acidente, ela caiu da escada. Ainda está inconsciente, e achamos que ela quebrou uma perna.

O sr. Stanton já tinha ouvido e correu até o quarto do médico.

Will olhava tristemente para Max. Ele chamou por Merriman em silêncio, atemorizado: — Eles fizeram isto? Fizeram?

A Dama disse...

— É possível — disse a voz em sua mente. — Eles não podem ferir você, verdade, e eles não podem destruir os homens. Mas podem incentivar os próprios instintos humanos a fazer-lhes mal. Ou fazer soar um estrondo inesperado de trovão, quando alguém estiver no topo de uma escada... Will não ouviu mais do que isso. Já se encontrava do lado de fora da porta com seu pai, seus irmãos e o dr. Armstrong, seguindo Max até seu lar.

 

James ainda olhava pálido e angustiado, mesmo depois que o médico chegou e examinou a sra. Stanton na sala de Estar. Ele ficou ao lado de seus irmãos que estavam mais perto dali, justamente Paul e Will, e os levou para longe do Restante, de modo que não os ouvissem. E disse, infeliz:

Mary desapareceu.

— Desapareceu?

— De verdade. Eu disse para ela não ir. Eu não pensei que ela iria, eu pensei que ela ficaria com muito medo. — E A preocupação levou o estóico James à beira das lágrimas.

— Mas foi pra onde? — perguntou Paul asperamente.

— Para o Solar. Foi depois que Max partiu para chamar vocês. Gwennie e Barb estavam na sala de estar com nossa mãe; Mary e eu na cozinha tomando chã, e ela ficou toda aborrecida e disse que Max já tinha saído há muito tempo e nós deveríamos sair e verificar se alguma coisa tinha acontecido com ele. Eu lhe disse para não ser tão idiota, pois e claro que não iríamos, mas aí, a Gwen me chamou para ajudá-la a acender o fogo, e, quando eu voltei, Mary já tinha saído levando seu casaco e botas. — Ele choramingou:

― Eu não consegui ver qualquer sinal para onde ela pudesse ter ido; lá fora... a chuva acabara de começar e não restava mais qualquer pegada. Eu já estava saindo atrás dela sem dizer nada, pois as garotas tinham muito com o que se preocupar, mas então vocês chegaram, e eu pensei que ela estaria com vocês. Só que não estava. Ai, meu Deus — disse James, aflito. — Ela é uma completa idiota.

— Não se preocupe — disse Paul — Ela não pode ter ido muito longe. Vá e espere por um bom momento para explicar isso ao nosso pai e diga-lhe que eu saí para procurá-la. Levarei Will, nós ainda estamos vestidos com nossas roupas quentes.

— Bom — disse Will, que tentava rapidamente pensar nos argumentos para poder ir junto.

Quando se encontravam sob a chuva novamente, a neve já começara a derreter branca e cinzenta sob seus pés. Paul perguntou: — Não acha que está na hora de me contar o que tudo isso significa?

— O quê? — perguntou Will, estarrecido.

— No que você está envolvido? — disse Paul. Seus olhos azuis claros olhavam severamente através de seus pesados óculos.

— Nada.

— Veja bem, se Mary partiu, isso pode ter algo a ver com isto, e você precisa dar uma explicação.

— Ai, Deus! — exclamou Will. Ele olhava para a determinação ameaçadora de Paul e perguntava-se como explicaria para seu irmão mais velho que um menino de onze anos não era de fato um menino de onze anos, mas uma criatura sutilmente diferente da espécie humana, lutando para sobreviver... Não se explica, é claro.

Ele disse: — Trata-se disto, eu acho — perscrutando cautelosamente o irmão, afastou a jaqueta e pulôver de seu cinto e mostrou os Signos para Paul. — Eles são antiguidades. Umas fivelas que o sr. Dawson me deu de aniversário, mas elas devem ser muito valiosas, pois dois ou três malucos já apareceram e tentaram pegá-las. Um homem me perseguiu na Trilha do Vale do Caçador, certa vez... e aquele mendigo estava metido com eles de alguma forma. Foi por isso que eu não quis trazê-lo para casa, no dia era que o encontramos na neve.

Ele pensava como tudo aquilo tinha soado improvável.

Hum — disse Paul. — E aquele camarada no Solar, o novo mordomo? Lyon, não é? Ele está metido com esses palhaços?

— Ah, não — disse Will rapidamente. — Ele é meu amigo.

Paul olhou-o por um momento, sem expressão. Will pensava sobre o dia no porão, quando seu irmão se mostrou tão compreensivo no começo, e na forma como ele havia tocado a flauta antiga e soube que se havia alguém entre seus irmãos a quem poderia fazer confidencias, este era Paul. Mas isto estava fora de questão.

E Paul disse: — Obviamente você não me contou nem metade da história, mas isso eu verei mais tarde. Presumo que para você esses caçadores de antigüidades possam ter levado Mary como um tipo de refém?

Eles chegaram ao fim da entrada da casa. A chuva caía sobre eles, pesada mas não tão desagradável, e começava a derreter os bancos de neve, escorrendo das árvores, transformando as estradas em um riacho que se move rapidamente. Eles olhavam para cima e para baixo, em vão.

Will disse: — Eles devem ter. Quero dizer, ela deve ter ido direto para o Solar, mas então por que não a vemos no caminho de casa?

— Nós iremos por ali de qualquer maneira, para verificar. — Paul inclinou sua cabeça subitamente e fitou o céu. — Essa chuva! É ridículo! Assim, de repente, acaba toda aquela neve... e está tão mais quente também. Não faz sentido. — Ele saiu correndo respingando a água do riacho que era a Trilha do Vale do Caçador e olhou para Will com um meio sorriso de perplexidade. — Muitas coisas não estão fazendo sentido para mim agora.

— Ah — disse Will. — Hum. Não. — Ele saiu correndo, fazendo barulho com o respingo da água, para abafar seu remorso, e procurava através da chuva por algum sinal da irmã. O barulho ao redor deles era impressionante agora: um ruído oceânico de espuma borbulhante, de ondas se quebrando na praia, enquanto o vento fazia a chuva ser desviada ritmicamente pelas árvores. Um ruído mais antigo, como se eles estivessem na extremidade de um oceano enorme que precede os homens. No alto da estrada por onde corriam, eles olhavam e gritavam obstinadamente de ansiedade; tudo o que eles viram se tornou várias vezes estranho, enquanto a chuva talhava a neve em novos caminhos e outeirinhos. Mas quando chegaram à uma curva, Will soube muito bem onde estavam.

Ele viu Paul se esconder defensivamente sob um braço levantado, ouviu o som rouco e áspero de um grasnado abruptamente alto que logo sumiu e avistou, mesmo através dos pingos da chuva, uma onda de penas negras enquanto um bando de gralhas mergulhava do céu sobre suas cabeças.

Paul se ergueu lentamente, olhando. — Que raios...?

— Saia desse lado da estrada — avisou Will, empurrando o irmão firmemente para o lado. — As gralhas ficam loucas de vez em quando. Já vi isso antes.

Outro mergulho e os pássaros atacaram Paul pelas costas, empurrando-o para a frente, enquanto o primeiro grupo descia rasante novamente para forçar Will contra um banco de neve ao longo da margem do bosque coberto de neve. Mais uma vez, elas investiram contra eles, e outras vezes seguidas. Will se perguntava, esquivando-se, se seu irmão tinha percebido que eles estavam sendo arrebanhados como ovelhas, levados para onde as gralhas queriam que fossem. Mas, mesmo enquanto se indagava, ele já sabia que era tarde demais. A chuva densa e cinzenta os separou completamente, e ele não tinha idéia de onde Paul poderia estar.

Will gritou em pânico: — Paul? Paul? ― entretanto, quando o Ancião dentro dele assumiu o controle, acalmando o medo, ele parou de gritar. Aquele não era um problema para seres humanos comuns, mesmo os de sua própria família, e deveria sentir-se feliz por estar sozinho. Ele sabia agora que Mary deveria estar retida e mantida pelas Trevas. Se pelo menos ele tivesse a chance de tê-la de volta. Assim, prosseguiu sob a chuva incessante, olhando sobre si mesmo. A claridade estava se extinguindo rapidamente. Will desabotoou o cinto e o afivelou em volta de seu pulso; depois proferiu uma palavra na Linguagem Antiga e ergueu os braços, e dos Signos surgiu um caminho de luz reluzente e constante como a de uma tocha, que resplandecia sobre as águas agitadas e marrons, onde a estrada começava a se tornar um rio mais profundo e com correnteza.

Ele se lembrou do que Merriman tinha avisado, hã bastante tempo: que o auge mais perigoso do poder das Trevas se daria na Décima Segunda Noite. Teria chegado esse dia? Will já não sabia mais em que dia estava e passou um por um em sua mente. A água lavava a borda de sua bota enquanto ficou ali pensando; ele saltou rapidamente para trás, para o banco de neve na extremidade do bosque, e uma onda marrom na estrada-rio arrancou um enorme pedaço da parede de neve acumulada sobre a qual ele estava. Sob a luz dos Signos, Will percebia que naquele momento outros montes de neve suja e gelo flutuavam na água; enquanto boiavam passando por ali, gradualmente arrancavam os blocos de neves acumulados de cada lado pelo limpa-neve e carregavam para longe as partes desvencilhadas como um iceberg miniatura.

Além disso, havia outras coisas na água, como um balde boiando e um tufo de objetos que parecia um saco de feno. O volume de água devia ter aumentado o suficiente para arrastar coisas dos jardins das pessoas... talvez coisas de sua família estivessem por ali. Como podia aumentar assim tão rápido? Como em resposta, a chuva o açoitou nas costas, fazendo mais neve se quebrar embaixo de seus pés; lembrou que o chão onde pisava deveria estar congelado, enrijecido pelo frio intenso que tinha paralisado a terra antes de a chuva começar a cair. Em lugar nenhum, aquela chuva seria capaz de se infiltrar no solo. O degelo da terra demoraria muito mais do que o derretimento da neve — e, nesse ínterim, a água da neve não tinha para onde ir, nenhuma alternativa, a não ser correr pela superfície congelada do campo, procurando um rio para se juntar. As enchentes serão terríveis, pensava Will, pior do que havia vivido antes. Pior do que o próprio frio...

Mas uma voz o interrompeu, um grito através das águas velozes e do barulho da chuva. Ele cambaleou sobre a pilha de neve derretida para olhar através da neblina. O grito soou novamente. — Will! Por aqui!

— Paul? — Will gritou esperançoso, mas soube que não se tratava da voz de Paul.

— Aqui! Por aqui!

O som do grito surgia do rio na estrada, na escuridão. Will ergueu os Signos que reluziram sobre a água agitada, revelando o que ele achou primeiro ser nuvens de vapor. Em seguida, percebeu que o vapor encaracolado era o sopro de uma respiração: a expiração profunda de um cavalo gigante, com as quatro patas dentro da água, enquanto ondas pequenas e bravias espumavam em seus joelhos. Will avistou a cabeça larga, a longa crina na cor castanha grudada no pescoço do animal e o reconheceu como Castor ou Pollux, um dos dois grandes cavalos da raça shire da fazenda dos Dawson.

A luz dos Signos iluminou mais ao alto e o menino pôde avistar o Velho George, agasalhado em uma capa impermeabilizada, montado nas costas do cavalo gigantesco.

― Por aqui, Will. Pelas águas, antes que a correnteza aumente demais. Temos um trabalho a fazer. Venha!

Ele nunca ouvira o som exigente de Velho George antes; este era o Ancião, não o amável e velho ajudante da fazenda. Inclinado contra o pescoço do cavalo, o homem o instigou para mais perto através das águas. — Aproxime-se, chegue perto, Pollux. — E o grande Pollux bufou a nuvem de vapor através de suas largas narinas e deu passos firmes adiante, de modo que Will fosse capaz de cambalear pelo rio da estrada e agarrar suas pernas longas como árvores. A água atingia quase a altura das coxas dele, mas estava tão molhado por causa da chuva que isso não fazia muita diferença. Não havia sela sobre o grande cavalo, apenas um cobertor ensopado; no entanto, com uma força impressionante, Velho George inclinou-se para baixo e puxou a mão do menino que, com muito esforço, conseguiu subir. A luz dos Signos afivelados em seu pulso não fraquejou enquanto se virou e se contorceu, antes permaneceu direcionada firmemente para o caminho que deveria tomar.

Will escorregava e deslizava sobre as costas largas do cavalo, grandes demais para que colocasse uma perna de cada lado. George o puxou para a frente, onde conseguiria se sentar melhor, acomodado sobre o enorme pescoço curvado. — Os ombros de Polly já suportaram pesos maiores que o seu — gritou o homem no ouvido de Will. Em seguida, eles balançavam para a frente enquanto o cavalo cavalgava novamente, espalhando água pelo crescente riacho, para longe das gralhas do bosque, para longe da casa dos Stanton.

— Aonde estamos indo? — gritou Will, olhando temerosamente para a escuridão; não conseguia enxergar nada, somente o rodamoinho de água sob a luz dos Signos.

— Nós vamos incitar a Caçada — soou a voz falha em seus ouvidos.

— A Caçada? Que Caçada? George, eu preciso encontrar Mary, eles estão com a Mary, em algum lugar. E eu perdi o Paul de vista.

— Nós precisamos incitar a Caçada — enfatizou a voz firme atrás dele. — Eu vi Paul, ele está seguro e a caminho de casa agora. Quanto a Mary, você a encontrará na ocasião oportuna. É hora do Caçador, Will; a égua branca deve encontrar o Caçador, e você deve levá-la até lá. Esta é a ordem das coisas, você se esqueceu disto. O rio está se aproximando do vale, e a égua branca deve encontrar o Caçador. E, então, veremos o que veremos. Temos um trabalho para realizar, Will.

