Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS SILÊNCIOS DO CORONEL BRAMBLE
A brigada escocesa decidiu disputar os campeonatos de boxe numa bela granja flamenga perto de Poperinghe.
Depois de tudo terminado, o general subiu a uma cadeira e, numa voz sonora, disse:
- Gentlemen, assistimos hoje a combates notáveis e creio que poderemos tirar algumas lições úteis deste espectáculo para a luta que em breve iremos retomar. Mantenhamos a calma: conservemos os olhos abertos; ataquemos pouco, mas duramente, e combatamos até ao fim.
Três hurras fizeram estremecer a velha granja; os motores das viaturas roncavam à porta. O coronel Bramble, o major Parker e o intérprete Aurelle dirigiram-se a pé para o acantonamento, entre campos de lúpulos e de beterrabas.
- Formamos um estranho povo - disse o major Parker. - Para interessar um Francês por um combate de boxe, teremos de lhe dizer que está em causa a honra nacional; para interessar um Inglês por uma guerra, nada melhor do que sugerir-lhe que esta se assemelha a um combate de boxe. Digam-nos que o Huno é um bárbaro, e concordaremos delicadamente, mas digam-nos que é um mau desportista e o Império Britânico sublevar-se-á.
- Por culpa do Huno - respondeu tristemente o coronel -, a guerra deixou de ser um jogo de gentlemen.
- Não imaginávamos - retomou o major - que pudessem existir no mundo semelhantes brutos. Bombardear cidades abertas é quase tão imperdoável como pescar uma truta com uma minhoca, ou matar uma raposa a tiro.
- Não exageremos, Parker - declarou o coronel friamente -, ainda não chegaram a tanto.
Em seguida, perguntou delicadamente a Aurelle se o combate de boxe fora divertido.
- Admirei sobremaneira, sir, a disciplina desportiva dos vossos homens; os Highlanders', durante os combates, comportavam-se como na igreja.
- O verdadeiro espírito desportivo - comentou o major - participa sempre do espírito religioso. Quando, há alguns anos, a equipa de futebol neozelandesa veio a Inglaterra e, depois do primeiro desafio, venceu a equipa nacional inglesa, o país sentiu-se consternado como se houvéssemos perdido esta guerra. As pessoas, na rua, nos comboios, apresentavam-se carrancudas. Depois, os zelandeses venceram a Escócia e, em seguida, a Irlanda: foi o fim do mundo.
Mas ainda restavam os galeses. No dia do desafio, encontravam-se reunidas no estádio cem mil pessoas. É sabido que os Galeses são profundamente religiosos, e que o seu hino nacional, País dos Nossos Pais, é, simultaneamente, uma oração. Quando as duas equipas entraram em campo, a multidão, homens e mulheres, exaltados e confiantes, cantaram antes da batalha este hino ao Senhor, e os zelandeses foram derrotados. Ah! Somos um grande povo.
- É verdade - concordou Aurelle, comovido. Um grande povo. - E acrescentou: - Mas, há pouco, o
1: Soldados do Regimento das Terras Altas escocesas; e também os nativos destas mesmas Terras Altas. (N. da T. )
senhor também tinha razão: um povo estranho, em certos aspectos, e as vossas opiniões sobre os homens não deixam de nos surpreender, por vezes. "Browne diz o senhor, "parece um idiota; mas é um erro, jogou críquete pelo Essex. " Ou ainda: "Em Eton, considerámo-lo um imbecil; mas, em Oxford, surpreendeu-nos: imaginem que é um "quatro" no golfe, e que é capaz de fazer cinquenta e três pés em mergulho!"
- E então? - admirou-se o coronel.
- Não lhe parece, sir, que a inteligência. . .
- Odeio as pessoas inteligentes. . . Oh! Peço desculpa, messiou.
- Foi muito gentil, sir - disse Aurelle.
- Ainda bem que assim o entendeu - resmungou o coronel, por entre os pêlos do bigode.
O coronel pronunciava-se raramente e sempre por meio de frases breves; mas Aurelle aprendera a apreciar o seu humor seco e vigoroso, e o sorriso encantador que, por vezes, florescia naquele rosto rude.
- Mas não lhe parece também, Aurelle - retomou o major Parker -, que no seu país atribuem um valor acima do real à inteligência? Não há dúvida que, na vida, é mais útil saber pugilismo do que saber escrever. Gostaria que Eton respeitasse os fortes em cultura geral? Seria o mesmo que pedir a um treinador de cavalos de corrida que se interessasse por cavalos de circo. Não frequentamos a Universidade para nos instruirmos, mas para nos impregnarmos dos preconceitos da nossa classe, sem os quais seríamos perigosos e infelizes.
"Somos como os jovens persas de que fala Heródoto e que, até aos vinte anos de idade, se limitavam a aprender três ciências: montar a cavalo, atirar com o arco e não mentir.
- Pois sim - disse Aurelle -; mas veja bem, major, como são imprevísiveis. Desprezam os fortes em cultura geral e citam Heródoto. Melhor ainda, há dias, apanhei-o em flagrante delito: lia, na sua tenda, uma tradução de Xenofonte. Garanto-lhe que muito poucos franceses. . .
- É totalmente diferente - interrompeu o major. Os Gregos e os Romanos interessam-nos, não como ob jectos de estudo, mas como antepassados e desportistas. Somos os herdeiros directos da maneira de viver dos Gre gos e do Império Romano. Xenofonte diverte-me porque é o tipo perfeito do gentleman britânico: grande contador de histórias de caça a cavalo, de pesca e de guerra. Quando leio Cícero: Um escândalo na alta administração colonial. Graves acusações contra Sir Marcos Varrão, governador da Sicília fácil será compreender que estas palavras soam aos meus ouvidos qual velha história de família; e quem era o vosso Alcibíades, diga-me cá, senã um Winston Churchill sem chapéu?
A paisagem em redor era deveras agradável: o mont dos Gatos, o monte Vermelho, o monte Negro enquadravam, com os seus contornos airosos, as nuvens densas paradas de um céu de mestre holandês. As casas dos camponeses, encimadas por telhados de colmo polido pelo tempo, confundiam-se com os campos vizinhos: os tijolos desbotados haviam adquirido a cor amarelada da argila. Só as persianas cinzentas orladas a verde confe riam um tom vivo e humano a este reino da terra.
O coronel apontou a extremidade da bengala para a pequena cratera aberta por um rebentamento recente mas o major Parker, firme nos seus propósitos, prosseguiu o seu discurso favorito:
- O maior serviço que nos prestaram os desportos reside precisamente em nos preservarem da cultura intelectual. Ainda bem que não dispomos de tempo para fazer tudo: o golfe e o ténis excluem a leitura. Somos estú pidos.
- Quanta vaidade, major! - exclamou Aurelle.
- Somos estúpidos - repetiu vigorosamente o major Parker, que não gostava de ser contrariado -, o que representa uma grande força. Perante o perigo, não nos apercebemos dele, porque reflectimos pouco; assim, mantemos a calma e comportamo-nos quase sempre honrosamente.
- Sempre - corrigiu o coronel Bramble, com uma prontidão toda ela escocesa. E Aurelle, ao lado destes dois colossos, saltitando alegremente sobre os sulcos cavados no terreno, compreendeu melhor do que nunca que esta guerra terminaria bem.
- Levantem a mesa - ordenou o coronel Bramble às ordenanças -, tragam rum, um limão, açúcar e mantenham a água a ferver. . . Depois, digam ao plantão que me traga o gramofone e a caixa dos discos.
Este gramofone, presente de uma velha senhora chauvinista aos Highlanders, era o orgulho do coronel. Fazia-se acompanhar deste instrumento para todo o lado, tratava-o com cuidados delicados e alimentava-o mensalmente com novos discos.
- Messiou, que deseja ouvir? - perguntou o coronel a Aurelle. - Os Big Boys, Destiny Waltz ou Caruso?
O major Parker e o doutor O'Grady deram mostras de desprezar Edison solenemente; o padre elevou os olhos ao céu.
- Tudo o que quiser, sir - respondeu Aurelle -, excepto Caruso.
- Porquê? - perguntou o coronel. - É um belo disco: custa vinte e dois xelins. Mas gostaria de que começassem por ouvir a minha querida Mistress Finzi-Magrini na Tosca. . . Senhor doutor, por favor, regule-o. . . Não vejo muito bem. . . Velocidade: sessenta e um. . . Não risque o disco, por amor de Deus!
Deixou-se cair sobre a caixa dos biscoitos, encostou-se confortavelmente à parede de sacos e fechou os olhos. O seu rosto rude descontraiu-se.
O padre e o médico jogavam xadrez; Parker, a pedido do estado-maior da brigada, preenchia longos questionários impressos. Para lá do pequeno bosque rasgado por obuses, alvos flocos de neve, em redor de um avião, atravessavam um céu maravilhoso, lago verde-pálido rodeado de urzes. Aurelle concentrou-se na redacção de uma carta.
- Padre - disse o médico -, amanhã, se for à divisão, peça-lhes que me enviem cobertores para os nossos cadáveres boches. Viu o que enterrámos esta manhã? Os ratos tinham-lhe comido metade: é indecente. . . Xeque ao rei.
- Vi - respondeu o padre -, e o que é curioso é que começam sempre pelo nariz!. . .
Por cima das suas cabeças, uma bateria pesada inglesa pôs-se a bombardear a linha alemã; o padre ostentou um sorriso aberto:
- Vai haver sarilho, esta noite - disse ele, satisfeito.
- Padre - perguntou o médico -, o senhor não é o ministro de uma religião de paz e amor?
- My boy, o Senhor disse que devemos amar os homens; nunca disse que devemos amar os Alemães. . . Como-lhe o cavalo.
O Reverendo Mac Ivor, velho capelão militar, de rosto curtido pelo sol das colónias, aceitava esta vida guerreira e dolorosa com o entusiasmo de uma criança. Quando os homens partiam para as trincheiras, visitava-os todas as manhãs, com as algibeiras cheias de livros de cânticos e maços de cigarros. Na retaguarda, treinava-se no lançamento de granadas e lamentava que o seu ministério o proibisse de utilizar alvos humanos.
O major Parker interrompeu bruscamente o seu trabalho para amaldiçoar os estados-maiores de galões dourados e os seus absurdos questionários.
- Quando estava no Himalaia, em Ghitral – disse ele -, um longínquo boné vermelho propôs-nos um descabido tema de manobras em virtude do qual, entre outros pormenores, a artilharia devia atravessar um desfiladeiro de rochedos calcários tão estreito que mal lá cabia um homem muito magro. Então, telegrafei: "Ordens recebidas: enviem imediatamente cem pipas de vinagre. "
i"É favor apresentar-se ao médico-chefe de serviço para exame mental", respondeu delicadamente o estado-maior. "Releiam as campanhas de Aníbal", retorqui. É verdade que enviou esse telegrama? - perguntou Aurelle. -. . . No Exército franceês, seria submetido a um conselho de guerra. Acontece - disse o major - que as nossas duas nações não têm a mesma ideia de liberdade. . . Para nós, os "direitos imprescritíveis do homem" são o direito ao humor, o direito aos desportos e o morgadio.
No estado-maior da brigada - disse o padre -, há um capitão que deve ter recebido lições suas de correspondência militar. Há dias, como estivesse sem notícias de um dos meus jovens capelães que nos deixara há mais de um mês, enderecei uma nota à brigada: "O Reverendo Garlisle foi evacuado a 12de Setembro; gostaria de saber se tem passado melhor e se lhe foi conferida uma nova afectação. " A resposta do hospital dizia simplesmente: "1) Estado estacionário. 2) Desconhecido destino ulterior. " A brigada, ao transmitir-me a informação, acrescentara: "Não compreendemos se este último parágrafo se refere à unidade na qual o Reverendo Garlisle será eventualmente colocado ou à sua salvação eterna. "
A ária italiana terminava em gorjeios vitoriosos.
Que voz! - exclamou o coronel, entreabrindo os
olhos, desgostoso.
Retirou cuidadosamente o disco do gramofone e guardou-o com amor no estojo: Agora, messiou, vamos ouvir Destin Waltz.
Vislumbravam-se os clarões dos foguetes que, lá fora, subiam e desciam tranquilamente; o padre e o médico continuavam a enumerar os cadáveres, manejando cautelosamente as peças de marfim do pequeno jogo de xadrez; o canhão e a metralhadora, cortando o ritmo voluptuoso da valsa, formavam uma espécie de sinfonia fantástica que Aurelle deveras apreciou. Continuou a escrever a carta em versos de rima fácil.
A morte assa; o Destino canta; Esquece- me prestes.
O teu vestido negro encanta. Usa-o durante seis meses.
Evita vir em suspiros
Oferecer-me rosas;
Reserva as flores para os vivos Como as outras coisas.
"Não me censures, minha querida, por resvalar para o mais banal dos romantismos; um clérigo e um médico, a meu lado, insistem em representar de os coveiros do Ha mlet. Não me lastimes, com o corpo alimentarei As ervas amigas. Mas se, numa tarde de neblina Ou de Outono, o teu rosto de menina Quiser adorno,
Com aquele ar de melancolia Que fica bem ao teu semblante, Esquece que me esqueceste um dia Por um instante. "
Messiou - perguntou o coronel -, gosta da minha valsa?
- Infinitamente, sir - respondeu Aurelle, sincero. O coronel dirigiu- lhe um sorriso reconhecido:
- Vou tocá-la de novo para si. . . Doutor, regule o gramofone mais suavemente. . . Velocidade: cinquenta e nove. Não risque o disco. . . Desta vez é para si, messiou.
BOsWELL - Why then, sir, did he talk so? JOHNsON - Ì hy, sir, to makeyou answer asyou did.
As baterias adormeceram, o major Parker responde aos questionários da brigada; as ordenanças servem o rum, o açúcar e a água a ferver; o coronel muda a velocidade do gramofone para 61 e o doutor O'Grady fala da Revolução Russa.
- Não há memória - disse ele - de uma revolução que haja entregado o poder aos homens que a fizeram. Porém, ainda há revolucionários, o que prova que a História é mal ensinada.
- Parker, passe-me o vinho do Porto - pediu o coronel.
- A ambição - disse Aurelle - não é o único móbil que move o homem; pode ser-se revolucionário por ódio ao tirano, por ciúme, e mesmo por amor à humanidade.
O major Parker pôs os papéis de lado.
- Sinto uma grande admiração pela França, Aurelle, sobretudo depois da guerra; mas há uma coisa que me choca no seu país, se me permite que lhe fale sinceramente: é a vossa preocupação igualitária. Quando leio a his tória da vossa Revolução, lamento não ter estado presente para lutar contra Robespierre e esse horrível fellou l Hébert. E os vossos sans-culottes2. . . Well, tudo isso me dá vontade de me vestir de cetim cor de púrpura bordado a ouro e de ir passear para a Praça da Concórdia.
O médico esperou que terminasse uma crise de delírio particularmente agudo de Mistress Finzi- Magrini e retomou:
- O amor pela humanidade é um estado patológico de origem sexual que surge frequentemente durante a puberdade nos intelectuais tímidos: o excesso de fósforo no organismo tem de ser eliminado de qualquer maneira. Quanto ao ódio ao tirano, é um sentimento mais humano e que prolifera em tempo de guerra, quando a força e a multidão coincidem. É preciso que os imperadores estejam loucos para decidirem declarar essas guerras que substituem as guardas pretorianas pelo povo armado. Perante esta tolice, o despotismo produz necessariamente a revolução, até que o terrorismo conduza à reacção.
- Condena-nos, então, doutor, a oscilar constantemente entre a revolta e o golpe de Estado?
- Não - respondeu o médico -, pois o povo inglês, que já dera a conhecer ao mundo o queijo de Stilton e as poltronas confortáveis, inventou, para nossa salvação, a válvula parlamentar. Assim, campeões eleitos organizam por nós revoltas e golpes de Estado de gabinete, o que permite que o resto da nação jogue críquete. A imprensa completa o sistema, permitindo que vivamos estes tumultos por procuração. Tudo isto faz parte do conforto moderno e, dentro de cem anos, qualquer homem branco, amarelo, vermelho ou negro se recusará a habitar um apartamento sem água corrente e um país sem parlamento.
- Espero que se engane - sentenciou o major Parker -odeio os políticos e, depois da guerra, quero ir viver
Em inglês no original: camarada. (N. da T. )
Os republicanos que na Revolução Francesa usavam calças e não calções como os nobres. (N. da T. )
para o Oriente, por aí ser ignorado o governo dos faladores.
- My dear major, por que diabo há-de confundir estes problemas com os seus sentimentos pessoais? A política está submetida a leis tão necessárias quanto o movimento dos astros. Indigna-o que haja noites escuras só porque aprecia o luar? A humanidade repousa num leito incómo do. Quando a pessoa que está a dormir se sente mortificada, dá voltas na cama: é a guerra ou o tumulto. Depois, volta a adormecer por alguns séculos. Tudo isto é perfeitamente natural e aconteceria sem grande dor, se não introduzíssemos as ideias morais. As cãibras não são uma virtude. Infelizmente, todas as mudanças obedecem aos seus profetas que, por amor da humanidade, como diz Aurelle, põem este miserável Globo a ferro e fogo!
- Muito bem dito, doutor - aprovou Aurelle -; mas retribuo o cumprimento: sendo essa a sua maneira de pensar, porque se dá ao trabalho de ser um homem de partido? O senhor é um socialista convicto.
- Doutor - pediu o coronel -, passe-me o vinho do Porto.
- Ora! - exclamou o médico. - Gosto ainda mais de ser perseguidor do que perseguido. É preciso saber reconhecer a aproximação destas agitações periódicas e prepararmo-nos para elas. Esta guerra antecipa o socialismo, isto é, o sacrificio total do indivíduo de elite ao Le viatão. Em si mesmo, não se trata de um bem, nem de um mal: é uma cãibra. Voltemo-nos, pois, de boa vontade, até sentirmos de novo que estamos melhor do outro lado.
- É uma teoria perfeitamente absurda - declarou o major Parker, furioso, espetando o queixo quadrado e possante -; se quiser adoptá-la, doutor, deverá renunciar à medicina! Por que razão intervir a fim de deter a evolução das doenças? Falando como o senhor, também elas são agitações periódicas e necessárias. Mas se pretende combater a tuberculose, não me recuse o direito de atacar o sufrágio universal.
O sargento enfermeiro entrou e pediu ao doutor O'Grady que fosse observar um ferido; o major Parker viu-se senhor do campo de batalha. O coronel, que abominava os conflitos de opinião, quis aproveitar para mudar de assunto.
- Messiou - perguntou ele -, qual é a capacidade do vosso maior couraçado?
- Sessenta mil toneladas, sir - arriscou Aurelle ao acaso.
Este choque imprevisto colocou o coronel fora de combate e Aurelle perguntou ao major Parker o que censurava no sufrágio universal.
- Mas não vê, meu pobre Aurelle, que é uma das ideias mais extravagantes que a humanidade jamais concebeu? Dentro de mil anos, o nosso regime político será universalmente considerado mais monstruoso do que a escravatura. Um boletim de voto por homem, seja quem for o homem! Compra um bom cavalo pelo mesmo preço de uma pileca?
- O senhor conhece - interrompeu Aurelle - o imortal raciocínio do nosso Gourteline? Porque daria eu doze francos por um guarda-chuva quando posso beber uma caneca de cerveja por seis soldos?
- Os homens iguais em direitos! - prosseguiu o major, veemente. - E porque não em coragem e suco gástrico, já agora?
Aurelle apreciava os discursos apaixonados e divertidos do major e, para atiçar a discussão, disse que não compreendia que se pudesse negar a um povo o direito de escolher os seus chefes.
- De os controlar, Aurelle, ainda aceito; mas de os escolher, nunca! Uma aristocracia não pode ser eleita: é ou não é. como? Se eu pretendesse escolher o comandante-chefe ou o director do Guy's Hospital, internar-me-iam! Mas desejar votar para a eleição do chanceler de Tribunal de Apelação ou do primeiro-lorde do Almirantado, sou um bom cidadão!
O que acaba de dizer não é totalmente exacto, mair; os ministros não são eleitos. Repare que concordo consigo, quando afirma que o nosso sistema político é imperfeito; mas tudo o que é humano o é. Além disso, "a cor das câmaras vale mais do que a melhor das antecâmaras". Outrora, em Londres - respondeu o major -, acompanhei um chefe árabe que me honrou com a sua inimizade; e como lhe mostrasse a Câmara dos Comuns e lhe explicasse o respectivo funcionamento, ele disse-me: "Deve tornar-se-vos muito complicado mandar decapitar esas seiscentas cabeças, sempre que estejam descontentes com o governo. " Messiou - disse o coronel, irritado -, vou tocar a Destiny Waltz especialmente para si.
O major Parker manteve o silêncio, enquanto a valsa desenvolvia o seu fraseado ritmado; mas ia ruminando antigos rancores contra "esse horrível fellow Hérbert" e, mal o disco soltou o último acorde, desferiu um novo ataque contra Aurelle.
- Que vantagem - perguntou ele - adveio para os Franceses pelo facto de terem mudado de governo oito vezes num século? No vosso país a revolta tornara-se uma instituição nacional. Em Inglaterra, seria impossível fazer uma revolução. Se porventura se formasse um ajuntamento de pessoas aos gritos, perto de Westminster, a Polícia ordenar-lhes-ia que dispersassem e elas obedeceriam.
- Histórias! - exclamou Aurelle, que não apreciava de modo nenhum a Revolução, mas que considerava seu dever defender uma velha senhora francesa contra este ardente normando. - Não esqueçamos, porém, major, que no seu país também se cortou a cabeça ao rei: que eu saiba, a Polícia não interveio a fim de salvar Carlos Stuart.
- O assassínio de Carlos - respondeu o major - ficou a dever-se unicamente a Cromwell; esse Olivier era um excelente coronel de cavalaria, mas não compreendia nada dos sentimentos do povo inglês; o que ficou claramente provado no momento da Restauração.
"A sua cabeça, depois de embalsamada, foi espetada num chuço no cimo de Westminster, e abandonada até ao dia em que veio rolar aos pés de uma sentinela, por o vento haver destruído a madeira do cabo do chuço que a sustentava. O soldado levou-a para casa e a mulher conservou-a numa caixa. O actual herdeiro desse soldado é meu amigo e tomei muitas vezes chá em frente da cabeça do Protetor, enterrada num pau de chuço. Reconhece-se perfeitamente a cicatriz que tinha na face esquerda.
- Houugh - resmungou o coronel, pela primeira vez interessado na conversa.
- De resto - prosseguiu o major -, a revolta inglesa não se assemelhou em nada à Revolução Francesa: não enfraqueceu as classes dirigentes. No fundo, os nefastos acontecimentos de mil setecentos e oitenta e nove haviam sido preparados por Luís XIV. Em vez de levar ao vosso país a forte armadura de uma nobreza residente, transformou os seus grandes nos ridículos fantoches de Versalhes, encarregados de lhe vestirem a camisa e de lhe chegarem a cadeira de retrete. Destruindo o prestígio de uma classe que deveria ser o apoio natural da monarquia, arruinou-a irremediavelmente, o que é lamentável.
- É muito fácil criticar- nos - disse Aurelle -, mas foi para vós que fizemos a nossa Revolução: o acontecimento mais importante da História de Inglaterra foi a tomada da Bastilha, como o senhor bem sabe.
- Apoiado, messiou - disse o coronel. - Defenda o seu país: devemos defender sempre o nosso país. . . E, agora, passe-me o vinho do Porto; vou ouvir O Mikado. . .
CARTA DE AURELLE
"Algures em França. . .
