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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS SETE MINUTOS - p.4 / Irving Wallace
OS SETE MINUTOS - p.4 / Irving Wallace

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS SETE MINUTOS

Quarta Parte

 

QUANDO se sentou pela primeira vez em frente ao Dr. Hiram Eberhart à mesa do restaurante, Mike Barrett tinha-se mostrado tão estóico a respeito do seu dever e dos prováveis resultados, quanto um carrasco do século XVIII em França a preparar-se para decapitar o aristocrata humilhado à sombra da guilhotina.

Barrett não se preocupara em saber se sofria de hemofobia. Só se lembrava da verdade. Da verdade e da justiça.

Agora, porém, que o golpe de misericórdia fora desferido, agora que a cabeça do Dr. Eberhart já rolara por terra, agora que parecia separada dos outros sentidos. Barrett sentia pena e até uma ponta de remorso.

Estavam sentados a uma mesinha no segundo andar do selecto Century Club na Rua Quarenta e Três, a poucas portas de distância da Quinta Avenida, em Nova Iorque. Na véspera, o telefonema de Barrett à meia-noite não interrompera o sono do Dr. Eberhart - sempre lia até tarde, conforme ficou comprovado - e o enigmático desafio de Barrett à sua orgulhosa cultura imediatamente provocou curiosidade e um encontro marcado. O Dr. Eberhart disse que era sócio do Century Club, sugerindo a Barrett encontrarem-se lá, no átrio, perto da entrada do primeiro andar, à uma hora, Barrett viera directo do aeroporto e chegara antes da hora combinada, mas o Dr. Eberhart já o esperava, e à uma hora os dois tinham sido conduzidos à mesa reservada na parte superior.

Barrett não perdeu um minuto, e o Dr. Eberhart também não demonstrou interesse por cordialidades. Abrindo a fechadura da sua pasta, Barrett explicou ao anfitrião quem ele era e qual a razão do seu interesse em J J Jadway e, por conseguinte, no Dr. Eberhart, lendo-lhe depois o próprio episódio que escrevera a respeito de Jadway. Contou como Van Fleet citara o trecho no tribunal no fim da tarde anterior. Finalmente, sem piedade, Barrett girou a manivela e deixou cair a lâmina da guilhotina.

Dois anacronismos imprevistos, Dr. Eberhart. O professor sabia quando Jadway morrera? Não, era irrelevante ao que tinha escrito. Pois olhe, Dr. Eberhart, nem tanto. Preste atenção. Jadway morreu em Fevereiro de 1937. Aqui o senhor escreve que ele comentou a luta de Louis contra Braddock, que de facto ocorreu quatro meses depois, e aqui o senhor apresenta-o a comentar O Trópico de Capricórnio, que realmente só foi publicado dois anos após a morte dele. Aí está, Dr. Eberhart.

Barrett ouvira dizer que a guilhotina levava dez segundos para decapitar a vítima. Após cuidadosos preparativos, Barrett não levara mais do que isso para separar o Dr. Eberhart dos seus sentidos.

O Dr. Hiram Eberhart era um gnomo erudito muito bem posto, perfeitamente encaixado no molde académico, sem outro mundo além da sua cultura literária. Conhecia bem pouco de uma série de coisas, porém muitíssimo, talvez tudo o que havia por conhecer, do seu único tema. Não era pedante, nem mesquinho; simplesmente uma autoridade. Era cediço, impertinente, ordenado, complacente. Um velho solteirão em vias de se tornar professor emérito. Mechas de cabelo grisalho sem brilho, míope, nariz reluzente como um botão vermelho (décadas de xerez medicinal), peito deformado, um fato antiquado e sem graça, da cor do carvão. O que ele sabia, ninguém sabia melhor do que ele. E nunca fora alvo de uma contradição. De citações, sim. De contradições, jamais.

Estava arrasado.

Os olhos míopes tentaram encontrar um foco.

- Tem a certeza? Tem a certeza, Mr. Barrett? Deixe-me ver o que traz escrito aí, deixe-me ver com os meus próprios olhos. Não pode ser.

Pegou nas notas de Barrett. E lá estava.

- Mr. Barrett, isso nunca me aconteceu. Numa longa existência dedicada unicamente à cultura, nunca se me deparou uma tal contradição de factos estabelecidos por mim. Não pretendo implicar que não exista ninguém livre de falibilidade e erro, mas sempre fui meticuloso a respeito das minhas pesquisas e da minha exactidão. Há quatro compêndios meus no currículo dos cursos de literatura universitários. Este volume, minha obra de publicação mais recente, apareceu apenas no ano passado. Levei dez anos para escrevê-lo. Apesar das reclamações do editor, protelei três vezes a publicação, a fim de verificar uma, duas vezes, os meus dados. E agora este erro terrível. Só posso culpar-me pela omissão da data da morte de Jadway. Se não a tivesse cometido, esse equívoco hediondo teria sido evitado. Mas a data da morte dele parecia tão supérflua. Recebi a informação em primeira mão... a respeito do comentário que Jadway fez sobre O Trópico de Capricórnio, e o paralelo entre a luta de boxe e o amor. Tive o cuidado de gravar o que me contaram. O engano podia apenas ter sido causado pela minha fonte de informação. Ela deve levar a culpa.

- A sua fonte de informação? - perguntou Barrett. - Não pensei que houvesse alguma outra além do senhor mesmo. O senhor não atribuiu a ninguém o episódio em anotação de pé de página. Supus que estivesse presente quando Jadway...

- Não estive, não. Agora me lembro de tudo. Recebi esse material sob a condição de não revelar publicamente a minha fonte de informação. Ela veio de um... de um dos amigos mais íntimos de Jadway em Paris na década de trinta. Da mais absoluta confiança. Ele estava com Jadway quando o facto ocorreu.

- Quem foi a sua fonte de informação?

- Bem, considerando que fui mal orientado, não vejo motivo para não revelar o nome dele. Adquiri a informação através de Sean O'Flanagan, um poeta que conheceu Jadway em Paris.

- Sean O'Flanagan - murmurou Barrett. - Já ouvi esse nome.

Procurou recordar-se onde ou de quem ouvira, e então lembrou-se: de Olin Adams, o vendedor de autógrafos.

- Sim - continuou Barrett -, eu também esperava encontrar-me recentemente com O'Flanagan, mas ele não tinha telefone, nem endereço, recebendo a correspondência através da Posta Restante. Como e quando conseguiu localizá-lo, Dr. Eberhart?

- Foi há três anos, enquanto eu estava ainda a reescrever À Margem das Tendências Principais. Por um feliz acaso... na ocasião parecia feliz... encontrei uma obscura publicação trimestral de poesia, editada em Greenwich Vil-lage. Continha uns versos anónimos sobre Jadway. O editor da revista era Sean O'Flanagan - editor e redactor-chefe... segundo o cabeçalho. Fui até lá falar com ele. No endereço da publicação soube que, meses antes, a revista fora penhorada por credores, como o tipógrafo e o senhorio. Informaram-me sobre um bar da vizinhança que, disseram, servia de ponto predilecto a Flanagan, o que vinha acontecendo há vários anos.

- E encontrou-o lá?

- Não logo na primeira vez, na terceira. Havia uma mesa redonda de canto e uma cadeira estofada que O'Flanagan reivindicava como cativas, e que costumava ocupar há quase uma década. O proprietário tolerava-o por ser um tipo extravagante, que já fazia parte do cenário. Ele era considerado uma espécie de Ezra Pound do bar. Soube que tinha fama de beber muito, de ser dispsomaníaco, de viver à custa de uma mísera renda particular, enquanto se ocupava com reminiscências dos seus dias de expatriado em Paris e Rapallo, dando conselhos aos jovens poetas que se reuniam em torno dele.

- A bebida - disse Barrett. - Talvez isso explique o engano da informação que lhe deu.

- Acho que não - replicou o Dr. Eberhart. - No fim da tarde em que ele me recebeu, estava completamente sóbrio, pelo menos na minha opinião, e muito meticuloso sobre a informação que me deu. Concordara em conversar comigo desde que eu lhe não perguntasse nada de carácter pessoal a respeito de Jadway. Prometi limitar a entrevista a assuntos literários e cumpri a promessa. Foi Flanagan quem, já perto do final da entrevista, contou espontaneamente o episódio em que o senhor descobriu dois anacronismos horríveis.

- Como é que era Oflanagan?

- Só me lembro vagamente. Um velho meio reumoso, rústico, mal vestido... talvez mais moço do que eu, mas aparentando muito mais idade. Suponho que pudesse ser maçador e importuno, tendo uma garrafa perto. Seja como for, ele evitou terminantemente a bebida na minha presença. Uma cerveja, creio eu, e foi só. Percebi que queria permanecer lúcido, ansioso por causar a melhor das impressões. Um velho bastante egoísta que achava que o mundo era remisso por não lhe ter coroado o próprio génio. No seu fracasso, refugiava-se na ilusão. Receio, porém, que o mundo estivesse certo e O'Flanagan errado. Li a poesia dele. Agora, presumindo que continue vivo...

- Continua - afirmou Barrett. - Ou pelo menos continuava há uma semana.

- Pois então não resta dúvida de que o senhor quer falar com ele e apurar a verdade por trás dessa infeliz citação. Se quiser, tenho a certeza de que ele ainda frequenta aquele bar em Greenwich Village, à hora do aperitivo, lá pelas cinco da tarde, assumindo o seu lugar de honra na mesa de canto, ao pé da vidraça fosca, onde se põe a cabecear com as memórias de melhores dias. Caso o encontre e esclareça as datas de Jadway morto e Jadway redivivo, ficar-lhe-ia grato se me mantivesse informado. Preciso de corrigir o desastroso erro na próxima edição do meu livro, ou então eliminar por completo o episódio.

- Devo-lhe muita coisa, Dr. Eberhart, e prometo mantê-lo informado. O tal bar em Greenwích Village onde Sean O'Flanagan marca ponto. Pode dizer-me o nome?

- O bar de O'Flanagan? Chamava-se... desculpe... The Appropoet. Nada de orquestra, pista de dança ou show no sentido habitual da palavra. A única diversão consiste numa sessão de leitura de poesia durante a hora do aperitivo. Amadores ambiciosos recebem convites para declamar os seus poemas à clientela embriagada. As leituras são acompanhadas por vaias e assobios. Merecidos. A nova poesia, seu desrespeito pela forma, a deplorável corrupção da língua, basta para levar qualquer à bebida. Imagino que a ideia seja essa. Que aconteceu com Sara Teasdale? Olhe, até que é um bom título, não? De qualquer modo, desejo-lhe boa sorte com o Guardião dos Anacronismos.

O bar não constava da lista telefónica de Nova Iorque. Uma novidade. Anticonformismo, anticomercialismo, anti-instituições. Barrett supunha que isso talvez tivesse alguma lógica para Charles Dodgson (*). Afinal de contas, o País das Maravilhas tinha endereço? E o Éden? E um oásis?

À tardinha, carregando a sua pasta, Barrett tomou um táxi e pediu que o motorista o levasse a Greenwich Village. Depois de descer perto de Washington Square, comprou um número do The Village Voice. Não trazia o nome nem anúncio do bar. Por fim aproximou-se de um rapaz e uma moça - ambos afinal eram moças, uma de jaquetão de lã e calça de algodão, a outra de chemisier curto colorido e sandálias - e elas indicaram-lhe o caminho.

Agora, depois de percorrer quatro quarteirões da Village, Mike Barrett chegava ao destino.

 

(*) Nome verdadeiro de Lewis Carrol, autor de Alice no País das Maravilhas.

 

Havia um cartaz em cima de um pálio listrado que se estendia sobre a calçada. Dizia: THE APPROPOET. BAR - IANCHES. ABERTO DAS 10 DA MANHÃ AS TRÊS DA MADRUGADA. Em torno da borda do pálio franjado, em letras irlandesas meio unciais, viam-se os dizeres: “Um livro de versos à sombra da árvore... Um garrafão de vinho, um pão - e você... A meu lado, cantando na vastidão... Ah, vastidão, se o Paraíso bastasse!”

Para entrar no bar precisava-se de descer dois degraus entre corrimões de ferro batido. Barrett desceu e entrou. O ambiente era exíguo e estava apinhado, com nuvens de fumo a enroscar-se até ao tecto. O professor enganara-se sobre a falta de música. Hoje havia o dedilhar queixoso de um violão, que se sobrepunha à conversa em surdina. Recostado à parede de tijolos ao fundo, um rapaz- de barba, segurando uma folha de papel amarela, lia um poema:

Pinte-me como um número

E fure-me como uma máquina.

Mais uma voz na vastidão, pensou Barrett, dirigindo-se para o canto mais perto do balcão logo em frente.

O criado, de venda preta sobre o olho, enxugava copos. Barrett tossiu para chamar a atenção.

- Pode dar-me uma informação? Fiquei de encontrar Sean O’Flanagan aqui.

- Ele está na mesa do costume.

Barrett olhou em torno, confuso, e o criado apontou por cima do seu ombro.

- Do lado da janela - acrescentou -, o tipo de boina.

- Obrigado - disse Barrett.

Virou-se de frente, esperou que um grupo de recém-chegados passasse, e depois adiantou-se entre as mesas rumo ao tipo de boina, que estava sentado, arqueado sobre uma bebida ao pé da janela rectangular de vidros foscos.

Ao aproximar-se de Sean O'Flanagan, o rosto do poeta assumiu contornos definidos. A boina era de um sujo azul desbotado e usada como barrete colado ao crânio. Os olhos eram reumosos, com rugas por cima e por baixo, cortadas fundas como costura pregueada para segurar a carne. Havia uma rala barba grisalha no queixo saliente. O paletó gasto, de veludo pique, cobria uns ombros magros como cabides, e um colar de contas hippies pendia-lhe do pescoço ossudo. O conjunto dava a impressão de um André Gide fracassado.

- Mr. Sean O’Flanagan?

O poeta conservava os olhos fixos no vácuo. Ergueu a vista à maneira de alguém habituado à apresentação espontânea de desconhecidos.

- Que é, rapaz?

- Chamo-me Mike Barrett. Sou de Los Angeles. Um conhecido mútuo sugeriu que o procurasse. Há uma coisa que eu queria falar com o senhor. Posso sentar-me?

A voz de O'Flanagan, rouca de tanto uísque, parecia desconfiada.

- Depende. Sobre que é que quer falar comigo?

- Principalmente sobre a época em que viveu em Paris.

- Você não é poeta?

- Não, eu...

- Hoje em dia já não dá para distinguir. Os poetas agora andam de gravata e cabelo curto e alguns até são dentistas.

- Olhe, eu queria realmente fazer-lhe umas perguntas sobre literatura e escritores. Posso oferecer-lhe uma bebida?

O'Flanagan contemplou o copo quase vazio, depois levantou a cabeça e a boca abriu-se enrugada num sorriso fraterno.

- Essa última frase foi pura poesia, Mr. Barrett. O senhor sabe fazer versos. Puxe uma cadeira.

Barrett achou uma vazia perto e arrastou-a para a frente de O'Flanagan na mesa circular. Mal se sentara e o poeta já estava a chamar o criado.

- Chuck, traz-me outro conhaque com água. Dose dupla... de conhaque, não de água.

- Uísque com gelo - pediu Barrett.

O'Flanagan começou então uma história comprida e engraçada sobre um cão São Bernardo e o seu cantil de conhaque, e no fim soltou uma gargalhada sonora. Barrett também riu, já mais à vontade. As bebidas vieram e a mão de O'Flanagan tremeu ao aproximar o copo dos lábios. Tomou um gole, estalou a língua e tomou outro. Metade do conhaque e da água tinham desaparecido.

Piscou o olho para Barrett.

- Estava a precisar de combustível, Mr... - fez uma cara de pateta. - Perdi a memória para nomes.

- Mike Barrett.

- Barrett, Barrett. 'Stá bom. Agora, o que é que me queria perguntar a respeito de Paris?

- Quando foi exactamente que esteve lá?

- Quando estive lá? Deixe ver. Cheguei já feito um bebé choramingão em 1929. Fiquei até 1938, parece-me. Mais ou menos dez anos. Nunca houve época igual àquela. “Paris acordando nua, a luz crua do Sol a bater nas ruas cor-de-.limão”. Isto é de Joyce. Conheci-o. Encontrei-o pela primeira vez na Maison des Amis des Livres. Conheci Sylvia Beach também. E Gert Stein, Mas o lugar onde a gente ia mesmo embriagar-se era o Dome. Já esteve em Paris? O café em Montparnasse? Acho que ainda existe, naquela esquina. Aquilo é que era a verdadeira boémia. Isto aqui... -acenou com a mão abrangendo toda a sala - isto aqui é lixo, tudo falso, boémia sintética.

- Nunca mais voltou a Paris? - perguntou Barrett

- Voltar? Não. Não ia querer estragar o sonho. Todo o homem guarda um fundo de garantia para a velhice. O meu é aquele sonho. Era uma coisa incrível, cada um a escrever anos-luz à frente do resto do mundo, ou pintando, ou copulando. Meu Deus, que céu maometano para um fedelho de pau insaciável. Sabe como é? Uma noite comi uma puta velha. Depois descobri que tinha sido modelo de Modigliani. E outra noite, minha nossa... eu devia estar com grande pifão, deixei-me enrabar por um velho sacana. E sabe porquê? Só porque me disseram que ele costumava enrabar Rimbaud ou Verlaine, não sei qual dos dois. Pronto, Barrett, lá se foi o meu cartaz com você.

Terminou a bebida.

- Tome outra - disse Barrett.

O'Flanagan fez sinal ao criado e agradeceu com a cabeça a Barrett.

- O meu velho amigo Wilson Mizner dizia sempre: “Em matéria de escritor sou estilista e a frase mais bonita que já ouvi é: “Tome uma por conta da casa”. Ah! - irrompeu num acesso de riso misturado com tosse e por fim enxugou a boca na manga. - Onde é que nós estávamos?

- Em Paris.

- Ah! é, em Paris.

Barrett esperou que o copo fosse enchido de novo e ficou a ver O'Flanagan emborcá-lo novamente.

- Mr. O'Flanagan, quando foi que o senhor conheceu Jadway em Paris?

Com a referência ao nome de Jadawy, o poeta parou de beber.

- Porque é que você acha que eu conheci Jadway?

- Diversas pessoas me contaram que o senhor o conheceu. Para ser sincero, hoje de manhã um homem que uma vez esteve em sua companhia, o Dr. Hiram Eberhart...

- Quem?

- Ele é professor em Colúmbia. Escreveu um livro chamado A Margem das Tendências Principais, onde menciona Jadway. Ele disse-me que certa vez o senhor lhe concedeu uma entrevista, aqui mesmo.

- Um sujeitinho anânico? Sim, lembro-me dele. Porque está interessado em Jadway? Anda a escrever algum artigo, um livro ou coisa parecida?

- Vou dizer-lhe a verdade. Sou advogado. Sou eu que estou a defender o livro de Jadway, Os Sete Minutos, no julgamento em Los Angeles.

O'Flanagan fez uma cara preocupada.

- Aquele julgamento. Andei a ler a respeito dele. Você é o advogado, é? Bom, pelo que pude ver, eles estão a fazer gato-sapato de você... e do coitado do Jad.

- Por isso vim cá. Para tentar melhorar a nossa posição. Soube que o senhor foi um dos amigos mais íntimos de Jadway.

- E é por isso que não pretendo falar sobre ele, Barrett. Fiz um juramento depois que ele morreu. Ele foi... ele foi levado à morte. Agora merece descansar em paz. Ao menos isso.

- Pois os censores não vão deixá-lo sossegado. Quero defendê-lo, não só para salvar, libertar o livro, mas para fazer que a sua memória e o seu nome sejam respeitados. Creio que cheguei praticamente a um beco sem saída. Preciso do seu auxílio.

Barrett encarou O'Flanagan, que bebia em silêncio.

- Mr. O’Flanagan, o senhor era amigo dele, não era?

- O único amigo que ele jamais teve e em quem podia confiar, além de Cassie McGraw. Vou contar-lhe apenas isto, e com grande orgulho. Eu conheci Jad e Cassie, fui amigo dos dois. Encontrei-os pela primeira vez na livraria de Sytvia Beach, Shakespeare & Cia., na Rue de 1'Odéon, número 12. Hemingway, Pound, Fitzgerald, todos eles andavam por lá, comprando e cavaqueando, juntamente com Joyce. E um dia cheguei lá e dei com Jadway, que estava com Cassie.

- Quando foi isso?

- No Verão de 1934, quando ele já andava a escrever o livro.

- Christian Leroux depôs que ele escreveu o livro em três semanas.

- Leroux é um cretino. É capaz de dizer qualquer coisa por dinheiro.

O coração de Barrett deu um pulo.

- Quer dizer que ele mentiu no depoimento? O’Flanagan tomou um gole.

- Não estou a dizer que mentiu. Estou a dizer que ele nem sempre se mostra adepto da verdade. Não gosto dele, nunca gostei e não quero falar sobre ele.

- Mas a maior parte do depoimento dele foi exacto?

- Grande parte.

- A parte sobre a morte de Jadway?

- De modo geral. O livro saiu. A filha de um outro amigo de Jadway ficou grávida e o amigo pôs a culpa no romance. Depois houve outra encrenca qualquer entre Jadway e os pais. Ele era muito sensível. Caiu numa depressão e matou-se. Isso toda a gente já sabe.

- Quando foi que ele se matou?

- Em Fevereiro, no ano da graça de 1937 depois de Cristo. Amém.

- Em Fevereiro de 1937? Muito bem. É justamente a respeito disso que vim cá à sua procura.

Barrett sentiu os olhos desconfiados do poeta pousados nele enquanto abria a fechadura da pasta e tirava um exemplar do livro do Dr. Eberhart. Abriu a página marcada e mostrou a O’Flanagan o trecho sublinhado.

Quando terminou de ler, O’Flanagan levantou a cabeça.

- O que tem isto?

- O Dr. Eberhart diz que o senhor lhe forneceu o material a respeito do comentário de Jadway sobre a luta Louis-Braddock e sobre a publicação de O Trópico de Capricórnio, em 1939.

- Talvez o tenha feito.

- Então explique-me o seguinte. Jadway morreu em Fevereiro de 1937. Como podia ele escutar a luta pelo campeonato dos pesos-pesados quatro meses depois de ter morrido e ler o livro de Miller dois anos mais tarde?

O’Flanagan não respondeu. Ficou a olhar fixamente para Barrett, tacteou a mesa à procura do copo, bebeu devagar e largou o copo de novo.

- Quem sabe.se o tal Eberhart não entendeu bem, não escutou direito o que eu disse.

- Mr. O’Flanagan, mesmo que ele não tivesse entendido bem, o gravador dele não podia enganar-se. Ele gravou a entrevista com o senhor. Correu a fita para mim pelo telefone há duas horas atrás.

- Então quem sabe se fui eu que me enganei. Posso ter andado embriagado naquela noite.

- Eberhart disse que o senhor estava completamente sóbrio.

- Como diabo poderia ele saber?

- Quando eu ouvi a fita, o senhor pareceu-me sóbrio... O’Flanagan resmungou.

- Vai ver que os sóbrios são os bêbedos deste mundo e vice-versa - endireitou as costas. - Acho que fiz a maior embrulhada em matéria de datas e épocas. A minha memória está a ir-se. É a única explicação. Vou pedir outra bebida.

Barrett pegou no criado pelo braço e mandou trazer uma terceira dose dupla de conhaque para O’Flanagan e uma segunda de uísque para ele.

- Mr. O’Flanagan, será que o senhor não se enganou, também na data da morte de Jadway? Talvez ele tivesse morrido mais tarde, digamos em 1939 ou 1940, em vez de 1937.

- Não, lembro-me perfeitamente da época. Lembro-me da missa do sétimo dia. Acompanhei Cassie durante todo aquele período.

As bebidas chegaram. O'Flanagan ergueu o copo. Barrett não tocou no seu. Decidiu tentar uma nova linha de questionário.

- O senhor acompanhou Cassie - repetiu. - Que fim levou ela?

- Foi-se embora de Paris. Lá não havia nada para ela fazer. -O’Flanagan falava entre goles, e começava a embrulhar as palavras. - Voltou para a América. Para Meio-Oeste, parece.

- Que aconteceu à filha?

- Judith? Uma vez recebi um bilhete-postal dela, há uns dez anos. Ia mudar-se para a Califórnia e casar. Foi a última notícia que tive.

- Não sabe qual era o lugar na Califórnia?

- Lá vou eu saber?

- Houve um depoimento a dizer que Cassie McGraw finalmente casou com outro homem qualquer e vivia em Detroit. Sabe alguma coisa a esse respeito?

- Sei que ela casou com alguém e enviuvou pouco tempo depois. Disso sei. Mas nunca mais tive notícias dela. Sei lá o que lhe aconteceu? Provavelmente morreu e foi enterrada há anos. Não havia vida para ela depois de Jadway - sacudiu a cabeça ebriamente. - Aqueles dois eram fabulosos. Ele alto, com ar de tuberculoso, que nem Robert Louis Stevenson. Ela uma beleza, um pedaço de mulher. Está inteirinha no livro dele. Divertíamo-nos como loucos, juntos, de braços dados, caminhando nas margens do Sena, a recitar poemas. Eles tinham os seus predilectos. Havia um de que sempre me lembro.

Encostando a cabeça à parede, de olhos fechados, O’Flanagan disse:

- De Pietro Aretino, o poeta da Renascença - fez pausa e depois declamou baixinho: - ”Se o homem pudesse fotter depois de morto, eu gritaria: Vamos fotter até morrer, e acordar para fotter / Com Eva e Adão, condenados a morrer / Por causa daquela maçã fotteren e sua falta de sorte.”

Abriu os olhos.

- No lugar de fotter, e todas as suas formas correctas em italiano que não me lembro, você pode substituir “foder”, que é menos elegante. Esse era o poema de Aretino, e foi há cerca de quatrocentos anos que ele o escreveu e nós o declamávamos. Era o favorito.

- Favorito de quem? De Jadway?

- Não. De Cassie.

Barrett percebeu que O’Flanagan não ficaria articulado por muito mais tempo. Precisava de se apressar.

- Mr. O'Flanagan, o senhor não gostaria de aparecer como testemunha de defesa, a favor de Jadway... no julgamento? Nós pagar-lhe-íamos generosamente pelo seu tempo e incómodo.

- Não me pagariam o suficiente, Barrett. Não há bastante dinheiro cunhado na terra que me faça falar mais a respeito de Jadway.

- O senhor pode ser intimado, sabia?

- E posso sofrer de amnésia, sabia? Não me venha com ameaças, Barrett. Jadway e Cassie são a melhor parte do meu passado íntimo. Não vou pilhar as sepulturas deles e os meus sonhos em troca de pagamento.

- Desculpe-me - disse Barrett. - Não pretendo aborrecê-lo mais com o assunto. Só um último pormenor. Há pouco tempo, um vendedor de autógrafos nesta cidade, Olin Adams, conseguiu diversas cartas de Jadway. Ele contou-me que as ofereceu ao senhor. O senhor não tinha dinheiro para comprá-las, e por isso desistiu. Logo depois, o senhor ligou para Adams e disse que tinha conseguido dinheiro e queria comprá-las. Porquê?

O’Flanagan resmungou.

- Porquê? Vou contar-lhe. Eu queria as cartas para a Colecção O’Flanagan de Manuscritos, no Departamento Especial de Colecções da biblioteca do Colégio Parktown.

É uma pequena escola pouco antes da gente chegar a Boston. Uma vez eles deram-me um diploma honorário quando eu estava a publicar a minha revista. Em troca, doei-lhes todas as minhas recordações e documentos. Sempre quis ter alguma coisa de Jadway na minha colecção. Eu não tinha nada. Cassie ficou com o pouco que ele havia deixado. Não sei se ela destruiu os papéis e as cartas ou guardou tudo. Mas quando aquele maço de correspondência apareceu à venda, senti vontade de ficar com ele para mim. Mas o preço era muito alto. Depois surgiu uma oportunidade de conseguir um pouco de dinheiro emprestado. Aí então tentei conseguir as cartas. Tarde de mais - soltou um suspiro. - Que lástima. Teria ficado óptimo na minha colecção no Parktown. Pena.

- Essa sua colecção - disse Barrett pensativo -, crê que eu teria permissão de a examinar?

- É pública. Qualquer pessoa que passe pelo Colégio Parktown pode vê-la. Se você for lá, será provavelmente a primeira pessoa que pede para a examinar. Aquele rapaz que é o administrador, Virgil Crawford, acho que ele vai ficar assombrado se alguém pedir para ver a Colecção Sean O’Flanagan.

- Pois olhe, eu gostaria de ir ao Parktown e dar uma olhadela. Virgil Crawford? Permite-me que use o seu nome com ele?

O’Flanagan procurou apoiar os cotovelos em cima da mesa, mas um deles escorregou e ele quase caiu no chão. Barrett acudiu a tempo.

- Obrigado - murmurou o poeta.

- Posso usar o seu nome quando falar com Crawford? - perguntou Barrett outra vez.

- Use qualquer diabo de nome que quiser. Barrett pegou na conta, na pasta e levantou-se.

- Fico-lhe grato pelas informações. Acho melhor eu ir andando.

- Peça outra bebida para mim na saída, sim?

- Claro.

- E olhe, Barrett... você está a perder o seu tempo. Você não vai descobrir mais nada a respeito de Jadway em parte alguma. E muito menos qualquer coisa que o ajude a defendê-lo contra esses queimadores de feiticeiras. Jad... Jadway... já naquele tempo, era muito avançado prà época, e continua sendo, e não há nada que vá ajudar o livro ou a reputação dele até que chegue a época em que o mundo esteja preparado prà ressurreição. Até lá, deixe aqueles ossos em paz, seu filho da mãe, deixe o coitado dormir sossegado até raiar o novo dia de um mundo melhor.

Barrett primeiro escutou; depois respondeu devagar.

- Para mim, só existe este mundo velho, o de hoje. No futuro, talvez ele melhore. Não posso dar-me ao luxo de esperar, Mr. O’Flanagan.

O que aconteceu depois saiu melhor do que pudesse imaginar.

De Greenwich Village, Barrett tomou um táxi para voltar ao centro de Manhattan. Chegando ao seu quarto no Plaza, pediu uma ligação interurbana para a biblioteca do Colégio Parktown em Parktown, Massachusetts. Como era hora do jantar, não estava muito optimista a respeito de encontrar Virgil Crawford, administrador das Colecções Especiais. A funcionária que atendeu disse que Mr. Crawford já tinha ido para casa e só voltaria segunda-feira. Quando Barrett insistiu em que precisava falar-lhe urgentemente sobre importante assunto de negócios, a funcionária (uma dessas mulheres que pensam que toda a chamada interurbana tem de, forçosamente, ser importante) forneceu-lhe o número sem hesitação.

Em questão de minutos, Barrett entrava em contacto com o solícito Virgil Crawford. No momento em que mencionou a sua função no julgamento de censura, da Costa Oeste, Crawford mostrou-se intrigado. Depois de explicar a entrevista que tivera com Sean O’Flanagan e a sua curiosidade em examinar a Colecção O’Flanagan no Colégio Parktown à procura de possíveis provas, Crawford sentiu-se lisonjeado, colocando-se à sua inteira disposição. Combinaram encontrar-se na rotunda do andar térreo da biblioteca às dez da manhã.

Após um jantar descansado no Salão de Carvalho e um rápido telefonema a Mrs. Zelkin (Abe estava na rua, às voltas com um serviço qualquer) para avisar onde se encontrava, Barrett liquidou a conta no hotel. Tomou o primeiro voo que pôde achar para Boston e lá conseguiu um quarto para pernoitar no Ritz-Carlton.

Na manhã seguinte, uma ensolarada manhã de sexta-feira, alugou um Mustang e partiu para o Colégio Parktown, que ficava a setenta quilómetros de Boston, a caminho de Worcester. Sentia-se inclinado a cobrir a distância no menor tempo possível. Estava curioso de ver a Colecção O’Flanagan. No entanto, por maior que fosse a tentação de correr em alta velocidade e deitar logo a mão aos papéis do poeta, sabia que era bastante cedo e podia ir devagar. Além do mais, a manhã de Massachusetts oferecia-se como um dos bálsamos pouco frequentes da Natureza. Passou por prados, lagos e riachos, vidoeiros e pinheiros. De vez em quando avistava as límpidas torres brancas de um templo congregacionalista ou as lápides funerárias cobertas de musgo de um cemitério de puritanos. E tudo estendia o tempo ao infinito, levando-o a guiar o carro com relativa calma.

O Colégio Parktown surgiu-lhe mais moderno e disperso do que ele tinha previsto. Deixando o carro no estacionamento próximo à união de estudantes, pediu informações ao guarda do campus, e depois dirigiu-se ao chafariz, atrás do qual se via a biblioteca de dois andares da escola.

Faltavam dois minutos para as dez quando apertou a mão de Virgil Crawford.

Para surpresa de Barrett, o administrador revelou-se muito vivaz e juvenil. Era franzino, elegante, cheio de vitalidade, entusiasmo, não poupando esforços para ser agradável.

Ao subir, em companhia de Barrett, o lance de escada que levava ao segundo andar, explicou:

- A maioria das escolas pequenas não mantém Departamento de Colecções Especiais. Requer dinheiro, não tanto em matéria de espaço ou quadro de funcionários, mas para fazer aquisições de valor. Nós tivemos a sorte de contar com um grupo interessado e activo, os Amigos da Biblioteca de Parktown, que foi incansável nos seus esforços para levantar fundos que garantissem a nossa subsistência. Estamos muito orgulhosos do nosso acervo de escritores e poetas da Nova Inglaterra. No mês passado, adquirimos duas colecções de documentos pertencentes a John Greenleaf Whittier... verdadeira preciosidade: rascunhos de poemas, correspondência, diários... e posso até dizer que estamos em vésperas de conseguir outra, inestimável, de vários abolicionistas deste Estado. O senhor sabe, Wendell Phillips, Charles Summer e demais antiescravistas.

- Onde é que Sean O’Flanagan encaixa em tudo isso? - quis saber Barrett.

- Ah, ele nasceu em Provincetown. Não creio que tenha passado mais do que um ou dois anos da sua vida em Nova Inglaterra, embora isso pouco importe. O que interessa é que é um poeta. Estou tentando ampliar o nosso acervo de vanguardistas. E estamos bastante adiantados. Já temos algumas cartas de Burns e Swinburne, e vários manuscritos de Apollinaire.

Atravessavam um corredor no andar superior e Craw-ford mostrou o seu gabinete à direita e a sala que continha material de leitura em microfilme à esquerda.

Entraram num salão espaçoso, mobilado com mesas descomunais e prateleiras de livros com portas de vidro.

- Cá estamos - disse Crawford, com um gesto em direcção a uma passagem ao lado do balcão da biblioteca. -O acervo do Departamento de Colecções Especiais fica em cacifos de arame ali atrás. Não creio que disponha de tempo para ver alguns dos nossos tesouros.

- Acho que não.

- Agora, quanto à Colecção Sean O’Flanagan em que o senhor está interessado, nós temo-la catalogada item por item. Existe alguma coisa específica que possa mostrar-lhe?

- Olhe, na verdade não é propriamente por O’Flanagan que sinto curiosidade, e sim pela amizade dele, enquanto esteve em Paris, com J J Jadway. Foi isso que me trouxe aqui. É em Jadway que estou interessado.

- Jadway - replicou Crawford surpreso. - Só está interessado em Jadway?

- Exactamente.

- Creio que entendi mal ao telefone, Mr. Barrett. Julguei que estivesse a usar O’Flanagan no seu julgamento, e quisesse... - sacudiu a cabeça com pesar. - Mas se for só Jadway, receio que não lhe seremos de tanta serventia quanto eu esperava. Jadway morreu moço de mais para ter deixado bibliografia significativa. Além disso, consta-me que o manuscrito original de Os Sete Minutos não foi conservado. É a desgraça da nossa profissão, a destruição de materiais de trabalho de um autor promissor. Duvido que encontre algo escrito por Jadway na colecção de O’Flanagan. Espere um instante que vou tirar isso a limpo. Deixe-me verificar o nosso catálogo.

- Ficarei à espera - disse Barrett.

Crawford aproximou-se rapidamente das gavetas -, do ficheiro do catálogo, enquanto Barrett deambulava a esmo pelo salão de leitura, detendo-se apenas para examinar os conteúdos das prateleiras de livros.

- Mr. Barrett. - Crawford adiantava-se na sua direcção. - Lamento profundamente. É tal como eu suspeitara. Não há absolutamente nada escrito por Jadway.

- Será que não há nenhum material sobre Jadway?

Afinal de contas, O'Flanagan afirma que foi o amigo mais íntimo que ele teve.

- Ah, é provável que haja,, talvez uma ou duas referências a Jadway nas notas ou correspondência de O’Flanagan. Mas seria preciso passar em revista a colecção inteira para localizar. Pensando bem, até não levaria muito tempo. Tirando a publicação trimestral de poesia que O’Flanagan publicava e dirigia, e os livros com dedicatória que nos doou, existem somente três caixas de manuscritos. Gostaria de vê-las?

- Sem dúvida alguma.

- Fique à vontade numa dessas mesas. Eu vou buscar as caixas.

Cinco minutos depois, Barrett estava sentado a uma mesa comprida com uma caixa cinzenta, semelhante a uma gaveta de arquivo, à sua frente, e duas outras ao lado, Crawford deixara-o para ir tratar de serviço, mas prometera ficar perto para qualquer informação.

Abrindo a primeira caixa, Barrett encontrou-a cheia de pastas numeradas, contendo diversos rascunhos de poemas de O’Flanagan. A princípio com cuidado, depois mais impaciente, examinou os manuscritos à procura de anotação que talvez incluísse o nome de Jadway, referências a Paris ou ao período entre 1934 e 1937. Os manuscritos não ofereciam nada, excepto versos incrivelmente prosaicos e incompreensíveis.

Devolvendo as pastas à primeira caixa e empurrando-a para o canto, Barrett abriu a segunda. De modo geral, o conteúdo era semelhante. Rascunhos e mais rascunhos de poemas escritos à mão ou batidos à máquina, e finalmente, três pastas de correspondência. Voltaram-lhe as esperanças mas logo as perdeu. Todas as cartas eram posteriores a Paris, e quase todas se resumiam à correspondência entre O’Flanagan e colaboradores da revista. Nenhuma delas trazia a menor referência indirecta a Jadway.

Desanimado, Barrett abriu a terceira e última caixa. Estava apenas cheia pelo meio com pastas abarrotadas de recortes e anúncios, mencionando O’Flanagan ou a sua revista. Havia uma com folhas soltas, rabiscadas, ou páginas arrancadas de blocos de memorandos em que O'Flanagan anotara, durante anos, ideias para poemas, estrofes isoladas, e frases ou citações favoritas.

Embora restassem ainda duas pastas, a depressão de Barrett aumentava cada vez mais.

Abriu uma. Dentro encontrou retratos - fotografias dos pais de O’Flanagan, do próprio O’Flanagan quando garoto, como editor e director da publicação em Greenwich Village, de T. S. Eliot, de Cummings, autografadas - e por fim um instantâneo, meio rasgado, que Barrett agarrou, e o seu coração quase parou.

Estava ligeiramente amarelado e fora tirado ao pé da Torre Eiffel. Viam-se três pessoas. Da esquerda para a direita: Sean O’Flanagan, mais moço - cerca de trinta anos mais moço - de olhar límpido e ar libertino; uma moça de tipo irlandês, baixinha, bem fornida, bonita e sorridente, franzindo os olhos contra o sol; uma silhueta masculina desengonçada, de calças frouxas, suéter e sem cabeça. A ponta do retrato tinha sido rasgada, deixando a terceira figura acéfala, e sem fisionomia.

Barrett virou logo o instantâneo do outro lado. No verso, em letra oblíqua, delicada e feminina, lia-se: “Caro Sean. Achei que você gostaria desta lembrança de nós três para o seu álbum. Jad diz que você está com cara de romancista e ele de poeta. O que acha? Afectuosamente, Cassie.”

Cassie McGraw, finalmente! E Jadway - que droga, Jadway, quase.

Barrett virou a fotografia de frente outra vez. A Cathleen que se via ali podia ter jeito de tudo, menos da mulher nua e sensual do romance. Dava a impressão... mas que impressão pode dar um retrato desbotado? Quanto a Jadway, o que restava dele dos ombros para baixo não combinava com a descrição do rebelde pornógrafo, desleixado e dissoluto, feita por Leroux e pelo padre Sarfatti. Mas talvez a fotografia tivesse sido tirada antes do seu livro e da sua ruína.

A descoberta entusiasmou Barrett, e sinais de interrogação pontilharam os seus pensamentos. Quando, exactamente, fora tirado aquele instantâneo? Quando Cassie o dera a O’Flanagan? Quem arrancara o rosto de Jadway? Teria sido O’Flanagan? Cassie? O próprio Jadway? E... porquê?

Barrett não fazia a menor ideia do valor que o instantâneo pudesse ter, porém sabia o motivo do seu entusiasmo. Durante semanas a fio, Cassie McGraw e J J Jadway haviam-lhe escapado das mãos, tornando-se cada vez mais incríveis, menos reais que os personagens inventados de uma obra de ficção. Tinham-se convertido em mitos. Agora, graças a Deus, a sua realidade impunha-se com esse achado. Possuíam corações que pulsavam e sangue que fluía, e de certo modo, de uma hora para a outra, transformavam-se em seres humanos desta terra, com mais substância do que sombra, pessoas dignas de serem defendidas.

Não era já o advogado de um fantasma. No entanto, além disso, com que contava realmente? Uma imagem de Cassie McGraw na casa dos vinte. Uma imagem do corpo de Jadway na sua fase parisiense. Uma amostra da caligrafia de Cassie. Será que bastava para entusiasmar o menos romântico Abe Zelkin? Ou enfraquecer os ataques de Elmo Duncan? Barrett conhecia as respostas. Contudo, não guardou o instantâneo de novo na pasta. Pousou-o delicadamente ao lado da caixa.

Uma única pasta encobria o que restava da Colecção Sean O’Flanagan no Colégio Parktown.

Barrett separou-a. A etiqueta dizia: “Miscelânea”. Continha cartões de visita, citações, livros de endereços, bilhetes-postais. Revistou tudo à pressa, item por item. Nada de Jadway, Cassie, Paris, década de 30. Uma meia dúzia de postais, um, dois, três, quatro, cinco, seis - e depois voltou ao quinto. Não o de Jadway, nem o de Cassie: outro nome lhe chamara a atenção.

Não era um postal com paisagem. Liso, selado de antemão, de uma cor castanho-clara, fora comprado na agência do correio, trazendo impresso: “Este lado é reservado ao endereço”, e no outro, o espaço para a mensagem.

Muito curta, escrita com tinta roxa, ela dizia: “Prezado Tio Sean. Caso-me amanhã. O meu endereço será: 215 E. Alhambra Road, Alhambra, Califórnia. Estou feliz. Espero que o senhor também esteja. Abraços - Judith.”

Judith!

Encontrara o espectro ilegítimo, gerado por Cassie McGraw como fruto do amor que aceitara de J J Jadway. Judith Jadway, ou Judith McGraw, ou Judith com um nome qualquer, se mais tarde o marido de Cassie a houvesse adoptado. Judith, a chave para abrir a porta do passado de Jadway e contar o que acontecera com Cassie McGraw.

Barrett examinou mais uma vez a parte da frente do bilhete. O carimbo postal e as linhas de invalidação estavam borrados, mas dava para entender a data carimbada da remessa: 1956. Barrett fez rápidos cálculos de cabeça. A filha de Jadway teria dezanove anos de idade, e estava em véspera de casar-se, quando enviara o cartão. Hoje estaria com trinta e três. Tinham-se passado catorze anos desde que dera aquele endereço em 215 East Alhambra Road, Alhambra, Califórnia. De repente, ela aparecia de novo, qual um fantasma. A maioria dos californianos sulistas não fica catorze anos no mesmo endereço. Sobretudo se são jovens e recém-casados. No entanto, era possível. E, na pior das hipóteses, Alhambra Road talvez fosse o começo de uma trilha que podia levá-lo a um informador e testemunha à altura de qualquer outro que a acusação já apresentara ou viesse ainda a apresentar.

Colocando o precioso bilhete-postal em cima da fotografia mutilada, repôs as pastas soltas na respectiva caixa. Sabia o que devia fazer.

Pediria a Virgil Crawford para que mandasse tirar fotocópias de ambos os lados do instantâneo e do bilhete-postal. Com que finalidade, não tinha a certeza. Porém era advogado, e meticuloso.

A sua próxima providência já estava preestabelecida. Precisava de regressar a Los Angeles imediatamente e rumar directo ao número 215 da East Alhambra Road, onde talvez se solucionasse a sua busca da filha de Jadway para uma confrontação.

Levantando-se, consultou o relógio de pulso. Chegaria a Los Angeles à tardinha.

Recolheu o postal e o retrato. Deteve o olhar nas três caixas, e agradeceu e abençoou em silêncio a Colecção Sean O’Flanagan. Depois, quase alegre, foi à procura de Virgil Crawford. Sentia-se, outra vez, cheio de optimismo.

 

Estava de novo em Los Angeles.

Seguindo o mapa do município, cortesia do seu clube de automobilismo, Mike Barrett havia levado três quartos de hora a dirigir o descapotável desde o aeroporto até ao ponto de destino. Perdera-se uma vez no caminho, atrasando-se também por culpa de um desvio, mas finalmente chegara à East Alhambra Road.

E agora sentia-se confuso.

Achava-se numa rua residencial, velha e tranquila, abrigada por carvalhos e palmeiras seculares, e o número que procurava era o único na calçada oposta ao lugar onde estacionara.

Espiando pela janela do lado da direcção, leu pela segunda vez a placa de metal. Erguida entre uma fileira de arbustos e os degraus que levavam a um caminho, dizia:

215 CARMELO DE SANTA TERESA

Atrás da placa e do caminho via-se uma capela de altos vitrais. À esquerda, contíguo a ela, havia um prédio de tijolos vermelhos com janelas corridas semelhantes a celas no segundo andar, e um campanário ornamentado no estilo vitoriano, elevando-se acima do telhado.

A confusão de Barrett aumentou. Há catorze anos, a filha de Jadway dera o número 215 da East Alhambra Road como o seu endereço de recém-casada. Agora ele transformara-se em igreja e em... bem, seja lá qual fosse o nome que davam àquele prédio contíguo de tijolos vermelhos.

Em matéria de mistérios, Barrett estava farto. Queria soluções. Descendo à pressa do carro, atravessou a rua e subiu rapidamente o caminho. À direita havia um sólido portão de madeira, coberto por grade de ferro preta e engastado num muro de metro e meio de altura. Mais adiante ficava a porta da capela. À esquerda, outro caminho de cimento conduzia ao prédio de tijolos vermelhos. Barrett enveredou por ele, contornando a capela até chegar aos degraus do alpendre que levavam à entrada no meio de uma arcada de pilares.

Tocou a campainha. Um instante depois, a porta abria-se para surgir uma noviça de hábito castanho que a cobria até aos pés.

- Sim? - perguntou delicadamente. Perplexo a mais não poder, Barrett titubeou:

- Hã... eu ...eu... recebi este endereço para procurar uma pessoa. Mas não parece ser uma residência particular.

- Isto aqui é um convento de freiras carmelitas. Deram-lhe decerto o endereço errado.

- Não. Creio que o endereço está certo. O que talvez esteja errado é o ano. Por acaso não sabe se há catorze anos isto aqui não era uma casa particular?

- Nada mudou desde essa época. Há catorze anos era exactamente como é hoje.

- Tem a certeza? - Barrett, porém, sabia que ela não se enganara, e uma suspeita da verdade já lhe passara pela ideia. -'Eu preciso localizar alguém que certa vez forneceu este endereço como a sua moradia. Não existe aqui alguma pessoa que me pudesse ajudar?

- Talvez a madre superiora.

- Eu poderia falar com ela?

- Queira esperar, por favor - indicou um banco de pedra no alpendre coberto. - Vou ver se a encontro.

Barrett aproximou-se do banco, tirou o cachimbo do bolso, tornou a guardá-lo, e sentou-se na ponta. Fitou além do pilar à direita, avistou a cerca de arame e a sebe que corriam junto à rua transversal até se encontrarem com o muro baixo de protecção, fronteiro à Alhambra Road, e depois, lado a lado, circundarem o verde relvado à sua frente.

Ouviu a porta ranger e uma mulher roliça, de véu, vestida com manto de coro branco, camiseta de mangas também branca e grosso hábito castanho, adiantou-se com passo enérgico na sua direcção. Barrett pôs-se logo de pé.

- Sou a irmã Arilda - anunciou ela. - Em que lhe posso ser útil?

Barrett viu dentro do véu um rosto autoritário, amplo e redondo, tão imutavelmente pálido e contente como os semblantes de todas as freiras que sempre observara. E que sempre lhe transmitiam uma inexplicável sensação de mal-estar. Talvez porque a devoção delas à obra de Deus, a comunhão com o mistério final, lhe tornavam o próprio saber e objectivo sem graça e mesquinho. Ou talvez o motivo fosse diverso: que o jeito delas fosse antinatural e contrário à vida, um prolongamento permanente da infância. Eram provavelmente santas, e mesmo que algumas fossem pecadoras, não importava: a presença delas sempre o deixara contrafeito em extremo.

Ali estava a madre superiora, placidamente à espera de uma explicação da sua visita.

Depois de se identificar, Barrett prosseguiu:

- Eu... eu sou advogado em Los Angeles. Estou procurando localizar uma moça, alguém com quem preciso de falar a respeito de um assunto bastante delicado. O último endereço que sei dela data de há catorze anos. É este aqui. A irmã com quem falei antes disse-me que naquela época isto aqui já era um mosteiro. Será que ela não está enganada?

- Não está, não - disse a madre superiora. - As irmãs de Nossa Senhora do Monte Carmelo, assim como o próprio convento carmelita, já estavam nesta casa há catorze anos. - Fez uma pausa e depois acrescentou: - A moça que deu este endereço... o senhor poderia falar-me mais sobre ela?

- Creio que muito pouco. - Barrett enfiou a mão no bolso interno do paletó e tirou as cópias fotostáticas do bilhete-postal que a filha de Jadway remetera a Sean O'Flanagan catorze anos antes. Desdobrando as duas folhas, entregou-as à madre superiora. - Aqui estão cópias dos dois lados de um bilhete postal que ela mandou a um amigo da família. A senhora pode ver que ela indicou este endereço.

Tomando as folhas, a madre superiora sentou-se no banco do alpendre.

- Tenha a bondade de sentar-se, Mr. Barrett - disse. Enquanto ele se baixava para tomar assento a seu lado, a madre superiora examinou as fotocópias. Observando-a ler, Barrett comentou:

- Tudo o que posso acrescentar são factos esparsos. Como a senhora vê, ela assinou simplesmente Judith. Não tenho a mínima ideia do sobrenome que usava há catorze anos. Nasceu em Paris, sendo filha ilegítima de uma mulher chamada Cassie McGraw e de um homem chamado J j. Jadway. De modo que tanto podia chamar-se Judith Jan Jadway como Judith Jan McGraw. Depois, mais tarde, nos Estados Unidos, a mãe casou e o padrasto de Judith é capaz de tê-la adoptado, embora não se tenha encontrado nenhum registo legal em Detroit. Ela talvez passasse a usar o nome dele, fosse qual fosse. Pouco tempo após o casamento de Cassie McGraw, o padrasto de Judith morreu na Segunda Guerra Mundial. A partir daí, não se sabe o que aconteceu, até Judith remeter este postal pelo correio há catorze anos. É claro que ela podia ter-se enganado a respeito do endereço que deu. Porque se isto aqui já era um convento naquela época, certamente não combina com o facto de Judith se casar no dia seguinte.

A madre superiora terminara de examinar as fotocópias. Devolveu-as. Cruzou as mãos delicadas no regaço e fitou Barrett francamente, abrigada pelo véu.

- Ela casou-se no dia seguinte e deu o endereço certo - disse a madre superiora. - Ela e cinco outras irmãs desposaram Nosso Senhor Jesus Cristo naquele ano.

Apesar da sua suspeita anterior, Barrett ficou assombrado, sem saber o que dizer.

- Depois do treinamento formal e de experimentar a vida contemplativa, segundo a norma primitiva estabelecida aos eremitas do Monte Carmelo por Alberto de Jerusalém em 1207 e as ordenações de Santa Teresa, ela completou o noviciado e fez então os votos provisórios. Finalmente, em 1956, tomou os votos finais, e ficou consagrando-se para sempre a Deus.

Procurando recobrar a compostura, Barrett perguntou:

- A senhora quer dizer que Judith está aqui, agora, neste mosteiro?

- Não há nenhuma Judith, Mr. Barrett. Existe apenas a irmã Francesca.

- Seja qual for o nome dela, preciso falar-lhe com urgência. Não poderia vê-la, nem que fosse rapidamente?

A mão da madre superiora segurava o escapulário pendente sobre o hábito castanho. O seu olhar perdeu-se além do alpendre, e pousou num bando de pardais sobre o relvado. Finalmente falou:

- Uma irmã que toma os votos solenes desta ordem, que se torna freira carmelita, oferece a sua pessoa em dedicação total a Deus. No espírito de Santa Teresa, consagra-se, então, à vida contemplativa, recolhendo-se à intimidade das coisas divinas, abraçando o mundo através de um apostolado de oração e penitência. É essa intimidade com Deus que dá eficácia a esse auto-sacrifício e empresta força às suas orações. Para se converter numa autêntica colaboradora da obra redentora de Cristo, a carmelita descalça deve renunciar a toda a vida exterior. De hábito e sem sapatos, passa os dias em abstinência, em trabalhos manuais, em preces mentais, a cantar o-Divino Ofício em latim. Quem assim se consagra, Mr. Barrett, não ficaria pessoalmente tentada, nem receberia permissão oficial para se interessar pelas questões mundanas que o senhor considera tão urgentes. Sinto muito.

- Mas eu apenas quero ver se ela sabe alguma coisa relacionada com o pai e, talvez com o paradeiro da mãe, supondo-se que ainda esteja viva. Nunca abrem excepções para casos especiais?

- Às vezes. Não me compete decidir. O senhor teria de solicitar ao secretário do cardeal MacManus, que é o arcebispo da arquidiocese de Los Angeles. Duvido, entretanto, que obtenha permissão de Sua Eminência.

- Posso saber a razão da sua dúvida?

Pareceu-lhe notar a sombra de um sorriso emoldurado pelo véu. Finalmente a madre superiora respondeu:

- Mr. Barrett, esta é uma ordem de clausura, mas em minhas funções de directora do mosteiro, os meus contactos são frequentemente mais mundanos que os das outras irmãs. Para mim, é tão indispensável manter-me bem informada como as irmãs da nossa Terceira Ordem, que vivem e labutam na casa missionária Little Flower e andam no meio das criaturas humanas como assistentes sociais. Venho acompanhando os acontecimentos ultimamente. Tenho tido motivos para consultar o Índex Librorum Prohibitorum. Apreciei o depoimento do padre Sarfatti no tribunal.

Familiarizei-me com o nome de Jadway e até mesmo, Mr. Barrett, com o seu próprio nome. Conhecendo as circunstâncias, duvido muitíssimo que abram excepção para o seu pedido. Duvido muitíssimo, Mr. Barrett. Barrett sorriu.

- Eu também duvido - pôs-se de pé. - Fico-lhe grato pela entrevista.

Ela levantou-se.

- Não posso desejar-lhe boa sorte. Posso apenas esperar que o senhor encontre o caminho de Deus.

Ele fez um movimento para se retirar, porém hesitou.

- Não sabe se Judith... a irmã Francesca... está a par do julgamento?

- Ela tem outros julgamentos com que se preocupar - respondeu enigmaticamente a madre superiora. - O seu único interesse é alcançar a intimidade divina. Passe bem, Mr. Barrett.

Ele deixou o alpendre, encaminhando-se lentamente até à esquina. Olhando por cima do ombro, viu que a madre superiora desaparecera no interior do convento. Depois na rua transversal, avistou três freiras a juntarem caixas de papelão no que parecia ser um portão de fornecedores. Deteve-se a observá-las, os mantos esvoaçantes, ao voltarem silenciosamente para dentro, rumo ao prédio da clausura.

Pôs-se a imaginar se uma delas não seria a filha de Jadway e de Cassie McGraw.

Finalmente, apressando o passo, afastou-se daquele lugar de Deus e daquelas irmãs que colaboravam com Cristo. Estava pronto para reingressar no mundo mais rude exterior, onde a maioria dos homens não tem tempo para o céu na sua luta incessante para sobreviver ao inferno terrestre.

Depois de apanhar uma sanduíche de pastrame e uma salada de repolho cru na secção de lacticínios do Supermercado Vicente, Mike Barrett dirigiu-se para o seu apartamento. Mastigando a sanduíche e bebendo um refrigerante, prendeu o auscultador na orelha e tentou localizar Abe Zelkin.

No escritório não obteve resposta. Pediu então ao serviço automático de recados que avisasse o seu sócio para lhe telefonar. Depois experimentou a residência de Zelkin; a ama explicou que o patrão tinha saído de carro com a esposa e o filho, ela não sabia para onde. Também deixou recado para que lhe telefonasse.

Por fim, Barrett ficou no apartamento, concentrando-se nas cópias que Donna havia feito das entrevistas gravadas com as testemunhas de defesa, tanto por Zelkin como por ele mesmo. Imerso na leitura, o tempo passou voando. Eram nove e quinze da noite quando o telefone finalmente tocou.

Até que enfim. Era Abe Zelkin.

- Onde é que você andou, Abe? - perguntou Barrett. - Estava ansioso por saber o que se passou ontem no julgamento. Parece que os jornais deixaram de publicar uma porção de depoimentos.

- Porque não era leitura para família. Mas estou mais interessado, Mike, em saber como é que se saiu. Não muito bem, pelo que vejo, senão eu já teria notícias suas.

- De facto.

- Se estiver disponível agora, podemos pôr-nos em dia. Tive de levar minha mulher e meu filho, hoje à tarde, ao Observatório Griffith. Leo foi connosco, e depois jantou comigo. Começámos a examinar um material novo recém-chegado e acho que nos esquecemos da hora. Mas eu finalmente chamei o serviço de recados e cá estou. Olhe, tenho de ir buscar minha mulher e o garoto daqui a meia hora... leva outro tanto para ir até lá... assim que, porque não passo por aí para o apanhar primeiro e a gente vai conversando pelo caminho? Leo continua aqui comigo e estamos perto do seu apartamento. Podia pôr-se toda a situação em dia.

- Ficarei à espera lá em baixo.

Agora, vinte e cinco minutos mais tarde, com Zelkin ao volante da camioneta, Barrett ao lado e Kimura no banco de trás, subiam a estrada em espiral que conduz ao cume do Monte Wilson. Pelo pára-brisas, Barrett já divisava as cúpulas do observatório e do planetário a pouca distância acima deles.