A chuva os açoitava, e em algum lugar distante soou o estrondo de um trovão na noite que se aproximava, enquanto o enorme Pollux, o cavalo da raça shire, corria pacientemente respingando a água através do crescente rio marrom que havia sido a Trilha do Vale do Caçador.

Era impossível dizer onde estavam. O vento aumentava, e Will podia ouvir os sons das árvores balançando acima da pisada firme das patas de Pollux. Poucas luzes eram vistas no vilarejo; provavelmente, a energia elétrica continuava cortada, talvez acidentalmente ou pela atuação das Trevas. De qualquer maneira, a maioria das pessoas daquela parte do vilarejo ainda estava no Solar.

— Onde está Merriman? — gritou Will através do ruído alto da chuva.

— No Solar — George gritou em seus ouvidos. — Com o fazendeiro. Sitiados.

— Você quer dizer que eles estão presos? — A voz de Will soava aguda, pelo temor.

Velho George respondeu, sussurrando, quase inaudível: — Eles estão de guarda, de modo que possamos trabalhar.

E a correnteza os mantém ocupados também. Olhe para baixo, garoto.

No revolver das águas, a luz dos Signos revelava improváveis objetos boiando por lá: uma cesta de vime, várias caixas de papelão se desintegrando, uma vela vermelha, emaranhados de fitas. De repente, Will reconheceu uma das fitas, uma com motivo xadrez roxo e amarelo, semelhante à que Mary cuidadosamente retirou de um embrulho e enrolou para guardar no dia do Natal. Ela era muito boa em estocar coisas, como um esquilo, e aquela fita tinha ido para o estoque da menina.

— Aquelas coisas são da minha casa, George!

— Tem correnteza por ali também — avisou o velho. — A terra está baixa. Mesmo assim, não tem perigo, fique calmo. É apenas água e lama.

Will sabia que o homem estava certo, mas novamente ele gostaria de ver por si mesmo. Certamente, as águas continuariam apressadas, movendo móveis, tapetes, arrastando livros e tudo que pudesse ser movido. Estes objetos boiando devem ter sido arrastados antes que alguém percebesse que a água estava na realidade carregando as coisas...

Pollux tropeçou pela primeira vez, e Will se agarrou à crina molhada; por um momento, ele quase escorregou, mas conseguiu se restabelecer sem problemas. George deixou escapar um suspiro de alívio, e o grande cavalo resfolegou e bufou. O menino podia avistar poucas e fracas luzes que surgiam das casas maiores nos terrenos altos, no final do vilarejo; isto significava que eles estavam se aproximando da Câmara dos Comuns. E aquilo ainda era a Câmara e não um lago.

Alguma coisa estava mudando. Will piscou. A água parecia muito distante, mais difícil de ver. Então, ele percebeu que a luz dos Signos em seu pulso estava enfraquecendo, esvaecendo para o nada; em pouco tempo, eles se encontravam na escuridão. Tão logo todas as luzes se extinguiram, Velho George falou suavemente: — Ôah, Polly. — O grande cavalo shire parou, ficando ali sentindo as águas ondulando-se por suas pernas.

George informou: — Devo deixá-lo aqui, Will.

— Ah — disse ele, sentindo-se abandonado.

— Tenho uma única instrução — disse Velho George.

— Leve a égua branca até o Caçador. Isto acontecerá se não tiver problema. E existem dois pequenos conselhos para que se mantenha longe deles. O primeiro: você encontrará luz suficiente que lhe permitirá enxergar, se contar até cem depois que eu partir. O segundo: lembre-se do que já sabe, águas correntes são livre da Magia. — Ele deu um tapinha reconfortante no ombro do menino. — Coloque os Signos ao redor dos quadris novamente — disse ele — e desça.

Ao descer do animal, o menino percebeu ainda mais o couro molhado; descer era mais difícil do que montar o cavalo e Pollux era tão alto que Will esparramou água quando tocou o chão, pesado como um tijolo caindo. Porém, não sentia frio, embora a chuva continuasse caindo sobre ele; as gotas, no entanto, eram mais suaves e, de certa maneira, um tanto curiosas, pareciam protegê-lo de se sentir gelado.

Velho George falou novamente: — Irei preparar a Caçada — e sem mais palavras de despedida, posicionou Pollux para cavalgar pelas águas na direção da Câmara e partiu.

Will escalou com as mãos o banco de neve acumulado do lado do rio que se formara na estrada, procurou um lugar para ficar sem cair e começou a contar até cem. Antes que chegasse a setenta, começou a entender o que o Velho George queria dizer. Pouco a pouco, o mundo escuro adquiriu uma luz tênue em si mesmo. Ele conseguia enxergar tudo em volta: a água veloz, a neve amontoada, as árvores abatidas; tudo em uma luz tênue acinzentada como o alvorecer. E enquanto ele olhava ao redor, confuso, alguma coisa flutuando passou no riacho veloz, trazendo-lhe tanto assombro que quase caiu na água.

Ele viu os chifres primeiro, virando-se preguiçosamente de um lado para o outro, como se a grande cabeça estivesse aquiescendo para si mesma. Então, as cores vivas apareceram azuis, amarelas e vermelhas, do mesmo jeito como as tinha visto na manhã de Natal. Não conseguia ver os detalhes da face estranha: os olhos como os de um pássaro, as orelhas empinadas de um lobo. Mas tratava-se sem dúvida da cabeça de carnaval, do presente inexplicável que o velho jamaicano havia entregado para Stephen para que lhe fosse enviado — seu bem mais precioso no mundo.

Will deixou escapar um ruído como um soluço e inclinou-se desesperadamente para a frente, para agarrar o objeto antes que a água o carregasse para fora de seu alcance; mas escorregou quando pulou e, assim que recuperou o equilíbrio, a grotesca cabeça já estava boiando longe de sua vista. Will começou a correr ao longo do banco de neve; era uma coisa dos Anciãos, de Stephen, e o havia perdido; ele precisava a todo custo recuperá-la. Mas a lembrança o segurou no meio da passada e ele parou. — A segunda coisa - Velho George avisara: — lembre-se que águas correntes são livres da Magia. — A cabeça estava em movimento na água, algo evidente demais. Assim, pelo tempo que permanecesse por ali, ninguém poderá danificá-la ou usá-la para fins errados.

Relutantemente, Will tirou isso da cabeça. A enorme Câmara dos Comuns se estendia diante dele, iluminada por si mesma com uma luz tênue e estranha. Nada se movia. Mesmo o gado que normalmente pastava por lá durante o ano, surgindo de alto abaixo de vários lugares nos dias enevoados, como fantasmas sólidos, encontrava-se agora protegido nas fazendas, retirado da neve. Will continuou andando cautelosamente. Então, o ruído de águas que há tempos soava em seus ouvidos começou a mudar, ficando mais alto e, diante dele, a enxurrada que enchia a Trilha do Vale do Caçador curvou-se para o lado para se juntar ao minúsculo riacho local que havia aumentado tornando-se um rio espumoso que corria pela Câmara e adiante. A estrada que se tornara um rio fluía desobstruída, sólida e reluzente; Will achava que o Velho George tivesse partido por aquele caminho. Ele teria gostado de tomar o rumo daquela estrada também, mas pressentiu que deveria permanecer com o rio; por meio do super-sentido dos Anciãos, ele sabia que aquelas águas lhe mostrariam como levar a égua branca até o Caçador.

Mas quem era o Caçador e onde estava a égua branca? Will avançou cautelosamente ao longo do banco de neve cheio de destroços que margeava o novo riacho que aumentara de tamanho. Salgueiros enfileiravam-se ao longo das águas, atarracados e decepados. Então, repentinamente, fora da fileira escura das árvores do outro lado do riacho, uma forma branca saltou. Surgiu uma luz prateada, na escuridão que não estava tão escura, e, jorrando a neve molhada, a grande égua branca da Luz se erguia diante de Will; a respiração do animal nublava ao redor as gotas de chuva. Era alta como uma árvore e sua crina se agitava de forma indomável com o vento.

Will a tocou, gentilmente. — Vai me carregar? — perguntou ele, na Linguagem Antiga. — Como já fez antes?

O vento o açoitava enquanto ele falava, e luminosos relâmpagos cortavam o céu de uma extremidade a outra, mais próximos do que antes. A égua branca estremeceu, sacudindo a cabeça para cima. Mas relaxou novamente, quase no mesmo instante, e Will também sentiu instintivamente que a tempestade que se formava não era obra das Trevas. Era esperado. Fazia parte do que deveria acontecer.

A Luz, estava se rebelando, antes que as Trevas pudessem se rebelar.

Ele se assegurou de que os Signos estivessem firmes em seu cinto e, em seguida, assim como antes, estendeu seus dedos ao vento, alcançando a longa e espessa crina branca. No mesmo instante, sua cabeça girou atordoada, e ouviu bem claro, embora distante, a mesma música como um sino que o tentava, a mesma frase que tocava seu coração, até que um grande solavanco fez o mundo girar e a música desapareceu; Will já se encontrava sentado sobre a égua branca, alto entre os salgueiros.

Agora, os relâmpagos reluziam pelo céu estrondoso. Os músculos das costas magníficas da égua ficaram tensos e Will se agarrou à longa crina enquanto o animal cavalgava pela Câmara, para longe dos outeirinhos e barrancos de neve; seus cascos esfolavam a superfície para fazer jorrar as lascas de gelo. Através da velocidade do vento, pensava Will enquanto se segurava firme no pescoço arqueado da égua, ele podia ouvir um grito estranho e alto, como o som de gansos em migração voando nas alturas. O som parecia arquear ao lado dele e continuar adiante, extinguindo-se fora de alcance.

A égua branca saltou alto; Will se segurou ainda mais enquanto eles saltavam sobre as sebes, estradas, muros, tudo o que surgisse na neve derretida. Em seguida, um novo ruído soou mais alto que o vento ou trovão em seus ouvidos, e o menino avistou um espelho de águas agitadas e cintilantes adiante e soube que haviam chegado ao Tâmisa.

O rio estava mais largo do que antes. Por mais de uma semana, suas águas tinham sido canalizadas e estreitadas pelas paredes de gelo da neve que se projetavam pelo caminho; mas, naquele momento, ele havia sido libertado e espumava e rugia com enormes pedaços de neve e gelo rolando por ele como icebergs. Não era um rio, era a fúria das águas sibilando e uivando. Aquilo não era racional. Enquanto olhava, Will foi atemorizado pelo Tâmisa como nunca havia sido; era tão violento quanto algo vindo das Trevas, fora de seu conhecimento ou controle. Porém, ele sabia que não se tratava de algo das Trevas, mas algo além da Luz e das Trevas, uma das coisas antigas, do início do Tempo. As coisas antigas: fogo, água, pedra... madeira e depois, do início dos homens, bronze e ferro. O rio estava livre, e seu curso prosseguia segundo sua própria vontade. — O rio deve tomar o vale... — havia dito Merriman.

A égua branca parou irresoluta às margens das águas bravias e frias e em seguida irrompeu adiante e saltou. Somente quando se ergueram do rio agitado foi que Will avistou a ilha, uma ilha onde ninguém havia ido antes naquela volumosa enxurrada, dividida por canais estranhos e reluzentes. Pensou, enquanto o animal se sacudia na terra novamente entre as pouquíssimas árvores escuras: era de fato um morro, um pedaço de terra arrancado pela água. De repente, ele soube claramente que se depararia com um grande perigo naquele lugar. Tratava-se do lugar de sua provação, a ilha que não era uma ilha. Mais uma vez, ele olhou para o céu e em silêncio e desesperadamente clamou por Merriman, mas Merriman não apareceu, e nenhuma palavra ou sinal da parte dele surgiu na mente de Will.

A tempestade não tinha começado ainda e o vento diminuíra um pouco; o barulho do rio soava mais alto do que todos os outros. A égua branca curvou seu longo pescoço e Will desceu com dificuldade.

Através da neve amontoada, algumas vezes dura como gelo e outras vezes macia o suficiente para afundá-lo, ele partiu para explorar sua estranha ilha. O menino achava que o morro tinha forma circular, mas seu formato era como um ovo e seu ponto mais alto ficava naquela extremidade onde se encontrava a égua branca. Algumas árvores cresciam em volta do sopé; além delas havia uma encosta aberta, coberta pela neve, e acima desta alguns arbustos desbastados dominados por uma única faia antiga sulcada pelo tempo. Afastado da neve, aos pés de uma árvore enorme, e principalmente surpreendente, quatro riachos desciam pela colina da ilha, dividindo-a em quatro quartos. A égua branca continuava imóvel. Trovões rugiam pelo céu bruxuleante. Depois, Will subiu até a velha faia e ficou observando a espuma mais próxima debaixo de um enorme bloco de neve. Então, o canto começou.

Era sem palavras e soava no vento: um resmungo fraco e agudo com compassos ou melodia indefinida. Vinha de muito longe e não era agradável de ouvir. Mas o som o manteve transfixado, arrancando seus pensamentos da direção que tomava, tirando sua atenção de tudo, menos da contemplação daquilo que poderia estar próximo de acontecer. Will sentia crescer raízes em seus pés, como as árvores acima dele. Enquanto ouvia o canto, avistou o graveto de um ramo baixo da faia, perto de sua cabeça que parecia, sem qualquer razão, totalmente fascinada a ponto de ser incapaz de fazer qualquer coisa além de olhar para aquele pedacinho de árvore, como se contivesse o mundo inteiro. Ele o fitou por muito tempo e seus olhos se moviam repetida e gradualmente pelo minúsculo graveto, o que o fazia sentir como se vários meses tivessem passado, enquanto o canto estranho e alto continuava a soar desde o início dos céus. Então, repentinamente, parou, e ele foi deixado, atordoado, quase tocando com seu nariz o graveto tão comum de uma faia.