Os soldados passam cantando:
Arruma as preocupações na mochila." Chove, está vento, com este tempo Não apetece seguir uma mulher. Os soldados passam cantando, E eu faço versos a Josette;
Os soldados passam cantando:
Arruma as preocupações na mochila. "
Um soldado me trará em breve
Revistas antigas para ler'
Velhos discursos de velhos charlatães. Arruma as preocupações na mochila. " Passamos os melhores anos
Nestas reais diversões;
Os soldados passam cantando:
Arruma as preocupações na mochila. "
A chuva batendo nos vidros Dirige, qual batuta,
Um prelúdio de Tristão.
" Arruma as preocupações na mochila. " Amanhã decerto um percussor Me mandará animar As ceias de Satanás.
"Arruma as preocupações na mochila. " Os soldados passam cantando. Sobre a planície etérea ergue-se uma manhã cinzenta. Hoje será como ontem, amanhã será o que hoje tiver sido. O médico dir-me-á, agitando os braços: "Muito triste, messiou", mas não saberá o que significa "triste" nem eu. Depois, dedicar-me-á um discurso humorístico num estilo intermédio entre o de B. Shaw e o da Bíblia
O padre escreverá cartas, coleccionará vitórias e mon tará a cavalo. O canhão soará: alemães serão mortos os nossos também. Ao almoço, servir-nos-ão carne de vaca de conserva com batatas cozidas, a cerveja será detestável e o coronel dir-me-á: "Cerveja francesa não se faz boa, messiou. "
À noite, depois de um jantar de carneiro meio (com molho de hortelã) e de batatas cozidas, chegará augusta hora do gramofone. Ouviremos os Arcadians O Mikado, seguindo-se Destiny Waltz, "para si, messiou", Mistress Finzi-Magrini, para o coronel, e, por fim, Lan cashire Ramble. Para minha infelicidade, quando ouvi pela primeira vez esta ária de circo, imitei um malabarista lançando e recuperando cadenciadamente um conjunto de bolas. Esta pequena comédia passou a fazer parte das tradições da messe, e se, esta noite, me esquecesse, aos primeiros acordes do Ramble, de desempenhar o meu papel, o coronel dir-me-ia. Vamos, messiou, vamos, esboçando piruetas; mas atento aos meus deveres, não o esquecerei.
Na verdade, o coronel Bramble só aprecia espectáculos familiares e gracejos relacionados com bebidas.
O seu número favorito é o relato da obtenção de uma licença, por O'Grady. Quando está de mau humor, quando um dos seus velhos amigos foi nomeado brigadeiro-general ou feito membro da Ordem do Banho, só esta história lhe consegue arrancar um sorriso. Conhece-a de cor e, como fazem as crianças, interrompe o médico se este salta uma frase ou altera a forma de uma réplica.
-Não, doutor, não; o oficial de marinha disse:
Quando ouvirem quatro apitos estridentes e breves, significa que o barco foi torpedeado. " Ao que o senhor respondeu. E se o torpedo tiver destruído a sirena?"
O médico recuperada a página, prossegue.
Parker também descobriu um dia uma frase e a partir de então, tem obtido o maior sucesso. Extraiu-a de uma carta dirigida ao Times por um capelão.
- A vida do soldado - escrevia o excelente homem - é uma vida muito dura, por vezes recheada de perigos reais.
O coronel aprecia profundamente o humor inconsciente desta fórmula e, em geral, cita-a sempre que um obus rebenta nas proximidades. Mas o seu maior recurso, se a conversa se especializa e o enfada consiste em contra-atacar o padre num dos seus dois pontos fracos: os bispos e os Escoceses.
O padre, oriundo das Highlands, ostenta um patriotismo local feroz e exclusivo. Está convencido de que só os Escoceses lutam e são realmente abatidos.
- Se a história for justa - diz ele - não se chamará a esta guerra uma guerra europeia, mas sim a guerra da Escócia contra a Alemanha.
O próprio coronel é escocês; mas é um homemjusto e sempre que encontra nos jornais as listas das baixas da guarda irlandesa ou dos fuzileiros alemães lê-as em voz alta ao padre que, para defender as suas posições, se sente obrigado a sustentar que os fuzileiros galeses e a guarda irlandesa se recrutam em Aberdeen: nunca falha.
Tudo isto lhe deve parecer um tanto pueril, minha amiga, mas são estas infantilidades que animam a nossa triste vida de Robinsons bombardeados. É verdade, estes homens admiráveis conservam certas facetas infantis da tez rosada, a profunda estima pelos jogos e o nosso rústico abrigo afigura-se-me muitas vezes uma nurseryi de heróis.
Mas deposito neles uma confiança ilimitada: o seu oficio de construtores de um império inspirou-lhes uma elevada ideia dos seus deveres de homens brancos. O cOronel e Parker são pessoas que nada desviará da rota traçada. Menosprezar o perigo, resistir às provas de fogo, não constituem, para eles, actos de coragem, fazem simplesmente parte da boa educação. De um pequeno buldogue que enfrenta um enorme cão, dizem muito seriamente: " um gentleman. "
E um gentleman, um verdadeiro, está muito perto de ser, veja bem, o tipo mais simpático que jamais produz a evolução do lastimável grupo de mamíferos que, neste momento, causa alguma celeuma na Terra. Na assustadora malvadez da espécie, os Ingleses criam um oásis de cortesia e indiferença. Os homens detestam-se; os Ingleses ignoram-se. Aprecio-os muito.
Acresce ainda que constitui erro grave considerá-los menos inteligentes do que nós, a despeito do vivo prazer que o meu amigo major Parker parece experimentar em afirmá-lo. A verdade é que a sua inteligência utilizada é em todos os pontos diferentes dos nossos: igualmente afastada do nosso racionalismo clássico e do lirismo pedante dos Alemães. compraz-se num bom senso vigoroso e na ausência de qualquer sistema. Daí o tom simples e natural que torna ainda mais encantador o gosto deste povo.
Mas vejo pela janela que me trazem o meu cavalo. terei, pois, de ir visitar os irritantes lavradores das quintas vizinhas, em busca de palha para o quartermaster3,
Em inglês no original: infantário. (N. da T. )
2 Sahib: senhor; título dado aos Europeus na Índia. (N. da T)
3 Em inglês no original: mestre-quarteleiro. (N. da T. )
pretende construir-nos estrebarias. Entretanto, a minha amiga decora os seus aposentos e escolhe, ó guerreira, sedas suavemente matizadas:
No seu salão Directórzo
(Azul-alfazema e amarelo-limão)
velhas poltronas coabitarão
Num estilo contraditório
Com um divã sem história
(Azul-alfazema e amarelo-limão).
A maravilhosas celebridades
(Azul-alfazema e amarelo-limão)
Peraltas de cinco galões
A próxima nitória anunciarão, Em dólmanes ostentatinos
(Azul-alfazema e amarelo-limão).
As paredes nuas como as de igreja (Azul-alfazema e amarelo-limão)
Algum tempo ainda esperarão
Que um primeiro cônsul brutalize A sua calma e o nosso Directório.
- O senhor é poeta? - perguntou-me, desconfiado o coronel Bramble, que me via alinhavar frases breves e de igual comprimento.
Protestei.
Chovia há quatro dias. As insistentes gotas tamborilavam num trémulo monótono sobre a lona encurvada da tenda. Lá fora, na pradaria, a erva desaparecera sob a lama amarelada, onde os passos dos homens imitavam os estalidos da língua de um gigante.
- "E a Terra estava corrompida" - recitou o padre "e Deus disse a Noé: "Faz uma arca de madeira; divide a arca em compartimentos e reveste-a de betume, por dentro e por fora. "
- "E, naquele dia, todas as fontes do grande abismo se romperam e as comportas do céu se abriram" - prosseguiu o médico.
- Este dilúvio - acrescentou - constitui um verdadeiro acontecimento, pois a sua descrição é comum a todas as mitologias orientais. Tratou-se, sem dúvida, de uma cheia do Eufrates; por essa razão, a arca foi arrastada para o interior das terras, colidindo com uma colina. Catástrofes semelhantes produzem-se frequentemente na Mesopotâmia e nas Índias, mas são raras na Bélgica.
- O ciclone de mil oitocentos e setenta e seis matou duzentas e quinze mil pessoas em Bengala - observou o coronel. - Messiou, faça circular o vinho do Porto, por favor.
O coronel adorava as informações numéricas, para grande infelicidade de Aurelle que, incapaz de fixar um algarismo, era quotidianamente interrogado sobre o número de habitantes de uma aldeia, os efectivos do Exército sérvio ou a velocidade inicial do projéctil francês.
Aurelle previu, aterrorizado, que o coronel lhe iria perguntar qual a altura média das chuvas na Flandres; em pés e polegadas, e apressou-se a mudar de assunto.
- Descobri em Poperinghe - disse ele, apontando para a obra que estava lendo - um livro antigo deveras curioso. Trata-se de uma descrição da Inglaterra e da Escócia pelo francês Etienne Perlin, Paris, mil quinhentos e cinquenta e oito.
- Houugh, que diz esse Mister Perlin? - inquiri o coronel, que tinha pelos objectos antigos a mesma estima que pelos velhos soldados.
Aurelle abriu ao acaso e traduziu:
- ". . . Depois do jantar, levantam a mesa e as senhoras retiram-se. A mesa é de bela madeira das Índias, muito polida, e recipientes da mesma madeira suportam as garrafas. O nome de cada vinho encontra-se gravad numa placa de prata presa ao gargalo da garrafa; cada conviva escolhe o vinho que deseja e todos bebem com a mesma seriedade com que fazem penitência, brindando à saúde de personagens eminentes ou de beldades em voga: chamam a isto toasts. "
- Gosto das "beldades em voga" - declarou o médico; o vinho do Porto talvez adquirisse algum encanto aos olhos de Aurelle, se pudesse servi-lo a Gaby Deslys ou Gladys Cooper.
- Os toasts - esclareceu o coronel - estão fixados para cada dia da semana: segunda-feira, os nossos homens; terça-feira, nós mesmos; quarta-feira, as nossas espadas; quinta-feira, os nossos desportos; sexta-feira, a nossa religião; sábado, as nossas noivas ou as nossas mulheres; e domingo, os nossos amigos ausentes e as embarcações marítimas.
Aurelle continuou a ler: "A origem destes toasts é perfeitamente bárbara e disseram-me que os Highlanders da Escócia, povos semi-selvagens que vivem num estado de perpétua discórdia. . " Ouça isto, padre - disse o coronel. - Leia outra messiou, em atençâo ao padre. Disseram-me que os ghlanders da Escócia. . . ". . . povos semi-selvagens que vivem num estado de perpétua discórdia, mantiveram o carácter original deste costume. Bebermos à saúde de alguém significa pedir-lhe que vele por nós enquanto bebemos e que nos encontramos indefesos. Assim, a pessoa a quem brindamos responde: "Iplaigiu", o que significa, na sua língua: "Comprometo-me"; depois, desembainha o punhal, coloca a ponta na mesa e protege-nos até que esvaziemos o copo. . . " Assim se explica - disse o major Parker - que as tassas de estanho que se costumam oferecer como prémios de golfe e de esgrima tenham sempre o pé de vidro, atrás do qual se pode ver aproximar-se a arma dos assassinos. Fáça circular o vinho do Porto, messiou - pediu o coronel -, quero beber um segundo cálice à saúde do doutor, para o ouvir responder "Iplaigiu" e para o ver colocar em cima da mesa a ponta do seu punhal.
Possuo apenas um canivete suíço - respondeu o tdre. Também serve - concordou o coronel. Esta teoria da origem dos toasts é perfeitamente verosímil - declarou o médico -; repetimos constantemente gestos ancestrais que, para nós, são desprovidos de qualquer utilidade. Quando uma grande actriz pretende exprimir ódio, arreganha os encantadores lábios e mostra os caninos, numa ostentação inconsciente de instintos antropofágicos. Apertamos a mão aos nossos amigos para evitarmos que a utilizem para nos atacarem, e tiramos o chapéu como cumprimento porque os nossos antepassados ofereciam humildemente as cabeças descobertas a oficiais da época, prontas para serem cortadas.
Naquele momento, ouviu-se um estalido e o coronel Bramble caiu ruidosamente para trás: um dos pés da cadeira em que se encontrava sentado acabava de se quebrar. O médico e Parker ajudaram-no a levantar-se, enquanto Aurelle e o padre observavam a cena, deixando contagiar-se por sonoras e saborosas gargalhadas.
- Aí está - disse o major, intervindo generosamente em defesa de Aurelle, que mordia em vão a língua -, está um bom exemplo de sobrevivências ancestrais: imagino que a queda provoca o riso porque a morte de un homem constituía, para os nossos antepassados, um es pectáculo dos mais agradáveis. Libertava-os de um adversário e diminuía o número daqueles que partilhavam os alimentos e as mulheres.
- Somos alvo de todos os olhares por sua culpa, messiou - reconheceu o padre.
- Um filósofo francês - esclareceu Aurelle, mais calmo - construiu uma teoria muito diferente sobre o riso: chama-se Bergson e. . .
- Ouvi falar dele - disse o padre -; trata-se de um clérigo, não é verdade?
- Também eu construí uma teoria do riso - disse o médico -, e que é muito mais edificante do que a sua, major. Acredito simplesmente que seja produzido pela brusca sucessão de uma impressão de estupefacção e de uma de alívio. Um jovem símio que nutre o mais profm do afecto pelo velho macho da tribo vê-o escorregar nuna casca de banana; receia um acidente e o seu peito incha de horror; em seguida, descobre que não houve perigo. todos os seus músculos se distendem agradavelmente. Surgiu, deste modo, o primeiro gracejo. E assim se explica o movimento convulsivo do riso. Aurelle sente-se abalado fisicamente porque é abalado moralmente entre dois sentimentos poderosos: o seu afecto inquieto e respeitador pelo coronel.
- Houugh - murmurou o coronel.
. . e a consoladora certeza de que este não se magoou. por tudo isto que os melhores temas de mofa são os que nos inspiram um profundo terror. Quais são os temas favoritos das histórias cómicas? O Inferno, o Paraíso, os grandes deste mundo e o mistério da gestação, temível entre todos. Sentimos que abordamos assuntos tabus, cuja evocação poderia, só por si, desencadear a cólera celeste, e que cometemos este sacrilégio numa confortável segurança. É uma forma de sadismo intelectual.
- Gostaria que falássemos de outra coisa - sugeriu o coronel -. . Leia- nos mais um pouco desse livro, messiou.
Aurelle avançou algumas páginas.
- "Os outros povos" - leu ele - "acusam os Ingleses de falta de civismo porque se abordam e se despedem sem levar a mão ao chapéu, e sem a sucessão de cumprimentos com que se presenteiam os naturais da França ou da Itália. Mas, quem assim julga, vê as coisas de um ponto de vista errado. Os Ingleses consideram que a cortesia não consiste em gestos ou em palavras, muitas vezes hipócritas ou enganadoras, mas numa disposição de espírito igual e cortês em relação a todos. Têm os seus defeitos, como todos os povos; mas, vendo bem, estou convenciddo de que, quanto mais os conhecemos, mais os apreciamos e estimamos. "
- Esse velho Mister Perlin agrada-me - concluiu o coronel -; e o senhor também é da mesma opinião?
- Neste momento, toda a França é da mesma opinião, sir - concordou Aurelle, veemente.
- O senhor é parcial, Aurelle - disse o major Parker -, pois está a tornar-se inglês: assobia no banho, bebe uísque e começa a apreciar as discussões; se acabar por comer tomate e costeletas cruas ao pequeno- almoço, será perfeito.
- Se me permite, major, prefiro permanecer francês
respondeu Aurelle. - De resto, ignorava que assobiar no banho fosse um dos ritos da Inglaterra.
- a tal ponto - declarou o médico - que já disse que ficasse gravado no meu túmulo: "Aqui jaz um cidadão britânico que nunca assobiou no banho e nunca pretendeu ser um detective amador.
A conversação britânica é um jogo como o críquete ou o boxe: as alusões pessoais estão proibidas, bem como os golpes baixos, e quem discutir com paixão é imediatamente desclassificado.
Aurelle conheceu na messe dos Lennox veterinários e generais, comerciantes e duques; a todos era servido excelente uísque e gozavam de uma atenção discreta que traduzia o que era devido ao hóspede, sem o fatigar com uma deferência opressiva.
- Chove muito no seu país - disse-lhe um major de engenharia, seu vizinho por uma tarde.
- E em Inglaterra também - respondeu Aurelle.
- Gostaria - prosseguiu o major - de ver terminada esta terrível guerra, para abandonar o exército e ir viver para a Nova Zelândia.
- Tem lá amigos?
- Não; mas a pesca ao salmão é excelente.
- Traga a sua cana de pesca para aqui, enquanto descansamos, major; o lago está cheio de enormes solhas.
- Nunca pesco solhas - disse o major -, não são dignas. Quando se sentem apanhadas, acaba-se tudo; o salmão combate até ao fim, mesmo sem esperança. Com um fellor de trinta libras, somos por vezes obrigados a lutar durante duas horas; é lindo, não é?
- Admirável! - exclamou Aurelle - E a truta?
- A truta é uma lady - explicou o major -, é preciso enganá-la, o que não é fácil, pois é muito astuta. . . E o senhor - acrescentou delicadamente o major após um breve silêncio -, que faz em tempo de paz?
- Escrevo um pouco - respondeu Aurelle - e preparo o meu doutoramento.
- Não é isso, quero dizer: qual é o seu desporto favorito? Pesca, caça, golfe, pólo?
- Para dizer a verdade - confessou Aurelle -, pratico pouco desporto; tenho uma saúde muito frágil, e...
- Não gosto de ouvir essas coisas - disse o major. E voltou-se para o outro vizinho, abandonando o francês.
Aurelle aproximou-se do capitão veterinário Clarke, sentado à sua esquerda, e que até então comera e bebera em silêncio.
- Chove muito no seu país - disse o capitão Clarke.
- E em Inglaterra também - respondeu Aurelle.
- Gostaria - disse Clarke - de ver terminada esta terrível guerra para regressar a Santa Lúcia.
Aurelle perguntou se a família do capitão residia nas Antilhas: este mostrou-se escandalizado.
- Oh! Não, a minha família é uma velha família de Stafl ordshire; fixei-me nas Antilhas absolutamente por acaso. Numa viagem de lazer, o meu barco fez escala em Santa Lúcia, pareceu-me que fazia um calor muito agradável e por lá fiquei; comprei um terreno muito barato e cultivo cacau.
- E não se entedia?
- Não: o meu vizinho branco mais próximo mora a seis milhas de minha casa e a costa da ilha é excelente para velejar. Que mais poderia fazer, no meu país? Quando parto para três meses de férias em Inglaterra, passo oito dias com os meus velhos e, depois, viajo sozinho num iate. . . Percorri toda a vossa costa da Bretanha: é maravilhoso, porque as correntes são dificeis e as vossas cartas marítimas são excelentes; mas nunca está calor. . . Em Santa Lúcia, posso fumar um cigarro em pijama, no terraço. - Bebeu o vinho do Porto lentamente e concluiu: Não, não gosto da Europa. . . é preciso trabalhar muito. Nas Antilhas, há comer para todos.
O coronel, na outra extremidade da mesa, falava da Índia, dos póneis brancos do seu regimento, dos criados indígenas de nomes complicados e deveres definidos, e da vida indulgente das colinas. Parker descrevia caçadas no dorso de um elefante.
- Vamos a pé, no dorso do animal, solidamente presos por uma perna, e saltamos no vazio, enquanto o animal galopa: é verdadeiramente excitante.
- Acredito - concordou Aurelle.
- Sim, mas se quiser experimentar - disse o coronel a Aurelle, muito solícito -, não se esqueça de descer pela cauda tão rapidamente quanto possível, se o elefante enveredar por terreno pantanoso. O seu movimento instintivo, se o chão lhe falhar debaixo das patas, será enrolá-lo na tromba e pousá-lo no chão, à sua frente, para poder ajoelhar-se sobre algo sólido.
- Lembrar-me-ei, sir - disse Aurelle.
- Nos estados malaios - disse o major de engenharia -, os elefantes selvagens circulam livremente pelas grandes estradas. Encontrei muitos, quando passeava de motocicleta. É óbvio que, se a sua cara ou o seu fato lhes desagradarem, o colhem de passagem, esmagando-lhe a cabeça com uma patada. Mas, para além disto, são absolutamente inofensivos.
Teve, então, lugar uma longa discussão sobre a parte do corpo mais vulnerável do elefante; o padre provou a sua competência e explicou em que é que a anatomia do elefante de África diferia da do elefante das Índias.
- Padre - disse Aurelle -, sempre pensei que o senhor era um sportsman; mas alguma vez caçou realmente um desses enormes animais?
- Como? My dear fellow, se cacei na verdade? Matei praticamente tudo o que um caçador pode matar, desde o elefante e o rinoceronte até ao tigre e o leão. Nunca lhe contei a história do meu primeiro leão?
- Nunca, padre - respondeu o médico -, mas vai contá-la agora.
- Padre - pediu o coronel -, escutarei de bom grado as suas histórias, mas imponho uma condição: alguém terá de ligar o gramofone. Esta noite, preciso de ouvir My darling Mistress Finzi-Magrini.
- Oh! Não, sir, por favor, concedo-lhe um rag-timei, se insiste absolutamente em ouvir chiar essa máquina infernal.
- De maneira nenhuma, doutor, não me convencerão com tão pouco. Exijo Finzi-Magrini. . . Vamos, Aurelle, seja bom rapaz, e lembre-se: velocidade sessenta e cinco. . . e não risque o disco. . . Padre, tem a palavra, para contar a história do seu primeiro leão.
- Encontrava-me em Joanesburgo e desejava vivamente fazer parte de um clube de caçadores onde contava muitos amigos. Mas os regulamentos exigiam que todos os candidatos houvessem abatido pelo menos um leão. Parti, pois, acompanhado por um negro carregado com várias espingardas e, à noite, pus-me à espreita com ele, perto de uma nascente onde um leão costumava ir beber.
"Meia hora antes da meia- noite, ouvi um ruído de ramos quebrados e, de uma moita, emerge a cabeça de um leão. Pressentira-nos e olhava na nossa direcção. Aponto para ele e disparo; a cabeça desaparece atrás da moita mas, passado um minuto, surge de novo.
"Segundo tiro: o mesmo resultado. A fera, assustada, esconde a cabeça e, depois, emerge de novo. Mantive a calma: dispunha de dezasseis balas, nas diversas espingardas. Terceiro tiro: a mesma cena. Quarto tiro: a mesma
Música sincopada norte- americana, jazz. (N. da T.)
cena. Enervo-me, erro a pontaria, de tal modo que, após quinze disparos, o animal ainda endireita a cabeça.
"- Se tu falhar agora - adverte-me o negro comidos. - nós!
"Respiro profundamente, viso com cuidado, disparo. Oanimal cai. . . Um segundo. . . dois. . . dez. o leão não volta a aparecer. Aguardo mais um pouco e, depois, triunfante, precipito-me, seguido pelo negro e adivinhe messiou, o que se me depara. . .
- O leão, padre.
- Dezasseis leões, my boy. . . e todos eles com uma bala no olho: foi assim que comecei.
- By, jove padre: quem foi que disse que os Escoceses são desprovidos de imaginação?
-Ouçam, agora, uma história verdadeira: foi nas Índias que, pela primeira vez, matei uma mulher. . . Sim sim, uma mulher. . . Partira para a caça ao tigre quando uma noite, como atravessasse uma aldeia perdida na selva, um velho indígena me adverte: " Sahib, sahib, um urso! E aponta-me para uma massa negra que se movia por entre as árvores. Faço pontaria, disparo, o corpo abate-se, acompanhado pelo ruído de ramos partidos, e encontro uma velha, que eu derrubara, enquanto colhia fru tos. Surge um velho tisnado, o marido, que me cobre de injúrias; vão chamar o polícia indígena. Tive de indemnizar a família: o que me custou uma quantia astronómica, Pelo menos duas libras.
