Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS SINAIS DO MEDO
FLÁVIA
Plantava rosas.
Adorava rosas.
Ajudava-as a crescer para depois lhes cortar a cabeça.
Era assim a minha mãe, de quem me lembro especialmente nesta altura do ano por ser a época em que estava mais presente e durante mais tempo em casa. Ela e o meu pai. Faziam sempre um intervalo nas suas intermináveis viagens, no tempo em que, entre a partida e o regresso, as árvores do jardim podiam mudar de cor. Mas sempre que as estadas entre nós se prolongavam pela Primavera fora, era bom senti-la tratar-nos com o mesmo empenho com que tratava das flores, embora mais à distância.
Assim fomos crescendo, sem licença para murchar enquanto ela e o meu pai estivessem presentes.
De então para cá, depois de tantos anos em que nos perdemos na imensidão dos tempos, é quando as salas se enfeitam de Natal que a memória deles é mais viva. Mesmo sendo esta sala tão diferente da que tínhamos e de mais umas por onde passei sempre atrelada à minha sobrinha Rosarinho. Não é que sinta saudades. A bem dizer até gosto de acompanhar as modas, as novas decorações, estes quadros e esculturas mais modernaços que ela colecciona. São uma boa companhia, bem mais inspiradora do que um grupo interminável e sinistro de velhos antepassados enjoativos que me estavam destinados como vizinhança.
Tive sorte em ficar com esta minha sobrinha ou, mais precisamente, em ela ter ficado comigo, em vez de me ter mantido na casa dos meus pais a assistir à decadência do que outrora parecia não ter margem para ruir.
Comecei cedo a suspeitar da impermanência das coisas, suspeita latejante que acabou por se instalar de vez. A casa é hoje uma sombra do que foi, a Quinta já perdeu uma fatia a bem duma estrada, as alamedas despiram-se das hortênsias, o tanque de rega deu lugar a uma piscina que se cobre de folhagem no Inverno, e do alto da encosta avista-se um centro comercial, coisa em grande mas aberrante, dizem, que eu nunca cheguei a conhecer mas gostava.
Até o lago, palácio subterrâneo de cristal e diamantes donde surgiam as fadas, ninfas e bruxas nas histórias da nossa infância, temível por atrair os humanos para as suas profundezas, se deixou secar, depois de ter engolido uma das minhas primas mais velhas. Uma história misteriosa, daquelas que existem em muitas famílias, um enigma que nunca nos foi desvendado.
Há segredos que morrem com as pessoas e jamais transpiram para fora, outros há que deixam uma aura de mistério e suspeição à sua volta.
Lá dentro mantêm-se alguns móveis e pinturas da escola florentina que resistiram a partilhas e a momentos de aperto, retratos a óleo de familiares, um ou outro tapete de Tabriz e alguns fauteuils cambados, de estofos em damasco já ruço, conhecedores de rabos e devaneios de gerações de sensualidade esquiva e reprimida.
Por lá se conservaram também, entre outras relíquias familiares, parte das colecções de cães em bronze e porcelanas da China que estavam para o meu pai como as flores para a minha mãe, vários candelabros e imensas peças em prata teimosamente inalteráveis como o espírito arcaico que ainda impera na família em luta permanente contra a mudança, incluindo a das mentalidades. De nada serviram os esforços dos poucos dissidentes mais arrojados que se atreveram a fazer-lhes frente. Foram banidos e esquecidos.
O tio Antoninho, irmão da minha mãe, abandonou a carreira eclesiástica para se fixar em Paris com uma cantora de ópera de nome Lucrécia Maria Santorini, que os meus avós se recusaram terminantemente a conhecer. Ela era medonha, mas dotada duma personalidade estrambótica e bizarra que deu a volta à cabeça do tio Antoninho e o fez livrar-se do seminário para onde tinha sido empurrado. Abençoada!
A minha irmã Conceição rompeu o noivado porque se apaixonou por um professor de piano com ideais comunistas, que ficou conhecido na família pelo "escova de aço" graças ao carácter indomável do seu cabelo, e acabou por ser afastada não só da família como do país. Apesar da desilusão que sofreram por se verem trocados por meia dúzia de princípios, de cujo valor eu já na altura duvidava em silêncio, não devem ter sido tão infelizes como aqueles que nunca puderam manifestar os verdadeiros sentimentos ou ideias com medo de perderem o amor da família. Amor? Nunca quis aprofundar muito a questão, talvez para não sofrer mais do que já no íntimo sofria.
À medida que crescia, apercebia-me de como estava dependente da aceitação dos meus pais, avós, tios, primos e amigos. Porque da aceitação dependia o maior ou menor afecto que eles podiam manifestar-me, e eu precisava, se precisava, que todos gostassem muito de mim.
Chegava a ter ciúmes da atenção que a minha mãe dedicava às flores e da forma quase voluptuosa de lhes tocar. Gestos que não tinha connosco. Invejava a maneira como os animais da Quinta cuidavam das crias, lambendo-as e aquecendo-as com o corpo.
Com a educação asséptica e distante que recebíamos restava-me lutar pela aprovação dos adultos.
Desde criança não suportava ver os olhares de reprovação quando alguém se atrevia a pisar o risco. Um namoro às escondidas, uma falta à missa, uma opinião mais ousada ou qualquer pergunta que pusesse em causa a validade dos princípios que subscreviam. Mesmo aqueles que os traíam, e isso eu descobri que acontecia muitas vezes. Na aparência era como se o não fizessem, e todos os que sabiam agiam como se nada lhes passasse pela cabeça. Vivia-se numa conivência silenciosa e silenciada. Certas coisas eram para ser ignoradas ainda que nos entrassem pelos olhos dentro. Assim retiravam importância àquilo que jamais poderiam permitir que fosse importante por ser uma ameaça aos pilares em que assentavam tantas famílias como a nossa e até a própria Nação. E ai de quem tivesse a ousadia de os enfrentar!
Geração após geração, fui-me dando conta dos pequenos sismos que abanavam certas estruturas, das brechas que se abriam, embora no comportamento deles nada se alterasse. E no meu também não, porque naquela altura me parecia mais difícil estar de mal com o poder familiar e social do que comigo. Mais tarde, havia de perceber que estava tremendamente enganada.
Assim fui crescendo e atravessando a vida, traindo alguns sentimentos e convicções, ignorando instintos com o pavor de ser rejeitada ou apontada no meu círculo. O mesmo se passava com quase todos os meus irmãos, primos e amigos, e o mesmo vi acontecer com gerações seguintes de sobrinhos e afins.
Esperavam de nós que pensássemos e fizéssemos tudo igual ao que tinham pensado e feito avós, pais e tios. As mesmas ideias, palavras, os mesmos gestos, tiques de linguagem, autênticos códigos que, de imediato, situavam quem pertencia ou não ao nosso meio. Uma sensaboria de comportamentos que eu já sabia de cor. Daí que achasse muito mais engraçado e surpreendente tudo o que faziam os proscritos da família, as ovelhas tresmalhadas do nosso rebanho.
Apesar do pouco tempo que passavam connosco e da austeridade com que nos educavam, os meus pais eram objecto da minha adoração e nunca eu me atreveria a desiludir aquelas figuras míticas que, fosse em que circunstâncias fosse, jamais perdiam a compostura.
Creio que por mimetismo, na presença deles tudo se tornava mais elegante, chique e intocável. Longe de mim fazer ou dizer alguma coisa que destoasse, ou expressar os meus pontos de vista tantas vezes divergentes dos deles. Como não os queria pôr em causa, punha-me a mim, e a muito custo lá fui encaixando mal nos moldes que me estavam destinados. Limitava-me a imaginar o que seria a liberdade, mas era escrava dos nossos costumes.
O António, filho duma prima afastada da minha mãe, começou a ser presença assídua em lanches e aniversários, enquanto acabava em Lisboa os estudos de Agronomia e se dedicava com paixão às ciências botânicas. Deve ter sido por esta via que conquistou o coração dela e, por imitação já se vê, o meu.
As suas dissertações sobre a flora lenhosa, de tão enjoativas que eram tornavam-se bizarras, para não dizer cómicas, e foi numa espécie de embriaguês do riso que me deixei ir até ao altar. Não me atrevia a admitir que não era nada daquilo que eu queria, porque AQUILO era tudo o que os meus pais esperavam de mim.
Claro está que fui infeliz com o António, mas não me dava por achada. Não era suposto.
Para trás tinha ficado a minha única paixão de adolescente. Um jovem e promissor poeta, irmão da nossa professora de Português, um boémio excêntrico que me acelerava a circulação e me fez levitar com o sabor estonteante do primeiro beijo. Era na imagem dele que me refugiava sempre que estava prestes a sucumbir à monotonia do meu casamento despovoado de filhos, mas cheio de fenos espontâneos, zigofilos e empetráceas que o António estudava até à exaustão. Dele e minha.
O António era um homem de carácter irrepreensível. O seu tempo era meticulosamente dividido entre o trabalho didáctico e científico, alguns amigos e o bolo da família.
Uma das fatias era eu. Tratada com todo o respeito mas sem o mínimo afecto. Continuávamos a viver na Quinta, numa ala da casa que os meus pais nos reservaram quando casámos, porque o António tinha acabado de terminar o curso e estava ainda indeciso sobre o futuro. A situação era cómoda e assim nos fomos mantendo.
Viver com o clã familiar distraía-me do vazio afectivo do nosso casamento. Entre irmãos, tios, primos e sobrinhos, que circulavam em permanência pela Quinta, havia toda uma animação que minimizava a minha tristeza e frustração.
Encontrava nos livros uma boa companhia e um escape para os meus sonhos e entretinha-me com o exercício da pintura que sempre me fascinara. No início, aguarelas com motivos de flores ou paisagens, mas à medida que aumentavam os delírios botânicos do António, enjoei-me de tanta verdura e mudei rapidamente para a figura humana.
Até ao dia em que o António adoeceu.
A gravidade da doença exigia cuidados permanentes e a irmã mais velha dele, a Maria Benedita, veio de Coimbra para se instalar na Quinta. Dividia-se habitualmente entre a casa de Souzelas e a cidade onde tinha tirado o curso de enfermagem, e até àquele momento o nosso contacto nunca tinha sido tão próximo, dadas as distâncias.
Era tida como um tanto excêntrica, pouco sociável e de ideias "avançadas". Um carácter generoso, uma personalidade forte mas misteriosa que originava mais curiosidade do que confrontos.
Penso que por estratégia, a família nunca lhe quis dar importância quando, naquela fase do pós-guerra, se atreveu a aparecer de calças e a dissertar sobre o existencialismo. Às vezes faziam-se silêncios à mesa quando Benedita, em jeito de comentário aos bailes e chás de caridade que a minha mãe ajudava a organizar, dizia coisas do género:
- Se houvesse mais justiça no mundo não eram precisas tantas festas de beneficência.
E o meu pai sorrindo do alto do seu paternalismo:
- Ficam-lhe bem esses sentimentos Benedita, mas como é que nos redimíamos dos nossos pecados se não houvesse pobres a quem dar esmola? Tome cuidado com os seus delírios filosóficos, pois se alguém a ouve e a leva a sério pode vir a ter dissabores.
Qualquer tentativa para arejar o espírito dos meus queridos pais era como tentar espetar um alfinete numa viga de aço, e Maria Benedita sabia-o. Por isso deixou de se dar ao trabalho de argumentar.
Tratávamos ambas do António que, de dia para dia, precisava de mais cuidados.
Às vezes, quando me sobravam umas horas para as minhas pinturas, Benedita sentava-se por perto e lia alto poemas do Rimbaud, ou passagens de livros que chegavam clandestinamente ao nosso país através dum irmão do "escova de aço" que nos trazia notícias dele e da minha irmã Conceição. Ríamos da nossa cumplicidade e eu, sabendo que ela ali estava pela doença do António, sentia remorsos quando desejava que nunca mais se fosse embora.
Quando podíamos dávamos passeios sem destino pela Quinta, deambulando entre conversas leves de entardecer e confidências que iam progredindo na intimidade.
À medida que o tempo passava já quase não precisávamos de palavras para comunicar, tínhamos atenções mútuas, não nos escapavam mudanças de humor e procurávamos ir ao encontro dos desejos uma da outra. Uma cumplicidade nascida da solidão de ambas. A dela, por não ter medo de ser "a excêntrica" "a que tem a mania que é diferente"; a minha, por ter vontade mas falta de coragem para ser como ela. Sofríamos ambas com a decadência do António que, a um passo da inconsciência, ainda continuava a delirar com as monocotiledóneas.
Porém, em época nenhuma da minha vida me senti tão acompanhada e objecto de tanta ternura, uma ternura subtil, feita de sensibilidade e inteligência que aos poucos me foi povoando o coração e despertando os sentidos. O seu olhar fazia-me renascer e dentro de mim as portas iam-se abrindo para um desconhecido que eu não temia porque me sentia feliz. Apesar do estado crítico do António. Sim, porque o António não fazia parte dos meus novos horizontes.
Num final de tarde, vagueávamos pela Quinta depois de o médico ter saído e anunciado um fim próximo. Eu estava triste, não tanto pela notícia que em nada me surpreendeu, mas por pensar que em breve me podia ver privada da presença da Benedita.
Caminhávamos em silêncio por entre as árvores, quando sinto o braço dela rodear-me a cintura. Através do seu pulso ouço-lhe o coração e não sei como controlar o meu.
No silêncio do entardecer perfumado pelas acácias, os nossos corpos agora ligados dizem o que não nos atrevemos a dizer por palavras. Estamos exaustas da tensão e vencidas pelo desejo de nos fundirmos numa só. Nada é nítido à minha volta, a não ser o contorno da sua figura que lentamente me encosta a uma árvore. "Vai-me beijar" pensei e mantive os olhos presos no seu olhar redondo até que a boca dela tocou a minha. Flutuámos no tempo, entregues e confiantes na eternidade.
O amor que sentia por ela fazia-me encarar com naturalidade uma situação que nunca tinha esperado viver. Mas sabia que jamais, dentro da minha família e amigos, poderia partilhar este segredo com alguém.
Felizmente, os tempos são outros e Rosarinho já pode viver os seus romances mais à luz do dia, embora ainda a revoltem certas discriminações, nomeadamente por parte do pai e sobretudo dos irmãos. Sei como lhe dói que a convidem apenas a ela para passar a consoada lá na Quinta, ignorando por completo a existência da Rita. Quer seja Natal, dias de anos ou simples jantares de amigos, nunca um dos irmãos a convidou com a Rita, por isso ela foi deixando de aparecer. Há mais de três anos que a situação se arrasta, e a dor ou tristeza dos primeiros tempos em que isso aconteceu já estão prestes a transformar-se num ressentimento cimentado.
Quanto a mim, foi um acto de sublimação que me salvou da amargura em que fatalmente me estava a ver mergulhar por me ser interdito viver o meu amor com a Benedita.
Visitei-a algumas vezes em Souzelas, depois da morte do António.
Lá, como na casa dos meus pais, a nossa intimidade estava condenada a trocas de olhares cúmplices, passeios pela Quinta com beijos furtivos e meia dúzia de encontros clandestinos, pelas tantas da noite no quarto onde eu dormia que era o mais distante dos outros.
Cada vez mais dedicada aos seus doentes, Benedita foi convidada a integrar uma missão em África e propôs-me que fosse com ela. Pensei muito seriamente no convite. Além de passar a viver ao seu lado, ia dar à minha vida um sentido que há muito me estava a faltar. Quando me dispus a ir ao seu encontro e me preparava para lutar contra o meu terror de andar de avião, um súbito ataque cardíaco do meu pai fez-me adiar os projectos e despertar para a realidade mais próxima.
Depois da partida da Benedita acordei cheia de inverno e tédio. O sol, o meu sol, tinha-se afogado no mar distante, e durante um longo período a alegria dos meus sobrinhos e amigos parecia-me insultuosa.
Lá em casa, estávamos habituados a viver desinteressados dos problemas do resto do mundo e a não aprofundar muito os nossos. O lema era manter, a qualquer preço, aquilo a que chamavam dignidade, engolindo lágrimas e calando lamentos. O nosso universo era restrito; as preocupações não iam além das crianças, dos casamentos e dos cancans familiares ou sociais.
Mantive viva a presença da Benedita com o mesmo zelo com que me habituara a ver a minha mãe tratar das flores. Eram raras as tardes em que não repetia o percurso que tantas vezes fizéramos juntas por entre as acácias, ouvia-lhe o ruído dos passos e a voz em sussurro a chamar-me: - Minha doce Flávia. Minha querida e doce Flávia.
Sentia o roçar da roupa dela na minha, cheirava a alfazema dos seus cabelos. Depois, parava uns instantes para reler a sua última carta, até que a restolhada das crianças, que abundavam naquela casa e geralmente me perseguiam, me vinha roubar de algum abraço sonhado.
Saber-me amada dava-me agora uma capacidade de resistir, muito superior a qualquer força que eu imaginasse ter.
Quando estava de novo a projectar a minha ida para África, a minha mãe teve de ser submetida a uma cirurgia e, apesar de sermos vários irmãos, era sempre a mim que cabia o protagonismo nestas situações. Elas, porque eram casadas e tinham uma família que as absorvia, eles, porque tinham as suas ocupações profissionais e sociais e eram homens e com os homens nunca se pode contar para esse género de coisas. Uma máxima estafada que a maioria das mulheres tinha encaixado sem discussão prévia, dificultando a vida a todas as que lutavam por uma distribuição diferente das responsabilidades.
Vencida, pelo peso familiar, não consegui partir. Pouco depois, chegou a notícia de que Benedita estava gravemente doente.
Com a morte dela, recusei-me a deixar parte de mim presa ao passado, escorregando pelos alçapões do tempo. Mantive vivo o amor que lhe tinha, fazendo-a reviver em mim.
Passei a fazer voluntariado num hospital e a ser uma espécie de aliada dos meus sobrinhos, quando timidamente se atreviam a enfrentar a máscara imperturbável da ancestralidade. Fi-lo sempre de modo discreto, não me atrevendo a grandes confrontos. Faltava-me a garra da Maria Benedita. Fui sempre excessivamente mansa. Deixara passar demasiadas oportunidades para sair da casca. Há um provérbio anglo-saxónico que diz: "Semeando um acto colhe-se um hábito, semeando um hábito colhe-se um destino." E no meu destino, metade da linha manteve-se sempre timidamente na sombra.
A Rosarinho, a minha generosa, impulsiva sobrinha Rosarinho, foi sempre o meu orgulho. Ela não sabia de que era feita a nossa cumplicidade, mas sentiu-a e apoiou-se nela até ao fim dos meus dias. Quanto aos outros, são tão esbanjadores no palavreado como somíticos nos sentimentos. Arrepiam-se-me os ouvidos de os escutar. Verifico que em nada mudou a minha família. Adoram ter muitos filhos. Deitam-nos ao mundo, baptizam-nos, educam-nos e amestram-nos para serem dignos de usar o nome de que tanto se orgulham.
Ajudam-nos a crescer para depois lhes cortarem a cabeça, como a minha mãe fazia com as rosas.
ROSARINHO / RITA / LUÍS MARIANA
Rosarinho endireita o retrato a óleo da tia Flávia que está de banda.
- Temos de fazer um brinde à tia Flávia! - disse para a Rita e para o Luís. - Aposto que se estivesse viva preferia festejar o Natal connosco a ficar na Quinta.
Era dia 25. Há dois anos que Rosarinho deixara de passar o Natal com a família para poder passá-lo com a Rita. Ia a casa do pai, almoçava com os irmãos e os sobrinhos, deixava os presentes e vinha-se embora.
No ano em que a conhecera e no seguinte, ainda fez como sempre, mas à medida que a relação de ambas se foi consolidando e a família teimava em ignorar que elas viviam juntas, Rosarinho ganhou coragem para marcar a sua posição. Não continuaria, nos aniversários, Natais e outras festividades, a aceitar os convites como se Rita não existisse na vida dela. Já tinha ultrapassado os quarenta e sentia-se ridícula por ter de viver a sua relação na clandestinidade. Apesar da mágoa, não embarcaria mais naquelas farsas.
Rita passou a garrafa de champanhe ao Luís.
- Importas-te de abrir enquanto eu vou à cozinha buscar uns patês para irmos petiscando? Se a Mariana ia passar pelo Centro ainda deve demorar. Luís pegou na garrafa e com perícia começou a levantar muito devagar a rolha bem presa. Raramente bebia álcool, mas adorava champanhe e em dias de festa gostava de partilhar esse prazer com a Rita, a sua maior amiga.
- Deita-me aqui um bocadinho. - Rosarinho estendia o copo ao Luís.
- Que é isso aí dentro? - perguntou ele com um sorriso já a adivinhar a resposta.
- Groselha. É muita, já sei, mas eu não consigo beber essa zurrapa com picos se não estiver bem doce. Luís riu dos exageros da Rosarinho. Tinham-se conhecido quatro anos antes através do Paulo e houve desde o primeiro momento uma enorme empatia entre ambos. Quando fundou o Centro SOS Vida sem Medo, convidou-a para trabalhar com ele e sentia-se feliz com a escolha. A Rosarinho era um pilar essencial no grupo de trabalho.
- Que tal um brinde à vossa nova casa? - disse Luís ao ver a Rita voltar da cozinha com a Lua atrás, de focinho no ar.
- Ainda é cedo! Já era suposto passarmos lá este Natal e ainda aqui estamos! Espera que eu ajudo-te. - Rosarinho correu a ajudar a Rita que entrara com um tabuleiro cheio de "mimos" e distribuiu alguns deles pela mesa baixa em frente aos sofás.
Se olhasse para o retrato da tia Flávia naquele momento, talvez adivinhasse a ternura que se desprendia do seu olhar.
- A casa já está pronta, só falta a mudança! Merece um brinde, sim senhor! - Rita pegou no copo que Luís lhe estendia.
- Tu não perdes é uma oportunidade para encher o copo! - A Rosarinho e o Luís riram.
Rita arrastava com ela um prazer de viver contagiante. Tirava partido de tudo. Da chuva, do sol, do que comia ou bebia. Não era dada a excessos mas fazia tudo com tal prazer, que dava gosto estar com ela. Rosarinho veio sentar-se no braço do sofá ao seu lado e carinhosamente pôs-lhe o braço sobre o ombro.
O encontro com a Rita coincidira com uma fase de grande transformação interior. Sabia que não a tinha conhecido por mero acaso. A crise e a depressão pareciam ter-se instalado, até ao momento em que percebeu que a vida lhe estava a oferecer a oportunidade para dar um salto qualitativo. Mesmo que quisesse ter feito de outra maneira não teria conseguido. Pela primeira vez em tantos anos, entregou-se à sua intuição, seguiu os sentimentos e deixou que o tempo fosse fazendo o resto. Venceu medos, enfrentou críticas, sofreu desilusões e hoje, passados quatro anos, sentia-se à beira de ser uma nova mulher. Uma estrutura mais sólida começava a devolver-lhe a confiança em si própria, a dar-lhe outra consistência, outra vontade de viver, outro sentido à vida. Se nem sempre estava feliz, isso seria difícil, tinha, pelo menos, muitos momentos de felicidade.
A Lua desatou a ladrar e correu para a porta. Mariana despachara-se mais cedo e vinha com o namorado. Haveria lugar para mais um?
- Já estávamos a contar com o João. Ora vejam quantos lugares estão na mesa!
- Mas nem eu sabia que o João vinha, Rita! - Mariana admirada.
- Nem ele! Mas sabia eu! - Rita ria divertida. Punha sempre um lugar a mais na mesa. Às vezes dava
certo. A Rosarinho e o Luís sabiam desse hábito mas não se pronunciaram.
Luís não cabia em si de contente. Filha única, Mariana era adorada pelo pai que aproveitava todos os momentos para usufruir da sua companhia. Por muito que a tivesse, parecia-Lhe impossível recuperar os três anos, na fase do seu divórcio, em que a filha não o quisera ver. Presentemente tinham uma relação muito próxima. Apesar de já ter terminado o curso e estar a trabalhar, Mariana oferecera-se para fazer umas horas semanais de voluntariado no atendimento da Linha SOS Vida Sem Medo, um dos serviços prestados pelo Centro que o pai fundara.
- Então filha, alguma novidade? A expressão da Mariana mudou.
- Lembra-se daquele rapaz, o Quinze?
- O que tentou suicidar-se há uns meses? - perguntou Rosarinho que tinha acompanhado o caso de perto.
- Esse - disse Mariana com um ar sério.
Fez-se um silêncio. Quando alguém se suicida gera à sua volta um extremo desconforto. Sobretudo para aqueles que pensam ter a missão de o evitar.
- O que foi? - perguntou Luís com alguma ansiedade.
- Está no hospital. Fez outra tentativa. Ligou para lá um irmão.
Por segundos, fez-se um novo silêncio na sala. Todos sentiram a passagem muda da recordação triste e dolorosa que tivera o condão de os unir para sempre.
QUATRO ANOS ANTES
ROSARINHO
PORQUE HÁ-DE UMA PESSOA VIR AO MUNDO com TANTAS COISAS PARA EMENDAR?
Rosarinho olhava fixamente o retrato da tia Flávia, como se esperasse dali a resolução para o seu problema.
Tinha saudades daquela figura que até aos oitenta e cinco anos nunca deixara de a empurrar para a vida, sempre que lhe adivinhava as tendências depressivas. Do seu sentido de humor, das sentenças tricotadas com o fio dos anos e o folhear de muitos livros. Ainda pouco antes de morrer, já no hospital, ao ver-lhe aquele ar de desânimo que já ia sendo habitual lhe atirou com uma:
- Lembra-te que um pessimista vê uma dificuldade em cada oportunidade, enquanto um optimista vê em cada dificuldade uma oportunidade; uma máxima que o Churchill gostava de repetir.
- Sim, tia, vou procurar não esquecer. - Rosarinho fingia um sorriso.
- E manda embora essa tristeza. A morte pode ser assustadora mas não é anormal.
Tamanha lucidez, naquele ser já tão frágil e doente, deixava-a perplexa. Não tinha dúvidas de que a tia via uma excelente oportunidade na sua morte iminente. Pelo menos, acabava-se-lhe o sofrimento, embora ela o aceitasse estoicamente.
Mas Rosarinho era feita de outra massa, mais quebradiça, como a das tartes.
Que podia ela ver de bom na embrulhada que estava a viver?
A vida com o Vasco tinha-se tornado mais monótona do que uma montagem em linha, e ela também nada tinha feito para alterar o estado das coisas. Soubera, desde sempre, não ser aquele o homem da sua vida, era apenas o que melhor se adaptava às circunstâncias.
Charmoso, culto, educado e sobretudo profundamente obcecado pelo seu trabalho de decorador, a deixar-lhe pouco tempo livre para exigir atenções que Rosarinho não tinha nem podia dispensar. Era simpático, exuberante mas pouco ou nada afectuoso. Afectos que não sabia receber nem dar, até nos momentos mais íntimos.
Rosarinho era mais de se acomodar do que de se queixar, por isso foi deixando a situação arrastar-se, fazendo de conta que não tinha importância. Aliás, era perita no faz-de-conta, só não sabia disfarçar quando se envolvia emocionalmente, o que era raro mas não impossível.
E aconteceu.
Uma situação totalmente inesperada veio acelerar a derrocada da ligação de seis anos com o Vasco, já mais uma amizade do que outra coisa, se é que alguma vez fora outra coisa.
"E agora, como é que eu saio desta?", magicava Rosarinho. "Meti-me numa alhada sem futuro nenhum e ai de mim se alguém sonha."
O retrato a óleo da tia Flávia parece ser o seu único cúmplice, mas devolve-lhe apenas a figura delicada duma mulher de olhar intenso, porém doce. Um ligeiro sorriso numa boca bem desenhada, firme, levemente pintada. Os cabelos castanhos, de ondas marcadas, tapam apenas uma parte do pescoço esguio e alto, semelhante ao que sempre lhe chamara a atenção no retrato da avó. "Um pescoço bonito e tentador", pensava Rosarinho com imensa pena de não ter herdado tal símbolo de elegância familiar. Um colar discreto a condizer com os brincos e a pulseira do braço esquerdo, cuja mão fina e longa se apoiava, elegante, na perna do mesmo lado.
Na mão direita, que cobria ligeiramente a esquerda, apenas um anel de safira que parecia combinar com os tons de azul do vestido, com decote em V e sem mangas.
Lembra-se quase todos os dias, desde há perto de dois anos, do momento em que aquele olhar se extinguiu lentamente, frente a frente com os seus olhos. Os seus ligados aos dela por um fio de luz cada vez mais ténue até ao corte final. Sem ruído, sem movimento, as pálpebras sempre abertas a querer perpetuar uma intenção.
Rosarinho não se atrevia a deixar cair as lágrimas para não entristecer a tia Flávia.
- Tia, tiazinha, estou ao seu lado, vá em paz - sussurrava, com uma maré viva a subir-lhe aos olhos.
Sabia que a tia ainda a ouvia, mas não lhe foi possível sentir a sua mão a passar-lhe pelos cabelos, como tantas vezes fazia antes de adoecer.
"Uma festa de despedida", segredara-lhe Flávia, embora soubesse que Rosarinho já não a podia ouvir.
Quando a enfermeira do hospital entrou, Rosarinho correu para fora do quarto e soltou o choro. Deu-se conta que, pela primeira vez na vida, não fora capaz de prender a dor, e a surpresa fê-la parar por instantes.
Qualquer coisa dentro de si
Acontecia sem ela querer
E
Quando qualquer coisa toma conta de nós
Quer dizer certamente muita coisa.
RITA
Rita acreditava que tudo o que existia estava animado de energia, a mesma que emanava de cada ser vivo e que até os objectos transportavam uma carga energética própria, além da que lhes fora passada pelos seus criadores.
Por isso gostava de tratar igualmente bem móveis, quadros, plantas, a Lua, uma golden retriever que encontrara abandonada com uma pata partida, todos os animais e até um armário antigo herdado dos pais, que ela achava pesadão e rebuscado.
Em vez de o despachar sabe-se lá para onde, tratara dele como de alguém a quem se ajuda a mudar para um visual mais leve. Às vezes, durante a noite, ouvia-o estalar e tentava descodificar a mensagem e de quem vinha. Se da árvore donde fora tirada a madeira, se do carpinteiro que o fizera, do artista que o desenhara, do pai e da mãe que lá tinham pendurado os seus casacos, se da alma do próprio armário, composta pelo conjunto de todas as outras e dele próprio.
Amava os objectos que faziam parte da sua vida como quem ama a natureza, sem sentimentos de posse, porque sabia que isso era mais uma forma de dependência, mas fazia-lhe pena que muitas pessoas se servissem deles sem qualquer cuidado e os deitassem fora à mais pequena falha, sem lhes dar sequer uma leve hipótese de mostrar a sua utilidade e beleza, apesar de velhos.
Estava habituada a criar laços de afecto com livros, quadros, tapetes, discos e plantas não porque se sentisse sua dona, mas, sim, companheira. Muitos deles carregavam memórias da tia Maria do Carmo, dos pais, de amigos, aconchegavam-na na sua solidão. Acompanhavam-na sempre que se mudava, como quem leva a família atrás, e acabavam de encontrar o lugar ideal, perto da janela do escritório da sua nova casa, para a Dracaena marginata, que vivia na sua companhia há já 25 anos, presente dum amigo que morrera recentemente. Sorriu por achar que a planta lhe estava agradecida.
- Não percebo para que é que queres tanta tralha - disparara um dia a Cristina, já na fase do azedume.
- A "tralha" faz parte da minha história como os meus amigos. Para que é que eu quero os amigos? Não me perguntas?
- Alguns não são tão teus amigos como pensas. Convém-Lhes a tua amizade. Mas não têm contigo uma relação de igual para igual. À tua frente são uma coisa e por trás outra. Eu bem vejo. Tu é que teimas em não ver.
Rita ficava triste e às vezes até insegura, mas não queria discutir mais uma vez aquele assunto porque lhe andava a parecer que era a própria Cristina que, incapaz de se relacionar de igual para igual com os outros e não sabendo encarar a sua fraqueza, a tinha escolhido para bode expiatório. Aliás, naquele último ano de vida em comum, a Rita parecia ser a culpada de todos os falhanços da Cristina.
Rita chorava baixinho no silêncio das noites em branco, por não saber até quando ia aguentar tamanha agressividade, sentindo uma profunda tristeza por não conseguir evitar que ela destruísse uma relação construída por ambas, com tanto carinho e cuidado.
SUSPEITAVA QUE UM GRANDE PERIGO AS RONDAVA.
E tinha razão.
Enquanto decidia onde pendurar os quadros, ia revendo fases da sua vida passada a que alguns estavam ligados e sentia um vazio por já não ter a quem perguntar:
- Achas bem aqui ou preferes pendurá-lo no nosso quarto?
O "nosso" quarto agora, era apenas dela e da Lua e "nós" já não íamos ao cinema, "nós" já não íamos de fim-de-semana à descoberta do Alentejo, "nós" já não trocávamos beijos dentro dos elevadores, "nós" já não falávamos das dúvidas que nos assaltavam nem fazíamos projectos para o futuro. Nós, essa entidade volátil, esse ectoplasma que ela tinha imaginado ser real.
A casa abria-lhe os braços nus e ela ali, vazia, mais despida do que as paredes, procurava em vão algum calor dentro de si.
Sentia-se só e magoada porque, apesar de ter consciência das suas imperfeições, que estivera sempre disposta a rever e muitas delas com êxito à custa dum esforço sincero, Cristina falava do passado de ambas como se fosse lixo.
Segura nas suas novas perspectivas de trabalho e com a auto-estima a mil, revelava uma personalidade fria e insensível em contraste com a aparente doçura e fragilidade dos tempos em que se tinham conhecido.
Dez anos antes apresentara-se-lhe deprimida, ignorando que rumo dar à vida.
Com o seu faro pigmaleónico, Rita pusera mãos à obra, feliz por poder participar no plantio duma terra que precisava de ser regada com muito amor e paciência, indiferente à ironia de uma amiga que lhe costumava dizer:
- Tens a mania de transformar pilecas em cavalos de corrida. Depois queixa-te.
MAS A RITA NÃO ESTAVA ARREPENDIDA
NEM QUERIA ALIMENTAR RESSENTIMENTOS.
Cristina desempenhara um papel importante na sua vida. Sempre crítica em relação a tudo e a todos, acabou por ajudá-la, ao chamar-lhe a atenção para o seu temperamento demasiado impulsivo, para a sua faceta exageradamente protectora e por vezes sufocante, para a sua excessiva exigência consigo própria que acabava por se estender aos outros, e alguns outros vícios de comportamento de que ela nunca se tinha apercebido.
Fazia parte do temperamento da Rita ficar eternamente agradecida a alguém que fizesse alguma coisa por ela ou por uma pessoa de quem gostasse muito, mesmo que a intenção não tivesse uma finalidade altruísta.
Cristina fora uma dessas pessoas. Queria acreditar que ela lhe tinha dado o seu melhor. Viveram momentos inesquecíveis, de grande comunhão de sentimentos; com ela acabara por conseguir falar dos mundos que vislumbrava pelas janelas do sonho, onde tudo era claro e límpido e não havia medos. Rita jamais esqueceria que ela a acompanhara em momentos difíceis e, apesar da ruptura desastrosa, acreditava que o amor uma vez que acontece, nunca mais pode morrer. Duas almas que um dia se encontraram, jamais deixarão de se reconhecer e amar, embora a relação exterior se altere.
Pendurou o último quadro no quarto. Antes de se deitar, decidiu que escultura que lhe tinha ficado debaixo de olho.
ROSARINHO, DEUS NÃO GOSTA DE MIM.
Rosarinho, esticada no sofá donde não era capaz de sair há dias, pensava muito seriamente nesta nova descoberta que lhe parecia uma verdade incontornável.
Desde o dia em que não fora capaz de prender a dor pela morte da tia Flávia e seguir em frente como estava habituada a fazer, parecia que todo o peso do mundo lhe tinha desabado em cima.
Sem forças, sem ânimo, ainda se arrastou uns tempos para o hospital onde trabalhava como enfermeira, mas o cheiro da sala de tratamentos dava-lhe náuseas, os colegas irritavam-na, os doentes causavam-lhe pavor. O que eles sentiam, ela sentia. Dores, palpitações, faltas de ar, baixas de tensão, passou por tudo até ser levada para casa com um febrão, depois de ter acudido a uma doente com intoxicação alimentar. O veredicto do médico não tardou: DEPRESSÃO.
"Para a frente só o abismo, o melhor é deixar-me estar", pensava.
De confiança perdida, tudo representava um perigo, até pensar.
Foi buscar um copo de leite, a sua bebida de eleição desde que comer era um sacrifício, mas tinha-se acabado. De passagem reparou que o frigorífico estava vazio e lembrou-se de encomendar uma piza. Ou um hambúrguer? Antes a piza. Dava para duas refeições e não tinha de pensar mais no assunto. Para a vontade que tinha de comer tanto lhe fazia. Nunca percebera como é que alguém se desloca cem metros para comer o que quer que fosse quanto mais quilómetros! Havia quem palmilhasse quilómetros para ir comer lampreia ou arroz de cabidela, que horror! Só de pensar, sentiu uma náusea.
Foi a correr para a casa de banho. Alarme falso.
No espelho não gostou do que viu.
A pele muito branca, dantes brilhante e macia, aparentava agora um aspecto baço e seco. Nos olhos uma tristeza instalada. Até o cabelo louro-escuro e ondulado parecia ter perdido a vitalidade. A ponta do nariz encarnada de tanto coçar. Que tique mais irritante! Podia ter herdado coisa melhor da tia Flávia. Bastava-lhe enervar-se ou irritar-se para sentir aquela estúpida comichão.
Voltou para a sala e atirou-se para o sofá.
Abandonado sobre um dos braços, o enorme pedaço de tecido (do tamanho dum lençol), onde se entretinha a coser botões velhos.
Coser sempre a distraíra. Mais ainda do que fazer paciências com cartas.
Mas não pegou na agulha nem deu pela presença protectora que se sentava ao seu lado. Apanhou-se a magicar em grande parte dos passos que dera na vida e concluiu que não se deviam ao seu aparente despacho, nem eram sinónimo de autoconfiança. Eram feitos de medo e inconsciência. Eram fugas e anestesias.
Abriu um novo maço de cigarros e ligou a televisão.
Não conseguia encarar tais pensamentos.
HÁ QUANTO TEMPO SENTIA TUDO ISTO E NÃO FAZIA CASO?
RITA
De mata-moscas na mão, Rita saltitava sobre a cama, numa perseguição encarniçada da mosca gorda, bem nutrida, que não a deixava em paz.
Eram cinco da manhã; tinha ficado mais de uma hora na mesma página do livro e já havia despejado um pacote de línguas-de-gato a meias com a Lua que agora rosnava de excitação com o reboliço.
Na realidade, não queria matar a mosca. Não gostava de matar bichos. Sentia-se até muito mal se os fazia sofrer ainda que involuntariamente.
Às vezes tentava estabelecer alguma comunicação. Como no caso da mosca.
Quando percebeu que estava com instintos assassinos, pôs-se a ver se percebia o que ela queria dizer no seu irritante zumbido. Estudou-lhe as piruetas, o pousio, experimentou fazer uma zoada parecida à espera de reacção.
Nada.
O bzz da mosca exasperava-a e não se conseguia abstrair daquela toada que lhe fazia lembrar um grupo de beatas na hora do terço.
Quem sabe se a mosca tinha também entrado em desespero por não se fazer entender? Tinham razão as moscas. Quem, até hoje, tinha feito um esforço para decifrar aquele zumbido?
As lagostas, por exemplo, eram bem mais comunicativas, embora tivessem pior sorte.
Tinha bem presente a cena.
Para festejar o contrato de um novo filme em que Cristina ia ser protagonista, lembrou-se de comprar uma lagosta no supermercado e apresentá-la de surpresa ao jantar. Só quando a meteu na panela de água a ferver é que realizou que a lagosta estava viva. Primeiro, pelos movimentos das antenas grossas e espinhosas, depois, pelos quase imperceptíveis vagidos e expressão de súplica que lhe pareceu adivinhar nos seus mínimos olhos.
Desorientada por se sentir a criatura mais cruel do mundo, atirou com o bicho para o lava loiças, deitou-lhe água fria em cima e pensou em ir devolvê-lo ao mar. Ideia nobre mas pouco prática e inútil, dado o estado agonizante da pobre. O melhor era metê-la de novo na panela, de cabeça para baixo, a fim de ela morrer mais depressa.
E foi o que fez.
Com o coração mais pequeno do que uma azeitona, tapou a panela e fugiu da cozinha para não ouvir nem ver.
O jantar correu pessimamente.
Nada que se relacionasse com o incidente da lagosta que ela não contou, mas porque Cristina desconversou o tempo todo, coisa que já vinha sendo um hábito desde que começara a sentir-se mais segura com as múltiplas propostas de trabalho.
Nessa noite teve ganas de lhe fazer o mesmo que à lagosta. Enfiá-la numa panela bem tapada e virar costas para não a ouvir nem ver. com água fria, claro, ainda não tinha chegado à fase da fervura que estava para breve, embora ela não soubesse.
Mas agora não queria pensar na Cristina. Havia quatro meses que se tinham separado e tencionava fazer tudo para não adormecer a pensar nas mágoas.
Finalmente, lá conseguiu enxotar a mosca para fora do quarto. No dia seguinte mandá-la-ia embora.
Dentro de si começavam a vibrar os sinos do desgosto, do desgaste. Nas suas antenas soavam despertadores de impaciência.
Tentou relaxar com exercícios respiratórios e outras técnicas que aprendera na meditação.
A Lua passou-lhe insistentemente a língua quente no pescoço como a querer lamber-lhe uma ferida escondida. Depois enroscou-se ao seu lado com um suspiro de contentamento por poder finalmente ocupar o lugar que Cristina tinha abandonado.
Ao fim de uns minutos, já tranquila, Rita sentia agora uma total ausência de gravidade e passara a ter uma consciência de si, no espaço sideral.
Uma consciência de si, pequenina, ínfima.
Da terra boiando na imensidão do universo.
A terra e ela eram tão pequeninas!
ROSARINHO
De televisão ligada, Rosarinho assistia à missa do 13 de Outubro em Fátima e chorava. Ultimamente chorava por tudo e por nada, mas Fátima comovia-a sempre. Não porque fosse muito ligada à Igreja.
O pai sim, desde que a mãe morrera, era ela adolescente, passava a vida em seminários religiosos onde acabou por conhecer a segunda mulher, senhora discreta com cara de lâmpada apagada, que jamais se atrevia a contrariá-lo. Fora sempre correcta na sua conduta para com ela e os irmãos, porém nunca entrara no coração da Rosarinho. Quem sabe se pela falta de chama.
Mas agora não queria pensar no pai. Levara que tempos para aceitar o Vasco, por não serem casados (Rosarinho nunca quis, ela lá sabia porquê), mesmo quando a via aparecer sozinha na consoada, não lhe apetecia encarar com os silêncios significativos dele e do resto da família que, às vezes, mais lhe parecia uma reserva de fósseis do que gente do seu sangue.
Não eram silêncios para não magoar, para evitar mexer em feridas, silêncios cúmplices daqueles que querem dizer: "Não precisas de me explicar, eu sei o que estás a passar, estou contigo e se te apetecer desabafar conta comigo." Não. Eram silêncios para não provocar ondas, evitar intimidades e qualquer exposição de sentimentos que podiam gerar controvérsia, conduzir a confrontos ou vir a pôr em causa os dogmas seguidos, às vezes contra vontade, por gerações e gerações. Mas ainda faltavam quase três meses para o Natal; até lá não tencionava pôr os pés na Quinta.
Vera tinha vindo visitá-la, mas seguiu pouco depois para os anos do sobrinho. Ainda bem. Assim ficava mais à vontade para rezar. Tinha de rezar e muito. Pedir com todas as forças para conseguir sair de forma airosa daquela situação intrincada. Rezaria também à tia Flávia. Ela não lhe negaria ajuda.
Vasco ainda se mostrava sentido e não queria magoá-lo mais. Uma coisa era ele desconfiar de que a amizade dela com a Vera tinha ido longe de mais. Outra, ter a certeza.
Mas a certeza de quê, se ela própria nem sabia bem como é que aquilo lhe tinha acontecido? Se fora pura curiosidade, uma atracção momentânea ou fruto do desinteresse em que andava com o Vasco? Acendeu outro cigarro.
Era um sábado de sol. Uma mosca gorda, bem nutrida, entrou-lhe pela janela semiaberta.
Ficou de novo atenta à televisão e às preces no santuário.
A quilómetros dali, milhares de pessoas esperavam também um milagre.
Luís
À porta do consultório do advogado, Luís inspirou fundo como se daí lhe pudesse vir uma ideia sobre o rumo a tomar. A reunião tinha sido longa e penosa.
Teresa parecia decidida a avançar com um processo litigioso que só iria prejudicar ambos e magoar ainda mais Mariana.
Como podia ela ser tão egoísta, ao ponto de continuar a denegrir a imagem dele, ignorando os traumas que isso estava a causar à filha?
- Podes estar certo de que vou usar todos os meios para te desmascarar - desferiu ela no dia em que lhe apontou a carta comprometedora como quem aponta um revólver.
Lembrava-se da ameaça.
Meios para o desmascarar; não eram bem o mesmo que armas para o ferir. Não lhe passou pela cabeça que ela usasse a arma mais mortal e devastadora. O ódio da filha. Esse veneno que Teresa dava diariamente a beber à Mariana como se dum biberão se tratasse.
Precisava duma boa escuta e dum ombro. Decidiu passar em casa da Rita.
Pelo caminho até ao carro, foi-lhe ligando.
- Que tal o fim-de-semana?
- Skdtôfharrdtavnvdxtamrpurkerria jsdukgkiaum. O ruído da avenida impedia-o de ouvir bem a Rita.
- Ainda às voltas com o guião?
- Aadsshdklixxxogmcbzxcvetasdgdfuqrrrrrggggggggggrrrrrrr!
- O tom era irritado.
- Pela persistência já mereces um Globo de Ouro!
- Brrreeeeegrrrggrrrreeeeexxnxxlasdeidnx.
- Claro que sei o que é uma sombra negra a atazanar-me o espírito! Tu tens um produtor e eu uma ex-mulher.
- PrrekKnaumoxprexsehrts?
- O quê?... Porque não os apresentamos? Não, que ela ainda lhe vende a história da nossa separação e ele é doidinho por escândalos. Estás por casa?