Deste modo, ele soube que as Trevas tinham seus próprios meios para colocar um Ancião fora do Tempo por algum momento, caso precisassem de algum momento para concluir sua própria magia. Pois diante dele, perto do tronco da enorme faia, encontrava-se um homem que parecia ser Hawkin, embora na idade do Andarilho. Will sentia que olhava para dois homens em um. Hawkin ainda estava vestido com seu casaco verde de veludo que ainda mantinha a aparência de novo, com o toque de uma renda no pescoço. Mas a figura dentro do casaco não era mais hábil e ágil; era menor, encurvada e encolhida pela idade. E o rosto estava enrugado e envelhecido sob os longos e cacheados cabelos grisalhos; os séculos que açoitaram Hawkin deixaram apenas seus olhos cintilantes e atentos inalterados. E aqueles olhos fitavam Will agora com fria hostilidade, através do monte de neve.

— Sua irmã está aqui — disse Hawkin.

Will não pôde se conter e olhou rapidamente ao redor da ilha. Mas estava vazia como antes.

Ele disse friamente: — Ela não está aqui. Você não vai me convencer com truques tolos como este.

Os olhos de Hawkin se estreitaram e ele sibilou: — Você é arrogante. Você não vê tudo o que deve ser conhecido no mundo com seu dom, Ancião, nem seus mestres. Sua irmã Mary está aqui, neste lugar, embora não tenha permissão para vê-la. Trata-se de um encontro apenas para a barganha que meu senhor, o Cavaleiro, fará. Sua irmã pelos Signos. Você não tem muita escolha. Pessoas como vocês são boas em arriscar a vida dos outros... — a boca velha e cheia de amargura curvara-se com desdém — mas eu não acho que Will Stanton apreciaria a visão da morte de sua irmã.

Will respondeu: — Eu não a vejo. Eu ainda não acredito que ela esteja aqui.

Olhando-o, Hawkin disse ao ar vazio: — Mestre?

De repente, o canto sem palavras começou a soar novamente, levando Will de volta à lenta contemplação que era quente e relaxante como o sol de verão, mas ao mesmo tempo horrível no controle sutil de sua mente. E o fazia mudar enquanto ouvia a canção; fazia-o esquecer a tensão de lutar pela Luz e o submergia, nesta hora, na observação do modo como as sombras e o vazio desenhavam alguns traços sobre o caminho de neve perto de seus pés. Ele continuou leve e relaxado, olhando de um ponto de gelo branco aqui para um buraco escuro ali, e o canto ressoava em seus ouvidos como o vento através de tinidos em uma casa desmoronada.

E novamente parou, e não se ouvia mais nada, e Will viu com espanto, como um frio repentino, que ele olhava não para o desenho de meras sombras sobre a neve, mas para linhas e curvas do rosto de sua irmã Mary. Lã estava ela sobre a neve, vestida com as mesmas roupas que a viu pela última vez: viva e ilesa, mas olhando-o lividamente sem qualquer sinal de que o reconhecia ou sabia onde estava. De fato, Will pensava com tristeza, ele também não sabia seu paradeiro, pois embora lhe fosse mostrada a aparência da menina, era improvável que Mary estivesse ali deitada sobre a neve. Moveu-se para tocá-la e, conforme já esperava, ela desapareceu completamente, restando apenas as sombras pairando na neve como antes.

— Você pode ver — disse Hawkin, imóvel ao lado da faia. — Existem coisas que as Trevas podem fazer, muitas coisas, sobre as quais você e seus mestres não têm nenhum controle.

— Isto é bem óbvio — disse Will. — De outra forma, não haveria uma coisa como as Trevas, haveria? Antes nós apenas lhe diríamos para ir embora.

Hawkin sorriu e disse baixinho: — Mas elas nunca irão embora. Antes que isto aconteça, elas quebrarão toda resistência até virar nada. E as Trevas sempre virão, meu caro amigo, e sempre vencerão. Como pode ver, nós temos sua irmã. Agora, dê-me os Signos.

— Dá-los a você? — disse Will com desprezo. — Para um verme que se arrastou para o outro lado? Nunca!

Ele viu os punhos do homenzinho se fecharem brevemente na bainha do casaco verde de veludo. Mas era o velho, o velho Hawkin que não seria abatido; ele tinha controle sobre si mesmo agora que não era mais o errante Andarilho, mas parte das Trevas. Havia apenas um leve lampejo de fúria na voz. — Garoto, você tratará sim com o mensageiro das Trevas. Senão, poderá atrair sobre si mesmo mais do que desejará ver.

O céu reluziu e rugiu, iluminando tenuemente a crescente água escura ao redor, a árvore enorme situada no ponto mais alto da minúscula ilha e a figura encurvada vestida com o casaco verde ao lado de seu tronco. Will replicou:

— Você é criatura das Trevas. Você optou pela traição. Você não é nada. Eu não tratarei nada com você.

O rosto de Hawkin se contorcia enquanto ele fitava venenosamente o menino; em seguida, olhou na direção da escuridão, para a Câmara dos Comuns ali vazia e gritou:

— Mestre! — Depois novamente, com um grito de raiva desta vez: — Mestre!

Will permaneceu tranqüilo, aguardando. Enquanto isso, avistou a égua branca da Luz, na margem da ilha, quase invisível na neve. Ela ergueu a cabeça e cheirou o ar, resfolegando suavemente; depois olhou na direção de Will como se estivesse se comunicando e, em seguida, deu meia-volta na direção de onde vieram e galopou para longe.

Em segundos, alguma coisa aconteceu. Nada se ouvia; o silêncio era rompido somente pela correnteza do rio e o resmungo da iminente tempestade. O que surgiu veio totalmente silencioso. Era enorme, uma coluna de névoa negra como um tornado, um rodamoinho em incrível velocidade emergindo entre a terra e o céu. Em ambas as extremidades, parecia largo e sólido, mas o centro tremia, crescia alongado e depois aumentava sua espessura novamente; ele se agitava de um lado para o outro conforme a coisa se aproximava em um tipo de dança macabra. Aquele espectro negro era um buraco no mundo, uma peça do vazio eterno das Trevas que era visível. Ao chegar mais perto da ilha, curvando-se e ziguezagueando, Will não conseguiu evitar e retrocedeu alguns passos; cada parte de seu corpo gritava silenciosamente em profundo alarme.

O pilar negro balançava diante dele, cobrindo toda a ilha. A névoa girando silenciosa não se alterava, mas se dividia, e dentro dela encontrava-se o Cavaleiro Negro. Ele permaneceu na névoa agitando os braços e meneando a cabeça, depois sorriu para Will: um sorriso frio, infeliz, acompanhado das sinistras sobrancelhas franzidas em sua face. Ele se vestia novamente de preto, mas as roupas eram inesperadamente modernas — um pesado casaco preto de couro de jumento e calças pretas rústicas de brim.

Sem qualquer indício no sorriso gelado, ele se moveu um pouco para o lado e, saindo de dentro da névoa escura como serpente da coluna, surgia seu cavalo, a grande besta negra de olhos ferozes. Montada sobre ele estava Mary.

— Olá, Will — disse Mary alegremente. Will olhou para a menina. — Olá.

— Suponho que esteja procurando por mim — disse Mary. — Espero que ninguém tenha ficado preocupado. Eu apenas saí para cavalgar um pouco, apenas por um ou dois minutos. Quero dizer, quando fui procurar Max, encontrei o sr. Mitothin e achei que o papai havia pedido para ele me procurar; bem, obviamente estaria tudo bem. E foi tão bom sair para cavalgar. É um cavalo incrível... e faz um dia tão agradável agora...

O trovão retumbou atrás da massa de nuvem negra acinzentada. Will se mexeu com tristeza. O Cavaleiro, olhando-o atentamente, disse em voz alta: — Aqui estão algumas pedras de açúcar para o cavalo, Mary. Eu acho que ele merece, não acha? — E estendeu as mãos, vazias.

— Ah, obrigada — disse Mary ansiosamente. Ela se inclinou sobre o pescoço do animal e pegou a açúcar imaginário das mãos do Cavaleiro. Em seguida, estendeu as pedrinhas ao lado da boca do garanhão, e o animal lambeu rapidamente sua palma. Mary sorriu radiante. — Isso mesmo — disse ela. — Isso não é bom?

O Cavaleiro Negro ainda perscrutava o menino; seu sorriso se estendia mais um pouco. Ele abriu a palma da mão zombando de Mary, e Will avistou uma caixinha branca, feita de um vidro translúcido de gelo, com símbolos rúnicos gravados na tampa.

— Aqui eu a tenho, Ancião — disse o Cavaleiro, sua voz nasal e acentuada soava suavemente triunfante. — Dominada pelas marcas do Encantamento Antigo de Lir, que foi escrito há muito tempo em certo anel e depois perdido. Você deveria ter olhado o anel de sua mãe mais de perto... você e aquele artesão simplório do seu pai e Lyon, seu mestre tão relapso. Relapso... sob este encantamento, eu tenho sua irmã presa por magia totêmica, e você mesmo preso nela também, impotente para socorrê-la. Veja!

Ele moveu rapidamente a caixinha aberta, e Will viu em seu interior uma peça de madeira delicadamente esculpida, enrolada com uma frágil linha de ouro. Consternado, ele se lembrou do único ornamento que estivera faltando da coleção talhada pelo fazendeiro Dawson e presenteada por ele à família Stanton lembrou-se também do cabelo dourado que o sr. Mitothin, o visitante de seu pai, tinha por casual delicadeza retirado da manga da roupa de Mary.

— Um signo de nascimento e um cabelo são totens excelentes — disse o Cavaleiro. — Nos dias antigos, quando éramos menos sofisticados, era possível, é claro, trabalhar a magia mesmo por meio do chão que os pés de um homem haviam pisado.

— Ou por onde sua sombra tivesse passado — acrescentou Will.

— Mas as Trevas não perseguem as sombras — disse o Cavaleiro suavemente.

 — E um Ancião não tem signo de nascimento — disse Will.

Ele viu um lampejo de incerteza sobre o rosto determinado. O Cavaleiro fechou a caixinha branca e a guardou em seu bolso. — Bobagem — declarou lacônico.

Will olhou pensativo para ele e disse: — Os mestres da Luz não fazem nada sem um motivo, Cavaleiro. Embora o motivo não seja revelado durante anos e anos. Hã onze anos, o fazendeiro Dawson da Luz esculpiu certo signo para mim, no meu nascimento... e se ele tivesse feito o signo com a letra do meu nome, como era a tradição, então talvez você pudesse usá-lo para me prender em seu seus poderes. Mas ele o fez no Signo da Luz, um círculo cortado por uma cruz. E como você sabe muito bem, as Trevas não podem usar nada naquele formato para seu próprio benefício. É proibido.

Ele olhava para o Cavaleiro e continuou dizendo: — Eu acho que você está blefando comigo novamente, sr. Mitothin. Sr. Mitothin, Cavaleiro Negro do cavalo negro.

O Cavaleiro o olhou com ódio. — Porém, você continua impotente — afirmou. — Pois eu tenho sua irmã. E não há nada que possa fazer para salvá-la, exceto entregando-me os Signos. — A maldade brilhava de novo em seus olhos. — Seu grande e nobre Livro lhe ensinou que eu não posso ferir aqueles que têm o sangue de um Ancião... mas olhe para ela. Ela fará qualquer coisa que eu sugerir. Mesmo pular neste volumoso Tâmisa. Existem partes do ofício que pessoas como você negligenciam, sabe? É tão simples persuadir as pessoas a certas situações nas quais elas mesmos se acidentam. Como sua mãe, por exemplo, tão estabanada.

Ele sorriu novamente para Will que o olhou de volta, com ódio; em seguida, o menino fitou a face semi-acordada e feliz de Mary e se condoeu por ela se encontrar naquela posição. Ele pensava: e tudo porque ela é minha irmã. Tudo por minha causa.

Mas uma voz silenciosa ecoou em sua mente: — Não por sua causa. Por causa da Luz. Por causa de tudo o que deve acontecer, para impedir que as Trevas se rebelem. — E, numa onda de alegria, Will soube que não estava mais sozinho, e visto que o Cavaleiro estava ali, Merriman estaria perto novamente, livre para ajudá-lo se fosse necessário.

O Cavaleiro estendeu a mão. — Chegou a hora para a barganha, Will Stanton. Dê-me os Signos.

Will tomou o fôlego mais profundo de sua vida e o expirou lentamente, para dizer: — Não.

Assombro era uma emoção que o Cavaleiro Negro tinha esquecido há muito tempo. Os olhos azuis penetrantes fitavam Will em total incredulidade. — Mas você sabe o que eu farei?

— Sim — respondeu Will. — Eu sei. Mas não lhe darei os Signos.

Por um longo momento, o Cavaleiro olhou-o, agora longe do enorme pilar negro de névoa no qual havia permanecido; a incredulidade e a raiva em sua face foram misturadas com um tipo de respeito maligno. Então, ele se virou para o cavalo negro e para Mary e clamou algumas palavras em uma linguagem que Will poderia imaginar, pelo frio infligido aos seus ossos, e que deveria ser o discurso de encantamento das Trevas, raramente usado em voz alta. O cavalo sacudiu a cabeça, revelando dentes brancos, e correu adiante, com a feliz e descuidada Mary agarrada à sua crina e gorgolejando numa gargalhada. O animal cavalgou até o banco de neve que margeava o rio e parou.

Will segurou firmemente os Signos em seu cinto, agoniado pelo risco que estava assumindo, e com todas as possibilidades invocou o poder da Luz para que viesse socorrê-lo.

