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OS SONHOS / Karen Blixen
OS SONHOS / Karen Blixen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

 

Sete Contos Góticos / Isak Dinesen

 

 

Numa noite de lua cheia de 1863 um dhou vogava entre Lamu e Zanzibar, costeando a cerca de uma milha da praia.

Levava pandas, as velas ao vento da monção, e carregava um frete de marfim e corno de rinoceronte. Este último é artigo muito apreciado pelas suas propriedades afrodisíacas, e os mercadores chegam a Zanzibar vindos até da longínqua China. Mas para além destas cargas trazia o dhou também uma outra, essa secreta, que iria em breve desencadear grandes forças e de que as regiões adormecidas por onde ele ia passando não suspeitavam sequer.

A noite calma era desconcertante no seu profundo silêncio, na sua grande paz, como se alguma coisa tivesse acontecido ao mundo; como se a alma do mundo se tivesse por magia confundido. Os ventos favoráveis da monção chegavam de longes terras, e o mar rolava, sob o seu poder seguindo a eterna viagem, à luz baça da Lua. Mas o brilho do luar nas águas era tão vivo que já parecia que a luz do mundo irradiava do mar para depois reflectir-se no céu. As ondas eram como sólidas, e quase se poderia em segurança caminhar sobre elas, enquanto era no céu vertiginoso que nos arriscávamos a cair e afundar, em abismos turbulentos e infinitos, em mundos de prata, ora cintilantes, ora empanados de sombra, que se moviam, se transformavam, se acastelavam, imponderáveis, lentos.

Os dois escravos seguiam à proa na imobilidade das estátuas, e os seus corpos, nus até à cintura no calor da noite, eram cinzentos da cor do ferro, como esse mar onde a Lua não brilhava, e só as sombras nítidas correndo-lhes nas costas e nos braços destacavam as suas formas na planura vasta. O gorro vermelho de um deles tinha a cor baça de uma ameixa madura ao luar. Mas uma ponta da vela, ao captar a luz, resplendia como o branco ventre de um peixe morto. O ar era o de uma estufa, e tão húmido que as tábuas e o cordame do navio exsudavam um salgado orvalho. As águas fundas cantavam, murmuravam da popa à proa.

No convés de ré ia suspensa uma pequena lanterna, e três homens se agrupavam ali à sua volta.

O primeiro era o jovem Said Ben Ahmed, o filho da irmã de Tippo Tip e sobrinho bem-amado do grande homem. Estivera, por traição dos seus rivais, preso no Norte por dois anos e fugira alcançando Lamu por muitos e estranhos caminhos. Agora estava aqui, ignorado do mundo, rumando à terra natal para se vingar dos inimigos. Era o desejo de vingança no coração de Said que, mais poderoso que a monção, impelia na verdade aquele barco, sendo vela e lastro para o dhou. Se eles soubessem que esta noite Said navegava rumo a Zanzibar, muitos dos grandes se apressariam a reunir os bens e o serralho e a debandar antes que fosse tarde. Da vingança que Said tomou afinal, outros contos se ocuparam.

Ia sentado o jovem de pernas cruzadas, o tronco inclinado para a frente, as mãos soltamente enlaçadas descansando nas tábuas do convés, imerso em pensamentos.

O segundo e o mais velho do grupo era um homem de grande nomeada, o famoso contador de histórias Mira Djama, cuja inventiva de espírito mais de cem tribos amavam. Sentava-se com as pernas cruzadas, como Said, e de costas voltadas para a Lua, mas a noite era clara o suficiente para revelar que, num recontro qualquer com o seu destino, lhe haviam sido cortados cerce o nariz e as orelhas da cabeça escura. Ia pobremente vestido, mas ainda conservava um certo cuidado na aparência. À volta do corpo magro tinha um lenço de seda grossa, carmesim e desbotada, que por vezes, num movimento do velho, fulgurava brilhando à luz da lanterna como o fogo ou os mais puros rubis.

O terceiro homem era um inglês ruivo, de nome Lincoln Forsner, a quem os nativos da costa chamavam Tembu, o que pode significar tanto marfim como álcool, conforme o capricho do momento. Lincoln era filho de uma família abastada do seu país, e fora impelido por muitos ventos para o dhou onde esta noite seguia, deitado de bruços no convés, vestido com uma camisa árabe e largas calças indianas, mas ainda bem barbeado e com as suíças de um gentleman. Ia mascando as folhas secas que os Suaílis chamam murungu e que os mantêm acordados e de excelente disposição; de tempos a tempos cuspia-as para longe. Estava comunicativo. Juntara-se à expedição de Said pelo amor que tinha ao rapaz, e também por ver o que a empresa lhe traria, outra de tantas que vivera em diferentes partes do mundo. O seu coração ia alegre. Gostava muito de andar de barco, e achava prazer na noite cálida, na lua cheia, na velocidade.

- Como é isto, Mira? - disse ele - Não nos contas uma história esta noite enquanto navegamos? Costumavas ter tantas histórias, daquelas que gelam o sangue nas veias e nos fazem ter medo de confiar nos nossos melhores amigos; histórias boas para as noites quentes e para os homens que partem em grandes demandas. Já não tens mais histórias?

- Não, já não tenho mais histórias, Tembu - disse Mira - o que, só por si, é uma triste história, boa para os que partem em grandes demandas. Fui outrora um contador de histórias e especializei-me naquelas que fazem gelar o sangue. Demónios, venenos, traições, torturas, trevas e loucura: estas eram as mercadorias de Mira.

- Lembrei-me agora de uma das tuas histórias - disse Lincoln. - Fiquei aterrado com ela, e ficaram aterradas duas jovens dançarinas de Lamu, que realmente não precisavam de ter assim tanto medo, e olha que não pregámos olho em toda a noite. O Sultão queria uma verdadeira virgem, e depois de muitos trabalhos uma virgem foi encontrada, nas montanhas e trazida ao Sultão. Mas ele viu...

- Sim, sim.

Mira retomava a história, e todo o seu rosto subitamente se inflamou, os olhos pretos luziram e as mãos ganharam vida, à boa maneira das comadres, quais velhas dançarinas chamadas pelo som da flauta das profundezas de um cesto.

- O Sultão queria uma verdadeira virgem, uma virgem como homem nenhum tivesse ouvido nomear. Com muitos trabalhos a trouxeram do reino das Amazonas, nas montanhas, onde todas as crianças do sexo masculino são mortas pelas mulheres que, sozinhas, travam desvairadas guerras. Mas quando o Sultão entrou nos aposentos, no umbral da porta ficou a vê-la olhar na janela para um jovem aguadeiro por ali andando no palácio, e ouviu-a dizer para consigo: «Ah, eu vim para um bom lugar e aquela criatura ali deve ser Deus, ou um anjo forte, aquele que arremessa o raio. Não me importava de morrer agora, pois vi o que jamais alguém viu.» E nesse momento o jovem aguadeiro ergueu os olhos também e ali ficou especado, os olhos fitos na donzela. Veio ao Sultão uma grande tristeza, e mandou que sepultassem vivos o rapaz e a donzela, num caixão de mármore tão largo como um leito nupcial, sob uma palmeira do jardim; e sentando-se ele à sombra dessa árvore, pensava em muitas coisas com espanto, e em como ele não satisfazia nunca os desejos do próprio coração, e ali ficava um rapazinho tocando flauta para ele. Foi esta a história que um dia tu ouviste.

- Sim, mas foi mais bem contada da outra vez - disse Lincoln.

- Foi - disse Mira - e o mundo não podia então viver sem Mira. As pessoas gostavam de experimentar o medo. Os grandes príncipes, fartos da doçura da vida, queriam sentir de novo o sangue pulsar nas suas veias. As mulheres honestas, a quem nada jamais acontece, ansiavam por tremer nas suas camas uma só vez que fosse. As dançarinas recebiam a inspiração de um passo mais ligeiro nas histórias de fugas e perseguições. Ah, como eu era amado pelo mundo nesse tempo! Então eu era belo, tinha as faces redondas. Bebia nobres vinhos, cobria-me de panos bordados a ouro e usava o âmbar, e o incenso ardia junto de mim.

- Mas como sucedeu esta mudança em que estás? - perguntou Lincoln.

Ai de mim! - disse Mira, mergulhando já nos seus modos tranquilos de antes. - Com o viver fui gastando a capacidade de sentir o medo. Quando conhecemos as coisas como na realidade são, não podemos fazer poemas sobre elas. Quando já conversámos com fantasmas e fomos aliados dos demónios, temos afinal mais medo dos credores do que deles; e quando já estamos encornados que nos importa o medo de um dia o sermos. Eu conheço tão de perto a vida que ela já não pode iludir-me em crer que uma coisa será muito pior que outra qualquer. O dia e a treva, o amigo e o inimigo - eu sei que tudo é quase a mesma coisa. Como poderemos provocar o medo nos outros se nós próprios já esquecemos o que é o medo? Antes eu tinha uma história trágica, realmente, uma bela história, cheia de agonia, muito apreciada, a história de um homem a quem no fim cortam o nariz e as orelhas. Agora já não posso assustar ninguém com ela, mesmo que o quisesse, pois agora eu sei que passar sem nariz e sem orelhas não é muito pior que tê-los. E por isso que me vês aqui, só pele e osso, vestido de farrapos, seguindo Said na miséria e na prisão, em vez de me acercar do trono dos poderosos, farto na riqueza e na lisonja, como foi o jovem Mira Djama.

- Mas não podias, Mira - perguntou Lincoln - inventar uma história terrível de miséria e solidão?

- Não podia - disse com altivez o contador de histórias. - Não é esse o género de histórias que Mira Djama conta.

- Pois não - disse Lincoln, voltando-se de lado - mas o que é a vida, Mira, afinal, senão uma excelente máquina, de uma complexidade infinita, cuidadosamente montada, que transforma os cachorrinhos gordos e brincalhões em cães velhos, cegos, e cobertos de sarna, ou altivos ginetes em cavalicoques magros, ou rapazes suculentos, para quem o mundo encerra só delícias e terrores, em velhos fracos, de olhos remelosos, que bebem corno moído de rinoceronte?

- Ah, Lincoln Forsner - disse o mutilado contador de histórias - o que é o homem afinal senão uma engenhosa máquina, minuciosamente montada, que transforma, com infinita astúcia, o vinho tinto de Shiraz em urina? E qual dos dois é o desejo maior e o prazer mais intenso: beber ou urinar? Mas, entretanto, o que se fez? Uma canção foi escrita, um beijo foi roubado, um caluniador foi morto, uma sentença justa lavrada, uma gargalhada surgiu. O mundo foi beber ao jovem Mira, o contador de histórias. E Mira subiu-lhe à cabeça, correu nas suas veias, fê-lo irradiar calor e colorido. Agora ando percorrendo o resto; o meu efeito já passou. O mundo em breve terá o mesmo prazer em me expelir, em me urinar, e só sei que já eu próprio anseio pelo fim. Mas as histórias que eu lhe contava, essas, hão-de viver.

- E que fazes entretanto, para lhe mostrares assim tão bondoso o rosto, nesta urgência que o mundo tem de se ver livre de ti? - perguntou Lincoln.

- Sonho - disse Mira.

- Sonhas? - retorquiu Lincoln.

- Sim, pela Graça de Deus - disse Mira. - Todas as noites, assim que adormeço, eu sonho. E em sonhos conheço ainda o medo. As coisas são ainda terríveis para mim. Em sonhos levo por vezes uma coisa que me é infinitamente cara e preciosa, como eu bem sei que não podem ser as coisas reais, e em sonhos sei que devo conservá-la à custa de um perigo horrível, como não existem perigos assim no mundo real. E parece-me também que hei-de ser jogado ao chão e aniquilado se a perder, embora eu saiba muito bem que, no mundo de hoje, não se é jogado ao chão e aniquilado por maior tesouro que se perca. Nos meus sonhos a treva é habitada por horrores indescritíveis, mas há fugas também e perseguições que me dão extraordinário prazer.

Ficou por momentos em silêncio o velho.

- Mas o que mais prazer me dá nos sonhos - prosseguiu - é que o mundo a si mesmo se cria à minha volta, sem qualquer esforço da minha parte. Aqui, agora, se eu quero ir a Gaza, tenho de regatear o aluguer de um barco, e comprar e carregar as provisões, manobrar contra o vento, e até ferir as mãos nos remos. E depois, quando chegar a Gaza, que vou eu lá fazer? Também nisso eu tenho de pensar. Mas nos meus sonhos acho-me a subir uma longa série de degraus de pedra que saem do mar. Estes degraus eu não vira antes, e no entanto eu sinto que subi-los é uma grande felicidade, e que eles me hão-de conduzir a algum prazer extraordinário. Ou acho-me a caçar numa longa fila de cabeços, e tenho gente comigo, empunhando os arcos e as setas, e cães presos pela trela. Mas o que vou caçar não sei, nem a razão de estar ali. Uma vez entrei num quarto por uma varanda, estava o dia amanhecendo, e sobre o chão de pedra vi duas pequenas sandálias de mulher, e nesse preciso momento pensei: são as dela. E ao pensá-lo o meu coração encheu-se de júbilo, embalado em serenidade. Mas nenhum esforço eu fizera. Não entrara em despesas para ter essa mulher. E de outras vezes tenho consciência de que só uma porta me separa de um homem grande e preto, muito preto, que me quer matar, mas eu nada fiz para que este homem ficasse meu inimigo, e eu espero que o sonho, ele próprio, me indique a maneira de fugir-lhe, pois eu sozinho não acho forma de o fazer. O céu, nos meus sonhos, e particularmente depois de ter estado na prisão com Said, é sempre muito alto, e quase sempre me vejo a mim mesmo como uma pequena figurinha numa grande paisagem, ou numa casa enorme. Em tudo isto não teria prazer um homem novo; mas a mim, agora, dá-me um prazer igual ao de urinar quando já não se acha prazer no vinho.

- Eu não sei, Mira; raramente sonho - disse Lincoln.

- Ah, Lincoln, possas tu viver para sempre! - disse o velho Mira. - Tu sonhas de facto mais do que eu próprio. Pois não reconheço eu os homens que sonham, se os encontro? Tu sonhas acordado, e enquanto vais seguindo. Tu próprio nada farás para escolher o teu caminho: deixas que o mundo se forme à tua volta, e depois abres os olhos para veres onde te encontras. Esta jornada em que vais, nesta noite, é um sonho teu. Deixas que as ondas do destino te levem, e amanhã hás-se abrir os olhos para veres onde estás.

- Para ver a tua cara linda - disse Lincoln.

- Tu sabes, Tembu - disse Mira de súbito, após um silêncio - que, se ao plantares um cafezeiro, dobrares a raiz principal, a árvore começará, pouco depois, a criar um sem-número de pequenas raízes delicadas junto à superfície. Será sempre uma plantinha frágil, sem frutos, mas há-de florescer mais opulenta que as outras.

Essas delicadas raízes são os sonhos da árvore. Quando elas nascem já a planta não precisa de pensar na sua raiz-mestra que ficou torcida. É delas que vive agora - por pouco tempo viverá, porém. Ou podes dizer que é por elas que morre, se quiseres. Porque, na realidade, sonhar é a forma de suicídio das pessoas bem-educadas.

Se queres dormir à noite, Lincoln, não deves pensar, como os outros dizem, numa longa fila de carneiros ou de camelos passando uma cancela, porque eles seguem numa só direcção, e os teus pensamentos hão-de acompanhá-los. Deves antes pensar num imenso poço. No fundo desse poço, mesmo ao meio, jorra uma nascente e a água escorre em fios para todas as direcções possíveis, como os raios de uma estrela. Se conseguires que os teus pensamentos acompanhem os movimentos dessa água, não numa só direcção, mas igualmente em todas elas, hás-de adormecer. Se conseguires que o teu coração o faça inteiramente, como a árvore do café às pequenas raízes da superfície, encontrarás a morte.

Então é esse o meu mal, querer esquecer a minha raiz mestra? - perguntou Lincoln.

- Sim - disse Mira - deve ser isso. A menos que tu, como tantos dos teus compatriotas, nunca a tenhas tido.

- A menos que seja isso - disse Lincoln. Navegaram depois por algum tempo em silêncio. Um escravo

pegou numa flauta e tirou algumas notas, a experimentá-la.

- Porque não diz Said uma palavra? - perguntou Lincoln a Mira.

Said ergueu um pouco os olhos e sorriu, mas não falou.

- Porque está a pensar - disse Mira. - Esta nossa conversa parece-lhe muito insípida.

- Em que está ele a pensar? - perguntou Lincoln. Mira reflectiu brevemente e respondeu:

- Bom, só há duas linhas de pensamento que são dignas de uma pessoa com alguma inteligência. Uma delas é: Que irei fazer agora, neste momento? Ou esta noite?, ou amanhã? E a outra é: Que desígnio teve Deus ao criar o mundo, o mar e o deserto, o cavalo, os ventos, a mulher, o âmbar, os peixes e o vinho? Said pensará em uma destas coisas.

- Talvez sonhe - disse Lincoln.

- Não - disse Mira, passado um instante. - Said não. Ainda não sabe sonhar. O mundo está agora a bebê-lo. Ele está subindo à cabeça do mundo e correndo no seu sangue. Quer controlar as pulsações do coração do mundo. Não está a sonhar, mas talvez esteja a rezar a Deus. Quando se deixa de rezar a Deus - isto é, quando em nós despontam as raízes de superfície - então é o tempo de começarmos a sonhar. Said pode estar a rezar a Deus esta noite, lançando a sua oração ao Senhor com tanta energia como a que há-de ter o Anjo que, no dia derradeiro, lançar ao mundo o som da sua trombeta, com a mesma energia com que o elefante cobre a fêmea. Said diz a Deus: «Deixa que eu seja o mundo inteiro.»

- Ele diz - continuou Mira, momentos depois - «Não usarei de misericórdia nem peço misericórdia». Mas é aí que Said se engana. Ele usará de misericórdia enquanto se ocupar de todos nós.

- Já sonhaste duas vezes com o mesmo lugar? - perguntou Lincoln pouco depois.

- Já, já - disse Mira. - É uma grande Graça de Deus, e a alma do homem que sonha rejubila. Volto, após longo tempo, em sonhos, ao lugar de um velho sonho, e o meu coração desfalece de alegria.

Navegaram por algum tempo sem que um dos dois falasse. Então, subitamente, Lincoln mudou de posição, sentou-se, e cuidou do seu conforto. Cuspiu para o convés o último pedaço de murungu, enfiou o braço num bolso e ocupou-se depois a enrolar um cigarro.

- Vou eu contar-te uma história esta noite, Mira - disse ele - visto não teres nenhuma. Fizeste-me recordar coisas passadas há muito. Foram tantas as histórias que o teu mundo ofereceu ao nosso, e quando era pequeno eu gostava muito de as ouvir. Agora vou contar-te esta, para dar prazer aos teus ouvidos e alguma coisa ensinar ao coração de Said. Nela se fala de como eu, há vinte anos, aprendi (como tu dizes, Mira) a sonhar, e da mulher que me ensinou a fazê-lo. Aconteceu tal como vos contarei. Mas, quanto aos nomes e aos lugares, e particularidades dos países em que se passou, e que vos podem parecer muito estranhos, nenhuma explicação vos darei. Entendam ambos dela o que puderem, e não se detenham no resto. Não é de todo mau que de uma história se compreenda apenas a metade.

Há vinte anos atrás, era eu um jovem de 23 anos, sentava-me, numa noite de Inverno, na sala de um hotel entre montanhas, ao abrigo da neve, da tempestade, das grandes nuvens, e de uma Lua errante.

O continente europeu, de que já ouviste falar, compõe-se de duas partes, uma delas sendo mais aprazível que a outra, e estas duas estão separadas por altas e escarpadas cadeias montanhosas. Só se pode atravessá-las em alguns lugares onde as formações montanhosas são talvez menos hostis e aí, à custa de muitos perigos, foram abertos caminhos que as atravessam. Um desses caminhos ficava junto ao hotel em que me hospedara. Era uma estrada aberta na rocha, que peões percorriam, cavalos e mulas e até carruagens, e no cimo do desfiladeiro, onde, após uma subida laboriosa, maldizendo a nossa sorte, começamos a descer ao encontro da doçura desse ar que nos beija o rosto e os pulmões, uma irmandade de homens santos construirá uma grande casa para o repouso dos viajantes. Eu vinha do Norte, onde tudo é frio e morto, e seguia para um Sul de volupias e de azuis. Esse hotel era a última paragem antes da íngreme jornada até ao cimo do desfiladeiro, que eu queria vencer no dia seguinte. Apenas tinha começado a estação do ano propícia às viagens neste lugar. Raros se atreviam a meter-se à estrada, e no topo das montanhas a neve era espessa ainda.

O mundo via em mim um rapaz rico, bonito, estúrdio, em busca de prazeres e nessa demanda rodeado do bom e do melhor. Mas na verdade eu ia arrastado em vaivém pelo remoinho do meu coração sofrido, eu era um pobre diabo que partira buscando em vão uma mulher.

Sim, Mira, uma mulher, acredites ou não. Já antes a procurara em muitos e variados lugares. Com efeito, era tão inútil a perseguição que eu teria desistido certamente se estivesse em meu poder fazê-lo. Mas a minha pobre alma, meu estimado Mira, habitava no peito dessa mulher.

E ela não era uma rapariga da minha idade. Era muito mais velha do que eu. Dela eu nada sabia, excepto o que me era doloroso aceitar, e, o que era o pior de tudo, eu não tinha quaisquer motivos para esperar que ela ficasse muito satisfeita em ver-me se algum dia alcançasse encontrá-la.

Tudo começou assim: Meu pai era um homem muito rico de Inglaterra, dono de grandes fábricas e de uma linda propriedade no campo, pai de muitos filhos e homem de grande capacidade de trabalho. Lia muito a Bíblia - o nosso Livro Santo - e acabara por julgar-se o único vigário de Deus na Terra. Realmente eu nem sei se ele seria capaz de distinguir entre o temor de Deus e a sua egolatria. Era seu dever, pensava ele, transformar o mundo caótico num universo de ordem e velar para que todas as coisas se tornassem úteis - o que era o mesmo que dizer: úteis para ele mesmo. Do seu carácter eu sei que duas coisas ele não podia controlar: tinha, muito contra os seus princípios, um grande amor pela música, particularmente pela ópera italiana; e às vezes não conseguia adormecer. Mais tarde minha tia, irmã de meu pai, e que não gostava nada dele, contou-me que na juventude, passada nas índias Ocidentais, meu pai levara um homem ao suicídio, ou o matara por suas mãos. Talvez isto fosse o que não o deixava dormir. Eu e a minha irmã gémea éramos muito mais novos do que os nossos irmãos. Que bicho mordera a meu pai não sei, que o fizera conceber mais dois filhos quando já tinha acabado quase de criar os outros. No Dia do Juízo hei-de perguntar-lhe porquê. Às vezes penso que era realmente o fantasma desse homem das índias Ocidentais que o perseguia.