- Prkequenaaauuummmveiiinnzzcckkaaa?
- Era isso mesmo que eu te vinha propor. Estou a precisar do teu colo. Até já.
A lentidão do trânsito deixava-lhe o caminho livre para pensamentos e memórias que teimavam em reaparecer. Sempre que ia ao advogado, as cenas já passadas pareciam vividas na véspera. A atitude da Teresa, as escutas telefónicas, as perseguições, as perguntas, os avisos, as ameaças, os sinais de perigo em tudo e em todos, as insónias, as provocações, o ódio, o sofrimento, a loucura que é o ciúme, as dúvidas quando já não havia lugar para elas. Luís tinha sido bem claro. Mesmo que ela não tivesse encontrado a carta, ele já tinha decidido acabar com a farsa do casamento.
- Acredita, Teresa, até há uns tempos fui escravo do que pensava que devia ser a minha vida. Curso, casamento, emprego, segurança, o respeito de todos.
- És a maior desilusão que já tive - respondeu ela com desprezo.
Ele passando por cima:
- Desse meu passado só quero conservar o respeito pela minha pessoa e o amor da minha filha, mas tu já te encarregaste de os desfazer.
- Tu não mereces nada! Nada! Nem a minha pena! ela à beira da fúria.
- Hei-de recuperar o que me tiraste, podes ter a certeza. É uma questão de tempo - ele a controlar-se.
- A ver vamos. Quando pensares melhor e quiseres voltar atrás já vai ser tarde - ela ameaçadora.
- Desculpa, mas só posso fazer o que sinto - ele firme.
- Deixei de obedecer cegamente ao que me é imposto apenas pela razão e pelo bom senso. É como se seguíssemos rotas diferentes, a minha mente e eu.
- Não me venhas com as tuas filosofias que eu já dei para esse peditório! Maricas! Muito new age, muito budista! És mas é um grande paneleiro! Paneleiro, paneleiro, paneleiro! ela a rebentar num pranto.
Por baixo do ressentimento e da ira, Teresa escondia o medo do vazio que poderia ser a sua vida dali em diante. Ali tinha concentrado grande parte da sua atenção e energia. Observava o marido com olhar de juiz ou como quem fita um adversário. Sentia-se duplamente traída. Se o caso tivesse sido com outra mulher teria sido doloroso mas, apesar de tudo, aceitável, agora com um homem! Que personagem era afinal aquela com quem tinha partilhado sonhos, projectos, vida familiar? Que perversões se escondiam por trás dos seus grandes olhos castanhos, leais, do sorriso franco ou das gargalhadas sonoras, quase infantis, que gostava de o ouvir dar quando jogava e se divertia com a filha? Que espécie de pai era ele, que educação, que moral podia transmitir a uma adolescente de catorze anos, depois de ter andado enrolado sabe-se lá por onde, com outros homens? A comédia terminara e não pensasse ele que ela o iria poupar. Toda a universidade havia de saber que belo professor ele era. Aquele homem que todos respeitavam não passava afinal dum reles maricas.
Perante a ameaça, ambos se fecharam dentro de si mesmos e, a partir daí, instalou-se o gelo e a hipocrisia.
O QUADRO ERA DE HORROR.
Tinham passado três anos e Luís ainda sentia o cheiro da esperança queimada.
Que seria feito do amor que existira entre ambos? Teria sido apenas um acto de posse? Como poderia explicar à Teresa que também estava a sofrer, e muito, por tê-la desiludido?
O sinal ficou encarnado e do carro ao lado veio uma buzinadela.
Uns bonitos cabelos castanho-arruivados, a cabeça inclinada, olhos cor de mel e uma boca grande, sorridente, ali estava Paula, a acenar, tentando a sorte há largos meses sem qualquer eco do Luís. Era a sua estagiária mais brilhante, uma das muitas pretendentes que ultimamente desfilavam perante si, como se uma força invisível as tivesse empurrado na sua direcção. Nunca se tinha sentido tão assediado. Anos atrás, isso tê-lo-ia envaidecido.
Acenou-lhe calorosamente, arrancou e pegou no telemóvel para avisar o Paulo que ia passar na Rita.
PAULO
SE ALGUÉM DESCOBRE QUE ANDAS POR AÍ FEITO MARICAS
A PECAR com HOMENS QUE CONHECES EM CENTROS COMERCIAIS, ACABA-SE A CARREIRA POLÍTICA DA TUA MÃE.
O turno na livraria onde trabalhava acabara há já uma hora, e Paulo continuava a deambular pelo centro comercial, sem saber para onde se dirigir.
Indiferente ao pôr do Sol, a luz do centro mantinha-se inalterável tal como a constância da frase do padre Filipe a martelar-lhe a cabeça.
Tinha feito três tentativas de sair para a rua, mas a sensação de um garrote a apertar-lhe a garganta, o pulso acelerado e a falta de ar obrigaram-no a refugiar-se de novo naquele mundo de luz artificial e montras, muitas montras onde se viam expostos pequenos sonhos compráveis.
Paulo queria pedir ajuda mas não sabia como, nem a quem. Alguma vez soubera? Ignorava com que palavras se traduzia a vergonha e a dor persistente de não ser o trofeu que a mãe tanto queria exibir.
Com que voz havia de chorar o medo de perder o seu amor e o ódio que paradoxalmente teimava em envenená-lo?
- Mãe, a Nossa Senhora era tão bonita como a mãe? perguntara-lhe um dia em criança.
- Querido, Nossa Senhora é a mãe de Jesus, não há comparação possível.
- Mas a mãe já me tem dito que eu sou o seu Menino Jesus...
- É assim que eu te vejo. Quase tão perfeito como Ele. Se fores sempre bom menino e seguires os nossos conselhos vais ter um lugar no céu ao lado deles.
- Só quero ir se a mãe for comigo. Gosto mais da mãe do que da Nossa Senhora e do Menino Jesus - pausa para pensar. - A mãe gosta mais do Menino Jesus que de mim?
- A mãe sorriu e não respondeu.
Se o Menino Jesus era perfeito e adorado pela mãe, Paulo não lhe podia ficar atrás.
E esforçou-se por isso, sim, esforçou-se até muito.
Sempre bom aluno tanto no colégio como no liceu, nunca contrariava as opiniões dos pais, embora nem sempre partilhasse delas, nem trazia para casa amigos que não tivessem passado pelo filtro da sondagem materna acerca de nomes e famílias, se bem que houvesse outros de quem gostava mais.
A bem dizer, nem lhe custava muito o sacrifício porque, acima de tudo, estava a paixão que tinha pela mãe a quem queria agradar a qualquer preço. Sempre que era tentado a discordar dela, chegava mais tarde à conclusão que ele é que estava errado e até sentia alguma vergonha e arrependimento por ter ousado pensar de forma diferente.
Na confissão costumava contar isso ao padre, mas nem era preciso esperar por qualquer penitência porque ele próprio, muitas vezes, se antecipava com uma carrada de ave-marias ou com alguns gelados e bolos a menos.
Quando estava no banho, enfiava a cabeça debaixo de água e contava mentalmente o mais que pudesse, até trinta ou quarenta. Quanto mais aguentasse sem respirar, mais a mãe viria a gostar dele. Mas a sua meta eram os cinquenta, sinal que a mãe não morreria nunca. Pelo menos enquanto ele vivesse.
Às vezes ficava extasiado a olhá-la, os cabelos castanhos de ondas largas sempre muito bem penteados, os tailleurs de corte impecável que trazia de Itália ou Paris, as mãos bem tratadas apenas com um toque de verniz incolor, os gestos, o porte, eram tudo o que ele desejaria na mulher com quem viesse a casar. Até lá, derrubaria montanhas para ver Maria João feliz, não lhe dar preocupações nem trabalho. Disso já ela tinha muito. Sempre superocupada com cursos, mestrados, movimentos e associações caritativas e, mais recentemente, com importantes cargos políticos, não podia dar-se ao luxo de perder o seu tempo com assuntos menores.
Deus não lhe dera mais filhos, mas em compensação aquele reunia tudo quanto ela sonhara poder perpetuar na raça humana, pensava Maria João.
Mais tarde, havia de constatar como eram falíveis os projectos que se fazem para a vida dum filho.
Mas quando se apercebeu fingiu não perceber. Tentou até pressionar o Paulo para marcar uma data de casamento com a Carocha.
Maria João recusava-se a admitir aquilo que a sua intuição adivinhava. Temia o que lhe dizia o sexto sentido e estava disposta a tudo para que o seu único filho jamais ousasse dar largas ao que ela achava ser uma tara. Sabia da sua ascendência sobre ele e estava certa de que Paulo nunca se atreveria a enfrentá-la.
Por isso fez tudo para se antecipar, para que ele soubesse, sem qualquer equívoco, como ela achava aberrante essa coisa da homossexualidade. Encarniçou-se ainda mais nas suas campanhas e debates públicos contra essas minorias vindas sabe-se lá donde a reclamarem direitos iguais aos das maiorias. Pretensões que, a serem consentidas, acabariam por destruir o conceito de família como até à data tinha sido reconhecido. O seu conceito intocável e único de família, como intocáveis e únicos eram os princípios e dogmas que professava. A que título vinham esses grupos de desviados reivindicar a consagração das suas uniões?
Numa das suas intervenções públicas, chegou mesmo a espevitar o que ela achava ser o seu sentido de humor, afirmando que os homossexuais se tornavam ridículos com a sua pretensão de brincarem aos pais, às mães e às casinhas. Até admitia alguma tolerância para com gente capaz de ter actuações tão diferentes das suas, mas pactuar, jamais. Dar-lhes os mesmos direitos, nunca. A que propósito?
Todo o seu discurso, além de ser um recado para o mundo, era fundamentalmente uma intimidação ao filho.
A estratégia surtiu efeito durante uns anos, até que a natureza do Paulo não aguentou mais a clandestinidade e explodiu em paixão pelo Luís.
TUDO SE VEIO A SABER NO SEIO DAQUELA FAMÍLIA PARA QUEM A TRADIÇÃO ERA UM PONTO DE HONRA.
Fechado na casa de banho, onde se refugiara do vaivém de gente que ao fim da tarde povoava o Centro, Paulo tremia com um frio inexplicável, embora a camisa azul-clara estivesse ensopada em suor. Pela sua mente confusa passavam imagens aceleradas de episódios decorridos.
Como quem está à beira de se passar para o outro lado, reviveu cenas da infância e adolescência embrulhadas num véu ténue e protector, até o véu se desfazer e dar lugar à crueza das cores, dos sons, do cheiro daquela madrugada em que o polícia de segurança ao ministro, que vivia no mesmo prédio onde morava com os pais, o encaminhou para a garagem como se tudo tivesse sido previamente combinado.
E tinha.
Sem palavras.
Por um acordo implícito nos olhares que vinham trocando há dias.
Paulo não tivera sequer tempo de entender que desejo súbito e imperioso era aquele, um desejo que se impunha, que o comandava até virar obsessivo dias e noites a fio. Mais forte do que a razão, o medo ou o bom senso, a atracção irreprimível e descontrolada tomou conta dele ao ponto de lhe provocar dores no sexo.
Pela primeira vez na vida, sentiu o gosto da violência dum impulso e mais excitado ficou.
Depois daquela madrugada em que se deitara sobre o capô do carro da mãe para receber o sexo de outro homem, correu para casa e enfiou-se no duche da casa de banho do seu quarto.
Mas não havia sabonete nem lixívia que lhe tirasse as nódoas que sentia no corpo.
O toque do telemóvel arrancou-o da floresta de pensamentos onde se tinha perdido. Era o Luís a saber se ele já tinha chegado a casa. Que estava quase a chegar, foi a resposta. Adorava o Luís e não queria deixá-lo preocupado nem que começasse a perder a esperança de o ajudar a livrar-se dos seus pesadelos. Paulo já lhe pregara dois sustos em momentos de maior desespero. Não voltaria a fazê-lo passar por isso.
Luís / RITA
A sala era ampla e luminosa, virada para o pequeno jardim a precisar de cuidados diferentes dos que a Lua lhe sabia dar com as patas, duas autênticas escavadoras. Luís, enterrado no sofá branco, observava a cena divertido com as manifestações de entusiasmo da cadela que se rebolava de prazer nas ervas salpicadas de restos de relvado.
Dentro de casa, arrumados a um dos cantos, imensos caixotes com livros aguardavam vez para se endireitarem na imensa estante da parede do fundo, onde se viam apenas algumas fotografias da Rita com a tia Maria do Carmo, da Rita em criança com os pais, da Lua e do irrequieto Fogo, de alguns amigos e do próprio Luís abraçado à Rita por detrás, com os braços à volta da cintura dela, numa pose divertida e ternurenta. Havia também uma fotografia antiga da Cristina como que a querer lembrar apenas a sua imagem dos primeiros tempos em que se conheceram.
No chão, ao longo de duas das paredes, uns tantos quadros alinhados, possivelmente a ensaiarem uma posição, duas peças de escultura, uma em pedra, outra em bronze, uma figura em madeira velha, talvez um Buda em oração, uma bonita cómoda D. José em vinhático, e outros móveis que Luís já conhecia das anteriores casas da Rita.
Da aparelhagem saía o som dum piano. Parecia-lhe o Brad Mehldau. Era de certeza. Luís conhecia bem as preferências da sua maior confidente.
- Até que eu me instale vai levar o seu tempo.
Rita pousou o tabuleiro com o chá de jasmim, duas chávenas e um prato com biscoitos. com a mão, atirou para trás os cabelos quase pretos, compridos e lisos, num gesto que Luís conhecia bem. Reparou que ela estava cada vez mais magra.
- Tenho o escritório meio montado para ir trabalhando e já consegui pendurar os quadros que queria pôr no quarto.
- Faz-me lembrar quando saí de casa - disse Luís, revelando alguma mágoa. - Os primeiros a serem arrumados foram o meu quarto e o da Mariana. Nunca o usou, mas lá está à espera do dia em que ela se decida a ir passar um fim-de-semana comigo.
- Um dia destes vais ter uma boa surpresa, aposto. Rita percebera que ele vinha triste do advogado.
- Achas?
- Vais ver que ela não te resiste por muito mais tempo.
- com a lavagem ao cérebro que a mãe lhe fez... Rita não quis fazer comentários evitando enveredar por
um assunto tão doloroso para o Luís. Nunca esperara que ao fim de três anos a sua filha, uma miúda encantadora e tão ligada ao pai, conseguisse manter-se inflexível.
- Um biscoito?
- Para já não, obrigado. - Luís precisava era de se queixar. Saía sempre ansioso daquelas reuniões. - A Teresa conseguiu destruir tudo. Prometeu e vai levar o caso até às últimas consequências. Ainda agora tive a confirmação.
- Dói muito, não dói? - Rita tentava pôr-se no lugar dele.
- Mas eu não podia ter feito doutra maneira. - Luís tentou beber um gole de chá ainda demasiado quente.
Um e outro sabiam que de nada servia contrariar a própria natureza. Às vezes, só a meio da vida nos apercebemos de não estarmos no nosso caminho. Mudar, implica rupturas com algum passado. Sofre-se e faz-se sofrer. Luís só aos quarenta e cinco anos tivera a consciência exacta do enorme desconforto em que vivia por teimar em manter um casamento e um emprego que tinham deixado de fazer sentido.
- E alguma vez fizeram verdadeiramente? - quis saber a Rita.
- Houve tempos em que pensei que sim, mas hoje pergunto-me se não me terei deixado guiar pela comparação com o meu irmão.
Ultimamente, o Luís andava a empreender nesta ideia. Era o género de pessoa que tinha de ir até ao fim para se conhecer, e Rita a pessoa ideal para o acompanhar na sua auto-análise.
O irmão era pouco mais velho; inconscientemente, Luís entrara em competição.
- Os teus pais davam-no muitas vezes como exemplo, não era?
- E com razão porque ele é um tipo sensacional. Foi o meu modelo durante anos.
Só há pouco se dera conta de como é errado ambicionarmos coisas que vemos nos outros, mas não são as certas para nós.
Luís trincou um dos biscoitos que Rita trouxera.
- Ainda vais a tempo de mudar. Tens a sorte de ter uns pais fantásticos que te apoiam em tudo. Sempre achei extraordinária a forma como eles encararam a tua separação. Sobretudo, o teu pai que é tão católico.
- Luís sorriu.
- Sabes o que é que ele respondeu à Teresa quando há pouco tempo ela lhe foi com a conversa de que a Igreja Católica condenava as práticas homossexuais? Ainda não te contei?
- Luís incrédulo, porque fazia relatórios pormenorizados à Rita do desenrolar dos acontecimentos. - "Pois é Teresa, mas o Luís é meu filho e o sangue é mais espesso do que a alma."
- Boa resposta! Não faz juízos. És filho dele...
- Nem todos os pais são capazes do mesmo... - Luís referia-se aos do Paulo.
- Por isso eu estou sempre a dizer-te que tiveste muita sorte.
Luís tinha plena consciência da grande prova de amor que recebera dos pais. Achava até que teria sucumbido se não fossem eles. Mesmo quando lhes dissera que possivelmente ia abandonar o trabalho na empresa e que ia ficar só a dar aulas, até se decidir por um novo rumo.
- Sempre estás decidido? - Rita fazia festas na cabeça da Lua que lhe puxara o braço com a pata.
- É uma necessidade cada vez mais premente. Penso nisto todos os dias. Ainda não sei bem o que vai ser mas sei que tenho de mudar, de me sentir mais útil aos outros. Quantas vezes já me ouviste dizer o mesmo?
- Faz bem pensar alto. - Rita paciente. - Já chegámos à conclusão que seria um trabalho de voluntariado.
- Que te parece um espaço onde as várias medicinas se possam interligar? - Luís numa busca desenfreada que todos os dias o fazia ter ideias novas.
- Terapias alternativas com a medicina convencional? Rita incrédula. - Tens de ir com uma candeia à procura de médicos que não se riam na tua cara quando lhes falares de homeopatia, por exemplo.
- Também não tenho a certeza se é bem isso...
- Estás é mortinho por te dedicares de alma e coração a qualquer coisa que faça mais sentido dentro de ti. Dá-te tempo. Precisas de amadurecer as ideias.
Rita tinha razão. Estava a dar-se uma revolução na sua vida, isso sem dúvida, mas havia que saber esperar o momento certo. Continuaria com as aulas e porque não com o trabalho na empresa do pai? Apesar de ser menos interessante ia andando.
- Nem o apoio que tento dar ao Paulo, nem os meus alunos, nem a esperança de poder vir a dar à minha filha o que ela recusou durante estes três anos, me preenchem inteiramente.
- Falta-te qualquer coisa! Um dia vais acordar e saber exactamente o que queres. - Rita serviu mais chá.
- Nem sei mesmo se este projecto vai ser compatível com a minha relação com o Paulo, se ela não sofrer uma transformação no sentido duma maior liberdade. Adoro-o, mas sinto que não é uma relação livre. Há muitas carências. Dele e minhas também.
- Não são assim quase todas as relações?
- Mas estão erradas.
- Eu sou um bom exemplo. - Rita sabia que tinha chegado a altura de não repetir certos erros.
- O amor devia ser vivido como uma dádiva, e não como um pedido, devia transbordar, em vez de absorver. Li isto algures e não me esqueci.
- Bonito mas difícil de pôr em prática - disse Rita, dando à Lua o biscoito que os seus olhos cobiçavam.
- Sempre tive a sensação que o amor me prendia em vez de me libertar e a culpa também tem sido minha.
- É um desafio conseguires o que procuras ao lado do Paulo. Ele tem problemas graves para resolver antes de chegar aonde tu já vais. - Rita abre um maço de cigarros.
- Pensas que foi por acaso que me apaixonei por ele? Tenho a certeza que não. - Luís adorava estender-se em especulações quase tanto como a Rita.
- Tudo tem um sentido - ela a puxar pela conversa.
- Há-de haver aqui uma finalidade que se prende com o meu percurso evolutivo nesta vida. - Luís continuava a matutar no porquê da sua paixão por alguém com tão poucas condições para o fazer feliz.
- Acredito que sim. Não sabemos é descodificar logo os sinais.
- Naturalmente estamos pouco atentos.
- Muitas vezes dou comigo a pensar que trazemos nos nossos genes memórias de vidas passadas com que não sabemos lidar. - Rita inclina-se para o Luís lhe acender o cigarro, com o isqueiro que tirou do bolso. Tinha deixado de fumar, mas andava sempre com ele.
- Isso quer dizer que sempre que reencarnamos, tudo parece começar de novo, mas temos de aprender a integrar as memórias da vida passada naquilo que agora estamos a viver. Será que é isto o crescimento? - Rita aproxima um cinzeiro. Ambos acreditavam na reencarnação e gostavam de filosofar sobre o assunto quando se apanhavam sozinhos.
- Se virmos bem, trata-se de trazer à consciência aquilo que já aprendemos em vidas anteriores e de o juntar às experiências do presente. Seremos almas velhas e sábias? - perguntava Luís.
- Talvez. No fundo, no fundo, acho que já nascemos a saber muita coisa, não sabemos é escutar a voz que nos segreda.
- Ou não queremos. Por medo. - Luís serve mais chá nas duas chávenas. - Nunca pões em dúvida se, de facto, temos vidas passadas?
- Ponho. Mas donde vem tudo o que sabemos já em crianças e que ninguém nos ensinou? Cada um de nós carrega em si todas as memórias do universo, nasce com elas; ainda há dias li isto e faz-me todo o sentido - respondeu a Rita.
- Durante muito tempo foi coisa que não percebi.
- Acho que é mais para sentirmos do que para compreendermos. Começo a aprender a não duvidar do que sinto.
- Não duvidas que te adoro, pois não? - disse Luís a sorrir. - Mas tenho de me pôr a andar para ir ter com o Paulo.
Rita, cúmplice, aperta a mão que, ternamente, Luís pousou sobre a sua.
- E a psicóloga, sempre conseguiste?
- Já tenho hora marcada. Se ela for a maravilha que me disseram vai ser preciosa para o Paulo. - Luís bebe um último gole do chá e levanta-se.
- Tenho uma fé que ele vai ultrapassar tudo e que a tua filha, em breve, te volta a cair nos braços. - Rita a querer incutir-lhe esperança.
- Achas?
- Tu mereces. Os dezassete anos talvez a ajudem a libertar-se da influência da mãe. Só falta que a tua ex-cara-metade amanse.
- Diz antes uma metade cara. - Já a caminho da porta:
- O que me consola é saber que esta angústia em que ando é temporária.
- E o que é que não é? - disse Rita fazendo uma festa à Lua que os acompanhara à saída.
- Fui muito egoísta. Só falei de mim. Como é que te estás a aguentar? Há novidades?
- Bem. Ainda não caí do cavalo. - Rita sorriu. - Só das nuvens! Amanhã falamos.
- Luís ri, cúmplice, e despede-se com um abraço apertado e um beijo.
- Eu ligo-te.
A porta fechou-se. Rita voltou com a Lua para a sala. Sentaram-se ambas no chão, junto do sofá. Dividiram um biscoito e Rita acendeu mais um cigarro. A Lua enroscou-se o mais que pôde colada ao seu corpo e deu um suspiro ruidoso de satisfação.
Não precisava de mais nada nem ninguém para ser uma cadela feliz. Rita queria muito que a presença da Lua também lhe bastasse, porém não se podia enganar por mais tempo. Os seus momentos de solidão eram-lhe imprescindíveis, adorava a Lua, os amigos, mas havia um espaço dentro de si por preencher, um frio que só lhe passava quando amava alguém e se sentia correspondida.
ROSARINHO
A caixa de chocolates que Vera trouxera a Rosarinho estava no fim.
Ela preferia uma boa tablete do género daquelas que a tia Flávia lhes costumava dar a ela e aos irmãos, em miúdos. Mas à falta de melhor, marchava tudo o que fosse doce. Nunca lhe dera para engordar mas se fosse o caso, não estava bem certa do que sacrificaria. Neste momento, movia-se a poder de chocolate. Era o seu combustível. Procurou o maço dos cigarros. Contou. Já só tinha seis. Não dava para muito; contudo animou-se assim que reparou que Vera se esquecera dos dela em cima da televisão. Eram demasiado fortes para o seu gosto, mas desde que não tivesse que se mexer para ir à rua, tudo bem. Também era demasiado intenso o perfume que ela usava, como começavam a ser demasiado insistentes os seus telefonemas e visitas.
Naquele momento, tudo era demasiado para a cabeça cansada de Rosarinho. Por mais voltas que desse, não atinava com nenhuma das milhentas questões que se lhe punham e principalmente não percebia como é que se tinha apanhado nos braços da mulher do maior amigo do Vasco, casada e mãe de quatro criaturas insuportáveis.
Não estava apaixonada por ela, disso tinha a certeza, não sentia uma atracção física por aí além, mas a verdade é que nunca, até à data, resistira aos seus avanços porque, desde a primeira vez, lhe agradara o contacto com a pele daquela mulher, a suavidade, a ternura com que ela a beijava. Também não se sentia inquieta ou insegura com esta experiência que jamais lhe passara pela cabeça vir a ter (ou passara?), mas a situação estava a fugir-lhe ao controlo. Vera começara a dar nas vistas, completamente esquecida de que tinha toda uma família em casa, e Rosarinho queria tudo menos escândalos.
Desde há seis meses que isto durava, pouco tempo depois de Vera ter regressado de Washington, onde o marido estivera alguns anos em missão diplomática.
Olhou à sua volta e sentiu-se contente por nunca ter deixado aquela casa enquanto viveu com o Vasco. Tinha ficado fechada mas era a casa dela, o casulo onde se foi imediatamente refugiar, quando percebeu que tinham ambos chegado ao fim da linha e que iam em comboios separados.
A tentar distrair-se, folheou uma revista, depois esticou o braço para pegar no comando da televisão. Nada a interessava. Mais uma página da revista com uma fotografia em grande da tia Jô, mãe do Paulo e grande amiga da mãe dela, se bem que um bom par de anos mais nova. Uma entrevista que não teve pachorra para ler, porque a irritavam os moralismos da tia Jô.
Acendeu um cigarro e ficou a pensar no Paulo.
Vera tinha-o encontrado e achara-o magríssimo, com um ar consumido. Mas Vera já não o via há anos. Rosarinho não se apercebera de nada em especial talvez porque o visse frequentemente, a não ser... Deu mais uma passa. A não ser das últimas vezes, sim, de facto havia qualquer coisa nele das últimas vezes, talvez uma certa ansiedade. Seria por o namoro com a Carocha ter acabado? Aquilo não era coisa nenhuma, uma historieta sem futuro alimentada pelos pais de ambos, mais nada. Da última vez que ele lhe aparecera lá em casa nem tinham falado do assunto, a bem dizer não falaram de nada em especial, como de costume, conversa mole e uma garrafa de vinho branco que ele despejou em três tempos. Era um fim de tarde e ela com o à-vontade que lhe davam os anos que tinha a mais, até lhe tinha perguntado se ele não andava a exagerar na bebida. Pensando melhor, notara nele qualquer coisa de estranho, mas não quisera aprofundar. Ou não se dera a esse trabalho, tão enredada andava nos seus próprios problemas. Não é que lhe tivesse falado neles, não era suposto trocarem intimidades.
COM QUEM TROCAVA ELA INTIMIDADES?
A QUEM FALAVA DO QUE SENTIA?
Uma forte dor de cabeça começou a instalar-se; a inércia impedia-a de se levantar para ir buscar um comprimido e um copo de água. Esticou-se melhor no sofá, puxou uma almofada para debaixo da cabeça.
Talvez com os olhos fechados passasse.
Tinha usado em várias ocasiões este truque e costumava dar resultado, pelo menos por umas horas. Mas às vezes a dor voltava com mais força, sobretudo nos últimos tempos.
PARECIA QUE o SEU VELHO TRUQUE DE FECHAR os OLHOS
JÁ NÃO DAVA GRANDE RESULTADO.
Nem para uma simples dor de cabeça.
FLÁVIA
Não me espanto que tenhas chegado a esse estado, minha querida Rosarinho.
Aliás, aqui nada nos causa espanto, é tudo claro e límpido como o olhar dos inocentes. Vais precisar de muita coragem para enfrentar a caminhada, mas ainda não chegou o momento de o entenderes.
Estás assustada porque pela primeira vez começas a ter consciência de não dominar as situações. A tua verdadeira voz começa afazer-se ouvir e não estás preparada para te olhares nua, inteira e nua, e reconheceres-te no que o grande espelho tem para te devolver. Nada sabes da tua grandeza feita de simplicidade e amor. Ignoras como brilha dentro de ti a luz que um dia te permitirá entregares-te sem medo à vida. Até agora, tens-te passeado levianamente na escuridão do teu pequeno mundo onde pensas estar protegida e não percebes que andas aos encontrões, que te enchem o coração de mágoas.
Não sabes que só no dia em que perderes o medo e te entregares ao mundo maior, serás verdadeiramente livre e capaz de olhar o chão que pisas e o sol que te ilumina. Seria triste se passasses por aí, sem experimentar o que aí existe de compensador, mas tens que te encontrar, filha. Já fugiste demasiado de ti e não ligaste nenhuma às oportunidades que a vida te deu para seres mais feliz.
Nos namoros nem se fala. Começaste mal com o Pedro e desde então continuaste a não acertar. Tirando um que me fazia lembrar o jovem poeta por quem me apaixonei na adolescência. Um certo ar asiático perfumado de açafrão a sugerir não se sabe que enigmas... esse médico lá do hospital era um homem charmoso e sabia lidar com a sensibilidade duma mulher, o mal era ele ter tantas. Também, filha, tens tido uma pontaria... Que ideia a de te teres ligado ao Vasco. bom rapaz e então? Passaram anos de costas viradas um para o outro, no lado oposto do amor. Cada um na sua direcção, ao sabor dos ventos que os empurravam.
É dificil encontrarmos a pessoa certa para partilhar livremente a vida ao nosso lado. E a vida é amar, filha. Amar tudo e todos e entregar-se.
A vida devia ser um êxtase permanente e não essa letargia em que te vejo, de coração oprimido e ideias conturbadas.
Não posso falar de cátedra porque a minha escolha no que toca ao casamento também não foi brilhante. Mas tive a sorte de, ainda na minha estada por aí, ter encontrado na Benedita o que até à data apenas povoava os meus sonhos. Cumplicidade, ternura, amor, intimidade e até paixão.
Quando fiz amor com ela, todos os meus sentidos pareceram funcionar em pleno pela primeira vez. Depois disso, cheguei a convencer-me que o teu tio era um deficiente. Um homem que viveu anos de vida ao meu lado a falar de plantas com nomes impronunciáveis e nunca me disse nada tão simples como "amo-te" ou "meu amor". Logo tu foste escolher um parecido. A época é diferente mas pelo comportamento do Vasco, parece que nada mudou.
Ainda não percebi se os homens que se comportam assim com as mulheres o fazem por uma questão de cerimónia, se por repugnância, se por acharem que o prazer vivido por nós é vergonhoso.
O teu tio nem para mim olhava, aliás seria impossível num quarto mergulhado na escuridão. Era como se o acto e eu fôssemos algo de repelente, não saboreava um beijo, mal usava as mãos para me tocar, não falava nem consentia ruídos de qualquer espécie. Nos momentos, raros, em que eu ficava mais acesa de pensamento a voar em fantasias eróticas com o meu poeta, chegou a tapar-me a boca com a mão. Às tantas, fui levada a pensar, na minha pouca experiência, que fazer amor era um acto asséptico, que devia ser praticado de máscara, luvas e venda nos olhos. E, quem sabe, tampões nos ouvidos. Mais tarde é que vim a saber que alguns desses artificias até eram usados para certas fantasias apelidadas por muitos de perversões. Mas quanto à fronteira entre amor, fantasia e perversão já não foi a tempo de a destrinçar melhor.
Continuo a ver que há quem considere perverso duas pessoas do mesmo sexo amarem-se. Entendo que ser perverso implica alguma crueldade ou malvadez. E para mim foi um bem e uma enorme descoberta amar a Benedita. Pena ter sido tudo tão fugaz, e naquele tempo ser ainda mais impensável do que hoje aceitar-se um caso destes na nossa família.
Mais tarde conheci alguém que fez ressuscitar dentro de mim aquele fogo que eu julgava extinto para sempre. Uma mulher inteligente, cheia de vida e igualmente avançada para o tempo em que tinha nascido. Fez-me lembrar Maria Benedita. Iluminou momentos inesquecíveis da minha existência com a sua contagiante curiosidade e alegria de viver. Era casada e o romance que tivemos foi vivido no mais profundo segredo. Não se tratou de uma paixão arrebatada. A vida, os anos e a singularidade da situação levaram-nos a agir com todas as cautelas. Uma "amitié amoureuse" que viveu na clandestinidade até ao fim dos nossos dias e veio dar algum colorido aos tempos cinzentos que me pareciam esperar.
Gostaria de te ter contado a minha verdadeira história em vez da oficial que todos conheciam. Só agora vejo como era importante fazê-lo. Terias certamente apreciado que eu te desse essa prova de amor e confiança, e a mim ter-me-ia feito um enorme bem partilhar estes segredos que guardei até à morte.
De todos os sobrinhos foste sempre a mais próxima de mim, e isso penso que te fiz sentir, embora não o quisesse confessar para não ser acusada de favoritismos pelos outros. Adorava quando alguém dizia: "a Rosarinho sai à tia Flávia", coisa que irritava a tua mãe. "Tem as mãos iguais, o mesmo sorriso, a mesma simpatia, o mesmo tique de desatar a espirrar e a ter comichão no nariz quando se enerva, até na loucura pelos doces..." Às vezes sentia-te mais minha do que dela. Encantava-me olhar a tua pele branca e luminosa, o teu cabelo de um bonito louro cendré que escureceu com os anos, de ondas largas, parecido com o do teu pai. Será que te posso ajudar daqui? Será que me ouves?
Resolve esse assunto com a Vera, filha, não vai ser fácil, mas tens de arranjar coragem para te afastares de forma elegante e não se magoarem. Sabes bem que ainda não vai ser por aí o teu caminho.
E, por favor, não exageres nos chocolates. Lembra-te no que eu me transformei quando cheguei à tua idade: uma quarentona roliça com pendor para o avantajado. Também os tempos eram outros. Quando eu tinha a tua idade não existiam dietas de baixas calorias, fast food, bebidas light, iogurtes magros, e o silicone e a lipoaspiração ainda esperavam a deixa para entrar furiosamente em cena. Se a moda de hoje fosse mais gorducha ainda me abalançava a voltar aí, mas enquanto a sanha não voltar a ser, gordura é formosura, não me abalanço ao regresso.
PAULO / LUÍS
Num bairro antigo da cidade, a casa de estilo minimalista, decorada em tons de marfim, não podia contar histórias ao Paulo que o distraíssem da sua inquietação. E se ela tinha histórias! Casa velha, carregada de memórias a que se tinham vindo juntar as do Luís que ali se fora refugiar depois da separação. Poucos objectos escolhidos, além da colecção de fósseis. Apenas três grandes telas modernas que Luís comprara na última feira de arte, muitos CD's, felizes pela excelente aparelhagem que lhes dava voz, e livros, muitos livros, companheiros de uma vida. Paulo, com o treino de ouvir conversas de livraria, tinha arrumado os clientes por categorias: os amantes da leitura, os que folheavam os best sellers e jamais emitiam uma opinião sincera para não correr o risco de parecerem estúpidos ou incultos, e os que compravam para encher as prateleiras. Luís era dos primeiros.
Algumas fotografias da Mariana em destaque, uma dos pais do Luís, do irmão, da Rita, outra com um grupo de amigos e uma do Luís e do Paulo na única viagem que tinham feito a Barcelona. Um fragmento de vida em que sorriam confiantes.
Mas Paulo já estava distante, esquecido de que outro mundo existia, de tão enredado se deixara ficar no cordão materno. Como se aos poucos ele o fosse estrangulando, roubando-lhe o ar, a visão, o sol.
Impotente para se esconder na sua própria sombra, Paulo bebia, bebia até à inconsciência, como se não houvesse memórias que ficavam para sempre gravadas. Já não lhe chegava beber as palavras do Luís.
Nos primeiros tempos, elas pareciam ser suficientes para o tranquilizar e devolver-lhe confiança, mas à medida que o cerco familiar o foi apertando, o pânico apoderou-se dele. Não sabia descobrir um propósito naquela luta sem tréguas. Tinha de evitar que o Luís suspeitasse de como se sentia fraco e impotente. Não o queria desiludir. Havia de fazer tudo para nunca perder o seu amor, para se mostrar digno da sua confiança, capaz de vencer os fantasmas que o perseguiam. O álcool parecia dar-lhe a esperança perdida, devolver-lhe o sonho já gasto de tanto esperar o seu momento. Pôs a tocar o For You Only da Alison Moyet. com a dor levemente adormecida, contemplava a fotografia de ambos, mas só reconhecia o Luís. O único ser humano que se tinha querido juntar à sua tristeza impermeável, que não receara entrar na noite permanente em que ele vivia e que arriscava o seu bem-estar para lhe devolver a vida que parecia ter-lhe sido roubada à nascença.
Deitou a mão a uma revista que começou a folhear desatento e lembrou-se que estava a fazer o mesmo quando o Luís entrou pela primeira vez na livraria e a sua presença o perturbou. Agarrou-se ao título dum artigo e não saiu dali, incapaz de se concentrar ou de o olhar. A partir daí, o Luís começara a entrar todos os dias para encomendar um livro ou comprar qualquer novidade que Paulo lhe sugeria.
Um dia reparou que Luís escrevinhara discretamente qualquer coisa num livro que não comprou. Mal ele saiu, foi a correr ver o que era. A lápis, muito ao de leve, Luís escrevera: "Estimulante para a imaginação. Já o li. Vale a pena."
No dia seguinte a cena voltou a repetir-se. Outro livro com a seguinte mensagem a lápis: "Fuja! Péssima tradução." Paulo achava original aquela forma de aconselhamento. Ainda esperou ver um dia uma mensagem escrita para ele, mas isso nunca aconteceu. Mais tarde, Luís confessou-lhe que era um velho hábito que tinha adquirido numa livraria em Amsterdão, onde tinha comprado um livro fantástico graças à inscrição doutro leitor.
Levou tempo até tomarem juntos um primeiro café, mas Paulo às vezes seguia-o só para contemplar a sua figura. Adorava a maneira de o Luís descer escadas sem olhar os degraus, de atravessar a rua sem olhar os carros, como se soubesse que tudo parava à sua passagem. Paulo nunca se tinha sentido tão enfeitiçado. Não era o mesmo feitiço que a figura da mãe exercia sobre ele e que o fazia vestir as suas roupas, quando ela estava fora, ou até dormir com elas para lhes sentir o perfume. Nem era apenas aquela pulsão que o levara a seguir o polícia até à garagem dos pais, ou a deixar-se trancar na casa de banho do Centro com o marido da dona da loja da frente, mal ele começara a trabalhar na livraria.
Com o Luís voava nas asas do sonho, e assim se deixou pairar até ao dia em que se viu de novo confrontado com o desejo que lhe comandava o corpo. Já tinham saído juntos algumas vezes, uns almoços, umas idas ao cinema, uma exposição de pintura, um concerto na Aula Magna; Luís a contar que era casado e tinha uma filha com catorze anos, Paulo que tinha uma namorada, mas nada daquilo parecia ser real quando estavam na presença um do outro.
Um dia, Luís fora fazer uma conferência a Beja e convidou-o a acompanhá-lo. Conversaram e ouviram o Sting e a Alison Moyet pelo caminho sem dar pelo calor que fazia, pela paisagem ou pelo que fosse. Paulo pediu para ouvirem de novo a Alison Moyet no For You Only. Luís falou do cansaço que vinha sentindo por algumas responsabilidades profissionais, do sonho de um dia largar tudo e partir para uma missão humanitária.
- É um sonho bonito - disse Paulo - mas talvez um bocado utópico, não achas?
Com uma família, é difícil bater com a porta sem olhar para trás.
- É bom ter sonhos utópicos para poder atingir a realidade que lhes fica mais próxima. A minha meta é o cume da montanha, se a morte me apanhar a meio da subida o que importa é que eu estava no meu caminho. - A inspiração vinha-lhe das filosofias orientais.
Paulo ficou a pensar se algum dia descobriria o seu próprio caminho. Qual seria a sua montanha?
Partilharam o mesmo quarto da pousada, com duas camas juntas. Ambos fingiam dormir quando durante a noite o pé do Paulo e a perna do Luís foram ao encontro um do outro e se deixaram ficar colados. Na noite seguinte voltou a acontecer o mesmo, mas nem um nem outro deram mostras, quando amanheceu, de saber o que se tinha passado. No regresso havia uma tensão no ar, feita da tristeza inconfessada da separação iminente, do regresso forçado a um mundo que já não fazia sentido sem a presença do outro. Só dois meses mais tarde, no pequeno apartamento do Paulo, é que Luís se sentara subitamente ao seu lado no sofá de veludo encarnado e lhe dissera:
- Um dia hei-de conseguir mudar a estação dos teus olhos.
Paulo não entendeu.
- O quê?
- Trazes uns olhos de Inverno e eu quero ver-te com um olhar de Verão. Luminoso e quente. - O seu sorriso era terno.
Nessa noite dormiram juntos e muitas estrelas brilharam no coração de ambos.
MAS NÃO FOI POR MUITO TEMPO.
Entre a Carocha, namorada do Paulo, ter encontrado um livro com uma dedicatória comprometedora do Luís e a mãe dele ficar a saber da história, foi um instante. Abafaram o caso para que ficasse apenas entre elas, o Miguel, pai do Paulo, e o padre Filipe, encarregado de lhe lembrar a doutrina católica e de lhe devolver a sanidade, caso ele já estivesse muito afectado. Tal como Adão pecara ao desobedecer ao Criador, este filho atrevera-se a votar ao fracasso o destino tão criteriosamente preparado pelos seus pais.
"Confessa-te pecador, pede perdão pelos teus actos insanos." Foram as primeiras palavras do padre ao chamar Paulo à sua presença.
Já não havia máscaras, artifícios, nem prensas que lhe suavizassem as rugas que o prazer lhe punha. Sentado no chão, perto do sofá bege donde se tinha deixado escorregar juntamente com estes pensamentos, Paulo misturava no gim toda a vergonha, o medo, a raiva, a revolta, o ódio e bebia-os dum só trago não sabendo quanto se estava a envenenar.
Quando Luís entrou, viu-o tombado sobre o lado direito. Desamparado, dormia. Ajoelhou-se ao seu lado, abraçou-o e ficou por momentos a observar aquele corpo abandonado, magro e frágil.
O mesmo que o deixara hipnotizado desde o primeiro dia em que o viu, pelo seu movimento ondulante mas nada efeminado, como se ele fosse num passo de bailado, numa coreografia contemporânea, pelos corredores do Centro até à porta.
Paulo sabia que estava a ser seguido, mas fingira não perceber, afastando-se, insinuante e provocador na sua magreza esguia, até desaparecer dentro dum táxi. Jamais contaria ao Luís que ao chegar a casa, se metera num banho e enfiara a cabeça debaixo de água contando mentalmente. Se conseguisse passar dos quarenta, aquele cliente havia de voltar a aparecer.
Perante a figura indefesa que tinha agora à sua frente, Luís desejou que tudo recomeçasse e que um sopro de coragem tivesse insuflado a alma do Paulo. Levantou-o nos braços e levou-o ao colo para o quarto.
Os seus olhos iam molhados de ternura e compaixão.
Da rua, no passeio em frente, o seu habitual posto de observação, Mariana vê uma luz acender-se num quarto que não conhece. Parece-lhe ser a figura do pai, que há pouco vira entrar, a fechar as cortinas. Depois vai-se embora, triste e confusa, como sempre acontece todas as vezes que os seus passos se encaminham para aquela casa onde se recusa a entrar.
Leva consigo os mesmos sentimentos contrários que há muito a acompanham e não lhe dão paz.
RITA
Rita queria mandar embora aquela tristeza que não a deixava concentrar-se no guião que estava a reescrever, mas não era capaz. O produtor pedira-lhe que refizesse várias cenas porque queria uma história mais leve. Fartas de problemas andavam as pessoas, o que precisavam era de se distrair em vez de se embrenharem em pensamentos, dúvidas e conflitos psicológicos. Precisava de mais acção, mais diálogos, conversa leve que toda a gente entendesse e menos análise dos sentimentos, porque isso maçava o público e fazia-o mudar rapidamente de canal.
- As pessoas não estão interessadas em que se aprofunde demasiado os porquês dos seus dramas, querem é esquecê-los, entrar num turbilhão qualquer que as anestesie, entendes? insistia o Alberto na sua voz um bocado pastosa.
- Mas não me encomendaste uma telenovela! Aprovaste a minha ideia porque querias uma série diferente.
- Mesmo assim! Quem é que tem pachorra, ao fim dum dia de trabalho e de chatices, para assistir a uma história em que as personagens se lembram de escarafunchar nas próprias feridas à espera de lhes descobrir a causa? Há soluções mais rápidas.
- Achas que sim? - perguntara Rita, descrente.
Na testa do produtor uma série de borbulhas pareciam formar a Ursa Maior.
- Mas em que mundo é que tu vives? Nunca tomaste um antidepressivo, nem bebeste uns copos ou te charraste ou snifaste para fugir a uma dor?
- Então que título é que devo dar à série? "Enterrar o Passado em Prozac". Porque é que os programas de televisão hão-de equiparar-se às drogas em vez de estimularem a abertura das consciências? - Rita puxou dum cigarro e atirou com o cabelo para trás.
- Temos uma santa que nunca apanhou um pifo - disse Alberto, deixando o cigarro mal apagado no cinzeiro, hábito que punha a Rita em franja.
- Já apanhei muitos. E as drogas que experimentei foi por puro hedonismo. À procura de prazer. Quis viver sensações novas e diferentes. Agora estou mais comedida. Mesmo assim, quando bebo uns copos, é porque gosto de vinho e quando fumo um charro é porque me divirto com a minha própria desinibição.
- Aí está! - Ele vitorioso.
- Aí está o quê? Se tenho um problema não é isso que o vai resolver. - Rita esmagou com ganas o cigarro do Alberto que ficara a fumegar.
- Mas fica esquecido momentaneamente.
- Sim, às vezes uns copos a mais aliviam-me o peso da timidez.
- Estás a ver! - disse ele a dar-se razão.