O cavalo negro relinchou, emitindo um som agudo, e se ergueu no ar sobre o Tâmisa. Na metade de sua subida, ele  se contorceu estranhamente, empinando no ar, e Mary grilou aterrorizada, agarrando-se loucamente no pescoço do animal. Mas logo perdeu o equilíbrio e caiu. Will pensou que iria desmaiar quando a viu rodopiando no ar: o risco que assumira acabaria em desastre; mas, em vez de cair no rio, ela tombou na neve molhada e macia às suas margens. O Cavaleiro Negro praguejou brutalmente, bufando. Ele nunca a alcançou. Antes que chegasse a dar meio passo, um enorme raio de um relâmpago surgiu na tempestade que se amontoava agora quase no alto, e um estrondo gigantesco de um trovão se fez ouvir além do raio e do estrondo, um grande risco luminoso cortou a ilha na direção de Mary, alcançando a menina de modo que em um instante ela não se encontrava mais lá: havia sido levada para longe, em segurança: Will dificilmente conseguiu perceber a forma esbelta de Merriman, vestido com capa e capuz sobre a égua branca da Luz, e os cabelos louros de Mary voando onde ele a havia mantido era segurança. Em seguida, a tempestade começou, e todo o mundo girou flamejante em volta de sua cabeça.

A terra balançou. E, por um instante, Will avistou o Castelo de Windsor delineado em tom escuro contra o céu limpo. Relâmpagos cegavam seus olhos, os trovões retumbavam em sua cabeça. Então, através do canto em seus atordoados ouvidos, escutou um rangido e um estalo bem próximo dali. O menino se virou. Atrás dele, a enorme faia estava habilidosamente partida ao meio, queimando em chamas imensas, e ele percebeu com espanto que a impetuosa corrente dos quatro riachos da ilha diminuía cada vez mais, minguando até não haver mais nada. Olhou temeroso para a coluna negra das Trevas, mas ela já não se encontrava em lugar nenhum onde pudesse ser vista na terrível tempestade, e tudo o mais de estranho que estava acontecendo levou o pensamento em relação às Trevas para bem longe da mente de Will.


Pois não foi somente as árvores que se partiram e racharam. A própria ilha estava mudando, despedaçando-se e afundando no rio. Will olhava sem fala, mantendo-se agora sobre a borda de uma terra coberta por um monte de neve deixada pelos riachos desaparecidos, enquanto, à sua volta, a neve e a terra deslizavam e se embolavam no revolto Tâmisa. Acima dele, avistou a coisa mais estranha de todas. Algo estava emergindo da ilha, enquanto a terra e a neve se desmanchavam. Logo apareceu, do que havia sido o pico mais alto da ilha, o formato rústico da cabeça de um cervo, chifres que se erguiam alto. Era dourada, reluzindo mesmo sob uma luz tênue. Outras partes ficaram visíveis; Will podia ver todo o cervo agora, uma imagem dourada e bonita, saltitante. Então, surgiu um curioso pedestal curvado sobre o qual o objeto ficou, como se para saltar para longe; depois, atrás dele, uma forma horizontal muito longa, tão comprida quanto a ilha, ergueu-se no outro lado em outra altura, um ponto dourado reluzente, erguido desta vez por um tipo de rolo. De repente, Will compreendeu que estava olhando para um barco. O pedestal era sua proa, e o cervo sua carranca.

Estarrecido, o menino avançou naquela direção, e imperceptivelmente o rio se deslocou, até que não restava mais nada da ilha além do enorme barco em um último círculo de terra, com um último monte de neve ao redor. Will ficou observando. Nunca tinha visto um barco como aquele. As madeiras das quais foi construído sobrepunham-se umas às outras como as pranchas de uma cerca, pesadas e largas; parecia feito de carvalho. Mas não se via o mastro. No lugar, encontravam-se espaços para as diversas fileiras de remadores, por todo o comprimento da embarcação. No centro havia um tipo de cabine que fazia o barco quase parecer com a Arca de Noé. Não se tratava de uma estrutura concluída; as laterais pareciam ter sido removidas, deixando as vigas dos cantos e o teto como um dossel. E dentro, embaixo do dossel, encontrava-se um rei deitado.

Will recuou ao avistá-lo. A figura masculina estava muito quieta, com uma espada e um escudo depositados ao lado, e mantinha um tesouro empilhado ao redor em volumosas quantidades reluzentes. O homem não portava uma coroa. Em vez disso, um elmo enorme com gravações cobria a cabeça e a maior parte de seu rosto, encrespado por uma pesada imagem de prata formada pelo longo focinho de um animal que Will imaginava ser um javali selvagem. Mas, mesmo sem a coroa, era evidente que se tratava do corpo de um rei. Nenhum homem inferior poderia merecer as louças de prata e sacos de jóias, o grande escudo de bronze e ferro, a ornamentada bainha, os chifres de beber reluzentes como ouro e as pilhas de adornos. Num impulso Will se ajoelhou na neve e abaixou a cabeça em reverência. Quando olhou para cima novamente, recompondo-se, avistou sobre a amurada do barco algo que não tinha percebido antes.

O rei segurava alguma coisa em suas mãos, mantidas tranqüilamente cruzadas sobre seu peito. Era outro ornamento, pequeno e cintilante. Assim que Will viu o objeto de mais perto, ficou imóvel como uma pedra, apoiando-se firmemente na extremidade mais alta do barco. O ornamento encontrado nas mãos imóveis do rei tinha o formato de um círculo quartejado por uma cruz, produzido em vidro iridescente, gravado com serpentes, enguias e peixes, ondas e nuvens e coisas do mar. E chamavam silenciosamente por Will. Sem dúvida era o Signo da Água: o último dos Seis Grandes Signos.

Will cambaleou para o lado do grande barco e aproximou-se do rei. Precisava saber onde colocava os pés, ou esmagaria os delicados trabalhos de couro gravados, as vestes entrelaçadas e as jóias de ouro esmaltadas, cloasonadas e filigranada. Por um momento, ele continuou olhando para baixo, para a face pálida parcialmente ocultada pelo elmo, e então estendeu a mão reverencialmente para retirar o Signo. Mas ele teria que tocar a mão do rei falecido, e ela estava mais fria do que qualquer pedra. Will estremeceu e recuou, hesitante.

A voz de Merriman soou suave e próxima: — Não hã necessidade de temê-lo.

Will engoliu seco. — Mas... ele está morto.

— Ele ficou aqui em seu solo sepulcral por mil e quinhentos anos, esperando. Em qualquer outra noite do ano, ele não estaria aqui, mas seria pó. Sim, Will, a aparência dele é a da morte. O resto dele já se foi além do Tempo, desde então.

— Mas ê errado tomar o tributo dos mortos.

— É o Signo. Se não fosse o Signo, e destinado a você, o Descobridor dos Signos, ele não estaria aqui para dá-lo a você. Pegue-o.

Assim, Will inclinou-se pelo ataúde e pegou o Signo da Água das mãos frias, quase apertadas, do morto, e, de algum lugar distante, um murmúrio da música que lhe era familiar sussurrou em seus ouvidos e logo desapareceu. O menino voltou-se para a lateral do barco. Lá, ao lado, estava Merriman, sentado sobre a égua branca; ele vestia uma capa azul escura, com seu cabelo branco revolto descoberto; as cavidades de seu rosto magro estavam sombrias pela tensão, mas o regozijo brilhava em seus olhos.

— Muito bem, Will — disse ele.

Will fitava o Signo em suas mãos. O resplendor do objeto era causado pela iridiscência de uma madrepérola, de todos os arco-íris; a luz dançava sobre o objeto enquanto ele dançava sobre a água. — É lindo — disse o menino. Bastante relutante, ele afrouxou a extremidade do cinto e deslizou o Signo da Água para guardá-lo, para que permanecesse próximo ao reluzente Signo de Fogo.

― Este é um dos mais antigos — informou Merriman. — E o mais poderoso. Agora que o tem, eles perderam o poder sobre Mary para sempre... o encantamento se foi. Venha, nos precisamos partir.

A preocupação se acentuava na voz dele; ele havia visto Will se agarrar bruscamente em uma viga quando o barco enorme, de repente e inesperadamente, deu um solavanco para um lado. A embarcação endireitou, balançou um pouco, em seguida apontou na direção oposta. Will viu, cambaleando para o lado, que o volume das águas do Tâmisa tinha aumentado ainda mais enquanto não estivera observando. A água batia ao redor do barco e quase o fazia flutuar. O rei morto agora não descansaria mais por muito tempo na terra que havia sido certa vez uma ilha.

A égua empinou em sua direção, resfolegando uma saudação, e, da mesma maneira como acontecia no momento encantado em que ouvia aquela música atordoante, Will foi erguido sobre o cavalo branco da Luz e colocado à frente de Merriman. O barco inclinou e oscilou, flutuando totalmente agora, e o cavalo branco saiu rapidamente de seu caminho, permanecendo próximo dali, observando; a espuma da água do rio rodeava suas pernas robustas.

Rangendo e chacoalhando, o enorme barco deslizou pelo volumoso Tâmisa. A embarcação era muito larga para ser vencida; seu peso a mantinha firme mesmo sobre a água revolta, pois já tinha encontrado o equilíbrio. Então, o misterioso rei continuaria na dignidade imutável, entre suas armas e reluzentes tributos; e Will teria o último lampejo da face pálida como uma máscara, enquanto o grande barco se afastava correnteza abaixo.

Will disse sobre os ombros: — Quem era ele?

Percebia-se um profundo respeito no rosto de Merriman enquanto ele olhava o barco se afastando. — Um rei inglês, da Era das Trevas. Eu acho que não usaremos seu nome.

A Era das Trevas, um tempo sombrio para o mundo, recebeu corretamente este nome quando os Cavaleiros Negros cavalgavam sem obstáculo por nossa terra. Somente os Anciãos e alguns poucos homens, nobres e corajosos como este, mantiveram viva a Luz.

— E ele foi sepultado em um barco, como os Vikings.

— Will observava o brilho da luz do cervo dourado da proa.

— Ele tinha uma parte Viking — disse Merriman. — Havia três grandes barcos de sepultamento perto dessa sua região do Tâmisa, no passado. Um foi escavado no último século perto de Taplow e destruído no processo. Outro era este barco da Luz, destinado a nunca ser encontrado pelos homens. E o último era o maior dos barcos, do maior rei de todos, e este eles nunca encontraram e talvez nunca encontrem. Ele permanece em paz. — Merriman se interrompeu abruptamente e, com um movimento de sua mão, a égua branca se virou pronta para saltar para longe do rio em direção ao sul.

Porém Will ainda se esforçava para observar o longo barco, e alguma coisa de sua tensão parecia afetar tanto o cavalo quanto o mestre. Eles pararam. Naquele momento, um facho extraordinário de luz azul surgiu velozmente do leste; não vinha do céu tempestuoso, mas de algum lugar atrás da Câmara. E acertou o barco. Silenciosamente, impetuosas chamas irromperam pelo rio volumoso e por suas margens brancas e íngremes, e da proa até a popa do barco do rei via-se delineado o fogo ardente. Will cedeu a um choro sem palavras pelo choque, e a égua branca mexeu-se perturbada, passando a pata na neve.

Atrás de Will, a voz profunda e forte de Merriman dizia:

— Eles descontam o rancor que sentem, pois sabem que é tarde demais. É muito fácil, agora e novamente, predizer o que as Trevas farão.

Will disse: — Mas o rei e todas aquelas coisas lindas...

— Se o Cavaleiro parasse para pensar, Will, ele saberia que seu ímpeto de maldade fez nada mais do que criar um fim apropriado e digno para aquele grandioso barco. Quando o pai de seu rei faleceu, ele foi colocado em uma embarcação da mesma maneira, com seus pertences mais esplêndidos ao redor, mas a nau não foi enterrada. Não era assim que se fazia. Os homens do rei lançavam fogo sobre o barco e o enviava queimando sozinho pelo mar, uma pira extraordinária velejando. E isso, olhe, é o que nosso rei do Último Signo está fazendo agora: velejando no fogo e na água para seu longo descanso, descendo o maior rio da Inglaterra, em direção ao mar.

— E que descanse em paz — disse Will suavemente, deixando de olhar finalmente para as chamas ardentes. Mas por um bom tempo depois disso, onde quer que estivessem, ainda avistavam o resplendor do barco em chamas iluminando uma parte do céu escuro e tempestuoso.

 

— Venha — disse Merriman —, não podemos perder mais tempo! — A égua branca deu meia-volta tomando o caminho do rio e empinou no ar, roçando a espuma da água, para em seguida cruzar o Tâmisa para o lado onde Buckinghamshire terminava e Berkshire começava. Saltou numa velocidade desesperadora e ainda assim Merriman continuou a instigá-la. Will sabia o motivo. Ele percebeu num vislumbre através da movimentação da capa azul de Merriman a grande coluna do tornado das Trevas, porém maior do que antes, fazendo uma ponte entre o céu e a terra um rodamoinho silencioso no brilho do barco em chamas. E os seguia, movendo-se muito rápido.

O vento soprava fortemente do leste e o açoitava; a capa movia-se ao redor de Will pela ação da ventania, cercando-os como se ele e Merriman estivessem isolados em uma grande tenda azul.

— Ele está em seu auge — gritou Merriman em seu ouvido o mais alto possível, mas ainda quase inaudível em vista do crescente uivo do vento. — Você tem os Seis Signos, mas eles ainda não foram unidos uns com os outros. Se as Trevas o pegarem agora, eles terão tudo de que precisam para erguer seu poder. Neste momento eles farão todo esforço para conseguir.


E continuaram galopando, passaram por casas, lojas e por pessoas inconscientes da presença deles, lutando contra a enxurrada; passaram por telhados, chaminés, cercas vivas; cruzaram campos, árvores, mas nunca longe do solo. A grande coluna negra os perseguia, na velocidade do vento, e nela e através dela cavalgava o Cavaleiro Negro montando seu cavalo de mandíbulas como fogo, instigando-o com a espora atrás deles, e com os Senhores das Trevas cavalgando ao seu ombro como uma nuvem escura em rodamoinho.

A égua branca se ergueu novamente, e Will olhou para baixo. Havia árvores por toda parte abaixo agora; havia carvalhos e faias isolados e grandiosos nos campos abertos, e bosques densos se dividiam pelos caminhos longos e retos. Certamente eles galopavam em um daqueles caminhos agora, depois dos pinheiros pesados de neve, e saindo novamente pela terra descampada... Relâmpagos cortavam o céu a esquerda de Will, arremessando-se de nuvens enormes, e, em seu clarão, Will pôde ver a massa escura do Castelo de Windsor surgindo alto e próximo. Ele pensava: se aquele for o castelo, devemos estar no Great Park.