Meu pai não gostava de nada que eu fizesse. Acabei, penso eu, por me tornar o seu tormento constante, e, não fora eu de sua manufactura, estou certo de que teria prazer em que eu levasse um mau fim. Sentia-me, enquanto «o meu filho Lincoln», sempre deformado, puxado, batido, moldado, na sua vontade de fazer de mim coisa útil entre a uma hora e as três da madrugada. Nestas horas eu geralmente mergulhava no ruído e na agitação, pois já era oficial de um regimento elegante do exército e ali, para manter o meu prestígio entre os filhos das mais antigas famílias do país, gastava muito do dinheiro, do tempo e da inteligência que meu pai se achava com direito a reclamar para si.

Por esta altura morreu um vizinho nosso, deixando uma viúva ainda jovem. Ela era bonita e rica, e fora infeliz no casamento; consolara-se das suas provações dedicando uma amizade sentimental à minha irmã gémea, que era tão parecida comigo que, se eu vestisse as suas roupas, ninguém poderia distinguir-nos um do outro. Por isso meu pai era de opinião que esta senhora havia de consentir em casar-se comigo, e aliviá-lo a ele do fardo que eu era nos seus ombros. Não tinha por que não me convir este noivado, que eu pouco esperava então da vida. Apenas pedi a meu pai o seu consentimento para fazer uma viagem pela Europa durante o ano de luto dessa senhora. Nesse tempo eu tinha várias inclinações fortes - o vinho, o jogo, as lutas de galos, e a companhia dos ciganos - bem como a paixão pelas discussões teológicas, que herdara de meu pai, e todas elas meu pai me aconselhava a abandonar antes do casamento com a viúva, ou, pelo menos, a esconder enquanto ela estivesse a tempo de voltar atrás. Como sabia que eu era impetuoso e ardente nas minhas ligações amorosas, creio que meu pai receava também que eu pudesse convencer a minha noiva a ter comigo relações mais íntimas, aproveitando-me da nossa vizinhança campestre, e, talvez, da parecença com minha irmã. Por todas estas razões meu pai acedeu a que eu fosse viajar durante nove meses, na companhia de um seu velho condiscípulo que vivera da sua caridade e a quem lhe aprouve dar, por este meio, alguma serventia.

Deste homem, porém, cedo me libertei, pois quando chegámos a Roma ele deu em estudar os antigos mistérios priápicos de Lampsacus e eu pude bem gozar a vida.

Mas no quarto mês do meu ano de graça aconteceu que me apaixonei por uma mulher num bordel de Roma. Costumava frequentá-lo à noite com um grupo de teólogos. Não era, evidentemente, um lugar deslumbrante onde os muito ricos vão divertir-se, nem era também uma dessas casas medonhas, frequentadas por artistas e ladrões. Era apenas um bordel respeitável de classe média. Lembro-me da rua estreita onde ficava, e dos muitos cheiros que ali vinham ter. Se alguma vez voltar a senti-los hei-de crer que torno a casa. Devo a esta mulher o ter compreendido, o lembrar-me, ainda hoje, do significado de palavras como lágrimas, coração, saudade, estrelas, que os poetas como tu utilizam. Sim, e quanto às estrelas em particular, Mira, havia nela muita coisa que fazia lembrar uma estrela. Havia a diferença, entre ela e as outras mulheres, que há entre um céu negro de nuvens e um céu estrelado. Talvez também tu tenhas conhecido, ao longo da tua vida, mulheres desta sorte, que têm luz própria e brilham nas trevas, que são fosforescentes como as brasas do carvão.

Quando, no dia seguinte, acordei no meu quarto de hotel em Roma, lembro-me que senti um grande medo. Pensei: Eu estava bêbado ontem à noite; foi uma alucinação; não há mulheres assim. Ao pensá-lo senti todo o meu corpo que ardia e gelava. Mas - pensei ainda, deitado na cama - eu não seria capaz, por mim só, de inventar uma personagem igual a esta mulher. Pois só o maior dos nossos poetas algum dia o fez. Eu não conseguiria imaginar uma mulher com tanta vida, tão grande força. Levantei-me e voltei imediatamente ao bordel, e ali fui encontrá-la ainda, tal como eu a recordava.

Mais tarde vim a saber que a extraordinária impressão de grande força que ela me transmitia era, afinal, um tanto falsa; ela não possuía a força que aparentava. Dir-te-ei que força era aquela.

Se toda a tua vida tivesses enfrentado os ventos e as marés, e subitamente, uma vez única, fosses levado a bordo de um navio que seguisse, como este em que vamos, impelido por grandes correntes e ventos de popa, ficarias sem dúvida muito impressionado com o poder desse navio. Mas seria uma ilusão; e no entanto, de certa maneira, não te enganarias, porque o poder das águas e dos ventos pode bem dizer-se que pertence a tal navio, visto que foi ele, entre todos, o único a saber aliar-se aos elementos. Assim eu fora toda a vida ensinado, sob a égide de meu pai, a manobrar contra os ventos e marés da vida. Nos braços desta mulher eu sentia-me em harmonia com os elementos, erguido e levado pela própria vida. Isto, supunha-o eu então, fora devido à grande força desta mulher. E mesmo assim, nessa época, eu não sabia até que ponto ela se tinha aliado a todas as correntes, todos os ventos da vida.

Depois dessa primeira noite nunca mais nos separámos. Nada me deram, nunca, os amores ortodoxos do meu país, que principiam na sala com banalidades, galanteios e risinhos, continuam com carícias de pés e mãos, e acabam no que é geralmente considerado o clímax, na cama. Este meu amor romano, que tinha começado na cama, propiciado pelo vinho e pela música mais ruidosa, e cresceu e se transformou numa espécie de namoro e de amizade que eu até então desconhecia o que fossem, foi o único amor que me satisfez. Pouco tempo depois acostumei-me a levá-la a sair comigo o dia inteiro, ou por um dia e uma noite. Comprei uma pequena carruagem e um cavalo, e dávamos passeios por Roma e pela Campagna, indo por vezes até Frascati e Nemi. Ceávamos em pequenas estalagens, e nas manhãs, muito cedo, parávamos na estrada, deixando que o cavalo pastasse na berma, enquanto, sentados no chão, bebíamos uma garrafa de vinho tinto, novo, com travo, merendávamos amêndoas e uvas, e olhávamos as muitas aves de rapina que em círculos voavam sobre a grande planície, e cujas sombras corriam, na erva rasteira, ao lado da nossa carruagem. Se havia festa numa aldeia, com lanternas chinesas à volta de uma fonte, na noite clara, ficávamos observando da varanda. Várias vezes, também, íamos até à beira-mar. Foi no mês de Setembro, um bom mês em Roma. O mundo começa a ficar castanho, mas o céu é límpido como a água do monte, e é estranho ver como está cheio de cotovias, e que ali elas cantam nessa altura do ano.

A Olalla tudo isto agradava. Ela tinha muito amor à Itália, e era grande conhecedora dos seus vinhos e dos seus pratos. Por vezes vestia-se de gala, no júbilo de um arco-íris de caxemiras e plumas, como a amante de um príncipe, e então nenhuma inglesa se lhe comparava; mas também era capaz de usar a capucha de linho das italianas, e dançar nas aldeias à moda da região. E não havia dançadeira mais forte do que ela e mais graciosa, embora ela preferisse ficar sentada ao meu lado a vê-las dançar. Olalla era extraordinariamente sensível às impressões. Em todos os lugares ela observava muito mais coisas do que eu, que toda a vida fui um amante da Natureza. Mas, no entanto, não parecia haver para ela uma diferença grande entre alegria e dor, ou entre o que era triste ou agradável. A tudo ela acolhia por igual, como se no íntimo soubesse que tudo era a mesma coisa.

Uma tarde em que voltávamos a Roma, já o Sol se punha, Olalla, de cabeleira ao vento, sem chapéu, conduzia o cavalo e fazia estalar o chicote, incitando-o a galopar.

A brisa afastava os longos caracóis castanhos da sua face, e mostrava-me de novo uma longa cicatriz de uma queimadura que, pequena e alva serpente, ia da orelha direita à omoplata. Perguntei-Ihe nesse dia mais uma vez como lhe acontecera ficar tão queimada. Nunca me respondia, e agora começava a falar dos grandes homens, negociantes e prelados, que se apaixonavam por ela, até que eu, rindo, lhe disse que ela não tinha coração. Ao ouvir-me ficou silenciosa, enquanto seguia à desfilada, a forte luz do sol batendo em cheio nos nossos rostos.

- Ah, tenho - disse por fim - tenho coração. Mas está sepultado no jardim de uma pequena villa branca nos arredores de Milão.

- Para sempre? - perguntei.

- Sim, para sempre - disse ela - porque esse é o mais lindo lugar.

- O que há - perguntei-lhe, devorado pelo ciúme - nessa pequena villa branca para ali te prender o coração para sempre?

- Não sei - disse ela. - Já não deve haver muito, porque ninguém vai mondar o jardim ou afinar o piano. Pode ser que estranhos nela vivam agora. Mas há o luar, quando a Lua sobe, e as almas dos mortos.

Ela muitas vezes falava deste modo vago e caprichoso, e era tão graciosa, tão gentil, quase humilde assim, que eu sempre ficava enfeitiçado. Gostava muito de agradar, e era capaz de grandes esforços para o conseguir, mas não como uma criada, rígida pelo tanto medo de afinal desagradar, antes como alguém muito rico, a cumular-nos de benesses saídas de um corno de abundância. Como a leoa domesticada, de fortes garras e dentes possantes, ela insinuava-se nas boas graças de todos. Às vezes mais me parecia uma criança, e logo depois uma velha, como aqueles aquedutos construídos há mil anos projectam longas sombras pela terra, de paredes majestosas, antiquíssimas, fendidas, brilhando como âmbar à luz do sol da Campagna. A seu lado eu sentia-me como uma coisa nova no mundo, embrutecido, um rapazinho, e tolo. E sempre ela tinha um não sei quê, que me fazia acreditá-la muito mais forte do que eu. Tivera a certeza de que ela podia voar, e voando me fugira, a mim e à Terra, sempre que quisera, que havia de sentir a mesma coisa, creio eu.

Foi só no fim desse mês de Setembro que eu comecei a pensar no futuro. Percebi então que não podia viver sem ela. Se tentasse afastar-me de Olalla o meu coração, pensava eu, correria para ela como a água da nascente para o vale. Por isso pensei que devia casar-me com ela e trazê-la comigo para Inglaterra.

Se quando a pedi em casamento ela tivesse levantado a mínima objecção, eu não me teria sentido tão transtornado pelo que ela me fez depois. Mas ela disse logo que sim, que me acompanharia. E foi então mais caridosa, mais doce do que antes, e conversávamos sobre o que seria a nossa vida em Inglaterra, rindo muito de tudo. Falei de meu pai, e contei-lhe que ele sempre fora um entusiasta da ópera italiana, o que era o melhor que eu podia achar nele que dizer. Sabia, ao falar com ela destas coisas, que nunca mais o meu país me causaria tédio.

Foi por essa altura que, pela primeira vez, eu reparei, onde quer que me aproximasse de Olalla, numa figura de homem que antes eu não vira. A princípio não lhe atribuí muita importância, mas ao fim do sexto ou sétimo encontro ele começou a ocupar-me os pensamentos e a provocar em mim um estranho mal-estar. Era um judeu de cinquenta ou sessenta anos, de fraca figura, sumptuosamente vestido, as mãos cobertas de diamantes, e com os modos requintados de um homem de sociedade. Era pálida a sua cor, e muito negros os seus olhos. Nunca o vi com Olalla ou no bordel, mas tropeçava na sua presença quando lá entrava ou de lá saía, de modo que me parecia que ele girava em torno dela como a Lua em volta da Terra. Desde logo pressenti nele, com íntima certeza, qualquer coisa de extraordinário, ou não teria tido a ideia, que me tirava o sossego, de que ele tinha algum poder sobre Olalla e era o seu espírito maligno. Acabei por tomar tanto interesse nele, que mandei o meu criado italiano a descobrir pormenores no hotel em que vivia, e assim fiquei a saber que o homem era um judeu holandês, fabulosamente rico, e que o seu nome era Marcus Cocoza.

Tanto me intrigava o que essa personagem teria que fazer na rua de Olalla, e a razão por que assim aparecia e desaparecia, que acabei, quase contra minha vontade - pois temia o que Olalla pudesse dizer-me - por perguntar-lhe se o conhecia. Levou ela dois dedos ao meu queixo e ergueu-mo.

- Não notaste ainda, caríssimo - perguntou - que eu não tenho sombra? Um dia vendi a minha sombra ao Diabo em troca de um pouco de alegria, de alguma paz. Esse homem que tens visto lá fora, perspicaz como és, adivinharás facilmente que outro não é que a minha sombra, à qual já nada me liga. O Diabo às vezes deixa que a sombra erre por aí. E a sombra, naturalmente, tenta voltar para mim e deitar-se a meus pés como antigamente. Mas eu não deixarei jamais que ela o faça. O Diabo podia vir desfazer o trato, se eu o permitisse! Não te preocupes com esse homem, minha estrelinha.

Obviamente ela estava, à sua maneira, falando a verdade nesse instante. Percebi-o ao ouvi-la: ela não tinha sombra. Não havia escuridão ou tristeza perto dessa mulher, e os tons negros dos cuidados, dos remorsos, da ambição, do medo, que parecem inseparáveis do ser humano - até de mim, embora eu nesses dias vivesse despreocupado - esses foram banidos da sua presença. Por isso apenas a beijei, e lhe disse que deixaríamos na rua a sua sombra, e lhe correríamos os estores na cara.

Foi por essa altura também que senti pela primeira vez a sensação que jamais depois me abandonou, e que na minha inocência eu julguei ser de felicidade. Parecia-me, onde quer que fosse, que o mundo à minha volta perdia peso, que lentamente começava a fluir para o alto, um mundo só de luz, em que nada era sólido. Já nada me parecia maciço. O Castelo de Sant'Angelo era inteiramente um castelo no ar, e eu sentia que me era possível erguer com dois dedos toda a Basílica de São Pedro. Nem tinha medo de ser atropelado por uma carruagem, nalguma rua, tão consciente eu ficara de os carros e o cavalo não terem mais peso do que se fossem recortados de papel. Sentia-me, assim, extremamente feliz, se bem que de cabeça oca, e acreditava que tal era um presságio de uma felicidade maior, ainda por chegar, como uma apoteose. Ao universo, e a mim mesmo, pensava eu, tinham crescido asas, e estávamos subindo ao sétimo céu. Agora sei muito bem o que tal significa: é o começo do último adeus; é o canto do galo que anuncia a mudança. Desde então, nas minhas viagens, tenho conhecido países e gentes tomados dessa imponderabilidade. E num ponto eu estava certo. Ao mundo em meu redor haviam, de facto, crescido asas, e tudo voava para o alto. Só eu, a que o peso não permitia voar, só eu ficaria para trás em completa solidão.

Preocupava-me a carta que teria de escrever a meu pai, comunicando-lhe que já não podia casar com a viúva, quando recebi a notícia que um meu irmão, oficial da Armada, se encontrava em Nápoles com o seu navio. Reflecti que seria melhor talvez eu dar-lhe a carta a ele, para que a levasse a meu pai, e disse a Olalla que teria de ir a Nápoles por alguns dias. Perguntei-lhe então se iria encontrar-se com o velho judeu na minha ausência, mas ela assegurou-me que não: nem o veria nem lhe falaria.

Eu não me dava muito bem com meu irmão. Conversando com ele pude ver como o futuro que escolhera para mim havia de soar aos ouvidos dos outros, e senti-me bastante inquieto. Pois ainda que julgasse a opinião dos outros idiota e desumana, lembrei-me, o que não acontecera desde que vira Olalla, da atmosfera de frio e morte que fora antes o meu mundo, e era ainda a minha casa. Dei todavia a carta a meu irmão, pedi-lhe que intercedesse por mim junto do nosso pai o melhor que ele pudesse, e apressei-me a voltar para Roma.

Ao chegar soube que Olalla havia desaparecido. Primeiro disseram-me, na casa onde estivera, que ela tinha morrido subitamente levada por uma febre. A notícia deixou-me às portas da morte e da loucura por três dias. Mas depressa descobri que tal não podia ser e fui, entre súplicas e ameaças, pedindo a cada moradora da casa que me contasse a verdade. Compreendia já que devia tê-la tirado dali antes de partir para Nápoles - mas o que me teria adiantado, se ela estava disposta a deixar-me? Uma estranha superstição me fez relacionar o desaparecimento de Olalla com o judeu, e numa derradeira conversa com o madama do bordel apertei-a pela garganta, disse-lhe que sabia tudo, e jurei que a estrangulava se ela não me dissesse a verdade. Tomada de terror, a velha confessou: Sim, fora ele quem a levara. Olalla saíra um dia e não mais voltara. No dia seguinte um velho judeu, bem-posto, pálido, de olhos muito negros, tinha vindo ali, tinha liquidado as dívidas de Olalla e pago à madama para que se calasse. «E para onde é que eles foram?», gritei-lhe, com a náusea de não poder dar vazão ao desespero matando ali mesmo a marafona. Isso não me podia ela dizer mas, pensando melhor, achava que tinha ouvido o judeu mencionar, falando ao criado, o nome de uma cidade: Basileia.

A Basileia me dirigi, mas só quem passou por tal faz ideia da dificuldade que é querer-se encontrar, numa cidade estrangeira, alguém cujo nome não sabemos.

As minhas buscas ficaram mais difíceis ainda porque eu não sabia em que estradas da vida procurar Olalla. Se ela tivesse ido com o judeu estaria agora uma grande senhora, que eu acharia viajando em carruagem própria. Mas porque a teria o judeu deixado no bordel onde eu fora encontrá-la em Roma? O mesmo podia ele fazer agora, por razões que eu desconhecia. Por isso bati a todas as casas de má nota de Basileia, e elas são ali em maior número do que se poderia pensar, pois Basileia é a cidade da Europa que mais severamente prescreve a santidade do matrimónio. Não lhe achei o rasto. Lembrei-me então de Amsterdão, onde pelo menos teria a referência de um nome: Cocoza. Encontrei de facto em Amsterdão a antiga e bela casa do judeu, e soube que ele era o homem mais rico da cidade, e que a sua família negociava em diamantes há trezentos anos. Mas ele, segundo me disseram, andava sempre em viagem. Calculavam que estivesse agora em Jerusalém. Deixei Amsterdão e segui muitas pistas, todas elas falsas, que me levaram a outros tantos países. Esta minha viagem de loucura durou cinco meses. Por fim decidi-me a partir para Jerusalém, e seguia já de volta a Itália, onde em Génova tomaria o barco, e tudo isto não me saía da cabeça, quando me achei sentado, como te disse, numa sala de hotel em Antermatt, esperando atravessar o desfiladeiro no dia seguinte.

Na véspera encontrara uma carta de meu pai, que me andava no encalço há uns meses, e me tinha sido enviada de cidade em cidade. Nela meu pai escrevia:

«Estou agora em condições de apreciar a sua conduta com calma e compreensão. Devo-as a ter folheado uns papéis da família, a que nestes três meses tenho dedicado grande parte do meu tempo e atenção. Do estudo destes papéis pude concluir a evidência de um destino muito singular que há dois séculos se abate sobre a nossa família.

Se, como família, somos muito melhores que os outros, é tão-somente porque tivemos sempre, no seio de nós, um indivíduo que encerra todas as fraquezas, todos os vícios da sua geração. Os defeitos que normalmente se encontrariam repartidos por um grupo lato de pessoas têm-se juntado numa só, e nós outros temos podido, assim, até hoje, e podemos ainda, ser o que somos.

Examinando os nossos papéis não tenho quaisquer dúvidas do que afirmo. Eu mesmo fui capaz de identificar esse delinquente escolhido pelo destino ao longo de sete gerações, desde a nossa tia-bisavó Elizabeth, de cujo comportamento não quero agora falar. Dar-lhe-ei apenas como exemplo meus tios Harry e Ambrose, que em seus dias foram, sem dúvida...»

Seguiam-se vários nomes e factos que corroboravam as teorias de meu pai. E depois continuava:

«Não sei se não seria um golpe mais fatal, em vez de benção, para a nossa família e para o nosso nome se este singular estado de coisas deixasse um dia de existir. Podia acabar com muito sofrimento e muita preocupação, mas também poderia fazer com que a família não fosse melhor que as outras.

Quanto a si, o senhor tem-se obstinado, de tal forma, em desobedecer às minhas ordens e ignorar os meus conselhos que julgo ter razões para crer que é o senhor a vítima escolhida na sua geração. O senhor recusou-se, com o seu exemplo, a tornar atraente a virtude e óbvia a recompensa de uma boa conduta. Estou agora conformado com o seu destino, o que me permite dar-lhe a minha benção para prosseguir nesse caminho que pode fazer da desobediência filial, da tibieza e do vício um exemplo que, pela sua repugnância, será útil e dissuasivo para os que na nossa família pertencem à sua geração.»

Nunca mais tornei a ver meu pai. Mas o meu antigo preceptor que, muitos anos depois, eu viria a encontrar por acaso em Esmirna, em tristes circunstâncias aliás, deu-me notícias dele. Meu pai conformara-se com a situação ao ponto de ele próprio casar com a viuvinha. Tiveram um filho, a quem ele deu o nome de Lincoln. Mas se o fez porque afinal gostava mais de mim do que eu supunha, ou querendo apagar quaisquer lembranças desagradáveis que lhe surgissem entre a uma hora e as três da madrugada, relacionadas com o seu outro filho Lincoln, isso eu não sei.

Relera já a sua carta, e ia tirá-la do bolso para a ler de novo, a fim de passar o tempo, quando, erguendo os olhos, vi dois homens entrarem na sala de jantar do hotel, vindos da noite fria. Eram novos, e um deles eu conhecia. Pensei que, se ele me visse, viria ter comigo; assim aconteceu, e os três passámos juntos o resto da noite.

O primeiro destes dois homens bem vestidos e bem-educados era filho de uma nobre família de Coburgo, que no ano anterior eu tinha conhecido em Inglaterra, onde fora conhecer o nosso regimento parlamentar, pois pretendia seguir a carreira diplomática, e estudar a criação de cavalos, que era a ocupação da família. O seu nome era Friedrich Hohenemser; mas era tão parecido, nas feições como nos modos, com um cão que eu tivera e se chamara Piloto, que eu o tratava por esse apelido. Era um rapaz alto, louro, bonito.