- Mas não costumo recorrer a artifícios para fugir a sofrimentos morais ou dúvidas que me incomodam verdadeiramente.
- Então és única!
- Sei lá! O que eu quero é viver tranquila, equilibrada, com o máximo de momentos de felicidade, e para isso tenho de ir desfazendo os nós que há dentro de mim em vez de ir atando outros por cima. - Rita atirou os cabelos pretos que lhe caíam para a frente num gesto mais brusco do que o habitual.
- Mas que sagesse!! - riu-se Alberto, irónico.
- Podes gozar, mas já atropelei demasiados sentimentos por falta de consciência! Só à medida que a fui ganhando é que percebi que o caminho era outro. - Rita a tentar acalmar-se.
- Pois, minha querida, mas a maioria das pessoas não está interessada nisso.
- Há muita gente que está! - teimava a Rita.
- Procura falar a sério com alguém, saber o que essa pessoa sente verdadeiramente, e verás se não levas logo uma corrida e se não ficas com um rótulo de chata,
- Falar a sério não significa falar só de dramas. Também há alegrias profundas, sonhos, fantasias que é bom partilhar.
- Mas ninguém está muito afim de expor sentimentos, entendes? Fica-se mais vulnerável. - Mudando de tom ao vê-la chateada: - Vá, não fiques com essa cara, não passa duma série de televisão - disse Alberto com uma risada. - Eu não te estou a chamar chata. Sabes bem como gosto de ti.
- Não comeces!
- Tu é que nunca quiseste nada comigo, mas não penses que desisto tão facilmente.
- Tenho a impressão que o chato agora és tu - respondeu Rita ao mesmo tempo que fugia com a sua mão que ele agarrara.
Rita já estava arrependida de ter avançado com o projecto da série televisiva. O seu mundo era o cinema onde já tinha feito de tudo um pouco, desde o som à realização, passando pela escrita e pela produção. Mas também aí era frequente, nos últimos anos, aquele sentimento de descontentamento pelas pressões vindas das exigências do mercado e das mais variadas cabeças pensantes. Esta pessoa vende, aquela não vende, este assunto vende o outro não, quem é ou não é da simpatia do júri que atribui subsídios, quem é que nomeou os júris, quem pertence ou não àquele lóbi, quem manipula, quem corrompe, quem legisla. Estava a ficar farta desses "quens" que ladravam em gabinetes ou fora deles, decidindo o que é ou não cultura, o que merece ou não apoio financeiro. Há bastante tempo que vinha pondo em causa o prazer que tinha no seu trabalho, e neste momento, que tanto jeito lhe dava ter qualquer coisa a que se agarrar, sentia um enorme desamparo. Como se andasse no escuro, à espera de ver uma luz acender-se para lhe indicar o trilho que ela estava incapaz de escolher.
TERIA SIDO ELA PRÓPRIA QUE APAGARA A LUZ?
Precisava de tempo para sentir o que estava a sentir, em vez de passar por cima.
UMA VOZ DENTRO DE SI QUERIA FAZER-SE OUVIR. DESTA VEZ NÃO A IA SILENCIAR.
Desligou o computador, ajoelhou-se ao lado da Lua que se lhe entregava de barriga para o ar a pedir festas. Tinha vontade de chorar mas não lhe saíam as lágrimas. Atabafava-a aquela sensação de ter as emoções presas, precisava de soltar-se, deixar sair, mandar embora o autodomínio. Porém, o autodomínio parecia ter ganho corpo e ter-se transformado numa segunda entidade dentro da Rita, um guarda prisional que lhe aferrolhava as emoções numa cela. Na verdade, nem sempre estava bem segura da diferença entre o que sentia e o que queria sentir, tantas vezes se obrigara a aparentar estados de espírito que lhe pareciam ser esperados ou desejados pelos outros.
Quando o pai morrera, por exemplo, por mais que quisesse não conseguira sentir tristeza. Ficara surpreendida com a ausência de qualquer sentimento de pesar porque, mesmo não gostando muito dele, achava que se alguém perdia o pai ou a mãe, esse sentimento acabava por se manifestar. Já vira tanta gente chorar nestas condições, que estranhou não lhe acontecer o mesmo. Até teve, durante as cerimónias fúnebres, imensos sentimentos de culpa por nem sequer ser capaz de afivelar uma cara compungida, habitual nestas situações. A bem dizer, não se esforçara muito porque achava horrível fingir uma dor que não se tinha. Mais do que uma alegria.
No dia dos seus anos já lhe acontecera, várias vezes, ter os amigos à volta a festejar e ela sem pachorra nenhuma para aquilo, deprimida, até. Mas gostava tanto deles que não os queria desiludir. Era suposto ser um dia alegre e ela lá fazia um esforço para não deixar descair o sorriso.
Irritava-a o mal-estar que sentia às vezes, até complexo de culpa, por não estar a corresponder à conduta suposta, nem sentir o que lhe era ditado por essa coisa assustadora, medonha e tirana que é a normalidade.
Quando a mãe morrera também não tinha chorado. Mas aí os motivos tinham sido outros.
Já vinha fazendo o luto há muito tempo, desde que a doença implacável começara a levá-la para longe, deixando-lhe visível apenas a sombra.
A impotência perante o sofrimento alheio provocava-lhe revolta, seguida sempre duma tristeza profunda. A vida queria ensiná-la a aceitar uma difícil lição.
Rita era daquelas pessoas que, se alguma coisa não corria bem para si ou para os outros, tentava logo descobrir a causa para procurar o remédio adequado. Habituara-se a acreditar no poder da sua vontade, da sua energia. Se pusesse em tudo o seu maior empenho, as coisas desenrolar-se-iam como ela desejava.
Em parte era verdade, mas nem sempre a solução estava nas suas mãos.
Não só tinha muita dificuldade em aceitar a sua impotência perante uma vontade maior, como em lidar com a dor. Às vezes, o remédio era apenas sofrer, deixar a dor crescer até rebentar, mas isso era toda uma aprendizagem que ainda tinha de fazer. Tivera muitas vezes de se armar em forte e até de mostrar alguma dureza para se libertar dos fardos que pareciam estar-lhe destinados, aos quais teria sucumbido se não fosse o seu poderoso instinto de sobrevivência. Mas isso era toda uma história de infância com que já tinha mais ou menos aprendido a conviver.
Levantou-se, com a Lua atrás dela, fechou a porta que dava para o jardim e viu as horas. Ainda havia tempo para passar na galeria do António, dar dois dedos de conversa e deixar-se tentar pela escultura que andava a namorar.
Enquanto enfiava o blusão de pele preta e macia, lembrou-se, como quase sempre acontecia àquela hora, de ligar à tia Maria do Carmo, a pessoa cuja morte mais chorara. Já lá iam anos e parecia não ter ainda integrado o desaparecimento do único ser que alguma vez a fizera sentir-se protegida, por quem sentira desde miúda um enorme fascínio, transformado com o tempo num amor terno e cúmplice. Mais importante ainda, livre.
Era assim que gostaria de se ter relacionado com a mãe, embora já não guardasse qualquer ressentimento dentro de si. Tivera dificuldade em aceitar a fraqueza dela perante o pai. Felizmente pacificara-se com ela muito antes da sua morte.
Ligou o rádio já sintonizado num posto que só emitia música, acendeu uma luz para o caso de anoitecer antes de voltar e foi buscar um biscoito.
- Eu não me demoro. Fica sossegada, está bem? - Rita pegou no cachecol encarnado que estava nas costas duma cadeira.
A Lua fitava-a resignada, com os seus olhos doces, inteligentes, humanos, a dizer-lhe:
"Está bem, eu fico. Espero por ti o tempo que for necessário. Hei-de esperar sempre por ti."
- Toma.
Rita deu-lhe o biscoito, que ela prendeu entre os dentes sem mastigar, fez-lhe mais uma festa e saiu.
SABIA QUE DEIXAVA ATRÁS DE si o ÚNICO SER QUE A AMAVA
INCONDICIONALMENTE.
Luís
Luís saiu do consultório da psicóloga. A conversa abriu-lhe algumas esperanças em relação ao futuro do Paulo e por arrasto ao seu. Sabia que os pais dele não estavam permeáveis à ideia do filho ser ajudado por alguém que não pertencesse à esfera deles. Felizmente, o Paulo tinha-lhe contado o teor das conversas com o padre Filipe. Que Deus o tinha castigado, que só pela oração se podia redimir, pelo sacrifício, pela abstinência. Que aquilo era uma doença do espírito que alastrara ao corpo, mas que o iria curar. E ele a ferver de fúria, revoltado com tamanha ignorância ou insensibilidade. Estupidez! Estupidez e teimosia, na cegueira voluntária.
HaVIA DE LIBERTAR O PAULO DAQUELE DOMÍNIO.
Já não se tratava apenas do amor que sentia por ele mas duma espécie de missão. Trazê-lo a uma realidade mais generosa, onde vivem as pessoas que se abraçam sem medo ou nojo das feridas alheias porque também conhecem as suas e sabem que só o amor as pode sarar. Tinha de convencer o Paulo a ir às consultas, de lhe dar forças para não desistir a meio do labirinto, de lhe fazer ver que havia uma saída.
- Há sempre uma saída para quem está do lado da razão, Paulo!
- Mas quem é que te garante que sou eu que tenho razão e não os meus pais?
- O meu coração, querido, apenas o meu coração. Se eu não acreditasse tanto nele, tinha ficado tão infeliz como tu quando deixei o meu casamento por ti. Não tem sido fácil, a Teresa mostrando a toda a gente a carta que apanhou, a minha filha a dizer que tem vergonha de mim. Estou crivado de setas, Paulo, mas não é isso que me vai fazer mudar de rumo. Não posso, percebes? Na minha cabeça não existe um comando cheio de botões, que ligam e desligam os meus sentimentos e o meu sexo, quando eles pedem para se exprimir livremente. Não sou um bandido, um assassino, um violador, não represento um perigo para ninguém.
- Magoaste a tua mulher e a tua filha, enganaste-as.
- Magoei-as involuntariamente, não as enganei nos meus sentimentos. Quando casei com a Teresa estava apaixonado por ela. O amor que sempre tive pela Mariana mantém-se inalterável.
- Contaste-me que sempre te tinhas sentido atraído por homens. - Paulo insistia em representar o papel de advogado do diabo.
- Volta e meia, sim, isso acontecia-me, mas durante anos consegui afastar esses pensamentos. Achava, ou queria achar, que não passavam duma fantasia. Talvez por saber que isso não era bem-visto, que não era considerado normal. Até começar a perceber que a vontade era mais forte do que eu e a ficar obcecado pela experiência. Acho que foram os piores tempos da minha vida. Deitava-me ao lado da Teresa a pensar num qualquer que se tivesse cruzado comigo lá na faculdade e sentia-me culpado; tomava o pequeno-almoço com a minha filha e sentia vergonha dos pensamentos tidos na véspera. E quanto mais os queria afastar, mais eles se tornavam presentes até não aguentar as mentiras que dizia a mim mesmo e a mentira em que me sentia a viver. Não tinha o direito de me continuar a enganar e de enganar a minha família que eu respeitava e amava.
Estas e outras conversas do género pareciam apaziguar o Paulo por umas horas, às vezes dias, mas, passado pouco tempo, os pesadelos estavam de volta. Paulo acordava alagado em suor e ofegante, dizia ele que a fugir duma sombra que o perseguia, ou chorava baixinho pela madrugada fora, enquanto Luís lhe oferecia o ombro onde ele acabava por adormecer, já com a cidade a acordar.
Tinham-lhe dado as melhores referências da psicóloga, uma mulher perto dos cinquenta anos, com largos anos de experiência. Pouco antes de se despedirem, ela dissera-lhe:
- Já reparou que nos países onde há ditaduras, os dirigentes negam sistematicamente a existência de presos e torturados? A nossa sociedade faz o mesmo quando nega, pela voz da maioria, a existência de discriminação em relação às mulheres e aos homossexuais. O Paulo que me ligue para marcarmos uma hora.
Gostou do aperto de mão firme e do sorriso aberto.
Subiu as escadas do centro budista onde todas as quartas-feiras participava na meditação conjunta, disposto a sair dali com a leveza necessária para transmitir ao Paulo a importância das consultas com esta nova psicoterapeuta sem o sobressaltar.
NÃO LHE PODIA PASSAR A SUA ANSIEDADE.
ROSARINHO
De vez em quando, Rosarinho lá tinha de sair para ir renovar a baixa, comprar cigarros e chocolates, pois doutras coisas pouco comia. Sem paciência para cozinhar, aquecia uma sopa que a Célia lhe deixava preparada ou encomendava uma piza. Também ia ali perto visitar os sobrinhos que eram a sua adoração, ou não fossem eles filhos da irmã mais nova que ela ajudara a criar como se fosse sua filha; contudo, ultimamente, até para isso tinha de fazer um esforço. Estava sem cabeça para a barafunda que havia geralmente em casa dos irmãos; eram cinco, todos com imensos filhos e eles também pareciam não se importar com a ausência dela. Raramente lhe ligavam, a não ser que precisassem dos seus préstimos.
A seguir ao almoço lá se arrastou para o elevador do prédio. À porta cruzou-se com a mulher do porteiro (seria Odete?) e notou-lhe qualquer coisa de diferente que não identificou.
Comprou duas revistas para se entreter enquanto esperava a sua vez na consulta e só quando regressou e se cruzou de novo com a Odete (?), que também vinha a entrar, é que lhe viu o braço todo entrapado e um penso na cara. (Se já era vaga, a depressão tornara-a pior.) Então ela não sabia do incêndio que tinha havido na casa deles havia quinze dias? À uma da madrugada, as sirenes dos bombeiros bem se tinham feito ouvir e toda a vizinhança acordara. Naturalmente estava fora...
Mas Rosarinho estava em casa e não dera por nada, adormecida certamente em frente à televisão, sob a acção dos comprimidos. Até quando iria precisar daquelas drogas?
- A menina desculpe, mas não a posso ajudar a carregar esse cepo. - Olhando melhor: - Isso é capaz de ser um bocado grande para lareira.
- O cepo é para enfeitar, não é para lenha - respondeu Rosarinho morta de riso.
Tinha-lhe saído cara a ida ao médico. Ao lado, havia uma galeria de arte onde às vezes entrava, de modo a espera da consulta não se tornar tão monótona. Trabalhava com artistas novos e por isso os preços ainda eram acessíveis à sua bolsa.
A escultura em madeira atraíra-a de imediato, pela simplicidade da forma e a mistura com a pedra e o ferro cravados, quase escondidos, como se dela fizessem parte integrante. Uma desarmonia harmónica que também a atraía em algumas pessoas.
Meteu a chave à porta, contente por regressar e por, finalmente, ter conseguido esclarecer a situação com a Vera.
A mesa, onde ambas tinham almoçado uma tarte e uma salada, ainda estava posta. Decidira atirar as culpas para a falta de afecto do Vasco. Uma enorme carência arrastada ao longo dos anos, não havia um beijo, uma festa, fazer amor era um acto mecânico. Tinha sido sensível à ternura e às atenções da Vera, mas deviam ser realistas e admitir que nada daquilo tinha futuro. Nem Vera se ia separar do marido e andar com os filhos às costas, nem ela estava preparada para enfrentar uma relação desse tipo, com todas as consequências inerentes, familiares, sociais, etc.
O almoço ficou a meio, nem uma nem outra o conseguiram acabar. Durante uns tempos, certamente, Vera não lhe voltaria a aparecer porque, não obstante todos os cuidados de que se munira para não a magoar, sentira que havia uma ferida aberta. Apesar disso, juraram uma amizade eterna, despediram-se no meio de abraços, risos e algumas lágrimas rapidamente disfarçadas, cada uma tentando aligeirar a dor da outra.
Cansada de empurrar a escultura dum lado para o outro e incapaz de decidir onde ficaria melhor, encostou-a a um canto, atirou-se para o sofá e acendeu um cigarro.
Vera saberia pela vida fora que era sincera e incondicional a sua amizade mas nada mais, pensou Rosarinho querendo tranquilizar a consciência.
Alguma coisa estranha se tinha passado com ela desde manhã.
A sua habitual dificuldade em tomar decisões não se coadunava com a facilidade que tivera em pegar no telefone e, com voz determinada, pedir à Vera para se encontrarem ao almoço. Tinha a estranha sensação de alguma coisa exterior a guiar, uma espécie de impulso, de certeza, o mesmo que sentira ao ver a escultura. Como se, pela primeira vez na vida, começasse a ter verdadeira consciência do que queria ou não, sem indecisões.
Sempre tivera a maior dificuldade em expressar qualquer desejo ou sentimento que não fosse agradável aos outros, sobretudo se as pessoas mostravam simpatia por ela ou qualquer tipo de interesse. Daí o seu habitual embaraço em livrar-se de alguns apaixonados que não lhe interessavam minimamente.
Haveria maneiras simpáticas de enxotar uma pessoa que gosta de nós? Como é que se diz "não", a um convite amável? Para Rosarinho isto era um berbicacho.
Em tempos alimentara um flirt com um amigo. Um apaixonado por mar e barcos. Ele era tão querido com ela que foi incapaz de lhe confessar a sua total falta de pachorra para barcos e ausência de fascínio pelo mar, para não falar de terror.
Pelo contrário, para ser simpática, mostrou-se sempre de tal forma entusiasmada com os seus relatos que, no dia em que ele comprou um barco, a convidou imediatamente.
Apavorada, quase não dormiu na véspera. Deu voltas e mais voltas a imaginar-se sozinha com ele num veleiro pelo mar fora, ao sabor dos ventos e sabe-se lá que tempestades. Os nervos eram muitos, mas para não desiludir o amigo, e já que tinha chegado até ali, resolveu dar a volta ao assunto e pensar que não deixava de ser um passeio romântico. Quando no dia seguinte se viu enfiada num barquinho mínimo, no meio dum mar, inicialmente azul e tranquilo, transformado de repente num turbulento lençol cinzento-chumbo, ficou muda de pavor. Para ajudar, um cheirete intenso, nauseabundo, a gasóleo, fazia-a desejar morrer, e pouco faltou para se atirar borda fora com tanto enjoo.
Mas nem assim lhe ficou de emenda. A falta de amor que arrastava desde a infância tornara-a dependente de qualquer migalha. Continuou pela vida fora a distribuir o seu charme, a cair em situações equívocas e a lutar com o embaraço do costume para se ver livre delas.
A razoável facilidade com que tinha esclarecido tudo com a Vera dava-lhe alguma segurança, mas parecia-lhe não ser ela própria a comandar a acção.
Se estivesse atenta ao retrato da tia Flávia, perceberia donde vinha a ajuda. Mas não estava.
bom, não ia ficar o resto do dia a pensar no assunto. Rosarinho não era muito dada a investigar os porquês das coisas, e o cansaço, quase permanentemente a invadi-la, dava-lhe uma forte sensação de desconforto. Deixava-a desinteressada de tudo, sem a mínima vontade para, sequer, alinhar os pensamentos que boiavam no mar revolto da sua mente.
Tinha uma mensagem do Vasco no gravador a dizer que a empregada, arranjada por ela, não aparecia há dois dias, e outra da Marta, irmã do Pedro, o seu primeiro e único marido. Há dias tinham jantado em casa de uns amigos e devia querer fazer o ponto da situação.
Rosarinho sorria ao lembrar-se do ar circunspecto da Marta, quando o seu parceiro de mesa entabulou uma conversa sobre pintores e escolas de pintura. Marta não distinguiria um impressionista de um cubista, nem que Monet e Picasso saltassem do túmulo e lhe viessem beijar os pés, mas fez um ar compenetrado de quem domina o assunto. Ela era assim, levezinha, mas uma jóia de pessoa. Uma amizade de há vinte anos que se fortalecera na altura do divórcio.
Pedro pouca ou nenhuma atenção dera à Rosarinho quando ela mais precisava do seu apoio. A criança morrera poucas horas após ter nascido, e nem o estado grave da Rosarinho despertou no marido algum sentimento solidário. Bem pelo contrário, ao saber que ela não podia ter mais filhos quase nem a encarava e dali à separação foi rápido. Uma sensação de abandono que Rosarinho nunca mais esqueceria.
Foi a segunda grande desilusão da sua vida. A primeira tinha sido com a mãe, na adolescência.
Onde estaria o amor? Desejou morrer, tal o desgosto e a culpa sentida pela morte da filha. Como poderia suportar que a sua esperança, alimentada dentro de si, através de si, tivesse morrido sem lhe dar tempo de a socorrer? Jamais poderia repetir a extraordinária sensação de trazer uma vida na sua barriga tornada estéril para sempre. Jamais poderia voltar a alimentar o sonho de vir a ter quatro ou cinco filhos como era tradição na família. Talvez o Pedro tivesse razão. Talvez não fosse digna de ser amada. Achava-se um lixo, um pedaço de gente inútil.
Graças a um providencial espírito de sobrevivente, quando estava prestes a afundar-se numa culpa demolidora, conseguiu puxar do pouco que lhe restava da sua auto-estima e olhar o futuro com alguma esperança. Passado o primeiro choque, o Pedro certamente cairia em si, não podia estar enganada depois de vários anos de namoro. Onde estava o homem bom que escolhera para pai dos seus filhos? No momento em que mais precisava de o ver revelar-se, deparou-se com um monstro de egoísmo, escondido durante anos debaixo duma falsa generosidade. O seu último ídolo caía por terra para nunca mais se levantar.
No seu entender, até o mais insensível dos homens havia de ter momentos de humanidade, ainda que lhes tentasse fugir, momentos em que as fragilidades se revelam mesmo contra vontade, mas o Pedro nunca chegou a dar sinais disso, fosse qual fosse a situação. Daí para a frente, nunca mais voltara a ter coragem para viver uma autêntica paixão. Era preciso ser muito forte para o fazer, para resistir ao embate com a realidade, às vezes cruel, e ela duvidava que o fosse. O medo de voltar a sentir-se tão infeliz, não a deixava entregar-se a qualquer hipótese de felicidade. Desde então, vivera anestesiada, num estado indeterminado, mal definido, espécie de limbo entre as portas do inferno e do céu.
MAS A SUA ALMA DAVA SINAIS DE RECUSAR MAIS SEDATIVOS.
O DESPERTAR ADIVINHAVA-SE DOLOROSO.
RITA
Por cima dos jeans rotos e puídos, o velho camisolão encarnado assentava na Rita como uma segunda pele. Pelo menos era assim que ela sentia o toque familiar e cúmplice das suas roupas preferidas, algumas com lugar cativo há quase vinte anos em gavetas e roupeiros. Se o seu espírito se tivesse mantido tão inalterado como a anca, o peito ou a cintura, Rita seria ainda hoje aquela mulher de temperamento tantas vezes intransigente e duro, excessivamente perfeccionista, incapaz de admitir a menor falha a si ou aos outros. Uma mulher menos feliz, dentro de quem fazia demasiadas vezes mau tempo, pronto a virar tempestade se alguém lhe dissesse alguma coisa.
Nessa época, àquela hora da madrugada, ainda as suas conversas eram de fumo, com gestos e palavras enevoadas, cada vez mais ténues, até que o pão ou as bolas-de-berlim crescessem nos fornos a lenha da fábrica dos bolos.
Uma depressão e as perdas sucessivas de amigos e familiares tinham-lhe dado um contorno mais doce e humano. Até aí, vivera na ilusão de que podia controlar não só o seu destino como o dos outros, que podia impedir que algum mal irremediável acontecesse sem que ela pudesse prever ou deitar-lhe a mão; cansava-se a estudar hipóteses para evitar que alguém à sua volta viesse a sofrer a surpresa de alguma desdita; não aceitava que uma determinação acima da sua tivesse sempre a última palavra.
Tudo começara com a depressão, identificada apenas ao fim de largos meses, a morte da tia Maria do Carmo, a perda do Fogo que durante quinze anos lhe lambera os tornozelos à saída do duche, a ruptura com a Lena que ao longo de onze anos lhe dera o maior exemplo de generosidade e entrega, culminando, quando por fim ficou só no imenso casarão, com a morte do jardineiro e uma peste que lhe minou o jardim duma ponta a outra.
RiTA PERCEBERA QUE TUDO ISTO ERAM SINAIS E ASSUSTOU-SE.
MAS O TEMPO AJUDÁ-LA-IA A SENTIR QUE A TIA A ACOMPANHAVA.
Já passava das quatro da madrugada, mas a Rita continuava a tirar de dentro dos caixotes pedaços da sua vida guardados em álbuns e em velhas caixas de folha, que acolhiam confidências escritas e outros pequenos tesouros do coração. Abria-os com devoção e gestos lentos, como se não ousasse despertá-los do sono em que repousavam.
A coleira encarnada do Fogo, com cabeças de cão bordadas a verde e branco, trouxe-lhe à memória os últimos dias de luta para o salvar. O seu olhar triste e paciente, sempre preso aos seus movimentos, despedia-se a todo o momento. Como se desejasse não ser apanhado de surpresa e ter de partir sem uma derradeira despedida. Nas noites anteriores tinha ficado a dormir no quarto, a caminha azul no chão, ao lado da cama da dona. Pela noite fora, a mão dela descia de tempos a tempos para o tocar, a querer dizer-lhe:
"Fica tranquilo, descansa. Estou ao teu lado, meu bicho."
Depois acendia a luz, percebendo que ele não dormia e sorria para ele enquanto, ao de leve, lhe acariciava o pelo ruivo. Pela manhã, no momento de lhe pegar ao colo para o levar a receber o soro diário, o Fogo, que mal se punha em pé, deu um salto inesperado e aterrou na cama com a cabeça na almofada da Rita. Era ali que queria despedir-se, no lugar para onde saltava à socapa sempre que podia, para se espojar nos lençóis que guardavam o cheiro da dona. Rita não conseguia evitar um aperto no peito sempre que recordava aqueles últimos momentos, mas tranquilizava-a pensar que, até ao final, ele a sentira ao seu lado, abraçada àquele corpo, de ossos salientes e pêlo já sem brilho, que durante anos se lhe entregara a pedir festas. Desde que morrera a tia Maria do Carmo, trazia na consciência o peso de não ter ficado com ela até ao último momento e prometera a si própria nunca mais fraquejar em situações semelhantes.
A tia Maria do Carmo estava gravemente doente. Tinha saído de manhã dos cuidados intensivos; pouco depois Rita já estava junto dela. Lúcida e com o seu sorriso imortal dissera-lhe:
- Ainda estou em pleno uso das minhas dificuldades. Riram ambas do trocadilho e a conversa enveredou para
todos os lados menos o da doença. Rita teve de ir trabalhar e prometeu voltar mais tarde. Perto da hora do jantar apareceu de novo. A boa disposição mantinha-se, apesar das hemorragias se terem repetido.
- Vejo-te sempre a correr, minha filha. Esta pressa toda em que agora se vive deve ser uma canseira. Tantas invenções para encurtar distâncias e tempo, afinal para quê? Só vieram criar menos bem-estar e mais trabalho. Assim, não chegas à minha idade.
Rita sorria, enquanto ajudava a tia a comer. Já no fim do jantar, o lençol branco que a cobria, começou subitamente a tingir-se de sangue sobre a perna.
A morte vinha em silêncio mas colorida.
As enfermeiras acorreram de imediato à chamada, numa última tentativa de estancar aquele fio de vida que teimava em derramar-se, mas em segundos a respiração da tia Maria do Carmo alterou-se de tal forma, que a cama foi imediatamente empurrada para fora da enfermaria onde estavam outras duas doentes. Pelo corredor fora uma das enfermeiras ia dizendo:
- Dona Maria do Carmo aguente-se! Não se deixe ir, Dona Maria do Carmo!
Rita corria ao lado da cama com os olhos da tia muito abertos, presos nos dela.
- Espere aí fora, nós já a chamamos - disse-lhe a enfermeira mais nova, enquanto empurravam a cama para dentro duma sala onde habitualmente se faziam os pensos.
Os olhos da tia podiam querer dizer uma imensidão de coisas, contudo Rita só leu:
- Não me deixes!
Incapaz de desobedecer à ordem da enfermeira, Rita tremia de aflição no meio do corredor. O médico de serviço entrou e voltou a sair. Já várias vezes se tinham cruzado. Um homem novo, mal-encarado, cabeça redonda quase rapada, a lembrar uma bola de ténis, que não olhava de frente para ninguém, nem para os doentes. Poucos minutos decorreram até que a enfermeira voltasse.
- Ela está mesmo no fim. Quer ir lá despedir-se?
As lágrimas saltaram-lhe em silêncio, mas a enfermeira foi peremptória:
- Se é para ir lá para dentro chorar, não! Isso pode impressioná-la, pois está consciente.
E Rita não foi.
Quando a convidaram de novo a entrar já tudo tinha terminado. Um corpo magro, outrora elegante como o de uma bailarina, jazia debaixo dum novo lençol, agora imaculado. Maria do Carmo parecia esboçar um sorriso doce, o mesmo que fizera dias antes à médica, enquanto lhe dizia na sua voz terna de canção de embalar, que viver era muito bom.
Rita chorava de dor e arrependimento por ter deixado a tia à espera dela. Não se perdoava tê-la abandonado naquele último momento.
Que braços a estariam a acolher na morte? Imaginava uns braços maternos estendidos para a levar. Só podia ser. Mesmo do lado de lá, a tia merecia ser bem tratada. Estaria a ouvi-la? A vê-la? Não se atreveu a falar. Não saberia que dizer. Sabia apenas que não queria perturbar aquele momento solene.
Lá fora a noite caía azul e no céu havia agora
mais uma estrela para ela olhar.
Rita lembrou-se das estrelas minúsculas que a tia lhe ensinara a desenhar, ao abrir a caixa vermelha de charão onde guardava algumas cartas que nunca tinham sido enviadas. Quase todas escritas à tia depois da sua morte. No cimo de cada página uma pequena estrela.
"Era Verão e a longa caminhada no cemitério derretia em mim qualquer vestígio de lucidez. Nessa tarde, uma nuvem soltou lágrimas. Esbatiam-se na terra quente que lhe cobria o corpo e devolviam-na a mim numa atmosfera de incenso. Ali fiquei uns minutos, enquanto os outros esperavam. Procurei no lado de lá, na esperança de ainda ter uma última visão dos seus olhos infantis, o seu cabelo curtinho, mas alguém a puxara pela mão num convite, quem sabe se insinuante, para um ritual de apresentação cintilante aos espíritos que a esperavam. Só mais tarde a voltaria a ver, mas isso eu ainda não sabia.
Porque falo tanto consigo, tia? Será mais uma das minhas fantasias? Iludir-me ao pensar que me ouve, para poder continuar a acreditar que o seu espírito flutua por aí? Para me convencer que no dia em que me despenhar num avião ou vértice da minha saúde, não termina tudo nesse momento? E porque anseio pela imortalidade do espírito?
Não sei para onde a tia foi, mas alguma coisa sua permaneceu aqui. Herdei de si esta grande alegria de viver, e agradeço todos os dias a fantástica oportunidade que me está a ser dada de poder usar todos os sentidos para apreciar o que me rodeia. Até aqueles que nos levam para além desta realidade visível parecem despontar agora com mais veemência. Estará a ajudar-me daí, pondo mais luz no meu caminho?
Esta manhã acordei com a memória do cheiro da relva acabada de cortar. No meu despertar os horizontes eram verdes e apaziguadores. A Lua, prestes a esconder-se, desenhava-Lhe o rosto a prata, a sua voz era sobrenatural.
Não sei reproduzir a magia do que me disse, mas o sentimento que deixou em mim foi de paz.
Graças a si, sinto-me acordar aos poucos para um desconhecido que afinal conheço, no fim da ressaca duma enorme bebedeira de vida em que me convenci que por ver, ouvir, comer, respirar e ter orgasmos, já sabia viver. Sinto que, durante anos, levei uma existência desgovernada, em fuga. Não sabia que a recusa de enfrentar a morte era a responsável por tanta ausência de critério.
Na euforia de cada embriaguez engolia medos, suspeitas, mistérios. A vida a mostrar-me a dor e eu a não querer aceitá-la.
E quantas mãos me acenaram um adeus, ao mesmo tempo que se estendiam para me ajudar enquanto passavam para esse lado. O Francisco, o Eduardo, a Gena, o Álvaro, a Ana, a ruptura com a Lena, outra morte. Ávida a transformar-se, a querer transformar-me e eu a resistir à mudança, a temer o que lá vinha. De perda em perda venho aprendendo que as zonas sombrias são as que nos podem trazer mais luz, as que mais nos preparam para levar a bom termo esta caminhada.
A tia está a ensinar-me a viver lutos sem revolta e a não perder a capacidade de simultaneamente festejar a vida. A entregar-me a ela em vez de a tentar manipular. O meu mundo estava a ser uma ficção que eu própria criara com medo de sofrer.
Sinto-me a dar os primeiros passos na tentativa de pôr um pé na terra, sendo uma pessoa em vez de uma personagem. Começo a encarar as mortes sucessivas como etapas da vida. Enquanto do fundo do mar que me habita emergem sentimentos líquidos que me escorrem cara abaixo, saboreio memórias salgadas, trazidas à superfície ao longo de não sei quantas vidas, de milénios, memórias inscritas nos tempos que a todos pertencem. Quero sentir-lhes o gosto, o cheiro, tocar-Lhes a pele e rondar-lhes a alma como quem se entrega na intimidade, e aí, sim, talvez me sinta preparada para tentar que alguém me escute.
Não posso queixar-me da minha solidão. Agora sei que só conseguirei que me escutem, quando o meu coração falar a linguagem de todos os corações."
Dobrou a carta que tirara ao calhar e guardou-a de novo na caixa.
Rita lamentava não ter sido capaz de dizer a todos os que já tinham partido (seria antes morrido?), quanto os amava. Nunca conseguira dizer à tia como ela era importante na sua vida. Como a admirava, a achava bonita e doce, como as festas que lhe fazia nos cabelos quando era criança e adolescente lhe apaziguavam a revolta por se sentir mal-amada pelos pais. Como tantas vezes sentira por ela tanto amor como pela sua Própria mãe.
Tanto que fica por dizer àqueles que amamos por medo das palavras. Sim, as palavras nem sempre traduziam bem o que lhe ia na alma. Ou seria medo de se comprometer? De se tornar ridícula? Não sabia dizer em voz alta o que sentia, não sabia se queria ser escutada ou apenas deixar vir os sentimentos à superfície. Qualquer cão saberia mostrar melhor o seu amor pelo dono.
Travada pelo pensamento, talvez preferisse ser ouvinte de si mesma e, fechar-se num universo construído por si, onde cada partícula a acolhesse maternalmente e a fizesse sentir-se bem-vinda. Às vezes, os sentimentos pediam voz, porém o filtro da mente, ao tentar expressá-los, fazia com que se perdessem no espaço. Tantas vezes a vontade de lançar pontes e de ligar-se a outras margens, mas o mar imenso, espelhado, apenas lhe devolvia uma ilha. Falar ou escrever para quem? Escutava-se no silêncio, na ausência de eco, de resposta, no sono profundo de quem morre.
Contudo, Rita descobrira que havia uma comunicação para além das palavras, uma onda que envolvia as pessoas no mesmo abraço e as unia. Sonhava até com uma Net que ligasse corações. Uma rede de amor, entrega e rendição. Não a rendição dos vencidos face aos vencedores, mas a rendição dos homens à vida, sem o medo que os faz olhar os próprios irmãos como se fossem uma ameaça. Rita sonhava com o dia em que, finalmente, todos estivessem em paz e acreditava que isso não era assim tão utópico. Tinha acabado de ler um livro em que, através das mais recentes descobertas arqueológicas, se concluíra terem existido, 4000 anos a. C., sociedades europeias, totalmente pacíficas, apreciadoras de arte, igualitárias, não estratificadas, nem matriarcais, nem patriarcais.
Adorava encontrar nos livros a confirmação de que os seus sonhos, não confessados por medo de parecer ridícula, não eram afinal tão descabidos. De cada vez que isto acontecia, sentia-se uma mulher nova, segura das suas opiniões como se para as emitir tivesse de se apoiar em livros.
Rita precisava de tratar da sua insegurança. Já estava em idade de se libertar do estigma deixado pelo pai que, por tudo e por nada, sempre a apelidara de idiota.
A Lua veio tirá-la destas divagações ao raspar com a pata na porta para ir dar uma volta ao jardim. Enquanto a via farejar as ervas, pensou que ali estava um caso de amor à primeira vista.
Apesar de ter prometido a si própria não voltar a ter mais cães, no momento em que ambas se viram, souberam que se tinham escolhido uma à outra. Tinha uns olhos tão meigos, sabia dizer-lhe tão bem como gostava dela que temia não saber fazê-la sentir quanto era correspondida. E invadia-a uma tristeza oceânica ao pensar que também um dia haviam de se deixar pela morte.
Arrumou os caixotes vazios a um canto e olhou à volta. Aos poucos, a sala ia tomando forma. Lamentou que a escultura que andara a namorar tivesse sido vendida nessa tarde, mas não se prendeu ao assunto. Eram quatro da manhã, sentia-se cansada e sem sono. Doía-lhe o estômago. Mais uma digestão malfeita.
Veio-lhe ao pensamento a imagem da Cristina a tirar uma máscara, a apanhá-la desprevenida e indefesa perante uma nova face que lhe metia medo. Rita estava entregue, confiante e vira-a sair da sua vida como quem sai de um autocarro. Naquele momento ficara com a sensação que apenas tinha servido para transportar Cristina até àquela paragem. Queria afastar a mágoa mas ainda era cedo.
ONDE ESTARIA o AMOR
QUE A CRISTINA DIZIA NÃO PARAR DE CRESCER AO LONGO DOS ANOS EM QUE VIVERAM JUNTAS?
MARIA DO CARMO
Precisas de descansar, filha. Preocupas-te de mais. Deixa que as coisas fluam porque muitas delas resolvem-se por si mesmas. Ainda não sabes, mas daqui por uns tempos a Cristina vai pensar que é possível voltarem atrás e tu não vais resistir à tentação. Mas voltar atrás para quê? Quando se volta atrás a paisagem já mudou e nós também. Voltar atrás é coisa que não existe. Sei do que estou a falar.
Um dia também tentei e saí-me mal. Valeu-me ter aparecido aquele homem tão bem-parecido e charmoso que mais tarde acabou por ser teu tio. Sabia que para conquistar uma mulher era preciso aparecer-lhe na altura certa. Era muito educado, culto, bem-falante e tratava-me com ternura. Tinha sofrido uma grande desilusão antes de o conhecer e senti-lo apaixonado por mim, foi um bálsamo para o sofrimento que ainda arrastava. É claro que, passado pouco tempo, vi logo todos os seus defeitos, mas teimei em passar o resto da vida à espera que certas virtudes exibidas no inicio se reacendessem... Um defensor clandestino dos ideais marxistas, solitário e arrogante, que tanto me despertava admiração e amor, como raiva e desapontamento. Fui no encalço de um coração cujo rasto se apagou com o tempo e de uma alma que nunca tive o privilégio de sentir.
A minha mocidade, era assim que se dizia nesse tempo, já há muito tinha passado e arrastara com ela algumas ilusões.
Casei três anos depois de o conhecer, já a paixão tinha esfriado, mas num acto voluntário e consciente de ambos. Vivemos ao lado um do outro com o conhecimento pleno de termos juntado as nossas solidões porque já passávamos ambos dos quarenta, idade que nesse tempo era sinónimo de maturidade obrigatória com um pé a atirar para a velhice.
A cerimónia, a que a minha mãe se recusou a assistir por não ser na igreja, foi simples. Também lá estavas com os teus primos. Tinhas-te enfurecido com a tua mãe que te obrigara a vestir um vestido cor de alface, e dizias que não querias ficar nas fotografias do casamento vestida de salada. Os teus pais foram os meus padrinhos.
Não te davas bem com ele e tinhas alguns motivos, a idade e o prestígio engrossaram-lhe o mau génio. Era bom homem, apesar de muito egoísta. Envenenava-se com ciúmes do meu passado, o qual só conhecia em parte, e do amor que eu tinha por ti, coisa que nunca tolerei. Nem sonhas o que me custava vê-lo entrar e sair de cara fechada na sala quando me ias visitar, mas nunca me amedrontei ou alterei a minha conduta por causa dele. Se há coisa que me deu alguma tranquilidade na vida, foi ter conseguido transmitir-te todo o amor e ternura que sentia por ti. Talvez tenha sido a única forma de me redimir perante mim própria de alguns actos do meu passado. Uma história que jamais conheceras.
Sofria muito por ver a tua mãe subjugada ao teu pai que não perdoava que ela te desse mais atenção do que a ele. Sofria por ti, por te ver desamparada num ambiente doentio. Falei-lhe muitas vezes sobre isto. Éramos grandes amigas e confidentes; ela, contudo, nunca foi capaz de lhe fazer frente. com ele era quase impossível ter uma conversa. Apesar de ser meu irmão, não tínhamos a mais leve sombra de intimidade, nem ele era pessoa que desse ouvidos fosse a quem fosse, muito menos a uma mulher.
O teu pai, como muitos homens que observei, não gostava das mulheres, quem sabe se por ter sido mal-amado pela nossa mãe, se por atavismos culturais que se colam às almas geração após geração. Usava-as para o seu prazer, mas não nutria por elas qualquer respeito ou admiração. No momento em que alguma delas se libertasse do estatuto de objecto e recusasse a sua subalternidade, passava a representar um perigo para o ser frágil que existia dentro de si, para a criança que ficara para sempre carente dentro do seu metro e oitenta e cinco de homem.
Fizeste-lhe frente e viste nele, quase sempre, mais um inimigo do que um pai. Sabia que isso te magoava e te deixaria marcas pela vida fora, mas já era tarde para fazer alguma coisa que impedisse a tua mágoa. Presenciá-la em silêncio, foi a minha maior tortura.
Agora dá-me muita alegria verificar que tens aprendido a perdoar as sucessivas faltas de amor na tua vida, porque só no perdão podemos encontrar alguma paz e estender a mão em vez de apontar uma arma. Estarei sempre ao teu lado para te lembrar da importância de amar. De baixar os braços e abandonar lutas para conquistar poderes que não dão qualquer felicidade.
Anda tudo muito desnorteado por aí. O espaço e o tempo que os homens inventaram em vez de os orientar parecem só estar a gerar preocupação e discórdia.
Tu própria ainda vives cheia de medos, filha. Não os confessas, mas estão lá bem no fundo de ti a minar-te. Não temas a solidão, a velhice, a morte. Não te preocupes antes de tempo. É inútil. Se distribuíres o que há de melhor em ti nunca estarás só.
Pensa bem porque é que tens tantas paragens de digestão. O estômago não é apenas o filtro do que comemos. É também das nossas sensações, medos, paixões e alegrias. Se não te tratas bem, ele recusa-se a digerir.
Não desistas do que procuras nem te precipites.
LEMBRA-TE QUE só ENCONTRAMOS AQUILO QUE PROCURAMOS.
Eu, em determinada altura, desisti e precipitei-me num casamento que não correspondia aos meus desejos mais íntimos. Quando voltei a encontrar o amor, faltou-me a coragem para começar tudo de novo. Seria preciso uma ousadia que eu já tinha perdido pelo caminho.
PAULO / LUÍS
O carro avançava na estrada já próximo de Beja. Se não fossem as janelas fechadas, a música da chuva que caía lá fora poderia juntar-se ao piano que acompanhava a Alison Moyet a cantar o For You Only. Luís e Paulo deixavam-se embalar com prazer naquela cantiga que os transportava sempre à primeira viagem que tinham feito juntos e que romanticamente tinham decidido repetir. com os nervos esgotados pelas crises sucessivas que andavam a sofrer, agarraram-se a uma pequena aberta em que tudo parecia serenar, como alguém perdido no deserto, já sem esperança, se agarra a um copo de água aparecido como que por milagre. Num gesto instintivo de luta pela sobrevivência, atiraram-se àquele copo de água que o destino lhes pusera à frente, decididos a bebê-la e saboreá-la até à última gota.
O advogado do Luís dera-lhe esperança de conseguir um acordo com a Teresa, sinal de que ela podia ter começado a reconsiderar a sua actuação. Não era tanto o acordo que lhe interessava, mas que Teresa, ao cair em si, percebesse o mal que andava a fazer à Mariana, influenciando-a contra o pai.
E LUÍS ADORAVA A FILHA.
Não conseguia lidar com a sua rejeição nem com as cicatrizes que esta ruptura, urdida pela ex-mulher, podiam deixar na miúda. Tinham sido diversas as tentativas para se aproximar da Mariana. Telefonemas, encontros cuidadosamente preparados em locais que sabia que ela frequentava, cartas, até os pais do Luís tinham tentado demovê-la, recebendo como resposta um sisudo:
- Se me voltam a falar desse assunto não apareço cá mais. E pouco voltou a aparecer, instigada certamente pela mãe.
Mas o Luís recusava-se a acreditar que a mulher com quem tinha vivido dezoito anos pudesse ser tão insensível, ao ponto de levar até às últimas consequências aquela guerra em que manipulava a filha de ambos como uma arma.
Luís ERA UM HOMEM DE ESPERANÇA.
A mesma esperança alimentava a sua relação com o Paulo, cujas sessões com a psicoterapeuta pareciam estar a dar bons resultados. Paulo gostara imenso da psicóloga desde a primeira consulta e tudo indicava que ia fazendo progressos, embora lentos. Tinha menos pesadelos durante a noite e havia momentos em que aparentava até alguma leveza, como agora, em que trauteava na sua voz suave a música de ambos.
Luís olhou-o a sorrir e sentiu uma onda de amor indescritível por aquele rapaz dez anos mais novo, de cara angulosa, boca bem desenhada, olhar claro e profundo e espessas sobrancelhas escuras.
Olhou-o de novo como se o olhasse pela primeira vez. Paulo, quando alguma coisa lhe corria bem, repetia invariavelmente certos gestos, palavras ou peças de vestuário para que a Fortuna lhe concedesse o favor de não usar o seu leme, a fim de lhe dar novo rumo ao destino. Por isso vestira exactamente a mesma roupa que tinha usado no primeiro fim-de-semana que passaram juntos. Jeans, camisa branca com pequenos quadrados em tons de azul e amarelo, T-shirt branca por dentro, sapatos castanhos, um blusão em couro castanho (o fecho continuava avariado). Parecia-lhe uma garantia de que tudo correria igualmente bem. Pensava ingenuamente que podia dar a volta à ira e ao capricho dos deuses. Luís divertia-se com as suas superstições.