Tinha contado as suas aventuras com o Dr. Hiram Eberhart e Sean O’Flanagan em Nova Iorque, com Virgil Craw-ford no Colégio Parktown e com a madre superiora do Convento Carmelita em Alhambra. Terminando a história, disse:

- Portanto, com todas estas viagens e grandes esperanças, o que consegui? Essas porcarias de fotocópias de um retrato e de um bilhete-postal e mais nada. Perguntem o que quiserem a respeito de poesia, colecções especiais, freiras carmelitas, que eu respondo. Perguntem-me sobre Jadway, Cassie, Judith e anacronismos, e sou um fracasso. Senhores, eu simplesmente esgotei todas as pistas. O fundo do poço. A única pessoa que eu acho nos podia ajudar agora seria Cassie McGraw, e é mais do que provável que ela esteja a dois metros de profundidade, debaixo da terra, pois se não estiver, Santo Deus, onde é que há-de estar? Detesto dar ares de ave de mau agouro mas não vejo nenhum raio de esperança. Até hoje à tardinha eu ainda tinha alguma, mas agora perdi-a por completo.

Ouviu Kimura mexer-se no assento de trás.

- Esperança só não basta - disse ele. - Talvez conviesse lembrar o velho ditado... quem vive de esperanças, morre de fome. Quem sabe se não temos já o suficiente para não ficar dependendo mais da sorte?

- Claro - concordou Zelkin. - Contentemo-nos com o que se conseguiu. Bem, cá estamos. O Observatório Griffith. Nenhum parentesco com o Átila da Oposição, o Frank Griffith.

Estacionou a camioneta.

- Acho que a sessão do plenário ainda não terminou. Já esteve aqui dentro? Uma loucura. O tecto da cúpula serve de tela. Na noite em que eu vim, eles projectaram a Estrela de Belém no céu tal como devia ter sido na noite em que os Três Magos a seguiram.

- E o que me diz dos Três Sabichões deste carro? - perguntou Barrett. - Que estrela é que os deve guiar?

- Tudo indica que Elmo Duncan monopolizou todas as estrelas em circulação - replicou Zelkin. - Ele passou a maior parte do dia de ontem a preparar terreno para a segunda grande estrela dele.

- Há horas que estou à espera de saber o que aconteceu enquanto estive fora - disse Barrett.

- E eu para lhe contar - replicou Zelkin -, mas você não pára de falar.

De repente Barrett sorriu.

- Tem razão, Abe. Pode começar.

- Deixe-me procurar as minhas notas - disse Zelkin. Encontrou-as e deu uma olhadela. - Foi o que os jornais noticiaram... não houve grandes actuações. A maior parte limitou-se à preparação do que está por vir. Duncan desencavou mais dois especialistas em literatura, um professor de Colorado, o Dr. Dean Woodcourt, e uma espécie de crítico de livros para uma cadeia de publicações, Ted Taylor. Os dois consideraram o livro pornográfico e condenaram-no pelo aspecto libidinoso. Dei algumas punhaladas nas suas autoridades e preconceitos mas não creio que tenha causado muita impressão no júri. Onde Duncan realmente lavrou um tento foi quando obteve de Taylor coisas que os jornais não publicaram, exemplos concretos de casos em que determinados livros incitaram supostamente a actos de violência. Tudo preparando o terreno para...

- Que casos a testemunha citou? - interrompeu

Barrett.

Zelkin espremeu os olhos para ler as notas à luz do painel.

- Dois casos baseados em dois pretensos pornógrafos. O primeiro foi aquele velho trapaceiro, o historiador Suetónio e o livro, As Vidas dos Doze Césares. Para só citar um exemplo do livro: A imperatriz Valéria Messalina desafiou a união de prostitutas em Roma a encontrar uma mulher que fosse capaz de satisfazer tantos amantes como ela numa só noite. Aceite o desafio, realizou-se o concurso. O campeonato das horizontais. Nem teve comparação. Messalina ganhou sem precisar levantar-se da cama. Satisfez vinte e cinco homens em vinte e quatro horas. Bem, mas qual a relação com a influência perniciosa do livro biográfico de Suetónio?

- Sim, qual? -quis saber Barrett.

- A testemunha afirmou que o livro de Suetónio perverteu Gilles de Rais. Já ouviu falar nele?

- O primeiro Barba-Azul.

- Exacto A melhor das referências, para começar. Um riquíssimo marechal de França. O homem que lutou ao lado de Joana D'Arc. No entanto, Gilles de Rais foi processsado em 1440 sob a acusação de praticar sodomia com cerca de cinquenta rapazes e moças antes de os assassinar. Durante o julgamento, alegou que tinha lido Suetónio e fora corrompido pelo historiador. Tudo muito interessante O que é que eu podia ressaltar na inquirição? Que Gilles de Rais provavelmente não teria praticado sodomia nem assassinado ninguém mas, em vez disso, segundo vários historiadores modernos, fora simplesmente traído pelo clero para que a Igreja pudesse confiscar-lhe o património imobiliário? Acho que não bastaria para o júri. Depois Duncan fez a testemunha falar sobre outro autor de livros obscenos, o marquês de Sade.

Barrett suspirou.

- Eu já estava mesmo a prever que eles terminariam por arrastar o Sade para o meio desta história.

- Duncan conseguiu que a testemunha descrevesse alguns pontos culminantes da vida de Sade. Família ilustre. Oficial de cavalaria. Casado. O incidente em que Sade induziu uma mulher de trinta e seis anos a ir a casa dele, amarrou-a na cama, chicoteou-a, cortou-a com uma faca e derramou cera derretida nas feridas abertas. E depois a decadência, em Marselha, quando ele se encontrou com quatro prostitutas no apartamento de uma delas, distribuiu uma caixa de bombons que estavam realmente recheados de doses cavalares de afrodisíacos, e as mulheres ficaram malucas, numa orgia de amor dissoluto. O marquês de Sade foi julgado e condenado em 1772. Finalmente passou doze anos na prisão e morreu no hospício. Mas, entretanto, escreveu uma verdadeira enciclopédia de perversões sexuais... Justine, Os 120 Dias de Sodoma, Os Crimes de Amor e o resto... baseada nas experiências que teve pessoalmente. Ora, insistiu a testemunha, essas obras e o autor foram responsáveis por incitar inúmeros leitores a praticar actos criminosos por emulação. Exemplo. Aqueles jovens monstros ingleses que. mataram brutalmente pelo menos duas crianças inocentes e possivelmente um adolescente no caso dos crimes das Charnecas. Durante o processo das Charnecas, em 1966, os réus afirmaram que tinham agido sob a influência das obras do marquês de Sade. Na minha inquirição, tentei fazer Taylor reconhecer que outras influências, além das de Sade, podiam ter inspirado os crimes das Charnecas, e que ainda que Sade nunca houvesse existido, esses monstros teriam cometido os assassínios da mesma maneira, porque eram irremediavelmente uns doentes. A testemunha, porém, nem quis saber, e acho que o júri também não.

- Pena.

Zelkin pôs as notas de lado.

- Aí então, depois do intervalo do almoço, Duncan começou a preparar de facto o palco para a próxima atracção. Como você provavelmente leu nos jornais, ele apresentou dois guardas, um após o outro, que foram chamados por Darlene Nelson quando Sheri Moore foi estuprada. Eles descreveram o estado em que encontraram a moça, inconsciente, e como Darlene lhes repetiu o que Sheri lhe tinha contado, que havia sido desflorada à força. Por fim o médico legista entrou em cena para depor sobre o exame que fizera em Sheri logo em seguida. Pormenores do ferimento na cabeça. Do exame interno da vagina. Descobriu provas definitivas de espermatozóides vivos, indicativos de que houvera introdução momentos antes. Isso sempre impressiona o júri.

- E você. Abe? Não caiu em cima de Duncan por causa de toda essa encenação de estupro?

- Em primeiro lugar, Duncan e eu trocámos desaforos diante do juiz Upshaw. Eu disse que aquilo era irrelevante.

Aleguei que a violação da moça não tinha nada que ver com o nosso caso de obscenidade. Duncan argumentou que as testemunhas dos guardas fundamentavam o depoimento de Jerry Griffith, sendo portanto relevantes e pertinentes porque ele mostraria que os trechos imorais no livro de Jadway tinham despertado em Jerry a vontade de cometer estupro e de o levar a pô-la em prática. Protestei até ficar roxo. Indeferido. Mas está nos autos, se recorrermos mais tarde. Por enquanto, olhe, Mike, eles vão encontrar oportunidade de processar o livro por estupro, e não existe nada que se possa fazer para o impedir. Em todo o caso, apareceu mais uma testemunha hostil.

- Mr. Howard Moore - disse Kimura. - O pai de Sherí.

- Pertinente? - perguntou Barrett.

- Indeferido - respondeu Zelkin. - Moore também fundamentava o depoimento. Portanto, pertinente. A filha dele era a própria Pureza. A quintessência da virtude. Uma autêntica vestal. Até que o maldito livro, através de Jerry, a maculasse, arruinasse e inutilizasse, tratei dele com todo o carinho na inquirição, pode crer. Primeiro, porque estava com medo que me desse uma surra, como fez com você no hospital. Segundo, ali surgia o pai de uma filha ainda em estado de coma, de maneira que tratá-lo mal equivalia a expor-se a ser linchado pelo júri. Portanto tratei-o com simpatia, procurando separar os sofrimentos da filha do livro de Jadway e sendo metralhado por protestos o tempo todo. Depois de dez minutos, meti o rabo entre as pernas... o diabo tem rabo, não tem?... e bati em retirada para a trincheira da nossa mesa. Você não imagina como estou contente com a sua volta, Mike. Segunda-feira você pode tornar a ser o diabo. Eh, agora me lembro. Prometi que me encontraria com a família lá dentro, perto do pêndulo de Foucault. Venha connosco, Mike. Leo e eu temos mais coisas para lhe contar.

Saíram da camioneta e dirigiram-se à entrada do Observatório Griffith.

- Como é que você deixa o seu filho acordado até esta hora? - estranhou Barrett.

- Que mal tem? Hoje é sexta - respondeu Zelkin.'- Além disso, ele é um entusiasta pela astronomia, e Sarah está a ir pelo mesmo caminho. Já vieram aqui acima umas doze vezes. Ela queixa-se de que quase nunca me vê. Assim, pelo menos, representa uma mudança para quem fica o tempo inteiro com a criançada em casa.

No interior do observatório, chegavam dentro em pouco a um enorme poço, sobre o qual oscilava um pêndulo de um lado para outro, em cima de uma réplica do globo terrestre que girava lentamente no fundo. Do parapeito do poço, os três tentaram discernir o movimento da terra sob a bola do pêndulo. Hipnotizado, Barrett olhava para baixo, até que sentiu Zelkin a puxá-lo pela manga.

- Antes que a frau e o herdeiro apareçam - disse Zelkin -, quero que você preste atenção ao que Leo e eu combinámos durante o jantar. Sabemos com certeza o que Duncan vai fazer segunda de manhã. Ele pretendia começar com Darlene Nelson, mas ela está agora no mesmo hospital que Sheri. Apendicite aguda. Ela está a passar bem, mas, por enquanto, não poderá depor, graças a Deus. De modo que o nosso Promotor Público começará pelo Dr. Roger Trim-ble, ex-Presidente da Associação Americana de Psiquiatria. Leo deu uma olhadela por algumas das suas obras. Como o Dr. Fredric Wertham, ele é da escola que acredita que os livros, as revistas em quadrinhos, os semanários e os filmes criam um clima de violência e contribuem para a delinquência juvenil. Assim, será essa a atracção de Duncan antes de subir o pano. O Dr. Trimble tem aplicado terapia em Jerry desde o incidente e vai declarar que o principal factor que contribuiu para o estupro foi Os Sete Minutos. Aí, e só aí, depois dessa preparação, subirá o pano, revelando o próprio Jerry Griffith. Duncan colocará Jerry no banco das testemunhas na segunda-feira de manhã.

- Tem a certeza?

- Absoluta. Leo e eu estivemos a fazer toda a espécie de conjecturas sobre o depoimento dele, antes de irmos ao seu encontro. Essa talvez seja a nossa última grande oportunidade de salvar o caso. Temos de liquidar por completo a segunda testemunha estrelar de Duncan. Fracassámos com Leroux. Não podemos arcar com novo fracasso com Jerry Griffith. Tudo depende de nós, Mike. Temos de agarrar no rapaz e afastá-lo para sempre de qualquer ligação com o livro.

Barrett franziu o cenho.

- Afastá-lo de que modo? Com uma machadinha? Eu é que não disponho de nenhuma prova para cair em cima dele.

- Você não. Mas nós sim. Enquanto você esteve no Leste, conseguimos uma prova tremenda que você pode usar; conseguimo-la hoje à tarde. Lembra-se daquela agência de detectives que contratámos para investigar sobre a família Griffith?

- Até já tinha desistido deles. Quer dizer que finalmente descobriram alguma coisa?

- Eles andam devagar mas com passo firme. - Zelkin espichou o braço e pegou num sobrescrito entregue por Kimura. Passou-o a Barrett. - Isto aqui é uma cópia do relatório do detective particular. Tem de tudo. Mas no meio, há uma informação surpreendente. Suficiente para acabar com uma estrela. E é o que devemos fazer, Mike. Teremos de ser implacáveis. Repito que é a nossa última oportunidade de criar sensação. - Barrett já começava a abrir o sobrescrito quando Zelkin o interrompeu. - Agora não, Mike. Você tem o resto da noite e todo o dia de amanhã para ler e reler o que está escrito aí e imaginar a melhor maneira de a utilizar.

- Bem, o que é que tem aqui, Abe?

- Essencialmente, resume-se no seguinte, e é uma bomba. Meio ano antes que Jerry sequer tivesse ouvido falar n'Os Sete Minutos, ele foi levado sigilosamente para fora da cidade para se tratar com um médico em São Francisco.

- Que tipo de médico?

- Um psicanalista.

- Porquê?

- Porque havia tentado suicidar-se pouco tempo antes. Você está a ouvir? Ele tentou matar-se.

- Como foi que a agência encontrou a pista?

- Eles descobriram que Jerry teve uma ausência prolongada das aulas na universidade. Doença.

- Que espécie de doença?

- Esgotamento nervoso, diz um informador que prefere continuar anónimo, e esse esgotamento levou Jerry a tomar uma dose excessiva de comprimidos para dormir, que por sua vez o levaram ao psicanalista no Norte do Estado.

- Quem foi que o levou para lá?

- A prima. A sua recente convidada para jantar, Maggie Russell. Quer dizer então que ela nunca tocou nesse assunto com você.

- Nem eu esperaria que ela o fizesse, Abe.

- Sim, tem razão. Em todo o caso, que tal essa para começar? O rapaz já andava desequilibrado muito antes de ler o livro de Jadway. Portanto, deve haver outros factores que contribuíram para o estupro.

- Sem dúvida alguma.

- Jerry com tendências suicidas. Que descoberta, hem?

- Nem tanto - retorquiu Barrett. - Eu não sabia da primeira tentativa. Mas sempre tive a certeza de que ele procurava autodestruir-se.

- Sempre teve a certeza? - estranhou Zelkin. - De onde tirou essa ideia?

- Maggie Russell tinha-me contado. O rapaz vive a falar-lhe em se matar. E antes que ela me contasse, tive ocasião de certificar-me com os meus próprios olhos. Eu estive presente quando Jerry tentou matar-se pela segunda vez. Para dizer a verdade, até ajudei a salvá-lo. Foi esse acto que aproximou Maggie de mim.

Zelkin e Kimura olharam-no espantados.

- Ele tentou matar-se pela segunda vez? E você estava junto dele? - perguntou Zelkin, já começando a zangar-se. - O que significa isso?

Barrett contou rapidamente todo o episódio ocorrido no Locomotiva Clandestina e mais tarde no parque de estacionamento.

Quando terminou, percebeu que Zelkin continuava contrariado.

- Mike - disse Zelkin pausadamente -, porque não nos disse antes?

- Porquê? - Barrett ponderou cuidadosamente a resposta. - Pensei que fosse uma coisa pessoal, sem relação com o julgamento, e que revelar a você ou a Leo o que tinha acontecido só serviria para desabonar ainda mais o rapaz. Mas deixando esse raciocínio de lado, suponhamos que eu tivesse contado e que você então achasse que devíamos fazer uso do incidente. Pareceu-me que qualquer revelação dessa espécie só nos traria inconvenientes. Afinal de contas, aquela segunda tentativa de suicídio, que eu testemunhara por acaso, havia sido feita depois que Jerry lera o livro de Jadway. Duncan poderia afirmar que o livro arrastara Jerry a isso, e desconfio que o júri lhe daria crédito.

Zelkin aceitou as conclusões do sócio.

- Quanto à segunda tentativa do rapaz, a explicação é justificável - bateu no sobrescrito que Barrett segurava na mão. - Mas quanto à primeira, aquilo foi antes de ele ler o livro. Por isso é que é uma bomba. Vai solapar o depoimento da testemunha e abafar o argumento da acusação. Você não concorda?

- Não tenho assim tanta certeza. - Barrett mordeu o lábio e tentou formular os seus pensamentos. - Sim, suponhamos que eu afastasse, finalmente, o rapaz do livro. Mas a um preço tremendo, Abe. Poderíamos estar a destruir o garoto.

- Olhe, Mike. Eu tenho tanta pena desse rapaz como você, e possuo a mesma susceptibilidade em matéria de adolescentes. Mas nós estamos em plena guerra, Mike. Alguém tem de sair ferido. Em sentido figurado, as nossas testemunhas talvez percam membros, e você e eu ainda acabemos perdendo a própria vida. Precisamos eliminar alguns elementos de Duncan antes de ficarmos massacrados sem remédio. O depoimento de Jerry Griffith na segunda-feira é capaz de demolir o nosso caso e pôr o último prego no caixão. Você sabe o que há dentro desse caixão, Mike? Não é só você e eu. Não é só Fremont e Sanford. É a liberdade, Mike... e palavra que não estou a ser pretensioso... a liberdade também está dentro desse caixão. Não podemos deixar que o garoto ponha o último prego na tampa. Temos de. fazer o caixão dele primeiro. Somos advogados, Mike. Assumimos um compromisso com o nosso constituinte. E com a verdade.

Barrett suspirou.

- Acho que você tem razão.

- Eu sei que tenho - insistiu Zelkin. - Se estivéssemos bem armados, se dispuséssemos de um exército de testemunhas de peso, se Jadway e Cassie McGraw fossem vivos e estivessem aqui para nos ajudar, se a filha de ambos pudesse pular o muro do convento para nos ajudar, se Leroux não nos tivesse traído, Mrs. Vogler faltado à promessa e Sean O’Flanagan aderisse, e todos eles estivessem aqui para nos ajudar, aí então, Mike, eu diria que não se devia de jeito nenhum arrasar com o rapaz durante a inquirição... ele é um pobre menino rico que precisa de atenção e afecto... eu diria, vamos com calma, nada de se intrometer na vida alheia. Mas o negócio não é assim. Quem está bem armado é Duncan e os indefesos somos nós."Portanto, já que descobrimos alguma coisa, eu digo: tratemos de usá-la, vamos atirar para quebrar.

Barrett deu a Zelkin um sorriso contrafeito de apoio.

- Está bem, sócio. Amanhã eu examino este veneno. Segunda, vou aplicá-lo. E atiraremos para quebrar. Aí vêm a patroa e o herdeiro. Talvez nos possam explicar alguma coisa sobre a vida... e a morte... de uma estrela.

Mais tarde, deixando o Monte Wilson, no percurso de regresso a West Los Angeles, o pensamento de Barrett voltava, sem cessar, a Maggie Russell.

Mas só bem mais tarde, muito depois da meia-noite,. enquanto lia sonolento na cama, foi que ouviu realmente a voz dela.

O toque do telefone, àquela hora, sobressaltou-o.

- Mike, eu acordei-o? - a voz de Maggie era sussurrada.

- Não.

- Tentei ligar-lhe ontem à noite. Ninguém atendeu.

- Estive fora da cidade. Tinha duas pistas fabulosas - fez uma pausa. - Porque é que está a telefonar? Aconteceu alguma coisa?

- Não, nada de maior. Eu só queria... oh, isso pode esperar, em primeiro lugar, estou morrendo para saber porque é que viajou assim tão de repente. Descobriu alguma novidade?

- Embarquei com essa esperança. Saí que nem Napo-leão à conquista da Rússia. E voltei do mesmo jeito que ele. Derrotado, arrasado, de mãos vazias. Maggie, eu andei por tudo quanto foi lugar. E você não é capaz de acreditar aonde fui parar. Imagine só, a um convento!

- A um convento?

- Qualquer dia destes conto-lhe tudo. Agora diga-me...

- Mike, não seja chato. Conte de uma vez. Não suporto histórias inacabadas...

- Bem, foi você quem pediu.

Resumiu-lhe como o Dr. Eberhart o levara a O’Flanagan, que por sua vez o levara ao Departamento de Colecções Especiais do Colégio Parktown, onde uma pista o levara a Judith, a filha de Cassie McGraw com Jadway. E Judith, concluiu, agora fazia parte de uma ordem de freiras enclausuradas, fora do seu alcance.

- Uma freira, Mike? Quer dizer que ela é mesmo freira? - havia assombro na voz de Maggie.

- Sem a menor sombra de dúvida. Tudo para a maior glória de Deus. O salário pode ser íntimo, mas as vantagens extras são enormes. E você, como vai? Por falar nisso, já podemos voltar de novo a você? Porque é que queria falar comigo ontem? E porque está a cochichar deste modo?

- Não quero que ninguém me ouça. Mike, de momento não posso dizer nada, mas preciso encontrar-me com você. Foi por isso que liguei para aí.

- Quando quiser.

- Não posso sair antes de amanhã à noite. Faz-lhe jeito?

- Lógico. À hora do jantar, então.

- Óptimo. Façamos o seguinte, Mike. As oito e meia, diante do Village Theatre em Westwood, está bem?

- Eu apanho-a lá. Oito e meia em ponto. Depois a gente vai comer alguma coisa.

Ela baixou a voz.

- Em algum lugar retirado. Talvez perto da praia.

- Na praia, seja - morria de curiosidade. - Maggie, tem a certeza de que não quer dizer nada agora?

- Deixe para amanhã, Mike. Amanhã à noite.

- Ficarei aguardando.

Mas depois, ao desligar o telefone, percebeu que de modo algum ficaria aguardando; não desta vez, não, depois da conversa que tivera com Zelkin. Lembrou-se do que precisava fazer segunda-feira, e então, mais do que nunca, sentiu-se como Judas Iscariote antes da última ceia. Esta seria a sua última ceia com Maggie, antes de matar o que ela amava. Depois disso, não haveria mais Maggie.

E aí então, para sua surpresa, percebeu que também estaria matando o que ele amava. Agora sabia. Estava apaixonado. E logo por quem? Pela sua própria vítima.

A vida era uma merda.

 

Sábado à noite.

Chez Jay: o restaurante retirado, perto da praia. Ficava na Ocean Avenue, em Santa Mónica. Se alguém passasse sem prestar atenção, nem o veria. Embora talvez não pudesse deixar de ouvir.

Chez Jay era um lugar assim: minúsculo como uma casa de boneca; escuro; apinhado de gente; com música estridente, barulhenta; as pessoas aglomerando-se em fila dupla no balcão do bar; mesas e reservados e velas de cera; serragem; amendoim que era preciso descascar, o soalho semeado de cascas; comida maravilhosa; um punhado de celebridades; garotas disponíveis à cata de programa; intimidade e relativa tranquilidade somente quando se conseguia o grande reservado do fundo.

Mike Barrett e Maggie Russell estavam no grande reservado do fundo.

Ao chegarem ao restaurante e serem conduzidos à mesa, Barrett disse:

- Você queria algo que não fosse muito conhecido. Duvido que alguém do círculo de Griffith ou da turma de Yerkes a encontre aqui.

- Não era por isso que eu queria um lugar retirado - respondeu Maggie.

E depois que se sentaram e pediram bebidas, explicou:

- Eu queria apenas um lugar onde pudesse ficar a sós com você.

Estava linda e ele sentiu vontade de pousar os lábios nas pálpebras daqueles olhos cinza-esverdeados, na boca vermelha, na profunda reentrância dos seios, e etc.

- Que bom - comentou.

- Aliás, o Tio Frank sabe que ando a encontrar-me com você. Depois que aquele detestável Irwin Blair nos viu no La Scaia, pelo menos foi logo contar a Luther Yerkes que passou adiante ao Tio Frank. No outro dia de manhã, Tio Frank tocou no assunto como quem não quer a coisa. Estava curioso por saber como nos conhecíamos. Lógico que eu não podia contar-lhe o que Jerry tentara fazer, como você o salvou, e tudo aquilo. Disse simplesmente que Faye Osborn me tinha apresentado numa conferência, o que era a pura verdade. A única preocupação dele é que você pudesse estar a utilizar-me. Garanti-lhe que não. Disse que você andava pelo beiço por mim porque eu era muito sexy.

Sorriu com timidez.

- Estou a brincar.

- Pois eu não - retorquiu Barrett. - De facto ando pelo beiço por você. E você é sexy. Além de uma porção de outras coisas mais.

- Mike, não pense que eu queria um elogio. Embora um dia destes me agradasse saber quais são essas outras coisas mais.

Lembrando-se do que se preparava para segunda-feira, ele concordou sem entusiasmo.

- Está bem. Um dia destes, muito em breve.

- Mas voltando ao titio. Como ia dizendo, ele mostrou-se todo camarada, dizendo que não desejava intrometer-se na minha vida particular, que ninguém tinha nada que ver com aquilo, desde que eu fosse discreta. Tudo tão diferente dele, tão óbvio. Podia imaginá-lo com a maior facilidade a combinar pormenores com Duncan e Yerkes, procurando os três a melhor maneira de se aproveitar essa história entre Maggie e Mike. Quem sabe se não seria bom proibir esses encontros? E aí então, o cérebro de computador de Underwood, comparando-nos a outros pares históricos... por exemplo, vejam o que aconteceu quando os Montecchios e os Capuletos interferiram com Romeu e Julieta, ou a luta de clãs entre os Cohens e os Kellys... e finalmente a decisão: porque não usar Maggie, fazendo-a aproveitar-se de Mike Barrett? No mínimo foi isso, porque durante os últimos dias, Tio Frank perguntou-me diversas vezes se ando a encontrar-me com você. Uma ocasião quis saber sobre o que conversávamos e qual era a opinião que você tinha sobre a marcha do processo. Seja como for, Mike, fique prevenido. Eu posso estar a usá-lo...

- Eu quero que você me use.

- ...em nome das forças do mal. E eles todos são malignos, sem excepção. Sobretudo Tio Frank. Agora estou convencida - parou abruptamente. - Por enquanto, ainda não quero entrar nesse assunto. Estraga a bebida.

Ergueu o copo de Gibson e ele o seu Scotch. Brindaram um ao outro e beberam.

Nesse meio tempo, o proprietário do restaurante, amigo de Barrett, resolveu fazer uma brincadeira com ele, pondo um disco de Tom Lehrer na grafonola. Uma das canções do satirista, cuja letra se destacou sobre a balbúrdia da sala, era “Putaria":

Eu não vibro

Com qualquer livro

Pra mim, livro

Tem que ter putaria.

Putaria sem puritanos,

Pudores no ânus.

Quem é que joga sinuca,

Perde tempo com arapuca,

Até ficar cabeça maluca?

O Marquês de Sade

É quem contava a verdade.

O diabo é que agora

Falam em criar uma garra

Para acabar com a farra.

Minorias, uni-vos!

Censura é sacanagem,

É pura veadagem!

Se nos chamam animais,

Levaremos o caso aos tribunais!

O apaixonado é putaria,

Putaria sem fossa

Putaria com bossa

Putaria da grossa!

 

Maggie e Barrett riram e continuaram a beber.

Isto fora há mais de duas horas, e agora, depois de três bebidas, uma salada, uma garrafa de vinho, um prato de Strogonoff, uma fatia de queijada e autobiografias recíprocas, os dois estavam mais íntimos do que nunca. Deixaram-se ficar lado a lado, à luz trémula das velas, as coxas unidas, a mão dela acariciando a dele, calados e pensativos.

De repente Maggie suspirou, afastou a mão e desencostou o corpo. Mike olhou para ela, que agora mantinha uma postura correcta e parecia resoluta e inquieta.

- Mike, antes que eu fique completamente sóbria, há uma coisa... como eu lhe disse ao telefone ontem à noite, há uma coisa que quero resolver com você.

- Sou todo ouvidos.

- Há pouco falei em forças do mal e disse que o meu tio era a mais maligna de todas. E é. É um monstro. Qualquer- resquício de boa vontade que eu pudesse ter por ele agora evaporou-se por completo. Você não faz ideia do conflito que há naquela casa.

- Por causa de Jerry?

- Exactamente. Por causa de Jerry. Por causa do depoimento que ele vai prestar na segunda-feira.

- O rapaz continua a resistir à ideia?

- E como! E o Tio Frank está mais inflexível do que nunca. Jerry terá de se apresentar no tribunal e condenar o livro de Jadway pelo que lhe causou. Tio Frank não pára de gritar que só pensa no futuro do filho. Pois sim. Ele só pensa em si mesmo e no que os outros vão dizer. Se se lembrasse um pouco de Jerry, não ligaria a mínima importância à opinião alheia. Não permitiria que o filho passasse por um vexame desses. Mandou até chamar Yerkes para enganar e persuadir Jerry. E Elmo Duncan também, para tranquilizar o rapaz e demonstrar como tudo vai ser fácil. Ontem... foi terrível... houve uma cena medonha entre o Tio Frank e a Tia Ethel, Foi uma das raras vezes em que a vi emitir uma opinião própria. Jerry também é meu filho, disse ela, eu dei-o à luz, criei-o, e tenho todo o direito de falar. E afirmou que não ficaria de braços cruzados, assistindo ao marido e ao resto daqueles homens a forçarem o filho a contrariar a própria natureza. Ela achava que a decisão cabia exclusivamente a Jerry. Ora, Tio Frank só faltou subir pelas paredes. Disse que já era tempo de Jerry começar a fazer uma porção de coisas contrárias à natureza dele, uma vez que comer... o termo é dele... moças contra a vontade delas fazia parte da verdadeira natureza de Jerry. E há mais, gritou. Que tolice era aquela de ter criado Jerry, quando não passava de uma pobre coitada que vivia preocupada consigo mesma e com as suas doenças, o que, em grande parte, explicava o que o rapaz tinha de errado, não lhe dando direitos iguais ao filho, porque sempre fora egocêntrica e tolerante de mais, deixando-o fazer tudo o que queria, e que já era hora de alguém interferir e começar a tomar decisões pelo rapaz, pondo-o de novo nos eixos. Eu pensei que Tia Ethel fosse desmaiar ali mesmo na cadeira de rodas, e quando ela sentiu falta de ar, corri a acudir-lhe. Ela ainda continua de cama. Que coisa horrível, não é?

- Se é.

- A vida de uma família americana de classe alta que não foge muito à regra. Não que eu me esteja eximindo totalmente da culpa. A última vez que estive com você, ia tentar evitar isso, procurando intervir junto do Tio Frank ou do Dr. Trimble, o psicanalista. Só tive coragem de falar com o Dr. Trimble. Contei-lhe exactamente o que Jerry me repetia todos os dias. Que se ele fosse forçado a depor em público, cometeria suicídio,., se não antes, então depois de comparecer no banco das testemunhas. Implorei ao Dr. Trimble que convencesse o Tio Frank. Mas o Dr. Trimble negou-se, dizendo que não havia necessidade de aborrecer Frank Griffith com isso. E que Jerry, como a maioria dos jovens, é mais maleável do que a gente pensa. e que iria resistir muito bem ao interrogatório no tribunal. Chegou mesmo a afirmar que talvez fosse uma experiência saudável para ele... uma espécie de expiação e purificação públicas. Quanto a suicídio, não, aquilo era pura conversa fiada. A maioria das pessoas que falam em se suicidar nem chega a tentar, e Jerry estava apenas a usar isso como forma de ameaça para fazer o que bem entende e castigar os que o rodeiam. Fiquei indignada. Deu-me vontade de pegar naquele médico burro, dar-lhe uma boa sacudidela e dizer-lhe o que Jerry nunca lhe contou a ele ou a nenhuma outra pessoa além de mim... que Jerry tinha tentado suicidar-se há poucos dias.., que não estava a brincar e tentaria de novo, e da próxima vez conseguiria. Mas não pude... como é que eu ia revelar o nosso segredo e trair Jerry? Depois disto, vi que era inútil falar com Tio Frank. Descontando aquelas intimidades desajeitadas que procurou ter ultimamente comigo para descobrir o que sei a seu respeito, ele nem se lembra de que eu existo. Tenho tanta significação, identidade ou influência para ele como uma estátua qualquer. De modo que a única pessoa com quem posso falar sobre isso, a única que eu sabia que havia de compreender, é você, Mike. Você acredita-me, não é, Mike, quando digo que Jerry se vai suicidar? Afinal de contas, você bem sabe que ele já tentou uma vez.

Ela esperou, observando-o, com o olhar firme nos olhos dele.

- Uma vez não, Maggie - replicou. - Duas.

Os olhos dela arregalaram-se e cobriu a boca com a mão. Murmurou alguma coisa que ele não pôde entender.

Depois, baixou a mão e perguntou:

- Como foi que você soube?

- O gabinete da Promotoria e a defesa são ambos encarregados de saber, de procurar continuamente descobrir o que devem saber. O meu sócio contratou uma agência de detectives particulares... nós não contamos com os recursos do Departamento da Polícia, que fica sob as ordens de Duncan, portanto precisamos de recorrer a investigadores particulares. Eles pesquisaram a ausência de Jerry na faculdade, os movimentos dele naquela época, e daí por diante. E souberam que ele tinha tentado matar-se meses atrás... muito antes de haver lido o livro... e que você o levou a São Francisco, logo em seguida, para consultar um psicanalista.

Ela parecia torturada e ele sentiu vontade de a tomar nos braços para lhe aliviar a dor e prometer-lhe que nada daquilo transpiraria em público. Mas não podia fazè-la porque seria mentira. De forma que agora estava tudo às claras, ali, vivo, entre ambos.

Ela começou a falar.

- Que mais é que eles sabem? - perguntou.

- Mais nada.

- E você vai mencionar isso no tribunal?

- Que remédio!

- Mike, não. Por favor.

- Maggie, não me resta outra alternativa. Só há uma coisa que eu preciso de saber. Compreendo a situação de Jerry, que ele está à beira de ficar desequilibrado. Mesmo assim, que medo é esse de aparecer como testemunha? Entendo perfeitamente que para ele seja uma provação horrível, mas toda a gente já está familiarizada com o crime e a doença dele. Portanto, à saúde de que é que uma simples aparição no tribunal representa uma questão de vida ou morte para ele? Este é que é o X do problema para mim.

Ela franziu a testa e manteve-se algum tempo em silêncio, como se estivesse a deliberar sobre o que iria responder. Por fim, levantou os olhos para Barrett.

- Talvez tudo esteja relacionado com o motivo que me fez falar-lhe hoje à noite, Mike. Porque sei que você é humano, compreende os outros, e tem um profundo senso de dignidade. Vou dizer-lhe o seguinte. Jerry não está realmente com medo de comparecer no tribunal, de se sentar em público no banco das testemunhas e ser interrogado por Elmo Duncan. Ele sabe que é testemunha de Duncan e que Duncan será amável com ele, não lhe fazendo nenhum mal de propósito. É de você que ele tem medo, Mike. É com a sua inquirição que ele se apavora. Ele sente que você precisa de desmoralizá-lo e até destruí-lo, se quiser ter uma possibilidade de ganhar a questão. Esta é que é a verdade. Ele tem medo do que a defesa possa fazer com ele.

- Você ainda não me disse porquê. A não ser obrigá-lo a confessar aquela primeira tentativa de suicídio, que outra informação posso arrancar dele que já não seja de domínio público? E quanto a obrigá-lo a confessar a primeira tentativa de suicídio, o que é que isso tem de horrendo depois de todo o resto... depois do estupro e das suas consequências?... Pode até granjear-lhe simpatia. Porque, exactamente, esse medo louco de ir ao tribunal e ser inquirido por mim?

Ela ficou hesitante.

- Eu... eu não sei explicar, Mike. Tudo faz parte do mesmo quadro neurótico. Quando você foi dominado, esmagado, a vida inteira, por um pai tirânico, você nem sabe bem o que você é, que valor você tem, até mesmo se ainda está inteiro, como pessoa humana. Sente-se sempre deslocado. Você chega a um ponto que não dá mais. Aí então, ser despido e fustigado em público por um inquiridor, ter as suas piores fraquezas expostas sem a mínima protecção, ser humilhado sem dó nem piedade, eu acho que já é exagero. Não há quem resista - fez uma pausa. :- As perguntas que você lhe vai fazer... humilhá-lo-iam, não?

- Maggie, não há inquirição que seja fácil para a testemunha. Apesar disso, muita gente até bem frágil consegue suportá-la e sobrevive intacta. Para alguém como Jerry, é difícil prever. Só posso prometer que... conhecendo-o, por seu intermédio... não serei maldoso nem cruel. Nada de Grande Inquisidor, nem Torquemada. Mas preciso interrogá-lo, e ele terá de responder às minhas perguntas, uma vez que estará sob juramento.

Ela ficou calada de novo. Qualquer coisa se formava por trás dos seus olhos.

- Mike, você precisa mesmo de interrogá-lo? Precisa inquiri-lo?

- Se Duncan não o levasse ao tribunal, eu não precisaria. Mas ele vai levá-lo. Duncan quer interrogá-lo. De modo que não me resta outra alternativa.

- Mas você não está obrigado, está? Você pode dispensar a sua inquirição, não pode?

- Evidentemente, a defesa sempre pode desistir, renunciar à inquirição, mas...

Ela agarrou-se ao braço de Barrett com ambas as mãos.

- Então renuncie, Mike. Era isso o que eu queria... pedir-lhe hoje. Não submeta Jerry ao seu interrogatório. Eu não podia impedi-lo de ser forçado a comparecer no tribunal. Mas ele ainda pode ser salvo, se o lado que compete a você não o perseguir. Não estou a pedir que faça isso por mim, Mike. Não tenho o direito de pedir uma coisa dessas. Mas é pelo rapaz. Pense nele. Por favor, não o interrogue.

Largou-lhe o braço e apertou as mãos com força, esperando.

Era dura, penosa, a atitude que tinha de tomar. Mas Barrett sacudiu devagar a cabeça.

- Não, Maggie. Não posso fazer isso. Não posso trair as pessoas que me contrataram e dependem de mim. Não posso trair Jadway, o livro dele e as liberdades em que eu acredito. Ouça, meu bem. Procure ser razoável comigo. Até aqui o Promotor Público venceu em toda a linha. Conseguiu argumentos poderosos contra Jadway e o livro. Vimos frustrados todos os nossos esforços para refutar ou repelir a acção contra Jadway. Agora, ele pretende -provar a influência perniciosa do livro através de Jerry Griffith. Esta é a primeira oportunidade que temos para impedi-lo. Se não nos defendermos desta vez, então vamos ao fundo, e os censores ficarão senhores da situação. Se Duncan interrogar Jerry, não tenho outro remédio senão fazer o mesmo. É a nossa última, a nossa derradeira esperança. Se as coisas tivessem saído diferentes antes, ou estivessem um pouco diferentes agora, eu certamente levaria em consideração o que você pediu... renunciar à inquirição... porque então seria menos crucial.

Ela aproximara-se mais dele.

- O que... o que é que você quer dizer, se as coisas tivessem saído diferentes ou estivessem diferentes agora? Que coisas?

Lembrou-se do argumento que Zelkin usara com ele na véspera e aplicou-o com Maggie.

- Bem, se contássemos com Leroux do nosso lado, e com a tal Vogler, por pouco que fosse, eu certamente poderia pensar em desistir da minha inquirição de Jerry, porque, como já disse, teria menos importância. Ou mesmo agora, se eu tivesse uma testemunha que fosse realmente estrelar, capaz de refutar o que Leroux depôs e criar uma situação favorável a Jadway e ao livro, talvez não precisasse de me preocupar com Jerry. Mas o caso é que não disponho dessa testemunha. Não tenho ninguém remotamente parecido com isso, e portanto...

- Mike.

Olhou vivamente para ela, impressionado com a firmeza da sua voz.

- Essa testemunha de que você precisa... Quem poderia ser... que tivesse tanta importância assim para você?

- Quem? Olhe, eu diria que resta apenas uma capaz de significar alguma coisa. E ela significaria tudo. Estou-me a referir a Cassie McGraw. Ora, se eu contasse com ela...

- Pode contar, Mike.

Foi tão repentino, que ele quase não compreendeu e muito menos reagiu. Ficou a olhar fixamente, apatetado, para Maggie Russell,

Ela estava calma e senhora de si, e quando tornou a falar fê-lo com perfeita segurança.

- Vou propor-lhe um negócio, Mike. Você promete que não interroga Jerry Griffith e eu prometo-lhe trazer Cassie McGraw... a própria Cassie McGraw, em pessoa.

 

COLOQUE, por favor, a mão esquerda sobre a Bíblia e levante a direita. Jura por Deus que o depoimento que irá prestar na causa ora em julgamento perante este tribunal corresponderá à verdade, somente à verdade e nada mais que à verdade?

- Juro.

- Seu nome, por obséquio.

- Jerry... Jerry Griffith.

- Soletre, por favor.

- Grif... Griffith... hã... G... hã... G-r-i-f-f-i-t-h.

- Pode sentar-se no banco das testemunhas, Mr. Griffith.

Do seu canto, à mesa da defesa, Mike Barrett viu o rapaz magro dirigir-se para o banco indicado e, nervoso, ocupar o assento. O cabelo castanho-claro estava recém-aparado, os olhos (um tique persistente na vista esquerda) dardejavam de um lado a outro da sala, evitando o microfone prateado à sua frente; o rosto era pálido, os ombros arqueados - como uma tartaruga assustada, prestes a recolher a cabeça dentro da carapaça protectora. Humedecia continuamente os lábios ressequidos com a ponta da língua, aguardando que o seu Caronte desse a partida para a jornada através do seu Rio Estige particular.

Depois, o olhar de Barrett desviou-se da estrela da acusação para observar o fundo da sala, transbordante de gente. Sabia que Maggie Russell estava presente nalguma parte daquele mar de fisionomias e que a atenção dela não se concentrava apenas em Jerry mas no próprio Barrett. Percebeu também a presença de Philip Sanford entre os espectadores logo atrás dele, de um Abe Zelkin sério e resoluto, e de um Ben Fremont preocupado e ansioso, que ocupavam assentos a seu lado.

Lembrou-se da véspera, dia não de repouso mas de agitação ininterrupta.

Passara em revista tudo o que Maggie lhe contara. Cada pormenor. Passara em revista e ponderara um sem-número de vezes.

Por incrível que pareça, ou talvez nem tanto assim, a lendária Cassie McGraw, amante de J J Jadway - Cassie McGraw, modelo da heroína de Os Sete Minutos - estava viva, e bem viva, no Meio-Este. Soubera do julgamento pelos jornais. Escrevera a Frank Griffith, em defesa de Jadway. Como secretária social extranumerária, Maggie sempre recebia a correspondência da família em primeiro lugar, e interceptara o comunicado oficial de Cassie McGraw, escondendo-o de Griffith e guardando-o durante duas semanas. Como era favorável à defesa, Maggie reservara-o para poder negociá-lo mais tarde. Não contra Barrett, inicialmente, mas contra Frank Griffith. Depois, temendo que Frank Griffith tivesse ficado muito fanático e obcecado de mais para tratar desse tipo de negócios - excessivamente dogmático para concordar em manter Jerry longe do banco das testemunhas em troca da destruição do comunicado oficial de Cassie - e temendo, também, que Griffith viesse a tomar conhecimento da carta e se apoderasse dela, resolveu oferecê-la a Barrett como último recurso, num derradeiro esforço de salvar Jerry.

Barrett, no sábado à noite, não lhe dera nenhuma resposta definitiva.

Passara o domingo inteiro, desde o despertar até à hora de dormir, pesando os prós e os contras da troca proposta.

Pró: uma Cassie McGraw viva como testemunha de defesa seria uma sensação. Pró: o comunicado de Cassie. defendendo os motivos e a integridade de Jadway ao escrever Os Sete Minutos, anularia os depoimentos de Leroux, do padre Sarfatti e do resto, pois Cassie fora o outro-eu de Jadway, conhecera as suas ideias e palavras em primeira mão, e só ela podia ser a voz final da verdade. Pró: Cassie podia exterminar as calúnias acumuladas contra o sistema de vida de Jadway e ao mesmo tempo atenuar a impressão causada pelo seu suicídio. Pró: Cassie McGraw, hoje idosa, pela sua própria aparição em carne e osso, o protótipo confesso da heroína do livro, constituiria um instrumento de prova para contestar a acusação de que a sua actuação no romance era pornográfica e obscena. [Afinal de contas, quem é que pode imaginar a Mãe de Whistler fodendo?]

Mas havia os contras, poucos talvez bem fortes, mas de certo modo mais contundentes.

Contra: já que Cassie McGraw defendera o livro em carta remetida a Frank Griffith, porque não se apresentara em ocasião subsequente para se oferecer como testemunha de defesa? Contra: talvez porque não encarava de maneira totalmente favorável o livro ou a vida de Jadway? Contra: e o que aconteceria se fosse forçada, sob juramento, não apenas a confirmar, mas a fundamentar os depoimentos nocivos já prestados pelo editor francês e pelo padre do Vaticano? Contra: e se a aparência e o modo de falar dessa mulher idosa, em vez de desmentir o retrato de uma criatura volúvel e dissoluta, feito por Duncan, só corroborasse a versão descrita pela acusação? Contra: em suma, se ela se tivesse transformado numa dessas velhas marafonas que vivem piscando o olho, bêbedas, desbocadas, desgrenhadas e tagarelas, que pintam os cabelos e são encontradas não só em ruas escusas como também em selectas festas de beneficência? Contra: e se toda a transacção não passasse de um logro, o maior de todos os bluffs, e estivesse a ser perpetrado por Maggie por instigação da família Griffith? Maggie fizera troça da desajeitada tentativa de Griffith para obrigá-la a usar Barrett, mas se tudo aquilo fosse de facto uma dissimulação? E porque ela não lhe mostrara ao menos o comunicado de Cassie, revelando o seu paradeiro exacto? Seria, como ela havia dito, porque não conseguira tirar a prova no domingo, dia em que Frank Griffith estava em casa? Ou era porque andava tão desconfiada - bem, tão receosa - de que Barrett a estivesse a usar como ele agora andava a respeito dela (significando que ela sabia que depois que ele descobrisse o paradeiro de Cassie, não precisaria manter a sua palavra no tratado)? Ou será que a prova de Cassie McGraw estar viva simplesmente não existia?

Os contras, os prós. Os prós e os contras.

A decisão teve de ser tomada segundo os termos de Maggíe Russell. Primeiro Barrett precisava de cumprir a sua parte no tratado. Nada de inquirição de Jerry Griffith. Depois, num prazo de poucas horas, Maggie cumpriria a dela: revelaria, com efeito, o paradeiro de Cassie McGraw.

Cumpridas ambas as partes, a defesa teria mais do que esperança. Teria uma vitória potencial. Porém, se cumprisse a sua, e Maggie não, Barrett teria traído a confiança depositada pelos seus constituintes. E não só a defesa, mas ele, pessoalmente, sofreria a mais amarga das derrotas.

Na véspera não fora capaz de chegar a uma decisão.

E hoje de manhã tão-pouco.

Em determinado momento, uma hora antes de o tribunal se reunir, antes que a acusação colocasse o Dr. Roger Trimble no banco das testemunhas para depor sobre o grave trauma por que Jerry passara com a leitura do livro de Jadway, Barrett sentira-se tentado a revelar a proposta de Maggie a Abe Zelkin. Mas não encontrou coragem, pois sabia instintivamente qual seria a reacção do sócio. Mais valia um pássaro na mão: Zelkin não conhecia Maggie e tudo se resumia na questão de ela ser honesta e digna de confiança. Zelkin não a conhecia e desconfiaria categoricamente de qualquer aliado proveniente da casa de Griffith. Portanto, competia a Barrett tomar a decisão sozinho. Ele conhecia Maggie. A decisão precisava de ser baseada no seu julgamento pessoal de Maggie, o que a tornava duplamente difícil. Os seus julgamentos de mulheres anteriores haviam sido sistematicamente péssimos, de modo que o problema, caro advogado de defesa, reduzia-se ao seguinte: era Maggie Russell a personificação de todas as mulheres que ele conhecera no passado, ou era a sua mulher, a primeira mulher verdadeira que jamais conhecera?

Não podia responder. Não podia decidir.

E então percebeu que teria de decidir e responder muito em breve. Pois minutos antes tinha feito um último gesto para impedir o comparecimento de Jerry Griffith. Protestara contra a convocação da testemunha sob a alegação de irrelevância. O júri retirara-se do recinto e ele debatera a questão com Duncan perante o juiz. O juiz Upshaw baseara a sua decisão no Cânone Judicial 36, segundo o qual a função do juiz era assegurar que os trâmites forenses fossem conduzidos de molde a reflectirem a importância e seriedade do inquérito para apurar a verdade. Uma vez que a acusação sustentava que um livreiro tinha vendido um livro nocivo ao público, e um membro do público tinha confessado que fora levado ao crime pelo mesmo livro, então não restava a mínima dúvida de que se devia ouvir a testemunha nos interesses da verdade.

O protesto da defesa foi indeferido. A testemunha prestaria juramento e receberia permissão para falar.

Assim, a última tangente que teria salvo Barrett de tomar uma decisão a respeito da integridade de Maggie havia sido eliminada. Ele continuava colocado diante de sua terrível alternativa. Ainda teria de responder àquelas perguntas incómodas e tomar uma decisão, tomar depressa de mais. Postado exactamente à sua frente, com os modos mais cordiais e simpáticos, trajando o fato mais discreto e conveniente, achava-se o louro Elmo Duncan, Promotor Público de Los Angeles e futuro Senador dos Estados Unidos.

Duncan encarava o banco das testemunhas, sorrindo amavelmente para Jerry Griffith e desobrigando-se da maneira mais suave, delicada e cativante do interrogatório directo da sua testemunha estrelar.

- Jerry Griffith, posso saber qual é a sua ocupação actual ou mais recente?

- Estudante.

- Quer fazer o favor de falar mais alto? Disse que...

- Sou estudante.

- Frequentando a faculdade. Pode dizer onde?

- A Universidade da Califórnia, em Los Angeles.

- Em Westwood? __É

- Há quanto tempo está na universidade?

- Quase três anos.

- Antes disso, cursou alguma escola secundária local?

- O Colégio Palisades. Menos o primeiro semestre. Eu estava em Webb. Mas fui transferido.

- Foi transferido? Porquê?

- Meu pai quis que eu frequentasse uma escola mista.

- E o Palisades é misto? A UCLA é mista?

- Sim, senhor.

- Você costumava sair com garotas enquanto esteve no colégio e na faculdade?

- Sim, senhor.

- Antes deste ano, digamos durante o seu último ano no colégio e os seus primeiros dois anos na UCLA, com que frequência saía com garotas?

- É... é difícil lembrar-me. Não me lembro com que frequência. Eu...

- Pode dar uma ideia aproximada?

Da mesa de defesa, Barrett levantou-se um pouco.

- Protesto, Meritíssimo. A testemunha declarou que não se lembra. Protesto sob a alegação de que a pergunta foi feita e respondida. Além disso é ociosa.

O juiz Upshaw acenou com a cabeça,

- Protesto aceite.

Tornando a sentar-se, Barrett olhou de relance para Jerry Griffith e pela primeira vez notou que o rapaz o estava a fitar. Era um olhar amedrontado, e Jerry parecia ter definhado no banco das testemunhas. Barrett já tinha visto a mesma expressão nos olhos de um cachorro ameaçado de ser espancado pelo dono; lamentou que tivesse sido necessário levantar um protesto. Resolveu ser mais indulgente com a inquirição do oponente, antes de tolher por completo a testemunha de medo.

Pelo jeito, Elmo Duncan também estava preocupado com a estabilidade e resistência do depoente, porque abandonou o tom calmo com que fazia as perguntas e passou rapidamente ao âmago da questão.

- Mr. Griffith, qual é o curso que o senhor está a tirar na UCLA?

- Literatura Inglesa,

- Isso exige-lhe leituras constantes... digamos pelo menos três livros por semana?

- Sim, senhor.

- O senhor também lê muitos livros por conta própria, por assim dizer, isto é, livros que não fazem parte do currículo?

- Sim, senhor.

- Quantos livros extras o senhor diria que lê, em média, por semana?

- Uns dois ou três.

- Esses livros extras são, na maior parte, de ficção?

- Sim, senhor.

- Podia citar os títulos de alguns livros que leu durante os últimos seis meses? Títulos e autores.

- Eu li... Eu li O Lobo da Estepe, de Herman Hesse. Sidarta, que também é dele. Servidão Humana. Esse é de Maugham. Suave é a Noite, de F. Scott Fitzgerald. O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Depois... é... é difícil lembrar... ah... Contraponto, de Aldous Huxley. E Passagem para a índia, de E. M. Forster. Tudo de Kafka. Camus. Eu... eu teria de pensar...

- Esses exemplos já bastam. Agora diga-me, considera pornográfico ou obsceno qualquer deles?

- Não, senhor.

- Há algum motivo para que lesse justamente esses livros?

- Para... acho que para descobrir mais a respeito de mim mesmo... como eu devia pensar e sentir a respeito das coisas.

- Quer dizer que é sensível ao que lê... isto é, reage fortemente à leitura?

- Sim, senhor

- Já leu Justine, do Marquês de Sade?

- Não, senhor.

- Já leu uma tradução da obra pornográfica oriental, o Kama-Sutra?

- Não, senhor.

Barrett remexeu-se na cadeira e depois ergueu a voz.

- Gostaria de protestar, Meritíssimo, sob a alegação de que a pergunta é irrelevante.

O juiz Upshaw aproximou-se do microfone da escrivaninha.

- Protesto recusado. Continue, Mr. Duncan. Elmo Duncan virou-se de novo para a testemunha.

- Mr. Griffith, o senhor já leu Minha Vida e meus Amores, de Frank Harris?

- Não, senhor.

- Ou O Amante de Lady Chatterley?

- Não, senhor.

- Ou Sexus, de Henry Miller?

- Não, senhor.

- Já leu Fanny Hill, em todo ou em parte?

- Não, senhor.

Duncan sorriu aprovativamente para Jerry, olhou para os jurados e depois virou-se de novo para a testemunha.

- Houve uma tentativa recente de publicar... bem, realmente foi publicado, publicado abertamente pela primeira vez... um livro do mesmo género, semelhante aos que lhe perguntei há pouco. Quero saber se já o leu. Já leu Os Sete Minutos, de J J Jadway?

- Li, sim, senhor.

- Tinha ouvido falar do livro ou conhecia-o antes da sua publicação nos Estados Unidos pela Sanford House?

- Não... bem, só de passagem... ele foi citado vagamente numa das minhas aulas de Inglês na UCLA.

- A aula entusiasmou-o a lê-lo?

- Não, senhor. Mesmo que... que tivesse... não havia exemplares em lugar nenhum. A aula foi dada há alguns meses.

- Mas se na época houvesse exemplares disponíveis, não o teria encorajado a comprar um?

Barrett pôs-se de pé.

- Protesto, Meritíssimo. O Promotor Público fez uma pergunta ociosa.

- Protesto aceite.

Duncan enfrentou mais uma vez a testemunha.

- A referência do professor a Os Sete Minutos fez com que quisesse ler o livro?

- Não, senhor.

- Poderia dizer o que, finalmente, o levou a ler Os Sete Minutos?

- Eu... eu vi qualquer coisa a esse respeito numa dessas livrarias que vendem... que vendem esses jornais e revistas semanais de protesto e vanguarda. Eu estava a folhear uma das revistas...

- Não se lembra do nome da revista?

- Não. Mas era de Nova Iorque. Havia umas cem todas diferentes, nas prateleiras e eu vi aquela, onde havia um artigo sobre a saída do livro.

- Era uma crítica, resumo ou nota sobre o livro de Jadway?

- Acho que resumo. Fazia uma espécie de sinopse de certos trechos do livro.

- E essas sinopses estimularam-no a ler o livro?

- Deixaram-me curioso.

- Porquê?

- Eu... sei lá... não por... porque... acho que porque nunca soube que as mulheres fossem tão interessadas no sexo.

- Ora, Mr. Griffith, até então por que motivo o senhor pensava que as mulheres participassem das relações sexuais?

- Eu... eu acho que pensava que elas... que elas participassem porque toda a gente fazia o mesmo... ou devia fazer o mesmo... para acompanhar a onda. Quero dizer, só para satisfazer os namorados.

- E ler a respeito do livro de Jadway mudou por completo a sua opinião a esse respeito?

- Sim. Depois pareceu-me que elas realmente gostavam de fazer aquilo.

- Compreendo. E quando afinal leu o próprio livro, teve essa mesma impressão?

- Tive.

- Embora sabendo que se tratava de ficção?

- Esqueci que era ficção. Acreditei em tudo.

- Acreditou que todas as mulheres, ou a maioria delas, estavam famintas de sexo, e de tudo quanto é perversão em matéria de sexo, tal como Cathleen, a heroína de Os Sete Minutos?

- Sim, senhor

- Continua a acreditar?

- Não, senhor.

- Crê que o livro o ludibriou?

- Protesto, Meritíssimo. Mr. Duncan está a orientar a testemunha.

- Protesto aceite.

- Muito bem, Mr. Griffith. Na sua opinião, o retrato que Jadway faz de Cathleen no romance é um quadro realista e verdadeiro de uma moça ou é incomum e inverídico?

- Incomum e inverídico.

- Portanto, depois de ler o tal artigo sobre Os Sete Minutos, leu o livro?

- Não imediatamente. Ainda não tinha saído. Fiquei a pensar sobre o que o artigo dizia, depois esqueci durante algum tempo até que vi um anúncio enorme num jornal local, dizendo que o livro estava à venda. Então comprei um exemplar e li.

- Quando foi isso? Quando o leu?

- Na noite de dezoito de Maio.

Barrett concentrara-se no depoimento, mas foi distraído por Zelkin, que lhe sacudia o braço. Já ia a virar-se para o sócio, quando percebeu que Zelkin lhe passava um bilhete. Dizia: “Sabido este nosso Elmo. Não perguntou onde nem como o garoto conseguiu o livro. Não se esqueça de perguntar na sua inquirição”. Barrett sacudiu vagamente a cabeça e prestou atenção ao banco das testemunhas.

- Leu Os Sete Minutos de fio a pavio, todas as palavras que continha?

- Sim, senhor

- Qual foi a sua reacção?