"A história propagou-se rapidamente num raio de
vinte milhas. E, durante algumas semanas, não pude atravessar uma aldeia sem que dois ou três velhos se precipitassem sobre mim. Sahib, sahib, um urso em cima da árvore. " Escusado será dizer que tinham acabado de obrigar as mulheres a trepar para a árvore.
Em seguida, Parker relatou uma caçada ao crocodilo
e o capitão Clarke forneceu alguns pormenores sobre os
Em inglês no original: - Por Júpiter. (N. da T.)
tubarões das Bermudas, que não são perigosos, quando se toma a precaução de saltar para a água em grupo. Entretanto, o coronel executava, muito lentamente, a Marcha da Brigada Perdida. O major neozelandês lançara para a fogueira algumas folhas de eucalipto que, pelo perfume que exalavam ao arder, lhe recordavam o intenso odor da selva. Aurelle, um pouco aturdido, inebriado pelo sol da Índia e pelo cheiro das feras africanas, compreendeu, enfim, que o mundo é um grande parque desenhado por um deus jardineiro para os gentlemen do Reino Unido.
Já que o mau tempo a retém no quarto
Já que doravante despreza os romances, Já que para minha felicidade não tem amante, Ejá que este mês de Agosto se obstina im unemente Em disfarçar-se de Dezembro,
Dedico-lhe estes versos garatujados sem pés nem cabeça, Sem rima, ou quase, em todo o caso sem razão, Que intitularei nas minhas obras completas; "Discursos para uma amiga retida em casa Num dia de tempestade. "
Não sei se sentimos o mesmo, Mas quando assim estou sonhador e preguiçoso, Quando chove no meu coração como chove em.
- Aurelle - comentou o médico -, desta vez, está a escrever versos; não pode negá-lo; foi apanhado em flagrante.
- Houugh - murmurou o coronel Bramble, com indulgência e piedade.
- Confesso, doutor, e então? Será contrário aos regulamentos militares?
- Não - respondeu o médico -, mas surpreende-me: sempre estive convencido de que a França não poderia ser uma nação de poetas. A poesia é uma loucura ritmada. Ora, o senhor não é louco e não possui o sentido do ritmo.
- O senhor não conhece os nossos poetas - disse Aurelle, vexado -; alguma vez leu Musset, Hugo, Baudelaire?
- Conheço Hugo - esclareceu o coronel -; quando comandava as tropas em Guernesey, mostraram-me a sua casa. Também tentei ler o seu livro Homens do Mar, mas é muito enfadonho.
A chegada do major Parker, acompanhado por dois capitães de aspecto muito jovem, pôs fim à conversa.
- Apresento-lhes - anunciou ele -, os jovens Gil bons e Warburton, para que lhes ofereçam uma chávena de chá antes de os enviar para as respectivas companhias: encontrei-os sentados num talude da estrada chillebeke, onde decerto aguardavam um táxi. Esta gente de Londres acredita em tudo.
Gibbons acabara de gozar uma licença; quanto a Warburton, um galês moreno de rosto francês, ferido dois meses antes em Artois, vinha juntar-se aos Lennox, após um período de convalescença.
- Aurelle, seja bom rapaz, sirva-me uma chávena de chá - disse o major Parker. - Oh! Primeiro o leite, por favor! E peça um uísque com soda, para despertar o capitão Gibbons, se não se importa. É bem visível que acaba de sair do seu regimento, e que ainda não desenterrou o machado de guerra.
- Foi uma mudança tão grande! - exclamou Gil bons. - Ainda ontem de manhã me encontrava no meu jardim, rodeado por um verdadeiro vale inglês recortado por sebes e árvores. Apresentava-se tudo limpo, cuidado e alegre. As minhas formosas cunhadas jogavam ténis. Estávamos
Em inglês no original: tenda dos índios norte-americanos. (N. da T.)
todos vestidos de branco. E, subitamente, vi-me transportado para este horrível bosque devastado, no meio de um bando de assassinos. Ah! Quando pensam que terminará esta pavorosa guerra? Sou um homem tão
pacífico! Prefiro o som dos sinos ao do canhão e o do pia no ao da metralhadora. A minha única ambição é viver no campo, com a minha anafada mulher, e rodeado por muitos filhos igualmente anafados. - E, erguendo o copo: - Bebo ao fim destas loucuras - concluiu ele. E ao Inferno para os boches que nos trouxeram até aqui. Mas o ardente Warburton entoou imediatamente a antífrase:
- Por mim, gosto da guerra - declarou ele -; só a guerra nos proporciona uma vida normal. Que faz o senhor em tempo de paz? Fica em casa; não sabe como empregar o tempo: discute com os seus pais ou com a sua mulher, se for casado. Todos pensam que o senhor é um insuportável egoísta, e é verdade. Chega a guerra: só vai a casa de cinco em cinco ou de seis em seis meses. um herói e também uma mudança, o que as mulheres apreciam sobremaneira. Conhece histórias inéditas, viu homens estranhos e acontecimentos terríveis. O seu pai, em vez de dizer aos amigos que o senhor lhe envenena o fim da vida, apresenta-o como um oráculo. Esses velhos consultam-no sobre política estrangeira. Se o senhor for casado, a sua mulher parecerá mais bonita do que dantes; se o não for, todas as girls o assediarão. Gosta do campo? Mas vive aqui, no meio do bosque! Ama a sua mulher? Mas quem foi que disse que é mais fácil morrer pela mulher amada do que viver com ela? Por mim, prefiro a metralhadora ao piano e as conversas dos meus homens às das velhas senhoras que vão tomar chá a casa dos meus pais. Não, Gibbons, a guerra é uma época maravilhosa. - E, erguendo o copo: - Bebo ao simpático Huno que nos proporciona estes prazeres!
Em seguida, relatou a sua estada no hospital da duquesa.
-Julguei-me no palácio da rainha das fadas; os nossos desejos eram satisfeitos ainda antes de serem formulados. Quando as nossas noivas nos visitavam, encosta vam-nos a almofadas condizentes com a cor dos nossos olhos. Quinze dias antes de poder levantar-me, trouxeram-me doze roupões de cores vivas, a fim de escolher o que preferia usar no dia da minha primeira saída. Escolhi um vermelho e verde, que penduraram junto da minha cama, e a pressa que tinha de o estrear antecipou em três dias a minha cura. Havia um capitão escocês cuja mulher era tão formosa que todos os doentes tinham febre quando ela entrava. Acabaram por mandar abrir uma porta especial junto da cama do marido, a fim de evitarem que atravessasse a enfermaria. . . Oh! Como gostaria de ser ferido brevemente! Doutor, promete evacuar-me para o hospital da duquesa?
Mas Gibbons, com os olhos repletos de imagens da vida tépida da home', não se deixava consolar. O padre que era um homem bondoso e sensato, chamou à baila a última revista do Palácio e discutiu complacentemente com ele as pernas e o colo de certa encantadora criatura. O coronel exibiu os seus melhores discos e tocou, para seus ouvintes, Mistress Finzi-Magrini e Destiny. Wali Gibbons, durante a valsa, escondeu o rosto entre as mãos. O coronel tentou gracejar delicadamente com os seus pensamentos melancólicos. Mas o jovem capitão desculpou-se, logo às primeiras notas:
- É preferível que parta antes da meia-noite - disse ele.
E despediu-se à francesa.
- Silly ass! - exclamou Parker, após um breve silêncio.
O coronel e o padre, indulgentes, aprovaram; Aurc foi o único que protestou.
Em inglês no original: casa. (N. da T. )
2 Imbecil. (N. do A. )
- Aurelle, meu caro - disse o médico -, se quiser viver estimado entre ingleses bem-educados, deverá esforçar-se por compreender o seu ponto de vista. Não demonstram ternura pelos tristes e desprezam os sentimentais. E isto tanto se aplica ao amor como ao patriotismo ou à religião. Se quer que o coronel o despreze, arvore uma bandeira na sua túnica. Se quer que o padre o amaldiçoe, leve-o a censurar cartas repletas de pieguices devotas. Se quer que Parker o abomine, chore ao contemplar uma fotografia.
"Durante a juventude, endureceram-lhes a pele e o coração. Não receiam a agressão nem o destino. Consideram o exagero o pior dos vícios e a frieza um sinal de aristocracia. Quando se sentem infelizes, afivelam a máscara do humor. Quando se sentem felizes, não dizem nada. E, no fundo, John Bulll é terrivelmente sentimental, o que explica tudo o resto.
- Tudo isso é verdade, Aurelle - concordou Parker -, mas não deve ser dito. O médico é um irlandês, incapaz de conter a língua.
Neste ponto, o médico e o major Parker puseram-se a discutir a questão irlandesa no tom jocoso e ácido que lhes era habitual. O coronel procurou na caixa de discos When Irish eyes are smilling e, depois, interveio, com bom senso e cortesia.
- E é assim, Aurelle - concluiu o major Parker -, que nos vê, a nós, pobres ingleses, procurar de boa-fé a solução para um problema insolúvel. Talvez o senhor acredite que os Irlandeses pretendem certas reformas bem definidas e que se sentiriam felizes no dia em que as alcançassem? De modo nenhum. O que os diverte é a discussão em si mesma, a conspiração teórica. Jogam com a
ideia de uma república independente: se concordássemos, terminaria o jogo e eles inventariam outro, provavelmente mais perigoso.
Personificação da Inglaterra ou do Inglês. (N. da T.)
- Vá à Irlanda depois da guerra, messiou - aconselhou o coronel -, é um país extraordinário. Todos os seus habitantes são loucos. Podem cometer-se os piores crimes... mas não importa. . . Nada tem importância.
- Os piores crimes? - surpreendeu-se Aurelle. Mas então, Sir.
- Oh! Tudo o que quiser. . . as coisas mais incríveis. Pode caçar a cavalo sem autorização. . . pescar um salmão no riacho de um vizinho. . . que nada acontecerá, ningué lhe prestará atenção.
- Creio bem - concluiu Aurelle - que começo a compreender a questão da Irlanda.
- Vou completar a sua iniciação - disse o médico - Um ano antes desta guerra, um parlamentar liberal, que visitava a Irlanda, disse à minha frente, a um vellho camponês:
"Pois bem, meu caro, em breve terão direito ao home rule!. " "Que o Senhor tenha piedade de nós, Excelência respondeu o homem. "Que tal não aconteça. " "Que diz?", perguntou o deputado, estupefacto. "Então já não desejam o home rule?" "Excelência", insistiu o homem "o senhor compreenderá. . . como bom cristão que decerto é. . . O senhor deseja ir para o céu. . . e eu também. . . Mas nenhum de nós quer ir já esta noite. . . "
' Autonomia, governo local independente. (N. da T.)
o coRo - Como? Júpiter é menos forte do que estas deusas ?
PROMETEU - Sim; nem mesmo ele escapa ao Destino.
Quando o jovem tenente Warburton, comandante interino da Companhia B dos Lennox Highlanders, tomou conta da sua trincheira, o capitão que ele viera substituir disse-lhe:
- Este local não é dos mais perigosos; os boches encontram-se apenas a trinta jardas, mas são mansos; se os deixarem em paz, não se moverão dali.
- Vamos despertar as feras - disse Warburton aos outros homens, logo que o pacífico guerreiro se afastou.
Quando as feras bem alimentadas se transformam em animais domésticos, alguns foguetes bem lançados acordam-nas de novo. Foi em obediência a este princípio que Warburton, armado de um foguete luminoso, em vez de o lançar verticalmente, o lançou em flecha, na direcção das trincheiras alemãs.
Uma sentinela saxónia, aterrada, gritou:
- Ataque por meio de líquidos inflamados! As metralhadoras boches puseram-se a gaguejar. Warburton, encantado, ripostou com um lançamento de granadas. O inimigo recorreu à artilharia. Um telefonema, uma chuva de balas e represálias imediatas da artilharia britânica.
No dia seguinte, o comunicado do estado-maior alemão dizia: Um ataque efectuado a coberto de líquidos inflamados pelas tropas britânicas, em H. . . , foi totalmente contido pelos nossos fogos combinados de artilharia e de infantaria. "
O 0275, právate2 Scott H. J. , que servia o rei e a pátria às ordens do ardente Warburton, desaprovava do fundo do coração as fantasias heróicas do seu chefe. Não por ser medroso, mas porque a guerra o surpreendera no momento em que acabara de casar com uma jovem encantadora e, como dissera o capitão Gadsby, dos hussardos cor-de-rosa, homem casado não é senão meio homem. Scott contava os dias, quando se encontrava na trincheira: ora, este era o primeiro de dez e o tenente parecia um tanto louco.
O deus protector dos apaixonados surgiu no dia seguinte sob a forma de um simples papel que pedia um homem do regimento, mecânico de profissão, para ir verificar em P. . . uma máquina de desinfectar roupa. P. . . era uma linda cidadezinha, que distava pelo menos oito milhas da linha, um tanto abandonada pelos seus habitantes, devido aos bombardeamentos, mas ainda abrigo aprazível e seguro para um troglodita das trincheiras.
O 0275, rivate Scott, mecânico de profissão, inscreveu-se. O tenente criticou-o, o coronel propô-lo e o general nomeou-o. Um velho ónibus de Londres, pintado de verde-tropa, transportou-o para a sua nova vida, longe de Warburton e do perigo.
A máquina que Scott se propunha vigiar encontrava-se no pátio do seminário, um antigo edificio de paredes cobertas de hera; o padre Hoboken, o diretor, recebeu um Obus cheio de balas.
Do nome do seu inventor, o general do Exército inglês, Henry Shrapnell. (N. da T )
Scott, que lhe fora anunciado, como se de um general se tratasse.
- É católico, meu filho? - perguntou-lhe em inglês erudito.
Para sua felicidade, Scott não compreendeu a pergunta e respondeu ao acaso:
- Yes, sir.
Esta involuntária renúncia à Igreja Presbiteriana da Escócia valeu-lhe o quarto de um professor belga mobilado e uma cama com direito a lençóis.
Ora, precisamente nesse momento o Hauptmanni Rei aeker, que comandava uma bateria de artilharia pesada allemã em Paschendaele, encontrava-se de muito mau humor.
O correio da tarde trouxera-lhe uma carta ambígua da mulher, em que esta se referia repetidamente, e com afectada indiferença, a um oficial da guarda ferido, de quem cuidara nos últimos dias.
Avançava, de noite, pelo campo em que as peças se encontravam alinhadas em bateria, na orla de uma floresta, quando perguntou subitamente:
-Wolfgang, ainda tem tiros de represália disponíveis?
- Sim, meu capitão.
- Quantos?
- Três.
- Muito bem! Acorde os serventes da "Teresa".
Pegando no mapa, pôs-se a verificar os cálculos. Os homens, sonolentos, carregaram a enorme peça. Reineker forneceu as cordenadas e, sacudindo homens e objectos, o obus partiu, silvando vagarosamente pela noite.
Assim, 0275, private Scott, que adorava a mulher e aceitara, por sua causa, um posto pouco honroso, dormia tranquilamente no quarto de um professor belga mobilado;
Em alemão no original: capitão. (N. da T. )
o capitão Reineker, que já não era amado pela mulher, e que desconfiava disso mesmo, passeava, furioso, pelos bosques gelados, e estas duas situações, profundamente estranhas uma à outra, evoluíam com toda a independência num universo indiferente.
Ora, os cálculos de Reineker, como todos os cálculos, estavam errados: e o erro atingia quatrocentas jardas. O local por ele referenciado era a praça da igreja: da igreja ao seminário vão quatrocentas jardas. Uma brisa aumentou o desvio em vinte jardas e, então, o caso Reineker e o caso Scott passaram a ter um ponto comum Neste ponto, o peito do 0275, rivate Scott, absorveu a força viva de um obus de 305 e transformou-o em luz e calor, o que, entre outras consequências, pôs fim ao caso Scott.
The ideal of the English Church has been to provide a resident gentleman for every parish in the Kingdom, and there have been worse ideals.
SHANE LESLIE
Aurelle, chegado à messe para o chá, deparou apenas com o Reverendo Mac Ivor, que reparava uma lanterna de projecções.
- Olá, messiou - cumprimentou este -, muito prazer em vê-lo. Estou a preparar a minha lanterna para fazer um sermão desportivo aos homens da companhia B, quando abandonarem as trincheiras.
- Que me diz, padre, então agora faz sermões acompanhados de projecções?
- My boy, procuro atrair os homens: há muitos que se abstêm. Bem sei que o regimento inclui muitos presbiterianos; mas se visse os regimentos irlandeses, messiou, nenhum homem falta à missa. . . Ah! messiou, os padres católicos gozam de mais prestígio do que nós, e pergunto a mim mesmo qual a razão. Contudo, visito diariamente as
Em inglês no original: "O ideal da Igreja Inglesa tem sido fornecer um cidadão residente a cada paróquia do Reino; e tem havido ideias piores. " (N. da T.)
trincheiras e, embora os homens possam pensar que sou um velho louco, também devem reconhecer que sou um sportsman.
- O regimento estima-o, padre. . . Mas se me permite a franqueza, creio que, de facto, os padres católicos têm um prestígio particular. A confissão tem algo a ver com isto e, acima de tudo, o voto de castidade subtrai-os, em certa medida, à humanidade. O próprio médico encolhe pudicamente as suas histórias favoritas, quando o padre Murphy janta connosco.
- Mas, my boy, eu aprecio as histórias de guerra. sou um velho soldado, conheço o mundo e vivi a vida. No tempo em que caçava em África, uma rainha negra ofereceu-me três escravas virgens. . .
- Padre!.
- Oh! Devolvi-as à liberdade no próprio dia, o que, de resto, muito as vexou. Seja como for, não vejo por que razão deveria desempenhar o papel de Mistress Grundy' ne messe.
Uma das ordenanças trouxe a água a ferver e o padre pediu a Aurelle que fizesse o chá.
- Quando me casei. . . Não é assim, messiou: é curioso como nenhum francês sabe fazer chá. Em primeiro lugar, aqueça o bule, my boy, não conseguirá obter um chá conveniente num bule frio.
- Estava a falar do seu casamento, padre. . .
- É verdade, quero contar-lhe como todos estes fiéis seus, que querem ver-me passar por virtuoso diante dos jovens, se indignaram quando pretendi sê-lo razoavelmente.
"Quando me casei, fui muito naturalmente obrigado a pedir a um dos meus colegas que oficiasse a cerimónia. Depois de ter fixado os pontos mais importantes, pedilhe: "Na cerimónia do casamento, tal como é celebrada
Personagem que na peça de T. Morton Spced the Plough (1798) satiriza as convenções respeitáveis e os modos afectados. (N. da T.)
pela Igreja de Inglaterra, há uma passagem que me parece absolutamente indecorosa. . . Sim, sim, bem sei que pertence a São Paulo; é provável que, naquele tempo, tivesse toda a razão ao proferir tais afirmações, por se adaptarem aos costumes dos coríntios. Mas também é vrrdade que não foram feitas para os ouvidos de uma jovem de Aberdeen, em mil novecentos e seis. A minha noiva é pura e mal de quem a escandalizar!"
"O homem, um pobre vigário mundano, foi queixar-se ao bispo que mandou chamar-me e me disse num tom altivo. É o senhor que pretende impedir a leitura da Epístola aos coríntios? Saiba que não sou homem para tolerar semelhante tolice. " "All right", respondi eu, "saiba que não sou homem para tolerar que a minha mulher seja ofendida. Se esse filósofo se permitir ler tal passagem, nada direi na igreja, por respeito pelo local sagrado; mas prometo-lhe que, logo após a cerimónia, lhe darei um puxão de orelhas. "
"Pois bem, messiou, o bispo olhou-me com muita atenção, para ver se eu estava a falar a sério. Depois, lembrou-se da minha campanha no Transval, da rainha negra e dos perigos do escândalo, e respondeu-me, cheio
de presunção. Vendo bem, a passagem que tanto o choca não me parece absolutamente essencial à cerimónia do casamento. "
O doutor O'Grady entrou e pediu uma chávena de chá.
- Quem fez este chá? - perguntou ele. - Foi o senhor, Aurelle? Que quantidade de chá utilizou?
- Uma colher por chávena.
- Aprenda um axioma: uma colher de chá por chávena, e mais uma para o bule. É um facto curioso que nenhum francês saiba fazer chá.
Aurelle mudou de assunto.
Bispo. (N. do A. )
O padre estava a contar-me a cerimónia do seu casamento. Um padre não devia ser casado - comentou o médico. - Sabe o que disse São Paulo: "Um homem casado procura agradar à mulher e não a Deus.
- Chegou em má altura - disse Aurelle -; não fale de São Paulo, o padre acaba de o estrafegar vigorosamente.
Peço perdão - interveio o padre -, limitei-me a atacar um bispo.
Padre - recordou o médico -, o senhor não
se casará.
- Oh! Bem sei - respondeu o padre -; foi o Senhor quem o disse; mas não conhecia os bispos. - Em seguida, voltou ao tema que o preocupava: - Diga o senhor, que é irlandês, O'Grady, por que será que os capelãos católicos gozam de mais prestígio do que nós?
Padre - disse o médico -, ouça uma parábola.
"Um gentleman matara um homem: a justiça não desconfiava dele, mas os remorsos levavam-no a errar cheio de tristeza.
"Um dia, como passasse por uma igreja anglicana, pareceu-lhe que o segredo se tornaria menos pesado, se pudesse partilhá-lo; entrou, pois, e pediu ao vigário que o ouvisse em confissão.
"O vigário era um homem jovem e muito bem-educado, antigo aluno de Eton e Oxford; encantado com a rara dádiva, mostrou-se solícito: "Com certeza: abra-me o seu coração, pode dizer-me tudo, como a um pai.
Ooutro começou: "Matei um homem. " O vigário deu um salto: "E é a mim que vem dizer-me isso! Miserável! assassino! Não sei se o meu dever de cidadão não será conduzi-lo à esquadra mais próxima. . . Em todo o caso,
Punir, atacar. (N. do A.)
caso, é meu dever de gentleman não permitir que permaneça um minuto a mais que seja debaixo do meu tecto!"
"E o homem foi-se embora. Alguns quilómetros mais adiiante, avistou, perto da estrada por que seguia, uma igreja católica. Uma última esperança levou-o a entrar e a ajoelhar-se atrás de algumas velhas que aguardavam, junto de um confessionário. Chegada a sua vez, vislumbrou, através da escuridão, o padre que rezava, de cabeça entre as mãos. "Padre" disse ele, "não sou católico, mas gostaria de me confessar. " "Estou aqui para te escutar, meu filho. "
"O homem aguardou o efeito da terrível revelação.
No silêncio augusto da igreja, a voz do padre disse simplesmente: "Quantas vezes, meu filho?"
- Doutor - disse o padre -, o senhor sabe que sou escocês. Só compreendo as histórias oito dias depois de mas terem contado.
- Esta exigir-lhe-á mais tempo - respondeu o médico.
O que é realmente o destino? Se o silício fosse um gás, eu seria major-general.