- A estrada não é deste lado - disse Paulo em tom de brincadeira, sentindo que Luís o continuava a olhar.
Luís despenteou-lhe o cabelo preto, brilhante, em resposta. Paulo fez menção de lhe fazer o mesmo e Luís riu:
- A vantagem de eu já ter pouco cabelo é que nem a tua mão nem o vento me despenteiam.
- Pois é. - Paulo sorria, pensativo. - Só te despenteio as ideias.
Luís e Paulo estão dentro dum carro a viver um momento que é só deles. Respiram o ar um do outro, sentem o cheiro um do outro misturado com o leve aroma da colónia um do outro, ouvem a música de ambos, ambos querem congelar aquele momento gasoso, aquele momento de espuma branca e leve que lhes descomprime o coração.
A chuva, cada vez mais intensa, não os deixa ouvir nem ver o resto do mundo cá fora, mas há outras músicas noutras aparelhagens e milhares de outras pessoas dançam, indiferentes a tudo, o ritmo das suas próprias vidas.
Luís, consciente daquela solidão momentânea, encosta o carro à berma, junto a um atalho, e pára, perto duma velha árvore. Trata-se de um daqueles instantes em que o desejo voa mais depressa do que as palavras. Abraça-se ao Paulo que o beija sofregamente como se há muito estivesse à espera deste momento. O CD voltara ao princípio, enquanto o som da respiração de ambos se torna agora mais forte.
Não eram precisos relâmpagos para iluminar aqueles dois seres que se amavam, mas as nuvens quiseram presenteá-los com um rasgo luminoso, breve mas intenso, como certos orgasmos.
Ao mesmo tempo que dentro daquele carro duas pessoas se perdiam no espaço das suas fantasias, cá fora o céu parecia dar as mãos à terra.
Quando o carro arrancou de novo, nem um nem outro ouviram o estrondo provocado pela queda do gigantesco braço da velha árvore que há pouco os acolhera.
RITA
"Quem me manda a mim meter-me nestas chumbadas?" Não tinha paciência nenhuma para festas com muita gente. Cansava-se, enervava-se, não descontraía. Mas o Alberto insistira na importância do acontecimento. Ela tinha de aparecer. Não podia isolar-se se queria continuar no meio. Se fosse há uns anos, tinha fumado um charro ou cheirado uma linha e estaria na maior. Mas a natureza da Rita levava-a invariavelmente a escolher o caminho mais difícil e deixara-se de drogas para mascarar a timidez. Mal ou bem, era a pisar a terra que lhe dava mais trabalho cultivar, que se sentia segura (segura?... menos insegura).
Às vezes, o cansaço era grande, mas nem por isso desistia. Rita precisava de alicerces em tudo, tinha uma necessidade quase doentia de criar raízes, porque lhe parecia ter vindo a este mundo sem ser convidada, sem uns braços para a receberem, sem nada a que se agarrar. Parecia-lhe muitas vezes não pertencer a isto, como se pairasse aqui e ali à procura duma terra firme que não encontrava. Um dia percebeu que só o contacto da sua alma com a alma dos outros a fazia sentir-se em casa; por isso custava-lhe muito frequentar locais onde as almas das pessoas não estivessem em uníssono.
Aquela era uma dessas ocasiões.
Na sua mesa, durante o jantar, deu para ouvir de tudo. A namorada de um médico famoso expunha a teoria de que de vez em quando devia haver uma guerra para se fazer uma limpeza, deixando-a estupefacta. Um cozinheiro televisivo descrevia o percurso dum salmão desde a Escandinávia até ao canapé, enquanto ao seu lado um principiante jogador de golfe vomitava toda a sua erudição sobre a árdua carreira dos campeões com nomes, idades e todos os hole in one que fizeram. Rita, sempre que estava ao lado de alguém que despejava tantos conhecimentos, achava-se com cara de quem nunca tinha ouvido falar de Nietzsche.
Ao café, ainda o cozinheiro ia nas natas acidificadas que acompanham o coulibiaê1, lá se esgueirou para ir molhar os pulsos antes que morresse de tédio. Felizmente, Alberto estava entretido com uma estilista que vinha vestida de joaninha.
- Rita!!
Caidinha do céu, ali estava a Sofia.
Oito anos atrás, tinham frequentado juntas um curso de PNL2 e, desde então, consolidara-se uma amizade. Não se viam com frequência, mas de tempos a tempos gostavam de se juntar para pôr a vida em dia.
- Que fazes tu aqui, minha desaparecida? - Rita sorria perante aquele sol inesperado.
- Isso queria eu saber! - respondeu Sofia com o seu ar habitualmente irónico e extrovertido. - Calhei numa mesa cheia de pessoas que só falavam dos aumentos do IVA e dos mercados de acções.
- Há meses que não te vejo - queixou-se Rita. - Só o telefone não chega. Quando é que almoçamos? Tenho saudades das nossas conversetas.
- Cá por mim nem esperava por almoços. Era já. Se continuo aqui dou em maluca.
- O Carlos não está contigo? - estranhou a Rita.
- Nem estará. Nestes últimos dois meses a minha vida levou uma reviravolta em todos os sentidos. Ainda não estou bem em mim. Desde que decidi fazer o mestrado parece que tudo desabou. No Banco têm-me feito a vida num inferno por eu usar das prerrogativas que a lei dá aos trabalhadores estudantes. Estou praticamente com um pé dentro e outro fora. O Carlos, com a sua habitual generosidade, disse-me para não
1 Tradicional empadão de peixe russo.
2 Programação neurolinguística.
contar com ele se me desempregasse e, para desenjoar, apaixonei-me por um tesão dum miúdo com menos doze anos que eu. Que te parece? - A expressão da Sofia era cómica.
- Parece-me que o melhor é fugirmos daqui para me contares isso tintim por tintim.
- Dentro de vinte minutos à saída? - Um sorriso inconfundível punha-lhe ainda mais em evidência os dentes enormes, parecidos com as teclas dum piano.
- Combinado.
Depois de acender a lareira, e abrir a porta à Lua que queria ir dar uma volta no jardim, Rita abriu uma garrafa de vinho tinto para não fazerem misturas.
- O vinho ainda continua a ser a única bebida que me respeita a inteligência - disse Sofia enquanto puxava dum cigarro. Olhou à volta. - É bonita esta nova casa. Tem a tua marca, como as outras.
- Os móveis são sempre os mesmos. As pessoas é que mudam. - Rita não escondia alguma tristeza.
- Ainda estás muito desiludida com a Cristina?
- Não sei que palavras se empregam para dizer o que sinto. Talvez perplexa e magoada. Acho que nunca vou entender o porquê daquela agressividade súbita. Era preferível ter-me dito que já não gostava de mim.
- Possivelmente ainda gosta. Talvez não goste é dela...
- E eu é que pago! - Rita serviu vinho nos copos de pé alto.
- Sempre me pareceu ver nela alguma tendência para responsabilizar os outros pelo que lhe acontece - disse Sofia.
- É como se, dum instante para outro, tivesse outra pessoa à minha frente. - Rita não descobria maneira de se conformar. - Vivemos anos duma enorme harmonia, confiantes no que nos ligava. Eu estava totalmente entregue. Acreditei que voávamos juntas na mesma direcção.
- E de repente ela apropriou-se das asas e deixou-te cair. Rita sorriu.
- Talvez a imagem não seja a mais acertada. Eu continuo a ter as minhas asas. Digamos que a ajudei a servir-se das dela.
- Isso deu para ver. - Sofia bebeu um gole.
- Um geniozinho meu amigo tinha-nos dado um tapete voador - disse Rita enquanto se sentava no chão em frente à Sofia.
- E ela tirou-te o tapete.
- Foi o que se chama cair das nuvens. - Rita coloria a frase com a sua habitual gesticulação expressiva.
- E o que te disse o geniozinho? - Sofia apagou o cigarro.
- Nunca deixes de usar as tuas asas só porque tens um tapete voador. - Rita desdramatizava e fazia vozes.
- Um conselho sábio - disse Sofia a rir. - Onde é que pára o geniozinho? Não mo queres emprestar?
Sofia serviu mais vinho nos copos e começou a desfiar um rosário de acontecimentos, em ritmo vivo e acelerado como era seu hábito. Ela era extraordinariamente peculiar. Tinha qualquer coisa de louva-a-deus na sua magreza alta, desconjuntada e loura, de olhos muito grandes e muito azuis.
- Desde que começámos a andar, o Carlos conseguiu que eu fosse sempre adiando o mestrado. Primeiro, porque foi operado ao joelho e estava muito dependente de mim, depois, porque montou a fábrica e precisou que eu o ajudasse nos meus tempos livres...
- Achas que ele não queria que fizesses o mestrado? - Rita ia bebendo pequenos goles. Saboreava o vinho e a conversa.
- Não é o mestrado que está em causa mas a disponibilidade que eu deixava de ter para as coisas dele. A trabalhar e a estudar restava-me muito menos tempo para ele e até para o próprio Banco, que engoliu pessimamente as horas que é obrigado a dar-me como trabalhadora-estudante.
- Mas não tem outro remédio.
- Isso pensas tu. Têm-me feito as piores desconsiderações para ver se eu não aguento a pressão e me despeço.
- Jura! - Rita pasmara.
- Vai daí o nosso amigo Carlos, mal viu que eu me estava a ir abaixo com tantas sacanices, tratou imediatamente de me avisar que não tinha estofo para aguentar com as minhas crises. - Sofia, subia de tom sempre que falava no assunto.
- Sério?! Não imaginei que ele fosse assim.
- Como sabes, ele se não é rico para lá caminha. Ganha imenso dinheiro...
- Não me vais dizer...
- Tudo dividido ao tostão - interrompeu Sofia. - Insistiu para que vivêssemos na casa dele, mas pagávamos tudo a meias. Água, gás, comida. Ou melhor. Nem tudo. O vinho pagava eu à parte, porque ele não bebe.
- E a tua casa? - Rita estupefacta.
- Continuei eu sempre a pagar as despesas.
- Mas quando saíam ou iam viajar era ele que convidava, não era?
- Nunca. Só quando nos conhecemos. De resto, se jantávamos fora ou íamos a um espectáculo, ele pagava mas fazíamos contas ao chegar a casa. E quando viajávamos estava-se nas tintas para saber se eu tinha dinheiro para pagar os hotéis caríssimos que ele escolhia. - Sofia bebeu o resto do vinho que tinha no copo. - Ainda bem que eu não tive um filho dele.
- Ainda estás com essa ideia? - Rita brincava com um cigarro que tirara do maço, tardando o momento de o acender.
- Eu gostava, mas um filho meu merece uns pais tão bons como eu tive - havia alguma nostalgia na sua voz. - Além disso, o sexo entre nós já tinha perdido qualquer interesse. Pelo menos da minha parte, sabia que me estava a afastar.
- Começaste a estar disponível e apareceu-te o...? - Rita pôs mais um toro de azinho no lume.
- Francisco. Um doce. Muito calado, calmo, estás a ver? Tudo ao contrário de mim!
- É bom, dá para equilibrar.
- Nunca conheci um homem tão meigo na minha vida.
- Os olhos da Sofia ganharam novo brilho. - E depois, coisa rara, fala dos seus sentimentos sem o mínimo medo de se tornar ridículo. com ele sinto-me, sinto-me... inteira! Enche-me de mimo, de atenções, preocupa-se comigo...
- Qual é o senão?
- Já te disse! A diferença de idades. Quando penso nisso...
- Se pensas muito, ainda estragas tudo. - Rita serviu mais vinho. - Sentes-te bem com ele? Deixa-te ir. Estás a viver um momento duma emoção fantástica, já viste? Nestes casos mais vale que a emoção nos perturbe a razão do que o contrário.
- Parece que me sinto mal quando olho para o lado e vejo um miúdo com menos doze anos que eu, deitado na minha cama.
- E sentias-te bem quando ias para cama com o Carlos mesmo sem te apetecer? - Rita acendeu finalmente o cigarro.
Pela noite dentro foram partilhando dúvidas, medos e muitas esperanças. Nem uma nem outra eram do género de se desencantar. A propósito de tudo, Rita tinha uma recordação. Como se para cada palavra ou gesto houvesse um site correspondente dentro dela, cheio de atalhos. À medida que a experiência se acumulava, havia uma história para contar. Às vezes achava-se irritante por isso. Lembrava-lhe uma daquelas pessoas que, a propósito de tudo e de nada, têm sempre uma coisa a dizer. Mas ela só queria a confirmação de que não era a única a sentir certas coisas, uma forma de sentir-se menos só. Costumava encontrar essa cumplicidade nos livros. Pelos vistos era mais fácil as pessoas falarem dos seus sentimentos por escrito, protegidas pelas personagens. Os escritores também deviam ser pessoas muito solitárias. Às vezes, quando lia certos livros, tinha vontade de ir ao encontro de quem os escrevera para conversarem cara a cara sobre aquelas coisas que ela sentia em comum. Gostava da presença das pessoas, do olhar, dos gestos, do toque, do cheiro, da temperatura que emanava de cada uma. Fazia-lhe falta o contacto pessoal, físico.
Por isso gostou muito mais de ter encontrado a Sofia do que se tivesse recebido um e-mail ou uma carta dela. Abriu uma segunda garrafa de vinho e foi à cozinha fazer um tabuleiro com queijo e patês.
A festa acabou por ser ali em casa com brindes ao jantar de cem pessoas que as tinha juntado nessa noite. Sofia só debandou lá para as quatro depois de Rita a ter feito prometer que não ultrapassava os trinta quilómetros por hora.
Na manhã seguinte, perto do meio-dia, a cama começou a abanar, sinal de que a Lua já começara com as habituais coceiras matinais.
Um sonho povoava-lhe o despertar: estava parada no meio duma praça onde circulavam imensos carros que ninguém conduzia, cruzavam-se com ela centenas de pessoas alheias ao que se passava, como se seguissem todas um destino já traçado. A chuva e o nevoeiro tornaram-se mais intensos, e ela procurava um táxi que não aparecia para a levar de volta a casa. Sentia-se confusa, perdida, à beira dum ataque de pânico no meio de toda aquela confusão e ruído infernal. Mas do outro lado da rua parou um carro que parecia esperar por ela. com muita dificuldade foi atravessando, acotovelando-se com as pessoas que agora eram aos milhares, e de encontrão em encontrão chegou ao carro, enfiou-se no banco de trás e o carro arrancou sem que ela conseguisse ver a cara do condutor. Quando finalmente parou à porta de casa quis agradecer a boleia e viu que no lugar do condutor estava ela própria.
ROSARINHO
O antidepressivo começara a produzir efeitos secundários. Em pouco tempo já engordara quatro quilos. A tristeza infinita mantinha-se, acrescida agora da contrariedade por estar mais gorda, o que a fez inscrever-se rapidamente num ginásio ali perto, que Marta, sua ex-cunhada, frequentava. Por junto, Rosarinho devia ter lá ido umas três vezes. Chegou à conclusão que a inscrição não bastava. Se queria emagrecer tinha mesmo de fazer os exercícios. Mas a vontade, para quem está deprimido, não passa duma abstracção. Há muito tempo que Rosarinho não se lembrava de querer verdadeiramente fosse o que fosse.
Tinha querido muito uma bicicleta só para ela, que o pai não se voltasse a casar depois da morte da mãe e que a filha tivesse sobrevivido. Como nenhum dos três desejos se cumpriu, achava que a sorte não queria nada consigo. Ir à luta para quê? Dava muito trabalho. Deixou-se andar na vida por andar, não tendo sequer consciência disso. Ter consciência obrigava-a a pôr algumas coisas em causa e isso geralmente era incómodo. Mais valia não agitar as águas. Nascera com umas antenas que a faziam sentir e ver com alguma antecipação. A saber que havia muito lodo no fundo dos lagos. Talvez fosse esse um dos motivos da sua tristeza e, quem sabe, do medo que tinha de se entregar. A dualidade das coisas. Quanto maior a subida, maior a queda, ouvira dizer e comprovara.
A adoração que tinha pela mãe caíra a pique quando a vira despedir uma criada que aparecera grávida.
A Aurora, assim se chamava a rapariga, da idade de uma das irmãs e apenas dois anos mais velha do que ela, fora severamente repreendida antes de ser recambiada para a família. Jamais esqueceria a humilhação que a vira sofrer e a prelecção que a mãe lhes fizera mais tarde, à laia de aviso. Estava na idade de despertar para o sexo e percebeu que esse era um assunto que causava nojo e desprezo à pessoa que ela mais admirava no mundo. A personalidade que tanto idolatrava, inteligente, bondosa, culta, dera lugar a um ser impiedoso e desumano. Sem corpo.
Zangou-se para sempre com ela e quando começou a namorar o Pedro, numa atitude mais provocatória que de desejo, apressou-se a ir para a cama com ele, mas só engravidou depois de casar, já a mãe tinha morrido.
Ainda hoje tinha a sensação do muito que ficara por dizer. Recriminava-se por não ter sido capaz de lhe falar do seu ressentimento. De lho dizer olhos nos olhos. Mas não fora capaz.
A morte súbita da mãe bateu-lhe na cara como uma porta que se fecha para sempre. Impedindo definitivamente qualquer diálogo, uma troca de palavras, olhares ou gestos em que pudesse manifestar-lhe a sua zanga, a sua raiva, ódio até, porque não admiti-lo? Odiou-a, porque a mãe queria amputá-la, queria que ela abortasse o desejo que começara a nascer dentro de si, impunha-lhe uma condição feroz para continuar a amá-la. Fora bem claro o seu recado à saída da Aurora. Pois então veriam quem era mais feroz.
O namoro com o Pedro foi bastante mais aceso do que a sua paixão por ele, só para a contrariar. Sabia como ela o detestava. Teria dado tudo por engravidar antes de casar. Queria ver se também era expulsa daquela casa. Mas a mãe devia ter adivinhado e não lhe quis dar esse trunfo. Preferiu morrer antes. Três meses antes, já com o casamento marcado, recusando-se a perder aquela batalha. E isso, ela também não lhe perdoou. Casou já sem grande vontade, com o pressentimento que o Pedro não lhe ia trazer a felicidade com que sonhava, mas fosse onde fosse que a mãe estivesse, havia de engolir aquele casamento.
Devia ter havido um momento, ela não sabia qual, em que pôs de lado o sal da vida. Como se viver fosse apenas uma modorra onde todas as sensações são ténues. De cores anémicas, gostos insípidos, sons vagos, perfumes fracos. Valia-lhe o seu excelente coração e um carácter digno, impoluto. Era uma pessoa de quem se gostava, de olhar franco, riso fácil, trato afectuoso. Uma daquelas pessoas que todos achariam que merecia ser feliz, se acaso soubessem da sua infelicidade.
Naquele fim de tarde, voltava de casa do pai onde se festejara a primeira comunhão de um dos sobrinhos. Ninguém notara a ausência do Vasco. (Teriam durante os anos em que viveram juntos, notado a sua presença?) Tanto melhor, não precisava de inventar desculpas. Não sabia quando, nem como, mas havia de anunciar que se tinham separado. Mais tarde ou mais cedo, algum dos irmãos viria a saber pelo próprio Vasco e ficava arrumado o assunto.
Era o género de conversa que não sabia ter com os irmãos e muito menos com o pai. Numa família numerosa como a dela, ninguém prestava atenção a ninguém, e jamais existira o hábito de se trocarem impressões sobre matérias que envolvessem sentimentos. Havia um enorme pudor na exposição de mazelas, no extravasamento de alegrias ou de qualquer outra emoção forte. Eram atitudes pouco educadas ou ridículas, ensinara-lhes a mãe, senhora devota, que até morrer pregara o amor ao próximo, com as devidas distâncias, claro está. Uma família unida por um forte sentimento de clã, fruto da consanguinidade. Do género que, se algum fosse atropelado por um camião e baixasse ao hospital, estavam lá todos caídos para dar apoio, como um bando de ciganos. Só que não é todos os dias que um camião nos passa por cima.
Havia um mundo de emoções debaixo do mesmo tecto, que nunca ninguém se atreveu a partilhar, o que fez deles pessoas aparentemente insensíveis, às vezes até abrutalhadas, na forma de se manifestarem. À Rosarinho, amar o próximo fazia-lhe sentido, desde que estivesse verdadeiramente ligada a ele. No quentinho duma casca de avelã ou dum ovo. Mas
o próximo parecia-lhe quase sempre demasiado distante. Amava os irmãos, a restante família, os amigos, mas não fora habituada a dar atenção aos seus próprios sentimentos nem aos dos outros. Proximidade e intimidade eram estados que não faziam parte das suas experiências.
No entanto, tinha uma ideia do que isso era.
Perto da Quinta, morava a Adélia costureira, casada com o João das hortas. Tinham uma filha, a Zé, que desde sempre ia para lá brincar com eles.
Mas do que Rosarinho gostava mesmo, era de se escapulir para casa dela. A Adélia costureira era gorda, de cara lustrosa e sempre sorridente. Por tudo e por nada soltava saudáveis gargalhadas que contagiavam toda a família, matava uma galinha, depenava-a em dois tempos e, enquanto acabava o ajur dos lençóis para o enxoval da filha do Sr. Embaixador ou caseava as camisas do Dr. Prates da Cunha, a cabidela ficava pronta.
- A menina almoça cá côa gente! - decidia. - Quer que eu avise a mãezinha?
- Não é preciso. A mãe viu-me sair com a Zé.
As duas punham a mesa na cozinha, entretanto o almoço fervilhava na panela e a Adélia cantarolava a par com a telefonia. Sabia as cantigas todas de cor, as músicas dos reclames e tudo.
- Inda hoje tenho pena de não ter ido para cantora. A Zé sai a mim, não é, filha? Que é que tens pariga, andas triste? Há dias que não te oiço os trinados! Tás muito calada, não respondes à mãe?
Elas riam-se e a Zé respondia distraída, enquanto folheavam uma revista com fotonovelas em que um casalinho a preto e branco se beijava "à cinema".
- Sim, mãe!
- Olha, o té pai vem aí - dizia a olhar pela janela. O malandro já caçou dois pombos! Estou fartinha de lê dizer que na atire aos pombos! Passarinhos tá bem. Mas pombos?!
O João das hortas entrava, a cheirar a terra, depois de ter esfregado bem os pés no capacho.
- bom dia, menina! Olá, filha! - Para o outro quarto:
- Delia, olha o qu'ê trago aqui! - Ria cúmplice para a Zé e para a Rosarinho.
- Já vi! Tava-te a ver chegar! Já te disse que me faz impressão matares esses bichos. Parece que andas aos tiros ao Espírito Santo, homem! - e benzia-se, enquanto eles se riam da comparação.
Adélia servia os pratos abundantemente.
- Na quero cá pisquices, ouviu m'na Rosarinho?
Não era preciso insistir porque ali comia como nunca. Acabado o almoço, o João voltava ao trabalho, a Zé lavava a loiça e a Rosarinho limpava, enquanto a Adélia pegava na costura. Às vezes dava-lhes sobras de tecidos para costurarem pegas ou treinarem algum ponto que lhes ensinava. Mas o que Rosarinho mais gostava era da Singer. Levou tempo a acertar o compasso do pedal, o picar da agulha no pano, frente trás, frente trás, frente trás, mas a Adélia, paciente e carinhosa, não descansou enquanto não a pôs a tratar a máquina por tu, como ela dizia.
- Quando a menina se casar já tem com que se entreter! Tome lá uma mão-cheia de alfinetes para marcar a bainha.
Para Rosarinho, aqueles bocados de dia tinham qualquer coisa que lhe entrava directa ao coração. Não sabia explicar o quê, mas quando, nos seus sonhos acordada, se queria refugiar nuns braços calorosos que lhe dessem a vida que lhe parecia faltar, lembrava-se sempre da Adélia costureira, do cheiro a pano, das linhas, do retrós e daqueles almoços à volta da mesa da cozinha.
Por isso, de regresso a casa, vinha consciente de algum desânimo por um dia passado em família sem que alguém lhe dirigisse especialmente a palavra. Era triste viver no seio duma família em que se conversa, conversa e ninguém se revela. As frases eram atiradas para o ar como quem atira uma bola à toa. Se alguém a apanhasse, tudo bem, senão caía ao chão e atirava-se outra. De qualquer maneira, fosse o que fosse que dissessem, parecia sempre haver um vidro duplo entre eles. Nem sequer a notaram mais gorda, única alteração visível, além do sentimento de abandono que o olhar já deixava transparecer.
O telemóvel tocou. Era a Joana, amiga de infância e colega de enfermagem no hospital, a contar-lhe que ela andava a perder o folhetim do ano.
- Sim? Tu não me digas! - Rosarinho mostrava-se muito interessada para não a decepcionar.
A história era longa e cabeluda. Metia um médico gordo, cujo prato favorito eram enfermeiras, segundo a Joana, e uma estagiária que ele desconhecia ser filha dum colega. Acena ainda estava quente e a Joana, cuja boca se assemelhava a um tanta da selva, não resistira à tentação de a pôr ao corrente. O género de conversa para a qual não costumava ter grande pachorra, a não ser nos intermináveis turnos da noite. Pareciam duas porteiras autênticas a bisbilhotar, pensava Rosarinho nessas ocasiões.
Felizmente, a Joana tinha de desligar, mas antes quis saber se ela já estava melhor.
- Estou óptima! - respondeu Rosarinho a cortar a conversa.
Joana queria saber como iam as coisas com o Vasco.
- Está tudo bem. Tenho falado com ele pelo telefone. A crise havia de passar. Qualquer dia tudo se recompunha.
- Isso não. Nem pensar. Estou muito bem sozinha.
A Joana, o género de mulher incapaz de viver sem um homem, continuava a achar que ela adoecera por causa da separação.
- Que ideia! Não! Deve ter sido do cansaço. Demasiado stresse - dizia Rosarinho para evitar mais perguntas, já a coçar a ponta do nariz e prestes a ter uma crise de espirros.
Quando voltava, queria ela saber.
- Por enquanto, não. Está-me a saber bem o descanso. Combinaram almoçar num dia próximo.
Em cima duma pequena arca, do lado esquerdo da lareira, estava o enorme pano onde ia cosendo a sua colecção de botões. Pegou na caixa onde guardava alguns deles e trouxe tudo para o sofá. Lembrou-se da Adélia, do cheiro a pano, do emaranhado de linhas pelo chão, das suas gargalhadas sonoras que ela gostava de imitar e que a mãe achava de mau gosto.
- Não é de bom-tom uma senhora rir dessa maneira repreendia-a com voz solene.
Mas o bom-tom e o bom gosto, às vezes, causavam-lhe arrepios. Tornavam as coisas frias, impessoais e, ainda por cima, sensaboronas.
Pelo caminho, arrebanhou metade duma tablete de chocolate com amêndoas e deu-lhe uma dentada. Sentou-se e acendeu a televisão com o comando. Eram horas do telejornal e os desastres estavam na ordem do dia. Às tantas, ouviu o repórter dum acidente dizer na sua voz grave e colocada:
- Só uma hora depois do acidente é que um dos mortos veio a falecer.
Confusa, ficou a pensar no que acabara de ouvir; de seguida soltou uma gargalhada ao mesmo tempo que lamentava não ter alguém ao seu lado para rir com ela.
E tinha. Ela é que não se apercebeu.
FLÁVIA
Passei no imenso corredor e a porta do quarto estava entreaberta. Não sei o que me levou a espreitar. Talvez por aquela porta raramente se abrir desde que a minha irmã Conceição rompera o noivado e se fora embora do país com o "escova de aço". Este epíteto circulava apenas entre mim e o resto dos meus irmãos. Jamais se fazia esta ou qualquer outra alusão ao professor de piano à frente dos meus pais. O nome da minha irmã também nunca mais foi pronunciado, e nenhum de nós se atrevia a lembrar aquilo que os nossos pais pareciam ter enterrado.
O quarto da Conceição era na ala esquerda do primeiro andar da casa e, como era a mais velha, era só dela. A luz entrava, filtrada pelas cortinas semiabertas, podendo ver-se perto da janela as hastes floridas da buganvília encarnada que trepara pela árvore-do-fogo a que os meus irmãos, em crianças, costumavam subir a ver quem chegava mais alto.
Sentada aos pés da cama, estava a minha mãe inclinada sobre umas folhas de papel que segurava na mão esquerda. (Uma carta?) Do seu lado direito, sobre a colcha de Castelo Branco, um álbum de fotografias em pele castanha gravada, fechado. Depois de ler, deixou-se ficar durante largos minutos a olhar lá para fora, distante, muito distante do pequeno mundo que nos protegia.
Não sei quanto tempo ali fiquei sem me mexer, a respirar de mansinho e a desejar flutuar sobre o soalho, não fosse algum ruído inoportuno tirá-la da sua lonjura e revelar a minha presença indiscreta.
Depois, com os mesmos gestos lentos e reflectidos com que tratava das rosas, dobrou as folhas que durante todo o tempo não deixara de segurar e guardou-as dentro do álbum.
Nunca soube se fora imaginação minha, mas pareceu-me vê-la limpar qualquer coisa na cara. Um gesto leve que aflorou o seu rosto por baixo do olho direito.
Esperei que ela guardasse o álbum dentro da arca encostada aos pés da cama e escapuli-me para a salinha que havia ao lado, até senti-la descer as escadas.
À noite, quando todos dormiam, voltei para satisfazer a minha curiosidade. Havia três cartas da minha irmã Conceição, espalmadas entre diferentes folhas do álbum com fotografias amareladas da nossa infância. Numa das cartas percebi que a minha mãe lhe escrevera sem o meu pai saber, lamentando nada poder fazer para alterar a sua inabalável decisão de cortar relações com ela. Tinha a quem sair. A minha avó era senhora dum espírito mais inflexível do que a Alemanha em peso.
Desejei que o gesto, que a vira fazer, tivesse sido para limpar uma lágrima, porque isso ajudava-me a ter dela uma imagem mais humana. Tentei várias vezes adivinhar alguma saudade nos seus olhos, espreitar outra visita ao quarto da Conceição, mas nunca consegui, apesar de no álbum ainda terem aparecido algumas novas cartas com datas cada vez mais distanciadas.
Numa daquelas visitas furtivas ao quarto da Conceição, encontrei dentro da arca outro álbum de fotografias de primos e outros parentes que às vezes nos visitavam.
Uma delas era do casamento da Mariazinha, a minha prima mais velha, cuja morte no lago da Quinta estivera sempre rodeada de mistério. Cá para mim, ela tinha-se suicidado. Ouvindo aqui e ali, foi-me dado perceber que era muito infeliz. Casara com o Henrique José, homem de expressão cavalar, muito mais velho do que ela e riquíssimo, mas em compensação a pessoa mais pobre que eu já vira. O único bem que possuía em abundância era dinheiro. De resto, nem simpatia nem felicidade, nem amor. Ninguém gostava dele, incluindo Mariazinha que, segundo percebi, tinha sido induzida a casar pelos meus tios, a braços com uma fortuna desbaratada. Quando regressei das férias com os meus irmãos, já o "desastre", era assim que lhe chamavam, se tinha dado e proibiram-nos de fazer perguntas sobre o assunto.
Eu tinha o hábito de me esconder num canto escuro da copa e ouvir as conversas das criadas. Uma espécie de noticiário dos bastidores daquela casa, com histórias bem mais interessantes do que as exibidas no grande palco das salas. Fiquei a saber que o marido da Mariazinha não só era alcoólico, como a tratava brutalmente. E que antes do "desastre" se dar, o Henrique José tinha pegado numa pistola para dar um tiro no chauffeur do meu avô, mas não lhe acertara de tão bêbado que estava. Daí para a frente, a história ramificava-se. Uns defendiam a teoria de que ele a obrigara a entrar no lago até se enterrar no lodo, sempre de pistola apontada. Outros, que ela se tinha afogado por vontade própria enquanto ele roncava, perdido de ciúmes e álcool.
Quantos segredos ficam espalmados nas folhas do tempo, minha querida Rosarinho.
Na história de cada família escondem-se ódios, paixões, orgulhos, traições, intolerâncias.
A maioria das histórias secretas são enredos de sexo, palavra que na minha mocidade não era sequer proferida. O secretismo que as envolvia não tinha como fim preservar a intimidade de cada um, antes calar o que era considerado vergonhoso e aberrante. Como se a exploração e a intriga dos poderosos, a traição e o roubo, o consentimento dos que se calam, não fossem, eles sim, vergonhosos e aberrantes.
A dualidade bem e mal está para muitos traduzida em alma e corpo. O casamento dum com o outro parece não estar ainda ajustado.
Na vida de uma família, o passado e o futuro têm o seu encontro marcado, contudo nem sempre a passagem de testemunho é feita duma maneira livre e abnegada. Na nossa, a forma de dar continuidade ao poder que ela teve, é agarrar-se a conceitos e tradições que nos limitam a liberdade.
Aqui, onde não há dor nem medo, foi-me fácil entender que amar o próximo não passa duma frase sem sentido enquanto o medo andar à solta. Dissimulado muitas vezes de coragem, espalhando-se no sangue como um veneno, perseguindo-nos como uma sombra, querendo antecipar o que não é antecipável, prender o que tem de ser livre, cristalizar o que é mutável. E, no entanto, aí podia ser tão bom como aqui. Mas o facto de nos materializarmos num corpo parece não estar ainda bem entendido e continua a gerar conflitos desnecessários.
MARIA DO CARMO
Tenho estado a pensar como é bom não haver aqui disfarces nem mentiras. Faz-nos sentir mais próximos. Talvez eu devesse ter partilhado contigo, minha querida Rita, certos episódios que marcaram a minha vida. Histórias que fazem de nós quem somos. Na relação que temos com pais, avós, tios, a distância é quase sempre feita por eles aparecerem aos nossos olhos como personagens dum livro que começámos a ler do meio para diante. Por vezes, somos tão reservados em relação ao nosso passado, que apenas resta de nós uma memória ténue... Esquecemos que nada é mais poderoso que a nossa própria verdade, mais arrebatador do que a nudez da nossa alma. Conhecer e amar alguém, é também conhecer e amar o seu passado. Doutro modo, corremos o risco duma superficialidade de relações em que os pilares não encontram chão para assentar. A nós, valeu-nos uma afinidade de almas que dispensou muitas palavras, mas muita coisa ficou por dizer.
Para te falar de mim, teria de te contar apenas parte da minha história, já que a verdade total nunca te podia ser revelada. Era um segredo entre mim e os teus pais que jurámos nunca divulgar. Eu própria quis apagar definitivamente a memória do que se passara dois anos antes de tu nasceres.
Já ouvira falar dela. Tinha inclusivamente lido um dos seus controversos livros.
Das traseiras da casa da minha mãe, podia ver o jardim da sua casa. A pequena alameda de roseiras-da-china e cameleiras era constantemente animada pelo desfile ondulante duma enorme variedade de gatos, que entravam e saíam por portas e janelas onde havia sempre luz até altas horas da madrugada.
Raramente ela aparecia cá fora. Ele sim. Passeava-se muitas vezes à volta dum pequeno lago artificial, em pedra escurecida pelo tempo, com uma estranha escultura no centro, em mármore branco, representando uma mulher nua com uma longa cabeleira em pedra mais escura, até aos joelhos. Da boca, dos seios e do sexo saíam-lhe os pescoços esguios de pavões por onde jorrava a água. Ele chegava a dar trinta voltas ao lago (divertia-me a contá-las), sempre para o mesmo lado, enquanto fumava o inseparável cachimbo que, só mais tarde eu saberia, tinha uma pequena serpente, também em madeira, enroscada no seu cabo. De repente parava e punha-se a gesticular como se fizesse desenhos no espaço. Eu ria-me ao vê-lo naquela figura. Depois corria para um pequeno pavilhão ao fundo do jardim, onde desaparecia por muito tempo. Outras vezes conversava com outros homens que deviam ser seus amigos. Riam, bebiam, fumavam, conversavam animadamente e aguçavam a minha curiosidade escondida por detrás dos binóculos que a minha mãe usava quando ia ao teatro.
Eu tinha vinte e poucos anos e passava horas fascinada a imaginar do que falariam, o que os faria rir, como seria a casa por dentro, onde é que a escritora passava os dias, que fariam acordados até tão tarde. Ardia em curiosidade para saber como se desenrolava a vida por trás daquelas cortinas pesadas e misteriosas.
Um dia perguntei à minha mãe se conhecia a Carolina Vasconcelos. Apenas de nome. Que era casada com um pintor, Eduardo Sacadura Leal, herdeiro duma considerável fortuna que lhe permitia dar largas às suas fantasias e dum séquito permanente que esvoaçava à sua volta.
À medida que a minha curiosidade aumentava, comecei a passar à porta deles cada vez mais assiduamente.
Vi-a algumas vezes de relance. Uma figura majestática, sempre vestida de preto a contrastar com a pele muito branca donde sobressaíam uns olhos enormes, delineados com um traço de lápis. O género de mulher que adora fazer estremecer os corações nem que sejam dos gatos. Devia ter uns dez anos a mais do que eu.
Um dia, sem que eu esperasse, mandaram entregar a casa da minha mãe, em meu nome, um convite para uma festa. Afinal tinham reparado em mim. Sabiam o meu nome. Que morava na mesma rua, duas portas acima. Certamente tinham posto alguma criada em campo para se informar. Não deixava de ser ousado convidarem-me assim, sem nos conhecermos. Maior ousadia era a minha se aceitasse o convite, mas isso eu nem punha em causa.
A tua avó viajava frequentemente para Madrid ou Paris. Era aí que podia viver tranquilamente o seu romance com o Mário Relvas. Nem um nem outro se atreviam a pensar em casamento. Ela, porque fora obrigada a jurar ao teu avô, antes deste morrer, que jamais se voltaria a casar. Ele, porque era casado e pai de família. Os negócios obrigavam-no a frequentes viagens que ambos aproveitavam avidamente.
Por isso, eu tinha bastante espaço de manobra, apesar de viver lá em casa, além das duas criadas, a tia Adriana, irmã mais velha da minha mãe que amadrínhava tudo o que eu fizesse.
Com a tua avó ausente, dei a volta a guarda-fatos e gavetas até encontrar a toilette que me pareceu mais adequada. Um vestido da Maison Sciapparelli, em chiffon bordado a canutilho e vidrilhos, que era o ai-jesus da minha mãe. Comprara-o numa ida a Paris, não na Place Vendôme, mas a uma senhora que se tornara intermediária na revenda de algumas preciosidades assinadas pelos melhores costureiros. Segundo ela, o vestido tinha sido usado numa festa pela duquesa de Kent que jamais repetia uma toilette.
À porta, um criado fardado de preto com colete de riscas, papillon e luvas brancas, recebeu o convite que lhe mostrei.
A casa tinha um generoso e convidativo hall, com chão em madeiras de vários tons, possivelmente exóticas, a formar desenhos geométricos, donde saía uma escadaria que levava ao piso superior, certamente o do quarto onde eu via às vezes deslizar a sombra dela. Duas esculturas em bronze amarelo, empunhando lâmpadas de vidro opaco, que projectavam uma luz suave, ladeavam as escadas em madeira bem encerada, cobertas por uma passadeira de tom encarnado-escuro.
Sentia-me pequena e intrusa, como se não fosse conhecedora dos mesmos códigos que me permitiam estar à vontade no meio daquele grupo de iniciados.
Actores, músicos, jornalistas, poetas, professores, bailarinos, o Eduardo ou a Carolina tinham o cuidado de me apresentarem a uns e outros como se eu fosse uma amiga de longa data, em boa altura reaparecida. Havia um permanente vaivém dumas salas para outras, de gente que rodopiava de copo na mão, outros que jogavam envoltos em fumo azul, ao som da música e dos risos.
Mais do que o champanhe que os criados me ofereciam, eu bebia cada gesto daquelas pessoas que me enchiam de fascínio pela sua arte de serem originais. Sentia-me inebriada de tanta novidade, importante, se algum daqueles intelectuais, autênticos seres de eleição para quem o resto dos mortais era uma cambada de ignorantes e pelintras, me dirigia a palavra.
Havia também criaturas perturbadoras, como aquela, mulher de ar frígido, esguia e esverdeada a lembrar uma figura do Greco, com um ecrã de doenças nos olhos. Uma judia russa, dada aos esoterismos, que advogava as teorias da Annie Besant e dissertava sobre a metempsicose, outros planos, outra dimensão para onde passávamos em vez de morrer. Tudo era extraordinário à minha volta.
A Carolina disse poesia enquanto um amigo a acompanhava ao piano. Vestia uma túnica de canutilhos pretos e antracite com reflexos difíceis de descrever. Por dentro adivinhava-se a pele lisa e branca, sempre que fazia um movimento. Não tinha uma única jóia, a não ser uma serpente à volta do braço direito. Na mesma mão, quase sempre, um cigarro que alguém se apressara a acender. Todos lhe queriam agradar, mas ela parecia escapar-se entre as mãos de quem se aproximava, como um raio de sol.
Um ser esverdeado, viscoso e saltitante, chamou-me a atenção. Era o pianista, um homem estranho, de espírito saburrento, com uma cabeça enorme de cabelos compridos, ralos e desgrenhados, tão pequeno que não se podia baixar sem o risco de tropeçarmos nele. Um autêntico sapo até na forma de saltitar com os dedos sobre as teclas que gemiam assustadas. Mas todo este ambiente insólito me hipnotizava.
A meio da noite, vindos não se sabe donde, um bando de saltimbancos, com dois macacos amestrados e um cão, invadiu as salas arrastando-nos para o jardim onde nos brindaram com uma exibição de malabarismos e contorções animadamente aplaudida, que terminou com o lançamento de fogo sobre o pequeno lago. O Eduardo, enquanto assistíamos, pousou a mão esquerda no meu ombro. Do outro lado do círculo que rodeava os saltimbancos, Carolina olhava-nos com um leve, misterioso sorriso. Para onde quer que me virasse, respirava-se uma atmosfera sensual de sedas e luzes veladas que despertavam em mim uma volúpia até então desconhecida.
Não sei ao certo quanto tempo durou a minha viagem por aquele mundo fantástico. A proximidade das nossas casas e as constantes ausências da minha mãe, facilitavam a minha permanência junto da Maria Carolina e do Eduardo que diziam não passar um dia sem mim. Sentia-me a viver um sonho...
PAULO / LUÍS
Nem a vastidão das planícies, nem o silêncio acalmavam a mente conturbada do Paulo. Nem o amor do Luís, nem as conversas com a psicóloga, nem as constantes preces para recuperar a sanidade que sentia esfumar-se em cada dia.
Ultimamente aconteciam coisas estranhas. Impulsos violentos que não conseguia dominar. Tudo se passava dentro da sua mente, mas para Paulo era como se fossem realidades visíveis, palpáveis.
A tal ponto que, durante o fim-de-semana no Alentejo, ao visitarem uma pequena igreja do século XVIII para apreciarem as suas famosas talhas...
- Ouviste o que eu disse? - A voz do Paulo denotava inquietação.
- Não. Disseste alguma coisa? - Luís estava entretido a observar a gesticulação espalhafatosa da mulher que limpava o altar.
- Não, não. Pensei que estava a rezar demasiado alto disfarçou o Paulo.
Já não era a primeira vez que lhe acontecia aquilo. Quando entrava numa igreja, não havia imagem de santo que ele não presenteasse com um insulto. De cabrão e filho-da-puta para cima, não escapava um, apesar de fazer um esforço titânico para se dominar. O ímpeto era tal, que lhe parecia ouvir a sua voz ressoar por toda a igreja, mas na verdade eram só pensamentos. Uma cadeia desordenada de frases e imagens que o deixavam numa tremenda aflição. Condenava-se por estar num local sagrado e lhe ocorrerem ideias tão perversas. Imaginava-se encostado ao altar a ter relações com o mesmo polícia da sua primeira experiência homossexual, via o padre a levantar o cálice cheio de sémen, as figuras dos santos em poses desbragadas. Achava-se odioso por lhe ocorrerem tais heresias. Chegou mesmo a pensar que se tinha deixado possuir pelo demónio e que o padre Filipe estava carregado de razão.
Falar do assunto ao Luís estava fora de questão. Seria roubar-lhe a esperança de o ver recuperar. Fingia uma tranquilidade que estava longe de sentir, contudo não conseguia evitar que o suor lhe escorresse cara abaixo.
- Sentes-te bem? - perguntou Luís ao vê-lo enxugar a testa disfarçadamente com a mão.
- Preciso de ir lá para fora. Acho que tive uma baixa de tensão. - Incapaz de encarar o Luís, dirigiu-se precipitadamente para a porta da igreja.
No caminho de regresso à pousada, Paulo estranhou o silêncio do Luís.
- Posso saber o que estás a pensar?
- Que é difícil amarmos alguém que tememos. Impossível - disse o Luís sem tirar os olhos da estrada.
- Estás a referir-te a quem? - Paulo a tentar perceber.
- A Deus. Ensinam-nos a temer Deus.
- Eu amo Deus - defendeu-se Paulo.
Luís sentiu o Paulo inseguro e não quis provocá-lo. Procurava apenas uma forma de o ajudar.
- E Deus, porque é Deus, ama-nos a todos. E aceita-nos
- respondeu.
- Queres dizer que não há motivos para O temermos. O Paulo a perceber onde ele queria chegar.
- Nem para nos condenarmos. - Luís sorria.
- Voltamos à conversa de ontem à noite?
- Não. Ainda dizes que eu te ando a fazer uma lavagem ao cérebro. - Luís na brincadeira. - Tu é que me puxaste pela língua...
- Não faz mal. Sabe-me bem ouvir-te. - Paulo pousou a mão sobre a perna do Luís.
Na véspera, Paulo tivera uma pequena crise de choro por causa das suas já habituais ejaculações precoces. Sentia-se diminuído e temia que Luís se fartasse e deixasse de gostar dele.
Luís tranquilizava-o. Que era certamente uma coisa passageira, que à medida que ele se fosse relacionando melhor com o seu próprio corpo tudo seria diferente.
- Pensas de mais. Deixa correr as coisas. Entrega-te e confia. Fazer amor com a pessoa que se ama pode ser um acto sublime. Uma transcendência.
- Achas que eu me recrimino por gostar dum homem?
- Tenho a certeza. Sabes isso tão bem como eu. - Luís beijava-lhe os cabelos com ternura.
- Não sei o que hei-de fazer com o meu corpo. - Havia uma profunda tristeza na voz do Paulo. - Isto já é uma obsessão.