Mas como hás-de gostar, Mira, de ouvir na minha boca as palavras da tua engenhosa parábola, dir-te-ei dele que era alguém que a vida não se consentia em tragar. Ele ansiava loucamente por ser engolido pela vida, e em qualquer ocasião tentava passar-lhe à força pela garganta, mas a vida, tão teimosa como ele, recusava-o. Talvez, de quando em quando, o impregnasse de ilusão, o sorvesse um pouco, embora nunca lhe tomasse um bom trago; mas mesmo em tais ocasiões a vida logo o vomitava. O que ele tinha para assim lhe dar volta ao estômago eu não posso dizer; só isto eu sei: todos aqueles que se aproximavam dele experimentavam de algum modo a mesma sensação, e, conquanto nada tivessem contra ele, não lhe encontravam préstimo. Pode-se dizer que ele estava, mentalmente, no estado primário do embrião.

Talvez seja precisa alguma astúcia, ou alguma sorte, ao homem que se afirma como um embrião. O meu amigo Piloto nunca passara disso. Ele próprio se dava conta por vezes, creio eu, de que a sua condição era alarmante; e era-o, de facto. Nos seus olhos azuis surgia por vezes um reflexo dolorido, como da batalha sem remédio pela existência que no seu íntimo se travava. Achando algum dia em si mesmo qualquer parcela de gosto natural, aproveitava-a ao máximo. E era vê-lo falar então perpetuamente das suas preferências por um ou outro vinho, como se quisesse convencer-se de um achado precioso. Um filósofo que eu li na escola, e de quem tu havias de gostar, Mira, disse uma vez: «Penso, logo existo.» Também o meu amigo Piloto repetia a si próprio e ao mundo: «Prefiro o Moselle ao Reno, logo existo.» Ou, se apreciava um espectáculo ou um jogo, passava o serão inteiro a falar disso, e dizia: «Isto é uma coisa que me diverte.» Mas não tinha imaginação, e era, além do mais, muito honesto. Nada inventava em seu proveito, e limitava-se a descrever as preferências que tinha realmente, e que eram sempre pouquíssimas. Provavelmente era esta sua falta de imaginação que o impedia de existir. Porque, para criarmos, como tu bem sabes, Mira, temos primeiro de imaginar, e como ele não conseguia imaginar o homem que Friedrich Hohenemser havia de ser, não podia gerar nenhum Friedrich Hohenemser.

Dei-lhe o nome, como já te disse, de um cão que eu tive, e o seu temperamento era tão esse - nunca tinha a mínima ideia do que queria fazer, ou do que devia fazer - que eu acabei por abatê-lo. O Deus de Friedrich Hohenemser foi mais indulgente, afinal.

Com tudo isto o Piloto não se saía mal em sociedade, que, suponho, exige um mínimo de existência apenas dos seus membros no continente europeu. Era, além disso, um homem rico, de pele rosada e branca, com umas pernas vigorosas - que eram toda a sua vaidade - e era tido como um rapaz modelo pelas senhoras de uma certa idade. Ele gostava de mim, e era uma alegria supor que me causara uma impressão tão definida, pois lhe dera até um apelido. Alguém - pensava ele - me deu um apelido, logo existo.

Quando ele agora se encaminhou para mim, reparei que alguma coisa nele mudara. Tinha ganho vida, todo ele irradiava. Assim o meu cão Piloto irradiava alegria e abanava a cauda nas raras ocasiões em que julgava ter provado que realmente existia. Podia ser talvez, no rapaz, o efeito da sua nova amizade com o jovem que o acompanhava. Fosse o que fosse eu sentia nele a certeza de que me iria bater o ás de trunfo no decurso dessa noite. Suspirei. Nem sei o que daria para ter nessa noite a companhia de um cão bom e verdadeiro. E senti saudades dos meus cães que há muito deixara em Inglaterra.

Apresentou-me ele o amigo como sendo o barão Guildenstern, da Suécia. Não tinha gozado ainda o prazer de tal sociedade por cinco minutos quando ambos me informaram que o barão tinha no seu país a fama de ser um grande sedutor. Isto fez-me pensar - embora nessa altura as conversas com os outros se desenrolassem apenas à superfície do meu cérebro - na espécie de mulheres que haveria na Suécia. As senhoras que me deram a honra de se deixar seduzir por mim, todas insistiram em ser elas a decidir que havia de ser a figura central do quadro. Por isso me agradaram, porque nisso estava para mim a variedade do que poderia ter sido um desempenho monótono. Mas, no caso do barão, era evidente que o seu centro de gravidade fora sempre, e inteiramente, ele próprio. Podíamos supô-lo de natureza pouco dada a entusiasmos pelo modo como falava das beldades que tinha cortejado, mas não lhe acharíamos o mesmo defeito quando finalmente nos dirigia o olhar para o que de facto ele queria que nós admirássemos. Quase parecia, ao ouvi-lo, que todas as mulheres tinham sido exactamente iguais, e esse tipo de mulher eu jamais conheci. Sendo ele o único herói, e tão visível, de cada aventura, eu perguntava a mim próprio porque se dera ao imenso incómodo - e ele estava evidentemente na disposição de se dar a todos os incómodos possíveis nestas questões - de obter, vezes sem conta, uma fiel repetição da mesmíssima coisa. Eu estava, enfim, e porque era também um rapaz, extremamente impressionado com tal superabundância de apetites.

Mesmo assim pouco depois, e pela sua conversa, que era muito animada e mais ficou ainda quando esvaziámos umas quantas garrafas, descobri a chave da existência do jovem sueco, e que se resumia a uma só palavra: competição. A vida era para ele uma competição na qual se obrigava a brilhar entre todos os concorrentes. Eu próprio tinha amado a competição em garoto, mas já quando frequentava o colégio lhe tinha perdido o gosto, e por esta altura, a menos que apreciasse verdadeiramente o prémio, considerava uma tolice cansar-me com alguma coisa só porque ela era ao gosto dos outros. Não era assim para este barão sueco. Nada no mundo era inteiramente bom ou mau, em sua opinião. Pronto sempre a seguir uma alusão, um cheiro, um rasto, procurava o que seria aos outros mais precioso para depois os superar na demanda ou os roubar. Sozinho sentia-se perdido. Assim se tornou mais dependente dos outros que o próprio Piloto, e provavelmente fugia da solidão como do próprio Diabo. O passado, soube-o pela sua conversa, era para ele uma série de triunfos sobre uma série de rivais, e nada, absolutamente nada mais, embora pouco mais velho fosse do que eu. Nem pelos rivais nem pelas vítimas ele demonstrava o mínimo interesse. Não sabia o que fossem admiração ou piedade, nada sentia para além da inveja e do desprezo.

Mas não era parvo. Pelo contrário, eu achava-lhe uma grande perspicácia. Adoptara na vida o estilo do homem franco, simples, bom, com uma certa rudeza que facilmente se desculpava num rapaz de espírito aberto e limitado. Tinha porém uma certa maneira de olhar, atenta e dissimulada, que nos espiava quando menos o esperávamos para de nós obter uma avaliação das coisas que lhe permitisse depois o defraudar-nos delas. Como não tinha os nervos que faziam os homens vulgares ressentir-se da tensão, a sua força e energia eram sem dúvida extraordinárias, e ele considerava-se, como também os outros o consideravam, um gigante comparado com aqueles que são capazes de imaginar ou de compadecer-se.

Os dois davam-se muito bem, pois o Piloto sentia-se existir com as atenções do jovem e bonito sueco - tenho, pensaria o Piloto, um amigo que é um tremendo sedutor de mulheres, logo existo - e o barão comprazia-se em eclipsar todos os amigos anteriores do jovem e rico alemão, e em ser admirado por ele. Acho que ambos dispensariam de bom grado a minha presença. Mas eu exercia sobre eles uma atracção magnética: sobre o Piloto porque podia exibir-me amigo, sobre o barão porque lhe dera forte o cheiro que eu havia de estimar ou querer alguma coisa que ele pudesse roubar-me de um modo mais ou menos leal.

Era tanto o tédio que logo a conversa do barão me provocou, que me voltei para o Piloto - coisa que alguém só muito raramente faria - e, assim que pôde, eis que ele principia a revelar-me os grandes casos da sua vida.

- Talvez você não gostasse que o vissem em minha companhia, Lincoln - disse-me ele - se soubesse tudo. Só estarei fora de perigo quando sair da Suíça. As paredes têm ouvidos num país de tanta agitação política.

Calou-se, a ver o efeito que teriam as suas palavras, e depois continuou:

- Venho de Lucerna.

Eu já sabia que tinha havido um recontro na cidade, mas nunca me ocorrera que o Piloto pudesse ter estado envolvido num tumulto.

- Aquilo lá estava o diabo!

Pobre Piloto! Na sua boca pequena, que um sorriso tímido franzia, até a verdade parecia uma tosca ficção. O sueco, tenho a certeza, haveria de inventar um chorrilho de mentiras com tal presença de espírito que os seus ouvintes nem por um momento iriam pô-las em dúvida.

- Matei um homem nas barricadas do 3 de Março - disse o Piloto.

Eu sabia que tinha havido um combate nas ruas entre, de um lado, os partidos no poder, e particularmente os partidários dos padres, e do outro o povo em rebelião.

- O quê? - perguntei, torturado pela inveja, porque fora ele quem participara num combate - matou um rebelde?

Pois o Piloto sempre fora para mim um homem de grande respeitabilidade e de pequeno intelecto. Logo presumi que ele se pusera ao lado dos padres, e isto pelo menos eu não lhe invejava.

O Piloto abanou a cabeça com orgulho e mistério. Momentos depois, dizia:

- Matei o capelão do bispo de Saint Gallen.

Os jornais tinham apregoado a notícia do assassínio, e havia-se procurado em vão o criminoso por toda a parte. Naturalmente, fiquei interessado em saber como coubera ao Piloto executar tão grande feito, e obriguei-o a contar-me tudo desde o princípio. O barão, enfastiado pela história das proezas guerreiras de outrem, para ali ficou, sem escutar uma só palavra, entretido a beber e a observar quem entrava e saía do hotel.

Quando saí de Coburgo - disse o Piloto - foi com a intenção de ficar em Lucerna três semanas, em casa de meu tio De Watteville.

Preparava-me para partir quando as senhoras elegantes da cidade, uma após outra, me imploraram que lhes trouxesse de Lucerna um chapéu de uma modista a quem chamavam Madame Lola. Esta mulher, asseveravam elas, era famosa de um extremo ao outro da Europa. Damas de grandes cortes e importantes capitais a ela encomendavam os chapéus, e jamais na história da chapelaria tinha havido um génio assim. Eu, naturalmente, não era avesso a fazer um favor às senhoras da minha cidade natal, por isso lá parti, com os bolsos atulhados de amostrinhas de sedas e até, quer crer?, de aneizinhos de cabelo para Madame Lola confeccionar os chapéus a condizer. Todavia em Lucerna viviam-se intensamente as paixões políticas, e eu esqueci Madame Lola até que uma noite, jantava eu com um grupo de políticos e oficiais superiores, saquei do bolso, juntamente com o meu lenço, uma tirinha de cetim cor-de-rosa e tive de lhes dar uma explicação. Para minha surpresa, toda a conversa imediatamente se concentrou na modista de chapéus. Os homens casados, pelo menos, e todos os clérigos a conheciam. Com efeito, disse o bispo de Saint Gallen, que estava presente, a mulher era um génio. O mais leve toque das suas mãos, como num gesto de fada, criava milagres de arte e de elegância, e as grandes damas de Sampetersburgo e de Madrid, e mesmo de Roma, vinham em peregrinação à sua loja de chapéus. Mas ela era algo mais do que uma fada. Suspeitava-se de que era também uma conspiradora de primeira apanha, e que utilizava o atelier de chapéus como ponto de encontro dos mais perigosos revolucionários. E nisto era também uma mulher de génio, uma Circe, que punha e dispunha e tudo organizava com as suas pequeninas mãos, e até o mais grosseiro dos revoltosos teria morrido por ela.

Todos tanto insistiram para que eu a evitasse que, naturalmente, a primeira coisa que fiz no dia seguinte foi ir a sua casa, na rua que me tinham indicado. Nessa ocasião achei-a tão-só uma mulher muito inteligente e agradável. Aceitou todas as encomendas que eu levava e conversou comigo sobre a minha carreira. Um rapaz ruivo entrou enquanto ali me demorei, e voltou a sair, e esse, sim, tinha todo o ar de um revolucionário, mas ela pouca atenção lhe prestou.

Enquanto ela fazia todos estes chapéus para mim, os céus de Lucerna carregavam-se: uma tormenta pairava sobre a cidade. Meu tio, que detinha um alto cargo no Conselho Municipal, previa uma catástrofe. Mandou minha tia e minhas primas para o château e aconselhou-me a que fosse com elas. Mas eu sentia que não podia abandonar a cidade sem voltar a ver Madame Lola, e sem receber das suas mãos todas as minhas encomendas.

 

No dia em que por fim voltei à loja, o tumulto nas ruas era tal que eu tive de meter por um labirinto de vielas, e mesmo assim só cheguei a sua casa com extrema dificuldade. Ao entrar fui encontrá-la, da porta às águas-furtadas, ocupada por uma mole imensa de gente armada que entrava e saía, e transformada num verdadeiro caldeirão de bruxa. Não havia tempo para se falar de chapéus. Ela, a um canto, arengava instruções à populaça, e ao ver-me saltou para os meus braços.

- Ah! - exclamou ela - o seu coração trouxe-o por fim ao bom caminho!

E a multidão, e Madame Lola com ela, neste momento avançou, transpôs a porta da cave e desceu a rua. Eu era arrastado pela turba, ou então contagiara-me tanto o entusiasmo da mulher que fui de minha livre vontade. Assim, e numa questão de segundos, me vi envolvido numa luta de barricadas, e, nas barricadas, sempre ao lado de Madame Lola.

Ela carregava as armas e passava-as aos combatentes, e nesta obra de morte ela usava de toda a verve e despacho que eu lhe vira quando enfeitava os chapéus. Agora, todos os que a rodeavam, corajosos embora, tinham medo - e com razão; só ela não tinha medo algum. Ao passar as espingardas aos homens barricados ela dava-lhes também o seu próprio destemor. Eu via-o no rosto desses homens. E, coisa estranha, eu nessa altura estava convencido de que nada poderia atingir a mulher, ou atingir-me, enquanto ficasse perto dela. Lembrei-me do que a nossa velha cozinheira me dizia em Coburgo: os gatos têm sete vidas. Madame Lola, pensava eu, deve ter a vida de sete gatos. Nesse momento eu via nela realmente uma mulher sobre-humana, embora ela não fosse, creio que já lho disse, uma senhora de nobre nascimento e apenas uma modista de chapéus de Lucerna, e que já não era nova.

Foi então que eu próprio, no entusiasmo da raiva que me cercava, peguei numa arma e disparei contra a multidão de soldados e milícias que lentamente avançavam em direcção à barricada. Meu próprio tio, o senhor De Watteville, quem sabe, talvez viesse a comandá-los, mas nesse momento nem pensei nele. Imediatamente me senti atirado ao chão, não sei como, e caí como morto.

Quando recuperei os sentidos vi-me num quarto estreito, numa cama, e Madame Lola estava comigo. Ao tentar mexer-me percebi que a minha perna direita estava toda envolvida em ligaduras. Ela deu um grito de alegria vendo-me acordar, mas logo se aproximou levando um dedo aos lábios. Nas sombras do quarto me contou como terminara o combate, e que eu tinha morto o capelão do bispo de Saint Gallen. Suplicou-me que ficasse muito quieto, em primeiro lugar porque um tiro me fracturara a perna, e em segundo lugar porque a cidade estava ainda conturbada. Eu corria um grande perigo, e devia permanecer escondido e em segredo na sua casa.

Passei três semanas nessas águas-furtadas, tendo-a a ela por minha enfermeira. Ainda se combatia nas ruas, e eu ouvia os tiros. Mas com isso, com o meu ferimento, com o que tinha feito e com o que a minha família iria dizer, até com o perigo que eu corria, eu pouco me importava.

Parecia-me que eu me tinha erguido por magia até muito alto, a um lugar fora do mundo onde costumara viver até então, e que estava aí completamente a sós com ela. O médico passava a ver-me de vez em quando. Mais ninguém ali entrava, mas Lola por vezes punha o xaile e saía, implorando-me que ficasse muito quieto até ela voltar. Estas horas em que ela não estava comigo pareciam-me infinitas.

Mas quando estávamos juntos conversávamos bastante. Ao recordar depois esse tempo vi que ela não tinha falado muito, e que eu tivera ali o dom da palavra que sempre ambicionara. Senti que chegara a uma compreensão geral da vida e do mundo, de mim próprio, de Deus até, enquanto estive naquela água-furtada. Falávamos em particular das grandes coisas que eu havia de fazer na vida. Eu, você compreende, tinha já feito o suficiente para que o povo me conhecesse, mas éramos ambos de opinião que isto seria apenas um começo.

Soube que muitos dos seus amigos tinham saído de Lucerna, e que ela se expunha a perigos por minha causa; implorei-lhe que saísse da cidade. Não, disse ela, por nada no mundo me deixaria. Em primeiro lugar, e depois do que eu fizera, os revolucionários de Lucerna consideravam-me um seu irmão, e todos estariam prontos a morrer por mim. Mas, mais importante do que isso, explicou ela, corando violentamente, se os tiranos da cidade ou a milícia me encontrassem, ela e eu deveríamos, ambos, insistir em que não havíamos tomado parte na revolta, e que sempre ali estivéramos juntos por um caso de amor. Ela se declararia a minha amante, e eu o seu, enquanto que o meu ferimento seria imputado a um rival ciumento. Estas palavras, ainda que tudo fosse uma comédia, fizeram-me de novo extraordinariamente feliz, e levaram-me a sonhar com tudo o que eu havia de conseguir quando estivesse bom. Sim, não sei se um caso de amor me teria feito mais feliz.

Por fim, uma tarde, ela disse-me que o médico me tinha considerado fora de perigo, e que devíamos separar-nos. Ela iria deixar Lucerna nessa mesma noite. Eu partiria em segredo à alvorada. Um amigo, disse ela, poria a sua carruagem à minha disposição e ele próprio me conduziria para fora da cidade. Um terror me invadiu então ao ouvi-la. Mas eu era um parvo. Quando percebi o que sentia já era demasiado tarde. Madame Lola continuava a falar-me, meigamente. Eu receberia, disse ela, a paga do meu incómodo, e ela me entregaria todos os chapéus que tinha na sua loja.

- Porque eu - disse ela - não voltarei mais a Lucerna. E assim, ajudada pela criadinha, ela subiu e desceu as escadas

uma dúzia de vezes, a cada viagem trazendo caixas de chapéus que colocava à minha volta. Eu ria, e no fim já não conseguia parar de rir, pois me achava quase soterrado por chapéus de todas as cores do arco-íris, enfeitados de flores, de fitas, de plumas. O chão, a cama, a cadeira e a mesa estavam cobertos de chapéus, provavelmente os mais belos chapéus de toda a Europa.

- Ora aqui tem - disse ela, quando o quarto ficou cheio de chapéus - com que seduzir o coração das mulheres.

Ela pôs um chapéu discreto e um xaile, e tomou a minha mão.

- Nunca me queira mal - disse ela. - Tentei fazer-lhe o bem que pude.

Lançou-me os braços em volta do pescoço, beijou-me e partiu.

- Lola! - gritei, e caí para trás na cadeira, desmaiado. Quando recobrei os sentidos passei uma noite horrível. Não me restava um só pensamento agradável. A imagem do cura do bispo de Saint Gallen começava também a afligir-me, e parecia-me que nada neste mundo me poderia ajudar.

Lola foi fiel à sua palavra. Na manhã seguinte um cavalheiro de certa idade, judeu, muito elegante, apresentou-se na minha trapeira e, junto ao último degrau da escada vi que a sua bela carruagem me aguardava. Ele próprio me conduziu através da cidade, onde pude ver, aqui e além, vestígios da luta, e soube ser um agradável companheiro de viagem. Aproximando-nos dos limites da cidade, ele disse-me:

- A carruagem do barão De Watteville virá ter connosco neste parque assim, assim. Mas o senhor seu tio ofendeu-se com o seu procedimento e encarregou-me de lhe comunicar que prefere que o senhor continue viagem sem se deter, e que o vosso reencontro se dê apenas mais tarde.

- Mas meu tio - exclamei, muito surpreendido - já sabe do que me aconteceu?

- Sabe - disse o velho. - Aliás, sempre o soube. O senhor Barão é um homem influente junto do clero de Lucerna, e não sei se teríamos podido passar sem o seu auxílio.

Nada mais disse, e seguimos em silêncio, sentindo-me eu muito perturbado.

A carruagem de meu tio esperava, com efeito, junto a um parque, tal como o judeu tinha dito. Quando parámos, um homem desceu e lentamente veio ao nosso encontro; reconheci o rapaz que eu tinha visto em casa de Madame Lola no dia em que lá fui pela primeira vez, e que depois, lembrava-me agora, encontrei nas barricadas. Pelo seu aspecto parecia que tinha sofrido muito. Coxeava, e ao curvar-se, cumprimentando o meu companheiro, o seu rosto era muito pálido e muito severo. Não obstante, quando me procurou com o olhar sorriu inesperadamente.

- Então é este - ouvi-o dizer - o pintassilgozinho que estava preso na mansarda de Madame Lola?

- Sim - disse o velho judeu num sorriso - é o golem de Madame.

Não o percebi, mas vim a saber mais tarde que a palavra golem em língua judaica significa uma grande figura de barro em que a vida é insuflada por magia, na maior parte das vezes para que ela execute um crime que o mágico não ousa cometer por suas mãos. Estes golems imaginavam os judeus que eram muito grandes e muito fortes.

Os dois esperaram que eu entrasse na carruagem de meu tio, e despedimo-nos. Prossegui viagem, mas agora tinha muito que reflectir, e não sabia onde me encontrar de novo comigo mesmo. O cheiro a pólvora das barricadas, as nossas conversas sobre Deus e o beijo de Lola nas águas-furtadas, e mais todos os chapéus que ela me havia dado, tudo me parecia estar vendo, como esses pontos coloridos que temos diante dos olhos quando fitamos o sol por longo tempo. Não tenho conseguido, desde então, pensar muito nesses grandes feitos que eu havia de realizar. Nem me lembro sequer de quais eram. Mas a verdade é que matei o cura do bispo de Saint Gallen, e tenho de me rodear de cautelas até sair deste país. Fui a um médico, e ele disse-me que a minha perna foi tão habilmente tratada que é como se nunca a tivesse partido.

- Ê portanto você - disse eu - anda à procura dessa mulher por toda a parte, incapaz de conciliar o sono?

- Como adivinhou? - disse o Piloto. - Sim, ando à procura dela. Não sei o que pensar, o que sentir, até que a veja novamente. Mas ela já não era nova, sabe, nem uma senhora de nobre nascimento, apenas uma modista de chapéus, em Lucerna.