WHISTLER
Tarkington S. W. , antigo oficial de cinquenta e três anos, tenente honorário e quartel-mestre, acalentava o desejo pueril, mas ardente, de obter mais uma condecoração antes de se reformar. Pelas leis naturais e após dezoito anos de boa conduta granjeara a medalha do Transval dos velhos servidores. Mas com um pouco de sorte, um tenente, mesmo honorário, consegue obter uma Military cross', se o canhão troar no devido lugar. Assim, Tarkington era constantemente visto nos locais perigosos onde nada tinha a fazer; e foi também assim que, no dia da tomada de Loos, passeou o velho reumatismo pelo campo de batalha alagado, tendo transportado às costas dezoito feridos. Mas não se cruzou com o general e ninguém tomou conhecimento do feito, para além dos feridos, que não exercem nenhuma influência. De seguida, o regimento foi enviado para o Norte, acampando na ponta de Ypres. Existiam, sem dúvida,
Em inglês no original: cruz militar; condecoração. (N. da T.)
excelentes razões sentimentais e militares para defender este terreno; mas como residência de Inverno, era u local mais lamentável. Tarkington não receava o perigo: obuses faziam parte das tarefas quotidianas. Mas o si reumatismo temia a água, e a chuva, caindo sem descanso numa argila densa, forma uma pasta húmida e gelada que nenhum médico recomenda para desenferrujar articulações desgastadas.
Tarkington, cujos pés doridos, inchados, transformavam a mais leve caminhada num suplício chinês, teve de reconhecer que urgia pedir a sua evacuação.
- É a minha sorte - confessou ele ao primeiro-sargento, seu confidente -, sinto a dor, mas sem ferimento.
E assim se dirigiu, coxeando, praguejando, para a tenda do coronel, disposto a comentar o estado das suas pernas.
Naquela manhã, o coronel encontrava-se de mau humor. Uma nota do estado-maior da divisão advertira-o que a percentagem de pés gelados no seu regimento atingia três e meio por cento, enquanto a média do corpo era apenas de dois vírgula sete, pelo que teria de tomar medidas necessárias para, no futuro, reduzir esta percentagem.
As medidas necessárias haviam sido tomadas; mandara chamar o médico e mostrara-lhe a nota.
- E agora, ouça-me O'Grady. O senhor pode identificar bronquites, dores de garganta e gastrenterites; mas, durante três dias, não quero ouvir falar de pés gelados!
Não será dificil imaginar como foi recebido Tarkinton, que vinha exibir os seus pés paralisados.
- Esta, agora, é o cúmulo! Evacuar um oficial por motivo de pés gelados! Leia, Tarkington, leia! E parece-lhe que vou transformar três e meio em três vírgula seis para lhe ser agradável? Remeto-o, meu caro, para as Genc rouíine orders, número trezentos e vinte e quatro: "O pé gelado é um problema das articulações superficiais, da qual resulta que a pele, deixando de ser alimentada, morre e gangrena. " Portanto, resta-lhe vigiar as suas arteríolas. Tarkington, lamento muito, meu caro, mas é a única coisa que não posso fazer por si.
- Sorte a minha! - confiou o velho ao primeiro-sargento, seu confidente. - Tenho trinta e sete anos de serviço; nunca adoeci, e quando, pela primeira vez na vida, peço para ser evacuado, faço-o precisamente no dia em que o estado-maior chama a atenção do coronel para um assunto de botas.
Os pés de Tarkington tornaram-se vermelhos, depois azuis, e começavam a enegrecer, quando o coronel partiu de licença. O comando, na sua ausência, foi exercido pelo major Parker, que, sendo segundo filho de um lorde, se preocupava pouco com os comentários da brigada. Apercebeu-se da angústia do infeliz Tarkington e enviou-o à ambulância, onde decidiram evacuá-lo para Inglaterra, considerando a espécie Tarkington imprópria para uma aclimatação aos pântanos da Flandres.
Tarkington foi transportado para B. . . e embarcado num navio hospital, o Saxonia, com feridos, médicos e enfermeiras. As autoridades do porto haviam verificado, na véspera, contristados, que circulavam pelo canal minas flutuantes.
As autoridades discutiam sobre a origem destas minas, que uns diziam aliadas, enquanto outros as consideravam inimigas. Apenas um pormenor não dava lugar a controvérsias: todo o navio que havia deparado com uma delas se abrira em duas partes, que, aliás, não continuavam a flutuar por muito tempo. Foi garantido ao comandante do Saxonia que o canal norte se encontrava livre de minas: rumaram por este canal e afundaram- se.
Tarkington caiu, pois, ao mar. Como era bom soldado, o instinto levou-o a dedicar os seus últimos minutos à boa apresentação. Afogou-se muito correctamente, levando ao pescoço a máscara contra gases asfixiantes, que o haviam aconselhado a nunca abandonar. Um barco de salvação repescou-o, inanimado, e foi transportado para um hospital da costa inglesa.
Tarkington recobrou os sentidos, mas o seu estado era grave, devido à permanência na água.
- Na verdade - dizia ele -, é esta a minha sorte. Durante um mês, recusaram-se a deixar-me embarcar e, uma vez dado o consentimento, parto no único navio-hospital que se afundou no último ano.
- São todos iguais - declarou o coronel, quando regressou de licença. - Mais um atrevido que se queixa dos pés molhados e que aproveita a minha ausência para ir tomar banhos de mar.
Ora, alguns meses antes, o rei Jorge, ferido em França, atravessara o Passo de Galais a bordo do Saxonia.
Muito naturalmente, Sua Majestade interessou-se pelo destino do barco, tendo visitado os sobreviventes. E como Tarkington fosse o único oficial, teve o inesquecível privilégio de travar uma longa conversa com o rei: Daí resultou que, poucos dias volvidos, um regimento, "algures em França", recebeu uma nota do estado-maior general, pedindo a folha de serviços de Tarkington S. W.
Como a nota fosse acompanhada por um comentário verbal sobre "uma pessoa muito distinta", da autoria de um oficial de boné debruado a vermelho e pala dourada, o coronel teceu acerca de Tarkington S. W. considerações agradáveis, como nunca fizera, e o primeiro-sargento forneceu pormenores sobre a brilhante conduta do quartel-mestre em Loos.
Quinze dias mais tarde, a London Gazette resumiu estes testemunhos num suplemento dedicado a louvores e condecorações, e Tarkington, capitão honorário, Military Cross, depois de meditar sobre o seu destino, considerou que este mundo era bom.
O primeiro contacto da brigada com a aldeia não foi feliz. Os habitantes encaravam com desconfiança a brigada dejoelhos à mostra, cuja linguagem rufava como um tambor. A brigada, por seu lado, considerava que a aldeia era pobre em botequins e em mulheres bonitas. O povo de Hondezeele chorava uma divisão de territoriais de Londres, de falas mansas e algibeiras recheadas. Onde quer que Aurelle entrasse, ouvia evocar esses filhos adoptivos.
- Bem os conhecemos, os Escoceses. . . ninguém compreende o que dizem. . . se bem que as minhas meninas saibam inglês.
- Scotch. . . Passeio. . . não bom - diziam as raparigas.
- O motorista do general vinha cá muitas vezes - retomava a velha -, um bom rapaz. . . chamava-se Billy. . limpava-me os pratos. e era bem- parecido, ainda para mais. . . e de boas maneiras. . . Uma messe de oficiais? Ah! Com certeza que não; lucro mais a vender cervejas e ba tatas fritas aos boys. . . e até mesmo ovos, se bem que já os pague a seis cêntimos cada um.
- Fried otatoes. tze"o ennies a late. eggs and bacon one franc. . . ' - diziam as jovens.
Em inglês no original: - Batatas fritas. dois soldos o prato. ovos com presunto a um franco. (N. da T.)
E Aurelle passava à casa vizinha, onde outras velhas choravam outros Billies, Harris e Gingers e Darkies.
Uma donzela obesa explicou que o ruído lhe provocava palpitações; outra (teria pelo menos setenta e cinco anos), acrescentou que tal actividade não lhe parecia conveniente para uma menina solteira. Aurelle acabou por encontrar, à noite, uma mulher corpulenta cujos protestos rebateu com uma eloquência tão firme que não lhe deu oportunidade de proferir uma só palavra. No dia seguinte de manhã, Aurelle mandou as ordenanças entregar a louça e, à hora do lanche, apresentou-se acompanhado por Parker e O'Grady. Os "empregados" aguardavam-no à entrada da porta.
- Madarne, sár, she is a regular rwitch; she is a properfu thats's rwhat she is!1
Madame" recebeu-o entre vagos queixumes:
- Ah! Muito bem, obrigada! Ah! Muito bem, obrigada! Eu é que lamento ter aceitado. Não dormi a noite inteira por causa das reprimendas do meu marido. Quase me bateu, saiba o senhor. . . Oh! Não mexa nisso! Proíbo-os de entrarem na minha linda cozinha: limpem os pés e tirem daí as sacolas.
- Ponham as sacolas na sala de jantar - ordenou Aurelle, conciliador.
- Ah! Muito agradecida! Estas sacolas imundas na minha sala de jantar, com a minha linda mesa e o belo aparador. Ah! Isso nunca!
- Mas, meu Deus, minha senhora - disse Aurell com toda a candura -, onde quer que as ponha?
E Aurelle entreabriu uma porta, ao fundo da sala de jantar.
- Quer deixar essa porta em paz? A minha linda sala! Onde nem eu entro, só para não a sujar! De resto acabou-se esta história da messe, só me traz aborrecimentos.
Em inglês no original: - Sir esta mulher é uma bruxa; uma megera, é o que ela é! (N. da T.)
Um pouco mais tarde, Aurelle entrou na loja da senhora Lemaire, capelista, para comprar chocolate. Esta capelista relegara para um canto da loja o material que vendia antes da guerra e, como toda a aldeia, dedicava-se agora ao comércio de Quaker Oates, cigarros Woodbines e postais bordados ostentando a inscrição: "Fromyour soldier boy. "
Enquanto a capelista o servia, Aurelle entreviu, por detrás da loja, um compartimento agradável e bem iluminado, decorado com pratos de parede e, na mesa, uma toalha lavada, aos quadrados verdes e brancos. Aproximou-se sorrateiramente da porta. A senhora Lemaire olhou-o, desconfiada, e levou as duas mãos ao peito farto.
- Acredita, minha senhora - disse-lhe Aurelle -, que há nesta aldeia pessoas tão pouco patriotas que se recusam a albergar oficiais que não têm onde tomar as refeições?
- Será possível? - surpreendeu-se a senhora Lemaire, ruborizada.
Aurelle citou nomes.
- Ah! A mulher do serralheiro? - disse a senhora Lemaire, desdenhosa, enquanto acariciava os seios. Não me custa a crer. É gente de Moevekerke, e dessa gente não vem nada de bom.
- Mas quer-me parecer - insinuou, delicado, Aurelle - que a senhora dispõe de uma sala que nos conviria perfeitamente.
Oito dias volvidos, a aldeia e a brigada saboreavam a pura felicidade de uma lua-de-mel. Em todos os lares, um Jack, um Ginger ou um Darky ajudavam a lavar os pratos, chamavam-na avó Granny e gracejavam alegremente com as raparigas. Os territoriais de Londres haviam sido esquecidos. À noite, nas granjas, as gaitas-de-foles, enfeitadas com fitas coloridas, acompanhavam danças monótonas.
Em inglês no original: Do seu soldado. (N. da T.)
Aurelle alojara o padre em casa da senhora Putiphar, jovem viúva de temperamento ardente, cuja alcunha sucessivas divisões acantonadas na aldeia transmitiam umas às outras como uma senha local. As virtudes do Reverendo Mac Ivor, que o haviam levado a desdenhar sólidos encantos de três virgens negras, nada tinham a recear das manobras de uma Putiphar de aldeia.
Parker e O'Grady partilhavam um amplo quarto na estalagem dos viajantes. Chamavam ao estalajadeiro e mulher "papá" e "mamã"; Lucie e Berthe, as filhas do casal, ensinavam-lhes francês. Lucie media um metro e oitenta de altura, era bonita, esbelta e loura. Berthe era forte e singularmente bem-disposta. As duas belas meninas, recatadas mas não fingidas, trabalhadeiras, desprovidas de cultura, mas não de inteligência, causavam a admiração do major Parker.
Se bem que o pai ganhasse uma fortuna, vendendo aos soldados cerveja inglesa fabricada em França, não lhes ocorria pedirem-lhe dinheiro para as suas roupas ou e exigir uma criada para as substituir no trabalho.
- Com mulheres assim em casa, podemos partir para a guerra - opinava o major, encantado.
O pai era feito da mesma cepa: contava a Aurelle a morte do filho, um esplêndido rapaz, três vezes citado na ordem do dia. Referia-se-lhe com um orgulho e uma resignação verdadeiramente admiráveis.
Aurelle aconselhou o estalajadeiro a comprar obrigações da Defesa Nacional, se possuísse algumas centenas de francos de economias.
-Já disponho de cinquenta mil francos em obrigações; quanto ao resto, aguardarei mais um pouco.
A aldeia era rica. Um dia, o coronel Bramble deu dois soldos ao filho da senhora Lemaire, um garoto de quatro ou cinco anos.
- Para comprares rebuçados - comentou Aurel.
Em inglês no original: soldados rasos britânicos. (N. da T.)
- Oh! Não, não gosto de rebuçados.
- Então, que vais fazer dos teus dois soldos?
- Guardá-los no meu mealheiro atéjuntar o suficiente para obter uma caderneta da Caixa Económica; depois, quando for grande, comprarei terras.
Nessa mesma tarde, Aurelle relatou este episódio a Lucie e a Berthe, julgando diverti-las. Apercebeu-se rapidamente de que não agradara a ninguém: os gracejos envolvendo dinheiro eram considerados sacrílegos. O estalajadeiro, para alegrar o ambiente, resolveu contar uma pequena história moralizadora. Quando era jovem - disse ele -, ia muitas vezes à cidade fazer compras para o padre cura, e ele recompensava-me sempre com dois soldos, que eu entregava ao meu pai. Mas, passado algum tempo, o senhor cura adquiriu o hábito de me transmitir os pedidos através da criada, a velha Sophie, que nunca mais me deu os dois soldos. O meu pai, que não se esqueceu de mos exigir, indignou-se: consultou o meu avô e, ao serão, a família reuniu-se para discutir o assunto. "O garoto", opinou o meu pai, "não pode ir queixar-se ao padre, porque, se tiver sido ele a suprimir os dois soldos, sentir-se-á ofendido. " se é a velha Sophie que fica com eles", disse a minha mãe, "aplicará dois tabefes no garoto. " O meu avô, que não era tolo, descobriu a solução. " Vai confessar-te ao padre", aconselhou-me ele. " Diz-lhe que te acusas de pecar contra a velha Sophie por te enviar à cidade sem te compensar. " Foi um estratagema perfeito. " Que me dizes?", surpreendeu-se o padre. "A malandra da velha! Tem-me cobrado os dois soldos de todas as vezes. Liberta-me do segredo da confissão e sou eu quem falará a Sophie. " Mas eu sabia que a criada tinha a mão pesada e não o libertei do segredo; a verdade é que, a partir de então, foi o próprio padre quem me encarregou das compras.
A professora, natural de Lille, a única habitante da aldeia que possuía um piano, explicou a Aurelle que tivera de suprimir das aulas de moral todo o capítulo sobre economia e previdência. Substituíra-o por uma lição sobre a generosidade. Por mim, nunca serei generosa, minha senhora - disse-lhe, então, uma das garotas de oito anos -, a minha mãe era sovina e sinto que o serei ainda mais do que ela.
Entretanto, os Highlanders transformavam os xelins do rei em copos de cerveja e cumulavam estas jovens carentas de aventais bordados, guloseimas e postais coloridos "From our soldier boy, As anafadas e activas mães destas belas flamengas vendiam os aventais e os postAis! Messiou - comentava o coronel Bramble antes da guerra, dizia-se na minha terra: a frívola França; mas, agora, dir-se-á: a severa e sensata França. É verdade - apoiou o médico -, este povo de França é duro e severo para consigo mesmo. Começo a compreender aquele boche que dizia: "O homem não aspira à felicidade; só o Inglês denota essa aspiração. Estes camponeses do Norte possuem uma admirável vom tade de ascetismo. Messiou - perguntou o padre -, conheceu, antes da guerra, o francês de music-hall, o homenzinho de barba preta que gesticula e perora?. . . Na verdade, messiou, nunca imaginei que estes aldeões fossem tão devotos e trabalhadores.
Gosto de os ver, aos domingos de manhã - disse o major -, quando os sinos tocam para a primeira missa e saem todos juntos de casa, os velhos, as crianças, e as mulheres, como para o teatro. Ah! Messiou, porque nunca nos contaram tudo isto, antes da guerra?
Porque também o ignorávamos - respondeu Aurelle.
O escudo de Oríon subiu mais alto no céu de Inverno; o frio endureceu as estradas; as grandes vagas de pudins de cartas floridas enchiam cada vez mais os camiões dos correios e o Natal veio recordar a alegria de viver à aldeia.
Os preparativos para o jantar do Natal ocuparam por muito tempo Aurelle e o padre. Este descobrira, numa quinta, uma perua digna da mesa do rei; Aurelle procurou, de casa em casa, salva e castanhas. Parker ocupou-se pessoalmente da cozinha e quis temperar com as próprias mãos uma salada de que muito se orgulhou e e o coronel inspeccionou, demoradamente, desconfiado. Quanto ao médico, foi enviado a Bailleul, com Aurelle, para comprarem champanhe; insistiu em provar várias marcas diferentes, o que lhe inspirou, na viagem de regresso, doutrinas imprevistas sobre a natureza das pessoas.
Obteve licença para convidar as amigas Berthe e Lucia virem à messe beber uma taça de champanhe, depois do jantar, e quando estas entraram, exibindo vestidos domingueiros, o coronel tocou a Destiny Waltz à cidade. As ordenanças haviam pendurado uma coroa de azevinho por cima da porta, e as jovens perguntaram ingenuamente se não era costume, em Inglaterra, as pessoas trocarem beijos debaixo do azevinho de Natal,
- Oh! Com certeza - respondeu o médico. E, de mãos atrás das costas, beijou levemente a face que Berthe lhe apresentou. Parker, igualmente tímido, fez o mesmo à linda Lucie; e Aurelle, como bom francês, abraçou ternamente as duas. - Isto é divertido, menina - comentou o médico.
- Pois é - respondeu Lucie, suspirando -, gostaríamos de que fosse Natal todos os dias.
- Oh! Mas porquê? - perguntou o médico.
- Sentir-nos-emos muito tristes, depois da guerra - retomou Berthe -, quando todos se forem embora! Dantes, não pensávamos, nunca víamos ninguém. . . trabalhávamos. não fazíamos mais nada. Mas, agora, sem os boys, a aldeia ficará deserta. . . Eu e a minha irmã não ficaremos cá: iremos para Paris ou para Londres.
- Oh! Que tristeza! - comentou o médico.
- Não - disse Aurelle -, casar-se-ão as duas, muito simplesmente. Casarão com lavradores ricos, cuidarão do gado e das galinhas e esquecer-nos-ão.
- Casar. . . é fácil de dizer - observou Berthe -;
são precisas duas pessoas. . . E se não houver homens bastantes para todas as raparigas, poderemos perfeitamente ficar solteiras.
- Cada homem escolherá várias - disse Aurelle - assim, sentir-se-ão mais descansadas. . . Com um marido para as duas, terão metade do trabalho em casa.
- Não creio que me agradasse - respondeu Lucia delicadamente.
Mas o padre, a quem o médico, maldoso, acabara de traduzir as cínicas sugestões de Aurelle, protestou indignado.
- Fica-lhe bem criticar a poligamia, padre - disse o médico. - Releia a Bíblia. Que me diz do venerável que, depois de vender as duas filhas ao mesmo homem, a pagar em mensalidades, durante catorze anos, ainda ofereceu de presente ao comprador as duas criadas de quarto?
- Mas - respondeu o padre - eu não sou responsável pelas acções de um patriarca duvidoso; não sinto nenhuma simpatia por esse Labão.
- Nem eu - concordou Aurelle. - Esse Dufayel do pensamento sempre me inspirou uma profunda repulsa; mais pelos métodos matrimoniais do que por ter aceite a poligamia natural da sua tribo. De resto, o problema do número de mulheres a atribuir a um mesmo homem será um problema moral? Parece-me um problema de aritmética. Se houver praticamente tantos homens como mulheres, impõe-se a monogamia; se, por qualquer razão, o número de mulheres vier a prevalecer, talvez seja preferível a poligamia, para felicidade de todos.
As duas jovens, que compreendiam menos bem esta conversa do que os passeios, aproximaram-se do coronel, que lhes dirigiu sussurros paternais e retirou da capa encarnada o disco de Caruso, sua homenagem.
O senhor tem ideias muito erradas sobre a psicologia animal, Aurelle - disse o médico. - Se observasse a natureza, teria, pelo contrário, verificado que a questão do número de companheiras não é, de modo nenhum, um problema de aritmética. Entre os mosquitos, nascem dez fêmeas para um macho. Ora, os mosquitos não são polígamos: nove destas fêmeas morrem virgens. São, de resto, as velhas solteironas que nos picam, donde se vê que o celibato gera a ferocidade entre os insectos, como entre as mulheres.
Conheci velhas solteironas encantadoras - disse.
Que sabe o senhor disso? - perguntou o médico. Mas, seja como for, o número de mulheres casadas varia simplesmente como o tipo de alimentação da espécie. Os coelhos, os Turcos, os carneiros, os artistas e, de um modo geral, todos os herbívoros são polígamos; as raposas, os Ingleses, os lobos, os banqueiros e, de um modo geral, todos os carnívoros são monogâmicos. Este facto deve-se à dificuldade que o carnívoro encontra em criar os filhos enquanto não são suficientemente fortes para matarem uma presa. Quanto à poliandria, estabelece-se em países miseráveis como o Tibete, onde vários homens se vêem obrigados a unir forças para alimentar uma mulher e a sua progenitura.
Os gritos de Caruso impossibilitaram a conversa durante um minuto; depois, Aurelle disse a Lucie:
- Na verdade, as outras jovens da aldeia talvez enfrentem algumas dificuldades na procura de marido; mas a menina e a sua irmã podem estar tranquilas: são as mais formosas e o vosso pai está em vias de se tornar o mais rico. Terão direito a bons dotes!
- Isso é verdade. . . Talvez nos queiram pelo dinheiro - disse Berthe, que era modesta.
- Pois eu não gostaria de que casassem comigo por dinheiro - opinou Lucie.
- Oh! Estranha criatura - disse o médico -, gostaria de ser amada pelos traços do rosto, isto é, pela posição que ocupam no espaço as moléculas albuminóides e gor das aí colocadas por efeito de uma qualquer hereditari dade mendeliana, mas repugna- lhe ser amada pela sua fortuna, para cuja formação contribuiu com trabalho e virtudes domésticas.
Berthe encarou o médico com inquietação e recordou à irmã que tinham copos para lavar antes de se deitarem. acabaram, pois, de beber as taças de champanhe e partiram.
Após um silêncio repousante, o major Parker pediu a Aurelle que lhe explicasse o que significava a instituição de um dote e, depois de compreender, indignou-se:
- Como? Um homem recebe um magnífico presente, uma mulher bonita e, para a aceitar, exige dinheiro? Mas o que acaba de me contar é monstruoso, Aurelle, e é perigoso. Assim, em vez de casarem com raparigas formosas e bem formadas, capazes de gerar filhos bons e bonitos desPosam mulheres feias e rabugentas, dotadas de um livro de cheques.
-Quem encontrar uma boa mulher encontra um grande bem - citou o padre. - Mas uma mulher rabugenta é como um tecto cuja água não pára de escorrer.
- É uma ilusão acreditar que os filhos do amor são mais bem formados do que os outros - interveio o médico, que o champanhe tornara evidentemente combativo.