- Como é que não havia de ser? O sexo é uma função tão natural como respirar. Só te lembras que respiras quando respiras mal. Se não estás bem com a tua sexualidade, ela toma proporções desmedidas, estás sempre a lembrar-te dela e isso pode provocar disfunções. É uma espécie de luz vermelha que se acende a toda a hora. Se a ignoras, pior para ti.
- Vais ter paciência para esperar que esta cabeça entre nos eixos? - perguntava Paulo temendo a resposta.
- Nem que eu seja um velho de bengala!
- Amo-te, - Paulo deitou a cabeça no ombro do Luís.
- Pensas que me amas ou sentes que me amas? - Luís sorria.
- Sinto. com muita força. - Paulo apertava-se contra ele.
- Experimenta fazer o mesmo com o teu corpo. Sente o que ele te pede e não argumentes. Não metas o raciocínio onde ele não é chamado.
- Deve ser uma herança da minha mãe. Ela raciocina quando devia sentir e isso deixa-me destroçado. Demonstra bem a falta de grandeza da sua alma. - A voz do Paulo era grave. Havia ressentimento e amargura no seu tom.
Luís, surpreendido, absteve-se de fazer comentários. Era a primeira vez que ouvia o Paulo referir-se à mãe daquela maneira.
MARIA DO CARMO
Quando eu estava, com a Maria Carolina, era como se estivesse na presença de uma deusa. Para me sentir à sua altura, queria dizer coisas inteligentes, mas era sempre ultrapassada pelo seu génio descomedido de poeta desvairada. Rendida, deixava-me guiar por aquela personalidade poderosa que orientava as minhas leituras e me recitava poemas da sua autoria, dizendo que eu a inspirava. Tinha por ela uma veneração tal, que da primeira vez que espirrou à minha frente caí das nuvens. Afinal era humana.
Aos serões discutia-se sobre a junção da arte, atacava-se a moral burguesa, e Maria Carolina, sentada no seu fauteuil de veludo sangue-de-boi, difundia as ideias feministas que cresciam aos poucos pelo mundo civilizado, enquanto por cá, nas cozinhas de todo o país, se acreditava que a maionese talhava quando uma mulher menstruada lá entrava. Os homens ouviam-se uns aos outros com uma atenção que não concediam às mulheres. Mesmo se as suas opiniões não coincidiam, escutavam-se com interesse. A nós, dispensavam-nos uma atenção polida que enfurecia Maria Carolina por considerá-la insultuosa.
Corriam os anos da libertação em Paris, havia sempre gente que trazia novidades de Saint-Germain-des-Prés, do Cocteau ou da Juliette Greco que encontravam no Flore ou no Montana.
As vezes, no meio das discussões, perguntavam a minha opinião, e eu nem sempre sabia o que dizer. Até aí tinha-me dedicado mais ao ténis, desporto que estava na moda para as raparigas que teimavam em ser modernas como eu. Não insistira tanto nos estudos como desejava a tua avó e, para além das leituras clássicas, as modas literárias que agora me apresentavam constituíam uma total novidade para mim. Bebia dum lado e do outro, conjugava argumentos daqui e dali à procura do meu próprio. Todas as noites o salão se animava da cor dos risos, dos poemas que se esfumavam perfumados, e eu sentia-me lisonjeada por ser convidada a partilhar a intimidade das duas pessoas que eram a alma daqueles encontros mágicos. Mais: a fazer parte das suas obras. O Eduardo tinha-me proposto posar para ele e como habitualmente pintava à noite, depois de terminarem as soirées, convidou-me a dormir num quarto a que chamavam o "quarto da pomba" por ter uma enorme pomba desenhada no tecto. Assim, não tinha de ir para casa àquelas horas tardias.
A minha mãe, entretanto, já travara conhecimento com estas minhas novas amizades e achava-as uma bênção de Deus. Finalmente, eu começava a debruçar-me sobre assuntos culturais, bem mais interessantes que o desporto. Talvez amadurecesse e deixasse de rejeitar todas as propostas de casamento como até aí. Ela temia que o tempo passasse e eu me transformasse numa solteirona como a tia Adriana. Mas na minha vida, os homens tinham desfilado sempre ao ritmo dos eléctricos. Deixava passar um, vinha logo outro a seguir... sem que eu estivesse interessada em apanhá-los.
A meio da manhã, quando acordava, a Carolina mandava-me chamar para ir para o quarto dela conversar. Um bonito desenho assinado pelo Eduardo há uma dezena de anos, em que ela exibia as suas formas redondas e nuas, dava-me as boas-vindas mal abria a porta.
Ainda deitada, apontava o lugar ao seu Lado, onde duas enormes e confortáveis almofadas pareciam esperar-me. Eu deixava os sapatos sobre a pele de leopardo ao lado da cama e ali me recostava envolta naquele olhar preto e intenso. Enfeitiçador. Encostava a sua cabeça à minha enquanto me mostrava algum bocado de prosa ou uma nova poesia esboçada durante a noite. Outras vezes pegava-me na mão e fazia-lhe festas na palma, num gesto ambíguo entre a carícia e quem observa de perto as suas linhas a cujo estudo se dedicava. Era assim que se podia pautar toda a nossa relação. Na ambiguidade. Embora eu ardesse em desejo por a ter nos meus braços, jamais me atreveria a quebrar o elástico daquela fronteira com medo de ser rejeitada. Desejava-lhe os gestos, a voz, o riso, mas limitava-me a corresponder da mesma forma ambígua às suas provocações.
Nessas manhãs, o Eduardo, que sempre se levantava primeiro, fazia questão em ser ele a trazer-nos o pequeno-almoço e uma rosa para cada uma, que acabara de colher no jardim. Quando ele entrava, a Carolina afastava o seu corpo do meu, discretamente.
Os quartos (não dormiam no mesmo) estavam ligados por um grande arco a meio duma parede, e a cama da Carolina estava exactamente em frente à do Eduardo, na parede oposta. Numa disposição simétrica. Entre eles, apenas, um sugestivo biombo com três telas em seda, onde se viam pintadas reproduções de arte erótica oriental. Cenas em que a tensão amorosa era aumentada pela presença de um animal feroz, de uma terceira figura feminina com sexo de homem, ou de peixes alados que beijavam o comprido sexo dos outros.
O quarto da Carolina dava ainda passagem para a sua biblioteca onde, das três às sete, se fechava diariamente. As únicas presenças permitidas eram os gatos. Nessa mesma parede do lado oposto, uma porta de comunicação para uma ampla casa de banho, de chão e meias paredes em mármore preto, iluminada por diversos apliques em vidro leitoso. O tecto e a parte restante das paredes eram revestidos a espelho gravado com desenhos geométricos.
Maria Carolina tinha alguns hábitos invulgares, por exemplo: todas as manhãs esfregava a cabeça com veemência para agitar a circulação ou, se estivesse cansada para o fazer, chamava uma criada, mas não a deixava tocar-lhe directamente com as mãos por causa das energias. Era obrigatório usar luvas. Enquanto isso, dissertava sobre a personalidade da Helène Blavatsky. No seu jeito exaltado de se exprimir, citava-a incessantemente por ter sido uma mulher sem preconceitos, lutadora, sábia e que, segundo ela, detestava a vulgaridade e a estreiteza moral. Uma natureza hipnótica a que não ficaram indiferentes cientistas, filósofos e artistas de todo o mundo. Ela incluída.
Acabadas as massagens, mandava preparar um banho e se eu fazia menção de me retirar, pedia-me que não saísse. Deixava a porta da casa de banho entreaberta e queria saber como me sentia como modelo do Eduardo, de que falávamos durante esse tempo.
Temendo que ela se aborrecesse, não lhe contava dos galanteios constantes que o Eduardo me dirigia com o seu habitual sorriso enigmático, do meu quarto cheio de rosas quando acordava, nem dos pequenos desenhos deixados sobre o travesseiro com dedicatórias ternas em que ele me chamava, a sua pomba.
Eduardo era apenas um dos muitos homens que me faziam uma corte inconsequente com a vantagem de ser marido dela; eu estava bem longe de acreditar que tinha conquistado no coração dele algum lugar especial, a não ser o de uma amizade que ele gostava de colorir com o seu charme.
Além disso, eu não queria outra coisa senão viver na contemplação daquela mulher que me abria as portas da poesia, do fantástico, do mundo, e me convencia a todo o momento de que eu era indispensável na sua intimidade, embora eu a adivinhasse mais capaz de despertar paixões do que de as sentir.
Às vezes pedia-me para usar os seus vestidos e, no meio da noite, envolvia-me num olhar intenso e cúmplice sempre que algum homem se insinuava junto de mim. Como se eu fosse sua. Eu sorria-lhe e correspondia ao olhar, ao mesmo tempo que reconhecia o perfume dela no meu corpo como se estivesse vestida com a sua pele. O desejo que sentia por ela vinha-me mais da alma, mas havia uma sensualidade presente nos mais pequenos gestos.
Naquela noite fiquei a posar para o Eduardo no ateliê, um pequeno pavilhão no jardim, depois de terminada a soirée. Antes de me acompanhar à porta do quarto onde eu dormia, como habitualmente fazia, aproximou-se e olhou-me fixamente nos olhos. Atrapalhei-me e disse uma graça qualquer para quebrar o silêncio mas ele não desarmou. Tocou-me ao de leve nos cabelos, como se arrumasse alguns que estivessem fora do sítio, inclinou-se e, sem me dar tempo para reagir, beijou-me.
O contacto com a sua pele bem tratada e a delicadeza do gesto suavizaram a minha reacção. Afastei-o com firmeza mas docemente. Não era insensível àquele homem bonito, inteligente, sempre impecavelmente vestido com um pormenor qualquer de extravagância que o tornava diferente dos outros. Um estilo que alguns copiavam sem sucesso.
Os cabelos muito pretos e brilhantes cobriam, lisos, a sua nuca morena, mais compridos do que era comum usar-se. Às vezes caía-lhe sobre a cara uma madeixa que ele deixava ficar, numa atitude estudada, parecia-me, a tapar-lhe os olhos cor de avelã. Havia nele qualquer subtileza feminina que lhe facilitava o contacto com todas as mulheres, mesmo as mais difíceis. Sabia fazer-se íntimo.
Perante a minha rejeição, perguntou-me se me tinha surpreendido.
Que só tinha ousado porque achava que não me era indiferente. Ou estaria com medo que a Maria Carolina viesse a saber? Eu que lhe dissesse onde, que escolhesse o local, mas tinha de se encontrar comigo. Não aguentava mais disfarçar aquela paixão. Não importava se o que eu sentia por ele era apenas amizade. Era imperioso falarmos. Respostas. Queria respostas, e eu perplexa sem saber o que dizer. De lágrimas nos olhos, abraçou-me de novo. Acariciava-me os cabelos, a minha cabeça apertada contra o seu peito, enquanto deixava sair uma torrente de palavras que me soavam bem pelo tom sincero da sua voz suave.
Enquanto ele falava, o meu coração sobressaltou-se ao ver o movimento rápido, fugidio, de uma silhueta que deslizou no jardim, perto da grande janela do pavilhão. Tive a certeza que era Maria Carolina. Afastei-me subitamente mas não lhe expliquei o motivo. Ele pedia-me desculpa, que não voltaria a importunar-me, mas, por amor de Deus, que não desaparecesse da vida deles.
Saímos do pavilhão, comigo a dizer que era melhor ir para minha casa. Não, isso não, se o fizesse àquela hora da noite a Maria Carolina iria estranhar. Ele não voltaria a insistir, a não ser que eu mostrasse vontade. Despedimo-nos. Dentro de mim instalara-se uma confusão de sentimentos que balançava entre a perplexidade e o temor de que as nossas relações pudessem ficar abaladas. Sobretudo as da Maria Carolina comigo. Entrei no quarto, mas não fiquei sossegada...
RITA
- E quanto à relação das duas personagens masculinas, se fosse a ti revia isso. Não é que o tema não seja vendável, mas é melhor protegeres-te - geme a voz arrastada do Alberto.
- De quê? - Rita a entender cada vez menos.
- De seres acusada de defender um gueto de que fazes parte. - O tom é avinagrado desde a noite em que Rita se escapou da festa à papo-seco.
- E então? Ficam-me mal esses sentimentos? - Rita a atirar com o cabelo para trás. - E deixa-me esclarecer uma coisa: não faço parte de guetos nem vivo em grupos fechados. É mesmo o que mais tento banir do meu horizonte. O meu papel, se é que tenho algum, é abrir portas em vez de fechar, é construir pontes em vez de muralhas.
A Lua mete o rabo entre as pernas e enfia-se debaixo da mesa em frente ao sofá. Adivinha uma tempestade.
- Calma! - Alberto pensa, a mil à hora, na forma de dar a volta à fúria emergente da Rita. Vá-se lá saber porquê, alimenta a esperança de a vir a ter nos braços nem que seja por umas horas. Uma fixação antiga que se tornara mais acesa desde que soubera que Rita era homossexual.
- Não tenciono abordar este assunto, ignorando os dramas que ainda existem por detrás dele! Não estavas à espera que eu introduzisse dois homossexuais no enredo só para dar um tom colorido e actual à série, ou estavas? A homossexualidade vende bem se for para apelar ao erotismo camuflado ou levada em tom de brincadeira, não é? Mas a homossexualidade não é um Viagra ou um Carnaval, meu amigo, nem mesmo quando se traveste! Não alinho nessas fantochadas! - Cabelo para trás.
- Não é preciso irritares-te! Não estou contra que tenhas dois homossexuais na história.
- Então estás contra quê? - Rita atira com os episódios que tinha na mão para cima da mesa. A Lua escapa-se para um canto.
- Na forma como desenvolveste, parece que decidiste armar-te em padroeira do mundo gay. Talvez não seja necessário expores-te dessa maneira.
- Desculpa, mas eu não te estou a entender. Primeiro, achaste a ideia interessante. Agora, sempre que nos reunimos, é para lhe pores defeitos e ofereceres resistência.
- Só estou a querer proteger-te. Sabes como são as pessoas.
- Obrigada pela intenção, mas eu sei defender-me.
O telefone tocou em boa hora.
Antes que ela atendesse, o Alberto olhou rapidamente para o relógio e levantou-se. Já estava atrasado para outra reunião. Mais tarde falariam melhor.
Saiu um tanto precipitadamente, enquanto Rita atendia a Cristina com um convite para jantar no dia seguinte.
Pensou duas vezes. Não sabia se estava capaz de aguentar a mágoa que lhe provocava a toada agreste e intransigente que ela adoptara. Nunca se habituaria àquela nova versão. Quem sabe ela tinha reconsiderado? Iria finalmente admitir que atravessara um mau momento e que precisara de uma vítima? Que a relação estava a passar uma crise, mas que juntas iriam resolvê-la? Na esperança que o discurso mudasse de tom, aceitou.
Depois escolheu um CD da Patrícia Barber, o Nightclub, e esticou-se em cima do sofá a ouvi-lo, ao mesmo tempo que tentava alinhar algumas ideias. A Lua correu para junto dela a pedir festas com a pata.
Olhou para os episódios atirados para cima da mesa.
Não estava disposta a deixar o destino das suas personagens nas mãos de um produtor cuja principal preocupação era não mexer com a consciência do público para não perder audiências. Tinha a noção exacta de que ele se estava nas tintas para a proteger de possíveis alusões à sua vida pessoal. A sua única intenção era ir ao encontro da exigência dos patrões do canal: aumentar os shares fosse a que preço fosse.
Pensou em abandonar o projecto e dedicar-se a escrever um livro. Alguma editora havia de querer publicá-lo e, quem sabe, ela descobrisse assim a forma de expressão que ainda procurava.
Um pressentimento dizia-lhe que se o fizesse não ia ter um parto fácil. Diferente de uma mãe que dá à luz um filho com uma entidade distinta, ela sentia que, se escrevesse um livro era um parto de si própria, de uma Rita que até à data ela tinha protegido dos olhares do mundo. Quantas vezes já tinha nascido? Depois de ter sido expulsa da mãe, quantas vezes se voltara a anichar em novos úteros, inventados por si, onde se desenvolvera até sofrer nova expulsão e por aí fora, como um animal que muda várias vezes de pele? Mas esta Rita era uma que ela alimentara desde sempre nas suas próprias águas, crescendo a um ritmo diferente do seu corpo, a sentir às vezes falta de espaço, a pedir voz, ao mesmo tempo que temia o choque com o julgamento do mundo exterior.
Essa Rita, ao sair cá para fora, temia como iria ser recebida. Temia atravessar a morte que a levaria a uma nova vida. Ela própria tinha de se anular, largar defesas, deixar morrer o que ainda restava da velha Rita. "Coragem, vai em frente!", dizia-lhe a voz que se deve ouvir, mas ela, insegura, ainda se achava um ser frágil, carne tenra atirada às feras.
Sim, ninguém a iria tratar com todos os cuidados como se trata um recém-nascido. Parecia-lhe mais difícil vir ao mundo já sabendo quais os perigos que a esperavam, do que quando tinha nascido da barriga da mãe, porque, nesse tempo, acreditava que tudo à sua volta estava ao serviço do amor. Agora tinha medo do conhecido. Sabia como o mundo podia ser implacável na sua destruição. Mas isto eram maquinações do seu pensamento. Dentro do seu peito, uma fé que suplantava qualquer medo dizia-lhe que acreditasse na cumplicidade dos corações que guiavam as almas semelhantes à sua. Havia de pensar melhor no assunto do livro.
MARIA DO CARMO
Na tal noite em que Eduardo me beijou, não imaginava como a dor se preparava para uma estreia, fulgurante no meu destino.
Sentada na beira da cama, no "quarto da pomba", não sabia o que fazer. Queria sair daquela casa mas temia que a porta não se abrisse de novo para eu entrar. A Maria Carolina não era pessoa que cedesse de boa vontade o seu lugar fosse no que fosse, muito menos no coração do Eduardo. Era ferozmente possessiva e dominadora. Tinha tanto a certeza disso como de a ter visto no jardim. Que teria pensado? Que juízos poderia ter feito? Estaria o Eduardo apenas a exagerar no seu habitual papel de charmeurr' Mas as lágrimas e aquelas palavras tão sentidas... como poderia aquele homem, cobiçado pelas mulheres mais extraordinárias, interessar-se por mim senão por capricho? E a Maria Carolina não estaria suficientemente segura do meu amor por ela, para saber que eu jamais tentaria fazer-lhe concorrência? Respirava fundo para controlar a respiração descompassada. Tentava tranquilizar-me.
A bem da verdade, eu nunca lhe tinha confessado os meus sentimentos, mas entre nós sempre fora assim. Insinuava-se, sugeria-se em gestos, palavras ou olhares que podiam ter mais do que uma leitura. Um desafio permanente, um jogo de ambiguidades em que acenava quem melhor soubesse interpretar os sinais. Ela era certamente exímia nisso. Era-o em tudo. Nem o mais escondido dos meus sentimentos lhe poderia ter escapado. Se ela tivesse observado a cena do jardim, havia de estar segura que eu jamais constituiria um perigo junto do Eduardo. Pela minha parte, pelo menos.
Mergulhada num poço de inquietações e conjecturas, não me conseguia deitar. Iria ela fazer alguma observação ao Eduardo ou fingiria que não nos tinha visto?
A minha ansiedade era tamanha que não resisti a subir até ao primeiro andar, na escuridão daquela casa que eu já conhecia de cor.
À porta do quarto dela estavam dois gatos que me olharam indiferentes. Havia luz em ambas as divisões, uma luz difusa que saía pelas bandeiras das portas, deixando o corredor na penumbra.
Ouvia as vozes deles. Lentamente, para não se notar a minha presença, fui-me aproximando. Pus a mão no peito, tentando, inutilmente, abafar o bater do meu coração.
-Já fomos longe de mais no jogo. - Era a voz clara, inconfundível dela.
- E quem foi longe de mais? - Ele.
- Tu. Não respeitaste as regras. Deixaste-te envolver. A meta era ver quem a seduzia primeiro. Fazê-la envolver-se. Foste caçado em vez de caçador. Estás a perder qualidades.
Que dizia ela? Senti uma vertigem de humilhação. O meu coração parecia ter deixado de bater. Queria fugir, contudo, os meus pés não se desgrudavam do soalho. Tinha de saber mais.
- Estás assim tão segura que foi por ti que ela se apaixonou?
- perguntava ele.
- Estou e tu também. A regra tem sido sempre não nos envolvermos. Desta vez escorregaste. Quanto a ela, tens alguma dúvida? Esquece-a. Não vês que bebe o ar que eu respiro? - A sua voz era cortante.
- E então, qual é o feito? Uma rapariga saída dum colégio interno para a casa da mãe, sem qualquer espécie de mundo, facilmente se deslumbra com este meio.
- E neste meio em quem é que ela se fixou? O que parece difícil, é tu resistires ao encanto duma rapariguinha ingénua e confiante.
- Ciúmes?
- Não, querido. Je m'en fiche, bem sabes. - Havia algum despeito na voz dela. - Mas um jogo é um jogo e tu não és um principiante. Perdeste.
- Quem te disse? - Ele a ver se a confundia. - Quis apenas levar o jogo até às últimas. Até hoje, nenhuma mulher me negou um beijo.
- Não vale fazer bluff. Conheço-te bem de mais. Ouvi-te implorar por uns minutos de atenção. Não podias ser mais sincero.
- Invejo a tua segurança. Não há uma presa que te escape. Nem eu.
- Espero que não me peças provas mais evidentes. Não me apetece ir mais longe. Podia alimentar ad eternum este enredo, mas já sabes que me canso depressa. Largamos a presa antes de a ferirmos, que te parece? Aguentas?
-Já tens outra em vista? - Havia amargura na voz dele.
A presa era eu. Subitamente, percebi que tal como certas amizades, tudo à minha volta assentava em pilares de esparregado. Quase a desmaiar de dor e revolta, preparei-me para sair dali para sempre. As lágrimas toldavam-me a visão. Não reparei no gato que estava no meu caminho e pisei-o. Precipitei-me escada abaixo e ouvi uma porta abrir-se, assim que o gato miou de dor. Fui a correr ao "quarto da pomba" buscar a carteira e um casaco. Quando me voltei, vi-o na minha frente. Não me perguntou nada. Apenas me disse com os olhos brilhantes de comoção:
- Desculpa.
Saí dali tão silenciosa e pequena como tinha entrado pela primeira vez.
Nunca mais olhei pelas janelas das traseiras da casa da tua avó. Queria fugir para longe, mas não tinha para onde ir. A proximidade da casa deles incomodava-me, e a tua avó já começara a fazer-me perguntas. Evitava sair para não lhes passar à porta. O Eduardo escrevia e mandava-me flores quase todos os dias. Que ninguém tinha brincado comigo. Apenas quando me conheceram. Uma aposta estúpida entre um casal que gostava de se provocar mutuamente. Que faria tudo para que eu lhe perdoasse. Que não podia passar sem me ver.
Dela, nem uma palavra.
Tinham passado quase quatro meses quando o encontrei na rua entre a nossa casa e a deles.
Toda a sua intelectualidade, a pose, a dignidade, se amarrotaram em juras, promessas e súplicas. A Maria Carolina estava em Paris e ele pediu-me por tudo que entrasse uns momentos. O nome dela fez-me estremecer. Ele pedia que lhe desse o beneficio da dúvida, que o ouvisse. Acedi, movida por uma tentação mórbida de rever aquele mundo onde havia mergulhado como uma esponja até me afundar.
Deixei-me conduzir até ao pavilhão no jardim, enquanto na minha memória revivia cenas das noites passadas naqueles salões, povoados de personagens cujo génio criador passava tantas vezes pela artificialidade e exibicionismo de caprichos a que achavam ter direito. Só a distância me fez ver que havia gente que tirava partido da arte cultivando o seu lado espectacular, postiço, porque não lhe conhecia a face da entrega, a face genuína.
Tudo se desenrolou precipitadamente entre justificações atabalhoadas, promessas e carícias. Incapaz de reagir, ouvia-o e deixava que o desejo dele tomasse conta da situação. Não sei se era a mágoa, uma sede de vingança ou a vontade que o meu corpo fosse tocado pelo mesmo que tocava o dela, que me fizeram entregar-me sem qualquer resistência. Desconheço que parte de mim participou naquele acto. Tenho apenas consciência de me observar e ficar à espera que tudo terminasse. O Eduardo estava tão enlouquecido que nem se apercebia da minha estranha passividade.
Mal recuperei do choque, e enquanto ele se refazia, corri dali para fora e refugiei-me no meu quarto em casa da tua avó. Dei instruções às criadas para devolverem as cartas e as flores que ele insistia em mandar-me, mas a última palavra pertencia à Maria Carolina.
Incapaz de aceitar o perigo inerente aos seus jogos pérfidos, encarregou-se de atirar com o meu nome para a lama. Não lhe chegava conquistar, seduzir, enfeitiçar e fazer sofrer.
Num meio onde todos se conheciam, chegaram rapidamente aos ouvidos da tua avó rumores de histórias escabrosas protagonizadas por mim. A escritora, armando-se em vítima inocente da minha paixão não correspondida, fez constar que por pouco eu não lhe roubara o marido para me vingar. Um folhetim completo à volta de uma dissimulada que não soubera respeitar a amizade com que a tinham recebido em casa. A dissimulada era eu.
De nada me valia negar. A tua avó, em vez de acreditar em mim e me apoiar, enchia-me de acusações por estar envolvida em escândalos quando já tinha mais que idade para me casar e ter filhos. O amor não vinha donde eu esperava e, rapidamente, percebi que jamais poderia contar à tua avó toda a verdade sobre os sentimentos que me tinham ligado à Maria Carolina. A tia Adriana era a única que, na sua ausência, me tentava consolar. Embrenhada no seu mundo de colecções de selos e borboletas, vivia fora da realidade e nunca estava bem a par do que se passava.
- Não fique triste, minha filha - dizia na sua voz doce.
- Sabe, também tive um namorado que me deixou pendurada como se faz com um vestido que não se volta a usar.
Não valia a pena rectificar pormenores duma história já desenhada na sua cabeça. Sabia-me bem o seu afecto, mas não podia continuar ali, de orgulho espalmado, coração desfeito e medo de me cruzar com pessoas que queria esquecer. Escrevi aos teus pais que se tinham acabado de instalar no Norte por um ano e pedi asilo.
O casamento deles, aos olhos do mundo e da família, parecia exemplar mas corria mal desde o princípio e eu era a confidente da tua mãe. Apesar do teu pai ser meu irmão, por muito que o quisesse defender não tinha por onde. Era um homem de muitas mulheres, de temperamento autoritário, por vezes cruel, culpando a tua mãe por não lhe poder dar uma descendência, segredo que só eu partilhava. Nunca saberemos se o problema era dela ou dele. Nesse tempo não havia os testes que há hoje, e os homens achariam impensável alguém duvidar da sua capacidade de fecundar uma fêmea. Falar-lhes nisso seria uma tal ofensa à sua pessoa que só podemos concluir que a identidade de muitos deles assentava toda na sua muito venerada excrescência de uns tantos centímetros.
Entre mim e a tua mãe existira, desde muito cedo, uma intimidade que não havia entre mim e qualquer das minhas irmãs. Não podia contar com mais ninguém para ouvir a minha revolta ou tomar parte na minha dor, e ela ficou feliz por ter perto a única pessoa a quem contava as suas secretas desilusões.
A vida na província desenrolava-se tranquila, e a minha alma, endurecida pela conjura em que tinha caído, ia procurando conforto no contacto com gente simples, nos libertadores passeios a cavalo com a tua mãe ou nas nossas conversas à lareira, enquanto o teu pai se embrenhava em projectos de engenharia que davam cobertura aos seus devaneios.
Só ao fim de três meses, é que tive coragem para enfrentar o que vinha suspeitando mas recusava ver. Quase num pranto confessei à tua mãe a minha gravidez e desatei a tomar chá de goivos amarelos, chá de arruda e todas as mezinhas que na época se dizia serem milagrosas, em sucessivas tentativas falhadas para abortar. Dentro de mim, alguém começava a dar sinais de vida. Uma criança que eu não desejava, por vir a ser uma recordação permanente do episódio mais doloroso e humilhante que eu já vivera.
Se já era difícil encarar a ideia do regresso, sabendo das histórias que circulavam a meu respeito, parecia-me aterrador suportar uma gravidez debaixo de críticas, comentários insidiosos e reprimendas da minha mãe. Imaginava-me julgada e condenada por um bando de gente implacável ancorado às suas ideias sem vida. Afinal de contas, tratava-se do meu corpo e dos meus sentimentos e todos se achavam no direito de ditar sentenças sobre eles. Enfrentar um futuro de condenação social, olhares de comiseração e desprezo, indignação e troça, reprovação e piedade, não estava nos meus horizontes, embora o meu lado rebelde me espevitasse para pegar de caras o batalhão da moralidade. Tê-lo-ia feito sem dúvida, se a minha gravidez fosse resultado de um acto de amor.
A tua mãe não sabia o que fazer para me ajudar e no auge da aflição decidimos ir em segredo a uma parteira nos arredores do Porto. Eu estava aterrorizada e a tua mãe, apesar de querer manter uma aparência calma, não estava menos.
Entrámos num prédio pequeno, de aspecto sórdido, com uma escada em madeira gasta e tão íngreme que quase caíamos para trás. Chegadas ao primeiro andar deparou-se-nos a visão de uma mulher disforme de gorda, cara medonha e ar boçal. A entrada cheirava a lixívia, tinha muita quinquilharia sobre os móveis e santinhos por todo o lado, até nos vários calendários pendurados nas paredes do corredor.
Dos fundos, vinha a música dum rádio e um cheiro a refogado rançoso que nos envolveu numa onda de pestilência. Passámos para um quarto com uma marquesa velha, ferrugenta, possivelmente apanhada na sucata de um qualquer hospital. Encostada a uma parede, uma mesa estreita com tampo de pedra, partido num dos cantos, ostentava uns tantos instrumentos em ferro e um monte enorme de toalhas, frascos e algodão. Por cima, pendurados em pregos por fios torcidos de cores variadas, algumas imagens da Nossa Senhora e um crucifixo em metal branco e dourado. A um canto, dois grandes baldes num esmalte cinzento-claro cheio de falhas. Não tive tempo para ver mais.
Descontrolada, desatei num pranto; a tua mãe, num repente, virou-se para a parteira e tomou uma decisão:
- Nós pagamos-lhe o trabalho mas não precisa de o fazer.
- A sua voz era decidida. - Vem, Maria do Carmo! Tive uma ideia melhor. Já te explico.
Muda de surpresa, segui-a sem hesitações. Deixei-me guiar, esperançada. O seu tom não me deixara margem para dúvidas que a decisão havia de ser boa.
Lá fora chovia e fazia frio. Abrígámo-nos na soleira duma porta uns metros adiante.
- O que é que vamos fazer, Madalena? O que é que te passou pela cabeça?
- Vamos ter essa criança. Não aguentei ver-te passar por aquilo, metida nas mãos daquela mulher.
- Não posso, Madalena, não posso. Não quero a criança, não quero ser mãe, não quero passar por mais vexames quando voltar para casa.
- E não vais passar. Se concordares com o meu plano, ninguém precisa de saber, só o teu irmão.
Queria concentrar-me na sua proposta, mas as ideias escapuliam-se em todos os sentidos, agitando-me ainda mais a pulsação. Sentia-me confusa, sem capacidade de decisão, enquanto um profundo sentimento de alívio amarinhava por mim à medida que ia percebendo que tínhamos encontrado uma alternativa à violência do aborto. Naquele dia inesquecível, fiquei certa de que mulher nenhuma se sujeita àquilo de ânimo leve.
Nessa noite sonhei que precisava urgentemente de esconder um tesouro que me tinha sido confiado mas não sabia onde. Depois de muito procurar, apercebi-me que me tinha embrenhado numa floresta natural, inexplorada, onde a luz quase não entrava.
De todo o lado vinham sons estranhos e ameaçadores, e eu procurava desesperadamente um caminho que me levasse à saída, mas para onde quer que corresse esbarrava na vegetação cerrada e nos troncos altos e estáticos dos carvalhos. Às tantas, senti como que uma corrente de ar vinda do meu lado esquerdo e qualquer coisa, uma força estranha, a empurrar-me naquela direcção. Segui sem hesitações por um caminho, com a nítida sensação de estar a ser guiada por uma mão invisível, até me encontrar, com surpresa, à beira dum lago, cuja outra margem ainda se encontrava bastante distante. Mesmo assim, podia ver nitidamente uma pequena casa feita de troncos de árvore sobrepostos, certamente habitada por haver fumo a sair da chaminé. Como chegar até lá? Não havia sinais de barco. Quando me aproximei da água, o lodo e as areias movediças fizeram-me recuar e logo percebi que seria perigoso ir à volta do lago, a não ser que me embrenhasse de novo no bosque. Depois de muito procurar, encontrei uma jangada, escondida no meio da folhagem, que empurrei a custo para dentro de água e lá consegui fazer a travessia. Ao chegar à outra margem, arrumei a jangada em lugar seguro e dirigi-me à casa para pedir ajuda. Bati, chamei, mas não houve resposta. Rodei um fecho rudimentar, empurrei a porta e espreitei. No meio da ampla divisão que me pareceu ser única, havia um monte de lenha a arder por baixo duma chaminé em ferro preto. O chão era em vidro, a contrastar com a rusticidade de toda a cabana, e à medida que eu ensaiava timidamente uns passos, o chão iluminava-se e deixava-me ver um mundo subaquático onde se moviam centenas de pessoas como se fossem cardumes de peixes.
- São os habitantes do lago. Vieram atrás de ti mas não lhes confies o teu tesouro.
Voltei-me para identificar a proveniência daquela voz sem sexo e vi uma baleia a sorrir para mim.
À sua volta, seis ou sete filhotes entravam e saíam da água como se o chão de vidro não existisse.
- Sou a guardiã do lago. Os que vês lá em baixo esconderam tão bem os seus tesouros que agora não os conseguem encontrar. Estão condenados a procurá-los para sempre, a não ser que alguém lhes confie um novo tesouro que os possa libertar.
- O que devo fazer? - perguntei confusa.
- Podes confiá-lo a mim. Tens direito a vê-lo sempre que quiseres mas nunca mais lhe poderás tocar.
Tudo nela era maternal e inspirador de confiança.
Estendeu-me uma enorme vieira e esperou.
Como num ritual previamente ensaiado, estendi a mão direita e com uma minúscula lâmina de ouro, ela fez uma incisão nos cinco dedos, até que de cada um saísse uma gota de sangue. Depois voltou a fazer-me o mesmo na mão esquerda.
- Podes ir - disse em voz quase sussurrada.
Olhei de novo para a concha. O sangue tinha secado e tomara a forma de um coração que pulsava.
- Vai em paz. Saberei tomar conta dele.
Acordei estremunhada por me ter vindo embora sem a certeza de ter fixado o caminho para lá voltar.
A manhã era de sol e uma joaninha subia a ladeira do meu braço quando me fizeste sinal para nascer.
Eras um bebé lindo. Rosado, são, proporcionado, daqueles bebés que antigamente os pais agradeciam a Deus e que hoje encomendam aos médicos nos laboratórios.
Tive-te em casa com a ajuda da Madalena e de uma criada que nunca viria a sair daquele canto esquecido pelo mundo.
Como tinha sido combinado, foste logo registada como filha do meu irmão e da Madalena, que assumiram até à morte a tua paternidade sem que alguém suspeitasse do que tinha acontecido.
A tua mãe amou-te como uma verdadeira filha. Já te amava quando eu te trazia em mim. Levou tão a peito o seu papel de futura mãe, que, às vezes, eu tinha os enjoos e ela vomitava.
A seguir ao parto entrei num grande sofrimento. Naquela altura não se falava tanto em depressões mas acho que passei por uma. Chorava de manhã à noite, acordava zangada comigo e a não me perdoar que, por ingenuidade, tivesse sido levada a dar passos com consequências tão marcantes. Queria esquecer o que se tinha passado e a consciência pesava-me por não ter tido coragem para enfrentar a tua maternidade.
Fiquei mais magra do que uma dessas manequins de olhar triste e vazio que deslizam pelas passerelles, anjos sem asas para reencontrar o paraíso.
Porém, uma vez mais, a tua mãe esteve ao meu lado e ajudou-me a recuperar alguma estima por mim.
Com o teu pai, apesar de sermos irmãos, não foi tão fácil. Gostava muito de ti, não tenho dúvidas, mas fosses ou não sua filha, a reacção seria semelhante. Não estava disposto a partilhar com uma criança as atenções da Madalena. Penso que nos tempos em que a culpava por não lhe dar descendência, não se tinha dado conta que um filho viria ocupar um lugar que ele achava também ser dele. Um engano de que padecem muitos homens que procuram na mulher com quem casam uma segunda mãe. Engano lamentavelmente alimentado por demasiadas mulheres.
ROSARINHO
Recostada no sofá da sua angústia, Rosarinho larga o imenso pano onde vai cosendo esperanças que esconde na casa dos botões.
Sobre a mesa baixa frente ao sofá está o isqueiro que Paulo deixara esquecido há dias lá em casa. É com ele que Rosarinho acende o vigésimo cigarro do maço aberto de manhã. Ao mesmo tempo vem-lhe à memória a conversa que parecia levar o rumo do costume. Ia já meio cheia de banalidades quando, às tantas, o Paulo lhe perguntou a opinião sobre a mãe. Rosarinho, apanhada de surpresa mas cautelosa, tentou não se comprometer. Ele insistiu. Queria saber o que pensava sobre as ideias defendidas publicamente pela mãe em debates que estavam agora tanto na moda.
- Referes-te aos direitos dos homossexuais?
- Por exemplo... - Paulo temendo ser muito directo. Foi fácil juntar dois mais dois. Rosarinho já tinha ouvido
uns zunzuns depois dele e a Carocha terem acabado o namoro. Chegara-lhe aos ouvidos que a Carocha o tinha apanhado na cama com um homem, mas sabendo dos habituais exageros dos pombos-correio das suas amigas, achou por bem dar um desconto. Que a história circulava de casa para casa, de telefone para telefone, não tinha dúvidas. Mas Rosarinho, embora gostasse, como qualquer mortal, de ouvir um cancã divertido, nunca fora dada a bisbilhotices. Não alimentava mexericos e defendia que cada um devia viver como bem entendesse desde que não chateasse os outros. Estendeu ao Paulo o gim acabado de preparar:
- Já sabes que eu estou quase sempre em desacordo com as ideias da tua mãe. Apesar de ser mais nova, lembra-me muitas vezes a minha. Quando comecei a pensar por mim, desentendemo-nos e nunca mais a nossa relação foi a mesma.
- Não queria que isso acontecesse comigo. - A voz do Paulo denotava tristeza.
- Tu tens sido sempre muito ligado à tua mãe.
- E continuo! - Paulo parecia temer que ela duvidasse. Mas ultimamente...
Rosarinho, com o seu pudor excessivo e um certo receio de o ferir, não queria falar-lhe nos boatos que corriam. Decidiu-se por outra via e resolveu arriscar. Também ela precisava de partilhar o seu segredo com alguém. Puxou de um cigarro que Paulo acendeu.
- Eu, por exemplo, já tive uma experiência com outra mulher e não estou fechada à ideia de me vir a apaixonar e querer fazer a minha vida com alguém do mesmo sexo. - Espantou-se pela desenvoltura com que a confidência lhe saiu.
Paulo tentou disfarçar a surpresa e a curiosidade. Esperava tudo, menos ouvir uma confissão daquelas.
À medida que falava, Rosarinho ia vendo aliviar-se a tensão do Paulo que agora sorria, cúmplice, como uma criança depois de descobrir que o melhor amigo também rouba moedas das algibeiras do pai.
- Então achas que os homossexuais não devem ser descriminados, devem ter os mesmos direitos? - perguntou ele a refazer-se.
- com certeza. Só porque amam pessoas do mesmo sexo não me parece motivo suficientemente forte para não usufruírem das mesmas regalias. - Rosarinho parecia ter estudado um discurso.
- Mas a Igreja Católica... - Paulo sabia que na família dela ninguém ousava pôr em causa tal instituição.
- A moral católica pode ser altamente castradora. Também fui vítima disso.
- Já não és? - perguntava ele cada vez mais estupefacto com a revelação desta nova Rosarinho.
- Ainda sou, mas tenho esperança de me vir a libertar.
- A família às vezes é a primeira a não entender... - ainda cauteloso. - E os outros, sempre a fazerem distinção entre o que é ou não é normal. - Acendeu um cigarro.
- Pode-se ser diferente num aspecto e normal em todos os outros. - Rosarinho a tranquilizá-lo.
Paulo tomou finalmente balanço.
- Ando há que tempos para te contar uma coisa. Não sei bem porquê, mas acho que és a única pessoa a quem posso dizer isto. - O coração batia-lhe acelerado.
- O que disseres aqui, aqui fica.
Paulo sabia que era verdade e desbobinou tarde fora, ao longo de vários gins, até a noite amadurecer. Aquela espécie de cerimónia que havia antes entre ambos desdobrava-se agora num lençol de palavras, primeiro hesitantes e desarrumadas pela timidez, para finalmente chegarem à grande cumplicidade.
Rosarinho recordava com ternura o amigo. Desde sempre, ele lhe dera a impressão de viver escondido nas bainhas dos vestidos da mãe com medo que o seu calor lhe faltasse. Distraída ia fazendo zapping.
Mais um, cheio de sentimentos feridos. Não é que isso a alegrasse, mas saber que não estava só dava-lhe um certo conforto. Desde que a depressão se instalara, a tendência era pensar que mais ninguém era tão infeliz.
"Devia haver um hospital para os sentimentos", pensou. Especializado em tratar as dores da alma, as esperanças fracturadas, os corações partidos, as epidemias de medo, as rupturas das paixões, a loucura do ciúme, a revolta da injustiça, a demência da ambição...
O telefone tocou. Era o Vasco a perguntar-lhe se queria ir jantar com ele. Havia uns detalhes práticos que tinham ficado pendurados e ultimamente só se falavam ao telefone. Disse que sim. Afinal, tinha ficado uma boa amizade e ele aceitara pacificamente a decisão de se separarem, passadas as primeiras reacções de surpresa e orgulho ferido.
Daí por uma hora passaria a buscá-la e teve o cuidado de sugerir um dos restaurantes que ela preferia. Uma atenção que não voltara a mostrar desde que tinham começado a viver juntos.
Rosarinho sentiu-se confortável por ter decidido separar-se. Só de pensar que podia dormir todas as noites descansada, sem as investidas do Vasco, era um alívio. Era o homem mais desajeitado e menos carinhoso que tinha conhecido. Sorriu ao lembrar-se de quantas vezes desejara que ele fosse como os lobos, que têm o cio apenas duas vezes por ano.
Apagou o cigarro, desligou a televisão e antes de se ir passar por um duche, escolheu a roupa para sair.
Com uns quilos a mais nem tudo lhe servia. Vasco adorava vê-la de saias e achava que os tons claros lhe ficavam a matar.
Rosarinho escolheu um tailleur de calças e casaco cinzento-escuro com uma risca fininha branca e uma camisola encarnada.
Acendeu mais um cigarro, enquanto transladava da mala castanha para a preta a imensidão de coisas que ia acumulando naquele poço sem fundo e ligou o televisor do quarto. Distraiu-se uns minutos a ver um programa em que um grupo de adolescentes exibia os seus dons como cantores e bailarinos na esperança de um futuro à luz dos projectores.
Vem-lhe à ideia a filha, perdida à nascença, e pensa que se estivesse viva podia ser uma daquelas miúdas. Que género de pessoa seria? Dada às artes ou ao desporto? Aluna brilhante ou apenas média como a mãe? Se fosse desportista tinha a quem sair. O pai tinha sido campeão de ténis e ela, antes da depressão, fora sempre uma entusiasta de vários desportos. Não se fixara em nenhum, era o seu feitio, mas tinha habilidade para todos os que experimentava. Seria uma miúda alegre, saudável, generosa? Já teria um namorado?
A interrupção do programa para a publicidade lembra-lhe que daí a pouco o Vasco vai tocar à campainha e corre para a casa de banho. No duche, as recordações dolorosas do passado, prestes a aflorar, acabam por se diluir.
RITA
O restaurante, escolhido pela Cristina, era o mesmo onde tinham jantado juntas pela primeira vez. Iam lá raramente. Tinham-no reservado para ocasiões especiais, geralmente para comemorarem datas marcantes na sua vida conjunta. Uma forma de não as deixar cair no esquecimento.
Apesar de Rita saber muito bem que o único momento que permanece intacto é aquele em que se conhece o objecto da nossa paixão. Esse sim, é o momento de todos os absolutos, de todas as perfeições, de todo o sonho tornado realidade. O único, que não se apaga com os tempos, o único sem nada que se lhe aponte.
Entre o momento em que se apaixonara pela Cristina e o presente, tinha atravessado uma realidade que lhe estava a custar aceitar. Uma característica sua, para um dia aprofundar melhor.
Era frequente recusar-se a ver o lado mais prosaico das situações e das pessoas. Às vezes era tida como ingénua, mas a verdade é que o fazia para se sentir mais feliz. Alimentava a esperança de que ao dar maior relevo ao lado luminoso de alguém, retirava força ao lado obscuro dessa pessoa e, portanto, ele não teria espaço para se manifestar. Por isso, as baixezas mais evidentes nem sempre lhe entravam pelos olhos dentro, como à maioria das pessoas, pela simples razão que não as queria ver.
O empregado trouxe o vinho, um reserva tinto, que lhe deu a provar.
Os copos acabados de servir e a Cristina a fazer um brinde. Beberam, olhos nos olhos, mas Rita não sabia a que brindavam.
Como era de esperar, a conversa não fluía. Mantinham-se cautelosas para evitar acusações de parte a parte, embora Cristina não conseguisse evitar uma ou outra crítica velada.
- Estás com um ar cansado. - Irónica. - Ainda continuas a trabalhar um mês por dia? Não precisas de te estafar tanto.
- Eu queixei-me, por acaso? - Rita à defesa, sabendo de cor onde a conversa as levava.
- Não, mas vê-se que estás em tensão. Depois ficas com péssimo feitio.
Aí estava a cassete inevitável.
- Vamos voltar às recriminações? Foi para isso que me convidaste? - Rita atirou com o cabelo para trás. Tentava não se irritar.
- Não, mas já sabes que a partir de agora comigo tem de ser tudo diferente.