Agora eu tinha ouvido a história do Piloto. E enquanto o escutara mais de uma vez sentira medo. Havia ali muitas coisas que eram alarmantes para mim. Pensei: Desde que perdi Olalla nunca mais me embriaguei, até hoje. É óbvio que hoje, quando bebo nem que seja duas garrafas deste vinho suíço, a cabeça me anda à roda.

É de ter há longo tempo o mesmo e único pensamento. Esta narrativa do meu amigo parece-se toda com um sonho meu. Há muito nesta mulher das barricadas que me lembra a minha cortesã de Roma, e quando, a meio da sua história, aparece um velho judeu, como o djinn da lâmpada, é mais do que evidente que não estou no meu juízo perfeito. O que me separa, pergunto a mim próprio, sim, da loucura completa?

Para esclarecer a questão, continuei a beber.

O barão Guildenstern, durante a narrativa do Piloto, tinha de quando em vez olhado para mim com um sorriso, e às vezes piscara-me o olho. Mas, como a história se prolongasse, ele perdera todo o interesse nela e mandara vir mais uma garrafa. Agora abria-a e enchia os copos.

- Meu bom Fritz - disse ele, rindo - eu sei que as senhoras adoram chapéus. Para elas um marido é simplesmente um homem que lhes compra chapéus de todas as formas e cores possíveis, Deus o abençoe. Mas é um fraco artigo de vestuário de que despir uma mulher. Eu sempre as deixo conservar o chapéu depois de tudo o resto desaparecer; e para as que gostam de -no-lo atirar à cara, prefiro-lhe a chemise.

- Então nunca fez a corte a uma mulher sem levar com a chemise? - perguntou o Piloto, um tanto nervoso, os olhos fitos num ponto à sua frente, como se olhasse para longe.

O barão observou-o, atento, como se prestes a descobrir que um fracasso e um apetite frustrado podiam ter valor para um certo tipo de gente.

Meu caro amigo - disse ele - vou contar-lhe uma aventura minha, em paga da sua confissão.

- Há sete anos fui mandado pelo coronel do meu regimento em Estocolmo, o príncipe Oscar, à escola de equitação de Saumur. Não cheguei a completar o tirocínio, porque me envolvi num certo tipo de problemas em Saumur, mas enquanto lá estive passei algumas horas agradáveis na companhia de dois amigos meus, jovens e ricos, um dos quais era Waldemar Nat-og-Dag, que tinha vindo comigo da Suécia. O outro era um belga, o barão Clootz, que pertencia à nova nobreza e era senhor de uma grande fortuna.

Graças às cartas de recomendação de velhas tias nossas, eu e o meu amigo sueco visitámos por algum tempo uma curiosa comunidade de velhos e arruinados Legitimistas, grandes aristocratas que tinham perdido tudo na Revolução Francesa e viviam numa pequena cidade de província perto de Saumur.

Eram todos velhos, pois na juventude as senhoras não tiveram os dotes que lhes permitissem casar na sua roda, nem os homens o dinheiro para manter uma família no estilo a que os obrigavam os seus antigos nomes, de modo que não se pudera procriar uma geração mais nova. Assim, profetizavam que o mundo iria acabar em breve, e para eles ser-se novo era sinónimo de pertencer a uma sociedade de segunda. As senhoras juntavam-se a ler as cartas de minha tia, espantadas com a estranheza da vida na Suécia, onde a nobreza tinha ainda a coragem de procriar.

Aquilo tudo era para mim uma seca. Era como ser posto numa prateleira com velhas garrafas de vinho e boiões de pickles, selados e vedados com pergaminho.

Nesta sociedade falava-se muito de uma jovem de meios, que tinha tomado de aluguer por um ano uma bonita casa de campo nos arredores. Eu próprio vira a casa, cercada de jardins murados, nas manhãs em que saía a cavalo. A princípio a rapariga nem sequer me interessou. Julgava-a mais uma da ordem das Beguinas. Intrigava-me, porém, como se dava que a juventude e a riqueza não fossem nela defeitos, mas ao contrário parecessem fazê-la amada por todos os corações secos e velhos da cidade.

Eles próprios acorreram a dar-me a explicação, informando-me que esta senhora tinha consagrado a sua vida à memória do general Zumala Carregui, que foi, creio eu, um herói e um mártir da causa do herdeiro legítimo da coroa de Espanha, e acabara assassinado pelos rebeldes. Em sua honra ela vestia sempre de branco, vivia numa perpétua quaresma de pão e água, e todos os anos ia a Espanha em peregrinação ao seu túmulo. Era muito caritativa com os pobres, e mantinha a expensas suas uma escola para as crianças da aldeia e um hospital. De vez em quando tinha também visões e ouvia vozes, provavelmente a voz doce e marcial do general Zumala. Por tudo isto ela era muito considerada. Que ela tivesse mantido uma relação mais terrena com o mártir antes da sua morte não maculava a sua reputação. A donzelaria de velhadas dos dois sexos estava, pelo contrário, muito intrigada com a experiência que tivera a jovem criatura, como estariam muito provavelmente as onze mil virgens mártires de Colónia quando, no Paraíso, foram apresentadas à santa de maior posição no Céu, Santa Maria de Magdala.

Mas o coração do meu amigo Waldemar, quando a viu, derreteu-se tão rapidamente como um torrão de açúcar numa chávena de café quente.

- Arvid - disse-me ele - não vi jamais uma mulher assim, e sei que foi por vontade do destino que eu a encontrei agora. Pois, como bem sabe, o meu nome é Noite-e-Dia, e as minhas armas partidas de branco e negro. Por isso ela foi feita para mim... ou eu para ela. Porque esta madame Rosalba é mais plena de vida que outra qualquer pessoa que eu jamais conheci. É uma santa de primeira grandeza, e usa em sê-lo de tanto vigor como o capitão em tomar de assalto a cidadela. É uma flor, fresca e exuberante, no círculo de velhos e secos peristemas. E um cisne vogando no lago da vida eterna. Essa é a metade branca do meu escudo. E ao mesmo tempo nela paira a morte, e essa é a metade negra do brasão dos Nat-og-Dag. Só lhe posso explicar isto por metáforas, que me surgiram quando a olhava.

- Temos ouvido falar muito do cultivo da vinha desde que aqui estamos, e aprendemos também que, para tornar perfeito o vinho branco especial desta região, os lavradores deixam ficar por mais tempo as uvas nas videiras. Assim elas vão secando, tornam-se maduras de mais, e muito doces. Para além disso, desenvolveu-se aqui esse curioso processo a que os franceses chamam pourriture noble e os alemães Edelfaule, e que dá perfume ao vinho. Na atmosfera que envolve Rosalba há um perfume, Arvid, que não tem outra qualquer mulher.

Pode ser o verdadeiro odor a santidade, ou pode ser a nobre putrefacção, a real ferrugem de um vinho forte e raro. Ou então, Arvid, meu amigo, pode ser ambas as coisas, uma alma partida de branco e negro, uma alma de Nat-og-Dag.

No domingo seguinte, era em Maio, consegui ser apresentado a Madame Rosalba depois da missa, num jantar em casa de um velho amigo meu.

Esses velhos aristocratas, em plena ruína, mantinham farta a mesa e não desprezavam uma garrafa de vinho. Mas a jovem mulher comeu lentilhas e pão seco, bebeu um copo de água, e isto num recato franco e tão doce que a dieta parecia já muito nobre, e a ninguém ocorreria oferecer-lhe um outro manjar. Acabada a refeição, na sala fresca e sombria, ela entreteve os circunstantes com a mesma franqueza e modéstia, descrevendo a visão que tivera ultimamente. Encontrara-se, dizia ela, num vasto e florido prado, com um bando enorme de criancinhas, cada qual tendo em volta da cabeça uma pequena auréola, clara como a chama de uma vela. São José viera então em pessoa ao seu encontro para informá-la que ali era o Paraíso e que ela seria a ama daqueles meninos. Estes, explicara o santo, outros não eram que os primeiros mártires, os inocentes de Belém assassinados por Herodes. Fez-lhe ver o santo a doçura daquela tarefa, pois, tal como o Senhor sofrera e morrera pela humanidade, assim estas crianças tinham sofrido e morrido pelo Senhor. Uma grande bem-aventurança desceu sobre ela a estas palavras do santo, e suspirando de felicidade declarou que jamais havia de querer da eternidade outra coisa que não fosse cuidar das crianças mártires e brincar com elas.

Eu não acredito muito nas visões e no Paraíso, mas ao ouvir esta jovem mulher contar a sua história não tive dúvidas de que ela tinha visto realmente com os próprios olhos o que assim descrevia, e que tinha sido escolhida para habitar o Paraíso. Era tão plena de vida que fazia sentir quem a ouvisse que a escolha fora acertada; os pequenos mártires haviam de brincar muito.

Uma vez, enquanto falava, ela ergueu os olhos. Meu Deus, que olhos aqueles! Eram, de facto, poderosíssimos; e quando ela nos assestava um dos seus olhares de trinta arráteis... puff!

Agora*, ouvindo-a eu também com recato e olhando em volta o círculo feliz dos seus velhos discípulos, convenci-me de que havia algures nesta história uma bela e descarada vigarice. Rosalba podia muito bem ser uma santa de primeira apanha. Podia também cumular de caridade os ricos e os pobres, como se possuísse um corno de abundâncias. E talvez tivesse amado o general Zumala Carregui, e nesse caso o general seria digno de inveja. Mas ela não o tinha amado apenas a ele no mundo, e não vivia agora só para recordá-lo. A monogamia - que existe, sim, e eu próprio já fui amado por mulheres de temperamento monogâmico - é uma coisa que se nota logo numa mulher. Podemos confundir a freira com a mundana, mas essas mulheres que na índia, ao que se diz, imploram que as lancem às chamas das piras funerárias dos maridos, essas sabemos reconhecê-las. Ou este cisne branco, pensei eu, esta Rosalba, pode desfiar os nomes dos amantes pelas contas do rosário, ou é uma solteirona perversa - porque, para donzela, já não tinha idade; contava mais de trinta anos - que por desespero se faz passar aos olhos dos meus Legitimistas pela amante de um general.

Rosalba não tinha olhado para mim mais do que uma vez, mas estava consciente da minha presença. Eu e ela, sentados embora tão longe um do outro, estávamos em contacto tão estreito como se dançássemos um pas-de-deux no centro de um palco, com o idoso corps du ballet agrupado à nossa volta. Quando ela foi à janela ver se a sua carruagem tinha chegado, as pregas do seu vestido branco e as tranças do seu cabelo negro moveram-se e flutuaram para que eu as admirasse.

Pensei: Nunca tive na vida um morto por rival; vejamos do que é capaz o general Zumala. Na Páscoa tive de ouvir um sermão sobre Santa Maria Madalena - esta Maria santa teria sido mais difícil de conquistar que outra qualquer Maria da terra? Ou mais fácil? O ginete, mesmo velho, levanta a cabeça, diz-se, ao ouvir o cornetim.

Logo me tornei visita assídua no château de madame Rosalba. Não sei se a velha comunidade aristocrática da cidade fazia alguma ideia dos perigos que corria a sua santa. Passou a aceitar o meu braço sempre que saía a visitar os pobres e os doentes. A princípio eu consultava-a muito sobre a salvação da minha alma. Confessei-Ihe muitos dos meus pecados, e nenhum deles pareceu impressioná-la grandemente. Talvez os conhecesse por experiência. Deu-me realmente bons conselhos, creio eu, e, se quisesse reformar-me, decerto faria bem em os seguir. Ela conservava a sua severidade e gentileza de maneiras, e parecia gostar de mim, mas no nosso pas-de-deux amoroso era lenta de movimentos. Por meu lado, eu era paciente. Tinha de manter o meu amigo Waldemar debaixo de olho, e sabia que reservava a essa mulher uma bela surpresa no fim da dança.

Uma coisa me parecia estranha nessa casa. Fui criado na fé luterana e a minha boa avó costumava levar-me à igreja no dia de Natal. Ouvi muitos sermões e conheço a diferença entre a santidade e o pecado tão bem quanto o velho pastor Methodius, mesmo se os nossos gostos pessoais divergiam na escolha. Mas, pela minha honra de oficial da Guarda, nela era difícil destrinçar o bem do mal. Ela pregava teologia com tal voluptuosidade como se a mesa do Senhor fosse um regalo de gourmet, e, se era de amor que falávamos, nos seus lábios ele parecia um jogo de crianças em pleno kindergarten. Disto eu não gostava. Tive uma ama que acreditava em bruxas, e por vezes, na companhia de Rosalba, lembrava-me das histórias sinistras da velha maja-Lisa. Mas uma tão piedosa bruxa e uma tão libertina santa eu não tinha encontrado antes.

Acabei, todavia, por obter de Rosalba a promessa de um rendez-vous em sua casa, no fim de uma tarde de sexta-feira. Nesse dia toda a gente iria ao enterro da viúva de um marechal, que morrera aos 100 anos. Era no fim do mês de Junho. Por essa altura já me enfastiavam as suas hesitações, e pensei: Será na sexta-feira, ou nunca mais eu hei-de possuir mulher alguma.

Tudo isto, posso assegurar-lhe, talvez tivesse terminado de outra maneira se um caso não se tivesse dado em Saumur. Mas sucedeu que um velho e rico judeu - ao estilo do judeu da sua história, Fritz - ali se demorou uma semana, na viagem que o trazia de Espanha. Tudo o que tinha era do bom e do melhor. A sua carruagem, os seus criados, os seus diamantes, eram o assunto das conversas. Mas o que mais impressionava o coração da nossa escola de equitação era uma parelha de cavalos andaluzes que ele trazia consigo. Eram, e um deles particularmente, dos mais belos cavalos que se viram em França. Até no meu regimento na Suécia não havia outros que se lhe comparassem. Para mais, tinham sido treinados no manège real de Madrid, e era uma pena que tivessem ido parar às mãos de um judeu, e de um civil.

Por causa desses cavalos negligenciei Madame Rosalba durante alguns dias, de tanto que se falava deles. Poucos de nós seriam suficientemente ricos para os comprar, e no entanto considerávamos um ponto de honra fazer com que eles não deixassem Saumur. Por fim o barão Clootz, que era milionário, nobre, jovem e de muito engenho, uma noite, depois do jantar, fez uma proposta a cinco de nós que éramos, há longo tempo, os seus amigos e associados mais íntimos. Jurou que havia de comprar o cavalo ao judeu e pô-lo como prémio numa competição em que havíamos de mostrar do que éramos capazes. A regra desta competição era que, no espaço de um dia, cavalgássemos três milhas francesas, bebêssemos três garrafas de vinho da região, e possuíssemos três mulheres. A ordem por que havíamos de cumprir as provas éramos nós senhores de decidir, mas o cavalo do judeu pertenceria àquele de nós que primeiro chegasse a casa do barão Clootz depois de ter cumprido as condições.

A proposta fez um enorme sucesso, e eu já mentalmente decidira a ordem consecutiva das provas e passava em revista as mulheres bonitas do meu círculo de conhecimentos na região, quando me lembrei que o dia escolhido para a competição era o dia do meu rendez-vous com Madame Rosalba. O dia fora escolhido para ambos os fins pela mesma razão: a elite da cidade estaria ocupada, e impedida assim de meter o nariz nos nossos assuntos.

Eu tinha, porém, confiança em mim próprio, e ao sair de braço dado com o jovem Waldemar, pensei que a coisa teria alguma graça. Ele ainda adorava a Rosalba erguida no pedestal, a ponto de querer por sua causa mudar de religião e até, julgo eu, fazer-se monge. Quantas vezes eu tive de lhe ouvir os panegíricos à Rosalba! Todavia, e após alguma persuasão, tinhamo-lo convencido a entrar na nossa competição. Acho que ele pretendia mostrar-se a Rosalba no cavalo espanhol, pois era um razoável cavaleiro.

Eu fui, sem vaidade, pontual ao meu rendez-vous no branco château de Rosalba, nessa tarde de sexta-feira. A sua criada de quarto - porque não havia mais ninguém em casa; todos tinham ido ao funeral - foi quem me conduziu ao boudoir, na torre e ao cimo de uma longa escada de pedra. As gelosias estavam cerradas, a sala mergulhada numa semiobscuridade e, quando se vinha de fora, era tão fresca como o interior de uma igreja. Havia uma quantidade imensa de lírios brancos, saturando o ar com o seu perfume. Sobre uma mesa estavam copos e uma garrafa do melhor vinho que eu jamais provei, um Château Yquem seco. Seria esta a minha terceira garrafa do dia.

Rosalba estava ali também. Como sempre, vestia com singeleza, mas num só e grande movimento da sua pessoa tornara-se numa beldade esplêndida.

Se o que me aconteceu na torre parece uma alucinação, uma fantasia, e antes um conto de fadas ou uma história de fantasmas do que uma história de amor, a culpa não é minha. É verdade que o dia estava quente; uma tempestade sobreveio à noite; e que ao entrar, vindo de uma estrada branca, com pesadas botas de montar, não tinha já muita confiança na minha cabeça. Talvez me tivesse apaixonado por ela sem o saber, porque tudo parecia girar à sua volta, e nas minhas garrafas e nas minhas corridas em galope desenfreado outra coisa eu não via que as cerimónias de iniciação mais próprias a este momento grande de amor físico. Mas lembro-me bem do que se passou.

Eu não tinha muito tempo a perder. Um pouco toldado, sentindo o quarto oscilar diante dos meus olhos, as palavras vieram-me fáceis e em breve eu a tinha nos meus braços, os vestidos em desalinho. Era como o lírio na tempestade, branca e vacilante, o rosto molhado. Mas impôs-me distância com os braços estendidos.

- Ouve-me um instante - disse ela. - Aqui estamos sós. Não está mais ninguém em casa, além da criada que te trouxe aqui, essa linda rapariga. Não tens medo?

- Arvid, nunca ouviste contar a história de Don Giovanni? Ela olhou para mim tão fixamente que eu tive de responder que

tinha ouvido até a ópera que dela se fez.

- Lembras-te, então - disse ela - da cena em que a estátua do Commandante o vem buscar? Há uma estátua assim no túmulo do general Zumala, em Espanha.

Eu disse-lhe: - Ah, pois que lhe pese e o conserve lá bem fechado!

- Espera - disse Rosalba. - Rosalba pertencia ao general Zumala Carregui. Se ela o trair, a pobre Rosalba desaparecerá. Mas a ópera, mais cedo ou mais tarde, terá de ter um quinto acto. E tu, minha estrela do Norte, irás ter o teu papel de herói. É a tua honra que está em jogo, como se fosses mulher. Não terás Santa Maria de Magdala a interceder por ti. Rosalba era uma fantasia cintilante, e quando tu a desfizeres, só ficarás com um resto de coisa nenhuma. Mas é chegado o tempo de ela se acabar. As pessoas, e até quem a criou, todos começam já a gostar dela em demasia. Tu vais oferecer-lhe um grande fim trágico. Nenhum homem no mundo, creio, o poderia fazer melhor do que tu. És digno de figurar na sua história.

- Deixa-me então figurar na tua história - disse-lhe em voz sufocada.

- Não tens pena da pobre Rosalba? - perguntou-me. - Que ela vá perder o seu único refúgio, e se veja perseguida e amaldiçoada para sempre, isso não tem importância para ti?

- Tu também não tens pena de mim - exclamei.

- Ah, como te enganas! Preocupo-me contigo, Arvid, fazes-me tanto dó. Um futuro medonho te espera, a desolação, o deserto... oh, que tortura! Se eu pudesse ajudava-te; mas é-me impossível fazê-lo. A recordação de Rosalba nunca te fará qualquer bem; o seu exemplo não poderá ajudar-te. A lembrança desta hora talvez um dia te faça algum bem, mas nem isso é certo. Oh, meu amante, se para te salvar eu te fizesse presente de um lindo cavalo, já selado, tão fogoso que te levasse a galope para bem longe deste pecado terrível e da perdição de nós ambos, e se eu mandasse a minha criada, aquela bonita rapariga que te conduziu aqui, se eu a mandasse contigo a buscá-lo, tu ias-te embora?

- Porque em breve - disse ela, erguendo-se a toda a sua altura, a sua mão ainda no meu peito, como a minha mão pousava no seu, e falando à maneira de uma sibila - pode ser tarde, e talvez ouçamos os passos fatais na escada, o mármore pisando outro mármore.

Na nossa agitação o seu cabelo negro, que ela usava caído em pequenos anéis emoldurando o rosto, foi atirado para trás e eu vi que ela tinha na realidade a marca das bruxas. Da orelha esquerda à omoplata estendia-se uma funda cicatriz, como uma pequena serpente branca...

Ao ouvir estas palavras do barão, o Piloto exclamou:

- O quê? O que está você a dizer?

- Dizia - replicou o barão com paciência, agradado com a impressão que a sua história causava - que da sua orelha esquerda à omoplata havia uma cicatriz como uma serpente.

- Eu ouvi muito bem - exclamou o Piloto. - Porque repete você as minhas palavras? A modista de chapéus de Lucerna, Madame Lola, tinha no pescoço uma cicatriz assim, e eu ainda há pouco lha descrevi.

- Você não disse nada de cicatriz nenhuma - disse o barão.

- Não disse? - exclamou o Piloto virando-se para mim. Eu nada respondi. Pensava: Estou a sonhar. Agora tenho a

certeza de estar a sonhar. Este hotel, o Piloto, o barão sueco, tudo faz parte de um sonho. Meu Deus, que pesadelo! Por fim perdi irremediavelmente a razão, e o que vai acontecer agora é Olalla entrar por aquela porta, ligeira, como sempre me aparece em sonhos. Esperando vê-la, eu não tirava os olhos da porta.

De vez em vez, enquanto conversávamos, hóspedes chegavam ao hotel, sentavam-se ou passavam por aquela sala em direcção aos aposentos no interior do hotel. Entrava agora uma senhora com a criada, que passou por nós, apressada e sem rumor. A senhora usava uma capa negra que lhe escondia o rosto e a silhueta. A criada tinha o cabelo enrolado em volta da cabeça, à maneira suíça, e levava os xailes. Ambas pareciam tão recatadas que o barão lhes dispensou mais do que um olhar. Foi somente quando elas já tinham desaparecido que o Piloto, cessando a acalorada discussão que mantinha com o sueco, ficou feito numa estátua, olhando fixamente a porta. Quando lhe perguntámos, rindo - porque tínhamos bebido o suficiente para nos acharmos ridículos uns aos outros - que diabo lhe mordera, o Piloto volveu o grande rosto para nós.

- Era ela - exclamou, profundamente abalado, e mais abalado ficou ao ouvir o som da própria voz. - Era Madame Lola, de Lucerna.