Oh! Conheço bem a velha tese: todo o homem escolhe o seu complemento natural remetendo, assim, os filhos para o tipo médio da sua raça. Os homens altos gostam das mulheres baixas; os narizes grossos apreciam os narizes arrebitados e os homens efeminados apaixonam-se por amazonas.
Mas, na realidade, um intelectual nervoso e míope casa com uma presumida míope e nervosa porque os seus postos se assemelham. Os bons cavaleiros travam conhecinento com jovens que acompanham a caça a cavalo e conversam com elas pelas suas virtudes desportivas. Assim, em vez de remeter para o tipo médio da raça, o casamento de amor agrava as divergências.
Além disso, será desejável que se estabeleça uma selecção? Há poucos homens verdadeiramente brilhantes que não contem com, pelo menos, um louco entre os seus antepassados. O mundo moderno foi fundado por três cépticos: Alexandre, Júlio César e Lutero, para não falar de Napoleão, que não era perfeitamente equilibrado. é um facto conhecido que a sífilis é a causa mais habitual do génio. Sendo assim, para quê a selecção? Entre mil homens geniais, quantos pais loucos? - inquiriu o coronel.
Ah! Não posso saber, sir - respondeu o médico.
Então? - insistiu o coronel.
A bebida torna-o insensato, doutor - disse o major Parker. - Eu, se algum dia me casar, será com uma mulher bonita. Aurelle, como se chamava aquela encantadora dançarina do filme que vimos juntos em Hazebrouck?
- Napierkowska, sir.
- Pois bem, se a conhecesse, casava com ela imediatamente. E tenho a certeza de que é melhor e mais inteligente do que a média das mulheres.
- O meu amigo Shaw - disse o médico - afirma que desejar a companhia permanente de uma mulher bo nita é como se quiséssemos ter sempre a boca cheia de bom vinho, a pretexto de o apreciarmos.
- Trata-se de um argumento medíocre - observou o major -; na verdade, pior será andar com a boca cheia de mau vinho.
- Repare - retomou o médico - que as mulheres, que representam melhor do que nós o instinto profundo da raça, as mulheres, dizia eu, estão longe de nos dar razão: conheço poucas que procurem casar com um homem bonito.
Well, conhecem a história de Frazer? - perguntou o major.
- Qual Frazer? - inquiriu o coronel. - O Sexagésimo?
- Não, não. . . A. K. do Quinto Gurkhas. . . aquele que jogou pólo pelo regimento em mil e novecentos, um esplêndido rapaz, o mais belo queixo do Exército.
- Oh! Conheço-o - observou o coronel -, o filho do velho Sir Thomas. Era eu tenente, quando o pai me vendeu um excelente pónei que me custou apenas duzentas rupias. Well, qual é a sua história?
- No princípio de mil novecentos e quinze - disse o major -, Frazer, como atravessasse Londres a camini de casa, em gozo de uma licença, resolveu assistir a uma peça de teatro. No fim do primeiro acto, sentiu novamente um olhar cravado em si. Ergueu a cabeça e certificou-se, de facto, de que uma mulher o observava, de um camarote de boca de cena. Mas, na penumbra da sala não conseguiu distinguir-lhe as feições.
No intervalo, tentou vê-la; mas ela retirara-se para o fundo escuro do camarote. Durante os outros dois actos, a mulher olhou-o fixamente. Frazer, muito intrigado, aguardava à saída do teatro, quando um soberbo lacaio se aproxima, dizendo-lhe: "Uma senhora deseja falar-lhe, e conduziu-o à portinhola de uma viatura estacionada numa ruela.
"- O senhor não me conhece, capitão Frazer; mas eu conheço-o - disse uma linda voz -; tem algum compromisso para esta noite, ou aceita vir cear comigo?
- Frazer fez o que qualquer de nós faria.
- Fugiu? - inquiriu o padre.
- Subiu para a viatura - respondeu Parker -; pediram-lhe que deixasse vendar os olhos. Quando lhe retiraram a venda, encontrava-se num quarto encantador, sozinho com uma desconhecida, de vestido decotado e mascarilha, e que possuía o mais belo colo do mundo.
- É de Dumas pai ou de R. L. Stevenson? - perguntou Aurelle.
- É uma história passada em Janeiro de mil novecentos e quinze e que me foi contada por um homem que nunca mentiu - respondeu o major Parker. - A casa estava mergulhada em silêncio. Não apareceu nenhum homem; mas Frazer, deslumbrado, viu-se mimoseado pela desconhecida com aquilo a que os Franceses chamam, digo eu, cama, mesa e o resto.
"Ao amanhecer, a desconhecida vendou-lhe de novo os olhos. Frazer disse- lhe que passara uma noite deliciosa e perguntou quando poderia voltar a vê-la. "Nunca mais", respondeu ela, "e julgo poder acreditar na sua palavra de gentleman e de soldado se lhe pedir que não procure ver-me. Mas precisamente dentro de um ano, volte ao mesmo teatro em que nos encontrámos e talvez descubra uma carta para si. "
" iEm seguida, a desconhecida conduziu-o à viatura, pedindo-lhe que conservasse a venda durante dez minutos. Quando a retirou, encontrava-se em Trafalgar Square.
"Naturalmente, Frazer féz milagres para obter uma licença em Janeiro de mil novecentos e dezasseis. E, na noite do aniversário daquela aventura, apresentou-se na bilheteira do teatro, pedindo uma poltrona. "Não terá por acaso, uma carta para mim?", perguntou ele, indicando o nome.
"A empregada estendeu-lhe um sobrescrito. E Frazer, rasgando-o apressadamente, leu esta simples linha: "É um rapaz; e muito bonito. Obrigada. "
- O que há de mais estranho nesta história - disse o médico, sarcástico -, é que outro belo rapaz ma con tou muito antes da guerra, afirmando então ser ele próprio o herói.
- O que significa que a senhora teve vários filhos concluiu o coronel.
Ó roliça e formosa merceeira De corpete franzido, E tu, linda guarda-barreira, De braços nus e musculosos,
Professora de olhos semicerrados, De vestidos citadinos, Tu que possuis um piano E mãos esguias e finas,
Parceira a quem o dinheiro Decerto nada custava, Pois punhas de lado Comezinhos preconceitos,
Ah! Como os encantos campestres Nos foram úteis
Para vencer o soturno tédio
Daqueles dias hostis!
Encostados ao balcão Falando para nós mesmos,
Diziamos das nossas longas esperanças E dos nossos vastos problemas.
Nem sempre compreendestes, Mas pouco importa, As nossas lindas amigas de Paris Não são mais astuciosas.
O homem acredita sempre emocionar A mulher que deseja:
Ela não é para ele senão um espelho No gual ele se revê,
E quando Margot, de ar resignado, Sofre os nossos caprichos, Vale tanto como a Sénigné, Desde que fique calada.
ALGUMAS PÁGINAS DO DIÁRIO DE AURELLE
"Hondezeele, Janeiro de 19...
A senhora Lemaire ofereceu à messe uma garrafa de conhaque velho, e o médico está hoje muito inspirado: pertence realmente à raça dos camponeses irlandeses, grandes apreciadores de fórmulas surpreendentes.
- É à Idade Média - afirma ele - que devemos as duas piores invenções da humanidade: o amor romanesco e a pólvora.
E ainda:
- A única causa desta guerra reside no facto de os Alemães serem desprovidos de sentido de humor.
Mas, acima de tudo, é preciso ouvi-lo demonstrar, com um rigor muito científico, o seu teorema favorito:
- Dois telegramas de chefes com a mesma patente e de sentido contrário anulam-se. "
"4 de Janeiro
Passeio a cavalo com o coronel e Parker: como é fina e delicada esta luz do Norte!
O coronel indigna-se ao tomar conhecimento de que nunca cacei a cavalo:
- Devia experimentar, messiou; é o mais belo dos desportos. Saltamos obstáculos tão altos como o nosso cavalo. Aos dezoito anos, eujá tinha partido duas vezes o pescoço; é excitante.
- É verdade - concordou Parker -; um dia, como galopasse através de um bosque, espetou-se-me um galho no olho direito. Foi um milagre não ter morrido. Outra vez.
E Parker explicou que o cavalo caíra sobre ele, partindo-lhe duas costelas, acrescentando os dois em coro, certos de me terem convencido:
- Uma vez terminada a guerra, caçará a cavalo, messiou. "
7 de Janeiro
Esta manhã, não sei porquê, tropas francesas atravessaram Hondezeele. A aldeia, e eu próprio, sentimo-nos desvanecidos. Apreciamos as estridentes gaitas-de-foles; mas nenhuma música no mundo é comparável a Sidi-Brahim e Sambre-et-Meuse.
Também me alegrou poder mostrar aqueles caçadores a pé a Parker, que, do nosso Exército, não vira ainda senão alguns velhos guarda-linhas. Ficou surpreendido.
- São tão interessantes quanto os Highlanders - confiou-me ele.
De seguida, descreveu-me os Lennox de outrora e a sua estreia como subtenente, no Egipto.
- Durante seis dias, estive proibido de falar na messe. Um excelente costume: aprendíamos assim a reconhecer a humildade da nossa condição e o respeito devido aos mais velhos.
"Se algum cabeçudo não se habituava a este regime, encontrava no quarto todo o seu equipamento emalado e comparecia perante um tribunal militar de subalternos. . E, aí, ouvia algumas verdades úteis sobre o seu carácter.
"Era duro; mas que espírito de corpo, que disciplina nos conferiam estes rudes costumes. . . Não voltaremos a ver um regimento comparável aos nossos Lennox de mil novecentos e catorze. . . Hoje, é verdade que o oficial conhece o serviço activo; mas, em suma, na guerra, basta-lhe gozar de boa saúde e não demonstrar mais imaginação do que um peixe. É em tempo de paz que devemos julgar um soldado.
- O senhor recorda-me - interveio o médico - aquele primeiro-sargento da guarda, que dizia: "Ah! Como gostaria que a guerra terminasse, para participar em verdadeiras manobras. "
Ao serão, enquanto impera o gramofone, esforço-me por traduzir para francês um admirável poema de Kipling:
Se podes destruir a obra da tua vida
E sem proferir uma só palavra reconstruí-la Ou perder de uma só vez o lucro de cem partidas Sem um gesto e sem um suspiro;
Se podes amar sem te perderes de amores Se podes ser forte sem deixar de ser terno E, sentindo-te odiado, sem odiares por tua vez, Preferindo lutar e defenderes-te;
Se podes suportar ouvir as tuas palavras Traídas por maldosos para excitar os tolos, E ouvir das suas bocas vis mentiras sobre ti Sem tu próprio mentires uma só vez; Se podes manter-te digno Se podes manter-te dono aconselhando os reis E se podes amar os teus amigos como irmão Sem que um deles seja tudo para ti;
e sa podes meditar, observar e conhecer, Sem nunca te tornares céptico ou destrutivo; Sonhar, mas sem deixar que o sonho te domine, Pensar sendo apenas pensador;
Se podes ser duro sem nunca odiares, Se podes ser valente e nunca imprudente, Se sabes ser bom, se sabes ser discreto, Sem seres moralista nem pretensioso;
Se podes encontrar o Triunfo depois da Derrota E acolher estes dois mentirosos com a mesma cara, Se podes conservar a coragem e o juízo Quando todos os outros os perdem, Então os Reis, os Deuses, a Sorte e a Vitória Serão para sempre teus escravos submissos, E, o que vale mais do que os Reis e a Glória, Serás um homem, meu filho.
Mostro a Parker o texto inglês que tão bem define o próprio Parker, e falamos dos livros que ele aprecia. Cometo a imprudência de citar Dickens.
- Detesto Dickens - disse o major -, nunca compreendi o que nele encontram de interessante. São histórias de empregados, de boémios; não preciso de saber como vivem. Não há um gentleman em toda a obra de Dickens. Não, se pretende conhecer a obra-prima do romance inglês, leia, Jorrocks.
13 de Janeiro
Um jovem telefonista inglês que veio reparar o neu aparelho disse-me: "Os telefones são como as mulheres, No fundo, ninguém compreende nada. . . um belo dia, nada funciona. . . procuramos saber porquê; não descobrimos. . . abanamo-los, praguejamos e regressa tudo à normalidade."
Agrada-me observar que o respeito de Parker pelo Exército francês vai crescendo lentamente.
- É curioso - diz-me ele -, recolhem sempre mais prisioneiros do que nós e as vossas perdas são inferiores às nossas. Porque será?
E como eu guardasse um modesto silêncio:
- É que os Franceses levam esta guerra a sério - respondeu o médico -, enquanto nós persistimos em a considerar um jogo. . . Você conhece, Aurelle, a história de Peter Pan, o rapazinho que nunca cresceu?. . . O povo inglês é como o Peter Pan: entre nós não há pessoas crescidas. . . É enternecedor; mas, por vezes, perigoso."
14 de Janeiro
Ao jantar, um coronel irlandês:
- Estou muito aborrecido - disse ele -; durante a minha última licença, aluguei uma casa para a família. ora, a minha mulher escreveu-me, dizendo que a casa está assombrada. . . A verdade é que os proprietários deviam avisar dessas coisas.
- Talvez não soubessem - acrescentou o coronel Brámble, sempre indulgente.
- Sabiam perfeitamente!. . . Quando a minha mulher se foi queixar, mostraram- se muito perturbados e acabaram por confessar. . . Uma das suas bisavós passeia-se há cento e cinquenta anos entre a sala e o quarto. . . Julgam desculpar-se dizendo que ela é totalmente inofensiva. . . É possível e eu acredito; mas não deixa de ser desagradável para a minha mulher. . . Parece- lhe possível anular o contrato?
Arrisquei um comentário céptico, mas fui derrotado por toda a messe: os fantasmas da Irlanda são um facto
- Mas porque serão os castelos irlandeses mais apreciados pelos fantasmas do que os outros?
- Porque - respondeu o coronel irlandês - somos uma raça mais sensível e entramos mais facilmente em comunicação com eles.
E o coronel esmagou-me com argumentos técnicos sobre a telegrafia sem fios. "
" 15 de Janeiro
Tendo tomado conhecimento de que um automóvel- ambulância ia a Ypres esta manhã, o coronel levou-me consigo. Em frente do asilo, vimo-nos enredados num trágico emaranhado de viaturas, debaixo de um bombardeamento violento.
Um cavalo, de carótidas cortadas por um estilhaço de obus, sustido de pé pelas padiolas, agonizava a nosso lado. Os condutores praguejavam. Nada mais podíamos fazer, senão aguardar pacientemente na nossa viatura, abalados pelas explosões.
- O doutor Johnson tem razão - disse-me o coronel -: quem quiser ser herói, terá de se embeber em brande.
Em seguida, como os destroços da cidade morta estremecessem à nossa frente devido a uma nova explosão:
- Messiou - perguntou-me ele -, quantos habitantes tinha Ypres, antes da guerra?"
"20 de Janeiro
Vamos deixar Hondezeele: os bonés vermelhos agitam-se e já vemos passar os ciclistas, vanguarda natural das nossas migrações.
Começávamos a afeiçoar-nos a este país: a aldeia e a brigada, tão desconfiados ainda há um mês, cimentaram uma verdadeira amizade. Mas os deuses são ciumentos.
Amanhã, partida da brigada: A gaita-de-foles e os tambores Tocarão na última alvorada Destes fugitivos amores.
Os montanheses de belos joelhos Que imitavam a dança da areia Com cânticos graves e doces, Vão dançar a roda do diabo.
A vitória, um dia, procurando-os, Encontrá-los-á descalços no chão, Mas sobre as terras e os campos Pairará a sua ténue sombra, E nas aldeias da Flandres.
Preparava-se um grande ataque: era um terrível anseio que os estados- maiores guardavam curiosamente. só Aurelle foi informado com alguns dias de antecedência pelo comunicado alemão publicado no Times e pelo filho da senhora Lemaire, que lhe recomendou que não o divulgasse.
De facto, a divisão recebeu rapidamente ordem para ocupar um dos sectores de ataque. O padre, sempre optimista, já antevia marchas triunfais; mas o coronel recordou-lhe delicadamente que os objectivos eram apenas a crista que, em tempo de paz, se designara por ligeira ondulação de terreno" e duas aldeias, de resto destruídas. A finalidade real residia em conter as forças do inimigo que, naquele momento, avançava pela Rússia. Mas as informações só vieram aumentar o entusiasmo do coronel.
O senhor pode dizer o que quiser, sir; mas se conquistarmos aquela crista, ser-lhes-á impossível resistir e e romperemos as suas linhas. Quanto à retirada dos russos, é excelente. Os boches afastam-se das suas bases, prolongam as linhas de comunicação, estão perdidos! Não estão - observou o coronel -; mas está-lo-ão um dia, e é tudo o que desejamos.
O coronel foi convocado para ir servir de agente de ligação entre o estado maior da divisão e algumas baterias francesas, que reforçavam a artilharia britânica no sector. Desejou, pois, boa sorte aos Lennox e abandonou-os por um dia.
Passou a noite nojardim do pequeno castelo habitado pelo general; o bombardeamento prosseguia sem interrupção. Aurelle deambulou pelas alamedas daquele parque quejá havia sido lindo, mas que agora se encontra dilacerado por trincheiras e abrigos, enquanto do fim dos relvados despontavam tendas camufladas.
Pela meia-noite, a chuva, a chuva clássica das ofensivas, começou a cair em gotas grossas. O intérprete abrigou-se numa cocheira, juntamente com condutores e motociclistas. Constituía sempre um prazer contactar com o povo inglês, de discurso veemente, mas pensamentos comedidos: estes, tal como os restantes, eram boas pessoas, despreocupados, corajosos e frívolos. Cantarolaram as últimas canções de Londres, mostraram-lhe fotografias das mulheres, das noivas e dos filhos, e perguntaram quando terminaria aquela desgraçada guerra. De resto neste ponto, partilhavam o total optimismo do padre.
Um deles, um pobre electricista de espírito arguto, pediu a Aurelle que lhe explicasse o problema alsaciano O intérprete contou-lhe o caso de Saverne, as manifestações de estudantes de Estrasburgo diante da estátua de Kléber, as peregrinações dos Alsacianos a Belfort para o desfile de 14 de Julho, e os jovens que, aos vinte anos, abandonavam a família e os haveres para combater em França como soldados.
Os presentes responderam que compreendiam o amor pela França: era um belo país. Todavia, a paisagem era recortada por um número suficiente de sebes. apreciavam as virtudes caseiras das mulheres, as árvores ao longo das estradas e as esplanadas dos cafés. Falavam de Verdun com entusiasmo, embora muitos deles tivessem aderido pela primeira vez à ideia da Entente como vitória de Carpentier em Londres.
Nasceu o dia: a chuva caía ruidosamente; nos campos, a erva e a terra formavam uma massa viscosa. Aurel subiu ao castelo; encontrou o ajudante- de-campo, que conhecia e a quem transmitiu ordens.
Ah, sim! - disse-lhe o ajudante-de-campo. - Fui eu quem combinou tudo com o oficial de lígação francês: Que o telefone, com as baterias, fosse cortado, recorreríamos aos seus serviços. " Entre para a sala dos "sinais" e sente-se. . . Dentro de dez minutos - acrescentou ele -, os nossos homens saltam o parapeito.
A sala dos "sinais" era o antigo jardim de Inverno do castelo. Na parede, um único mapa, o mapa das trincheiras numa escala muito grande, indicava as linhas britânicas a negro e as do inimigo a vermelho. Seis telefonistas encontravam-se instalados em duas mesas compridas. Oficiais de golas e punhos vermelhos passeavam pela sala, calmos e silenciosos, recordando a Aurelle uma das frases favoritas do major Parker: "Um gentleman não tem medo".
Ao bater das cinco horas, entrou o general; e os oficiais, interrompendo o passeio, cumprimentaram em coro:
"Good morning, sir. " Good morning - respondeu delicadamente o general.
O general era muito alto; os cabelos grisalhos, cuidadosamente divididos ao meio e alisados, enquadravam as feições correctas; da sua túnica de bom corte sobressaíam os dourados da gola e dos punhos. Avistando Bramblle, a um canto, dirigiu-lhe um breve good morning suplementar, indulgente e amigável; em seguida, passeou vagarosamente por entre as duas mesas dos telefonistas, de mãos atrás das costas. O ruído dos canhões cessara subitamente, de tal modo que, na sala envidraçada, nada mais se ouvia, para além do passo magistral e cadenciado do general.
Uma campainha de um toque surdo retiniu: um telefonista apontou tranquilamente uma mensagem numa folha de papel oficial cor-de-rosa:
- Cinco horas e cinco - leu o general suavemente décima brigada. Ataque lançado. Tiro de barragem. Inimigo pouco eficaz. Violento fogo de metralhadoras.
Em seguida, estendeu o telegrama a um oficial, que o pendurou num gancho da parede.
- Transmita-o ao Corpo - ordenou o general. O oficial escreveu num papel branco: Cinco horas e cinco. décima brigada informa do seguinte. Ataque lançado. Tiro de barragem inimigo pouco eficaz. Violento fogo metralhadoras.
Enfiou uma cópia passada a papel químico num outro gancho e passou o original ao telefonista que, por sua vez, leu a mensagem através do aparelho.
Com uma lentidão inflexível e monótona, foram acumulando os telegramas brancos e cor-de- rosa. U brigada encontrava-se na primeira linha inimiga; ou ficara detida diante de um ninho de metralhados. O general reforçou-a com elementos da terceira brigada e, em seguida, telefonou por diversas vezes para a artillharia, para que destruíssem aquela caixa de comprimidos E todas estas ordens eram apontadas em papéis brancos e cor-de-rosa; um oficial, de pé em frente do gigante mapa, movimentava cuidadosamente pedacinhos de cartão coloridos, e esta agitação metódica recordava a Aurelle o aspecto de uma grande instituição bancária à espera da Bolsa.
Pelas seis horas da manhã, o chefe do estado-maior acenou-lhe para que se aproximasse e, apontando-lhe o mapa, indicou-lhe a situação de uma bateria de 155 francesa e pediu-lhe que contactasse o oficial para que ele destruísse, custasse o que custasse, um certo parapeito de caminho-de-ferro, no qual resistiam uma ou duas metralhadoras. O telefone havia cessado de funcionar.
Lá fora, reinava a calma; continuava a chover; o caminho transformara-se num riacho de lama amaréla. O troar do canhão parecia mais longínquo; mas era apenas uma ilusão, pois viam-se os clarões vermelhos ameaçadores dos rebentamentos na aldeia, à frente do castelo.
Alguns feridos, cobertos de pensos disformes, ensanguentados, enlameados, aproximavam-se lentamente da
ambulância, em pequenos grupos. Aurelle penetrou num pinhal; as agulhas molhadas pareceram-lhe um terreno delicioso, depois da lama. Ouvia os tiros da bateria francesa, ali muito perto; mas não conseguia encontrá-la. Haviam-lhe dito: "Vai ao nordeste do pinhal. Mas, onde diabo seria esse nordeste? Subitamente, um uniforme azul moveu-se entre os pinheiros. No mesmo instante, um canhão disparou muito próximo dele e, curvando à direita, avistou artilheiros na orla do pinhal, abrigados sob árvores frondosas. Um ajudante, a cavalo numa cadeira, de túnica desapertada, quépi descaído para a nuca, comandava o ataque. Os homens trabalhavam habilmente e sem precipitações, como bons operários: dir-se-ia uma tranquila fábrica ao ar livre.
- Meu ajudante - disse um homem -, está aqui um intérprete.
-Ah! Talvez possamos saber porque deixaram os
Ingleses de responder - disse o ajudante.
Aurelle transmitiu-lhe as ordens, pois o capitão encontrava-se no posto de observação e o tenente procurava reparar o telefone.