- Claro, contigo está tudo diferente! Tu és outra pessoa. De um dia para o outro até de gostos mudaste. Detestavas vinho, agora bebes, não tinhas pachorra para os meus amigos, agora andas colada a eles, odiavas discotecas, agora passas lá a vida... Ainda não consegui digerir a tua mudança radical. Até há uns meses, achavas a nossa relação praticamente perfeita. Sentias-te feliz, cada vez mais feliz ao meu lado, não era o que dizias? Como é que de repente tudo mudou e só te vejo apontar defeitos?
- É assim. Agora é assim que eu sinto. Mudei. As pessoas mudam. - O tom de voz da Cristina era gelado, irritantemente gelado.
- As pessoas transformam-se, não mudam de personalidade de um dia para o outro.
- Que exagero! Sou assim uma surpresa tão grande?
- É desagradável, deixa-me que te diga. - Rita não queria enveredar pelas acusações mas era difícil conter-se. - De nada valeram as conversas em que analisávamos o que poderíamos mudar na relação para ela nunca estagnar. Esforcei-me sempre por ir ao encontro do que tu me pedias para melhorar na minha atitude. A ti nunca te punhas em causa. Mas eu não me queixava.
- A partir de agora ou as coisas são à minha maneira ou nada feito.
- Mas o que é que te deu? Engoliste uma cassete? - Rita atirou de novo com o cabelo, num esforço enorme para se controlar. - Durante nove anos vivemos à maneira de quem? Não era à nossa maneira? À maneira do que ambas podíamos e sabíamos? Se não te sentias bem, tiveste milhões de oportunidades para o dizeres. Mas não. Induziste-me em erro, enganaste-me. Sinto-me defraudada. Ninguém te impedia de dizeres o que pensavas.
- E disse. À minha maneira.
- Tão ambígua como é o teu hábito, que eu não percebi. Podias ter sido mais transparente se vias que eu não estava a ler os sinais.
- Estou a ser agora. Há meses que não faço outra coisa.
- Há meses que destilas um sentimento que preferiste manter na sombra. Que se tornou horrível porque o acumulaste e agora despejas como um veneno que não cabe mais em ti. E de que forma é que eu olho para o nosso passado? Como uma mentira pegada? Quem era a pessoa que me confessava nunca ter tido uma relação tão estimulante, tão equilibrada, tão profunda?
- O passado não interessa. Agora, é daqui para a frente.
- E assentamos os pés em quê? O passado é feito de quê? De puré de batata?
- Vês? Lá vem o teu feitio.
- E não me fales mais em feitio. - Rita a controlar o volume da voz. - Eu tenho o meu e tu tens o teu. Toda a gente tem feitio. Se não tens coragem para enfrentar as situações e dizeres o que pensas, é um problema teu. Não te desculpes com o feitio dos outros. Sabes o que isto me faz lembrar? Quando te queixaste que já não aguentavas mais jantar em casa dos teus tios por eles te darem suflê de peixe que tu odeias. Sabes tão bem como eu o motivo. Porque da primeira vez te perguntaram se gostavas e tu disseste que adoravas, que estava óptimo. Foi o que eles quiseram ouvir! Para te agradarem quando lá ias serviam-te sempre o mesmo, era um mimo que te faziam, enquanto tu os detestavas por eles te obrigarem a comer uma coisa que não querias. Tivesses dito!
A nova face revelada da Cristina deixara Rita de pé atrás. Começava a ter consciência do irremediável. Cristina parecia querer arrepiar caminho, dizia-lhe que continuava a gostar dela, mas Rita sentia-se com demasiadas reservas para se conseguir entregar de novo. O amor tinha dado lugar à desconfiança. Já não sabia qual a verdadeira ou a falsa Cristina. Mais desconfiança ainda, porque a verdadeira lhe parecia falsa.
Quem seria a verdadeira Cristina? A doce, sensível, inteligente, sonhadora, terna, despojada, ou a fria, casmurra, calculista, premeditada? E porque não as duas? Acaso ela não era também doce, meiga, ingénua, infantil e, ao mesmo tempo, feroz e agressiva nas palavras, se lhe tocassem em certas cordas sensíveis? Não aceitar esta condição era rejeitar a dualidade da vida. A própria natureza estava cheia de plantas lindas, imortalizadas por poetas e pintores, que não deixavam por isso de ser venenosas ou de cheirar mal. O que era a guerra senão uma desordem da paz?
Ela também tinha a sua responsabilidade nesta ruptura. Exigia de mais de si e das pessoas por quem se apaixonava. Elevava demasiado a fasquia e tinha relutância em admitir as quebras. Isso tornava a relação tensa, quem sabe se insuportável para quem vivia ao seu lado. A ajuda que pretendia dar nem sempre vinha com uma tónica de amor e generosidade, mas sim de crítica e reprovação. Ocorreu-lhe que se tivesse tido filhos, eles haviam de a detestar. Teria sido certamente uma déspota com excesso de zelo, em vez de uma mãe compreensiva e tolerante.
Tinha de rever a sua postura no futuro e congratulou-se por começar a descobrir o lado positivo da sua separação. Até aí, tinha sido tudo muito confuso talvez por lhe parecer gratuito. Mas havia sempre um motivo para que as coisas acontecessem. Levantou o copo e brindou de novo. Desta vez sabia a quê.
A conversa daí para a frente girou à volta do trabalho da Cristina, da falta de tempo para redecorar a casa, agora que tinha voltado ao seu antigo apartamento, dos projectos individuais que nem uma nem outra se sentiam capazes de desenhar no luto da separação. Subtilmente, Cristina tentava saber se ela andava a sair com alguém. Tinham-na visto escapulir-se duma festa com uma loura alta e magra, esta terra é do tamanho dum feijão, sabe-se logo tudo e houve quem reparasse e lhe fosse contar. Não tinha nada a ver com isso, era pura curiosidade...
Pareceu mais descansada quando Rita, após uma leve hesitação, lhe disse que se tratava da Sofia. Na verdade, só o fez, depois de ter pensado duas vezes se havia de dar largas à tentação de ser perversa e deixá-la a matutar.
- Não te passa pela cabeça a história rocambolesca que me aconteceu - disse Cristina, enquanto a Rita tentava descobrir o que ela lhe fazia lembrar com a nova mania de andar sempre de boina na cabeça.
- Então? - Rita meio vaga.
- O Joaquim Rendeiro, o nosso director de produção, estás a ver quem é?
- Lindamente. Por mais que se esforce não consegue ser simpático, nem abanando o rabo.
Cristina desatou a rir.
- Esse! Sempre pronto para saltar em cima da primeira que se lhe atravesse no caminho.
- Consta que tem erecções tão a despropósito, que sofre do complexo de toalheiro.
Riem-se ambas. A tensão desfizera-se finalmente.
- Tem-me andado a fazer o cerco. Mandou-me uma caneta de ouro com um cartão dum pretensiosismo atroz.
- E tu?
- Quando a embrulhava para lha devolver, eis que espreita de dentro da caixa um pequeno cartão.
- Outro? Ou era o preço? - Rita não esperou o empregado e serviu o resto do vinho nos copos.
- Um cartão da Teresa Salinas a agradecer a caneta, mas que não a podia aceitar.
Rita dá uma gargalhada.
- Diz-me que não estás a fazer uma história!
- Juro! - Cristina divertida. - O tipo já tinha oferecido a caneta a outra! Quem será a que se segue?
- Juntaste o teu cartão ao dela, espero - disse Rita já a antecipar o desenrolar da história.
- Ainda não fiz nada. Isto passou-se há dois dias.
- Nem precisas de gastar um cartão teu. Podes acrescentar no da Teresa, que também agradeces mas fica para a próxima.
Um tubo de guache! Era isso! Era o que Cristina lhe fazia lembrar desde que lhe dera a mania de andar sempre de boina enfiada na cabeça.
Divertiram-se com as várias hipóteses de resposta. Chato era se a mulher dele, realizadora lá no estúdio, viesse a saber.
- Este homem nunca saberá se uma mulher se vai deitar com ele por gostar ou por causa duma caneta de ouro, de um pequeno papel para a televisão... - dizia Cristina.
- Achas que se importa? O que lhe interessa é levá-la para a cama.
- Só me faltava! Trabalhar e ainda ter que pagar por cima!
- Pensarão os Joaquins Rendeiros da vida que o corpo das mulheres serve para outra coisa?
Já tinham pago a conta e Rita sugeriu que saíssem.
- A Lua? - perguntou o tubo de guache.
- Está boa. Ontem comeu o frango que eu tinha comprado para o meu jantar - disse Rita, passando o cachecol encarnado à volta do pescoço.
- Todo?
- Deixou-me uma perna. Sabe que é a parte que eu gosto mais.
Cristina sorriu.
- Tenho saudades dela.
Se era uma sugestão para lá ir vê-la àquela hora, Rita não quis entender.
Chegaram à porta. Rita teve uma saudade súbita de se sentir apaixonada. Dos apetites estapafúrdios a meio da noite como acontece às grávidas. Da inquietação permanente cujo primeiro sintoma era começar a despejar gavetas e arrumar de novo, até passar às limpezas em profundidade, ao ponto de cair estafada para o lado e dar cabo da paciência da empregada que a aturava há anos. A paixão, ao contrário do que é habitual, dava-lhe um apetite voraz, comia e bebia as coisas menos usuais até morrer de enjoo. com a Lena, a sua primeira grande paixão, dera-lhe para beber litros de groselha e comer pastéis de massa tenra. Apesar dos excessos, emagrecera três quilos em pouco mais de um mês. Nunca mais se voltara a apaixonar com tamanha violência, nem voltara a encontrar alguém com tanta capacidade de entrega como a Lena. Um amor para durar uma vida, um encontro de almas, os momentos mais sublimes só devidamente consciencializados, decorridos anos sobre a separação. Nesse tempo, nem uma nem outra estavam ainda preparadas para levar o barco a bom porto. À Rita faltara-Lhe consciência espiritual; à Lena, muito senso e sentido prático. Quando terminaram, tinham ambas fome do que a outra não soubera nem pudera dar. Atenta aos sinais do tempo, Rita soube encontrar nas duras travessias que a esperavam o caminho da sua própria transformação. Sabia ser agora a pessoa que Lena tinha desejado. Mas o momento do encontro não voltaria a repetir-se. O milagre dera-se apenas uma vez.
- O teu carro? Entregaste a chave ao porteiro? - Rita vestiu o sobretudo cinza-escuro e ajeitou o cachecol encarnado. Usava quase sempre uma peça encarnada junto ao rosto. Cristina, entretanto, fizera sinal ao porteiro que acabava de arrumar um carro. Havia mais um casal à espera das chaves como elas.
- Vais já para casa? - quis saber a Cristina.
- vou. Amanhã tenho de me levantar cedo. Vai lá o técnico do computador - decididamente queria ficar sozinha. Despediu-se com um beijo. - Se precisares de alguma coisa liga.
O porteiro veio entregar-lhes as chaves e quando se dirigiam aos respectivos carros, Rita percebeu que tinha as chaves erradas. Mal se virou para trás já o porteiro se lhe dirigia com a sua chave na mão. O casal que saíra do restaurante ao mesmo tempo, esperava. As chaves que ela tinha pertenciam-lhe. Sorriram todos pela confusão. Rita reparou que ela vestia um fato cinzento-escuro com uma leve risca, muito semelhante ao seu. Tinha um sorriso simpático que retribuiu.
Cristina já estava dentro do carro dela quando Rita procurou umas moedas para dar a um drogado que se aproximou. Não conseguiu evitar um gesto fugidio para escapar àquela pestilência. Quando acenou um adeus à Cristina sentiu um aperto no peito. Um capítulo da sua vida estava a virar-Lhe as costas.
O drogado, reconhecido pela generosidade da esmola, insistia em abrir-lhe a porta do carro. Pusera-se-lhe um nó na garganta, ao mesmo tempo que era atravessada por um sentimento de extrema solidão, como se estivesse perdida naquele local sem saber para onde ir. A cara do drogado quase se esborrachava agora contra o vidro do carro, num sorriso podre e agradecido. Por muito que quisesse fugir àquele horror, ele não lhe era tão estranho assim. Os loucos, os drogados, os bêbados eram os espelhos sem cabimento na decoração harmoniosa e requintada da sua fortificação. Eram o seu avesso, a sua face escondida que a qualquer momento se podia revelar. Bastava-lhe um pé em falso. Horrorizada com a sua própria miséria estampada naquele rosto desfocado, acelerou direita a casa onde a Lua a esperava. Agradeceu, como fazia todos os dias, por a vida lhe dar tanto.
ROSARINHO
O porteiro entregou finalmente ao Vasco a chave certa e indicou-lhe onde tinha arrumado o carro. Forreta como sempre, nem se deu ao trabalho de procurar umas moedas para dar ao homem, atitude que deixava sempre a Rosarinho envergonhada. Um drogado aproximou-se sem que Vasco desse mostras de ter reparado nele, mas desta vez, ela tirou algum dinheiro da carteira e deu-lhe.
- Dás dinheiro a esta gente? Não vês que é tudo para a droga?
- Achas que o porteiro também se droga?
- Porquê? - Vasco era um bonito homem, de aparência cuidada, mas havia uma fase do seu cérebro que ele nunca se lembrara de ligar.
- Nem sequer lhe deste gorjeta.
- Deixei os trocos todos na mesa - desculpou-se ele. E se fôssemos tomar um copo a uma discoteca?
- Obrigada, mas prefiro ir para casa. Dói-me ligeiramente a cabeça, preciso de me ir deitar.
Para quê dar-se ao trabalho de lhe dizer o que ele sabia lindamente? Nunca fora dada a copos nem a discotecas. O jantar tinha sido uma chumbada, destituído de qualquer emoção. Resolvido o assunto dum carro comprado a meias e dum seguro em nome dos dois, nada mais havia a ligá-los. Talvez uma amizade em honra dos anos vividos em comum sem ofensas graves, desconsiderações ou deslealdades.
Mas também sem qualquer cumplicidade. Ela ainda tentara que a conversa não se afundasse em relatos superficiais da festa dos cinquenta anos de casados dos pais dele, a que faltou com a desculpa de estar doente; porém, o Vasco sempre mostrara uma enorme dificuldade em falar dos seus sentimentos ou em interessar-se pelos dela. Fugia de qualquer introspecção como quem foge de um bisturi.
Ali estava ele, vibrante, enquanto descrevia apaixonadamente a toilette da mãe, uma figura hirta e gélida que parecia ter sido criada dentro duma arca frigorífica, e a alegria do pai, um homem charmoso e bem-disposto que adorava ser o centro das atenções. Em tempos idos, tinha feito uma passagem pela vida política e ficara famoso pelas suas tiradas grandiosas que escondiam geralmente ideias tacanhas.
Formavam o tipo de casal que vai a todas. Ele jogava golfe quando não ia à caça, tinha o seu grupo do brídege com quem se encontrava uma vez por semana; ela frequentava cursos de cozinha tailandesa, não faltava a um encontro de senhoras nas embaixadas e era voluntária numa associação de animais com depressão. Faziam tudo desde que não tivessem de estar muito tempo juntos. Rosarinho acompanhou a descrição exaustiva do Vasco até onde a paciência lhe permitiu, enquanto tentava imaginar a animação daqueles grupos de casais. Elas, sem uma única cova do corpo que não tivesse sido injectada com colagéneo. Eles, imponentes nas suas cãs, ainda ufanos da sua virilidade lusitana. O género de homens que se ouvissem falar no ponto G, não teriam a mais pequena dúvida que se tratava duma estação de autocarros para golfistas. Quando o Vasco, depois de ter passado a pente fino os cento e cinquenta convidados mais a ementa com digestivos e tudo, disparou a descrever a decoração da festa, que ele próprio fizera, já a Rosarinho ia na mesa da frente, entretida a observar a expressão duma morena que atirava constantemente uma melena de cabelos para trás. Falava com outra que estava de costas, de cabelos arruivados e boina preta na cabeça. Usava bastante as mãos para se expressar. Faziam-lhe lembrar as mãos da tia Flávia antes de as artroses começarem a deformá-las. No princípio do jantar, parecia-lhe ver nela uma certa crispação que se foi dissipando até chegar a uma grande risota. Tinha um riso contagiante e uns dentes muito brancos, bonitos. Comia lentamente, como quem está a apreciar e quando se distraía deixava o olhar ir para longe, tão longe que possivelmente nem ela própria saberia onde andava. Entreteve-se a contar-lhe as expressões e conseguiu chegar às sete. Apreensão, ira, ironia, melancolia, defesa, ternura, tristeza. Quando ia para a oitava (seria alheamento?), elas levantaram-se. Como o Vasco acabara de pagar a conta, fez também menção de sair. Ele ainda estava na descrição das flores que enfeitavam as mesas e já ela de pé, morta de tédio.
Perguntava-se como tinha vivido aqueles anos ao lado de um homem tão desinteressante. Ou seria ela que estava a mudar?
Ao princípio, ainda se esforçara por se interessar pelas suas decorações, mas ao fim de uns tempos enjoou-se de tanto chintz, veludo, seda e gorgorão. Passava intermináveis jantares a ouvi-lo descrever reposteiros, tapetes em chenille e petit point sobre os quais assentavam invariavelmente bérgères e chaises langues de tecidos importados. Aborreceu-se por verificar que jamais ele prestava a mínima atenção, quando ela lhe falava dos seus doentes do hospital ou de um filme que gostaria de ver. Tinham ambos interesses pouco diversificados e não coincidentes, como não eram coincidentes no ritmo em que faziam amor ou no que lhes fazia acelerar o bater dos corações.
Já quase à porta, ainda ouviu vagamente o resto duma história que Vasco lhe contava sobre o Ricardo, um seu colaborador. Estava a passar um mau bocado por não conseguir fazer face ao seu estilo de vida faustoso: casa na praia, barco, férias exóticas, carro topo de gama, fatos italianos... Rosarinho, morta por que ele se calasse, interrompeu:
- Estou a ver o filme, uma úlcera maltratada e uma depressão a apresentarem-lhe um ultimato.
- Como é que adivinhaste? - Ele com a sua habitual perspicácia.
Rosarinho deu-lhe um beijo de despedida.
- Tenho de ir tomar um comprimido para as dores de cabeça.
Sentia uma enorme vontade de chorar, mas tinha a certeza que quando chegasse a casa não ia ser capaz de o fazer.
FLÁVIA
VÊ SE TE LEMBRAS DE VIVER, ROSARINHO
i EXPERIMENTA OLHAR PARA MAIS LONGE.
Houve tempos em que os astros eram deuses e os vulcões a voz divina. Agora os homens escutam a palpitação do universo, preparam-se para lhe tirar as medidas. A ciência das moléculas novos deuses vai trazer. Em breve o mundo e a compreensão do cosmos serão diferentes e As uniões de ternura e amor, de afinidades nem sempre expressas, hão-de crescer à medida que se alargarem as consciências.
LUÍS / PAULO
É um dia sonolento com o céu a espalmar-se sobre os montes. Os bichos da terra espreitam o que vem lá e um cão vadio foge dum homem com dono que o quer morder. No asilo da vila há velhos belos e sábios que sorriem distantes, ignorando outros velhos de coração calcinado pelo desamor que espalharam. Os esqueletos das árvores gemem reclamando agasalho, as nuvens de veludo desfazem-se sobre os campos que esperam pacientes o dia de florir. O motor do carro silva na recta preta e dezenas de insectos ignoram que vão perder a vida esborrachados contra uma transparência.
Paulo acende um cigarro.
Luís abre a janela. O fumo incomoda-o, mas o cheiro do tabaco misturado com a colónia suave do Paulo agrada-Lhe.
- O fumo chateia-te?
- Não.
Mas ambos sabem que sim. Partilham esta pequena mentira. Muito pequena e insignificante ao lado de outras. Luís sabe que o Paulo não está melhor mas para lhe dar ânimo finge o contrário. Paulo sabe que o Luís sabe mas para não lhe roubar alguma esperança, age como se não soubesse.
Apesar disso, e porque acreditam no poder redentor do amor, sentem-se felizes ao lado um do outro. Luís acredita que pode ajudar o Paulo a salvar-se, e Paulo acredita que o amor do Luís é o comboio que não pode perder.
Dentro do carro viajam duas almas que se elegeram e precisam que as forças do mundo se pacifiquem para as deixar prosseguir no seu encontro na terra.
Noutros carros, outros homens acreditam conduzir os seus destinos a cento e cinquenta à hora para chegarem mais depressa a um novo ponto de partida. Esqueceram-se que nunca se chega. Está-se sempre a partir.
Outros vão de casa para os empregos onde os computadores nunca são desligados e os telefones não param de tocar. Gente que trabalha por turnos, que vive e ama por turnos, que circula sempre nas mesmas estradas até que a morte, cansada de se insinuar, se mostre em toda a sua grandeza.
À mesma hora que o Paulo e o Luís inventam maneiras de esconder o seu amor, uma mulher expõe, numa banca de rua, uma revista onde um homem abjecto e respeitado exibe o seu barco comprado com dinheiro de lavar sangue. Algures, num oriente distante, do sangue brota a flor da tristeza, enquanto no interior das crateras há pequenos vulcões em crescimento.
Noutro carro naquela mesma estrada, viaja uma mulher que sabe que o mundo não vai parar para lhe aquecer o coração e que é apenas uma miniatura neste universo. Outra, parada na berma, aguarda o condutor cego de desejo que lhe há-de pagar com o seu desprezo a dose diária.
Um bêbado, que veste um sobretudo Versace, pára o Porsche para fazer um charro com uma mortalha extralarge e segue viagem em direcção a novas traficâncias de poderes e ilusões. Belisca a perna da namorada, sentada ao seu lado, menina-galinha vestida de etiquetas, tão galinha, que há-de acabar no caldo.
No quilómetro quarenta e cinco, o rapaz da moto não quer mas vai morrer daí a minutos, quando o condutor do camião, que traz o deserto nos olhos e vem em sentido contrário, se despistar. Luís, agora que regressam a casa, pensa numa forma de dizer ao Paulo que não atire com a roupa suja para o chão, que isso o irrita e que também não acha muita graça a que ele vista as suas camisas azuis.
- A penny for vour thoughts! - atirou o Paulo.
Luís sorriu. A pergunta viera cedo de mais.
- Nada de especial. Preciso de comprar camisas - disfarçou o Luís.
Paulo imagina como e quando os pais vão morrer. Deseja que seja em breve. Um acidente de avião, qualquer coisa rápida e indolor que os faça desaparecer. Não aguenta mais a tensão nem a vergonha que eles o fazem sentir. Quer recordar as palavras da psicóloga, qualquer coisa a propósito da sua própria identidade, mas não se lembra. Tem, isso sim, gravadas na memória as teses defendidas pela mãe, nos debates contra os raros deputados que lutam para legalizar as uniões dos homossexuais, e a primeira vez que ouvira falar em paneleiros. Era ainda rapaz e tinha ido com o pai, o tio e outros amigos à caça. Preferia ficar em casa com a mãe, a levantar-se de madrugada, mas logo o pai:
- Sempre agarrado às saias da mãe! Desta vez vais, que já estás em boa idade de desempenar. Estas coisas é que vão fazer de ti um homem!
"Estas coisas" eram a caça, o râguebi, para onde havia de ir porque o pai tinha sido campeão, e a festa brava, a "arte" como lhe chamava o tio, que tinha um profundo orgulho nos toiros da ganadaria que herdara do pai, exemplo vivo da sua virilidade.
Lezírias, arenas e coutadas onde não havia cabimento para "papeleiros que mereciam ser assados com um espeto no rabo como os frangos de churrasco". Foi assim a primeira vez que ouviu uma referência aos homossexuais e sem perceber bem porquê, estremeceu.
Como estremeceu quando ouviu o primeiro tiro da caçadeira e uma perdiz, das várias que os homens iam largando das gaiolas onde as tinham aprisionado, caiu de asa, a dez metros dos seus pés, agonizante mas ainda a tentar correr fazendo jus ao seu instinto de sobrevivência. Era ainda madrugada, o pai não escondia o orgulho e a satisfação em levar o filho com o seu grupo de amigos a ver nascer o dia e a participar naquela camaradagem e cumplicidade entre caçadores, que ele não se cansava de louvar.
O ritual da caça era muito mais que uns tiros dados com a sua bela caçadeira de canos laterais. As perdizes já eram de cativeiro, criadas expressamente para serem largadas e abatidas, o que não era difícil porque mal sabiam voar ou sobreviver no campo. O encanto da caça a salto, à procura da perdiz bravia ou do faisão, fora-se perdendo, mas restava, isso sim, o cheiro do campo, o almoço, o espírito de união entre gente que falava a mesma linguagem. "A linguagem dos homens de fibra!"
- Então? - perguntara-lhe o pai, autor da façanha, com ar vitorioso depois de paralisar a perdiz fugitiva, ao segundo tiro. - Que tal?
E Paulo sem saber o que dizer.
Prendera-se-lhe a voz e jamais seria capaz de confessar o horror que tudo aquilo lhe causava. Assim foi pela vida fora. com um simples olhar, o pai asfixiava nele qualquer intenção de expor uma opinião diversa.
Paulo não queria alimentar um sentimento que o corroía há muito, mas não sabia como evitá-lo. Odiava aquele mundo de homens que jamais choram, quando muito, em situações extremas, dizem que o fumo do cigarro lhes entrou para os olhos, que bebem as suas convicções em águas estagnadas e acham que ser sensível e delicado é sinónimo de fraqueza, esquecendo que a verdadeira aristocracia da força se encontra na delicadeza.
Já perto da cidade, Paulo reparou numa nuvem furiosa, com uma grande cabeleira, que despejava a sua ira sobre a estrada. Ao mesmo tempo, uma cegonha acabara de voar em direcção ao ninho para levar comida à sua cria.
Dentro do carro, Luís não ouviu o seu grito de alarme.
O camião que se despistara ao quilómetro quarenta e cinco, deixara um rasto de óleo que se tinha espalhado com a chuva e o vento.
Nem um nem outro sabem quantas voltas o carro deu como se fosse uma pedra a rolar.
No final, o ruído inquietador do silêncio.
A mão divina tinha desenhado na palma do tempo que aquela não era a hora de partirem.
Quando a ambulância chegou, o Luís, com a energia própria de quem tenta reagir a um choque recente, já tinha conseguido sair do carro e tentava tranquilizar o Paulo que acabara de recuperar os sentidos, apesar dos diversos traumatismos e escoriações. Não se apercebeu do ferimento na própria perna, nem das costelas partidas. Só mais tarde dariam sinais.
Tinha bem presente, isso sim, a espécie de filme que se desenrolara na sua mente enquanto o carro rodopiava sem controlo. A sua infância e a da Mariana pareciam misturar-se, o presente e o passado em desordem, fundidos no mesmo ecrã. O pai à porta da escola para o levar para casa e ele a ameaçar cortar a pilinha se o obrigassem a passar ali o dia, a Mariana pela mão dele no primeiro dia de colégio, apontando o director que os viera receber:
- Ó pai, porque é que aquele senhor tem a pele da cabeça toda à mostra?
Mariana a brincar com as suas sobrancelhas quando ia de manhã acordá-lo, a comoção da mãe quando ele lhe anunciou que ia ser avó, o nascimento da Mariana, o momento em que lhe anunciaram a morte do melhor amigo num desastre de moto, o dia em que entrou para a universidade, o avô que ele tanto amava a ficar-se de repente quando lhe contava uma história e ele a sacudi-lo:
- Vô, vô, então e depois?
Podia-se morrer assim, a contar uma história sem estar doente nem nada?
- Porque é que se morre, mãe?
- Não sei, filho. Vá-se lá saber porque é que se morre...
- dizia ela triste.
ESTOU vivo ESTOU vivo PENSOU o Luís.
O carro tinha finalmente parado. Vá-se-lá-saber porque é que se vive. Vá-se-lá-saber-porque é que se vive. Vá-se-lá-saber-porque-é-que-se-vive.
Enquanto o deitavam na maca, Paulo reparou no polícia que fazia sinais aos carros que passavam para circularem e observava-lhe a geometria dos gestos. Aquela cara era-lhe familiar, mas não teve tempo de a olhar melhor.
Embalado pela sirene uivante da ambulância, deixou-se levar com o Luís ao seu lado, para o hospital da cidade.
Mariana, distraída, atravessa uma clareira na floresta dos prédios. Há já três dias que não vê o pai, nem o carro dele estacionado à porta da casa onde apenas os seus pensamentos ousam entrar. Não se atreve a confessar à mãe as saudades que tem dele. Entra, sim, quase sempre, na pastelaria em frente onde se sentam os clientes habituais para dar de lanchar à solidão, e aguarda a saída do pai.
Um amigo segura-a pelo braço, no momento em que a ambulância raspa o ar em frente ao seu nariz.
Uma mulher tropeça. O eléctrico pára. O automóvel trava. O semáforo dispara. A florista guarda o troco. O metro sai da estação. O porco cospe na rua. A velha apanha jornais. O louco grita um poema. O rico come cifrões. Os surdos vão ao concerto. O cego toca nuns seios. A puta sai dum aperto. O chulo vende tesão. A queque combina um esquema. O padre ignora um irmão. O mânfio faz de polícia. O polícia faz de ladrão. Indiferente, a ambulância não vê os gigantes de cimento a engolirem pessoas que naufragam na Internet, exaustas de tanto procurarem o que não vem lá.
RITA
A noite viera pródiga em pesadelos.
Rita acordou a berrar pela Lua e a Lua, meio estremunhada, ora gania, ora dava ao rabo, ora uivava em tentativas falhadas para decifrar o que significavam os gritos da dona.
Era uma rua íngreme, perto de um cemitério. Avistava-se ao fundo a casa onde viviam, junto do rio, e a Lua, mal percebeu onde estava, desatou a correr rua abaixo, alegre por regressar. Nesse momento abate-se uma nuvem sobre o bairro e o rio avança rua acima, arrastando a Lua nas suas ondas espessas, castanhas. Depois, o silêncio que se segue a todos os fenómenos em que a natureza nos remete para a nossa condição.
A VOZ QUE FALA MAIS ALTO CALARA-SE.
Só passados segundos (eternos segundos), Rita foi capaz de reagir.
- Lua! Lua!
O contacto com o pêlo macio e a língua quente a lambuzar-lhe a cara, trouxeram-na de volta às sombras do quarto. Acendeu a luz do candeeiro que dormitava sobre a velha arca transformada em mesa-de-cabeceira. Mal abriu a pequena caixa de marfim, herança da avó materna, ouviu-se o seu canto triste a gemer saudades da selva. Rita guardava lá dentro os comprimidos para dormir, raramente utilizados. Quem sabe, eles ajudassem a caixa de música a adormecer a sua dor de marfim. (Como se apagaria uma memória de elefante?)
Tirou um para si, mas deteve-se a pensar se havia ou não de o tomar. Decidiu-se pela leitura e fez frente à solidão da insónia.
Quando o telefone tocou a primeira vez, vagueava por um extenso campo verde, povoado de túmulos de vidro colocados ao alto.
Milhares de cabeças apontavam para o céu.
Rita era ainda criança, estava descalça, usava um vestido azul com borboletas verdes, amarelas e encarnadas e um chapéu de pano azul.
Procurava a mãe há já muito tempo naquela imensidão de túmulos, mas sentia-se bem por não ter pressa. Junto de alguns havia flores espartilhadas em ramos de laços vistosos, e à medida que passava por eles, desatava-os para as libertar. Ouviam-se vozes de vento a entoar cânticos transparentes, inaudíveis. As horas passavam, desertas de ansiedade, e havia momentos em que o céu parecia passear na terra.
O telefone insistiu de novo; as borboletas voaram do seu vestido em direcção a um túmulo, onde um raio de luz lhe pareceu iluminar a cara da tia Maria do Carmo. Um milhafre suspendeu o voo e, parado no ar, ficou a ver.
DAÍ PARA A FRENTE NUNCA MAIS SONHARIA com A MÃE.
A Lua ladrou a chamá-la. Então estendeu o braço para o telefone.
Sentou-se subitamente com as pernas fora da cama. O livro, que adormecera com ela sobre as suas pernas, caiu no chão juntamente com o comprimido que se perdera entre os lençóis.
- Estás onde?! - Rita impôs silêncio à Lua que, indiferente à sua expressão preocupada, desatara na costumeira agitação matinal, antes das suas voltas no jardim.
- Nas urgências? Mas como é que estás? Feriste-te?
- Já ligaste aos teus pais?
- Senão é nada de grave... Percebo. Não os queres preocupar.
- E o Paulo?
- Pior?
- Vais ligar a quem?... Uma amiga?
- Não, não sei quem é. Precisas de alguma coisa?... Tenta manter-te calmo. vou já para aí.
Nas proximidades do hospital, Rita esperava ansiosa que vagasse um lugar no estacionamento do parquímetro enquanto a Lua, nas traseiras do Land Rover, se agitava por não ter tido tempo de dar as voltinhas todas da manhã.
Em cima de uns sapatos de salto dez, com um bico do tamanho de um porta-aviões, enfiada num tailleur de calças Armam castanho-terra, carteira Fendi, gabardina Dolce Gabbana no braço e pasta Vuitton de executiva, a figura, uma das muitas que, apesar de tanta etiqueta, não conseguem disfarçar o porte de quem anda de balde e esfregona na mão, avançou para o Volvo depois de reparar no carro da Rita a fazer pisca quase ao lado do seu. Rita fez rapidamente marcha atrás para lhe dar espaço para a manobra. Não descansava enquanto não visse o Luís.
Esperou.
Espreitou.
Falava ao telemóvel. Uma chamada inoportuna certamente. Não devia querer arriscar um raspanete do polícia, uma multa, sabe-se lá. Os minutos passavam e o Volvo não arrancava. Rita impaciente, olhava à volta na esperança de ver outro carro sair.
Em desespero, avançou e fez um sinal à "executiva" a confirmar se ela estava ou não para arrancar dali. A outra, entretanto, desligara o telemóvel e mexia não se sabe em que botões do tabliê. Sim, sim, ia sair! A resposta vinha agastada. Seguiu-se uma sessão de retoque de maquilhagem e outra de cabeleireiro. Só não foi de manicura porque certamente se esquecera do verniz e do estojo das unhas em casa.
A úlcera da Rita já se começara a assanhar, quando, finalmente, contrariada por lhe ceder o lugar, a mulher lá arrancou.
Ao ver a dona arrumar e sair precipitada do carro, a Lua percebeu que ainda tinha de esperar algum tempo até fazer o resto dos chichis.
Entre uma feira e qualquer espaço das urgências daquele hospital pouca diferença havia. Numa amálgama desordenada e confusa, as pessoas pareciam zumbis sem perceber a quem recorrer. Nas paredes sujas e desbotadas pela humidade, ninguém estranharia ver um anúncio de desparasitantes ou ração para gado ao lado de alguns cartazes anémicos e rasgados nos cantos a falar da importância de dar sangue e dos benefícios do leite na alimentação (presume-se que humana). No ar, um cheiro a abandono lavado com lixívia, nos olhares, a rendição e o desalento. Maqueiros de batas enxovalhadas, doentes resignados, de credencial na mão, familiares presos ao telemóvel adiando compromissos, cadeiras de rodas deslizando no chão sujo e gasto pelo desespero. Uma voz difícil de decifrar, chamava roufenha no intercomunicador:
- Manuel Augusto! Idalina Sousa!
Qual senhor, qual senhora! Nos hospitais e centros de saúde, a condição de doente retira-nos logo a senhoria.
Rita mergulhara quase de imediato num passado que teimava em manter-se recente.
"Viver é tão bom, doutor."
Dentro da sua cabeça o ressoar da voz da tia Maria do Carmo, a doçura do seu sorriso a contrastar com a violência dos tratamentos, da químio, da aspereza de lençóis, camas de ferro, paredes fendidas, vigas descarnadas nos tectos. Era essa a paisagem celeste das vítimas da humilhação do corpo, como a mãe, com o seu sentido de humor característico, costumava dizer.
- Basta um calo num dedo do pé e tudo se transforma.
- Riam as duas para ir calejando a alma.
QUERO BEBER ATÉ AO ÚLTIMO GOLE OS MEUS VELHOS AMIGOS E NÃO TENHO TEMPO
pensava Rita.
Entre nós há sempre um soro, uma algália, um penso, um frasco de desinfectante, um tubo de plástico, um ventilador, um vaivém de portas, uma anestesia, um bisturi, um caixote de lixo cheio de gazes ensanguentadas. Deus podia ter levado mais uns dias a fazer o mundo. Podia-nos ter evitado a doença. O vexame de acabarmos os dias com um grupo de estagiários à volta da nossa cama de hospital a observar-nos a carcaça, a ouvir o professor dissertar sobre os nossos males, sem previamente nos ter dado bom-dia e consultado sobre a nossa vontade de sermos objectos de estudo. Podia ter feito do homem um ser mais iluminado. Podia ter-nos poupado a este sofrimento, a esta degradação física. Que lhe deu para se cansar ao sétimo dia? MAS é SUPOSTO DEUS CANSAR-SE?
Luís / RITA
Luís traz as calças rasgadas na perna esquerda, atada com uma ligadura do joelho para baixo.
O seu corpo atlético e elegante avança para a Rita com menor desenvoltura do que é habitual. Tenta manter um sorriso, mas não lhe é fácil esconder o estado de preocupação e ansiedade em que o acidente o deixou.
Abraçam-se. A cumplicidade e ternura que os ligam há longos anos, poupa-lhe certas palavras e explicações.
- Levaram agora o Paulo para lhe fazerem uma TAC e umas radiografias. - Luís encaminhou a Rita para um dos cantos da sala.
- Ele está consciente? - quis saber a Rita.
- Sim, sim. Desmaiou quando tivemos o acidente e vomitou já aqui no hospital. É capaz de ser apenas um traumatismo craniano, mas querem ter a certeza de que não há outras lesões.
- Os pais dele já sabem?
- Ainda não. Preferiu não lhes ligar. Pediu-me para chamar uma amiga, a Rosarinho.
- Conhece-la?
- Só de o ouvir falar. Ia apresentar-me esta semana. Queria que jantássemos juntos. Parece que é a única amiga que ele pôs a par da nossa situação.
- E tu, como te sentes? - Rita olhava para a perna entrapada do Luís.
- Começo a ter algumas dores, mas já fui observado por uma médica e parece não ser nada de grave. Daqui a pouco vão-me fazer radiografias. Isto na perna foi um rasgão na chapa da porta quando tentava sair do carro - disse ele a tranquilizá-la.
- Achas que vão ficar internados?
- Eu, penso que não. Agora ele... - Luís tinha lágrimas nos olhos inquietos.
- Vai correr tudo bem, tenta ficar tranquilo. - Rita pegou-lhe na mão.
- Estou a fazer por isso - respondeu Luís pouco convicto.
- Acho é que devias avisar os pais do Paulo. com o pó que te têm, vão agarrar-se ao primeiro pretexto para te crucificar.
- Deixa-o falar primeiro com a tal Rosarinho. Ele prefere que seja ela a avisá-los. Ê amiga da família - olhou para o relógio na parede. - O mostrador do meu relógio desfez-se com a pancada. Ficas por aqui?
- Não, vou para o Aquário Vasco da Gama ver se descubro como é que os peixes fazem chichi. Que te parece? - Rita queria vê-lo sorrir e ele fez-lhe a vontade. - Não arredo pé daqui sem te levar para casa. Só não trouxe o resto da família, como os ciganos, porque já morreram todos, mas a Lua está de plantão no carro.
- bom, se me distraio aqui fora, corro o risco de me chamarem para as radiografias e não dar por nada.
- Vai, vai. Precisas que te trate de alguma coisa, entretanto? Tenho o telemóvel comigo.
- Não, para já não. Quando a Rosarinho aparecer, diz-lhe que eu já venho. Nem sequer lhe posso voltar a ligar. Fiquei sem carga no telemóvel e tenho lá o número dela.
- E eu sei por ventura quem é a tal de Rosarinho?
- Nem eu. Acho que é alourada, usa o cabelo comprido, ondulado, é magra, gira e é mais velha do que o Paulo, mais ou menos da nossa idade. A descrição é dele.
- Vá. Vai tratar de ti que eu cá me desembrulho. Rita fez-lhe uma festa na cara e respirou de alívio. Afinal,
podia ter sido muito pior.
Procurou uma cadeira para se sentar. A sala estava agora menos movimentada.
Ao seu lado, um homem bigodudo e de cabeça apepinada, atendia freneticamente um telemóvel que não parava de tocar o Bailinho da Madeira.
Subitamente lembrou-se da Lua que estava no carro ansiosa por mais umas voltas. Teria deixado os vidros abertos para entrar o ar? Saíra tão à pressa... Era melhor ir ver.
ROSARINHO/PAULO
Deitado na maca, Paulo esperava num pequeno corredor que dava acesso à sala das TAC, quando Rosarinho se aproximou.
- Como é que me descobriste nesta confusão de salas e corredores? - A sua cara angulosa e bem desenhada estava quase irreconhecível de inchada pelos diversos hematomas.
- Um cartão de profissional de enfermagem e alguns conhecimentos valem ouro em qualquer hospital. - Faz-lhe uma festa nos cabelos desalinhados. - Então, como é que te sentes?
- Vivo, por enquanto, mas não muito. Não me consigo esquecer do barulho do carro às voltas sobre si próprio, um ruído ensurdecedor e depois o silêncio. Não me lembro de mais nada. - A sua voz era trémula e fraca a preparar as lágrimas que não se fizeram esperar.
- Desmaiaste. É natural. - Rosarinho respeitou-lhe o choro. Olhava-o exposto, indefeso como uma criança. Bonito, como todos ficamos quando exibimos a nossa nudez. Porque nos dizem em crianças que ficamos feios quando choramos? perguntava-se Rosarinho.
- Estou horrível? - soluçava Paulo.
- Nunca podes ficar horrível. Nem depois de perderes um combate de boxe.
- Tenho a cara feita num bolo? - Quis tocar-lhe com a mão mas uma dor no ombro não deixou. - Ai! - queixou-se.
- Sossega, eu digo-te o que é que vejo. - Procurou ser breve na descrição. - Tens a cara inchada do lado direito, sobretudo junto à testa, o queixo do lado esquerdo também inchado e ligeiramente ferido, nada que não tenha conserto com um bocado de gelo e repouso.
- Mais nada?
- O olho também está inchado mas não te preocupes. Vai passar.
- Como está o Luís? Já o viste?
- Ainda não. Encontrei uma colega de curso que me trouxe logo aqui. Já vou à procura dele. Mal entres para fazer os exames.
- Falas tu à minha mãe? - O tom era receoso.
- Claro que sim. Sossega.
- Como é que ela vai reagir quando vir o Luís?
- Não sei. Pode ser que nem se cruzem. Ainda não sabes se vais ter de ficar internado. - Segurando a mão do Paulo:
- Vá, tenta descansar. Não é boa altura para pensares nessas coisas.
A porta da sala abriu-se e um técnico com uma papeleta na mão veio chamar o Paulo.
- A senhora agora não pode entrar - disse para a Rosarinho. - Se quiser pode ficar aí, mas conte com três quartos de hora de espera, pelo menos. Os exames são demorados.
- Já nos encontramos. Vai tudo correr bem - disse ela a tranquilizá-lo.
As lágrimas escorriam pela cara disforme do Paulo. O técnico, simpático, empurrou a maca para dentro da sala numa tagarelice bem-disposta a ver se o animava.
Rosarinho respirou fundo quando a porta se fechou. Sentia uma opressão no peito, estava tensa, angustiada, a precisar de um cigarro. Há meses que não entrava num hospital. O contacto inesperado com aquela realidade, já familiar, de tantos anos de enfermagem, trazia-lhe de volta a incapacidade que sentira meses antes para continuar a lidar com ela. Por algum motivo estava de baixa. Tinha de sair rapidamente dali para fora. Apanhar ar. Depois iria à procura do Luís. Estava morta por o conhecer.
RITA
A Lua bem podia ficar sem comida, sem água, sem fazer chichi por qualquer atraso ou distracção da Rita, que a manifestação de alegria ao vê-la era sempre a mesma. Depois de um passeio de reconhecimento ao local, onde os novos cheiros foram devidamente examinados um por um, voltou, conformada com a sua sorte, para o carro.
De regresso à sala de espera do hospital, Rita olhou em volta à procura duma loira, magra e gira que não encontrou. Continuava de plantão o bigodudo do Bailinho da Madeira, agora em animada conversa com uma mulher pródiga em descrições de doenças, à boa maneira nacional.
A figura, gorda, mas de pernas tão finas que pareciam emprestadas, vestia uma saia de fazenda castanha aos quadrados, camisola azul-petróleo e sobretudo escuro de cor indefinida.
Sentada, com os caniços peludos ligeiramente entreabertos, exibia aparatosamente as suas misérias escatológicas. Pródiga em gases e líquidos que iam ilustrando a sua espalhafatosa descrição, suava em profusão da testa, deitava perdigotos, chorava por tudo e por nada, arrotava e pedia licença depois de o fazer. Uma autêntica turbina. Rita magicava, mais uma vez, neste hábito tão comum. Como é que se pode pedir licença para fazer uma coisa que já se fez?
Desde as acidezes no estômago, aos suores nocturnos que lhe "coziam" as camisas de noite todas, passando pelo "obcesse na engive" do marido que lhe tinha roubado duas noites de sono, foi fazendo o seu relato colorido e sonoro com o Bailinho da Madeira do bigodudo em música de fundo.
Rita pelava-se por estes números e embrenhou-se de tal maneira no relato que, por momentos, quase esqueceu o que estava ali a fazer. Quando a gorda já levava duas operações de barriga aberta e uma "dispersão nervosa" de vantagem, contra uma simples operação à "hérnia fiscal", do bigodudo, voltou a olhar para o relógio. Nem Rosarinho, nem notícias do Luís. Dali a pouco iria lá dentro tentar descobrir o que se estava a passar.
ROSARINHO
Sentada perto da porta que dava para um átrio onde estacionavam as ambulâncias, Rosarinho observava a figura que tinha visto entrar minutos antes.
A mesma que na véspera jantara na mesa do restaurante em frente à sua. Que faria ali? Certamente acompanhava alguém, não tinha ar de doente.
Reparou nas calças pretas ligeiramente à boca-de-sino com uma mancha acastanhada na perna (parecia terra ou pó), no pulôver preto debaixo do qual aparecia uma T-.shirt encarnada. Trazia botas pretas de tacão baixo e um casaco de camurça castanho-mel de bom corte (provavelmente italiano), que devia ter atravessado alguns Invernos. Pendurado ao ombro, um saco igualmente de camurça castanha com franjas. Tinha gestos e um andar elegantes e harmoniosos, e o jeito de inclinar a cabeça para o lado direito (já na véspera tinha reparado) dava-Lhe um ar doce e sonhador.