O raio da loucura sempre caíra, afinal, mas atingira o Piloto e não a mim. Ninguém sabia, porém, o que iria acontecer agora; e de facto, ao ouvir as suas palavras, pareceu-me que a senhora tinha qualquer coisa que não me era estranha. O Piloto puxava os cabelos.

- Então, meu rapaz - disse eu, travando-lhe o braço. - Não é preciso ficar assim. Vamos todos perguntar ao porteiro, que a há-de conhecer, se esta senhora não for como a parteira de Ander-matt, que se descobriu nada ter em comum com a donzela de Orleães.

Rindo ainda, arrastámo-lo até à loge do porteiro, e começámos a interrogar o suíço, um velho careca, sobre as recém-chegadas. O porteiro, a princípio, estava ocupado em contar as variadas e elegantes bagagens e não nos deu muita atenção.

- Olhe - disse-lhe eu - aqui tem uma bela recompensa em troca de um favorzinho seu. Aquela senhora de juste-au-corps negro é uma revolucionária que inspirou o assassínio do cura do bispo de Saint Gallen? Ou é uma mística que dedicou a sua vida à memória do general Zumala Carregui? Ou é uma rameira de Roma?

O velho deixou cair o lápis e olhou-nos fixamente.

- Valha-me Deus, que diz Vossa Senhoria? - exclamou ele. - A senhora que passou agora pela sala de jantar, e que se hospedou no número nove, outra não é senão a esposa do senhor conselheiro Heerbrand, de Altdorf. O conselheiro é a pessoa mais grada da cidade, e era um viúvo com muitos filhos. A presente conselheira Heerbrand é viúva de um viticultor italiano, e tem uma propriedade na Toscana, o que a obriga a viajar assim para lá e para cá. Em Altdorf, onde tenho três netas a servir, ela é altamente respeitada. Aquela senhora é que dá o tom na cidade, e é uma jogadora de cartas de fama.

- Bom, Piloto - disse, ao guiá-lo de volta à sala, pois ficara tão pasmado que teria permanecido no mesmo lugar se eu lhe tivesse largado o braço - eis uma prosaica solução para o nosso enigma. Hoje podemos dormir descansados nos quartos oito e dez, com a cama da Conselheira de permeio.

Eu não via muito bem por onde ia, e tropecei em alguém que, de bengala na mão, atravessava lentamente a sala de jantar em nossa direcção. Pedi-lhe desculpas, e, quando ele ergueu de leve a cartola, reconheci que se tratava do velho judeu de Roma, Marcus Cocoza. Na mesma fracção de segundo ele prosseguiu o seu caminho e saiu por essa mesma porta por que passara a senhora.

Tive um primeiro momento de puro terror, ao olhar a face pálida e os olhos de um negro profundo, e depois fui tomado de uma fúria que me fez estremecer da cabeça aos pés. Eu não me enfureço com facilidade, como tu sabes, Mira, e já era assim em novo. Quando realmente me enfureço, sinto um alívio extraordinário. Eu tinha andado deprimido, desapontado, fora ridículo, estivera inactivo durante longo tempo, e o meu desespero tinha atingido o clímax ao encontrar-me com os dois amigos no hotel. Agora, pensava eu, se tudo no mundo estava de facto contra mim, e se tudo me era igualmente odioso, chegara o momento de lutar. Pelo menos foi o que eu senti no momento. Mais tarde reflecti que não fora eu quem operara essa mudança em mim próprio, mas a proximidade dessa mulher. Ela tinha passado a uns dez palmos de mim, e tinha libertado o meu coração com o roçar das suas saias, e mais uma vez os ventos da vida enfunaram as minhas velas, e sobre as correntes navegava a minha quilha.

Olhei para os meus dois companheiros, e vi que ambos tinham reconhecido o judeu. Naquele espanto mais pareciam dois bonecos articulados. A magia que eu tinha encontrado envolvia-os a eles também - ou então não passavam de figuras da minha imaginação. Isso pouco me importava. Agora estava decidido a ajustar contas com o destino. Tirei o meu cartão, escrevi nele o nome do velho judeu e o desafio da praxe no melhor estilo, pedindo-lhe que me recebesse imediatamente, e mandei o criado do hotel entregá-lo no seu quarto. Não era pouco o medo que eu sentia desse velho a que Olalla chamara a sua sombra. Acreditava piamente que ele tinha parte com o Diabo, mas era imperioso que eu lhe falasse. O criado, porém, voltou para dizer-me que isso era impossível. O cavalheiro em questão já se recolhera, mandara o seu criado pessoal levar-lhe uma bebida quente e agora tinha fechado a porta e não queria ser incomodado. Disse ao homem que era um assunto de gravidade, mas ele recusou-se a fazer alguma coisa mais. Conhecia bem o hóspede, que viajava numa esplêndida carruagem com os seus próprios criados, e era senhor de uma fortuna incalculável.

- Ele tem passado por aqui - perguntei ao criado do hotel - em companhia de Madame Heerbrand?

- Não, nunca - afirmou o pobre diabo, a quem expressão do meu rosto, creio, assustava. Parecia-lhe que a senhora e o cavalheiro nem sequer se conheciam, disse ele.

Era odioso para mim ter de esperar toda a noite para resolver o assunto. Mas, como não podia ser de outro modo, arrastei uma cadeira para junto do fogão e aticei o lume, não ousando sequer adormecer. Tinha medo que essa mulher saísse de manhã cedo do hotel, por isso voltei a chamar o criado, dei-lhe uma gorjeta e intimei-o a vir avisar-me assim que a senhora do número nove deixasse o hotel no dia seguinte.

- Mas - disse o rapaz - a senhora já partiu.

- Partiu? - exclamei, com o Piloto e o barão repetindo o meu grito em ecos sucessivos.

Sim, partira. Mal tinha deixado a sala por uma porta, voltara por outra à loge do porteiro, em grande aflição, e mandara que uma carruagem a levasse ao mosteiro nessa noite mesmo. Tinham-lhe entregado uma carta no hotel, disse ela ao porteiro, informando-a de que a irmã estava moribunda, na Itália. Precisava de seguir viagem, era um caso de vida ou de morte.

- Mas será possível - perguntei - fazer essa jornada de noite, e com esta tempestade?

O criado concordou que seria difícil, mas ela insistira, oferecera-se para pagar o dobro e o triplo do aluguer e apertara as mãos em tanto sofrimento que o coração do cocheiro se comovera. Além disso, não era fácil desobedecer a Frau Heerbrand. Não era uma senhora como as outras. Lá foi. Nós até devíamos ter ouvido as rodas da sua carruagem. Era verdade. De facto, nós tínhamos ouvido.

Ali ficámos, pois, como três cães à volta do covil de uma raposa.

Não duvidei que fosse a presença do velho judeu o que fizera fugir essa mulher. Ele era de facto um mágico, um demónio, o djiin que lograra apoderar-se da bela dama. Por instantes mergulhei na angústia mais profunda por não poder entrar no seu quarto e matá-lo. Mas isso provocaria um grande rebuliço, e haviam de mo impedir. Nada mais restava que segui-la e protegê-la desse judeu. A esta ideia o meu coração ganhou asas como a alegre cotovia.

Tivemos alguma dificuldade em arranjar uma carruagem, mas finalmente o barão ultrapassou-a, demonstrando uma grande energia e eficiência. Compreendi que os meus dois companheiros, que desconheciam qualquer interesse pessoal meu no assunto, se surpreendiam com o meu zelo. O barão, supondo-me perdido de bêbado, não era, mesmo assim, avesso a que mais alguém fosse espectador das suas façanhas. O Piloto, esse, tomou a minha impaciência como prova de amizade por ele. Basta dizer que tentou expressar em palavras, embora até ali parecesse ter emudecido, o quanto me estava grato.

- Vai para o Inferno, Piloto - disse-lhe eu.

E ele contentou-se, por isso, em me apertar a mão.

Finalmente, e a peso de ouro, veio a carruagem e nós partimos a caminho do mosteiro.

O vento era temível, e uma espessa camada de neve cobria a estrada. Por consequência, a nossa carruagem seguia em marcha desigual, aos trancos e barrancos, e por vezes chegava mesmo a parar. Nós íamos sentados cada um a seu canto. Desde que penetrámos na atmosfera sufocante da carruagem fechada, por detrás dos vidros que a borrasca fustigava e rapidamente encobriu, não trocámos uma só palavra. Cada um de nós ambicionava, tenho a certeza, que os companheiros perecessem na viagem. Eu, porém, logo me deixei todo invadir pela ideia de rever Olalla a ponto de o mundo exterior se sumir e desaparecer dos meus olhos. Subíamos sempre. Quase podíamos continuar subindo ao Céu. O meu céu, se eu fosse livre então de o escolher, seria também turbulento, todo feito de um galope frenético.

À medida que prosseguíamos viagem, a estrada tornou-se mais íngreme e a nevasca mais violenta. O cocheiro e o moço não viam dez palmos à sua frente. Subitamente a carruagem deu um grande solavanco e imobilizou-se. O cocheiro, descendo da boleia, abriu com violência a porta e uma forte rajada de vento e neve penetrou com ele no interior, todo coberto de neve como estava, bradando furioso que era impossível fazer sair as rodas do atoleiro onde se atascavam.

Consultámo-nos brevemente, o que de nada nos serviu, pois todos quisemos prosseguir viagem. Saímos aos tropeções, abotoando os capotes e levantando as golas e, dobrados como velhos, continuámos a perseguição a pé.

Parara de nevar. O céu estava quase claro. A Lua, correndo por trás de finas nuvens, indicava-nos o caminho. Mas o vento aqui era medonho. Lembrei-me, quando saí da carruagem, de um conto de fadas que em criança me contavam, e no qual uma velha bruxa tem todos os ventos dos céus presos num saco. Os ventos aqui encerrados bramiam enfurecidos, caindo sobre nós como cães de combate que a coleira prende. Por vezes pareciam abater-se a direito sobre as nossas cabeças, para de novo se erguerem do chão, fazendo a neve girar em remoinhos de grande altura. Na carruagem sentíramos frio, mas aqui, estando já a uma grande altitude e em plena montanha, o ar era glacial, como se alguém tivesse despejado um balde de água gelada sobre nós. Quase nem se podia respirar. Mas toda esta fúria dos elementos me fez bem. Num mundo como este, numa noite como esta, eu iria encontrá-la, e ela iria precisar de mim.

As silhuetas dos meus companheiros, indistintas e vagas apenas à distância de um braço como sombras na neve da estrada, eram insignificantes para mim. Esta procura, eu a sentia como só minha, e em breve me distanciava um pouco deles. Ao Piloto perdi-o de vista. O barão mantinha-se relativamente próximo de mim, mas não me alcançava.

De súbito, após talvez uma hora de caminho, quando a estrada rodeou um rochedo, um vasto objecto quadrangular, inclinado na berma do trilho, agigantou-se qual torre imensa à minha frente. Era a carruagem de Olalla. Ali ficara, atolada como a nossa e meio virada, não se vendo nem cavalos nem cocheiro. Abri de um sacão a porta, e uma mulher no interior da carruagem deu um grito medonho. Era a criada que eu tinha visto no hotel. Acocorava-se no chão da carruagem, coberta com xailes. Estava só, e quando percebeu que eu não vinha matá-la ou para a roubar, gritou-me que o cocheiro tinha desatrelado os cavalos para os levar para um abrigo, depois de abandonar, como o nosso também, a esperança de ir mais longe. Mas onde, gritei-lhe eu, estava a senhora? Seguira, disse-me a criada, seguira viagem a pé. A rapariga estava num susto horrível, e ao descrever a fuga da ama e os perigos que ela corria soluçava, chorava, mal podendo articular as palavras. Libertei-me dela a custo, pois não queria que eu a deixasse, e bati a porta da carruagem. Que terror, que perigos, pensei, encerraria aquela carruagem para fazer uma mulher abandoná-la, sozinha, no breu da noite e nas montanhas mais ermas? O que teria, que a ameaçava, o velho judeu de Amsterdão?

Eu tinha parado junto à carruagem por um quarto de hora talvez, o que permitira ao barão alcançar-me. As duas lanternas do carro ainda estavam acesas e, ao surgir por trás de mim, e ao falar-me, foi curioso ver na noite fria o seu rosto aparecer escarlate, chamejante a esta luz. No abrigo da carruagem poucas palavras trocámos. Prosseguimos, caminhando lado a lado por um tempo.

Onde o trilho era mais íngreme, por entre o nevoeiro que a neve rodopiando levantava, rente ao solo como o fumo de um canhão, avistei uma sombra escura à minha frente, a menos de cem jardas, que poderia bem ser uma figura humana. A princípio julguei vê-la aparecer e desaparecer, e era-me difícil, no breu da noite e nessa tempestade, manter os olhos fitos nela. Mas pouco a pouco, embora eu não me aproximasse, os meus olhos foram-se habituando à escuridão e já podiam segui-la sem fraquejar. Caminhava, nesta íngreme e difícil subida, tão depressa quanto eu, e essa minha fantasia do passado, em que a soubera voando, vinha-me então à lembrança. O vento embaraçava-lhe as saias. Se as enfunava por vezes, espalhando-as, ela parecia uma coruja furiosa num ramo alongando as asas. Cingindo-as depois ao corpo, enrodilhadas, ao andar, as longas pernas pareciam as de um grou, quando corre pelo chão a tomar vento nas asas.

Ao vê-la, a presença do barão tornou-se-me intolerável. Se eu tinha perseguido Olalla durante seis meses para a vir alcançar aqui, no desfiladeiro da montanha, então que a tivesse só para mim. De nada serviria explicar isto ao barão. Parei. E, como ele parasse também, agarrei-o pelas bandas do capote e empurrei-o para trás. A subida cansara-o. Respirava com dificuldade e tinha já parado por várias ocasiões. Mas o barão recobrara forças ao sentir as minhas mãos, e ao ver a expressão do meu rosto. Agora por nada deste mundo me deixaria prosseguir sozinho. Vi um brilho mau naqueles olhos, e nos dentes. Lutámos por alguns minutos no caminho pedregoso, e ele, com um safanão, derrubou-me o chapéu, que rolou montanha abaixo. Mas eu, agarrando-o ainda pela roupa com a mão esquerda, assentei-lhe um murro na cara que o fez perder o equilíbrio. O solo estava escorregadio e ele caiu e rolou pela estrada. Ao cair tinha puxado o cachecol que eu levava ao pescoço, e quase me estrangulou. Maldizendo aquele atraso, galguei a subida, suando e tremendo com o esforço.

De novo só, e certo de alcançar enfim Olalla nestas altas montanhas, sentia-me invadir pela felicidade e pelo medo que me assaltara já quando vira a carruagem. Ambos me deram forças para continuar. Mais uma vez pensei, correndo eu cá em baixo na Terra escura como a Lua pelo Céu, que muito provavelmente estava doido. A situação era, com efeito, de enlouquecer, feita à medida para uma stravaganza dos teatros de Roma. Aqui estava eu, seguindo pelos ermos a mulher amada, e ela fugindo à minha frente, pela noite, tão depressa quanto podia, julgando que eu era esse velho inimigo de nós ambos que primeiro nos separou e me apetecia matar. Ela não voltou a cabeça uma só vez, e teria sido inútil chamá-la contra o vento. Para além do mais, ambos nos íamos consumindo mais do que as nossas forças o permitiam, ela na fuga, eu na perseguição; e mesmo assim, ao seguirmos curvados como dois velhos, apenas podíamos vencer duas milhas por hora. Mas o mais estranho de tudo, e o que mais me afligia, era pensar como ela podia confundir-me com o velho judeu. Nas ruas de Roma e na sala de Andermatt ela caminhara lentamente, apoiada numa bengala. Eu era novo e um bom atleta, e no entanto ela confundia-me com ele. Esse velho devia ser realmente um demónio, ou tinha o poder de tomar os demónios ao seu serviço. Comecei a sentir-me eu próprio o seu mensageiro, o seu enviado. Estava já talvez, sem o saber, nas suas mãos e seria, contra minha vontade, o espírito maligno que servia o velho bruxo de Amsterdão?

Enquanto isto me passava pela cabeça eu tinha ganho terreno. E então, aguilhoado pela sua presença, completamente louco do desejo de a alcançar, de abraçá-la, galguei de um salto o espaço que nos separava. Subitamente a sua longa capa, que o vento enfunava atrás, fustigou-me a cara, e no instante seguinte eu estava a seu lado, ultrapassava-a de um salto e, rodando nos calcanhares, fazia-a parar. Ela correu direita aos meus braços, e teria caído se eu não a amparasse. Segundos depois, sob a Lua errante de Inverno, estávamos confundidos num abraço. Apertados um contra o outro, pela força dos elementos, ambos arquejávamos.

Sabes, Mira, é imensa a loucura dos seres humanos. Eu tinha buscado a salvação, certo de que, ao alcançar essa mulher, a felicidade que eu conhecera em Roma havia de voltar. Não me lembro já do que sonhara fazer - se levantá-la do chão, se possuída sobre a neve, se matá-la, quem sabe, para que ela nunca mais pudesse fazer-me sofrer. Conheci um instante de felicidade, sim, ao apertá-la nos braços, ao sentir a sua respiração no meu rosto, e as suas formas contra o meu corpo saudoso. Mas durou tão pouco esse instante. O vento havia levado o seu chapéu para longe. O rosto que ela erguia, branco de cal, com dois grandes olhos que eram como dois lagos, estava muito próximo do meu. Agora eu via que ela estava apavorada. Não era do judeu que ela fugia - era de mim.

Muitos anos depois, ao atravessar o Mediterrâneo debaixo de uma tempestade, olhei por momentos os olhos de um gavião que tentava repetidamente, sempre em vão, enganchar-se no cordame do meu barco antes que o vento o levasse e o sepultasse no mar. Era de novo a expressão do rosto de Olalla naquele desfiladeiro de montanha. Também o gavião estava perdido, louco de medo, esgotado pela fadiga e já sem esperança.

Suponho que fitava Olalla, tão preso de terror como ela, e quando o percebi, gritei-lhe no rosto o seu nome duas ou três vezes. Ela não tinha forças para falar, e não sei se me ouviu.

Agora que a protegia do vento, os seus longos cabelos negros e os negros vestidos tombaram junto ao corpo. Ela pareceu mudar de forma e transformar-se numa coluna nos meus braços. Ficámos assim por algum tempo, e finalmente eu perguntei:

- Porque foges de mim? Ela fitou-me.

- Quem é o senhor? - disse ela por fim.

Apertei-a nos meus braços mais ainda, e dei-lhe um beijo, depois outro. O seu rosto era muito frio e fresco. Imóvel, ela deixava-se beijar. Mais queria que fossem os farrapos de neve e o vento em fúria a tocar-lhe os lábios que o meu rosto e a minha boca.

- Olalla - disse eu - toda a vida te procurei, corri o Mundo inteiro. Não podemos ficar juntos agora, aqui?

- Eu estou sozinha aqui - disse ela, passado algum tempo. - Assustou-me. Quem é o senhor?

Achei que era altura de impor tréguas a essa perseguição que me vinha acossando. Por isso me quedei imóvel, reflectindo na situação. Não podia deixá-la sozinha, à mercê da noite e do vento. Soltei-a, conservando-a amparada no meu braço direito.

- Madame - disse-lhe - sou um inglês em jornada por estas malditas montanhas. O meu nome é Fosner. Uma senhora não deve andar sozinha por estrada tão má, e a estas horas da noite. Consinta que a acompanhe ao mosteiro. Será uma grande honra para mim.

Reflectiu nisso, e pareceu apoiar-se confiante no meu braço. Mas disse:

- Não posso dar nem mais um passo.

Bem vi que não. Se eu não a amparasse, ela teria caído. Que havíamos de fazer? Ela própria olhou em seu redor, e depois para a Lua. Quando por fim recuperou um certo equilíbrio, disse:

- Deixe-me descansar um pouco. Vamos sentar-nos aqui, e descansar; depois irei consigo até ao mosteiro.

Procurei com os olhos um abrigo e descobri um que era o menos mau, próximo de onde nos encontrávamos, na aba de um grande rochedo que avançava, saliente, sobre a estrada, a umas cem jardas de distância. Cobria-o a neve que o turbilhão do vento para ali atirara, mas no recesso de pedra o vento não penetrava. Levei-a, ou, antes, carreguei-a até lá. Tirei o capote e o cachecol com que o barão quase me havia estrangulado, e aqueci Olalla o melhor que pude. Entretanto a noite clareava. Toda a paisagem imensa era de uma alvura brilhante, excepto quando alguma nuvem escondia a Lua. Sentei-me a seu lado, na esperança de que tivéssemos um momento de paz na solidão dessas montanhas.

Olalla sentava-se perto de mim, o seu ombro roçando o meu, calma e perfeitamente amável. Experimentei de novo essa impressão que ela me dera sempre: a de a dor e o sofrimento não a afectarem, a de tudo ser, de certo modo, a mesma coisa para ela. Sentava-se no desfiladeiro agreste e frio da montanha como uma pequenina havia de sentar-se num prado florido, o bibe cheio das flores que colhera.

Passado algum tempo, disse-lhe:

- O que a traz a estas montanhas, Madame? Eu viajo em busca de uma coisa, mas não tenho sorte. Queria, também, ajudá-la, e lamento se a assustei porque, assim sendo, é-me mais difícil vir em seu auxílio.

- Sim - disse ela após um silêncio - não é fácil viver, não é fácil para ninguém. Do mesmo se queixava Madame Nanine. Ela queria ter as raparigas sempre bem disciplinadas, mas não nos queria submissas, porque assim não teríamos préstimo algum na casa. Madame Nanine era a mulher que dirigia esse lupanar de Roma de que te falei.

Disse-me ela isto num tom afável, como se para me demonstrar cortesia. Evidentemente pensava que, tendo eu a bondade de admitir que ela me era uma perfeita desconhecida, ela me retribuia com a confissão de nos termos conhecido há longo tempo atrás.

Disse-lhe:

- Só aqui é que faz este frio. Amanhã, quando descer o desfiladeiro, irá ao encontro dos ventos da Primavera. Em Itália agora é Primavera, e a Roma, penso eu, já voltaram as andorinhas.

- Lá é Primavera? - perguntou ela. - Não, ainda não é. Mas será em breve, e para si será muito agradável, que é tão novo.

- Sabes, Mira - disse Lincoln, interrompendo a narrativa - que é hoje a primeira vez que penso nessa hora passada nas montanhas? Só a lembro, passo a passo, por assim dizer, à medida que ta vou contando. Nem sei porque não pensava nisto antes. É esta Lua que mo faz recordar, talvez? Ela também lá estava, a Lua.

- Madame - disse-lhe eu - se estivéssemos agora no meu país havia de preparar-lhe uma bebida, quando chegássemos a uma casa, que lhe daria novas forças... sim, e o gengibre havia de aquecer-lhe a boca.