- Entendido - disse o ajudante, um loreno de voz cantante e grave. - O parapeito será demolido imediatamente, meu caro.
Telefonou ao capitão e, depois de situar o parapeito no mapa, começou a efectuar os cálculos. Aurelle demorou-se alguns instantes, feliz por encontrar este recanto da batalha tão desprovido de falsos romantismos e por, finalmente, ouvir falar francês.
Depois, retomou o caminho do castelo; cortando através dos campos para apanhar a estrada principal, aproximou-se do campo de batalha. Uma brigada de reforço subia em linha; percorreu-a em sentido inverso, acompanhando alguns feridos, a quem ofereceu um pouco de conhaque. Os homens que iam combater fitavam os feridos, em silêncio.
Um obus silvou por cima da coluna; as cabeças ondularam como choupos agitados pelo vento. O obus explodiu num campo deserto. Em seguida, Aurelle, tendo ultrapassado a brigada, encontrou-se sozinho na estrada, com a informe procissão dos feridos. Tinham febre, estavam sujos e ensanguentados; mas felizes por terem chegado ao fim, apressavam-se tanto quanto podiam para alcançar a comodidade dos alvos leitos.
Passou um rebanho de prisioneiros alemães, conduzido por alguns Highlanders. Os seus olhos receosos de animais acossados pareciam procurar um chefe a quem saudar.
Aurelle, como chegasse ao castelo, viu à sua frente dois homens transportando um oficial numa maca. O oficial devia ter algum ferimento terrível, pois um penso monstruoso avolumava-lhe o ventre, enquanto o sangue que o atravessava escorria serenamente pela estrada enlameada.
- Ei! Sim, Aurelle, sou eu - disse o moribundo numa estranha voz. E Aurelle reconheceu o pobre capitão Warburton. O seu rosto fino e travesso tornara-se grave. - Desta vez, messiou - disse ele, respirando com difi culdade -, O'Grady não me evacuará para o hospital da duquesa; gostaria que dissesse adeus ao coronel, da minha parte. . . e, depois, que escreva para minha casa, dizendo que não sofri muito. . . Espero que não lhe cust muito fazer-me isto. . . Thanks uery much indeed.
Aurelle, sem encontrar palavras adequadas, apertou a mão daquele jovem mutilado, que tanto amara a guerra e os maqueiros afastaram-se serenamente.
Chegado ao castelo, deparou com os rostos ainda calmos, mas sombrios: relatou o cumprimento da missão ao chefe do estado-maior, que lhe agradeceu distraidamente.
- Como vai isso? - perguntou ao telefonista, em voz baixa.
- Bem - murmurou o homem -. . Todos os objectivos foram alcançados. . . mas o general foi morto. Quis ver porque não avançava a segunda brigada. . . um obus soterrou-o, juntamente com o major Hall.
Aurelle imaginou os cabelos grisalhos elegantemente penteados, os traços finos do general, o ouro e a púrpura da gola e dos punhos manchados pela lama ignóbil das batalhas. "Tanta dignidade natural", pensava ele, "tanta autoridade cortês e, amanhã, uma carcaça que os soldados calcarão aos pés, sem o saberem. " Mas, à sua volta, já se procurava um substituto.
À noite, foi ao encontro dos Lennox com o regimento encarregado de os render. O primeiro amigo que encontrou foi o médico, que trabalhava num abrigo.
- Creio que o regimento não fez mau trabalhodisse ele -. . . Ainda não vi o coronel; mas todos os homens me dizem que foi um portento de coragem e presença de espírito. . . Consta, messiou, que detemos o recorde do número de alemães mortos pelo mesmo homem. . . O Kemble deu conta de vinte e quatro. . . Não está mal, pois não?
- Não - respondeu Aurelle -, mas é horrível. Foi o senhor quem tratou Warburton, doutor? Encontrei-o na estrada; pareceu-me muito doente.
- Está perdido - esclareceu o médico -, e o seu amigo Gibbons morreu aqui, esta tarde, com as duas pernas amputadas.
- Oh! Gibbons também. . . Pobre Gibbons! Lembra-se, doutor, do seu discurso sobre a sua querida e roliça mulher? Neste momento, deve estar a jogar ténis com as irmãs em algum belo parque inglês... Enquanto as pernas ensanguentadas do maridojazem embrulhadas num lençol. . . Coisas terríveis, doutor.
- Ora! - exclamou o médico, indo lavar as mãos cobertas de sangue. - Dentro de três meses, veremos o seu retrato no Tatler: a elegante viúva do capitão Gibbons, que em breve casará com. . .
CANÇÃO DO GONDE DE DORSET
(1665)
Neste momento, gente ilustre, Um adolescente bem empoado Decerto junto de vós cantarola A canção que adorais, Fá, dó, sol, ré.
Acariciando os cabelos lisos
Com gestos amaneirados, Olha-vos de soslaio
Com olhares apaixonados.
Fá, dó, sol, ré.
Enquanto as vagas balançam
O velho barco danifcado, O vento que sopra com violência Canta o nosso Miserere.
Fá, dó, sol, ré.
Em vão, para esconjurar a imagem, De um destino desgraçadamente certo,
Agarrados aos floretes, Cantarolamos desesperados:
Fá, dó, sol, ré.
Empurrados para reinos sombrios Pelo vosso prematuro esquecimento, O mais lamentável dos salmos Canta no nosso coração ulcerado: Fá, dó, sol, ré.
Como? A vossa alma era pequena E o amor comedido?
Esquecestes tão depressa
Que foi a nossa ária preferida, Fá, dó, sol, ré.
Em semelhante caso, as Romanas Ficavam junto do lar sagrado E cantavam fiando a lã
Hinos aos deuses ignorados. Fá, dó, sol, ré.
Não podeis fazer como elas? Oh! Dizei o que quiserdes E que para amores eternos Só para nós vos guardareis.
Fá, dó, sol, ré.
Pois sendo inconstantes
Como estas vagas desamparadas, Receai que um dia o suave andante Se torne um Die ireal".
Fá, dó, sol, ré.
Os Lennox Highlanders, por ocasião da rendição da brigada, foram enviados por seis dias para um campo enlameado perto de D. . . Aí, o doutor O'Grady e o intérprete Aurelle partilharam uma tenda e, na primeira noite, foram jantar juntos à Estalagem dos Três Amigos.
No regresso, as estrelas destacavam-se num céu de veludo azul sombrio. Um luar incidia nas pálidas estrelas e nas ervas da pradaria. Algumas tendas, no interior das quais ardia uma vela, assemelhavam-se a grandes lanternas brancas; em redor das fogueiras do acampamento, agitadas pelo vento, os homens praguejavam e cantavam.
- A guerra zomba do tempo - comentou o médico -, Eeterna e imutável. Este campo poderia ser o de César. Os tommies, à volta das fogueiras, falam das mulheres e do perigo, do calçado e dos cavalos, como os legionários de Fábio ou os insubmissos do Grande Exército. E, como sempre, do outro lado da colina, repousam os bárbaros romanos, junto das carroças desatreladas.
O eloquente vinho da Borgonha da Estalagem dos Três Amigos inspirava estes discursos ao médico; deteve-se, de pés enterrados na lama. Esta tenda tem seis mil anos - disse ele -; é aos beduínos belicosos que fundaram os impérios da Babilónia e de Cartago. A inquietação dos antigos povos migrantes inspirava-lhes todos os anos a nostalgia do deserto e levava-os para fora das muralhas das cidades proveitosas. Era ainda esta mesma força, Aurell, que todos os anos, no Verão, cobria de tendas nómadas as praias desertas da Europa, e é a obscura recordação ancestral que, no dia um de Agosto de mil novecentos e catorze, época de férias, Aurelle, época de migrações, incita os bárbaros mais jovens a abandonar seu imperador ao mundo. É uma velha comédia que representa de dois em dois mil anos, mas que ainda parece interessar o público, porque este se vai renovando.
- O senhor está pessimista, esta noite! - disse Aurelle, que a tépida surpresa de um aquecedor a petróleo convidava à benevolência.
- A que chama pessimismo? - perguntou o médico, descalçando a custo as botas endurecidas. - Creio que os homens sempre se apaixonarão e que nunca deixarão de se atacar uns aos outros a intervalos irregulares, pelos meios mais enérgicos que lhes proporcionar a ciência do seu tempo, e com os objectos mais bem escolhidos para se quebrarem mutuamente os ossos. Creio que um dos sexos procurará sempre agradar ao outro, e que deste desejo elementar nascerá eternamente a necessidade de vencer os rivais. Para este fim, os rouxinóis, as cigarras, as cantoras e os homens de estado servir-se-ão sempre da garganta; os pavões, os negros e os soldados utilizarão ador nos resplandecentes; os ratos, os veados, as tartarugas e os reis do espectáculo recorrerão ao combate. Nada disto é pessimismo, é história natural!
Assim falando, o médico introduzira-se no saco-cama; e pegara num livro que se encontrava sobre a lata de biscoitos e ao mesmo tempo estante.
- Ouça este discurso, Aurelle - disse ele -, e adivinhe por quem foi proferido: As minhas queixas em relação à guerra não cessaram e consentirei em admirar o vosso invencível general, quando vir a luta terminada em condições honrosas. Com certeza que os brilhantes sucessos que causam a vossa alegria também me tocam, porque estas vitórias, se quisermos utilizar racionalmente a sorte, nos proporcionarão uma paz vantajosa. Mas, se deixarmos passar este momento em que podemos parecer conceder a paz, em vez de a receber, receio bem que este vigor resplandecente se desvaneça em fumaça. E se o destino nos reservasse reveses, estremeço ao pensar na paz que imporia aos vencidos um inimigo que tem a coragem de a recusar aos vencedores."
- Não sei - respondeu Aurelle, bocejando -; por Maximiliano Harden?
-Pelo senador Hanão no senado de Cartago - anunciou o médico, triunfante. - E, dentro de dois mil e trezentos anos, um qualquer médico negro, deparando durante a grande guerra africana com um discurso de Lloyd Georges, dirá: "Estes velhos textos são, por vezes, de uma bem curiosa actualidade. A vossa formidável guerra europeia tem a mesma importância, Aurelle, que as lutas de dois formigueiros num canto do meu jardim da Irlanda.
- Para nós, tem muito mais - disse Aurelle -, e parece-me que a qualidade dos sentimentos que suscita não é animal. Acredita que as formigas sejam patriotas?
Com certeza - respondeu o médico -; as formigas devem ser bastante patrióticas. Entre elas, as raças guerreiras são ricamente alimentadas por uma nação de servidores. Em todas as estações, os seus exércitos partem em campanha para roubar os ovos de espécies mais fracas. Destes, saem operárias que nascem escravas num país estrangeiro. A burguesia militar vê-se, assim, liberta pela servidão do trabalho e estes soldados já nem sabem comer. Rodeados de mel e sem as suas amas-servas, deixam-se morrer de fome. É aquilo a que chamamos "mobilização civil" E se esta guerra durar muito tempo, Aurel, o senhor verá emergir da humanidade uma nova espécie: os homens-soldados. Nascerão de capacete e blindados, impermeáveis às balas e dotados de armas naturais; as sufragistas serão, então, operárias assexuadas que alimentarão estes guerreiros, enquanto algumas estranhas prostitutas darão à luz, em instituições especiais, filhos da nação.
Assim discorria o médico, no aprazível silêncio do acampamento, e sob a serena luz da Lua, enquanto Aurelle, que adormecera, via desfilar, através das pálpebras cerradas, monstruosas formigas castanhas, comandadas pelo médico.
As ordenanças trouxeram o rum, o açúcar e a água a ferver. O Reverendo Mac Ivor começou a fazer uma paciência. O coronel ouviu a Destiny Waltz. E o doutor O'Grady que, em tempo de paz, era alienista, falou de loucos.
Tratei - disse ele - um americano rico que se julgava perseguido por um "bando de gases venenosos". Para salvar a vida, mandou construir uma cama especial rodeada por um gradeamento de madeira branca. Passava os dias recolhido naquele abrigo, envergando apenas um fato de banho vermelho, a escrever um estudo em vinte mil capítulos sobre a vida e a obra de Adão. O quarto encontrava-se isolado por uma porta tripla, na qual havia sido gravado: "Os portadores de gases ficam prevenidos de que há armadilhas para lobos no interior. " Mandava-me chamar todas as manhãs e, mal me via entrar, clamava: "Nunca vi criaturas mais estúpidas, mais maldosas, mais malcheirosas e mais retorcidas do que os médicos ingleses. "
Nunca vi - repetiu o padre deveras satisfeito criaturas tão estúpidas, tão maldosas e tão retorcidas cono os médicos ingleses. Dito isto - prosseguiu o médico -, voltava-me as costas e, cingido no fato de banho vermelho, entregava-se ao vigésimo milésimo capítulo do estudo sobre as obras de Adão.
- Veja, messiou - interrompeu o coronel, que retomara o exame dos documentos da brigada -, tenho aqui trabalho para si. - E apresentou a Aurelle um grand maço de papéis cobertos de carimbos coloridos.
O primeiro oficio começava assim:
"Do chefe de estação de B. . . , comissário técnico, para o senhor comissário militar da estação de B. . .
Tenho a honra de informar que a menina Henin; hem, guarda-barreira em Hondezeele, apresentou os seguintes factos: soldados ingleses acampados ao longo da via- férrea habituaram-se a fazer todas as suas abluções ao ar livre, o que constitui um espectáculo chocante para a menina em questão, obrigada, por dever de ofício, a enfrentá-los. Ficaríamos muito reconhecidos, se fossem dadas ordens no sentido de pôr cobro a este lamentável estado de coisas. "
Assinatura
O comissário militar da estação de B. . . ao senhor comissário regulador W. . .
"Dado conhecimento para os devidos efeitos. "
Assinatura.
O comissário regulador W. . . ao D. A. D. R. T.
"Muito grato ficaria se fossem dadas ordens no sentido de vedar o acampamento em questão por uma sebe de espessura tal que a visibilidade, a uma distância de cinquenta metros, possa ser considerada praticamente nula. "
- Este - comentou Aurelle - é um politécnico.
O padre perguntou o que era um politécnico.
- Um politécnico é um homem que pensa que todos os seres, vivos ou inanimados, podem ser definidos rigorosamente e submetidos ao cálculo algébrico. Um politécnico põe em equação a vitória, a tempestade e o amor. Conheci um que, comandando uma praça-forte e precisando de redigir ordens para o caso de se verificarem ataques aéreos, escreveu assim: "Diz-se que a praça-forte de X. . . é atacada por um engenho aéreo quando o ponto de encontro com o solo da vertical que passa pelo engenho cai dentro do recinto da defesa. "
- Não diga mal da Escola Politécnica, Aurelle - aconselhou o coronel -: é a mais original e a melhor das vossas instituições. É um prolongamento tão natural da cultura pessoal de Napoleão que a França surpreende todos os anos os outros governos com duzentos tenentes Bonaparte.
- Continue a traduzir, messiou - ordenou o coronel.
- D. A. D. R. T. ao comissário regulador. "Este assunto não me diz respeito; trata-se de uma divisão desactivada. A reclamação deverá ser dirigida à A. G. por intermédio da missão francesa. "
Assznatura. Carimbo.
Comissário regulador à direeção da retaguarda, G. Q. G.
"Tenho a honra de incluir, para os devidos efeitos, o processo respeitante a uma queixa apresentada pela menina Heninghem, de Hondezeele. "
Assinatura. Carimbo
E a correspondência continuava: direcção da retaguarda à missão militar francesa, missão francesa ao ajudante-geral, A. G. ao exército, exército ao corpo, divisão à brigada, brigada ao coronel dos Lennox Highlanders. Assinavam os oficios patentes ilustres: coronel, chefe do estado-maior general, brigadeiro-general, major-general, e os escrúpulos pudicos da menina Heninghem, de Hondezeele, haviam-se vestido, no decurso desta longa viagem, de púrpura, ouro e glória.
- Trata-se de um caso melindroso - disse o coronel Bramble com a maior seriedade. - Parker, seja bom rapaz e responda, sim?
O major aplicou-se durante alguns momentos e, depois, leu:
- "Tendo este regimento abandonado o acampamento de Hondezeele há dois meses e meio, torna-se-lhe infelizmente impossível tomar as medidas exigidas. De resto, tendo em conta o preço de uma sebe da altura suficiente, permito-me sugerir que seria mais vantajoso para os governos aliados substituir a guarda- barreira de Hondezeele por uma pessoa de idade canónica e comprovada experiência, para quem o espectáculo descrito fosse inofensivo e talvez agradável. "
- Não, Parker, não - disse o coronel, enérgico -. não assinarei tal coisa. Dê-me uma folha de papel; eu mesmo responderei.
E escreveu simplesmente:
"Tomei conhecimento e devolvo o processo incluso.
Assinado: BRAMBLE, Coronel. "
- O senhor é um sábio, sir - concluiu Parker.
- Conheço o jogo - disse o coronel -, participei nele durante trinta anos.
- Uma vez - contou o médico - dois oficiais perderam cada um deles, no mesmo dia, um objecto perten cente a Sua Majestade. Ao primeiro desapareceu um balde de carvão, ao segundo um camião-automóvel. Como o senhor sabe, Aurelle, no nosso exército, um oficial é responsável pelo valor dos objectos que perder por negligência. Os dois oficiais receberam, pois, dois oficios do Ministério da Guerra avisando o primeiro de que teria de pagar a quantia de três xelins e o outro de que lhe seriam descontadas mil libras no seu ordenado. O primeiro tentou defender-se: nunca tivera nenhum balde de carvão e pretendia demonstrá-lo. Comprometeu a sua promoção e, no fim, teve de pagar os três bob'. O segundo, que conhecia os desígnios do Senhor, escreveu simplesmente ao fundo da página: "Assinado e devolvido. " E remeteu o oficio ao Ministério da Guerra. Aí, segundo uma antiga e sábia regra, um escriba perdeu o processo e o nosso oficial nunca mais ouviu falar de semelhante bagatela.
- A sua história não é má, doutor - observou o major Parker -; mas, em caso de perda de objectos pertencentes ao governo, há um método ainda mais seguro do que o seu, é o método do coronel Boulton.
"O coronel Boulton comandava um depósito de material. Era responsável, entre outras coisas, por cinquenta metralhadoras. Um dia, apercebeu-se de que o depósito continha apenas quarenta e nove. Nenhum inquérito, nenhuma punição aplicada aos fiéis de armazém trouxeram de volta a metralhadora em falta.
"O coronel Boulton era uma raposa velha e nunca confessara um erro. Limitou-se a assinalar, no seu relatório mensal, que se quebrara o tripé de uma metralhadora. Enviaram-lhe, sem comentários, um tripé sobressalente.
"Um mês depois, invocando um qualquer pretexto, registou a avaria de um aparelho de pontaria para metralhadora; no mês seguinte pediu três porcas, depois, um mecanismo de recuo; e assim, peça a peça, reconstituiu a metralhadora, em dois anos. Foi também peça a peça que o serviço de manutenção lha reconstituiu sem atribuir qualquer importância a estes fornecimentos de peças soltas.
"Então, o coronel Boulton, satisfeito, passou revista às metralhadoras e contou cinquenta e uma.
"Enquanto reconstituía pacientemente a arma perdida, algum idiota devia tê-la encontrado num canto.
Bob (linguagem familiar): xelim. (N. da T)
E Boulton teve de gastar dois anos de elaborada contabilidade para registar nos livros, peça a peça, a nova arma nascida do nada.
- Messiou - disse o coronel -, lembra-se da guarda- barreira de Hondezeele? Eu não esperava que tivesse aquele comportamento.
- Nem eu - respondeu Aurelle -, ela era muito bonita.
- Messiou! - censurou o padre.
Doutor - pediu o padre -, dê-me um charuto. O senhor ignora, padre, que os meus charutos foram enrolados sobre as coxas nuas das raparigas de Havana?
O'Grady - observou o coronel com severidade - considero essa observação deslocada.
Dê-me um, apesar de tudo - insistiu o padre. Preciso de fumar um charuto para descobrir um tema para o meu sermão; prometi ao quartermaster que iria ouvir os condutores da retaguarda e não sei de que lhes falar.
Não diga mais, padre, vou mostrar-lhe um texto feito à medida. . . Empreste-me a Bíblia por um momento. Aquii! Aqui está, ouça. . . "Mas David disse: Não é assim irmãos, que devem dispor do espólio, pois aquele que fica de guarda ao armamento deve ter direito a tantas partes quantas as que leva aquele que parte em combate, e partilharão equitativamente."
Admirável - concordou o padre -, admirável; mas diga-me, O'Grady, como é possível que um incrédulo como o senhor conheça tão bem os livros sagrados?
Como alienista, estudei bem este livro de Samuel - esclareceu o médico -; interessei-me pela neurastenia de Saul. As suas crises estão muito bem descritas. Também diagnostiquei a loucura de Nabucodonosor. São dois tipos muito diferentes. Saul era um apático e Nabucodonosor um exaltado.
- Gostaria de que deixasse Nabucodonosor em paz pediu o coronel.
- Tenho muito medo dos médicos alienistas - diss o major Parker -; exaltados, deprimidos ou apáticos; quem os ouvirjulga-nos a todos loucos.
- Que entende por louco? - perguntou o médico. É bem verdade que descubro em si, no coronel e em Aurelle todos os fenómenos que observo nos asilos de alienados.
- Houugh! - exclamou o coronel, chocado.
- Mas com certeza, sir. Entre Aurelle, que esquece a guerra lendo Tolstoi e um dos meus velhos amigos que sa julga Napoleão ou Maomé, há uma diferença de grau; mas não de natureza. Aurelle alimenta-se de romances por uma necessidade doentia de viver a vida de outro ser. os meus doentes substituem o seu destino miserável pelo de uma grande personagem, cuja história leram e invejaram.
"Oh! Conheço as suas objecções, Aurelle. Quando lê atentamente os amores do príncipe Bolkonsky, está certu de que é o intérprete Aurelle adido dos Lennox Highlanders; mas quando a rainha Isabel lava o soalho do meu gabinete, ignora que é Mistress Jones, mulher-a-dias de Hammersmith. Mas a incoerência não é monopólio dos loucos: todas as ideias essenciais de um homem saudável são construções irracionais mais ou menos bem alicerçadas para explicar os seus sentimentos profundos.
- Parker - perguntou o coronel -, conhece algum meio de o reduzir ao silêncio?
- Uma granada número cinco, sir - respondeu o major.
Mas o médico prosseguiu, imperturbável:
- Entre os meus doentes, tive um count gentleman
que, depois de ter sido, durante a primeira metade da vida, um modelo de devoção, se tornou subitamente ateu. Apresentava as razões mais bem elaboradas que imaginar se possa e discutia com muita erudição as questões de exegese e de doutrina; mas a única e verdadeira causa da sua conversão precipitada fora a fuga da mulher com o dergymane da aldeia. . . Oh! Perdão, padre, não me julgue mal.
- Eu? Há muito que nem o ouço - disse o padre, que fazia uma paciência.
- Do mesmo modo - prosseguiu o médico, voltando-se para o dócil Aurelle -, um homem demasiado fino para a classe em que o acaso o fez nascer é, à partida, invejoso e infeliz. Movido por estes sentimentos, constrói depois uma crítica veemente à sociedade, a fim de explicar os seus ódios e ressentimentos. Nietzsche deve o seu génio ao delírio da perseguição. Karl Marx era um perigoso maníaco. Só quando os sentimentos de descontentamento que pretendemos explicar envolvem toda uma classe ou nação, o teórico apaixonado se torna profeta ou herói; se persistir em afirmar que teria preferido nascer imperador, é internado.