- Fiquei perturbado. (

- Perturbado em que sentido?

- Eu... eu fiquei confuso, todo confuso. Não pude dormir.

- Foi à faculdade no dia seguinte?

- Fui, mas gazeei umas aulas no fim da tarde.

- Porquê?

- Estava com a ideia naquele livro. Fui prò meu carro... eu guardava-o no carro...

- Porquê no carro?

- Não queria que meu pai soubesse que eu tinha aquilo.

- Estava com medo de que seu pai reprovasse esse tipo de leitura?

- Sim, senhor.

- Seu pai sempre reprovou livros pornográficos?

- Sim, senhor. Não os permitia em casa. Dizia que não eram saudáveis.

- Concorda com ele?

- Agora concordo, sim.

- Portanto foi para o seu carro. E que fez então?

- Tirei-o do parque de estacionamento da UCLA e saí rodando um pouco por aí, até que encontrei uma rua deserta nas colinas de Hollywood e reli trechos do livro.

- Lembra-se das passagens que releu?

- Não me lembro bem. Um pedaço do primeiro capítulo, o primeiro dos sete minutos da história. Li aquilo várias vezes.

- Que havia naquelas páginas?

- Ela está deitada, esperando por ele... e fica a pensar como ele é parecido com essas estátuas gregas; creio que é logo no começo...

- Se permite que eu lhe refresque a memória sobre esse trecho, Mr. Griffith, ela está deitada nua, pensando nas estátuas de Príapo que existiam em certas ruas da Grécia antiga... que consistiam no busto de um homem barbudo colocado sobre uma base ou bloco de pedra, de cujo centro se projectava um pénis humano em estado de erecção. E depois o espírito de Cathleen passa dessas estátuas para um vaso grego que ela encontrara uma vez num museu qualquer, onde se achava gravada uma mulher perdida a segurar um olisbos, membro artificial feito de couro duro, e Cathleen então lembra-se de como Lisístrata se queixava da falta desses objectos para que ela e suas irmãs se consolassem. E aí então Cathleen pensa na sorte que teve, e contempla o herói anónimo do livro, não o rosto dele, mas o seu... quais foram as palavras de Jadway?... “pau grosso e moreno, duro e erecto”. “O meu olisbos', pensa ela, e sente vontade de executar, ou começa a executar, um coito bucal, e depois caí de costas e abre as pernas... tendo início o primeiro dos sete minutos. Agora, Mr. Griffith, o senhor reconhece esse trecho como um dos que releu várias vezes?

- Sim, senhor

- Na ocasião, pareceu-lhe que era uma obra artística?

- Não reflecti sobre isso.

- Bem, pareceu-lhe na ocasião que o autor estava a tentar algo mais do que excitar o leitor?

- Não.

- Ficou excitado com esse trecho ou com o outro?

- Sim, senhor.

- De que modo se manifestou esse excitamento?

- Fisicamente. Quis possuir uma mulher.

- Quer dizer que quis ter relações sexuais com uma mulher?

- Sim, senhor.

- Com alguma mulher determinada ou simplesmente com qualquer?

- Qualquer.

- Que fez então?

- Senti vontade de procurar uma mulher. Fui de carro até Melrose... era de noite... dirigi-me ao bar que às vezes frequentava... o Locomotiva Clandestina... procurei umas garotas... e bebi umas duas cocas. E lá estava aquela moça, de saída para o apartamento dela... parecia-se exactamente com a Cathleen que eu imaginava...

- Refere-se à heroína de Os Sete Minutos? >'

- Sim. Ofereci-lhe uma boleia...

- Ofereceu uma boleia a Sheri Moore?

- Na ocasião eu não sabia o nome dela. Ela concordou logo. Então levei-a ao apartamento. Disse que ia acompanhá-la até à porta. E acompanhei mesmo. Quando ela abriu a porta, empurrei-a para dentro, obriguei-a a ir para o quarto e despír-se.

- Obrigou-a? De que maneira?

- Com uma faca.

- Ela despiu-se?

- Sim. Ela ficou com medo.

- O senhor também tirou a roupa?

- Tirei.

- Que aconteceu depois?

- Não me lembro. Deu-me uma espécie de loucura. Era como se não fosse eu quem estava a agir...

- Era Jadway quem estava a agir...

Barrett levantou-se indignado. :'

- Protesto, Meritíssimo! O Promotor Público...

Duncan desmanchou-se em desculpas.

- Retiro a observação, Meritíssimo, Desculpe-me.

E o descontentamento do juiz Upshaw ficou revelado pela ordem brusca que deu ao escrivão do tribunal.

- A observação do Promotor Público será eliminada - virou-se para Duncan e a sua voz parecia um açoite. - Mr. Duncan, a sua observação é imprópria para um promotor de uma corte de justiça e em nada contribui para a vitória da sua acção. Estou certo de que a lamenta, por isso limito-me a esta censura.

Engolindo em seco, Duncan balbuciou outro pedido de desculpas e, com ar de autocensura e humildade, voltou à testemunha, reiniciando o interrogatório com grave deliberação.

- O senhor disse, Mr. Griffith, que a moça, Miss Moore, se tinha despido e que o senhor fez o mesmo, ficando, a partir de então, irresponsável... numa espécie de loucura, segundo a sua própria expressão. O senhor disse que se sentiu fora de sí. Agora, Mr. Griffith, pode | dizer-nos o que fez a seguir?

- Eu submeti-a.

- Ela resistiu?

- Sim.

- E mesmo assim violou-a?

- Eu não sabia o que estava a fazer.

- Pensou alguma vez em Os Sete Minutos?

- Quando ela ficou nua, sim... depois não me lembro bem do que aconteceu... só que eu fiz... não podia deixar de fazer.

- E no decurso desse acto sexual, Miss Moore feriu-se?

- Foi mais tarde, quando eu estava a tentar vestir-me. Ela procurou agredir-me ou tirar-me a faca, não me lembro bem, e eu creio que... não sei como, ela escorregou e caiu... foi um acidente...

- O senhor sabia que Miss Moore estava desmaiada?

- Não me lembro se sabia ou não. Sabia apenas que ela tinha uma amiga que morava juntamente e que podia chegar a qualquer momento. Por isso, simplesmente me fui embora. Fiquei com uma sensação horrível. Eu... eu queria matar-me... porque aquilo não era eu... o que eu havia feito... não era culpa minha, não sabia o que estava a fazer.

- Jerry Griffith, considera Os Sete Minutos, de J J Jadway, responsável pela sua conduta desregrada?

- Con... considero.

- Já se havia comportado desse modo alguma vez?

- Nunca.

- Crê definitivamente que os trechos obscenos do livro o inflamaram a ponto de o impelirem a um acto criminoso?

- Creio, sim. Não... não encontro outra explicação.

- O senhor sabe que o Dr. Roger Trimble o precedeu no banco das testemunhas. Acompanhou o depoimento dele?

- Sim, senhor.

- O Dr. Trimble citou Ernest van den Haag como tendo declarado que a pornografia seduz uma parte da personalidade humana, “separando o sexo do seu contexto humano (o Id do Ego e do Super-Ego}, reduzindo o mundo a orifícios e órgãos, à acção e suas combinações. Concorda com essa opinião?

- Acho que sim... Concordo, sim.

- O Dr. Trimble falou sobre a relação entre a pornografia e o crime violento. Teceu considerações em torno do tenebroso “Caso das Charnecas” na Inglaterra, que envolveu a tortura e assassínio de uma menina de dez anos e de um menino de doze por obra de lan Brady e Myra Hindley, apurando-se que lan Brady tinha sido influenciado por aquelas obras do marquês de Sade que tratam de sadismo sexual O senhor acha, por experiência própria, que existe essa relação de causa e efeito entre os livros pornográficos e os actos criminosos?

- Eu... eu só sei ...só sei... o que... o que se passou comigo.

De repente, Jerry cobriu os olhos com as mãos, como se quisesse esconder lágrimas incontroláveis.

Elmo Duncan desviou o rosto daquela demonstração de emoção. Levantou a cabeça para o juiz.

- Não tenho mais perguntas a fazer. Meritíssimo.

Mike Barrett olhou fixamente para Jerry. O Promotor

Público saíra do seu ângulo de visão. Só restava o rapaz. De olhos húmidos, retribuía o olhar de Barrett, como uma das crianças torturadas do “Caso das Charnecas”, à espera da morte.

Chegara a hora.

Destruir este rapaz. Destruí-lo agora, junto com seu depoimento de que o livro de Jadway era tão letal para a psique humana como uma arma homicida.

Ou usar Cassie McGraw para destruir Leroux e tudo o mais que procurara provar que o livro de Jadway era obra deliberadamente obscena, escrita por um pornógrafo confesso.

Jerry Gríffith?

Ou Cassie McGraw?

Qual dos dois?

Ouviu, distante, a voz do juiz Upshaw.

- Pode inquirir a testemunha, Mr. Barrett.

Ouviu Abe Zelkin a seu lado, cochichando premente:

- Aproveite, Mike. Fogo nessa gente. Decisão.

Levantou-se devagar. Com dificuldade, encontrou voz.

- Meritíssimo, a defesa não tem perguntas a fazer.

Percebeu que o juiz se recusava a acreditar no que ouvira.

- Mr. Barrett, o senhor quer dizer que reserva a sua inquirição para mais tarde?

- Não, Meritíssimo, não foi isso que eu quis dizer. No que toca à defesa, a testemunha está dispensada em carácter permanente.

Ouviu a exclamação de espanto em uníssono dos espectadores atrás dele e o rebuliço que logo se formou. Ignorando Zelkin, que lhe puxava o braço, e as marteladas e tom severo do juiz, exigindo ordem no tribunal, virou-se um pouco.

Maggie, enxugando os olhos, acabara de erguer-se e dirigia-se para o corredor central. Agora o seu olhar procurava-o. Tinha o rosto radiante de alívio e gratidão. Depois fez-lhe um curto aceno de cabeça e desapareceu.

Ouviu o juiz Upshaw anunciar:

- Senhoras e senhores jurados, interrompemos agora para o almoço. Torno a advertir-lhes que durante este intervalo não devem conversar entre si, nem com ninguém sobre qualquer assunto pertinente a este caso, nem tão-pouco exteriorizar ou formar opinião sobre o mesmo até que a questão seja finalmente submetida ao júri. Interrupção até às duas horas!

Ouviu a perplexidade e a indignação de Abe Zelkin.

- Você enterrou o caso, porca miséria! Que diabo aconteceu? Você perdeu o juízo, enlouqueceu ou quê?

Tinha perdido o juízo, enlouquecido ou quê?

Não fora capaz de responder logo à múltipla pergunta do seu sócio, nem tão-pouco durante os vinte minutos seguintes. Pois, com o anúncio do intervalo para almoço, não encontraram isolamento. Abrindo caminho aos empurrões para sair da sala do tribunal, viram-se cercados por repórteres que queriam saber, por força, o motivo que levara a defesa a não inquirir Jerry Griffith. No corredor do Palácio da Justiça, no elevador, no átrio de entrada do andar térreo, o cerco dos jornalistas foi reforçado pelos comentaristas da rádio e televisão.

Sem comentários, sem comentários, sem comentários.

Até mesmo na Broadway, onde um Philip Sanford ofegante conseguira alcançá-los, não ficaram a sós; meia dúzia de membros da imprensa, no mínimo, continuaram a persegui-los.

Sem comentários, sem comentários.

Até mesmo quando os três percorreram, carrancudos, o fim da Broadway, em direcção à Primeira Rua, passando pelo Arquivo Público e depois pela Biblioteca Jurídica, rumo ao Restaurante fledwood, onde tinham encontro marcado com Leo Kimura para almoçar, dois esteios dos meios de comunicação, um, agente do serviço telegráfico, o outro, o comentarista da televisão Merle Reid, permaneceram obstinadamente no seu encalço.

Ao dobrarem a esquina da Primeira Rua, o agente do serviço telegráfico já os abandonara, mas Reid continuava grudado feito sanguessuga. Não parou de crivá-los de perguntas até à fachada de tijolos do Restaurante Redwood, refúgio de almoço para advogados e juizes que trabalham no Palácio da Justiça e na Biblioteca Jurídica Municipal, onde Merle Reid lhes impediu parcialmente a passagem, insistindo em obter alguma explicação.

Sem comentários.

- Olhe, talvez eu tenha um comentário a fazer! - desabafou Reid, encarando Barrett de modo desagradável. - Todos nós estamos com a impressão de que Luther Yerkes fez uma nova aquisição. Ele já é dono da acusação. Talvez agora tenha comprado a defesa. Ainda não tem nenhum comentário a fazer?

O primeiro impulso de Barrett foi esmurrá-lo, mas a defesa tinha problemas suficientes sem acrescentar uma denúncia por agressão. Esperou um segundo para conter a cólera. Finalmente o bom senso prevaleceu.

- Tenho, sim - respondeu. - Ponha-se a andar, seu impostor.

E com esta empurrou Reid para o lado e cruzou a entrada do restaurante, seguido de perto por Zelkin e Sanford. Lá dentro, o solícito gerente já os esperava. Conduziu-os rapidamente por trás da parte do balcão-bar até uma mesa de toalha branca na sala de refeições do fundo, onde Kimura se achava sentado numa cadeira estofada de vermelho, folheando o seu arquivo portátil. Somente depois que se instalaram nos seus lugares e a criada de olhos escuros, blusa branca e saia preta lhes entregou as ementas, indo buscar os pedidos de cerveja, foi que puderam pensar em trocar as primeiras palavras desde que tinham saído do tribunal.

Agora, tentando manter a calma em plena tempestade, Mike Barrett enchia o cachimbo enquanto observava Phil Sanford a curvar-se e a cochichar alguma coisa, ao ouvido de Kimura, sem esquecer que Abe Zelkin, ainda rubro de raiva, continuava a olhar irritado para ele.

- Que porra, Mike, você não me respondeu - começou Zelkin com aspereza. - Que diabo lhe deu lá no tribunal, deixando Duncan e aquele fedelho passarem vaselina na gente, permitindo que saíssem ilesos? Que foi que houve... você perdeu a cabeça ou quê?

Barrett acendeu o cachimbo e depois tirou-o da boca.

- Eu estava à espera de lhe contar a você e a Phil, e a você Leo, em particular. Foi por isso que pedi a Ben Fremont que fosse comer noutro lugar. Agora, vou-lhes explicar.

- A explicação terá que ser muito boa - disse Zelkin.

- Fiz uma combinação - começou Barrett, tenso. - Troquei a inquirição de Jerry Griffith pelo interrogatório de Cassie McGraw.

- Cassie McGraw? - exclamou Sanford assombrado. - Quer dizer que ela está viva?

- Exactamente. Ela está viva, é do nosso lado, e teremos oportunidade de a usar. Possuímos finalmente a nossa testemunha estrelar.

- Bravo! - exultou Sanford. - A amante de Jadway, o modelo de Cathleen, connosco, em carne e osso. Ena, isso agora lança uma luz nova...

- Deixe isso para depois, Phil - interrompeu Zelkin, rispidamente, os olhos espremidos presos em Barrett por trás dos óculos grossos. - Okay, Mike, você fez uma combinação.

Houve uma pausa.

- Com quem?

Barrett remexeu-se, incómodo. Era o momento que antecipara e temia.

- Com Maggie Russell.

- Logo vi - retorquiu Zelkin, implacável. Barrett aborreceu-se.

- Olhe, espere aí...

- Espere você - atalhou Zelkin, levantando a voz,- Se não quer inquirir no tribunal, pelo menos dê-me uma oportunidade aqui. Quer dizer então que foi a tal Russell e que é uma combinação. Bom, em primeiro lugar, este negócio de você fazer as coisas por sua conta está a começar a ficar chato. O que é isso, você pensa que está a trabalhar sozinho? Porque nesse caso, então, eu...

- Quer parar com isso, Abe? Você conhece-me de sobra. Nós somos sócios e estamos juntos nesta jogada. Só que...

- Então, porque não me consultou ou me informou sobre o que se estava a passar antes de andar a fazer combinações por aí?

- Porque examinando a coisa por escrito, baseando-me em frios factos unidimensionais, eu sabia que você não ia aceitar. Não haveria forma possível de eu lhe transmitir aquilo que os simples factos não podem transmitir... a sensação que a gente tem quando conhece alguém tão bem como eu conheço Maggie Russell... a sensação que não se baseia só em factos mas numa compreensão emotiva que reforça o instinto, a intuição. E o conhecimento que tenho de Maggie disse-me que eu devia examinar a proposta, e finalmente convenceu-me a aceitá-la. Há certas decisões que uma pessoa precisa de tomar sozinha.

Zelkin não estava disposto a aceitar.

- Você não está a defender se a si mesmo naquela sala de tribunal, Mike. Todos nós estamos nesta jogada, e não estamos a defender-nos a nós mesmos, mas a Ben Fremont e a cada vendedor de livro da América, a Phil Sanford e a cada editor do mundo, e também um pedaço da nossa Lei dos Direitos Humanos. Nenhum de nós aqui tem o direito de agir unilateralmente ou sem o suficiente preparo só por causa de uma compreensão emotiva...

Sanford pôs de lado a colher com que estava a brincar.

- Espere aí. Abe. Acho que pelo menos devemos esperar que Michael explique.

- Está bem - concordou Zelkin. - Vejamos o que você tem para dizer, Mike. Conte-nos a combinação que lhe propuseram e que você resolveu aceitar por conta própria. Pode começar.

Antes que Barrett pudesse responder, a criada reapareceu com a bandeja de copos de cerveja. Perguntou se já tinham escolhido. Nenhum deles consultara a ementa, o que passaram a fazer rapidamente. Duas sanduíches Reuben e um frito de peru. Barrett estava sem apetite, mas para provar que não ficara indisposto, pediu um bife na grelha Smokey Joe dentro de um pão de sal.

A criada retirou-se. Resolutamente, Barrett enfrentou o desafio de Zelkin.

- Muito bem. Se quiserem ouvir, contarei o que aconteceu e em que se baseou a minha decisão. Em primeiro. lugar, como sabem, tenho saído diversas vezes na companhia de Maggie. Por intermédio dela, compreendi melhor a situação de Jerry.

- Nós já conhecíamos que chegasse à situação dele - replicou Zelkin -, e pelos vistos enganei-me, pensando que éramos advogados honestos, dispostos a expor a situação dele no tribunal, e não médicos encarregados de tratá-lo particularmente.

Barrett controlou-se. Havia uma razão lógica para a cólera, a decepção e o cepticismo do sócio.

- Okay, Abe, você conhece a situação do rapaz. Suicida e absolutamente paranóica quanto a enfrentar um inquérito hostil. Mas a questão não é essa e certamente não foi a que me influenciou. É melhor, porém, que eu lhe explique qual é a relação de Maggie com o rapaz e com Frank Griffith, para que você possa entender o motivo que a levou a propor-me um ajuste que talvez salvasse o rapaz e arruinasse o eixo Duncan-Yerkes-Osborn-Griffith. Depois contarei o que se passou exactamente anteontem à noite.

Contou-lhes. Sem a menor interrupção, excepto quando a criada trouxe as sanduíches, relatou em linhas gerais o que soubera a respeito de Maggie e Jerry, de Maggie e Frank Griffith. Começou pelos primeiros encontros com ela na conferência da LFD e no café de Ell's após a tentativa de suicídio de Jerry, e terminou no último, na noite de sábado, no Chez Jay em Santa Mónica. Por fim descreveu com minúcias a proposta de Maggie e passou a contar o que ela possuía para oferecer.

- Frank Griffith tem as suas próprias secretárias para tratar da correspondência comercial na agência de publicidade- prosseguiu Barrett - mas a correspondência pessoal endereçada a Frank Griffith ou Ethel Griffith, que chega à casa deles, é aberta e seleccionada por Maggie. Ela não é apenas parenta e dama de companhia da tia, mas também uma espécie de secretária social da família. Ora, por causa de toda a publicidade que o caso está a receber, com Griffith e o filho a ganharem boa parte da atenção, tem chegado um fluxo constante de correspondência à residência dos Griffith, dando a maioria apoio ou sendo favorável ao dono da casa na sua luta contra o livro. Maggie examina as cartas diariamente.

Bem, há duas semanas, um pouco mais agora, foi entregue o costumado correio matutino, e Maggie estava sentada à escrivaninha do tio, passando o maço em revista, quando de repente encontrou a bomba... um bilhete-postal para Frank Griffith assinado “Cassie McGraw”.

- Só um postal? - estranhou Sanford.

- Só um postal - repetiu Barrett. - Que diabo, a gente também pode escrever os Dez Mandamentos, o preceito áureo do Evangelho ou “Eureca! Eureca! Achei!” num simples postal. Maggie não podia acreditar no que via mas estava ali remetido de Chicago, com o endereço da remetente. No bilhete escrito a Frank Griffith, Cassie dizia que vinha acompanhando o julgamento pelos jornais. Pelos modos, lera alguma espécie de declaração truncada, feita à imprensa por Mr. Griffith, atacando Os Sete Minutos e acusando Jadway de arruinar o filho. Seja como for, Cassie tinha visto qualquer coisa parecida e sentira necessidade de se pôr em acção, para dizer a Griffith quem ela era, que ninguém conhecera Jadway tão intimamente como ela e que estava pronta a jurar pela vida da sua filha que ele havia escrito o romance com as intenções mais puras, na esperança de liberar as futuras gerações, e que o depoimento de Leroux não passava de um monte de mentiras.

- Tudo isso num bilhete-postal - disse Zelkin com sarcasmo.

- Porque não? Pense um pouco no que já se escreveu na. cabeça de um alfinete. Lá em casa tenho eu o Padre-Nosso... encontrei em Mainz, na Alemanha... publicado num livro menor que dois centímetros quadrados.

- Como é que ela sabia que se tratava da verdadeira Cassie McGraw? - perguntou Zelkin. - Podia ter sido enviado por algum lunático.

- Era aonde eu ia já chegar. Maggie, no início, não tinha a certeza. Parecia apenas uma coisa autêntica. Ela levou em conta que talvez não fosse. Mas por via das dúvidas, separou o postal do resto da correspondência e escondeu-o de Frank Griffith. Víu logo que se era autêntico, podia levar-nos - a defesa, bem entendido - a Cassie, o que nos daria uma arma poderosa, causando um dano irreparável à acção movida por Duncan, assim como, em última análise, ajudando Jerry. De modo que ela optou por guardar o postal, a fim de poder negociar com Griffith, obrigando-o a ser indulgente com Jerry, impedindo-o de forçá-lo a enfrentar-nos no banco das testemunhas. Mas, finalmente, decidiu que seria inútil argumentar com o tio, preferindo abordar-me. Para dizer a verdade, o que a fez tomar essa resolução foi uma coisa que lhe contei, que confirmava a autenticidade e o valor do postal.

- Que coisa? - quis saber Sanford.

- Durante um telefonema, eu mencionei a Maggie que havia localizado a filha de Jadway e Cassie McGraw... a tal Judith Jan... e que, para nosso azar... resultara numa freira carmelita enclausurada. Ora, toda a gente sabe a respeito da filha, mas quantas pessoas estão a par do facto de que ela se fez freira? Maggie sabia, porque eu lhe contara, e todos nós aqui sabemos. Sean O’Flanagan sabe. Certos membros da Igreja sabem. Mas quem mais? Só alguém muito chegado a Jadway... e à própria Cassie McGraw. Pois então Maggie disse-me que isso está na mensagem escrita naquele bilhete de Chicago. Cassie escreveu qualquer coisa no sentido de que a própria filha de Jadway, Judith, era freira... não cumprindo penitência pelos pecados do pai mas para servir a Deus, tal como Jadway havia servido a humanidade. Quando Maggie me disse que o remetente do postal mencionara a palavra “freira -, vi logo que tinha sido enviado por Cassie McGraw... que Cassie estava viva.

Olhou para os outros, mas as suas expressões faciais não demonstravam crença nem incredulidade. Aguardavam o desfecho da história.

Barrett continuou.

- Bom, esta, então, foi a proposta. Teríamos Cassie McGraw, se deixássemos Jerry em paz no tribunal. Era uma decisão terrível de ser tomada. No fim, acho que o que me determinou foi uma consideração puramente legal. Jerry Griffith só diria o que reforçasse a tese de Duncan. Se eu desistisse de Cassie para interrogá-lo, no máximo obteria uma vantagem mesquinha, negativa. Poderia lançar dúvida sobre o depoimento de Jerry, invalidando-o em parte. No entanto, mesmo assim, seria uma vitória discutível, pois ao revelar as novas provas de que dispunha, a tentativa de suicídio de Jerry antes de jamais ter lido o livro, talvez causasse o efeito adicional de parecer o tormento de um rapaz doente, encurralado. Seria uma coisa antipática, na opinião da maioria dos jurados. Intelectualmente, talvez ficassem persuadidos de que não fora apenas o livro que arruinara Jerry, mas emocionalmente seriam capazes de sentir pena dele e raiva de nós. Em compensação, argumentei comigo mesmo, se eu permitisse que Jerry escapasse impune, teria, em troca, a testemunha mais sensacional até agora apresentada no tribunal, inatacável, digna de parangonas nos jornais, alguém que contribuiria afirmativamente para a defesa. Seria um depoimento dramático, irrefutável, em primeira mão, eliminando simultaneamente Leroux e outros da mesma laia. e desmentindo o que o Dr. Trimble e Jerry afirmaram que o livro havia feito com Jerry. Imprimiria honestidade, decência e remissão social ao livro... E afinal de contas, é nele que se concentra todo este julgamento de censura. Por isso decidi sacrificar Jerry em troca de Cassie... de Cassie e do livro de Jadway. Eis aí os factos, senhores, e não há mais nada que eu possa acrescentar.

Zelkin estava a limpar os óculos com um guardanapo. Parecia agora menos irritado. Apenas mal-humorado.

- Okay, Mike. Só que você não nos disse uma coisa.

- Qual?

- Se viu o tal bilhete que Cassie McGraw, segundo se pretende, mandou.

- Se eu vi? Você quer dizer, com os meus próprios olhos? Não. Ontem Maggie não conseguiu chegar perto da escrivaninha de Griffith, que fica no gabinete que ela habitualmente usa para trabalhar. Tinha escondido o postal no forro de uma gaveta inferior, onde ele não teria o mínimo motivo para remexer... mas seguro, pareceu-lhe, que o tio anda a bisbilhotar por lá, sobretudo depois que soube que ela se encontra comigo. Portanto, lá estava o bilhete, escondido na tal escrivaninha, mas Griffith passou o dia inteiro no gabinete. Era domingo, entende? E hoje de manhã cedo, quando Maggie ficou a saber que eu ainda não tomara nenhuma decisão, ela disse que esperaria para ver o que eu ia resolver. Se eu abrisse mão do interrogatório de Jerry, ela entregar-me-ia o bilhete-postal hoje à tarde.

- Se é que ele existe - murmurou Zelkin.

- Que é que você quer dizer?

- Quero dizer que, com toda a probabilidade, ele só existe na imaginação da sua namorada. Você mesmo disse que ela faria praticamente tudo pelo rapaz. Pois muito bem, isso é praticamente tudo.

- Abe, boa parte do que a gente consegue na vida baseia-se na confiança que se tem nos outros.

- Você acha, é? - replicou Zelkin. - Nesse caso, você acaba de liquidar a Ordem dos Advogados Americanos. Eu talvez confie em minha mãe, em minha mulher, um pouco em meus filhos, um pouco em meus melhores amigos. Mas aquilo em que eu confio por completo é num contrato. Vamo-nos deixar de romantismos. É nisto que se resume a maioria das leis. Eu confio no que é exequível e legal. No que é tangível. No que tenho na mão em retribuição pelo que pago. Okay, Mike, o que está feito está feito, e nós dois somos amigos de mais para que eu continue zangado com você. Talvez o meu pescoço esteja apertado e meu estômago em rebuliço, e talvez eu esteja um tanto magoado, mas tenho de seguir adiante a seu lado, para afundar ou nadar... e eu acho que é para afundar... com você.

Philip Sanford puxou a cadeira para mais perto. A sua tez branca parecia totalmente exangue.

- Olhe, eu não tenho a certeza de ser assim tão clemente, Mike. Pode ser que Abe não se importe de se afundar com você, mas uma coisa eu lhe digo, não estou preparado para ir ao fundo. Mike, a minha carreira toda, a minha família, a minha vida dependem da sua actuação e discerninento. Acho que você entrou numa situação crítica. Tão-pouco terei papas na língua. Sejamos francos, vamos pôr as cartas na mesa. Espero que você encare a coisa dentro desse espírito.

- Você tem toda a liberdade de dizer o que pensa - replicou Barrett, surpreso com a veemência pouco característica da explosão de Sanford.

- Eu acredito que a única verdade que você não pode ou não cquer enfrentar é que Luther Yerkes e Frank Griffith usaram essa moça para o convencer a agir dessa maneira. Ela depende deles, de Griffith pelo menos, e eles sabem que você está apaixonado por ela, e por isso, obrigaram-na a aproveitar-se de você. Acho que fizeram de você um tolo, Mike, e tenho uma pena danada de que tanta gente haverá de sofrer as consequências do seu erro. Concordo com Abe. Nãão tenho a certeza se o bilhete-postal de Cassie McGraw - existe, e mesmo que exista, se você chegará a vê-lo antes do fim do julgamento e de eles terem ganho, enquanto) nós ficaremos na rua da amargura, sem ter onde cair mortos. Agora já sabe. De um modo ou de outro, eu disse o que queria.

Barrett recusou-se a ficar irritado. Acendeu de novo o cachimbo e depois sacudiu a cabeça, de pleno acordo.

- Sim, Phil, essas possibilidades também já me ocorreram. Levei-as em conta. Embora não possa explicar o meu inconsciente, acredito piamente que procedi com objectividade desapaixonada. Talvez fique provado que fui parvo. Mas talvez fique provado que fui profeta. Os riscos são enormes. Apostei tudo em Maggíe, porque pressinta e acredito que seja sincera. Como já disse, às vezes é preciso confiar nos outros.

- Como nós confiámos em Christian Leroux? - perguntou Sanford. - Como nós confiámos em Isabel Vogler? Como nós confiámos no sigilo dos nossos telefones e na honestidade da oposição durante estas últimas semanas?

Barrett encolheu os ombros e virou-se para Kimura” que manuseava um garfo do outro lado da mesa.

- Leo. você ainda não abriu a boca - interpelou Barrett. - Qual é a sua opinião? Acha que armei em parvo?

Kimura continuou a brincar com o garfo. O rosto amarelado permanecia impassível.

- Não posso opinar sobre o que está certo ou errado, Mr. Barrett. Mas posso, entretanto, emitir uma opinião,, baseada no que apurei até agora, a respeito do desfecho provável da sua decisão. Trabalho apenas com factos concretos. Sei que é facto que Miss Russell mora com a família Griffith há um número X de anos e nunca teve1 motivo para se mudar de lá. Sei que é facto que nesse número X de anos Miss Russell nunca deu um passo ou fez um acto contrário aos interesses de Frank e Ethel Griffith. Sei que é facto que já se perdeu muito tempo e dinheiro com averiguações em torno de Cassie McGraw e que não há o mínimo indício de prova de que ela esteja viva. Sei que é facto que as fêmeas dos tigres avançam para proteger os machos quando eles são atacados. Mesmo velhas, como Cassie, avançam. Não ficam longe, protestando. Ao mesmo tempo, sei que um plano de pesquisa nunca é completo, que nem sempre se ficam conhecendo todos os factos e que os dados podem, muitas vezes, ser mal interpretados. Por isso prefiro não emitir nenhuma opinião sobre o desfecho, Mr. Barrett. Em lugar disso, eu poderia dizer quais são as probabilidades, apesar de que também não farei tal coisa nesta questão.

- Eu direi quais são as probabilidades, Míke - interveio Sanford. - Quando é que Maggie ficou de entregar o postal com o endereço de Cassie McGraw?

- Hoje de tarde, às cinco horas. Ela irá ao meu escritório.

- Então faço uma aposta - disse Sanford. - Vinte contra um como ela não vai aparecer nem telefonar. Dez-contra um como ligará para você, dando uma desculpa qualquer, que perdeu o postal ou que ele se sumiu. Cinco contra um em como se ela aparecer ou telefonar e entregar o postal, será falso ou coisa de maluco. Você aceita?

Barrett sacudiu a cabeça.

- Não. Porque se você ganhar, nós dois não teremos com que pagar.

Zelkin estava a ver o relógio.

- Não adianta continuar com isto - opinou. - Mike saberá ao certo de um modo ou de outro daqui a três horas e meia. Vamos comer e voltar para o tribunal. Acho que Duncan já não tem mais testemunhas e nós teremos de enfrentar a nossa depois das duas. Convinha a gente passar alguns minutos com Ben Fremont antes de pô-lo em campo.

Virou-se para Barrett.

- Quem é que vai lutar pela defesa hoje, Mike? Eu ou você?

- É melhor você tomar conta agora de tarde - disse Barrett. - Terei de sair às quatro e quinze para ir ao escritório encontrar-me com Maggie.

- Você ainda tem esperança? - perguntou Zelkin.

- Tenho - respondeu Barrett.

Eram exactamente duas horas e o tribunal estava outra vez repleto e o oficial de justiça já se achava a postos.

As cortinas por trás da mesa de honra abriram-se e o juiz Nathaniel Upshaw, de toga preta, deu entrada no recinto, examinando rapidamente a sala e dirigindo-se para a sua poltrona.

- Queiram sentar-se, por favor - pediu o oficial de justiça aos espectadores e participantes do julgamento. - O tribunal acha-se de novo em sessão.

O juiz Upshaw limpou a garganta.

- O júri está presente. Mr. Duncan, pode chamar a sua próxima testemunha.

O Promotor Público pôs-se de pé.

- Meritíssimo, não tenho mais testemunhas a apresentar. Mr. Jerry Griffith foi a última testemunha do Povo. A acusação dá por encerrada a sua apresentação de testemunhas.

Quando Duncan se sentou, o juiz Upshaw virou-se para a mesa da defesa.

- Se a defesa estiver pronta, posso saber que advogado a representará?

Zelkin levantou-se logo.

- Abraham Zelkin, Meritíssimo.

- Muito bem, Mr. Zelkin. - Nesta oportunidade gostaríamos de apresentar como nossa primeira testemunha o réu, Ben Fremont.

- Perfeito - retorquiu o juiz Upshaw. - Mr. Fremont, o senhor quer agora aproximar-se e erguer a sua mão direita a fim de prestar juramento?

Enquanto o livreiro, calvo, míope, petulante, deixava a mesa da defesa para se encaminhar para o banco das testemunhas com o seu estranho passo curto, Mike Barrett observou-o rapidamente. Arrependeu-se de não tê-lo forçado a ir ao barbeiro antes de comparecer no tribunal. As suíças e o cabelo na nuca estavam compridos e bastos de mais. Alguns jurados mais idosos eram capazes de interpretar isso como excentricidade e sinal de rebelião, pondo-se de sobreaviso contra o réu. Mas quase no mesmo instante Barrett sentiu-se envergonhado da ideia, resquício da sua velha obsessão de vencer na vida, imitar os outros, aderir ao conformismo, sua antiga personalidade orientada por Osborn, e disse, com ironia, para si próprio, que o que precisava realmente de tesoura era boa parte das suas ideias.

Fremont achava-se em frente do escrivão do tribunal. Barrett reparou que ao ser-lhe estendida a Bíblia ele se recusara a pousar a mão esquerda sobre ela. Não conseguiu entender a pergunta do escrivão, mas ouviu nitidamente a resposta de Fremont.

- Sou ateu.

Barrett estremeceu. Algum jurado também teria ouvido? Olhou. Havia vários de testa franzida.

Pondo a Bíblia de lado, o escrivão recitou o compromisso ateu:

- O senhor promete que o depoimento que irá prestar perante este tribunal corresponde à verdade, a toda a verdade e a nada mais que a verdade?

Dispensando as luzes divinas, Fremont respondeu, em voz alta de mais:

- Prometo!

Enquanto ele subia ao banco das testemunhas, Abe Zelkin, de pé ao lado de Barrett, resmungou entre dentes:

- Lá vou eu, Peter Zenger.

Depois, feito uma descomunal bola de praia que rolasse em direcção ao banco das testemunhas, Abe Zelkin partiu, rumo à primeira testemunha de defesa.

Aflito, Barrett puxou um bloco pautado amarelo, de tamanho oficial, para perto de si. A sua aflição, percebia, origináva-se menos nas apreensões que pudesse ter quanto ao modo como o seu constituinte, ou qualquer outra testemunha da defesa, seria acolhido, do que no consenso de opinião concedido à combinação que fizera, discutido durante o recente intervalo do almoço. Era-lhe penoso sentir que era o único a confiar em Maggie. Zelkin, San-ford, até Kimura, haviam-se mostrado tão receosos da sensatez do seu acto, tão desconfiados dos motivos de Maggie, tão cépticos quanto à existência do postal, que Barrett se sentia atormentado por dúvidas.

Não teve paciência com as testemunhas de defesa. Pensava só no relógio, cujos ponteiros se moviam como se estivessem recobertos de mel, o relógio que cada vez mais o aproximava da verdade sobre Maggie Russell e, talvez, da realidade de Cassie McGraw. Sabendo que teria de ser assim, colocara o bloco amarelo na sua frente, para registar os pontos altos da tarde. Embora o traslado oficial do que estava acontecendo pudesse ficar à sua disposição no dia seguinte - em troca de determinado preço - Barrett preferia um registo imediato. Queria uma espécie de diário, de lembrete, do que estava ocorrendo, pois sabia que, assim que deixasse o tribunal, o seu espírito se concentraria unicamente na procura de Cassie McGraw.

Nas suas costas, os ponteiros do relógio descreviam órbitas enlouquecedoramente lentas na tarde em declínio. À sua frente, irreais como manequins na vitrina de uma loja, as testemunhas já familiares e cuidadosamente treinadas recitavam os seus depoimentos ao receptivo Zelkin, ao crítico Duncan. Elas iam e vinham. O tempo passava. E de repente Barrett percebeu que eram mais de quatro horas e que em menos de quinze minutos precisaria sair do tribunal, para enfrentar o que talvez fosse outro julgamento.

Completou o bloco à sua frente. Não sabia como tinha enchido aquelas páginas com tantos rabiscos. Antes de sair, resolveu recapitular esse registo pessoal, para avaliar o resultado das escaramuças das últimas duas horas. Fixou-se no nome da primeira testemunha, escrito em letras de imprensa, e depois passou às anotações que vinham a seguir. Leu com rapidez.

BEN FREMONT:

Interrogatório de Zelkin - Fremont tem boa instrução, trabalhou para pagar os estudos na faculdade - vinte anos no comércio de livros, sempre pagou as contas, não tem dívidas, óptimas relações com editores e compradores - há 30 000 títulos lançados por ano, mantém em armazém apenas 5000, velhos e novos - só tem tempo de ler um pequeno punhado - sempre encomenda todos os lançamentos da Sanford House, porque é firma de excelente categoria - encomendou o livro de Jadway não só por causa disso, mas porque tinha lido a edição de Leroux - ficou espantado com a prisão - sim, o agente policial ludibriara-o, fingindo-se comprador comum - Aqui Abe está a sair-se bem - alguns jurados talvez estejam ressentidos contra os truques e a prepotência da Polícia, por também terem sido maltratados e ludibriados - Fremont reconhece a sua parte no diálogo gravado pelos polícias - Agora acrescenta - acha que Minutos nada tem de obsceno - considera o livro “magnífico raio X da mentalidade feminina” e a sua importância social é que ensina as mulheres a conhecerem-se a si mesmas, e os homens ao sexo oposto

- Fremont diz que sabe quais são os critérios e interesses da comunidade local, porque o seu negócio consiste em atender a comunidade, a pessoa média que lê - sim, ouviu gente usar palavrões como os do livro de Jadway - sim, mulheres também - diz que os compradores, a maioria mulheres, já compraram pilhas de outros livros com as mesmas palavras e descrevendo actos semelhantes aos do livro de Jadway - cita quantas vezes encomendou Fanny Hill, Minha Vida Secreta, Chatterley, Minha Vida e meus Amores, de Frank Harris - considera Minutos mais artístico, com mais importância social compensatória de que os mencionados - Não, não são muitos os compradores que se indignam com esse tipo de literatura, que trazer livros de volta para serem reembolsados - Ah, sim, claro que há algumas raras excepções, pois afinal de contas uma obra de arte não pode agradar a toda a gente

- como alguém já disse, até a Vénus de Milo pode ser considerada ofensiva por cada mulher de pouco busto no mundo - portanto, alguém pode achar o livro de Jadway ofensivo, mas a maior parte dos leitores considerá-lo-á pura arte, tal como ele, Fremont.

inquirição de Duncan - Chi, que situação difícil - o sacana pegou em Fremont pela perna logo à saída. - O réu já esteve alguma vez preso por transgressão do artigo sobre pornografia no Código Penal da Califórnia? - Arre. o “sim” de Fremont não bastou à acusação - como é que não vi que se Duncan mencionou isso na exposição de motivos, voltaria ao ataque? - devia ter-me antecipado a ele, apresentando nós mesmos os pormenores, mas agora o sacana está a deitar todos os podres para fora-Fre-mont foi preso há doze anos, não em Oakwood, numa livrariazinha em Hill Street, no centro de LA-não por causa de livros, mas de revistas - não revistas que costumasse vender, mas de um tipo que o distribuidor lhe empurrou - só vendeu, nem prestou atenção ao género

- O PP aperta com ele - Alegou inocência? - Não - Declarou-se culpado por fornecer material pornográfico?

- Sim, mas só a conselho do advogado, para receber sentença mais leve - Mas confessou-se culpado? - Sim - Sendo primário, culpado de contravenção, pagou multa?- Sim - Foi para a cadeia? - Não, houve comutação da sentença- Sabe que a reincidência não constitui contravenção, mas crime? - Sim - Sabe que o reincidente pode ser condenado a um ano de prisão, multado até 25 000 dólares?

- Sim - Estava ciente de que o editor anunciara o livro de Jadway como o mais imoral da história da literatura?

- Bem, era uma citação nos cartazes, portanto, estava, mas os cartazes também diziam que era uma notável obra de arte - A testemunha sabia que até agora, exceptuando-se a publicação clandestina original, nenhum editor de qualquer país se animara a editá-lo? - Sim, mas... -Apesar disso, encomendara e vendera o livro? - Sim - E mais dez minutos no mesmo estilo.

Resultado: Duncan marcou pontos. Fez gato-sapato de Fremont.

 

PHIL SANFORD:

Interrogatório de Zelkin - Traz à tona os antecedentes de Sanford: boa família, Harvard, sempre no comércio editorial - Quando comprou Minutos, preocupou-se com a pornografia? - Não, não muito, porque o livro era uma beleza, comovente, verdadeiro, muito sincero e bem feito de mais para atrair o interesse libidinoso - Ultrapassando os limites habituais de franqueza, segundo os critérios da comunidade contemporânea? - Claro que não - Sanford comenta que os tempos mudam. História engraçada. Certa vez, nas páginas do Godey's Lady's Book, aconselharam uma dona-de-casa, ansiosa por se portar como perfeita anfitriã, a cuidar de modo que “as obras de autores masculinos e femininos ficassem devidamente separadas nas suas prateleiras”. Houve época, também, em que se não dizia que os pianos ou as galinhas tinham pernas, apenas “partes”. Sanford conta que em 1929 a alfândega americana proibiu a entrada das Confissões, de Rousseau, por serem imorais, interditando no mesmo ano Justine, do Marquês de Sade, como pornográfico, e em 1927 Elmer Gantry, de Sinclair Lewis, proibido em Boston como obsceno, e dois anos mais tarde Sem Novidade no Front, de Remarque, pelo mesmo motivo, mas que agora toda a gente considera essas obras inofensivas, aceitando-as, porque os tempos mudam - Hoje os anúncios de perfumes em revistas, na televisão, anúncios de roupas íntimas e sabonetes, anúncios de soutiens, mostram nus ou seminus femininos e vendem sedução - Hoje os anúncios de filmes e peças de teatro alardeiam nudismo, fornicação, amor genital oral, masturbação, homossexualismo, tesbianismo - Hoje, na época da pílula, jovens que não são casados vivem juntos abertamente - Os critérios da comunidade mudaram. Sanford afirma que Minutos não ultrapassa esses critérios. Começa a citar várias críticas favoráveis - Duncan protesta. Críticas baseadas em boatos, e aliás as críticas não podem ser inquiridas. Protesto indeferido, críticas discutidas. Abe ajuda a testemunha a expandir a questão de que a Sanford House goza de altíssimo prestigio literário - Sanford enumera clássicos antigos e modernos que eles publicaram, além de obras de vencedores do Prémio Nobel - Jamais dariam chancela a alguma coisa que carecesse de mérito literário, conforme provam os anais da editora - e Minutos preenche esse requisito. Etc.

inquirição de Duncan - Como Sanford adquiriu Minutos? De quem? - Droga, já esperava por essa - Vem à baila o nome de Quandt. Além disso, a reputação desagradável de Quandt como pornógrafo - Quer dizer que Sanford teve de procurar um pornógrafo profissional para adquirir o livro? - Sanford aqui mostra coragem. Diz que Quandt considerava o livro moderado e literário de mais para seu gosto, por isso nunca o publicou - Duncan discute a fama da Sanford House, recita uma selecção dos melhores títulos da firma - O senhor era o director e editor da Sanford House quando esses livros saíram? - Não, mas já trabalhava para a firma - Foi o responsável pela compra e publicação deles? - Não - Quem foi? - Meu pai. Wesíey R. Sanford - Mas hoje o senhor é o chefe da firma?

Sim - Desde quando? - Há quase dois anos - Meritíssimo, a acusação deseja apresentar instrumentos de prova - Apresenta recortes do NY Times, Wall Street Journal, mostrando a precária situação financeira da Sanford House nos últimos dois anos, Wesley R. Sanford considerando a venda da editora a grandes licitantes industriais que procuram ampliar as suas actividades - Esses novos balanços são substancialmente verdadeiros? - Sim - Em suma, desde que o senhor assumiu a direcção, a Sanford House não alcançou tanto êxito como no passado? - Sanford pigarreia, atrapalha-se, diz que depende do que se entende por êxito, reconhece que as vendas de livros da firma diminuíram - Aí então, Duncan, o sacana, pergunta-lhe - Mr. Sanford, quem sabe se o senhor não estava desesperado, o bastante para ignorar o bom gosto anterior de seu pai e tentar salvar a sua posição na firma, encarregando-se da publicação de uma obra obscena? - Zelkin protesta Upshaw dá acolhimento ao protesto. Mas os jurados já ouviram.

Resultado - Talvez um empate.

OR. HUGO KNIGHT:

Interrogatório de Zelkin - As credenciais da testemunha são notáveis, antecedentes de magistério e catedrático na UCLA, mas comportamento desastroso - arrogante, metido a sabichão, condescendente com os jurados, linguagem literária incompreensível como o sânscrito - diz que Jadway tinha talento limitado, mas que o usou bem - o livro? Excelente exemplo de monólogo interior - Utilizou Cathleen como oráculo dos próprios sentimentos - Livro realisticamente pornográfico, porém não obsceno - Pornografia apenas um expediente. - Pode ser mais explícito, professor? - Os Sete Minutos não trata nada de sexo - Pobre Abe. Não só o júri como também ele parecem estupefactos. Knight nunca usou essa resposta na fase de instrução. Abe recomeça, tenta - Não trata nada de sexo? - Não, porque o sexo serve apenas de simbolismo, meio do autor invectivar contra Os Sete Pecados Capitais ou Mortais, a saber: orgulho, ira, inveja, luxúria, gula, avareza, preguiça-r-Cada um dos sete minutos de Cathleen é símbolo de um pecado moral - Zelkin procura desviar a testemunha da mania de simbolismo, mas o idiota continua a rotular tudo de simbolismo - É claro que tinha de citar Leda e o Cisne.

inquirição de Duncan - Dr. Knight, se o senhor se digna explicar-nos mais alguma coisa a respeito das intenções ocultas de J J Jadway, poderia dizer-nos se “cona” é simbolismo? - Risos gerais.

Resultado - Um desastre. A testemunha é o nosso oitavo pecado capital. Vitória fácil de Duncan.

DA VECCHI:

interrogatório de Zelkin - Da Vecchi, um alegre italianinho a cantarolar as respostas, como um gondoleiro - Estudante de artes plásticas em Paris na década de 30 - conheceu J J Jadway em Montparnasse, no Dome, costumava vê-lo na Brasserie Lipp. ficaram bastante íntimos no período em que ele estava a trabalhar em Minutos - Ouviu alguma vez qualquer referência ao progresso da obra? - Àh, sim, sim - O autor falava dela como de um empreendimento comercial? - Não, nunca, nunca, só como artista, dizia, “É o meu opus, a obra da minha vida”, sempre com orgulho - Considerava Jaddway um homem de sensibilidade estética? - Que é que o senhor quer dizer?

- Desculpe, quero dizer, tinha ele alguma compreensão de arte? - Ah, sim, sim, de literatura, pintura, do que está no Louvre, do que eu tinha no estúdio quando o pintei - Acha obsceno o livro de Jadway? - Jamais, jamais; saiu da alma de um artista. Testemunha eficaz, por enquanto.

Inquirição de Duncan - O bolinho logo se esfarela - Então o senhor conheceu Jadway muito bem? Eram amigos? - Sim. amigos - Quantas vezes se encontrou com ele em Paris? - Várias - Por “encontrar-se com ele”. Mr. da Vecchi, eu não me refiro a passar pela rua ou sentar-se num café, mas antes, quanto tempo passou a sós com ele? - A sós com ele? Ah, de vez em quando - Esteve a sós com ele mais do que três ou quatro vezes?

- Não me lembro - Talvez se lembre de onde andou depois da morte de Jadway, quando começou a Segunda Guerra Mundial? - Eu estava ainda em França, lutando com os maquis na Resistência, perto de Marselha - Fazendo o quê? Qual era a sua ocupação na Resistência?

- Eu era pintor - Pintor de quadros? - Não, não, falsificava passaportes para os refugiados - Continuou nessa mesma ocupação depois que a guerra acabou? - Falsificar passaportes? Não, nunca, sou pintor - Sim, o senhor é pintor. Gostaria de me estender um pouco mais sobre as suas actividades criadoras. Tenho provas da Itália de que o senhor pintou sob diversos pseudónimos. Um era Vermeer, outro Rafael, e até Tintoretto. Existe uma velha piada mais ou menos assim: “Dos 2500 quadros pintados por Corot durante a sua vida, 7800 podem ser encontrados na América.” Segundo o arquivo policial em Roma, o senhor pintou no mínimo oito Corots, vendendo-os como autênticos. Ora, é claro que, cumprir pena na prisão por cometer falsificações e perpetrar logros não implica necessariamente impugnar a sua honestidade como testemunha, porém levando-se em conta tais antecedentes... - Maldito Duncan e esta testemunha, filho da mãe. Porque é que ele não nos contou isso? Queria uma viagem de graça, publicidade. Olhem só para ele. Onde está o sorriso? Velhaco, manhoso, amedrontado. Merda. Resultado - Duncan ganha por nocaute.

 

SIR ESMOND INGRAM:

Interrogatório de Zelkin - Melhor, muito melhor, logo de saída - Catedrático famoso da Oxford - Célebre crítico literário - amalucado, mas com encanto de duende, espirituoso, um sábio notável - Júri completamente atento - Sir Esmond, certa vez o senhor escreveu no London Times que Os Sete Minutos era “uma das obras de arte mais sinceras, sensíveis e ilustres criadas na moderna literatura ocidental”. Ainda mantém a mesma opinião? - Mantenho - Não o considera então obsceno? - Não existem livros obscenos, apenas homens obscenos com mentalidade obscena - Depois: Então acha honesto e válido que Jadway contasse a história dele como o fez? - Era a maneira de tratar honesta, a maneira corajosa - Qualquer autor pode desnudar o corpo humano, mas poucos têm a ousadia ou o génio para desnudar o espírito humano - Um editor francês escreveu que a coisa mais interessante a respeito do erotismo não era que houvesse trinta e duas posições para o coito, mas sim “o que acontece na cabeça das pessoas, o jeito com que os amantes reagem mutuamente”, e foi esse o mistério que Jadway devassou e expôs totalmente - Acredita que o livro de Jadway possua valor social compensatório? - É uma obra de valor social considerável. Jadway tentou colocar o sexo em seu lugar natural e adequado no espectro da conduta humana. O redactor-chefe de Les Lettres Nouvelles, Maurice Nadeau, certa vez perguntou: “Porque é que o amor, que forma o assunto principal ou subsidiário em oito de cada dez romances, deve parar na beira da cama, na hora em que caem as cortinas?” Afinal de contas, a função da literatura, disse ele, é explorar o coração humano, explorar todas as manifestações do ser. E depois acrescentou: “A maneira das pessoas fazerem amor é capaz de ser mais reveladora do que qualquer psicanálise que sonda a alma humana. Ela revela, também, uma forma de verdade que é interessante por ser geralmente dissimulada.” Com este livro, diz Ingram, Jadway prestou um serviço à humanidade.

Mike Barrett tinha terminado de reler as suas anotações dos depoimentos da tarde. Quando levantou os olhos, viu que Sir Esmond Ingram ainda ocupava o banco das testemunhas e agora sujeitava-se à inquirição premente de Elmo Duncan.

- ...e por causa desse antecedente, Sir Esmond, o senhor considera-se um árbitro em matéria de literatura?

- Não sou eu que me considero um árbitro mas os meus leitores, que me julgam como tal e que dependem de mim para ajudá-los a formar uma opinião própria.

- Mas o senhor considera-se qualificado para aconselhar os leitores sobre aquilo que possui valor literário e o que é simplesmente escatológico?

- Considero-me.

- Só por causa da sua erudição, Sir Esmond?

- Santo Deus, não. Por causa da minha experiência da vida, da minha simpatia e compreensão com o público.

- Então o senhor acha, Sir Esmond, que a sua vida tem muita coisa em comum com a do leitor médio?

- Sim, acho que sim.

- Sir Esmond, quantas vezes o senhor se casou?

- Três.

- Já esteve preso alguma vez?

- Duas.

- O senhor come carne, como o leitor médio?

- Sou vegetariano. Permita-me acrescentar, promotor, que o ponto aonde o senhor quer chegar é muito inteligente, e completamente maroto, sim, extremamente maroto.

Adeus, Sir Esmond, pensou Barrett.

Barrett olhou por cima do ombro. Dispunha do tempo exacto para chegar ao escritório e encontrar-se com Maggie.

Dobrou as anotações e meteu-as no bolso. Olhou de relance para Abe Zelkin.

- Já vou sair, Abe.

Zelkin fechou os olhos e sacudiu a cabeça pesarosamente.

- Quando voltar, traga Cassie McGraw - disse ele. - Nós precisamos dela, Mike. Estamos mortos e enterrados sem ela.

- Hei-de achá-la - prometeu Barrett. - Não voltarei sozinho.

Depois, esgueirando-se discretamente do seu lugar, abandonou a cena da carnificina - determinado a voltar com o único aliado vivo capaz de salvar a defesa e o processoPara Maggie Russell, a tarde fora maravilhosa.

O seu alívio com a dispensa de Jerry da inquirição, o seu afecto por Mike Barrett por tornar, possível aquele milagre, tinham sido tão grandes que se sentira com uma disposição loucamente festiva durante todo o percurso de carro desde o centro de Los Angeles.

Querendo uma espécie de comemoração, parara em Beverly Hills, e numa mesa do restaurante Leon's entregara-se a um martini, um almoço rico em calorias e a fantasias em torno do futuro. Depois dirigiu-se a Saks, onde comprou um vestido novo, e a I. Magnin's no fim do quarteirão. O vestido representava menos um festejo do que um investimento. A intuição dizia-lhe que a esta altura, certamente lá pelas cinco horas, Mike Barrett já teria reflectido melhor sobre a sua desistência de interrogar Jerry, pouco importando o que esperasse em troca. O melhor modo de mitigar o arrependimento de um homem pelo que ele sacrificou era lembrar-lhe que talvez houvesse ganho algo de mais valia. O vestido, de corte curto, decotado, macio, leve, sedoso, podia ajudar um pouco. Maggie odiava os estratagemas femininos. Era directa por natureza. Mas a situação permitia um esforço extra. Quando o encontrasse, queria que a sua aparência lhe lembrasse que, se perdera algo importante, também lucrara uma coisa mais duradoura. Isto é, se ainda estivesse interessado nela.

Já passavam de quatro horas quando voltou a Pacific palisades e, para sua surpresa, Frank Griffith estava em casa. Falava ao telefone do gabinete e a voz retumbava de alegria por todos os cantos, naquele tom servil que indicava sem sombra de dúvida, que o interlocutor era o detestável Luther Yerkes. No andar de cima, Tia Ethel fazia a sua sesta e a porta do quarto de Jerry achava-se trancada por dentro, mas ela podia ouvir o som da grafonola. Enfiou à pressa o vestido novo, uma beleza, e depois escovou o cabelo e retocou a maquilhagem.

Descia a correr a escada quando Frank Griffith, o rosto bronzeado e musculoso, radiante, com uma espécie de ufania, saiu do gabinete.

Ao vê-la, esperou-a ao pé da escada.

- Olá, Maggie. Soube que você esteve no tribunal hoje de manhã.

Ela chegou ao último degrau.

- Como foi que o senhor soube?

- Falei com Luther Yerkes pelo telefone. Alguns dos ajudantes dele estiveram no tribunal e viram-na. Até agora eu não tinha a mínima ideia de como nos tínhamos saído hoje de manhã. Eu queria lá estar à mão, para dar algum apoio a Jerry, verificar com os meus próprios olhos o que se estava a passar, mas o Dr. Trimble não me deixou. Ele disse que a minha presença deixaria Jerry muito contrafeito. Por isso concordei em me abster. Ordens do médico. Em todo o caso, tinha um negócio importante a tratar em San Diego. Passei toda a manhã em conferência. Mas no momento em que me vi livre, achei melhor voltar para ver o que havia acontecido. Cheguei a casa pouco depois de Jerry, porém aquele imbecil não me quis contar coisa alguma. Limitou-se a bater com a porta e a trancar-se por dentro. Já se viu maior ingratidão... com tudo o que fizemos por ele? Assim que este julgamento terminar, e se resolver o caso dele, ele verá o que é bom. Hei-de corrigi-lo e ensinar-lhe a ter um pouco de respeito.

- Que é que o senhor quer dizer com isso?

- Que nós temos sido indulgentes de mais com ele. mimando-o, e veja os resultados. Não faz mal. Ele vai ser obrigado a andar dentro da linha quando chegar a hora.

A grande cara de sócio do Country Club ficara horrível ao pronunciar a última frase, mas a transformação foi breve; ainda estava encantado com o seu triunfo. O regozijo pela vitória em público logo restaurou o seu bom humor. Ah, meu Deus, pensou Maggie, como odeio este homem.