Descrevi-lhe as nossas bebidas fortes, e como se chega a casa num dia de Inverno, com as mãos e os pés gelados, e as bebemos frente à lareira. Principiámos então a falar de comidas e bebidas, e de como nos havíamos de desembaraçar se ali ficássemos retidos para sempre. Era agradável poder falar, ali, e ser ouvido, sem precisão de gritar. Esta caverna sob o rochedo era em muito semelhante, aliás, a uma casa, para ela e para mim, um lar como nunca um e outro antes conhecêramos. Parecia-me que tudo ali havia de harmonizar-se, que até meu pai, se pudesse invocar o seu espírito, ali se nos havia de reunir com prazer e orgulho. Ela não falava muito, mas ria por vezes com o que eu dizia. Eu também não falava continuamente. Ficámos ali sentados, creio, por uns três quartos de hora talvez. Eu sabia que era perigoso adormecer.

Foi nessa altura que me pareceu ver uma luz na estrada, e duas figuras que avançavam, sombrias, parando de vez em quando. Era o Piloto, morto de cansaço, exausto da subida, com o barão que se apoiava no seu braço e coxeava pela difícil estrada à luz do luar. Soube depois que o sueco tinha torcido o tornozelo ao cair, e que o Piloto, que seguia atrás, o tinha ajudado a erguer-se e o socorrera. O barão tinha mandado o outro buscar a única lanterna ainda acesa na carruagem de Olalla. Era essa lanterna que traziam, penosamente, e ambos vinham entorpecidos de frio.

Quis a minha pouca sorte que eles parassem para recobrar forças e prosseguir na jornada, e pousassem a lanterna mesmo ao pé do nosso refúgio. O Piloto não nos viu; nada ele via no mundo em seu redor. Mas o barão, sempre coxeando, o rosto branco de dor, estava atento, e tinha olhos de lince. Voltou-se, arrastando consigo o Piloto. Eu tinha-me levantado ao vê-los. Pensei que talvez fosse bom que eles tivessem vindo: podiam ajudar-me a levar Olalla para o mosteiro.

Não me parece que o barão quisesse lutar de novo comigo, mas estava furioso. Provavelmente fora sempre difícil para alguém de força igual à sua vencê-lo. Mas agora sentia, penso eu, que tinha o Piloto do seu lado. Devia ter-lhe contado o nosso encontro, e dado de mim a imagem de um louco ou de um bêbado.

- Com que então - exclamou ele - a caça terminou e o inglês venceu! E tirou logo partido da situação, mesmo a dez graus abaixo de zero. Não lhe devíamos ter gabado tanto os atractivos. Até agora ele só tinha visto as mulheres do seu país, e nós pusemo-lo completamente doido. Vamos nós agora ver a senhora, Fritz.

Pareciam duas aves de mau agoiro quando se aproximaram de nós. O Piloto havia voltado a lanterna, de modo que a luz incidiu sobre Olalla. Ela tinha-se levantado e ficara de pé a meu lado, mas já não se apoiava em mim.

O barão fitava-a. O Piloto também.

- Então és mesmo tu, minha santa Rosalba - disse o primeiro - repousando um momento na viagem a caminho do Céu. Felicidades é o que eu te desejo nessa mais agradável carreira.

Vi que às suas palavras a custo Olalla se impedia de rir. Com efeito, sempre que olhava para o sueco ela tinha vontade de rir. Mas estava muito branca, e a cada minuto ficava mais pálida.

Agora o Piloto, que vinha segurando a lanterna e ficara imóvel, como se a luz o cegasse, avançou para nós um passo e fitou-a no rosto.

- Madàme Lola - gritou ele - é a senhora?

- Não, não sou - disse ela. - O senhor está equivocado. Isto confundiu terrivelmente o Piloto, que puxava os cabelos.

Tive a impressão de que ele ia ficar louco nesse mesmo instante.

- Não me iluda, peço-lhe - disse ele. - Diga-me, então, quem é.

- O meu nome não teria qualquer significado para si - disse ela. - Eu não o conheço.

- Sei que está zangada comigo - exclamou ele - por eu ter contado a nossa história a outras pessoas. Mas eu não sabia o que fazer. Realmente, desde esse último dia em que a vi eu não tenho sabido mais o que fazer. Sou infeliz, Madame Lola. Diga-me quem é.

À luz da lanterna vi que os vestidos de Olalla estavam empinados e lustrosos de gelo, e os sapatos cobertos com uma grossa camada de neve. Mas nem assim eu a arrastei dali; fiquei, e ouvi.

De súbito o Piloto caiu de joelhos, na neve, a seus pés.

- Madame Lola - exclamou - salve-me! A senhora é a única pessoa no mundo que o pode fazer. Aquelas semanas em Lucerna foram as únicas de felicidade para mim em toda a minha vida. E as coisas que eu havia de fazer! Eu já nem sei quais eram. Diga-me quem é!

O barão arrebatou a lanterna que o Piloto deixara cair e ergueu-a bem alto. Creio que estava transtornado por ver até que ponto o outro tinha descido.

- Essa Madame Rosalba - exclamou - elle se moque des gens! Foi a primeira coisa que me disseram dela. Mas não há-de rir por muito tempo deste jovem Arvid Guildenstern. Essa santa mulher tem nas costas um sinalzinho castanho. É uma prova fácil de tirar, entre nós, e ficaremos a saber quem ela é.

De novo observei Olalla, que a custo não se ria. Mas falou ao Piloto com brandura.

- Se alguma vez o tivesse conhecido - disse ela - não lhe teria feito mal. Teria procurado oferecer-lhe um pouco de prazer. Mas eu não o conheço. Deixe-me passar.

Ela voltou-se para mim, lentamente, como se confiasse que eu ficaria do seu lado. Era o que eu teria feito dez minutos antes, enfrentando tudo e todos, mas é extraordinário como as más companhias depressa nos corrompem. Quando ouvi aqueles dois falar do tempo e da maneira em que a tinham conhecido, eu próprio, que muito mais próximo estava dela, me voltei e a fitei no rosto.

- Diga-lhes! - exclamei. - Diga-lhes quem é!

Os olhos que me fitaram eram escuros e radiosos, e depois, afastando-se de mim, ergueram-se para a Lua. Um longo arrepio percorreu todo o seu corpo.

- Havemos de pôr fim ao mistério - disse o barão - quando apanharmos o teu velho judeu. Parece que ele tem sido a capa de misericórdia de todos os teus disfarces.

- De quem está o senhor a falar? - perguntou Olalla, franzindo um riso. - Aqui não há nenhum velho judeu.

- Mas não anda longe - retorquiu o barão. - Havemos de nos encontrar todos no mosteiro.

Ao ouvir isto ela ficou imóvel como uma estátua. E a sua imobilidade para com os outros era-me intolerável.

- Vou livrá-la destes dois - disse-lhe - mas desta vez diga-me a verdade, só a verdade. Quem é a senhora?

Ela não se voltou nem olhou para mim. Mas no momento seguinte fez o que eu sempre temera que ela fizesse: alargou as asas e voou. Sob a Lua redonda e branca ela desenhou um grande e único movimento, lançando-se para longe de nós três, e o vento alongou os seus vestidos amplos. Disse já que ao fugir de mim, encosta acima, ela me tinha parecido uma grande ave que corresse a tomar o vento nas asas. Agora ela de novo, exactamente, procedia como o guincho negro quando o vemos atirar-se de uma ladeira ou de um telhado para deixar o solo e levantar voo. Por um segundo ela pareceu erguer-se com o vento, e depois, correndo a atravessar o caminho, com todas as suas forças abandonou a terra, lançou-se no abismo e desapareceu.

Não tive tempo de impedi-la, e por um instante eu próprio a quis seguir. Mas ao aproximar-me da borda do precipício vi que ela não tinha caído longe, mas numa saliência mais abaixo, a cerca de uns vinte pés. Parecia, à luz fraca, estar deitada de bruços, toda coberta pela sua grande capa.

Dei com o Piloto soluçando alto a meu lado, e trabalhámos juntos os três uma hora ou mais para a içar. Rasgámos os capotes à luz da lanterna, reunindo as faixas com nós. Quando acabámos, suspendemos a lanterna na berma da estrada. Tornava-se mais difícil a tarefa, em primeiro lugar porque a lanterna subitamente se apagou, tendo-se consumido toda a vela que dentro se encontrava, e depois porque a neve recomeçara entretanto a cair.

Na primeira vez que me desceram não consegui alcançar a plataforma e fiquei suspenso no ar. Finalmente encontrei um apoio na rocha, e pude tocar-lhe. Ela parecia estar sem vida. A cabeça descaiu-lhe quando a levantei, como a corola morta de uma flor, mas o seu corpo não estava ainda completamente frio. Tentei atar-lhe a corda à volta do corpo, mas não o consegui. Quando a içaram ela bateu contra o rochedo de uma maneira horrível. Tive de gritar aos outros, e de a levar comigo abraçada. A saliência onde nos encontrávamos era estreita e cobria-a uma espessa camada de neve. Não era fácil movimentar-me ali. Um fundo abismo se cavava a nossos pés e uma ou duas vezes desesperei de a fazer subir. Pensei então que fora a minha pergunta que a levara afinal a esta morte branca, imensa de luar.

Consegui fazer por fim uma espécie de nó corredio onde enfiar um pé, atei o seu corpo ao meu nem sei bem como, e gritei aos outros que puxassem. Fizeram-no com maior rapidez e desembaraço do que eu os supunha capazes. Ao desatá-la de mim, caí desamparado, incapaz de me suster de pé, ouvi muitas vozes em redor, gritando que ela não estava morta.

Quando pude erguer de novo a cabeça vi, sem surpresa, o velho judeu de Roma, de Amsterdão e de Andermatt, que se havia juntado ao nosso grupo. Pareceu-me natural que ele tivesse ali vindo ter connosco. A sua carruagem estava parada no caminho, e o cocheiro e o lacaio tinham ajudado a içar-me com Olalla. Como ele conseguira fazer passar a pesada carruagem de noite nessa estrada eu não sei; só sei que para um judeu tudo é possível.

Levaram Olalla em braços para a carruagem, e o judeu obrigou-me a entrar também, pois eu sangrava das mãos e dos joelhos. Ali me sentei com ele, segurando os pés de Olalla, e recordahdo a primeira vez que o tinha visto em Roma. Eu estava cheio de sede e de frio, pois tinha suado muito e o ar da noite penetrava-me até aos ossos. Por fim chegámos ao mosteiro, um vasto edifício quadrangular de pedra, onde duas janelas brilhavam iluminadas. Saíram pessoas ao nosso encontro.

Ali me deram a beber um vinho quente e me lavaram as feridas. Quando perguntei por Olalla, conduziram-me a uma grande sala onde, sobre a mesa, duas velas ardiam.

Olalla jazia, tão imóvel como antes, numa padiola que fora colocada no chão. Creio que tinham pensado em levá-la do mosteiro, mas abandonaram tal ideia. Apenas lhe desapertaram as roupas. Uma grande manta de peles, que pertencia ao judeu, cobria-a. A sua cabeça estava ligeiramente voltada sobre a almofada, e uma sombra negra velava um dos lados do seu rosto.

O velho judeu estava sentado numa cadeira junto dela, ainda com o seu capote de peles, a cartola na cabeça, o queixo apoiado no castão da bengala. Os olhos negros estavam fitos no rosto dela, e quase não se movia. Fiquei surpreendido ao ver, no grande relógio da sala, que passavam apenas três horas da meia-noite.

Sentei-me também, e por longo tempo, em silêncio. Ao som do relógio decidi-me a falar ao judeu. Se eu matara Olalla com a minha pergunta, que ao menos tivesse agora a resposta, e o judeu havia de sabê-la. Trocámos algumas palavras, e ele respondeu-me com muita cortesia. Contei-lhe tudo então quanto sabia, e pedi-lhe, enquanto ali esperávamos, que me falasse dela. Algum tempo decorreu sem que ele parecesse disposto a falar. Quando o fez, foi com uma grande energia. O Piloto e o barão estavam presentes também. O Piloto levantou-se da cadeira que ocupava no outro extremo da sala, veio olhar para ela, e voltou ao seu lugar. O barão tinha adormecido, sentado numa cadeira. Mais tarde, porém, acordou e veio juntar-se a nós.

- Conheci de facto esta mulher - disse o judeu - num tempo em que o mundo inteiro a conhecia e adorava pelo seu nome verdadeiro. Era a grande cantora lírica Pellegrina Leone.

A princípio estas palavras nada me disseram, de modo que ficámos em silêncio. Depois, porém, fez-se luz no meu espírito, e vieram-me à lembrança imagens dos meus tempos de menino.

- Mas - exclamei - isso não pode ser! Essa grande cantora foi a estrela com que meu pai e minha mãe deliravam. Quando voltaram de Itália não falavam de outra coisa. E lembro-me bem do que choraram quando ela ficou ferida no incêndio da Ópera de Milão e morreu. Mas tudo isto se passou aí pelos meus dez anos de idade, há treze anos, portanto.

- Não - disse o judeu. - Sim, ela morreu. A grande cantora de ópera morreu. Há treze anos, como disse e muito bem. Mas a mulher continuou a viver, e tem vivido todos estes treze anos.

- Explique-se - disse-lhe eu.

- Explicar-me? - repetiu ele - isso é pedir muito. Mais valia que Vossa Excelência me dissesse: «Dissimule o seu pensamento em frases que eu esteja habituado a ouvir, e que nada significam.» Pellegrina ficou gravemente ferida no incêndio da Ópera de Milão. Os ferimentos e o choque fizeram-lhe perder a voz. Nunca mais voltou a cantar uma só nota que fosse.

Vi claramente, pelo modo como ele falava, que era esta a primeira vez que punha em palavras a sua história. Tanto me comoveu o sofrimento e o pavor que as suas palavras a ele próprio causavam, que não achei o que dizer, embora precisasse de ouvir mais, pois não encontrava explicação no que ele nos contava. Mas o Piloto fez-lhe uma pergunta.

- Então ela não morreu nessa altura?

- Morrer, viver. Viver, morrer - disse o velho. - Ela viveu tanto, ou mais, que qualquer um dos senhores.

- Todavia - insistiu o Piloto - o mundo inteiro a julgou morta.

- Ela assim o quis - disse o judeu. - Nós, ela e eu, fizemos os impossíveis para que o mundo assim julgasse. Eu vi abrir-se o seu túmulo. E sobre ele mandei levantar um monumento.

- Ela foi sua amante? - perguntou o barão.

- Não - disse o judeu com altivez e um imenso desprezo. - Eu via os seus amantes correrem em volta das suas saias, pobres diabos, em galanteios ou em duelos. Eu fui seu amigo. Quando às portas do Céu o porteiro me perguntar quem sou, não direi a esse grande anjo um nome, uma posição, um feito qualquer meu para que me reconheça, mas responderei: «Sou o amigo de Pellegrina Leone.» O senhor, que hoje a matou, como já me disse, perguntando-lhe quem ela era, quando chegar a sua vez e lhe perguntarem quem é, no além-túmulo, o que irá responder? Terá, vendo a face de Deus, de declinar o seu nome, como no hotel de Andermatt.

O Piloto, ao ouvir estas palavras, sentiu-se pouco à vontade; queria falar mas preferiu calar-se.

- E agora, meus jovens senhores - disse o velho judeu - permiti que vos conte esta história à minha maneira. Ouvi bem, pois não voltará a haver outra história como ela.

Toda a minha vida eu fui muito rico. Herdei grandes fortunas de meu pai e de minha mãe, e dos seus parentes, pois ambas famílias eram de grandes comerciantes. Também fui, até aos quarenta anos, muito infeliz, tal como vós sois agora. Corri mundo. Sempre gostei de música. Fui até compositor e escrevi e fiz arranjos para o ballet, arte que me agradava particularmente. Durante vinte anos tive um corps de ballet privativo, que dançava as minhas obras; era o seu público os meus amigos ou eu próprio somente. Tinha um grupo de trinta raparigas, nenhuma delas com mais de dezassete anos, e que o meu maitre de ballet ensinava, e que dançavam nuas para mim.

O barão acordou, já atento, e fez um esgar como se cumprimentasse o velho.

- Não se pode dizer que a vida lhe fosse maçadora - disse ele.

- E porque não? - ripostou o velho judeu. - Era, sim. Terrivelmente, mortalmente maçadora. Podia ter chegado a morrer de tédio se, por um acaso, não fosse ouvir, a um pequeno teatro de Veneza, Pellegrina Leone, então com dezasseis anos. Compreendi nesse dia os enigmas do Céu e da Terra, das estrelas, da vida e da morte, e da eternidade. Ela apossava-se de nós e levava-nos a passear por roseirais onde um rouxinol cantava, e depois, no momento em que o desejasse, erguia-se e erguia-nos com ela mais alto que a própria Lua. Por muito medo que tivéssemos experimentado, por desgraçadas criaturas que fôssemos, ela fazia-nos sentir seguros sobre um precipício como se estivéssemos sentados nas nossas poltronas. Qual jovem tubarão no mar, dominando as fortes águas verdes com um golpe de barbatana, ela mergulhava nos mistérios e abismos do Universo. O nosso coração comovia-se ao som daquela voz, até que se pensava: Não aguento mais; esta doçura mata-me, não posso suportá-la. Então percebíamos que tínhamos caído de joelhos, chorando o infinito amor de Deus e a Sua misericórdia, que nos dera um mundo assim. Tudo era um grandioso milagre.

Senti uma grande compaixão por esse velho judeu que se via obrigado a confiar a estranhos os segredos da sua alma. Nunca, até então, ele falara destas coisas; e agora, que já principiara, não podia mais calar-se. O seu nariz longo e delicado punha uma sombra triste na grande parede caiada.

- Tive a honra, como já disse - continuou ele - de me tornar seu amigo. Comprei-lhe uma villa nos arredores de Milão. Quando não andava em viagem ela ficava ali, e tinha muitos amigos à sua volta; por vezes ficávamos os dois a sós, e então ríamos muito do mundo, e íamos passear de braço dado nos jardins à tarde, ou ao luar.

Ela apoiava-se em mim como uma criança em sua mãe. Dava-me nomes carinhosos, e costumava tomar os meus dedos e brincar com eles, dizendo-me que eu tinha as mais belas mãos do mundo, mãos feitas para tocar só em diamantes. Como nos conhecemos em Veneza e o meu nome é Marcus, ela costumava dizer que era a minha leoa. E era-o, de facto: uma leoazinha alada. Só eu, entre tantos, a conhecia.

Ela tinha duas grandes paixões na vida que a devoravam e eram tudo para o seu altivo coração.

A primeira era a paixão pela grande soprano Pellegrina Leone. Era um amor de nervos, de ciúmes terríveis, tal como sente um dos vossos sacerdotes pela imagem miraculosa da Virgem que está à sua guarda, ou tal como sente uma mulher pelo seu marido, que é um herói, ou um lapidário sente pelo mais puro diamante que jamais se encontrasse. Esta sua relação com o seu ídolo não conhecia reserva ou descanso. Ela não tinha piedade nem a pedia a ninguém. Servia Pellegrina Leone como a escrava sob o chicote, chorando, morrendo às vezes, quando isso lhe era exigido.

Para com as outras cantoras era um demónio, porque precisava absolutamente dos papéis todos para Pellegrina. Ficava furiosa por lhe ser impossível desempenhar dois papéis na mesma ópera. Elas chamavam-lhe Lucifera. Por mais de uma vez esbofeteou uma rival em cena. Tanto as jovens cantoras como as mais velhas andavam constantemente a chorar se contracenavam com ela. E ela não tinha motivos para fazer tudo isto, era a estrela absoluta de todo o firmamento da música. Não era só por consideração pela sua voz que ela tinha ciúmes também da honra de Pellegrina. Ela queria que Pellegrina fosse a mais bela, a mais elegante, a mais vistosa das mulheres, e por isto ela chegava até a ser ridícula na sua vaidade. Em cena só usava jóias verdadeiras e os vestidos mais magníficos. Aparecia no papel de Agathe, uma rapariga da aldeia, toda coberta de diamantes e num vestido com uma cauda de três jardas de comprimento. Nada mais bebia a não ser água, com medo de estragar a pele de Pellegrina. E se um príncipe, ou um cardeal, ou mesmo o Papa a fosse visitar antes do meio-dia, ela o receberia com o cabelo metido em papelotes e as faces cobertas de creme de zinco, para que à noite pudesse arrebatar, e levar a palma a todas as mulheres, não só no palco mas na plateia e nos camarotes também - e tinha por público as mais brilhantes personagens do Mundo. Era moda adorar Pellegrina Leone. Os maiores de Itália, da Áustria, da Rússia e da Alemanha acudiam ao seu salon. E ela gostava, gostava de os ver, a todos, aos pés de Pellegrina. Mas era capaz de ser malcriada com o próprio Czar da Rússia e arriscar-se a passar uns tempos na Sibéria, de preferência a abandonar o repertório ou as horas de estudo.

A outra grande paixão, meus jovens senhores, desta grande mulher era o seu público. E não dedicava esse amor aos grandes, aos príncipes altivos, aos magnatas e às belas damas todas cobertas de jóias; nem mesmo aos compositores famosos, aos músicos, aos críticos e aos homens de letras; ela amava o público das galerias. Essa gente pobre das vielas e das praças de mercado, que ficavam sem cear ou sem um par de sapatos, as recompensas de um trabalho duro, para se amontoarem no calor do galinheiro a ouvir cantar Pellegrina, e que sapateavam, gritavam, choravam por ela - a esses ela amava acima de todas as coisas. Esta sua segunda paixão era tão forte como a primeira, mas era tão doce como o amor de Deus, ou da vossa Virgem, pelo mundo. Vós, que sois do Norte, não sabeis como são as mulheres do Sul e do Oriente quando amam. Quando beijam os filhos e choram os mortos, elas são como o fogo sagrado. Quando, após a primeira récita da Medeia, o povo da cidade desatrelou os cavalos da minha carruagem, onde ela seguia, para eles próprios a puxarem, ela não tinha olhos para os Ducas que metiam os nobres ombros aos varais. Não, ela chorava numa cascata de quentes lágrimas, mais preciosas que diamantes, ela erguia um arco-íris de ternos sorrisos sobre os varredores das ruas, os carre-jões, os vendedores de fruta e os aguadeiros de Milão. Eu ia com ela na carruagem, e ela segurava a minha mão. Ela não era filha de gente muito pobre. Seu pai fora padeiro e a mãe filha de um lavrador espanhol. Não sei onde ela foi buscar essa paixão pelos mais humildes da Terra. Não era só para eles que ela cantava, de facto, pois também desejava o aplauso dos grandes connaisseurs; mas, se o ambicionava, era por amor às galerias. Sofria por eles se os tempos eram difíceis e eles eram oprimidos. DaMhes-ia todo o seu dinheiro e venderia por eles os seus vestidos. É curioso, eles nunca mendigavam muito dela, como se compreendessem que ela já lhes dava o melhor que possuía cantando para eles. Se lho pedissem, ela teria dado tudo. Os seus jardins e a sua casa tinham as portas abertas para eles, e ela sentava-se com os filhitos dos pobres, à sombra dos aloendros do terraço, quando se recusava a receber os grandes senhores de Inglaterra que tinham atravessado o mar para a verem.