- Moral da história - concluiu o major -: internem-se todos os teóricos.
- E o doutor - acrescentou o coronel.
- Não, nem todos - disse o médico -; neste ponto, pensamos como os nossos antepassados. Todos os povos primitivos admitiam que o louco era habitado por um demónio. Quando os seus propósitos incoerentes se adaptam melhor ou pior aos preconceitos morais da época, o demónio é bom e o homem é um santo. No caso contrário, o demónio é mau e o homem deve ser suprimido.
Consoante os locais, os tempos e os médicos, a sibila será
Em inglês no original: aristocrata rural. (N. da T.) Em inglês no original: pastor. (N. da Z.)
adorada como sacerdotisa ou tratada como histérica. Muitos loucos furiosos escaparam ao internamento graças à guerra e o seu furor transformou-os em hereges, em todos os parlamentos, há pelo menos cinco ou seis loucos indiscutíveis, elevados pela sua própria loucura à admiração dos concidadãos.
- Pode dizer quinhentos ou seiscentos - corrigiu o major Parker -, e será essa a primeira ideia sensata que terá proferido esta noite.
- O que acontece - disse o médico - é que, neste ponto, a minha loucura concorda com a sua.
- Doutor - perguntou o coronel -, o senhor sabe sugestionar, não é verdade? Gostaria de que acalmasse um pouco o sargento- enfermeiro. É um indivíduo nervoso que, quando lhe falo, começa a tremer e emudece. Estou convencido de que o aterrorizo. Por isso, seja boa pessoa e veja o que pode fazer.
No dia seguinte de manhã, o doutor O'Grady mandou chamar o sargento Freshwater à sua tenda e falou-lhe amigavelmente.
Freshwater, um albino magricela de olhos carregados de estupidez, confessou que perdia a cabeça quando o coronel se aproximava dele.
- Pois bem, meu caro - disse o médico -, vamos curá- lo em cinco minutos. . . Sente-se aí.
Fez alguns passes de mágica, a fim de criar um estado de espírito favorável à sugestão e, depois, começou:
-Já não tem medo do coronel. . . Sabe que é um homem como eu e o senhor. . . acredita mesmo que é divertido falar com ele. . . encara-o de perto quando ele o interroga. . . O coronel tem sempre o bigode um pouco mal aparado do lado esquerdo. . .
Durante um quarto de hora, o médico continuou a descrever os traços rudes e as manias cómicas do coronel.
Depois, despachou o sargento, anunciando-lhe que estava curado, como poderia verificar logo que se encontrasse com o chefe.
Algumas horas mais tarde, como aguardasse que lhe trouxessem o lanche, o coronel Bramble cruzou-se com o sargento-enfermeiro numa das passadeiras que permitem atravessar o campo. Freshwater deixou passar o coronel, cumprimentou-o e riu-se em silêncio.
- O que aconteceu, sargento? - perguntou o coronel, estupefacto.
-Ah! sir - respondeu Freshwater, soltando uma gargalhada. - Olhando para o senhor, não posso deixar de rir. tem um ar tão divertido.
O coronel, em escassas mas bem escolhidas palavras, destruiu inexoravelmente as sábias sugestões do médico.
Depois, sentado à frente de um prato de lagosta em conserva, cumprimentou O'Grady pelas suas curas milagrosas.
- Nunca vi - disse o padre - criaturas tão estúpidas, tão maldosas, tão malcheirosas e tão retorcidas como os médicos ingleses.
- A medicina - disse o major Parker - é uma brincadeira antiga, da qual nunca nos cansamos. . . Vejamos, doutor, seja sincero por uma vez: que sabe o senhor mais que nós sobre as doenças e os seus remédios?
- isso mesmo - disse o padre -, ataque um pouco a sua religião; ele também costuma atacar a minha.
- Quando estive na Índia - disse o coronel - o médico militar receitou-me remédios que me fizeram muito bem a todas as doenças: contra as palpitações, um cálice cheio de brande; contra as insónias, três ou quatro cálices de vinho do Porto, depois dojantar; contra as dores de estômago, uma garrafa de champanhe bem fresco a todas as refeições. E, enquanto estiver de boa saúde, uísque com soda.
- Excelente, sir - concordou Aurelle. - Antes da guerra, bebia água pura e estava sempre doente; desde que o conheci, adoptei o uísque e sinto-me muito melhor.
- É evidente - disse o coronel. - Tive um amigo, o Featherstonehaugh que, pelos quarenta anos, começou a sofrer de alucinações. Foi ao médico e este tirou-lhe o uísque, aconselhando-o a beber leite durante algum tempo. . . Well, dez dias depois o meu amigo estava morto.
- E foi bem-feito - concluiu o padre.
- Mas a explicação - disse o médico - é. . .
- Felizes aqueles que não explicam nada, padre -, pois nunca se sentirão desapontados.
- Como? Também o senhor, padre? - surpreendeu-se o médico. - Tome cuidado, se arruinar os fiéis com as suas observações maldosas, fundarei uma casa de exportação para as colónias de ídolos e grelhadores de missionários.
- Ora aí está uma excelente ideia - continuou o padre. - Comprarei acções.
A brigada, designada como reserva da divisão, recebeu ordens de acampar em H. . . Assim como um dentista lia num breve olhar a extensão de uma cárie, também os homens dos Lennox, peritos em bombardeamentos, bombardearam a aldeia como profissionais. Em redor do castelo e da igreja, era uma desgraça: casas em ruínas, pavimentos arrancados, árvores derrubadas. A fábrica de moagem era outro centro de infecção. O resto apresentava-se mais ou menos salubre, talvez um tanto deteriorado, mas habitável.
A casa destinada ao coronel Bramble como messe já tinha recebido um obus. Este explodira no jardim, partindo vidros e fendendo paredes. A proprietária, uma velha muito asseada, esforçava-se por dissimular este mal, cue lhe depreciava a casa.
- Oh! Um obus, senhor oficial! - dizia ela. - Foi um obus pequenino; tenho ali os restos, na chaminé. Coisa pouca, como pode ver. . . Claro que danificam tudo; não me assustam.
O coronel perguntou-lhe quantas vidraças se haviam partido.
Não gosto da casa - declarou o padre, quando se encontravam à mesa para o jantar.
- A vida de um soldado - disse o coronel - é uma vida dura, por vezes recheada de perigos reais.
- Não se inquiete, padre - disse o médico -, os obuses caem como gotas de água: se chover muito, molhará todo o solo.
- A messe dos Lennox sempre teve sorte - disse o major Parker.
- Ora aí está uma frase sem significado - comentou o médico.
- Bem se vê que o senhór não é jogador - observou Aurelle.
- E bem se vê que o senhor não é matemático - dise o médico.
- Como? Não tem significado? - protestou o padre. - E o pobre Taylor, morto por um obus na estação de Poperinghe, precisamente no momento em que acaba de chegar pela primeira vez à frent de batalha? Não chama a isso azar?
- Nem mais nem menos do que um velho, experimentado como eu, fosse liquidado; entre mil seiscentos e quarenta e cinco. Alguém terá de ser o último a morrer nesta guerra, mas verá que a farx íii não considerará esse facto nada natural.
- O senhor é um fanático, O'Grady - observou Parker -, pretende que tudo tenha uma explicação: há mais coisas na terra e no céu do que as que a sua filosofia conhece. Por mim, acredito nas séries de sorte e de azar por aquilo que tenho observado: Acredito nos pressentimentos, porque já tive alguns confirmados pelos acontecimentos.
' Projéctil de grande velocidade. ( N. da T.)
"Quando, depois da guerra do Transval, fui repatriado, recebi ordem de viajar num determinado barco. . .
Well, dois dias antes da partida, fui subitamente dominado pelo sentimento imperioso de que devia evitar a todo ocusto embarcar naquele navio. Declarei-me doente e aguardei mais quinze dias. O transporte que eu evitara afundou-se com pessoas e bens, e nunca ninguém soube como. Então? Porque se sente tão certo, doutor, de que a aspirina aliviará a sua dor de cabeça? Onde está a diferença?
- O major tem razão - comentou Aurelle. - Afirmar que não acredita no azar de um homem porque não o encontra na autópsia, equivale a dizer: o afinador desmontou o piano, portanto, Mozart não tinha espírito.
quartermaster, que jantava com eles naquela noite, avançou uma acha na fogueira:
- Há coisas inexplicáveis, doutor. Por exemplo, se lhe aplicar um murro na cara, o senhor fecha os olhos. porquê?
Instalou-se um breve silêncio de admiração.
Outro exemplo - acrescentou, por fim, o padre -.
Quando se verifica um silêncio numa conversa faltam ou passam sempre vinte minutos para uma hora certa. Porquê?
Mas isso é falso - respondeu o médico.
- Em todo o caso, desta vez, foi verdadeiro – disse Aurelle, que havia olhado para o relógio.
- Pode acontecer uma vez, duas vezes – concordou o médico, irritado -, mas não pode ser uma constante.
- Muito bem, doutor; muito bem, doutor - interrompeu o padre. - Faça uma verificação durante alguns dias e depois me dirá.
- Os meus homens - contou o coronel - afirmam ter observado que, se um obus cai num abrigo em que se encontram atiradores e simples soldados de infantaria, os soldados são mortos e os atiradores salvam-se. . . Porquê?
- Mas isso é falso, sir.
- E por que razão devemos evitar acender três cigarros com o mesmo fósforo?
- Mas não devemos, sir, isso não tem qualquer importância.
- Ah! Permita-me que o contradiga, doutor - manifestou-se o coronel -, não sou supersticioso; mas por nada deste mundo faria tal coisa.
- E porque é que as pessoas vestidas de verde perdem sempre em Monte Carlo? - perguntou Aurelle.
- Mas isso é falso! - gritou o médico, exasperado.
- Assim, é muito fácil discutir - disse Parker -; tudo o que contraria a sua tese é falso.
- Não há - interveio o padre - criaturas mais maldosas e mais retorcidas do que os médicos ingleses.
- Messiou - perguntou o coronel -, os atiradores do Exército francês também gozam de mais sorte?
- Tive muitas vezes ocasião de o verificar - respondeu Aurelle, que gostava muito do coronel Bramble.
O coronel exultou e tentou pôr fim à discussão, que o enfadava:
- Sinto muito - disse -; mas, esta noite, não posso ligar o gramofone; não tenho agulhas.
- É realmente uma pena - disse o padre.
As vidraças estremeceram: um potente canhão disparava ali perto de casa. Aurelle abeirou-se da janela e viu, para lá da silhueta de uma casa de quinta que se recortava em negro contra o céu cor de laranja do crepúsculo, uma coluna de fumo amarelado que se dissipava lentamente.
- Lá está de novo o velho a atacar - disse o padre -; não gosto desta casa.
- Terá de se habituar, padre; o staffca tain não nos dará outra; é um boy que sabe o que quer.
- Pois é - concordou o coronel -, he is a very good boy, too2; é um dos filhos do Lorde Bamford.
Em inglês no original: chefe do estado-maior. (N. da T. )
Em inglês no original: também é muito bom rapaz. (N. da T. )
- O pai, o velho lorde, era um bom cavaleiro - declarou Parker.
- A irmã - retomou o coronel - casou com um primo de Graham, que era major no nosso primeiro batalhão, no início da guerra, e que agora é brigadeiro-general.
Aurelle, prevendo que um tema tão apaixonante e tão rico em possibilidades de desenvolvimentos inesperados ocuparia todo o serão, tentou rabiscar alguns versos, enquanto continuava a meditar sobre o acaso e a sorte.
Tu o disseste, ó Pascal, se o nariz de Cleópatra, Tivesse sido mais pequeno. . . não estaríamos aqui.
Uma nova e terrível detonação fê-lo perder a subtil rima que tanto almejara encontrar: desiludido, tentou uma detestável rima de sabor mais popular:
Não julguem que moralizo, Se vos digo tanta tolice, É que na nossa messe analiso
Esta noite a questão do acaso. . .
Uma explosão mais próxima levou o coronel a levantar-se subitamente:
- Recomeçaram a bombardear o castelo - disse ele -; vou examinar os estragos.
O major Parker e o médico seguiram-no; mas Aurelle, entregue às suas rimas, ficou com o padre, que recomeçava a mesma paciência pela décima quarta vez naquele serão. Os três oficiais haviam percorrido cerca de cem metros, quando ouviram uma nova explosão nas suas costas.
- Não foi longe da messe - disse o médico -; vou dizer à proprietária que desça à cave.
Retrocedeu e deparou com a cratera produzida pela recente explosão do obus diante da casa. Esta nada sofrera; através da janela de vidraças quebradas, avistou o padre e chamou-o:
- Foi por um triz, desta vez, padre; all right? Onde está Aurelle?
Mas o Reverendo Mac Ivor não se moveu; com a cabeça apoiada nos braços cruzados sobre o baralho de cartas desordenado, parecia olhar vagamente para o médico, que se aproximou de um salto e tocou no ombro do padre.
O reverendo estava morto. Um estilhaço penetrara-lhe na têmpora, que sangrava suavemente. Aurelle encontrava-se caído no chão, inanimado e coberto de sangue; mas o médico, debruçando-se sobre ele, viu que respirava. Quando lhe abria o casaco e a camisa, o coronel e Parker aproximaram-se em passo cadenciado, detendo-se bruscamente à entrada da porta:
- O padre morreu - disse simplesmente o médico - Aurelle também foi atingido, mas não creio que seja grave. . . Não. . . foi o ombro. . . muito superficial.
- Olá! - resmungou o coronel, num prolongado murmúrio.
Parker ajudou O'Grady a estender o francês numa mesa; um pedaço de papel rabiscado despertou a atenção do coronel, que o apanhou do chão e leu com dificuldade:
Porque nãofechas os olhos Quando me beijas a boca?
- What is it all about' - perguntou.
- A Aurelle - respondeu o médico.
O coronel dobrou com cuidado a folhinha de papel e guardou-a respeitosamente na algibeira dojovem francês. Depois, quando o médico terminou o curativo e mandava chamar uma ambulância, deitaram o padre na pobre cama da proprietária. De cabeças descobertas, mantiveram-se
Em inglés no original: - A quem se refere isto? (N. da T.)
demoradamente em silêncio, contemplando o rosto do velho homem- criança, que adquirira uma singular serenidade.
O médico olhou para o relógio: eram nove horas e vinte minutos.
Para acabar de convalescer, depois de sair do hospital, Aurelle foi colocado como adido do coronel inglês Musgrave que, em Estrées, pequena cidade localizada bem na retaguarda das linhas, comandava um serviço de abastecimento. Sentia a falta dos serões na messe dos Lennox, mas a compra do feno e da lenha levavam-no a dar longos passeios pelos belos campos ondulados, entrecortados por límpidos regatos, e Aurelle gostava de Estrées, que ocultava no fundo de uma corola de colinas floridas os inúmeros estames dos seus campanários.
Era um burgo muito antigo que outrora, no tempo dos senhores de Estrées, desempenhara um papel importante no comércio da França. Durante algumas centenas de anos, defendera das tropas dos reis de Inglaterra as muralhas sobre as quais agora via acampar esses mesmos soldados, recebidos como hóspedes familiares e corteses. Os tenazes burgueses da cidade haviam repelido com algum sucesso os membros da Liga e os Espanhóis. Hoje, adormecida numa sorridente velhice, tendo assistido a acontecimentos bastantes para já nada a surpreender, guardava das épocas de glória um escrínio de belos palacetes construídos entre quintais ejardins, com a nobre simplicidade das linhas dos bons velhos tempos.
O coronel Musgrave habitava, com os seus oficiais, a vastíssima e graciosa casa do comerciante holandês Van Mopez, que Colbert havia estabelecido em Estrées para aí introduzir a arte de tecer e tingir. Ao entardecer, Aurelle gostava de se sentar num dos bancos do jardim à francesa, lendo uma história de Estrées, escrita por Jean Valines, membro correspondente da Academia de Amiens e autor das Novas Observações sobre os Milagres da Capela de Estrées.
Nesta excelente obra encontrava Aurelle relatos sobre o grande entusiasmo e as festas insignes com que Estrées, a Fiel, recebera durante séculos os seus reis, quando estes vinham à Capela de S. Ferréol ajoelhar-se aos pés da imagem milagrosa aí venerada.
Atentos magistrados municipais conservavam cuidadosamente, após as visitas reais, os panos brancos e azuis com a flor- de-lis bordada, os cenários de cartão pintado e os estrados de madeira nos quais, por ocasião da passagem de Garlos VIII, formosas jovens seminuas haviam espremido o leite dos seus seios sobre uma criança que representava o Delfim.
A Revolução viera perturbar a economia destes acordos domésticos: foi preciso arrancar as flores- de-lis e orlar com uma franja vermelha os panos azuis e brancos. Assim, pôde-se enfeitar com pouco dispêndio a Praça S. Ferréol para a festa do Ser Supremo. Aurelle apreciava este relato:
O cortejo, precedido de música e tambores, principiava com um pelotão da Guarda Nacional que empunhava um estandarte no qual se lia: O povo está de pé e esmaga os tiranos. "
Seguiam-se as mães de família transportando nos braços os mais tenros rebentos; crianças dos dois sexos ornamentadas com os mais belos enfeites da infância: a ino cência e a candura; raparigas ostentando encanto e virtude, e os membros da sociedade, tão temida pelos senhores, que reunia no seu seio os defensores da verdade, os apoiantes da opinião pública e os incansáveis vigilantes dos inimigos do povo.
Todo este cortejo se reuniu no sopé da montanha que se ergue da Praça S. Ferréol. Aí, o povo de Estrées jurou fidelidade às leis da natureza e da humanidade e, no mesmo instante, um grupo representando o Despotismo foi devorado pelas chamas; a Sabedoria pareceu emergir das cinzas e, na sua égide, podia ler-se: "Velo pela República. "
Aurelle voltou algumas páginas, muito poucas, pois jean Valines afirmava que "a abençoada esterilidade dos arquivos de Estrées durante a Revolução não oferece poucos factos dignos de atenção para além de duas festas, um incêndio e uma inundação", seguindo-se imediatamente a visita do primeiro-cônsul. Este veio a Estrées, acompanhado pela mulher e por vários oficiais generais, foi recebido pelas autoridades sob o arco do triunfo erigido na Porta S. Ferréol, e no qual se podia ler a seguinte inscrição: "Os fiéis habitantes desta cidade juram ao vereador de Marengo fidelidade e reconhecimento."
"O presidente do Município ofereceu as chaves da cidade numa salva de prata coberta de louros. Toco-as, cidadão presidente do Município, e devolvo-as - respondeu Bonaparte.
A Guarda Nacional abriu alas à sua passagem e não se ouviram senão os gritos de "Viva Bonaparte! Viva o primeiro-cônsul!", mil vezes repetidos entusiasticamente. O primeiro-cônsul visitou a manufactura Van Mopez e mandou distribuir o óbolo correspondente a um dia de trabalho por todos os operários. O dia terminou com a iluminação geral e um baile esplendoroso.
Pouco tempo depois de casar com Maria Luísa, Napoleão voltou acompanhado pela imperatriz. A Praça Ferréol, ornamentada com tapeçarias vermelhas e brancas e grinaldas de verdura, apresentava-se magnífica. Haviam erigido um arco triunfal no qual se lia: "Auisto Napoleoni August2eque Mari e Luidovic e StrataIla semper fidelis. "
Mais tarde, quando Napoleão passou pela cidade, erigiu-se um arco trinfal e o presidente ofereceu-lhe as chaves da cidade, ao que Napoleão replicou: "senhor presidennte, aceito as flores e devolvo as chaves. " Nesse momento, os marinheiros e os carregadores destrelaram os cavalos da viatura e entraram na cidade arrastando-a. A exaltação da multidão era tal que não pode descrever-se. Todas as casas ostentavam colchas brancas e azuis enfeitadas com grinaldas, emblemas e bandeiras brancas com a flor-de-lis.
O rei assistiu ao Te Deum, cantado em S. Ferréol e, em seguida, sempre conduzido pelos marinheiros, dirigiu-se à Abadia de S. Pedro, onde os seus aposentos haviam sido preparados.
Caía a noite lentamente; as letras gordas do velho livro começavam a tornar-se indistintas; mas Aurelle queria saborear até ao fim a história melancólica deste povo inconstante; passando pela entrada triunfal de Carlos X, seguiam-se as jornadas de Julho:
A 29 de Julho de 1830, faltaram os jornais; mas as cartas e alguns viajantes vindos de Paris anunciaram que a bandeira tricolor havia sido içada nas torres de Notre-Dame. Alguns dias mais tarde, soube-se que os combates haviam cessado e que a heróica população da capital permanecia senhora de todos os postos.
Acompanhado pelos duques de Orleães e de Nemours, Luís Filipe passou pouco depois por Estrées, a caminho de Lille. Foi recebido sob o arco triunfal pelo presidente do Município e por toda a assembleia municipal. Todas as casas se encontravam engalanadas com tapeçarias tricolores. Uma multidão imensa lançava para o ar as suas aclamações. O rei dirigiu-se para a Praça S. Ferréol, onde o esperavam a Guarda Nacional e várias companhias de aduaneiros.
Os diversos corpos da guarda urbana em traje festivo; disparidade das guardas rurais, em cujas fileiras figurava um grande número de velhos soldados de Napoleão com os seus antigos uniformes; os intrépidos marinheiros e Gayeux, transportando em triunfo dez velhas bandeiras tricolores de prémios de pesca; os marinheiros dos tachos, de carabina a tiracolo e sabre em punho, formavam o quadro mais animado, e esta festa pitoresca impressionou vivamente o rei e os oficiais do seu estado.
E assim terminava o livro de Jean Valines; mas Aurel, contemplando o crepúsculo que lentamente inundava o jardim, entreteve-se a imaginar a continuação: a visita de Lamartine, com certeza, mas também a de Napoleão III, os arcos triunfais e as inscrições, e mais recentemente talvez Carnot ou Fallières recebendo o presidente do Município, na Praça S. Ferréol, a certeza da inalterável dedicação às instituições republicanas das fiéis populações de Estrées. Depois, o futuro: chefes desconhecidos; talvez as tapeçarias fossem vermelhas, ou azuis; até ao ponto a que a cegueira de um qualquer deus calque aos pés este venerável formigueiro humano.
"E, pensava Aurelle, "o entusiasmo é sempre sincero, osjuramentos sempre leais, e os honrados comerciantes sempre felizes por verem passar à porta das suas velhas lojas estes novos soberanos que nunca escolheram. Abençoada provincia! Aceitas docilmente os impérios que Paris gera entre dores e a queda de um regime, para ti, não altera senão as palavras de um discurso ou as flores de uma bandeja de prata. . . Se o doutor O'Grady aqui estivesse, recitar- me-ia o Eclesiastes. "
Aurelle tentou recordar- se:
Que vantagem retira o homem de todo o trabalho que realiza à luz do dia?
Uma geração passa e outra se segue, mas a terra permanece sempre igualmente firme.
O que foi, será; o que foi feito, far-se-á e não há nada de novo neste mundo. . . "
- Aurelle - disse o coronel Musgrave, que se aproximara sem fazer ruído -, se quiser ver o bombardeamento, depois do jantar, suba ao terraço. O céu está todo iluminado. . . atacaremos amanhã de manhã.
Na verdade, um ribombar longínquo e surdo pairava no ar calmo da noite. Um carrilhão melancólico e cinco vezes centenário tocava na torre espanhola da grande praça. As primeiras estrelas surgiam por cima dos dois irónicos campanários da Igreja de S. Ferréol, enquantoa velha e altiva cidade adormecia ao som familiar dos combates.