- Seja como for, vamos pela ordem - bramiu ele. - Nós vencemos, e isso é o que vale. Luther Yerkes acaba de me fazer um relatório completo do que se passou hoje de manhã. Eu sabia que íamos fechar a boca daqueles chicaneiros da defesa, e foi exactamente o que aconteceu.

Exultante, passou o braço pela cintura de Maggie e começou a puxá-la para a sala de estar.

- Vamos, Maggie, você esteve lá. Agora quero ouvir a sua opinião. Não me canso de ouvir.

Maggie não estava a gostar daquele abraço, mas só conseguiu desenvencilhar-se quando chegaram ao centro da sala de estar.

- O que é que o senhor quer saber? - perguntou.

- Como foi que Elmo os fez gritar por socorro e como Jerry se portou. Alguém falou em mim?

- Não me lembro. Quanto a Jerry, ele enfrentou tudo maravilhosamente bem. Senti orgulho dele.

- Eu disse-lhe a si que ele enfrentaria. De agora em diante dar-me-á razão. Estas semanas todas, você e a Ethel andaram no maior alvoroço em redor dele, choramingando para que não aparecesse no banco das testemunhas, tratando-o como um inválido, quando desde o início eu sabia que teria resistência, que é cheio de iniciativa, igual ao pai. Agora você reconhece que no fim eu tinha razão, não é?

- Não reconheço coisíssima nenhuma, Tio Frank. Foi uma provação medonha para Jerry. Devia tê-lo visto. Ele só aguentou porque... porque Mr. Barrett não o interrogou.

- Conversa fiada. Ele também teria derrotado o seu amigo Barrett. Porque é que você acha que Barrett encerrou o expediente e saiu a correr? Porque é que você acha que ele desistiu? Porque sabia que Elmo Duncan e o nosso lado o tinham liquidado, e havíamos preparado Jerry para enfrentá-lo, e que não ia conseguir coisa alguma. Por isso renunciou à inquirição... tentando conquistar a simpatia pública, como disse Luther... mas o facto é, e desculpe-me se isto a ofende, Maggie, mas você mais cedo ou mais tarde acabaria por descobrir por si mesma, o facto é que o seu amigo Barrett não teve coragem, foi covarde. Foi por isso que ele desistiu do interrogatório.

Ela escutara Griffith incrédula. Para uma pessoa na posição dele, o grau de burrice e a falta de sensibilidade eram simplesmente inacreditáveis. O ódio pela sua estúpida arrogância quase a emudecia. Todas essas semanas de ressentimentos contidos, reprimidos, martelavam-lhe no íntimo, exigindo um desabafo. O que foi que ele tinha dito? Que Mike não tinha coragem, era um covarde?

Encontrou voz.

- Não foi por covardia que Mr. Barrett o não interrogou.

Foi porque é... é decente e bom, entre outras coisas.

- Decente e bom? - Griffith atirou a cabeça para trás, soltando uma gargalhada. - Essa é a maior que eu já ouvi. Um advogado chicaneiro, trabalhando em troca de honorários, recusando-se a marcar um tento porque é... como foi?... ah!... decente e bom.

Sacudiu a cabeça.

- Maggie, meu bem, você conhece tão pouco a natureza humana como a sua mãe. Até menos, talvez. Ouça o que lhe vou dizer, menina, e trate de crescer. Eu entendo desse negócio de conhecer as pessoas. E um dia você ainda há-de agradecer-me por tê-la prevenido a tempo. Aquele chicaneiro do seu amigo não tem um pingo de coragem no corpo inteiro.

- Ele tem tanta coragem como o senhor - explodiu ela. Assim também já era de mais. Estava farta. Chegara a hora de desabafar. - Se quer saber a verdade, o motivo que levou Mike Barrett a não interrogar Jerry, foi porque eu lhe pedi que não o interrogasse, além de outros motivos, e um deles foi que Mike compreende o seu filho melhor do que o senhor mesmo. Ele prontificou-se a sacrificar uma parte da acção, do processo, porque concordou comigo em que o futuro de Jerry estava em jogo, e isso é uma coisa que o senhor nunca poderia fazer nem compreender.

A cara de Frank Griffith deformou-se outra vez.

- Olhe aqui, menina, você já está a sair um pouco dos limites. Não vá comparar-me com esse seu garanhão. Ele não interrogou Jerry porque você pediu? Pensa que acredito nisso? A troco de que é que ele iria dar-lhe ouvidos, quando toda a carreira dele depende deste julgamento? Ou quem sabe... não, agora entendi... quem sabe se você tem um jeitinho especial para obrigar os homens a dar-lhe ouvidos, hem, Maggie? Quem sabe se há homem por aí capaz de fazer qualquer coisa por uma boa copulazinha?

A última frase viera carregada de maldade. Maggie sentiu ímpeto de agredi-lo. Se ela fosse homem, agarrava-o pelo pescoço. Mas era justamente por ser mulher que ele tentara degradá-la.

- Que porcaria - exclamou. - Como pode ser assim tão podre?

Mas ele ainda não terminara.

- Mesmo que eu entenda o que Barrett pode ter de lucrar com isso, o que eu quero saber é o que você lucra, Maggie, meu bem? O que é que você quer?

- Como posso falar com o senhor? - a voz dela tremia.

- O senhor não procura compreender. Tanto Mike como eu só estamos interessados numa coisa. Uma oportunidade de viver em paz com a nossa consciência. Seja lá o que for que eu tenha oferecido a Mike Barrett, a decisão final dele precisava de estar baseada na única coisa que eu não vejo ultimamente por aqui... uma noção de decência.

Ah, ela queria destruir aquele enorme imbecil presunçoso, cheio de malícia, de mentalidade imunda.

- Quer saber como foi que aconteceu? Conto-lhe com o máximo prazer. Procurei Mike Barrett e disse-lhe que o senhor e os seus amigos, donos da Mafía, iam forçar Jerry a comparecer no banco das testemunhas, muito embora Jerry lhe tivesse implorado que não fizesse isso. Mas o senhor estava resolvido a obrigá-lo a atribuir ao livro a culpa da situação de Jerry. E eu disse a Mike Barrett o que ele já sabia, que Jerry andava doente e com a mania do suicídio, e que mesmo que conseguisse sobreviver ao interrogatório de Duncan, jamais poderia aguentar o de Mike. Lembrei a Mike que ele já havia visto Jerry tentar matar-se uma vez, e agora os investigadores da defesa tinham descoberto o segredo de Jerry, de que ele já tentara matar-se noutra ocasião, antes da saída do livro, e portanto, na situação em que estava, se a prova do tribunal resultasse excessiva, ele tentaria de novo o suicídio... e desta vez era possível que o conseguisse.

Frank Griffith ficara lívido.

- Que espécie de asneira é essa? - vociferou. - Onde é que ouviu tanta tolice junta? Dos seus amigos pornográficos?

- Será que o senhor não é capaz de enfrentar a verdade pelo menos uma vez na vida? Nós não estamos a falar de histórias da carochinha que o senhor está acostumado a ouvir no seu mundo de publicidade. Estamos a falar da vida de seu filho, e da verdade a respeito dela. Os investigadores da defesa descobriram que Jerry já sofreu um esgotamento nervoso e tentou dar um fim a tudo no ano passado. E há duas semanas, Jerry tomou uma dose excessiva de soníferos dentro do carro dele, e Mike Barrett, por acaso, encontrou-o a tempo de salvá-lo.

- Então foi isso! Quer dizer que a fonte de todas essas asneiras é o chicaneiro do seu amigo Barrett, hem? Eu devia ter imaginado. Devia ter visto logo que ele não hesitaria diante de nada. Até inventar essa coisa de suicídio para convencê-la com uma espécie de lavagem cerebral, dizendo que ele salvou Jerry... e/e salvar Jerry? pois sim!... para você ficar em dívida com ele. Que truque mais baixo, miserável, para você persuadir Ethel a convencer-me a afastar Jerry do banco das testemunhas, para que o seu Barrett pudesse ganhar o julgamento. E você caiu na esparrela, caiu como um patinho.

Era o momento de revelar toda a verdade. De dizer que aquilo não viera somente de Barrett. Que fora ela própria quem salvara Jerry depois da primeira tentativa de suicídio, levando-o a São Francisco para tratamento. Que fora ela própria quem trouxera Jerry de volta da casa do médico, depois que Barrett lhe telefonara sobre a segunda tentativa. Contudo não se animava a mencionar esta última verdade. De qualquer modo, Griffith não acreditaria. Ele recusar-se-ia a acreditar nela. Pior ainda, cairia imediatamente em cima do filho, fosse para obter um desmentido do que ela dissera, fosse para obter uma confissão - de uma forma ou de outra, ele atormentaria Jerry ainda mais - e no fim Frank Griffith continuaria a acreditar apenas no que queria acreditar, e o único perdedor seria Jerry.

- Eu contei-lhe toda a verdade - disse ela finalmente. - Se não pode aceitá-la, tanto pior, para o senhor e para Jerry.

Frank Griffith olhou-a com ar feroz.

- Se eu tivesse um pingo de juízo, pô-la-ia no olho da rua agora mesmo, neste instante. Mas estou a ver que o seu mau procedimento e a sua língua suja não são realmente você, e uma vez que está fora de si, não é responsável pelo que diz. Você foi influenciada por aquele artista do Barrett, usada e manipulada por ele, de modo que já não sabe o que está a dizer e o que é verdade ou mentira. Por isso sou capaz de lhe dar outra oportunidade, menina. Não sei ainda se darei. Porque não é com a situação do meu filho que estou preocupado. É com a sua. E com as encrencas em que você se anda a meter, por ser assim tão desequilibrada, e que podem causar prejuízo a todos nós, já que você é de responsabilidade nossa.

Oh, como você está preocupado comigo, seu safado! pensou Maggie. O que o preocupa, se me põe no olho da rua, é ter outro antagonista, que no campo oposto, pode sair a espalhar por aí a espécie de pessoa que Frank Griffith realmente é.

Mas não disse o que estava a pensar. Ficou à espera.

- Ao mesmo tempo, não vou deixá-la safar-se assim desta, menina, não, depois da actuação que acaba de ter nesta sala - continuou Griffith, sempre a tentar controlar a fúria. - Acho que eu devia dizer-lhe que é melhor escolher já o campo em que vai ficar, qual o lado que prefere, a quem deve lealdade. Acho bom que se lembre de uma vez que sou eu quem a sustenta, paga, não lhe deixa faltar nada e tolera mais coisas do que nenhum parente jamais toleraria. Portanto resolva já se gosta disto e está do meu lado ou do lado deles.

- Não estou do lado de ninguém - respondeu. - Nem do seu, nem do de Mike Barrett. Estou do lado de Jerry. Do lado de quem e do que for bom para ele.

- Com que então agora é só por causa dele, por causa de Jerry, é? Pois essa também eu não engulo, minha querida. Já estou a ver tudo perfeitamente claro. Jerry não é, nem nunca foi, o verdadeiro problema que a preocupa. Você diz-me que está do lado do rapaz só para continuar a ter a vida regalada que tem nesta casa, mas ao mesmo tempo está toda assanhada por aquele garanhão chicaneiro, aquele grande e descarado paladino do sexo que anda a copular com você e a acalmá-la do umbigo para baixo, enquanto lhe faz uma lavagem cerebral na cabeça, e depois manda-a de volta para cá, todas as noites, para fazer de papel de cavalinho de Tróia nesta casa. Olhe, vou dizer-lhe uma coisa, minha querida. Já aguentei muita coisa, mas agora estou até aqui. Não pense que vai continuar a jogar nos dois lados, vou acabar já com a sua alegria, há riscos de mais em jogo. Só existe um grupo, o meu, entendeu? E ou você joga nele ou vai para o olho da rua. Você não tem escolha, e acho até que estou a ser bonzinho como burro. Vou explicar-lhe por outras palavras. Você quer um lugar para comer e morar... e nunca há-de encontrar melhor do que este... quer ficar no meio dos parentes e, como você diz, quer ficar perto de Jerry? É isso que você quer? Muito bem, então daqui para a frente terá de fazer o que eu mandar. Para começar: acabe com essa história de Mike Barrett. Se você tornar a ver aquele chicaneiro, nem que seja só uma vez, babau, fim para você, dou-lhe um pontapé no rabo. Desde hoje, a partir deste instante, fica terminantemente proibida de falar com ele. Se sair de casa para se encontrar com ele, boneca, pode ficar por lá e nem se incomode em voltar. Agora já sabe.

Maggie sentiu-se trémula.

- O senhor não tem o direito de me dizer o que posso ou não posso fazer com a minha vida particular. Não sou sua escrava. Não moro aqui por esmola. Eu trabalho, trabalho duro pelo que me pagam, e mereço ter tempo de folga e liberdade para empregá-lo como bem entender. Não sou nenhum utensílio seu, como sua mulher e seu filho o são. Eu sou eu e dona do meu próprio nariz. Posso encontrar-me com qualquer homem que eu quiser. Se o nome dele por acaso é Mike Barrett, eu encontro-me com ele. Para falar a verdade, pretendo vê-lo ainda hoje.

- Pouco me interessa o que você pretende. Eu estabeleci a lei que será cumprida na minha casa. Se você tem encontro marcado com Barrett, acho bom cancelá-lo sem perda de tempo, e cancelá-lo da sua vida com a máxima rapidez... se quiser ficar a morar aqui. Mas se você se vai encontrar com Barrett hoje lá fora, é melhor fazer as malas antes. Portanto, Maggie, meu bem, você é quem decide. Quero a sua resposta agora mesmo. Você vai sair ou vai ficar?

Sentiu vontade de lhe cuspir na cara. De sair dali a correr. De se libertar daquela servidão para sempre.

Mas também queria Mike Barrett - se ele ainda a quisesse, depois de hoje.

Foi então que a sua imaginação subiu ao andar superior, e no caminho do seu quarto e das malas por fazer, parou diante da porta de Jerry.

Os piores dias para Jerry talvez fossem os mais imediatos.

Como poderia abandonar o rapaz, logo agora, nas mãos deste pai monstruoso?

Hesitou diante do dilema.

Como era aquela velha história que terminava com o ponto de interrogação?

A dama ou o tigre?”

Sim.

Agora... qual? E... o que aconteceria depois?

Mike Barrett só começou a ficar seriamente preocupado às cinco e quinze.

Viera ao escritório antes da hora marcada, mas não esperava encontrar nenhum recado de Maggie Russell, e Donna confirmara que não havia mesmo nada. Nem tão-pouco esperava que Maggie aparecesse pontualmente às cinco, como tinham combinado, porque a maioria das mulheres (sobretudo as mais femininas) raramente é pontual, e ele suspeitava que Maggie fosse uma delas.

Procurou ocupar-se com os arquivos das testemunhas restantes arroladas por ele e Abe; sabia porém que formavam um fraco contingente, quase inútil à causa, e dedicou-Lhes pouca atenção. Depois buscou o arquivo de Cassie McGraw, a salvadora, a mulher miraculosa, a deusa Atenas da defesa, e tentou absorver-se, relendo o que já conhecia a seu respeito, preparando-se para o próximo encontro, porque agora, com pouco mais do que dois ou três dias de julgamento pela frente, tudo se reduzia a Cassie. A vitória ou derrota final dependia de Cassie. Contudo, descobriu que não podia tão-pouco concentrar-se no passado dela, porque o que lhe interessava era a Cassie actual. Ficou a olhar para a porta aberta, em direcção à sala de recepção, atento a cada pisada, a cada estalo, esperando que outra porta se abrisse e lhe trouxesse Cassie McGraw, viva, na pessoa de Maggie Russell.

Cinco minutos. Dez. Quinze. A vida toda, uma eternidade.

Nada de Maggie.

E só depois de ela já estar quinze minutos atrasada, no décimo sexto, pôs de lado a pasta que continha o passado de Cassie, e levantou-se pesadamente para se aprontar para a Cassie actual.

Perambulou pelo gabinete, esvaziando cinzeiros, arrumando almofadas, juntando fiapos, escutando o zumbido do relógio eléctrico da escrivaninha. Vinte minutos. Vinte e cinco. Meia hora após a hora marcada.

Nada de Maggie.

Decidiu acalmar-se com o cachimbo. Encontrou-o no bolso do paletó, tirou a bolsa de tabaco, encheu o fornilho e acendeu-o. Irritou-se ao perceber que o fornilho esquentava rapidamente, devido à velocidade com que estava a fumar. Já nem se limitava a deambular pelo gabinete. A essa altura trilhava o soalho de um lado para o outro.

Tinha medo de ver que horas eram; porém olhou.

Faltavam cinco para as seis.

Parou de pé na vasta janela e observou tristemente o trânsito, os automóveis que iam e vinham como besouros, as diminutas figuras que passavam pelas ruas. Nem rastro de Maggie Russell.

Procurou imaginar motivos para aquele atraso. Havia tantas hipóteses. Um equívoco na hora marcada para o encontro. Estava certo de que ela dissera às cinco. Mas talvez houvesse dito às seis e ele, por engano, confundira com cinco.

Ou, quem sabe, um acidente. Sempre ocorrem acidentes de trânsito em Los Angeles; cinquenta e duas mil pessoas mortas ou feridas durante os últimos doze meses. Maggie podia ter sofrido um choque enquanto dirigia na demoníaca autopista que liga o centro de Los Angeles com Pacific Palisades.

Ou doença. De manhã estivera com óptimo aspecto no tribunal. Mas a carne é sujeita a um milhão de moléstias, ela achava-se exausta, e talvez caísse de cama com febre de rachar.

Ou trabalho. Afinal de contas, ela tinha um emprego, e Tia Ethel talvez houvesse insistido para que terminasse um serviço qualquer.

Ou Jerry. Fora poupado no tribunal, mas o simples facto do comparecimento forçado podia ter sido excessivo para o seu frágil sistema nervoso. Quem sabe se não sofrera uma crise e Maggie, empenhada em socorrê-lo, esquecèra-se da hora?

No entanto, em qualquer dessas hipóteses, ela teria telefonado ou mandado alguém telefonar em seu lugar. Isto é, salvo se estivesse desmaiada ou morta, o que certamente não estava. Mas o telefone não tocara nem uma vez durante a última hora.

Desviou-se da janela e olhou para o outro lado da sala, em direcção ao gabinete de Zelkin, imaginando quando é que ele ia voltar e o que havia de dizer se o encontrasse ainda à espera daquele modo.

Daquele modo. Que modo?

Do modo que eles tinham vaticinado. Agora precisava de reconhecer, às seis e vinte. Eles, queria dizer, Zelkin, Sanford e Kimura, tinham predito que tudo terminaria daquele modo - o que significava que estavam com razão. Tinham dado o palpite ao meio-dia. E eis ali os últimos clarões do dia, quando a realidade ainda era palpável e não se podia, por enquanto, buscar refúgio nos sonhos.

Zelkin prevenira: - “Se é que o bilhete-postal existe.” E depois: - “Só confio no que é tangível.” E por fim:- “Você ainda tem esperança?”

E agora a cruel voz imaginária, pela primeira vez, respondia:- Abe, eu não sei.

Alguém surgiu na soleira da porta. Levantou os olhos imediatamente, e deixou pender a cabeça, decepcionado. Era Donna Novik, de casaco debaixo do braço.

- Se não precisa mais de mim, chefe, acho que vou já para casa.

- Obrigado, Donna. Não preciso, não... -mas tinha uma coisa, uma última coisa, que devia fazer. Queria que Maggie ficasse a saber o que lhe fizera e o que pensava dela. - Olhe, vou dizer-lhe uma coisa que você podia fazer por mim antes de se ir embora, se não se importa. -O senhor manda, chefe.

- Você tem o número particular de Miss Russell no seu Rolodex, não tem? Quero que ligue para ela, espere que ela atenda, e passe-me o telefone. Depois, então, pode ir para casa. Um momento. Se outra pessoa atender... o que não vai acontecer, mas por via das dúvidas... não mencione o nosso escritório nem o meu nome. Okay?

- Entendi.

Donna desapareceu e ele aproximou-se de novo da janela, contemplando distraído a rua escura. Rezou para que Maggie houvesse sofrido um acidente sem importância ou estivesse levemente enferma e que não fosse o que temia, a quebra da promessa do que ainda podiam significar um para o outro.

Escutou a voz abafada de Donna ao telefone da sala de recepção.

Chegou perto do aparelho da sua escrivaninha, pronto para levantar o auscultador. Deixou a mão pronta, em cima da tecla iluminada, à espera do zumbido; mas de repente a luz apagou-se e não veio nenhum zumbido.

Confuso, dirigiu-se à porta aberta. Donna já vinha a entrar com um recado escrito numa folha do seu bloco de memorandos.

- Que foi que houve? - perguntou ele.

- Ora, eu disquei o número de Miss Russell, ficou a dar o sinal, sem parar, e eu já ia desligar quando uma voz de homem atendeu.

- Velho ou moço?

- Era Frank Griffith.

- Que azar.

- Eu disse que queria falar com Miss Russell. Ele respondeu... - consultou a página do memorando - apenas o seguinte: -Miss Russell não está a morar já connosco. Mudou-se para Nova Iorque. Foi-se embora hoje à tarde.” E quando eu ia perguntar se não havia deixado o endereço, ele simplesmente desligou. Quer que tente outra vez, para saber se ela...?

- Não- respondeu, com voz quase inaudível. - Não, não vale a pena. Obrigado, Donna. Acho melhor você ir para casa.

- Até amanhã, chefe.

- É, até amanhã.

Sozinho, sentiu-se vazio, com frio.

Ficou ali parado, de pé, sem se mexer, incapaz de dar um passo. Já não tinha aonde ir.

Depois de certo tempo, encolheu de leve os ombros. Dominado por aquela sensação de vácuo, aproximou-se do bar e, distraído, encheu o copo de gelo, servindo duas doses de uísque escocês. Bebeu devagar, com rancor, brindando a Cassie McGraw que-nunca-existiu e a Maggíe Russell que lhe restaurara a fé na infidelidade das mulheres.

Largou o copo com os cubos de gelo, tirou do cabide o paletó do fato e vestiu-o, saindo do seu gabinete à procura de um lugar escuro qualquer onde os fracassos se amontoassem para anestesiar o cérebro de bebida contra todo o passado e futuro.

Detendo-se à porta da sala de recepção, estendeu a mão para apagar as luzes. Nesse instante, o telefone da escrivaninha de Donna tocou, e a luz continuou acesa. O telefone voltou a tocar. O coração deu-lhe um salto e ele correu para trás em dois passos rápidos.

Tirou o auscultador do descanso.

- Alõ?

- Mike, sou eu. Era Maggie.

- Que diabo, Maggie... onde é que você está?

- Na cabina pública de um posto de gasolina perto de casa. Não pude ligar antes.

- O seu tio disse que você saíra de...

- Você falou com ele?

- A minha secretária falou.

- Saí, sim. Tivemos uma pega e fui-me embora.

- A prova... o bilhete-postal de Cassie McGraw... está com você?

O seu coração batia. Esperou.

- Mike, deixe eu...

- Está com você? - insistiu.

- Não.

- Não?

- Escute, depois eu explico. Venha até aqui, por favor. Preciso da sua ajuda. Não posso ficar mais tempo nesta cabina. Eu conto-lhe tudo quando chegar aqui. Estarei à sua espera diante do posto de gasolina. Você vem, Mike?

- Não sei - respondeu. E desligou.

Mas meia hora depois estava no Sunset Boulevard, e em Pacific Palísades. Na calçada, defronte do posto da Texaco, avistou Maggie. De costas para ele, com a mão em pala sobre os olhos para protegê-los do clarão das luzes do semáforo, atentava na rua da ladeira onde se encarrapitava a casa dos Griffith.

Não sabia o que o impelira a vir ao encontro quando saíra do escritório.

Agora, vendo-a, ao pé do semáforo, com os cabelos e o vestido de tecido leve chicoteados pelo vento, compreendia. Viera porque estava apaixonado, precisava de descobrir porque ela atraiçoara esse amor. Viera porque todo o apaixonado é um tolo, e ele era o maior de todos os tolos. Viera porque não lhe restava outro lugar para ir, quer como advogado. quer como homem. Ali era o fim da linha.

Virou o carro em direcção ao posto de gasolina, aproximou-o das bombas, desceu e pediu ao empregado que enchesse o tanque.

Encaminhou-se para Maggie. Só quando chegou bem perto foi que ela o viu.

Ficou imóvel, de lábios trémulos, cobrindo a boca com a mão; ele pensou que ela ia chorar.

- Oh, Mike - disse, num fio de voz -, pensei que você nunca mais vinha.

Encostou-se nele, abraçando-o, a cabeça contra o peito.

- Não imagina quanto eu o queria aqui. Graças a Deus que veio.

Afastou-a, agarrando-a pelos ombros com tanta força, que ela teve um estremecimento.

- Que se passa com você? - perguntou ele. - Porque não apareceu?

- Não fique furioso comigo, Mike. Não tive culpa. Eu não queria que você esperasse. Só que tudo saiu errado. Não faz ideia do que aconteceu naquela casa horrível nestas últimas duas horas entre Frank Griffith e eu. Não deu tempo de explicar pelo telefone porque eu não queria desviar os olhos da casa e não conseguia enxergar a entrada para carros dali da cabina. Só podia ver daqui, e eu tinha de ficar a observar para saber se ainda há uma possibilidade.

- Maggie, pelo amor de Deus, você está a fazer uma confusão danada. Agora, de uma vez por todas, quer contar-me o que aconteceu? Onde está o endereço de Cassie?

- Não tenho - disse ela, desesperada. - Deixe-me explicar...

- Explique, então.

Ela olhou por trás dele, para a ladeira, e depois disse, perturbada:

- Eu não o atraiçoei, se é isso que está a pensar. Tive de passar numa porção de lugares depois que saí do tribunal... estava tão orgulhosa do que você fez, Mike... Quando cheguei, encontrei Tio Frank. Em geral ele não volta do escritório assim tão cedo. Mas tinha estado fora da cidade e resolveu vir directamente para casa. Ele estava no gabinete, a falar ao telefone, e não pude aproximar-me da escrivaninha. Foi lá que guardei o bilhete-postal... eu contei-lhe, não?... na gaveta inferior da escrivaninha, escondido por baixo do forro e de uma pilha de correspondência ainda por responder. Então fui mudar de roupa, protelando até ele sair. Finalmente desci e quase esbarrei com ele na escada. Precisava de ver como estava louco de alegria com o que se tinha passado hoje de manhã no tribunal, com a sua desistência do interrogatório de Jerry...

- Só imagino - comentou Barrett, ressentido.

- Mas aí é que não pude entrar no gabinete, porque ele queria conversar comigo, ouvir a minha versão do que havia ocorrido no tribunal. Seja como for, uma coisa levou a outra, e a maneira como ele começou a falar de Jerry e... e de você... eu simplesmente não me pude mais conter, e acho que explodi, dizendo-lhe toda a verdade. Bem, toda não, não falei do nosso tratado, da combinação que fizemos, mas expliquei que você tinha agido como agiu, pelo menos em parte, por minha causa, e que ele não compreendia a situação do filho, e que Jerry já tentara duas vezes o suicídio...

- Qual foi a reacção dele?

- Não acreditou. Disse que era coisa que você estava a inventar para me fazer uma lavagem cerebral e me convencer a afastar Jerry do tribunal como testemunha contra você. Tivemos uma briga terrível, Mike, absolutamente medonha. Aí então ele deu-me um ultimato. Se eu quisesse continuar em sua casa, a trabalhar para ele, ficando perto de Jerry, teria de jurar que nunca mais falaria com você. Foi categórico. Jamais poderia encontrar-me de novo consigo, nem sequer uma vez, nem mesmo hoje. Se insistisse em me encontrar com você, disse, devia fazer as malas naquele instante e ir-me embora. Eu não sabia o que fazer. Era deixar Jerry à mercê do pai ou... ou desistir de você. Naquela ocasião não me lembrei do postal de Cassie, Mike. Se preferisse continuar a morar lá, nas condições de Tio Frank, podia apanhar o bilhete para lho entregar num lugar qualquer... ao menos acho que poderia ter feito isso antes do julgamento terminar. Mas... mas no fim não foi assim.

Eu não podia... não sei como dizer, Mike... eu não podia suportar a ideia de não o ver mais.

Ele estava profundamente emocionado. Era um desses momentos raros em que os sentimentos transcendem as palavras. Puxou-a contra si, amando aquele calor e macieza, retribuindo-lhe o carinho.

- Que bom - murmurou. - É a mesma coisa que eu sinto.

Ela permaneceu alguns segundos, feliz, entre os seus braços. De repente abriu os olhos e exclamou;

- Já me ia esquecendo, Mike. De Cassie McGraw, digo. Todo o seu pleito depende disso, não é?

Saiu dos seus braços.

- Mike, então acho que compliquei tudo. Porque quando tomei a minha decisão, quando disse a Tio Frank que ia encontrar-me hoje à noite com você, ele comportou-se como um bruto. Mandou-me sair imediatamente de casa e que nunca mais ali pusesse os pés. Que era para eu arrumar a mala com as coisas mais urgentes. Depois enviaria o resto para o meu novo endereço. “Arrume as suas coisas e vá-se embora”, foi a ordem que deu. Mas o pior é que não me deixava sozinha nem um segundo. Tentei ganhar tempo, disse que precisava de ir buscar uns objectos pessoais à escrivaninha, mas ele nem permitiu que eu tocasse nela. Mandou-me fazer a mala e sumir. E depois seguiu-me até ao quarto e ficou parado na porta enquanto eu tirava algumas coisas do armário, esvaziava as gavetas da minha mesa, lançando tudo dentro de duas maletas. Aí, então, desceu a escada comigo, fez-me devolver a chave, e esperou que eu cruzasse o portão de entrada para bater a porta com toda a força. De modo que arrastei as malas até aqui abaixo... estão ali, oh, do lado do bebedouro de água gelada...

- E o bilhete-postal de Cassie McGraw continua na escrivaninha de Griffith?

- Desculpe... continua. Estou realmente desolada. E quando cheguei aqui abaixo, não liguei imediatamente para você porque é só da calçada que dá para enxergar a entrada para carros de Tio Frank, e achei que devia ficar à espreita, para ver se ele saía de casa. Se tivesse sorte, eu planeava voltar a correr e roubar o postal.

- Maggie, você tem de entrar de novo naquela casa hoje de noite. Há algum meio? Você disse que teve de devolver a chave, não foi?

Ela abriu a bolsa.

- A da porta da rua, sim - remexeu dentro da bolsa e por fim tirou uma chave de metal opaco. - Mas não a do alpendre de serviço. Desta esqueceu-se ele. Eu posso entrar com ela. Mas como é que vou usá-la enquanto Tio Frank estiver lá dentro?

- Você não pode. Portanto precisamos de fazer com que ele saia.

- De que maneira?

Barrett pensou um pouco. De repente sorriu. -Já sei. Talvez seja possível. Não custa tentar. A esta altura, qualquer coisa serve. Luther Yerkes está na cidade?

- Está. Telefonou para Tio Frank hoje à tarde, pouco antes da nossa briga.

- Onde é que ele mora?

- Em tudo quanto é lugar. Estava a morar na casa que tem em Bel-Air.

- Ele não tem nenhuma secretária particular?

- Tem. Já atendi vários telefonemas. Quem faz as ligações é ela...

- Ah é? Óptimo, então vamos tentar.

Tomou Maggie pelo braço e puxou-a em direcção do escritório do posto de gasolina.

- Tentar o quê, Mike? Ele apontou em frente.

- Está a ver aquela garota ruiva sentada lá dentro, a ler uma revista? É a secretária de Yerkes.

Entraram no posto de gasolina. A ruiva sardenta, mascando "chiclete- enquanto folheava as páginas de uma revista de cinema, saudou-os.

- Você trabalha aqui? - perguntou Barrett. A garota pareceu espantada.

- Não. Estou à espera do Mac... o meu namorado. Ele é o mecânico.

Barrett meteu a mão no bolso e tirou a carteira.

- Você não gostaria de ganhar uma nota de cinco numa coisa fácil?

Os olhos da ruiva passaram para Maggie e voltaram a Barrett.

- Para fazer o quê? - replicou, desconfiada.

- Para fazer um telefonema. Nós dar-lhe-emos o número. Quando alguém atender, diga simplesmente que quer falar com Mr. Griffith, Mr. Frank Griffith. Se for ele que atenda, ou quando ele entrar na linha, você diz: “Aqui é a secretária de Mr. Luther Yerkes. Ele pediu-me que telefonasse ao senhor para lhe dizer que acaba de surgir uma coisa muito urgente e que é para o senhor se encontrar imediatamente com ele na casa em Bel-Air.” Não responda a nenhuma pergunta. Trate apenas de ver se ele entendeu o recado e depois desligue.

A garota parou de mascar o “chiclete”.

- Só isso... por cinco dólares?

- Só.

Estendeu-lhe a nota. Ela já ia a pegar-lhe, porém hesitou.

- Não há nenhuma porcaria nesta coisa, não?

- Não há, não - garantiu-lhe Barrett, com modo sedutor. - É apenas para pregar uma peça num amigo.

Ela aceitou a nota.

- Okay. Deixe-me procurar lápis e papel, e repita tudo de novo para eu saber bem o que devo dizer.

Revistou a escrivaninha até encontrar um bloco de rascunho e um toco de lápis. Barrett, ditou-lhe o recado. Quando terminou, pediu a Maggie que desse o número do telefone de Griffith. Maggie tomou o lápis e escreveu o número.

- É para ligar agora? - perguntou a garota.

- Agora, já.

- Não se importam de esperar lá fora? Senão eu fico sem jeito.

- Nós vamos sair.

Ao chegarem do lado de fora, Barrett levou Maggie para perto das bombas de gasolina e disse-lhe:

- Não saia daqui, Maggie, fique de olho nela. Espreite para ver se ela fez o telefonema. Vou guardar as suas malas no carro.

Deixando Maggie, foi até ao bebedouro de água gelada, pôs a sacola de Maggie debaixo do braço, agarrou uma das malas em cada mão e carregou tudo para a parte traseira do descapotável. Depois de colocar as malas na bagageira e fechar a tampa, viu Maggie a acenar-lhe enquanto a ruiva saía do posto. Caminhou rápido na direcção de ambas.

- Como é que foi? - perguntou.

- Tal como o senhor disse - respondeu ela. - Eu liguei. O homem que atendeu disse que era Mr. Griffith. Eu li o que o senhor mandou. Ele pareceu ficar preocupado e disse: “Obrigado. Avise Mr. Yerkes de que vou já a caminho.”

Barrett sorriu.

- Você é muito boazinha... e uma boa samaritana. Toda faceira, retribuiu-lhe o sorriso, virou-se para o escritório do posto e foi ler a sua revista. Maggie agarrou Barrett pelo braço.

- Mike, se tudo der certo, ele vai descer esta rua daqui a pouco para tornar o Sunset. Temos de tomar cuidado para que não nos veja.

- Exacto.

Levou-o até ao carro. Diante da porta, ela recuou,

- É capaz de me reconhecer se me enxergar sentada aqui na claridade.

- Okay. Vá prò lavabo até eu buzinar duas vezes. Ficarei sentado no carro, de olho no retrovisor. - Ela já ia a caminho, quando ele chamou: - Ei, Maggie, qual é o carro dele?

- Um Bentley. Modelo S3, desporto, azul. Você não pode enganar-se.

Enquanto Barrett se instalava no banco da frente, viu Maggie desaparecer no lavabo das mulheres e depois fixou a vista no retrovisor. Um Buick antigo apareceu rapidamente e sumiu-se. A partir daí, durante talvez um minuto, não houve nada para ver no cruzamento da rua na retaguarda, com excepção da luz do sinal, mudando de novo. Finalmente, de um instante para o outro, a grade cintilante do radiador e o imponente B do lustroso Bentley azul deslizaram pelo espelho. Ao diminuir a marcha para dobrar à esquerda no Sunset, Barrett passou depressa para o lado oposto do assento, a tempo de ver de relance o perfil carrancudo de Frank Griffith. Depois viu-lhe a nuca, e o Bentley continuou a afastar-se, indo para leste do Sunset Boulevard, até desaparecer da vista.

Barrett apertou a buzina duas vezes. Maggie e o empregado do posto de gasolina surgiram quase simultaneamente. Enquanto Barrett assinava a nota da despesa, ela ocupou o assento a seu lado.

Olhou-o interrogativamente.

Ele sentia-se triunfante e não escondeu a sua euforia.

- Risque um Bentley azul - anunciou. - A casa é nossa. Agora vamos socorrer Cassie McGraw.

Uma nova preocupação passou pelo semblante de Maggie.

- Mike, acho bom a gente andar depressa. Nós mandámos Tio Frank para casa de Luther Yerkes em Bel-Air, não foi?

- Sim. Porquê?

- Diabo, devíamos ter dito para ele ir para casa de Malibu. Bel-Air fica praticamente pegado aqui. Yerkes mora em Stone Canyon Road. É a parte mais próxima de Bel-Air, logo depois da UCLA. Tio Frank levará dez ou doze minutos, no máximo. No momento em que lá chegar, vai ver que foi logrado. Aposto em como volta para cá em oito minutos exactos. Temos menos de meia hora.

Barrett já ligara o motor.

- Okay, isso dá-lhe dez minutos para entrar e sair de casa. Acha suficiente?

- É possível, a não ser que surja algum imprevisto. Corra, por favor, Mike.

Barrett descreveu um círculo pela direita em torno do posto de gasolina para finalmente sair e virar ao norte, subindo a longa ladeira até à residência de Griffith. As luzes da porta estavam acesas, mas somente uma parte lateral da casa era visível da entrada para carros. O resto achava-se oculto por sebes e árvores.

Ao aproximar-se do portão de acesso, Barrett perguntou:

- Você tem a chave do alpendre de serviço nas traseiras?

- Tenho.

- Então desça aqui - diminuiu a marcha do descapotável diante da entrada e travou. - Vou recuar para perto daquela sebe. Assim posso enxergá-la quando você sair pelo pátio lateral e, ao mesmo tempo, ficar de olho na rua que acabamos de subir. Estarei observando para quando Griffith aparecer do lado do Sunset.

Ela abriu a porta e desceu.

- De quanto tempo ainda dispomos, Mike? Ele espiou no mostrador do relógio de pulso.

- Sem se arriscar, você dispõe de nove, no máximo dez. Agora pé na tábua. Boa sorte.

Viu-a percorrer à pressa a entrada de carros e atalhar à esquerda, por cima da relva, até ao caminho que contornava a casa em direcção ao alpendre de serviço. Quando a perdeu de vista, fez marcha atrás, afastando-se vagarosamente do portão e encostando no meio-fio abaixo das sebes. Desligou o motor e apagou os faróis.

Seria fácil, achou. Em poucos minutos teria o que queria e poderia restaurar em Zelkin e Sanford a sua fé na palavra “confiança” e no seu próprio julgamento, e disporia da pista que havia de levá-lo à testemunha que talvez salvasse a periclitante defesa e Os Sete Minutos.

Com o braço esquerdo apoiado ao volante para poder verificar constantemente a hora, Barrett desviava os olhos a breves intervalos, a fim de espiar a ladeira que levava ao Sunset, tornando depois a olhar o relógio e de novo a ladeira.

Havia cinco minutos que Maggie havia ido.

Daqui a pouco, oito.

Surpreendentemente, completaram-se os dez minutos sem que houvesse o menor sinal dela, e agora cada minuto veloz parecia composto de apenas seis segundos, em vez de sessenta.

O ponteiro grande corria sem parar no mostrador.

Treze minutos... catorze... quinze.

Mike Barrett piscou os olhos e percebeu que potentes faróis vinham a subir a ladeira, lá de baixo do Sunset Bou-levard. Podia sentir o suor a brotar-lhe na testa. Santo Deus, se fosse Griffith...

Era.

Na subida, o carro procedente, do Sunset Boulevard passou sob a claridade de um lampião, e o brilho prateado da grade do radiador e o magnífico tom azulado da capota não deixaram margem para dúvidas. O Bentley agora aproximava-se cada vez mais, em velocidade crescente.

Barrett agiu instintivamente. Nenhuma ideia consciente o impeliu à acção. Ligou o motor. Pisou no arranque. A mão soltou o freio de emergência. Calcou com força o pedal da gasolina.

No momento exacto em que o Bentley azul surgiu bem à vista, rumando para a entrada de carros, o descapotável de Barrett mergulhou a direito para a frente, bloqueando-Lhe o acesso ao portão.

Barrett firmou o volante, esperando pelo impacto do aço contra aço, mas em vez disso ouviu-se, depois de travar, o rangido da borracha dos pneus, enquanto Griffith desviava o Bentley para o lado, a fim de evitar a colisão. O guincho e o resvalamento de pneus sobre o pavimento, do outro carro, do próprio carro de Barrett, e depois, finalmente, o roçar de metal contra metal.

Os dois automóveis estremeceram e pararam na rua-defronte ao portão. O de Griffith, quase paralelo ao de Barrett, estava um pouco mais adiante, com o lado direito contra o guarda-lama do descapotável.

A porta da direcção do Bentley abriu-se com violência. e um enorme sujeito corpulento saiu como um touro, avançando para Barrett. Era Frank Griffith, com o rosto congestionado de raiva.

- Que modo idiota de guiar é esse? - berrou, à medida que se aproximava. - Podia ter-nos matado os dois! Que modo infernal de dirigir é esse? Nunca olha à esquerda num cruzamento?

- Desculpe - disse Barrett, assumindo a expressão mais contrita. - Acho que estava distraído. A culpa é inteiramente minha. Sinto muito. O senhor não se magoou?

- Sujeitos como você deviam ser proibidos de guiar - resmungou Griffith. - Claro que não me magoei. Sorte sua. Mas não sei que diabo você fez ao meu carro. Faça marcha atrás por favor, que quero ver. E não se vá embora.

Óptimo, pensou Barrett. Perca tempo. Protele. Não o deixe encurralar Maggie dentro de casa.

Mexeu na chave do motor, dando a partida várias vezes, mas deixando-o sempre morrer de propósito.

- Mas que merda! - explodiu Griffith. - Você vai fazer marcha atrás ou não vai?

Por fim Barrett deixou o motor ligado. Pôs a mudança em marcha atrás e recuou alguns metros. Depois desceu do carro, e caminhou na direcção de Griffith, que estava parado de pernas abertas, beligerante, os punhos musculosos nos quadris, esperando por ele. Barrett viu que o guarda-lama do descapotável ficara amachucado.

- Veja o que fez ao meu carro - disse Griffith.

O que ele tinha feito, Barrett pôde ver: apenas arranhara uma faixa de tinta azul na porta traseira do Bentley e uma parte do guarda-lama.

- Vou ter de pintar todo de novo para não ficar diferente- reclamou Griffith. - E a sua companhia de seguro terá de pagar, no mínimo, uns oitocentos dólares. Você tem seguro, não tem?

- Tenho, sim.

Griffith tirou uma caneta e uma pequena agenda do bolso do paletó.

- Acho bom procurar o seu cartão enquanto anoto o número da sua placa.

Enquanto Griffith anotava o número da placa, Barrett procurou o cartão da companhia de seguros na carteira, imaginando onde estaria Maggie e rezando mentalmente por ela.

Encontrou o cartão quando Frank Griffith já estava de volta a seu lado. No momento exacto em que Griffith lhe arrancava o cartão das mãos, Barrett lembrou-se de que ele continha o seu nome, endereço e número de telefone.

Prendeu a respiração.

Griffith estava a copiar os dados da companhia de seguros. Os seus olhos chegaram ao do portador da apólice. Por um instante, ficou imóvel e depois levantou a cabeça maciça, olhando bem para Barrett. As suas mãos meteram a agenda, a caneta e o cartão de seguro no bolso, e quando tornaram a aparecer estavam cerradas. Deu um passo à frente e Barrett, automaticamente, recuou, até ficar colado contra o Bentley. Jamais, em toda a sua vida, tinha visto tanto ódio no rosto de alguém.

- Eu devia tê-lo reconhecido, seu filho da puta - berrou Griffith. - Que diabo está você a fazer aqui?

- O país é livre - replicou Barrett, inane.

- Livre, é? Não para gente da sua laia, ouviu? Que é que você anda a fariscar por aqui... espionando a mim e a meu filho?

- Não tenho nenhum interesse no senhor ou no seu filho.

- Isso é o que eu não sei. Você mostrou hoje de manhã no tribunal que não tem colhões. Agora talvez esteja à procura de alguma coisa que lhe sirva de compensação.

Barrett levantou o braço esquerdo de leve, à espera da agressão.

Griffith arreganhou os dentes.

- Gostaria de lhe achatar a cara - gritou -, mas não pretendo dar-lhe mais publicidade. Não sou trouxa para cair nessa. Porém ouça bem o que lhe vou dizer. Fique prevenido. Dê o fora daqui, entendeu? Arranque esse rabo daqui o mais depressa possível. Eu vou lá para dentro. Se quando eu sair, dentro de cinco minutos, o encontrar ainda a bisbilhotar pelas redondezas dou-lhe uma sova e depois entrego-o à Polícia por vadiagem. Está a ouvir-me?

Com esta, virou as costas a Barrett, contornou o carro com passo pesado e instalou-se atrás do volante. Barrett lançou um olhar em direcção à casa. Nada de Maggie. Entrou no descapotável e retrocedeu ainda mais, ficando à espera, de motor ligado. O Bentley de Griffith disparou portão dentro. Barrett fechou os olhos, rezando de novo por Maggie, tornou a abri-los e deslizou o carro para a frente, à procura de melhor posto de observação.

Pôde ver Griffith a sair da garagem. Pôde vê-lo abrir a porta da rua. Depois não pôde vê-lo mais.

Pobre Maggie.

Não havia nada que fazer. Era tarde de mais.

Por fim, além das luzes da entrada de carros, distinguiu um movimento: alguém corria pelo lado da casa. De repente, bem nítida, uma silhueta feminina atalhou pelo relvado e ganhou o caminho de passagem. Era ela.

Maggie chegou ofegante perto do carro.

- Ah, meu Deus, que susto.

- Entre - ordenou Barrett.

Ela estava no carro, a seu lado.

- Entrei na casa sem problema, Mike, mas depois tive de me esconder de uma enfermeira profissional qualquer, que eles contrataram para me substituir. Ela vinha trazendo Tia Ethel para o andar térreo. Aí então, finalmente, pude esgueirar-me até ao gabinete. Mas quando eu já ia a sair, Tia Ethel viu-me. Ela sabia que eu tinha sido posta no olho da rua, e tive de contar que eu havia voltado para buscar uns pertences meus que tinha esquecido. Depois ela quis conversar... falou e falou até não poder mais, que eu não devia ter brigado com o marido dela e que lamentava muito não ter podido convencê-lo a mudar de ideia sobre mim. O tempo passava e eu naquela agonia. Então ouvi barulho aqui fora, os dois carros colidindo, e disse-lhe que seria melhor dar uma olhadela para ver o que acontecera. Saí correndo pelas traseiras, rodeei a casa, e cá estava você com Tio Frank. Fui obrigada a esconder-me de novo atrás da casa. Quando ouvi o carro dele a subir vim de mansinho pelo pátio lateral e, ao escutar a porta da rua a fechar-se, disparei que nem uma flecha. Ufa. E cá estou eu.

Barrett voltara por completo o volante e começou a descer a ladeira a toda a velocidade. Quando se aproximaram do posto de gasolina, desviou para o meio-fio e estacionou.

Estendeu a mão.

- Você conseguiu, Maggie?

Ela sorriu e tirou um postal da bolsa, colocando-o elegantemente na palma da mão dele.

- Tome. As chaves do reino.

Ele examinou a lustrosa reprodução colorida do Sanatório de Convalescentes Sunnyside na parte da frente. Virou do outro lado. À direita estava o nome e o endereço de Frank Griffith. À esquerda, o espaço para a mensagem estava coberto até ao último milímetro com frase após frase atulhada de palavras semelhantes a formigas, escritas laboriosamente numa caligrafia esforçada. Só a assinatura era facilmente legível. Dizia “Cassie McGraw”.

- A mensagem e a assinatura estão com letra diferente - disse Barrett. - Vejamos se a assinatura é autêntica.

Tirou do bolso interno as fotocópias que mandara fazer no Colégio Parktown. Desdobrou-as. Pegou na que trazia a assinatura de Cassie, tal como aparecia no verso da velha fotografia de O’Flanagan, Jadway e Cassie em Paris, e comparou-a com a suposta assinatura recente de Cassie no bílhete-postal.

- Então? - perguntou-lhe Maggie.

- A antiga é firme, e esta é trémula como um cardiograma, mas ambas têm o mesmo r redondo sem arestas, a mesma espécie de ponto em flecha no i, o mesmo risco marcante para baixo, o mesmo... -ergueu os olhos e sorriu. - Sim, as assinaturas são da mesma pessoa. Encontrámos Cassie McGraw.

- Graças a Deus.

- E graças a você - ligou o motor de novo. - Para onde quer ir?

- Estava com esperança de que você me levasse para casa.

- Para casa?

- Junto com você.

Ele já ia a soltar o travão.

- Eu só tenho uma cama, Maggie. De casal.

- Se é de casal, dá para dois, não dá?

Ele cobriu as mãos dela, pousadas no colo, com a sua.

- Eu já lhe disse que a amo?

- Porque não deixa para dizer daqui a pouco?

- Daqui a pouco eu terei de partir para Chicago. Maggie agora estava bem perto, de lábios entreabertos.

Beijaram-se, misturando as línguas. Depois ela murmurou:

- Cassie não pode esperar até amanhã? Barrett soltou-a.

- Ela vai esperar, sim.

Então soltou o travão. Estavam livres. O carro começou a andar.

 

CHICAGO não era o que ficava entre Los Angeles e Nova Iorque, decidiu ele. Era diferente. Tantos olhos hostis a tinham considerado feia. Chicago era “o salsicheiro do mundo”, de Cari Sand-burg, “o subúrbio de Varsóvia”, de Arnold Bennett, o lugar de “imundície” e “selvagem”, de Rudyard Kipling. Para os que a conheciam melhor, era também o Chicago Tribune e Vachel Lindsay, as Everleigh Sisters e Jane Addams, Al Capone e Edgar Lee Masters, Samuel Insull e Marshall Field. Para outros, era o Loop, o El, a Universidade, a Central de Illinois, e era Sears Roebuck, e o Lincoln Park, o Lake Shore Drive, o Cook County, a Cidade dos Ventos - esquálida, simpática, melancólica, estimulante, a cidade de onde se ia sempre embora muito jovem e que entretanto permanecia entranhada na gente.

Sim, ela era todas as coisas boas e más, como várias cidades e a maioria dos homens; mas uma coisa ela não era, decidiu Mike Barrett a observá-la da janela do táxi. Não era ali que se podia esperar encontrar Miss Cassie McGraw, antiga moradora de Montparnasse, em Paris, |França.

Mas cá estava ela e cá estava ele, e dentro de poucos minutos estariam frente a frente. E esta cidade, onde nascera, que conhecia apenas como uma vaga nostalgia da sua juventude, de repente ganhava beleza diante dos seus olhos.

Já era dia claro quando deixara o seu apartamento e Maggie, e o avião descolara de Los Angeles. Agora estava no começo da tarde de terça-feira, em Chicago. No céu, o Sol tímido perdera terreno para um bando de nuvens belicosas, ficando o dia cinzento, ventoso e ameaçador. Barrett percorrera grande parte da distância entre o Ambassador East Hotel e o Sanatório de Convalescentes Sunnyside, situado na periferia da Zona Norte de Chicago. Sentia-se animado, cheio de expectativa.

Fechando a vidraça do táxi, expulsou a cidade do seu pensamento; com um pouco mais de dificuldade, pediu a Maggie que esperasse melhores oportunidades futuras de solicitude mental (sabendo que ela compreenderia), procurou não reflectir sobre os esforços infrutíferos de Abe Zelkin naquele dia no tribunal e finalmente dedicou toda a sua concentração no encontro iminente com Cassie McGraw.

Com gesto quase automático, que já se tornara um hábito constante, tirou o bilhete-postal do bolso e releu as palavras em letra miúda dirigidas a Frank Griffith:

Vi no jornal aqui onde eu moro uma notícia sobre seu filho e soube do julgamento e do ataque que o senhor fez contra Os Sete Minutos, pondo a culpa ao autor. Fui amiga de Mr. Jadway. O livro foi baseado em mim. Juro pela vida da nossa filha Judith - que hoje serve Nosso Senhor como freira, tal como o pai outrora serviu a liberdade humana - que Mr. Jadway escreveu o livro como um artista, inspirado pelo amor e desejo de libertar a juventude de amanhã. O livro não podia corromper o seu filho, só melhorar-lhe e salvar-lhe o futuro. Leroux e os outros não conhecem a verdade. Acredite em mim. Tenha dó.

Saudações, CASSIE MCGRAW

Eu acredito em você, Cassie, ele queria dizer e diria, fosse qual fosse a verdade. Mas você acreditará em mim quando lhe disser que o passado não pode mais continuar morto e enterrado? Terá a coragem de abandonar o anonimato, arriscar-se ao escândalo e apresentar-se em público para salvar os vivos?

Você ajudar-nos-á, Cassie?

O carro parou. O motorista desligou o taxímetro e virou-se para anunciar o preço da corrida.

Enquanto procurava a carteira no bolso do paletó, Mike Barrett abaixou a cabeça e espiou pelo vidro. Hospitais para convalescentes não lhe eram estranhos. Sua mãe, nos últimos anos de vida, vegetara sucessivamente em três deles no leste. O que agora via apenas confirmava o que já sabia: que todos possuíam a mesma fachada, aquele aspecto de andar único, comprido,, caiado de branco e recluso - excepto que este era mais elegante e dispendioso do. que a maioria, com vasos de gerânios coloridos de cada lado das grandes portas envidraçadas.

Barrett pagou ao motorista, deu-lhe gorjeta e desceu rapidamente do táxi, caminhando pela curta calçada de cimento e entrando no Sanatório de Convalescentes Suiwyside.

Pelas recordações dos sanatórios que conhecera, vinha preparado para o inevitável odor de urina e detergentes. Para sua surpresa e prazer, o ar estava perfumado de lilases. Subiu a rampa atapetada que conduzia ao amplo corredor principal e à sua frente as portas envidraçadas do pátio interno mostraram que se achava rodeado por caixas de flores completamente abertas -e no meio dessa profusão havia um grupo de mesas matemáticas, protegidas por guarda-sóis de cores vivas. Exceptuando-se um velho de chapéu, suéter volumoso e calças largas, cochilando numa cadeira, o pátio estava deserto.

À mesa de recepção, à esquerda das portas envidraçadas, uma funcionária gordinha, de uniforme impecável, observava-o com curiosidade.

Mike Barrett dirigiu-se-lhe, disse quem era e explicou que acabava de chegar por via aérea de Los Angeles e queria falar com o director do sanatório. Minutos mais tarde, após uma série de indagações pelo sistema de altifalantes, foi conduzido através da sala de fisioterapia, do vasto salão de recreio com o zumbido monótono dos aparelhos de televisão, do quadro de cortiça onde penduravam boletins, até ao gabinete claustrofóbico de Mr. Holli-day, o director.

Parecia um Cristo de barba bem feita, caso o Salvador tivesse sido algum dia contabilista. O seu sorriso fixo era simpático, porém angustiado, um sorriso reservado para visitantes sem hora marcada, mas que podiam ser parentes de possíveis pacientes. Ao falar, passou o dedo pelo distintivo do Rotary Club.

- Veio de Los Angeles - estava a dizer -, para falar comigo? Ou será que entendi mal? O senhor tem alguém aqui connosco?

- Para falar com o senhor e também com uma pessoa que está internada aqui.

- Los Angeles. Estive lá uma vez, há cinco anos mais ou menos, uma convenção - continuou Mr. Holliday, perdido em agradáveis reminiscências, e Barrett logo percebeu que ele tinha estado lá sem a esposa. - Não deu tempo para ver muita coisa, a não ser a Disneylândia e a Knotfs Berry Farm. Grande cidade para sanatórios. Vivem todos lotados.

- Creio que nunca a encarei sob esse prisma - comentou Barrett sorrindo.

- Pois muito bem... - Mr. Holliday afastou a máquina de somar para um lado da escrivaninha e esvaziou o cinzeiro na cesta de papéis. - Vejamos, Mr. Barrett, em que lhe posso ser útil?

- Eu desejava falar com uma das suas pacientes... ou, para dizer a verdade, uma das suas funcionárias. Não sei bem qual das duas.

Mr. Holliday pegara num lápis.

- Como é o nome dela?

- Cassie McGraw.

O director franziu a testa.

- Branca?

- Sim.

- A não ser as duas enfermeiras-chefes, todas as nossas empregadas são de cor. De modo que isso elimina-as. Só pode então ser uma paciente, mas o nome não me diz nada - estendeu o braço e desenganchou um maço de papéis da parede ao lado da escrivaninha. - McGraw, é? Deixe-me ver.

Folheou as primeiras páginas, depois percorreu o lápis pelas listas de nomes que começavam por M.

- Estamos com mais de cem pacientes actualmente no sanatório, porém sinto muito, não há nenhuma McGraw. nem qualquer nome que se pareça remotamente com McGraw. Talvez a pessoa a quem o senhor se refere seja alguém que esteve aqui anteriormente e já não está connosco. Estes sanatórios vivem em perpétua mudança, sabe? Resultado de paranóias e sentimentos de culpa. Gente velha é internada contra a sua vontade e resiste ao que interpreta como abandono e reclusão, imaginando tudo quanto é tipo de perseguição. Quando as visitas, em geral familiares, vêm uma ou duas vezes por semana, escutam contínuas queixas e reclamações contra a administração. Para começar, os familiares têm a consciência pesada e assim são levados a acreditar no que ouvem. Mais cedo ou mais tarde, mudam as mães e pais para outro sanatório, e quando as mesmas reclamações tornam a repetir-se, indefinidamente, é que finalmente terminam entendendo. Não somos nós. É o síndroma da velhice. Portanto é provável que a sua Cassie McGraw já tivesse estado aqui...

- Mr. Holliday, ela estava aqui há duas semanas e meia.

- é mesmo? Então vejamos quem se foi embora no mês passado - abriu uma gaveta da escrivaninha, depois outra, até achar a pilha de papéis que procurava. Passou os olhos lentamente de alto a baixo pela primeira página, franziu a cara e tornou a guardar os papéis na gaveta. - Não esteve ninguém aqui com esse nome há duas semanas e meia, ou em qualquer ocasião do mês passado. Sinto muito, Mr. Barrett. O senhor deve ter-se enganado no sanatório.

Barrett tirou do bolso o bilhete-postal e as fotocópias do Colégio Parktown. Entregou o postal ao director.

- Não é o seu?

Mr. Holliday olhou a fotografia na parte da frente do bilhete.

- É o nosso, sim. Nós damo-los aos pacientes para comodidade, e também oferecemos às visitas como propaganda.

- Vire do outro lado.