Na relação entre estas duas grandes paixões estava toda a sua felicidade. Nos seus anos de triunfo foi completa. A sua voz e a sua arte iam ficando a cada dia mais extraordinárias. Era inacreditável. Eu sou de opinião que ela não alcançara ainda, no momento da sua desgraça, o apogeu das suas faculdades. A sua fama espalhara-se ao mundo inteiro. Tinha na pequenina mão a pedra filosofal da música, que a tudo em que tocava transformava em ouro. O senhor - disse ele, voltando-se para mim - disse-me que, em países distantes, as pessoas choravam ao lembrar esse caudaloso rio de ouro, essas altas cascatas de diamantes, safiras e rubis sangue-de-pombo. E ela era adorada pelo povo. O povo sentia que, enquanto Pellegrina pudesse cantar para ele, no palco, a Terra não havia sido abandonada pelos anjos.

Isto era, pois - que Pellegrina cantasse como um anjo para as suas galerias, lhes enternecesse o coração e os fizesse derramar lágrimas de alegria e êxtase, que os fizesse esquecer a dureza daquelas vidas, e lembrar o paraíso perdido, que sobre eles semeasse a sua alma como punhados de estrelas, e que eles, por seu lado, adorassem em Pellegrina uma Nossa Senhora mais sua, e a manifestação de Deus e do Paraíso na Terra, e que para eles tudo fosse belo, grandioso, elegante e cheio de luz - isto era toda a sua felicidade.

Mesmo quando representava, como já vos contei, as donzelas de aldeia da ópera, toda em brocados e plumas, não era por uma questão de vaidade pessoal. Era por um sentido do dever para com as suas galerias, igual ao dos sacerdotes das vossas igrejas, que revestem as imagens da Virgem com os mais elegantes vestidos que possam encontrar. Mesmo nos quadros da Natividade, que a todos comove por mostrar a Mãe e o Filho de Deus num estábulo, sobre as palhas, com a manjedoura por berço, o sacerdote não suporta ver a Virgem vestida pobremente e vai adorná-la de sedas, e põe-lhe ao pescoço cadeias de ouro.

Eu próprio sorria desta sua paixão pelos pobres, porque a mim o povo sempre cheirou mal, e não creio nas suas virtudes.

- Ah, então temos de ser todos cortados pelo mesmo molde - perguntava-me ela então - e sermos todos nós os pecadores adorando os deuses? Ora, deixe-me ser quem sou, Marcus, e quem eu escolhi ser. Deixe-me ser uma deusa adorando os pecadores.

Quanto aos seus amantes, conheci-os quase todos, e muito pouco significavam para ela, ou para mim. Aliás, primeiro que se habituasse a eles, causavam-lhe antes mágoa que prazer.

Porque ela sempre foi na vida, apesar do seu excelente bom senso, uma Dona Quixota de la Mancha. Os fenómenos da vida não tinham para ela grandiosidade bastante; não eram proporcionais ao seu grande coração. Ela seria como esse homem a quem deram uma arma capaz de matar um elefante e o mandaram com ela atirar aos pássaros. Ou seria como um grande pássaro, um albatroz, a quem pedissem que saltitasse num poleiro e chilreasse como os passaritos na gaiola. Quando um dos seus amores a fazia sofrer, não era só a sua vaidade que ficava ferida. Porque, fora do palco, não tinha qualquer vaidade, e bem sabia que os rapazes não cortejavam a grande soprano mas a bonita mulher da moda, com dois olhos que eram como duas estrelas, e a graça dessas tímidas e sábias gazelas a que um meu conterrâneo escreveu poemas. Por isso ela não fazia caso da superficialidade e da mentira desses moços. Mas tudo nela era mágoa e decepção se o mundo não era um lugar maior, e se nada acontecia nele de mais colossal, de mais semelhante aos dramas do palco, nem sequer quando ela própria participava do espectáculo com todas as suas forças.

Passados esses amores primeiros, ficava, quando era ainda muito no vinha, sempre um tanto envergonhada. Nessas alturas, penso eu, ela gostaria de ter nascido homem e não via préstimo algum em ser mulher. Porque em toda a glória da beleza feminina, a magnificência dos seios e dos membros, o esplendor dos olhos, dos lábios e da carne, ela seria como essa mulher que tivesse posto o seu vestido mais rico para se apresentar perante um príncipe, num baile de grande gala, e depois verificasse que o convite era afinal para uma reunião de íntimos em honra do magistrado da Polícia, onde todos vestiam os seus fatos costumeiros. Uma senhora, nestas circunstâncias, sente-se também um tanto envergonhada, e suporta o vestido de cauda e a sua rivière de diamantes com fúria e com acanhamento, sentindo que o seu preparo pode, em tal ocasião, cobri-la de ridículo.

Penso até - disse o velho judeu - que muitas mulheres, nas suas ligações, se sentem assim.

Nessas horas de aflição ela recorria a mim, certa da minha compreensão. Ela seria a troça do mundo, se fosse minimamente possível às pessoas vulgares e prosaicas reconhecer numa jovem tão bela e tão rica os traços do cavaleiro da triste figura. Mas eu, francamente, não podia deixar de rir. Dizia-lhe:

Aos olhos do mundo, e dos teus amantes, que dele fazem parte, toda a doutrina do amor, como a teoria das relações humanas, adquire a forma de uma toxicologia, uma ciência dos venenos e dos contravenenos. Todos estão no mundo preparados para os venenos, e adaptados a eles. São como pequenas víboras ou escorpiões orgulhosos da sua mordedura, e estão protegidos dos venenos proporcionais à sua própria virulência. Para quase todos eles o amor é uma distribuição recíproca de venenos e contravenenos, e, no decurso de uma longa carreira de ligações amorosas, orgulham-se de ter ficado imunes a todos os venenos, como os indianos, que se diz conseguirem progressivamente ficar imunes ao veneno de todas as cobras. Mas tu, Pellegrina, não és uma cobra venenosa, és uma píton. Muitas vezes, quando te vejo andar, me lembro das cobras dançarinas que um dia um encantador de serpentes indiano me mostrou. Tu não tens em ti qualquer veneno, e se matas é pela força do teu abraço. Isto só transtorna os teus amantes que estão habituados a viborazinhas, e que não têm a força precisa para te resistir nem a sabedoria que lhes permita avaliar a espécie de morte que podiam alcançar de ti. E, de facto, ver-te desdobrar o grande corpo de serpente para mudar de direcção, impressionar e finalmente esmagar um ratozinho do campo é o bastante para se ficar dolorido de tanto riso.

Assim eu a fazia rir, mesmo por entre as lágrimas.

No entanto, como era muito inteligente e fora educada pela minha inteligência, era ela quem aprendia com os seus amantes, e estas coisas acabavam por não ter mais importância para ela do que para eles. Por isso eu ficava muito grato a esses rapazes. Porque a ajudavam a alcançar um desprendimento nestas coisas que não era inato nela. Quando aprendeu a lição de cor atingiu a perfeição, no palco, nos papéis de rapariga inocente e apaixonada.

- E isto - disse Lincoln, interrompendo a narrativa - tu bem sabes que é verdade. Lembra-te da velha e imortal canção da jovem donzela que recusa tudo o que o Sultão lhe queria dar, para ser fiel ao seu amante, e que começa assim: Ah Rupia, kama na Majasee. É uma bela canção sobre o amor puro e verdadeiro. Só uma prostituta a cantou bem, que eu saiba.

Voltou depois à história contada pelo velho judeu: Assim vivíamos - prosseguiu o judeu - na villa branca de Milão, até ao dia da sua desgraça.

Jovens, vós lembrai-vos como os vossos pais choraram essa terça-feira. Aconteceu durante uma récita do Don Giovanni, no segundo acto, quando Donna Ana entra em cena, com a carta de Ottavio na mão, e começa o recitativo: Crudele? Ah nò, mio bene! Troppo mi spiace allontanarti un ben che lungamente Ia nostfalma desia. No preciso momento em que Pellegrina entrou, dois ou três pedaços de madeira em chamas caíram do tecto à sua frente. Ela era uma mulher de coragem, continuou sem um tremor, apenas levantando brevemente os olhos, e dando a nota aguda tão facilmente como se respirasse apenas. Mas toda uma trave em chamas se seguiu, e o teatro inteiro se levantou em pânico, parando a orquestra a meio de um compasso. Gente corria para as portas, e as mulheres desmaiavam. Pellegrina recuou um passo e olhou em seu redor até que os seus olhos encontraram os meus, que me encontrava sentado na primeira fila da plateia. Sim, ela procurou-me nesse momento de desespero. E não terei razão para estar orgulhoso? Ela não estava minimamente assustada. Ficou no seu lugar, muito calma, como se quisesse dizer: Aqui estamos, para morrermos juntos, tu e eu, Marcus. Mas eu, eu tive medo. Não me atrevi a abrir caminho até àquele palco em chamas, onde todas as árvores e casas e ruas eram de papelão. Nesse mesmo instante, como uma grande nuvem de fumo fosse atirada de uma entrada de cena para a outra através do palco, e o calor rebentasse qual sopro de uma fornalha gigantesca, ela desapareceu da minha vista. Corri com a multidão e consegui sair; já na rua, que estava um verdadeiro manicómio, voltei a sentir o vento frio. O meu criado, que me esperava no átrio, amparou-me. Disseram-nos que Pellegrina fora salva pelo homem que cantava a parte de Leporello, e a quem ela ajudara na sua carreira. Tinha-a levado através dos bastidores em chamas, tinha com ela descido a escada, e os vestidos e os cabelos dela ardiam. O povo, quando soube que ela fora salva, caiu de joelhos.

Levei-a para sua casa, e reuni à sua cabeceira os médicos de Milão. Ela sobreviveu. Fora atingida por uma viga do tecto, e tinha uma queimadura profunda onde a madeira ardendo lhe tocara, da orelha até à omoplata. As restantes queimaduras não eram graves. Delas se curou rapidamente. Mas afinal, com o choque, perdera a voz. Nunca mais voltaria a cantar uma só nota que fosse.

Quando penso no que ela foi durante essa primeira semana depois da sua desgraça, parece-me revê-la totalmente consumida pelas chamas, deitada de lado, imóvel na cama, negra e carbonizada como esses corpos que foram desenterrados da cidade queimada de Pompeia. Fiquei junto dela seis dias, e ela não pronunciou uma palavra. E a mim parecia-me a coisa mais cruel de todas que Pellegrina, em toda a sua dor, tivesse de ser muda.

Eu também não lhe falei. As carruagens do mundo inteiro subiam e chegavam ao pátio empedrado sob a sua janela, pedindo notícias do seu estado.

Eu sentava-me no quarto escurecido, a pensar no caso. Isto para ela, pensava eu, é semelhante ao que seria para o sacerdote descobrir que a imagem miraculosa da Virgem, que esteve à sua guarda, era apenas um ídolo profano, obsceno, pagão, oco e roído dos ratos. Como seria para a mulher descobrir que o marido, que julgara um herói era apenas um doido ou um palhaço.

Não, pensando melhor, dizia eu para comigo, não é assim. Eu sabia de um infortúnio que ao seu podia bem ser comparado. O infortúnio da princesa noiva, que vai, com um reino por dote, enfeitada com os tesouros da casa de seu pai, ao encontro do jovem noivo, o filho de um rei, que está à sua espera na cidade enfeitada para a receber, ressonante de fanfarras e canções de jovens e donzelas, e que é violada por salteadores no caminho. Sim, era assim, pensei eu.

Nenhuma das grandes personagens, que chegavam de todas as partes do mundo a saber notícias dela, tinha acesso a sua casa. Desse facto nasceu o boato que ela estava à morte. O que se teria dito se ela os tivesse deixado entrar eu não sei. Que ela era ainda jovem e bela, e amada por todos eles?

O que teriam dito esses homens, pensei eu, à virgem real e violada que a confortasse? Que ela era jovem, e bela ainda, e que o seu noivo havia de a tratar com carinho? Talvez lhe tivessem dito que a culpa não fora sua, que nada fizera que fosse pecado: «Não há pecado nela que mereça a morte, pois o homem encontrou-a no campo, e a donzela prometida gritou e não havia ali ninguém para a salvar.»

Mas as consolações do vulgo têm um sabor amargo para uma princesa. Porque os físicos e os confeiteiros e os criados das grandes casas são julgados pelo que fizeram, e até pelo que desejaram ter feito; os grandes, esses, são julgados pelo que são. Disse-me alguém que ao leão apanhado na armadilha e fechado na jaula dói mais a vergonha que a fome.

Perdoem-me, meus senhores, se falo de coisas de tanta maravilha e que vós não podeis compreender. Pois quando é que as vossas mulheres dão valor à sua honra, nestes tempos modernos? Serão capazes sequer de reconhecer a palavra honra, se a ouvirem?

Porque eu não lhe disse uma palavra de consolo, e porque nenhuma palavra no mundo me poderia confortar a mim, a minha presença foi suportável a Pellegrina durante esta nossa semana.

Ela pranteava o seu grande nome, e o aplauso das cortes, e a homenagem dos príncipes, como aquela virgem real e violada havia de ter chorado o seu esplendor, a sua coroa nupcial, e os bailes e os desfiles das festas do casamento. Mas ao pensar nas suas galerias ela derramava tais lágrimas como a noiva teria derramado pelo seu noivo real. Pois como havia o povo de suportar a perda de Pellegrina Leone? Teria de viver, agora, dia após dia condenado a esse trabalho duro, humilhado e ofendido pelos patrões e pelas autoridades, mal pago, sem que jamais os Céus se abrissem para ele? E sem a sua Senhora que no firmamento lhe sorrisse? Tinha uma única estrela esse povo, e ela havia desaparecido; estava só esse povo, na escuridão da noite - o povo das galerias que tinha rido e chorado com ela.

Nessa semana eu aprendi a diferença que pode existir, no curso de vinte e quatro horas, entre um e outro mês. Ali em nossa casa o tempo voava ligeiro, dantes, como uma brisa de Maio, como as mariposas, como um aguaceiro de Verão que se encontra com um arco-íris. Agora o dia era tão longo como um ano; a noite como dez anos.

Passada essa primeira semana, Pellegrina pediu-me para lhe dar algum veneno forte com que encurtasse de vez a sua vida. Eu tinha o hábito, quando jovem, de trazer um comigo, para o caso de a vida se me tornar insuportável. Eu, nesta altura, vivia em Milão, e costumava ir todos os dias a sua casa. Entreguei-lhe o veneno ao meio-dia de uma quarta-feira, e ela pediu-me que voltasse na tarde seguinte.

Voltei. Fui achá-la muito doente. Disse-me que havia tomado toda a dose de ópio que eu lhe tinha dado, mas que não fizera qualquer efeito. Não conseguia morrer. Isto, embora ela o acreditasse, eu sabia não ser verdade. O que eu lhe havia dado era suficiente para matar um ser humano. Talvez ela tivesse tomado o suficiente para a fazer doente, para ficar talvez inconsciente, pensando que o tinha tomado todo. Mas o importante não é isto. A verdade, para usar as suas próprias palavras, é que ela não podia morrer. Parecia ter demasiada vida dentro de si.

Pensei mais tarde que, se me tivesse suicidado, ela poderia ter tido forças para me seguir. Pelo que me dizia de tempos a tempos, percebi que ela sempre temera a morte como coisa em tudo estranha à sua natureza, e que fora uma consolação para ela pensar que eu, sendo muito mais velho, naturalmente morreria primeiro, e abriria caminho para ela, ou a receberia no outro mundo, se tal mundo existisse. Essa era uma das razões por que ela me preferia aos homens mais novos e mais fortes. Mas na altura não pensei nisso.

Mesmo assim os meus pés tinham operado nela uma mudança. Já não pensava na morte. Mortalmente cansada, ela havia, por assim dizer, ressuscitado de entre os mortos. Nessa tarde, e pela primeira vez, quis que eu conversasse com ela.

Contei-lhe então como, depois das infindáveis horas da noite anterior, antes mesmo da alvorada, um rouxinol tinha começado a cantar, doidamente, exuberantemente, como se quisesse dominar o tempo, junto à minha janela, e como ao ouvi-lo eu tinha imaginado um ballet que tomaria por tema todas as coisas que nos haviam sucedido. Pellegrina ouvia-me atentamente, e no dia seguinte voltou a essa ideia de um ballet e perguntou-me qual seria o argumento e a música para ele. Disse-lhe que tinha pensado chamar-lhe Philomela, e expliquei-lhe como as cenas e as danças haviam de suceder-se. Enquanto falávamos ela tomou a minha mão e ficou brincando com os meus dedos. Era a primeira vez, desde aquela terça-feira, que tocava um outro ser humano.

Alguns dias mais tarde mandou chamar-me de manhã muito cedo, antes do nascer do Sol. Fiquei surpreso ao achá-la na pérgola do jardim, já levantada e vestida com um négligé.

Era uma linda manhã. As acácias e a relva do jardim espalhavam um delicioso aroma, delicado e moço, no ar azul-es-curo.

Apareceu-me com o rosto de antes do seu infortúnio. As suas faces de flor estavam brancas na luz indecisa. Mas quando começou a falar comigo a sua voz era sussurrada, como se tivesse medo de acordar alguém.

- Mandei-te chamar tão cedo, Marcus - disse ela - para que possamos ter o dia inteiro para conversar, se necessário for.

Pegou-me no braço e fez-me acompanhá-la, que andava de um lado para o outro. Ao chegarmos ao extremo da pérgula ela deteve-se e olhou, antes de se voltar, toda a paisagem. O ar estava muito fresco.

- Tenho muita coisa a dizer-te - disse ela. Mas calou-se. Só quando regressámos ao mesmo lugar ela repetiu: - Tenho muita coisa a dizer-te, Marcus.

Sentámo-nos por fim num banco no interior da pérgula. Ela não me soltou o braço, e assim nos sentámos lado a lado, como numa carruagem.

- Julgas, Marcus - disse ela - que eu não tenho pensado em nada todos estes dias, mas enganas-te. Só que não é fácil dizer-to, porque estes meus pensamentos eu fui buscá-los a longe, a muito longe. Sê paciente, teremos o dia todo.

- Sabes, Marcus - continuou ela, falando ainda em voz muito baixa - foi-me dado agora ver que tenho sido muito egoísta. Só pensava em Pellegrina, em Pellegrina. O que lhe aconteceu pareceu-me extraordinariamente importante, a coisa mais importante no mundo inteiro. Os que amavam Pellegrina, esses só, pensava eu, eram bons e amoráveis, e parecia-me que o mais sensato que uma pessoa de juízo podia fazer era ouvir Pellegrina Leone cantar.

De novo ela ficou silenciosa, apertando levemente o meu braço.

- Mas esta minha desgraça (disse ela repentinamente), se ela tivesse acontecido a uma outra pessoa - digamos por exemplo, Marcus, a uma soprano da China, da Ópera Imperial da China, há cem anos atrás - podíamos ter ouvido falar dela sem nos interessarmos muito, ou talvez derramássemos muitas lágrimas. E no entanto seria uma desgraça também, triste e terrível. Mas porque aconteceu a Pellegrina, pareceu-nos de uma crueldade insuportável. Ora isto não precisa, meu Marcus, de ser assim, e nunca mais o há-de ser para nós.

- Espera - disse ela. - Vou explicar tudo melhor.

- Pellegrina morreu - disse ela. - Não era ela uma grande cantora, uma estrela? Lembras-te da canção:

Uma luz de glória se apagou, Dos altos céus uma estrela caiu...

- Assim foi com ela; a sua morte foi um grande pesar para o mundo. Ah, tão triste, tão triste. Tu agora tens de me ajudar a dizer ao mundo que ela morreu; tens de abrir o túmulo de Pellegrina e levantar sobre ele um monumento. Não mandes erguer uma estátua muito esplêndida, como nós havíamos de escolher se eu tivesse morrido sem perder a minha voz, mas ainda assim uma placa de mármore, dando o nome e as datas do seu nascimento e morte. Põe também nela uma breve inscrição. Põe isto, Marcus: Pela Graça de Deus. Sim, Pela Graça de Deus, Marcus.

- Pellegrina morreu (repetiu ela ainda). Ninguém, ninguém mais será no futuro Pellegrina. Tê-la de novo no palco da vida, neste vale de lágrimas, e acontecer-lhe a ela tudo o que de horrível acontece aos que vivem neste mundo - não, isso não, não aguento. Nenhum ser humano aguentaria sequer pensá-lo. Então prometes-me isso, Marcus, primeiro do que tudo? - perguntou-me ela.

Eu disse que faria o que ela quisesse.

Ela voltou a erguer-se e foi até ao extremo da pérgula. O dia começava agora a clarear; sumiam-se as últimas e pálidas estrelas; todo o mundo em redor gotejava de orvalho, e as ervas, que até então foram escuras, cintilivam prateadas do orvalho. Havia no ar toda uma claridade, como se o Céu se estivesse erguendo acima da Terra. Pellegrina ficou de pé junto a mim. As suas roupas estavam húmidas e orvalhadas. Brincava com as longas tranças negras, levando uma aos lábios, e tremia um pouco no frio da manhã. Nesse extremo da pérgula começava o jardim a descer para um vale; uma vasta paisagem se estendia a nossos pés; agora já se distinguiam as estradas, os campos e as árvores. Lá em baixo, no caminho, vimos operários e mulheres que saíam para os campos.

- Olha - disse ela. - Estava à espera deles para te explicar. É mais fácil de entender o que se vê. Repara, ali vai uma mulher para o trabalho nos campos. Talvez seja a mulher de um camponês; talvez se chame Maria. Está feliz esta manhã, porque o marido é bom para ela e lhe ofereceu um colar de contas de coral. Ou talvez esteja infeliz, porque ele a faz sofrer com os seus ciúmes. Então, o que pensamos nós disto, Marcus, tu e eu? Uma mulher de nome Maria é infeliz, é o que pensamos. Sempre há-de haver Marias na Terra, e não ligamos muito. Olha, vem ali outra, em sentido contrário. Vai ao mercado levar fruta e hortaliça no seu burrinho, e vai preocupada, pois o burrico é velho e caminha devagar, e assim ela não vai chegar a tempo a Milão. Também a isso pouco ligamos, Marcus. Ah, eu vou ser como elas a partir de agora. Chegou a minha hora de ser assim: uma mulher com um nome qualquer. E se essa mulher for infeliz, pouco nos iremos preocupar com isso.

Ficámos ali em silêncio, e eu tentei seguir o rumo dos seus pensamentos.