Além disso, começava a sentir que não estavam mais sozinhos. Já, por duas vezes, ouvira aquele grito estranho e alto no céu, mas agora havia mais. Seres de sua espécie se encontravam por ali, em algum lugar, no Parque todo arborizado. E ele sentia ainda que a massa cinzenta do céu não estava mais vazia e sem vida, mas povoada por criaturas, nem das Trevas nem da Luz, movendo-se de um lado para o outro, ajuntando-se e separando-se, detentores de grande poder... A égua branca trotava sobre a neve novamente; os cascos pisavam sobre montes de neve, neve derretida e gelo, de maneira mais deliberada do que antes. Ao mesmo tempo, Will percebeu que ela não mais respondia aos comandos de Merriman, mas seguia um profundo impulso próprio.


Relâmpagos iluminavam ao redor deles novamente, e o céu rugia. Merriman disse em seus ouvidos: — Você conhece o Carvalho de Heme?

— Sim, é claro — respondeu Will. Ele conhecia a lenda local desde sua infância. — É onde estamos? O grande carvalho no Grande Parque onde...

Ele engoliu seco. Como ele não pensou nisso? Por que a Magia lhe ensinara tudo menos isto? Ele prosseguiu, lentamente — onde se espera que Heme, o Caçador, cavalgue na véspera da Décima Segunda Noite? — Então, ele virou-se temerosamente para Merriman: — Heme?

— Irei preparar a Caçada — havia dito Velho George. E Merriman confirmou: — É claro, hoje à noite, a Caçada começa. E visto que você desempenhou bem sua parte, hoje à noite, pela primeira vez em mais de mil anos, a Caçada terá uma presa.

A égua branca diminuiu o passo, cheirando o ar. Os ventos pareciam partir o céu ao meio; a lua crescente navegava alta através das nuvens e desaparecia novamente. Os relâmpagos dançavam em seis lugares ao mesmo tempo, as nuvens rugiam e troavam. O pilar negro das Trevas surgiu movendo-se rapidamente na direção deles, depois parou, rodopiando e pairando entre o céu e a terra.

Merriman disse: — Uma Velha Estrada cerca o Grande Parque, o caminho através do Vale do Caçador. Eles levarão certo tempo para encontrar os rastros depois disto.

Will se esforçava para ver adiante através da escuridão. Na luz intermitente, conseguia identificar a forma de um solitário carvalho estendendo os galhos enormes de seu tronco extraordinariamente pequeno. Diferente da maioria das árvores à vista, ele carregava a maior quantidade de neve remanescente, e avistava-se uma sombra ao lado de seu tronco, do tamanho de um homem.

A égua branca avistou a sombra ao mesmo tempo. Ela resfolegou e bateu as patas no chão.

Will disse para si mesmo, bem baixinho: — A égua branca deve encontrar o Caçador...

Merriman tocou seu ombro e com desembaraço deslizaram rapidamente para o solo. A égua inclinou a cabeça, e Will colocou a mão sobre o pescoço firme e lustroso do animal. - Vá, minha amiga — disse Merriman, e a égua saiu trotando ansiosamente na direção do enorme e solitário carvalho e da misteriosa sombra imóvel sob a árvore frondosa. A criatura a quem pertencia aquela sombra possuía imenso poder e Will estremeceu ao senti-lo. A Lua recuou para trás das nuvens e por um tempo não houve luz; na penumbra, eles não viam nada se mexer embaixo da árvore. Subitamente, um som surgiu na escuridão: o resmungo de saudação da égua branca.

Como se sobrepondo a uma melodia, um gemido profundo soou das árvores ao lado deles; quando Will se virou ao redor, a Lua surgiu clara novamente, e ele pôde ver a enorme silhueta de Pollux, o cavalo shire da fazenda dos Dawson, com Velho George montado sobre suas costas. — Sua irmã já está em casa, garoto — disse Velho George.

Ela se perdeu, entende, adormeceu em um velho celeiro e leve um sonho tão curioso que ela já está esquecendo...

Will aquiesceu com gratidão e sorriu; entretanto, olhava para a curiosa forma arredondada, escondida sob o que a embrulhava, que George segurava diante dele. — O que é isso? — Seu pescoço formigava só de se aproximar daquilo, seja lá o que fosse.

Velho George não respondeu e se inclinou para baixo na direção de Merriman. — Está tudo bem?

Tudo vai bem — disse Merriman. Ele estremeceu e jogou sua capa ao redor do corpo. — Entregue-o para o garoto.

Olhava atento para o menino com olhos profundos e inescrutáveis, e Will, indagando-se, foi até a carroça e se prontificou diante dos joelhos de George, olhando para cima. Com um sorriso rápido e melancólico que parecia mascarar uma grande tensão, o velho abaixou-lhe o fardo misterioso. Era quase tão largo quanto o próprio garoto, embora não tão pesado; estava embrulhado num saco. Quando colocou suas mãos sobre o embrulho, soube instantaneamente o que era. Não podia ser, pensava incrédulo; qual seria o objetivo?

Um trovão retumbou novamente, ao redor.

Atrás dele, a voz de Merriman soou profunda nas sombras: — Mas é claro que é. A água o trouxe em segurança. Então, os Anciãos o retiraram das águas no tempo apropriado.

— E agora — disse Velho George, sentado altaneiro sobre o paciente Pollux — você deve levá-lo ao Caçador, jovem Ancião.

Will engoliu seco, nervoso. Um Ancião não tinha nada a temer no mundo, nada. Porém havia algo tão estranho e bárbaro em relação àquela figura embaixo do gigantesco carvalho, algo que fazia alguém se sentir desnecessário, insignificante, pequeno...

Ele se endireitou. Desnecessário era a palavra errada, em todo caso: ele tinha uma tarefa a cumprir. Erguendo seu fardo como uma coisa normal, ele retirou o que lhe cobria, e a cabeça sinistra de carnaval que era metade homem metade animal emergiu tão suave e alegre como se tivesse acabado de chegar de sua ilha distante. Os chifres continuavam firmes e imponentes; Will percebeu que eles tinham o mesmo formato dos chifres do cervo dourado, a carranca do navio do rei morto. Segurando a máscara diante de si, ele andou firmemente na direção da sombra do imenso carvalho. Nas imediações da árvore, ele parou. E podia ter um vislumbre da cor branca da égua, movendo-se gentilmente em reconhecimento, e podia ver que ela já tinha um cavaleiro. Mas era tudo o que avistava.

A figura sobre o animal se curvou na direção de Will. Ele não via o rosto, apenas sentiu a máscara ser retirada de suas mãos, que em seguida caíram ao lado do corpo como se tivessem sido liberadas de um grande peso, embora a cabeça, desde o começo, parecesse tão leve. Ele recuou. De repente, a Lua surgiu navegando de trás de uma nuvem, e por um momento seus olhos foram ofuscados quando olhou diretamente para a luz fria e branca; logo passou, e a égua branca se moveu para longe das sombras, mas a iluminação tênue do céu alterou o perfil da figura montada sobre seu dorso. Naquele momento, o cavaleiro apresentava uma cabeça maior que a cabeça de um homem e possuía os chifres de um cervo. A égua branca, carregando aquele cervo-homem monstruoso, movia-se inexoravelmente na direção de Will.

Ele ficou imóvel, esperando, até que o grande animal se aproximasse; o focinho tocou gentilmente seu ombro, somente uma vez, e pela última também. A figura do Caçador se ergueu diante dele. A luz da Lua brilhava agora clara sobre sua cabeça, e Will descobriu a si mesmo fitando os olhos estranhos e fulvos, na tonalidade amarelo-dourado, insondáveis como os olhos de um pássaro gigante. Fitando os olhos do Caçador, ouviu do céu aquele estranho grito começar novamente e, com dificuldade para se lembrar de um encantamento, atraiu seu olhar para o lado para poder ver adequadamente a cabeça, a enorme máscara com chifres que acabara de entregar ao Caçador para que a colocasse.

Mas a cabeça era real.

Os olhos dourados piscaram: um piscar de olhos proposital dos cílios fortes de uma coruja; o rosto do homem que os portava estava totalmente voltado para Will, e a boca esculpida sobre a barba macia se separou em um rápido sorriso. Aquela boca perturbava o menino; não era a boca de um Ancião. Ela podia sorrir como um amigo, mas havia outras expressões ao redor também. Onde no rosto de Merriman continham marcas de tristeza e raiva, no do Caçador dizia respeito à crueldade e a um impulso impiedoso de vingança. De fato, ele era metade animal. Os chifres negros de Heme se curvaram para cima diante de Will; a luz da Lua cintilou sobre a textura aveludada, e o Caçador gargalhou suavemente. Olhava para baixo, para Will, com os olhos amarelados na face que não era mais uma máscara, mas algo vivo, e, com a voz semelhante de um sino tenor, disse: — Os Signos, Ancião, mostre-me os Signos.

Sem tirar os olhos da figura altaneira, Will se atrapalhou com a fivela e ergueu os seis círculos no alto sob a luz do luar. O Caçador os examinou com o olhar e curvou a cabeça. Quando a ergueu de novo, lentamente, sua voz suave era quase um canto, quase uma entoação de palavras que Will já havia ouvido antes.

Quando as Trevas se rebelarem,

seis devem fazê-la recuar, 

Três do círculo, três da trilha;

Madeira, bronze, ferro, água, fogo e pedra;

Cinco retornarão, e um deve sozinho continuar.

Ferro para o aniversário, bronze depois de muito carregar;

Pedra sem a música; madeira das chamas 

Água do degelo, fogo no círculo de velas;

Seis Signos formam o círculo, e. o graal não mais estará.

Mas ele também não parou nos versos que Will esperava; antes prosseguiu.

A harpa de ouro, o fogo na montanha deverá encontrar

Tocada para despertar o mais velho dos velhos,

Aquele que dorme em paz 

Perdido embaixo do mar, o poder da Feiticeira verde jaz

A prata na árvore, a luz no final, todos devem achar.


Os olhos amarelados fitaram o menino novamente, mas não o via agora; eles se tornaram frios, abstratos, um fogo gelado surgindo em seu olhar e trazendo as expressões cruéis de volta ao seu rosto. No entanto Will enxergava a crueldade agora como a violência inevitável da natureza. Não se tratava de maldade o fato de que a Luz e os servos da Luz sempre perseguiriam as Trevas, mas isto era a natureza das coisas.

Heme, o Caçador, deu meia-volta com a grande égua branca, indo para longe de Will e do solitário carvalho, até que sua silhueta medonha fosse vista sob a Lua e as nuvens de tempestade silenciosas e baixas. Ele ergueu a cabeça e com uma trompa clamou ao céu o que deveria ser o sinal emitido pelo organizador da caçada para chamar os cães perseguidores. O som para atiçar os cães parecia aumentar cada vez mais, preencher o céu e surgir de milhares de gargantas ao mesmo tempo.

E Will viu que era isso mesmo, pois de vários lugares do Parque, atrás de toda sombra ou árvore e de toda nuvem, saltando pelo chão e no ar, surgiu um infindável número de cães de caça, alardeando, balançando os sinos como os cães farejadores fazem quando estão começando a rastrear. Eram animais enormes e brancos, como fantasmas sob a meia-luz, saltando, esbarrando-se e correndo juntos; eles sequer atentavam para a presença dos Anciãos ou qualquer outra coisa além de Heme em sua égua branca. Suas orelhas eram vermelhas; seus olhos eram vermelhos; eram criaturas horríveis. Will recuou involuntariamente logo que passaram por ele, quando um cão imenso e prateado atravessou o caminho a passos largos para olhá-lo de relance com uma curiosidade tão casual como se o menino fosse um galho caído. Os olhos vermelhos na cabeça toda branca eram como chamas, e as orelhas vermelhas ficavam bem esticadas para cima em um afã terrível, de modo que Will não tentou imaginar o que seria caçado por cães como aqueles.


Ao redor de Heme e da égua branca, eles latiam e chacoalhavam o guizo, como um mar de espuma manchada de vermelho. Em seguida e ao mesmo tempo o homem de chifres enrijeceu e seus chifres enormes apontavam o caminho como fazem os cães de caça. Então ele reuniu seus cães perseguidores com um toque de recolhimento, o menée, um som que envia uma matilha atrás de sangue. Um turbilhão de latidos insistentes se ergueu dos cães brancos enfurecidos, ressoando por todo o céu e, no mesmo momento, toda a força da tempestade irrompeu impetuosamente. Nuvens se separaram troando pelos relâmpagos resplandecentes que recortavam o céu enquanto Heme e a égua branca saltavam exultantemente na arena celeste, com seus cães perseguidores de olhos avermelhados despejando-se no ar tempestuoso atrás deles como uma imensa enxurrada branca.

Mas um silêncio terrível e repentino surgiu sufocante, apagando da mente todo o som da tempestade. No momento de última oportunidade desesperada, rompendo a barreira que as mantinham afastadas, as Trevas se manifestaram para Will. Isolando o céu e a terra, o tenebroso pilar em espiral caiu sobre ele, terrível em seu furioso rodamoinho de energia e totalmente silencioso. Não havia tempo para temer. Will estava sozinho. E a imensa coluna diante dele se apressava para engolfá-lo com toda a força monstruosa das Trevas reunida em sua névoa desfigurada e, em seu centro, o imenso garanhão espumava erguendo as patas dianteiras com o Cavaleiro Negro em seu dorso: seus olhos eram dois pontos brilhantes de fogo azul. Will invocava em vão todo o encantamento de defesa ao seu comando e sabia que suas mãos eram incapazes de se mover até os Signos para irem em seu socorro. Ficou onde estava, desesperado, e fechou os olhos.