Enquanto o gerente fazia isso, Barrett acrescentou:

- Cassie McGraw assinou um dos bilhetes-postais daqui... não há dúvida de que a assinatura é dela... e diz claramente que está a morar no seu sanatório.

- Não está fácil de ler - resmungou Mr. Holliday, tentando decifrar o texto. - É, ela parece ser uma paciente...

- A mensagem, evidentemente, foi escrita por outra pessoa, mas a assinatura é dela mesma. Como é que o senhor explica isso?

O director levantou os olhos.

- Sim. Não tem nada de estranho. A maioria dos nossos pacientes idosos sofre de artrite ou tem mãos trémulas, de maneira que quando querem escrever pedem a uma visita. Para dizer a verdade, várias organizações mandam voluntários para cá com frequência, também para ajudar os.nossos moradores mais velhos nessa espécie de coisa, escrevendo por eles, lendo-lhes em voz alta, distraindo-os; portanto isto foi provavelmente ditado a algum visitante e depois assinado pela própria paciente.

- A maior parte dos voluntários não pertence a uma determinada organização, que me permitisse...?

- Perca a esperança de localizar a pessoa que escreveu isto. Existem dezenas de organizações filantrópicas, centenas de voluntários.

- Mas e a data em que foi escrito?

- Sim, percebo o que o senhor quer dizer. É, vou verificar com a enfermeira-chefe - continuou a leitura da mensagem no postal, e por fim, esforçando-se por lembrar alguma coisa, ergueu de repente a cabeça.

- Jadway - disse ele. - Bem que eu estava a procurar, mas só agora me lembrei. Os jornais vivem a falar nisso. O tal julgamento sobre a censura.

- Eu sou o advogado de defesa - explicou Barrett. Mr. Holliday, subitamente, ficou todo respeitoso e solícito.

- Ora, porque não disse logo? Não é todos os dias que temos celebridades aqui. Claro que farei tudo o que puder para auxiliá-lo - sacudiu o postal. - Isto tem alguma coisa que ver com o seu julgamento?

- Muitíssimo.

E passou imediatamente a descrever os antecedentes de Cassie McGraw, a sua relação com Jadway e a importância que tinha para o caso da defesa.

Mr. Holliday prestou a máxima atenção às explicações de Barrett. Até parecia que estava a assistir a um drama jurídico apresentado pela televisão. Quando Barrett terminou, o director comentou:

- Ena, que mulher, hem? Só que eu acho que nunca tivemos ninguém tão sensacional num lugar como este.

- Porquê? Gente de idade que não tem mais parentes, por mais sensacional, famosa ou infame que tenha sido na juventude, sempre acaba nalgum canto qualquer. Cassie, a esta altura, deve estar com mais de sessenta anos. Talvez esteja paralítica. Há indícios de que não teria ninguém para cuidar dela. Portanto, porque não poderia estar aqui?

- Mas seria fantástico! - exclamou Mr. Holliday com um tom de respeito na voz. - Deixe-me rever a nossa lista de pacientes actuais e recentes. Vou examiná-la como se fosse o próprio mapa do tesouro.

Cinco minutos mais tarde confessava-se novamente derrotado. Não encontrara na lista nenhuma Cassie ou nenhum nome parecido com McGraw.

- Nada? - perguntou Barrett.

- Nada. A única possibilidade restante é de que esteja registada aqui sob o seu nome de solteira.

- McGraw é o seu nome de solteira- replicou Barrett. - Mas ela casou-se uma vez, por pouco tempo, depois da morte de Jadway.

- Bom, então pode ser. Qual era o nome dela de casada?

- Não sei - respondeu Barrett, desolado. - Que me diz do nome de baptismo, Mr. Holliday? O senhor tem alguma Cassie entre as suas pacientes, não importa o sobrenome que possa ter?

- Vou verificar outra vez. - Os olhos do director acompanharam o seu dedo lista abaixo, e por fim denotaram decepção. - Nenhuma Cassie tão-pouco - anunciou.

- Tentemos de uma outra forma - sugeriu Barrett. Estendeu uma das fotocópias ao director. - Cá está uma amostra da caligrafia e assinatura de Cassie na década de 30. E o senhor tem o bilhete-postal com a assinatura actual. Pode ver que não são exactamente iguais, porém bastante parecidas. Não haverá algum meio de comparar estas duas assinaturas com as das suas pacientes? Afinal de contas, de certo modo, uma assinatura é como uma impressão digital.

Mr. Holliday fez um gesto negativo.

- Não, aqui não há. Poucos pacientes assinam os próprios nomes, e mesmo que o fizessem, a letra deles talvez variasse completamente de um dia para o outro. Não guardamos arquivos de assinaturas. Os familiares que trazem para cá encarregam-se em geral de assinar por eles. Quanto a sair por aí hoje de tarde a recolher autógrafo de tudo quanto é velha, eu não poderia. Seria um constrangimento para as que têm dificuldade de escrever, e algumas resistiriam. Ah, mas se o senhor me desse um pequeno prazo talvez...

- Não há tempo para prazos, Mr. Holliday. Só restam alguns dias. Muito bem, desistamos da ideia. Não daria para uma enfermeira ir de quarto em quarto, mostrando as assinaturas a cada paciente? Não quero atrapalhar o serviço, mas isto é tão...

- Sabe de uma coisa? - disse Mr. Holliday. - Eu mesmo posso fazê-lo.

Levantou-se.

- Farei mais... vou mostrar a cada paciente estas assinaturas, perguntando-lhe se as reconhece, e também se o nome de Cassie McGraw lhe é familiar. É capaz de algumas estarem a dormitar, mas vou acordá-las. Pretendo visitar uma por uma, se o senhor não se importa de esperar talvez uma meia hora, mais ou menos.

- Importar-me? Nem sei dizer o quanto lhe agradeço. Oxalá houvesse modo de retribuir-lhe.

Mr. Holliday já estava na porta.

- Há, sim. Se eu encontrar Cassie McGraw para o senhor, basta mandar-me um exemplar de Os Sete Minutos com o seu autógrafo.

Barrett pôs-se de pé.

- Se a encontrar, mando-lhe até dez. Do contrário, creio que não haverá exemplares em parte alguma.

- Se quiser, pode distrair-se assistindo à televisão na sala de recreio.

- Acho que vou dar uma passeata. Estarei de volta dentro de meia hora.

- Venha daqui a quarenta e cinco minutos.

Assim que o director se retirou, Barrett sentou-se, fumou cachimbo, e ficou a pensar. A frustração dava-lhe uma dor quase física. Considerando tudo o que havia passado junto com Maggie para chegar até ali, compreendendo a extensão do que Zelkin e ele tinham em jogo nestas andanças, era de enlouquecer que estivesse tão perto de Cassie e, no entanto, tão longe quanto estivera há uma semana ou um mês.

A porta, por detrás dele, abriu-se. Barrett pôs-se de pé, num salto.

Era Mr. Holliday, enfiando a cabeça no gabinete.

- Não sabia se ainda estava aqui. Acabo de verificar com a minha enfermeira-chefe a respeito da organização de voluntários que esteve aqui há duas semanas e meia. Nunca vi tamanha falta de sorte. Era um bando de senhores de idade, sadios e robustos, que viajavam de camioneta por todo o país e paravam nos sanatórios que encontravam pelo caminho para alegrar e infundir ânimo aos seus companheiros menos afortunados, e depois tornavam a partir. Ficaram cerca de três ou quatro horas naquela tarde. Não há registo do nome do grupo nem de onde veio. Pena. Agora vou perguntar às minhas pacientes.

Desencorajado, mas agarrando-se a uma espécie de esperança indefinida, Barrett saiu finalmente do gabinete do director. O corredor do sanatório agora estava mais

movimentado. Diversas velhas moviam-se vagarosamente com o auxílio de suportes rolantes. Duas andavam em cadeiras de rodas. Uma avançava devagar, agarrando-se ao corrimão da parede. No pátio, afinal, via-se um pouco de | sol, além de meia dúzia de mulheres com xales e roupões de banho, e esparsos homens idosos com bengalas.

Mais uma vez, Barrett sentiu-se esmagado por uma sensação de frustração. Uma dessas mulheres, ou uma daquelas deitadas num dos dormitórios ou enfermarias do outro lado, devia ser Cassie McGraw.

Qual, porém?

A não ser que estivesse decidida a esconder-se do mundo, sem dúvida confessaria a sua identidade ao director, quando ele pronunciasse o seu nome e lhe mostrasse os autógrafos. Já era uma esperança. Que levou consigo ao cruzar o portão e mergulhar na tarde de Chicago.

Caminhou a mais não poder - quantos quarteirões não sabia - até chegar a um bairro comercial e ver a hora. Resolveu então dar meia volta, pondo-se a refazer o percurso do Sanatório de Convalescentes Sunnyside, em passo acelerado.

Ao voltar, demorara cinquenta e cinco minutos, e Mr. Holiday esperava-o do lado de fora do seu gabinete.

- Tudo saiu como eu imaginava, Mr. Barrett - disse ele. - Ninguém reconheceu o nome de Cassie McGraw. Não houve o mais leve resquício de reconhecimento. Ou nenhuma delas é Miss McGraw ou a verdadeira Miss McGraw não quer ser reconhecida. Creio que não adianta, Mr. Barrett. Não sei que outra coisa possa sugerir-lhe. Parece que temos de incluir o nome dela no rol de desaparecidos. Charlie Ross, Ambrose Bierce, o juiz Cárter e agora Cassie McGraw.

- Acho que o senhor tem razão. Apenas me dói confessá-lo- replicou Barrett.

Quando pegou de novo no postal e nas fotocópias, começando a guardá-los no bolso, apalpou o outro maço. Tirou-o, separou uma e depois entregou-a a Mr. Holliday.

- Não lhe mostrei esta, mostrei? Foi tirada de uma fotografia velha, Cassie em Paris em 1930 e poucos. Será que não daria resultado se a mostrássemos às pacientes?

- É pouco provável. Se não quiseram reconhecer o nome, nem identificar o autógrafo, parece-me difícil que mudem de atitude.

- E os seus funcionários? Talvez um deles pudesse notar qualquer coisa nesse rosto que lhe lembrasse alguma paciente.

- Não vejo como, Mr. Barrett. Isto é um retrato de uma moça na casa dos vinte. Duvido que alguém encontrasse a mais remota semelhança entre ela e uma paciente que já tivesse passado dos sessenta ou setenta anos.

Não havia mais nada que dizer, salvo uma coisa - o eterno recurso final do desespero.

- Gostaria de oferecer uma recompensa, Mr. Holliday. Ainda conservava o bilhete-postal na mão, que entregou ao director.

- O senhor não poderia mostrar o bilhete e a fotografia às enfermeiras, dizendo-lhes que em caso de qualquer reacção positiva eu pagarei cem dólares para quem me telefonar para o Ambassador East até ao fim da tarde?

- Olhe, não sei. A maioria das que estão de plantão já viu o postal, e o retrato antigo não vai adiantar nada. Acho que é inútil...

- Só para tentar, Mr. Holliday.

- Asseguro-lhe que quero ajudá-lo. Não seria má propaganda para nós se o senhor encontrasse Cassie McGraw aqui. Mas não creio que esses dois instrumentos de prova possam alcançar maiores resultados. Em todo o caso, só para satisfazê-lo... pois bem, o próximo plantão começa às quatro horas. Vou explicar-lhe o que farei. Vou pendurar o postal e o retrato no quadro de boletins, junto com um aviso, pedindo a todo o funcionário que 'saiba alguma coisa a respeito do postal, ou que reconheça a moça da fotografia, para entrar em contacto comigo, ou se eu não estiver, com o senhor no Ambassador East, deixando bem claro que há uma recompensa de cem dólares. Que lhe parece?

- É o máximo que posso pedir-lhe.

- Não estarei aqui quando o novo plantão começar às quatro horas. Porém virei dar uma olhadela lá pelas oito da noite. De modo que, caso eu saiba de algo que o senhor ainda ignore, entrarei em contacto com o senhor pessoalmente. Embora, francamente, Mr. Barrett, eu acho que seria melhor perder as esperanças.

- Eu sei. - Barrett deixou que o director o acompanhasse na descida da rampa até à porta da rua. Parou antes de sair. - Ficarei no hotel até às oito, Mr. Holliday. Se até lá não tiver notícias suas, voltarei para o lugar de onde vim.

- Não pode ganhar a questão sem Cassie McGraw?

- Não - respondeu Barrett categórico. E cóm esta, foi-se embora.

Às cinco e meia da tarde sentira necessidade de uma bebida, que agora bebia na penumbra do sumptuoso balcão do recanto mais alto do Pump floom do Ambassador East

Perdera a tarde inteira sozinho no seu quarto de solteiro lá em cima, com a lista telefónica de Chicago no colo, ligando para todos os principais sanatórios e casas de repouso em Cook County, repetindo sempre a mesma pergunta monótona - se não havia lá uma paciente chamada Cassie McGraw.

Não havia, não. Nem lá, nem em parte alguma.

Tinha sido um esforço ilógico, sem nenhuma base, e proporcionara-lhe o que já esperava - a mais absoluta falta de informações.

Depois telefonara para Donna em Los Angeles, para que transmitisse posteriormente a Abe Zelkin o fracasso das suas tentativas e perguntar como se estava saindo o sócio com as testemunhas de defesa daquele dia. Zelkin passara pelo escritório durante o descanso do almoço, para verificar se havia notícias de Barrett e deplorar o facto de que as testemunhas de defesa continuavam insignificantes e ineptas, comportando-se como meros alvos para o canhoneio das inquirições de Duncan.

Ao desligar, Barrett sentira-se tão abatido que ficou tentado a ligar para o seu apartamento, só para ouvir a voz de Maggie e receber uma espécie de estímulo. Mas aí já passava muito das quatro horas, e se ia dar-se ao trabalho de esperar no hotel, devia manter a linha desocupada para possíveis chamadas.

Fumara meia bolsa de tabaco, e durante todo esse tempo, o telefone conservara-se mudo.

E assim, após avisar a telefonista sobre o seu paradeiro, descera ao átrio para marcar a passagem no voo de regresso a Los Angeles, dirigindo-se, em seguida ao bar do Pump Room, para ver se adiava ou eliminava a dor.

Estava a beber, sem o mínimo efeito. Pôs-se, então, a pensar se um advogado de meia-idade, derrotado, pobre e sem futuro, tinha o direito de pedir que uma moça como Maggie Russell passasse a vida com ele. Era magnífica, lembrou-se, revivendo o prazer intelectual da sua companhia, a calidez do seu encanto e o ardor que punha no acto sexual. Percebeu que a noite anterior fora a primeira vez em toda a sua vida que experimentara uma relação completa e sincera com uma mulher que era totalmente feminina.

O período com Faye não podia ser encarado sob esse prisma. Tinha sido unilateral. Não era propriamente um homem e uma mulher, mas um garanhão que a enchia de sugestões de normalidade. As outras antes de Faye tinham sido pouco melhores, como duas pessoas a dançar sem música.

Durante anos sentira-se desajustado, como se não houvesse ninguém sobre a face da terra com quem se unir. A toda a hora, na leitura de romances, encontrava relações fantasticamente satisfatórias, que o deixavam deprimido, pois revelavam-lhe que não estava à altura de mulher alguma e não podia encontrar nenhuma relação comparável às cenas de amor descritas nos livros. A maioria deles levara-o a crer que qualquer ligação com uma mulher dependia quase exclusivamente de sexo.

Agora, porém, sabia que esses romances eram fraudes e que fora ludibriado.

Descobrira, na fase de estudos que precedera o julgamento, em que consistia um relacionamento autêntico ou falso entre o homem e a mulher. Na véspera, de facto, verificara o que era verdade, o que era real.

O actual julgamento ensinara-lhe o que havia exactamente de mentira, falácia e ilusão na grande parte das obras de ficção pornográfica, mesmo nas melhores. À porporção que saboreava a bebida, agradecia mentalmente aos seus mentores.

Obrigado, professor Ernest van den Haag, mentor número um, por desmascarar a ficção da pornografia: “O sexo prolífera num mundo vazio quando as pessoas se usam mutuamente como portadoras ou recipientes anónimos, destituídas de amor e ódio, ideia e sentimento, reduzidas a meras sensações de dor e prazer, existindo apenas em (e para) cópulas incessantes sem apreensão, conflito ou relacionamento.”

Obrigado, Jacques Barzun, mentor número dois: “O acto sexual padronizado para consumo literário” começa com uma breve conversa, passa para o sofá ou a cama, faz o homem despir a mulher ou ela mesma se encarregará disso, dá atenção a algum pormenor físico do seu corpo e depois concentra-se na cópula com rapidez militar. “Na maioria das vezes a aventura é bem sucedida, apesar da falta de preâmbulos, considerados indispensáveis pelas obras teóricas; na maioria das vezes não se cogita em consequências”, e “na maioria das vezes não há repetição do acto, ou até de qualquer espécie de conclusão artística, a não ser que se interprete como tal o próprio orgasmo e a descrição superficial do momento em que os personagens tornam a vestir-se... O moderno acto sexual na literatura não passa de uma fábula, de um artifício para corrigir esta ou aquela deficiência da nossa educação e cultura”.

Obrigado, professor Steven Marcus, terceiro mentor: em Pornotopia, onde ele descreve a utopia pornográfica dos livros, a paisagem é formada por “duas imensas colinas brancas de neve... Pouco mais abaixo, o cenário estreita-se e muda de perspectiva. À direita e à esquerda destacam-se dois suaves e alvos cômoros. No meio destes, no ponto de junção, há um mato escuro... às vezes chamado matagal, em forma triangular. Assemelha-se também a uma tampa de cedro que contém um negro abismo romântico. Abismo em que abundam as maravilhas da natureza, centro da terra e habitat do homem”. A essência da pornotopia “é essa imensa, supina, forma feminina... Quanto ao homem, nesse cenário, não faz realmente parte da natureza. Em primeiro lugar, deixa propriamente de ser homem. Reduz-se a um enorme pénis erecto, preso, por acaso, a uma figura humana”.

Eis aí, finalmente desmascarado, o conto da carochinha sobre o homem e a mulher. Precisava, forçosamente, de ser defendido. A pesar de que não se deveria, jamais, acreditar nele.

A realidade, na vida, na literatura, na autêntica literatura, era diversa. Reproduzia, conforme ressaltara o professor Marcus, o modo de as pessoas conviverem entre si, descrevendo os seus sentimentos e emoções em constante transformação, os seus conflitos recíprocos e íntimos. A realidade, no entender de Barzun, era toda a ternura e as hesitações, as sensações e as fantasias do amor. A realidade era exactamente aquilo que a Cathleen de Jadway recordava.

Na noite anterior, com Maggie Russell, Barrett fruíra e sofrera pela primeira vez a realidade numa relação com uma mulher.

Tinha sido mais do que as colinas salientes e o profundo abismo dela, e mais do que o seu pénis erecto, e mais do que as maravilhas no fundo do abismo. Tinham sido as horas de conversa precedentes, a descoberta das coisas que possuíam em comum, os risos, a tristeza, a indignação e um secreto conhecimento de que eram dois seres unidos, especiais, acima do mundo e empolgados por essa sigilosa raridade. Tinha sido o desejo mútuo de ficarem mais próximos, tocando-se, amando-se, confundindo-se num só. Tinha sido a decisão simultânea, o modo de ir para o quarto sem palavras, a precaução com que ela usara um anticoncepcional, o constrangimento inicial dos dois ao verem-se nus, a cicatriz no apêndice dela, o seu pesar por não ter emagrecido antes de conhecê-la, a recíproca falta de jeito, a sua dificuldade em introduzir, o primeiro grito de Maggie, não de êxtase, mas de mal-estar, a vitória de coordenação mútua, o som de um burburinho estomacal na barriga dela, a lembrança passageira de Cassie McGraw e Chicago, que lhe ocorreu antes do orgasmo prematuro, o seu pedido de desculpas, os beijos de Maggie, o que ficaram cochichando depois, o chá com bolachas que tomaram juntos, o que disseram já sonolentos, a respiração ritmada do sono dela e o momento em que se surpreendera a ressonar.

Tudo isso, e tantas coisas mais.

No entanto, embora estivesse seguro do que sentia por ela, convicto de que um nascera para o outro, estava em dúvida e preocupado com os sentimentos dela em relação a ele, sentimentos que deviam durar a vida inteira. Maggie sofrera muita insegurança, desconfiava Barrett, para dedicar o resto do seu amor, da sua vitalidade, da sua capacidade procriadora, das suas oportunidades de estabilidade, dos seus anos de vida, a um homem destinado ao fracasso. Nesta sociedade, um fracassado era apenas um homem pela metade, e ela precisava de um homem completo. Se ele não conseguisse ganhar a questão, sabia que nunca poderia pedir-lhe para que fosse sua companheira, e que ainda que lhe pedisse, era improvável que ela fosse bastante imprudente para aceitar.

Virou-se no banco para pedir uma terceira bebida.

- Mr. Michael Barrett!

Terminou de virar-se, ficando de frente para o maìtre que se aproximava dele. Levantou o braço, Identificando-se.

- Mr. Barrett, há um telefonema para o senhor. Pagou a conta à pressa e saiu atrás do maítre, perguntando-lhe:

- é interurbano ou local?

- Não sei, cavalheiro. Faça o favor de atender na cabina do átrio.

Entrou logo na cabina, tirou o auscultador do descanso e disse quem era.

A ligação era local. Escutou uma voz de mulher.

- Ah, Mr. Barrett.. Eu estou a telefonar a respeito do prémio...

Ficou imediatamente alerta.

- Sim? Quem está a falar?

- O meu nome é Avis Jefferson. Sou uma das serventes do plantão nocturno no Sanatório Sunnyside. Eu estava ocupada antes, por isso só agora vi o aviso no quadro de boletins. Mr. Holliday saiu; então achei que devia telefonar-Lhe directamente. Lá diz que o senhor pagará cem dólares a qualquer pessoa que o auxilie a respeito do bilhete-postal ou do retrato que estão no quadro.

- É exacto... exacto- gaguejou.

- Eu posso auxiliá-lo. A respeito do retrato, quero dizer.

- Reconheceu a mulher da fotografia, Miss Jefferson? Aquele retrato foi tirado há quase quarenta anos.

- Eu já o tinha visto antes, Mr. Barrett.

- Onde?

- Aqui no sanatório. Posso até mostrar-lho. Se é isso que o senhor quer.

Ele estava nas nuvens, livre da atracção da gravidade.

- Meu bem, é justamente o que eu quero! Daqui a pouco estarei aí. Não se vá embora. Chegarei dentro de vinte minutos, sem falta. Espere por mim na mesa de recepção.

Quando ele chegou, Avis Jefferson estava à espera na mesa de recepção do Sanatório de Convalescentes Sunnyside. Apertando-lhe a mão, suplantava-o por uns oito ou (dez centímetros de altura. O negro retinto da pele contrastava com a brancura dos dentes acavalados, ainda mais acentuados pela limpeza do alvo uniforme de enfermeira. Afável, efervescente, logo inspirava confiança. Mike Barrett simpatizou imediatamente com ela.

- Venha comigo - disse-lhe, tomando a dianteira no corredor.

Sentindo-se tão desajeitado como um menino de colégio no seu primeiro passeio, levava o ramo de rosas de haste longa com que esperava cortejar Cassie McGraw, se é que realmente existia, afinal, alguma Cassie McGraw.

Quando dobraram o corredor, Miss Jefferson falou:

- No momento em que via aquela fotografia no quadro de boletins, disse comigo, já vi isto antes. E num segundo me lembrei onde e quando. Foi na Primavera do ano passado, quando andávamos a fazer um pouco de arrumação nos quartos dos pacientes, e foi no 34-A. Eu estava a revistar as malas dela, fazendo um rol e pondo em ordem os seus objectos pessoais, para ver se não havia nada que ela ainda pudesse aproveitar, quando se me deparou um desses álbuns antigos para colar retratos. Assim, só por curiosidade... porque sempre se pensa nas pacientes apenas como gente velha, esquecendo que uma vez também foram moças como nós... olhei para ver como é que ela tinha sido na mocidade. Dentro havia páginas de instantâneos, alguns tirados em Paris... ela disse-me que viajara e morara no estrangeiro, mas nunca tive a certeza de que fosse verdade... e lá estava o retrato dela no meio de dois homens moços, na frente da Torre Eiffel, que me ficou gravado na lembrança porque ela estava com o diabo nos olhos e parecia tão cheia de vida; se é que o senhor me entende. Por isso, quando vi aquilo de novo, no quadro de boletins, onde o senhor pediu que Mr. Holliday o mostrasse, lembrei-me do outro que vira no álbum dela, e uma outra coisa também contribuiu para me avivar a memória. O do álbum tinha um canto rasgado, exactamente como o seu. O que me convenceu por completo.

- O rosto de Jadway estava rasgado?

- Rosto de quem?

- Nunca ouviu falar em Jadway?

- Que me lembre, não. Para ser franca, também nunca ouvi Katie falar em nenhuma Cassie McGraw.

- Qual é o nome com que está aqui registada?

- Katie? Olhe, oficialmente sempre soube que ela se chama Mrs. Katherine Sullivan.

- Sullivan - Barrett saboreou o som do nome de família que por tanto tempo lhe escapara. - Deve ter sido o nome do homem com quem se casou depois que Jadway morreu, o marido que foi morto na Segunda Guerra Mundial. Ela nunca se referiu a ele?

- Sim, mas sem dizer que se chamasse Sullivan. Só algumas vezes, explicando que tinha enviuvado e que, por ísso, a filha se fizera freira.

- Compreendo. Quer dizer então que é Katherine Sullivan. Muito bem, a parte Sullivan está resolvida. Mas onde será que ela arranjou o nome de Katherine?

Mal colocou a pergunta, adiou a resposta. No início do caso, quando estivera dando uma olhadela pelo Empório de Livros de Ben Fremont, encontrara por acaso um volume chamado Escolha o Nome do Seu Filho, que trazia a etimologia dos nomes de baptismo femininos e masculinos, e procurara o dele e o de Zelkin. Aprendera que o nome Michael não era de origem irlandesa, como sempre pensara, mas israelita, significando “o que se parece com Deus”, um dos apelidos sendo Mike, e que Abraham, também de origem hebraica, queria dizer “o pai da multidão”, podendo ser abreviado para Abe. Fascinado, procurara outros, que se tinham tornado familiares na fase de instrução do inquérito, um dos quais era Cassie. Verificou que Cassie vinha do grego e significava “pura -, sendo um dos apelidos de Katherine. E neste momento percebia que uma variação de Katherine podia ser Cathleen, o nome da heroína fictícia de Os Sete Minutos.

Esquecera-se por completo dessa pesquisa arqueológica de nomenclaturas. Agora ficava evidente. Com o seu casamento, Cassie desfizera-se do passado, adoptando até novo prenome, mas prestara homenagem à imortalidade adquirida com o livro de Jadway e à sua entidade de ficção naquelas páginas. E em Cathleen também se apegara por um fio a uma época mais assombrosa, chamando-se Katherine.

Miss Jefferson parou diante de uma porta aberta. Na parede ao lado estavam os números “34 A-34 B”, pintados a tinta. A enfermeira apontou com o dedo.

- É aí dentro.

Ele entrou atrás dela. Havia duas camas de solteiro, bem arrumadas com cobertores castanhos e separadas por um biombo de hospital. Do outro lado das camas viam-se portas corrediças de vidro e cortinas que abriam para o pátio interno.

Miss Jefferson tocou na cabeceira da primeira cama.

- Esta aqui é de Katie - explicou. - Sempre deixamos que ela fique um pouco de pé depois do jantar, antes de trazê-la de volta para a cama.

Barrett examinou o recanto de Cassie, tão distante do Dome de Montparnasse e da Brasserie Lipp. Atravessada aos pés da cama havia uma bandeja móvel, presa em cima de um carro rolante que continha um copo de sumo de laranja pelo meio e outro de papel com pílulas cor-de-rosa. Junto à cabeceira estava a mesa nocturna de metal, com garrafa de água, copo, um rádio de pilhas e um par de óculos.

Barrett virou-se de novo e viu Miss Jefferson ajoelhada na frente de um armário embutido, de onde tirava uma maleta castanha já gasta. Ela abriu-a - as suas costas impediam que ele enxergasse o conteúdo - e depois, com uma exclamação de triunfo, levantou um álbum rectangular de fotografias, encadernado numa imitação de couro azul-marinho.

- Cá está, tal como eu me lembrava - rejubilou-se Miss Jefferson, pondo-se de pé.

Acostumado a tantas decepções, Barrett aventurou uma última dúvida.

- Miss Jefferson, eu estava a pensar. Será que essa tal Katherine Suliivan que vive aqui, dona desse álbum, tem qualquer semelhança com a Cassie McGraw daquele retrato antigo tirado na frente da Torre Eiffel?

- Claro que não. Quem poderia ter, depois de tanto tempo? Veja-me a mim, por exemplo. Por acaso tenho o mesmo aspecto que tinha quando frequentava o colégio? Nem por sombras.

- Então como podemos saber se a fotografia do álbum de Mrs. Sullivan é dela? Talvez seja uma lembrança mandada pela verdadeira Cassie McGraw, que é possível que tenha sido amiga de Mrs. Sullivan.

Os dentes acavalados de Avis Jefferson mostraram-se num vasto sorriso.

- Nunca vi ninguém preocupar-se tanto como o senhor. Não precisa de pôr em dúvida. Ela tem outros retratos aqui neste álbum e por baixo de alguns escreveu há muito tempo coisas deste feitio: “Eu em Paris em 35”... e que são iguais, quero dizer, a mulher que aparece neles é a mesma que está no da Torre Eiffel com os dois homens. O senhor vai ver.

Miss Jefferson começou a folhear as páginas soltas. Repentinamente parou e entregou o álbum a Barrett.

Havia quatro instantâneos nas páginas abertas, dois desbotados e amassados, e o do canto esquerdo era o que ele descobrira na Colecção Sean O'Flanagan. Absolutamente idêntico: O’Flanagan, Cassie e Jadway sem cabeça. O que estava ao lado mostrava Cassie diante de uma construção medieval, com a seguinte legenda escrita à mão: “No Museu de Clichy, Outubro de 1936”. A caligrafia era tão familiar como a da fotocópia do verso do retrato, que ele trazia no bolso. Os instantâneos da página à direita mostravam Cassie sozinha, um, a posar no que Barrett imaginou que fosse a Pont-Neuf, com o Sena ao fundo, e outro em que ela prestava continência para a câmara em posição de sentido, debaixo de uma placa de rua onde se lia “Boulevard St. -Michel.

Esquecido da enorme enfermeira que espiava por cima do seu ombro, Barrett folheou rapidamente o álbum, da primeira à última página. Quase todas estavam vazias. Havia apenas mais uma dúzia de fotografias, no máximo. Dois retratos rígidos que Barrett presumiu que fossem dos pais de Cassie. Algumas recordações da infância - Cassie dos seis aos doze anos de Idade, numa carroça, num trenó, numa árvore. A fotografia de Seàn O’Flanagan, quando jovem, em Paris. Um punhado de instantâneos de Cassie jem Zuricjue, e um em que alimentava os pombos na Praça de São Marcos em Veneza. O instantâneo solitário de uma garota carrancuda, que teria talvez catorze anos, de cabelos crespos rosto sem graça, com o único nome de “Judith” escrito por baixo. Depois um retrato borrado pelo excesso de luz que entrara na máquina, que parecia ser de um soldado iinda jovem, de cabelo à escovinha, sorriso forçado, compleição atarracada, fardado de recruta do Exército dos Estados Unidos. Sem dúvida era Sullivan depois do casamento antes de embarcar para se converter numa baixa de guerra. E. por fim, o último, onde não se via ninguém. Apenas uma porta de entrada, acima da qual, bem-visível, estava o letreiro: “Editora Étoile -18, Rue de Berri.”

Barrett contemplou essa derradeira fotografia e o álbum estremeceu-lhe nas mãos.

Aquilo confirmava tudo. Fechou o álbum. Cassie McGraw, afinal.

Esperou que Avis Jefferson o guardasse de novo na mala, colocando-o dentro do armário.

A enfermeira fechou o armário e aproximou-se mais uma vez, de frente para ele.

- Onde é que ela está? - perguntou Barrett ansioso.

- No salão de recreio - respondeu Miss Jefferson. - Sempre a deixo lá, na cadeira de rodas, depois do jantar. Gosto que tenha um pouco de companhia antes da hora de dormir.

Barrett apanhou o ramo de rosas de cima da cama.

- Vamos - disse.

Estavam de novo no corredor, a caminho do salão de recreio. Miss Jefferson olhou para ele com ar de aprovação.

- Que simpático da sua parte, trazer essas rosas. Quando vi o aviso pela primeira vez no quadro, pensei que o senhor fosse algum parente distante, ou coisa parecida. Desejei tanto que fosse. Porque nunca ninguém vem visitá-la.

Barrett sacudiu a cabeça.

- Ela não tem mais ninguém. A filha está no convento.

- Mas depois aquele bilhete-postal que o senhor pediu para pendurar no quadro de boletins deixou-me intrigada. Procurei informar-me e a nossa enfermeira-chefe lembrou-se de que o senhor era o advogado envolvido no julgamento daquele livro forte lá na Califórnia, e que a nossa Katie Sullivan tinha qualquer coisa que ver com a história.

- Ela foi amante do homem que escreveu o livro.

- Não brinque! A nossa Katie? Aquela velhinha tão simpática? Deus do céu, as coisas que a gente ignora sobre os outros! É difícil de acreditar, vendo-a sentada como qualquer vovó naquela cadeira de rodas.

Um novo pormenor perturbou-o. A cadeira de rodas. Decidiu manter a sua reputação de homem excessivamente preocupado.

- Porque é que ela anda de cadeira de rodas, Miss Jef-ferson? Ela ainda pode caminhar, não pode?

- Já não pode, não. Quando vim para cá a primeira vez, há alguns anos, ela estava a restabelecer-se de uma cadeira quebrada, recebendo tratamento terapêutico e usando muletas. Depois, logo em seguida, caiu de novo, espatifou a mesma cadeira e quase morreu de pneumonia após a operação. Mas ela é forte. Sobreviveu. Só que nunca mais pôde caminhar. É pena, sabe? Porque ficar sentada assim o tempo todo dá uma sensação de fraqueza e desperdício.

- Sim, é uma lástima - concordou.

Barrett já estava a imaginar as dificuldades que teria para transportar Cassie McGraw até Los Angeles e apresentá-la no tribunal, mas achou que seria possível. Talvez, se o preço não fosse exorbitante, Mr. Holliday lhe cedesse os préstimos de Avis Jefferson para cuidar da sua testemunha estrelar. A cada passo que dava, a cada palavra que ouvia, Cassie McGraw aproximava-se mais de se tornar uma pessoa real para ele. Pensou nela, condenada àquela cadeira de rodas.

- O que é que ela faz o dia inteiro? - perguntou. - O que é que ela está a fazer agora... assistindo à televisão?

- Não, ela quase não assiste. Gosta apenas de ficar sentada, sonhando de olhos abertos, como a maioria das que vivem aqui. Às vezes eu gostaria de saber no que é que ela pensa. Uma vez perguntei-lhe, mas ela sorriu-me com aquele seu jeitinho simpático e não disse nada. Bem que eu gostaria de saber...

- Ah, decerto ela fica a recordar os tempos da juventude, o passado. É a única distracção das pessoas velhas.

- Talvez, mas provavelmente não - replicou Miss Jef-ferson. - Pensar muito no passado seria muito duro para ela.

Tinham chegado às portas giratórias que levavam ao salão de recreio.

- É tão triste o modo que isso tem de acontecer, mas Katie, ou Cassie, ou seja qual for o nome que ela tenha para o senhor, já perdeu praticamente toda a memória.

- Perdeu a memória? - Barrett estacou, consternado. | Jamais lhe ocorrera semelhante hipótese. Era o único obstáculo que não antecipara; caiu como um choque. - Quer dizer... quer dizer que ela não se lembra já de nada?

- Ela está caduca - explicou Miss Jefferson. Depois, vendo a expressão do rosto de Barrett, soltou a porta que já havia começado a empurrar. - Que foi?

- Era com a memória dela que eu estava a contar para o julgamento.

- Ah, mas que lástima. O senhor quer dizer então que tê-la encontrado agora não adianta nada?

- Se ela não pode recordar o passado, não.

- Apre, mas que falta de sorte. Bem, nesse caso não posso aceitar o prémio que ofereceu.

- De maneira alguma. Você encontrou-a. Mas ela está caduca? Ninguém mencionou isso antes. Eu devia ter desconfiado quando Mr. Holliday mostrou hoje aquele postal e o retrato a todas as pacientes sem que nenhuma delas reconhecesse qualquer dos dois. Cassie decerto olhou bem para o postal e o retrato sem se lembrar de nada. Contudo... - ocorrera-lhe outra associação de ideias. - Miss Jefferson, diga-me uma coisa. No bilhete que ela assinou e remeteu para Los Angeles, ela lembra-se de tudo, defende Jadway e Os Sete Minutos e refere-se a si mesma como amiga dele. Essa lembrança data de quase quarenta anos atrás. Portanto ela de facto lembrou-se enquanto ditava a mensagem do bilhete. Como se explica isso?

- O senhor nem imagina como são esses casos de caduquice, Mr. Barrett. Na maioria, é como a sua Cassie. Ela está a ficar com as artérias do cérebro atrofiadas. Isso acontece aos poucos mas cada vez piora mais. No começo, a paciente fica confusa e perde a noção de tempo. A memória desfaz-se gradativamente até que um dia se some por completo e ela talvez nem se lembre de quem eu sou. Claro que no caso de Katie a coisa ainda não chegou a tal ponto mas está a aproximar-se. Há só uma coisa terrível a respeito desses casos de caduquice quando chegam à fase em que ela está. Às vezes, em certos dias, elas lembram-se de tudo o que lhes aconteceu há quarenta ou cinquenta anos atrás, mas esquecem a comida que comeram e as pessoas com quem falaram cinco minutos antes. Outras vezes são capazes de lembrar o que houve há poucos instantes, mas não de factos como onde estiveram anos atrás, as pessoas com quem conviveram, coisa nenhuma. Mas na maior parte do tempo o cérebro delas é como o de um cavalo, ouvi um médico, querendo dizer que se um cavalo faz qualquer coisa errada e a gente o castiga dez minutos depois, ele não sabe porque está a ser punido, não se lembra absolutamente de nada que tenha feito de mal. Nenhuma memória, excepto para o que acontece na mesma ocasião. Com a nossa Katíe, é geralmente assim,

- Mas e o postal, Miss Jefferson?

- Olhe, é como eu disse, deve ter sido um dos seus dias de lucidez. Tem dias que, talvez por uma hora ou duas. ela se comporta com certa lógica. Sou até capaz de apostar como sei o que provavelmente aconteceu àquele bilhete-postal. Quando eu ou uma das outras enfermeiras vê que de repente ela está num período de lucidez, sem nada de confusão, lúcida e compreendendo tudo, nós então aproveitamos para lhe ler algum jornal ou revista que está à mão, só para que ela fique sabendo, por assim dizer, que existe um mundo lá fora e o que está acontecendo. De modo que aquele bilhete-postal... Quando é que ele foi escrito?

- Há umas duas semanas e meia.

- Decerto ela estava provavelmente muito lúcida naquele dia, com as ideias bem nítidas, por um curto espaço de tempo, e então eu ou uma das outras leu-lhe a primeira página do jornal, isto e aquilo, talvez um pouco de política, um crime, ou qualquer coisa interessante como o tal julgamento do livro. Uma de nós, no mínimo, leu o artigo sobre o julgamento e ela ficou a pensar no assunto uma hora ou duas até que se lembrou de Jadway e do resto. E quando, seja lá quem for que estava a ler-lhe, teve de parar para ir tratar de outra coisa, vai ver que decerto chegou algum voluntário a perguntar a cada paciente se não podia ajudar em algo, e provavelmente perguntou a Katie. Uma vez que ela andava com aquele julgamento na ideia até se esquecer de tudo de novo, ela deve ter dito: Sim, veja se me consegue um desses bilhetes-postais para escrever uma coisa que lhe vou ditar e depois ponha no correio por mim, endereçando para casa daquele homem com o filho que está metido naquela questão de censura que saiu no jornal... e o voluntário fez tudo o que ela pediu, e foi assim que aconteceu.

Fora assim que acontecera, e agora Barrett compreendia. As suas esperanças, tal como a memória de Cassie, estavam perdidas. Em todo o caso, havia um cérebro que gozava de algumas breves horas de lucidez, um ou dois dias por mês, e se era assim, então também lhe restava alguma esperança.

- Como é que ela está hoje? - perguntou.

- Não sei. Não tive oportunidade de conversar com ela desde que cheguei. Agora é que vamos ver. Posso enxergá-la daqui, lá naquele canto, sozinha na cadeira de rodas na última mesa perto da porta do pátio. Venha junto comigo que eu lhe apresento o senhor.

Avis Jefferson abriu caminho pelo salão de recreio, seguida de perto por Barrett. Depois que passaram pelo grupo aglomerado em torno do zumbido do aparelho de televisão a cores e chegaram ao centro da sala, Barrett teve a sua primeira visão integral da lendária Cassie McGraw.

Já estava preparado, mas sabia que nenhuma preparação jamais é suficiente. Compreendia que a linda e petulante garota da Margem Esquerda em 1930 e poucos já não existia, tal como Zelda Fitzgerald, mas esperava qualquer relíquia reconhecível do apogeu passado. Talvez uma adorável velhinha ainda com traços de uma beleza perdida e de um património boémio.

O que agora via era o resíduo côncavo do que outrora fora uma mulher. Uma anciã, envelhecida de mais para a idade que tinha, com o cabelo emaranhado, branco como farinha, o olhar apático, as faces cavas, tufos esparsos de pêlo grisalho no queixo,- pescoço fino encarquilhado, mãos enrugadas de veias azuis, os pés inchados, toda envolta num roupão azul-claro demasiadamente grande. Estava sentada a uma mesa redonda de madeira, sem ver o centro de frutas de cera, o pátio lá fora, ninguém nem nada, nem sequer o seu próprio íntimo.

A amante de Jadway, a saudável heroína amorosa do romance mais proibido de todos os tempos.

Aquilo era Cassie McGraw.

Barrett largou as absurdas rosas vermelhas em cima da cadeira mais próxima, enquanto Miss Jefferson o conduzia ao outro lado da mesa, para o campo de visão de Cassie McGraw.

- Olá, Katie, como vai? - perguntou ela, puxando Barrett pelo braço. - Veja que moço simpático eu trouxe para conversar consigo. Este é Mr. Barrett, que veio de Los Angeles, na Califórnia, só para vê-la. Não é formidável? Barrett avançou, hesitante.

- Prazer em conhecê-la, Miss McGraw.

Cassie levantou devagar a cabeça, bem devagar, e os seus olhos embaciados aos poucos pareceram fixar-se no visitante. Ficou a olhá-lo por alguns segundos e depois sacudiu de leve a cabeça, bem de leve, os lábios rachados num doce sorriso. Com esse esforço reconhecia-lhe a presença, dando-lhe as boas-vindas. Finalmente, voltou a atenção para um objecto que tinha no colo. Era uma bota de Kleenex, toda amachucada. Os frágeis dedos ossudos começaram a brincar com ela, esfarrapando-a ainda mais.

- Viu como ela sorriu? - exclamou Miss Jefferson, com a euforia de uma recepcionista da USO. - Isto significa que ela está contente com a sua vinda. Sente-se, por favor, Mr. Barrett. Pode continuar, fale com ela. Pergunte-lhe tudo o que quiser.

Barrett aceitou a cadeira, puxou-a para mais perto de Cassie McGraw e sentou-se. Avis Jefferson pegou na outra e fez o mesmo.

- Miss McGraw - disse Barrett, solene - a senhora não se lembra de um homem que foi seu grande amigo íntimo, há anos, um homem chamado J J Jadway, ou Jad, como talvez o tenha apelidado?

Os olhos dela pareciam acompanhar o movimento dos lábios de Barrett, mas não demonstravam reconhecimento nem compreensão, e os dedos continuaram a desfiar o papel Kleenex.

Continuou calada.

- Miss McGraw, quem sabe se a senhora se lembra de um livro que Jadway escreveu. Até o ajudou a publicá-lo em Paris. Chamava-se Os Sete Minutos, Lembra-se?

Ela estava atenta à voz dele e franziu a testa. Parecia interessada mas levemente confusa.

- Miss McGraw, os nomes Christian Leroux e Sean O’Flanagan não significam nada para a senhora?

Ela não respondeu mas parecia estar a mastigar qualquer coisa na boca.

- Ela tem a dentadura frouxa - explicou Miss Jefferson -, e agora está a mexer com ela.

A enfermeira sacudiu o dedo para Cassie McGraw.

- Olhe, Katie, não seja tão teimosa, não se finja assim tão doente. Eu sei que você está muito bem. Este senhor veio pedir que o ajude numa questão que ele tem em Los Angeles por causa do tal livro. Vi com os meus próprios olhos aquele bilhete-postal que você ditou e assinou há poucas semanas. Na ocasião você teve juízo suficiente para assiná-lo com a sua mão, e agora acho que devia dizer a este óptimo rapaz o motivo por que escreveu aquele bilhete.

A velha mimoseou a enfermeira com um sorriso encantador, como se estivesse elogiando a brilhante interpretação de uma cantora. Mas conservou-se calada.

- Katie, você lembra-se da sua filha, não se lembra? - perguntou Miss Jefferson.

Os olhos de Katie cintilaram, continuando com o mesmo sorriso. E com o silêncio também.

Avis Jefferson olhou pesarosa para Barrett e deu de ombros.

- Creio que o senhor está com azar, Mr. Barrett. Como o preveni, é geralmente desta forma que ela fica, o que é normal para este tipo de paciente. Não adianta nada.

Barrett suspirou.

- Acho que tem razão, Miss Jefferson. O que me deixa mais decepcionado é tê-la finalmente encontrado e imaginar quantas coisas não estão trancadas no seu cérebro a respeito de J J Jadway... Ah, paciência. É uma lástima, não só para mim como para ela. Que diabo, a vida é assim mesmo, que se há-de fazer?

Recuou a cadeira para se levantar, quando ouviu um som esquisito, quase de animal, e depois uma voz pastosa perguntando:

- Como vai Mr. Jadway?

Sentou-se logo de novo, de frente para Cassie McGraw. murmurando o nome de Deus em vão, observando o esforço contínuo que fazia para formar palavras com os lábios.

- Como vai Mr. Jadway? - repetiu Cassie McGraw.

- Olhe, ele ia muito bem, muito bem mesmo, pelas últimas notícias que tive - respondeu Barrett imediatamente. Olhou por cima do ombro para Miss Jefferson, que acenava com a mão, cheia de entusiasmo, implorando-lhe para prosseguir. Virou-se para a anciã. - Mr. Jadway ia muito bem. Como é que ele estava quando a senhora falou com ele da última vez?

- Estava tristíssimo por ter de se ir embora de Paris - disse Cassie McGraw com dificuldade. - Nós dois ficámos desolados, mas ele precisava de voltar para casa.

- Ele voltou para casa? Quer dizer que se foi embora de Paris e voltou para os Estados Unidos? - Para a família dele em Conn... Conn...

- Connecticut?

- Ele voltou por causa do pai. Eu fiquei com Judy em Nova Iorque. Achei que talvez... - a voz falhou. Mastigou em silêncio, procurando lembrar-se. - Não, eu não podia ficar. Tive de abandoná-lo. Era preciso.

Os olhos piscaram, os dedos encontraram novamente os papéis esfarrapados no colo e ela pôs-se a espicaçá-los.

Lutando para se controlar, Barrett estendeu o braço e tocou naquela mão magra, que tinha a contextura de pergaminho velho, tentando recuperar a sua atenção.

- Miss McGraw...

Cassie McGraw levantou a cabeça, mas os olhos estavam apáticos.

- O que era que a senhora me ia contar? - insistiu Barrett. - Que se veio embora de Paris junto com Jadway, regressando definitivamente aos Estados Unidos? Que ele não se suicidou? Que voltou para cá para viver com a família dele em Connecticut, mandando que a senhora ficasse em Nova Iorque? E do que foi que a senhora não gostou? De ter de ficar, de estar na América ou de que ele voltasse de novo para a família? É isso que estava a querer dizer?

A expressão de Cassie McGraw era de perplexidade. Os dedos retorciam o Kleenex, mas os lábios não se moviam.

- Cassie, Cassie - implorou-lhe -, nós já estávamos tão perto, quase a chegar. Faça um esforço, por favor. Procure lembrar-se, tente terminar ou ao menos explicar o que começou a dizer. Conte-me, por favor, se Jadway se suicidou em Paris ou se é mentira. Ele voltou para morar neste país, bem de saúde? Veja se se lembra!

Ela ficara fascinada com o ardor de Barrett, como se fosse um preito de devoção e amor, mas o seu doce sorriso parecia um non sequitur.

- Cassie... Katie... esforce-se, esforce-se - suplicou ele. - Diga-me apenas o seguinte: Jadway estava vivo quando toda a gente julgava que ele havia morrido? Ele... ele ainda vive?

Os olhos dela tinham perdido o brilho, e o cérebro, o que dele sobrava, retornara ao limbo.

Não lhe arrancaria mais nada, Barrett sabia. A promessa de raios e trovões, e depois somente o silêncio senil, que se assemelhava ao silêncio dos mortos, mas era pior.

Afastou a cadeira da mesa e ergueu-se, enquanto Avis Jefferson fazia o mesmo.

- Ela estava a procurar dizer-lhe qualquer coisa - comentou a enfermeira -, mas acho que não pôde. A memória bateu asas e voou. Ela ficou simplesmente perdida. Ou será que adiantou algo?

- Não o suficiente, realmente, nada em que eu pudesse apoiar-me, levando em conta a situação dela.

- Pois eu ia sugerir-lhe que se o senhor pudesse passar uma semana ou duas por aqui, talvez a surpreendesse num desses dias em que ela se lembra de tudo, como quando ditou aquele bilhete-postal.

Barrett sorriu desanimado.

- Se eu estivesse a escrever uma biografia, seria possível. Mas estou a conduzir um processo, e já não tenho mais tempo. O julgamento talvez termine depois de amanhã. Creio que estamos fritos - baixou os olhos para a anciã. - Ela foi simpática. Esforçou-se. Muito, até. É uma mulher extraordinária. Deve ter sido sensacional quando moça.

Deparou-se-lhe o ramo de rosas murchas. Foi buscá-lo e trouxe-o de volta.

- Ela merece ao menos isto.

Curvou-se e colocou delicadamente as flores no regaço de Cassie. Ela levantou os olhos com um lampejo de surpresa, depois baixou-os, acariciando as pétalas das rosas, tornou a levantar a cabeça e, pela primeira vez, o seu sorriso teve outra característica. Era travesso.

- Flores - disse Cassie McGraw. - Eu estou a fazer anos?

Miss Jefferson largou uma gargalhada, Barrett sufocou o riso e por fim Cassie McGraw começou a despetalar as rosas, perdendo novamente todo o contacto humano.

Miss Jefferson ainda ria, sacudindo a cabeça, quando se retiraram.

- Esta Katie é um número. O senhor ouviu? “Eu estou a fazer anos?” perguntou ela. Está a ver como ela se lembra? Tem coisas de que se lembra. Todos os anos ela tem flores de aniversário, é a única vez, só no dia do aniversário, e eu acho que é tudo o que as flores agora significam para ela. Por isso ela pensou que estivesse a fazer anos.

O sexto sentido de Barrett ficou logo desperto. Não hesitou.

- Pensei que ela não tivesse mais ninguém no mundo.

A menina diz que ela tem um ramo de flores em cada aniversário? De quem? Quem é que manda? - E de repente: - E por falar nisso, quem é que paga a sua estada neste sanatório?

- Foi o que eu perguntei uma vez a Mr. Holliday. Ele disse que o dinheiro é proveniente de bens-de-raiz, do que sobrou quando foi internada.

- E as flores de aniversário? São da filha? De Sean O’Flanagan? O cartão traz algum nome?

- Mr. Barrett, elas vêm sem cartão, sem nada. Tinham saído do salão de recreio e percorriam mais uma vez o corredor.

Barrett não se deu por achado.

- Se há flores, alguém forçosamente as manda.

- Eu não sei quem é, Mr. Barrett. Tudo o que sei é que são entregues de manhã, em cada aniversário, sem falta, pelos Floristas Milton.

- Onde é essa loja?

- Aqui em Chicago, na State Street.

- Tem a certeza de que é de lá que elas vêm?

- Naturalmente que tenho. E já lhe digo porquê. O garoto que faz as entregas vive entrando e saindo daqui, e é uma graça. Ele e eu andamos sempre com brincadeiras. E cada vez que ele traz o ramo para a Katie... para a sua Miss Cassie... ele insiste sempre em ir junto comigo quando lhe vou dar as flores a ela, para poder cantar Parabéns pra Você. Um verdadeiro maluquinho.

Barrett tirou a carteira do bolso. Separou cinco notas de vinte dólares. Enfiou-as na palma da mão de Miss Jefferson.

- O seu prémio - disse ele.

- O senhor é muito camarada, mas não era preciso, uma vez que...

Mostrou mais uma nota de vinte.

- Não quer também ganhar esta? Só lhe peço para telefonar ao seu amigo, o tal garoto de entregas dos Floristas Milton, perguntando de onde é que as flores de aniversário de Cassie... de Mrs. Sullivan, eu devia dizer., vêm todos os anos. É capaz de fazer isso por mim?

Miss Jefferson tirou-lhe a nota dos dedos.

- Espere aqui mesmo, Mr. Barrett.

Dobrou apressada o corredor e ele ficou à espera, extenuado de mais para fumar o seu cachimbo.

Em menos de cinco minutos, Avis Jefferson estava de volta, ofegante.

- Ainda estou com o meu amigo na linha, porque não tenho a certeza se consegui o tipo de resposta que o senhor queria.

- Que foi que ele respondeu?

- Ele informou-se e disse que as flores para Katie Sullivan são uma encomenda permanente que vem dos Floristas do Capitólio em Washington. Isso não diz de quem elas vêm, que era o que o senhor queria saber, não é?

- Era o que eu queria saber, sim. Quem paga pela encomenda permanente em Washington.

- Foi exactamente o que eu pensei. Perguntei-lhe, e ele disse que não sabe. Mas como já vi que o senhor é simpático e generoso, insinuei que o senhor pagaria a chamada interurbana... pode deixar a importância comigo que eu entrego-lhe... se ele ligasse para os Floristas do Capitólio em Washington, e uma vez que ele está lá sozinho agora na loja, pode dizer que é o dono e ver se descobre. Quer que ele experimente?

Barrett tirou rápido uma nota de dez dólares da carteira e meteu-a na mão de Miss Jefferson.

- Peça ao seu amigo para telefonar para Washington.

- Talvez demore uns dez ou quinze minutos.

- Eu espero.

Ela sumiu-se de novo. E ele, mais uma vez, ficou à espera.

Não conseguiu pensar em nada. Continuou de pé, entorpecido.

Passados menos de dez minutos, viu a figura desajeitada de Avis Jefferson a trotear corredor abaixo em sua direcção. Estava radiante.

- Ele conseguiu, Mr. Barrett. Aquele negrinho esperto dá um jeito em tudo. Ele disse que era o dono, inventou uma mentira qualquer a respeito de estarem no mesmo ramo de negócio e que a informação era muito importante... e eles procuraram lá em Washington, naquela loja de floristas... e disseram que a única coisa que tinham era o endereço para mandar a conta, um nome de mulher e um número de telefone que tinham sido trocados recentemente, porque quem paga a conta é ela, todos os anos, em cheque. Está aqui, veja. Eu anotei.

Entregou-lhe um pedaço de papel. Barrett olhou. Estava escrito: “Miss Xavier, Senado dos Estados Unidos, Prédio Velho, Washington, D. P. Para qualquer chamada, ligue para a telefonista do Capitólio, Código de Área 180, número 224-3121, pedindo depois o número de Miss Xavier: 4989.”

Dobrou-o e guardou no bolso.

- Miss Jefferson, eu seria capaz de beijá-la por isto.

- Não se atreva.

- Onde posso conseguir um táxi? E saiu em grande velocidade.

Vinte e cinco minutos depois, no quarto do Ambassador East, discava o número da telefonista do Capitólio.

Sabia agora tudo o que precisava saber, tudo o que tentara arrancar de Cassie McGraw. Ela contara-lhe uma parte. E por fim perguntara: “Eu estou a fazer anos?” E assim revelara o resto.

Ligara para a telefonista do Senado em Washington e pedira para falar com Miss Xavier, dando o número especial 4989, no Velho Prédio do Senado.

- Um momento, por favor. Vou ver se está desocupado.

Ouviu um zumbido interminável mas ninguém atendeu. Finalmente a telefonista voltou à linha.

- Sinto muito. Miss Xavier já deve ter ido para casa. Parece que não há mais ninguém no gabinete do Senador Bainbridge...

Senador Bainbridge?

- ...mas se for caso de urgência, posso ligar para casa de Miss Xavier ou do Senador.

- É com o Senador que eu realmente quero falar. É urgente, extremamente urgente.

- Vou ver se o localizo. Como é o nome da pessoa que deseja falar com ele?

Reflectiu à pressa e depois, com o ar mais natural possível, respondeu:

- Diga-lhe que é Mr. Michael Barrett. Pode dizer que é Mr. Barrett, um amigo de Miss Cassie McGraw, que está a telefonar de Chicago.

- Michael Barrett. Amigo de Cassie McGraw. Perfeitamente. Não desligue, por favor, vou ver se consigo.

A linha ficou muda, ouvindo-se apenas o zumbido de descarga, e Barrett manteve o auscultador no ouvido, agarrado à sua última esperança.

A telefonista voltou.

- Mr. Barrett?

- Pronto.

- Estou com o Senador Bainbridge na linha. Ele já vai atender. Pode falar.

Houve um instante de silêncio e depois uma voz ríspida do outro lado.

- Alô, quem fala?

- Senador Bainbridge? Aqui é Michael Barrett. Sou o advogado que está a defender o livro de Jadway no julgamento em Los Angeles.

Fez-se uma longa pausa.

Quando a voz na outra extremidade da linha tornou a manifestar-se, a rispidez tinha desaparecido. Denotava cansaço.

- Sim, Mr. Barrett. Estávamos até a estranhar a sua demora em aparecer. Jadway e eu... há muito que esperávamos notícias suas.

 

Miss Xavier, uma mulher baixa, compacta e reservada, de trinta e poucos anos, lustroso cabelo preto caído até aos ombros, uma pele bronzeada que sugeria uma ascendência de índios americanos, lábios sem bâton, estava à sua espera junto da escada rolante no interior do Capitólio.