Olhou para o relógio. Ainda havia tempo para mais um cigarro. Já tentara novamente o telemóvel do Luís. Continuava desligado. Daí a pouco voltaria lá dentro a ver se o descobria. Tudo indicava não terem sofrido lesões graves, mas estava preocupada com o Paulo e a forma como iria dar a notícia aos pais. Pedira-lhe para ser ela a abrir caminho por não ter coragem de enfrentar a mãe, e Rosarinho, que não era nada desenrascada para este género de situações, antecipava até algum prazer pela missão de que fora incumbida. Sempre a irritara a arrogância da tia Jô, a sua forma de se colocar acima de tudo e de todos.
Tentou imaginar a sua expressão perante esta nova circunstância. Não tencionava esconder-lhe que o acidente se dera no carro do Luís. Seria ridículo se o fizesse. Acabariam certamente por se cruzar no hospital. Por muito que a tia Jô pretendesse escamotear a realidade, um dia ela viria à tona. Quanto mais cedo melhor.
Não queria estar na pele do Paulo. Sentia-o inquieto, inseguro, com medo. Resistir às pressões daquela mãe, era obra. (A do restaurante já olhou duas vezes para o relógio. Deve estar à espera de alguém.)
Que lhe aconteceria se ela se apaixonasse por uma mulher? O pai, os irmãos, que diriam? Haviam de disfarçar até à última, tinha quase a certeza. Fazer de conta que não percebiam. Ignorar. Tinham certamente imensos preconceitos em relação ao assunto. Ela jamais teria coragem para lhes contar. Era tema que não se abordava em família. Porquê, se essas coisas só se davam com os outros? Quem sabe, os irmãos, já de outra geração, a acolhessem bem, se pusessem ao lado dela. Quanto mais não fosse pelo amor que lhe tinham. (Lá está ela a atirar o cabelo para trás. Deve ser tique. Ontem também não parava de fazer o mesmo.) Eram uma família unida, disso não tinha dúvidas. Quando acontecia alguma coisa a algum, os outros vinham todos em sua defesa. Se bem que um caso destes era diferente... Preferia não aprofundar. Nem pensar no assunto. Porquê pensar nisso? Lá porque tivera aquele deslize com a Vera? Uma brincadeira sem consequências. Coisa sem significado, como as paixonetas que se têm na adolescência por uma professora. Não queria dizer nada. Fora uma experiência... marcante, isso não podia negar. (Tem um ar simpático, diria até atraente. Que fará ela na vida? Veste desportivamente... não tem ar de mãe de família...). Até já tinha dado consigo a olhar para outras mulheres e a imaginar como seria beijá-las, sentir-lhes o corpo sem pêlos, o roçar da cara sem barba, ouvir-Lhes palavras sussurradas com ternura, sem pressas... era isto certamente a que se chamava fantasias eróticas. Não era necessariamente a sua inclinação. Apenas uma curiosidade legítima, natural, um sonho, um delírio. Toda a vida tivera namorados. (Quem sabe também está separada. Para estar ontem a jantar só com uma amiga...). Lá porque se cansara do Vasco e se enredara com a Vera... tão cedo não queria outro namorado. Isso era ponto assente. Sempre o mesmo egoísmo, o mito da mãezinha que faz tudo perfeito, a inerente confusão de papéis, a ausência de romantismo, de intimidade. (Curiosa esta coincidência de se encontrarem dois dias seguidos.) Já ia no terceiro e as queixas eram as mesmas. Não contando com dois casos-relâmpago em que o defeito na peça fora detectado antes de se envolver demasiado.
(Terá fixado a minha cara? Dali não me pode ver.) Tirando o Pedro que se portara pessimamente com ela, de quem nunca mais sequer queria ouvir falar, os outros até que nem eram de se deitar fora. (Não se deve lembrar. Só se quando trocaram as chaves dos carros...). Sim, eram homens de bom carácter, divertidos, bem-sucedidos na profissão, educados, uns mais cultos do que outros mas razoavelmente interessados, fisicamente atractivos. Não se podia queixar. Mas queixava-se. Estavam a milhas do que ela sonhava. (Levantou-se. Ah, estava à espera daquela!) Saíra da relação com o Vasco completamente esvaziada, esgotada, não tinha nada para dar. (Afinal... parece que se enganou. Está a olhar para mim! Deve estar a pensar donde me conhece. Avança na minha direcção. Confundiu-me com alguém.)
- É a Rosarinho?
Rosarinho teve um ataque de comichão no nariz mas conteve-se. Espirrou.
MARIA DO CARMO
Um olhar tinha, bastado para que aquele fosse o momento mais redondo, o mais perfeito e absoluto de todos os momentos. O momento de toda a magia, de todos os milagres. Encontros assim, acontecem raramente nas nossas vidas.
Por isso ando a ver se reconheço alguém nas outras almas, imagine-se!
Uma luz diferente, uma cintilância poderiam dar-me o sinal da presença da única pessoa com quem combinei encontrar-me aqui. Esperarei.
Quando pela primeira vez nos cruzámos nessas paragens, dissemos tudo o que se pode dizer para além da engenharia das palavras.
Rolara mais de metade das nossas vidas. A neve tingira-nos os cabelos, mas nem por isso deixava de haver fogo nos nossos corações.
Dentro das minhas horas instalara-se o tédio, e o teu tio, cada vez mais isolado, cuidando de si mesmo, dos seus projectos, das suas vontades, ao considerar importante apenas aquilo que lhe dizia directamente respeito, ajudou a que as minhas ideias navegassem para longe.
No avião para S. Miguel, uma e outra em visita a familiares, tocaram-se um dia os nossos destinos. Tínhamos ambas pavor das altitudes e quando nos sentaram lado a lado, já ela tomara o seu calmante e eu, algumas taças de champanhe.
E voámos sim, voámos pela primeira vez em longos anos, nas asas de um pássaro que nos levou para lá das montanhas crescidas de lava e génio dos poetas. A sua voz transparente ditava palavras que o vento semeava num vaivém estonteante entre o meu peito e o meu sexo. Dentro de mim despertavam sentidos que me pareciam puídos pelo tempo. Desembaracei-me do manto de calmaria em que me refugiara, para abrir portas a uma tempestade de sentimentos há muito esquecidos.
Porém, mais uma vez, as circunstâncias me levariam a manter secreto um amor que me apetecia gritar, gritar, até que as estátuas, indiferentes e adormecidas, entrassem no nosso bailado.
Nesse tempo, o país vivia ainda na escuridão dos bolsos de pessoas reaccionárias e medíocres. Ser-se diferente tinha custos muito elevados, e as nossas raízes estavam já demasiado fundas e espalhadas para nos auto-exilarmos, ou para sobrevivermos à segregação que nos esperava se ousássemos manifestar os nossos sentimentos.
A mediocridade teima sempre em pôr o pé em cima das paixões, dos sonhos e dos ideais de quem luta por eles. Entretém-se a destruí-los e minimizá-los.
Eram tempos em que até as ideias feministas eram acolhidas com gargalhadas de dentes de ouro por aqueles que, à volta duma mesa de majongue ou brídege, se divertiam com a hipótese de mais sexo, e à borla. Quanto às restantes prerrogativas da mulher, não queriam nem tomar conhecimento.
Num total abandono e esquecimento do futuro, vivemos as horas que nos concedíamos, furtadas às solicitações dos parentes. A natureza da ilha, intensa, ardente, maternal, acolhia-nos num silêncio unânime de respeito pelo sentimento límpido e puro que despontava em nós.
AlGO DE MUITO BELO SE DESENROLAVA
E AS HORTÊNSIAS PUNHAM-SE EM BICOS DOS PÉS
PARA NOS ESPREITAR.
ROSARINHO / RITA
- É a Rosarinho?
Ela perfume
Ela ritmo de dança Ela fruto de marfim "
Ela horizonte distante Ela rio de incerteza :
Ela beijo de seda :
Ela fogo sem chama
Ela palavra de vidro Ela gestos de vento
Ela portas do sonho Ela cor de solidão
Ela rumor de asas Ela flor da vertigem
Ela água generosa Ela desejo em brasa
Ela medida certa Ela deusa no cio
Ela anel de sangue Ela
É Ela.
- Sim, sou a Rosarinho.
- Eu sou a Rita, amiga do Luís e do Paulo.
Nem uma nem outra referiram o encontro da véspera no restaurante, apesar de ambas se lembrarem.
FLÁVIA
Quem tem muito medo de ser infeliz nunca consegue ser feliz. Isto faz-te algum sentido?
Deixemos despontar o tal sentimento, deixemos espreitar a tal emoção, deixemo-nos levar no seu leito como a água que se entrega ao rio.
O medo espreita, o medo espreita sempre, a querer impor a sua vontade, a abrir as portas do seu coração ressequido, para nos enclausurar.
Sentir por sentir, um deles tomará conta de nós.
Deixemo-nos embalar no amor.
RITA / ROSARINHO
O carro atravessa a cidade.
Quis a Providência que Rosarinho tivesse ido de táxi para
o hospital e aproveitasse, assim, a boleia oferecida pela Rita.
Ambas estão preocupadas com o estado de saúde dos amigos, ambas sofrem por vê-los sofrer, mas a tudo isso sobrepõe-se a chama que se acendeu nos seus corações e lhes abre um mundo de fantasias e esperanças. Um excitamento que tentam
disfarçar pelos motivos mais rebuscados e obtusos tais como:
Alinhar na sensatez, alinhar às vezes seja no que for, obriga-nos a representar um equilíbrio que nem sempre existe dentro de nós. Fazemos das tripas coração para parecer equilibrados, porém o desequilíbrio é que nos vai dando graça.
- O Luís pediu-me para estar presente quando mudassem o Paulo para o quarto, não vão os pais dele aparecer disse Rita. - vou só buscar umas calças a casa dele e volto de seguida. (Será que ela também vai voltar?)
- Eu vou ver se apanho a tia Jô ou se deixo recado à secretária para ela me ligar. Podia ter tentado do telemóvel mas prefiro ligar de casa. (Doutra forma não tinha aproveitado a boleia.)
- Não conheço os pais do Paulo, contudo não prevejo um encontro pacífico com o Luís. (Terá alguém à espera? o que estava ontem com ela seria namorado, amigo?)
- Algum dia teria de acontecer - responde Rosarinho.
- O gelo vai ser total. Só por educação é que não tomam uma atitude que lhes descomponha a altivez. Estou para ver como é que a tia Jô vai engolir este sapo. - Rosarinho faz um esforço ciclópico para conter a já habitual comichão no nariz quando se enerva, mas não consegue evitar mais dois ou três espirros.
As mãos expressivas da Rita manejam com destreza o volante e a alavanca das mudanças, enquanto Rosarinho repara na aliança larga, em prata, de design actual, e no Omega. Constellation no pulso esquerdo.
Atrás, a Lua pergunta-se quem será a dona daquele cheiro que entrou pelo carro dentro, mais depressa do que ela.
Apanhadas por um sentimento imprevisto e imprevisível, alimentam a custo uma conversa descontínua porque o que lhes vem de dentro é outra coisa.
Avizinha-se uma nova oportunidade de aprendizagem para a Rita.
De aceitar como pode ser diferente o ser que se ama, como pode pensar e sentir de forma diversa da sua, como pode ter gostos de que ela não gosta, dizer coisas que ela nunca diria, não ver o que ela vê.
De entender que o ser amado é único e não uma cópia onde a sua própria imagem encaixa, um decalque de si mesma.
Rita sabe que habita dentro de si o arquétipo da guerreira. Um modelo tão antigo quanto o mundo, que lhe rouba a serenidade ansiada. Terá, nos tempos que hão-de vir, o ensejo de desfazer esses reflexos condicionados pelo passar de milénios e sucessivas encarnações. Ela não sabe, mas vai conseguir o que até à data pensava não ser capaz.
Por outro lado, na vida da Rosarinho avizinhava-se uma mudança radical.
Pela primeira vez, olhará para si e para o mundo com os olhos da consciência, da sua própria consciência que ainda terá de encontrar.
Os seus dias, grande parte dos seus dias, vividos até agora a preto e branco, começarão a tingir-se das cores da esperança.
Os seus olhos, os seus olhos tristes, preparam-se para aprender a reflectir a luz que aos poucos lhe inundará a alma.
Aprenderá a ter um sonho e a lutar por ele, a não desistir por medo de não ser capaz.
Rosarinho, que gosta tanto de ir a Fátima, perceberá um dia que os verdadeiros milagres se fazem de amor e entrega.
Luís / RITA / ROSARINHO
Ao Luís, a atitude da mãe do Paulo caíra-lhe pior do que uma ostra estragada.
Havia dois dias, mal Rosarinho a avisara do acidente, Maria João accionara um batalhão de influências e conhecimentos, mesmo antes de se dirigir ao hospital para junto do filho.
Após os exames e por indicação médica, Paulo deveria transitar para um quarto onde ficaria ainda uns dias sob observação.
Por influência da mãe junto do médico, foram proibidas todas as visitas, excepto a família mais próxima, o padre Filipe e Rosarinho. Um subterfúgio hábil e desleal, próprio de quem se move como peixe na água nos meandros da política.
Luís, Rita e Rosarinho ficaram chocados porque, ingenuamente, previram todas as hipóteses menos essa.
Com a maior das desenvolturas, Maria João cilindrara a vontade do filho, desrespeitara a sua dor, ignorara como sempre os seus sentimentos, minimizara os seus desejos como se de caprichos infantis se tratassem.
Cruzara-se uma única vez com Luís, antes de Paulo ser transferido para o quarto, e dirigira-lhe um olhar enviesado a que ele respondeu com um olhar assassino que nada a intimidou. A resposta veio célere, com a informação de que a entrada no quarto do Paulo lhe estava vedada.
Aquela mulher tinha o condão de lhe acordar sentimentos que jamais alimentara. Alguns deles nunca sequer chegara a experimentar. Sentimentos corrosivos tais como raiva, ira, sede de vingança, ódio, até.
Nem as muitas horas de prática de meditação, o chi kung, os diversos retiros espirituais em conventos budistas, toda a doutrina de amor e compaixão que se esforçava por sempre exercer, lhe evitaram sentir por momentos uma fúria desmesurada, incontrolável.
No instrumento delicado que todos somos, há momentos em que as teclas pretas se apoderam da situação, entram em guerra com as brancas e destroem a harmonia. As pretas gritavam:
- Considero-a um espírito obtuso, de ideias enferrujadas. O discurso dela é lixo tóxico, mais nada!
Rita e Rosarinho deixavam-no desabafar. Entendiam a sua revolta, estavam solidárias com a sua mágoa.
Rosarinho achou por bem poupá-lo à descrição do estado de inquietude do Paulo ao perceber que a sua ausência tinha sido obra da mãe.
Paulo, incapaz de a enfrentar, fora invadido por um febrão que o pusera em estado delirante até os calmantes actuarem.
Não contente, Maria João pedira ajuda ao padre Filipe. A essa visita, Rosarinho teve o prazer de assistir. Paulo, ao anunciarem a entrada do padre no quarto, fechou os olhos e só os voltou a abrir quando ele saiu, desiludido por não lhe poder segredar uma das suas prédicas.
Incumbida Rosarinho de trazer e levar notícias, o ponto de encontro escolhido foi a casa da Rita, onde o Luís se refugiava agora a maior parte do tempo.
Rosarinho sentia-se bem ao pé daquelas duas criaturas que acabara de conhecer três dias antes, como se as conhecesse de sempre. Ali, tudo lhe parecia familiar, e a Lua rondava-a num charme descarado, bem mais afoita do que Rita, quase sempre aparentemente desinteressada mas atenta ao mais pequeno gesto dela.
- Em que mundo é que esta gente vive? - continuava Luís. - Será que aqueles pais não percebem o mal que lhe estão a fazer? - Olhava para a Rosarinho como se ela tivesse a resposta.
- Não sei, Luís. A tia Jô sempre foi uma força da natureza capaz de cilindrar tudo e todos à sua passagem. Ela tem a perfeita noção de como o Paulo é fraco.
- Sabe que ele nunca lhe fará frente, é isso? - Rita servia chá nas chávenas, dispostas num tabuleiro pousado sobre a mesa baixa em frente à lareira.
- O que o torna tão fraco e vulnerável é a paixão doentia que ele tem pela mãe! É tudo menos saudável! - O Luís irritado.
- E ela aproveita-se disso. Perverso, não é? - Rita passou a chávena a Rosarinho. As suas mãos tocaram-se ao de leve.
Por segundos, Rita esqueceu tudo.
Era como se apenas ela e Rosarinho estivessem naquela sala, no jardim, no país, no mundo, no universo.
De regresso à realidade, interrogou-se onde estaria guardado o seu sentimento pela Cristina. Qual a sua natureza.
Luís, alheio à cena paralela, consumia-se em congeminações, em sintonia com a lenha que ardia na lareira.
Teriam aqueles pais, alguma vez, posto em causa as suas certezas do que estava bem ou mal? Certamente não. Viviam numa fortificação bem murada. Assegurando-se de que não havia janelas nem portas nem correntes de ar para a vida que palpitava cá fora. A vida, no exterior, era demasiado inesperada e complexa. Envolver-se com o mundo não era o seu género. O tipo de gente que abomina que a luz e o ar circulem livremente entre vidros e fendas por onde saem e entram pessoas que pensam, vivem e sentem de outras maneiras. Gente que se cruza e mistura num acto enriquecedor. Queriam lá saber do que se passava fora do mundo deles, do que sentem aqueles cuja vida é jogada em cada dia. Uma vida arriscada a cada momento, traçada numa imensa tela, com a consciência de que muitas vezes é preciso riscar todos os traços, alterar planos e certezas e começar tudo desde o princípio.
A vida deles parecia já vir prescrita. Uma receita com regras rígidas para viver, pensar, sentir. Sabendo tudo do que se pode aprender nos livros do seu pequeno catálogo mas nada do que não vem lá. Que sabedoria poderiam tirar da sua cultura livresca, se rejeitavam o mais sábio e completo dos livros? Liam apenas o que lhes agradava, jamais correndo o risco de pôr em causa as suas verdades. Fugiam de tudo o que fosse diferente, insistindo no seu monólogo redutor. Bem podiam teimar na sua obra acabada. O tempo se encarregaria de lhes mostrar que viver é um rascunho permanente.
Ia lançado por ali fora quando o telemóvel tocou.
Luís olhou o visor. Era a mãe.
- Mãe? Ia ligar-lhe daqui a pouco.
- Estou, mãe. Estou bem... não. Estou em casa da Rita.
- Está melhor. Deve sair daqui a dois dias... deixe estar, vê-o depois. Ele agora precisa de repouso. O médico quer poucas visitas. - Preferiu não contar o pormenor das entradas vedadas pela mãe do Paulo.
- Hoje? Posso. (Olhou para o relógio.) Por volta das oito, está bem?
Enquanto falava, Luís sentia uma enorme onda de ternura por aquela mulher lutadora, generosa, inteligente, que o empurrara para a vida, apoiando-o sem lhe tolher os movimentos.
Tivera muita sorte com os pais. Ou escolhera bem... havia quem dissesse que a escolha é nossa... que a alma escolhe quem vai ser o veículo para encarnar. Se alguma vez enveredara por um caminho menos adequado à sua natureza não fora culpa dos pais.
Orgulhava-se deles. Amava-os, respeitava-os por serem quem eram, pessoas de carácter, de grande humanidade e sentido de justiça. Sempre ao seu lado, na escola, nas doenças, na inquietude da adolescência, nas faltas de dinheiro, nas desilusões amorosas, no casamento, na separação.
Amava-os pela confiança que sempre depositaram nele, pela compreensão demonstrada em momentos cruciais da sua vida.
- Aconteça o que acontecer, estamos ao teu lado - disseram-lhe várias vezes depois da separação.
- Não me posso sentir feliz com a rejeição da minha filha.
- Dá-lhe um tempo. Está influenciada pela mãe. Um dia vai compreender. - O pai injectava-lhe esperança.
- Acha?
- A Mariana tem uma adoração por ti. - A mãe tranquilizava-o. - Ainda é muito nova. Está insegura, receosa. Sente o peso dos preconceitos que a mãe lhe incute a toda a hora.
Depois ficava a olhá-los. Também eles tinham tido a sua luta para levarem o casamento avante. Ela, uma activista política nos tempos da faculdade e mais tarde fundadora duma associação para a defesa de mulheres vítimas de maus-tratos; ele, oriundo duma família rica e conservadora do Norte. Amigos e respectivas famílias avisavam um e outro do desastre que seria aquela união. Do lado dela, que ele tentaria tudo para a domesticar, transformá-la numa mulher convencional e submissa à imagem do que era habitual no seu meio. Do lado dele, que ela arrastaria o seu bom nome para o ridículo e lhe comprometeria a carreira, metida a revolucionária e agitadora...
A grande animação da Lua, que desatara a ladrar provocando Rosarinho para a brincadeira, trouxe-o de volta à sala.
Rita acabara de pôr a Beverly Craven a cantar o I Miss You, enquanto Rosarinho entrava no jogo da Lua, ora mostrando, ora escondendo um gigantesco osso de tripa, energicamente reclamado com a pata dourada e peluda.
- vou passar por casa e depois janto com os meus pais.
- Luís levantou-se.
- Eu também vou... se a Lua me deixar - disse Rosarinho, tentando libertar-se da Lua com pouca veemência.
- Deixe-se ficar mais um bocado. (Rita não tinha pensado dizer aquilo mas saiu-lhe.) - Não tenho nada de especial para fazer. (Tinha que trabalhar urgentemente naquele irritante guião mas a cabeça não estava nem aí. Ficaria para mais tarde.)
- Sério? - Rosarinho estava tentada.
Ao Luís veio, pela primeira vez, à cabeça um possível romance entre as duas e não conseguiu disfarçar um sorriso. Entusiasmado com a perspectiva, adiantou-se a assegurar um encontro para o dia seguinte:
- Então amanhã a Rosarinho traz-nos notícias depois da visita...
- Se quiserem, podemos encontrar-nos aqui, como hoje.
- Rita pronta a oferecer a casa. Pareciam combinados. Fruto de muitos anos de cumplicidade.
- Está bem. Devo despachar-me por volta das cinco e posso vir aqui ter. Vantagens de quem está de baixa! - Rosarinho a tentar disfarçar os nervos por ir ficar a sós com a Rita. (E porquê? Porque havia de estar tão ansiosa? Paulo já lhe contara do caso com a Cristina. Seria por isso? Ficara surpreendida. Como se a sexualidade das pessoas tivesse de vir estampada na cara. Riu-se da sua fantasia.)
- Luís despedia-se.
- Diga ao Paulo que eu penso muito nele. Para não se preocupar comigo. Eu estou bem, apesar das saudades. Se amanhã der para me ligar de lá, gostava de falar com ele.
- Os telefones estão todos desligados para não haver barulho no quarto - disse Rosarinho que também se levantara.
- Se houver uma aberta na "vigilância" eu ponho-vos a falar. O Paulo não quer outra coisa.
A sala da Rita transforma-se agora num palco, onde duas pessoas vão dar tudo por tudo para improvisar um texto dissimulador da enorme atracção que as impele uma para a outra como um potente íman.
O estado de apatia e desinteresse pela vida, característico dos últimos anos da Rosarinho, não lhe roubou ainda a última réstia de esperança e sonho, embora, por medo de uma nova desilusão, ela não o queira admitir. O grande desencantamento e o desajuste na sua própria pele parecem, por momentos, contentar-se com um lugar na sombra, e deixar que o projector ilumine o seu lado idealista e confiante.
Rita, a batalhadora, insubmissa, apaixonada e persistente Rita, pressente a fragilidade da sua colega de palco e luta contra os seus já conhecidos ímpetos de correr em protecção de quem se ponha a jeito. Só a consciência, recentemente adquirida, da sua própria morte, ao fazê-la entender que não é o centro do mundo nem um ser omnipotente, a consegue refrear. A dimensão humana que lentamente, a duras penas, tem vindo a adquirir, está a ajudá-la, embora ela ainda o desconheça, a não cair na tentação de representar o papel que sempre representou.
Alguém lhes montou este cenário com uma finalidade bem precisa. O palco está agora por conta delas.
ROSARINHO / PAULO
Longe iam os tempos em que Paulo temia que a mãe não o viesse beijar à noite antes de adormecer e se enfiava debaixo dos lençóis, contando até cinquenta sem respirar. Se conseguisse, era porque ela vinha, E vinha quase sempre, a não ser quando viajava com o pai.
Nessas noites, altas horas, já as criadas dormiam, esgueirava-se para o quarto dos pais e mergulhava no mundo da fantasia com os vestidos e jóias da mãe. Ensaiando gestos, estudando poses dignas, discretas, elegantes, como observava nela e nas amigas.
Às vezes apetecia-lhe exagerar, ser mais exuberante, mas logo se continha. A mãe acharia certamente espalhafatosas essas manifestações, coisa de mulher ordinária. Ele achava graça. Divertia-se a soltar aquela espécie de loucura que de vez em quando parecia tomar conta dele, como se dentro de si houvesse mais alguém. Outra pessoa muito diferente.
Depois adormecia e sonhava (ou estaria ainda acordado?) que tinha uma irmã gémea dentro dele. De vez em quando, ele tinha de lhe emprestar o corpo. Era ela quem pedia e, como irmão, não lho podia negar. Eram muito chegados, muito próximos, e ela pedira-lhe que jamais revelasse a sua existência. Uns dias mandaria ela, outros ele. Viveriam bem dentro dum só corpo já que Deus os tinha feito assim.
Longe iam os tempos em que se olhava ao espelho e beijava a sua própria imagem, ensaiando beijos imaginados num colega ou professor em quem se fixava. (Seria a irmã a pedi-los?)
Deitado na cama do quarto cinza-claro de hospital, olhava a sua esperança pendurada nos ponteiros do relógio, seca, de ter atravessado tantos sóis.
Trespassam-lhe a memória os discursos e debates da mãe e as declarações de um deputado, num jornal deixado (intencionalmente?) pelo pai sobre a mesa da sala, reafirmando como eram ridículas as reivindicações dos paneleiros. A palavra soava-lhe sempre como um escarro, de quem a proferia, na cara dos homossexuais.
Paulo está cansado de apanhar os seus próprios estilhaços e pensa no Luís que o espera na outra margem das horas.
Rosarinho, a única pessoa com quem agora pode falar, traz-lhe notícias e saudades.
Repara nos olhos claros do Paulo, raiados de sangue. A noite fora agitada, as lágrimas saltam de novo, os nervos arrasados.
- Não aguento mais...
A voz dele era sumida e quase imperceptível. Soava a uma profunda dor que Rosarinho respeitou em silêncio, a sua mão na mão dele. Fechou os olhos procurando, no mais íntimo de si mesma, um gesto, uma palavra providencial que trouxesse alguma paz ao sofrimento do Paulo. Durante quantos anos tinham convivido como estranhos? Quantas horas de solidão poderiam ter evitado, se o medo de se darem a conhecer não tivesse prevalecido?
- Não sou capaz... não sou capaz... - soluçava ele, baixinho.
Dividido entre a família e o Luís, Paulo sabe que a ferida não cicatriza.
Rosarinho sente-o vulnerável e só como uma criança e deseja com toda a força poder ajudá-lo naquele momento. Uma voz distante, começa a fazer-se ouvir dentro dela...
FLÁVIA
Naquele tempo, os brinquedos ainda não tinham vida própria. Mais dependentes da vossa imaginação, havia carros improvisados com caixotes de madeira e peões que só giravam se lhes puxassem o cordel que os vestia. Também as televisões ainda não nos tinham substituído e, por isso, um dos papéis dos tios e avós era contar histórias aos sobrinhos e netos. Lembras-te da história da Maria do Coração Dividido, um conto japonês que eu decidira adaptar ao nosso pequeno mundo?
Um nosso trisavô, Beltrão Juba de Leão, homem muito poderoso, recebera na Quinta o sobrinho José, filho de um irmão que morrera em combate. Quando o José chegou à adolescência, o tio Beltrão juba de Leão contou-lhe que prometera ao irmão casá-lo com a sua filha Maria, caso ele morresse na guerra. O José não cabia em si de felicidade porque há muito que se apaixonara em silêncio pela prima. Mas um dia,, apareceu na Quinta um jovem príncipe, todo janota, herdeiro duma grande fortuna, que pediu a mão da Maria. O nosso trisavô logo esqueceu a promessa feita ao irmão e concedeu a Maria em casamento sem a consultar, como era hábito nesses tempos.
Triste e derrotado, o José decidiu partir para terras distantes, porque não se atrevia a ir contra a decisão do tio.
Dirigiu-se ao cais e pediu trabalho num barco que fosse para bem longe.
Quando o barco estava prestes a largar, vieram avisá-lo que alguém o procurava. Era a Maria que, não podendo viver sem ele, fugira da Quinta e o tinha seguido.
Partiram, casaram, tiveram três filhos, e um dia, passados cinco anos, a Maria, ao saber que o pai estava muito doente, quis visitá-lo.
De volta ao nosso país, dirigiram-se à Quinta. O José foi à frente, temendo a reacção do tio Beltrão Juba de Leão, e disse-lhe, meio a medo, que a Maria estava no jardim.
ROSARINHO / PAULO
Rosarinho parou por segundos. Paulo parecia ter adormecido.
- Continua, não estou a dormir. O que é que o tio Beltrão Juba de Leão fez quando soube que a Maria estava no jardim?
- Não acreditou! - continuou Rosarinho. "Impossível! Rugiu o tio Beltrão na sua voz ainda temível,
apesar da doença.
A Maria, desde que tu partiste, ficou de cama e nunca mais ouvimos a sua voz. Foi vista por todos os médicos, sábios e curandeiros mas ninguém lhe conseguiu arrancar uma palavra, um sorriso.
O José, sabendo que a Maria sempre estivera ao seu lado, insistiu para irem à janela. No jardim, junto à árvore-do-fogo onde nós subíamos em pequenos, lá estava a Maria com os três filhos, à espera de autorização para entrar e ir beijar a mão ao pai de quem tinha muitas saudades.
Então, para enorme espanto de ambos, vêem uma segunda Maria sair de casa em camisa de dormir, ao encontro da outra Maria que estava junto da árvore, e fundir-se com ela num abraço para voltarem a ser apenas uma."
- Bonita... - Paulo sorria, agora mais tranquilo. - Sabes contar muito bem...
- Tive alguém a fazer de ponto lá do céu.
- Era essa a história preferida da tua infância?
- Havia outras. A tia Flávia era uma contadora nata. Ultimamente tenho-me lembrado muito desta. Apeteceu-me contar-ta.
RITA
Raras são as coisas evidentes. Rita pensava que tudo na vida a surpreendia pelo mistério que encerrava. Havia ainda tão pouca coisa explicável, que se questionava a toda a hora. Por mais anos que vivesse, não perdia a capacidade que sempre tivera de se surpreender. Agora, tinha um novelo de sentimentos para desenredar.
Estafada, atirara-se para o sofá da sua sala aquecida. Limpara as estantes de alto abaixo depois de ter dado volta aos roupeiros. A bem dizer nada precisava ainda de grandes limpezas e arrumações. Mudara-se havia tão pouco... Inventou a necessidade de fazer uma segunda escolha nos livros e na roupa, apenas para dar largas à inquietação em que andava. O trabalho não rendia. Não se conseguia concentrar. Alberto telefonara-lhe há pouco, a falar-lhe de uma nova encomenda para um canal da concorrência. Apesar dos habituais quilos de pasta na voz, o tom era de entusiasmo:
- Fiz um acordo com o Silveira Rodrigues que está agora à frente do gabinete de avaliação de projectos. Almoçámos juntos. Temos tudo na mão.
- Quem é que tem tudo na mão e o que é tudo? Não entendo. - Rita a enervar-se com a prosápia.
- Eu e ele! Temos uma boa fatia do mercado! Estás a leste, não e?
- Completamente! - Rita também não pretendia estar a norte ou a este.
- Não te importes! Eu trato das negociações. Tu só tens de escrever. E o melhor ainda está para vir! - vangloriava-se ele. - Espera e verás!
Mas ela tinha a sensação de já ter visto até o que nem lhe apetecia ver. Tinha pouca vontade de continuar a trabalhar com o Alberto. Estava cansada das exigências do mercado e do habitual discurso para conquistar as audiências. Sentia-se desajustada, sem motivações fortes para continuar. Acabaria esta série mas nada de compromissos para o futuro.
- Já mudaste a idade ao rapaz por quem a heroína se apaixona? Se ele for muito novo a maioria das mulheres não se revê na história.
Ele e os gostos da maioria. A ditadura das maiorias enervava-a tanto como qualquer outra. Era como se os sentimentos das minorias tivessem necessariamente de ser menores. Lera algures uma frase parecida que lhe fazia todo o sentido.
Não lhe podia dar muita confiança, senão pouco tardaria para ser ele a decidir sobre o desenvolvimento do enredo. Rita estava afim de tudo, menos de deixar o destino das suas personagens nas mãos dele. Voltaria a trabalhar como freelancer na publicidade, se fosse preciso equilibrar o orçamento.
Foi fazer mais chá de hortelã. Há dias tivera aquele desejo e em pouco tempo consumira mais molhos de hortelã do que em anos de vida. Estranhamente sabia-lhe bem, apesar de nas duas viagens que fizera a Marrocos não ter sido capaz de o beber. Só o cheiro a enjoava. Enquanto a chaleira eléctrica aquecia a água, passou no seu escritório para mirar de novo a arrumação em que tinha deixado a estante e lembrou-se que ainda havia um caixote cheio de fotografias para arrumar em álbuns. Puxou-o debaixo da mesa de encostar, em vinhático, já rendilhada pelo caruncho, que trouxera de casa da tia Maria do Carmo, e deteve-se nas rosas encarnadas que Rosarinho lhe tinha mandado, agora prisioneiras numa jarra de design actual em cristal grosso transparente, sobre a sua secretária.
Ali estava o motivo da sua surpresa, o mistério que não sabia explicar e ao mesmo tempo a maravilhava.
Tinha feito um mês que se conheciam e confundia-a a mistura de sentimentos que conviviam desde esse dia dentro de si.
O lugar da Cristina não tivera ainda tempo de arrefecer e parecia não haver, ao longo dos dias, espaço para outra pessoa no seu pensamento a não ser a Rosarinho. Cativava-a aquela tristeza no olhar. O seu lado maternal e protector mais uma vez a ser estimulado e ela a não querer ir por aí. Encontrava-Lhe até algumas semelhanças de carácter com a Lena, a sua primeira namorada. Generosa, leal, uma enorme timidez disfarçada, e muitos, muitos nós por desatar, feitos de uma vida inteira de desprezo pela própria dor.
Estaria Rita, ao fim de mais de vinte anos, a perseguir ainda o mesmo modelo? Verdadeiros diamantes em bruto, com potenciais que não se dispunham a desenvolver e muita falta de auto-estima.
Ouviu o clique da chaleira a desligar-se e foi tratar do chá. Procurou os cigarros para fumar o primeiro do dia. Andava a reduzir. O maço estava ainda no saco, juntamente com os bilhetes do cinema a que fora com a Rosarinho na véspera. Convidara-a para passarem a tarde juntas, uma tarde cultural, como lhe chamou em tom de brincadeira. Cinema, duas exposições, talvez jantar a seguir? Rosarinho acolhera a ideia de braços abertos.
A sessão das três estava vazia. Não havia ninguém na sala, porém a arrumadora veio avisar que o lugar delas não era ali. Podiam ficar se quisessem, mas os lugares eram duas filas à frente. Deu-lhes para a risota. Uma bênção para aliviar a tensão que se criava sempre que estavam juntas. Durante quase duas horas fizeram, uma e outra, um extraordinário exercício de contenção. Ambas travaram, com esforço, as mãos que se queriam dar, até a luz se acender. Já de pé para saírem, completamente a leste do que se passara na tela, Rita fez ao de leve uma festa nos cabelos da Rosarinho que, apesar de uma onda de calor lhe ter percorrido o corpo, respondeu apenas com um sorriso terno. Os pensamentos voavam espaço fora até serem interceptados e lidos como mensagens de um pombo-correio. Nem uma nem outra queriam precipitar os acontecimentos, tal era o receio de se envolverem e virem a sofrer uma decepção. À noite, quando cada uma seguiu para a sua casa, iam esgotadas pelo esforço feito, a fim de dominar o desejo e manter a atitude de sedução discreta e ambígua.
Rita apercebeu-se de ter dado a última passa no filtro e apagou o cigarro no cinzeiro deixado em cima da mesa da cozinha. Deu um biscoito à Lua e encheu uma chávena de chá bem quente que levou para o escritório. O perfume da hortelã deixava um rasto no seu caminho.
Acendeu o pequeno televisor assente sobre uma pilha de livros de arte (ainda não decidira qual a prateleira para os deitar) e dispôs-se a ver um telejornal. Certificou-se que o telefone portátil e o telemóvel estavam perto (Rosarinho podia ligar) e decidiu deixar a arrumação das fotografias para outra altura.
Num bairro típico de prostituição e droga, o repórter entrevistava os locais. Rita ficou vidrada no ecrã até ao fim, tentando descortinar por que razão o jornalista só tratava as putas e os pretos por tu.
Luís / PAULO
Uma nuvem atravessou o olhar do Paulo.
Deitado no sofá com a cabeça em cima das pernas do Luís, que se entretinha com um filme na televisão, imaginava mil e uma formas de fazer desaparecer os pais da face da Terra. Ele propriamente, não. Jamais teria coragem para o fazer, mas um desastre providencial, uma catástrofe que desabasse sobre a casa deles, um acidente de carro, uma avaria no avião onde viajassem, uma bomba posta por uma organização terrorista, qualquer coisa rápida e fulminante que os levasse para sempre. Atenderia Deus ou algum santo este género de pedidos?
Mortificado pelos remorsos que tais pensamentos lhe causavam, levantou-se para preparar mais um gim.
Os grandes olhos castanhos, inteligentes, do Luís, acompanharam os seus movimentos em silêncio. Apercebera-se que Paulo voltara a beber em excesso desde que saíra do hospital, mas sentia não ser aquele o momento indicado para falarem do assunto. Os pequenos passos dados em frente com a ajuda da psicóloga pareciam ter regredido de forma drástica, mas Luís dava-se tempo para perceber a melhor forma de o ajudar. Sabia-o debaixo duma enorme tensão, fruto da raiva e do ressentimento que começara a sentir pelos pais. Não lhes perdoava terem-no privado da sua presença no hospital, embora ele tudo tivesse feito para desdramatizar o assunto.
Na cama, o relacionamento ia de mal a pior. Paulo, há já umas semanas, parecia ter arrumado o desejo num cofre blindado e adoptara uma atitude desconcertante, pueril. O sexo parecia agora ter-se tornado numa brincadeira infantil, sem sentimento, sem paixão, sem entrega. Um pudor, uma vergonha que o riso às vezes tentava mascarar. Luís, em silêncio, chorava. Na penumbra do quarto chorava de dor e revolta por se encontrar naquela situação. Humilhava-o desejar tanto entregar-se a alguém que parecia não ter alma. Sentia-se ridículo. Como se estivesse à espera de partilhar o êxtase com uma boneca insuflável e caísse, de repente, na dolorosa realidade da sua solidão. Estavam em patamares tão diferentes, que a comunicação se tornava impossível. E parecia ser necessário tão pouco para desbloquear o segredo. Bastava que Paulo se deixasse ir.
- Não tenhas medo, deixa-te levar pelo que sentes, entrega-te a este momento mágico e único. É um momento só nosso, os nossos corpos apenas querem expressar o amor que sentimos, o desejo de nos transcendermos. Tens medo da palavra desejo, é isso? - Luís beijava-lhe os cabelos com ternura.
- Não posso ter boca, nem olhos, nem mãos. Não te posso beijar, nem ver, nem tocar. Não me deixam. - E Paulo escondia a cara na almofada.
- Podes. Se quiseres, podes. Tu estás é a deixar que a tua vida seja dominada pela projecção de alguns pensamentos infantis. És um homem, Paulo. Não tenhas medo.
- Tenho. Tenho um medo terrível, incontrolável. Não suporto o olhar de reprovação da minha mãe, o desprezo do meu pai. Não vês que eu personifico tudo quanto eles atacam? Sou o único projecto da vida deles que falhou. Bem ouvi a minha mãe no hospital a perguntar ao padre Filipe porque não teria eu correspondido às suas expectativas.
- Quem está errado são eles. Eles é que têm de rever certos princípios draconianos que te querem impor.
- São os que a minha mãe defende publicamente e com que muita gente ainda se identifica. - Paulo olhava o tecto fixamente, a cabeça apoiada no ombro do Luís.
- Já existe muita gente a pensar de outro modo. E ainda que toda a gente pensasse como eles, tu és tu. Tens a tua maneira própria de sentir e de pensar.
- O sexo foi sempre um assunto mal-encarado à minha volta. - Paulo seguia o fio dos seus pensamentos. - O sexo em si, o desejo, o prazer. Não estou a falar de homossexualidade. Isso então, era como se nem existisse. O sexo era qualquer coisa que metia nojo, promíscua.
- E não vês que essa forma de pensar é doentia? - Luís, virado para o Paulo, apoiava-se num cotovelo para o poder olhar nos olhos.
- Lembro-me de ver a minha mãe desenhar vestidos, camisolas, saias compridas nas figuras de mulheres que apareciam nas revistas, de minissaia ou com grandes decotes. Tapava-as num gesto quase instintivo. Achava tudo uma indecência. Paulo continuava com o olhar distante, preso no passado.
- Só me dás razão. Achas isso saudável?
- E achas que eu consigo ser saudável depois de ter vivido sempre no meio disto? - Agora olhava o Luís. Havia uma chispa de revolta na sua expressão. - No outro dia fui lá a casa decidido a ter uma conversa com eles. Pensas que fui capaz? Estava ainda debaixo da fúria que apanhei pelo que eles me fizeram no hospital e decidi aproveitar a embalagem.
- Não me contaste nada.
- Tive medo de te criar uma expectativa e de falhar. Tinha razão. Falhei. Nem cheguei a abrir a boca. O meu pai, assim que me apanhou a jeito, lembrou-me a responsabilidade dupla que eu tinha. Não me desse eu ao luxo de pôr em perigo a carreira política da minha mãe ou de manchar o nome da família com algum escândalo de paneleiros.
- Deixou-te arrumado. - A expressão do Luís era séria.
- Estou cansado disto tudo. - As lágrimas rebentavam-Lhe. - Sei que nunca vou conseguir enfrentar a minha mãe. Custa-me tanto decepcioná-los, saber que eles se envergonham de mim...
As cogitações do Luís sobre a conversa da véspera foram interrompidas pela voz do Paulo.
- Que tal é o filme?
- Nada de especial. - Luís sabia lá se o filme era bom ou mau, perdido que andava naqueles pensamentos. Sentia o Paulo à deriva, sem rumo, sem esperança de encontrar um caminho que lhe trouxesse o sentido da vida. Quanta gente à procura do mesmo e, no entanto, a todo o momento, em toda a parte, havia sempre alguém a acabar de fazer uma descoberta maravilhosa. Um poeta escreve um poema, um cego vê uma luz, um músico compõe a sinfonia, um pobre encontra um tesouro. Todos têm um momento na vida em que a porta certa se abre.
Num pequeno livro do profeta Rumi, lera que a "intuição de certeza" é uma visão.
Luís desejava do mais fundo de si próprio, com todas as suas forças, ter uma "intuição de certeza", essa visão que lhe permitisse saber, sem margem de dúvida, que, num futuro não muito distante, o Paulo conseguiria dar a volta aos seus problemas, para se tornar numa pessoa menos atormentada, mais segura de si, mais capaz de olhar para a vida com esperança.
A "intuição de certeza" que tinha, por exemplo, em relação à filha. Tivera mais do que uma vez essa visão, que trazia implícita uma certeza subjectiva absoluta, que um dia, não seria daí por muito tempo, a Mariana, a sua pequena, doce Mariana, como continuava a chamá-la dentro de si, viria ao seu encontro e aceitaria a pessoa que ele era. Talvez no Natal, quem sabe...
TALVEZ NO NATAL.
MAS NUNCA PELOS MOTIVOS QUE LUÍS PODIA IMAGINAR.
Em relação ao Paulo, não conseguia sintonizar-se com um único raio de esperança, embora, dado o seu temperamento positivo, lhe restasse ainda algum ânimo. Tinha tanta necessidade de acreditar nisso como quase todos temos necessidade de acreditar que alguma coisa em nós não desaparece com a morte do corpo. Alguma coisa pela qual vale a pena lutar para que se preserve.
FLÁVIA
Há momentos na vida em que parece termos fechado algumas janelas por pensarmos que nada de interessante voltará a entrar por ali.
No meu tempo, a uma mulher a partir dos quarenta, retirava-se-lhe o direito ao lado colorido da vida. Se tivesse a ousadia de usar alguma cor mais garrida, de pintar o cabelo, maquilhar-se ou vestir uma roupa mais "moderna", era olhada de viés e chamada de velha gaiteira. Apaixonar-se, então, era completamente ridículo. Ou seja, a partir da meia-idade, estávamos quase mortas e enterradas depois de termos passado a primeira metade das nossas vidas ao serviço da família, nomeadamente dos homens. Para que eles continuassem a reinar nos seus domínios, a subir na carreira, a brilhar socialmente, as mulheres deviam apenas e sempre agradar, não se queixarem, apresentarem-se ao seu lado (de preferência um pouco atrás), invariavelmente bem-dispostas, atentas aos seus desejos. Ainda que espremidas na nossa roupa interior que mais parecia um instrumento de tortura, ou nas vascas da agonia, devíamos ser leves, etéreas, pouco opinativas e sorrir, sorrir sempre.
Apesar de me ter defendido de alguns desses estigmas, parecia-me completamente improvável, na minha idade já avançada, que o coração me voltasse a bater por alguém. Depois do que acontecera com a Maria Benedita, ser-me-ia difícil relacionar-me de novo com um homem. Só alguém muito especial poderia igualar a fasquia que se atinge com outra mulher, e nenhum dos homens que tentaram aproximar-se depois da minha viuvez, teve o condão de me despertar algum sentimento digno de nota.