- E se eu - disse ela - começar a pensar de mais no que pode acontecer a essa mulher, fugirei imediatamente para ser outra diferente: uma rendilheira na cidade, uma mulher que ensina as crianças a ler, uma senhora em viagem para Jerusalém, onde vai rezar no Santo Sepulcro. Eu posso ser tantas mulheres. Serão felizes ou desgraçadas, serão tolas ou sábias essas mulheres, isso não me há-de importar muito. Não voltarei a ser uma só pessoa, Marcus, serei sempre muitas, a partir de agora. Nunca mais terei a vida e o coração presos a uma só mulher para sofrer assim. Até pensar nisso é terrível. Já sofri demais, sabes? Não se me pode pedir que sofra ainda. Acabou-se.

- E tu, Marcus - disse ela - tu deste-me tanto; agora vou eu dar-te este bom conselho. Sê muita gente. Abandona esse vício de ser um só e de ser sempre Marcus Cocoza. Já te preocupaste muito com Marcus Cocoza, agora és tão-somente o seu escravo e o seu prisioneiro. Nada fizeste sem antes ponderar em que medida isso afectaria a felicidade e o prestígio de Marcus Cocoza. Sempre te apavorou que Marcus pudesse fazer um disparate, ou levar uma vida aborrecida. Que diferença teria feito, afinal? Há tanta gente no mundo que faz disparates, tantos que se aborrecem, e nós sempre o soubemos. Deixa agora de ser Marcus Cocoza; e, depois, que diferença fará ao mundo se mais uma pessoa, um velho judeu, fizer um disparate ou se aborrecer por um dia ou dois? Gostaria que encontrasses a serenidade, que sentisses o teu coraçãozinho leve outra vez. Tens de ser, a partir de agora, mais do que um, tens de ser muita gente, tanta quanta puderes imaginar. Sinto, Marcus - tenho a certeza - que todas as pessoas neste mundo deviam ser, cada uma, mais do que uma só, e assim todas elas, sim, todas, viveriam de coração sereno. Saberiam o que é a alegria. Não é estranho que nem um filósofo tenha pensado nisto e fosse eu a descobri-lo?

Pensei no que ela me dizia, e interroguei-me se o seu conselho não me faria bem afinal. Mas eu sabia que não me era permitido segui-lo enquanto ela fosse viva. Se ela estivesse morta eu poderia achar refúgio no seu capricho. A Lua deve seguir a Terra, mas se a Terra se desagregasse e evaporasse, talvez se libertasse a Lua da sua dependência, e fosse, num voo sem peias pelo éter, por algum tempo a lua de Júpiter, por algum tempo a lua de Vénus. Não sei o suficiente de astronomia para o poder afirmar. Deixo isso a vós outros, que tereis talvez maiores conhecimentos dessa ciência.

- Que linda manhã - disse Pellegrina. - A gente pensa que está escuro ainda, mas o ar realmente está cheio de luz, tal qual uma taça de vinho. Como tudo é húmido. Mas em breve o mundo estará seco, e fará calor pelas estradas. Não nos importaremos com isso. Estaremos aqui, juntos, todo o dia.

- E que queres tu que eu faça? - perguntei-lhe.

Ela ficou por longo tempo mergulhada em profundo silêncio.

- Sim, Marcus - disse ela - devemos separar-nos. Eu vou partir.

- E nunca mais nos voltaremos a encontrar? - perguntei. Pellegrina levou um dedo aos lábios.

- Nunca deverás falar comigo - disse ela - se por acaso nos encontrarmos. Porque um dia conheceste Pellegrina.

- Deixa-me - disse eu - seguir-te e ficar perto de ti, para que possas mandar-me chamar quando precisares da ajuda de um amigo.

- Sim, façamos assim - disse ela. - Fica perto de mim, Marcus, para que, se alguém um dia me tomar por Pellegrina Leone, eu te possa chamar e tu me ajudes a fugir. Nunca te afastes muito, para que possas manter sempre afastado de mim o nome de Pellegrina. Mas falar-me, isso nunca o deverás fazer, Marcus. Não poderia ouvir a tua voz sem me lembrar da voz celestial de Pellegrina, e dos seus grandes triunfos, e desta casa onde estamos agora, e do jardim.

Olhou em seu redor como se a casa não existisse mais.

- Ah, são frias as correntes da vida, Pellegrina - disse eu. Ela riu brevemente no ar da manhã, e depois voltou a ficar imóvel.

- As andorinhas voam por aqui - disse ela. - Como achas - perguntou, passado um momento - que seria o Paraíso de que as pessoas falam? Existirá realmente um tal lugar? Havemos de caminhar no Paraíso dentro desta casa, e os ventos do Paraíso hão-de fazer esvoaçar as cortinas. Será Primavera, e as andorinhas hão-de voltar, e tudo será perdoado.

Ela partiu - disse o velho judeu - como tinha dito, no fim desse mesmo dia.

Desde então nunca mais lhe dirigi a palavra - disse ele - mas ela tem-me escrito de tempos a tempos para que eu a ajude quando quer fugir e mudar de identidade. Em Roma, se o senhor não lhe tivesse dito - e ele voltou-se para mim - que o seu pai era um amante de ópera, ela teria partido consigo para Inglaterra. Mas só por um ano ou dois. Tê-lo-ia deixado ao fim desse tempo. Ela nunca se permitiria envolver-se com qualquer uma das suas personagens.

Assim o velho terminou a sua história. Olhou-nos a todos, e depois retomou o seu silêncio de antes, pousou o queixo no castão dourado da bengala, e mergulhou em profundos pensamentos, sem nunca deixar de fitar o rosto da mulher que na padiola agonizava.

Nós três, que o estivéramos a ouvir, guardámos silêncio, sentindo-nos, creio eu, todos nós, um pouco embaraçados.

O próprio Lincoln, chegado a este ponto, mergulhou em sonhos e por algum tempo nada disse.

E devia dizer-te agora, Mira, chegados a este ponto, que mais tarde o meu amigo Piloto seguiu na vida o conselho de Pellegrina Leone.

Foi assim: Não me lembro agora bem se muitos anos mais tarde, conheci no Cabo da Boa Esperança um clérigo alemão de certa idade, de seu nome Rosenquist, que, discutindo nós a singularidade da natureza humana, me contou essa história do meu amigo, ou se eu me entretive, muitos anos depois, a imaginar que havia conhecido no Cabo da Boa Esperança um clérigo alemão que me contara tudo isto do Piloto.

Mas, em todo o caso aqui vai. O Piloto seguiu o conselho, e passou a ser mais do que uma pessoa. De tempos a tempos interrompia a tarefa inútil e laborisa de ser Friedrich Hohenemser e revestia-se da existência de um pequeno proprietário rural, numa província distante, que dava pelo nome de Fridolin Emser. Rodeou esta segunda existência do maior segredo, e a ninguém permitiu que soubesse o que lá se passava. Sentiu, quando se foi embora, que era como se estivesse fugindo da morte, e anichou-se na casita de Fridolin Emser, junto a uma aldeia, como um animal no seu covil. Se alguém suspeitasse e lhe seguisse o rasto, que ele não se dava ao trabalho de iludir, para descobrir afinal o que fazia no seu esconderijo, teria achado que o Piloto, na pele de Emser, não fazia rigorosamente nada. Cuidava da sua quintarola com desvelo, angariava cada dia algum dinheiro para Fridolin, e sentava-se pela tarde fumando um longo cachimbo no caramanchão do seu jardim, que um melro na gaiola encimava; ou às vezes ia beber cerveja para a estalagem e discutir política com essa gente franca. Lá era feliz. Pois, sabendo ele, desde o primeiro dia, que Fridolin não existia, nunca se afligiu por fazê-lo ter uma existência. Uma só coisa o perturbava: não ousar permanecer demasiado tempo nesta existência que o descansava, por medo que ela começasse a ter demasiado peso e o fizesse aceitá-la como existência real. Tinha de voltar à casa de campo dos Hohenemser. Mas até o Friedrich Hohenemser passou a ser mais feliz desde que seguiu o plano de Pellegrina, porque uma vida secreta era uma riqueza para ele, tal como para Fridolin.

Não sei se, em alguma das suas existências, ele se casou. O casamento de Friedrich Hohenemser só poderia ter sido extremamente infeliz, e eu havia de ter pena da mulher que o tivesse de arrastar consigo para o resto da vida; mas Fridolin pode bem ter casado, e ter dado à mulher uma vida tranquila e agradável. Porque ele não estaria permanentemente ocupado em provar-lhe que realmente existia, e que é o calvário de muitas mulheres, antes poderia ter-lhe agradado observar, tranquilamente, apenas a existência dela. Não sei porque há-de ser assim, mas sempre que penso agora no Piloto, vejo-o debaixo de um guarda-chuva - ele que dantes se expunha tanto a todas as intempéries. Sob esta protecção o Sol não o há-de castigar de dia, nem a Lua à noite.

Sacudindo estas reflexões, Lincoln findou o seu relato da história do velho judeu:

Subitamente uma alteração violenta se estampou no rosto do velho judeu. Era como se nós, a quem ele tinha acabado de contar a história da sua vida, tivéssemos sido imediatamente aniquilados. Baixando a bengala, curvou-se para a frente, todo o seu ser concentrado no rosto de Pellegrina.

Ela mexeu-se no leito. O seio alteou-se e ela moveu ligeiramente a cabeça na almofada. Um tremor percorreu-lhe a face; momentos depois as sobrancelhas ergueram-se um pouco, e as franjas negras dos cílios estremeceram, como as asas de uma borboleta pousado numa flor. Todos nos levantámos. De novo olhei para o judeu. Estava visivelmente apavorado com a ideia de ser visto por ela, no caso de Pellegrina abrir os olhos. Recuou, encolheu-se, abrigou-se atrás de mim. Nesse instante ela abria lentamente os olhos. Pareciam sobrenaturais de tão grandes e sombrios.

Apesar do movimento do judeu para se esconder, o seu olhar, caiu directamente sobre ele. Ele sustentou-o, imóvel, tão mortalmente pálido como se temesse uma explosão de ódio. Mas tal não sucedeu. Ela fitou-o atentamente, nem sorrindo nem carregando o sobrolho. Nesse instante ouvi-o inspirar duas vezes, profundamente, como numa ansiedade. Depois, tímido, acercou-se dela um pouco.

Ela tentou falar duas ou três vezes sem que um som se ouvisse, e de novo cerrou os olhos. Mas ainda uma vez os abriu fixando como antes directamente o judeu. Quando falou, foi na sua voz murmurada de sempre, talvez lenta, mas sem denunciar um esforço.

- Boa noite, Marcus - disse ela.

Ouvi o esforço da garganta daquele homem para falar, mas nenhuma palavra ele disse.

- Chegas tarde - disse ela, como se levemente aborrecida.

- Não pude vir mais cedo - disse ele, e surpreendeu-me a sua voz, tão perfeitamente calma e agradável que era, e tão nobremente sonora.

- Que te pareço eu? - perguntou Pellegrina.

- Pareces-me bem - respondeu-lhe ele.

No momento em que ela falara o rosto do velho judeu tinha sofrido uma estranha e impressionante mudança. Já antes falei da sua invulgar palidez. Enquanto nos contava a sua história tinha ficado branco, como se não tivesse um pingo de sangue nas veias. Agora, que ela falava e ele respondia, um profundo e delicado rubor, como o de um rapazinho ou do uma donzela surpreendida no banho, se espalhou por todo o seu rosto.

- Ainda bem que vieste - disse ela. - Estou um pouco nervosa esta noite.

- Não, não tens razão para isso - tranquilizou-a ele. - Tem corrido tudo muito bem até agora.

- É verdade? - perguntou ela, perscrutando o seu rosto. - Não tens críticas a fazer? Nada poderia ter sido melhor? Eu estive bem e tu estás a gostar de tudo?

- Sim - respondeu ele - não tenho críticas a fazer; nada poderia ser melhor. Estiveste bem, e eu estou plenamente satisfeito com tudo.

Ela ficou em silêncio por uns dois ou três minutos, talvez. Depois os seus olhos escuros deslizaram do rosto do velho para os nossos.

Quem são estes senhores? - perguntou ela ao judeu.

- Estes senhores - disse ele - são jovens estrangeiros que fizeram uma longa viagem para terem a honra de te serem apresentados.

- Apresenta-os, então - disse ela. - Mas creio bem que terás de ser breve. Não me parece que o entfacte se vá prolongar por muito mais tempo.

O judeu, avançando para nós, pegou-nos pela mão, um a um, e conduziu-nos à beira da padiola.

- Meus jovens e nobres senhores - disse ele - de belos e distantes países, tenho o prazer de vos dar um momento inesquecível nas vossas vidas. Vou apresentar-vos a Donna Pellegrina Leone, a maior cantora do mundo.

Depois disse os nossos nomes, que lembrava, um a um, correctamente.

Ela volveu para nós os olhos com bondade.

- Tenho muito gosto em ver-os aqui esta noite - disse. - Irei cantar para vós agora, e espero que ireis gostar.

Beijámos a sua mão com profundas reverências, todos três. Lembrei-me das carícias que tinha exigido àquela nobre mão. Mas imediatamente ela se voltou de novo para o judeu.

- Mas, realmente estou um pouco nervosa esta noite - disse ela. - Que cena é, Marcus?

- Minha estrelinha - disse ele - não estejas nervosa. Tenho a certeza de que tudo correrá bem esta noite. É o segundo acto do Don Giovanni, a ária da carta. Começa agora com o teu recitativo: Crudele? Ah nò, mio bene! Troppo mi spiace allontanarti un ben che lungamente la nostr'alma desia.

Ela deu um suspiro profundo e repetiu as suas palavras:

- Crudele? Ah nò, mio bene! Troppo mi spiace allontanarti un ben che lungamente la nostr’alma desia.

Ao dizer estas palavras da bela ópera uma onda de cor profunda e rósea, como a de uma noiva, inundou a face branca e ferida. Alargou-se depois ao peito e à raiz do cabelo. Todos três, que éramos espectadores, estávamos, creio, pálidos; mas aqueles que se olhavam resplandeciam num êxtase mudo e crescente.

Subitamente, a expressão do seu rosto desfez-se, como o gelo que à noite se formava no tanque se dissolvia quando eu, rapaz ainda, lhe atirava uma pedra. O seu rosto era uma constelação de estrela tremulando no Universo. Uma chuva de lágrimas brotou dos seus olhos e banhou as suas faces. Todo o seu corpo vibrava com a paixão, como a corda de um instrumento.

- Oh! - exclamou ela. - Vê, olha para mim! É Pellegrina Leone... É ela, é ela mesma outra vez... É ela que voltou. Pellegrina, a maior cantora, a pobre Pellegrina, ela está no palco outra vez. Para honra de Deus, como antes. Oh, ela está aqui, é ela... Pellegrina, Pellegrina em pessoa!

Custava a crer que, meio morta como estava, ela pudesse albergar no peito essa tempestade de triunfo e dor. Era, claro está, o seu canto do cisne.

- Venham para junto dela, agora, todos, outra vez - disse ela. - Voltem, meus filhos, meus amigos. Sou eu... eu para sempre, agora.

Chorava num arrebatamento de alívio, como se tivesse dentro de si um rio de lágrimas longamente reprimido.

O velho judeu estava num estado horrível de tensão e dor. Vi-o cambalear por momentos, incapaz de se manter de pé. As suas pálpebras estavam inchadas, e grossas lágrimas se comprimiam nos seus olhos e depois correram pelas suas faces. Mas ele permaneceu de pé, e não ousou dar largas à sua emoção, embora isto lhe fosse dificílimo. Creio que lutou com todas as suas forças, por medo de, abandonando-se à dor débil como estava, morrer antes dela, e faltar-lhe nos seus últimos momentos.

Subitamente pegou na sua bengala e deu três pancadas secas no lado da padiola.

- Donna Pellegrina Leone - exclamou em voz clara - en scène pour le deux.

Como um soldado respondendo à chamada, ou um ginete ao som do clarim, ela serenou ao ouvir estas palavras. Instantes depois aquietou-se numa calma valorosa e espectral. Olhou com os seus enormes olhos negros. Num movimento poderoso, como a vaga que se eleva e se afunda, ela ergueu o meio do corpo. Um estranho som, como o urro distante de um grande animal, veio do seu peito. Lentamente o rubor da sua face se extinguiu e uma palidez de cinza o sepultou. O seu corpo caiu para trás, alongou-se na padiola e ficou perfeitamente imóvel; e ela morreu. O velho enfiou a cartola.

- Iisgadal rejiiskadisch schemel robô - disse ele. Ficámos ali por algum tempo, de pé ainda. Depois fomos para o refeitório e lá nos sentámos. Mais tarde, quando já quase amanhecia, anunciaram-nos que as nossas duas carruagens tinham chegado por fim. Saí a dar ordens aos cocheiros. Queríamos seguir viagem assim que houvesse luz suficiente. Seria o melhor, pensei eu, embora não soubesse ainda para onde ir.

Quando passei pela comprida sala vi que as velas continuavam acesas, mas a luz matinal entrava pelas janelas. Ali estavam os dois: Pellegrina na sua padiola o velho judeu a seu lado, o queixo apoiado na bengala. Pensei que não devia separar-me dele ainda. Acerquei-me do velho.

- Então, senhor Cocoza - disse-lhe - o senhor não está desta vez a enterrar a grande artista, cujo túmulo o senhor abriu há muitos anos atrás, mas a mulher de quem foi o amigo.

O velho ergueu os olhos para mim.

- Vous êtes trop bon, Monsieur - disse ele, o que quer dizer: É muita bondade a sua, senhor.

- Esta, Mira - disse Lincoln - é a minha história. Mira inspirou, expirou depois lentamente, e assobiou.

- Já tenho pensado - disse Lincoln - no que seria feito dessa mulher se não tivesse morrido ali. Podia estar connosco esta noite. Era boa companhia, e ter-se-ia harmonizado com tudo isto. Podia ter-se feito dançarina em Mombaça, como Thusmu, esse mostrengo de olhos fulvos, a amante do pai e do avô de Said, por cujo abraço ela ainda hoje suspira. Ou podia ir connosco para os planaltos, ou numa expedição a buscar marfim ou escravos, e decidir-se a ficar aqui com uma tribo guerreira dos nativos dos planaltos, e ser por eles honrada como grande feiticeira. Cheguei a pensar que, no final da vida, ela quisesse fazer-se um bonito e pequeno chacal, e procurar o seu covil na planície, ou na encosta da montanha. Imaginei-o tão vividamente que, numa noite de luar, acreditei ter ouvido a sua voz nos montes. E vi-a então, correndo, brincando com a sua pequenina sombra, graciosa, de coração sereno e divertida.

- Ah, Ia, Ia - disse Mira, que, na sua qualidade de contador de histórias, era um imaginativo e excelente ouvinte - eu também ouvi esse pequeno chacal. Eu também a ouvi. Ela diz assim: «Eu não sou um pequeno chacal, um não; sou muitos pequenos chacais.» E pás!, logo ela é realmente outro chacal, que diz mesmo atrás de nós: «Eu não sou um pequeno chacal. Agora sou outro.» Espera, Lincoln, até que eu a ouça mais uma vez. Então farei uma história sobre ela, para emparelhar com a tua.

- Bom - disse Lincoln - esta é a minha história. A lição para Said.

- Eu conheço toda a tua história - disse Mira. - Já a ouvi antes. Agora acredito que fui eu próprio que a inventei.

O Sultão Sabour de Corassã era um grande herói, não só um herói, como um homem santo, que tinha visões e ouvia vozes que lhe comunicavam a vontade do Senhor. Por isso ele queria dá-la a conhecer a todo o mundo, a ferro e fogo. Mas infelizmente foi atraiçoado por uma mulher, uma dançarina, mesmo no zénite da sua órbita; é uma longa história. O seu grande exército foi aniquilado. A areia do deserto bateu o sangue dos guerreiros; os abutres alimentaram-se deles. Os lamentos das viúvas e dos órfãos subiram aos Céus. O seu harém foi repartido pelos seus inimigos. Ele próprio foi ferido, e só um escravo o arrastou dali e o salvou. Por amor dos seus soldados, agora ele não se mostra nem se dá a conhecer na sua condição de pedinte. Como a mulher da tua história, ele se transformou em muitas pessoas e abandonou-se, como ela, de ser um só. Uns dias é aguadeiro, depois o servo de um khadi, logo um pescador junto do mar, ou um santo ermita. É um homem muito sábio. Sabe muitas coisas e deixa fundo a marca dos seus passos onde quer que vá. Faz a todos que encontra muito bem e algum mal; ainda é um rei. Mas não permanecerá o mesmo por longo tempo. Quando ganha amigos e mulheres que o amam, foge deles e da região, tal é o seu medo de voltar a ser o Sultão Sabour, ou qualquer uma pessoa apenas. Ao o seu escravo o conhece. A este escravo, lembro-me agora, cortaram o nariz por amor a Sabour.

- Ai, Mira, a vida é cheia de coisas desagradáveis - disse Lincoln.

- Ah, como para mim - disse Mira - onde quer que vá. Tu próprio tens escrito no teu Livro Santo que todas as coisas se unem para o bem daquele que ama a Deus.

- Essa declaração de amor - perguntou Lincoln - vem do coração ou dos lábios do poeta da corte?

- Não, eu falo com o coração - disse Mira. - Há muito tempo que venho tentando compreender Deus. Agora tornei-me Seu amigo. Para O amarmos verdadeiramente temos de amar a mudança, e temos de amar o riso, pois são estas as verdadeiras inclinações do seu coração. Em breve aprenderei a amar o riso tão bem que eu, que dantes gelava o sangue do mundo inteiro, me tornarei um contador de histórias divertidas, para fazer todos rir.

- Então, e de acordo com a Lei do Profeta - disse Lincoln - tu estarás, como os barbeiros e os homens que beijam as esposas em público, impedindo de ser testemunha num tribunal.

- Assim é - concordou Mira. - Estarei impedido de ser testemunha.

- O que diz Said? - perguntou Lincoln.

Said, que estivera sentado e imóvel por todo esse tempo, riu brevemente. Olhou em direcção à terra. Na luz da Lua uma faixa branca e indecisa estava surgindo e um murmúrio enchia o ar, como a vibração de uma corda.

- Aqueles - disse Said - são os grandes rápidos do rio Takaungu. Estaremos em Mombaça à alvorada.

- A alvorada? - disse Mira - Então vou dormir por uma ou duas horas.

Agachou-se nas tábuas do convés, puxou a capa para si, tapou a cabeça, e deitou-se a dormir, imóvel como um morto.

Lincoln ficou sentado por algum tempo, fumando um ou dois cigarros. Depois também ele se deitou, voltou-se um par de vezes, e adormeceu.

 

                                                                                Karen Blixen  

 

                      

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