No momento em que o motorista do Senador se despediu, voltando para o carro, ela disse:

- O Senador Bainbridge, ontem à noite, não sabia ao certo se receberia o senhor aqui ou no gabinete dele no Prédio Velho do Senado. Ele teve de desmarcar dois compromissos. Mas fiquei encarregada de levá-lo ao gabinete, onde ele disoõe de vinte minutos para atendê-lo.

- Obrigado - agradeceu Mike Barrett.

- Vamos descer a escada rolante para tomar a pequena camioneta do Senado.

- Passe, por favor, Miss Xavier.

Ela pisou o degrau e Barrett seguiu logo atrás.

Lembrando-se das rápidas palavras trocadas com o Senador Bainbridge na véspera, percebeu que a única coisa que ficara a saber era que um motorista iria esperá-lo de carro na frente do Mayfiower Hotel às onze menos um quarto da manhã. No entanto, o que havia descoberto antes de telefonar para o Senador fora suficiente. Todas as suas crescentes suspeitas - começando pelo anacronismo de datas do Dr. Hiram Eberhart e pela referência de Sean O’Flanagan a uma conversa com um autor que a essa altura já deveria estar morto - finalmente confirmavam-se.

As trevas cediam lugar à luz ofuscante.

J J Jadway estava vivo.

Depois disso providenciara, de Chicago, uma ligação para falar com os seus associados em Los Angeles, anunciando a assombrosa descoberta a Zelkin, Sanford e Kimura, simultaneamente. Ao ouvi-lo, tinham ficado sem voz, passando depois a um entusiasmo descontrolado e veemente.

- Bravo! Viva!-não se cansava de repetir Zelkin -, você efectuou a Operação Lázaro!

E adoptando um tom de fórmula cabalística:

- Você exclamou: “Jadway, levante-se!” e o morto obedeceu! Mike, você ressuscitou Jadway de entre os mortos!

E os outros três, que nem fanáticos pelo telefone transcontinental, gritaram em coro: - Amém!

Durante trinta minutos, recapitulando passo a passo a caçada de Barrett, pesando cada palavra relacionada com a descoberta, puseram-se a especular sobre a famosa ressurreição de Jadway e a vida nova que se descortinava para todos. Por fim Barrett conseguiu restabelecer uma certa aparência de calma entre os colegas. Pediu que Zelkin o actualizasse sobre a questão do julgamento, para saber exactamente o terreno que pisava quando se encontrasse frente a frente com Bainbridge e Jadway dentro de poucas horas.

Zelkin informara que as testemunhas de defesa se tinham mostrado mais eficazes na parte da tarde. A audiência começara mal quando a Condessa Daphne Orsoni, importada da Costa Brava na Espanha para atestar o bom carácter e motivos de Jadway, se vira forçada a confessar, sob o fogo da inquirição de Duncan, que só conhecera Jadway num baile de máscaras que ela tinha dado em Veneza, onde ele não tirara a máscara nem uma vez, e que não, não podia jurar que o seu convidado fosse Jadway ou que o tivesse “visto”. Depois a autoridade sueca em pesquisa sexual, Dr. Rolf Lagergren, pronunciara brilhante discurso sobre os critérios da comunidade moderna e da atitude do homem médio em relação ao acto sexual, mas fora massacrado pela inquirição de Duncan.

Após arrancar do Dr. Lagergren uma declaração de que Os Sete Minutos era uma descrição exacta, em forma de ficção, dos sentimentos e conduta da maioria das mulheres, na vida real, Duncan citara o relatório da mais recente pesquisa do sexologista para refutar as suas próprias declarações- Nessa pesquisa de mil mulheres casadas e solteiras, o Dr. Lagergren havia apurado que, em cada quatro, três, a imensa maioria portanto, atingia o orgasmo não em sete minutos, mas de um a seis, e que apenas uma, de cada quatro mulheres, demorava sete minutos ou mais - de sete até vinte - para atingi-lo. Percebendo que as suas declarações sobre o orgasmo feminino eram contraditórias, o Dr. Lagergren perdera, por um breve lapso, a calma, afirmando logo que Jadway tinha baseado o seu romance num levantamento sexual anterior menos amplo, e que talvez, sim, talvez o autor houvesse tomado uma certa licença literária. Recobrando o aprumo inicial, o Dr. Lagergren insistira que mesmo que a heroína de Jadway não pudesse ser qualificada de média, usando-se ) prazo de orgasmo da pesquisa mais recente, o retrato dos sentimentos sexuais femininos reflectia a grande maioria. Em seguida à aparição do especialista sueco, a jibliotecária Rachel Hoyt fora chamada ao banco das testemunhas, portando-se de modo magnífico na sua eloquente proclamação da pureza e valor intrínsecos do livro.

Amanhã haveria novas testemunhas, articuladas, como 3 romancista Guy Colfins, para falar em defesa dos méritos de Os Sete Minutos. E depois de amanhã restaria apenas o Dr. Yale Finegood para tentar provar que não era a leitura que provocava violência em gente jovem como Jerry Griffith.

- E aí então, terminaremos a defesa - disse Zelkin pelo telefone interurbano. - Daí por diante a nossa parte estará encerrada, e o que estamos a deixar para o júri não basta, Mike. Ganhámos um pouco de terreno, mas não cobrimos a diferença. Deste jeito, Ben Fremont vai acabar na cadeia e Os Sete Minutos vão directos para a fogueira. Precisamos de uma... só uma... testemunha de arromba para passar à frente. E se essa testemunha for o próprio Jadway, a partida está ganha... a vitória é nossa. Você provou que ele ainda vive. Mas poderá trazê-lo até aqui, para depor por nós?

- Não sei - respondeu -, mas agora que ele foi encontrado, não vejo porque se recusaria a apresentar-se.

- Houve qualquer indicação de que Jadway estará presente quando você falar com o Senador amanhã?

- Nenhuma. Absolutamente nenhuma. Pode ser que esteja. Terei de esperar para ver. Quanto a Bainbridge, ignoro o papel que desempenha, mas, pelos vistos, ele trata, ou tratou, de certos negócios de Jadway. É estranho, considerando-se o facto de que é Senador, que eu nunca tenha ouvido a menor referência a seu respeito. Gostaria de saber alguma coisa antes de o encontrar.

Combinaram que Kimura iria imediatamente à Biblioteca Pública de Los Angeles e depois ao arquivo do Los Angeles Times, comunicando posteriormente a Barrett, no fim da tarde, tudo o que conseguisse apurar.

Depois desse telefonema, Barrett ligou para o seu apartamento e conversou demoradamente com Maggie Russell. Ela exultou com a notícia de que a pista que fornecera para o paradeiro de Cassie McGraw levara, por sua vez, à descoberta de JJ Jadway redivivo. E mostrou-se orgulhosa de Barrett, usando as palavras mais afectuosas, prometendo esperá-lo quando voltasse.

Duas horas mais tarde, Zelkin telefonou-lhe para ler as notas rapidamente colhidas por Kimura. As informações eram escassas.

- O motivo pelo qual você pouco ouviu falar no.Senador Bainbridge é que não há muito tempo que ele está na vida pública - informou Zelkin. - Um dos Senadores de Connecticut morreu... agora me lembro, foi há quatro meses apenas... e o Governador nomeou Thomas Brainbridge para completar o mandato. Na ocasião ele era reitor na Faculdade de Direito de Yale e mantinha uma espécie de ligação com um escritório jurídico em Washington, onde possui uma segunda casa. Antes disso, deixe-me ver, ele foi juiz do Tribunal Regional de Recursos. E antes ainda, presidente de uma grande firma manufactureira... aqui não diz o que manufacturavam. Não tem importância. Quanto ao seu currículo de instrução, formou-se em Yale, e depois, em 1932, defendeu tese de doutorado na mesma faculdade.

Tudo isso na véspera. Faltava pouco para a meia-noite quando Barrett tomou um voo de Chicago para Washington, e, em seguida, um táxi do National Airport até ao May-flower Hotel.

Nesta manhã, aos quinze para as onze em ponto, um motorista uniformizado fora buscá-lo, levando-o pela Pennsylvania Avenue até à colina do Capitólio onde o apresentara a Miss Xavier.

A voz de Miss Xavier devolveu-o à realidade. Estava sob o Capitólio, na camioneta particular do Congresso.

- O Trole de Toonerville - disse, bem séria. - São só trezentos metros daqui até ao Prédio Velho do Senado.

Meio minuto depois, desciam da camioneta e em poucos segundos subiam no elevador. A suite do Senador Bainbridge ficava a curta distância.

Na sala de recepção havia duas escrivaninhas para as secretárias e as paredes eram decoradas com fotografias de paisagens e um enorme mapa em relevo de Connecticut. À direita, Barrett divisou duas outras salas, repletas de escrivaninhas, arquivos e funcionários, masculinos e femininos, brancos e negros. Barrett demorou-se diante | do mapa em relevo, imaginando se encontraria o Senador sozinho ou em companhia de Jadway, e escutou Miss Xavier, ao telefone, anunciando a sua chegada. Procurou disfarçar a ansiedade.

- Sim, Senador, já vou mandá-lo entrar - disse ela. Acenou com a cabeça para Barrett. - Por aqui, por favor.

Aproximara-se da porta de carvalho envernizado e começava a abri-la.

Durante esses segundos, Barrett hesitou. Aquela busca tinha sido tão longa e desesperadora, com tantos cumes e vales, tantos sonhos radiosos e terríveis pesadelos, tanta coisa tangível e um número infinitamente maior de miragens, E do princípio ao fim dessa odisseia, adentrando-so pelo passado, sempre sentira que cada vez se avizinhava mais da sombra de Jadway, que persistia em se esconder atrás da próxima curva... E embora Jadway já tivesse adquirido forma para ele, uma substância, uma pessoa, um companheiro, enfim, que merecia ser salvo e, por seu turno, poderia salvar todos eles, Barrett sempre aceitara, até recentemente, o facto de que Jadway já não existisse, fosse cinza sobre cinzas, pó sobre pós, literalmente, e não de facto uma substância, uma pessoa, um companheiro, um salvador. Mas agora, como havia dito Abe, J J Jadway era real. Lázaro redivivo das cinzas espalhadas sobre o Sena. Mais alguns passos e encontrá-lo-ia, tangível, falando, ouvindo - esse autor estranho e misterioso de um único livro, o mais condenado, o mais proibido jamais criado pela pena de um homem. Ali estaria ele, o amante de Cassie, o pai de Judith, o idealizador de Cathleen, o poeta de um panegírico ao amor que transformara “foder” em palavra que podia ser impressa sem pejo, símbolo de um acto puro. Jadway, esse nome mágico que Duncan e Yerkes invocavam como o “abre-te Sésamo” do poder, esse nome de basilisco que milhares, milhões de fanáticos tinham usado para atear chamas a livros e à liberdade de expressão.

Barrett deteve-se. Sentia-se dominado por uma emoção que lutava por compreender. A mesma emoção que imaginava que o jornalista Henry Morton Stanley havia sentido - após dois meses de busca por toda a África Central de um explorador-missionário escocês desaparecido - no dia em que chegou à aldeia de Ujiji e encontrou vivo o homem que há tanto tempo procurava em vão. “Eu teria corrido ao seu encontro, só que me acovardei na presença de tal multidão... eu tê-lo-ia abraçado, mas não sabia que acolhi-mento teria; por isso fiz o que a covardia moral e o falso orgulho sugeriram como a melhor solução... encaminhei-me deliberadamente para ele, tirei o chapéu, e perguntei: - É o Dr. Livingstone, não?

E Stanley concluía: "Finis coronat opus”. Barrett compreendia: O fim coroa a obra.

Agora queria correr ao encontro de Jadway, abraçá-lo, mas em vez disso encaminhou-se calmamente para a porta de carvalho envernizado que Miss Xavier mantinha aberta.

Cruzou a soleira.

Encontrou um homem, sozinho: o senador Thomas Bainbrídge. Não havia nenhum J J Jadway. Apenas Bain-bridge, Amigo e Intermediário.

O senador Bainbridge estava de pé, recto como se a sua espinha fosse feita de aço - parado junto à escrivaninha, rígido, pálido, distante, imaculado, mais parecendo um quadro pintado por Gilbert Stuart ou Thomas Sully do que uma criatura viva e animada do século XX. Na sua decepção, Barrett percebeu que lembrava um daqueles retratos americanos antigos de juizes nortistas da Guerra Civil, algo semelhante ao ministro John Marshall do Supremo Tribunal. Só que os traços, na sua opinião, eram mais cinzelados que os de Marshall. Dignos de um César, a personificação instantânea de autoridade. Os sedosos cabelos grisalhos estavam repartidos do lado. Testa larga” olhos penetrantes, nariz romano, lábios finos. Tinha altura, peso justo, vestindo com esmero um fato cinzento de corte conservador onde não se via uma ruga. A imagem do austero ianque de Connecticut.

Barrett ficou surpreso quando Bainbridge se moveu. Estendia-lhe a mão.

- É Mr. Barrett, não?

Por um instante, Barrett levou um susto, lembrando-se de Stanley e Livingstone, percebendo que o anfitrião se apropriara da pergunta que lhe competia fazer. Fora pronunciada com ironia ou humor? Ou sem segundas intenções? Barrett não saberia dizer. Apertou a mão estendida, que sacudiu a sua com firmeza.

Ao soltá-la, os olhos de Barrett afastaram-se dos de Bainbridge e percorreram automaticamente a sala, só para se certificarem.

- Não - declarou Bainbridge, impassível. - Achei melhor recebê-lo a sós. Queira sentar-se, Mr. Barrett.

Havia uma poltrona verde-escura diante da escrivaninha esculpida e Barrett ocupou-a. Esperando que o Senador se fortificasse atrás daquela mesa maciça, Barrett pôs-se a examinar - em lugar de revistar - rapidamente o gabinete. Continha uma mesa de conferências, um luxuoso sofá, uma cadeira de encosto baixo e uma otomana, tudo de couro, diversas estantes de livros, uma escultura escarpada de Giacometti sobre uma mesa de abajur, numerosos diplomas e distinções honoríficas penduradas nas paredes e. pela janela ao fundo da cadeira giratória de espaldar alto do Senador, Barrett podia ver o Carroll Arms Hotel do outro lado da rua.

O Senador já estava sentado e o aristocrático semblante não propiciava amenidades sociais.

Barrett resolveu arriscar uma saudação.

- Soube que o senhor foi nomeado recentemente para o Senado. Os meus parabéns.

- Obrigado. Não foi nada que eu procurasse ou desejasse. Apenas um dever. Já leu Tocqueville? Ele chamava ao nosso Connecticut lugarzinho que fornece à América o relojoeiro, o professor, o senador. “O primeiro dá a hora; o segundo diz o que fazer com ela; o terceiro faz as leis e a civilização.” Alguém precisa de fazer as nossas leis. Talvez as minhas qualificações não sejam assim tão raras.

- Pelos seus antecedentes, tenho a certeza de que o senhor está a ser modesto.

Barrett, porém, preocupava-se com o tempo de que dispunha e a melhor maneira de o aproveitar.

- Baseado no pouco que conheço do seu passado, Senador, confesso que me surpreendo de encontrar nele a figura de J J Jadway.

Os olhos de Balnbridge não pestanejaram.

- A vida proporciona estranhos companheiros, Mr. Barrett. Cresci ao lado de Jadway. Pertencemos à mesma confraria em Yale.

- Permaneceu em contacto com ele todos esses anos?

- Mais ou menos.

- Parece-me estranho que o senhor se tenha conservado em contacto com Cassie McGraw... ao passo que ele não...

- é mesmo? O senhor é o advogado de defesa de Os Sete Minutos. Ouvi as calúnias amontoadas contra o livro e o autor. Acha surpreendente que em seus últimos anos de vida ele não queira ser oprimido por um passado que possa tornar insustentável a posição actual que ocupa?

- Se o senhor acompanhou o julgamento...

- Acompanhei, sim.

- ...então sabe que os meus colegas e eu consideramos o livro que estamos defendendo como uma obra de arte, de génio, e que o próprio autor, segundo esperávamos, tivesse tanto orgulho em defender como nós.

- Receio que o senhor seja romântico, Mr. Barrett - retrucou o Senador. - A vida é bem menos. Jadway aprendeu já essa lição.

- É por isso que não quer manter-se em contacto pessoal com Miss McGraw? Por medo de ficar exposto?

- Exacto. Em assuntos ligados a um passado que há muito se enterrou, eu venho, por consideração à sua vontade de permanecer anónimo, agindo em nome dele. Na questão insignificante de uma lembrança anual de aniversário para Miss McGraw, por exemplo. E algumas outras, muito poucas.

Ia ser difícil, Barrett percebeu, e ficou com pena de não ter Cassie McGraw a seu lado, e Abe Zelkin, e Maggie, para ajudar, para enternecer este ianque. Mas os segundos, os minutos, corriam depressa e era melhor que fizesse bom e rápido uso deles.

- Senador, J J Jadway está vivo, não está?

- O senhor já sabia disso antes de me telefonar ontem à noite. Não vi nenhum motivo para negar.

- Eu apenas queria que o senhor repetisse a sua afirmação. Ontem à noite o senhor fez um comentário curioso. O senhor disse que o senhor e Jadway tinham estranhado a minha demora em descobrir que ele estava vivo, dando a entender que ambos esperavam que, mais cedo ou mais tarde, eu entraria em contacto com os dois. Jadway achou que eu o encontraria? O que lhe deu motivo para pensar assim?

Bainbridge curvou-se para a frente, apoiando os cotovelos à escrivaninha e entrelaçando os dedos.

- Desde o momento em que o senhor fez oferta para as cartas de Jadway em poder de Olín Adams, o vendedor de autógrafos, nós desconfiámos que nos poderia encontrar.

- O senhor sabia da existência daquelas cartas?

- Naturalmente, Mr. Barrett. Senão, como poderia tê-las adquirido? Fui eu que as recuperei para Jadway.

Barrett, espantado, endireitou-se no assento.

- O comprador era o senhor? Seria capaz de jurar que havia sido o Promotor Público de Los Angeles que passara na loja antes de mim. Na ocasião o meu telefone estava a ser controlado por Luther Yerkes, um industrial que apoia o promotor Duncan politicamente.

- Yerkes pode ter mais força do que eu. Mas eu talvez disponha de melhores relações.

- Melhores relações. Senador?

- Sean O’Flanagan, por exemplo. Ele soube que as cartas estavam à venda. Achou que convinha informar Jadway. Por isso me telefonou. Eu autorizei-o a comprá-las imediatamente. Mas quando ele tentou, era tarde de mais. Um certo Mr. Michael Barrett já as adquirira e tomaria o avião em Los Angeles na manhã seguinte para ir buscá-las. De modo que eu também tomei o avião para Nova Iorque e retirei-as em seu nome. Perdoe-me, Mr. Barrett. Mais uma vez, lembre-se de que me comprometi a preservar o anonimato de Jadway.

- Mesmo à custa de permitir que o nome dele seja caluniado e difamado?

- O senhor esquece que Jadway está morto. Foi enterrado com o passado. Somente a história se interessa pelo passado. Jadway construiu um novo presente, muito melhor.

Barrett agarrou-se à beira da escrivaninha.

- Senador, enquanto Cassie McGraw e Sean O’Flana-gan estiverem vivos e Os Sete Minutos existir, Jadway nunca poderá esquecer o passado.

Bainbridge desentrelaçou os dedos e levantou-se.

- Cassie McGraw... O’Flanagan... Jadway já se encarregou deles... eu encarreguei-me deles em seu nome. Fiz com que O’flanagan tivesse tudo o que lhe faltava. Primeiro com a publicação trimestral de poesia e depois, quando a revista faliu, dando-lhe um estipêndio anual, suficiente para mantê-lo debaixo de um tecto, com comida e bebida.

- E silêncio.

- Sim, lógico. Quanto a Cassie, tínhamos O’Flanagan para cuidar dela. Quando já não pôde defender-se sozinha, física ou financeiramente, O’Flanagan não dispunha de recursos para que ela recebesse o tratamento conveniente num hospital. Havíamos conseguido isso por intermédio dele até há bem pouco tempo, quando o excesso de bebida o tornou menos de confiança. Mais recentemente, Miss Xavier tem enchido os cheques para remeter a Mr. Holliday e aos floristas. Portanto, como vê, Jadway proveu à subsistência desses dois amigos do passado. E dentro em breve, sendo simples mortais, os dois e ele serão cremados e sepultados como o próprio nome de Jadway o foi em Paris. E assim restará apenas Os Sete Minutos. Que também perecerá quando o júri, em Los Angeles, anunciar o veredicto.

- E Jadway deixará que ele pereça?

- Sim.

- Porquê? Ele envergonha-se do livro?

- Não, Mr. Barrett, ele não se envergonha, não. Às vezes parece-me que até sente muito orgulho dele. Considera-o sincero, verdadeiro, talvez até valioso para certos leitores. Não há dúvida, posso afirmar-lhe, que foi escrito com amor. Mas no fim, a lei da sobrevivência aplica-se tanto aos livros como às espécies. Se o mundo não quer que ele viva, ele terá de perecer.

- Não é apenas um livro que perecerá, Senador. Não quero parecer pomposo, mas acredito de todo o coração que, se esse livro perecer por determinação legal, é uma liberdade humana que se perde na nossa sociedade.

Pela primeira vez, Bainbridge deu sinal de emoção. Franziu a testa.

- O que é que o senhor está a dizer, Mr. Barrett?

- Estou a dizer que existem mais coisas em jogo no nosso processo do que um simples livro - respondeu Barrett apaixonadamente. - Estou a dizer que a liberdade de expressão está em julgamento, isso já aconteceu antes, mas nunca contou com tantos inimigos reunidos de uma só vez. A recente tolerância nas artes tocou os paladinos da liberdade complacentes, cegos. Não notaram a reunião maciça das forças da censura. Chegámos a uma encruzilhada. Se o livro de Jadway for proibido, prevejo o início de uma nova era de obscurantismo.

- Não precisa de me pregar sermões sobre a liberdade, Mr. Barrett. Tudo o que lhe pedi para me dizer foi... O que é que o senhor está a tentar dizer?

- Estou a tentar dizer que agora que sabemos que Jadway está vivo, agora que ele pode revelar os factos sobre si mesmo e sobre o livro, nós imploramos-lhe que o faça. Achamos indispensável, por mais que rompa o isolamento dele. O impacto da sua aparição no tribunal, a sensação do seu depoimento, a revelação da verdade pela primeira vez, tudo pode derrubar o caso levantado pela acusação e proporcionar-nos um veredicto de inocência, derrotando os censores e liberando Os Sete Minutos. Senador, quero que Jadway saiba o que estou a dizer...

- Prometo-lhe que ele ficará a sabê-lo.

 

- ... e quero que o senhor lhe peça para comparecer pessoalmente como testemunha de defesa amanhã em Los Angeles.

- Posso pedir. E também posso dar-lhe a resposta desde já. Será negativa.

- Tem a certeza?

- Absoluta.

Barrett pôs-se em pé, agitado.

- Não consigo entender. Simplesmente não consigo entender. Como é que um homem que realizou um tal milagre de libertação no passado pode agora renegar o milagre e o passado. Como é possível? Que espécie de covardia ou egoísmo é esse? Afinal, que espécie de homem é Jadway?

Tinha percebido que Bainbridge não tirava os olhos dele, escutando cada palavra; e então notou que ele queria responder. Barrett esperou, e o Senador começou a falar, escolhendo palavras com cuidado.

- Vou dizer-lhe a espécie de homem que Jadway é. O senhor compreenderá o motivo que ele tem para não se apresentar em público. Se na mocidade foi idealista, hoje, velho, é pragmatista. Ele sabe que o que convém à maioria, ao bem-estar comum, no fim também convém ao próprio Jadway, uma vez que ele faz parte do todo. Menos que isso, seria comodismo. Pareço-lhe enigmático? Nesse caso solucionarei o enigma para o senhor. Jadway formou-se em Direito junto comigo. Não sentia inclinação pela carreira jurídica. Achava que o seu maior talento era a literatura. Partiu para Paris. Tentou escrever, e sob a influência de Miss McGraw, conseguiu. Sentiu-se feliz por poder realizar mais em prol da liberdade, fazer mais pela libertação da alma humana, através da literatura, do que pela prática da jurisprudência. Mas outras circunstâncias interferiram... não me pergunte quais foram, porque não posso revelá-las... mas como resultado, Jadway viu-se privado da sua carreira literária e também da jurídica. Alguns anos depois, quando surgiu a possibilidade de escolha, já perdera o interesse pela literatura; porém ainda lhe restava a jurisprudência. De modo que voltou a ela, para servi-la da melhor forma possível. E teve êxito. Agora terá ainda mais. Dentro de poucas semanas, digo-lhe com carácter sigiloso, haverá uma vaga entre os juizes da Corte Suprema dos Estados Unidos, e o Presidente já convidou Jadway em particular para aceitar essa nomeação para o Supremo Tribunal.

- O Supremo Tribunal? - espantou-se Barrett. Estava verdadeiramente atónito. - Eu... eu sempre imaginei Jadway como um boémio, tal como ele era no tempo em que morou em Paris, uma vez que foi assim que o descreveram no tribunal. Quer dizer que ele se transformou num homem de tal categoria e respeitabilidade que é elegível na nomeação para o Supremo Tribunal?

- É elegível e será nomeado.

O significado completo da informação fora agora apreendido por Barrett e fez com que ele se aproximasse mais de Bainbridge.

- Senador, o senhor sabe o que isso quer dizer? - implorou Barrett. - Quer dizer que Jadway... ou seja lá qual for o nome que usa actualmente... é cem vezes mais valioso como testemunha do que jamais imaginei que ele pudesse ser. E é cem vezes mais indispensável que ele agora se apresente para nós, para ele mesmo.

Bainbridge começou a protestar, mas Barrett sobrepôs-se e continuou na sua peroração com crescente convicção.

- Imagine como a aparição no tribunal de um homem desse nível, em defesa do seu próprio livro, iria contradizer as acusações - disse Barrett. - Eu explico-lhe o que representaria... ao menos do ponto de vista de um advogado de defesa... representaria um desses incríveis “tiro e queda” que nem... bem, que nem o ponto culminante do julgamento de Lizzie Borden. O senhor lembra-se decerto. O pai e a madrasta de Lizzie tinham sido encontrados mortos, à força de pancadas brutais, hediondas. Tudo, todas as provas circunstanciais eram contra Lizzie Borden. Não obstante, o advogado de defesa levou-a ao banco das testemunhas. Era um gesto ousado, que resultou em magistral. Lá estava Lizzie, a solteirona educada, bem vestida, delicada, uma autêntica dama. E o defensor limitou-se a apontar para ela enquanto se dirigia aos jurados: “Para considerá-la culpada, é preciso acreditar que seja um monstro. Os senhores acham que ela tem jeito disso?” Tinha? Claro que não. Nunca poderia tê-lo, aquela moça recatada. Era inimaginável. Todas as provas foram por água abaixo. Lizzie foi declarada inocente.

Barrett tomou fôlego e depois continuou:

- Senador Bainbridge, se encaixar Lizzie Borden num crime tão medonho era inimaginável, então eu afirmo-lhe que julgar um candidato ao Supremo Tribunal, um homem digno da mais alta estima, um erudito, julgar um homem desses como pornógrafo e fornecedor de imoralidades é impossível. Deixe Jadway comparecer como minha derradeira testemunha, minha testemunha estrelar e será o suficiente. No momento em que eu apontar para ele, o júri saberá que uma pessoa dessas não poderia ter escrito um livro obsceno que depravasse e corrompesse a juventude. Perceberiam, antes que ele respondesse a uma só pergunta, que os seus motivos devem ter sido os melhores. Confiariam em seus valores morais e em seu depoimento. Senador, nós obteríamos a absolvição de Ben Fremont, de Os Sete Minutos, do próprio Jadway, tal como Lizzie Borden obteve...

- Mr. Barrett-interrompeu o Senador -, não é necessário que o senhor me relembre a cada instante as tácticas legais do caso Borden. - E acrescentou, cáustico: - Afinal de contas, eu já fui reitor da Faculdade de Direito de Yale.

Barrett ficou instantaneamente contrito.

- Perdoe-me, Senador. É que é tão raro que uma testemunha tão perfeita venha a...

- Mr. Barrett, por favor, permita-me terminar o que comecei a dizer.

- Pois não.

- Não tenho dúvidas de que Jadway seria a sua perfeita testemunha de defesa. Entretanto, há muito mais coisas em jogo nesta questão do que o seu julgamento. Há uma nomeação para o Supremo Tribunal na balança. A nota oficial sairá brevemente, e o senhor ficará conhecendo a identidade de Jadway, embora ninguém mais fora desta sala, à excepção da nossa querida e senil Cassie e do nosso desnorteado amigo O’Flanagan, saberá que o novo ministro do Supremo Tribunal foi outrora o autor de Os Sete Minutos. Agora, Mr. Barrett, ponha a mão na consciência. Se estivesse no lugar de Jadway, o senhor sacrificaria essa oportunidade de uma vida inteira só para ir até à Califórnia simplesmente defender, num mero processo penal, um livro que tivesse escrito na juventude? Na minha opinião, seria comodismo. Pois asseguro-lhe que se Jadway revelasse o passado no banco das testemunhas, na hipótese de que fosse até lá para salvar a" sua questão de censura, isso significaria a ruína da reputação dele. O convite para aceitar o cargo no Supremo Tribunal seria imediatamente retirado. Sim, o telefonema que o senhor me fez ontem à noite foi transmitido a Jadway com a máxima rapidez. Deixou-o bastante angustiado, provocando-lhe um sério exame de consciência. Não foi o prejuízo que sofreria a sua reputação, a sua ambição, a sua posição social, a sua família que o levou a essa decisão. Foi o seguinte: que ele poderia fazer mais em prol da liberdade do seu assento no mais alto posto jurídico do país, nos anos vindouros, do que sacrificando essa oportunidade a fim de se manifestar numa questão forense em defesa do próprio passado. Foi a oportunidade de defender muitas liberdades, em lugar de apenas uma, que motivou a sua decisão. E digo-lhe que isso não é a escolha de um egoísta, mas de um homem que possui espírito cívico, não uma covardia, mas um acto de coragem. Essa é a espécie de homem que J J Jadway é. E... é por isso que ele não vai comparecer ao julgamento.

Barrett estava absolutamente imóvel. Caminhou devagar até à janela, olhou distraído para a rua, e finalmente voltou à escrivaninha.

- Senador Bainbridge - disse, controlado -, eu acho que Mr. Jadway está enganado. Sei que não posso convencer o senhor, nem a ele por seu intermédio, mas devo dizer-lhe a minha opinião. Eu acho que ele está enganado. Creio que existem outros grandes jurisprudentes capazes de preencher a vaga do Supremo Tribunal com a mesma competência de Mr. Jadway, e que dispensariam sabedoria e justiça tão bem como ele. No entanto, existe apenas um homem sobre a face da terra capaz de salvar esse livro e tudo o que ele representa para o futuro. Acho que é ali que Mr. Jadway deveria travar o seu combate, ali e agora, no meio do povo, onde ele, e somente ele, é capaz de nos salvar, e salvar a si mesmo, recusando-se a repudiar o passado. Acredito plenamente que o passado dele significa mais para o presente, para o dele e para o nosso, do que o futuro. Essa é a minha opinião. E tem mais ainda. Se esta causa for perdida, estabelecerá o precedente legal de que os tribunais crêem que os homens possam ser levados à violência... conforme a acusação sustentou com o exemplo de Jerry Griffith... por uma obra literária. Se isso não for refutado, se esse sofisma for confirmado e se tornar legalmente aceite em nossa época, então todas as palavras faladas ou escritas doravante estarão sob sentença de morte, e os verdadeiros males da nossa sociedade que alimentam e geram a violência encontrarão campo livre para se disseminar até que todos nós, e nossos descendentes, e tudo o que prezamos, sejam destruídos. Obrigado pela audiência, senador Bainbridge. Diga a Mr. Jadway que faço votos para que ele durma bem esta noite.

Estava junto da porta quando a voz de Bainbridge o deteve.

- Mr. Barrett... Ele esperou.

Bainbridge estava de pé, atrás da escrivaninha.

- Farei com que Mr. Jadway leve em consideração tudo o que o senhor disse. Se ele mudar de atitude, entrará em contacto com o senhor.

Barrett tentou sorrir.

- Mas o senhor sabe que ele não vai mudar, não é? O.Senador não respondeu. Parecia estupidificado.

- Creio que o senhor gostaria de saber que na questão de Jadway escrever o livro, na vida que ele levava, no seu suicídio, nos motivos que o arrastaram a esse gesto desesperado, Christian Leroux não mentiu conscientemente. Ele simplesmente não contou a verdade. Porque não sabia qual era. Sabia apenas as mentiras. Tal como o padre Sarfatti. As mentiras sobre Jadway e sobre Cassie. Talvez isso agora tenha importância. Não sei. Mas uma coisa lamento. Lamento que venham a crer que um livro impeliria um rapaz a cometer estupro, a agir com violência. O estupro sempre foi um passatempo para os homens, muito antes de aprenderem a ler. Esse aspecto do resultado da sua causa será lastimável. Mas talvez Mr. Jadway consiga corrigir isso um dia... de outra forma.

- Senador, esse dia nunca virá. Só existe o de amanhã. Adeus.

Descendo à rua, sabia que afinal chegara ao fim de tudo. Quantas vezes não tinha pensado que havia atingido o fundo do poço de desespero? Nem dava para contar. Mas desta vez era o fim mesmo. Não havia outro lugar para ir. O último lampejo de esperança extinguira-se.

Saiu à luz do Sol e percorreu, desanimado, o lance de degraus que o separava da calçada. Depois dirigiu-se para um táxi.

Um garoto que apregoava jornais na esquina chamava a atenção dos transeuntes.

- Leiam as últimas notícias... a mais recente sensação no julgamento do livro sobre sexo em Los Angeles!

A mais recente? Que diabo podia ser?

 

Barrett apressou-se até à esquina, entregou uma moeda ao garoto e desdobrou a primeira página do jornal.

As grandes parangonas de tipo negro chicotearam-lhe os olhos:

MORREU SHERI MOORE!

A VÍTIMA DE ESTUPRO '

NO CASO DE -OS SETE MINUTOS” DE JADWAY

MORRE INESPERADAMENTE. O DEBATIDO LIVRO PORNOGRÁFICO SERÁ JULGADO AMANHÃ

Ficou horrorizado.

A primeira visão que lhe ocorreu foi aquela pobre menina no hospital, morta. Depois pensou no pai, em Howard Moore. E em Jerry Griffith, em Maggie. E finalmente em Abe e em si mesmo.

Minutos antes acreditava ter chegado ao fundo do poço” mas era um fundo falso, pois agora o último alçapão abria-se a seus pés, e descobria que era possível afundar-se ainda mais. E lá em baixo reinava a escuridão - o dia mais negro de toda a sua vida.

Era perto do meio-dia em Los Angeles. No quarto de dormir do apartamento de Barrett, Maggie Russell terminava de secar-se depois de tomar um duche e estava ainda a prender o soutien quando o telefone tocou pela segunda vez em menos de uma hora. Vestida apenas de calças e soutien, correu à sala para atender a chamada.

Para seu alívio, era Mike Barrett a telefonar de Washington.

- Mike, eu rezei para que fosse você - disse ao telefone. -'Queria ligar-lhe, mas não sabia onde é que você estava. Já soube? Quero dizer, a respeito de Sherf... Sheri Moore? Ela morreu durante a noite.

- Sim, eu vi as parangonas do jornal há meia hora.

- Não é uma lástima? Era tão moça. Sinto-me mal. E Jerry está desesperado. E você... eu noto no tom da sua voz... parece tão abatido.

- E estou mesmo. Aquela pobre menina, a Sheri... Nunca falei com ela, mas de qualquer forma, quando ocorre uma coisa dessas, todo o resto parece que não tem a mínima importância.

- Sim, de facto. Não consigo tirá-la da ideia... e, egois-tícamente, continuo inquieta por causa de Jerry também, o efeito que isso terá sobre ele - houve uma pausa. - E estou inquieta por sua causa, Mike.

- Não se preocupe comigo. Claro, estou abatido. Foi uma manhã desastrosa em todos os sentidos, mas pelo menos ainda estou vivo, de certo modo.

- Que é que você quer dizer com isso? Eu pensei que você... bem, descontando tudo o mais que aconteceu, pensei que você tivesse alguma boa notícia. Você ia encontrar-se com o senador Bainbridge e com Jadway hoje de manhã, não ia?

- Falei com Bainbridge. Só isso. Acabo de vir de lá.

- Que aconteceu, Mike? Não me diga que ele não quis...

- Não quis, não. Foi tudo inútil.

- Ah, Mike, que pena. Eu tinha a certeza de que depois que percebessem que você sabia que Jadway estava vivo, haviam de...

- Não é assim tão simples. A única preocupação de Bainbridge parece ser a perpetuação do mito da morte de Jadway. Ele deu-me uma leve esperança. Disse que fará Jadway levar em conta tudo o que eu disse, todos os meus rogos. Mas isso não vai dar nada.

- Você não pode intimar Jadway?

- Onde? Como? De que maneira intimar um fantasma?

- Acho que fiz uma sugestão idiota, mas estou tão preocupada com você que apelo para qualquer espécie de solução - teve outra ideia. - Mike, que foi que houve entre você e Bainbridge?1 Que disse ele? Pode contar-me?

A voz de Barrett parecia tão desanimada que o coração de Maggie se confrangeu, mas estimulou-o a falar e não demorou muito que ele lhe contasse tudo o que sucedera desde o momento em que se encontrara com Miss Xavier no Capitólio até à saída do gabinete do senador.

Depois continuou. Em seguida ao seu fracasso de chegar até Jadway, soubera da morte de Sheri. Tinha regressado ao hotel e, em virtude da diferença do fuso horário, conseguira falar com Zelkin antes que ele saísse para o tribunal. Zelkin também se abalara com a morte de Sheri e ficara arrasado com a recusa de Bainbridge e Jadway em cooperar.

- Como disse Abe. se o autor não era capaz de defender o seu próprio livro e a sua própria vida, como podíamos esperar defendê-lo com êxito? - explicou Barrett. - E a morte de Sheri Moore, aquilo naturalmente afligiu Abe... ele sente a mesma coisa que nós sentimos pela pobre menina. Mas, independente disso, existe a questão de como essa morte influenciará o resultado do julgamento. Abe teve de admitir que ainda que a morte de Sheri nada tenha que ver com os aspectos legais da causa, o efeito emocional que terá sobre os jurados... e você pode estar certa de que um deles, de um jeito ou doutro, terminará sabendo... o efeito que terá sobre todas as pessoas ligadas com o julgamento, hoje e amanhã, vai ser tremendo. Põe o ponto de exclamação final no argumento de Duncan de que o livro Jadway levou Jerry a fazer o que fez com Sheri e foi a verdadeira causa da sua morte. Jadway já não é um desflorador. Agora é um homicida, ele e todos os outros que quiserem exprimir-se livremente.

- E não há mais nada que você possa fazer? - perguntou ela lentamente.

- Ninguém pode fazer mais nada, Maggie, salvo o próprio Jadway. Se ele concordasse em se apresentar, até o emocionalismo que cerca a morte de Sheri podia ser superado. A aparição dele talvez concentrasse toda a atenção do julgamento no livro propriamente dito. Ele poderia obter um atestado de idoneidade para a obra. Deste modo, nós teríamos uma ocasião de mostrar, com provas vivas, que nem o autor nem o livro poderiam causar dano a Jerry, não sendo portanto responsáveis pela morte de Sheri. Mas de que adiantam essas conjecturas? Acabou. Para todos os efeitos, Jadway hoje está tão morto como estava no dia em que o julgamento começou. E quem for da nossa opinião, terá de sofrer as consequências. Os censores estão senhores da situação. Os caçadores de feiticeiras mandam e desmandam. A liberdade de falar, discordar, protestar será cerceada junto com a de ler. Ora, para que continuar? É melhor eu voltar já para o enterro de Sheri.

- Mike...

- O que é?

Ela tinha escutado atentamente, pensando uma porção de coisas, e precisava de fazer uma última pergunta.

- Além do que vai acontecer agora com a sua causa, Mike, esta última reviravolta vai tornar tudo mais difícil para Jerry, não vai?

Ele parecia relutante em responder.

- É- disse, afinal - creio que sim, Maggie.

- Até que ponto?

- Eu quero saber agora, Mike. Já tenho idade. Diga com franqueza.

- Pois bem. Enquanto a vítima esteve viva, Jerry podia ter apanhado de três anos a prisão perpétua na penitenciária estadual, mas visto que ele cooperou com a Promotoria, e o que os psiquiatras provaram e assim por diante, era capaz de se safar com um a três anos no máximo. Com a morte de Shery, porém, a acusação de estupro ficou agravada por homicídio e é provável que ele apanhe... bem, que ele seja condenado a prisão perpétua.

- Perpétua? - Maggie sentiu um calafrio. - não é possível. Não é justo. Eles não conhecem Jerry.

- Maggie, a lei só toma conhecimento do que vê e ouve. Só do que vê e ouve, pensou ela.

- Mike, Jerry descobriu onde eu estava por intermédio de Donna, no seu escritório. Ele mesmo me contou hoje de manhã.

Barrett parecia incrédulo.

- É mesmo? Ele ainda não foi preso?

- Preso? O que é que você quer dizer, Mike?

- Pensei que você tivesse entendido. Enquanto Sheri esteve viva, ele podia ficar em liberdade sob fiança. Agora que ela morreu, é crime, e Jerry terá de ser metido na penitenciária estadual.

Ela sacudiu a cabeça, no telefone.

- Então explica-se. Ele ligou para cá só para falar comigo. Não tem ninguém com quem possa conversar, ue modo que comentámos o que havia acontecido e eu tentei acalmá-lo, terminando por lhe perguntar se ele não podia sair de casa e vir até aqui. Então ele disse que tentaria escapar sem que o pai visse, mas que teria de voltar em seguida. O Promotor Público ficou de passar por lá durante o descanso do almoço, à uma hora, para se encontrar com ele e Tio Frank. Mike, será que Duncan vai prendê-lo?

- Vai. Normalmente, Jerry já devia estar na cadeia. Mas como o pai dele e Duncan se dão muito... bom, acho que foi por isso que a prisão foi adiada por algumas horas. Mas é certo que ele será retido à tarde.

- Então ainda bem que ele está a caminho daqui. Eu queria apenas acalmá-lo, mas agora... Bom, não faz mal. É melhor que eu termine de me arranjar. Você vai voltar hoje?

- A esta altura devo estar com a reserva feita. Irei directo para o tribunal, se chegar a tempo para a audiência. Caso contrário, convém que eu dê um pulo até ao escritório. Falo com você mais logo.

- Mais logo - repetiu ela, incerta. E depois: - Mike, não entregue os pontos. Talvez aconteça qualquer coisa.

- Minha querida, eu acho que esse sujeito lá em cima tem uma determinada quota de milagres para cada filho, e creio que a minha já foi esgotada.

A sua pode ser, sentiu ela vontade de dizer, mas não a minha. Mas limitou-se a dizer “até logo”.

Depois de desligar, ficou parada em pé ao lado do telefone, procurando lembrar-se do que Míke lhe dissera.

“Maggie, a lei só toma conhecimento do que vê e ouve”, tinha ele dito. Mas, Mike, e se ela não viu nem ouviu tudo?

De que modo intimar um fantasma? - tinha ele dito. Mas, Mike, que custa tentar?

Esse sujeito lá em cima tem uma determinada quota de milagres para cada filho.” Exactamente, Mike. Mas talvez eu não tenha esgotado a minha.

Como era que o escrivão dizia sempre no tribunal? A verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, com a ajuda de Deus.

Muito bem, então ajude-me, meu Deus. Chegou a hora de toda a verdade e nada mais que a verdade.

Tentou estabelecer um plano. Quando terminou, quando encaixou cada pormenor em seu respectivo lugar, sentiu-se pronta para começar.

Primeiro, o telefonema interurbano para Washington.

Em menos de um minuto, a ligação estava feita.

- Miss Xavier? A secretária do senador Bainbridge?

- Sim.

- Aqui fala Miss Maggie Russell, de Los Angeles. Agora uma mentira inócua. Eu trabalho para a Agência Griffith de Publicidade. Preciso muito falar com o senador Bainbridge amanhã, da parte de Mr. Griffith, sobre assunto de negócios. Gostaria de saber se é possível marcar uma hora.

- Creio que para amanhã não pode ser, Miss Russell. O Senador não estará na cidade.

- E quando volta?

- Não sei, Miss Russell. A única coisa de que tenho a certeza é que ele partirá de manhã cedo. Naturalmente, é possível que volte de Chicago no mesmo dia. Se a senhora quiser explicar de que se trata, talvez eu possa arranjar...

- Não, não tem importância. Obrigada. Eu telefono-lhe de novo na semana que vem.

Largou o auscultador no descanso.

Então era Chicago. O senador Bainbridge estaria em Chicago. De certo modo, aquilo não a surpreendia nem um pouco.

Esse fora o primeiro passo. Até aí nada de maior.

Agora o segundo. Jerry Griffith. Dentro de alguns minutos ele chegaria, e ela precisava de estar vestida, esperando. Viria confiante, à procura do seu ombro amigo, para chorar e receber as costumadas palavras de consolo. Mas desta vez não, Jerry. Nada de consolos, - nada de fingimentos. E nada de ombros, tão-pouco. Porque precisava dele para outra finalidade, para lhe desfechar o golpe que tinha de sofrer.

Depois o terceiro passo. Howard Moore. Mesmo na sua aflição pela perda da filha, especialmente na sua aflição, ela sabia que ele a receberia.

Finalmente o último passo. Telefonar para o Aeroporto Internacional. Reservar uma passagem para Chicago.

Eis tudo - quando se acredita em milagres.

Dirigiu-se ao quarto de dormir, cantando o estribilho na imaginação.

Califórnia, eu vou... Califórnia, eu vou...

NA manhã seguinte, quinta-feira, dia dois de Julho, um motorista e uma limusina de aluguer, chegados há poucos instantes do Aeroporto Internacional O'Hare. esperavam em frente do Sanatório de Convalescentes Sunnyside em Chicago.

No interior do hospital, além do alvoroço dos funcionários a levarem as bandejas do café dos quartos das pacientes para a cozinha e de dois faxineiros a esfregarem o piso do corredor com desinfectante, encontrava-se aberta a porta do gabinete do director.

Quem saiu primeiro foi o senador Thomas Bainbridge, seguido logo após por Mr. Holliday, que vinha radiante e a desfazer-se em mesuras.

- Não, não, não, Senador - repetia outra vez Mr. Holiday -, esteja descansado, o senhor não perturbou a rotina de modo algum. As nossas horas de visita são sempre flexíveis.

- Obrigado, Mr. Holliday. A minha demora será breve.

- É uma honra, senador Bainbridge. É um prazer. Sei que Miss McGraw... perdão, Mrs. Sullivan... ficará encantada. É a segunda... hã... visita importante que ela recebe em dois dias. Ontem, de Los Angeles...

- Eu sei, Mr. Holliday.

Haviam chegado à porta do salão de recreio.

- Só que, naturalmente, como já o avisei, senador Bainbridge, ela nem sempre se mostra comunicativa. Pode estar lúcida, falar com lógica, mas estas pacientes tendem frequentemente a ser um tanto, bem, um pouco... confusas. Mas se estiver num dos seus melhores dias, o senhor compreende...

- Compreendo perfeitamente, Mr. Holliday.

- Ela acabou de tomar café e a esta hora o senhor dispõe de bastante sossego.

Bainbridge entrou no salão de recreio e Mr. Holliday colocou-se de novo a seu lado.

- Qual é ela? - perguntou Bainbridge.

- A que está na mesa, sozinha, perto da janela do pátio - indicou Mr. Holliday. - Na cadeira de rodas, de casaco cor-de-rosa. A enfermeira está a ajudá-la... Ah, Miss Jefferson! Quer chegar até aqui?

A enfermeira desengonçada veio rapidamente do outro lado do salão.

- Ela já está toda arranjada, Mr. Holliday.

- Óptimo, óptimo. Olhe, Miss Jefferson, eu prometi sossego ao Senador. Não deixe ninguém estorvar.

- Ficarei cuidando disso, Mr. Holliday.

- Bem, Senador... - começou o administrador.

- Se não leva a mal - interrompeu Bainbridge -, gostaria de ficar a sós com ela agora.

- Naturalmente, lógico - desculpou-se Mr. Holliday. retirando-se e levando consigo Miss Jefferson.

Bainbridge continuou parado no mesmo lugar.

Procurou ânimo. Há certas coisas que precisam de ser feitas. Agora já não podia recuar. Tinha de avançar.

Aproximou-se depressa com a grande caixa de bombons.

Quando chegou bem perto, diminuiu o passo, e passou por trás da cadeira de rodas para a não assustar.

Ela estava de olhos fixos no centro da mesa, mas depois sentiu a presença de alguém e virou as faces cavadas para ele, mirando-o de alto a baixo, sem nenhuma reacção.

- Cassie McGraw - disse ele.

Ela não reconheceu o nome nem registou a sua presença.

- Posso sentar-me?

Sem esperar resposta, Bainbridge pôs a caixa de bombons em cima da mesa, atirou o impermeável para as costas da cadeira e sentou-se diante dela.

- O meu nome é Thomas Bainbridge - explicou. - Você não se lembra deste nome, não é?

Estava interessada na fita amarela do invólucro da caixa de bombons. Tentou puxá-la. Ele pegou na caixa e ofereceu-lha. Ela acariciou o laço, mas não a aceitou.

- Trouxe-a para você - disse ele. - Quer que eu a abra?

Ela sorriu com doçura.

Ele tirou a fita, abriu o embrulho e a caixa, e ficou a segurá-la diante dela.

- Não quer provar um?

Ela olhou para os bombons, mas não se mexeu para tirar um.

- Qual é que você prefere? - perguntou ele. - Recheado?

Ela fez que sim.

Escolheu um de creme e entregou-lho. Ela levantou a mão, depois meteu o chocolate na boca e ficou a mastigar, distraída, enquanto continuava a sorrir para ele.

Agora, disse consigo mesmo, agora.

- Cassie - começou -, eu vim aqui numa incumbência especial, numa missão, pode dizer-se, de um homem que você uma vez conheceu e amou, e que a amou e até hoje ainda a ama. Vim aqui em nome de J J Jadway.

Esperou pela reacção que o nome provocaria, mas parecia que ela não tinha ouvido. Estava fascinada pelo alfinete de ouro da sua gravata. Mastigava o bombom e não tirava os olhos do cintilante alfinete.

- Cassie - recomeçou, insistente -, sei que às vezes lhe lêem os jornais e que de quando em quando você assiste ao noticiário pela televisão. Tenho a certeza de que está informada sobre o julgamento em Los Angeles por causa do livro de Jadway... aquele livro que ele escreveu, lembra-se. Os Sete Minutos? Pois, Jadway... tenho a certeza de que você sabe que ele está vivo...

Mas aí parou. Ficou à espera de algum indício de reconhecimento do facto. Não houve nenhum, mas o olhar passou finalmente do alfinete para o seu rosto. Julgou que talvez estivesse pronta para ouvir.

- Você recorda-se como permaneceu em Paris e fez o que ele lhe pediu para fazer - continuou a dizer -, e como ele voltou para a levar a Cherburgo, e os dois regressaram juntos para Nova Iorque? Tinha ficado tudo combinado. Ele devia ser considerado morto. Mas você e eu... e Sean... sabíamos que não era verdade. Foi o nosso segredo. Mas agora esse advogado de Los Angeles que esteve aqui ontem descobriu que Jadway está vivo e quer que ele se apresente como testemunha no julgamento. Para Jadway, não podia haver decisão mais terrível. Mas ele tomou-a. Ele não pode aparecer naquele julgamento, Cassie. Porque o Jadway que você e eu conhecemos antigamente já não existe e ele não vê vantagem nenhuma em destruir o presente para salvar alguma coisa do passado. Depois que tomou essa decisão, só havia uma única preocupação para ele. Você, Cassie. Um dia, talvez você viesse a saber que o julgamento tinha sido perdido e que ele não estivera lá para defender o passado e tudo aquilo em que vocês dois acreditaram. Ele queria que você soubesse que o passado não pode ser revivido... que parte dele há-de sempre existir no íntimo de ambos, mas não pode jamais ressurgir por completo, consumindo todo o presente. Ele queria, Cassie, que você soubesse e compreendesse - Bainbridge fez uma pausa. - Eu só vim dizer-Lhe, em nome dele, para que você pudesse realmente compreender e perdoar Jadway.

Ela engoliu o último naco de bombom e moveu os lábios.

- Quem é Jadway? - perguntou.

Ele endireitou-se no assento e permaneceu imóvel. Finalmente vergou o corpo de leve. Pensou: Agora parte-se este coração amante. Pensou: Boa noite, querido príncipe...

- Quem é Jadway?

Levantou e baixou a cabeça.

- Exacto, Cassie. Quem é Jadway? Ele está morto, não está? Morreu há muito tempo em Paris. Você tem razão, e ele também, em deixar o passado enterrado.

Ela sacudiu inexpressivamente a cabeça e sorriu. Bainbridge pôs-se em pé e tirou o impermeável da cadeira.

- Adeus, Cassie - disse baixinho.

Não soube bem se ela teria ouvido. A sua mão definhada já se estendia para a fita da caixa de bombons.

Afastou-se sem ruído.

Quando chegou de novo ao corredor, deu graças a Deus por não encontrar Mr. Holiday. Dirigiu-se à mesa da recepção, tirou o sobrescrito comprido do bolso e entregou-o à recepcionista.

- É um cheque - disse. - Aplique-o, por favor, na conta de Mrs. Sullivan até ao fim do ano.

E saiu, A limusina estava à espera e o motorista saltou do assento para abrir a porta traseira.

Reparou então que outra porta de carro se abria - a porta de passageiro de um táxi estacionado logo atrás da limusina. Uma moça bonita, de fofos cabelos negros e olhos cinza-esverdeados, viva, desembaraçada e veemente como Cassie era antigamente, descera para a calçada e parecia apressar-se na sua direcção.

A poucos passos da limusina ela deteve-o.

- Senador Thomas Bainbridge - disse, sem nenhuma interrogação na voz.

- Sim, sou o senador Bainbridge.

- Estive à espera do senhor durante os últimos quinze minutos - explicou. - O meu nome é Margaret Russell. Vim de avião de Los Angeles para falar com o senhor. É a respeito do julgamento de censura que termina hoje à tarde em Los Angeles. Não, não fui mandada por Mike Barrett. Foi Jerry Griffith quem me pediu que viesse.

- Jerry...?

- O rapaz que depôs que tinha sido o livro de Jadway que o impeliu a... a violar a moça, a moça que morreu ontem. Já sabia?

- Sim, naturalmente que sabia.

- Pois eu vim em nome de Jerry, porque o senhor é a única pessoa que ainda pode salvá-lo.

- Mas, menina, como é possível que eu possa salvá-lo?

- Fazendo com que J J Jadway vá hoje a Los Angeles, sem falta, para falar com Jerry, e depois...

- Mas, menina, eu não tenho a mínima ideia de quem a menina seja. E não vejo nenhum motivo plausível para tentar convencer Mr. Jadway a...

- Se escutar o motivo que eu tenho... não só por causa de Jerry, mas por causa de Cassie também... Por favor. Senador, o senhor não quer ao menos escutar?

Olhou bem para ela e viu o mesmo semblante, a mesma dedicação que Jadway devia ter visto na Cassie de tantos anos atrás.

- Está bem - concordou mal-humorado -, pode vir no carro comigo até ao aeroporto. Mas, seja lá o que for que me possa dizer, acho que posso garantir-lhe que está a perder o seu tempo. Agora entre. Tenho de apanhar o avião.

 

Em Los Angeles, o julgamento tinha sido suspenso provisoriamente e o intervalo para o almoço recém-começara.

No sexto andar do Palácio da Justiça, dentro da saleta particular do Promotor Público, contígua ao seu gabinete, os quatro reuniram-se alegremente para saborear uma refeição do meio-dia que o eufórico Luther Yerkes mandara buscar ao Restaurante Scandia.

Yerkes havia chegado cedo, antes do intervalo e antes que a imprensa e os espectadores terminassem de retirar-se da sala do tribunal. Agora, ostentando uma nova peruca acaju, óculos de lentes azuis, amplo paletó desportivo azul-claro com botões de medalhão, e calças de Verão azul-marinho. achava-se agachado como um Buda festivo em cima do sofá cinzento com capa de linho, dedicando-se ao prato de Kaivfilet Oskar - costeletas de vitela com pernas de caranguejo^- colocado sobre a mesa baixa de mármore à sua frente. Recostados em poltronas, de cada lado, com os pratos no colo, estavam Harvey Underwood e Irwin Blair. Somente Elmo Duncan não ficara sentado. Tinha comido apenas uma pequena porção do Kaivfilet Oskar e depois voltara impaciente às suas notas grampeadas que haviam ficado em cima da caixa cor de nogueira do rádio.

Mastigando sem parar, Yerkes percebeu o Promotor Público concentrado em suas notas.

- Elmo, você devia terminar de comer... - começou Yerkes.

Duncan levantou os olhos.

- Comer de mais prejudica o meu raciocínio - respondeu. - Acho que temos uma grande tarde pela frente.

- Não há nada para você se preocupar, ora - retrucou Yerkes. - Você esteve um colosso. O caso está no papo.

Duncan caminhou até ao centro da sala.

- Só está no papo quando o primeiro jurado diz: “Culpado”- depois sorriu. - Mas acho que estamos em boa forma. Eles não têm mais testemunhas. Estou certo de que Barrett vai declarar a defesa encerrada hoje à tarde. É melhor eu ficar pronto para expor as minhas considerações finais ao júri.

Bateu de leve nas notas.

- Sei que vocês já me ouviram ensaiar isto duas ou três vezes...

- Quatro - corrigiu Irwin Blair com um sorriso. Duncan ignorou-o.

- Há alguns pontos que eu gostaria de retocar. Não se importa que experimente com você?

- Adoraria ouvi-los - respondeu Yerkes, limpando a boca com o guardanapo. - Cada sílaba para mim é puro ouro. Pode falar, Demóstenes.

- Em primeiro lugar, o trecho em que analiso o depoimento do Dr. Trimble sobre a relação entre pornografia e conduta anti-social. Gostaria de reforçar esse trecho, citando pelo menos uma outra autoridade. Qualquer coisa neste estilo. - Duncan pigarreou e assumiu automaticamente a posição de orador. - Os achados de numerosos psiquiatras apoiam a opinião do Dr. Roger Trimble. Entre os mais respeitáveis, encontra-se o Dr. Nicholas G. Frignito, chefe de psiquiatria do Tribunal Municipal de Filadélfia. Foi o Dr. Frig-nito quem declarou a uma comissão do congresso que cinquenta por cento da totalidade dos delinquentes juvenis têm acesso à literatura libidinosa ou materiais semelhantes. Foi ele quem disse: “A actividade anti-social, delinquente e criminosa resulta frequentemente de estímulo sexual fornecido pela pornografia. Esse estímulo sexual anormal cria uma tal necessidade de expressão que é inevitável a sua satisfação por meios indirectos. Moças fogem de casa e lançam-se na prostituição. Garotos e adolescentes... ficam sexualmente agressivos e geralmente incorrigíveis.” Neste mesmo tribunal os senhores viram e ouviram um rapaz decente, que foi transformado num animal sexualmente agressivo e incorrigível por um livro, um livro chamado Os Sete Minutos.