O jardim de roincia dorme na noite tépida; Um violino de criança toca O meu bom tabaco"; Os sinos repicam suavemente; podemos ouvir vibrar ao longe o ruido surdo dos combates.
Uma estrela brilha no céu cinzento;
Uma árvore com ramos traça no vento Um esboço japonês que a Lua terniina;
Uma voz canta; um cão ladra; a sombra estremece.
A vida parece tão calma neste vale suave
Que se o homem afinal não tivesse memória, Numa noite assim tranquila quase poderia crer Que neste mundo falso é obra de um Deus bom.
Porém, para lá daquelas colinas ondulantes E debaixo do mesmo céu de ilusória paz, A poucas léguas daqui, nesta bela noite tranquila, Abrem-se aos vivos as portas do inferno.
O coronel Musgrave, que tomava café no nobre salão do comerciante Van Mopez, abriu o telegrama oficial cor-de-rosa e leu:
"Director dos Abastecimentos ao coronel Musgrave.
Depósito indiano de Marselha superlotado. Seguem comboio especial mil cabras, igualmente pastores indígenas, procurem alojamento conveniente e organizem quinta provisória. "
- Malditas cabras! - vociferou o coronel Musgrave. Encarregado de alimentar os australianos, considerava injusto ser ainda obrigado a sofrer as consequências das leis religiosas dos Hindus. Mas nada perturbava por muito tempo o coronel Musgrave: mandou chamar o intérprete.
- Aurelle - disse-lhe - esta tarde deverão chegar mil cabras: pegue no meu carro e vá por esses campos, em busca de um terreno conveniente e de guarida para os pastores; preciso de tudo isto às cinco horas. Se o proprietário se recusar a alugar, requisite. Have a cigar? Good bye
Em inglês no original: Tem um charuto? Até logo. (N. da T.)
Posta de lado a primeira preocupação, voltou-se para o seu ajudante:
- Agora - declarou ele -, preciso de um oficial para comandar as cabras! Excelente ocasião para nos livrarmos do capitão Gassell, que chegou ontem. "Capitão!", perguntei-lhe, "que fazia em tempo de paz?" "Crítico musical no Morning Leader!"
E foi assim que o capitão Gassell, crítico musical, foi promovido a cabreiro-chefe. Aurelle descobriu uma camponesa cujo marido fora mobilizado. Conseguiu persuadi-la, à custa de uma grande eloquência, de que a presença de mil cabras no seu pomar de macieiras seria para ela uma fonte de prosperidade. À tarde, na companhia de Gassell, foi à estação buscar as cabras; no regresso, atravessaram a cidade à frente deste pitoresco rebanho, enquadrado por velhos indianos, imagem dos pastores bíblicos.
O coronel Musgrave ordenara a Gassell que lhe despachasse cem cabras por dia para a frente. Ao quarto dia, Gassell enviou uma breve nota por um dos filhos da camponesa, anunciando, como facto perfeitamente natural, que o rebanho se esgotaria no dia seguinte, pelo que solicitava novo contingente de cabras.
Ao abrir esta inverosímil missiva, o coronel sentiu-se de tal modo sufocado que se esqueceu de proclamar, segundo os ritos, que Gassell era um rematado louco. Os números eram demasiado simples para que fosse possível algum engano. Gassel recebera mil cabras, expedira quatrocentas, ainda lhe deviam restar seiscentas.
O coronel mandou vir a viatura e ordenou a Aurelle que o conduzisse à quinta. Percorreram uma encantadora estrada interior. As casas rústicas, de construção sólida, datavam dos fins do século XVIII.
- É um lindo trajecto - disse o intérprete, orgulhoso da sua descoberta.
- Onde está esse desgraçado Gassell? - perguntou o coronel.
Encontraram-no na cozinha, aprendendo francês com a filha da camponesa. Levantou-se com a cortesia simples de um fidalgo rural, a quem os amigos citadinos vêm surpreender no seu eremitério.
- Olá, coronel! - cumprimentou. - Sinto-me muito contente por o ver.
O coronel foi direito ao assunto:
- Que papel foi aquele que me enviou esta manhã? Recebeu mil cabras, expediu-me quatrocentas. Mostre-me as outras.
O terreno por detrás da quinta descia em declive suave até atingir um vale frondoso, todo ele plantado de macieiras. Junto de um estábulo, deitados na lama, os pastores hindus gozavam antecipadamente os prazeres da ociosidade. Um odor atroz subia do vale e, como se aproximasse, o coronel avistou uma centena de cabras mortas, que entravam em decomposição, de ventre inchado, e que haviam sido lançadas ao acaso para a pradaria. Alguns cabritos magros mascavam tristemente a casca das macieiras. Ao longe, dispersas pelo bosque que cobria a outra encosta que subia do vale, cabras fugitivas roíam tenros arbustos. Perante este triste espectáculo, Aurelle lamentou o infeliz Gassell.
O coronel mantinha um silêncio hostil e temível.
- Não é linda, coronel - perguntou o crítico musical, na sua voz suave e fina -, toda esta verdura salpicada de pequenas manchas brancas?
- Não seria possível - sugeriu Aurelle, durante a viagem de regresso - pedir a opinião de um homem competente? Provavelmente, as cabras não suportam dormir ao ar livre nestes países húmidos. E talvez também não tenham tido uma alimentação conveniente.
O coronel franziu o sobrolho.
- Durante a guerra da África do Sul - disse ele, após um silêncio -, servíamo-nos de bois para o nosso próprio transporte. Um dia, os malditos bois começaram a morrer às centenas, sem sabermos por que razão. Grande agitação no estado-maior. Um general, muito naturalmente, procurou um perito. Este, depois de massacrar o exército com perguntas, acabou por declarar que os bois tinham frio. Observara a mesma doença no Norte da Índia; os animais deviam ser protegidos com uma vestimenta especial. Repare-se que qualquer indivíduo normal, dotado de senso comum, poderia concluir que os bois andavam pura e simplesmente extenuados. Mas o relatório, seguindo os trâmites habituais, chegou ao estado-maior general, o qual telegrafou para a Índia, a fim de encomendar alguns milhares de capas para as vacas.
"Até aqui, passou-se tudo bem; os bois continuavam a morrer; ao perito, bem pago, corria-lhe bem a vida. Para este, as coisas só se estragaram quando chegaram as capas. É muito fácil colocar uma capa sobre uma vaca indiana que aguarda, docilmente, de cabeça baixa. Mas tratando-se de um touro africano. . . experimentem e depois me dirão. Após algumas tentativas, os nossos condutores recusaram-se a prosseguir. Mandámos vir o perito e dissemos-lhe: "O senhor pediu capas para as vacas; aqui as tem. Mostre-nos como vesti-las. " O perito teve a sorte danada de resolver o problema com seis meses de hospital.
Mas, nesse mesmo dia, à noite, chegou um novo telegrama cor-de-rosa para o director dos Abastecimentos:
"Cabras chegam à frente meio mortas. Favor tomar medidas para que os animais conservem algum gosto pela vida. "
Então, o coronel Musgrave decidiu telefonar para Marselha solicitando um perito em cabras.
O perito apresentou-se dois dias volvidos. Era um corpulento agricultor do Sul, sargento territorial. Por intermédio de Aurelle, manteve uma longa conversa com o coronel.
- Há uma coisa no mundo - disse ele - que as cabras não dispensam: é o calor. Urge construir-lhes abrigos de tábuas, muito baixos, sem aberturas, deixá-las chafurdar nos seus excrementos e, então, sentir-se-ão felizes.
Logo que o coronel se ausentou, o perito disse ao intérprete:
- Sabes, eu não quero saber das cabras para nada! No Sul, vivem ao ar livre e gozam de tanta saúde como eu ou tu. Mas falemos de coisas sérias. Não poderias conseguir que os teus ingleses me contratassem para me ocupar dos seus animais, hem?
Haviam começado a construir os abrigos descritos pelo homem do Sul, quando o corpo indiano escreveu ao coronel Musgrave anunciando que em breve lhe seria enviado um perito britânico recentemente descoberto.
O novo áugure era oficial de artilharia, mas a sua vida era preenchida por cabras. Aurelle, que passeou muito com ele, pôde verificar que observava a natureza colocando-se no ponto de vista de uma cabra. Uma catedral gótica era, para ele, um abrigo medíocre para cabras: faltar- lhes-ia o ar; mas este inconveniente poderia ser remediado quebrando os vitrais.
O seu primeiro conselho foi misturar melaço ao feno fornecido aos animais. Deste modo, engordariam e curar-se-iam dessa refinada melancolia de que se queixava o corpo indiano. Assim, distribuíram-se pelos pastores hindus grandes jarros de melaço. As cabras continuaram magras e tristes; mas os pastores engordaram. Estes resultados surpreenderam o perito.
Em seguida, examinaram-se os planos dos abrigos; o homem mostrou-se consternado.
- Se há uma coisa no mundo - disse ele - que as cabras não podem dispensar, é o ar. Precisam de estábulos muito altos e bem arejados!
O coronel Musgrave não perguntou mais nada. Agradeceu-lhe com uma extrema cortesia, e mandou chamar Aurelle.
- Ouça-me bem - disse ele. - Conhece o tenente Honeysucle, o perito em cabras? Well, não quero voltar a vê-lo. Ordeno-lhe que procure, com ele, uma nova quinta; mas proíbo-lhe que a encontre. Se puder afogá-lo, esmagá-lo debaixo da minha viatura, convencer as cabras a devorá-lo, recomendá-lo-ei para a cruz de guerra. Se o homem voltar a aparecer aqui antes que os meus abrigos estejam terminados, mandá-lo-ei fuzilar a si. Desapareça.
Oito dias volvidos, o tenente Honeysuckle partia uma perna, ao cair do cavalo no pátio de uma quinta. O territorial de Marselha regressou à sua unidade. Quanto às cabras, um belo dia deixaram de morrer, e nunca ninguém soube porquê.
Uma manhã, Aurelle, vendo entrar no seu gabinete um oficial do estado- maior inglês, de boné debruado a vermelho e de pala dourada, teve a alegre surpresa de reconhecer o major Parker.
Olá, sir! Sinto um enorme prazer por voltar a vê-lo! Mas o senhor não me deu a notícia. . . - disse ele apontando para as insígnias do poder ditatorial.
Well - respondeu o major -, anunciei-lhe por carta que o coronel Bramble fora nomeado general. Neste momento, comanda a nossa antiga brigada e eu sou o seu major. Regresso agora da base, onde fui inspeccionar os nossos reforços e o general recomendou-me que, de caminho, o viesse convidar para o lanche. Estará de volta tarde; o seu coronel não vê nenhum inconveniente. "Neste momento, estamos acantonados - acrescentou ele - perto da aldeia em que o padre foi morto: o general pensou que o senhor talvez gostasse de visitar a sua aldeia.
Duas horas mais tarde, aproximavam-se da frente e Aurelle reencontrava paisagens familiares: a pequena cidade inglesa e militar, com um polícia de mãos a abanar
Em inglês no original: major de brigada. (N. da T.)
em cada esquina; o antigo burgo recentemente bombardeado e onde começam a despontar as vigas descobertas dos telhados; a estrada onde se avista de longe em longe a boina de um homem, carregado como uma mula e depois, subitamente, a aldeia esquemática desenhada pelo canhão; as tabuletas: "Thás road is under obseruation" e logo de seguida uma bateria troando do meio de uma moita bem camuflada.
Mas o major Parker, que presenciava coisas destas todos os dias nos últimos três anos, discorria sobre um dos seus temas favoritos.
- O soldado, Aurelle, é sempre enganado pelo comerciante e pelo político. A Inglaterra é capaz de pagar dez mil libras por ano a um advogado ou a um banqueiro; mas quando depara com esplêndidos jovens como eu, que lhe conquistaram impérios e lhos conservam, paga-lhes apenas o suficiente para alimentarem os seus póneis de pólo. E é se for.
- Acontece o mesmo em França - observou Aurelle.
Mas a viatura deteve-se bruscamente na praça da igreja de uma aldeia de pesadelo, e Aurelle reconheceu H.
- Pobre aldeia, como mudou! - exclamou ele.
A igreja, envergonhada, deixava agora ver a sua nave profanada; as raras casas ainda de pé não passavam de dois triângulos de pedra olhando-se tristemente; e o grande edificio da fiação, atingido por um obus no terceiro andar, curvara-se como um choupo à passagem de um tufão.
- Queira seguir-me - disse o major -; tivemos de instalar o Q. G. fora da aldeia, que se tornou inabitável. . . Caminhe a vinte passos de mim: o balão de observação está no ar, é inútil apontarmos-lhe o caminho.
Aurelle seguiu durante um quarto de hora através da mata e, de repente, deu de caras com o general Bramble
Em inglês no original: Estrada em observação. (N. da T.)
que, de pé à entrada de um abrigo, observava um avião suspeito.
- Ah! Messiou! - exclamou ele -. Foi bom ter vindo. - E o seu rosto rude e vivamente colorido abriu-se num sorriso bondoso. - Faremos um lanche como antigamente - retomou ele, depois de Aurelle o felicitar. . . . Mandei o intérprete com o staffca tain. Pois é verdade, messiou, temos outro intérprete. . . Pensei que não seria agradável para si encontrar outra pessoa no seu lugar. Mas ele não o substituiu realmente, messiou. . . E também telefonei para os Lennox, pedindo ao médico que viesse almoçar connosco.
Mandou-os entrar para a messe e forneceu ao major alguns pormenores:
- Nada de importante: causaram alguns estragos na primeira linha a este. Dezassete A. . . Sofremos um pequeno strafe ontem à noite. A divisão precisava de um prisioneiro para identificar a rendição boche. . . Sim, sim, está tudo all right. . . Os Lennox foram buscá-lo. Vi o homem mas ainda não recebi o relatório escrito.
- Como, desde ontem à noite? - surpreendeu-se Parker. - Estão assim tão ocupados?
- Como sabe, messiou - explicou o general -, já não vivemos nos bons velhos tempos. Parker já não amaldiçoa os bonés dourados. Neste momento, decerto será ele o amaldiçoado no pequeno bosque que vê ali adiante.
É verdade - comentou Parker - que é preciso fazer parte de um estado-maior para compreender a importância do trabalho aí realizado. O estado-maior é verdadeiramente um cérebro sem o qual não seria possível qualquer acção dos batalhões.
Como vê, messiou - disse o general Bramble - Não é a mesma coisa, nunca mais será a mesma coisa. Não estará cá o padre para nos falar da Escócia e amaldiçoar os bispos. E já não tenho o meu gramofone, messiou.
Em inglês no original: revés. (N. da T.)
deixei-o no regimento com todos os meus discos. A vida de soldado é muito dura, messiou; mas tínhamos uma messe muito agradável nos Lennox, não é verdade?
O médico surgiu à entrada da tenda:
- Entre, O Grady, entre. . . Vem atrasado; não há criatura mais maldosa nem mais retorcida do que o senhor.
O lanche foi quase igual aos dos bons velhos tempos (naquela guerra, que já então perdera a frescura da juventude, podia realmente falar-se de bons velhos tempos). As ordenanças trouxeram batatas cozidas e carneiro com molho de hortelã- pimenta e Aurelle manteve com o médico uma pequena conversa amigável.
- Quando pensa que terminará a guerra, Aurelle?perguntou o médico.
- Quando a vencermos - interrompeu o general. Mas o médico quis falar da Sociedade das Nações: não acreditava na última guerra.
- É uma lei praticamente constante da humanidade disse ele -: os homens passam metade da vida a guerrear-se. Um francês chamado Lapouge calculou que, entre o ano mil e cem e o ano mil e quinhentos, a Inglaterra passou duzentos e sete anos em guerra; e duzentos e doze anos entre mil e quinhentos e mil e novecentos. Quanto à França, os números correspondentes seriam cento e noventa e dois e cento e oitenta e um.
- Interessante - disse o general.
- Segundo o mesmo Lapouge, morrem na guerra dezanove milhões de homens por século. O seu sangue en cheria três milhões de pipas de cento e oitenta litros e poderia alimentar uma fonte sangrenta de setecentos litros por hora desde a origem da História.
- Hough! - exclamou o general.
- Nada disso prova, doutor - disse Aurelle -, que a fonte continue a correr. O crime foi uma instituição mundial durante centenas de séculos e, todavia, fundaram-se os tribunais.
- O crime - disse o médico - não parece, de modo nenhum, ter sido uma instituição venerada pelos primitivos. Caim, se não me engano, teve problemas com ajustiça do seu país. Além disso, os tribunais não suprimiram os assassínios. Punem-nos, o que não é a mesma coisa. O tribunal civil da humanidade poderá resolver um certo número de conflitos internacionais; mas haverá sempre guerras passionais.
- Leu a Grande Ilusão? - perguntou Aurelle.
- Li - respondeu o major -, é um livro falso. Pretende demonstrar que a guerra é inútil, porque não rende. Bem o sabemos; mas quem é que se bate para obter algum lucro? A Inglaterra não tomou parte nesta guerra para conquistar, mas para defender a sua honra. Quanto a acreditar que as democracias serão pacíficas, é uma ingenuidade. Uma nação digna deste nome é ainda mais susceptível do que um monarca. A era dos reis foi a idade do ouro, precedendo a idade do bronze dos povos.
- Uma verdadeira discussão de antigamente - disse o general. - Ambos têm razão, ambos estão enganados. Assim é que está bem! Agora, doutor, conte-me a história da sua licença e sentir-me-ei perfeitamente feliz.
Depois do almoço, dirigiram-se os quatro para a campa do padre, que se encontrava num pequeno cemitério, rodeado de ervas altas, entrecortadas, aqui e ali, por crateras recentemente escavadas por obuses. O padre repousava entre dois tenentes de vinte anos: acianos e plantas silvestres haviam estendido sobre as três campas o mesmo manto vivo.
- Depois da guerra - disse o general Bramble -, se ainda pertencer a este mundo, mandarei gravar uma lápide: "Aqui jaz um soldado e um sportsman." O padre ficará satisfeito.
Os outros três presentes mantiveram-se em silêncio, compartilhando uma emoção grave e generosa. Aurelle ouvia inexoravelmente, no ar atordoador do Verão, os acordes da Valsa do Destino e revia o padre, quando partia a cavalo com as algibeiras cheias de livros de cânticos e de cigarros para os homens. O médico meditava: "Sempre que estiverdes reunidos, estarei convosco. . . Que fórmula profunda e verdadeira! E como a religião dos mortos é ainda. . . "
- Vamos - disse o general -, são horas: o balão de observação dos boches está no ar e nós somos quatro. É de mais: eles toleram dois, mas não devemos abusar da sua cortesia. Vou prosseguir até às trincheiras. O senhor, Parker, acompanhará Aurelle, e se também quiser ir, doutor, direi ao seu coronel que lhe deixe uma tarde de folga.
Os três amigos deslizaram suavemente através da planície silenciosa que, alguns meses atrás, era ainda o formidável campo de batalha do Somme. A perder de vista, estendia-se todo um dorso suavemente ondulado, coberto de abundante erva daninha, salpicado de montículos de troncos mutilados, assinalando famosas fogueiras, e de milhões de papoilas que conferiam a estes prados desertos um caloroso reflexo acobreado. Algumas roseiras teimosas, desabrochando em lindas rosas, sobreviviam neste descampado sob o qual repousava uma multidão de mortos. De onde em onde, tabuletas pintadas, como as que se vêem nos cais das estações, recordavam aldeias outrora desconhecidas, mas cujos nomes soam hoje como os de Maratona ou Rívoli: Gontalmaison, Martinpuich, Thiepval.
- Espero - disse Aurelle, que olhava para as inúmeras cruzes, ora agrupadas em cemitérios, ora dispersas -, espero que consagrem a estes mortos a terra que recon quistaram e que este país permaneça um imenso cemitério onde as crianças aprendam o culto dos heróis.
- Que ideia! - exclamou o médico. - As campas serão com certeza respeitadas; mas, à sua volta, far-se-ão, dentro de dois anos, boas colheitas. Esta terra é demasiado rica para se manter viúva: vejam esta magnífica floração emergindo de crateras ainda mal cicatrizadas.
Na verdade, um pouco mais adiante, algumas aldeias pareciam retomar o gosto pela vida própria dos convalescentes. Montras carregadas de produtos ingleses, em pacotes de cores garridas, alegravam prédios em ruínas.
Depois, como atravessassem uma povoação com casas de estilo espanhol:
- Este país é de facto maravilhoso - disse ainda o
médico -, todos os povos da Europa o tentaram conquistar; mas ele venceu sempre o invasor.
- Fazendo um desvio - disse Parker -, poderíamos ver o campo de batalha de Grécy, o que muito me interessaria. Creio que não nos censura, Aurelle, por termos vencido Filipe de Valois? A vossa história militar é de masiado gloriosa para dar lugar a ressentimentos tão antigos.
- Os meus rancores mais profundos não duram seiscentos anos - respondeu Aurelle. - Grécy foi um desafio honrosamente disputado: podemos apertar as mãos.
O motorista recebeu ordens de curvar para oeste e chegaram ao campo de Grécy pela mesma estrada no vale que havia percorrido o exército de Filipe.
- Os ingleses - disse Parker - encontravam-se dispostos na colina que vemos à nossa frente, a direita voltada para Grécy, a esquerda para Vadicourt, aquela aldeiazinha ali adiante. Eram cerca de trinta mil; havia cem mil franceses. Estes surgiram cerca das três horas da tarde tendo-se desencadeado nesse mesmo instante uma violenta tempestade.
- Quer-me parecer - comentou o médico -, que já então o céu se divertia a regar as ofensivas.
Parker explicou a disposição dos dois exércitos e os acasos da batalha. Aurelle, desatento, admirava o bosque, a calma das aldeias, o tapete amarelado que cobria as terras e imaginava um formigueiro formado por homens e cavalos, tomando de assalto aquela tranquila colina.
. . . Depois - concluiu o major -, quando o rei de França e o seu exército abandonou o campo de batalha, Eduardo convidou os principais chefes militares parajantar, e todos comeram e beberam alegremente em honra da grande aventura vivida.
- Como era já bem inglês - interrompeu Aurelle -, esse convite para a messe do rei.
- Depois - prosseguiu Parker -, pediu a Renaud de Ghehoben que levasse consigo todos os cavaleiros e administrativos que entendessem de heráldica. . .
- As unidades - disse o médico - deverão fornecer ao Q. G. de Sua Majestade, até hoje à noite, uma lista dos barões diplomados em heráldica.
. . . e ordenou-lhes que contassem os mortos e apontassem os nomes dos cavaleiros que pudessem reconhecer.
O ajudante-general elaborará uma relação numérica dos senhores mortos, indicando a sua patente - completou o médico.
. Renaud descobriu onze príncipes, trezentos cavaleiros e dezasseis mil peões.
Sob um sol escaldante, corriam nuvens negras e densas; para lá da colina, avolumava-se a tormenta. Pelo vale dos escriturários de Renaud, treparam até ao planalto, e Parker procurou a torre do cimo da qual Eduardo observara a batalha.
-Julguei - disse ele -, que tivesse sido transformada num moinho; mas não vislumbro nenhum moinho no horizonte.
Aurelle, avistando alguns velhos camponeses que ceifavam um campo vizinho, ajudados por crianças, aproximou-se deles e perguntou-lhes onde se encontrava a torre:
- A torre? Não há nenhuma torre por aqui - respondeu um dos velhos, - e moinho também não.
- Talvez estejamos enganados - disse o major. Pergunte-lhe se foi aqui que teve lugar a batalha?
- A batalha? - admirou-se o velho -. . . Que batalha?
E a gente de Grécy pôs-se a atar em feixes bem aparados o trigo daquela terra invencível.
André Maurois
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