Mas no silêncio abafado do mundo que o envolvia, surgiu um som muito discretamente, o mesmo relincho alto e distante que se ouvia do mais alto céu, como a travessia de muitos gansos migradores em uma noite de outono, e que ele havia ouvido três vezes naquele dia. Quanto mais próximo, mais alto ficava, e ele abriu os olhos. E viu uma cena como nunca havia visto antes e que não voltaria a ver. Metade do céu estava denso e tenebroso por causa da ira silenciosa das Trevas e seu tornado de poder; mas, naquele momento, cavalgando naquela direção, vindo do oeste com a velocidade das pedras quando caem, emergia Heme e a Caçada Indômita. No auge de seus poderes agora, em um estrondoso clamor, eles surgiam rugindo da grande nuvem negra e tempestuosa, cruzando os riscos cortantes dos raios e nuvens roxas-acinzentadas, cavalgando sob a tempestade. O homem de chifres e olhos amarelados cavalgava rindo aterrorizantemente, gritando o Fora! que incitava ainda mais os cães perseguidores à caça, e sua égua reluzente se lançava adiante de modo que sua crina e cauda voavam também.

E ao redor deles e numa imensidão atrás deles, como um rio largo e branco que verte a Matilha do Alarido, os Perseguidores, os Cães da Perdição, com seus olhos vermelhos queimando com milhares de chamas ardentes. O céu ficara claro com a presença deles que preenchiam o horizonte ocidental, e ainda continuavam chegando, infindáveis. Ao som que emitiam como um sino, milhares de uivos, a magnificência das Trevas recuou e se esquivou parecendo tremer. Will avistou o Cavaleiro Negro mais uma vez, no alto da névoa escura: o seu rosto estava contorcido pela fúria, temor e maldade implacável e, por trás disso, a consciência da derrota. Ele instigou seu cavalo com a espora de maneira tão violenta que seu garanhão negro ao trotar quase tombou. Enquanto puxava as rédeas, o Cavaleiro parecia perseguir alguma coisa impacientemente de sua sela, um objeto pequeno e escuro que caía lânguido e frouxo no chão, permanecendo lá como um manto descartado.

Então a tempestade e a impiedosa Caçada Indômita investiram contra o Cavaleiro. Ele cavalgou para o alto em seu refúgio negro, em rodamoinho. O fantástico tornado das Trevas se curvou e se contorceu, sacudindo-se como uma serpente em agonia, até que finalmente um guincho ecoou nos céus e a coluna tempestuosa começou a se afastar numa velocidade furiosa para o norte, fugindo sobre o Parque, a Câmara e o Vale do Caçador; mas atrás deles partiu Heme e a Caçada bradando a plenos pulmões, uma imensa crista branca no rompante da tempestade.

Os uivos dos cães perseguidores esvaeciam com a distância, desaparecendo o último dos sons da caçada e, sobre o Carvalho de Heme, a lua crescente prateada foi deixada flutuando no céu manchado com pequenas nuvens remanescentes.

Will respirou profundamente e olhou ao redor. Merriman continuava exatamente como o tinha visto, altivo e esbelto, vestindo um capuz, como uma estátua escura sem feições aparentes. Velho George havia recuado para as árvores junto com Pollux, pois nenhum animal comum poderia presenciar a Caçada tão de perto e sobreviver.

Will perguntou: — Acabou?

— Mais ou menos — respondeu Merriman, ocultado pelo capuz. — As Trevas foram... — Ele não ousava usar aquelas palavras. — As Trevas foram vencidas, finalmente, neste enfrentamento. Nada pode desafiar a Caçada Indômita. E Heme e seus cães perseguidores caçam sua presa até o fim, até os confins da Terra. Portanto, os Senhores das Trevas devem se esconder agora, nos confins da Terra, aguardando pela próxima oportunidade. Mas, da próxima vez, nós estaremos muito mais fortes, pela totalidade do círculo, dos Seis Signos e do Dom da Magia. Nós fomos fortalecidos por ter completado sua busca, Will Stanton, e estamos mais próximos de obter a última vitória, no definitivo final. — Ele retirou o capuz, os cabelos brancos e revoltos cintilavam na luz do luar e, por um momento, os olhos assombreados fixaram os de Will comunicando orgulho, o que fez o rosto do menino se aquecer de regozijo. Merriman olhou através do gramado coberto de neve do Grande Parque.

— Somente resta unir os Signos — disse ele. — Mas, antes disso, uma... pequena... coisa.

Curiosamente, sua voz falhou. Will seguiu, confuso, quando ele caminhou a passos largos aproximando-se do Carvalho de Heme. Então, enxergou sobre a neve, antes da sombra da árvore, o manto amassado que o Cavaleiro Negro deixara cair quando se virava para fugir. Merriman se abaixou, depois se ajoelhou ao lado da veste na neve. Ainda se perguntando, Will espiou mais de perto e percebeu chocado que o monte escuro não se tratava de um manto, mas de um homem. A figura estava com o rosto para cima, torcido em um ângulo terrível. Era o Andarilho, era Hawkin.

Merriman falou com a voz profunda e sem expressão: — Aqueles que cavalgam alto com os Senhores das Trevas devem esperar pela queda. E homens não caem facilmente de alturas como estas. Acho que a coluna dele está quebrada.

Ocorreu a Will, olhando para o rosto imóvel, que desta vez Merriman havia esquecido que Hawkin não era mais um homem comum. Não, comum talvez não fosse a palavra certa para um homem que tinha sido usado tanto pela Luz como pelas Trevas e enviado diversas vezes através do Tempo para se tornar finalmente o Andarilho abatido pela vida errante, através de seiscentos anos. Mas um homem, todavia, e mortal. O rosto pálido tremia, e os olhos se abriram. A dor estava refletida neles e também a sombra de uma dor diferente relembrada.

— Ele me jogou — disse Hawkin. Merriman olhava-o, mas não dizia nada.

— Sim — sussurrou Hawkin amargurado. — Você sabia que isto aconteceria. — Ofegou com dor quando tentou mover a cabeça e o pânico se refletiu em seus olhos. — Somente a minha cabeça... eu sinto a minha cabeça, por causa da dor. Mas meus braços, minhas pernas, eles estão... não...

Percebia-se um terrível e desolado desespero na face enrugada naquele momento. Hawkin olhava para Merriman. — Estou perdido — dizia ele. — Eu sei. Você fará que eu continue a viver, com o pior sofrimento de todos agora. O último direito de um homem é morrer. Você impediu isso durante todo esse tempo e obrigou-me a viver através dos séculos quando eu freqüentemente desejava a morte. E tudo por uma traição na qual caí porque eu não tinha a sagacidade de um Ancião... — O pesar e o anseio em sua voz eram intoleráveis; Will virou o rosto para longe.

Mas Merriman replicou: — Você era Hawkin, meu filho de criação e vassalo, que traiu seu senhor e a Luz. Depois, tornou-se o Andarilho, para andar sobre a terra pelo tempo que a Luz exigisse. E assim você viveu, de fato. Mas nós não o mantivemos desde então, meu amigo. Uma vez que a tarefa do Andarilho foi cumprida, você estaria livre e poderia ter descansado para sempre. Em vez disso, você escolheu ouvir as promessas das Trevas e traiu a Luz pela segunda vez... eu lhe dei a oportunidade para escolher, Hawkin, e eu não a retirei. E não posso. Ela ainda lhe pertence. Nenhum poder das Trevas ou da Luz pode tornar um homem mais do que um homem, uma vez que qualquer papel sobrenatural que ele deva desempenhar terá um determinado fim. E nenhum poder das Trevas ou da Luz pode tirar seus direitos como homem, também. Se o Cavaleiro Negro lhe disse isso, ele mentiu.

A face contorcida o fitava agoniado quase acreditando.

— Eu posso ter meu descanso? Pode haver um fim, se eu escolher?

— Todas as suas escolhas foram propriamente suas — disse Merriman com tristeza.

Hawkin aquiesceu com a cabeça; um espasmo de dor lampejou por seu rosto e desapareceu. Mas aqueles olhos que se voltavam para Merriman e Will estavam brilhantes, eram os mesmos olhos alegres do começo, do pequeno e vaidoso homem vestido num casaco verde de veludo. Seu olhar voltou-se para Will. E Hawkin disse suavemente; — Use bem o dom, Ancião.

Em seguida, ele contemplou Merriman, um olhar particularmente insondável, e falou de forma quase inaudível: — Mestre... — Então a luz desapareceu dos olhos brilhantes e já não havia ninguém mais ali.

 

Na ferraria de teto baixo, Will se encontrava de costas para a entrada olhando o fogo. As chamas apresentavam a coloração laranja-avermelhada mescladas com um forte branco-amarelado quando John Smith pressionava o fole; o calor fazia Will se sentir à vontade pela primeira vez naquele dia. Não era tão ruim assim o fato de um Ancião ficar molhado como um peixe em um rio gelado, mas, naquele momento, ele estava contente de sentir o calor em seus ossos novamente. E o fogo revigorava seus ânimos, enquanto iluminava todo o aposento.

Porém a luz não atingia apropriadamente todo o aposento, pois nada do que Will podia ver parecia sólido. Havia certo tremor no ar. Somente o fogo dava a impressão de ser real, o resto poderia ser apenas uma miragem.

Ele percebeu que Merriman lhe observava com um meio sorriso.

— É a sensação daquele mundo parcial novamente — disse Will, perplexo. — A mesma sensação daquele dia no Solar quando estávamos em dois Tempos diferentes no mesmo instante.

— É. A mesma. E estamos novamente.

— Mas estamos no tempo do ferreiro — disse Will.

— Nós passamos pelos Portais.

Sim, eles passaram; ele, Merriman, Velho George e n enorme cavalo Pollux. Do lado de fora da Câmara dos Comuns, escura e molhada, quando a Caçada Indômita rechaçou as Trevas pelos céus, eles atravessaram os Portais entrando no tempo de seiscentos anos antes, do qual Hawkin havia surgido e no qual Will havia caminhado na tranqüila manhã enevoada de seu aniversário. Eles trouxeram Hawkin de volta ao seu século pela última vez, acomodado sobre o dorso de Pollux; quando Iodos eles cruzaram os Portais, Velho George afastou-se com o cavalo, carregando o corpo de Hawkin na direção da Igreja. E Will soube que no seu próprio tempo, em algum lugar do cemitério do vilarejo, coberto por outros sepulcros mais recentes ou por uma pedra desgastada quase ilegível em seus dizeres, estaria o túmulo de um homem chamado Hawkin, que morrera há muitos anos, no século 13, e descansava em paz naquele lugar desde então.

Merriman o levou para a frente da ferraria, onde contemplaram a trilha estreita e pedregosa através do Vale do Caçador, a Velha Estrada. — Ouça — disse ele.

Will olhava para a trilha acidentada, as árvores frondosas do outro lado, a faixa fria acinzentada do céu quase amanhecendo. — Eu posso ouvir o rio! — falou ele, confuso.

— Ah — disse Merriman.

— Mas o rio está a quilômetros daqui, do outro lado da Câmara.

Merriman inclinou a cabeça para o som impetuoso e agitado das águas. Era o som de um rio cheio, mas não transbordando, um rio correndo depois de muita chuva. — O que estamos ouvindo — falou ele — não é o Tâmisa, mas o som do século 21. Perceba, Will, os Signos devem ser unidos por John Wayland Smith nesta ferraria, neste tempo, pois não vai demorar para que esta ferraria seja destruída. Porém os Signos não podiam ser reunidos até o fim de sua busca, que foi cumprida dentro de seu tempo. Assim, a união deve ser realizada era uma bolha do Tempo entre as duas épocas, as quais os olhos e ouvidos de um Ancião podem perceber. Não é um rio de verdade que ouvimos. É a água correndo no seu tempo pela Trilha do Vale do Caçador, devido ao derretimento da neve.

Will pensava na neve e em sua família sitiada pela enxurrada e repentinamente voltara a ser o garotinho que desejava muito voltar para casa. Os olhos escuros de Merriman o contemplaram solidariamente. — Não vai demorar — disse ele.

O som de marteladas ecoou atrás deles e eles se viraram. John Smith terminava de encher os foles de seu aro branco e vermelho; estava trabalhando na bigorna, enquanto as longas pinças esperavam prontas diante do brilho do fogo. O ferreiro não utilizava seu costumeiro martelo pesado, mas outro que parecia ridiculamente pequeno em seu punho largo: era uma ferramenta delicada que se assemelhava mais àquelas que tinham visto seu pai usar na joalheria. Mas, o objeto sobre o qual trabalhava se mostrou de longe mais delicado ainda que ferraduras: uma corrente dourada, ligada em toda a sua extensão, na qual os Seis Signos seriam pendurados. Os elos se encontravam em uma fileira ao lado da mão de John.

Ele olhou para cima, seu rosto estava corado pelo calor do fogo. — Estou quase terminando.

— Muito bem. — Merriman os deixou e caminhou até a estrada, permanecendo lá sozinho, alto e imponente em seu longo casaco azul. Não usava o capuz, desse modo seu cabelo branco cintilava como a neve. Mas não havia neve naquele lugar e, embora Will pudesse ainda ouvir o som de água corrente, não havia água também...

Então a mudança começou. Merriman parecia não ter se movido. Continuava de costas para eles, com as mãos de cada lado do corpo, muito quieto, sem fazer o menor movimento. Mas tudo ao seu redor, o mundo, começou a se mover. O ar tremeu e estremeceu, o contorno das árvores, a terra e o céu tremularam, ficaram borrados, e todas as coisas visíveis davam a impressão de girar e de se misturar. Will ficou olhando para este mundo hesitante, sentindo-se um pouco atordoado, e pouco a pouco começou a ouvir, sobrepondo-se ao som do rio de águas correntes invisível, o murmúrio de muitas vozes. Como um lugar visto através de bruma crepitante de calor, o mundo trêmulo começava a se recompor na perspectiva de coisas visíveis, e ele contemplou uma grande multidão indistinguível enchendo a estrada e os espaços entre todas as árvores e toda a clareira diante da ferraria. Elas não pareciam reais, nem muito firmes; tinham uma característica fantasmagórica como se pudessem desaparecer logo que tocadas. Elas sorriam e cumprimentavam Merriman de onde ele estava. O rosto dele já não olhava mais para Will. Agrupando-se ao seu redor, as pessoas dirigiam o olhar, ansiosas, para a ferraria, assim como espectadores prestes a assistir uma peça; mas, até aquele momento, ninguém parecia reparar em Will ou no ferreiro.