Duncan fez uma pausa e o seu tom ficou informal.

- Depois entro com o que você já conhece do meu ensaio anterior, dramatizando o que o livro fez com Jerry Griffith.

- Óptimo - aplaudiu Yerkes.

- Também gostaria de me antecipar a Barrett e passar-lhe a rasteira antes que comece, como sem dúvida começará, a invocar as garantias da Primeira Emenda e o modo como estamos procurando suprimir a liberdade de expressão. Assim, por exemplo - retomou a pose de orador. - Ao condenar Os Sete Minutos não procuramos reprimir as liberdades a que se refere a Primeira Emenda. Pois quero deixar claro que esse livro sórdido não se acha incluído na protecção da Primeira Emenda. O facto é que na opinião expressa pela maioria do Supremo Tribunal no famoso caso de Samuel Roth em 1957, o ministro Brennan declarou com firmeza que a Primeira Emenda não garante liberdade de expressão aos distribuidores de material obsceno. “A protecção dada à expressão e à imprensa destina-se a assegurar o livre intercâmbio de ideias que favoreçam a consecução de mudanças políticas e sociais desejadas pelo povo... Todas as ideias que contenham a menor importância social compensatória - ideias pouco ortodoxas, controversas, até mesmo odiosas ao clima de opinião predominante - contam com a protecção máxima das garantias... Porém...”

Duncan fez uma pausa dramática, deixando a última palavra suspensa sobre os seus ouvintes, com uma figura oscilante à beira de um precipício, e depois, retomando-a, salvando-a, prosseguiu:

- Porém implícito na história da Primeira Emenda” declarou o ministro Brennan, sempre porta-voz da opinião da maioria do Tribunal, “está o repúdio da obscenidade, totalmente destituída de importância social compensatória. Esse repúdio encontra-se espelhado pelo julgamento universal de que a obscenidade deve ser refreada, expresso pelo acordo internacional de mais de cinquenta nações, pelas leis contra a obscenidade de todos os Estados e pelas vinte leis contra obscenidade decretadas pelo Congresso desde 1842 até 1956... Nós afirmamos que a obscenidade não pertence ao âmbito de expressão ou imprensa constitucionalmente protegidas."

“Senhoras e senhores jurados, durante os dias deste julgamento, vimos procurando demonstrar-lhes que este livro. Os Sete Minutos, é completamente obsceno, totalmente destituído de importância social compensatória, estando, por conseguinte, fora da protecção garantida pela Primeira Emenda da nossa Constituição. Confiamos ter provado que este livro merece ser censurado... de facto, banido para sempre da sociedade civilizada - olhou para os outros. - Que tal lhes parece."

- Formidável, o tiro de misericórdia, é para arrasar- regozijou-se Blair. - Pode contar até dez mil em cima de Barrett que mesmo assim ele não se levanta.

- Excelente - confirmou Underwood.

Yerkes pôs a mão em concha sobre o palito de ouro.

- Eu estou mais interessado no fecho das suas considerações finais. Você ia deixá-lo mais contundente.

- E deixei - disse Duncan.

Dirigiu-se ao rádio, largando-lhe em cima as notas, e voltou ao centro da sala, esfregando as mãos secas.

- Estão prontos? Aí vai.

Empertigou-se todo e começou a falar para o júri Invisível:

- Senhoras e senhores jurados, o Estado acredita piamente que este livro foi feito por um autor com o olho lúbrico do pornógrafo e do comerciante profissional. Em apoio desta afirmação, expusemos aqui a mentalidade cínica e doentia, a mentalidade sádica, desse pornógrafo e de todos os outros vampiros depravados iguais a ele. Nós conduzimo-los a vocês numa viagem por um mundo subterrâneo onde vive, como certa vez disse o senador Sinoot a propósito do autor de Ulisses, “um homem de mentalidade tão corrompida e alma tão negra que até escureceria as trevas do inferno”. Esse homem é o pornógrafo cuja única vocação é sobreviver, enriquecer mesmo, e encontrar prazer com a degradação do amor. com a exaltação do pecado, contaminando os inocentes com a lascívia... e que, com cada palavra suja, continua a estuprar a Musa. Esta é a mentalidade que perverte os jovens, escarnecendo a advertência de Cristo de que “ai de quem manchar a consciência de um desses inocentes que crêem em mim, pois faria melhor afogar-se nas profundezas do mar com uma pedra pendurada ao pescoço”. Este é o pornógrafo que, caso for tolerado, sabemos pelas autoridades mais eminentes, transformará a nossa sociedade num mundo ainda mais “vulgar, brutal, angustiado, indiferente, desindividualizado, hedonista."

“Sabemos, de facto, pelo depoimento da nossa ilustre testemunha da França, Christian Leroux, e da nossa digna testemunha do Vaticano, o padre Sarfatti, que J J Jadway se enquadra perfeitamente nessa categoria, tendo sido pornógrafo confesso, disposto a transformar a nossa sociedade num mundo ao mesmo tempo vulgar e brutal. Que ele fosse uma das primeiras vítimas da sua própria obra desabonatória não é o aspecto que hoje nos preocupa. O que nos interessa é que a obscenidade que ele criou não fique ao alcance de novas vítimas. Sabemos, para nosso pesar, que este livro acaba de reclamar mais duas, convertendo Jerry Griffith num criminoso sexual contra a sua própria vontade e destruindo uma moça inocente, Sheri Moore. Quantas ainda os senhores permitirão que este monstro de obscenidade, este livro vil, este livro de J J Jadway, continue reclamando? Imploro-lhes que salvem os seus filhos, os seus lares, a própria sociedade, o próprio mundo, o seu e o nosso, algemando este monstro enquanto é tempo.

“Senhoras e senhores jurados, deixo em suas mãos o encargo de fazer justiça neste caso, ciente de que ao proceder assim, desobrigando-se deste acto de justiça, dormirão com a consciência mais tranquila, porque o mundo dormirá mais seguro depois do seu veredicto. Senhoras e senhores, obrigado."

Yerkes pôs-se em pé num salto, seguido por Underwood e Blair, cada qual aplaudindo com o maior entusiasmo.

Duncan, ainda inflamado, sorriu meio desajeitadamente. Depois, olhando-os nos olhos, disse:

- Estou a falar sério, sabem? Pesei cada palavra... Então, alguma sugestão?

- Só uma - respondeu Yerkes. - Acho que estamos prontos para a nossa sobremesa.

Noutro canto do sexto andar do Palácio da Justiça, no recinto privado da sala de conferências que a defesa usara frequentemente durante os intervalos de duas horas para almoço, os cinco haviam desabado em torno da mesa em várias atitudes de desânimo.

Aquilo era para ser uma refeição, mas para Mike Barrett mais parecia um velório.

Taciturno, Barrett, sem tocar no prato à sua frente, contemplou primeiro Zelkin e Kimura, depois Sanford e Fremont, que mastigavam sanduíches e bebiam o último golo do café tépido ou dos refrigerantes sem gelo.

Zelkin empurrou o seu prato para o lado.

- Olhe - disse ele -, este não é propriamente o comício de vitória mais optimista a que eu já compareci.

- Você acha que alguém pode estar a dar urras? - perguntou Sanford.

Zelkin puxou para mais perto de si o gravador portátil.

- Bem, há as considerações finais que Mike ditou nas primeiras horas da madrugada. Parece-me um colosso - dirigiu-se ao sócio. - Não se importa que eu comece desde o início? Talvez nos dê uma injecção de ânimo.

- De que vale a injecção - replicou Barrett-, se o paciente já morreu?

- Em todo o caso, vamos escutar - insistiu Zelkin. - Pode ser que nos venha alguma ideia.

Premiu a tecla e a fita pôs-se imediatamente a girar. As considerações finais gravadas por Barrett saíram num tom metálico pelo minúsculo altifalante.

- O comportamento da defesa nesta causa norteou-se pela sabedoria dos espíritos jurídicos mais esclarecidos do nosso tempo - anunciou a voz de Barrett na fita. - Foi o ministro Douglas, do Supremo Tribunal, quem escreveu: A ideia de usar censores para impedir pensamentos sexuais é perigosa. Uma pessoa sem esse tipo de pensamento é anormal. Os pensamentos sexuais podem induzir a práticas sexuais que melhorem as relações conjugais. Pensamentos sexuais que tornem o amor atraente certamente não deveriam ser proscritos. Se incluem o que é ilícito, isso não implica diferença constitucional. Pois a educação a propósito do ilícito pode muito bem estimular as pessoas a procurar as suas experiências no conúbio e não em outros lugares."

“Assim falou um ministro da Corte Suprema dos Estados Unidos. Não ter pensamentos sexuais é anormal. Tê-los é normal. Usar leis contra a abscenidade para cercear pensamentos sobre o sexo é perigoso. Proibir uma obra de arte por encorajá-los é uma ameaça à saúde da nossa sociedade.

Este tem sido o ponto sustentado pela defesa durante os dias deste julgamento.

“Não foi apenas o ministro Douglas quem definiu a nossa causa. Em 1957, como consequência do famoso caso Roth, outro ministro do Supremo, o ministro Brenna, declarou o seguinte: "Sexo e obscenidade não são sinónimos. O material obsceno é o material que trata o sexo de um modo que atrai o interesse libidinoso. O retrato do sexo... em arte, literatura e obras científicas, não constitui, de per si, razão suficiente para negar ao material a protecção constitucional de liberdade de expressão e de imprensa. O sexo, grande e misteriosa força motriz da vida humana, sempre foi, indiscutivelmente, assunto de palpitante interesse para a humanidade; é um dos problemas vitais de interesse humano e preocupação pública".”

Barrett estremeceu ao ouvir as palavras do seu próprio ensaio, mas Zelkin continuava fascinado. Mexeu no gravador, correndo a fita para diante, parando-a, recomeçando.

- Há uns trechos que estou a tentar... Espere, já achei. Quero escutar esta parte de novo, Mike. Onde você comenta as fantasias que os livros pornográficos inspiram. Prestem atenção.

O discurso gravado por Barrett encheu a sala.

- Senhoras e senhores jurados, do banco das testemunhas todos ouviram o ilustre psiquiatra, Dr. Yale Fine-good, falar sobre os efeitos inócuos da pornografia. O efeito mais sinistro dessas leituras, segundo esse depoimento, é o de conjurar fantasias no espírito do leitor. Com relação a esse ponto, dois psicólogos ingleses formularam a pergunta: O que há de tão terrivelmente errado sobre a fantasia erótica e a disseminação de material, até mesmo chocante, que nutre o desejo da pessoa sexualmente imatura por essas fantasias? Eis aí uma pergunta importante. Antes de responder, talvez fosse conveniente indagar a que tipo de conduta essas alucinações levam o leitor. Sabe-se que o grande diarista Samuel Pepys leu um livro pornográfico em 1668. ficando extraordinariamente excitado por ele. O livro, publicado três anos mais tarde, era L'École des Filies, de Michel Millilot. A história consistia num diálogo entre duas mulheres, uma virgem e a outra com vasta experiência em relações sexuais. Pepys definiu-o como “um livro tremendamente lascivo”, porém leu-o até ao fim e depois escreveu que o deixara em erecção e o excitara bastante para fazê-lo masturbar-se. Esse efeito ocasional de leitura de um livro lascivo foi compreendido por outra figura literária, o Conde de Mirabeau, estadista que desempenhou importante papel na Revolução Francesa e veio a ser presidente da Assembleia Nacional em 1791. Quando prenderam Mirabeau por ter fugido com a esposa de dezanove anos de um marido de setenta, ele procurou mitigar o tédio do encarceramento, escrevendo, simultaneamente, tratados sociais e livros de conteúdo pornográfico. Entre os últimos, havia uma obra intitulada "Ma Conversion", e com saudável franqueza Mirabeau prefaciou a obra erótica com este convite directo ao público leitor: "E agora leiam, devorem, masturbem-se."

Zelkin due uma gargalhada.

- Genial, Mike. O júri ficará preso a cada palavra. Ouçamos o resto.

A voz de Barrett continuou a sair pelo altifalante.

- "Masturbem-se”. Talvez o termo cause nervosismo. Não é certamente um acto que a defesa recomende... embora Mark Twain, por brincadeira, o recomendasse em seu tratado impresso sigilosamente "Reflexões sobre a Ciência do Onanismo". O que a defesa está a dizer é que o pior resultado da leitura de um livro erótico pode ser a masturbação, acto que não é nocivo a ninguém, ao passo que o leitor de uma obra que trate de homicídio culposo não encontraria uma válvula de escape tão inofensiva para satisfazer as suas hostilidades exageradamente estimuladas... a não ser.. provavelmente, algo tão danoso como sair a correr à procura de alguém para bater ou assassinar.

"O que me traz a outro ponto que a defesa procurou expandir através das suas testemunhas. Existe um certo paradoxo, sucintamente expresso por aquele estudioso dos problemas da censura, Gershon Legman, que o colocou da seguinte maneira: "O assassínio é um crime. Descrever o assassínio não o é. O sexo não é crime. Descrever o sexo é." Este ponto pode ser desdobrado noutra direcção. O famoso antropologista inglês Geoffrey Gorer estranhou que os censores acreditem que a leitura de um livro sobre sexo deprave, corrompa e leve uma pessoa à violência sexual, enquanto a de um livro sobre assassínio, um romance policial, de mistério, não deprave, nem corrompa nem leve ninguém a cometer homicídio. Existem respostas psicológicas, e os senhores ouviram-nas expostas perante este tribunal.

"À medida pue este julgamento se desenvolve, a defesa vem apresentando provas que apoiam duas declarações, uma feita por um psiquiatra e a outra por um colunista de jornal. O psiquiatra, Dr. Robert Lindner, certa vez escreveu o seguinte: "Estou convencido de que, se todos os livros e materiais afins, supostamente contestáveis, desaparecessem amanhã da circulação, isso de nenhum modo afectaria as estatísticas do crime, delinquência, conduta amoral e anti-social ou enfermidade e angústia pessoal. A mesma sociedade frustradora e repressiva continuaria a existir e tanto as crianças como os adultos se exprimiriam em termos de rebeldia contra ela. Esses problemas só serão resolvidos quando tivermos a coragem de enfrentar as questões sociais fundamentais e as perplexidades pessoais que causam tal conduta".

“Quanto ao colunista de jornal, Sydney J. Harris., expressou-se como segue: "Acontece que não creio que a obscenidade, de espécie alguma, seja tão nociva como certa gente parece acreditar. As imoralidades profundas da nossa época são a crueldade, a indiferença, a injustiça e o uso dos outros como meios em vez de como fins em si mesmos. Se tudo aquilo que se considera indecente ou obsceno fosse eliminado da noite para o dia, nem por isso o mundo ficaria manifestamente melhor, nem os cidadãos seriam mais morais".”

Zelkin calcou o botão para parar o gravador e depois o que fazia a fita girar para diante. Barrett protestou contra o reinicio da fita.

- Acho que já ouvimos que chegue, Abe.

- Só mais um trecho, Mike. Onde você começa com Platão.

Tentou localizá-lo no aparelho. Enquanto isto, perguntou:

- Ei, como é que você sabe que ele vai citar Platão nas considerações finais dele?

- Vi uma vez usá-lo num discurso para a UFO - respondeu Barrett. - Ele não será capaz de resistir à tentação de usá-lo de novo. Há-de querer imprimir uma autoridade clássica ao argumento.

- Pronto, encontrei - anunciou Zelkin. - Agora façam silêncio. Atenção. A voz do nosso mestre.

Barrett ouviu novamente a sua voz a sair do gravador e fechou os olhos, já que não podia fechar os ouvidos. Prestou atenção juntamente com os outros.

- O ilustre Promotor Público declarou-lhes que o filósofo Platão foi favorável à censura literária. De facto foi. Para ser mais preciso, ele quis censurar a Odisseia, de Homero, para a juventude. Mas o que o meu nobre colega não mencionou é que Platão também quis censurar a música... especialmente os flautistas. Ora, isso não me deixaria muito feliz se eu vivesse na República de Platão. Porque gosto de flauta. Mas Platão não gostava. Portanto eu não poderia comprar ou tocar uma flauta em minha casa ou mesmo escutar os suaves sons da flauta na sua utopia, porque um censor me diria que a flauta iria depravar-me e corromper-me. Em suma, quem pode dizer o que deve ser proibido a todos? Ou melhor ainda, quem pode dizer o que é obsceno para os outros?

“O nobre colega está certo de que sabe o que é obsceno. Com essa certeza, ele acha que os senhores precisam conhecer não só as actividades como também os motivos de duas pessoas: o pornógrafo e o livreiro. O douto Promotor, no entanto, omitiu uma pessoa-chave com esse duo. Omitiu o próprio censor. E eu sugiro que se o conhecimento do pornógrafo tem sido relevante para este julgamento, então o conhecimento da psique do censor, que é quem nos pode dizer o que é obsceno e o que não é, igualmente é relevante e importante para julgar Os Sete Minutos.

“Um traço comum parece distinguir os censores das pessoas comuns. Somente os membros dessa estirpe são presunçosos, categóricos, e até íntegros na sua crença de que sabem o que é bom e o que é ruim para nós. Um livro como Os Sete Minutos pode ser-nos nocivo, dizem eles, pode mesmo levar-nos a cometer crimes de violência. Mas porque somos “nós” que temos de ser protegidos e nunca “eles”? Porque é que o censor, que está exposto à mesma literatura perigosa que nós, nunca fica corrompido por ela, nunca fica contaminado por ela, nunca se transforma num estuprador depois de lê-la? Porque goza o censor dessa imunidade, e ninguém mais? Porque serão outros prejudicados, mas nunca o próprio censor?

“O que nos leva a uma pergunta correlata. Como se explicam os milhares de pessoas respeitáveis em todos os tempos que leram e coleccionaram livros pornográficos, e contudo nunca foram destruídos ou levados à violência por eles? O que dizer de Richard Monckton Milnes, o primeiro Barão Houghton, homem culto que coleccionava pornografia? E de Coventry Patmore, o poeta católico, coleccionador de pornografia? E de J. Pierpont Morgan e Henry E. Huntington, símbolos do moderno sucesso americano, que coleccionaram pornografia para as suas bibliotecas, e do Dr. Alfred Kinsey, o nosso libertador sexual, que a coleccionou para a ciência? E dos conservadores do Museu Britânico, em Londres, que cuidam de vinte mil livros supostamente obscenos, e dos prelados da Biblioteca do Vaticano em Roma, que supervisionam vinte e cinco mil volumes de erotismo? Onde está a prova de que livros sobre o sexo degradaram qualquer desses homens?

“Examinemos, rapidamente, mais alguns aspectos. Os dois censores mais célebres do mundo de língua inglesa foram Thomas Bowdler, que faleceu na Inglaterra em 1825, e Anthony Comstock, que morreu nos Estados Unidos em 1915. Ambos viveram até à idade de setenta e um anos, dedicados na maior parte à censura literária e nenhum dos dois se viu incitado, pela pornografia, a cometer estupro ou assassínio.

“Thomas Bowdler, que era médico e clérigo, leu as peças de Shakespeare e ficou estarrecido. Havia A Décima-Segunda Noite, tão rica em tiradas de duplo sentido como: “Por Deus, esta é a letra da minha amada! este é bem o C dela, e este o U, assim mesmo ela traça o T e é deste modo que gosta do P, bem grande.” Havia Muito Barulho por Nada, em que o "alçapão (') de Hércules parece tão volumoso como a sua clava". E peças como ftomeu e Julieta. Hamlet e Macbeth, com caçoadas grosseiras e palavras como "puta" e "rameira". Bowdler sabia o que precisava de ser feito para salvar os jovens da corrupção de Shakespeare e pô-lo em prática. Em 1818, publicou a sua colecção em dez volumes expurgados, que denominou Shakespeare para as Famílias, explicando: "Muitos termos e expressões que surgem no texto são de natureza tão indecente que se torna extremamente aconselhável que sejam suprimidos". Aos críticos indignados, que se enfureceram com a pudicícia e os cortes do censor, Bowdler respondeu: "Se alguma palavra ou expressão é de tal natureza que a primeira impressão que causa é de obscenidade, essa palavra não devia ser dita, nem escrita, nem impressa; e, se impressa, precisa de ser suprimida". Foi assim que um homem, um censor, mexeu nos ossos de Shakespeare. E no ano da sua morte Bowdler publicou uma versão pessoal da História da Decadência e Queda do Império Romano, também censurada, purificada, tornada asséptica para o público atrasado da época que ele acreditava que tinha de ser informado sobre o que podia ler.

(') O tapa-sexo usado pelos homens dos séculos XV e XVI por cima da malha para ressaltar o tamanho dos órgãos genitais, sinal de virilidade.

 “Em Nova Iorque, o nosso próprio Anthony Comstock, veterano da Guerra Civil, figura de proa da ACM, com as suas costelas e roupa de baixo de flanela vermelha que aparecia por baixo dos punhos da sobrecasaca preta, saiu de Bíblia em punho numa perpétua cruzada contra tudo o que era "libidinoso e lascivo" em literatura e arte. Em 1913, como inspector experimentado dos Correios dos Estados Unidos e director de longa data da Sociedade Nova-lorquina para a Supressão do Vício, gabava-se de ter mandado para a prisão um número de editores e escritores suficiente para lotar sessenta e um vagões ferroviários e de ter destruído cento e sessenta toneladas de literatura obscena. Confessou, também, que havia arruinado dezasseis vidas, pessoas que, na maioria das vezes, foram perseguidas até ao suicídio pelo seu puritanismo fanático. Entre outros, Comstock conseguiu que Walt Whitman fosse despedido do emprego do Ministério do Interior por ter escrito Folhas de Relva. Obteve a proibição dos livros de Margaret Sanger sobre o controlo da natalidade, mandando prender o marido por vender essas publicações imorais. Atacou a peça de George Bernard Shaw, A Profissão da Sr.a Warren, e o inócuo quadro de nudismo de Paul Chabas, Manhã de Setembro. Depois que ele morreu, Heywood Broun escreveu o seu epitáfio: "Anthony Comstock talvez estivesse perfeitamente certo na sua suposição de que a divisão das criaturas vivas em machos e fêmeas fosse um equívoco vulgar, mas uma conspiração de silêncio em torno do assunto dificilmente alteraria os factos".

“Thomas Bowdler e Anthony Comstock continuam vivos em nossa língua. Em 1836, Perronet Thompson cunhou o verbo "bowdlerizar", significando "expurgar". Em 1905, George Bernard Shaw lançou o substantivo "comstockery" como sinónimo de censura intrometida, puritana. Hoje, ás sombras de Bowdler e Comstack continuam a projectar-se em nossas vidas sempre que um indivíduo ou grupo insiste em que sabe o que devemos ler ou pensar a respeito de sexo. Nós estamos aqui neste tribunal, porque nos disseram que não deveríamos ler Os Sete Minutos, quiséssemos ou não. Disseram-nos que este livro, no consenso de um punhado de inteligências, é obsceno, perigoso e sem remissão. O meu colega e eu estamos aqui para dizer que o que é obsceno aos olhos de um pode ser moral e valioso aos olhos de outro.”

Barrett já ouvira que chegasse.

- Pelo amor de Deus, Abe, desliga essa coisa!

Surpreendido, Zelkin comprimiu o botão e o aparelho parou.

- Desculpe, Abe - pediu Barrett -, mas ao escutar as minhas próprias palavras de que o que é obsceno aos olhos de um pode ser moral e valioso aos olhos de outro... fez-me perceber de novo todo o nosso apuro. Posso até imaginar o pensamento dos jurados ao colocar-se a questão... Os Sete Minutos moral e valiosa para quem? Para aquela moça morta, Sheri Moore... supondo-se que eles saibam o que lhe aconteceu... ou para aquele pobre rapaz, Jerry Griffith? Não dá, Abe.

- É um fecho vigoroso, Mike - opinou Zelkin seriamente.

- Mas não o bastante - replicou Barrett.

Zelkin mergulhou no mutismo geral, e Barrett, para ficar só, virou-se para o próprio íntimo, passando em revista o que lhe sucedera nos últimos dias do julgamento, e depois tentando prever a morte na arena que o esperava dentro de poucos instantes.

A defesa apresentara e interrogara a sua derradeira testemunha esta manhã e a acusação completaria a inquirição da mesma testemunha logo depois do almoço. Com isto, não sobrava mais corda nem tempo. Tinham chegado ao término, Barrett sabia, sem abrir uma brecha nos argumentos de Duncan. As provas da Promotoria continuavam tão fortes e irrefutáveis como na primeira semana do julgamento: Jadway era um pornógrafo dissoluto e de mentalidade comercial que se suicidara por remorso de ter escrito Os Sete Minutos, o livro incitara violência (e era capaz de continuar a corromper leitores), conforme ficara provado com o crime de Jerry Griffith, levando posteriormente à morte de uma vítima inocente.

Durante a manhã inteira Barrett vira isso no rosto dos doze componentes do júri. A maioria desviara os olhos, porque já sabia o que devia fazer com ele e com o réu. Os poucos jurados restantes, que surpreendera a observá-lo sub-repticíamente de vez em quando, também pareciam considerá-lo como o advogado do Diabo, por defender e promover o que era malévolo.

A esta altura, julgava Barrett, os doze jurados eram praticamente tão objectivos e desapaixonados como seriam os pranteadores amanhã à beira do túmulo de Sheri Moore.

Sentado ali, Barrett fechou os olhos doloridos e procurou imaginar as reacções daqueles jurados, as suas caras, se soubessem toda a verdade do que ele agora

sabia mas não podia provar. Como ficariam espantados, como ficariam escandalizados, como subitamente veriam Jadway, ele e Os Sete Minutos sob outro aspecto.

O seu espírito voltou-se para Cassie McGraw, perguntando-se se ela jamais chegaria a ter outro dia de lucidez, e caso tivesse, o que pensaria desse repúdio do seu amor sadio, do seu passado e do livro enterrado que devia ter servido de monumento a ela e guia de todas as mulheres inibidas e amedrontadas.

O seu espírito saltou para Washington e de lá para um lugar nebuloso e ignorado onde o idoso J J Jadway vivia em paz com o seu segredo. Barrett reflectiu sobre os confusos pressentimentos e alívio de Jadway, e depois ficou a pensar o quanto Jadway não haveria de apreciar o seu cargo entre os supremos juizes do país.

Os jurados, entretanto, não sabiam nem viriam a saber que não tinham escutado os principais actores do drama ou testemunhado a verdadeira actuação da verdade. Em breve estariam a ouvir as considerações finais de Duncan, e finalmente as suas, após o que prestariam atenção às instruções do juiz Upshaw. Seriam conduzidos à sua sala no pavimento superior pelo oficial de justiça, para fingir que iam deliberar sobre um veredicto já predeterminado. Depois de um respeitável lapso de tempo (destinado a sublinhar a integridade do júri), reapareceriam para pronunciar o seu julgamento final. E voltariam aos seus lares, às cozinhas, salas de refeições e dormitórios familiares, certos de terem servido a justiça, a democracia, a Constituição e de terem apoiado a causa da verdade e da liberdade.

Barrett procurou lembrar-se de um trecho de Eggtes-ton que lera quando frequentava a Faculdade de Direito: “Não creio que exagero ao dizer que a prova contém apenas fragmentos calidoscópicos dos factos. É como se um pano xadrez de quadros claros e escuros cobrisse toda a realidade. O que fica registado nos anais é o que se enxerga pelas nesgas claras.”

Barrett tinha a certeza de que esses jurados conscienciosos e complacentes, que dentro em breve seriam dispensados, jamais saberiam o que se escondia atrás das nesgas escuras.

E havia ainda nesgas escuras que lhe ocultavam também a realidade. Ele sabia mais que os jurados, mais que o Promotor Público, mas não sabia tudo e não sabia o suficiente. Depois, sem se dar conta, lembrou-se de Maggie Russell, que não encontrara no apartamento na noite anterior. Havia apenas uma nota enigmática, encostada ao telefone: “Tive de sair para tratar de um assunto urgente. Amanhã falo com você. - Amanhã já era hoje, e onde andava ela a tratar de que assunto?

E Faye, a maldita Faye Osborn que havia predito o desfecho da questão. Ela equivocara-se sobre o mérito daquela causa, porém acertara sobre a sua impossibilidade de vitória e sobre os efeitos desastrosos que teria no ânimo e na reputação de Barrett.

Gostaria de que tudo estivesse terminado. Não suportava a ideia de voltar ao tribunal e à cena da carnificina.

Um antiquíssimo estribilho infantil que lhe ocorrera na véspera e não lhe saíra mais da cabeça, continuando insistente a noite toda e pela manhã fora, repetia-se monotonamente sem parar. Não era fanático por basebol, a não ser em época do campeonato nacional, porém estava familiarizado com a literatura e o folclore desportivo, e certa vez no auditório do colégio secundário tinha ouvido o poema de E. L. Thayer declamado no palco, e em momentos de derrota iminente a última estrofe sempre o importunava. A agulha emperrada tocou mais uma vez a última estrofe.

Ah! deve haver algum lugar Sei lá onde, além mar! Em que o estádio hoje irradia Só trovões de euforia. Aqui, porém, nem tanto: A torcida caiu em pranto Pois malgrado entrar de sola O jogador errou a bola.

E os homens livres caem em pranto - o pobre Barrett errou a bola.

Abriu os olhos para entrar na conversa.

Zelkin dirigia-se a Phil Sanford:

- Olhe, Phil, quando o tribunal se reunir de novo, dentro de meia hora, Duncan voltará para completar a inquirição do nosso Dr. Finegood. Depois teremos de apresentar a próxima testemunha. Que não existe. Portanto só me restará declarar encerrada a defesa. Então Duncan aduzirá as suas considerações finais, e Mike encarregar-se-á das nossas, que, como você sabe, são ainda melhores do que os trechos que acabámos de ouvir gravados. Finalmente Upshaw dará as instruções ao júri. Eles retiram-se e não demoram muito a voltar. Sim, eu.acho que o veredicto é para hoje mesmo à tarde.

Ben Fremont parou de limpar os óculos.

- Mal posso esperar - disse, amargurado.

- Não é só você que está numa enrascada - replicou Sanford. - Pense no que me vai acontecer.

Zelkin olhou de soslaio para Mike no outro lado da mesa.

- Está pronto para atacar de rijo, Mike?

- Não - respondeu Barrett, desanimado. - Mas estarei.

- Talvez ainda dè para lançar um pouco de fogo naquele júri - opinou Ben Fremont.

- Com que fósforo? - perguntou Barrett.

Por associação de ideias, lembrou-se de um velho aforismo. Fogueira fraca não clareia a noite. De facto, concordou. Arrancou, apático, uma ponta da sua sanduíche e pôs-se a mastigá-la. Jamais tinha percebido como o pão podia ter gosto de cinza.

Ouviram-se três pancadas na porta.

- Entre - disse por cima do ombro.

A porta abriu-se parcialmente enquanto se virava para ver quem era. Um guarda meteu a cabeça na fresta.

- Está ali uma moça a perguntar pelo senhor, Mr. Barrett.

- Uma moça? Oh!... quem é?

O guarda retrocedeu e Maggie Russell entrou apressadamente na sala, com os olhos brilhantes e as feições iluminadas por um secreto entusiasmo.

- Maggie... - exclamou Barrett, meio levantado. - Aonde é que você...?

- A Chicago - atalhou ela. - Fui sozinha. Mas voltei acompanhada. Você já o conhece, Mike, porém vou apresentá-lo ao resto do grupo.

Escancarou a porta.

- Estão todos aqui - anunciou em voz alta para o corredor.

Uma figura digna e imponente surgiu no limiar, fitou os presentes, adiantou-se e fechou a porta.

- Cavalheiros - disse Maggie -, permitam-me que lhes apresente o senador Thomas Bainbridge!

Barrett, todo atrapalhado, derrubara a cadeira ao levantar-se. Endireitou-a, olhando assombrado para o visitante.

- Senador - murmurou, ouvindo que os outros também se erguiam.

Thomas Bainbridge cruzou a sala com passo- firme e parou diante de Barrett E fez então o que Barrett ainda não o vira fazer. Sorriu. Não com facilidade. Mas sorriu.

- Mr. Barrett, ontem o senhor esforçou-se o máximo-No fim, contudo, quem terminou por me persuadir foi a sua jovem amiga. Esta moça e... e outra que outrora também o foi, em Chicago, devo dizer, foram quem me convenceram. Uma fez-me lembrar a responsabilidade do homem perante o seu passado e a outra perante o seu futuro- e de repente acrescentou: - O senhor gosta de poesia, Mr. Barrett?

A velha estrofe de Thayer ainda pairava na memória de Barrett, só que se envergonhava agora dela e afastouLa da ideia.

O senador Bainbridge não esperou resposta.

- Pois Mr. Jadway sempre se interessou por poesia, e há um certo verso de James Russell Lowell que reproduz com grande eloquência os sentimentos pessoais de Mr. Jadway. Com efeito, Lowell diz que admira o homem que está disposto a sacrificar... metade da reputação actual pela liberdade de pensar... concluindo depois mais ou menos assim: seja forte ou seja fraca a causa por que lutar, arriscará a outra metade pela liberdade de falar.

Fez uma pausa, sem constrangimentos, enquanto Barrett e os demais aguardavam em confuso silêncio.

Pigarreou.

- A rima pode ser pobre - prosseguiu'-mas o sentimento é perfeito.

Desviou o olhar para os outros e depois tornou a fixá-lo em Barrett.

- Eis aí a sua resposta, Mr. Barrett. Sim, o senhor terá a testemunha estrelar que deseja. Prepararei o caminho pessoalmente. E por fim, caso ainda queira, trarei J J Jadway hoje mesmo ao banco das testemunhas, para depor perante o mundo.

- Pode chamar a sua próxima testemunha, Mr. Barrett.

- Obrigado, Meritíssimo.

Anunciou o nome, ouviu o rebuliço na sala do tribunal e depois mandou chamar a testemunha.

Enquanto o escrivão se apressava a trazer a Bíblia ao banco, e a testemunha se adiantava ao seu encontro, Mike Barrett ficou de pé ao lado do relator, contemplando a máquina de estenotipia a bater levemente e os caracteres a formarem-se velozes sobre o rolo de papel.

Observando-os, hipnotizado pelo seu augúrio, podia vísualizá-los no traslado final, dactilografado, “O Povo do Estado da Califórnia contra Ben Fremont:

SENADOR THOMAS BAINBRIDGE chamado para depor em defesa do réu, tendo antes prestado o devido juramento, foi interrogado e testemunhou o seguinte:

ESCRIVÃO: Declare o seu nome. por favor. TESTEMUNHA: Senador Thomas Bainbridge. ESCRIVÃO: Soletre o sobrenome, por favor. TESTEMUNHA: B-a-i-n-b-r-i-d-g-e. ESCRIVÃO: Queira sentar-se, Senador.

Barrett virou-se para o banco das .testemunhas.

Sabia que tinha a atenção do júri, do juiz, a atenção concentrada de todos os que se encontravam na sala apinhada de gente do tribunal, porque à sua frente estava a testemunha mais enigmática e ilustre que já comparecera no julgamento.

- Senador Bainbridge, qual é a sua ocupação actual?

- Sou membro do Senado dos Estados Unidos, em Washington, nomeado recentemente pelo Governador de Connecticut para concluir o mandato do falecido senador Mawson.

- Qual foi a sua ocupação imediatamente anterior à actual?

- Servi como Reitor da Faculdade de Direito da Universidade de Yale, em New Haven, Connecticut.

- E antes disso?

- Era juiz do Tribunal de Recursos em Connecticut.

- Ocupou alguma vez qualquer posição não relacionada com a jurisprudência?

- Sim. Quando mais moço, por um período de dez anos, fui presidente de uma fábrica herdada de meu pai, que a herdara de meu avô.

- E foi depois disso, desses dez anos, que se tornou juiz?

- Foi.

- Posso perguntar-lhe porque trocou os negócios particulares pelo Direito?

- Porque a firma da família já não precisava mais de mim. Achei que o possível talento que possuía encontraria melhor aproveitamento se colocado ao serviço do meu Estado e da minha Pátria.

- Durante o tempo em que o senhor actuou como servidor e professor de jurisprudência, e agora como Senador, nunca escreveu nem publicou nenhum livro?

- Publiquei.

- Eram obras de ficção?

- Não, pelo contrário. Escrevi e publiquei dois compêndios de jurisprudência.

- Conhece ficção, clássica ou moderna?

- Como leitor, sim, conheço clássica e moderna. Considero a leitura de romances um modo ideal de descansar.

- Já leu alguma vez um romance intitulado Os Sete Minutos, de J J Jadway?

- Li, sim senhor.

- Leu-o mais de uma vez?

- Li várias vezes.

- Quando foi a data mais recente em que o leu na íntegra?

- Ontem à noite ainda.

- Conhece o segundo parágrafo do artigo 311 do Código Penal da Califórnia?

- Conheço.

- Sabe que Os Sete Minutos está a ser acusado de matéria obscena, segundo o referido parágrafo?

- Sei.

- Senador Bainbridge, o senhor considera Os Sete Minutos obsceno?

- De maneira alguma. Considero-o como um livro altamente moral.

- Acredita que o autor dessa obra estivesse a servir de instrumento a interesses libidinosos, vergonhosos ou mórbidos em matéria de nudez, sexo, excreção, ao escrevê-la?

- Não só não acredito como sei perfeitamente que ele não estava a servir de instrumento ao interesse libidinoso do leitor ao escrever este livro.

- O senhor sabe que o livro não foi escrito, visando o interesse libidinoso. Posso indagar, Senador, como é que o senhor sabe?

- Porque conheço intimamente as circunstâncias da criação e publicação de Os Sete Minutos.

Correu um rumor de perplexidade entre o corpo da imprensa e os espectadores. Antes que o juiz Upshaw pudesse usar o martelo, o reinício do interrogatório de Barrett já silenciara a sala.

- Quer explicar aos jurados e ao tribunal como chegou a esse conhecimento íntimo?

- Com todo o prazer, sr. advogado. Nenhuma pessoa viva, nem mesmo a respeitável Miss Cassie McGraw, conheceu melhor ou mais de perto o autor J J Jadway do que eu.

Barrett notou a curiosidade dos jurados, curvados para a frente, atentos em suas cadeiras, e de novo ouviu, à retaguarda, os murmúrios dos espectadores. Depois a sala ficou em silêncio, ávida por escutar mais.

- Senador, o senhor está a dizer que se encontrava em Paris quando J J Jadway escreveu Os Sete Minutos?

- Estou a dizer que me encontrava em Paris quando ele escreveu o livro.

- Sabe quais foram os motivos que teve para escrevê-lo?

- Sei.

- Sabe como era que ele vivia quando escreveu o livro?

- Sei.

- Conhece os acontecimentos da vida dele que se seguiram à publicação clandestina do seu livro?

- Conheço.

- Esse conhecimento em primeira mão que o senhor possui sobre J J Jadway e Os Sete Minutos confirma ou contradiz o depoimento prestado neste tribunal pelas testemunhas de acusação?

- A minha informação sobre o verdadeiro Jadway e o verdadeiro propósito que teve ao escrever e publicar esse livro contradiz por completo e inteiramente as provas apresentadas até agora perante este tribunal.

Escutando o murmúrio crescente de vozes empolgadas nas suas costas, Barrett esperou pelo batimento do martelo do juiz e, depois de ouvi-lo, aproveitou-se rapidamente do silêncio por ele causado.

- Senador Bainbridge, o senhor deu conta de que as testemunhas precedentes prestaram juramento, fizeram os seus depoimentos sob palavra, arriscando-se a uma acusação de perjúrio em caso de mentira... que estavam sob juramento assim como o senhor está neste momento?

- Elas não mentiram. Simplesmente não disseram a verdade. Porque não sabiam qual era. Tudo o que foi ouvido neste tribunal até agora a respeito de J J Jadway, tudo o que diz respeito ao motivo que teve para escrever o livro, dos seus sentimentos sobre ele, do seu intento e propósito, do seu carácter, hábitos, situação e morte, pertence à mais pura ficção, ficção planeada e perpetrada pelo próprio Jadway, por motivos ligados à sua vida privada.

- Senador, o senhor está preparado para nos dar a sua versão da vida de Jadway e das circunstâncias que cercam ram a publicação de Os Sete Minutos?

- Estou.

- Senador Bainbridge, antes que o senhor comece; creio que o tribunal estaria interessado em saber por que motivo o senhor se apresentou somente agora para prestar o seu depoimento.

- Porque me apresentei? John Milton já deu a minha resposta há três séculos: “Matar um homem quase equivale a destruir um bom livro; quem mata um homem mata um ser racional, criado à imagem de Deus; mas quem destrói um bom livro destrói a própria razão, a Imagem de Deus.” O que explica, Sr. advogado, porque estou aqui.

- Para salvar Os Sete Minutos?

- Para salvar todos os livros, o prazer, a sabedoria e a experiência contidos em todos eles, e para salvar os que lucrariam com a sua leitura.

- Senador Bainbridge, o senhor quer dizer-nos agora o que sabe pessoalmente sobre J J Jadway e o livro que contradiz os depoimentos prestados até o presente momento perante este tribunal?

- Sim.

- Senador Bainbridge, conte-nos, por favor, o que considera como a história verdadeira, em oposição ao que rotulou como falsa, inventada pelo próprio Jadway e divulgada até hoje por quem não estava bem informado. Queira prosseguir sob o compromisso de dizer a verdade. Senador.

- A verdade, então, uma vez que estou em condições de revelá-la. J J Jadway não escreveu Os Sete Minutos por dinheiro. Dinheiro tinha ele. Possuía uma fortuna. Vinha de uma família rica. Não era viciado em bebida ou estupefacientes, nem sob hipótese alguma dissoluto. Recebera severa educação mas não comungava de nenhuma fé religiosa. Fora bem disciplinado e instruído na juventude. A sua rebelião foi idêntica à que todos os jovens terminam forçosamente fazendo contra a autoridade paterna, se algum dia querem ser independentes, com força para desenvolver o próprio individualismo e autoridade. Jadway deixou a família e o lar na Nova Inglaterra e partiu para Paris em busca da sua própria liberdade, da sua própria identidade, para se tornar um homem em vez de meramente o filho de seu papá. Levava consigo um problema, resultado da educação e meio ambiente, e lá conheceu Cassie McGraw, libertando-se do cativeiro que o reprimia e frustrava. Queria conhecer o amor e Miss McGraw ensinou-lhe o significado do amor. Queria ficar bom depois de estar sexualmente enfermo e ela curou-o. Queria ser escritor, em desafio às tradições da sua formação e ela encorajou-o a exprimir-se e a escrever. Escreveu Os Sete Minutos como homenagem a Cassie McGraw e ao amor que os unia, pois era a única experiência inteiramente pessoal que jamais tivera. Escreveu esse livro para celebrar a própria salvação do medo e da vergonha sexuais, para celebrar a libertação de uma enfermidade resultante do seu medo e vergonha, e dos seus sentimentos de culpa em torno do sexo...

- Perdoe a interrupção, senador Bainbridge, mas o senhor está a referir-se literalmente a uma enfermidade?

- Sim. refiro-me a uma verdadeira enfermidade, não física, porém psíquica, que aflige metade dos homens civilizados. Assume muitas formas. No caso de Jadway, assumiu uma forma sexual, e foi o amor de Cassie McGraw que restituiu a Jadway a virilidade e a normalidade. É uma situação que Jadway descreveu em Os Sete Minutos. Oprimiu um dos três personagens masculinos com ela, o personagem que no fim foi o que Cathleen havia levado para a cama para amar e que conseguiu amá-la naqueles sete minutos místicos. A estrutura do livro de Jadway saiu de um trecho que ele tinha lido no Antigo Testamento. Mas o conteúdo foi o esforço que ele fez para narrar a história da liberdade que Cassie conhecia, e que ela lhe ensinara para que também se libertasse. J J Jadway escreveu o livro a fim de libertar outros do medo, da vergonha e da culpa. E Jadway conseguiu-o, pois as suas palavras libertaram outros.

- Um momento, senador Bainbridge. O senhor quer dizer que Os Sete Minutos libertou certos leitores do medo, da vergonha e da culpa sexuais?

- Quero dizer que as palavras de Jadway ainda hoje mesmo libertaram um jovem, capacitando-o a confessar-me a verdade sobre si mesmo, uma verdade que ele não revelara a mais ninguém até agora. Ele não foi levado a -cometer estupro, porque Jerry Griffith era incapaz de conseguir uma erecção. Jerry Griffith não tentou desflorar Sheri Moore contra a vontade dela, mas sim induzido por ela. Porém fracassou, como sempre fracassara antes, e fracassaria hoje, porque Jerry Griffith então era, como fora antes, e hoje é, sexualmente impotente.

A sala do tribunal parecia que ia explodir e o martelo do juiz Upshaw ressoou com toda a força, várias vezes, sobre a mesa e só quando o barulho começou a decrescer é que se ouviu a voz de Elmo Duncan a vociferar da mesa da acusação.

- Protesto, Meritíssimo, protesto!-bradava o Promotor Público.

- Pois não, Mr. Duncan. Sob que alegação?

- Porque o nobre colega da defesa está a extrair prova de outiva absoluta da testemunha, prova que cai fora do alcance do conhecimento da testemunha, e que, ademais, não possui relevância...

- O Promotor Público está a protestar sob a alegação de irrelevância ou de prova de outiva?

- De prova de outiva, Meritíssimo.

- Aceito o protesto... Mr. Barrett, devo preveni-lo de que durante todo o interrogatório desta testemunha as suas perguntas se aproximaram perigosamente de exigir uma resposta ou opinião que podia ser considerada como baseada em boatos. Refiro-me especificamente às perguntas e respostas a respeito de J J Jadway. A pergunta e resposta a respeito de Jerry Griffith são definitivamente boatos, a não ser que o senhor esteja a preparar o terreno e tencione provar.

- Obrigado, Meritíssimo - agradeceu Barrett respeitosamente. - Procurarei preparar o terreno, se me permite, para o que já foi dito perante o tribunal e para o que virá a seguir.

- Prossiga com a testemunha.

Barrett chegou mais perto do senador Bainbridge, que estava sentado gravemente no banco das testemunhas à sua espera.

- Senador, o senhor já declarou que, durante os anos em que foi juiz, reitor de uma faculdade de Direito, senador, escreveu e publicou dois livros, que eram compêndios sobre jurisprudência. Sob que nome esses dois livros foram publicados?

- Sob o meu verdadeiro nome. Thomas Bainbridge.

- Antes de se tornar juiz, houve algum período anterior em que tenha escrito ou publicado qualquer outro livro?

- Houve, sim.

- Quantos livros foram?

- Apenas um.

- Também publicado sob o nome de Thomas Bain-bridge?

- Não. Sob pseudónimo.

- Pode dizer-nos o título desse livro e o pseudónimo que usou?

- O livro foi Os Sete Minutos, de J J Jadway. J J Jadway sou eu.

Armou-se um pandemónio na sala. Em poucos segundos o tribunal convertia-se em balbúrdia. Vários jurados estavam de pé. A imprensa saíra a correr. O rosto do Promotor Público era uma máscara mortuária. E o juiz, estupefacto e de queixo caído, esquecera-se de usar o martelo.

Barrett constatou que somente J J Jadway continuava calmo. Porque havia sofrido uma crise de consciência e sobrevivera. Agora também ele, como o seu livro, talvez conquistasse finalmente a liberdade.

O resto passou-se rapidamente.

Bainbridge expandira a sua confissão de vida dupla e a inquirição de Duncan fora perfunctória, como se ansiasse por se ver livre da testemunha. Quando o Senador foi dispensado, Barrett teve a certeza de que tanto o depoimento de Leroux como o de praticamente todas as testemunhas arroladas pela acusação haviam sido repudiados, o de Jerry Griffith ficado relegado para a fantasia e a mentira, restaurando-se a integridade e verdade de Os Sete Minutos.

O que continuava passível de debate era uma única pergunta, à qual Elmo Duncan dedicou a sua desesperada sustentação oral.

Era o livro obsceno como o acusavam?

Mas depois que o júri recebeu as instruções do juiz, retirando-se da sala para deliberar, Barrett sabia que os jurados levavam consigo outras perguntas. O senador Bainbridge, esse pilar da Nova Inglaterra que sacrificara o seu isolamento para ali comparecer neste dia - e que escrevera sob o pseudónimo de J J Jadway - podia ser considerado como pornográfico? Jerry Griffith, o deplorável rapaz doente que preferira ser condenado por estupro e homicídio a ser escarnecido por impotência, fora prejudicado ou no fim de contas ajudado pelo livro? E o próprio livro, escrito pelo autor para decantar a glória de uma mulher livre que liberara o amante, teria sido obra designada para despertar o interesse libidinoso?

Quando os jurados se perguntassem se Os Sete Minutos era obsceno, Barrett sabia que também precisariam de responder a essas outras perguntas.

Agora o tribunal estava de novo reunido, e o júri dava entrada na sala, tomando os seus respectivos lugares,

O juiz Upshaw fitou o primeiro jurado.

- Chegaram a um veredicto? -'Chegámos, Meritíssimo.

- Queiram entregá-lo ao oficial de justiça.

O oficial de justiça recebeu a folha de papel, levou-a ao juiz e entregou-a. O Magistrado leu-a e tornou a devolvê-la.

O oficial de justiça dirigiu-se ao centro da sala, assumiu uma postura marcial e depois, com voz estentórea, anunciou o veredicto:

- Nós, os membros do júri do processo do Povo contra Ben Fremont, declaramos pelo presente que consideramos o réu inocente de distribuir ou fornecer matéria obscena!

- Esse veredicto é unânime? - indagou o juiz Upshaw.

- Sim, Meritíssimo - responderam, em uníssono, os doze jurados.

Mas a essa altura as suas vozes perderam-se no clamor da sala.

Meia hora mais tarde, passado o tumulto, depois que o júri recebeu os agradecimentos e foi dispensado, e Zelkin, Sanford, Kimura e Fremont terminaram de ^abraçar Barrett, assediado por um enxame de jornalistas de bloco em punho, a Sala 803 do Supremo Tribunal de Los Angeles ficou finalmente deserta, com excepção de duas pessoas.

Mike Barrett estava sozinho na mesa da defesa, juntando lentamente os seus papéis e guardando-os na sua pasta de couro. A multidão aglomerada retirara-se para o corredor do Palácio da Justiça, onde Jadway - Bainbridge - acedera em dar entrevista colectiva à imprensa diante das câmaras de televisão, que não haviam tido acesso à sala do tribunal. Barrett mal conseguia ouvir o alarido e caos do lado de fora das portas, ainda pouco apto a exultar com o triunfo. A súbita reviravolta dos acontecimentos, a aparição electrizante de Bainbridge, a vitória esmagadora, que tomara o lugar da derrota certa, tinham sido excessivas para serem assimiladas pelo seu cérebro ou pelo seu corpo.

Era como se ele ainda estivesse em andanças, tenso e à caça. Porque agora, fechando a pasta, percebia que restavam pequenos mistérios. O depoimento sensacional de Bainbridge solucionara muitas coisas e o reaparecimento de Jerry Griffith no tribunal, seguido pelos depoimentos da convalescente Darlene Nelson e do inconsolável Howard Moore, solucionara ainda mais, o suficiente para ganhar um veredicto de total absolvição para Ben Fremont e completa liberdade para Os Sete Minutos. Mas para Mike Barrett ainda havia “nesgas escuras” que continuavam a “toldar a realidade.”

Ouviu o seu nome e virou-se. Julgara estar sozinho, porém não estava. Sentiu alívio. Era Maggie Russell que se aproximava rapidamente pelo corredor.

Lançou-se nos braços dele.

- Mike, você esteve maravilhoso. Tudo terminou e você venceu. Estou tão orgulhosa, tão feliz por sua causa!

- Graças a você, meu bem.

- Eu entrei no final mas você estava desde o início. Nestas últimas semanas o mundo parecia que tinha parado de andar. Agora recomeçou a girar, auroras, crepúsculos, vida, esperança.

Soltou-a.

- Maggie, que aconteceu?

- Você sabe o que aconteceu. Ouviu aqui nesta sala.

- Mas como é que chegou até aqui? Quero as respostas, antes de prosseguirmos. Diga-me.

Obrigou-a a sentar-se numa das cadeiras da mesa da defesa, ocupando a que estava ao lado. E esperou.

- Bem, eu nem sei bem por onde... por onde... - disse ela.

- Começar? Comece pelo que a maioria de nós ignorava... a impotência de Jerry.

- Sim - por um instante ela perdeu-se em reflexões. - Jerry tinha tantos problemas. Uma quantidade enorme, nem vale a pena falar. Mas um dos principais eram as garotas. Com elas ele era tímido, medroso, irresoluto. Eu sempre falava com ele a respeito disso. Houve meses de conversas de coração aberto. Fiz o máximo para insuflar nele uma certa noção do valor e da personalidade que tinha. Para que se sentisse tão atraente como de facto era. Ora, finalmente, aos poucos, começou a sair com namoradas. Ficou admirado de ver como era fácil, como as garotas se deixavam seduzir facilmente não apenas pelo carro e pelo dinheiro que possuía, mas pela sua própria pessoa.

Enchendo um copo com água para Maggie e outro para ele, Barrett perguntou:

- Jerry foi para a cama com alguma delas? Ou mesmo antes, ele já tinha...?

- Não, nunca - respondeu, categórica. - Era virgem. No começo eu não sabia. Descobri mais tarde. Depois que começou a namorar, ele percebeu que o beijo na porta não marcava o fim de uma noitada mas o início. Pobre rapaz. Porque ele estava com medo. No entanto, com medo ou não, precisava de ir até ao fim. Do beijo na porta até ao negócio na cama. Sim, ele ia para a cama com elas. Primeiro uma, depois outra, uma terceira. E nunca conseguia consumar o acto sexual. Não era meramente uma questão de ejaculação precoce. Era... ora, você sabe... impotência, pura e simples. Mas de um modo ou de outro Jerry sobreviveu a esses fracassos. No mínimo, porque as garotas foram, a meu ver, boazínhas. Mas aí então houve outro tipo de encontro, outro tipo de garota, que se mostrou menos boazinha. Foi, de facto, cruel. E Jerry... voltou para casa frenético, louco de desespero, resolvido a que não podia viver mais praticamente como um eunuco.

Maggie fez uma pausa, tomando a água, distraída. Barrett incitou-a com calma.

- E isso levou-o à primeira tentativa de suicídio?

- Sim, levou - confirmou ela. - Felizmente eu descobri a tempo e salvei-o. Foi então que soube, da verdade. Enquanto ele ainda estava sob o efeito dos narcóticos e da vergonha... soturno e balbuciante no quarto dele, revelou-me todo o segredo. A partir daí, com excepção das garotas com quem ele saíra, eu era a única pessoa no mundo que compartilhava do segredo... até hoje.

- Foi então que você se lembrou de São Francisco?

- Olhe, eu vi que tinha de se fazer alguma coisa, Mike. Não havia ninguém que eu pudesse consultar. Tio Frank ou Tia Ethell certamente que não. Deus nos livre! Era um segredo e Jerry dependia de mim. De modo que resolvi agir por conta própria. Investiguei um pouco e descobri os nomes de dois médicos de confiança no norte do Estado, um clínico e o outro psicanalista. Marquei hora para Jerry. Depois, sob um pretexto qualquer... já nem me lembro bem, e em todo o caso Tio Frank estava a viajar em negócios, o que tornava mais fácil... tirei Jerry de casa por uma semana e levei-o a São Francisco. Primeiro fomos ao clínico. Fez um exame completo. Garantiu que a impotência não era física mas psíquica, A seguir, duas prolongadas sessões com o psicanalista, que confirmou o diagnóstico do clínico. O estado de Jerry era psíquico... e curável com tempo e terapia. Os factos foram deixados bem claros para Jerry. Nem injecções de hormonas nem remédios ajudariam. Só o tratamento com um psicanalista de confiança podia auxiliá-lo a vencer os complexos de inferioridade e culpa, podia fazê-Lo compreender as hostilidades que sentia e, de certo modo, orientá-lo na procura da sua própria identidade.

- Aí então voltaram para Los Angeles - disse Barrett. - Há um pormenor que me deixa curioso. Você não tentou conseguir um tratamento a longo prazo para Jerry com algum psicanalista local? .

- Mike, não se trata de eu ter tentado ou não. Jerry já estava de pé novamente e dependia dele. Claro que o encorajei mas não podia insistir de mais, se não ele afastar-se-ia de mim. O próximo lance, portanto, cabia-lhe a ele. Tinham-Lhe dado bons conselhos, os melhores. O que ele não teve foi a vontade, a coragem, a confiança de segui-los. Sabia perfeitamente qual era o primeiro passo que devia dar, mas simplesmente não foi capaz de sair de casa e agir por conta própria. Ah, de um modo meio indirecto ele entabulou o assunto da psicanálise com o pai... e o que foi que recebeu? Uma interminável tirada, uma invectiva contra Freud e outros “fundidores do juízo”, de maneira que a coisa parou por aí mesmo e Jerry nunca mais tocou no assunto. Para ele só restava uma coisa lógica a fazer... procurar ser normal.

Barrett abanou a cabeça.

- Santo Deus. Fazer força para ser um campeão olímpico quando não se tem pernas. Okay, Maggie. Continue. Lá estamos nós com Jerry a atravessar a rua na frente de um camião, por assim dizer. O que aconteceu depois?

- Depois? - repetiu ela vagamente. - Bom, por um lado, procurar ser normal significa tentar encontrar amigos normais. Jerry agarrou-se a um conhecido, George Perkins, esforçando-se por ser amigo dele, porque George era natural, sem inibições óbvias e sabia lidar com as mulheres. Suponho que Jerry esperava ficar normal por osmose. Uma noite, por iniciativa de George, eles deram boleia... ora, a quem, a Sheri Moore, e levaram-na até ao apartamento dela.

- Onde ela se revelou muito avançada - completou Barrett. - Você sabe, eu suspeitei disso logo de início, quando comecei a indagar a respeito dela. Tive um palpite de que ela aceitava a brincadeira, gostando de fazer a felicidade dos rapazes. Não sei porque não fui atrás do meu palpite. Acho que me deixei iludir pelas aparências.

- Você é que não quis ver direito - retorquiu Maggie com leve sorriso. - Você pertence a uma geração que aprendeu a crer que todas as garotas são... ou deveriam ser... inocentes. Quis acreditar que a pequena Sheri era boazinha e pura, como a sua própria mãe o foi e a sua avó também. Não me estou a referir ao seu eu intelectual. Refiro-me ao seu eu filial.