Mas a vida é extraordinária pela diversidade de surpresas que nos reserva, pelos momentos mágicos que inesperadamente nos oferece. Alguém me veio abrir de novo as portas do sonho.
É curioso. Os verdadeiros amores da minha vida, tive de os viver em segredo.
A minha casa de Sintra foi durante anos o nosso refúgio. Era para lá que nos retirávamos sempre que o marido dela viajava. Eles tinham uma pequena casa em Cascais, onde ela dizia que ficava quando ele partia nas suas frequentes deslocações profissionais, mas na realidade íamos as duas para Sintra. Falou-lhe de mim algumas vezes, como se eu fosse uma antiga colega reencontrada numa viagem de avião de visita a uns primos. Porém, já estavam casados há demasiados anos para que ele prestasse alguma atenção ao que ela lhe dizia e isso jogou a nosso favor.
Considero uma felicidade ter-me mantido sempre de coração aberto e com uma quase total ausência de ideias rígidas. Graças a isso, pude viver plenamente uma amitié amoureuse que se manteve até ao fim dos nossos dias numa total e deliciosa clandestinidade. Já que assim tinha de ser, tirámos partido da situação e o secretismo do nosso romance acabou por torná-lo ainda mais empolgante.
Com poucos meses de intervalo, soubemos ambas que estávamos irremediavelmente doentes e prometemos encontrar-nos aqui, se a vida aí nos separasse.
Há encontros que se dão para nunca mais se desfazerem. Feitos de um sentido profundo, ilimitado.
Alguma coisa ou alguém os há-de perpetuar.
ROSARINHO
Em casa da Rosarinho, tudo dormia menos ela, o frigorífico e três relógios.
Matutava no seu excesso de timidez que certamente a fazia parecer estúpida aos olhos da Rita, Uns olhos que por vezes lhe causavam muita perturbação, diria até incómodo, por sentir que a inspeccionavam até à alma.
Tinham jantado num restaurante da Linha, sobre as rochas, onde batia o mar tempestuoso a contrastar com a aparente tranquilidade que ambas queriam demonstrar. Tudo à volta delas era bonito e harmonioso. A iluminação suave, a cor quente das toalhas e dos estofos das cadeiras, as pequenas jarras com flores sobre as mesas, os pratos com um ligeiro rebordo salmão, as telas grandes a decorarem as paredes artisticamente pintadas, os empregados certamente escolhidos em alguma escola de manequins, a forma criativa e original da apresentação de cada prato. Quem as observasse de fora, diria que não podiam estar mais integradas no ambiente.
Rita fazia-lhe interrogatórios cerrados. Queria saber tudo. O que pensava, o que sentia, o que esperava da vida, que sonhos tinha, que medos, que ambições, como se, em pouco tempo, pudesse ficar a saber dela o que a própria Rosarinho não sabia ainda.
Rosarinho tropeçava nas palavras, dizia coisas que não queria dizer, fazia afirmações onde só tinha dúvidas, queria conseguir um efeito mas saía-lhe outro. Cigarro após cigarro, ia metendo os pés pelas mãos, tal era a atrapalhação por não estar habituada a que alguém quisesse conhecer tão insistentemente o que lhe ia na alma. Rita, embora não tivesse consciência disso, estava apavorada com a hipótese de se enganar outra vez. De conhecer uma pessoa e de repente se lhe revelar outra, como acontecera com a Cristina. Levaria ainda muito tempo até conseguir confiar de novo, mas a sua ansiedade e o desejo, de dia para dia mais incontrolável, roubavam-lhe toda a lucidez.
Rosarinho passava a pente fino todo o jantar. A cada pergunta da Rita, parecia-lhe haver uma gaveta ou uma porta a abrir-se dentro dela, os seus olhos faziam-na renascer. A ela que havia tanto tempo deixara de sonhar e se arrastava pelos dias como quem espera que a vida passe.
Dera por si, antes de sair para jantar, a ensaiar imensas roupas, a esmerar-se na maquilhagem ligeira que habitualmente usava, a olhar-se ao espelho de frente, de lado, de perfil, de costas, examinando todos os ângulos possíveis em que Rita a poderia ver. Queria agradar-lhe, queria ser desejada, queria passar horas a fio ao seu lado, desfiando as pequenas histórias da sua vida.
No parque de estacionamento reservado ao restaurante, donde foram as últimas a sair, tinham acabado de entrar no carro da Rita, quando se levantou uma tempestade desgrenhada.
Deliciaram-se com o manto de água que lhes desabava em cima, o esbravejar das ondas nos rochedos, o estrépito dos relâmpagos e trovões sobre as suas cabeças protegidas pelo tejadilho.
Ambas sintonizam um silêncio cúmplice, alheias à vozearia que vem dos céus. Um relâmpago ilumina os olhos da Rita, molhados de comoção. Rosarinho sente que nunca viveu um momento de tanta intensidade. Vê a Rita estender-lhe a mão a pedir a sua. Sente a ponta dos dedos da Rita roçarem a ponta dos seus, ao mesmo tempo que uma onda quente lhe sobe pelo corpo. Vê a cabeça da Rita inclinar-se lentamente e recebe o seu beijo molhado na palma da mão. Rosarinho deixa-se levar nas asas da profunda emoção que se apoderou dela; não se atreve a ensaiar o mais pequeno gesto com medo de perturbar a solenidade do momento. Trata-se de um ritual celebrado pela mão divina para despertar numa e noutra a deusa que as habita. Deus e amor querem certamente dizer o mesmo. É deste sentimento que são feitos os momentos em que temos um vislumbre da nossa verdadeira dimensão há muito esquecida. Olham-se e reconhecem-se. Desde quando sabem da existência da outra? Desde quando se procuram? O beijo vai muito além do contacto de duas bocas que se desejam. Rita e Rosarinho, abraçadas, mergulham num tempo que está para além das horas, dos meses, dos calendários, do longe ou do perto. Um tempo dentro do tempo ou fora dele, não sabem. Se o mundo acabasse naquele instante partiriam felizes, juntas e felizes para se dissolverem no Todo.
Rosarinho acende a luz e senta-se na cama. Quatro da manhã. A chuva cai de novo. Forte, intensa, como a impressão que ainda guarda dentro de si do que viveu há horas.
Quando chegaram à sua porta, convidou Rita para subir. O convite foi declinado com um sorriso terno.
- Vamos ficar assim mais uns dias, está bem? - dissera Rita numa voz quase sussurrada antes de lhe beijar os olhos.
Pela primeira vez na sua vida ninguém quisera precipitar os acontecimentos.
Ela sabe (já sabia?) que na tela do seu futuro se desenham novas figuras ainda sem cara. Terá que lhes dar cor, forma, vida. A cor dos seus sonhos, a forma do seu carácter, a vida do seu espírito.
MARIA DO CARMO
Amei-te e velei por ti a todo o momento, apesar de ter abdicado do meu estatuto de mãe. Não sinto que tenhas perdido muito com isso. Madalena cuidou de ti com todo o amor, como se fosses a filha que nunca conseguiu ter, e foi muito generosa e discreta na forma como permitiu que eu partilhasse da tua educação. O pacto que fizemos jamais foi traído, e nem a morte dos teus pais me faria contar-te a verdade.
Alguma vez pensaste donde vinha o sentimento de cumplicidade que nos unia?
As palavras perdem a força perante qualquer percepção instintiva. Os segredos das nossas vidas escondem apenas uma realidade palpável e ilusória. Para além deles, para além de tudo o que se esconde, está a nossa intuição, esse conhecimento certeiro que capta a realidade essencial do Universo. O sentimento profundo que sempre nos uniu foi a minha força para combater alguns remorsos que, às vezes, me assaltaram por não te poder contar a verdade da nossa história.
Continuarei sempre ao teu lado para te dar um sopro de fé e confiança, mas não preciso de to dizer. Tu SABES que eu sempre estive e estarei. Tens apenas de confiar na luzinha que se acende a toda a hora na tua consciência. Ela é a verdadeira inspiração do teu caminho, a única voz em que podes acreditar.
Gosto de te ver entregue à vida. Gosto de te ver desfrutar cada momento com o mesmo prazer que eu tive quando por aí passei.
Talvez tenhas herdado de mim a simplicidade que nos permite maravilharmo-nos com o ar que respiramos e a força de jamais duvidarmos que os nossos sentimentos de amor não merecem reprovações.
Deus é uma grande mãe que nos acolhe a todos nos seus braços e não um pai rigoroso e austero que castiga os que desafiam as leis inventadas pelos homens em Seu nome.
Nada do que fazemos com amor é tão feio que tenha de ser feito na sombra.
Recebe a vida. sem medos e verás, minha querida Rita, tudo o que de bom ela tem para te oferecer. Deixa-a entrar em ti por todos os poros. Deixa que ela te inunde e mantém, até ao dia de partires, todas as portas abertas.
Graças a isso, tive numa idade em que muitas de nós já desistiram, a extraordinária sensação de um amor que nunca tinha vivido.
Passámos horas deitadas lado a lado, debaixo duma palmeira centenária no meio do arvoredo, em comunhão com os mistérios da natureza. Ter essa experiência junto de alguém na mesma sintonia é um prazer indescritível. Foram dias de vastidão, de longos passeios pelas matas densas ou pelas praias que havia perto, sem pensarmos nas horas que escorriam, implacáveis. Vivemos cada minuto que passámos juntas na "toca", era assim que ela por graça se referia à casa, herança duma tia, tranquilas, como quem não teme o fim dos momentos felizes e na mais completa inocência. Sem culpas, remorsos, nem preconceitos.
RITA
Chegou a casa carregada de presentes, mas a Lua obrigou-a a largar tudo no chão, no seu jeito saltitante de reclamar beijos e festas.
Faltavam poucos dias para o Natal e sentia-se como os pinheiros que enfeitam as salas nessa quadra. Sem raiz. Os amigos eram agora a sua família mais próxima e não sabia ainda em que sala iria pousar na consoada.
Dias antes, no íntimo jantar de aniversário que fizera em casa, o Luís, imprescindível nesse dia, voltara a convidá-la para passar em casa dos pais, como no ano anterior. Paulo não se pronunciara, mas tudo levava a crer que fosse para a família. Rosarinho ia para a Quinta na consoada, não podia faltar à tradicional missa do galo, contudo queria passar o dia de Natal com a Rita. Gostaria de convidá-la a passar com a família, mas não sabia como explicar o aparecimento súbito desta nova amizade. Além disso, Rita, mais cautelosa, achava que era cedo de mais para se exporem às reacções familiares, fossem elas boas ou más.
Provou um dos sonhos comprados na requintada pastelaria onde a avó materna a costumava levar a lanchar e, como quase sempre, naquela época do ano, deu-lhe a nostalgia da infância. Uma infância povoada de cheiros, sons, paladares, gestos rituais e quadros de família.
Gostava de entrar na cozinha e escutar o som da panela de pressão, da colher de pau a mexer os ovos com açúcar e farinha numa grande tigela de loiça azul e branca, enquanto o salazar esperava a sua vez para entrar em acção, do estralejar do óleo a ferver onde se fritavam as filhós de massa finíssima, polvilhadas depois com açúcar e canela, do deslizar do ferro a largar vapor sobre a toalha branca de linho bordado, previamente borrifada, do adejar dum lençol à janela.
O jantar do dia 24 sempre em casa dos pais. Uma animação de primos, tios e as duas avós. A presença mais ansiada era a da tia Maria do Carmo. Achava-a linda, diferente de todos, original. Agarrava-se ao pescoço do seu ídolo, da sua diva e enchia-a de beijos, rondeava-a pela noite fora num assédio discreto, ora fazendo-lhe festas nas mãos, ora nos cabelos, ou admirando-a enlevada. A tia retribuía sempre com sorrisos ternos, palavras meigas e epítetos engraçados como "minha couvezinha-de-bruxelas", "minha azeitona de Elvas", "meu espinafre endiabrado". Riam-se ambas e Rita pedia:
- Mais, mais!
- Mais? - Maria do Carmo abraçada a ela. - Minha alcachofra ratona!
- Mais, mais! - Rita a rir perdida de mimo.
- Minha pescadinha sem rabo!
- Tia, ensine-me a fazer uma estrela. Porque é que a tia faz tantas estrelas?
- Tu é que és a minha estrela! - E dava-lhe beijos. Vai buscar papel e lápis que eu ensino-te outra vez. Mas tu já sabes!
O tio parecia não lhes prestar atenção quando entravam nesta brincadeira, mas Rita sabia que ele achava pouca graça. Havia entre ambos uma espécie de rivalidade, se é que é possível uma criança rivalizar com um adulto. Já com o pai, às vezes, sentia o mesmo. Como se aqueles homens competissem por ocupar o primeiro lugar no coração da mãe e da tia Maria do Carmo. Assim continuaram com o passar do tempo. Nascera entre ela e o tio um ódio nublado que às vezes se destapava. Lembrava-se até de alguns episódios, já na sua adolescência. Os pais viveram quase um ano em Lourenço Marques e ela ficara em casa dos tios. Um dia, ele enfureceu-se com ela. Passava horas a tocar viola com as amigas em vez de estudar.
- Pára imediatamente com essa brincadeira ou tiro-te de vez a viola!
- Então tire! Vá, tire! - dissera Rita, de viola estendida, a provocá-lo.
A expressão dele foi tal, que ficara convencida, desde então, que ele não lha tirara só para não ter a sensação de lhe estar a fazer a vontade.
Passados dias veio a resposta. A tia Maria do Carmo, que nunca se exaltava, naquele dia referveu depois de duas horas de espera.
- Esqueceste-te por acaso que a Rita hoje faz anos e que tínhamos combinado levá-la ao teatro?
Rita sabia que não tinha sido por acaso.
- Achas que não tenho mais nada em que pensar? Podiam ter ido sem mim. - Ele provocador.
- Claro, para ti nunca há nada mais importante do que os teus assuntos.
- Ai, agora seguem-se as críticas? Gostas muito de me apontar defeitos. Aproveita, já que tens a tua ouvinte predilecta! - Não perdoava que Rita bebesse as palavras da tia.
- Só lamento que isto venha da parte de alguém que passa a vida a apregoar teorias humanitárias aos alunos! Se soubessem a montanha de egoísmo que o mestre esconde! - Para a Rita: - Não fiques triste querida. A vida nestes momentos está a ensinar-nos a conhecer a diversidade das pessoas. Os homens não são todos iguais.
Mas Rita já começava a achar que sim.
Aqueceu uma chávena de chá de hortelã, que continuava a beber compulsivamente, e levou-a para a sala com a Lua atrás, a pedinchar o resto do sonho. Viu as horas. Descansaria uns minutos da barafunda das compras, antes de retomar o trabalho nos episódios para a televisão e só depois iria ter a casa da Rosarinho.
Não conseguia esquecer a surpresa, quando lá fora a primeira vez, e dera de caras com a escultura que antes tinha cobiçado na galeria do António. Tudo o que lhes estava a acontecer teria certamente um significado mais extenso do que até à data conseguira alcançar. Suspeitava de qualquer coisa muito para além do que era explicável mas desconhecia o quê.
O fim-de-semana em Sintra, na casa que a tia Flávia deixara à Rosarinho, tinha sido recheado de sensações raras, de sonhos, duma envolvência de mistério e magia como se a própria casa as cativasse no seu canto sedutor. Falaram horas a fio, riram, amaram-se pela primeira vez, choraram de emoção, agradeceram à vida tê-las juntado, mas nunca perderam a sensação de estarem acompanhadas. Rosarinho achou que só podia ser o espírito da tia Flávia e propôs que entrassem numa igreja para rezar por ela.
- Porquê numa igreja? - perguntou Rita. - Pode ser já aqui. Nem sequer está a chover, podíamos rezar lá fora, o jardim é tão inspirador... A oração vai mais directa ao céu disse a sorrir pegando na mão da Rosarinho.
Pararam debaixo da velha palmeira e Rita, apaixonada por rituais, propôs que se dessem as mãos, uma de cada lado do largo tronco e o abraçassem. Assim, absorveriam as energias da terra e do céu para se manterem fortes e unidas para sempre.
Rita ia improvisando uma oração que as protegesse no futuro e levasse a paz à tia Flávia, e a todas as pessoas queridas que já as tinham deixado. Fez uma menção especial à tia Maria do Carmo e à mãe e, no final, deixaram-se ficar uns minutos em silêncio, as caras e os corpos colados ao tronco nobre e rugoso da palmeira.
O céu povoava-se de anjos que as protegiam. Naquele momento. E naquele momento elas estavam felizes. Sem reservas.
Quando terminaram, Rita apercebeu-se de umas pequenas inscrições no tronco da palmeira, tão sumidas que não as conseguiu decifrar. Ligeiramente acima, outras duas pareceram-lhe familiares. Pequenas estrelas como as que sempre vira a tia desenhar.
- Achas que as nossas tias podiam ter-se conhecido?
- Porquê? - admirou-se Rosarinho.
- Vês estas duas estrelas? A tia Maria do Carmo passava a vida a desenhá-las.
- E então?
- Teria passado por aqui? - Rita já preparada para se lançar em conjecturas.
Rosarinho ria.
- Tu és delirante. Qualquer pequena coisa te serve para fazeres uma história. Quantas estrelas dessas já vimos todos por aí desenhadas? Estrelas, corações, setas...
- Estas parecem-me diferentes... - Rita não estava convencida.
- Nunca ouvi a tia Flávia falar de uma amiga chamada Maria do Carmo. Se elas se conhecessem, nós havíamos de saber.
- Lá isso... - De repente, Rita faz-lhe um sinal. - Vem aí o vento.
- Como é que sabes? Não o oiço. - Rosarinho põe o ouvido à escuta.
- Estou a senti-lo. Ainda vem longe. - Rita com ar misterioso a falar baixinho.
- Como é que consegues? Eu não consigo. - Rosarinho esforçava-se mas não ouvia nada.
- Comecei por ouvir o silêncio, ouvir-me a mim no silêncio, ouvir respirar o mundo e as vozes que já se apagaram.
- Rita continuava abraçada à árvore, de olhos fechados.
- Ouves vozes? - Rosarinho incrédula.
- Claro.
- De quem? Das pessoas que já morreram? - Rosarinho olhava-a, insistente.
- Provavelmente.
- Então, o que está a tua tia Maria do Carmo a dizer agora?
- Não oiço por causa do ruído do vento. Rosarinho nem sempre percebia se aquilo eram só fantasias da Rita; entretanto ria, divertida.
A Lua raspou com a pata na porta a pedir um passeio no jardim. A sua grande cauda peluda varreu as fotografias que estavam sobre a mesa baixa ao lado do sofá. Rita apanhou-as para as voltar a pôr no lugar.
Quem eram afinal aquelas pessoas que desempenharam papéis tão fundamentais na sua vida? Conhecia-as no papel de pais, mas faltavam-lhe muitas outras referências. Quem seriam eles fora do contacto familiar?
O pai parecia não ter recordações. Nunca lhe falara da sua infância, dos locais por onde passara, dos amigos que tivera. Nunca soube onde é que ele e a mãe tinham dado o primeiro beijo, como é que se haviam conhecido, quais eram os seus hábitos, gostos, fantasias nesse tempo. Que género de adolescentes tinham sido? Estudiosos, bem-comportados, rebeldes, irreverentes? De que falavam com os pais, o que esperavam da vida?
Gostava de descobrir a mulher que habitava por trás da figura materna, o homem que se apagava para representar o papel de pai. Só depois de eles terem morrido, se deu conta de como era incompleta a versão que lhe fora dada a conhecer das pessoas que mais amara. Ao lado de quem tinha crescido, se tinha formado e vivera os dezoito anos mais importantes da sua vida.
Sentia o mesmo com a tia Maria do Carmo, com ambas as avós. Avôs não chegara a conhecer. Lembrara-se muitas vezes de lhes perguntar, mas era sempre travada por uma espécie de pudor, de receio de se tornar inconveniente, de a acharem demasiado curiosa. Se a conversa avançava um pouco mais nesse sentido e lhes pedia que desenvolvessem alguma pequena história, faziam-no muito por alto, sem entrar em detalhes ou revelar qualquer acontecimento mais íntimo.
Não suspeitava de nada em especial, contudo sempre intuíra que havia histórias mal contadas, coisas de que não queriam falar como, por exemplo, daquele grande amigo da avó paterna (Mário Relvas?) que de um dia para o outro deixara de ver. Tinha ido para fora, disseram-lhe, mas não só estranhou nunca mais ter ouvido falar dele como o facto de o ver passar muitas vezes, quando saía das aulas de ballet, no seu bonito Sunbeam Talbot creme, acompanhado duma senhora alourada que lhe fazia lembrar a avó. Nunca contara que o via para não os deixar ficar mal ao serem apanhados numa mentira. Trocara este pequeno segredo apenas com uma amiga do colégio.
Essa tinha uma história muito mais cabeluda! Descobrira que uma prima da mãe tivera uma filha dum tio padre. Estava tudo no segredo das sacristias, mas ela apanhara uma carta da prima para a mãe. Riam-se e imaginavam enredos escabrosos até onde lhes chegava a imaginação.
O toque do telefone trouxe-a ao presente. Luís tinha de ir a Coimbra por dois dias e pedia-lhe que ligasse de vez em quando ao Paulo. Sentia-o muito deprimido e com um comportamento estranho. Descansou-o. Era natural. Na quadra que atravessavam, todos os problemas familiares pareciam agudizar-se. Telefonaria. Provavelmente, até o desafiava para jantar com ela e com a Rosarinho.
- Os teus pais mantêm de pé o convite para eu passar lá a consoada?
- Nem lhes passa pela cabeça que não vás! - disse logo o Luís. Não lhe perdoariam se ela faltasse!
- Então está combinado! Depois ligo à tua mãe a saber se precisa de ajuda.
Desligou e pousou a fotografia dos pais ao lado da bonita moldura em prata que exibia a tia Maria do Carmo em nova.
Concluiu que a sua vida familiar era um enorme livro ao qual faltava parte das folhas. A maioria dos autores já cá não estava para dar o seu testemunho e não tinham certamente querido deixar vestígios das suas pequenas histórias secretas. Tinha-os procurado em vão por gavetas, arcas e caixas de memórias. Lamentou que em tantos aspectos fossem uns desconhecidos.
NÃO SABIA NEM SABERÁ NUNCA ATÉ QUE PONTO.
Rita jamais conseguiria reconstruir o puzzle que se lhe apresentava, embora ainda alimentasse uma esperança.
PAULO
Sete e meia da tarde.
Paulo, saído da livraria, vai directo para o apartamento do Luís. Apetece-lhe fechar-se em casa e descansar. Desmarca o encontro combinado com a Rita e a Rosarinho. Telefona também ao Luís que regressa de Coimbra nessa noite, depois do jantar. Explica que se vai deitar. Precisa de dormir. Pousa o telemóvel desligado. Toma um barbitúrico receitado pelo psiquiatra do hospital. Descalça apenas os sapatos e atira-se para cima da cama. Uma hora depois levanta-se, calça de novo os sapatos e enfia o blazer que atirara para cima duma cadeira. O comprimido não fez efeito, parece tê-lo deixado mais ansioso. O telemóvel fica esquecido sobre a mesa-de-cabeceira.
Por toda a parte, a imensa família cristã, prepara-se para festejar o Natal.
As ruas enchem-se de iluminações feéricas, os pasteleiros desdobram-se em mil braços para responder às encomendas de doçaria, come-se, bebe-se, gasta-se em excesso, as lojas vendem os seus milhões de inutilidades, envergam-se os trajes da boa vontade, do amor, da solidariedade, prometem-se tréguas, estendem-se mãos, calam-se os corações das crianças com brinquedos e os dos pobres com um cabaz de Natal, acendem-se olhares, suspendem-se guerras, fala-se de paz e amor, cada um descobre dentro de si um pouco de ouro, incenso ou mirra para ofertar a alguém, numa tentativa de perpetuar a memória do Redentor.
Dentro de dias tudo será arrumado e esquecido em caixotes de cartão ou plástico juntamente com bolas de Natal, fios de prata e ouro, sinos carregados de anilinas, um Pai Natal, três reis Magos, Jesus, Maria, Sua mãe, uma vaca e um burro.
Passado um ano, enfeites e consciências voltarão a acordar.
Em casa dos pais do Paulo, Maria João entrega à criada que atura a família há quarenta anos, uma lista de compras ainda por fazer. O fogo crepita na lareira enfeitada com inúmeros postais de Boas-Festas vindos de toda a parte.
Há dias que o filho não telefona, certamente aborrecido com a troca de palavras mais duras que o pai teve com ele. Há-de cair em si, pensa. De reconhecer que é tudo pelo muito amor que lhe têm.
Junto ao abeto natural (Maria João não aderiu aos artificiais), ornamentado apenas em tons de prata e encarnados, brilham já os presentes em bonitos papéis dourados ou prateados com grandes laços presos pelas etiquetas das lojas. Um deles é para o Paulo.
Maria João não põe em dúvida que ele esteja presente para o abrir.
Paulo mete a chave à porta da sua casa.
Saíra uma hora antes do apartamento do Luís, sem destino, guiado por uma força desconhecida que o impelia a sair dali sem lhe apontar um rumo.
Comprara castanhas assadas a uma mulher barbuda, de mãos tão calejadas, que ajeitava as brasas com destreza sem se queimar.
Contou-as. Eram doze. Tantas quantos os meses do ano, os signos, os apóstolos, e os frutos da árvore-da-vida. Se alguma tivesse bicho, significaria que o Natal, já tão próximo, não trazia bons augúrios. Caso contrário, era sinal de que se havia de reconciliar consigo e com os pais.
Foi comendo uma a uma, tentando saboreá-las, apesar da ansiedade lhe retirar todo o prazer. A cada castanha que abria, acelerava-se o coração. Ia já na décima. Restavam apenas duas no fundo do cone de folhas amarelas duma lista telefónica. Qual havia de tirar primeiro? Inclinou o cone para as ver melhor. Não eram iguais. Uma era claramente mais pequena do que a outra, mal cheia, como se dançasse dentro da casca. Doente? Deixá-la-ia para o fim. Ou não. Se estava podre, ou tinha bicho, mais valia acabar já com a incerteza. Tinha o destino suspenso por duas castanhas. Um pequeno bicho, uma larva eram agora os donos do seu futuro. Quanto mais pensava nisso, mais se lhe precipitava a respiração. Decidiu-se pela mais pequena. Os dedos tremiam-lhe. A décima primeira caiu e rolou pela calçada molhada. Correu a apanhá-la. Tirou-lhe a casca estaladiça e abriu-a lentamente como quem espreita cheio de cautela para o fundo dum precipício. Intacta. Branca, sadia. Deu-lhe um beijo sonoro e agradecido antes de a trincar. Saboreou-a lentamente como quem saboreia um momento de felicidade que deseja eternizar.
Faltava-lhe apenas uma. Doze, o triunfo da Igreja, lembrou-se de ter lido algures, o número da perfeição. Olhou-a. Era grande, carnuda, a casca quase toda esbranquiçada de tanto saltar nas brasas, de aspecto saudável. Observou-a com atenção. O golpe era pequeno, pouco ou nada se via para o interior. Apertou-a entre os dedos para fazer estalar a casca que acabou por sair quase por inteiro. Devagar, com os olhos prestes a saltarem-lhe das órbitas pela concentração e pela expectativa, abriu-a.
Uma pequeníssima mancha acinzentada, não, acastanhada, era mais castanha que cinzenta, no meio da qual se via um pequeno furo, indiciava a presença nefasta. Paulo estava pálido, o pescoço e a testa suados. Abriu mais. Cozida pelo calor, ela ali estava. A presença sinuosa, calada, do verme. A insignificância que decide tantas vezes os nossos destinos. Doze, o fim de um ciclo, a carta do Enforcado.
Paulo olhou a castanha mais de perto e num impulso de revolta, comeu-a com toda a raiva que teve nos dentes. Depois, chamou um táxi e deu a morada da sua casa.
São sete e trinta da tarde. O grande espelho velho que decora a entrada do apartamento reflecte a figura abatida do Paulo no momento em que ele carrega no interruptor e se acende o pequeno candeeiro. As chaves fazem um ruído metálico ao serem atiradas para a bandeja cromada ali posta para as receber.
Paulo dirige-se à sala. Não abre os estores nem as cortinas que se mantêm corridos desde a última vez que foi a casa buscar roupa, há cerca de uma semana.
Acende um por um os candeeiros da sala (são cinco) e a luz amarelada, quente, filtrada pelos abajures de seda, espalha-se à volta.
Há lenha no cesto junto à lareira de pedra branca. Está ali desde o princípio do Inverno. Paulo dirige-se ao pequeno móvel onde estão as bebidas, serve um gim generoso com tónica. Da cozinha traz gelo. Pega na garrafa do gim e no copo e leva-os para junto da lareira. com a ajuda dumas acendalhas faz um lume que não lhe tira o frio que o percorre. Levanta-se de novo para pôr o For You Only e carrega no botão de repetição.
Volta para junto da lareira e deixa-se escorregar do sofá para o chão, a escutar a corrente de vida que é o seu corpo. Dá-se conta da poderosa e milenária sabedoria, que palpita dentro de cada uma das suas células à espera de ser decifrada. Porque não soubera ser feliz? Porque não soubera encontrar uma porta que o libertasse daquela prisão?
Deixou-se ficar, de olhos fixos no lume. Naquele momento não havia espaço para lágrimas, tristeza ou sentimentos de autocompaixão.
Não tem ideia de quanto tempo ali ficou.
Restam apenas umas brasas na lareira. Despeja mais gim no copo.
Queria lembrar-se do momento exacto em que tinha começado a odiar a mãe. Não admitia ser possível sentir tanto ódio por alguém que amava tanto.
Paulo quer varrer esse sentimento corrosivo. Odeia-se. Acha que merece castigo.
Como pode assistir à derrocada da imagem da sua deusa, sem nada fazer para o impedir?
Fechar os olhos para não ver. Dormir, sim, dormir é a solução. Quando acordar já tudo passou. Trata-se de um pesadelo. Estará realmente acordado? Toca-se. Ao passar a mão nas pernas sente qualquer coisa no bolso das calças. Uma lamela dos barbitúricos. Um só não dera resultado. Toma dois. Despeja mais gim no copo. Acende um cigarro que tira de um maço esquecido em cima da mesa ao seu lado, sobre a qual apoia o braço.
De novo a imagem da mãe. A única mulher da sua vida. Acusadora. Severa. Inexorável. Quantos castigos ela lhe infligira? Quantas feridas? Porquê tantas vezes, mãe? Porquê tanto? Bebe o que resta do gim pela garrafa. Sente uma espécie de vertigem.
Paulo deseja ter o Luís perto de si. Para o receber nos braços e deixá-lo chorar. Para o sentir ao seu lado na sua raiva, na sua dor. Sabe que o Luís não o quer deixar cair, mas percebe que não está a ajudar. Nunca se sentira tão amado e temia ter de deixar o único porto de abrigo que encontrara na vida. Luís mantinha vivo o que restava dele, dava-lhe força com as suas palavras, fazia-o confiante enquanto o tinha apertado nos braços. Mas quando o Luís não estava, Paulo sentia-se demasiado vulnerável e tremia de medo.
Faz uma tentativa para se levantar. Não é capaz. Onde está o telemóvel? Tenta de novo. Precisa de ir à casa de banho. Está nauseado. Consegue finalmente pôr-se de pé e, com enorme esforço, ensaia uma postura digna para o seu corpo esguio, magro, conseguindo lá chegar.
Molha a cara com água fria, em frente ao espelho que forra toda a parede sobre o lavatório e quando olha para lá não vê reflectida a sua imagem. Onde estou? onde estou? pergunta-se. Onde estás? onde estás? perguntou ao espelho. E o espelho não respondeu. Paulo zangou-se e bateu-lhe. Já sem forças. Mas bateu e voltou a bater em fúria como só tinha visto os rapazes maus fazerem. Depois abriu a torneira da banheira, tapou o ralo com dificuldade e deixou a água correr. Tinha de lavar-se. Limpar aquele corpo contaminado pelo espírito do demónio. O padre Filipe é que tinha razão. Lavar de vez aquele corpo que desejava o corpo de outro homem, que vibrava e crescia só de pensar nele. Não queria ter um corpo que manifestasse o seu desejo, não queria senti-lo, nem que alguém o pudesse ver.
O medo vem e volta a vir até que ele lhe tira a máscara, lhe destapa a cara.
Com o sabonete humedecido escreve no espelho.
DESCULPA Luís. NÃO FUI CAPAZ. AMO-TE.
Cambaleante, tira a última peça de roupa e enfia-se dentro de água.
Fecha os olhos. Imagina Deus à sua espera no último degrau de qualquer coisa para lá da imensidão do azul.
"Até quanto terei de contar para lá chegar?"
Deixa-se escorregar, as pernas dobradas, até ficar com a cabeça submersa. O sono descia com ele ao mesmo tempo que contava.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze...
As suas últimas palavras são líquidas e vão para a mãe.
O meu amor por ti causou-me um dano irremediável. O meu coração lembra-se da água com que me agasalhaste, do balançar do teu corpo. Poderia ter dormido para sempre dentro de ti.
Paulo adormece no sono mais profundo. Finalmente, está a salvo de qualquer atentado.
TODOS
Caía uma chuva grossa que magoava as flores.
Perto do Luís e dos pais dele mas à distância do cortejo fúnebre, Rosarinho e Rita seguem pelas ruas desanimadas do cemitério.
Uma e outra emudecidas pela consternação, pelo choque de que não se refizeram ainda.
O corpo do Paulo descerá à terra onde a intensa vida secreta dos vermes se continua a processar, indiferentes ao que ele fez em vida.
Num país distante, onde os rios e os olhos já secaram, a cara de uma criança ainda com vida cobre-se de moscas, uma mulher é molestada por um soldado, um rapaz que não sabe empunhar uma arma é humilhado.
Por trás de uma montanha adormecida, o coração da cidade bate acelerado. A menina recebe um gelado do violador que lhe pede para guardar segredo.
Na imensa praça pública, um homem a quem chamam o Louco, espalha ao vento a sua mensagem. "Que todas as vontades, esperanças e forças se unam para que os risos de todos possam vir a ser um só."
A sabedoria de Deus é loucura aos olhos dos homens, como a sabedoria dos homens é loucura aos olhos de Deus, rezam os Evangelhos.
As lágrimas de quem sofre escorrem juntas para o centro da Terra, e amanhã a Terra grávida dará simultaneamente à luz mais uma flor e a pessoa que a tentará pisar.
POST SCRIPTUM / PAULO
Estás quase tão bonito como na tarde em que te vi entrar pela Livraria como quem entra num templo. O recolhimento com que folheavas os livros não conseguia esconder uma personalidade vibrante, que me atraiu. O teu aspecto desportivo, sorridente, o pouco cabelo desalinhado, o corpo musculado que adivinhei de imediato por debaixo da sweat shirt, contrastavam com as mãos delicadas, meticulosas que me entregaram a última edição de O Meu Coração É Árabe para embrulhar.
Pela primeira vez reparaste em mim e vi uma chama acender-se no fundo dos teus olhos. Deixei-me prender no teu olhar e por momentos o mundo foi nosso. Alguém nos acordou prosaicamente à procura de um dicionário onde eu sabia não poder vir escrito o que acabávamos de sentir. Quando saíste e me olhaste de novo, senti-me despido até à alma. e, pela primeira vez, não tive vergonha do desejo que sentia. Estava nu e entregue, mas a realidade veio de novo chamar-me para me vestir a roupa da personagem que o mundo parecia querer destinar-me e que eu por medo e fraqueza não sabia rejeitar. Agora percebo-te quando, mais tarde, me disseste que os sonhos é que tinham o poder de nos despertar. Era atrás deles que devíamos correr porque a realidade nos entorpece o coração.
A tristeza e o abatimento dão-te um ar sereno. Momentaneamente, mascara o tormento em que as dúvidas agora te estão a mergulhar. Não te mortifiques, Luís, meu querido. Nada poderias ter feito para evitar o que eu há muito sabia ser quase uma fatalidade. Sentes-te defraudado, pensas ter fracassado numa missão que encaravas como tua. Não era, Luís, não era. Conseguiste ir bem longe no caminho que traçaste para ambos. Houve até momentos em que cheguei a pensar que graças à tua persistência, a tanto amor que me davas e às tuas constantes transfusões de confiança, eu tinha finalmente escapado aos tormentos do castigo em que Deus me pôs. Em que diziam que Deus me pôs. Só agora vejo que não era assim. Estou em paz comigo e não se me depararam purgatórios nem infernos, nem fui julgado por um ser severo, pronto a fazer-me expiar os pecados que me apontavam. Soubesse eu que as leis inventadas em Seu nome podiam ser tão perversas e castradoras.
Como falar-te agora dos momentos de grande felicidade vividos ao teu lado? Quanto mais não fosse por querer com todas as forças que esses momentos não se esfumassem, isso eu tinha a certeza de querer e quando sabemos o que queremos e temos por que lutar já somos pessoas felizes, não me dizias isto tantas vezes? Mas, na verdade, são muitas as pedras que formam a felicidade e há sempre umas que nos escapam.
Neste momento não me podes ouvir, embora eu nunca me tenha sentido tão perto de ti. Foi sempre uma das minhas grandes interrogações. A eficácia do que tentamos comunicar, a traição das palavras, a capacidade de nos compreendermos uns aos outros. Como vencer esta espécie de autismo que nos condena à solidão?
Desculpa, Luís, não te queria magoar nem roubar-te a ilusão de me fazeres sentir menos só na minha dor, mas de tanto me ter enredado nela, não conseguia partilhá-la com ninguém, nem contigo que tanto te esforçaste para entrar neste turbilhão, ao ponto de quase pôr em risco a tua saúde mental.
Salvei-me e salvei-te, embora não me consigas entender nem perdoar.
Como explicar-te a sensação de finalmente me sentir livre, leve e livre, despojado dos desejos de um corpo que me encaminhava para um inferno de contradições do qual os meus pais diziam querer-me defender? Tinha apenas duas alternativas, fugir-lhe ou encará-lo sem reprovação, mas olhar-me assim foi coisa que nunca soube. Via-me sempre através dos olhos de quem me olhava, e quem me olhava não me via com bons olhos. Tu não, mas os meus pais, o resto da família e muita gente, bem sabes.
"Porquê, Paulo, porque não aceitas o que é natural em ti?" Insistias tu. Eu não te resistia e queria, Luís, acredita, queria tanto não sentir aquela vergonha horrível, aquele espectro de dedo apontado a perseguir-me de cada vez que eu ousava não me esconder de mim. Como se pode viver com vergonha do que se sente? com a vergonha que os outros sentem de nós? perguntava-te eu no meu desespero e tu a insistires, "mas vergonha de quê, Paulo, vergonha de amar alguém?"
Ao teu lado chegava a sentir-me ridículo por encontrar pecado onde tu só vias beleza e sentimentos dignos de respeito.
Não fui capaz de resolver doutra maneira esta luta entre quem era e quem deveria ser, até agora, finalmente, ser apenas a essência de mim, a semente.
No meu amor por ti, nada mudou. Soubera eu fazer-to sentir. Ainda não descobri como, mas hei-de mandar-te um sinal para que nesse momento não tenhas qualquer dúvida de que não te abandonei.
Agora, aqui deste lado, parece-me finalmente descobrir o sentido do que aí se passa. O mundo está demasiado enredado em ideias feitas para nos permitir algum discernimento quando andamos mergulhados nele. Repara nos meus pais, aqui vão eles embrulhados de luto, atrás dum corpo que nunca respeitaram em vida. Nem te cumprimentaram e olham-te como um intruso. Quantas vezes os ouvi dizer que preferiam ver-me morto a ter de conviver com as minhas aberrações. Tiveste mais sorte com os teus. Desde o primeiro dia receberam-me de braços abertos sem qualquer ponta de desconfiança. Bastava-lhes que tu gostasses de mim. Queriam ver-te feliz e fazer parte da tua felicidade. Não houve religiões, padres ou preconceitos que os fizessem vacilar.
Quanto à tua filha, sempre acreditei chegar um dia o momento de te encarar sem reservas e de mostrar quanto gosta de ti. Tem uma personalidade forte como tu e está finalmente liberta das pressões que a influenciaram. Vejo-a caminhar ao teu encontro, mas isso tu ainda não podes saber.
Não chores, Luís. Choras de revolta porque nem a cremação que eu pedi foi respeitada. Vá lá, acederam pelo menos ao meu desejo de não ir para o jazigo da família. Agora sei que isso também não tem qualquer importância. É curioso como aqui, neste mundo sem formas, nada tem importância a não ser o amor.
Luís
Porquê, Paulo, não consigo entender porque fizeste isto quando parecia estares finalmente a libertar-te da vergonha que te colaram à pele, da culpa que te apertava o coração. Como podias sentir-te só? Fiz tudo para te ajudar a sair do inferno em que vivias, tínhamos conseguido finalmente uma boa psicóloga, a minha família dava-te o que a tua te tirava em afecto e confiança. Não entendo como não mereci que te entregasses por mais uns tempos aos planos que tínhamos feito com tanta esperança de superares os teus tormentos. Quantas vezes, à beira do teu desespero, conseguimos que não te afundasses mais? Porque não esperaste que eu chegasse em vez dessa decisão tão inesperada? Já estavas a prever este desfecho quando me perguntaste se eu tinha mesmo de ir dar a conferência? Dois dias longe de ti significavam uma ameaça tão grande para a tua segurança?
Não paro de fazer perguntas, não paro de me interrogar onde poderia ter feito melhor, diferente, embora saiba que não vou assumir esta culpa. Não quero, não posso, não tenho de o fazer. Chegou-me a culpa com que vivi quando me separei da Teresa e da minha filha.
Estou tão triste que nem tenho forças para odiar os teus pais, sempre a empurrarem-te para a beira do abismo sob o pretexto de te salvarem. Acompanham o caixão com a mesma expressão que te acompanharam em vida, sem o mais leve sintoma de dor, de compaixão, de arrependimento. Tenho vontade de lhes dizer que bem podem retirar o luto. Tu não fazes parte daquela família.
Mas mantenho-me à distância para não provocar confrontos, a mesma distância a que sempre me mantiveram por ser uma figura indesejável, o alvo dos teus desejos que eles repudiavam. O padre Filipe, ao lado deles, fingiu não me ver. Nunca me perdoou ter-te tirado das garras dele para as mãos duma psicóloga decente. Um dia, nunca te contei, veio ao meu encontro com a conversa de que eu não devia interferir no tratamento que ele te estava a fazer. Se eu queria o teu bem devia afastar-me e deixar-te seguir o teu caminho, ele e só ele havia de te curar. E tu cada vez mais doente, doente pelo terrível equívoco em que eles próprios te mergulharam, não da doença que te apontavam. Doente por te julgares perverso, depravado. Por acreditares na ideia absurda, que te injectaram, de Deus ter querido pôr-te à prova ao fazer-te assim, para que, pelo sacrifício, lhe testemunhasses o teu amor.
De nada serviu aos teus pais e ao padre Filipe verem-te tão dolorosamente dividido. Nem aquela primeira tentativa frustrada com os comprimidos. Nada os fez demover das suas intenções de te forçarem a ir contra a tua natureza a bem de uma causa que nenhum ser, personificando o amor e a compaixão, pode defender.
Quando, depois da última conversa com o padre Filipe, te encontrei fechado no quarto rodeado de santos, crucifixos e velas, pensei, por momentos, que não tinhas retorno. O teu corpo frágil coberto de panos roxos sobre o colchão forrado de cetim preto, as dezenas de velas a arder em cercadura à volta da cama, o cheiro intenso da estearina e do incenso queimado, formavam um cenário que me havia de perseguir até nos sonhos. Que se teria passado nesse encontro para chegares a casa naquele estado? Que significavam aqueles rituais mórbidos e porque te recusaste sempre a falar sobre o assunto? Os teus olhos, fundos, bem abertos pareciam querer entender os mistérios da redenção e nada mais viam. Horas eternas até te acordar para a realidade.
Nunca te disse, mas vacilei em trazer-te para minha casa, apesar de ter há muito essa vontade; cheguei mesmo a revoltar-me com o destino que te tinha posto no meu caminho. Envergonhei-me do meu egoísmo, da minha ânsia de festejar a vida sabendo que tu celebravas a morte. Mas era tão absurdo o que te enfiaram na cabeça, tão desumana a atitude dos teus pais, que sempre acreditei haver de chegar o dia de acordares desse pesadelo e renasceres com a convicção de que o erro não era teu.
De nada serviu veres-me lutar por um divórcio digno e pelo direito a estar com a minha filha. De nada serviu veres-me vencer os meus próprios medos e assumir o meu amor por ti.
O padre Filipe acabou de fazer uma oração, mas não ouvi nada do que disse.
A tua mãe dá pela primeira vez sinais de perder o controlo e irrompe em soluços, à procura de um conforto que as palavras do padre não lhe podem dar. Soluços que abafa como tantas outras coisas no seu coração.
As imagens sucedem-se na minha cabeça, as recordações atropelam-se, queria ter uns minutos contigo, só contigo, mas até isso, à porta da igreja, me foi impedido. Em nome do respeito pelo sofrimento dos teus pais, o teu tio veio informar-me que deveria manter-me distante e não entrar.
Preparam-se para descer o caixão e no meu choro de raiva e revolta não há espaço para a saudade. Parece-me inútil tudo o que sofremos, o que lutámos. Tão inútil como a moral que te impuseram.
É bom sentir os meus pais perto de mim. Discretamente acompanham a minha dor e sinto-me uma criança a precisar de colo. Conforta-me saber que bastava um gesto meu. O colo que eu gostaria de dar à minha filha e que ela teima em recusar desde que me separei da mãe. Mas, ao contrário de ti, Paulo, consegui resistir às chantagens, às ameaças, à dor que isso me provoca. Desculpa, eu não queria sentir esta revolta, esta espécie de zanga contigo, mas sinto. Apesar de saber que tinhas sido uma criança demasiado permeável, sensível, e de nunca teres aprendido a defender-te.
As flores são agora dispostas sobre a terra que te cobre, as pessoas começam a dispersar, mantenho-me distante à espera que todos saiam para ter um momento contigo na esperança de fazer as pazes.
Alguém se aproxima para ir colocar uma flor sobre o monte perfumado e colorido que te veste.
A MINHA FILHA!?
Acabamos de nos olhar e é como se nunca nada nos tivesse separado.
Se nos pudesses ver havias de ficar feliz. Talvez não tenha sido tão inútil...
Ana Zanatti
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