Havia uma variedade infinita de rostos: alegres, sisudos, velhos, jovens, brancos como papel, negros como tinta, e toda tonalidade e nuanças de rosa e marrom, vagamente reconhecível ou totalmente estranha. Will achava que reconhecia alguns rostos da festa promovida no Solar da srta. (Greythorne, a festa realizada em um Natal do século 19 que levou Hawkin ao desastre e ele ao Livro da Magia — e então ele soube: todas aquelas pessoas, essa multidão inumerável que Merriman tinha de alguma maneira invocado, eram Anciãos, de toda a Terra, de toda parte do mundo, e ali estavam eles, para testemunhar a união dos Signos. Will estava aterrorizado, louco para entrar em um buraco e escapar dos olhares deste novo e grandioso mundo encantado.

Ele pensava: este é o meu povo. Esta é a minha família, da mesma forma como minha família de verdade. Os Anciãos. Cada um de nós está ligado para cumprir um propósito grandioso no mundo. Então ele percebeu um alvoroço na multidão, emergindo como uma agitação ao longo da estrada, e algumas pessoas começaram a se mexer e mover como se fossem em direção a algo. Depois ouviu a música: o som sereno e monótono, quase cômico em sua simplicidade, de pífaros e tambores, que havia ouvido em seu sonho que poderia não ter sido um sonho. Will ficou tenso, com os punhos cerrados, esperando, e Merriman moveu-se ao redor e atravessou o caminho a passos largos para ficar ao seu lado, enquanto uma pequena procissão de pessoas da multidão vinha naquela direção, do mesmo modo como tinha sido antes.

Através do aglomerado de gente, e curiosamente mais consistentes do que os outros, emergia uma pequena procissão de garotos, vestidos com túnicas e calças fuso rústicas, os cabelos nos ombros e gorros estranhos. De novo, aqueles que estavam na frente carregavam varas e feixes de gravetos de vidoeiro, enquanto aqueles que se posicionavam atrás tocavam sua única, repetitiva e melancólica música, em flautas e tambores. Novamente, entre esses dois grupos surgiram seis garotos carregando sobre os ombros um ataúde entrelaçado de galhos e junco com um ramo de azevinho em cada canto.

Merriman disse, de forma bem reservada: — Primeiro, no Dia de São Estevão, o dia depois do Natal. Então, na Décima Segunda Noite. Duas vezes ao ano, se for um ano especial, promove-se a Caça ao Uirapuru .

Mas agora Will conseguia enxergar claramente o ataúde mesmo já no início, desta vez, não havia um uirapuru. Em vez disso, aquela outra forma delicada permanecia deitada ali, a velha senhora, com vestes azuis e um enorme anel de rosa em uma mão. Os garotos marchavam rumo à ferraria onde gentilmente colocaram o ataúde sobre o chão. Merriman se inclinou sobre ele estendendo a mão, e a Dama abriu os olhos e sorriu. Ele a ajudou a se levantar e estando ela de pé virou-se para Will, tomou-lhe as mãos nas suas e disse: — Muito bem, Will Stanton — e através da multidão de Anciãos aglomerando-se na trilha, um murmúrio de aprovação foi ouvido semelhante ao vento cantando nas árvores.

A Dama virou-se para ficar diante da ferraria onde John estava esperando e disse: — Em carvalho e em ferro, sejam os Signos unificados.

— Venha, Will — chamou John Smith. Juntos eles foram até a bigorna. Will se desfez do cinto que carregara os Signos durante toda a sua jornada. — Em carvalho e em ferro? — sussurrou ele.

― Ferro para a bigorna — disse o ferreiro calmamente.

― Carvalho para a base. Esta grande base da madeira da bigorna sempre é feita de carvalho, da raiz de um carvalho, n parte mais forte da árvore. Eu não ouvi alguém contar a você sobre a natureza da madeira algum tempo atrás? ― seus olhos azuis piscaram para Will, e então voltou a se concentrar no trabalho. Ele pegou um por um dos Signos e os juntou com os círculos de ouro. No centro, colocou os Signos do Fogo e da Água; ao lado de cada um destes os Signos do Ferro e do Bronze e, ao lado desses, os Signos da Madeira e da Pedra. Em cada extremidade, ele prendeu uma extensão da resistente corrente de ouro. Em seguida, trabalhou rápido e delicadamente, enquanto Will observava. Do lado de fora, a grande multidão de Anciãos permanecia em silêncio como grama crescendo. Por trás da batida do martelo do ferreiro e dos silvos ocasionais dos foles, nenhum som era ouvido de qualquer lugar a não ser o som das águas correntes do rio-estrada invisível, há séculos dali - do futuro e tão ao alcance.

— Está feito — disse John finalmente.

Cerimonialmente, ele estendeu para Will a brilhante corrente de ligação dos Signos, e o menino perdeu o fôlego ao contemplar tamanha beleza. Repentinamente, ao segurar os Signos, o menino foi acometido por uma sensação impetuosa e estranha como um choque elétrico: uma reafirmação forte e arrogante de poder. Will se via confuso: o perigo passou, as Trevas fugiram, então qual o propósito disto? Em seguida, caminhou até a Dama, ainda se perguntando, colocou os Signos nas mãos dela e ajoelhou-se diante da senhora.

Ela declarou: — Mas isto é para o futuro, Will, não percebe? É para isso que os Signos existem. Eles são a segunda das quatro Coisas de Poder que estiveram adormecidas em todos estes séculos e são grande parte da nossa força. Cada um dos Artefatos de Poder foi feito era um momento diferente no Tempo por um artesão da Luz, para aguardar o dia quando seriam necessários. Há um cálice dourado, conhecido como graal; há o Círculo dos Signos; há a espada de cristal e a harpa de ouro. O graal, como os Signos, foi encontrado e está seguro. Os outros dois devem ser encontrados, outra busca para outro tempo. Mas uma vez que acrescentarmos aqueles a estes, e as Trevas se levantarem para seu ataque final e o mais terrível contra o mundo, teremos esperança e convicção de que poderemos vencê-los.

Ela ergueu a cabeça, olhando sobre a incontável multidão fantasmagórica de Anciãos. — Quando as Trevas se rebelarem — disse ela, sem expressão, e as vozes a complementaram em um rumor sinistro e baixo — seis devem fazê-la recuar.

Ela olhou novamente para Will, as rugas ao redor dos olhos envelhecidos se curvavam em afeto. — Descobridor dos Signos — disse ela —, pelo nascimento e pelo aniversário você conheceu a si mesmo, e o círculo dos Anciãos se completou, para agora e para sempre. E pelo seu bom uso do Dom da Magia, você cumpriu uma grande busca e provou ser mais forte do que a provação. Até que nos encontremos de novo, e certamente nos encontraremos, nós nos lembraremos de você com orgulho.

A multidão imensurável murmurou novamente, uma resposta diferente e calorosa; e com a pequena e delicada mão do grande anel rosa reluzente, a Dama se inclinou e colocou a corrente da união dos Signos ao redor do pescoço de Will. Em seguida o beijou levemente sobre a fronte, como um roçar gentil da asa de um pássaro, e disse: — Adeus, Will Stanton.

O murmúrio de vozes aumentou e o mundo girou em volta do menino em uma onda de chamas e árvores e, emergindo de tudo isso, soou bem alta a música cujas frases eram entoadas como o sino, mais alegre do que nunca. Ela repicava e vibrava em sua cabeça, envolvendo todo o seu ser com tanto regozijo que ele fechou os olhos e deixou-se fluir na beleza da canção. Will soube em uma fração de segundo que se tratava da essência e do espírito da Luz. Mas, em seguida, pouco a pouco começou a diminuir, ficando cada vez mais distante, um leve ressoar e um pouco melancólica, como sempre havia sido, sumindo, sumindo, correndo o risco do som das águas correntes tomarem seu lugar. Will gritou de tristeza e abriu os olhos.

Viu-se ajoelhado sobre a fria neve batida, sob a luz cinzenta do amanhecer, em um lugar que ele não reconhecia quando o comparava à Trilha do Vale do Caçador. Árvores desfolhadas apareciam da neve derretida do outro lado da estrada. Através do Caminho onde se encontrava, na estrada que já foi certa vez pavimentada, as águas corriam furiosamente pelas calhas emitindo o som de um riacho, ou mesmo de um rio... A estrada estava vazia; ninguém estava ali visivelmente entre as árvores. Will poderia ter chorado pela sensação de perda; toda aquela calorosa multidão de amigos, o brilho, a luz, a celebração e a Dama: tudo se foi, todos partiram, deixando-o sozinho.

Colocou a mão no pescoço. Os Signos ainda estavam lá. Atrás dele, a voz de Merriman soou profunda: — Hora de ir para casa, Will.

— Ah — disse ele com tristeza, sem se virar. — Estou feliz que ainda esteja aqui.

— Você já deu a impressão de estar mais contente — disse Merriman sarcasticamente. — Contenha seu êxtase, eu lhe peço.

Sentando sobre os calcanhares, Will olhava-o sobre os ombros. Merriman o fitava seriamente com seus olhos escuros semelhantes aos da coruja, e repentinamente as emoções que foram contidas em um nó apertado e insuportável se romperam e partiram, e o menino caiu numa gargalhada. A boca de Merriman se mexeu levemente. Ele estendeu a mão, e Will se colocou de pé com esforço, ainda gaguejando.

— É que... — começou ele a falar e parou, não muito certo se estava rindo ou chorando.

— Isso foi... uma alteração — disse Merriman com gentileza. — Consegue andar agora?

— É claro que posso andar — respondeu ele, indignado. Olhava ao redor. Onde a ferraria deveria estar, havia uma construção de tijolos demolida, como uma garagem, e em volta dela era possível reconhecer os traços da estrutura fria e dos canteiros de vegetais na neve derretida. Rapidamente voltou-se para cima e viu o contorno de uma casa conhecida. — É o Solar! — disse ele.

— A entrada dos fundos — informou Merriman. — Perto do vilarejo. Usada principalmente pelos negociantes... e mordomos. — E sorriu para Will.

— É realmente aqui onde a ferraria costumava ficar?

— Nas plantas antigas da casa, chamava-se o Portão do Ferreiro — disse Merriman. — Os historiadores que escrevem sobre Buckinghamshire a respeito do Vale do Caçador gostam muito de especular sobre essa perspectiva. Eles sempre erraram.

Will olhou através das árvores para as altas chaminés em estilo Tudor do Solar e seus telhados inclinados. — A srta. Greythorne está lá?

― Sim, ela está lá agora. Mas você não a viu na multidão?

― Na multidão? — Will tomou conhecimento de que sua boca estava tolamente aberta e a fechou. Imagens conflitantes se misturavam em sua cabeça. — Você quer dizer que ela é uma dos Anciãos?

Merriman ergueu uma sobrancelha. — Venha agora, Will, seus sentidos já lhe disseram isso há muito tempo.

― Bem... sim, eles disseram. Mas eu nunca soube muito bem qual srta. Greythorne era a que pertencia ao nosso povo, aquela de hoje ou a da festa de Natal. Bem, sim, sim. Eu suponho que eu saiba isso também. — Fixava Merriman hesitantemente. — Trata-se da mesma pessoa, não é?

— Assim está melhor — respondeu Merriman. — E a srta. Greythorne me deu, enquanto você e Wayland Smith estavam absortos em seu serviço, dois presentes para a Décima Segunda Noite. Um é para seu irmão, Paul, e o outro para você. — Então, mostrou dois embrulhos pequenos e sem forma embalados no que parecia ser seda; em seguida, os colocou novamente embaixo de sua capa. — O presente de Paul é algo comum, penso eu. Mais ou menos. O seu é algo para ser usado somente no futuro, em algum momento quando seu julgamento lhe disser que irá precisar dele.

— Décima Segunda Noite — disse Will. — Será hoje? Ele olhava para o céu cinzento do início da manhã. — Merriman, como você conseguiu que minha família parasse de se perguntar onde eu estava? Minha mãe está realmente bem?

— É claro que ela está — respondeu Merriman. — E você passou a noite no Solar, adormecido... Venha agora, estas questões são coisas muito pequenas. Eu sei todas as perguntas. E você terá todas as respostas, quando estiver finalmente em casa, e de qualquer maneira você já as sabe. — Voltou a cabeça para baixo na direção de Will, os olhos escuros e profundos o fitaram persuasivos como um basilisco. — Venha, Ancião — disse ele suavemente —, lembre-se. Você não é mais um garotinho.

— Não — confirmou Will. — Eu sei.

Merriman acrescentou: — Mas, algumas vezes, você sentirá como seria muito mais agradável se você fosse.

— Algumas vezes — repetiu Will. E sorriu. — Mas não sempre. — Eles se viraram e atravessaram a passos largos a pequena margem do riacho da estrada para caminharem juntos até a casa dos Stanton ao longo da Trilha do Vale do Caçador.