- Pode ser-'disse Barrett, retribuindo o sorriso. - Nós exploraremos esse terreno quando estivermos à vontade num sofá. Muito bem. A cama de Sheri era um tapete de boas-vindas. George foi primeiro. Resistência simulada. Mas sem problemas. Ele e Sheri copularam. Depois, a vez de Jerry. No depoimento não deu para se saber tudo, Maggie. Que foi que aconteceu?

Maggie recomeçou devagar. Para ouvir, Barrett fechou os olhos. E a narrativa transformou-se numa série de nítidas chapas de projecção tridimensionais no seu cérebro.

Pois bem, Mike...

A voz baixa de Maggie - e as chapas de cores vivas.

“Jerry entrou no quarto de Sheri depois de George sair. Tirou a roupa e foi para a cama com ela. Mas não fora Jerry quem consumara a introdução. Tinha sido incapaz, impotente. E Sheri, filha insensata do hedonismo, a princípio achando graça, sentiu-se logo desafiada. Acostumada a entregar-se a rapazes e homens, isso jamais lhe acontecera. Quando se deitavam com Sheri, ficavam logo excitados. E a coisa dava sempre certo, porque Sheri era femme fatale. Jerry estava sendo um fracasso, o que constituía uma ofensa à vaidade e aos talentos de que se julgava possuidora. Procurou excitar Jerry, com uma série de preliminares, sem o menor efeito. E não tardou muito para que se não sentisse mais desafiada, apenas impaciente, irritada, aborrecida e, finalmente, com raiva. Aquilo era uma humilhação para a sua sexualidade. O pior insulto. Talvez julgasse que o fracasso fosse principalmente seu, não dele, e não pudesse aceitar esse facto. Começou a caçoar, a escarnecer, a ridicularizá-lo.

Cego de fúria e lágrimas, Jerry tentou fugir, vestindo-se e indo embora. Mas ela não ia permitir que ele se escapasse com tanta facilidade. Saiu da cama atrás dele que procurou desenvencilhar-se, empurrando-a para longe, até que os vitupérios de Sheri se tornaram sórdidos e maldosos. Quando ele tentou responder-lhe na mesma moeda, ela agrediu-o e errou o golpe, escorregando no tapete e caindo de cabeça contra a quina afiada da mesa. O crânio estalou feito uma casca de ovo e ela desfaleceu. Jerry quis chamar por socorro, mas George Perkins achou melhor que não se metessem em encrencas.

Pouco tempo mais tarde, Darnele Nelson voltou ao apartamento e encontrou a amiga ainda a lutar por recobrar os sentidos. Ajoelhou-se a seu lado, para ver se apurava o que se havia passado. Sheri murmurou a verdade, mas implorou apenas uma coisa. O pai não podia saber da sua conduta, como ela andava com rapazes. Diga-lhes o que você quiser, Darlene, o que quiser - suplicou-lhe -, diga-lhes que fui violada. E quando veio a Polícia, a ambulância e Howard Moore, foi isso que Darlene lhes disse.

Jerry foi então descoberto, preso. Havia o código de honra. Nada de delatar amigos, ainda mais um amigo que tinha colhões, como George. E a violação - sim, a violação era uma forma de esconder a vergonha pior de cair na desgraça de ser desmascarado, evitando a chacota de todas as pessoas que conhecia. O estupro tem uma aura de virilidade. Constituía uma maneira de provar que se pode entrar em erecção, ficar excitado. Inclusive com um matiz de humor negro, a piada mórbida: desflorar é agredir com arma inócua. Em todo o caso uma arma, uma arma potente. Cometendo estupro você pode ser um criminoso, mas pelo menos é um homem. Contando a verdade, você vê-se condenado para sempre à impotência e ao ridículo.”

Mike Barrett abriu os olhos. As chapas de projecção esfumaram-se. Agora só havia Maggie a falar.

- Assim ele optou pela violação - disse ela.

- E de repente o livro é que tinha a culpa - interrompeu Barrett. - De uma hora para a outra, Os Sete Minutos era o criminoso. Mas um facto nunca ficou esclarecido no tribunal, Maggie. Onde é que conseguiu o livro?

Ela não respondeu. Fitava os próprios dedos.

- Como é, Maggie?

- Que importância tem isso agora?

- Eu preciso de saber - disse ele com firmeza. - Onde foi que ele conseguiu o livro?

- Por meu intermédio.

Os olhos de Barrett arregalaram-se: Por meu intermédio-Zás. Teria ouvido bem?

- Por seu intermédio, Maggie?

Ela levantou a cabeça.

- Sim. Eu tinha comprado o livro, porque queria lê-lo e também para o emprestar a Tia Ethel, pois sabia que ela o ia querer ler.

Mal podia crer no que estava a ouvir. Mas a incredulidade diminuiu à medida que Maggie foi explicando.

Maggie sabia que a Tia Ethel gostava daquele tipo de leitura, chegando a suspirar por esses romances, onde encontrava um mundo que nunca lhe fora permitido conhecer. De modo que o jogo era o seguinte: Maggie adquiria os livros para ler e depois, quando o Tio Frank não estava em casa, passava-os a Tia Ethel.

Mas a Tia Ethel nunca chegara a ler Os Sete Minutos, porque depois que Maggie terminou a leitura, emprestou-o antes a Jerry. Ele havia dito que não estava interessado no livro, porém Maggie insistiu em que ele o devia ler. Ela conhecia o problema de Jerry, uma vez que estivera em São Francisco com ele, e queria que ele soubesse que outros homens que haviam sofrido do mesmo problema se tinham curado e até sido capazes de escrever franca e abertamente sobre ele. Pois na ficção, enquanto Cathleen permanecia deitada na cama, gozando com o homem dentro dela, lembrava-se de vários amantes, principalmente de três que foram importantes na sua vida.

- Você lembra-se como era no livro, Mike? - perguntou Maggie. - Nesse caso, deve compreender por que motivo o emprestei a Jerry.

Ele levou um instante para se lembrar, e finalmente conseguiu.

Lá estava a Cathleen de Jadway, deitada na cama, recordando as aventuras que tivera com três homens que a desejavam e tentando imaginar como seria se houvesse pertencido a cada um deles. O primeiro homem, sabia, era mimado e egocêntrico, apesar de ser um grande amante, um Casa-nova, hábil e experiente, prometendo uma convivência carnal inesquecível. O segundo, sabia, era um amante do tipo tradicional, o Homem Comum, que dedicaria mais tempo a vencer na vida do que à mulher que amasse, mas que prometia uma vida de conforto material. O terceiro, sabia, era um amante provisoriamente criador compreensivo, prometendo-lhe uma fascinação intelectual e espiritual. E a um deles Cathleen terminava finalmente por se entregar, mas somente na última página do livro é que Jadway revelava o escolhido. No fim o leitor descobria que era com o terceiro homem que ela tinha vivido aqueles sete minutos inolvidáveis. Por meio da sua própria calidez e ternura, ela tornara-o um homem, e ao torná-lo um homem lograra a sua maior realização como mulher. Lógico que o terceiro homem era o próprio Jadway, O romance não' podia ser mais obviamente autobiográfico. E por isso é que Maggie queria que Jerry o lesse.

- Então você conseguiu que Jerry o lesse? - perguntou Barrett.

- Consegui. E não só uma como até duas vezes. E embora boa parte do romance o deixasse nervoso, serviu para o sacudir e dar-lhe um pouco de compreensão da psicologia feminina e um pouco de esperança para si mesmo. No entanto, isso não foi suficiente. Sem a orientação de um psicanalista, ou do próprio autor, não havia meio para que Jerry pudesse adaptar a experiência de Jadway no livro às suas próprias finalidades. Jadway não podia fazer praticamente nada por ele. Dera-lhe algumas palavras, de grande valia, mas Jerry precisava de maior auxílio do autor, e o autor estava morto. Portanto, que lhe restava? Seguir o exemplo de alguém que estivesse vivo, que tivesse êxito com as mulheres. Ou seja, o seu amigo George Perkins. E assim ele imitou George da maneira mais desastrada ao ir para a cama com Sheri Moore. Mas Jerry não era George. Era o herói impotente de Jadway. Só que Sheri não era a Cathleen do livro.

- Compreendo - disse Barrett. - Jerry deixou que acreditassem que o esperma de George encontrado na vítima era dele e optou pela violação. Depois foi preso e aí então o livro...

Agora começava a ficar mais claro.

O livro - o exemplar de Maggie - fora encontrado onde ela o escondera de Frank Griffith: no porta-bagagem do carro que dividira com Jerry. E, acreditando que o livro fosse o verdadeiro culpado (ou querendo acreditar), e incitado por Elmo Duncan e Luther Yerkes, Frank Griffith imediatamente se pusera a vituperar contra o livro por ter corrompido o seu filho. Sim, agora começava a ficar mais claro. E Jerry, não se atrevendo a contrariar o pai, com medo de contestar a lei, talvez querendo acreditar que fora o livro para que pudesse alegar circunstâncias atenuantes para o seu suposto crime, aderiu ao coro geral, fez a sua confissão e apresentou-se no tribunal.

- Maggie, e quanto à segunda tentativa de suicídio de Jerry? - quis saber Barrett. - Que houve por trás daquilo?

- Ele andava deprimido por causa do estado de Sheri no hospital. Aquilo realmente preocupava-o. E queria trocar algumas palavras amigas com George e ter uma oportunidade de conhecer a companheira de apartamento de Sheri, não para lhe revelar toda a verdade, mas simplesmente para lhe explicar que o ferimento na cabeça de Sheri tinha sido um mero acidente. E assim ele saiu de casa e foi à procura de George naquela boìte na Melrose, mas como você mesmo viu, George não quis saber dele, não queria meter-se na enrascada. Então, para se livrar de Jerry, o amigo George mostrou-lhe Darlene Nelson. Você viu quando Jerry tentou falar com ela. Ele queria apenas explicar que tinha sido um acidente, pedir perdão, obter um pouco de alívio através da expiação, mas em vez disso, ora, ela aturdiu-o, lançando-lhe no rosto tudo o que sabia sobre a impotência dele. Foi uma coisa desumana, cruel, mas... - Maggie deu de ombros - ...creio que todos nós somos capazes de cometer maldades às vezes. Darlene limitou-se a escarnecer de Jerry com aquele velho “até-logo” irlandês: “Que Deus te conserve rijo”. Jerry ficou arrasado, sem saber que dizer. Teve a certeza de que o mundo inteiro agora já sabia ou não tardaria a saber a sua situação. Não podia enfrentar aquilo. Por isso tentou matar-se. Dá para entender o estado em que ele ficou, não dá?

- Sim - concordou Barrett.

- Foi esse mesmo temor, Mike, que fez com que ele ameaçasse continuamente que se suicidaria para evitar o depoimento no tribunal. Não era de Duncan que ele tinha medo. Nem mesmo de você pessoalmente. Era da arma que você possuía... a mesquinhez da inquirição, o pânico aterrador de que pudesse fraquejar sob um interrogatório hostil e de que a verdade da sua impotência fosse divulgada a todas as pessoas da face da terra.

Outra pergunta sem resposta importunava Barrett. Decidiu fazê-la.

- Maggie, se você sabia há tanto tempo do problema sexual de Jerry, porque não se apresentou logo para salvá-lo da acusação de estupro? - reformulou a pergunta, desta vez de modo mais incisivo: - Se você sabia que ele era incapaz de desflorar alguém, porque diabo é que você não falou?

- Porque não tinha a certeza absoluta de que Jerry tivesse sido impotente na noite do suposto desfloramento. Eu .só tinha a certeza do seu estado até então. Mas depois pensei... sei lá... que talvez por uma espécie de desespero doentio ele houvesse tentado o estupro, e a excitação de tentar violar uma garota, do modo que se sabe que muitos homens ficam potentes só quando a vítima resiste... ora, eu pensei que talvez esse tipo de agitação tivesse provocado a primeira erecção em Jerry e uma espécie de êxito medonho.

Barrett acenou com a cabeça.

- Sim, lógico.

- Mas ontem, Mike, depois que Sheri Moore morreu, tive a impressão de que despertava repentinamente para a verdade. Acho que foi devido a certas coisas que aconteceram, ou melhor, que não aconteceram. Howard Moore, por exemplo. Com tanto pesar, ele deveria estar a sentir uma fúria assassina contra Jerry. No entanto, nas entrevistas pela rádio e televisão que deu logo depois que a filha morreu, não houve uma só palavra que ele dissesse contra Jerry ou contra Os Sete Minutos. De modo que, sabendo o que eu sabia a respeito de Jerry, comecei a desconfiar de que o que tinha acontecido na noite em que Jerry esteve com Sheri Moore só podia ter sido diferente. Aí então me lembrei de outra coisa. Quando emprestei o livro a Jerry, e depois que o leu, ele disse que gostaria de que o autor, Jadway, ainda estivesse vivo para poder conversar com ele. Porquê? Porque Jadway talvez fosse o único homem sobre a face da terra que seria capaz de compreender o problema de Jerry e compadecer-se dele. Na ocasião, Jerry não quis entrar em pormenores comigo, recusando-se a explicar o que era que gostaria de dizer a Jadway. Tenho a impressão de que ele achava que já tinha falado de mais e que eu, secretamente, não o respeitava por causa do problema dele. Suspeito até de que ele acreditava que com a proeza que a violação provara, ele houvesse recuperado um pouco do respeito que perdera a meus olhos... o tipo da ideia estapafúrdia, mas enfim... seja, como for, não me quis confessar mais nada sobre o que andava a sentir. Era como se só com um outro ser humano que tivesse passado pela mesma experiência, alguém como Jadway, Jerry achasse que seria capaz de descarregar toda a história do seu fracasso naquela noite com Sheri Moore. E depois... !,

Fez uma pausa, pensativa, e finalmente Barrett insistiu:

- Depois o quê, Maggie?

- Depois veio a sua notícia de que Jadway estava vivo, realmente vivo. E quando você telefonou de Washington, dizendo que havia falado com o senador Bainbridge, e que ele lhe contara que Jadway não iria cooperar, bem, aí então resolvi procurar o senador Bainbridge e suplicar-lhe que reunisse o Jadway vivo com Jerry moribundo. Logo em seguida, ao ligar para Washington, soube que Bainbridge tinha partido para Chicago... para Chicago, onde você descobrira Cassie McGraw... e foi aí então que tive a certeza de uma suspeita que se formara momentos antes na minha ideia. Fiquei certa... por dedução, intuição, pura conjectura, sei lá... de que Bainbridge fora a Chicago para se encontrar com Cassie McGraw e de que ele ia encontrar-se com ela porque era o próprio Jadway. Mike, você não desconfiou dessa possibilidade?

- Passou-me pela ideia. Mas não podia aceitá-la, porque Bainbridge não correspondia à imagem que tinha feito de Jadway. E quanto a Jerry, naturalmente, nem sequer imaginava o... o problema dele.

- Não podia imaginar mesmo, pois você não sabia o que eu sabia sobre ele. Agora deixe-me contar-lhe o que aconteceu quando Jerry veio ao seu apartamento ontem de manhã.

Barrett escutou atentamente, enquanto Maggie continuava.

Jerry tinha ido à procura dela na véspera, antes de se submeter à prisão. Depois da sua chegada, ela arriscara-se a fingir que sabia a verdade a respeito do que se passara aquela noite entre ele e Sheri Moore. Fingiu que soubera por intermédio do pai de Sheri. Assim terminou, finalmente, sabendo a verdade. Jerry, abatido, confessara tudo. Ela implorara-lhe que fizesse uma confissão pública, para escapar da prisão, não só imediata como talvez para o resto da vida. Jerry recusou-se. Podia suportar a prisão por estupro, mas jamais resistiria à divulgação pública do seu derradeiro fiasco. Foi então que Maggie lhe contou que J J Jadway estava vivo. A notícia parecia ter causado um efeito extraordinário no rapaz. Se ao menos ele pudesse falar com Jadway. E Maggie prometeu que iria tentar um encontro.

A princípio tencionava procurar Howard Moore, para ver se ele sabia de facto o que ela apenas tinha desconfiado. Mas quando chegou a falar com ele, confessou-lhe a verdade: arrancara a confissão de Jerry por meio de um estratagema. Moore confirmou tudo, com tristeza. Logo após a morte da filha, a companheira de quarto, Darlene Nelson, teve uma crise de nervos e revelou-lhe as últimas palavras de Sheri. Sim, ele sabia que a culpa era da própria filha. Da sua pobre filha perdida. Sim, dela e não de Jerry. Não, ele não divulgaria a verdade ao público já que o rapaz não queria.

Porém, se Jerry estivesse pronto a modificar o seu depoimento, ele apoiá-lo-ia no tribunal.

E assim, para Maggie, a resolução dependia de uma só pessoa.

Tomara o avião para Chicago para encontrar Bainbridge. Conforme imaginava (ou pelo menos esperava), achara em vez disso J J Jadway. A caminho do aeroporto, ela contara ao grande homem a história de Jerry Griffith. No aeroporto, ele finalmente tomara a decisão. Tinha dito que se pudesse dar a Jerry a coragem de se levantar e confessar a verdade, então talvez ele próprio encontrasse ânimo para fazer o mesmo.

Viajaram juntos para Los Angeles. E foram ao presídio municipal, onde ela deixara Bainbridge sozinho com Jerry durante uma hora. Quando Bainbridge saiu para se encontrar com ela, já não era Bainbridge. Era J J. Jadway. E disse simplesmente: “Jerry está pronto a revelar a verdade, e Thomas Bainbridge também, para salvar o livro e todos os que possam ser salvos com a sua leitura e com a de outros livros semelhantes no futuro. Estamos prontos a confessar a verdade, a fim de podermos ficar livres.

Maggie tinha acabado a sua história.

- É praticamente tudo o que lhe posso dizer, Mike. Você tem mais alguma pergunta?

- Não - respondeu baixinho. Do outro lado da sala, através das grandes janelas, podia ver que o dia se aproximava do fim. - Vamos embora, Maggie.

Os dois !evantaram-se.

- O que é que gostaria de fazer para comemorar esta noite?

- Ficar com você.

- Jantaremos fora - sugeriu. - Vamos começar por aí. Ao subirem o corredor, Maggie disse:

- Talvez já esteja um pouco tarde para o nosso jantar. Depois que Jerry foi solto, pedi que ele me esperasse no bar do Beverly Wilshire Hotel. O senador Bainbridge vai-se encontrar lá connosco, assim que ficar livre do pessoal da televisão. Sabe o que vamos dizer a Jerry? Que saia de casa de uma vez. Para viver por sua conta. Para ter assistência médica do Dr. Finegood. Eu pagarei as consultas até que ele possa defender-se por si mesmo.

- Você acha que ele concordará?

- No quê?

- Em se defender por si mesmo?

Ela considerou a pergunta às portas do tribunal.

- Não sei, Mike. Talvez não, imediatamente. A liberdade é uma coisa difícil de a gente se acostumar a ela. Mas depois que se acostuma, é uma coisa gloriosa. Eu sei. Já aprendi. E espero que um dia Jerry também aprenda.

Estavam no corredor.

- Olhe, se você ainda vai estar um pouco ocupada - disse Barrett -, então seria melhor que eu ficasse por aqui mesmo. Há algumas perguntas que quero fazer a Jadway. Gostaria de ouvir as respostas de Bainbridge, se é que ele ainda está no prédio.

- Você está decidido a saber tudo, não é? Ele sorriu.

- Há sete minutos. Não me posso conformar com seis. Ela começou a andar.

- Até logo.

- Veja se não se demora - gritou ele.

Depois que ela se foi embora, Barrett pôs-se a imaginar onde andaria o senador Bainbridge. Um polícia ia a passar e perguntou-lhe:

- Eles acabaram de sair daqui e foram para o sexto andar -informou o guarda. - Há outra rede de televisão instalada lá na Sala 603 e vão começar a entrevistar de novo o Senador.

A Sala 603 era a sala de imprensa do Palácio de Justiça.

Havia três escrivaninhas de mogno e o representante do Los Angeles Times tinha desocupado a do meio, cedendo lugar ao senador Thomas Bainbridge.

Com excepção do círculo de espaço livre ao redor dessa escrivaninha, banhada pelo clarão branco dos reflectores, e das duas câmaras de televisão com as lentes assestadas sobre a escrivaninha inscrita nesse círculo e do alvoroço de ambas as equipas técnicas, não havia um só centímetro da sala que não estivesse cheio de espectadores curiosos.

Mike Barrett comprimiu-se numa das extremidades dessa multidão, tentando enxergar como o senador se estava a sair.

Avistou-o sentado à escrivaninha, calmo e imperturbável, à espera.

De um canto qualquer, atrás da câmara, alguém gritou:

- Okay, Senador, Já estamos a rodar. O senhor está em foco. Pode começar a falar.

O senador Thomas Bainbridge acenou de leve com a cabeça e olhou fixamente para a câmara de televisão mais próxima.

De mãos cruzadas sobre o mata-borrão à sua frente, falou num tom normal e directo, monocórdico e sem pressa.

- Eu já depus na sala do tribunal, há pouco mais de meia hora, que em 1934 escrevi o livro conhecido por Os Sete Minutos, sob o pseudónimo de J J Jadway - começou o senador Bainbridge. - Agora, em virtude do interesse despertado, farei um breve resumo dos factos essenciais do meu depoimento, acrescentando talvez alguns pormenores autobiográficos mais pertinentes a este tipo de declaração informal do que poderiam ter sido ao depoimento legal. Pedem-me a história completa e têm o direito de ouvi-la. Como os senhores vêem, eu não somente apoio a liberdade de expressão como tiro partido dela, agora que tenho um livro para vender.

Barrett fez coro com as risadas e ficou satisfeito ao ver que o Senador também sabia sorrir.

O rosto aristocrático de Bainbridge voltou à seriedade.

- Fui educado numa família rigorosa e formal da Nova Inglaterra - prosseguiu ele. - Éramos cinco. Havia meu pai, que se fez por si mesmo, enérgico, bem intencionado, porém dogmático e prepotente. Havia minha mãe, sua humilde servidora. Havia minhas duas irmãs mais moças, amedrontadas com nosso pai, obediente a todas as suas vontades, recalcadas e absolutamente desinteressadas de tudo. E havia eu, o herdeiro, considerado por meu pai como uma mera extensão de si mesmo, nascido apenas para auxiliá-lo e suceder-Lhe nos negócios.

“O meu curso na Faculdade de Direito era só para manter as aparências, para me tornar um produto mais atraente para a situação da família e da sociedade. Eu não tinha uma verdadeira identidade, e antes de ser devorado por meu pai e pelos negócios dele, fiz um último esforço para descobrir quem eu era ou podia ser. Tive de reunir toda a minha coragem para pedir para passar um ano no estrangeiro, um ano, e como aleguei que era uma necessidade cultural e prometi andar na linha, recebi permissão e dinheiro. Parti em 1934 na minha viagem de exploração... de exploração de mim mesmo. O meu destino era Paris, onde todas as explorações dessa índole devem inevitavelmente começar.

“Eu tinha não só de aprender que era um homem como também que era uma pessoa. Até então não tinha sido um homem, tanto no sentido mais amplo como no mais restrito do termo. Sentia tanto medo da independência como do sexo. Na verdade, conforme escrevi no meu livro e declarei no tribunal, eu era impotente, no sentido da criação de uma obra e no sentido sexual. Eu queria escrever e não podia. Queria amar e era incapaz de fazer isso. Queria ser uma pessoa que também fosse um indivíduo, com a sua própria história, e não uma nota no pé de página da história de meu pai, “Durante os meus primeiros meses em Paris, fiquei desorientado, inerte, perdido. Não fiz nada, não ganhei nada, não conquistei nada. Essa era a minha situação e o meu desespero, quando conheci uma jovem americana, uma pintora, que tinha ido para o estrangeiro em busca da mesma identidade e liberdade pessoais que eu. Ela havia encontrado o que eu, até então, não conseguira achar. Era Cassíe McGraw. Apaixonámo-nos. Nunca saberei o que ela viu em mim. Talvez tivesse visto que havia uma pessoa mais atraente aprisionada no meu íntimo, aprisionada e martelando e estourando de vontade para sair, e essa foi a pessoa que ela amou e fez um esforço para libertar. Essa é a pessoa que ela de facto libertou, a que é conhecida como J J Jadway.

Cassie e eu vivíamos juntos. Ela não só me inspirou a fazer o que eu mais queria fazer acima de tudo sobre a face da terra, a escrever sobre mim mesmo e as minhas percepções, com verdade e sinceridade, como me deu consciência de prazeres que nenhum dinheiro do mundo pode comprar... a feliz contemplação de pássaros voando, o verde consolador dos campos cobertos de relva, a compreensão dos monumentos de pedra como história viva, a estimulante descoberta da arte da conversação, a tolerância com os pontos de vista alheios e, mais do que tudo, o conhecimento do amor que transcende o sexo.

“Celebrei Cassie e o nosso amor em Os Sete Minutos. Enquanto o escrevia, terminou a minha licença para ficar no estrangeiro. Continuei a inventar desculpas para meu pai, prolongando a minha estada. Perdendo a paciência, ele deixou de me mandar dinheiro, e então minha mãe e minhas irmãs ajudaram-me sigilosamente com as suas mesadas. Christian Leroux foi inexacto ao declarar no tribunal que eu escrevi o romance em três semanas. Fiz o primeiro rascunho em três meses e levei outros três para reescrevê-lo. Não escrevi esse livro, como Cleland escreveu Fanny /////, para escapar à prisão por motivo de dívidas. Recebia dinheiro suficiente da minha família.

“Quanto ao livro, propriamente dito, foi baseado na minha experiência com a de Cassie McGraw. Não houve alegoria consciente. Destinava-se a ser um romance naturalista, talvez ligeiramente influenciado, mas pouco, por um escritor que comoveu e outro que abalou a literatura, a saber: D. H. Lawrence e James Joyce, Não foi unicamente a minha nova opinião sobre o sexo, ou mesmo o estímulo de Cassie, que me capacitaram a escrever o livro com sinceridade. Foi o conselho recebido em um ensaio escrito certa vez por Lawrence, A Propósito do Amante de Lady Chatterley que me deu a força para criar o livro sem inibições.

“Houve, por um lado, o problema da linguagem. E Lawrence aconselhou-me: "As palavras que tanto escandalizam a princípio terminam sendo aceites com naturalidade. Será porque o espírito fica depravado pelo hábito? De modo algum. É que as palavras apenas escandalizam a vista, nunca escandalizam o espírito. As pessoas destituídas de espírito talvez continuem a escandalizar-se, mas elas não interessam. As outras percebem que não se escandalizam e jamais se escandalizaram realmente: e experimentam uma sensação de alívio. E nisso se resume todo o problema. Hoje somos, como seres humanos, evoluídos e cultos muito além dos tabus inerentes à nossa cultura".

“Depois havia a hesitação em descrever fielmente vários actos sexuais na narrativa. E de novo Lawrence colaborou com Cassie ao mostrar-me o caminho, dizendo-me: "Eu quero que os homens e as mulheres sejam capazes de pensar em sexo de modo integral, completo, sincero e limpo. Ainda que não possamos atingir satisfatoriamente a plenitude do acto sexual, ao menos pensemos em sexo de uma forma completa e nítida. Toda essa conversa de moças e virgindade como uma folha de papel em branco em que nada está escrito é pura tolice. Uma moça e um rapaz formam uma meada atormentada, uma confusão fervilhante de sensações e ideias sexuais que só com o tempo se desfaz. Anos de ideias honestas a respeito de sexo e anos de combate sexual levar-nos-ão, finalmente, aonde queremos chegar, à nossa castidade verdadeira e perfeita, à nossa inteireza, quando o nosso acto sexual e a nossa ideia sexual estiverem em harmonia, e um não interferir com a outra".

“Animado por essas palavras, pus de lado as insinuações, as sugestões, as malícias desonestas, varri, para longe o último asterisco e escrevi a minha verdade. Para guiar a minha caneta, baseei a minha estrutura no Sétimo Capítulo do Cântico de Salomão no Antigo Testamento.

 

Talvez se lembrem... "As juntas das tuas coxas são autênticas jóias, o trabalho das mãos de um hábil artesão. O teu umbigo parece uma taça de vinho que carece de bebida: o teu ventre é como um monte de trigo semeado de lírios. Os teus dois seios lembram duas corças que fossem gémeas". E depois talvez se lembrem: "Pertenço a meu amado, que só a mim deseja", ou então: "Corramos de manhã cedo aos parreirais; vejamos se as videiras estão em flor, se já têm bagos maduros e se as romãs já deram frutos: lá eu te darei o meu amor".

“Assim foi escrito Os Sete Minutos e depois publicado. Mantive o meu anonimato, recusando-me inclusive a entrar em contacto pessoal com o editor, porque era muito cedo de mais para ousar que meu pai ou minha família soubessem o que eu estava a fazer. Esperei para ver se o livro seria um sucesso e me permitiria abraçar por completo uma carreira que eu queria. Devido à edição limitada e à censura generalizada, o livro rendeu-me pouco dinheiro. Não deixou, todavia, de me animar a prosseguir, pelas conversas que surpreendia nos cafés, pelas cartas que recebia de estudantes e turistas estrangeiros. Inicialmente, não repudiei o livro. Foi só mais tarde que quis que Monsieur Leroux e outros acreditassem que eu o tinha repudiado, constrangido pelas circunstâncias, e assim essa lenda recebeu e ganhou circulação.

“Afinal chegou a hora da decisão. Cassie ficou grávida. Eu tinha mais livros à espera de nascerem. Eu estava pronto para ser dono de mim mesmo. Voltei sozinho para Connecticut para ter a cena final com meu pai. Não pude tê-la. Ele achava-se gravemente enfermo. Minha mãe quase teve um colapso nervoso e minhas irmãs viviam aterrorizadas, tal a completa dependência que tinham dele. O que sustentou meu pai e deu à família inteira esperanças pelo seu restabelecimento foi a sua reconciliação com a Igreja. Ele regressara ao catolicismo, devotamente, e aquilo manteve-o. Então soube que a Igreja andava investigando J J Jadway e que o livro de Jadway... o meu livro secreto... seria enquadrado no Index. Percebi que isso seria um golpe fatal para meu pai... e realmente para minha mãe e minhas irmãs também. Temendo pela vida dele, resolvi eliminar J J Jadway para sempre, para que nunca mais pudesse ficar ligado a mim e destruir meus pais.

“Escrevi logo para Paris. Escrevi para Cassie e para Sean O’Flanagan. Dei-lhes instruções explícitas e remeti dinheiro para que executassem essas instruções. Eles acreditaram nas minhas boas intenções... que embora estivesse a eliminar um pseudónimo, continuaria sendo Jadway sob um outro nome. Tomei providências para criar a lenda em torno do mau carácter de Jadway, o seu remorso, o seu suicídio, tudo o que de pior pude conceber, a fim de que os curiosos, os investigadores, Leroux, o Arcebispo de Paris, o padre Sarfatti e outro se dessem por satisfeitos e nunca mais voltassem a interrogar-me. Quando .o padre Sarfatti tentou entrar em contacto comigo, foi Sean O'Flanagan quem lhe telefonou, usando o meu nome e interpretando o papel de Jadway. Foi Cassie McGraw quem entregou ao padre Sarfatti a carta que eu preparara minuciosamente. Foi Sean O’Flanagan quem acompanhou Cassie a Veneza, apresentando-se como Jadway no baile de máscaras e no interrogatório da Cúria no palácio ducal. Quanto às conversas telefónicas que eu tinha de fazer com o meu editor, Christian Leroux, era Sean quem fazia as ligações em nome de Jadway, interpretando um texto que eu lhe preparara. Essas conversas foram trocadas entre Sean e Leroux enquanto eu estava nos Estados Unidos, e muito depois que o meu livro fora publicado, e Leroux descreveu o teor delas com exactidão, mas situou-as errado no tempo. No banco das testemunhas, Leroux indicou que os seus telefonemas com Jadway se tinham efectuado em data anterior. Ou ele esqueceu a data em que eles realmente se fizeram ou então trocou de propósito o ano em que ocorreram, a fim de reforçar a sua importância como testemunha para a acusação.

“Providenciar a minha morte simulada resultou na tarefa mais simples de todas. Sean O’Flanagan ocupava uma parte do seu tempo a trabalhar para a edição parisiense do New York Herald Tribune no início de 1937. Era-lhe bastante fácil escrever e noticiar o obituário de J J Jadway. Igualmente fácil foi comprar a venal imprensa francesa da época e conseguir que publicassem uma nota fúnebre e alguns artigos de relativo destaque. Para Sean tornava-se fácil espalhar o boato pelos cafés. Mas precisava de ir além disso. Tinha de parecer autêntico. Cassie então encarregou-se de encomendar uma missa do sétimo dia, a que ela e um punhado de admiradores do livro e Leroux assistiram.

“Estava tudo feito. Jadway já não existia. Eu encontrava-me em segurança, a fé e a vida de meu pai achavam-se preservadas e minha família ficara isolada de qualquer desgraça. Então soube que Cassie dera à luz a minha filha Judith. Abandonei a cabeceira de meu pai e voltei para França, providenciando para que Cassie e Judith me esperasse em Cherburgo. De lá tomámos o navio para Nova Iorque. Eu queria marcar a data do nosso casamento. Cassie achou que era prematuro. Casaria comigo assim que meu pai ficasse bom, que eu tivesse rompido com ele e pudesse ser de novo o homem que ela amava. Ela aguardou em Nova Iorque, enquanto eu me incumbia de manter a família e os negócios em dia, esperando na Nova Inglaterra.

“Meu pai não se restabeleceu. Morreu de uma maneira terrível. Sem que eu chegasse a romper com ele. Deixou-me como seu prolongamento, como seu procurador, em vida. Minha mãe sofreu um colapso. Minhas irmãs ficaram atarantadas e com medo. O negócio que meu pai estabelecera agora corria mal, à espera de um pulso de ferro. Todas essas responsabilidades começaram a cair sobre mim. Podia eu abandonar a minha família? Cassie tinha feito muito para me tornar independente, porém não tivera tempo para fazer o suficiente. Eu continuava vítima do meu passado.

“Procurei Cassie, supliquei-lhe que casasse comigo, para ficar ao meu lado até que eu resolvesse a situação da minha família e do negócio de que as mulheres dependiam. Prometi que voltaria depois a ser Jadway e recomeçaríamos a nossa vida de antes. Ela limitou-se a responder: "Ah, mas Jadway está morto e era ele que eu amava". Quando tornei a procurá-la, não a encontrei mais. Cassie havia desaparecido. Somente Sean sabia onde ela estava e cumpriu a promessa que lhe fizera de guardar segredo. Sustentei a nossa filha por intermédio de Sean até descobrir que Cassie se casara. Mais tarde, quando soube que Cassie andava doente e na miséria, recolhi-a num hospital de convalescentes.

“À medida que os anos passaram, percebi que ela tinha razão. Jadway morrera e nunca mais haveria de voltar. Passou-se muito tempo, eu casei, tive outros filhos e fiquei bastante rico para largar o negócio. Sem Cassie, faltava-me coragem para tornar a escrever. Sim, Jadway estava morto. Assim recobrei o meu interesse pela jurisprudência, onde eu poderia ajudar a manter a expressão livre, e desde então tenho sido parte do mundo das leis.

“Foi apenas ontem, quando o advogado da defesa, Mr. Michael Barrett, me descobriu, que fui forçado a enfrentar o facto de que J J Jadway, afinal de contas, não tinha morrido. Hoje de manhã tomei a minha decisão. Porém, antes de fazer isso, telefonei para minha mulher e meus filhos. Minha mulher já desconfiava da verdade; meus filhos não. Apoiaram sinceramente o que decidi. Depois liguei para o Presidente dos Estados Unidos e pedi-lhe que não apresentasse o meu nome ao Congresso para a vaga da Corte Suprema. E expliquei o motivo. Ele sentiu muito, foi gentilíssimo e disse, com aquele seu modo engraçado, que agora, pelo menos, a Primeira Dama ia achar-me ainda mais fascinante. Finalmente telefonei para mais uma pessoa. Para Cassie McGraw. Não pude falar com ela, por isso falei com a enfermeira. " Dê-lhe este recado quando ela estiver num dos seus dias de lucidez" - pedi, - Diga-lhe simplesmente: " Jadway está vivo". Ela compreenderá.”

Escutando, Barrett suspirou baixinho.

Depois virou-se e deixou a sala de imprensa - e Jadway.

Lá fora, a noite caíra e o ar estava limpo e revigorante.

Entrando no parque de estacionamento de Temple Street, onde o seu descapotável o esperava, percebeu que alguém se aproximava no seu encalço.

Parou, sem distinguir quem era o homem louro e, então, reconheceu-o. Continuou parado ali, sem saber o que pensar, até que o promotor público Elmo Duncan o alcançou.

- Não sei se você chegou a ouvir no meio de toda aquela balbúrdia após o veredicto - disse Elmo Duncan -, mas eu dei-lhe realmente os parabéns, Mike.

- Fico-lhe grato, Elmo.

- Venha, vou acompanhá-lo até ao carro. - Andaram em silêncio alguns segundos, e depois Duncan falou novamente, sem rancor, mas com ironia e quase para si mesmo: - Quando eu era pequeno, em Glendale, havia um jogador que era o meu ídolo: Babe Ruth. E uma vez ele disse uma coisa que me ficou gravada na memória, uma coisa mais sábia do que tudo o que já li de Sócrates, Spinoza ou Kant. Babe disse: “Um dia a gente é herói e no outro já não vale nada: portanto que vá tudo prò Inferno.”

Fez um sorriso de menino a Barrett.

- Portanto, Mike, eu digo, que vá tudo prò Inferno. Neste momento, Barrett gostou mais dele do que em qualquer outra ocasião, antes ou durante o julgamento. E sabia porquê, Era porque o outro Duncan não tinha sido este, mas simplesmente parte de uma cabala controlada por Luther Yerkes, uma cabala reforçada por Frank Griffith e Willard Osborn II e fomentada por Harvey Underwood e Irwin Blair. Este era Duncan, ao natural.

- Você quase liquidou com a gente, Elmo - disse Barrett. - Fez um excelente trabalho. Até ao dia de hoje você tinha-nos contra as cordas. Tivemos a sorte de contar com um soco poderosíssimo.

- Não foi sorte - retrucou Duncan. - Vocês mereciam ganhar e eu merecia perder. Eu esforcei-me mas vocês esforçaram-se muito mais ainda. Nunca desistiram. A certa altura, eu fiquei confiante de mais. Dependia de... de outros, e comecei a distrair-me enquanto o julgamento estava a prosseguir. Se eu estivesse sozinho, lutando pela minha vida, não dependendo de ninguém, talvez tivesse continuado, talvez descobrisse Cassie e Jadway antes de você, até mesmo apurasse a verdade acerca de Jerry Griffith e tomado alguma providência a esse respeito. Bem, serviu de lição. Jamais esquecerei.

- Ainda aposto em como você será Senador qualquer dia destes.

Duncan bufou.

- Olhe, nem sei se vale a pena apostar. Até duvido que volte a ser Promotor.

Haviam chegado ao carro de Barrett.

- Bom, mais uma vez obrigado, Elmo - agradeceu Barrett.

- Há outra coisa ainda - disse Duncan. - E não pense que digo isto porque estou descontente.

- Qual é?

- Eu continuo a achar que Os Sete Minutos é pura pornografia. Eu não o tinha lido naquele primeiro dia em que você foi ao meu escritório, de modo que não podia saber ao certo. Mas agora, com Jadway ou sem Jadway, com Jerry ou sem Jerry, acho que o livro é pornográfico, prejudicial e devia ter sido condenado. Você conseguiu a absolvição porque provou que uma das minhas testemunhas havia cometido perjúrio e outra mentido involuntariamente. Mas, Mike você não provou... ao menos para mim... que esse livro pode entrar numa casa de família. Talvez seja eu, a educação que tive, os meus critérios e minha preocupação excessiva em proteger minha família, mas ainda afirmo que livros desse tipo são perigosos e não deviam ser publicados. Creio que podem ser perniciosos para criaturas imaturas ou adultos desequilibrados. Pior ainda, acho que são capazes de excitar exageradamente um adolescente em sua fase latente, antes que venha a aceitar os seus pensamentos sexuais como um fenómeno natural. Esses livros podem levá-lo a fantasias eróticas, desviando-o do crescimento normal e da procura de experiências reais no seu próprio nível de desenvolvimento até que essas fantasias se tornem uma preocupação que frustre a sua oportunidade de se tornar normal.

- Por outras palavras, Elmo, você considera que toda a literatura, todas as ideias, deviam visar a satisfação de um leitor de doze anos de idade? Se fizéssemos isso, íamos acabar por ser uma nação adulta com habitantes de doze anos, não íamos? Não, você não me convence. Quem é muito jovem não anda muito interessado em sexo adulto e quando passa a interessar-se, em geral já tem idade suficiente pará ler sem problemas. Seja como for, ficou provado que os livros representam apenas uma pequena parte do meio ambiente sexual adolescente, talvez a menor de todas. Você não se lembra daquele levantamento que fizeram com quatrocentas estudantes secundárias há muitos anos? Perguntaram às moças o que era que as excitava mais sexualmente... uma peça? um filme? uma fotografia? um livro? A maioria absoluta respondeu... um homem. Quanto à influência dos livros sobre a mocidade, ora, se tem de haver uma censura, então não deveria partir de você, nem do Estado... deveria partir dos pais, da mãe e do pai, em casa. Que cada família decidisse por conta própria o melhor modo de educar a prole e o que ela pode ou não pode ler.

Duncan ficou a olhar para o chão. Depois sacudiu a cabeça.

- Não, Mike. É vago de mais. Eu acredito na censura do modo como está agora constituída pela lei, não só porque é lei, mas porque assegura a liberdade e a protege dessas organizações de voluntários que se encarregam de aplicar as penas por suas próprias mãos. É absolutamente indispensável ter normas. Lembro-me de um caso de censura que tivemos aqui há alguns anos a propósito do Trópico de Câncer. Uma das testemunhas de acusação, um professor de inglês chamado Baxter, mostrou-se especialmente eloquente sobre essa necessidade, e ainda recordo o que ele disse... bom, a maior parte... e continuo a concordar com ele. Ele admitia que a censura o preocupava, porque detestava a ideia de censores a imporem suas opiniões e vontades sobre as opiniões e vontades conflituosas alheias. Apesar disso, disse ele, numa sociedade complexa como a nossa, temos de viver segundo certas normas. É preciso que haja uma regra que determine que os carros sejam guiados pelo lado direito da rua. Ora, isso talvez prejudique a liberdade do motorista, transgrida os seus direitos individuais, mas a regra tem de ser imposta. Depois ele disse: “Toda a gente sabe que é proibido vender pelo correio remédios que curem o cancro, o que constitui charlatanice fraudulenta. Toda a gente sabe que é proibido vender bilhetes-postais pornográficos no pátio das escolas. Existe um nível, em suma, que é a grande preocupação e a dificuldade no círculo intermediário de toda a censura... A nossa sociedade americana concede uma grande margem de tolerância... mas aqui existe um nível que não convém, por motivos sociais de segurança ou salubridade, permitir que as pessoas o ultrapassem.”

Barrett acenou com a cabeça.

- Concordo, Elmo. Agora chegamos justamente aonde eu queria chegar. Quem as estabelece? Você? Eu? Frank Griffith? O senador Bainbridge? Prefiro a resposta dada pelo ministro Stewart, do Supremo Tribunal. Ele afirmou que os que instituíram a Primeira Emenda da nossa Constituição acreditavam que uma sociedade só poderia ser realmente forte quando fosse verdadeiramente livre. “A Constituição protege tanto a expressão grosseira como a refinada, e a vulgaridade não menos que a elegância. Um livro sem valor para mim pode transmitir algo válido ao meu próximo. Na sociedade livre a que nos destinou a Constituição, cada um escolhe por si mesmo.” Elmo, não pode haver árbitro para todos, não, em questão de gosto. Há uma velha piada que exprime isso melhor. Um paciente foi consultar um psiquiatra. Concordou em fazer o teste de associação de ideias, uma espécie de manchas Rorschach oral. O psiquiatra lia em voz alta uma série de palavras, a que o paciente devia imediatamente responder com outra, a primeira que lhe viesse à cabeça. O psiquiatra então começou com a palavra “Casa”, e o paciente respondeu, “Sexo”. O psiquiatra disse “Mesa”, e o paciente- respondeu “Sexo”. Depois de mais vinte palavras de rotina... como “Cozinha” e “Jardim” ...cada uma das quais provocou resposta idêntica, “Sexo”, o psiquiatra perdeu a paciência. “Escute cá”, disse ele ao paciente, “eu tenho de lhe confessar que nunca vi ninguém com tamanha ideia fixa.” O paciente pareceu admirado. “Mas, Doutor” protestou, “é o senhor quem está a dizer todas essas palavras provocantes!” - Barrett sorriu e encolheu os ombros. - Por aí você vê.

O Promotor Público também sorriu, mas de leve. Não estava a achar muita graça.

- Mike, a maioria de nós sabe o que é provocante e o que não é. Também sabemos o que é imoral e o que não é. E acredito que a maioria de nós acha que Os Sete Minutos e livros semelhantes são imorais, são pornográficos e não merecem andar em circulação. Seja como for, Mike, enquanto continuarem aparecendo coisas desse género, eu hei-de lutar contra elas.

Barrett acenou com a cabeça.

- Okay, Elmo. E enquanto você continuar a lutar contra elas, continuarei a lutar contra você - fez uma pausa e depois acrescentou: - E também continuarei a lutar contra todas essas coisas que considero realmente imorais hoje em dia.

- Por exemplo?

- Por exemplo, a verdadeira luta a ser travada não é contra obras que tratem de relações sexuais ou usem palavrões, mas contra imoralidades como chamar a um negro “macaco” ou classificar de “comunista” uma pessoa que discorda da sua opinião. O que é realmente imoral é esbordoar ou perseguir um homem porque ele é diferente da gente ou não compartilha das mesmas ideias, ou forçar rapazes a assassinar outros rapazes em .países distantes com o pretexto de autodefesa, ou, como declarou um pregador, assistir a “um homem completamente vestido, contraindo-se e retorcendo-se com os choques eléctricos aplicados no seu corpo até queimá-lo pelos guardas dos nossos presídios estaduais”. O que é verdadeiramente imoral é ensinar mentiras aos alunos, fomentando a hipocrisia e a desonestidade com um piscar de olhos, transformando em ideal de vida os objectivos materiais, ignorando a pobreza numa terra de fartura, tolerando a injustiça e a desigualdade ao mesmo tempo que prestam louvores fingidos à Bandeira, aos Pais da Pátria e à Constituição. São essas as imoralidades que me preocupam.

- E a mim também - retorquiu Duncan. - Quando eu puder, estarei a combatê-las ombro a ombro com você. Mas onde divergimos é na questão de liberdade de expressão e nos direitos dos que se aproveitam dela por motivos doentios ou egoístas e em detrimento das nossas famílias e do nosso país.

Parou e olhou fixamente para Barrett.

- Muito bem. Continuamos a desentender-nos quanto ao assunto de pornografia. Mas, cá entre nós, Mike, com franqueza, você de facto não acredita que tem de haver um pouco de censura?

- Se você conseguir que eu acredite num pouco de gravidez você far-me-á acreditar num pouco de censura. E até mesmo assim. Desconfio de que, se fosse possível uma coisa dessas, contentar-se com um pouco de censura, já seria de mais, um exagero, por causa das consequências que poderia ter. George Bernard Shaw explicou muito bem. Ele dizia que o assassínio é a forma extrema de censura. E de facto é, jamais me esqueço disso. Mas vou dizer-lhe uma coisa, Elmo. Quando os cientistas conseguirem provar, por meio de testes, que a pornografia literária é nociva, quando os tribunais puderem realmente distinguir entre o que é imoral e o que não é, e quando pudermos achar árbitros mais sábios do que qualquer homem sobre a face da terra, mesmo para determinar o que deve e o que não deve ser censurado, sem invadir nem ameaçar outras liberdades humanas, então e somente então é que deixarei de o combater a você. Que lhe parece?

- Talvez chegue esse dia, Mike.

- Nós devíamos rezar para que ele viesse.

Estava prestes a despedir-se quando lhe veio uma ideia, de onde não sabia, pois era irrelevante ao que se passara entre ambos, ou talvez, afinal de contas, fosse mais relevante do que tudo o que haviam discutido.

- Elmo - disse ele -, você nunca ouviu falar no melhor testamento que já foi escrito até hoje? Foi redigido por um advogado de Chicago, Williston Fish( em 1897, de colaboração com o próprio constituinte, Charles Lounsbury. Você conhece a história?

- Creio que não.

- Acho que as pessoas como nós que se dedicam à profissão legal deviam lê-lo e relê-lo de vez em quando. Vou ver se me lembro de lhe enviar uma cópia.

- De que se trata?

- Olhe, só para lhe dar uma ideia. O testamento começa assim: “Eu, Charles Lounsbury, na plena posse das minhas faculdades mentais, estabeleço e declaro pelo presente testamento as minhas últimas vontades, a fim de, pela maneira mais justa possível, distribuir os bens que possuo neste mundo entre os homens que me sucederem... Em primeiro lugar, deixo aos bons país e mães, mas em custódia para seus filhos, entretanto, todas as boas palavrinhas de louvor e todos os apelidos carinhosos, e encarrego os referidos pais de os usar justa, porém generosamente, à proporção que as necessidades de sua prole assim o exigirem.

“Deixo às crianças exclusivamente, mas somente enquanto perdurar a sua infância, todos e cada um dos den-tes-de-leão e margaridas dos campos, com o direito de brincar livremente no meio deles, segundo o costume infantil, prevenindo-as ao mesmo tempo contra os cardos. E lego-lhes as margens amarelas dos riachos e as areias douradas por baixo das suas águas, e os aromas dos salgueiros que caem sobre as referidas águas, e as nuvens brancas que flutuam ao alto, acima das árvores gigantescas.

“E deixo às crianças os dias intermináveis de alegria, com mil maneiras de contentamento, e a Noite e a Lua e a cauda da Via-Láctea para se maravilharem, mas dependente, entretanto, dos direitos abaixo concedidos aos amantes, e dou a cada criança o direito de escolher uma estrela que será a sua...

“Aos amantes lego o seu mundo imaginário, com tudo o que possam vir a precisar, como as estrelas do firmamento, as rosas vermelhas, vermelhas pelos muros, a neve do espinheiro, os suaves acordes da música, ou o que quer que possam desejar que represente para ambos a permanência e a beleza do seu amor.

“E para aqueles que já não são crianças, nem jovens, nem amantes, eu deixo a Lembrança...”

Barrett fez uma pausa e sorriu cordialmente para Duncan.

- Elmo, seja qual for o lado em que estivermos - disse ele -, acho que nós dois concordamos em que é nisso que tudo se resume, não é assim?

Duncan teve finalmente um sorriso espontâneo.

- Sim - replicou. - Sim, é nisso que tudo se resume. Boa noite, Mike.

- Boa noite, Elmo, e felicidades... para nós dois.

Três quartos de hora depois, quando Mike Barrett chegou ao seu apartamento, encontrou uma garrafa imensa, de quase dois litros, de champanhe G. H. Mumm, espalhafatosamente embrulhada para presente, cheia de fitas, parada em esplendor diante da sua porta.

Ao abrir a porta à chave e entrar, tentou achar o cartão do doador. Mas a sala lá dentro estava escura, o que significava que Maggie ainda não tinha chegado, e ele teve de acender as lâmpadas e procurar o cartão de novo. Finalmente descobriu-o. Tirou-o do sobrescrito e leu a mensagem:

 

Para Michael Barrett:

Cumprimento-o pela merecida vitória. Recomendo-lhe também a sabedoria de Charles Lamb, a saber: “Quem não é capaz de tomar dois partidos não pode ser advogado." Se dispuser de uma hora livre, gostaria de o interessar no meu. É possível que não o considere desagradável, e até mesmo lucrativo.

Com os melhores votos de

LUTHER YERKES

 

Barrett rasgou o cartão pelo meio e lançou os pedaços na cesta de papel.

Ficou a olhar para a garrafa de champanhe.

Os despojos do vencedor.

Ficaria com ela.

O telefone tocou e ele apressou-se em atender. A voz que ouviu era a última que podia esperar.

- Alô, campeão - disse Faye Osborn. - Tenho de confessar que vou ter de engolir tudo o que disse antes. Achei que você gostaria de saber disso, Mike.

- Bem, é muito simpático da sua parte, Faye.

- Você revelou-se um advogado excepcional. Até o Papá foi obrigado a reconhecê-lo. Quem é capaz de tornar aquele livrinho imoral puro como a neve merece o Preito de Admiração dos Osborn, além do Prémio Nobel. De facto, o Papá ficou tão impressionado que acredito que ele esteja quase pronto a modificar radicalmente a sua decisão sobre você.

- Seria muita generosidade da parte dele.

- Mike, vou-lhe dizer porque estou a telefonar-lhe. Acho que nós dois somos bastante adultos para esquecer o que dissemos um ao outro num momento de raiva. Pensei em oferecer-lhe uma pequena recepção, mas depois lembrei-me: Para que esperar por uma coisa tão formal? Porque não esta noite? Você deve estar com vontade de comemorar. Em todo o caso, eu estava com um pouco de esperança de que você estivesse livre para jantarmos juntos hoje.

Barrett ouviu a chave na fechadura e viu a porta da frente abrir-se, revelando-lhe o rosto radiante de Maggie.

Baixou o olhar para o auscultador e depois aproximou-o ainda mais.

- Sinto muito, Faye. Tenho outro compromisso. Creio que vou andar muito ocupado daqui por diante.

- Compreendo. Então é assim. Bem, apenas julguei que valia a pena arriscar para ver o resultado. Au revoir, Mike. Talvez a gente se encontre por aí qualquer dia destes.

- Talvez - disse ele. - Adeus, Faye. Ergueu os olhos.

- Alô, Maggie - saudou.

 

Houve o champanhe. Ambos tinham-se sentido cansados e felizes de mais para outra coisa além de um simples jantar fora e bem cedo. E agora voltavam de carro, passando por Oakwood, a caminho de West Los Angeles.

Mike Barrett diminuiu a marcha no Center Boulevard, depois dobrou na Third Street e dirigiu-se ao primeiro espaço vago no estacionamento.

Abrindo a porta do carro e ajudando Maggie a sair, ele sugeriu:

- Vamos dar um pequeno passeio antes de ir para casa.

Levou-a até à vitrina da casa de móveis mais próxima e depois saíram, andando de mãos dadas, vendo tudo o que as lojas tinham para oferecer.

Pararam diante do Empório de Livros de Ben Fremont. Na vitrina principal havia de novo pilhas e pilhas de exemplares de Os Sete Minutos, parecendo cada uma nada menos do que um enorme ramo de flores. O interior da livraria estava profusamente iluminado e Ben Fremont ocupava o seu lugar do costume atrás da caixa registadora. Viam-se compradores e leitores.

Dois rapazes com jaquetas de couro saíram da loja e um começou a tirar um volume do saco de papel. Barrett percebeu que era Os Sete Minutos. Ao passarem por trás dele, Barrett pôde ouvir o que trazia o livro a dizer para o outro.

- É, e além disso eu soube que tem até uma cena em que ele cai de língua nela. Fora de brincadeira.

Fora de brincadeira.

Outro casal havia parado ao lado deles, detendo-se para examinar a vitrina, um par de meia-idade, respeitavelmente vestido.

- Está aí, oh - disse ela. - Foi o tal que saiu em todos os jornais. Dizem que de facto é qualquer coisa. E não adianta fazer essa cara. A sua própria filha já é capaz de ter algo que ensinar a esse escritor. Você sabe que essa coisa de inocência está hoje em dia toda mudada. Ande, deixe de ser tontinha, vamos comprar um exemplar só para a gente se divertir.

Para a gente se divertir.

Barrett observou-os a entrar na livraria. Sentiu uma pontinha mínima de preocupação. O livro seria lido, como tantos outros, por motivos equívocos. Havia livros decentes e leitores indecorosos. Mas depois a sua preocupação evaporou-se. Ninguém, numa sociedade livre, seguindo as regras dessa sociedade, tinha o direito de se interpor entre uma ideia e o seu público.

Lembrou-se de um parecer da Liga de Escritores da América: “O conteúdo de um livro, obsceno ou não, só se torna conhecido daqueles que decidem lê-lo, ou a continuar a lê-lo depois de chegarem a partes repreensíveis. Essa decisão não pode legitimamente constituir motivo de preocupação para outros cidadãos, que não estão obrigados a ler nenhuma obra repreensível, nem tão-pouco motivo de preocupação para o Estado.”

Lembrou-se do parecer de Charles Rembar, outro advogado, que combateu a censura para preservar a expressão: “Os livros proporcionam um veículo para a transmissão de ideias que não encontra comparação nas demais formas de expressão... Essas podem ser tão boas ou melhores em matéria de entretenimento, comoção ou provocação de reacções emotivas, mas a palavra impressa continua sendo o meio mais importante para a comunicação espiritual em que se baseia a nossa civilização, Todo o exercício do poder governamental que impeça a livre circulação de livros é, portanto, uma ameaça à nossa sociedade.”

Um livro não é um chumaço de papel. Um livro é um cérebro, uma pessoa, várias pessoas, a nossa sociedade, a própria civilização.

Disse consigo mesmo: "No fim, não é a arte que precisa de mudar e melhorar, mas o povo."

- Sempre foi o povo. Conseguir a educação do povo significa conseguir ar, ar livre.

Olhou uma última vez para os livros na vitrina.

Inocente.

Sentiu a mão de Maggie no seu braço.

- Você quer entrar? - perguntou ela.

- Esta noite não - respondeu. - Acho que posso deixar Cathleen em paz na cama dela. Creio que daqui para a frente prefiro passar o meu tempo com Maggie.

Sentiu o braço dela a deslizar suavemente dentro do seu e começaram a caminhar de volta para o carro.

- Sabe, Maggie? Nós já tivemos os nossos sete minutos. Eu estava a imaginar no que viria depois.

- No oitavo minuto?

- E o nono, o décimo e todos os milhões de minutos da vida de uma pessoa que vêm depois. Eles também contam. Tanto quanto os sete. Talvez até mais.

- Sim, é facto.

- Você não gostaria de saber como é que seria para você e para alguém que o amasse?

- Gostaria, sim. Mas precisava de ser alguém que gostasse tanto de mim como eu dele. Tanto quanto Cassie e Jadway gostavam mutuamente. Só que no meu caso não se trataria de minutos, mas de eternidade, de infinito.

- Ena, o seu caso parece duro de roer. Mas sabe uma coisa, Maggie? eu gostaria de tentar.

- Você está a falar a sério? Baixou os olhos, sorrindo, para ela.

- Maggie - disse ele -, para melhor ou para pior, você tem um advogado ao seu dispor.

 

                                                                                            Irving Wallace  

 

                      

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