 

O dia ficava cada vez mais claro e a luz começava a se difundir no horizonte do céu diante deles, onde o Sol logo despontaria. Uma névoa bem tênue ainda pairava sobre a neve dos dois lados da estrada, circulando pelas árvores desfolhadas e pequenos riachos. Era uma manhã cheia de promessas, com um céu limpo de tonalidade azul clara, o tipo de céu que o Vale do Caçador não via há muitos dias. Eles caminhavam como velhos amigos caminham, sem muita conversa, compartilhando o tipo de silêncio que não é de fato um silêncio quando visto como um tipo de comunicação calada. Seus passos marcavam a estrada molhada, emitindo o único ruído do vilarejo, exceto pelo som de um pássaro preto e, de algum outro lugar adiante, o som de alguém removendo algo com uma pá. De um lado da estrada, as árvores surgiam eminentes, escuras e sem folhagens, e Will percebeu que elas estavam na curva que passava pelo Bosque das Gralhas. Ele olhou para cima. Nenhum som se ouvia das arvores ou dos ninhos desordenados instalados lá no alto nos galhos cobertos pela neblina.

— As gralhas estão muito quietas — disse ele.

Merriman falou: — Elas não estão lá.

— Não estão lá? Por que não? Onde elas estão?

Merriman sorriu, um pequeno sorriso desalentador. — Quando a Matilha do Alarido está caçando através do céu, nenhum animal ou pássaro pode ficar visível a eles para não ser tomado violentamente pelo terror. Todos através deste reino, ao longo do trajeto de Heme e da Caçada, serão Incapazes de encontrar qualquer criatura deixada solta na noite passada. Isso era bem conhecido nos dias antigos. Os camponeses de todo lugar costumavam trancar seus animais na véspera da Décima Segunda Noite, no caso da Caçada passar por ali.

— Mas o que acontece? Eles são mortos? — Will achava que apesar de tudo o que as gralhas tinham feito pelas Trevas, ele não queria pensar no extermínio de todas elas.

— Ah, não — disse Merriman. — Espalhadas. Levadas por bem ou por mal pelo céu até que o cão perseguidor mais próximo opte por liberá-las. Os Cães da Perdição não são uma espécie que mata seres viventes ou come carne... As gralhas voltarão um dia. Uma por uma, sujas, cansadas, com pena de si mesmas. Pássaros mais prudentes que não lidam com as Trevas devem ter se escondido na noite passada, embaixo de galhos ou no beirai das casas, fora de vista. Aqueles que agiram assim estão por aqui ilesos. Mas demorará um pouco para nossas amigas, as gralhas, se recuperem. Eu acho que você não terá problemas com elas novamente, Will, embora eu nunca confiaria em uma se eu fosse você.

— Olhe — disse Will indicando adiante. — Lá estão dois em quem se pode confiar. — O orgulho soava firme em sua voz, enquanto subindo a estrada na direção deles, surgiam correndo e saltando os dois cães dos Stanton, Raq e Ci. Eles saltaram para ele, latindo e gemendo de contentamento, lambendo suas mãos numa saudação tão calorosa como se ele tivesse fora por um mês. Will parou para falar com eles e foi cercado por rabos acenando, cabeças ofegantes e pés enormes molhados. — Saiam daqui, seus bobos — dizia ele alegremente.

Merriman falou muito baixinho: — Quietos agora. — Instantaneamente, os cães se acalmaram e ficaram em silêncio, somente seus rabos abanavam entusiasticamente; ambos se viraram para Merriman e o olharam por um momento e em seguida trotavam amigavelmente em silêncio ao lado de Will. Então, a entrada da garagem dos Stanton apareceu adiante, e, o ruído de pás ficou mais alto ao virar a esquina, eles encontraram Paul e o sr. Stanton, agasalhados contra o frio, limpando a neve, as folhas e os gravetos do bueiro.

— Ora, ora — disse o sr. Stanton, apoiando-se em sua pá.

— Olá, pai — disse Will animado e correu para abraçá-lo. Merriman cumprimentou: — Bom-dia.

— Velho George disse que você viria bem de manhã — disse o sr. Stanton —, mas eu não achei que ele queria dizer tão cedo. No entanto, você conseguiu acordá-lo?

— Eu acordei sozinho — disse Will. — Sim, eu virei uma folha nova para o Ano-novo. O que estão fazendo?

— Virando as folhas velhas — disse Paul. — Ha, ha, ha.

— Estamos mesmo. O degelo aconteceu tão repentinamente que o solo ainda estava congelado e nada conseguia drenar a neve derretida. E agora que os bueiros estão começando a degelar também, a enxurrada trouxe de tudo misturado com o lixo arrastado pelo caminho. Como isto. — Ele ergueu uma trouxa pingando.

Will disse: — Eu vou pegar outra pá e ajudar.

— Não gostaria de tomar o café-da-manhã primeiro? perguntou Paul.

— Mary está preparando algo para nós, acredite se quiser.Tem um monte de "folha virada" por aqui, enquanto o ano ainda é novo.

Will percebeu que se passara muito tempo desde que comera pela última vez e sentiu-se faminto. — Humm — murmurou ele.

— Vamos entrar e tomar o café ou um copo de chá ou outra coisa — disse o sr. Stanton para Merriman. — É uma caminhada gelada do Solar até aqui, nesta hora da manhã. Eu sou realmente grato a você por trazê-lo para casa, sem mencionar o fato de ter cuidado dele à noite.

Merriman balançou a cabeça, sorrindo, e puxou o colarinho do que Will viu sutilmente transformado de um casaco em um pesado sobretudo do século 21. — Obrigado. Mas eu preciso voltar.

― Will! — soou uma voz esganiçada e Mary veio correndo pela entrada dos carros. Will foi ao seu encontro; a menina escorregou até ele e o socou no estômago. — Foi divertido lá no Solar? Você dormiu num dossel?

— Não exatamente — disse Will. — Você está bem?

— Bem, é claro. Eu fiz um super passeio no cavalo do Velho George, era um daqueles enormes do sr. Dawson, os cavalos de apresentação. Ele me pegou na Trilha do Vale do Caçador, logo depois que eu saí. Parece que foi há anos isso c não na noite passada. — Ela olhava para Will bastante encabulada. — Suponho que eu não deveria ter ido atrás de Max daquele jeito, mas tudo estava acontecendo tão rápido c eu fiquei preocupada de a mamãe não conseguir ajuda.

— Ela está mesmo bem?

— O doutor disse que ela ficará bem. Foi apenas uma torção e não uma perna quebrada. Ela realmente se surpreendeu, por isso deverá ficar de repouso durante uma ou duas semanas. Mas está tão animada quanto pode ficar, você vai ver.

Will olhou por cima da entrada dos carros. Paul, Merriman e seu pai conversavam e riam. Ele pensou que talvez seu pai tivesse decidido que Lyon, o mordomo, era um bom camarada afinal e não simplesmente um ajudante senhorial.

Mary acrescentou: — Sinto muito por você ter se perdido no bosque. É tudo culpa minha. Você e Paul deviam estar logo atrás de mim. Ainda bem que Velho George descobriu por fim onde todos estavam. Pobre Paul, preocupado por estarmos perdidos, em vez de apenas comigo. — Ela riu nervosa, tentando parecer penitente, sem muito esforço.

— Will! — Paul se afastou do grupo, correndo em sua direção. — Olhe isto! A srta. Greythorne chama isto de empréstimo permanente, que Deus a abençoe, olhe! — O rosto dele estava corado de alegria. E estendia o embrulho que Merriman estava carregando, agora aberto, e Will viu a velha flauta do Solar.

Sentindo o rosto irromper num longo e lento sorriso, olhou para Merriman. O olhar de Merriman cruzou com o dele seriamente e o mordomo lhe entregou o segundo pacote. — Este, a Senhora do Solar mandou para você.

Will abriu-o. Dentro havia uma pequena trompa de caça, brilhando e afinada pelo tempo. Olhou brevemente Merriman e para baixo novamente.

Mary saltitava ao redor, rindo. — Vamos lá, Will, sopre-o. Você poderia fazer barulho por todo o caminho até chegar a Windsor. Vamos lá!

— Mais tarde — disse ele. — Eu preciso aprender como. Poderia agradecê-la por mim? — pediu ele a Merriman.

Merriman aquiesceu com a cabeça. — Agora preciso ir — disse ele.

Roger Stanton falou: — Não tenho palavras para expressar nossa gratidão por sua ajuda. Por tudo, durante esse tempo maluco, as crianças... você realmente foi tremendamente... — ele perdeu as palavras, mas estendeu o braço e sacudiu a mão de Merriman para cima e para baixo com tanto entusiasmo que Will pensou que ele nunca Iria parar.

O rosto intensamente marcado suavizou-se; Merriman olhava contente e um pouco surpreso. Sorriu e aquiesceu, mas não disse nada. Paul deu-lhe um aperto de mãos e Mary também. Depois, as mãos de Will foram tomadas por uma garra potente, e havia uma pressão rápida no cumprimento e um breve olhar intencional, escuro e profundo. Merriman disse: — Au revoir, Will.

Acenou-lhes e partiu descendo a Trilha. Will moveu-se lentamente atrás dele. Mary disse, saltando ao seu lado: — Você ouviu os gansos selvagens na noite passada?

— Gansos? — perguntou Will bruscamente. Ele não estava escutando de fato. — Gansos? Em toda aquela tempestade?

— Que tempestade? — disse Mary e continuou falando antes que ele pudesse até piscar. — Gansos selvagens, devia haver uns milhares deles. Migrando, eu acho. Nós não os vimos... só ouvíamos aquele ruído suntuoso; primeiro, um monte de crocitos daquelas gralhas idiotas do bosque e depois um longo, longo ruído de alarido no céu, muito alto mesmo. Foi emocionante.

— Sim — disse Will. — Sim, deve ter sido.

— Eu não acredito que você estava mais do que semi-acordado — disse Mary desgostosa e saiu saltitando até o fim da entrada da garagem. Depois ela parou repentinamente e ficou muito quieta. — Meu Deus! Will! Olhe!

Ela estava prestando atenção em alguma coisa atrás de uma árvore, ocultada pelos montes de neve remanescentes. Will se aproximou para olhar e viu a grande  cabeça de carnaval com os olhos de uma coruja, a face de um homem e os chifres de um cervo deitada no mato molhado. Sequer uma palavra saía de sua garganta. A cabeça estava viçosa, reluzente e seca, como sempre foi e sempre seria. Parecia o perfil de Heme, o Caçador, que ele havia visto no céu e ao mesmo tempo não tão parecida assim.

Ele ainda olhava sem dizer nada.

— Bem, eu nunca pensei... — disse Mary radiante. — Não foi sorte que isso foi se emperrar ali? A mamãe ficará contente. Ela acordou quando a enxurrada surgiu carregando tudo de repente. Você não estava lá, é claro; a água veio sobre todo o chão e um monte de coisas foi arrastado da sala de estar antes mesmo que percebêssemos. Aquela cabeça foi uma delas... a mamãe ficou chateada porque sabia que você ficaria. Bom, olha para isso, estranho que...

Ela espiou a cabeça de perto, ainda tagarelando alegremente, mas Will não estava mais escutando. A cabeça encontrava-se bem próxima do muro do jardim, ainda soterrada, mas começando a romper os montes de neve dos dois lados. E sobre um monte na outra extremidade, cobrindo a borda do gramado da rua e mantendo a água corrente na calha, havia uma quantidade de marcas. Eram marcas de cascos, feitas por um cavalo parando, fazendo meia-volta e saltando sobre a neve. Mas nenhuma delas tinha o formato de uma ferradura. Eram círculos quartejados por uma cruz: as pegadas das ferraduras especiais que John Wayland Smith, certa vez no começo, colocou na égua branca da Luz.

Will olhou para as pegadas e para a cabeça de carnaval, e engoliu seco. Deu alguns passos até o fim da entrada, observando a Trilha do Vale do Caçador; ele podia ver as costas de Merriman, enquanto a silhueta alta e vestida de preto partia a passos largos. Seus cabelos se arrepiaram e seu pulso ficou calmo, pois detrás dele ouviu-se um som mais agradável do que parecia possível no ar gelado daquela manhã cinzenta. Era o tom suave, lindo e desejoso da velha flauta do Solar; Paul, irresistivelmente, deve ter preparado o instrumento e começado a tocá-lo. Ele estava tocando Greensleeves mais uma vez. A cadência inquietante e encantada fluía pelo ar calmo da manhã; Will avistou Merriman erguer a cabeça branca enquanto ouvia a música, embora ele não tivesse interrompido os passos.

Enquanto olhava a estrada calma abaixo, com a música soando em seus ouvidos, Will percebeu que, bem adiante de Merriman, as árvores, a névoa e o trecho da estrada pareciam abalados, trêmulos, de uma maneira que ele conhecia muito bem. E então, pouco a pouco, do outro lado, contemplou os grandes Portais tomando forma. E lá eles ficaram, como os tinha visto na colina descampada e no Solar: os portais altos e talhados que conduziam para fora do Tempo, permanecendo sozinhos e verticais na Velha Estrada que era conhecida como Trilha do Vale do Caçador. Muito lentamente eles começaram a se abrir. Em algum lugar atrás de Will, a música Greensleeves foi interrompida por uma risada e algumas palavras abafadas de Paul, mas não houve interrupção na música que soava na mente de Will, pois agora ela tinha mudado para aquela frase envolvente como um sino que sempre surgia na abertura dos Portais ou em grandes mudanças que poderiam alterar a vida dos Anciãos. Will cerrou os punhos enquanto ouvia, sentindo-se atraído pelo som doce e atraente que simulava o espaço entre o acordar e sonhar, o ontem e o amanhã, a lembrança e a imaginação. A melodia fluía agradavelmente em sua mente; depois gradualmente foi se tornando distante, sumindo, assim como a alta silhueta de Merriman na Velha Estrada, agasalhado novamente, agora pela capa azul, e atravessando os Portais abertos. Atrás dele, as enormes placas de carvalho talhadas se moviam lentamente ao mesmo tempo, até que se fecharam no mais completo silêncio. Então, enquanto o último eco da música encantada se extinguia, os portais desapareceram.

E num grande esplendor de luz branca-amarelada, o Sol se ergueu sobre o Vale do Caçador e sobre o vale do Tâmisa. 

 

                                                                                Susan Coope 

 

 

                      

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